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IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 0

03 a 05 de novembro de 2010
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 1
03 a 05 de novembro de 2010

Anais
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social
03 a 05 de novembro de 2010

Organizadoras:
Prof.ª Dr. Rosani Úrsula Ketzer Umbach
Adriana Röhrig
Ana Paula Cantarelli
Geice Peres Nunes

Comissão Científica:
Adriana Röhrig
Ana Paula Cantarelli
Geice Peres Nunes

Capa:
Romulo Tondo
Imagens da capa: Arquivo de Fotos UFSM www.ufsm.br/50anos

ISBN:
978-85-99572-23-8

Realização:
Universidade Federal de Santa Maria - UFSM
Programa de Pós-Graduação em Letras Ŕ PPGL/ UFSM
Linha de pesquisa Literatura, Comparatismo e Crítica Social

Apoio:
Grupo de Pesquisa Literatura e Autoritarismo

Local:
Santa Maria - RS
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03 a 05 de novembro de 2010

APRESENTAÇÃO

Este volume apresenta os Anais do IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica


Social: Memórias e histórias, realizado nos dias 3, 4 e 5 de novembro de 2010 na Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM), evento promovido com apoio do Programa de Pós-Graduação
em Letras, Capes e CNPq. O Simpósio reúne professores e estudantes para debaterem temas de
interesse da linha de pesquisa Literatura, Comparatismo e Crítica Social.
O evento abre espaço a estudantes de iniciação científica, mestrado e doutorado, bem
como aos pós-doutorandos e outros pesquisadores, permitindo que suas idéias sejam debatidas.
Este é o quarto simpósio que realizamos desde 2007. A interdisciplinaridade, uma característica
desta linha de pesquisa, é inerente aos estudos que aqui se apresentam. Entre as linhas
temáticas que conduzem os trabalhos, estão as seguintes: Literatura e História; Literatura, outras
Artes e Mídias; Literatura e Alteridade; Tradução Literária e Interpretação; Literatura e
Autoritarismo.
Os autores estudados incluem tanto brasileiros como estrangeiros de vários países: Luiz
Antônio Assis Brasil, Autran Dourado, Fernando Pessoa, Sérgio SantřAnna, Augusto Meyer, Kate
Chopin, Leopold von Sacher-Masoch, Yasunari Kawabata, Erico Verissimo, Caio Fernando Abreu,
Javier Cercas, Moacyr Scliar, Mia Couto, Virginia Woolf, Lídia Jorge, Cecília Meireles, Augusto
Abelaira, Domingo Sarmiento e Tabajara Ruas. Ademais, apresentam-se ensaios sobre narrativas
de testemunho chinesas, sobre a Escola de Konstanz e sua valorização do leitor, a poesia épica
no Romantismo brasileiro, a literatura de cordel e o teatro itinerante no Rio Grande do Sul.
Ao longo das apresentações, são feitas referências a estudos teóricos fundamentais para a
linha de pesquisa Literatura, Comparatismo e Crítica Social, sendo examinada sua atualidade
para as respectivas análises Ŕ entre muitos outros, Hall, Couche, Hutcheon, Bakhtin, Le Goff, e
também Freud, Nietzsche, Paul Ricoeur, Walter Benjamin e Theodor Adorno.
A realização deste simpósio não seria possível sem o trabalho incansável dos acadêmicos
que atuam na comissão organizadora do evento. Deixo aqui o agradecimento a eles e também a
todos os participantes que, com seus trabalhos e discussões, contribuem para o debate público
acerca dos Estudos Literários.
Agradeço também às co-organizadoras destes Anais que, depois de examinado o material,
conduziram sua publicação. Os trabalhos são agora apresentados para leitura e apreciação,
estando abertos ao debate.

Santa Maria, novembro de 2010


Rosani Ketzer Umbach
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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 2

A INOCÊNCIA E A DEMÊNCIA DE JACÓ-MULA ENQUANTO ESTRATÉGIA 5


DISCURSIVA EM VIDEIRAS DE CRISTAL, DE LUIZ ANTÔNIO ASSIS BRASIL
Adriana Röhrig

CONFLITO E ALIENAÇÃO EM ÓPERA DOS MORTOS, DE AUTRAN 13


DOURADO
Ana Paula Cantarelli

MANIFESTAÇÕES DE ALTERIDADE EM FERNANDO PESSOA 25


Anderson Amaral de Oliveira

O PROCESSO CRIATIVO EM FOCO: A NARRATIVA PERFORMÁTICA DE 31


SÉRGIO SANT’ANNA
Carine Daniele Franke

AUGUSTO MEYER, A CHAMINÉ E O SENHOR FEUDAL 39


Carla Cristiane Martins Vianna

AS VOZES DE LIBERTAÇÃO FEMININA QUE ECOAM EM THE AWAKENING, 47


DE KATE CHOPIN
Deisi Luzia Zanatta

O TEATRO ITINERANTE NO RIO GRANDE DO SUL: 50 ANOS DE HISTÓRIA 56


entre a cultura popular e a tradição clássica
Elaine dos Santos
Pedro Brum Santos

AUTORIDADE E AUTORITARISMO NA OBRA INCIDENTE EM ANTARES DE 63


ÉRICO VERÍSSIMO
Elenara Walter Quinhones

O CONTEXTO REPRESSIVO E A IDENTIDADE CULTURAL DAS 70


PERSONAGENS NOS CONTOS DE CAIO FERNANDO ABREU
Fernanda de Paula Araújo

LITERATURA E MEMÓRIA: O TESTEMUNHO E O RELATO EM SOLDADOS 80


DE SALAMINA
Gabriela Colbeich da Silva

O CANTADOR PROJETADO EM A MALASSOMBRADA PELEJA DE 88


FRANCISCO SALES COM O “NEGRO VISÃO”
Geice Peres Nunes

REGIONALISMO BRASILEIRO: A IDENTIDADE NACIONAL (2010) 97


Isabele Corrêa Vasconcelos Fontes Pereira
Silvia Niederauer
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QUESTÕES DE ALTERIDADE NO CONTO “A ROSA CARAMELA”, DE MIA 104


COUTO
Jaqueline Chassot

A REDENÇÃO DE MRS. DALLOWAY E A ATUALIZAÇÃO DO PENSAMENTO 110


WOOLFIANO
Lenine Ribas Maia
Lawrence Flores Pereira

A ESCOLA DE KONSTANZ E A VALORIZAÇÃO DO LEITOR 117


Luciéle Bernardi de Souza
Luciane Bernardi de Souza
Sonia Inez Gonçalves Fernandez

A CONFEDERAÇÃO DOS TAMOIOS: POLÊMICA E EMERGÊNCIA NO 122


CAMPO LITERÁRIO BRASILEIRO
Luciano Melo de Paula

REFLEXOS DA RUPTURA – UMA LEITURA DE O DIA DOS PRODÍGIOS, DE 130


LÍDIA JORGE
Mauro Dunder

DO SILÊNCIO À PALAVRA – RELATOS SOBRE A CHINA 137


Neiva Mallmann Graziadei

O RISO E A DENÚNCIA SOCIAL 144


Odirlei Vianei Uavniczak

MEMÓRIAS E IDEAIS DE DOMINGO SARMIENTO EM FACUNDO – 151


CIVILIZACIÓN Y BARBÁRIE
Paula Klein

ENTRE O TEATRO E A LITERATURA – UM ESTUDO SOBRE A 162


REPRESENTAÇÃO E O VILÃO
Paula Fernanda Ludwig

A EXPLICITAÇÃO DE CONFLITOS HUMANOS NA POESIA DE CECÍLIA 169


MEIRELES PELA APROPRIAÇÃO DO ESTÉTICO E DO LÚDICO
Priscila Finger do Prado

TRIUNFO DA MORTE, DE AUGUSTO ABELAIRA: UM INVENTÁRIO 179


SINTOMÁTICO, INSÓLITO E PARÓDICO DAS ANTINOMIAS PÓS-
MODERNAS
Raul Henrique Amaro da Silveira Simões
Mauro Nicola Póvoas

O ESCRAVO E A VÊNUS 185


Roberson Rosa

QUESTÕES DE ALTERIDADE NO CONTO “ANNA, A JAPONESA” 194


Samara Leonel
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A INOCÊNCIA E A DEMÊNCIA DE JACÓ-MULA ENQUANTO ESTRATÉGIA


DISCURSIVA EM VIDEIRAS DE CRISTAL, DE LUIZ ANTÔNIO ASSIS BRASIL

ADRIANA RÖHRIG1

Resumo
Este artigo visa perceber como fatos históricos podem ser representados em obras literárias, em especial o
Episódio dos Muckers em Videiras de Cristal de Luiz Antônio de Assis Brasil. Além disso, intenciona verificar
que valores sociais e culturais se contrapõem nesta obra, bem como analisar o papel das percepções da
personagem Jacó-Mula na construção da protagonista (Jacobina) de Assis Brasil. Enfim, o objetivo é entrar
e sair da obra, procurando nos elementos estéticos o referente externo em comparação ao seu mundo
ficcional.
Palavras-chave: história, literatura, Videiras de Cristal;

Abstract
This article aims to perceive how historical events can be represented in literary works, especially in
Muckersř Episode, in Videiras de Cristal, written by Luiz Antonio de Assis Brasil. In addition, it intends to
verify social and cultural values that are opposed in this work, as well as examining the role of perceptions of
the character Jacob-Mula, in the construction of Assis Brasilřs main character (Jacobina). Ultimately, the goal
is to get in and out of work, looking for the aesthetic elements in the external referent in comparison to his
fictional world.
Keywords: history, literature, Videiras de Cristal.

INTRODUÇÃO

As relações entre Literatura e História têm tido, nas últimas décadas, um espaço
considerável no âmbito acadêmico, tanto nos cursos de Letras, nos quais se analisam as
representações de fatos históricos nas obras literárias, quanto nos cursos de História, nos quais
têm se valorizado obras literárias a fim de compreenderem-se contextos históricos. Todavia a
discussão transcende tais olhares sobre as duas áreas em diálogo à medida que uma questão
ainda mais polêmica se sobrepõe a estas: há quem chegue a considerar que Literatura e História
são faces da mesma moeda, já que ambas constituem-se em discurso.
Haiden White talvez seja o pensador que com mais propriedade discute essa questão, uma
vez que chega a declarar que Ŗhá muitas histórias que poderiam passar por romance, e muitos
romances que poderiam passar por histórias, considerados em termos puramente formaisŗ.
(WHITE, 2001, p. 137-138). O autor chama a atenção para o fato de que os historiadores do
século XIX não se apercebiam, ou não queriam admitir, que Ŗos fatos não falam por si mesmos,
mas que o historiador fala por eles, fala em nome deles, e molda os fragmentos do passado num
todo cuja a integridade é Ŕ na sua representação Ŕ puramente discursivaŗ. (WHITE, 2001, p. 141).
O hiato entre a consciência linguística dos historiadores contemporâneos e dos
historiadores clássicos advém do Ŗreconhecimento irônico de que qualquer protocolo linguístico

1
Doutoranda em Estudos Literários na UFSM. Bolsista Capes.
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dado deverá obscurecer, tanto quanto revelar, a realidade que procura capturar numa ordem de
palavrasŗ. (WHITE, 2001, p. 146). White reitera que Ŗesta aporia ou senso de contradição que
reside no próprio coração da linguagem se acha presente em todos os historiadores clássicosŗ,
sendo que Ŗé esta autoconsciência linguística que os distingue de seus congêneres e seguidores
mundanosŗ que, segundo este autor, Ŗpensam que a linguagem pode servir de meio perfeitamente
transparente de representação e que imaginam que, se for encontrada a linguagem correta para
descrever os eventos, o sentido destes se revelará à consciênciaŗ. (WHITE, 2001, p. 146).
Enfim, White coopera para tornar frutíferas as relações entre História e Literatura ao
evidenciar que ambas são discursos e por isso passíveis de questionamentos. Vale destacar que
a partir de tais postulações a história deixa de ser vista como um depositário de fatos e dados,
para se fazer partícipe da vida da humanidade. Assim, ela deixa de ser vista como uma verdade
absoluta, precisa, quase de exatidão matemática, para ser encarada como uma esfera entre as
produções do homem, como as são, também, a Arte e a Filosofia.

1 MIMESIS ENQUANTO RECRIAÇÃO DO REAL

Em se tratando das produções literárias, antes de tudo se faz imprescindível evocar as


discussões sobre mimesis, uma vez que esse conceito é o alicerce de toda e qualquer reflexão
sobre uma obra literária. A história da mimesis na Teoria Literária parte de duas vertentes
basilares. De um lado, a concepção aristotélica de mimesis e de outro, a visão platônica.
Aristóteles estabelece um elo entre a palavra mimesis com a arte e a natureza. De acordo com
esse elo, a arte imita a natureza; nesse sentido, a poesia para Aristóteles é imitação. Essa
imitação, segundo o autor de A Poética, pode imitar homens Ŗpioresŗ (comédia) ou Ŗmelhoresŗ
(tragédia). Aristóteles entende que é através da imitação que o homem adquire seus primeiros
conhecimentos, por isso, ética e estética para ele são, imageticamente falando, uma mônada. Isto
é, ética e estética, por assim dizer, constituem o efeito literário ideal, o que se espera provocar no
leitor, para que este chegue a uma só vez, à catarse e ao aprendizado. Platão, por sua vez,
compreende a arte como representação do mundo das aparências e das opiniões, mais ligada ao
mundo das idéias. Ou seja, para esse filósofo o real, a verdade e o bem residem em um nível
superior e a realidade em si é uma imitação da realidade estabelecida nesse âmbito elevado.
O olhar de Aristóteles parece ter mais relevo na teoria e crítica liter, porque ele explicita
que a poesia (estendendo para literatura de forma geral) é imitação de um objeto, de um
determinado modo e através de meios peculiares e a partir disso interpreta-se ele não se refere a
uma cópia fiel do objeto, mas às possibilidades de recriar e Ŗcolorirŗ esse objeto, a realidade (nas
palavras de Aristóteles, as ações dos homens).
Seguidor de Aristóteles, Bakhtin traduz os elementos abordados pelo autor de A poética
em o conteúdo, a forma e o material. Bakhtin afirma que Ŗpode-se distinguir na obra de arte, ou
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melhor, em um desígnio artísticoŗ, esses três elementos, enfatizando que Ŗa forma não pode ser
entendida independentemente do conteúdo, mas não pode ser independente da natureza do
material e dos procedimentosŗ. (BAKHTIN, 2003, p.177-178). Nesse sentido, a obra é
condicionada ao conteúdo que aborda e, ao mesmo tempo, Ŗà peculiaridade do material e aos
meios de sua elaboraçãoŗ. Isso significa conceber-se a representação na obra literária, simultânea
e indissociavelmente, em duas dimensões, enquanto representação do mundo e enquanto
representação de si. Isto é, pressupõe a aceitação de que a literatura se refere ao elemento
externo e ao mesmo tempo se volta ao mundo interno que cria.

2 VIDEIRAS DE CRISTAL Ŕ VALORES EM CONTRASTE

O romance Videiras de Cristal, de Assis Brasil, indubitavelmente recria a realidade, visto


que a história nos episódios do romance, adquire facetas que documentos ou textos oficiais
jamais revelariam, ao mesmo tempo que evidencia contrastes sociais e discute valores vigentes
em determinada época e contextos históricos. Nesse sentido, importa ao autor a história que
poderia ter existido e não reproduzir o discurso (dominante) já existente; assim, a representação
não se pretende cópia fiel de uma pretensa realidade, mas, sim, dar a essa realidade um viés
ficcional, em que mais de uma voz pode ser ouvida. Visto sob esse ângulo, pode-se dizer que o
conteúdo histórico é recriado pela lente artística.
O autor parece intencionar reconstituir no romance o universo fechado da colônia alemã,
construindo uma visão de abandono e perda de referências, que leva os imigrantes alemães
alojados em Ferrabrás Ŕ tanto resistentes às regras de seu novo país, e às suas respectivas
instituições reguladoras, quanto não-assimilados por este Ŕ às raias da loucura. Uma loucura
reprimida que manifesta o desespero e se converte em silêncio, no contexto histórico em que,
talvez, não caiba mais ao homem nada dizer ou esperar Ŕ e essa é uma das ironias que a obra
encerra.
A construção das personagens em Videiras de Cristal parece ser seu ponto alto, é através
dos seus enunciados ou no relato de suas ações (e visões) e conflitos que é, muito bem,
representada, por exemplo, a repressão ao diferente Ŕ transformado em louco pela sociedade Ŕ
como se percebe em Jacobina e Jacó Mula. O contraste de suas demências e a sua convivência
evidenciam, em certa medida, os paradoxos da dominação dos valores da sociedade burguesa.
Nesse sentido, Videiras de Cristal representa a loucura para além do plano individual, abordando-
a como um fenômeno coletivo. Masina (1995) afirma que a obra Ŗaprofunda a análise da loucura
coletiva que assola uma comunidade fechada e sem saída, onde as paixões dialogam com a
lucidez e funcionam como índices de resistênciaŗ (MASINA, 1995, p.20) a um processo de
degradação que privilegia a semelhança e destrói a diferença. Isso se transforma em denúncia
quando o leitor Ŗsente a proximidade com o fato ocorrido, Řa verdadeř que subjaz ao Řpossívelř do
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texto literário. O registro do processo de colonização que visava homogeneizar culturas acentua,
portanto, o elemento político na obra romanesca de Luiz Antonio de Assis Brasil." (MASINA, 1995,
p.20).
Subjaz ao viés político da obra, e todos os seus desdobramentos, as visões divergentes
dos pastores Boeber e Klein, em especial, que revelam as contradições da igreja (no caso, a
protestante), instituição poderosa e basilar na sociedade representada. A passagem que segue
demonstra isso com certa nitidez:

- Veja bem, Boeber. Klein [...] chegou-se mais perto [...] você fala em ânimos
exaltados, mas ânimos exaltados de quem, se não de seus paroquianos? Os
ânimos no Ferrabrás são inteiramente pacíficos.
Boerer revidou, respirando com força:
- E você considera ânimo pacífico o afastar os filhos do colégio, negar-se a pagar
dízimos...? (ASSIS BRASIL, 1994, p.181)

Ao observar o teor do diálogo acima, pode-se questionar até onde vai o desatino da
comunidade de Ferrabrás e onde começa o controle social sobre um grupo que fugia aos padrões
religiosos, morais e ideológicos da época e do meio social a que deveria estar inserido. Segundo a
professora Léa Masina, revisora literária dessa obra de Assis Brasil, o Episódio dos Muckers,
como é conhecido, é Ŗindigesto sob a ótica da política de colonização do Brasil, presta-se feito
mote à construção de um universo lúgubre e dramático em que a narrativa de cunho realista cede
espaço à representação de fantasias coletivas.ŗ (MASINA, 1995, p.20).
Nota-se, pois, que em Videiras de Cristal, segundo Masina (1995), não se fazem apologias
ao homem corajoso, resistente e forte. Percebe-se, sim, a motivação social do romancista em
construir Ŗa visão urgente e trágica de personagens que lutam desesperadamente contra a morte
certaŗ. (MASINA, 1995, p.20). É notável que tais personagens vão às últimas consequências
defendendo as suas verdades, desafiando a ordem estabelecida pela lei da igreja.
A sociedade que se contrapõe à comunidade aos Muckers, por sua vez, resiste ao
diferente, considerando-o heresia, pecado ou loucura. Assim, julga e recrimina, isolando. Vale
Tudo o que se desviasse do padrão estabelecido pelo grupo social dominante, consequentemente
fugia ao seu controle, era banido, rotulado ou silenciado. Isto é compreensível se for levado em
conta o pressuposto de que uma sociedade só consegue se manter a partir de padrões estáveis e
pré-estabelecidos. Por isso, aquele que vai de encontro às normas que mantém a sociedade em
seu eixo, desestabilizando a ordem, questionando valores, verdades e estruturas, é silenciado ou
desmoralizado, considerado um mentecapto, e assim cai no ridículo, para que não tenha
seguidores. É isso que parece querer mostrar Assis Brasil ao recriar o mundo, os feitos e desfeitos
da personagem Jacobina.

3 JACOBINA SOB A ÓTICA DE JACÓ-MULA


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A estratégia discursiva que o autor utiliza para formalizar algumas das características mais
importantes e, talvez, elevadas de Jacobina é a voz da personagem Jacó-Mula. Esse recurso é
instigante à medida que esta personagem, no início da narrativa, é declarado um bobo, e essa a
opinião de todos os que o conhecem, segundo a própria personagem. Todavia essa adjetivação é
replicada, também pela personagem, que afirma: ŖEu não acho que eu seja bobo. Sou só um
homem simples.ŗ (ASSIS BRASIL, 1994, p.38). Faz-se relevante observar que é essa sua
simplicidade, é não a sua Ŗbobeiraŗ que lhe permite raras experiências com Jacobina. Nesse
ínterim vale destacar o papel do médico consultado por Jacó no início da narrativa, pois na
verdade parece ser ele quem legitima a voz da personagem, bem como encoraja a sua ação de
seguir Jacobina:

E a idéia tantas vezes adiada, tantas vezes contrariada pela vontade feroz dos
parentes, a idéia que martelava sua cabeça há tanto tempo, fez com que
descesse a colina. Ganhou a Linha Geral do Padre Eterno e tomou depois à
esquerda o caminho da picada que lhe era proibida. (ASSIS BRASIL, 1994, p. 80)

Nota-se na passagem acima que a dúvida e a insegurança, até então presentes na vida de
Jacó-Mula, transformaram-se em resolução e esperança. Além disso, percebe-se a integração da
personagem com os elementos naturais, uma vez que a principal cúmplice de sua retumbante
mudança de vida, de sua libertação, por assim dizer, é a mata, onde

o calor murchava as folhas dos arbustos às margens do caminho e nenhum


pássaro cantava e toda a natureza parecia à espreita do grande acontecimento
que era estar ele, Jáco-Mula, ultrapassando os pórticos de um lugar já sagrado
para todos os habitantes da colônia. Os pés doíam [...] mas nunca se sentiu tão
leve e feliz. (ASSIS BRASIL, 1994, p.81)

Por outro lado, vale frisar que é a característica de bobo que dá às visões de Jacó-Mula
uma atmosfera peculiar, podendo-se inclusive delas suspeitar. Isto é, o leitor desconfia da
veracidade do que é dito que essa personagem, do que ela presencia ou faz. Essa estratégia
narrativa colabora ao caráter ficcional, metafórico da obra, desvinculando-a, em certa medida, do
referente externo. Isto é, a fábula desfaz o seu compromisso com o episódio real ocorrido no
Ferrabrás, ao narrador relatar determinados fatos sob o ponto de visto de um suposto bobo,
demente, maluco. É como se o narrador estivesse dizendo ao leitor, desconfie das coisas que
aqui conto, pois um dos homens, que diz muito ter visto, e que é uma das minhas testemunhas,
não passa de um doido.
Outro aspecto que merece destaque é o de que Jacó-Mula, do alto de sua inocência,
possui uma ótica isenta de malícia, o que assegura uma imagem mítica de Jacobina. Mas essa
visão não se restringe são a sua, ao que parece ele sintetiza a imagem que todos os seguidores
têm de Mutter (mãe em alemão), como a chamavam; estes a idealizavam e a endeusavam, não
aceitando a sua condição humana e feminina. Visto desse modo Jacó se constitui numa espécie
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de porta-voz da seita, e suas visões e opiniões deixam de ser individuais para representarem a
coletividade a que pertence. É também essa perspectiva ingênua, despida de maldade de Jacó-
Mula que parece salvar a ele e a própria Jacobina da hostilidade do mundo, representada pelos
moralismos e interesses da sociedade cristã da época e do lugar.
Sob o mesmo prisma, é a simplicidade da consciência de Jacó-Mula que possibilita que ele
seja um dos que sempre a veja em transe, além de ter o privilégio de poder compartilhar das
visões dela. Há duas passagens que denotam enfaticamente o olhar mítico de Jáco-Mula sobre a
protagonista; estes dizem respeito aos momentos que antecedem a morte da mesma:

às suas costas surge uma escada de mármore e luz, varando as copas das
árvores, ligando a Terra ao Céu. Anjos do Senhor montam guarda em todos os
degraus, empunhando tochas que lançam um brilho feérico por toda a mata. Os
tiros cessam, substituídos pela música dos carrilhões de Neiderlinxweiler. A Mutter
tira lentamente as vestes e assim, nua e bela e inocente, vai subindo os degraus.
A cada degrau mais anjos a seguem, formando um cortejo. (ASSIS BRASIL, 1994,
p. 529)

Observa-se nessa passagem mais uma vez a conexão da personagem Jacó-Mula com os
elementos naturais, em especial nas expressões copas das árvores e mata. São seus olhos
puros, desprovidos de preconceitos e malícias que possibilitam essa bela cena. O que aos olhos
dos moralistas cristãos poderiam parecer um despudor sensual: ŖMutter tira lentamente as
vestesŗ, para Jacó-Mula é o símbolo de sua candidez.
O elemento mítico também se manifesta veementemente no fragmento acima à medida
que a visão de Jacó é um intertexto com um texto bíblico que está no livro de Gênesis. Diz a
narrativa bíblica que a personagem Jacó, longe de casa, em situação-limite, deita-se sobre uma
pedra e sonha justamente isso: que sobe aos Céus através de uma escada, e uma legião de anjos
o protege nessa ida. No Céu, Deus o espera de Ŗbraços abertosŗ. É bastante interessante essa
relação que o narrador estabelece entre os dois episódios, pelo fato m si e inclusive devido à
aproximação dos nomes. Na Bíblia quem tem essa experiência é Jacó, irmão de Isau. Em Videiras
de Cristal, quem sobe pelos degraus até o Céu é Jacobina, e não é por acaso que seu mais
devoto seguidor, chama-se justamente Jacó, mesmo que Mula.
O êxtase e a felicidade de Jacó-Mula se completam quando

em dado momento ela para, volta-se para a Terra e, cercada pela corte celeste,
acena com suavidade. Diz a Jacó-Mula, apontando para o Norte:
- Vá. Vá enquanto é tempo.
Ele ainda assiste em êxtase à ascensão gloriosa até que Mutter não é mais do
que um pequeno ponto que as mãos gigantescas de Deus recolhem em suas
palmas. As tochas dos anjos vão-se apagando e a escada dissolve-se, deixando
no ar um perfume de macela. De imediato recomeça o terrível metralhar. (ASSIS
BRASIL, 1994,p.529)

Essa ascensão vislumbrada por Jacó corrobora ao caráter mítico da narrativa, reiterando a
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crença de que Jacobina era uma enviada por Deus, ou o Cristo-mulher, como ela se intitulava,
uma vez que remete justamente a uma outra narrativa, muito mais eloquente e conhecida, a
própria Paixão de Cristo. Sob esse viés, talvez o título A Paixão de Jacobina seja realmente tão
relevante quanto Videiras de Cristal. É pertinente também observar que a morte carnal de
Jacobina só pôde ser suportada por Jacó-Mula, porque espiritualmente os anjos já a haviam
salvo. É nesse consolo que se apoia Jacó.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entrar e sair da obra, procurar seus elementos estéticos, bem como buscar seu referente
externo constitui um dos trabalhos mais instigantes e produtivos ao se fazer crítica literária, por
mais incipiente que a abordagem seja e por mais ou menos realista que a obra possa, em primeira
instância, parecer. Os fatos narrados (ou descritos), como já dizia Aristóteles há bons séculos,
adquirem uma ou outra tonalidade de acordo com o modo como estes são contados e conforme
os meios utilizados.
Nesse sentido, o ponto de vista de Jacó-Mula sobre a Jacobina ficcional é extremamente
intrigante e revelador, como se pôde verificar nesta modesta análise. Essa personagem dá cores
e formas à protagonista que documentos ou narrativas ditas oficiais em absoluto dariam conta.
Por outro lado, não se pode perder de vista que referentes externos são notórios e incontestáveis
no romance. Em primeiro lugar por estar representando um episódio que efetivamente aconteceu
no interior do Rio Grande do Sul e sobre o qual se tem muitos testemunhos; em segundo; pelas
pequenas pistas deixadas no decorrer da narrativa, como, por exemplo, a evocação da pequena
cidade da Alemanha de onde saíram imigrantes que se alojaram no sul do Brasil, a pequena
Neiderlinxweiler.
Não obstante, mais ou menos comprometida com o que realmente aconteceu, o importante
é que a obra dá conta de apresentar um panorama sócio-cultural de um determinado período
histórico, no sentido de transpor para a obra a literária o espírito de uma época, em um contexto
em particular, função que Lucáks entendia dever ter o romance, histórico, se assim alguém quiser
o classificar.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. A Poética. In: Ética a Nicômano: Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os
Pensadores)

ASSIS BRASIL. Luiz Antônio. Videiras de Cristal. 4ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1994.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fonte, 2003.

COMPAGNON, Antoine. O Demônio da Teoria: Literatura e Senso Comum. Belo Horizonte:


UFMG, 2006.
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MASINA, Léa. O códice e o cinzel. In: Luis Antonio de Assis Brasil. 2ª ed. Porto Alegre: Instituto
Estadual do Livro/ULBRA/AGE, 1995, p. 20 (coleção Autores Gaúchos, v. 18)

WHITE, Hayden. As ficções da representação factual. In: Trópicos do discurso - Ensaios sobre a
crítica da cultura. São Paulo: EDUSP, 2001.
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CONFLITO E ALIENAÇÃO EM ÓPERA DOS MORTOS, DE AUTRAN DOURADO

ANA PAULA CANTARELLI2

Resumo
Este artigo apresenta uma proposta de análise do romance Ópera dos mortos, de Autran Dourado, a partir
das características encontradas na Modernidade. Aspectos como o conflito e a alienação nortearam nossas
considerações ao longo de todo o estudo no intuito de perceber como os elementos internos da narrativa
estão relacionados com esse período histórico.
Palavras-chave: Modernidade; fragmentação; isolamento.

Resumen
Este artículo presenta una propuesta de análisis de la novela Ópera dos mortos, de Autran Dourado,
considerando las características de la Modernidad. Aspectos como el conflicto y la alienación orientaron
nuestras consideraciones a lo largo de todo el estudio con la intención de percibir como los elementos
internos del texto están relacionados con ese periodo histórico.
Palabras-clave: Modernidad; fragmentación; aislamiento.

INTRODUÇÃO

Não pretendemos neste estudo esmiuçar todos os traços que marcam o nascimento e a
existência do período histórico compreendido entre o final do século XVIII e meados do século XX,
denominado Modernidade. Apenas desejamos realizar breves considerações sobre alguns de
seus traços que sejam capazes de elucidar determinados aspectos presentes no romance Ópera
dos mortos, de Autran Dourado.
O princípio da Modernidade, como aponta Octávio Paz (1984), ocorreu no final do século
XVIII, sendo este um período singular, cuja principal característica, de acordo com este autor, está
vinculada à crítica e à razão. O emprego de termo Ŗmodernoŗ como sinônimo de novo pode ser
encontrado em diversos momentos da história, entretanto nenhuma época antes da nossa
autodenominou-se como Modernidade (PAZ, 1984). As implicações dessa denominação estão
atreladas ao fato da razão ter sido erigida como pedra fundamental desse período histórico. Entre
tantos aspectos, poderíamos facilmente selecionar os vocábulos Ŗrazãoŗ e Ŗcríticaŗ como palavras-
chave para esse período.
De acordo com Paz, na Modernidade, Ŗa razão surge como um princípio suficiente: idêntica
a si mesma, nada a fundamenta a não ser ela própria e, portanto, é a base do mundoŗ (PAZ,
1984, p. 46). Fundamentada na razão, a sociedade moderna busca explicar o mundo e seus
mistérios Ŕ antes atributo divino Ŕ na tentativa de alargar as margens de segurança dos
indivíduos, de erigir-se sobre pilares Ŗverdadeirosŗ. Contudo, Ŗesses sistemas não tardam a ser
substituídos por outros, nos quais a razão é sobretudo crítica. Voltada sobre si mesma, a razão

2
Doutoranda em Estudos Literários do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFSM. Bolsista CAPES.
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deixa de ser criadora de sistemas; ao se examinar, traça seus limites, julga-se e, ao se julgar,
consuma sua destruição como princípio dirigenteŗ (PAZ, 1980, p. 46). Crítica do outro e de si
mesma, a Modernidade, ciente de suas limitações, busca outras formas, em constante mudança,
em um movimento contínuo de construção Ŕ crítica Ŕ destruição, estabelecendo um paradoxo: a
crítica Ŗcriticaŗ a situação dada, buscando alcançar o que a situação criticada também buscava.
Ao lado da razão, da crítica e da mudança há outros traços que podem ser relacionados a
esse período: o aumento da produção, a construção de indústrias, o estabelecimento de uma
rotina de trabalho no interior das fábricas, a segmentação da atividade produtiva. Tais aspectos já
se delineavam ao longo dos séculos XVI e XVII, mas é na Modernidade que vão encontrar o seu
ápice. Quando a produção e o acúmulo de capital são postos no centro da vida pública, principia o
que pode ser chamado de processo desumanizador e alienante. Separado do fruto de seu
trabalho, tendo somente uma noção fragmentária da sua atividade, os indivíduos perdem a noção
de totalidade, ocasionando, de acordo com Mészáros (1993), Ŗa desintegração progressiva das
ligações sociais, a crescente atomização da sociedade, a intensificação do isolamento dos
indivíduos, uns em relação aos outros, e a solidão, necessariamente inerente a essas tendências,
sendo ela própria produto da alienaçãoŗ. Tais aspectos declinam para uma situação de conflito,
uma vez que o indivíduo vê-se cindido: o elemento subjetivo da realidade social encontra-se
separado do objetivo (KOSIK, 1979). Assim erigida, a Modernidade traz como marca de nascença,
o conflito, uma vez que ela nasce no conflito, o vivencia e não o resolve. Esse caráter conflitivo é
um dos aspectos que nos interessa neste trabalho.
O segundo aspecto de nosso interesse diz respeito ao comportamento assumido pelos
escritores em relação à situação alienante presente na Época Moderna. Frente a esse cenário,
muitos escritores europeus optaram pela exaltação do indivíduo e pela defesa da solidão como
uma forma de crítica ao contexto. E, é essa postura de afastamento como uma forma de crítica
que também nos interessa. Esses dois aspectos Ŕ o conflito e o afastamento - nos parecem
centrais se considerarmos as bases sob as quais a época Moderna se erigiu Ŕ a razão, a crítica, a
mudança. Assim, a partir deles nos aproximaremos do romance selecionado, em uma tentativa de
identificar como os acontecimentos internos da narrativa possuem relação com a Modernidade.

1 ÓPERA DOS MORTOS

O romance Ópera dos mortos, de Autran Dourado, foi lançado em 1967 e encontra-se
dividido em nove capítulos: 1. O Sobrado; 2. A Gente Honório Cota; 3. Flor de Seda; 4. Um
Caçador Sem munição; 5. Os Dentes da Engrenagem; 6. O Vento Após a Calmaria; 7. A
Engrenagem em Movimento; 8. A Semente no Corpo, na Terra; 9. Cantiga de Rosalina.
Ambientado em uma pequena cidade do interior de Minas Gerais, o foco principal da narrativa
está voltado para o sobrado da família Honório Cota.
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Construído por Lucas Procópio, o sobrado ganhou um segundo andar com a intervenção
de João Capistrano Honório Cota, seu filho. João, casado com dona Genu e pai de Rosalina,
viveu nessa construção até morrer. Rosalina, após a morte dos pais, seguiu morando no sobrado,
onde, distante da cidade, levou uma vida de isolamento e silêncio, na companhia de Quiquina,
uma empregada muda, e de José Feliciano (Juca Passarinho), seu agregado. José Feliciano só
foi contratado por ser de outro lugar, por não pertencer ao povo da cidade, e pela necessidade de
realizar reparos na estrutura do sobrado que com o tempo começou a deteriorar-se.

1.1 A reclusão no sobrado

Com João Capistrano Honório Cota principiou a tradição mais refinada da família Honório
Cota, uma vez que Lucas Procópio, seu pai, era um homem temido pela cidade por fazer valer
sua vontade a qualquer preço, sendo conduzido por seus instintos. Esse refinamento pode ser
percebido na construção do segundo andar do sobrado, no qual as aberturas possuem linhas
mais leves do que as vergas das janelas de baixo, construídas no tempo de Lucas, que Ŗeram
retas e pesadasŗ (DOURADO, 1980, p. 4); e nos móveis selecionados por João para adornar o
interior da casa que denunciavam sua tentativa de superar o pai.
Plantador de café e dono de fazenda, João, em meio a seus devaneios, decidiu ingressar
na política, candidatando-se para um cargo na administração pública. Após uma eleição bem
sucedida, saiu vitorioso. Entretanto, um acordo entre os dois partidos existentes na cidade fraudou
a eleição, escamoteando-o do governo. Tal fato o desgostou a ponto de fazer com que ele se
isolasse dentro do sobrado em uma tentativa de preservar-se, de proteger-se da cidade que o
havia desgostado e ferido o seu orgulho. Essa postura provavelmente não teria sido adotada por
Lucas, contudo, mais refinado e mais sensível que o pai, a maneira que João encontrou para
mostrar seu mal-estar foi o distanciamento. O distanciamento promovido por João é consciente
uma vez que, magoado, ele recusou o convívio com o povo daquele local, embora não se
mudasse. O afastamento, no que se refere a essa personagem, demonstra a não superação da
traição da qual foi vítima.
O sobrado, espaço fechado, serviu como lugar de isolamento não apenas para João
Capistrano e sua família. Salvo as saídas necessárias, o espaço de atuação dessas personagens
ficou restrito aos dois andares dessa construção. Com a morte de dona Genu e depois com a de
João, Rosalina intensificou esse isolamento, fechando-se ainda mais dentro do sobrado. Sem
receber visitas, a não ser os raros aparecimentos de Emanuel, ela reduziu ainda mais o seu
espaço de atuação, trancando todos os quartos, com exceção do seu e das peças do andar
inferior. Se o que motivou João a distanciar-se do convívio com os moradores do lugar foi a
mágoa, o que motivou Rosalina a dar continuidade a esse isolamento foi a raiva, o ódio que nutria
pela traição que o pai havia sofrido, pela reclusão a que se viu obrigada e pelos planos não
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concretizados. A própria personagem impôs-se o dever de lembrar, o dever de dar continuidade


ao afastamento principiado pelo pai.
Fechado para a cidade, o sobrado é um lugar seguro, no qual a solidão e o silêncio
tornam-se presentes, assumindo quase uma materialidade como pode ser percebido pelos
adjetivos que acompanham esses dois vocábulos no texto: Ŗsilêncio mais densoŗ, Ŗpesado
silêncioŗ, Ŗsufocanteŗ. Apesar da proteção, o preço pago pelo distanciamento é caro, pois ao
mesmo tempo em que o isolamento protege, ele expõe a riscos, constituindo um conflito
indissolúvel: Proteção X Riscos (perigo). Em um espaço restrito, longe do convívio social,
Rosalina principia a enlouquecer, uma vez que ao lado da segurança física está a vulnerabilidade
psicológica.
O comportamento da cidade em que vive Rosalina não é pacífico quanto ao isolamento da
família, pois os moradores vivem rondando o sobrado, interrogando sobre o que acontece no seu
interior, na ânsia de integrar sua moradora novamente à cidade. E, ao longo do romance, o
distanciamento de Rosalina intensifica-se, chegando ao ponto em que sua reintegração à cidade
não seria mais possível.
De João Capistrano a Rosalina é possível detectarmos uma gradação. João possuía
devaneios decorrentes de seus sonhos de ingressar na política e, quando se sentiu traído pelos
moradores da cidade, fechou as portas de sua casa para eles e tornou-se recluso, saindo apenas
quando necessário. Já Rosalina enclausurou-se ainda mais, fechou-se mais no sobrado,
intensificando conscientemente o isolamento que seu pai havia começado a sistematizar. Tal
isolamento resultou em loucura, ou seja, em uma ampliação dos devaneios já presentes em seu
pai. Ao longo do romance, podemos perceber vocábulos e expressões, empregados pelas
personagens ou pelo narrador enquanto integrante da coletividade da cidade, que se referem à
loucura para caracterizar o comportamento de João e de Rosalina, como, por exemplo, Ŗquarta-
feiraŗ, Ŗmaluqueiraŗ, Ŗtelha de menosŗ, Ŗmeio pancadaŗ.
O isolamento empreendido por João e ampliado por Rosalina pode ser associado aos
aspectos que mencionamos anteriormente Ŕ o conflito e o isolamento Ŕ relacionados aos traços
presentes na Modernidade. Kosik (1979) aponta que, com a ascensão e afirmação do capitalismo
como sistema econômico imperante Ŕ fato esse ocorrido na Modernidade -, o indivíduo perdeu a
dimensão da realidade, uma vez que o trabalho de criação tornou-se uma atividade automatizada
e fragmentada tendo como símbolo a produção em série das indústrias. A noção de totalidade na
qual somente um indivíduo produzia um objeto de forma integral, em uma relação que pode ser
chamada de artesanal, foi substituída pela ação fragmentária presente nas fábricas, nas quais os
sujeitos trabalham em setores confeccionando apenas partes dos objetos, sem a dimensão da
unidade, e, por conseguinte, sem a possibilidade de identificarem-se com o produto final por eles
produzido.
Sem a dimensão de totalidade, o indivíduo tornou-se alienado, uma vez que de dominante
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do objeto produzido, converteu-se em dominado pelo sistema de produção. Sua percepção da


realidade também se alterou, tornando-se imperfeita - subjetividade vazia de um lado; objetividade
coisificada de outro -, surgindo daí a crença de que o fator econômico e a produção regem a
sociedade, imergindo esse indivíduo em um processo conflitivo (KOSIK, 1979). Essa crença
constitui uma forma de pensar a realidade/sociedade que retira do cenário o homem enquanto
produtor de sua vida social Ŕ através do seu trabalho -, causando uma deformação, uma vez que
o homem perde a sua humanidade, a sua capacidade de atuação.
A questão da alienação foi abordada pelos escritores europeus, ganhando maior ênfase a
partir da segunda metade do século XVIII, período de aumento do número de indústrias e,
consequentemente, da produção. Mészáros (1993) discute a percepção e o interesse de muitos
desses escritores no que se refere à alienação resultante da crise econômica possuidora de um
desdobramento específico: a desumanização. A desumanização retira do sujeito a sua condição
de sujeito cognoscente, tornando-o um sujeito repetitivo, para o qual resta o vazio, ou seja, a
alienação: o sujeito é reduzido à condição de objeto. A desumanização causa uma espécie de
carência, de sentimento de perda que levou muitos poetas a buscar a solidão como forma de
crítica, de Ŗvingançaŗ discursiva do poeta contra a sociedade.
O poeta exilado, como afirma Mészáros (1993), constrói esteticamente seu próprio mundo,
um mundo no qual ele é um deus soberano - poeta demiurgo Ŕ, portador da verdade. A solidão à
qual o poeta se vê forçado faz com que a totalidade lhe seja impossibilitada, motivando-o a,
mesmo afastado, seguir falando do mundo em uma tentativa de reconstruir através da linguagem
a totalidade perdida. Mas, como poderia este poeta que está afastado falar do mundo? Ele
somente pode falar a partir de sua interioridade, o que permite que se tenha diversas visões do
mundo externo, uma vez que cada poeta materializa o que perdeu sob um prisma. Contudo, os
protestos dos escritores modernos contra a alienação e a desumanização que insistem Ŗna
proclamada Řsoberaniař do indivíduo, fazendo da situação alienante da solidão uma virtudeŗ
acabam por afirmar Ŗo que originalmente pretendem negarŗ (MÉSZÁROS, 1993), deparando-se
com um conflito indissolúvel.
O comportamento adotado pela personagem Rosalina em Ópera dos mortos, pode ser lido
como uma repetição, em menor escala, do drama da concepção da literatura européia moderna,
apontado por Mészáros. O isolamento principiado por João tem o objetivo de criticar a sociedade
que o cerca como o tinha o dos escritores europeus; seu distanciamento é gerado a partir de um
mal-estar com a cidade na qual estava inserido e, vendo-se impotente para modificá-la, isolou-se
como uma forma de vingança. Como o discurso é erigido como uma fuga do poeta, o sobrado
ergue-se como um lugar seguro, mas nenhum dos dois é capaz de assegurar ao poeta e aos seus
moradores a proteção que buscam, pois, centrados no individual, são incapazes de encontrar a
totalidade perdida e de solucionar o conflito do qual se distanciaram. O isolamento principiado por
João produziu resultados mais agravantes em Rosalina que o perpetuou e intensificou,
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conduzindo-a gradualmente à loucura, que pode ser percebida como o estado mais absoluto de
alienação, em uma anulação total do sujeito.
Isolada, voltada para o seu próprio interior, Rosalina não solucionou o problema do
convívio com a cidade. Sem referenciais que lhe transmitissem segurança e certeza, ela perdeu
gradualmente a percepção da realidade e a dimensão de sua vida. A crise vivenciada pela
protagonista, a percepção de que o conflito não era passível de solução deixa a perspectiva de
um indivíduo em luta com a sociedade e em luta consigo mesmo, como o é a crítica na
Modernidade. A falta de solução do conflito vivenciado pela protagonista é a mesma falta de
solução enfrentada pela Época Moderna, pois Rosalina principia o romance imersa em um
conflito, o vivencia durante a narrativa e finda o romance sem solucioná-lo.
Dessa forma, pela construção desse romance, a alienação torna-se o eixo central, sendo
não apenas tema, mas também se manifestando, como veremos, em outros níveis da narrativa
como o tempo e o narrador.

1.2 Os relógios parados

No interior do sobrado há quatro relógios, dos quais três foram parados e apenas um, o da
copa, segue marcando o passar do tempo. O primeiro a ser parado foi o relógio de prata que João
Capistrano havia ganhado do senador Dagoberto. Deixado de lado depois de João declarar suas
intenções políticas, sem ninguém mais dar-lhe corda, ficou pendurado em um prego na sala do
sobrado como uma lembrança de que havia ingressado de vez na disputa partidária e nos delírios
de tornar-se um grande político como um dia fora o seu avô materno.
O segundo relógio a ser parado foi o relógio armário. No dia da morte de dona Genu, João
parou a pêndula do relógio na hora de fechar o caixão: eram três horas. Em companhia do relógio
da independência, já parado, o relógio armário também emudeceu na sala do sobrado, ampliando
o indício, já delineado com o primeiro relógio, de que o tempo naquela construção tinha outro
ritmo. Depois o relógio Pateck Philip de ouro que sempre acompanhava João Capistrano foi
parado por Rosalina quando ele faleceu, sendo posto em um prego na sala ao lado do relógio
comemorativo da independência. Rosalina, com atos medidos e calculados, realizou o mesmo
gesto que o pai havia feito no dia do enterro de dona Genu, como se fosse Ŗtudo repetido, tudo foi
novamenteŗ (DOURADO, 1980, p.28), como um relógio que avança para marcar a mesma hora
outra vez.
Com a morte de dona Genu, João distanciou-se mais da cidade do que já se distanciara
quando fora traído nas eleições, guardando cada vez um silêncio maior. Com a morte de João, e o
terceiro relógio parado, Rosalina ampliou o silêncio estabelecido pelo pai, distanciando-se ainda
mais da cidade. Os três relógios parados na sala não têm mais a finalidade de mostrar que o
tempo corre no interior do sobrado, marcam um tempo que não avança, um momento contínuo
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estagnado nas três horas do relógio armário, estagnado no afastamento assumido por João e que
Rosalina perpetua. Fora do sobrado, o tempo segue correndo, a cidade segue sua rotina,
enquanto no seu o interior o tempo não passa para Rosalina. O tempo parado dos relógios é o
tempo subjetivo da filha de João, uma vez que o passado não foi superado e por isso continua
marcado nos ponteiros parados dos relógios da sala. Essa não superação está manifestada na
narrativa principalmente através do tempo em que os verbos encontram-se conjugados nos
momentos em que as personagens projetam seus pensamentos através de suas memórias, de
suas lembranças do passado, realizando o que Rosenfeld (1976) chama de confusão de níveis
temporais sem demarcação nítida entre o passado da personagem e o tempo da narrativa, como
podemos perceber na seguinte passagem:

Forçou não pensar, deixar as coisas existirem de manso, sozinhas, sem ela, frias.
Mas as coisas naquela casa não eram frias e silenciosas, um pulso batia no seu
corpo, ecoava estranhos ruídos, como se de noite acordada tinha sempre uma
porta batendo. Agora ele desce a escada, os tacos de sua bota vibravam no
corredor. O pai ou vovô Lucas Procópio? (DOURADO, 1980, p. 39)

O passado surge, então, como algo não superado, manifesto em toda a sua pujança, não
podendo ser narrado apenas como passado, mas sim como uma presença constante, talvez até
mais forte que as percepções do momento da narrativa (ROSENFELD, 1976). Apenas o relógio da
copa segue seu ritmo, marcando as horas, lembrando que a cidade não está parada. Contudo,
esse relógio está na copa, espaço de atuação de Quiquina e não na sala onde Rosalina passa a
maior parte de seu tempo.
Quando Rosalina enlouquece ao final do romance, é a vez de Quiquina parar a pendula da
copa. Os quatro relógios parados podem ser relacionados à chegada ao grau mais elevado de
alienação dentro daquela família, estruturando-se em um crescente que começa com o relógio da
independência e culmina no relógio da copa: todos parados, todos sem marcar o tempo. À medida
que o número de relógios parados aumenta, aumenta também o afastamento da família Honório
Cota do convívio com os moradores da cidade. A perda da função dos relógios faz com que eles
figurem no romance não só como marcas de aproximação entre Rosalina e João Ŕ aos dois
relógios parados por ele une-se um terceiro parado por ela, amplificando o afastamento -, mas
também como marcas do isolamento escolhido por ela remetendo para o estado de alienação
que, além de negar o contexto exterior ao sobrado, abandona também a perspectiva de avanço
temporal. O tempo que interessa para Rosalina é o que está dentro dela, o tempo de suas
lembranças, o tempo dos seus pensamentos e este não é marcado pelos relógios.

1.3 Os volteios do narrador

Octavio Paz (1970), em seu texto La ambigüedad de la novela, cita Jacobo Burckhardt
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para recuperar a afirmação deste que diz ser o romance a épica da sociedade moderna. O que há
por trás dessa afirmação não foi realmente abordado por Burckhardt, como bem coloca Paz,
abordagem essa que Paz delineia neste texto. Octavio Paz aponta o romance, enquanto épica de
uma sociedade em luta consigo mesma, de uma sociedade que se funda na crítica, como um juízo
implícito sobre essa mesma sociedade.
Distinta da personagem épica que era proveniente de uma sociedade cujo principio era
inquestionável, constituindo-se em uma personagem sem dúvidas que lutava para restabelecer a
ordem quebrada por alguma ação que ficava evidente no interior da épica; a personagem
romanesca passa a operar em outra ordem, atuando no contraste, na desarmonia, no conflito,
como marca de nascença de uma sociedade (PAZ, 1970). Marca da sociedade moderna, o
romance, como apontava Adorno (1983, p. 270), é qualificado como poucas formas artísticas para
abordar Ŗa coisificação de todas as relações entre os indivíduos, que transforma suas
características humanas em lubrificante para o andamento macio da maquinaria, a alienação e a
auto-alienação universaisŗ. Os romancistas, na tentativa de captar a essência do Ŗo conflito entre
os homens vivos e as relações petrificadasŗ (ADORNO, 1983, p. 270), buscam novas técnicas de
narrativa e, por conseguinte, novas formas de compor o narrador, pois o narrador não pode mais
ser portador de uma objectualidade inquestionável, ocasionando assim outro tipo de postura e de
movimentos deste ao longo do romance.
Em Ópera dos mortos, acompanhar os movimentos do narrador ao longo dos nove
capítulos não é uma tarefa muito simples, uma vez que este ocupa posicionamentos distintos. No
primeiro capítulo, O Sobrado, o narrador, através da expressão Ŗa genteŗ, surge como parte
integrante da coletividade da cidade. Sem identificação precisa, sua identidade dilui-se em meio à
aos moradores daquele lugar, dando voz a uma coletividade anônima.
Posicionado no Largo do Carmo, em frente ao velho sobrado, esse narrador apresenta a
arquitetura daquela construção e menciona as personagens que farão parte da narrativa que
principia. Dirigindo-se a um Ŗsenhorŗ (ŖO senhor atente para o velho sobradoŗ Ŕ DOURADO, 1980,
p. 01), dirige-se também ao leitor na condição de um guia que orienta, que chama a atenção, que
diz para onde deve-se olhar, criando uma proximidade com o leitor através de uma linguagem
coloquial. Dirige, muitas vezes, a atenção do senhor com quem conversa e do leitor para o
sobrado, menciona sua disposição, os detalhes da fachada, a deterioração causada pela
passagem temporal, até propor um recuo no tempo, para que tanto os seus interlocutores vejam
Ŗa casa como era e não como é ou foi agoraŗ (DOURADO, 1980, p. 02). A partir desse recuo, as
personagens da narrativa principiam a ganhar contornos, começam a existir dentro do sobrado,
dentro da cidade.
No segundo capítulo, A Gente Honório Cota, o narrador abandona o Ŗsenhorŗ para quem
apresentava a casa, mas não o leitor, e realiza o recuo no tempo proposto por ele no capítulo
anterior. Volta ao tempo em que João Capistrano mandou erguer o segundo andar do sobrado.
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Além da expressão Ŗa genteŗ que continua aproximando-o da coletividade da cidade, e, portanto,


posicionando-o fora do sobrado, há a presença de verbos na primeira pessoa do plural e de
pronomes que reforçam essa posição (Ŗrespeitávamosŗ, Ŗéramosŗ, Ŗnossosŗ, Ŗnósŗ).
Ainda nesse capítulo, apesar dessa proximidade com o povo da cidade, o narrador
apresenta um caráter subjetivo, tendo acesso aos pensamentos, aos desejos e aos planos das
personagens, abandonando gradualmente a posição de um simples expectador, fora do sobrado,
para Ŗmergulharŗ em seu interior, em sua rotina. Não satisfeito com esse Ŗmergulhoŗ, logo ele
embrenha-se na intimidade das personagens, discorrendo, na forma de fluxo de consciência,
sobre seus pensamentos, vasculhando memórias e sensações, dividindo com as personagens o
comando da narrativa como uma forma de evidenciar os conflitos destas. Sem essa postura do
narrador não se poderia ter acesso ao interior das personagens, uma vez que as personagens
que habitam o sobrado são caracterizadas pelo silêncio Ŕ seja pela impossibilidade de falar
(Quiquina muda), seja pela opção por não falar (Rosalina fechada, Ŗtrancada em si mesmaŗ Ŕ
DOURADO, 1980, p. 75).
A intimidade criada com o leitor no primeiro capítulo assume outra forma, passando do
exterior da rua ao interior do sobrado e das personagens. Assim, o narrador mostra-se sob
aspectos distintos: como um narrador externo, pertencente ao povo da cidade e sem acesso ao
sobrado, e como um narrador marcado pela subjetividade com acesso aos pensamentos das
personagens. A passagem de um a outro ocorre de forma tão sutil que muitas vezes torna-se
praticamente imperceptível. Essa postura do narrador pode ser associada ao ataque do narrador
contra um elemento fundamental na sua relação com o leitor: a distância estética, uma vez que
esta, conforme indicava Adorno, Ŗvaria como as posições da câmara no cinema: ora o elitor é
deixado fora, ora guiado, através do comentário até o palco, para trás dos bastidores, para a casa
das máquinasŗ (ADORNO, 1983, p. 272). No caso de Ópera dos mortos os Ŗbastidoresŗ estão
relacionados aos pensamentos e às memórias das personagens, enquanto a posição externa está
atrelada ao papel desempenhado pelo narrador enquanto integrante da cidade.
Nos capítulos seguintes, o narrador segue realizando os mesmos movimentos de
distanciamento e de aproximação, embora esse último movimento predomine com maior
intensidade, principalmente no que tange às personagens Rosalina e Juca Passarinho. Grande
parte da narrativa é estruturada a partir da interioridade dessas duas personagens, dos seus
pensamentos e das suas memórias.
Os conflitos vividos por Rosalina são mediados pela onisciência do narrador que, através
de seus movimentos, revela a interioridade dessa personagem. Voltado para dentro da
personagem, o evento narrado se paralisa e o que passa a ganhar destaque é o ato construtivo do
escritor. O narrador apossa-se, então, da construção Ŕ criando formas perceptíveis desse evento,
conferindo à alienação e à solidão um caráter que não é só da personagem, mas que também tem
relação com a solidão do escritor que se isolou através de seu discurso como destacamos
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anteriormente.
Durante o nono e último capítulo, Cantiga de Rosalina, o narrador apresenta-se apenas
como parte da coletividade da cidade, sem qualquer acesso à subjetividade das personagens.
Seu ângulo de visão neste capítulo altera-se, tendo acesso ao interior do sobrado, juntamente
com o restante dos moradores da cidade, quando, nos capítulos anteriores, enquanto parte da
coletividade ele restringia-se a observar o sobrado externamente. Sem acesso à subjetividade das
personagens, o narrador sabe tão pouco quanto o restante do povo, de nada tem certeza e o que
sabe, sabe apenas de ouvir falar.
Em seus movimentos ao longo de todo o romance, o narrador repete diversas vezes a
narração dos mesmos fatos sob ângulos distintos. Por exemplo, o ato de parar os relógios durante
o velório de dona Genu e de João Capistrano é relatado várias vezes sob o ponto de vista da
cidade (narrador enquanto parte da coletividade), sob o ponto de vista de Rosalina e sob o ponto
de vista de Quiquina. Também ocorre a repetição de frases ao longo da narrativa, sejam elas
proferidas e/ou pensadas pelas mesmas personagens ou por personagens distintas.
Os atos de contar e recontar os mesmo fatos e de repetir sentenças remetem à sensação
de estagnação, pois a narrativa parece não avançar ou avançar muito pouco, uma vez que os
acontecimentos narrados fazem parte do passado ou revelam a rotina que pouco a pouco se
constrói com os serviços executados pelo novo empregado no sobrado. Essa estagnação é
enunciada diversas vezes pelo narrador, estando vinculada ao sobrado em oposição ao tempo da
cidade que segue o seu curso. Ao lado dessa estagnação, está o silêncio como marca
característica das personagens que habitam o sobrado. Mesmo José Feliciano que gosta tanto de
conversar, principia a calar; um passarinho que não canta mais.
Essa estagnação acompanhada do silêncio reforça o delineamento da questão da
alienação. Isolada, Rosalina não tem a mesma rotina que os moradores da cidade, vivendo de
suas impressões, de sua memória, sem nenhum movimento além dos que o espaço do sobrado
lhe permite. Sem poder avançar, essa personagem Ŗremóiŗ as lembranças do seu passado, repete
diariamente os mesmos gestos, constrói um mundo particular no seu isolamento, um mundo no
qual ela é senhora, reinando absoluta. O narrador é o elemento que permite que se fale do
silêncio, podendo o silêncio ser percebido como um desdobramento da solidão resultante do
isolamento. O delineamento desse mundo construído por Rosalina está manifesto nos volteios
dados pelo narrador, nas suas repetições, nas mudanças de ângulo para narrar os mesmos fatos,
na sua Ŗobsessãoŗ Ŕ se assim podemos chamar Ŕ de referir-se aos fatos que intensificaram o
isolamento dessa personagem. Tudo isso produz a sensação de estagnação que, com o passar
dos capítulos e a ampliação do isolamento de Rosalina, torna-se mais evidente.
Contudo, não podemos ignorar que, apesar de Rosalina desejar um total distanciamento
da cidade, este não é completo, uma vez que podemos considerar o narrador como um elo de
ligação entre os moradores da cidade e o interior do sobrado. Esse elo, todavia, não é bem
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03 a 05 de novembro de 2010

sucedido, pois Rosalina não se re-integra a cidade, ela distancia-se cada vez mais, ingressando
cada vez mais em seu próprio interior, até o ponto de, no último capítulo, não ser possível para o
narrador ter acesso a subjetividade dessa personagem, uma vez que ela alcançou um estado de
absoluta alienação.

ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES

Ao escolher conscientemente o isolamento como uma forma de demonstrar aos moradores


da cidade a sua mágoa ao mesmo tempo em que, ferido em seu orgulho, tentava puni-los, João
Capistrano arrastava consigo a sua família por um caminho que se mostrou, ao longo da narrativa,
gradativo e sem volta. Dividido em três partes principais, este estudo buscou mostrar como o
processo de isolamento principiado por João e ampliado por sua filha pode ser transladado para a
problemática da Modernidade e como traços desse período histórico são capazes de iluminar
aspectos dessa narrativa.
Ao longo desse percurso, deparamo-nos com o processo de afastamento empreendido
pelas personagens erigindo o sobrado como um lugar seguro, mas que se revelou exposto a
outros riscos que se mostraram insuperáveis, condenando-se a si mesma; com os relógios
parados que, sem sua função de marcar o avanço do tempo, remetiam a um tempo paralisado,
reforçando o caráter alienante delineado pela reclusão no sobrado; e, por fim, com um narrador
que possui uma fala constante, que fala sob diversos ângulos, que fala muito para falar do
isolamento, do silêncio, de algo que exclui de sua constituição a fala.
Ao chegarmos ao fim deste estudo, podemos afirmar que o romance analisado presta um
testemunho desencorajador sobre a questão do isolamento. Desencorajador porque, ao evitar o
conflito, na tentativa de resguardarem-se, as personagens expõem-se a outros riscos, gerando um
novo conflito, mostrando que não há como superá-lo nem como evadir, uma vez que sempre se
há de vivenciá-lo.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor Wiesengrund. Posição do narrador no romance contemporâneo. In:


BENJAMIN, Walter; HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor Wiesengrund; HABERMAS, Jürgen.
Textos escolhidos. Tradução de José Lino Grünnewald... [et al.]. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

DOURADO, Autran. Ópera dos mortos. 8. ed. São Paulo: DIFEL, 1980.

KOSIK, Karel. Metafísica de la cultura. In: ______. Dialéctica de lo concreto. México: Grijalbo,
1979.

MÉSZÁROS, István. A Alienação na Literatura Européia. In: ______. Filosofia ideologia e ciência
social. Tradução Laboratório de Tradução do CENEX/FALE/UFMG. São Paulo: Ensaio, 1993.
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 24
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PAZ, Octávio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Tradução de Olga Savary. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

______. La ambigüedad de la novela. In: ______. El arco y la lira: El poema. La revelación


poética. Poesía y historia. México: Fondo de Cultura Económica, 1970.

ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: ______. Texto e Contexto I. São
Paulo: Perspectiva, 1976.
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03 a 05 de novembro de 2010

MANIFESTAÇÕES DE ALTERIDADE EM FERNANDO PESSOA

ANDERSON AMARAL DE OLIVEIRA3

Resumo
Este artigo visa demonstrar as manifestações de alteridade em parte da obra literária do poeta português
Fernando Pessoa, no que diz respeito à relação ficcional entre alguns de seus principais heterônimos. Essa
relação ocorre basicamente pelo meio de prefácios que um heterônimo escreve para a obra de outro,
desenvolvendo teorizações, críticas e julgamentos de valor à obra prefaciada. Desta forma a partir da visão
crítica do outro, cria-se uma intensa e moderna relação de alteridade na qual transita a obra de Fernando
Pessoa.
Palavras-Chave: Fernando Pessoa, Alteridade, Heterônimos.

Abstract
This article aims to demonstrate manifestations of alterity in a part of Portuguese poet Fernando Pessoařs
literary work, concerning the fictional relationship between some of his main heteronyms. This relationship
occurs basically through prefaces written by heteronyms one another, raising theorizations, critics and value
judgments towards the prefaced book. By those points and from a critic vision of the other, it is created an
intense and modern relationship of alterity in which Fernando Pessoa develops his work.
Keywords: Fernando Pessoa, Alterity, Heteronyms.

Portugal que obteve imensas fortunas na época das grandes navegações, conquistando
colônias e territórios extra-marítimos encontrava-se em notável decadência no século XIX. O
assassínio de seus reis, a proclamação da república, o envolvimento na primeira guerra mundial e
a posterior instauração da ditadura salazarista podem nos dar a dimensão do caos social em que
estavam imersos. Filho desta época moderna com inúmeras e profundas mudanças, o poeta
Fernando Pessoa tenta através de sua obra resgatar as glórias do passado do povo português
através da proclamação da vinda de um poeta supremo da nação. ŖPessoa previa para breve o
aparecimento do ŘSupra-Camõesř que anunciará o ŘSupra-Portugal de amanhãř, a Řbusca de uma
Índia Novař, o tal Řporto sempre por acharřŗ (AFONSO, s.d.).
Fernando Pessoa era politicamente entusiasta da monarquia e como crença pessoal
acreditava no sebastianismo. O mito sebastianista desenvolveu-se no percurso da história de
lusitana, a partir do rei D. Sebastião, que como forma de expansão do seu império na África, aliou-
se ao sultão Mulay Mohammed na tentativa da conquista do reino de Marrocos em 1578, que
representava um grande potencial econômico. Contudo seu exercito foi dizimado, os reis
envolvidos mortos e parte da nobreza que sobreviveu, foi feita de refém e somente devolvida à
coroa portuguesa mediante o pagamento de grandes somas. Além do endividamento, Portugal
passa ao poder de Filipe II de Espanha dois anos após com o falecimento do Rei-Cardeal D.
Henrique, sucessor de D. Sebastião. Com o desaparecimento do corpo do rei no campo de
batalha, criou-se o mito português, do sebastianismo que aguardava o retorno do monarca
Ŗencobertoŗ na chamada batalha de Alcácer-Quibir ou dos três reis, que supostamente retomaria o

3
Mestrando em Estudos Literários UFSM
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 26
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controle do reino e devolveria a Portugal a glória e a prosperidade do passado.


Portugal que com o desaparecimento do mítico rei entrega posteriormente o comando do
império nas mãos dos espanhóis que representa um rompimento abrupto no passado de
progressos e expansões que fora retratado na epopéia portuguesa ŖOs Lusíadasŗ de Luis Vaz de
Camões, glorificando o povo e a coroa portuguesa de modo que foi dedicado na data de sua
publicação em 1572 ao próprio rei D. Sebastião. Fernando Pessoa, ao prenunciar o Supra-
Camões, (que parece se tratar dele mesmo), busca retomar a partir de seu pensamento moderno,
o prestígio de sua pátria com o livro Mensagem.

O projecto da Mensagem é o de superar o carácter obsessivo e nacional dřOs


Lusíadas no imaginário mítico-poético nacional. Os Lusíadas conquistaram o
título de Ŗevangelho nacionalŗ e foram elevados à categoria de símbolo nacional. A
Mensagem logo no seu título aponta para um novo evangelho, num sentido
místico, idéia de missão e de vocação universal. O próprio título indicia uma
revelação, uma iniciação. (AFONSO, s.d.).

Além de Mensagem, Fernando Pessoa desenvolve um sistema de representação


moderno, no qual se despersonaliza, dividindo-se em diversas vozes poéticas, chamados
heterônimos, que são resultantes de sua criação intelectual, dotados de profundidade poética
própria, independentes, diferenciam-se em diversos aspectos das produções que Fernando
Pessoa costumava assinar com o seu próprio nome (ortônimo). O processo heteroníomico situa
Pessoa como próprio poeta da modernidade dada à intensidade e pluralidade de sua essência
poética, sendo ao mesmo tempo oprimido por seus sentimentos e fragmentado enquanto sujeito,
além de retomar a despersonalização da lírica moderna iniciada por Baudelaire Ŗ(...) no sentido
que a palavra lírica já não nasce da unidade de poesia e pessoa empírica, como haviam
pretendido os românticosŗ (Friedrich, 1978, p. 36). Entre seus principais heterônimos, citamos os
principais Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Para Perrone-Moises (1990, p. 157).
Ŗ(...) Caeiro é, com efeito, mais moderno do que o arcaizante Reis, o novidadeiro Campos e o
saudoso Fernando Pessoa ele mesmoŗ.
Fernando Pessoa que compreendeu como poucos as aporias modernas, desenvolve um
próprio e complexo projeto de alteridade, estabelecendo relações intertextuais entre seus próprios
heterônimos. A primeira e mais marcante delas, é o fato de declarar ser influenciado por Alberto
Caeiro.

Pessoa, Campos e Reis foram todos influenciados por Caeiro, não por Whitman, e
Caeiro não foi influenciado por ninguém, sendo um poeta Ŗpuroŗ ou natural, quase
sem educação, que morreu na idade alto-romântica de vinte e seis anos. (BLOOM,
1995, p. 463)

Levando em consideração que a alteridade é a forma de ver a nós mesmos refletidos nos
outros, chama a atenção o fato de Pessoa abrir mão de uma unidade de si mesmo, para através
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da sua despersonalização se multiplicar, se outrar como dizia, muito embora a convivência destas
vozes poéticas por vezes antagônicas em um mesmo corpo não é pacífica. Pessoa escrevera
sobre a produção de Caeiro:

Escrevi com sobressalto e repugnância o poema oitavo do ŖGuardador de


Rebanhosŗ, com a sua blasfêmia infantil e o seu antiespiritualismo absoluto. Na
minha pessoa própria, e aparentemente real, com que vivo social e objetivamente,
nem uso da blasfêmia, nem sou antiespiritualista. (PESSOA, 1997, p. 131 e 132)

Ricardo Reis, na ocasião do prefácio do livro em questão, escreve suas críticas:

A idéia, sempre essencialmente pagã, usa-se por vezes um traje emotivo que não
lhe é adequado. Em ŖO Guardador de Rebanhosŗ há um aperfeiçoamento gradual
nesse sentido (...) culpo-o, e severamente o culpo (como severamente, em
pessoa, o culpei). (id. p. 134)

A relação heteronímica entre Caeiro e Reis é o fator necessário para a futura publicação
de O Guardador de Rebanhos, pois Caeiro morrera cedo e tuberculoso sem antes conseguir fazê-
lo, deixando sua família encarregada de procurar Reis e fazer com que estes e outros poemas
fossem publicados de acordo com a sistemática que deixara previamente registrada. O livro que
nasce póstumo na ficção, de fato, somente é publicado após a morte de Fernando Pessoa. Dos
livros de Fernando Pessoa publicados em vida, registra-se Mensagem, e English Poems, além de
poemas soltos, artigos e ensaios críticos em diversas revistas da época como Orpheu.
Ricardo Reis foi prefaciado por Álvaro de Campos, em seu volume de odes, obtendo por
seu apreciador uma crítica positiva, mas sempre incisiva e bem posicionada. Neste prefácio
encontramos algumas reflexões como as que seguem:

O nosso Ricardo Reis teve uma inspiração feliz se é que ele usa inspiração (...)
Não censuro o Reis mais que a outro qualquer poeta. Aprecio-o, realmente, e para
falar verdade, acima de muitos, de muitíssimos. A sua inspiração é estreita e
densa, o seu pensamento compactamente sóbrio, a sua emoção real se bem que
demasiadamente virada para o ponto cardeal chamado Ricardo Reis. Mas é um
grande poeta ŕ aqui o admiro ŕ, se é que há grandes poetas neste mundo fora
do silêncio de seus próprios corações. (PESSOA, 1990, p. 251)

Já os poemas modernistas e futuristas de Campos por sua vez, são prefaciados por Reis.
A heteronímia de Pessoa parece não tem limites, estabelecendo inter-relações o tempo todo. As
críticas tecidas por vezes mais ásperas são uma forma de olhar para si mesmo, realizar uma auto-
análise de seu trabalho segundo um relativo determinismo, um contraponto ou uma justificativa,
estabelecidos a partir do ponto de vista de um heterônimo com convicções próprias, que muitas
vezes como forma de expressar suas idéias particulares, cria uma visão, até exagerada em certos
pontos, na tentativa de reconhecer os limites deste do outro.
Contudo uma das inter-relações que mais me intriga é a que justamente deveria causar
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menos espanto. A convergência entre as obras e os heterônimos citados anteriormente se dá


entre dois sujeitos e obras distintas, porém há no prefácio do Livro do Desassossego um encontro
heteronímico transcendental, quase fantasmagórico de causa um grande sobressalto ao ser lido.
Entretanto é necessário esclarecer que Fernando Pessoa e Bernardo Soares, o suposto autor do
referido livro não conseguiram se separar completamente no processo heteronímico, como
ocorreu com Caeiro, Reis e Campos. Essa diferença é reconhecida nas Ficções do Interlúdio.

Há o leitor de reparar que, embora eu publique (publicasse) o Livro do


Desassossego como sendo de um tal Bernardo Soares (...) não o incluí todavia
nestas ŖFicções do Interlúdioŗ. É que Bernardo Soares, distinguindo-se de mim por
suas idéias, seus sentimentos, seus modos de ver e de compreender, não se
distingue de mim pelo estilo de expor. (...) em prosa é mais difícil de se outrar.
(PESSOA, 1997. p. 130)

À sua maneira, Pessoa percebe esta conflituosa relação com seu então semi-heterônimo
que apesar de certas particularidades não consegue se tornar independente do seu idealizador,
criando uma grande manifestação de alteridade, olhando com atenção, zelo e muita curiosidade
para seu outro/eu próprio. O Livro do Desassossego narra os profundos sentimentos deste
ajudante de guarda-livros, Bernardo Soares, que solitário e introspectivo relata sua Ŗautobiografia
sem fatosŗ. O momento em que ocorre esta espécie de concretização de uma projeção de
alteridade é narrado no prefácio do Livro do Desassossego, assinado por Fernando Pessoa,
supostamente ortônimo. Neste, relata conhecer um homem comum, em uma casa de pasto
(equivalente a um restaurante no Brasil) que com o passar do tempo vai desenvolvendo certo
interesse nesse sujeito passando a conversar. As preferências literárias e artísticas comuns são
realmente marcantes, principalmente pelo fato de ambos serem entusiastas da revista Orpheu,
que Fernando Pessoa era um dos mentores. Neste texto, Pessoa narra:

Falei-lhe da revista ŘOrpheuř, que havia pouco aparecera. Ele elogiou-a, elogiou-a
bastante, e eu então pasmei deveras. Permiti-me observar-lhe que estranhava,
porque a arte dos que escrevem em "Orpheu" sói ser para poucos. (PESSOA,
2006, p. 38).

Além do fato dos dois sujeitos relatarem passarem muito tempo trancados nos seus
respectivos quartos escrevendo Fernando Pessoa descreve os aspectos internos e externos de
Bernardo Soares com tanta propriedade, leva-nos ao fato de estar falando de si mesmo, com finas
doses de auto-compaixão. Após uma pequena pausa neste prefácio, ou autor deste, se furta
narrar alguns fatos sobre a infância de Soares e sobre a sua solidão, de modo que,

nada o aproximou nunca nem de amigos nem de amantes. Fui o único que, de
alguma maneira, estive na intimidade dele. Mas Ŕ a par de ter vivido sempre com
uma falsa personalidade sua, e de suspeitar que nunca ele me teve realmente por
amigo (...) (idem).
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Este encontro com seu semi-heterônimo possibilita que o leitor presencie uma das mais
belas manifestações de alteridade na obra de Fernando Pessoa, materializando fora de si a sua
projeção mais íntima, dando origem e justificando Bernardo Soares, compositor do ŖLivro do
Desassossegoŗ.
Podemos afirmar que a empresa literária a qual se lançou Fernando Pessoa é devida a um
grande sentimento de perda compartilhado pela representação escrita moderna, que desejando
uma totalidade não mais possível, constrói sua despersonalização, abandonando o autor sua
própria identidade para se tornar apenas uma das várias vozes poéticas que partem desta matéria
única se tornando conseqüentemente uma forma de alteridade em si mesmo. Segundo
Gonçalves,

em Fernando Pessoa, o sujeito vazio e o objeto inalcançável se investem de mil


corpos e faces Ŕ no discurso poético a palavra se torna plena, no sentido de plena
linguagem do desejo que é a Poesia. Vê-se, então, a heteronímia pessoana pela
questão da alteridade/unidade. (1995, p. 62)

A obra poética de Pessoa, sobretudo moderna e longe de ser compreendida de todo, parte
do conflito nacional e da grande ferida da diáspora e da desordem da coroa portuguesa após o
malogrado projeto expansionista de D. Sebastião, sendo estetizados vários séculos depois, numa
busca da retomada de um tempo glorioso para a nação, utilizando o mito nacional e fazendo parte
de um projeto poético complexo de retrata a perda de si e a verdade que ora existia. Vale lembrar
o livro ŖMensagemŗ foi galardoado com o premio da Ŗsegunda categoriaŗ do Secretariado de
Propaganda Nacional (PESSOA, 1990, p. 66). Um prêmio módico comparado à magnitude da
obra que é discutida até os dias de hoje e coincidentemente ou não, Pessoa viera a falecer menos
de um ano após o recebimento deste burlesco galardão, vítima de uma cólica hepática.
Entretanto, Fernando Pessoa compreendeu com maestria em sua multiplicação
heteronímica toda a problemática da poesia moderna, desenvolvendo complexas relações de
alteridade, rompendo com os limites da intertextualidade. Sendo a alteridade uma forma de ver-se
no outro, Pessoa a partir da anulação dele próprio cria os outros poetas que ganham vida através
desta tecnologia intelectual. Sendo seus outros diferentes de si, ele é Ŗváriosŗ e ao mesmo tempo
não é ninguém.

Não sou nada.


Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
(Poema ŖTabacariaŗ, Eu profundo e os outros eus, p. 256)

Acredito que esse desprendimento da sua própria subjetividade para multiplicar-se


representa o paradigma dos autores modernos que se afastam do mundo para poder vê-lo e
através de sua atividade sensível, destruí-lo e reconstruírem-lo tantas diversas vezes, de modo a
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produzir uma ruptura com este mundo que não os compreende na tentativa de desenvolver um
ambiente seguro (que já não mais existe), deixando transparecer seu sentimento de perda.
Fernando Pessoa, igualmente filho deste tempo, cria em seu processo heteronímico a condição
para transcender através de sua obra poética e cria também as condições necessárias para
sobreviver ao caos da modernidade, sendo o outro e ele mesmo.

Com uma tal falta de literatura, como há hoje, que pode um homem de gênio fazer
senão converter-se, ele só, em uma literatura? Com uma tal falta de gente
coexistível, como há hoje, que pode um homem de sensibilidade fazer senão
inventar seus amigos, ou, quando menos, os seus companheiros de espírito?
(PESSOA apud BLOOM, 2003, p. 615.)

REFERÊNCIAS

AFONSO, João Santos. Mensagem. Disponível em:


<http://www.prof2000.pt/users/jsafonso/Port/Mensagem.htm> Acesso em: 10 jul. 2010.

BLOOM, Harold. O Cânone Ocidental. 10 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.

FRIEDRICH, Hugo. A estrutura da Lírica Moderna (da metade do século XIX a meados do XX).
São Paulo: Duas Cidades, 1978.

GONÇALVES, Robson Pereira. O Sujeito Pessoa: Literatura e Psicanálise. Santa Maria: UFSM,
1995.

PERRONE-MOISÉS, Leila. Aquém do eu, além do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

PESSOA, Fernando. O Eu profundo e os outros eus: seleção poética. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1997.

_____. Livro do Desassossego. Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na


cidade de Lisboa. São Paulo: Cia das Letras, 2006.

_____. Obra Poética em um volume. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1990.

_____. Páginas íntimas e de Auto-Interpretação. In BLOOM, Harold. Gênio: Os 100 autores mais
criativos da história da literatura. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 31
03 a 05 de novembro de 2010

O PROCESSO CRIATIVO EM FOCO: A NARRATIVA PERFORMÁTICA DE SÉRGIO


SANT’ANNA

CARINE DANIELE FRANKE4

Resumo
Esse trabalho objetiva investigar no romance Simulacros, de Sérgio SantřAnna, como se dá o processo de
hibridização discursiva na obra e em que medida essa hibridização contribui para a criação de um novo
modelo de representação que visa sobretudo pôr em evidência o próprio fazer literário e questionar sua
natureza. Constituindo-se como uma narrativa que dá a ver a seu leitor tudo aquilo a que tradicionalmente
este não teria acesso - o trabalho de elaboração literária que se dá em off em relação ao campo de visão do
leitor - Simulacros apresenta-se como uma ficção de natureza performática. Ao incorporar à sua narrativa
elementos próprios à arte dramática, Sérgio SantřAnna consegue estabelecer um novo paradigma para se
pensar a representação, na medida em que busca representar o que já é exposto enquanto representação
ou ainda apresentar, em sua imediatez, a performance narrativo-dramática do texto.
Palavras-chave: ficção pós-moderna, hibridização discursiva, representação, performance

Abstract
This work aims to investigate in the novel Simulacros, by Sérgio Sant'Anna, how is the process of discursive
hybridization in this work and to what extent this hybridization contributes to the creation of a new model of
representation, which aims primarily to highlight the own make literary and question its nature. Being as a
narrative that gives its reader to see everything what traditionally this wouldn't access - the elaboration of
literary work that is in off in relation to reader's field of vision - Simulacros presents itself as a fiction that have
a nature of performance. When are embedding narrative elements to own elements of the drama, Sérgio
Sant'Anna strikes a new paradigm for thinking the representation, according as it seeks to represent what is
already exposed while representation or still present, in its immediacy, the performance narrative-dramatic of
the text.
Keywords: post-modern fiction, discursive hybridization, representation, performance

INTRODUÇÃO

Muito se tem afirmado acerca do evidente processo de contaminação discursiva - numa


operação de hibridização com os discursos das mais variadas artes e mídias - que parte da
literatura contemporânea vem sofrendo sobretudo a partir das últimas décadas do século XX. 5 O
pós-modernismo, nesse sentido, vem sendo caracterizado por diferentes teóricos justamente por
esse aspecto em especial: a capacidade de, enquanto movimento cultural Ŕ advindo ou não de um
novo momento histórico Ŕ possibilitar a agregação, mixagem e reutilização de outras formas de
artes e mídias dentro do discurso convencionalmente aceito como próprio da literatura 6, num

4
Atualmente é discente, em nível de mestrado, do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM), na área de concentração Estudos Literários, desenvolvendo estudos
vinculados à linha de pesquisa Literatura, comparatismo e crítica social.
5
Embora se saiba que no decorrer de toda a história literária a literatura sempre estabeleceu vínculos com
os mais diversos discursos, criou-se um mito, sustentado pelos mais árduos defensores do cânone literário,
acerca de uma linguagem que seria própria à literatura, não contaminada por discursos provenientes de
outros focos de cultura. Na pós-modernidade, essas barreiras parecem ser quebradas e a arte se assume
como potencialmente híbrida.
6
Idem à nota cinco.
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 32
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processo altamente híbrido que constrói novos paradigmas de representação e leitura.


Com efeito, desde as últimas décadas do século XX, observa-se que os meios
tecnológicos de produção, reprodução e difusão de informações audiovisuais representam um dos
mais importantes aspectos do mundo contemporâneo, desempenhando papel preponderante em
nossas vidas, Ŗtendo se tornado verdadeiros catalisadores de nossa afetividade e de nosso
posicionamento diante do mundo e das coisas em geral.ŗ (DUARTE, 2003, p. 7). Em meio a esse
turbilhão de imagens midiáticas que diariamente bombardeiam a mente do sujeito contemporâneo,
as narrativas literárias surgem como uma tentativa de captar essa nova ordem sócio-cultural, além
de se reformularem dentro dela, utilizando-se muitas vezes de recursos que são próprios a esses
meios provenientes de outros focos de cultura, numa tentativa também de se dizer e se
representar, discutindo seus limites e possibilidades hoje. Na era da imagem, a literatura acaba
por buscar para si novas alternativas de criação, e isso pressupõe não só levar em consideração a
expansão desses sistemas sígnicos como também incorporá-los à sua estrutura discursiva.
Esse trabalho objetiva, nesse viés, investigar na obra Simulacros, de Sérgio SantřAnna,
como se dá o processo de hibridização discursiva no romance e em que medida essa hibridização
contribui para a criação de um novo modelo de representação que visa sobretudo a pôr em
evidência o próprio fazer literário, questionando sua própria natureza.

2 REPRESENTANDO A REPRESENTAÇÃO: A NARRATIVA ENQUANTO PERFORMANCE

Todo o projeto estético de Sérgio SantřAnna constitui-se em função de um trabalho


altamente experimental, que parece evidenciar um traço que cada vez mais vem tomando conta
da produção literária contemporânea: o declínio dos modelos modernos de representação.
Apesar de avaliada por alguns críticos como uma produção que não mereceria o status de
literatura Ŗsériaŗ - pois estaria se deixando vender à lógica do mercado - a estética de Sérgio
SantřAnna adquire uma natureza muito peculiar na medida em que prima não só por um caráter
experimental, mas também pelo lúdico na arte, mostrando que a associação vanguarda - diversão
é perfeitamente viável. Iniciando seu trabalho literário ao final dos anos 60, período em que o
Brasil ainda se encontrava sob a mira do regime militar, Sérgio SantřAnna buscou caminhos
alternativos para o ato de escrever, quando o que reinava na produção literária narrativa de então
eram o real-naturalismo dos romances-reportagem e a Ŗliteratura do euŗ dos depoimentos e das
memórias7:

A repressão do regime militar esteve presente nos trabalhos de quase todos os


escritores brasileiros, durante a ditadura. Mas eu sempre fui daqueles que
negaram o realismo social ou socialista e acredito que arte é invenção. E,
paradoxalmente, a arte brasileira durante o regime militar foi das mais

7
SÜSSEKIND, 2004.
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 33
03 a 05 de novembro de 2010

transgressoras e inventivas no que toca às formas.8

Simulacros, nesse viés, apresenta-se como uma ruptura nos paradigmas do fazer artístico
moderno, de um modo geral. Romance publicado em 1977, constitui-se de uma narrativa
permeada por várias peças teatrais, peças essas dirigidas por um cientista norte-americano
mundialmente conhecido como Dr. Philip Harold Davis (Dr. PhD). Narrado em primeira pessoa
pela personagem Jovem Promissor (JP), o romance conta a história desse cientista que dirige
suas cobaias nas simulações criadas por ele. Jovem Promissor, Vedetinha, Velho Canastrão (VC)
e Prima Dona (PD) são personagens-atores que, após a assinatura de um contrato, abandonam
suas vidas reais para fazerem parte de um projeto experimental dirigido por PhD e que consiste
em viver uma nova vida, diferente da que levavam até então, calcada exclusivamente na
simulação. Toda a narrativa, assim, é construída a partir da exposição do ato de representar, com
as personagens tornando-se atores a representar papéis e discutir o processo de criação literária.
Já na abertura do romance, vê-se:

ŖCuidado que tem gente olhandoŗ, Vedetinha disse. Mas não tirou sua mão da
minha, pois isso o dr. Philip disse que a gente não podia fazer .
Vedetinha está muito envergonhada, ali de mãos dadas comigo, vestido de padre.
Eu sentia isso na pele, o constrangimento dela. Mas aí eu apertei mais sua mão e
sorri pra ela o meu melhor sorriso.
O dr. Philip Harold Davis disse que nos comportássemos como os personagens.
Que sentíssemos e fizéssemos exatamente o que eles deveriam sentir e fazer em
determinadas situações. Só que as situações muitas vezes eram imprevisíveis.
(SANTřANNA, 1992, p. 7)

A partir desse fragmento inicial, percebe-se já a proposta de leitura que a narrativa


delineia. Ao apresentar a si e as demais personagens como simulacros 9, atores a encenar
simulações, o narrador-personagem faz seu leitor se movimentar dentro de um universo diegético
claramente exposto em sua ficcionalidade. Assim, ao representar personagens que se
apresentam já de início a seu leitor enquanto construções ficcionais, a narrativa se coloca de
imediato como um embate contra o realismo10 nas formas literárias, embate esse que se
apresenta de maneira contínua e constante durante toda a obra.
Construída de maneira metalinguística, a narrativa busca em primeira instância voltar-se
sobre si mesma, sobre seu caráter ficcional, e apresentar uma discussão sobre o próprio fazer

8
SANTřANNA, Sérgio. Entrevista com Sérgio SantřAnna. [fevereiro, 2006]. São Paulo: Revista
EntreLivros. Entrevista concedida a Luciana Araújo.
9
Aproprio-me aqui do conceito de simulacro conforme proposto por Baudrillard, e que diz respeito à
construção de imagens que não evocam relação nenhuma com qualquer realidade: Ŗ[...] a era da simulação
inicia-se, pois, com uma liquidação de todos os referenciais Ŕ pior: com a sua ressurreição artificial nos
sistemas de signos, material mais dúctil que o sentido [...]. Já não se trata de imitação, nem de dobragem,
nem mesmo de paródia. Trata-se de uma substituição no real dos signos do real [...]ŗ. (BAUDRILLARD,
1991, p. 8)
10
Faço uso aqui do termo realismo em sua acepção mais ampla, significando toda produção literária que
tem por intuito naturalizar seus signos e, com isso, forjar efeitos de real.
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artístico e a natureza da representação literária. Para isso, o enredo se constrói enquanto uma
série de cenas simuladas pelas personagens e criadas e dirigidas por PhD, espécie de autor-
diretor destas. Essas cenas representadas pelas personagens-atores, por sua vez, estão servindo
de mote para o livro que Jovem Promissor, narrador-personagem da obra, está escrevendo
acerca das aventuras vividas na casa sob a direção do cientista norte-americano, e que viria a ser,
ao fim, o próprio romance Simulacros que seus leitores têm em mãos. Assim, durante toda a
narrativa, JP está fazendo referências à sua própria escritura e discutindo questões de natureza
teórica dentro do âmbito do ficcional:

[...] O meu livro nunca andara tão depressa. Quase de um só fôlego eu revi todas
as minhas anotações, selecionei e reescrevi todas as nossas experiências na
casa, até chegar a este ponto, onde me encontro agora, neste exato momento:
descrevendo que selecionei e reescrevi todas as nossas experiências na casa, até
chegar a esse ponto onde me encontro agora, neste exato momento: escrevendo
que selecionei e reescrevi todas as nossas experiências na casa. (SANTřANNA,
1992, p. 211).

É com base no fato de Simulacros constituir-se como uma narrativa literária que dá a ver a
seu leitor tudo aquilo a que tradicionalmente este não teria acesso - o trabalho de elaboração
literária que se dá em off em relação ao campo de visão do leitor - que se torna pertinente
classificá-la como ficção de natureza performática. Ao incorporar à sua narrativa elementos
próprios à arte dramática - embora essa mixagem se dê não por influência do teatro tradicional,
mas pela estética vanguardista de Robert Wilson -, Sérgio SantřAnna consegue estabelecer um
novo paradigma para se pensar a representação, na medida em que busca representar o que já é
exposto enquanto representação ou ainda apresentar, em sua imediatez, a performance narrativo-
dramática do texto.
Cohen (2004) caracteriza a arte performática11 como sendo Ŗessa forma de construção que
privilegia a forma, a estrutura, em detrimento do conteúdo e da linha narrativa [...]ŗ (p. 66), pois
nesta Ŗ[...] a intenção vai passar do what para o how (do que para o como). Ao se romper com o
discurso narrativo, a história passa a não interessar tanto, e sim como Řaquiloř está sendo feito.ŗ
(p. 66)
Segundo o autor, essa intenção reforça uma das características principais da arte
performática: a tentativa de reforçar o instante e romper com a representação nos moldes como
esta veio sempre sendo feita. Com efeito, a leitura de Simulacros permite que se perceba a
ruptura da convencional sucessão lógica dos acontecimentos. Longe de se constituir enquanto
uma Ŗhistória de vidaŗ das personagens - até porque não temos acesso à vida das personagens,
mas às representações dessas vidas -, a narrativa se apresenta como uma sucessão de cenas Ŕ
literalmente Ŕ completamente independentes uma das outras, cada uma das quais com início,

11
Na obra em questão, o autor está tratando mais especificamente das artes dramáticas e visuais, o que
não invalida o empréstimo do termo ao âmbito do discurso literário.
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meio e fim próprias12: um padre passeando com sua namorada pelas ruas da cidade, um casal a
conversar na sala enquanto a filha namora no sofá, uma reedição da peça Chapeuzinho
Vermelho, travestis a atravessarem a cidade, fiéis a exporem seus desejos mais íntimos a Deus
etc Ŕ o processo de simulacrização evidenciado em seu limite.13
Isso se deve ao intuito maior da narrativa de realmente mostrar ao leitor o caráter de
simulação daquilo que lhe é exposto: representam-se/apresentam-se, em uma sequência não
regida por relações de causa e efeito, cenas simuladas que se encerram tão logo se interrompa a
encenação teatral. O mesmo ocorre com os espaços do texto. Além de serem escolhidos de forma
completamente aleatória pela instância autoral que dirige as simulações, muitas vezes passam a
ser construídos na narrativa exclusivamente em função dessas, frequentemente caracterizando-se
por sua desmontabilidade: cenários de um palco teatral. O que importa, em suma, é que o foco
recaia sobre o próprio processo representativo, e não sobre as instâncias actuais em si.
Assim, Jovem Promissor - enquanto narrador que é também personagem de uma grande
simulação - discute o próprio fazer artístico e a artificialidade de um discurso que sempre se
pretendeu realista a partir da própria exposição do gesto ficcional que se dá a ver e na qual o
próprio processo criativo se torna, por si só, o verdadeiro espetáculo. Enquanto personagem que
se expõe dentro de um Ŗcenárioŗ, JP discute justamente sua constituição enquanto criação de uma
instância autoral superior (PhD) que está sempre no controle da situação, mudando o rumo dos
acontecimentos a seu bel-prazer, assim como o escritor também maneja a linguagem em função
de seus projetos literário-ideológicos. PhD passa a representar na narrativa, assim, a figura do
autor, numa espécie de consciência, por parte das personagens, de seu estatuto ficcional,
levando-os a questionar na narrativa o próprio ato de criação literária. Há sempre, pois, no
romance, uma clara tensão entre o criador e suas criaturas, tensão essa que denuncia a
impossibilidade das personagens se constituírem por si mesmas e adquirirem Ŗvida própriaŗ -
como o engodo do realismo quer fazer crer, com suas personagens quase que a saltarem das
páginas dos livros -: simulacros de seres humanos, marionetes dirigidas pelo seu (autor)itário
criador, e existentes unicamente em função dele:

Era certo que não formávamos, por assim dizer, uma família ortodoxa. Havia
aquele que, pairando sobre todos nós, era uma presença enérgica e autoritária. O
pai geral, médico, tutor, Deus e tudo mais. Mesmo ele, no entanto, tornava-se,
nesses novos tempos, como dissemos, mais indulgente: exigindo menos em suas
tarefas, antes diabólicas. E agora as ordenando, talvez, apenas para manter a
aparência de alguma austeridade e disciplina, sem as quais nossa casa poderia
desagregar-se. (SANTřANNA, 1992, p. 68) (grifos meus)

No decorrer da narrativa, todo o ato privado da escrita ficcional vai sendo escancarado em
12
Embora já em algumas narrativas literárias da primeira metade do século XX a quebra da linearidade
temporal já estivesse sendo utilizada por diferentes autores, em especial nas narrativas de fluxo de
consciência, na literatura pós-moderna essa estratégia discursiva vem a outros fins.
13
Vide nota nove.
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forma de espetáculo - literalmente - a seu leitor: encena-se, na representação romanesca, a


prática discursiva ficcional. Desse modo, os elementos do drama são trazidos ao corpo da
narrativa não de modo gratuito, mas justamente para ilustrar Ŕ por analogia Ŕ todo o processo
construtivo que se articula nos bastidores da escrita literária.
O embate contra a arte ilusionista Ŕ que tenta criar a ilusão de representar algo Ŗrealŗ, e
que teve sua máxima expressão no real-naturalismo literário do século XIX Ŕ fica assim evidente
na narrativa. Contra o reportar-se a algo já existente a priori, diante do qual o leitor é colocado
numa postura quase que de espectador - que assiste e de certa forma também vive juntamente
com as personagens os acontecimentos ali representados -, Simulacros apresenta-se como uma
proposta que impele seu leitor, juntamente com o narrador, a percorrer a narrativa e desmembrar
seu processo de construção, já que tudo ali é propositalmente remetido única e exclusivamente ao
âmbito do simulacro. Mais do que apenas um narrador transparente que dá a ver a seu leitor tudo
aquilo a que este convencionalmente não teria acesso - deixando claro, no entanto, que é ele
quem dita as regras do jogo -, Simulacros - como o próprio título já indica - se constitui também
por personagens que são meras superfícies, invólucros a transitar de um lado a outro sem saber
exatamente quem são, manipulados pelas vontades daquele que as dirige: Ŗ[...] Na crônica
daquela casa não se escreviam pessoas, profissões, mas tipos, personagens, protótipos
estereotipados a simularem papéis, dirigidos por um espírito malfazejo, inventor maluco, gênio do
mal.ŗ (SANTřANNA, 1992, p. 82)
Desse modo, apesar de JP, Vedetinha, PD e VC serem personagens-tipo, estereótipos que
o leitor facilmente reconhece e rotula, a superficialidade de seus caracteres é tão Ŗdesmontávelŗ,
Ŗdesmascarávelŗ, que ao leitor é praticamente vedada qualquer possibilidade de identificar-se em
termos de Ŗrealismoŗ com elas. Isso se dá justamente porque quanto mais se adentra a
personagem, mais Ŗrealŗ esta se apresenta aos olhos do leitor, e mais se reforça o engodo da
representação. Por outro lado, quanto mais superficiais e fluidos se apresentam seus caracteres,
mais se reforça o efeito de distanciamento por parte do leitor em relação a elas. Não é mais
possível viver suas vidas e sonhar seus sonhos, pois houve uma quebra no processo
identificatório. Esse obstáculo à identificação ilusória, por parte do leitor, com as personagens da
obra - já que estas são desnudadas em sua ficcionalidade - consitui-se como mais um indício
narrativo que permite ao leitor uma reflexão acerca do novo modelo de representação, que não se
Ŗencaixaŗ mais nos moldes ilusionistas de literatura: brincadeira sarcática levada ao limite por
Sérgio SantřAnna, e que tem por intuito desconcertar o leitor e, a partir disso, instaurar uma nova
categoria de recepção, de natureza e ordem próprias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Qual é o desígnio da literatura? Qual é o desígnio da literatura hoje? Representar, da


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maneira mais objetiva possível, o real? Recriar o real? Criar outras realidades? Ao construir um
romance tal qual Simulacros, Sérgio SantřAnna parece estar buscando respostas justamente para
essas perguntas.
Ao apresentar-se como um modelo de representação que se assume a todo momento
como ficção e trabalha de maneira profundamente lúdica com o desmonte dos seus próprios
artifícios textuais, Simulacros não mais se refere a uma realidade empírica histórica14 - facilmente
reconhecível por seu leitor -, mas sim a uma realidade de outra ordem, produzida e construída já
anteriormente por outro meio de representação. Com o intuito de problematizar as velhas relações
diretas entre linguagem e realidade, a Simulacros não importa criar efeitos de real que visem a
convencer o leitor da veracidade empírica do narrado, mas sim colocar em questão na obra a
artificialidade de um discurso que sempre se esforçou por naturalizar seus signos e forjar efeitos
de real, e que agora exibe suas máscaras e problematiza sua artificialidade a partir de técnicas de
construção anti-ilusionistas que assinalam a tentativa de propor um novo modo de se pensar as
possibilidades da representação literária.
Frente a um discurso ficcional de natureza outra, ao leitor cabe a tarefa de assumir uma
nova postura em relação ao objeto estético que tem em mãos. Mais do que simplesmente situar-
se confortavelmente diante do palco de ilusões que se lhe impõe à vista, do leitor de Simulacros
se exige uma participação muito mais ativa no preenchimento dos brancos que o texto lhe
apresenta em forma de instigações de caráter teórico. Na medida em que a velha fórmula do all is
true é denunciada e substituída por outra que escancara o jogo do texto, seus engodos e artifícios,
instaura-se no leitor a dúvida e a desconfiança constantes em relação ao narrado. Sendo o
narrador um hábil manipulador do discurso, disposto a tudo para fazer valer seus projetos literário-
ideológicos, torna-se gritante a desconfortável situação que se abriu ao leitor: a este não é mais
possível ter certeza alguma acerca do narrado, pois até mesmo o narrador - principalmente - se
tornou suspeito.
A narrativa ficcional, assim, tornou-se o lugar das incertezas, do mesmo modo que o
mundo a partir do qual esta surgiu, Ŗ[...] dentro de toda essa tremenda ilusão a que chamam
verdade [...]ŗ (SANTřANNA, 1992, p. 59), pois a realidade, hoje mais do que nunca, é apenas Ŗ[...]
uma ilusão de que todos participam [...]ŗ (SANTřANNA, 1992, p. 59). Ao leitor, então, não deixa de
irromper a pergunta: se, afinal, a realidade não é mais alcançável pelo sujeito Ŕ embora um dia
essa utopia tenha sido possível Ŕ, pois o mundo se tornou um grande simulacro Ŕ e a literatura
não pode mais, portanto, representá-la como tradicionalmente fez, o que ela ainda pode dizer do
mundo mesmo quando se despoja da necessidade de representá-lo de modo realista? Mais do
que objetivar dar respostas a seu leitor, esse modelo de representação preza o questionamento e
a proposição de discussões que tirem o leitor de seu confortável assento tradicional e o façam
refletir sobre a nova condição emergente.
14
Embora se saiba que essa associação se dá apenas em termos utópicos.
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Ao alterar a forma de se entender a linguagem e sua relação com o mundo, assumindo


posturas poéticas via estética, Simulacros cria seus próprios meios de representar a fim de
reivindicar a possibilidade de se constituir de modo distinto em relação a tudo que vinha sendo
produzido até então. Compondo uma narrativa que extrapola em muitos sentidos o fazer artístico
moderno Ŕ tomando-o de um modo geral Ŕ Sérgio SantřAnna parece querer, sarcasticamente,
fazer um deboche do ato de escrever e da própria figura do autor enquanto instância literária,
alterando seu modo de recepção a fim de pôr em evidência para seu leitor aquilo que sempre se
buscou esconder: o engodo do realismo literário e o processo de formalização do ato de criação
artística.
Ao leitor que aqui lê talvez lhe venha o argumento que já em algumas obras modernas
esse modo de composição literária se fez presente. Não obstante, em Simulacros, Sérgio
SantřAnna parece levar tal tendência ao limite, num experimentalismo anárquico que dá a
impressão de fazer parte de um jogo de formas que persegue um Ŗaté onde posso ir e até onde
consigo chegar fazendo literatura?ŗ. Realmente, nada melhor, para se chamar a atenção sobre
algo, do que exagerá-lo. Sérgio SantřAnna parece, nesse romance, dar a todos a prova disso, Ŗ[...]
devolvendo assim à obra de arte, nos seus próprios termos, aquele caráter de brincadeira elevada
que ela possuía antes de se meter a representar, com a ingenuidade da não-ingenuidade, a
aparência como algo rigorosamente verdadeiro.ŗ (ADORNO, 2003, p.61).

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor. A posição do narrador no romance contemporâneo. In: _____. Notas de


literatura I. São Paulo: Duas Cidades/34, 2003.

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: relógio dřÁgua, 1991.

COHEN, Renato. Performance como linguagem: criação de um tempo-espaço de experimentação.


São Paulo: Perspectiva, 2004.

DUARTE, Rodrigo. Teoria crítica da indústria cultural. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.

SANTřANNA, Sérgio. Simulacros. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992.

SANTřANNA, Sérgio. Entrevista com Sérgio SantřAnna. [fevereiro, 2006]. São Paulo: Revista
EntreLivros. Entrevista concedida a Luciana Araújo.

SÜSSEKIND, Flora. SÜSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários & retratos.
Belo horizonte: Editora UFMG, 2004.
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AUGUSTO MEYER, A CHAMINÉ E O SENHOR FEUDAL

CARLA CRISTIANE MARTINS VIANNA15

Resumo
O presente artigo tratará de realizar uma análise da obra lírica publicada por Augusto Meyer em 1926,
intitulada Coração verde, estabelecendo uma leitura que se orienta pela busca do entendimento do
procedimento autoral do poeta frente ao trabalho com o engenho poético no que diz respeito às inovações
formais e ao tratamento dado à temática do cenário urbano naquele início de século. Desse modo, o diálogo
entre a matéria local e o texto poético será constituído a partir da leitura de alguns poemas de Meyer, poeta
gaúcho de intensa atividade no debate estético e na prática da poesia num momento histórico e literário de
variadas modificações tanto no cenário urbano quanto no literário.
Palavras-chave: Poesia sul-rio-grandense Ŕ Augusto Meyer Ŕ Modernismo Ŕ cenário urbano

Abstract
Augusto Meyer is a Southern Brazilian poet, as we say here, a gaucho poet, whose activity in the aesthetic
debate was as intense as his poetic practice at that historical moment, in the 20s, when urban scene was
constantly changing as well as the literature. Thus, some of Meyerřs poems are analyzed here focusing the
dialogue between his poetic text and the local raw material from those times. This paper attempts to convey
Meyerřs writing procedures as it expresses his poetic struggle to deal with urban scenario themes through
innovative aesthetic features in the beginning of 20th century. We present his lyrical work Coração Verde
(Green Heart), published in 1926.
Keywords: Southern Brazilian Poetry; Augusto Meyer; Modernism; Urban Scenario.

Trataremos aqui de Coração verde, livro publicado por Augusto Meyer em 1926, meio do
caminho da agitada década de vinte no cenário artístico (para não falarmos do político, do social,
do econômico...) do Rio Grande do Sul. Leitura essa na qual encontramos uma manifestação lírica
que não se parece muito com o Modernismo dos vanguardistas da capital do café, sendo que por
aqui as inovações foram mais sutis. Leitura essa que nos mostra que o Modernismo gaúcho não
transformou em bordão a apologia à modernidade, e, sobretudo, não pretendeu romper
definitivamente com a estética literária precedente, no caso, o Simbolismo. Não, o Modernismo
mais ao sul do Brasil experimentou novas formas poéticas sem abrir mão da herança simbolista,
bem como também não recusou alguns comportamentos que o antecederam, como o canto do
orgulho e da vergonha.
Literatura e vida social não devem ser dissociadas quando pensamos neste momento da l
iteratura sul-rio-grandense, uma vez que não podemos esquecer que a realidade de Porto Alegre
era diversa da realidade paulistana, como esclarece Pedro Fernando Cunha de Almeida (1996,
p.135):

Dessa maneira, destaca-se que, como resultado da restrita transformação


capitalista que envolveu a economia gaúcha nas seis décadas posteriores a
1870, a produção industrial sul-rio-grandense em 1920 Ŕ não obstante com
dimensão significativa e se concentrasse nos estabelecimentos industriais de

15
Mestre e doutoranda em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e-mail:
ccmvianna@terra.com.br
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grande porte Ŕ tinha pequena dimensão relativamente à paulista e em sua


composição apresentava menor proporção da produção oriunda dos
grandes estabelecimentos. (Grifos do autor).

Realidade sócio-econômica diferente, um ambiente cultural em que os poetas simbolistas


conviviam com os poetas modernistas ŕ inclusive alguns simbolistas fizeram seus poemas
modernos posteriormente, como Meyer e Fornari, e até mesmo o clima, contribuíram para a
peculiaridade da vanguarda sul-rio-grandense. Podemos ver em vários poemas de Meyer como o
Modernismo gaúcho é singular e inovador no âmbito da nossa literatura, como em:

Realejo
... e esse realejo
como range, alegre,
mói minha alma leve
como a luz do céu...

Dançam figurinhas
sobre a caixa, lindas
como um brinquedinho...

... gira, gira


como os dançarinos,
a minha alma leve
como os brotos novos,
como a igreja nova...

Bimbalhar de sinos,
bimbalhar sonoro,
moças tagarelas,
(quanta namorada!)
campos de cevada...

... realejo alegre,


toda a primavera,
delirantemente,
reza, canta, reza,
canta a missa verde...

Temos aqui um poema cuja linguagem é guiada pela oralidade, da mesma forma que
podemos perceber a desestruturação da métrica e das rimas, características que não
encontramos em Alguns poemas. A musicalidade do poema deixa em segundo plano a prosaica
cena que descreve. Falando ainda sobre a situação de Augusto Meyer e seu Coração verde entre
os modernistas brasileiros, é pertinente a leitura de mais um trecho de crônica de Moysés Vellinho
(Correio do Povo, 1926):

Surgido 5 anos após o grito de rebeldia, que põe o espírito novo em luta aberta e
ruidosa contra a nossa pasmaceira mental, o autor de ŖCoração Verdeŗ, se
aproveitou de todas as conquistas da vitória e ainda deu um passo adiante.[...] O
Sr. Augusto Meyer filia-se à revolta literária levando consigo um continente novo, o
subjetivismo.

A subjetividade, enunciada por Vellinho, é um traço característico da lírica de Meyer, tendo


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em vista que Coração verde e também Giraluz são representativos de um modernismo menos
agressivo do que o Modernismo sediado em São Paulo, de um modernismo arraigado na herança
simbolista. Meyer tinha plena consciência do seu fazer poético, bem como do panorama literário
sul-rio-grandense, como podemos perceber na definição do posicionamento do poeta feita por
Ligia Leite (1972, p.87): ŖVisão crítica, entusiasta, mas ponderada do Modernismo. Tem
consciência de que muito dele não vai ficar, mas aceita isso como normal num processo
evolutivoŗ.
Destoando da prática modernista de louvar a incipiente industrialização e, deste modo, a
modernização da geografia das cidades, Augusto Meyer pinta as chaminés com as cores da
antipatia, ou melhor, ele não aceita os malefícios decorrentes da modernização. O poema A
chaminé deixa clara a idéia de Meyer sobre a transformação da paisagem porto-alegrense.
Vejamos:

A chaminé

A chaminé sobe com seu imenso pesadelo de fumaça,


enovelada em penacho que rola e espirala,
a chaminé vermelha sobre a arquejante forja da usina,
enquanto a chuva bate o seu rufo inocente
sobre as relhas de zinco,
sobre as casas baixas, mansamente.
Cha-mi-né.
Torre nova de uma igreja sem fé,
como um canhão monstruoso de tijolos,
vomita, ameaça,
pragueja dia e noite a praga imensa da fumaça...

Tapando a torre da catedral,


sonhando ao longe um sonho de rapina,
imensamente — sobe a chaminé,
— A CHAMINÉ — COMO UM SENHOR FEUDAL...

A chaminé de Meyer é um monstruoso canhão de tijolos, portanto podemos dizer que,


numa imagem de fácil apreensão, ele faz o seu desabafo revoltoso, altissonante. Atentemos para
a intensidade dos verbos que dão ação à chaminé: vomitar, ameaçar e praguejar. Por fim, num
tom apocalíptico, compara a chaminé a um senhor feudal, afirmando, com isso, que os homens
seriam servis à chaminé, ou melhor, ao que ela representa.
Enquanto os modernistas do centro do país louvavam a modernização das cidades, Meyer
conferia à chaminé um sonho de rapina e, como se não bastasse, intensificava a sua crítica à
modernização da cidade ao comparar a chaminé a um senhor feudal. Esta metáfora demonstra
que, ao invés da modernolatria, a postura de Meyer é de reprovação e desconfiança crítica ante
os possíveis benefícios provenientes da modernização das cidades.
Através desta metáfora, o poeta acusa um possível retrocesso à Idade Média, pois o
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vínculo de dependência entre os camponeses e os senhores feudais se perpetuaria entre a


chaminé (industrialização) e o camponês moderno (o operário). Ligia Leite (1975, p.14) aponta a
recorrência deste tema na poesia de Meyer: ŖPercebe-se que a cidade com a sua falta de vida,
com a sua falta de verde e sobretudo com suas chaminés, símbolo da instituição que lhe dá
existência (a indústria) é um tema obsessivo da poética de Meyer, desde Coração verde.ŗ
Este mesmo poema pode ser pensado como um canto de reprovação à modernização
econômica resultante da nascente industrialização em solo gaúcho, tendo em vista a desconfiança
com que enxerga a chaminé e o que ela representa. O mesmo livro que traz poemas que louvam
a paisagem do pampa, a querência e a estância canta muito pouco a paisagem da cidade e,
quando o cenário citadino aparece, o que Meyer poetiza não é uma cidade do início do século XX,
em pleno processo de transformação da paisagem, como podemos ler nas palavras de Charles
Monteiro (1995, p.48):

Na administração municipal de Otávio Rocha (1924-1928), este projeto social de


modernidade traduziu-se em uma política de Ŗaberturaŗ e Ŗmodernizaçãoŗ do
espaço urbano de Porto Alegre, bem como na tentativa de integrar as camadas
populares urbanas aos valores e às formas de sociabilidade burguesas. O
contexto político-social-econômico, da década de 20, provoca modificações nas
formas de pensar e planejar a organização do espaço político, social e econômico
da cidade. Porto Alegre, no curto período da administração Otávio Rocha, passa
por grandes reformas urbanas que reorganizam o espaço global da cidade. A nova
inserção do Rio Grande do Sul na economia nacional, a emergência de novos
grupos sociais, o desenvolvimento industrial e o crescimento da população
operária colocavam a necessidade dessas reformas no espaço urbano da capital
do Rio Grande do Sul.

O espaço urbano estava se modificando, e os olhos de Meyer certamente estavam


testemunhando este momento da História da cidade. Por que então um poeta que simpatizava
com as teses modernistas não registrou em sua poesia a nascente modernização do espaço
urbano? Antes de esboçarmos uma resposta é preciso que leiamos este outro poema:
Meia-hora

A cidade mestiça dorme a sesta de janeiro.


Ela fechou as venezianas
sob um cortinado espesso de mormaço.

Ficou sonhando que boiava como a espuma...


E chaminés bocejam.
Claridade crua.

Há uma revolta em fila rígida nos postes,


martirizados pelos fios,
retezados em cruz pela trama que sobe,
retas ríspidas _______________ longo traço.

Mora a sombra doce nas cornijas,


beija a curva dos beirais,

― porque a sombra é a saudade azul das velhas casas coloniais.


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Trapos verdes, balouçam bananeiras,


molemente sobre os muros de quintais.
Pedra. Calor. Tudo cheira a caliça.

Navegar lá no alto como aquela nuvenzinha...


E a cidade dorme,
pesada, enorme,
sem ver o orgulho reto e bravo das palmeiras.

O primeiro verso desse poema faz uma alusão à mistura de povos de diversas origens que
passaram a conviver no cenário da cidade, uma vez que Porto Alegre estava assumindo o caráter
de Ŗuma cidade mestiçaŗ. Cabe a nós, portanto, perceber que o poeta não nos informa muito
sobre esta cidade mestiça, pois ela está em repouso. O olhar melancólico do eu-lírico de Meyer
compõe um quadro onde o que vemos é uma cidade que dorme a sesta fechando os olhos para
as bananeiras, os muros dos quintais, a confusão dos fios nos postes, as velhas casas coloniais e,
por fim, o Ŗorgulho reto e bravo das palmeiras.ŗ.
A cidade vista pelo sujeito-lírico dos poemas de Coração verde não é uma cidade em vias
de modernizar-se, mas uma cidade que mantém, ou deveria manter, a calmaria dos jardins
simbolistas. Eloqüente é o modo como o sujeito-lírico deste poema trata da modernização do
fornecimento de energia elétrica, implícita nos versos:

Há uma revolta em fila rígida nos postes,


martirizados pelos fios,
retezados em cruz pela trama que sobe,
retas ríspidas _______________

O esperado de um poeta que simpatiza com o progresso da cidade seria que ele olhasse
com bons olhos a paisagem formada pelos fios Ŗretezadosŗ nos postes. Como os versos de Meyer
apontam o contrário ŕ tendo em vista o modo como adjetiva o quadro: Ŗfila rígida nos
postes,/martirizados pelos fiosŗŕ, concluímos que a modernização da cidade não era tida em boa
conta pelo poeta de Coração verde.
Augusto Meyer, descendente de imigrantes alemães, praticamente não verseja o mundo
teuto-imigrante em sua lírica. Ao longo de sua poesia, o que encontramos é um poeta ocupado em
cantar o mundo mítico dos carreteiros, da estância, da querência, enfim, um universo rural pré-
positivismo. Mais tarde, em Giraluz, perceberemos que a cidade aparece timidamente em sua
temática poética, sendo, portanto, muito mais a cidade do Ŗgrupoŗ a que ele pertencia, e de que
tratamos no primeiro capítulo deste trabalho, do que a Porto Alegre em concreto e canteiros de
obras da década de vinte.
Convém lembrarmos que, quando tratamos da memorialística de Meyer, encontramos
depoimentos de um poeta orgulhoso do passado guerreiro do bisavô, de um poeta vaidoso por
pertencer ao contingente daqueles que eram herdeiros de farroupilhas, os Ŗnetos de farroupilhaŗ.
Assim sendo, Meyer representa o mundo imigrante que, uma vez integrado à terra nova, assume
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como seu o passado histórico e cultural da terra que o acolheu. A lírica do poeta de Coração
verde parece não enxergar a nova realidade da sociedade sul-rio-grandense, uma realidade em
que o mundo imigrante já assumiu relativa importância na vida econômica, política e, até mesmo,
social.
No estudo de Magda Gans (2004, p.42) sobre a presença teuta em Porto Alegre no século
XIX, encontramos dados que deixam bem clara a realidade que o poeta Meyer não versejou:

É na Rua da Praia ou dos Andradas que registrei o maior número de


estabelecimentos e profissionais teutos em uma mesma rua, ou seja, 132. (...)
A presença de alemães também foi significativa em outras ruas do centro da
cidade que, em conjunto com as já mencionadas, revelam uma integração
significativa dos teutos na parte economicamente dinâmica da capital, que
começava a crescer e perder as feições de cidade pequena.

Na capital do Rio Grande do Sul, a presença dos imigrantes alemães já poderia ser
percebida ainda no século XIX, tendo em vista que a Rua da Praia já possuía 132
estabelecimentos teutos nos idos daquele século. Portanto, a principal rua da capital já era um
cenário onde o imigrante alemão atuava décadas antes de Meyer e seus companheiros de grupo
assiduamente cruzarem-na a caminho das livrarias, dos jornais e dos cafés. Mas este universo
não aparece na lírica de Meyer, causando estranheza o fato de que, nas poucas vezes em que há
alusões ao mundo imigrante em sua poesia, o que encontramos são versos que tratam da
colonização italiana.
Vimos, portanto, que Meyer é econômico em referências à cidade, não toca no tema da
colonização teuta, ao mesmo tempo em que poetiza intensamente a terra, o campo, a querência,
enfim, o universo do mundo campeiro, ainda latifundiário, do início do século XX. Augusto Meyer
também poetizou a serra gaúcha, as parreiras e o mosto do vinho novo. Ou como afirma Luís
Augusto Fischer (1992, p.37) ao tratar do poema Brinde:

Meyer não estranhou o tema gauchesco nem o desenho da cidade, como se


operasse uma fusão entre a tradição e a contemporaneidade; é o que lemos nos
dois versos finais do poema recém citado, composto singular de seiva antiga e
vinho novo, como sua poesia.

A tradição cantada por Meyer é a tradição do sistema literário da lírica sul-rio-grandense,


bem como a contemporaneidade versejada por ele também é uma contemporaneidade
regionalista, que, por sua vez, não tem olhos para o mundo teuto e vê o universo da colonização
italiana somente através de ícones como o vinho, a serra e a parreira do poema anterior e de
Serrano:

Serrano

Eu devia nascer lá na Serra, entre os pinheiros,


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quando o ar cheira a resina, a campo novo e a lenha verde.


(O aroma que há nas derrubadas...)

Nascer lá, quando o céu é macio como um beijo,


e há barro-em-sangue nas estradas...

Penso na encosta cheia de uvas e cantigas,


onde a alegria é um mosto que espumeja,
nesse ondular voluptuoso, de uma graça antiga,
que há nos gestos lentos das vindimadeiras,
na sombra que dança pelos muros de cal,
no ouro do sol furando a sombra das parreiras.
Domingo.
A igrejinha nova é um brinquedo na montanha.
Brincam sinos.
Há uma festa de cores pela estrada:
lenços vermelhos, pintalgados,
colonos ingenuamente enfeitados,
para a missa, que é um brinquedo na montanha.

Brincam sinos, brincam sinos.

Domingo.
(Eu devia nascer lá na Serra, entre os pinheiros...).

A serra é vista pelo sujeito-lírico deste poema como uma região onde, apesar das
dificuldades enfrentadas (Ŗo aroma que há nas derrubadasŗ, Ŗe há barro vivo nas estradasŗ),
desponta a alegria (ŖBrincam sinosŗ) e um recomeço de vida, que pode ser lido através das
seguintes imagens: Ŗquando o ar cheira a resina, a campo novo e lenha verdeŗ e ŖA igreja nova é
um brinquedo na montanhaŗ. O domingo serrano da poesia de Meyer é retratado através de
imagens que compõem um quadro em que os Ŗcolonos ingenuamente enfeitadosŗ vão à missa
celebrar a Ŗencosta cheia de uvas e cantigasŗ.
Se o mundo mítico do pampa e o que a ele está intimamente relacionado (querência,
coxilha, minuano, gaita, Boitatá, manancial, estância...) são constantes presenças na lírica de
Meyer, e o mundo colonial imigrante é pouco trabalhado (no caso italiano) ou inexistente (no caso
alemão), é porque o projeto poético tanto do crítico literário quanto do poeta Augusto Meyer era
perseguir uma tentativa de modernização da sua poesia, em que produzisse uma poesia apegada
à terra e aos motivos gaúchos.
O poeta e crítico Meyer estampava os jornais com crônicas que pregavam a atenção à
inspiração provocada pelo Ŗcheiro da terra boaŗ, para que, embebidos neste clima de renovação,
os poetas produzissem obras que transparecessem a Ŗalegria de amar a terra, como se a
houvéssemos descobertos nós mesmos, hoje, agoraŗ.16 A terra que Meyer queria que fosse o
norte da nova literatura sul-rio-grandense era a terra horizontalizada do pampa, berço da

16
MEYER, Augusto. Ruy. In: Correio do Povo, Porto Alegre, 05 ago. 1926.
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economia pecuarista, que tradicionalmente ocupava a hegemonia da economia gaúcha e,


conseqüentemente, servia de inspiração aos vates sulinos quando a intenção era cantar a
natureza. Por isso, ele seguiu olhando para o pampa, deixando, portanto, um olhar de soslaio para
a serra gaúcha, berço da imigração italiana no Estado.
Não poderíamos esperar outra postura de um poeta que pretendia versejar o universo
regional para conseguir, assim, produzir uma lírica que contribuísse de algum modo com o projeto
nacionalista dos modernistas do centro do país. Esse empenho de Meyer em versejar temas
ligados à terra e aos motivos gaúchos não pode ser dissociado do momento histórico em que ele
estava inserido, uma vez que, desde o Pacto de Pedras Altas, os grupos políticos antagônicos
procuraram reprimir as desavenças históricas em nome de um projeto político maior, que
resultaria, por fim, na Revolução de 30. Deste modo, ao tratarmos do regionalismo de Meyer,
precisamos ter em mente que ele, além de ser um neto de farroupilha, era contemporâneo de um
período da História do Rio Grande do Sul em que os ânimos estavam sufocando rivalidades
através de um forte sentimento regionalista.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Pedro Fernando Cunha de. As razões materiais na posição periférica da indústria
gaúcha na industrialização restringida brasileira. In: Gaúchos e paulistas: dez escritos de história
regional comparada. Porto Alegre: Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel
Heuser, 1996.
FISCHER, Luís Augusto. Um passado pela frente. Porto Alegre: UFRGS, 1992.

GANS, Magda R. Presença teuta em Porto Alegre no século XIX. Porto Alegre: UFRGS, 2004.

LEITE, LIGIA C. M. Modernismo no Rio Grande do Sul: matérias para seu estudo. São Paulo:
Instituto de Estudos Brasileiros, 1972.

________. Cirandagem: introdução à poesia de Augusto Meyer. In: Revista de Letras. Assis:
Publicação da Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras de Assis, 1975.

MONTEIRO, Charles. Porto Alegre: urbanização e modernidade: a construção social do espaço


urbano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995.

VELLINHO, Moysés. Livros e autores. In: Correio do Povo, Porto Alegre, 31 dez. 1926.
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AS VOZES DE LIBERTAÇÃO FEMININA QUE ECOAM EM THE AWAKENING, DE


KATE CHOPIN

DEISI LUZIA ZANATTA17

Resumo
Este estudo acadêmico visa um estudo analítico sobre as vozes de libertação feminina que ecoam a partir
da personagem Edna Pontellier, em The Awakening (1889) de autoria da escritora norte-americana Kate
Chopin (1851-1904). Partindo dos postulados de Ewel (1986), Bakhtin (1988 a e b) Fairclough (2001), Kehl
(1996) e Sroczynski (2004), o objetivo principal é analisar de que maneira Edna Pontellier busca pela
emancipação feminina através da construção de sua identidade como sujeito de seu discurso.
Palavras-chave: Emancipação feminina. Discurso. Edna Pontellier. Hegemonia masculina. Gênero.

Abstract
This academic study has as its objective an analytical study on the female voices of liberation that echoes
from the character Edna Pontellier, in The Awakening (1889) authorship of the North-American writer Kate
Chopin (1851-1904). Starting from Ewel's (1986), Bakhtin's ( 1988 a and b), Fairclough's (2001), Kehl's
(1996), and Sroczynski's (2004) assumptions, the main objective is to analyze in what manner Edna
Pontellier searches for feminine emancipation through the construction of her identity as subject of her
discourse.
Keywords: Feminine emancipation. Discourse. Edna Pontellier. Male Hegemony. Gender.

Em meados de 1950, com o advento de novas correntes interpretativas no âmbito da


literatura, a obra da escritora norte-americana Kate Chopin (1851-1904) renasce das cinzas, após
haver sido relegada ao olvido público por mais de cinqüenta anos, com o romance The Awakening
(O Despertar) pela forma aberta de apresentar a emancipação feminina.
Embora a trajetória da protagonista do romance esteja circunscrita a um contexto
sociocultural específico Ŕ a comunidade ŖCreoleŗ do Estado da Lousiana/EUA Ŕ, a narrativa
investe no discurso que se organiza em torno a um processo de Ŗdespertarŗ da personagem
enquanto mãe, esposa e mulher. Esse processo existencial ganha consistência na medida em que
as visões ideológicas são especificadas, notadamente, a visão de mundo constituída pela
representação do poder hegemônico masculino e patriarcal. Tal visão de mundo não é exclusiva
no romance The Awakening. Muitos contos da autora também aludem a essa visão, constituindo
um quadro onde se inscrevem as normas, os valores e a linguagem com os quais o grupo social
faz uma representação de si e do meio em que atua.
Nos estudos de Bakhtin (1998) subjacentes à sua teoria da linguagem, o conceito de
dialogismo Ŕ duplicidade de toda palavra, de toda enunciação cultural Ŕ abre novas perspectivas
para a compreensão da obra literária, uma vez que o estudo do discurso romanesco, sob esse
enfoque, não se circunscreve à narrativa de uma determinada história, mas põe em ação uma

17
Licenciada em Letras, Português, Inglês e Respectivas Literaturas pela Universidade Regiona Integrada
do Alto Uruguai e das Missões, Campus de Frederico Westphalen e Especialista em Língua e Cultura
Inglesa pela mesma instituição.
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multiplicidade de vozes, articuladoras de linguagens sociais diferentes. Para o teórico, a prosa


literária é o espaço privilegiado de representações, em graus diversos, das várias dimensões da
linguagem, razão pela qual Bakhtin (1998, p.73) define o romance enquanto Ŗfenômeno
plurilinguístico, pluriestilístico e plurivocalŗ.
Nesse sentido, as vozes que se fazem ouvir no romance, submetidas a um processo
estilístico de elaboração literária, dizem respeito a vozes sociais e históricas, portadoras de
posturas sociais e ideológicas que, se orquestradas pelo autor, necessariamente, não coincidem
com as do autor. Estudar como essas vozes que interagem no romance significa entender o
caráter bivocal do discurso romanesco, posto que o autor, ao organizar as unidades
composicionais (seja a narrativa direta; os diversos tipos de diálogos; a utilização de gêneros
intercalados Ŕ cartas, poemas, etc. -; as várias formas que são estilisticamente individualizadas
nos discursos das personagens) enfim, ao orquestrar a polifonia dessas vozes, cria uma espécie
de duplo, Ŗo personagem-narradorŗ, que não se identifica com o autor, mas que age como
consciência mediadora entre a consciência do narrador e a do herói.
Ao discutir a noção de plurilingüismo, Bakthin acentua que este penetra no romance e se
materealiza nas figuras das pessoas que falam. Embora deixe claro que o protagonista da história
Ŕ dentre as figuras que falam Ŕ seja considerado o mais importante, esta é apenas uma dentre as
várias formas, uma vez que, para o gênero romanesco, não é a imagem do homem em si que
importa aprender, em suas características físicas, mas justamente, a Ŗimagem de sua linguagemŗ.
No caso do romance de Kate Chopin, cumpre investigar, na mira das observações
bakhtinianas, como a autora constrói seu objeto pelo discurso, como se vale da linguagem nessa
construção, por que utiliza determinadas imagens e não outras, por que a ambigüidade ou certo
tipo de linguagem é evidenciada. A resposta a tais questões, a serem discutidas no presente
trabalho, assenta-se na justificativa de que a Ŗatmosfera social do discurso que envolve o objeto
faz brilhar as facetas de sua imagemŗ. (BAHKTIN, 1998, p.87). Contudo, se a forma como é
construído o objeto, isto é, o assunto de que se vale a enunciação, é fundamento dialógico do
discurso, não é aí que se esgota a dialogicidade interna, uma vez que todo o discurso é orientado
para a resposta, portanto, para o futuro: Ŗao se construir na atmosfera do Řjá-ditoř, o discurso é
orientado ao mesmo tempo, para o discurso-resposta que ainda não foi dito, discurso, porém, que
foi solicitado a surgir e que já era esperadoŗ. (BAKHTIN,1998, p.89). Um dos objetivos
perseguidos pelo presente trabalho diz respeito à utilização de metáforas e de imagens como
estratégias referenciais na estrutura textual do discurso narrativo, responsáveis pela construção
do Ŗeuŗ da protagonista em sua relação com os outros e, fundamentalmente, consigo mesma.
De acordo com Fairclough (2001), o que define, entre outras, as marcas no interior das
práticas discursivas, é a forma como determinadas experiências são metaforizadas. Por essa
razão, a metáfora ganhou consistência significativa de estudo, para além do discurso poético, uma
vez que esta imagem penetra o próprio discurso cotidiano e até o discurso técnico e científico.
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Sob esse ponto de vista, perseguir a maneira como as metáforas aparecem no discurso de The
Awakening viabiliza estabelecer relações que são responsáveis pelas diversas funções da
linguagem tanto Ŗinterditariasŗ quanto Ŗrelacionaisŗ ou Ŗideacionaisŗ. No estudo que dedicam à
metáfora, no livro Metaphors we live by, de Lakoff e Johnson (1981) discutem a importância dos
fatores, sejam culturais, ideológicos, religiosos, entre outros, na escolha de certas metáforas, bem
como o efeito resultante destas sobre o pensamento e a prática.
Se o fio condutor da narrativa The Awakening não é necessariamente o questionamento
feminista em torno dos direitos da mulher, sem sombra de dúvidas o Ŗdespertarŗ das protagonistas
está anexado ao seu papel enquanto esposa e mãe. Os desempenhos de papéis sociais e papéis
naturais se chocam com a peregrinação em busca da afirmação do desejo. Por essa razão, a
contribuição dos estudos de Ŗgêneroŗ é importante.
De acordo com Kehl (1996), a personagem do romance The Awakening, é destinada a
uma vida de dependência e obediência, responsável pela supervisão do bom andamento da casa
e da educação dos filhos, limitada sexualmente por um casamento de conveniência é capaz de
despertar para a experiência da descoberta de seu corpo e de sua individualidade. De acordo com
isso, busca-se verificar: como se organiza o discurso da protagonista; qual a interferência do
sistema de crenças e valores impostos pelo meio social; quais os recursos narrativos de que se
vale Kate Chopin para realçar os efeitos de sentido nos discursos das personagens.
O início o romance nos mostra o cenário da praia de Grand Isle. Desempenhando algum
tipo de relacionamento com rituais e mitos religiosos, o mar, muitas vezes é associado à criação
divina, ao envolvimento de ardentes paixões. A imagem simbólica de representatividade do mar
exerce sobre a protagonista de The Awakening relação com sua vida e com sua morte. O
processo do Ŗdespertarŗ de Edna está totalmente ligado as vozes do mar, que a encaminha para o
aprendizado e para a descoberta do desejo. Porém, essa descoberta envolve contradição, uma
vez que Edna não aceita o convite de Robert para ir à praia, mas seu coração dizia para aceitar. O
seu coração representa sua interioridade, e através disso Edna consegue perceber sua posição
no universo, a se reconhecer como indivíduo, a relacionar-se com o mundo exterior. Essa
interioridade, ou seja, a voz do coração, já aponta para a sinalização do desejo e da proibição, da
ultrapassagem das convenções.

O mar é catalisador de suas descobertas como ser humano: sua função extrapola
o domínio de um mero elemento da natureza para alavancar outras funções: a
tentativa da passagem humana de objeto para sujeito. Assim, o início da trajetória
de Edna e seu final são arrematados pela mesma metáfora correspondente à voz
do mar. Essa circularidade temática e temporal também alarga o plano da
metáfora porque, atrelada à voz do mar, também está presente, nessa metáfora
personalizada, a ideia de interioridade e solidão. É como se o mar propiciasse o
desejo, liberasse os impulsos mas, ao mesmo tempo desencadeasse um
inexplicável desalento (SROCZYNSKI, 2004, p. 28).
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A imagem representativa do mar reflete em Edna o sentimento da solidão e interioridade,


tal como o mar, Edna se sente sozinha e repreendida pelo meio social, se tranca em sua
interioridade. Por outro lado, o mar desencadeia em Edna um sentimento de descoberta, de
desvendar novos caminhos, experimentando novas sensações. O mar pode ser comparado a
Edna, pois ao nos depararmos com o mar temos determinada impressão dele, mas não sabemos
o que há no seu interior. Com Edna ocorre algo similar, por fora nos mostra uma impressão, mas
na sua interioridade somente ela sabe como se sente.
Porém, é no mar que Edna aprende a nadar sozinha através da insistência outrem e de
Robert, por quem nutria uma ardente paixão e isso corresponde a um ato de poder, ou seja, o mar
está presente nesse importante marco na vida da protagonista, pois através dele começa o
processo de sua libertação. Esse ato propicia que ela vá mais além do que pode, ou seja, nade
para além de suas forças.
O mar representa sua repressão e libertação. Através do mar, é possível identificar a
ressonância dialógica da Bakhtin, pois metaforicamente há uma relação de vida-morte-solidão,
que se verifica quando Edna aprende a nadar no mar e no final do romance essa questão é
retomada, uma vez que seu processo inicial de emancipação no mar, já antecipa de certa forma o
ápice de sua libertação, que se conclui no final do romance através do seu suicídio no mar.
Se as vozes do mar representam uma metáfora de libertação, Kate Chopin cria sua
protagonista como uma pessoa sensível à pintura e à música. Com isso, ela resolve abandonar a
mansão onde vive com seu marido e vai viver no Ŗpombalŗ sozinha. Edna resolve expressar que
mesmo em meio a muito luxo, não pode mais viver repreendida, buscando sua independência
profissional e alavancando um escândalo para a época porque as mulheres eram impedidas de
exercerem algumas profissões, sendo o domínio das artes privilégio do sexo masculino. As
mulheres que pretendessem entrar para o mundo artístico estariam a suspeita de trair o destino
doméstico reservado a elas. Porém, Edna quebra essa tradição e vai em busca de seu destino. ŖÉ
dos seus quadros, inclusive, que ela pretende viver, quando abandona a mansão do marido e
passa a viver no Ŗpombalŗ, a casa simples e modestaŗ (SROCZYNSKI, 2004, p.32).
Quando se fala em discurso de libertação feminina, é importante ressaltar que a escritora
do romance é norte-americana, e sua cultura exerce forte influência no romance. Os personagens
da obra estão associados ao estado de Louisiana, se não todos, pelo menos a maioria deles, e
neste local a maioria da população é ŖCreoleŗ, isto é, descendentes de espanhóis e franceses,
mas que são nascidos nesse mesmo Estado e praticantes do catolicismo. Edna é uma protestante
do sul, e considera Ŗinstiganteŗ como certos assuntos são discutidos e como certas ações são
praticadas por parte dos ŖCreolesŗ. Evidentemente isso ocorria com alto índice de
conservadorismo e preconceito. Kate Chopin, descendente de irlandeses, se casa com Oscar
Chopin e vai viver em New Orleans e lá mergulha na atmosfera que deu origem aos cenários e
personagens de suas polêmicas obras. Herdeiros de uma influência católica muito forte, os
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ŖCreolesŗ eram radicais em relação a indissolubilidade do casamento e ao papel da mulher como


esposa fiel e mãe exemplar. Edna se sente presa a um mundo de convenções que no qual não
quer viver e com isso, modela um discurso de libertação de sua condição como um voto
protestante.

Como uma intrusa Ŕ uma americana Ŕ cujo legado puritano é uma desconfiança
do corpo, Edna está despreparada para esse ambiente relaxante, o qual coloca
em crise sua própria reserva costumeira. Com suas liberdades superficiais essa
cultura alienígena, reforçada pelo estímulo sensorial do Golfo, fornece o que tem
sido chamado Ŗum clima de relaxamento psicológicoŗ e o impulso inicial para o
despertar de Edna (EWEL, 1986, p. 47; trad. Maria Eloisa Sroczynski).

A ambivalente situação de liberdade e privação atrai Edna, uma vez que ela não conseguia
compreender como os ŖCreolesŗ eram tão conservadores em relação ao casamento, mas ao
mesmo tempo tão liberais em manifestações de expressão. E é justamente essa ambiguidade de
posturas que atrai a protagonista para o seu Ŗdespertarŗ.
Se a metáfora representativa do mar, é o processo inicial e final da emancipação feminina
da protagonista, Kate Chopin se vale de um outro recurso metafórico para expressar a voz da
proibição religiosa em relação ao discurso de libertação de Edna. Essa voz é interpretada pela
personagem lady in black. Segundo Lakoff e Johnson (1981, p. 19) Ŗnenhuma metáfora pode
mesmo ser compreendida ou mesmo adequadamente representada, independentemente de sua
base experencialŗ, isto é, a metáfora lady in black está enraizada no texto de acordo com
específicos preceitos culturais, ou seja, a análise de sua função é importante para o foco de
estudo do romance.
ŖA dama de pretoŗ aparece repetidamente no texto, rezando o terço e lendo seu livro de
orações toda vez que são representadas situações em que o discurso do desejo da protagonista
está sendo realçado. De maneira totalmente irônica, Ŗa dama de pretoŗ representa a proibição
religiosa em relação ao discurso da paixão, isto é, a metáfora religiosa representada pela Ŗdama
de pretoŗ tenta barrar a construção da individualidade feminina e do discurso de Edna Pontellier.
De acordo com Sroczynski

Porém e aqui reside a ironia de apresentá-los metaforizados em uma dama de


preto, tais nominados, não são abertamente discutidos. Sobre eles, coisa proibida,
nefasta e pecaminosa, paira o manto da reserva e do silêncio. Eles são
atravessados pela rejeição que a sociedade imputa aos que ousam desafiar as
rígidas instituições sociais, rejeição que é sancionada pela religião (2004, p. 37).

Vale ressaltar a força da herança religiosa e conservadora do catolicismo em Saint Louis,


religião esta que se opõe a da protagonista. Porém, essa ambivalência de crenças religiosas não
é a base da qual se desenvolve a história de Edna. A visão do narrador é liberal e sob os
preceitos de que nada escapa aos olhos de Deus e que este também se encontra em qualquer
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lugar, a dama de preto surge em todas as situações que demonstrem cenas de paixão explícita. A
reza do terço e do livro de orações não é praticada para mostrar o pecado, mas sim, pelo
sentimento de culpa de expressarem seus desejos livremente. A ironia da Ŗdama de pretoŗ se
constrói em vista que na época em que o romance foi escrito, a religião era uma importante força
proibitiva contra qualquer tipo de libertação sexual feminina. Sempre praticando a reza e
representando o carrasco de Eros, ela investe com todas as forças contra a busca incessante do
prazer. Ao ficar evidente o que ela realmente deseja, a Ŗdama de negroŗ desaparece efetivamente
do romance, pois não há mais recados a dar aos Ŗpecadoresŗ.
Se a Ŗdama de negroŗ representada como metáfora da proibição religiosa em relação a
emancipação feminina de Edna, ao abrir o romance Chopin nos dá pistas sobre a situação que a
protagonista se encontra, através do papagaio preso na gaiola.

Um papagaio verde e amarelo, que estava pendurado numa gaiola do lado de


fora, repetia insistentemente:
-Vá embora! Vá embora! Com os demônios! Está tudo bem! Ele sabia falar um
pouco de espanhol e também uma língua que ninguém entendia... (p. 7).

Assim, o início do texto apresenta a descrição de um pássaro preso na gaiola, que de certa
forma está imobilizado nela, em sua condição e em seu espaço, o que futuramente acontecerá
com Edna e Robert. A imagem de Edna é transmitida ao leitor através do Senhor Pontellier,
simplesmente como um mero objeto. A partir desse ponto de vista, a identidade de Edna é pobre
de informação, ou seja, aparece como parte da moldura ou pano de fundo de um cenário. O início
da narrativa apresenta as ações do Senhor Pontellier, o que deixa claro a dominação da ideologia
masculina, uma vez que o início da narrativa parte de suas ações. Para a época, o marido
estabelecia uma espécie de compra da esposa através do casamento, ou seja, com o casamento
sendo consumado, a esposa era um objeto material que o pertencia, podendo estar sujeito a
danos. Ŗ-Você está irreconhecível de tão queimada Ŕ ele acrescentou, olhando para sua esposa
como alguém olha para um valiosos item de propriedade pessoal que sofreu algum danoŗ
(CHOPIN, 2002, p.9-10). A partir disso, pode-se perceber que a relação de Leonce para com
Edna é semelhante a de um comerciante e sua mercadoria.
As relações discursivas entre Edna e Leonce também merecem destaque, uma vez que,
ambos os discursos travam um conflito ideológico, através do plurilinguismo materializado através
de suas linguagens, que segundo Bakhtin:
Na realidade, não são as palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas
verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou
desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um
sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e
somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas
concernentes à vida (1998ª, p. 95).

Os capítulos III e IV do romance mostram os marcos linguísticos-discursivos que


IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 53
03 a 05 de novembro de 2010

caracterizam o relacionamento matrimonial entre o Senhor e a Senhora Pontellier, e o papel social


que era esperado da mulher em relação ao seu papel de esposa e mãe. Um acontecimento
interessante no capítulo III é quando o Senhor Pontellier retorna a casa onde passam as férias de
verão, após passar a noite jogando cartas com amigos no Klein´s hotel. Coloca o dinheiro que
ganhou no jogo em cima da cômoda e fica ressentido ao perceber que sua esposa estava com
sonho e não lhe deu a menor atenção. Aqui se evidencia o valor que Leonce atribuía a sua
esposa. Porém, ao entrar no quarto dos filhos e ao perceber que um deles está com febre,
repreende Edna por descuidar das suas obrigações de mãe.

Ele repreendeu sua esposa por sua desatenção, sua habitual negligência com as
crianças. Se não fosse a função de uma mãe tomar conta de crianças, de quem
seria afinal? Ele próprio estava ocupado com seu negócio de corretagem. Ele não
podia estar em dois lugares ao mesmo tempo: ganhando a vida para sua família
na rua e ficando em casa para garantir que nenhum mal lhes acontecesse. Falava
de maneira monótona, insistente (p. 15).

Percebe-se claramente qual era o papel que Edna, enquanto esposa e mãe devia
desempenhar em relação a hegemonia dos ŖCreolesŗ, na citação acima, mais precisamente de
acordo com Leonce Pontellier. Porém, Edna não estava feliz nessa condição e isso pode ser
evidenciado quando Chopin descreve a seguinte passagem do romance.

Em suma a Sra. Pontellier não era uma mulher-mãe. As mulheres-mães


pareciam predominar naquele verão em Grand Ilse. Era muito fácil reconhecê-
las, batendo suas asas estendidas, protetoras quando qualquer mal, real ou
imaginário, ameaçava suas preciosas ninhadas. Elas eram mulheres que
idolatravam seus filhos, veneravam seus maridos, e consideravam um santo
privilégio anular-se como indivíduos e cultivar asas como anjos auxiliadores
(CHOPIN, 2002, p. 19).

A passagem da obra demonstra que a função das mulheres da época era anular-se e viver
em função do bem estar dos filhos e maridos, função essa que Edna não gostava de exercer, pois
ela daria tudo para seus filhos, mas não daria a sua liberdade em prol deles. Porém, Edna possui
uma vida invejável perante outras personagens femininas da obra, pois estas dizem que Leonce
era um marido exemplar, o melhor do mundo, coisa que Edna é forçada a admitir. Por este lado
da narrativa, Leonce ganha a simpatia do leitor, pois aos olhos de quem está de fora, Edna não
tem motivos para reclamar da vida que leva. Se fôssemos analisar pelo viés do senso comum,
Edna tem uma vida perfeita, a que muitas pediriam a Deus, uma vez que possuía um marido rico,
que a idolatrava, dois filhos perfeitos e férias maravilhosas. Se o Senhor Pontellier praticasse
atitudes contrárias, certamente o leitor se posicionaria contra ele e a favor da protagonista. Mas
como Leonce é um verdadeiro lord, muitos leitores não compreendem a atitude de Edna, de
simplesmente querer se libertar de um mundo aparentemente maravilhoso.
Outra ação que Edna se vale na busca por sua emancipação é estar em contato com o
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 54
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mundo da leitura. Incomum para a época, a leitura era uma prática dominada somente pelos os
homens, as mulheres eram banidas de poderem usufruir da leitura, pois os livros eram
considerados Ŗinadequados e perigososŗ, que diante da visão masculina eram totalmente
desnecessários para as mulheres, uma vez que a função delas era zelar pelo lar e não serem
despertadas para vida. ŖEdna sentou-se à biblioteca depois do jantar e leu Emerson 18 até ficar
com sono. Percebeu que negligenciara suas leituras e tomou a decisão de enveredar de novo por
uma trajetória de estudos proveitosos...ŗ (CHOPIN, 1994, p.99). Contudo, se praticar a leitura de
acordo com as convenções sociais era impróprio para as mulheres, praticar a leitura de Emerson
não era praticar qualquer leitura, mas sim ler um escritor que escreveu ensaios filosóficos,
literários e poemas que exaltam a valorização do ego e de emoções individuais. Isso não significa
que esse tenha sido o principal evento que tenha despertado a protagonista pela busca de sua
libertação individual, mas com certeza o contato com esse tipo de leitura literária, influenciou Edna
para que defendesse seus atos e opiniões.
O processo do Ŗdespertarŗ de Edna não se inicia ao envolver-se no adultério com Alceé
Arobin, mas sim através de Adèle Ratignolle, esposa e mãe exemplar, é que a protagonista
quebrou o puritanismo que moldara toda a sua vida. Edna chega ao limite do processo de
construção do seu próprio discurso quando após assistir ao parto de Adèle, volta para casa e
encontra um bilhete de Robert dizendo: ŖAdeus Ŕ porque eu a amoŗ (CHOPIN, 2002, p. 212). Ao
ler esse bilhete, Edna se dá conta de que seu discurso é limitado pelo de outrem, ou seja, havia
uma imensa distância que se interpunha entre ele a Robert, mas que de certa forma conseguiu
construir seu próprio discurso de libertação a ponto de querer seguir somente o caminho
reservado a si, não sendo mais um mero fantoche do senhor Pontellier e das convenções sociais
da época.
Com isso, o suicídio no mar representa a continuação da busca por sua libertação, que de
acordo com Kehl (1994, p. vii): Ŗnão é por desilusão amorosa que Edna se deixa levar pelo mar: é
por ter encontrado os limites de sua condição. Ela sabe que o amor não pode levá-la mais longe
(...)ŗ.
Portanto, é muito importante a atitude de Kate Chopin em Ŗdespertarŗ as mulheres do
século XIX que tinham sua individualidade barrada pelas convenções sociais e religiosas e ao
mesmo tempo, criticando a sociedade da época por praticarem tal atitude. De maneira explícita, a
mensagem de Chopin é que todas as mulheres defendam seus atos e opiniões em prol da
construção dos seus próprios discursos, independente da época e lugar.

18
Ralph Waldo Emerson (1803-82) foi um dos mais importantes membros de um movimento intelectual
conhecido como Transcedentalismo, que defendia a individualidade de todas as formas de vida. Emerson
desenvolveu a ideia de um novo relacionamento entre Deus, a humanidade e a natureza, temas tratados
em seu ensaio A Natureza. (Cf. Enciclopédia Compacta Isto É – Guiness. São Paulo: Ed. Três, 1995,
p.227).
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REFERÊNCIAS

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1988a.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora F.


Bernardini. São Paulo: Hucitec, 1988b.

CHOPIN, Kate. Bayou Folk. Toronto: Washington Square Press, 1999.

______. O Despertar. Trad. Carmen Lúcia Foltran. São Paulo: Paz e Terra S/A, 2002.

______. O Despertar. Trad. Celso M. Paciornik; Intr. de Maria Rita Kehl. São Paulo: Estação
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______. The Awakening. Intr. by Deborah L. Williams. Toronto: Washington Square Press, 1998.

EWEL, Bárbara C. Kate Chopin. New York: The Ungar Publishing Company, 1986.

FAIRCLOUGH, Normam. Discurso e mudança social. Coord. da trad. Izabel Magalhães. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2001.

KEHL, Maria Rita. Um corpo que seja seu. (Introdução). In: CHOPIN, Kate. O despertar. Trad.
Celso Mauro Paciornik. São Paulo: Estação Liberdade, 1994.

LAKOFF, George e JOHNSON, Mark. Metaphors we live by. Chicago: The University of Chigago
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SROCZYNSKI, Maria Eloisa Z. Uma análise lingüístico-discursiva de O Despertar de Kate Chopin.


Pelotas, 2004. 113 f. Tese (Mestrado em Letras) - UCPel, Universidade Católica de Pelotas.
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O TEATRO ITINERANTE NO RIO GRANDE DO SUL: 50 ANOS DE HISTÓRIA


entre a cultura popular e a tradição clássica

ELAINE DOS SANTOS19


PEDRO BRUM SANTOS20

Resumo
Desde a Antiguidade greco-romana e, possivelmente, em sociedades ainda mais remotas no tempo e no
espaço, a arte itinerante configura-se como uma forma de entretenimento entre camadas menos abastadas
em cada sociedade na qual se conforma. Colocada à margem, sobretudo, após o advento dos
saltimbancos, em especial, na Idade Média, proscritos pela Igreja Católica e acostumados a ações não
aceitas pela instituição religiosa Ŕ casamentos sem a benção eclesiástica, filhos sem batismo -, a arte
itinerante continuou ocupando um espaço, ainda que à margem das grandes manifestações culturais de
cunho erudito e assim o tem feito ao longo dos séculos. No presente estudo, enfoca-se o teatro mambembe
no Rio Grande do Sul que tem levado a diversas cidades interioranas uma amostra do teatro dito culto,
adaptando-o conforme a disponibilidade de recursos financeiros, cênicos, artísticos. Dá-se, no caso
presente, enfoque ao período em que os mambembes gaúchos enfrentaram o período ditatorial imposto
pelo Golpe de 1964, isto é, a sobrevivência do espetáculo frente à censura, que era exercida, em pequenas
cidades, pelo juiz de paz, nem sempre com um lastro cultural que lhe permitisse conhecer o tema abordado
em cada peça e a sutileza da arte em fazê-lo. O método de pesquisa eleito é o bibliográfico, ainda que se
incluam parte de entrevistas já realizadas com as trupes itinerantes em atividade no Rio Grande do Sul.
Palavras-chave: Cultura itinerante Ŕ teatro popular Ŕ ditadura militar.

Abstract
This paper presents a study about popular theater in Brazil between dictatorshipřs years, in a special place:
Rio Grande do Sul. The approach falls again a Teatro de Lona Serelepe and your survival front to a
censorship. The elect researchřs method is ae bibliographical one, despite part of carried through interviews
already with trupes itinerantes in activity in Rio Grande do Sul is included.
Keywords: Popular culture Ŕ popular theater Ŕ militar dictatorship.

Berthold (2006, p. 103) enuncia:

A história do teatro europeu começa aos pés da Acrópole, em Atenas, sob o


luminoso céu azul-violeta da Grécia. A Ática é o berço de uma forma de arte
dramática cujos valores estéticos e criativos não perderam nada da sua eficácia
depois de um período de 2.500 anos. Suas origens encontram-se nas ações
recíprocas de dar e receber que, em todos os tempos e lugares, prendem os
homens aos deuses e os deuses ao homem: elas estão nos rituais de sacrifício,
dança e culto.

Nos rituais dionisíacos destinados a celebrar a colheita, a fecundidade da terra, a


procriação, situam-se as primeiras manifestações desta modalidade que, mais tarde, ao tempo de
Aristóteles, assumiria as formas de tragédia e comédia. A pesquisadora salienta o caráter coletivo
atribuído ao teatro pelos atenienses que, além de espectadores, participavam das encenações
levadas a efeitos no theatron. Neste sentido, assevera Berthold (2006, p. 103-104):

19
Professora mestre em estudos literários pela Universidade Federal de Santa Maria (2001). Aluna do
Programa de Pós-graduação em Letras da UFSM Ŕ Estudos literários - , em nível de doutoramento.
20
Docente do Programa de Pós-graduação em Letras da UFSM. Orientador de doutorado.
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O teatro é uma obra de arte social e comunal; nunca isso foi mais verdadeiro do
que na Grécia antiga. Em nenhum outro lugar, portanto, pôde alcançar tanta
importância como na Grécia (...). O público participava ativamente do ritual teatral,
religioso, inseria-se na esfera dos deuses e compartilhava o conhecimento das
grandes conexões mitológicas (...).

As apresentações teatrais integravam festas religiosas que ocorriam tanto no que se pode
denominar área urbana, como no meio ruralŔ não se olvidando, neste caso, que, via de regra, a
extensão das cidades-Estado era pequena, conforme anota Ehrenburg (1968, p. 15), de modo que
a Ŗárea urbana e rural poucas vezes ultrapassava as 400 milhas quadradasŗ.
Tais apresentações passaram, aos poucos, a sofrer alterações, surgindo, incluso,
inovações que evidenciavam a importância daquelas manifestações. Uma das grandes novidades
postas nestes festivais foi introduzida por Téspis que, de acordo com Berthold (2006, p. 104-105),

se colocou à parte no coro como solista, e assim criou o papel do hypokrites


(Řrespondedorř e, mais tarde, ator), que apresentava o espetáculo e se envolvia
num diálogo com o condutor do coro.
Nenhum dos presentes na Dionisíaca de 534 a.C. poderia sonhar com o alcance
das implicações que este acréscimo inovador de diálogo ao rito traria para a
história da civilização (...).

Encontravam-se, dessa forma, lançadas as bases daquele que se conformaria como o


nascedouro do teatro dito clássico. A proposição de Téspis seria ampliada por Frínico de Atenas
que atribuiu duplo papel ao respondedor, alternando suas aparições com máscara, ora masculina,
ora feminina: Ŗisto significava que o ator devia fazer várias entradas e saídas, e a troca de figurino
e de máscara sublinhava uma organização cênica introduzida no decorrer dos cânticosŗ
(BERTHOLD, 2006, p. 107).
A Téspis, porém, atribui-se outra inovação, visto que ele teria sido o primeiro ator de rua
que se tem notícia, fazendo suas representações em um carro no centro e nos arredores de
Atenas. Berthold (2006, p. 105) designa o grego como o introdutor deste tipo de apresentação,
segundo ela, Téspis perambulava Ŗpela zona rural com uma pequena troupe de dançarinos e
cantores e, nos festivais rurais dionisíacos, havia oferecido aos camponeses da Ática
apresentações de ditirambos e danças de sátiros no estilo de Arionŗ.
Admitindo-se que Téspis tenha, de fato, feito suas apresentações em carroças de quatro
rodas, o Ŗcarro de Téspisŗ, informação que Berthold (2006) confere a Horácio, e, ademais,
considerando-se que a sua ideia instituiu uma nova ordem nas representações teatrais
atenienses, é lícito postular que Téspis constitui um marco na história do teatro ocidental, posto
que se encontra no cerne das diferentes formas de apresentação teatral, quer seja aquela que, na
atualidade, se denomina erudita e cuja célula inicial está na tragédia grega Ŕ é, conforme Teixeira
(2005, p.264), Ŗconsiderado o criador do teatro gregoŗ -, quer sejam as formas mais prosaicas,
como o teatro mambembe ou itinerante Ŕ que, certamente, lhe são anteriores, mas que se
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mesclam na mesma figura, no mesmo teatrólogo, unindo duas vertentes distintas.


A par das formas clássicas que se consagraram entre os gregos e que, mais tarde, seriam
retomadas pelos romanos, encontrava-se o mimo. Neste sentido, Berthold (2006, p. 136)
estabelece um comparativo entre o gênero trágico e a epopeia em relação ao mimo.

Enquanto o épico homérico e o drama clássico haviam glorificado os deuses e os


heróis, o mimo (mimus) prestava atenção no povo anônimo, comum, que vivia à
sombra dos grandes, e nos trapaceiros, velhacos e ladrões, estalajadeiros,
alcoviteiras e cortesãs (...). Suas personagens são pessoas comuns e, no sentido
mais amplo da mimese, animais antropomórficos.

Parece claro que o mimo encontrava-se desprovido da grandiloquência típica dos textos
clássicos e que, a seu modo, antecipava o drama romântico ou ainda o melodrama, aquele
responsável pela introdução, na cena teatral, da variedade de cenários, da liberdade de
expressão, enquanto este, além do acompanhamento musical, fazendo-se marcado pela temática
romanesca, desprovido de regras, mesclando o cômico e o dramático. Parece conveniente ainda
referir certa liberdade formal nas representações desta modalidade teatral encontrada na Grécia
antiga, não se seguindo, portanto, o tradicional rigor observado por Aristóteles quanto à
estruturação e aos recursos adotados pelos poetas épicos e trágicos, sobressaindo-se a
improvisação, o destaque à expressão corporal e à dança. Desse modo, pode-se postular, desde
já, para o mimo, uma espécie de precedência formal e temática dos gêneros consagrados pela
modernidade, assim como o mimo parece marcar, de forma indelével, a ascensão de uma
modalidade artística caracterizada pela itinerância, pela adaptação cênica aos mais diversos
ambientes e por seu caráter, de certa forma, à margem da tradição clássica.
Em Roma, assim como floresceram artistas de linhagem clássica, merecendo ênfase os
trabalhos de Plauto e Terêncio, também se desenvolveram o mimo e a pantomima, que
rivalizavam, em praça pública, com os textos ditos cultos. Berthold (2006) acresce que o mimo, de
acordo com o gramático Donato, era chamado de Ŗplanipediaŗ em face dos temas que abordava,
posto que eram tão abjetos e seus atores tão baixos que só poderiam agradar aos libertinos. De
qualquer forma, estava posto, entre os romanos, um gênero que transita à margem do mundo
culto, mas que abarca espaço junto à população e que lhe propicia o deleite no curto espaço de
tempo em que as agruras da vida diária poderiam ser esquecidas. Não se pode esquecer,
ademais, que, na condição de itinerantes, os mimos levavam seu espetáculo a regiões em que o
acesso aos anfiteatros e aos jogos e às disputas de gladiadores não deveriam ser uma prática
comum, de modo que é possível avaliar-se que sua área de abrangência e mesmo de influência
configuravam-se de forma bem maior que as encenações ditas cultas.
Na Idade Média, parece inadequado dar-se destaque a uma estética teatral medieval,
tendo em vista o longo período temporal abarcado por esta denominação. Merecem, contudo,
menção os espetáculos realizados nas Igrejas e que, paulatinamente, ganharam o pátio e, mais
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tarde, a praça, em face do gigantesco aparato cênico posto em prática. Nas praças, porém,
estavam artistas nômades, palhaços, saltimbancos que se mesclaram àquela arte, aprenderam e
passaram a disseminá-la pela área rural, período em que se salienta, pois, os grupos de artistas
conhecidos como saltimbancos.
Descoberto no alvorecer da Era Moderna, no Brasil, as primeiras manifestações teatrais,
de cunho pedagógico, associam-se aos jesuítas. Magaldi (2001), ainda que lance atenção a peças
teatrais do período árcade, reconhece, nos textos de Martins Pena, o nascimento do teatro
nacional. Praticamente contemporâneos destas manifestações, ainda de cunho romântico, o país
recebe grupos europeus, que incluem ciganos e saltimbancos, os quais, em praça pública
apresentam a arte circense dos malabaristas, equilibristas e, em seguida, tem-se a efetiva
chegada dos circos de cavalinhos que rivalizavam com o teatro dito culto, ocupando, muitas
vezes, os espaços que foram construídos, especificamente, para aquelas manifestações
consideradas eruditas.
De origem britânica e aristocrática, o circo de cavalinhos surgiu por volta de 1779,
conforme Silva (2003), pela iniciativa do cavaleiro inglês Philip Astley e, em pouco tempo,
difundiu-se pela Europa. Ex-cavaleiro das hostes da rainha, Astley era dotado de excelente tino
comercial e, entre as apresentações dos animais, passou a inserir números característicos das
trupes de saltimbancos, desde o palhaço que manejava o cavalo e, a partir disso, propiciava a
graça, até a presença de mímicos, equilibristas, ilusionistas, de tal sorte que, em pouco tempo, o
circo tornou-se um verdadeiro espetáculo de variedades.
Uma das primeiras famílias circenses a excursionar pelo Brasil, segundo Silva (2003), teria
sido a trupe chefiada por Giuseppe Chiarini e, depois dele, outros tantos transitaram pelas capitais
das províncias/estados e por algumas cidades do interior, como foi o caso de Mariana, Ouro Preto
e São João del Rey.
Na busca constante por atrações que pudessem agradar o Ŗrespeitável públicoŗ e, ao
mesmo tempo, aumentar as vendas nas bilheterias, adaptando-se as novas realidades sociais
dominantes, os circenses introduziram os números mímicos, as pantomimas e os folhetins
melodramáticos. Se, neste período, o intercâmbio entre artistas do teatro dito culto e os circenses
era constante, muitos destes artistas, como foi o caso de João Caetano (SILVA, 2003) não viram
com bons olhos esta concorrência que se encenava nos circos.
Pimenta (2009, p. 2) anota:

O espetáculo circense brasileiro sempre foi híbrido de elementos teatrais, tanto


pela atuação dos palhaços quanto pela encenação de pantomimas dos mais
variados portes, desde a presença das primeiras companhias em nosso país, no
século XIX. No entanto, os próprios circenses só passam a considerar que Řfazem
teatroř a partir dos primeiros anos do século XX.
Essa mudança de perspectiva se dá (...), pela presença da fala apoiada no texto
teatral, ou seja, na dramaturgia escrita e estruturada, mesmo quando transmitida
oralmente.
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O que se observa, entretanto, nos estudos disponíveis é que a referência a adaptação de


folhetins, romances e melodramas já era uma recorrência desde o século XIX, como aconteceu, a
título de exemplo, com Ŗo romance O Guarany, de José de Alencar, adaptado pelos Irmãos Casali,
em 1875ŗ (PIMENTA, 2009, p. 30). Isto posto, a autora rastreia a origem da expressão circo-
teatro, encontrando-a, pela primeira vez, ainda em Porto Alegre na ocasião da inauguração do
pavilhão de Albano Pereira, em 1875, sendo um termo, portanto, anterior à conformação da forma
circo-teatro propriamente dita que se deu, nos dizeres de Silva (2003), por volta de 1910.
O passo seguinte operou-se na conformação do circo teatro propriamente dito e a
encenação de melodramas, farsas, em um palco preparado especialmente para esta finalidade,
ainda que, no mesmo circo, este palco concorresse com o picadeiro. Desse modo, a primeira
parte do espetáculo era dedicada a números notadamente circenses, em que habilidade, destreza
e argúcia se faziam presentes, enquanto, na segunda parte, faziam-se as encenações.
Prado (2003), ao dedicar-se à análise do teatro dito culto no Rio de Janeiro a partir de
1930, observa que, naquela década, assim como em décadas precedentes, a montagem de peças
teatrais na capital da República era uma constante, mas, esgotado o público Ŕ e isto poderia
demandar, em geral, apenas duas ou três semanas, o grupo saia em excursão pelo interior do
país, no entanto, as peças sofriam reduções de cenários, de recursos financeiros e,
paulatinamente, os artistas principais afastavam-se, retornando ao Rio de Janeiro, de tal maneira
que, a certa distância, o espetáculo era legado ao circo teatro ou teatro itinerante.
Herdeiro desta tradição, Teatro Serelepe tem suas origens no interior de São Paulo, mais
precisamente na cidade de Sorocaba, onde os irmãos José Epaminondas e Isolina formaram a
dupla Nhô Bastião e Nhřana que se apresentava nas lavouras cafeeiras, com números musicais,
trovas, piadas e que, aos poucos, ao adquirir um circo de pau a pique, passou a encenar textos
simples, mas que prendiam a atenção do público. Nhô Bastião Ŕ Nhřana casara-se e fixara
residência em Sorocaba Ŕ passou a excursionar pelo interior paulista e paranaense, morando
durante muitos anos em Ponta Grossa, de onde partia para espetáculos que se prolongavam por
meses no Paraná, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Seu filho mais velho, que, em
geral, fazia o papel de galã nas peças melodramáticas, acompanhou o pai e, em 1962, após a
morte do patriarca, assumiu a companhia Ŕ do Teatro Nhô Bastião nasceria o Teatro Serelepe, na
cidade de Cruz Alta, no Rio Grande do Sul. Casado com Lea, José Maria, o primogênito de Nhô
Bastião, tornou-se palhaço e conduziu a companhia até 1981, quando o grupo encerrou as
atividades em função da concorrência televisiva.
Nos quase 20 anos em que permaneceu em atividade, o Teatro Serelepe, um pavilhão de
zinco, com cadeiras e arquibancadas para a assistência, percorreu o Rio Grande do Sul levando
arte, diversão e alegria aos mais diversos e diversificados municípios, consistindo, na prática, em
uma espécie de preparação para o modelo melodramático que as telenovelas assumiriam a partir
da década de 1970. O interior gaúcho, que era pouco afeito à cultura erudita, tomou
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conhecimento, através dos grupos mambembes Ŕ também se encontravam em atividades os


teatros Fenix, Biduca, entre outros Ŕ de um universo que incluía a coxia, o ponto, a cenografia, o
cenário móvel.
Neste contexto, a partir do final dos anos sessenta, a trupe, ao chegar às novas praças Ŕ
designação dada a cada cidade que é visitada por um circo ou um circo teatro Ŕ passou a
submeter seus textos aos juízes de paz, representantes da Justiça Federal e que exerciam o
poder de veto e/ou censura dos textos. Levar um espetáculo para o palco implicava receber a
liberação, o aval do juiz que, nem sempre, era exatamente uma pessoa letrada, capaz de
compreender os meandros de um texto artístico. Esta realidade, sob certa forma, poderia
constranger os mambembes a, no palco, terem a peça suspensa, caso o juiz se encontrasse na
plateia e, na representação, identificasse alguma anomalia que pudesse depor contra o sistema.
No entanto, cientes de sua condição marginal na sociedade em que se apresentava, os
mambembes desenvolveram algumas estratégias que sancionassem o seu trabalho, desse modo,
muitas vezes, as primeiras peças encenadas eram dramas religiosos e, para assisti-las, eram
convidados o padre e as irmãs de caridade. Se eles aprovassem o espetáculo, a comunidade
sentia-se liberada para comparecer ao teatro, ainda que as novas peças não fossem de cunho
religioso. Outro expediente usado era a realização de um espetáculo para as autoridades
municipais, em geral um texto de tom épico, grandioso, que mostrasse o comprometimento dos
grupos com a cultura ocidental. E, assim, durante muito tempo, as trupes mantiveram as suas
apresentações.
Ressalve-se que, neste período, não havia legislação que garantisse a educação para os
filhos de artistas itinerantes e muitos deles abandonavam os estudos. Somente em 1978, houve o
reconhecimento de uma lei que afiançou vaga para as crianças das famílias itinerantes em
escolas públicas, buscando-se garantir o seu aprendizado.
Outro aspecto que merece ser ressaltado e que, de certa forma, pode explicar certo mal
estar enfrentado, sobretudo, pelas mulheres artistas é o fato de que sua profissão não era
legalizada Ŕ fato que se deu, também, em 1978 Ŕ e elas eram obrigadas a exibir a mesma carteira
que reconhecia a profissão de prostituta.
O velho palhaço Serelepe orgulha-se de, naqueles anos duros em que a repressão
assolava o país, jamais haver dito palavrões em cena, fazendo rir pela ingenuidade do palhaço
que encarnava, se verdade ou idealização, o fato é que os mambembes sobreviveram incólumes
ao período. Seu mais grave algoz acabou sendo mesmo a disseminação dos aparelhos de
televisão e peças como ŖRomeu e Julietaŗ, ŖSansão e Dalilaŗ, ŖO morro dos ventos uivantesŗ e
todas aquelas que, de alguma forma, trouxessem um tom moralizante ou que enfocassem a dor, o
sofrimento da condição humana foram substituídas, quando o Teatro de Lona Serelepe foi
reaberto em 1999, por peças cômicas, farsas, sketches, mais ao gosto do público. Sintomático,
neste sentido, é observar o horário em que os espetáculos iniciam: após o término da novela das
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21h, para que, com ela, não haja concorrência. Dado que foi mencionado por Bolognesi (2003, p.
169) que, durante quatro anos de pesquisa, percorrendo circos e circo-teatros do país, em
Restinga Sêca/RS, no ano de 1999, encontrou e entrevistou o palhaço Bebé, também filho de Nhô
Bastião: ŖO público que assistiu aos espetáculos de Bebé revelou um envolvimento maior com a
comédia, se comparado ao dramaŗ.
O pesquisador complementa:

O espetáculo do Circo-Teatro do Bebé tem seu início após o término da telenovela


da Rede Globo, em torno de 21h45min. Esse dado denota, de um lado, a
preocupação com a disponibilidade do público. Mas, de outro, se o público do
circo deixou sua casa após assistir à telenovela, fatalmente ele vai ao circo em
busca de divertimento diverso daquele experimentado diante da TV (BOLOGNESI,
2003, p. 170-171).

Tanto Serelepe quanto Bebé atribuem este fato Ŕ a preferência pela comédia Ŕ às
dificuldades sociais e econômicas enfrentadas pela população que vai ao teatro em busca da
amenidade, da diversão simples, sem elaborações de ordem ideológica, buscando apenas
aproveitar alguns momentos de comicidade e de riso. Como decorrência desta constatação, fica
evidente, nas duas companhias, a valorização da figura do palhaço, sua liberdade em cena, a
faculdade da improvisação. Diante disso, as marcações em cena, a disposição e os diálogos dos
atores, a adaptação das peças se fazem em favor dos palhaços Bebé e Serelepe Ŕ o carisma de
ambos representa o grande trunfo das companhias que sobrevivem em um universo em que
vários circos e teatros têm encerrado suas atividades.
Tendo sobrevivido ao influxo opressor da ditadura, mas havendo perdido para a grande
mídia, o teatro itinerante mantém-se Ŗna estradaŗ sob caminhões e ônibus, armando a sua grande
lona e ainda atraindo adultos e crianças, dispondo-se a conservar a arte circense e a levar
entretenimento e cultura a regiões que não têm acesso ao teatro dito culto.

REFERÊNCIAS

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BOLOGNESI, M. F. Palhaços. São Paulo: Editora UNESP, 2003.

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SILVA, E. As múltiplas linguagens na teatralidade circense. Benjamin de Oliveira e o circo-teatro


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Instituto de Filosofia e Ciências Нumanas. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2003.
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AUTORIDADE E AUTORITARISMO NA OBRA INCIDENTE EM ANTARES DE ÉRICO


VERÍSSIMO

ELENARA WALTER QUINHONES21

Resumo
Percebemos que há muita confusão no uso dos conceitos autoridade e autoritarismo. Este artigo representa
uma tentativa de explicar a diferença desses e a possível causa para essa confusão. Em vista disso,
investigaremos o uso desses conceitos na obra ficcional Incidente em Antares, de Érico Veríssimo, por que
a obra demonstra-os através de personagens satíricos, a fim de criticar o período ditatorial brasileiro, o qual
também retomaremos. No artigo Da crise da autoridade ao mundo invertido, encontramos similaridades
com a obra Incidente em Antares, assim, foi possível traçar um paralelo entre ambos.
Palavras-chave: Autoridade, Autoritarismo, Incidente em Antares, Érico Veríssimo, Violência.

Resumen
Percibimos que existe confusión en el empleo de los conceptos autoridad y autoritarismo. Este trabajo
presenta un intento de explicar la diferencia de estos y la posible causa de esa confusión. Así,
investigaremos el empleo de estos conceptos en la novela Incidente em Antares, de Érico Veríssimo,
porque en la obra autoridad y autoritarismo son demostrados por personajes satíricos para criticar el
período dictatorial brasileño, que también reanudaremos. En el artículo Da crise da autoridade ao mundo
invertido, encontramos similitudes con la novela Incidente em Antares, así, fue posible trazar un paralelo
entre los dos.
Palabras-clave: Autoridad, Autoritarismo, Incidente em Antares, Érico Veríssimo, Violencia.

INTRODUÇÃO

Percebemos na literatura, filmes, mídia em geral, nas ciências sociais e principalmente na


sociedade a fusão ou a não-diferenciação dos conceitos autoridade e autoritarismo. Encontramos,
mesmo em grandes críticos e pensadores, o mau uso destes conceitos. Este artigo tem por
objetivo tratar dessas confusões, analisando-os linguisticamente num primeiro momento, depois
investigando uma das possíveis causas da confusão dos conceitos autoridade e autoritarismo,
segundo a concepção de Hannah Arendt.
Posteriormente abordaremos a obra Incidente em Antares, de Érico Veríssimo, e sua
conexão com o tema autoritarismo. Retomando o período ditatorial brasileiro nas décadas de
1960-1980, pois a obra teve importante papel de apontar, satirizar e criticar a conjuntura política
brasileira. Faremos um paralelo entre a obra e o artigo de Nádia Souki, intitulado Da crise da
autoridade ao mundo invertido, pois ele trata dos equívocos causados no mundo pela fusão dos
conceitos. Em seguida trataremos das considerações finais. Assim como aconteceu no período
ditatorial, ainda hoje ocorre à indistinção dos conceitos. Autoridade é essencial, enquanto legitima
e prioriza os direitos humanos. Já o autoritarismo é um regime político que, no Brasil, teve por
base à própria formação do país.

21
Aluna do curso de graduação em letras da Universidade Federal de Santa Maria, UFSM, com orientação
da Prof.ª Dr. Rosani Umbach.
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1 AUTORIDADE E AUTORITARISMO

Observamos a dificuldade que nossa sociedade tem em diferenciar e entender os


conceitos de autoridade e autoritarismo. Isso pode acontecer devido à raiz morfológica dos dois
conceitos serem o mesmo augere do latim, que significa aumentar, desenvolver-se. Analisando
linguisticamente esses termos, encontramos para autoridade, a seguinte definição: ŖSubstantivo,
feminino. Influência; Prestígio; Magistrado que exerce o poder; agente ou delegado do poder
público;ŗ (BUENO 2007, p.103). Já autoritarismo é definido como: ŖSubstantivo, masculino.
Sistema autoritário de governo; despotismoŗ. (Ibid., p.103) Dessa forma, verificamos que os
termos são distintos linguisticamente e, também, é diferente sua relação com o mundo. Embora
muitos tenham visto ou vivenciado autoridades agirem de forma autoritária, violenta ou corrupta,
autoridade e autoritarismo não são a mesma coisa.
Conforme Souki há uma confusão dos termos Ŗpoder, força, dominação e violência com o
termo autoridadeŗ (SOUKI, 2001, p.124). Mas de onde se origina a dificuldade em distinguir
autoridade e autoritarismo? Para Hannah Arendt, Ŗna literatura, há maior amplitude de referencias
sobre autoritarismo e conflitos armados do que sobre a violência como tal ou a autoridade como
tal.ŗ (apud: SOUKI, 2001, p.124-125) Essa concepção de Arendt permitiu-nos a leitura de que a
autoridade foi tantas vezes empregada através da violência, que acabamos assimilando ambas
como sinônimas. Arendt menciona na obra Da Violência: ŖNinguém que se dedique à meditação
sobre a história e a política consegue se manter ignorante do enorme papel que a violência
desempenhou sempre nas atividades humanas, e à primeira vista é bastante surpreendente que a
violência tão raramente tenha sido objeto de consideração.ŗ (ARENDT, 1970, p.8)
Durante as décadas de 1960 Ŕ 1980 vivenciamos, no Brasil, a ditadura militar. Período em
que a violência destacou-se na política brasileira. Muitos foram mortos, outros dados como
desaparecidos, intelectuais tiveram de exilar-se em outros países, por serem contra o regime
militar. Foi criado Ŗcomissões especiais de inquérito, em todos os ministérios, empresas estatais,
universidades federais e entidades ligadas ao governo federal, identificou-se e expulsou-se da
estrutura governamental as pessoas consideradas subversivas.ŗ (RIBEIRO, 2001, p.21). Alguns
aparelhos de repressão controlavam as informações como o SNI, DOI-CODI, Ŗcujo objetivo era
garantir de forma eficiente o bloqueio e a eliminação de qualquer força contra-revolucionária que
exercesse pressão ou ameaçasse o estadoŗ (Ibid., p. 21).
Conforme já dito, muitos intelectuais foram contra o regime autoritário político instaurado
no Brasil. Érico Veríssimo foi um deles, escritor e observador atento da sociedade, deixa-nos clara
sua posição política, como cidadão e como artista. Ele que dizia pertencer, voluntariamente, ao
Ŗcampo do humanismo socialistaŗ, daí seu pavor aos extremismos de direita ou de esquerda, que
lhe pareciam Ŗfaces da mesma moedaŗ. Mas também não lhe satisfaria pertencer ao Ŗcentroŗ, pois,
dizia, Ŗo centro é quase sempre o conformismo, a indiferença, o imobilismoŗ. Dizia acreditar na
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Ŗnecessidade de todos os escritores e artistas terem uma consciência política e socialŗ, mas não
admitia que fosse responsabilidade do romancista Ŗapresentar soluções para as crises
econômicas, políticas e sociais em que nos debatemosŗ. (VERÌSSIMO, 1967, p. 13-174).
Suas obras criadas nesse período foram críticas ao regime. Observemos a obra Incidente
em Antares, obra singular de Érico Veríssimo, ele cria personagens autoritários para satirizar a
política, as autoridades, sejam elas morais, econômicas, religiosas. Ele mistura os conceitos
autoridade e autoritarismo, não porque não sabe distingui-los, mas para ridicularizar o sistema
político. Verifiquemos, então, a obra Incidente em Antares.

1.1 Autoridade e Autoritarismo na obra Incidente em Antares de Érico Veríssimo

Incidente em Antares é constituído de duas partes: a primeira é um relato histórico da


formação do município Antares. É um relato extenso, com explicações que parodiam o discurso
oficial dos municípios riograndeses (SILVA, 2000, p.84). Após a localização do município, o
narrador onisciente relata a história do patriarca Vacariano, personagem que será o primeiro
oligarca a dominar Antares, nele já encontramos as seguintes características:

E um homem ainda jovem, de compleição robusta, cabelos e barbas castanhos e


pele clara. Tem um ar autoritário, costuma falar muito alto, parece habituado a dar
ordens e a ser obedecido. Chama-se Francisco Vacariano, nome provavelmente
derivado da palavra Ŗvacaŗ e que não me parece legítimo, mas adotado...
(VERÍSSIMO, 1995, p. 7)

Percebemos na construção do personagem Vacariano que ele apresenta como


característica Ŗar autoritárioŗ. Vacariano detém o poder porque representa a autoridade econômica
do local, apesar de sua autoridade não ser legítima, ele é quem decide tudo usando a violência e
o suborno para atingir seus objetivos. Posteriormente, continuando a primeira parte da obra,
temos a vinda da família Campolargo, que serão durante decênios rivais dos Vacarianos.
Surgindo duas facções políticas contrárias na cidade. A culminação da rivalidade se dá quando
Getúlio Vargas intervem para que ambos alien-se a ele. Getúlio convida os dois, sem que nenhum
saiba do outro, para um encontro:

Ŕ Perdoem-me pela Ŗtraiçãoŗ Ŕ disse ele. Ŕ Quando os fins são bons, às vezes
temos de fechar os olhos à natureza dos meios. Foi essa a única maneira que
encontrei para juntar numa mesma sala dois antigos adversários pessoais e
políticos. [...]
Ŕ Quem governa o Brasil Ŕ prosseguiu Getúlio Ŕ são ora os mineiros ora os
paulistas, a famosa fórmula Ŗcafé com leiteŗ. Ŕ Soltou uma risada. Ŕ Não é justo
que o chimarrão tenha também a sua vez? [...] Falou durante mais dez minutos,
concluindo assim: Ŕ Pois agora me digam sinceramente que é que ganham sendo
inimigos? Quem perde é Antares e o Rio Grande. [...]
Ŕ Vamos, apertem-se as mãos! O que passou, passou. Os dois anciãos
levantaram-se com certa má vontade, aproximaram-se um do outro com passos
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arrastados e lentos e, sem se olharem cara a cara, trocaram o simulacro dum


aperto de mãos. Getúlio então abraçou-os a ambos, agradeceu-lhes e felicitou-os
pelo gesto, em seu nome e no de seu pai.[...] (Ibid., p.26-27)

Assim, a primeira parte Ŗse encerra com uma revisão descritiva da conjuntura política da
década de 1960ŗ (RIBEIRO, 2001, p.3). A segunda parte se inicia com a greve geral, ocorrida em
toda a cidade porque os operários do frigorífico e operários de uma fábrica de óleos comestíveis
queriam aumento salarial, todos os outros operários se solidarizaram e aderiram a greve. Sete
mortos não são sepultados por causa da greve, indignados com suas situações, ressurgem e vão
até o centro da praça principal reivindicar seus direitos. Ou providenciam seus enterros ou eles
denunciam toda a hipocrisia, fraudulência ocorrida na cidade. Nessa parte a obra se transforma
em uma ácida crítica contra a organização política, social, moral e religiosa de Antares, que serve
de modelo real para muitos municípios brasileiros.
Alguns personagens da segunda parte da obra de Érico também são a representações de
autoridades que abusam de seus cargos. Analisemos o personagem Delegado Pigarço: Ŗo
delegado de Antares, Inocêncio Pigarço, que é um homem cruel, um torturador de prisioneiros
políticos, costuma dizer que o Jango e o Brizola estão cutucando o dragão com vara curta.ŗ
(VERÍSSIMO, 1995, p. 129) Observamos que o delegado usa sua autoridade institucional legítima
para a prática da violência. A obra cita que um dos sete mortos foi assassinado pelo delegado,
que o torturava a fim de arrancar-lhe uma confissão sem procedência:

A luz revela agora o rosto dum homem todo manchado de equimoses, com um
dos olhos quase fora das órbitas. Tem-se a impressão de que foi espancado com
violência e de que o braço direito, todo quebrado, está preso ao corpo apenas por
um barbante.
Ŕ Este é o João Paz, jovem inteligente e idealista. Levou muito a sério o
sobrenome e tornou-se um pacifista ardoroso. Organizou em Antares um comício
contra a participação dos Estados Unidos na tentativa de invasão de Cuba. A
polícia dissolveu-o a pauladas. Joãozinho foi preso, passou uma semana na
cadeia, foi solto... Tornou a ser preso. Bom, é uma estória muito comprida.
Ŕ De que morreu? Ŕ indaga D. Quita.
Ŕ De embolia pulmonar, no Salvator Mundi.
Ŕ Mentira! Ŕ brada João Paz. Ŕ Fui torturado e assassinado na cadeia municipal
pelos carrascos do delegado Inocêncio Pigarço! (Ibid., p. 165)

1.2 Autoridade e Autoritarismo sob análise de Nádia Souki comparativamente com a obra
Incidente em Antares de Érico Veríssimo

Comportamentos sociopáticos como os da obra, implicam na questão levantada por Souki:


Ŗaté onde a violência e a sua arbitrariedade tornam-se fatos tão corriqueiros a ponto de serem
negligenciados em sua real importância?ŗ (SOUKI, 2001, p.125) Cabe-nos completar com outras
duas questões: Por que uma cidade inteira, na obra, permanece em silêncio diante da violência?
Por que uma nação inteira permaneceu em silêncio diante de torturas políticas reais durante as
décadas de ditadura?
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Conforme Souki a confusão funcional entre autoridade e autoritarismo originou o emprego


equivocado dos termos sob ponto de vista até mesmo histórico, que sofreram um declínio e
empalideceram-se, levando as consequências práticas na compreensão política. Logo, ela aponta
dois equívocos em relação à autoridade. Primeiro, é o uso de Řautoridadeř, com base no adjetivo
Řautoritárioř. Isso permite que se confunda autoridade, ainda com os termos Řpoderř e Řforçař.
Exatamente como Érico usou o adjetivo para caracterizar Vacariano.
O segundo equívoco sobre autoridade é que o termo em si tem Ŗcaráter ambíguoŗ. Nem
sempre o poder legítimo possui autoridade, Ŗpois a legitimidade pode ser conseguida à custa de
manipulação.ŗ (Ibid., p.126) Essa autoridade dada através de manipulação ideológica, negociatas,
através da violência e outros meios lícitos e ilícitos também é denunciado na obra de Érico.

Quando em 1934 o Brasil adotou uma nova Constituição e Getúlio Vargas foi
eleito Presidente da República pela Assembléia Constituinte, por um período de
quatro anos, Vacariano fez sua primeira visita ao Rio de Janeiro. Teve um rápido
colóquio com o Presidente, que o recebeu com afabilidade, no Palácio do Catete,
declarando-lhe: ŖO senhor, coronel, é o meu homem de confiança em Antaresŗ.
Tibério aproveitou a oportunidade para conseguir com o chefe da nação bons
empregos em repartições públicas federais para alguns de seus parentes e
amigos. Fez esses pedidos como quem quer dar a entender que ele, Vacariano,
não queria nada para si mesmo, pois ŖDeus me livre, Presidente, de abusar duma
amizade...ŗ. Passou um mês na capital federal, conheceu-lhe a vida noturna, fez
relações, insinuou-se nos bastidores da política e ficou estonteado quando teve
uma visão do mundo dos negócios e especialmente do submundo das
negociatas. Guardou a impressão de que o Rio era como uma daquelas
localidades do Far West americano Ŕ que ele conhecia de fitas de cinema Ŕ nos
tempos da corrida para o ouro. Na capital do Brasil havia ouro à flor do solo. Os
primeiros faiscadores Ŕ vindos de todos os quadrantes do país Ŕ mexiam no
cascalho das repartições públicas e principalmente no dos ministérios. Alguns
haviam já encontrado veios riquíssimos. Era uma luta de apetites, choques de
interesses, um torneio de prestígio, um jogo de Ŗpistolõesŗ. Muitos dos capitães e
soldados da revolução que levara Vargas ao poder, cobravam agora o seu soldo
de guerra. Um amigo de Tibério, um gauchão cínico, que ganhara um lucrativo
cartório, lhe disse um dia, comentando aquele Ŗgarimpoŗ alucinado: ŖPara
conseguir o que quer Tibé, essa gente é capaz de tudo, até de usar meios
decentes e legaisŗ. (VERISSIMO, 1995, p. 32-33)

Ainda para Souki Ŗna verdade toda diminuição do poder é um convite à violência. O
domínio da violência pura vem à baila quando o poder está em vias de ser perdidoŗ (Ibid., p.127).
O decréscimo do poder ocasiona luta, quando o Brasil passava pela crise de 1964, com a
diminuição do poder do regime presidencialista, percebemos que se deu a origem um período
bastante violento, o ditatorial. SOUKI nos diz que:

Toda essa discussão a respeito das raízes da confusão da autoridade com os


termos poder e violência só confirma a tese de Hanna Arednt de que a autoridade
desapareceu do mundo moderno. Em relação a essa crise, é importante observar
que autoridade não desapareceu de fato, já que ela é estruturalmente um fenômeno
necessário na fundação e conservação do corpo político. A função simbólica da lei
é estruturante do próprio aparelho mental humano. Mas a autoridade pode estar
obscurecida em alguns de seus aspectos e ressaltada em outros. Fica mais claro
que a autoridade como tal não desapareceu, mas sofreu declínio. (Ibid., p.127)
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Para Souki fala-se excessivamente de crises, uma das falências é a queda da função
paterna. ŖA partir do século XVIII, quando até então a paternidade tinha seus papéis reconhecidos
como as próprias posições simbólicas em relação à lei, passamos a assistir à derrocada deste
lugar.ŗ Percebemos em diversos níveis a queda de autoridade, paterna, religiosa e política. Com
isso uma crescente queda de valores também se faz presente. Isso está representado também na
obra Incidente em Antares. Em uma conversa entre o vigário da vila operária e o Professor Martim
Terra, o percebemos como autoridade pela visão paterna que este representa para pessoas que
se acostumaram com fontes de autoridades religiosa e moral.

Ŕ O vigário sabe que os jovens te procuram para confessar-se e pedir conselhos. E


que muitos habitantes da cidade preferem as missas aqui na tua capela às da
Matriz. Estou informado de que o bispo desta diocese, e possivelmente o arcebispo
metropolitano, já receberam uma das famosas cartas anônimas de Antares
denunciando o Ŗpadre comunistaŗ. Ŕ E é natural que vejam em ti uma figura
paterna. Ŕ Bom... acreio que é o caso, e isso me assusta um pouco. Para ser
honesto devo confessar que não estou preparado, amadurecido para essa função
paterna. (VERÌSSIMO, 1995, p.128)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Souki nos diz que é inconcebível uma comunidade humana em que a autoridade e a
tradição não se façam presentes. A tradição é o operador da autoridade evoluindo através do
tempo. Quanto à importância da tradição, sistemas totalitários e autoritários manipulam-na.
Lembremos da importância que os ditadores davam a Ŗfamíliaŗ, Ŗpátriaŗ e outros símbolos de
tradicionais com valores humanos. Ŗ- Impossível! Ŕ reagiu calorosamente um antigetulista. Ŕ O Ŗpai
dos pobresŗ22 foi há pouco vaiado pelo povo nas ruas do Rioŗ (Ibid., p. 58).
Dessa forma, tradição e lei são fundamentos da autoridade, mas assim como o estado
autoritário manipula a tradição, também o faz com as leis. No Brasil tivemos o famoso AI-1, Ŗque
visava assegurar ao governo os meios para a reconstrução econômica, financeira, política e moral
do Brasil, deixando evidente a permanência dos militares no poder.ŗ (RIBEIRO, 2001. p. 22), em
seguida a AI-2, que chegava restringir o poder judiciário, entre outras leis a favor do regime militar.
Consoante, Souki: Ŗa lei, nesses regimes, perde então sua condição normativa e sua articulação
estrutural, passando por estranhas transposições. Ela é ao mesmo tempo, indefinida e
instantânea, abstrata e fluidaŗ (Ibid., p. 132).
Assim observamos a negação da tradição, Ŗà medida que ela guarda e transmite valores
da própria experiência históricaŗ, mas há também Ŗa negação da lei enquanto garantidora de
valores de estabilidade e permanênciaŗ, para SOUKI a autoridade está sofrendo um constante
Ŗcolapsoŗ. Mas traços totalitários se fazem presentes ainda em sociedades democráticas.

² Referindo-se a Getúlio Vargas, presidente brasileiro do período da ditadura, que se denominava Ŗpai dos
pobresŗ, manipulação da tradição paterna.
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Similarmente podemos dizer que há traços autoritários em sociedades democráticas. Lembremos


que o autoritarismo no Brasil teve por bases a própria formação do país, e como bem descrito por
SCHWARTZMAN (1988, p. 25) Ŗum condicionante poderoso em relação a nosso presente e futuro
como paísŗ. Portanto, voltemos ao pensamento de Hannah Arendt para que não haja um retorno
ao sistema autoritário, tão bem explicitado pela obra Incidente em Antares.

REFERÊNCIAS

BUENO, Francisco Silveira. Minidicionário da língua portuguesa. 2 ed. São Paulo: FDT, 2007.

RIBEIRO, M.R.R. Incidente em Antares e a conjuntura de 1964 no Brasil: releitura do político


através da ficção. 2001.62f. Monografia (Especialização em Pensamento Político Brasileiro) Ŕ
Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2001.

SCHWARTZMAN, Simon. Bases do Autoritarismo Brasileiro. 3 ed. Rio de Janeiro: Campus, 1988.

SILVA, Márcia Ivana de Lima e. A gênese de Incidente em Antares. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2000.

SOUKI, Nádia. Da crise da autoridade ao mundo invertido. In: JARDIM, E.; BIGNOTTO, N. (Org.)
Hannah Arendt: diálogos, reflexões, memórias. Belo Horizonte: UFMG, 2001. p. 124-135.

VERÍSSIMO, Érico. O escritor diante do espelho: uma autobiografia compacta.In:______. Ficção


completa. Volume III. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1967. p. 13-174.

___________. Incidente em Antares. 45 ed. São Paulo: Globo, 1995.


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O CONTEXTO REPRESSIVO E A IDENTIDADE CULTURAL DAS PERSONAGENS


NOS CONTOS DE CAIO FERNANDO ABREU

FERNANDA DE PAULA ARAÚJO23

Resumo
Neste artigo, pretende-se discorrer a respeito do contexto histórico repressivo da Ditadura Militar e da
identidade cultural das personagens nos contos Os Sobreviventes, Transformações e Morangos Mofados
na obra Morangos Mofados de Caio Fernando Abreu. Com objetivo de analisar a desestruturação de
identidade cultural do sujeito por meio de uma linguagem metafórica, apresenta-se personagens
fragmentados que, após vinte anos de regime ditatorial, foram esmagados pela repressão que os afligia.
Trata-se de contos que, entre mofos e morangos, exibem personagens, quase sempre anônimas, que
passeiam por obsessões e vivem em busca de uma direção. Dessa forma, mostra-se figuras isoladas e,
muitas vezes, marginalizadas. Caio Fernando Abreu prendia-se a descrições de estados emocionais e
existenciais dos sujeitos, tornando-se o porta-voz do desamparo da geração Ŗpaz e amorŗ. Essas
orientações foram utilizadas como caminho para concluir que o autoritarismo vigente na época contribuiu
diretamente para as relações de marginalização e questionamentos individuais, pois as personagens
procuravam a afirmação de si próprias. Para tal, foi realizada uma pesquisa bibliográfica baseada em
algumas teorias de autores como Stuart Hall, Zilá Bernd, Renato Ortiz entre outros.
Palavras-chave: identidade cultural Ŕ fragmentação Ŕ repressão

Resumen
Este artículo, descorre a respecto del contexto histórico represivo de la Dictadura Militar y de la identidad
cultural de los personajes en los cuentos Os Sobreviventes, Transformações y Morangos Mofados de Caio
Fernando Abreu. Con el propósito de analizar la desestructuración de la identidad cultural del sujeto por
medio de un lenguaje metafórico, se presentan personajes fragmentados que, luego de veinte años de
dictadura, fueron aplastados por la represión que los afligía. Son cuentos que, entre mohos y frutillas,
exhiben personajes, casi siempre anónimos, que transitan por obsesiones y viven en búsqueda de una
dirección. De esta forma, aparecen figuras muchas veces marginalizadas. Caio Fernando Abreu se centraba
en las descripciones de los estados emocionales y existenciales de los sujetos, transformándose en porta-
voz del desamparo de la generación Ŗpaz y amorŗ. Estas orientaciones fueron utilizadas como camino para
concluir que el autoritarismo vigente en la época, contribuyó directamente para las relaciones de
marginalización y cuestionamientos individuales, pues los personajes buscaban la afirmación de su propia
identidad. Para tal, fue realizada una investigación bibliográfica basada en algunas teorías de autores como
Stuart Hall, Zilá Bernd, Renato Ortiz entre otros.
Palabras-clave: identidad cultural Ŕ fragmentación Ŕ represión

No século XX, o autoritarismo figurou intensamente no campo político brasileiro. Com a


ditadura militar (1964-1985), os cidadãos passaram a ser vigiados, com liberdades limitadas, não
podendo mostrar seu posicionamento e sua insatisfação diante desta realidade de opressão e
violência. Época também caracterizada pela intensa modernização que melhorou a vida da classe
média alta com tecnologias inovadoras. No entanto, esse avanço tecnológico contribuiu com a
marginalização social, pois quem não tinha poder aquisitivo ficava longe das novas invenções.
Assim sendo, a nova ordem produziu o caos para a integridade humana e consolidou o
autoritarismo, mantendo as relações de desigualdade.
A produção Morangos Mofados de Caio Fernando Abreu, possibilita denotar uma das

23
Participante do Grupo de Pesquisa Literatura e Autoritarismo, vinculado à Linha de Pesquisa Literatura,
Comparatismo e Crítica Social sob a liderança da professora Dr. Rosani Úrsula Ketlzer Umbach Ŕ UFSM.
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influências de caráter sócio-cultural ditada nos contos analisados: a repressão devido ao conteúdo
histórico-social expressada através dos personagens. Por isso, o autor investe em um conteúdo
em que, não apenas a densidão da narrativa, mas também o elemento formal fragmentário
dialogam com as condições de estruturação da sociedade brasileira nesse período histórico o qual
ele viveu.
Os contos examinados são marcados pela angústia de personagens que efetuam uma
avaliação crítica de seus sonhos, projetos e posicionamentos político-ideológicos passando por
fases de instabilidades, prováveis soluções para os problemas e reorganização de identidades.
Revelam-se ainda, contrários aos princípios autoritários do Governo de seu tempo representando
os indivíduos que viveram o contexto da Ditadura e foram alvos de torturas, humilhações e
censura, não conseguindo entender o porquê de tudo aquilo.
No conto Os Sobreviventes Ŕ texto incluído na primeira parte de Morangos Mofados,
chamado O Mofo Ŕ pode-se observar um reflexo das perturbações de uma juventude
revolucionária ocorrentes na década de 1970. Os indivíduos, neste conto, são representados por
dois amigos idealistas desde a juventude, ou seja, amigos que compartilharam dos mesmos
processos de construção ideológica e identitária. Estes personagens dialogam por meio de uma
linguagem descontraída e informal, que revela, ao mesmo tempo, o desolamento, a desesperança
e o desgaste causados pela derrota e falência do ideal de reformular a sociedade, bem como, os
anseios de realizações e conquistas que foram atingidas moral e culturalmente devido à
experiência opressiva da ditadura.
A situação apresentada em Os Sobreviventes dirige-nos para a percepção da dor, da
violência e da vontade de resistência de dois militantes, cuja força para contestação política e
social foi enfraquecendo com o tempo, principalmente nos anos 1980, e especialmente com a
imposição vigorosa da repressão ditatorial. Ao longo de todo o texto, a crise dos sujeitos e a
sensação de fracasso diante das ilusões perdidas marcam uma visão de mundo desesperançada,
pois os personagens são, literalmente, sobreviventes de uma geração que lutou contra esse
sistema sócio-político. Alusões a formas de exercício do poder, também marcam o diálogo dos
personagens, principalmente o da mulher, que desabafa suas angústias, seus medos e também
parte de sua história de forma a cortar a fala do companheiro. Assim, o personagem masculino,
tenta reanimar sua companheira diante do desespero em que se encontrava. É importante
destacar que é através do discurso do personagem feminino que a problematização da
experiência de violência e da impossibilidade de superação da crise atinge um ponto de intensa
dramaticidade. Explicita-se o fragmento:

Eu peço um cigarro e ela me atira o maço na cara como quem joga um tijolo, ando
angustiada demais, meu amigo, palavrinha antiga essa, a velha angst, saco, mas
ando, ando, mais de duas décadas de convívio cotidiano, tenho uma coisa
apertada aqui no meu peito, um sufoco, uma sede, um peso, ah não me venha
com essas histórias de atraiçoamos-todos-os-nossos-ideais, eu nunca tive porra
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de ideal nenhum, eu só queria era salvar a minha, veja só que coisa mais
individualista elitista capitalista, eu só queria era ser feliz, cara, gorda, alienada e
completamente feliz. [...] roubaram minha esperança, enquanto você, solitário &
positivo, apertava meu ombro com sua mão apesar de tudo repetindo reage,
companheira [grifo do autor], reage, a causa precisa dessa tua cabecinha
previlegiada, teu potencial criativo, tua lucidez libertária e bababá bababá. As
pessoas se transformavam em cadáveres decompostos à minha frente, minha
pele era triste e suja, as noites não terminavam nunca, ninguém me tocava, mas
eu reagi, despirei, voltei a isso que dizem que é o normal, e cadê a causa, meu,
cadê a luta, cadê o po-ten-cial criativo? (ABREU, 2005, p. 26 - 28).

Então, a repressão política e moral é o tema do conto Os Sobreviventes. É necessário


deixar claro, que a referência ao processo ditatorial é feita indiretamente, o que ocorre é uma
produção estética-litarária que expõe como pano de fundo o contexto sócio-político. Há
expressões utilizadas pelos indivíduos que viveram naquela época e relatos de experiências que
alude o contexto ditatorial.
Nesse painel histórico também se sustenta o conto Transformações Ŕ conto da segunda
parte do livro, intitulado Os Morangos Ŕ onde o tema é ultrapassar o limite. Aqui, uma paz
tranquilizadora parece invadir os personagens como se a existência de um final feliz fosse
possível, ou como se a vida fosse menos pesada. Essa paz tão perto e tão distante, na qual se
percebe a frustração dos sonhos de uma geração que continua apodrecendo após tantos anos de
ditadura.
Porém, o que realmente acontece é a tomada da desesperança em que o autor narra de
forma introspectiva, o medo que o personagem tem de se reconhecer neste universo angustiante,
onde os valores nunca são os mesmos. O sentimento que o autor chama de A grande falta,
persegue-o de modo implacável que, em um exercício existencialista, tenta achar a razão de seu
eterno estado depressivo:

Eram dias parados, aqueles. Por mais que se movimentasse em gestos cotidianos
Ŕ acordar, comer, caminhar, dormir Ŕ dentro dele algo permanecia imóvel.
Ausentou-se, diriam ao vê-lo, se o vissem. E não seria verdade. Nesses dias,
estava presente como nunca, tão pleno e perto que estava dentro do que
chamaria Ŕ tivesse palavras, mas não as tinha ou não queria tê-las Ŕ vaga e
precisamente de: A Grande Falta.
Era translúcida e gelada. Tivesse olhos, seriam certamente verdes, com remotas
pupilas. À beira da praia certa vez encontrara um caco de garrafa tão burilado
pelas ondas, areias e ventos que cintilava ao sol, pequena jóia vadia. Apertou-o
entre os dedos, sentindo um frio anestésico que o impedia de perceber as gotas
de sangue mornas da palma da mão. Era assim A Grande Falta (ABREU, 2005,
p.75 - 76).

O personagem, assim, encontra-se desolado do mundo, invisível, nem os outros


conseguem vê-lo, nem ao menos consegue se ver. Decorrente da Grande Falta está sempre em
suspensão no ar, pronto para cair em pedaços como o vidro de um espelho.
Verifica-se, também a influência da contracultura brasileira, onde pessoas buscavam um
mundo alternativo para desbravar utopias centradas no prazer e não no racional. Essa influência
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caracteriza o personagem com um ser que nos anos 1960 deslumbrava-se com a possibilidade de
modificar o ambiente em que vivia para tentar encontrar as portas da percepção de um mundo
alternativo, no qual vigorava a realidade espontânea, de fazer tudo, sem preocupar-se com o
depois. Agora, nos anos 1980, apenas resta o medo, a insegurança de uma utopia perdida onde
não existe mais razão para lutar.
O último conto a ser explorado, Morangos Mofados Ŕ conto que dá nome ao título da obra
Ŕ sugere uma modificação do ponto de vista geral da história. A personagem central do livro
reorganiza sua identidade vasculhando oportunidades de encontrar a si própria, na qual procura a
revalorização da sua vida.
Esse conto desenvolve-se num primeiro momento em um consultório médico, onde o
paciente, sem nenhum problema físico ou mental, procura um doutor declarando ter problemas na
alma, em decorrência do tempo em que viveu, pois a cada dia aquele gosto de morangos
esverdeados ardia, mofando na boca.

Não há nada com o seu coração nem com o seu corpo, muito menos com o seu
cérebro. Caro senhor. Ascendeu outro cigarro, desses que você fuma o dobro
para evitar a metade do veneno. Mal do nosso tempo, sei, pensou, sei, agora [...]
(ABREU, 2005, p.142).

Pode-se notar, que apesar de o personagem, um publicitário, ter uma vida aparentemente
estável, ainda guarda as mágoas, os anseios, as desilusões, as angústias fúteis e as fantasias de
sua geração que se perpetuam à medida que o tempo passa; ao mesmo tempo que cultua os
modismos do desbunde dos anos 60, usando drogas, bebendo vodcas e ácidos e vomitando
morangos mofados:

Levantou-se de repente. Foi então que veio a náusea, só o tempo de caminhar até
o banheiro e vomitar aos roncos e arqueijos, onde estão todos vocês, caralho,
onde as comunidades rurais, os nirvanas sem pedágio, o azul dos azulejos
começando a brilhar, maya, samsara voltava. De súbito lisérgico no meio de uma
frase tonta, de um gesto pouco, de um ato porco como esse de vomitar agora as
quinze miligramas leves leves (ABREU, 2005, p.145).

Os contos marcam a distância entre o mundo projetado pelos personagens e o mundo


experimentado por eles. O desconforto com a situação vigente é manifestado por declarações dos
próprios personagens em que habita o sujeito. Percebe-se, através das expressões utilizadas pelo
autor, a mensagem sombria e a perspectiva melancólica de uma vida marcada por dores e
amarguras, mas apesar de tudo isso, ainda existe um universo paralelo, um refúgio dentro do
próprio personagem. Ainda existe uma saída.
Através da obra do autor Caio Fernando Abreu, é possível verificar que o homem pós-
moderno, assim como as personagens dos contos, é fragmentado, que busca formas de sair das
Ŗsombrasŗ, de encontrar um sentido pleno para existência e, deste modo, se tornar completo.
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 74
03 a 05 de novembro de 2010

Essa busca se dá através de fugas, delírios, tentativas de suicídio, drogas, experiências e


descobertas. Ressalta-se também, que a obra Morangos Mofados segue uma tendência urbana
que reflete a realidade social da época, por isso, suas personagens se apresentam em busca de a
si próprias.
Como relata Regina Zilbermann:

Uma de suas marcas diz respeito à criação de personagens anônimas,


designadas nas histórias tão-somente pelo uso de pronomes pessoais. Trata-se
de pesoas que estão esvaziadas de sua identidade, não havendo como nomeá-las
(ZILBERMANN, 1992, p.140).

Relacionado a esse fato, Stuart Hall explicita que a identidade cultural dos indivíduos pós-
modernos está tornando-se desestabilizada, deixando-o em um processo de Ŗcrise de identidadeŗ,
que deslocam as estruturas das sociedades modernas e as referências que a antiga sociedade
estável, ou seja, as sociedades pré-modernas proporcionavam aos indivíduos:

[...] um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades


modernas no final do século XX. Isto está fragmentando as paisagens culturais de
classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos
tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas
transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a
idéia que temos de nós como sujeitos integrados (HALL, 2002, p.9).

Pode-se perceber que os sujeitos estão sendo deslocados, tanto do seu mundo social,
como cultural, compondo, assim novas identidades que se tornam contraditórias, formada e
transformada de acordo com os sistemas culturais que os cercam.
A fragmentação das personagens também é visível no nível semântico, havendo a
sobreposição de assuntos, sem marcação linguística para fazer o elo entre um e outro, revelando
o fluxo descontínuo e perturbado da consciência. Confirmam-se essas características em uma
passagem do conto Os Sobreviventes:

Ah, passa devagar a tua mão na minha cabeça, toca meu coração com teus dedos
frios, eu tive tanto amor um dia, ele pára e pede, preciso tanto tanto anto, cara,
eles não me permitiram ser a coisa boa que eu era, eu então estendo o braço e
ela fica subitamente pequenina aperada contra meu peito [...] (ABREU, 2005, p.28
- 29).

O conto é narrado em primeira e terceira pessoa e, nessa passagem, ao se apresentar a


cena da conversa entre os dois personagens do conto, a fala é entrecortada por comentários do
outro, impedindo a continuação lógica do discurso.
A ausência de explicação sobre os motivos que desencadearam a crise das personagens
também contribui para essa descontinuidade dos elementos de causa efeito. A transgressão
característica da forma narrativa do texto manifesta-se não só na eliminação do narrador clássico
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 75
03 a 05 de novembro de 2010

e do encadeamento lógico, mas também na sua estrutura formal e linguagem. Como seres em
crise, a condição para elaboração de um discurso com encadeamento ordenável é estrita e a
segmentação torna-se inevitável.
Pode-se dizer também que Abreu afasta qualquer risco de banalização e dissimulação das
experiências de autoritarismo, indicando a necessidade de uma memória coletiva que não se
caracterize como manipuladora de opiniões. Somado a esse fato, em caminho contrário, Jacques
Le Goff (1996) afirma:

[...] os esquecimentos e os silêncios da história revelam os mecanismos de


manipulação da memória coletiva, preocupação esta dos indivíduos que
dominaram e dominam a sociedade ao longo da história. Esses apagamentos são
estabelecidos, desse modo, pelos donos do poder que promovem meios de
ocultar as relações autoritárias e preconceituosas estabelecidas pelos indivíduos
(LE GOFF, 1996, p.78).

A desestruturação de identidade cultural dos indivíduos não permitia uma definição exata
do que vivenciavam, viam ou sentiam. Neste trecho do conto Transformações, é possível verificar
essa afirmação:

Feito febre, baixava às vezes nele aquela sensação de que nada daria jamais
certo, que todos os esforços seriam para sempre inúteis, e coisa nenhuma de
alguma forma se modificaria. Mais que sensação, densa certeza viscosa
impedindo qualquer movimento em direção à luz. E além da certeza, a premonição
de um futuro onde não haveria o menor esboço de uma espécie qualquer não
sabia se de esperança, fé, alegria, mas certamente qualquer coisa assim (ABREU,
2005, p.75).

No conto Transformações mostra-se o conflito entre o corpo e a cultura, onde o corpo


passa a ser uma afirmação de sua existência. O personagem, inserido em um contexto trágico
reconhece esta desestruturação entre o social e o individual.
Caio utiliza a palavra Ŗculturaŗ associando-a com o dizer Ŗpenso, logo existoŗ (palavra de
ordem do filósofo René Descartes). Stuart Hall (2002), explica que ŖDescartes acreditava que as
coisas devem ser explicadas por uma redução aos seus elementos essenciais à quantidade
mínima de elementos e, em uma análise, aos seus irredutíveisŗ (p.27).
Observa-se que a personagem enfrenta um processo de retificação, na qual enfrenta uma
limitação internalizada que o impede de se reconhecer no mundo:

Por isso não é verdade que não o veriam. Veriam e viam, sim, aquela casca
reproduzindo com perfeição o externo dele. Tão perfeito que nem ao menos
provocava suspeitas aumentando as pausas entre as palavras, demorando o
olhar, ralentando o passo daquele falso corpo [...] A dor desconsolada e
inconsolável, em soluços que o sacudiam cada vez mais fortemente, a cada um
deles partindo-se a casca, quebrando-se a moldura, rachando-se o vidro,
apagando-se o fogo (ABREU, 2005, p.76 - 77).
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Em contraponto, ele sente o choque, o desafio, a vertigem da diferença tanto do outro


como do mundo, chamando-o de mundo real. Neste ambiente, ele reconhece a existência de seu
corpo, ou seja, de seu lugar no mundo. Seu corpo passa a ser uma afirmação de sua existência, e
não apenas uma moldura com ele mesmo diz. O fragmento abaixo revela uma aparente solução
de tentar se reconhecer no mundo, isto é, redescobrir a sua identidade que foi perdida:

Não saberia dizer com certeza como nem quando aconteceu. Mas um dia Ŕ um
certo dia, um dia qualquer, um dia banal Ŕ deu-se conta que. Não, realmente não
saberia dizer ao menos do que dera-se conta. Mas foi assim: olhando-se ao
espelho, pela manhã, percebeu o claro reflexo esverdeado. Está de volta, pensou.
E no mesmo instante, tão imediatamente seguinte que confundiu-se com o
anterior, cantava, novamente ele mesmo [...] Foi um dia movimentado, aquele.
Sua casca partia-se e refazia-se, entardecer sombrio e meio-dia cegante
intercalados [...] Exaltou-se, ausentou-se [...] Desimportou-se com aquilo [...]
Durante anos (ABREU, 2005, p.77 - 78).

Assim, o corpo não pensa, mas também existe e exige. Toda cultura deve estar ligada ao
corpo presente. Penso, sinto, desejo, só assim existo. Esta cultura desorientada, apresentada
tanto na produção estética, quanto no conteúdo do texto, não é decodificada pelo personagem,
que apesar de uma provável identificação com si e com espaço em que vive, ainda não conseguiu
estabelecer uma conexão com o seu corpo e o mundo:

As transformações tinham se tornado tão aceleradas que, no primeiro momento,


não soube dizer se a Outra Pessoa via a ele ou a Ela, se se dirigia à moldura, à
casca, ao cristal ou ao desenho, ao corpo original, às gotas de sangue. Isso num
primeiro momento. Num segundo, teve certeza absoluta que se tinha
desinvibilizado. A Outra Pessoa olhava para uma coisa que não era uma coisa,
era ele mesmo. Ele mesmo olhava para uma coisa que não era uma coisa, era
Outra Pessoa (ABREU, 2005, p.78).

Depois de longos anos transcorridos, uma pessoa lhe toca o ombro e ele percebe quanto
tempo passou e que nada mudou. O mundo tornou-se tão implacável modificando-se rapidamente
que nem mesmo conseguiu se encontrar. Isto em decorrência da questão do rompimento do
sonho-projeto, que não se concretizou em função da turbulência do período ditatorial.
É possível afirmar também, que raras são as vezes que Abreu utiliza nomes próprios para
designar seus personagens. À vista da falta de identificação, e determinação de espaço e tempo
específicos, o autor, através de sua ampla imaginação, recria com o leitor a história em questão.
Por isso que, muitas vezes, os tipos fixados Ŕ representados por pronomes pessoais Ŕ
interessavam tanto ao escritor:

Ele olhou para o lado. Ao lado havia Outra Pessoa. A Outra Pessoa olhava-o com
cuidadosos olhos castanhos [...] A Outra Pessoa olhava para uma coisa que não
era uma coisa, era ele mesmo (ABREU, 2005, p.78).
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 77
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Pode-se verificar desse modo, a massificação que a sociedade pós-moderna impõe ao


indivíduo, que ao se encontrarem abandonados e solitários, viam-se desestabilizados moral e
culturalmente. Tais indivíduos, em conseqüência da repressão causada pela Ditadura de 64,
apresentavam-se perturbados e deslocados de sua própria identidade.
O protagonista do último conto do livro denominado Morangos Mofados, reforma sua
identidade na qual imagina a possibilidade de corrigir o que estava errado, libertando-se do autor
e decidindo o final a revelia dele.
Verifica-se nesse conto, a cultura das personagens do ponto de vista de sua reconstrução.
Zilá Bernd afirma que Ŗa identidade se origina da consciência de sua perda e se desenvolve na
busca de sua reconstruçãoŗ (p.14). E ainda, Deleuze e Guattari (1977) expõem no texto da
referida autora:

A busca de identidade deve ser vista como processo, em permanente movimento


de deslocamento, como travessia, como uma formação descontínua que se
constrói através de sucessivos processos de reterritorialização e
desterritorialização, entendendo-se a noção de Ŗterritórioŗ como um conjunto de
representações que um indivíduo ou um grupo tem de si próprio (BERND,1992,
p.10).

Porém o que realmente implica na fragmentação é o processo de globalização que,


conforme Hall está deslocando as identidades no século XX.
As identidades nacionais são transformadas no interior de cada indivíduo como
representação de sua própria cultura. É através das culturas nacionais que o ser humano pode
identificar-se por meio de fatores inseridos na história e memória de uma sociedade nas quais
constroem identidades sobre a nação. Porém deve-se ter em mente que essa cultura é posta em
dúvida quando mencionada como constante e unificada, pois ao longo da história constituiu-se por
diferenças e contradições internas e jogos de poder, sendo realmente unificadas no momento
em que desempenham papéis de organização e estrutura do poder cultural.
Somado a esse fato, Renato Ortiz (1994) relata que a cultura vem deturpando a
conformação da nacionalidade dos indivíduos e, dessa forma, irá apagar e destruir todas as suas
tradições. Relacionando memória com identidade nacional, pode-se afirmar que ambas são
elementos de segunda ordem, pois a identidade não se situa junto ao presente, mas sim, se
manifesta através das condições sociais que a mantém.
Afirma, então, que é por meio do Estado que se atribui a construção de uma identidade
nacional:

É através de uma relação política que se constitui assim a identidade; como


construção de segunda ordem ela se estrutura no jogo da interação entre o
nacional e o popular, tendo como suporte real a sociedade global como um todo.
Na verdade a invariância da identidade coincide com a univocacidade do discurso
nacional. Isto equivale dizer que a procura de uma Ŗidentidade brasileiraŗ ou de
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uma Ŗmemória brasileiraŗ que seja em sua essência verdadeira na realidade é um


falso problema (ORTIZ, 1994, p.139).

Segue-se dizer que a tendência à globalização, leva à desestruturação das identidades


culturais fortes. Deve-se este fato, à notável intensificação das influências externas sofridas pelas
culturas nacionais que tornam as identidades debilitadas, devido à impregnação de variadas
culturas.
O personagem, em profundo desespero por ainda sentir o gosto e o cheiro de morangos
esverdeados pelo mofo, certa vez, em turbulência de pensamentos, pensou no começo de um
novo tempo para si mesmo, imaginando que o princípio de uma vida diferente surgisse como o
primeiro vento fresco ou princípio da luz. O texto vive a redescoberta do corpo:

Ele teve certeza. Ou claras suspeitas. Que talvez não houvesse lesões, no sentido
de perder, mas acúmulos no sentido de somar? Sim sim. Transmutações e não
perdas irreparáveis, alices-davis que o tempo levara, mas substituições oportunas,
como se fossem mágicas, tão a seu tempo viriam, alices-davis que um tempo novo
traria? Não era uma sensação química. Ele não tinha a boca seca nem as pupilas
dilatadas. Estava exatamente como era, sem aditivos [...] Tocou então o próprio
corpo (ABREU, 2005, p.148).

Após a influência da cultura repressiva ter ocasionado a desintegração do sujeito com


mundo, o personagem reformou suas identidades. Conforme Hall, Ŗa moldagem e a remoldagem
de relações espaço-tempo no interior de diferentes sistemas de representação têm efeitos
profundos sobre o modo como as identidades
são localizadas e representadasŗ (p.71).
Dessa forma, com a mão sobre seu corpo, o sujeito reorganizou sua identidade:

O gosto mofado de morangos tinha desaparecido. Como uma dor de cabeça, de


repente. Tinha cinco anos mais que trinta. Mas era um homem recém-nascido
quando voltou-se devagar, num giro de cento e oitenta graus sobre os próprios
pés, para deslizar as costas pela escada até ficar de joelhos sobre os ladrilhos
escuros, as mãos postas sobre o sexo. Abriu os dedos. Absolutamente calmo,
absolutamente claro, absolutamente só enquanto considerava atento, observando
os canteiros de cimento: será possível plantar morangos aqui? Ou se não aqui,
procurar algum lugar em outro lugar? Frescos morangos vivos vermelhos. Achava
que sim. Que sim. Sim (ABREU, 2005, p.149).

A leitura dos contos analisados pode direcionar a uma interpretação da obra de Caio
Fernando Abreu: o sujeito (expresso pelos personagens que fazem parte das histórias dos
contos), descentrado de um ambiente social Ŗnormalŗ ou Ŗconvencionalŗ, é impossibilitado de
exercer sua liberdade individual e assumir ostensivamente suas posições.
A dor e amargura que permeiam todo o livro, o silêncio diante da intolerância, as
dificuldades de comunicação, a solidão das grandes cidades, nada é suficiente para acabar com a
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esperança. Apesar de tanta dor, o livro termina com uma mensagem positiva, uma possibilidade
de uma nova vida, um novo alvorecer.
O autor apresenta, assim, uma obra rica em sua estrutura de formas, estilos e linguagem
diferentes, onde o contraponto entre a ditadura militar e o desejo de liberdade serve como pano de
fundo para questões que, se por um lado são muito representativas de uma época, por outro lado
são questões inerentes a toda sociedade contemporânea.

REFERÊNCIAS

ABREU, Caio Fernando Abreu. Morangos Mofados. Rio de Janeiro: Agir, 2005.
AQUINO, Tacilda. Caio 3D – O Essencial da Década de 70. Disponível em:
<http://pt.shvoong.com/books/biography/1628824-caio-3d-essencial-da-d%C3%A9cada.htm.>

BERND, Zilá. Literatura e Indentidade Nacional. Porto Alegre: Editora da Universidade/ UFRGS,
1992.

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 7.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

HOLANDA, Heloísa Buarque de. Hoje Não é Dia de Rock. Disponível em: http://www.esnips.com

LE GOFF, Jacques. História e Memória. São Paulo: Unicamp, 1996.

ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e Identidade Nacional. 5.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

ZILBERMANN, Regina. A Literatura no Rio Grande do Sul. 3.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1992
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LITERATURA E MEMÓRIA: O TESTEMUNHO E O RELATO EM SOLDADOS DE


SALAMINA24

GABRIELA COLBEICH DA SILVA25

Resumo
O presente artigo tem como objeto central de reflexão a temática do testemunho suscitada a partir do livro
Soldados de Salamina, escrito por Javier Cercas (2001). Nesse livro, a inquietação inicia com uma
entrevista que Javier Cercas (autor e narrador) tem de fazer a um senhor chamado Ferlosio, filho de Rafael
Sánchez Mazas. A partir dessa entrevista, Cercas se interessa por um episódio acontecido na vida de
Rafael Sánchez Mazas e começa a buscar tudo o que fosse possível sobre esse homem e, então, decide
escrever um relato real baseado nessas informações. Todo o romance pôde ser criado graças às
entrevistas que a personagem fez as pessoas que teriam sobrevivido à Guerra Civil Espanhola ou que
conheciam fatos sobre essa guerra. Os testemunhos e relatos resultantes dessas entrevistas serviram como
ponto de partida para a problemática do presente trabalho. Pretende-se associar a figura do sobrevivente de
guerra à figura do narrador Ŕ de acordo com o ponto de vista abordado por Walter Benjamin -, a fim de
constatar, através dos relatos diretos e indiretos presentes no romance, que assim como o narrador, o
sobrevivente de guerras também não teria mais a quem transmitir suas experiências de vida e que a
tradição da transmissão oral de experiências estaria entrando em decadência; bem como questionar a
importância do arquivamento por escrito desses testemunhos mostrando que a literatura seria um meio de
salvar ou conservar viva a memória Ŕ que aos poucos vai se perdendo e se fragmentando Ŕ daqueles que já
não podem mais transmitir suas experiências ou que não têm mais a quem transmitir suas experiências.
Palavras-chave: testemunho, arquivamento, literatura, memória

Abstract
The present paper has as central object of reflection the thematic of testimony raised from the book Soldiers
of Salamina, written by Javier Cercas (2001). In this book, the uneasiness begins with an interview which
Javier Cercas (author and narrator) has to make with an old man called Ferlosio, son of Rafael Sánchez
Mazas. From that interview, Cercas gets interested in an episode occurred in Rafael Sánchez Mazas` life
and starts to search everything possible concerning this man, and then, decides to write a real report based
on those informations. All the romance could have been created due to the interviews which the character
made with people who had survived the Spanish Civil War or who knew facts about this war. The testimonies
and reports resulting from these interviews served as a starting point to the problematic of the present work.
It is intended to associate the figure of the war survivor with the figure of the narrator Ŕ according to the point
of view approached by Walter Benjamin -, in order to find, through the direct and indirect reports present in
the romance, that as the narrator, the war survivor also would not have whom to transmit his life experiences
and that the tradition of oral transmission of experiences would be starting to decay; as well as questioning
the importance of written archiving of these testimony showing that the literature would be a manner of
keeping alive the memory Ŕ which slowly is getting lost and fragmented Ŕ of those who can no longer
transmit their experiences or who does not have whom to transmit their experiences.
Keywords: testimony, archiving, literature, memory

Soldados de Salamina é um romance que está organizado como uma


investigação histórica realizada por um jovem jornalista (Javier Cercas) sobre de um episódio
acontecido nos meses finais da Guerra Civil Espanhola, quando as tropas republicanas se
retiravam em direção à fronteira francesa e se tomou a decisão de fuzilar a um grupo de presos

24
Artigo desenvolvido no Projeto Memórias autobiográficas, ficção e história, sob a orientação da Prof.ª Dr.
Rosani Úrsula Ketzer Umbach na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
25
Graduanda do curso de Letras Espanhol e Literaturas de Língua Espanhola da Universidade Federal de
Santa Maria (UFSM).
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 81
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franquistas. Entre esses presos, encontrava-se Rafael Sánchez Mazas, escritor, poeta, fundador e
ideólogo da Falange espanhola, que não só conseguiu escapar do fuzilamento em massa, como
também escapar de uma segunda execução, pois, teve sua vida perdoada graças a um soldado
republicano anônimo que o encontrou no meio de um bosque e que optou por não matá-lo nem
entregá-lo a seus superiores.

En algún momento mi padre oyó un ruido de ramas a su espalda, se dio la vuelta


y vio a un miliciano que le miraba. Entonces se oyó un grito: <<¿Está por ahí?>>.
Mi padre contaba que el miliciano se quedó mirándole unos segundos y que
luego, sin dejar de mirarle, gritó: <<¡Por aquí no hay nadie!>>, dio media vuelta y
se fue (CERCAS, 2010:18).

A busca da identidade desse soldado anônimo e a busca sobre a vida de Sánchez Mazas
constituem a trama da obra. O objetivo do autor não é a guerra civil, mas os heróis, o heroísmo
dos mortos e a recuperação da vida.
Para refletir sobre as questões relacionadas ao testemunhos presentes na obra, buscou-se
refletir sobre os postulados teóricos abordados principalmente por Paul Ricœur (2008) e Walter
Benajmin (1985) acerca da figura do narrador comparada à da testemunha histórica; bem como a
questão da decadência do testemunho oral e a importância do arquivamento desses testemunhos.

1 ENTRE REALIDADE E FICÇÃO Ŕ MEMÓRIA, LITERATURA E HISTÓRIA

- Oye, ¿tú no serás el Javier Cercas de El móvil y El inquilino? (CERCAS,


2010:143)

No livro, se conjuga de forma magistral a realidade e a ficção: todas as histórias e todas as


personagens têm o mesmo peso, inclusive o próprio Javier Cercas. Não se sabe até que ponto as
personagens e os fatos são reais ou imaginários.
Cercas, em várias partes do livro, deixa pistas que confirmam a hipótese de que as coisas
verdadeiramente não são o que parecem. Repetidamente argumenta que as palavras só servem
para dizer-se a si mesmas, ou, que as palavras não servem para relatar o real.

(…) En cuanto a la entrevista con Ferlosio, conseguí finalmente salvarla, o quizás


es que me la inventé (…) (CERCAS, 2010:19) Todos los buenos relatos son
relatos reales, por lo menos para quien los lee, que es el único que cuenta (…)
(CERCAS, 2010:164).
(...) La realidad siempre nos traiciona; lo mejor es no darle tiempo y traicionarla
antes a ella. El Miralles real te decepcionaría; mejor inventártelo: seguro que es
más real que el real (CERCAS, 2010:168).

Cercas subverte sua realidade ao transformar-se em uma personagem que se chama


como o real.
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 82
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O narrador de Soldados de Salamina se identifica como Javier Cercas, porém, é um outro


Javier Cercas e não o mesmo autor/escritor do livro.

Mire, Cercas Ŕ empezó luego Ŕ. ¿O tengo que llamarle señor Cercas? Ŕ Llámeme
Javier. (CERCAS, 2010:174)

Cercas na vida real ainda tem seu pai e não é órfão, vive com sua esposa e filho e não é
divorciado, e é professor universitário e não jornalista.
Há algumas coisas do autor na personagem, porém, a trama está tão bem amarrada que o
leitor acredita que está ante a mesma pessoa.
A substituição que, a princípio, parece um inocente artifício literário, se prolonga conforme
o romance avança, e somente com uma leitura cuidadosa o leitor, ao final do livro, compreende
que o que lê não é História, mas uma história, que o que aí se descreve não é real, mas Ŗun relato
realŗ (CERCAS, 2010:50), como um disfarce, para vestir de romance o que outros chamam
História.

(...) decidí que, después de casi diez años sin escribir un libro, había llegado el
momento de intentarlo de nuevo, y decidí también que el libro que iba a escribir
no sería una novela, sino un relato real, un relato cosido a la realidad, amasado
con hechos y personajes reales, un relato que estaría centrado en el fusilamiento
de Sánchez Mazas y en las circunstancias que lo procedieron y lo siguieron
(CERCAS, 2010:50).

A narração ficcional substituiu com autoridade à narração histórica e, no entanto, está claro
para todo e qualquer leitor que o que este livro diz é a verdade.
Ao repetir-se este tema durante o livro, pode-se perceber finalmente o que passa. Esta
história é uma extensão (ficcional) da história que contava Sánchez Mazas, e toda a parte que
coube a Javier Cercas, foi inventada para dizer o que o autor pensa ser a verdade.
A verdade são os fatos, ou a ficção que simbolicamente os representa e que é aceita como
verdade. Não existe correspondência unívoca entre texto e realidade. O que existe é o ato de fé
do leitor que unge a um texto fictício o indissociável aspecto do real.
O leitor aceita a oferta de Javier Cercas (autor). Seu romance não conta os feitos
verdadeiros porque estes são inacessíveis a todos os que não os viveram, mas relata uma história
onde se pode confirmar que existe uma ordem que é preciso respeitar e que os que revertem esta
ordem são considerados como inimigos. Percebe-se, com certo sobressalto, que Cercas, com
seus métodos, no fundo esta atacando essa ordem que tanto conforto proporciona, e que
seguindo os postulados pós-modernos de Hayden White26, substituiu à História (generalizadora) e

26
A obra de White contém uma crítica radical à historiografia e à consciência dos historiadores. Seu
conceito de história-narrativa coloca em questão as aspirações de verdade e a objetividade do trabalho dos
historiadores. As narrativas históricas seriam, então, ficções verbais, seus conteúdos seriam tanto
inventados como comprovados, e elas teriam mais em comum com a literatura do que com a ciência.
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 83
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em seu lugar oferece a literatura (devido aos seus pormenores), como a verdadeira fonte da
verdade histórica.

2 O TESTEMUNHO

Com o testemunho, busca-se trazer histórias desconhecidas, contestatórias e não visíveis


nos meios de comunicação e na academia, para canalizar a atenção da sociedade para essas
pessoas e regiões esquecidas. O testemunho busca desafiar as formas hegemônicas, pois se
concentra em um novo sujeito antes esquecido, com uma forma livre e menos rígida de
apresentar a história, que funde métodos do jornalismo, da literatura, da sociologia e da
história, e, a sua vez, dá uma importância especial ao outro, ressalta a alteridade e busca
mostrar a heterogeneidade das sociedades (TOBÓN, 2008).

También pensé que Figueras pensaba que, si alguien escribía acerca de su


padre, su padre no estaría de todo muerto. (…) ¿Le hablaba su padre a menudo
de su encuentro con Sánchez Mazas?
Figueras dijo que sí. Reconoció, sin embargo, que no tenía más que un
conocimiento muy vago de los hechos. Ŕ Entiéndalo Ŕ se disculpó otra vez -. Para
mi era solo una historia familiar. Se la oí contar tantas veces a mi padre… En esta
casa, en el bar, solo con nosotros o rodeado de gente del pueblo, (…) En fin. Yo
creo que nunca le hice mucho caso. Y ahora me arrepiento (CERCAS, 2010:51).

Dentro da narrativa fictícia de Soldados de Salamina, apresentam-se testemunhos (diretos


e indiretos) de pessoas reais. Os próprios indivíduos que testemunham ou seus filhos e parentes
próximos que relatam episódios ocorridos no final da guerra civil espanhola se posicionam sob
diferentes pontos de vista e narram a participação na guerra sob ângulos diversos (vencedor,
perdedor, etc.).
Ao refletir sobre a questão do testemunho e suas relações com a memória, Paul Ricœur
afirma que o testemunho leva esses indivíduos diretamente ao conteúdo das coisas do passado,
ou seja, ao processo efetivo da operação historiográfica. Os testemunhos, nesse caso sobre a
guerra civil espanhola, poderiam resistir não somente à explicação e à representação, mas

Segundo White, enquanto as narrativas históricas vêm de fatos ou eventos empiricamente válidos, precisa-
se necessariamente da imaginação para colocar os fatos em uma história coerente; as narrativas também
representam somente uma seleção de eventos históricos. White chama de Řnão-disconfirmabilidadeř o fato
de todas narrativas históricas serem do mesmo modo aceitáveis ou falsas. Questionando assim, a
veracidade da historiografia. White afirma que a ciência histórica falha se sua intenção for a reconstrução
objetiva do passado, pois o processo envolvido é um processo literário da narrativa interpretativa, e não se
trata estritamente de empirismo objetivo ou de teorização social. Assim, deve-se levar em consideração as
estratégias retóricas, metafóricas e ideológicas que os historiadores empregam para explicar o passado. As
narrativas explicam porque os eventos aconteceram, mas são dominadas por suposições do historiador
sobre as forças que influenciam a natureza da causalidade. As narrativas são subjetivas, necessariamente
influenciadas pelo narrador. Enquanto fragmentos do passado podem ser verdadeiros, a narrativa como
uma coleção ordenada desses fragmentos é mais que sua soma. (SUTERMEISTER, Paul. A meta-história
de Hayden White: uma crítica construtiva à “ciência” histórica. Revista Espaço Acadêmico, n°. 97,
junho de 2009. Disponível em:
<http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewFile/7102/4141>).
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inclusive à colocação em reserva nos arquivos, a ponto de se manterem deliberadamente à


margem da historiografia e de despertar dúvidas sobre sua intenção veritativa (RICŒUR, 2008).
A atividade cotidiana do testemunhar revelaria a mesma amplitude e o mesmo alcance que
a de contar, em virtude do manifesto parentesco entre as duas. O arquivamento, do lado histórico,
constituiria um uso determinado prescrito para a prova documental, por outro lado, o uso corrente
na conversação comum preservaria melhor os traços essenciais do ato de testemunhar
(RICŒUR, 2008).
De acordo com Ricœur, a especificidade do testemunho consistiria no fato de que a
asserção da realidade é inseparável de sua vinculação à autodesignação do indivíduo que
testemunha. A solidão das Ŗtestemunhas históricasŗ se deve ao fato de suas vivências estarem
ligadas a situações muito específicas, cuja transmissão de sentimentos e experiências
vivenciadas no momento seriam difíceis de ser apreendidas por quem não viveu aquela situação.
Suas experiências extraordinárias mostrariam as limitações da capacidade de compreensão
mediana, comum. Há testemunhas que jamais encontram a audiência capaz de escutá-las e
entendê-las (RICŒUR, 2008). O tempo histórico, a ideologia e o contexto de uma geração para a
outra são muito distintos e isso, praticamente, inviabiliza um diálogo atraente para ambas as
gerações (aquela que testemunha e aqueça que ouve).

3 SOLDADOS DE SALAMINA: O TESTEMUNHO ORAL EM VIAS DE EXTINÇÃO

De acordo com Walter Benjamin, em O Narrador (1985), o ser humano estaria se privando
de uma faculdade que lhe parecia segura e inalienável: a capacidade para trocar experiências.
Benjamin coloca a informação como principal fator responsável pela decadência da tradição da
transmissão oral de experiências, que pode ser comparada ao que estaria acontecendo com o
testemunho oral.
Segundo ele a informação seria uma forma ameaçadora de comunicação que ao se
destacar na sociedade acabaria afetando e provocando uma crise na narrativa. O saber e as
experiências que viriam de longe (tempo e espaço) encontrariam hoje menos ouvintes que a
informação sobre acontecimentos próximos. A informação necessita dessa absorção imediata e o
indivíduo acabou se adaptando e dando mais importância a esse imediatismo da informação que
à tradição da narrativa oral. Quase nada do que acontece estaria a serviço da narrativa,
praticamente tudo giraria em torno da informação. Ele justifica seus argumentos com base na falta
de tempo das pessoas. As atividades associadas antigamente ao tédio (no sentido de tempo não
preenchido com alguma atividade), como a transmissão oral de testemunhos, relatos,
experiências, conhecimentos e sabedorias estariam em vias de extinção. Como resultado disso,
desapareceria o dom de ouvir, e desapareceria a comunidade dos ouvintes (BENJAMIN, 1985).
A relação entre ouvinte e narrador seria dominada pelo interesse em conservar o que foi
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narrado e assegurar a reprodução. Em teoria, todo ouvinte, ao retransmitir uma experiência que
lhe foi contada se transformaria em um narrador, e isso seria o que deveria garantir a continuidade
da narrativa e dos narradores. E esse interesse parece que já não existiria mais (BENJAMIN,
1985). É essa a questão que se relaciona com os testemunhos e relatos presentes em Soldados
de Salamina, as pessoas que testemunham suas vivências desejariam que seus próximos fossem
lembrados, que suas experiências não fossem esquecidas, porém uma das próprias testemunhas
do livro afirma que Ŗnadie tiene tiempo de escuchar a la gente de cierta edad, y menos cuando
recuerdan episodios de su juventudŗ (CERCAS, 2010:69).
Ao se relacionar as teorias de Benjamin às situações presentes no livro Soldados de
Salamina pode-se associar a figura do sobrevivente de guerra à figura do narrador, pois, assim
como o narrador, o sobrevivente de guerras também não teria mais a quem transmitir suas
experiências de vida; o testemunho oral de experiências também estaria entrando em decadência.
Benjamin afirma que não se teria percebido devidamente até agora que a relação pueril
entre o ouvinte e o narrador seria dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado. Para o
ouvinte neutro, o importante seria assegurar a possibilidade da reprodução (BENJAMIN, 1985).
Porém como não haveria atualmente esse ouvinte que assegurasse essa reprodução, o registro
escrito seria uma maneira de garantir que a vida dessas pessoas, que participaram de alguma
maneira nesses episódios de guerra, não tenha sido em vão, e de garantir que elas não passem
despercebidas pela história ou, pelo menos, seria uma maneira de garantir que elas fossem
lembradas pela literatura.

4 O ARQUIVAMENTO DO TESTEMUNHO

Ricœur (2008) afirma que o testemunho, por ser originariamente oral (escutado, ouvido),
proporcionaria uma sequência narrativa à memória declarativa. Por outro lado, o arquivo seria o
escrito, podendo ser lido e consultado. Antes do arquivo consultado, constituído, há o
arquivamento, que constituiria uma ruptura de um trajeto de continuidade (narrador - ouvinte).
Como toda escrita, um documento de arquivo estaria aberto a quem quer que saiba ler; ele não
teria um destinatário específico, diferentemente do testemunho oral, dirigido a um interlocutor
preciso.
O arquivo promoveria a ruptura com o ouvir-dizer do testemunho oral. Toda defesa do
arquivo permaneceria pendente, na medida em que não se saberia, e talvez jamais se saiba, se a
passagem do testemunho oral ao testemunho escrito, ao documento de arquivo seria, quanto a
sua utilidade ou seus inconvenientes para a memória viva, remédio ou veneno (RICŒUR, 2008).
O testemunho figuraria na observação histórica na condição de primeira subcategoria; ele
traria de imediato a marca que distinguiria seu emprego na história de seu emprego nas trocas
ordinárias nas quais predominaria a oralidade. Enquanto nas trocas ordinárias o testemunho e sua
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recepção seriam globalmente contemporâneos, na história o testemunho se inscreveria na relação


entre o passado e o presente, no movimento da compreensão de um pelo outro (RICŒUR, 2008).
Os limites da inscrição e do arquivamento seriam postos à prova antes dos da explicação e
da compreensão. Seria por isso que se poderia falar da crise do testemunho. Para ser recebido,
um testemunho deveria ser apropriado, despojado tanto quanto a possível estranheza absoluta
que o horror engendra. Essa condição drástica não seria satisfeita no caso dos testemunhos dos
que se salvaram. Uma razão suplementar da dificuldade de comunicar deve-se ao fato de que a
testemunha não esteve ela mesma diante dos acontecimentos; ela não Ŗassistiuŗ a eles; ela mal
teria sido um agente, um ator; ela foi sua vítima (RICŒUR, 2008).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao apresentar um real alternativo, a ficção (literatura) questiona o real estabelecido


(História), tornando o romance o portador de um papel de insubordinação, de questionador da
sociedade.
Aceitar essa capacidade subjetiva da literatura (várias versões e interpretações sobre um
determinado fato) implica em mudar a maneira de entender a história, onde o empírico é só uma
maneira de aceitar, interpretar e chegar até o passado. Isso não implica, porém, romper com a
noção de verdade e a noção de prova, essências da história. Implica reconhecer que no período
contemporâneo existem inúmeras maneiras de se relacionar com o passado a ponto de a
literatura colidir com a história, tal qual a memória e as tradições orais o fazem.
O testemunho é um ponto de vista, cada indivíduo pode ter uma perspectiva sobre um
mesmo fato, sobre uma mesma experiência. Todo relato é passível de interpretação dos fatos
protagonizados ou vistos, todo relato depende da memória, do esquecimento e da rememoração.
O testemunho não deve ser considerado como verdade, mas como interpretação subjetiva de
determinado fato. A falta de tempo e a mudança dos hábitos da sociedade seriam os responsáveis
pela não valorização do testemunho, dos relatos e das narrativas.
Pode-se concluir que o registro escrito seria uma maneira de garantir que os indivíduos,
que participaram de alguma maneira em episódios de guerra, não passem despercebidos pela
história ou, pelo menos, seria uma maneira de garantir que eles sejam lembrados pela literatura.
Para que suas histórias e experiências de vida estejam gravadas e que alguém, algum dia, saiba
que essas pessoas também estiveram naquela guerra. Que naquele momento elas foram
importantes para alguma coisa ou para alguém. O registro teria a finalidade de salvar as memórias
de uma época as quais aos poucos vão se perdendo e se fragmentando.

(…) Nadie se acuerda de ellos, ¿sabe? Nadie. Nadie se acuerda siquiera de por
qué murieron, de por qué no tuvieron mujer e hijos y una habitación con sol;
nadie, y, menos que nadie, la gente por la que pelearon. No hay ni va a haber
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nunca ninguna calle miserable de ningún pueblo miserable de ninguna mierda de


país que vaya a llevar nunca el nombre de ninguno de ellos. ¿Lo entiende? Lo
entiende, ¿verdad? Ah, pero yo me acuerdo, vaya si me acuerdo, me acuerdo de
todos, de Lela y de Joan y de Gabi y de Odena y de Pipo y de Brugada y de
Gudayol, no sé por qué lo hago pero lo hago, no pasa un solo día sin que piense
en ellos.
Miralles dejó de hablar, sacó un pañuelo, se secó las lágrimas, se sonó la nariz; lo
hizo sin pudor, como si no le avergonzara llorar en público, igual que lo hacían los
viejos guerreros homéricos, igual que lo hubiera hecho un soldado de Salamina.
(…) Yo me sentía a gusto, un poco ebrio, casi feliz. Pensé: <<Se acuerda por lo
mismo que yo me acuerdo de mi padre y Ferlosio del suyo y Miguel Aguirre del
suyo y Jaume Figueras del suyo y Bolaño de sus amigos latinoamericanos, todos
soldados muertos en guerras de antemano perdidas: se acuerda porque, aunque
hace sesenta años que fallecieron, todavía no están muertos, precisamente
porque él se acuerda de ellos, sino ellos que se aferran a él, para no estar del
todo muertos>>. <<Pero cuando Miralles muera>>, pensé, <<sus amigos también
morirán del todo, porque no habrá nadie que se acuerde de ellos para que no
mueran.>> (CERCAS, 2010:199).

O narrador de Soldados de Salamina se seduziu pela figura dos sobreviventes e do


esquecimento em que caíram todos os que morreram por defender seus ideais. O livro tem uma
espécie de compromisso de reconhecimento desses Řsoldados anônimosř que não têm ruas com
seus nomes, que não são lembrados nem pela bandeira que defenderam e pela qual lutaram. O
romance seria um meio de conservar viva a memória daqueles que já não podem mais transmitir
suas experiências e é por esse motivo que Soldados de Salamina é um livro necessário para uma
Espanha tão desmemoriada. Para que não se esqueça do um milhão de espanhóis que morreram
durante a Guerra Civil Espanhola defendendo sua ideologia, fosse ela qual fosse.
O registro escrito dos testemunhos pode romper com a tradição da transmissão oral de
experiências; pode não reverter a situação de crise e decadência do testemunho, porém garante
que os testemunhos não morram completamente.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, W. Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985.

CERCAS, Javier. Soldados de Salamina. Buenos Aires: Tusquets, 2010.

RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. UNICAMP: Campinas, 2007.

SUTERMEISTER, Paul. A meta-história de Hayden White: uma crítica construtiva à Ŗciênciaŗ


histórica. (in: Revista Espaço Acadêmico, n°. 97, junho de 2009). Disponível em:
<http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewFile/7102/4141>

TOBÓN, Natalia. La realidad y la ficción del testimonio. Centro de Competencia y comunicación


para América Latina - Tácticas y estrategias para contar [historias de la gente sobre conflicto y
reconciliación en Colombia]. Disponível em: http://www.c3fes.net/docs/tacticas_texto.pdf

KOLLERITZ, Fernando. Testemunho, juízo político e história (in: Scientific Electronic Library
Online - Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 24, nº 48, p.73-100 Ŕ 2004) Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-01882004000200004&script=sci_arttext>.
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O CANTADOR PROJETADO EM A MALASSOMBRADA PELEJA DE FRANCISCO


SALES COM O “NEGRO VISÃO”

GEICE PERES NUNES27

Resumo
Este artigo apresenta uma leitura sobre as pelejas ou desafios, um subgênero da poesia popular do
nordeste, também denominada literatura de cordel. Nosso intuito é demonstrar como o cantador se projeta
em A malassombrada peleja de Francisco Sales com o ―Negro Visão‖, na tentativa de elucidar três níveis
que balizam essa postura: a exposição diante de um público, o desejo de reconhecimento e o anseio de
permanecer culturalmente vivo no seu espaço geográfico.
Palavras-chave: peleja, projeção, cantador.

Resumen
Este artículo presenta una lectura acerca de las Ŗpelejas ou desafíosŗ, un subgénero de la poesía popular
del nordeste de Brasil, también nombrada pliegos sueltos. Nuestro objetivo es demostrar como el Ŗcantadorŗ
se proyecta en A malassombrada peleja de Francisco Sales com o ―Negro Visão‖, intentando mostrar tres
niveles que balizan esa postura: la exposición delante de un público, el deseo de reconocimiento y de
permanecer culturalmente vivo en su espacio geográfico.
Palabras-clave: “Pelejaŗ, proyección, Ŗcantadorŗ.

A literatura popular do nordeste é considerada em alguns casos uma expressão artística


menor dentro do panorama literário, uma paraliteratura. No entanto, na contramão desse juízo,
algumas vozes fazem ecoar o que essa poética tem de admirável: a possibilidade de visualizar o
oral imbricado com o escrito, a versatilidade no manejo de rimas e métricas de diferentes
variações, entre outros aspectos.
Em contraste com a crítica que considera a literatura popular como um gênero pouco
relevante, Augusto de Campos identifica nessa expressão a herança das tensões medievais e
reconhece não somente a intelectualização e o requinte nela presentes, mas a riqueza de sua
elaboração formal. Assim, expõe o confronto dos cantadores como Ŗum verdadeiro torneio de
habilidade artesanal, onde cada um procura superar o adversário quer na versatilidade rítmica
quer no domínio da invenção léxica e semânticaŗ (CAMPOS, 1988, p. 257-258).
No presente trabalho, optamos por tratar de um aspecto peculiar do desafio na poesia
popular, a projeção de si próprio efetivada pelo poeta popular em certas cantorias, apresentando-
se como um cantador e, ao mesmo tempo, como uma personagem dentro na narrativa que
desenvolve. Com base em tal constatação, selecionamos A malassombrada peleja de Francisco
Sales com o ―Negro Visão‖ como o corpus apropriado para expressar essa característica.

1. ENLAÇANDO OS ŖSENHORESŗ

27
Doutoranda em Estudos Literários do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFSM; bolsista CAPES.
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A peleja, um subgênero da literatura popular do nordeste, configura-se como um desafio


imaginário entre dois cantadores. Um duelo que reproduz por meio da voz, os movimentos dos
duelos medievais empreendidos corpo a corpo.
A obra em questão é aberta por uma sextilha heptassilábica, uma Ŗconstante-rítmicaŗ
(CASCUDO, s.d., p. 18) predominante na peleja e adotada como métrica em grande parte da
poesia popular. Nela, visualizamos o momento presente em que o poeta dirige-se ao público
oferecendo uma síntese daquilo que irá cantar:

Senhores, quem é poeta


está sujeito encontrar
com espírito maconheiro
cheio de truque e azar
que na vida foi poeta
morreu inda quer versar (ARÊDA, 1964, p. 294)28

No momento da apresentação, percebemos a compleição de um grupo de receptores: os


Ŗsenhoresŗ, a quem a voz poética se dirige a fim de laçá-los e prendê-los no fio da narrativa que
desenovela. Esses seres a quem o cantador aciona parecem ser os leitores do folheto, para quem
ele expõe brevemente as circunstâncias que o motivaram a voltar à prática da cantoria; o estado
físico e psicológico em que se encontrava na iminência da sua volta; além do choque que sofre
com a chegada de um adversário misterioso ávido por pelejar.
As razões da interação com um interlocutor externo à poesia são explicadas por Lêda
Tâmega Ribeiro. Discorrendo sobre o contato do poeta popular com seu público, a autora afirma
que, mesmo admitindo que Ŗa individualidade da mente criadora está por trás de toda a criação
poética de cunho popularŗ é preciso reconhecer que Ŗo cantar do povo se reveste de
características especiais, molda-se fundamentalmente pelas exigências do tipo de receptor a que
se destinaŗ (RIBEIRO, 1987, p. 64). Assim, por se dirigir não a um leitor solitário, mas a um
auditório diante do qual canta seus versos, o cantador não pode perder esse aspecto de vista.
Semelhantemente à poesia medieval, atenta aos ouvintes não apenas na hora da recitação
poética, mas inclusive na elaboração da poesia, tornou-se prática fazer uso de termos como
Ŗseñoresŗ, Ŗvaronesŗ, Ŗyo vos diréŗ, entre outros. Do mesmo modo, os Ŗjograis nordestinosŗ
apropriam-se de tais expressões e têm sempre presente o público que o prestigia, dirigindo-se a
ele, o Ŗsenhorŗ ou Ŗsenhoresŗ, o Ŗleitorŗ ou Ŗleitoresŗ, quando se trata de um poema impresso.
Desse modo, visualizamos a noção de público como um dos elementos primordiais na
construção da peleja. Essa instância adquire uma configuração estrutural nesse modelo poético e
passa a balizá-lo ao mesmo tempo em que provoca um efeito particular: a concretização fictícia do
28
A peleja aqui estudada foi compilada pela Fundação Casa de Rui Barbosa no volume I Ŕ Antologia, da
série Literatura Popular em Verso. Não há uma data precisa para a produção dos versos, no entanto,
sabemos que Francisco Sales Arêda nasceu em 1916, em Caruaru (PE) e faleceu em 2005, na mesma
cidade. Grande parte da sua produção está datada entre as décadas de 40 e 70
(http://www.casaruibarbosa.gov.br/cordel/FranciscoSales/franciscoSalesAreda_biografia.html).
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reconhecimento reivindicado pelo poeta. Portanto, uma aprovação ficcional capaz de contagiar o
público real tornando-o partidário do cantador que superar o adversário no embate empreendido.

2. O CANTADOR PROJETADO

NřA malassombrada peleja, após a exposição inicial do cantador, predomina o momento


dos eventos narrados. Assim, na voz de um sujeito lírico em primeira pessoa, que narra uma
passagem importante da sua própria vida, Francisco Sales, um homônimo do autor do folheto,
Francisco Sales Arêda, dirige-se ao público que o assiste em uma Ŗnoite de São Joãoŗ. A
sucessão de versos é composta de modo a exaltar as características positivas do cantador
enquanto personagem, traço facilmente percebido quando, na argumentação desenvolvida na
cantoria, são narrados os seguintes eventos: o cantador Francisco Sales está afastado da vida de
poeta, mas, a pedido de um amigo, vê-se obrigado a voltar a apresentar-se em público. Chegando
ao lugar no qual fará sua apresentação, sente certa insegurança, mas, no momento em que é
chamado a pelejar com um adversário surgido misteriosamente, tem seu valor reconhecido antes
mesmo de bater-se em duelo, graças à fama adquirida na vida pregressa:

Nisso alguém bateu na porta


pediu licença e entrou
era um negro estranho e feio
que a todo mundo assombrou
com uma viola velha
junto de mim se sentou.

E foi dizendo em voz alta


vim pra aqui sem ser chamado
porque gosto de cantar
com cantador preparado
recorde o que aprendeu
se firme e cante animado (ARÊDA, 1964, p. 294).

Nos versos, percebemos a qualidade do poeta sendo reconhecida pelo adversário, pois
Francisco Sales é considerado de Ŗum cantador preparadoŗ. Entretanto, o oponente é depreciado
pelos atributos negativos como Ŗnegro estranho e feioŗ, dentre outros que encadeados irão
corroborar a malignidade de ŖNegro Visãoŗ, o adversário. O recurso de reconhecer a fama do
cantador Francisco Sales chama atenção para a figura do poeta legitimando-o como um grande
expoente na sua arte, sem que esse sujeito precise se autoexaltar. Com tal artifício, conquista a
empatia do público por meio de uma humildade disfarçada, ao mesmo tempo em que conduz o
espectador da performance a observá-lo com atenção, proporcionando uma identificação entre o
artista e seu público.
Em nível de conteúdo, percebemos traços de importante relevância no modo como o
cantador Francisco Sales Arêda projeta-se na sua poesia. O sujeito lírico Ŕ o próprio poeta Ŕ
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cresce à medida que seu contato com o Negro Visão se efetiva. Considerando esses aspectos,
percebemos que a grandeza da figura do cantador é construída a partir do contato com o seu
oposto e esse matiz torna-se mais evidente quando percebemos que a peleja é edificada sobre a
base de dicotomias: bem x mal; sagrado x profano; vida x morte. Devido a tal característica,
Francisco Sales pode ser considerado uma alteridade construída a partir da interação com o
adversário. É nesse sentido que a afirmação de René Galissot (apud COUCHE, 1998, p.183)
pode ser associada à relação estabelecida entre Francisco e o Negro, visto que Ŗnão há
identidade em si, nem mesmo unicamente para si. A identidade existe sempre em relação a uma
outra. Ou seja, a identidade e a alteridade são ligadas e estão em uma relação dialéticaŗ.
Tendo em vista as referidas afirmações, torna-se necessário esclarecer os momentos que
consolidam a projeção do cantador como uma figura talentosa em detrimento de seu antagonista.
Isso pode ser notado na caracterização maniqueísta dos cantadores, nos diferentes estilos
adotados por ambos e, sobretudo, na ligação com o sagrado.
O estilo dos pelejadores é carregado de diferenças. Assim, enquanto Francisco Sales
adota um tom coloquial, porém com temática elevada, o Negro Visão apresenta um estilo
eloquente e rebuscado:

N.: - Ligue o fio umbilical


na esfera mentalista
dentro do quadro da sorte
com sistema realista
desdobrando a consciência
em busca de nova pista (ARÊDA, 1964, p. 294)

À primeira vista, a elocução apresentada pelo Negro parece carente de conteúdo, porém,
na sextilha, percebemos o manejo hábil das rimas, um léxico variado, cuja apreensão do conteúdo
necessita de certa reflexão. O caráter enigmático da sentença é próprio dos desafios e torna-se
um artifício para testar a perícia do adversário na arte da cantoria. A oratória do Negro surpreende
o poeta, que o indaga sobre a sua procedência concreta, exigindo uma resposta objetiva:

F. S. - Negro, quem és tu assim,


com tanto estilo e linguagem
me dizes de onde vens
pelo mundo sem paragem
qual é tua procedência
originada com margem (ARÊDA, 1964, p. 294).

Na argumentação do Negro predominam as respostas vagas que contribuem para a


criação de uma atmosfera de mistério em volta da sua figura: Ŗ- Eu venho dos hemisférios/
zodiacais do destinoŗ, Ŗ- Sou filho de dois cativos/ do país dos sofrimentos/ já tenho 300 anosŗ
(ARÊDA, 1964, p.294). Da forma como tal enunciação é exposta, contribui para a ligação do
Negro com o maligno e o profano, ao mesmo tempo em que torna o auditório favorável a
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Francisco Sales. No nível formal, a poesia põe em evidência a competência do cantador na arte a
qual se dedica.
O Negro Visão investe na tentativa de valorizar-se no universo da cantoria aproximando-se
dos cantadores renomados. Na empreitada de derrubar o Ŗcasteloŗ de Francisco Sales, o Negro
menciona cantadores de grande expressividade, figuras célebres dentro do universo do cordel.
Assim, depreendemos como um possível sentido para esse uso, a tentativa de minar as bases da
poesia de Francisco Sales e fazer deste, por associação, seu discípulo, rompendo com o
maniqueísmo do bem, representado por Francisco, versus o mal, personificado no Negro. A voz
do Negro sugere a arte como um terreno no qual o bem e o mal se confundem, pois os mestres de
cantoria de Francisco Sales Ŗsupostamenteŗ aprenderam a técnica com a referida figura
misteriosa. Isso é posto em prática por meio da suposta influência que o cantador misterioso
afirma produzir nos mestres dos versos populares. No entanto, essa referência é realizada de
maneira depreciativa:

N: - Você é quem diz assim,


por não ter compreensão,
mas provo que Pedra Azul
Ventania e Azulão,
Serrador, Carneiro e Lino
a todos eu dei lição (ARÊDA, 1964, p. 297).

Quando nos questionamos sobre o motivo do combate de Francisco Sales com o


Ŗdiabólicoŗ consideramos uma possível resposta na colocação de Jerusa Pires Ferreira. A autora
aponta que a poesia popular veiculada pela literatura de cordel faz uso do mistério como fórmula
para a sua composição. Nessas composições predomina ainda a dramaticidade, em que Ŗse
polarizam ações e falas de protagonistasŗ; portanto, no combate, Ŗcria-se a condição própria ao
desenvolvimento da ação dramáticaŗ, que na representação é Ŗlevado às últimas consequências.
Depois, o gosto do torneio em si mesmo e da disputa argumentativaŗ (FERREIRA, 2003, p.145).
Com base nessa leitura, notamos que a peleja concentra esses elementos: o mistério,
representado no Negro, uma espécie de assombração; o torneio exposto pelo próprio gênero; e a
dramaticidade associada ao diálogo versado entre os pelejadores.
À medida que o embate avança e o caráter maligno do Negro se delineia, Francisco Sales
se alia ao religioso como um artifício para derrotar o adversário. A religiosidade é empregada com
funções diferentes: primeiramente, a fé do cantador reitera sua postura de positividade, de retidão
e, portanto, o auditório é impelido a apoiá-lo; em segundo lugar, o conhecimento dos santos atesta
a Ŗerudiçãoŗ do sujeito, e, finalmente, a intimidade com entidades superiores contribuem com a
vitória do bem sobre o mal, de Francisco sobre o Negro. A fé tem uma função vital. Mais do que a
destreza na cantoria, é a crença que assegura a vitória de Francisco na batalha vocal.
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 93
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- Todo mundo tem direito


de defender seu papel
só você não se defende
por ser infame e cruel
porém eu tenho por mim
Jesus Cristo e São Miguel (ARÊDA, 1964, p. 295).

- Mas na reza tem prodígio


que nos faz admirar
quem não se benze e não reza
não pode a Deus alcançar
fica assim como você
de mundo a fora a atentar (ARÊDA, 1964, p. 296).

Em dado momento, com uma postura de ataque, o cantador passa a se autoafirmar diante
do adversário: Ŗ- Quem é você tão sabido/ pra conhecer mais do que eu/ nem rebaixar o poder/
que a natureza me deu/ se veio com essa ideia/ pode dizer que perdeuŗ (ARÊDA, 1964, p. 295).
Essa certeza se apóia no talento e na técnica para a poesia que o próprio cantador julga ter: Ŗ- Eu
canto porque conheço/ rima, métrica e posição/ sentido, frase e conjunto/ sistema e complicação/
não é pra um negro imundo/ vir a mim passar liçãoŗ (ARÊDA, 1964, p. 297).
Na contenda entre os pelejadores, o Negro tenta derrubar a reputação de Francisco. O
duelo não se dá apenas com motes para a cantoria, mas também com o uso de diferentes
métricas. Assim, no lance empreendido pelo Negro, a sextilha é substituída pelo martelo, com dez
pés de decassílabos. Tal variação é inserida na peleja como uma amostra da habilidade dos
cantadores ao mesmo tempo em que expõe o desejo de testar o adversário no intuito de derrotá-
lo:

- Você pensa que reza santa e cruz


me faz medo de noite nem de dia
se previna e chame por Maria
para ver se ela te conduz
faça força que hoje vim apuz
de enfrentar um poeta em todo artigo
não me assombro, não corro e prossigo
da forma que quiser eu também quero
de qualquer lado que vir eu lhe espero
não há santo que lhe empate ir comigo (ARÊDA, 1964).

Augusto de Campos (1988, p. 258-259) destaca que no uso do martelo não muda apenas
o ritmo, mas Ŗa dicção e as proposições semânticas, que adquirem o tom exaltado de
autoafirmações jactanciosas, incorporando livremente o absurdo e o nonsenseŗ. Na peleja em
estudo, não visualizamos a falta de sentido, mas percebemos a mudança no vocabulário repleto
de sonoridade, a proeminência de aliterações e a complexidade do conteúdo dos versos que
reproduzem o duelo dos cantadores. Assim, aos olhos de Campos os desafios não desdenham as
ousadas soluções formais, fazem isso Ŗao mesmo tempo em que confundem o contendor e
maravilham a todos pela destreza e pelo virtuosismo elaborativoŗ (1988, p. 260).
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No martelo de esquema ABBCDDEE, notamos que na aparente simplicidade, está implícita


a riqueza da linguagem quando percebemos a reunião de palavras tão distantes semanticamente,
como é o caso de Ŗbalançaŗ e Ŗtrançaŗ. Outro ponto alto do verso trata-se da inserção do público
como agente na poesia: Ŗmeus senhores da salaŗ. Assim, a união de forças, ou seja, a técnica do
poeta, o auxílio do público e, sobretudo, a ajuda celestial, representada pela invocação à Virgem
do Rosário, de São Miguel e do Anjo Gabriel são os conhecimentos dos quais Francisco lança
mão para neutralizar seu adversário. Francisco Sales empreende uma espécie de encomenda da
alma do Negro, invocando o arcanjo São Miguel por este ter um papel especial no imaginário
popular, é o arcanjo responsável por conduzir as almas para o julgamento divino. Assim, nesse
movimento, a peleja se encaminha para o desfecho.

- Meus senhores da sala é necessário


arranjar-se um cordão e água benta
pra lançar-se esta fera violenta
com a força da Virgem do Rosário
e pedimos a Cristo do sacrário
que nos mande o anjo Gabriel
descer com o Arcanjo São Miguel
trazendo a espada e a balança
para ver se nos livra desta trança
e expulsar esta fera tão cruel (ARÊDA, 1964).

A partir dos elementos levantados nessa poesia, vemos que o louvor ao cantador se dá de
maneira mais evidente em tal modalidade. Esse fato é corroborado por Luis da Câmara Cascudo
(s.d., p. 139), em Vaqueiros e Cantadores, que afirma: ŖA glória do cantador está no desafio. O
melhor sucesso é o número de vencidos, arrebatados no turbilhão dos versos sarcásticos e
atordoantesŗ. Assim, a grandeza do poeta pode se confirmar na engenhosidade dos versos e no
uso preciso das métricas do cordel, capazes de garantir a vitória. Além disso, o fato de se tratar de
uma poesia bastante flutuante, que passa de boca em boca, sem a necessidade de ter um autor
que assine a obra, a exaltação pelos versos e a Ŗprotagonizaçãoŗ pelo próprio cantador o
Ŗimortalizaŗ, grava na memória do povo o estro do artista.
Ciente das riquezas que despontam nos versos rudes dos cantadores, Augusto de
Campos defende a poesia popular, pois vê nela uma arte autêntica que não precisa ser
Ŗmelhoradaŗ semanticamente a fim de adquirir densidade. Para o autor, a poesia, embora
Ŗalienada de uma consciência dirigidaŗ, é tão significativa de seu contexto quanto as suas
Ŗcontrafações politizadasŗ:

Essa poesia, que caminha inexoravelmente para a obsolescência, à medida que


as tradições rurais vão sendo engolidas pelas novas modalidades de arte popular
urbana trazidas pelos modernos meios de comunicação de massa Ŕ o rádio, a
televisão, o cinema -, não necessita de muletas nem de caridade. Anda por seus
próprios pés. Possui técnicas e excelências nada desprezíveis e por vezes
surpreende o poeta cultivado, não só pela diretidade de sua linguagem, como
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pelas sutilizas e achados imprevistos (CAMPOS, 1988, p. 257).

De tal maneira, um Ŗachadoŗ da poesia sobre a qual nos debruçamos reside na solução
que o poeta dá a ela. Assinalando o desfecho, já irritado com a fé inabalável de Francisco Sales e
com seu apelo frequente aos santos, o Negro, na sua argumentação, critica: Ŗ- Você pensa que
com isso se defende/ mas para mim és maluco e muito fracoŗ (ARÊDA, 1964, p. 298). Na
sequência da altercação, notamos que, na visão do Negro, apelar para os santos configura-se
como um embuste do cantador. Na postura firme e resignada de Francisco transparece a
ideologia do homem simples: é a força da fé que o conduz à vitória. Por isso, a solução da peleja
ilustra que a energia das palavras do Negro não são superadas, mas a repetição e a confiança da
ladainha de Francisco Sales o induzem à desistência no duelo:

- Arre com tanto pedido


deste cantor tão teimoso
só fala em santo e rosário
isto é que é ser caviloso
nem canta e só dá maçada
com este abuso horroroso (ARÊDA, 1964, p. 300).

As pelejas estabelecem uma série de regras para a prática dessa batalha vocal. Assim, a
definição do perdedor pode ser fixada pela postura adotada na cantoria: se o cantador que se
recusar a acompanhar o novo estilo proposto é declarado perdedor (CASCUDO, s.d., p. 128). No
desfecho da Malassombrada peleja, a vitória do bem sobre o mal se efetiva e a derrota da
assombração é exposta à semelhança de outras obras:

Levantou-se da cadeira
rodando em cima de um pé
e disse: - Eu não canto mais
porque estou dando fé
quem discutir com um doido
é esgotar a maréŗ (ARÊDA, 1964, p. 300).

O alvorecer do dia marca a desistência do Negro e esse acontecimento determina a sua


derrota: ŖE nesse momento o galo/ cantou saudoso e bonito/ o negro se remexeu/ soltou um
tremendo grito/ fez corrupio na sala/ e se sumiu o malditoŗ (ARÊDA, 1964, p. 301). O cheiro
sulfuroso associado ao inferno é o odor que demarca o lugar do Ŗespírito maconheiroŗ que duelou
com Francisco Sales: ŖTodo povo que estava/ ali na reunião/ sentiu um cheiro abafado/ de breu,
enxofre e carvão/ rezaram o credo e o ofício/ da Virgem da Conceiçãoŗ (ARÊDA, 1964, p. 301). O
Negro Visão desiste da batalha e desaparece misteriosamente deixando no ar um cheiro de
enxofre.
Portanto, tecendo algumas considerações sobre A malassombrada peleja de Francisco
Sales com o Negro Visão com o olhar voltado para o cantador que nela se projeta, é possível
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depreender alguns aspectos importantes na obra. Entendemos que Francisco Sales Arêda se
coloca como o sujeito da sua poesia como uma estratégia de valorizar a sua habilidade poética
diante de um público que compartilha o gosto pelo popular. Enquanto personagem, a partir da sua
interação com o Negro Visão, seu talento ganha corpo e ele se constitui como uma alteridade. A
motivação para a autoexaltação na poesia popular, sobretudo no gênero em questão,
fundamenta-se na necessidade do cantador ressaltar seu dom em um momento em que tal
literatura perde terreno para os veículos de massa. Diante dessa realidade, o poeta passa a se
projetar como um cantador em combate com adversários reais e imaginários, ressaltando sempre
as suas qualidades e a grandeza da sua poesia.
Por tais razões, a técnica do cantador precisa ser trazida ao conhecimento do público que
o assiste e memoriza os versos legitimando e propagando a sua poesia. É na possibilidade de
imaginar esse combate, de esmiuçar os elementos que compõe a peleja, de levantar hipóteses e
de esboçar as questões prementes na vida dos artistas do povo que tornam essa expressão um
interessante objeto de estudo. Assim, finalizamos com as palavras de Campos (1988, p. 262)
ressaltando a defesa a uma poética pouco valorizada: Ŗé preciso reconhecer a garra da invenção
na arte autenticamente popular, muito menos ingênua, muito mais elaborada e inteligente do que
alguns querem fazer crerŗ.

REFERÊNCIAS

ARÊDA, Francisco Sales. A malassombrada peleja de Francisco Sales com o ŖNegro Visãoŗ.
Francisco Sales Arêda. In: Literatura Popular em Verso. Antologia. Fundação Casa de Rui
Barbosa: 1964.
Biografia. Fundação Casa de Rui Barbosa. Disponível em:
http://www.casaruibarbosa.gov.br/cordel/FranciscoSales/franciscoSalesAreda_biografia.html
Acessado em: 20 out. 2010.

CAMPOS, Augusto de. Um dia, um dedo, um dado. In: ______. Verso Reverso Controverso. São
Paulo: Perspectiva, 1988.

CASCUDO, Luis da Câmara. Vaqueiros e Cantadores. Porto Alegre: Ediouro, s.d.

COUCHE, Denys. A noção de cultura nas Ciências Sociais. São Paulo: EDUSC, 1998.

FERREIRA, Jerusa Pires. Um gosto de disputa. Um combate imaginário. In: ______. Armadilhas
da memória. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

RIBEIRO, Lêda Tâmega. Mito e poesia popular. Rio de Janeiro: FUNARTE/ Instituto Nacional do
Folclore, 1986.
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REGIONALISMO BRASILEIRO: A IDENTIDADE NACIONAL (2010)29

ISABELE CORRÊA VASCONCELOS FONTES PEREIRA30


SILVIA NIEDERAUER31

Resumo
Com base no contexto do movimento literário regionalista, expõe-se, neste artigo, a dinâmica que envolve a
estética literária desse gênero. Para isso, faz-se necessária uma passagem pelo contexto histórico que
abarca essa questão e pelas discussões que os estudiosos e críticos estabelecem como pontuais. A
pesquisa visa realizar uma investigação acerca do regionalismo literário brasileiro, objetivando estabelecer
um diálogo entre as fronteiras sectárias do país, abarcando a questão da identidade como contraponto.
Para tanto, pesquisa-se suas manifestações dentro do ambiente regionalista e das culturas particulares que
o permeiam. Explora-se, ainda, a estética do regionalismo sul-rio-grandense e analisa-se a narrativa Uma
História Farroupilha, de Moacyr Scliar, com o intuito de apontar os elementos que caracterizam
analogicamente essa literatura ao movimento literário regionalista. Dentro desse discurso, é possível
concluir que a articulação de culturas distintas desenvolve a leitura crítica, proporcionando um elo com a
realidade retratada.
Palavras-chave: Regionalismo; Literatura Sul-Rio-Grandense; Identidade.

INTRODUÇÃO

Considerando o regionalismo brasileiro dentro do movimento literário regionalista, esta


pesquisa tem como objetivo descrever os aspectos que caracterizam de forma artística e estética
essa expressão escrita. Objetiva, ainda, realizar um diálogo entre as fronteiras sectárias do país,
abarcando as diversas identidades expostas nas narrativas ficcionais. Tem-se como foco inicial, a
produção literária do Rio Grande do Sul, no tocante às marcas regionalistas percebidas em alguns
textos. Desse modo, ao fazer-se um recorte temático e estilístico da produção sulina, aponta-se
para a permanência desse estilo em escritas contemporâneas, que revisitam tal estática,
renovando-a e reafirmando, assim, sua importância literária, em meio a tantas outras
manifestações desse universo.
O surgimento da tendência regionalista é percebida a partir do Romantismo, estendendo-
se até produções mais recentes, trazendo a voz do homem do campo e a cena rural como
elementos que tornam essa uma cultura diferenciada.
A literatura regional situa o leitor de acordo com os contextos históricos e as culturas
particulares de realidades rurais gaúchas, situando-as, desse modo, fora do eixo urbano, o que
proporciona o (re)conhecimento de uma outra realidade.
Ao garimpar textos narrativos que se voltam para questões que são caras aos primórdios
29
Projeto de Pesquisa PROBIC/UNIFRA REGIONALISMO BRASILEIRO: ATUALIDADE E RENOVAÇÃO,
em desenvolvimento.
30
Acad. doCurso de Letras Ŕ Língua Portuguesa do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA), Santa
Maria, RS, Brasil.
31
Profª. Dr. do Curso de Letras do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA), Santa Maria, RS, Brasil
E-mail: isabele_zizi@hotmail.com; silvia.niederauer@yahoo.com
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da literatura gaúcha, tem-se o aproveitamento, muitas vezes, revisionista desses eixos temáticos,
no sentido de salientar sua permanência no cenário das letras, hoje tão híbrido e repleto de
inovações.

1. REGIONALISMO BRASILEIRO: contexto histórico

Ao retratar o cotidiano e os feitos de um povo via discurso literário, dá-se vida à arte da
palavra escrita e ao conteúdo desse movimento a qual se denomina Regionalismo Brasileiro.
Cantar a terra e os homens que nela habitam, para além de outras características, tais como: a
questão identitária, a estética, a relação texto-leitor, por exemplo, são o fomento de uma escrita
regionalista. Há que se considerar, ainda, o contexto histórico que revela os traços marcantes das
narrativas desse estilo de produção.
As primeiras manifestações literárias do/no Brasil, desde o Quinhentismo até o Arcadismo,
não caracterizaram uma escrita regionalista, uma vez que essa produção ainda estava atrelada
aos moldes europeus e, portanto, mantinham, na maioria dos casos, como Řfonte de inspiraçãoř o
cenário e as situações próprias daquele lugar.
É somente com o advento do Romantismo que a valorização da natureza e do ambiente
passam a ser retratados como reflexo do homem que nele habita. Assim, inicia a exaltação do
nacionalismo e de todas as figuras que caracterizam o Brasil como país recém liberto do jugo
colonial. O exemplo maior do nacionalismo é o índio, que ascende a herói nacional. O regional fica
muito marcado e é uma dos estilos da prosa romântica, vindo a juntar-se às narrativas indianistas
e urbanas.
Nas narrativas regionalistas, a visão de mundo centra-se no indivíduo e no meio em que
ele vive. A exaltação do ambiente como lugar ideal para se desenvolver uma vida sem rupturas
transgressoras dirige a atenção para a vida no campo, vida limitada a uma rotina rica de
experiências e mantenedora de tradições.
Na tentativa de romper com a literatura européia, começou-se a desenvolver a valorização
da cultura brasileira, delimitando as fronteiras regionais como principais fatores que elevam a
brasilidade dos povos que aqui constituíram residência.
Como principais nomes desse período que desenvolveram o estilo regionalista estão José
de Alencar com os romances regionalistas O Gaúcho, O Sertanejo e O Tronco do Ipê; Bernardo
Guimarães com O ermitão de Muquém e O Garimpeiro; Franklin Távora, regionalista que retratou
em seu romance, O Cabeleira, o estado de Pernambuco; Visconde de Taunay, cuja obra
regionalista mais importante é Inocência; Apolinário Porto-Alegre com O vaqueano, em que
constrói uma imagem mais real do gaúcho.
Ligia Chiappini sintetisa o Romantismo como: ŖAssim, de norte a sul, com o romantismo,
cantos, danças, contos, trovas, crenças, festas, amores e tragédias, palavras e expressões
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estranhas aos ouvidos do leitor citadino vão ser inventariados e utilizados como matéria ficcionalŗ
(1994, cap. II).
Por razões históricas, o regionalismo intensifica-se nas regiões Norte e Sul do país. Essas
regiões compõem-se de grandes conflitos políticos e econômicos que particularizam ainda mais a
literatura de tais ambientes. Como essa pesquisa direciona-se para o regionalismo sul rio-
gradense, o estado do Rio Grande do Sul terá maior enfoque quanto às suas manifestações.
Marcado por sucessivas batalhas, o Rio Grande do Sul seguiu, na literatura, os
acontecimentos que se desenrrolavam no estado: fundação da Colônia do Sacramento (1680),
desocupação da Cisplatina (1828), logo depois iniciou-se a Revolução Farroupilha (1835) que
durou cerca de uma década. É o estado em que aparece o primeiro romance histórico-regional: O
corsário, de Caldre Fião, que traz como pano de fundo a atmosfera política da Revolução
Farroupilha.
A tendência regionalista segue durante os períodos seguintes - Pré-mordernismo e
Mordernismo com temas como o cangaço e a seca do Nordeste, o Vale do Paraíba em São Paulo,
a política e historicidade do Rio Grande do Sul.

1.1 Regionalismo: o que é regionalismo?

A literatura regional pode ser delimitada sob duas vertentes: a primeira se passa em uma
determinada região, trazendo questões universais desenvolvidas sob a temática da obra. Essa
abrange o regional para demandar apenas a localização de situações comuns. A segunda
vertente se torna específica, uma vez que captura não apenas a localização da narrativa, bem
como os desenhos quase fotográficos dos elementos naturais e geográficos como pano de fundo
que afetam a cultura, folclore e tradição das vidas de uma sociedade. Esta, por sua vez, se
particulariza e, ao mesmo tempo, se iguala a tantas outras que possuem os elementos específicos
que as tornam únicas.
Além das temáticas, o que também move a vertente regional é a linguagem rica de
expressões populares. A criação de um dialeto entre os habitantes torna a narrativa mais poética
e verossímil.
Essa maneira de expor uma cultura de um povo baseado em tradições, lendas e rituais
captura a essência natural da identidade do homem do campo e o seu cotidiano.

1.2 A questão identitária


O regionalismo literário brasileiro delimitou não só fronteiras quanto aos costumes e
quanto às características geográficas desenhadas em seu conteúdo, como também destaca como
principal elemento o homem, representante da cultura de propagação da terra exaltada. Essa
literatura regional vai ao encontro à busca de uma identidade cultural que situa de acordo com os
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contextos históricos as realidades rurais do movimento literário que se inicia no Romantismo e


segue até a contemporaneidade.
As influências regionais marcam a literariedade presente nas obras que caracterizam a
dinâmica cultural do nosso país. Na atualidade, assim como na origem desse processo discursivo,
encontram-se realidades bucólicas que qualificam o conteúdo das obras literárias, bem como a
sua estética como pontos fundamentais de particularidades individuais.

1.3 A literatura Sul-Rio-Grandense

A literatura Sul-Rio-Grandense, já mencionada acima, foi marcada por sucessivos


aconteciementos históricos e políticos que desenvolveram a identidade do gaúcho. Inicialmente
como um homem do campo, o modo de subsistência era o cultivo da terra e criação de animais.
Regina Zilberman afirma: ŖA literatura no Rio Grande do Sul parece ter nascido vocacionada para
representar a estância e seus habitantes, trabalhadores (os peões) ou proprietários (os
estancieiros).ŗ (1992, p.11). Isso indica as posições econômicas da época. O gaúcho seja o peão
ou o estancieiro é representado nas narrativas como um homem rude, bravo e forte, sempre
corajoso, enfrentando batalhas e revoluções.
Regina refere-se também à política inserida no discurso literário: ŖA produção literária do
Estado também foi sempre bastante politizada, lutando contra ideologias instituídas ou
denunciando desigualdades.ŗ (1992, p.11). Tem-se a política como objeto centralizador das
questões históricas e revolucionárias. Para tanto, ela aparece nos textos ficcionais apontando as
características ideológicas do povo.
O fator histórico mais demarcado nesse movimento literário foi a Revolução Farroupilha.

A Revolução Farroupilha já se constituíra, em 1835, num movimentode oposição


ao sistema administrativo do Império, de modo que a recuperação da saga heróica
desde o final dos anos 60 tinha efetivamente condições de fornecer os padrões de
identificação que pautariam as ações dos setores interessados no liberalismo
fiscal, ligados à pecuária e à indústria do charque. (ZILBERMAN, 1992, p. 65)

Já dentro da estética artística encontra-se na linguagem a demarcação dos pronomes em


segunda pessoa, tu e você; e o pronunciamento popoular dos textos. Encontram-se também as
particularidades do ambiente descrito de forma minuciosa. A apresentação das paisagens destaca
o cenário como elemento fundamental em que se apoia a vida dos habitantes desta terra.
Passando para a análise de um texto ficcional que valoriza o regional poderá se identificar
as caracteríticas citadas acima no discurso. A novela ilustrada é ŖUma História Farroupilha Ŗ de
Moacir Scliar. O autor mistura ficção e realidade, relata uma família alemã que emigra para o Sul
do Brasil, no início do século XIX. Eles instalam-se e trabalham cultivando a terra. Os filhos do
casal, Franz e Rudolph abandonam a lavoura para participar da luta dos revoltosos farroupilhas,
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chefiados por Bento Gonçalves e Giuseppe Garibaldi, na década de 1830, perseguindo os ideiais
de justiça e independencia.
Pode-se se perceber a partir daí duas características: o fator histórico como pano de fundo
e a ideologia presente na narrativa. A historicidade se exemplifica em: ŖEstavam contentes. Só
uma coisa os inqueietava... A guerra. A Guerra dos Farrapos. Tendo começado em 1835, o
conflito se estendia agora pelo Rio Grande. A família Schmidt ainda não tinha sentido seus
efeitos...ŗ (SCLIAR, 2008, p.21)
A ideologia política percebe-se sob dois olhares, o primeiro é sob forma crítica à política da
revolução e o segundo segue os ideais de igualdade e liberdade. Ideologia crítica:

- Eles Ŕ o Bento Gonçalvez, os outros Ŕ dizem que esta é uma guerra heróica do
povo rio-grandense contra o governo central. Mas de qual Rio Grande falam? O
Rio Grandedo estancieiro ou o Rio Grande do peão? O Rio Grande do rico ou o
Rio Grande do pobre?Conflitos sempre existiram em nossa terra,meu caro. E qual
a razão desses conflitos? Riqueza. Poder. (SCLIAR, 2008, p.54)

Ideais positivistas: ŖO encontro com Garibaldi foi uma revelação. De repente, tudo passou
a ter sentido. Não há mais nada bonito do que a gente acreditar numa coisa e lutar por ela.ŗ
(SCLIAR, 2008, p.62)
A rotina e as caracteríticas da vida do gaúcho percebem-se na descrição do gaúcho e do
cotidiano da estância:

E assim Franz Schmidt ficou morando na estância. De início, estranhou o jeito um


tanto brusco dos peões e o modo de vida deles. A comida, por exemplo. Era carne
de manhã, de tarde e de noite, sem falar do chimarrão. Mas acabou se
acostumando. Descobriu que os gaúcho eram francos, honestos; apesar de rudes,
sempre diziam o que pensavam, não mentiam. Aprendeu a fazer churrasco e
chimarão.

O ambiente descreve-se como pampa, com suas ondulações e coxilhas. E os personagens


utilizam-se dos pronomes em segunda pessoa: ŖTu não tens cara de quem sabe lidar com gado
xucroŗ (SCLIAR, 2008, p.32).
O autor, Moacir Scliar, romancista e novelista, situa o leitor no Brasil da primeira metade
do século XIX, mostrando o dia-a-dia daqueles que participavam dos conturbados acontecimentos
da história sulina. Pode-se concluir que a novela apresenta os elementos que a classificam como
narrativa regionalista Sul-Rio-Grandense. Ela apresenta a identidade gaúcha, demonstrando ao
leitor outra possibilidade de ler o mundo e de estabelecer um elo com uma realidade distinta à
sua.

2. METODOLOGIA
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Este trabalho resulta de uma pesquisa bibliográfica, pois o objeto de pesquisa são as
obras regionalistas e artigos de estudiosos da área, envolvendo discussões sobre os conceitos e
investigação a respeito do tema.
A partir dos conceitos do movimento literário regionalista, expõe-se neste artigo a dinâmica
que envolve a estética literária e o conteúdo desse gênero. Para isso, faz-se necessária uma
noção do contexto histórico da época e da complementação de conceitos como regionalismo e a
identidade do regional.
Como um exemplo de narrativa regionalista analisa-se a estética do regionalismo sul-rio-
grandense por meio da novela ŖUma História Farroupilhaŗ, de Moacyr Scliar, com o intuito de
apontar os elementos que relacionam essa literatura ao movimento literário regionalista. Os
resultados desse estudo serão apresentados subsequentemente.

3. RESULTADOS E DISCUSSÕES

Identificam-se, na narrativa analisada, características marcadamente regionalistas. Com


base nas leituras teóricas, considera-se que as propostas de estética e conteúdo são bem
variadas e atuais, comprovando que o regionalismo se aproxima da heterogeneidade, ao unir, por
meio de procedimentos discursivos, as diferenças, sensibilizando o leitor para outras formas de ler
o mundo. A leitura proporciona ao leitor a interpretação de sentidos múltiplos e o posicionamento
crítico nas leituras desenvolvidas.
Ao mesmo tempo em que limita o indivíduo em seu habitat, a literatura regional expande as
significações das narrativas, pois se identificam questões pertinentes e identificáveis a outras
culturas que não só a demarcada. Isso significa dizer que o regionalismo se torna um movimento
literário mais amplo, que aproxima o leitor da obra, direcionando-o para outro tempo e ambiente
que são distantes da sua realidade, muitas vezes.
Como o projeto está em andamento, ainda não se pode apresentar um fechamento da
pesquisa. Com os dados teóricos estudados até o momento e com a leitura crítica do texto
selecionado como corpus investigativo para esse trabalho, já é possível perceber a permanência
do estilo regionalista em narrativas contemporâneas, o que comprova a importância de tal modelo
literário.

REFERÊNCIAS

CHAVES, Flávio Loureiro & BATTISI, Elisa (organizadores). Cultura Regional: Língua, história,
literatura. Caxias do Sul Ŕ RS: Educs, 2004.

COUTINHO, Afrânio & COUTINHO, Eduardo de Faria. A literatura no Brasil. 3 ed. Rio de Janeiro:
José Olimpio, 1986.
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 103
03 a 05 de novembro de 2010

PIZZARRO, Ana (org.). América Latina: Palavra, Literatura e Cultura. Vol. 2. Campinas - SP:
Memorial, 1994.

ROSADO, Esther Pereira Silveira & CARVALHO, Renato Gomes de. Língua Portuguesa Ŕ Lívro I,
II, III e IV. São José dos Campos Ŕ SP: Poliedro, 2006.

SCLIAR, Moacir. Uma História Farroupilha. Porto Alegre Ŕ RS: L&PM, 2008.

SODRÉ, Nélson Werneck. História da Literatura Brasileira. 7 ed. São Paulo: DIFEL, 1982.

ZILBERMAN, Regina. Roteiro de uma literatura singular. Porto Alegre - RS: Ed. da Universidade/
UFRGS, 1992.
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QUESTÕES DE ALTERIDADE NO CONTO “A ROSA CARAMELA”, DE MIA COUTO

JAQUELINE CHASSOT32

Resumo
Este trabalho tem por pretensão levantar algumas considerações acerca da temática da alteridade e buscar
identificar aspectos a ela relacionados no conto ŖA Rosa Caramelaŗ, publicado no livro Cada homem é uma
raça (1998), do escritor moçambicano Mia Couto. Rosa Caramela é uma personagem singular, pois tem um
comportamento diferenciado, atitudes inabituais. Essas suas atitudes, como a adoração das estátuas,
provocam estranhamento nas pessoas do lugar em que vive e causam a sua exclusão. Com essa situação
apresentada no conto, temos, então um texto literário bastante fértil para se observar questões de
alteridade, relação com o Outro e construção de identidade.
Palavras-chave: alteridade; identidade; Rosa Caramela.

Abstract
This work has the intention to raise some considerations about the theme of otherness and seeks to identify
aspects related to it in the tale ŖA Rosa Caramelaŗ, published in the book Cada homem é uma raça (1998),
by Mozambican writer Mia Couto. Rosa Caramela is a unique character, because she has a strange
behavior, unusual attitudes. These attitudes, as the adoration of statues, cause estrangement to the people
who live in the same place that Rosa and cause her exclusion from the community. With these situations
present in the short story, we have so a quite fertile literary text to observe issues of otherness, relation with
the other and construction of identity.
Keywords: Identity; Alterity; Rosa Caramela.

INTRODUÇÃO

A obra Cada homem é uma raça (1998), do escritor moçambicano Mia Couto, é um
conjunto de contos, e um deles é “A Rosa Caramelaŗ. A protagonista dessa narrativa é Rosa
Caramela, nome atribuído pelo povo à moça, que é corcunda: ŖSe conhecia assim, corcunda-
marreca, desde meninaŗ (COUTO, 1998, p. 15). Devido a essa imperfeição física, ela é objeto de
riso e exclusão por parte da comunidade. Essa sua situação, que evidencia o preconceito com o
diferente, permite trazer à luz a discussão sobre a alteridade.
Para introduzir a temática da alteridade, fazemos uso aqui das palavras de Nadja
Hermann, que diz que

A alteridade é um outro, do qual depende a própria identidade. O outro e o eu


estão numa relação complexa em que se remetem reciprocicamente. Assim, o
outro não só está fora como dentro do indivíduo. [...] o outro só existe para que o
próprio sujeito possa se reconhecer. A alteridade seria, então, o meio necessário
(enquanto negatividade) do reconhecimento do próprio sujeito como consciência
de si. (HERMANN, 2006, p. 72 e 73)

Vejamos, então, como se apresenta a questão da alteridade no texto literário em questão.

32
Licenciada em Letras - UFSM, mestranda em Estudos Literários Ŕ UFSM, e-mail:
jaqchassot@yahoo.com.br
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1 A ALTERIDADE E O CONTO ŖA ROSA CARAMELAŗ

A alteridade pode ser também chamada outridade, pois só existe na relação interpessoal
de um Eu e um Outro. Já diz Eric Landowski que ela

só pode construir-se pela diferença, o sujeito tem necessidade de um ele Ŕ dos


Ŗoutrosŗ (eles) Ŕ para chegar à existência semiótica, [...] o que dá forma à minha
identidade não é só a maneira pela qual eu me defino [...] é também a maneira
pela qual objetivo a alteridade do outro atribuindo um conteúdo específico à
diferença que me separa dele. (LANDOWSKI, 2002, p. 4)

Na narrativa, a identidade de Rosa Caramela é construída pelos outros, que a colocam na


posição de alguém sem qualquer pertencimento social:

A corcunda era a mistura das raças todas, seu corpo cruzava os muitos
continentes. A família se retirara, mal que lhe entregava na vida. Desde então, o
recanto dela não tinha onde ser visto. Era um casebre feito de pedra espontânea,
sem cálculo nem aprumo. Nele a madeira não ascendera à tábua: restava tronco,
pura matéria. Sem cama nem mesa, a marreca a si não se atendia. Comia?
Ninguém nunca lhe viu um sustento. Mesmo os olhos lhe eram escassos, dessa
magreza de quererem, um dia, ser olhados, com esse redondo cansaço de terem
sonhado. (COUTO, 1998, p. 15)

Nesse parágrafo, vemos claramente o caráter de marginalidade de Rosa Caramela, pelas


expressões Ŗmistura das raçasŗ, Ŗmuitos continentesŗ, Ŗa família se retiraraŗ, que representam que
ela não se identificava por uma raça definida, não tinha vínculos de pátria e família, o que
contribuía para que ela fosse excluída do grupo. É inumana a condição de Rosa Caramela: ela é
fruto de uma miscigenação, foi abandonada pela família e mora num casebre onde a pobreza está
escancarada. Isso tudo se reflete também em seus traços físicos. Os seus olhos apresentam o
Ŗredondo cansaço de terem sonhadoŗ, mas o seu rosto é belo e contrasta com a feiúra de seu
corpo: ŖA cara dela era linda, apesar. Excluída do corpo, era até de acender desejos. Mas se às
arrecuas, lhe espreitassem inteira, logo se anulava tal lindezaŗ (COUTO, 1998, p. 15).
Bem, temos nesse trechos iniciais do conto uma grande descrição de Rosa Caramela, com
traços bastante singulares e que causam estranhamento. Mas para quem são singulares? Para
quem causam estranhamento? Ao levantarmos a discussão sobre a alteridade, essas questões
precisam ser respondidas. Isso porque a alteridade pressupõe um Eu (Um) e um Outro, e todos os
julgamentos, toda a diferenciação, partem de um ponto de vista, conforme teoriza Eric Landowski.
Segundo ele, Ŗo fato de o Outro ser Ŗdiferenteŗ não significa, necessariamente, que o seja no
absoluto. (LANDOWSKI, 2002, p. 14)
No caso de ŖA Rosa Caramelaŗ, o que se pode dizer é que não é apenas ao narrador que
os traços de Rosa Caramela e sua conduta causam estranhamento. É a todo um grupo social que
habita no mesmo espaço que a protagonista e o qual o narrador representa.
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Mas voltando a Rosa Caramela, já que as pessoas lhe rejeitavam a comunicação, ela se
ocupa com as estátuas, na esperança de poder estabelecer contato com elas. Esse
comportamento, estranho para a comunidade, é apresentado pelo narrador: ŖNos jardins, ela se
entretinha: falava com as estátuas. Das doenças que sofria, essa era a pior [...] palavrear com
estátuas, isso não, ninguém podia aceitar. [...] E ela, frente aos estatuados, cantava de rouca e
inumana voz: pedia-lhes que saíssem da pedra. Sobressonhavaŗ (COUTO, 1998, p.16). Essa
atitude de Rosa demonstra sua carência de afeto, agravada pelo abandono do noivo à beira do
altar, o qual não comparecera à cerimônia de casamento. Essa era a única história que se
contava sobre ela, e até se cogitava que nem noivo havia: ŖO que parece é que nenhum noivo não
havia. Ela tirara tudo aquilo de sua ilusão. Inventava-se noiva, Rosita-namorada, Rosa-
matrimoniada.ŗ (COUTO, 1998, p. 17) Assim, pensou-se que a história fosse pura imaginação da
corcunda. Mas para ela, o jovem acabara com seu sonho de casamento: ŖToda a vida ela
sonhara a festa. Sonho de brilhos, cortejo e convidados. Só aquele momento era seu, ela rainha,
linda de espalhar invejas. Com o longo vestido branco, o véu corrigindo as costas. Lá fora, as mil
buzinasŗ (COUTO, 1998, p. 16 e 17). Abandonada, ninguém consolou Rosa Caramela, ela Ŗficou-
se no consolo do degrau, a pedra sustentando o seu universal desencantoŗ (COUTO, 1998, p. 17).
Segundo o narrador, essa desilusão amorosa da corcunda pode ter originado sua relação com as
pedras e a sua loucura, o que a fez ser internada em um hospital.
Tudo isso evidencia o apagamento da alteridade, a exclusão máxima do Outro, a ponto de
ele ter que buscar num elemento não-humano a atenção, o afeto, o diálogo que não consegue
com os homens apenas porque para esses é diferente, anormal. É a desconsideração máxima,
que é notada também quando Rosa é internada no hospital e esquecida: ŖRosa não tinha visitas,
nunca recebeu remédio de alguma companhiaŗ. E assim, a relação que ela já tinha com as
estátuas, colocada no início do conto, tornou-se ainda mais íntima, pois ŖFez-se irmã das pedras,
de tanto nelas se encostar. Paredes, chão, tecto: só a pedra lhe dava tamanho. Rosa se pousava,
com a leveza dos apaixonados, sobre os frios soalhos. A pedra, sua gêmeaŗ (COUTO, 1998, p.
17). A relação com as pedras não se interrompe com a saída de Rosa do hospital: ŖQuando teve
alta, a corcunda saiu à procura de sua alma minéria. Foi então que se enamorou das estátuas,
solitárias e compenetradas. Vestia-lhes com ternura e respeito. Dava-lhes de beber, acudia-lhes
nos dias de chuva, nos tempos de frio.ŗ (COUTO, 1998, p. 17) E acabou por se apaixonar por uma
das estátuas:

A estátua dela, a preferida, era a do pequeno jardim, frente à nossa casa. Era
monumento de um colonial, nem o nome restava legível. Rosa desperdiçava as
horas na contemplação do busto. Amor sem correspondência: o estatuado
permanecia sempre distante, sem dignar atenção à corcovada. (COUTO, 1998, p.
17 e 18)

O fato de Rosa Caramela venerar a estátua de um colonizador provoca sua prisão, pois ela
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não permite que se derrube essa estátua, que era um monumento considerado Ŗum pé no
passado rasteirando o presenteŗ (p. 20). Essa atitude é interpretada pelos governantes como um
desacato, tanto que ŖO chefe das milícias atribuiu a sentença: saudosismo do passado. A loucura
da corcunda escondia outras, políticas razõesŗ (COUTO, 1998, p. 20).
Nessa passagem do conto, em que é narrado o aprisionamento de Rosa Caramela,
também pode ser levantada uma questão acerca da alteridade, ou melhor, da desconsideração da
alteridade. Desconsideração pois os governantes nem questionam a moça para saber se ela tem
alguma justificativa para sua atitude, simplesmente a condenam. Por ela ser diferente, na visão
deles, nem tem direito à palavra, ela é simplesmente o Outro que não interessa ao Nós, grupo
dominante.
Mas será que Rosa Caramela permanece passiva por todo o conto? Até o ponto em que
estamos na narrativa, ela ainda não reagiu, mostrando-se como o Urso da caracterização que
Landowski faz dos tipos humanos. O Urso seria, para Landowski aquele sujeito que leva sua vida
Ŗsem se preocupar a mínima com o olhar, indiferente ou curioso, aprovador ou desaprovador, de
outremŗ (LANDOWSKI, 2002, p. 43).
No entanto, Rosa reage. Durante o enterro do enfermeiro, Rosa Caramela, enfim,
manifesta sua revolta com as pessoas

Olhando os presentes, ela ergueu a voz, parecia maior que uma criatura:
- E agora: posso gostar?
Os presentes recuaram, só se escutava a voz da poeira.
- Hein? Desse morto posso gostar! Já não é dos tempos. Ou deste também sou
proibida? (COUTO, 1998, p. 22)

Quando Rosa interroga as pessoas se pode gostar do morto, demonstra sua indignação
por ter sido proibida de zelar pelas estátuas. É aqui que a identidade de Rosa Caramela se revela
fugazmente. Isso se pudermos falar em identidade. Levando em consideração a afirmativa de
Denys Couche, de queŖ a identidade é uma construção que se elabora em uma relação que opõe
um grupo aos outros grupos com os quais se está em contatoŗ (COUCHE, 1998, p. 182),
pensamos que, no caso de Rosa Caramela, parece que nem é ela que constrói sua identidade,
isso se acreditamos que ela tem uma identidade, uma vez que sabemos dela apenas aquilo que o
narrador apresenta. Mas considerando que a protagonista tenha uma identidade, essa identidade
parece construída somente pelo grupo que a cerca, e não por ela mesma. Além do que, Ŗnão há
identidade em si, nem mesmo unicamente para si. A identidade existe sempre na relação a uma
outraŗ (COUCHE, 1998, p. 183). Portanto, firmando-se no fato de que Rosa Caramela não tem
relações pessoais, poderia se dizer, talvez, que ela é uma personagem sem identidade.
Na parte final do conto, o narrador-observador narra uma noite de insônia, quando ele vai
ao jardim e vê a estátua arrancada. Vê também Rosa Caramela se dirigir à casa dele (narrador) e
seu pai a consolar. Num desfecho inesperado, o pai do narrador se revela Juca, noivo de
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Caramela, e a convida para irem embora. Fica esclarecido, então, porque Rosa Caramela venera
a estátua que está no jardim da casa do narrador. Ela está substituindo o amor por Juca pelo
amor à estátua que ele tem em seu jardim.
Ao chegarmos ao final do conto, fica a pergunta por que Juca abandonou Rosa Caramela?
Podemos pensar que ele a abandonou à beira do altar para não assumir em público a sua relação
com ela. Afinal, o que pensariam os outros moradores se ele se casasse com a moça excêntrica
que é Rosa Caramela? E aqui entra a questão do preconceito, da discriminação, profundamente
relacionados à alteridade. A discriminação é um grande problema e difícil de resolver. O caminho
apontado por Álvaro Márquez-Fernández é começar a pensar a alteridade:

sinônimo de aprender a pensar desde uma diversidad personal y coletiva, cultural


e histórica, em donde la realidad está bien abierta para la convivencia. [...]
Aprender a pensar desde la cultura del outro nos permite contextualizar al outro
desde um diálogo que le reconozca su autenticidad y originalidad. (MÁRQUEZ-
FERNÁNDEZ , 2006, p. 327; 328)

CONCLUSÃO

As considerações levantadas acerca da protagonista desse conto, Rosa Caramela,


apresentam a exclusão social de que essa personagem é vítima devido à singularidade que lhe é
atribuída pelos outros que a cercam. Rosa Caramela é considerada diferente porque não tem uma
raça, uma pátria nem uma família; por causa de seus traços físicos, do lugar em que vive, de seu
comportamento em relação à comunidade humana. Por esses motivos, ela é excluída do grupo a
que pertenceria. Rosa Caramela é uma personagem colocada à margem de qualquer
pertencimento social. Apesar de ela compensar sua exclusão pela alternativa do sonho e pelo
estreitamento de sua relação com o mundo natural, representado pelas estátuas, esse conto
mostra a desconsideração da alteridade. Mostra a dificuldade de que a grande maioria dos seres
humanos tem de relacionar com quem lhe é diferente, de conviver com pessoas de pensamento
diferente, de atitudes diferentes ou com qualquer tipo de diferença.
Em ŖA Rosa Caramelaŗ, evidencia-se o ensimesmamento do sujeito, o egoísmo, a
desconsideração do Outro. E quão comum é querer ser o Eu hoje em dia e não o Outro. Todo
mundo quer pertencer ao grupo do Nós, o ponto de referência. Mas, como diz Landowski, o grupo
que se identifica como o Nós, isso é, o dominador, não pode se considerar o único detentor do
direito de ser plenamente ele mesmo. As pessoas esquecem-se que, apesar de Ŗ[...] a diferença
ser um fato de natureza, um fato de sociedade: é a diversidade das heranças culturais, dos modos
de socialização, das condições econômicas que determina a diversidade dos tipos humanosŗ
(LANDOWSKI, 2002, p. 14), as diferenças não justificam atitudes discriminatórias ou
preconceituosas. Afinal, ŖNum mundo de Sujeitos, todo mundo, por definição, é Sujeito do mesmo
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jeito e no mesmo grau, qualquer que seja a natureza das diferenças que singularizam uns com
relação aos outrosŗ. (LANDOWSKI, 2002, p. 24)

REFERÊNCIAS

COUCHE, Denys. Cultura e Identidade. In: A Noção de Cultura nas Ciências Sociais. São Paulo:
EDUSC, 1998.

COUTO, Mia. Cada homem é uma raça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

HERMANN, Nadja. Ética, Estética e Alteridade. In: Cultura e alteridade: confluências. Org.
Amarildo Trevisan, Elisete Tomazetti. Ijuí: Ed. Unijuí, 2006.

LANDOWSKI, Eric. Presenças do outro. Ensaios de sociossemiótica. Tradução Mary Amazonas


de Barros. São Paulo: Perspectiva, 2002.

MÁRQUEZ-FERNÁNDEZ, Álvaro B. De La Filosofia de La Alteridad a La Ética de La Convivencia


Ciudadana. In: Cultura e alteridade: confluências. Org. Amarildo Trevisan, Elisete Tomazetti. Ijuí:
Ed. Unijuí, 2006.
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A REDENÇÃO DE MRS. DALLOWAY E A ATUALIZAÇÃO DO PENSAMENTO


WOOLFIANO33

LENINE RIBAS MAIA34


LAWRENCE FLORES PEREIRA35

Resumo
Este trabalho busca investigar aspectos conteudísticos da obra Mrs. Dalloway (1925), de Virginia Woolf, no
intento de verificar a matéria pela qual a personagem central, Clarissa Dalloway, experimenta uma
sensação de redenção, de convalescença, encontrada na própria morte. Como a própria morte da
personagem Septimus, que compõe o outro núcleo da obra, é responsável por essa redenção, este trabalho
também busca compreender as possíveis razões que fizeram Septimus suicidar-se. Do mesmo modo,
busca-se concluir este estudo, esboçando a matéria que constitui o pensamento woolfiano, sob a re-
atualização encontrada na obra The Hours (1998), de Michael Cunningham.
Palavras-chave: romance modernista, morte, convalescença, Virginia Woolf, Michael Cunningham

Abstract
This work aims to investigate aspects relating to the content of Mrs. Dalloway (1925) book, written by Virginia
Woolf, in an attempt to verify the matter in which the main character, Clarissa Dalloway, experiences
redemptionřs sensation, found in the death itself. As Septimusř death, which composes the other core of the
work, is responsible for this redemption, this work also aims to comprehend the possible reasons that made
Septimus kill himself. Likewise, it seeks to conclude this work, drafting the matter that constitutes Woolfřs
thinking, under an update found in The Hours’ book, written by Michael Cunningham.
Keywords: modernist novel, death, convalescence, Virginia Woolf, Michael Cunningham.

1 A MORTE DO POETA COMO MEIO DE REDENÇÃO

Já na primeira frase do romance Mrs. Dalloway, Mrs. Dalloway said she would buy the
36
flowers herself (WOOLF, 1994), deparamo-nos com uma atmosfera aparentemente suave,
permeada por flores e, em seguida, por rememorações dos tempos em que Clarissa Dalloway, a
personagem central, vivera em Bourton. A partir disso, há uma série de descrições acerca da
agitada capital inglesa dos anos 20, com aquele frenesi de carros, ônibus e aviões.
Naquela bela manhã, uma manhã de junho, Clarissa Dalloway passeia pela cidade e, ao
atravessar a rua, Scove Purvis a vê. Auerbach (2009) aponta que Ŗo essencial para o processo e
para o estilo de Virginia Woolf, é que não se trata apenas de um sujeito, cujas impressões
conscientes são reproduzidas, mas de muitos sujeitos, amiúde cambiantes...ŗ (AUERBACH,
2009). Nesse momento, pois, é por meio das impressões de Purvis que conhecemos mais das
características físicas de Clarissa, por exemplo. E é dessa maneira que o narrador nos dá a
conhecer todas as personagens: por meio do fluxo dos vários níveis de consciência delas.
Clarissa será a anfitriã de uma recepção que dará em sua casa à noite. Por isso, precisara
33
Trabalho financiado pelo Fundo de Incentivo à Pesquisa (FIPE/SÊNIOR, 2010).
34
Acadêmico do curso de Letras Ŕ Português da UFSM. Bolsista FIPE, 2010. <lenineletras@gmail.com>.
35
Prof. Dr. Orientador, vinculado ao Departamento de Letras Estrangeiras Modernas, UFSM.
36
(Tradução do autor) Mrs. Dalloway disse que ela mesma compraria as flores.
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sair para comprar as flores com as quais adornará o local da festa. Após alguns minutos desde
que chegara à floricultura, Clarissa ouve um estampido de algum carro na rua, resultado de
alguma batida. Essa mesma batida de carro, também observada por Septimus e sua esposa, no
outro lado da rua, serve de andaime para que o foco narrativo passe de Clarissa para Septimus:
as duas matrizes centrais da história.
Septimus, antes mesmo de ser um ex-combatente de guerra, era um poeta, um visionário.
Casara com Rezia ainda na Itália e estava em Londres em busca de tratamento médico, uma vez
sofria de distúrbios psicológicos (dentre eles, alucinações) e havia tentado se matar. No entanto,
por meio do fluxo de consciência (stream of consciousness) e da constante acessibilidade aos
seus pensamentos, por parte do narrador, podemos apontar que a doença de Septimus não se
restringe apenas ao corpo: a sua doença também pertence à alma.
Em Bourton, Clarissa fizera dois grandes amigos: Peter Walsh e Sally Seton. Peter fora
apaixonado por ela. E essa relação interrompida, em decorrência de Clarissa haver casado com
Richard, também serve como estímulo de muitas das sensações experimentadas por ela. No
entanto, existe, a princípio, uma aparente (des) ordem em seus sentimentos, pois também se
sentia atraída por Sally e ambas já haviam se beijado: Ŗthen came the most exquisite moment of
her whole life passing a stone urn with flowers in it. Sally stopped; picked a flower; kissed her on
the lips. The whole world might have been turned upside down 37ŗ (WOOLF, 1994, p.158).
Em sua célebre conferência, A room of one’s own38, ministrada para a Sociedade de Artes,
e publicada em 1929, Virginia Woolf aponta a fatalidade de se pensar nos sexos isoladamente. É
preciso, portanto, ser Ŗmasculinamente feminina e femininamente masculinoŗ. Orlando, a
biography39, publicado em 1928, trata, em linhas gerais, de um caso de androginia, no qual a
personagem Orlando vive como um homem, no primeiro momento; no segundo, torna-se uma
mulher, apaixonando-se, em cada fase, por pessoas do sexo oposto.
Portanto, pensar na possibilidade de relacionamentos com ambos os sexos é algo muito
mais intrínseco ao pensamento de Virginia Woolf, no sentido de ser o percurso natural da
humanidade - ou da humanidade idealizada pela sua própria ética - do que propriamente matéria
de embaralhamento ou desordem. Daí as constantes críticas à moral puritana da Era Vitoriana. Na
verdade, Virginia estimava sim os hábitos vitorianos, sobretudo os relacionados às boas maneiras
de comportamento social, herdados principalmente de sua mãe e avó, como afirma Vanessa
Curtis. No entanto, a preocupação da escritora concerne ao que tais comportamentos poderiam
esconder: certas peculiaridades que não convinham. (CURTIS, 2005)
Peter Walsh vivera na Índia nos últimos cinco anos, porém havia retornado. Enquanto

37
(Tradução do autor) Então veio o momento mais delicado de toda a sua vida, quando passaram por uma
urna de pedra com flores. Sally parou; pegou uma flor; beijou-a em seus lábios. O mundo inteiro poderia ter
ruído.
38
No Brasil, Um teto todo seu. Editado pela Nova Fronteira.
39
No Brasil, Orlando, uma biografia. Editado pela Círculo do Livro.
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Clarissa cosia o vestido a ser usado à noite na recepção, Peter fizera-lhe uma visita
inesperadamente. Nesse momento, as ações objetivas, preconizadas por Auerbach, são
gradativamente substituídas pelos vários níveis de pensamentos das duas personagens. Assim,
temos acesso, por meio dos respectivos pensamentos, não apenas às características físicas de
ambos, mas também às sensações e sentimentos experimentados por eles naquele momento.
Enquanto senta, Peter reflete sobre a construção de nós mesmos. Esse pensamento, na
verdade, também esteve na mente de Clarissa, mas referindo-se a ela própria, quando supunha
que não deveria mostrar seus defeitos, vaidades, tampouco inveja às outras pessoas e, claro, a
Peter. À medida que a história se desenrola, Clarissa também nota o frenético abrir e fechar do
canivete de Peter em momentos de excitação, ou nervosismo.
Após a tensa atmosfera do encontro deles, gerada por suas sensações e experiências
passadas, Peter resolve sair em direção ao parque. Lá, ele visualiza um casal atônito. O casal é
Septimus e Rezia, que também estão no parque. E, enquanto o foco narrativo recai sobre Rezia,
para que conheçamos os sentimentos lamuriantes pelos quais ela sofre, em decorrência de seu
marido não ser mais o mesmo, Septimus começa a ter alucinações: vê a cabeça de Evans atrás
das árvores. Aqui, as duas doenças (a física e a da alma) começam a manifestar-se
concomitantemente.
Evans fora seu chefe, morto em guerra. Apesar de o ver, são inúmeros e em diversos
níveis os pensamentos que perpassam por sua mente nesse exato instante. Na verdade,
Septimus, cuja formação intelectual é constituída eminentemente a partir de Shakespeare, Milton,
reflete simplesmente sobre a vida. Ele, que conhecia a crueldade do sentido do mundo, parecia
saber que, para determinadas questões, mesmo a cientificidade era ineficaz: médicos não eram
suficientes para julgar a sanidade ou a insanidade das pessoas.
Septimus, ao olhar as árvores, percebe que entre elas não há crimes, assim como também
não há entre os animais. A relação entre eles Ŕ as árvores e os animais - é, então, genuinamente
amorosa, cíclica, perfeita. E, se a beleza está por toda a parte na natureza, principalmente em
relação à simetria dela e ao seu perfeito funcionamento, o problema, para ele, parece estar na
incompatibilidade desta natureza perfeita em relação à perversidade e aos maus sentimentos Ŕ
evidentes, para ele, por meio da guerra Ŕ dos próprios seres humanos. Incompatibilidade
suficiente para que se abdique da vida e rume à morte.
Depois do armistício, Septimus não sentia absolutamente mais nada: nem sabor, nem
amor. Para ele, a infelicidade constitui, como aponta Schopenhauer (1988), a regra em geral, na
qual a dor é infinita. Por isso é que não desejava ter filhos: para que não perpetuasse o sofrimento
humano e aquela sua doença de alma.
Essa doença de alma está sim ligada àquele esvaziamento de experiência que Walter
Benjamin havia proposto: Ŗno final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos
do campo de batalha não mais ricos, e sim mais pobres (em experiência)...ŗ (BENJAMIN). Isso
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 113
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justifica o fato de que a única coisa a que Septimus ainda conseguia fazer era ler obstinadamente:
ele buscava nos livros a própria experiência.
Disseminadas pelo romance, existem várias relações de disputa entre as personagens,
também daí dizer que Virginia leva a humanidade, por meio de suas personagens, ao extremo de
si. No momento em que Richard soubera da vinda de Peter, sentindo-se ameaçado pelo primeiro
amor de Clarissa, decide comprar-lhe flores Ŕ como há muito não fazia. Da mesma maneira ocorre
a disputa entre Clarissa e Doris Kilman sobre Elizabeth.
Ambas, Clarissa e Doris, odeiam-se mutuamente. No entanto, dentre tantos elemento
divergentes, a relação para com Deus parece ser a mais sobrepujante. Clarissa, extremamente
cética, acredita que o bem deve ser feito pelo próprio bem, sem apoio em matérias que
extrapolem os limites mundanos. Doris, por outro lado, mescla seu academicismo e sua crença no
Deus cristão para conseguir suprimir sua amargura frente à vida e ao seu ódio em relação à
Clarissa.
Em seguida, Septimus suicida-se, atirando-se do prédio em que estava. Na verdade, de
acordo com ele, a única maneira possível para significar o mundo era algo a ser encontrado no
próprio amor, no amor universal: este que não sentia, nem mesmo por Lucrezia.
Sally Seton chegara à festa e sentara-se junto de Peter Walsh, que decidira ir. No caminho
para a festa, Peter sentira-se embriagado por ter de enfrentar toda aquela situação novamente,
pois deparar-se com Clarissa era sempre algo difícil. Nesse momento, abria e fechava a lâmina de
seu canivete insistentemente: a maneira pela qual expressava seu nervosismo e sua insegurança.
William Bradshaw, médico que tratara Septimus, havia chegado à festa também. Dentre
cumprimentos para com os anfitriões, Clarissa ouve-o dizer que um paciente seu havia se matado
há algumas horas. Essa morte provoca uma série de sensações em Clarissa, incitando-a inclusive
a experimentar certa convalescença.
Já que Septimus era um visionário, um poeta, só a morte dele poderia provocar essa
convalescença em Clarissa. Na verdade, trata-se de o pensamento da própria Virginia Woolf, uma
vez que Clarissa não sabia das habilidades intelectuais que Septimus possuía. Mas é preciso de
alguém que entenda a incompatibilidade do ser humano para com a vida, alguém que
compreenda as questões da alma e do sofrimento contidos nela para que a outra face - nesse
caso, o mundanismo de Clarissa Ŕ seja desfeito.
É também por meio do próprio caos que se pode alcançar o equilíbrio: este que Clarissa
conquistara. Essa inferência está em muitas das obras woolfianas. Em Between the Acts40, por
exemplo, a plateia, em sua maioria mundana, que assiste à peça teatral, é representada por meio
de espelhos que a reflete. Essa confrontação consigo mesmo causa um profundo mal-estar e,
consequentemente, um sentimento de redenção/reflexão: o que Clarissa sentia agora, mas sob
outra forma.
40
No Brasil, Entre os Atos.
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 114
03 a 05 de novembro de 2010

Assim, a morte de uma nobre pessoa funciona como uma forma de suprimir todos aqueles
sentimentos, ou parte deles, anteriormente elencados. A morte de Septimus abala profundamente
Clarissa, que se retira alguns instantes para refletir sobre essas questões: as de vida. Se antes ela
sentia-se exultante por estar deslumbrante em sua própria festa e por ser invejada, agora ela
apenas estava ali, como sentiram Peter e Sally.
Outro aspecto que vale destacar é o tempo. A história desenrola-se em pouco mais de
meio dia. Linearmente, ouve-se o ressoar do Big Ben, marcando pesadamente as horas, as horas
que pressionam. No entanto, apesar dessa marcação cronológica, há uma distorção da função
desse tempo na história. E o que o determina são, na verdade, as experiências vividas no interior
das personagens.
Dessa forma, as badaladas do relógio aqui não marcam apenas o correr das horas de um
dia, mas sim o arrastar de um tempo interior, no qual as horas são muito maiores e carregam o
peso de uma vida inteira. Como também aponta Schopenhauer, Ŗ(o tempo) contribui para o
tormento de nossa existência, e não pouco, o impelir do tempo, impedindo-nos de tomar fôlego,
perseguindo a todos...ŗ (SHOPENAHUER, 1988).

2 A RESPOSTA DE CUNNINGHAM COMO CONCLUSÃO

She hurries from the house, wearing a coat too heavy for the weather. It is 1941. Another
41
war has begun (CUNNINGHAM, 2002). Este fragmento é o prólogo da obra The Hours, de
Michael Cunningham. Nele, diferentemente das flores woolfianas, deparamo-nos com uma
atmosfera um tanto embaraçosa: seja pelo casaco demasiado pesado para a estação, seja pela
segunda grande guerra haver começado. Trata-se, pois, de Virginia Woolf feita personagem no
romance e, a partir de uma minuciosa e pictórica descrição, a cena na qual ela comete suicídio.
Ainda no prólogo, é factível perceber os sentimentos e os pensamentos que transitavam pela
autora.
Narrado em terceira pessoa, o romance revela a tríade composta por Mrs. Woolf, Mrs.
Dalloway e Mrs. Brown: três mulheres configurando três núcleos distintos espaço-temporalmente
entre si. Todas elas, no entanto, com estreitas relações para com a obra Mrs. Dalloway, escrita
entre 22 e 24, por Virginia Woolf: uma a escreve, a outra a vive e a última a lê.
Clarissa sai em busca de flores, uma vez que também dará uma recepção em sua casa à
noite, no entanto, para Richard, outro poeta, outro visionário. Virginia prepara-se para escrever
Mrs Dalloway, sob os rígidos cuidados de Leonard em relação ao tratamento médico e à
alimentação.
Na verdade, Virginia Woolf sentia-se incomodada ao comer. Vanessa Curtis aponta que

41
(Tradução do autor) Ela sai apressada de casa, vestindo um casaco muito pesado para a estação. É
1941. Outra guerra começou.
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 115
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não comer era uma das maneiras utilizadas pela escritora para receber toda a atenção (CURTIS,
2005). E, Michael Cunningham, sendo um profundo conhecedor não apenas da obra woolfiana,
mas também de documentos biográficos sobre ela, bem o sabia, representando-a de tal modo que
a delimitação entre a ficção e a biografia fica marcadamente comprometida e, talvez, de todo
impossível, no romance.
Cunningham, neste sentido reconstrói Mrs Dalloway, mas mostrando, agora, uma nova
realidade: Laura funciona como a ruptura com o estilo moderno (social, estética e culturalmente).
Seu insistente processo de leitura, que permeia toda a obra, direciona suas próprias ações (da
leitora/personagem) Ŕ e é nela que se instaura a autorreflexividade da metanarrativa de
Cunnigham.
Mas dentre tantos traços plurais, o desfecho as distancia. Se Clarissa Dalloway encontra
na própria festa Ŕ tanto que o comunicado da morte de Septimus ocorre durante esta recepção Ŕ o
motivo de seu encontro consigo mesma e da referida convalescença, para Clarissa Vaughan, a
festa em si é substituída pela voz de Laura e sua explicação sobre a escolha pela vida.
Cunningham re-atualiza muitos dos temas da obra woolfiana. Dentre eles, cabe levantar a
translação espacial das personagens: a Clarissa de Cunnigham vive em Nova Iorque, a de Woolf
em Londres. A realocação aqui retoma aquele passado - juntamente de suas agruras -,
restabelecendo-o.
E é nessa conversa com o passado, na re-escritura e na consequente atualização dele,
que reside a originalidade de Cunnigham. Também na criação de uma nova estrutura estética,
que busca, por meio da vastidão das ferramentas por ele empregadas, reescrever não apenas
uma obra, mas re-atualizar um dos mais importantes e profícuos pensamentos (éticos e estéticos)
do século XX: o de Virginia Woolf.

REFERÊNCIAS

AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo:


Perspectiva, 2009.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense,
1985.

CUNNINGHAM, Michael. The Hours. New York: Picador, 2002.

CURTIS, Vanessa. As Mulheres de Virginia Woolf. São Paulo: A Girafa, 2005.

LEHMANN, John. Virginia Woolf: vidas literárias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989

SCHOPENHAUER, Arthur. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

WOOLF, Virginia. Mrs Dalloway. London: Vintage, 1992.


IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 116
03 a 05 de novembro de 2010

WOOLF, Virginia. Orlando. London: Wordsworth Classics, 2003.

WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.

WOOLF, Virginia. Between the acts. London: Penguin Classic, 2000.


IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 117
03 a 05 de novembro de 2010

A ESCOLA DE KONSTANZ E A VALORIZAÇÃO DO LEITOR

LUCIÉLE BERNARDI DE SOUZA42


LUCIANE BERNARDI DE SOUZA43
SONIA INEZ GONÇALVES FERNANDEZ44

Resumo
Através de uma leitura histórica das teorias e críticas literárias, podemos constatar, que as mesmas, sempre
enfatizaram o autor ou a obra como elementos prioritários para uma análise do fenômeno literário. A partir
da segunda metade do século XX, algumas correntes de crítica literária começaram a destacar a figura do
leitor, até o momento relegada. Uma das principais representantes desta nova forma de interpretação
literária foi a Escola de Kontanz, surgida na Alemanha com o intuito de proporcionar teorias para uma
interação diferenciada entre o texto e o leitor, em que o último torna-se parte essencial do processo de
constituição de sentido da obra. Com base em textos teóricos referentes à Escola em questão, podemos ao
longo do estudo, constatar que o surgimento da estética da recepção na Escola de Kontanz trouxe para a
sociologia da literatura um redirecionamento na importância de cada um dos elementos da tríade: autor-
obra-leitor, bem como para um novo modelo de interpretação e busca de sentido da obra literária.
Palavras-chave: Interpretação. Leitor. Konstanz. História

Abstract
Through a historical reading of literary theory and criticism, we note that they always emphasized the author
or the work, as priority targets for an analysis of the literary phenomenon. From the second half of the
twentieth century, some trends in literary criticism began to emphasize the figure of the reader, relegated.
One of the main representatives of this new form of literary interpretation was Kontanz School, which
emerged in Germany in order to provide a differentiated interaction between text and reader, where the latter
becomes an essential part of the constitution of meaning in work. Based on theoretical texts relating to the
school in question, we can throughout the study, noted that the emergence of the Aesthetics of Reception in
the School of Kontanz brought to redirect a sociology of literature on the importance of each element of the
triad of author-work-reader as well as a new type of search for meaning and interpretation of literary work.
Keywords: Interpretation. Reader. Konstanz. History.

INTRODUÇÃO

Este trabalho foi elaborado no intuito de apresentar a relevância que a Escola de Konstanz
teve, ao retirar o leitor da situação de inferioridade em que se encontrava e colocá-lo em uma
posição de agente ativo na construção do sentido da obra e fazendo-o ir além da simples função
de decifrar o código literário.
Nesta escola, o leitor obteve um espaço legítimo como participante na edificação do
sentido de uma obra, esta, sendo encarada agora, não apenas como um sistema fechado, rígido e
auto-suficiente, em que o sentido depende apenas do autor. Devido a tais inovações e conquistas
acerca da estética literária, a Escola de Konstanz situa-se como uma escola de fundamental

42
Acadêmica do Curso de Letras Português e Ciências Sociais Bacharelado da Universidade Federal de
Santa Maria (UFSM)-RS/ Bolsista PROLICEN.
43
Acadêmica do Curso de Letras Português e Letras Espanhol da Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM)-RS/ Bolsista PROLICEN.
44
Professora Adjunta I do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade Federal de
Santa Maria (UFSM)-RS.
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03 a 05 de novembro de 2010

relevância para o repensar da teoria e prática literária nos dias de hoje.


Surgida na Alemanha da década de 60, esta Escola trouxe uma nova visão em torno do
fato literário, fomentando questionamentos primários como a da própria estética, que por muito
tempo fora vista meramente como uma apresentação da arte (obras e autores). Esta dimensão
histórica, trazia em relação às três funções vitais da arte (produção, recepção e comunicação,
direcionadas pelo prazer estético) o lado produtivo como o mais importante, em detrimento do
receptivo e comunicativo, transmitindo desse modo, o produto já objetivado.
Anterior ao surgimento da Escola em questão, a literatura e as críticas literárias voltavam-
se essencialmente para a figura do autor ou da obra literária, sendo estas responsáveis pela
construção primordial do sentido Ŗverdadeiroŗ da mesma. Tal contexto de apreciação da obra,
expressava a manutenção de práticas literárias que iam ao encontro dos valores sociais
predominantemente conservadores desta época específica. Este cenário que provocava a
anulação da tentativa de subversão de muitos valores, desconsiderava o fato de que o autor,
segundo a crítica, poderia pertencer a uma escola ou formalista, ou estruturalista, ou ainda a
escolas vinculadas a correntes analíticas mais especificas (psicológica, sociológica, econômica), o
que acabava culminando em uma visão muitas vezes restrita da obra, pelo fato de nenhuma delas
considerar a importância do leitor no processo de construção do sentido da obra.

1 REVISÃO DA LITERATURA

A literatura, como uma forma de representação aristotélica da realidade, é indispensável a


todos os seres humanos, na mediada em que atua no imaginário de todo o ser, impulsionando e
provocando reflexões, emoções, sensações e conhecimentos a respeito do mundo e da própria
humanidade. Antônio Candido (1970), a respeito da arte literária, afirma que ela traz Ŗ(...)
livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido
profundo, porque faz viverŗ e que, em razão disso ŖNão há povo e não há homem que possa viver
sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contacto com alguma espécie de fabulação.ŗ (p.
174). Portanto, segundo o critico literário, a arte é intrínseca e necessária a todos os homens, para
uma humanização no sentido antropológico.
Devido à importância da literatura e a sua relação com o leitor, é coerente para esta
discussão o enfoque em uma escola teórica que não exclua o leitor do processo de construção do
conhecimento. Deste modo, a Escola de Konstanz apresenta-se como uma escola coerente pelo
fato de voltar-se para a importância da inclusão do leitor como participante ativo em diversas
épocas da história com relação ao processo artístico.
No decorrer da década de 60, há o surgimento desta Escola, e simultaneamente da teoria
da experiência estética, que experimentou uma boa acolhida. Jauss (1979) em Estética da
recepção: colocações gerais, nos traz algumas características a respeito do contexto histórico da
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Alemanha nesta década:

Nos últimos dez anos, mudou sensivelmente tanto a situação científica e


universitária, quanto a função social da arte e, deste modo, a experiência estética
de nossa atualidade. Esta foi a década da reforma universitária, em cujo processo
se incluíram, particularmente, os professores de Kontanz; reforma, cuja cilada se
fez sentir em três planos: a democratização da instituição universitária, a
transformação da educação histórico-humanista numa formação profissional e a
revisão da auto-imagem da teoria da ciência presente na concepção tradicional
da universidade alemã. (1979, p.46)

A Escola de Konstanz, que tem em Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser seus grandes
expoentes, apresentava, de acordo com Jauss, o intuito de Ŗ(...) renovar os estudos literários e
superar os empasses da história positivista, os impasses da interpretação, que apenas servia a si
mesma ou a uma metafísica da Ŗécritureŗ, e os impasses da literatura comparada, que tomava a
comparação como um fim em siŗ (1979, p.47).
De acordo com Regina Zilberman em sua obra Estética da Recepção e História da
Literatura (1989), Jauss denuncia a Ŗfossilização da história da literatura, cuja metodologia estava
presa a padrões herdados do idealismo ou do positivismo do século XIXŗ (1989, p.9). Para o
teórico alemão, história e literatura estão em um constante relacionamento, sendo que a última
deveria ser analisada em contextos históricos diferenciados do seu momento de produção
(correspondente a um contexto histórico específico), pois, isso seria limitá-la de suas amplas e
variadas possibilidades de interpretação e construção de sentido. Ou seja, a interpretação
literária, assim como a história, não deve ser vista como algo linear, mas sim como um produto
que é afetado diretamente pelos leitores que re-fazem sua significação em épocas históricas
diferentes, desmistificando a obra de arte em um molde fechado.
O leitor, como principal elemento para reflexão proposta por esta Escola, é um elemento
de fundamental importância no processo da experiência estética, sendo que esta, segundo Regina
Zilberman é:

ŖFruto do relacionamento da obra e o leitor, é o aspecto fundamental de uma


teoria fundada na recepção. Compõe-se de três etapas, inter-relacionadas: a
poíesis, pois o recebedor participa da produção do texto; a aisthesis, quando este
alarga o conhecimento que o destinatário tem do mundo; e a katharsis, durante a
qual, ocorre o processo de identificação que afeta as possibilidades existenciais
do leitorŗ. (ZILBERMAN. 1989, p.113)

Esta experiência não deve ter início através de uma compreensão e/ou interpretação do
sentido de uma obra ou intenção de seu autor, mas sim, deve-se considerar inicialmente a
experiência primária ou efeito, que nada mais é do que uma resposta ocasionada pelo texto,
advinda do leitor em seu primeiro contato com a obra, diferentemente da hermenêutica pela qual o
texto deve ser inicialmente interpretado. Para Jauss (1979) ŖUma interpretação que ignorasse esta
experiência estética primeira, seria própria da presunção do filólogo que cultivasse o engano de
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supor que o texto fora feito, não para o leitor, mas sim, especialmente, para ser interpretadoŗ
(p.46). Ou seja, essa forma de recepção da obra literária democratiza a interpretação e a
construção de sentido pelo leitor, legitimando-a. A recepção, sob o olhar de Zilberman (1989)
Ŗrefere-se à acolhida alcançada por uma obra à época de seu aparecimento e ao longo da história.
Em certo sentido da conta de sua vitalidade, verificável por sua capacidade de manter-se em
diálogo com o público.ŗ (p.114).
Iser diferentemente do teórico Jauss, que enfatizava a ligação entre uma reconstrução
histórica e a recepção literária pelo leitor, deteve-se de modo prioritário no processo de interação
entre leitor e texto (obra), sendo que o texto não deveria ser visto como algo pleno e completo,
pelo fato de possuir Ŗpontos de indeterminaçãoŗ (1979, p.96) ou os chamados Ŗvaziosŗ (idem,
p.91) que todo texto possui e que devem ser preenchidos pelo leitor no decorrer da sua leitura e
recepção da obra.
Segundo a conceituação do teórico:

Os vazios e as negações contribuem de diversos modos para o processo de


comunicação que se desenrola, mas, em conjunto, têm como efeito final
aparecerem como instâncias de controle. Os vazios possibilitam as relações entre
as perspectivas de representação do texto e incitam o leitor a coordenar estas
perspectivas. Os vários tipos de negação invocam elementos conhecidos ou
determinados para suprimi-los. (idem, p. 91)

De acordo com Iser, o processo de interação e comunicação entre o texto e o leitor,


somente gera um interpretação legítima da obra se o leitor estiver atento para os Ŗcomplexos de
controleŗ (idem, p.89) ou Ŗvazios e indeterminaçõesŗ que se fazem presentes no texto. São estes
vazios que, até certo momento, acionam a interação texto-leitor, e as negações (que regulam e
realizam o controle), que tornam possível o processo de comunicação.
A obra para Iser, pelo fato de possuir estes Ŗvaziosŗ, caracteriza-se por ser Ŗabertaŗ,
necessitando de combinações esquemáticas para que possa se formar como um objeto
imaginário a ser construído pelo leitor, que só conseguirá obter esta ideia imaginária do objeto,
encontrando os vazios e conectando segmentos do texto indicados por eles (elementos de
Ŗinterrupção da conectabilidadeŗ (idem, p.107)) que exigem do leitor uma busca constante para a
formação do contexto ficcional, da coerência e de um sentido para a obra.
O leitor como sujeito detentor de uma grande capacidade imaginativa, nos oferece uma
gama de interpretações diferenciadas obtidas através da leitura e do preenchimento dos espaços
vazios presentes no texto. Todos os leitores possuem em comum o fato de pertencerem a uma
sociedade regida por valores culturais e sociais específicos, seguindo convenções e tradições
particulares e diferenciadas. A cultura, a sociedade, o gênero literário, o autor e a obra, compõem
um sistema referencial pré-determinado que formará o que Jauss denomina de Ŗhorizonte de
expectativaŗ. Este Ŗhorizonte de expectativaŗ pode ser modificado, quebrado e reestruturado pelo
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leitor, agente ativo neste processo de composição da obra, integrando mais um mecanismo
teórico gerado pela teoria da estética da recepção.

CONCLUSÃO

Depreendemos que a Escola de Konstanz foi fundamental para a importância e


desenvolvimento de teorias que proporcionaram o repensar do fato literário e da prática
pedagógica em torno da interação externa e interna, correspondente ao leitor e a obra.
Diante do exposto, é importante destacarmos que a valorização do leitor defendida pelos
teóricos da Escola de Konstanz não anula a relevância do autor, que mantém com o leitor uma
relação dialética de constante construção e reconstrução do sentido de uma obra, através dos
mecanismos de recepção apontados neste artigo.
Deste modo, os conceitos apresentados no decorrer deste trabalho, foram angariados por
pensadores da Escola de Konstanz, fazem com que o leitor, além de um sujeito literariamente
ativo, revele-se um leitor concomitantemente dotado de um poder de transformação sensível e
subjetivo, sendo capaz de preencher as lacunas apresentadas em um texto que de forma
consciente efetiva sua participação no texto e na história.

REFERÊNCIAS

CANDIDO, Antônio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970.

CULLER, J. Linguagem, sentido e interpretação In: Teoria Literária. Uma Introdução. Trad. e
notas. Sandra Vasconcelos. SP: Beca, 1999.

ISER, Wolfgang. A Interação do Texto com o Leitor. In: COSTA LIMA, Luiz (org.). A Literatura e o
Leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

JAUSS, H.R. A estética da recepção: colocações gerais. In: A literatura e o leitor. Textos da
estética da recepção. 1979. Vários. Seleção, coordenação e tradução de Luiz Costa Lima. RJ, Paz
e Terra, pp. 43-61.

ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática.


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03 a 05 de novembro de 2010

A CONFEDERAÇÃO DOS TAMOIOS: POLÊMICA E EMERGÊNCIA NO CAMPO


LITERÁRIO BRASILEIRO

LUCIANO MELO DE PAULA45

Resumo
Este breve trabalho apresenta uma reflexão sobre a tentativa romântica de produção do poema épico
nacional brasileiro e algumas das repercussões e consequências desta empreitada para o nosso sistema
literário.
Palavras-chave: romantismo, poesia épica, José de Alencar, Gonçalves de Magalhães

Abstract
This brief paper presents a reflection on the attempt of romantic production of the Brazilian national epic
poem and some of the repercussions and consequences of this endeavor for our literary system.
Keywords: Brazilian Romanticism, epic poetry, José de Alencar, Gonçalves de Magalhães

INTRODUÇÃO

Uma das mais importantes polêmicas do romantismo brasileiro envolveu o jovem e


iniciante escritor José de Alencar e o, até então, monstro sagrado da intelectualidade tupiniquim,
Sr. Domingos José Gonçalves de Magalhães, futuro Visconde do Araguaia, considerado iniciador
do movimento romântico no Brasil e que foi coroado no seu tempo de glória como o pai dos
românticos brasileiros.
Toda a polêmica girou em torno da recepção e das críticas apresentadas por José de
Alencar ao poema épico A confederação dos tamoios, de Gonçalves de Magalhães, publicado em
1856. Entre junho e agosto desse mesmo ano foram publicadas, no Diário do Rio de Janeiro, as
oito cartas de José de Alencar com a sua análise sobre o poema. As cartas de Alencar destroem
totalmente o épico: a forma, o gênero escolhido, os personagens, concepção, métrica, estrutura e
tom estavam, segundo Alencar, imperfeitos e nada se aproveitava da composição de Magalhães.
As cartas eram assinadas por Ig, que muita especulação causou para se descobrir quem era
realmente o autor das epístolas. Alguns pensavam que eram as iniciais de alguém, nas próprias
cartas Alencar confessa que o pseudônimo foi inspirado na principal personagem feminina da
epopeia, Iguaçu.
Os defensores do poema de Gonçalves de Magalhães, com destaque para o poeta Manuel
de Araújo de Porto Alegre e o Imperador D. Pedro II publicaram sua cartas Jornal de Comércio e
no Correio da Tarde, respectivamente. O Imperador solicitou o apoio de Gonçalves Dias para a
defesa do poema, o poeta maranhense não quis participar do debate e respondeu educadamente
a Dom Pedro II que as críticas recebidas pelo poema eram merecidas, comenta Dias: ŖAchei a

45
Luciano Melo de Paula é mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás Ŕ UFG e
professor da Universidade Federal da Fronteira Sul Ŕ UFFS, Campus de Chapecó.
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 123
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versificação frouxa, de quando em quando imagens pouco felizes, a linguagem por vezes menos
grave, menos própria de tal gênero de composições, e o que entre esses não é para mim o menor
defeito, o tamoio não tem muito de real nem de idealŗ. No entanto, Gonçalves Dias a pedido do
Imperador lê alguns trechos do poema a Alexandre Herculano, na tentativa de ganhar o intelectual
português para a defesa do poema. Herculano responde prontamente para Gonçalves Dias, sem
esperar o final da leitura: ŖMate-me esse homem; mate-moŗ.
Esse debate foi muito importante para o desenvolvimento futuro da literatura brasileira
porque de maneira indireta resolveu um problema que os intelectuais do país estavam envolvidos
desde há muito tempo, a busca pela produção do poema épico nacional brasileiro. Também,
dessas discussões emerge a plataforma estética que seria desenvolvida por José de Alencar na
produção dos seus romances, particularmente os de temática indianista.
José de Alencar ao se colocar em posição desafiadora a principal figura da intelectualidade
brasileira do período não faz mais que reivindicar um posto de destaque no campo literário do
país. Alencar tinha na época 27 anos e já demonstrava querer garantir o seu espaço, a polêmica e
os rumos que ela tomou foram muito bem aproveitadas pelo jovem. Um ano depois da contenda,
inicia-se a publicação em folhetim de O Guarani, romance que tornaria Alencar conhecido e
respeitado nos meios literários brasileiros. A estratégia de desafiar a ilustre figura literária do
momento para conseguir prestígio será, anos mais tarde, seguida por Joaquim Nabuco. Quando o
desafiado da vez será o próprio José de Alencar.

1 EM BUSCA DA EPOPEIA BRASILEIRA

Enquanto no âmbito hispano-americano o êmulo para a produção de um repertório de


poesia épica deu-se com a publicação de La Araucana (1569), de D. Alonso de Ercilla. Nas terras
do Brasil, o fator desencadeador de semelhante fenômeno foi a publicação de Os Lusíadas
(1572). A obra de Camões demarcaria definitivamente a consolidação do ideal de um repertório
épico nacional, não somente nas terras de Portugal, como também nos domínios de língua
portuguesa que ficavam no ultramar. Na composição de sua obra épica, Camões seguiria de perto
as indicações de Virgílio, o poeta romano que gravou em definitivo a história e a origem mítica do
Império Romano. Da mesma maneira, queria Camões gravar a na história os feitos e grandezas
de sua nação, o Reino de Portugal, onde naqueles tempos de descobertas e circunavegação do
globo estava instalado por algum tempo o poder e liderança sobre os destinos de boa parte do
mundo.
Na introdução de um estudo sobre desenvolvimento da poesia épica no Brasil, José
Veríssimo comenta: ŖNão sei se alguma literatura oferece exemplo de tamanha influência de um
grande gênio poético, como a de Camões na da língua portuguesa [...] é dele que imediatamente
deriva a literatura portuguesa, e portanto a nossaŗ (VERISSIMO, 1977, p. 55). Nesse mesmo
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estudo, Veríssimo também identifica uma corrente de produção literária que se enraizou no Brasil.
A busca incessante empreendida por um grande número de produtores literários pela composição
de um épico genuinamente brasileiro. O épico que se estabelecesse como o grande livro nacional
e espelhasse a alma e o comportamento do povo brasileiro. Desde muito cedo se arraigou nos
produtores literários da terra brasilis a necessidade de se produzir o grande épico nacional nos
moldes que Camões havia produzido a epopeia nacional portuguesa. E Ŕ seguindo os mesmos
passos de Camões Ŕ quase todo poeta que se apresentasse, fazia todo o possível para
acrescentar ao conjunto de sua obra alguns versos heroicos como maneira de ser igualado aos
grandes companheiros das musas da poesia épica.
Em Camões e a poesia brasileira, Gilberto Mendonça Teles estuda parte dessa influência
na poesia épica, lírica e dramática. O crítico parte do princípio de que toda a poesia brasileira é
um sistema literário coletivo formado a partir de um sistema literário particular Ŕ a obra camoniana
Ŕ e que se forjou em um processo de imitação, influência e repercussão (TELES, 1973, p. 19).
Teles também indica que a reverberação da épica camoniana será bem maior entre os brasileiros
do que a lírica e, constata que, nenhuma dessas produções épicas surgidas na esteira de Os
Lusíadas conseguiu estabelecer-se no sistema literário brasileiro e alcançar luz própria.
Essa busca pela epopeia brasileira começará nos alvores do séc. XVII e continuará
presente nos séculos seguintes Ŕ XVIII e XIX. Ainda encontraremos resíduos dessa intensa
procura até em meados do séc. XX. É o que atesta o poema Os Brasileidas, de Carlos Alberto
Nunes, publicado em 1962, um canto de caráter épico sobre o surgimento do Brasil e as bravas
ações dos Bandeirantes paulistas na conquista e ocupação do território. Essa obstinação pela
composição de um poema épico pode ser relacionada com o caráter empenhado de nossa
literatura. Para se configurar uma literatura nacional era preciso ocupar toda variedade de gêneros
possíveis, uma grande literatura teria que produzir repertórios de todos os gêneros. E, claro, não
seria justamente o gênero mais elevado que poderia ser esquecido no processo de formação,
consolidação e afirmação da literatura brasileira.
A primeira destas manifestações foi Prosopopéia, de Bento Teixeira, que veio à luz em
1601, Ŗpode ser considerado um primeiro e canhestro exemplo de maneirismo nas letras da
colôniaŗ (BOSI, 2001, p. 36). Também se registra, durante o período barroco, o aparecimento de
outros poemas épicos, como: Eustáquios (1769), do Frei Manuel de Santa Maria de Itaparica,
baiano de Itaparica fiel à imitação do repertório camoniano; outros dois poemas são Valoroso
Lucideno e Templo da Liberdade, do Frei Manuel Calado, que tem como cenário histórico o
território pernambucano durante a ocupação holandesa. Há notícias de um poema com o título de
Brasileida ou Petreida, celebrando os feitos de Pedro Álvares Cabral. Seu autor, o Padre
Domingos da Silva Teles era membro da Academia dos Renascidos. Alfredo Bosi, em seu
compêndio, também comenta a produção de um poema épico por Diogo Grasson Tinoco,
narrativa sobre o avanço dos bandeirantes durante o final do séc. XVII. A existência do poema de
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Grasson é confirmada pela citação que lhe faz Cláudio Manuel da Costa no poema épico ŖVila
Ricaŗ. Antonio Candido assim resume o surto épico que tivemos:

Devido à influência de Basílio e Durão, o poema épico sobreviveu, contribuindo


certamente para isto o estado de espírito simultâneo e posterior à Independência,
que favoreceu a manifestação patriótica em tonalidade grandiloqüente e escala
heróica (CANDIDO, 1997, p.31)

As realizações épicas brasileiras mais bem sucedidas foram o Uraguai (1769), de Basílio
da Gama, e Caramuru (1781), de Santa Rita Durão. O Uraguai é o relato da expedição militar que
deu fim às missões jesuíticas instaladas no extremo sul do Brasil. O poema de Basílio da Gama
não obedece aos princípios da epopeia clássica, um pequeno poema, somente na extensão, pois
é considerado um dos marcos referenciais para a formação da literatura brasileira. O padrão das
estrofes e das rimas é diferente do cânone clássico do épico, o que faz o poema aproximar-se
quase de uma narrativa lírica. O modelo clássico do poema épico será apresentado por Santa Rita
Durão, em seu Caramuru. O poema é a narrativa da colonização da Bahia e das ações de seu
herói, Diogo Alvarez Correia.
Registra-se também aqui as produções épicas dos autores românticos. Gonçalves Dias,
um dos nossos principais poetas, dedicou várias produções a cantar momentos épicos da cultura
indígena. Destaca-se o curto poema I-Juca Pirama e um empreendimento épico mais consistente
em gestação, Os timbiras (poema americano), infelizmente Gonçalves Dias tinha não pôde
concluí-lo. Há também o poema Colombo, de Manuel de Araújo de Porto Alegre, classificado por
alguns como o típico poema épico ilegível. A tentativa épica do romantismo brasileiro de maior
destaque foi a Gonçalves de Magalhães, não por suas qualidades, mas sobretudo pela polêmica
que causou e pelas consequências do debate na configuração da nascente literatura brasileira.

2 A CONFEDERAÇÃO DOS TAMOIOS

Há na história da literatura brasileira um episódio que revela o grau de preocupação de


alguns setores na produção do grande e definitivo poema épico nacional. Refiro-me aos
acontecimentos e aos debates relacionados com a publicação de A confederação dos tamoios
(1856). Domingos José Gonçalves de Magalhães, figura eminente do nosso romantismo, depois
de produzir obras líricas e dramáticas decidiu também apresentar o seu poema épico como o
postulante a ocupar o posto de poema nacional brasileiro, na mesma trilha que Os Lusíadas
figuravam como a epopeia portuguesa e a Eneida, como a epopeia romana.
A preocupação de Gonçalves de Magalhães com a produção de um poema épico nacional
já era antiga, desde 1833 ele já havia confessado em carta ao amigo C. B. Monteiro o desejo de
compor o grandioso poema nacional. Gonçalves de Magalhães estava bem acompanhado na sua
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03 a 05 de novembro de 2010

empreitada. O próprio Imperador Dom Pedro II foi um grande incentivador para a composição e
também foi o editor do poema, isso claro, em sigilo absoluto. Magalhães gozava de muito bom
trânsito na corte e sempre cumpria algumas tarefas ingratas para a estrutura de poder imperial.
Foi auxiliar do Duque de Caxias no Maranhão depois da derrota e da repressão da balaiada,
também foi enviado para governar o Rio Grande do Sul depois de controlada a tentativa de
Revolução Farroupilha. Ocupa as funções de governar justamente os territórios em que se
desenvolveram as grandes rebeliões populares do período monárquico brasileiro. Também recaiu
sobre Magalhães, quando o imperador quis divulgar a história de nossa literatura em língua
estrangeira, a tarefa de encontrar o tradutor que realizaria tal tarefa, Magalhães indicou o
professor austríaco Ferdinand Wolf. Magalhães era um homem do poder, gozava dos favores da
corte imperial. Daí não ser surpresa o poeta receber o patrocínio diretamente do Imperador em
sua polêmica tentativa épica.
O poema foi recebido, como já antecipamos, com uma grande carga crítica. Foi talvez um
dos mais acirrados debates literários que as letras brasileiras presenciaram. As posições foram
demarcadas. Os favoráveis e defensores do poema de um lado Ŕ liderados pelo Imperador D.
Pedro II Ŕ; os contrários do outro lado, a liderança destes coube ao mais apaixonado dos
debatedores, José de Alencar. Não foi bem uma liderança, pois Alencar ficou a maior parte do
tempo sozinho, não contou com muitos aliados. O cearense não se fez de rogado, aos quatro
ventos divulgou sua insatisfação com a produção de seu contemporâneo e conseguiu minar as
aspirações que alguns nutriam Ŕ entre esses o Imperador D. Pedro II Ŕ fazer de A Confederação
dos Tamoios o épico nacional brasileiro. Alencar tinha interesses nessa briga, ele mesmo
acalentava o sonho de chegar a produzir uma epopeia nacional definitiva. Nas cartas que José de
Alencar envia ao debate percebe-se que ele também partilhava da opinião que o Brasil ainda não
tinha o seu épico definitivo e era necessário escrevê-lo. No período em que se trava essa
polêmica, José de Alencar iniciava a produção de sua epopeia em prosa Ŕ O Guarani Ŕ e também
trabalhava arduamente na composição de uma epopeia nos moldes clássicos. O poema de
Alencar, já contava até com um título, Filhos de Tupã, e que não foi levado a cabo Ŗpor bem dele e
do nossoŗ (VERÍSSIMO, 1977, p. 57). Talvez convencido pelas próprias posições que assumiu
neste debate, Alencar vai perceber que não teria condições de realizar o seu empreendimento
épico com o mesmo rigor que ele mesmo cobrava. Assim, volta todas suas energias ao romance,
produz ao longo de 20 anos uma vastíssima obra que utilizaria como matéria justamente o
conteúdo que ele considerava indicado para o empreendimento épico nacional, destacando-se,
neste particular, os três volumes do seu ciclo indianista - O Guarani, Iracema e Ubirajara. Escreve
Alencar na Segunda Carta:

Escreveríamos um poema, mas não um poema épico; um verdadeiro poema


nacional, onde tudo fosse novo, desde o pensamento até a forma, desde a
imagem até o verso.
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A forma com que Homero cantou os gregos não serve para cantar os índios, o
verso que disse as desgraças de Troia, e os combates mitológicos, não pode
exprimir as tristes endechas do Guanabara, e as tradições selvagens da América.
Porventura não haverá no caos incriado do pensamento humano uma nova forma
de poesia, um novo metro de verso? (ALENCAR, 2005, p. 33).

Gonçalves de Magalhães também teve seus defensores. O próprio Imperador do Brasil foi
um dos que saíram em defesa do poema, afinal ele foi o seu editor. Pedro II escreveu três cartas
para o debate, assinava suas cartas como Outro amigo do poeta. Assumiram também o partido
de Magalhães os seus companheiros mais íntimos de atividades literárias, como Manuel de Araújo
de Porto Alegre que assinava como um amigo do poeta. José Veríssimo, anos mais tarde, em sua
Historia da Literatura Brasileira, vai assumir a defesa da composição de Gonçalves de Magalhães:

O aparecimento desta obra [A Confederação dos Tamoios] foi um acontecimento


literário. Contra ela escreveu José de Alencar, então estreante, uma critica acerba,
e o que é pior, frequentemente desarrazoada (VERÍSSIMO, 1998, p. 205).

A opinião de José Veríssimo é que José Alencar participou do debate como um jovem
apaixonado que não teria ainda a maturidade necessária para tal debate. Embora, contra a
opinião de nosso prócer da crítica literária, Alencar desempenhou no episódio o papel de
polemista eficiente e que não aceitaria como legítimo o que julgava ser um engodo para a
literatura brasileira. Participou do debate com conhecimento absoluto de causa, começa a se
esboçar nesta polêmica o projeto que Alencar vislumbraria para a literatura nacional.
Empreendimento a que ele dedicará a sua vida e cumprirá em grande parte, sendo hodiernamente
considerado um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento do romance brasileiro. No
debate Alencar não se preocupou em poupar o adversário. Foi sempre firme e categórico, mesmo
que isso implicasse em uma crítica dura com os seus oponentes e, em especial, com o autor de A
Confederação dos Tamoios:

O Sr. Magalhães no seu poema da Confederação dos Tamoios não escreveu


versos; alinhou palavras, mediu sílabas, acentuou a língua portuguesa à sua
maneira, criou uma infinidade de sons cacofônicos, e desfigurou de um modo
incrível a sonora e doce filha dos Romanos poetizada pelos Árabes e pelos Godos
(ALENCAR, 1974, p.87).

No conjunto de quase uma dezena de cartas, o tom do debate estabelecido por Alencar é
o que transparece no trecho acima. Alencar deplora quase todo o empreendimento de Magalhães
e não vê mais que uma tentativa frustrada de construção da epopéia nacional brasileira. Antonio
Candido resume muito bem a discussão em torno do poema de Magalhães:

O bafejo palaciano, que pretendeu sagrar e impor A Confederação dos Tamoios,


contribuiu em vez disso para comprometê-lo junto ao publico e à opinião dos
literatos, acabando por torná-lo considerado pior do que é (CANDIDO, 1997, p.
99).
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A ação do poder imperial, representado pela figura do Imperador D. Pedro II, não trouxe
nenhum grande mérito ao poema, ao contrário, serviu como estimulante para que mais críticas
ferozes caíssem sobre a tentativa épica de Magalhães. O debate gerado em torno do episodio
ilustra bem a busca desenvolvida pela intelligentsia brasileira de seu almejado poema nacional.
Projeto que ficou a meio caminho e nunca foi plenamente realizado.
Juan Valera, romancista e diplomata espanhol, em um estudo que dedica a poesia
brasileira publicado em Madrid, em 1855, comenta a influência que a poesia épica havia assumido
entre os brasileiros naquele período:

afinal onde brilhou a verdadeira originalidade da poesia brasileira foi na epopeia, à


qual o gênio dos portugueses era mais inclinado e disposto que a nenhum outro
gênero de poesia, como demonstram Camões, Sá e Meneses, Mousinho Quevedo
e outros mil (VALERA, 1996, p. 65).

Valera estava certamente influenciado pelas leituras que havia realizado: Basílio da Gama,
Santa Rita Durão e os recentes cantos de Gonçalves Dias. O critico percebe desenvolver nesses
autores com grande propriedade a verve da poesia épica. Valera ressalta, entretanto, que os
empreendimentos épicos necessitam de uma matéria apropriada. Debate se os acontecimentos
da conquista americana serão fontes adequadas de matéria para a composição da buscada épica
brasileira:

Os próprios acontecimentos da descoberta e da conquista, conhecidos pela


História até nos pormenores mais miúdos, não se ajustam bem à ficção épica,
nem chegam a tomar-lhe as proporções gigantescas. Se Homero tivesse vivido
nos tempos de Tucídides, Homero não teria escrito a Ilíada. A guerra de Troia lhe
teria parecido uma expedição desorganizada de pobres piratas desalmados
(VALERA, 1996, p. 65-66).

Reconhece Valera as potencialidades que poderia ter a poesia épica entre os


compositores brasileiros, embora ressaltando que a escolha da matéria deve ser baseada em
critérios históricos e poéticos, ou éticos e estéticos. As personagens históricas da conquista
representavam importantes feitos históricos, que talvez não poderiam resultar em bons motivos
poéticos. A ação daqueles bravos homens, conquistando, submetendo e dizimando largas
parcelas população americana estava longe de representar um ideal épico heroico. Esses homens
poderiam mais bem figurar numa tragédia, a que relatasse o massacre e desgraça dos povos
autóctones americanos.
Embora, a busca pelo grande e definitivo poema épico nacional não tenha encontrado
ainda seu objetivo. Essa questão já é colocada como uma discussão e uma busca anacrônica e
utópica, fora de tempo e lugar. Não temos necessariamente de ter o nosso poema épico. Essa
busca por um ideal, muitas vezes inalcançável, é totalmente infrutífera. Apesar de termos
catalogadas dezenas e dezenas de tentativas épicas na historia da literatura brasileira, nenhuma
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das composições pode assumir o posto de poema épico definitivo da nacionalidade. Essas
composições seriam o que Hegel chamaria de épicas artificiais ou tardias Ŕ outros de épicas
literárias Ŕ e não conseguem ocupar a função de Bíblia de um povo. Alceu Amoroso Lima
comenta a questão dizendo que Ŗa musa épica [...] nunca se aclimatou bem, em nossa terraŗ
(LIMA, 1968, 28).
O espaço que haveria para uma grande composição épica na literatura brasileira foi
preenchido por composições de outros gêneros, em grande parte, ainda durante o próprio
romantismo. Na busca desenfreada por legar um canto épico tradicional à literatura brasileira
muitos dos nossos produtores não perceberam que essa conquista poderia não se dar por uma
obra particular, mas talvez pelo conjunto de toda uma produção literária. Se o romantismo
brasileiro não conseguiu produzir o épico nacional, os modernistas nos legaram um antiépico de
grande força. Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, talvez represente um dos últimos
capítulos dessa busca literária pelo grande poema nacional brasileiro, mas isso é uma outra
história.

REFERÊNCIAS

ALENCAR, José. Cartas sobre a Confederação dos Tamoios: Excertos. In: COUTINHO, Afrânio
(Org.). Caminhos do pensamento crítico Ŕ Volume I. Rio de Janeiro: Companhia Editora
Americana, 1974. p.68-92.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2001.

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 2 volumes. Belo


Horizonte: Editora Itatiaia, 1999.

LIMA, Alceu Amoroso. Introdução à literatura brasileira. Rio de Janeiro: Livraria Agir editora, 1968.

TELES, Gilberto Mendonça. Camões e a poesia brasileira. Rio de Janeiro: MEC - Departamento
de Assuntos Culturais, 1973.

VALERA, Juan. A poesia no Brasil. Edição bilíngue. Brasília: Consejería de Educación y Ciencia
de la Embajada de España, 1996.

VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis
(1908). São Paulo: Topbooks, 1998.

______________. 3 – Duas epopéias brasileiras. In: VERÍSSIMO, José. Estudos de literatura


brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. USP, 1977.
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03 a 05 de novembro de 2010

REFLEXOS DA RUPTURA – UMA LEITURA DE O DIA DOS PRODÍGIOS, DE LÍDIA


JORGE

MAURO DUNDER46

Resumo
O presente trabalho enseja uma análise inicial do romance inaugural da obra da ficcionista Lídia Jorge, O
dia dos prodígios (1980), à luz da teoria do romance, sob a perspectiva da crise do romance na
contemporaneidade. A partir das leituras de Bakhtin (1988), Hutcheon (1991) e Lukács (2009), discute-se a
questão da ruptura que a prosa portuguesa contemporânea vive a partir de 1974, ano da Revolução dos
Cravos e a relação com as transformações por que passa o gênero Ŗromanceŗ na pós-modernidade. Ainda,
é objetivo do trabalho estabelecer, com mais clareza, a relação entre os movimentos históricos e seus
reflexos na produção literária portuguesa.

Abstract
This work proposes an initial analysis of the Portuguese fictionist Lidia Jorgeřs first romance, O dia dos
prodígios (1980), enlightened by the Theory of Romance, under the perspective of the crisis of the romance
in contemporary days. From the reading of Bakhtin (1988), Hutcheon (1991), and Lukács (2009), the
question of the break that the contemporary Portuguese prose has lived since 1974, year of the Revolução
dos Cravos and the relation with the changes through which the gender Ŗnovelŗ has been in the post-modern
era will be discussed. Still, it is one of the aims of this paper to establish more clearly the relation between
historical movements and its reflexes on the Portuguese literary production.

A publicação de O dia dos prodígios, em 1980, dá início a uma das mais importantes
carreiras na ficção contemporânea portuguesa. Ao lado de nomes como António Lobo Antunes,
José Saramago, José Cardoso Pires e Teolinda Gersão, Lídia Jorge tem construído um rico painel
do pensamento português, com foco nas transformações vividas pelo país após a Revolução dos
Cravos (1974), sem, no entanto, desprezar as relações dessa nova realidade configurada com a
herança do grande império ultramarino do Renascimento.
A ficção de Lídia Jorge, bem como a de outros nomes em sua geração, aproxima a prosa
de ficção das relações sócio-históricas que constituíram o passado português, a fim de
desconstruí-las e rever, em grande medida, a noção que Portugal carrega de si mesmo, em um
processo de reavaliação ensejado pelo final de um período ditatorial (1932-1974). Desde sua obra
inaugural, a escritora imprime a sua ficção a marca do questionamento de padrões
comportamentais coletivos, bem como de estereótipos e crenças sociopolíticas que sempre
orientaram o pensamento português.
Com frequência, as relações entre história e narrativa de ficção Ŕ mais assiduamente a
epopeia e o romance Ŕ têm sido objeto de estudos, não apenas no campo das literaturas
específicas de cada cultura, mas também como escopo das teorias que procuram deslindar a

46
Mestre e Doutorando em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Professor da
Universidade Bandeirante de São Paulo.
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evolução e, em última instância, a existência ou não do gênero Ŗromanceŗ na contemporaneidade,


bem como sua condição de Ŗherdeiroŗ da epopeia, partindo do pressuposto que tanto forma
quanto conteúdo do gênero refletem, em grande medida, a visão humana acerca da existência.
A tomar essa proposição como verdadeira, poder-se-ia concluir que, enquanto a epopeia
encerra em si a representação de uma vida cuja essência é determinada pelos deuses em suas
relações com os homens, o romance consubstancia a busca de um ser fragmentado por essa
mesma essência, em um mundo no qual não há lugar para a concepção épica de uma vida com
sentido imanente a si mesma (Lukács, 2000:44-55).
Da mesma forma, sendo epopeia e romance duas formas distintas da Ŗgrande épicaŗ
(Lukács, 2000:55), em que o elemento distintivo seriam os dados a partir dos quais se dá a
configuração da representação do homem e da vida, é exatamente a busca por essa configuração
que as tornaria, em certa medida, tributárias de um mesmo pensamento, o de que a narrativa
literária transportaria para os seus domínios a relação do homem com sua própria existência. É
possível, então, concluir que a fragmentação e a impossibilidade do conhecimento pleno da
existência constituiriam os valores de base do gênero romance, assim como o pensar a vida como
um processo em que a verdade dos fatos sequer é questionada e, portanto, é preservada em sua
integridade previamente dada estaria na base do gênero epopeia.
Ao olharmos mais detidamente para a tradição literária portuguesa, não será difícil notar
que, nos mais diferentes momentos de sua história, Portugal volta-se para um ponto fixo de seu
passado: é do sucesso no processo de conquistas ultramarinas do Renascimento que nasce,
especialmente em momentos de dificuldades políticas, sociais e econômicas, a crença firme em
uma verdade ofertada por Deus, a partir da qual o destino assume papel de primeira grandeza na
definição do que é Ŗser portuguêsŗ e na condução do país para o futuro.
Tal perspectiva, transportada para o universo da produção literária, aproxima o
pensamento português da postura do homem cuja visão de mundo se reflete na constituição da
epopeia Ŕ no caso de Portugal, representada pela obra magna Os Lusíadas, de Luís de Camões.
Assim como o sucesso lusitano nas descobertas ultramarinas está diretamente relacionado com o
triunfo de um povo predestinado pelo Deus Católico sobre os desmandos do paganismo, a glória
desse povo, representado por aquele que sintetiza em si as qualidades coletivas dos portugueses
e vive um destino para ele concebido pelo maravilhoso cristão, Vasco da Gama, estaria garantida
por esse mesmo destino, o que se confirma, na epopeia camoniana, com a revelação por Tétis ao
navegador dos mecanismos que fazem funcionar a Ŗmáquina do mundoŗ, privilégio restrito, até
então, apenas aos deuses.
O desenvolvimento, no século XIX, do romance português, forma que se adéqua, naquela
cultura, às experiências sociais e políticas de um país que assiste à crise de sua monarquia e ao
início da desconstrução de seu império colonial, espelha duas grandes correntes de pensamento
que, em alguma medida, refletem elementos que compõem a identidade lusitana.
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Enquanto o romance romântico, da primeira metade do século, resgata o medieval da


cultura portuguesa e mescla-o aos valores burgueses da sociedade que se constrói então, a
tendência realista traduz o conflito entre o pensamento científico que se estabelece na Europa e o
apego de Portugal à tradição de um auto-retrato colonialista, cujo poderio ainda viria da grande
nação ultramarina que se constituíra três séculos antes. São exemplos perfeitos dessas duas
correntes a novela passional de Camilo Castelo Branco (Amor de perdição, Amor de salvação) e
Alexandre Herculano (Eurico, o presbítero), por um lado, e o romance de tese de Eça de Queirós
(O crime do Padre Amaro, Os Maias, A ilustre casa de Ramires), no outro extremo.
Já no século XX, Portugal depara-se com uma série de eventos políticos que culminam
com a instauração de um regime ditatorial, em 1932, personificado por António de Oliveira Salazar
(1889-1970). Esse regime prolongou-se até 1974, quando o movimento conhecido como
Revolução dos Cravos depôs o presidente do Conselho de Ministros, Marcello Caetano, sucessor
de Salazar.
De modo semelhante a vários dos governos totalitaristas que se instalaram na Europa, ao
longo do século XX, o Salazarismo teve, como um de seus fundamentos, o culto ao nacionalismo
extremado, sustentado por uma visão mítica do passado nacional em que o período das grandes
navegações (séculos XV e XVI) assume grande importância na constituição da crença de que
Portugal seria predestinado a uma grandeza política e econômica, a um destino forjado por Deus,
do qual a nação teria se desviado e que seria resgatado pela Ŗausteridadeŗ do governo do ditador
Ŕ o que reforça, ainda mais, a visão épica do povo português a seu próprio respeito.
Após 1974, a literatura portuguesa vive um período em que o questionamento dos valores
representados pelo período político ditatorial representa não apenas uma opção política por
resgatar a liberdade de expressão tolhida pelo salazarismo, mas, principalmente, a busca pela
reconstrução da identidade nacional. Em que pese o fato de que, já na década final do regime, a
prosa lusitana assiste ao surgimento de uma geração de escritores que dá voz às angústias de
uma considerável parcela da população, o final da década de 1970 e o início da década seguinte
dá a conhecer uma geração de ficcionistas que se dispõe a repensar Portugal. Nas palavras de
Eduardo Lourenço, filósofo contemporâneo, as Ŗobras representativas das jovens gerações (...)
são, ao mesmo tempo que renovação ao nível da escrita, centradas sob a apropriação da nossa
própria realidade enquanto nossa (...)ŗ(2009:70).
A afirmação de Lourenço sugere, então, que o pensamento português pós-1974 Ŕ ou, por
outro lado, a tendência que esse pensamento necessitava assumir Ŕ aproxima-se da natureza do
romance, da qual faz parte a relação com as rupturas, as fissuras, as impossibilidades de uma
totalidade inalcançável, não só na constituição dos elementos estruturais da narrativa, como
personagens, ambiente e evolução do enredo, mas, especialmente, na configuração da própria
forma, sujeita a um processo perene de reinvenção, uma vez que a constituição ética do sujeito
que assiste ao surgimento do romance Ŕ e que o tem por testemunha, desde então Ŕ é
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fragmentada, constantemente afligida por crises de identidade, relativas, em grande medida, à


busca por aquela totalidade perdida desde os tempos da epopeia.
Sob essa perspectiva, a ficção portuguesa do final do século XX conserva, ainda, fortes
ligações com a concepção lukacsiana de romance, já que, assim como a própria forma do gênero,
o homem português teve roubada de si a crença de que seu destino estaria já traçado, dado a
eles pelo Deus Católico e que, precisamente por isso, questionamentos acerca de sua própria
evolução seriam absolutamente desnecessários. Em vez disso, o português precisou confrontar-
se tanto com a desconstrução de sua identidade Ŕ o Ŗser portuguêsŗ não era mais a verdade de
sempre Ŕ, como com a fragmentação da identidade coletiva, da própria importância que sempre
se atribuiu à história de Portugal.
Na esteira desse pensamento, tal fragmentação, aliada ao pensamento pós-moderno que
permeia a literatura contemporânea, contribui para o surgimento de uma geração de escritores, os
quais, mais do que resgatar os sustentáculos históricos da identidade portuguesa, utiliza-os,
principalmente, a fim de questionar a aura de verdade absoluta com que sempre fizeram parte do
imaginário coletivo.
Nesse contexto, O dia dos prodígios adquire singular importância, uma vez que oferece ao
leitor o ponto de vista do português comum, do aldeão do Algarve, afastando-o da interpretação
oficial dos fatos e dando a eles uma roupagem em nada elevada. Como consequência, tanto a
visão de Portugal como grande império colonial, recrudescida durante o período salazarista,
quanto a perspectiva da Revolução dos Cravos como um evento salvador, redentor de todos os
males político-sociais do país, são postos em xeque pela obra, que apresenta ao leitor uma nova
possibilidade de leitura desses fatos, por uma perspectiva que desafia a concepção de uma
história Ŗúnicaŗ e institui a multiplicidade de visões pela qual se pode pautar a compreensão dos
eventos históricos de um povo, tanto como história per si, quanto como elemento formador da
identidade dessa nação.
A trama de O dia dos prodígios se passa em Vilamaninhos, aldeia fictícia localizada na
região do Algarve, sul de Portugal, caracterizada por um modo de vida medieval, apegado a
crenças e tradições características do pensamento português tradicional. Ali, cercadas por uma
pobreza ambivalente Ŕ não há desenvolvimento econômico e, tampouco, crescimento intelectual Ŕ
, as personagens vivem em torno de questões comezinhas e problemas pessoais, perspectiva
pela qual também veem o mundo e julgam os eventos de que, raramente, tomam conhecimento.
Forma, ainda, o ponto de vista dos habitantes do vilarejo o apego ao passado, que remonta à
criação da aldeia e reflete, em grande medida, a própria constituição do imaginário português
acerca de um tempo de grandes glórias e conquistas.
A rotina de Vilamaninhos é alterada pelo surgimento de um réptil alado, descrito por todos
e pretensamente visto por poucos, que passa a dominar a vida e os pensamentos dos aldeões.
Inicialmente, incitadas por Jesuína Palha, várias pessoas atribuem o prodígio à simples existência
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de Carminha Rosa e Carminha Parda, mãe e filha respectivamente, que vivem isoladas no alto de
uma das ruas que cortam o vilarejo e carregam, na concepção dos outros habitantes, a marca de
um pecado que lhes amaldiçoa Ŕ Carminha Parda é filha de Carminha Rosa e de um padre e, por
isso, sofre a marginalização por parte de quase todos os moradores da cidadela.
Perturbados pelo aparecimento do misterioso animal, todos buscam encontrar explicações
para o evento, a partir de seu limitado cabedal de conhecimento de mundo, completamente
calcado em suas experiências anteriores e em lugares-comuns, herdados da tradição do
pensamento medieval português.
Dessa forma, o texto de O dia dos prodígios expõe um dos traços marcantes da identidade
portuguesa, o isolamento intelectual diante da evolução histórica vivida, inevitavelmente, pelo
mundo, como se Portugal não tivesse, em nenhuma outra nação, interlocutores em nenhuma
instância, e sua própria história, em isolamento, fosse suficiente para compreender e julgar toda
sorte de fenômenos. ŖAtravés de mitologias diversas, de historiadores ou poetas, esse acto [o
nascimento de Portugal] sempre apareceu, e com razão, como da ordem do injustificável do
incrível, do milagroso, ou, num resumo de tudo isso, do providencialŗ. (Lourenço, 2009:25).
Essa visão de Portugal a respeito de si mesmo aproxima-se, em grande medida, do
espírito da epopeia, em que a verdade absoluta é previamente estabelecida e, portanto,
impassível de questionamento. Por outro lado, a maneira como se configura a narrativa de Lídia
Jorge cria, em Vilamaninhos, a situação que provoca o desconforto, o questionamento, a procura
pela verdade já não mais absoluta, que precisa ser buscada, na incerteza de encontrá-la, o que,
mais uma vez, aproxima O dia dos prodígios da definição de romance estipulada por Lukács,
como um gênero em constante transformação, incompleto por natureza e afeito às transfigurações
de características e estilos.
A instabilidade identitária vivida, naquele momento, pela população de Vilamaninhos tem,
no gênero romance, o veículo literário que mais se aproxima de sua situação de desconstrução,
de questionamento e de incômoda procura por uma resposta definitiva que não vem, à medida
que reflete a própria condição portuguesa, também em perene busca por uma definição clara de
sua identidade como nação (Lourenço, 2009:25).
Ainda no que tange à relação da obra com eventos históricos pontuais, faz-se importante
discutir a maneira como a Revolução dos Cravos aparece retratada no romance e como, em uma
relação metonímica, a autora sugere uma visão diferente daquela que se tornou Ŗoficialŗ, a
respeito da insurreição de abril de 1974. A certa altura da trama, os habitantes de Vilamaninhos
tomam conhecimento de que uma revolução ocorrera em Lisboa, em uma cena constituída de um
discurso pautado por distorções e exageros, que se configura paródico e carnavalesco, em que se
considerem os conceitos bakhtinianos de paródia e carnavalização.

Ŕ Não sabe ainda que em Lisboa os soldados fizeram uma revolução para
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 135
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melhorarem a vida de toda aquela gente? Uma re vo lu cão? Um grande golpe?


E que todos os sinais do céu agora têm sentido?
Ŕ Um golpe? Perguntou José Jorge Júnior. No governo de Lisboa? (... ) Deve
haver muito sangue nas valetes dessa terra, a esta hora, oh Maria. Deve haver.
Gente morta por toda a parte. Ai deles se se levanta a peste com este sol da
primavera. E cinco vezes abriu as mãos disposto a levantar-se. Quem matou
quem?
Ŕ Olhe, tio José Jorge. Se alguém matou alguém deus ressuscitou a todos, porque
estão a dizer que não houve nenhuma baixa. E as maravilhas nessa terra são
tantas que dizem. Afirmam a pés juntos. Que só há música, flores e abraços.
Dizem. Que de repente os ausentes estão a chegar. Os cegos veem sem óculos
nem outro aparelho. Os coxos deixaram de dar saltinhos, ficando as pernas da
mesma altura. Mesmo os manetas tocam violino. De repente. To cam vi o li no. Tio
José Jorge. Mas agora não faça mais perguntas que todas são a mais. É tudo o
que sei, isto que acabo de contar. (JORGE, 1995: 156-157)

Na visão dos aldeões, a Revolução dos Cravos, mais do que alterar os destinos políticos
de Portugal, surge como uma espécie de Ŗpanaceia universalŗ, solução de todos os problemas e
resposta a todas as perguntas. A considerar verdadeira a constatação de que Vilamaninhos
represente, em escala reduzida, o pensamento, não de Portugal, mas do Portugal agrário,
medieval e estagnado, o tratamento dado à insurreição de abril em O dia dos prodígios desloca o
ponto de vista pelo qual o evento é julgado, tirando-o da condição de desfecho de uma ditadura Ŕ
condição essa que configura a visão pela qual o 25 de abril de 1974 torna-se universalmente
conhecido Ŕ e atribuindo-lhe uma visão que pode, no contexto do romance, ser vinculada ao
pensamento de uma parcela da população alienada da sua própria realidade sociopolítica, a quem
restam apenas explicações míticas para os eventos de que tomam conhecimento.
Sob essa perspectiva, o romance de Lídia Jorge, por deslocar o ponto de vista a partir do
qual o fato histórico é julgado, atribuindo-lhe uma interpretação menos elevada e proporcionando
ao leitor, assim, maior possibilidade de compreender mais profundamente o evento, uma vez que
se quebra a unicidade de visão acerca da história recente de Portugal e se institui a multiplicidade
na análise de um evento social, pode ser entendido como uma manifestação, dentro do gênero
romance, do que se conhece por metaficção historiográfica, conforme Hutcheon (1991).
O discurso literário de Lídia Jorge caracteriza-se por apresentar vários procedimentos
estéticos e estilísticos que, se por um lado, traduzem a mesma fragmentação essencial que
caracteriza o homem dos séculos XVIII e XIX Ŕ e que, por isso mesmo, favoreceram a
consolidação do romance como gênero literário Ŕ, por outro, atuam sobre esse gênero como força
transformadora, o que explicaria a distância entre o que teria sido o romance histórico, típico da
literatura portuguesa romântica, na primeira metade do século XIX, e a forma com que se
apresenta o romance contemporâneo de metaficção historiográfica.
Estabelecendo-se, então, como uma forma modificada de romance, O dia dos prodígios
carrega em si tanto a continuidade da natureza da forma desse gênero, no que tange à
inviabilidade de uma realidade acabada, plenamente compreendida, quanto a força
transformadora do discurso da prosa ficcional, que acaba por influenciar, de maneira substancial,
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todos os outros gêneros literários tradicionais (Bakhtin, 1988:427). Essa dicotomia, continuidade e
ruptura, pode, por assim dizer, ser o fundamento da formação, do desenvolvimento e da
existência do romance, tal qual o conhecemos hoje.

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução: Aurora
Fornoni Bernardini et al. São Paulo, UNESP/Hucitec, 1988 (pp. 397-428).

HUTCHEON, L. Poética do Pós-Modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

JORGE, Lídia. O dia dos prodígios. 7ª edição. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1995.

LOURENÇO, Eduardo. O labirinto da saudade. 6ª edição. Lisboa, Gradiva, 2009 (pp. 23-79).

LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. Tradução, posfácio e notas: José Marcos Mariani de
Macedo. 2ª edição. São Paulo, Duas Cidades/Editora 34, 2009.

SARAIVA, António José e LOPES, Óscar. História da literatura portuguesa. 17ª edição, corrigida e
atualizada. Porto, Porto Editora, s/d.
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 137
03 a 05 de novembro de 2010

DO SILÊNCIO À PALAVRA – RELATOS SOBRE A CHINA

NEIVA MALLMANN GRAZIADEI47

Resumo
A notícia sobre o recente premio Nobel da Paz, Liu Xiaobo e a proibição por parte do governo chinês em
permitir que este professor de literatura o recebesse desencadeou a reflexão sobre a liberdade de
expressão e a sua relação com a literatura de testemunho naquele país. Estamos mais acostumados a
analisar a literatura ocidental que a dos países orientais e talvez nem consideremos merecedora de análise,
mas ela existe numa infinidade de escritores e escritoras que tentam atravessar a imensa muralha da
intolerância através de seu testemunho. Este artigo pretende aproximar-se de obras como ŖAs boas
mulheres da Chinaŗ (2003), ŖTestemunhas da Chinaŗ(2009), de Xinran, e ŖAdeus Chinaŗ (2008), de Li
Cunxin sob o olhar do testemunho, uma peculiaridade especial da narrativa chinesa que se contrapõe a
uma ficção testemunhal, pois que há diferenças já o sabemos. Nem Adorno e nem Primo Levi nos permitem
a desmemoria. O contrário dela é companheira inseparável do testemunho.
Palavras-chave: China - narrativa Ŕ testemunho - memória

Abstract
The news about the recent Nobel Peace Prize, Liu Xiaobo, and the banning by the Chinese government on
the Literature teacher receiving it sparked the debate over freedom of expression and its relation to the
testimonial literature in that country. We are used to analyze the Western literature more frequently than the
Eastern countries' and may not consider this one worthy of consideration, but it exists in a multitude of
writers who try to cross the immense walls of intolerance through their testimony. This article aims to
approach works like Xinran's "The Good Women of China" (2003) and China's Witnesses (2009), and Li
Cunxin's Farewell China (2008), under the look of testimony, a special peculiarity of Chinese narrative that
opposes to a testimonial fiction, since there are differences we already know. Neither Adorno nor Primo Levi
allow us to oblivion flaring. The opposite is just her inseparable companion of the testimony.
Keywords: China - narrative - testimony - oblivion flaring

Nem tudo é silêncio de seda na bela e temível China. O belo fala por si, mas o temível é
preciso muito mais que indignação para sujeitá-lo a uma análise um pouco mais que superficial.
Não resta dúvida que nascemos com um defeito de fábrica, já que nos falta aquela dose certa de
compaixão e humanidade que deveria fazer de nós seres exemplares; bem dizia Freud que não
somos criaturas Ŗgentisŗ...Tanto no Ocidente quanto no Oriente somos atores: algozes e vitimas
da intolerância e o ethos da civilidade já idealizado por Voltaire, há muito perdeu seu valor, não
obstante tentemos, por meio da palavra, devolvê-la a seu lugar de honra dentro de nós mesmos.
Isso porque seguimos insistindo noŗhumanismoŗ, apesar de Auschiwitz ter existido.
A maioria do que sabemos sobre a China, advém dessa literatura que se preocupa muito
mais em rememorar o que se deixou para trás por conta de um regime autoritário e opressor; e
que em dado momento se assemelha a uma literatura engajada, mas que na verdade não o é.
No entanto quando Adorno (1965) afirma que Ŗnenhuma palavra que é inserida numa obra
literária desvincula-se completamente das significações que possui no discurso comunicativoŗ
(pag.52), é porque também ela tem a sua razão de estar naquele lugar e só fará efeito naquele

47
Professora de Literaturas Hispânicas - Universidade Federal da Fronteira Sul Ŕ UFFS Ŕ Campus Cerro
Largo - RS
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contexto. Um olhar sobre seu pensamento, lança uma luz sobre o que ele se refere aos
Ŗrudimentos das significações externas nas composições literárias são o inevitavelmente
desartístico da arteŗ(p.53). Poderíamos entender que apesar das denuncias aos direitos
humanos expressas na literatura chinesa por meio do testemunho, seriam essas as significações
externas e que testemunhos-verdades poderiam não ter sido, na realidade não testemunhados.
Adorno questiona o engajamento quando Ŗele nada reflita sobre o efeito desempenhado por
obras cuja própria lei formal não leva em considerações os contextos de atuação.ŗ (p.54). Essa
breve reflexão serve para entendermos que a literatura chinesa do século XXI foge dos padrões
do engagement, pois de tal fenômeno chinês não se tem noticia factível no Ocidente.
O país mais populoso do planeta é também um dos mais fechados à liberdade. Um bilhão
de pessoas vive sob o regime totalitarista que conseguiu a façanha de tornar-se uma das maiores
potências do planeta sob o viés do capitalismo, mas que perpetuou a cultura da repressão
herdada da Revolução Comunista ao longo de sua história. A transição natural da relação social
entre a direita ocidental e a economia chinesa que deveria decorrer dessa abertura, de fato ela
não aconteceu, o revés dessa situação é a cada vez maior proibição às denuncias aos direitos
humanos. È um paradoxo quase que incompreensível que o país, a segunda maior economia do
mundo, atira ao cárcere quem de longe pensa em protestar contra o legado cultural do livrinho
vermelho.
O temível aqui tratado refere-se ao fato de que na China, a literatura do século XXI,
transformou-se, senão no único espaço no qual alguém pode denunciar o regime de exceção a
que estão submetidos todos os chineses. Assim, torna-se escritor quem na verdade nunca pensou
em sê-lo; torna-se narrador, oral ou não, quem jamais havia ousado pensar e falar além de seu
Ŗcasuloŗ. O fato é que ficar impassível, não nos torna melhores, ao contrário, reafirmamos a
indiferença e o distanciamento ao outro, assim como temos permanecido alheios ao livro de
Ayaan Hirsi Ali ŖInfielŗ (2006), e aos ŖVersos satânicosŗ (1988), de Salman Rushdie, por exemplo.
ŖAs boas mulheres da Chinaŗ (2003), escrito pela jornalista Xinran, é um conjunto de
testemunhos de mulheres que vivem sob séculos de tradição confuciana e décadas de
totalitarismo político que as oprimem desde o nascimento até a morte. A autora mantinha um
programa, Palavras na brisa noturna, numa das rádios estatais em Nanquim entre 1987 e 1997 e
daí decorreu, mais tarde, o projeto de publicar fora do país os infindáveis relatos e cartas que
enviavam para que fossem lidas durante sua transmissão. Uma delas tornou-se a gota dřágua
para que a autora tomasse a iniciativa de entrevistar as mulheres na tentativa de compreender e
conhecer mais a fundo seu próprio país:

Respeitada Xinran: Ouço todos os seus programas. Todo mundo na nossa aldeia
gosta deles. Mas não estou escrevendo para lhe dizer como o seu programa é
bom; estou escrevendo para lhe contar um segredo. Não é bem um segredo,
porque todo mundo na aldeia sabe. Há um homem velho e aleijado aqui, de
sessenta anos, que comprou uma esposa recentemente. Ela parece muito nova.
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Acho que foi raptada. Acontece muito disso aqui, mas muitas das garotas
conseguem fugir mais tarde. O velho está com medo de que a mulher fuja, por
isso amarrou-a com uma grossa corrente de ferro. A cintura dela está em carne
viva(...)o sangue escorre pela roupa. Acho que ela vai morrer.salve-a,por
favor.Não mencione esta carta no rádio de modo algum. Se os moradores da
aldeia descobrirem, expulsam a minha família daqui. Que seu programa fique
cada vez melhor. Seu ouvinte leal, Zhang Xiaoshuan. (p.14)

Esta foi uma das primeiras que Xinran recebeu. Após a licença do partido, que lhe
concedeu preciosos dez minutos no programa para atender a todas, a jornalista passou a receber
mais de cem cartas por dia dos mais diversos lugares da China e cujos dramas de suas ouvintes
tinham acontecido às vezes nos últimos setenta anos e provenientes de mulheres com
antecedentes sociais, culturais e profissionais bem diferentes. Revelavam mundos ocultos
segundo a autora. A certa altura, Xinran decide viajar pelo país e conhecer de perto os dramas
não só das mulheres, mas dos trabalhadores, das crianças e dos velhos.
O livro apresenta relatos impressionantes, tais como a menina que possuía uma mosca
como animal de estimação porque era o único contato físico que tinha com um ser vivo. Criada
numa família aterrorizada pelo Partido e sem jamais ter conhecido o carinho de um pai ou de uma
mãe, embora vivesse com eles. Ou então, a esposa cujo casamento fora arranjado pela
Revolução - Ŗse você não usa a mulher, para que se dar ao trabalho de tê-la?ŗ(pag.143) - ou
ainda, as mulheres da colina dos Gritos, no Noroeste da China, na região mais pobre do país,
cujas existências se acabavam nas piores condições de vida suportáveis a um ser humano: ŖO
lugar é completamente isolado do mundo moderno. (...) Os homens não hesitam em trocar duas
ou três filhas pequenas por uma esposa (...) ali também ocorre a prática social incomum de uma
esposa ser dividida entre vários maridos. (p.268).ŗ
Como jornalista, a autora ao longo de seus dez anos de programa na Rádio de Nanquim,
presenciou cenas inimagináveis e ouviu tantas vozes que jamais tinham se aventurado a falar de
si próprias mas apenas em nome do Partido, que este contato com a realidade levou-a a sair do
país:

Quando começou a abertura, o país portou-se como uma criança faminta.


(...)Depois, enquanto o mundo via uma China feliz e corada, de roupa nova e já
sem chorar de fome, a comunidade jornalística deparou-se com um corpo
atormentado pela dor da indigestão. E um corpo que não podia usar o cérebro,
pois o cérebro da China não tinha desenvolvido as células para absorver verdade
e liberdade. O conflito entre o que os jornalistas sabiam e o que tinham permissão
para dizer criou um ambiente que lhes prejudicou a saúde física e mental. Foi
esse conflito que me fez abandonar a carreira jornalística. (p.262). Naquela
época, na China, eu poderia ter sido presa por escrever um livro como este. Não
podia correr o risco de abandonar meu filho nem as mulheres que recebiam ajuda
e encorajamento através de meu programa de rádio. Na Inglaterra, o livro tornou-
se possível. (p.279).

Em nota preliminar, a autora esclarece que todas as histórias contadas são reais. As
vozes femininas expressas no livro demonstram a memória opressora da submissão ao homem e
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ao regime comunista; algo que também se repete no seu segundo livro ŖTestemunhos da China,
vozes de uma geração silenciosaŗ (2009). Particularmente, eu diria, e silenciada também; os
chineses sempre foram um povo de poucas palavras, mas depois da Revolução Comunista e
agora, mesmo com a tênue abertura (se compararmos com os demais países), o pouco que
podem manifestar ainda é motivo de repressões violentas por parte do governo chinês. Nessa
obra a autora expõe com mais agudeza o que ela classificou como Ŗum processo de auto-
descoberta, de revisitação e depuração de suas memórias do passado. (...) Para nós, chineses,
não é fácil falar aberta e publicamente sobre o que na verdade pensamos e sentimos, (..) quase
ninguém hoje, na China, acredita ser possível levar os homens e as mulheres do país a dizerem a
verdade.ŗ(pag. 15). No entanto, este segundo livro difere do primeiro posto que os testemunhos
registrados não possuem tom de denúncia, nem de queixa, mas sim revelam um conformismo que
lhes foi imposto por cinco mil anos de submissão a regimes autoritários. A denúncia está no que a
autora fez com os relatos, ou seja, contrapôs os mesmos com a liberdade real fora da China ao
publicá-los em forma de livro:

Xinran: Como o senhor encontrou uma esposa?


Wu: A primeira, não sei. Foi tudo acertado pelos nossos pais e, depois de quatro
anos, ela teve um bebê. Não ia dar certo, então encontrei outra. Essa era boa;
era uma mulher de valor. Entrei para o Partido em 1954 e ela, em 1955; era uma
mulher de valor. (...) Não vamos falar sobre isso, não dava certo com a primeira.
Então arranjei outra. A segunda, sim, tinha cabeça boa.
Xinran: Ela cozinha bem?
Wu: Muito bem...sabe fazer várias coisas.(p.208)

Xinran alcançou seu objetivo viajando por todo país, pelas regiões mais pobres e o que
presenciou foi uma China estacionada nas antigas dinastias; pessoas mais velhas comportando-
se, muitas vezes, como se estivessem, ainda, sob a Revolução Comunista. Observem o e-mail
que a autora recebeu a quatro dias de sua partida da Inglaterra rumo à China por parte de seu
contato no país:

Meu professor retornou a ligação. Ele diz que a vigilância no Lar dos Oficiais
Veteranos é extremamente reforçada; mesmo a família dos residentes se torna
suspeita quando são mencionados assuntos estrangeiros. É terminantemente
proibido divulgar seus números de telefones. Eles temem ser envolvidos. (...) é
assim que as coisas funcionam na nossa China.ŗ (p. 66)

A curandeira de 79 anos, Yao Popo, cuja vida foi uma sucessão de fatos que hoje em dia
seriam inadmissíveis no mundo moderno, perdeu sua mãe aos quatro anos e fora dada a um
comerciante de ervas medicinais. Mais tarde, durante a Revolução Cultural, obteve uma vida
melhor em vista de que os Ŗhospitais e as faculdades de medicina foram fechadas; as pessoas,
então, passaram a procurá-laŗ (pag.30). Em muitos relatos, percebe-se que os mais velhos têm
uma visão positiva sobre a Revolução em termos de comodidades segundo a opinião de quem
passou a vida inteira no campo. Mesmo aqueles que ainda vivem em casas de barro, sem água
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corrente e onde mais de trezentas famílias compartilham um mesmo banheiro público. O absurdo
é que este tipo de testemunho é de uma professora primária que acha normal tal condição!
O terceiro livro, ŖAdeus Chinaŗ(2008), cuja autoria é do último bailarino de Mao, Li Cunxin,
retrata sua trajetória de filho de camponês pobre, numa China comunista dos anos 60, até chegar
ao estrelato no Ocidente após desertar durante uma viagem aos EUA. O autor é mais jovem que
Xinran e o fato de ter nascido em plena Revolução Cultural, revela um homem a quem não lhe
fora concedido o beneficio da dúvida; é filho da Revolução e como todos chineses nascidos
naqueles anos, o fator aculturação fez parte de sua vida até conhecer o Ocidente. Seu
testemunho não apresenta questionamentos, muito menos revoltas, é como se houvesse nascido
sob o signo do silêncio. São lembranças e mais lembranças da infância de uma criança que viveu
até a adolescência no seio de uma família pobre, cumpridora de seu dever patriótico para com o
Partido. Temerosa e quase invisível - e ser invisível na China, até hoje, ainda é a melhor maneira
de não chamar a atenção do opressor sobre si - não fosse mais tarde, a família que havia gerado
um dançarino espetacular, mas por azar, um desertor: ŖEsta é minha história. Aqui estão minhas
recordações daqueles anos da China de Mao. É a historia de minha família. É minha jornada,
desde as lembranças mais remotas, passando pela descoberta da dança, até a vida no Ocidenteŗ
(p.2).
O que mais desperta a atenção do leitor é a singeleza da narrativa testemunhal, ausente
de tristezas, como se o autor ignorasse a miséria cotidiana, os piolhos nas roupas reutilizadas
pelos outros seis irmãos, a fome permanente, e a labuta diária para alcançar a cota estipulada
pelo governo de Pequim. O Partido decidia o que tinha que ser plantado em cada comuna e
pagava algo equivalente a 17 centavos de dólares por mês a cada pessoa que houvesse
trabalhado; as mulheres recebiam a metade da quantia destinada aos homens. Mas, apesar de
tudo, a infância transcorria dentro da normalidade daquela época; doutrinação permanente dos
camponeses através do que se entendia como alfabetização por meio do livrinho vermelho era o
máximo que alcançavam como leitura. Aos chineses não lhes tocava mais que aceitar a situação.
O relato de Li Cunxin aborda a condição de submissos ao Partido sob olhar da inocência,
mas nele encontra-se o testemunho de uma época que mudou radicalmente uma parte do mundo,
matou memórias milenares, silenciou intelectuais e qualquer pessoa contrária ao governo de Mao.
O livro vai-se constituindo em uma grande denúncia à medida que avança no tempo narrativo
embora ausente de acusações:

Nossa infância na Comuna Li não era feita apenas de histórias e brincadeiras. Foi
nessa época, em meados de 1966, que a Revolução Cultural atingiu seu período
mais caótico. Jing trin e eu éramos pequenos demais para participar - 6,7,8 anos
de idade. Mas meus irmãos mais velhos participaram. Eles saiam à tarde e
voltavam à noite, contando historias terríveis sobre como os jovens guardas
vermelhos destruíam tudo que lembrasse o Ocidente:livros, pinturas, obras de
arte Ŕ qualquer coisa. (...) uma incontrolável onda de fúria política varria a China.
(...) até o respeitável chefe da vila foi acusado de contra-revolucionário, eu e
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meus irmãos vimos quando um grupo de acusados teve de percorrer a vila com
pesados quadros-negros pendurados no pescoço e chapéus de papel branco na
cabeça. Cada um tinha os crimes anotados a giz no quadro e o nome escrito no
chapéu (...) deviam confessar seus crimes à multidão. (p. 74)

Para o menino, o mundo se resumia à vila e ao Partido; o isolamento cultural a que estava
submetido o tornava ignorante do que acontecia fora da comuna. No fundo, intuía que havia mais
que miséria, proibições e canções patrióticas cantadas todos os dias na escola; prova disso eram
os desfiles dos contra-revolucionários. América e o resto do Ocidente eram palavras, idéias,
sonhos fora de seu parco vocabulário. Um dia, ao caminho de casa, encontrou um livro; guardou-o
como um tesouro porque dentro havia um mundo diferente do seu. A princípio pegou-o para servir
de papel higiênico à família; mas, ao abri-lo e descobrir que havia sido traduzido para o chinês,
atirou um primeiro olhar e percebeu que nele havia referências a uma cidade chamada Chicago e
que era uma história de amor: Ŗ(...) uma leitura tão agradável! Era difícil encontrar histórias de
amor. Daria qualquer coisa para ler o final. Mas os guardas vermelhos tinham destruído tudo que
contivesse qualquer traço de romance ou um toque ocidental. Quem possuísse um livro assim
seria presoŗ(pag.104). As 40 páginas foram lidas com avidez e deixou um sentimento de surpresa
e desejo de saber mais sobre o Ocidente, o que naqueles anos ficou só na vontade.
Aos 11 anos Li Cunxin foi selecionado pelos representantes de madame Mao para estudar
balé. A partir de então, sua vida mudou. Viajou com mais outros garotos de todas as partes da
China para fazer parte da Academia de Dança de Pequim. Quando completou 13 anos tornou-se
membro do Partido Comunista e esforçou-se para conciliar o doutrinamento constante com as
aulas de balé.
A essa altura, o autor tem a idéia de liberdade; palavras como Ŗlavagem cerebralŗ já fazem
parte de seu vocabulário: ŖNessa mesma época, outro Řanti-revolucionárioř chegou à academia,
vindo dos campos de lavagem cerebralŗ(p.196). Reações que condenavam atos humilhantes em
relação aos que eram considerados direitistas se manifestavam cada vez mais freqüentes em seu
relato:ŗOutros, que assistiam, começaram a chamá-lo de direitista sujo...não consegui suportar.ŗ
Assim, Li Cunxin vai descobrindo a liberdade de pensamento e o fato de ser agraciado, mais tarde
com uma bolsa de estudos para o Houston Ballet Academy, no Texas, como parte do processo de
Ŗaberturaŗ do governo chinês, levou-o finalmente a desertar:

ŖA liberdade experimentada nos Estados Unidos me vinha à memória


constantemente. Na China, seria impossível desafiar o chefe Mao e a autoridade
absoluta de seu governo. Os direitos individuais não existiam. Tudo nos era
imposto: o que fazer, quanto trabalhar, quanto receber, onde viver e quantos
filhos ter. Minhas crenças comunistas entravam em choque com as lembranças
da América. E se eu tivesse a mesma liberdade?ŗ

E, finalmente, aos 38 anos, instalado e com família formada nos Estados Unidos, Li Cunxin
pode escrever seu livro de memórias. Lembranças que só foram possíveis vir à tona depois que
atravessara a fronteira da opressão e superara as barreiras culturais existentes entre seus dois
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mundos. Isso prova que, tal como Xinran, o autor vivera o tempo da palavra amordaçada, cada
um a seu modo.
Qualquer que seja o lado em que se encontra o poder opressor, este projeta sua virulência
em direção à morte da palavra e à paralisação de sentido de cidadania, reduzindo uma sociedade
ao mutismo intelectual. Assim acontecera com todos os chineses por muito tempo, os dois autores
não foram a execeção.
ŖAs boas mulheres da Chinaŗ, ŖTestemunhos da Chinaŗ e ŖAdeus Chinaŗ, apesar de
formarem um conjunto de palavras testemunhais de um momento crucial e terrível do país,
faladas a partir de uma época histórica contemporânea, distante no tempo em que os fatos
ocorreram, são, sobretudo, a ponte do tempo entre os entrevistados e a autora e entre a infância
do futuro bailarino e a liberdade. Xinran e Li Cunxin só conseguiram extrapolar o silencio após
saírem do país. Longe do regime de Mao, superaram os efeitos do silenciamento imposto e
converteram o que antes era apenas um sussurro interno para tornar-se num antídoto de qualquer
forma de totalitarismo.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor. Notas de literatura. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 1991.

CUNXIN, Li. Adeus, China.São Paulo: Editora Fundamento, 2008.

LE BRETON, David. Do silêncio. Lisboa:Instituto Piaget, 1997.


XINRAN. Testemunhos da China.Vozes de uma geração silenciada.São Paulo: Companhia das
Letras, 2009.

______. As boas mulheres da China. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
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O RISO E A DENÚNCIA SOCIAL

ODIRLEI VIANEI UAVNICZAK48

Resumo
Nesse trabalho analisamos o romance O amor de Pedro por João, de Tabajara Ruas, em paralelo ao estudo
de Henri Bergson acerca do riso, com o objetivo de investigar o motivo pelo qual o riso é tão freqüente
nessa obra que retrata o período repressivo das ditaduras militares no Brasil e no Chile.
Palavras-chave: O amor de Pedro por João, Tabajara Ruas, Bergson, comicidade, riso.

Abstract
In this work we analyze the Tabajara Ruasř book ŖO amor de Pedro por Joãoŗ in parallel to Henri Bergson's
study about laughter. Our purpose is to investigate the reason why laughter is so frequent in this book that
portrays the repressive period of military dictatorships in Brazil and Chile.
Keywords: “O amor de Pedro por Joãoŗ, Tabajara Ruas, Bergson, comicity, laughter.

Entre os anos de 1964 e 1985 o Brasil viveu um período ditatorial, que derrubou um
presidente democraticamente eleito e instaurou um regime autoritário no país. Aqueles que eram
contrários ao regime foram perseguidos, mortos ou exilados, como aconteceu com muitos
intelectuais. Dentre esses, encontra-se Tabajara Ruas; engajado na resistência ao autoritarismo
que grassava o país, a fim de não ser preso teve de deixar o Brasil, exilando-se no Uruguai, Chile,
Argentina, Dinamarca, São Tomé e Príncipe e Portugal.
Sobre esse período de resistência e exílio, escreveu dois livros literários: A região
submersa, uma sátira política de inspiração surrealista representando uma metáfora do Brasil
durante o difícil período de censura e repressão do governo Médici, e O amor de Pedro por João
(ou O dia em que Dorival encarou a guarda) cujo tema é a vida e o exílio daqueles que lutaram
contra a ditadura no Brasil e no Chile, retratada por diversos personagens representando os
arquétipos dos principais grupos que compunham a resistência (operários, estudantes, militares,
religiosos etc.). É desse último livro que se ocupa este trabalho, cujo objetivo é refletir e investigar
o motivo pelo qual o riso é amplamente usado ao narrar os anos de chumbo durante a ditadura,
isto é, por que a comicidade é inserida ao se escrever sobre lembranças dramáticas e dolorosas.

1 O RISO E O SOCIAL

Vários são os estudiosos que se ocuparam com o cômico e as teorias sobre esse tema; o
diferencial da abordagem de Henri Bergson é sua não preocupação em definir, em conceituar o
cômico. Seu objetivo é estudá-lo em seu lugar natural Ŕ isto é, a sociedade Ŕ e depreender o que
há de comum em todas as formas do cômico (essência), constituindo, assim, um conhecimento

48
Acadêmico dos cursos de Letras Ŕ Português e Literaturas de Língua Portuguesa e Filosofia Ŕ
Licenciatura Plena da Universidade Federal de Santa Maria. Bolsista PROBIC/FAPERGS/UFSM do Projeto
Integrado Literatura e Autoritarismo, sob a orientação da Prof.ª Dr. Rosani Umbach.
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útil do riso e de qual a sua significação social.


Dessa forma, seu estudo não se enquadra como estritamente filosófico (na acepção
segundo a qual a filosofia ocupa-se em análises conceituais, considerando a tradição), estando
mais próximo de uma abordagem sociológica, uma vez que não há um embate com a tradição
filosófica relativa a esse tema e o texto transcorre como uma investigação autônoma, original, que
vez ou outra reitera sua própria importância e vantagem em relação a outros estudos, sem se
preocupar em comentá-los, todavia.
É essa abordagem de viés sociológico que constitui a unidade da obra, na qual Bergson
estuda tipologicamente a comicidade em busca de uma espécie de essência (um modus operandi)
subjacente a todas as formas e que nos levaria a rir, independentemente da manifestação cômica.
Essa investigação é metódica e rigorosa no decorrer de todo o livro, mas, se abre a possibilidade
de se a considerar por vezes exaustiva e maçante, conta com a vantagem de não tirar nenhuma
conclusão da cartola, e sim deduzi-las sistematicamente de cada uma das situações consideradas
segundo o método assumido, acercando-se progressivamente de essência até a dedução da Lei
Geral do Cômico e, deste ponto em diante, de leis derivadas desta para cada tipo de comicidade
em específico. Desta maneira, uma vez que o leitor concorde com a lei geral, ver-se-á impelido a
concordar com cada uma sistematicamente, a fim de não cair em inconsistências, pois é partindo
de premissas tiradas de situações reais de comicidade Ŕ como caricaturas, desenhos, vaudeville,
obras cômicas, etc Ŕ que a lei geral é formulada e então aplicadas a outras formas de comicidade
mais sutis, a fim de clarificar sua estrutura risível, tendo sempre em vista o riso como um
fenômeno sócio-cultural.
O livro é dividido em três capítulos. No primeiro, intitulado Ŗsobre a comicidade em geralŗ,
em que estuda a Ŗcomicidade das formas e do movimentoŗ e a Ŗforça de expansão do cômicoŗ,
Bergson investiga o riso enquanto manifestação social, mais especificamente, sobre o que nos faz
rir e por que rimos; a partir dessa análise, formula três princípios fundamentais, segundo os quais:
1) Não há comicidade fora daquilo que é propriamente humano (Bergson, 2001, p. 2),
podemos rir de coisas e animais, mas rimos daqueles caracteres humanos que vemos neles;
2) A emoção é o maior inimigo do riso (Bergson, idem, p. 3), o qual se dirige à inteligência
pura, pois se algo toca o sentimento, emociona, gera a simpatia, assume ares graves e propicia o
dramático ou o trágico. Por outro lado, se atinge a inteligência pura, vemo-lo como espectadores
indiferentes, anestesiamos o sentimento e tudo perde a gravidade, tornar-se leve e, portando, apto
a se tornar risível;
3) O riso exige cumplicidade (Bergson, idem, p. 4), não se faz comicidade para rir sozinho
e algo risível em outras culturas podem não o ser na nossa.
A partir desses três princípios, ao analisar as mais diversas manifestações do cômico,
chega à lei geral de que o riso é despertado quando percebemos no vivo (o móvel por excelência,
o não-estático) alguma espécie de rigidez, de mecanicidade, de inadaptabilidade involuntária e
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inconsciente, de uma força inflexível contrária à vontade (o estático, o não-vivo); enfim, por uma
inflexão do natural no artificial.
A partir desses fundamentos do riso enquanto uma espécie de instituição social, e da lei
geral de sua estrutura risível, na segunda parte, intitulada Ŗcomicidade de situações e comicidade
de palavrasŗ, passa a estudar os tipos cômicos, progredindo para formas cada vez mais sutis
depreendendo delas sugestões que a aproximam com o mecanismo de tipos mais grosseiros e
mais perceptíveis. A terceira parte é uma continuação desse progresso (Ŗcomicidade de caráterŗ),
incluindo um estudo do gênero cômico em comparação com outros gêneros.
Em todos esses capítulos, busca sempre validar a universalidades das leis e sua
aplicabilidade, visto que sua preocupação última é fundamentar um conhecimento útil do cômico
enquanto manifestação social, tendo sempre como pano de fundo a noção de bem, mesmo que
um tanto implícita, mas claramente visível quando tem de justificar o porquê rimos de virtudes e de
boas ações (rimos, segundo o filósofo, dos aspectos mecânico com que são realizadas e não
propriamente delas enquanto virtudes) e ao comentar que alguns dos desvios sociais alvo do riso
se dá em virtude de certos preconceitos; sendo essa, sem dúvida, a dimensão filosófica mais
notável do estudo.
A tese principal de Bergson é a de que o riso é uma espécie de Ŗtrote socialŗ objetivando,
através do temor e da ameaça de humilhação, a impedir com que os indivíduos se comportem de
forma inadequada aos costumes estabelecidos (incluindo-se aí os preconceitos também). Na
sociedade não se exige que apenas se viva, mas que se viva bem. Qualquer desvio do equilíbrio
sempre vigilante e delicado da convivência social, qualquer extravagância representa um gesto de
ameaça. Não sendo afetada materialmente, a sociedade não pode castigar àqueles que se
desviam a não ser através do riso; responde, assim, a um gesto que a ameaça (o desvio) com um
outro gesto que o pune (o riso). A rigidez é a comicidade, o riso é seu castigo (Bergson, idem, p.
15).
Por servir à sociedade sem, no entanto, efetivar uma ruptura desta com a arte, faz com
que a comédia não seja, na maneira de ver bergsoniana, uma arte pura, situando-se numa zona
intermediária entre a arte e a vida; diferente da tragédia, que visa ao singular universalizando-o, a
comédia é a arte do geral, pois se embasa em certa rigidez social em vistas dos costumes Ŕ
independente de quem a porta, por isso a maioria das obras desse gênero tem títulos genéricos
tais como, O jogador, O misantropo, As sabichonas etc.

2 O RISO E A DENÚNCIA EM O AMOR DE PEDRO POR JOÃO

O amor de Pedro por João inicia com Marcelo Oliveira refugiando-se na embaixada da
Argentina no Chile, após o fracasso do levante armado contra o golpe de Augusto Pinochet, que
derrubou o presidente Salvador Allende. O livro acaba com os personagens abandonando o exílio
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no Chile por um segundo exílio, desta vez em diversos países da Europa que aceitaram abrigar
perseguidos políticos das ditaduras latino-americanas. Entre esses dois momentos Ŕ cujo lapso
temporal é curto, considerando-o cronologicamente Ŕ se passa todo o romance, composto
basicamente de rememorações dos personagens, principalmente dos fatos marcantes em suas
vidas, com uma estrutura narrativa complexa, sobrecarregado com idas e vindas no espaço e no
tempo, bastante fragmentado, com inclusão de técnicas cinematográfica, como a colagem,
metaforizando através dessa estrutura os mecanismos ainda misteriosos da rememoração e suas
regras de associações de idéias.
À maneira dos romances pós-1964, a obra tem como temática o regime repressivo da
ditadura. Tal tema é representado através das lembranças de uma gama de personagens
combatentes Ŕ de estudantes a operários Ŕ de modo a formar uma memória coletiva da vida dos
revolucionários e da sociedade naquela época. Com uma linguagem leve e humor, o narrador
onisciente mostra a vida durante tal período focalizando-se principalmente nas ações lembradas,
sem emitir juízos de valores, de modo a representar o ambiente dos anos 70 de forma verossímil;
para tanto, o narrador evita de dicotomizar a luta entre Bem e Mal, ou heróis contra vilões. Assim
sendo, o romance insere-se na literatura combativa, mas com preocupação de recuperar
ficcionalmente a Ŗmemóriaŗ dos anos 70, centrando-se não no combate, mas em questões
corriqueiras, na vida de uma geração sob e contra a ditadura, como já antecipa o título da obra.
Compõe, assim, por meio de diversos personagens um complexo mosaico através do qual
transparece o tecido social brasileiro.
A narrativa é permeada de comicidade, seja do narrador, seja dos e entre os personagens,
sem ter o riso, no entanto, como objetivo principal (salvo em poucos casos pontuais), mas
diluindo-o no enredo. O Riso aparece já nos primeiros parágrafos, quando Marcelo Oliveira depõe
as armas buscando abrigo na Embaixada, enquanto a capital Santiago agonizava um estado de
sítio com vários confrontos e bombardeios grassando a cidade,

- Como o senhor entrou na embaixada, por favor?


- Pulei o muro.
Alguns risos, O funcionário esparrama suave olhar interrogativo, os risos cessam.
Apanha as armas com a ponta dos dedos e infinito nojo (risos) e passa-as para o
enigmático rapaz bem vestido [...] (Ruas, 1991, p. 8)
[...] precisa dormir, encontrar um lugar sossegado, longe do choro das crianças,
das gargalhadas (já há quem dê gargalhadas), longe do cheiro do mofo de suor
derrota que emana das pessoas [...] (Ruas, idem, p. 9)

e continua no decorrer da narrativa, chegando, em alguns casos como o do dia em que Dorival
encarou a guarda, a cenas efetivamente cômica.
Grosso modo, podemos perceber duas formas de comicidade na obra: a que é feita e
vivida pelos personagens, em que eles riem e se divertem; e uma segunda forma, produzida pelo
narrador e dirigida ao público leitor, que não afeta o mundo ficcional vivido pelos personagens.
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Entretanto, apesar de ser escrito em linguagem leve, por retratar os anos de chumbo, o
livro contém muitas passagens fortes e dolorosas, como a da tortura sofrida pela mulher e pelo
filhinho de um perseguido da ditadura a fim de ela delatar o marido e cuja experiência limite a
impede de expressar o que sofreu e só o sabemos, os leitores, por uma incursão do narrador
onisciente dentro da consciência da personagem. Além disso, mesmo não sendo auto-biográfico,
a biografia está implícita, uma vez que os personagens tem um percurso semelhante ao do autor
Ŕ opositor do regime brasileiro, fez um percurso de exílio semelhante a seus personagens, que
transitaram entre os dois pólos Brasil-Chile, e, por fim, para a Europa; não é uma memória
pessoal, mas coletiva da geração contrária à ditadura vivida pelo autor e representada por
diversos personagens ficcionais.
À primeira vista, o riso parece relacionar-se com os sentimentos do campo da alegria, da
comemoração, do prazer e das coisas positivas, contrapondo-se à tristeza, à dor e à derrota e,
inclusive, à morte. Uma perplexidade surge, todavia, ao lermos o livro, que retrata a derrota e o
fracasso daqueles que lutaram contra regimes políticos repressivos, as torturas, as mortes e
outras tantas negatividades. Por que há tantas referência e presença do riso dentro de um tema
desse quilate? Esse mesmo estranhamento encontra-se, aliás, na própria narrativa, no fragmento
transcrito acima em que os dissidentes dão gargalhadas no conforto e na segurança da
embaixada enquanto a luta e a morte avassala a cidade: (já há quem dê gargalhadas).
O estudo de Bergson sobre o riso, no entanto, fornece-nos alguma luz para entendermos a
presença substancial do cômico nesse romance de denúncia social apesar do forte teor do tema,
principalmente por tratar primeiramente o riso enquanto fenômeno social. Vale ressaltar que, no
romance, o riso não é uma forma de ridicularizar e humilhar os oponentes, embora também se
encontre esse tipo, mas ocorre principalmente entre os diferentes grupos sociais opositores, uma
vez que eles são os protagonistas. Na verdade, se invocarmos o princípio 3 (O riso exige
cumplicidade), podemos perceber que a construção desse mosaico social é a causa mesma e,
inclusive, necessária da constante presença do riso para um relato que se quer verossímil.
Vejamos, cada grupo e cada geração, antes do golpe, viviam imersos em seus costumes
estabelecidos; para eles, portanto, tais costumes, pela repetição diária, compunham-se como um
modo Ŗnaturalŗ de viver a vida. A ditadura militar, contudo, obrigou-os a unirem-se na resistência;
assim, diversos costumes que normalmente não conviveriam tão intimamente passaram a fazê-lo,
confrontando-se. Como o costume é resultado de repetições, constituem-se como o que há de
rígido Ŕ de mecânico Ŕ no grupo, justamente o que causaria o riso em membros de outros grupos
como punição à imobilidade do vivo. Dessa forma, o riso estaria mais como conseqüência de se
representá-los verossimilmente do que um objetivo em si mesmo.
O fragmento a seguir, em que se discute o assalto a um banco, é uma boa mostra não só
do cômico, mas também dos tipos sociais e seus trejeitos (principalmente estudantes, intelectuais,
dirigentes de organizações e operários), e do caráter rememorativo do romance, em que uma
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palavra se associa a outra e assim sucedem-se as lembranças.

Aperta o acelerador. O carro voa. A tristeza se dissipa lentamente. Voa. Na noite


chilena, alta e constelada, voa. Recorda aquela tarde em Porto Alegre Ŕ quanto
tempo atrás? Um ano? Dois? Três? Ŕ em que voou de verdade, quando dois
carros da polícia escuros e brilhantes [...] fecharam a rua e ele avançou em sua
direção [...] E vinte minutos antes estava tão cômodo no aparelho, olhando
aborrecido o teto e pensando que tudo que queria nesse momento era um oliú
com filtro [...] Porra, ninguém tem mais cigarro, os três outros caras das outras
organizações parece que também não tinham e mesmo assim a sala estava
inundada de fumo e do cheiro de fumo. A porra da reunião já durava dois dias e
necas de acordo para um troço tão simples. Já tinha dito duas vezes e tinham
levado a coisa meio na brincadeira (o mal é que sempre o levavam meio na
brincadeira) que é isso, negão, calminha. Só porque falara que bastava entrar no
maldito banco, botar todo mundo no banheiro e agarrar a grana, pombas. Riam
disfarçados, com cansaço, como quem escuta um menino, e depois se tornavam
outra vez sérios, revolucionários, precisamos de duas viaturas, companheiros, e o
cara da outra organização, o de óculos, sorria superiormente, sacudia a cabeça,
três, dizia, sem três viaturas é impossível. A coisa encrespava mesmo quando
passavam das viaturas para as armas. Sem três AK-47 não dá nem pra saída,
precisamos bloquear duas esquinas, manter fechada a porta do banco, enquanto
a expropriação se desenrola com três homens participando diretamente, mais dois
nas viaturas que esperam na rua lateral, sem isso é um risco muito grande, esse
banco é super vigiado, companheiros. Dois dias nisso. O cara de óculos sorria
superior, citava Lênin e dizia só teremos esse material na próxima semana, até lá
faremos o levantamento do local sem precipitação, o mal todo é que continuamos
a agir como amadores e então João Guiné dizia, compadre, já fizemos o tal
levantamento duas vezes, tem um cigarrinho aí, por acaso, pergunta. [...] e Guiné
sorri, senta na sua cadeira, coça o cavanhaque, vamos fazer uma pausa diz,
assim não dá, precisamos clarear as idéias, tanto carro assim vai acabar dando
um engarrafamento de trânsito e tudo o que queremos é fazer um trabalhinho
rápido e limpo, não é mesmo rapaziada? Eu to ficando velho, no meu tempo era
menos conversa e mais ação, mas vocês sabem o que fazem, vocês é que lêem
esses livros todos, Nego Véio tá por fora. (Ruas, idem, pp. 85-86)

E então, irritado, João Guiné decide abastecer o aparelho e vai ao mercado comprar
cigarro e café; como o banco ficava no caminho, entra sozinho e desarmado, desarma os
seguranças, põe todo mundo no banheiro, pega o dinheiro e vinte minutos depois retorna ao
aparelho, deposita as provisões sobre a mesa, pergunta quem vai esquentar água para um
cafezinho pois ele está merecendo, e Ŗjoga os sacos de dinheiro sobre a mesa e sob os mudos
olhares de espanto, [diz] vamos discutir outra ação gente boa, porque essa já era.ŗ (Ruas, idem, p.
94).
Nesse longo fragmento do romance, percebe-se vários conflitos de costumes entre grupos
e gerações (apesar de estarem unidas pela causa combativa), cada qual reprimindo e castigando
o que considera vícios nos outros grupos com o riso e a ironia. Assim, os dirigentes das
organizações riem do velho Guiné pois esse, tal como criança, acha tudo muito fácil e age como
amador; Guiné, por sua vez, ironiza as organizações pelo excesso de burocracia, pelos detalhes
excessivos e erudição gratuita, por muita conversa e pouca ação. Percebe-se o apelo ao cômico
na caracterização de personagens, em que se destaca certas características anedóticas, como o
clichê dos óculos para representar o intelectual, e o hábito de citar teoria para justificar certas
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ações práticas mesmo que não tenha nenhuma utilidade a esse propósito, apenas para
demonstrar erudição, por capricho. Ri-se, portanto, de certas repetições que acabam definindo
certos tipos sociais.
O riso mostra-se como o resultado de uma subjetividade que se afasta de suas memórias
dolorosas, e consegue refleti-las, abafando o sentimento e analisando-a racionalmente,
procurando as virtudes e os erros dos opositores e dos repressores. Em vez de senti-las, pensa-
as. Esse papel é efetivado pelo narrador onisciente através da polifonia de representantes de
diversos grupos mostrando como eles enxergavam-se; essa é a fonte do riso mundo extra-
ficcional, dirigido aos leitores.
Dentre os efeitos que a inserção da comicidade proporciona, percebemos que o riso
instaura um distanciamento necessário para refletir e avaliar o período e a atuação dos opositores
internamente ao movimento e sobre o movimento, não se constituindo, dessa forma, a narrativa
como apenas um relato ambientado no e contra o período ditatorial; o cômico não apenas critica a
ditadura e expõe os equívocos e vícios daqueles que contra ela lutaram e fracassaram, exige
concomitantemente a correção dos mesmos, pois o riso não apenas denuncia, mas também
castiga, isso mostraria uma possível busca de explicação para o porquê do fracasso da luta
oposicionista; ao ponderar o dramático com o cômico, torna a narrativa leve, mesmo tratando de
um assunto denso e delicado como os anos de chumbo. De forma que, ao inserir o riso, não
apenas retrata a vida verossimilmente, posto que há riso na vida, mas também dessacraliza essa
época e essa luta, salvando esse período do esquecimento.

REFERÊNCIAS

BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes,
2001.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

RUAS, Tabajara. O amor de Pedro por João. 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 1991.

SILVERMAN, Malcolm. Protesto e o novo romance brasileiro. Porto Alegre: Editora da


Universidade, 1995.
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MEMÓRIAS E IDEAIS DE DOMINGO SARMIENTO EM FACUNDO – CIVILIZACIÓN Y


BARBÁRIE49

PAULA KLEIN (UFSM)50

Resumo
Estando exilado no Chile, Domingo Faustino Sarmiento escreve um romance (novela em espanhol) que
mostra sua clara indignação com a situação em que se encontra a Argentina: uma época de dura ditadura
com um governo autoritário de Rosas. Para essa obra, o autor se utiliza da história de Facundo Quiroga, um
caudilho de grande importância história e política para a Argentina e antecessor de Rosas. O presente
trabalho visa analisar a memória de Domingo F. Sarmiento a respeito de Facundo Quiroga, buscando
estabelecer como essa memória participa da criação da obra Facundo - Civilización y barbarie (1845). É
possível notar uma clara divergência de idéias que o autor/narrador tem com o presidente de sua época
(Rosas). Neste sentido, espera-se entender como a memória do passado a respeito de Facundo funciona
como crítica a sociedade argentina da época de Sarmiento.
Palavras-chave: história, memória, gaúcho, barbárie, civilização.

Abstract
Being exiled in Chile, Domingo Faustino Sarmiento writes a romance (novela in Spanish) which states his
clear indignation towards the situation in which Argentina is: a period of hard dictatorship of the authoritary
government of Rosas. To this work, the author uses the history of Facundo Quiroga, a caudilho of great
historic and politic importance to Argentina and predecessor of Rosas. The present work intends to analyze
the memory of Domingo F. Sarmiento concerning Facundo Quiroga, seeking to establish how this memory
takes part in the creation of the work Facundo – Civilización y barbarie (1845). It is possible to notice a clear
divergence of ideas the author/narrator has about the president of his time (Rosas). In this way, it is
expected to understand how the memory of the past concerning Facundo works as critic towards the
Argentine society of the time of Sarmiento
Keywords: history, memory, gaucho, barbarity, civilization.

INTRODUÇÃO

Domingo Faustino Sarmiento, (1810-1888), argentino, escritor romancista, de grande


devoção por tudo que estava relacionado ao europeu, esperava uma apropriação dos padrões já
estabelecidos na Europa. Essa sua paixão pelo que vem do exterior, ligada à situação em que se
encontra a Argentina, faz com que o autor venha a se exilar no Chile em 1842 e logo após
escrever o romance. O governo da época era ditado por Rosas, um gaúcho que defendia a
federalização pelas palavras, mas exercia o unitarismo em um poder tirano.
Primeiramente, a obra foi publicada em um jornal chileno chamado El Progreso,
aparecendo na seção de folhetos, sendo essas 25 entregas: um modo de
demonstrar sua indignação tanto com o poder ditatorial quanto com Rosas, uma questão quase
pessoal. Um mês após, Sarmiento fez sua compilação e o publicou como livro. Muito mais que
uma simples novela (ou um simples romance), Facundo – Civilización y Barbárie remete a uma

49
Trabalho desenvolvido no Projeto Memórias autobiográficas, ficção e história, sob a orientação da Prof.ª
Rosani Úrsula Ketzer Umbach na Universidade Federal de Santa Maria.
50
Graduanda em Letras Ŕ Espanhol e Literatura Espanhola da UFSM
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forma de pensar, de conceber a realidade naquela época, demonstra as principais correntes que
estavam em voga e sua narratividade demonstra que é ficção, é história, é romance de tese.
Com essa pluralidade e diversidade, comum à América Latina e da mesma forma à
Argentina, o livro demonstra inúmeros temas, aspectos, perspectivas e concepções de mundo,
exatamente por um caráter de texto fundador que a obra apresenta.

Advertencia del autor: Algunas inexactitudes han debido necesariamente


escaparse en un trabajo hecho de prisa, lejos del teatro de los
acontecimientos, y sobre un asunto de que no se había escrito nada hasta
el presente. (...) A fines del año 1840, salía yo de mi patria, desterrado por
lástima, estropeado (...) Al pasar por los baños de Zonda, bajo las armas de la
patria(...), escribí con carbón estas palabras: On ne tue point les idées [as
idéias não morrem]. El Gobierno, a quien se comunicó el hecho, mandó una
comisión encargada de descifrar el jeroglífico (...) Oída la traducción, «¡y bien! -
dijeron-, ¿qué significa esto?...». Significaba, simplemente, que venía a Chile,
donde la libertad brillaba aún, y que me proponía hacer proyectar los rayos
de las luces de su prensa hasta el otro lado de los Andes. Los que conocen
mi conducta en Chile saben si he cumplido aquella protesta. (1845)
(SARMIENTO:1999, 4-5) [grifo meu] [tradução minha]

Nessa passagem é possível perceber muitos dos aspectos que tratará este trabalho:
primeiramente, a respeito das ideologias que formam Sarmiento e sua necessidade de expressar
o que pensa, até mesmo por se sentir o único apto para isso - o princípio de que esta é uma obra
fundadora da literatura argentina; em seguida, se fará uma análise a respeito do gênero (ou
gêneros) que compõe(m) a obra, bem como o caráter de ficcionalidade presente nesta.
Finalmente, se fará um estudo a respeito de como se encontra a representação textual, como
notamos no discurso literário as marcas da época e da memória de Facundo.

1. A IDEOLOGIA PRESENTE NA MEMÓRIA DE SARMIENTO

1.1. As divergências entre Sarmiento e Rosas

Entre muitas divergências de ideais, uma das mais significativas é que Sarmiento era um
unitarista: defendia um governo central mais forte, enquanto Rosas (do mesmo modo que
Facundo Quiroga) defendia um sistema federado, onde as províncias são relativamente
autônomas.
Como unitarista, Sarmiento estava relacionado a um projeto urbano dos letrados de
Buenos Aires, era também forte opositor do caudillismo, ou seja, da força bruta do homem do
campo e muito a favor a europeização da América. Por outro lado, Rosas (como Quiroga) fazia
parte de uma realidade de interior pecuário, composta por negros, camponeses e gaúchos. Por
essas diversidades, a obra de Facundo perpassa um tema: a diferença e valor dado ao que define
por civilização e barbárie, que será tratado posteriormente.
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¡Sombra terrible de Facundo, voy a evocarte, para que, sacudiendo el


ensangrentado polvo que cubre tus cenizas, te levantes a explicarnos la vida
secreta y las convulsiones internas que desgarran las entrañas de un noble
pueblo! (...) Facundo no ha muerto ¡Vive aún! ; está vivo en las tradiciones
populares, en la política y las revoluciones argentinas; en Rosas, su heredero, su
complemento. (...)y lo que en él era sólo instinto, iniciación, tendencia,
convirtióse en Rosas en sistema, efecto y fin. (...) Facundo, provinciano,
bárbaro, valiente, audaz, fue reemplazado por Rosas, hijo de la culta Buenos
Aires, sin serlo él; por Rosas, falso, corazón helado, espíritu calculador, que
hace el mal sin pasión, y organiza lentamente el despotismo con toda la
inteligencia de un Maquiavelo. Tirano sin rival hoy en la tierra.
(SARMIENTO,1999:6) [grifo meu]

Ao se utilizar da sombra de Facundo como se fosse sua musa inspiradora, Sarmiento


evoca Facundo por notar nesse um protótipo do ditador Rosas, por ser aquele o homem que
desperta na Argentina o sentimento de caudillo, de gaúcho, que de forma bruta e selvagem luta
por diversão, por política, por honra, por qualquer motivo.
Apesar de o livro ser denominado Facundo, é possível notar que a maioria das críticas é
destinada a Rosas, a essa situação que fez Sarmiento exilar-se. Conforme a citação anterior,
Facundo é a origem do caudilhismo, da brutalidade instaurada na Argentina, mas este ainda o era
em paixão, em sentimento de que vive em sua região, o autêntico gaúcho. Facundo ainda vive em
Rosas, que por sua vez, usa desses sentimentos, dessa emoção, mas ele não é gaúcho, não se
identifica com esse espírito, é somente calculista e se utiliza disso para conseguir o poder.
Alguns estudiosos de Sarmiento também acreditam nessa forma de protesto que muitas
vezes se sobressai em sua manifestação literária. Barrenechea (1978) chega a pensar que
Sarmiento era obcecado por perseguir Rosas: ŖEn carta a Mitre, del 13 de abril de 1852, aún sigue
afirmando: ŘPara mí no hay más que una época histórica que me conmueva, afecte e interese, y
es la de Rosas. Éste será mi estudio único, en adelante, como fué combatirlo mi solo estimulante
trabajo, mi solo sostén en los días malos. (BARRENECHEA, 1978:12-13).
Nesse sentido, foi possível determinar que a preocupação de Sarmiento está mais
relacionada a protestar contra o governo Rosas do que reivindicar a respeito dos atos do gaúcho
Facundo. Como também já pode ser notado na Ŗadvertencia del autorŗ, Sarmiento queria que suas
ideias chegassem a sua Argentina, seu modo de protestar, enquanto escritor, foi de utilizar seus
recursos: a palavra.
Sarmiento, como muitos escritores latino-americanos, levava fé no Ŗpoder da palavraŗ.
Palavra essa que na América Latina tem grande poder de protesto, de reivindicação, tal como
menciona Mario Benedetti (1977):

En Europa, revelar en forma casi excluyente la importancia de la Palabra puede


expresar una actitud básicamente intelectual; (...) Pero, en América Latina, asume
distintas proporciones. En un país subdesarrollado donde el hambre y las
epidemias hacen estragos, donde la represión, la corrupción y el agio no son un
elemento folklórico sino la agobiante realidad de todos los días, proponer el
refugio de la Palabra, hacer de la Palabra una isla donde el escritor debe
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atrincherarse y meditar, es también una propuesta social. Atrincherarse en la


Palabra viene entonces a significar algo así como darle la espalda a la
realidad; hacerse fuerte en la Palabra es hacerse débil en el contorno. (...) La
palabra recibe todo el cuidado que merece, pero está abierta a la realidad,
es influida por el contorno, se constituye en su reflejo, así sea muchas
veces un reflejo deformante, distorsionador. (BENEDETTI, 1977: 369-370)
[grifo meu]

Como objetivo de trabalho, de estudo e de vida, a fixação em Rosas pode ser notada em
muitos escritos de Sarmiento, demonstrando um homem com todas as forças de um lutador, com
paixão e intelecto frente à Palavra, como em: ŖY yo no acepto la negación de la parte que me toca
en ella, porque aceptarla sería desesperar del porvenir de mí patria y anularmeŗ
(BARRENECHEA, 1978:14). Dessa forma, mais que um protesto, Sarmiento quer o
reconhecimento pela parte que lhe é de direito, pela luta social que estabeleceu, pela realidade
que tratou, pela obra fundadora que escreve contra o tirano.
Sarmiento exige sua autoridade apresentando-se como o único capaz de aplicar um
conjunto de textos que funcionarão como fundadores, uma vez que a insuficiência cultural e
literária da época era notável na Argentina. O autor, como um homem letrado, sente-se em lugar
de compensar o atraso da realidade da época através da palavra, nesse caso, Ŗel discurso no
tanto revela cuanto constituye su objetoŗ (BARRENECHEA, 1978:16).

1.2. A dualidade Civilização Ŕ Barbárie

Nos primeiros capítulos do livro, Sarmiento busca descrever o território argentino,


justificando que o federalismo só foi instaurado pela geografia da região, ou seja, pela distribuição
das províncias e o deserto que as separa. Culpando a natureza, podemos notar também a
introdução dos aspectos culturais do gaúcho, onde a pampa o Ŗdoutrinaŗ para ter certas atitudes,
certa moral e compreensão de mundo:

En la solitaria caravana de carretas que atraviesa pesadamente las pampas, y


que se detiene a reposar por momentos, la tripulación, reunida en torno del
escaso fuego, vuelve maquinalmente la vista hacia el sur, al más ligero susurro
del viento que agita las yerbas secas, para hundir sus miradas en las tinieblas
profundas de la noche, en busca de los bultos siniestros de la horda salvaje que
puede, de un momento a otro, sorprenderla desapercibida. Si el oído no escucha
rumor alguno, (...) entonces continúa la conversación interrumpida, o lleva a la
boca el tasajo de carne, medio sollamado, de que se alimenta. Si no es la
proximidad del salvaje lo que inquieta al hombre del campo, es el temor de un
tigre que lo acecha, de una víbora que no puede pisar. Esta inseguridad de la
vida, que es habitual y permanente en las campañas, imprime, a mi parecer, en
el carácter argentino, cierta resignación estoica para la muerte violenta, que
hace de ella uno de los percances inseparables de la vida, una manera de morir
como cualquiera otra, y puede, quizá, explicar, en parte, la indiferencia con que
dan y reciben la muerte, sin dejar en los que sobreviven impresiones profundas
y duraderas. (SARMIENTO, 1999:21-22) [grifo meu]
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 155
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Dessa forma, Sarmiento introduz um olhar frente ao gaúcho em que o homem do campo
está sempre em contato com animais selvagens, com índios, que dorme em acampamentos,
caravanas, e que come carne Ŗsollamadaŗ, ou seja, carne praticamente crua e mais ainda, que
está acostumado a mortes brutais. Esse caráter um tanto rudimentar dado ao gaúcho demonstra a
idéia que transpassará toda a obra: a barbárie, a falta de cultura relacionada ao gaúcho, ao
homem do campo. Por outro lado, define como civilização tudo que está relacionado ao europeu,
à cultura antiga, aos grandes centros, como Buenos Aires, onde há instituições e população
estabelecida.
Toda a obra está carregada dessa constante diferenciação, que muitas vezes é um tanto
generalizadora e estereotipada. No caso seguinte, pode-se notar que não só o que é espanhol é
civilizado, mas o europeu em si, como os imigrantes.

Da compasión y vergüenza en la República Argentina comparar la colonia


alemana o escocesa del sur de Buenos Aires y la villa que se forma en el interior:
en la primera, las casitas son pintadas; el frente de la casa, siempre aseado,
adornado de flores y arbustillos graciosos; el amueblado, sencillo, pero completo;
la vajilla, de cobre o estaño, reluciente siempre; la cama, con cortinillas graciosas,
y los habitantes, en un movimiento y acción continuos. Ordeñando vacas,
fabricando mantequilla y quesos, han logrado algunas familias hacer fortunas
colosales y retirarse a la ciudad, a gozar de las comodidades. La villa nacional es
el reverso indigno de esta medalla: niños sucios y cubiertos de harapos viven en
una jauría de perros; hombres tendidos por el suelo, en la más completa inacción;
el desaseo y la pobreza por todas partes; una mesita y petacas por todo
amueblado; ranchos miserables por habitación, y un aspecto general de barbarie
y de incuria los hacen notables. (SARMIENTO, 1999:24)

É possível fazer uma análise clara da diferenciação estabelecida por Sarmiento, notando o
campo semântico atribuído a cada situação. Enquanto aos civilizados, são atribuídos como:
pintadas, graciosas, completo, reluzentes, graciosas novamente, ação, fabricando, produzindo; à
barbárie se associa a: sujos, cobertos de farrapos, cachorros, estendidos pelo chão, pobreza,
inação, miseráveis.
A utilização dessa dualidade também serve para criticar Rosas por instaurar a barbárie em
toda Argentina:

Ahora llega desde los Andes hasta el mar: la barbarie y la violencia bajaron a
Buenos Aires, más allá del nivel de las provincias. No hay que quejarse de
Buenos Aires, que es grande y lo será más, porque así le cupo en suerte. (...)
Quejémonos de la ignorancia de este poder brutal, que esteriliza para sí y para
las provincias los dones que natura prodigó al pueblo que extravía. Buenos Aires,
en lugar de mandar ahora luces, riqueza y prosperidad al interior, mándale sólo
cadenas, hordas exterminadoras y tiranuelos subalternos. ¡También se venga del
mal que las provincias le hicieron con prepararle a Rosas! (SARMIENTO,
1999:24)

2. ASPECTOS DO DISCURSO LITERÁRIO


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2.1. A Ficção
Como já foi mencionado anteriormente, Sarmiento tinha grande preocupação com a
difusão de suas idéias, principalmente pelo motivo de seu exílio, desse momento de intensa
repressão. Para tanto, fez-se necessário a criação, ou melhor, a recriação dessa realidade, de
maneira como menciona Redondo (1994), Ŗgera seu próprio mundo referencialŗ (REDONDO,
1994:13).
Em uma obra recheada de fatos e personagens históricos, poderíamos pensar em uma
obra verificável como romance de tese (ensayo em espanhol). Poderia ser um estudo
simplesmente histórico/compreensivo de sua nação, de seu território, de sua gente, sua situação
política, etc, ou ainda uma tese científica de base sociológica, como do perfil do homem
americano.
A ficção é muito mais do que somente a linguagem literária, mas é essa que transmite os
fatos (verídicos ou inventados) com a finalidade de que sejam acreditados, e, além disso, de que
sejam assumidos por quem recebe a obra. Dessa forma, Redondo (1994) define a ficção como Ŗla
imagen de la realidad que un tiempo historico determinado precisa acuñar para definir los ideales
que entonces existen.ŗ (REDONDO, 1994:127) Por esse motivo que, quando precisamos entender
determinado fato histórico sobre o viés do momento em que ocorreu, sempre podemos recorrer
aos modelos de ficção inventados nessa época, pois a ficção retrata não só uma realidade, mas o
modo de pensar essa realidade.

No otra es la razón de que en todas las culturas, primitivas o evolucionadas, en


todas las lenguas, antiguas o modernas, el ser humano haya construido
narraciones con el fin de conocerse, de analizarse, de alcanzar, en suma, un
modelo explicativo de su identidad y de las razones que conforman su existencia.
(REDONDO, 1994:127)

2.2. O Gênero da obra: o Romance ou Novela

O caráter híbrido que a obra apresenta pode ser notado em uma primeira leitura. Com
características de ficção e de história, podemos atribuir esses usos à época em que esta foi
escrita: o século XIX que estava em plena mudança do barroco para o romantismo.
A composição da novela se dá de um modo distinto, pois está instaurada nesse processo
de formação de um período literário. Por esse motivo, a obra é romântica, mas com elementos da
ainda América colonial, com misturas, com muitos adornos e uma grande preocupação com o ato
de Ŗser espanhol e parecer espanholŗ (SAGUIER, 1977:23). Dessa forma, ainda não é uma novela
sedimentada nos padrões tais como conhecemos hoje.
Mais significativo que situar a obra em um só gênero e discurso, a estratégia narrativa
definida desde cada um dos gêneros que formam a obra está a serviço do propósito do autor.
Portanto, ainda está livre da tentativa de enquadrar a obra a um estilo, que surge com o
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03 a 05 de novembro de 2010

romantismo europeu Ŕ a ideia de criar, situar e praticar os gêneros.

2.3. O Romantismo em Facundo

A respeito dos românticos, deve-se destacar a preocupação com a crítica social, com a
história não como sequencia cronológica, mas como manifestações sociais, com toda a
significação que cada fato recebe em determinado momento:

Ya no se trata de consignar cronológicamente los hechos, sino de interpretarlos y


ver en ellos las manifestaciones externas de una lucha de tendencias que forman
la urdimbre de las comunidades humanas: hay sin embargo cierto
encadenamiento en los hechos históricos, cierta analogía entre las tendencias y
necesidades de las sociedades, y el carácter y fisionomía moral de los hombres
que sobresalen en ellas.(BARRENECHEA, 1978:24)

Quanto a Sarmiento, que se enquadra nessa descrição anterior, Barrenechea (1978) o


define mais precisamente, com características tais como a espontaneidade, a paixão e os ideais
fundados em sua época, sendo mais significativas que a estrutura fixa e a fidelidade aos modelos
já instaurados:

Con su prosa de luchador que se interesa más por la novedad y el empuje


renovador de las ideas, que por la corrección y la fidelidad a los modelos. Es una
defensa del sentimiento y de la pasión, de lo espontáneo y lo instintivo de
acuerdo con las tendencias de su particular temperamento y los ideales de la
escuela romántica que triunfa en su época (Barrenechea, 1978:36-37)

A respeito de Sarmiento, Barrenechea (1978) o descrevía também como Ŗhombre tan poco
atento aparentemente al modo de decir las cosas, y tan preocupado por las cosas mismas que
debían decirŗ (Barrenechea, 1978:36).

2.4. Influências literárias

A partir da independência, também Ŗpredomina de una manera casi absoluta la influencia


francesa; las influencias británicas o alemanas llegan generalmente a través del francésŗ
(COULTHARD, 1977:70).
Por essa perspectiva, podemos notar que em todos os inícios de capítulos há citações em
francês, fato que justifica o nível cultural que Sarmiento pretende que seja instaurado em sua
obra, que transmita credibilidade naquilo que expressa, que passe certo domínio e conhecimento
dessa língua tão apreciada na época. Dos quinze capítulos presentes, somente dois apresentam
citações em inglês, todas as outras, incluindo esta da introdução, estão em francês. Essa
quantidade pode ser entendida pelo motivo de a França deter a supremacia intelectual da época,
enquanto a Inglaterra e os Estados Unidos apareciam como forte poder econômico e político, o
que também acaba transmitindo certas teorias, cultura e linguagem.
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 158
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Assim como o francês, há uma grande preocupação em demonstrar um saber da cultura


antiga, da tradição literária e da cultura que, por Sarmiento, é considerada a mais avançada e
Ŗcivilizadaŗ.

De este modo, el favor más grande que la Providencia depara a un pueblo, el


gaucho argentino lo desdeña, viendo en él, más bien, un obstáculo opuesto a sus
movimientos, que el medio más poderoso de facilitarlos: de este modo, la fuente
del engrandecimiento de las naciones, lo que hizo la celebridad remotísima del
Egipto, lo que engrandeció a la Holanda y es la causa del rápido
desenvolvimiento de Norteamérica, la navegación de los ríos o la canalización,
es un elemento muerto, inexplotado por el habitante de las márgenes del
Bermejo, Pilcomayo, Paraná, Paraguay y Uruguay. (SARMIENTO, 1999: 23) [grifo
meu]

3. INSTÂNCIAS DO PROCESSO NARRATIVO

3.1. A Narração

A narratividade tem grande importância na obra estudada, uma vez que, o autor é também
o narrador do romance. Nas narrações presentes no discurso literário podemos notar que a
preocupação com a exposição das idéias é mais explícita, é direta e ligada ao narrador Sarmiento.
Conforme ressalta Mario Benedetti (1977), uma consideração importante é que, no início,
Ŗla literatura latinoamericana asume responsabilidades épicas para las que evidentemente no
estaba preparadaŗ (1977:357). Mesmo com grandes lacunas, se consegue estabelecer um
contorno e características próprias da literatura latino-americana. Uma das mais significativas, e
que se nota em Facundo, é a Ŗdesconfianza en planteos sutiles, las alusiones directas; el reclamo
es demasiado urgente como para correr el riesgo de que el mensaje quede atascado entre
metáforas y no llegue a su destinatario naturalŗ (BENEDETTI, 1977:357).
Uma dessas características notáveis é que na obra se Ŗda al pensamiento las formas
expresivas de lo vivo y lo concreto (...) La observación menuda nunca llega a hacerle perder, por
atraente que sea, su poder de abstraer de ella las nociones generales, ni tampoco se mantiene
por mucho tiempo en el ámbito de las ideas sin el ejemplo material que les dé peso y las
ilumineŗ(BARRENECHEA, 1978:18)
Pelo fato desse protesto ser também uma obra fundadora, estando entre o barroco e o
romantismo, a riqueza de detalhes é enorme: a obra está carregada de narrações, descrições e
comparações para explicar todos esses aspectos anteriormente considerados.

3.2. Narrar e descrever

O ato de narrar e descrever é característico do gênero novela (ou romance), uma vez que
contar é um dos processos para que se possa (re)criar uma realidade. Tanto o narrar como o
descrever servem de argumento para a tese de Sarmiento, para suas ideias, opiniões frente à
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sociedade. O narrar é utilizado principalmente para contos, contar fatos. O descrever serve para
contar o lugar, o espaço, a sociedade, as pessoas.
Essa é uma forma de Ŗpedagogizarŗ a história encontrada por Sarmiento. Desse modo,
tanto quem vive na Argentina, como quem não conhece pode entender o que pretende. O recurso
estético acima descrito pôde ser notado em inúmeras páginas da obra, sempre que notamos a voz
do narrador Sarmiento em tentar definir, explicitar, reduzir, exemplificar, explicar algo.

Hai que notar de paso un hecho que es mui esplicativo de los fenómenos
sociales, de los pueblos. Los accidentes de la naturaleza producen costumbres i
usos peculiares a estos accidentes, haciendo que donde estos accidentes se
repiten, vuelvan a encontrarse los mismos medios de parar a ellos, inventados
por pueblos distintos. Esto me esplica por qué la flecha i el arco se encuentran
en todos los pueblos salvajes, cualesquiera que sean su raza, su oríjen i su
colocacion jeográfica. Cuando leia en El último de los Mohicanos de Cooper, que
Ojo de Alcon i Uncas habian perdido el rastro de los Mingos en un arroyo, dije
para mí: van a tapar el arroyo. Cuando en La Pradera el Trampero mantiene la
incertidumbre i la agonía miéntras el fuego los amenaza, un arjentino habria
aconsejado lo mismo que el Trampero sujiere al fin. (...) Cuando los fujitivos de
La Pradera encuentran un rio, i Cooper describe la misteriosa operación del
Pawnie con el cuero de búfalo que recoje: va a hacer la pelota, me dije a mí
mismo: lástima es que no haya una mujer que la conduzca, que entre nosotros
son las mujeres las que cruzan los ríos con la pelota tomada con los dientes por
un lazo. En fin, mil otros accidentes que omito, prueban la verdad de que
modificaciones análogas del suelo traen análogas costumbres, recursos i
espedientes. No es otra la razón de hallar en Fenimore Cooper descripciones de
usos i costumbres que parecen plajiadas de la Pampa.(SARMIENTO, 1999:39)

Nessa passagem, notamos que nas primeiras linhas Sarmiento define sua ideia, sua
definição: costumes e modos de encarar determinada situação se repetem em diferentes
sociedades. Para isso apresenta um exemplo: o arco e a flecha. A tese é então confirmada com
uma das influências literárias que mencionamos anteriormente: O Último dos Mohicanos, bem
como uma sequência narrativa: Ŗcuando leía...ŗ, Ŗcuando en la pradera...ŗ, Ŗcuando los fugitivos...ŗ.
Dentro da narração, há ainda uma série de descrições, seja dos atos que são produzidos, seja
das pessoas que os realizam. E termina por resumir, concluir sua ideia: Ŗno es otra la razon...ŗ em
que comprova que sua hipótese funciona.
Essa tendência barroca - os excessos de descrições y detalhes Ŕ, para Benedetti, é muito
compreensiva, uma vez que Ŗno hay ningún elemento cultural capaz de sintetizar o ahorrar
semejante descripciónŗ (1977:365). Devemos pensar que nessa época os escritores latino-
americanos Ŗparten virtualmente del cero. Nuestra tradición es muy nueva. Todo sucedió
prácticamente ayer, y en consecuencia no podemos invocar los hechos de la víspera como
arquetipos inamovibles, como valores definitivamente establecidosŗ (1977:365-366). Em
comparação com o europeu, está claro que ainda não temos um legado, ideais seguramente
definidos, analisados, nós estamos Ŗen plena fabricación de ese legadoŗ (1977:366).

3.3. A comparação
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A comparação é outro recurso muito utilizado na obra. Nesse próximo caso, associando os
gaúchos aos árabes.

Y, en efecto, hay algo en las soledades argentinas que trae a la memoria las
soledades asiáticas; alguna analogía encuentra el espíritu entre la pampa y las
llanuras que median entre el Tigris y el Eúfrates; algún parentesco en la tropa de
carretas solitaria que cruza nuestras soledades para llegar, al fin de una marcha
de meses, a Buenos Aires, y la caravana de camellos que se dirige hacia Bagdad
o Esmirna. Nuestras carretas viajeras son una especie de escuadra de pequeños
bajeles, cuya gente tiene costumbres, idiomas y vestidos peculiares, que la
distinguen de los otros habitantes, como el marino se distingue de los
hombres de tierra. Es el capataz un caudillo, como en Asia, el jefe de la
caravana: necesítase, para este destino, una voluntad de hierro, un carácter
arrojado hasta la temeridad, para contener la audacia y turbulencia de los
filibusteros de tierra, que ha de gobernar y dominar él solo, en el desamparo del
desierto. A la menor señal de insubordinación, el capataz enarbola su chicote de
fierro y descarga sobre el insolente golpes que causan contusiones y heridas; si
la resistencia se prolonga, antes de apelar a las pistolas, cuyo auxilio por lo
general desdeña, salta del caballo con el formidable cuchillo en mano, y
reivindica, bien pronto, su autoridad, por la superior destreza con que sabe
manejarlo. El que muere en estas ejecuciones del capataz no deja derecho a
ningún reclamo, considerándose legítima la autoridad que lo ha asesinado.
(SARMIENTO, 1999: 26) [grifo meu]

Nessa citação, pode-se perceber que a comparação complementa a narração e a


descrição, auxiliando ainda mais para a compreensão e para que o leitor venha a aderir ao que se
expressa. Dessa forma, podemos destacar algumas características que podem auxiliar para essa
maior compreensão: a ordenação dos fatos, a relação estabelecida entre os fatos, a configuração
da visão de mundo, de uma estrutura de pensamento da época, que se notam através do modelo
narrativo realizado.

CONCLUSÃO

A obra Facundo – Civilización y Barbárie retrata a história da Argentina no século XIX,


porém, sua importância não é somente histórica, mas principalmente literária. Mais importante que
a realidade que esta remete, é a maneira que é contada, a visão de mundo que se incorpora ao
processo de pensar e a realidade que essa maneira transmite.
Nesse aspecto, Facundo pode ser entendida como uma exposição de idéias inicialmente,
mas é muito mais que isso: é uma forte crítica social em que a memória de Facundo é evocada
para servir de base, de origem para a atual situação, uma vez que o romantismo ainda exigia
certa sequência, certa causalidade.
Pelos diferentes estilos e gêneros presentes na obra, aos quais apresentamos algumas
das possíveis interpretações, é possível afirmar que, enquanto romance de tese (ensayo), se trata
da exposição de uma utopia (o que pensa a respeito de civilização e barbárie e como se dará
essa solução); e enquanto romance (novela), se trata de um relato no qual se alcança um nível
complexo de ficção. A respeito disso, a frase de Barrenechea (1978) nos demonstra exatamente
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esse pensamento: ŖEs decir que nuestro autor hace de la historia un fenómeno vital y al mismo
tiempo coherenteŗ(BARRENECHEA, 1978:19). Fenômeno vital por trazer à (re)criação de uma
realidade, por ser viva, concreta; Coerente pela sequência que se estabelece, pela forma como o
discurso literário é formado. Nesse caso a vitalidade está mais relacionada ao romance-novela e a
coerência ao romance de tese.
Essa pluralidade presente na obra também pode ser pensada no conjunto em que é
produzida: a América Latina. Como uma nova literatura, ainda em processo de construção do seu
legado, o que se está fazendo é uma síntese aproveitando todos Ŗlos aportes culturales múltiples,
las tensiones resultantes de esos encuentros conflictivos, las experiencias anteriores con una
voluntad de profundización y de experimentación.Ŗ (BENEDETTI, 1977:39). Conforme declara
Benedetti, nossa literatura sai enriquecida com esse enfoque múltiplo.
Pode-se concluir que Sarmiento e alguns escritores da mesma época iniciam uma nova
perspectiva para a literatura latino-americana, a qual Mario Benedetti (1977) considera como Ŗun
movimiento de ida y vueltaŗ (1977:355), uma vez que o escritor latino-americano que influencia em
outras literaturas, com novas técnicas e novas atitudes frente à expressão artística. A obra
demonstra grande prestígio de Sarmiento pela literatura européia, porém a pluralidade demonstra
esse sentimento de obra fundadora, desse novo movimento, ou seja, o escritor da América Latina
já não imita fielmente o europeu, mas sim tem a necessária liberdade para criar uma linguagem
original.

REFERÊNCIAS

BARRENECHEA, Ana Maria. Textos Hispanoamericanos – De Sarmiento a Sarduy. Caracas /


Venezuela: Monte Ávila Editores, 1978.

BENEDETTI, Mario. Temas y problemas. In: MORENO, Cesar Fernandez (org.). América Latina
en su Literatura. México: Siglo XXI, 1977, pp. 354-371.

BORGOÑO, Miguel Alvarado Borgoño. Utopía y barbarie. Lecturas del Facundo de Domingo
Faustino Sarmiento. Disponible en: <<http://www.arbil.org/(32)alva.htm>> Acesado en: 28 de
septiembre de 2010, 8h.

COULTHARD, George Robert. La pluralidad cultural. In: MORENO, Cesar Fernandez (org.).
América Latina en su Literatura. México: Siglo XXI, 1977, pp. 53-72.

REDONDO, Fernando Gómez. El linguaje literario – Teoría y práctica. Madrid: Editorial EDAF,
1994.

SAGUIER, Rubén Bareiro. Encuentros de culturas. In: MORENO, Cesar Fernandez (org.).
América Latina en su Literatura. México: Siglo XXI, 1977, pp. 21-40.

SARMIENTO, Domingo Faustino. Facundo: Civilización y barbarie. Madrid: El Aleph virtual, 1999.
Edición digital - Buenos Aires: Biblioteca Quiroga Sarmiento, 2007. Disponible en:
<<http://www.educ.ar>> Acesado en: 30 de septiembre de 2010, 10h.
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ENTRE O TEATRO E A LITERATURA – UM ESTUDO SOBRE A REPRESENTAÇÃO E


O VILÃO

PAULA FERNANDA LUDWIG51

Resumo
Este trabalho refere-se a uma pesquisa (em andamento) de Mestrado em Estudos Literários, cujo objetivo é
compreender a consolidação do vilão como uma personagem estereotipada a partir de uma análise
comparatista, intertextual e interdisciplinar, confrontando teatro e literatura. A investigação parte do vilão,
cuja representação estereotipada concretizou-se em objetos artísticos como formas teatrais populares, caso
do melodrama. Neste artigo, apresenta-se a tentativa de percepção acerca de uma obra, sobre o enfoque
da representação. O objeto que se propõe observar a partir dessa perspectiva é um texto dramático
intitulado A Filha do Mar, de Lucotte, melodrama fornecedor do mote para um intuito extra Ŕ o estudo da
personagem.
Palavras-chave: Teatro, literatura, representação, melodrama, vilão.

Abstract
This paper refers to a survey (in progress) Masters in Literary Studies, whose goal is understand the
consolidation of the stereotypical villain as a character from a comparative analysis, intertextual and
interdisciplinary, confronting theater and literature. The research part of the villain, whose stereotypical
representation manifested itself in art objects as popular theatrical forms, case of melodrama. This paper
works with a perception of a text on the focus of representation. The object that is proposed to observe from
this perspective is a dramatic text entitled A Filha do Mar, by Lucotte, melodramatic tone for a vendor order
extra - the study of character.
Keywords: Theater, literature, representation, melodrama, villain.

1 A REPRESENTAÇÃO

Mimese Ŕ termo utilizado desde Platão e Aristóteles, cuja concepção vem sendo associada
ao possível elo entre a obra de arte e o domínio chamado realidade. Tal tópico é essencial no
campo da comunicação estética, há muito discutido no âmbito teórico. Aristóteles, cuja Poética é
reconhecida como obra fundadora no âmbito da teoria literária, não forneceu uma definição
pontual para o conceito de mimese, o que propiciou interpretações diversas ao longo dos anos. A
problemática desenvolveu-se por caminhos diferentes, sem encontrar o rumo final. Contudo,
pode-se observar pontos centrais nessa discussão, como é o caso da reflexão acerca da
autonomia da literatura em relação à realidade, desenvolvida por movimentos opostos, como
aponta Compagnon (1999), tanto pelo viés da afirmação como pelo viés da negação.
Pela afirmação e pela negação, duas teses extremas sobre a relação entre literatura e
realidade podem ser verificadas. Uma delas preconiza na obra literária a finalidade de
representação da realidade, o referente contido no objeto artístico é associado ao mundo
empírico. A outra aponta a noção de referência como ilusão e chega ao auge da perspectiva
acerca da obra literária como auto-referencial Ŕ a literatura não fala de outra coisa a não ser
51
Mestranda em Estudos Literários pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa
Maria. Área de concentração: Literatura, comparatismo e crítica social. Email:
chucrutedoludwig@yahoo.com.br.
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03 a 05 de novembro de 2010

literatura. Tal dicotomia é traçada por Compagnon que, indo além dessa oposição, aponta para
opções cujo alcance não se resume ao binarismo, sendo válida a construção de um pensamento
mais flexível, nem totalmente favorável ao mimético, nem completamente favorável ao
antimimético. A noção de que a literatura fala de literatura, não impede que ela se relacione com o
mundo, designando conhecimentos próprios da condição humana, associando-se a maneiras
como o homem constrói, habita o mundo.
A perspectiva de uma realidade construída pelo homem abre espaço para a consideração
de interações traçadas através de jogos de linguagens. A capacidade de percepção da realidade
está associada à linguagem, a uma forma de compreensão e representação dos matizes do
mundo. A obra artística é permeada pelo Ŗencontro de uma consciência e do mundoŗ (Gadamer
apud Bessière, 1995, p. 383) e o texto mostra-se como uma forma de estruturar, constituir um
real. O enunciado é veiculado por uma formalização da linguagem e os elementos dessa
formalização geram significados.
A abordagem da noção de mimese no campo teórico aponta para a relatividade de
conceitos e concepções que, muitas vezes, necessitam de uma localização espacial e temporal.
Tal disposição também caracteriza a concepção acerca da arte. O reconhecimento de um objeto
como artístico implica, por exemplo, noções acerca de normas vigentes em um dado contexto Ŕ a
decisão não depende exclusivamente de um olhar individual, há mediações relacionadas com
idéias construídas por determinados grupos sociais. Tal ponto de vista fica claro em propostas
associadas a aspectos próprios do campo artístico. A formulação acerca de função estética
dissociada de Ŗuna propriedad real del objeto (...) que se manifiesta solo em circunstancias
determinadas, es decir em un contexto social determinadoŗ (Mukarovský, 1977, p. 48) encontra-se
nesse patamar.
A afirmação citada acima dá conta de uma idéia que funciona socialmente Ŕ não existem
objetos estéticos, mas sim o como olhar para um objeto e identificar nele uma função estética. O
objeto pode ser construído visando à manifestação dessa propriedade, mas ela só se concretiza
mediante uma percepção que se dá no contexto de sua recepção. A obra pode ter sido feita para
suscitar efeitos, mas para que eles sejam concretizados e se mantenham, ela precisa ser
socializada. Seguindo esse raciocínio, entende-se que a arte não se efetiva no material concreto,
ela é uma idéia, passível de mudanças.
A dimensão das operações entre artístico e não artístico, relacionada ao âmbito do social,
destaca posições ideológicas associadas ao conhecimento de certas normas. A norma não é
congênita, ela não nasce com o homem, é uma construção social, relativa e histórica, dependente
do universo em que está situada. Criam-se normas diferentes em diferentes espaços sociais,
sendo que não há isolamento, podendo haver disputas entre elas. A noção de disputa remete à
idéia de campo literário trabalhada por Bourdieu. O campo literário corresponde a um espaço de
concorrências e negociações entre diferentes agentes. Trata-se de uma área de disputas
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 164
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baseadas em maior ou menor capital simbólico. Sua organização molda-se como um jogo
determinado por regras, normas, cuja instituição não precisa ser necessariamente aceita. As
normas podem ser aceitas ou destruídas. O jogo não é estático, os terrenos são instáveis.
Constantemente o sistema estabelecido depara-se com percalços.
Essa característica encontra-se na própria obra literária: ela gera tensão à medida que
institui modificações, toma elementos desse sistema instituído e, a partir daí, cria a diversidade,
suscitando uma tensão tanto interna, instituída no material lingüístico, como externa, em relação a
seu contato com o mundo. ŖO texto participa da simbólica social e do seu devir pela sua própria
autonomia e pelo jogo a partir dos seus antecedentesŗ (Bessière, 1995, p. 381). Sob esse viés, o
trabalho com o texto escrito a partir da problemática da representação, cuja perspectiva dilata-se
entre material lingüístico e campo social, apresenta-se como fonte rica para a compreensão do
objeto de um estudo literário. No caso desse trabalho, há um objeto que se propõe observar a
partir dessa perspectiva: um texto dramático intitulado A Filha do Mar, de Lucotte, melodrama
fornecedor do mote para um intuito extra Ŕ o estudo da personagem conhecida como vilão.

2 O MELODRAMA E O VILÃO

Sobre o vilão, um dos primeiros aspectos que se apresenta é a sua configuração como
personagem antagônica, concretizada em uma forma teatral popular, o melodrama de origem
francesa, nascido no seio da Revolução Francesa entre o final do século XVIII e início do XIX. No
caso deste trabalho, a peça selecionada é um melodrama constituído por um prólogo e quatro
atos. A trama gira em torno da história de uma menina órfã, Luiza, apaixonada por um conde com
quem não pode se casar em virtude da diferença de classe social (a realização amorosa é coibida
por uma condição social). Mas, apesar desse empecilho central, o desenvolvimento do conflito é
permeado pela luta contra obstáculos oriundos da ação de outras personagens, com destaque
para o mordomo Koppen, cujos planos constantemente influenciam no percurso da heroína,
estabelecendo um embate fundamental no texto: a virtude (representada por Luiza) em oposição
ao vício (representado pelo vilão, Koppen).
Ação e conflito são elementos característicos do texto dramático, cuja concretização está
diretamente relacionada com as personagens que Ŗconstituem praticamente a totalidade da obra:
nada existe a não ser através delasŗ (Prado, 1987, p. 84). O diálogo, o discurso direto, é
característico desse tipo de texto e está vinculado com a composição das personagens Ŕ como
são escassas as mediações, o conhecimento acerca delas se dá mediante as suas falas. A
predominância do discurso direto pressupõe um tipo de texto puro, sem o contato, por exemplo,
com outros tipos de linguagens. Não é essa a situação observada em A Filha do Mar. Nessa peça,
além das falas, nota-se a reiteração de outros aspectos, como as rubricas explicativas, o uso de
canções e a exploração de efeitos e elementos grandiosos.
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 165
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As rubricas são registros escritos, cuja real efetividade e sentido estão na prática, na
encenação. Sua presença na dramaturgia, segundo Ramos (1999, p. 15): Ŗcompreende a
literatura dramática como necessariamente vinculada a um fazer teatral específico e não como
autônoma do espetáculoŗ. Trata-se de um espaço direcionado à montagem, Ŗregistro literário de
uma certa poética cênica, o vestígio ou a marca de um métodoŗ (Ramos, idem, p. 17). Cria-se,
assim, um vínculo direto com a representação cênica, cuja efetivação se dá na atualidade Ŕ a
ação não é contada, mas sim presenciada, apresentada por personagens que atuam diante do
público.
Esses traços podem ser observados em A Filha do Mar mediante a constatação do grande
número de rubricas encontradas ao longo do texto. As rubricas funcionam como indicações
precisas para a montagem da peça, dando referências sobre inúmeros aspectos, desde
descrições de cenários até o gestual específico de cada personagem, como pode ser observado
nos exemplos retirados da peça de Lucotte: descrição de espaço - ŖSalão em casa da Condessa
de Ispal, ricamente mobiliada. Portas laterais e ao fundo, dando para outro salão, uma janela na
D.A. deixando ver o mar. Mesa, cadeira, etc...ŗ (p. 23), descrição de efeitos cênicos - ŖForte
explosãoŗ (p. 62), ŖTiro de canhãoŗ (p. 39), descrição de gestos e ações das personagens - ŖCobre
o rosto com as mãos. Koppen levanta o punhal. Toque de campainha, dentro. Koppen recuaŗ (p.
24). A partir dessa observação chega-se à noção do texto espetacular (De Marinis apud
Camargo, 2005) isto é, o texto escrito com a função de ser encenado, a dramaturgia é organizada
visando a encenação, o público espectador.
Outro fator que se destaca na construção da relação entre o texto dramático e o público é
a personagem que Ŗrepresenta a possibilidade de adesão afetiva e intelectual do leitor, pelos
mecanismos de identificações, projeção, transferência, etcŗ (Candido, 1987, p. 54). Nas formas
dramáticas, a personagem é essencial no estabelecimento do canal entre espetáculo e
espectador. Na peça abordada, verifica-se que o trabalho com a possibilidade de adesão afetiva
do receptor segue a via da emoção: o antagonismo entre as personagens busca provocar a
simpatia ou a antipatia, segundo julgamentos valorativos. As personagens são expressão direta
desse elemento valorativo na obra, em que a heroína virtuosa é recompensada e o vício punido.
Esse é o esquema básico do funcionamento dos personagens-tipo na peça. Os personagens-tipo
são Ŗconstruções extremadas, que reúnem em si um número reduzido de características e
emoções, sendo então dotados de uma menor mobilidade de caráter e/ou personalidadeŗ (Braga,
2005, p. 39). Como aponta Thomasseau (2005) essas personagens eram identificadas pela
aparência física e pelo gestual. Os tipos são máscaras de comportamentos e linguagens
fortemente codificadas - Ŗde um lado os bons, de outro os maus. Entre eles, nenhum compromisso
possível. Esses personagens construídos em um único bloco representam valores morais
particularesŗ (Thomasseau, 2005, p. 39).
Nota-se que a representação de valores morais em A Filha do Mar, está associada à
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defesa de uma ordem social. Na peça, entre as personagens, a ordem é clara Ŕ não há meio-
termo, os bons são bons e os maus são maus. O conflito, causador de desordem, resolve-se no
fim, sendo que a personagem responsável pela ação desencadeadora de obstáculos concretos na
trama é punida no desfecho da história. A preconização da ordem não está relacionada apenas
com a clareza de exposição dentro da história, mas também aponta a ênfase numa concepção do
mundo que prima pela afirmação da organização em detrimento do caos. Hierarquias são
respeitadas (mesmo a protagonista só se une ao seu amado, rico conde, após saber que não é
pobre nem órfã, mas sim aristocrata, filha de uma condessa), o triunfo da heroína oprimida sobre
seu opressor contenta o povo oprimido, sem incitá-lo à rebelião.
Apesar dessa exaltação da ordem, deve-se reconhecer que o caos não é suprimido da
peça. A sensibilidade é marcada pelo conflito antagônico, pelo choque entre dualidades opostas.
Tal característica aponta para a noção de uma organização social que funciona muito mais pela
definição através da lógica das contradições do que pela lógica da identidade Ŕ para existir o um,
deve existir o outro. Sem o mal, o bem não é definido. É necessário o conhecimento acerca dessa
divisão para que esse duplo exista.
Em A Filha do Mar, o vilão destaca-se como o antagonista que acaba conduzindo a ação.
A perseguição da vítima inocente, movida pelo vilão, desencadeia o conflito que sustenta o
desenrolar da ação dramática. Tal aspecto aponta para um contraponto dentro da tradição
literária. No teatro clássico, por exemplo, a personagem está condicionada a uma ruína
proveniente do seu destino, não há escapatória Ŕ fica explícita então, a fragilidade do homem
diante da vontade divina, ele é vítima do seu destino. No caso do melodrama, percebe-se que as
desgraças que recaem sobre a heroína são geradas por outro personagem. Tal origem do conflito
aponta para traços na concepção da personagem que estão relacionados à sua função dentro da
representação, sendo que o que se pode notar é uma quebra da noção do destino condicionador.
As desgraças estão relacionadas à ação de outro, o erro, a desmedida, vem de outro
personagem, antagonista.
No caso do vilão, o que se percebe é que a sua configuração como personagem traz uma
gama de preceitos ideológicos contrapostos ao que dita o padrão ético. Ele é o antagonista, anti-
ético do protagonista. Em sua ação, utiliza os expedientes rejeitados pelo herói, como o engodo, a
violência e a traição. Sua construção caricata marca o conflito maniqueísta entre o bem e o mal.
Nesse embate, pode-se constatar uma polarização - o choque entre duas forças, o bem e o mal,
representadas pelas personagens. A luta entre o bem e o mal é ponto central de um
equilíbrio/desequilíbrio que há muito faz parte da concepção de paradigmas cuja elaboração está
relacionada a convenções sociais, regulamentadoras de comportamentos, visões do mundo...
Fonte para compreensão do indivíduo e suas realizações dentro do âmbito coletivo.
Em A Filha do Mar, o vilão associado à condução da ação que resulta na desgraça de
outras personagens representa o desvio do código social, civilizado, em função da vazão da
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paixão, da vontade individual em detrimento do coletivo. Tal condição relaciona-se com a noção
de livre arbítrio dentro de uma coletividade (já na origem epistemológica da palavra vilão há esse
indício Ŕ um homem com a possibilidade de uma escolha: submeter-se a uma comunidade feudal
ou abandonar a gleba). Sair do código civilizado e dar vazão às vontades individuais, às paixões
individuais em detrimento do coletivo, gera o conflito na relação com o outro e proporciona a
percepção da condição humana marcada por questões como até que ponto se pode exercer o
livre arbítrio se se vive em sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É preciso esclarecer que o que se apresentou nesse trabalho foi uma tentativa de
percepção acerca de uma obra, sobre o enfoque da representação. Sabe-se que, no campo
teórico, não existem verdades absolutas e que muitas das considerações aqui traçadas podem e
devem ser objeto de questionamentos Ŕ essa atitude é extremamente enriquecedora.
A obra escolhida, mote para o desenvolvimento do raciocínio, foi um melodrama. A partir
do olhar sobre ela, destacou-se um tipo de texto dramático encaixado numa modalidade de drama
popular, de tramas complexas, emoções exacerbadas e violência patética. Sua composição
bipolar, que opõe personagens representativas de valores opostos (vício e virtude), está
intimamente relacionada com o ato cênico, enfatizando um tipo de arte cuja pretensão é de
provocar prazer pelo viés da percepção sensorial, da adesão emocional. A peça, ao contrário do
que valorizava a cultura clássica, aponta para uma dramaturgia feita especificamente para ser
encenada e não lida, enfatizando as massas não escolarizadas.
Esse aspecto está diretamente relacionado ao tipo de público associado historicamente ao
melodrama e aponta para uma dicotomia que se consolidou ao longo dos anos: a divisão entre a
cultura promovida pelas formas populares e a cultura intelectual erudita. Na França, com a
ascensão do melodrama, as salas oficiais como a Comédie Française e o LřOpéra perderam seu
público para os teatros populares como o Ambigu e o Porte de Saint Martin. Paralelamente a isso,
críticos e intelectuais eruditos criavam um forte desprezo ao gênero (Carlson, 1997). Tal juízo,
construído historicamente, encontra respaldo ainda hoje. Mas contentar-se com tal posição,
advinda de um contexto distante em coordenadas temporais e espaciais, não seria validar uma
maneira de percepção crítica por demais simplificadora? Observa-se, contudo, que outras
direções são possíveis: Ŗa reiterada tendência para o melodrama, que alguns críticos
simplesmente estigmatizamŗ pode deixar de ser categoricamente valorada, aproximando-se da
busca compreensiva Ŕ Ŗna verdade, é uma das maneiras sensíveis próprias das camadas
popularesŗ (Cabañas, 2006, p. 178).
Nesse sentido, percebe-se o quão importante é a busca por uma ampliação de horizontes
que busca evitar o olhar pré-moldado, definitivo. Mesmo a obra literária não se encaixa em uma
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visão definitiva. Na discussão que a aborda como representação autônoma ou não, por exemplo,
não se fixa um ponto: ela é e não é. Autônoma como objeto de linguagem, permeada por signos
lingüísticos que não se enquadram na mesma categoria das coisas concretas, mas ainda assim
inserida no mundo de onde sai e para onde retorna - movimento que não se dá impunemente. O
movimento mostra-se como essencial para a tentativa de compreensão do objeto artístico. Ciente
disso, espera-se que ele ocorra também nesse trabalho, favorecendo um estudo que não
estaciona e aceita sua busca sem fim.

REFERÊNCIAS

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Instituto de Artes da UNICAMP, 2006.

BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 1985.

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Lisboa: Dom Quixote, 1995.

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Companhia das Letras, 1996.

CABAÑAS, Teresa. Da representação à representatividade: quem legitima? Provocação ao


debate. Revista de Crítica Literaria Latinoamericana (Peru) v. 63-64, p. 169-186, 2006.

CAMARGO, Robson Corrêa de. O Espetáculo do Melodrama: Arquétipos e Paradigmas. Tese


(Doutorado em Teatro), ECA/USP, 2005.

CANDIDO, Antonio; ROSENFELD, A.; PRADO, Décio de A.; GOMES, Paulo E. S. A personagem
de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1987.

CARLSON, Marvin. Teorias do teatro: estudo histórico-crítico, dos gregos à atualidade. São Paulo,
Ed. UNESP, 1997.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 1999.

HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
LUCOTTE. A Filha do Mar. Copiado à mão por J. Vianna, Pará, 10/11/1911.

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RAMOS, Luiz Fernando. O parto de Godot e outras encenações imaginárias. São Paulo: Hucitec,
1999.

ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2008.


THOMASSEAU, Jean-Marie. O melodrama. São Paulo: Perspectiva, 2005.
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A EXPLICITAÇÃO DE CONFLITOS HUMANOS NA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES


PELA APROPRIAÇÃO DO ESTÉTICO E DO LÚDICO

PRISCILA FINGER DO PRADO52

Quem sobe nos ares, não fica no chão,


Quem fica no chão não sobe nos ares.
Cecília Meireles

Resumo
Pretende-se, com este trabalho, observar os aspectos estéticos e lúdicos que compõem dois poemas do
livro Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles: ŖO último andarŗ e ŖA moda da menina trombudaŗ. Com isso,
almeja-se verificar como os conflitos humanos são apresentados, de modo a possibilitar identificação entre
o leitor e o sujeito lírico do poema.
Palavras-chave: Literatura Infantil, Brasil, Cecília Meireles

Abstract
With this study, we intend to observe the esthetic and playing aspects that composes two poems of the book
Ou isto ou aquilo, by Cecília Meireles: ŖO último andarŗ e ŖA moda da menina trombudaŗ. With this, we try to
verify how the human conflicts are presented in order to possibility the lectorřs identification with the poemřs
lyric subject.
Keywords: Children´s literature, Brazil, Cecilia Meireles

CONSIDERAÇÕES INICIAIS Ŕ UM POUCO DE HISTÓRIA

Pensar a literatura infantil é, em primeira medida, pensar a infância. E a infância já foi


pensada de muitas maneiras, conforme a mentalidade da época em que tal estatuto é
questionado. Dessa forma, se até meados do século XVII, como afirma Zilberman (1981), a
concepção de infância, enquanto Ŗfaixa etária diferenciada, com interesses próprios e
necessitando de uma formação específicaŗ (1981, p.15), era inexistente; a partir da Idade
Moderna essa percepção é modificada. Passa-se então a pensar a infância como uma fase que
merece cuidados e atenções especiais, carecendo de processos formativos, uma vez que o futuro
dependeria dos cidadãos obtidos através desses processos.
Por esse pensamento surge a literatura infantil, já com o peso do adjetivo que a
acompanha. Ou seja, a literatura para os infantes surge estreitamente ligada à pedagogia e ao
intuito de formar cidadãos. Basta pensar que, no Brasil, segundo Novaes Coelho (1985, p. 166), a
produção literária para crianças e jovens surge incorporada às reformas pelas quais passava o
sistema escolar nacional, no entre-séculos. Dessa forma, os primeiros livros brasileiros dirigidos
ao público mirim seriam aqueles livros de leitura, utilizados na escola (COELHO, 1985, p.169).
Costuma-se afirmar que o Ŗdivisor de águasŗ, quanto aos paradigmas da literatura infantil

52
Aluna do Curso de Letras Espanhol da Universidade Federal de Santa Maria
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brasileira, foi Monteiro Lobato (1882-1948). Com este autor, o didatismo típico da produção
literária para infantes é atenuado pelo paradigma lúdico. Resta salientar que nem um nem outro
esteve ausente por completo da literatura infantil, em suas diversas fases, mas em certos
momentos, houve a predominância de um ou outro.
Ao se pensar a poesia escrita para crianças, percebe-se que o período de sua instituição
enquanto literatura não foi muito diverso do da prosa, embora sua origem esteja estreitamente
ligada ao folclore popular e à oralidade. Além do mais, também em seu desenvolvimento se
percebem algumas mudanças paradigmáticas, as quais, segundo Camargo (2000), dividem-se em
três núcleos principais: o paradigma moral e cívico; o paradigma estético e o paradigma lúdico. É
claro que, também aqui, a predominância de um ou outro paradigma não exclui a presença dos
outros, sobrepõe-se somente, devido ao maior número de características do núcleo dominante.
Conforme Camargo (2000), tem-se que o primeiro núcleo paradigmático tem seu início
juntamente com o sistema escolar, sendo que os poetas trabalharam o gênero lírico, voltado ou
dedicado ao público mirim, sob a ênfase moral e cívica. Dentro dessa perspectiva, têm-se os
nomes de Alvarenga Peixoto (1744-1792), Bárbara Eliodora (1759-1819), Gonçalves Dias (1823-
1864), Casimiro de Abreu (1839-1860), como poetas que se preocuparam com a infância em seus
poemas, mesmo que sob a ótica adulta. Posteriormente, surgem as antologias de prosa e verso,
que se pretendem leituras para o público mirim, essas antologias permanecem sob o eixo
paradigmático da moral e do civismo, tendo como representantes, entre outros, João Rodrigues
da Fonseca Jordão (?); Adelina Lopes Vieira (1850-?); Zalina Rolim (1869- 1961); e Olavo Bilac
(1865-1918).
Para Camargo (2000), este paradigma começa a ser modificado com a publicação de O
menino poeta, de Henriqueta Lisboa (1904-1985); sendo rompido com a produção do português
radicado no Brasil, Sidónio Muralha (1920-1982). A partir da obra desse poeta, a ênfase da
produção literária infantil brasileira acentua-se sob o eixo paradigmático estético. Essa mudança
de paradigma é estabelecida, conforme Camargo (2000), com a produção poética para o público
mirim de Cecília Meireles (1901-1964) e de Vinícius de Moraes (1913-1980).
A última mudança paradigmática na produção poética infantil brasileira, até o presente
momento, reitera o lugar do ludismo na poesia, restaurando alguns sentidos primeiros dessa
prática cultural, como o jogo de sons e significados. Segundo Camargo (2000), os principais
representantes dessa vertente são Sérgio Capparelli (n.1947) e José Paulo Paes (1926-1998).
No presente trabalho, serão observados principalmente os aspectos estéticos e lúdicos
que compõem dois poemas de Cecília Meireles, ŖO último andarŗ e ŖA moda da menina trombudaŗ,
a fim de verificar como os conflitos humanos são apresentados, de modo a possibilitar
identificação entre o leitor e o sujeito lírico do poema. Os poemas selecionados pertencem ao livro
Ou isto ou aquilo (2003) , de Cecília Meireles, que apresenta jogos verbais entre letra e sentido,
bem como temáticas humanas perpassadas por um olhar pueril que ainda se deslumbra com os
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acontecimentos cotidianos.

ENTRE O LÚDICO E O POÉTICO

Jakobson, em seu Lingüística e Poética (2001, p.124-128), ressalta o dever de estudar a


linguagem em toda a variedade de suas funções. Destacando as seis funções principais da
comunicação verbal humana, Jakobson aponta o constante vai-e-vem dessas funções durante
nosso discurso, que andam juntas, sem se excluírem. Para o autor, a função emotiva é, em certa
medida, evidenciada em todas as nossas manifestações verbais, assim como a função poética
que não se limita ao campo da poesia, estando mesmo em nosso dia a dia, sempre que utilizamos
a língua buscando melhorar a sonoridade da frase.
Citamos essas duas funções, e não outras, porque, na poesia lírica, estas são as
predominantes. Para Nelly Novaes Coelho (1986, p.49), a poesia é Ŗo fenômeno criador que
transforma a linguagem em emoçõesŗ e o poema Ŗé a expressão verbal artística de um estado de
espírito‖; em outras palavras, o poema nada mais é do que um jogo de palavras que expressa um
estado lírico. E nada mais comum ao homem do que o ato de jogar, principalmente se tomarmos a
concepção de Huizinga (1993, p.6), segundo a qual o jogo é o elemento originário da civilização:
ŖÉ no jogo e pelo jogo que a civilização surge e se desenvolveŗ.
Conforme Huizinga (1993), existe uma estreita ligação entre o jogo e a poesia, em todas as
suas formas, de modo que:

Toda poesia tem origem no jogo: o jogo sagrado do culto, o jogo festivo da corte
amorosa, o jogo marcial da competição, o jogo combativo da emulação da troca e
da invectiva, o jogo ligeiro do humor e da prontidão (1993, p.143).

Apesar de o jogo ir adquirindo a marginalidade na vida do homem, à medida que este


cresce e precisa se ocupar de atividades mais sérias, como o trabalho e o estudo, na infância, o
lúdico tem um papel fundamental. E não somente o jogo enquanto atividade organizada segundo
regras, como ressalta Ligia Cademartori Magalhães (1982, p.25), mas também enquanto Ŗum
modo e uma condição de realizar determinadas açõesŗ. Podemos dizer que a criança vive o jogo,
pois este se aproxima mais da sua percepção do mundo, que é, nas palavras de Glória Maria
Fialho Ponde (1986, p.126), emocional e globalizante.
Sendo a poesia um jogo de palavras, esta também se aproxima da maneira de apreender
o mundo pela criança, devido a sua linguagem altamente condensada e emotiva (1986, p.126).
Lembrando que a primeira experiência que a criança tem com a linguagem é a experiência do
som, como as cantigas de ninar.
Além do jogo, a busca pelo belo é comum ao homem , desde a infância. A aparência,
ligada ou não à utilidade, encanta as crianças que preferem sempre a bola mais colorida, o bolo
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mais enfeitado, o poema mais rimado. Daí que a noção de belo liga-se à de simetria e de
proximidade à perfeição. Desse modo, ao observar os poemas de Cecília Meireles pertencentes
ao livro Ou isto ou aquilo (2003), pode-se perceber a primazia de jogos verbais que, pelo
paralelismo, constituem motivo estético, bem como pela articulação de certos temas vitais ao
amadurecimento da criança como o crescimento (ŖA moda da menina trombudaŗ) ou o tato com os
limites da convivência em sociedade e a morte (ŖO último andarŗ).
Assim, pretendemos, através da análise destes poemas de Cecília Meireles, destacar a
importância da poesia como iniciação literária, além da importância dessa poetisa para a
edificação da poesia infantil brasileira com méritos literários.

ANÁLISE DE ŖO ÚLTIMO ANDARŗ, DE CECÍLIA MEIRELES

O poema ŖO último andarŗ, de Cecília Meireles, integra a obra Ou isto ou aquilo, da mesma
autora, publicada em 1964. Esta obra aborda diversos anseios da infância, como a transformação
da menina em moça, em ŖModa da menina trombudaŗ; ou a necessidade de escolha que o mundo
oferta à criança, a todo o momento, em ŖOu isto ou aquiloŗ. Porém, o ponto forte dos poemas de
Ou isto ou aquilo é sua expressividade estética, atingida pelo ludismo tanto formal, quanto
semântico. Nos poemas de Meireles, dirigidos ao público mirim, percebe-se que prevalece o olhar
da criança sobre as coisas cotidianas, mesmo que nem sempre seja representada a sua voz;
sendo que o trabalho poético não interfere na simplicidade do que é apresentado, não
prejudicando, portanto, a compreensão da matéria poética pelos pequeninos.
Dentre os poemas da obra que integra, pode-se dizer que ŖO último andarŗ pertence ao
conjunto daqueles que abordam anseios e questionamentos pueris, de forma que o sentido aqui é
mais destacado que o jogo de palavras (forma) em si.
ŖO último andarŗ é constituído de 19 versos, dispostos em seis estrofes de três versos, ou
seja, seis tercetos, e uma estrofe de um verso ao final. Os versos que compõem as sete estrofes
poemáticas são heterométricos, variando entre cinco e nove sílabas poéticas, as quais
apresentam rimas externas do tipo ABB (ricas, à exceção de 5-6), nos tercetos, sendo que o
elemento ŖBŗ, fruto da terminação em Ŗarŗ, própria da primeira conjugação verbal da língua
portuguesa e de alguns substantivos, é o que se repete durante toda a estrutura do texto poético,
variando sempre a primeira forma do terceto. Desse modo, tem-se no poema os esquemas de
rima seguintes: ABB; CBB; DBB; EBB; FBB; GBB, nos tercetos, e B, no verso final. Veja-se a
disposição do poema:

O ULTIMO ANDAR
Cecília Meireles

No último andar é mais bonito:


do último andar se vê o mar.
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É lá que eu quero morar.

O último andar é muito longe:


custa-se muito a chegar.
Mas é lá que eu quero morar.

Todo o céu fica a noite inteira


sobre o último andar.
É lá que eu quero morar.

Quando faz lua no terraço


fica todo o luar.
É lá que eu quero morar.

Os passarinhos lá se escondem,
para os ninguém maltratar
no último andar.

De lá se avista o mundo inteiro:


tudo parece perto, no ar.
É lá que eu quero morar:

no último andar

Como o título já aponta, a matéria do poema é o Ŗúltimo andarŗ, de forma que se observa,
com essa denominação, uma idéia moderna de estruturar os planos sobre a terra; sendo que aqui,
utiliza-se da metáfora de um prédio. E, assim, na medida inversa em que se deseja um andar
mais alto, identifica-se a atual residência do sujeito lírico num andar térreo, de modo que, se este
não se considera satisfeito no andar em que se encontra, é justificável que almeje outro. Ao
comparar o universo em que vive ao universo desejado, o sujeito lírico aponta as vantagens da
mudança almejada. Assim, nos tercetos do poema, é ressaltado o desejo do eu lírico em ter sua
morada no Ŗúltimo andarŗ, de forma que, progressivamente, são apresentados motivos que
validam a pertinência de tal desejo. Na primeira estrofe, é apontado o quesito beleza, sendo que,
do Ŗúltimo andarŗ, há a vista para o mar, à maneira dos anúncios comerciais de imóveis à venda,
em cidades litorâneas.
A segunda estrofe aponta uma desvantagem do Ŗúltimo andarŗ, a distância entre o local em
que se insere e o espaço almejado: Ŗo último andar é muito longe: custa-se muito a chegarŗ.
Entretanto, tal motivo não é suficiente para dissuadir o sujeito lírico de seu desejo, de forma que,
através da conjunção adversativa Ŗmasŗ, ele desconfigura a objeção e reafirma sua vontade: Ŗé lá
que eu quero morarŗ.
A terceira estrofe do poema indica a noite como outra vantagem da morada almejada. A
noite se instaura sobre o Ŗúltimo andarŗ, isto é, acima deste, à maneira de um corpo que se
estende sobre uma cama. Nesse sentido, a quarta estrofe também reitera o motivo noturno, só
que agora, devido ao surgimento da lua, que ilumina a escuridão do Ŗúltimo andarŗ, que Ŗfica todo
o luarŗ. Mais uma vez é repetida a oração Ŗé lá que eu quero morarŗ, de modo a intensificar o
desejo do eu lírico.
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A quinta estrofe apresenta o Ŗúltimo andarŗ como um lugar de abrigo contra a maldade
humana, sendo este o refúgio buscado também pelos pássaros Ŗque lá se escondemŗ. Neste
terceto, a oração reiterada nas outras estrofes não se mostra completa, e sim fragmentada, de
forma a repetir somente o lugar almejado: Ŗno último andarŗ. É interessante ressaltar que, no
momento em que chama os pássaros como referencial, o eu lírico demonstra identificação com
esses seres, que buscam as alturas, e que fogem do primeiro andar, por medo dos homens.
Já a sexta estrofe clama por argumento semelhante ao da primeira, apelando ao sentido
da visão, só que agora ampliando o horizonte visual, isto é, se antes era a vista do mar que
engrandecia seu objeto de desejo, agora passa a ser a visão do mundo em sua totalidade: ŖDe lá
se avista o mundo inteiroŗ. E, como a altura lhe propusesse a distância do mundo, ao mesmo
tempo lhe confere a aparência de proximidade: Ŗtudo parece perto, no arŗ. Mais uma vez será
reiterada a oração-símbolo de seu querer, reafirmando sua posição desejosa por outro espaço, e
reiterando, por isso, seu posto de insatisfação com o lugar a que pertence: Ŗé lá que eu quero
morarŗ.
Dessa forma, a última estrofe, de apenas um verso, vem a confirmar o lugar almejado: Ŗno
último andarŗ. Com o fecho desse verso, fecha-se o ciclo iniciado já no título do poema, de forma
que a invocação do espaço sonhado, ao longo do poema, parece servir para fazer possível a sua
mudança do andar térreo para o Ŗúltimo andarŗ. O sujeito lírico mostra acreditar no poder da
palavra, usando-a como forma de invocação do espaço pretendido.
Essa crença no poder evocativo da palavra pode ser atestada pelo número de vezes em
que a oração Ŗé lá que eu quero morarŗ e o adjunto adnominal Ŗno último andarŗ aparecem no
poema, sendo que a primeira aparece cinco vezes, e o segundo, seis vezes. Se se pensar num
poema cuja estrutura totalize 19 versos, poder-se-á constatar que 11 desses versos são
constituídos por duas expressões, que reiteram a demonstração da vontade do eu lírico em
mudar, bem como o destaque do lugar digno dessa mudança, de forma que quase 60% dos
versos tem sua medida na repetição de dois elementos.
A atmosfera que perpassa o poema, no entanto, não é de esperança pela possibilidade de
alcançar o que se busca. O sujeito lírico se mostra convicto do desejo de mudança para o Ŗúltimo
andarŗ, e por isso arquiteta sua matéria poética, de forma a alegar a pertinência de seu desejo. O
Ŗúltimo andarŗ é o lugar do longe, é o Ŗláŗ reiterado ao longo do poema, mas também é o espaço
de abreviação das lonjuras pela aparência de proximidade que as coisas adquirem do alto, por
estarem todas Ŗno arŗ. Do Ŗúltimo andarŗ, se vê o mar, se vê o mundo todo, e se faz possível a
beleza de olhar as coisas de cima, e de não sentir medo delas, por se encontrar abrigado, tal qual
os pássaros.
Isso prova que, se no Ŗúltimo andarŗ as coisas são tão boas, é porque o andar térreo já não
consegue ofertar a beleza, a segurança e a aparência de proximidade entre as coisas e as
pessoas. No andar térreo, na medida inversa do Ŗúltimo andarŗ, tem-se a insegurança da qual o
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sujeito lírico se vê propenso, e da qual os pássaros fogem; tem-se também a proximidade entre as
coisas e pessoas, que, no entanto, aparenta maior distância entre elas (pela frieza das relações);
tem-se ainda uma porção de belezas naturais que já não existem, e outras tantas ameaçadas de
extinção.
Por tudo isso, o Ŗúltimo andarŗ, como aquele lugar alto, distanciado, onde Ŗo céu fica a
noite inteiraŗ, é o lugar ideal para o sujeito lírico habitar. E, pensando-se no público para o qual o
poema é escrito, o público mirim, pode-se afirmar que este seria também o lugar ideal para a
criança viver, com beleza, segurança e proximidade das coisas e das pessoas que a querem bem.
Contudo, o desejo do eu lírico não aponta possibilidades de realização no poema, que,
devido a isso, mantém-se sobre uma aura de desencanto e ilusão, diferentemente do sonho ou da
utopia, que tem suas bases na esperança.
Assim, a criança, ao identificar-se com o eu lírico do poema, é vista como esse sujeito que
observa o seu mundo e que imagina outros mundos melhores para a convivência humana e para
seus próprios interesses.

ANÁLISE DE ŖMODA DA MENINA TROMBUDAŗ, DE CECÍLIA MEIRELES

O poema ŖModa da menina trombuda‖, de Cecília Meireles integra o grupo de poemas de


Ou isto ou aquilo (2003) que abarca conflitos próprios ao público infanto-juvenil. Tem-se aqui a
mudança de um estado ao outro, de uma lógica a outra, o crescimento de uma menina e suas
implicações físicas e psicológicas. Este poema constitui-se por duas sextilhas, que alternam
versos dissílabos, trissílabos, redondilhas menores e heróicos quebrados, os quais possuem
rimas consoantes; ricas nos seguintes pares de versos 8 e 9 (muda Ŕ adjetivo e muda- verbo); 9 e
11(muda- verbo e trombuda- adjetivo) e pobres nos demais (2 e 3; 8 e 11; 6 e 12); internas (v. 3-
4;) e externas (v.1-7; 2-3-8-9-11; 4-10; 6-12). Nota-se a ocorrência do processo intensificador da
aliteração, cuja repetição do fonema nasal /m/ e das oclusivas /b/ /d/ e /t/ também intensifica a
musicalidade e a harmonia e remete aos fonemas primeiramente assimilados na infância.
Também o processo da assonância se faz presente, destacando todas as vogais, juntamente com
a consoante nasal m, o que dá um efeito paronomástico explicar melhor (muda verbo e adjetivo)
expressivo. É possível destacar no poema ainda a presença de paralelismo sintático, já que há
reiteração de determinadas estruturas sintáticas entre as estrofes, como, por exemplo, a repetição
da oração Ŗé a modaŗ nos versos 6 e 12. Veja-se a distribuição dos versos no poema:

MODA DA MENINA TROMBUDA

1 É a moda
2 da menina muda
3 menina trombuda
4 que muda de modos
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5 e dá medo.
6 (A menina mimada!)

7 é a moda
8 da menina muda
9 que muda
10 de modos
11 e já não é trombuda
12 (A menina amada!)

Como já enunciado, neste poema se verifica o processo de crescimento, amadurecimento


de uma menina, da infância para a adolescência, período no qual ela descobre o amor e deixa de
ser trombuda e mimada. O vocábulo moda, segundo Aurélio (1975), diz respeito a um Ŗuso, hábito
ou estilo geralmente aceito, variável no tempo, e resultante de determinado gosto, idéia, capricho,
e das interfluências do meioŗ (1975, p.933), ou seja, caracteriza um estado passageiro na vida
desta menina, que certamente é seguido pelas demais.
Para a mudança no sujeito lírico, observam-se duas adjetivações para o substantivo
menina (mimada e amada) que marcam esse amadurecimento. As orações, nas quais se inserem
estas adjetivações, vêm entre parênteses, destacando certo tom de segredo ao que é dito. A
presença de parênteses caracteriza como que um sussurro do eu lírico para um tu, receptor, ao
qual narra a mudança da menina. Esta metamorfose é também verificável pelos versos 4,9 e 10,
pois, na primeira estrofe a mudança de modos da menina é constante e dá medo, caracterizando
a fase da vida pela qual está passando. Já na segunda estrofe, a transformação é definitiva, a
menina muda seus modos, porque abandona certos hábitos, em favor de novos, e esta
modificação é afirmada pela maneira como a oração está disposta no poema, ressaltando o verbo
muda, que é separado de seu objeto. Desse modo, quando o verbo muda apresenta objeto no
mesmo verso seu sentido de transitividade se acentua: quem muda, muda algo. Diferentemente
ocorre quando o objeto se apresenta em outro verso, pois ao verbo muda parece lhe acrescentar
sentido de intransitividade, por isso ressaltando o aspecto da mudança como definitiva.
Sendo a mudança comum ao homem, que impreterivelmente nasce, cresce, envelhece e
morre, algumas mudanças se fazem passageiras enquanto que outras são definitivas. No caso do
poema, o substantivo moda aponta para uma fase passageira, que adquire novos moldes com
mais freqüência, ou seja, antes da moda de ser muda e trombuda a menina poderia ter sido
falante e alegre, num estágio anterior da infância.
Nesse sentido, a puberdade apresenta-se como uma moda passageira que abre caminhos
para a moda da adolescência, pondo um fim definitivo ao modismo de ser criança. Nesse período,
a menina é caracterizada pelo eu lírico pelos adjetivos relativos à mudez , à timidez e à anti-
sociabilidade da menina: É a moda/ da menina muda/ menina trombuda/ que muda de modos / e
dá medo./ (A menina mimada!).
Para que a menina passe de uma moda à outra, tem-se como elemento deflagrador da
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mudança o sentimento amoroso, que altera sua condição de mimada (pela família) para a de
amada (por uma pessoa até então estranha): é a moda/ da menina muda/ que muda/ de modos/ e
já não é trombuda/ (A menina amada!).
A reiteração do fonema nasal /m/ aliado às combinações com diferentes vogais provoca
paralelismo entre sons, bem como efeito lúdico, dadas as mudanças na disposição dos versos
idênticos. Dessa forma, a presença do lúdico, nesse poema, dá-se tanto pela sua forma, quanto
por sua temática, sendo que ambas se tornam interessantes não só para a criança, mas também
para o adulto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Ŕ A POESIA INFANTIL E A SALA DE AULA

A poesia, por seu caráter lúdico, tem muito a acrescentar no processo de iniciação literária
da criança na escola. Por estar presente nas cantigas e brincadeiras que perpassam a vida pré-
escolar da criança, seria um elemento de estímulo para a continuidade do espírito lúdico que esta
já possui. É necessário, porém, ao levar esses poemas para a sala de aula, adequar a análise a
esses objetivos, lembrando que, nas palavras de Magalhães, ―o texto literário é usado como
modelo de habilidade na manipulação da língua alcançada por determinados autoresŗ, o que faz
com que a descoberta da literatura deixe de ser algo prazeroso, para ser entediante e até
massificante.
O trabalho com a poesia na sala de aula deve buscar a oralidade que esta perdeu ao ser
escrita, apontando elementos como a rima e a musicalidade, sem intenções lingüísticas
normativas. Para este trabalho, a obra de Cecília Meireles torna-se bastante interessante, porque
expõe os conflitos pelos quais a criança comumente nesta fase de sua vida, mas o faz de maneira
agradável, despertando no infante os sensos de estética e de ludismo. Em uma fase em que se
começa a desvendar as engrenagens do mundo, descobre-se que a vida depende de escolhas, e
que as mudanças incluem a perda de situações anteriores. Assim, Ou isto ou aquilo, título da obra
de Meireles, abarca a consciência das decisões que, quando tomadas pela criança, propiciam
algo em detrimento da perda de outra coisa.

REFERÊNCIAS

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IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 179
03 a 05 de novembro de 2010

TRIUNFO DA MORTE, DE AUGUSTO ABELAIRA: UM INVENTÁRIO


SINTOMÁTICO, INSÓLITO E PARÓDICO DAS ANTINOMIAS PÓS-MODERNAS

RAUL HENRIQUE AMARO DA SILVEIRA SIMÕES53


MAURO NICOLA PÓVOAS 54

Resumo
O presente trabalho visa a analisar a obra O triunfo da morte (1981), de Augusto Abelaira, sob a luz de
alguns conceitos pós-modernos, estabelecendo, entre o romance e as noções teóricas depreendidas, um
estudo bibliográfico de ordem comparativa. Entre os pressupostos teóricos deste trabalho, destacam-se a
estética da fragmentação pós-moderna, o capital cultural e as vertentes paródicas, irônicas e fantásticas do
texto aludido.
Palavras-chave: pós-modernismo, estética do fragmentário, capital cultural, paródia, ironia, fantástico,
Augusto Abelaira.

Abstract
This study aims to examine the work O triunfo da morte (1981) Augusto Abelaira in light of some postmodern
concepts, establishing between the corpus and the neglected theoretical notions inferred, a bibliographical
study of comparative order. Among the guiding concepts in this work are privileged to methodological tools
known as the aesthetics of postmodern fragmentation, cultural capital, and the slopes parodic, ironic and
fantastic text eluded.
Keywords: postmodernism, aesthetics of fragmentary, cultural capital, parody, irony, fantasy, Augusto
Abelaira.

O presente artigo resume a dissertação de mestrado em história da literatura: O triunfo da


morte de Augusto Abelaira: Um inventário sintomático, insólito e paródico das antinomias pós-
modernas. Com intuito principal de estabelecer um balizamento entre a obra O triunfo da morte de
Augusto Abelaira e alguns conceitos de teorias pós-modernas. Sobre a bibliografia do autor,
indubitavelmente observa-se um cidadão militante e engajado na derrocada do regime ditatorial
salazarista, indícios que outorgam um posicionamento contestador que possibilita o estudo de sua
obra a luz de teorias que cultivam de forma particular um universo marxista, como é o caso das
paradoxais teorias pós-modernas. Mesmo não se tratando de uma obra autobiográfica, são
constatadas evidencias de indícios ideológicos em sua obra. Seu primeiro trabalho ―A cidade das
flores‖,demonstra essa tendência do artista, pois o mesmo teve problemas com a publicação da
obra, por definitivamente atacar a ditadura em Portugal, mesmo que seu real intento de criticar o
regime do ditador Salazar tenha se dado de forma camuflada pela imagem da cidade italiana de
Florença do pós-guerra. Já em O triunfo da morte, o nome de Salazar é constantemente
pronunciado, evidenciando seu descontentamento com esse período da história portuguesa. A
obra defendida nessa tese caracteriza-se pela metaficção e pelo dialogo humorado com o leitor,
explicando as nuances da criação de um texto. Embora essa tese não aborde tal técnica

53
Mestre em História da Literatura-Furg
54
Prof. Dr° do PPG Letras- Mestrado em História da Literatura-Furg.
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ostensivamente e não se baseie em seu papel como autor no circuito e literário português, essas
observações são concatenadas nesse trabalho. A dúvida e a reflexão são os fios condutores da
trama, onde a realidade instaurada é apenas um pano de fundo a ser questionado. Os elementos
que norteiam a história como o acaso e o caos são resultados de acontecimentos inusitados,
como a morte daqueles que circundam o personagem narrador e também a dúvida entre a vida e
a morte, o sonho, o delírio, a imaginação e a validade da ciência, postos em xeque pelos
elementos auto-reflexivos de forma paródica e que problematizam a estrutura do sistema cultural
literário e que são cerne do pós-modernismo. A obra preterida nessa tese foi analisada por um
panorama que consiste em explorar conceitos literários gerais em um escala concernente a pós-
modernidade, de modo a ressaltar a viabilidade de um estudo que propicia um agregamento de
abordagens como a estética do fragmentário, capital cultural, maravilhoso e fantástico como o
Ŗscience fictionŗ e intertextualidade. Além da manutenção oriunda da fortuna crítica de conceitos já
trabalhados nessa obra, por outros estudiosos como metaficção historiográfica, paródia e ironia
como um todo. Analiticamente em O triunfo da Morte de Abelaira percebe-se a notoriedade de um
discurso, que vai ao encontro de práticas pós-modernas tendendo invariavelmente para um
marxismo pós-moderno de forma mais evidente.
Mas sobre tudo, nesse estudo comparativo foi possível elucidar e isolar conceitos pós-
modernos que foram parodiados pelo autor, na medida em que identificados, emanam a
diversidade de traços empregados na trama de Abelaira. Dentre as técnicas detectadas, está a
influência da psicanálise tão corrente na literatura contemporânea, explicitada pela construção de
capítulos fragmentos, avanços e digressões de memória, e tempos diversos paralelamente. Da
mesma maneira, que visivelmente há uma clara menção ao capital cultural, que consiste em seu
cerne na mescla entre produto e cultura, entre cultura erudita e cultura de massa. Além da relação
da literatura contemporânea com outras ciências humanas, artes e em especifico as artes visuais
que é uma característica pós-moderna que influenciou a construção da capa do livro de O triunfo
da morte por Abelaira e também a questão fragmentária da obra em capítulos, da qual fazem
analogia as diversas cenas em só espaço como é o traço estilístico encontrado no quadro o triunfo
da morte do pintor Pieter Bruegel que serviu de referencia paródica ao livro estudado. As técnicas
depreendidas da obra de O triunfo da morte, que concernem a psicanálise empregada em
literatura, foram analisadas e embasadas no estudo de Fredric Jameson, Julia Kristeva e Jaques
Lacan. No entanto no que diz respeito avaliação do conceito de capital cultural, foram utilizados os
trabalhos dos antagônicos Fredric Jameson e Harold Bloom, ressaltando a existência e
importância do conceito na trama.
Os conceitos, psicanalíticos e do capital cultural que permeiam a trama O triunfo da Morte,
além de serem técnicas correntes da literatura contemporânea, com exceção da psicanálise que é
corrente desde a notoriedade de Sigmund Freud e influenciam a literatura desde Machado de
Assis, são elucidadas claramente através dessa análise, possibilitando também a percepção de
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uma configuração ideologicamente marxista, uma vez que uma abordagem imbuída dessa
característica tem como objetivo principal, dissolver a realidade situacional, cultural e corporativa
, mesmo que antinomicamente exalte as benesses do capitalismo multinacional no sistema de
cultura da pós-modernidade.
Uma das maneiras, desse marxismo se infiltrar na superestrutura e culminar no pós-
moderno é denunciar sua Ŗinconformidadeŗ, é aceitar seus paradoxos, mesmo que para isso se
encontre as respostas nas perguntas e não em uma realidade plena, porque isso suscitaria uma
aceitação e não uma Ŗrevoluçãoŗ. Além de que despertar a consciência de classe e descrever a
infra-estrutura de um sistema seja ele econômico, cultural e literário, possibilita a apreensão de
suas discrepâncias, incongruências, mas sobretudo configura-se uma eterna reflexão sobre o
papel do indivíduo no coletivo e vice versa,que se caracterizam como os antigos avatares
marxistas,que atuam como parte marcante do sistema cultural vigente,mesmo na época do
capitalismo tardio atual.
A obra Abelairiana se caracteríza pela contestação do sistema, e da realidade empírica
ora utilizando técnicas pós-modernas literárias como a paródia que tem como característica
reescrever questionar a história ,a literatura , temas e tabus, ora a ironia que aliada a paródia
dessacraliza Ŗverdadesŗ estabelecidas.Também a intertextualidade que se caracteriza por
proferir marcas textuais oriundos de um texto base na construção de um segundo texto, porém
quando se dá em forma de parodia no sentido de conceitos literários, temas e tabus
institucionalizados e a própria ciência em geral, essa costuma subverter o sentido original
tendendo para o cômico.Raramente são identificadas a categoria de pastiche em O triunfo da
morte, pois a reiteração intertextual e subvenção de temas não faz parte do estilo contestador e
subvertedor do autor.Da mesma forma, podemos observar outro tipo de intertextualidade no texto
de O triunfo da morte , evidenciando o hipertexto que consiste na alusão e analogia sem marcas
textuais, apenas com comparação semântica como é no caso da obra Memórias póstumas de
Brás Cubas com O triunfo da morte de Abelaira. No estudo comparativo entre as duas obras é
observado avanços e recuos temporais concernentes as duas obras, permeados por um latente
fluxo de memória em estados de consciência alterados, que são técnicas que os autores utilizam-
se em nas obras . São evidentes as alusões a personagens envolvidos em um estado de pós-
morte, onde podem invariavelmente questionar os pilares dos poderes constituídos sejam eles
sociais, científicos, artísticos e morais sem sofrerem represálias por isso, uma vez que além de
mortos seus discursos hilários, jocosos e no caso abelairiano paródico, possuem o dom da
camuflagem e podem atingir seus alvos sem sofrerem conseqüências . Outro ponto corrente nas
duas obras consiste em descrever nos personagens principais em primeira pessoa, homens cultos
de origem abastada, no entanto com caráter e morais questionáveis além de frustrados segundo
os ditames da vida burguesa, uma vez que seus recursos provem da herança de seus pais e
também segundo suas descrições de vida não conseguiram constituir família. Nos dois casos,
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tanto Abelaira quanto Assis, descrevem e sugerem um homem típico burguês,explorando sua
fragilidade e claramente fazendo uma crítica acida.No caso de Assis, a crítica serve ao sujeito
burguês do romantismo de outrora,que antagonizava o realismo, já no caso de Abelaira, o autor
crítica o sujeito paradoxal do pós-modernismo.
As técnicas irônicas associadas as intenções do discurso paródico , servem para reforçar
as intenções de Ŗataque aos alvos escolhidosŗ, sejam eles pessoas , conceitos e tabus. A
expressão irônica no contexto de O triunfo da morte converge para reforçar a paródia tanto quanto
demonstrar, a tenacidade deste mecanismo no sentido de destronar temas tácitos socialmente
desestabilizando as escalas de valores e de poder. Desse modo, essa técnica utilizada em um
sentido amplo provoca aquilo que Augusto Abelaira sempre buscou em sua obra, ou seja, o
questionamento da ciência, da arte literária e da realidade com o um todo, com a intenção de
minar as crenças e implodir o eixo do senso comum dos leitores, de outra forma não seria um
obra abelairiana. Na obra O Triunfo da morte de Augusto Abelaira, pode ser estudada
isoladamente sob ótica do universo fantástico em alguns conceitos como foi possível delimitar
nesse trabalho.Mesmo que certamente a paródia envolve esses conceitos, na medida que o autor
se vale dos mesmos ironizando os conceitos de mistério, estranheza e maravilhoso da literatura
fantástica.Mesmo assim, é possível inventariar esses conceitos, pois Abelaira por vezes também
se utiliza de argumentos que não limitem seus discursos apenas como paródico.Assim, sanciona
seus argumentos de defesa dentro do universo fantástico pautados dentro de instrumentos
retóricos científicos, históricos e filosóficos para defender acontecimentos inusitados e insólitos
fazendo que seu texto teste os limites literários ,tencionado e flexionado suas fronteiras ao
extremo.
Dessa maneira, a morte, a esquizofrenia que exemplificada na construção de fragmentos
na literatura, o sonho, a febre, o delírio e a pobre mediação entre o ser e a realidade através dos
símbolos, coloca o narrador fantástico e mais especificamente o narrador pós-moderno como é o
caso de O triunfo da morte, em uma espécie de inventário que permeia essas técnicas da
literatura contemporânea para eximir de embates e transgredir os mais variados temas.
Contudo, O triunfo da morte de Augusto de Abelaira é sintomático por estabelecer a
influência da psicanálise literária em sua obra, genericamente o sintoma das patologias mentais,
converge na dissociação da realidade, assim como a crítica da mediação da realidade entre os
símbolos. Mas, sobretudo, o capital cultural estabelece o relacionamento entre a fragmentação
das artes visuais e da arquitetura que influenciam a literatura contemporânea. O capitalismo-
cultura, e a apoteose midiática são caminhos de mão dupla do capital cultural , que Abelaira
descreve e crítica .
A paródia, que é mais um conceito da pós-modernidade insere nesses conceitos anteriores
a sua parcela de importância, assim como na obra com o um todo. Na medida em que a crítica
estabelecida pela mesma, possibilita a reflexão e a problematização das nuances pós-modernas.
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Aliada a ironia atinge seus alvos sejam eles conceitos e convenções. Da mesma maneira que
nesse inventário o insólito fantástico transgride as regras sem precisar prestar contas, pois assim
como no âmbito artístico em geral a crítica na literatura se torna mais ácida sem o bloqueio
instaurado pelos sistemas culturais majoritários.
Dessa maneira, O triunfo da morte de Augusto Abelaira é um inventário do pós-moderno
que predominantemente descreve suas antinomias, sintomas, estranhezas e paródias da
contemporaneidade.

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O ESCRAVO E A VÊNUS

ROBERSON ROSA55

Resumo
Este trabalho trata da obra ŖA vênus das pelesŗ do escritor Sacher Masoch. A obra apresenta a história de
Severin, que se faz escravizar por Wanda, uma atraente viúva que aceita assumir o papel de ŖDonaŗ do seu
escravo Severin. O romance contém os mais diversos ingredientes da paixão, detalhando, de modo
explícito, o universo das fantasias poderosas que nutrem a paixão e regem a excitação que se condiciona
aos sofrimentos físico e moral. Os temas perversão e masoquismo, considerados tabus até os dias de hoje,
e que são apresentados através dos desejos do personagem Severin são o foco do presente estudo. Em
um primeiro momento, estudos de Freud e de outros autores sobre perversão e masoquismo são abordados
para a compreensão da obra. Na sequência, a fim de visualizar um vínculo para além do masoquismo
perverso, é apresentado um olhar sociológico sobre os jogos de dominação e poder. Estes envolvem
aspectos de veneração e submissão no relacionamento entre os personagens Severin e Wanda.
Palavras-chave: masoquismo, perversão, Masoch.

Abstract
This work deals with the literary work ŖA vênus das pelesŗ written by Sacher Masoch. This book introduces
the story of Severin, enslaved by Wanda, an attractive widow who agrees to assume the role of Severinřs
"Owner", so her slave. The novel contains several ingredients of passion, detailing explicitly the most
powerful universe of fantasies that nourish passion and rule the arousal conditioned to moral and physical
pain. Perversion and masochism are subjects considered taboos even nowadays. They are the focus of
this study being presented through Severinřs desires. Firstly, Freudian and others authorsř studies about
perversion and masochism will be used as approaches to understand the book. Next, aiming to visualize an
entailment beyond the perverse masochism, it is presented a sociologic view about domination and power
relationships. These aspects also comprehend worship and submission in the relationship between the
characters Severin and Wanda.
Keywords: masochism, perversion, Masoch.

INTRODUÇÃO

Leopold Von Sacher-Masoch é autor da obra A Vênus das peles, que conta a história de
Severin, personagem que se faz escravizar por sua Vênus, a viúva Wanda. O presente trabalho
aborda a obra de Masoch através de alguns temas nela apresentados, como o prazer advindo do
sofrimento físico e moral e o jogo de poder existente nos relacionamentos amorosos. Assuntos
como perversão e masoquismo, considerados tabus até os dias de hoje, são trazidos pelo autor
através dos desejos de Severin
A partir disso, parece necessário, para um melhor entendimento do romance, revisar os
estudos de Freud e de outros autores sobre perversão e masoquismo, o que é feito na segunda
parte deste texto. Na sequência, fornece-se um olhar sociológico sobre o relacionamento entre os
personagens Severin e Wanda, a fim de visualizar um vínculo para além do masoquismo.
A análise empreendida dessa forma permite concluir que as relações assimétricas de
dominação independem da perversão dita Ŗpatológicaŗ. Assim, é possível constatar que a

55
Mestrando em Estudos Literários pela UFSM.
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 186
03 a 05 de novembro de 2010

literatura de Masoch ultrapassa os limites do Ŗseu masoquismoŗ.

1 O AUTOR E SUA OBRA

Leopold Von Sacher-Masoch nasceu em 1835 em Lemberg, Galícia, então Império


Austríaco. Descendia de eslavos, espanhóis e boêmios. Seu pai era chefe de polícia, e Leopold,
quando criança, presenciou cenas brutais de prisão e fuga, que o deixaram com profundas
mágoas, atormentando-o ao longo de toda vida. Grupos minoritários, problemas de nacionalidade
e rebeliões revolucionárias o influenciaram muito. Em suas obras misturam-se política, história,
nacionalismo, erotismo e perversão misturam-se.
De acordo com Ferraz (2008), Masoch definia-se como alemão, invocando sua identidade
com a língua germânica. Desde cedo, alimentou o sonho de se tornar um escritor importante e
reconhecido. Para tanto, elaborou o projeto de publicação de um conjunto de livros que se
chamaria O legado de Caim, no qual retrataria aspectos da condição humana, abordando os
temas de guerra, da morte, da propriedade, do dinheiro, da obsessão e do conhecimento profundo
do amor.
Esses temas eram de fato o que mais o instigava e seriam o motor de sua produção
literária. Tanto que o romance A Vênus das Peles, que trata de um mundo de luxúria, fantasia,
açoites, contratos e, é claro, peles, foi a obra que o imortalizou. Exatamente por abordar, de modo
direto e corajoso, um aspecto tão misterioso e intrigante da alma humana que é o prazer sensual
que se pode extrair do sofrimento.
A obra A Vênus das Peles apresenta a história de Severin, que se faz escravizar por
Wanda, uma atraente viúva que aceita assumir o papel de ŖDonaŗ do seu escravo Severin. O
romance contém os mais diversos ingredientes da paixão, detalhando, de modo explicito, o
universo das fantasias poderosas que nutrem a paixão e regem a excitação que se condiciona aos
sofrimentos físico e moral.
Nesse sentido, para Ferraz (2008), deixar-se amarrar e ser chicoteado pela amante
corresponde aos sofrimentos físicos. Já obedecê-la cegamente, deixar-se humilhar por ela,
entregar-se como sua posse e, requinte da fantasia, assisti-la entregar-se a outro amante,
correspondem aos sofrimentos morais. Assim, o autor acredita que o texto de Masoch retira o véu
que costuma cobrir as fantasias mais estranhas e secretas.
Os temas abordados por Masoch lhe renderam a utilização de seu próprio nome na
invenção da palavra Ŗmasoquismoŗ. Ferraz (2008) acredita que Masoch, justa ou injustamente,
passou a ser mais conhecido por ser aquele escritor que emprestou seu nome a este termo do
vocabulário psiquiátrico do que pela sua própria obra.

2 DE MASOCH AO MASOQUISMO PERVERSO


IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 187
03 a 05 de novembro de 2010

A mais comum e mais significativa de todas as perversões, o desejo de infligir dor no


objeto sexual, e seu inverso, recebem em 1886 do sexólogo austríaco Richard Krafft-Ebing os
nomes de Ŗsadismoŗ e Ŗmasoquismoŗ. Os nomes escolhidos a partir dos autores da literatura,
Sade e Masoch, dão proeminência ao prazer sob qualquer forma de humilhação ou sujeição.
Krafft-Ebing acreditou ser pertinente chamar de Ŗmasoquismoŗ as anomalias sexuais, porque o
autor Masoch fez dessa perversão, que até seu tempo era quase desconhecida do mundo
científico como tal, a base de seus textos (Weldon,2005).
A partir disso, a narrativa que apresenta os relatos do diário do personagem Severin, na
época em que manteve um relacionamento amoroso com Wanda, desmascara os Ŗbons
costumesŗ da época. Os temas perversão e masoquismo, considerados tabus até os dias de hoje,
são apresentados através dos desejos de Severin. Logo, parece necessário, para um melhor
entendimento do romance, revisar os estudos de Freud e de outros autores sobre perversão e
masoquismo.
De acordo com Freud (1905), a Psychopathia Sexualis, lançada em 1886 por Krafft-Ebing,
estabeleceu uma classificação geral para os fenômenos relacionados à sexualidade, definindo
como desviantes ou aberrações aquelas manifestações sexuais que não envolvessem a finalidade
de união genital, entre elas o masoquismo. Os estudos de Krafft-Ebing representam um dos
pontos de partida para as pesquisas de Freud sobre a teoria da sexualidade.
Um novo olhar sobre esses fenômenos foi necessário para pensar porque a sexualidade
no ser humano não corresponde exclusivamente a uma finalidade reprodutiva e genital, mas
envolve o gozo. Isto é, envolve um campo do psiquismo que vai além do prazer, pois implica o
real enquanto dimensão constitutiva, mas inapreensível via representação. A partir disso, a
Psicanálise se interessou pelo estudo das perversões, um tema complexo e que sempre tivera má
fama. Não é, portanto, surpreendente constatar que, até hoje, mal-entendidos geralmente
acompanhem as perversões. Freud esclarece algumas questões, abaixo abordadas, sobre o
assunto da perversão em seu artigo denominado Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade.
Na esteira dos estudos desenvolvidos por diferentes pesquisadores, Dor (1996) considera
que o desconhecimento da significação do processo perverso parece sempre adquirir consistência
a partir dos mesmos pontos cegos. De um lado, a perversão é constantemente associada à idéia
de uma manipulação, que seria estrategicamente desenvolvida pelo perverso com o objetivo de
lesar. Por outro, a perversão é quase sempre rebaixada ao estatuto dos malfeitores da
perversidade. Tanto num caso quanto no outro, a ênfase é dada à dimensão da transgressão das
normas estabelecidas.
Porém, Freud (1905) afirma, nos Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade, que as
perversões são atividades sexuais. Elas ou se estendem em um sentido anatômico, além das
regiões do corpo que se destinam à união sexual, ou demoram-se nas relações imediatas, que
devem normalmente ser atravessadas, com rapidez, no caminho em direção ao objetivo sexual
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 188
03 a 05 de novembro de 2010

final.
Nesse sentido, as atitudes do personagem Severin, de A vênus das Peles, podem ser
identificadas como perversas, tendo em vista o seu modo de obter prazer 56, conforme se observa
na seguinte passagem:

De novo me sobreveio aquele estado de rara embriaguez.


-Açoita-me Ŕ eu imploro - , açoita-me sem piedade.
-Wanda brandiu o chicote, e o desferiu em mim uma segunda vez. Ŕ Agora tens o
bastante?
- Não
- Sério que não?
- Açoita-me, eu imploro, causa-me este prazer. (Masoch, 2008, p. 69)

Segundo Freud (1905), a experiência cotidiana tem demonstrado que os atos perversos
(como sadismo e masoquismo) raramente estão ausentes na vida sexual das pessoas sadias e
são julgados por elas de forma não diferente de outros acontecimentos íntimos. Nenhuma pessoa
sadia, ao que parece, pode deixar de adicionar alguma coisa capaz de ser chamada perversa ao
objetivo sexual normal. A universalidade desta conclusão é em si suficiente para mostrar quão
inadequado é usar a palavra perversão como um termo de censura.
Entretanto, o autor ressalta que algumas destas perversões exigem um exame especial.
Elas podem ser tão distantes do normal em seu conteúdo que não é possível evitar declará-las
Ŗpatológicasŗ. Isto acontece particularmente quando o instinto sexual domina, com êxito, as
resistências da vergonha, repugnância, horror ou dor. Mesmo em tais casos não se deve estar
inclinado em demasia a admitir que pessoas que agem desta forma necessariamente se revelarão
insanos ou sujeitos a graves anormalidades de outras espécies. Freud (1905) pondera que, na
maioria dos casos, a natureza patológica de uma perversão situa-se não no conteúdo do novo
objetivo sexual, mas em sua relação com o normal.
O termo masoquismo, para Freud (1905), compreende qualquer atitude passiva em
relação à vida sexual e ao objeto sexual, parecendo ser seu caso extremo aquele em que a
satisfação se condiciona ao sofrimento de dor física ou psíquica em mãos do objeto sexual. O
masoquismo, como perversão, parece estar distante do objetivo sexual dito normal. Freud (1905)
acredita que se pode demonstrar com frequência que o masoquismo nada mais é do que a
extensão do sadismo voltada para o próprio paciente, que assim toma o lugar do objeto sexual. A
análise clínica feito pelo autor, de casos extremos de perversão masoquista, mostra que um
grande número de fatores (tais como complexo de castração e o sentimento de culpa) se
combinam para exagerar e fixar a atitude sexual passiva.
A característica mais notável desta perversão é que suas formas sádicas e masoquistas
habitualmente ocorrem juntas no mesmo indivíduo. Uma pessoa que sente prazer em produzir dor

56
Prazer como um rebaixamento da tensão mental.
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 189
03 a 05 de novembro de 2010

em outrem numa relação sexual é também capaz de gozar como um prazer qualquer dor que ele
possa sofrer nas relações sexuais. Um masoquista é sempre ao mesmo tempo sádico, embora o
aspecto ativo ou passivo da perversão possa ser o que mais fortemente se desenvolveu nele e
representar sua atividade sexual predominante.
Freud prosseguiu com o tema do masoquismo, na tentativa de desvendá-lo de forma mais
especifica. Freud (1924) apresenta três formas de masoquismo: como condição imposta à
excitação sexual (masoquismo erógeno), como expressão da natureza feminina (masoquismo
feminino) e como norma de comportamento (masoquismo moral).
A interpretação de Freud (1924) é que o masoquista deseja ser tratado como uma
criança pequena e desamparada, mas, particularmente, como uma criança travessa, aspecto
que se explicita no discurso de Severin: ŖQuando voltei, ela estava às voltas com a chaleira.
Depositei a pantufa solenemente sobre a mesa e fiquei a um canto, feito criança à espera de
puniçãoŗ (Masoch, 2008, p. 48).
No texto de Freud, Uma criança é espancada (1919), o autor relata o prazer frequente de
seus pacientes de menor idade em fantasiar o espancamento de uma criança. Eles passam a um
estágio posterior, em que a criança espancada é ela própria e o agressor é seu pai, o que lhe
proporcionaria prazer. A fantasia de ser espancado se transformaria de modo inconsciente no
desejo de ser amado e cuidado, manipulado fisicamente.
No que concerne aos masoquistas do sexo masculino, como no caso do personagem de
Masoch, suas fantasias, bem como os artifícios que utilizam para a realização destas, são
transferidas da figura do pai para a figura da mãe. Nesses casos, não faz diferença se, na cena
masoquista, eles sustentam a ficção de que um menino malvado ou um aprendiz, vai ser
castigado.
Por outro lado, as pessoas que aplicam o castigo são sempre mulheres, tanto nas
fantasias como nos desempenhos. A fantasia que tem por conteúdo o ser espancado pela mãe,
que é consciente ou pode vir a ser consciente, não é uma fantasia primitiva. Ela possui um estádio
precedente que é sempre inconsciente e tem por conteúdo o seguinte: ŖEstou sendo espancado
pelo meu paiŗ. A fantasia de espancamento do menino é, portanto, passiva desde o começo e
deriva de uma atitude feminina em relação ao pai e dota as mulheres que o espancam de
atributos e características masculinas.
Assim, no romance de Masoch, Severin aposta em Wanda como a mulher que lhe vai
proporcionar prazer ao espancá-lo e fazê-lo sofrer. Não é por acaso que os textos de Masoch
foram escolhidos como um dos fundadores dos estudos das perversões, mais especificamente do
masoquismo. Na obra A Vênus das peles, a aposta de Severin em Wanda como sua possível
Vênus, figura idealizada por ele como uma mulher fálica e poderosa, diz respeito a função
materna na constituição edípica do perverso na psicanálise.
O sujeito perverso, conforme Dor (1996), sustenta-se, essencialmente, em representações
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 190
03 a 05 de novembro de 2010

imaginárias, que tratam de afastar a angústia de castração mobilizada pela diferença dos sexos.
Em outras palavras, significaria afirmar que ele tenta ver o que não pode ser visto (o pênis que
falta à mulher), atribuindo o falo ao Outro57. Mesmo que, no fundo, o sujeito saiba que falta algo no
Outro, ele se recusa a reconhecer essa falta. O que ocorre com Severin, ao comparar Wanda com
a figura de uma Vênus, uma deusa, negando sua sexualidade humana.
Segundo Dor (1996), a atribuição fálica depende de uma construção fantasmática
proveniente das teorias sexuais infantis, que a criança desenvolve para responder à questão da
diferença dos sexos. A criança concebe na mãe (mulher) a falta do pênis, não percebendo
imediatamente a bipartição dos sexos no real de sua diferença, ela inicialmente fantasia em torno
da atribuição de um objeto que então supostamente falta à mãe. Ela institui, assim, a existência de
um objeto imaginário que deveria estar no lugar do pênis (Dor, 2000). Nesse sentido, a castração,
que é a simbolização da diferença dos sexos, torna-se irremediavelmente ligada a dimensão
imaginária do falo e não à ausência ou à presença do órgão pênis.
O objeto eleito para o lugar do pênis-falo remete ao que Freud (1905) coloca como
fundamental para se entender as perversões, quando encara o fetichismo como um caso
particular notável de desvio do objeto sexual associado a uma superestimação sexual ou
idealização do objeto. O substituto do objeto sexual é uma parte do corpo (os cabelos, os pés) ou
um objeto inanimado que diz respeito ao objeto amado e, de preferência, seu sexo (partes do
vestuário, sua roupa íntima). No romance de Masoch o objeto eleito por Severin para cumprir a
função de fetiche, é a pele de animal.Ao longo do texto são inúmeras as vezes que Severin exige
de Wanda o uso de pele animal como parte de sua vestimenta.
Freud (1905) aponta que, no caso do fetichismo perverso, a parte do corpo ou o objeto
inanimado substituem real e inteiramente o objeto. Além disso, percebe-se um caso patológico a
partir do momento em que a necessidade do fetiche adquire uma forma fixa e substitui a finalidade
normal, ou ainda, quando o fetiche se destaca de uma determinada pessoa e torna-se o único
objeto da sexualidade. A forte relação de Severin com as peles (seu objeto de fetiche) é possível
de ser visualizada, no momento em que Wanda pergunta para o personagem: Ŗde onde vem toda
essa paixão por peles?ŗ, na seguinte passagem ele responde: ŖNasceu comigo. Esta paixão, eu
tenho desde criança. Digamos que uma peliça exerce sobre minha natureza nervosa notável
atração, e o faz por leis gerais e naturais. É um estímulo físico, tão peculiar, que provoca uma
ardênciaŗ (Masoch, 2008, p. 61).
Após esse apanhado sobre a relação entre o romance A Vênus das peles e alguns
conceitos psicanalíticos, que dizem respeito aos estudos da perversão, parece necessário pensar
sobre as possibilidades de dominação e poder naturais de um relacionamento amoroso. Para

57
Na obra de Lacan, o Outro com letra maiúscula significa o lugar onde se origina o código, quer dizer, a
linguagem, as palavras que vão captar e moldar, portanto, suas necessidades. O Outro constitui o lugar do
código, ou seja, a partir de onde lhe é ocasionada a linguagem.No caso da criança, o Outro é a mãe
(Bleichmar, 1984).
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 191
03 a 05 de novembro de 2010

tanto, a seguir será abordada a relação entre Severin e Wanda a partir dos estudos do sociólogo
Eugène Enriquez.

3 O AMOR ENTRE SEVERIN E WANDA

No inicio do romance, antes de apresentar o diário que contém relatos de seus momentos
com Wanda, Severin expõe seu entendimento sobre os relacionamentos amorosos entre homem
e mulher. Parecendo ter aprendido com as experiências do passado, o personagem faz reflexões
a partir de palavras ditas por Goethe.

As palavras de Goethe, Řou tu és martelo ou a bigornař que soam tão lapidares no


convívio entre homem e mulher, foi bem a relação que acabou se instaurando com
a Vênus no sonho. No sofrimento do homem está a força da mulher, e ela se
presta a isso se o homem não se cuida. Ele tem apenas uma escolha: ser tirano
ou o escravo da mulher. Tão logo se entrega, já está com a cabeça sob o jugo e
sente em seu dorso o chicote. (Masoch, 2008, p. 31)

As reflexões de Severin vão ao encontro do pensamento do sociólogo Enriquez (1996) que


afirma que a relação amorosa raramente tem aparência simétrica. Para o autor, estão
constantemente presentes na relação amorosa: o jogo da paixão, onde cada um pode colocar o
outro a sua mercê, o jogo da perversão, que se enuncia diretamente como poder, e o da ilusão,
que atribui ao ser amado as qualidades que gostaríamos que ele possuísse.
Enriquez (1996) afirma ainda que o amor sentido não será reconhecido a não ser como
objeto venerável por definição, isto é, oferecendo característica fora do comum. Esse fenômeno
acontece porque nossa educação nos habituou à submissão. O personagem de Masoch faz jus a
esse sentimento de veneração e submissão através de suas atitudes em sua relação com Wanda,
o que fica claro quando lê uma pequena poesia que ele havia escrito para ela:

Vênus das Peles


Pousa o pé sobre teu escravo
Mulher mítica, graciosamente diabólica
Estende o marmóreo corpo
Entre mirtos e agaves (Masoch, 2008, p. 46).

De acordo com o sociólogo, o objeto está preso a um processo de idealização e de


sacramento, como no caso dos sentimentos de Severin para com Wanda. Para Enriquez (1996)
todo homem tem obrigação moral de se tornar digno desse objeto e de fazer o melhor para lhe dar
satisfação. O que está em jogo, nessa circunstância, não é apenas o hábito à submissão, mas
também o narcisismo.
Em relação ao narcisismo, para o autor, ao apresentar um objeto como ideal o sujeito sabe
o que faz, pois o que cada um ama nesse objeto ideal é a si mesmo. Exige-se a perfeição do
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 192
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objeto amado, porque essa perfeição lhe remete à sua própria, suposta e desejada. Se o objeto,
ao invés de se propor simplesmente como maravilhoso, pronuncia, além disso, as palavras de
amor (esperadas e desejadas), então a relação dual do tipo fascinadora ou sedutora, se instala
definitivamente. Assim, na concepção de Enriquez (1996), o controle do amor requer sempre o
discurso do amor, o que é possível visualizar nas declarações de Wanda para Severin.

Para mim é um encanto sem igual saber que tenho um homem que me adora, a
quem amo de todo o coração, que se dá inteiro para mim, depende de minha
vontade, de meu humor, possuir esse homem como escravo, enquanto
eu...(Masoch, 2008, p. 79).

Na obra A Vênus das peles, o relacionamento entre o casal se apresenta como uma
relação de dominação e poder. Nesse sentido, Enriquez (1996) afirma que quanto mais forte for o
amor vindo do objeto, mais ele será despótico. Porém, ao mesmo tempo, mais ele provocará
entusiasmo. Dessa forma, o objeto maravilhoso delega, realmente, parte de seu poder àquele que
ele ama e que o ama. Este último torna-se, então, um Ŗpequeno déspotaŗ que idealizará e
sacramentará, ainda mais que antes, o seu objeto de amor. Isso pode ser observado na fala de
Severin: ŖSeja-o, então, prepotente, seja despótica Ŕ bradei a plenos pulmões -, importa-me tão
somente que seja minha, e minha para sempreŗ (Masoch, 2008, p. 52).
A partir disso, é possível que ocorra uma transferência de sentimentos positivos para esse
objeto, que tomará a forma de uma devoção total. A submissão espontânea não tem mais limites,
pois funciona sob o engodo do amor recíproco. A necessidade de reciprocidade engendra a
possibilidade de relações totalmente assimétricas.
O sujeito então passa a ser Ŗcúmpliceŗ do seu Ŗcarrascoŗ, por se encontrar em uma posição
de dependência de seu objeto, mostrando maior necessidade em ser consolado, protegido por
uma autoridade tutelar, e, assim, pode ser mais facilmente manipulado e alienado. O contrato
estabelecido entre os personagens apresenta um pacto de dependência e proteção autoritária.

A o contar da presente data, o senhor Severin von Kusiemski passa a ser noivo da
senhora Wanda von Dunajew e renuncia a todos os seus direitos; ele, com, sua
palavra de honra na condição de homem e fidalgo, doravante fica obrigado a ser
dela o escravo enquanto ela própria não lhe conceder a liberdade (Masoch, 2008,
p.105).

O romance de Masoch apresenta, além de atos perversos, situações que, de acordo com
Enriquez (1996), fazem parte dos relacionamentos amorosos em geral. Assim, mesmo que a
relação entre os personagens pareça Ŗanormalŗ pela prática do masoquismo, ela conserva traços
de dominação e poder, que são possíveis de ser encontrados nos relacionamentos ditos
Ŗnormaisŗ.
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 193
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obra de Masoch, bem como a de Sade, é marcada pela associação com as perversões
sexuais, com a libertinagem e com a imoralidade. Essa associação parece ser de
responsabilidade, em parte, do sexólogo Krafft-Ebing. No entanto, tal visão acabou por injustiçar
estes autores, cujas obras foram muito além do que se pode considerar como literatura
pornográfica e perversa.
Para Ferraz (2008), a experiência que se manifesta em um livro como A Vênus das peles
não é apenas sensorial, mas sobretudo estética. Isso faz desta literatura uma produção sofisticada
que traz à luz os mistérios mais profundos da alma e da sexualidade humana.
Nesse sentido, Masoch apresenta uma nova forma de literatura, abordando tabus como a
perversão e masoquismo, que até os dias de hoje ainda são velados. É possível perceber ao
longo da leitura de tal romance que o autor aborda situações que causam certo mal-estar no leitor.
Este é pego de surpresa ao se deparar com um personagem que sente prazer ao sofrer violência
e ser escravizado. Dessa forma, Masoch apresenta, através de Severin, a proximidade entre o
sofrimento e o prazer, mostrando a crueldade e a fragilidade presente nos homens e em suas
relações.

REFERÊNCIAS

BLEICHMAR, Hugo. Introdução ao estudo das perversões: a teoria do Édipo em Freud e Lacan.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1984.

DOR, Joël. Clínica Psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

ENRIQUEZ, Eugène. Da Horda ao Estado: Psicanálise do vínculo social. Rio de Janeiro: Zahar,
1996.

FERRAZ, Flávio Carvalho. Introdução In: MASOCH, Sacher. A Vênus das peles. São Paulo:
Hedra, 2008.

FREUD, Sigmund (1924). O Problema Econômico do Masoquismo Edição Standard Brasileira das
Obras Completas de Sigmund Freud. Vol XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

______. (1905) Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade. Edição Standard Brasileira das
Obras Completas de Sigmund Freud. Vol VII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

______. (1919). Uma criança é espancada. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de
Sigmund Freud. Vol XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

MASOCH, Sacher. A Vênus das peles. São Paulo: Hedra, 2008.

WELLDON, Estela. Sadomasoquismo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.


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03 a 05 de novembro de 2010

QUESTÕES DE ALTERIDADE NO CONTO “ANNA, A JAPONESA”

SAMARA LEONEL 58

Resumo
O presente trabalho visa levantar as questões de representação da alteridade no conto ŖAnna, a japonesaŗ,
59
do escritor japonês Yasunari Kawabata .
Explicitando os meios que o autor escolheu para representar o outro - seja como o estrangeiro, seja como o
adulto dentro do próprio grupo social que intermedeia o acesso do narrador ao seu objeto de desejo, seja na
descoberta da figura feminina - procurou-se mostrar uma possibilidade de construção do Ŗeuŗ e do Ŗoutroŗ
numa sociedade japonesa recém-reaberta para o Ocidente.
É um momento em que o medo e a territorialidade ainda não são valores globais como na pós-modernidade
descrita por Zygmunt Bauman e a aproximação com o outro se dá mais pelo vínculo do fascínio e da
atração. As questões individuais parecem mais determinantes que as estipuladas pelo grupo social, que se
fazem presentes de modo inconsciente.
Palavras-chave: alteridade, Kawabata, estrangeiro, literatura japonesa

Abstract
This work aims to raise questions about representation of alterity in the short story ŖAnna, a japonesaŗ
written by the Japanese author Yasunari Kawabata. Expliciting the ways used by the author to represent the
other Ŕ as a foreigner, as the adult inside the social group who intermediate how the narrator access his
object of desire, or even finding out the femaleřs figure Ŕ It was aimed to demonstrate a possibility of
construction for the Ŗselfŗ and the Ŗotherŗ in a Japanese society recently opened to the Western society. It is
a moment whose fear and territoriality are not yet postmodern global values as described by Zygmunt
Bauman, likewise a person become close to another by the fascination and attraction. The individual
questions seem more determining than the questions stipulated by social group, acting unconsciously
Keywords: Alterity, Kawabata, Foreigner, Japanese Literature.

INTRODUÇÃO

O Japão do início do século XX, onde se ambienta nosso conto, é um país marcado pela
consolidação da reabertura das relações internacionais do Japão com o resto do mundo, iniciada
em 1868. Antes disso, o país vivera uma situação de completo isolamento por mais de duzentos
anos:

Dessa forma, Tokugawa Ieyasu proibiu a prática do cristianismo com maior rigor,
destruindo igrejas e expulsando os padres do Japão. O segundo xogum, Hidetada
(1579~1632), limitou o comércio com os europeus apenas à região de Hirado e
Nagasaki. O terceiro xogum, Iemitsu (1604~1651), proibiu a entrada dos
portugueses, que teriam rompido com o arquipélago de qualquer maneira, em
virtude da atividade pirata holandesa. Os ingleses fecharam a casa de comércio
de Hirado e retiraram-se do Japão em 1623, encontrando outros pontos
comerciais mais lucrativos. Os espanhóis também abandonaram o comércio com o
Japão, por não vislumbrarem tanta vantagem, permanecendo apenas os
holandeses na terra do sol nascente.

58
Mestranda em Estudos Literários Ŕ UFSM
59
Nascido em Osaka, em 1899, foi um dos maiores escritores japoneses contemporâneos. Sua obra é
extensa e foi muito ativo nos movimentos literários japoneses de seu tempo. Recebeu inúmeros prêmios
literários, inclusive o Nobel, em 1968. Com a saúde debilitada, suicidou-se em 1972.
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 195
03 a 05 de novembro de 2010

Em 1630, foi proibida a importação de livros chineses e europeus, a navegação


dos que não fossem goshuin-sen (navio mercante autorizado pelo xogum), a saída
dos japoneses ao exterior, a volta dos que moraram por mais de cinco anos no
exterior e o aportamento dos navios estrangeiros. Foi construído ainda um aterro,
ou seja, uma ilha artificial em Nagasaki chamada Dejima (1634), restringindo a
atividade comercial e a permanência dos holandeses apenas a essa ilha. 60

Essa reabertura, de início causou certo sentimento de inadequação devido à defasagem


tecnológica e suscitou um rápido movimento de modernização e industrialização no país, tanto por
parte do governo quanto da população.

O encontro do país com o resto do mundo, após um período de isolamento


voluntário de mais de dois séculos, causou um choque de conseqüências
dramáticas em todo o Japão. Na ânsia de igualar-se ao Ocidente desenvolvido e
moderno, os japoneses procuraram livrar-se de séculos de tradição. Tudo quanto
fosse antigo, tradicional, torna-se sinônimo de retrógrado e deve ser descartado e
esquecido.
Os intelectuais japoneses chegavam a afirmar, afetados pelo que viam no
Ocidente, que o Japão não tinha história, que a história iniciava agora. (...) Tudo o
que viesse do Ocidente deveria ser imitado, desde as comidas, as vestimentas e a
arquitetura.61

Nossa história se passa aproximadamente cinqüenta anos depois dessa reabertura, no


período Taisho, quando há uma leva significativa de imigrantes russos no Japão, em função da
Revolução de 1917. O país já está plenamente modernizado, é uma economia forte 62 e
militarmente vitoriosa, a auto-imagem do japonês é de um homem que não esqueceu suas
tradições, mas está plenamente adaptado ao seu tempo.
O tempo de convívio com o estrangeiro, entretanto, ainda não é suficiente para a redução
do estranhamento Ŕ e as diferenças culturais são profundas. O imigrante é uma figura que não
causa medo nem sujeição, a idéia de pertencimento japonesa já foi construída em cima de um
isolamento secular Ŕ como a sociedade japonesa enxergará, então, o outro? Segundo Edward
Said, toda representação do outro através da linguagem é uma construção, nada Ŗestá meramente
aliŗ. (pg. 31) Analisaremos, portanto, como essa construção foi confeccionada por Kawabata,
procurando levantar algumas questões éticas da relação do ser humano com a diferença e as
especificidades desse fenômeno num escritor pertencente a uma comunidade de contexto
histórico tão particular quanto o japonês do século XX.

1. OBRA E PERSONAGENS

60
PORTAL NIPPO-BRASIL (1).
61
(SHIMON, pg. 7)
62
Ŗ(...) durante o período da 1ª Guerra, a situação econômica tornou-se extremamente favorável, e o Japão
foi incluído entre as cinco maiores economias mundiais, transformando-se numa potência imperialista
(PORTAL NIPPO-BRASIL (2))
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 196
03 a 05 de novembro de 2010

Narrado em terceira pessoa, o conto apresenta a breve aproximação entre um colegial


japonês e uma imigrante russa, no Japão do início do século XX. O jovem se sente fascinado por
ela e passa a segui-la pelas ruas de Tóquio Ŕ acompanhando sua trajetória, apreendemos o
pouco que ele consegue descobrir sobre a garota Ŕ que é pianista e trabalha com o pai e os
irmãos músicos tocando nos intervalos dos filmes no cinema; que está hospedada com eles num
albergue barato; que comete pequenos furtos.
Na verdade, não há contato direto entre eles (ao menos, que o leitor tenha acesso) e Anna,
com suas roupas ocidentais (nessa época, a maior parte dos homens japoneses já usava trajes
ocidentais, mas as mulheres mantinham a forma japonesa de vestir, em sua maioria), com seu
sorriso de ave de rapina, é uma personagem bastante misteriosa. Não sabemos o exato motivo de
sua migração (apenas que é descendente de uma família nobre que fugiu da Revolução), se sua
família já era de músicos antes da migração, se fala ou não o idioma japonês.
O colegial a segue e chega a se hospedar no mesmo albergue que sua família, para
melhor observá-la. Nessa ocasião, ele lhe deixa uma carteira com dinheiro próxima ao leito da
moça. É um presente que não deixa de conter certa ironia, pois ele acredita que Anna lhe furtou
uma carteira idêntica dias antes. Ao contrário da expectativa do rapaz, ela não aceita o presente
nem o procura, mas devolve a carteira presenteada e a que foi furtada, deixando, do mesmo
modo, ao lado do leito dele. Quando ele percebe, ela já se mudou de alojamento com a família.
Algum tempo depois, ele acredita reencontrá-la junto a um pequeno grupo de jovens
delinqüentes, vestida como um menino, com roupas japonesas. Interpelada, ela (Ou ele? Só
temos a percepção do narrador, que nos dá a certeza que é do colegial, não absoluta.) afirma ser
um japonês, não ser nenhuma Anna. (No original, essa questão fica ainda mais ambígua, porque
adjetivos não têm marcação de gênero na língua japonesa.)
Além do protagonista e de Anna, temos outros personagens: a irmã do colegial, através da
qual ele constrói uma delicada cadeia afetiva que o liga à russa; o ginasial, que também parece
seguir a moça, aparentemente atraído por sua beleza; o gerente do albergue, que veta sua
entrada no estabelecimento quando ele está sem dinheiro; a empregada, que oferece os serviços
sexuais de Anna e a família da moça, que é apenas brevemente citada.

2. MONTANDO O QUEBRA-CABEÇA: QUE INFORMAÇÕES NOS CHEGAM, COMO ELAS


CHEGAM E O QUE REALMENTE QUEREM NOS DIZER

Visando elucidar como Kawabata constrói a visão geral que temos do conto, separei as
referências aos personagens por categorias. (O texto aparece na íntegra em anexo, com todas as
marcações legendadas.)

2.1 O que sabemos sobre Anna


IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 197
03 a 05 de novembro de 2010

O narrador com características bem contemporâneas, não discernimos claramente de que


ponto ele escreve, não é onisciente e, embora esteja em terceira pessoa, apresenta um ponto de
vista bastante imbricado com o do protagonista. Por ele sabemos:
 que ela tem uma carteira idêntica à compartilhada pelo narrador e sua irmã
Do que ele deduz que ela não é indiferente à moda (portanto, à sociedade) japonesa. Essa
identificação provoca simpatia.
 que ela veste roupas ocidentais, assim como seus irmãos que a acompanham
A impressão geral é de certo desleixo Ŕ um irmãozinho não está suficiente vestido e ela o
protege do frio, o outro se esfrega na roupa de um adulto.
 que ela e os irmãos andam lentamente, como mendigos
A associação reforça o aspecto geral de desleixo.
 que Anna furtara a carteira do colegial
Ao se perceber sem o objeto no albergue, logo relembra do contato com a moça e conclui,
com toda naturalidade, que ela devia ter lhe furtado a carteira (o que vai se comprovar no
desenrolar da história).
O curioso aqui é a ausência de qualquer julgamento moral, ou mesmo de surpresa. Os
fatos lhe pareceriam tão lógicos se Anna fosse uma mocinha japonesa com família? Ou sua
atitude parece natural por ser uma artista itinerante? Ainda: a ausência de reação seria fruto da
intensa atração que o colegial sente por ela, permitindo ignorar tal deslize?
 esboço de descrição física: ŗ (...) sorriu com as bochechas rubras (...) Era um rosto
alongado, um sorriso que lembrava uma ave de rapina, com as extremidades das
sobrancelhas e os cantos dos lábios ligeiramente levantados, ela lhe lançou um rápido
olhar penetrante(...)ŗ
Na descrição da moça na cena do furto ele ainda nos informa que Anna tem o sorriso Ŗde
uma ave de rapinaŗ. A associação com Ŗrapinagemŗ não parece gratuita.
Anna ser estrangeira, artista itinerante, ladra e Ŗtrambiqueiraŗ parece ser um conjunto
perfeitamente normal e aceitável na visão do narrador. Não existe qualquer cobrança ética. Seria
porque os estrangeiros Ŗsão assim mesmo e não há como os consertarŗ?
 seus sapatos estão jogados no vestíbulo, os objetos dentro do quarto da família russa
parecem em desordem
De novo, parece se reforçar a impressão de desleixo. Mesmo atualmente, disciplina,
organização e capricho são qualidades muito valorizadas na sociedade japonesa, principalmente
nas mulheres. Eles são assim porque os estrangeiros são assim? A despreocupação de Anna é o
que o torna tão atraente aos olhos do rapaz?
De qualquer forma, não recebem qualquer censura do narrador, parecem ser fatos
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inerentes, parte das Ŗřestrangeiriceř do estrangeiroŗ. 63


 ela tem apenas doze anos
Apesar da descrição, até aqui, parecer corresponder a uma mulher adulta, Anna é pouco
mais que uma criança. Mais nova, portanto, que o colegial, que deve ter no mínimo 15 e no
máximo 18 anos. Seria esse o motivo da conivência com seus pequenos delitos?

 ela cerze sua própria roupa íntima


Além de indicar certa graça feminina, esse detalhe parece por o leitor ainda mais a par da
situação financeira da família de artistas.
 Anna devolve a carteira furtada com o dinheiro dentro e em seguida todos se mudam.
Segundo o narrador, o gesto do colegial de presenteá-la com uma nova carteira com
dinheiro deve ter assustado a família.
Curioso notar que só temos as deduções do narrador novamente. Não se levanta a
possibilidade de arrependimento ou pudor. Apesar de desconhecidos e misteriosos, a motivação
por trás de seus atos parece muito simples e clara ao narrador/colegial Ŕ como se sua
personalidade se encaixasse numa visão já pré-formatada na cabeça do rapaz japonês.
 ŖOs irmãos Rubouski, órfãos de uma nobre família russa refugiada da Revolução, que
levavam a vida errante, faziam suas apresentações nos intervalos de projeção dos filmes
no teatro N. Anna, de 12 anos, tocava o piano, Israel, de 8 anos, o violoncelo e Daniel, de
6 anos, cantava as canções russas de ninar.ŗ
Esse é o conjunto de dados mais objetivo que temos sobre a família. A fonte dessa
informação não é citada. Imaginamos que esteja disponível no programa do teatro ou que ele a
tenha obtido conversando com freqüentadores ou funcionários. É através desse trecho que
conseguimos contextualizar historicamente a narrativa.
 sobre uma pessoa que o colegial encontra algum tempo depois (esse tempo não é
precisado, mas temos a sensação de que se passaram alguns anos pela narração anterior
do casamento da irmã do protagonista) e pensa ser Anna:

Ŗum belo adolescente de pele branca como boneco de cera. Vestia um quimono
de kurumegasuri graúdo, um boné preto gasto em forma de sino puxado até aos
olhos, mantô estudantil de bainhas desgastadas. Metidos em tamancos de dentes
grossos, seus pés descalços eram de uma beleza provocadora, a ponto de
alguém querer mordê-los. Era uma mulherŗ

Interpelada pelo colegial (a essa altura da história, ex-colegial?), a pessoa nega ser Anna,
dizendo ser japonês ou japonesa (em língua japonesa, não existe marca de gênero no adjetivo,
então não temos sequer a confirmação de que se trata realmente de uma mulher!). A
Ŗconfirmaçãoŗ da identidade parece se dar pelo fato de Ŗcomo era de se esperarŗ, a carteira do

63
LANDOWSKI. Pg. 7
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colegial acaba sumindo. Mas não se havia descrito o grupo como de aparência delinqüente desde
o princípio? Anna certamente a única pessoa a bater carteiras em Tóquio.
Se considerarmos correta a percepção do narrador, temos aqui a primeira e única
afirmação de Anna sobre si mesma: Ŗ─ Não sou Anna. Sou japonesa! ─ o garoto disse,
incisivamente, e desapareceu como vento.ŗ64
Nessa afirmação de Anna, encontramos o perfeito camaleão landowskiano65. Não temos
idéia do que teria acontecido com a família, se ainda trabalha com música ou não, se todos
partiram para a contravenção ou o núcleo se desagregou devido às condições financeiras. Mas,
de qualquer maneira, ela parece totalmente integrada ao país, ao grupo social no qual escolheu
atuar, numa concepção totalmente subjetivista do fenômeno de identidade 66. Apesar das feições
ocidentais, ela praticamente se fundiu na paisagem. Foi assimilada 67 pela cultura alienígena Ŕ
para Anna, na modernidade, ainda não é possível a adoção de uma identificação dupla (russa e
japonesa), mas apenas a oposição binária68 que esgota parte de sua identidade.
Aparentemente confirmando a impressão geral sobre ela, uniu-se a um grupo marginal Ŕ
deixou de ser a Ŗoutraŗ de fora do país para ser a Ŗoutraŗ dentro do Japão.

Não apenas o narrador parece ver Anna como um indivíduo à margem da Ŗmoral
japonesaŗ, mas também a empregada do hotel demonstra ter o mesmo tipo de visão. Oferece os
serviços sexuais da moça com naturalidade.

─ Se está interessado nessa moça estrangeira, eu posso lhe arranjar.


─ Como?
─ Está disposto a pagar uns 20 ienes?
─ Mas, mas, olhe, ela só tem doze anos!
─ É mesmo?! Só doze?69

Uma hóspede japonesa, que não fosse artista itinerante, criaria a mesma expectativa? Ou
o problema seria a condição econômica da moça, hospedada num lugar tão humilde?
A tom pessoal com que o texto é construído não permite certezas absolutas, mas um sem
número de indícios nos faz crer na existência de uma forte crença, ainda que coletiva, na
superioridade cultural70 japonesa. Necessário que seja assim para uma nação que, abalada com o
choque com o Ocidente, precisa construir e reconstruir sua identidade. ŖA alteridade é um outro,
do qual depende a própria identidade. O outro e o eu estão numa relação complexa em que se

64
KAWABATA. Pg.116
65
LANDOWSKI. Pgs. 37 a 45.
66
COUCHE. Pg. 180
67
LANDOWSKI. Pg. 15
68
HALL. Pg. 345
69
KAWABATA. Pg.114
70
HERMANN. Pg. 71
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71
remetem reciprocamente. Assim, o outro não só está fora, como dentro do indivíduo.ŗ
O comportamento indisciplinado da moça reforça o Ŗjaponês íntegro e disciplinadoŗ dentro
de cada membro do grupo, que se permitem observá-la com indulgência. Nada é explicitado,
72
claro, mas Ŗa cultura depende em grande parte, de processos inconscientes.ŗ Pois, segundo
Couche: (...) o que separa dois grupos étnicos não é em princípio a diferença cultural (...) é a
vontade de se diferenciar e o uso de certos traços culturais como marcadores de sua identidade
específica.(...)73
Fica indefinida também a vergonha que causa no colegial o encontro com o estudante
ginasial nas proximidades do albergue. O que causa constrangimento é o fato de se estar
seguindo uma Ŗmulherŗ (sendo ginasial, o menino deve ter a mesma idade de Anna ou ser ainda
mais novo) ou seguindo uma estrangeira? De qualquer forma, por ser estrangeira ou por ser
mulher, a russa é o outro que causa constrangimento por estar num lugar inadequado: na relação
entre pessoas de posição hierárquica diferente pertencentes ao mesmo grupo. E entre membros
de um grupo eminentemente masculino, numa idade em que o interesse por mulheres ainda é
considerado uma bobagem.
No Japão, principalmente nessa época, a relação entre veterano (senpai) e calouro
(kouhai) é fortemente hierarquizada e a imagem que um grupo tem do outro é bastante relevante.
A existência do outro é importante porque determina meu lugar no grupo Ŕ é preciso ser calouro
para ser veterano de outros, no futuro.
Outra personagem que não participa diretamente da ação, mas é utilizada na formação de
um vínculo estético e emocional do protagonista com Anna é a irmã. É dela a carteira idêntica que
Anna possui. Para ela, o colegial conta a história que Anna devolveu a carteira após tê-la
encontrado. E ainda é para ela o luxuoso artigo russo que ele compra em homenagem a ela. Em
vários momentos do texto, o colegial tentará estabelecer esse vínculo Ŕ motivado pela
atração/afeição que a russa lhe desperta. Toda a aproximação se mostra impulsionada por esse
sentimento Ŕ embora ele alegue que sentiu vontade de segui-la por causa da carteira idêntica, só
percebeu a presença do objeto porque já a vinha observando.

REFERÊNCIAS

COUCHE, Denis. A Noção da Cultura nas Ciências Sociais. São Paulo: EDUSP, 1998.

HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG; Brasília:
Representação da UNESCO no Brasil, 2003.

HERMANN, Nadja. Ética, Estética e Alteridade. In: TREVISAN, Amarildo L. e TOMAZETTI, Elisete

71
HERMANN. pg. 72
72
COUCHE. Pg. 176
73
Pg. 200
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03 a 05 de novembro de 2010

M. (org.). Cultura e alteridade: confluências. Ijuí: Ed. Unijuí, 2006.

KAWABATA, Yasunari. Contos da Palma da Mão. São Paulo: Estação Liberdade, 2008.

LANDOWSKI, Eric. Presenças do Outro – Ensaios de Sociossemiótica. São Paulo: Perspectiva,


1997.

PORTAL NIPPO-BRASIL(1). Zashi – História da Literatura Japonesa – Era Edo, parte 2. São
Paulo, 2010. Disponível em: < http://www.zashi.com.br/zashi_historiajapao/304.php> Acesso em:
4/JUL/2010.

PORTAL NIPPO-BRASIL(2). Zashi – História da Literatura Japonesa – Era Taisho. São Paulo,
2010. Disponível em: < http://www.zashi.com.br/zashi_historiajapao/328.php> Acesso em:
4/JUL/2010.

SAID, Edward W. Orientalismo. São Paulo: Ed. Schwarcz, 2008.

SHIMON, Meiko. Antologia do Conto Moderno-Contemporâneo Japonês. Porto Alegre: UFRGS,


1999.
IV Simpósio de Literatura, Comparatismo e Crítica Social | 202
03 a 05 de novembro de 2010

Universidade Federal de Santa Maria


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