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Enquanto etapas da pesquisa há uma revisão teórica, uma prática artística e uma
reflexão a partir dos rastros1 autoetnográficos. A parte prática está sendo desenvolvida na
sede do Grupo de Teatro Lavoura2, entendido como campo de atualização da teatralidade,
ou como coloca Fortin (2009), “campo da prática artística” onde se dão os fenômenos,
processos e procedimentos, referentes à prática artística, em seu espaço tempo e com seus
sujeitos agentes. Nesse contexto, a reflexão resulta da articulação dos rastros do processo
em relação a minha percepção do fenômeno e em diálogo com os aportes teórico-
metodológicos. Ou seja, desde como surgiu esse projeto cênico até as conexões,
agenciamentos e articulações dos desejos, nele envolvidos.
Os rastros a que me refiro são as memórias e registros de situações no processo de
criação e na encenação em si, os fenômenos são as reflexões acerca do conjunto de rastros
suscitados e articulados pela prática. Os aportes teórico-metodológicos são as teorias do
teatro, da performance, das ciências humanas e da filosofia, por mim conhecidos.
A recuperação dos rastros está se dando por meio dos documentos produzidos,
registro escrito e audiovisual. A análise está suscitando reflexões acerca de determinadas
situações do processo. Como consequência, estou efetivando um esforço de teorização e
sistematização do trabalho em desenvolvimento por meio do diálogo com teorias e
reflexões externas à poética. Não posso deixar de pontuar o caráter inacabado e em
movimento deste trabalho teórico, porque, assim como a prática, vem se mostrando
provisório à medida que o olhar sobre os rastros vão ganhando outras dimensões por meio
da contribuição de outras vozes a esse processo, a exemplo das referencias teóricas com
as quais estou dialogando, assim como as conversas de orientação com minha orientadora.
A metodologia de criação do espetáculo parte da possibilidade de assimilação
prática de materiais e ideias que foram surgindo e sendo trazidas para a sala de ensaio e
que foram dando direcionamento ao processo criativo. Esses materiais, rastros do
processo criativo, são os mais diversos, desde artistas contemporâneos como Marina
Abramovic, Orlan, até referências da cultura pop como Keeping Up with the
1
Termo criado pelo filósofo franco-argelino Jacques Derrida, assume o caráter de indeterminação do
pensamento, ao propor a substituição do conceito tradicional de signo da semiologia e sua inerente
repartição entre significado e significante pelo quase-conceito de rastro, unidade de significação, sempre
em processo de diferenciação.
2
Localizada na ladeira São Francisco, na cidade de João Pessoa, é o local de encontro e trabalho dos
integrantes do Grupo de Teatro Lavoura, do qual faço parte.
J95m - OLIVEIRA, Joevan. Me ame menos, mas me ame por mais tempo: autoperformação como
procedimento de subjetivação do ator / Joevan OLIVEIRA. - João Pessoa, 2019. 87 f. Orientação:
Marcia CHIAMULERA. Monografia (Graduação) - UFPB/CCTA.
Kardashians3, Rupaul’s Drag Race4, Botched5, passando por extratos textuais dramáticos
de Shakespeare, não dramáticos como Cecília Meireles, Oscar Wild, textos publicitários,
textos teóricos como do filósofo Jean Baudrillard, autoanálises, conversas com amigos,
peças musicais creative commons e vídeos da internet.
As cenas foram sendo criadas a partir do processo de manipulação, articulação e
experienciação dos materiais acima citados tendo como base a utilização de parâmetros
concretos de tempo espaço, como proposto pela metodologia dos Viewpoints e da
Composição, ambos desenvolvidos pela encenadora estadunidense Anne Bogart. Essas
duas técnicas, que se complementam no trabalho criativo proposto pela encenadora acima
citada, partem de um mesmo princípio que é propiciar autonomia de ação ao sujeito no
processo criativo, o que lhes confere um caráter horizontalizado. Sequências, físicas e
vocais foram criadas num processo de esboçar ideias rapidamente, enquanto ações
concretas que vão sendo transformadas em cena. O processo de composição parte da
premissa de que decisão e escolhas devem ser tomadas sem muita elaboração prévia, para
não incorrer no compromisso de um resultado motivado pela necessidade de significação
prévia, o que me levou a um método de escolha de materiais muito mais intuitiva.
Cada cena foi pensada segundo a lógica do rastro, no sentido de que representa uma
singularidade, ou seja, possui autonomia em relação ao conjunto, mas mantém relações
com as demais. A proposta era tornar o processo de construção mais complexo, buscando
fugir de oposições dialógicas. Nesse sentido, parti da lógica de que “eu” sou “vários” em
situações específicas, mas interconectas. Nesse sentido, cada cena funcionando como um
ensaio, no sentido do gênero literário, tem um caráter opinativo, em que exponho ideias,
críticas, reflexões, impressões, a partir de um ponto de vista pessoal procurando
problematizar determinados temas como identidade, política, corpo, relacionamentos,
sexo, vícios, medos. São Reflexões e considerações apenas provisórias, sem pretensão de
guardar verdades absolutas e que, portanto, vão mudando, se contradizendo ou se
reafirmando quando em relação umas com as outras.
3
Reality show de uma família americana, há 11 anos no ar, cujos membros utilizam as mídias sociais como
plataforma comercial, para vender produtos os mais diversos e propagar modos de subjetivação baseados
em broadcast yourself, estilos de vida fundamentados na auto exposição.
4
Reality de competição apresentado por uma drag queen americana chamada Rupaul Charles, tem como
objetivo descobrir a próxima super estrela drag americana. Na sua 11ª temporada, os desafios propostos
giram em torno da cultura drag (dublagem, dança, costura, maquiagem, interpretação, mercado) e as
questões de gênero implícitas.
5
Reality estadunidense no qual dois cirurgiões plásticos corrigem procedimentos cirúrgicos, de caráter
estético, que deram errado.
J95m - OLIVEIRA, Joevan. Me ame menos, mas me ame por mais tempo: autoperformação como
procedimento de subjetivação do ator / Joevan OLIVEIRA. - João Pessoa, 2019. 87 f. Orientação:
Marcia CHIAMULERA. Monografia (Graduação) - UFPB/CCTA.
As cenas foram pensadas dessa forma porque meu desejo inicial foi o de criar um
dispositivo interacional que pudesse intensificar a polifonia no processo de construção do
experimento evidenciando a relação eu-outro (plateia), assim como, também, eu-outro
(eus) da forma mais dinâmica e móvel possível dentro do meu contexto de trabalho. Nesse
sentido, o processo de composição do experimento foi pensado para ser realizado de
modo horizontalizado pelo conjunto dos agentes envolvidos, ou seja, ator, iluminador e
público no momento mesmo da apresentação do experimento, aumentando a
complexidade do processo de subjetivação proposto pelo trabalho. Apesar das cenas já
estarem prontas a priori, o processo de organização das mesmas, ou seja, a narrativa geral
responsável pela concretização do meu processo de subjetivação no experimento se torna
móvel, uma vez que as cenas apresentadas e sua sequência serão determinadas pelas
escolhas do público.
Partindo do pressuposto que as construções identitárias se dão em processos de
interação, o presente experimento propõe verificar as características dessa construção de
identidades (de si em relação ao outro) num processo de construção narrativa conjunta.
Se, como coloca Bondía, “o sentido do que somos depende das histórias que contamos a
nós mesmos (...), das construções narrativas nas quais cada um de nós é, ao mesmo tempo,
o autor, o narrador e o personagem principal” (BONDÍA, 1999, p. 22), em se tratando de
uma escrita de si, a narrativa auto reflexiva, possibilita a observação dos modos como o
narrador constrói, para o outro, a forma como gostaria de ser visto.
Nesse sentido, apesar das cenas se estruturarem de forma a criar uma imagem
específica do atuante, a organização dessas falas no discurso, antagonicamente não cabe
ao ator, mas sim ao público. Como resultado, sempre haverá uma nova perspectiva, um
ponto de vista diferente em relação à constituição da escrita de si, do ator em cena, ou
seja, de sua identidade, seja em relação ao público, ou mesmo em relação ao ator. Este
último vai assumindo novas condições de desenvolvimento de sua narrativa auto
reflexiva, ou seja, de construção das suas identidades dentro do experimento. Por isso, a
metodologia de desenvolvimento do trabalho prático teve como objetivo evidenciar o
processo de autoperformação do ator. Termo que utilizo no sentido de processo de
“escritura do eu”, parafraseando Foucault (2004), no qual o ator, ao se autoficcionalizar
J95m - OLIVEIRA, Joevan. Me ame menos, mas me ame por mais tempo: autoperformação como
procedimento de subjetivação do ator / Joevan OLIVEIRA. - João Pessoa, 2019. 87 f. Orientação:
Marcia CHIAMULERA. Monografia (Graduação) - UFPB/CCTA.
6
Plural de self , tem o sentido de “eu” plural..
7
Movimento sucessivo de deslocamentos de um registro conceitual para outro que faz explodir o horizonte
semântico, não apenas porque rompe com a ideia de volta a um sentido de origem, mas também com a
própria ideia de matriz do sentido, introduzindo a diferença no interior do mesmo. Nesse sentido, se
diferença da disseminação para a polissemia é que esta última, ao promover deslocamentos de sentido,
aponta para uma síntese em todos os níveis semânticos.
8
Elemento ambivalente sem natureza própria que não se deixa compreender nas oposições binárias. Sem
um referente permanente está sempre “entre”, “no meio” oscilando ente dois termos sem, no entanto,
resultar em sínteses.
9
Neografismo criado por Derrida ao acrescentar a letra “a” à palavra différence, com quem mantém
semelhança fonética e alteridade gráfica. Trata do próprio ato de diferir, anterior a qualquer diferença
determinada, porque assim como a lógica do rastro não “é” diferente, “está” diferenciando um termo de
outro em determinado tempo (provisório) e de acordo com as relações que se estabelecem (alteridade) num
dado contexto.
J95m - OLIVEIRA, Joevan. Me ame menos, mas me ame por mais tempo: autoperformação como
procedimento de subjetivação do ator / Joevan OLIVEIRA. - João Pessoa, 2019. 87 f. Orientação:
Marcia CHIAMULERA. Monografia (Graduação) - UFPB/CCTA.
autora lembra que não há como um discurso ser neutro, afinal, o pesquisador o
desenvolve, também, a partir de suas percepções.
As questões metodológicas relacionadas ao processo de criação em arte são
importantes porque apontam para a reflexão acerca da necessidade do artista pesquisador-
experimentador tomar para si a responsabilidade pela construção de sua própria episteme.
Uma atitude que demanda esforço no sentido da elaboração de instrumentos práticos e
teóricos capazes de lidar com as questões pertinentes aos seus processos e procedimentos
sem reduções dicotômicas, mas de modo complexo e processual.
A busca por modelos alternativos, elaborados a partir da ideia de subjetividade
construída de modo relacional e dialógica pode deslocar o foco da “autoridade”
(pesquisador, artista, encenador) para a produção de saberes plurais, que abrangem e
negociam com diferentes visões de mundo.
Neste trabalho, me proponho a problematizar os procedimentos que envolvem meus
processos de subjetivação no experimento, assim como do dispositivo elaborado para esse
fim e que se configura como a própria encenação, com suas metodologias e finalidades.
Estratégia adotada para procurar entender a construção da subjetividade e do próprio
conhecimento como relacionais, intersubjetivos e dinâmicos.
Assim espero contribuir com as reflexões voltadas para a construção de uma
episteme do conhecimento prático e teórico no campo da arte e, especificamente do teatro,
que seja singular, de cada sujeito, tendo em vista os processos cada vez mais
fragmentados e multirreferenciais da arte, o que se evidencia pelo seu caráter
experimental, singular, contextual.