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pecado c o Hiedo c um clássi ­


co da historiografía moder­
na. Tendo se aprofundado na cul­
tura que embasa a civilização da
renascença italiana, o autor vê no
tema do m edí uní mote a partir
do qual seria possível devassar
misterios da sensibilidade coleti­
va. Seguindo esse raciocínio, che­
ga à questão do pecado, entendido
como elemento essencial na cons­
tituição do medo como problema
coletivo.

Este título esclarece o


cionamento e a difusão de um dis­
curso culpabilizador presente no
Ocidente cristão, situando o pro-
muito mais no
do que no
mento. Com o intuito de propor­
cionar ao público uma erudição
pacificadora, Delumeau pretende
V éulpabiiizafão
sua
no Ocidente
;sé(‘ii los

“Na história da Igreja, os fatos


passados são lições para que evite­
mos cair nos mesmos erros. Por
1
.lean
outro lado, não temos nenhum
direito de julgar as pessoas, ou de
J - Delumeau
dizer que teríamos feito melhor
em seu lugar.”

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Estaobra foi espa mímen


volumes l><iru propon iomu uo Inioi /</< ilido,le
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Os dois volumes eonslliuem u obro tomplt m
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e por esse motivo mio podem sei uthpundo


... m

separadamente.

Jean Delumeau
doutorou-se em História (1955) com uma '

tese sobre Roma no século 16. For professor


nas universidades de Rennes (1955-1970),
?■


■■
Pantheon Sorbonne (1970-1975), e ocupou
a cátedra de História das Mentalidades
Religiosas no Ocidente Moderno (1975- wm
SSSKs Sf t i 1
1994). Desde 1988, é membro da Académie
des Inscnptums et Belles Lettres e e doutor
honons Ccitisâ peleis iniivcrsicícidcs do F*oi lo>
Sherbrooke, liège e Bilbao-San Sebastian
(Deusto). Publicou, entre outras obras,
La Peur en Occident (1978), Rassurer et
. .m
Protéger (1989), L’Aveu et le Pardon '
(1990), Le Jardín des délices (1992), Mi lie ISBN ñS-7Mfc>0 17S h

ans de bonheur (1995) e Que reste-t-il du


Paradis? (2000).
a* 7 VH '» 7 /, 601754
Coordenação Geral
Ir. Elvira Milafii

Coordenação Editorial
Ir. Jacinta Turolo Garcia

Coordenação Executiva
Luzia Bianchi

Comitê Editorial Acadêmico


Ir. Elvira Milani - Presidente
Glória Maria Palma
Ir. Jacinta Turolo Garcia
José Jobson de Andrade Arruda
Marcos Virmond
Maria Arminda do Nascimento Arruda

(
J e a n D e l u m e a u

o pecado e
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c u l p a b i l i z a ç a o n o o c id e n t

( s é c u l o s I 3 7 I 8 )

T ra d u çã o de
Á lv a ro L o re n c in i.

EDUSC
Editora da Universidade do Sagrado Coração
EDUSC
Ed ito ra da U n ive rsid a d e do S a g ra d o C oração

I M(t(tp Dclumeau, Jean.


() pecado e o medo : a culpabilizaçao no ocidente
(séculos 13-18) / Jean Dclumeau ; tradução de Alvaro
Lorencini. - Bauru, SP : EDUSC, 2003.
2 v. (Ó24 ; 440 p.) ; 23 cm. -- (Coleção Ciencias
Sociais)

Tradução de: Le péché et la peur, e l983.


ISBN 85-7460-175-6 (v. 1). - ISBN 85-7460-176-4 (v. 2)

1. Pecado - Historia das Doutrinas. 2. Teologia - Historia.


3. Civilização Moderna. 4. Renascença. 5. Historiografía.
I. Título. II. Série.

CDD 241.309

ISBN 2-213-01306-3 (original)

Copyright © Librairie Aithéme Fayard, 1983


Copyright © (tradiição) EDUSC, 2003

Tradução realizada a partir da edição de 1983


Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa
para o Brasil adquiridos pela
EDITORA DA UNIVERSIDADE DO SAGRADO CORAÇÃO
Rua Irmã Arminda, 10-50
CEP 1 7 0 1 1 - 1 6 0 - Bauru-SP
Fone (14) 3235-7111 - Fax (14) 3235-7219
e-mail: edusc@edusc.com.br
)

e-mail do'autor: j.delumeau@wanadoo.fr


sumario

7 Prefacio à edição brasileira

Introdução
9 Uma história cultural do pecado
* ‘ i
PARTF. 1 - Macabro e pessimismo na Renascença

C apítulo 1
19 O desprezo do mundo e do homem

Capítulo 2
69 Do desprezo do mundo às danças macabras

C apítulo 3
16 1 Ambigüiclade do macabro

Capítulo 4
213 Um mundo pecador

C apítulo 5
273 Um homem frágil

■ PARTE 2 - Falência da redenção?


r
C apítulo 6
357 A súmula do exame de consciência
* ■ X .
C apítulo 7
399 O território do confessor

C apítulo 8 '
461 O pecado original

C apítulo 9
537 A massa de perdição e o sistema do pecado

C apítulo 10
579 O “mal-estar” religioso
pro lacio h
edição brasileira

A publicação ele Le Peché et la Peur no Brasil é para mim


urna grande honra e alegría, pois reforça os laços com um país
<|ue já traduziu varios de meus livros e em cuja Universidade de
Sao Paulo dei aulas durante dois meses em 1976, enquanto redi
gia la Peur en Occident.
Gostaria de aproveitar a ocasião da publicação deste livro
no Brasil e destacar um aspecto de minha produção historie .1,
além de formular dois desejos. Tenho tido a sorte de podei estai
cumprindo há mais de trinta anos meu programa de pesquisa e
que não se limitou ao estudo do medo. Com efeito, esse st- inte
gra em um conjunto mais amplo, pois tomei sucêssivamente
com o “objetos históricos” o medo, o sentimento de segurança, e
a esperança de felicidade, o que explica uma série de obras au
tônomas entre si, embora encadeadas. A ordem dos livros c a se­
guinte: La Peur en Occident (1978), Le Péché et la Peur (1983),
Rassurèr et Protéger (1989), L A v eu e tle P a rd o n (1990), Le Ja rd ín
des clélices (1992), M ille ans de honheur (1995), Q u e reste-t-il du
Paradis (2000). Espero, dessa maneira, ser julgado pelo conjun­
to desses trabalhos que demarcam um itinerário e que procura­
ram decifrar campos históricos até então pouco explorados.
Meu segundo desejo, tratando-se dos meus dois livros-so­
bre o medo, é que eles sejam lidos e recebidos corno dossiês, e
não como armas de acusação. Le Péché et la Peur, em particular,
esclarece o funcionamento e a difusão de um discurso culpabili-
zadòr. Ele se situa, portanto, mais no plano da constatação do
que no de julgamento, mesmo se é verdade - o que eu não es­
condo, pois é preciso dizer quem a pessoa é - que minha pes­
quisa visou também redescobrir a mais autêntica mensagem cris­
tã, vítima de derivas históricas que devem ser explicadas, e não
condenadas. Concordo totalmente com a afirmação da revista Ire-
nikon (1, 1979): “Na história da Igreja, os fatos passados são li­
ções para que evitemos cair nos mesmos erros. Por outro lado,

7
nao lemos nenhum direito de julgar as pessoas, ou de illxer que
leriamos leito melhor em seu lugar”.
Se devo dar uma chave de leitura para o conjunto de mi­
nha produção histórica, eu elida que desejei proporcionar ao pú­
blico uma erudição pacificadora.

Je a n Delum eau
Cesson-Sevigne, 2002.

8
introdução

uma história
cultural do pecado

J f ocleríamos pensar que umadvilizaqão .1 ilo ( íeldenlc


dos séculos 14-17 - que se via (ou se julgava) assediada pm mui
liplos inimigos - turcos, idólatras, judeus, heréticos, l u n a , i n
- nào teria tempo para a introspecção. Aparentemente. ila I"
gieo. Mas foi o contrário que ocorreu. Na história emopela, i
mentalidade obsessiva, analisada num volume anterloi.1 lol ,n i uu
panhada de uma culpabilização maciça, de uma promoção st m
precedentes da interiorização e cia consciência moral l m t m ala
coletiva, nasceu no século 14 uma “doença do escrúpulo", qu» m
amplificou a seguir. Como se a agressividade' desencadeada t mi
tra os inimigos do nome cristão nào se tivesse esgotado naquelas
lutas tão diversas e sempre renascentes. Uma angústia global, que
se fragmentava em medos “nomeados”, descobriu um novo Inl
migo em cada um dos habitantes da cidade assediada; e um novo
medo: o medo de si mesmo. Exprimindo o sentimento de toda a
Igreja docente, Lefèvre d’Etaples comentava assim a Epístola aos
Gaiatas (5,16-24), por ocasião cio 14° domingo depois de Pente1
costes: “A vida de um cristão neste mundo, quando é bem con
siderada: nào passa de uma guerra contínua... Mas o maior ad
versário que ele tem é ele mesmo. Não há nada mais difícil de
vencer que sua carne, sua vontade: já que por sua própria natu
reza ela é propensa a todos os males”.2 Dentro do mesmo espíri

1. DELUMEAU, Jean. La Peur en Occulcnt: Une citéassiigie. Paris: l ayniil, I97H


(sobretudo a 2' parte).
2. BEDOUEI.I.E, <i.; GIACONE, E (lul.). I.cydc: Drill, 1976. p. M)2. C I.
também BOISSKT, J. Lcs Kpistrcs et Evangilcs... por l.clcvrc dTtaples, In:
PLATON et Alistóte it la Rcnaissancc. Paris: Vrin, I97H. p. H9. (Obra colcti
va). Eu mc vim tilo totalmente aiutli.se de QlIERE, I rnncc. / /Vm npostpH

í)
lo, bourclulouc escrevia: "Nao é absolutamente mu parailoxo,
mas uma verdade certa, que nao temos maior inimigo a temer do
que nós mesmos; como assim?... Fu sou... mais temível para mim
mesmo do que todo o resto cío mundo, já c]ue só cabe a mim dar
morte ã minha alma, e excluí-la do reino de Deus”.3 Lefévre d’Eta-
ples e Uourdaloue levavam ao extremo de seu sentido o texto de
Sao Paulo que pede ao cristão para libertar-se de seus maus ins­
tintos e elevar-se acima das baixezas de si mesmo.
Icsse discurso religioso seguia a ,linha de uma tradição as-
■r||i a. Mas ligava-se também a duas outras afirmações continua-
iii''lili' repelidas, sobre as quais O medo no Ocidente colocqu
lo. la a sua ênlase. A primeira ligava pecados dos homens e pu­
ní. oi , coletivas enviadas por um Deus colérico. Os bispos e os
pi< gadoies nao eram os únicos a dar essa relação com o eviden-
i. <)•. i heles de listado viam as guerras como castigos celestes
pata os pecados dos povos e Ambroise Paré descobria por tras
da peste e da sífilis a cólera divina.4 E havia até mesmo redatores
de almanaques que compartilhavam e difundiam essa convicção.
Fm I57.5; um deles fazia a seguinte advertência, colocada na boca
do próprio Deus para ser melhor entendida:

Sc desprezardes minhas ordenações [sic] e mandamentos, co­


locarei minha face contra vós e tombareis diante de vossos inimi­
gos... Enviarei a pestilência no meio de vós. Transformarei vosso
céu em ferro e vossa terra em bronze e a terra não dará mais fru­
tos. Vós comereis a carne de vossos filhos e de vossas filhas.

Fm outro almanaque de 1578, pode-se ler: “[Deus] se prepara


mais do que nunca para abrir as comportas de sua ira contra nos­
sos víc ios, afligindo-nos cotidianamente com guerras, efusões de

i/ne i. Paris: Scuil, 1080. p. 30: “O Cristianismo certamente não inventou a


consciência nem a culpabilidade, nem aquela prodigiosa dinâmica da alma que
sempre Ia/, esforço para além de si mesma. Mas ele mobilizou as forças do ser
niijn projeto sem precedentes... A existência torna-se o teatro de um combate
ininterrupto entre o amor de Cristo e aquilo que doravante se chama pecado”.
3. UOURDALOUE. CEuvres complètes. Paris, 1830. 16 v. Aqui, XIV, p. 128-
I 29 (Pensamentos diversos sobre a salvação).
■i. 1)í I l JMEAU, lean. La P airen Occident: Une cité assiégée. Paris: Fayard, 1978.
p. 136-137. \ f ’ -

10
sangue, cxlitisoes, saques, roubo,x e opressões: e ale com pestl
léñela e doenças desconhecidas",
Um almanaque de 1393 retoma o mesmo lema: "Sito certamen
le nossos execráveis pecados c nossa deplorada e desesperaria
obstinação em toda sorte de maldades, pela qual irritamos nosso
bom Deus cada ve/ mais contra nós".'

Essas ameaças constituem incessantes apelos á conversão


e a penitência. E elas nada mais faziam que reforçar aquela se
juncia declaração da Igreja segundo a qual Satã está em toda par
te, portanto, também no coração de cada um. Desde o pecado
original, caso.não haja intervenção da graça, nós fazemos parte
do império demoníaco. Reveladores nesse sentido, e assim mes
mó espantosas, aqüelas declarações de Santa Catarina de Cirno
va <1 IS 10) relativas ao mesmo tempo ao homem em geral e a
ela em particular:

O que é o homem por si próprio e abstração leita da gia< i 1 l


um ser pior que o demônio; porque o demônio e um c . pullo
sem corpo e o homem sem a graça é um demônio revestido d.
um corpo... Parecia-me que se Deus trie retirasse sua graça, <mi
seria capaz de todos os crimes que o demônio cómete; então eu
me julgava pior do que ele e mais detestável e nesse momento
eu me vi como um demônio encarnado. Ainda neste momento
isso me parece tão verdadeiro que se todos os anjos viessem me
dizer que existe em mim algo de bom eu não poderia ser levada
a acreditar, porque percebo claramente que todo bem reside só
em Deus e que em mim só existe vício/’

Assim raciocinava uma santa viúva que se consagrava aos


pobres e desfrutava de visões. Ela se desprezava a ponto de evi­
tar pronunciar seu nome. Atitude teatral? Não façamos afirmações
apressadas. Agrippa d’Aubigné confessava: “Minha cabeça tem
bem menos cabelos do que ofensas”, e ainda: “Minhas terríveis
transgressões me assustam, murmuram em meus ouvidos, silvam
a noite com o serpentes, apresentam-se continuamente aos meus5

5. Estes textos em PONTHIEUX, F. Prédictions et alrnaneichs du XVI sthcle,


m em orial de mestrado, dat. Paris 1, 1973. p. 85-86.
(>. Dialogue tlc 1’ânicct du corps (I a parte, cap. 12) citado em CH O IXdc lec
tures ascétiqtics: vic dc sainte Catherinc dc Gêncs, Clcrmont Fcrrand, lHdt),
p. 145 146 (obra anônima).
olhos como um espectro tcm'vel e com ele a horrível imagem da
morte: o pior c que não sào fumos irreais de sonho, mas quadros
vivos de minhas ações”.' Seu contemporâneo Sào Francisco de
Sales fazia lhe eco escrevendo a Mme. de Charmoisy: “Vossas cul­
pa', sào em muito maior número que os cabelos de vossa cabe-
V.1, ou até mesmo que a areia do mar”. E convidava Filoteu a con-
kv.ai I u não passo de uma pústula do mundo e um esgoto de
Ingi.tlldào e iniquidade”.8
I '.ses excessos de humildade só se compreendem recolo-
>a d " . numa ampla história do pecado no Ocidente, ela própria
lii <p.ti.ivel da história dos outros medos anteriormente estuda-
■l« • I um i», agentes de Satã que os homens de Deus esforça-
' mi i p.ua pia.seguir e caçar, eles nâo podiam esquecer o mais
■ i i indidi > e o mais perigoso dentre todos: cada um de nós na
ui' dlda * m que se descuida da indispensável vigilância que deve
................ ilue si mesmo. Assim, somos levados a restituir em toda
a sua roerem Ia e suas mais amplas dimensões o Medo sentido
pi Ia clvlll/açao européia no início dos tempos modernos e antes
da descoberta do “inconsciente”: ao “temor”, ao “pavor”, ao “ter­
ro r1e ao "sobressalto” suscitados pelos perigos exteriores de toda
natureza vindos dos elementos e dos homens juntaram-se dois
sentimentos nào menos opressivos: “o horror” do pecado e a “ob­
sessão” da danação. >
A insistência da Igreja sobre um e outro levou, no âmbito
de uma sociedade inteira, a uma desvalorização espantosa da
\Ida material e das preocupações cotidianas. Grignion de Mont-
lórl, no Início do século 18, fazia os fiéis cantarem este cântico
.signlfiaitivo:

Deixa um pouco tua madeira, carpinteiro,


Abandona'um momento teu ferro, serralheiro,
Aillti lua obra, obreiro,
I'k )<memos ,i graça.”

/. A( ¡RIIM'A D’AUBIGNÉ. CEuvres. Paris: Pléiade, 1969. p. 376, 538.


H, SAI.GS, líançois de. CEuvres (Introduction à la vie dévote). Paris: Pléiade,
l% 9, cap. XII. p. 53-54.
9. l ilíNI>ROT, M. Saint Louis-M arie Grignion deM ontfort. CEuvres complè-
tn. Paris: Senil, 1966. p. 1.667.
A religião oriental da "irant|tiiliclaclc*” a do llinduísino e
do Budismo <>pôs-se mais do que nunca a religião da “ansieda
de” própria do ( )eidente.10 Podemos certamente dizer, julgando as
coisas a partir da noção de “poder”, que a dramatização do pe
cado e de suas consequências reforçou a autoridade clerical. ()
confessor tornou-se um personagem insubstituível. Daí aquela in
gênua e reveladora afirmação de um cônego de Bolonha em
1692 declarando em suma: Deus envia três flagelos aos homens
em punição de seus pecados, a fome, a guerra e a peste. Mas, en
ire todos, a fome, por mais grave que seja, é o menos terrível.
Portille, enquanto a guerra e a peste atingem todos os homens
sem discernimento, a fome poupa os padres: podemos então nos
confessar antes de morrer; ela poupa os tabeliões: é possível en
tão fazer seu .testamento; ela poupa enfim os príncipes que asse
guram salvação do Estado.11 Não é por acaso que o confessor e
colocado aqui antes do tabelião e do príncipe, já que se traia da
quele que abre e fecha as portas do paraíso. Ora, a única coisa
que conta, afinal, é o amanhã e o além da morte.
Mas, precisamente por causa da importância dada a <si<
objetivo final, não se pode reduzir a história da culpablll/a\.ao a
uma história do poder clerical. As duas estiveram certümente liga
das, mas a primeira ultrapassa amplamente a segunda. S. Ereud e
( G. Jung estão de acordo nesse ponto para sublinhar o lugar que
iodo estudo das sociedades deveria conceder ao pecado. Ireud
apresenta o sentimento de culpabilidade como o problema ca pi
lal da civilização1213e Jung afirma: “Nada é mais propício a provo-
( ar consciência e alerta do que um desacordo consigo mesmo”.1'
Ora, jamais uma civilização tinha atribuído tanto peso - e
preço - à culpabilidade e à vergonha como fez o Ocidente, dos
século 13 e 18. Estamos aqui diante de um fato da maior impor­
tância que não se pode esclarecer completamente. Tentar fazer a
história do pecado, portanto da desfavorável imagem de si, den
iro de.um espaço e um recorte cronológico determinados, é co­

10. Cf. ARAPURA, J. G. Religión as Anxiety an d Tranquillity. Paris: La Hayc:


Mouton, 1975.
1 1. SEGNI, G. B. Trattato sopra !a carestía e fatn e: sue cause, accidenti, prov
visioni, reggimcnú. Bologne, 1602. C f ZANETTI, D. L’Approvisionncmcm
dc Pavic au XVP siècle. In: Anuales E.S.C., p. 62, jan.-fev. 1963*
12. EREUD, S. M alaise dam la civilisation. Paris: PUE, 1973. p. 93.
13. |UNG, C. G. ¡ 'Ame et la vie. Paris: Buchet-Cliastcl, 1963. p. 59.

i:í
locar-se no centro ck* um universo humano. E destacar ao mes
mi) lempo um conjunto de relações e de atitudes constitutivas de
uma mentalidade coletiva. É encontrar a mediação de uma socie­
dade1 sobre a liberdade humana, a vida e a morte, o fracasso e o
mal. h descobrir sua concepção das relações do homem com
I>cus e a representação que ela se fazia deste último., E, portan­
to, dentro de certos limites, empreender conjuntamente uma his­
toria de Deus e uma história do homem. Deus é sobretudo bom
ou sobretudo justo? Durante vários séculos, uma civilização intei-
i .i interrogou-se incessantemente sobre essa questão. Quanto ao
homem do Ocidente, submetido a uma culpabilização intensiva,
ele foi levado a aprofundar-se, a conhecer melhor seu passado
pessoal, a desenvolver sua memória (nem que fosse apenas pela
pratica do exame de consciência e da “confissão geral”), a preci-
•..ii Mia identidade. Uma “consciência culpada” desenvolveu-se ao
mesmo lempo que a arte do retrato. Ela acompanhou a ascensão
tio individualismo e do senso de responsabilidade. Existiu certa­
mente um vínculo entre senso de culpabilidade, inquietação e
.criatividade.
Seja-me permitido, então, avançar três considerações para
evitar que o leitor compreenda mal meu objetivo:
• Menos do que julgar o passado, o historiador deve fazê-lo
ser compreendido. Ainda que a presente obra toque inevitavel­
mente a sensibilidade de nossos contemporâneos, ela pretende
ser primeiro um inventário histórico sobre uma época que se
afasta rapidamente de nós. É o registro de um fato cultural maci­
ço, a saber: um profundo pessimismo que marcou o próprio pe­
ríodo da Renascença. Esse registro ocupará a primeira parte do
livro. Dos fatos, nós remontaremos em seguida às causas segun­
do o método da história regressiva. Toda a segunda parte escla-
rcccrá então, ao mesmo tempo, a doutrina do pecado e a inves­
tigação tio universo da culpa, com o era praticada antigamente.
Mas a doutrina provoca forçosamente uma pastoral, de maneira
que osla nos ocupará num terceiro momento. O círclilo então se
lei liara, porque a pastoral disseminou o pessimismo, mas o pes­
simismo motivou a pastoral. Com efeito, uma e outro jamais ces­
sai.im tle influenciar-se reciprocamente.
• A segunda consideração refere-se à relação do historiador
com sua pesquisa. Tornou-se claro para nossos contemporâneos
que os historiadores,não são “ausentes”. Voluntariamente ou nào,
i'I("t se implicam ii.i sua pesquisa e se engajam nas suas conclu
soes. I melhor dizei isso com toda a clareza. Nao dissimularei,
então, meu próprio sentimento sobre o Inventario que apresento
.n|iil. Eu creio <|iie o pecado existe. Eu constato sua presença em
mim. Além disso, nao vejo com o eliminar a idéia de uma "fallía"
nas origens, cujo traço nós carregamos inconscientemente: aqui
l<> que freutl lào bem sentiu e tentou explicar, "'ludo se passa,
dizem ao mesmo tempo Bergson e Gouhíer, como se houvesse
no homem um defeito original.”14 Meu livro nao deve, portanto,
ser compreendido com o uma recusa da culpabilidade e da ncecs
sária consciência do pecado. Em compensação, eu creio que ele
laui sobressair a presença de uma pesada “superculpabilizaçao"
na história ocidental. Entendo pór “superculpabilizaçao" todo dis
* urso que maximiza as dimensões do pecado em relação ao pci
dao.1, E essa desproporção - e somente ela - que fornece a ma
leria da presente pesquisa. Mas essa desproporção pesou multo
hierre de Boisdeffre faz um Goethe do século 20 dizia: "A IU d<n
cao deveria ter libertado o homem da angústia, mas a lgic|a <•m
linua a impor um exame de consciência que a aproxima»,a" da
morte torna insuportável. Haveria tantos chamados e tao pou< <•-,
escolhidos, não é mesmo? Um ‘número infinitamente pequ< 11*•
diz Julien Green. A sucessão das gerações teria apenas agt.n ado
as consequências cio pecado original. Deus só existida para con
denar e para punir! Que horrível interpretação do papel do hall
<) inferno, o purgatório... por que todos esses suplícios infligidos
i-m nome do amor? Quem amou, nem que seja uma só vez na
vida, não é digno de ser amado para a eternidade?”.1" Semclhan
ir imagem de Deus efetivamente existiu... durante séculos. Daí a
necessidade de distinguir entre temor filial e reverencial de I)eus
e medo de Deus. Meu livro sõ tratará deste último e não põe em
causa as sentenças judeu-cristãs mais autênticas: “Feliz daquele
que teme o Senhor” (SI 128); “A misericórdia de Deus estende-se
sobre aqueles que o temem” (Magníficat). Em compensação, as

14. GOUHIER, H. La Tyrannie de 1'avenir. In: Archivio d i Tilosofui, p. 17H,


1977, citando ‘Les Deux so urces de la inórale et de la religión ’.
15. Cf. a esse respeito as obras esclarecedoras de SAGNE, J. C. Péché, culpa
bilité, pínitence. Paris: Cerf, 1971; Conflit, changement, conversión. Paris: C oi,
1974; Tes Péchés ont étépardonnés. Lyon: Chaiet, 1977.
16. BOISDEFFRE, P. Goethe m a dit. D ix entreüens imuginaires. Paris: I.u
nciui Ascot, 1981. p. 230.

ir>
páginas que irão ler mostrarào o desvio que se produ/lu tio te­
mor de Deus ao medo de Deus.
• A terceira consideração anunciada é esta: nós, os homens
do final do século 20, temos todas as razões para sermos modes­
tos quando somos tentados a “culpabilizar” os culpabilizadores
eclesiásticos de antigamente. Nossa época fala constantemente de
“desculpabilizaçâo” sem perceber que jamais na história a culpa-
bilizaçào do outro foi tão forte quanto hoje. Num país todavia de­
mocrático como a França, direita e esquerda acusam-se recipro-
i .1mente dos mais pesados pecados políticos. E, nos Estados sub­
metidos ao jugo totalitário, a denúncia do adversário - capitalis­
ta ou soc ialista, reacionário ou progressista - legitima a tortura e
levou a morte milhões e'milhões de homens. Em matéria de su-
peivulpabilizaçao, nós, infelizmente! ultrapassamos nossos ances­
trais, e de longe.
A pesquisa histórica cujos resultados vão ser lidos agora
nao letia podido chegar a bom termo sem as múltiplas contribui­
ções de amigos que me forneceram textos, referências, sugestões
c críticas. Assim, durante os desenvolvimentos e nas notas, fiz
questão de agradecer às pessoas que me forneceram as indica­
ções que utilizei. Mas, no iníció deste livro, insisto em transmitir
a indos os meus amigos e colaboradores minha profunda grati­
dão e exprimir meu reconhecimento particular a Angela Arms-
liong <• a Sabino Melchior-Bonnet, que estiveram estreitamente
a tsoí ladas a realização deste livro.

I(i
I parte 1
macabro o
I pessimismo
[ na renascença

> . ■- v '
capítulo I

o desprezo do
mundo e do homem

um tem a antigo
No curso da historia crista, exame ele consciencia de um
laclo, severidade para com o homem e o mundo de oulin l.ulu,
apoiaram-se um no outro, reforçaram um ao outro. Dai a no ■ ■
sidacle, num quadro sintético com o o nosso, de co1ck.ii <> un du
de si mesmo no afresco mais ampio do pessimismo.cnropcu
O desprezo do mundo e a desvalorização do homem um
carregando o outro - propostos pelos ascetas crislaos, lint .mi
suas raízes 'certamente na Bíblia (Livro d e j ó , Eclesiasies), m.r.
também na civilização greco-romana. Este tema é desenvolvaI"
notaclamente por Plutarco, que remete ele próprio ã llidiUi oiuli
se lê: “Nada é mais miserável do que o homem entre ludo o que
respira e se move”.1 Um mosaico de Pompéia lembra (|ue Mors
om nia aequat. Uma antropologia dualista principalmente orí i
ca, platónica e depoi$ estoica - introduzíu.-se desde os primeiros
séculos do Cristianismo na mensagem bíblica dos grandes douto­
res capadócios, em Santo Agostinho e em Boécio.2 O “hiperespi
ritualismo” oriental, infiltrándose dentro, do Cristianismo, levou a
modificar o sentido de certas passagens de São Paulo, a insistir

1. PLUTARQUE. Traites de m ótale (n. 34), Col. Budé, VI, 1, p. 214. Iliadc.
XVII, v. 446-447.
2. Os grandes doutores capadócios, isto é, São Basilio de Cesaré ia, São ( iregó
rio de Nazianzo e São Gregorio de Nissa. A Consolação da Filosofía de Boéi io
(480-524), também está todá impregnada de neoplatonismo. Sobre a militen
cia exercida pela Antigiiidade paga sobre a doutrina do contem plas rnundi, el.
BULTOT, R. Les Philosophes du paganisme. Docteurs et exemples du con
iemptus rnundi pour la morale médiévale. In: Studia gratiana, XIX, Roma,
1976: Miscelânea G. transes, I, p. 101-122. Ver também a nota seguinte.

ID
sobre o corpo prisào c a esquecer a criação do homem tal como
dcscrila pelo Gênesis.' Evocando a alegria inefável da visão lace
a lace, Sao Paulo (JC or 13', 12; 2Cor 5,1-8) não a apresentava
como um retorno a uma situação primeira da qual o homem te­
da sido privado, mas como uma ultrapassagem do estágio pré­
senle I Igualmente estranha ã Bíblia a noção de uma queda no
sensível e no múltiplo. Por outro lado, esses dois ternas provêm
<li >platonismo e de sua posteridade. Mesclados com o Cristianis-
im i, eles levaram a duradoura nostalgia de um primitivo homem-
.1111<i '.i ui sexualidade, “espiritualizado”, dedicado à pura contem­
plai 11• I >.11 o sucesso persistente da idéia, já presente em Santo-
\e,' isiliiln i e amplamcntc aceita no século 12, de que o homem
l"i ' liado paia substituir os anjos caídos na cidade celeste.
I sse desconhecimento da realidade objetiva do homem e
da auleiillcldade da imanência teve como corolário a negação
pela maioria dos teólogos e moralistas cie um estilo de existência
i speclllcamente humano e a definição daquilo que Robert Bultot
i llama de maneira voluntariamente contraditória uma “antropolo­
gia angélica’V' lista última viu-se reforçada em Santo Agostinho
pela afirmação de que a natureza é instável, podendo Deus nela
intervir a todo instante.s Ela não possui solidez interna. Como a
riem ia a teria tomado para si? - um raciocínio do qual Montaig­
ne se lembrará. Robert Bultot6 observa com razão que p doutrina
do desprezo do mundo derivou de uma cosmología antiga que
deprei lava a tiara a duplo título. Segundo ela, o mundo sublunar
•«põe se a parle sideral do universo, os corpom inferiora , isto é,

'■ t .o <\|)<>sisao c as seguintes são inspiradas na penetrante obra de R. BUL-


l <>1. / a Doctrhze clu mépris du monde, Louvain, Nauwelaerts, 1963-1964,
IV, I c lunadamente aqui, IV, 1, p. 18, 23, 39, 136-139. Cf. do mesmo au-
loi: I .i I)octi nie du mépris du monde diez Bernard le clunisien. In: LeM o-
yeu 1ge, 1964, t. 70, p. 179-204 e 335-376; Grammatica, ethica et contemp-
lus mundi aux XIIr et XIIP siècles. In: Arts libéranx et philosophie au Moyen
l.qf, Montréal-Paris, 1969, p. 815-927; Bonté des créatures et mépris du
monde. In; Revue des Scien cesp h ilo so p biqu es et théologiques, 1978, p. 361-394;
( osmologie et contemptus mundi. In: Recherches de théologie ancienne et mé-
difrn le (mélanges H. Bascour), n. spécial 1, 1980, p. 1-23. Sobre esta proble­
mática também sou muito grato a ROY, Br. Amour, Fortune et Mort: la dan-
se des trois aveugles. In: Le Sentim ent d e la m ort au Moyen Age. Montréal: Uni-
vers, 1979. p. 121-137.
4. BUEl’OT, R. La D octrine..., IV, 1, p. 40.
5. Ibid., IV, I, p. 67-70.
0. BUl T o r, R. Cosmologie et contemptus mundi. p. 1-23.

20
i |Mili- baixa tío cosmos aos e o e le s lta . Sol) a írosla terrestre, so
lia o Inferno. Ora, si* a Ierra ocupa assim a parle Inferior e m.ils
t ulgai tío m undo e porque cía e constituida de uní elemento me
ni r, n<»bre t|ue os lies oulros (ar, logo i* agua). Toda a Idade Me
día adolara essa cosmología. Daí a tentação de pensar cum Ma
<n iblo, comentarista no século 4° do S o n h o d e C ipicto , (|iie a alma
e' liada do mundo celeste é prisioneira sobre a terra. Enfim, a su
luvaliaçao da natureza foi inseparável de uma depreciação do
lempo, herança também da tradição helénica. As coisas terrestres
sao vas porque fugazes.789Montaigne estimará igualmente que o
lelativo e o fugidio são sem consistencia. Cl. Tresmontant notou
(listamente a propósito dos Padres da Igreja: “A descoberta do
que significa o tempo não será possível antes que uma reflexão
•.obre a experiência cósmica, biológica e histórica permita estabe
lecer o sentido da temporalidade. Embora tivessem diante dos
olhos a Bíblia e se nutrissem dela, os padres difícilmente esi apa
rain do esquema neoplatónico que abóle o tempo real. Sera pn
i iso esperar os tempos modernos para que uma reflexão sobn a
duração real possa fazer-nos escapar ao velho sistema míllt u e a
clico (pie o neoplatonismo legou à filosofía ocidental”."
Desde o século 4o, a teoria do desprezo do mundo esia cm
vigor entre os diretores dé consciência do Cristianismo. I cl.no
qué na obra abundante de Santo Agostinho encontramos loma
das de posição menos pessimistas. Peregrinos sobre a ierra, a i a
minho de nossa verdadeira pátria, devemos todavia aceitar, diz
ele em suma, a íntima dependência que nos liga ã vida. Eoi pos
mvcI escrever que a Cidade de D eus, longe de ser um livro sobre
a luga do mundo, ao contrário, versa principalmente “sobre nos
so dever no quadro dessa existência mortal que nos é comum","
Como viver no mundo, separado do mundo: pode parecer esse
o objetivo confessado da obra. Do mesmo modo, a admiração e
o elogio da natureza não estão ausentes aqui. Com efeito, Santo
Agostinho consagra um dos últimos capítulos da Cidade de D eus

7. BULTOT, R. La D octrine..., IV, 1, p. 113-115.


8. TRESMONTANT, Cl. La M étaphysique du Christianism e et tu naissance de
la philosophie chrétienne. Paris, Seuil: 1961. p. 457.
9. C ité de D ieu, t. 37 da ed. de Combés das CEuvres de Santo Agostinho. Pa
ris: Desclce de Bronwer, 1960, XV, ch. 21. Cf. BROWN, P. Agostino d'Ippo-
na. Londres: haber and haber, 1967, trad. ¡tal. consultada aqui: Agostino d'I/>-
pona. 2. cd. Turin: Einaudi, 1974. p. 325.
.i enumerar os "bens desta vida” com os quais o soberano Juiz
"tempera" as miserias que afligem o gênero humano:

One dizer, esc reye ele, ... deste brilho vivo da luz e da magni­
ficencia do sol, da lua e das estrelas; da sombria beleza das flo­
restas, das cores e do odor dás flores, da multidão de pássaros,
i .Id diferentes de canto e plumagem; da diversidade infinita dos
animais dos quais os menores são os mais admiráveis? ... Que di­
ta desses suaves zéfiros que temperam os calores do verão?
I . d< tantas espécies de vestimentas que nos fornecem as átvores
c i is animais?,.. I'. se todas essas coisas nada mais são que conso­
lai i H • dos miseráveis condenados que nós somos, e não a re-
. iiuípcns.i dos bem-aventurados, o que Deus dará aqueles que
ptrdrsllnou a vida, se ele dá essas coisas àqueles que predesti­
nou a morte?*1"

Textos dessa inspiração, apesar de um fundo pessimista,


explicam por que razão se procurou na obra de Santo Agostinho
uma teologia dos valores humanos." Mas para nós importa me­
nos a riqueza e os matizes cio pensamento agostiniano do que
sua simplificação e sua dramatização feitas pela posteridade. De
qualquer maneira, Santo Agostinho estava persuadido da “velhi­
ce do mundo”.1" Por que então apegar-se a coisas “vãs e nocivas”
de on< le nascem

.1 agudas preocupações, as desordens, as aflições, os temores,


a loucas alegrias, as dissençôes, os processos, as guerras, as
cmboM arlas, as cóleras, as inimizades, as duplicidades, as ba-
11 1 1açi ics, as fraudes, o roubo, a pilhagem, a perfídia, o orgulho,
a ambição, a inveja, os homicúria, a insolência, a impudência,
a Impudicicia, as ídios, os parricídios, a crueldade, a seivage-
tla, a perversidade, a luxdepravações, os adultérios, os inces­
tos, tantos estupros e impuclências contra a natureza de um e
de outro sexo que até coramçs de mencionar, os sacrilégios, as
heresias, as blasfêmias, os perjúrios, as opressões de inocentes,
as calunias, os engodos, as prevaricações, os banditismos, e

10. C ité de nica, XXX, 24, p. 670-672.


I I. MARROU, H. I. The Resurrección and saint Augustines Theology of
I liiinan valúes. Revue des études angustieunes xii, 1966, p. 111-136.
I 2. HRt )WN, P. Agostino d'íppona, p. 287-299.
tantos outro,s crimes «|u«■ nao vêm .1 lembrança e que, enlretan
lo, 11.10 deixam i*sl;i (ilstt* vkl.i humana.1'

Essa esmagadora enumeração encontra-se lambían na C i­


dade ele Deus, apenas dois capítulos antes do fragmento diado
anteriormente e ela remete a uma série de julgamentos negativos
feitos pela Biblia sobre o “mundo” e o “século". Nào se pode apa
gá-los com um traço de tinta. Também não parece inútil voltar
um momento sobre a ambiguidade do termo “mundo”, já subí i
nhada no primeiro tomo da presente obra."
Para Sao Paulo,15 notadamente, o pecado e a morte, no co ­
meço da historia, deram entrada no mundo e este tem agora um
compromisso com o mistério do mal (Rm 5,12). Satà tornou-se o
“príncipe” e até mesmo o “deus” deste século (Jo 12,31; 14,30;
Ib, I i; 2Cor 4,4), porque Adão abandonou para ele o dominio
que Deus lhe havia confiado. Doravante o homem está rodeado
e até penetrado-por um mundo enganador que se opóe ao l '.s
pírito de Deus e cuja sabedoria não passa de loucura (ICor
1,20). Sua paz nada mais é que simulacro (Jo 14,27). Sua aparen
cia passa (IC or 7,31) e também suas cobiças (ljo 2,16). Seu efei
to último é uma tristeza que produz a morte (2Cor 7,10). Jesus
declara que não é deste mundo (Jo 8,23; 17,14), assim como seu
reino (Jo 18,36), e que o mundo o odeia (Jo 15,18). Os cristãos
liéis ã mensagem das Beatitudes não devem, portanto, esperar
um tratamento melhor que o que foi reservado ao seu Mestre. O
mundo se erguerá contra eles (Jo 15,18). Eles serão odiados, in­
compreendidos e perseguidos (IJo 3,13; Mt 10,14; Jo 15,18). En­
quanto durar a história, subsistirá essa tensão entre o mundo e
os discípulos de Jesus.
A despeito dessas condenações, nem sempre o mundo é
revestido de conotações tão sombrias nos textos bíblicos. Ape­
sar do pecado, o universo, nascido das mãos divinas, continua .1
manifestar a bondade e a grandeza do Criador (Pd 8,22-31;
|ó 28,25; Sb 13,3), e o homem jamais cessará de admirá-lo (Sl 8;
ll),l-7; 104). Todavia, ele é imperfeito e caberá aos filhos de1345

13. C idade de Deus, XXII, 22, p. 645. Citado em SELLIER, P. Pascal et saint
Angustia. Paris: A. Colin, 1970. p. 234.
14. DELUMEAÚ, lean. Di P airen Occident: Une cité assiégée. Paris: Eavard, I97H.
p. 252-253.
15. Esta exposição a partir do D ictiohnaire de théologie bibli<]ue. Paris: < cri,
1971. Col. 784-791.

2B
Adào aperfeiçoá-lo com seu labor (Gn 1,28). Por oulro lado, se
é verdade que ele foi atingido pelo pecado, ele será plenamen­
te regenerado no último dia ao mesmo tempo que a humanida­
de (Ap 21,4), pois os destinos de um e outro estáo ligados para
sempre. Sua regeneração comum por sinal começou desde que
0 Filho de Deus veio à terra. Ele “tirou o pecado do mundo”
(Jo 1,29), deu sua vida pela vida do mundo (Jo 6,51), reconci­
liou com ele todos os seres, refez a unidade do universo dividi­
do (Cl 1,20). Certamente a humanidade nova resgatada pelo sa­
crifício de Jesus só atingirá sua plena estatura no final dos tem­
pos. Por ora, ela ainda pena por um caminho difícil, à espera de
um parto doloroso (Rm 8,19; Ef 4,13). Mas, ao termo cia longa
provação, explodirá a alegria sobre a terra que não conhecerá
mais o ódio nem as lágrimas. Quanto aos discípulos de Jesus -
hoje como ontem eles não são deste mundo (Jo 15,16; 17,16).
Entretanto, eles estão no mundo (Jo 17,11). O Salvador não roga
ao Pai que os retire, mas apenas que os guarde do Maligno
(Jo 17,15). Porque eles têm a missão de anunciar a Boa Nova ao
mundo inteiro e de brilhar com o luzeiros (El 2,15). Se eles de­
vem renunciar ás cobiças e não amar aquilo que os desviaria de
1 >eus, esse desprendimento não exclui nem o dever de construir
um mundo melhor nem o justo uso dos bens do mundo atual se­
gundo as exigências da caridade fraternal (IJo 3,17).
Assim, na Bíblia, “mundo” é um termo ambivalente cuja
••IgnUlcaçáo oscila entre dois pólos opostos. Ora ela designa o
n Ino de Sala, que se opõe ao de Deus e será finalmente venci­
do t ora a humanidade com a terra que lhe está ligada. Nesta
.< glinda accpçao, o "mundo” não é objeto de condenação, mas
di iedeiu,ao, e c pedido aos filhos de Adão que renunciem ao
Maligno, mas nao ao seu destino de homens. É este “mundo”
aqui que deve tornar-se diferente.16 Um dos dramas da história
11l-.ta residiu na confusão dos dois sentidos da palavra “mundo”
e na ampliação de um anátema que dizia respeito apenas ao im­
perio de Sala. Essa confusão acarretou outra. Porque podemos x
desprender-nos do mundo (no segundo sentido que acabamos
de precisar), podemos até fugir dele, sem por isso desprezá-lo.
/'iif’ti pode nao ser sinônimo de contemptus. De fato o despren­
dimento do mundo transformou-se mais geralmente em acúsa­lo .

lo. ( I. REY-MERMEf, Th. Croire. 3 v. Limoges: Droguet-Ardant, 1976-


p)77. Notadamcnte |>. 281-282.
i,,n> . id mundo, j.i que c.sIr é .10 mesmo lempo o esp.ieo do pe
1 ,u|o e .1 Ierra em que devemos viver,

as razões cio “desprezo do mundo”


Desde o fim dos tempos antigos, a doutrina da vacuidade
do mundo (e, portanto, do desprezo que ele merece) encontrou
nos meios eclesiásticos do Egito e do Oriente um terreno de elei
ç.10: ela constituía um protesto dos ascetas contra um Cristianis
1110 que lhes parecia tornar-se fácil demais. Em seguida, ao lon
go de toda a Idade Média, ela nutriu a espiritualidade dos con
\cu lo s.1' Aqui se lia, então, com fervor as vidas dos Padres do de
m tio Não sem razão, descobriu-se na ascese dos monges um res
surgimento do mito dualista anterior ao Cristianismo, que sobie
viveu principalmente no Bogomilismo e no Catarinismo P.ii.i os
monges, também o pecado original tinha feito a alma e.iii n.i m,i
lena. A alma devia, então, reabilitar-se “angelizándo se \<
piessao “vida angélica”, frequente na linguagem colidi.ma d"
mosteiros, era igualmente familiar aos Cataros.1H
Oposições termo a termo permitem definir a doutilna «!<.
i ontemptus m undi, já que ela era dominada pelo c o n flito . um
lem p o e eternidade, multiplicidade e unidade, exterioridad)' e In
lerioridade, vacuidade e verdade* terra e céu, corpo e alma, pia
/cr e virtude, carne e espírito. E antes de tudo o mundo e vao
porque é passageiro. O Monge Jean de Fécamp (f 107K) nao
h me em confessar: “O que eu vejo listo é, o mundo exteriorl me
euiristece. Tudo o que intento dizer das coisas transitórias me
pesa”.19 Numa de suas lamentações, ele vai além do Eclesiastcs e
dirige-se ao leitor em termos.que levam diretamente á literatura
moralizante do século 15:

17. Cf. SPIT ZM U LLER , H. Poésie latine clu Moyen Age. Paris: Dcscléc de
Brouwer, 1971. p. 1.798-1.800. LE GOFF, J. La C ivilisation de 1'Oceident
m édiéval. Paris: Arthaud, 1972. p. 236.
18. C f LAOS, M. D ualist Heresy in the M iddle Ages (Praga, Academia). I .1
I lave: Nijhoff 1974. notadamente p. 67-72, 252-254.
19. Conf. Théol. III, 5 (éd. WILMART, A. Auteurs spirituels et testes dévots dn
Moyen Age latiu. Paris, 1932. p. 145-146). C f BULTOT, R. /.a D octrine... IV,
2. p. 13.

ar»
Robre homem, pobre mulher, pobre homem Infeliz.
I’or (pie amas os bens deste mundo, que vão perecer?
Vaidade das vaidades,
Pudo o que existe sob o sol é vão.
Como a flor e a reiva c toda a gloria do mundo.
() mundo passará e a sua concupiscencia... ->fl

I im século mais tarde, outro monge, o inglês Serlon de


\\ Ilion ( | 1171) exerce sua virtuosidade poética sobre esse mes­
mo inii.i do mundo que passa:

i * mundo passa fugindo como o tempo, como o rio, como a brisa,


i i mundo passa, o nome passa rápido, o mundo com o nome,
Mas m.lis rápido que o nome do mundo, o mundo passa...
(Nada existe no mundo a não ser que o mundo passa...
<) mundo passa; lança o que passa, o mundo passa...
() mundo passa, Cristo não passa, adora aquele que não passa.-1

I na esteira de semelhante inspiração que se deve eviden­


temente colocar a dramática interrogação - Ubi sunt? - tantas ve­
zes repetida no curso da Idade Média e já esboçada por São João
( risostomo num tratado sobre a virtude da “paciência”. Ignoran­
do o destino de certos personagens, nós perguntamos: “Onde
esta tal príncipe? 1'. nos respondem: ele acaba de passar”. Nós in-
lei rogamos: " ( )ndc está tal senhor? e nos dizem: ele está morto.
I onde esta tal re i glorioso? - Ele partiu. F. tal amigo? - Ele foi
• inbi na I'ara onde? - Diante do Juiz dos juízes”.2
0*22 No curso do
lem po, <i tenia do Ubi sunt enriqueceu-se. Ele desembocará em
I ir.iui li< De.sc hamps e em François Villon,23 mas já tinha adqui­
rido tuda a sua amplidão anteriormente:

Diga, onde está Salomão, outrora tão grande


( >u entilo, onde está Salomão, o chefe invencível?

20. WILMART, A. Jean de Fécamp, la complainte Sur les fins derniéres. Re­
tóte d'ascét'tque et de mystique, IX, 1928, p. 385-398. Cf. BULTOT, R. L a D oc­
trine..., IV, 2, p. 22.
I. SIMTZMUIJLER, H. Poésie latine..., p. 577-579.
22. Patr. (ir., L.X, col. 724.
23. C I. notadnmente FRIEDMAN, L. J. The “Ubi sunt”, The Regrets and Ef-
lictio. M oderna l.angm gcN otes, 1957, t. 72, p. 499-505; LIBORIO, M. Con-
<)nde e.Hla o helo Al),salan de rosto admlravel?
<)nde o doce Jon.iilun, <|ue l<>i tan digno de amor?

Para onde foi César, elevado ao Imperio?


Onde o rico fastuoso, sempre á mesa?
Diga, onde está Túlio, célebre por su a eloqücncia?
Onde Aristóteles de gênio supremo?-1

A esse vigoroso poema do tão místico e tão pessimista Ja


eopone de Todi (t 1306) responde um hino anônimo do século 13:

Onde lesta] Platão, Onde Alexandre Eles atravessaram


Onde Porfirio, O maior dos reis, O reino dos morta
Onde Horacio, Onde está o magnánimo No espaço
Onde Darío, Aquiles? De um só tila.
Onde César, Com Helena
Onde Virgilio, O tão belo Páris?
Onde Varo, Onde o mais valoroso
Onde Pompeu? Dos Troianos, Heitor? •

Esses ritmos entrecortados sobre o-tema da morte nivel,i


dora dos maiores destinos iriam muito logo encontrar ñas dance,
macabras uma surpreendente transcrição iconográfica. Mas, bein
antes cíelas, o SantcrMonge Anselmo de Canterbury (f 1109), para
o uso de urna religiosa, tinha tirado a conclusão imposta por esse
pavor diante da fuga do lempo: “Ninguém pode amar ao mesmo
tempo os bens terrestres e os bens eternos. Diga com o. bem-
aventurado apóstolo Paulo: “O mundo é crucificado para mim e
eu para o mundo”. E com esse mesmo apóstolo veja com o esfru
me todas ás coisas transitórias”.-6
Dentro do mesmo espírito, Fierre Damien (f 1072), ere­
mita entre os Camadulos antes de lhe ser imposto o bispado de

tributi alia storia dell “Ubi sunt”. Cultura neolatina, XX, 1960, p. 141-209 <■
BULTOT, R. La D octrine..., IV, 2, p. 36, n. 20. COSTANZO, A. Time and
Spare in Villon: les trois ballades du temps jadis. In: MERMIER, G.; DU
BRUCK, E. Fifteenth Century Studies. Ana Albor, 1978. p. 51-69.
24. SPITZMULLER, H. Poésie latin e..., p. 969.
25. Ibid., p. 1.383.
26. Patr. Lat., CLIX, col. 163. BULTOT, R. La D octrine..., IV, 2, p. 1 13.

:i7
Ostia, terminava um sermão pela exortação ao'"desprezo de
tudo o que se ve”.2'
Num poema anônimo do século 13 que convida o homem
a manter-se vigilante e preparado, a vida é comparada a uma teia
de aranha que se estende ou se rasga. Fugaz e frágil, ela não
pode se pôr em segurança. Logo após essa comparação, o autor
sem dúvida um monge - afirma:

l odo homem nasce É levada no sofrimento;


Neste mundo na aflição; No fim ela termina
I a vida humana Na dor da morte.-’*

Isiabclcce-se, assim, um vínculo entre caráter transitório e


lihte/.i da vida conexão constante no discurso sobre o despre­
zo do inundo e que vai ao encontro do carpe diem de Horácio.
I’le rif Daniicn insiste sem cessar sobre a “miserável condição do
homem", “ lean de Fécamp afirma que a vida é muito má e mui­
to inleliz ( "haec péssima vita, ista infelicíssima vita”) - os .super­
lativos assumem aqui todo o seu destaque - , que o homem é
"( helo de misérias” e vive “na dor”.30 Por volta de 1045, outro
monge, I lermann Contraed, redige por sua vez um Poema exorta-
tório sobre o desprezo do mundo, em que enumera as preocupa­
ções, tristezas, dificuldades, doenças, temores, males e dores que
preeiu hem a existência. E cita confusamente os perigos e agres-
soi". que o homem encontra: os vermes, as serpentes, os animais
dn toda espécie, os pássaros, o frio, o calor, a fome, a sede, a
■li’,na, o logo, o vento, a terra, a violência, o trovão, o raio, os aci-
i li ules, os venenos, a trapaça, a discórdia, as amputações, a guer-
i.i, a prisão, a escravidão e doenças cujo catálogo é inesgotável.31
As mesmas inflexões, o mesmo pessimismo no beneditino Roger
de ( aen ( j por volta de 1095), autor, ele também, de um Carm en
de m nndi contempla. A vida, diz ele em suma, é curta e plena de
males: ela começa com as lágrimas e os gritos de dor do recém-
nas( ido; continua com os sofrimentos provocados pelo frio e o ca-
loi, a lom e e a sede, as moscas e as pulgas - estas não poupam

27. bar. Lar, CXLIV, col. 534 CD, cf. BULTOT, R. La Doctrine..., IV, 1, p. 77.
28. SI’ITZM UIl.ER, H. Poésie latin e..., p. 1.425.
29. Cf. BULTOT, R. La D octrine..., XV, 1, p. 37.
30. Ibid.. IV, 2, p. 22.
31. Ibul., p. 35-36.

: ih
* i|iii i <>.s rel.s o exilio o ;i morte ele ,seres queridos, ,i Infâmia e
i |>il'.,io <) homem é aberto ii desbrava. Como se pode lalar de
.iu ..iiHl< ja que a doença d mais forte que ela? Como se pode l.i
lai de sua vida ja que a morte lhe poe um termo?'1
I v.as negras considerações nao sao novas, Já o Livro de
|o tinha com parado o homem a uma madeira carunchada e a
uma roupa devorada pela traça, “lile tem a vida curta e tormén
los em quantidade” (Jó 13,-8; 14,1). O Livro da Sabedoria tinha
i olo( ado na boca de Salomão palavras, melancólicas sobre os
primeiros momentos da existência: “Prantos, como para todos,
loram meu primeiro grito. Fui criado em meio às fraldas e aos
. ulitados” (Sb 7,3-4). Esse tema encontra-se também na Historia
nal a n d de Plínio: “O homem é o único Iserl que ao nascer a na
luie/a lança nu sobre a terra nua, entregando-o primeiro aos va
gldos e as lágrimas” (VII, 2).
Mas, na literatura religiosa (principalmente monástica) da
Idade Média central, a acusação contra a vida humana atingiu
uma violência e uma dimensão novas. O Cardeal Lota rio Si gni,
que depois se tornou Inocencio III, escreveu, por sua ve/, <mu
unia bem negra um D e contemptu m undi, Sive de miseria <<•//,//
llonls bum anae onde se lc desde o primeiro capítulo: <> h«>
m e m nasceu para o trabalho, para a dor e para o medo, e o
q u e c pior - para a morte”.33 Foi talvez Jean de Fécamp quem
. primiu de maneira mais vigorosa a recusa de interessai se poi
uma existência irremediavelmente marcada pela vaidade, o pe
i ido e o sofrimento:

Vida miserável, vida caduca, vida impura que os humores umi


decem, as dores extenuam, os calores ressecam, as iguarias in­
cham, os jejuns maceram,' os gracejos dissolvem, a tristeza con
some, os cuidados angustiam, a segurança amortece, a riqueza
infla, a pobreza abate./.

A terra é um “vale de lágrimas”, um “deserto”, um “exílio”


que não se pode deixar de depreciar em favor da vida bem aven
turada, “vida segura, vida tranquila1, vida bela, vida pura".'1 Num

\2. BULTOT, R. Ibid, p. 66-67. Sobre os manuscritos tiesto poema: Ibitl.,


p. 60-52. Ibid., p. 50-52.
Vb l’ntr. I mi., CCXVII, col. 702.
>i. l\nr. ItU., XL, col. 917.Tradução BULTOT, R. La Doctrine..., IV, 2, p. 17-IH.
lililí) anônimo cio século 12, um poeta faz a si mesmo a pergun­
ta: "... Maleada vida do mundo / Por que me agradas tanto?”. F
para alastar as tentações e as ilusões, ele a cobre de injúrias:

Vida fugaz,
Mais nociva que qualquer fera Vida do mundo, coisa imunda
Agradável só aos ímpios
Vida qur se deve chamar morte,
í.ttn' se deve odiar, e não amar Vida, coisa estúpida
Aceita só pelos loucos,
Vida do mundo, coisa doentia Eu te recuso do fundo do
Mais Ir.igll que a rosa [coração.
•Pois tu és toda cheia de sujeira.
Vida do mundo, Ibnte de labores, Do fundo do coração eu te
Angustiada, plena de dores [recuso

Vida do mundo, morte futura, Prefiro sofrer a morte,


Ruína permanente, Ó vida, a te servirA

Vld.i do mundo, coisa má


Jamais digna de ser amada

I''..stamos bem longe aqui do Livro da Sabedoria (2,1-21)


•uidi uma célebre passagem contém certamente uma deprecia-
<a* ■ da vi* Ia terrestre, mas colocada de maneira significativa na
IhMa t li is Ímplí >s: ,.

I le. dizem entre si nos seus falsos cálculos: “Curta e triste é


vida... P. apenas uma fumaça o sopro de nossas narinas...
i i o v i .i

Nossa vida passará como os traços de uma nuvem, se dissipará


<oino uma névoa. Sim, nossos dias são a passagem de uma som­
bra..." Assim raciocinam os ímpios, mas eles se perdem.

ILim o autor do Livro da Sabedoria, a vida humana tem um


sentido “porque Deus nào criou a morte... Fie criou tudo para o
ser; as criaturas do mundo são salutares; não há nelas nenhum
veneno de morte e o I lacles não reina sobre a terra”.56 Aquele que
loi justo sobre a terra jamais perecerá. Orientada para Deus, a

35. Sm V.M U LI.LR , H. Poésie Latin e..., p. 1.365-1.367.


36. l.ivro da Sabedoria, lunadamente 2,1-24.

:io
• sisienda terrestre n.io é, portanto, desprezível, .10 passo <|ik*,
p.n.i Fierre Damien e lodos os ascetas c|uc pensaram como ele,
■la e um "exilio exterior do qual a morte liberta para fazer pene
11.11 na p.ilrlu interior”,5"
A oposição radical - e artificial - entre corpo e alma (onde
. ,1,1 se aproveita de tildo que é retirado daquele) leva lógicamen
Ir ao despiezo, e até i\ condenação da vida no século, constante­
mente comparada a um mar perigoso58 onde é melhor nào se
aventurar. Já cjue nào há esperança a nào ser dos bens do céu, sp
vale a contemplação, longe das “vaidades do mundo” e das “preo-
1 upacoes seculares” - expressões de Fierre Damien59 para quem
*> laico é essencialmente um concupiscente, Passar da secularida-
de para um mosteiro, é “sair de Sodoma”.'*0 Sociedade laica e so-
1 ledade corrompida são sinônimos'*1 e nela é difícil operar a sal

vacio,'' Daí, nos escritos de Damien - mas ele é escolhido aqui


apenas como testemunho de uma corrente de pensamento , a
depreciação de tocias as tarefas terrenas e a suspeição lançada ale
•.obre os padres que não são monges, pois “próximos dos laicos
. misturados a eles pela vizinhança geográfica, a maioria já nao se
distingue de sua maneira de viver e seus costumes desregrados” 11
Fm suma, o mundo nào tem sentido profano e as atividades inc
n ules à condição terrena do homem são relegadas ao vazio dos
a ni i-valores”,48 assim como, de maneira mais geral, a natureza e
1 svaziada de sua necessidade interna**5 e são extremamente repu
dl. 11los como malsâos todos os prazeres deste mundo.
O prazer sexual é evidentemente o mais vilipendiado de
1■" l<r. I lina longa tradição neoplatônica, retomada por vários Fa­
de da Igreja, julgou que a união carnal, pelo seu caráter irracio­
nal, rebaixava o homem à condição cie animal.10 Segundo Santo

37. Citado em BULTOT, R. La D octrine..., IV, 1, p. 37. Carta editada por


LECLERCQ, J. em Studia anselm iana, 18-19, 1947, p. 287.
38. BULTOT, R. La D octrine..., IV, 1, p. 51.
39. Ibid., IV, 1, p. 32.
40. Ibid., IV, 1, p. 55.
41. Ibid., IV, 1, p. 56.
42. Ibid., IV, 1. p. 48.
43. ibid., IV, 1, p. 59.
44. Ibid., IV, 1, p. 35.
45. Ibid., IV, 1, p. 80.
■ib. Ibid., IV, 2, p. 82.

:il
Agostinho, :is relações sexuais, no paraíso terrestre, efetuavam se
sem volúpia, “como as mãos se unem uma a outra”. Sem o peca­
do <|ue tudo perverteu, o homem disporia de seu sexo para pro-
<l iar da mesma maneira, racional e voluntária, que ele utiliza seus
olhos, seus lábios, suas mãos e seus pés.4748Mas “depois que caiu
por sua desobediência daquele estado de glória em que foi cria­
do, ele tornou-se semelhante aos animais e engendra como
<h . I sse mito de um homem primitivo sem vida sexual - de
tal nr ido que a virgindade seria uma volta à.sua “verdadeira” na-
Iui * a obteve notadamente a adesão de São João Crisóstomo,
di «uegorlo de Nlssa e de Santo Atanásio.4950Ele seguiu depois
uma Innga carreira no pensamento cristão. Pierre Damien, por
i ' nipln, r totalmente alheio à idéia de que a sexualidade huma­
na pollería ser uma realidade indissoluvelmente espiritual e car­
nal ( ) enlace tios que se amam é sempre corrupção da carne.
( ) desejo sexual e sua realização mancham por si mesmos. O ca­
samento em si é sempre uma sujeira {soreles) da qual só o san­
gue do martírio lavou São Pedro. Mesmo na procriação, o ato se­
xual representa uma submissão e uma escravidão. E, em seguida
a Santo Agostinho, o monge evoca “a imunda feiúra de nossa ori­
gem". () casamento, portanto, só é tolerável com o fim de pro-
11ia i Mas deflorar uma virgem, é sempre “corrompê-la”. Por con­
seguinte, a castidade é preferível ao casamento. Ela é a primeira
das virtudes religiosas. Inversamente, as dores do paito consti­
tuem a justa sanção de um prazer culpado em si mesmo. No D e
■<>ulein/)/n niuiulí do futuro Inocêncio III, o casamento se acha
igualmente depreciado. () ato sexual é pecado em si mesmo e
mam ha a c riança a qual ele dá a vida:

<» homem e formado de pó, de lama, de cinza e, o que é mais


vil, de esperma muito imundo... Quem de fato ignora que o aco-
Illámenlo conjugal jamais ocorre sem o prurido da carne, a fermen-
i . iç . io do desejo e o odor da luxúria? Assim toda descendência,
pela sua própria concepção, é corrompida, maculada e viciada, já
que a semente transmite à alma que lhe é infundida, a mancha do

47. C idade de Deus, XIV, 24, p. 450-451.


48. Ihiil., XXII, 24, p. 660.
49. Cf. TRESMONTANT, C. La M éuipbysique..., p. 462-464.
50. liUITOT, R. La D octrine.... IV, 1, p. 100-111. .
IM <,ulo i nuil .i <1,1 ( ul|M, ,i .sujeira (l.i lnl(|0klade. I >.i mesma nu
n rlu um lii|iil(ln se corrompe se despeindo num vaso poluído..

Im inados por tais mestres, compreende-se que os auto-


ii i tlr sumas r manuais de confissão tenham lançado sobre a
.i \iialldade em geral e o casamento em particular um olhar de
• xtivma suspeiçào,
Agrupemos no final os temas principais do contemptus
niinn/i as tão breves alegrias deste mundo engendram os sofri­
mentos eternos (Koger de Caen); a terra é um exílio; “o amor do
m un d o c noite” (Jean de Fécamp); a carne é “uma prisão” (Philip-
pc Ir Chancelier): o homem é “filho da podridão” e será “repasto
i li )•, vermes” (anônimo do século 11); os sentidos, “miserável con­
dirão do homem”, são os grandes provedores do pecado (Padre
I >amlen). Quem quer salvar-se é convidado a “cuspir a podridão
do in u n d o ” (Padre Damien) e, se possível, entrar num mosteiro;
vlvn na seculariclade é habitar em “Babilônia” (Santo Anselmo)
() ódio do “século” engendraria a auto-suficiência nos ,r,
i rias que tinham a coragem dê romper com ele? Em abstraç.i",
pi mleriamos conjeturar isso, mas erradamente. De fato, como San
io Agostinho e os Padres do deserto, os monges da Idade Mrdla
aliaram desprezo do mundo e vergonha de si mesmo numa e x ­
periencia global do pecado e um pessimismo arraigado do qual
■o mais cristãos dos homens da Igreja, sobretudo eles próprios,
iiao se excluíam. Na poesia religiosa dos séculos 10°-13, retorna
■iir.tantementé a confissão lacrimosa de inúmeros pecados. São
rã ui Damien exclama num poema;

Nem as gotas do mar, nem a areia da praia


Igualam a infâmia de meus erros:
Em número, eles ultrapassam as estrelas e as fgotas dal chuva,51

51. Patr. Lat., CCXVII, col. 702-704. Sobre a suspeição eclesiástica a respei­
to da sçxualidade, cf. DELUMFAU, J. (dir.). H istoire vécue dupeuplc chrétien.
Toulouse: Privat, 1979, I, p. 230-241; contribuição de CHIOVARO, F. /.<■
M ariage chrétien en Occidente, FLANDRIN, J.-L. Un Temps pour emhrasser.
Anx origines de la m orale sexuelle occidentale. Paris: Seuil, 1983. Sur le D e con
temptu... d’Innocent III, cf. MARTINEAU-GENIEYS, C. Le Thhnc de la
morí dans lap oésiefian çaise de 1450 á 1550 (Tese de Estado, dat. Montpcllicr,
1978, p. 97-106). Eu agradeço a E. Le Roy Ladurie por ter-me assinalado este
trabalho importante c útil para o meu assunto. Esta tese foi publicada pela
( Lampión ein 1977.
I'.m peso, as montanhas...
A barbarie esmagadora tic todos os nieus pecados
Ocupa-se em me subjugar...

bu choro por rhinha alma aniquilada nos pecados


I (crida de mil dardos pelo Inimigo antigo...5-

Sessenta c quatro versos desse Ritmo do monge penitente


■ai ■pn ' tu llidos com tais confissões. Eles poderiam ter sido redi-
)»11b >•, |ii a i|ii,il(|iii‘i uní dos inúmeros religiosos que, entre Ò ano
mil i *i 1*•* tilo I V alligiram-se igualmente sobre a inata perversão
<l' ai i alma, t ioniii prova, os fragmentos seguintes tirados da rica
mb i m'.u di II Npiizmuller: “Todo dia eu peco, erro a todo mo­
ni' ni" I mullas vezes, como uní cao, eu lambo meu vómito /
I ii 11111.11 >.i .so toila a criação em vícios mortais”53 (Alphane de Sa-
I' me), "l ti i boro sobre meus pecados rugindo como um leáo”5“
( Marborde). "farsante, simulador, prostituindo minhas palavras, /
Invejoso, impúdico, impuro, pérfido, cruel, / Bufào, enganador,
malvado, violador do amor de meus irmãos, / Eu cometí todas as
•Infâmias que marcam os miseráveis”55 (Baudry de Bourgueíl). “Eu
definho da doença do pecado / Não tenho ninguém para cuidar
de mim”50 (Geoffroy de Vendóme). No dia do julgamento final
"< )iule irei / Para escapar / À terrível sentença? / Por qual recur­
so Escaparei / À cólera de meu Juiz?”57 (São Bernardo?), etc.
Nenluima dúvida pode subsistir sobre este fato histórico
<ssi-ih laI foi nos mosteiros, depois nos conventos de mendigos
qiii .1 d< .en volveu e se afinou a “consciência infeliz” que mui-
i" lo go lila sei proposta como uma evidência a toda uma civili­
zo • a> > ‘n 11s ires componentes principais - o ódio do corpo e do
IIa a id' i. a evidência do pecado e o sentimento agudo da fuga do
h tupo enconiram num poema do franciscano Giacomino de
Venina (segunda metade do século 13) uma nova e surpreenden-
le lltisii.içao ( üacomino dirige-se ao homem em geral e também
a sl m esm o nestes termos:*3467

52. SIM I7.MUI.LER, H. Poésie Latine., p. 401-403.


33. Ihid., p. 443.
34. Ibkl., p. 479.
33. Ibid., p. 493.
36. Ibid., p. 315.
37. Ibkl., p. 565.

:j i
N iiiim hem Muja e vil oficina
l(i I<i.sle l.il >i!(;id<> de mu limbo,
|(,)iic e| ta<> medonho e láo miserável
Que meus labios nao se prestam a dizcr-te.
Mas se tens um pom o de senso, poderás bem saber
One loi estrume podre e corrompido...
() corpo frágil em <|ue te alojaste,
De onde foste atormentado oito meses e mais,
Tu saíste por urna vil passagem
h caíste no mundo, pobre e nu...
. As outras criaturas sào de alguma utilidade:
A carne e o osso, a la e o couro;
Mas tu, homem infecto, tu és pior que o lixo:
I )e ti, homem, só pode provir sanie...
De ti nao procede nenhuma boa virtude,
íls traidor, falso e malvado;
Olha para a frente e olha para tras,
Pois tua vida é igual à sombra
Que aparece rápida e rápida desaparece...^

um. tema que renasce


continuamente'(séculos 14-16)
1 .• " ‘
cutre os místicos
Nos desenvolvimentos anteriores eu me inspirei ampia
mente nos trabalhos de Robert Bultot, que provocaram um eje
bate. Alguns contestadores o censuraram por ter denegrido a
hostilidade ao mundo por parte das Ordens contemplativas me
(lleváis.s9 As regras monásticas, observaram eles, não convida

58. SPITZMULLER, H. Poésie italieñne du M oyen Age (X II'-X V ' siècle). t. I.


Paris: Desclée de Brouwer, 1975. p. 723-725.
59. A discussão entre BULTOT, R. e seas contraditores na Revue d a’ scétique
et de m ystique, 1964, p. 185-196,481-492,493-494; Ibid., 1965, p. 233-304.
VANDENBROUCKE, F. La M oralc m onastique da X I' au X V I' siècle, Lou-
v.iin, Nauwelaerts, 1% 6, notadamente p. 18-20. BATAILLON, E. ).; JOS-
SUA, j. P. Le Mcpris du monde. De l’intérét d’une discussion actuelle. Revue
des Sciences pbilosophtques et théologiques, 1967, t. 51. p. 23-28. GRÉGOIRE,

ar>
v.nn ;io c o n t e m p la s m tin c /i. lisie cortamente existiu, nus deve ser
colocado dentro de uma espiritualidade global que compreendia
também a admiração do universo, tão viva em São Bernardo, e
um otimismo escatológico. Ele era menos uma teoria do que
uma prática e um caminho de espiritualidade. A depreciação do
temporal era necessária aos monges da época que queriam" al-
« aiu ai o eterno e dar lugar em si mesmo ao amor preferencial
p"i Deii'. I la nao impediu que muitos deles fossem letrados,
'|ii> pmmovesscm a “Renascença cio'século 12”, e que se inte-
n ■i ui pela m edicina.Enfim , o historiador faz mal em ceder
i l.o 11 t< nia<„ao do anacronismo, de julgar a espiritualidade cie
................ .... os olhos de hoje, de condenar uma cultura em
ui hio de otiira cultura.
Olíanlo i mim, eu me alinho ao lado de Robert Bultot. Os
lilsloi ladons dew m certa mente desconfiar dos anacronismos.
M.r. ao mesmo tempo, permanece válida a célebre fórmula de
hielen l ebvre: “A história é filha cie seu tempo”. É sempre em
Iiiik ao de nossas preocupações que nós interrogamos o passaclo.
Nao ha meio de agir de outro modo. A Historiografia progride
pela renovação de seu questionário. E este é sempre inspirado
pelo presente. Testemunhas cie seu tempo, alguns cristãos leigos
estudam agora a espiritualidade monástica que, como objeto de
Investigação, foi durante muito tempo uma reserva de caça dos
monges, que a apresentavam sempre de forma laudativa. Nos
dias atuais, os olhares se diversificaram. Seria um mal? Por outro
lado, os poucos textos apresentados na seção anterior provam
■ I iiaiumii que o c o n t e m p la s m n n d i não foi apenas uma prática
d. hnmlld.idi l Ir foi teorizado, generalizado, erigido em vercla-
d. tinha is.11, l le tendia a colocar um abismo entre santidade e
'ida piol.ina 1 "l ima teoria das realidades terrenas baseada ape­
na ni - \,inll<is vnnHnlnm do Eclesiastes só podia ser uma teolo-

I‘ 11 < oiHcmptus nuindi: ricerche e problemi. Rivista di Storia e letteratura re-


liyjoiii. i. 5, |>. 140-154. LAZZARI, F. M ística e ideologia tra X I e X III
\t‘iolo, Milán Naples, 1972, p. 9-14.
60. ( T notadamente Entretiens sur la Renaissance du X II siècle (sob a direção
d<' ( iAN 1) III AC, M. de; JEAUNEAU, T.), Paris-La Haye: Mouton, 1968,
sobretudo p. 53-69, 147-160, 296-308. SCHIPPERGES, H. Die. Benedikti-
ncr in der M edizin des fríih en M ittelàlters. Leipzig, 1964, p. 57-58.
61. Cl. FIISTUGIÉRE, A.-J. Les M oines d ’Orient, I, Culture et sainteté. Paris:
Ccrf, 1961, passim.
i'.l.i tl.i ilc| uccI.iç.k ( )ra, esse discurse >m< mastín> 11Itr;ipns.st >u <>
quadio e us homens para quem ele linha sido elaborado, IU•lol
pi oposto com o norma a uma civilização inteira: o <|iic vai ser ol>
|i io 11<>■, desenvolvimentos que vêm a seguir.
Durante muitos séculos, na Igreja Católica, a respeito da
minn/l, da vergonha e do medo de si mesmo, nào se dirá
mais do que aquilo que já tinham escrito Santo Agostinho, os l’a
i Ires do deserto e os religiosos dos séculos 1.0o- 13. Mas é impor
l. mlc sublinhar agora a longa posteridade de um discurso homo
geneo, insistentemente retomado. E devemos, sobretudo, pôr em
lelevo a grande novidade (]ue será a difusão desmedida de uma
i ulpabilizaçào e de uma ética que se podería julgar destinada
apenas a uma restrita elite de ascetas heróicos.
Do início do século 14 ao final do século 16, são inúmeros
i is textos em que os mestres espirituais da cristandade denunciam
0 mundo nos mais vivos termos, perpetuando e até agravando a
confusão entre os dois sentidos da palavra “mundo” destacada
m. iis atrás. C) vôo místico certamente só é possível graças a ret usa
i.ulical de tudo o que podería pesar na alma e impedi la de asi eu
dei para o Salvador. Semelhante desprendimento só é então pio
poslo a seres excepcionais e em princípio não ten) valor exemplai
para o comum dos fiéis. Mas o historiador deve levar em cohla a
< spansão que tiveram pelo menos algumas das obras redigidas pe
li is grandes místicos - expansão geradora de ambigüidade e causa
iiiplementar de confusão entre o mundo em que Deus colocou o
In unem para que nele eumprisséseu destino e o mundo sinônimo
di pecado. Mestre Eckhart (1260-1328 (?)) afirma num sermão: “E
puro o que é apartado e separado de todas as criaturas, pois todas
as c riaturas sujam porque são nada”.6 263 E, à jovem rainha da Hun­
gria, que ficou viúva prematuramente, ele escreve: “... Se-queres
ler e encontrar plena alegria e plena'consolação em Deus, trata de
despojar-te de todas as criaturas, de toda consolação vinda das
1 ri.lluras”.64 O dominicano Suso (1295-1366), aluno de Mestre
Eckhárt, coloca na boca da “Sabedoria eterna”, respondendo ao
sevidor” que a questiona, estas exigentes recomendações:

62. Revue d 'aseétiqu e..., 1964, p. 4 89. Cf. DUQUOC, C. Eschatologic ci


real ités terrestres. Lum ière et vie, IX, 1960, p. 4-22.
63. Tradução de ANCELET-HUSTACHE, J. M aitre E ckhart et Ia mystique
rhénane. 1. cd. Paris: Senil, 1956. p. 106.
64. lWid., p, 94.
... Ulcvii teu co rad o acima deste lodo e do pântano profundo
(|iie sao os prazeres carnais... tudo o que o mundo te oferece nao
e nada que possa preencher teu desejo. Estás neste miserável
vale de lágrimas onde o prazer se mistura aos sofrimentos, o riso
as lágrimas, a alegria à tristeza, onde nenhum coração jamais en­
controu a alegria total, pois ela engana e mente..7*

<) místico alsaciano Tauler (1300-1361), também aluno de


M< .in lá kli.ut, c que teve grande influência sobre I.utero, decla-
i i mim .1 iiiuo destinado a religiosos: “O homem não é nada por
l nu • n u i nao ser um corruptor de todo bem”.06 No Diálogo de
h mi i < 11.11111.1 de Siena com Deus, o mundo se vê constantemen-
n •'0 i. us.ii ao com referência ao texto de João (16,8): “Eu en-
' i •i« i ••I .pullo Santo que convencerá o mundo de injustiça e de
lal .o julgamento" Convidada pelo Todo-Poderoso a abrir os
ollio*. "do coipo e do espírito” para o que a cerca, o que vê Ca­
iai ma' Homens criminosos mergulhados numa terrível miséria.
P iivados da luz, com a corrupção da morte na alma, seres de es­
cu rid ão e de trevas, que vão cantando e rindo, dispersando seu
tempo na vaidade, nos prazeres, na baixa luxúria”.67 Inquietantes
e sumárias generalizações. Ademais, para Catarina, “nenhum pe­
cad o e mais abominável que o da carne”68 e ela exclama com São
Paulo "Infeliz que eu sou! Quem me separará de meu cçtrpo: pois
• u tenho nele uma lei perversa que está em revolta contra o es-
I>lilt<>" (Km 7,23-24).
'•aula Teresa de Ávila admira-se de que “um Deus possa co­
mí ml' n .< a partir deste exílio com vermes da terra tão abjetos”.60
\ h imenli manada pela leitura das Confissões de Santo Agosti-
nli' • •Ia alli ina, <i >mo tantos outros escritores espirituais, que “não
ha • ••iii un i nesta vida" e que “é uma grande miséria nossa vida

I.'1 '•> Ct \ I I. ilU ivm completes, trad. e apres. ANCELET-HUSTACHE, J.


T.ui'. Senil, 1977. p. 350.
(.(>, IAl TER. Serm ons. Tradução Hugueny, Théry et Corin. Paris: Desclée de
hmuwci, 3 v., 1927-1935. Aqui, II, p. 237.
0 /. D iiilopite ilc Sain te Catherine de Sienne. Tradução J. Hurtaud. Paris: 1913,
I. p. 190.
68. Ibid., I, p. 109.
69. I.e Château de 1'âtne, dans, Somrnets ae la littérature espagnole, III (sainte
Tliérèsc d’Avila, Lazarillo de Tormes, Christophe Colomb), Lausanne, ed.
Rciicomra, 1961, p. 41.
ii' i' mundo" 11 "( ) meu S e n h o r e meu Hem, exclam a ela, com o
qm u ’l'1 <1 1 1 1 .m iem os uma vkla lao miserável?”,”1 Evocando as "se
uuiI is m<H.ulas" do easielo da alma, c*la avista seres de boa vou
i o li m, 1 1 que "ainda se ocupam cie seus passatem pos, de seus ne
.....Io1,, de .'.eus pra/eres e dos ruídos do mundo”. Ora, “o mundo
ini' 11o note se de passagem essa generalizaba o - está repleto de
ui' ulli.is , em meio aos prazeres propostos pelo demônio, só há
d* imotos, Inquietações e contradições”.72 Os bens do mundo são
11 pieis i líelos de veneno".7-' Mas a própria Teresa teve dificulda­
de em operar a escolha radical entre o mundo e Deus. Ela tentou
huíanle echo tempo conciliar o estrito cumprimento cia regra re­
ligiosa e as ocupações mundanas do salão. Mas para progredir no
•ii i umlnho místico ela teve que renunciar a essa conciliação im-
I" ••■.iv«d. "Eu parecia, confessa ela na su a -Autobiografia, querer
■i .iii lllur esses dois adversários, tão inimigos um do outrô, que
. a i a vida espiritual, suas alegrias, seus sabores, e os passatempos
«• usuais".-l
Santa Teresa afirma numa passagem das “sétimas moradas"
i jtu quando a alma “se esvazia de tudo o que é criatura por amoi
di I >cus”, este “a preenche necessariamente de si”.75 Sãçéjoào da
• ui levou ao limite essa experiência. Para ele, reduzir a alma á
sua r.sscncia, é criar “um vazio completo em relação a todos os
•ili|eios criados”.76 Para ascender a Deus a alma necessita da noi-
i' I Ia deve cessar “de nutrir-se no gosto de todas as coisas”, es-
i ihill ar se no que concerne a cada um dos cinco sentidos, “na es-
' mídao e sem nada”. “O despojamento deverá ser completo, es-
........ ainda o santo asceta, e estender-se a tudo o que [a alma] po-
-I, H i 11 ínter." Que ela se dedique constantemente não ao que é
ui il. lacil, mas ao que é mais difícil... Não ao que agrada, mas ao
qur desagrada... Não a procurar o que há de melhor nas coisas,

70. Ibid., p. 71.


71. Ibid., p. 72.
72. Ibid., p. 62.
73. Ibid., p. 61.
74. CEuvres completes, tradução de Auclair, M., Paris, 1964, Desclée de Brou-
wcr, p. 51.
75. I.c Château de l ’â m e, p. 250.
76. I.a M ontêe du Carm el, I, cap. III, p. 34: CEuvres spirituelles, tradução de P.
<irégoire de Saint Joscph, Paris, Senil, ed. de 1972.
77. Ibid., todos os capítulos III c IV.

: ü)
mus ao <jlk* luí de pior”."8 Dois “contrarios” nao podem residi i
num mesmo individuo."” “A alma que está apegada a bele/.a de
lima criatura qualquer é soberanamente feia diante de Deus. E por
conscguinlc essa alma feia não poderá transformar-se na beleza;
pois ,i feiura nào atinge a beleza”.80 “Todas as graças e os atribu­
lo'. das criaturas comparados com a graça de Deus são apenas
di .rui/.i soberana e soberano clesprazer”.81Jean Baruzi comparou
luslamrnlf .1 poesia mística de São João da Cruz aos seres “vola-
11I1..11 li is que povoam os cpiad ros de El Greco.82
I iin dos m.lis belos poemas, c dos mais tenebrosos, sobre
■■ mal 11111\1 1sal Ini composto na Espanha do “século de ouro”
pi lo i, hi'jn'.o Agn.siininno Erei Luís de León (1528-1591)- E foi
■- mipi - .1•' a pedido da carmelita Ana de Jesus - aquela que su­
ri un 1 ‘.ao |o.in da Cruz para escrever a obra que viria a ser o
1 ,luli< v ej>lrlln<il" Ainda estamos, portanto, no espaço da mis­
il- a 10 dlglilo na véspera da morte ele Frei Luís de León, o Co-
m oitiirío do lloro d e j ó só teve, então, uma audiência limitada
e so loi editado em 17 7 9. 8q Todavia, seu autor estava na época
cnlre os mais célebres professores da Universidade de Salaman­
ca o que deixa entrever uma difusão considerável. Além disso,
U'Slemunho de su a notoriedade, ele foi encarregado de dirigir a
edição oficial das obras de Santa Teresa. Seu temperamento bi­
lioso e nervoso o levava à melancolia. Mas a suspeitosa Inqui­
sição i aslclluma deteve-o durante quatro anos e meio numa es-
1u lia plisan; ele tenia reprovado o valor da Vulgata; ele tinha
n idu/ldi» em língua vulgar o Cántico dos cánticos ; ele teria
m-mli-l-- 1- la- oes com os heréticos. Inocentado dessas três acu­

ai lililí,, cap. XIII, p. 84.


'*) Ihld,, I, |)i 45.
Mi M <1(1 .’ 1 1 I.1 Bihl. N.u. de Madrid. Trad. BARUZI, Jean. Saint Jean de la
< /i-n et le problénte <!c /'expérience mystique. Paris: Alean, 1924. p. 411.
81, la M ontee 1I11 Carm el, I, cap. IV, p. 38.
tU, BARUZI, ). Saint Jean de la Croix..., p. 408. A expressão “volatilisés” (vo­
latilizados) é de Barrés.
83, BARUZI, J. Luis de Léon interprete du Livre de Job. Cabiers de la Revue
d'hiuoire ct de philosophie religieuses. n. 40. Paris: PUF, 1966. p. 8.
84. As exposições que seguem e as traduções de acordo com GUY, A. L a Pen­
d e de f ray Luis de Léon. Paris: Vrin, 1943. p. 292s. Textos citados segundo a
edição das Obras de Louis de Léon por Muñoz Saenz. Utilizo o artigo citado
na nota anterior.

10
•■KlH’.'i, ele retomou iriunliilnicnU’ muís cursos cm Snhmumea,
M.is, no seu c .ilnbouço, ele tinlia experimentado o desespero.
I . i experiência <> marcou c certamenle contribuiu para tornai
mais sombrio o Com entário (|iie ele escreveu sobre o já bastan
I» sexnbrlo Uvro de Jó.
I'rei Luís de l.eon não é insensível aa encanto da nalure
a I Ir c elebra as frescas solidóos agrestes, as pastagens semea
das de flores, as fontes jorrando e as noites estreladas. Mas, re
montando desses objetos fascinantes ao seu criador, ele aspira
i oni nostalgia às felicidades do único paraíso verdadeiro e recu
sa se a deixar-se levar pelos encantos enganadores e pelos lis
pecios risonhos das coisas deste mundo. O homem, do mesmo
modo, é apenas aparência. Jó o compara à ñor que um golpe de
vento lana e mata num instante. De fora, ele pode parecer um
I >eus imortal”, pelo seu entendimento, sua memória, sua sensl
bllidade aguda, sua habilidade e sua destreza. Mas “se chegai
mos ao que ele é de fato, é uma ñor fañada e seca, sem Irulo
nem esperança de fruto”. “É uma aranha que um sopro de ai
basta para matar”.85 Quanto à vida humana em geral, ela e api
nas uma “contínua perda do ser; uma morte que, a cada Instan
le, constitui a véspera da morte”.86 Esse é sem dúvida um t< .
Mas que esse tema tenha sido um lugar-comum no Inicio dos
tempos modernos, eis aí justamente um fato importante* no pia
no das mentalidades coletivas. E depois, Frei Luís de l.eon viveu
profundamente esse desprezo do mundo, sobretudo no seu úl
timo poema onde comenta e renova o Livro de Jó, com uma
pungente sinceridade:

Com efeito, assim aquele que caminha através de terrenos pe­


dregosos e rochedos escarpados, correndo o perigo de ser pre­
cipitado para baixo, ou através de paragens infestadas de ban­
didos e temendo por sua vida, abomina esse caminho, deseja
vê-lo terminado e jamais o teria tomado como caminho se i.sso lhe
tivesse sido possível, assim também esta vida através da qual ca­
minhamos sempre com tão grande perigo, deve ser desprezada; e
uma vez que nascemos para morrer e que o fim da vida é a mor­
te, é abreviar nosso sofrimento chegar a esse'termo o mais cedo
possível. Da atenta consideração dessa evidente verdade provém

H5. Obras, 1, Exposición de Job, XIV, 2, p. 224.


86. Ibid., 1J o b , IV, l(), p. 70.

II
estas palavras de Silcnc, que ficaram célebres: "A mellioi sorte e
nao nascer, e a segunda depois desta é morrer no nascimento".

(loníissào desesperada a ponto de se perguntar como nào


levou seu autor ao suicídio e que Frei Luís de Leon'justificou com
múltiplos arguméntete. E primeiramente, “todas as horas da vida
lun sua pena”, e mesmo os mais felizes vivem no sofrimento: “Os
il< os os refinados, os esbanjadores, os grandes... confessam que
>o|11 ui miseravelmente”.8788*90 Mas é também o quinhão daqueles
qii* .......mam a paz de espírito nos bens do céu. Quem poderá
........ os pi rigos desse caminho, os obstáculos que o demônio
■•»f m i is aillmanhas, as sutilezas, as armadilhas cheias de erigo-
dos ipil ele usa"?"" A desgraça, portanto, está em toda parte e
ii nla r mais perigoso do (|tie uma vida tranqüila. Esse paradoxo
• di .i 11\o h Ido da seguinte maneira:

I >te oceano da vida, quando está calmo deve ser temido mais
ainda: pois no meio de sua calma reside a tempestade, e sua
quietude e tranquilidade escondem ondas mais altas que as mon­
tanhas... Nossa vida é uma guerra... porque está continuamente
exposta ao perigo..., os homens nos enganam, a sorte nos ilude,
os animais nos atacam e os elementos nos trazem geralmente a
morte. Quem dirá, com efeito, o grande número, a astúcia e a for­
ca das coisas invisíveis que nos movem uma guerra secreta.**’

|.i que tudo é “vaidade”, não é no fim do mundo que se


•ia i mli.u.i a sabedoria. Os “ricos países distantes não oferecem o
te| hiiisi i do ci>rai/a<>” alusão evidente às febris expedições ultra-
iii . i i Ii i . is dos Ibéricos da época.01 O amor terreno e a beleza, é evi-
d. uii i ira/em decepção: “Aquele que de dois olhos claros / E
d' mu i al >eli i de i >ur< >se enamora / Adquire mil problemas / Uma
lio u ml ,, i.ivel, Um prazer breve que se lamenta sem fim”.92 A
piopiia anil/.ule e traição: “O maior amigo /... é testemunha,
quando estamos presentes, / Da virtude que nào temos, / E quan-

87. Ibkl., I, Job, III, 22, p. 48.


88. Ibiil., I, Job, VII, l ,p . 120.
80. Ibid., p. 120-121.
90. Ibid.
9 I. Obras, IV, Poesias, Oda: “De la avaricia”, estr. 1, p. 305-
92. Ibid., Oda “Del modéralo y constante”, estr. 1, p. 308.
■In ( ".I.unos ausentes, do mal que nao fazemos",”' Ademais, o pas
,n lo era lao negro (|iianio o presente, e o luí uro nao si a a mella ir.
Nao se eleve esperar que va existir sobre a Ierra, nos anos vln
domos, algum género novo de bens terrenos graças aos quais o
espirito do homem, saciando-se, vivera no pra/er e na bealilu
il<'... Resumamos em duas sentenças esse desanimador discurso
agostlniano do monge poeta: nós estamos trancados numa “prisáo
baixa e escura”;0' “todo o visível nào passa de triste pranto”.06

iiin discurso para todos os cristãos


Normal entre .os místicos com o trampolim para a ascensão
a I >eus de almas excepcionais, o desprezo do mundo, no inicio
dos tempos modernos, ultrapassou amplamente esse círculo ie-,
I rito. Nao é significativo que o lúgubre D e contempla niina/i do
Cardeal Lotário seja conhecido por pelo menos 67 1 manusi ilh
e 47 edições - a maioria delas datando do século 15°' , e que a
nha sido adaptado em toscano por dois leigos florentino*, c mi
francés por Eustache Deschamps? O primeiro dos dois Italiano.,,
bono Giamboni, juiz da cidade de Lys durante a segunda niela
de do século 13, contentou-se geralmente com uma iiailtu. ao
quase literal, precedida, porém, de um prólogo surpreendem»
“Quem refletir, diz ele, sobre todas as adversidades que se cucou
tram sobre a terra, nào descobrirá nesta nenhum bem. Porque
este mundo nada mais é do que miséria. E ele foi dado por I )eus
ao homem a fim de que este encontre aqui tribulações e tormén
tos e carregue a pena de seus pecados”.93945678 O segundo adaptador
florentino de Lotário é Ângelo Torini, um fabricante e vendedor
de tecidos do século 14 que em diversas ocasiões ocupou fun­
ções públicas na sua cidade. Esse leigo casado, contemporâneo
da peste negra e amigo de Bocaccio, membro de uma confraria

93. Ibid., “Del mundo y su vanidad”, estr. 14, p. 356s.


94. Opera, éd. M. Gutiérrez, Salamanque, 1 8 9 1 ,1, p. 301.
95. Obras, IV, Poesias, Oda: “Noche serena”, estr. 3, p. 314.
96. Ibid. Oda: “El aire se serana”, estr. 9, p. 302.
97. MACCARONE, M. Lotharii cardinalis, D e m iseria hum anae conditionis,
1955. p. IX-XX1I. Nova edição do D e contemptu m undi de Lotário por R. E.
Lewis, Univ. of Georgia Press, 1978.
98. ( 4AMBONI, B. Delta miseria dell'uomo. ... éd. G. Piatti, Florense, 1836, p. (>.
tic flagelantes, rc'clii^in entre 1360 e 1380 unía driere calle lañe
llalla miseria delia am ana condizione que exagera sobre o mo­
delo. Assim, na primeira parte do seu tratado, Torini acrescenta
dois argumentos que nào figuram em Lotário: “Como é fétido e
escuro o lugar da nossa primeira morada” e “Sobre, o número e
.i Intensidade das dores que neste lugar nos suportamos e infligi­
mos .i nossas mães”. Na segunda parte, ele se inspira nào apenas
■ni I <iiaili >, mas lambém ñas Moralia in Jo b de Sao Gregorio, o
;ii 11d i \ iin i-ira parte, consagrada à morte e ao destino eterno
da alma, uliiapassa .impíamente a obra de Lotário. Trata-se certa-
........a di um Ii\ io inspirado no do futuro Inocêncio 111, mas que
Iiim n w mais amplamente num género bem definido: o dos
anali mas m )bte o mundo.
A long.i lorluna desse discurso para além do século 13 e
d ... mu los 11K>ilasi icos e urna certeza. A obra de Inocêncio III foi
liadii. lda (nu adaptada) nào apenas em toscano e çm francês,
mas lambem em inglés, em neerlandés e em espanhol. Em Pe­
naría, o desejo tía gloria combate a meditação sobre a morte e,
depois dele, a ambição de passar à posteridade conquistará cada
vez mais a elite ocidental.”9*Petrarca, no entanto, contribuiu para
ampliar a audiência do tema do contemptus m undi. De seus
Triunfos (do Amor sobre a Juventude; da Castidade sobre o
Amor; da Morte sobre a Castidade; da Fama sobre a Morte; do
Tempo sobre a Fama; de Deus e da Eternidade sobre o Tempo),
i i. onogialia releve particularmente o triunfo da Morte,100 Petra r-
■ i 11 \i mu se uso agudo da caducidade das coisas e do tempo, e
i la i li sgi.g a da condição humana. Na sua epopéia Á frica , ele dei-
s i i i ipai i sta queixa: “Infelizmente, o homem nasceu sobre a
i. na paia uma sorte injusta. 'Lodos os outros seres vivos conhe-
■. ni a quietude Mas ele, sem trégua nem repouso, apressa-se, in-
qitii 1. 1, paia ,i morte ao longo dos anos”,101 O exame.de consciên-
i ia qu< Iviian a intitulou Da secreto conjlictu curarum m earum ,
• q1 ............ num diálogo entre ele e Santo Agostinho, foi lido
i iimii um />e contemptu m undi. O Bispo de Hipòna, escolhido

09. t II, ,i esse respeito o conjunto do livro de TENENTI, A. IlSenso delia mor­
te e 1'itmorc delia vita nel Rinascimento (Francia e Italia). 2. ed. Turim: Einaudi,
1077. Cf. também Dl NAPOLI, G. Contemptus- mundi et dignitas hominis
nel Rinascimento. R ivistadifilosopbia neoscolastica, 1956, t . '48, p. 9-41.
100. TENENTI, A. II Senso..., p. 450.
101. PÉTRARQÜE. A frica, VI. v. 879-900. Ibid., p. 192.
io n io conselhelro, guia Petrarca para a villa Interior incitando'-o
a refletir sobre a morte e os bens perecíveis."u
Também nao deve snrpreender-nos c|iie Erasmo, admira
dor de Petrarca, tenha por su a vez redigido, como muitos outros,
um He contemptu m undi. lile o escreve na sua juventude, entre
I iHH I i89, no Convento de Steyn. Mas só o publicará em IS2I,
acrescentando-lhe dois anos depois um capítulo XII que parece
contradizer o espírito dos outros onze.102103 Devemos pensar como
a maioria dos comentaristas, notadamente Pineau, Telle e llyma,
i|ue o jovem candidato à glória'literária; nessa obra, tenha ape
nas se “divertido” em “exercitar” seu talento sobre um assunto
que prestava para isso? Essa declam ado que busca suas fontes ao
mesmo tempo nos antigos - Cícero, Horacio, Ovidio, Séneca, etc.
o que era novidade desse gênero de escrito - , nos Padres da
Igreja e na tradição monástica medieval, pode parecer urna colé
cao de lugares-comuns. Ela opõe as desgraças do mundo muir
reina Satã à beleza e à felicidade do reino de Deus. Afirma que
o homem natural está sujeito aos vícios. Retomando o lamí >m •a i
pos Ubi s u n t? ele insiste também sobre a decrepitude da velhii •
() mundo, mar tempestuoso e cam pus dia boli, e apresenladit
como submetido a fo r t u n a mutável e arbitraria. O anatem a < la 11
eado contra as “seduções do século”. O homem só se torna \li
tuoso se for “crucificado no mundo”, como quer Sao Paulo, A vil
vação só é obtida pela paz interior. Em que outro lugar a nao set
no claustro se encontrará o porto de repouso e de recolhimento
onde s e pode ficar longe do “tumulto do mundo” e das “vicissi
ludes da fortuna”? Mas precisamente Erasmo não permaneceu no
convento e o capítulo XII é um ataque em regra contra as Ordens
religiosas, que perderam sua pureza primitiva. Daí a hipótese
mencionada anteriormente de que Erásmo nào teria levado a se­
rio sua declam ado sobre o desprezo do mundo. Pode-se também
supor que depois de ter deixado Steyn, ele abandonou o ideal de
sua juventude. Mas existe uma terceira solução aceita ao mesmo

102. KOHLS, E. W. Meditado mortis chez Pétrarque et Erasmes. Colloqaia


erasmidna turonensia. Paris: Vrin, 1972. I, p. 303-304.
103. ERASME. Opera om nia, V, Amsterdam-Oxford, 1977, p. 1-87 com e<>
mentário introdutório de S. Dresderi, p. 3-36. Exposição sintética sobre a
obra de Erasmo em POST, R. R. The M odera D evotion. Confrontation w ith
Reform ation and H um anism . Leyde: Brill, 1968. p. 660-670. Ver também o
artigo essencial de BULTOT, R. Erasme, Epicure et le D e Contem pla m an
d i. Scrinium Erastnianum , Leyde, 1060, II, p. 203-238.

ir>
lempo por S, I) resden e E. W. Kohls: o capítulo XII so .il.it .11i;1 os
claustros para melhor suMinJaar os méritos de mu "monaquisino
no mundo", de novo exaltado no seu escrito tardío D e Praepara-
líoiic <i(l morlem (1533). Erasmp nao teria então variado fúnda­
me ni. límente a esse respeito em relação às tomadas de posição
di 1 Ini* io de sua carreira. Em todo caso, é significativo que ele te­
ñí 1.1 publii .ido o seu De conteníptu m undi no apogeu de sua ce-
I. I>1id.ith halando desse tema, ele estava de qualquer maneira
II (fino de uma larga audiencia.
I l,i< 1 1 tf surpreender, portanto, que Ronsard o tenha am-
1.1 un. nú . s|>h >1.11lo no seu Hino da morte, mais original pela for-
III 1 di. 111ii pelo Inudo. Ele compara aqui o homem sobre a ter-
1 1 1 mu pilsioni no que, dia c noite, suporta / As manículas ñas
n i.............. ...... .1 dina córlenle’’. Ele julga que somos os “verda-
d. le .. I1II1. r. di dor e tle miserias” e "... que somos apenas / Urna
1. 11.1 animada, e urna vívenle sombra...”101 Afirmações que o Car-
di.il l.olarlo pollería subscrever.

I'oi provavelmente com a Imitação de Cristo que o cliscur-


•.<> religioso sobre o desprezo do mundo atingiu pela primeira vez
o grande publico - refiro-me àquele que sabia 1er.10=5 Normalmente
atril nuda a Tilomas a Kempis, composta no século 15 e inspirada
pela / h'eolio m oderna , a Imitação liga-se à corrente mística e dei­
xa adivinhar a influencia de Ruysbroeck. Ela conheceu um ex­
traordinario sucesso antes mesmo da invenção da imprensa, ja
•po se di si obi iraní mais de 700 manuscritos. Sua propagação es-
n mliai st pulíanlo, nao somente para o clero secular, mas para
- In 11I111. . ida ve/ mais amplos de piedosos leigos. Em seguida,
•luí mil' um longo período, a audiência da Imitação se manteve
•m alia ( oiili.-i e se riela K5 incunábulos e 200 edições no curso
do . •11I0 |(i..|la i<>i traduzida 60 vezes em francês em 400 anos,
iioi.ttI......... poi Corneille, Gonnelieu (pregador jesuíta do sécu­
lo | q 1 po 1 l.nmennais. Nesta ultima versão, as passagens mais

MM. RONSARD. CEuvres, completes. Paris: P. Lemonnier, 1914-1919. VI,


p. 10-44.
105. I )EI.ARUEI.LE, E.; LABANDE, E. R.; OURLIAC, P L'Eglise au temps
Alt Granel Schism e (t. XIV, 2 de ¡'Historie de l ’Eglise, Fliche et Martin), p. 937.
P ietionnalre de Spiritualité, VII, col. 2.338-2.368.
106. O . BACKER, A. de. Essai bibiiographique sur le livre "Pe Im itatione
Christi". I.iége, 1864.

10
Iirv.linlNtiiN são agravadas pelos comentários . iin<I.i mais sombrios
111k* o própfln texto. Ora, o Livro I ela Imitação é "um verdadeiro
I ><' coHtcmptn nrtmdi que nos remete á ascese de Wlndesheim e
Insisle sobretudo sobre o desprendimento’’.1"’ Lemos nele:

Quem se conhece bem se despreza. A ciência mais alta e mais


útil é o conhecimento exato e o desprezo de si mesmo. Somos
todos frágeis, mas ninguém é mais frágil que você,.. (1, cap. 2).

Evite, tanto quanto puder, o tumulto do mundo; porque existe


perigo em entreter-se com as coisas do século, mesmo com uma
intenção pura... (I, cap. 10).

É realmente uma grande miséria,viver sobre a terra... Comer,


beber, acordar, dormir, repousar, trabalhar, estar sujeito a todas ,r,
necessidades da natureza, é realmente uma grande miséria e uma
grande aflição para o homem piedoso que quiser ser despojad'i
de seus bens terrenos e livrado de todo pecado... Infelizes aqih
les que não conhecem sua miséria b infelizes mais ainda aqtu I*
que amam essa miséria e essa vida perecível (l, cap. 22).

Mas o desprezo cía vida terrena e a afirmação de que ela


nào passa de uma rede de misérias não são expressos apenas no
Livro 1; porque no terceiro retorna o mesmo tema sola a forma de
uma interrogação quase suicidaria (não fosse o refúgio em Deus):
"Como podemos amar uma vida repleta de tantas amarguras, su­
jeita a tantos males e .calamidades? Como podemos chamar vida
algo que engendra tantas dores e tantos males?”107108 (III, cap. 20).
1(ssas frases, centenas de milhares de leitores as meditaram du­
rante vários séculos já que um especialista da história do livro es­
creveu que a Imitação foi “talvez com a Bíblia, a obra mais ve­
zes impressa até nossos dias”.109
Entre os best-sellcrs da literatura religiosa do passado, ao
lado da Imitação, figura com destaque A Grande vida de Jesu s
Cristo do cartuxo Ludolfo de Saxon, mais tarde um dos livros de
cabeceira de São Francisco de Sales. As duas obras são contem

107. DELARUELLE, E. L E g lise ..., p. 935.


108. Todas estas citações são extraídas da trad. de LAMF.NNAIS, F. dc. Paris:
Setiil, 1979. p. 13. 23, 45, 127.
109. MARTIN, 11. J. I.Apparition du livre. Paris: Albin*Midicl, 1958. p. 381.

17
poruñeas o as v c/cs st* pensou, nota ela mente no século I que
o santo monge era também o autor da Imitação. Ludolfo conta a
vida dc Jesus indo além dos Evangelhos. Em certos momentos,
ele Interrompe a narrativa para introduzir comentários espirituais,
voltando depois à história de Cristo. Serào, sobretudo, as refle­
xões do religioso que nos ocuparão aqui. Elas, às vezes, são me-
iii'. abiuptas que as do autor da Im itação e trazem distinções
tllels para uso dos leigos, l.udolfo declara em suma que existe
diia . ' .|tecles de discípulos de Jesus: uns por “necessidade”, ou-
li" p. a supeieirogaçào”. Os primeiros não devem nunca apé-
", ii > a n aia de maneira a preferi-la ao céu, ao passo que os se-
Mim•I''. a m ie límenle” a obrigação de abandonar tudo, como
... ip " . tolos, paia praticar uma pobreza voluntária. “Assim, nem
i* I........... .. listaos ,ao efetivamente obrigados a deixar tudo; mas
ipi na •os n llgloso.s ligados pelo voto de pobreza. Mas todos nós
deví mos reiuiiu lar a tudo de coração, de modo a preferir Deus
a indo"."*1 Em outra passagem, Ludolfo tem eista bela fórmula,
ii.mqiiili/adora quando tomada isoladamente: “... Amemos o ho­
mem, livremo-nos do demônio; oremos pelo homem, lutemos
contra o demônio”.112 Mas'o contexto desmente sua bènignidadé
poique ela está inserida numa passagem que comporta uma for­
te e global acusação do homem:

"<) Salvador disse: guardem-se dos homens como dos maiores


males, querendo mostrar-nos que o homem é o maior perigo so­
be ,i lena. Cada fera selvagem tem sua malícia própria e única;
ui,is " homem encerra em si todas as malicias. Mais ainda: ele é
pli Mque o demônio.""1 Ludolfo quer certamente dizer que quan-
do m In miein e mau, ele é pior que tudo. Mas, a exemplo de inti­
mei,, i aillos escritores cristãos, ele generaliza em nome de uma
\Is io p, .simlsia da humanidade. E é nesse mesmo espírito e com,
i . 1 1 ii .ma . .i ml agilidades que escreve: “Quem é cristão, diz San­
io \gos(lnho, tem o mundo por inimigo”,1" ou ainda: "... Nin-

I 10. D iaionnuire de Spiritualité, VI, col. 2.342, citando um tradutor francês


da Im itation, Jehan de Grave, Anvers, 1544. Sobre Thomas a Kempis cf.
POS L, K. R. F ie M odenn D evotion..., p. 521-551.
III. LUDOLFO, O Cartuxo. La Grande vie de Jésus-Christ. Tradução de
Maric Prosper Augustin. 6 v. Paris, 1864. III, p. 132.
I 12. Ibid., p. 80.
I 13. Ibid., p. 79.
I 14. Ibid.

•IH
guém pode aspirar ardenlemcnte .1 vichi (Mura se 1 1 , 1 0 llvei prl
moho mu soberano desprezo por c*l:i... (v)ucm desc|a (hegai ,1
verdadeira patria .1 n¡io ser aquele que experimenta as dlflculda
i les e as clores do exilio? Que homem razoável gemería sobre seu
estado presente, se esse estado nao lhe fos.se uní lardo?""' Mais
adiante lemos esta outra sentença: "O lempo desta vida é dado
as almas e nao aos corpos”.1"'

A Vita Christi de Ludolfo conheceu, repita-se, uma ampla


difusão. Antes mesmo da invenção da imprensa, ela foi traduzi­
da na maioria das línguas da Europa. Em 1495, ela foi o primei­
ro livro impresso em português.11"
Nos seus Exercícios espirituais (redigido por volta de
I's22), obra destinada também a uma" duradoura fortuna e que
se tornou a bíblia de tantos participantes de retiros espirituais,
Inácio de Loyola convida estes - inclusive leigos - a implorar
de Nossa Senhora “o conhecimento do mundo a fim de que,
tendo-o em horror, (eles se afastem) das coisas mundanas e
vãs”.1156718 Ao lado dessa recusa categórica, onde se reencontra a
ambigüiclade da palavra “m undo”, os Exercícios trazem, todavia,
uma distinção geralmente omitida pelos mestres espirituais. Iná
cio não despreza as coisas da terra, já que elas são criadas para
o homem, que deve servir-se delas para a sua salvação.119120Em
com pensação, com o dominicano Luís de Granada, volta-se á
hostilidade declarada aos sentidos, à carne e à terra, notada-
mente no seu G u ia dos pecadores (em 2,volumes) publicado em
Lisboa em 1556-1557 e concebido para ser a terceira parte do
seu Tratado da oração e da m editação. É uma obra da qual fo­
ram constatadas pelo menos 476 edições em diversas línguas
entre 1584 e 1904.110 Luís de Granada foi, portanto, um autor de
sucesso que com eçou sua carreira de escritor religioso por uma
tradução da Im itação em castelhano. Seus argumentos nos inte­

115. Ibid., I, p. 427.


116. Ibid., p. 433.
117. D ictionnaire de Spiritualité, IX, col. 1.135.
118. Exercices spirituels. Trad. COUREL, E Paris: Desclée de Brouwer,
1960. p. 51, § 6 3 .
119. Ibid., p. 28-29, § 23.
120. (¡RANADA, E. Luis de. G uida de pecadores. Martínez Burgos (Ed.).
Madrid: Espasa Calpe, 1953, p. VIII. Cf. D ictionnaire de Spirituailité, IX,
o.l. 1.043 1.054.

I!)
ressam .K|iii na medida em qu e sua audiência Ibl m ullo ampla.
D irigindo-se ao pecador, portanto a cada cristão, o Im petuoso
dom in ican o lhe dá este aviso: “Lá o nd e estão os sofrim en tos do
m undo estão os favores do céu; lá o n d e estão as resistên cias da
nulmvxa estão os so co rro s da graça, a qual é mais po d ero sa qu e
a ualuiv/a",1Mmas com a co n d içã o de tratar o co rp o “com rigor
. dim i Porque assim co m o a carn e m orta se con serv a graças
ao i! i ,i mirra qu e c muito am arga, sen ã o ela se estraga e se
■ n< Ia d< \< m ir .; assim tam bém o co rp o se co rrom p e e se en -
•1o d. ■i. i< •. .< loi o b jeto de solicitu d es e de delicadezas^’.122 D e
m mi li i global Lnr. de (¡ran ad a preconiza “o san to ó d io de si
mi u m 1 i a m orí||L açao de todas as p aixõ es - aqu ilo q u e ele
>liam a 'i ipi'llh .«ii .ilb o ”. Mas o qu e ele en ten d e ex atam en te
p- m i ' ' I I', i m u resposta: “Todas as afeiçõ es, tod os o s m ovi-
iii' na ' nal i n a I-, co m o o amor, o ód io, a alegria, a tristeza, o te-
....... a i '.p ria n ça , a cólera c outros sen tim en tos sem elh a n tes”.121
I v .r apetlie ,s ensitivo c]iie co b re um d om inio tão vasto, Luís de
(d an ad a ainda o d efine co m o

.i parte mais baixa de nossa alma e, portanto, aquela que nos tor­
na mais semelhantes aos animais... aquela que nos avilta, que nos
rebaixa para a tena, nos afasta do céu. Ela é muitas vezes a fon-
ir’ e a origem de todos os males que éxistem no mundo; nela re-
■ide a causa de nossa perdição... Nela, está todo o arsenal, toda
a Ibrça, todas as munições do pecado.

I ni seu impulso, o ardente pregador com para “o apetite


- n 'IIP ■' a l \ a ble c bva dentro de nós, isto é, “a partje mais d é­
bil ' mais 11 1 <llu,ida de nossa alma, pela qual a antiga serpente
ii i. a 1 1 <»'.■.• i \d,io Inleríor", send o este, pelo contrário, o nivel su-
p> 1 1<n de nosso sci, la onde im peram o entend im ento e a von-
i.ob■ < » di.una do p ecad o original é en cen ad o assim, a o longo
da vlila di um nivel a outro de cada um de nós. No andar tér-
ii '' ' ni vigilia perm anente, está o inimigo de negro v en en o. Se-
m ellianle analise, em qu e ressurge incidentem ente o antifem inis-

I I. bd. Martinez Burgos, p. 114.


I 22.. Iliiil., p. 148.
I 23. Ibicl.. p. 161.
I 24. íbicl., p. 156.
125. Ibicl.

no
uní 1 1,| <iil(iii .1 ei le.sláMlca, t | i k -ix • que, no <iénesls, o p ira d o
••1 1o.In. 1 1 i apresentado Hilo co m o uin.i 11 .u|tK*/a dos sentidos, m;is
...... . iiiiu atitude d i’ orgulho o üm desafio a l)i*us.

justificação pela fé e necessidade


do desespero
<) ((lie ocorre coni o contemplus m undi e a depredando
d> i homem na teologia protéstame? Pan corto sentido, o mundo c
i \|>la ni >mundo se acham aqui reabilitados em contraste com os
m.nemas monásticos anteriormente citados. Em primeiro lugar,
■ pullo e carne nao sao mais opostos segundo o esquema dua
li i i herdado do neoplatonismo. “E tão tolo tomar essa palavra
■ame pelo corpo”, escreve Calvino. Comentando a Epístola aos
1 . dalas, hulero observa que São Paulo “nào chama de carne a vo
lupia desenfreada, as paixões bestiais ou os apetites dos senil
do . Nao e o corpo que é mau em relação à alma. Daí uma In
dio utivel e fecunda exaltação dos “deveres seculares e carnais
di .prezados, diz ele, pelos papistas:

... Iodos os deveres dos cristãos, como amar sua mulher, ali­
mentar seus filhos, dirigir sua família, honrar seus pais, obedecer
ao magistrado, etc., que sao, para eles los papistas] deveres secu­
lares e carnais, são frutos do Espírito. Esses cegos não distinguem
dos vícios essas coisas que fazem parte da boa criação de Deus.1'

Opondo-se a toda a tradição eclesiástica anterior, hulero


i i pi Mlanto, o elogio do casamento. 1lm dia ele exclama á mesa:
" u que se pode admirar o bastante a união conjugal que Deus
n giilameutou e estabeleceu, e da qual derivam a espécie huma
o i iv.Im como as instituições domésticas?”.1" Outro “discurso” faz
•••• to anterior: "O casam ento é a mais bela instituição qu e Deus

I I UTIIEK, M. U 'uom, t. XV, da Ed. habor ct Pides, Genèvc, l‘)57s.,


( onnucnhiirc tk íl'.'pilic oitx (ntlalcs, p. 22d 225.
I 1 I bit I.
I 'li til I I IKK, M, hopos tic hib/c. Paris: õ. Brimct, 44, p. 84.

r>i
regulamentou: as leis ímpias do papa nada mais sao do <pk- nina
opressão viólenla da natureza”.129 Assim, o Reformador censura os
•..míos Padres” (da Igreja) por não terem “escrito nada de digno
.i respeito do casamento; todos se deixaram enganar pelo imun­
do celibato, de onde saíram,tantos horrores, e não perceberam a
dignidade e .1 eminencia que o Antigo e o Novo Testamento atri­
buem .10 i asa mento”.1''1Alguns anos depois, ele volta a esse tema
•II, eir |i 1 A geração c uma instituição maravilhosamente instituí­
da « ni Ioda criatura, macho e fêmea”.131
I . .. e|i .glo da sexualidade insere-se numa admiração mais
impla d 1 t 1ia< ao que Lulero chama o “jardim de prazer da alma”
1 Um d< que <Ia possa “passear entre as obras de Deus”.132 Calvi-
........... n seu liase', magnificas sobre a beleza do universo:

|l )eii.s|, allrma ele, manifestou-se de tal modo [aos homens] nes-


i< edlfli Io (ao belo e extraordinário do céu e da terra, onde dia-
il.míenle ele se apresenta e se mostra, que os homens não podem
abrir os olhos sem percebê-lo... É por isso que o Profeta (Sl
U) 1 . 2 )... compara a extensão dos céus a um pavilhão real, dizen­
do que Deus o forrou de águas, que as nuvens são carros, que ele
c avalga sobre as asas dos ventos, que tanto os ventos como os re­
lâmpagos são seus agentes [= mensageirosI... Não podemos con­
templar com um olhar esse edifício tão artificial 1= obra-prima] do
mundo tao bem digerido [= regulado] e ordenado, sem que fique­
mos quase confusos por uma luz infinita.1"
I
I m otilro capítulo da Instituição cristà, Calvino maravilha-
■ dianle da 'multidão cie estrelas, que não se pode desejar coi-
1 m 11 di lt iiavel para ver” e diante da potência demonstrada por
\11111 le 11111 ao mesmo tempo sustenta “uma tão grande massa
•111< ' 1 di 1 mimdt>universal” e faz “girar o céu tão levemente”.134
1 »i 1 |>,-i 1 . orlou Iodas as coisas “em vista do homem” e este não

I I b l d ., g. hs.
110. Iblil., p. 87.
I U . Ibiil.,. p. 2 17. Cf, também D e la vie conjúgale (1522) em CEuvres, III,
p. 225-226. '
132. I.UTI 1ER, M. CEuvres, VII, Une m aniere sim ple d eprier (1535), p. 213.
I 53. CALVIN, J. Institution de la religión chrétienne, 4 v., Genève, Labor et
Pides, 1955s.; I, v, 1, p. 17-18.
134. IbicL, I, XIV, 21, p. 130.

R2
tli l\.i <lr M'i mu ,tdmllá\ el mi cesso. "(v)u;inclo entilo nos venios
mi. <m lililíes pagaos es.sa admirável lux. de Verdade, <pic* apnre-
ii ' iii '.cus Untos, ¡sso nos eleve advertir de1 que a natureza do
Iu 'iiii’iii, embora cleOaída de sua integridade e bastante corrompi­
da, nao delxa de ser ornamentada por muitos dons de Deus."1”
Na aia predicando, Calvino repete que o hornem, mesmo peca-
din, recebe e guarda “a imagem de Deus”, contrariamente aos
Iniis, aos asnos e aos caes... e aos astros que nào têm esse privi-
b glo, I >.11 a sua extraordinaria dignidade:

Deus... quer sem dúvida ser magnificado no céu e na terra, e


em todos os seus feitos que nós vemos, mas muito mais no ho­
mem, porque ele imprimiu sua imagem em nós mais do que em
todo o resto. Porque ele não disse do sol, das estrelas, nem de
qualquer outra criatura por excelente que seja: Eu quero fazer
aqui uma obra-prima que seja à minha imagem e semelhança.1

A leitura dos fragmentos apresentados anteriormente, um


leitor nào prevenido pensaria talvez que a teologia protestante
v,n11*11 o pessimismo sobre o homem e o mundo que era veicti
lado pela literatura monástica. Ora, é o contrario que é verdadei
i«», ja que Lutero e Calvino sào herdeiros de uma tradição da qual
nao era fácil se desfazer. Num sermão, Calvino observa aos seus
' .m inies, depois de tantos outros autores e pregadores, que o ho­
mem c tirado do lodo e da lama:

Se Deus nos tivesse formado da substância do sol, ou das es­


trelas, ou se tivesse feito alguma matéria celeste da qual os ho­
mens fossem tirados, então nós teríamos a ocasião de dizer que
nosso começo é honroso.-.. Mas quando nos apresentam a lama,
quem a olha?... [Oral quem somos nós? Somos todos feitos de
lodo; não o temos apenas na barra da roupa, ou na ponta dos
calcanhares, ou em nossos sapatos, mas estamos todos cheios
dele, somos apenas lodo e sujeira por dentro e por fora.M "13567

135. Ibkl.l II, II, 15, p. 37.


136. Citado em STAUFFER, R. D ieu, lã création et Liprovidence duns la p ré-
d ¡catión de Calvin. Berne-Francfort, Peterlang, 1978, p. 203. Sobre a imago
D ei nos sermões dc Calvino ver a discussão neste livro, p. 201-205.
137. ( 'itado em STAUFFER, R. D ieu..., p. 199-200.

r>:i
I'.is (111c* somos levados ao que já foi cilio. (v)uanto a hule
11>, ele eslá cortamente convencido de que o alo sexual resulta
de uma necessidade universal e inelutável - então por que lutar
contra? -, “assim com o beber, comer, cuspir ou ir à privada”.138
r, finalmente, “c um pecado, e se Deus não o imputa aos espo­
so-., e por pura misericórdia”.139 O Reformador insiste para que
nao nos enganemos sobre o elogio que ele fez do casamento.
I lilao ele escreve:

I i . iido esse elogio da vida conjugal, entretanto, eu me defen­


do) mu In admitido ¡i natureza que nao há pecado em tudo isso...
I'. I....... niiarlo, cu digo que a carne e o sangue, corrompidos por
\d,io . 1 0 i oneebldo.s e nascem no pecado... e que o dever con-
j11 >•il lamáis e ( umprido sem pecado. Mas Deus poupa os espo-
•ios poi grava, porque a ordem conjugal é obra sua; e ele conser­
va ale mesmo no meio do pecado e por seu intermédio todo o
bem que Implantou nela ao abençoá-la.110

Assim, no plano do pecado, Lutero viu o casamento com


um olhar mais sombrio que a maioria dos casuistas católicos. E
isso em razão da justificação pela fé. Esta última divide a huma­
nidade em dois conjuntos: de um lado, os salvos; de outro, os re-
provados, Todos |X‘cam mortalmente. Todos são indignos da sal­
vai, .n i. Mas os pecados de uns serão - e já são - perdoados, mas
n.ni os dos outros. Nas passagens em que os Reformadores dei-
1111 n.i sombra sua concepção do pecado original, e talvez até o
- <111•i '•ui por um momento, eles se mostram mais otimistas e hu-
iii,ml i i . i' parecem reabilitar o homem e o mundo. Mas assim
i|in voltam a -aia doutrina fundamental, eis que volta também
•ii |" ■ 1111i .mu eles aniquilam o homem pecador, não lhe reco-
...........ido nenhuma desculpa e declarando que o mundo só é
I" iiliid .iia tal ponto que é até inútil fugir dele para procurar no
d. s|m udlmenlo uma impossível pureza.
l'ol, portanto, na teologia protestante — e no século 16 -
que a depreciação do homem e do mundo atingiu sua maior vio­
lencia na i ivilizaçáo ocidental. Jamais se tinhaTeito uma condena­
ção tao total e jamais esta tinha sido ensinada a um auditório tão

I 18. I UTH RR, M. (Euvres, III, D e la vie conjúgale, p. 226.


139. lkici., p. 251.
140. Ibid.

r» i
,implo Porque Lulero o seus sucessores convidaram o cristao .1
di .« |mi.11 Inlelramente ríe si mesmo .1 lim de lomar se tapa/, ele
U'ivlu’i .1 graça do Cristo", () homem "que se tornou má arvore,
so pode t|uerer e l'azer o mal”.1,1 A salvadlo reside na lúcida ovi
d* 1u la de (|iie ludo e man em nos e em torno de nos. "Mundo" e
dial 10' sao dois sinônimos. O comentário que Lulero redigiu so
Im a I pistola aos Cálalas é revelador a esse respeito."- O mun
do, til/ ele, e "lili 10” do diabo. H por isso (]ue ele é “totalmente
man" e "repleto tle ignorância, de odio, de blasfemia, do despre-
o de I >« us, de mentiras, de erros; sem contar aqueles pecados
o.i. i'.',eiros (|iie sào os assassinatos, os adultérios, as fornicàçòes,
11 roubos, as rapinas, etc.”."' Onde nào atua a justificação pela fe,
o .i ■encontra pecado, sujeira e inferno. Com sua veemência ha-
I1II11.1I, Lulero, recusando qualquer valor aos atos daqueles que
n,i'' 1 leram, nào creem ou nào crerão, declara: “Onde o mundo e
uh lltor, ele é duplamente mau”;"4 e ainda: “É com muita ra/ào
que l’.iulo c|ualifica este mundo de mau e é quando ele é mclhoi
que e pior”."s Afirmação,que o Reformador comenta assim:

... Tudo o que existe no século está sujeito à malícia do cli.il»>


que reina no mundo inteiro. Por essa razào o mundo é também
chamado de reino do diabo... Em tão grande número que exis­
tem no mundo, os homens estão sujeitos ao pecado e ao diabo,
para não dizer que são membros do diabo que, com sua tirania,
mantém todos os homens cativos... Se o Cristo não está presen­
te, certamente estão presentes o mundo mau e o reino do dia­
bo. Daí decorre que todos os dons que tu possuis, tanto espiri­
tuais como corporais, tais como a sabedoria, a justiça, a santida­
de, a eloquência, a potência, a beleza, as riquezas são os instru­
mentos e as armas servis da tirania infernal do diabo; com o au­
xílio de tudo isso, és obrigado a servi-lo, a promover o seu rei­
no e a lhe dar crescimento.1,6*14

M l. lbid., II, (Controverse contre la théologie scolastique, 1517), p. 96.


l i.’., lbid., XV, (Com m entairc de iE p itre a u x Galates), p. 30, 36, 63.
M3. lbid., p. 55.
144. lbid.
M5. lbid.
LU», lbid. I mero compreendeu bem São Paulo? Cf. OLIVIER, D. La Foi de
Indice, Paris: Pcauchcsnc, 1078. p. 136-139.
Amargo diagnóstico e julgamento sem apelação <|iir se
deveria colocar numa historia mais ampla do pessimismo euro­
peu. A esse pessimismo, o Protestantismo, mesmo fora de Pu­
tero, deu uma nova dimensão. Mesmo que seja possível discer­
nir em certos textos de Zuínglio uma reabilitação parcial do ho­
mem inspirada pela Renascença,147 em outros pelo contrário,
em particular em D e vera et fa ls a religione (1525), a tradição
agostiniana reaparece a despeito de reminiscências humanistas
superficiais e leva a exageros. Contra Erasmo, ele julga o ho­
mem tão incapaz de livre arbítrio quanto de trançar uma corda
com areia ou transformar o diabo em anjo. O reformador de
Zurique alia-se então à severidade do Putero mais sombrio e
compartilha sua concepção melancólica da existência: “A vida
do cristão, afirma ele, assemelha-se a um navio jogado de um
lado para o outro por uma horrível tempestade ora os mari­
nheiros conseguem governá-lo graças ao leme; ora são obriga­
dos a ceder à violência dos ventos”.148 Zuínglio diz que o ho­
mem c impermeável à sua própria inteligência, igual ã siba e
ao peixe-tinta que secretam uma nuvem para escapar de seus
perseguidores: “Malvado e insondável, assim é o coração do
homem. Quem pode conhecê-lo?”149 (Jr 17,9). “Deus arrepen­
deu-se de ter criado o homem (Gn 6,5-9) que é mau desde a
juventude, só deseja a glória, o prazer e a riqueza, e se mostra
ao mesmo tempo astuto e arrogante”. “Somos todos hipócritas”
<I . 6,12 20), São tão numerosos os esconderijos e cavernas do
•o i,n .to humano que enumerá-los é tão impossível quanto me-
dlt o o r c a n o ou limpar as estrebarias de Augias: O homem con-
■i*ii' i amullai a sua maldade. Mas não nos enganemos, “rrial-
o íd o . ,ao Nele, p ensam entos, malvado é seu coração”.
l o d o o capítulo que Zuínglio consagra ao homem em D e
rei,i et faha religione gira precisamente em torno da maldade e

Ia < I. POl PI'. 1’, |. V. //. Zwingli et la Réform e en Suisse. Paris: PUF, .1963.
p W Ví. Do mesmo autor, os artigos “Zwingli - Zwinglianisme” du D ic-
iionnaire d f théoiogie catholique, XV, 2, col. 3.728-3.928, sobretudo aqui
col. 3.788 3.790. Cf. também STAUFFER, R. L’influence et la critique de
íluimanisme dans le “De vera et falsa religione” de Zwingli. In: L’H um anis-
me allem and (1480-1540). Paris: Vrin, 1979. p. 427-440.
148. C f RJLLIET, (.Z w ingli, le troísiém e homm e de la Réforme. Paris: Favard,
1939. p. 105.
149. Consultei a edição do D e vera et falsa religione em Zwingli Hauptschriften
(F. Blankc, O. Farner e R. Pfister), t. IX, Zürich, 1941, aqui, p. 42-58.
lio egoísmo e m u coni lusão e esta: "De Unios os pontos de vistíi
■•homi’in e nuil, () eg<)ísm< >dita l<k U>s <>s sciis pensamcnli)S c l<i
ilos os seus utos", () cristão so pode cntao aceder .1 salvaçao re
i onhcicendo “siu traição e siu misória”. E “desesperando total
111*'iik* di* si im'sino" esse desespero esta no centro da teología
protestante cpie ele descobrirá "o vasto designio da mlserleo'r
tila divina.IM 1 Quanto a bucer, o reformador de Estrasburgo, no
<11 catecismo (1334), ele ensina que os inais santos devem "ava
11.11 como nada e com o lama o bem que já fizeram”. Porque "du
unte toda a nossa vida, o pecado continua a residir em nossa caí
nc onde não se encontra nenhum bem”.150151
Calvino, por sua vez, e com igual aspereza, fustiga o lio
mem e o mundo. Ele trata o primeiro de “apóstata”, de "simio"
(na época, era uma injúria muito grave), ele “besta indomada e
lerox”, de “esterco” e de “sujeira”.152 Porque, diz ele, é o sen pro
prio entendimento que é “inteiramente sujeito à estupidez e a ce
gucira, e o coração dedicado à perversidade”.15-1 Nào c por a< a•.<■
que o primeiro livro da Instituição cristã se abre com a c< uníala
çao da decadência humana: “Nossa nudez descobre com >•i.in•I•
vergonha um monte tüo grande de opróbrio, que ficamos lodm
confusos”.154 O homem é “terra e pó”, “verme e pódridao" 1 \ < \
periéncia permite certàmente perceber “uma semente de religião
plantada em todos por inspiração secreta de Deus”, Mas nao lu
um só homem em quem “ela amadureça, faltando milito para que
o fruto volte na estação...; todos se afastam do verdadeiro conhe­
cimento de Deus: de onde advém que não existe nenhuma pie
ilade bem regulada no mundo”.156 Calcino ensina, portanto, que
só se pode chegar a Deus pelq caminho do desespero: “Para
onde quer que voltemos os olhos, só nos aparece maldiçao de
alto a baixo, a qual estando espalhada Sobre todas as criaturas, c
envolvendo o céu e a térra, deve realmente oprimir nossas alma*.

150. Cf. RILLIET, J. Zw ingli..., p. 98-99.


151. BUCER, M. Résutné som m aire de la doctrine ehritienne. Ti.uluvx» h.
Wendel. Paiis: PUF, 1951. p. 43 e 61.
152. Essas acusações contra o homem reunidas cm P. IMBART DE I A
TOUR, Les Origines de la Réforme, 4 v., Paris, I905s.: IV, p. 72.
153. CALVIN, J. Institution... II, I, 9, p. 19.
154. Ibid., I, I, I, p. 3.
155. Ibid., p. 5.
156. Ibid., I, IV, 1, p. 12.

57
de horrível desespero”.157 Conhecer-se a si mesmo, c desprezar
se - desprezo salutar: "... Avançou bem no conhecimento de si
mesmo aquele que, pela inteligência cie sua calamidade, pobre­
za, nudez e ignomínia, está abatido e asstistado. Porque não há
nenhum perigo de que o homem se rebaixe demais”, se por esse
meio ele descobre “em Deus o que está faltando em si mesmo”.158
Essa doutrina é tão central na teologia calvinista, que ela inspira
o texto de abertura da Instituição cristã :

... É necessário que a consciência nos castigue... por nossa mal­


dade, para chegar pelo menos a algum conhecimento de Deus.
i : por isso que pelo sentimento de nossa ignorância, vaidade, mi­
seria, fraqueza e, mais ainda, perversidade e corrupção, nós so­
mos induzidos a conhecer que em nenhum outro lugar a não ser
em Deus existe verdadeira clareza de sabedoria, firme virtude,
afluência direta de todos os bens, pureza de justiça...; nós só po­
demos aspirai' e tender Ia Deus| com plena consciência, se come­
çarmos a nos despiezar totalmente.1W

Como sempre ocorre no discurso pessimista dos mestres


espirituais cuja crescente audiência nós seguimos passo a passo,
o desprezo de si mesmo está associado a uma lamentação sobre
a miséria da condição humana e o caráter transitório das parcas
satisfações deste mundo. “Ávida presente, escreve Calvino, é ple­
na de inquietações, de perturbações, e totalmente miserável, não
sendo bem-aventurada em lugar nenhum”. Todos os seus bens
“são transitórios e incertos, frívolos e misturados com misérias in­
finitas”.160 Deus não quer que os homens durmam “na paz e no
repouso” que prejudicariam a sua salvação. Assim, ele perjnite
que eles sejam frequentemente perturbados e molestados por
“guerras, tumultos, assaltos ou outras injúrias”:

A fim de que não aspirem às riquezas caducas com demasiada


cobiça, ou se contentem com aquelas que já possuem, ele os re­
duz ã indigencia, ora pela esterilidade da terra, ora pelo fogo, ora
de outra maneira: ou então ele os mantém na mediocridade. A

157. Ibid., II, VI, 1, p. 97.


158. Ibid., II, II, 10, p. 31.
159. Ibid., I, I, 1, p. 3-4.
160. Ibid., III, IX, l, p. 179.

r>H
Um ilc t|iii* ii.io .sintam demasiado |ma/c-i no <.1,sámenlo, elo IIu*.s
(l.i ou mullirlos rudos ou do m.ui caráter, que os atormentam, ou
lhes da filhos maus para humilha los, ou os aflige (liando lhes
mullirles o Millos. |Ou| so os (rala suavemente em todas essas rol
••as... adverie-os rom doenças e perigos, e quase lhes por diante
dos olhos o quanto sao frágeis e cie nenhuma duraçáo todos os
bens que estão sujeitos à mortalidade."’1

Ao término desse balanço, Calvino conclui: “Nào se deve


pioi ui.u nem esperar nada neste mundo a nào ser batalha”.1"'
As Cbrestiennes méditations de Théodore de Bèze, escritas
|><a volta de 1560,165 refletem como uma cópia conforme a antropo-
I' *0,1.1 calvinista. A primeira meditação (sobre o salmo Beatas rir )
•■niiei, a com este grito de desespero: “Ai, pobre miserável, e mais
•|ii* mes(|uinha criatura,-que nunca és mais sem razão do que
quando lua própria razào.te conduz, e tua vontade totalmente des
u o,i.111a le impele, qual caminho escolherás neste labirinto entiel.i
■ ido de tanto atalhos, em que nascestes, e pelo quitl tanto pri.im
bulaste, vagabundo, até agora”.164 A segunda medilaçao (sobu o
111ix) Domine ne...) faz eco à anterior e, como tanto outn »s a u ■
pioleslahtes, descobre o necessário desespero: “Ai ck1 mim mais
que miserável, atormentado, oprimido, esquecido de todo I.n l« •
mortal mente ferido pela minha consciência, atravessado de lado .1
lado pelo sentimento de infinitos erros, nada mais me restando .1
n a 1ser o profundo abismo do desespero: e quanto ao corpo, aria
id o de males, mergulhado em dores, no qual o tormento nada
mil', encontra para atormentar, que farei, que direi, onde irci... e
|iii m iba is me prestará socorro?”165 Toda a obra é escrita nessas lin
1•< repleta dessa amarga experiência. Nela se lê ainda: “Que sou
11. Senhor, em mim mesmo só corrupção, só injustiça, só morte?”.16'1
m.iis: “Tudo estraguei, tudo destruí e arruinei”.167 Na meditação so­
né o salmo Miserere m ei..., Th. de Bèze faz Davi dizer, falando para

161. Ibid., III, IX, 1 , p. 17 ?.


162. Ihkl.
163. MÍZE, Th. de. Chmtienn.es m éditations, texto estabelecido e intiod. por
M. Richtcr, Genève, Dròz, 1964, p. 9. 1. ed. 1582.
I(>4. Ibid., p. 42.
1(0. Ibid., p. 52.
166. Ibid., p. 60.
I(i Ibid., p. 76.

f)l>
i<k |( ),s ( )s Ik )mc‘ns: "I )esde que minha mãe m r c<mcrl>t*ii r nic ,i< |Uf-
( eu cm seu ventre, o vício já estava lá dentro de mim como a raiz,
<|iie depois produziu estes frutos tão amargos e venenosos...”.16*
Poderiamos encher volumes inteiros com textos protestan­
tes do séc ulo 16, inspirados pelo mesmo sentimento agudo dd
drsguç.i e do pecado do homem. Terminemos com duas afirma-
i oes assinadas por John Knox que fez a Escócia oscilar no cam­
po u loimado Encontramos nele a mesma depreciação da natu-
c m * da i i/.io i|uc em Entero e Calvino, a mesma recusa em per-
•>In i no homem nao justificado pela fé o menor valor positivo.
• > pilnn ln i testo de IS(>o c tirado de uma Resposta às muito
-■MM/e/,' ,i, uiyjit Ias ilr um Auabatista. Nele, John Knox declara;

11 li • |oI' 1 1 1 11 >.| natureza e razão não apenas incapazes de nos


I. \ ii .m verdadeiro conhecimento de Deus dando acesso à vida
eieina, mas t.unhem nos afirmamos que elas foram mestras de to­
dos os eiio.s e da Idolatria. Portanto, dizemos nós, natureza e ra-
,m o aliiMaip o homem do verdadeiro Deus, e não podem jamais
nos ensinar nem mostrar o eterno, o verdadeiro e o imortal Deus,
Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo."’1' '

() segundo texto é uma mensagem da Confissão de f é es-


cotvsu ( 1561 ), que foi aprovada e difundida pela autoridade ci­
vil, e imposta portanto á população:
i■
Ni is somos por natureza tão votados à morte, tão cegos e per-
\i r.o . <1 1 ic- somos absolutamente insensíveis (por nós mesmos à
0 n o, ii ii smo transpassados de agulhas, somos incapazes dever
iljio o iplillu.límenle), mesmo se a luz for colocada diante de
ti" os i ithi is não podemos aquiescer à vontade de Deus, embo­
la •Ia lio i. nh.i sido revelada... Porque somos incapazes por nós
1 1 ii ....... de i oiii rbei até um bom pensamento1'0 (2Çor 3,5).

UiH lliiil., |>. 7a. < I. também BRAY, J. S. Theodore Bezas D octrine ofPredesti-
II, ilion. Nieiiwkoop, dc ( iraaf 1975, que compara a doutrina da predestinação
di 111 . de hè/.c com a de Çalvino.
1 í)‘>. /Ac Work ojJoh n Knox, ed. D. Laing, 6 v., Edimbourg 1846-1864. Aqui
V, p. 144, liad.cm [ANTON, P. John Knox (1513-1572). LH om m e et 1'oeuvre.
Paris: Didicr, 1967. p. 246.
170. John Knoxs Uistory o f the Rcform ation in Scotland, ed. W. Croft-Dickin
sou, 2 v., Nelson, 1949. Aqui art. 12, II, p. 262. Cf. JANTON, P. John
Knox..., p. 256-257.

(10
Percorramos di* novo num breve .sobrevoo o i.unlnlio .10
11u lino lempo contínuo e diverso (|iie nos levou dos anatemas
ilion.i'.llt os contra o mundo e o homem .ile .1 teologia reíonn.i
d.i Cmii esi.i, operou se uma mudança de perspectiva: os senti
do-, n. 10 sao mais opostos .10 espírito, como se fossem seus ini
minos Porque c o proprio espírito <|ue, no homem, c mau. A
lupa para fora do mundo é declarada inútil, ja que o mal esta lao
pn sente dentro dos conventos com o lora, tanto ha solidao aseé
ll< a m ino na vida em sociedade. A sexualidade e certa mente pe
•amlnosa, mas nem mais nem menos desprezível que o resto de
nossas atividades. Nào existe em nós um estágio superior, que
imlaria impor um pouco de ordem às agitações dos níveis infe
llores. Tudo é mau no homem quando nào há a intervenção da
f.iaç.i totalmente gratuita de Cristo. A doutrina da justificação pela
li na sua formulação do século 16, representou portanto o resul
lado lógico e o ponto extremo de um longo percurso sobre .1 es
liada desolada do pessimismo. A afirmação incansavelmente ie
petlda durante mais de mil anos e incessantemente difundida dc
que o mundo é fragilidade, vícios e vaidades e que cada homem
•111 particular é “esterco” e “lixó” devia acabar por engendrai o
de,-.espero. Mas é esse desespero que salva aquele que, na sua
nudez, aceita entregar-se a Deus.

as margens do protestantismo:
retorno à fuga do mundo
Nas Igrejas oficiais nascidas da Reforma, o cofitcnifrtus
nuiudi não levava mais à fu g a m undi. Mas esta voltou a tona as
margens do universo protestante. Desse modo; ele e uma forma
•1 mpre renaseente de hostilidade coletiva à sociedade. Km geral,
ms Inconformismos religiosos da Idade Média - dos flagelantes,
di» l.ivre Espirito, e mesmo dos discípulos de Váleles no início cie
••eu apostolado - permaneceram pouco organizados e apresenta
vam estruturas cie confrarias.1'1 Seu projeto global continuava sen17

171. -Sl'.<i UV, J . Nçn-Coníonnismcs rcligicux. I11 : / íistonr des re/igions, 1'ld.i
ele, II. I‘>72. p. 1.204 1.268.
do a regeneração da instituição eclesial. Em contrapartida, com os
limaos tchecos, cujos grupos sào percebidos a partir de MSS, apa­
rece outro tipo de diferenciação em relação ã Igreja e ã socieda­
de ligada a ela. Os Irmãos procuram viver a recusa dò mundo se­
gundo o ideal do Sermão da Montanha. Eles se opõem a toda lei
humana ou eclesiástica em matéria de dogma ou de moral. Aban­
donam ã sua própria sorte uma Igreja irremediavelmente compro­
metida com a sociedade pecadora e formam comunidades rurais
constituídas de voluntários que aceitam uma disciplina estrita.
Imerge assim, ou antes renasce, a organização cie tipo “seita”,
como a definiu Ernst Troeltsch e tal com o ela já se tinha manifes­
tado, desde a origem do Cristianismo, nas dissidências gnósticas,
montañistas, novada nas, clonatistas, etc.172 Num contexto que na
verdade começa a prescrever em relação ao nosso, E. Troeltsch
opôs Igreja e seita, A primeira se abre ãs massas e se adaptado
mundo. I Ia faz “abstração da santidade subjetiva no interesse dos
bens objetivos que sao a graça e a redenção”. Essa colusão com
0 mundo provoc a lorçosamenlc reações radicalizantes. Uma delas
•' o i i i o i i . n (iiImiio /\ i^iej.i Integra esse heroísmo ascético e dualis-
1 i qtii ......i a \Ida dos sentidos para melhor chegar à contempla-
• i* >. Mi i i l a ul o qih si mantenha a tradição, os sacramentos, o sa-
i * nli mti 11 i .iim ss.k i aptisi()||i a. A seita, como a comunidade mo­
n i lili i i i- iiip inn iiio relativamente restrito ele voluntários que
bu • i ii 11m’iI* a.o.iini uto interior dos individuos. Mas ela toma
di i In* la da ou li (lacle, e mullas vezes Ihe é hostil. Principalmen-
i * n mipi «o i n as Igrejas que ela cobre de anátemas. Tem tendén-
i la a re|cllai tradição e sucessão apostólica. Ela “remete seus
membros direlamente ao sobrenatural, fora de qualquer síntese
.sociológica. Sen Cristianismo é não sacerdotal. À santificação ob­
jetiva (pelos sacramentos), ela opõe a santificação subjetiva”. As
renúncias ascéticas neste caso são vividas não como uma contri­
buição ã comunhão dos santos e ao “tesouro” da Igreja, mas ao
mesmo tempo como caminho ele união a Deus, como meio de

172. TROELTSCH, E. D ie Soziallehre der christlichen Kirchen und Gruppen,


reproduzido em Gesammelte Schrifien, I, Tubingen, 1923. Tradução francesa
das conclusões dos Soziallehren em Archives de Sociologie des Religions, janv.-
juin. 1961, p. 15-34. Trad. ingl. da obra: The Social Teaching o f the Christian
Churches, 2. ed. Londres, 1949. Cf. também LECLER, J. H istoire de la tolé­
ram e au siéele de la Réforme. 2 v. Paris: Aubier, 1955. Aqui I, p. 201 e SEGUY,
J. Les Assemblées anabaptistes-m ennonites de Frunce. Paris-La Haye: Mouton,
1977. p. 20-27.'
11|ilil.i mtiliu c<>1c'tIv;i e como ivcusii d;i,s armadilhas do iiuindo,
I nlini, enquanto ,i Igreja sc Instala no tempo, os membros d.i sei
i.i vivem frequentemente a espera de um desenlace escatol<jgico
julgamento final ou míUeiiluni de felicidade - que confirmara
a< *. olhos do mundo pecador que. eles eram e sào os eleitos.
Os anabatislas violentos que tomaram o poder em Müns
u i em IS/Vi'1' correspondiam em certa medida ao esquema ante
iíi >i 1 les repudiavam em bloco a Igreja e a sociedade de seu tem
pu Transformaram a cidade numa espécie de mosteiro onde se
piaii< ava a comunhão dos bens (e a poligamia “bíblica”). Consi
11' uivam se como o povo eleito e a espada do Senhor, encarre­
gados de realizar o m illenium . Todavia, a ditadura por eles im
posta na nova Jerusalém e a vontade de promover o reino de
I >eir. pela Ibiqa levavam para soluções unanimistas, afastando o s
di i espírito “sectário”. Portanto, é sobretudo nos anabatistas pau
lii i is e pacifistas do século 16 e do início do século 17 que o eu
■onlrarcmos em estado puro. As declarações, regulamentações (
‘ iinllssões de fé produzidas nessa época pelos grupos anaballs
ia . suíços, alemães, alsacianos e neerlandeses dào todos ênfase a
m s ivssidade de rompimento com uma cristándade corrompida
' m bel, originário de Zurique e perseguido por Zuínglio, afirma
iih "<)s verdadeiros e fiéis cristãos sào ovelhas no meio de lobos,
1 l
•i\i lhas para o-matadouro. Ides devem ser batizados na angústia,
na aflição, na tribulaçào, no sofrimento e na morte”174 (carta a
Mlinizer, 1524). É considerar que os “verdadeiros cristãos” for-
111,1111 apenas um pecjueno rebanho no meio da massa dos ímpios
que tentam

salvar-se por uma fé de fachada, sem procurar os frutos da fé...


sem a caridade e a esperança, sem os verdadeiros costumes cris
taos, preferindo permanecer na situação antiga com seus vícios
pessoais e os costumes comuns, cerimoniais, anti-cristãos do ba
Usino e da Ceia do Cristo, no desprezo da Palavra de Deus, mas
n,i submissão completa ã palavra papista e à palavra dos plega­
dores antipapistas, o que também não está em conformidade
i mu a palavra divina.17'

l i Cl, DITUMÍIAU, J. LaPeur..'., p. 153-154.


I i < ii.ulo cm SK( ilJV, ). Les A ssem blées..., p. 303.
I s ( ii.ulo rin lliiil,, p. 299.
(irebcl e scus amigos pretendem eniao dlsilnguli se ao
mesmo lempo dos católicos e dos “antipapistas" da época, isto é,
da imensa maioria de seus contemporâneos. Assim, o julgamen-
10 cios magistrados de Zurique condenando à morte em 1527 um
amigo de <ircbcl - tendo este último fugido da prisão - compor-
tuvu as considerações seguintes: “[Manz] e seus adeptos separa-
i mi si da Igreja e se agruparam sediciosamente para formar um
■lama <’ lonsiliuii uma seita independente sob o nome de uma
i. 'inbli la i usía ' Com efeito, era realmente esse o projeto
ui iloilsia ■mil'limado pela confissão de Schleitheim (1527). Os
ui o ui ii .uie' is »■ alemaes <|ue a redigem decidem formar uma
i ... i o a- • 11 ii<anal entre alyjius filhos de Deus”, separar-se da
lUaiiiii ii n •' ( ii mundo), impor “uma boa conduta entre eles
■ •liaiii' d 'is p a g a o s ' l síes são evidentemente os não-anabatis-
las d* ni a 11 \isacli is p< a uma ampla condenação de “todos aque-
11 •ipil nao culi aram na obediCmcia da fé, e que não se^reconci-
liaiam i mil I )eus para querer lazer a sua vontade... Eles estão em
glande abominaeao diante de Deus. Neles só podem crescer ou
germinai coisas abomináveis”.176177178 Daí a necessidade de repudiar
todo nleodemismo, toda participação mesmo puramente formal
nos cultos oficiais: “Nós não podemos ao mesmo tempo partici­
par da mesa do Senhor e da mesa dos demônios”1'8 (isto é, a co­
munhão nas grandes Igrejas).
Povo de eleitos, de “puros”, de “convertidos”, que querem
n ■ilai .r. comunidades cia Igreja primitiva, os anabatistas (pacífi-
■' o ............. ... impor sua doutrina, mas querem o direito à di-
I' iciii a ou ale mesmo a secessão, e pretendem marcar de ma­
ní n i liingnel aquilo que os separa de um mundo pecador que
'i di ■ piau i que tem "o diabo como chefe”. Esse separatismo',
■li . ' i ........um primeiro e sobretudo pelo rebatismo dos adultos.
mi .M . , .ao lógicos consigo mesmos, jã que a adesão ao
• i NI,mismo e para eles uma escolha voluntaria fora de qualquer
' ' >nli xnilsmo imposto pelas estruturas político-religiosas. Esse ba­
tismo de seres livres c responsáveis não deixa de ter semelhança
i oin a profissão de fé daqueles que entram na religião e optam
em geral por um novo nome. E assim como a coesão interna
deve ser muito forte nos conventos, deve ser também nos grupos

176. ( liado cm LECLER, J. H istoire..., I, p., 207.


177. ( liado em SÉGUY, J. Les Assemblées..., p. 236.
178. Citado cm Ibid., p. 238.

(VI
m.ilu IInU n, Momio Simón,s (| 15(d ), o principal animador deles
Um , l'aises Baixos o n;i Alemanha do Norte, esforça-se para man-
i. i lima licorosa prálica da excomunhão (que será atenuada após
.11.1 moile), Ide ensina cpie uma Igreja sem a prática da verdadei-
u excomunhão apostólica (a qual não deve comportar nenhuma
ug.io d,i autoridade civil) “seria com o uma cidade sem mura-
lli.r. nem barreiras, com o um campo sem cerca, como uma casa
■em portas nem paredes”.179 Mais tarde, o independente John
........dwin, pleiteando em 1644 para a congregational way (assó-
i I.k. ao voluntária dos verdadeiros cristãos), admitirá também a
...........uinliào com o um remédio que permite às Igrejas conservar
na pureza. Seu contemporâneo Roger Williams, fundador de
Kl iode Island e da cidade de Providence, polemizando contra os
I>i« .hilerianos da Nova Inglaterra, usará a mesma linguagem. A
. xemplo de todos os homens das “seitas”, ele quer-uma Igreja in-
lolerantc que só conserve nela os “santos”.180
( lomo num mosteiro, e a fim de fazer contraste com as prá-
tlc as de um mundo corrompido, os “sectários” adotam em geral
um estilo de vida austero. Era o caso dos anabatistas que evoca­
mos. A disciplina de Berna (1525) precisan “Devemos fornecer ali­
mento aos irmãos, quando se reúnem em assembléia; será ciada
uma sopa ou repolho ou carne, em pequena quantidade, porque
0 comer e o beber não são o Reino dos céus”.181 Regulamenta­
ções decididas em Estrasburgo em 1568 por uma “conferência”
anabatista e renovadas em 1607 editam: “Os alfaiates e as costu-
leiras se limitarão aos costumes humildes e simples e não farão
nada no sentido da ostentação. Os irmãos e as irmãs... não man­
darão fazer para si nada cie ostentatório”.182 Essas prescrições in-
.ercm-se numa atitude geral cie não mundanismo. Essa recusa do
mundo é muito especialmente marcada nos-agrupamentos ana-
lutistas dos séculos 16-18 pela obrigação constantemente repeti­
da da enclogamia, porque é preciso separar o puro do impuro.
1 c se nos regulamentos de 1568 e 1607:'

Aqueles que querem entrar no estado de casados só o farão


com o conhecimento e os conselhos dos prepostos e dos An-

179. Citado em LECLER, J. Histoire..., I, p. 218.


180. Ibid., II, p. 394.
181. Citado em SÉGUY, J. Les Assemblées..., p. 310.
182. Citado cm Ibid., p. 317.

05
daos; c se elisporao tambépi no temor cío bcu.%; c r i.iiiibem ron
veniente que Informem seus pais Ide seu projetol.
... Os crentes deverão casar-se no Senhor, e nào com descren­
tes e isso valerá para as moças, os jovens ou os viúvos [e viúvas].18318456

A disc iplina decidida em Steinseltz (atual Baixo-Reno) em 1752


t stlpula no seu § 2: “Se um irmão ou uma irmã se junta ou se casa
•"in uma fH'ssoa do mundo, depois volta á assembléia pedir sua
ir.Kliulv.ao, com remorso e arrependimento; esta não lhe será re-
. ii id i mas rom a condição de que (essa pessoa) traga com ela
ni i . iu|tigc com o qual está ligada diante de Deus e de sua Pa-.
I,i' i i \r |v,o sr revelar impossível, eles deverão se separar, e a
P nr .i11•pendida c nielar para que a outra tenha o que lhe for ne-
•i . ..li lo paia viver, e rogando a Deus pela sua conversão e seu
ici<iino a verdade","*'
, 1
A proposito ele tais agrupamentos, Jeah Séguy fala com
ia/.to de- "guetos”, ele “civilização fechada do nao-mundanis-
ino", ele "elnia anabatista-mennonita” onde a endogamia era de
regra,"*' A limitação voluntaria dos contatos com o mundo da
carne assumiu ainda outros aspectos complementares dos an­
teriores, Os primeiros anabatistas suíços recusavam-se a prestar
¡uum enlo, portar armas, exercer a magistratura e empregos ci-
v l.s, lom ecer caução ou assumir compromissos profissionais ou
•i 'iiiru Ia Is em redação ao mundo e recorrer aos tribunais. Por-
i|in ' li . dl/iam pertencer ao reino da graça e do Cristo, e não
i" «l.t I. i <• da carn e... Km seguida, foi necessário atenuar çs-
fttis lom adas de posição dificilmente sustentáveis. Nasceu uma
i ,1'itusi|. i do permitido e elo não permitido. A Confissão de
I ..... 111 i lif ( I(i 'i2) reconheceu que Deus “ordenou o Poder, ou
a \nli a iditde (do listado), e a estabeleceu para o castigo dos
maus i a proteção dos bons”.187 Entretanto, os grupos anabatis-
las i ,11111 aram se‘ para conservar seu particularismo e sua auto­
nomia na sociedade global pelo isolamento físico (principal-

183. Citado em Ibid., p. 316.


184. Citado em Ibid., p. 318.
185. Ibid., p; 244-245.
186. Ibid., p. 237.
187. Ibid., p. 253.
un ule no cam po), por con ira modas de vestuario, pela endo
i'.unía e por urna estrila disciplina interior."4"
() Anabatismo é apenas uma divisão particular dentro do
universo "sectario" que se constituiu a partir do século 16 às mar
r. le, do Protestantismo. Porque o desejo de ruptura com o mun­
do peí ador man iTestou-se mais ou menos claramente em todos
os agrupamentos cristãos de “regenerados” e de “eleitos” que se
. i laram para formar “puras associações de crentes sob o governo
do ( rlsto e não do príncipe”. Daí a retomada de atitudes de não-
mundanismo nessas dissidências separatistas, mesmo onde não
i \istia o batismo de adultos. George Fox (1624-1691), o funda-
doi dos Quakers, pregou um igualitarismo religioso absoluto
( nada de pastor), um anti-sacramentalismo (nem batismo, nem
' l ia); ele preconizou a não-resistência total, a recusa do jurnmen
lo, dos cargos públicos, dos títulos (de nobreza, por exemplo),
das formulas e práticas de polidez. A Sociedade dos amigos, que
•li instituiu, fixou-se voluntariamente em modas ultrapassadas de
\estuários e a prática da endogamia.189 Mais petto de nós, as fes
temunhas de Jeová, que existem desde 1874, associam uma leo
logia muito “liberal” (o Cristo nào é Deus), a uma exegese literal
(lodos os números da Biblia têm um sentido preciso), a espera
do m illenium e a um radicalismo agressivo em relação a todas as
Igrejas, a todas as outras seitas e à autoridade civil. Eles nào têm
padres, mas pregadores itinerantes. Recusam-se a ser soldados e
a fazer a saudação à bandeira:190 mais um caso, entre tantos ori­
llos no tempo e no espaço, cie recusa do mundo que é também
....... necio do mundo. Pessimismo e anátemas à base de repulsão.

188. Ibid., p. 831.


189. SÉGUY, J. “Non-Confonnismes...” donsJFíistoñvdesreligions, II, p. 1.286-
1.287.
190. ibid., p. 1.295.

(17
capítulo 2

do desprezo do mundo
às danças macabras

a “familiaridade” com a morte


A audiencia crescente concedida ao contemplas miiihli
mesmo fora dos meios eclesiais - mas sob a incitaçao <l<".l< .
permite compreender melhor o lugar e a feição atribuído1, a 111<>i
l< pela civilização européia entre os séculos 1 4 e 18. Nao e o» lo
■.o, portanto, tratar de novo da morte no Ocidente do inicio do.s
lempos modernos apesar das muitas obras consagradas a esse as
Milito.1 Sobre esse tema declaro minha dívida e minha gratidão

1. A bibliografia sobre o assunto é imensa. Além das obras que serão mondo
nadas no decorrer das exposições, insisto em assinalar especialmente MAM,,
E. L ’A rt religieux de la fin du Moyen Age en Frunce: Paris, A.,Colín, 1925. TE
NENTI, A. La Vie et la m ort a travers l'an du X V siècle. Paris: A. Colín, 1952
e / / Senso delia m orte e Vamore delta vita nelRinascim ento. Turin: Einaudi, rééd.
de 1977. HUIZINGA, J. Le D éclin du Moyen Age. Paris: Payot, éd. tic 1967.
EEBRUN, F. Les Hommes e tja m ort en Anjou aux X V ir etX W ir siécles. París-
La Hayc: Mouton, 1971. VOVELLE, M. P iété baroque et déchristianisation en
Provence. Paris: Pión, 1973 et La M ort et l ’Occident. Paris: Gallimard, 1983.
( 1IIHAIA, P. Les Idées depéren n ité et de décom position dans la sculpture fuñé
m ire occidenta/e, tlièse doct. Paris IV, 1973 (A. Tenenti ofereceu-mc amavd
mente suas notas sobre este trabalho). ARIES, Ph. Essais sur Vhistoire de la
morí en Occident du Moyen Age à nos jours. Paris: Senil, 1975 et L'Homtne de
rant la mort. París: Senil, 1977. THOMAS, L.-V. Anthropologie de la mort, Pa
lis: Payot, 1976. CI ÍAUNU, P. l.a M o rtàP aris. Paris: Fayard, 197Fí. FAVRF,
R. La M ort au siècle des Lum ibes. Presses Universitaires de Lyon, I97H,
WIRTH, J. La Jcu n efilie et la mort. Recherches sur les thhnes macabros dans Van
yetvianb/tte de la Rcnaissance. Gcnèvc: Droz, 1979. Le Sentiment de la mort au
Mayen Age (Colóquio tía Univ. de Montreal publicado por C'I. SU ITO),
Montiéai: éd. Univcrs, 1979.

(ib
para com meus antecessores cujos ira hálitos utilizarei amplamen
lc, mas dentro da perspectiva sintética que escollti para este le­
vantamento geral sobre o medo de outrora. Esse enquadramento
deveria trazer uma luz nova.
I )e início, e necessário abordar um ponto de método: para
explicai um fenômeno histórico de grande amplitude - por
i ( mplo, a obsessão da morte no início da modernidade ociden­
tal nao podemos contentar-nos com uma única causa. Pelo con­
trário, i a convergência de diversos fatores agindo em conjunto
(e qin piideilam ale nao coincidir) que é preciso fazer aparecer.
«Mi i |t igli a Interna dos desenvolvimentos contidos neste livro e
naqtii li i|iie o precedeu levam a recolocar a morte durante a
. ........i i ( msldi iada dentro de dois grandes conjuntos explicativos:
a) o longo processo de aculturação religiosa e de culpabilização
que, partindo dos mosteiros, atingiu por ondas concêntricas ca­
madas cada vez mais amplas da população européia; b) o pro­
fundo pessimismo, resultado de stress acumulados, que dominou
os espíritos, notadamente os da elite, entre a época da Peste ne­
gra e o fim das guerras de Religião. *
A dramatização da'm orte que se produziu então vai, por­
tanto, nos reconduzir ao contemptus m undi. Mas, antes, inter-
roguemo-nos sobre a expressão “familiaridade com a morte”,
tão frequentemente empregada pelos historiadores para carac­
terizar os com portamentos desse período. Porque ela exige ex­
plicação e necessita de um esclarecimento que a desdobre.
Montaigne, ainda imbuído de estoicismo quando redigia o pri­
meiro livro dos Ensaios , declara que ensinar os homens a mor­
rer é ensiná-los a viver. “É preciso estar sempre calçado e pron­
to para partir”, escreve ele, e elogia os egípcios que, após os
festins, “mandavam apresentar aos assistentes uma grande ima­
gem da m orte”. Então, ele dá este conselho célebre: “Retiremos
dele (do falecimento) a estranheza, façamos dele uma prática,
um hábito, não tenhamos na cabeça nada tão frequente com o a
morte”.- Trata-se, portanto, de uma pedagogia para “domesticar”
a morte - o termo está em Montaigne.3
Este, meditando sobre o fim da vida, parece pouco preocu­
pado com o além. Ao contrário, a salvação é na época o leitmotiv
do discurso religioso que obriga o homem a pensar incessante-

l.E ssais, I, ch. XX, éd. Thibaudet, Livre de poche, 1965: I, p. 1 18-122.
3. Ibid., p. 119.

70
m r tili' ii.i mofle* .i lint di* evitar os pecados que poderíam leva lo
,to Inferno, I )esta vez, tam bém a fam iliaridade com a morto ó re
•oinendada; e, como ac|iu*la preconizada por Montaigne (primer
ia manoira), ó unta familiaridade forçada, voluntarista, resultante
tlf mu longo esforço sobre si mesmo. Deve-se pensar continua
mente na morte com o se permanece alerta em relação a uní ¡ni
migo t|ue pode sobrevir de improviso. De maneira significativa, o
a mio "inimigo”, para caracterizar a morte, encontra-se justamen
i< 11<» parágrafo dos Ensaios utilizado anteriormente (“aprendamos
a enlrenlá-lo de pé firme, a combatê-lo”).45 Que a familiaridade
•<»m a morte seja todavía difícil de adquirir só pela ação da von-
lade, Isso c provado pelo caso do próprio Montaigne que, final­
mente, renunciou ao sen estoicismo primitivo e optou por unta
alliude "mais descontraída”s diante do inevitável epílogo. Já no ca
pimío XX do primeiro livro dos Ensaios , ele tinha atacado o lema
heroico com considerações naturalistas que o contradiziam sensl
\i luiente: “A morte é origem de uma outra vida... A nature/a m
loica a ela... Nossa morte é uma das peças da ordem do unlvci
•». uma peça da vida do mundo... Estamos na morte enquanto es
íamos em vida. Porque estamos depois da morte quando nao e*.
lautos mais em vida”.6 No terceiro livro dos Ensaios , essa filo,solía
descontraída eliminou o voluntarismo estoico agora rejeitado;
Nos atormentamos a vida pela inquietação da morte, e a morte
pela inquietação da vida... Se soubermos viver constantemente e
iianqüilamente, saberemos morrer da mesma maneira”.7 E ainda:
I certo que para a maioria a preparação para a morte provocou
ni.tis tormento do que o fez o sofrimento”.8
lí, portanto, a familiaridade heroica com a morte, preconi­
zad. i pelos filósofos e pregadores, que Montaigne recusa dora
ante. Mas não é por acaso que ele fundamenta su a nova posi
>ai >sobre exemplos tirados do “povo” e principalmente entre os
- amponeses. Estes conhecem a verdadeira familiaridade com a
nu >iti*, lí por isso que vivem sua última hora de maneira natural.
1 1 i .11titulo XII do terceiro livro dos Ensaios contém a esse respei­
to Informações que podemos qualificar como etnográficas:

4. Ibid., p. 115.
5, Ibul., III, cap. XIL: III, p. 281.
(>, Ibid., 1, cap. XX: I, p. 124-125.
7 ll-iil., III, cap. XII: III, p. 294.
H. Ibid., p. 293.

71
( )l>.sei vemos n.i terra as pobres pessoas cpu- all vemos espalha
ilas, a cabeça baixa depois do trabalho... quantos que desejam a
morte, ou que a aceitam sem alarme e sem aflição? liste que cava
meu jardim, esta manhã mesmo enterrou seu pai ou seu fllho.?

|Na época da peste de 1585 na região de Bordeaux] que


■ M inplo de resolução não vimos na simplicidade de todo este
povo? tod os indiferentemente se preparando e esperando a
iumiIi |i.ii,i esta noite, ou para amanhã, com uma cara e uma
m . t.io p o u co amedrontadas que pareciam estar comprometi-

. ............... <•. .,( nei essldaile e como se fosse uma condenação


unhcotai e Inevitável ,"1

Moiii.iigni mímela ainda esta constatação: “Jamais vi um


. ......... ir. vl/lnlio.s i am|>oneses entrar em cogitação sobre a atitu­
de e a conliança com que passaria essa última hora...91011.O povo
nao |>reclsa nem de remédio nem de consolação”12134[prévia contra
a morlel. Assim, uma morte natural é oposta a uma morte cultu­
ral. As pessoas çlo povo evocadas aqui só pensam na morte quan­
do ela sobrevêm. Kntão, elas a aceitam docilmente como uma lei
da nalure/.a a qual sempre se resignaram. O texto de Montaigne,
confirmado |>elas mortes dos camponeses russos nos séculos J9
c lembrados |x>r Pb. Aries,11 remete a uma maneira de morrer
*|tic a-, civilizações tradicionais carregavam quase espontanea-
iiintlc com elas.
A dói II aceitar ao de uma lei inevitável esteve durante mui­
to i< nipo ligada a crença na sobrevida do “duplo”. Todo estudo
i* ’l iii a nu ule de outrora deve conceder amplo espaço a essa cli-
111<M..o > i inogralii a. Já insisti nisso no volume anterior.11 Nossos
antepassados, como os das outras civilizações, tiveram dificulda­
de em admllii o brutal desaparecimento daqueles com quem ti­
nham vivido. Assim, eles acreditavam em fantasmas, isto é, numa'
presença dos defuntos próximos a eles, ao menos durante certo
tempo. Km outros termos, os mortos levavam tempo para morrer

9. Ibid., p. 281.
10. Ibid., p. 290.
11. Ibid., p. 294.
12. Ibid., p. 295.
13. ARIES, Pb. Lhom rne devant la mort, p. 29-30.
14. DELUMEAU, J. LaP eur..., p. 75-87.

72
«I' •v< iil.it le c so desapareciam progressiva mente do universo elos
vivos Na América pré-c< >l<>ini liana, o case><l<>s astut as c muito re
velador nesse sunlitlo: para elos, a maioria dos mortos, isto e,
aqueles que nao cram protegidos pelo sol triunfante ou pelo
d e u s tía ehuva, caminhavam durante quatro anos antes tle che
gai ao lugar de sua dissolução eterna.IS As indicações que pro
\am l<na da Europa e dentro do próprio espaço da civilização eu
tópela por exemplo, em Montailion16 - a crença etn fantasmas
ao inúmeras, e seria inútil lembrá-Jas tongamente.1’ Ida era tão
lorie entre nos que o Cristianismo a integrou espontaneamente
•ti(|uadrando-a mediante uma pedagogia orientada para a salva­
dlo As historias edificantes contadas pelos pregadores - os
exem/ria - eram repletas de aparições de santos ou de almas do
purgatório pedindo orações ou ele condenados suplicando que
n.lo imitassem seu mau exem plo.1819A confluência entre a crema
plm•¡milenar nos fantasmas e a explicação cristã (a proposito da*.
•limas do purgatório) é bem aparente no soneto intitulado I >t.,
• pil ilos dos mortos” composto por Amadis Jamyns ( IS iO Ivm i
o secretário de Ronsard:

As Sombras, os Espíritos, os ídolos horríveis


Dos Mortos carregados de ofensa erram durante a noite:
E para mostrar a pena e o mal que os afugenta
I azem gemer o silêncio em longas vozes confusas,
Porque sào privados das delícias felizes
Que a alma após a morte no Paraíso persegue,
Como banidos do dia nas trevas fazem rumor,
Implorando socorro para suas penas vergonhosas.10

15. SOUSTELLE, J. La Vie quotidienne des Azteques. Paris: Hachette, 1953.


p. 233. Les Rites de la mort, catálogo da exposição do Muséc de l’Homme, Pa­
rís, 1979-1980. p. 38.
16. LE ROY LADURIE, E. M ontaillou, village occitan de 1 2 9 4 à 1324. París:
Gallimard, 1975. p. 576-607.
17. Cf. notadamente a este respeito MORIN, E. L ’H om m e et la mort. París:
Senil, 1970. p. 132-156 e THOMAS, L.-V. Anthropologie de la mort, p. 152,
182-187, 301, 511-518.
I 8. Um exemplo entre mil: as aparições de condenados e de almas vindas do
purgatório em PASSAVANTI, J. Lo Specchio della penitenza, ed. de Milán,
1808, notadamente p. 75-77 e 82-83.
19, ( litado cm KANTERS, R. e NADEAU, M. Anthologie de lap oésie jm n
I'ií/ac. I'ausanne, ¿d. Rcncontre, 1967, IV, 2, l e X V I sítele, p. 339-340.

7M
Publique! anteriormente os resultados da pesquisa realiza­
da por uní etnólogo pòlopês sobre a crença em fantasmas no sen
país no secuto 19.20 Depois, sobre o mesmo assunto, apareceu,
entre outros, um estudo que condensa 175 testemunhos orais re­
colhidos de 1972 a 1975 na Beauce de Quebec. Bastou, dizem os
pesquisadores, “entrar na casa de um operário, um jovem conta­
bilista. mu professor primário, um casal idoso, e até mesmo de
um i lúdante, para constatar com certo espanto que a crença na
•ulia di is moiios 11>1 e ainda é viva na Beauce”.21 Isso era ainda
mais \•nlaif in i amigamente.
i I m lia duvida de que os fantasmas eram de certo modo
a mídii. Mas, ao mesmo tempo, eram familiares. Além disso - a
pi .quisa .obie a le anee demonstra - raramente eles assumiam a
.......... .. la de lautasiiias, Enfim, muito deles eram benfeitores e
d.u . 1111 . i ni seibos uiei.s, Essas indicações nos levam a um univer­
so on de o laleclmenlo d o indivíduo é afinal vivido com o secun-
darlo em relaçao a sobrevivência do grupo e onde vivos e mor­
tos conservam entre si laços de sociabilidade e uma real solida­
riedade. Daí, em múltiplas civilizações, o culto dos antepassados
e a aceitação sem temor de imagens da morte no próprio centro
da existencia cotidiana.2' Km se tratando de culturas tradicionais,
deve se, portanto, evitar de interpretar em sentido contrário uma
Iconografia que pode nos parecer lúgubre e atitudes que facil­
mente julgai íamos mórbidas. Elas simplesmente atestam um aver-
. ladelia lumlllaridade com a morte graças à qual ninguém se as-
u .ia\ a ou n.io se assusta - diante cie espetáculos que provo-
. 11*i ai n pios nos ocidentais de hoje.
l . ..i Intimidade com os defuntos fica evidente no gesto mi-
ii11* loso e c almo do c hinês polindo os ossos de seus ancestrais e,
mais ainda, nos rituais funerários malgaxes25 e mexicanos. Em

'hala se da pesquisa de L. Stomma: LaP eur..., p. 86-87.


21. JACOB, P. Les Revenants de la Beauce. Montreal: éd. du Boréal Express,
1977. p. 16.
22. Ibid., p. 21.
23. Ibid., p. 66-71.
24. Não se deve, entretanto, colocar no mesmo plano o culto ritualizado dos
ancestrais e o sentimento da presença dos mortos como seres vivos de um tipo
particular.
23. Cf. DECARY, R. La M ort .et les coututmes fim ém im à M adagascar. Paris:
Maisonneuve, 1962. Les Rites de la mort, p. 73.

71
1111*'lililí, onde* Sr |>r<>IV.*.sn; i 1111c* "doce c a vida", nconv periódica
un ule ,i “v h.uk\ dos morios" porc|iU‘ eles se* cansariam de pecina
iirtri sempre do mesmo laclo. No curso de urna gratule e alegre
■eilmnnla com discursos, danças e banquetes, cíes sao levados do
lumiilo para o povoado, expostos sobre um estrado, homenagea
i li ríe diversas maneiras. Terminada a festa, sào enrolados em
nocas mortalhas e reconduzidos aos túmulos, porém com mullí
pios desvios para que nào reconheçam o caminho da aldeia. An
les de fechá-los no jazigo, sào exortados a abençoar seus descen­
dentes já que estes cumpriram seu dever festejando-os e vestindo
os ile novo. O universo malgáxe tradicional era assim baseado na
aliança permanente dos vivos e dos mortos. Já se escreveu - dis­
tinção essencial para nosso propósito: “o malgaxe mostra menos
ii verdadeiro medo do que a preocupação da morte, lile nao a
lem e, ele a sabe inevitável”26 e crê qué a vida continua alem lu
mulo. Do outro lado do mundo, sabemos o lugar que o día ’ de
novembro ocupa no calendario mexicano. Comem-sc cutan p.n
mu forma de tíbias.27 Os padeiros expõem em suas fachadas atina
coes de caveiras moldadas em açúcar, com olhos verdes, vemii
llios ou de.qualquer outra cor. Na testa, uma tira de papel Ira/ um
preñóme e esse confeito é oferecido de presente a uma pessoa
amiga com esse preñóme. Na noite cie 2 de novembro, depositam
’C sobre os túmulos as flores e as guloseimas preferidas cios de
Iuntos; queima-se a resina que lhes agrada; rádios transistores lhes
permitem ouvir as últimas músicas cia rnocla. As crianças transfor­
mam cabaças em caveiras cavando buracos para os olhos, o nariz
e a boca, e acendem por dentro uma vela cuja chama dança ao
vento. Nas casas, erguem-se altares para os mortos sobre os quais
coloca-se comida e reza-se para que os falecidos obtenham o re­
pouso e nào perturbem a quietude dos vivos.28 Ambivalência bem
conhecida dos defuntos, ao mesmo tempo próximos e inatingí­
veis, inquietantes e tranqüilizantes; em todo caso, bem presentes.
Esses costumes que se situam longe de nós ajudam-nos a
compreender nosso próprio passado e a melhor identificar na

26. Les Rites de la mort, p. 73.


27. Costume atestado também na Espanha tradicional: comiam-se huesos de
santos, ossos de santos: torta de amêndoas representando um osso recheado de
crcinc amarelo para representar a medula óssea: Les Rites de la mort, p. 17.
28. I )ESCOI.A..., J. he M exique. Paris: Larousse, 1968. p. 102-104. Ies Rifes
de la m ort, p. 34-36.

7f>
I>r< )|>rj;i Europa um certo macabrismo... que nao era mullo real:
Isto e, que náo era atração mórbicla e vertigem lúgubre, mas ape­
nas conivência e familiaridade com os mortos e, ao mesmo tem­
po, insensibilidade c indiferença aparentes em relação a esta rea­
lidade banal: o falecimento de alguém. Porque os enterros eram
liei|(ienles e davam ocasião a encontros e também porque desde
■piiiunlo do <alsiianismo enterrava-se no centro das povoações e
........... .. pos tornaram locais públicos animados. Ph. Ariès
di J a ■ai justamente o papi-l essencial que eles desempenhavam
......... . in ia dos hábil antes.-' Na Idade Média, era no cemitério
' 1 1 1 1 . pi 1 1 1 1 a\ a i Justli. a, que se proclamavam os éditos, e onde
. 11imIillava a . i /rs, o forno banal coletivo. Na Bretanha do sé-
i <1 11 1 l 1' . .......... Ia poi A l,e lira/., era no cemitério que a comuni­
dad. di is liailitantes deliberava, elegia seus agentes municipais,
mu ia 'i si i triad o da prefeitura anunciar as novas leis e onde se
publli ava, rm nome do tabelião, as vendas da próxima semana.2930
Na-, cidades, os cemitérios permaneceram durante muito tempo
com o rec antos de passeio, locais onde se mantinham mercados,
Iriras, danças e divertimentos. Em Paris, o cemitério dos Inocen­
tes constituía ainda no século 17 uma galeria comercial aberta aos
curiosos e onde estavam instalados comerciantes de livros, miu­
deza s e roupas.'1 Passeava-se, comprava-se, vendia-se, bebia-se,
alie lava se dentro do recinto dos Inocentes observando-se sem
ni pn ..i nao apenas as inumações, mas também as exumações e
11nnía 11<as d. i issada.s que ocorriam cotidianamente. Os visitantes
n n i |i.m i Iam ln< <>m< xlados pelos odores.
\ lii.ieja i - , foiçou se para reagir contra essa mistura, a seu
•i i i ,i andal ps a, entre sagrado e profano, cio mesmo modo que
luii >n d. maiielia mais geral contra todas as formas, tão freqüen-
i. na é p o c a , ele Ia mlliaridade entre esses dois universos que
lia p a us iam antitéticos. Concilios e sínodos tentaram então
pmlbii da nç a s , jogos e atividades comerciais nos cemitérios.32
I nlie as manifestações de alergia eclesiástica a respeito da coa-
bl l aç áo pacifica entre vivos e mortos, um texto de Putero mere­
c e ser citado. Ele foi escrito por ocasião de uma peste ém Wit-

29. ARIÈS, Ph. LH om m e devant la mort, p. 73-76.


30. Ibid., e LE BRAZ, A. La Légende de la M ort chez les Bretons arm oricains.
Paris: Champion, 1902, I, p. 123.
31. ARIÈS, Ph. LH om m e devant la m ort, p. 75-76.
32. Ibicl., p. 74-75.

70
icnbcrg i'in IS27. Para o Kcfnrmadqr, ora preciso voltar ao eos
iiimt' dos Romanos: levar os defuntos para lora elas cidades e
un Inera los para que o "ar permaneça puro”" e porque um ce
mllerlo deveria ser “um lugar calmo, silencioso, afastado, lavo
iavi I ao recolhimento", Essa antecipação das soluções do final
«lo século 18 e do século 19 explica-se, todavia, por urna preo
i upacao de pedagogia crista. Porque nesse “lugar venerável e
i piase sagrado, por onde se caminharia com um temor respeito­
so", seria possível “refletir sobreda morte, o julgamento final e a
lessurreição, e orar”. E até mesmo, por que nao pintar sobre as
paredes afrescos representando assuntos religiosos? A esse ce­
mitério ideal, Putero opõe o de Wittenberg:

Ele é composto de quatro ou cinco ruelas e de duas ou tres


praças, e não existe na cidade lugar mais comum e mais h.uu
Miento: porque todos os dias, e até dia e noite, todo mundo p,r.
sa por lá, homens e animais, e cada, habitante das vizinluni. i
tem urna porta e uma passagem que dá para o cemitério, <• ill
acontece todo tipo de coisas, talvez até coisas que é melhor nem
talar. Assim, a piedade e o respeito devidos aos mortos ,s;lo redil
/.idos a nada, e ninguém presta mais atenção do que se fosse um
cadáver saído do matadouro. Os próprios turcos não poderíam
manter este lugar de maneira tão indigna como nós fazemos e
entretanto deveriamos buscar aqui a piedade, pensar na morte,
na ressurreição, e respeitar os santos aqui enterrados.

Assim, segundo Putero, nos cemitérios de seu tempo “não


se pensa na morte” e não se aprende “um temor respeitoso”. Essa
i (xistatação esclarece mais uma vez tudo o que pode ser escrito
sobre a maneira “natural” de viver a morte .antigamente. Olha-se
,i morte de alguém com indiferença. Ela não escandaliza. Habi­
tua se a ela. Ninguém se espantará quando chegar a sua hora.
Pode-se, assim, comparar legítimamente as atitudes em
lace da morte denunciadas por Putero com aquelas das popula­
dnos ditas “primitivas”, que não atribuíam com o nós um papel
di visivo à individualização da pessoa. Sua mentalidade partici­
pativa as impedia de “consumir a morte sob a categoria da sepa-
i.uao o do abandono”.54 Pãaí sem dúvida seu equilíbrio psicoló

W PUTHER, M. (Euvres, V (Si l ’on pent fiiir devant la mort), p. 257.


,H. Verbero “macabre” da Encyclopaeflia Uniirna/is.

77
gico c .i escassez dc psicoses e ele suicídios ende < I.i•. Nas so­
ciedades arcaicas, um falecimento nào suscita um sentimento de
ausencia e de algo insubstituível. Ao que se deve talvez acres­
centar, a título ele hipótese, (]iie uma cultura clerical antifeminis-
la, tomando mais do qué nunca a palavra com autoridade na Eu-
Kipa dos séculos I r 16, reduziu ao silêncio uma concepção mais
.1 ii'ii.i da morte. Forque a mulher tem menos medo da morte do
qu< i . Iloiiiem Ela se sente mais próxima dela. Aquela que tem
i dou ■. do paito conlleve m elhor que seu parceiro masculino o
. in 11•• pm 111< .«o entre a viela e a morte e a necessidade de
■11'i viiu tilos recípi'oi (is,
\ Idi ia, oiiiiora profundamente popular, d eq u e a morte é
............. 111<i 1111< uto normal, necessário ao desenvolvimento de rit-
....... \Mal ., 1111<' da nao c nem ruptura nem escândalo, está ainda
pn . nl< tu i alegre ( '(íntico ao sol composto por São Francisco de
Vssis cm I.!.’,) I22(), no fim extrem o de sua vida. Ele estava en­
tão quase cego e abatido pela febre. Na última estrofe, Francisco
convida cerlamcnle a refletir sobre a “segunda morte” (o inferno):
Ai daquele que morre em pecado mortal”. Mas essa incitação
para pensar na salvação não o impede de louvar o Senhor “por
nossa irmã, a Morte corporal, à qual nenhum homem vívente
pode escapar”. E o cântico a coloca sobre o mesmo plano que o
Irmão Sol , “irmã l.ua e as estrelas”, “irmão Vento”, “irmã Água”,
h m ão Rogo" e “nossa mãe Terra”.35367A morte é assim reinserida
niim contexto cósmico que a justifica. Em toda época, com ou
•.cm preocupação de salvação, esse tema (sem dúvida esponta­
neamente vivido por muitos) foi exposto pelo discurso.literário.
No seu Hino da morte - sobre o qual voltaremos em razão dos
elementos diversos que ele amalgama30 - , Ronsarcl se conforta
nestes termos:

É tào importante a Morte? É uma desgraça tào grande?...


Saiba que a matéria eterna permanece,
E que a forma muda.e se altera a toda hora,
E que o composto se corrompe por seu desacordo.
Somente o simples está isento da morte/7 )

35. C£ G li Scritti d i san Francesco d ’A ssisi, eci. de V. Facchinetti, Milán, Vita e


Pensiero, 1954, p. 168-169.
36. Ver mais adiante p. 126-127.
37. RONSARD, CEuvres completes, VI, p. 10-44.

7H
I )e outra maneira, mas por sinal também mantendo a c ren
ç.i na eternidade da alma, Rabelais viu na morte uma transição
natural pela qual nós damos a ve/ a nossos descendentes lio
inuii por homem. A “antiguidade encanecida” dos velhos "relio
lesee" na juventude dos filhos. A ruptura dos destinos individuáis
e compensada pela continuidade do destino coletivo da human!
ti.ule. A geração é o corretivo da morte. “Entre os dons, escreve
Gargantea a Pantagruel, graças e prerrogativas, coin que o sobe
rano plasmador Deus todo-poderoso revestiu e adornou a huma
na natureza no seu início, parece-me singular e excelente aque­
la pela qual ela pode em estado mortal adquirir uma espécie de
imortalidade e, no decurso de vida transitoria, perpetuar seu
nome e sua semente: o que é feito por linhagem nascida de nos
em casamento legítimo.”38

os componentes do discurso
macabro
Na época de Rabelais e de Ronsard, a despeito de certas
citações que acabamos de ler, qual concepção da morte ocupa o
centro do palco? A julgar pela iconografía, pelo discurso religio
so e pelas garantias (missas pelos defuntos, indulgências) que os
fiéis se esforçam para acumular contra as incertezas do além-tú-
mulo, a morte é na maioria das vezés horrível. Ela é ruptura; ela
é escândalo; ela é perigosa. Pierre Michault, na D an ça aos cegos
(1405), coloca diante da grande ceifadora uma bandeira com slo­
gan significativo: “Eu sou a morte da natureza inimiga”.3940Outro
“retórico”, Aimé de Montgesoye, Cantiga da alta e virtuosa
d am a... Ysabel de Bourbon (1465), ataca a morte:

Modelo de horror! Espelho de infame feito!


Inimiga das obras da Natureza...10

38. RABELA IS, II (Pantagruel), Cap. V III, Pléiade, p. 2 2 4 -2 2 5 .


39. B.N ., fundo fr. 1654, f 0 149.
40. MONTGESOYE, Aimé de. Com plainie de trh haulte et vertueuse dam e...
Ysabel de Bourbon, reproduzido cm Med, .'Ir/'., i II, 1933, p. 1-33.

7 fí
jean Molinct ( I•í35-1S07), evocando o espelho da moric (é
bem verdade que para opor-lhe o Espelho de vida ), qualifica-o de:

Espetáculo horrível, miragem detestável,


Visao feroz, objeto tão temível,
signo mortal, ó exemplar tão vivo,
lu c , um monstro impossível e contrário...41

i',11,1 Ma rol, a nu irte é ac|uela divindade:

Milgni v lela, ,l
t.Mn u»m icii Irlo e peslilento hálito,
' <1111<,i ii .ii .i»» redor em tal estado,
min a*, aves que voam acima de sua cabeça
( aem d<> alio, e jazem mortas por terra,
Iwceio aquelas c|tie predizem as desgraças.42
' \
A Igreja desempenhou um papel essencial na aceitação,
nao direi da morte “domesticada”, mas da maneira “natural” de
viver a morte, propondo a meditação sobre o falecimento
com o método de pedagogia moral. A “morte de si m esm o”, foi
0 Cristianismo que, se não a inventou totalmente, pelo menos
a esten d eu ás dimensões de uma civilização. É por Hsso que,
em bo ra conservando a feliz expressão de Ph. Ariès ( “a morte
de si me .mo”) que marca tão bem a ruptura entre o destino de
1 ada um e a sorte eoletiva da espécie, eu insistirei mais do que
ele sobre "os predecessores das grandes vozes macabras” dos
séculos I t e IS. Porque eu não creio que se possa “desprezá-
los" com o “raros e pouco expressivos”.43 Pelo contrário, despre­
zo do mundo, dramatização da morte e insistência sobre a sal­
vação pessoal emergiram juntos. Essa ligação já é sensível nos
serm ões de São João Crisóstomo que cita oito vezes o “vaida­
de das vaidades” do Éclesiastes, lembra quatro vezes o conse­
lho do Eclesiástico (7,4): “Em tudo o que fazes lembra-te de teu
fim e não pecarás jamais” e repete o aforismo bíblico: “Mais

41. MOLINET, J. Faits et dietz, éd. Noêl Dupire, Paris, 1936: t. II, p. 670-
680. Cf. MARTINEAU-GENIEYS, Chr. Le Thème de lã mo>% p. 247.
42. MAROT, Cl. CEuvrcs completes, èd. A. Garnier, Paris, 1920, I: “Deplora-
non de messire Fl. Robertet”, p. 544.
43. ARIÈS, Ph. LH om m e devant la mort, p. 114.

HO
\,il< o <Ii.i d.i m orte q u e o d o n ascim en to. Mais vale ir a c asa
d. lulo do c|ik‘ a casa do ban qu ear, pois é o Um de tocio lio
Miem' ( le i 7,1 D . 11 Seu H alado D a p a c i e n c i a anunc ia can sub
U lulo «1 1 it- nao se’ dc*vc‘ ch o rar am argam ente o s m o rios” e rom
popa uma passagem au tén tica m en te m acabra. São Jo ã o C lisos
lo m o esc reve com efeito :

Aquele que, ontem, eu achava amável, agora estendido, cau


s.i horror. O que ontem era como um membro de mim mesmo,
eu o vejo agora como estranho. Aquele que ainda recentemen-
le eu apertava em meus braços, agora eu não queria nem se­
quer tocar. Leu o banho de lágrimas como meu, mas afasto
como estranhas suas matérias purulentas. A afeição me impele
a aproximar-me de seu cadáver fétido, mas sou impedido pela
deterioração e pelos vermes... Onde está Seu amável roslo? |.i
o vejo descorado. Onde estão seus belos olhos tão vivos? 1 I
los putrefatos. Seus cabelos formavam uma espécie de adormí
ble se desfez...^

Pouco antes cie São Joào Crisóstomo, Santo Efraim, no seu


sermão sobre “aqueles que adormeceram em Cristo”, também
praticou realismo macabro dentro do mesmo espírito:

Quando vamos ver os túmulos onde eles apodrecem e “escor­


rem”, nós os apontamos com o dedo e dizemos: Veja este ou
aquele; este, era o rei; aquele, tal capitão; este, tal príncipe; aqui,
o seu sobrinho; ali, a sua filha, antes tão bela; aqui, aquele ra­
paz que passava tão bem arrumado... [Tudo desapareceu 1... En­
tão nós os interpelamos como se fosse pelo nome: Para onde vo­
cês partiram, irmãos? Onde vivem agora?... Falem conosco como
falavam antes...
[Fies respondem]: Abandonamos as fileiras dos homens e nos di­
rigimos para o lugar que as nossas obras 'mereceram! Fsta poeira...
esta cinza, esta podridão... estes ossos decompostos, estes vermes
imundos, são os corpos dos rapazes e das pioças que os seduziam
oulrora; esta poeira, é a carne que ainda abraçavam insaciavelmen-45

44. Cf. Jean Cluysostome et Augustin. Actes An colloqne de Çhantilly, 22-24


setembro 1974, ed. Ch. Kannengiesser, Paris: Itcauchesne, 1975: MA1.1N
( ¡RUY, A. M. “Scntences des sages che/. ( 4uysostomc",j). 204-206.
45. Patr. Gr., IX, col. 727.
le; i’slü |)<>drkl;l<>, é o r<).sl<>(|UC beijavam tila i•u<)11•\ cuín nina vi >
lupia Insaciável; esta podridão que escorre, é a <amo <|iio estreita-
vam om son pot ado. União voja, observe e creia, vocês que levam
nina vida inútil; nao continuem enganados por mais tempo, rapa­
zes o moças, pola beleza de sua juventude. Porque nós também,
na vitla, lomos o que vocês são e passamos nossos dias em festa;
hoje estamos diante de seus olhos, mortos, apodrecendo..."’

I;. significativo a nosso ver que a Idade Média e depois a


llteraiura eclesiástica até o fim do século 19 tenham atribuído a
Santo Agostinho um Speculum peccatoris ( “Espelho do pecador”)
onde o autor declara: “A consideração da brevidade da vida en­
gendra o desprezo do mundo”. Depois, ele encadeia:

l ni inda a esleirían do saber, será que existe algo que possa


pniMM ai o limnem a vigilância, á fuga de toda injustiça, à santi­
dad- p -l-.i........ d< I »eir., mais do que a consideração de.sua [fu-
liinil alna i.................. ilna Inienln preciso de su a condição mortal
P> -ii mi' ■ - - p-ai - inienli i de ana pavorosa morte quando o ho-
iH- m - i-aii i uní ii.i-- homem Porque quando ele cai doente, a
-I ii-iioi mui' nía p' h piopila doença, o coração vacila, a cabeça
|!i i p ii ili nl-i, lo ii'iilldo’i *,e esvaem, as forças se exaurem, o
iiimi i i iMpilid- •i'i a ii -i ,u In/enla, os olhos se tornam som-
i-H i -i - Ihi ll- un ni. I.i ., o nariz apodrece, a língua fica pe-
idi i I..... i i- 'lita •-'• muda, o co rp o se consome e a carne mur-
i h-i I lili" i líele a i ai nal vira mau cheiro e putrefação, o ho-
1 1 n ni . .1. -maní ha em cinzas e se transforma em vermes.'"

< «iii >', ni.muse ritos do Speculum pecatoris contém também


- a i I•o inu 1.1 lapidar que voltaremos a encontrar: “Depois do ho­
m em, o verme; depois do verme, o fedor e o horror”.
Como nao remontar dessas trágicas evidências, repetidas e
divulgadas pelas Vitae patrum , às origens bíblicas do macabro 467

46. C olla tío selecta SS. E cclesiae Patrum de Caillau-Guillon, Paris, 1833.
t. XXXVIII, p. 23-24. Devo a indicação deste texto à gentileza e à ciencia do
Padre François Bourdeau, a quem agradeço ¡mensamente. A tradução é dele.
47. Migue inseriu este texto ñas obras de Santo Agostinho. Patr. Lat. XL, col.
987. Sobre as fontes neoplatônicas do pessimismo cristão até o século 12 é
fundamental ver COURCELLE, P. Connais-toi toí-même, de Socrate à St
fíernard, Pays, Etudes augustiniennes, 3 v., Paris: 1974-1975.

82
' il .i.io () liiUiro In o cen cio III, Intitulando nina su b seção tio seu
/>r 1 1 >nicni/>lii n iu u d i co m o "tia corru p ção tio cadáver", arruinen
i na sobre esse lema ap oian tlo-se na Escritura: "Q uando morrer,
0 homem sera presa tias larvas e tios vermes”"4 (líelo 19,3); “To-
•los .e deitam na poeira e os vermes os cobrem" (Jó 21,26); "A
liuça os roerá com o uma rolipa, e os cupins os devorarão como
Ia (Is >1,8); “|() homemI se exaure com o uma macieira carcomi­
da ou como uma roupa devorada pela traça” (Jó 13,28); “Eu gri­
lo para o sepulcro: T u és meu pai’, e para a vennina: ‘És minha
mar e minha irmã”’ (Jó 17,15); “O homem é uma vennina; o li­
li io do homem, um vermículo” (Jó 25,6).
Essa insistência pedagógica sobre a podridão do corpo - o
ob|eiivo claramente indicado é levar o leitor ao desprezo do
mundo - não diminuiu ao longo da Idade Média. O Monge An
»In' tic Creta, que no século 7o se tornou arcebispo dessa ilha,
aconselha a meditação perto dos túmulos.

Ao fiel que se aproxima, ele diz: "Não recue... veja todo este
espetáculo penoso... Fique o tempo suficiente para sentir estes
odores que não são estranhos: são os nossos. Suporte virilmente
a infecção que a podridão e as más exalações dos escorrimenlos
desprendem. Fique firme diante do espetáculo dos vermes e da
putrefação que escorre carregada de sânie, você que é chamado
a desfazer-se e a tornar-se o alimento dos vermes clevoradores”. '"

No início cio século 12, o beneditino Robert de Deútz


( | 1 124 ) usa a mesma linguagem numa M editação sobre a mor­
ir-. “Quem quer que tu sejas, aconselha ele, vai aos sepulcro dos
mortos... e estes, eles mesmos, te responderão. Eles falarão a
teus olhos até ã saciedade dè teu olhar; e se forem cadáveres
recentes aos quais resta um pouco de seiva, eles falarão a tuas
narinas até ã saciedade do odor, ao ponto em que não poderás
mais suportá-lo”.50 Algumas décadas mais tarde, Adam 1’Ecossais
( | após 1210), primeiro Cônego, depois Cartuxo, enfim Bispo de
1 Incoln, dirige-se assim num sermão a São João Evangelista: “Na489

48. Na realidade, o texto bíblico fala do libertino.


49. Patr. Gr., XCVII, col. 1.291 (D e vita hum ana et de defunctis), Apud TF-
NFNTI, A. La Vie..., p. 86, n. 2.
S(). Patr. L a t, CLXXI, col. 361 (D e A leditatio/ie m onis), citado em Ibid.

h :i
llora da minha morte, vem em meu socorro, abranda o Juiz,
afasia o demônio acusador. Meu temor vem de meus pecados e
nao da consideração da infecção e cia fetidez futuras de meu
toipo", T'.nlrelanto, acrescenta ele, sinto vergonha e coro sa­
bendo que ele só e digno de um túmulo ignóbil e fétido e como
.i ml.uma e a Ignomínia deste estarão longe da pureza.e da fre­
ír, i d< iru ,epul( ro. Porque meu horrível cadáver tornará meu
lumuio n puf.lv o de ledor e transbordante de vermes enquanto
u ii o pulí io produz maná,’’s' Deve-se ainda acrescentar ao in-
. nl lil" da', meditações monásticas sobre o cadáver um frag-
iii. nl" d " s/ t . ii /iiiii nioiuicborum de Arnoul de Bohéries (fim
d........ ul" I *) t|iir foi niuiti>difundido nos séculos 14-15 sob o
i i t u l i » S/»e» iiluni Hcnuinli:

(.Mie o monge que se entedia [no sentido forte: taedio affectus]


v.i meditar sobre a pedra em que são lavados os mortos [nos con-
ventosl, <|iie ele imagine como são tratados aqueles que vão ser
enterrados; como são revirados às vezes de costas,'às vezes de
bruços; como eles balançam a cabeça, os braços pendentes, as
coxas começando a ficar rígidas, as pernas que jazem...; como
■.ao vestidos e costurados; como são transportados, depositados
iiiini iiiinub >, cobertos de terra; e como, devorados pelos vermes,
qn.il um saco podre, eles se consomem. A suprema filosofia é
p. ii ii i inpu na morte. Que cada um carregue consigo esta me­
dita. to onde quci que vá, e jamais pecará.

ii i" ii" . uipio. nde que o jansenista Gerberon tenha atri­


buid" i ..ml" Anselmo, um dos propagandistas do çontemptus
nmih/i qu. ,("< •, particularmente macabras.

i ila. t .irih* mortal; verme, fala, podridão. Miserável, por que


d. Ili.i.s? Para que serve a glória da carne? Fala, homem; fala, poei-
i .i podridão, por que te fazes de orgulhosa?... Não conheces a lei
da humana condição: o corpo vem da terra, a semente do corpo,
o sangue da semente, o corpo do sangue. Assim como o corpo
d o homem se forma no seio materno, assim também ele apodre­
ce no seio da terra. O corpo engendra a corrupção; a corrupção,

SI. Pair. CXCVIII, col. 308 {Sertn o X X X III), dtado cm Ihid., p. 87.
S7. Puir. /<//., ( I.XXXIV, col. I.l?8, texto av.iiul.ulo nov.imente pelo Padre
It.uk, ois llourdcau.

H-l
• i . vermes; ti*, vermes, .1 t ln/a; ;i cinza, .1 terra. Assim o corpo Im
m.mo Ifiii .1 leir.i poi m.k* c* retornará .1 Ierra.''

1 ) im .mo Sanio Anselmo escreveu a filha do Rei llarokí,


•mnlilld, (ii|o amanle Main le Uoux tinha morrido e ela, para
*• ••i* •Mili.n o amor, procurava casar-se com o irmão do falecido:

I u amaste o ( ‘<)iule Alain le Koux e ele le amou. <)nde e.sia ele


i>'.' ti.ii' \.1 1 deitai le 1 1 0 leito em que ele agora jaz, recolhe seus
o mu". 401)re leu ,seio, abraça seu cadáver, beija seus dentes des­
nudo.*., pois seus Libios Ibram roídos pela podridão... não temes
>|ii> |l>eus| atinja com morte semelhante por tua causa o Conde
\I.1 I11 l< Noii |Irmão de Alain le Kouxl? ( >u, o que é pior, que não
vo'i condene .1 ambos, se vos unirdes, a uma morte eterna..*1*

\ lili.ie. 10 entre a literatura monástica sobre a miséria hu-


111 ma ' o macabro c ainda mais evidente num tratado falsamen-
I* itrllmido .1 Sao Bernardo, Meclitcitio de hum ana canditione,^
uma das fontes do futuro Inocencio III quando redigiu sua vio-
L ula diatribe contra o orgulho do homem. lista Meditado foi tal-
v* / ' t dia por litigues do Saint-Víctor.'56 C) importante, para nós,
■ qm ela pareceu suficientemente |x*rcuciente e pedagógica para
•i atribuída durante séculos ao fundador de Clairvauxd7 Ela é
un llnu comprecndlu (|tiándo a relacionamos aos textos anterio-
1• (mi contemporáneos) (|ue acabamos de citar, e constitui uma
li.n ' |i.ira enirar dentro de uma sensibilidade cjue foi se amplian-
d.. i'.i.idn.iliiu nle dos mosteiros para o mundo laico. Embora seja

1
'»' Dalí, / <//,. (. IVIII, col. 705-707 (A liud carmen de contemptus m undí), cf.
0 Hultoi, "sobre* alguns problemas pseudo-anselmianos”, em Scribtorium, 1(),
\%y p, ,t6 41.
'•■I. l lio esie texto segundó Br. Roy, “La Danse...”, em Le Sentim ent de la
m orí , p. I .’ 1 , < T. Santo Anselmo, carta 169 na ed. Schmitt, IV, p. 47-48.
A, Wilinari, "Une leí tie inéditc de Saint Anselme” na Revue bénédictine, 1928,
1 1(1, p. Ó') 3.32.

vi Din, ta i., < I.XXXIV, col. 485-508.


/ >i<titmnaire de Spirhualité, 1/II, col. 1.500 (art. “Saint Betnard”).
. I I.lo confundir esta M editado com os textos autênticos dc São Bernar­
do «pie exprimem, cies também, mas com mais contenção, o contemptus
■■mude < I I . I a/vari, “Le contemptus m undi chez saint Betnard”'em Revue
,/ ih i'ih/ui' el de mystiijue. XI .I, 1% 5, p. 291 30^. ( I. R. Bultot, “Saint Ber
li.ii.l, la Stimmc le Roi et le doublc ideal aniu|iu* d< la magnnnimíté”, daos
1 15, 1964, p. 247-253.
advertido pelo subtítulo ("Depois do homem, o verme; depois do
verme, o ledor e o horror”), o leitor, porém, deseobre com espan­
to os desenvolvimentos seguintes, que é preciso ler na íntegra:

Segundo o homem exterior, eu provenho de pais que fizeram de


mim um condenado [damnatuni] antes mesmo que eu nascesse.
I'■ > idoie\ geraram um pecador e o nutriram de pecado. Esses in-
lt li/• . !o| mu Inleliz que eles trouxeram para a miserável luz do
. li i ii ida i«•<ebl deles a nao ser a desgraça, o pecado e este corpo
. ........... ..pi io que carrego, li eu me apresso em direção àqueles'
|u< 1 1 e loiain pela morte do corpo. Quando contemplo seus tú­
m ulo ,o di .< u b io cinza e vermes, fedor e horror. Eles foram o
qu< eu ..mi , ii serei o t|ue eles sào. O que sou eu? Um homem
i ia ,<Ido de um Itu mor lluente. Porque no momento da fecundação
eu luí (oncebido de uma semente humana. Depois, essa espuma
i oagulando se e crescendo um pouco tornou-se uma carne. Depois
disso, ( horando e gritando, fui lançado no exílio deste mundo. E
eis que já morro repleto de iniquidades e de abominação...

Mnis adiante, o autor, opondo “a dignidade da alma” à


baixeza do corpo”, volta ao tema da corrupção inerente à con­
dir .10 humana:

I Mi corpo ao <piaI és lào ligado, nada mais é que espuma fei-


i i , u i..........i obeiia de uma frágil vestimenta. Transformado em
• idao i, ml uavel c pútrido, ele será o alimento dos vermes... Se
■*m iidei,m atentamente o que sai da boca, das narinas e das
oiili.r, ah, itui.n do corpo, não encontrarás mais vil sujeira.
i »l i-.et \ i o homem, o que tu eras antes de nascer, o que tu és
, I, ., le o nas( Intento até a morte, e o que serás depois desta vida:
I Mi ni ado de vil matéria, envolvido na mais vil vestimenta, fos-
ti mili Ido de sangue menstruai nó útero materno, e tua túnica foi
a h<.Isa da .secunctina...w
() homem nada mais é que esperma fétido, saco de excremen­
tos e comida de vermes...
Por que orgulhar-te, ó homem? Antes veja: foste semente vil e
sangue coagulado no útero: em seguida, foste exposto às misérias
desta vida e ao pecado, e serás repasto dos vermes no túmulo.

SH. A tradução moderna seria atnnios, a mais interna das membranas que en­
volvem o feto.
Seu que so deve vanglorlar-se cio sor poeira o cinza, do ter sido
(oiho I>ld<> no poondo, do nasoor miserável, do vivor no sofrimento
o do morrer na angústia?... Tu engordas o onfcitas a preço do ouro
uma carne que, daqui a pouco, os vermos devorarão no túmulo."

Seguindo o mesmo impulso, Lotário escreverá por sua ve/,:

() homem ó concebido de sangue putrificado pelo ardor do de­


sejo - este desejo a cuja morte os vermes do túmulo presidirão.
Vivo, ele engendrou os piolhos e os vermes intestinais; morto, ele
engendrará as larvas e as moscas. Vivo, ele produziu as fezes e
o vômito; morto, ele produzirá a podridão e o fedor. Vivo; ele só
engordou a si mesmo; morto, ele alimentará uma multidão de
vermes. O que há de mais fétido que o cadáver humano?'"

A “Meditação” do pseudo-Bernardo e o capítulo do /><•


nmtemptu m un d i de Lotário consagrado à “corrupção do t.id.i
ver” obrigam a matizar aquilo que escreveu Jean-Charles l’ayen
num artigo sobre “O D ies irae na pregação da morte”. "A morh
afirma este autor, está presente em todos os textos que nós Ir
cantamos, mas, coisa curiosa, de uma maneira quase negativa
I.Ia jamais é invocada diretamente... Nada também sobre a de
composição do corpo - portanto, nada de macabro.”59601 Kntretan
to, um pregador alemão do século 13 tinha o costume de utilizar
o seguinte apólogo para convidar a uma confissão completa dos
pecados: uma mulher tinha escondido um pecado importante ao
seu confessor. Apareceu-lhe um anjo acompanhado de um belo
menino cujas costas estavam, porém, cobertas de vermes e de sa­
pos; e ele lhe explicou que ela era comparável a esse menino em
razão de sua má confissão.62 Viva de um lado, ela já era cadáver
<• podridão do outro. Bruno Roy observa justamente que, mesmo

59. Patr. L a t, CLXXXIV, col. 487-490.


60. Patr. Lat., CCXVII, col. 736.
61. PAYEN, J. Ch. “Le D ies irae dans la prédication de la mort et des fins
dernicres au Moyen Age”, dans Rom anía, 1965, t. XXXV: p. 61. Mme Chr.
Martineau-Genieys, Le Tbèrne de la m ort... dá seu pleno acordo à fórmula
de j. Ch. Payen. Eu me separo, portanto, desses dois autores a esse respeito.
Cl. aussi R. Morris, O ld Englisb H om elies o f lhe X II'1' Century, Londres,
1873, p. 180-183.
6.1, /)/> henige Regei fiir ein volbommcnc\ I dum, »d. por R. Priebsch, 1909,
v. XVI iles Deutsche Textc des M itte/alten. p.

H7
;mu\s do século M, o tema do desprezo do mundo e as evoca-
Voes macabras nao se limitavam ao meio monástico. Ides impreg­
navam o cmsino da-gramática nas escolas e apoiavam a pregação.
I lin capítulo inteiro da Snm m a dè arte predicatorio, de Alain de
I lile aconselha esta pedagogia e convida a apoiar o texto “vaida-
di da*, valdadcs, tudo é vaidade” pela descrição dos terrores do
ig. tnl/anle e pelo topos do Ubi sunt ? 63
< oiiio, por outro lado, manter a afirmação de Philippe
\il. *i A 111ia o. mi (|iie a Idade Média anterior ao século 14 nos dá
h d- 111111•,i" universal : é poeira e pó, não a corrupção pulu-
1)1111' *1' ■ou. . 1 ssa asserção vale certamente para a icono-
a ili i da piliix na Idade* Media, mas não para o discurso escrito,
■I. pi. >|a |i i . mugado de prolongamentos iconográficos ulterio-
i. | llm Inga linha razão ao escrever a propósito da primeira
Idade Media '().*> ascetas medievais contentaram-se com o pen­
samento da c inza c dos vermes: nos tratados religiosos sobre o
desprezo do mundo expunham-se amplamente os horrores da
decomposição".'" Ivsse julgamento não envelheceu. De fato, o
mac abro estava bem presente em obras que conheceram rapida­
mente* uma ampla difusão e tinham aparência de sermões. M.
Maec arone mostrou para 418 manuscritos áo D e contemptu m un-
di de I.otarlo que o sucesso da obra foi rápido e não esperou o
peí iodo mac abro: 3Í% dos manuscritos são do século 13 e so-
IIlente 20,S"n do serillo IS. Para os 36,5% copiados no século 14
uma boa niel. ule parece anterior ao meado do século.60
( i texto do pseiido-bernardo revela também que, no espí-
iii'. do monge, nao ha oposição entre os vermes e a cinza: os
. I. a* pioc c *.,*.( >*, cle decomposição do corpo são chamados conjun­
tan!. un < m apoio a uma mesma pedagogia. Da mesma maneira,
nao i lelo <|ue nos séculos 14-16 se pudesse realmente opor as
c o i ações de* esqueletos e de corpos mumificados às de cacláve­
le *. ein via de putrefação. Tratou-se sobretudo de urna panoplia
diversificada, mas, afinal, homogénea dentro de um mesmo mu­
seu do horror. O escrito do pseudo-Bernardo faz ainda aparecer

63. ROY, Br. “La Danse...”, em Le Sentim ent de ¡a m ort..., p. 127. Patr. Ldt.,
CCX, col. 111-198.
64. ARIÈS, Ph. L’H om m e eievant la mort, p. 114.
65. HUIZINGA, J. Le D édin..., p. 143.
66. MAÇCARONE, M. Lothariicardinalis..., p. IX XXII. ROY. Br. “La Dan­
se...”, em Le Sentim ent de la m ort..., p. 125 •I 26.

HH
i> vínculo m l iv o desprezo do imuido e uma profunda repugnó n
i ia da com vp ção o da gestação. A semente humana é considera
da Ik|uicl<> fétido e se* jimia no pensamento do monge, como logo
depois no dc l.olário, aos excrementos e a ludo a(|iiilo que sai do
corpo. A putrefação está em nós. Ida é associada ao amor carnal
e a morte (as duas faces de uma mesma realidade) e triunfará so
bre nós desde o falecimento. Assim como a corrupção do cada
ver e uma punição - sem o pecado, a natureza não teria proce
dido dessa maneira - assim também é a sujidade das operaçoes
que acompanham a concepção e precedem ao nascimento, e
também este nascimento sangrento que nos lança miseráveis
numa terra de exílio. Já foi observada de passagem aquela lor
mula talvez de origem árabe e destinada a um longo futuro: "O
que eu sou, eles foram, e eu serei o que eleá são”. Fia já era na
época um lugar-comum do discurso monástico:67 Nós a enconlia
mos com efeito no epitáfio fúnebre de Fierre Damicn ( 10" '.) <
na Disciplina clericalis de Fierre Alphonse (início do sécul< > I i
Fnfim, por intermédio do pecado, estabelece-se um estrello \m
culo entre a corrupção da carne - viva ou morta - e o lenioi do
julgamento que espera cada defunto. -No discurso monasllio,
medo do dies irae , desprezo do mundo e imagens macabras
vermes e cinza —fizeram parte de um mesmo conjunto cuja coe
rência é preciso sublinhar:

Ai de mim miserável, exclama o pseudo-Bernardo no curso de


sua sombria M editatio, quando vier o dia do julgamento e forem
abertos os livros onde estão enumerados e forem apresentados a
Deus todos os meus atos e todos os meus pensamentos! Então,
de cabeça baixa de confusão e de consciência pesada, eu me
postarei para o julgamento diante do Senhor, paralisado e angus­
tiado, lembrando-me de todos os meus erros...
Por que desejamos por toda força uma vida em que quanto
mais vivemos mais pecamos. Quanto mais longa a vida, mais nu
merosos são nossos pecados...

67. Cf. GUERRY, L. Le Thème du “ Triomphe de la M ort"dans lapein turc ita-


lienne. Paris: Maisonneuve, 1950. p. 46-47.
68. Patr. Lat., CXLV, col. 968.
69. A D isciplina foi traduzida em versos franceses no segundo terço do sccu
lo XIII sob o título Chastim ent d u n pèrc ii son ftls (Castigo dc um p a i ao seu
fiUjo).

Kl)
N;i verdade, é cm meio a um grande* tcmoi c .1 grandes do­
tes que a alma se separa do corpo. Porque os anjos vêm para
pegá-la e levá-la diante do tribunal do juiz temível, Então, re­
memorando seus pecados e erros cometidos dia e noite, ela
treme, quer fugir, pede um adiamento dizendo: dêem-me ape­
na'. uma hora... Os demônios de rosto terrível e horrível aspec­
to .1 atrrtorizarao, a perseguirão com grande furor e quererão
agaita Ia <■ segura Ia - ó terror e horror! - a menos que ela não
11o 1 fiujfi ai 1 aneada...7*'
• )
/)/»**. hile, f-.tíi formula que ficou célebre pelo poema de
Ib..... .. t *1,1110 (j I iSO/ôO) - que não foi seu in v e n to r-a n -
ii di h m 11pon a Imaginação inquieta dos monges que a ti-
nliiim lido cm Sofônio (1,15): “Dia de fúria, foi aquele! Dia de
dcsgi.g.i e de trlbulação, dia de desolação e de devastação, dia
de escuridão e de nuvens sombrias, dia de névoas e de tre­
vas,..". Dia do julgamento geral, mas dia também do julgamen­
to de cada um cie nós. Citando Sofônio e indo além dele, bota­
do, depois de ligar indissolu.velmente sujeira física e sujeira
moral do homem, ficará espantado, ele também, ante a pers­
pectiva cia grande prestação de contas: “Eis que virá o dia cruel
de Deus que, cheio de indignação, de cólera e de furor, puni­
ra a terra, reduzindo-a a deserto e punindo os pecadores”.71
Observemos de passagem que São Bernardo, a quem se atri­
bui, tom o j.i dissemos,72 um poema sobre o julgamento final,
multiplicou as imagens de decom posição para caracterizar o
pecado (lepra, fluxos impuros, vermes e roedores) e comparou
o |tocador ao cadáver de Lázaro, que já cheirava mal depois de
quatro dias no túmulo.7-1

( ' - / , ' '

70. Patr. Lat., CLXXXIV, col. 488.


71. Patr. Lat., CCXVII, col. 742. Sobre a utilização anterior dos textos de
Sophonie, cf. a contribuição de P. A. Février, “La Mort chrétienne” em J.
Delumeau (sob a direção de), Histoire vécue dnpeuple chrétien, 2 v., Toulouse,
Privat, 1979: I, p. 85. Sobre os outros Dies irae além do de Thomas de Cela-
no, cf. PAYEN, J. Ch. “Le Dics irae..!', notadamente p. 59-60.
72. Cf. p. 24.
73. DELAHAYE, Ph. Le'Problhnc..., p. 23-24.
!

!>n
;i posteridade do discurso monástico
sobre a morte
Nas considerações anteriores, nós seguimos a ampliação
progressiva da audiência geral do contemptus nmneli, a partir dos
com entos. O mesmo procedimento, centrado agora sobre um
ponto particular, nos leva a detectar a posteridade do discurso
monástico sobre a morte na literatura e na arte dos séculos pos
iri lores. Não se trata de negar a ambivalência do macabro, sobre1
a <pial voltaremos logo mais.7' Não há dúvida de que depois de
I Vá), sobretudo a insistência sobre os pormenores horrorosos
muitas vezes revelava morbidez e outras vezes ultrapassava, ou
ale mesmo abandonava, os objetivos pedagógicos e morais. I’a
rece mesmo certo que se produziu, em vários casos, uma invci
•■ao de significação da iconografia macabra como convite a g< >/ai
a vida. Mas seria um erro fazer abstração das intenções moiaf.
demonstradas durante tanto tempo e seria também anti hisimlt
separar arbitrariamente a evocação da corrupção física nos sei u
los IS-16 da literatura anterior consagrada ao contemptus mm uh
Provém desta última, evidentemente, aquela repugnante quallll
cação do corpo (feminino) dada pela Morte num poema do int
cio do século 15, D er A ckerm ann aus Bòhm en (O Trabalhador
da Boêmia): “Um objeto de repulsão, um recipiente de excre­
mentos, um alimento imundo, uma sentina fedida, um banquete
repugnante, uma carniça putrefata, um cofre bolorento, um saco
puído, um bolso furado”.7"1 É mais ou menos o que tinha escrito
( )don de Cluny74756 no século 10° e o mesmo tema retomado em se­
guida pela iconografia consagrada a Frau Welt (o Mundo): bclc
za na frente, corrupção por trás. Para os monges, a mulher repte

74. Cf. anteriormente, p. 98-128.


75. Citação e tradução em WIRTH, J. L a jeu n efilie et la m ort..., p. 29, con
fo/ me a edição de BURDACH, K. D er Ackermann aus Bõbm en, 2 v., Berlín,
1926: II, p. 55. C f KULLY, R. M. “D ialogas m ortis cum bom ine. Le labou
retir dc Bohême et son procès contre la mort”, em Le Sentirnent de la m ort...,
p. 1.41-167.
76. C f DELUMEAU, J. L a P eu r..., p. 313. C f ENGELHARDT, G. J. "The
De contemptus m undi of Bernadus Morvalensis” M edieval Studies, 1960, t. 22,
p. 108-135; 1964, t. 26, p. 109-142; 1067, t. 20, p. 243-272. BULTOT, K.
“La I )octrine du miípris du monde che/ Bernard le ( ’lunisien”, dans le Moyen
Age, 1974, t. 70, p. 179-204 c 355 376.

1)1
senta o superlativo ela podridão e a imagem mais evidente da
morte e do pecado. Mais geralmente, o antiíeminismo e o maca­
bro eram ligados. Daí a necessidade de esclarecer a penetração
dentro da c ultura européia de uma palavra sedare a morte enun-
t ladu de início por ascetas a serviço da Igreja.
Mm fragmento do livro Bríeue collezione delia miseria del­
ta u m, ma <<>udi ioue , ele Angelo Torini, permite perceber como
11 mt< a m guio, agravando-o, o D e contemptus m undi de Lotário.
Inia '.e .i<|uI tio lema antees explorado pelo pseudo-Bernardo: o
11<nM» m \l\11 ja e ptnlridao.

I <»I \l<|( 1 1 1 VIII, I ): ( )b,serva as plantas e as árvores: elas pro­


duzi ui ll a. . lolliagens e frutos. Mas o que sai ele ti são lêndeas,
piolín o i- \rimes. Aquelas disseminam óleo, vinho e perfume.
Quanto a li, tu expeles escarro, urina e fezes. Elas exalam odo-
ies .suaves, mas tu espalhas um abominável fedor. (

TORINI (XVII, 17-19): Quais são os frutos que nascem de nós?


<K frutos agradáveis e muito úteis que nós produzimos e que nas^
cem de nos são as lêndeas, as pulgas, os piolhos e os vermes t|ue
sao criados por nosso corpo e no nosso corpo nascem continua­
mente. Quais são as especiarias odoríferas e os ungüentos úteis
que nascem ele nós? São os ranhos, os escarros e as fezes que
saem t ontlnuamente elas diversas partes de nosso corpo. E é por
t .ii que ii bem aventurado Bernardo disse: “se considerares com
dille, ni Ia. o homem, tudo o que passa e escorre pela boca, pelo
uail pelas t Melbas e por todos os outros orifícios do corpo, per-
•i-In ia •que não existe fossa dc excremento mais fétida”.~
r

N.t I m iiç i , os poetas ela época macabra deram igualmente


d. d.o pi< a esse lema indicando suas fontes. Sabemosxjue o D u ­
pla lat da frapJUdadv hum ana (1383) de Eustachè Deschamps é
..... a tiaduçao do />e contempla m undi de Inocêncio III. Assim,
em muramos aqui de novo a comparação estereotipada entre as
plantas e o homem em detrimento deste último:

Condição indigna V
I lumana, que sempre erra!7

77. Dcve-sc notar que, citando o pseudo-Bcrnnrd, ’lorini reforça o texto ao


i radir/.i-Io.
l inio, flor e follj;i poli,un
A*, ,livores: Tu eleves portar
Plollios, vermes c lêndeas,
De vinho, ele óleo e bálsamo
Sao elas carregadas: Tu és carregado
De le/es, urina, escarro...''*

A mesma comparaçào depreciativa aparece sob a pena de


l’lerre de Nesson (1383-1440), secretário daquele Jean I de bour
bon que foi chamado “o poeta da morte”.
Numa paráfrase versificada do Livro dé Jó, ele, por sua
ve/, escreve:

Ai! Quando as árvores florescem "A


belas odorantes flores saem
E frutos saborosos que se comem.
Mas de ti nada a nao ser sujeira,
Muco, escarro e podridão,
Fezes fétidas e corrompidas!71'

A mesma repulsão volta mais uma vez no poema:

Torna cuidado com as aparências naturais:


Por belas que sejam as pessoas,
Nem por isso se mantêm limpas,
Tu verás que cada conduto
Fétida matéria, expele
Para fora do corpo continuamente."

A poesia francesa da época reafirmou com predileção a re­


pulsa monástica pela concepção, pela gestação e pelo nascimen­
to. Pergunta Eustache Deschamps: de que somos nós nutridos e
saciados no seio da mulher?7890

78. DESCHAMPS, E. GEuvres (edição dos antigos textos franceses, Paris,


1878), II, p. 262. Para tudo que vem a-seguir Cf. MARTINEAU-GENIEYS,
( du. Le Thème ilc là rhort..., p. 111-245.
79. As passagens citadas desta obra são conforme CHAMPION, P. Ilistoh c
[>oéuque Au X V siècle. 2 v. Paris: H. Champion, 1966; Aqui, I, p. 203.
80. Ibid., p. 203.

0!)
I- de amarga repulsa,
I >o sanano corrompido.
Menstruo 6 chamado e fluxo
Que cessa cntáo para a mãe.
I'oi ( ansa dele morre a relva, isso é claro
As arvores sao aniquiladas.
( >. i ai", enlouquecem ¡mediatamente
I ir a >( ai m i lal materia."1

Mliin.o .ni <• id usa onde encontramos a imemorial aversão


in i >hIiii.i pelo misterio da mulher, a antiga acusação de nocivi-
dad> i di luipiiir/a lançada contra o sangue menstrual com to-
d< o m i lalui’i que dai decorrem.82
No lúe,sino espirito do pseudo-Bernardo, Eustache Des-
. liamp'. e I'Ierre de Nesson insistem sobre “a horrível natividade”.
<) primeiro declara que nossa carne vem “revestida/’De uma suja
pele manchada/ De sangue...”.8' O segundo, depois de falar da
"lao suja concepção”, constata:

Tu vens por sujo e fétido caminho


l’oi urna bolsa toda sangrenta
I li arlvelmcnle envolvido
( um urna vil tripa cheia de imundície,
Mmi'ililiosa (|ue então é cortada...8'

(,)iiem ja leu os textos monásticos consagrados ã corrup-


i ao do (oipo, nao se surpreende mais com o caráter macabro e
nau i abundo da poesía francesa dos séculos 14-15 que, nesse as-
pei io, c Mia herdeira. Eustache Deschamps comenta assim as ci-
iai, <»e■. bíblicas utilizadas por aquele que se tornou depois Ino-
ivi icio III para descrever o cadáver:

Não terás pé, membro nem orelha


Que não se contraia no avesso;
Serás mais feio que um urso;

\ .

81. DESCHAMPS, E., II, Double ¿ay..., p. 256-257.


82. Cf. DELUMEAU, J. La Peut;..., p. 313.
83. DESCHAMPS, E., II, D ouble ¿ay... p. 261.
84. CHAMPION, P. H istoirepoétique, . I p 210.
N.» Ierra iciíín entilo repouso
( ).m vermes te roerão as enuunhas.

Fierre ele Nesson, que conhecia bem o D e conteníptn dó


( aideal I,otário, multiplicou as evocações cadavéricas. Tratando,
•li lambem, o homem de “fétida podridão”86 e “saco de fezes”,"'
« l< o interpela para lembrá-lo de que "Desde o dia em que mor
a » estiveres / Tua imunda carne começará / A soltar forte fedor’’.8"
I lambem a obra de Lotário que Jean Meschinot (1420-1491) pa
lalraseia nas Lentes dos príncipes. Depois de lembrar, como tan
los outros, que de todos os “condutos” do corpo vivo “sai hor­
ror", o poeta dirige-se ao futuro defunto:

Quando moita estiver tua carniça


I elida, procura quem unte tua carne
De algum licor odorante:
I
Ninguém quererá, porque o estômago
Nao suportará sentir
Semelhante odor, nem o aceitará:*’

hssas repulsivas evocações não constituíam um jogo giulul


Io nem uma constatação do absurdo da vida. Pelo contrario, elas
a .sumem uma função pedagógica. Todos esses poemas se preien
diam edificantes. O de Fierre de Nesson tinha como título \'lj>íli<ts
d o s mortos, lira um livro de orações, um “ofício"dos mortos” que
ii.io acabava em desespero, mas convidava ao arrependimento: “Pa
<á então o bem em vossa vida / Vós que viveis, nada espereis...”.1’"
Desse modo, leigos do século 15 compõem verdadeiros
■ianões a partir do tema da decomposição do corpo, e não é por
i< aso que eles adotam, para tratar desse tema, a interpelação (tu
mu vós) familiar aos pregadores.01 É também com esse crivo que
■ deve ler o Passo da morte (passo = passagem) redigido por

8a. DESCHAMPS, E., II, D ouble lay..., p. 283.


HO. CT1AMPION, P. H istoirepoétique..., I, p. 201.
87. Ibid., p, 205.
88. Ibid., p. 204.
89. ( I. MARTINEAU-GENIE YS, Chr. Les Lunettes des princes de Jean Mes
t hnioi. ( icnèvc: Droz, 1972. p. CXIII e 38.
'81 ( I IAMPION, P. H istoire poétique..., I, p. 212.
'M < I I )|'Tt JMliAU, J. (sob a direção de). Iiistoire vécue d u peuple chrétien, II,
p 18 (eomiibuição de H. Martin, “Prédication c( masses au XV" sièclc”).

!If»
( ¡corees Chastellain ( 1405-1475), poeta titular elos diiques de Bor-
gonha. A morte prematura de sua amada o leva do horror da po­
dridão a uma meditação cristã.92934Um drama pessoal permite mais
tim.i v e/ encontrar o contemptus mundv.
+
Vede o <|ite Caz dolente morte...
I o (Oi pó, vil e imundo
I V u l r n T . pura sempre;
I li m i a Icild .i com ida
I' n i ,i lena e a v e m iln a .91

I ni outra passagem dessa obra, mas também nas Baladas


,/e ninhilldihlr do mesmo autor, fala-se de “dolente sepultura”, de
lelld.i podridão",'" do corpo que será “apenas fezes”’.9596Daí esta
I>ilita’Ii. i ev idencia: "K urna grande loucura enfeitar aquilo que
e u carne para os vermes”90 e esta segunda certeza: “[urna vez.
mortol leras por bens e vinhos / Apenas teu túmulo e teu suda­
rio I , vermes para te decompor”.97 Não saímos, portanto,/dos te­
mas monásticos assimilados agora por uma cultura dirigente que
se tornou leitora do Livro de Jó, do Eclesiastes e seus comenta­
ristas dos conventos. “Por que, repete Georges Chastellain depois
de |o, nasceste tu de tua mãe / Para tão dolentemente morrer?”98
Como toda a elite da época está familiarizada e nutrida
«oi 11 o s temas do contomptus n nindi, não nos surpreendamos
de eiiconlrai quase a cada passo o refrão Ubi sunt? Podemos
■ tu ( >nli ai lhe lontes na Antiguidade pagã.99 Mas Ktienne Gilson
notou |usi,míenle que foi só a Bíblia (Is 33; Br 3 , 16-19; ICor
I 10 d(>) que, nesse ponto, alimentou a literatura medieval,100 a

92. CHASTELLAIN, G. CEuvres, ed. Kervvn de Lettcnhove, Bruxelles, 6 v.;


1863-1866: t. VI, p. 49-65.
93. Ibid., p. 50.
94. Ibid., p. 57.
95. Ibid., p. 59.
96. Ibid., p. 57.
97. Ibid., p. 62.
98. Ibid., p. 63.
99. CICERON, P hilip., VIII, 23; TIBULLE, II, 3, 27. OVIDIE, M a.,
XIII, 92. PLUTARQUE, Consol, adA ppollonium , 110, D.
100. GILSON, E. Les Idées et les lettres, p. 9-38. Nossa abordagem confirma
totalmente as conclusões de E. Gilson sobre o tema do lH>i sunt? Lu sigo bem
de perto essa obra nas linhas seguintes.
quul recebeu ii()tiul;imc*nít* essa dramática interrogação por in
lermédio de Sanio Agostinho, do Próspero da Aquitfmia ( | poi
volia tio iC»<))"" o do Isidoro de Sovillia (f 6 3 6 ).Iw Ela foi om so
guida difundida polos clássicos do contem plas m undi, por Main
do l.illo,1"' por São Boaventura,10* por múltiplos scrmòos o logo
pola Im itação e polo D e quatnor hom inis novissim is do Dcnys
l<- chartreux. Etienne Gilson mostrou que a poesia européia no
•.«•ti conjunto - italiana, inglesa, irlandesa, alemã e eslava - dos
•.ooulos 13-15 retomou esse refrão que’retorna também de ma­
neira particularmente insistente nas obra francesas desse perío
do. Eustache Deschamps o usa em quatro baladas (LXXIX;
( ( X;XXX; CCCtXVIII; MCLXXV; MCCCLVII),105 as quais retomam,
iodas, o estereótipo da enum eração dos grandes personagens
(l<> passado:

() que é feito de Davi e Salomão?..;


Artur, os reis, Godofredq, Carlos Magno?...
Para onde foi Lancelote de bom coração?...
Onde está aquele que conquistou Aragão?...
listão todos mortos, este mundo é coisa vã. (Balada (XX I.VIIl i

E ainda:

Ai! Em que parte estão os príncipes virtuosos


Que conquistaram terras antigamente,...
Davi, Heitor, Carlos Magno e Rolando?
listão todos mortos; vai abrir seus sepulcros:
Porque aí verás; cabe a todos nós apodrecer. (Balada MCLXXV)

() Cirande Testamento de François Villon, pelo menos a


partir da estrofe XII, é uma retomada do contemptus m un di por
alguém que conhecia bem a Bíblia e que teve a consciência agu-

101. Sentença De D ivinitiis publicada nas obras de Santo Agostinho (Patr.


I i il , XIV, col. 1.897-1.898) e recolhida por Prosper d’Aquitaine.
10.’.. Patr. Lat., I.XXXIII, col. 865 (Synonymes).
KM. D e Arte predicatoria, ch. 12 {Patr. Lat., CCX.col. 189).
I Oi. Soliloquium , cap. II, 3 (ed. dos Padres franciscanos de Quaracchi, cd. mí-
uor, p. 96-97).
105, I) I(Sc I IAM PS, E. CEnvres, respectivamente I, p. 181; III, p. 34-35 c
I I 1; VI, p. 123; VIII, p. 149.

1)7
cía de ser um "vil pecador”. Mais uma ve/., ressurgem a<|iil ¿ir. sen
tenças d e jó e do Eclesiastes e de novo a pergnnla Ubi sim l?, C|ue
o poeta por sinal enriquece de notações novas e insistências pou­
co habituais sobre os personagens femininos:

Onde estão os graciosos galantes


Que eu seguia em tempcfe idos, y
Tão bem cantantes, tão bem falantes,
Tão agradáveis em feitos e ditos?
Alguns deles estão mortos e rígidos,
Deles agora nada mais resta.106107(Estrofe XXIX)
- ' ' ■ ' n ‘ V
Diga-me onde, em que país
Está Flora a bela romana
Alcebíades e Tais
Que foi sua prima irmã;
Eco...
De beleza bem mais que humana?

< >ndc esta a l;lo sabia I leloís...


A Ualnlia I>raiua com e> um lírio
(,)llr i .IIII.IN a ( t mi \c >/. de .sereia...
Mas . .u iIr . ii.iti as ne \es de o u iro ra ?"’’ (.Balada das dam as dos
\tempos idos)

( ) poel.i prisioneiro Jean Kégnier (1390-1468), ele também,


de maneira mais clássica, pôs em versos o lugar-comum Ubi
i ii . is
•m il ( )nde esta Artur, onde está Heitor de Tróia? / Onde estão
os bravos que gritaram MontjoieT , 108109
A história das mentalidades não pode deixar de registrar a
repetição desse tema, com o se autores e leitores não se cansas­
sem de repetir a mesma obsessiva verdade. Na já citada medita­
ção de Georges Chastellain sobre a morte, 8 estrofes em 93 são
também consagradas à eterna pergunta: “Onde estão eles?”.100
Este Passo da morte finalmente é um "espelho da morte”, prova-

106. VILLON, Fr. (éd. A. Maiy, Paris, Garnier, 1970), p. 26.


107. IbidMp. 31-32. Na época de Villon, tomava-se Alcebíades por uma
mulher.
108. Cf. CHAMPION, P. H istoirepoétique..., I, p. 278-279.
109. CHASTELLAIN, G. CEuvres, VI, p. 51-54.

í>8
velmenlc sei i verdadeiro (Hule > Ne.se sentido, ele se junta a Ioda
uma lileralura morali/ante que mohlll/ou essa palavra ( Es/k :ch Io
ilc pecadores; Espelho ele pecadores c pecadoras, etc.)110 e convi­
dou o h o m e m a olhar-se no espelho que lhe devolve a imagem
de seu futuro cadáver:

Príncipe, interpela Jean Meschinot nas Lentes...,


Observa esta vil pintura,
Que jaz de través, plena de grande feiura!
Tu ficarás em tal estador..1"

Passamos assim das interrogações monásticas sobre a mor


le para o sermão destinado a um vasto público, já que a questão
I 1)1 sm it? presta-se admiravelmente à predicação. “Miremos o
mundo e sua forma, aconselha Georges Chastellain, / Miremos
nossa fragilidade; / Miremos para ser salvos”.112
H a mesma lição que ensinam todos aqueles cadáveu s
ressecados ou em via de decomposição que a arte européia, en
ire o fim do século 14 e o fim do 16, deleitou-se em represem a i
com um realismo provocante, particularmente na França, na In
glalerra e nos países germânicos: a escultura de François de Ia
Narraz (por volta de 1390, perto de Lausanne), com sapos devo
lando os olhos, a boca e o sexo;115 o corpo nu, metade múmia,
metade esqueleto, do médico Guillaume de Harcigny (f 1393) na
capela episcopal de Laon, escondendo sua nudez com a mão os-
sosa;1" aquele outro, muito semelhante, do Cardeal Lagrange
( | I Í02) em Avinhão, com esta dura mensagem ao visitante: “In­
feliz, que razão tens para orgulhar-te? És apenas cinza e logo se­
u s com o eu um cadáver fétido, repasto dos vermes”;115.o de Gui­
lherme II de I lesse (f 1509) em Sainte-Elisabeth de Marbourg
que os vermes começam a roer; os de Luís XII e Ana de Breta-

I 10. LENENTI, A. II Senso..., p. 144-146 e 165-166. Já em 1266 Robert dc


1’Orme-redige um M iroir de la vie et de la mort, publicado em Romanía, t. 47.
p. 511-531 e t. 50, p. 14-53.
III. CHAMPION, P. H istoirepoétique..., II, p. 229-230.
I 12. CHASTELLAIN, G. CEuvres, VI, p. 64 8.
I 13. COHEN, K. M etamorphosis ofD eath Sym bol Berkeley: Univ. of Califor­
nia Press, 1973. pi 77-78, 93-94 c pl. 31 c 32.
I 14. Ibid., p. 103-104 e pl. 1 c 2. MÁI E, f . p. 347-348.
I I 5. CX)l IEN, K. M etamorphosiv , p. U Ut c pl S c 6. MÁI.E, E. Ibid.

09
ni i.i fin S;i int I)enis, com o roí no plano Inlei loi n pn \si ni ai lo .so
filíalo a lorie descrição de H. Male: "mi, as laces cavadas, o na
il/ ion ido, a boca aberta, o ventre rasgado pelo embalsamado!',
ja ,r. 'aislador, logo pavoroso, tão miserável quanto um mendigo
morto","" Aluda na segunda metade do século 16, algumas
obias, poi sinal tributárias da técnica e da estética da Renasceu
-a Italiana, continuam a representar escultura de mortos com
..... .. ■idad' ■ Intensa aquela, inacabada, de Catarina de Médicis
...... lo in n i «oi ulplda por Cirolamo delia Robbia em 1566"7 e
11111* I ........ia di \ ilenilnc balbiani (no Louvre) devida ao cinzel
................ . nu 1'llou <« u111 1572 e 1584) que soube associar aclmi-
i i . 11111 un " i .prelo delicado dos cabelos ondulados e as clo-
bi in d i ué «ilaIIia a um corpo macilento.118 Uma contagem recen-
i. |. laina ao ni.K abm permite corrigir um pouco a idéia tradi-
i loiial qin la/iamos da Renascença. Com efeito, foram contados
ah ar,, na ’,(> i luinulos (ainda existentes ou destruídos) dos sécu­
lo,-, I t I comportando a figuração de um cadáver: apenas cin­
to são do século I í, 76 do 15, mas 155 do 16. No 17, não en-
conlramos mais que 2 9 .119 De maneira mais geral, quantas igre­
jas, livros de horas e relógios dos séculos 14-16, quantas casas
pari R ulares, brasões, ou até mesmo lareiras nas salas de visitas
i ompoilaram imagens ou inscrições relacionadas com o memen­
to morl\ <) conlem/Hns m iin d i , transbordando do espaço dos
nn i'itelto'., Invadiu uma cultura.
i na, e|i ln< Itn.i, como ultimo componente, o temor cio jul-
i ..... ui" Minai ou parlleular) (|iie estava, ele também, logicamen-
i' ............... .. in ia p oem as anteriormente citados. Logo depois de
e i li a i " n li.io / l>l |ean Régnier, nas suas Fortunas e ad-
i , i i,l,.............. illiits' se a Virgem dizendo: “Neste grande dia, hu­
ndid........ de d suplico / Q ue faças que para Deus eu não grite /
ii ida ' in .uma no final das contas”.120 Mais impressionante é a

116. Ibitl., p. 434-435. 1


I 17. C-OI ll'.N, K. M etam orphosis..., pl. 93. Monumento inacabado recusado
por <àuherine e substituído pelo de Germain Pilón. Cf. PANOFSKY, E.
7frn b..., p. 80.
I 18. Ibitl., p|. 111-113.
I 19. Ibitl., p. 189-196. A lista de K. Cohén não pretende ser completa. As-
sim, a clígic de Metano na Itália do Nprte (catedral Saint Nicolás) não figura
nela (d. PANOFSKY, E. Tomb..., pl. 260 c p. 64).
120. Cf. CHAMPION, P. H istofrcpoétiqur , I, p 1 ‘9,

100
r\ ( >i ,k .I() do li 1(1,1VK> dia íclta por 1.11.st;u Ik• 1)csehamps. Seu D u -
l'l<> l<ii d a jra uilidcule hum ana, no conjunto, c medíocre. Mas seu
I.denlo desperta para descrever o dies trae e os sofrimentos do
Inlcino onde os condenados “gritarão com o ensandecidos”:

ouem poderá a ira evitar


I )este grande dia, e suportar
<) julgamento táo perigoso
One o céu, a terra e o mar
Pará arder e queimar?...

I lilao los condenados] terão muita dor


(irande medo [mau cheiro]
I grande choro
I! ranger de dentes
Angústia e muita tristeza
c irande tremor
lí ardor
lí muitos gemidos
Uivos
1'dme, sede e muito langor...
lerão vermes e serpentes.
Muitos tormentos
Permanecerão com eles
Sem retorno,
dom pavor
./
lí de Deus o julgamento.121

() retórico Vaillant, no Passo da morte, não se contenta em


I •11.i11.iscar o hino de Thomas de Celano ( “Eh! então, o pecador
" i|iic l.u.i / Quando esse terrível dia vier?...”),122 ele compõe um
......... » poema repleto de jogos de palavras e de bizarros refina-
iii* iu*»•. a Corneta dos anjos, sobre o tema do julgamento final:

(guando os quatro anjos trombetearem


I .i'.limosamente será trombeteado
Pi »ls quem não estiver com boa trombeta 1= solidamente apoiado]I

I 'I I >HS( íl IAMPS, E. CEuvrea, II. p. 295-2^8.


I < I IASTIÍI.I.AIN, G. (Iumn, VI, p. 64 \

101
Tremerá,...
líntão roguemos ;i Deus que cachi um trombeteie
As Vil virtudes que Deus trombeteará
Enquanto do inferno,...
Nao pudermos ouvir a trombeta ...1’3

I )c (|iic servirão os bens deste mundo, na hora do aceito


de contas? A perspectiva desse prazo obseda ña época os adap­
tadores do contemptus m undi. “De que valerá tua riqueza e ha-'
veres/ questiona lean Meschinot, Tua grande beleza, teus amigos,
lua sapiência/ Quando diante de Deus vieres ao julgamento?”123124*126
Je.in Molino! pede aos santos do paraíso que o “sorteiem” então
e que pleiteiem por ele diante do trono

|)o Kel que os reis comanda


Que bons i oll adores celia...
«.me os Instigadores fustiga
I H|l .11I>1 iti OI leMCI Il( 1,1 1

• mi, , ii ii i 111111 d< .i-linóes versificados, isso é demons-


II II ||I pi |o dltlli I|Mt I Min It Mol le e o homem mundano, coloca-
do no lliiii! •lio li'iih ' i/e /*/'///< l/u ! ' V h

I 1/ndH <) bomcm mundano


I ii 111, un i i*i Quando? c
M<i|il»liiiiii ni* I urna coisa dura
Ai! Para onde irei?
I' luí i pmlrlilili >
Preciso de conselho
Sal ' i inle.s.sar te
Nao .sel achar coisa melhor.1-1' v r-,

Nao se pode assim separar essa meditação sobre a morte


ilo insi,siente convite ao exame de consciência. Na época, urna
e outr.i Ibram os elementos solidarios de um mesmo discurso

123. ( 1 Cl IAMPION, V. H istoirepoétique..., II, p. 367. DESCHAUX, R. Les


( l '.uvres ele Pierre Cheistellain et ele Vaillant. Genéve: Droz, 1982. p. 160-164.
124. MARTINEAU-GENIEYS, Chr. Les Lunettes..., p. XXXVIII.
123. Ibicl., p. 419.
126. Ibicl., p. 237.

102
« l.il>imulo cli• Início nos mosteiros y depois difundido c.ul.i v i’/
i ii íi I.’. .im plum onk’. I>. ii aquelas rígidas sentenças de (leorges
• liasU’llain, sempre expressas em forma de interpelação de pee
>».uli >i para ouvinte;

l’ara (i, portanto, criatura humana,


Para li é a hora de tremer...
Duvida que deves traspassar...
Duvida do dia do julgamento.127
(
A propósito dessas palavras, será que se pode ainda falar
de ' familiaridade com a morte”? É certo que a Igreja da época con
\Ida o homem a pensar incessantemente na morte, mas nao a ha
Minar se a essa idéia. Sobretudo nào se deve acostumar-se a urna
piesença que acabaría por passar despercebida. A morte nao deve
ou nao deve mais - ser “domesticada”. Ela é uma passagem pe
rlgosa fjue só será transposta à custa de urna vigilancia de loda a
vida. Diante da morte, é preciso ter medo, e todas„as evocações
i In/.a e podridão, agonia, trombetas do julgamento e visões d< >In
lerno - são úteis para impedir que esse medo fraqueje.11"

a m orte conversora
O discurso cristão sobre a morte, çom efeito, nao pode ser
separado da insistência mais ampla sobre os fins últimos (em Ja-
lim os novíssima). Devemos então remontar novamente aos Pa­
dres do deserto. Porque foram eles c]ue credenciaram a série cro­
nológica “morte, julgamento, inferno (ou paraíso)”.129 Foram eles
que lançaram o conselho de meditar sobre a morte para melhor

127. C H A ST EL LA IN , G. (Euvres, V I, p. 64 6 et 64 7.
I 28. Não há dúvida de que houve reações cristãs a essa pedagogia traumatizante.
I 29. Vou utilizar muito nas páginas seguintes um estudo de Fr. Bourdeau e A.
I >anet, “Fiche de prédication missionnaire: la m ort”, redigido em 1954 para
uso dos redentoristas e que o Padre Bourdeau amavelmente me comunicou.
Fm seguida, assinalarei este estudo de Fr. Bourdeau, La Mort... Ele foi parcial-
monte retomado em dois artigos publicados por: Fr. Bourdeau e A. Danct,
T.uit ¡I prêchcr la cráinte de la m ort” na Vie spirituelle, n. 4 9 2 , março 1963,

m:i
,sc* preparar para a eternidade: um conselho lidado de maneira
Indissociável ao convite para o conteniptus nnunlt, Sao Paeômc
(| 3 iH) di/ia a seus monges da Tebaida: “Antes de tudo, tenha­
mos diante dos olhos nosso último dia, e temamos a cada ins­
um e as dores eternas”."0 Já se escreveu sobre Santo Efraim ( |
outro monge do Oriente: “É raro que ele não leve seus ou-
vInti •a pensai na morte e no julgamento”." 1 Retornando do Egi-
im ^ml. 111| pim tirar a sabedoria junto aos monges, São Basilio
11 ■ 'o , mi. n iig.ido por um intelectual que lhe pergunta: “Qual
• i . I. 11111. .i•. d.i lllost illa?". Basilio responde seguindo Platão: “A
.
1 11111 . h i di I..... to d a lllo N o lia é a m editação d a m orte”." 2 Em ou-
............... . to imp. >itunado poi dois filósofos, Basilio dá a mesma
i. .|i.. .i,i i ni. \11■.•.a filosofia seja sempre pensar na morte!”1"
í Io 11 11 i In. i'.i .iii da aseensao a Deus, Macario, o Egípcio (f 390),
. oloi i ,i lellesao sobre os fins últimos: ter no espírito o dia de
ai i moili . Imaginai o comparecimiento diante de Deus, o julga­
m e n to , os castigos reservados aos maus e as honras dadas aos
santos,"' () convite a meditar sobre os fins últimos é particular­
mente forte numa exortação de Evagro (f 399) a cada um dos
seus monges:

Quando estiveres sentado em tua cela, recolhe-te e pensa no


dia de tua morte... Que a vaidade deste mundo te cause horror...
is n .a lambem naqueles que estão no inferno... Mas lembra-te
I iiuhi ui «li» dia da ressurreição; tenta imaginar o divino, o terrí-
>. I |ulgainrnl<» <ieme então sobre os castigos reservados aos
.........Inii . lima, cobre le com a imagem de suas lágrimas, no
i. in> >i d. paillclp.ii de suas ruínas; entretanto, ao pensar nos
I.. ii |ni iini-tldos aos justos, rejubila-te, exulta e entrega-te à ale-
i'iia Que leu espírito não perca isso de vista, a fim de que as­
am possas pelo menos evitar os maus pensamentos.1"

I» .'.Ml 297 c I r. Bourdeau, “Les Origines du sermón missionnaire sur la


morí" cm ll)id., p. 319-338.
130. Puir. I.at., I.XXIII, col. 265 (Vila sti Pacômi abbatis...).
131. GUI1 I,ON, N. S. Bibliothèque choisie des Peres de 1'Eglise, Bruxelles, 1829,
VIII, p. I 13.
132. Puir. Gr., I.XXXIII, col. 297 (Vila sti Basilit).
133. Ibid., I.XXXIV, col. 909.
134. Pair Gr., LXVII, col. 1163 (Epistqla sti Macurii ud filios).
135. Pair. Gr., LXXI1I, col. 966 c scg. (Verba seniornm III. "De ampunctionè').

i 'Jtrfm |miu

101
Santo Agostinho, profundamente marcado pelo monaquis
mo e (jue impôs ao sen clero a vida comum e a pobreza, escre­
veu, entre outros discursos sobre a morte: “H pelo eleito de urna
grande misericordia que Deus nos deixa ignorar o dia de nossa
morte, a lint de que pensando todos os dias que podeis morrer,
vos vos apresseis em vos converter”.1'0
Esses textos traçam para nós um caminho através da tradi­
ção monástica. Porque foi ela que primeiro viveu e depois ensinou
o </uotidie morior e a necessidade de fazer da vida urna prepara­
dlo para a morte. No capítulo 4 da regra de Sào Bento (f 543), en­
contramos os seguintes convites: “Temer o dia do julgamento; re­
cear o inferno; desejar a vida eterna com ura ardor todo espiritual;
tu cada dia diante dos olhos a eventualidade da morte”.1'7 A “es­
cada do paraíso” de São João Clímaco (f 600) comporta no seu
sexto degrau esta comparação esclarecedora: “Assim como o pão
c* o iríais necessário dos alimentos, assim também a meditação so­
bre a morte é a mais importante das ações”, e esta outra fórmula:
"Assim como se diz comumente que um abismo é uma profunde­
za de agua que não se pode sondar e que é por essa razão que
lhe dão esse nome, assim também o pensamento da morte produz
em nós um abismo sem fundo de pureza e de boas obras”.1361738139
A espiritualidade cisterciense não deixou de adotar a me­
ditação sobre os fins últimos.. Embora o próprio Sào Bernardo
nao tenha atribuído uma importância primordial ao pensamento
da morte, a posteridade, porém, reteve algumas das suas fortes
sentenças sobre o tema que figuravam num sermão dirigido a
seus monges: “O que sào os fins últimos? perguntava ele, porque
dizem que, se te lembrares deles, não pecarás. É a morte, o jul­
gamento, o inferno. O que há de mais horrível que a morte? O
que há de mais terrível que o julgamento? Porque não se pode
■onceber nada de mais insuportável que o inferno. O que mais
podemos temer, se diante disso não estremecemos, não nos apa-
voramos, não somos estremecidos pelo temor?”.1'9 Essas interro-

136. Patr. Lat., X X X V II, col. 1 .8 7 6-1.8 77 (Enanatio in Ps.144).


137. Ia Régle de saint Benoít. Trad. H . Rocháis. Paris: Desclée de Brouwer,
1980. p. 24-25. Cf. também Règles des moines. Ed. J.-P. Lapierre. Paris: Seuil,
1982. p. 67.
138. Patr. Gr., L X X X V III, col. 7 9 4 -7 9 8 (Sca/a Paradisi; gradus VI).
139. Patr. Lat., C L X X X III, col. 572 (sermão X II: D eprim ordiis, mediis et
nonlsumis).

105
gaçi)c\s angustiadas convidam a nao datai apena-, do m -i ulo IS
ou do 17 - , com o se Ia/, às vezes, a tran.sformaçao do medo na­
tural da morte num medo religioso do julgamento. O discurso
monástico já linha há muito tempo operado a transferência. Des-
modo, a mcdilaçào sobre os fins últimos estava prevista nos
i \i n i< Io-, e.-.piriluais da Ordem de Cistèr. Uma D e vita eremítica,
mibuid.i aos <isteivien.se Aelred de Riévaulx (f 1166), comporta
d* •i ipimlo i ao capitulo 77 um programa de reflexões versan­
do ,n. i av miente sobre o passado: as benesses de Deus; sobre
.. pu m ule i miseria humana; e sobre o futuro: a morte, o julga-
............. . i . h inid,ule bem aventurada ou mal-aventurada.140

\ ipail(,ao das ordens mendicantes, dedicadas especial-


......... a |u•p,.u ai i, l.i< illtoti a difusão cía cogitado mortis em círcu­
lo, .ada ve/ mais amplos da população. São Francisco de Assis
.......... ii na sua Segunda Carta aos Fiéis: “... Saibam todos que,
em toda parle e seja como Ibr que um homem morra em pecado
un nial, sem satisfação - ele podia satisfazer e não satisfez ca dia­
bo arranc a a alma cie seu corpo com tanta ansiedade e tribulação
que ninguém o pode agarrar a não ser aquele que ca recebe... Os
vermes comem seu corpo e sua alma neste breve século, e ele irá
para o inferno onde será atormentado sem fim”.1'11 Ora, esses avi­
ar, de-.embocnm num parágrafo da Regra de 1223 consagrado à
pn gardo, no qual se diz: “... Fxorto... meus Irmãos...: para que,
1.1 |a. e i. a. >que la/.eii), suas palavras sejam pesadas e castas, para
i utilidade < a . dlflcaçdo do povo, anunciando-lhes os vícios e as
liliid* i pena e a gloria, com brevidade de discurso”.é2143De São
li ni. i . . . |ia .,.11111 >-. naturalmente a São Boaventura cujo Solilo-
.iiim ni \. nl.idcli.i apologia do contemptus m undi - , depois de
im ... n i 1111.« da do mundo, recomenda à alma cjue se volte “para
a , n ali.lade , Inferiores, para que compreenda a necessiadde ine-
\n,i\ el da morte humana, a equidade temível do julgamento final,
a duie/.i Intolerável cio castigo infernal”.145 O último capítulo da
obra enfim faz erguer os olhos para “as alegrias do céu”.

140. Patr. Lut., X X X II, col. 1 .4 6 5 -1 .4 7 4 (De Vila erem ítica). Cf. também
T E N E N T I, A. II Senso.,., p. 66.
141. D A SS1SE, François. Ecrits. Ed. Sources chrétiennes. Paris: Cerf, 1981.
p. 241.
142. Ibid., p. 195.
143. BONAVENTURE. Soliloquiutti. Cionsultri .i ti mintió ele F. Mézièrc, na
“Blbliothèquc des âmes chrétiennes", l'.ni ,, IM">9, p, I ’8.
A Tenenti mostrou bem <jut* na longa pré historia tías A r
h"> nioriendi o dominicano místico I lcnri Suso (1296-1306) ocu
pa mu lugar im p o r ta n te .Seu Livro da sabedoria eterna (em ale
mao) c seu Horologiuni sapieu ticte - este último é às ve/.es apre
ut.ulo com o uma tradução livre do primeiro - insistem de ma
nelra concordante sobre a necessidade de aprender a morrer e
sobre o fim trágico do homem que morre sem preparação. Ilumi
nado pelo espetáculo das agonias e pelas imagens do inferno e
do purgatório, o “servidor” da sabedoria exclama:

Ah! Senhor... Que temor é o meu! F.u jamais soube que a mor
te estava tão peito de mim... Estarei todos os dias espiando a
morte e olharei ao meu redor para que ela não me surpreenda
por trás. Quero aprender a morrer, quero levar meus pen,samen
to para o outro mundo. Senhor, vejo que a minha morada nao <•
neste mundo."s

A. Tenenti observa que “a expressão scientia ou doctrina


ntoriencli não é encontrada antes de Suso”.14*146 É revelador por ou
11o lado que o capítulo XXI do Livro da sabedoria eterna , de
onde c tirado o fragmento anterior, tenha sido muitas vezes pu
bllcado separadamente, no fim do século 15 e no início do l(i,
Mimo /1/s moriendi147 (Sterbebüchlein). Não se poderia destacar
melhor o papel do dominicano alemão na difusão européia da
meditação sobre a morte. ITm desenvolvimento ulterior fará logo
aparecer as responsabilidades conjuntas dos dominicanos e dos
Ir.mciscanos no sucesso da Dança macabra.148 Pelas mesmas ra-
oe.s pastorais, eles pregaram sobre os fins últimos. Conservou-se
um sermão (em latim) de São Vicente Ferrier (dominicano), so-
bre "a quádrupla morte” onde esta é assim definida: a primeira é
,i morte espiritual, que devemos evitar totalmente (o pecado); a
•.egunda é a morte corporal em relação à qual devemos tomar
ia issas precauções; á terceira é a morte infernal que devemos evi-
i H acima de tudo; a quarta é a morte eterna que devemos temer

144. TEN EN TI, A. IISenso..., principalmente p. 32-34.


144. SU SO , H. ( CEuvres completes, apresentação, trad. e notas de J. Ancelet-
I lustacjic, Paris: Senil, 1977. p. 391-39 2 (cap. X X I do Livre de lã sagesse..).
I4(>. TENENTI, A. IISenso..., p. 65.
147. SU SO , H. CEuvres..., p. 82 c 381.
I4tt, Ver mais adiante p. 100*102,

107
(Isto e, ,i c<>ndenaçao pelo julgamento),"’ falla um poili o de Io
gl» ¡i nessa sequência. Mas ela reencontra sua coerência no Pls-
positorinm moriendi de outro dominicano, Jean Nidcr (| 1438),
atitoi aliás de uma célebre obra de demonologia, o Form icarius.
<) Disposltorhnn insere a reflexão sobre os fins últimos nas pesa­
da. estruturas escolásticas da época.150 Quanto ao franciscano São
I a nai i lino de Siena (| 1444), ele consagra um sermão aos Q ua-
iii"i nol is\¡nut que seguem uma homilía sobre a morte, outra so-
I........|u bra 11H nlo, uma terceira sobre o inferno e duas outras so­
bo as luíoslas da condição humana.151
\ dllusao da reflexão sobre as origens e as conseqüên-
i l,i da i i i o i ú opeiou se também através da espiritualidade da
l'i rolio nio.lriiiti, um segundo caminho que cruzou e facilitou
m pilmelio 1’aia Is bourdeau, “esta escola nórdica, representa-
11\ i d. uma oiaeao ao mesmo tempo metódica e afetiva, pare-
<e tis slsksnallzado a meditação dos fins últimos”.152 De fato, o
i'tisclaiUniHs de Ciérard de Zutphen (f 1398), durante muito
tempo atribuído a São Boaventura - atribuição errônea, mas sig-
niflt ativa comporta uma seqüência de reflexões sobre a mor­
te, o julgamento e o inferno.153 Do mesmo modo, na Im itação ,
nao so o religioso, mas também mais geralmente todos os cris­
tal o desejosos "ile fazer algum progresso” são convidados a me­
ditai siu es.lva mente sobre a miséria humana, a morte, o julga-
iia nt<• o luleino e o céu .15,1 Na esteira da Im itação , o Cartuxo
n. . d imli ■ 11, nys de Hyekel ( | 1471), autor de umas 200 obras
d. i, i.|ii)i|,i misil» a, com põe por sua vez um D e Q u atu or hom i-
m nori.sim is, o ijtial Inspira, entre outros, no fim do século 15,
■i Itosrlnm de |< an Mombaer. Ora, no título 35 da compilação
i i i ii. i di si. uliliiii), encontra-se uma Prologas generalis in

I r>, I I KRII'U, Vincou. CEnvres, Lyon, 1555, p. 559s.


|s(). TI'NI'.N I I, A. / / Senso..., p. 69-73.
I s I. SlKNNb, Bcrnardin de. Opera omnia. Éd. J. de la Haye, Paris, 1635, 2 v.
de dois tomos cada um: sermões latinos somente. Aqui: v. II, t. 3. sermões “ex-
n.ioidiiKÍrios”, XIV, XVI, XVII, XVIII, XIX e XX, p. 498-530, o sermão XV, é
consagrado à “satisfação”.
152. IIOURDEAU, Fr. “Les Origines...”, p. 328. Lembro que em toda esta
exposição eu sigo estritamente o Padre Bourdeau.
I 53. ( ]f. o artigo “Cisneros” do D ictionnaire de Spiritualité ascétique et mysti-
que, 2 p. 910 a 921.
154. I.Imitation (cd. Senil, 1961): I, cap. I1), 2 t. ’ i. p 16-54.

1OH
i/niiliior novíssim a onde figura este aviso: "Guárelo com eukla
do no iik'U coração estas (jualro preocupações: minha inorle, o
|tllgamcnlo, Ç) negro abismo e o claro paraíso”.1''’ Seguem-sc i5
paginas de desenvolvimento (na edição in-4° de 1503). Pelo
i s r i i lta torio de la vida sp íñ tu a l (1510) de Garda Cisneros, a
meditação sobre a morte cara à Devotio m oderna atingirá San­
io Inácio de Loyola e se difundirá em seguida através da prati-
1a dos Exercícios espirituais.™
Mas, desde o início do século 15, ela já tinha marcado Ger-
"II Ora, a terceira parte do Opusculum tripartitum deste autor
i onsliluiu uma das maiores fontes da Ars moriendi cujo sucésso
Ia afirmar-se depois de 1450, sendo a outra fonte principal o Cor-
>H<de (¡uatuor novissim om m . Durante muito tempo atribuído ao
< aldeai Capranica, este último texto foi mais provavelmente com
posto na Alemanha do Sul, talvez por ocasião do Concilio de
i onstança e a partir do Tratado de Gerson. O autor podería sei
um dominicano de Constança. A circulação deste escrito no Im
« Io leria então se beneficiado de dois suportes: os padres que
\ollaram do Concilio e a Rede de Conventos Dominicanos.1 Se
' sia hipótese for correta, Devotio m oderna e Ordem dos Irmãos
bregadores teriam, então, desempenhado um papel decisivo na
elaboração da Ars moriendi. ^
Na esteira de Roger Chartier, podemos representar em
grandes traços a espantosa carreira desse best-seller,1516*58 “verdadei­
ra cristalização” da morte cristã, notaclamente sob a forma icono­
gráfica. A Ars m oriendi - que pretendia ser uma “técnica” ou um
'método” para bem morrer - é de início um texto conhecido sob
duas versões. A versão longa comporta seis seqüências: recomen­
dações para bem morrer, tentações da agonia, perguntas a fazer
ao moribundo, orações que ele deve pronunciar, comportamen­
to da assistência, orações aconselhadas a esta última. É a versão

155. Transposição por Fr. Bourdeau de “Bis duo sunt, quae cordetenus sub pec-
tore misi, M ors mea, judicium , bàrater nôx, lux paradisi".
156. Ver mais adiante p. 397.
I57. Essa é a hipótese da Irmã M.C. O ’CONNÓR, The A rt ofdying well. The
I'>cvclopment o f the Ars m oriendi, New York, Columbia University Press, 1942,
p. 61-112.
158. CHARTIER, R. “Les Arts de mourir, 1450 1600”, em Anuales E.S.C.,
j.MKUro-fevereiro de 1976, pi 51 -75, com bibliografia remetendo notadamen-
tc a A. lencnti, U Senso... e a M. ( ()'< onnor (vn nota anterior).

10!)
ele i ju.isc* lodos os manuscritos e el.i malotla il.is i <ll< no. tlpogra
(leas, A versan enría enquadra as tentações da afonía entre urna
inlroduçáo e uma conclusão. H a versa o das edições xilográficas
e de urna grande minoría das edições tipográficas.
A Ars m oriendi conheceu o sucesso já sob a forma de ma
uu.si ritos. Os catálogos de bibliotecas permitiram levantar ate
agora 23 i deles: 120 em latim, 73 em alemão, II em ingles, 10
em francés, 9 em italiano, I em provençal, 1 em catalão, 1 sem
Indleaçao ile língua. Pelo número de manuscritos conservados, a
. Os moriendi vem depois da Bíblia, certamente, e depois da Im i­
tando (700 manuscritos), do D e Regim ineprincipum de Gilíes de
U<)ine (cerca de 300) e do Román de la Rose (cerca de 230). Se a
0 s moriendi causou choque foi principalmente por causa das 1 I
gravuras que ilustram a versão curta: elas apresentavam, ao redor
do leilo do moribundo, as cinco tentações (infidelidade, desespe-
ro, impaciencia, vangloria e cobiça), rejeitadas graças a cinco ins-
pliacoe*. angélicas, A Ars moriendi, no estado atual do conheci-
1111 nln, p a u te leí sido o mais difundido dos livros xilográficos
i I i"Mt |i o ti tilo*, editados dessa maneira), sendo aliás certo que
• 11111 •n i•• d. i ulnas l'ol multiplicado por meio de c’artazes e
1 ............... .11* pedí mi o i i diados ñas paredes. Um “pincel sobre
p tp .l p n p iiid n di leiomc Bosch, representando a Morte do
i IIWh 'ii /m ' urna vail.u .lo sobre a tentação de cobiça das Artes
HiiHlvihllA'* ç, - /
\ iiiipM ii’i.i ........Hit ni a expansão da Ars moriendi, ao mes-
iiii. i. mpi' <pii lain, ava ao grande público obras mais antigas (/7o-
1 1 .i>inm 11, '.us. i, ( )/>io trl/xirtitum de Gerson, Cordiale... novis-
kiiin •inni i, . i i |< >s te\ti *,s K mvergentes atraiam a atenção dos cristãos
0 .1«i. i un ni. c o julgamento. Irmã O’Connor levantou 77 edições
1 .... ................da In moriendi, número certamente inferior ã rea
lldade;*1"1 31 para a versão longa, 26 para a curta, 42 em língua vul
gai (portanto, destinada sobretudo a leigos) contra 33 em latim. Os
centros de difusão foram por ordem decrescente: París (17 edi
çnes), Italia do Norte (14), Alemanha do Sul e Renánia (14), l.eip
zlg (9), Países Baixos (6): uma geografía que, em seu tempo, im
poe uma comparação com a das Danças macabras.162 Setenta e sete

I 54, lista pintura está em Washington.


160. O’CONNOR, M. C. TheArt,.., p. 133 171.
I(>I. TI'NIvNTI, A. L a V ie e tla m orí.. , p , 45, ( liega h 47.
t(>2. Ver mais ailiantc p. 40.
edições (ou 97 ,segundo A, 1'encnli) podem lei' representado cerca
de 50 mil exemplares (ou 03 mil na segunda hipótese). Esses nu
meros parecem modestos, mas ganham destaque por comparação,
uma ve/ que foram identificadas 85 edições incunábulos da Imita
ção.'"-' As duas obras, pelo menos durante a segunda metade do
século 15, estiveram, portanto, situadas quase no mesmo nível, lí
verdade também que a Ars moriendi (e uma observação análoga
vale para a Imitação) representa na época apenas 0,5 a 2% do li
vro religioso. Parece relativamente pouco. Entretanto, sobe para 3-4%
se acrescentarmos outras “Preparações para a morte”: Espelho da
morte de Georges Chastellain, Passo da morte de Aimé de Montge-
soye, Ditado para pensar na morte de Jean Molinier, Espelho dos
pecadores e pecadoras de Jean Castel, Lentes dos príncipes de Jean
Mcschinot, Lamentação da alma condenada (de autor anônimo),
ele."" Alberto Tenenti assinalou que o Cordiale..., impresso pela
primeira vez em 1471, tinha dado lugar a 45 outras edições latinas
antes de 1500 e a igual número de traduções estrangeiras. I Im d» »s
elementos do sucesso do Cordiale foi a percuciente iconografia
macabra que ele continha.165 Com Roger Chartier, podemos cutan
ver na /Irs moriendi, do século 15 e nas obras adjacentes “uma
arma importante para uma pedagogia de massa”,166 mas com a con
diçào de precisar com este autor que a maior difusão das “Prepa
rações para a morte” realizou-se mais tarde (no século 17) e que o
impacto dessas obras sobre o público no século 15, assim como
no 17, era na realidade multiplicado pela pregação que desenvol­
via os mesmos temas. O papel de Geiler nesse sentido é probató­
rio. Chegando a Estrasburgo em 1478, o célebre pregador tomou
por tema de sermões a “arte de morrer”. Pouco depois, ele tradu­
ziu para o alemão e publicou em brochura popular a última parte
do Opas tripartitum de Gerson que trata precisamente da maneira
de aprender a morrer bem.167
Alberto Tenenti e Roger Chartier demonstraram, por um
lado, que depois de 1530 e durante o restante do século 16 asA r- 163457

163. CHARTIER, R. “Les Am de mourir”, p. 63. LENHART, J. M. “Pre-


Rcfonnation Printed Books. A Study in statistical and applied Bibliography”,
cm Library: A Quaterly Review o f Bibliography an d Libraty I.orc, 1903-1907-
164. T E N E N T I, A. La Vie et la m ort..., p. 6 0 .

165. T E N E N T I, A. IISenso..., p. 8 0 - 8 1 .

1 6 6 . C H A R T I E R , R . “L es A rts d c m o u r ir ", p. 5 5 .

167. DACI1EUX, L. Les Pliis anciens i'iihs J e ( tei/ee, Colmar, 1882, p. II-IV.

III
tes m oHcudi c outras "Preparações pata .1 1n< h1• solreram um ni
lido recuo uii livraria, principalmente na l lança, e *U* outro lado,
<|iir o d|,st urso cristão sobro a morte tinha se enlao diversificado.
Masía resumir aqui seus argumentos concordantes sobre esses
pontos Km Karls, constatam-se ainda 5 edições da Ars moriendí
entre IS()I c 1510, contra 4 para os decênios 1511-1600. Km 16
mil edições lionesas do século 16, somente 2 são consagradas a
. l/\ motiendi, bordeaux, durante o mesmo período, publica 71 I
edições, mas só uma “Preparação para a morte”. Na Inglaterra
também a A rs se mantém com dificuldade: 4 edições, das quais
as duas ultimas sao de 1506. Constata-se, todavia, uma certa so­
brevivência da Ars na Europa do Norte e do Leste: 5 edições na
Suécia e na Dinamarca entre 1533 e 1580 e 5 versões antiprótes-
lantes impressas em Dillingen (Baviera) de 1569 a 1603. Mas tudo
Isso e pouco ao lado das 200 edições da Imitação.
I bem verdade que várias “Preparações para a morte” de
um novo e .iilo elas querem levar à boa morte por uma boa
vida t onlie< em um real sucesso. K o caso sobretudo do trata
do d. f < II' hio\< . /><• Doctrina m oriendi... a d m ortem foeli
, th 1 iil'/'i'lcuJiini , editado I I vezes em latim, em Paris e em
\m 'i di I •’(> 1 1 . i(i, ( traduzido em francês em 1533; e prin
ipil....... . d " /», I'i i'/iarallonc ad m odem de Erasmo (1534)
.............. I............u 1 dl> 01", 1 m latim ou em línguas vernáculas no
it 111111d*1 ......... ,11 11Io Ki. Depois disso, esta obra de um au
1m i ,"'P ' ii" 1 11 111n 1it< seia reeditada. Além desses dois clássi
•ou, " |ie ■niuii" da • Preparações para a morte” nos domínios
u un ' , 1111>,I' , ia 1 ,< •ulo l(> só registra poucas obras”:168 de cada
fu i" uma d< .' na de títulos que juntam meditações protestantes
■ 11111 Uvas 1a 1<>1U as, Na Inglaterra, o Tratado do Leigo Erasmia
tu' I upsei t PD 1) tem 5 edições em dez anos.169 Em 1561, apare
i e o do calvinista T. Becon, reeditado 11 vezes no século 16 e
sete vezes nos trinta primeiros anos do 17.17017Em terra romana, a
produção jesuíta sobre a morte com eça a afirmar-se com O Mc
todo /tara aju d ar os m oribundos de Juan Polanco ( I a edição Ia
lina I575)1’1 um pequeno livro muito imitado —e, sobretudo, o

168. (IIIARTIER, R. “Les Arts de mourir”, p. 57.


169. I,UPS ET, T. zl Compcndioiis and a veiy fru tefu l treatyse teachynge the wdy
ofD ycrnge w d l 1534. Cf. TENENTI, A. IISenso..., p. 109-111.
170. ItECON, T. The Sicke mannes salve...
171. POLANCO, J. M ethodus a d eos adjuvandos i¡ i i ¡ m orinnlun ex comido
dum doctorum ac piorum scdjttis, dio dinluinotiur mu. el oburvatione collecta.

I K!
I >< \rle hette m oriendi de bel.umlno (. I()20): no loinl, 20 mulos
|< iuiI.in .sobre ,i morlo entre IS i() e l()20... contra 139 do l(»2l a
I '()() e 10! do 1701 a 1800,IJ lissa comparação por si só coníir-
ina a estiagem do século 10.

A diversificação do discurso cristão sobre a morte merece


•|tie nos detenhamos sobre ele, mas esclarecendo-o com diversos
mall/i-s. Portillo a insistência particular da Ars m oriendi sobre a
agonia permanece forte ao longo de todo o século 16. Um texto
do leigo espanhol Atejo Venegas é exemplar a esse respeito. Ide
■ i siiaitlo do sua obra mais conhecida, a Agonia dei transito de
Li muerte, publicada em 1537 e reeditada pelo menos cinco ve-
■ aiiles de 1575. Depois de afirmar que a vida do cristão é “um
longo martírio que acaba na morte”,173 o autor aconselha prepa-
i ii m de antemão para uma “passagem tão terrível e perigosa”.17'1
1 f I. mbia a seguir que “agonia” quer dizer “luta”, não só porque
........ ... posto instável que é o corpo libera então seus constituiu
les aniugónicos, mas sobretudo porque nesse momento o homem
•nlia na maior batalha de toda a sua vida - batalha “espiritual"
i< ompanhaila de tanta “ansiedade” e até mesmo de “angústia"
•111« iodas as aflições passadas da vicia são menos duras de su-
I" >il.ii do que essa única passagem”.175 Segue uma espantosa aná-
li da tática demoníaca no momento em que o paciente não é
mal ■di 'tendido pelos seus cinco.sentidos. É então que o doente
i la mais exposto;

Antes ila perda dos cinco sentidos, seja qual for a enfermida­
de do doente, o diabo não ataca como na hora da agonia, de­
pois que se perdeu o uso dos sentidos.” Então, “o diabo vê que
o paciente se aproxima da umidade radical Ia morte] e que res­
ta pouco tempo para tentar conquistá-lo”. Em seguida, ele coni-
picende que o doente “está agora despojado dos instrumentos -
os cinco sentidos - com os quais pocleria defender-se. Porque
<le bem sabe que estes foram dados ao homem para que, grá-

I M l IARTIER, R. “Les Arts de mourir”, p. 63 e 73. SOMMERVOGEL,


< Hildiof/x\/iie de la Cie de Jesus, t. X, Paris, 1909, p. 510-519.
I V A \ynnia d ei tramito se encontra no t. XLIII da Colección de los majores au-
h'h'\ españoles: Tesoro de escritores místicos españoles, v. 2, Paris, 1847, aqui p. 1.
17-1. Iliiil., p. 14.
I a II>iii.. p. 44-45.
<,,ts ,i rlr.s, pudesse Vencer O diabo, g.mli.u .1 gloria Ido <eu|, sul)
metendo-os á razão c submetendo osla o aqueles .1 lê". Conclui-
'.r "<111 c* o diabo ataca mais forte (|iiando vê (|iic a vida se acaba
c o paciente está menos capaz de resistir a suas armas secretas
e a seus estratagemas”.17"

|t >)',,! se tudo nesse momento em que o moribundo parece


qu 1 . >m *I•I< ,,i e em (|tie mais do que nunca é capaz cie pe-
11 \i th e 1 notemos de passagem - nào se deixa tocar pela
id* 1 1 d< que um moribundo já quase aniquilado poderia ter cir-
.........111 1is atenuantes t aso viesse a sucumbir. 'Para ele, “jamais
.' di 1i e . 1, 1n u 1.1 11 homem na hora da agonia se não pensasse po­
dia Ia ' |o pis ai de novo e além de todos os pecados aos quais
m 111' liou .ni longo da vida... Se estivesse certo de que o pacien-
ti |a 1 sia seuleiH lado c incapaz de pecar quando entra na passa­
g e m da agonia", ele nào o tentaria mais e usaria suas armas em
outra parte, Mas as coisas nào se passam dessa maneira: “Não 'ê
porque os cinco sentidos/estão perturbados que a alma está pri­
vada de julgamento e de razão”. Ao contrário, nesse ponto extre­
mo da vida, "a alma está mais viva e mais concentrada do que
em qualquer outro momento de sua vida passada”.176177 Cúmulo de
diamall/ai .10: Vcncgas julga, na lógica do raciocínio anterior, que
............bale linal lem lugar depois da redação do testamento, de-
I" a d.......... ílv.,10, depois do viático,17” como se esses três remé-
dl*' n a.. I... .em suficientes para afastar definitivamente o malig-
11 11 . ..........la di 1 livro, o autor enumera as tentações propos-
1 1 1 a ' ' iiii'ilbiind o I nrlquccendo o m odelo das Artes m o r ie n d i,
. li u ii 1 nia .1 . tentações clássicas solicitações adaptadas ao
p a- a |m•de , , i i . a lamilla e à co m p leição de cada um .179*
< .iiiiii milcos especialistas da morte de sua éppea, ele
.......Illa que (!•. demônios aparecem aos moribundos no meio de
Ir nii\e|\ \im Ve negas junta-se também a Savonarola (Predi -
. ./ del/ (irle dei hene moriré , 1496) e a Raulin (Doctrínale mortis,
I dH) p.ua pensar <|iie o homem é semelhante a um jogador de

176. Ibid..
177. Ibid.
178. Ibid.
179. Ibid., |>. 52-107.
IHO. Ibid., |>. 83-87. Cf. também TF.NENTI. A. /ISenso,,., |>. 315 (para Pic-
tio da I liten).
s.u lii’Z *11 ic* pode perder linio t'in a n i s o |i kmu i. i de mu Cínico erro
no I iiii ci.i p.ulkl.i."" (ion ipreeiKle-.se cnláo a importância atribuí-
tía poi lanías "Preparações para a morte” a escolha ele um amigo
piie acompanhará o moribundo com seus sabios conselhos e
•na-, piedosas exortações, o papel crescente que logo será atri­
buido ao viático (apesar do que escreveu Venegas) como ele­
m ento determinante de tranquilidade na chegada da morte e en-
lim a multiplicação, no século 16, das confrarias que se propu­
nham nao só rezar pelos moribundos, como apoiar os condena­
dos a morte.
() sentimento de que o momento da morte é o “ponto” cle-
t isivo em que se joga a eternidade, de tal modo que se pode di-
< i r o m IMetro da hueca (JDottrina del loen moriré, 1540) que o fim
do homem é “assustador”, atravessou a época do Humanismo. O
pioprio l '.rasmo declara de maneira bem tradicional no inicio de
■na / 'reparação para a morte-. “Desse último ato de nossa vida,
que podemos comparar a um drama, depende a eterna felicidade
do homem ou sua desgraça eterna. Aqui se trava o supremo com
bate do qual resultará para o soldado de Cristo um eterno triun­
fo se ele obtiver a vitória, ou urna eterna desonra se for vencí
do”."4' A morte é vista assim no sentido estrito do termo, como
urna “catástrofe”: ou seja, como o evento decisivo que traz o de­
senlace de cada Historia humana. Montaigne nào está longe des­
se sentimento quando escreve de nosso último dia: “É o dia so­
berano, é o dia juiz de todos os outros: é o dia, diz um Antigo
Isênecal, que deve julgar todas as minhas ações passadas”.181283184*,Em
uma homilía dominical, Jean-Pierre Camus dirá aos seus ouvintes
no início do século 17: “Para nos habituarmos à viver justamente,
devemos ter em mira o nosso fim, que é a morte: é a amostra e
o instante que deve servir para julgar a peça inteira... A catástro­
fe é o mais belo da comédia e a conclusão é a melhor parte do
epigrama; estejamos bem atentos à catástrofe e à conclusão que
deve terminar os registros sobre os quais seremos julgados”.188
() espaço concedido às tentações nas “Preparações para a
morte” foi diminuindo no curso do século 16. Mas esse desapá-

181. Cf. TENENTI, A. IISenso... p. 95 e 114.


182. ERASME. L a Préparation..., p. 9.
185. MONTAIGNE. Essais, I, ch. XIX: I, p. 111.
1 8 4 . ( A M U S , J.-P . Homélies dominicales, R o n e n , 1 6 2 4 , p. 3 8 1 ( 1 5 o d o m in g o
d e p o is de P e n te c o sté s).

i ir>
re< lincnlo relativo ( |>orc|Ut* nao se pode l.il.ti de siipn s s . k >) só se
operou lentamente. () De Doclrfiui m oriendi d e Cllchtove, obra
(jiie Invoea Cícero e Séneca ao lado de Sao Cipriano e Santo Am
Iíroslo para tranquilizar contra a morte, identifica, todavia, dez
tentações na aproximação da morte e lhes consagra a segunda e
maloi paite do livro.1"' No D e Preparatione a d mortem de líras-
tiio ' i t spaço concedido às tentações é muito mais discreto (cer­
ni d< um décimo da obra).'"6 Entretanto, ele não é desprezível.
I i i MP i p< ira como Iodos os seus contemporâneos que “o itlimi-
i-o , ......... uma oiasiao favorável nos sofrimentos do doente,
ip eu a iioi da morte, no seu horror do inferno e naquela f ra­
qui -a naluial do iv.pullo, ,u|iiela tristeza da alma que causa uma
11Hdi ,n.i g i.n e " () d em onio procura então abalar a fé do pa-
■li n|i ou le\ .i Io ao desespero ou incitá-lo à presunção, ao que
se jimia "o temor do purgatório”. No D e Arte bene moriendi cie
Itelurmlno, as tentações e a luta contra elas ocupam 5 capítulos
em W ou S em 17 se considerarmos que só a segunda parte da
obra e consagrada às aproximações da morte, já que a primeira
se dirige ao cristão ainda em boa saúde. Os perigos que esprei­
tam o moribundo segundo Belarmino são a queda na heresia, o
desespero e o ódio a DeUS.1""
( i uno diremos mais amplamente num capítulo ulterior,189 a
p i i'H.il i atolli a nao abandonará a evocação cias agonias. Mas ela
d ii i . nlas. . ada vez mais a duas histórias opostas: a morte llor­
ín i I do peí adoi e a outra m<>rle, serena e exemplar, do bom cris-
ii.i II i mullo tempo |a estava estabelecida entre os homens da
Ign |a a . - >iiv I. <ao de que o pecador empedernido tem poucas
. Iim .es d. • i. , uper.it In exlremis. Um capítulo cio Livro da Sa-
/'../.'//./ d. mi o e consagrado a “o que é uma morte sem prepa-
ia. a* • < In gando as portas do julgamento, o pecador tem o sen­
timento d. sei como “um mendigo que se expulsa”.190 Nos ser-
....... ... d. ,\ao Uernartlino de Siena transcritos em latim, descobri-

IH ). ( I K I I T O V E , J. D e D octrina m oriendi, P aris, 1 5 2 0 , c f . T E N E N T I , A.


/ / Senso..., p. 103.
186. Utilizo a recente tradução de P. Sage, Montreal, ed. Paulines, 1976,
p. 78-87.
187. Ibid., p. 79.
188. Consultei a edição latina de Paris, 1620: 2'' parte, cap. 1X-X11I inclusive.
189. Ver mais adiante, p. 392-399.
190. SUSO, 11. (.F.uvres, p. 389 (cap. XXI do / imv da sabedoria eterna).
mus ilu;i.s hornillas (seguidas) <|ut* lr.it.im respectivamente "dos
d o /i1 perigos 11uc cáem sobre o pecador no último momento" e
i las doze dores t|ue sofre o pecador na hora da morte”.191 O tema
geral dessas duas descrições da agonia do pecador é que este ul
limo, assediado ao mesmo tempo pelas dores físicas e pela an
gustia diante da sorte que o espera, acha-se incapacitado de rea
glr no bom sentido. Os demônios o assediam, seus vínculos ler
renos o impedem de arrepender-se. Ele já se sabe destinado ao
Inferno. Além disso, já no século 15 e mais ainda no 16, os auto­
res espirituais, nota A. Tenenti, “tendem a excluir a possibilidade
de salvação para quem se arrepende na agonia em razão apenas
do medo do julgamento”.192 Essa análise, complementar ã ante
rlor, só conseguiu reforçar no espírito dos diretores de consciên
>ia o sentimento de que se deve ao longo da vida preparar a
morte. Senão, deve-se temer o pior.
Inversamente, a agonia do cristão fiel pode tornar-se um
espetáculo a contemplar, um modelo edificante-.193194Este, com seu .
traços característicos - paciência nos sofrimentos, piedade arden
le, alegria sobrenatural ao receber os sacramentos - já e bem vl
.sivel em certas relações humanistas cio século 15 italiano. Ele se
afirma ainda mais nitidamente em meados do século 16 no cire u
l<>das devotas dirigidas por Girolamo Cacciaguerra, um amigo cie
Sao lili pe Néri, que esperava com impaciência a .hora da morte.
Assiste-se, então, à inversão cie atitudes: a agonia é não mais te­
mida, mas desejada já que ela abre para a felicidade eterna. A as­
piração ã morte produziu por volta de 1500 um estranho poema,
< atizone alia Morte, composto pelo humanista e homem político
1’anclolfo Collenuccio. O autor não encontra termos suficiente­
mente elogiosos para qualificar a morte. Ao longo das estrofes,
ele diz sucessivamente “nobre”, “esplêndida”, “generosa”, “mise-
licordlosa”, “graciosa”, “benigna e valorosa” e “oportuna e dese­
jada".1'’1 Será que se trata cie um poeta desesperado ou romântico
por antecipação? As chaves dessa “canção” encontram-se na rea-

191. SIENNE, Berriardin de. Opera..., I, Quadragesimale de religione cbristia-


na, Sermões XII (p. 64-71) e XIV (p. 71-76).
192. TENENTI, A. IISenso..., p. 314.
193. Ibid., p. 323-324.
194. ( :o l I .KNUCCIO, P. Operette morali, poesie latine e volgari. Ed. A. Sa-
vioiti, Bari: Latera, 1929. p. 115-118. Agradeço ao Dr. Jettaz. por ter chama­
do ininlia atenção para este texto. Collenuccio foi executado em 1504.
Ildaik' (ora dessas tinas hipóteses. Porque <nio\ liados sao dpi
t ámenle neopltilónicos, como este:

hranca, pura e divina,


Nossa alma imortal vem nesta carcaça
( >ndr ela se despe totalmente
I >a lu/ tle sua glória, caminhando
I nlie medo e desejo, entre
I ....... vas alegrias, desdéns e cóleras,
( I........«lo se contra a natureza e os elementos,
I t iiln ulaiido os ventos contrarios.

Mas, como e livqüente na literatura crista, um lamento de


11........ eoplalónico |)ode ser lido através da filosofia monástica
•lo i onl(,ni/>tii.s mimcli. Ú. o caso aqui. Collenuccio declara a mor­
te "generosa” poique ela “levanta o véu obscuro da ignorância...,
distingue o verdadeiro do falso, o perpétuo do frágil, o eterno do
m ollar, l ie diz ainda que “o mundo é ingrato” e, em termos que
poderiam ser do Cardeal Lota rio, coloca a questão clássica:

Aquela que tem o falso nome de vida sobre a terra,


( ) t|ue e ela sendo fadigas, cuidados, privações,
'ai .pin is, prantos e queixas,
I >t >ii s, ciilénulelades, terrores e guerras? *
/ . Q. - ‘
lu í a lt tul h. itic •i das f(jrmulas bíblicas: “Feliz, disse al­
ai' ni, tf qiirm inorre na infância... Feliz, afirmam muitos, da-
qm I. que nao n.isce", F.stamos, portanto, bem dentro de um dis-
•ni .ti . ilstao ( > (|tie e confirmado pela última estrofe onde Col-
lt niit . lo .111>1n a "At|ttc*le que extinguiu a raiva da horrível ser-
I ti nii pata que o banhe e o purifique com seu sangue pácifica-
tli >i e Iicnl.izejo:

Pleno de amarga dor eu peço socoma,


(v)ue sua bondade infinita cubra meus erros:
liu sou obra de suas mãos.
I'iel ministro de su a bondade,
Retire suavemente o fio fatal
P abra-me as portas santas e domadas
Que dão para o celeste porto,
O cara Morte, oportuna e desejada.
I ,v«.i .i■.|>ii. k .10 .1 m ulle de um hom em que linha perma
necUlo l(> meses num ealabouço (mas isso 12 anos anles tio
p o e m a )1" e t|iie morrera executado junla-se às palavras consó
ladora.s de Erasmo que, na sua Prepamçcfo Rara a morte, exclama
1( >m o "divino Salmista" (SI 142): “Faz-me sair desta prisào, a fim de
que eu glorifique leu nome, Senhor”, e lembra as palavras de Sao
1'aulo: T ara mim, a vida é o Cristo e é um prêmio morrer... Dése­
lo partir para estar com o Cristo” (F1 1,21-23). Essas comparações
la/em compreender melhor as fórmulas mais tardias de Bartolomeo
d'Angelo no seu Ricardo del ben moriré (1589):

Deus, escreve ele, fez esse quadro da figura e da imagem da


morte de tal maneira e arquitetura que aquela que a olha do lado
certo, isto é, com os olhos da razão e à luz da fé, a vê tão bela
e tao útil que ele exclama: “O Morte, como é bom pensai em li!
Mas para quem a olha ao contrário, isto é, só com os olhos do
corpo, com os sentidos terrestres e sem a luz da fé, ela apaua <■
lao feia e medonha que ele grita imediatamente com uma voz es
tíldente: “Ó Morte, como é amargo pensar em ti!”1'*'

Ao fim clesse desejo da morte, haverá todos os belos e lti


cirios falecimentos descritos pelos autores do grande século e
cujo modelo deverá sobrevivei longo tempo depois cíele.1951697
A diversificação crescente cio discurso sobre os fins últimos
acarretou uma diminuição de seu componente macabro: Erasmo
e Bclarmino notadamente recusam recorrer aos efeitos aterrori­
zantes. Mas diminuição não quer dizer desaparecimento. A se­
quência do presente livro o mostrará. Foi a Renascença que ima­
ginou a cena em que São Jerónimo medita diante cie um crânio.
Essa idéia iconográfica conhecerá em seguida um belo sucesso:
quantos santos e santas serão representados perto de uma cavei-
ra, c junto às vezes cie uma clepsidra. Clichtove elimina cie seu
texto os elementos demasiado fúnebres, mas ele é um dos pri-

195. COLLENUCCIO, P. O perette,a, p. 324-325.


196. D’ANGELO, B. Ricorcio del ben moriré, 1589, VII, p. 152-153. Citado
em TENENTI, A. IISenso..., p. 349. Sobre B. D’Angelo, cf. METROCCHI,
M. Storia delia spiritualità italiana. II Cinquecento e il Seicento, Rome, 1978,
p. 13.
197. Cl. BREMOND, H. H istoire littéraire..., IX, sobretudo o último capítu­
lo, VOVEI.I.E, M. M ourir autrefois, p. 96-102; La M on en O ccident...,
ARIES, Pb. I.Ifom m c devant..., p. 306-307.

I I!)
indios ,i colocai' no frontispicio do sen />r O oilrh ia m orlendi
tima caveira apertando uma tíbia nas mandíbulas; abaixo, avista
se uma pá, uma picareta, ossos e a tampa de um túmulo. Km de­
zembro de 1981, foi vendido ao hotel Drouot um Ofício cia Vir-
ocnt encomendado por Ilenri III em 1586 para a “Companhia
( parisiense) dos confrades da morte”. A capa em marroquim ful-
........si i nía mullas lágrimas, um esqueleto, tíbias, caveiras, velas,
o u « si isp ei,órlos, As sugestões de Savonarola na sua Predica
,/.-//. ///< i/»7 In ■// moriré serão lembradas por muito tempo: visitar
...........11II<iios, seguli os enterros, assistir voluntariamente à ago­
nia d " p.m nli s e amigos, ler uma representação da morte em
« i i o ili in disso, lei uma imagem dela no quarto),4confeccio­
nai • «plrllii,límenle "lentes da morte”, isto é, considerar cada mo-
11n niii <oi no podendo ser o último e pensar sem pre,,olhando o
Io•«pilo i orpo, que logo ele será podridão, cinza e pó.198
Na esleirá de Savonarola, o Cônego Pietro da Lucca acon­
selha , ele também, na sua Dottrina del ben moriré 0 5 4 0 ) a assis­
tência aos agonizantes, a freqüentação de funerais, a visita a ce­
mitérios e a meditação uma ou duas vezes por semana diante de
uma caveira. Aliás, ele dá um modelo do diálogo-que se pode
manlei com um crânio .m Numa pregação para Quarta-feira de
<,ln/us pronunciada em Roma em 1542 e impressa em seguida, o
liam Is* ano Corncllo Musso, na sua época o orador sacro mais
«>•1111<« Ido da llalla, pede por sua vez que se vá visitar os cemi-
i« ili«s • i \oi a i -m largos (rayos a luta entre aqueles dois grandes
m i si i i Naluic/a e a Morle. lista última, “cruel” e “poderosa”,
■I. ill mji na nulo, na terra, no mar, em todos os lugares está
...........is ............ persegue-os, asseclia-os, mata-os, enterra-os,
n m 1'iima "s «m cinzas".’"" lim 1550, Innocenzo Ringhieri situa
' ii l>l,ilof>hl delia rila e delia morte num cemitério. A morte
........... ' um os Iúmu los, armada de um alfanje. É bem verdade
«|iii ' Ia st apresenta com o o guia que conduz às belezas eter­
nas l ui suma, mesmo se as mais inovadoras das “Preparações

I*)H. SAVONAROLA. Predica d ell’a rte d ei ben moriré. Em seguida a TEN LN


II, A. Il Senso..., p. 94-95, eu cito a edição de Florença, 1496, f “ AVI-B",
199. LUCCA, Pietro da, D ottrina d el ben m oriré, s.l., 1540, f “ 6V-9V . TL
NLNTI, A. IISenso..., p. 313 e 340.
200. MUSSO, C. Prediche, Venise, 1576, I, p. 89.
201. RINGHIERI, I. D ialoghidelia vita ed elia morte Molognc, 1550,1, p. 3 10,
TI .NLNTI, A. I!Senso..., p. 309-310.

l::o
paia .1 morte" da Rena,st enya rejeitam o mórbido, perdura na
le,ifja urna tradiyao macabra que ainda Iara uma longa carreira.
I'.m todo caso, a morte permanece no centro da pedagogia
lellglosa em todos os níveis desta última. Sobre urna viga prove
Diente tía abadia do Bom-Repouso, na Cornualha, lê-se uma ins
' rlyáo tio século 15, em bretão, cuja tradução é a seguinte: "O as
■unió que eu estudo, quando o medito, eu o acho duro: depois de
lotla a nossa carreira neste mundo, o fim de cada um é a morte”.202203*
Muda na Bretanha, um Espelho da morte, longo poema composto
■ni 1519, comporta esta outra sentença: “A morte, o julgamento e
•» Interno frío, (piando o homem os medita, ele deve tremer. Ii lou-
■«i atpíele cujo espírito não reflete, visto que se deve morrer”.-0' K
«i pensamento da morte que deve, portanto, guiar toda a existen
•la Pietro da hueca afirma categóricamente: “Nós só somos colo
•ados ncsia vida para aprender a arte de bem morrer”.-0' llm pon
«o m.lis adianto, ele prossegue: “Se tens o hábito de pensar na
..... ríe em lodos os teus gestos e todos os teus atos, serás pendía
do pelo temor do Senhor e expulsarás de ti o medo e a pregul
■a Para Pierre Doré, “a primeira"preparação para a morte qu<
<I- Ijesusl nos ensinou é ter sempre meditação e pensamento na
morte iPorquel Nosso Senhor pensava sempre na sua morte de
I m>F. que sempre falavam dela, como aprendeu pelos evangelhos.
Mi- lielangelo escreve a seus amigos em 1545: “Para se encontrar a
I |ui tprio e desfrutar de si mesmo, não são os divertimentos e ale
- 11.i •que são necessários, mas o pensamento da morte”.-07 Erasmo,
i.io alérgico ao macabro e cujo objetivo confessado na sua Prepa-
it^do. e ajudar a vencer o medo da morte, lembra, porém, que
"ioda vida e apenas uma marcha para a morte”.208 Não foi Platão

.M).’. I I1 MLNN, G. “La Moit dans la littérature bretonne du XVCau XVIL


•n -.lt, cm M émoires de la Société d ’H istoire et d'Archéologie de Bretagne, LVI,
1979, p. 24-25.
203 Ibul., p. 24. Cf. também para a Bretanha, MARTIN, H. Les Ordres men-
r/itinis en li retagne. Paris: Klincksieck, 1975. p. 350-351.
.MM. LUCCA, Pietro da. D ottrina..., f • 2v<>-3. Citado por TENENTI, A. II
Senso..., p. 312 e CROIX, A. La Bretagne aux XVI' et X V II siécles. La vie, la
morl, la foi, 2 v., Paris, Maloine, 1981: II, p. 1.169-1.177.
30S. Ibid., f " 7. TENENTI, A. IISenso..., p. 313.
20(>. DORE, P. La D éploration..., f ° 109v .
20/. <UJASTI, C. Le Rime d i M ichelangelo, Florence, 1863, p. XXXI. Citado
poi TENENTI, A. IlS en so..., p. 299.
3<)H. ERASME. La Préparation..., p. I V
<|ik* clt.*c lai'oii i |iu* lili >s<>íar c nu'clli;n s<>bic .i nmili I v..i medita
cao "provoca então urna especie de treino para a morte".*'1" "Assim,
<luí.11iic* toda a nossa vida elevemos praticar essa meditação ela
morle'V" um conselho c|iie, como lembramos anteriormente, Mon
lalgne deu a si mesmo durante uma parte de sua vida.
Será <|uc Bclarmino pensa diferente, ele que ensina que a
\cn ladeira receita para morrer com o cristão é viver como cristão?
Ma m tMinda parte do seu D c Arte bene m onendi, redigida, é bem
\i idade, na Intenção dos grandes enfermos, encontramos fórmu­
la' d* al< nu e mais geral <|iie valem também para os que gozam
d< In >a ,.iud( "A nos, a quem só é permitido morrer uma vez,
............. I< 11 i Ido nenhum caminho melhor do que o pensamento
............. .... ao daquilo que acontece na morte”.2092112213E ainda: “Quem
• iiiao, si nao loi totalmente estúpido e desprovido cie qualquer
11 1 1/(), ousara deixar esta vida, sem antes, com toda a diligência
possível, aprender a morrer..,”.211 Assim, no discurso religioso da
(.•poca, a morte acha-se colocada no centro da vida como o cemi­
tério no coração da aldeia.
Esse discurso - convém repetir - foi elaborado por mon­
ges I oi difundido sobretudo por monges (Nicler, Denys le Char-
tretix, Savonarola, Raulin, etc.). No final do século 16 e no iní-
( Io do 17, ele e retomado com novo vigor por religiosos - em
paitli iilat os jesuítas (Polanco, Belarmino) - que não são mon--
g< . m.is heidaram pelo menos parcialmente sua espiritualidade.
I mi a piesença quase obsessiva dos principais temas do con-
Iriu/ilir. nim idt dentro das considerações cristãs sobre a morte,
ni< sino u diglda.s por leigos: o corpo não tem importância; á vida
e apenas um sonho, muitas vezes um sonho mau. Na carta cita­
da anteriormente, Michelangeío*exalta o pensamento da morte
porque só ele permite que não sejamos roubados de nós mes­
mos "pelos parentes, pelos amigos, pelos grandes mestres, pela
ambição, pela cobiça, e os outros vícios e pecados que roubam
o homem do homem”.214 Bartolomeo Arnigio, autor na segunda
t ' .

209. Ibid., p. 15.


210. Ibid.
211. Ibid., p. 17.
212. BELLARMIN. D e A rte..., p. 208 (L. II, cap. 1).
213. Ibid., p. 210.
214. GUASTI, C. L e Rim e..., p. XXXI.
metade do século l() cie um Discorso intorno d l dlspre: :<) delia
morte, expljc u <|»u.* n morte só atinge a parte mc*nos Interessante
de nos mesmos. N.io c com o se morréssemos de verdade, 11 ()
M ontéele Eonlcvrault Gabriel I )upuy-l lerbault declara no seu Ps
/telho do homem cristão , /mm conhecer sua Jelicidaclc e seu tnfor
titulo ( 1557): “lNos| devemos ler muito pouco cuidado das ncccs
'■Idades do corpo c nenhum desejo e cobiça da carne, mas so­
mente cuidar com o poderemos tirar salva deste mundo nossa
alma, (|iie e todo nosso bem, e não temer deixar faminto, ou ale
mesmo perder o cavalo de nossa alma, que é o corpo”.216 O Ri
<ordo del hen moriré de Bartolomeo d’Angelo (1589) aconselha o
i rl'.lao a com eçar pelo temor da morte. Quando estiver penetra
•Io por ele, poderá vencê-lo em seguida peio “desprezo do mun
tio e das coisas terrenas”.2r Em semelhante clima, não nos espan
irmos de ver Erasmo, antigo monge, ceder um amplo espaço ao
desprezo do mundo na sua Preparação Rara a morte, C o m o (a
sugerimos anteriormente,218 esta obra de fim de carreira esc l.m . ,
n Iroativam enle o D e contemptu m un di redigido 45 anos ,mi<
pelo humanista de Roterdã. Ficamos quase surpresos de lei na
Pre(>a ração...- os clichês veiculados pela tradição monástica

Que se percorra de memória todas as etapas da vida Ihiiii . iim


concepção imunda, gestação perigosa, nascimento lamentável,
inlância exposta a mil moléstias, juventude marcada por tantos
vícios, maturidade oprimida por tantos cuidados, velhice ator­
mentada por tantos males: eu não creio então que se possa en­
contrar uma única pessoa, mesmo nascida sob uma boa estrela,
que, se Deus lhe permitisse repassar por todas as idades de sua
vicia passada, seguindo o mesmo caminho desde a concepção,
com a perspectiva de desfrutar das mesmas felicidades e de so­
frer os mesmos infortúnios, aceitaria a proposta.-’10

I a asmo prossegue de maneira bem convencional citando a


liase do I c lesiastes: “Mais feliz é o dia da morte que o do nasei

’ l 5. ARNIGIO, B. D iscorso intorno a l disprezzo delia m orte, Pavie, 1575,


I I7 v". TEN EN TI, A. IIS en so..., p. 317.
I(>. I )t M‘l JY-HERBAULT, G. M iroir de 1’h om m e cbrestien, 1557, f ° 24. TI'.
NI NTI, A. / / Senso..., p. 320.
I I )'ANGELO, B. Ricordo d el ben moriré, 1589, IX, p. 177.
.'18. ( I. .ulteriormente, p. 30-31.
.'19. ERASME. La Préparation..., p. 28.
metilo” e ¡i de Santo Agostinho: “Crescei em Idade, e i'rescer em
pecado".2-’" Antes, ele havia lembrado uma fórmula do Urro da
Sabedoria : "O corpo corruptível pesa na alma e o Invólucro ter­
restre sobrecarrega o espírito de preocupações múltiplas”.--1
() De' Arle hene moriendi de Belarmino, ã primeira leitura,
un istia um Imii diferente.-2 O jesuíta distingue cuidadosamente as
Ir,nlh' aeoes da palavra “mundo”. A primeira designa em geral a
ti iri ■ M'ir. habitantes; a segunda remete à concupiscencia sob
i•••1.1. ,r, .u.f. lormas (luxúria, cobiça, orgulho). Pode-se então ser
d. i mundo «no prlmc'lro sentido) sem amar o mundo (no segun-
d .. . nlldo), Al,r.i.mdo-se da tradição monástica, o autor afirma
que .m i'' . \••rdaileiramente mortos no mundo” existem não
,ip. n.r, ....., conventos e no clero, mas também entre os leigos.
\f ni dlv.o, pode se ser rico sem ser apegado às riquezas: por
' ' mplo Abraao. h por isso que os bens deste mundo - fortuna,
honrarlas, prazeres - não inteiramente proibidos aos cristãos com
a condição de não amá-los de forma imoderada. Não são nem as
riquezas nem os homens que fazem com que alguém seja ou não
seja do mundo. Pode-se reconhecer nessa argumentação abertu­
ras para o laxismo que alguns criticarão mais tarde nos jesuítas,
confessores dos grandes da cristandade. Mas uma segunda leitu­
ra di i texto de belarmino não autoriza essa interpretação. O car-
di al lambem se debate, com dificuldade, nas ambigüidades da
p ila vi i mundo" Citando em particular ] Cor 29,225 epístola redi­
mida di niio da perspectiva de um fim próximo do mundo ( “o
!• nipii ' la. (tuto"), ele repete depois de São Paulo: “Que os
Ir i .tiiu m Mias mulheres, mas com um amor moderado como se
■ Ias n,a i ' Isllssem; se tiverem que chorar pela perda de seus fi­
lie .......... . seus bens, que seja com moderação, como se não es­
te ' ' ui Kistes e nao chorassem... O Apóstolo ordena que nos
■■imponemos no mundo Ientendido'aqui no primeiro sentido]
i limo hospedes, com o peregrinos, não com o cidadãos”. O jesuí­
ta propoe assim um comportamento quase estoico que remete ao
( on/eni/)tus num dí tradicional:2013

220. Ibid., p. 29.


221. Ibid., p- 16.
222. BELLARMIN, De Arte..., Ia parte, cap. 2, p. 5-17 da ed. de Paris, 1620.
223. A edição de 1620 remete por erro para K ior 7.
VlviT lio mundo, vm icvr rir, e desprezar os bens do nmiulo 0
um.i coisa mullo diln ll. Vci belas coisas e nao a má Ias, provai as
doem.is Ida viela| o não se deleitar com elas, desprezar as honra
rias, escolher deliberadamente o último lugar, ceder as poslçoes
elevadas aos outros, enfim, viver na carne como se ela nao exls
lisse; uma existência assim, ao que parece, deve ser chamada
mais angelical do que humana. Entretanto, o Apóstolo, escreveu
do a Igreja de Corinto onde quase todos eram casados, dizia as
) pessoas que não eram nem clérigos, nem monges, nem anacore­
tas, mas leigos, como diriamos hoje: ... “Que aqueles que têm
mulher vivam como se não as tivessem”, etc.

Note-se de novo o modelo “angélico” proposto aos cristãos,


mesmo leigos. Assim, Belarmino está consciente do caráter hcrol
«o do necessário desprendimento que ele prôpõe. Ele admite i ei
lamente que “se alguém, com a ajuda da graça, começa a amai
realmente a Deus por si mesmo e ao próximo por causa de I >ni\
ele começa também a sair do mundo. Esse amor crescendo cm m
guíela, a cobiça (isto é, o gosto das coisas terrenas) diminuira e eh
começará a morrer para o mundo”. Mas esse tom conéiliadoi e
corrigido duas vezes pela afirmação de que “este assunto |o des
prendimento do mundo] não é uma brincadeira de criança”, mas
algo “muito grande e muito difícil”. Belarmino lembra a sentença
"poucos serão salvos”2-" e conclui que é totalmente impossível vi
vei ao mesmo tempo para o mundo e para Deus, de desfrutar lan­
ío da terra como do céu”. Para Belarmino, assim como para todos
os seus predecessores na Igreja, os valores terrenos não têm con­
sistência verdadeira. Nós não somos cidadãos da terra.

“o conto dos três mortos e


dos três vivos”
"Quando Guyot Marchant publica em 1486 sua D an ça ma
<i ihra das ni liberes, ele acrescenta O Debate do corpo e da alma
• I (.'antiga da alm a danada. Acréscimos significativos que de­
monstram ao mesmo tempo a estreita solidariedade dos diversos

DÁ, Cf. mais adiante, p. 316.

125
elementos do discurso macabro d.i ('poní, e o i aprolunda
mcnlo na literatura monástica do coiitcmplns rniinJI. <) tema ge
ial do "debate" e este:22' um eremita vê em sonho mu cadáver. A
alma que se separou dele está ao lado e o acusa de ser a causa
de sua danac/ao. () corpo procura em váo desculpar-se. O deba­
le ( liega ao lim pela intervenção dos demonios que levam a alma
p.u.i o Inferno. Esse conto foi muitas vezes associado ao nome
de Sao Macario de Alexandria, personagem favorito das lendas
fúnebres do Oriente cristão.2’6 Porque, um dia, acompanhado de
dols an|os, ele teria encontrado um cadáver fétido do qual se des­
viou. Mas os anjos tapavam o nariz aproximando-se não do mor­
id, mas de Macário. lile perguntou por qué. Responderam-lhe
11ue si ais pecados fediam mais que o cadáver. A lenda do sonho
di i eremita misturou-se á narrativa - atestada desde 380 - da “Vi-
sao de Sao Paulo", liste último assiste à separação da alma e cío
corpo de um eleito o àquela da alma e do corpo de um conde­
na' f - A Vis.io de Sao Paulo" (que comportava também uma via-
i" m ni luí' nuil conheceu uma ampla difusão na Idade Média,
in. In a« i iia . línguas \«m aculas (francês, provençal, inglês, italia-
ii.. d. ui ............i. . a ), (,)uanlo ao “Debate da alma e do corpo”
. i" ..a i*11 . o . Ina li m i a s anteriores (e cujo texto principal é" um
........... ui" 1 mu., di. si i ulo I I proveniente do Mosteiro de No-
.. iniol o i |. i mil., m li . a \oli.i da liuropa (Irlanda, Noruega e
M....... ... in. lu i' , i \ tonalidade principal, neòplatônica e gnós-
u i i ............. .. manllda Num poema monástico latino deriva-
'i . .............. i.Hiadi. ml. i Im menie, a alma considera claramente o
i ............. li*. Inimigo declarado: “Eu queria respirar / (diz a pri-
iie o i a *,i ii mau ( ompanheiro) Mas tu não me davas espaço para
P -i Iai queria jejuar, mas tu me opunhas a doença / ... Eu
queda iiabalh.il Mas tu me obrigavas a repousar”.227 Uma poe­
sia para uso de sermão composta por Jacopone da Todi reativa
de modo burlesco o diálogo entre os dois adversários:

.U5. BATIOUCHKOFF, Th. “Le Débat de 1’âme et du corps” em Romanía,


XX, IHOI. p. I -55 e 513-578. Cf. tanibém ACKERMAN, R. W. “The Debate
<>l thc Body and the Soid and parochial Christianity” em Spcculum, XXXVII,
I % 2, n. 4, p. 541-565.
.126. Cl. a esse respeito Patr. Lat., LXXII1, notadamente col. 1.109-1.119.
2.17. (atado cm BATIOUCHKOFF, |>. 566- 567: /V contetuione anime ei
corpo >'is,

i:w
I tilma: O corpo:

<á jipo sujo c malvado, Socorro, vizinhos!


l uxurioso c enganador, Porque a alma sem razão
Minha salvação Desgastou-me, pôs em sangue
Sempre te encontrou surdo. lí deu disciplinad"

() macabro nào deixou de encontrar lugar nessas acusa


i. no*. da alma ao corpo. Assim também nas célebres Peregrina-
u vs do eistcrciense Guillaume de Digulleville. O “debate” foi co-
Ini .ulo pelo autor na segunda parte do poema, intitulada “A pe-
legrlnaçao da alma separada do corpo”. A alma chega a um lu
.0.11 t liciò de ossadas, descobre aí sua antiga vestimenta de carne
r a alronta duramente:

Dos vários corpos que lá jaziam És tu, disse eu, o corpo malvado
l'.ntre os quais eu vi do meu Tão vil, tão sujo e tão fétido
<>s ossos que tão logo bem conheci... Carne para vermes e podridão,
Horrível e feia criatura?--’

Ao ler esses versos compreende-se que o Debate da alma


<■do <arpo tenha-se tornado, às vezes, notadamente na Inglaterra
i Io século 1S, o Debate do corpo e dos vermes.™ Por outro lado,
quando conhecemos o sucesso da obra de Guillaume de Digul-
Irvllle entre os séculos 14 e 16, nào nos surpreendemos de que
o tuna da altercação entre os dois adversários tenha ressurgido
ii.i publicação de Guyot Marchant que pretendia ser um livro de
■uccnso. P. também dentro dessa linha que se insere o belíssimo
/ h'bate do coração e do corpo de François Villon. O coração é o
irmor.so de consciência”; o corpo por oposição é o “folgazão”.231
< » conflito entre o bem e o mal é então evocado pelo poeta, na
' ácira de uma tradição bem estabelecida, como a oposição en-
li< .i razào, de um lado, e a parte animal e putrescível de nosso
.< i, di* outro.
- r " -
-’ .’.H. ( átado em Ibid., p. 568: Contrasto fin l'anim a e l corpo.
.0.9. Clitado cm Ibid., p. 575-576.
’ H). D hputadone betwyx the Body an d Wormes. Cf. TRISTAM, Pb. Figures...,
I>. 160.
Ml, Cf. SK '11.1ANO, I. François Villon et les tbèm espoétiques du Moyen Age.
Nizet, 1967. p. 493-496.
I ’.i i í m
Antes mesmo de publicai .1 luin^a n n iu ih ia <las innlbc
/rsciii I iH6, (luyot Marchan!, encorajado pola acolhida ivsuva
da a m u P a n ça m acabra de 14HS, tinha reeditado esta ultima,
aumentada ck* "vários novos e belos contos” c notadamente o
dos "três mortos c vivos”, lista lenda, por sua ve/., só pode sei
compreendida se colocada dentro de uma pastoral do medo.
I >i .ia vez, também o escrito parece ter precedido a imagem,
. odio vimos para as evocações macabras que passaram do dis
etiiMi monástico para as esculturas dos túmulos. Em razào de
Impoilaiili"< similitudes, e o caso de estabelecer uma compara-
i a< ( ( 1111< rsse io n io e um "rom ance” hagiográfico bizantino,
l i . n l , i a m e / oa ^a / i b , por sua vez, adaptação de um conto budis­
ta I is a<1111 o argumento do “rom ance” resumido por I.. Bré
lilei na India, o Rei Abenner persegue os cristãos. Ele fica s a ­
bíanlo poi seu astrólogo que seu filho Joasaph se converterá ao
< rlstlanlsmo. Ele o prende num palácio maravilhoso onde todos
os prazeres lhe são oferecidos. Entretanto, o jovem príncipe se
enlcdia e o rei o deixa sair. Por ocasião de uma caçada, ele cn
contra um leproso e um cego, e logo depois um velho, que lhe
ensinam a vaidade do mundo e o orientam para uma salutar
iiuslli.n, ao Pouco tempo depois, um eremita cristão, Barla;im,
i listan, ado de mercador, chega até Joasaph e o converte. O rei
pilim In» i .puf-a o filho, depois torna-se ele próprio cristão por
na \iv e da a loasaplt a metade de seu reino. Com a morte de
Mm ui m i |oa .apli i et Ira se para o deserto onde reencontra Bar-
I i nu \ ui' ts e b um u t o s nos surpreendem nessa reprodução cris
i i da liiitoila 1 1< Hilda o encontro durante uma caçada, o diá
I......... Io |oo in pnnclpe com três personagens que, se não são
ainda . ada\< u s, s.to aproximações vivas deles, o papel do ere
mita 11u• ministra a lição e a própria lição em si, convite monás
lli «i ai» desprezo do mundo.
<) mals amigo texto grego desse romance que chegou até
nos data d o século I I: é a tradução de uma versão georgiana.2 3

232. I1RÉHIER, L. La Civilisation byzantine. Paris: Albín Michel, cd. de


1970. p. 3 12-314. NERSESSIAN, S. Der. Llllustration du román de Barlaan
el foasaph. Paris: de Boccard, 1937,' sobretudo intr. e p. 1-15 e 67-68. Cl II
11 AI A, P. Les Id ¿es de pérennité..., p. 30. BALTRUSAITES, J. Le Mayen Ave
fdnliislii/ue. Paris: A. Colín, 1955. p. 235-248. Agradeço a M. Paul Lcmcrlc
por ter orientado minlias leituras sobre cssa qucstao.
233. A história de Bnrlaam e Josaphai ó long.imrnic rehilada cm l'air. Ia i..
I.XXIII, col. 446 604.
Miiu tradução l.tlitu apareceu dçsde 1048 e, desde c*nl;h>, este
i unió, esquecido cm nossos illas, conheceu unía grande voga na
i uropa, onde foi traduzido em todas as línguas do continente,
i ni.nn contadas umas sessenta versões dele que inspiraram urna
ahondante iconografía (guarnições de portas, pulpitos, afrescos,
lomillos, cofres, livros de salmos' etc.). Essa fortuna explicaría sua
leullllzaçào e sua nova carreira sob a forma da lenda dos três
morios e dos três vivos, a qual parece também ter lembrado das
aparições cadáveres abundantes nas Vitae Patrum. Essa transfor­
m adlo se leria operado desde antes de 1200 e na Italia do Sul,
n o ponto de contato com o mundo grego. Num manuscrito do
o í tilo IS, conservado em Ferrara, encontra-se um poema latino
de i3 estrofes contendo o essencial do novo conto: o -encontro
de reís viajantes com cadáveres em vias de decomposição em tú­
mulo.-. abertos. Certos historiadores datam o poema do século 12
d e fol alé atribuído a São Bernardo.23425Outros não o julgam an
3
lerlot ao manuscrito.233Contra esta segunda opinião, notemos que
0 poema parece dar a lenda na sua estrutura mais antiga, laxen
«lo falar apenas um vivo e não comportando ainda verdadeiros
diálogos. Fin seguida, a historia se ampliará e porá em presença
lie-, "vivos” confrontados com três cadáveres animados que lhes
dl/ent: “O i[ue vocês são, nós já fomos; o que nós somos, vocês
serão" fórmula que figura aliás no poema de Ferrara. Diante
dessa aparição, os três vivos primeiro recuam de horror, depois
1 Ircldem emendar-se.236
A lenda só figura num catálogo bastante tardio (século 15)
de - aquelas anedotas moralizantes de sermões medie­
vais que, entre outras “histórias”, incluíam frequentemente evoca-

2.14. VIGO, P. Le Danze macabre in Italia, 2. ed., Bergame, 1901, p. 82s.


KÜNSTLE, K. D ie Legende der drei Lebenden and der drei Toten und der To-
tentanz, I nbourg, 1908, p. 33. KURTZ, L. P. The Dance ofD eath, 1. ed. New
York, 1934, Slatkine Reprints, 1975, p. 16-18. ROSENFELD, H. Der mit-
tebtlterliche Totentanz, Münster-Cologne, Bõhlau-Verlag, 1954. p. 317. Atri­
buição a São Bernardo por FERRARO, G. Poesiepopolari religiose..., Bolog-
nc, 1877, p. 14.
235. GEIXELL, S. Les Cinqpoèmes des trois morts et des trois vifs, Paris, 1914,
p. 35. GUERRY, L. Le Thème..., p. 41.
236. Cf. lunadamente MÂLE, E. LArt religieux..., p. 355-358. TEN EN TI; A.
/a Vie et la mort..., p. 12-15 com bibliografia e p. 21-28. TRISTAM, Pb.
ligares..., sobretudo p. 159-167.

120
ilc fantasmas próprias para Impn >'J< >11.11 o auditorio Essa
1111 1u .1<> <Isolada por enquanto), poi sl so, c Interessante c deixa
entrever oulras. Km lodo caso, o Conto dos tres morios o dos tres
rlnos linha a estrutura e a função de um exemplam que algumas
valíanles e refinamentos teriam progressivamente enriquecido,
( )s vivos sao geral mente jovens nobres ou príncipes de belas li
bres. Às vezes, eles se dividem entre os três estágios da vida e
cada um reage segundo sua idade diante da trágica aparição: o
mais velho reza, o homem de trinta-quarenta anos puxa sua es­
pada, o mais jovem se afasta do horrível espetáculo. O encontro
e frequentemente situado no curso de uma caçada - lembrança
do romance bizantino. Os cavalos empinam. Um dos caçadores
deixa escapar o seu cão, outro o seu falcão. Os três mortos são
menos diferenciados, embora, às vezes, usem coroa ou mitra.
N ao <■ raio que eles sejam apresentados nos diferentes momen­
to:, da putiflacao do corpo, podendo então o defunto mais re-
11 nte Ia 01 lace ao mais velho dos três vivos e o mais decompos-
Im a< 1 mal . |ovem, a fim de que a lição atue melhor. Eles estão,
.................. I* liad.., e m i.iKoes abertos com o no manuscrito de
I ........ 11111 11•1111< lilemente em pé. Tanto nos textos com o na
Im HiMjii 111«, ,, . 1,///,. di *•, Ires mortos c dos três vivos é freqüente-
....... . ■. ........ . •na b<" a de um eremita c|ue conta uma visão que
1 u II........ i' 'ii I nma lembiança da origem oriental do conto.
Miiiqm >■<! 11 11.1 11 m duvida de Sao Macário, que com suas Vitae
r,iin o u mi 1 In ida 1 ni Italiano por Domenico Cavalca por volta
d. n Mit, 11 / 'eh,th ,hi tilmo e do corpo e a Lenda dourada tinha
|. min id" 1 1 .11a 11lia lamili.11idade com os cadáveres. A Lenda
dm otido 11 iin eleito, conta que ele entrou para dormir numa
mu........... i-,lavam enterrados inúmeros pagãos e pegou um dos
■' npi 1. i mim travesseiro. Demônios aparecem então para assus­
ta Io e 1 liarnam o cadáver como sendo de uma mulher:237

237. I ILRBLRT, J. A. Catalogue o f Romances in the Departm ent o fM a n u s -


eripts in the British M useum . t. III, Londres, 1910, sobretudo p. 693, 13. Cf.
lambem p. 125, n. 57; p. 232, n. 30; p. 445, n. 9, p. 621, p. 193. Três jo-
vens no deserto são convertidos pela vista de cadáveres devorados por vermes.
Indicações amavelmente comunicadas por Jacques Le Goff. Por outro lado,
sondagens negativas em\A n Alphabet o f Tales. A n English I$'k Centutry trans
lation o f the Alphabetum narrationum o f Etienne de Besançon, ed. Macleod
Banks, 2 v., Londres, 1904-1905 (sobretudo artigos Mors et Contemplas
tnundi). TUBACH, Fr. C. Index exemplaram, Helsinki, 1060: Com m unica­
tions edited for the Folkore Feliows, p, 11/ I ’ I
I Ir,*. Ihc cll/cni: "In 'im li' se, vrnli.i b.inlui se i 'Oiio m o ", b o ou
lu í ill.il ii >(|iK* c\s(iiv;i clc’l>;lix< >ck* M;u .irlo ill/lu como se los,se ele
«|iie ivsilvussc inorlo: "Tenho uní e.sii.mho em cima de mim e nao
posso salí". Mac ado nao se assustou, mas bateu no corpo dizen­
do "l.evanle-se c va se puder". Quando os diabos o ouviram, l’u-
gli.mi ^rilando em voz alta: "Você nos venceu".lw

AnhIiii, unía longa tradição tinha habituado os clérigos da


Idiidi Media a associar Sào Macario às evocações de cadáveres. O
in« uli i entre o tema do encontro dos mortos e dos vivos e as nar-
luih.r, ilas \ iUic Pdlrnni referentes aos monges da Tebaida pare-
■ i mao cerlo, ble é claramente indicado por um painel italiano
da m e.unda metade do século 14 ou do inicio do 15 conservado
•ni I- Hidivs (col. Crawford). Numa paisagem de montanhas e de
di . ii i lusos propícios à meditação, 14 anacoretas, entre os quais
i' i b lonlmo, Sao Macário e Sào Pacôme, são representados com
•ir. i llsi ipulos, I*ñire estes, infiltraram-se cinco cavaleiros (|tie, de
■•lia de uma caçada, topam com três féretros abertos.239
As primeiras evocações escritas e pintadas dos três morios
■ i li is iivs vivos sào anteriores ao meio do século 14 - o que con
ida de novo a nao desprezar a pré-história do macabro no Oci-
di uh líala se, independentemente do texto de Ferrara cuja data
• i IIm ullda, de (|iiatro poemas franceses compostos no fim do sé-
■uli' I \ respectivamente por Baudoin de Condé (1244-1280), me-
ii' siiel da condessa Marguerite d’Anjou, por Nicolás de Margival
Mim do século 13) e por dois anônimos. Eles se revezam no iní-
■ii i do sei ulo seguinte, ainda na França, com uma quinta obra,
" m /os ira ionios notícias, em forma de diálogo.2'10Quatro poe-
iii r alem ães e um italiano parafrasearam logo o de Baudoin.241
• 'ni'' a literatura monástica consagrada ao desprezo do mundo
11o montou to mori , todos esses poemas insistem sobre a destrui-
i" do corpo, adicionando para maior efeito visão de esqueleto
• ' |ii lai ulo de putrefação:

1 W¡. V( )KA( i INI'., Jacques de. Legende dorée. Trad. franc. de 1843, X, p. 80.
W. ( ¡I IILRKY, L. Le Théme..., p. 175-176.
' III. O . i luco poemas foram publicados por S. Glixelli, Les Cinqpoemes des trois
nn» t\ Nas publicações de Guyot Marchant em 1485 e 1486 o Conto dos três
inorim,.. começa por estas palavras: “Se vos trazemos notícias que não são nem
boas nem belas, com prazer ou desprazer é preciso ter paciência...”. E o “pri-
incíio morto" que fala assim.
' ll TIUSTAM, l’b. Figures..., p. 163-164.

i:ti
Morir r v rn n rs , descreve lla u d o lh , ll/e ia m u |tlo l
One puderam...
Vr|¡im: todos os tres nao têm cabelo na cabeça,
( )llio na testa, nem boca nem nariz
Nem rosto...

Mm dos anónimos evoca igualmente os “três corpos mof­


lí i'i desllgiil.lili ),s":

i i , bui.uns dos olhos e do nariz abertos


i is ossos 1,10 secos, pernas braços, pés e mãos
lodos comidos e perfurados de vermes ...M

As mais antigas figurações desse conto dramático se en-


(onliam na Italia do Sul e na regido romana:2'" argumento ele
peso para a filiação com o romance de Barlaam. Um afresco da­
tado d o primeiro terço do século 13 em Santa Margarita de Mel-
li ( p e d o de l oggia) já mostra o encontro de três jovens caçado-
ivs eom os esqueletos.2'5 A mesma cena é reproduzida por volta
de l.'.do sobre límelo de bela vegetação numa nave lateral da ca­
li dial <l< \11i (Al m u z o s ), elesta vez, com inserção elo eremita (Sao
M.h nr o <|iii c\oi'la os vivos a conversão. Ainda na segunda me-
i id> d........ tilo I a lenda é evocada sobre a parede do fúñelo
d i it i. |i d. I’. 11' 111o Mírlelo (Sabina). Mas, elesta vez, só há um
•i .. um i. i ' pii paia, petrificado, diante ele três esqueletos co-
iii ido»., ' um i id' ■. ' I. decomposição diferentes. Enfim, em Mon-
i> h i ........... . ii'i di ( lívido), no início elo século 14, três cava-
I' iu ' ...... i a '.ibis, a coberta por grandes gorros elescem dos
■ u al" , t min mii.un eom os esqueletos (dos quais só elois es-
i i" \l i.. I d, Alias deles, sentado sobre um rochedo, um monge
i o liu lia a penitência.
Na Erança, E. Male assinalou a miniatura do fim elo
sei ulo 13 que acompanha um manuscrito elo poema ele Baudoin2435

242. Ibicl., p. 56-57. TENENTI, A. La Vie..., p. 15.


243. Ibid., p. 92. TENENTI, A. La Vie..., p. 15.
244. VAN MAREE, R. Lconographie de l’a rtprofane au Moyen Age et à la Renais-
wnv, l a I laye, 1932, 2v., II, p. 385-389. GUERRY, L. l.c líteme..., p. 163-167.
' TENENTI, A. I ! Senso..., p. 412-413.
245. MONACO, G. / Frammenti del Triunfo d d lt Morir di Melft, Potenza,
sal., identifica erradamente este afresco mm o iiinnln da Mone.

11)2
(Ir ( londe I'ni Metz, mn pe<|iK*n<>qtladro do* primeiros anos do
ms ulo I i representando a U lula encontrava se na Igreja Nossa So
nllora do Clalrvauxa' Na Inglaterra, conhece-se uní salterio tic
I2b() aproximadamente que fixa a mesma cenad'"1 Mas é por vol-
la de I.VSO, e notadamente no (lampo Santo de Pisa, que o lema
assume toda a sua dimensão. Daí, ele se espalha amplamente no
( Vidente. <) pintor de Pisa - Orcagna, Spinello, Traini? - associou
numa vigorosa síntese o encontro dos três mortos e dos três vivos
(estes a frente de um brilhante cortejo de cavaleiros) com a evo-
cacao da Morte, megera descarnada com asas de morcego, com
longos cabelos e garras nas mãos e nos pés. Atrás dela, acum u­
lam se cadáveres que ela já ceifou. À frente, percebe-se um jardim
onde jovens e ricos personagens estão entretidos com música e
alegre conversação. Ela se prepara para matá-los.
Após tantos comentários, é inútil insistir sobre o aceito
dessa composição entregue à nova sensibilidade dos contempo
raneos. Mas é preciso destacar vários elementos desse grandiosn
afresco, aos quais nem sempre se presta a devida atenção e qm
nos remete mais uma vez aos textos clássicos sobre o despre/o
do mundo. Um deles é a batalha que travam anjos e demônios
para a posse das almas dos novos defuntos. O julgamento que
segue a morte dá, então, sentido às outras cenas da composição
l)e um lado, um amplo setor do afresco, no alto à esquerda, e
consagrado à evocação da vida pacífica e bucólica dos monges
que compartilham o tempo entre a oração, a meditação dos livros
santos e o trabalho manual. Eles não temem a morte. Não é por
acaso que o artista, por contraste, colocou simetricamente, em
baixo e à direita, o grupo de jovens despreocupados. Como ne­
gai a intenção pedagógica desse coerente conjunto? E por que
excluir a inspiração monástica, tanto mais evidente quando um
'•remita - São Macário? - desenrolando um pergaminho, narra
i mu tantos detalhes o exemplum dos três mortos e dos três vivos
que nao pode deixar ninguém indiferente?
Sc é verdade então que a partir de meados do século 14 uma
alençao maior e muitas vezes mórbida foi dada ao cadáver do ho-24678

246. Arsenal, ms n° 3142, f" 311 v°. MÂLE, E. L ’A rt..., p. 355-356.


247. TENENTI, A. II Senso..., p. 413. Buüetin de la Société des Antiquités de'
Iritncc, 1905, p. 133.
248. British Museum. Psautier Arundcl í 127. TRISTAM, Ph. Figures...,
p. 163 c 264.

i : i: i
mem, não creio que.se possa afirmar, noladamenli .1 proposito do
douto dos ttvs p ¡ortos e dos tres /»iros, que ela "Imobilizou os senil
do-, sobre mu objeto que, cm si mesmo, nao tem nenhuma signili
cu». .10 1 lisia” e que o macabro ergueu “uma muralha intransponível
entre a Ierra e o ceu”.-'" Deve-se antes destacar que ao longo da his­
toria crista manifestaram-se duas graneles atitudes a respeito da
morte uma ate evitou o macabro, a outra insistiu sobre ele. Santo
loma', de Aqulno da este conselho na Suma Teológica: “Nao se
d« \* penen sempre no fim último cada vez que se quer ou que se
la/ alguma <o|\a l anío quanto o viajante nao deve, a cada passo,
p< n ai no m 11 d estin o ".M ais tarde, Pascal, citando Sao Paulo (Ts
i,l,',), 1 .» lia n a por ocasião do falecimento de seu pai: “Nao can­
sí» leu moa mala um corpo como uma carniça infecta, porque a na-
lun a enganadora o figura desse modo, mas sim como o templo
Inviolável e eterno do Espirito Santo, como ensina a fé”.,251 Pode-se
legítimamente preferir esta segunda atitude e considerá-la mais pró­
xima do espirito do Novo Testamento. Mas não se pode excluir a
nutra do mais aulentiep passado cristão, já que ela se apóia sobre
vai ios conselhos autorizados vindos sucessivamente dos Padres da
Igreja e do deserto, dos monges da Idade Média, de Gerson,252 etc.
A partir de 1.350, aproximadamente, a difusão pela imagem
min s. n\, Iluminuras, esculturas) e por escrito do conto dos três
ni' •11<1 1 dos th s vivos foi considerável na Itália - sobretudo no
»»< •11lo | 1 na I 1.uh .1 e iva Inglaterra. E. Mâle cita umas 15 igre-
|a 1 "ii 1 1pelas liam esas espalhadas sobre todo o território que
...... no mi uma n pu sentaçao da lenda, a última delas data de
I •<t •11«I•1 uma pintura na Igreja de Saint-Georges-sur-Seine.251
1a ti p 11 ........... ... Io lã, os miniaturistas com iluminuras nos li-
....... . a.......s i <is gi, nadores com desenhos nos livros de ho-
1 r. 1 il" ui ' s s c tema, () duque de Berry, que o queria num de
11 s II m d<' horas (por volta de 1400), mandou em seguida es-
o s

1 ulpl Io (em l iOH) no portal da igreja escolhida como seu túmu-

?A(). TENENTI, A. La Vie.,., p. 14. HSenso..., p. 4l4 .


25ü. Somme Théol, Ia-IIae, 1, 7 ad. 3.
23 I .-Carta a M. e Mme. Périer, 17 out. 1651, em LCEuvre de Pascal, Pléiade,
p. 272.
.’ 52. Opinião concordante em B. Roy, “La D a n s e . e m Le Sentimcnt ele Ia
mort..., p. 125.
253. TKNENTI, A. IISenso..., p. 412-413.
254. MÁI.K, E. LArt..., p. 355-358.

i:H
In, .1 dos Inocentes, N.i Inglaterra, existía aínda luí eem anos
tinta,*, cinquenta pinturas dos séculos I i 13 exec utadas muitas ve
M*s ñas paredes de humildes capelas, contando a lenda dos três
morios e dos três vivos. A metade delas foi destruída na época vi
lorlana: elas chocavam os pastores da época.2 256 A historiadora Phi
5
llppa liislam, que dá este pormenor, acrescenta que, embora so
*.e conheça na Inglaterra do século 15 duas versões escritas com­
pletas do conto - um poemas-atribuido a Audelay e outro de
I Icnryson - , em compensação encontram-se referências a ele em
múltiplos escritos. Simples alusões bastam, portanto, para um pú­
blico familiarizado com ele.2572*Quanto à Suíça, à Alemanha -e aos
8
5
Países Haixos, eles também não ignoraram um tema que se tor­
nou europeu2™e que inspirou Dürer e Cranach. No desenho alri
buido a Dürer ( Albertina, Viena), o aspecto anedótico é fortemen
ti marcado. Os cadáveres já não se postam imóveis diante dos ca
(.adores. Eles os atacam com violência. Os cavalos empinam, os
c avaleiros caem de costas. Essa idéia iconográfica não era nova
Mas Dürer a explorou com um vigor pouco habitual mosti.mdo
em ação, não os defuntos, mas “a megera multiplicada por Ire*.,
pre< ¡pilando-se simultaneamente sobre os três cavaleiros". "'
A riqueza inventiva de Dürer não deve fazer esquecei a
luneao didática do conto tal com o ele era muitas vezes apresen
lado ao público. Os poemas franceses do século 13 e do início
do I i, o poema de Henryson no fim do século 15 e a maioria das
pinturas murais inglesas são pouco explícitos quanto aos detalhes
do encontro entre os três vivos e os três cadáveres: a cena da ca-
<ada e omitida ou simplificada ao extremo. Os interlocutores de
i ada um dos dois grupos são pouco diferenciados entre si.260Em
«ompcnsação, o realismo macabro é quase sempre realçado por­
que e o veículo de uma lição moral. Esta em todo caso permane-
i <• fundamental, mesmo nas versões mais elaboradas,' no Campo
m i o de Pisa, em Subiaco, ou na edição de Guyot Marchant. No

255. Ibicl.
256. TRISTÁM, Ph. Figures..., p. 15-16 e 163.
257. Ibid., p. 163-167.
258. TENENTI, A. II Senso..., p. 413. KÜNSTLE, K. D ie Legende... SER­
VI ERES, G. “Les formes artistiques du Dict des trois morts et-des trois vifs”
cm ( ¡azctte des Beux Arts, janeiro 1926, p. 19-36.
23l), WIRTH, J. La Jeune filie et la mort..., p. 38.
.’(>(). TRISTAM, Ph. Figures..., p. 163 164.
ionio repn)cki/icl(> |>or osle último o cok h .ido n.i Iioi .1 ele* 11in so
Huirlo, ;is palavras dos morios sao Harmonios do sermoes amoa
çadores como muitos que se pronunciavam na época;

<) prim eiro defunto declara: “Vós mereceis receber a mòrte.


1 lina morle, ai de vós, tão dolorosa, tão amarga, tão angustiante,
• pi< ir, mortos que a recebem não quererão jamais reviver para
mol n i de novo de tal m orte” . O terceiro acusa: “Ó gente louca
. lesas 1..ida i|iie vejo assim disfarçada com vários casacos e vesti-
............aínas coisas roubadas, bem fétida carniça vós sereis...
1,Miando 111vejo lautos lalsos delitos..., os grandes excessos, os
i ,i indi s ullra|es que sofrem aqueles que trabalham nos campos
paia II. ioi.lím enle nus e que de fom e gritam e bocejam... duvido
que I )cu:. subitamente nao mande tal vingança que não tereis se-
quei o lem po de lhe pedir misericórdia” .

A conclusão do conto é conforme à liçào que se pretendia


administrar graças a ele: os “três belos homens bem vivos” invo­
cam uma cru / colocada oportunamente nas- proximidades, acei-
i.im a advertência que lhes é dada e tomam resoluções que edi-
lli .un o próprio eremita. F igualmente significativo que no cemi-
h 1I0 dos Inocentes, em Ker-Maria e em Clusone (perto de Bérga-
Mi' ii, o ( <mlo <los Ires morios e dos três uivos e uma dança maca­
bí 1 i- uh mi sido coloi .idos próximos um do outro, e, que na igre-
|a d» I mu ai (l'tiy ile Dôme), a representação da lenda tenha
.id., piulada mima pan de e a do julgamento final na outra em
le mu d- 'Im minas solidarios na mentalidade do tempo e que já
................. ... um provimos n o Campo Santo de Pisa. Finalmente,
........ ni" dos 11• , morios e dos três vivos exerceu a mesma fun-
• io qii< laníos outros “espelhos” colocados pela literatura da
•p ." a .mie os olhos apavorados dos contemporâneos. Num poe-'
ma Ingles do século 15, Espelho para jovens damas em sua tóale-
te, i .1 Imagem do futuro cadáver ou da própria Morte que é de­
volvida pelo espelho e que declara duramente à jovem beldade:

Ó infeliz amedrontada, eu te marco com minha clava.


Ergue os olhos, olha bem!
Todos que me olham sentem pavor
Eu não te pouparei, tu és minha presad612
1
6

261. ReligiousLyrics 15d‘ C. (I, 40), p. 24 1. < n ulo c-mTRISTAM, l’li. Figures...,
p. 166.
¡i dança da morte e a
dança macabra
(¡uyot Marchant intitulou sua D ança macabra: O Espelho
Salutar. Fie também, portanto, compreendia a dança macabra
como ou ira maneira singu lamiente convincente de convidar ao
memento morí. A dança macabra com efeito só é inteligível, por
■•un vez, se ligada a toda uma pedagogia penitencial. Na origem
d.i dança com o na do Conto dos três moños e dos três vivos , en­
contramos a mesma constatação - vaidade das vaidades, ludo e
vaidade - e a mesma depreciação dos valores terrenos inspirada
pelo contemplas m undi. Se o texto de Ferrara consagrado aos
l i e s mortos e aos três vivos é mesmo do século 12 - o que im­
pa rece provável - podemos considerar algumas de suas iS eslro
les lortemerTte ritmadas com o um anúncio das danças macnbins
Isso seria então a prova de um tronco comum - monástico a
esses dois grandes temas. Lemos, com efeito, no poema:

6) Fracos ou potentes, 7) Ela não excetua nlngucm,


A morte os morde finalmente, Nem o rico nem o pola» ,
Loucos e sábios, Nem a mitra nem a coroa,
l odos igualmente. Nem o bispo nem o priiu Ipe
*
')) l Ia não poupa a velhice 33) Eis os vermes e a podridão.
Nem as pessoas honestas, Eis o cadáver que causa horror.
Nem a juventude na flo r da idade Q uer queiras ou não,
l udo o que ela vê, ela pega. Esse é o fim de todos.

Inúmeras obscuridades ainda envolvem a pré-história das


danças macabras e em primeiro lugar a própria palavra “macabro”
que aparece no século 14. A hipótese mais provável relaciona esse
a l|etiv< >a Judas Macabeu, que fez os judeus orarem pelas almas dos
d. fuñios, Numa época em que a Igreja esforçava-se para fazer pe
ir Irai a crença no purgatório, Judas Macabeu foi objeto cie uma
pii »m< >ca<> no discurso eclesiástico e, por reflexo, na linguagem cor
c um cm cujo nível ele encontrou lendas relativas a fantasmas. Na*263

.’().’ . ( litado em ROSENFELD, H. D er mittelãlterliche Totendanz, p. 37-38.


263. SAI J( INIFUX, J. Les Danses macabres de Franee et d ’E spagne et leurspro
loHgrnients Httéraires. Paris: Bellcs I.eurcs, 1972, sobretudo p. 14-17 c 323
L’(>. ( lí. também ARIÍLS, Pb. V líom u e devant L tnort, p. 118.

i:i7
iegl,i< > de Ulois, anligamente se t h.im.iva 't as,a in.u al)i*la" a "c ava
selvagem" empreendida pelas almas |>enatlas a procura <le mu vlvt>
para capturar, Portanto, existiu sem dúvida um \metilo entre as dan
Vas macabras e a crença folclórica nos mortos que dançam e dao
caça aos vivos/"' Por volta de 1350, o monge neerlandés tradutor
do romance francés Mcmgis dAigrem ont acrescenta ao texto origi
nal uma comparação reveladora: Maugis, após capturar seu inimi
go, o Uei Antenor, e vários de seus cavaleiros, mandou amarrá-los
ao poste central de sua tenda, de tal maneira, nota o adaptador, que
formassem como a figura “de uma roda de mortos”.2?5 Uma roda
que nao era concebida como um jogo, mas como uma opressão,
Da mesma maneira, na Baixa Alemanha da Idade Média, no dia cie
Santo Tomás (21 de dezembro), acreditava-se ver os rostos daque­
les <|ue iam morrer no ano seguinte dançando com os defuntos.-’"'’
I )esde o século 16 (l.avater) até nosso dias (Fehse), a erudição suí­
ça c alemã estabeleceu uma relação entre danças macabras e eren
çn em I. miasmas que locam música, formam uma roda durante a
in >li• i alia, ni os vivos para o seu círculo.267 O vínculo parece pro-
■ r i I Mas I Wliili observa com razão que até mesmo a elite da
Iduli d. dia - da i . na ,, u iça e nao apenas o povo acreditava em
................. a a dam i ni.n alna pode por conseguinte ter sido uma re-
............. imilla ' i I. ií al a partir de costumes muito antigos e de
.....i 'i'M'ipi ii'da p" •morte ampl.miente compartilhada. .
t l if p. ii .i mi qui a mais antiga dança macabra era a ilus-
ti i. .........|. ulada i í um scimao sobre a morte. Executada primei
.............. a- 11, i la i. i Ia saído para ser representada sobre tablados
■■.............. i fíbula inoial o que ocorreu notadamente em Bruges
•in I ií'' ti" 'Iiot« I" do duque de Borgonha.268 Depois, pintada,
gi.uada ou •m Iluminuras, ela se tornou a célebre “história em

.'(••i SALK ¡NIEUX, (. Ibid. Cf. também “La Danse macabre” em M¿Unges
J e lingu istique offèrts à A. Sauzat, Paris, 1952, p. 307-311.
265. Román van Melegijs, ed. Naf>l de Pauw, Gand, 1889, p. 67, versos 14-16.
IIIJIT, l;r. G. LeMoyenAge, XXIX (1917-1918), p. I62s. ROSENFELD, H.
P er miitclatierliche.., p. 48-49 e 180-181. CORVISIER, A. “La Danse maca
bre de Mcslaye-Grenet” em Bulletin des sociétés archéologiques dEure-et-Loir,
1969-1970, p. 45.
266. ROSP.NPP.LD, H. Der mittelalterliche..., p. 49.
267. I-AVA’IER, t.. Trois livres des apparitions des esprits, fantosmes, prodiges,..,
s.l., 1571. PP.USE, W. D er Ursprung der Tolent/inze, I Iallc, 1907 (sobretiulo
p. 4 I s.). ( :r. também WIRTH, J. I.a j e m e filie ei la morí, p. 20-25.
268. MÂI E, E. LArt..., p. 362-363.
quadrinhos” <|ur nos lunsmltlr.im miilliplos documentos Icono
gi.illeos. Que essa evolução se lenha eletlvamente produzido n;io
lu .1 menor dúvida. Mas provavelmente devemos remontar ainda
mal', para perceber, além dos sermões gesticulados, antigas dan
- a . que os pregadores teriam cristianizado e remodelado, lisias te
ilam '.Ido mais facilmente acolhidas quanto a crença na roda dos
morios era amplamente difundida. Em todo caso, é certo que na
Idade Media dançava-se nas igrejas e sobretudo nos cemitérios,
nus nao só, por ocasião das festas dos Loucos, dos Inocentes, etc.
um "escândalo” contra o qual se ergueu o Concilio de Basiléia
i .i i, ao \ \ 1, 1435). Seria útil reunir um arquivo sobre esse assun-
h > Hem conhecida é a lenda dos dançarinos de Kõlbigk, relatada
na t tónica de Nurembergd09 um padre celebrava a missa, na vés-
p< ia de Natal em Kõlbigk, na diocese de Magdebourg. Um grupo
de di /olio homens e dez mulheres criou um tumulto cantando e
dam ando no cemitério vizinho. O padre veio fazer-lhés reprimen
da , Mas eles zombaram dele e continuaram. Então, ele invocou
■• ' eu para que eles fossem condenados a dançar assim duranti
do . ■meses. No vencimento desse prazo, o Arcebispo de Magde
I" htig pôs lim a essa penitência. Três dos dançarinos morreram
l o g o c m seguida, os outros não sobreviveram por muito lempo.
I ima hipótese verossímil é, portanto, que a Igreja recuperou
dam, .is antigas e as cristianizou como fez com os cantos profanos
qm cia transformou em cânticos, mudando as palavras, mas con-
■is ando as melodias. Um franciscano vienense, Johann Bischoff,
• •nvendo por volta de 1400, relata que no seu tempo as danças
dn período da Páscoa eram muito populares em todas as classes
da .i ii ledade e que se conheciam umas duas dezenas. Infelizmen-
ii , cie só descreve duas: na primeira, o Cristo conduzia os eleitos
a i paiaiso; na segunda, o demônio levava para o inferno aqueles
qm Unham transgredido os dez mandamentos d70 É provável que
uma das dezoito danças tivesse relação com a morte. E. Mâle rela-
i i alias, com fé num documento de 1393, que nessa data execu-

.'í»*). STAMMLER, W. Dic Totentànze, Leipzig, 1922 (t. 4 da Bibliothek der


hunstgesehichte). Versão inglesa dessa lenda em BRUNNE, R. Handlynge
cd. E J. Furnivall, Londres, 1903, Early English Text Society, II, p. 283.
I hna história próxima da anterior tornou-se um exemplum: An Alphabet..., ed.
M. Madeod Banks, p. 151.
1 ’(). Vienne, National Bibliothek, Ms n. 2827, f ° 252 CIARK, J. M. The
I b i i i i p. 110-111. Eu não compartilho a opinião de J. M. Clark, que pen-
i que a palavra “dança” só deve ser tomada aqui no sentido “figurado”.
(ou m' iiinn dunça macabra n.i própria lgrr|a dc ( úudebct . 1 No
p.ino de fundo histórico, so rã (|iie não devemos distinguir danças
lunchiv.s como muilas civilizações conheceram e como se pode
adivinhai na Espanha aragonesa onde subsistiam na Idade Média
liadlçoes macabras herdadas dos mouriscos? Em certos lxinc|uetes
d* - coioaçao dos reis de Aragào, no início do século IS, faziam-se
i. Iti.M iiia»,oe*. da morte acompanhadas cie pantomimas. Ainda
h. i|e em Vages, na província de Gerone, uma dança da morte com
a' "iiipanhamenlo de tamborins é executada durante a Semana
'.mia poi )o\. ir. lanlasiados de esqueletos.2 12722
7 3Ao cpie devemos
7
............. . a .1 que sabemos agora da Dansa de la Morl català que
n.i" .» .1» \e . oiiliindlr nem com a D ança general de la muerte cas-
li IIiai ia da «111.11 trataremos mais adiante, nem com a tradução ca­
íala, . m I |‘J ', do texto da dança do cemitério dos Inocentes.
A P an ça da M o r t e permite apreender ao vivo a cristianiza-
çao poi parti' da Igreja, e neste caso mais especialmente por par­
le dos monges, de costumes fúnebres certamente muito antigos.
() texto e a música dessa dança chegaram até nós graças a um
manuscrito do século 14 - o Livro Vermelho - conservado em
Montserrat e que escapou às destruições napoleónicas.2'' Reestu-
dados reeenlcmente, eles conhecem uma atualidade nova jã que
•v.a dança lól executada em 1973 e 1978 na igreja ele Montserrat
. . m Id n em han clon a, Saintes, Etampes, Colônia, Kirchenheim
i ll. 11li 11 du ian le '.emanas caíalas”. Eis aqui as duras lições tra-
du ida . do |. sto latino (.1 t ! m o r t o m f e s t i n a m u s ...' ) - .

Mf l UA( J f t o r n a d a ) ; -
I' n i a mulle ui).s c«irremos,
I »»'|s» nnr. .1» pe. ,ii, d eixem os de pecar.

« i >l'l.A ( c o b la h
l ii quis i rata i do d esp rezo cio m undo

271. MÁI.li, E. LArt..., p. 361-362.


.*72. SAUGNEUX, J. Les Danses..., p. 50-31. SHERGOLD, N. D. Zt History
o fth c S/xinish Stnge, Oxford, 1967, p. 119.
273. Reserva da Biblioteca de Monserrat: ms 1, f 0 27 ,ò e f" 28v°. Cf. Analee-
Ui niontsemttcmid, I, 1917, p. 184-192. MARTOREI.L, O. ‘Les danses i eis
eauts dcl l ibre Verme 11 de Montserrat” em Serra d'Or, dezembro 1978, com
bibliografia. Agradeço ao mesmo tempo a Mine. I )ominiquc de Courcellcs c
M. I Icnri (iachct que mc forneceram a dm um<nia.,a.i idativa a esta “Dança
da morte”.

I 10
L

A llin ilc que os homens n.io sejam enganados pela vaidade,


i hegou .1 hora ile sair do pedido sono da inode,
ilo pérfido sono da morte.

Para a morle nos corremos...

A eiiiia vida logo terminará:


A morle, rápida, acorre e ela não respeita ninguém.
A morte mata todo mundo. Ela não tem compaixão de
[ninguém,
ela não tem compaixão de ninguém.

I’ara a morte nós corremos...

Se nao tc converteres, se não fores humilde,


Se nao mudares de vida para realizar boas obras,
Nao poderás entrar com o bem-aventurado no reino dc l >ni .
como bem-aventurado no reino dc I icm

Para a morte nós corremos...

Quando soar a trombeta, no último dia,


Quando o Juiz vier
Ele chamará os eleitos para a pátria eterna
e lançará os condenados ao inferno,
e lançará os condenados ao inferno.

Para a morte nós corremos...

Como serão felizes aqueles que reinarão com o Cristo!


Eles o verão face a face.
Ides cantarão: Santo, Santo é o Senhor Deus dos exércitos,
o Senhor Deus dos
/ exércitos.

Para a morte nós corremos...


i
Como serão tristes os condenados à pena eterna!
Seus tormentos não terminarão e não os consumirão.
Al deles, ai deles! Miseráveis! Jamais de lá sairão,
jamais de lá sairão.

Para a morte nós corremos...


(Juv lod<>s os a*|,s d<>ni‘( nl<» r < gi.ind* n «l<•■iU* mundo
I ON C IcilgON C todilN .IS | > O U ' l K li IN

Sr laçam bem pequenos; (v)uc rejeitem ;in va Idades,


que rejeitem as valdacles.

Para a morte nós corremos...


N
.
Irmãos muito caros, se contemplarmos como convem a Paixao
Ido Senhor,
P se chorarmos amargamente,
l ie nos protegerá como a pupila do olho
e nos impedirá de pecar,
e nos impedirá de pecar.

Para a morte nós corremos...

S,mía Vlrgem das virgens, coroada no céu,


de i i o s s . i advogada junto a vbsso Filho
i i lr| Hi|s i li ,i< di stri ro, sede a mediadora que nos acólherá,
a mediadora que nos acolherá.

P i n a un nii m>»i 11 m em os...

v /*,/// ,/ </(• In Ilorl de Montserrat nao é urna verdadeira


........... ni a 11o.i j.i i|in o.ni inclui diálogos entre um personagem
\-|\m ni i ihm iii< !>em colocado .socialmente, e a Morte ou, mais
■i 11n111u uh , um i .ulaver que c o seu agente. Mas urna esclarece
a i mli.i Ia te observou (|tie o manuscrito do Escorial que conser
.mi |Hiineiiii texto conhecido de uma verdadeira dança macabra
i a'ilelli.m.i (a / k m çcigeneral) é repleto de catalanismos,.aragonis
utos e ale arabismos. Daí a suposição verossímil de uní vínculo
entre cia c a D ança da Morte catalã que a p r e c e d e u .'Feria ha
vicio então confluência, no reino de A raga o e certamente também
cm outros lugares, entre a pedagogia dos pregadores e antigas
danças Fúnebres assim como aculturação destas por acyaela.274

274. SAUGNIEUX, J. Les Danscs..., p. 49-52. SÓFA-SOI.F, J. M. “F.n toi


no a la Dança General de la Muerte" em Híspante limen», v. XXXVI, n. 4,
l%8. p. 303s.
Tal co m o se n<>s aprésenla, a / >ausa </<•l<i M orí era destina
da aos peregrinos (|iie vinham a Montserrat. Preparação para a
lo n llssa o no dia seguinte, ela era executada na vigilia da véspera,
di.míe do altar, lora das celeb raçõ es litúrgicas. Os cantores, ao que
p airee, nao dançavam , mas os dançarinos retomavam com eles a
ultima meia liase de cada copla e lodos - cantores, dançarinos e
0 grupo de peregrinos - associavam-se para proclamar o refrão.
( > Urro Vermelho jAe Montserrat comporta os mais antigos signos
1 oieogr.il'icos conhecidos atualmente na Europa - frágil e precio
o emergencia de urna'cultura bem velha. Eles remetem a um bali
i o d o ou dança-roda (não por acaso evocada num capitel gótico
d o t I.lustro de Montserrat), com passos para frente e para trás do
■mulo, mudanças de direção à direita e à esquerda, pequenos sal
i. im o d ificaçõ es da posição do corpo, reticências, etc.27S A inslru
incnl.içao compreendia gaita de fole, rota (uma espécie de lira),
' saniji/ina (flauta de Pã). O Livro Vermelho comporta, depois d.r.
■nplas j.i apresentadas, a representação de um esqueleto num lu
iniili i aberto com a sentença: “Ó Morte, como é amargo pensai cm
tl" Seguem sele reflexões, que poderíam talvez ser cantadas peln
■i Mijunto dos participantes que seriam então divididos em dois c< >
nr., lançando um ao outro as severas interpelações seguintes:

Vil cadáver tu serás. Por que não temes o pecado?


VII cadáver tu serás. Por que tc inflas de orgulho?
\ il cadáver tu serás. Por que procuras riquezas?
Vil cadáver tu serás. Por que te vestires com ostentação?
\ il cadáver tu serás. Por que corres atrás das honrarias?
\ il cadáver tu serás. Pór que não te confessares e te arrependeres?
Vil cadáver tu serás. Não te alegres com a desgraça alheia.

A Da usa de la Mort de Montserrat associava, portanto, tra-


•Ifi a» popular e estilo gregoriano e seria um exemplo da reutili-
m<ao de um ritual fúnebre de passado certamente milenar cíen­
le. dr uma lição moral cm vista da salvação. E fácil observar ao
F .tic,o das coplas a menção explícita ao “desprezo do mundo”, a
iir.Méncia sobre o julgamento e, no final, sobre o cadáver.

( lomo nos desenvolvimentos anteriores, convém agora sa-


li. ni.ii .1 jiastoral do medo que se exprimiu nas danças macabras

.V/5. Kl.i podia também ser dançada cm linha reta ou em estrela.


propriamente c111;i1• Nfto vou retomai em tIfl.illu* .1 Iil.sltni;i cU*.*i
las ultinuiM, m.i,*, marcar os vnu uli >s tv.iri'lii>s que 11.10 cessaram de
existir entre elas o ,i Igreja llórenle. No século I,5, constituiu se
11111.1 «miem reliólos;! 1 h;im;ul;i <)nlem ele Sao Paulo, enjo.s meu)
bros foram eommnenle designados pelo nome de "Imulos da
morte' I les (ra/iam unia caveira sobre seu escapulario e se sau
davam enlre si pela fórmula: "Pense na morte, meu caríssimo ir
m.10" Entrando no refeitório, elas beijavam uma caveira ao pé de
um 11 ui ili\<>e diziam um ao outro: “Lembrai-vos de vosso fim ul
limo e nao pecareis”. Muitos comiam diante de um crânio e Io
ilos deviam ter um em seu quarto. O selo da Ordem comportava
uma caveira e as palavras: "Sanctus Pauliis, ermita rum />rliniis
fnitcr, m ancillo m orí:'" Esse apelo ajuda a compreender a afirma
e io de Vlnccnt de beauvais que garante que o poema do Monge
I Irllnanl, os 1crsos c/a morte, composto por volta de I 190, conlie
i eu um vivo sucesso e que era lido nos mosteiros.-" ble ja se
a presenta cuino um eslx >ç<u le dança macabra. Senhor e trovad» >1
qui se Oa nou clslerclen.se, I lellnant quer inspirarem seus con
li 1 .)• M lemol salutar da morte, lile encarrega enlào .1
1 I•*ii* p< 1 miiIIIi ida de sauda los de sua parte e enchê-los de
p 1 • ........ ini ■li ,1 envia a seus amigos, depois aos príncipes,
d» p. .................... ... . d< 11s di Kniiia A caminho da Cidade eterna, a
I•*i 1• |1/ uma vIslla 10 Aicel>lspo de Keims, aos bispos de Beau
v 11 * 1lie, nii, 1 nli ans, eu I lellnant, com o mais tarde os autores
*1» diigii ni a linas si‘gi k .1 ordem das hierarquias terrenas, mas
pai 1 man 11 11 niv clámenlo (|iii’ o túmulo proporciona:

Mi Mli 111 abales de uma só vez


I inii 1 o 1e| em sua torre
( oino o pobre em seu teto. (Estrofe XXI)

( >s vermes e o inferno esperam aqueles que abusaram das


riquezas e das alegrias da carne:
1
Corpo hem nutrido, carne tão lisa (= delicada)
I a/, dos vermes e do fogo camisa. (Estrofe XXIX)

,’7(>. i 1I.LYOI, R. I*. I listotee des ordres monasú<¡ues< rcügieux et mi/itaiees, 1*.»
ii.s.1 HSO, v. III, p. 145-147. A Ordem teria sido suprimida por Urbano VIII
cm 1637.
¿77. Speenlum historíale XXIX, IOS. SAUl.NII UX. | /o Dame,1..., p. 28.
I >.ii rs 1,1 c<mclus.K), (|iii' |knlei i.i ser ,i de um sermão: “Foge,
I»i.i/«•i! lo g c, luxtiriaL. Prefiro minhas ervilhas c meu pirão”.-'8
Im meados tio século 13, Uobert Le Clerc redige, por sua
\ um poem a que (em o mesmo título que o de Hélinant, Os
r,rnics <l<i Morto, e muito próximo pelo fundo. O poeta envia a
.......He primeiro a Arras, onde ela visita pequenos e grandes, de­
pois ao papa e ao rei para convidá-los à penitência.279Mas o des-
lil» das condições humanas - uma das características das danças
m.it abras aparece melhor ainda nos poemas latinos que têm
I" >i Ululo comum Vacio mori (eu vou morrer) e cuja versão mais
milga conhecida remonta ao século 13.2S0 A dramática fórmula
. li vou morrer” é alternadamente pronunciada pelo rei, pelo
papa, por um bispo, por um soldado, por um médico e por um
li v.ii o, por um rico e por um pobre, por um sábio e por um lou-
■" eU 11 Note-se que a ironia, muitas vezes inerente às danças
m.o abras e que se acentuará no fim do percurso, já está presen­
il aqui: nenhuma poção salva o médico; o lógico ensinou os ou-
........ . concluir, mas a íríorte conclui por ele; o voluptuoso perce­
bí que a luxúria não aumenta a duração da vida.
() Vado mori, do qual bem cedo se encontraram manuscri-
h ' nas principais bibliotecas da Europa, parece de origem france-
i Mas o lexto parisiense do século 13 menciona o imperador. Em
....... pensacao, a afirmação de E. Male, que via na dança macabra
uma i rlaçao francesa,282 não parece mais garantida. De qualquer
maneira, nao se aceita mais hoje a tese que atribui o primeiro tex-
i" di dança macabra ao poeta parisiense Jean Le Fèvre cuja Tré-
i'ii,i da morto (1376) comporta os versos: “Eu fiz de Macabreu a
daiii a (v)ue põe toda gente na roda/ E as leva para a fossa”.285

.’ H. les Vcrs de lã mort p ar Hélinant, moine de Froidmont, ed. Fr. Wulff e E.


Walberg, Paris, 10Ò5-
I i Vcrs de le Mort de Robert Le Clerc, editado por C. A. Windahl, Lite-
i.miiblatt, VIII, 1887.
780. H. Mazarme, n. 980. MALE, E. L’A rt..., p. 361, o datava de início do sé-
. ulo XIV. O poema comporta 35 estrofes de dois versos, cada uma terminan­
do i um dado mori.
’ü I . li sto reproduzido em ROSENFELD, H. Der mittelalterliebe..., p. 323-325.
.'87. MÁI li, E. L’A rt..., p. 389.
.’,8,V / c Respit de la Mort p a r Jean Le F'evre, ed. G. Hasenor-Esnos, Paris, Pi-
. .ui1, 1969, v. 3.078-3.079, p. 113.

145
Mesmo se i ».11ii'Mi (> pintado cm I t.’ i nos muros do cemI
icrlo (Iom 11kk'ciílcs constituiu um prototipo Icontigráflco, o tciu.i
d;i dailça macabra ja cr.i conhecido .ínter'loimente, Um croitlsla
Ir.uh c.s cm revendo cm 1421 exprimia as.slni as desgravas do seu
lempo: I .1/ ealor/.e ou c|tiin/e anos que essa dança dolorosa eo
incvoii; c a maiot parle dos senhores morreram pelo gladlo ou
pelo v e n e n o on de outras danosa morte contra a natureza"
Antecedendo a pintura dos Inocentes, devem-se subentendei
testos e Imagens que se perderam. () que dá verossimilhança a
le.se de II Koscnleld (|ue data de 1350 e situa no Convento
Dominicano de Würzbourg o nascimento do primeiro poema
consagrado a dança macabra, ble é constituído de monólogos
sucessivos (em latim) colocados na boca de personagens (papa.
Imperador, cardeal, ele.) forcados a entrar na roda fúnebre, e eia
ai ompanhado de ilustrações. Num manuscrito de meados do se
culo I >, conservado em I leidelberg, esse poema é associado a
um li \Io alemao mais elaborado que, este sim, e uma vc*rdadel
ia daiga m.h alua com diálogos versificados (em forma de qu.u
n io . i i nt i• i Minli e n presentantes das diversas condições so
•mi i «o.........i .i mpie pelo papa e pelo imperador. II. Rosen
leld ......... .. m. d< Milita Interna, também faz esse documento
n itu ml ti i \l/liiliain as de 1350."'
I i m .i i |tie \ale a pena especular longamente sobre o lu
•i a. mi, m u . a •hita esala tle aparecimento da dança macabra 1
i"n 11o• miiitM i, mpo ,( pensou c|ue a D ança general castelha
o tf ii i i da l>,ni\ii nnnahra publicada em 1485 por (iuyot
l ii- h m i , I i pio| ii ia uma atlaptaçào daquela dos Inocentes, Mas
hispanistas tendem agora a sublinhar sua originalidade pro
pila - h< e,indo ate mesmo a datá-la das vizinhas de 1400...I ran
m si . alemaes, espanhóis, não sem um certo chauvinismo, pro
etii.im assim monopolizar uma prioridade na invenção de um

2H4. ( litad» por KURTZ, I,. P. The Dance ofD eath, p. 215 c por WIR'I'I I. |
/</ /e une filie et la mort..., p. 25.
.’í(5. ROSFNIFI I), 11. Der mittelaíterliche..., p. 60-66, 89-92. lextos p. 10 '
32 t. Documentos na Bibl. Univ. cie Heidelberg (Cod. Pal. 314). A tese d-
origem alema c! recusada por STAMMLER, W. Der Toicntnn: , Mnnldi,
I‘MM, p, l) I H e I")UBRUC 3<, F.. The Theme ofD eath in Treneh Poeiry o/lhi
Mitidlc Ages and the Renaissance, Londres, l a Maye, Mouton, p. 22 !3.
.'K6. SAUCNII'.UX, J. Ies Divises..., p. 42-52. Apesar de tudo, pcrmanmin
ainda importantes scmclliaiga.s entre i / >,///(,/ yeneirtl<■a dos [nocente, t ou .
milidtt por <Iuyot Man liam.
i< um «I» mu i '.m ), ( ) im|>i >iUnte afinal e menos o país de origem
-li u i>1>eiias ulteriores talvez ainda modifiquem nossos eonlie
i liin 111<>•- desse assunto do que o lato de que o lema estava no
ai « si encontrava em diferentes eantòes da Europa eclesiástica
■ I" .ei 111o I i I . inegável sem dúvida que a D ança m acabra pin-
i nla em I i.i i nos Inocentes e os versos que a acompanham tive-
iiim uma profunda influência fora da França, notadamente na
sli manha do Norte. Mas convém assinalar sobretudo que uma
- Iisll illldade coletiva eslava á procura de uma formulação icono-
- ilha i textual para a qual levavam simultaneamente a lenda
d- ■ tu s mortos e dos três vivos, o debate da alma e do corpo, o
l.s /e morí e a transformação pela Igreja de danças muito antigas
- m - squetes gesticulados de alto valor pedagógico.
N o estagio atual do conhecimento, foram assinaladas na
i i mi- a p e l o menos 80 danças-macabras dos séculos 15-16 (exis-
i- ni< i mi destruídas) pintadas em afrescos ou esculpidas, às ve-
• lamiiem bordadas sobre tapeçarias e mantos ou evocadas em
\111 o ' ' na Alemanha (mais a Alsácia, a Áustria, a Estônia e a
I lila i, 8 na Suíça, 6 nos Países Baixos, 22 na França, 14 na Ingla-
i- m i . Mna Italia (do Norte). Nenhuma é anterior a 1400 - prova-
• l ui e nt e o escrito, mais uma vez, precedeu a imagem. Em com-
p- n -ai ao, outras trinta foram realizadas nos séculos 17, 18 e até
m - I" - -scneialmente na Alemanha, na Áustria e na Suíça.287 Essa
- "iit.ihllldade provisória evidentemente não esgota o problema
•lil dllusuo da dança macabra. Porque países como a Espanha e
i'••11111e11. que nao a possuem nem pintada nem esculpida, entre-
l.iiito i (onheceram sob a forma de textos (raramente acompa­
n h a i »s d e Imagens).288 Do mesmo modo, a Dinamarca e a Suécia
• i n .un lamlllarizadas com ela por meio cie livros e gravuras vin­
il- •- -Ia Alemanha.28'’ E preciso portanto ciar tocia a importância aos
muniisi ritos e depois aos livros impressos que, geralmente acom-
p nili.idi is de ilustrações, espalharam por toda a Europa ociden-
m I - - ential o tema e os ensinamentos morais da dança macabra.1

1li 1 mi meros são obtidos combinando as indicações fornecidas por


kUKT/., I . lí The Dance..., p. 70-154, TENENTI, A. La Vie..., p. 90-91 e
l'( VSI NITI l>, H. D er mittelalterliche..., p. 347-363.
'HH ( I. M A R TIN S, M . Introdução histórica à videncia do tempo e da morte,
’ v, hi.i|-,i, ( i uz, 1969: I, p. 17ls.: a influencia da dança macabra sobre Gil
Vit - ui- . II, p. .32, sobre Juan de Pedraza c mais tarde sobre Antonio Vieira,
p. 2.’. S.s.
2MT I d MCI'/., I .. The Dance..., p. 116 117.
i i >caso notadamcnte dos lilm kbi'h /nr.ilem.Uv» do .século I‘ . •i••
-.iin ( h.mudos |)or<|itc tim.i página lulelia letras e Ilustrações
i *i .i Impressa .1 partir de um único bloco de madeira, Essa téenl
ca, anterior a invenção dos caracteres móveis por (iiilenberg em
I i SS, manteve sc ainda durante mais de meio século depois des
sa data. O mais antigo dos Blockbücber consagrados-ao 7 oten
l>iiiil remonta a I 16S e foi de propriedade do chamado clclloi
p a l a t i n o .I )ois outros de larga difusão apareceram no lim do se
culo IS, um impresso em I llm (ou em 1leidelbcrg), outro em Ma
yunce/" Também sc deve reconhecer as duas principais linhas de
difusão na huropa dos lemas e das imagens da dança macabra,
uma francesa, outra alemã.
A larga audiência da D ança macabra dos Inocentes
( I i 3 i ), da qual Ciityot Marchant e também outros editores (Piei
re |c Rouge, Antoine Vérard) reproduziram com alguma liberda
de os versos e as figuras,-"- como dissemos, levou a pensar que a
Milgem d o lema era francesa. A composição pintada nos muros
. ............lili rio parisiense, com eleito, inspirou direta ou indireta
nu 111• n i. i ipi na*, as dam, as mac abras de Ker-Maria (por volta de
I mui di I a ' Iu Im Nleutpoi volta de 1470), de La Ferté-Loupié
n <llm d '' ■■uli- I n, de Me sl ay le-Cirenet (antes de 1540.),*Metc.,
....... i 111i " ni niiiiii nis.is re.illzaçócs estrangeiras, evidentemente
i . .ni Iil.. i. ladi s . ui n fu. ao ao modelo: ncj cemitério londrino do
i ■i i . I. d. I i '.ti . ni I ubeek em 1463, em Berlim em 1484. Por
...... . lid.. |..l ..|. vto |unlo ao afresco dos Inocentes que foi Ira
l.i 1.1. ■■m . alalao em I 107 pelo arquivista real Miguel Carbonell,
miil>iiiii.|.. na pateiiiIdade ao "Doutor e Chanceler de Paris cha
ni ni. i |.. um es < Hm.u hus, ou Climages”.*2 1394 Essa identificação pai
9
. i ilmeiili eiiada remeleria a Matthieu de Clémanges (:f l i.Vi),
pioh ssoí em Paris, cujas obras associadas às de Gerson figuram

lie cst;í conservado na Biblioteca Universitária de Heidelberg, Cocli \,


foi. germ. 43H. Reprod. dans SCHREIBER, W. L. D er totentanz, Iilockbuch
von enea M 6I, Leipzig, 1900.
291. CLARK, J. M. The Dance..., p. 85-87. ROSENFELD, H. Der mínela/-
icrliclic..., p. 93-95.
292. B.N. fundo latino, ms. 14904. MÂLE, E. LArt..., p. 363, n. 5.
293. A respeito desta ultima (no Eure-et-Loir), ver a notável monografia d-
A. Cáu visier cilada anteriormente.
294. C LARK, |. M. The Dance..., p. 3.8 29, SAU< ¡N lld IX! |. /cs D,m es
I >.i( ,i .iii ilnii^áo errada a ( íerson.

I 1H
mim m.mu,st iil<> tlaiaclo de I 129 c conlcndo justamente “os ver
m , tia dança macabra tais com o estão no cemitério dos Inocen
a Nada de espantoso, por conseguinte, se o texto da Dança
d. < aihonell e bem próximo do de Guyot Marchant, que por su.i
\( ei a a transcrição dos versos do cemitério dos Inocentes.
Se as representações da dança macabra na Alemanha do
J•>tI« permaneceram tributárias do modelo parisiense, as da
ui«. a , da Alsacia, da Alemanha do Sul e mesmo da Itália (so­
lí nlrloiial) lóram marcadas por uma tradição que passava pe-
l<• lextos de Würzbourg, pelas ilustrações germânicas e pelos
lllnt khíli her do século IS. Esta outra linha, que cruzou a pri
nielia, desembocou notadamente nas duas com posições da ba
lli Ia (cemitério dos dominicanos por volta de 1440, Kligental,
■n11• I 160 HO).-"' Basiléia foi assim o ponto onde convergiram
■' ili»I•. graiules caminhos europeus da dança macabra c por
iia u / lhe serviu de centro de irradiação. Na sua publicação
d. I i.", ( itiyot Marchant não tinha dado lugar aos mortos mu
i' i.. Ele os Integrou, porém, na segunda edição. Julga-se que
■le tomou essa adição do modelo de Basiléia e mais ampla
111*■1111 da iconografia germ ânica.297 E certo que as danças ma
11o i•• de l.a Cluúse-Dieu, de Lübeck e de Berlim - estas duas
uliinia . de inspiração francesa - colocam um morto músico na
■ uh Ira do plegador. Mas é sem dúvida porque esse motivo já
Unha adquirido amplitude nos países de língua alemã. As dan-
•a di Basiléia tinham trazido com efeito um enriquecimento
tu .i no umbral do ossuário aparecem duas múmias animadas,
im nulo pífano e tamborim. No Blockbucb cie 1465, um morto
i - i galla de foles, sentado em frente ao papa. Depois, no
UId /.7»//( h de l llm ou de Heidelberg (por volta de 1485), apa-
ii ' • agoia uma orquestra macabra formada por três tocadores
di Maula e um irombetista. Só restava a ‘Guyot Marchant conti­
nuai tu . .a linha pela introdução de variantes. Sua edição cie
I imi i poe em cena quatro mortos músicos tocando respectiva-

")'). B,N. luiulo latino, ms. 14904. MÂLE, E. LAit..., p. 363, n. 5.


")(>, A respeito dessas duas danças macabras, cf. o catálogo da exposição D cr
/,'.//u li,mel ( 1979), editado pela Gesellschaft Schweizerischer Zeichenlehrer.
\. |>< •|iiis.rs recentes inverteram a ordem das realizações geralmente admiti­
da ,m agora, boi o afresco do cemitério anexo à Igreja Dominicana que serviu
di modelo ao de Kligental, e não o inverso.
"i ( T. a esse respeito ROSENEEI 1), 11. Der mittelaltertichè..., p. 151-152.
mente g;ill;i de Iblcs, órgán portiilll, h.i11>.i c ll;itil;t, <■ <> <|Lif s<>
I>i,i este instrumento também I>;iU* num tambor A respeito do
papel desempenhado por Basiléia, lembremos que foi nesla ei
dude que llans llolbein, o jovem, natural de Augsbourg, velo
estabelecer-se em ISIS e publicou o seu Pequeno Alfabeto
( l 520) r seu O'rancio Alfabeto ( IS21), cujas letrinhas de cham a­
da se destacam sobre cenas tiradas das danças macabras (cada
esqueleto assediando um ser humano). Os Alfabetos eram ape­
nas preliminares à grande obra que surgiu em Lyon em 1S38
sob o título Os Sim ulacros e histórias diante da Morte. Quanto
ao maior pintor suíço da época, Nicolás Manuel Deutsch, autor
da D ança Macabra de Berna - repleta de mortos músicos - foi
lambem em Basiléia que ele fez o seu aprendizado.2982 0
3
9
Que artistas dessa envergadura e impressoras de renome
exploraram tais lemas no fim do século 15 e no início do 16, a de­
manda do publico o prova - uma demanda que eles contribuíram
evidentemente para ampliar. Um maço de baralho holandês do sé-
. uh i I i lepn senta Vi homens de diferentes condições, desde o
11111mudoi al' o mais humilde valete, e também a Vida soprando
I h«lha d* ab h 11-, i lan >, a M<>rle,"wA dança macabra pintada em
I MU n i i p i n d ' da Mailenldivhe de hübeck (destruída em 1942)
in pm ui in i 11H ana eld.uk* varias edições ilustradas do Toten-
i m qiii un liam •m I 189, I ¡96 e 1520. Esta última deu lugar a
....... .............. Ilnamaujiii sa em 1536.^ Foram contados 16 manus-
iiiom li un i a. s, a maioria do século 15, que nos conservaram o
i» *ilo da Diluía niiicahra (dos Inocentes). 14 contêm apenas o
ti Mu ' . ii i i ui iqiits idos de miniaturas, 6 acrescentam a D ança
ahiu di/', mulheres. Quanto às edições incunábulos que, gra
i i a <myol Marehant, Antoine Vérard, Fierre le Rouge e outros,
p o p u l a d , aram as duas danças nos países de língua francesa, elas
atingiram pelo menos uma quinzena só durante os anos 1485

298. Niklaus Manuel Deutsch. Maler. Dichter. Staatsmann, trabalho coletivo


editado pelo Kiinstmuseum de Berna, 1979, p. 252-267 e pl. 57-71. A dan
ça macabra de Nicolás Manuel Deutsch, tendo sido destruída, só nos é conhe
cida pelas cópias.
299. ROSENFELQ, H. Der mittelalterliche..., p. 18. Conhece-se um maço dr
baralho dc 1392 que pertenceu ao Rei Carlos VI da França e que comportava
também temas macabros. Ibid. Cf. por outro lado, D’ALI.EMAGNE, II. R.
/<■i (arles,) jouer <lu XIVau XVt“siècle, 1’aris, 1906,
300. ( l.ARK, J. M. The Dance... p. 8.’ NV

1f»<)
I'iiio, primeiro em Laris e logo depois em l.yon, Toyes, Genebra
i lonlonse,'01 Subsistem por outro lado 12 manusc ritos da versão
111>d1 a da ilança dos Inocentes. Na Inglaterra, onde a Reforma Ibi
uiaf. hostil ,i iconografia macabra - a do cemitério londrino do
I'* idao loi destruida can 1549 por ordem do protetor Somersel
m i lliu do ses illo 16 continuava-se a vender exemplares de Dan
o / e eançào (Id Morte impressos numa só página com poesia e
Imagí -ns, estas muitas vezes inspiradas nas gravuras de Holbein,
i|Ue eonlieceram um amplo sucesso. Sáo conhecidas 11 edições
do-, 'uiim/dí ros... só para os anos 1538-1562 sem contar as imita-
hii e contrafações.-^ Kssas indicações juntam-se às outras já
apu •■rutadas anteriormente e ajudam a medir o lugar ocupado
na mentalidades ocidentais dos séculos 15-J6 pelo tema da dan
i a mm al >ra,

I .la, estruturalmente, é um desfile - dever-se-ia ate'* di/ei


uma procissão” - das diversas condições humanas em marcha
I* na a morte-, Dentro desse desfile, cada vívente é arrastado um
tia a vontade- por uma múmia animada que, geralmenic, csboc.t
um pa .nu de dança. Ksse quadro geral integrou naturalmente di
v' i-,a-, \arlantes conforme as épocas, os lugares e até o local de
•I •>< dispunha, Km linha geral, o número de personagens con
idadi >■. a entrar na sinistra procissão por um morto ou pela Mor-
ti aumenta a medida que se amplia'.a audiência do tema. lim
l ■i Maria, eles sao apenas 23. O texto latino primitivo (?) e seu
di iliado cm língua alemã por outro lado só convocava 24: nú-
iii* i** que sc encontra em Lübeck e em La Chaise-Dieu. Km Ber­
lim ■ le-, -,ao 28. No cemitério dos Inocentes, segundo Guyot
Ia 11 liaul, eles eram 30. As cenas que colocam frente a frente um
' tv" * um i adaver formando par passam a 33 na D a n ça general
■ i vi nos dois lilokckbücher ú o fim do século 15. Os aféeseos
d* Basiléia anteriores às obras precedentes comportam até 39.
1 *Hiipieendc se qu e G uyot M archant, diante do su cesso de sua
piihlli ai ao de I t85, tenha reincidido no an o segu in te e f o r ç a d o
■ dosí a» rcseenlando uma dança de mulheres e clez novos per-
■ui.io.i ns a dança dos homens. Na primeira edição (1538) dos Si-
miihh /<»•>, de Holbein, chega-se ao total de 40 pequenos qua-

V()I KUR I /., I . I*. The Dance..., p. 25-69. SAUGNIEUX, J. tes Dünses....
p, 123 I2H. > . Ij
IIN I-N TI, A. IISenso..., p. 162.

ir, i
t In »•, I Iicni veril.uU* que 7 deles ( représenla ndn ,i <ilaçao, o )nl
jí . iiih’iii(> final, o Im. i .sí H) da morU\ clt ) nao evocam o Ir idíelo
nal diálogo en Ire um vivo e seu Interlv >eulc >r de alem-Uimulo. làu
t oni|lens.ieao, H novos personagens aparecem na edição de
I'» r>, <) pleo da inflação, ao (]ue parece, foi atingido na Dauçtt
, le la Muerte publicada em Sevilha em 1520 e que é uma repro
dução alongada da D ança general. 58 vivos discutindo inútil
mente c< >m a Morte.
( )l)su vanelo um quadro hierárquico bastante estrito, as dan
ças macabras, <|ue devem ser lidas da esquerda para a direita, co
meçam normalmente pelo papa e relegam para o fim da procissão
dançada, ou pelo menos nas proximidades dos últimos lugares, o
( ampones de um lado, a mãe e, do outro, o filho: escala de valed­
les sem ambiguidade, lim geral, as pessoas de Igreja precedem os
leigos, lanío numa repartição global, como numa distribuição alter­
nada <) primeiro <aso e ilustrado pela Dança de Berlim e por
ai (líelas d o s dois H/ockbíicher alemães do fim do século 15: todos
«i i i li .i.i .i i<i is \,k i ct >li >i ai l<>s antes dos representantes da socieda­
de , iil.H ( i ,i ii u n d o ( ,iso e mais frequente: um personagem de
lee |.......... ............................. |iial ele dança uma espécie de “polonc-
' ............ 111 n im 1 .i al lom udo por um leigo e uma múmia ani-
iii ol í s imIiii ii papa vem antes do imperador, o arcebispo antes
di m i 11•im i . bisp. i . mi e s do escudeiro. Mas essa regra só perma-
.......... iliil i in i nivel d o s mais altos graus. Quando se desce abai-
*n d .......IHi m di l",n ■1.1 ou de espada produzem-se interferências
• i l ini i >l,i n a hii.i seus direitos. Nos Inocentes, entre o monge (n.
...........p ule (u .'.(i) inlercalam-se o usurario, o médico, o aman-
1* -i idvi.isido e o mencstrel. No Cemitério Dominicano de Basi-
|i i.i .i i 0 personagens entre 39 eram de Igreja. Dentro de um es­
quema geral constante, descobre-se uma real diversidade: a dança
de Berlim e a única a dar um lugar à mulher do estalajadeiro. ()
lulz, Turco, o pagão e a pagã só aparecem na de Basiléia. C) co­
o

zinheiro, presente no texto latino de Würzbourg e no seu deriva­


do alcmao, faz parte igualmente das procissões macabras cie Basi
Ida Quanlo a D ança general, ela integra três personagens hispâ­
nicos da época: o rabino, o Alfaqui (doutor muçulmano) e o guar­
dião de santuário (santero). Reflexo de sua época e das concep­
ções sociais desta, as danças macabras tiveram tendência a sub-re
presentar camponeses e artesãos. Nesse sentido, a Dança d e l a
,1tuerte com seus S8 personagens é antes a exceção que confirma
,i regra, Com efeito, ela acrescenta a Dança general 25 recéiíi-che
gados fornecidos pela |>t*c11k*ii•i |u>|miI.k .lo de comerciantes, arte
Míos e ambulantes; o alfaiate, <> marinheiro, o sapateiro, a padeira,
a vendedora de biscoitos, o vagabundo, etc. Além disso, ela faz
menção no f inal, como também a D ança general, a “todos os ou-
tros" (|iie nao puderam ser nomeados. Esse arrependimento, au­
sente da maioria das danças macabras, exprime-se também nos
Hlockbíicberóns anos I i90 cpie reservam sua 38'1seqüência aos es­
quecidos de todas as classes sociais - reparação bem necessária já
que a morte, por sua vez, não esquece ninguém. ^
Como os artesãos e os camponeses, as mulheres só ocu­
pam um lugar modesto nas danças macabras, com exceção, cla­
ro, daquele que Guyot Marchant lhes reservou especialmente a
partir de um poema bem trivial de Martial d’Auvergne (f 1508).303
As vezes, elas estão até totalmente ausentes: nos Inocentes, em
Ker Maria e na D ança general. Sua aparição é discreta em Lübeck
(2 entre 28), cm La Chaise-Dieu (3 entre 24), nos Blockbucher (3
entre 38). Lm compensação, sua participação é mais forte ao lon­
go de uma linha que parece derivar dos textos - latim e germâ­
nico - da Alemanha do Sul. Estes com efeito concedem ás mu­
lheres 4 lugares entre 24. No Cemitério Dominicano de Basiléia,
cias obtém 8 entre 39. Nos Sim ulacros... de Ilolbein, 8 entre 34.
Inversamente, na D a n ça de la Muerte, elas são apenas 4 nomea-
dainente identificadas entre 58 participantes. Todavia, o autor
anônimo deste poema também sentiu um arrependimento a res­
peito e colocou, entre o par formado pelo papa e pela Morte, um
solene discurso desta última a duas moças enfeitadas demais que
cia arrasta ã força na sua roda.304
Em suma, as danças macabras, produto da cultura domi­
nante da época, como ela, depreciaram a mulher por seus silên­
cios ou meio-silêncios. Quando as introduzem, é integrando-as
numa ordem social em que ela vem sempre em segunda posição
(a imperatriz - nos.países germânicos - a rainha, a duquesa, a
condessa, a esposa do burguês ou do taberneiro) ou para subli­
nhai- o quanto sua feminilidade a predispõe à morte (a moça, a
velha, a mãe que a morte arranca a seus filhos). A sociologia das
danças macabras convida, portanto, a uma conclusão frequente­
mente omitida: a despeito dos achados de pormenores, elas são
pouco originais, umas em relação às outras. No início, houve cer­

do.). Autor por sinal de Vigiles de Charles VII e dos Arrêts d'amour.
.104. SAU( «NIEUX, J. Les Danses..., p. 184-185.

IBM
I,míenle uma kleia de gênio. Km seguida, na m.llorín dos ea.sos,
0 estereótipo predominou sobre a inovaçao,
Dirigindo a análise para outra direção, será que se eleve
distinguir entre* danças elos mortos e danças da Morte e continuar
acreditando, com o se fez durante muito tempo, que as primearas
pre< cele rain as segundas?30' Assim, a dos Inocentes seria uma dan­
ça dos mortos, na qual cada personagem é arrastádo na roda por
seu sósia póstumo. Inversamente, os Sim ulacros... ele llolbein
constituiríam, esn final ele percurso, a passagem (bem sucedida)
di uma dança dos mortos a uma série de cenas de género ein
que e a Morte* que joga com os humanos aquele jogo muito fácil
e multiforme em que ela ganha sempre. Mas será que a obra ele*
llolbein e uma verdadeira dança macabra? Além disso, e de ma­
neira mais geral, a realidade parece ter sido mais complexa, ja
que, ao longo ele* todo o período, autores, espectadores e leito
res associaram constantemente os mortos e a Morte dentro ele
uma mesma e c<úsenle* lição.
< i i< ma do espelho vemos antecipadamente como sere-
.............. . i< e («ilamente antigo: ele remonta aos escritos
111*si Isii' ii r i ni i min m ia >ladame*nte na lenda dos três mortos e*
l i o- i i.............n i .. ilutóla Ilustração. É a mesma idéia que ex-
l'iinii i............... I¡b i n . i ".i ulpidos e*m inúmeras igrejas e as repte
•.................. di miillii n • In espelho elos manuscritos em iluminu
1 m N»il'• oí' ' tillm qin <íuyot Marchant qualificou ele próprio a
ii * i ñu iiiir alna dr espelho salutar”. Será que seus leitores,
di mi' d< i i1111 •• i,nli ii (|iie elevlara: “K. necessário armar-se de pica-
i' n 'i p i ■ di 1111111.1111.1’' e* lem com o parceiro um cadáver car
d r, indi i pm Is.miente esses sinistros objetos, viam neste último a
im i>;i m daquilo que o soberane) seria um dia? Podemos tanto
mal . duvidai c|uanlo o termo “espelho” no fim da Idade Média
a| illi ava se a toda espécie de obras didáticas - “Espelho dos pri'n
cipes”, “Isspelho dos Magistrados”, etc. Os franciscanos faziam
uso constante dele. Significava lição moral. Assim, nào se deve
Identificar de maneira demasiado rígida os cadáveres das danças
marabras como as imagens futuras de cada um dos personagens
vivos a que estão associados. De outro modo, o que fazer com

,t()S. I'.ssa era a opinião de MÂLE, E. LArt..., p. 365-366, retomada por MUI
/.IN< ¡A, |. l.c Déclin..., p. 150, por CORVISIER, A. "1.a Danse...”, p. 4 6 c poi
SAI H¡NIEUX, J, f es Dttnses..., p. 20, matizada pm RAI’P, I r. “La Reforme !<■
l i gi cusi *. p. 59, combaridn por< 1.ARK, |. M íb cP ii/u c , p. 109 lio Ln
me alinlio com esta última opiniao.

ir, i
L
tr. 1111 hi<),s iiuiskt >s t |tn ■, ,s( il) o pulpito dos pregadt >ivs, ci invocam
i >■. humanos para a fúnebre procissão? ( )s morios das dantas apa
ict i’in sobretudo como os ministros (de instrumentos intercam
blavels) da Morte, a cirial há muito tempo, e nao apenas ñas pro
Unidades do século 16, se tinha tornado uma individualidade le
mtvel I! ela que o Monge I lélinant envia aos seus amigos, aos
pum Ipes e aos bispos para enchê-los de um temor salutar. K ela
i|ii> voa acima dos corpos amontoados do Campo Santo de Pisa.
l ela que, montada num carro, avança orgulhosa e invencível, em
Inúmeros “triunfos da Morte” do século 15, de que falaremos
mais adiante. P sempre ela qüe os quartetos germânicos de Würz-
bourg e a Dança general castelhana põem em cena. É ela ainda
que dialoga com um camponês numa obra notável do início do
m <ulo IS, o Lauradondã Boêm ia (Der A cken n ann aus B óhnw n).
I le texto, geralmente considerado como a mais bela pro
i alema antes de Putero, chegou até nós em 16 redações manir.
■nía . ( 17 edições diferentes do século 15 e da primeira mciadi
d. ■ In 1 ble parece ter sido composto por um mestre-escola e la
bellao publico de Saaz na Boêmia, Johannes von 1'epl, (|iie pei
di ii mi. i jovem esposa em agosto de 1400. O lavrador, que laia
I" lo autor, acusa a Morte em termos veementes: Você é, diz ele,
•■leu iz extorminador de todas as pessoas, o maligno perseguidt >i
d., mundo inteiro, o éruel assassino de todos os homens... Afim
d< se na maldade, desapareça...” (cap. ij. Com evidente emoçào,
i li 1'Voca a esposa modelo que lhe foi arrancada: “Eu era seu
inioi, da era minha querida..., a alegria deslumbrante de meus
■'lln , meu escudo contra todo incôm odo..., minha varinha de
••nda.» , meu mais precioso tesouro... Ela era boa e pura”
n .ip l\ c IX). Na literatura alemã da época, é um raro e belo lou-
. "i do anu >r conjugal. À Senhora Morte (seria preciso traduzir por
•' ulior Morte" já cpie o termo é masculino em alemão) não se
pino, upa com as réplicas que lança duramente durante o diálo-
g' • l >i acusada, ela se transforma em acusador arrogante e cha­
ma .eu Interlocutor de “imbecil”, lançando um argumento de
bom sensi >":

M)(>. A respeito do Lavrador de Bohème remeto ao artigo muito bem infor-


m.ulu dc KULPY, R. M. “Dialogas mortis cum homine. Le laboureur de Bolló­
me et son procès contre la mort”, em Le Sentiment de la mort..., p. l4l~167.
Muito estudada no exterior, esta obra permanece ainda pouco conhecida nos
países de língua francesa.

ir>r>
Si* desde .1 época do prlmrlm hollieni (|lu- lol modelado em
arglla, nos n.lo llvé.s.seinos <oiiliolndi>o i icvi Imetilo e .1 imiltl|)ll
c'ík .io iliis pessoas sobre a lena, dos .mimáis e dos Inseios nos
desellos e nos bosques selvagens, dos pelxes lúbricos e cobertos
de escamas nas águas, por causa dos pee píenos mosquitos nin­
guém poderla existir, por causa dos lobos ninguém ousaria sair;
os seres humanos, os animais, todas as criaturas vivas se devora
riam entre si porque haveria pénúria de alimento, a terra lhes se­
ria demasiado exigua (cap. VIII).

A Senhora Morte observa em seguida que ela tirou a espo­


sa do lavrador em 1400, portanto, no curso de um ano santo: sua
subida ao céu lera sido imediata (cap. XIV). De qualquer modo,
a grande eeifadora se declara “criatura de Deus” e trabalha para
ele (cap. XVI). Ao camponês que se obstina em defender o direi­
to de todos a vida e a alegria, ela replica recorrendo ao clássico
iiseñal misógino; a mulher é podridão,50" e é imoral (cap. XXIV
e ' Allí) Seg.iindo <> roteiro habitual dos debates da época, a
qn< n ía i. imliia Alant e do tribunal de Deus que não dá razão a
le iihiint A. o pn a.uv mi stas o lavrador tinha sua esposa não como
la i un i mas ,i . Mino empréstimo. A Morte se gaba de sua po­
li i" i i m is ' Ai s i a urebeu em concessão, “ela se vangloria de
....... I" .A- i que n.io a ni por si mesma”. Resta que “cada homem
i loi.’ ido a A ii sua vida a morte, seu corpo à terra e sua alma
i i io 11 i p \ X X I 1 1 ).
I iluda a M o i i e que se vê - em pleno trabalho - no cu-
il" 11 pin ma l \lorlr</<i maçà, que data de meados do século IS
' I■o |u•a a\mímenle Inspirado em muitas seqüências pelas ima
gi ns i seisos da roda dos mortos do claustro de Amiens, pinta­
da poi volta de I4S0 e destruída em 1817.-50* Quanto ao diálogo
q u e ele contém entre a Morte, a mãe e o filho que vai morrer,
ele provém das mais antigas versões literárias - latina e alemã
da dança macabra.50! O vínculo entre esta e o poema é então cer­
to. ( )ra, neste último, a Morte mais uma vez é personalizada. Ida
nasceu no momento do pecado original. Munida de três flechas

307. ( -f. a citação inserida p. 58.


308. Editado por KURTZ, L. P., New York, 1957 e estudado por MON
TlíVBRDI, A. "Le Mors de la pominc” cm Archivum romanicum, 1921,
p. I 10 134.
309. ROSENÍMU.D, H. fiic inilirhillnlnlu , , p. ívi

15(1
< do slnetc de Deu.s, < l.i re( ebeu iodo poder sobre os homens,
Non .i vemos entilo em .iv.io, ajudando Cairn a matar Abel, gol
|te.nielo o papa no meio de sua corle, o cavaleiro em pleno com
bale, a moya diante do espelho, etc. H a mesma concepção tía
Morte, soberana implacável, exposta nas ¡loras de Simón Vostrc
i IS l J ). No impulso do modelo constituido pela Morte da maçã,
0 desenhista de Simón Vostre multiplicou variações e achados: a
Morte l a / o pedreiro cair do andaime, ajuda o bandido a malar
•na vitima... e o carrasco a enforcar o bandido!-'10 E. Male julgou
•oin verossimilhança que Ilolbein conheceu as obras francesas
que acabamos de .mencionar. Porque sua “grande dança maca­
bra" na realidade se afasta do estereotipo clássico e constitui me
m »■. uma dança do que a justaposição de uma série de cenas do
■vMielo aquelas que já se encontravam na Morte da maçã e ñas
lloras de Simón Vostre - e outras que ele inventa: a Morte que
i|ii(la Adáo a trabalhar a ierra, que acompanha a imperatriz ao
passeio, que anda ao lado do lavrador e atiça seus cavalos As
■luí a Morte personificada das mais recentes iconografias ma< a
bus vinha de um passado antigo. E, finamente, colocando nos
denlio do ponto de vista do publico de antigamente, nao cabe
1 i ei distinção entre danças dos mortos e dança da Morte, llm
l* siemimho e aliás formal a esse respeito: do beneditino John
I \de,ale que, vindo á França, viu o afresco dos Inocentes, discu
ilu sua significação com os clérigos parisienses e traduziu seus
\•isMs em inglés. Ele compreendeu esta dança dos mortos como
uma dança da Morte. Prova disso são suas traduções das diferen-
i* s lendas: "Primeiro, a Morte diz ao P a p a ...”. “A Morte diz de
ni >\o ao eremita'...”, etc. Para Lydgate era mesmo a Morte como
tal que se dirigia aos vivos.

Ilolbein tomou muitas liberdades com a dança macabra.


I .si termo não figura no título de sua publicação de 1538 ini-
iMulada Os Sim ulacros e histórias diante da morte, tanto ele­
gantemente / tintadas como artificialm ente im aginadas. Ele
ia igualmente ausente das versões latinas e italianas de sua
obia e aparece somente em certas adaptações alemãs nas quais
i« auge a expressão TodtentanzM Do mesmo modo, a D a n ça
nhhahra de Berna pintada por Nicolás Manuel Deutsch em

tl(). Sobre tudo isso, cf. MALE, E. LArt..., p. 378-380.


til. KURTZ, R. L. The Dance..., p. 195-200.

ir>7
I >l() liiO (e destruída em I0h0) no pan fílmenle m civiv esse
nome A<|ui j.i nao oslamos mais diante <ln <l< *,li11• contínuo e
ritmado dos p a r e s - um vivo c um cadávei associado mas de
uma galeria formada por cenas diversas. Muitas vezes os per­
sonagens estão agrupados: o papa com o cardeal, o imperador
com o rei, o cavaleiro com o jurista, o soldado com a prostitu­
ta, Num quadro terminal, vemos a Morte, com o alfanje numa
mão, um arco na outra e a aljava repleta.'Diante dela, umas
vinte pessoas dos dois sexos e de todas as idades estão esten­
didas pelo cliào, atravessadas de flechas. À sua esquerda, uma
arvore parcialmente rachada em seu eixo suporta alguns enfor­
cados. Inovação maior: o pintor assinou a obra e representou
a si mesmo com pincel, paleta e tento de apoio. Ele está reto-
( ando o seu trabalho. Um esqueleto, segurando uma ampulhe­
ta, apresta se a interrompê-lo.512
(.Miando Nicolás Manuel Deutsch realizou essa composi-
i ao, a Uelorma ainda não tinha triunfado em Berna, mas a re-
\olta d< fulcro ja linha com eçado e era intensa a fermentação
e 111*i• i•.a países germánicos. Daí o anticlericalismo viólen­
le 1111• * ‘quilín ii* ia obra mu artista que se tornará protestan-
i. o pul u d Ir. 11 <l< próprio em dialeto bernense o texto das
l> to uda 1 I I* * ..............I*» de falecer o bispo confessa: “Como um
............... ........... i o rebanho. . , ”. A Morte grita a um grupo ele
............... ■, .a* * lo bos vorazes disfarçados de cordeiros”.
i <•- p ................. ... com o um ídolo sobre a sédia, ela arranca
....................li* i liaia c a estola. Ela puxa sem cerimônia o pa­
utan a pi l*i * o i d a o do chapen com o se arrasta um animal para
' * mal ni* uno. ele. Nicolás Manuel Deustch levou ao limite urna
allí a d o * leio ha muito tempo presente nas danças macabras.
\o p adre “que comía os vivos e os mortos”, o esqueleto de Gu-
yot Marchant anuncia que ele será devorado pelos vermes. Um
p o m o mais a esc|uerda, o companheiro morto do padre diz a
este ultimo: "Recomende a abadia a Deus. Ela o deixou grande
e gordo; c o melhor a fazer: o mais gordo será o primeiro a
apodrecer”. Mas esse anticlericalismo em Guyót Marchant, do
mesmo modo que em Nicolás Manuel Deutsch, revela um vivo
desejo de ver a Igreja se reformar. Ele nao retira nada - pelo

.ti 2. Sobre a Dança macabra de Berna d, noiadaincntc BEF.RLI, C. A. l e


IVintre ptdle N. Manuel et l'ivolution m ía le de ton tenips, Gciiève, I953,
y . IN S I I, I’. D erBemerTbitniany.de.t N. Manuel. Itc inc, 1953.

IhH
lonlrarlo d o filio de <11u • ,i dança macoI>ra era um m t m i . u i ,
I .«» e visível ate* mesmo nas suas’ transformações mais impor
lames e artísticamente mais hun sucedidas Ilolbein e Manuel,
lanío um com o outro, integram à sua com posição cenas repe
•enlando o pecado original e o julgamento final. C) primeiro
a. uscent a a criação e o paraíso terrestre, o segundo, a recep
>.i*» ilos d e / mandamentos por Moisés e um pregador seguran
•l<> um crânio.
I .ss.is imagens, enquadrando as cenas macabras propria­
mente ditas, dão a elas seu verdadeiro sentido e devem evitar-nos
i nuil a sensos de leitura.

ir,!>
cap ítu lo X

ambigüidade
do macabro

,i llanca macabra: um sermão


(.Mu .r. danças dos mortos (ou da Morte)-estejam pene-
n id,i di humor negro explica-se pela dupla lição que elas
|u. iiam mlnlslrar: a hora derradeira chega de repente - daí uní
I"' <i|\i I i'IHlo côm ico de surpresa: ela atinge igualmente jo
■n ' m Ihns, ricos e pobres - daí o gesto de ridícula revolta
i n 111• I* qiif se julgavam protegidos pela idade, pela posição,
mi i" la l<xilina Mas a ironia, sublinhada pelo sorriso malicio-
" d. ■ada\eres parcialmente desdentados, será que chega até
i tilia .ni lab I.ssa afirmação já foi feita, mas parece apressa-
I i di mal'. 1 I cerlo que a morte aparece menos temível para os
i" *111* un' d. * que para abastados. Esse traço é urna constante
d i i. nii"v,lalla macabra dos séculos 14-16, já visível no afresco
i 1 un) ••• '.auto de bisa onde miseráveis imploram (em vão) à
Mi ai. 11111 se dirija para o grupo de jovens ricos despreocupa-
I" Ma l>,nii)<i de (iuyot Marchant, o cadáver que se dirige ao
111 i ii l"i i ll, l',m penas e cuidados / Viveste todo o teu tem-
I >a moilc* deves estar contente / Pois de grande iiiquie-
111 I» i» Ihia" A cena XXXVIII dos Sim u lacros... de Holbein
ii . . ula um cadáver animado, solidário com um camponês,
ii m .iluda a cavar o último sulco enquanto os raios do sol
i .a- iluminam o horizonte por trás da igreja. Em com pensa-
I mi quando as obras macabras, e notadamente as danças, co ­
lín (nu ii<< >., glandes, homens de Igreja e jovens em face da

i M \l I I / '. li/..., p. 366 s.; H U IZ IN G A , J. L e D éclin..., p. 150. Há mais


...i m i . . « ni SAI K ¡N IKU X, J. Les D anses..., p. 20, e sobretudo en vC O R V I-
>IH* \ I .i I )nnsc..., p. 51.

mi
Morir, o,st;i tem sempre ;i apaiénc l.i *l« ,irru ir » rl mi no,su" exe
rulot dos "mandamentos" divinos.
Sera que por isso os pobres e lodos os infelizes iulerpre
lavam essas com posições com o uma futura desforra? Será que
vlam algo diferente do ensinamento constante do Cristianismo
o p o n d o a morte pacífica de Lázaro à morte do man rico, como
as apresenta em Estrasburgo um quadro de 1474: aquele que
mendigava é recebido no paraíso, aquele cine comia regiamen
le, cercado de mulheres e de músicos, é vítima do demônio?'
bol dito na obra anterior a esta que os missionários do interior
no século 17 clamaram contra os abusos dos ricos, mas contra­
riamente a inúmeros vigários de paróquia, se colocaram sempre
d o lado d o poder na hora das revoltas.2 35
4Eis ai algo que esclare­
ce retrospectivamente as danças macabras. Elas prometem a
Igualdade, mas depois da morte. Quanto ao presente, elas con­
servam cuidadosamente as hierarquias no lugar e ordenam os
I >• i .<m agiar. can lunçao delas. Nào sào estas corno tais quç elas
• .llginail/.iiii lol l)<ais quem as quis - mas as ilusões derrisó-
ii i •111« i liMiirarla'. i’ o dinheiro provocam entre os abastados.
I mi.......... daiKas m.a abras nao sejam uma denúncia dos peca-
di is i .ipil ii diils 111*11 s porém se encontram constantemente vi-
lip. iul11.1............... .sillín i a aipíilitas (com seu subproduto a
...................i , .......... .. o primeiro dos pecados capitais. Quan-
ii i i 11111,111,1. i tija Importância ia crescendo numa sociedade
■ ni i n mal ■ iii.inla pelo luxo e pelo dinheiro, ela se tornou
um 'l.. ili n , p iiiu lp a ls dos manuais de confissão è outras su-
lililí d • i a s o . de c'< nesciencia,'
'.nb p< na de remontar no sentido inverso das idéias feitas,
«' pn i Isn Insistir sobre a pedagogia crista que a Igreja quis incluir
na dam .i macabra. Para E. Male, “despojada de seu comentário,
nao conserva a bem dizer nenhum caráter propriamente cristão",
ja que se contenta em ilustrar cluas verdades que não são espe
clalmenle religiosas: a igualdade diante da morte e a rapidez dos
golpes que ela deslere.s Dentro do mesmo espírito, J. Iluizinga
lazla a pergunta: “Será realmente piedoso o pensamento que si*

2. Musen da cidade. Quadro da Escola renana. Reprod. em TEN EN TI, A.


// Sniu)..., pl. 17.

á.DEI.UMEAU, J. LaP eur..., p. 187.


4. ( 4. a seguír, p. 240-255.
5. MÁI E, lí. l.'Arl..., p. ,180.
apega tilo forlemenle .ni Lulo terreno da mortc?”.” Prolongando
essas análises e levando as ao lliliitc, A. Tencnli vé no macabro
dos séculos 14-16 as danças incluídas - uma deslocar ão dos va­
lores adquiridos, uma "inversão do esquema cristão”. A mortc
nao c mais uma passagem, mas fim e decomposição. “Aqueles
que antes eram cristãos reconheceram-se mortais.” “Uma inversão
da significação tradicional da morte foperou-sel através dos mo­
tivos que pareciam mais ascéticos.” Os sarcasmos macabros, par-
<I.límente inspirados pela sensibilidade cristã, na realidade afas­
tam se dela." Pb. Aries contesta a oposição assinalada por A. Te-
nenli entre uma alta Idade Média cristã que teria insistido sobre
a morte com o antecámara da eternidade e o período seguinte em
que ela se teria laicizado. Mas ele concorda com seu antecessor
para considerar que nos séculos 14-1 (5 “as imagens da morte e da
decomposição não significavam nem o medo da morte nem o
medo do além - mesmo que sejam utilizadas para esse fim".' I
Saugnieux afirma por seu lado que “o século 15 nem sequer con
sidera mais a morte com o uma consequência do pecado”. A con
eepçáo das danças macabras “é ainda cristã, mas de maneira mais
exterior que real. O coração do homem apega-se a uma visai>da
qual toda transcendência está excluída”. “O tema da morte e, de
maneira mais precisa, o da dança macabra, tende a substituir o
lema do inferno.”9 Para A. Corvisier, “o propósito moralizado!"
dessas obras Ias danças macabras] se anula diante da expressão
realista do pavor diante da morte e do seu inevitável companhei­
ro: o áspero sabor da vida”.10Enfim, J. Wirth estima que a dança
macabra “não passa nunca de uma síntese instável de crenças po­
pulares, até mesmo pagãs, e de conteúdos morais acessoriamen-
te tingidos de Cristianismo”.11

Semelhante consenso não deixa de impressionar. Daí a


questão que colocaremos em seguida: o macabro não fugiu de
•.eus promotores? Mas será que os historiadores, sobretudo fran-
i eses, nao têm tendência a “ler” de maneira demasiado moderna

6. HUIZINGA, J. LeD éclin ..., p. 144.


7. IT.NENTI, A. La Vie..., p. 37-38, 88; IISenso..., p. 135, 141, 147.
8 . ARIf.S, Ph. Lhom m e..., p. 131.
l). SAUGNIEUX, J. Les D anses..., p. 97, 108, 118.
10. CORVISIER, A. “La Danse...”, p. 40.
I I. WIRTH, J. La Jennefilie et la m ort, p. 166.

Ki:i
c demasiado luli .1, quando se lula dl um discurso oriundo da
Igreja e propagarlo por ela? Noa vlm<»?. suas rai/c , nu masticas. I•
ria regamos agora sua difusão piias danças dos morios (ou ila
Mono). I'. Male c seus sucessores diados anteriormunte cíala
mcnle reconheceram o papel desempenhado nesse sentido pelas
ordens mendicantes, lí. Mâle, em particular, atribuiu lhes a inven
ç,ao das d arlas macabras e escreveu justamente: “I'ora eles que
ronu\ar.ini a assustar as multidões falhando-lhes da morte”.'• As
pesquisas ulteriores, fora da França sobretudo, corroboraram essa
allimaçao e permitem agora medir melhor a amplitude do lenô
iiicnii esclarecido aliás por uma contraprova. A boêmia nao co
nheceu dança macabra antes do século 17. Foi sem dúvida em
ta/ao do papel desempenhado nesse país pela corrente hussita.
Jean llus e seus sucessores criticaram a Igreja católica por ter
abusado do espantalho do inferno. Segundo o Reformador, os
pudres davam a entender em seus sermões que eles próprios e o
I.apa |hidl.im mandar os cristãos para o inferno.13 De maneira ain
da mais slgnllh allva, Jakoubek de Stirbra num sermão de 1416
1111111<.ti t i Inl i ni(» e destinado aos diabos,'não aos homens... e
•i dial ••i i |ii« enlia no-, Inlernos, nao os cristãos”.1'N essas condi
. pita <|ti« a .tisl.u as pessoas com danças macabras? listas,
ti i Mm* i i a i, m \ I. iam a tona uni) a Reforma católica.
■ u 11.............. tan i* petli: a dança macabra era um sermão.
I 11 n a. pi. i. udla .. i estellca mas didática.15Será que foi por aca
tu *n i . •■ . sua paternidade foi atribuída a Gerson? Com efei
i •. is ■ .11•■l• di is Inocentes figuram num manuscrito de 1429
...... . ndi. i.bias di. grande universitário, que foi célebre em sua
. ........i I inibem como pregador.11' lintão, nada mais natural do que
...... .idcia Io Inventor da dança macabra. Esta provavelmente é
mais antiga. Ora, nas versões latina e alemã que 11. Rosenlcld
data do século 14, o desfile dos futuros defuntos é enquadrado
poi dois pregadores, um abrindo, o outro fechando com um ser
ni.ii) a procissão fúnebre. Além disso, o manuscrito latino, que

12. MÁl .li, E. LÁ rt..., p. 354 e 362.


15. Devo esta indicação e a seguinte à amabilidade de Josef Macek. A<|iii, |.
I lus, SermonesinBcthleem, 1410-1411,éd. V. Flajshans, Prague, 1941, IV, p. 19
14. Sermão de 1416 publicado em Praga em 1951, f " 64.
15. lim ARIES, Ph. LH om m e..., alusões somente a este aspecto pedagógico,
p. 1 12 I 13. 1 16, 125 e 139.
l(i. Opinião ainda mantida por RAl’1', li "I i Rdorme i d i g i c u . s e . p. 39.

I (VI
Im*n l« ii .sc*11 aeompanlumenio Ilustrado, traz no 1'inal .1 Indlcaçan:
Ilu is <laclar U > segundo pregador) depídus predicando in ap /ia-
dia fiarle de contempla m undi
No começo, o laten tanz apresentou-se sem ambiguidade
...... . um sermão sobre esse lema. Igualmente, o texto da Danza
ilc lii morí calalà do século 14 traduzido anteriormente começa
|ioi c a.i formula evidentemente escrita por um homem de Igreja:
111 c|ul.s Halar do desprezo do mundo...”.18O pregador na cátedra,
r. vezes chamado “o ator” 011 “o doutor”, cuja homilía precede a
dança propriamente dita, encontra-se ao longo dos séculos 15-16
lanío no escrito ('publicação de Guyot Marchant, D ança general)
Mimo na Iconografia (danças de La Chaise-Dieu, de Basiléia, de
I tu .hurgo, de Berlim, de Lübeck, de Reval, de Ulm, de Metnitz,
■ in de herna).10Pssa constante é significativa: o pregador desem
penha na dança o papel comparável ao do eremita que, desenro­
lando seu pergaminho, narra o exemplam dos três mortos c dos
II< . vivos, Além disso, dentro da procissão, às vezes são introdu
/Idas alusões às pregações sobre a morte. É o caso no texto de
1 .uva >l Marchant em que o parceiro do franciscano diz a este: "lie
qüenleincnte haveis pregado sobre a morte...”. A tradução ingle-
a (de l.ydgale) amplificou essa interpelação da seguinte maneira:
‘•enhol franciscano, para vós minha mão está estendida para vos
••'in lela 1 para esta dança e vos conduzir a ela', vós que haveis tan
ias vezes ensinado o quanto eu sou temível para as pessoas que,
1 nliet.mlo, nao prestam atenção”.20
Um beneditino catalão do século 14 compôs as palavras
qm acompanhavam a D an za de la morí. Outro beneditino, o in-
gl» • l.ydgale, impressionado pelo afresco e as estrofes dos Ino-
m 11I1 s, levou a dança macabra para a Inglaterra. A de La Chaise-
I >li 11 eiici>ntrava-se numa abadia beneditina. A Capela de Ker-
I ui.i dependia da Ordem dos Premonstratenses. Os Mendican-
i' n.10 tiveram, portanto, monopólio nesse domínio. Seu papel
nln lanío foi essencial. Certas danças fazem referência expressa
i" liniao” encarregado da pregação sobre a morte, mas sem pre-

— I-------------- • jí
I ROSKNFELD, H. D er m ittelalterliche..., p. 65-67, 323 e mais geralmente
l>. 308-323.
I8, <:f, anteriormente, p. 86-87. •
I') I1 i.ilvcz um acréscimo à obra de Nicolás Manuel Deutsch. Há razões para
i ici t|iic em Kcr-Maria um “ator” abria a dança moderna.
( ütado cm CLARK, J. M. The D ance..., p. 94-95.

165
chili .siui ordem , N;i /kinça ucnenil, .1 Motie, no fim de mm pil
meli,l intervenção, Interpela assim n.s <»ii\ l n l « ., Se n.m Vedes
o Irmão que prega / Sede ao menos ;ilento ;io <|iie ele di/ em su;i
grande sabedoria". 1 Nesse ponto intervém o pregador c|iie aium
« Ia o conteúdo do poema. Logo a Morte retoma a palavra para
dl/ei principalmente: "Como o Irmào vos pregou / Deveis todos
la/ei penltèiH ia”,'" Essa D ança general apresenta-se, então, como
0 sermão de um mendicante. Muitas vezes, é possível determinai
a Identidade de sua Ordem. II. Rosenfeld, armado de imponente
documentação, esforçou se para mostrar que os primeiros textos
(latim e alemao) de dança macabra provinham do Convento
Dominicano de Würzbourg. Os Irmãos pregadores em seguida
contribuíram amplamente para a difusão do tema do qual os lian
císcanos por sua vez se apossaram, modificando um pouco seu
espírito ' l'ietivamcnle, os dominicanos, que estavam provável
men|e na origem dos afrescos do Campo Santo de Pisa, enco
iik ndaiam as danças macabras de Basiléia,2'' de Estrasburgo, de
Iteina d< <ativ.lança, de landshul (no século 17). Eles teriam
a* l>i pi n l .m i l ph >111<ili >K". <• depois ativos difusores.
Ma1 i •on< oriunda 11.mcisca na é fora de dúvida. Nos dois
lila. I hn, /-, i i Im ati" . I IDO. o dea imo primeiro personagem (vivo)
d i pi'M ............... I...... . monge esta vestido de franciscano, enquan
1 ....f •Inm• •ioiin Io • o mau monge - usa o hábito dominicano.
■ ■ h un i . ui" d< ,dt a época do seu fundador, quiseram pregai
• m/<in\ h u i ihII I eini >s ni >s Viorcttí esta frase que poderia ilus
...................... til de \irias danças macabras (o pregador na cate
di n l litan '.ao I iam Isco subiu na cátedra e se pôs a pregar ma
i ........... mi* ule sobre o desprezo do mundo,,.”.2S Muito cedo, os
I i .iih lo anos associaram imagens da morte e pregação ascética, So
Ini as pared* s (la igreja inferior de Assis, um afresco representa S¡'i<>
I i .iik Is i o mostrando um esqueleto coroado. Um afresco análogo
existe na sala capitular da igreja Santo Antonio de Pádua. A corren
le Iranchea na parece por sinal responsável pela aparição do lema
da decomposição na pintura (Igreja Santa Marghcrita de Medí i >e na

,’ t. SALKJNIEUX, J. Les Desuses..., p. 166.


II , Ibid., p. 167.
.’ V Kns.i *( .i tese gcral ilo livro Der miiteLlIterlichc lotcnhinz.
2-1. A<|iidc ilo ccm¡t<fric> anexo ao dausiro dos I'Vades serviu de modelo p,u i
tupíele ilo ( bnvento d.is religiosas iloininii anas di- Kligeiti.il.
26, l'iorclii (Ir uiint Duiiivis, tiu«I, Al, M r. .' mu, l'aiis, Senil, IP‘>A. p, HH.

Mili
' ■ulUii.i (o "leiii.ul( >i (l,t catedral de Estrasburgo) desde o último
i Hi.111*■I do século 13, assim como do corpo supllciado de Jesus. "
M.ils adiante no século 17 - são geralmente os franciscanos (in
i lu .lvc o s c apuchinhos) que, cm capelas contíguas a cemitérios sob
•tia dependencia, imaginaram em Roma, Nápoles, Palermo, íívora,
<i< , pilares completamente recobertos de tíbias, arcos de abóbadas,
11is.it ims, c apitéis, retábulos inteiros constituídos de crânios, e en-
t lieiam galerias subterrâneas de cadáveres em pé, ressecados em
■ii hábito mortuário e enfileirados por categorias (os padres com
<ii barrete, os enforcados com sua corda, etc.).
Voltando à dança dos mortos, lemos no Diário de um bur-
iR/es de Paris que em 142Í9 Irmão Richard, franciscano célebre,
piegoii oito dias seguidos no cemitério dos Inocentes “do alto de
um cv.Irado de quase uma toesa e meia de altura, com as costas
v■lilailas para o ossuário, de frente para a Charronerie, no local da
/'i///c a macabra.- Km 1453, os franciscanos de Besançon, em se
gulda ao seu cabido provincial, fizeram representar a dança ma
iubi.1 na Igreja Saint-Jean.28 Na Marienkirche de Berlim-Leste, o
pn i-ador <|ue fala da cátedra no com eço da pintura mural da tor
n •• um franciscano. Franciscanas são também as danças de Augs-
burgo, Hamburgo, Bad-Gandersheim, Friburgo (século 18). I I. Ro-
■nleld percebe nestas últimas um espírito menos escolástico,
mal' pielista e mais democrático que nas danças de inspiração do-
mlnlc ana: a cupiditas aqui é mais fortemente denunciada;29 a cruz
'M i rueifieado, colocados no meio da composição ou numa das
■ m mi< lacles, explicam ao fiel que o pecado e a morte foram ven-
■idii'. pela redenção. Essa referência imagética ao Calvário, carac-
i' n-.ilc a das danças franciscanas da Alemanha do Norte, se encon-
na na ll.ilia: em Rinzolo (1519) e em Carisolo (1539)í30 Uma mar-
* *i bem franciscana aparece igualmente num poema italiano do
iim di * século 15 ou do início do 16, o Bailo delia morte,*1 ampiá­

is. C i IIIIAIA, P. Les Idees depéren n ité..., p. 56.


.VA Jou rn al cl'un bourgeois de París à la fin de la guerre d e Cent ans, ed. 10/18,
l'nria, 1963, p. 106.
.’H. MÁI .K, K. L'Art..., p. 362. CANGE, Du. Suppfément, à palavra M accha-
biieonon chorea.
"i. |<( ISI.NFELD, H. D er m ittelalterliche..., p o ta d a m e n te p. 203 e 252.
H). Ikiil., p. 176 c 212.
H M : n. 1.510 na Riccardiana de Florença. Editado por P. Vigo, Le D anze
inaciibrc i ti Italia. 2. ed. Bergame, 1901 (apéndice).
mente Inspirado oa dança dos Inocentes, mas onde o .mlor, evl
dcntemenlo membro da ( >rdem *l«• sao linnclsco, Inseriu uma
viva <ríllca da alia Igreja. () arcebispo <|iie se julgava um sanio e
mandado ao Inlerno. O cadáver que o acompanha Ironiza dl/en
do: "os beneficios sao concedidos aos prelados para permllli lhes
uma vida dissoluta”. () patriarca tem direito a serias ameaças
"Sala, asseguram lhe, já mostra suas garras". () padre, que |á sal
vou Inúmeras almas, recebe porém uma severa repreensão de seu
macabro companheiro que, identificando-se a ele, declara "I u
queria ser o último dos Irmãos m enores... Nao deixarei o ceilo
pelo Incerto". () padre concorda - "vós dizeis a verdade" c se
recomenda ao perdão divino. Inversamente, o franciscano lean dl
relio a todas as atenções, ide é qualificado de "servidor de- <aíslo"
e Ihe e prometido o paraíso.'- Nenhuma dúvida, por conseguinte,
sobre o lato de que dominicanos e franciscanos rivalizaram can ai
d<H p.ua popularizar o lema da dança macabra com uma IIna Hela
de evidente ele instóle ao dos fiéis. Os Agostinianos, can compelí
a< a*, pi >ui o o < \ pioraram, embora a dança de IMnzolo ( IS.V)),
h" InailliiM 11 idia sido pintada no muro do cemitério de urna
lm> |a d* no 'iilaulia perteiu ente a ( )rdem.

inac abro e ressureição


I' i liaunu |ulga que a emergencia literária e iconográfica
di. i ufe •a i ui decomposição estava ligada “a uma vontade pe
•lar.' 'eli a indlssiíclável de>julgamento (individual)”. AntericMinen
n a Igieja 11nini Insistido sobretudo na ressurreição - corpo e
aliña dos balizados, líssa ressurreição global era invocada ñas
representações do julgamento final. A prom oção do "cadávei e m
decomposição", pelo contrario, relegou a urna zona nebulosa a
ressurreição final e den realce ao julgamento individual da alma,
logo apos a morte. I’ara que essa "antropologia das almas .1 pa
radas pudesse.se desenvolver foi necessário matar o corpo" A in
vas.io do macabro loi, portanto, inseparável do “desgaste da res
stirrelçao e do julgamento final”." A mesma tese ja tinha sido de12

12. VU ¡(), P. I.e Ihin&e..., p. 112 l’M. CI.AKK.J. M. Ihc IXmre , p V)


MCIíAUNU, \\ l a Morí ,) Parh, VI7. .VIVA, XVIH' M i l’u.m I ..c mi
l ‘)78. p. 2-U) .M‘).
•nvolvlda por Eh. Ai'lés ¡liguas meses antes de E. (lluuirui: "De
pol-N tío sisnlo I i, escrevia ele, o lema do julgamento final nao
lol toialmenle abandonado: nos o encontramos nos séculos IS e
|u na pintura de Van Eyck ou de J. Bosch, no século 17 ainda
0 p11 r ali (Assis, Dijon). Entretanto, ele sobrevive com dificulda-
di perdeu Mia popularidade e nao é realmente sob essa forma
1|iii Imagina o fim derradeiro do homem. A idéia do julgamen-
i" .1 parou se então da idéia de ressurreição”.3,1 Com .esses dois
In Mi ai adoics, cu penso que, a longo prazo, o resultado dessa pe­
dan,'»t'la <lerlc al loi realmente esse que eles destacam: os cristãos
i- ih.uum se nao por esquecer, pelo menos por subavaliar essa
n a..... . corpo e alma - que é “a originalidade profunda do
p' iis,miento cristão”, que promete ao homem “ura destino com-
j> 1•n > li na d< > lempo”.3'
( ontudo, minhas reservas referem-se tanto à trajetória
•"ino a cronologia que levaram a essa obliteraçào da primeira
nu ns es m i l ista. Estes desenvolvimentos do meu livro já estavam
• ■i ir is quando apareceu o artigo de Aaron Gurevic sobre "As
luíais ns do Além".3" O autor assinala justamente que a literatura
n ll(i|i is . i medieval, tão rica ém exempla , é repleta de historias de
i mi i anas que voltam momentaneamente à terra depois do julga
nu nu' Individual que os destinou ao inferno ou ao paraíso. O jul-
........ iilu Individual está, portanto, onipresente no discurso ecle-
il i ir '• ineilleval. Ide coabita com a preocupação do julgamento
i" ul I lm nao exclui o outro. Não é o caso de opor um ao outro.
lao < . onveniente também dissociar macabro e julgamento final.
Vlinos anteriormente que o discurso monástico sobre o
d. pu /<) do mundo associava a desvalorização do corpo e a pers-
p' ' th a do /)/e.s iraeP Esse vínculo reaparece em seguida na lite-
i unía da época macabra em Jean Régnier, Eustache Deschamps,
.........i-' •< haslellain e outros. Do mesmo modo, a representação da
i ih ionio cavaleiro irresistível ou como ceifeira impiedosa
i- ■'iiip mhou íreqüentenlénte a iconografía do Apocalipse e do jul
i(atin uto linoI. ’’ Enfim e sobretudo, o fim dos tempos (e, portan

' i AKIIS, IMi. l.'Homme..., p. 109.


' ■ I \|n< v.noN de CHAUNU, P. La M orí..., p. 246.
W>, <.t IKlíVK , A. “Conscience individuelle et image de i’au-dela em Atiná­
is I S.C., março-abril 1982, p. 255-275.
t ( I. .interiormente, p. 56-57.
01 |<( ISKNI I'.I I), H. D er m ittelalterlicbe..., p. 14-15.
lo, .1 ressurrelçai) geral) ful pintado, cm ulpldo, i le.se i lio e anniu l.i
do m.il.s no decurso dos sei nlos I í Id do c|iu* durante .1 Id.ule Me
dlti classica.'” Prova disso, sem duvida, sao as grandes composl
çoe , de \11>1, de ( )rvieli >( 1,11<.1 Slgni>relll), d.i Slslln.i, de R, V.m d« 1
Weyden (em be.iune), de ,|. V;in P'.yck (no musen de I I\rmllage)
de Memllng (em < Id.msk), mas i.mihem e i.ilve/ sohreludo as p<
■ 111• na • o bras i i i o v I ih I.lis consagradas ao julgamento lln.il " N.l
N011n.o 11ti. 1, li h.im contadas para os sáculos 12 I,S, d para o I 1
n p.ii.i o 1 ' I(1 |i.ii. i o Id c unía do iníeio do 17. ( )s ni imeros es
l,i' •di u o íd o 1o n i o siil ila Prança. “Por mais c|iie se p<)ssa esl í a
pi'l.ii ' •1* \* Mli lie| Vovelle, a partir dos dados numéricos d< 11111
■ ,Im i |ih • vldenlem enle residual, sáo o século IS e o in icio do le
<|iii is l’iiem ao lli .leselmentó di >s julgam entos fináis: -e> 1 asi»s en
le ’tii, < tnp 11 n i<> 1 de/.ena d i1 exem plos anteriores malí» a iiiin
1 lam o lema do <|ue o desenvolvem”.11 Nos vilrais bieldes, os jul
g.míenlos fináis se multiplicam no século Id.
Asslm, nao apenas o macabro e a escatologia eolellva nao
foram con o urentes, mas ao contrário caminharam no mesmo ili
um, em pa reí ha ra m- se e declinaram juntos no século 17. <>s 11I11
mus gratules julgamentos finais sào os de Rubens ( lbl(> e I(i2h,
ambos em Muni(|ue). Nessas dalas, a iconografía macabí.1 ja 11
nha peí dido Impulso, Inversamente, é revelador que Irmao Id
•luid, qiu pregou dlanie do afresco dos Inocentes, lenha dih •
mu i .pe» 1.1I1 .1,1 dos anuncios apocalípticos, listes espalhai.un
pela I un ipa 11.1 epoi .1 1 llamada da "Renascença” e noladanienii
n 1. p1* !i , pai .< . Meinaulia, I*'rança, Inglaterra - onde as dam is
mai alna ' niulllplleaiam. ( orrelaçào notável: os túmulos ruin
Huilla.......... minios ( iii decomposição, conservados ou assina
l i d " , ' si a 11 loi all/ados essencial mente nos países em que as I»
I........ .' id 1I1igli as l<irniii as mais f<irles e as mais duráveis 1li 1 .•
•11lo I ' .10 17, A geografía desses túmulos, segundo Kaihleen
Cohén, e m m eleito a seguinlc: Alemanha, .Suíça e Países Pal
mis , '>7 ; Piança, d i; Inglaterra, l id.1' Nota-se a ausencia da I spa

. 19 , ( T. o cap. VI de i d P a ire n Oecident “I.’Attcntc ele I >icii",


K), I ( H JRNI'.I'., J. Le Jugement dcrtder d'aprh /<• vil M il de <'m ildnn•<. I'.iui
l%4, p. I(j 6 167.
11. ( V O V Iil.U ', M. Vision de Id morí el de l'au dclh en Provem <• l'.iiH A
<'nliii, 1970. |>. 14. ROQUÍÍS, M. i es P ein tu m inundes du Sn d í 'm de Id I mu
ce, l'.uis, I9(>S, MRSURI I', R. Ie s P eintum murales du Sn d Out\t de L I mu
ce du S I un X V i i/é/c. Paris: l’karcl, l%7.
42, ( '( )l IliN, K. Metdmorphmh. ,, p 194

170
nliii i (.l.i Italia1' onde, i'uiiii) dissemos no volume' anterior, as dl
' 1i 11ii mas de m e d o foram no conjunto menos fortes do que
D............ Io d o Ocidente, lí na Inglaterra que a moda dos túmulos
■ 'in te piesentaçòes de mortos em decomposição continuou ate
mal • lili di1 (secunda metade do século 16 e primeira parte do
I o <>i .i. e também neste país que as inquietudes (e esperanças)
i|imi ulipiltus se mantiveram por mais tempo."
A longo pra/.o, a bula Benedictas Deus de Bento XII (1336)
di ' fi la n d o que os justos obtêm a visào beatífica1’ logo após, a
uh nli . -em esperar a ressurreição, e a “oficialização” do purgató-
ii" ' d o julgamento imediato das almas pelo Concilio de Floren-
. . ni I i V), depois pelo de Trento, agiram incontestavelmenle
i "tilia a cm alologia da ressurreição geral. Elas acarretaram o au-
ui', das d o a çõ e s testamentarias para missas em favor das al
.......... •‘.pera e a multiplicação da s Àrtes moriendi. Mas, num pri
"" 111• |. mpi), ocorreu um encontro entre o macabro dos julga
mi.' Ilnals e o novo tema do purgatório. Michel Vovellc de
". li ....... Isso com vários exemplos meridionais. O mais espan
n ii" - d' 1' , encontrava-se na capela dos Penitentes de Tourves, no
' ..........ainda metade do século 16). O fundo do quadro é cons-
ii 1111.1•i p« Io incêndio e a destruição de Jerusalém - panorama
i - ni api" altpllco. No primeiro plano e no,centro, é evocada a vi-
i" di I et|iik'l: as ossadas se reconstituem em corpos. De um
lado e do Outro do painel central, dois bustos, um masculino, ou-
1111 i. minino, confirmam por sinal essa ressurreição da carne. No
un i* i do t ampo das ossadas, que é também campo cie batalha, a
i ui. '. ui Ida ajoelha-se diante de Cristo. O macabro superabun-
II ", i . t im posição bastante ingênua: a Morte com sua bandei- ^
i ín flelos co m ampulhetas com o seus acólitos e, para
inpl' tai, na parte superior do quadro, uma espessa folhagem
n|i m liuii sao crânios com mitras. Mas, no centro da folhagem,
i i' ' lutei rompe* para dar lugar à visão luminosa de um anjo
■i 'Hiendo ,r. almas que sobem das chamas do purgatório.46

i i I'«i.i .i I(.illa u atn-sc somente de uma quase ausência, porque ela tem tam-
....... ,il|'iim,r. representações de mortos: o de F. Uebler (1509 em Merano); o
.1. Antonio Auiat i (fim do século XIV em SantaTrinità de Florença).
I i < I mais adiante, p. 591-601.
i ■ <| | ia )N IMIFOUR, X. Face à la m ort: Jésus et Paul. Paris: Seuil, 1979.
p ." M 102.

i" <, . V( >VI I I lí, M. Vision.... p. 20 e pl. II, 2 (Museu Fragonard, Grasse).

171
I
I vi.i 11>ni|)( >,sk a<>associa, |)( >rl.inl( i, « .111■u.111ii •11u•re.ssui i(•I
Ç.io geral, purgalt>ri<>e Iconografia macabra <)r.i, ela nao e Isola
«1.1 No Inventario das pinturas murais do sudoeste francês do se
culo II .10 l() estabelecido por Kobert Mesurel, sao assinaladas
lies lgie|,is nas quais purgatório e julgamento li nal sao associados
mima mesma composição: em Birac, em Monlaner e em IVrvil
1.0 Nos In s casos, líala se de obras do século 15,' Acrescenlt'
m i Isso <111 Inúmeros textos da época deixam adivinhai uma
■• nladclia « ■mlusao entro julgamento finoI e julgamento parllt ii
t. n I i i onlir.ao <|iic pode surpreender na realidade eompreen
di ' mullo bem sob a pena de escritores que, como Kustache
Is Hliamps, ,n ledli.n am num imlneqie final dos tempos.
\o||.mdo as i lanças macabras, somos levados a difícil ques
1.0 i d c sal um como elas ei am compreendidas, lima resposta plena
menle s.itlslaloila sempre nos escapará. Pon|ue como saber o cun­
os Inúmeros analfabetos da época retinham de imagens cujos co
mentarlos eles nao sabiam ler? Pode-se assegurar, entretanto, que
a Igreja docente nao oferecia apenas figurações de cadáveres a t u
ilosldade mais ou menos malsa do público. Hla dava também a e\
I >1ii .ii, .o ), imlependontemente até das estrofes c|iie acompanhavam
l'ilmelio, (unió ja dissemos, a maioria delas comportavam um pie
u. adoi o i|ii< il.iva o tom. Outras, antes da dança propriamente
dita. a* n .■enlav.uu o per ado de Adao e Eva. Em La C.haise I )leu,
i •ip' ule na añada tem uma cabeça de caveira. Nicolás Manuel
l '■ ui i h ' lian I lolbeln, seguindo neste caso O Morto c o nut^d <
• //••»,/ d< .linón Vo ,in , Inlegram igualmente o pecado original
i a i ........... to Alt ui disso, estes clois "artistas, na ultima se
qiii in la, i oImi am a lesstun*lçao geral. Enfim, a cru/ redentora, \l
i<mn i . i i ibn a moiie. figura em lugar de destaque nas danças de
liispli.ii,,ao |íant Ist .ma, em Hamburgo, Berlim, Pin/olo, ( iarist>l<>
I inib' ni n.io e indiferente lembrar onde se encontravam
os ilii si i is representando danças macabras. Alguns encontraram
lug.ii em palacios, em Blois, em Whitehall, em herrara (palacio
da l\(iy\lono), em (áoydon (palácio do arcebispo), em (loiro (p.i
lado episcopal), Mas a maioria foi pintada em igrejas, capelas ou
cemlterlos (em Paris, Londres, Basiléia, Kernasclcden, Kcr Maria.
Pin/olo, etc,). Portanto, em lugares de pregaçáo. h.niao nao se
pode Isola las artificialmente dos sermões que eram pronuncia

'17. MIsSUKI T, R. /.ei Ptlntum Hiuiil/o . it-Npctlivuinciilc p. 72, ll)M, 10


r 2'IH.

172
d< iNdiante delas, I" ín.in IiInIi mi.i . «Mi i|ii.iiliImIk ),n foram parte cons­
tituinte ele um mal.s amplo ensino .ludio visual t|ue as integrava
na história global da salvaeuo e apresentava a morte corno um
ul» produto do pecado original, devendo ambos ser eliminados
n o IInal dos tempos.
Num trabalho ainda manuscrito, o historiador romeno Pa-
\eI ( liihaia esforça-se precisamente para relacionar o discurso ma-
•abro da Igreja com a .“ideologia” que o inspirou. Ora, esta última
■i nipre incluiu a crença na “perenidade” do homem total num
ilem da morte. A decomposição (provisória) do corpo, conse-
qhencia do pecado, é a passagem inevitável para uma ressurrei-
• ao da carne purificada. Para São João Crisóstomo, São Gregória
de Nissa, Tertuliano, etc., o corpo ressuscitará no estado em que
■•e encontrava Adão antes do pecado. Objetar-se-á que esse oti­
mismo final não aparece na literatura consagrada ao contemptus
niiuidi, invadida pelo pessimismo e que insiste mais sobre a de-
■' imposição cia carne do que sobre seu renascimento eterno. É
m rdade. Entretanto, essa pastoral do medo, por assustadora que
lo v .e , não fez desaparecer o outro ensinamento c]ue afirmava a
i leinld.ide do corpo reconstituído. Vejam-se os grandes julgamen-
lo-. finais dos séculos 15-16 - por exemplo, os de Han$ Memling
(■ ni ( id.msk) ou de Luca Signorelli (em Orvieto) - , neles se per- '
<cbe Imediata mente a ressurreição da carne. Essa observação vale
p.iu iodos os julgamentos finais da época. Ora, eles jamais foram
i. K>numerosos como na época do pleno desenvolvimento do ma-
• ibio, Da mesma maneira, o fiel colocado diante do admirável re­
tábulo do Cordeiro místico ele Jean Van F.yck em Saint-Bayon de
ii. md suas grandes dimensões o tornavam bem legível - ou
dl.mif da (.'vocação de Todos os Santos, pintada por Dürer para um
,i lio dc velhos de Nurembèrg/'8 só podia crer na ressurreição da
' uni lia lhe era atestada pela multidão de. eleitos carregando
palm.is ao redor do Cordeiro Divino e da Santíssima Trindade.
k. Cohén teve razão em insistir sobre os vínculos que, nos
.i <tilos I i 16, soldaram a representação do macabro á crença fir-
11ii na ressurreição.10 Nicolás Flamel (f 1418), escritor juramenta­
do d.i I inivérsidacle de Paris, com pretensões à ciência, quis para
i i .i mulher nos Inocentes, depois para ele próprio em Saint-Jac-
inies, uma iconografia funerária legível em dois registros, o da re­

is. Atualmente no Kimsthistoriches Museum de Viena.


19. COHEN, K. TheM etam orphosis..., p. 96-119.

1711
Ilgl.in c o (l.i ¡il(|iilml,i Sobie o ',cii 11K«mímenlo (iilu.ilm* *iU« • nu
museu (le ( luny), o sol flamejante e a lua i bela de um l.ulo c do
uniu i do ( tislu cm floriu slgnlfir ,1111 ,i vld;i eterna ,io mcsmi >Irin
po (|iM' ,is forças naf ura is <juc*, segundo ,i ordem de Deus, li.ur.
Ilguniidn em corpo eterno o cadáver corrompido e plilrel.ilo \
d< ( omposlr.lo e compreendida como uma etapa necessarla paia
um ultimo e l.nulo de Incorruptibilidade.Vl o túmulo aberto dt
Nil.lt i (dei indo vei seu esqueleto ou seu eadavei), ^colocado .sob
a i ni,' di i listo, lol durante muito tempo compreendido como o
dllplo ainbolo da punir ão devida ao pecado e da redenr,ao que
piopon lona a tessui ielçá«>da carné. P.ssa chave permito Intel pie
i ii •. tímpano u nhai da catedral I'..st ras burgo (fim do séctili> I ‘ >
a islm •oinn o aliesco da Santíssima Trindade pintado em I i \ >
po i Mas,lu lo na Santa Maria Novella de Plorença,’'1
Nas i apelas funerarias frequentemente se substituiu, sob a
riu.- do ( iólgola, a representarão do corpo do delunto pela d< t
esqueleto de Atl.lo. A significarão geral permanecia a mesma
uma dei omposir ao provisória seria seguida de uma ressurreleuo
definitiva atestada pela vitoria do Cristo sobre a morte. Din pío
|elo de lumulo desenliado por Jacopo IJellini por volta de I i 1(1
apresenta um c.ulaver nu embaixo da cruz. Para que nao Itouvi •
nenhuma duvida sobre o simbolismo da composição, o aitlMa
a n su nli ni a base do túmulo uma leoa e seu filhote. ( )ra, según
di. a i ii m a 11 iiioiin a leoa porlia, lambendo seus filhotes duian
li In dia i llama los de novo a vida.'-* Na capela dos Puggei em
.anta \na di Aug.burgo, os cadáveres de dois membros da litis
tu lamilla, l'lililí e <icorges, estao colocados rcspecliv.imeni.
. .b a u , ,iiin Irao de ( i lsl<» e s<>1) a vitória de Sansa<i se>1m os 11
||'.teus ilusliaçocs homogéneas, desenliadlas por Dúrer, t|uc slg
nlli. i\ iim que i morte moirelia um dia.'1' Poderiamos multiplicai
i is i i suplí is concordantes. I,, Mâle descreveu um vitral da u
siiire|(,,lo que se encontrara a sua época em Sao Vicente de
Ki musí i esta 11 lineado agora na Igreja do Velho Morí arlo Na | >.u
le di balso do vitral, o doador ésta deitado ao longo da lapld.
do túmulo. Irle ja esta corroído pelos vermes, Mas grita: "Ji'SUS,

sa. lliiif, |>. loo l(),t c |>1. 44 c 4S,


*>1. lililí., I». 10*1 112 c pl. 4« c SI.
V , ll)¡d„ i», 100, I mivre ((i.tliiiusc dos dcscolios), I iveo de noiiis .le | lt. Illul,
lol. I Ha.
S V ll.ul,, pl. 04 07.

171
n ilh lJ t's u s " (Jesus, sê Jesus para mim), ou seja: Tu que ressusci­
taste, perdoa me e concede me a ressurreição.'1
A afirmaçao da ressurreição tem acompanhado de múltiplas
maneiras os horrores macabrosí A placa tumular da Abadessa Jac-
qttele de Uolhais (j IS2S) em Beaumont-lès-Tours, conhecida por
um desenho, representava a defunta inteiramente fechada numa
u m malha entre o Cristo crucificado e a Virgem com o menino. Uma
lns< riçao partindo da cabeça oculta cia moita, como nas nossas his­
torias em quadrinhos, continha a fórmula: “Exspecto resurrectionem
iiiurliionmi Os historiadores que se debruçaram sobre a morte
m »século IS mencionam muitas vezes e com razão o políptico por­
tátil de Estrasburgo (por volta de 1494, escola de Memling, museu
di Melas Artes),% cujas imagens são particularmente surpreenden­
te . I le é composto de seis pequenos qéiadros de dimensões idên-
ili as que representam respectivamente o Cristo na glória do julga-
tn en io final, o inferno, as figuras em pé da Vaidade e de um cadá-
\ei um crânio e o brasão do doador. Este último era um bolonhês
que sem duvida encomendou esta obra por ocasião de seu casa­
mento com uma flamenga. O cadáver em pé, com um sorriso de
lili mio, o ventre aberto pelo embalsamador e um sapo sobre o
• m i, ergue-se acima de urna placa tumular rodeada de ossadas. Por
ni' lo de urna fita desdobrada - sempre a antecipação do processo
di ni issas historias em quadrinhos - ele proclama: “Eis o fim do ho-
........ l u me transformei em lama; sou igual à poeira e à cinza”. A
> iid.ule, jovem mulher nua, é uma figuração do pecado. O conjun­
ta d.i composição devia ser particularmente insuportável de olhar,
i i . '.eu sentido geral não deixa dúvidas. Sob o crânio, escrita numa
■a.illa hem clara, lê-se uma tradução latina de jó ( 19,26) que diz:
i l' i di.t do despertar eu brotarei da terra, serei de novo envolvido
I" H minha pele e com minha carne verei Deus meu salvador”. Re-
■I''! ii amento simbólico da afirmação: as cavidades dos olhos não es-
t ii •li >i.tímente vazias. Duas fendas estreitas no meio das órbitas sig-
llllji ain que no dia da ressurreição esses olhos verão de novo.

>I. MÁI.K, K. LA rt..., p. 432. Agradeço a Marc Venard por ter me permitido
n encontrar este vitral remontado na Igreja do Velho Mercado após a destrui-
i, ni de Saint Vincent. Cf. número especial (1978-1979) do Bulletin des Amis
<ics Monutnents rouennais.
a . ( OI IEN, K. M etam orphosis..., p. 111 e pl. 56.
>(i, Moindamcntc I1ÍNKNTI, A. La Vie..., pl. 10 e p. 38-39; COHEN, K.
W ctiiniorpbosii..., p. 113 e pl. 58-60; WIR.TH, J. La Jeu n e fUle et la m ort...,
|. 4.1 43 <•pl. 27-28.
A mesma frase do I.ínto de |o aparece sobre mu lençt>1 unn
luarlo ele vellido negro na catedral de livrcux, <).s bordados repte
sentam um cadáver lalve/ o corpo de Adao? corroído pelos vei
lites e colocado ao pe da cruz. Sobre o cadáver, a inscrição gótica
di, "( 'redo (/iiod Redemptor meus viril, ct in novíssima dle de Ierra
■ ■ uriei liirus sum el in carne mea videbo deum salvatorem metan", <>
........ veisii ulo de li,strasburgo.v Por outro lado, parece difícil nao
lni> ipi< iai ionio mu símbolo da ressurreição a célebre obra de U
i,ii i Pii liiei (i*in Saint Picare de* bar-le-Duc), realização de mu arlls
la >pie dlp.aniMS d< passagem, se tornou protestante e morreu em
«,em bia Ale nlesitio no século 18 consklerava-se "cssa obra, inimi•
la\ef Sobri o niniulo de Pené de Chalons, príncipe de Orange
i iav.au, morlo no cerco de Saint-Dizier em 1544, ergue-se um coi
p< i que ai abolí de perder sua pele; esta desapareceu da cabeça e da
maior paite do pello. P.la si* encontra em outro lugar, furada como
um leí Ido gasto <|iie se rasga. No sen testamento, o príncipe i¡ni ia
peí ll<l<>para ser representado tal como seria três anos após sua m< >i
le Mas o defunto que estende seu coração a Deus está de pé, o i ra
nlo e o braço esquerdo dirigidos para a luz da vida eterna.
I Igualmente a esperança desse renascimento definitivo do
.m humano total que dá sentido aos inúmeros túmulos duplos da
epoi a lom o cadáver mais ou menos decomposto no plano infe
............ . mesmo personagem vivo, de mãos juntas, os olhos erguí
d .. ................ mi no plano .superior. “liste cadáver que nos a mee Iion
ii i ,i n da I Malr nao passa de uma aparência mentirosa; no til
limo di i * Ir ii'tomara sua forma ao chamado de Deus”.w linláo,
*........ iniiipiit.il o desejo dos clérigos e dos leigos que pediram
piia ,i i n pn .onladosem imagens sobre seus sepulcros? lixibic lo
iilsnio m< libido:' l'alvez, Mas, mais certamente, ato ele humildade
( i|mdf nli is lie,oes da Igreja da época, os futuros defuntos decía
i n uil as.'ilm aceitai de antemão a degradação prometida aos des
po|os de seu corpo pecador e, ao mesmo tempo, afirmavam en
ia m pahlh o sua crença num além da decomposição e das cinzas
Assim fazendo, eles ofereciam um “espelho” para aqueles que
olhavam sua sepultura e facilitavam a pastoral do clero;008 5
7

57. ('.(II11•N , K. M cutmorphosis..., p. 113-1 14.


58. <lAl.Mli T, 1). BibUothbque lonnintt, 17M, col. 87.5.
50. MÁI li. li. / 'An..., p. 433.
(»(). ( I. Cl III IAl A, I*. La Itiéo , p. \\ I .'I I I . 17/ I 10, IV.. NI, I 0 ,
<!()l IliN, K. MetamorplmR, . p 77 ll l < o,l os

IVb
Revelador nesse sentido e, perto dc Latisannc, o mon timen
li» Iuna.irlo do juiz Irançois de Ia Sana/, morto cm 136.3."' <) ca
ilavei nu, pcrlo do tpial rezain, dc pé, dois cavaleiros c duas mu
Hieres, tem os braços cruzados sobre o peito. Sua cabeça repon
a sobre um travesseiro. Dois sapos devoram os olhos, dois ou
lios atacam a boca, um quinto, os órgãos genitais. Todo o corpo
esta semeado dc longos vermes que o devoram. Sobre o traves
sel id e o peito, notam-se duas conchas do tipo Saint-Jacques. Os
•após, ao que parece, simbolizam os pecados, os vermes figuram
os remorsos da consciência, e as conchas exprimem a crença na
u ssurrelçao. A significação bem antiga das conchas explica aque
Ias que se encontravam acima dos nichos de monges em oração
nas laterais do sarcófago de Jean de Beauveau (f 1479), outrora
na ( atcdral de Angers e agora desaparecido, e acima da represen
lacio do cadáver de Jeanne de Bourbon (f 1521), atualmente no
11 )ii\ re Iisla vam assim associados no monumento de I ranea >ls i !•
Ia Sarraz, a humildade do pecador, a contrição do cristão e a • .
peiam,a no renascimento definitivo do homem regenerado V.
nu -mas chaves - humildade e esperança - permitem compu <n
dei os retratos duplos com dois painéis antitéticos apresentando
" primeiro, noivos em plena juventude unindo-se para sempn , o
•çiiiulo, os mesmos personagens transformados em catlaveies
111>111ve Is, devorados por vermes e sapos.05

u macabro e os males da época


() sermão macabro - textos e imagens - estava na lógica
di uma ( rislianização que queria fazer aceitar a ética dos mostei-
ios por r amadas cada vez mais amplas da população e s e encon-
u.na ao mesmo tempo confrontada com um aumento da riqueza

0 1, A dala do monumento é controvertida: 1360 para REINERS, H. Burgun


</iuh alen -uinnisclzc Plastik, Strasbourg, 1943, p. 70; por volta de 1370 paia
1’ANt >1;.SKY, E. Tomb Sçulptuie, New York, 1964, fig. 257-258, e KAN U )
l'.( )WU /., Is lh e Kings Two Bodies, Princeton, 1957, p. 453; fim dos anos
I 190 para NICOLAS, R. “Les Monuments funéraires des seigneurs de Ncu
»liaid o di- Ia Sana/" em Musée neuchâtelois, Nouvelle Serie, 1923, X, p. 160.
(i.V < ( )l lEN, K. Metamorphosis, p. 83 e n. 27.
(O. W IUTI1, J. La Jetine filie et lamort..., p. 40-41 e p. 29-32.

177
<• da "liirl.i de viver", |H'|() menos nos níveis superiores da Soi Ie
dade Por ivsso razãi >, (> dlagn* >‘.lli m l r I' ( Iilluil.i <|ui•pcri el>c no
discurso eclesiástico sobre .i morte cios séculos I i l(i uma "cm
/¿ula Interna" contra cavaleiros esquecidos de seu ideal e tenta
elos |x>i um estilo de vida pagão'" me parece insuficiente. "Cru
/ada Interna", sim, mas procurando desviar do mau caminho to
dos ;i<|ueles (|ue, numa civilização emergente, dispunham de ri
quezas crescentes, fossem eles nobres ou burgueses. Daí ¿i insis
Inn ia da Igreja sobre ;i cnpiditas nos manuais de confissão como
nas danças macabras, Os inúmeros lembretes do memento mori
ivmelem, por parle dos “advertidos”, a um apetite de prazeres, a
um forte amor pela vida, que a Igreja se esforçou em vão para
lazer elecrescer. Mais geralmente, tratava-se para ela de dar uma
solida moral a uma sociedade que não fazia coincidir ética e re­
ligião. tima prova, entre muitas outras, é o afresco de IMnzolo
que comporta uma dança macabra no plano superior e, em bal
\o, uma figuração dos pecados capitais.
Ma-, apresenta se agora a pergunta: por que essa expio
•i.c • di uma i .Intica mórbida a partir da metade do século I i?
Mm olm S m , m* sino i.ipldo, sobre- a iconografia funerária em
in i i■i' 111 n io d* .di .i época greco-romana até nossos dias
i■ - i I iiun di ii mi* uli 1111«•a representação de cadáveres, de es
i|in I* lo i di daii' a-, de morios só ocu pon o centro do palco
dui inn um pi nodo ic-latlvamente breve ele 250 a 300 anos,
. i malorla das Imagens ligadas á lembrança de­
li iiiiii..... uli' '• n.h'gi >-., na i rlstandadc do Baixo Imperio e da
ilii Id id* Milita, a--.lm com o no mundo contemporáneo ou
.................... estilo mergulhadas numa atmosfera tran
l'iili ml' ou numa melancolia geralmente fingida de esperan
•a <> peí iodo mac abro, a despeito da longa pré-história que o
nspllca, aparece- então com o um parêntese quando colocado
dentro do longo prazo europeu. Mas então por que essa violen
la i prov isória ruptura? Por que uma civilização, durante cerlo
lempo, abrlu os túmulos para descobrir neles corpos em piltre
I.K ao? I’oi que ela se deixou impressionar por imagens ele- i ra
nlo.s, de tíbias, de carnes desfeitas e nauseabundas? Até a meta
*lc do século I i, essas fantasías tinham sido contidas por bar
iclias psicológicas <|uc- cederam de repente, c só se reconstitui
ram irezenlos anos mais larde. () que aconteceu?

(vl < I III IAIA. I! Io A/fVi , not.iil.iiiirnii' |. I 1*>

I7H
A resposta e fornecida pela própria história da Europa, E,
fin primeiro lugar, llnllam esquecido da peste. Ora, eis que ela re­
tí una eom força em I.Vi 8, e devasta urna boa parte do continente
durante quatro anos - um terço dos europeus teria perecido. Ida
continuará a reaparecer periódicamente até o início do século 18.
< orno é que semelhante ofensiva, que nada havia anunciado, nao
lerla impressionado os contemporáneos? Ora, ao mesmo tempo
que começava esta época de epidemias, as más colheitas se tor­
navam mais licqücntes, as revoltas urbanas e rurais se multiplica­
vam, os turcos aqentuavam sua pressão, o Grande Cisma dilacera­
va a cristandade latina (todo católico achava-se excomungado
pelo papa ao qual seu príncipe recusava obediencia), as guerras
i Iv ts e estrangeiras desolavam a França, a Espanha, a Inglaterra, a
boêmia, etc. Esse era o panorama da Europa entre a metade do
et tilo I i e a metade do século 15. É bem verdade que urna cal-
n uda interveio em seguida, que a população, notadamente na
I i.mç.i, recomeça a crescer desde o fim da Guerra dos Cem Anos.
Mas esquece-se sempre, por causa da sonoridade prestigiosa da
pal.tu.i "Renascença”, que a peste continua presente, que o cis­
ma, abalado por um momento, se reabre com a Reforma, que os
•amponeses alemães se rebelam em 1525, que a França e os Paí-
.i •baixos, durante a segunda metade do século 16 e o inicio do
I . estão desolados pelas guerras de Religião, que estas se esten­
dem logo para a Alemanha e a arrasam de 1618 a 1648 e que a
Inglaterra elisabetana viveu no temor de um desembarque espa-
nlti »l Sera então um acaso se urna nova geração ele poetas maca­
dlos (Agrippa d’Aubigné, Sigogne, Chassignet) emerge na época
das guerras de Religião, se as danças dos mortos prosseguem sua
• un lia iconográfica no século 17 nos países germánicos e se a
Inglaterra, apesar da adoção do Protestantismo, continua a repre-
<nial defuntos sobre os túmulos ao mesmo tempo que acumula
no leal ii > as cenas de assassinatos? Como se vê: a cronologia do
m n abro e a mesma que tínhamos identificado no volume ante­
di a ao tratar do julgamento final, das bruxas, dos judeus e da he-
n .la Ida se Integra numa mesma explicação global em que con-
lltii m o discurso culpabilizador, o pavor diante dos infortunios
ii> mutilados e a violencia presente em toda parte.
Ni >ns , i época por acaso não ajuda a compreender os inícios
da n io ile i nidade européia? As hecatombes do século 20, desde
l " l i ale o genocidio do Cambodge (passando pelos diferentes
h >li ii .uistos", e os diluvios ele bombas sobre o Vietnã), a amea-

17b
ça tic mn conflito miele, ir, o u,so Nempre crescente da lorlur;i, ,i
111111111 > 11 (. i(. 11 > dos "goulags", <> aumento d,i Insegurança, os pro
grcssos rápidos c (.itl.i ve/ m.lis Inquietantes da técnica, o perl
go que comporta a expíe>raça< > demasiado Inlcnsi-va d<>s reí ursos
naturais, (crias m.mipnl.it, oes genéticas e a generaii/.u.a<> nao
controlada da Informática, sao fatores que, somando se, ciiam na
n< issa 1 1 \ili/.K.io mn clima de angustia, comparável sob certos as
pecios aquele que co n h eceram nossos ancestrais entre a época
da Peste Negra e o lim das guerras de Religião. liste "país do
medo" cm que entramos, nao nos cansamos, segundo um pro
eesso t I.insIco de "projeção", de evoca lo pelas palavras e pela
Imagem, Mesclando o presente e um hipotético futuro, a ciência
e a ficção, nossos temores pelo futuro e nossa experiência elos
perigos cotidianos, o sadismo e o erotismo, as conquistas espa
ciáis e uma paleontologia de pacotillia/* nós multiplicamos as
.......................... grallsmos violentos, bárbaros, desumani/ados. No s
issi ii lan h ts ein t ai olonlas brilláis futurismo e arcaísmo, seres t mi
ii •
• lia , antediluvianas e naves cósmicas.
I i e o IiiIt abiat|iie ordinario das historias cm quadrl
nli>, p ii i o 1 1 1 1 1 < 1 que os llu m a n o id e s associados” publicam
•111 111•• • , |••>i mó n,i revista francesa Métcil hurlcwt \M<i<il
n i i . i n i , / u m ' einplo entre inultos, Ksses delirios mórbidos em
pi pululam ' implros e m anhãs brumosas exprim em -se em
......I i i p f - s ||\ i * •. •b m u l o s piovt >( antes e m francés: A p a rta d o d e
kn/'i i honn'ih <nil,i\hi acura; Os J a rd in s do Apocalipse; \a ll
m undo i ) / /ornea/ h 'in im a l; e ainda: O Homem dissociado; O
l, m/'o d c'i nl h alado, I ala ro s sem />orvír; Os M undos macabros
de A’/, lea,/ t lalhc'.oa e Nós lodos lomos medo. Listes dois ultime is
títulos ni>s remetem aos tem as históricos do presente Livro. Tan
ti i i mli ni t t m u » h< >|e, o m edo da violencia objetivou se em lina
is os de violem ia e o m ed o da morte em visões macabi.r,
(,Miando a presença de cad áv e res mortos pela peste, pela lome
e pela soldadesca tornou -se o bsessiva, o sermão culpabilixadoi
etuii suas evo» a co e s n au seabu nd as encontrou uma nova att
(llénela Associando c o n sta n te m en te morte e pecado, pecad o e
punição, ele pareceu con firm ar se pelos falos e encontrou lies
,a mesma co n firm acao um alim en to qu e o nutriu de nina selva

(iS, ( I ,i cvsc tcspciln c no mcNino senIido o ,iill|',o «le VOVI’I I I*, M, I ,i


Moii o l'.tti dclil (l.ms l.i luiulr ilrvãmV", cm l UUtoiic, n, l, jul. ,i|;n I*> II,
|i, 34 42.
1 1 ». 1 1*• lorie 11U* I. i I.ivíi tk* m edo a pessoas q u e tinham m edo e,
< nliin, lalava tío m edo q u e era delas.
I'..viste diseussao sobre o lugar que se deve atribuir á pes-
i' e em primeiro lugar a epidemia de 1348-1351 - na historia
1 uiopela. No século 19 e no inicio do 20, houve tendência a ex-
pll< ai ludo por ela: as fraturas do sistema feudal, a crise da Igre-
|a e, portanto, a trajetória para a Renascença e a Reforma. Em
m i .m >•» dias, pelo menos na França, certos historiadores procuram
mu ■. minimizar o impacto da Peste Negra,66*sendo verdade, por
um lado, que a erosáo do sistema feudal e a deterioração da con-
|i 1111ii ia económica e social tinham com eçado antes, e, por outro
lado, que a civilização ocidental continuou sua marcha para a
In uh a despeito desse violento ataque da doença. Para esclare-
•i i esse debate, quatro ponderações parecem úteis: a) Mesmo se
■i . i ontem porá neos julgaram o impacto cias pestes - e em primei-
i" lugái o da Peste Negra - ainda mais importante do que foi
n ahílente, a severidade das epidemias não deixa nenhuma dúvi­
da as estatísticas mais sóbrias para 1348-1352 levam a estimati­
vas de mortalidade variando segundo os locais de 25 a 40%."' A
tu ii.ii que Paris, numa cronologia mais longa, entre 1348 e 1500,
■i Miheeeu a peste mais de uma vez a cada quatro anos. b) Para a
hlstoiiografia das mentalidades, contam menos os números reais
das perdas do que o choque criado nos espíritos por espetáculos
singularmente violentos de doença e de morte, c) A peste, agora
instalada no Ocidente por mais de trezentos anos, de 1348 a 1648
li it apenas o elemento mais dramático cie um amplo conjunto de
d< sgiaças que somaram seus efeitos, d) A civilização européia,
■nlrenlando o desafio constituído por tantos inconvenientes, con­
tinuou a inovar em toclos os domínios,68 embora não tenha sido

66. I ll'.l'.RS, J. Anuales de dém ographique historique, 1968, p. 44. ARIES, Ph.
/ 7lofnine... p. 126-127. Mas CHAUNU, P. La M ort à Paris..., p. 176-184
volta a dar-llie toda a sua importância. Os historiadores estrangeiros contem­
poráneos continuam a insistir sobre a peste (H. Rosenfeld, K. Coheh, Ph.
I i tstnin, etc.) passim nos livros já citados.
07. ( I. naturalmente BIRABEN, J. N. Les Hommes et lapeste en France et dans
les pays europécns et méditerranéens. 2 v., Paris-La Haye, Moutony 1976, nota-
d.miente I, p. 155-190, e o comentário de FLINN, M. sobre este livro
Plague in Hurope and the Mediterranean Countries” em The Jou rn al o f Eu-
vopean Eeonomic History, v. 8, I, primavera 1979, p. 131-148.
08. Iis,se <f o tema central do meu livro La Civilisation de la Renaissance, Paris,
Arthaud, 2. cd., 1973.

181
IX >sm i ida, nem n u "<ni< i no século I(>, |><>i u m i Xlmlsmc > rnni|>aia
\ i I ,n ) do Século das I,u/es ou d,i segunda iiio I.k Io do séc i ilt > 11>
< >*. hom ens d.i Penase em. a, c|ik * julgavam ,i historia Imm.m.i pio
Iiii .i de •.(•li Um, li.io concebiam o fu tu ro cm termo,s de progn s
’,o m o i.il ou técnico, l);ii a necessidade de In trod uzir e de gene
eili, ii uma ikx ,.,io, m encionada incidentem ente poi I Som.lelle a
ii .pello dos Asier as: a de "pessim ism o a tivo", (|iie poe em rele
\ o no.s-.a p io | a Ia expedem Ia do século 20 que lei mina. I lina i I
1111/ 11, .i o pode d,ii prova cie d inam ism o m esm o sendo pesslmi*.
la I o nosso ( aso lá>| o c aso lam bem de nossos a iu esliáis, no
1111« lii da nu Klernlclacle eun ipeia.
M ili.m l Melss escreveu c|iie a Peste Negra lo i "um evento
i iilim . il , em p a rticu la r no d o m ín io da pin tu ra religiosa lia
siiscllou o celebre afresco d o (la m p o Santo de Pisa ( poi volla
de I VSO) ( |ue cum ula triu n fo da M orte, lenda dos ires tn o ilo s e
dos lie s vivos, julg a m e n to e inferno . As mesmas cenas se eu
i i m iram agrupadas, p o u co depois, num a com posic ao de < >u ag
na (para Sania (a o ce de Plorença) da qual só subsistem lia g
meu los I lina p in tu ra sem d úvida funerária executada na •*<
gunda m eiade d o século I i p o r G io v a n n i del b lo n d o (Valle ano)
apu senta uma icon og rafia sem precedentes ale- e nlao na a 11«
h oi ana .oi i a Virgem com o m e n in o rodeada de sante>s (-sta i s
le n d ld o uni cadaver d e vo ra d o pelos verm es e pelos sapos, um
. 111o i n nilia b .irh u d o o aponta com o d e d o e n q u a n to um lio
ni' ni i .eu c i( i rei tiam de te rro r.7"
M ulta novida de Im ed iala m e nle p o s te rio ra Peste Negia •
i u pn .i ni.n. ao d o < riste > d o final dos tem pos co m o um |u l/
• " u pa do unicam ente em am a ld içoa r os condenados, Antes, e|.
aI >• ia oa\ a to m uma m ao e rejeitava com a outra. Mas, no < am
po iiili i de Pisa, pela p rim e ira v e /, ele tem som ente uma m.i< •
ativa, ai|uela <|ue e m purra os reprovados para o in fe rn o 1 I >1
Vei s.is compe >s|(,ahvs ( le I ra Angélica) e se)ln e lu d o o ( Irlslc> da ( a
pela Slsilna relom a ra o esse gesto dram ático. Do m esm o m odo
lam bem , e d e p o is da Peste Negra q ue se espalha na llalla •

(>*), MIÍISS, M. Piilnling in llo m tcc a n dSictht afier tbe iMavk I >r,uh, 1'niio
ion: l’i'iiicctoii Univ. Press, I9M. |>.,73.
70. Iliiil., p. 74 c c OI IP.N, K. MetinHorpImh..., |>. 107. l'Micfc, ,u> ndni ,1.
. .ilin,.i ( Iii.i aos |>(ís, a Virgc 111 lignr.i i Mlilhca ccleslc do A/>(htilyj’u I I......
rxcmplo dr um víiu 11Io cutir m.u .ilno r cie .Holnglrt.
71. MI ISS, M . \< 70-77. \<\ H7 90.
ili m ilo,'. Alpes .1 Imagem da lmin.mUI.uk* pecadora lerlda pe
li 11<i luis (l.i peste," N.i Igreja dr S;io Pedro Acorrentado em
Moin.i, mu afresco com emorativo da pesio do 1476 representa o
1.11 .<»l > .i aparência de um osc|uoloU) dcmónli) alado que alira
uma Hecha sobre os habitantes de unia Cidade. Uni século mais
laidr, rnire o.s lemas macabros pintados dentro e lora da Igreja
im Miguel de Olcggio, porto do Novare, nota-so Deus atingin-
........... . .eus raios os mortos o ni seus túmulos entreabertos: alu-
i" piov.ivel a peste de 1575-1576.7? Contra esses ataques, pas-
"ii ,e doravante a invocar, entre outros, Sào Sebastião, o már-
iii lu ir .passado, cujo culto leve um surto repentino depois lie
I ' i•• l nliin, seria um acaso se a prática das missas pelos defun-
i" .. generalizou a partir da metade do século 14?7' De qual
qih i nianoira, parece que nao resta nenhuma dúvida sobre o
l ii" di que, em tempos de epidemia, a visão sempre renovada
■i. túmulos abortos o de cadáveres putrefatos tornou a opinião
mil usepilva que antes para as imagens macabras dos sei
...... I < .íes refletiram inconscientemente a propensão morbl
d i d " publico para observar defuntos que perderam a habitual
■llgnldade do morto.
< >s vínculos entre pestes e danças macabras foram certa
im im numerosos. Por vezes eles se deixam apenas adivinhar,
......... ......... ulros casos aparecem claramente. Se a hipótese de II.
M" •uleld for exata e se devemos datar de 1350 mais bu menos
• i - icma latino c os quartetos alemães' que constituem, segundo
•I* i ■primeiras versões escritas da dança macabra, então a Pes-
• 11' a,i.i loria mesmo permitido a clara formulação de um tema
qii. . btiseava. P.m todo caso, o texto latino comporta este la-
iiM ni.. . i ilocado na boca da criança que vai morrer: “Mamãe que-
iid.i " homem negro me arranca de ti / Preciso dançar, eu que
iind.i ii.ii i sabia andar”; e, no texto alemão, a Morte convida o rei
• ñu.a ii.i dança dos irmãos negros”.75 Levando em conta a da-
i " i" ijv na q u a s c garantida do afresco do Cemitério Dominicano
i basllela ( poi volta de 1440), parece normal estabelecer uma
m la. i" entre esta dança macabra e a grande epidemia que arra
ti i i a . Idade em I 139, no momento do concilio, e que foi descri

Iliul.. |). 77.


•l, ( ¡UI'RRY. I . Le T hhne..., p. 232-233.
i ( !OI ll'N, K. M ctamorphosis..., p. 63-67.
. U( >SI•N l I I I), 11. D er m ittelalterliche..., p. 76-77, 311 e 323.
i.i pi >i r S. IMi ( ulominl, o futuro No II I i.i i.io 1111|iressli maúle,
dl/ ole, o amontoamento dr cadáveres (|iit* "os padres do Com I
lio, perambulavam, pálidos e desamparados", I in l.übeck, .1 dan
(,.1 iii.o . 11>i . i (I.i Marienkirche lol executada cm 1463 .mtcs d.i pe.s
u (|iic atingiu ,i cidade no ano seguinte. Mas sabia-se cpie a epl
tlcmla eslava a caminho e já presente na Rcnílnla, em Sa\e, I Ioi
rlnge c Brandeburgo: a perigosa ofensiva aproximava-se, ponan
lo, da ( Idade. Ouanto a cianea macabra de Berlim, ela Ibi pinta
da cm I 18 i no fim de urna pestilencia.
Nessas condições, por <|iie nao tentar certas a próxima voes
( n (iiologlc as, pelo menos a Ululo de hipe rieses? Nos do/.c anos <|io •
precederam a reali/avao do afresco dos Inocentes (1424), París eo
nlieieu lies passagens da peste: em 1412, 1418 e 1421."MA danva
m,u .lina do eemilerlo do Perdão em Londres, ao lado de Saint
Paul, dala aproximadamente de 1440. Antes, a peste linha visitado
a i npltal Inglesa em I i33. I i.Vi, 1-1.AS, 1436, 1437 e 1438." Poi ou
luí lado, i >Monge l.yiIgale <|i.ie ailaptou em ingles os versos do ce
mlieiio dos Inórenles, compôs um poema intitulado “Regime e
doiililna pua lempos de pesie" (Diotwy an d Doctrine fo r tbc /V*
ulrn .e i I um bi< Hti (pedo de Bérga mo.), a composição c|ue agru
p i li nd i di 11 le , 11k irlos e dos lies vivos, triunfo da Morte e dan
i i d i n d i luidos |i i | piulada em 1484. Ora, a peste tinha grassado

111 I •mil mi día •li mi ule ns (güiro anos anteriores e eslava atlva mals
pe (Kii" iiiii I iMi " I )o me.smo modo, a dança macabra de fVis
n ipm 'illa di |(i()(>) (Inlia sido precedida por epidemias em
I ait, I iMM e | iUM D evcse, sem diívicla, ver no emprego des.se
i. nu d i oH leidlli 11 urna especie de ritual mágico, um meló lank>de
|di -ti gi i si di i peí Igo Iminente como de evitar o retorno da eplde
mía A llguiaváo da dança macabra era ao mesmo tempo exorcls
dio c m.inlfesiavao de arrepentí imento.8 ,2Compreendida dessa ma
in lia, ela deve sor comparada às sangrentas procissões de flagelan
ti s ao.s (piais ,i Peste Negra deu uma amplitude sem precedentes

76. I’l( !< 1)1 ( )M1NI, A. S. Commcntarut d e g a th busiUcmis concMl, livio II


(mui. Alcmit I ). I l«y cr W. K. Smith, p. 191 s.).
77. KOSI NI l l .l), I I. Der mitteLtltrrliche..., p. 185.
78. MRABP.N, |. N. l.ts Ilommes..., I, p. 378-379.
79. Iliicl,, |, p. 401.
80 . I RIS I AM, Ph. ¡'¡gares..., p. 13.
81 lUUAIlf N, |. N. /<•( I/omina,,,, I, p. 396.
8.V U<)SI •NI I•I I), II. Ih r m U M M U ht . p. IH4,

IMI
Aos olhos dos contemporâneos, Irês características das epi
•lenil.r. de peste deviam aparecer expressas pelas danças maea-
l*i.i. n aspecto punição divina, a brutalidade do ataque mortal e
i Igualdade na morte que reduzia à mesma sorte ricos e pobres,
|o\i'ir. e velhos. Além disso, deve-se certamente estabelecer uma
n I.i*. ao de causa e efeito entre as hecatombes provocadas pelas
p* •les"' e o sucesso, tio século 14 ao 16, da iconografia do triun-
1* * da M< >iie. () tema devia estar no ar antes da Peste Negra, se for
n tímenle anterior a ela - o que não é certeza - a Alegoría do pe­
dido <•dii redenção da pinacoteca de Siena. Entre cenas represen-
i indo ,i esquerda o pecado original e ã direita o Cristo vencedor
•h •pecado e da Morte, esta, no centro da composição, é figurada
p* *i um dragão alado com cabeça de mulher. Com seu alfanje, ela
|a abateu centenas de homens e se lança sobre um grupo assus­
tado que suplica ao Cristo na cruz.845 8São numerosas as semelhan-
•a •* om o grande afresco do Campo Santo de Pisa, sobre o qual
g* ialmcnle se pensa ter sido suscitado pela Peste Negra.
Pm lodo caso, numa Itália (fim do século 1 4 - início do IS)
** •ir.ianlcmente visitada pelas epidemias e, além disso, minada
pelas guerras - Petrarca a descreve com o “um navio sem piloto
numa grande tempestade” - surgem surpreendentes representa-
•**»”•tio triunfo da Morte. Retenhamos duas. No Mosteiro do Sa-
•i" Speeo (a santa gruta) de Subiaco, por volta de 1363-1369, um
ai ti .ia slcncnse, em face dos três mortos e dos três vivos, evocou
a Morle sob a forma de uma velha mulher esquelética, cabeleira
in vento, montada num cávalo. À direita, com o em Pisa e no
alie-,co de ( )rcagna na Santa Croce de Florença, mendigos cansa-
>I* e. de uma vida por demais amargurada suplicam-lhe (em vão)
paia nao serem poupados. No centro e à esquerda, ela abate com
■* ti alfanje monges e religiosas que seu cavalo pisoteia. Sua mão
«llie|ta segura uma espada que fere um jovem caçador.*" A execu-
■ai* < grosseira, mas significativa. Existe mais vigor no afresco
( poi volta de 1445) do palácio Sclafani de Palermo, transformado
•ni hospital alguns anos antes.86 A composição aqui já aparece
tiaJleion.il: de um lado, os mendigos e os aleijados que implo-
i ain Inutilmente á Megera, de outro lado, as moças e os músicos

84. Para este aspecto c í' L a Peur en Occident, notadamente p. 100-108.


H'í. CUERRV, L. Le T bhne..., p. 115-117.
85. Ibid., p. 1 18-119.
H(>. Ibiil., p. 146-161. O afresco está agora no palacio Abbatellis.
pello de lllllil graciosa lonle M.I•. ,1 Mulle, no centro, pu.'eiv III
i li il.s tei\< >s (I.i (< »mp( tslçai ), San asi lea, moni.ul.i nuiu c ;i\ .lio I.iii
l,i•.iii.i <nj.i <<mstlluiç.K>esi piel etica e l( ii’lemenle marcada, el,i I.iii
(..i Mi.i'. flechas sol)re o grupo de jovens despreocupados Sen
co n vi n.i linas I reí nenies, pescoço estendido e trino flutuante
1 11 .i pul sobre os cadáveres amontoados. Detalhe Importante ,c.
Il> i 11. 1 . ,lili icen i m u s vitimas espeeialm enle ñas regióos tíos gan
gllus líala se, pulíanlo, realmente da peste.
A ligação eslabelci Ida pela mentalidade coletiva entre pes
I* pulem la Invencível da inorle e personificação desia última
•*1» u aspecto tic um cavaleiro aparece de maneira ao mesmo
|i ulpo ' si iucm.itk a e exemplar sobre tlois documentos: mn nía
nú ., i ii u d< i / Vi i micro// de I 127"' e a capa de um livr< >de contas
s le n e n s e ( I l\ iu da lúccerna ou Tesouro Público) datado de I i
N e sse ano, nina epidemia "muito homicida” arrasou a cidade di
lunlio a de/,ei libro. "Mi irrcram grandes cidadãos e mu ¡los ouiu »,s",
Noble a capa do volume, um anônimo representou a Morle irlun
I,tule i om a s a s de morcego (com o em Pisa) e cavalgando um ve
lo/ corcel <|tic pisoteia os cadáveres. Ao sen lado, pende um al
l.m|e e , muí sen arco, ela visa personagens sentados enlrelldos
nuil) (i igo de a/ar,""
A Mulle, sinistro e invencível cavaleiro, eis uma imagem a
i pial u publico eslava habituado e que encontramos num tle.se
1111*111* I Xiiei ( brlilsh Museum). () artista figurou-a aqui o >mo es
>|iie|eio luiuado, ninado de um alfanje,, montando um cavalo
um •i•* d> Mijo pi '.ioi.u pende uma sineta. Ora, Dürcr executou
• .e dcM nhu em l )DS, enquanto a peste grassava em Nurem
Iii ia, \ n petli,ao das epidemias e das guerras na Huropa dos se
' iilos ti In lelançou a cretlibllidade do Apocalipse e propiciou
uma nuN .i i arrelia ao tema dos t|iiatro cavaleiros. A fre(|úcntc
> tu. .a ao do Apocalipse pela pintura, tapeçaria, vitral, ilumlnuia
i giuuiiu levou a uma proliferação das imagens mostrando em
plena iç.io o medonho corcel e seu invencível cavaleiro Na
maioria das vezes, este ultimo e figurado por um cadáver anima
do que, o u com espada e flechas, ora com lança e alfanje, mala
sem piedade os humanos, ( )s artistas enriqueceram esse lema ge
ia! com variações diversas, () mais antigo Apocalipse neerlandés

M7, TliNKNTl, A. U Senso..., p. 420 c |>l. 7.


HH. Iliíd., p. M4 MS.
HO, Ul I.SSPI I , I i l/ilrci a wn Tlnn I lí*, 1072, p. 02.

I MC»
um manuscrito de aproximadamente 1400 mostra a Morte a
• iv.iln arrombando facilmente uma pesada porta de cidade que
' na em pedaços.'*’ Mcmling, por sua vez, faz o cavaleiro sair da
ei mIa de um monstro que cospe cham as.91 Dürer, na sua grande
i qtiein ia de I i97-l i98, afastando-se da tradição, substitui o ca-
davei por um velhote horrível e descarnado, armado nào de um
allanje, mas de um tridente.92
A Italia entretanto inventou outra figuração do triunfo da
M' »rle Num retábulo pintado em 1362 por Agnolo Gaddi em San-
la ( iroce, a Morte cavalga um búfalo negro que esmaga cadáveres.
<.mando em meados cio século 15 a iconografia italiana recorreu
a< i ■ Triunfos de Petrarca (compostos de 1356 a 1374), ela reutili-
oti os bois, mas atrelando-os a um carro. Na obra de Petrarca, a
M' ule que convida Laura a juntar-se ao numeroso cortejo dos de-
o
lunios e uma mulher em trajes negros. Ela não está nem a cavalo
ia m montada num carro. Mas no primeiro dos Triunfos , o do
\mor, Cupido está de pé sobre um carro em chamas ao qual es-
i io atrelados quatro cavalos brancos.” Alguns autores de iluminu
i i . lambem tiveram a idéia de colocar sobre carros a Castidade, a
li ule, a Lama, o Tempo e a Eternidade. Essa inovação, que se li-
v. iNa a representação romana dos triunfos imperiais, conheceu o
ui e.sso e suscitou inúmeros triunfos da Morte apresentando o car-
i" desta puxado por bois. Esse tema iconográfico aparece às ve­
res em afrescos e em quadros. Mas é encontrado sobretudo em
h ms (cussoni) e tapeçarias e como ilustração de manuscritos em
iluminuras, e mais tarde em obras impressas consagradas a Petrar-
■.i, nas quais o esqueleto do implacável ceifeiro pode ser subsjti-
iiiidn pelas três Parcas ou pelo menos por uma delas (Átropos).
Várias características importantes são comuns ao conjunto
desses triunfos. Primeiramente, um refinamento que se podería
i|iialillcar de “barroco”, com acumulação de detalhes espantosos
■m particular na figuração dos carros. Um destes (manuscrito em
iluminura das obras de Petrarca) comporta três estágios de estilo
K< nascença com pilastras, cornijas, guirlandas e crânios alojados
n.is arcadas em concha. A Morte, esqueleto com asas de dragão
■ armado de um alfanje, está sentada sobre um crânio coroado 40*3

40. ML.L.R, I r van der. LApocalypse dans 1’a rt, p. 212-213, pl. 143.
4 1. Ibid., p. 2 7 b pl. 175. Bruges, hospital Saint-Jean.
02. Ihid., p. 281, pl. 189.
43. ( d'. TKNENTI, A. L i Vie..., p. 20-21.

187
rom mn.i ll.tu " I lina tu pe-arla bruxelensr cl<>seculo 10, rxrc uta
«l,i ,i |».111ii «Ir ( art< »CvS italianos, apresenta as iré.x Parras cavalgan
«lo dragões que puxam o carro «la Morir. As rodas do carro irm
er.inlns rom o cubo r libias rom o raios,‘n Nessas rom posirors «Ir
llbrr.ulamrnlr eruditas r "sofisticadas”, os artistas quiseram ron
lia,star o macabro rom paisagens (rurais e/ou urbanas) muito
bem c uidadas, sorridentes e agradáveis. A exuberancia da vida
r«|ulllbra assim a írcqücnte ironia das caveiras. A Itália, em geral,
mostrou menos-predileção do cjue a l-rança, a Alemanha e a In
glalrrr.i pelas imagens de putrefação. A Morte triunfante e geral
menie um cadáver bem limpo, ancestral das anatomias pedago
glc as <|iie florescerão a partir do século seguinte. A despeito dos
.a liados mórbidos, essa iconografia erudita e complicada é por
lanío menos traumatizante que o resto da produção macabra con
temporánea A engenhosidade que se manifesta neste caso suge
re que se trata de- um jogo pelo qual nos deixamos envolver. Sa
boleamos uma surpresa (|ue desvia o espirito do sentido geral.
As dalas têm ac|iii sua importância. O triunfo da Morte co-
l.ul'i .o • pulan.i de Petrarc a floresceu na época de ouro do Qua
tu 'i ' nh ■i Hall,un i I luíanle e.s.se período de equilibrio (1454-149-1)
■ule ii i lii'M |iilin Ipals l-.iaclòs c|ue a compõem, a península,
111- ii di pi ii vive mu lempo forte de sua historia. Ida e o
..... i...................... da l iiropa por sua cultura, sua riqueza e seu
i un ■•o •nii ii I m contrapartida, com as “guerras da Italia” que
•' mi' • un •m I IU i, ela <i*i lia entre a impotência e a inquietai ai >
• p i i ■»' ib »' ' onlrole estrangeiro. C) triunfo petrarquiano conti
i.............. dmlda aia lr.i|elorla na Italia e nos países cujos artistas
i pin la ■la In .pira Marot o adola na Deploração do Senhor l'/o
rlniiithl Nolxrlol (| IS¿2)¡

I ii \e|o a Morte horrível e temida


Sobre um carro em triunfo montada
léñelo sob seus pés um corpo humano
M u ito estendido, e um dardo na mão,
De madeira mortal, enfeitado com as plumas
De* um velho corvo, cujo canto maldito
Predi/ lodo mal; e o ferro foi banhado
*
Na agua do Styx, triste rio do inferno.

') i. IVN. ms. ¡i.cliano de 1476 aproximadamente: ms. ¡t. 548, I 29v . < I A
I I NI N I I. l\Sentó.... p. 452 e pl. 42.
'>■*. Palitc in Real, Madrid. <1. (¡UI-.RItV, I /. Thónc, . p. 215.

IHH
A Morte, em lugai ile cetro venerável,
Segurava na mao esse1 dardo terrível,
(,)ue em vários pontos estava tingido e manchado
Do sangue daqueles que ela tinlia pisoteado.'"

Mas sc o tema sobrevive assim na Itália e além dos Alpes,


nu fim do século 15 e durante o 16 ele tem tendência a perder
■.eus elementos de relativa serenidade. Muitas vezes, a Morte vol
Ia a ser "comparável ás mais horríveis figuras geradas pelos so­
breviventes da peste de 1348”.97 De novo, ela estende suas asas
de morcego ou é acompanhada por uma horda de esqueletos. ()
iiMoino riu clima de angustia aparece com evidência na mascara
da organizada em Florença por Fiero di Cosimo por ocasião do
i arnaval de 1511 e que Vasari descreveu. A iconografía tradicio­
nal do triunfo á maneira antiga qxprimiu aqui o medo ele manel
ia tanto mais mórbida quanto a população não tinha conhecí
mento do que lhe era preparado:

Nada havia transpirado. Soube-se e viu-se ao mesmo tempo


Sobre um carro enorme, puxado por búfalos, todo negro, se mea
do de ossadas e de cruzes brancas, erguia-se uma Morte muito
grande, de alfanje na mão e rodeada de túmulos fechados. A
cada estação em que o cortejo se detinha para cantar, os ui mu
los se abriam e viam-se sair deles personagens cobertos por um
véu escuro sobre o qual estavam pintadas todas as partes do es­
queleto em branco sobre fundo negro... Todos esses mortos, ao
som de trombetas surdas e roucas, saiam de seus sepulcros e sen­
tavam-se sobre a beirada, cantando com uma voz triste e lango­
rosa aquela canção hoje tão famosa: "Dolor, pianto epenítenza
A líente e atrás do carro avançava um grande número de mortos
montados em certos cavalos escolhidos com cuidado entre os
mais magros e mais descarnados que puderam encontrar, e co­
bertos de mantas negras com cruzes brancas. Cada um tinha qua­
tro escudeiros, cobertos de mortalhas com tochas negras e, du­
rante toda a marcha, a procissão cantava em cadência e com voz
trêmula o salmo Miserere.™
.i •.

% . MAROT, Cl. CEuvrcs completes, coll. Garnier, 2 v., 1920: I, p. 533.


07. GUERRY, L. Le Them e..., p. 99.
08. VASARI. Vite scelte (ed A. M. Búzio). Turin: UTET, 1948. p. 278-270.
Aipii erad. Wciss citada em Ihid., p. 100 101.

I: II)
Vasal I nos dl/ (|ite ('‘,*,.1 macabra proí Issa»> que fez, esco
I, i " - "cm heu ,i ( Id.ii Ir de lerrot e de admlraçiV >" lim lo d o (.»■•*« >,
ela III.infle,sl.i .1 perturbadora U llll/açáo de (|lie era susceptível a
veis.io arcaizante do triun fo da M oite numa llalla de novo In< 111d-
ia e numa ( Idade em (|ife o dram ático episodio de Savonarola tl
tilia se encerrado menos de quinze anos antes. Além disso, na Ita
lla e em outras paites, desde o lim do século Is, continuava ou
le.tdqiilrla força a outra Iconografia do triun fo da Morte I 111 ( lu
0 me, perl(1de Herp.amo, um afresco sintético e, como tal, allanten
te pedagógico, de I tHS, reagrupa os principais elementos da leo
nografla da morte explorados na época: no plano inferior se de
•,envolve a danca macabra, meio larfmdola, meio procissão: em
baixo, o artista figurou um triunfo da Morte bastante raro que In
t lui a lenda dos três vivos e dos três cadáveres. Com efeito, poi
( lina de um túmulo, se erguem três esqueletos animados. <) do
cenlro ostenta coroa e manto reais, lile é ladeado por dois acoll
he 11111. arm.ulo dt Mechas, atira sobre três caçadores <ji ic procu
iam liin.li ( ><nii11» (< mi um au alntz. visa uma multidão do ricaçi >s
papi, iep, piin< ip< ., burgueses, etc. - que, de joelhos, em vao
■ ............. pn e|iit . a Implacável soberana. lista estende ampla
un 111• U' ■all' •■f ■ale st i >bandeirolas onde se lê: “liis c|ue chega a
11 *11• pli ni d' Iimi.ildade l u (|iiero a vós somente c não as vos
i iiqm m Hui In ui digna de portar uma coroa, pois c o m a n d o
......nu li' lumlio 1 Mgiui', anos tlepois, o frontispicio de uma edl
in Ia /■/.,//,./ ,/i7 hitlr ,/rl hru morlrc (\: lorença, 1/497) de Savo
........la ape i uta i Moite como uma aparição espectral, um lugu
1 ...........nela I .qiielelo vestido com uma túnica Mutuante, ela alia
■ i.i liando uma pai-,agem de desolação onde se estendem ca
II. 1\«u ' ai vi ire*. 11Kn(as (:< >m uma mão ela segura o alfanje, o nu
a Otilia nina bandeirola onde se lê: "Ego su m ”, isto é, T.u existo'",
Mas e a brueghel, o Velho, (|ue se deve a mais poderosa
evocai,.iode um Triunfo da /t lorie (por volta de IS62, Prado) nao
deriv ado da insplracuo petrar(|uiana. A moralidade é sempre aque
Ia das danças macabras e da lenda dos três mortos e dos três viv«»s
prazeres, riquezas e gloria não contam mais quando a vida se e\
tingue. Mas a demonstração e dada por uma alucinante e fervllhan
ti vI.s. k >de |K'sadek >, lila põe ênfase a<> mcsm<>tempe>s<)bre a ex
tensão da earnlfk ina e sobre horriveis detalhes extraídos do repei

0 '), Il.ul., |t. l o i ,


too. ( f, K(íSI-NI I I.L), 11, Do- m lu c IM lc b t..,, |>. I7S c \A, 12.

IDO
Inrlo de host il: ataúde sobre rodas, ratoeira gigante, pessoas vivas
amontoadas dentro de redes manejadas por morios. A composição
•< le a parlir da esquerda onde dois esqueletos balem o toque de
Uñados puxando as cordas de um sino fixado runfia árvore seca.
No terreo de urna torre em ruinas (que comporta um relógio), ca
da veres em sudarios brancos anunciam com trombclas o dia fatal.
I letl\ ámenle, eis que irrompe um exército de defuntos, ao pe de
urna lalésia enquanto aparece urna carreta repleta de crânios, con­
duzida por esqueletos e puxada por um cavalo magro. No centro
do quadro, o artista evocou o triunfo propriamente dito. A Morte,
■n\ algando urna montaría macilenta, ceifa com as duas mãos os vi
n r ,, ou os empurra para a ratoeira cuja armadilha está levantada.
V. \itlinas queriam fugir, mas inúmeros cadáveres lhes barraní o ca­
minho erguendo pedras tumulares. A Megera está rodeada de es
queletos armados que assediam pessoas que festejam e tocam mu
i> i \o lado da mesa abandonada, um jovem''cavaleiro desembaf
111H>u a espada e tenta uma resistência desesperada. () artista quls
•fu qii.imitativamente a prova da potência da morte - em sua rom
p 'dvuo, os defuntos sào muito mais numerosos que os vivos, f ,
liuitiu vista panorámica, ele evocou as mil maneiras de morrer: por
d oença (peste?): um imperador desfalece, um cardeal desmaiado e
f \ad< >para a cova por um cadáver, a carreta carregada de crânios»
leml ii i as carroças dos tempos de epidemia; por* afoganiento no
ni ii luí inso ou em lagos; pela guerra: armas, tochas e incêndios for­
mam uma linha sinuosa, mas quase contínua de uma ponta a ou-
H i d. i quadro; por acidente: um infeliz cai de um rochedo. O sen-
iim. nin da onipresença e da força irresistível da morte jamais tinha
.ido traduzido com tanta imaginação e amplitude.
A essa concentração do macabro no quadro de Brueghel
iqiie neste aspecto constitui quase uma suma) responde a prolife-
ia< ui ilas imagens da morte na iconografia dos séculos 15-16. Te­
mes ale dificuldade de escolha. Marchetarias italianas figuram em
•iusina vistas, clepsidras e crânios.101 Na iluminura de um livro de
limas, ,i morte ceifa metodicamente um prado verdejante e corta
■lumes, em torno dela, a paisagem, atravessada por um rio e fe-
■liada por uma colina, é suave, colorida, encantadora.102 Em ou-

101. IT.NENTI, A. IISenso..., p. 462 e pl. 3-4. Marchetarias de Giov. de Ve-


lona cm Siena (Monte Oliveto).
102. ‘IT.NENTI, A. La Vie..., p. 27 e pl. 6. Heures à 1'nsage de Rome (fim do
mi tilo XV início do XVI): B.N. ms. lat. 1354, f° 160 v .

MM
I d i, t'l.i ,i|) ,n u v o >r< sentai l,i ><>t>i i • iim lili nulo, mckiii íiiu Ic>um
dardo ro m o cetro m im a das i i i .k >s e uní i i.ml<> n.i o u li.i n n liiuai
do globo; ;io longe, avistam se m ontanhas o u n u c ld a d r dom ina
(I.i |)oi um.i f.',r.ui(le Igreja,l0< Mina edlyilo dos S r n n o r s de (»> il> i
un istia .i M orle Irro m pe nd o dentro de lim a t asa. Moni um ponía
pe, c li deiruba a mae que se upóla no m arido <> flllio , poi n a
ve | " i >i nía piolet ao ju n io da n iík \10' l'rec|('iente na époi a • i
linaiM'in do esqueleto ca rre ja n d o um atando sobre os om h io s
a<1111. • le i nli a no <|uarlo di* um d< lente; a II, ele al ><>rda um Iota o
Indi ilcnlt ' t lili l.lvro de Ka/ao alemao anónim o (da secunda un
ladi do M 'iu lo l >) com porta uma notável gravura <p k tem poi
li in.i <) fu r e m r <i M orte, Na realidade, trata se de um v e llio li es
1111< li Ileo ((liase nu <|iie pousa a lila o so l>re o o m in o de um |n v m
eleganR Mina serpente passa entre as pernas do velho, um sapo
ip il isliu.i .se de setis pes,"1" I Im seeulo nials tarde em |SSU um
artista de < ham bdry, (íaspard Masery, consagra duas lelas In le ill
ja d a s ao tema d o P in t o r r cia M orte, No p rim eiro painel d.i i
querdw, a Morte cadáver anim ado segurando uma lanterna e um
i o m passo Invertido Iranspóe nina porta. No da dirolla, o p lril' a
sentado, vestindo um glbáo, executa o retrato da M o rle ,1"’
I els aluda, misturados, rosarlos cujas contas figuram * i.1
t i l o s , jogos d r taró com tuna carta representando a Morle a ta
val........liando um rei, um cardeal, um conego e um ravalelio,"
Ulna i',iav uta <il>ii ( ohre opondo mima partida de xadrez um vi
lli'> d i e sen v e n m lo r,11" medaIlióos (alemães) em terracota n
pn ■ litando a m u iI m i e a Morle, um casal e a Morle, um saldo e
a M oile 111 I ,a . evocayoes e tantas outras que poderiam ,u n >

lu i I I I IIN 1I, A. I.ii Vie...i |>. .14 c pl. K. Ilen m à fustige de Home un
i.nli do <a oto XV): II.N. ms. Lu I U>(), f" 131 r,
lili WIUI11, | /</ Jtim e filie et ln mort..., p. 63 c pl, 38.
los I I NI'NTI, A. II Semo..., p, 16 <•pl, 23, |>. 43 <•pl. 4s. Ucspn .....
u ORAN I , S, Smltijhii thwii, llAlc, 1497, I 94 c 11.N. ms. Im. 9471, I |0o
I()(>. WIRI II, |. Iu lennefilie elht morí..., p. 17-20 c pl. 1.(1. MU I » lllll
S( 1N, |, ( . The Ahnler o ftb e llomehook, New York, 1972.
107, < I lAMIU'RY. Mualc des llcuux Ans,
HUI. WIR’I I I, |. /,/ tenue filie et /,/ morí..., p. 19.
109. ROSI'NI I I I ). II. P er millehllleeUche. , p, I r p. 13. Ii.it,i m <Ih mi',"
*|c i .irias d( Imi.illm .itrilniído .i ( .irlos VI (de I i .iih,.i ), I 192.
Ml) WIUI II, | I ttJen n e filie el In Morí , p, 12 e pl, 14: M.iiuc DKili l'Alio*
III llilil., |>. 211.
tentar constituem o ambiente que permite compreender a rica
prnducáo macabra de um I Iolbein: Pequeño Alfabeto (1520),
(o d íe le Alfabeto ( IS21), Sim ulacros da Morte (1538) e a célebre
Inlei rogaçào de- I lamlet na cena do cemitério: “Quanto tempo
pode um homem permanecer na terra antes de apodrecer?”

0 macabro e a violência
( )s exércitos de cadáveres que, no quadro de Brueghel,
•ombalem vi tollosamente contra os vivos remetem a urna situa­
ban de violência quase permanente na época. O macabro estava
ligado a peste. Mas estava ligado igualmente à guerra, horrível
1 Minpanlieira dos europeus desde o tempo das Grandes Compa­
ñía.r. até o final dos conflitos religiosos (1648). Ela certamente
nan provocou hecatombes. Mas esteve quase sempre presente
•'•ni .'¡cus cortejos constantemente renovados de soldados, de
lime Idades, de pilhagens, de colheitas arrasadas. Com rebeliões
■ lutas civis que repetiam ou prolongavam guerras estrangeiras,
•• contemporâneos tiveram o sentimento de que a violência ar­
mada nao os abandonava. Há quarenta anos, constata Eustache
I >i a liamps em 1.385, que o nosso vigário só canta o Requiem , “a
i i! ponto que dos outros ofícios ele nào sabe nada”, e isso vai
•••iillnuai: "Sem ter paz, teremos guerra, guerra”.112 Em outra,pas-
iiM m. ele constata, “Guerra dia a dia avança”.113 Dirige-se então
ii"s soberanos: “Príncipes, eu lamento toda guerra”,114 e protesta
•onti.i ,is más ações dos aventureiros: “Nào há quarto, arca, mes-
11o •bs liada / Que eles não rompam...”.115 Daí a solene advertên-
•la fazer guerra é pura da nação”.116 Christine de Pisan, aluna e
l|o ipula de Eustache Deschamps, com põe Lamentações sobre as
‘■ maus ( //>/.v. Na sua prisão de Beauvais (1432-1433), Jean
l<i gnlei maldiz, ele também, a guerra:1

1 I I >I'.S()I IAMPS, E. C E u v r e s I, balada XLVIII, p. 136.


I 13. Ibid., V, balada DCCCCLXXXII, p. 226.
I Ia Ibid., V, balada DCCCCXIV, p. 113.
I is Ibid., I, baladas I.XV e CV, p. 161 e 217. "
I U. Ibid.. I. balada I.XV, p. 161.

193
N.iu Im hiul.i •|•i*■ ,i gueu.i nfto nmlc
( iuerru c U>dn |trisito.
1K' ludo ( | U C I pogill
• H I C I I .I <|

I indo agarrar, e ca^íitlii."*

Melo século mais tarde ( l Í77-I 179), <> retórico |r,m M>*||
m l r u '.U iiumlia desolada dos combates entre francês» ■■ e Iu11
imiliilini . No seu Ihrurso t/o (kwo niindo, ele crlllta vlgonoa
nu nh* os legenles da coisa pública":

I*11|lt l|II'N, |IIIIllT( INI>.S...


«.Mi* dominai1,, «pu* esilnuilal.s o povo,
um i in iiiii.il. t|iir perseguís pessoas,
I iloiim ntals as .ilinas e os corpos...

mih la/c|s <pi*■peinabais o inundo


l'oi güeña Imunda e i ilmlnals assaltos?
Allral i.m lioi la/el grandes conl'usOcs
Ih nlio di- cení anos oslareis lodos podres!11"

1*1illa i um panorama uniformemente negro dos anos I ul


I() lH constituirla eerlainenle tim paradoxo insustentável i mil
Iilsli a leo, Portille deixaríamos passar em silêncio periodt is tlt •al
mi.ii Ia e de reciiperacao demográfica e deixaríamos na ,<mil na m
pacos menos vlsllados pela guerra que outros (luíanle rn io s p>
i lodos llalla dos anos I iS i I Í9Í; franca e Pspanlia do llm do
século I's e dos vinte primei rt >s anos do Iñ; Países Ha i\< >s da pi I
melra metaile do 16; Alemanha e de novo Italia da segunda nu
i,hI» d, i Ui, luglalei ra ellsabetana,
\ Kenast rii(„.i existiu. I Ia aproveitou se de todas as m gua
paia c p.uidli se e fa/er progredir as arles, as letras e as lei nf a 1
ih pena de, ela lambem* circular de um pais para outro <«nu
i is militan s Mas o emprego sem matl/es do lerino "Henasi cm, i
|, \a i ti ma slmplllli a», ao Inversa da anterior. P.le camufla a icvol
ia dos t 'oimimrn\ (IS 2I), a dos camponeses alenúes <I •’ i
I a das "comunas da <it liana” ( ISiK), a dos católicos ou dos
«amponeses Ingleses em 1*536, 1549 e 1569. Ple oiulla o apelo

I I /, Iviiuncs d it d v a v t c . d nulo cm ( 11AM1M0N, l! Uhloirr /Wl/yo ./„


\T M . I. |>. 24,\ 2.44.
I IM. ( lluulo cm lliiil., II. p. 11/

im
i' 1 meu enarlos |>:ir;i as guerras da li;ilia, o vaivém dos soldados
n i |n iiinsula, os saques de Roma ( 1527) e de Anvers (1576). Ele
•li ipir/.i sobretudo o aspecto mais trágico do século 16 e do pri-
uh Iim século 17: as lulas religiosas em que se juntaram persegui-
.......... los anabatistas (na Alemanha e nos Países-Baixos dos anos
l - Ml), Iuiias iconoclastas”, fogueiras de heréticos, conspirações
ui' 'iiilfi.is, massacres organizados (São Bartolomeu), batalhas
pl mc|ad.is c sedes de cidades em escala nacional (França 1562-
I" "ti ou européia (Guerra dos Trinta-Anos). A violência sádica
* ias a na ordem do dia: valdensès do Luberon sufocados por fu­
ñí 11 a em grutas, monges enterrados vivos pelos G u eux, católicos
iiigli s» s csiripatlos vivos com o coração e as vísceras arrancados,
ii iin as assadas em espetos (em Vivarais, por volta de 1579) na
Ia' i ia,a dos pais, etc. Trágica, porém sucinta amostra.
Konsard compara a França de então (1562) ao comercian-
ii igiedldo por um ladrão que não se contenta apenas em des-
p' '|a I * mas "Agride e atormenta-o, e com uma adaga tenta / Ti-
i ii lli' do corpo a alma por uma ferida; / Depois, vendo-o mor-
' • •o 11 de seus golpes, / E o deixa ser comido pelos mastins e
i - li ■ I ib o s "S é b a s tie n Castellion, dirigindo-se à França desola-
h polos conflitos religiosos, diz-lhe:

|l >eus| te golpeia com uma guerra tào horrível e tão detestável


«im eu nao sei se, desde que o mundo é mundo, houve outra
pior. Sao leus próprios filhos que te desolam e te afligem... en-
In iuatando-se e estrangulando-se uns aos outros sem nenhuma
misericórdia, com belas espadas nuas, pistolas e alabardas den­
tro de leu seio.1-"
■ \

Agrlppa d'Aubigné que, em criança, tinha sido testemu­


nha iIas execuções consecutivas na conjuração de Amboise, fi­
ou mau ado Ioda a vida pelos espetáculos de horror aos quais
i eiierias de religião o fizeram assistir. O quarto livro dos Trá-
i.o Intitulado /'erros e fogos relata massacres de protestantes.
■ IHarrias (primeiro livro dos Trágicos), ele lamenta “a Fran-
i di .iilada nao terra, mas cinza” e estigmatiza as maldades
da mldiiilesea:

I P t (,'oniiniuttion du discours des misèrcs de ce temps, Ed. Laumonier, Paris,


P)M 1919, V. p. 337.
I ’(), ( :a S1T.I I.ION, S. ConscUà la France désolée, s.l., 1562, p. 3.

inr>
i ii vi o negro soldado liilinln.u pelo nielo
i >■ , i nschrcs <l.i I i . i i k . i , 11 *i 11** iini.i tempestade,
l ev.indo linio o que pode, arras.il lodo o resto ,
I ,i, de mil i .isas resta um no logo,
So <.iinlt, .i, ,*.o morios, ou rostos horríveis,1'1

Ixspelaculos <|IK* .i A leiii.in li.i, |><>r mu ve/, leu em abmi


d.inel.i d in . inte .i (m ena dos Trinta Anos. A poesía de Agiipp i
d'Aublglie e nm bom e x e m p lo do vínculo mals ger.il entre \ lo
leuda mllllai e goslo do macabro. Sc, remontando no lu irlo do
•.et nlo 16, abrirmos no Museu de Belas Artes de Basiléia os • ,11
loes de d esen h o s de Urs ( ¡ral' (aproximadamente I )HS IS '.'i, n
(Joya s u g o , essa relaçdo aparece como urna evidencia < >mlv. s,
grav ador, .o pia f<mista, pintor e vitralisla, Urs ( iraf engajou se lo
<la\ la * orno soldado mercenario alemão. Suas pinturas e gu\ nú
i onsllluem mullas ve/,es a crónica e a sátira - do olido mllllai
do i|ii.d ela.s m au .un .i rudez desumana e as ilusões,1" I I,c. sao
repletas de homens de giieira e prostitutas que o artista gosia di
i i illl|m ui ai is |<lili i ),*.
l »i .lil.midl.mil de nos brutos Insensíveis, com eslandaiti
implann ni« ib* i los na m.lo direita, lança na indo esqueula, v •s
................. uma osle ni ai, do barroca c quase ridícula. Um liten en.i
..........Il i p ii i * .i ,.i i anegado de objetos saqueados, outro deisa
m • ipiui ii pi u um Ih uiim I diabo ehiírudo e obsceno. I lili ten •I
i1*i qin slm bolla os a/.ues da guerra, está suntuosamente vestí
do na p iii. <llr< lia do coipo, Mas na parte esquerda e um mis.
u< d malíi.iplllio I depi»ls vem o macabro: sol) urna ;irv<>re, doi ,
oldados lonveisam, um jovem e um velho; á esquerda lima
ni." i lev lana, c< un um pei|Ueno cào, quer fazer se notar, mas .. i
bie a aivoie uní es<|ueleto brande uma ampulheta encimada pm
um corvo. ( ) que significa (|ue os homens de armas enconli.u.io
mals certa mente a morle do que a v o l ú p i a ,<)utra cena: mu nu i
cenarlo aleuuio, muilo fanfarrão, sentado na ponía da m esa, dls
cute sol)ie <> seu st>ldo eom um recruladc>r, sentando na Otilia > s

171. I >'At MU< INIs A. l e i cil, A. (hmicr <• |. I'l.iil.ml, l’.in 1*1
.lio, I9M>¡ I, p, 97*.
I ( I. ANI >I' KS( )N, <'hr. Plrner, Krieger, Narren. Aingeioiillr . VS Iniiuiy, n
ron lh \ ( i ti í/,
(, ,S. Vcrlitg, HAlc, 1978, com reIcris idus bihlii *gi .tli<... A, ilie
ii.gflci uunmi.iiliis .i M'i’iiii ,%
<• cncoiiiiam nea.i olio.
17.t. Kcprmltg.U) i. millón cm WIIU II, | l o /enne /lile el lo morí p II

Ii Mi
i" inli l.u lt •e 111111segura um saco (de escuc los) estampado com as
um e da frança. hnire os dois personagens, distinguem-se um
........... serviu de intermediario, um artesão, um clérigo e um
i" <"'i l.mlc, Ao lado do recrutaclor está dm louco. Seu simétrico
um i s<|ueleio animado c|ue aplica um violento golpe de joelho
ni .i r.i.i.s do soldado, lile carrega um estandarte indicando que
" dlnl n lio do re i nao vale urna vida.
I ni varias ocasiões, Urs Graf evocou cenas de execução:
um i mulher Santa Bárbara - que um soldado decapita à beira
i um lago; urna vivandeira que passa indiferente, quase sorri-
l> ni' purlo de um militar enforcado numa árvore; um confede-
i id.. que se prepara para cortar a cabeça de um mercenário ale-
m i'■a|oelhado. À direita deste, um infeliz está exposto num pe-
........ i, enc|uanto clois supliciados pendem de uma árvore, es-
' uní., u corpo de um deles já meio devorado ou decomposto.
1 miu. desenho a bico de pena representa um ampio campo de
i .1 ilh i onde se enfrentam duas infantarias, cavalarias e artilha-
H . inimigas, ( )s mortos são numerosos: eles forram o chão, nus
■.......|iie |a foram saqueados) ao lado de tambores furados, armas
111. luidas e cavalos abatidos. Atingida por uma bomba, uma
. . .a qiH mu I ntretanto, à esquerda, um soldado, indiferente ao
i ■imh.ile, i» upa-se em beber pelo gargalo. À direita, dois milita-
n . ' itli if( ados can galhos de árvores já são atacados por aves de
. 11<in i antecipação das cenas de enforcamento que Callot, um
■■' 11 >mals larde, representará com realismo nas suas águas-for-
........... ir.agradas ás Misérias da guerra.
< >i |iic 11rs Graf quis dizer é ao mesmo tempo a loucura do
t ln li <du mercenário e a atração invencível por uma vicia de vio-
i in la . de aventuras. Hans Baldung Grien em 1503 e IXirer em
IIlii, u|, , lambem, traduziram em imagens impressionantes o cliá-
i .......nlie d Mercenário e a Morte. O primeiro coloca um soldado
.li . illiai triste diante de um cadáver zombeteiro apoiado numa
i ui. a |. lia de tíbias enfileiradas.124O segundo imagina uma conver-
. *va .. entre um militar de penacho e um defunto vestido com um
ni. lai li. i •i uja cabeça ainda ostenta cabelos abundantes e desorcle-
.. id.. I -.tf último apresenta uma ampulheta ao seu interlocutor.12S
Mm panorama, mesmo rápido, do macabro da época não
i •I. ila esquecer as tão numerosas evocações de martírios e de

IM llikl., pl. 38.


I Iliiil., pl. 45.

11)7
massai11•:i, <) traumatismo provocado |ir lo <s|>i tai 111«>*l.i \li n
i 1,1 leve nè< essli l.li Ir (Io explllllll so por "pru|eyoes lll »i i|,n li n.i i
So |MKlessrmos c< >nlal)lll/ai todas ;is exci ue< >es ilo santos e sait
ias (|iio foram pintadas, esculpldas ou gravadas n.i l urop.i . .. l
dental <■ central oniro I.SSo o 1650, chegaríamos a um tola! • i.u
roí odor que restituida, nosso sentido, a continuidade entre o go
lito, o maneldsmo o o barroco, Nosso museu de horrores Itgma
evidentemente com destaque <> cnicillxo do Isscnhelm, • i*n
< ilslo esverdeado e ja quase decomposto pela tortura, com sua
pele crlvuda de feridas, seus dedos torcidos de doi, seu i o s |m
mau ado pc>t uma atro/ agonia".u"
Mas as cenas de massacres associam IVoqücnlcmenio a vlo
lenda e ao sadismo um elemento (|iiantilativo: o maeabio •,< t•n
ua plural, Pensamos aqui no lema do M a rtírio dos de: m il . U i
Idos (ordenado por um rei persa) que seduziu prim Ipalun nn
IXirer, Nicolás Manuel Deulseh, Ponlormo, Pierino dei Vega lii
obra de 1)11 rei (ISOH), encomendada por l’rcderico, o ’ ibt> * "
uma paleta mullo iUa lealya delallies horríveis: Inocentes i u ,ia> .
san piei (pilados do alto do uma íalesia; outros sao abatidos a m .1
pi d« potieli i ui dei apilados, ou chicoteados ale a iiiom mu
i p> d 11 |u Io , ou crucificados. () quadro do Nicolás Minie I
I »i ui mh1 |>i•ti iuIi ii sei ainda mais cruel: os corpos salían nl*1
•Ia •IIlina i.io empalados ,si)|>re galhos de arvores sei as i q•i<I••
...... . •lamina lals obia , Introduzem a com posição extrema nu u
i* maut insta de \ulolne ciaron, o Masscurc dos T r liin irli*
i I ••>‘ • 111< 11mlrasi.i dei a pitayóes com uma luxuosa .11c|u« . •!<.
Illa i mal, ainda a Iodos os quadros o estampas cons.tgi ido i i
l>aai. tias, . ms uyóes diversas o mortandades coletivas qm mai
i at.tni as puertas de religião.
,‘io encontrantos ilillenidades de escc>111;i: autos de / i1, pil
nli, ao dos c <»njurados de Ambi)lso, massacre de Sao llarlolom- u
ti muías Infligidas aos monges neerlandeses e aos cali >!l< <o |ii)>l>
ses I ra Impí >ssivcl que tanta vic>leneia, juntando se ao i .peta* u
lo das pestes, nao levassem os ocidentais a representai, t" di
morte e da aplicacao da morte, l',m IS87, aparece em \m . i .

I .’(> IttUISCgM' I', |. t il l’ftniuir nutnidiuf, Ncudilttd, al, lile. <i • il.n l,
I p,
I' K iiiim bÍMOriitl i e s M iinciiiii ilr Vlcn.i.
I ,'H. M iim ii .1.' Hd.r. AlUs ilt- Iti-rn.i,
I 29. Nn I nlivic.
11...... m/>i Inmlur, um lealro das crueldades dos heréticos , que c
m ii1 !ni|'!• .■.lonanle coletânea de suplícios.1'" Alguns anos de-

I
tnii m ( n.iiorl.mo (¡allonlo, inspirando-se na obra anterior, pu-
<llt d •ui límii.i um D atado dos instrumentos de mentiría, ilustra-
i pM| |, mpesta, um dos melhores gravadores italianos do fim
• i ' ■uln K),1'1 Essa obra erudita era consagrada aos instrumen­
to* di i* Hlili.i ou troca empregados pelos pagãos contra os cris­
ta, o I l.i pioprla era tributária dos afrescos que os jesuítas da Ci-
•i l> I Irma tinham encomendado a Pomarancio, ao mesmo
li mpM |•11.i o seu Colégio dos Ingleses (por volta de 1582)132 e
|i n i i 11.i •|.i .'.auto bs te vão Redondo (por volta de 1585). No Co-
1 i ' uma sequência cie pinturas agora desaparecidas contava a
In . <n,i Ia Inglaterra por suplícios, desde Santo Edmundo criva­
do . 1* lá •lia , pelos dinamarqueses até Fisher e More morrendo
n>i ulalalso c (lampión estendido sobre o cavalete. Os trinta
.................. Santo liste vão retoma de maneira nova cenas da Le-
ih ff Ia ,loin\tda e retraça a história das perseguições romanas:
S ii•n * |<ir, uln numa fornalha, Corona esquartejado, Martine cli-
l.l. ei .'Ia p.»i unhas de ferro, Vitus, Modestus e Crescentia preci-
I n i.ln . in . liumbo derretido. Em certos afrescos, vemos três su-
I Ir I n li n . in diferentes planos.
i fu i e, portanto, um acaso se a morte está tão presente no
....... . <- uln l(> e com eço do 17 tanto nas tragédias francesas ins-
plll.l a . m Ncncca como na literatura inglesa contemporânea de
i ii .1" th i ilo s primeiros Stuarts; e tanto mais cjue elas integram
....... nn >tIv açuo maior da violência do tempo: a vingança. Esta, tão
i .. •‘Ml* no i urso das lutas entre armanhaques e burguinhões, foi
i. nu ada no século 16 pelos conflitos religiosos. Em plena Renas-
•ii. i . 11 permanece muito arraigada nas mentalidades. A maio-
H i 11 A'órelas de Mandello são histórias de vingança.
V. i ibias pictóricas, teatrais ou literárias respondem as des-
. ii.... de execuções de (|ue estão cheias as crônicas e gazetas
li •p... i llul/inga lembra, segundo Molinet, que os habitantes

I UI 1,1 l.niiu I SK7. bil. fr. 1588. Este esclarecimento e todos os deste § são
de MÀI.lí. b. LA rt religieux apres le condle de Trente. Paris: A. Colin,
iim .I ii '.
I p , l ( ) ‘) l 16.
I 11 i ,AI I ( >NIO, I! 7 nitrito degli instrument d i m artirio, Rome, 1591. Trad.
1,11111.1 . m I 59-1 e 1602 com um resumo do Teatro das crueldades dos heréticos.
I I ' I ti-, alíeseos estão conservados por gravuras de J. B. de Cavaleriis,
I .li i 11m exemplar na Bibl, da Sorbonne.

lí)í)
ilc Muir, i ompi.u.im Ihmii uno mu hundido para tri o pm/< i di
\r lo rsi |ll.II tejado "com o i |lie o P<)V() Ilion lll.lls ,il< gil do ipil
u' mu novo ,sanio llvesse rcssusrliado".1" Mollina lonl.i lamín ni
i|iir, di ti. init' o rativrlm dr Maximiliano da Áuslrla m i lli'Ugi ■■m
I iMM, tlvi'iam a cortesía dr Inslalai o ham o dr lortuia a vlsla d* >
l'ral prisioneiro, a llm dr dlslrai lo.1,1 lún seguida a 111il/.ln^a MI
<In I Vovelle desroble nos anais dr Augsburgo no serillo I , i
tur in. ao dr dnas riladas m im ad a s vivas r dr rim o padirs ion
donados a m on o dr lome mima jaula dr Ierro exposla ao pnhll
r o 1' As rx riiK o rs rom lorlnra estavam prrsrnlrs rom o onlras
lanías linóes dr moral: assim, levavam-sr as i nanias pata <pi< i i
gu.udussrm na mrmoria, l'rllx klallci reíala:

I ha ( riuilm )s<>, por ler violado uma muIIirr de selí'iiia ,un >, loi
i lutado vivo mm alíenles mi brasa. VI rom mciis olí ios a < ,p> s
,a lum,te.1 proelii/lila pela carne viva submetida a essrs allí m
iin I» a s a , elr lol i \ei litado poi' mestre Nicolás, raí lase o di la i
ia s Indo i . pi i ss,míenle para a clrcunsláni la. () ronde liad" ■i i
um In Minio loitr r vigoroso: sobre a ponte do Reno, hem p> Uo
di 11 lol 11o aiiani ado um mamllo; em seguida levaram .........
, idalal'io II- eslava rsiiemamente líaco e o saugui i.... ..Hit
il nmi lino 111«'iii■ di sua. m;io.s. lie nao podía manlei .■ , m p,
■ n i , "i lili ma mente I o| rnllm llera pilado; otilara m IIir mn.i *
I n ,1 alo e , I....... ipo, depi>ls sen cadáver lol |<igadi» ni mu I" ■
i I ni n ii miinlia pnisoal de sen suplicio, rom iVK'ii pal iln
gnuindi i pela m.Ii i 1

I lina ga/rin alema de Ib()3, consagrada a exci ik,.o » d<•. |, .i (


dl.iholli os malandros", dr apenas 14 e lS anos dr Idade, culpa
dos di l< i envenenado o pal c o lio (|iio rsiavam brbedus, i *n 11
irr< I',na asslsllr, loila a juvenlnde eslava reunida, in m ,oi ,id i
pelas .mloilil,ules, porque r hom para a juvenlnde Insliuli pui
lilis rxnnplos". Segur o relato do suplicio:

I H. I ll H/,IN<¡A, J. l.t Inclín.,, |>. 27, III, |>. 487.


I i i M< >1 INI I. |. ( Jnvnhjurt, Al. Buchón, IH2H, III, p. I ’
I IS, V< )VM I I', M l,i Morí ri /'On it/rm
I V), la )( ).S, I I, rhom is UHt/ Irlix Pl/tltrr, nr SitUniyrsrlilcblr i/o wr/n t'/nn, n
l.ilnl'imi/rrh, I cip/ip,, 1878, |> I').’ I '>V < ¡nulo cm |ANSM II, |. /,/ i m il
i,ilion rn . Ulrnuynr tirpuh l,i ftn </n Muyen Ir, , I VI, p. »0(.

:*()()
i, i uncí i mi .se por despir os dois rapazes, depois açoitaram-nos
dt tal modo que o sen sangue se espalhou com abundância
pelo ( luto. () carrasco introduziu em seguida ferros em brasa
i m suas lerldas, com o que eles soltaram tais urros que é im­
possível dai uma idéia. Km seguida, cortaram-lhes as duas
itrios A execução durou aproximadamente vinte minutos; ra-
p o cs c moças assistiam, assim como uma multidão de pessoas.
Iodos admiravam nesse suplício os justos julgamentos de Deús
< si Instruíam com esse exemplo.117

\ lllculiira logicamente fazia eco a essas trágicas cenas da


id i i oiidl.uu. Como prova, a descrição particularmente .sádica
!• . l i m a o Introduzida por Thomas Nashe no fim do seu Via-
Itinli ./ iihhlo ( I59i). A cena passa-se supostamente em Roma,
o....... li ilu que os ingleses de-então consideravam capaz de to-
io , o \|, | < e de todos os horrores. As medonhas invenções que
mí i n •lei .ao qualificadas pelo autor como “italianismos”:

<iuneçou-se por despir [o judeu Zadoch]; depois sobre uma es­


tai a de I erro hem pontuda é solidamente fincada no chão, inse-
ilu c o seu ânus, com a referida estaca correndo-lhe através do
. "ipu como um espeto; sob suas axilas dispuseram dois outros
piii'i . da mesma espécie; depois, ao redor dele, acendeu-se uma
•i.iiii I. fogueira festiva que lile assava as carnes sem queimá-las;
■ i medida que, sob o efeito do-calor ardente, sua pele se cobria
di bulhas, afastava-se um pouco o fogo e irrigava-se o paciente
■•mm uma mistura de água-forte, água de alumem e de mercúrio
'iiibllinudo que lhe devorava até a alma e revolvia áté a medula.
I >i pois, quando todo o seu traseiro foi assim irrigado e inflado,
a oii.nam no com chicotes ardentes fabricados com fios de ara-
lU' em brasa; np que se refere à cabeça, untaram-na de piche e
il< ati.io e, quando ela estava recoberta dessa maneira, atearam
I' r,' ■ I m suas partes pudendas amarraram fogos de artifício ruti-
I mli s de 111/. Com cintilantes tenazes arrancaram e lixaram toda
i na pele a partir do alto do ombro, como a partir dos cotove-
I" dos quadris, dos joelhos e dos tornozelos. Quanto ao seu
pi ili> e seu ventre, ralaram toda a superfície com pele de foca e,
i medida que se ralava, punham-se as carnes à mostra, e um dos
■ máseos que estava de pé ao lado lavava as feridas com AquaI

I i i ;lt,ulo cm Ibid.

201
titile e .ígiu rom i ln/.r. <l< loij.i I ev.inliiv.im |k *I;i metíale
imitas r dcpol.s i .ilv.iN.un poi baixo rom puntas acentúas romo
l.i/. o ¡illül.ilr rom .1 vlirlmi de mi .i Io |.i ((u .iih Io .1 ilclx.i nielo ahci
t¡i nos illas ferlailos, Arrancaram lile até o pulso raila nm ilc sctis
linios, l’iiN.n.mi lite os artellios delxmulo-os pendurados na pon
1.1 ile tima tira de pele. Para roneluir a cerimônia, abastecen se de
oleo um pequeno braseiro igual aqueles que as pessoas usam
para soprar leves bolhas de vidro e, começando pelos pés, quèl
ma ram o homem membro a yiembro até que o pé foi consumi
do e so enlao que ele morreu.IW

Poder-se-ia esperar que uma tal acumulação de detalhes


sángrenlos bastaria para o autor e os leitores. De jeito nenluim
Algumas paginas depois, a narrativa recai numa nova descrição
de suplicio, de modo que as últimas páginas do Viajante a zara
1 / 0 nada mais sao do que uma sequência de execuções refinadas

Depois desses impressionantes exemplos escolhidos, e inu


tll Inslsili longanu nte .obre a forte presença do macabro na lite
lattlta e mais pailli tilarmenle no teatro inglês na época de Misa
I'i ir 1 d* laliin I I !< Invade notadamente quatro peças menelo
nula iqul 1' iiut 1 simples .11ni >stras: A Tragédia do vingador ( I(>() ')
1 l o h u J i a do alrii (Ibl I), de C'yril Tourneur; A Duquesa </r
Ima In d. I<d111 V r| i,i< r ( l(d(i?) c* A Segunda Tragédia da noiva
< ....... luto 1 di •luii Io do sei ulo 17.1 O Vingador conserva ha nove
.............l i l i l í ' ' di sua noiv a m orta envenenada p o r um ve lh o du
qi" aia 'lile, un. 1 i on slsie em, por sua vez, derramar veneno si >
............ .. 11|iie i>dui |iie I>eija na escuridão pensando pousa 1 um
I" 11*i ''bu o insto de unia jovem. O Ateu é um fidalgo francés
•|iit mandiiii apedrejar seu irmão pára apoderar-se de seus bens
I »epi >ls de 1 eu.is de assassinatos, suicídios e violações (num ccml

MM. NA.SI Ili, Th. I.c Voyageur m alchanccux. trad. Ch. Cliassé. Paris: Aubici,
I9S4. p. 284 ÍM5. Agradeço ¡mensamente a André Rannou por ler me 1 I1.1
nuulo a atençao .sobre este texto e dc maneira mais geral por ter orientado mi
nlias leituras sobre a literatura inglesa dos séculos XV1-XVI1.
I V). II0W S O N , l’r. “I Iorror and tbe Macabre in Four Hlizabctlinn Trage
dirs" em ( 'ithicrs élisábéthains (editados pela Univ. de Monrpcllicr), 1970,
p, I I t tdVI•1.11 R, E. “Horror and Cruelty in tlic Works oí tlirec Eli/a
bit11.1n Novclists", em (é.ahicrs êlm ibithaiuu 1981, p. ,19 S2. ( I. também
MIsSSIAEN, I*. Théâtre ungíais. M oycn dçr a XVI s¡h it, Hruges, Desdo di
Ihouwcr, 1948: trad. dc /.</ IhigS/ic thi i’cnyym v t tedios de I <1 l i m i t o u 1

:»on
h iiii), o culpado vê aparecer o espectro de seu irmão, lítese mata
i> ni,nulo malar um sobrinho. A duquesa de Amalfi é uma viúva
■u|"-, limaos, mii dii(|ue e um cardeal, querem impedir de casar-
it m »\ámenle, Mas ela desposa sen intendente, Antonio. Ferdi-
........ i'iilouquece a irmá trazendo-lhe no escuro urna mão de ca­
li m i c dl/endo-lhe que é de Antonio. Faz também aparecer,
•'un i m estivessem mortos, as efígies artificiais de seus filhos e de
\nii 'iilo, I Jepois, manda até ela todos os loucos do hospício para
■ i i iii .ii seus cantos, suas danças e suas piruetas”. Enfim, man­
da i .luugula Ia. () último ato é uma carnificina geral. A Segunda
I './'•.■.//</ d a n o i v a expõe o amor louco do tirano Giovanni pela
i ilulu morta cujo corpo em início de decomposição ele manda
ninai Fie queria amá-la com o se ela não fosse um cadáver. Re-
Miimldi is em largos traços, esses argumentos, por mais brutais que
■|a111. dao apenas uma pálida idéia de todos os assassinatos, sui-
111li •■.. espectros, violações e incestos que foram o pão de cada
dl i d. i <irancl Guignol inglês no fim da Renascença. O macabro e
i violencia estavam em toda parte.110

;i.i<11ificações divergentes
No meio do caminho, acabamos nos esquecendo da men-
. iitem religiosa que, na época, deveria estar ligada à representa-
• 1.1 da morte, lí que ela está simplesmente ausente de um certo
numero dc obras principalmente literárias. Mas não forcemos, de­
liu I, esta afirmação. Mesmo nas representações arcaizantes do
tiiunlo da Morte, a pastoral cristã nem sempre está ausente. Em
duF manuscritos em iluminura dos Triunfos de Petrarca e em
■111.i■. sequências de gravuras consagradas ao mesmo assunto, o
111'' d.i Morte está rodeado de demônios gesticuladores que le-
.iiii o.s condenados e de anjos que retiram os eleitos.141 Em ou-I

I i(l. I .ii} l.c M assacre à Paris (trad. fr. Gallimard, 1972), Marlowe evoca com­
place lilemente as mil e uma maneiras de dar e receber a morte. O massacre é
0 do dia de São Bartolomeu. Sobre o sadismo na arte e na literatura manieris-
i.i i lí BOUSQUET, J. La Peinture..., p. 206-207 e 246-252.

1 1 1. Sucessivamente B.N. Florença. Fundo palatino E, 5, 6, n. 65, fim do séc.


XV; B.N. Paris. Fundo ital. ms. 545, 1466; British Museum, duas “seqüências”
do lim do séc. XV. Cf. GUERRY, L. Le Tbém e..., p. 205, 209, 220, 221.
lio m.imiM tilo liasímil*>, os <,i\ a los que piix,iv,im o lugulHf i.ii
io ioml);iiii fulminados (|iuiiuI*>, ti.i soqüÉncla consagrada ,10
T riunfo iln P lr h it/</</o, oles se encontram om face ilo (aíslo res
-*,ii.scltíulo.1,J N<> quadro <|iio l.oren/o Costa pintou om I IHH I i')o
para San <¡lacomo *lo U* >1*inlui, o oam >da M» >ilo o il* mil nade» p* n
nina grande leofania onclo Deus l'al impera entre María o o (ais
lo o rodeado por elipses concOntricas de anjos e de sanios Mein
.« lina *lo alfanje da Morte, uma criança nua, carregada por dols
an|os, simboliza sem duvida o vóo da alma depois da moile "
Mu rol, na D iplom ado di‘ M rssbv F /o rlttio n d Robcrlcl, assoe la urna
llv.io auténticamente crista ao triunfo italianízame da Morte l le
põe na boca dcsla ultima palavras em <|iie aflora mals tima ve/ o
conlcniftlus n in u d i. "A alma ó do alto e o corpo Inútil / N.n >e ou
lia coisa que uma baixa prisão / Km que definha a alma noble e
gentil", e ainda Sem mim, i|iie sou a Morte, / Ir nao podi
para a eterna vida",1"
IU .la * |iK- * miras figurações pelrari|uizantes do triunfo da
Molí* paieeem lolalmenle laicas, Nao fossem as convencionais
i tu,s Inani as com que sao estampados os tecidos negros, mu
"b s. i\ idoi me ni is avinado nao adivinharia que Se trata de Icono
i m I ii <i l'.ia < > mili o ensi ñámenlo que elas propõem e o da
" i i l p i i i * la da Implai avel deusa. A mesma liçào religiosamenle
i.' un . ■ ' spn . . a por i i-rli >s triunfos da Morte c|ue nao se ligam
i 1 11 ipil e i. . a m al, anie i mbora situado numa igreja, o triunfo de
1 ln "ii. na........ .11 mnía nenliuma referencia ã salvação, ( )s tres <s
qin lii" (um dos quais, no centro, c coroado) que dominam i
. "iiipi.ili i.» ao apenas Invencíveis assassinos que nenhum pie
•lili |ii ii lt i la api.ii ai l'odavia, os sermões e o culto podiam,
iqul, lia/ei ao.s fldls o comentario apropriado; o <|ue eia o ída
delio, com o ja sublinhamos, para a maioria das danças iii. k abia ,
Mas o i ■«‘lebre T r iu n fo J o M o r ir de Mrueghel nao incluí nem au|o
in'in demonios, nem paraíso nem inferno, A redenção e a res,sin
relçao csiao ausentes. Tudo se passa com o si* estivéssemos mci
guillados lora do universo cristão impressão <|iie da lambem "
sen lien cnscam cnto de Uelrni,
bis m >s enlai) c* >nlri >ntadi >s com a ambigú idade do mai a bu*
na cpoia do nosso estudo, sobreludo quando si* líala de Imagens

M.’ IVN. Ilmcigu. l ímelo Maglhbcdii, 1478. ( 1. Iliul,, |>. 20Y


M i. * I, lliiif, Iig. l) c p. 200 201.
I el, MAUOT. W t i r i r I, |>. Y t‘) VI I

20 >I
•ni palavias suscetíveis ele* ser Interpretadas cm dois sentidos
i' ■ii> l M in cliivlcla perigoso ( |ilerer fazer falar demais obras
•|in ' iam miles de ludo arlísticas e nào pretendiam forzosamente
...... . uma mensagem. I lans Baldung Grien, que se deleitou na
i pn .'•iiI.k .io de deliciosas raparigas nuas beijadas pela Moite, te-
H i -ildi i um antl cristão”, um predecessof de Nietzsche?145 É difícil
iiuni ii Mals que intenções deliberadamente subversivas, parece
pe i. 11\i I deleclar, num corpus macabro de dominante religiosa e
11u Uiill ,tule, a intrusão - que deve ter sido geralmente involilntá-
ii i di elementos dissidentes e discordantes que, em varias oca-
I'" u abaram por modificar e até inverter sua significação.
I imã primeira probabilidade é que a proliferação de textos
i hiiiiu.i n . reí i•rentes a esqueletos e a defuntos deu uma força nova
i mi ir i . i lencas pré-crislãs relativas ãs danças de defuntos nos ce-
miii iii »s, ai »s espectros e à “horda selvagem” dos humanos prema-
....... tu uh la lucidos - por acidente, enforcamento ou atos de guer-
i i i |ih correm após a morte, em particular durante o Advento.146
M i i "horda selvagem” era também o cortejo aéreo, no meio da
m 'Ui das leltieeiras conduzidas por Diana ou Herodíade. Num de
m n u ios quadros, Urs Graf amalgamou os dois elementos que
• *111111•ui na "horda”: espectros - supliciados ou afogados - e duas
i In Imladi , nuas que desencadeiam uma tempestade e vão coman-
i n i i a\ algada."' Lucas Cranach, o Velho, evocou igualmente a
I.....Ia selvagem" nos três quadros que por volta de 1530 consa-
•-1.111 ui lema da Melancolia, associando intimamente o aspecto
In Hi<m im i da "horda” aos folguedos eróticos do Venusberg.148
Olíanlo a IKirer, várias vezes ele figurou a Morte por um
........ ui velho: no Apocalipse, em O Cavalheiro, a Morte e o dia-
h*• * ui * Urasdotla Morte.1'" Esses velhotes monstruosos podem le-

I I ' < o muni cação de WIRTH, J. “Hans Baldung Grien et les dissidents stras-
limiiyoois, cm Croyants et scepúqnes au XVF siècle, Atos de um coloquio orga-
ni. ido cm Estrasburgo, 9-10 junho 1978, éd. Istra, Strasbourg, 1981, p. 136.
I M«, A i ".sc respeito, estou totalmente de acordo com WIRTH, J. La Jeu ne
filie a ¡a Moa..., p. 9, 21-26, 94-95.
Ii lliid., p. 95 e pl. 78.
I IH lliid., p. 97-98 e pl. 79 e 80. Cf. FRIEDLANDER, M. J.; ROSENBERG,
I, H. iiicits Cranach. Paris: Flammarion, 1978. p. 127-128.
I r> Ibld., p. 36-37 e pl. 17, 61, 83. Cf. BERNHEIMER, R. W tldM an in
tkn Aiid d lt. Ice, Ckmbndge: 1952; DUDLEY, E. e NOVAK, M. E. (ed.), The
U ihl dlan within. An image in Western Thought from the Renaissance to Roman-
liilstn, 1’ittsbuig: 1972.

205
gilí mámenle apaiecei como teetu ai ñas,oes do "homem selvagem"
eonltci Ido |mi ulitigas iradlcOes populares, I la hilante c1.1•. lloie.|,is
o, i'iillin lili, portlldoi de lodos os temores c|LK’ OHl.l Irispll.iva Uh
tifamente, o "homcm selvagem" pertence .10 mesmo lempo .m
mundo dos vivos e .10 universo di* ;ilc*in túmulo. Asslm, ,1 r\plo
..lo do macabro parece realmente ler provocado um rellorcsil
mcnlo l'olc lórleo cerl,musite Integrável c militas vc/.es Integrad* •
.10 discurso crlsláo dit época, mas iis ve/.es susceptível 1U•sepa
mi se dele e, ein lodo c aso, passível de lima dupla lellura
Voltando a l lis Oral', desia v e / lora das alualIzavcVs lolclo
1k as, rom o delxar cle Interrogar nos se >1>rc <> e<>nteúilo c 1Isl.k 1 1I*
aias obras? As cenas macabras que e*k* desenlia soldados eníoi
cados, cadáveres cobrindo o campo de batalha, defunto animad*»
i<»i ande >c <>m <*> |c>elho o mercenario prestes a alistar se ec >ni|nh
lam Min dúvlda unía lk/ao moral (a loucura do olido das armas),
mas sao va/las de- referências'cristãs. Quanto a sua Fiduciario (de
l’>’(i), ela nao p.issa de um pretexto para um espetác ulo de loilu
la halado com uma I>rutalldade calculada”. H sem prova dei Isiva
<|iii .*• supo*' que a \tilma seda o Cristo.1'0 Por sen dese|o de sa
<li lilí* > urna obia como essa lembra o Martirio ele ele. mil <.rlsldos
■f 1ti*■ilas Manin I I leulsi h e, mais feralmente, o gosto pela \li *
I' nda *|tii . impela sem |>mle>r n<>teatro francés e infles do llm do
i* ' ul" ln * luido do I ' I alamos aqui no universo do mórbido <>
ma* il >1•>tu <l* 1 aso nao Uan outra significação a lem cicle- me-ano
ll' ' de| 1 . Ii .<0I11I1 no seu estado puro, dessacrali/ado.
sla cMilla pista ja assinalada por diversos hislorladon *
■' ain ' AIb* •I•' I' -1h•11111'1 e lean Wirih1'- sera C|iie a licao crista d« >
niiO lino (o m ancillo morí) nao se- transformou num convite *1*
•tgnlfli a*, lo lina i sa (memento riñere)'? Será (|uc- a insistência so
bn o liana da morte prematura nao se le ría tornado as ve/,es unía
* siimul.il,.10 .10 erotismo, significando urna verdack-ira "furia *1*
vivei' ' I ...i lellura paganizante e sem dúvida convincente (|uun
d< 1 se nata das c)bras dos irmáos Heliam cuja irreliglàc>pe o* upott
na époc a ele Diuca as autoridades de Nuremberg e «pu c .111.1111
decididamente na pornografia, associada a imagem da morlc *
valorizada por ela. Quanto aos "leitos fúnebres" desenhados na
mesma época por outro artista ele Nuremberg, IVtcs floltica, •I*

I '><). Iliiil., p. 1.12 c p. 11S.


I d ( | iioiiul.iiiu iiic l , i V¡(\, , p t i l s.
112 WIKTII. |. /./ ¡cune filie el lo Morí . p. I ‘>H 107.

200
constituíam também, pelo viés de um;i surprcendenté iconogra-
li.i macabra, uma evidente provocação ao prazer.155
Mas será que se deve compreender da mesma maneira di­
versos quadros e desenhos de llans Baldung Grien? Este, nos
anos 1510 1520, se compraz em simbolizar a Vaidade por uma jo­
vem e bela mulher nua surpreendida pela Morte. Ele enriqueceu
esse esboço geral de variações diversas: o esqueleto ou o.cadá­
ver em via de decomposição aparece no espelho em que a infe­
liz se contempla. Às vezes, ele segura uma ampulheta; ou ainda
col oi a a mão sobre o flanco da vítima ou a puxa pela cabeleira,
ou a segura pelo braço, ou a beija na boca. Na mesma época, ou-
iros contemporâneos de Hans Baldung Grien tratam do mesmo
lema. Um desenho de Nicolás Manuel Deutsch em particular
aprésenla um cadáver levantando o vestido cie uma jovem.154 To­
das essas obras querem em princípio significar a fragilidade dos
bens deste mundo e potadamente da beleza e da juventude.
Será que se deve adivinhar uma lição paga oculta por trás
desses apólogos. É o que pensa J. Wirth apoiando-se num elíptico
mais (ardió de I lans Baldung Grien conseiyadò no museu do Pra­
do, I >c um lado - a radiosa vertente ântica - estão figuradas três
jovens beldades lendo uma partitura musical; do outro - a som­
bria vertente cristã - uma jovem é atraída por uma velha que por
sua vez e arrastada por um esqueleto segurando uma ampulheta.
<) artista foi ligado aos “libertinos’^de Estrasburgo. Mas “libertino”
iii » século 16 era entendido sobretudo no sentido de independen-
le em relação ãs ortodoxias religiosas. E Hans Baldung Grien se­
ita um "libertino”? Ele trabalhou para católicos, para protestantes
i para dissidentes. Ele parece ter sido motivado por “fidelidades
sucessivas". Boi sem dúvida um admirador da beleza feminina,
'.eu que por isso ele rejeitava o Cristianismo? Na alegoria do mu­
seu do Prado, no lado cristão, a lança da Morte está quebrada e
um c rifei fixo aparece no céu. Concordando com François G. Pari-
.1 t, eu creio enfim que as obras de Hans Baldung Grien, muitas
.Ias quais loram religiosas, “contêm múltiplos conceitos”, mas
. i im ergem para uma lição cristã que não é um álibi”.155
-------------------------- . ■!
153. Ibicl.., p. 135-145 e pl. 121-142.
154. Ibicl., p. 70.
I 'i5. ( soyants et sceptiques..., p. 129 de PARIZET, F. G. igualmente “Réflexions
.t propos dc Hans Baldung Grien” em Gazette des Beaux Arts, 1979, p. 1-8.
( Ipinião concordante no texto de acompanhamento do catálogo da exposição
I /,un Baldung Grien irn Kumtrriuseum Base/, Bâle, 1978, p. 27.

207
( ) casi i i Ir Ki insard p erm ití' l.ll vez e,si larecei o do artista ,ile
ma<> n.i m edida em que ele deixa i la lam ente percebei a coexistan
ila nao nei cssailamente e»icrenlo d entro de uma mesma olna
i |e diversos ills i insi is m )|)ie a m< >rle, com a ll<,ao crista dom in a nd o
porem as outras, Testemunha fiel de sua úpoca, Uonsanl e habita
d o pelo pensam ento da fuga do tempo: "Vos, carvalhos, herdeiros
d o slleiu lo dos bosques / liscutal os suspiros de m inha ultima
1 1 )/ I de meu lestamenk >sede os presentes lubeliaes,""" ,, "I i >gi t
e .l.nao estendidos sol) a lapide",1’ ele. I ’.le se deleita as ve/es <oiu
e\ oi aeócs de <adaver, "alim ento de vermes, / I )csprovklo de velas
e di nervos", "sombra sepulcral" que

N.111 t« ui mais espirito nem razáo Artéria, nem mais vela macia,
1 ir ah' nem Hgav-tu, Cabelos na taheña nao tem,11"

M e, io n io os convites para gozar ¡m ediatam ente a juven


lu d í > i ai . > te aha do s nos mais belos versos de Konsard e os
m a l. l.n e| . di in e m o rl/a t , esquece-se sem pre de que, cm leí
n i" d' quantidade, i •les c< m stltucm apenas um elem ento bastan
!• m odi ao no eon|unto de sen discurso sobre a morte, Mais im
p o ita n li eom • h ilo, e a i onsialaçao pessimista • e scm conclu
•un • ln ' I' mista de que a vida e curta ("Antes d o le m p o luas lém
p o i.i , llo rlra o " ,1 |a d o p ró x im o In vernó cu prevejo a tempesta
de"),'"" de que a M orte e "a única entre os im ortais / Q u e nao
quei leí te m p lo nem altares, / K c|iie nao se dobra a o ra lb e s nem
o l'e ie n d a s ""1 o m esm o tema d o afresco m acabro de Clusone,
K< ms.ird, p< >r i m iro lado, retom ou os temas medievais clássicos da
m c d lt.g a o sobre a m orlc. O U bi s iu it? está presente na sita obra

I lomci'n está mullo, Anacrconte,


l’iiularo, I lesíodo e Mionlw
I a.lo se preocupam inals cm saber
I >o hem mi do mal que rieles dizem."'1

I S(>. l.e seeoud livre des sonnetsfiour Ilélhie] I XXVI, éd. I*. I.aumomrr, ION
I91‘>: VI, p. 10.
1*57. I'ihr wntnebée des Amones, lbitl,, p. 0.
ISH. 'IMsihue Hvre des Odes, XXX: II, p. 303.
IV), I.es Amours, I livro: I, p. II,
l(i(). Amours di verses', IIhiI., j». H V
161. I es Uymnes, livro sc^ iiih Io IV, p, 17’ .
!(*.’, Ilion tic SinvilM, poro ilo mi tilo III iiniri ilc | l ’.
163. ihhlhue lime de\ Odes, XXV II, p 103

:»<>H
Sodios |>oi .u aso müi.s divinos «|Uc* Aquiles ou Ajax,
(. mu - Alexandre on Cesar q u e nao souberam
I >elendei sr da inorte, embora tivessem na guerra
Kcdu/klo sob suas maos quase toda a térra? K"

<) contemplas m nn di aflora também naquele H in o da mor-


h < ) talento renova então um tema que se poderia considerar
desgaslado:

() estar já morto nos seria um grande bem,


Se considerarmos que não somos nada mais
(.>ur urna torra animada e urna sombra viva,
Motivo de dor, de miséria e de estoivo,
I >v lato, e c|ue cm miseráveis males nós superamos
( ) resto, o desgraça, de todos os animais!
Nao por outra razão Homero nos iguala
A lollia de inverno que das árvores cai,
A tal ponto somos flacos e pobres operarios,
Kecebendo sem descanso males sobre males aos milhares.",s

l is estão sentenças que os Padres do deserto ou os mon-


......... cías dos séculos 11 e 12 nao teriam renegado. É bem ver­
dade que se poderia, destacando-as do contexto e aproximanclo-
i da lam entação tío desesperado de Du Bellay, juntá-las ao ar­
quivo de um pessimismo e de uma melancolia da Renascença que
al i.uidt maram ãs vezes do Cristianismo. Mas a obra de Ronsard
d* ve ser considerada no seu conjunto. O poeta cortamente conhe-
i . ii a tentação do paganismo ( “O verdadeiro tesouro do homem
• i verde juventude, / O resto de nossos anos não são mais que
111vein os" )1,1,1 e também a de transcender a morte pela celebrida-
d< " Mas, a meditação macabra reconcluziu-o finalmente aos ca­
minhos tradicionais da Igreja. Ao esqueleto “descarnado, desner-
id<i, di".musculado, despolpado”108 ele opôs a alma libertada
pi la ñu irle que “sobe ao céu, sua casa natal”.lb<CLá, “de todo mal

I (vi. íes Ilytünes, livro segundo: IV, p. 366.


165. Iliiil., p. 368.
166. Oerniers vers. Stances: VI, p. 5.
167. ( T. Quíitrième livre des Odes, IV: II, p. 315; C inquihne livre des Odes,
XXXII: II. p. 454-457.
I6M, Derniers vers. Soneto I: VI, p. 6.
I(i'). t'roisihne livre des Odes, XXV: II, p. 303.

20fl
hei lili, De sre nl( >em see iilo |c’l.i |vive Item Ir 11/ r ennlCMli |llii
(<> ele seu ctí ;Ul o r , I ).i( > o r< >nselll< >: "N.ii > sr|.mn >s <»*. | ion n*
d r Circe" .1 Ihn ele uní illa chegar .1 "ll.u a” eterna:

( !ai legarlos de* esperanza,


Pobreza, m u ir/, lornumio r pudenda,
( linio wrdadelros Millos r ell.scipulos d r Cristo,
<.>ur, vivo, nos entreabrió rssr caminho por escrito,
I mau ou m m sou sangue essa vía 1.10 sania.
Moliendo primeiro para nos tirar o medo.1,1

\i 1 Iciano ele’ nossa Ires|üenladh> a<>s morios r a Morir no


hit. |m da modernidade européia, impor sr rnlao a rvldrni la da
p> >ll\ ale in la dr 1im uiac al >r<>cu jas slgnilk agoe'.s divergentes sr 1.
>. I mi i. liahhlas 1 (|ual(|uc’r reduclonlsmo. Sun orlgcm mío drlva
din Idas l li provnn da rellexáo ascética dr monges Inlrlramrn
n collados paia o alrm r <pie* (|uerium conveneer-se r prisua
1lli oiilios d o ia ia lri nefasto elas ilusões deste mundo. I ssc dls
1 u 1si 1 es |i sl.isilro loi drpois difundido lora dos convenios pe la
piroii 10 i •pela lea un igra lia, i>u soja, por urna |>aslc nal do mes lo
I sia pies i» up« ni sr rom o aumento elo luxo r da rrrsrru lr aspl
1a 1 .10 aos lirn.s lerrenos de- uma civilização (jue, pelo menos no 1
nivel,s soi lais mals elevados, sala da indigencia e tendia para mu
jiialoi <onlt 11111. A Insistência se >brc <i macabro, na esleirá do e o n
lem/>lns m m tili . entrava, portanto, na lógica de- unía vasta rmpn
s.i ele * iilpabili/aeao orientada para a salvaran apos a morir
( he uiisiane ias conjunturais epidemias, carénelas e « res
rímenlo da violência favoreceram a reecpçfio e aumenlaram 1
audiência do memento m orí. A advertência da Igreja, eonsl.mh
mente repelida, parecen mals do <|ue nunca justificada pelos I11
h muñios da época. I'.nláo, é preciso insistir sobre o lato ele epn
.1 maioiia dos testemunhos escritos e iconográficos que possui
nú>s m )bre o macabro dos séculos la- 10 ira/ a indiscutível man a
da Igreja, mesmo se as vezes eles integram elementos fole lorie ou
pm ( lisiaos, l ies nao remetem a urna eoneepv'ao da vida r da
morir separada do ( alsilanismó. Ao eonlrarlo, convidam a peni
leíu la e ao ilesapeg<>das e<>lsas da ierra honrarlas, rlc|iie/as, I •<•
le/a e ,1111111 carnal Ihsa e, .10 que parece, a slgnjfle .g ao doml1

1 'o / 1'. Ilytnm 1 llvu» M'Kiiinlu \' I, |» t '


1 1 llmf, |. w.' HiH

¿10
ii.inU' das evocações c|ik*, durante mais de dois séculos, insisti-
i.nn M)hrc .t brevidade da vida e a decomposição dos corpos no
imiiulo. I cssc c lambem o sentido do itinerário complicado e
laniaslk (> <|uc* os visitantes eram convidados a percorrer no par-
t|iic dc homarzo (provincia de Viterbo), realizado segundo as in-
dli ações dc um principe Orsini na metade do século 16. Um per-
•ui no simbólico dentro de uma natureza selvagem levava a en-
<i mirar esculturas monstruosas e arquiteturas insólitas. No cami­
n h o , liam-se inscrições com o “Despreza os bens terrenos”, “A
0 nladcira volúpia é depois da morte”, “Senhor, guia meus pas-
•i etc. Esse itinerário iniciático terminava num pequeno tem­
plo precedido por um Cerbero de três cabeças e delimitado por
pndras lumularcs ostentando crânios e tíbias. Espantosa associa-
1 ao da arte dos jardins com as lições do contemplas m un d i , o
fo-iio pelo macabro e a atração pelo monstruoso.1723 7
1
Todavia, é bem verdade que, num clima de angúsdia e de
morbidez, a atração cio macabro corria o risco de desviar os ho-
mrns da época - e não deixou de acontecer - para duas dire-
1, 01"., afinal opostas tanto uma com o outra, à mensagem religio-
a Inicial. O primeiro desses caminhos sem saída era a compla-
•cuela pelos espetáculos de sofrimento e de morte. Partiu-se das
' nuil ¡caçoes, das flagelações, da Legenda, dourada e das evoca-
Mii", «.k* martírios e desembocou-se em cenas voluntariamente
mal .as de torturas, de execuções e de carnificinas. Da lição rno-
ul c religiosa, resvalou-se para o deleitamcnto sádico. O maca­
ón» acabou por ser exaltado por si mesmo.
A segunda evasão para fora dos caminhos indicados pela
IcieJa consistiu na inversão do memento mori em memento vive-
/c ja que a vida é tão breve, apressemo-nos em desfrutá-la; já
que o corpo morto será tão repulsivo, apressemo-nos em tirar
dele io d o o prazer possível, enquanto goza de boa saúde. Lem-
h ie m o s d o que acontecia durante as pestes:1? alguns se precipi-
l.nam para as igrejas; outros se entregavam avidamente às pio-
n ■ luxúrias. Esses testemunhos provam que o macabro podia
.ci recebido com o um convite ao erotismo. Daí a ambiguidade
do', quadros e das gravuras de Hans Baldung Grien. E se exis-

172. BATTISTI, E. L ’A ntirinascim ento, Milán, Feltrinelli, 1962, sobretudo


l>. I 26 133. Sobre a atração pelo monstruoso Cf. CÉARD, J. L a N ature et le
/HVt/ige. l.'insolite au XV I' siècle en Frunce. Genève: Droz, 1977.
173. C f DELUMEAU, J. L aP eu r..., p. 119-120.
It'iii dlH’ld.is legitimas sobre ¿is Inlenvóus d e s s e arllsla (i|lie
talve/ nao fossem inulto dllerentes cUi.s do um Nonsard), as nn s
mas lulo existem sobre . is ilos limaos Molían) r de l'lblnei I m
|<hLis as liponas e um todas as civiliza vbos, encontraram su lio
inens para Interpretar os espetáculos macabros uomo uma ln< l
l avilo pura aproveitar Intunsamenlu a vida. Malxos role nos , lam
padas supuli rais, lapas antigas ja llnliam assouiado u.s(|i|uluios
i unas du pra/ui carn al.1"'
I ni suma, nao uruio (|iiu su possa, globalmenle, sepaui m
nh'iiii ulo morí dos suuuli>s I i Id da concepção rollgli>sa <|tiu o un
■* ndion e da pruoi upai/ai>c lisia uom o alúm, Mas o vurdadu «pn
i liisisiniu la suliru <> mauabro eslava carregada du possíveis di s
i" u i sm . desvíos eleilvamonto se produziram na dln\ao lauto
di vImIuih la ionio do erotismo, oslando urna Ireqíicnlemenle ll
i' id i 10 i miu i N.li >se maneja sem pcrlgo a arma do ma< abro

I i ( l HAI l RUSAITIS, |, I c M nytn div /,'////</,t//////<*, p, W> .M7.


capítulo 4

um mundo
pecador

“época de pranto, de angustia e de


ton liento” (eustache deschamps)
Conduzido ao centro do palco por três forças provisoria-
iim mIc convergentes - a Igreja, a peste e a violência o maca­
bí o di >s séculos 14-ió, com todas as suas ambigüidades, mostrou-
< « orno urna característica notável da modernidade européia em
•• ii Início, pelo menos no plano da cultura dirigente. Ele será ain-
•l.i melhor compreendido se colocado dentro de uma vasta pai­
sagem (|uc justifica a orientação sintética adotada no presente es-
ludo uma paisagem geralmente muito sombria, ou pelo menos
pen chilla com o tal. s
Tratado com o um quadro, poderiamos intitulá-lo “Tudo vai
iii.il", formula de Eustache Deschamps, ou melhor “Tudo vai de
ni,il a pior", outra afirmação do mesmo poeta. Certamente que,
<iu iodas as épocas e em todos os lugares, existiram pessoas ra­
bugem.is que olharam com nostalgia para o {lassado e deprecia-
i.im d presente. Mas se durante certa etapa da história esse tópos
.< lorna predominante e se apresenta com o um componente im­
pórtame da mentalidade coletiva, então ele merece uma atenção
p.ulli ul.ir. Nosso propósito então agora é mostrar, por uma nova
.uupli.içao do círculo da pesquisa, que a difusão fora do meio
muh.isiico .i partir do século 14 dos anatemas contra o mundo e
<i homem foi inseparável de ura diagnóstico alarmante feito pe-
I* i onlemporâneos sobre sua própria época. O espetáculo des-
i.i ultima levou a um julgamento geralmente desalentado sobre a
ualure/a humana e a vida deste mundo. A aculturação culpabili-
atlora lornou-se, então, acreditável por uma situação angustian-
ir, lilas sr reforçaram redproeamenle, Imbricadas nina na Otilia
( )s clols capítulos a seguir vão esforçar-se para esclarecer rs s r en
ronlro Iiist«>rkc» que poderla nao trr ocorrido Incidindo sen
foco sobre o pessimismo da Renascença.
Quando o Romaneo de Fenivel (1310- I3M) afirma i|iie no
mundo corrompido ludo parece andar ao contrário ("os homens
sr (ornaram animais; andam de cabeça baixa"), ele* ainda peona
net r mima relativa Imprecisão, embora seja verdade que na sail
ia daqueles que "espancam 1'auvcl" estão expressos os protestos
daqueles setores fiéis ao espírito de São Luís contra a política de
Filipe, o Helo, l)a mesma maneira 'Pauler, num sermão, permanr
t e Imprei is»» ao constatar c|iie “hoje o amor ao próximo está real
mente extinto em todos os países cio mundo".1 li não saímos aln
da do lugiii comum com o poema que vamos ler, composto pelo
» N nvlensr austríaco Chrlstian de Lilienfekl (f antes de I.VCb, O
presente ao cpial ele faz alusão não está claramente datado r po
derla pertencera qualquer século:

Ne (|ul,serem saber por que o riso me abandonou


Poderíam compreender pela situação atual:
() cordeiro engendrou o lobo que vai entrar em fúria;
Todo o bem passou, o mal impera de maneira terrível,.,

O direito desapareceu, a lei desmoronou; ai de mim, poi que


Inaseli',,,

A febre da glutoneria é apreciada por todos...


Todo mundo se glorifica de ser gordo, ninguém de sua magnv.i.

A Ibrnicação não poupa ninguém, ó dor!-

Mas com os infortúnios da segunda metade do século I i


penúrias, pestes, Guerra dos Ciem Anos, lutas civis e revoltas dl
versas, Grande Cisma c avanço turco deixamos o dominio do
banal e do geral. Quem viu essas desgraças abatendo-se sobre a
cristandade experimentou o sentimento de entrar numa época dt
calamidades Inéditas, explicáveis apenas pelos excessos de uma
humanidade c de uma Igreja terrivelmente pecadoras, Tudo ugni

I. Luilci, Stowrtfi. II. I1 'Mi' >»i mnit |mm o Santo S,ummcntn).


SPIT/MUII l'U, 11 IWm, l.iuih* , |i, 00/ ooo.
t t pamela ciitur na nuilor desordem «• o desenlace clossa crlse pu
n 11 ijur deverla ser <> Julgamento final, I im vinculo global deve,
|mmanto, sdr estabelecido, pelo menos durante urna certa se-
•po iii i.i da dlaeronia, entre, de um lado, as expectativas e as
ipil r m ines escatológicas e, de outro, a consciência do pecado, o
li npnv.n do mundo, o horror de si mesmo e o sentimento agu-
dn da liugilldade das coisas.
<» teólogo champanhés Nicolás de Clamanges (1363-1437),
pni |Ha k o tempo reitor da Universidade de Paris, depois secre-
i tilii de bento XIII em Avignon, é um bom representante ele um
i (Indo e de um setor da Igreja que mergulham no pessimismo
m iidi i Muno todas as coisas pioram. Entre suas obras - lidas aqui
inmi i edli, .10 protestante do século 17 - figuram com efeito um
In * !'./.'( >sUi(h corrompido da Igreja , uma Deploràção sobre a ca-
I,unidade Introduzida na Igreja pêlo tão abom inável cisma, um
ii a a In Sobre os prelados sim oníacos, outro sobre o Anticristo ,
. n n ,/ m tmento, sua vida, seus costumes e suas obras d Só esse
■mim lado dos títulos já revela as'preocupações e os temores de
l ih olas de ( Ia manges. Mas na sua correspondência, as confissões
di Inquietação, e até de desânimo, nào são menos numerosas;
•11 11, a ( ierson sobre “o estado lamentável da Igreja”,4 a um se-
n i n In do rei sobre "a corrupção dós costumes tanto entre os lei­
go i nino entre os eclesiásticos”,5 a um escrivão do Parlamento
di Paih •.obre os vícios “quê Deus não castiga sempre com mes-
iii" llageln, mas que não cessa de punir com seus golpes: se a
. .............. se acalma um pouco, ele começa a afligir-nos ao mes-
i(i* * a mpo com a peste e as guerras estrangeiras”.0
Nli olas ele Clamanges opõe ao estado presente cia Igreja
....... idade dr ouro em que floresciam piedade, santidade e po-
Iiii i e os padres só tinham com o único tesouro as boas obras;
un iquele era rico e transbordante. Na época, nada de cálices
di i uiu <e de prata, bebia-se nos recipientes de argila ou de es-
i mim < > alto clero não tinha necessidade do aparato de cava­
lo » armaduras; nào desfilava precedido de uma multidão de

' 1 oiiMiltci lima edição holandesa (Elzevir, Leyde, 1613): N icolai de Clam an-
i i>/’iTii om nia que se divide em 2 partes com duas paginações separadas.
\ i ,u(.is e o De Antichristo... se encontram na segunda parte.
I ( 'artu u. 15. '
• < <i i tu a, 28.
fi i ana ii. v)0.
histriões, nem acompanhado por rapazes com cabeleiras ondu
laclas e afeminados, com roupas listradas como pele de mons
tros, com mangas arrastando no chão - espetáculo “quase bar
baroV Mas com o aumento da riqueza e a abundância das col
sas secundárias - já a sociedade de consumo! - vimos o luxo e
a insolência insinuar-se na Igreja, a religião esfriar, a virtude em-
palidecer, a disciplina relaxar, a caridade extenuar-se, a lumnl
dacle desaparecer, a pobreza e a sobriedade tornar-se objeto de
vergonha, a cobiça intensificar-se. Ninguém se contenta mais
com seus bens; já não se cobiça apenas o bem alheio: dá-se um
jeito para roubá-lo e para oprimir os inferiores. Assim se com ­
portam os pastores da Igreja cuja avidez ultrapassa a dos leigos.
Que exemplo para estes últimos!8
Ao ler essas acusações compreende-se por que os protes
tantes republicaram nas Provincias-Unidas as obras de Nicolás tic
Clamanges: que melhor testemunho, deviam eles pensar, sobre ¡1
corrupção de uma Igreja que a Reforma tinha tentado limpar!
Mas, nesse doloroso período do Grande Cisma, já não existem
mais almas santas? Nicolás responde, no capítulo XXV do seu De
corrn/Ho eeclesiae statu, que o desregramento na Igreja assumiu
lal dimensão que é melhor calar-se sobre aqueles que se compor
iam bem. "lúes são muito pouco numerosos e não fazem peso"
(/Hirro nimis in numero atque momento-sunt)?
Daí o c a s tig o próximo profetizado no D e Antichristo . .
Dirigindo-se aos príncipes, ã hierarquia eclesiástica e a todos os
cristãos, Nicolás de Clamanges anuncia as grandes desgraças que
se acumulam acima de suas cabeças. A pérfida raça cristã já abu
sou demais cia paciência celeste. Éla deve carregar agora um pe­
sado fardo cie punições e de flagelações. O “grande julgamento
está nas portas”. Uma prova é o avanço dos maometanos, exe
cutores da vingança divina. Os progressos dessa imensa mui ti
dão ávida de nosso sangue vão enfim vencer nossa revolta con­
tra Deus que nem as pestes repetidas, nem as guerras estrangei­
ras, nem os excessos de nossãs lutas internas tinham- consegui­
do abalar. Ademais - cúmulo do castigo - à ação dessa “besta
cruel” que é o turcò junta.-se a de “outra besta” que é a heresia,

7. D e Corrupto ecclesiae statu, cap. II, p. 5 da 1' parte da ed. de 1613.


8. Ibid., cap. III, p. 6.
9. Ibid., cap. XXV, p. 23.
10. Ibid., 2' parte do livro, p. 3 V 3'»H.
•1111' grassa notadamenic nu Alemanha" e nu liuliu, Sinistro tem
I". esse 11uc* se prepara. "Por uxla parle haverá furor, por toda
parle luto c violência, por todu paru* u Imagem da morte. Poliz
u atinente daquele que entregou a alma u Deus antes dessas tri
hulaçoes e dessas calamidades’’.
I listadle Deschamps (1346-1406), contemporâneo de NI
m|,is tlc Clamanges, poeta fecundo sem ser genial, é, na França
ilt < arlos VI traumatizada pela Guerra dos Cem Anos e pelo
' irande Cisma, a melhor testemunha de uma geração desanima­
da Pm sua obra confluí a maioria dos temas pessimistas que a
i ulluia ocidenlat então veiculava. É uma obra que merece aqui
uma atenção particular na medida em que constitui uma síntese
i iinbrla que não se deixa obscurecer pelas baladas amorosas de
um esc rilor afinal misógino.1- Vale a pena seguir através de seus
(turmas a passagem dos lugares-comuns separados de uma u n
uologln precisa para a amarga evocação de um, presente que lu
. liava demais à tristeza. Bem entendido, ele lamenta o desapau
i lun nto de um passado idílico, embora numa de suas bal idas lt
111i.i demonstrado espírito crítico a essè rfespeito. Pvoeaiitlo N» m
• 11.melón, ele reconhece que “muitos se comportaram mal Nu
a mpo passado.. ,”.B Mas essa não é a nota dominante numa ubi t
•m que abundam pelo contrário as referências a uma .......... di
••uro mal definida que lembra a de Nicolás de Clamanges l m iu
llonra havia no mundo” e “soberano conhecimento', "geueiusl
i ule, ... bravura e lealdade”.14 Houve um tempo em qtu a Igu
|,i estava “em grande altura”,-o povo não se assoberbava . pm
• .se.s dois lutava a N obreza.../ Um não tinha inveja tio outro" '
<k antigos “por seus grandes labores, / Reinos e terras eonquls
i 11.1111, P fundaram várias cidades grandes; / Já os presentes nau
laiao o c|ue eles fizeram”.16
Á época feliz de outrora se opõe o envelhecimento rápido
u.iu apenas da humanidade, mas da própria terra - uma eonvic
•ai • largamente difundida na cultura dirigente no início dos tem

I I. Alusão sem dúvida aos Hussitas.


12. Cf. DELUMEAU, J. LaP eur..., p. 335-336. Sobre o pessimismo da épo­
ca cf. notadamente. HUIZINGA, J. La D éclin..., p. 35-40.
13. DESCHAMPS, E. CEuvres..., II, balada CLXXXIX, p. 6-7.
14. Ibid., I, balada XII, p. 86-87.
15. Ibid., I, balada XCVI, p. 204-205.
16. Ibid., III, balad;\ CCCXLIII, p. 60-62.
pos modernos e que j;i encontramos no primeiro volume desta
obra.17 bastadle Dcschamps constata que as estações están suh
vertidas.18“O ar está quente quando devia estar Irlo". ( )s tilas sáo
curtos quando deviam ser longos. Além disso, as árvores agota
-são “raquíticas, nos prados só há espinhos". "As pessoas sao ele
baixa estatura” - como voltarão a afirmar no século 17 os apolo
gistas protestantes franceses-, “animais, aves, de pobre eomplel
ção,../ Peixes miúdos, semente seca e estéril / ... Vinhas pom o
valem como seu rendimento / Não dão elas bebidas a provei tá
veis. 7 O trigo que se colhe se estraga em casa / Ou no celeiro,
e pouco se aproveita”. A natureza é portanto atingida nas sua*
forças vivas; mas, sobretudo, os homens se comportam cada ve/
pior. Sobre esse tema, o poeta é inesgotável: “I loje só reinam l<»u
eos”.19 “Amor eu só vejo o amor de Renart”.20“Não há noticias de
virtudes”.21 “Já não se crê em mais nada”.226
2
5
4
3“A ninguém imp<irla 11
inferno ou o ■parafèo”.2* A exemplo dos pregadores, Eustadu
Deçchamps ataca as modas indecentes. Ele troveja contra aqtu
les que usam roupas tão curtas “que seus traseiros parecem d*
macacos” e contra as mulheres que “fazem aparecer os selos" "
Por toda parte, “reinam vícios e dissoluções / Pobres estão cita ­
dos, ricos são louvados / Maus vivem, bons são punidosV* S ó nc
vê “Invejas, maquinações desordenadas, / Ó d ios...”. Daí, cotilo
punições, as “mortes repentinas”, as chuvas, a neve, as tempesta
des, as geadas e as “guerras por toda parte”.20Nunca terminaria
mos de enumerar as queixas, reprovações, remorsos, e conílssi 11
de tristeza que se exprimem na obra de Eustache Descí ntm| >s \
sinalemos sem ordem a balada CLXXXV, “Deploraçáo dos malt
da França”, a balada CXCIÍI, “Ato de contrição de Paris", i liai i
da CCXLIII, “Sobre os infortúnios da Igreja”, a balada O I V, "l.a

17. DELUMEAU, J. La Peur..., p. 223-225.


18. DESCIHAMPS, E. CEuvm ..., V, balada MLXXXVIII, p. 394.395
19. Ibid., III, balada CCCXXXIX, p. 51-53.
20. Ibid., V, balada DCCCLVIII, p. 35.
21. Ibid., VI, balada MCCXI., p. 248.
22. Ibid., VI, balada MCLXVII, p. 109.
23. Ibid.
24. Ibid, V, balada MDCCCCLXXXV1II, p. 235.
25. Ibid., V, balada MV, p. 261.
26. Ibid, V, balada DCCCCXl.VI, p. 162 163.

: : ih
mi niiiikiu ilo |>.ii.s dr l'YíinyuV A mi Mil m.ilor r d.k I.i pela balada
• m | \\ , "Tristeza do lempo présenle"!

rpm a do pro ruó, ele angustia o de tormento,


lilsle/.i sobre tocios, plenos de dor amarga...
" ni alegría, pleno cios sete vícios mortais,
Va/lo de virtudes, altivos e orgulhosos,
I m (|tie cada um definha desolado,
i mu r o lempo perigoso..."

la 111ii* por toda parte só se vê “tristeza e luto”,20já que a


Igii 11 .1 tornou urna nova “Babilônia”30e caiu sob o domínio da
luí uMiu ia Tasto,'1 já que “tudo caminha ao contrarió cío bom
•ii n "i i i laro t|iic a historia humana se aproxima de seu fim.
lu i o lo I v.sclntmps freqüentemente exprimiu essa convicção,
lili i tullí na época - e que se mantera até a metade do século 17.
i i pinti liza na balada 1.11: “Vejo os sinais de que mudará o cur-
Hu I •<Me mundo que se aproxima do fím, / Que muito tempo
ni h punió nao permanecerá”.33 Na balada CXXVI, ele volta ao
h ni i h an o a pouco vai o século em declínio / Caridade falta
■ um nlaia o <>ulro, / Forque o mundo está bem próximo de seu
llm " n lempo do anticristo chegou, diz ele algures, porque “to­
da ei gravas" se vendem na Igreja.35 “Este é o tempo de tribula-
i i" ,* predito pelas Escritura?. Para a pergunta: “Como vai o
........ |u ho|e/\ a resposta! é simples: “Certamente não se pode ir
1 V.Mm, "o mundo é um velho que para seu fim avança”,3”

1 lliid., II, respectivamente p. 1, 10, 75, 93.


•M Ihiil. III, p. 131-132.
■‘i 11*1.1., V, halada DCCCLVIII, p. 34.
Ml Ihi.l., V. halada DCCCCXLII, p. 157-158.
'I Ihiil., V. halada DCCCCXLVUI,-. p. 165-167. Sobre o papel nefasto da
lua. . I I MÍI.ÜMEAU, J. L aP eu r..., p. 92-93.
\> Ihi.l , III, halada CCCEXII, p. 118-120.
*' Ihid., I, halada LII, p. 142-143.
VI Ihi.l., I, halada CXXVI, p. 247.
*■- Ihi.l., I, halada, GUI, p. 279.
Mi Ihi.l., I, halada CLXII, p. 292.
*' Ihi.l., IV, rondó DCXIX, p. 78.
ui Ihi.l, III, halada CCCLXV, p. 107.

*dl()
"A Igreja o tudo vai cm declínio: Por Isso se* pode percebei
Que o mundo se* aproxima dc seu flmV" lí o mesmo sentimento
(|iie exprime um Ilustre contemporâneo cie Eustache Deseliamps,
o duque Jean de herry, guando escolhia com o lema em sua ve
Ihice: "O tempo verá”"’ simultaneamente tempo de sua morte c
da morte do mundo.
Eustache teve eomo aluna e discípula Chrlstine de Pisan
c|ue, viúva aos 25 anos com três filhos, privada de seus protelo
res durante as guerras civis e obrigada a refugiar-se num claustro
durante uma década, foi, ela também, triste testemunha dos In-
Ibrlúnios e pecados de sua época, lím sua obra repercute o eco
dessas vicissitudes, em particular nas Lamentações sobrç as uuer
ras cieis, no Livro cie m utação d a 'fo rtu n a e numa carta datada de
fevereiro de 1403 e dirigida precisamente a Eustache Deschamps
lista carta cuja forma é demasiado rebuscada e sobrecarregada de
rlma*> equivocas não é uma obra-prima. Mas o que nos importa
e o tema tratado o "tudo vai mal” - sobre o qual Eustache Des
•liamps e Chrlstine só podiam estar de acordo:

<i mr-ittvl Que dura maravilha


I vei o lempo que ( lura
Mcitllia e nmim tuo cm curso
1 ui i Idade,'i, em i asidos, cm cortes
Me principe'., i orno regra comum,
I III gi lile III il )|V e comum,
Ni i i leu i e em toda corte
i le lustlca.

<ada um ,se esforça para ter,


Pm grande cobiça de ter,
Malícia fraudulenta e só cuida
Dc enganar, ninguém curda
I)c virtuosos benefícios adquirir...
|<)s mundanosl mais que céu apreciam terra fértil
Semeada de fezes e de inumclície.1"*401

.D. Ibid., I, balada DCCCCLXXXII, p. 226.


40. Cf. Ibid., I. p. 142.
41, PISAN. Olmstinc .le, Uúw irx pnftiifHtu cil. M. Roy, Paris, 1841, II,
p. 200- 207.
I ni M'indhimlc dlnui rulo e de espanUu se ressurge mals
i |h ijiit minen <> sentimento ela fragilidade lislea, moral e Intolec
um ! i |m homem, tal com o o exprime, entre muitos outros, o gran-
ili i iniltoi prosador e poeta - (pie loi Main Chartier (I3H5- *
i i Uii i Ir lambem contemporâneo do Grande Cisma e da Guer-
H i|iiii i m i Anos.

l i.ipll criatura humana


111'ii iJ.i para trabalho e apenas
I H1liagll curpo revestida
I .a i linea e tilo vi\
Mole, submissa, incerta
I I.ti límenle abatida.

leu pensar te desvirtua


leu louco senso te nega e mata
I .1 ii.io saber te leva.
N.i’nesle lao pobre
t,»ue os eeus nâo permitem
t.iiie possas viver saudável.

l'oi m.lis fortes e numerosas que tenham sido as queixas


di M Mii •m|tecle, elas nào levaram os contemporâneos a ter mais sa-
i l i l i ......... deraçâo. Mesmo se o Grande Cisma encontrou uma
0 dio a< * m i I 117, outras fraturas religiosas e outros abusos se se-
liuliiim mi continuaram, outras guerras explodiram, novos exér-
1 Ih is mu i t.s avançaram, de modo que o século 15 pareceu a mui-
im a i onlliuiaçâo de uma decadência e a acentuação cío “enve-
llu i imcnio" ila cristandade.
I vii■sentimento parece ter obsedado a Alemanha cío sécu-
i I’. » do Inicio do 16. Um obra anónima contemporánea do
•.i imli ( il.sma e intitulada A Reform a do Imperador Segismundo
t mi ítala gemendo: “Nosso império está doente, débil e fráco”. A
ih ii i di imlnanle do livro é que “o mundo está subvertido” e que
ii im lia ni.lis ordem”.'' Nicolás de Cues, apresentando ao Concí-
lli i di Hasllela em 1433 seu tratado sobre a Concordância católi-
ui ii uiiiula sombrios julgamentos sobre sua época e seu país.

I i inulo cnt CHAMPION, P. H istoire poétiqu e du X V si'ede, I, p. 137


I/ lif/iSriiiitT ou consolation des trois vertus...).
i i i l . /A l ÍRNT, H. Dans latien te de Dieu. Paris: Castermann, 1970. p. 33
r 31.

221
lile só vê ao M'ii redor "(It'MmK'.it) universal", "depravando total",
"ordem subvertida", "doença mortal" e "desvíos", 1)1/ aluda que
o mundo "desaba fin decadencia", "afunda" e "decaí", "declina"
e "se perverte”," lile "perdeu seu centro". Assim homens e eoltiilrt,
privados ck' estabilidade, empurrados por forcas centrífugas, dh
per.sam-.se no va/lo. No fim do século IS, o predador alsai laño
( íeller de Kaiser,sberg se quelxa, como tecla (ello vlnte e qualiu
anos antes Nicolás de Clamantes, de que "a crlstandade esta ai
ruinada de alto a baixo desde o papa alé o sacristão, desde o luí
pecador alé o pastor".IS
li l.tmbém o qué repelem Incansavelmente os I IJ, i apllu
los de -I Ncwc dos laucos (1494), obra, lembremos, redigida po|
um leigo; "As espadas do poder papal e imperial estão enlenu|a
das,.. A justiça esta cega; a justiça está morta".16 A coblva, ma< d»
Iodos os vícios, Incita os cristãos a trabalhar aos domingos a
festejar, Nos dias de festa, cm vez de rezar, "para matar o tempo
pratica se velocidade correndo de carro”1 iraduçato atuall/ada
de uma nolacào singularmente moderna, A blasfêmia trllinia e
essa constalacáo junta-se a múltiplas observações nesse .sentido
de pessoas da época.1’1 "Nao é de admirar, prevê Sebastlen Itranl,
se Deus, ante semelhantes ultrajes, fazia o mundo soeobr.ii i i
( eu poderla desabar ou voarem pedayos de tão grandes que sao
as bl.islemlas... () ultraje é tão grande que se estende poi Ioda
pitrk \' ft mi 1 itt(' se <jue a "degradava* >” da fé é cada cila mal mi
e que a Indúlgela Ia perdeu qualquer espécie de preco; n in g u ém
m ais ,i quer' Durante esse tempo, “o espírito diabólico dos ll

i l Ibid., p. VI. C l N ícotae Cúsete cardinal!s opera, cil. parisiense de P N i>


prndii/ida ciu Prancfort sur le Main, Minerva (I.M.IJ.11., 1062 cm t v, AtpU,
v. .V cap, XXIX XXXIII cio De Concordm tta catholíca. Tnul. lí, |. I invmi .
|. lí luo. Centro dc estudos da Renascença da Universidade de SlieiimtitU,
1977, p. 280-371.
•IS. (arado cm ZAHRNT, H. D am 1’a ttenie..., p. 33. Sobre ( ¡rile i . I I •\
Cl IIUIX, I . Un Réform atm r catholitjue à la fin da AV sit\/c: /can ( tf t h
Kaysersberg, Paris, 1876. RAPP, Fr. D ittionnahvdespirituallt¿ VI, p, I ' I I 'H,
Réfimnes et Rêfbrm ation h Strasbourg, Paris, Ophrys, 1074, pit»*iin, Ia \ila
(iei/eri de Wimphcling foi editada por O. I lerding, Municli, 10 /0 ,
-10, I1RANT, S. L i N efdesJbus. trad. M. l-Iorst. Strasbourg: ól, Nink hl* tu,
1077. p. 167-168.
47. Ibld., cap.XCV, p. 371.
48. DKLUMPAU; J. U Itu r.., p. 400 403.
40, hRÀNT, S. l.a N efd es/bus, cap. 1.XXX VII. p. 343 344. ‘
Iluei «Ir M,k mu'" arrasa o ( frlente r .i\ança m i direção da erlslan
11*l« l.ulii,i "<) Inimigo c.slií mis ponas. Mas rada um quer cspe
mi a morir dorm indo"." o futuro anuncia-,se sombrío: "Tenho
i•a iii11 nimio dr que amanhã as coisas estejam pió res e que nos-
«i luiiiio *.r torne ainda mais negro".'1 Sobrecarregado de loncos,
ni ui ipas, nem bússola, nem ampulheta,'52o barco da cristanda-
i i fu liando sobre as ondas ”,v "gira e balança e adema para
mu I idi i <) primeiro turbilhão pode vencer a resistência.5" Se o
pn ipiii i Irsiis < l isto nao subir ao mastro de vigia, logo mergullm-
■ un i n i. Irevas".'rt Sébastien Brant diz em algum lugar que até
ué mu * "o mastro foi arrancado; tudo foi levado. Nadar é irnpos-
•i« i I un mar encapelado; as ondas sao altas demais para serení
mu liadas l , sobretudo, o “maior facínora”57 - o anticristo -
inda igma un tom o da nave. “Ja venios o escorpião mexer-se”.5*
I L liiigi m Ni-us mensageiros em terra e propagou o erro através
lo pal')' "< )s lempos estão conclusos”.60 “O dia dó julgamento
apnislm.i se de nós”.61
Vislm, a um século de distancia, Sébastien Brant faz eco a
i ii i n lH i »c m liamps. Ambos falam a mesma linguagem, lançam
i «a ii inundo o mesmo olhar, prevêem o niesnio fim. Mas para
li- •L >i ,.111 apenas duas testemunhas, entre muitas outras, d e
um |H i.'iImiímuo coletivo que terá continuação. Lembremo-nos
i . i ■111\ias apresentadas a esse respeito por Lutero, Viret e Bul-
II ............. i« assinalamos num primeiro volume.62Todavia, em vis-
la da * norme audiência do Reformador, não é ocioso voltar ã
inmiii. .u i mullas vezes expressa por Lutero de que o fim do

10 II.I.L, cap. XCIX, p. 387-


'1 llilil., cap. 1.XXXVIII, p. 347.
1.'. Ihld., cap. CVlII, p. 434.
IV 11)1.1., cap. GUI, p. 410. •
vi. 11)1.1,, cap. CVIII, p. 438.
VI. lliitl., cap. XCIX, p. 394.
Vi, 11)1.1,, cap. CVIII, p. 437.
V, llii.l,. cap. CIII, p. 408.
IM, ll>l.l., p. 409.
V), Ibi.l,, p. 411.
(i0, Ihld., p. 412,
i,l Iliiil., p. «414. , .
(i/, 1)| .1 .UMEAW, J. La Peur..., p. 222-225,

<-<*-¿« >
mundo estava próximo."' I itn ella, ele declarou: I o ultimo •,lnal
do Apocalipse; ela vai romper-se”."" lile eslava com eleito per,sua
dido de que o anticristo, cujos extraordinários maleficios devem
preceder'o fim dos tempos, estava efetivamente em açao. Seu es
pírito era o papa e seu corpo o turco, este último "arrasandt >, ata
cando e perturbando a Igreja de Deus corporal mente”, o primei
ro atingindoi-a “espiritualmente”.6S Para Ligero, nenhuma dúvida
era possível: “O tempo de miséria” anunciado por Sao |o,io
“como não houve ñenhum desde que existem nações", era o sé
culo ló que o vivia.66 Nos seus momentos ele desánimo, Lulero
desejou o fim dos tempos. Na época em que sua filha Marguei‘1
te está (mortalmente) doente, ele escreve a um amigo em abril
de 1544: “Eu não me revoltaria contra o Senhor se ele a arraiu as
se deste tempo e deste século satânicos e desejaria que eu e os
meus também fôssemos arrancados rapidamente; porque eu de
sejo a chegada do dia que porá fim aos furores de Sata e dos
seus”.67 Em termos um pouco mais comedidos, Bucer declara em
1523 no seu Tratado do am or ao próximo: "... Em lugar de a pos
tolos, nós só temos falsos profetas, em lugar de educadores, so
sedutores... em lugar de príncipes e superiores piedosos,, so tl
ranos, lobos, ursos, leões, crianças fsic] e loucos”."8 Dentro do
mesmo espírito, I lema Estienne afirma na A pologiapam IhWnio
to ( 1%(>): "Nosso século c pior que todos os que precederam” ""
Na época, os mais zelosos católicos, por motivos inversos,
n.to raciocinam de outro modo: assim, Guillaume Budc no seu
/.V transita IIrllenisnn’ a d Christianismum (1535), obra Inquieta,
dirigida contra a Reforma e onde se lê principalmente que o
"trnnsburdumcnu* dos erros" vai aumentando a cada dia. "E couto
um dilúvio da antiga religião que inunda todas as partes c|o num
do 1 rlslâo e recobre pouco a pouco a diferença entre piedade e
Impiedade”, (íuillaume Biiclé qualifica seu século como “depra

(>3. ( )f. lunadamente LUTHF.R, M. CEuvres, X, p. 116 (Sentido sobre 0 eran


gtlhò do 2' Domingo do advento redigido em Wartburg).
64. LUTI llíR, M. Propos de taide, p. 275. Cf. também- ll)id., p. 2.18 2.VI,
65. Ibid., p. 109.
6 6 . Ib id .

67. I.UTHER, M. CEuvres, VIII, p. 188-189 (carta a j. Propst),


68. BUCER, M. Traitf de Pamour du prochain. trad., iiur. e notas por II
Strohl. Paris: PUF, 1949. p. 53.
69. ESTIENNE, H. Apologiepour H ém totr, 1566, p. III) 125.
’ i'ln i • Murcio a compreensão cía verdade, que mc* tornou não só
timo rom o Ierro, mas pesado com o chumbo". A scu ver, "a rell-
itliin c o desprezo de Deu.s sito colocados no mesmo plano... a
mina dos costumes, a derrota do Cristianismo, a desonra das be-
11 <ledas, a destruição das virtudes crescendo a cada dia e se es­
palhando como um incêndio de igrejas’’.70 Daí um sombrio pres­
tí mímenlo expresso numa forte Sentença que poderia ser de Lu
c n • ouanio a fnim, estou mais inclinado a pensar que o últifno
dia i omeçou a cair, e que o mundo já está em declínio, que ele
. .ia realmente velho e privado de sentido, que ele indica, pres-
uigla e anuncia seu fim próximo e sua queda”.71 É dessa manci-
n que um dos mais ilustres humanistas franceses caracterizava o
pii Nenie e encarava o futuro.
i >s julgamentos anteriores, escalonados de Nicolás de
• lamanges a Guillaume de Budé e a Henri Estienne, provém,
i in sua maioria, de pessoas da Igreja ou pelo menos de perso
M11idades animadas por uma profunda preocupaçào religiosa,
1'miIi m ós entào em larga medida estabelecer um vínculo na
i ......... enlre preocupações cristãs e julgamento severo sobre
um le m p o considerado infiel ao Evangelho. Essa relação en
" iilio u se naturalmente reforçada pelas guerras de religião
1111•', em escala européia, aumentaram o pessimismo dos i ris
i im*. m.ds engajados éspiritualmente ou mais atingidos pela oi
•li m publica. A cristandade vai de mal a pior: essa era também
i Mplnlan de Filipe II e de seus conselheiros nos Países-Baixos
ipu em 1560, proibiram as canções, farsas, baladas e comédias
....... ndo mais ou menos de religião. Antigamente, podia-se to-
Ie 1,1 las, mas agora não mais:

lí não estando antes o mundo tão corrompido, nem sendo


os erros tão grandes como no presente, deu-se mais atenção a es­
tes jogos, farsas, canções, refrãos, baladas e ditados, como con­
vem ao tempo presente em que as maléficas e danosas seitas, dia
.1 dia, pululam e crescem cada vez mais. 72

70. BUDÉ, G. D e Transita H ellenism i a d Christianismum. trad. M. Le Bcl.


Slicrbrooke: ed. Paulines 1973. p. 44, 66 e 93.
71. Ibid., p. 132.
72. Clitado em M UCHEM BI.ED, R. Culturepopulaire et culture des élites. Pa­
ris: Flammarion, 1978. p. 200.

22b
Um U'xlo ,i ser ucivmuntado Hs inúmeras .ilIrin.i^<>« •. <1.1
queles cjlic* upredltaram numa multiplicação dos blasfemos • ila >
bruxas na Europa do Início tios lempos motlemos. Para Agilp
pa d’Aubigne, a medida já eslá cheia e é hora de Deus llnaliiu n
te punir a humanidade pecadora:

Empestaí o ar, ó vinganças celestes,


De venenos, de peçonhas e de voláteis pestes!...
Vento, não purifiques mais o ar! Rompe, derruba, esmagai
Afoga em vez de irrigar! Sem aquecer, abrasa!
Nossos pecados estão no auge e, subindo até o céu,
Por-cima da medida derramam de todos os lados. 1

Exclam ações hiperbólicas pela pena vingadora de um


protestante perseguido? Sem dúvida. Mas elas não sao I,solada*
Outro reformado francês, Christophe de Gamón, num poema
publicado em 1609, julga que o mundo de sua época c "um ho
que cheio de leões, um vale imundo /... Onde tudo e tenelín»
so ”. Também “a morte próxima ameaça / O mundo que, ja \
lho, cueva para a terra sua face” e “Jaz doente de pecados, num
leito de langores”. Daí a profecia: “Ó mundo decrépllol Ò mun
do langoroso! K o fim, é o fim de ti”.7S Ter-se-á notado nesw ,
versos protestantes, como em Ditero, mas também como cm
Eustache Deschamps, Nicolás de Clamanges e Sébaslien IhaiUi 11
vínculo entre um sombrio diagnóstico moral sobre o presentí' 1
a crença num próximo fim cios tempos - uma relaçao que agia
nos dois sentidos. Reafirmaremos mais adiante que no fim d< >sú
culo l 6 e até os anos l660, a Inglaterra e a Escócia foram p.nii
cularmente atingidas pelas febres escatológicas. Nào é de mllill
rar por conseguinte sé aqui se insistiu pesadamente sobre ou ch
traordinários pecados de uma época abandonada ao Maligno t
que ultrapassava em baixeza moral todas as que luivlam píen
dido. Edwin Sandys,' Bispo de Londres, depois An chispo di
York, escrevia em 1583 ao Bispo de Chester:

7 3 . D p LU M E A U , J. LaP eur..., p. 3 8 5 -3 8 6 c 4 02-403.


74. D’AUBIGNÉ, A. Vengeances, Éd. A. Gainier c J. Pltutuid, l'.trl-i l'MJ
1933: aqui IV, p. 28.
75. La Sem aine (imitada da dc Du Barcas), p. 246, 249 c 301. ( I, I >111U l|S
Cl. G. La Conceptiva de l'histoirc cn fran cc au XVí uòc/e ( I ’U>() I(>I0) Pai tal
Nizet, 1977. p. 359- 361.
(.túmulo consuno, venerável limito, o ( ucn i r hm condições des­
te mundo | >('rdld<» ilc Impiedade, quantos triunfos Sutil obtém,
«pi.o >profunda e amplamente o vicio comanda, quilo numerosas
■ ln liadas sao as assembléias dos homens sem. Deus, quilo fra-
i as, quilo abaladas estilo a fé e a piedade - eu devia até dizer
que estas desapareceram completamente parece-me que che-
gamos agora à época derradeira e infortunada deste mundo que
>n• aproxima de sua destruição.’"

I Miomas Adams, “o Shakespeare da prosa entre os pu-


llliitio'»", 11 implementa em 1633 definindo sua época como o
|u iiilo de encontro “de todos os costumes viciosos das épocas
Mili lim es a maneira dos canais de uma cidade que confluem
p n i o escoto com um ’’. Outrora havia predominado ora urna
luí ma de perversidade, ora outra. Mas agpra, “com o tantas
i m*11 ■ i i mentes t|iie descem das montanhas, elas se juntam num
mili " t ué.o o formam uma só corrente de malícia nesta baixa e
•li ii.nleliii ép o caV 7
I illi,ipassemos agora o arquivo clerical. Os italianos con-
lenipiHdneiis de Mac|uiavel e de Guichardin emitiram sobre si
nu ..... . inri julgamento severo e explicaram por seus próprios pe-
i uh is ,is desgraças de seu país a partir de 1494. Assim, o venezia-
n*i « -in «l.i111<> Prluli avista no triunfo rápido de Carlos VIII a puni-
. .........crecida da sodomía italiana, particularmente disseminada
.........poles. " Mais moderadamente, o magistrado e contista Noél
lu I ill ( 1520-1591), que com inquietação vê crescer a civilização
iliI m i m , constata que o mundo tornou-se “mau rapaz” e que este
malvado .secillo” é “uma época ferrada”. Fazendo melancolica-
.... nlt referencia á época feliz de Francisco I, ele afirma que “as
i ii ui. as de hoje parecem anões em comparação com as antigas”,
.............. ... sem i homens compridos,' franzinos como sangue-su-

<> S A N D Y S , I.. T h e Sermons. É d . J . A y re, C a m b rid g e , 1 8 4 1 , p. 4 3 9 . Cita--


. |(« em B A I J „ Br, W . A Great Expectation. Eschatological Thought in Englisb
l'r<>U'\(tinlhm 1660. I.e y d e , B r il, 1 9 7 5 , p. '1 8 . S o b re as re la çõ es e n tr e esc a to lo -
|ii,tv d is u ir s o d c a m e a ç a , v e r m ais a d ia n te p. 587s.

.A t )A M S , T h . A Commentary ... upon the D ivine Second Epistle ... written


h S>, l ’cier 1 6 3 3 , p. 1 . 1 3 8 - 1 .1 3 9 . C ita d o e m Ib id ., p. 9 7 . S o b r e a e sc a to lo g ia
inglesa n o fim d o sé cu lo 1 6 , cf. H I L L , C h r . Antichrist in Seventeenth Century
I nvhiiir/, O x fo r d U niv. P ress, 1 9 7 1 , s o b re tu d o p. 1 - 4 1 .
' H, I I Vi/rii d i G irolam o Priuli, ed . A Se g re, v. I, p. 1 4 em M U R A T O R I, Itn-
lh iiruni m u n i scriptores, n o v a E d , v. X X I V , parte 3 .

227
gnu",'" Nas f llsftU itls {Jhul(glosas «I»• ItnulNtuau ( ISí>()), uduptildm
francés de Bandullo, encontra ,*u* Incidentemente uma u Insito, lan
10 milis Interessante quanto se apresenta como nina evidencia, ,u >s
nossos "séculos em que o pecado l’ol muís alnmdante"."" Mas, dols
anos anles, no prelado tío seu Teatro do m undo, ele tinlia denun
liado mais claramente "um século como este nosso, ia<> corroí vi
pido, depravado e mergulhado em toda espécie ile vicios e abo
minaçòes que parece propriamenté que é o retiro e o esgoto onde
todas as ¡mundícies dos outros séculos e épocas vieram deputai
e transvasar;81 a mesma comparação que aparece em Tilomas
Adams e que poderla bem lev sido um tópos. Nao é ocioso lem
brar que este livro de Boaistuau (multo mais ampliado que o sen
lircne discurso no sentido inverso Da excelencia do homem) lol
Hilo, Imitado, copiado (conheceu 60 ecliçôes em SO anos) e a os
olhos dos moralistas passou por um modelo do gênero, A sensi­
bilidade de urna época rcconhecéu-se nele.
l'llenne l’asquier, espectador entristecido das güeñas tlt
lellgl.a i, riu lien -.u.i correspondência de fórmulas alarmistas e tlt
|iilgamenlos srveios sobre sua época: "... Nao se anuncia outra
t olsa a nao sei logo, guerras, mortes e saques (1562)."J "Nílo es
iaiiitis mais no reinado, estamos no império, porque todas as col
nas sao plorando""' (I5MU), Montaigne nos Ensaios |ulga que a
boa • .lima do poso e "ln|urlosa”, "notadamente num século m í
mmpltlo t Igiioianle tom o este”."'' Thierry Coornhert, um Ireuls
11 qut tía estib an em I laarlem, estima em 1582 que "nossos
•lias sr ( oniam entre os plores"..8' Shakespeare descreve o nuitl»
di i -I- ten lempo como urna "piisáo”: “Urna famosa prlsao, com

HAII.., N , tlit. ( I\ut>res facétieuscs. E d . J . A sséz a t, P aris: 1H 7 4 . 11


*1»i« i >l>.
IHvpos rustiques, cap . II c V J; Contes et discours d'Eutrapel, ca p . I r X X II, r n
Cisco urs sur la corruption de notre temps.
HO. BOAISTUAU. Histoiresprodigieuses. Paris: Club franjáis du l¡vi< . I% l,
p. 9Í.
HI. D( 1AISTUAU. I.e Théátre du monde oh il est faict un am pie díscont \d o tul
seres humantes. Ed. de 1572 (B.N.): aviso ao leitor (sem pugiiuiçAo). Is| a
icmctle M. Sintonia, Gcnève, Droz, 1981.
82. PASQUIER, E. I.ettrespolitiques(1566-1594), Gcnèvc: Oro/, l%ft, |. Iii'i
83. Ibid., p. 394.
84. MONTAIGNE. Estáis, III. cap. 2, III, p. 28.
85. ( !CK )UN11ERT. T A 1’aurore des Ubertés modernes. Synode sur Ia l/beiii* de
consciente, Imr,, trad., c nottudej, I.cdcrc M. Er, Vulkhnli. Parlai ( Vil. Io
I». 65.
I•»• i tule diversos calabouços, s o lllá i i,»** e n li'i" , sendo .i Dina
in ih ,i ( i-.ii i é, a Inglaterra do Início d o sér i ilu I D, unia das plo-
i* ilhinilrt, II, 2), Um escritor espanhol, Martin González de
• i llnilgn, Ia/, lhe eco em 1600 declarando: "Chegou uma época
qm mis i onslderamos pior que no passado".""

ii sonho da época de ouro


V. eltacòes anteriores constituem apenas uma amostragem.
.. ..........a reselmo que se podería juntar tende a mostrar que a do-
iii Iii 1111• <Ia Renascença nào foi forçosamente o otimismo, como
i" lilimente se erê, mas antes o pessimismo, mesmo se a palavra
li.lo i da época.,r Os Fico de la Mirándola e os Guillauriie Postei
h n mi minoria. Entretanto, é verdade que o próprio termo “Renas-
i * ih i , na pena de escritores e artistas, significou ressurreição cios
•i mliei tinentos, das letras e do bom gosto, de modo que se falou
i h tl\ a mente de uma “nova época de ouro, particularmente na Itá­
lia i|i i século IS e na França e Alemanha do início do século 16.
1 i Ih iienllno Ciiovanni Rucellai declarava em 1457: “Pensamos que
no ni época desde 1400 tem mais razões de contentamento que
ih nlmiii.i outra desde que Florença foi fundada”.88E Marsílio Fici-
ii" ai leseentou um pouco mais tarde: “É indubitavelmente uma
.......... de ouro que trouxe de novo à luz as artes liberais antes
i(iiii'n destruídas: gramática, eloqüência, pintura, arquitetura, es-
i ulluia, nui.slea. F tudo em Florença”.89 Em 1518, Ultrich de Hut-
i•li i■m I.miava: “Ó século, ó estudos, é uma alegria viver”.90Rabe-

M(>. < atad o c in R E D O N D O , A . “M o n d e à íe n v e rs e t c o n s c ie n c e d e crise ch cz


< .nu i.tn" cm LIm age du monde renversé et ses représentatiom littém ires de la fin
dn A l 7 sih le au m ilieu duXVJT. P aris: V rin , 1 9 7 9 . p. 9 1 . E s ta frase se e n c o n ­
tra n o M em orial de la política necessária y ú til restauración de España, Vallado-
lid, 1600.

Il ' 1 'T .h V R F , L Le Probl'eme de l'incroyance. L a religión de Rabelais. P aris: A .


Mlclicl, 1 9 6 8 . p. 3 2 9 .

lis . R U t I I.I.A I, G . Z ibaldonequaresim ale, É d . P erosa, L o n d re s : 1 9 6 0 , p. 6 1 .


< ¡t.ulo c m C H A S T E L , A .; K L E I N , R . L'Age de l ’bumanisme. É d . des D en x
M o m ie s, p. 3 0 .

le», ( irado c m N Q R S T R Õ M , J . Moyen Age et Renaissance. P aris: 1 9 3 5 . p. 1 8 .

')(), ( arta a W . P irck lieim er, nov. 1 5 1 8 , c itad a e m C H A S T E L , A . L ’A ge... p. 3 0 .

221)
lal,s 11k' lez r i o fazendo <Utrgantua illzer: "bu ve|o os bandidos, i
carrascos, om aventureiros, os i .iv.ilativos do agora, muís (Ionios
<|ii(' o,s doutores e pregadores de nu*u lempo","1 Mas essas apir
liaçòos entusiastas drvem ser temporadas de várlas manchas, l'oi
um laclo, desde o século 16, os Italianos llveram o srnUmento de
que a época feliz i|tie tlnlia coincidido mais ou menos o un o go
verno ele Lorenzo, o Magnífico, tlnha sido um fracasso, Agota, era
alé possível esperar uma decadência da arle: assim pensava Vas
sari para quem, depois de Mlehelclngelo, nao podia haver dei li>
nlo, Por mitro lado, quando estudamos a utillzavao - mullo Im
porlanle •i|iie foi feita do tema da época ele ouro na Henast en
va,"' ficamos convencidos de c|ue ela foi na maioria das vo/< ■\i
villa e apresentada como um antídoto a um sombrío p ica ule
líssa constatado global incluí alé mesmo os numerosos panegtii
eos compostos por poetas-da corte afirmando a cada advento di
mu novo soberano que a época de ouro ia renascer sob seu iel
nado l'ssa ba|ula(,an estereotipada, ela também, exprimía o dese
|o amplamente disseminado de urna mudan va om relavan as dn
i as i ondlv* ><’s i la r|x n a,

o soiiho d.i época de ouro assumiu nifiltlplas formas A


m ili uta iiiegoti csse tempo bendito a um passado nao (hilado,
mistiiiando o paiatso terrestre da Biblia com o das Ah'ttinmr/me»
•li i nidio e Imaginando urna época de paz em que sobre a lef
ia litio Intvla ue 111 medo, ítem mal, ncm infelicidade. No curso
dii desenvolvimentos anteriores, notamos de passagem qm i a
' " l u de t lamanges, bustucho Deschamps, Noel ilu lall si apn
i-, iiam a esse mito bles nao estavam sozinhos. A Nuu <7ov h iu ,n
w//m sii se compreende por referência a um "outrora" illsiaiiU ,
i in (|iie prinelpes e ministros eram "repletos de Intcllgéiu la e il
eos de experiência. Nessa época, o escándalo e a veigonha •n
contravam punivelo e a paz se ampliava c reinava no mundo
blasmo coloca'na boca da .Loucura o elogio da época em qm mi
Ilomeas tinham um fínico guia, "o Instinto dn Natureza Na pu
sagem célebre cinc1 se 10 a seguir, a crítica chis "ciências" da < luí
<a e especialmente da gramática remete a um sistema di n I» n u
d a que a ultrapassa amplamente:

‘M. Piinlíipuel cup, VIH (ni. da Pifiado, p, J.¿7),


92. C|, LLíVIN, 11. / he Myth o flh e ( iolf/en Ajff ill tht lililí lio
Univ, Picas, 1969» pusslm, l!f, também THNENTI, A. II Srnw , p <0
‘M. DRANT. S, /,,/ N tfdts fout, cap. XI VI. p. 168.
Que nc*ivsnIcIik Ic' no llnlui chi gininãlli .1, |.i que então ¡1 língua
uia .1 1110,Mina paia todos o a palavra nu nuivIu para sc fazer com-
picendei? Que necessidade tia dlalóiU a, |a (|iie ruiu se travava ne­
nhuma lula entre opções rivais? O que fazer com a retórica, |íi
que 1M0 havia nenhum processo? Qual uso para a jurisprudência,
quando não tinham ainda começado os maus costumes, de onde
ifiu duvida nenhuma nasceram as boas. leis? Os homens eram
demasiado religiosos para dedicar uma curiosidade ím pia aos
mistérios da Natureza, para m edir os astros, seus movimentos,
n u , is Influências, escrutar o secreto mecanismo do mundo... Mas,
a medida que dim inuiu essa pureza da época de ouro, os maus
gênios de que falei inventaram as ciências. (Anteriorm ente Eras­
mo havia afirmado que elas fizeram “irrupção na humanidade
• um o rosto de seus flagelos " ) .91

Enunciado pela Loucura, esse discurso é evidentemente


mil.1»í1u », Mas, com parado a numerosos textos da época que
........... ..Iam com ele, ele exprime uma nostalgia coletiva susci-
ii 11 pni um triste presente. Marot está próximo de Erasmo no
1min In que consagra em 1525 ao “am or cio século antigo”, épo-
- h li ' ni que a afeição mútua ocupava o lugar de ciência e
di li I

1li >n bons velhos tempos reinava uma atmosfera de amor


Que sem grande aite e engenhos se desenvolvia
I 11l.l11, um ramalhete dado com am or profundo
I 1 1 1orno dar toda a redonda tena...
Agma se perdeu o que o amor ordenava:
.11 prantos fingidos, só mudanças nós temos.

( miro lamento melancólico sobre a época de ouro desapa-


111 Ida . o dc Dom Quixote. Desta vez, também é um louco que
I il 1 hlu r, um coração puro extraviado num universo endureci-
d o pc|o egoísmo. Amigamente, o teu e o meu não existiam e a
........ m dava para todos. No fim desta linha de pensamento, um
ii 1 baseia Rousseau. Dom Quixote lamenta-se assim:1

1' l I KASMli. liloge de ¡a Folie, cap. XXXII, trad. P. de Nolhac, Paris, Garnier,
IMS), p. 65-67.
•)*i. MAROT. (Fumes completes. Paris: Éd. Garnier, 1951, I, p. 438-439-

231
Naquela s.ml.i época iodas as coisas ria m comuns; paia altan
Car sou tad ln rtrli»sustente» nIntuem precisava ter outro trabalhe>do
t |iic erguer a mao c* pegado daquela* robustas azlnhelras, <|uc ll
beralmente convidavam com seu doce e .sazonado linio,,, lu d o
entilo era paz, tild o amizade, ludo concordia. A pesada rellia do
recurvo arado aínda nao tinha ousado abrir e visitar as piedosas
entranhas de nossa primeira nule; ja c|ue esta, sem ser forçada, ole
recia por todas as partes de seu seio fértil e espaçoso', ludo o que
pudesse fartar, sustentar e deleitar os filhos que entilo a possuíam,

r. o cavaleiro prossegue: naquele tempo bendito as mullte


tv,s n;i<> tinham necessidade de luxo na indumentaria. Todos se
exprimiam simplesmente, “sem artificiosos rodeios”. "Nao liavla
ainda a fraudo, o engano e a malícia mesclados com a verdade o
a ;simplic idade”.""
Podemos cortamente encontrar na mesma época de Corvan
les lexlt )s que vilo no sentido contrario. Um dos mais sigpifleallvos
luí esi mu pui lean Modín, que lem um capítulo inteiro do Mchulo
J 'i IlhUwUi <I" ed, PS(>()) consagrado a demolir a teoria dos séculos
•I) miiu, que loram na realidade “épocas de ferro”, líssa rofutíiçdo
<m n gia paivi vu net f'.s.irla sto autor porque “esse erro invelcradt),
• " i* o t i) , l,nii,iiii i,io profundas raízes que boje parece impossi
o l í s 11111.11 , |,i (|tie ele lem a sen favor “um número quase influí
I n d i . st gi ias" l consideração é o que nos importa aquí: Juan
ilnli,i i un,si léñela e desejo de ir contra uma idéia ja folla:

I h ,ii enl.lo e.v.cs lamosos séculos de ouro e de pratal Ac|til, i >•>


h* Hiwn-, viviam dispersos pelos campos e pelos bosques como
vcnludelios animais selvagens, e só possuíam para si aquilo que
pocllam conservar pela força e pelo crime: foi necessário mullo
tempo para conduzi-los pouco a pouco dessa vida selvagem e lu í
Inira para costumes civilizados e para uma sociedade bem organi­
zada tal como os encontramos atualmente” .,. Além disso, se "a lili
manldadc caminhasse para uma desagregação crescente1", c omo
gcralmenle se pensa, "nós já teñamos chegado a esse extremo di
vícios e desonestidade ao qual parece que chegamos outrora" 1

c TiRVANTRS, Don Qulebotte, tracl. de la Pldinde, 1%,'t, pune 1, cap, 11


p. 03-94.
07. IIODIN, J. ¿d. MESNARI), I’, i, V, i du Corpus tfnéml ties
fiiOH'ilis, Parí*: l'UU 19*51, p. 47H 'I.’1),
A crueldade c uos crimes tíos sécnlos anteriores, Jean 13o-
■Iim mesmo na época das Guerras de Religião opõe então “as
min le*." dr seus contemporâneos e a jusilla que impera nos Es-
i.nlm modc,rnos.,’HAlém disso, ele exalta as artes, letras e desco-
ln ii i i dr sen lempo, colocando ém lugar de destaque a bússola
i Imprensa que, por si so,.equivale a todas as invenções dos
milgini Por Inovadoras que pareçam essas palavras, é preciso
. mii lanío tempera-las. Jean Boclin só crê em progressos provisó-
ii" i da humanidade que sao seguidos de infalíveis recaídas. Por-
l'ii a natureza parece submetida à lei do eterno retomo, em que
i ida i . ilsa r objeto de uma revolução circular de modo que.o ví-
.............. le á virtude, a ignorancia à ciência, o mal à honestidade,
i •11•\as a< >erro...”.100Alguns anos mais tarde - em 1580 - , na sua
i h niKimnidiild dos feiticeiros, Jean Bodin pinta um quadro extre-
iii um nii sombrio ele sua época, que a crítica moderna tem difi-
Hh I HI. rm conciliar com o resto da produção de um escritor tão
|n tu traille. Pesia com o verdade, apesar das exceções, que a Re-
iii ni ni a sonhou apaixonadamente com um paraíso perdido
l< iia " qual uma dura atualidade o remetia inceSsantemente. Daí
i ........liante observação de'Eugenio Garin a propósito da Italia
i" linal ilo Quatrocentos: “Não é difícil encontrar reunidos esses
diil'i Irmas no fim do século 15, até num mesmo autor; de um
Pul........ . sinais do anticristo e do cataclisma iminente; de outro
lu í" a época de ouro”.101
\<» tema da época de ouro deve-se juntar o mito da Fonte
•11 |uventílele, ilustrado notadamente por um quadro de Lucas
* i ...... h, o Moço (1546; Berlin, Staatliche Museum), enquanto o
Iui ipi li i pal di >artista tinha pintado em 1530 urna Época de ouro,
li"|i un museu de Oslo.102 Mergulhando na agua benfazeja, en-
■mitramos juventude e saúde. O tempo é abolido e, com ele, a
. mi' r r .i morte. Em carretas, em cardólas," em liteiras, às vezes,

*)H. lhkl.
09, liado p. 430.
100. u a d .

10 1, ( ¡ARIN, E. “L’Attesa dell’etá nuova e la ‘renovado’” em L ’A ttesa d ell’e tá


mioi'ii titila spiritualitá d elld fin e d el M edievo, Convegni del Centro di Studi
Milla spiritualitá medievale, out. 1960, Todi, 1962, XIX, p. 16-19.
10. ’ , Sobre a crença na fonte da juventude nos meios dos alquimistas, cf. LE
I REVISAN, B. Le Livre de la philosophie naturelle des métaux. Paris: Tréda-
nicl, 1976. p. 63-75. ,

28: \
nos ombros ele* pessoas, enfermos, velhos c alegados san l« vados
ã fonte miraculosa. Despidos, mergulhados na água que regen*-'
ra, eles sacm curados, jovens, felizes, prontos para o amoi, pui t
a dança e os banquetes, l o sonho de Fausto sem a Interveiiy lu
do diabo. À esquprda do quadro, lado da velhice, a palsagein c
escarpada e inquietante; ã direita, lado da juventude, .1 nulun »
é risonha, as árvores ricas de folhagens e de frutos,
Sobre os Países de Cocanha - que Integram as ve/em a
Fonte da Juventude -,'fo i dito que eram as "ép o cas do o tilo tío»»
pobres”.103 Trata-se sempre de paraísos alimentares onde ......... ni
da é abundante e gratuita e de universos em que nao e pn 1 l m
trabalhar para viver. Além disso, segundo a maioria das ..........
que nos restam, ali se passa o tempo em festas permanentes e M
faz amor sem preocupação com moral. Kvidentemenie, os l'aim m
de Cocanha constituíram uma evasão para fora de uma * lvlll/i|
ção caracterizada geralmente pela penuria, por duras <«>ndl* 01 ■
de trabalho e pela exigente moral sexual das autoridad* . n ligio
sas. Foi no século 13 com A s Fábulas de Cocanha que o lema o
sumiu sua identidade. Mas - e isso é essencial para 1» n< mi » pío
pósito - foi nos séculos 16-17 que ele conheceu sua maloi dllii
são. Para esses dois séculos, foram assinaladas 12 variantes na
França, 22 na Alemanha, 33 na Itália e 40 em Flandres.""
À sua maneira, os Países de Cocanha eram utopias <* ob
jeto do presente livro não é enumerar estas últimas, nem an ill 1
Ias em detalhe, mas apenas lem brarem poucas palavras que * Ias
constituíram uma das especulações favoritas dos escriturem e
dos arquitetos - da Renascença. Da Utopia de More ( |4|(») a 1 f
dade do Sol de Campanellu (1623), á Nova Atlâutlda dr ha* ou
(1627) e ii Astrcia (1607-1628) de Ilonoré d’Urlé, passando pela
abadia de Télemo e o Estado de Eudem o de Raspar Stlblln ( IVi \ 1,

103. LF.VIN, H. The Myth... p. 55. Cf. também SCHMl'IT, |. < I ......
tianisme ct mythologié" cm D ictiontudre des mythologies, Paris: II. iiiiiimi Ihii,
1980. p. 1-9. Sobre os países da Cocanha como sonhos «pio «.«■11>.1>I>m«• l.i o 1
(idade cf. GRAR A. MiHt leggende e superstizioni del M edio Tro lliiln, I M'f *.
p. 235s.; COC!CHIARA, G. IIP a esed i Curaguaea llrism d l d l/ò/kloie, lliiltt,
1956, lunadamente p. 187. 1A/,RIU, j. "Rntrc Ic révc ct Ia léslgiiuilnni I um
pic populairc dons 1’Ancicnnc Polognc", cm Anuales J S i . initipi .ibill
1982, p. 146-153.
1()4. Contribuição «le COUTRAUD, Chántale para l a Morí des l\tys d( ifc»
cague (sob a dir. «le |. Dclnmcau). Paris: Ptibl. da Sorbonne, I1* i. p II II
Cí. também DRI.PKCII, R "Aspeéis des Pay» de C*nagite, Prngianmit pittll
une rcchcrchc", em I.'/mage du monde renoeiM1,,,, p. 3*i 48,
li Ve/ iiKld de Mlarcte ( meados cl<> século I*») ii "(llcluclc .solar"
llt Snlnnlo Donl (ISS2) o a Crlsticwópolls do luterano Valentín
v11' 11• ir ( luirlo ilo século 17), labirinto e caserna ao mesmo tem­
po i pimlução sobre papel ele "cidades radiosas” foi consideré
lt I 1 < Iditiles Irreais, paraísos artificiais, descrições (de maneira
i* ti o dt mundos constituidos segundo "principios diferentes da-
i|iH lt mi|tic ivtl.io em vigor no mundo real”, as Utopias deram tes-
i. mmi 11o » do divorcio cruelmente sentido por um ampia élite en-
ln 11 i-ij ih.it. t >c< da época c as realidades cotidianas.KK>A esse tí-
tul" * h ’i lililí,un vocação a figurar, como contra-provas, nutria
IiH mii i do pessimismo da Renascença. Como Platão e Horacio,
M> m uil din. < ampanclla c Bacon situam sua terra de bem-aven-
Ulliliti i num alfil ires longínquo, numa ilha perdida no centro de
mu MM'iino se nao sempre imaginário pelo menos dificilmente
i i io I para as pessoas da época - mares equatoriais,-Pacífico,
lli* iiio Indlio I uma maneira de dizer qué paz, harmonia e
iliiiiid 111« ia não csiao ao alcance da mão.
\ mesma geografia do impossível explica que certos.euro
P> ii ili Isaiulo se levar pela “miragem americana”,107 tenham atrl-
jiuidii is populações recentemente descobertas pelas grandes
..... ... da Renascença, virtudes há muito tempo perdidas por
II que, por sua vez, desapareceram também entre elas quan­
to d . com nossã civilização. Notou-se justamente que “a
rpm i di ouro da utopia está ligada à história dos grandes des-
tnluiiiii iiios marítimos; cada relatório de viagem enfeitado pela
immin n ii i agiu como um choque cultural restrito, provocando
uma i iimpai.gão, repondo em dúvida as estruturas sociais con-
|i mpiiiilin as".1"" () mito do “bom selvagem” e o elogio s o primi-

Mi ■ 'mliir <’iic assunto, permito-me remeterão meu Civilisation de la Renais-


■oin i ' ' •! , 1973), principalmente p. 299-305, 355-371. Cf. por outro lado,
/, i / '/>•/•/í i ,/ /,/ Renaissance (coll. de 1961), Bruxelles-Paris, PUB-PUF, 1963
• / , </(•//,> /,/ Renaissance (coll. de 1963), Bruxelles-Paris, PUB-PUF, 1965.
|IH» i í/ IU )YFR, R. ÜUtopic et les utopies. Paris: PUF, 1950.
Ui i I IINAR1), (!. f.es RéfugiéshuguenotsenAm érique (com uma introdução
nlm i "mii.i(j;cm americana”). Paris: Belles Lettres, 1925. Assinalo também o
....... I rHiiido de I.RSTRINGANT, Fr. “Millénarisme et âge d’or: Réforma-
1 1**ii . i >tipéricnccs coloniales au Brésil et en Floride (1555-1565)”, apresenta-

d•••ui líuiis (1982), colóquio Enmcinement de la Ré/orme (no prelo).


11ui M ItVIFK, |. Ilistoire de 1'Utopie. Paris: Gallimard, 1967. p. 376. C f
Mililu’in I INI.KY, M. “Utopianism Ancient and Modern”, em The C riticai'
'(/'/»// (Mélaup-s H. M arcase). Boston, 1967. p. 3-20.
tlvismo que mc desenvolvem no século K> exprimiram cs.s.i vls.tn
desmlstlllcadora do presente ocidental i|i»e não e partlculai .1
Montaigne. Sua apologia dos "< anlbals" Integra-se em (<>tl.i uiiui
corrente de pensamento, lista certamente nao foi majoritária nu
medida em que muitos europeus principalmente soldados, ad
ministradores e colonos - viram os povos de ultramar como bíu
baros a civilizar ou a explorar. Mas ela foi suficientemente Impoi
tante para não ser desprezada e sobretudo para que uma Itlstitil
ografia das mentalidades a situe em seu devido lugar dentro do
conjunto a que pertence.
Viajantes, geógrafos ou escritores da Renascença acredita
ram ter encontrado - ao longe - o país da época de ouro.1"" "< >s
habitantes de Cuba e das ilhas vizinhas... na maioria vivem num
século de ouro”116 (Pietro Bembo). “Os Tártaros... contíguos ao
reino de Catai... levam a vicia bem simples cia época dourada, iWU■
procurando as honrarias e as dignidades do mundo"1" (J. Mat <1 •
“Parece-me que o que vemos por experiência nessas nações |da
América! supera não apenas todas as pinturas com as quais .1
poesia embelezou a época dourada... mas também a concepção
e o próprio desejo da filosofia”11- (Montaigne). “'Iodos os selva
gens Ida Nova Prançai vivem em geral e por toda parte em m
Humidade..., a vida do antigo século de ouro, á qual os santos
apóstolos queriam levar”11' (Marc Lescarbot). Pierre-Martyi, 11u
vet, l.ery, Montaigne, Charron, etc., insistem sobre a nudez dos
"selvagens" uma nudez sem Impudor. Ademais, mesmo nos lu
gares em que o clima não permite essa feliz ausência de roupas,
o s povos vivem segundo o estado da natureza, bles nao conlie
cem o meu e o teu. Não cobiçam as riquezas. Vivem “em grnndi
familiaridade e amizade" uns com os outros. Não têm entre eh s
nem roubos nem processo. Se praticam a guerra, é com coiageim
se são canibais, é com o pleno consentimento dos prisioneiro*
cuidadosamente engordados para o banquete final. Os "selva
gens" não têm reis nem senhores “absolutos e soberanos" Sua10923

109. As exposições seguintes sao tributárias dc ATKINSC)N, ( ¡, Les NoiilWHM


horizons de la Renaissance fiançaise. Paris-Gcnéve: Pro/., I 933. p, 11' liai 1
346-358. Cf. também I.IÍVIN, H. The Myth..., p. 58-83.
110. BEMBO, P (pseud.?), LlIistoireduN ouveati Monde, I .yon, 1556, p, 11 M
111. MACER, J. I.es Trois Livres ... Histoire des ludes, Paris, I 555. p, 01
112. MONTAIGNE, l-'ssuis, I, cap. XXXI, I, p. 263.
113. I.ESCARBOT, M. H istoirede hi Nouvr/le Fsviuie, Paris, 160‘), p. '50 /<»(!,
lililí i ki "o de não Infringir n k‘l cl¡i inUUK'/.i" I sl;i por slnul pa-
i•11 tju -i.it se* (pelo monos lora do <lapada o da Islândia) à “bon-
dul* dos habitantes. Gom delto, suu nudo/ o x pilca-so por um
>Iiiim honovolonto o sua feliz ocjosldadc pola abundância de to-
«11. i i 11 lisas, Konsard, grande cantor da época de ouro (“E en-
i im Min ouvia ossa palavra Teu nem Meu”),1" reuniu a maioria
d> ' i lomas no seu Discurso contra Fortyna. Ele aqui interpela
\ lili galgnon, enviado ao Brasil por Coligny em 1555.com 600 co­
lono" r o critica por querer civilizar um povo
i
Inoeonlomenle selvagem e totalmente nu,
I i" nu do roupas quanto nu de malícia,
l.íiio n.to conhece os nomes de virtude nem de vício,
I 'i Sonado nem do Rei...
One ( om arado coitante não perturba a tena,
\ i|iial como o ar a cada um é comum...

^Ivel ícllz, gente sem sofrimento e sem cuidado


\Ivel alegremente: eu queria viver assim.liS

Porque no antigo mundo tudo se corrompeu: à dureza dp


liniiii ui respondem a parcimônia do solo e a inclemênciâ do céu.
Iitmbcm o contraste marcante entre os “bons selvagens” e os
m il- idos europeus permite aos primeiros dar lição aos segun-
I n ' i lllosolb nu” de Cuba e o “teólogo bárbaro” da Nicarágua
(• |u11\.1111 aos invasores sua sede de ouro e sua crueldade.116 Mas
i ii i n.to entendem essa linguagem. No curso do século 16, em
.i ui. <I. uma falsa civilização, eles destroem os paraísos terres-
in i i|iit’ Unham descoberto.
(,)uo tudo anda ao contrário no antigo mundo, é o que
|o usa também o Protestante Bernard Palissy, que publica em
i M uma obra sobre a qual Frank Lestringant acaba de chamar
I........mi a atenção, Receita verdadeira, pela qual todos os homens
. /. # I hiu\‘d poderão aprender a m ultiplicar e a aum entar seus te-
...... 11 Esse título exprime mal o conteúdo de um livro que

III. IU )NSA1U). CEuvres, V. p. 154 (IP Livre desPoèmes). Cf. também Ibid.,
p I s / 163 “Les Isles fortunes”).
I 15, Ibicl., V, p. 154.
I Id. ( T. ATKINSON, G. Les N ouveaux..., p. 15 e 163.
I I , < I. ,i bibliografia que figura no estudo de LESTRINGANT, Fr. citado
.iiuerlormemc.

2B7
evoca na realidade o "Jardim de relujólo" onde se poderla "lililí'
das Iniqi'iidades e malicias dos homens, para servir a Deus". lia
ta-se de urna retomada limitada do mito da época de ouro. I’a
lissy sonha em acolher “os cristáos exilados ñas épocas de pe ese
guição num lugar ameno c ‘montanhoso’, crivado de 'grotas' pro
tegendo dos fortes calores”. Nesse jardim circular, os animais evo
luiriam em liberdade; as sentenças da divina sabedoria seriam ex­
pressas em letras de folhas e ramagens.

m undo ao inverso, m undo perverso


Concomitante com a nostalgia da época de ouro, a predi
leção pelos temas - aparentados um com o outro - da loucura
e do “mundo invertido” constitui outra indicação sobre o pe.vd
mismo da Renascença. “É pelo fim da Idade Média, nota Micliel
Foucault, que a loucura e o louco tornam-se personagens Impor
tanles na sua ambiguidade... Na literatura’ erudita (com o nos
costumes populares), a loucura está em atividade no próprio
centro da razão e da verdade; ... a partir do século IS a face da
loucura obsedou a imaginação cio homem ocidental”."" Jean
i laude Margolln constata igualmente: “O século 16, mais que
qualquci outro em razão de Isual crise de valores e Isual crise
de <oiiM (em Ia - é <> século dos rituais invertidos ou do mun
do ao Inverso","" Aquilo que era - ou deveria ser.- impossível
torna se real, L.sso topos dos impossibilia não era desconhecido
da Anligüldade e da Idade Média clássica.120Mas a Renascença o
ve proliferar. De falo, a Loucura agora está presente' em toda
parle: nas cortes principescas (desde o século 14, ao que pare
ce) onde ela zomba dos grandes; nos jogos de cartas, notada

118. POUCAULT, M. Histoire d c lu fo lie à 1'âge classique. Paris: O.dlimaid,


1972. p. 24-26.
119. MARGOI.IN, J.-Cl. “Dcvins ct cliarlacans au temps dc Ia Rcn.ms.mu'"
nas publicaçftcs do Centro dc Pesquisas sobre n Renascença da Uuiv. dc IWU
Sorbonne, 1979, p. S2. Cf. também MARIjNLSSKN, R. II. "Boacli and
Bnic^bcl on luiman folly" cm Folie et détñlson à hi RenaUutnce (obra coletiva),
cd. da Univ. dc llriixcllcs. 1976, p. 42.
120. CURTIOS, L. R. lluropahche Utena nr und lateiniscbes MUitLdtiev, .’ <d ,
Reme, 19X4. p. lOh.

ÜMH
menlc uh tuiAs;1'1 nos desfiles de c,irnnv.il; 11,1.** lesliis do Asno,
il'Ki 11n mentes o justamente dos Loncos; na pintura di1 Bosch, de
Mhm’hIicI e de seus discípulos; ñas estampas representando o
mundo "Invertido” ou entilo Aristóteles, isto c, a Razão, cavalga­
da * i lili oteada por Phyllis, a prostituta; nos ensaios críticos cn-
iit ii.i |iials <>s milis célebres sito A Neme dos Loncos e o Elogio da
/ im/ i iihi, etc. No fim do percurso, eis ainda, entre outros, L'Os-
lihhile iIr' />(i:zi Incurabili 0 5 8 9 ) ele Tomaso Garzoni, o Dom
Muhn/i1 de Gervantes, La Hora de todos... de Quevedo (1628-
|n V» i, o ( ,'rUlcón de Baltazar Gracián (1651-1657): títulos que sao
iip» im i Itallzas sobre uní longo caminho dentro dos mundos in-
* nidii . da nascente modernidade européia.122
lodavla, a Loucura da Renascença, já se disse muitas ve-
i i i ambígua. Por seus aspectos folclóricos, de origens às ve­
ra . •Uníanles, ela era manifestação de saúde e não de melancolia.
\ ‘ li nías dos Loucos, dos Inocentes, cío Asno e os carnavais cons­
umiam momentos de libertação. A situação da multidão, a vacân-
■ii piu\ Isorla da razão normativa e cias instituições cotidianas, a
l" i mln-ilvldaile notadamente sexual e aliméntar, a algazarra e a
|o|i m la momentâneas, a licença concedida às palavras injurio-
i - i Inversão das hierarquias, a reutilização de rituais sagrados
l * 11 i Uns burlescos, as máscaras e travestis ofereciam uma "válvu­
la di segurança” pura instintos reprimidos o resto do ano.123 Era
0 qui ui ilava com perspicácia umá petição em favor da" festa dos
1 min i is dirigida a Faculdade de Teologia de Paris em 1444:

I v,.i d iversão 6 necessária, lê-se nesse texto surpreendente,


|ii n<|iic a loucura, que é nossa segunda natureza e parece ineren-
ii ao homem, pode assim exprimir-se pelo menos uma vez por
ano Tonéis de vinho explodem se de tempos em tempos nao se
libre a lampa para lhes dar um pouco de ar. Nós outròs, homens,
unios tonéis mal soldados que o vinho da sabedoria faria expio
m m . ______________ \ ,
I M. <ASTHLLI, E. “Quelques considérations sur le Niemand ... ct pernon
nc" cm Folie et déraison..., p. 112.
I , Sobre este tema podemos remeter, para abreviar, às duas obras já citadas:
Valle el flêm im i à la R cm m ance e Lim age du monde renversé cujos artigos con
têm as bibliografias apropriadas. Cf. também CHARTIER, R. e JULIA, l).
I i Monde à 1’envers” em LArc, n. 65, 1976, p. 43-53.
1.13. Sobre todos esses aspectos cf. sobretudo BERCÉ, Y.-M. Fête et révolte.
I’aiis: I tachone, 1976. Notadamente p. 13-53 e CARO BAROJA, J. Le Car-
n,ir,il, Paris: ( lallimard, 1979. Sobretudo a 2a parte.
ti Ir se cvsse vinho permanecesse mim estado de constante le in icib
taçíio sob o efeito tía piedade e tío tem or de Deus, Precisamos
dai-lhe ar para que ele nao se deteriore, I' por isso que iu »■. peí
m itimos certas loucuras alguns tlias a lim de poder retornai eivt
seguida com m aior zelo ao serviço de Deus . 1 '

Num espírito um pouco diferente, mas sempre com a


preocupação da “válvula de segurança”, o jurista Ciando de
Rubys escrevia no fim do século 16:

Às vezes, é conveniente tolerar que o povo se laça de louco p


se recupere, de medo que ao im por-lhe demasiado rigor, nao o
coloquemos em desespero. '-s 1

Esses “alegres e breves desregramentos” proporcionavam


um “tratamento” psíquico e social. Do mesmo modo eles extra
polavam um quaclró histórico determinado —neste caso, a Renas
cença - e'um grupo humano particular - aldeia perdida ou clda
de próspera.1*’ Mas, ao mesmo tempo, seja qual for sua ancora
gem no mais longo prazo, eles só são compreendidos, na sua es
pressão dos séculos 14-17, quando relacionados a uma civiliza
ção cristã, “O louco, escreve Yves-Marie Bercé, como o místico
ou a criança muito pequena, é alguém cuja cabeça vazia, alliela
ás solicitações do mundo, pode receber o sopro cio Espírito ,San­
to”.u7 O menino coroinha com sua mitra provisória e o louco com
sua coroa davam uma lição de humildade aos grancles e aos clon
tos.1-8'As festas dos Loucos, dos Inocentes e do Asno foram de
início eclesiásticas antes de serem expulsas para fora do sanlun

124. Citado em Patr., Lat., CCVII, col. 1.171 e mais recciuemciite ■ui
BAKHTINE, M. L’CEuvre de Frdnçois Rabelais ei la culture popúlem e un Aloyen
Age et sous la Renaissance. Paris: Gallimard, 1970. p. 83. Cf. também <iUII i
BERG, M. Le' Carnaval à la fin du M oyenAge et au début de la Renaissance Joto
la France du Ñ ordet de l'Est, tese de 3’ ciclo, Paris IV, 1974 c sua coiitiihulqlii
ao t. III des Fétes de la Renaissance, éd. CNRS, 1975', p. 547-554. < aínda lo
M ort despays de Cocagne (contribuição de Chr. Soland), p. 14-29.
125. RUBYS, Cl. de. H istoire gónérale de la ville de Lyon..., 1604, |>. i1»1) mi I
Citado por DAVIS, N. Z . Les Cultures du pe\iple. Ritucls, savoirs et réshuuu •i
auX V L siècle. Paris: Aubier, 1979. p. 150.
1 2 6 . C A R O B A R O JA , J . l e Carnaval, n o ta d a m e n tc p. 2 8 e 1 5 7 .

1 2 7 . BERCÉ, Y.-M. Fke etrévolte. |>. 3 6 .


128. CAR(1 BAROJA, j. l e ( am av al p. 320-325 a propósito do obispillo

E40
i Ih i . U
i | ;i do carnaval explodia iinles «lo silencio, do jc|um
t da nlsie/a da quaresma. Sabia se mullo bem que o Kei clac|Ue
|i días em (jue era permitido comer carne porcia seria logo ven
t Id" poi "Madame sardinha”.I"'
A propósito nao só dos mosteiros de jovens e das algaxar-
i 11, mas lambem das festas ruidosas que preenchiam o calenda-
du di 'ule dezembro até a quaresma, o s,estudos recentes mostra-
........ |in IIcenla nào é rebelião”.130 Essa fórmula de Nathalie Da
.......... be agora uma ampla aceitação. A “contra-ordem”, escre-
' t iu "i Marle Bercé, “ainda é uma ordem”.131 O Lord o f Misrulc
nao i mu lo rd o f Unruliness. O “ridículo” não é forçosamente
wibsvish'o" e a caricatura pode ser “pedagógica”. As brincador-
M dos biili «i\s reais nào punham em causa a instituição monár-
i|ii|i i A Inversão das mascaradas constituía uma “imagem sime
lili i da realidade, e por outro lado os ritos “permaneciam mul­
lo n|in m dessa inversão teórica”. Quanto aos tribunais de jovens
i i ilo, 1/-arras, exerciam “um papel.de salvaguarda do futuro da
1.......mldade pela proteção de suas virtualidades de fecundidadc
( ilt icno v ai, a« Nào se deve, portanto, separar festas folclóricas
i ii ii o de passagem.132 Podemos até pensar com K . Thomas q u e
l h illnal confirmavam as estruturas, as hierarquias em vigor e
« d 1111 sei ilações da época da sociedade pré-industrial. O burles
mi mi dei I,irado "legítimo” durante um período limitado e em
ni i lini . precisas e todos estavam de acordo para nào ultrapas-
t.ii ii nas barreiras do calendário além d'as quais recomeçava a
lilii IVii mal.
I . .a posição de evidência dó caráter “funcional” dos ritos
. iin n ale .» os (no sentido amplo) contradiz sensivelmente a tese
| lll hall Bakhtine que viu neles uma revolta da cultura popu-
ln imilla a cultura erudita, uma inversão das hierarquias, a
ui* ii" ui Ia provisória de uma verdade das profundezas insur-
Itliidn si * onlra os dogmas oficiais, uma breve vitória da carne
............ asc etismo, e a recusa, uma ou algumas ve^zes por ano,
1 1 11 •lina, d a s autoridades e das proibições religiosas. A libérela-

i "i lliiil,, lunadamente p. 32, 51, 132.


I 10, I >AVIS, N. Z. Les Cultures..-. p. 170 e mais geralmente para o que segue,
|i I 50.209.
I 11 IlEIK 1H, Y.-M. F ête... p. 36 e mais geralmente para o que segue, p. 28-
II I >AVIS, N. Z. fala de “regra ao inverso”.
I \», DAVIS, N. Z. Les Cultures... p. 168-173.

'M\
de exterior que cáraclerlzava ¡i le,si a popular era Inseparável, |ul
ga ele, ele uma liberdade Interior momentaneamente reeonquh»
tada. Uma concepção "positiva” - isto é, materialista do mnn
do triunfava, pelo espaço d e -algumas horas ou de- alguns días,
sobre-uma còerção espiritualista.1"
Demasiado sistemática, essa tese não é muito convliu'ente
Mas é bem verdade que as festas, nao se transforma rain por ve
zes em revoltas, que as autoridades civis sentiram cada vez mais
medo da violência anônima, que trabalharam para enquadrai i
controlar os ritos folclóricos fazendo designar pessoas abastad i
e respeitavelmente conhecidas como "abades dos loucos ' 1 1 i
verdade sobretudo que os homens de Igreja - católicos antes de
1520, católicos e protestantes depois - mostraram uma antipatia
crescente em relação a todas as manifestações burlescas e mes.
mo festivas. Nas algazarras, eles viram uma oposição a um novo
casamento de viúvos e viúvas, aceito pelo direito canônico; no
carnaval, nas festas de maio e nos fogos de São João, viram re*
surgências do paganismo e ocasiões de escândalo; nas lestas doM
Loucos, do Asno e dos Inocentes, uma inadmissível confusão tlt)
sagrado c do profano, que se repetia às vezes durante as pioi Is
soes de Corpus Christi,1" Lm 1580, um padre católico da boêmia,
Vavrinec Rvacocsky, publica uma... divertida meditando sohtv
doze filhos de Carnaval, ou patriarcas infernais... onde demoiiíí
ira que “os diabos, durante o carnaval, invertem com o podem a
natureza do homem, depois, apossando-se dele, o recompensai)!
com o Inferno.130
A Igreja, no início dos tempos modernos, moveu então um
combate cada vez mais vigoroso contra a loucura coletiva e pu
blica. Esse combate só foi.parcialmente coroado de suee.ss» > Ma
na época em qye começa o internamento de loucos, ele é ie\r13456

133. BAKHTINE, M. LXEuvre..., passim e lunadamente p. R7 l)(),


134. Cf. por exemplo o regulamento de 19 de janeiro de I 339 em Nlt t i|i|i
prevê a eleição dos quatro “abades dos loucos”: SIDRO, A. Ir ( itnhm tl th
N ice et ses fous. Nice, éd. Serre, 1979, p. 22-23. Mais geralmcnic (iUII 1IU I'
M. Le Carnaval..., passim.
135. CARO BAROJA, J. Le Carnaval, p. 3 2 1.
136. A tradução completa do título é 0 C arnaval ou livro que inlrodiit a ivi
dadeira piedade, cara a Deus, p or uma agradável m editação sobre dm e /l/boi
carnaval ou patriarcas infernais, e ensinando salutarm ente porque conven a w
dos evitar sua com panhia, Praguc, 1580. Dossier amnvclrnentc coniiiult iilltl
por M.-E. Ducrcux.
Indi h de mu diagnóstico peremplório: loucura é Igual pecado,
I i i i ei|unçào nao fol aceita sem reticência •mesmo no plano da
• tilinio dlrlgcnlc. No Elogio del Loucura de Erasmo, ela desempe­
nha diversos papéis e apresenta diversas faces. 1:1a significa no
hit» l*i lellcldadc e juventude. 1:1a é a feliz virtude das crianças.
I 11 • sinónimo de franqueza e de humildade.137 Todas çssas q u a ­
lidades remetem ao mesmo tempo às necessárias alegrias terre-
iM i ao simbolismo cristão das festas dos Loucos e dos Inocen-
li i l lo final, a Loucura se torna adesão ao mistério da salvação,
0 ah mdono da "sensatez do sensato e da prudência dos pruden-
1 piolándose nos profetas, no Evangelho e em Sào Paulo,
i i i ano afirma com este último que “a palavra da cruz é loucura
1111 i i >,s homens que passam”.,w Um século mais tarde, Dom Qui-
.1. - (presentado com o um lunático tomado por uma idéia fixa
m ils lambem com o um ser puro, generoso e leal, deslocado num
........ 1 1 que perdeu essas qualidades. Erasmo e Cervantes tenta
........... . > parcialmente, cada um à sua maneira, um verdadeiro
. logio da Loucura”, transferível por sua vez do plano simples
iio mi religioso para o da contestação social e política. Na Ingla
i ni i li i século 17, veremos radicais - Divàgaclorès, primeiros
• ui il eis, ele. - se apresentar com o loucos cie Cristo e lembrar
111* |i sus foi uma espécie cie excêntrico. Lilburne proclamará em
lniu •pie Deus “não escolhe muito os ricos nem os sensatos..,
iii.in os li unos, os simples de espírito, os homens e mulheres que
n i luíame,s e desprezíveis aos olhos do mundo”. Winstanley afir-
.............. nbem em 1649 que “a proclamação de uma lei justa virá
i Iimi polires, dos infames, cios desprezados e dos loucos cleste
mundo" M" Mas 'no Encom ium cie Erasmo existe outro aspecto,
in n <ni conformidade com o sentimento habitual das elites cia
. ......... a assimilação entre os defeitos humanos e as atitudes lou-
i <h mercadores, os gramáticos, os teólogos, os pregadores, os
iti n is, i is papas, ç s cardeais e os bispos sào geralmente lou-
I. i|iie Ignoram seu estado e que não vêem que seus compor-
i ......... tos absurdos os levam a eles e a humanidade à desgraça.
M ii, <l.i metade do livro de Erasmo é consagrado a essas conde­
nai ui , (|tie se juntam então às de Sébastien Brant.

IV . <T, lunadamente na ed.. Garnier, p. 23, 33, 73, 163.


IW
< ( I. lunadamente Ibid., p. 173-181 e 303 (n. 543).
I V), I ".i.is c ita ç õ e s e m H I L L , C h r. L í M onde h 1'envers. P a ris: P a y o t, 1 9 7 7 .
|i. ¿18 219.

24 d
I Non </<>s insensatos apareceu no período do i arnaval (fe­
vereiro de 11‘U) c o .nitor inseriu mu capítulo tic <ondeo.u..i*•
ties te último: "A Idéla tic <|tic o carnaval é fclto pura se dlveilli e
Invengo do diabo ou entao tía loucura.,, <) gorro e<>m slnlnlu>s
ira/ angustia e tlor, mas jamais repouso","" A obra de Nébastlen
Urant é talvez a Ilustração mals rtotável de um lato cultural lm
portante: a crescente adoção dos temas tía loucura e do mtindii
Invertido por alguns meios intelectuais, sobretudo a lgre|a, paia
Hns tle culpabili/ação, Para eles, loucura e subversão são Intel
cambiáveis. O mundo ao inverso é um mundo perverso."1 A-, allí
maçòes nesse sentido são inúmeras nos textos europeus entre o
fim do século 15 e a metade do século 17..O gratule moralista
<íeller tle Kaysersbcrg prega na catedral de Kstrasburgo sobre leis
tos da Nciu cios Insensatos. Na esteira de Branl, o humanista e Im
pressor Jodocus Matllus publica em 1501 um Stnltifercu' nonos ("tis
naves loucas1',) que retoma a ficção da frota que Brant tinha aban
donado desde seu primeiro capítulo. Hle lança assim ao mai di
mente seis navios, <) primeiro é o de liva, autor tio pet ado orl
glnnl, i ia|iianlo os outros representam os cinco senlldt>s e a*» b mi
linas i que eles nos arrastam."' Nu truc canção de 15.’..’, o lian
• is. a i ii i 11o unas Murner, Inimigo de I, útero, declara que tudt >c s l |
d» peinas paia o ar na crlstandadé: “Os pés estão em cima do
bitin o, i. i ano na líenle dos bois”. Os eclesiásticos afastam os
In is, as autoridades dormem."' Um dominicano italiano, (lim o
11io Mllnatl, nos albores do século 17, entrega ao público uivut
ulna Intitulada o M undo t>imdo de cabeça para b a i x o , A Inito
•ligao da tradução francesa declara sem ambigüldadc: "A Irjtch
•ao «In antoi e de mostrar por vivas raZòes que o pecado Inito
ilu/lti uma tal confusão no mundo, que se pode justamente dpi i
que todas as coisas andam ao contrário"."'’ Affinatl, depois >1. lu

M(). HRANT, S. í.ii N effies fouts, cap. 110, p. 458 c 462.


14 1. Meu propósito integra-se pelo viés da ciilpnbilixaçtto nas anitlln . , p>i
ias na obra coletiva Vi suges de In folie ( J $0 0 -1650) sob a dir. de A. Kt iIou.Im
A. Roclion, Public, da Sorbonne, Paris, 1981. '
14,’ . (il'RI.O, A. "Pntlius Asccnius Stu hijhiie N<tves (1501), a latín addtii
dti ni to S. lítanos N d rrcn sih iff (1494)", cm Fatie et dM ilson. .., p. 11') I ' ‘
14.1, PtAIU), I!. "Thoinas Murner contrc Lutbci" cm lblil,, p. 201,
144. hsse é o título «Ia trad, franc. dc 1610. Título italiano, II Mondo <d imvi
eio e SOMpni, Vcnisc, 1602. (!('. "I.c Monde rcnvcistí sens dcssiiK ilroaitit d* I ia
tilac, Aílinati em L lm n & e.,, p. 14T 152.
145. I e M onde ren vem1, p. I Ja-b.

:u i
iiiili i época de oí no, declara que i) |MHini i), (Irsele o pecado
•111(1111,11, iornou-so urna "felá metamorfose tío si mesmo”.I,r' Alo
mi iin ■i» mundo das esferas que, eom a permissão de Deus, se
|n i mili andar para irás. Adão agiu "como uma besta louca""’ e
ImiIiim ir* srus descendentes se comportam da mesma maneira.
MIhiiilI da urna prova decisiva lirada de sua experiencia de prc-
gitdoii Nos vemos todos os dias... que a audiência vai num sen-
Hi Im Mu <<mirarlo ao reto caminho, que se corre mais para ouvir
mu 'iiililmbanco, inri contador de anedotas, um .charlatão, que
•m I* ni i reme para as mãos ou pó para os dentes, ou veneno
pii i talos, do que um hábil pregador”.“*
L i Ilord </r todos... do diplomata Quevedo (que tinha esiu-
•lili!i i ie< il<>gla), com a ajuda da ficção, põe por sua vez em eviden-
•M i i•alld.nlr e a permanência do mundo invertido. Os hom ens’
mi •pii is.iin a Júpiter porque a fortuna concede seus beneficios aos
lililíis e a miseria aos virtuosos. Júpiter decreta então uma “hora”
di \i ida*li■<luíante a qual as situações serão invertidas. No fim da
|liihi •••ricos, agora humildes e sem recursos, estão arrependidos;
Ilitis os iinllgos pobres, que receberam riquezas e honradas, entre­
gam •• doravante ao orgulho e ao vício. Assim, aconteça o que
n imiri ri, o mundo permanece invertido com uma quantidade
louslanii' de loucura e de pecado.1*9 Mesma constatação amarga
ii" ' m i, ou do pregador jesuíta Baltazar Gracián.lso.O mundo aqui
i d. ••! dio como uma fachada enganadora onde tudo é mentira e
Miidil * oino uma cidade onde “tudo é ao inverso”: “Aqueles que
di o ilam m i cabeças pela sua sensatez e seu saber, estes estão por
........... lespic/ados, esquecidos ç humilhados; ao contrário, aque
li •|in deveríam ser pés, por causa da sua ignorância e inaplld.u»,
■ ' . i . piv.soas incapazes, sem ciência nem experiência, sáo eles
i po . om.iiulam".IMA partir daí, o autor generaliza:

146, Ibid., p. 63a.


14 ' lliiil., p. 10b.
I4H. Ibid., p. 84a c b.
I I1). RIAND f RE LA ROCHE, J. “La satire du ‘monde à 1’envers’ chcz Que
vedo" cm V Im age.. ., p. 35-71.
110, REDONDO, A. “Monde à 1’envers et conscience de crise dans le Críti­
niu dc Raltazar Graci;ín” em LIm age..., p. 83-97.
I ’>I. I in sapiência a A. Redondo, e utilizando suas traduções, remeto para a
rtl. do (.'rilicón que figura nas Obras completas de Gradan, Éd. Arturo dc
I luyo, Madrid: Aguilar, 1960. Aqui I, 6, p. 564a-b.
Tudo anela ao contrario.., a virtude <• perseguid,i, o virio,
exaltado, a verdade é i,iuida, a mentira, trilingüe, ... os livros es
tito sem doutores e os doutores sem livros, ... os |ovens se »•*
tiolam e os velhos reverdecem. ... Os animais ;igcm como lio
mem e o homem como animal, ... as movas choram o os velhos
riem; os leões balem e os cervos caçam; as galinhas cacare|mvt
e os galos se calam...IS-
&
Augustin Redondo, de quem tomei emprestadas essas ua
duções, põe em relação a importância do tema do “mundo Invoi
tido” na litèratura espanhola do fim do século 16 e da prlmeli.i
metade do 17 com a¿crise” que atinge então o mundo Ibérico.,M
Esse vínculo não deixa dúvidas. Mas é preciso ampliar a oh,sei
vação: o lugar considerável atribuído à loucura no discurso da
cultura escrita européia durante cerca de 150 anos remete a eilsr
de uma civilização,113
5
254 a uma atmosfera de inquietação, a um sen
timento, penetrante de culpabilidade.

Ó século do ferro enferrujado! exclama John Donne, Que um


[espírito mais avisarlo
l,he dé um nome pior que esse, se existir;
l'i .i a época do lérro, quando a justiça se vendia; agora
I a Injustiça que se vende, bem mais caro.1556 5
1

As Imagens do mundo ihvertido iluminam os textos, Tai1


lo elas iniiio eles conservam certamente uma carga de humor
que vem das lestas populares e dos ritos carnavalescos. A l.ouetl
i , i da Renascença faz rir e é por essa razão que yrtistas c esc rito
res acumulam detalhes Insólitos. Quanto mais eles "acrescenta
rem", maior sera o sucesso - é ulna constante do gênero, Mas a
lição também deveria fazer mais efeito.15,1 Porque, na época de
nosso estudo, a iconografia da loucura não é gratuita. Ela é citsl

152. Ibid., I, 6, p. 572b-573a e IÍI, 3, 864b.


153. Vbnage,.., p. 89-90.
154. Opinião concordante dc MARAVALL, J. A. l.a Cultura tlrl Harmno,
Barcelona,
155.1X)NNH, J. Satín- V¡ V, v. 35-38, citados cm JONES DAVII-S. M, I: IV.
times et tvbelles. VEmvaín dam Iasociéféélhabéth/tine, Parlai Aubier, I9H0. p t
156. O'. Cl 1ARTIER, R.: JUMA, D. “Lc Monde ii renver*” cm V A n , n. 61,
1976. p, 43-53 (com bibliografia).
n miento r t ondcnaçáo. Subsistem cliivkl.is sobre ,-1 Hxtmçào da
/'. ./»•/ (/c loucura (Museu elo Prado), <|ue lulvex nào seja uma
ubi i original ele Bosch, e sobre sua A Nape tios Loucos (Museu do
11mui»') <|ik* alguns propõem chamar O Concerto na Barca.'''
I ui io d o i aso, os dois temas remetem a divertimentos populares
diii I',ii n s baixos, Nesta regiào, os loucos eram representados
ii iin uma pedra na cabeça que era preciso extrair e é provável
i|tn poi ocasião das lestas, charlatâes e falsos cirurgiões simula-
i mi a operação. Por outro lado, o nome de Blauw e Schuit (A
n tv i i ni) qualificava desde o início do século 1,5 sociedades cie
I .... «i espalhadas por todo o país.158Mas ambos os quadros uti­
lizam o t õmlco para fins moralizantes: o cúmulo da loucura é
•|io •Ia se cuide por si; ora, este mundo invertido é porém a rea-
li'l n h ii aldlana. Quanto à Nave dos Loucos, mesmo que se eleva
llama Ia o Concerto na Barca, ela é evidentemente inspirada
I ii li i In io de Sébastien Brant, com esta conotação pejorativa aco-
pl.iih .1 musica que era clássica entre os rigoristas da época. O
• " " do pecado e dos indiferentes está a caminho da perdição.
SI» ui disso, essas obras de Bosch só se compreendem quando
i "I"' adas numa série: ao lado do Ja rd im cias delícias, da Carro-
teno ( dos Sete pecados capitais, composições que insistem
■......... num sobre a loucura do pecado e convidam a pensar so­
be ' is Uns últimos,150
I »a mesma maneira que os quadros de Bosch, diversas
oblas pintadas ou gravadas - de Brueghel, o Velho, são inspi-
ladas poi lem as "carnavalescos” ou ritos populares. Ele também,
II*1......... litios artistas dos Países-Baixos, representou -a operação
11 |" dias na cabeça. D u lle Griet (Margot enraivecida) liga-se às
«.linas da mulher rabugenta das fábulas e das farsas. As gravuras
........ IHs idas por adaptações do século 17) relativas à Peregrina-
11|t • p/e Mo/enheek evocam um costume local: uma vez por ano,
imlgns e parentes forçavam os epiléticos, as mulheres histéricas
. o di nieuies a transpor a ponte de Molenbeek, na periferia de
Um i l i'. A estampa intitulada Temperantia reproduz, entre ou-

I ' <T. ADEMAR, H. Corpus de la peinture des anciens Pays-Bas..., Bruxel-


I. . I%2, p. 20-32. MARIJNISSEN, R. H. “Bosch and Brueghel on human
I nllv cm Folie et déraison..., p. 46.
I oi. MARIJNISSEN, R. H. “Bosch and Brueghel...”, p. 4 l e 43.
IV), IbuL, p. 47.
160. Ihiil., p. 42.

‘M 7
Iras, uma ivn.i ele teatro popular: o louco com mi bastão <|iic,
sobre um tablado, da uma resposta Inesperada ou absurda a ou
tros alores,11,1 l'.nl'lm, a gravura Intitulada /I Festa tios i.oucos resil
tul ao mesmo tempo as lestas com esse nome e os desregra men
tos habituais tio carnaval.
Mas a significação geral dessas evocações e amarga, sobre
ludo no caso de Duollo ilriot (Museu Mayer Van den Mergli, An
veis) liste pesadelo, notavelmente pintado, com um evidente ,11)
tlfemlnlsmo, antecipa sobre aquilo que o mundo se t<>rnatia t asi •
fosse entregue â violência de viragos domjnadoras e liberadas,
I )e espada na mào, a megera Margot e suas seguidoras atacam os
homens aos quais obedeceram durante muito te m p o .S o b re tmi
fundo de Incêndio, a legiào demente se dirige para o inferno. Na
/■'ostd tios /.n u c o s , os balões carregados por personagens titubean'
les e desvairados simbolizam outras cabeças perturbadas, A gia
vura intitulada Toinftomntid, que comporta no seu ângulo supe
lior esquerdo um louco e dois atores, dá uma lição de modera
<10 a todos os que se entregam â luxúria, â cobiça, ao esbanja
mento nu ao contrário naufragam na avareza (rirom lum ul noi
i i iln/ihiH (/(■(////, j t o i /IuJ vt iuxuriosi dppareamus, m x o ra m tono
i lh' s»>hfltil ddt oiiscnrl <'.\'isldlUUS).M
Mais significativa ainda e a estampa consagrada a ih h
1•ada um 1 no alto da qual avistamos um louco olhando-se n<t es
p, II1.. *"* |i ia,.mdo com a dupla negaçào nemo non c reullllzaiulo
o tema europeu todos ninguém, Hrqeghel lança uma acusadlo
ao nn smo tempo Individual e coletiva: nós somos todos solida
iio, no anonimato do pecado, mas ninguém tem consciência de
sua 1i sponsabllldade. lilck (cada um) é o alquimista tentando la
bilt ,11 ouro, e o mercador no meio dos fardos de mercadorias, e
o soldado conquistador, é quem disputa uma peça de tecido mui
seu vizinho, A legenda ensina: “Cada um (Nomo non) so piocu
ra seu Interesse. Cada um em todos os seus empreendimentos so
procura a si mesmo. Cada um em todas as ocasiões aspira ao lu

161. Ibjd.
I(>2. Ibld,, p. 49.
I(>3, Ibld., III. 5, |>. 48-49.
I(>4, lliid.. |>. 4S c il. 10, p.
48-49. Cf. também cm Iliiil,, ( '.A.STII I 1. I
"Quelqiics toiuidérntions mu lc N iem anri..." c KI.KIN, R, "I cThénic «lu (*m
ci rimnie lnimaimtc" cm "Unumoflnu» c Hrnieneuticn" Calilci ilc /'AhhM tt
tlc/'¡loso/hl, I9(i.t,

: mh
im Mm pux.i pura <> seu lado e o outro para o dele. Todos so
ii m um desejo: possuir".1'" Mais feralmente, a loucura do peca
i Im i da o caos: é também a lição da Torre ele Bcibel, um tema que
lliiii gliel e «nitros em sua época cultivaram. Assim, a despeito de
•!i i illn s enigmáticos e controvertidos, BoSch e Brueghel pro-
I*•ti mi a iursina moral: a loucura, ou seja, os comportamentos co-
ii li nt, is dos homens, merece censura. Bosch, como pregador
#i milii miro e poderoso, chama loucura o apego aos bens terre-
tiii> Itiueghel, líilve/ mais humanista e mais indulgente, cleseja-
111 «pó n homem fosse razoável já que ele é dotado de raza o;
1111 •• nm privilégio que ele usa pouco.160
V. estampas do fim do século 16 e do inicio do 17 consa-
,.i id is ao "mundo invertido" sào sem dúvida, elas também, mais
.......i ili/nntes (|tie um primeiro contato com elas podería fazer su
pm 1 I i eilamente por prazer que elas acumulam os imposslbi -
//.i diM'itldos: barcos em cima de montanhas, hoinens cavando
ni........mar, filhos batendo nos pais, mulheres usando espadas e
Io min ir., a roca de fiar, cavalos ou asnos cavalgando camponc
piilm ■•. dando esmola aos ricos, o “bandido” montado num
i mi i I en«|uanlo o rei, de coroa na cabeça, vai a pé. Mas, por um
Itiiln, i v.as Inversões se pretendem absurdas. Elas fazem rir por
■I ........ .... absurdas e por ricochete repõem as coisas no lugar e,
pm mitro lado, podemos comenta-las por este “emblema” de
lililí i* velador das intenções pedagógicas que presidiam à con-
h i • n i dessas imagens humorísticas:

' » mt ii Hlo está invertido, eu não compreendo;


i ) Interno comanda, e o senhor lhe roga
i ) rico chora, o pobre ri;
A montanha está embaixo; a planície nas nuvens.
A lebre caça o cao
l o rato, o gato...'61'

lOV "N a n o non quaeritpassim sua commoda. Nem o non quaeritsese cunctis in
ir bus ay/ndis. Nem o non inhiat privatis undique lucris. H ic trahit, Ule trahití
i unrlis amor unus habendi est. ”
100, Adoto aqui totalmente a conclusão de MARJJNISSEN, R. H. “Bosch
.uní Brueghel...” em Folie et déraison..., p. 45 e 47.
I(»/. « T. (¡RANT.H. F. “Images et gravuresdu monde à renvers” em L ’Image...,
|i. I / M. ( 'í. também CHARTIF.R, R.; JULIA, D. “Le Monde à enverso”.
KiH. <litado c traduzido em Ibid., p. 2H.

241)
Knfim, várias estampas (menos populares talvez) mili/.mi o
tema do "mundo virado” como um elemento de pregação, lima
de 1576 tem por legenda: "Hipócrita e Tirano mantêm o mundo
ao contrario; Fé e caridade dormem, como testemunhas o lempi i
e nós todos”. De fato, vemos o globo terrestre submetido a urna
velha mulher que segura um rosario (a Hipocrisia) e a u.m solda
do que carrega uma pesada espada. I Jma outra estampa de Ib \ ■
mostra o mundo invertido rodeado por Demócrito cjue rl e I lera
dito que chora. Dentro do globo (ele cabeça para baixo), homens
lutam, barcos naufragam, etc. A legenda proclama:

Vejam este mundo revirado


Aos bens mundanos muito dedicado,
Que por um nada quer perecer
Sob a sombra de cego prazer.
E Satã que sempre vigia
Lhes promete bens aos montes
Sabendo que sob taf prazer
Se esconde um mortal arrependimento. 109

Permanecemos, assim, dentro de um discurso culpabili/ador,


Uma prova suplementar nos é fornecida pela utilizadlo
para fins polêmicos dos temas conjugados da loucura e do mun
do invertido: o adversário é um louco (perigoso), responsa\ * I
peloteaos em que mergulha a sociedade. Na época, como os d.
bates mais acalorados se desenvolviam sobre o terreno religioso,
católicos e protestantes se, acusavam mutuamente de demência
culpável. Thonras Murner, em 1522, intitula Q Grarulc Lom o In
tero seu agressivo panfleto, contra a Reforma. Nào é o própri< >Lu
tero que é assim designado, mas “a encarnação polivalenh d»
seus sectários imbecis, ávidos ou lúbricos”.119
67017O árgumento do ll
vro é o seguinte: um franciscano encontrou um louco gigantes*
co, montado num trenó puxado por onze cavalos e outros lou
cos. Essa imagem carnavalesca simboliza aqui a enormidad' d.
um pecado.17' Murner tenta exorcizar o Grande Louco assimilado

169. Ibid.êpl. II, p. 32-33.


170. PLARD, H. “Folie, subversión, hérésie: Ia polémiquc cleThomiis Minm i
contre Lutlier” em Folie et dêraison.,., p. 200 c mais gcralmcmç p, l‘) ’ .MUI
171. LEFÈBVRE, J. Les Fo/s et la fo lie, étude sur les gen res du eom it/iie el / . / 1 i Ai
tion litlém ire en A/leuiugne /u'tuhtut Li Reuiiissuiuc. Paris: 1968. o. Ti •! '
i imi possuído polo demônio, lisie resiste, mus conlcs.su carregar
di Mim de si nuls loucos do que o cavalo di' Trola chelo de gre
Mili na i aliena estavam os loncos eruditos e os pregadores que
i le i mijam a scdlváo, no bolso, aqueles que “lavam as mitos nó
ilinln lio i' nos bens alheios’’ alusão ã secularizado dos bens
•i |i tlil'illci is, eU'. Um purgante administrado ao Grande Louco
miiii lito pom o eleito quanto o exorcismo é o gigante morre im-
11» nili ule Segue se um enterro grotesco com querelas familiares
i ni im no da herança. Murner sentiu a chegada da Guerra dos
i impi ineses ( ISi i IS2S) e quis colocar seus contemporáneos em
iiiitii lo 11 mira os perigos sociais - as reviravoltas, portanto - que
i l‘>huma podia acarretar. Por outro lado, percebeu uma grave
i• i im desmantelamento cios sacramentos pelã Reforma. Sc
ii ■ i ' iini nto não é mais um sacramento, todos os repúdios são
I" inilildi is Se o moribundo não pode mais apoiar-se na extrema
um in e na Interccssào dos santos, eie morrerá na angústia, en-
iii |pu , sozinho, ao julgamento do Deus terrível. Denunciando,
iinii uma verve frequentemente obscena, tào graves perigos,
li.......... . decididamente, ele próprio, como um louco
in 11'lh' i'i de seus contemporâneos. Inversão dos papéis clássicos
iui •....... . os loucos tomam o sensato por um demente quando
• ih a nía protcgO-los contra a tempestade.
Do lado protestante, utilizou-se igualmente o tema do
niiiiidi i Inverliilo para fins acusatorios. Pierre Viret numa obra de
llliilo significativo, O M u n do no império... declara que “aqueles
, |i11 di vedam ensinar e guiar os outros vão de través, em recuo
............... enquanto os “imperadores” se transformaram em
pi"i idores".1* Agrippa d’Aubigné explorou ainda mais aquela
liiliiiula inundo inverso, mundo perverso”. Bem entendido, ele
i , i m , i aiólleos e os soberanos perseguidores dos Iluguenotes.
• i mu i no mundo inverso / o velho pai é açoitado pelo-filho per-
\i mu i" ( TniyJfjues, i, v. 235-236),17í do mesmo modo que os reis
•|in di veríam ser os pais do povo se tornaram “lobos sanguiná-
i Im (I, \, 197-198). “o sábio justiceiro é arrastado ao suplício”

I VIRliT, P, Le M onde à l ’em pire et le monde dém oniacle. Éd. de 1580, p, 4


i ( I. cd. 1561). Citado em CEARD, J. “Le Monde à lenvers diez d’Au-
lugiu4" cm LJtnage..., p. 117-127. Tiro igualmente deste autor as citações que
neguem.
I V./ rv Trafiques figuram no t. IV das (Euvrcs com plhes d’A. D ’AUBIGNÉ,
lid, li, Réauinc ct de Caussade. Paris: 1887,
(I, v, 233-23*»), ";ls íH'fiis de repouso silo áreas estrangeiras ,i••
cidades do meio são cidades fronteiras” (I, v. 22^ 22(0, () .*.<*» ir­
lo nada mais é “que uma história trágica, / Sáo farsas e Jogos Io
das as suas ações (dos tiranos)” (II, v, 206-207). <> cclro sagt uI. *
estão “na mão de uma mulher impotente” (Catarina de Médlt Is)
(I, v. 734), e o anticristo, ou seja, o papa, tornou-se “Deus na t« i
ra”: ele “dispensa o direito contra o direito”, “autoriza o vício",
“salva o condenado num instante”, “aloja no céu aos golpes um
regimento”, põe “o inferno no céu e o céu nos infernos",
(I, v. 1235-1244).
H também um mundo invertido aquele da l.iga csllgnuit!
zada pelos católicos moderados, autores da Sátira Mciii/icia

Vemos aqui “os pequenos se tornando grandes; os pobres, il


còs; os humildes, insolentes e orgulhosos; aqueles que ohedi
ciam, comandando; aqueles que tomavam emprestado, prallt iil •
usura; aqueles que julgavam, ser julgados; aqueles que aprisiona
vam, ser aprisionados; aqueles que estavam dé pé, estar senlti
dos. O casos maravilhosos! Ó grandes mistérios! Ô segredo* d o
profundo gabinete de Deus, desconhecidos dos Irágel.s inoiialsl
As alvas se transformaram em alabardas; os escrínios, em num
([líeles; os breviarios, em escudos; os escapularios, em <ourava*)
e os capuzes, em olmos e capacetes”.171

A exploração polêmica, no quadro dos conflitos rcllgl.... .


do tema da loucura - considerada sinônimo cie perversão - ch­
ela rece, portanto, de maneira exemplar sua anexação pela <uliu
ra dirigente. E deve-se destacar de passagem que os revolta loitil
rios ingleses do século 17 que se apresentam como "loucos
mas é para convencer o mundo da loucura e recoloc a Io no lu
gar - seguem inconscientemente a impulsão dada pelas ellu u
ligiosas que culpabilizam sua época graças aos temas ei>n|UFUo|
da loucura e do mundo invertido.114
775 Estamos longe, cm iod<»< asi •
não somente do desregramento popular das festas carnavales! as
- “a válvula de segurança” - , mas longe também do ca ral n "lun
cional” dos festejos divertidos que permitiam que a juvenúidi
exprimisse, que os ritos de passagem se efetuassem, que »> li m
po fluísse segundo um ritmo coerente. A loucura, com suas mui

174. Satín Ménippée. Ed. Cl». Rcad, Paris: 1876. p. 120-121,


175. Acrescento este esclarecimento ao livro de 1111,1., < lu, I r Moni/r <) /ímivm
H|'111 miiotnçòe.H qegatlvas, tornou su o argumento preferido de
tuii tliiu urso i oin predominância conservadora c moralizante,1" ()
uiuiitlii Invertido c .t destruição de um equilíbrio, cósmico, reli-
. ............ . social, Um editor de Thomas Cromwell, editando um
/h nit ,l\‘ for sedltlon depois da revolta da Peregrinação da Graça
d» I i Ui, declara de maneira reveladora:

Nilo seria uma coisa louça e inaudita que o pé dissesse eu que-


io usai um chapéu, assim como a cabeça. Que o joelho dissesse
<u quero ler olhos ou outro capricho, que cada ombro reclamas
se uma orelha, que os calcanhares quisessem ir na frente e os ar­
tel lios atrás.'"

I in outro registro, A Megera Dom ada de Shakespeare ex-


pi» i desordem doméstica que cria uma esposa indócil para .1
pi 1! o uci essa rio um rude treinamento para que a ordem normal
d 1. 1nls.is <• .1 hieraixjuia dos seres sejam restabelecidas. Por ai se
11 11 uno se operou a passagem da farsa e das algazarras para o
II ' urso <ulpabilixador. Mesmo nas festas, a loucura e o mundo
IIIn•ilido podiam constituir uma maneira de repor no lugar situa
01 de (lesordem, por exemplo, a cie um marido tolo e dócil de
ui iis ,1 uma esposa que usa calças. Mas a cultura humanista e ele
ii> .il ultrapassou esse nível clé banal regulação das condutas. Kla
1 Hlupolou c dramatizou a situação de loucura e de inversão:1ela
vIn ,11 o pecado.
I ela teve tendência a ver a loucura em ação por toda par-
h 1111111,1 sociedade enferma. Reveladoras nesse sentido são as
duas o! nas do Cônego italiano Tomaso Garzoni, Teatro d e ’ varii e
dnvrs! eervelli m ondani (1583) e Hospidale d e ’ p a z z i incurabili
1 I «MU), i |uc pretendem classificar todos os tipos de loucura por or­
dem crescente de malignidàde.178 O segundo desses livros conhe-
1n i um sucesso considerável - onze edições em 30 anos. Kle ins-

176. Cf. a esse respeito a excelente Tese de Estado de Mlle ROUCH, M. Les
C.ommunautés rumies de la cam pagne bolonaise et 1'image dupaysan dans / ’«•«<-
vrc de G iulo-Cesare Croce (1550-1609), 4 v. dat. Aix-en-Provence, 1982: I,
p. 263-264.
177. Citado por BERCÉ, Y.-M. “Fascination du monde renversé dans les
tmutiles du XVI siècle” em L Im age... p. 13. Cf. FLETCHER, A. Tudor Re-
bellions, Londres, 1968.
178. Cf. OSSOLA, C. “Métapliore et inventaire de Ia folie dans la littératurc
Uulicnnc du XV' siècle” cm Folie et dtlntlsoti,.., |>. 171-196.

^r>:i
pirón le s Locos ele Valencia do Lope de Vega o foi rapidamente Ira
duziclo em ingles (1600), em alemão (1618), om francés (1620) m il»
o título L Hospital des fots incurables ...1 ’ Mio c, portanto, rcvoladoi
de urna época que mediu a gravidade da loucura o julga noi cnni!
rio fazer o inventario de todos os seus aspectos. Sem duvida, ,t
cáótica enumeração de Garzoni tém tintas do humor quando se
trata dos quartos do Hospital onde vivem os “loucos engraça» !•■
e bufões”179
18018
2
3
4e os “loucos alegres, divertidos e amáveis"."" Mas os
incuráveis do hospício podem ser distribuidos globalmonlo cnlu'
duas grandes categorias: os que o sao pelo eleito da doença,
como os “loucos idiotas e grosseiros”,18- que serão sempre liu apa
zes de aprender o alfabeto; e os que se tornaram incuráveis p< lo
apego a uma paixão, potadamente a da “gloria do mundo",1"1 <>s
piores desses loucos culpados ( “a mais maldita especie de Inum
que se encontra no mundo”) são qualificados pelo autor como
“loucos endiabrados e desesperados”. Trata-se dos violen!» >s \ do
revoltados: “... Uma infinidade de inimigos de Deus c|ue vlnuw
em nosso tempo cometer toda espécie de rapinas, violencias, su
crilégios, homicídios e rebeliões que se poderiam imaginai. I li
sao dignos de mil patíbulos”.188Garzoni instala portanto nurvi mes
mo edifício - e essa concentração imaginaria lembra outros <i »nll
namentos da época - os brincalhões, os lunáticos c os vli i<>•.«•.
Km certo grau, eles sao todos perigosos. Como exprime em lei
mos hiperbólicos o prefácio da obra que a Loucura

parece mais disforme à vista que a serpente de Cadillo, mab ti lo


que a quimera, mais venenosa que o Dragáoslas I lespoldi
mais perigosa que o Monstro de Corebo, mais traidora que o Mi
notauro de Teseu, mais horrível de ver que uní Clérlon de ln « i
beças. Tendo vindo ao mundo só para vomitar como uiiu Midi i

179. Cf. FIORATO, A Ch. “La Folie universellc, spcctaclc l>»u l« *.q»u n In*
trument idéologique dans LH ospedale de T. Garzoni" em 1Vvivv ,/< I,i /.<//.
p. 131-145. Cf. também FUZIER, J. “L’Hópital des Fous: varluiliiii* i iimi
péennes sur un thème socio-littéraire de la fin de Ia Renaissaiu c", riu //,»»,
ge à J.L . Flecniakoska, Univ. Paul Valéry, Montpeuier, 1980, p. I '> ’ UM
180. GARZONI, T. I!H o s p it a l.p. 163s,
181. Ibid., p. 170s.
182. Ibid., p. 68s.
183. Ibid., p. 109s.
184. Ibid., p. 228-232.
n i liam.is de fícu veneno, o dever nic ol triga a de.serevê-la i.m
li'irlvel, que mó pelo olhar ela poe lodo mundo em alarme.'"

Mais adiante, (¡arzoni a vê (Involuntariamente) como um


i i|iii\aleiiie i Ia Morte das danças macabras, porque, como esta lil
tima i la nao se Importa nem com reis nem com imperadores,
m ni i *mu homens de guerra tanto quanto com homens cie letras.
I ui iiimai nau ha respeito que a retenha e que a impeça de atin-
iUi di In ule e de lado toda a raça cios homens”.180

IH i •! iteração do m onstruoso
existem tantos loucos sobre a terra, a tal ponto que a
uuiliri.ii 11|iir reina aqui é como uma antecipação da confusão d<>
lilli iin i lugar caótico por excelência - , nào é de-admirar se a
i .......Mural do universo parece ter perdido, ela própria, seu
In o11 ii nso. () pecado xlo homem estendeu-se à-Natureza que,
m m i permissão de Deus e para a instrução dos pecadores, pa
n 11 li iiiith Ia de uma “estranha loucura”. Ela se entrega a "mil
11|ii i in i íes ei mirarias umas às outras ou desiguais”. A diversidade
pi i\i’Hi se em "misturas” absurdas: a porca “pare” um porco com
lililí di homem, e eis um peixe com cabeça de leão que chora
lllliiiiinainente. Essas monstruosidades sâò todas ilustrações cio
|*i -i tilo Assim raciocina entre outros o dominicano Giacomo Af-
........ i - ui representativo nesse sentido de uma opinião ampla-
nn ule ,n ella em sua época.187
i portanto, no quadro de um julgamento pessimista glo-
h il mine um tempo de extrema malignidade que se deve colo-
ii i abundante literatura consagrada aos monstros e aos proel í-
|M i i i nlie o lim do século 15 e o início do 17.188 Sãnto Antonino

III*), Ibid., p, 2.
IIKi, Ibid., p. 3.
I H AITINATI, G. LeM onde renversé.. notadamente p. 105b, 116a, 203a.
' ii,uIn-, cm “Le Monde;renversé...” em L Im ag e..., p. 143-147.
IIIM. Rua tudo o que vem a seguir, a obra essencial de CÉARD, J. La N atiire
.7 /ci ¡>mUgcs... que vou utilizar muito nas páginas seguintes. Cf. também
MA I ( )RE, (.. “Monstre” au XVICsièclc. Etude lexicologique”, em Travauxdc
et dc liném ture, Strasbourg, 1980, XVIII, 1, p. 359-367.
ck* Klorcnça parece u*r sido o primeiro a Introduzir numa <‘riUii
ca universal Impressa em Veneza em M7 i M79 - uma expon!
ção especial sobre os monstros e as ruças monstruosas. r ?>*•»*
exemplo é depois abundantemente seguido, noladamenle por I I
lipe de Bérgamo no seu Supplementum cnm lcarnm ( I" ed, I PM)
e por Martmann Schedel na sua celebre Ctvnica de Nutvmherg
(1493). Começa-se a vasculhar o passado para encontrar prodl
gios esquecidos e, logo, começa-se a compor obras espe< ¡aliñen
te consagradas a casos aberrantes, como o livro de Joseph <¡ihu
petk, historiógrafo e astrólogo de Maximllian I, Prodigíoium os
tentorum et moristrorum quae ín saecidum M axlm ilianeinn ///«/
derunt, interpretado (1502). Vinte e um anos mals tarde, l.uleio
e Melfmcton publicam um livro intitulado Explicando de dols se
res abom ináveis , um Asno-Papa encontrado em Roma e um //< •
erro-Monge em Friberg em Misnie, (jue conhece um grande m i
cesso e dá lugar a duas traduções, uma inglesa e outra francesa,
esta última aprovada por Calvino.
l uí meados do século 16, redobra o interesse pelo,*, prodl
glo*. e o,s monstros. Km 1552, (honrad Wollfahrt, chamado l.ycox
lliene*,, publica pela primeira vez uma edição do Prodigiotiun li
het de lullus nbsequens, onde o catalogo de latos extraoidlnU
lio*, morí Ido*, na Roma antiga nao está mais perdido no meló d«
oiiu.e, ninas da*,sicas com as quais não linha grande relavan
//•/**/< */. /s de Plínio, o Moço, ou De viris ilusiribus. Km compensa
i ,i" ; na lolel.liiea ele esla anexado a duas obras, o De pl\>dlglls
de Poli loro Vergillo e o D e osien tis dejoaqulm I Camerarliis, pu
bilí adas lespecllvamente em 1531 c 1532 e que até enláo mío IK
nliain i llamado a atenção do público. Doravante, cls que se loi
nam conhecidas. Km c|uatro anos (1552-1555), Julius Obsequeits
e Pi illdi no Vergíllo são editados ou traduzidos cjuatro veze.s, e l a
mrruiius lies vez.es, Sobre sen impulso, Kycosthenes dá a puhll
eo em 1557 um Prodigio rum ac oslen ton/m chronicon , IVulo de
20 anos de trabalho, que ele dedica aos magistrados de Hastíela
Aquí, ele récensela com minúcia (e dizendo ler se Informado ñas
melhores fontes) "os prodigios e portentos acontecidos a margenl
i la i >rdem do movimento e da operação da natureza, lant< >ñus u
gloes superiores com o nas regiões inferiores do mundo, desde m
com eço ale a nossa época", Podemos reter ao menos quatro ele
memos nesta vasta antologia da desordem: a) esta se encontra de
tal modo disseminada que é necessária toda urna gama de sino
nlnios para designar os portento, prodigio, ostenta, mft^tiu/ii, slg
luí • itiKiisim <|iu* ela engendra. A tendência luimanlsia ã reduiv
il ttn iii 111.1, ,i litis, proveito dessa prollxldade; l>) o primeiro "pro-
iliiii" dti lilslorla, ai de nós!, é o da astuciosa serpente que sedu-
tii I v11 * ) on eclipses, qualificados de defectíones solis, sito por
MfcM l< iii la escándalos cósmicos que se manifestam em circuns-
i ui' ias im epelonals (por exemplo, quando da crucificação de Je-
h i i . il> n mundo está repleto de imundícies”, por isso os fenô-
i

iih ni 111 Insólitos devem ser interpretados como sinais da potência


l d i . i ilria de Deus em relação aos homens pecadores.181’
I m I'>()(), aparecem as Histórias prodigiosas de Boaistuau -
um In n i di >qual se pode dizer que criou um gênero. Ele obtém
iiiu illat,imente um vivo sucesso, atestado nâo só pelo número
i h m luavel de reedições com o pelas continuações com que
-i I i

Hn- •- viam de engrossá-lo até o fim do século l 6.190Traduzido


•ui ingles e em neerlandés, na França ele é até copiado, adap­
tad* * • abundantemente citado. A. Paré logo irá tirar dele um
Imiti número de suas narrativas. A obra de Boaistuau é seguido
ili i Ihi> tatus d e monstris do teólogo e pregador Arnaulcl Sorbln
i I ni i liadu/ldo em francês por Belleforest.191 e do livro de A.
I tu l/i itislros c prodígios (1573)- lvdesses mesmos assuntos que
u ........ lambem dois livros publicados em 1575, um de Loys le
M »i\ /». / \'l< tssitude ou Variedade das Coisas no Universo, outro
•D Ilisio Cornelias Gemina, D e Naturae divinis characterismis.
i i nlilmo eontém notadamente o inventário - com interpretá-
lo di iodos os prodígios ocorridos na Bélgica e regiões adja-
II ni. , di |S55 a 1574. Em contrapartida, no fim do século 16 e
oo. i.. .1.. I aparece, na esteira de Montaigne, uma reflexão crí-
ii i obre a nlonstruosidade considerada como tendo seu lugar
ni i K ín la da natureza. Os monstros cessam de pertencer ao nú-
i i u i i i dos prodígios em quatro obras notáveis de Weinrich
•i .''.i, Itlolan (1605), Liceti ( l 6l 6), Aldrovandi (publicada so-

I Id, Agradeço ¡mensamente a MARGOLIN, J.-Cl. por ter me comunicado


anl. . da publicação o texto de uma exposição feita por ele no Centro da Re­
lia.. oiça de Paris IV e intitulado “Sur quelques prodiges rapportés par Con-
i i. I I.ycosthènes”. Publicação em M onstres etprodiges au temps de la Renaissan-
. . ( - . u i ) a direção de M. T. Jones-Davies), Paris, JeanTouzet, 1980, p. 42-55.

I oo. ( T. SC d RÍNDA, R. “Die franzõsische Prodigien literatur in der zweitcn


I tilHic lies 16. Jahrhunderts” em M ünchner rom anistische Arbeiten, XVI, 1962.
I o |, P d le fo te s t, u tiliz a n d o S o r b in , B o a is tu a u , e tc ., e c o n tin u a n d o -o s p u b lic a
e m I 5 8 0 u m liv ro in titu la d o , H istórias prodigiosas extraídas de diversos autores
/¡puosos .

2f>7
mente em l(ví2).'"' Mas a esleirá das /lislorkis f>rotH^lo.sti\ |>i<i*»-
segue notaclamente na Alemanha, lila se encontra lambem na
França nos “pasquins” que, na mesma época, se mulllplU üin »I»
ano em ano. Conhecem-sc 57 dessas publicações de I a
1575, UlO de 1575 a 1600, 323 de 1600 a 1631 1 ' Pude se ra/n.i
velmente supor que o número de “historias prodigiosas" que di
fundiram aumentaram na mesma proporção. Assim, os hnmeiiü
da Renascença'se deleitaram nas descrições de seres monstruo*
sos, nas narrativas e catálogos d e ,fatos espantosos, b llnliam o
sentimento de que desde há pouco eles se tinham mulllplh ado
— exatamente com o os feiticeiros e os blasfemos, nao send< > h h
tuito o vínculo entre uns e- outros. Porque a feitiçaria paree eu, n>i
época, a prova mais patente de que o mundo eslava1invenido
Sobre essa convicção dos contemporáneos ele que ¡amala
a historia tinha produzido tantos monstros e prodígios, abundam
os testemunhos. O historiógrafo astrólogo de Maximiliano I, l<>
seph Grünpeck, afirma em 1508:

Nós lemos que no tempo de nossos ancestrais, apaivcoftlffl


muitos prodigios no céu e na tena, freqüentcmente ciialuitlM
monstruosas... Será que as épocas em que esses prodigios nu ii
reram podem comparar-se ao nosso tempo quanto a livqOi m h
dos eventos clesse género e ao espanto, que eles suscltami* IM
uní lato que ninguém pode contestar: é que seria difícil enniM
trar urna época em que tantos prodigios espantosos tenham <ii u
pado os mortais como fazem hoje.191

Lutero, redigindo um sermão do Advento, estende se ite*


se mesmo sentido: '

No espaço de dez ou doze anos, nós vimos e ouvimos i . iii Ih#


ventos e tantos mugidos - sem contar o (|ue virá depois •po19234

192. Respectivamente: WEINRICH, D e Ortu momtrorum <omnieni,nltn


1595; RIOLAN, J. D e monstro nato Lutetiae a. D. 1605; LI( I I I, K / V A/•*#<«
trorornm causis; natura et differentiis libri duo, 1616; ALDROVANI >1 V
, Monstrorum historia..., 1642.
193. SEGUIN, J. P. ¿'Inform ation en Frunce avant le pérlodiquc, *>/ minutii
imprim es entre 1529 et 1631. Paris: Maisonncuve, 1964. p, 14.
194. G RÜ N PE CK , J. Speculum naturalis, coe/estis etpropbaciicae idsloni* I I «i«
Nurembcrg 1508, cap. 1, f " ’ a iij ^ a iiij r", citado cm ( !b.AKI), |, Ia Naiun
mr i lisia arredilar <|ile* antes (lililí t*|>ik ;l lenha olivklo venios o
nucidos (¡t<> grandes c tilo numerosos, Porcino nosso tempo v i
de i mili so ve/, o sol e n lua perdendo o brilho, as estrelas caifi*
di i os homens se tornando angustiados, os grandes ventos e as
i),n i • mugindo... Tudo se acumula de uma ve/. Foi assim cjue vi-
míos i.imlieni cometas e, recentemente, muitas cruzes caíram do
i i Mi e, nesse* enlretempo, chegou também uma doença nova e
desronhcckla, a doença dos franceses.1''

I'. i i .i n Reformador,'são anúncios do fim próximo do mun­


do l»iv ,iiui*. mais tarde, Camerarius está certo de encontrar a
|i|iili Mém l.i do leitor ao evocar confusamente como uma evi-
||i m Ia "iik iiisiro.s horríveis”, “acontecimentos aterradores de cau-
» d.........iluvlda", eclipses, cometas e outros “espetáculos insóli-
i m . •«ji.id.i.s flamejantes, cruzes, la n ç a s -” que cada um pode
di i* l\ u no t éu.l% Para C. Peucer, genro de Melâncton, que pu-
lilii i ' ui 1'iSt os Comentários dos principais tipos de adivinha-
i m e ii ii i li.i dtivida possível: vemos nestes tempos eclipses “mais
In qiii nlf. e mais horríveis do que viram os antigos”.107*Em ISS7,
......Ih M |ean Pincclius, dedicando à duquesa Marie de Pomcr.i
"i i mu i In .i completa dos inúmeros sinais, miraculosos e assus
hui............. na Alemanha desde 1517 - ano da entrada em
11 itii ili•I,ulero - declara:

l'ru t xrendo a história das nações, jamais se verão tantos sinais


inii .H tilosos
como em nosso tempo. Tão logo uni se produz, já
ml nevem outro; o que prova realmente que Deus tem algum
guinde desígnio, e que nós estamos destinados a ver uma gran­
de angústia na Igreja cristã.1*''8*

A Alemanha da época foi sem dúvida o terreno favorito


Midi e multiplicaram os livros de horrores. Os pregadores lute-
........... It londeram com vigor a autenticidade dos fatos mais insó-

111V I l 1I I II£R, M. CEuvres, X, p. 116. (Sermón sur l'évangile du 2 dim anche


de l'Auent).
I'>(». i 'AMIÍRARIUS, J. De Ostentis. Ed. utilizada: 1552, citado em CEARD, J.
I,i Nannv.... p. 170.‘
I'*/, ITl K :ER, C. Les Devins, ou commentaires des principales sortes de divina-
nain, liad. Ir. de 1584, p. 574. Citado em Ibidl. p. 184.
I h'INCKLIUS, J. Wunderzeichen, WahrhaJJtíge Beschreibung und griindlich
Ven-eldmis schrtcklicher Wunderzeichen..., 1557, p. 2-3. Citado emJANSSEN, J.
la ( ivilisation en Allemagne depuis ¡afín du Mayen Age..., VT, 1902, p. 382-383.
Utos para levar os povos a penitência e fa/.é los entrar no relia
nho da Igreja evangélica. Um comentador do A/tocali/w lata rm
1589 “da torrente de1 prodigios que se espalha na Alemanha luí
50 ou 60 anos a luz brilhante do novo evangelho",1"' <> lian»»»,
Belleforest resume entào o sentimento comum: "A época presen
te é mais monstruosa do que natural”."00
Que se julgue sobretudo por tantos nascimentos "assusta
dores, mas verídicos” de que estão repletas as crónicas e ga/ehts
do século ló e que incitaram os contemporáneos1 a creí <|u* »•
mundo estava totalmente invertido: “Recém-nascidos com duns,
três cabeças ou mais; mulheres dando a luz pequenos leltOes ou
pequenos jumentos; crianças que nascem com um dente de ouro,
ou mesmo com calças largas, e o pescoço rodeado de um »oliti'1
alguns falando ç>u profetizando logo depois do nascimento.....
Um pregador de Hamburgo, em 1563, manda gravar "a Imagem
autêntica” de um bezerro nascido com duas cabeças, duas »nu
das e seis pés.19
102 Em 1575, uma folha solta de Arnhem dlvulg i
0
2
estranho nascimento de uma menino monstruoso "coberto »!»• pt
los grosseiros”, que começou a andar assim que nasceu e »micu
esconder-se debaixo da cama de sua mãe. Ele linha dois , lillu
na testa, pés de pavão e garras de pássaro. Em I5(>5, uma ga,-»
ta de Tubingen relata o nascimento espantoso aconlecldi» num al
deia vizinha, de um menino sem cabeça nem ossos, com mihi
orelha no ombro esquerdo e a boca no ombro direito. I »»l Idcit
tificado sem hesitar como uma criatura de Satã e entregue a»»» u
rasco que o cortou em pedaços e lançou estes ao logo Mas Inl
preciso uma quantidade anormal cie lenha e de pólvora du » i-
nhão para obter total combustão. Mais feliz que .i mu»' »l» . ■»
monstro, uma mulher da região de Clèves pôs no mundo, de um i
só vez, 65 crianças. Em 1610, um renomaclp médico .ikma»c •»
doutor Schenk, publicou um memorial em que relatava o un1», l
mento de “96 criaturas, monstruosas, desprovidas de m ,l»i

199. JANSSEN, J. U C m lhation .... V, p. 383-390 c VI. p. V/í».


200. BELI .EEORUST, lí. dc. lUuoircs prodigieuses,,., p. 31»V » ...
CÉARD.J. U Nfitiur.,,, p, 33S.
2 0 1 . Moina rcfcróncln claUiota 199.
202. E.sir mliwccltucnto c os seguintes cm jANSSEN, J. l.u f m /n n iton ^
VI, p. 377 3Ml.
303. S< 3 1ENK von (IRAElíNBERb, |. (i, Wuuder bm h ron m. uih»l<>n
uno hurten, W ituhr und MhtÉfhurten,, PraiicHm. 1610.
y iiiii . i iiu n anos antes, o pregador (ihrlstophe livnüus redigiu
.... giu'imi volume de umas 700 páginas sobre “ a existência, a ra-
fi|M i i significação das crianças-mon.stros". () próprio Deus as
M U i |i,iio i astlgar os desregramentos do» homens/m
\ i« l.ic ,e >entre monstros e prodígios de um lado, pecado
iln millo, Mmslltulu um lugar-comum das crônicas, muitos de
j^Mh iiiiion-, remontando, com o Santo Antonino, ao dilúvio ou á
(mu d» babel, A orgulhosa edificação desta última, com efeito,
|h i mino punição não somente a confusão das línguas como
1‘tMtU m ,i das espécies e, portanto, o aparecimento de seres es-
h iitlio'i i disformes.21" fazendo uso de comparações médicas,
| i mi o 1hi>< ( iemma estabelece cie maneira geral o vínculo entre
lil o a di ui un uai e desordem da natureza: da mesma maneira que
um mugue materno vicioso altera o sêmen paterno, assim tam-
i ........... . il <omelldo na terra imprime sua marca sobre o espírl-
in do inundo que, por sua vez, a reflete sobre os elementos e,
Miii melo deles, sobre os corpos humanos.206
i Jai i ia is espantemos então se os homens do século 16 as
ni i» i ii nu heresia com monstruoso. Lutero e seus amigos descrc
. mi I / e i r o s monges, porcos semelhanjtes a padres, gafanho
li........Iii ia is i <im capuzes monásticos. Se o rio Tibre um clia ex
|n liu um animal assustador com “cabeça cie jumento, peito e
ViMilu de mulher, pé de elefante na mão direita, escamas cie
I- i ■ nas peruas e cabeça de dragão no traseiro”, é que, segun-
I . i ui* n i I )eus queria significar sua grande cólera contra õ pa-
pid.i () lado católico respondeu com afirmações simétricas.
11ni ui. illi 11, .nitor de um poema que figura entre as peças limi­
te! !• i d o thictatus de monstris de Sorbin, declarava: “Antes que
iniu ,i época das heresias não se viam monstros desfigurar
i •. illa I Sorbin acrescentava: quando a França era piedosa,
* |.i u i o sabia o que eram monstros, agora parece que ela as-
mmlu a l.u c das solidões da África, produzindo a cada dia um
i n ii.no" Da mesma maneira, a Saxônia, “clesde que ela se

'(11. IKUNAUS, Chi'. D e Monstris. Von seltzamenW undergeburten, 1585.


Ml’). ( I, ( F.ARD, J.-L a N ature..., p. 71-75.
Min Ihiil,, p. 373. GEMMA, C. D e N aturae divinis characteris, X, p. 62-63.
mi I! ITHF.R, M. CEuvres, X, p. 116 (Sermón sur l ’é van gle da 2 dim anche
>te Inven t).
MIM, SORBIN. H istoiresprodigieuses. p. 628. Citado por CÉARD, J. La N a-
luir,,,. p, 271.
opôs ao Cristo pola fraude* tio p u lid o I,ulero, geme* sob ,i p io
liferaçáo de Inúmeros monstros” ,
Estes, assim como os prcklígios (|iie constituem apuihiN
uma variedade deles, são nào só punições, mas também aiulnt li m
de castigos maiores. Trata-se neste caso de uma evidênc ia cení
vezes repetida na época pelas pessoas mais qualificadas, l\ua o
cronista Nauclerus, que escreve no fim do século IS, os ^<>meia*«,
as espadas de fogo, os dragões no céu e as crianças com varia*
cabeças “mostram que a cólera de Deus ameaça os homens" M "
Lutero está persuadido de que o bezerro monge de ITelIu ig
“anuncia para a Alemanha uma imensa catástrofe* guerreira ou
ainda o último dia”.211 Ronsard assegura igualmente que gi mdi
desgraças são iminentes,

Porque vemos tantos raios nos céus


Tão sereno, porque tantos cometas,
Porque vemos tantos horríveis planetas
Ameaçar-nos: porque no meio do ar
Vemos tantas fortes chamas voar...-‘-

Mais adiante, ele volta sobre o mesmo tema, (.Hi.iudu


vê, escreve ele,
/
... Tantas seitas novas
... Tantos monstros disformes,
Os pés para cima, a cabeça para baixo,
Crianças nascidas moitas, cães, bezerros, cordeiros e galou
Com corpo duplo, três olhos e cinco orelhas,

com o não perceber nessas “estranhas maravilhas" o nndfli In da


miséria e cia guerra, “precursores certos da mudança"?1" 20913

209. C É A R D , J. La N ature..., p. 272.


210. N A U C LE R U S, J. Chronica. Ed. Colognc, 1579. |>. I . I I l l ' ' »liad
em Ibid., p. 77.
211. LU T H E R , M . Werke,,cd. Weimar, Briejwechicl, III (19.1 \), p, | > ,
do em Ibid., p. 81.
212. R O N SA R D . CEuvrescotnplHes, V, p. 157-163 ("I cs I I «•, Im i i u i h '.. i
213. Ibid., p. 392 (“Prognostiques sur les misóles di- uo.site lemps")

2<W
hnlcm os então perguntar com o Intelectuais da Renascen-
• i pin leí,un concillar osse temor cío luturo com a convicção, aliás
ft* qin nlt mente afirmada, do que sua época tinha visto a ressur-
*• i tu t «i llmeselmenlO das letras e das arles?-11 A resposta é que
tqiillo que parece contraditório para nós nao o era para cíes,
■ttmo piova esta passagem significativa do D e Transita... de
t lulllatime Mude:

"i > sollo miserável e catastrófica de nossa época,-que, entre-


laul", u’Nlaiirou de maneira prestigiosa a gloria das letras, mas
•|m< pelo cilmc* de alguns e os malfeitos de um grande número
•miiiei arregou-se de uma impiedade sinistra, e inexpiável!...
lu í" lol misturado e embaralhado, o mais alto com o mais
liiilvi i, o Interno com o céu, o melhor com o pior” - o tema clás-
|i Hilo mundo de cabeça para baixo ”... Assim como nesta épo
i ,i n estudo e o renome das letras atingiram seu apogeu, assim
i mil ii m o navio do Senhor se encontra em dificuldades nas tro
•as mal‘1espessas e na noite mais profunda. Mais ainda, o navio
di lun .poile está agora avariado pelos ultrajes e pode... ser le
■ iiln i naufragar, exposto como está aos ólhos de todos e inju
ilidli i |>elc i otilo.-11'

lulero, que Mudé combatia, exprimiu, entretanto, uma


I iiii m luMlunle semelhante à do humanista francés, mas acres-
M"ii■iihIm uma argumentação suplementar: já que a humanida-
di i lu gi ui a um “apogeu”,216 o dia do julgamento está próximo.
i............le todas as coisas: jamais se construiu e plantou tanto,
I n u il. - i luso fol láo grande. “Jamais se ouviu falar de uma ati-
liliidi i omerelal com o esta que hoje... abarca o mundo intei-
n i A . altes nao conheceram nada igual desde o nascimento de
i lisio <)s conhecimentos avançam a passo de gigante, de tal
iii*i*11* que "agora um rapaz de vinte anos sabe mais coisas do
qiu \hile doutores antes não souberam”.217 Assim, chegou-se a
.......... ipis le de ponto terminal. Mais ainda — e eis agora a ver-

’ 1 l i I, I llil.UM H AU , J. La Civilisation de la Renaissance, p. 96-98.


’ 11 IU M>1•„ i ¡. D e Transita..., p. 94 (modifique^ ligeiramente a tradução de
M, hebel).
MU I ,t iTt IlíR, M. CEuvres, X, p. 109 (Sermón sur Tévangile du 2? dim anche
de /'.mm 1522).
217. llild.

203
tente negativa da argum entava>: "Nau e .somente tuts coisa*
temporais que se chegou a um apogeu", porque “(amais maio
res erros, maiores pecados e maiores mentiras reinaram no
mundo”..218 A taça está cheia. Encontramos Igualmente na nina
de Loys le Roy, D a Vicissitude ou variedade das coisas no uul
verso, os dois sentimentos opostos: orgulho de ler nast Ido num
tempo de renovação e convicção de que dias ameaçadores ki
aproximam. O autor elogia com efeito “esta época em qu< \«
mos quase todas as antigas artes liberais e mccánit as restituid 12
0
com as línguas: depois de perdidas por cerca de mil e du/enlof
anos, e inventadas outras novas”.210 li ele regozija-se de que t)
Ocidente tenha “recobrado há duzentos anos a excelência dan
boas letras, e retomado o estudo das disciplinas". "" Mas alguilltll
páginas após esta declaração entusiasta, ele revela somhilan
perspectivas em forma cie apocalipse:

Eu prevejo grassando de todos os lados guerras Interna* e en


ternas: facções e heresias profanando tudo o que cnconll.uem dtf
divino e de humanó, lomes é pestes ameaçando os moitals a n|
dem da natureza, a regulação dos movimentos celestes, < a liu
monia dos elementos rompendo-se, de um lado a chegada d» dl
lúvios, de outro, odores excessivos, e tremores multo viólenlo* "

A Renascença, pensava Le Roy e muitos outros com *kt,


não durará uma primavera.
A respeito dos monstros e dos prodígios, o raclot lu lo dmi
pessoas — e notadamente da elite - da época foi cjelinltlv am» n
tc o seguinte: jamais se tinham visto tantas “coisas eslr.mh i
“milagres da natureza”. Ora, tais fatos são os signos p rccilM
res da cólera de Deus “para despertar nossos sentidos adormí
cidos no mel delicioso do mundanismo”,2222 3Mas os h(................
se dão conta disso. Deve-se temer então o pior: prodígios »' >a
sos monstruosos pressagiam “nosso desastre”. M R u l u i o m u ii I u Ii I

2 1 8 . Ibid.
219. LE ROY, L. De la vicissitude..., Éd. de 1576, f" 15B. <üi.ulo <m < I AHI • |
LaN ature..., p. 380.
220. LE ROY, J. D e la vicissitude..., f ” 96B. Citado cm Ibid.
221. LE ROY, J- De la vicissitude..., í " 1 1413. ( '¡tacto cm Ibid
222. SEGUIN, J. R. I.'Information en fm n ce..,. peça M9,
223. BELLEFOREST, Fr. dc. l/istoiivsprodidcitses. p. WC>,
i'lii ido p< >r um excesso ele* m aldíidc sobre ;i ierra, Mas será
| ik ii homem nslo foi sempre mau?

D m aldad e
i J( i l'iinsio de Marlowc, Mefistófeles afirma: "... Onde nós
• a iinn'i, ai está o inferno. K onde está o inferno nós devenios
Hi mpu » • d .u ‘ 1 A palavra “humanismo”, à qual sempre tivemos
ll liai lia •de dar uma coloração otimista, freqüentemente nos es-
I ilu d í' m ullas misas sobre a Renascença, que foi mais sensível á
i*i i. i da vida e mais severa sobre a humanidade do que geral-
ni' ni' i pensa. Ao D e Dignitate bominis, de Pico ele la Miran-
dula ■iia fácil opor múltiplos provérbios, então em uso e que
ii idii ' m urna amarga filosofía sem dúvida amplamente aceita:
i idi i'' i’ d nome de um homem”. “O homem bom é raro no
inundo <) homem c inimigo do homem ou de si mesmo".
lodo I...... u n e mentiroso”. “Um homem de boa fé é considera­
do o mal'» louco do mundo”. “Muito vale o homem que sabe en-
n iiiiii "Sob a pele do homem varios animais têm sombra”. “O
i...... r um inferno que nao pode mais pôr um limite-num pe-
qiii ii" prado". K aqui está a razão profunda dessa perversidade
f lp u ..i no discurso do mundo “inverso”: “O homem é um ho-
nii ui 11iN'crlIdo” (pelo pecado original, entende-se).225 Na Celesti-
n,i i l |UÚ), i la ípial se disse que era um vasto exem plum , o lamen-
i" di l'leberio após o suicidio de sua filha associa, como uma
. "ii' lusao geral da peça, anatema sobre o mundo e constatação
da onipresença do pecado:

I ii acrcdjtei desde minha tenra idade que tu mesmo [o mundo]


. leus acontecimentos fossem regidos por alguma lei. Mas eu pe-
i'l os pros e os contras das tuas felicidades e tu me pareces um
lábil lulo de erros, um teatro onde os homens giram em volta,
uma lagoa plena de lodo, uma terra plena de espinhos, uma alta
I|oii\sia, um campo pedregoso, um prado repleto de serpentes,

1U . ( lirado em JONES-DAVIS, M. T. Victimes et rebelles... p. 165.


} ' Ilirados recolhidos por LE ROUX t)E LINCY, M. Le Livre des prover-
bft Jhm çuis. 2 v., Paris: 1859, aqui, I, p. 252-257.

205
um juixllm pleno de 11<>I< mas sem linios, lima fonte de » Ulilil
dos, um rló de lágrimas, um occanó de miséria, um v.h!tn\-ii litil
til, um doce veneno, uma vá espera nça, uma la Isa alegila e uma
verdadeira dor. Ó mundo pleno de falsidades,.. Tu prometes mul­
to e não,cumpres nada... Tu nos furas um olho e nos ac ai'U Ia « i
cabeça para nos consolar.--"

Os amores de Calixto e Melibéiá eram evklehlemenU' lin


passíveis neste universo corrompido - o nosso sobre o <pntt
Maquiavel, fora de qualquer espírito cristào, emitiu o |iilgimu'illu
célebre que se conhece no capítulo XVII do Príncipe.

Pode-se dizer geralmente uma coisa de Iodos os homens 'i1"


eles são ingratos, instáveis, dissimulados, inimigos do perigo, io ­
dos de ganho; enquanto lhes fizeres bem, eles serão tolaluu nlr»
dedicados a ti,jte oferecem seu sangue, seus bens, sua \lila > >i u«
filhos, quando a necessidade ainda está no futuro; mas quando
esta se aproxima, eles se escondem... Os homens hesitam uit 111M A
em prejudicar a um home.m que se faz amar do que a ouln* qm
se faz temer... Pies esquecem antes a morte de seu pai do •pi> i
perda de seu patrimônio.-r

Essas acerbas sentenças devem ser comparadas ao t ailUI


VIII de um poema cjue Maquiavel náo terminou, o . lw/»> ,/e
ouro. IJm antigo homem transformado em porco el.....» eu
novo estado sublinhando por contraste todos os inforlunli o, Im
quezas e vícios áp sua antiga condição. Esse convite Lili l/adil
ao contemptus m un d i é manifestamente tributário de luda i ll
teratura anteriormente consagrada a esse tema;

Só o homem nasce despido de toda espécie de deles,i el» tnti.4


tem nem couro, nem espinhos, nem penas, nem l;\, nem edil
nem escama que lhe sirvam de escudo.
É chorando que ele começa a viver, e tâo liai« la»» *.........
sos sáo seus primeiros sons que causa pena só de vei *.» » *. i
minarmos a duração de sua vida, ela é sem duvida hem ........
comparada à de um ceivo, de uma gralha e ate d< um g m267

226. ROJAS, E dc. La ('destine. Éd. P. I Icugas. Paris: Auldci. I•>«»\ p 'i 11
227. MACHIAVEL, N . l.e lY m ee, d». XVII. erad, tioliory, Pki.uh |U t f
p. 3 3 9 -3 4 0 .
I'i iulcs cm conuim ¡i ambição, .1 luxuiia, as lagrimas e a avare­
za, vmlaijelra sarna desla existência a que dais tanta Importíln-
1la Nao existe nenhum animal cuja vida seja lito frágil, que seja
Iinvalido ile um tao grande desejo de viver, sujeito a mais temo­
res, a malfl calva.
Mui pono nito atormenta outro porco, um ceivo deixa outro
1eivo cm paz; só o homem é que massacra o homem, que o cru­
cifica e o despoja.
lulga se podes querer que eu volte a ser homem../-8

Maquiavel levou até o limite uma reflexão pessimista que


|i * 1 in unira, mas no estado fragmentário e com atenuações,
...... •si 1lios humanistas anteriores. Enea Silvio Piccolomini cle-
•111 1 no /V ( ) r h i . . . \ “Na verdade, da mesma maneira que o ho-
....... . |m iporelona muitos benefícios ao homem, assim também
11 io ' ••Mc ncnluim flagelo \pestis] que o homem não cause ao
h'inn ui " Mais categórico, Leone Battista Alberti afirma que “a
.......... 1 do homem é perversa, malvada, egoísta”. Paradoxal
MMuh , “animais selvagens, nascidos para ser grandemente fero-
■ 11vics dc qualquer freio, não causam mal uns aos outros,
ih o n.is crises de furor, Mas nós, os homens, que nascemos
P 11 1 mi ilnccis, benevolentes e sociáyeis, procuramos sempre
1 u i ic11li ,, Importunos e prejudiciais aos outros”.2A0Julgamen-
.............. a» esses levaram a perceber que, pela primeira vez na
lihlmla, Isin e, na Itália do século 15, tinha sido fundada uma
h Hila puramente laica do Estado e uma prática política sobre a
m n 1 ii it ui da maldade do homem.2MO estabelecimento lúcido
d. 1 lelaçao deve sem dúvida ter-se estendido cronologica-
Hiiiili ale a época de Maquiavel. Mas é bem verdade que no

' 'II lliiil., LA nedor, tradução de E. Barincou, Ibid., p. 91-92. Cf. notadamen-
i, MASSA, l‘. "Egilio da Viterbo, Machiavelli, Lutero e il pessimismo cristiano”
•ui Is hirió d¡ Filosofia, 1949 (Umanesimo e machiavellismo), p. 75-123.
111 X IVINEN, I,. Das B ild von Menscben inpolitischen Denken Niccolò M achia-
i.ll m, I Iclsinki 1951, notad amente p. 73-77-
' "> IMC ( Ol.OMINI, E. S. D e Ortu et auctoritate im perii rom ani. Éd. de
11,1111 Iiiii , 1658, p. 4 (texto acrescentado nesta edição ao da Bulle d’or de
< ImiIcs IV).
' ui AI.BKRTI, L. B. D elia Trancjuillitatedell’animo, em Opere volgari. Ed. A.
Miiimii 1 i, Elorença: 1843-1849. Aqui, i, p. 56, Mesma opinião no diálogo Fa­
nón el fortuna, trad. ital. B.N. (R. 24687), p. 26,
11, CURt C. La Política italiana del' 100, Elorcnçn: 1932. p. 163s.
tempo do secretário florentino, e prlnclpulmenle >^r.ts..i** ,i ele,
sua formulação emerge em plena lu z .''
Pietro Fomponazzi afirma no Do IniniorUtlIUiU' iiuinii
(1516): “A maioria dos homens, quando lazem o hem, o hi/tMTt
mais por medo da punição eterna do que na esperança da I»
licidade etern a...". Se eles fossem atraídos para a vlrtudi.......
pela nobreza desta última, “mesmo supondo a alma moital
eles se comportariam com retidão. Mas quase nunca e o i aso"
Além disso, "... a humana natureza está quase totalmente linei'
sa na matéria; ... o homem está tão afastado da intellgóiu kl
quanto um doente de umá pessoa sadia, uma criança de um
adulto, um louco de um sensato”.-- Estabelecendo o mesmo
diagnóstico, Guichardin tira daí conclusões práticas para uso
dos governantes: “Se os homens fossem bons ou sensato^,
aqueles q u e'o s. governam poderíam legitimamente usar m m
eles mais de doçura do que de severidade. Mas com o a maio
ria não é nem suficientemente boa nem suficientemente smsa
ta, é melhor confiar mais na severidade. Quem vê as coisas de
maneira diferente engana-se”.2*1
Foi Maquiavel quem mais claramente exprimiu a nec< •*id i
de de basear a ação política sobre a evidência da maldade n l u n
vardia humanas - razão pela qual a má fé será mais útil ao i Ituft
de listado do que a lealdade. O texto é bem conhecido; mas <i um •
não lembrá-lo num panorama do pessimismo da Rcnasccnçai'

Cada um entende perfeita mente que é muito louvável paia um


príncipe manter sua fé e viver em integridade, o nao com ailliiM
nhas e engodos. Entretanto, vemos por experiência em I1( )JHM A
época que esses príncipes se tornaram grandes e nao lev mam i 111
grande conta sua fé, e souberam com artimanhas enganai u PM
pírito dos homens, e ao fim eles superaram aqueles que *e hit
searam na lealdade... Depois, então, um príncipe deve saiu i Ia
zer bom uso do animal, ele deve escolher a raposa e <>I* i,» pui
que o leão não pode defender-se das redes, a rap<>sa, do-, lobo 234

232. A exposição que segue é inspirada por HAYDN, 11. The < onutn ÁVu.fA1
sanee, New York, Ch. Scribners Sons, 1950, notadameme p. d 1(1 11 ’
233. POMPONAZZI, P. De Immortalitate anitni, ir.ul. ingl. W. I I I l.u 111
verford College, 1938, p. 50-51.
234. GUICHARDIN, Fr. Pensées cr portnhis. trad. J. IWriraiul, Cm cm i
p. 14.
. |>ici 1*11* então sor raposa para conhecer as retios, c lefio para
*ati'nii metió aos lobos,., Por Isso o sábio senhor nflb pode eon-
«ei\ ai siia le si* essa observancia for eonlrária e as causas que o
l« ' iiain a prometer estiverem extintas. Então se os homens l'os-
u'iii lodos pessoas de bem, meu preceito seria nulo. Mas como
* I* -i sao maus e nflo a conservariam em relação a ti, tu também
ni" tens (|iie eonservá-la em relação a eles... Os negocios vão
un Ihm para quem melhor sabe se fazer de raposa.

'n'iiielli.mle llçào política assume toda a sua importancia


MUtlliilii -i sabe o (|iianto Maquiavel foi lido nos cursos da-Euro-
p i i i n Intimido Innocent Gentillet, escrevendo erri 1576 seu Dis-
i )||........ ... M(i</nhivel, nota que “podemos a justo título chamar”
•iin Ib ii i*, de "o Alcorão dos cortesãos, de tal modo eles os têm
•m *n indi estima, seguindo e observando seus ensinamentos e
(flti ini i . iifiii muís nem menos do que fazem os turcos com o Al-
11<• i" d. seu grande profeta Maomé”. Innocent Gentillet precisa
Mi"• nlltiiile que, na frança, desde a morte de Henrique II “até o
piem nti *i nome de Maquiavel foi e é celebrado e estimado, como
li * ni a * *i,iblo personagem dó mundo, e melhor entendido em ne-
t. i d* i *.iíul<>, e seus livpos considerados preciosos pelos corte-
Mi *•ti illam >*, e italianizados, como se fossem livros das Sibilas...”.-*'
\ un m i i *lisa poderia ser dita da Inglaterra da época.237
S ilmitrlna da justificação pela fé insistia sobre a perver­
tí id. human,i, mas desembocando no otimismo, porque a
...... i d!\ Ina penetrando nos corações corrompidos pode trans­
iu, ni i |i i** Mas essa abertura de luz não existe para Maquiavel.
i la ■ st*,ii iaIvez para Cornelius Agrippa (1486-1535), médico
di l iii’i,i de Saluda, depois historiógrafo de Carlos V, antes de
-i |ii i ni durante um ano sob a acusação de magia.238 Embora
i nuil* ii,t hulero, ele compartilha o seu fideísmo. Mas seu olhar
iibii *. homem é tão severo quanto o de Maquiavel. Todas as
........mi ia*, sociais, lê-se no seu D e V an itate..., apóiam-se na

•i . MA< I IIAVEL, N. LePrince, cap. XVIII, p. 341-342. Cf. RENAUDET,


\ Miithiiiiu'l. París: Gallimard, 1956. p. 267-272.
' Ki, <il’NTILLET, I. Discours contre M achiavel, éd. A. d’Andrca et P. D. Ste-
" ni, llórente: Casalini libri, 1974. p. 11 e 14.
' ' ' bibliografía a esse respeito em Ibid., p. XII-XIII.
1H < 1. <>que segue NAUERT Jr., <'b. ( ¡. Agrippa and the Crisis o f the Re-
lum ninr The Uuiv. of Illinois Press, Urbana, I9(>5, sobretudo p. 309-311.

2(U)
crueldade e na mentira. Os nobres só chegaram ao poder pela
guerra - outro nome do assassinato , pela prostituirão de suas
esposas e cie suas filhas entregues ao apetite sensual dos ino
na reas; ou pelas mais baixas bajulações e a mais abjeta servi
dào em relação aos grandes e poderosos. Ides só se mantem
oprimindo os inferiores, fraudando a coroa e vendendo sua lii
fluência à corte. Sua vida é uma acumulação de vícios, Mui
tos religiosos vêem na sua chamada vocação apenas um m elo
para levar uma vida ociosa, e ela os protege contra lotla Invftw
tigação sobre suas maldades e sua imoralidade. Os medi* o
são ignorantes e oharlatâes que fazem mais ipal do que beind"
As pessoas togadas, são viciosas: elas desnaturam as boas l< i t
se introduzem nos conselhos dos príncipes afastando os i onuo
lheiros titulares ou hereditarios.212 Os mercadores são trapa* * l
ros e usurarios.24í Essas acusações mordazes não provêm d* tl
gum sentimento dem ocrático de Cornelius Agrippa. IJ<>r<|ii« * li
reputa o povo supersticioso e cruel. Seu desprezo pela plebi n
leva ao esoterismo filosófico.2" Os monges cometem um peí a
do imperdoável quando em seus sermões eles expõem a um
vasto público debates de especialistas. Sobretudo não m devia
atacar Lutero em pregações públicas porque o levaram a em ie*
ver em língua vulgar e a contaminar n opinião com mi.i In ie
sia. Ele próprio, Cornelius Agrippa, não teme nada quanto dl
fundir seu pensamento e seu anticlericalismo por textor* >1*1
idioma vernáculo.2,s Quanto à chamada “lei” natural, pela qu tl
tantos homens regulam sua conduta, pode-se defini-la asnllll
“Não ter fome, não ter sede, não ter frio, não se esgotai *1* Ia
diga”, “recusar todas as obras de penitência”, dar-se "t omo Ir
licidade suprema a volúpia epicurista”.24026
15
0
4
9
3

239. NETTESHEÍM, C. AGRIPPA von. De Incerritudine et I 'anil,th u h nlté


rum declam ado invectiva, Cologne, 1331, cap. IXVIII I XXI o I XXX
240. Ibid., cap. LXII.
241. Ibid., cap. LXXXII-LXXXIII.
242. Ibid., cap. XCV.
243. Ibid., cap. LXXII.
244. Id ., D e O ccidtaphilosophih libri tres, C o lo g n e , 13 3 3 . l i v r o III, <ap I V
p. 345-346.
245. kl., De Beatissbfiae annae m onogam ia. ., 1534, I A6 " v .
246. Id., D e ... Vanitate, cap. XCI.
Av.lm reinam o egoísmo e a lei d o mais lorie.Jr Cornelius
Siui|i|ia nota que, de maneira significativa, quando os nobres
t ......... ... Imagens de animais sobre suas armaduras, eles esco-
IIm m .• mpre os predadores.2,H lí ele retoma por sim conta o an­
tigo |iio \'(vrblo: "() homem 6 o lobo do homem”. Mas o ditado
- Huípil to compreendia duas partes ao mesmo tempo antitéticas
i i uinpli'mentares: "Nasce teipsum: homo hom ini Deus. Homo
hommi lupus". '" A supressão da primeira proposição é prenhe
. I. i oiim'i |(’u'ih Ias e revela uma antropologia desabusada. Pro-
|mig nulo a reflexão cie Maquiavel e de Cornelius Agrippa, che­
ga a logicamente ao ditado citado por Thomas Nashe, “o ho-
Mi' ui i um demônio para o homem”2’0 e logo a Hobbes. Pouco
liltpoilii aqui que o autor do Levijatâ (16510 tenha confessado: “O
tli* d" < cu somos dois gêm eos”, fazendo alusão ao fato de que
■li u i * ii antes do tempo em razão do temor sentido por sua
... i |" Ia aproximação da Invencível Arm ada. Se Hobbes pode
ii «. ii i ligura "monstruosa” de um Estado todo poderoso, única
th iguuidu do Indivíduo, é porque ele tinha sido precedido
........ . amlnlio por Maquiavel e Agrippa. Como eles, ele viu no
i. ui. ui "um lobo para o homem” e só isso. Descrevendo sua
iMii.li' ao natural, ele a apresenta como um “desejo perpétuo e
■in In gua de conquistar poder após poder”.251 Ño estado pré
i il . ula u m é um concorrente para seu semelhante porque
■ hiiulumenlulmente igual a ele pelo corpo e pelo.espírito. Des-
i Igualdade de aptidões, nascem a desconfiança e a guerra. Daí
....... .. vildade de um Estado para garantir o direito à vida, “por-
............ jiianlo os homens viverem sem um poder comum que os
tu mu tilia tocios em respeito, eles estarão naquela condição que
i . huma guerra, e essa guerra é guerra de cada um contra cada
l'esslmismo laicizado duplicando e agravando o pessimis-
iii. i um isllnlano da época e que será conservado por Diderot (às
■. . a c, sobretudo, por Holbach.253

M/, IIiid., cap. LXXVIII.


MH. Iliid., cap. LXXX-LXXXI.
M9, <T. .i esse respeito, HAYDN, H. The Counter-Renaissance, p. 405-409.
' >o. ( I. JONES-DAVIES, M. T. Victim es et rebelles.. . p. 60.
' ’i 1, 11( )BBIíS, Th. Léviathan. trad. Fr. Tricaud, Paris: Sirey, 1971, cap. X, p. 96.
'. Ibid., cap. XIII, p. 124. Cf. CITATELE!', Fr. (sob a dir. de). H istoirc des
iiPoloyjrs, II, Paris: Hachette, 1978, p. 317-319,
' O. FAVRE, R. L i M on au sih íe d o l.iw iih n . p. 349-353.
capítulo 5

um homem
frágil

i , l' h;indada da razão


N,iu .1penas o homem é mau, mas sua inteligência tam-
In ni i *li peito cie certas aparências, é afinal impotente. Esta se
Hititd i ilii 111.ic..i<),■tào extremista quanto a primeira, foi proferida,
i 11 i imliem, em plena Renascença. Toda uma corrente de pensa
........ . •i li ' le o século 14 punha em causa a segurança intelectual
• Sil luirle,s e de Sào Tomás e combatia a vacuidacle do saber,
i i b im.ls e seus discípulos haviam conciliado universal e parti-
ul o -' >ia ello geral e realidades concretas, grupos e indivíduos.
1 11 um imlnallsmo de Guilherme de Occam saiu em guerra con­
tia ' i um eilualismo qué dava consistência aos “universais”. A
• o 'i, " Iranelscano inglês, ao contrário, negou qualquer realida-
• illlmando c|iie uma mesma coisa não pode existir ao mesmo
d mpii em v. irlos seres ou vários objetos. Os conceitos são ape-
li,i pillas ias Só existem os indivíduos: cognoscíveis por uma in-
llilt i" 'ir|a sensível, seja suprá-sensível. Essa crítica invalidava as
gi ui i.ill/açoes científicas (em contrapartida, ela privilegiava a ex-
pi ih ii, ia) e toda teologia racional. Ela fazia das noções de bem
Hiiium, de lei, de causa e de finalidade puras construções men-
i a • dava a religião apenas o apoio da fé.1
I Ias ia também elementos de ceticismo no D e docta igno-
hniihi de Nicolás de Cues, que julgava todo conhecimento hu-

I Snlirc o Occamismo cf. notadamente. RANDALL Jr., J. H. M a k in g o fM o -


./i in M intl New York, 1940, p. 101-102, e os artigos “Occam” e “Occamis-
nu ” >l< I! Vignaux no D ictionnaire de Théologie catholique. HAYDN, H. The
i ounter Renuissance, p. 88-89.
mano mais ou menos arbitrario c? comparava a relação da elêm la
com a verdade a mesma de um polígono com o círculo que IIm*
é circunscrito, sendo a adequação atingida so no Inlinllo, loia d o
alcance de nosso espírito. Para Nicolás de Cues, o iinico conlir
cimento seguro era o dos limites da razão.' Um novo passo i
frente na crítica do saber foi dado por Jean-Erançols PU de MI
rancióla, sobrinho do célebre autor do De Dignítutc bom luí s f )
seu Exam en vanitaiis doctrinad gentíum el eer/tatls ebrlsihuiae
disciplínete (1520) recorre a empréstimos de Scxtus I nt|>11ít in
que, Com Pírron, é o principal representante do ceticismo imtlgi ■
Ele destrói a validade do silogismo e do raciocínio indutivo, tio
mesmo tempo, ataca simultáneamente a metafísica, o concello de
causalidade e o conhecimento pelos sentidos. Ele expóe as Insil
peráveis dificuldades que encontra a filosofia para definir os It i
mos, conhecer os objetos e operar demonstrações córrelas, i 011
clui então que não se deve nem negar nem afirmar, mas suspen
der o julgamento. Como a razão não prova a religião, esta so
pode ser baseada numa revelação.3
O livro de Jean-François Pie remete a uma inqulelaçã........
letiva em certos meios intelectuais de sua época, Nao c poi a» aso
que a dúvida sobre o poder da razão aumenta no Início do sèi u
Io 16. Repor em causa as autoridades antigas ou modernas e a lt*
forma incipiente levava a uma reatualização pelo menos pau Ml
do ceticismo antigo. Essa interrogação sobre os limites do sabei
humano exprimiu no âmago da cultura da.Renascença um mal . >¡
tai- espiritual e um sentimento de desconforto intelectual'st u ii\t i
até mesmo dentro de um pensamento sobretudo otimista <ornii i)
de Erasmo. Vimos, com efeito, que no Elogio da Loucura, ele i ou
sidera as “ciências” como uma “invenção” de “gênios maus" qtiu
levaram a humanidade para longe cia época de ouro e. esllgmittl

2. NAUERT, Ch. G. A grippa..., p. 146 e 302. STADKEMANN. U Um oUif


des ausgehenden M ittelalters: Studien zur Geschichte der Weltunschatiimn OHH NI
colaus Ciisanus bis Sebastien Franck, Halle, 1920.
3 . NAUERT, Ch. G. Agrippa..., p. 148-149, IMBART l >I• IA I» MMU /.•
Origines de h. Réforme, II, Paris, 1909, p. 568-572. STROWNM. I w ..
ne, Paris, 1906, p. 124-130. VILLEY, P. Les Sotares et /Voolttlion dei m
M ontaigne, Paris, 2. ed. 1933: II, p. 154-155.
4. NAUERT, Ch. G. A grippa..., p. 140-141. GRKKNWt >OI>, II. II dn
‘sion du scepticisme pendam Ia Rcnaissance ct les premiéis apnliipKit n , hii
Rcvue de l'Ü nivenitf d'Ottawtt, XVII, 1947. POPKIN, K. II. lh e llh ha f f d
Sccpíicism (rom Ermmw lo D esoírles, Assei», 1960,
i i ' milihliliulr impla” c|iic* leva a ''escmlar o mecanismo secre
|n i Ih mundo" ' Nova apología da "doula Ignorância”.
I *i ni lo d.i corrente Intelectual que levou avante a critica tía
i Hni 11 um lugar Importante cabe a Cornelias Agrippa (que con»
||| m . mui iriia dificuldade essa depreciação da crítica com a
iH lli i da magia). Durante muito tempo, ele foi considerado so-
II p lu ilii Mimo um neoplatônico, mergulhado no esoterismo. So
rn ......... lile e que foram postos em destaque os elementos céti­
co pn ii ules em sua obra, em particular o D e incertitucline et va-
Me a it'iiUarum declam ado invectiva (1531).°
Di di o p rim e iro capítulo do livro, Cornelius Agrippa
d i hllii
,

\ m rdade possui uma tão vasta liberdade ¿ uma dimensão


i i" .impla, que nenhuma especulação científica, ñenhum julga-
ineiilu convincente dos sentidos, nenhuma argumentação lógi-
■ i, neiilmína prova evidente, nenhuma demonstração por sllo-
(fhnio, nenluim processo da razão humana podem apreender,
a lê pode conseguir.

i i mielitis Agrippa afirma ainda: “Todas as ciências sào


ip< o i . di i icios e opiniões dos homens” (cap. I). Nào apenas nós
ui. ipa/i ■ile f(amular premissas corretas e daí deduzir si-
I .mi Mi> •' validos, mas também somos enganados pelos nossos
"iid.i, lodo conhecimento certamente vem deles, mas -
Kl iiniiid" a i ríllca occamista - eles nào trazem certeza. Eles nao
o ' dpi ni nada da natureza profunda: eles sq liberam o superfi-
I tl • o individual, Toda ciência construída a parti! cie ciados con-
i ' ■ porlanlo, falaciosa, uma vez que a sensação não revela
i «< pt lin iploN gerais (cap. VII).
<i autor i lo D e . .. vanitate tem prazer em sublinhar as con-
n olí' mi . m ire as escolas e depreciar as grandes autoridades do
i - id., potadamente Aristóteles (cap. XLIV, LII e.CLIV). Ele ob-

i ! i.i'.mc, Floge (le la Folie, cap. XXXII, p. 65-67. Cf. anteriormente, p. 139.
o I'.ii.i nulo o que vem a seguir meu guia é NAUERT, Ch: G. A grippa..., so-
lm nulo p. 214-220, 293-300. Cf. também o livro de STADELMANN, R.
\,i>n (ieiu ..., jií citado. CASSIRER, E. Das Erkenntnisproblem in der P hilo-
..y/'/.- und W issenscbafi der Neuzeit (3 v., Berlin, 1906-1920) I, p. I6 2 e 181.
la i' ■‘, 1, 1 i. Agrippa d i Nettesheym e la direzione scettica delia filosofia d el Riñas-
. -"i, ni,'. I'min, 1906. HAYDN, H. The Counter-Renaissance, notadamente
P I4(i 147.

27b
serva que as viagens dos Ibéricos destruíram ;i,s opInUVs (Ion getí»
grafos anteriores (cap. XXVII). límite* a hipótese do c|iio r,sítelas o
planetas desconhecidos poderíam existir, o que Invalidarla a aw«
tronomia de seu tempo (cap. XXX-XXXI). Alean disso, i len« las o
artes fréqüentemente sào fontes de pecados, de males c de ht n
sias. A arquitetura é louvável em si, mas ela sobrecarrega as Igie
jas e constrói engenhos ele guerra (cap. XXVIII). A retórica, liu 01
ta em seus principios, vem em socorro da injustiça, da ma lo i di
heresia (cap. VI). A pintura inflama as paixóes o cultiva os ussilhrt
tps obscenos (cap. XXIV e XXV). Quanto às ciencias neutras
matemáticas e cosmografía - elas sào inúteis para a felicidad»
a salvação (cap'. XI e XXVIÍ). De qualquer maneira, a vida hum i
na é demasiado curta para dominar nem que seja urna únlc a <ICm
cia (cap. Do Desses argumentos acumulados resulta que < \l'.n
grande perigo para a razão em ignorar seus limites (cap. \< Vil»
CI). Só existe um dominio de certeza, o da fé, porque dlsponum
a esse respeito de uma revelaçãoscontida nas Escrituras,'
O D e ... uanitate de Cornelius Agrippa com toda e\ IdAm la
influenciou Montaigne" que se tornou, além disso, lamlllat do
Sextus Empiricys graças a urna nova tradução latina das nhlllf
deste último proporcionada por Henri Estienne em I5(>¿, Moni
taigne a descobriu em 1576, e marcou esse evento mandand.......
nhar uma medalha e reproduzir frases do grande cético nas pa
redes de sua casa." Mas outras tradições confluíram na i cíela»
Apologia de Raym ondSebond que constituí por si só um llvio ln
teiro dentro dos Ensaios. Nossos lembretes anteriores dos ti o<n
monásticos consagrados ao contemptus m nndi nos permitem sh
tuar melhor e compreender o rebaixamento e a condenação do
homem empreendida por Montaigne:

A mais calamitosa e frágil de todas as criaturas e o hoiiiciil »*


também a mais orgulhosa. Ele se sente e se vé alujado upil no
meio do lodo e do excremento do mundo, amanado < i.......lo
à pior, à mais morta e corrompida paite do universo, ,m ultimo

7. AGRIPPA, C. Opera, 2 v., Lvon (?), 1620-1630: II, |>. SS4 V>\ /*, t
nali peccato II, p. 491, De triplici ratione, cap. V.
8. Cf. VILLEY, P. Les Sources..., II, p. 166-170.
9. HAYDN, H. The Counter-Rcnaissance, p. 90, l;mi< .r. oihiun oht < I > |
ca consagradas crítica do conhecimento, citemos o Q notinihil i, mn >\< I i mi
cisco Sanche/, (1581) c o Tronic of hum ane ieurning dc I ttlkc <ítcvllh i lio M

270
, i iglu «In ivclnlo v •) lujilfi .iI.imI.iili i tia abultada celeste, com os
iiiilnialM tia pior eundlçtU) dos três,"1

•» homem é lama e objeção: "cheira a morte e a terra’’.'" lí


mitigue t li.i .1 passagem do Iiclesiastes: “Lodo e cinza, b que
lm |- ii.i ir glorificar?”," que tinha mandado gravar num arco de
III i hililii i|t i a Nos somos quase uma injuria a Deus: “Como pode
fe iiipi o nu alguma correspondência e semelhança com coisa tào
r|i 11 i Mino nos somos, sem uma extrema benevolência e perda
► ui i ■liv nni grandeza”.'1 Abjeçãò de fato, porque

Nos lemos di- nossa parte a inconstância, a irresólução, a in-


i i'llt ,-.r sobre as quais Montaigne volta constantemente - (e
111nl.i i ,i dor, a superstição, a solicitude das coisas por vir, ou até
d< pois i Ia nossa vida, a ambição, a avareza, o ciúme, a inveja, os
ipi iii•s desregrados, furiosos e indomáveis, a guerra, a mentira,
i drsli'tiklade, a difamação e a curiosidade”."

I ■'i.i ll .i.i tle pecados capitais é mais elaborada que a do


■h i-11 m'leñarlo e as condenações anteriores poderíam ter sido
(tu dii nlas, alguns séculos antes, por Pierre Damien ou pelo Cardeal
I tiltili
i i a i exl.sie superioridade do homem. “Nós não estamos nem
tli mi i in tu alnilxo tio resto”.1- “Não há animal no mundo exposto
a i ml 11 nlrnsas como o homem”.16 Inversamente, os animais não
. !•i i*ii ipa/i ■•. <le ser... instruídos à nossa moda”17 e “se existem al-
tyliu animais menos favorecidos (em beleza) do que nós, existem
(Uni............ . grande número, que sào mais”.18 “Quanto à fidelida-
•I. nao ha animal no mundo tào traidor quanto o homem”.19

lu / 1 .,/m, II, cap. XII: II, p. 81. O estágio sublunar da corrupção segundo a
■mu i pipo aristotélica e ptolomaica.
II lltid., p. 201.
I 1 Ibld.. p. 136.
I t lliid,, p. 164.
M, lltid., p. 121.
I’, lltid., p. 89.
16. Ibld., p. 93.
I ' lltid,, p, 94.
|M, lltid., p. I 17.
I»), Ibld., p. 109.

¿77
Os sentidos dos ;mlm;tls são frcqOenlemenle litáis aguçit
dos que os nossos,-’" os quais nos enganam constantemente c
“nos quais repousa o grande fundamento di1 nossa ignoram ia '1
e de nossas "fantasias”" errôneas. Na esteira do pirronismo, dt
Jean-François Pie e de Cornelias Agrippa, Montaigne entra pot
sua vez na crítica da sensação:

Quanto ao erro e à incerteza da operação.clos .sentidos, nula


um pode fornecer quantos exemplos c|uiser, de t:U> comino qin
são os erros e enganos que eles cómeteme'

Daí a impossibilidade da ciência, cujo prodigioso surto n


autor dos Ensaios não previu de forma nenhuma, “lí provável
que este grande corpo que chamamos mundo seja coisa bem di
ferente do que julgamos”.-1 Nosso espírito não pode chegai nu
conhecimento do mundo dos planetas, “nem imaginar sua luitll
ral conduta”.2'5Mas a ciência não é menos impotente para pene
trar os mistérios cie nosso ambiente próximo. “Nossa condi-lo
significa que o conhecimento daquilo que temos entre as nianu
esteja tão longe de nós, e tão acima das nuvens, quanto o o min
cimento dos astros”.J” Ignoramos igualmente nosso próprio mi
po. Porque “se a alma soubesse algo, ela saberiá primei ia mcilU
sobre si mesma; e se soubesse algo fora dela, seria seu prôpito
corpo e seu envelope antes de qualquer outra coisa”. I)aí dei t h
re que “a humana ciência só se pode manter por razão InseiiNtt'
ta, louca e fora de si”:28afirmações que levam a matizar os julga
méritos precipitados sobre a modernidade de Montaigne. I )e ma
neira mais geral, nosso espírito é incapaz de atingir a vi rd uli
Porque “é uni instrumento vagabundo, perigoso e temerário"/' A

20. Ibid., p. 243 e 251.


21. Ibid., p. 240.
22. Ibid., p. 244.
23. Ibid., p. 246.
24. Ibid., p. 223.
25. Ibid., p. 180.
26. Ibid., p. 183.
27. Ibid., p. 210.
28. Ibid., p. 245.
29. Ibid., p. 207.

27H
"Vi (m t|i nosso |ulgamento'' não ó mals ¡iplii para a vc*rdade do
i|ii» mi iilliti*. i|,i coruja (para o) esplendor do sol".'" A “filosofía
IH " p i . i de urna poesía .sorisiicada,MI e os sistemas de pensa
Hit n i" «i i oniradl/.cm ." I'.ntáo, o salmo XCIV (9,3) tem razáo em
i illlim ili "(> Senhor conhece os pensamentos dos homens, e subê
»|lit i li i sao Vitos".-" A imperfeição da inteligência humana proí
bt llu rn i.io <|iial<|uer acesso a um conhecimento firme,
Mi mlalgne, com urna penetrante lucidez, pôs em destaque
iif Im m ipn .i l lénela, a legislação e a moral comportam de reía
L im , i li mm aspecto, ele forneceu elementos ao pensamento mo­
lí- 11im niii'i si'm ele próprio penetrar nele. Porque ele dotou esse
I» I im *- -11 , onolaçòes negativas, dentro daquele mesmo espíri­
tu *I**< aiiion *. de tratados sobre o desprezo do mundo. “Nao
MM* ni uliuma constante de inteligência, nem de nosso ser,
tu ni di •■' ihjeii)s. h nós, nosso julgamento e todas as coisas mor
i ii i i-1 i*M oando e fluindo incessantemente.”34 Montaigne nao
lili - |iu n i que <> contingente, o p assag eiro - portanto, o tempo
i i! |ni-Irv.em ser portadores de valores auténticos, Relativo sig
nilli n i paia ele variação, inconstancia, instabilidade, vaidade e
lt iqiu a que ele descobria primeiro em si mèsmo: “Em jejum eu
im í i I i i I m diferente de após a refeição; se a saude me sorri e a
i,, imlia - .la i Iara, eis aqui um homem honrado; se eu tiver um
- il-i ipn me pressiona o artelho, me torno carrancudo, desagra
•le - I e In.u e.ssivel".-" “Cada um, acrescenta ele, diría mais ou
ni- n u . a mesma coisa se observasse a si próprio com o eu”. Le-
im - iluda im cap. I do segundo livro dos Ensaios : “iNósl muda-
ini - - - mu i ,i(|iiele animal que assume a cor do lugar onde o dei-
........ e uni» i oscilação e inconstancia”.* Daí decorre não so-
iti' ni, a Inconsistência fundamental’clo homem (estando “sem-
|m ti" meló entre o ser e o morrer”, ele não pode ter “nenhu-
iii i - i iiuunlcai/áo com o ser”),37 mas também a impossibilidade

»0, lliiil., |>. 199.


U. 11)1(1., p. 181.
W. lliid., p. 139-143. .
u , Ibid., p. 145.
H. ILiil., p. 256.
i’., lliid., p. 215-216.
Mi. Ibid.. II, cap. 1; I, p. 402-403.
l , lliid., II, cap. XII: II, p. 256.

271)
de q u a lq ue r legislação coerente e universal, "I lina verdade sepii
rada p o r esta m ontanha e m entira para o m un do que esta do oin
tro la d o ".38 A verdade deveria le r "uma apáremela Igual e u iilvei
■sal” .39 Ora, “ nao ha nada mais sujeito a continua agitação d.- i pi•
as leis” .40 “Nós nos escondem os para ter prazer com nossas mm
lheres, os ín d io s o fazem em p ú b lic o ” ."
Marcar, com o fizem os diversas vezes nos d cscnvo lvlm i u
tos anteriores, a consonância entre certos traços do pesslm lsiliu
de M ontaigne e as exortações monásticas ao desprezo do mundo
leva a recòlócar qs E H sa io sd e n tro da história crista, C onto a Jgn
ja, M ontaigne julga que o p rim e iro e princip al pecado d (> ........ ",
é a “presunção” - isto é, o o rg u lh o - , “ nossa doença mais im U lI
ral e o rig in a l”42 pela qual nós tentam os esquecer e mascarni fUWt|
sa miséria. Certamente que seu ceticism o deve m ulto ao ciin Iim
m ento dos pirronianos, mas revisto e co rrig id o p o r Sao l'a tilo M
Santó Agostinho.' Ide co nclui então que a salvação reside no "ic
conhecim ento da fraqueza de nosso ju lg a m e n to "'3 e ao mcnmiê
tem po na h um ild e aceitação da Revelação que

Deus nos concedeu gratuitamente, por melo das "ii-.i. mimlo t


que ele escolheu do povo simples e ignorante, para nos Im imli
sobre seus admiráveis segredos. Nossa fé,não e conquista noMil,
é um puro présente da liberalidade dè outrem. Não e p* I" ,li
curso 1= razãol ou pelo nosso entendimento que nos io< cheniof
nossa religião, é por autoridade e mandamento alheio, A li u,|||| -
za de nosso julgamento nessç caso nos ajuda mais do qm i |o|
ça,'e nossa cegueira mais que a clarividência. I nui . poi mu ,
médio de nossa ignorância do que de nossa ciência qit......... .
sábios desse divino saber”."

Essa declaração ficleísta acrescenta-se a intím en », <*1* igli • m


teriores ou contemporâneos da “douta ignorância". Como • umo

38. Ibid., p. 231.


39. Ibid., p. 230.
40. Ibid., p. 230-231.
41. Ibid., p. 234.
42. Ibid., p. 81 e 124.
43. Ibid.. p. 127.
44. Ibid., p. 137-138.

2H0
m i ■ t tiilm ir.ii dl.m ie de tantas Interpretações aberrantes dadas so
| m» " 1't ii‘i.im entó religioso de Montaigne? Lembremos os julga
mt. • ,i| iM f.Mados de Sainte-Beuve: "A religião não o atingiu nem
mi 11 | ii nii m i nem sec|iier o m o d ifico u ” , “ lile está no m eio da huma-
Hldtuli Hilo u lsia ". Na A [ x > k i a . .. "tu d o é controlado, calculado,
Ii i i I um .. d l/e m lo <■> contrário em aparência daquilq que o mestre
Mim 1111 1 1 iirilgi * mesmo e que ele insinua” .1'' Sainte-Beuve fala tam­
il. m l. - i i i . pagan Kabelais” 10- outra apreciação sumária ã qual Lu-
t ji ii 11 In i r le / jtjsilça. A opiniã o cie Sainte-Beuve sobre Montaigne
p)ll ildi i lepellda até nossos dias.47 G ide a tinha feito sua18e a reen-
I m ili um is sob a pena de Mugo Friedrich, u m dos mais im portan-
|i • 1 1nin uiaiisi.is de M ontaigne do ú ltim o m eio-século.19 Para ele, a
m ui* IIi mea enlie o desejo dé rebaixam ento cio hom em tão marcan-
|p 11*1* lUhtilos e íis teses da teologia cristã (de amigamente) é ape­
n o mipi di. 1.11 M ontaigne só utiliza o Cristianismo para rejeitá-lo
i*, i gulda l ie e um verdadeiro “cético” para qtiem a religião e
ii|H n i'* m orliil e humana".
I pir. iM i lem brar aqui que M ontaigne, tradutor, a pedido tlc
ii p il d i T hcalo^ ici n a t u r a lis redigida p o r um catalão do século
I 11 I i \ ' i, M msiderou "belas as imaginações deste autor, a contex-
uii i d* .ti.i obra bem articulada, e s e u escopo pleno de piedade” .

i lu, esle úllimo era por razões humanas e naturais estabelecer


* willU ar contra os ateístas todos os artigos da religião cristã: no
i|iir, pura dizer a verdade, eu o considero tão firme e tão feliz
ijiii nao penso que seja possível fazer melhor nesse assunto, e
* n io (|iir ninguém o igualou.^

/Vi'ilm M ontaigne, retom ando p o r sua conta as intenções


t|n .1* igéilt ,r. de Kaym ond §ebond, traduzindo, com entando e de-
I ni li tu li i ,i i »l)ra deste teólogo catalão - apesar de separar-se dele
• *l*n * rilnN pontos - adotou o m esm o objetivo que Pascal mais

IV SAINTE-BEUVE, Port-Royal, ed. M. Leroy, Paris, Pléiade, 3 v., I, 1972,


I* H\<>, 84 I a 833.
Iti. 11)1(1., [). 843.
l I'nr exemplo por CONCHE, M. M ontaigne. París: Seghers, 1966.
III GIME, A. Essai sur M ontaigne, Paris, 1929.
I'» EldEDRICH, H. M ontaigne, ed. fr. 1968, Paris, Gallimard, notadamente
p 104 133. Livro publicado em 1949; 2. cd. 1967.
31), MONTAIGNE, Essais, II, cap. XII: II. p. 123.
(.tule nos Et'IISiWlgt’lloS. I lili e oilll'O cjulNCTillVI Combatei' O "exo l.l
vel aloísm< i".'’1 () autor dos Distilos mío podía prever <pu* seus es
i ritos si* tornariam o llvro ele* cabeceira dos libertinos no pnsso * |iu*

rli* (|ui,rl;i rom todo .1 evidência por cjut: actisjí lo de* duplklda
tic? demonstrar a necessidade da Hevelavilo e da graça, Nel .1
uma longa tradição paulina e agostlnlana, que ele agrava por urna
Impiedosa crítica pirroniana do saber, Montaigne apresenta

"o homem nu e vazio" a Um de que "reconhecendo sua Iraque


/.a natural", ele se torne "apto a receber tio alto alguma liara es
tranha, desprovida de humana ciência e tanto mais apta a alojai
em si a divina, aniquilando seu julgamento para dar mais lugai it
lê, Quanto mais nos remetemos e nos entregamos a Deus, e ie
nunclamos a nds, mais nós valemos’’.''

bis ai uma sentença co nfo rm e à mais constante fllosnliu


u ls i.i. 011 ale a experiencia mística, lí bem verdade que a preo
1 u p a r.lo da s a lv a rlo parece ausente dos E n s a io s , lí vcrtlatle iam
bem que existe uma delasagem entro o “d iz e r1’ religioso de Mon
lalgue i seu "la /e r ” epleurlsta. () (jue explica a aeusacao de dtl
plh Idade form ulada pelos autores da L ó g ic a de bori l(<>\ ,il
1 \ 11 unIliI e Nl( nle) e .1 t onvlcçao dos libertinos de que ele lest
i|iii • 111111ll.il seus verdadeiros sentim entos. Mas p or que rei usai
• pitiltpK 1 enulradlyíto d e n tro de urha mesma p e rs on alida d e 1 l
paia i|iie serve esse reduclonism o em pobrecetlor?
1'asi al, mesmo temendo a moral de Montaigne e lamentan
do o sen "tolo projeto" de pintar-se, foi mais justo ao idenll|j«ai no
iiiiloi dos Ensaios "um luimllde discípulo da Igreja pela le" I ssi
eia lambem o sentimento de Mademoiscllc de Gournay, IIIha espl
ritual de Montaigne e alma devota que, prefaciando a edlçilo d<
pió*) dos Ensaios , escreveu: "líu agradeço a Deus por escorai sua
lgre|a com um lao vigoroso pilar humano". Quem ainda duvidai
da religião de Montaigne deve remeler-se aos capítulos que efe
consagrou respectivamente íts "preces" (l; I.VI) e ao "arrependí
mento" (III; II). 1,0 se aí um comovente elogio do Padre Nosso Dtl
única prece de que me sirvo em toda parte") e um questlonaMivil»512

5 1 , T b it l. . p , 6 7 .

52. Ihid.. p. 145.


5.1. I'AS< :AI „ lin tM b n dvtc M . dr Sitcy (cm ( E uvm m n/dhts, <-.l I Snnw l l
Ollcmloy, l‘).U, p ,40).
it 1 1Im Ui Ui >pc.su r pr< >v<>cad< >pcl< >s "e.itan »s“ , .10 t|iiul se t >pòe o ver*
iliiil» Iim uiivpendlm ento motivado pelo "respeito de Deus", Esta-
ni.i i Innge aqpl do Montaigne mais eomumente aceito hoje.*"1
1'ui sinal, nào é revelador que ele tenlni sido amigo de Pier-
1 1 li.mon ( I vi I- 1603)? liste, advogado, depois padre e pregador,
i' iimilu 1' coordenou no seu tratado consagrado à Sabedotia
1 111<11 1 os argumentos dos Ensaios sobre a miséria e a fraqueza do
Iimiiu m 1'lerre Charron define o espírito humano como “um fun­
di* di 1 a urldao pleno de cavidades e de calabouços, um labirin-
1" mu abismo confuso e bem retorcido”.55 Em outra passagem, e
M1I1 11 leve ( 01110 um “utensílio vagabundo, mutável, variado, con-
|ioiiihi I, um Instrumento de chumbo e de cera” que “dobra,
lllmtgii .1 , acomoda-se a tudo”,56 “vai sempre, a torto e a direito,
tsul......... .1 mentira como com a verdade”57 e justifica tudo: o que
4 il 11imlnUvel num lugar é piedade... em outro”.58“Nào existe ra-
1.1 tpn 11.o» lenha um contrário”.59 “Os erros se recebem em nos-
1 1 lima pela mesma via e conduto que a verdade” e nós nào pos-
miuim , 1 1lin ios seguros para escolher entre os primeiros e a se-
11111d 1 \ sabedoria e a loucura são muito vizinhas. Só há uma
ni' 11 volta i le uma para a outra... A melancolia é própria de am-
ii 11 ' \ essas considerações desencantadas, Pierre Charron acres-
•illa luna condenação da curiosidade intelectual e da pesquisa:
\ 1 Imsi as d o espírito humano sào sem termo, sem forma: seu ali-
............. 1lúvlda, ambigüidacle; é um movimento perpétuo, sem pa-

' 1 l' imc os autores que reabilitaram a religião de Montaigne citemos nota-
.1 miriiic: STRÒWSKI, F. M ontaigne\ 1906; PI.ATTARD. J. M ontaigne et son
0 ni|i'., 19.16; DRFANO, M. L a Pensée religieuse de M ontaigne, 1936 e “L.’Au-
l',n iilnisme tlans 1’Apologie de Raymond Sebond” em Bibüothèque d ’h um anis-
"i, ei Renaissance, 1962, p. 359-575; CITOLEUX, M. Le Vrai M ontaigne,
iheeloyjcn et sote/at, Paris, 1937; SCLAFERT, Cl. L’A me religieuse de M ontaig-
ih\ 19 >1. bibliografias recentes em BROWN, Fr. S. Religión an d P olitical
1 ninei 1'i/iis/n iti the Essais o f M ontaigne. Genève: Droz, 1963 e CROQUET-
I I*, II. Pascal et M ontaigne. Etude des réminiscences des Essais dans Pceuvre de
l\tual Genève: Droz, 1974.
•i < IIARRON, P. D e la Sagesse em Choix de moralistes jrançais, ed. J. Bu-
i liou, Paris, 1836, livro I, cap. XIV,'-p. 40.
iii lbld., p. 41.
’i \ Iblil., p. 42.
’*M. Ibld. . ,
V). Ibld,
(i(l. Ibid., p. 4,3.

2 h: j
rada e sem objetivo; o mundo e urna escola de InqulNlçào.... Dat,
cluas importantes conclusões: a) c preciso "frear" e ‘'amarrai" os
homens de “religiões, leis, costumes, ciencias, preceitos, ameaça*,
promessas mortais e imortais”;02 b) mais vale a atonía Inleln mal
que o excesso de espírito. “Os povos mais mediocremente « splil
tuais, vivem em maior repouso que os engenhosos" <■ (.liaimii
opõe aqui os suíços aos florentinos. “O refinamento dos espírito»»
nào é apaziguamento”:6 23 nova justificação da "douta ignorancia",
16
Um rápido olhar de conjunto sobre as tomadas de |><••.i< ti i
pessimistas que acabamos de enumerar revela evidentes conlll
sõés, Nossos céticos põem em pé de igualdade todas as dl •Ipil
nas: a arquitetura e a astronomia, a retórica e as malematli as Me*
amalgamam ciência e filosofia, julgamento moral e crítica do >••
nhecimento. O homem é rebaixado ao mesmo lempo con........
gulhoso e como incapaz de atingir a verdade, E esta ultima nao
é o objeto de distinções que marcariam graus. O nível <lenlílli o
nào é separado do nível metafísico. Enfim, tudo o que e lempo
ral e fugidio é automaticamente afetado de conotações negativa»»,
Destacar essas características de uma corrente de p» n o
mento da Renascença nào é fazer um julgamento sobre ela, ma*
apenas constatar que no seu equipamento mental Jean I iauu<H
Pic, Côrnelius Agrippa, Montaigne e Chárron nào possuíam aln
da os instrumentos que lhes dariam acesso ao universo da »lui
cia moderna. Nào há dúvida de que suas críticas conjuntas a ii»i||
mismo tomista e humanista operaram limpeza salutar, ,‘aia Iu •>ti
lidade às generalizações levou a valorizar o concreto e a • sj»»
riência. Mas eles próprios nào entreviram o partido que a t Iria la
iria logo tirar dessa lição de humildade. Foi somente com <«l« »i
dano Bruno,64 apologista da razão - mas também com Jean lio
din e Louis Le Roy6S - que a noção de relativo que se luim na

61. Ibid., p. 41.


62. Ibid., p. 44.
63. Ibid.
64. Sobre G.-Bruno cf. notadamente HOROWITZ, I. I.. The l\'en,lto,nht l'bf
lósàphy.of G iordanóBruno. New York: Coleman-Ross, VMUflMI II
La Conception de la nature cbez Giordano Bruno. Paris: Vrin, 1% ‘
63. Remetemos aqui sobretudo a República. Darmstadt, Si icmi.i A il,a, 1'Mil
v. 1, p. 663-664, e h introdução do seu Tbéâtre de la iirtture unireiwlle, u ni
fr. de 1597; c também a LE ROY, L De la uicisütude ou rai ii,nl dr\, /muM
lunivers, 1575.
• «!• ••t autores que acabamos di' citar .uu|iiirlii qualidades
|i i lil\ 11'• l Ki assume então uma dimensão cósmica: o homem
piinlii •i >m o dc.slocamento do observador; movimento, tempo e
|mmm ii.ii i sai) Imulilveis; dois objetos não são jamais idênticos -
Wlh.l Use i ui amista a terra não passa de um-ponto dentro de
Um im hciso sem limite e que não tem a perfeição circular cjue
*1 11» n*i.i\ a Multo logo se descobrirá que só existe ciência do re-
lilllVM M im para muitos predecessores de Giordano Bruno e no-
|(l»l inn nli para Montaigne, a crítica do conhecimento e a insis-
la iol m* o relativo tinham sobretudo por função introduzir ao
||ili I ni" * provar a necessidade da Revelação.,
V imI i i i , não devemos considerar como marginal ao século
lu i humilhação do homem empreendida com grandes reforços
•K iiigiimeiitos céticos. Quantitativamente falando, ela foi pro-
V i>* lim ule ale mais importante que a valorização otimista so-
i i i qual on historiadores da Renascença tinham mais partícu­
la.....nu Insistido até aqui. Porque, ao laclo de outros com po­
ta nu i, lonlluíram as duas correntes agostinianas da época: a
11M p< tiiumeceu católica (com Charron, por exemplo) e a que
(ipli oi pelo Protestantismo. Na época, não foi a apologia da rar
0iUi *pn |iieil<>minou.
li ndo em conta suas audiências, Lutero e Calvino mere-
...........p i e o s escutemos sobre esse assunto. Ambos pensam fun-
ifinit iilitlmenle a mesma coisa,' a saber, que resta ao homem
i "i i "i 11pido uma certa “luz natural”, vestígio de seu antigo es-
pli iidm antes da (|iieda. “Que três e dois são cinco isso é total-
illi nli i lato na luz da natureza” escreve Lutero que precisa: “A
Itl da la/ao se acende à luz divina..„ Ela é um fragmento e um
I s u iiiv da verdadeira luz, na qual ela reconhece e glorifica
! i"- i' poi c|iiem foi acesa”.66 Calvino levou mais longe o elo-
iC' 1 ó i Inteligência humana e deixa para ciência todas as suas
i li 1111 •m Diremos que aqueles que inventaram a medicina fo-
i 1111 Insensatos? Pensaremos das outras disciplinas que são lou-
i i ».*'" Allrmaçòes que podemos aproximar desta outra, situa-
m i

11 M" I" lisio da Instituição cristã : Aqueles que sãò enten­


dí» Iom e peritos em ciência, ou que de alguma maneira a expe-
i Iiih nl.ii.im, são auxiliados por esse meio e avançados para

mm I 11TI IKR, M. CEuvres, X, p. 399 (Evangelho da grande missa do d ia de N a-


l,it) ir imito redigido em Wartburg.
m ' ( 'A I V 1 N , J. lUnstitution chrétienne, II, II, 14: II, p. 37.
compreender mais de perto os segredos de Deus","" <>•; dois Me
formadores estilo, portanto, em nítido recuo em relação a A grlp
pa e a Montaigne nas suas análises das variações, fraquezas e
enfermidades do espírito humano.
Em compensação, eles preteqdem provar c|iie este ültlmo
enfraquece quando se mete em metafísica e religião. Irremedla
velmente atingida, nossa razão “jamais pode nem aproximai',
nem tender, nem mostrar seu objetivo para esta verdade .1 sei
ouvida que é o verdadeiro Deus, que quer estar conosco",w No
nível filosófico e religioso, Lutero e Calvino repudiam o ollm ls
mo tomista e opõem termo a termo luz sobrenatural e luz nalll
ral. Sem a graça e a iluminação da fé, concedidas gratultamvnle,
o homem só pode viver errante, perder-se em contradições, L a
jar ídolos. Calvino insiste longamente sobre a impossibilidade de
compreender a predestinação: “Se alguém se enfia e se introme
te com demasiada confiança e ousadia” neste “labirinto", nflo
“encontrará nenhuma saída”.6 707
9
6
8 1
Oposta assim à “luz sobrenatural”, a “luz natural" e a s s o
ciada por Lutero a conotações negativas: “carne”, "aparêiulit ,
“mtindo”, “pecado”, “vergonha”, “presunção”, "livre arbítrio", '
etc. Daí, duas consequências. Primeiro, a convicção de que a ia
záo humana é incapaz, de promulgar uma moral correta I Ia
pode declarar, explica Lutero, que se deve fazer o bem e evitar
o mal, mas "não chega a dizer quais são as coisas boas e a*<» ol»
sas más”, no que ela é igual ao viajante que quer ir a Poma, ma*
ignora o caminho certo.72 Calvino, um pouco mais matizado, ad
mite que “a razão pela qual o homem discerne entre o bem « o
mal... não pode ser inteiramente destruída”. Mas ela foi toda\i i
de tal modo “debilitada” e “corrompida” pelo pecado original
que “só aparece ruína desfigurada”.73 Como então admirai ••
dos erros e variações das leis e justiças humanas denum Lulaií
mais tarde por Montaigne? Mas sobretudo - a segunda da,*........

68. Ibid., I, V, 2: II, p. 18.


69. Ibid., II, II, 18: II, p. 40.
70. hbid., II, XXI, 1: III, p. 394.
71. LUTHER, M. CEuvres, potadamente IX, p. 250, 269; X, p. 189, 'vi, li f
72. Ibid., X, p. 339 (.Evangelho da grande missa de N atal).
73. CALVIN,.!. Línstitution..., II. II, 12: II, p. 33,
i ................ anunciadas anteriormente I,ulero, Impelido por
. ii ••iiu im I.im u o , cal com viole ncia sobre a razão m ediante gc
li» i i I i / iiio c n perem ptória,s e apóstrofes vingadoras. "O hom em
I * ui i giaçal, escreve ele, não passa de um m en tiro so e um ser
Im illl i le m o d o (|uc ele só p o d e usar essa luz natural contra
I li ii i ' Mein disso, por que vangloriar-se dessa “luz natural”,
11» ui * •itimm ilos |udeus e dos pagaos, dos demônios e dos con­
di ii i•11<• a danação? listes a possuem até “mais clara” do que
ic ui, a llm de serem ainda mais atormentados por ela”.75 O ho-
|ttt ui pata chegar a Deus, nao pode, portanto, duvidar demais
............. .. io que, nos seus sermões, Lutero qualifica várias ve-
#n di "prostituía"''' e de “bela meretriz”.77 A natureza, quando
•11 lilla i mitra o lispírito com ò auxílio da “bela razão”, é cha-'
ni ida pin ele de "ranhenta e merdenta”.78Atacando os anabatis-
II • ii»i ulnglianos que, em nome da racionalidade e das apa
Min i d, negavam a presença real, Lutero no último sermão que
|M•Hii 11ii Ion i‘iii Wittenberg, exortava nestes termos cada um de
m ii ' miN'Inles e um texto célebre:

i ulil.i milito ele manter a razão sob controle, e não siga sous
I» lio pensamentos: jogue-lhe merda na cara, para que ela fique
!< la A ra/ao está sufocada e deve ser afogada no batismo, e a
luiii i sabedoria não pode prejudicá-la, contanto que ela ouça o
I IIIH» ile I >eus que diz: “Tomai, isto é o meu corpo que c dado
paia vos",.. Quando eu tenho essas palavras, eu calco nos pés a
iii/áo com sua sabedoria. Maldita puta, tu queres me seduzir, a
llm de que eu me prostitua ao diabo? Desse modo, a razão é pu­
nir .nl.i e libertada pela palavra do Filho de Deus.7"

I ',i,i claro de novo que Lutero, aqui, só ataca a razão na


ui- ilida ciu que ela luta contra o Evangelho, Mas, ao fazê-lo, ele
hlinbi ui n.lo trabalhou para aquela grande desvalorização do ho-I

I I I.ITII I R, M. CEuvres, X, p. 365.


'1, lliiil., X, p. 351.
ii lltiil., III, p. 24.3 (D a vida conjugal).
Iliiil., IX, p. 345 (S am ãop ara o 2' domingo depois da epifan ía (1546).
n lliiil., X, p. 189 (Sobre a epístola do 4" domingo do advento, redigido em
Wiutbgrg),
7*>. Ibid.. IX, p. 347.

2H7
mem pura .1 <|u. 11 contribuiram .siic,t,M.Hlvuiiu,ntc" no século Ib M.i
qukivcl e ( iukiuii'clln, Agrlpj>a o Montaigne? lima desvalorl/avíto
presente também na literatura contemporánea a l'.llsabele e mm
primeiros Stuarls e ligada a convlcydo tao clifunclicla üe qile uní
mundo eslava prestes a acabar:

"Nao se pode exagerar, escreve 11, l laydn, o pessimismo pupn


lai durante </s últimos anos do reinado de lllsabele e 1n piliiu 1
ros (ii)os de seus sucessores", A despello do ñolas oilmhi.iM, a
bem verdade (|iie o Inglés médl<>e nao <lesprovklo de es| ili llo do
Um do século l() nao Unha esperança nílo so tic um eonhei lint n
lo seguro, mas da própria sobrevivência do sen universo"""

líntreianto, c a época que produziu I’rancls Hacon, o «pmí


Insl.siia. sobre <* "falso espelho" do conhecimento humano u n«t
enganos tía s e n s a to , ao mesmo tempo em c|ue lazla .1 api »!•igla
da experiência e dirigia a seus contemporâneos uma mensagem
de esperança ("balemos agora da lísperanya,, Mas, na epn
ea de .Shakespeare, de Spenser, de Sidney ou de Donne, « a lll
quietude que prevalece com a melancolía em lace da Inga do
l* mpo e da bele/a que passa: “O homem, éscreve Cliapman, (
urna locha 1 arregada no vento: em resumo, ele é apenan o >ni
nía 1 1le uma sombra",
lies lemas se |unlam a este último ñas obras pessIiuNlan
>la llleraluia ellsabelana: a) a crítica do conhecimento; b) a giavl
•la•b 1lit peí atlo; e) o pressentimento cía ruina tl<>mundo, ( •t|iii
0 u t nnheelmenlo, pergunta o jurisconsulto, diplómala t pítela
|tdin I >avlc,s ( IS69-1626)?;

<) (|ue ['Mx.lemos conhecer? lím <pie* pode ¡iluar nosso dbtnial
Imilla
l'!ru|Uíinlo o litro obstruí as junólas de nosso espirito?
Como saber as diversas maneiras de ser das colsas,
l lina ve/ que somos cegos desde o ella de nosso na.ni Imenli n1'

HO. IIAYDN, 11. The Coimtn'-Reuíth^mcr, p, 2/,’,. C!l, runln m p I •• • ifl»


HI. IVACON, l'r. The New Oyanon <»u¡ irl.iinl WHthw, ed. I. I W I m mi
New York, l.ibcrnl Aun Press, 1960, p, 91 (1, Xt lll).
H2. DAVII'.S, |, lW m ,v . I M I l \ cd. ( 1 Howurd, New York, l'Mi 1 inda
em IIAYI >N, 11, The ( btoiler-H o m ImiIHiy, p. 11,1.
I MI l'Nltl fO lK ’IUSÍU) ck*«SCnc¡Ult¡ul;i:

i u n i que mlnha alma tem'poder de Unió eonhocef


i niieiiinlo, ela é cega e ignorante de ludo;
i M Hi t|iie sou um dos pequenos reis da Natureza,
I * -li uivo todavía das coisas mais baixas e mais infames

I ii ii l que mlnha vida é só dor e instante.


I n .i i que meus sentidos me iludem sobre cada coisa.
IIiiii ii iih luir, cu me conheço como um homem,
\i i 11ii".Hit>lempo orgulhoso e miserável.”1

Iniii i representativo de uma geração inquieta é John Don-


iH i l i 1 Ih JI). um dos melhores escritores do seu tempo, toma-
•Ih .Ii lima Insaciável curiosidade e urna intensa espiritualidade.
• .........Ii i do ( :al< )licismo para o Anglicanismo, ele evoluiu para o
Ii.Ihhiiiii • encontrou na justificação pela fé uma solução para
ttlii iiigusil.is, Mas essa solução comportava um sombrio julga-
IMiiiii' ml ice o homem pecador:

l Mi '..ipi >, escreve ele, é um saco de veneno e uma aranha, uma


1111|.i 11•i de veneno, entretanto, nem o sapo nem a aranha não po-
ili ui envenenar-se a si mesmos. O homem em compensação tem
iiliiii ienerva de veneno —o pecado original —situada num canto
Im i iivel, não sabemos, onde; e ele não pode impedir que ela en-
11 nene a de mesmo e a todas as suas ações. Nós somos de tal
imHli i Im apazes de uni movimento [para o bem] sem a graça, que
nu iiiu i quando uma primeira graça nosé dada, nós não podemos
iillll/,l Ia para Ir mais adiante se ela não for continuada.”'

i huiM síntese espantosa, John Donne amalgamou as desco-


I-i ui i .in mnmlcas de seu tempo com o pessimismo de Maquiavel
►*|i Mnnülgnc, c fundiu tudo num panorama de fim do mundo:

\ ma a filosofia repõe tudo em questão,


1 ' ' In nenio fogo está totalmente extinto,
•i Hil está perdido, e a ten'á também,

a i ll>|.l., v. 173-180.
mi I M)NNK, J. Works, ed. H . Alford, Londres, 1839: V , p. 577. Citado em
llilil,, p, 113-114.

281)
l\ nenhum homem Inteligente |mhU* dizer otulc prontia In,
Os homens conlessíim sem dificuldade qwu este mundo panou,
Quando nos planetas e no firmamento
liles procuram tantas novidades, liles veem <|iic este
Explodiu em seus átomos.
Tudo está em pedaços, todá coerência se Ibl.
Toda lei justa, toda hierarquia;
Príncipe, súdito, pai, filho: tantas noções esquecidas

Um mundo desabava. John Dorme nào entrevia .iqm I»


que o substituida.86

o destino
Seria o homem mau? Ele é frágil, certamente: è o qm • n
sinam com insistência no início dos tempos modernos os lUIltttfj
rosos textos e imagens consagrados ao tema da EorUinn " Nujnf
cio do Retorno de Ulisses ( 1641) de Monteverdi, a Eortuna, " I* m
po e o Amor cantam juntos: “Tornemos o homem frágil"

85. DONNE, J. The Complete English Poems, ed. A. J. Smith, I mulrc», I'*' I
( The First Anniversary), v. 205-215, p. 276.
86. Sobre o pessimismo da Inglaterra na época de Elisabcth c dou pilmHlm
Stuarts cf. o fascículo mimeografado editado pela Univ, de I.illr III ■«>I. , ,|i
rcção de PLAISANT, M. La Mort, le fantastique, le sur/uitmvl du A l 7 dh A f
1’époque rnmitntique, 1980 (colóquio de março 1979).
87- A esse respeito ver notadamente WARTBURG, A. "/,u den W.uulliut
gen des Fortuna Symbols in der bildenden Kunst der Rcnaissam d , mii
Kunstwissensch. Beitrage, A . Schmarsow gewidmet, Leipzig, 190/, p I ."•«
DOREN, A. “Fortuna im Mittelalter und in dor Rcnaissancc", <in Oo MUKM
der BibtiotheKW arburg, 1 9 2 2 -1 9 2 3 ,1, p. 72-144. PATO I, 11. K I In Im
dition of the Goddess Fortuna in Román Litcraturc and in lhe ii.iiiuilnn.il
Period”, em Sm ith College. Studies in M o d em Languaga, v. III, n V alull
1922, p. 131-187; “The Tradition of the Goddess Fortuna in Mcdu > ,1 Phl
losophy and Literature”, em Ibid., v. III, n. 4, julho 192.’ , p I '9 m . l . ,
tuna in Old French Literature”, em Ibid., v. IV, n. 4, julho |9,' t, p | | t
CASSIRER, E. In divid u u m u n d Kosmos in der Philosophie der AVn.,/<MMn»
Leipzig: Teubner, 1926. VAN MARLE, R. Iconograpbie de l.ir t pru/Mh Ihu
xelles: 1932, II, p. 181-202. PANOFSKY, H. lluais d'ieontdogie Pan-, 0 ,1
limard, 1967. PICKERING, F. P. Literatur u n d Darsiellende Knn\i in Mil
telalter. Berlin: 1966. A esta documciuaçãQ dc base ac rescentam m1 a* i,|iMI
c artigos que serão citados no curso da exposição sobre a l oituna,

200
I'iiiil I ( !ti.s,slivr, a mutação ilti UtMia.scença c*m relação ã
'I* «lili tonslsil.i na passagem da confiança cm Deus para a
i .ii.ii im i nn homem.H MMas [i. Clarín leve razão de corrigir essa
«in m u in demasiado categórica mostrando qbe o símbolo de
WIMiiPlcti srm <luvició nao ó o que caracteriza melhor a Kenas-
i ♦ 11 i I na ll lilla desse julgamento matizado que se situam os
d» m *'l\ Imenlos que se lerão a seguir. Sob nova luz, eles se es-
i un pata por em destaque uma ampla inquietação coletiva -
|ft I* •im ia is ni •nivel da cultura dirigente - sobre o destino do ho­
to» m i uma Interrogação angustiada sobre a liberdade.
•liegos e romanos temeram e honraram a Fortuna (Tyché
(ni i " primeiros, l'ortuna pannos segundos).'Ela era urna deu-
«i iMMHihhinte e temível, senhora dos destinos, muito logo asso-
11••11 malí igh ámenle ã roda e à esfera. Sua evocação tinha se
ktm hIii mu lugar comum entre os escritores; e as grandes famí-
lli |n|ga\iiin eoneiliar-se acrescentando o nome dela aos seus
ih • lltirld, l'ortuna Torquatiana, etc.). Muito logicamente,
M 11a111• i da Igreja, que combatiam o paganismo, procuraram
ili imii a i ifiu/a no poder exorbitante da Fortuna. Lactáncio de
II m -a l ia nao existe”.90Porque ele nao via como manter o aea-
III di litio de mu mundo criado por uní Deus que é todo razão.
Hilo Ngic.ilnlio ironizou: se a Fortuna é aquilo que se diz déla,
IüIm 1 In-ililvel c mutável por definição, para que lhe prestar um
|»i^lli • 1 i la riMlUlacle*, o que parece acontecer por acidente acon-
|< i • •ja pelo designio oculto de Deus, seja por nossa livre esco­
lha » niie 11 bem e o mal.92 _
■io leronimo, por sua vez, rejeitou a Fortuna e declarou:
i ha i. iletklo longa mente, parece-me, contrariamente à falsa
i ini 1.1 de alguns, que nao é o acaso que gera todas as coisas, e
|iu i .........islanle Fortuna não se diverfe com destinos humanos:

un ( ASSIRKR, E. Individuum..., p. 80.


ll'l i ¡ARIN , E. Mayen Age ct Renaissance. Paris: Gallimard, 1969. p. 164.
'Mi I ,n., V I, col. 4 3 7 -4 4 0 (D eFalsa sapientiaphilosophorum , III, 2 8 -2 9).
'• I i it,1Je I deu, IV, 18: ed. de Combés das CEuvres de Santo Agostinho, 33,
|i. 1M3 ‘SHS.
'i ' I ni Ncqüéncia a PATCH, H . R. “T h e Tradition ... in medieval philo-
n|i|iv", idilio aqui dois textos de Santo Agostinho: D e Libero arbitrio, III, 2
1l\m l,u ., X X X II, col. 1273) e Quaest. in Hept. I, 91 (Patr. Lat., X X X IV ,
m l. V I ) ,

21)1
ludo acontecí; cnu função de decisões divinas","' SliMlllnde mui*
plementar entre os tres Padres da Igre|a; se, entre outras passa
gens, eles parecem manter a realidade da Portuna, e para i lassili
cá-la entre as forças do mal,"1 Sao Tomás de Aquino adotou mal*
tarde o ponto de vista geral de seus grandes preder essores e lie
gou, ele também, a possibilidade filosófica do acaso, ( amientan*
do a Física de Aristóteles, ele declarou: "... Quando se remete hR
acontecimentos sobrevínolos por acaso e acidentalmenle Mu r\
independentemente da intenção das causas inferiores a alguitt i
causa superior que os induziu, com referencia a essa causa elu|
não podem ser chamados fortuitos e ocasionais, Essa causa supe-
rior não pode então ser chamada Fortuna’’."'
1 Não nos espantemos se Calvino saiu em guerra et intuí a
crença na Fortuna. Ele tinha uma. idéia multo elevada da ....... |
déncia para poder dar lugar ao acaso. Os que afirmam a eshien
cia deste último, diz ele, são “apóstatas” que se revoltam » nnlui
Deus. São nossas “idolatrias monstruosas” e nossa "naiimva tu
diñada ao erro” que nos cegam, ao passo que “o regime .das •<«i
sas humanas revela tão claramente a providência de I )eus 1*
“mestre cantor” luterano Hans Sachs opina no mesmo sentido
Descrevendo a Fortuna com um freio na boca seguro pul un IR
mão celeste, ele declara que felicidades e infelicidades \< m pi i
ordem de D eu se em virtude de sua eterna pré-ciOncia. T u d i 1 m 1
acontece para o nosso bem.9 679
5
4
9
3 8Adversario do Protesta mismo, 1 mil
laume Budé chega, entretanto, às mesmas conclusões At usai a
Fortuna é atacar a Deus. Os homens não devem deixai s e pul 111
bar ou irritar pelos acontecimentos, mas ao contrário p e m liu|
que estes são cumpridos “pelas Parcas celestes que estão pm ,is
sim dizer a seiviço da Providência de uma maneira certa e sei m >
ta... Nada se faz, nem se fará, nem se fez sem a alta direi u» cl«l
quele que já foi desde o início o autor das causas de todo tlpn |
que é para sempre o juiz da rotação do céu”.w Mas se quis» u m

93. Opera, III, 461 (Patr. Lat., XXIII, col. 1083).


94. Cf.'LACTANCE, D e vera re/igionc, III, 29 (Patr. /,//.. VI, <>>l tio uni
Augustin, C ité de D ieu, IV, 18, ver nota 91. Saint Jérònw?, Oprtu, XV, 7»H
(Patr. Lat., XXIV, col. 639).
95. Cómmentariaphysicorum Aristotelis (Opem, cd. de I,con XIII, IX. p lli.t l M11
96. CALVIN. Institution..., I, V, 11 (Contra a “Fortuna’’): I, p 1
97. Cf. DOREN, A. “Fortuna...”, p. 104. n. 70.
98. BUDE, ( í. De Transita hellenhtniadchristiunhnium (trad. F. 1 1 ImI), p I d
c 249-250.
ilhiHtt nu lino ill/rr cjlic* ;i Fortiihu existe, entilo clcve-.se eselure-
• 1111 * . i '( aprlchosa" e essa "desequlllbráda” tem como "aju-
lltt •' 'm undo,.. e .1 carne, isto é, a volúpia e a paixão"."’
In al 11111II Ilude |nnta se assim duplamente aos Padres da Igreja
ijii ni gitvnin a possibilidade do acaso, mas viam na Fortuna ou-
lii ||M||ii da tentação e do mal.
\ 11* 1ri.i Fortuna foi, então, demolida pela teologia mals ofl-
lliil mi ii ulade, da continua a sua carreira. Ele representa para
jfl i* 1 1*10 1 srmplar mas não isolado - de uma aculturação me-
11.1 In 111 mu edlda e menos profunda do que se podería crer. Mais
1111 un ii. i . 1 iNl.ml/ada, d a atravessou sem obstáculo toda a Idade
f F M1 tu ..'i lo ( | Si l), contribuiu Sôbretuclo para a sua reinserçào.
M lili 11Mtu 1l ilamente c|ue Deus é o ordenador soberano; e, por-,
l uii i i«|iilli» «|in•cham am os “sorte” é apenas o"aro em movimen-
tii di ni mdc coila da cjual Deus é o centro.100Já que nada de mau
|4 di |<111li de Deus, as boas e más fortunas nos sao igualmente
Hliio ti. . o . " ' Na adversidade, é preciso ser paciente - o que já ti-
IIImii........ ii*h'Iliado os filósofos antigos; e na prosperidade nào de
Um -' .......... pegar as honrarias e à gloria, que são fugidias. Mas
|!i n 11" ti" ’icii /)<• c'omolatione (redigido na prisão) combinou esse
li .11 ui . 1IM.10 com a evqcação da Fortuna legada pela tradição
l< mi I 11 1 então qualificada de rainha do universo, “sua mão ver-
inl di nil 11il sortes cambiantes”.102 Seu poder cego tem duas fa~
M'U ' ' Miem pode espera reter o movimento de sua roda?KHGirar
1 1 nlilitiii e sua atividade permanente.10SA influência de Boécio
(oi 1 ........ . ,ite o finí do século 16. Ele relançou a imagem da For-
M1111 . ega c da roda cjue ela aciona incansavelmente.
Doiavnnle dois discursos diferentes e, afinal, contraditórios
\ ..........dslli a respeito da Foituna: um, de origem pagã, evocando
1 | I ....... senhora dos destinos humanos; outro, oriundo, do
• n 11 mismo, corrigindo o primeiro e reinserindo-o numa teologia

•)'» Ihlil., p. 249.


Illll. |W)f;l lí, De C om olationephilosophiae, XV, pr. VI; consultei a trad. in-
|/,l. N.1 .Ir U. ( ireen, Indianapolis-New York, Bobbs-Menill, 1962, aqui p. 92.
101. IbuL p. 93-96.
Ili Ibid,, I, poema 1, p. 3.
to t. Il.id,, II, pr. I, p. 22.
Io I. Il.id. Sobre a importância do tema da roda da Fortuna a partir de Boé-
. lo 1 1 I lOREN, A. “Fortuna...”, p. 82.
IOS, Il.id,, II, pr. 2, p. 24.

203
da salvação, Multas autores amulgamaráo essas tluas HngiutggAj
Mas aconteceu, mesmo na Idade Média, ele o primeiro começai1 a
funcionar ¡ndepcndcntemenlc do segundo. Prova disso sao os ••
lebres Carm ina huraña (século 13), afíneles cantos goliardos ion
servados por um manuscrito da abadia de lleuron (na llavlcia), no
qual o tema cío poder desconcertante da Fortuna da lugai a qtiallii
desenvolvimentos sucessivos: I ) "Ó variável e aventurosa h mIh i m I ;
2 )'“Ó Fortuna, de estado mutável cómo o da lua: tu sempre auiin n
tas ou diminuís”; 3) A Fortuna inconstante avança a passos a tullí
guos”; 4) “Que aquele que está alto demais— o rei no apli e da gh i
ría - tome cuidado com a queda!”.100 Na época da Renascença, t»
Fortuna se afastará cada vez mais do universo cristáo e, uesla un s
ma medida, se tornará - ou voltará a ser - multo Inquietante
Embora a alegoría da Fortuna esteja presente ao longo dt
toda a Idade Média, tanto no Speculum Ecclcstae «le 11*nw>ilun
d’Autun como ñas rosáceas das igrejas,,10 107 entretanto, cía m tipil
6
pouco espaço nas canções de gesta e nos romances ionlempMia
neas destas. Seu retorno com força na civilização ocidental openi
se pela ação de algumas obras maiores, ao mesmo tempo »au<Mg
e testemunhas de uma mudança do clima psicológico: <> A'ornan
ce da Rosa (2a parte), o Inferno de Dante, os livros de Itm i a> i h|
e de Petrarca. Jean de Meung tinha traduzido Uoéclo, Assim, ntl
esteira deste último, ele contribuiu muito para popula rl/ai n*i
França as duas concepções cia Fortuna, a pagá e a crista as du i
juntas. Ele afirma que Deus é todo-poderoso, c|ue o homem e do
taclo de livre arbítrio que a pré-ciência divina não Implica a tnn cs
sidade.10810
9Ele faz a Razão dizer que a “Fortuna perversa c «uiilia*
ria” é muitas vezes preferível à “mole e inofensiva".""' Mas i Ir • *i
plora a fundo a evocação (que ele não inventou) da i asa » aludo
da Senhora Fortuna.110Esta é declarada “tão perversa que Iam a ou
bons na lama”111 e considerada com o totalmente desleal, engaitan

106. Atualmente na Biblioteca de Munich. Cf. S1MTZMUI I I P, II IVMI*


latin e chrétiennedu Moyen Age, p. 1.727. SCHMKLI.KU, J. A, (
na, Breslau: 1904.
107. Catedrais de Basiléia, Lausannc, Amiens, l íente; igreja* Saint l il> mu th
Beauvais, Saint-Zénon de Verona, Saint-François de Pariu,i.
108. Román de la Rose (ed. F. Lecoy, Paris, Champion, .1 v„ I ‘>>m |u •a
109. Ibid., versos 4858-4861.
110. Ibid., versos 6168s.
111. Ibid.. verso 6189.
iln ih In perturbando seu espírito, tra/endo-lhes vinagre
IiimioIm i niiio ( aillos. I'Ia eertamente não tem nenhum poderso-
lu|( • i|io t KMlmente bom, mas ela controla os bens deste mun-
||ii i iIlMiilbul segundo seu capricho.111 Tendo em conta o lon-
■ * mm* * iso do Romance da Rosa, nào poderia aumentar o impac-
|tt ili mi iim desenvolvimentos sobre a Fortuna.
l m m observação similar vale para a D ivina Com édia , obra
$tt|t di miiuelr.i mais completa integrou a Fortuna ao universo
|if| >l im . , loilnvla, mais contribuiu para realçar nas mentalidades
p ii pmli i mhlcrioso. No canto VII do Inferno ,Uí Virgílio explica
| M ......ipanhelro que “Aquele cujo saber transcende tódas as
t'|il i o i dador dos céus e da luz, instituiu também a Fortuna
|it •" mlnlsiio geral” e ordenadora das grandezas humanas. De
tiil> m Miiperlor, i abe a ela lazer passar os bens terrestres de povo
mi i |ii iv 11. ' li’ uma família para outra, fazendo alternar poder e
« l l i m ia ( >s homens, portanto, nào têm justificativa para “cen-
h m i I <muna e "crucificá-la”. Sua tarefa é divina. A Razão a as
M l 11 I iiI.Im, d a continua, serena, a “rolar sua esfera” sem ódio
|« i 111•i*Mi•ui. Mas, segunda parte dessa evocação: submissa a
H mm ,i I . iiuma lem todo poder sobre os homens cujo “saber nào

I
ludi •iiii.ii cm debate com ela”. Ela permuta as situações sem
• m . o........ as oposições e os cálculos deste mundo. Ela é tão
IH ■111 i piumln a serpente escondida na relva. “Ela decide e ftilga;
|í| i lili.-, seu reino como as outras divindades governam vo seu”.
I Hllin i sua vocação, sua “necessidade”, fazer com que as per-
ii n u . ii , derivem incessantemente umas das outras. Ela foi cria-
■11 i "ui i.ipldez. I'. feita .para presidir às mudanças. Face ao sobe-
Miih piuln dessa “divindade” - a palavra estádá - impõem-se a
........ildi submissão a seus decretos e o desapego dos bens do
...... . I" iei urdios clássicos descobertos pela sabedoria antiga e
|Vl•*m1111li is numa linguagem cristã. Mas esta última não impede
jiu i l ' muna saia engrandecida do poema de Dante. Daí a cen-
........Itu " sabio Ceceo d’Ascoli (queimado como herético em
i ' i na sua obra enciclopédica, Acerba, dirigiu ao autor da D i-
H" - i oiin'i/hi: "Tu pecaste, poeta florentino, ao declarar que a
IH 11 Msid.ide comanda a distribuição è a destinação dos bens da

II' lliiil., versos 5356s. Sobre o poder da Fortuna, cf. também os versos
11 I ' <i72()¡ 7139-7141,7171-7174.
I I V Inferno, cap. VII. versos 67-96, Pléiade, p. 923-924.
I IT / r Hii/u/net, IV, XI, Ibid., p. 471.

205
terra, Nilo lia Fortuna que a razao possa vencer" " Dante, t mu
efeito, tinha leito o homem multo pequeno illanle do Destino
Petrarca nao temeu contra elIzer-se sobre es.se grave as
sunto. Numa carta tardia do fim de sua vida, ele declarou i oino
Lactancio, Santo Agostinho e Santo Tomas: ‘Tu sempre coniUlt
rei que a Fortuna, na verdade, nào,existe... Nada ai onlei e ni m
causa”.11516 Fórmulas análogas já se encontravam no segundo li
vro do D e Rem ediis utriusque Fortune. Se, dizia ele tanto ituiii
texto com o no outro, ele tinha falado tanto dela nas suas ouihift
obras, era para usar a expressão que.se encontrava na bo< a d»
todo mundo” - uma confissão que esclarece alias o mental 111
letivo. Mas o que a época, reteve principalmente do di.se m ) il{
Petrarca sobre a Fortuna foi a evocação arcaizante desta tillltli i
Nos seus sonetos, ele se queixa em bloco das estrelas, da I m
tuna, do destino e da morte.11718E, sobretudo no prólogo e no ptl
meiro livro de D e Rem ediis . . ele retoma a distinção de \ tli ili)
Máximo e de Séneca entre Boa e Má Fortuna, declarando Igiliit
mente temíveis essas duas regentes dos destinos humanos I in*
diálogos que. na obra reúnem Razão e Alegria, Uazào < l |........
ça, Razão e Dor, resulta que a lista dos males que nos av.i dl nu
é imensurável, que é preciso fortalecer-se contra os golpi s da
sorte, que os bens terrestres são transitórios e que só valem dft
consirtaçòes da sabedoria. Contem ptus m undi'e moral estólt a ue
conjugam assim para convidar o homem a desllgar-.se o ma In
possível de um universo onde recebe, sobretudo, maus golpe#
O desengajamento: eis o que ensina a constatação da Iraquí •
humana em face do destino.11*
A linguagem ele Boccaccio sobre a-Fortuna e também uma
linguagem dupla. Como em Boécio e Dante, ela é doultinada
mente cristianizada. No seu “comentário sobre Dante", ó auliit
declara que a Fortuna só é chamada “deusa” por "flcvdo po^ll

115. CECCO, d’Ascoli. Acerba. Ed. Rosário, 1916, II, «.ap. I, I I I'» ó d
BOFFITO, G. “II D epríncipiis astrologiac di Cccco d‘AscoH" ciu 1ibrthih
rico delta letteratura italianas supl. 6, 1906, p. 28. PATt 'II, II. I< I lu IM
dition ... in Medieval literature”, p. 202.
116. PÉTRARQUE. Opera cjuae exstant omnia. lkllc. 1581. p ' >•\ ......
117. Por exemplo, sonetos 228, 232, 234, 256. 1-d. consultada, lóli I <o
4a parte, p. 165, 166, 168, 170.
118. Volto à edição dc 1581 que níío numera os sonetos, mas d,lo l'ndiqiii I
D e Remediis ausente da ed. dn nota precedente: 1, p. I n.
i i " i • / v i '(islbiis nohillnni banilnornm vi /om inam m a aprc-
M nt i •num .i(|uHa (|iic e encarregada de punir os orgulhosos, So
iw h-iiiicns a Imaginam dura, coga o Insensata, ó porque oles não
jintli ni |Minii.li os segredos dos ce lis e eles próprios estilo eo­
lito i" lo desolo dos bens terrenos.u" Daí a necessidade do desa-

!
••a " i|ia toma Insensível aos desfavores da sorte. Mas, em sen-
Itio i onlnirlo, no primeiro capítulo do segundo livro do De Ca-
alm bin i ,ícelo faz uma descrição muito viva e singularmen-
li iii' |iiii unir i la l;<aluna:

Flve grande medo, lê-se rluma velha tradução francesa,


i|ii,indo olhei di reta mente a grande estatura e o maravilhoso for-
in ii" di i i'orpo déla. Porque ela tinha olhos ardentes e parecia
i|iiu ' !' •.imeaçavam a quem olhava. Foituna tinha a face cruel e
lioiilvi'1 linha cabelos espessos, longos e pendentes sobre a
I ii ii i I u * irlo que Fortuna em seu corpo tinha cem mãos e ou-
ii" l.inli»m Itraços para dar e para tirar aos homens os bens mun
I nu' ■i p.ua rebaixar e elevar os homens deste mundo. Fortuna
ilnlia vestidos de muitas e variadas cores. Porque nenhum ho
un ni a conhece. Fortuna tinha a voz tão áspera e tão dura'que
11 in i la ler boca de ferro, porque ela ameaça todos os grandes do

iituildo e poe suas ameaças em ação.1-1


' %
I*<«i nutro lado, com o não se deixar impressionar pelas
11ti ii im11.i-i menções a Fortuna que pululam na obra de Boccaccio?
•i i i ndi enumerou mais de 250, pelo menos uma a cada vin-
!♦• p Iglius, i om um desenvolvimento particular sobre esse tema
....... iiili.) uma tias obras importantes. A Foituna para Boccaccio é
■' ii mu nic um.i cómoda dea ex m achina quando ele conta his-
|ini 11 iiiiii misas. Mas a insistência sobre ela sugere a hipótese de
i|in •!« designou por esse nome a causa misteriosa dos múltiplos
m Mun •Imcnlos para os quais não se encontra explicação coeren-
I* I ui im a inri una volta a ser, como na Antiguidade, aquela que
......lili' a ueste mundo todas as situações” e gira incansavelmen­
te ni i giaiule roda para a esquerda. “Surda e cega, ela não ouve

I In b\posidoni sopra la com edia d i D ante, v. VI da ed. por V. Branca de Tutle


1. opriY di (Iion. Boceado, Mondadori, Milán, 1965, p. 398-399.
I '(I, IU )( !( :AC:E. D e Casibus..., 1. VI, cap. 1. Cf. nota seguinte para a
11 iiiluçAo utilizada.
I 'I IK)( ( A< :F. Des nobles malhcureux. París: 1538. Livro VI, cap. I,
I X X II I r .

21)7
nenhuma prece".1 Existe, portanto, rm Boccaccio uma •r.i\ •I
defasagem entre seu discurse? teórico sobre a Eoriuna e mi mis ic
tornos contínuos a um tema que o,inquieta. Essa observação enf
clarece igualmente as declarações de seus sucessores que iralaill
do mesmo assunto.
Embora a Idade Média central, como vimos, já se mosliannf?
preocupada pela relação entre liberdade de um lado, ai aso e d( m
tino de outro, a Fortuna entretanto, com todos os problemas qiil
ela apresenta, jamais foi invocada com tanta frequência eonio eit*
tre a metade do século 14 e o fim do século 16, Jamais se ,i< aba»
ria de elaborar o catálogo dos textos e das imagens que lhe ..........
consagradas. Ela está presente nas obras de Eustache Des< hampa,
de Christine de Pisan ( . . . a Mutação cia Fortuna ), de Maiilu I v
Franc (Estrif de Fortune et de Vertu), de Fierre Miehaull (,l Um ,,,/
dos cegos). Ela figura sobre o pavimento da catedral de Siena t mi i
bre o brasão dos banqueiros Rucellai em Eloren,ça.m lila e a piola
gpnista da Viitude num jogo apresentado diante de Lucre, la II,n
gia quando da entrada desta em Milão em 1512,121 Ela figura •nina
as alegorias oferecidas como espetáculo por ocasiãe>de um I, um |fi
em Bolonha em 1490 e num cortejo em Roma em ISus .1■•Seu alU
tigo templo em Palestrina é - idealmente - reconstituid! ........... |i
bre Sonho de Poli filio no qual o visionário avista uma grande plia
mide com degraus e encimada por um obelisco sobre <> <pial , mM
fincada unia estátua da Fortuna em metal dourado, girando ao -,a
bor dos ventos.126Ela surge em lugar de destaque na Nane do\ Ion
eos (cap. XXXVII) e no Elogio da Loucura. Ela inspirara b, *lil* •lll
Dürer, Burgkmair, o Velho, Lucas de Leyde, Giovanni Belllnl , ' i
róñese. Foram extraídos 30 exemplps do emprego da pal.ma /nr
tuna nos escritos de Maquiavel.127 Quanto ã literatura <•11• il>,......

122. BOCCACE. D e Amorosa visione {Opere, XIV), cf. cap, XXXI p I )


123. Cf. WARBURG, A. La Rinascità deipaganeshno antico, Idoiviiç«u Mim
va Italia, 1966. p. 234-237 e pl. 68.
124. PATCH, H. R. “The Tradition of the Goddcss Fortuna", p ’ 11
125. VAN MARLE, R. Iconographie..., II, p. 186.
126. LH ypnerotom achia P oliphili de Fco Colonna apareceu cm Win h um
1499 e alcançou um sucesso internacional. C f KRULT/.UI LSI < •• tl 'A
RANTA, E. Les Jardins du songe. "Poliphile" et la myslit/ne de Ia ti< naiuaitrí
Paris: Belles Lettres, 1976. p. 90-91.
127. MACEK, J. “La Fortuna chcz Machiavd", em / e Moyen lç<, i I \ SS II.
1 9 7 4 , 1, p. 3 1 0 .

20H
it > i,i n |•I<i.i clt* discursos sobre a Fortuna recluidos pelos per-
1111)1* n de Shakespeare, Marslon, (Ihapman, etc.12" Quitndo Phl
P II. n Im\s i onsirol no fim do século 16 uní novo - c líelo - tca-
• un MMiir de Londres, ele o chama “A Fortuna”.12,1 Essa escolha
• •|di* ,i entre oulras coisas pelo falo de que, na Inglaterra da
• i Mi iialidades e Triunfos atribuíam uní lugar importante a
i 'Ii ii'i.i, i u|a Imagem aparecia frequentemente nos "livros de
lililí mil» ' espalhados entilo por toda a Europa. Essas coletâneas
Iih 11u ns alegóricas comentadas por versos moralizantes conhe-
.......... época nm enorme sucesso »- 94 edições dos Emblemas
llF M» talI entre IS.A| e I600.130Ora, mima amostra de cinco “livros
i|t< i mlili mas" publicados em francês (ou em tradução francesa)
FHln I“•V) e ISHH, encontramos T4 representações da Fortuna (ou
lf» ii i gêmea, <ícasiâo).lMJosef Macek tem razão de escrever que
lo de fortuna c uní problema central da (Renascença e um
110 i imiiiIos preferidos de discussão”.132
• o d i o esse debate tem atrás ele sr um longo passado, não
• li ■ panlai i|ue, nos séculos 15 e 16, algumas vozes contl-
...................peí Ir com os Padres da Igreja, com Santo Tomás de
^i|Mliio ( alvino o Dudé que a Fortuna não existe como poten
111 mil un una. Martin Le Franc ensina que tudo está nas mãos de1
Mi m ' ......... acontecimentos que nos afetam parecem incom-
pn i n ii\ el1, e resultar do acaso, é porque “Deus celebra seu con-
m lliii a |lorias lechadas”.133 Para Alain Chartier {A Esperança ou

■■■■
I 'ii i I .i esse respeito HAYDN, H. The Coimter-Renaissance, sobretudo
|i I l" i 4 4 2 . i
I “ i < I ll'W, S. C “Time and Fortune” em Jou rn al o f English Literary His-
tiHii VI. jimlio, 1939, p. 89.
I II) A nidrio original é de 1522.
I 11 A(’i,ulc\o a Sara Matthews-Grieco por ter rae comunicado essasN indica-,
i,in i ( >•. i ineo volumes em questão são os de LA PERRIÈRE, G. de Théátre
/, < I'ihii eugins, Paris: 1539: CORROZET, G. Hécatomgraphie. Paris: 1540;
M» IATI, A. Em blém es... Lyon, 1549; JUNIUS, H. Les E m blbnes... Anvers,
I , IKMSSARD, J. J. Em blbnes..., Metz. 1588. A tese de MATTHEWS-
•.IMI ( (), S. I.'Iconographie de la fem m e dangereuse dans Testampe et les livres
t/i m b/bnes du XVL siècle français, foi defendida na EHESS em fevereiro de
I 'HI y Publicada pela Flammarion em 1991.
I MA< TK, J. “La Fortuna...”, p. 306.
I 'I PIAGET, A. M artin Le Franc, prévót de Lausanne, Lausanne, 1888, p. 192
t I'IS. O D ebate da Fortuna e da Virtude data de 1447-1448 e foi redigido a
pi dido de Filipe, o Bom.

209
consolação das três virtudes), “não se deve duvidar de «11k- *m
nhoria e servidão sao estaileleclmenlos de lei razoáveis, e não
dons da Fortuna”.151 Fico de la Mirándola, em Pis/tulalloiHV
adversas astrólogos , afirma que os acontecimentos aparenteiiwft
te fortuitos nào dependem nem de c o n ju n te s celestes nem dg
um misterioso acaso. “Nada derróga a divina provkltmi Ia", sen
do, porém, verdade que potências espirituais, tanto angcllmg
como demoníacas, trazem aos homens felicidades «• desuna, a
com a permissão divina.155 Na A rcádia, de Philip Sldney <I •'Mi».
Cecropia, a Atéia, é refutada por sua sobrinha Pamela paia qu* m
o acaso é uma noção absurda. Porque a Sorte c por tlellnh tq
variável e instável - ou então, ela não merece seu nome, <h q,
nós vemos que o mundo, é estável e obedece a leis, como |im|
deria ela então.governá-lo? Se apenas a Sorte juntasse .r. pM i
desse conjunto, as partes mais pesadas deveriam conllnuameill#
pender para baixo. A Sabedoria governa o universo e essa put«
vidência exclui uma Fortuna cega.150Na Rainha das fa d a s ( IVJti
1696), Edmund Spenser julga igualmente que por baixo da mu
tabilidacle superficial reinam uma estabilidade profunda « um.
constância funda menta 1.157
Uma concepção teoricamente vizinha da anterior, mas qll^
restituí à Fortuna personalidade e^poder, identifica a tom o •il ida
e “camareira” de Deus. Era o ponto de vista de Dante, >omp nl|
lhado por todo um grupo de autores franceses dos séculos I \ a
1A (Jean de Condé, Watriquet de Couvin, Philippc tle M < mina
noir, etc.) No século 16, a opinião dé Etienne Dolel nao e 1nuil»|
diferente. Ele constata que todas as virtudes de Françols I loi im
incapazes de contrariar a má fortuna: “Acima de toda mdem
poder humano, eifvi advir, ao rei tudo o que ele sofreu de Inftil
túnio em alguns empreendimentos de suas guerras". I >cpuh •l<
define o destino como

um filho de Deus onipotente, que seguindo a vontade r o nuil 111


do de seu pai, nos causa e afasta tudo o que chamamos I" m §

134. CHARTIER, A. CEuvres, Ed. A. Du Chcsnc, 1 6 1 7 . p. .’(>' < I I ‘ NI • II


H . R . “ F o r tu n a ...”, p. 3 1 .

135. D isputationes adversus astrólogos, livro III, cap. 27: livro IV, tiip ' t I
Ed. E. Garin, cm 2 v., Florença, 1946-1952.
136. SIDNEY, Ph. Arcadiá, III, 10. Cf. HAYDN, H.Thc < o io itn AVsa/urtXgi
p. 436-437.
137. SPENSER, Ed. Faene Quem, VIII, 3; <'f. HAYDN, 11, ll.i.l

: io o
m il l i "i'i.i'i du.i.s colana, <>s luimunoM as recebem por um Inhilí-
• I ílr'n'jo de I leus, o qual justamente se chuma Destino: porque
I •• ilno nada mals é c|ue unía orclem eterna'das coisas, E embo­
la 11 li pudesse juntar alguma prudencia e viitudc humana, en -
111 lanío, o ele i|ue reina e tém poder em todos os nossos atos.M M

I i i iinl irm razão de pensar que essa definição, teologi-


i mi' uii i ll'n ulivel, não afirma forzosamente, como pensou il.
|hi'""ii ' "um determinismo inflexível que substitui a Providên-
f|H I'1 I" 1' mlr,Irlo, podemos aproximá-la da concepção de Dan-
|t » mio porem verdade que ela acentua a impotência do ho-
|Mi m i a rigidez ilo Destino.
Mullí i logk amente a executora das vontades do alto tórna­
la pañi ilgims aquela que, conforme o caso, leva à força os ho-
im " i vmude l in Ditos de Fortuna, Jean de Condé (f 1340) ex-
pli i ipil I orí mía nao poderia dar um passo” sem o “consenli-
ilu ni' * 111 i )eu*. <|ue se seive deste “operario” para “virar” os eo­
lito'* i ' inluiei Idos."” Charles d’Orléans, por sua vez, faz a For­
illo i dbei I la muito tempo me ordenou / Deus, sobre todos
mi-In i.ini Itei Para dar ao mundo castigo”.141 Compreende'
i Ulan que o ses illo 16 tenha mais frequentemente interpreta-
|n a Ai niesis de Diirer com o uma ilustração da Fortuna:142 daí o
lililí........... neo ele "Cirande Fortuna”. Mas essa confusão se expli-
• i |l ipii Nemesls, com o a Fortuna, pousa seus pés sobre uma
i i i mm ni.io es(|iicrda segura,um freio e rédeas para reprimir
mu i ' i vim',, i' sua direita uma copa para recompensar os justos.144
I .......... ..... anterior de Pürer tinha aliás representado a.Fortu-
iii 111........ .a em equilíbrio sobre uma esfera, marcando ao mes-

I III I X >1 I•I. I'. l.cs Gestes de Fmnçois de Vabys Roy de France. 1540, citado
pni ' 1'AKD, |. La N ature..., p. 107.
I I' I 1111SSO N , 11. I.e Rationalism e dans littérature française de la Renaissance
I I . i i /ft0/;..|\iris: Vrin, 1959. p. 115.
I |(l UAI MH MN; CONDÉ, Jean de. D its et comes, Ed. A. Scheler, Bruxelles:
\ \ . IM(i6 1867: III, p. 15ls. Cf. PATCH, H. R. “Fortuna...”, p. 17-18.
I 11 I >'< IRI.F.ANS, Charles. Poésies completes, Ed. Ch. D’Héricault, 2 v., Pa-
. i I H'K.i I. p. I 20-132 {Ballades XIII-XV). Cf. PATCH, H. R. “Fortuna...”,
p i i ; h,
I I.' I'K KI IC1NC, F. P. Literatur..., p. 61.
III <1 IAS'IT.1, A. L'Europe de Ihum anism e et de Ia Renaissance. Paris: Ed.
di'. I iriiK mondes, 1963, gr. 48 e p. 320.
mo tempo sua Instabilidade e ,seu poder sobre o mundo o prl
melro nu feminino gravado pelo artista ( M97).1"
Já que Fortuna está na mao de Deus e "aquilo que .<<11*
mos é punição divina" (Main Ohartier), o bom senso aconHellw .t
resignação na provação e o desapego dos bens deste mundo
Ademais, em vários autores aparece a idéia de que, se exlslt hiim
força misteriosa, que às vezes favorece e mais Ireqlieiilemetlli
contraria as vontades humanas, ela só age num seloi limitad •
mundo sublunar, lugar de confusão situado entre .1 ordem 1 m i .
lina das'esferas estreladas e a desordem subterrânea do InleitMi
Esse terna é notadamente desenvolvido por Christine d< 1’han 10
seu Livro da M utação... De ninguém, lê-se aí, .1 fortuna potl» 11
rar “os tão elevados bens da almü”.“,s Numa outra obra, o <r/;i||
nho de longo estudo, Christine tinha dito da terrível deusa Nnn
pode ela morder nem pegar / Dar, nem fazer conquista 1 111 n
nhum lugar, a não ser na terra”.1,(1 A mesma convicção e « spu umo
pelo italiano Fregoso num Dialogo de Fortuna de IV, I <>nd< 1
que as estrelas e a Fortuna têm poder sobré o corpo e níltí subid
às almas, sobre as paixões terrestres e não sobre a virtud* " I m
uma conclusão ética há muito tempo tirada pelos estoicos, d epoll
pelos apologistas do contemptus m undi: desprezai as gloilas dg
mundo que muito logo serão apenas vermes e poeira, di ipil
de toda ambição terrestre, aspirar apenas às virtudes etc tna *
Não é sem razão que a D ança dos cegos de Fierre Mi* l* mil
associa numa visão alegórica Amor, Fortuna e Morte, esst * mu
mestres de balé que nos arrastam nas suas cirandas latais S me­
ditação macabra acaso não convida logicamente ao des|........ >*
Fortuna, dc seus presentes ilusórios e de suas traiçòcsi' N,to e * uf
lamente por acaso se o apogeu do tema da Fortuna <**in* t*ln|
com a difusão das danças macabras. A de He ram ( Isíria, |>•u 1
ta de 1474) está situada nas proximidades de uma repn st 11! a lij
da roda da fortuna, ambas num cemitério. No espírito tios pu *
dores e dos responsáveis da catequese da época, essas duas ||fl
guagens simbólicas deviam ensinar a mesma lição: <» drsapngtf
Mas como a Fortuna justiceira rebaixa os orgulhosos, ela, mrsmii1 7
6
5
4

144. Catálogo da exposição D ilrer na B.N. 1971, p. 78,


145. Le Livre de lã mutación de Fortune p a r Christine de Pisan L i 1lt MI*,
Paris: Picard, 4 v., 1 9 5 9 ,1, p. XXXV c II, versos 7 .1 7 1 7.17.’ .
146. Citado em Ibid., 1, p, XXXV e versos 2.218*2.7.70,
147. Citado cm PATCH, H. R. “Tlmlition.,.", |t. 224 225,

liOLÍ
............. conlunde-se o iiii o Destino untlgo, ciumento dos
i o 11 o i ' demasiado gloriosas. A Renascença valeu-se dessa con-
|u • i lieqOenlemenle reuniu num mesmo personagem a seiva
i I '• u , (|iie pune o primeiro dos pecados capitais e a invejosa
||t»u 11 i pd n,i<> tolera a ascensão imoderada dos humanos. Foi fi-
kpIlHi lili a deusa quem retomou a preeminência.
I 'ma i tilica reveladora que Christine de Pisan dirigiu a si
■pipila m eiete ser destacada, lím O Livro da M u tação... ela te-
jlil i t, i >Min cdUlo demasiado poder terrestre à Fortuna. Então,
|p|h \i i h'ii, ela se fax admoestar pela Sombra nestes termos:
II m|(|iii io le retomar em algumas partes dos teus ditos, no teu
)lti" Intitulado Da M utação de Fo rtu n a ..., quando aumentaste
lilla , o podei da senhora Fortuna, que tu dizes ser a ordena-
||im i i Im»i latos que sobrevêm entre os hom ens...”.148 Uma con­
fín i , |o i *x 11na daquela de Petrarca mencionada anteriormente
| qiti n mele a personificação e a deificação da Fortuna, tão
|u i" ules na época.
\ . It usa e Ireqüentemente figurada com a roda e a esfera,
||||ii,, d de sua Instabilidade. Mas não é raro que lhe atribuam
^|nli, ui símbolos de realeza. Christine de Pisan a coroa com um
di i li m i i ni frontispicio clejean Fouquet para o Combate da Vir-
tu,/, , da Im in u a atribui a esta última cetro e coroa. Shakespeare
IMii lim ou </<• A te n a s representa “a Fortuna pairando sobre uma
■til i - il*ii inh.i colina... Com um aceno de sua mão de marfim”, ela
h liiiil a seus eleitos."0Uma alegoria moral anônima representa-
lid ui l ' nu lies diante da corte em 1600 faz a Fortuna desfilar em
um ii n 11 ms.H l<>por reis.180Outra característica da deusa freqüen-
1 .......... uMInhada c sua desconcertante ambiguidade. Na Icono-
/iii i de ( es,ire Ripa, que reúne em fim de percurso a maioria dos
i ml'li mas" utilizados pela Renascença, pode-se ler: “Representa­
is " 1 '• sllni» |e(|uivalente aqui da Fortuna] por uma mulher extra-
qianli , vestida com roupa de cor escura, segurando uma coroa
|)i oiim na mão direita, com uma bolsa cheia de dinheiro e na
in ..........pn ul.i uma corda” (para enforcar os humanos).181I

I ui Ms dc 1460 na Bibl. de Saint-Pétersbourg. Reprodução em CHASTEL,


\ /, Mytbr fie ia Renaissance, 1420-1520. Genève: Skira, 1969. p. 6.
I i'i Timón d Albines, I, 1.
I <0 The Contention bettueen Libem lity an d Prodigality. Cf. CHEW, S. C.
I Une and fortune”, p. 90-91.
n i. ItlI’A, C!. íconoíògie, edição parisiense dc 1644, p. 184-185.
Ja Chrlstlne de IMsan, utilizando diverso,s detalhes do A‘ii
m anee de Ftiuvel, linlui Insistido sobre os dois .ispéelos shunt
tâneòs da Fortuna. C) diadema colocado sobre sua cabeça, dr
um lado é enfeitado de pedrarias, de outro, de espadas e de
pontas; sua mão direita segura uma coroa, a esquerda uma es*
pada; um pé está na água, o outro no fogo; seu palácio apie-
senta duas belas fachadas e duas outras escuras e em minas,
Ampliando esse tema, o-Beneditino John Lydgale o Iniiodilf
tor da dança macabra na Inglaterra - precisa que no ecl< lio da
Fortuna estão enfileirados dois tipos cie tonéis, uns <líelos d-
açúcar e especiarias, outros, de fel.l,J Sobre a blfronlalldadi i
a hipocrisia da Fortuna, escritores e artistas foram Inesgotável#]
Uma gravura de Hans Burgkmair apresenta-a com duas i ibt
ças. Ela está sentada sobre um trono, com uma mão girando a
roda, com a outra rejeitando personagens que caem em dililH
cobertas estendidas respectivamente por humanos e poi deinô
nios.155 Um desenho do Livro de Fortuna de Jean Cousln ( I “m
denuncia por sua vez a duplicidade da deusa. Do lado din lio,
ela é bela e luminosa; sua mãe alcança um jovem (|iie loi a
alaúde e simboliza a felicidade. Do lado esquerdo, « Ia « ......
bria e feia e seu vizinho então é um personagem eneapu/adu
e enfermo que figura a miséria.154 Dentro do mesmo espidió, o
escritor inglês Robert Green ( t 1592) pôe em cena um liou......
velho que possui uma imagem da Fortuna, lista ultima poiina
um dos pés sobre um peixe com reflexos cambiantes e o ntl
tro sobre um camaleão. A inconstância da deusa c ainda • *
pressa pelo manto de cores ou variadas ou instáveis com qi|É
a revestem sucessivamente Fouquet (iluminura do /■’%// // >
Lydgate e Robert White, no início do século 17, em ,t/</v/m *1/
C u p id ’s B an ish m en t .155
A Renascença parece ter inventado a associação rniie ,1
Fortuna e o navio cuja vela é inflada por um vento as vezes Ia
vorável, outras vezes inControlável (a menos que as estátua* Uli
tigas da “Venus Marina” não sejam na realidade imagens da I etffl

152. CHEW, S. C. “Time and Fortune”, p. 80. A imagem icimntln , Anil


güidade e se encontra no Román de la Rose.
153. Ibid., p. 87. Cf. VAN MARI,li, R. Iconograpble,.., II, p. 1‘) |, llg i ■'
154. Ibid., p. 99. GREENE, R. Arbasto, Thè Atuitoniy o/ bortune I ) i»tf
III, p. 171 s.
155. Ibid., p. 98.

:$<u
Itm 11 ' luí lotlo raso, e l<>ngd a lisia dos símbolos callao usados
|i n i la i i i oiuprccnder o caráter c aprichoso e incognoscível da
(i mi1I•I di usa (/dovanni Hollín! fê-la segurar um globo; mas csic
0 tmi bola de cidro - ¡ciólo retomada por urna pintura alema de
(|Hl»mlmadamenle 1630 conservada em Estrasburgo. Guillaume
(ludí • sprlmlndo não sua opiniáo, mas a do vulgo, descreve a
• ...... i •i mu i uma "jogadora de dados,* cega e surda”.1' H a cae-
/ |•I/||IM i lasslca que, de olhos vendados, junta-se agora á Noi-
i in igoga, a Infidelidade e a o Amor:1™o que ensinava Pier-
f lii li mil em , I P a n ça dos cagas: “Amor, Fortuna e Morte, ce-
,g|f • m ndados í’azem dançar os humanos cada um por con-
1111 111n i.i \ fortuna cega” intervém en rO M ercador de Vena-
til i........i 'arlólano' "‘ e Veronese, no palacio dos Doges, coloca
m u uma de mus mitos os emblemas do poder e na outra, um

Ittdn i iilim mas será que a lista está fechada? - a Fortuna e


Mu 11111ii< neta confundida com Occasio - a ocasião que é pre
(Jwi ipê sai se para apreender. Neste caso, sua cabeça é calva
jmi ii i . . su iem cábelos na testa. Boiardo (f 1494), que no O r
pui/u nmanioralo amalgama a fada Morgana, Occasio e Fortuna
{Hum iiiiii 11 personagem, esclarece .que essa deusa compósila e
iil< ii . i luglr nao tem tranças por tras e que seu vestido escapa
ti huí m i |iiInci ugarrá-lo.100
I s ,i s simbolismos acumulados remetem a uma força mis-
c Ho i i onslclerada mais freqüentemente como inquietante. Ra­
lo pt la *pial as pessoas da Idade Média e da Renascença asso-
............ ida vez com maior freqüência a Fortuna ao tempo cievo-
(Miloi 11 nu correspondência entre a roda e a sucessão da épo-
i 'I i ' ida , a l.ua malévola e sinistra, à Morte, ao Amor e à Hi-
1 H 11 I nucíanlo, afirmações positivas contrariaram - parcial-
|||t iil» esse pessimismo. A primeira, tão estoica quanto cristã, é

I si < |, sobre este tema CASSIRER, E. Individuum und Kosmos. p. 81.


' \I(|U 11« i, A. La Rihascità deipaganesim o antico, p. 236-238. CHASTEL,
\ / 1 ,1lyi/ic de Ia Renaissance, p. 11. VAN MARLE, R. Iconograpbie..., II, p. 189.
l i IUI|)F, (!. De Transita... p. 169.
i dl 1'ANOIsSKY, E. Essais d 'ico n olo g ie, p. 168-169.
I ai U t'spcci iv a m e n te I I , 1 e I V , ’6 .

II <ii i I .is (lifcrentcs referências dadas por PATCH, H. R. “Tradirion...”, p. 216-


'I Subira lortuna-Ocasião que se deve agarrar rapidamente cf. CORROZET,
i . I IlAalom gniphie..., 83° emblema; BOISSARD, J. J. Em blbnes..., pl. n. 26,
l> iiil <>l esclarecimentos comunicados por Sara Maubcws-Grieco.

m
que a Virtude e mais forte que* o acuso. Pollzluno considera 1'ell/
todo aquele c|iie encara sem reagir a testa franzida da Eorluini,
•enfrenta impávidamente a ira de suas tempestades e níio se quel
xa dos reveses que sofre. Seguro de si mesmo e sereno, "não x»)
ele nào é governado pela Sorte, mas é ela que lhe obedece".1"1
Semelhante posição pode parecer sobretudo defensiva!
Mas a Renascença, em seus momentos de- otimismo, foi mullo
mais longe, exaltando as possibilidades do homem e rebaixando
tudo o que parece fazer obstáculo ao seu livre arbítrio, Pensam» o
aqui no célebre D e Dignitate et encellen tia bom/nis de <lian» i-vn
Manetti (1452) - uma obra'que queria refutar a doutrina d< >"d» >»■
prezo do mundo” e na qual se lê notadamente esta enumerav.lu
glorificante: “Nossos, porque realizados pelos homens são Ioda»»
as casas, todas as praças fortes, todas as cidades e todos os edl
fícios cia terra... Nossas, as pinturas, as esculturas, nossas as ai
'te s e as ciências, etc.”.16
16216
4Elogio logo retomado por Pico de la Ml
3
rancióla ao mesmo tempo no ,séu Oratio cie dignitate hoinlnh
(1486) e nas Disputationes adversas astrólogas (depois de I i" '
No segundo desses tratados, ele exclama: “As maravilhas do e*
pírito são maiores que as do céu. Sobre a terra nào há nada mal* ■»
que o homem; e no homem nào há nada maior que seu espmio
e sua alma. Quando te ergues à sua altura, sobes acima d..,
céus”.1"' Quanto à Oratio de dignitate..., ela demonstra que, x»i
zinho neste mundo, o homem n à o é condicionado nem poi uni»
espécie nem por uma essência (nem, bem entendido, pela I •u111
na). Ele se cria a si mesmo por sua atividade c, graças a «'•.!a, do
mina a natureza. Ele é filho de suas obras e de sua llberdad»
O platônico frqncês Charles cie Bovelles no seu />c Siipieit
te (1509) fez eco às teses de Pico sobre a posição central do lio
mem e sobre suas prerrogativas excepcionais, mas dando ênlimtí
ao conhecimento ( sapientia ) com o motor de sua lil hti.k ao "" IMI

161. POLITIEN, H. Stanze. Ed. de suas Opera om nia por I. M.ilo, lliilti
Bottega d’Erasmo, t. III, 1971, p. 58-59-
162. MANETTI, G. D e D ignitate et excellentia bominis, IVAlc, I ’>V , p I "»
163. Disputationes adversas astrólogos, livro III, cap. 27. ( 'I, sobro l*i< / i
e ilpensiero d i Giovanpi Pico delia M irándola nella noria de/l'l 'maní \nmi, 1 * ,
Florence, 1965.
164. Cf. GARIN, E. L a Renaissance. H istoire d'une rêvohition cid liiid lr Vm
viers: Marabout, 1970. p. 193; c Charles de Borelies en um l ini/niOne ítttlfl
nairc 1479-1979 (Atas do colóquio dc Noyon, 1979), Paris, liVilauli I. IUM1
sobretudo p. 101-109.
■iiiiivuiii (11ic* lliistru í.i obra colocando late a face, a esqucTcla, a
I Miiuiu m inada, de olhos vendados, carregando urna roda á
>im il ir, homens so agarram om vao, o, a dirolla, a Sabedoria, som
ill id* ni,i, om rujas máos so oncontra wm espelho de sapiência.
I'i ni,molí,i significativa, a Fortuna está sentada sobre unía oslo-
i i un imiilo o a Sabedoria sobre um bpnco bem quadrado. Num
nu d illi,lo uní maluco declara: “iFortunal, nós te fizemos deusa e
a |nni mós nos céus”. Um “sábio” lhe responde: “Confie na Vir-
IIid» \ lá a luna logo mais depressa que a qnda”.l6S Outros clesen-
■-1|» inionii »s do autor em outras partes do livro servem de apoio
i i H'iii lii.io Iconográfica com frases como: “O sábio aprendeu a
10 i ii ,i ilao a fortuna o a não temê-la”,160ou ainda: “Os sabios nào
■ i i** . s|malos a roda instável da Fortuna; eles são superiores às
h i iinidos do tempo; eles perduram sem fim com uma alma ín
11 . i i ilva e Inviolada.167 IÍ na mesma corrente de pensamento,
oh11nl,i de Manetti e cie Pico, que se deve situar uma afirmação
i f ,in Itodiii: "A história dos homens deriva de sua vontade,
, i mpro diversa e cujos limites são imprevisíveis. Citda dia
miii . 11111o nascem novas leis, novos costumes e novas Instituí
....... O homem ê grande porque ele é livre.
Mas um discurso tãp seguro é um tanto raro na época, e
■ i 11d o i de que humanistas eminentes como Leone-Battista Al
Io 111 i MuimIIo Fiei no interrogaram-sç com inquietação sobre as
lila»,oes entre- Fortuna e liberdade. O primeiro abre seus Librí
h II,i hmilpjla com um prólogo que apresenta a questão do po-
di i da Fortuna:

l >i.ii ii«.* de tantas reviravoltas de situações que a história apre-


Hnl.i, "muitas vezes me perguntei com tristeza, escreve ele, se a
I ui (una iníqua e maligna é a tal ponto poderosa contra os ho-
iin ir, i|iii- seja possível à sua inconstancia e à sua audácia atacarli

lii i Keprodução desta gravura em CASSIRER, E. Individnum andK om ios, p.


IIP t(l 1. Todo o livro de Ch. de Bovelles figura em anexo da obra de E. Cas-
iln i, p. t() 1-412. Sobre Ch. de Bovelles, cf. também VICTOR, J. M. Charles
de ¡bvel/es, 1479-1553. An intellectual Biography. Genève: Droz, 1978.
I(i(i. Und., p. 321.
10/. Ib id ., p. 329.
Ilili, MODIN, J. M ethodus ad facilem historiaram cognitionem (T cap. do 1"
In ui), ir.ul. Mcsnard, Paris: 1951. T p. I 15. Cf. GARJN, E. M oyenAge etfte-
Hiikuwcf. p. 151.

:$0 7
famílias ili ,i•« cm I huiiciin dc valor, em bens raros, preciosos • d»
sejadi)S pelos molíais, UlimihuIllM de dignidades, de g li' 11iI, de
JoilVOlVs, di' aillOlldadr <' dc grava paia prlvíídoM dc Ind.l |i ll> I
dado, o rodil/I los a pobre/,a, .1 solidão o ii miséria",1"'1

Não satisfeito de formular essa interrogação que explli .1 pt m


que ele escreve um tratado sobre as necessárias virtudes lainllbti<•»,
Alberti redigirá também um diálogo especialmente consagrado til)
tema Fatum et Fortuna, “uma das obras mais profundas da lili 1 1
tura ética”.16
170 Sobre o mesmo assunto, possuímos uma carta 1cien
9
bre de Marsílio Ficino endereçada ao mercador Giovannl Ihn ■IIII
que o tinha consultado. No início de sua resposta, o fllósulo lln
rentino não esconde o seu embaraço: “Tu me perguntas se u ||o
menti pode mudar o futuro oii pelo menos trazer de alguma ma
neira remédio às coisas futuras, sobretudo aquelas ehamad 1 loi
tuitas. Sobre essa maneira, meu espírito está certnmente dlvldldii
entre opiniões contrárias”.171 Essas hesitações preliminares teda
mente não impedem .a formulação ulterior por parte desses i|n|f
autores de opiniões otimistas quanto às possibilidades do ..............
face à Fortuna. Alberti, após um rápido sobrevoo da historia mil
ga e da Itália de sua época, declara com palavras que mm.. . .
Maquiavel:

... Para conquistar, aumentar, manter e conservar ¡1 inajt’MMfl


de e a glória... a Fortuna jamais valeu tanto quanto uma 1111|) c
santa disciplina de vida... Contrariamente ao que t lécin . . ii.o
idiotas, não está no poder da Fortuna vencer facilmente qm m
náo quer ser vencido. A Fortuna só comanda o |ogo dt qu
se submete a ela... As famílias raramente caem em (It'AjjNM
[trata-se da decadência política e econômical por mitin titttM
que não seja uma falta de prudência e dc dlllgêm la \ I miiii
na só destrói e submerge sob suas ondas enormes Inolcmmt cil|
todo caso essa alusão ao seu poderl as famílias (¡ue nu ah iiidm
nam a si mesmas.172

169. ALBERTI, L. B. I l.ibri delia fam igliu. cd. R. Romano r A H......... I •


rin: F.maudi, l % 1). p, ,1,
170. GARIN. li. Mayen Age et Rtnaissanee. p. 77.
171. A cnrtn i integralmente reproduzida cm A. WARRURG. I . Min. 1..
p. 2.M-2.IS.
I7.L AL.BlíRTI, I . IV ////» /,.„ p. 4-11.
'<i nu'IImnlcvs apelos á Iut.t vitoriosa. <outra a ,sorte ressoam
i mi tuinas parles das fibras de Alberti, em particular este que lo-
■li Iti ie manteve demasiado isolado: "Nào duvide: a Fortuna, em
•ti nu ‘«ma. sempre Ioi e sempre será muito fraca e muito débil
f|iMii« a quem se oponha a cla".IM Fis-nos então aqui no centro
|(u m iiulc debate da Renascença sobre os poderes respectivos da
Viutt.lt • «Ia Sorte - Virtude entendida sobretudo no sentido ita-
llaii" de I '01ih um misto de coragem e de inteligência. Na sua
liHli) ii <tl' tvannl Rucellai, Ficino ensina no mesmo espírito de Al-'
b* ui «i Iti unem prudente tem poder contra a Fortuna”.1' 1
I preciso então lutar contra essa força misteriosa. Foi Ma­
quino I quem no cap. XXV do Príncipe deu este conselho com
iliiti .. ni\ a t,ao e com as comparações mais marcantes: “A Fortu­
ita d. iiiiiuslra seu poder nos lugares em que nào há nenhuma
........... igulda para resistir a ela... Com ela é melhor ser ousado
tlii qin puniente... Forque ela é mulher e, para mantê-la submis
i ■ tu «« v.nrlo surrá-la e espancá-la”.J's Retomada figurada tio
« 11|(|. ■ mllgi» sobre a Fortuna sorridente aos audaciosos, que en
............. alias no Rom ance de Renart ( “Fortuna socorre os ou
uai l" ■ i1' e no Rom ance de Jou ven cel (século 15) ( “Diz-se comu
nu nii que Fortuna ajuda aos ousados”) 17'.
Man a audácia não consiste somente em violar o Destino,
t 11 . i inibem a arte de aproveitar as ocasiões que a Fortuna pro
i ii • timo diz muito bem Ficino a Giovanni Rucellai: “É melhor
i i «m i Ia paz ou trégua, adaptando nossa vontade à sua, e ir
p a i....... . ela nos indica, de maneira que ela não precise nos pu-
•ii i l« «li a 1" () banqueiro florentino efetivamente nào cessou de
0 ai . 1. mu i desse espírito, notadamente casando seu filho Bernar-
........... . Nannlna, filha de Pedro de Médicis. Também mandou es-
1 ulpti m i «eu palácio de Florença um brasão comportando a For-
11 Io segurando a vela do seu navio e conduzindo-o a fe-
h um pialas, Também encomendou uma gravura representando
mu I........ ui i qual o seu filho Bernardo representava o mastro e

I ' AFRFKTI, L. B. D eliaT ranqu illità deWanimo (livro III nas Opere volga-
n .. I A. Bmuicci, Florence: 1843-1845, I, p. 113-114).
I I, ( I. WARBURG, A. La R inascità..., p. 235. <
I ”i. N.i edição da Pléiade, p. 365-367.
I H\, V. 1 3 6 0 9 ,

I \ (.ütndo cm I.INCY, M. Le Roux dc. Le Livre desprovérbes..., II, p. 490.


I II, ( I. WARBURG, A. La Rinascità ., p. 235.
mantinha a vola Inllaila por vontos favoráveis, Nannlna eslava mm
leme e uma legenda explicava: "Mu me deixo levar pela loiluiw
com a esperança de um êxito feliz",17” l;,m suma, a Renascença, t'iH
seus momentos.de euforia, declarou o homem mais forte qu< n
Destino ou pelo menos ensinou que a Fortuna "ama os Insensa
tos, as pessoas ousadas e temerárias, os que dizem c o m o i vsai
passando o Rubicão: a sorte está lançada”."*’ Nesses momentos de
graça, ela acreditou que a Fortuna “é talvez dona da melado •l>
nossas obras, mas que etiam ela nos deixa governar mais ou me
nós a outra metade”, segundo a célebre quantificação de Maqui i
vel.181 O homem tem, portanto, uma bela partida a jogar
Mas 'esse sentimento não foi sem dúvida a convieça<>doml
nante. De outro modo, será que a astrologia loria ocupado lanío
espaço nas preocupações dos contemporâneos? Cerlamenle a leo
logia oficial continuava a afirmar com Sahto Tomás que "a vonlH
de humana não está submetida à necessidade astral; senão eslaild
armiñado o livre arbítrio e ao mesmo tempo õ mérito” (Suma hii
lógica, IP-II* questão 95). Os próprios manuais de magia reii unam
incansavelmente a fórmula de Ptolomeu: “o sábio vencei.i as csliu*
las”. Os neoplatônicos e Ficino (na sua obra O Livro d a r id a >etal
tavarn a grandeza do homem, esse grão de areia, que pode, se qnl
ser, tornar-se o mestre e o senhor de um mundo c|ue se lhe asse
melha e que ele resume.1"2Quanto aos astrólogos, julgandi >un)li»
cer os hábitos do céu, as zonas, os climas, os influxos, gabavam
se de opor, por preces, ritos e talismãs, “a esperteza a força (•l,m
estrelas), o exorcismo à ameaça, a astúcia às armadilhas","1' A lllii
de paralela à q u e la q u e consistia em tergiversar com a fortuna
Todas essas concessões, mais ou menos amplas, li llas i li
berdade não devem ocultar a realidade do vivido, isto é, a pmll
feração das imagens e tratados consagrados à ação tias « lield
Na época da Renascença, a prática astrológica Ibi geral nas •ni
tes dos príncipes e na vida das coletividades.1" Pinturas, e.n ullll

179. Ibid., p. 236-237.


180. ERASME. Eloge de la Folie, cap. LXI (cci. M. Rar, l’aiív, <iaiiilt i, l'M|(
p. 155).
181. Le Prince, cap. XXV.
182. Cf. DELUMEAU, J. La CivUisatinn de Ia Renahsance, p V)' in '
183. C f GARIN, E. Moyen Age et Rcruiissance, p. 120 134,
184. AURIGKMMA, I .. Le Signe z od ia ca ldu seorpinH, l'flii1. I a I l.iv» Klmi
ton, 1976. p. 81-82, Remeto a este livro para a bibliografia reu no hi|iii> i o
trologia da Renascença.

:tl<)
hi I it t, , i i I,i .n. gmvuras, iluminuras, calendários, modal lias, livros
i mim do ui.ições), baús, tecidos e carias dc baralho dào teste-
nlu •i Ii " im* Interesse enorme pelo poder das estrelas - um iiv
i ii i|in i onilnlia muito de medo. Os planetas pensavam, go-
in i* ,im as arles liberais, os continentes, os impérios e os tem-
iimeiiluN iiullvlduais. Lê-se na ediçào troiana de 1529 do
tiu Ji i iilenddrU).'.. dos pastores-. “Aquele que nasce sol) o
ti" ili i " oiplào... será um grande fornicador.” Desde a idade
11 ,iii' is, "ele será ousado com o um leào e será amável de apa-
i ii " Mullos acreditaram que a sífilis apareceu na Europa em
li i i li uma ci mjimçào de Saturno e de Júpiter em 9 de noVem-
■di I |0 |;.. e temia-se um dilúvio em 1524 porque múltiplas
i ............. . deviam produzir-se nesse ano nos Signos da água.187
|ÍH In >mens dos séculos 15 e 16 foram contínuos solicitantes de
..........|M e di- prognósticos, se interrogavam continuamente os
i|ii|i igin, e porque julgavam que as estrelas só lhes deixavam
11 i .iii li.i margem de manobra.
I e lembrete sumário da importância então-atribuída às es
11. |H imite compreender melhor os corretivos que até mesmo
iuii oilml.slas" da Renascença fizeram às suas próprias declara
' n pullo da fortuna. Na Crônica dos fatos da G u in e <Xo por
iu. /airara (escrita em 1453), lemòs estas hesitações significati-
a pi oposito da morte na África do capitão Gonçalo de Sintra:

I li 1 1 grande mistério me parece esconder-se sob [esse] aconte-


. iiurnli>,,, () perigo era tão manifesto... que, desta vez, ele po-
ili ilti l<- 1 sido evitado se esse capitão tivesse querido ouvir con-
. IIhi, |mas| eu diria que as rodas celestes assim tinham ordena-
ilu i que ,i Eortuna tinha a tal ponto cegado sua razão que ele
n i" pude prever sua desgraça. Porque embora Santo Agostinho
lelilí,i esc rito muitas palavras santas pelâs quais, afasta a predesti-
ii ii n i J.i.s influências do céu, parece que descubro autoridades
que sustentam o contrário: Jó , por exemplo, quando diz que
I (eus nos Impôs um termo que não podemos transpor, e muitas
passagens das Santas Escrituras.™I

I ll i « ii.ulo cm Ibid.^ p. 92.


Illíi, lililí., p. 82.
IM II.ul.
I mm. ( Winica dosfeitos de Guiné. trad. I . Bourdon, Dakar, 1960, cap. XXVIII,
|i, 110-117.
I)c «ou latió, AIIktiI insiste* em celebrara 17/V/m |1.k* «la glo
ria o prosperidade as nações o a,s lamillas corajosas c diligentes,
mas reconhéce que ola nao podo tildo. Como negar o papel da
Fortuna nos acontecimentos militares? E ola que dá a viloil.i v.
carreiras literarias sao igualmente submetidas a mil "assaltos di
sua parte. E que dizer das grandes transações internacionais i \l
berti pertencia a uma família de “mercadores")? Quando as I i
vêm de Flandres para Florença “estão elas fora dos braços da l;oi
tuna”? Quantos perigos a enfrentar, quantos rios, quantas dllli til
dacles até que elas cheguem-a porto seguro! “Ladrões, lira nu#,
guerras, negligências e vícios dos intermediários, azares de toda
espécie nunca lhes faltam”.189 O diálogo Fatum et Fortuna è aln
da mais melancólico. O velho Theogênio, que exprime o senil
mento de Alberti, reencontra curiosamente os temas habituais dn
contemptus m undi sobre a miséria da condição humana dc ■li •i
nascimento até a mofte190 e, ainda por cima, ele precisa qm o
homem é pior para o homem do que todas as calamidades"
Nesse contexto, a Fortuna é apresentada como uma potência ma
lévola de cujo poder só se escapa não esperando nada dela
\

Lembro-me de ter verificado para mim e para os outros im íh


pios em número quase infinito que me ensinaram a n.H) i »mil 11
na Fortuna e a nào lhe devrer nenhuma obrigação. Conheço MUI
instabilidade e sua perfídia e concluo que quem não quhri i» i
com ela nem ligação nem comércio não poderá receber dela ne­
nhum dano... O uso das coisas, suas freqüentes trapaças a meu
respeito, a constante experiência que fiz de sua ver.satllld.it It i d.
sua inconstância serviram-me de preceptor.Iw

Se tomarmos agora no seu conjunto a conclusão du ( lila


de Ficino a Giovanni Rucellai, descobriremos nela mais resigna
çâo do que otimismo, sendo a seguinte a sua sentença lliial

É bom combater a Fortuna com as armas da prudêni Ia, d.i |o


ciência e da grandeza de alma. É melhor retirar-se d<••.-..i gin u i18902

189. ALBÉRTI, L. B. IL ib r i delta fam ig lia (livro II), p. 178.


190. Utilizei a tradução italiana (B.N. 24687 a 24693), inserida em illví iwn
Opuscula de nobilitate, 1544, p. 23ro-23vo.
191. Ibid., p. 26ro.
192. Ibid., p. 9 '°.

;U2
i lililí dela, porque mullo puncos i.ii'in «li<|,i v| lodosos e os (|uc
.......UNcgliom dcvem Isso .1 unía cxmi.nlIv.i l.idlga e a mullo suor,
Melhor aluda é ter cofñ ola paz 011 tregua, adaptando nossa von-
lade a Mía, o ir para onde da nos IndU .1 tic maneira que da não
plus he nos puxar à lorça. Realizaremos ludo isso, se soubermos
. *uh litar em mis poder, sabedoria e vontade.m

b sin afinal ambíguo que concede muito à Fortuna.


1 MmiiIm a posição de Maquiavel sobre esse assunto, ela nào foi
i upo v.a apenas pelo cap. XXV do Príncipe , de onde se costuma
m i la ex» luslvamenle. Ele voltou sobre o mesmo tema em varias

mi 1 ......... e m particular nos Capitoli de “a Ocasião” e de “a Fortu-


................ varios capítulos dos D iscu rsos... Sem dúvida, ele jamais
1 uh ni .'(obre diversos pontos: é preciso aproveitar as ocasiões,
P (Mil,11 se segundo as circunstâncias”.19' A Fortuna “aprecia e es-
1nllu aqueles que a atacam, que a empurram, que a perseguOm
ti 111 .I m au.M)”.1"' Ilnfim, o destino “não tem poder sobre os gran-
f Im»mens” t|ue são “inacessíveis a seus golpes”196- fórmula es
lt*1• 1 pinico original. Em contrapartida, Maquiavel usou fórmulas
............ iii.idlzcm parcialmente a afirmação segundo a qual a For
Mui 1 n o s ilelxa governar quase a metade de nossas obras:

I l,i revira de alto a baixo os Estados e os reinos ao sabor de


11 11 1aprlcho, e da retira dos justos o bemque ela prodigaliza aos
peí ver.st >,s,
I ...1 deusa inconstante, essa divindade instável frequentemen­
te 1oloi .1 os que são indignos sobre um trono ao qual os que o
mereceríam não chegam nunca.
I l.i tllspóe do tempo ao sabor de sua vontade: ela nos ergue,
In n derruba sem piedade, sem lei e sem razão.w

<)•. homens que vivem habitualmente entre grandes prosperi-


tl.it Ir . ou grandes desgraças merecem menos do que se pensa
louvor ou censura. Na maioria das vezes, nós os vemos precipi­
ta lu-. na ruína ou na grandeza por uma irresistível facilidade que
lli» •. concede o céu, seja lhes retirando, seja lhes oferecendo a

I') 1. WARBURG, A. La Rinascità..., p. 235.


PM, MACHIAVEL. Discours... (III, 9)r Pléiade, p. 640-642.
I ’* . Ibid., Capitolo delia Fortunü, p. 85.
1%, Ibid.. Discours.., III, 31, p. 686.
P)'/, Ihiil., Capitolo delia Fortuna, |>. 82.
ocüsliU) de empregar sua \híu I v.;i e a marcha da h'iimu
quando ela c|Ut*r levar um grande pixjjctc» a hom lermo, ría < mu
lhe um homem ele espirito e de urna Vhíú tal (|ue lhe prrmllem
reconhecer a ocasião assim oferecida. Da mesma maneira, <|ii.iii
do ela prepara a derrubada de um império, ela colín a .1 -aia Itcii
te homens incapazes de deter a qíieda\ Se existir alguém lu a m
te forte para detê-la, eia o faz ser massacrado ou lhe retira Imltm
os meios de operar algo útil.1'*

Nesse texto, que clá amplo espaço a um determinismo < i


terior, a Virtú exerce apenas um papel secundário em relação a
uma Necessidade caprichosa, insondável, irresistível.
Na maioria das vezes, a cultura da Renascença leve medi)
da Fortuna, deusa maléfica da qual é melhor fugir. I'. a llçáo que
clá o pavimento da catedral de Siena (segundo um desenlio d»
Pinturicchio, 1504-1506): nele se vê a mulher nua e menti.......
com a vela inflada, um pé sobre a bolha fatídica, o outro sohn
uma nave. A multidão dos' sábios se afasta de uma potência que
dá e retira os bens deste mundo.190Diversos testemunhos miimi
dantes deixam entender que a crença no soberano poder da i u
tuna era comum no século 16. Guillaume Budé constata qu« q
Destino, “elevado outrora ao céu pelo erro dos homens", c, "uh1
hoje, geralmente aceito para dirigir os assuntos mais altos e os
mais insignificantes, e os que se referem a eles”.19
12002
8 1('alvino dt ¡m
0
bre a mesma realidade e nota: “Quanto às coisas que ocorrem to
dos os dias fora da ordem e do curso natural, a maioria e *///»<«<
todos imaginam que é a roda da Fortuna que gira e agita lm
mens para cá c para lá”/01 Maquiavel acrescenta uma prci Is.u » rs
clarecedora: segundo ele, a negação do livre arbítrio ganhou li |
reno na sua época. Com efeito, ele escreve: “Essa opinião (de qiu
é inútil se esforçar para modificar os acontecimentos, em ve/ de
se deixar governar pela sorte) recuperou crédito em nossa rpm
pelas grandes revoluções que vimos e vemos todos os dias
uma retomada sem dúvida paralela à da fé na astrologia, D l o ems
provérbios em todo caso dão testemunho do sentimento i u|< m h

198. Ibid., D iscours... II, 29, p. 596-597.


199. Reprodução em VAN.MARI.E, R. tconographu’..., II, p. IHH.
200. BUDÉ, G. De Tmnsitu..., p. 248.
201. CALVIN, J. Institution..., I, V, 11, p, 27.
202. MACHIAVF.L. le Prince, cap. XXV, p. 364-365.

dl I
im luí tic urna Fortuna ao mesmo lempo pin le rosa, mulavel e
ih ti» >olí I» irluna, <> homem suhllamenle eleva. I', depols, ele re
!'• nli o deimba e rebaixa".'1"' ‘Tortuna varia como a lúa. Iloje se*
Mu i amanha escura".*'" "l'ortuna cega, aos seus cega”/ 0' "Contra
I Minuta loica nenhuma".-"" "Contra l'ortuna diversa não luí bom
............. nao tombe".-"7 “Km l'ortuna nao existe razão”/"" etc.
M>"0 tigiti lambem Insistiu sobre a “Inconstancia da oscilação dl-
0 i i d i 11 muña"...ble cita e aparentemente retoma por sua con
la • a* ' vi’tsos di'sabusaclos de Manilius: “O sucesso vai para pro-
|it'.' tiiiil concebidos; a prudencia se engana, e a Fortuna nao
apio» a ítem a|uda a parte que o merece, mas é levada, ao acaso
e o m •si i ilha, através da massa. Sem dúvida, existe uma força su-
1 o a *|in nos domina, nos governa e dirige as coisas mortais se-
jltlliilii suas próprias leis”/10 b Montaigne conclui que os "êxitos”
d i aii< ira dependem, sobretudo, da Fortuna, e que esta, mais ge-
çiliin uh , nao se deixa submeter ao nosso discurso e prudência.
An ' miliario, ela os "envolve em sua desordem e incerteza”.-'1
I iaque/.i cio homem em face do destino: mais ainda do
qui Montaigne, e o que ensinam os historiadores italianos con-
|t iiipontneos, como Maquiavel, sobre as desgraças cia península a
I* mil i li I iu i e durante a primeira metade do século i 6. A impo-
■ n lii da Halla, o vaivém dos exércitos estrangeiros sobre seu ter-
lll ii......... saque de Roma aumentaram o pessimismo de observa-
l m •nliisiecidos escrevendo por volta de 1530-1540.212 Era sua
Hi ,/its yjterras de Itália (em latim), conservada em manus-
>ili•• " humanista Girolamo Borgia anuncia desde a introdução

'll I MM JRIliR, G. Trésor des sentences citado em LINCY, M. Le Roux >l<


/. I ivre des proverbes..., II, p. 301.
'n i IM or des sentences, citado em Ibíd.
MIS i iRUTl I bR'. R eateil, citado em lbid., p. 300.
Ml(» MbURIbR, C. Trésor des sentences, citado em lbid., p. 277.
si I )o mesmo Trésor des sentences, citado em lbid.
•mi 1'ivrrrbes eom niunsgothiques, citado em lbid., p. 293.
.*00. / U.//1, I, cap. XX^IV: I, p. 278.
110 lbid,, I, cap. XI V: I, p. 350 (MANILIUS, Astronomiques, IV).
ri I. lbid.
’ I 1 * I. sobretudo VON ALBERTINI, R. D asflorentinischeStaatsbeum stein ini
I 7vo',///i> vim der Republik zurn Principat. Berne: Francke, 1955, p. 222-200.
•,11 h11RT, li M acbiavelliandG uicciardini. Politics andH istory in Sixtçenth Çen■■
mry l v/om ice, Princcton Univ. Press, 1965, p. 251-255, 267-279, 289-291.

:n r>
que clr \.ii descrever ". ns acontecimentos ele,*.la época Instável
e as variações da Fortuna", <) prologo do livro III determina mu
Manida: "Se a,s mudanças de Fortuna .sao visíveis em toda vida, |a
mais Has sao uto evidentes quanto na condlçào dos listados •pn
torna patente a Inconstância das col.sas,,, Quito l’ragelu sao esses
reinos (|iie os tolos admiram tanto e cobiçam eom grande eslm
ço ... Num único listado em três anos pode haver cinco mudança*
de soberanos. Tragedia t|ue rulo e de flcçàoi at|ueles (|tie a l oiln
na de um golpe leva às nuvens, de maneira Igualmente rápida <11
os rebaixa"."' Contra semelhante força, a Virtú nao pode la *i
grande coisa. o florentino Francesco Vellorí, no sen Sumarlo . la
historia da ludia de 1511 a /5 J 7 ," ' declara varias ve/es <pn "lo
das as açbe.s humanas estào submetidas à Fortuna" e <|Ui « i i
muda constantemente."' lomando como exemplo <> gonlalonelm
hiero Soderlnl, ele afirma que este último era "bom, InkilgenlM,
ciltienle e jamais se delxou levar fora da justiça pela amblçao e a
cobiça". Mas ele Ibl vítlma da "má Fortuna (nao a sua, mas a df|
sua Infeliz (Idade)" "" () caso dos dois papas Medieis (l.eao S y
< lemenle VID párese Igualmente probatório para Vellorí, (> pii
metro cometeu erro apos erro, mas “quanto mais erros comei* u,
mais a k aluna ** *.<>ctirreu".'' Inversamente, Clemente VII o |tap *
do opn' de «orna que tinha sido um cardeal de grande n pu
lai ai tornou se um pequeno papa pouco estimado" a pesai dt
suas i |iiul!dades Mas "a Fortuna que,, depois de dar a vlli a la ai
lian* eses em Kavenu, iranslbrmou-se para eles de terna mae em
•nu I na gera, fez o mesmo para Clemente."M
Francês* o Ciuicclurdlni (em francês Guiehardln) na sua
gitllKI' 51orla d'/lalia é multo mais duro qiie Vellorí para ei an N»i*
derlnl, <llemenle VII e, em geral, todos os seus contempoiam •»n,
In* luslve Carlos Quinto. Mas fraquezas c erros de chefes e d» po
vos nao constituían para ele a razáo principal da ruma da p*mu
silla, que Ibl causada, sobretudo, pela Fortuna. Desde o Int< lo da
obra, ele adverte que “inúmeros exemplos mostrarão com ■late

21,1. lacios dtiulos cm (¡II .ItliRT, li M tichU ivdli,,,, p, 26(»,


2M. liln foi ptiblkiuln por A, Kciimoin no Appaiftur n" 22 iil/'An'liirlo
t. VI, Florençn, I848, p, 2(>3dH7.
co lu tllàm ,
215, Cf, Ibkl,, p. 284-285, 287.
.’ l(). Ibkl., p. 289,
217. Ibkl., p. .VV).
218, Ibiil., p. .148.
i t i|iu' iHiSiiihllklacleH estilo submetidas as coisas humanas, á
m m* lu «lt- um mar agitado pelos ventos" e que os governantes
11 ‘ iii mal, para eles e seus povos, de "nao se lembrar das fre-
i|lli nlu'i variações da fortuna”,'1" A expressão clássica “roda.da
I Miiim.r volta naturalmente diversas vezes sob sua pena.220 Che­
io ui mi a escrever <|ue “as alusões ao poder e à influência da For-
Iiiii i ui! i U m frequentes (em seu livro) que Guichardin evidente-
iii ni. . p11•. ir.límente realizar o objetivo anunciado no primeiro
a 'iiuli ‘ i li •|irlmelro livro: demonstrar as frequentes variações cia
| ......... 1 I ntrelanlo, em outros escritos, Guichardin foi ainda
ui ir. i ah górlco: “Até mesmo as crianças, afirmou ele um dia, até
nu 'Ui' i i *•. Iletrados sabem que a prosperidade não dura e que a
......... li,i muda", K mais: “Nem os loucos nem os sábios podem.fi-
Millmmile resistir ao que tem que acontecer. Por isso, jamais li
UMl * l' ti mula que me pareceu tão justa como esta: D u cu n t voleri-
M M M , Hálenlos Irabunt ”222(Aqueles que o aceitam, o Destino os
i i \i picles que o recusam, ele os arrasta).
Impotencia do homem diante do destino, absurdo deste
illllii» • • lambem o que afirmam freqüentemente os personagens
iln i> hi•> li/glês no fim da Renascença. Ao fazê-lo, eles não ex-
|MIti» m nei essa riamente a opinião dos próprios autores. Mas eles
il lu i* slrimmho - o que para nós importa aqui - de um senti-
it» lito impíamente difundido na cultura dirigente. Nas peças de
Inl i •i|M',m,l a Fortuna, com sua venda sobre os olhos e sua
I Ia, e <llamada “cega... mutável e inconstante”.225 Ela é qualifi-
»la i lt "pula completa”,224 de “traidora”,225 còm “mudanças de
1iiiiin u * íiprlcltosas":220 fórmulas que, áo termo deste estudo, nos,
ip m i >iii i iiiiin clichês. Mas sua própria banalidade é significati-
i Muda mais reveladoras são as declarações de personagens

' I *>. ( ¡UICCIARDÍÑI, F. Storia d lta lia , ed- Panigada, 5 v., Bari, 1929
rítinii tl lialia”. Aqui livro I, cap. I (v. I, p. 1.).
Por exemplo livro X, cap. 14 (v. III, p. 197), livro XIV, cap. 7 (v. IV,
l‘ I l<>), livro XVI, cap. 5 (v. IV, p.,288).
I. ( ill.BF.RT, F. M achiavelli..., p. 289, n. 4.
F mcs dois textos citados em lbid., p. 281. Respectivamente Scritti auto-
Itioy/ii/ii'ii "(Consolatoria” de 1527 e R icordi “ricordo”, n. 138.
I. SI IAKUSPEARE. Henry V, III, 6, Pléiade: I, p. 788!
' ' I. Iliitl,, I c Roí Lear, II, 6: IX, p. 669.
' ' i 11>id., Antoine et Cléopâtre, IV, 15: II, p. 847.
' '(>, lliid., Timón dAtbènes, I, 1: II, p. 953.
postos em cena p<»' <onlcinpoi'fliU't>,s (le Shakespeare e (|iir p,i
reccm lc*r j<>m>k l<> lora o ( ulsilanlsmo. Em Antonio o Mólllti de
Marston,'o desencanlamenh >de And rugió é total: "Á filosofía, Ai/
ele, pretende (|iie a N¡ilure/a e sabia e nao forma nada Inútil ou
imperfeito... Tu mentes, filosofia, a Natureza forma eolsas Impei
feitas, inúteis e vas". () “paduano” Uinaklo em AH 1'ooLs di
Chapman declara: “fortuna, a grande soberana do mundo tem di
versas maneiras de favorecer seus servidores. A uns ela tía a hon
ra sem o mérito, a outros, o mérito sem a honra; a estes, o t spi
rito, aqueles, a riqueza; a muitos, o espirito sem as riquezas; olí
as riquezas sem o espirito ou nem as riquezas nem o espidió,
mas apenas boas aparências”.2 2 9Em Bnssy, outro personagem de
7282
Chapman, Monsieur, é ainda mais categórico: INaturezal que la
brica tantos olhos e tantas almas para ver e prever, é ela pr«ipil i
completamente cega. E da mesma maneira que os iletrados red!
tam preces latinas mecanicamente, sabendo-as de cor <• repelln
do-as todo dia, mas sem compreender o que dizem; assim tilín
bém a Natureza reúne urna grande quantidade de elem entos c,
por hábito ou pela simples necessidade da materia, termina a |o
exterior da] obra, enchendo-a ou nao de força ou de virtude, di
erro ou de clara verdade. Ela nao sabe o que faz". ' " Denlio do
mesmo espírito, Bussy tinhá aberto a peça declarando: l ,i lm
tuna e nào a Razàò que regula o estado das coisas”.2'1’
A historia nào deve ser o lugar da sistematizaçào, mus til)
contrario,,o dos matizes. Das exposições anteriores nao v u iiiii *
concluir que toda a época estava mergulhada no pessimismo; Intui
seria uma generalização absurda. Mas o relatório 'que ai,ibumo»i
de apresentar demonstrada a evidência de uma crença amplamt n
te difundida numa potência misteriosa muito mais forte que a ll
berdade humana e mais inclinada a contrariada do que a i r i m
cé-la. A Fortuna, na época da Renascença, foi representada mal
como malévola do que com o benévola. Ele foi muís freqíu ule
mente a “fortuna do mar”, o u seja, mais os azares importunou dtl
navegação do que a fortuna no sentido atual de acumul.......... I*

227. MARSTON. Antonio,-/ MclHda, MI, Al. H. Wood, LoihIicn: I•»H, |i ' '
Para este assiinto c o que vem .1 s<[*nii cf. IIAYDS, H, Itn- Couttto /\rn,ilo,oht\
p. 440-441.
228. CHAPMAN. AH Jvo/x, v. I, I,omites, etl. Th. Pairou, I I •t,
229. Ilml., Iliissy, v, .’.
nuil r. (Quantificação rápida mas sl^nlflcMiIv.i: entre I i repré
iiiaçoes <l;i Fortuna (ou da Ocasião) levantadas numa amostra
di i liu o livros dc emblemas publicados na I rança dtí 1539 a 1588,
u» nlmnia e positiva,Wl são explícitamente negativas e 5 compor-
i«m in llexòes sobre a instabilidade da sorte. O Teatro dos bons en-
mnho\ afronta “as pessoas cegas mal conduzidas pela fortuna"
• i•• i •mvkla a verificar “como mal vos guia, / E ao buraco para
Hopean vos leva, / Abismo de males e de calamidade”.-'2 Na He-
\oh'iiiyni/id, a fortuna responde a quem a interroga sobre seus
ililbuM »■. (mastro quebrado, mar, vela, bolha e delfim sob os pés):

I para mostrar minha instabilidade,


I que em mim nào há nenhufna segurança...
I Mou assim sobre o mar ao acaso...

(.Miem então fez meu retrato


Nilo quis dar a entender outra coisa
(.Mie desconfiança está presente em mim/1'

Num plano mais profundo, a Fortuna constituiu um dos as-


................ mito da “mulher perigosa”2" e como tal foi associada
In« Imaginário coletivo ã lua pálida e inquietante, à água que en-
ip á* i barcas que cortam o fio a vida. Mas a essa concepção so­
be tudo paga, que conheceu então um recobro cie vida, é preci-
" mu .» enlar a predestinação protestante. No seu livro sobre o
%»'* / iirhltre, fulero declara, usando fórmulas mordazes: “A von-
I-mIi Iiu ma na acha-se colocada entre Deus e Satã e deixa-se guiar
• i"' ii i oi no um cavalo. Se é Deus que a guia, ela vai onde Deus
lm>i i ci nno cie quer, como diz o Salmo LXXII1, 22: ‘Eu sou para
ii ' o m o um animal estúpido.’ Se é Satã que a domina, ela vai
mdi . Ir quer o como ele quer. Ora, a vontade humana em tudo
i " nao r livre para escolher um dono; os dois cavaleiros lutam
•ll pulam para ver quem a possuirá”.235 Por dois convites con
m . i. uh ambos amplámente difundidos, o homem da Renas*

' ' I Rrlmt mc aqui à tese de 3o cido de Mme Sara Matthews-Grieco, Lim a-
.■i ,/<• l,i ftmtne dangereuse...
' o IA PfKRIÈRE, G. de. Théâtre..., emblema XX. 1
' ' ( ( ( )RROZET, G. H écatom graphie, p. 27.
11 1 Keliro-mc de novo à tese de 3” delo de Mme Sara Matthews-Grieco.
’ M 1.1 JTHUR, M. CEuvres, V, p. 53.
ecnça foi levado ,iN,sim ¡i duvidar do seu livre* arbítrio. I) , ii ,i nu
cessldade de repqr em causa ;ic|lK*l;i Imagem de Prometeu com .1
qual tilo apressada mente <> earaeterl/aram.

a melancolia
Tristeza e Renascença: esses dois termos parecem es» luli
se mutuamente. Entretanto, eles foram muitas vezes compañía l
ros de viagem.
Nada mais natural que òs contemporâneos da Reste Ne
gra,2*5do Grande Cisma e da Guerra dos Cem Anos tenham adi •
invadidos pela melancolia? Huizinga abriu o seu Declínio dn hhi
de Média sobre a evidência.desta “inquietude geral'' ' (pelo nu
nos no plano dá cultura escrita). Hustache Deschamps, que se de
fine a si mesmo como um “melancolioso”,2Wconstata que " I ndos
os corações tomaram de assalto / Tristeza e melancolia ..... M u
adiante, no século 15, poetas e cronistas da França e da B urgo
nha continuam alimentando pensamentos sombrios. Jean Meu lu
not pinta a si próprio como um •“coração triste, fraco e inútil i
confessa: “Sempre de lágrimas nos olhos / Nada quero a nao sei
morrer”.210 Georges Chastellain, por sua vez, apresenta se como
um “doloroso homem, nascido em eclipses de trevas, em i spi
sas brumas de lamentação”.241 Seu sucessor junto ao Duque de
Borgonha escolhe como divisa: “Quanto sofreu ha Marche”,111 Al»'
mesmo Filipe, o Bom, lamenta a vida: ao saber da morte dt si u
filho de um ano, ele exclama: “Se a prouvesse a Deus que eu II236789401

236. Livro essencial de H EG ER , H. D ie M elm cbolie be¡ den J h tm lk h c lw t I m


ken des Spatmittelalters, Bpnn, 1967, que demonstra o espetacular uumoiln
tema da melancolia (e da Fortuna) na poesia francesa n partii d i !’<■•,n I !• |<i i
237. H U IZIN G A , J . Le D éc/in..., p. 32 c 36-40.
238. D E SC H A M PS, E. CEuvres..., 1, p. 311.
239. Ibid., IV, p. 18.
240. LA B O R D E R IE , A. de. Jean Meschinot, sft vic et ses letivres, l\uU 1119 •
p. 277. Citado por H U IZ IN G A , J. I.e D édin,.,, p. 3H,
241. CH A STK LI.A IN , G. Uiiwm..), I. p, 10: pnilo^n citado rm 11»ld.
242. LA M A RCH E, O . tlc. M émolm, Paris, ctl. Betume <•d'Arbmimoiit, l v ,
1883 1888: I. p. 186.
' • . ir munido tilo jovem, ou m e »nnsldei.irM feliz".’MA poesía de
• liiiil'"' d'Oiiean.s (f I465) c do Kené d'An|oii (j MHO) é também
•I* 'iiiln,a la por "indolencia" e "melancolía".',w () Rol Reno chama
a h i’iie/a de sua “párente bcm próxima".
I lulzlnga, citando algumas dossas conlissòes, as opõe ao
oiimlHino do jovem século 16 abrlndo-se ao humanismo. Com
••iit /a! Será que o corte é tão nítido de urna época para outra?
Celo c( >ntr;bio, ó forçoso constatar o imenso interesse pela melan-
i olla durante os anos 1480-1650 - datas aproximadas, é claro -
•l«o i obrem uní largo panorama que se estende de Ficino a Bur­
lón No centro dessa paisagem, evidentemente, está o sol negro
• o a lijo triste de Melencolia / de Dürer. Mas outros artistas além
dt I* abordaram esse tema: pensamos nas#trés Melancolías de Lu-
i a i < lanaeh, o Velho, na M elancolia de Cornelius Antonisz, na de
Manillas <ierung, ñas Melancólicas de Heemskerk, no Melancolí-
<ir de Tilomas de Leu; uma Melancolia de Giovanni Bellini que
ii |ten leu, etc. Toda urna época, portanto, irtterrogou-se sobre a
n iiiiu va e as consequências da tristeza, desde os inquisidores até
0*1 médicos, passando pelos filósofos, artistas e poetas. Santa Te-
it ni no l.lvço das Fundações consagra um capítulo inteiro à ques-
Iai i de saben “como as superioras devem tratar as religiosas me-
I un i illi a s "/11’ I lamlet é o próprio tipo do melancólico.247 O médi-
ii ipanhol Andrés Velasquez publica em 1585 um Livro da me­
lón i o/la e seu compatriota Luis Mercado dá a público um tratado
ii melhante em 1604. O célebre doutor Alonso de Santa Cruz re-
1111** |Ma sua vez (antes de 1613) um D e Melancholia.248 O livro de
Nndii di i Laurens, médico de Henri IV, Discurso da conservação
J o i'idii; doenças melancólicas; dos catarros e d a velhice (1597) al-
i un i dez edições francesas até 1626, sem contar diversas tradu-

2.4 y MONSTRELET, E. de. Chroniques, 6 v., París, ed. Douet d’Arq, 1857-
IH<)2: IV, p. 430.
.M4. ( T. C.'HASTEL, A “La Mélancolie de Laurent de Médicis” em Pables,
/brilles, figures, 2 v. París, Flammariori, 1 9 7 8 ,1, p. 154.
’ r>. Sobre a melancolia no fim da Idade Média, cf. JACQUART, D. “Le Re
l’.inl d’un médecin sur son temps Jacques Despars (1380 ?-l458)” em Bibliothb-
i/ue ile/'Prole des Chaites, CXXXVIII, jul.-dez. 1980, especialmente p. 61, 68-76.
,M6. C!ap. VII. Ed. Carmelitas, París: Desclée de Brouwer, 1952, p. 46-50.
247. ( :f. DUBOIS, Cl. G. Le M aniérisme. París: PUF, 1979. p. 200-203.
248, REDONDO, A. “La Folie du cervantin licencié de verre” em Visages de
la Folie, p. 35-38.
ÇÒC.HM.11•. rcvcl.u ln| .llml.l C o .HUlVN.SO d<> IMOlUIHKMUilI tl.ll.ldti
cie Roben burlou, .1 Anatomia da nwltituvlla, publicado cm I h jl
e disputado pelos leitores Inglese,v cinco edições saem dur.mte a
vida do autor que morre em I í>M). " StaroblnsUl tem razan ao e*
.crever: “A Renascenç;! c a época de ouro da melancolia " 1
O discurso sobre ela Ibl outra maneira de lembrar os limites
do livre arbítrio - limites impostos ao mesmo tempo pelos humo
res e pelas influências planetárias. Da longínqua antiguidade ate o
século 18, considerou-se que uma tristeza prolongada prov inha de
um hum or.corrompido.*4 1522
0
5
2
9 4Hipócrates e Gaicano tiraram a lim po
3
5
essa explicação, retomada e esclarecida no curso do tempo nota
clámente por Constantino, o Africano (| 1087) que restaurou o eu
sino da medicina grega na Itália. O seu D e Melancholla constitui,
nesse sentido, o vínculo entre ciência antiga e medicina da 16 n is
cença. Esta última com Fernel,2552 6Paré,25' Bright,255 Du l.aurcir., hm
5
ton, etc., retoma sem modificações notáveis a tradicional teoria do*
quatro humores, que são respectivamente o sangue, <> fleuma, ou
pituita, a cólera, ou hile amarela, e o humor-da melancolia cul»
termo derivado cio grego significa precisamente “hile negra"

I
249. STAROBINSKI, J. Histoire du traitement de la mélancolie de\ oilyjn ri it
1900, Bâlc, Geigy, 1960 (Acta psychosomatica n. 3), |>. 38. A obra d* III
LENBACH, H. L a Mélancolie. Paris: PUF, 1979, nos interessa ,it|iii p» I.<•>n
cap. I. Em contrapartida, o livro de KLIBANSKY, R,; PANOFSKY» I ' »
SAXL, Fr. Saturn a n d Melancholy, Studies in lhe History o f N um rui l'hlfaiHáfa
Londres, Nelson, reed. 1964, passim, é fundamental para n<Vi. Mm* f
Berriot-Salvadore dignou-se comunicar-me o manuscrito dc mi.i i< s* d* ' 1 1
cio (Montpellier. 1979): Images de la fetntne dans !a médccine du ,Y1 / . /du d\/
but du X V T L siécle. Eu lhe agradeço imensamente.
250. Sobre Robert Burton o livro essencial em francés é o de SIM( >N, | I*
R oben B u n on (1577-1640) et lAnatom ie de la mélancolie, Paris: 1>idi» i, P M
Aqui, p. 41-45. Eu agradeço a André Rannou por ter me indicado t 11 "I" I
251. STAROBINSKI, J. H istoire..., p. 38.
252. Exposições modernas desta explicação notadamente cm S IAUt >IUI r I i l
Histoire..., p. 9-45. PANOFSKY, E. The Life and A n ofAlbiec hl / >ih,‘ Pilu i
Princeton Univ. Press, 1955. p. 157-160. THORNDÍKH. A Iliu oryn f ,1/ujh ,aut
Experimental Science, Çolumbia Univ. Press, v. Ve VI, 1941, passim.
253. FERÑEE, J. Universa medicina 1554 aqui, livto VI, cap. ' liad li
Sept livres de la ihéiYtptuiitjite unlversdle, 1648.
254. PARÉ, A. Üiuvres, ed. P. de Fartas dc acordo com n cdiçílo de I5M \ t *
Paris, 1909, Aqui, v. 1: Introdução, cap. VIII, p. XI XV, ExpllcaçOc* miiimU
dantes dc um médliodn século XVII cm MANI )R O l), U, /Viuru/u/t tl .t<or/
¡tríeou \ \/i tli,i,. /, w, , inédito Paris Payare!,' 1979 p 101 11
256. UIUGI-I r. I A Ih atise o f M eknehollt, 1686,
N.i 11mIIcUick*. a palavra "Mangue" teih duas significações, lí o
iiih >spllc.i Ambroise Paré, retomando Gaicano, e a comparação
l" ' iitlio novo no qual podemos encontrar quatro corpos dlferen-
t> i a lia, no fundo, é o equivalente da hile negra; a flor na su per­
dí ti do liquido representa a cólera, “o mais sutil dos humores"; a
>* tilma" i>u aqúosldade é semelhante ao “fleuma”; enfim, o vinho
pn <|tllámente tillo, "bom licor suave e amável”, é comparável ao
11ia m no sentido estrito. Na prática, o sangue que circula ñas ar-
0 111 • nas veias nao é puro. Ele contém os três outros humores
•m quantidades variáveis que todavia, não devem se tornar dema-
nl ido importantes. O fleuma, sendo apenas “um sangue imperfei­
to i lev e m jrmalmente transformar-se em “bom sangue” por “nos-
iii i ilm natural". A cólera amarela é progressivamente “atraída
|n 1" !"lii ulo do lei” e o humor melancólico pelo baço, órgão de
mi i i ura que se supõe ser o centro da bile negra. Daí o quadro
............. mais adiante dado por Ambroise Paré,256com referên-
1 l,i iHis quatro elementos tradicionais (ar, água, fogo e terra).
I slste, observa Ambroise Paré, “uma certa proporção e
......lid i do?, chamados humores (no'sangue no sentido geral), a
•|n il estando conservada dá saúde ao corpo; mas se ela estiver
, miii impida, ela traz e causa doença”. Em justa proporção, a “me-
..........Ii.i nos é, portanto, indispensável. Mas se ela se tornar pre-
pi nu li i.ihii- no organismo, esse desacordo dos elementos age êm
............. lelrlmento. Levando em conta as correspondências então
idi 11li ida s entre, de um lado, os humores e, do outro, os quatro
•li memos, a direção dos ventos, as épocas da vida, as estações
di i iihi i, ou até os momentos do dia, obtemos com muita coerên-
i la ms quatro grandes temperamentos humanos em função da
pi> domlnáncla de tal ou tal humor:
• <) temperamento sangüíneo, reputado “o mais perfeito",
,, -ii, .ponde ao ar, ao Zéfiro (vento do oeste suave e tépido), na
pi liiiavera e na juventude. Ele se afirma particularmente entre três
liniiis e nove horas da manhã;
• () temperamento fleumático corresponde à água, ao Austro
iM iiiM do sul que traz a chuva), no inverno e na velhice. Ele domi­
na ,, ibieludo entre nove horas da noite e três horas da manhã,
• () temperamento “colérico” corresponde ao fogo, ao Euro
•■, un i quente e seco do leste), ao verão e á época da maturidade,
i li , multo ativo de nove horas da manhã a três horas da tarde;

,'S(». l’ARÉ, A. CEuvres, I, Introdução, cap. VIII, p. XI-XV.


H ii a,
i $ ii l
1S. }I sn
í. cS í i2 $
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| 0 l! 11
>
« v1 !¡j! a»?o
.a- “ s l l
aãlle
• i >temperamento melancólico corresponde á terra, aoven-
P i Im iiMiir ( |kíreas), ao outono, a "Idade declinante e primeira vc-
II.i i i luíanle o tila, suas horas privilegiadas se situam entre três
||iii i 'Ia i.mlc e nove horas da noite. () médico zelandês Lemne
lh iimlihi explica que entilo “o fígado se purga, e joga fora sua es-
. iodo excremento: o qual a natureza envia para o baço: o
i|M< i im 1,1 que durante as ditas horas o entendimento do homem
. i hli i leut I)ios(), e por uma negra e espessa fumaça o espírito se
hiIm Ulule e iodo desolado”.2” Enquanto os sangüíneos e os colé-
ib m . li ui saude, dinamismo e alegria, os fleumáticos e os melan-
jjftlli i i*i i dinpurtllham graves defeitos: os primeiros sào “adormeci-
11<•• pn gulçosos e gordos, tendo muito cedo cabelos brancos”, os
Iftaundio e de novo Ambroise Paré quem fala - “são tristes, de-
■>;«i ido'i lei liados, severos e rudes, invejosos e tímidos”.

\ melancolia, com o doença, pode ser provocada seja por


lãl n iadores de humor negro, seja por um mau funciona-
ll ii mc - de um dos órgãos abdominais cujo conjunto forma o “hi
...........id 1111' baço, fígado, vesícula, bexiga, útero, etc. Essa dis­
ímil i*ii ila então "aquela espécie de loucura que nós chamamos
Htull" bem melancolia hipocondríaca”.2,8 O principal responsável
pm i ii ultima c, todavia, o baço - spleen em inglês - que tem
I" .* Iunião absolver a bile negra em excesso no fígado e no san-
itH. l |c utiliza a parte mais rica dela para nutrir a si mesmo, des-
* 1111 ga * cila quantidade no estômago para provocar o apetite e
t Kpiilsa " resto. Mas se; por fraqueza ou obstrução, ele não
liMiilbi mi a melancolia do sangue, então este corrompe todo o
i m p o Alem disso, um baço sobrecarregado de bile negra deixa
• Ha Guipar e se corromper. Daí aqueles “vapores” quentes
......ipunlvcls aos c|ue desprende uma água feivente e que se es-
palli.i poi lodo o organismo.2 ^9 Lembremos de passagem que a
... d li ma i hi nesa tradicional estabelecia vínculos entre baço, ter-

'' I l'.MNIÍ, I.. Les Secrets m iracles de nature..., trad. fr. de 1566, p. 249.
' al, A notar que a histeria era então identificada como uma afecção de origem
o. i viisii proveniente de um mau funcionamento do útero. Cf. V E IT H , I. His-
u>he de rhystérie. Paris: Seghers, 1973.
' i'l. Im dente apresentação das teorias médicas da época sobre a melancolia
rm hAIUI, I.. The Elizabethan M alady. A Study o f M elancholia in English L i-
leiHiMY from 1580 to 1642, East Lansing (Michigan), 1951, p. 21-72. Cf.
(itmbém K U h A N SK Y ..., R. Saturn..., p. 67-126.
ra e tristeza doentia e <|ik? a acupuntura energética atual mantem
e utiliza essa relava» >.
Mas para o módico ocidental da Renascença, existe uma
“matéria melancólica”, um humor espesso, um alcatroo viscoso
.e negro, circulando com lentidão, cujos excessos no organismo
devem ser evacuados: senào elés engordam e entravam o Indi
víduo e escurecem seu espírito. Ivxplica-se então a importam la
dos purgativos, e notadamente do heléboro, no tratamento da
melancolia. Os evacuativos , com efeito, têm por resultado < h
pulsar o humor corrompido. A eles é preciso juntar os "alieia
tivos, que diluem, suavizam, umeclecem os depósitos de hile m
gra, mas sem exercer sobre eles açào mobilizante" e "os <oit/m
tativos, cujas virtudes roborativas e cordiais devolvem a» >doen
te o vigor e a alegria”.260A melancolia é, portanto, csscncialmrn
te uma doença da região abdominal onde se acumula a alialil
le e de onde escapam as exalações tóxicas para o cerebro l
ses vapores saem às vezes pela boca do paciente e enlao mi
mostram contagiosos. Cita-se o caso de um alemão que fazia <m
casa suas devoções da semana santa porque temia a qiiantld i
de muito grande de “vapores de melancolia exalados pela mui
tidào dos fiéis contritos”.261
Mas o vínculo sugerido aqui entre contrição e vapores nu
lancólicos subentende uma possível, ação de cima para bal o
com o excesso de humor negro resultante então de um prnt rvm
psíquico. Ambroise Paré identifica claramente essas duas causan
da melancolia cujo humor, escreve ele, “é feito com alimente > ••■
suco grosso e difíceis de cozinhar, e também de çontrarledatli
desgostos do espírito”.262 Robert Burton afirma igualmente' que
. “os males do corpo procedem da alma*’ e lembra que (iali um
gabava-se “de ter, por sua vez, curado diversos pacientes ili . i
afecção [a melancolia] unicamente retificando o equilíbrio de mi ii
espírito”.263 Ao que se junta a análise dos teólogps Incllnadus a
perceber a ação do demônio que tenta mergulhar as almas pl<

260. STAROBINSKY, J. H istoire.... p. 41.


261. Citado em Ibid., p. 40 segundo V AN IN I, L. D ialogl dc <ldniihindl< iiti
turae reginae deaeque mortalium arcanis, Paris, 161 (>.
262. Mesma referência da nota 256 (anterior).
263. B U R T O N , R. Tlic Anatomy of Melancholy. [kl. II, liukson. I mullí v
New York: Dent, 1%4. 3 v., aqui, II, p. 103.
i ‘i.i•* mmi.i tristeza que a.s desviaria <l<>st*is It>d i v i n e A cura ela
ill.i obtém-se não somente .ic.»*• a um regime alimentar
t i |udk losas evacuações (nesse senlldo, talve/ o coito não deva
Hi d. ipre/ado), mas lambem pelo acionamento de uma panó-
pllti *11\<i'tllleada de meios aptos a agir sobre o psiquismo: boa
I» i lili i do trabalho e do repousp, do sono e da vigília, recurso à
mu a, ao vinho branco suave, aos perfumes que alegram o ol-
I ilo as n ires agradáveis - Du Lorens aconselha o vermelho, o
V|*M|i " amarelo e o branco - , aos contos cômicos, às compa-
llhl 11 alegres (pie evitarão a solidão para os neurasténicos, mas
lambt m as repreensões, às admoestações, ou até mesmo as cor-
n i mi a mala enérgicas tais com o a chibata e o calabohço266consi-
i |i i iilna i omo "1'evulsào moral”.
l ulic as ações exercidas de cima para baixo, e conside-
i ni.11 aa i orrespondências admitidas clesde a antigüidade e rea-
ii al.ia pelo humanismo, não se podería esquecer as influências
planetarias. A Renascença não põe em dúvida a consonância
■iiIh .i temperamento sangüíneo e Júpiter (e muitas vezes Vê-
..............temperamento colérico e Marte, o temperamento fleu-
iii ui. n e a lua, <> temperamento melancólico e Saturno.260O me-
ii... imhre dos humores, portanto, é governado por este astro
• mi\. I que absorveu a personalidade da divindade pagà. Ele é
. o imente o mais alto dos planetas, o mais velho dos olímpi-
. .' antigo rei da época de ouro. Mas ele é também uma es-
in Ia .< •a e gelada, o pai dos deuses destronado, castrado, apri-
ilim ido nas entranhas da terra. A mentalidade coletiva o asso-
. 11 |" 'llanto, a velhice, à invalidez, às contrariedades, aos sofri-
iiicnli o e a morte.
No Picatrix, manual de magia e de astrologia então mui-
........... voga, Saturno é qualificado de “frio, estéril, sombrio, per-
nii toso" Nao adianta ele ser “sábio e solitário”, ele é aquele
qin tem mais irtquietações do que ninguém” e “não conhece
l-i i .i nem alegria”.'Talvez ele conceda a seus “filhos” - aque

,’íi't. ( :r. C H A ST E L , A. “La Tentation de saint Antoine ou le songe du mé


liiiKoliqnc" cm Pables, fon nes et figures, p. 137-146.
J!(iN, <:f. TMÊRÈSE D ’AVI LA, Livre des Fondations, cap. V II, p. 48-49.
.’<>(>, () livro essencial sobre o assunto continua sendo o de KLIBANSKY, R.;
IV\N( )I SKY, E.; SAXI, Fr. Satum andM eíancholy. Cf. também PANOFSKY,
I íh c Life... ofD ürcr, Londres, Nelson, reed. de 1964, p. 166-167. DELU-
MI'.AU, j. La Civilisation de la Renaissance, p. 394-397. SE Z N E C , J. La Sur-
vivanee des dieux antiques. Londres, 1939, p. 59-74, reed. 1980.

A27
les que nasceram sob sen signo poder e fortuna, mus cm de
trímenlo da generosidade; o se ele llies da a sabedoria, sera *to
preço da felicidade. Mas aqueles que dependem dt* sua Inlluén
cia serão na maioria das ve/es pobres camponeses, Irabalhado
'res da pedra ou da madeira (Saturno foi Dcus da ierra), llmpa
dores de latrinas, coveiros, mendigos ou criminosos, Assim ap l
recem seus “filhos” numa miniatura alema do século l > <11n
comporta notadamente dois melancólicos nos ângulos superlo
res e um enforcado no centro da ilustração. '1' No Ilaushiit b
Wolfegg (fim do século 15), que consagra urna página a cada
ym dos astrosm aiores, os “filhos” de Saturno sao, ao lado do
lavradores, um condenado levado à forca, um carniceiro es
quartejando um cavalo, uma feiticeira ao lado de uma gruid
onde dois prisioneiros têm as mãos e os pés presos num peh mi
rinho.2268 Um manuscrito lombardo da mesma época, D e S/tbae
7
6
ra , evoca por sua vez os planetas que presidem ao nascimento,
comandam os temperamentos e dispensam as doenças, Saturno
encontra-se aí representado com uma cabeleira hirsuta e tuini
grande barba. Ele se apóia numa muleta e carrega lima M ti
Este instrumento lembra que ele é o protetor da agricultura i i
o acento incide sobretudo sobre sua influência nefasta Eli u
cita as enfermidades, provoca os desentendimentos, estimula a
jogar dados e xadrez, engendra as rixas, sugere os roubos I'- i
cebem-se com efeito ladrões operando numa residência nobm,
um malfeitor atacando um fidalgo para roubar-lhe a bolsa, e,
com o pano de fundo, uma prisão. A legenda explica: "Satuuio
produz os homens lentos [porque o curso deste planeta e o
mais longol, os ladrões, os mentirosos, os assassinos, os <ampti
neses, os rústicos e os homens obscuros, os pastores, os \aga
bundos e outras pessoas semi valor,269 Na sua Tentação </<’ s<m
to A ntônio (de Lisboa), Jérôm e Bosch incluiu um "coxo snliirnl
no” seguido por cães.270 Ele é uma das ilustrações do mal ohtj
a terra. Triste destino dos melancólicos,

267. Reprodução em PANOFSKY, E. The Life... ofD lIrer, |>. ’ MM <|mi ie I


do século XV). Erfurt, Stiidtisches Museum.
268. Coleção Waldburg-Wolfegg em Waldsce. Cf. SKZNI'X | /,/ Smt'lt »>
ce..., p. 67. LIPPMANN, V. Les Planèies et leurs enfants, Paris, I H’)S,
269. Reprodução e comentário em DEI,UMl'.AU, ). Ia Cluiliiiilioii , pl I li
e p. 390. Modènc, Biblioteca esténse.
270. Obra executada cm 1306-1509, Lisboa, Museu muionnl dc arn* uiiluti
I nlici.inlo, como demonstrou E. I'annlsky ele* mandril tão
iim | »\ « I, ' Marsfllo l'iclno e os ncoplalónlcos, guiados a o mesmo
h 1111m1 111>r Aristóteles e Ploflno, procederam a urna vigorosa rca-
|i||||iK,Im de Saturno e da melancolía. Saturno c mais alto queJú-
|i||t 1 I |e e o espirito (spírítus), eiíquanto Júpiter é apenas a alma.
•• pi huello convida ¡i contemplação, o segundo, à ação. Saturno
• l" u lu u h o patrono daqueles que se consagram à-. reflexão e ã
......IlhKito, sendo a melancolia essa aptidão para a investigação
1 o mal ■altos segredos.-7- Reino,' nascido sob o signo de Satur­
n o • que permaneceu durante toda a vida um ansioso, propagou
1 lilda d» que o gênio é saturnino. O que é confirmado por Pico
11* ! i Mirándola que escreve:

Salín no encarna a natureza intelectual que se dedica e se ape­


na unicamente a reger, administrar e manter em movimento pe­
la suas regras as coisas que lhe estão sujeitas... Com efeito, di
* ni que Saturno produz homens contemplativos, enquanto Jú
11II1 1 da ,10,s seus as funções de príncipe, de governador e de ad­
ministrador dos povos.-7:<

I m razão dessa teoria, Pico de la Mirándola e mais curiosa-


iii- uh 11iinenço, o Magnífico - o chefe real de Florença —, qualifi-
■ un a ,1 si mesmos de saturninos. Lourenço certaínente deve mui-
i' • 1 1mu 1raí licúo já antiga quando çbmpara melancolia e dor amo-
h i*iii, lema eterno retomado pelos poetas do dolce stil nuóvo ,274Ele
lililí 1 Igualmente a imagem da figura sedens, o personagem so-
lll iiln que medita, com a cabeça apoiada sobre a mão. Ela tinha
•idi 1 111iptilarizada ao mesmo tempo por miniaturistas alemães e
111o 1'eiian .1 e foi reencontrada na atitude da ninfa sentada que fi-
11111 1 11.1 I (lindado de Pã ( 1488) de Lúea Signorelli. Mas três ele-
iii. uh»-, devem ser aqui destacados. Primeiro esta constatação: “O

' I PANO ES KY, E.; SAXL, Fr. Dürers “M elancolia I ”, Leipzig, 1923. Cf.
Iiiiulnfni MARCEL, R. M arsileFicin. Paris: Belles Lettres, 1956. CHASTEL
A. M iiiülc lucin etl'art. Genève: Droz, 1954.
I. notadamente o cap. 6 do Io livro do D e Triplici vita.
' ' t, MIRANDOLE, Pie de la. Opere d i Giov. Benivieni florentino... con una
, iinvm a dcllo am ore celeste e divino, con commento d ell’ill. s. conte G. Pico M iran-
dohino, 1S 22,1, 7, f ° 10. Citado em PANOFSKY, E. Essais d ’iconologie, p. 293.
' i Esta exposição é inspirada pelo artigo de CHASTEL, A. “La Mélancolie.
rin i'tihles, formes, figures, I, p- l49s.
sentimento de urna lula Incessante, de mu lini^o ({l'fciimo e de urna
dor que chega a desolado, encontra sua cxprcssiio ein mullos
poemas de Lourenço". Km seguida, a relavar> de causa o eh lio
estabelecida entre temperamento melancólico e palxóes amorosas
É da natureza dos amantes, escreve ele, entregar se a peioii
mentos tristes e à melancolia que, em meló aos suspiros r a la
grimas, alimentam sua fome amorosa, e isso enquanto eles < pt
rimentam também a maior alegria e um'.sentimento d<’ (locura, l?U
creiò que a razão disso é que o amor, simples e constante, pio
cedê de uma imaginação forte, e esse movimento dlflcllrnoilltt
pode produzir-se sem a predominância do humor melancóllt o no
amante. Porque a natureza deste último é de estar sempre liiquti
to e pronto a transformar todo acontecimento, favorável nil ,ul
verso, em tormento e paixão.-T<'

Enfim, terceira característica a sublinharia mclaiu •>lli


amorosa ultrapassa a si mesma em meditação poética. As "sanias
luzes” que brilham nos olhos da mulher amada sào lambem ,t m
diaçao de uma realidade espiritual mais alta. Encontramo-nos eu
tào no universo ficiniano.
Entretanto, os saturninos de Florença sabem bem qm ■<
planeta responsável pelo seu destino permanece com o um.i h -i
ça inquietante, porque oferece, conforme o caso, o genio mi a
doença e às vezes ás cluas coisas juntas. O temperamento me
lancólico predispõe certamente a ser filósofo, poeta c lnt< l« •
vtual. Mas esse destino comporta riscos, notadamenlc o de p< i
der o spiritus que permite os mais nobres pensamentos, No Ih 1
Triplici vita (1489), “manual de higiene para uso dos Inh h •
677 Ficino enuncia diretivas para a restauração do < .......
2
5
7
tuais”,2
aconselhando por sua vez os meios tradicionais purgaçú» «,
exercícios corporais, uso de certos vinhos c perfumes iims
acrescentando uma magia talismânica que, por melo de pedim»,
signos, imagens e músicas, capte o spiritus do mundo e ic i u
regue o intelectual deprimido. A influência de A p o io e de |upi

275. Ibid., p. 152.


276. Citado em.Ibid. e LIPARI, A. 11The dolce stil nuovo aiooiding in I mi li
zo dei Mediei” em Y aleR om ânícStudies, XII, 1936. h o tomou,(ii<> d< I ui» n
zo sobre um de seus sonetos que figura cm I,oretr¿o dr M nlli i, ( m| A
Simioni, “Scrittori d’Italia”, Barí, 1913, I, Rime, p. 31.
277. STAROBINSKY, I. ílistoiir..., t». 73.
It i r rutilo IIlili/nela rom o antídoto ¿ion efluvios malignos c|uc*
i,m in io , o Ambiguo, náo ccssu tic dirigir sobre seus “filhos”.2™
i i , i'preces" endereçadas aos outros planetas para que eles
*i

11|iilllbivm o poder de Saturno tornam o “corpo” e a “alma” do


«<do Utinlr t a p a / de acumular essa materia invisível - o spiritus
pn o nic ñas reservas cósmicas e que as cogitações do satur­
nino trndem a gastar depressa demais. Em qualquer circunstfm-
•11 este ultimo não deve envergonhar-se de sua sorte, mas as-
uinli seu destino: “Evitam a influência nociva de Saturno, e ad-
qulicm outra mais propícia, aqueles que não somente recorrem
i liipller, mas também se transportam à contemplação divina
Ignllli nía por Saturno”, lê-se numa velha tradução francesa do
I '• Irlplii I rita. '" Para os espíritos que se fixam nas esferas su-
blliues, ale mesmo Saturno é um pai benfeitor.
Ni >n meios cultos, o crédito de Ficino foi considerável. Em
111» 111r, de um século, o seu D e Triplici vita foi editado 26 vezes,
i das quais na França, sem contar as traduções italianas, france-
i i alemas.-IH " Cornelius Agrippa, que aliou curiosamente Pirro-
•11.um e Platonismo,' foi um dos leitores de Ficino e retomou a
ld> i i de que.os gênios são melancólicos que conseguiram captar
nu IIu m o poder de Saturno. Furor m elancholicus significa então
fitou illrlntts. Entretanto, Ficino tinha atribuído esse “frenesi” so-
hn tudo aos intelectuais, principais utilizadores do espírito intui-
m o (meus), Em compensação, ele tinha deixado sob o governo
di luplter a razão discursiva ( ratio ) que se desenvolve na ética e
ii i n, a< >, e sob o de Marte ou cio Sol a imaginatio que habita ar-
ii .1 e artesãos. Cornelias Agrippa amplia a noção de fu r o r me­
i *i

lón* holláis e declara que a inspiração saturnina pode estimular


• 111 *. (acuidades e, portanto, suscitar três espécies de gênios: os
lili oi *1*>n, teólogos e profetas têm um excedente de mens ; os cien-

' 'M, I IC’IN, M. D e Triplici vita, III, cap. 22-24. Utilizei a trad. francesa de
‘ .*i I.o Pèbvre de la Borderie, 1581 (na B.N.).
1 Ibid., livro III, cap. 22, p. 172^.
,’HO. Para esta exposição eu sigo PANOFSKY. The L ife... ofD ürer, notada-
mente p. 169. AGRIPPA, C. D e O ccultaphilosophia, ed. de 1 5 3 1 ,1, cap. LX,
|i /H-80. No ms. de 1510 (Bibl. univ. de Wiirzbourg) — 1* versão da obra
III, cap. XXXI-XXXII. Cf. também KLIBANSKY..., R. Saturn..., p. 241-276.
Resenha desta obra por KLEIN, R. no M ercare de Frunce, 1964, p. 588-594.
I l< >I;I;MANN, K. “Diirers Melancolia I”, em Kimst ais Bedeutungstrãger. Ge-
denkschrifi ftir Günter Bandmann, 1979, p. 251-277 e ANZELEWSKY, F.
I Viren Vic et ocuvre. Frtbourg: Office du Livre, 1980.
(islas e cheles de lisiado têm abundancia de nitlo\ os pintores, ai -
quitetos, escultores, ele,, sao ricamente providos de lni(ii>lniilh>
Dentro desse espidió, disseram de Rafael que ele era "melancO
lico como todos os homens de semelhante mérito”/"1
E. Panofsky mostrou de maneira convincente que a cuín
mática e célebre gravura de Dürei; Melencolki l de 1SI \m só si
compreende graças a Ficino relido por Agrippa. () / que segur
M elencolia poderia ser a primeira letra do adjetivo inidpjniilirti
Saturno devia governar a Geometria. Esta última, figurada pelo
grande personagem alado, representa na realidade o con|lin(o
das artes que utilizam a medida. Daí a presença ao lado déla do
martelo e dos pregos do carpinteiro, da plaina do marceneiro, da
escada do pedreiro, do cadinho do ourives e do poliedro do
perspectivista. A arte do desenho é personalizada pelo (>tilh> que
se aplica a esculpir. Diversos elementos saturninos chamam a
atenção - o cometa no horizonte; o cão e o morcego, animal!
melancólicos tradicionais; as chaves e a bolsa, porque Saluriii|
pode dar poder e riqueza, mas ele é considerado a\ árenlo, Alem
disso, a coroa de plantas que a Geometria tem na cabeça e <•qua
draclo mágico de Júpiter cujos números somados resultam sem
pre 34, que sao todos elementos mágicos para combater as r\en
tuais influencias malignas de Saturno. A composição, apesai da
ampulheta, dá uma impressão de imobilidade: o fiel da bal uu i
é horizontal, o badalo do sino não se mexe. E o silencio da me»
ditaçào acentuado pelo ar pensativo da Geometria, com a < ilu
ça apoiada sobre a mão. Finalmente, um sentimento de fia< avio
se desprende da obra. A o putto, cujos rabiscos intensos signllli a
talvez a habilidade manual, opõe-se o pensamento, .1 com eitttii
lizaçào que se procura num esforço inquieto. Frailea e (emití
acham-se separadas. O rosto da Geometria está velado de tom
bra. Seus olhos escrutam um inacessível horizonte. A nn dii,i. ,io
é ao mesmo tempo a honra e o tormento do gênio l F.tni >1 l \
graças à chave saturnina,/ logicamente aproximou da gmvtil t til
Dürer o Pensieroso de Michelangfelo na capela Medieis d< I I* m n
ça. À composição “aberta” da estatua de juliano opóe se a « oitti
posição “fechada” da de Lourenço - Eourenço II, diK|iie de isla 281

281. Citado em PANOFSKY, E.; SAXt„ Fr. D tiras “M elancolía /". p ti


282. O D e fr ip l ic i vita foi conhecido na Alemanha desde o llm do xu nlo 11
c o padrinho de Dürer publicou em 1497 a corrcspoiulíiu i.i de l a loo. I-, |j
BANSKY..., R. Saturn,.., p. 277.

im
un 11 l i l‘M. Juliano e o extroverlldi», 11 príncipe magnánimo vol-
i din i itii.1 .1 açào, segurando uin cetro. I.ourenço, o introvertido,
........nu ao contrário a melancolía meditativa, Sen rosto está ve-
I id*i di Mimbra com o o da Geometria de Dürer. O indicador da
ni i" i mi(líenla aplicado sobre a boca significa o silencio da refle-
. 1.1 i i i i >i<ivelo apóia-se sobre um cofre fechado, enfeitado com
ilion ego, que simboliza a parcimônia saturnina.283
ricino, Agrippa, Dürer e Michelangelo contribuíram para
•ibu lima moda da melancolia' Montaigne que declara: “Eu sou
i Imm mi iK Isentos dessa paixão la tristeza], e nao a amo nem a es-
lliiii' , li tdavia constata que o mundo “se pôs a honrá-la de favor
|iiiiib iil,u Cnm ela eles revestem a sabedoria, a virtude, a cons-
|i tu l,i tolo e monstruoso ornamento”.284 Esse esnobismo grassa
p iilli ni,ii inenle na Inglaterra de Burton. Foi de bom tom para o
i un u la/er se passar por melancólico: ora ele posava de amo-
»i mi * li sido, ora desferia sátiras contra contemporáneos conside-
•nliKi ,rni la lentos nem virtudes.283Jacques, em Com o gostais, é
um Iti iiti lepresentante da “doença elisabetana”, ele que deseja
,nuil a melancolia de uma canção como urna raposa suga
hviim , luz o elogio cía loücura, condena a vaidade humana e
pliii lama que a vida é um drama em sete idades, ao fim do qual
, >-li i se ,i ser criança, “sem memória, sem dentes, sem olhos, sem
í,i , li i, iem nada”.287 Quando o interrogam sobre a melancolia, ele
n |" a a le: "|l '.la| c filha de minhas diversas lembranças de viagens
i M11 In ((üenle ruminação sempre me cobre a alma de um humor
111 i• "" l;,le e um daqueles malcontent travellers que percorre-
i mi ii mundo e aprenderam a misantropia e o amor do país na-
i il I Mi llellay desse ponto de vista é seu primo irmão.
<> nome de Du Bellay impõe-se aqui tanto mais que ele
di nvolveu seus sentimentos melancólicos na Itália. A penínsu-
I I ii< sse sentido, desempenhou um papel duplo. Ela valorizou a
meliiiu iilla a doença dos grandes espíritos - e, ao mesmo tem-
l"' .iglu como repulsor em razão dos vícios que os viajantes - in-

•HV PANOFSKY, E. Essais d ’iconologie, p. 293-296.


,’IH. Essais, 1, cap. II (“De la tristesse”): I, p. 33.
'HV Cf. I1AMBOROUGH, J. B. The little W orld o f M an. Londres: 1952,
|, II),'. ( T. também BABB, L. The E lizabethan M alady.
.MU), C.omme il vousplaira, II, V, Pléiade, II, p. 39.
.*H/. Ibid., II, VII, p. 46.
.*HH. Ibid,, IV, I, p. 74.
gloses principalmente ptsnsuvam encontrar nela. Ida lol tuna ci
cola de misantropia. Voltava-se dela desiludido,2"" mas (endit
aprendido um comportamento vantajoso, Sobro a difusão da na
lancolia na sua época, Burton ó formal:

Essa doença, efccreve ele, ó "tilo livqi'iente cm husmos día


como observa Mercuríalis, “ela acontece tito Ircqücntemenle, allí
ma Du Lorens, em nossos miseráveis tempos” que raros sáo tiqilti
les que não sentem seu ardor. Montaltus, Melanchlon o onlion i.iii
da mesma opinião. Júlio César Claudinus a chama do "a loiili di
todas as. outras doenças” e a declara “tão comum em nossa opui a
de demência que apenas uma pessoa em mil está livro dela.....

Mais adiante, Burton esclarece melhor o nível social qtu ola


particularmente atinge quando observa: "Essa cruel doem i
grassa atualmente em quase toda a Europa entre nossas possoaH
de qualidade”.-91

Na literatura inglesa da época elisabetana o dos prlmcliii*


Stuarts,21922
0
2
9
8 4os melancólicos são tão numerosos que foi p o s s í v e l t |,e,
3
9
sificá-los em categorias: a) Os que sofrem por sua superloi Idad*
incompreendida e procuram a solidão: por exemplo, o Meltith bu
líe Kníght de S. Rowland. b) Qs celerados melancólicos, piopeu
sos ao crime e à vingança: como Aarào em Titus AndrouU u\ de
Shakespeare: “Saturno domina seus desejos... o ressentimento
está em [seu] coração, a morte está em [sua] mão, o sangue e ti
vingança fermentam na sua cabeça”.29- c) Os melancólicos cfnli nu
que são tolerados e que, às vezes, divertem. Eles sao hoiiesh»M|
pessimistas, misántropos e desiludidos. Jaccjues em Como gov/f/d
e o Tímon de Atenas de Shakespeare entram nesta categoria di
Os intelectuais melancólicos longamente descritos por Huilón
ele era um deles - que se descobrem facilmente na rua pm u ii
ar sofredor, suas roupas pretas e seus gestos desajeitará>s Idt i tia
balham demais com a cabeça, são pobres e mal nutrirlos."" e) ( n

289. BABB, L. The Elizabethan M alady. p. 74.


290. BURTON, R. T heA natom y.., I, p. 120.
291. Ibid., II, p. 70. SIMON, P. R. Robert Burton..., p. 164-16*).
292. BABB, L. The Elizabethan Ma,lady..., p. 76-101.
293. TitwAndrotiicus, II, 3 (ed. Pléiatlc: 11, p. 398).
294. BURTON, R. The Anatom y,.., I, p, 3<>S- 333 {tnisevies oj .uhobtr\)

: i: m
mm liiiii tMIrus iimorosos aos quais Huilón consagra ires seções cio
mi li li Hui parlo,1"' incluindo aqui os cluiuonlos. Na literatura d i­
tai u lana, a melancolia está mullo mais ligada ao amor cloque es-
i n i mies A influência italiana tom algo a ver com isso. Mas é
pu i ht •,n rosconlar o peso das explicações médicas. Em princípio,
i pulsan amorosa é forte sobretudo nos temperamentos sangüí-
iii os, i mm(iials dependem pelo menos parcialmente de Vênus. Mas
liuimires quentes o secos provenientes, por exemplo, da com-
i ti tan da Hilo negra rio baço podem também provocar impulsóos
. M'lli as Meques l'errancl, na suá obra consagrada à “doença do
iiuní" t |(iI.D, ensina que existe “alimentos quentes, excitantes,
II mil» uins c melancólicos”.297 í) Enfim, os “melancólicos religio-
n ■ que lum direito a uma seção especial no livro de Burton. A
11it I mi olla religiosa compreende tocios os casos em que a cloen-
■a m is *iiia.s causas ou seiis sintomas - ou ambos ao mesmo tem-
I.......... . ligada a religião. Ela se manifesta por penitências e mor-
uli. a nos Imoderadas, visões, temor excessivo do julgamento do
1*1 lis. I It
As dimensões e o sucesso do livro de Burton e o número
d ii ninas eruditas, então consagradas à melancolia,298 provam
qiii •la eslava na moda, sem dúvida, mas, ao mesmo tempo, que
i 11 •ui mais do que urna moda. A propensão à tristeza nos meios
i ulins n.in foi somente urna pose. Ela nutriu-se da filosofia neo-
p| th mii a que, a exemplo do contemptus m undi eclesiástico, cle-
p 11 i lava .sistematicamente o mundo presente e aspirava a um
Mills i asi i purificado. Ficino situou no próprio centro de sua Theo-
/.s'/,/ /i/dlonlcfi esta constatação reveladora (que se integra num
p,u igr.ilo consagrado ã ação da “bile negra” sobre a razão):

I airante o longo tempo em que este espirito sublime [o nosso]


viví* num corpo inferior, nossa inteligencia é, por assim dizer, sa-
i udlda de um lado e do outro, em cima e em baixo, por uma in­
quietude perpetua, e não cessa de dormir e delirar, e todos os
movimentos, todas as ações e paixões, dos mortais nada mais são
riu que vertigens de doentes, sonhos de pessoas adormecidas,

m . Il.i.l. III, p. 310-311.


,*%. BABB, L. The Elizabethan M alady..., p. 157.
'*)/. ITRRAND, J. D e la m aladie d'amour, ou m élancholie érotique, 1612.
|iu ques Fcrrand era um médico de Agen.
»‘>H. BURTON, R. The Anatomy..., III, p. 311-432.
cldíl'Io.N d e lllscn m lli»s. I 111ipilU••• lililí.I l.l/.lo, p u r l. in lo , d e rli.lllltll
n o s s a viela " o s o n h o ele u n ía s o m b r a " . " "

De maneira mais ampla, será um .sentimento superll» lül


este receio diante da fuga do tempo que é comum ás danças ma
cabras, aos triunfos da Morte, ás mais belas poesias cie Kon.said •
a numerosos sonetos de Shakespeare?

Tu verás no espelho declinar tua beleza


E teu tempo precioso fugir no mostrador volúvel.
As rugas que um espelho sincero mostrará
No sepulcro aberto farão que tu penses.

Esses-poucos versos do soneto 77 de Shakespeare e-ilao


aqui apenas para lembrar que existem muitos outros desse lem
na obra do grande dramaturgo.2 300
9
A melancolia da época é melhor compreendida quando
explicada por seus constituintes. A impotência em face d<> lemptJ
que foge, a morte onipresente, o mundo invertido, a hosillld nli
da Fortuna, a tirania das estrelas, etc., sào alguns dos seus allmeii
tos e que nos levam àquele estranho diagnóstico, tantas ve/e4
apresentado de Ficino a Calderón: á vida é um sonho, <> magín
trado Fierre de Lancre, ao mesmo tempo humanista e demnuôln
go, reuniu num vivo resumo a vertigem e a confusão que < pt
rimentavá ante a fragilidade dos seres e das coisas: "() passado e
um sonho, o futuro, uma nuvem, o presente, vento"'"1 e ele via
um “vento furioso de inconstância" abater “as folhas, as Unten i
òs frutos das plantas da humanidade”.302
Um livro inteiro não seria demais para agrupar todas as lu
dicações que revelam na elite européia cia Renascença uma n al
tendência à tristeza. Com uma rara audácia, Dürer représenla a
si m esm ocom o Cristo flagelado e torturado, “o homem da dti

299. FICIN, M. Théologieplatonicienne, tradução R. Marcd. t v , l’ui hl I


les Lettfes, 1964-1970. Aqui, II, p. 272-273 (Livro XIV, cap. VII)
300. Notadamente òs sonetos 12, 15-16, 19, 56,60, 6.1-òS, 7.1 /«|, '<< • I
também em Le Viol de Lucrèce as inventivas contra o Tempo e a <><ailtln
301. LANCRE, P. de. Tablean de Ttnconstance et imtabiliiéde toutex ebom, INI1
p. 100. Agradeço ¡mensamente a M. Jcan Lhérété por ter inc rnvl nln >m ui»
nuscrito o seu artigo “Portrait d’un juge. Pierrc de Laiurc. l>e fangoliM Imim
que à Pordre classique. As citações de R dc Lancre figuram nrar >titulo
302. Ibid., p. 42.
i i I '' bu IkMlay com põe uní dll.n«*i.mu* Uinw nlo do de
• /•< oído, no (|iial declara: "I,u mereço que me chamem / O es
ii.it o ile (oda desgraça” c ele acusa o "céu rigoroso” que sub-
iin i* ti seu nascimento “Ao indomável poder / D e um astro tito
Mili Ib ' 1 Saturno, é claro. Mesmo romantismo nesta confissão
d» i atunes, viajante involuntário ao Extremo-Oriente: “Quando,
11•indo da sepultura materna, eu vi a luz do dia, imediata
m* mi. a Influencia fatal dos astros me dominou. A liberdade a
|ii* •n tinha direito, eles me recusaram. Mil vezes o destino me
Mi'. im.i i ii melhor e, assim mesmo, eu segui o pior”.303 O selva-
M » mi i \i. .lento Agrippa d ’Aubigné proclama: “Eu procuro os de-
»i*;i t- •, ,ci rochas perdidas / As florestas sem caminho, os carva-
ii. i 11 •' >•li. vid os".^ “E Mathurin Régnier confessa desde os trin-
I i nu i. mas ele morreu antes dos quarenta: ‘Meus belos dias
m ui iloimaram-sc em noite / E meu coração ferido de pesares /
n i ... ipeca mais que a sepultura’.”307Todas essas declarações lei
m p Mi i ausar piedade supõem uni público (letrado) suscetível
. 1. ■"inp.irlllhar e que se tinha deixado conquistar - parcialmen
i. pi Ia admiração para com o temperamento melancólico, apa
i. Iglo d. almas excepcionais. Dürer representou os quatro tem
I •• i ino ntos por apóstolos, e São João, nessa composição, tor
M.ii .i a encarnação do “melancólico”. Num plano ainda mais
ubllmc, o mesmo Dürer e seus imitadores (Marcaritonio Rai-
mundl) llguraram Cristo exausto e coroado de-espinhos, senta-
. ......... bir uma pedra, com a cabeça apoiada na mão, na atitude
llpli amente saturnina do pensieroso.m
Mas essa admiração pela melancolia permaneceu limitada,
coexistiu com uma desconfiança muito mais antiga e
..................................I I ii u ,

pntluuilu em relação a uma compleição pouco desejável. As co-

'II' HRfiME, Kunsthalle. A respeito da melancolia nos meios cultos cf,


IM)l ISt^Uli, J. L a Peinture..., p. 215-224.
'li I I )l,l IM'1.1 AY, J. CEuvres poétiques. Ed. H. Chamard, IV, Paris: 1934,
p, 92 c 106.
( AMOUS, L. de. Obras completas. H. Cidade, Lisboa, 1946: II, p. 295.
'Oi.. IVAUBIGNÉ, A. LePrintemps, Estâncias, I, ed. Desornoy, Genève, s.d.
OI/, KI'.CNIER, M. CEuvres completes, ed. J. Plattard, Paris, Belles Lemes,
I ')'>■». "IWsics spirituelles stances”, p. 221.
'(III. |UAN, 1c Bon, vulgo rHétròpolitain (um médico), Adages etproverbes
A Solou..., livro II, n. 741; livro IV, n. 64. Este livro (1576) é dedicado a
UmiNilid. Agradeço a Daniel Rivière por ter me indicado estes provérbios, as-
■iini como o seguinte.
notações da melancolia permaneceram majorliaiiamenie |n |«»io(I
vas. Hasta abrir as coletâneas de proverbios do .sáculo l(> I Ias dl*
zem: “Melancolia torna o sadio doente e faz o doente moin
“Estar em processo ou em melancolia é um enterro em vida", otl
ainda: “Fuja de melancolia, tristeza e loucura". No seu '/m/m/u Jti
aparição dos espíritos { l600), o franciscano Noel Talllepled laia
sem indulgência dos “melancólicos e insensatos.,. salurnlni m i |UM
ruminam e forjam várias quimeras”.510Sefn dúvida, Saturno eia o
patrono dos homens de gênio, mas permaneceu ao mesmo tem
po o astro de “sombrias chamas”, às vezes assimilado ao h m p o
devorador, e continuou sendo a sinistra divindade con-.ldi i.ida
responsável pela taciturnidade, pela velhice, enfcrmldadt ■ lM
digência. Num desenho cie Baldung Grien de 151b, co n seo .iriifl
no Albertina de Viena, ele aparece como um velho magro e de*
cabelado cujo olhar misántropo se perde ao longe. IconogialM e
astrologia continuaram a apresentar seus aspectos nefastos e setl*
“filhos” desfavorecidos: mendigos ou criminosos, operarios agtb
colas, faxineiros ou coveiros. A Renascença neoplaiónlca, nohl
Panofsky, “que acaba por resultar numa identificação da nielan
colia saturnina com o gênio, nào pode abalar a crença populai
que via em Saturno o mais maligno dos planetas".511
Mas é preciso ir mais longe do que essa afirmação 51 Mn|
que é muitas vezes no nível da cultura mais erudita que Naliiimi
conservou suas características inquietantes. Velho slnlslro, ,ib Ijii
do de perna de pau, ele foi representado como castrado poi |n
piter e/ou devorando uma criança - cenas evocadas por M ni< n
, Van Heemskérk (M elancholici) e retomadas mais tarde pm Mu
bens e Goya.515 A gravura de Heemskerk (século 10) - um arihM
que tinha vivido em Roma - é particularmente reveladt »im d .......
bigüidade de Saturno nas representações mentais da elite ••
Deus, armado do alfanje do Tempo e devorando a perna d.........

309. R ecudí de sentences notables, d icti et dictòns comniu/h , Am. n I u.li


n. 46r°, esta advertência está inferida entre diversas outras contra a pi* |.m
ça, o orgulho, os processos, o ódio, o vinho e o “sexo feminino",
310. Rouen, 1600. Ed. consultada, 1616, p. 19-27.
311'. PANOFSKY, E. Essais d'iconologie, p. 113.
312. Por sinal corrigida em KLIBANSKY..., R. Satnrn,.., no qual o piopiin |
Panofsky colaborou, p. 277-279.
313. PANOFSKY, E. Essais d'iconologie, p. 113, Para tudo o que vem a icguli mi
mc retiró a reproduções dc gravuras gentilmente indicadas por Saia M uiIimsi
( ¡ricen.

: i: ih
i" I" i<ni pin "filhos" ao mesmo lempo geómetras e enforcados,
i a|iinii lios r esic o p i a d o s .llm humanista alemao como Gonrad
• .lio leiusou a reabilitação neoplíitónlca. Nascido sob o signo
d* .m im o, ele se* queixou de um planeta que lhe “havia trazido
11Ml*in malefícios" e continuou a considerá-lo como um agente de
dt mui patrono de homens tristes, de lavradores e de monges
i to .|ii,il era preciso suplicar para que deixasse na aljava suas
II. i Ii.im mortíferas".’1' O gravador francês Tilomas de Leu figura
(i IU Itiih i»//( <> (por volta de 1600) sob os duplos traços de uma
ttiulla i suplicante e de um homem adormecido com o sono agi-
Ittdo « o ileflne na legenda com o um ser “ansioso e sombrio" e
i|Ui tem sempre medo. Kle deixa escorrer cie sua negra boca um
ytíllenlo furor" produzido “pela massa de sua bile negra”. Mes­
mo n,i ll.ill.i, onde começou a reabilitação de Saturno, persistiu a
di iiiullança em relação a um astro que só podia produzir ge­
ni... .< . i seu "veneno” fosse temperado por outras influências es-
li I in . , enquanto os artistas italianizantes não deixavam de còn-
liiin n esse inquietante diagnóstico. Uma gravura de Leon Davent
•li , ........ hiles Komain assimila a Melancolia a uma jovem mulher
li* .i mdo. ( )ulra de Jacques Androuet clu Cerceau, segundo Gui-
le Iiih . Porta (dito Salviati), a simboliza por uma mulher cloloro-
Min ule pensativa acima da qual se lê a legenda seguinte: “Eu te
Io i \un i para tomar cuidado com ela [a Melancolia] se quiseres le-
y.ii uma vida alegre”.317 .
() i >lhar desconfiado sobre a melancolia explica-se também
Iii a uma confusão mantida frequentemente na época da Renas-
II d....... nlre vicio e doença. Para os moralistas - e eles são então
iiiiuhmosos , razão e paixões se opõem. Charron, no seu-trata­
do I Ki Sabedoria , alinha a tristeza ao lado do ciúme, dá cruelda-
. 1. . do temor. Ele a acusa de ser uma “paixão covarde, baixa e
ii.i mi. que "eslióla o rosto..., desseca os ossos..., amargura nos-
i vida e envenena todas as nossas ações”. Ele chega até a decla-
i i l.i a mais desagradável, prejudicial e injusta paixão”. É preci-
ii. ,i|Hender, portanto, a “odiá-la e fugir dela com toda fnossa] for-

II<1. Reprodução em KLIBANSKY..., R. Saturn..., fig. 52.


U > ( 'I. Ibid. c CELTIS, Conrad. Libri amonan , Nuremberg, 1502, f 05IX verso
0 IO .IO .

Ub. KI.IbANSKY:.., R. Saturn..., p. 278.


II /. Reproduções dessas gravuras encontram-se no gabinete das estampas
•l.i IVN.
ça"AIMl.emnc, embora médico, la/ da melancolía urna das puní
çòcs que I)>eus envía a os herédeos que se afastam «.lele,'1"
Cumulo do azar: a melancolia é herdeira das condenações
monásticas contra a acidia,'-" aquela "extincao de voz" da alma,
aquele torpor espiritual que espreita prioritariamente os ascetas,
mas por extensão tocio cristão que venh¿i a desanimar durante a
difícil luta pela salvação. Ao longo de toda a Idade Média, as de­
finições teológicas cía acidia coincidiram com as descrições un
clicás da melancolia. Teodulfo de Orléans, contemporáneo di
Carlos Magno, clizia de Tristitia: “Ela é carregada ora de sono, oía
de pesados silencios. Ela caminha roncando; cala-sé murmuran­
do... Ela dorme de olhos abertos. Silenciosa, ela se imagina hilan
cío muito”, etc.33
0
2212
9
18 4Mugues de Saint-Víctor clava como compañía I
3
ros da Tristeza “o desespero, o rancor, o torpor, o temor, a ai i
dia, as queixas e a pusilanimidade”, definindo o "rancor” como
“um esgotamento e uma corrupção das forças cía alma e do coi
po proveniente da hile negra ou de uma excessiva preguiça".'" A
tristeza era então comum à preguiça e à melancolia, como ates
tam os versos do canto VII do Inferno ele Dante. Os decidlos! que
estavam “tristes” “apesar do sol alegre” estão agora confinados na
"lama escura” de onde não sairão mais.'2' A preguiça predlspi>e a
melancolia. "Sempre vereis o preguiçoso lento e melancólico", lé
se no Rom ance do Mcmdovio .'2‘ Em 1489, o carmelita IlatthM
Spagnuoll, cognominado o Mantuano, compõe um poema inlilu
lado Piscid'so sohro <is cdlanddades do tempo, onde faz uma mii
preendchle apresentação de um "monstro" chamado "Preguiça"

i l•> aqui a mãe dos tormentos, incapaz da mínima atividade,


Inapta a cumprira mínima tarefa: Preguiça, nutrida entre as nuil

318. Cl 1ARRON, P. De la Sagesse, I, cap. XXXI c III, cap. XXXIX. I d. | Kl i


C.HON, Choix de moralistafmnçais, Paris, 1836, p. 59-61 c p. 28-1 283,
3 19. 1T.MNU, L. De ¡Jabirú et comtituúone corporis, Anvcrs, I 561, ( amuulii ¡
a trnd. irai. Delia complessione d d corpo humano, Vcnisc, 136*1, p. 113.
320. Ver mais adiante p. 255-264.
321. Texto em PASCAL, C Poesia,latina m ediando, <'atañe, 1907, p, l mi i i
KI.IBIANSKY..., R. Saturn..., p. 78.
322. Patr, L a t „ C I.XXVI, col. lOOOs. KÜBLANSKY..., R. Sa tu rn ..,, ibld,
323. DANTE. (Jòivres complites, traduçíío A. Pé/ard, Pifiado, 1963, hn/o\
cap. VII, v. 115-124. p. 924 925.
324. I )l IIMN, |. (1302 1374), I e Román de Mándeme ou les mdnncolics \m l.i
condition de Ih im m e,cap. XXIX (prÉgnlçosos). B.N, ms Y//61 liv-4".
ImmIK'li;i.s tlt* M cm u M.lhltt cm .1 1 i.u 1.1 < mcsir.i cm neurastenia
ilin lus), Sentada mais afastada, min os (ditos cravados no chao,
a lesta lían/.ida com um ar malvado, pulida, descabellada, ela coça.
mm uma unha recurva a cabera chela de piolhos. Seu rosto está
su|o, suas mãos Imundas, de sua barba úmida escorre baba, de
seu na rí/, pinga um eterno catarro, Ela é raquítica: dostas curva­
das e peito fundo; sob seu torso estreito, uma barriga que pare-
1 e um odre, como se sofresse de hidropsia; pernas franzinas, joe­

lhos salientes, mas pés inchados que retardam sua marcha, arti-
1 tilaçucs atacadas por uma gota maligna... ^

Com tocia evidência, esse “monstro” é temível porque en-


in ndi.i uma tristeza paralisante. Essa trágica evocação da Pregui-
1 |»t rs<xuigcm solitária, “os olhos cravados no chao, a testa fran
ida1', írmele á iconografía clássica da Melancolia. Inversamente,
• th nd,trios e gravuras diversas do fim do século 15 e do início
•l>> I<1. not,idamente na Alemanha, simbolizam o “temperamento
mel mmllco" por uma mulher que parou de fiar e por um homem
qiK dorme, sentado á uma mesa, com a cabeça repousando so
bu 1 braços cruzados.326 '
A ciência da época, com efeito, não deixou de fornecer
hum ( atiçao, pelo menos parcial, à icléia ele que acidia e melan-
•1illa •,(■ Imbricam uma na outra. Laurent Joubert afirma que a lua
iqiir governa em princípio os temperamentos fleumáticos) en-
gt ndra o mal caduco e “certa espécie de loucura chamada me-
11m ( »lla"d" Burton resume o debate instaurado sobre esse assun­
to 1 k ele enumera uma série cie autores, a com eçar por Galea-
110, (|iie excluem a possibilidade para o fleuma de engendrar a
mali l la melancólica”, ele cita vários outros (Cardan, Melâncton,
1. 1 s.to da opinião contrária. Melâncton principalmente qualifi-
•a de <islnict aquela variedade de melancolia pesada e bestial en-
gi lidiada pela degenerescencia do fleuma. Desde a Idade Mc

325. Mustie reduces. Anthologie de lap oésie latine dans lE urope de la Renaissan-
¡e. Textos escolhidos apresentados e traduzidos por LAURENS, P; BALA
VOINE, Cl., 2 V . , Leyde, Brill, 1975. Aqui, I, p. 93-95.
326. KL1BANSKY..., R., Saturn..., gr. 89-90. Para as relações entre melanco­
lia c acidia cf. também LYONS, B.G. Volees o f Melancholy. Studies in literary
Treatments o f M elancholy in Renaissance England. Londres: Routledge e Kegan
Paul, 1971. p. 6, 63, 87-90 e 127.
327. JOUBERT, L. Secondepartie des erreurspopulaires et propos vulgaires ton-
chant la m édecine..., Ia cd. 1578. Id. consultada, Lyon, 1601, p. 352-354.

'M 1
dia, com deito, o a.sno era regularmente citado para •dp.nllI* ai a
preguiça,A-H A esse título, ele figura na Iconología"' de < e*uipl
Ripa. Lemne talvez esteja pensando no asno quando d. u«vt |
“melancolia fria" que atinge "aquele tipo de pessoas que ul
miriham lentamente", “dolentes” e "de cabeça baixa" " Itiniou
por sua vez, pensa como Melfmcton3-31 que um excesso de MtJftfl
é nefasto aos melancólicos:

... Em diversos casos, dormir pode fazer mais mal dti •|MtÉ
ibem, naquela melancolia Reumática, bestial, lila e pn mui,,, i
de que fala Melâncton, que só sonha com água e u pn i , |i
cessar. Quando ela é superabundante, çla torna pesad...........
píritos e os sentidos, enche a cabeça de grossos luimon% ptu
voca vapores, reumatismos, c uma grande acumulai .n ■ dt
crementos no cérebro e outras partes."'

t E Burton acrescenta que dormir durante o cila, c om o mu


tômago muito sobrecarregado, provocará “sonhos lerilfh uuli i $
dará origem à angústia.
A confusão entre melancolia e acidia refletiu se na piodu
ção artística e literária. Foi posSível identificar em Mc/cn< olla 11b>
Dürer diversos detalhes tirados das representações medlt val i ,
acidia533 e mostrar que o artista tinha sido tributário de uma p in ­
tura cie Giovanni Bellini representando Acedia sob a forma de
uma sonhadora sentada sobre um barco à deriva. I)entro d .. m>
mo espírito, o tão melancólico Hamlet censura em sl mesmo mm
lentidão - suá preguiça - em vingar o pai. Ele se qnullli, i i
“Pierrô lunático”, “falhando à causa que deveria defendei3289014

328. Cf. mais adiante p. 267. TERVÀRENT, (i. do. A t t r i b u t s e l »|Wv/< i ■<imi
l'ar,t profane, 1450-1500, Genève, Droz, 2 v., 1958-1964, 1, col '8
329. Na Iconologie cf as figurações da “Pigricia”.
330. LEMNE, L. Delia complessione..., p. 116.
331. Ele se refere ao I.ibrr de anim a (1540) dc Mélanduhon (v, XIII ifn /Vi
Melanchtonh opera tjuae xupemml omnia, cd. Cl. E. llictsdutrldei, 11 «li,
1834-1840).
332. BURTON, R. T beA n aioiu y..., I, p. 249.
333. TERVÀRENT, (1, dc. l.es h d g m es de l'art: 1'art suvant, l\uUi PMfti
p. 13-20. I.YONS, B. <1. Volees,,., p, 6 c 163.
334. llanda, principa Interne II, Pilludo, p, 048 049; III, i, p i.iiii,
IYONS, ( i, II, Voltee . p. 88 89.
Vi'iim a época IVeqttontemenle ligou ucídla c melancolia';.
\i ni que u.s moralistas puderam aeresecnlar esta última à lLs-
n ida Im iu I í Ion pecados capitais. V id o e doença achavam-se
4h Implli ado.s numa culpabilizaçáo global: daí a idéia de que
ft a ......... . a fragilidade física para induzir ao pecado. lile-se
imii na alma pelos pontos fracos do organismo. Entorpeci-
lllii t nisliva sao então.armadilhas alo diabo. Santa Teresa o
pIli i i I llámenle, lila nao ignora que a melancolia é urna doen-
11111 mili|uga" a razão e que “aquelas las religiosas] que sao
lingid i ' poi el.i nao são mais culpadas por suas extravagancias
............. loncos". Mas, ela sabe também que “o demonio utili-
I i Imi noel para tentar conquistar certas pessoas”. Ele sedn-
n> o intervalos de lucidez dos pacientes. É urna de suas “ter-
i ifllmunluis" e "a alma está [então] no maior perigo, salvo
i indo nao lia mais vestigio ele razão”.33’ Então, as religiosas ten­
ia pi la melancolia deverão estar ocupadas aó máxima. “O
Unii ii médio e impor-lhes funções que não lhes deixem o
i i di sonhar.,, li preciso então deixar-lhes pouco tempo
mi i onn ao, mesmo em período normal...; também elas jejua
H m tu...... . lieqíientemente que suas irmãs”.336
11iii io, Igualmente, viu na melancolia uma artimanha de­
lir uii ii i I r '.(■ nos seus Propos de table:

I >Hl.r> ,is tristezas, epidemias e melancolías vêm de Satã... Por-


i |ii. |)rus nao entristece, não amedronta, não mata: ele é um
I irii*i di >. vivos, Então ele enviou o seu Filho único a fim cie que
I» i 0 , 1 n ms viver por lile, que morreu a fim de tornar-se o vence-
•loi d.i Morte, li por isso que a Escritura diz: “Sede'alegres e ple-
iii o ile confiança".337

•)’t monges disseram com razãò: “O humor melancólico é um


lonlio preparado pelo diabo”.338

I utre .is tentações da neurastenia diabólica, Lutero contava tam-


Iii ui os sonhos maus e perturbadores. E como defesa contra todas
i ■li umas dc melancolia e|p-recomendava a oração, os cânticos re­

na I )’AVII ,A, THÉRÈSE Le Livre des fondations, p. 46-48.


t w». Ibid.. p. 50.
U I.HTI I liR. Werke, Ed. Weimar: Tischreden, I, n. 832."
\ W). Iliiil., lischreden, I, n. 122.
Ilglosos, num também um e.stlli j ik* vkla i*<|iillil >r,ult >e não asiotii i i
"Que aquele <|iu* r atormentado pela tristeza, o desespero ou ni|
tros desgostos o (cni um verme na consciência se apegue prlmelm
à confiança na Palavra divina, depois, que beba e coma, e ........... .
a companhia e a conversação de pessoas piedosas e cristas"

Que o clemônio utiliza a alavanca da tristeza para pnvaiíi


as almas frágeis é o que afirma Ilamlet interrogándo se sobh i
aparição do rei çlefunto: “O espectro ... pode bem ser o dlaln • i
e, certo talvez da minha fraqueza e da minha melancolia, abusan
do de seu poder sobre os fantasmas, ele me ilude a fim de nu
levar à clanação”.3 940 A medicina da época dá razão a llamh t 1 I
3
doutor Lemne vincula resolutamente as doenças aos Imn..... |
Mas explica que “os demônios”, isto é, os espíritos aéreos, que
têm grande conhecimento e ciência das coisas..., não apenas se
colocam entre os humores, mas também incitam os enlendlm» u
tos cios homens a todas as maldades ... Assim nós lcm< >s qm Nalã
exasperou a melancolia de Saúl, e o incitou a assassinatos, liai
ções e várias coisas bem infelizes."1
Na, época em que culmina o medo das bruxas não nos sur­
preendamos que um vínculo tenha sido estabelecido peli >s d< um
nólogos entre melancolia e bruxaria. Dizia-se: "In Stilum l />iirh{
su n td iabo lici”: A. Chastel, que cita essa fórmula, nota que não i"i
por acaso que Jérôme Bosch pôs uma cena de bruxaria c< >m< ><pm
dro à sua Tentação de Santo Antonio (de I.isboa). Porque Nnnlii
Antonio realizava “em todos os pontos a figura do saturnino im
Igreja”342e atesta para nós a incorporação, efetiva na ép< >c,i,«l.i ,i« i
dia pela melancolia, com esta abrindo a porta ao diabo, ( lerlamun
te aqueles que defendem (as bruxas) - Champier, Wler, (iodei
mann - explicam, de acordo com a medicina tradicional qin i
abundância de humor negro perturba o cérebro com visões lan-
tásticas e que as abominações que elas confessam por ocaxlãi 1 doft
processos são muitas vezes o triste resultado de seu estado <1 « n
tio. Mas eles concordam com os inquisidores de l<xIa es|ns |i paia
ensinar que “o diabo, inimigo fino, astuto c cauteloso, Indu/ Ia« ll

339. Ibid. Cf. KOEPPLIN, D.; FALK.T. Lukas Cnmach, 2 v., Snni^iM
Birknaüer Veiiag, 1974; aqui: II p. 292.
340. Hamlet, II, 2, p, 649.
341. LEMNE, L. Les Secrrts tnhttcles..., p, 254-255.
342. CHASTEL, A. “La T c n t n t i o n . p . 146.
m. ni* m sexo feminino, o c|i 1.11 <■ Im uusianle em razao tic sua
t Hiii|»|rk.io, di* pouca crença, malicioso, lihpacienle, melancólico
I* ii i nao poder comandar setis alelo,s", l.ssa fórmula é de Wier.'1'
(n'iiiii HI*, e Sprcnger, a gen le,s ailvo.s e significativos da repressão,
uto demasiado ortodoxos para crer que os astros constrangem os
I h iiim iio s "de maneira necessária e suficiente". Ao contrario, eles
ni miem o llvre arbitrio. Mas sabem também que “as variações nas
li ipi. il^oes do corpo fazem muito para a variação das afeições e
muid, da alma". Assim, os melancólicos terão tendência a ser
i nuil. ni< e "se alguém sonha com terra, é um sinal de preclis-
pt. ih i.. melancólica V "0 jogo demoníaco consiste então em mer-
i•.i111 ii mais profundamente nessa paixão o indivíduo já inclinado
i . Ia'" e que, deslizando sobre sua inclinação natural, pode ser
ni i .lado para os mais inquietantes devaneios.
Item mais tarde, Goya, herdeiro cie uma longa tradição,
liitlmll ara esse perigo do sonho na gravura intiulada “El sueño
Io 1, 1 . 0 1 1 /troduce monstruos”: o personagem que cochila, com
i . ai ii . a sobre os braços cruzados, avista em sonho morcegos
ii .1 .•.li.. is " O devaneio melancólico, caminho dò inferno: é sem
i., ida Mque quis ensinar Lucas Cranach, o Velho, nos três qua
111. di 1528, 1532 e 1533 que ele consagrou à Melancolia'1" e
i|in .a. i Interpretados g^ralmente com o manifestos anti-humanis-
i i i . le.sposlas de espírito luterano à reabilitação do gênio satur-
1 11 . i. idada por Dürer em Melencolia I. Duas, sobretudo, dessas
1 ii

i .1a a , de <arnach - as de 1528 e 1532 - retomam claramente ele-


n u ....... presentes na gravura de Dürer: a mulher pensativa, a es-
i' i i ..*. Instrumentos, o cão - animal saturnino - e os meninos
d> nuudos, Mas elas sublinham os aspectos negativos do tenipe-
i mu ni.i melancólico. As duas (tristes) heroínas recusam-se a to-
ii mis linios e nas bebidas colocados ao lado delas: entretanto

1*1,1, WIHR, J. Histoires, disputes et discours des iliusions et impostures des diti-
/•/,, , cil. Paris, 1 8 8 5 ,1, cap. VI, p. 300. Cf. PRÉAUD, M. “De Melencolia
I > (Ia mdancolie diabolique)" em Cahiers de Fontenay, n. 9-10 (março 1978,
/Vi Mythes), p. 129. ^
1*1*1. 1NST1TORIS, H.; SPRENGER, J. Le M aneou... (trad. A Danet), p. 182.
145. Ibid., p. 279.
146. Ibid.. p. 76.
!•! . Pnfaud, M. “De Melencolia...”, p. 124.
148. < I. KOEPPLIN, D.; FALK, T. Lukas Cranach, I, p. 269-270 e 292, pl. 13
, |.r, 1,13. KLIBANSKY..., R Saturn..., p. 383-386, pl. 128-130.
- dizia Lulero é preciso beber e comer para lular contra a m u
rasión la. Urna parece totalmente’ ociosa; a oulra, quase lunilla
cíente, tálha um hasláo <|iie lembra o das l'elllcelras. Km t ai la mu i
das duas composições (com o também na terceira), avista se mi
céu a.o alto e ã esquerda uma cavalgada diabólica da qual p mi
cipam personagens nus e alguns bodes. Nenhuma duvida pm
conseguinte sobre o risco mortal que se corre ao entregai »»* a
melancolia. Está em jogo a salvação eterna.'1"
Embora a palavra melancólico náo seja proniliti lada,
pode-se perguntar se o anônimo que publica em ISH7 a ///v/tifflj
do doutor Fausto não quis, dentro de um espírito próximo do dp
Cranach, estigmatizar as am bições intelectuais demasiado alias
dos saturninos, dos quais Ficino e Dürer tinham feito . . i . .
Fausto é descrito com o “superior a todos por sua habllldai li p na
a disputa” e é doutor em teologia. Ele tem “cabeça orgulhosa r
o apelidaram de “especulador”. Ele é também astrólogo, malriiM
tico e médico. O que pode haver de surpreendente se, loman
do as asas da águia, ele. quis sondar os últimos fundamentou no
céu e sobre a terra”? Não é esse “furor melancólico" que o pet
deu levando-o a assinar um pacto com o diabo?':" Semelhiltg a <u
píementar com os outros saturninos: ao termo dos „M anos dM
triunfos terrestres que lhe concedeu Mefistóléles, ele e tomado
por um sombrio desesperô: “Ó esperança desesperada a qual
devo renunciar”,3,1 exclama ele. Ele julga que é "tarde dcmalA 1
para voltar a Deus.
A ligação entiJe melancolia e desespero era habitual na
época da Renascença. A Alta Idade Média, instruída pela /Spi /tu
nmcbíe de Prudêncio, tinha associado sobretudo cólera «• di i a
pero.3'3 Mas essa relação, sem desaparecer, passou ao xcglltulff
plano desde séculos 13-14, atrás da junção, psIeologlcamenK
mais verossímil, entre acedia ou tristilia e despendió, <> mili idlij3495012

349. As três obras são intituladas Melencolie. Elas sc encontram o npw lita
ment: a de 1528 na col. Crawford, a de 1532 no Museu reul ile ( «q•>uli itt!o
e a de 1533 numa col. particular dc La Hayc.
350. LHistoirt du docteuf Faust (1587). Tradução notas o ^londriu pni I I
FÍiBVRE, J. Paris, Bclles Lcttres, 1970, notadnmciuc p. 72 73.
351. Ibid., p. 172.
352. Ibid., p, 160 c 179.
35,3. CL SCHMITT, J.-Cl. "Lc Suicide au Moycn Age", cm Ann,d>\ / S t ,
jan./fev. 1976, p, 14-16.

:: I <.
t mi i.........nxeqüôncla c Ilustração cl;i Impenllèiu ia IInal - o suicida
• i (> a 1 i indultado a dunnçao por ter desesperado do perdão dl
i lili i lu| sobretudo apresentado aos fiéis como exemplo a não
n i ■» )Mil»lo através dos fins lamentáveis de Judas e de Pilatos.55'
■ 6*1ul ii encontramos a contaminação entre acidia e melancolia,
t mpi u11<■a forma última desta é a vontade de se matar. Nos sé-
■itli i ■ In I ((liando se queria contar um caso marcante de extre-
(II i nu Iam olla, evoca-se, na esteira de Plutarco, “as filhas dos mi­
li ii.. |i|iie| <atiram num tal devaneio, que todas procuravam a
ui i ilan de se enforcar e tudo que se fizesse para impedi-las ou
il iiii i I is dessa loucura, era totalmente inútil”.355
\ associação entre melancolia e desespero é evidente
lllim i giat ma de Dürer c|ue data provavelmente de 1514/1515. Ela
i\ poiiaiilo, i (uase contemporânea de Melencoha I e corrige sensi-
%i■I•iii nlt o elogio do gênio saturnino que sobressai desta última.
•• / *. . ■ ./'iTíido e o seu título.-550 Dürer pôs em contraste aqui um
li ui' ni gi i/,mdo de boa saúde coin quatro outros personagens
n ........ iilativos dos diferentes temperamentos, mas todos sofren-
I i de um excesso de humor melancólico: como se este pudesse
t Mmluii.it ;.i enm os outros humores e desequilibrar qualquer ou
a i le\ ando-o ao limite patológico de si mesmo. O melan
IIViu .. ao <|iiadrado” - ele o é ao mesmo tempo por natureza e
poi . li ii ili, a tem um rosto desvairado que surge da sombra como'
um i iiia-u ara; o melancólico “sangüíneo” torna-se, por excesso de
lili iiid idi , um idiota careteiro; a melancólica “fleumática” é uma
.....11n i nua mergulhada no sono; enfim, o melancólico “colérico”
a ii i a .I mesmo e se arranca os cabelos: daí o título da gravura.
M,r. para os demonólogos a passagem da melancolia para
ii di ii .pero fatal opera-se através da “tacitumidade”. O demônio
m u i '» fi.ue frequentemente impedir que seus adeptos levados à
pihai» lalem e confessem. Se necessário, ele ós maltrata para que
p. imuneçam mudos.'5’ O drama da impenitência final é represen-
IuiIm m i centro desse silêncio inumano que os inquisidores de

V i |, I b i d , , p . 1 6 .

IVi, "| c*mc d’un médecin anonyme à( M. Philibert de La Mane, conseiller au


p.iilrinciif dc Dijon” (1647), em MANDROU, R Possession..., p. 212; MON­
TAl< INI1'., Usuais, II, cap. III: I, p. 424 e R BURTON, TheAnatomy..., I, p. 439,
rviKani esse caso memorável.
V.í». ( 'I. I'ANOFSKY, E. The Life... o f Dürer, p. 194-195 e gr. 242.
V. ( ;f, por exemplo em MANDROU, R. Possession..., p. 119.

347
profl.v.an procuram <pu I>r.ti Se rios conseguem, nem por h sn
tudo está gunlto, porque, iD in o constatam o.s autOfes do M a ilrlo
das fe it¡c rin is, estas,

após a confissão de seus crimes sob tortura, fa/ein ludo paia ilial
a própria vida enfouando-se; essa é uma verdade (|tie soluessal
de nossa experiência prática. Assim, sempre depois da confhrtflii
dos crimes, guardas licavam postados todo o tempo, atentos a
isso. E quando, ou às vezes, por negligência dos guardas, « iam eu
'•contradas enforcadas com fios ou com seus véus Isabla se| que >i i
por instigação do inimigo a fim de que elas não obtivessem o pri
dão pela contrição e pela confissão sacramental.'

Assim, para os demonólogos, mas mais especialmente pitia


os homens da Igreja, contrição final e desespero agudo qu< Icm
ao suicídio excluem-se totalmente. Estamos aqui diante d..........
seqüência mais dramática da melancolia: a recusa da conllvuio
que é uma recusa de Deus e um “homicídio da alma", segundo
a expressão de Santo Agostinho retomada por Burlón.'"' Este nl
timo, como a maioria de seus contemporáneos, amalgama pn|
sua vez mal físico e mal moral. Citando São Gregorio, ele alinha
que o demônio tenta cada um em função de seu temperamenli»|
se alguém é cie compleição alegre, ele convidará a fornlc.içao V»
algum outro é “pensativo e triste”, ele se esforçará para leva f ■ i
“um fim desesperado”. Neste último caso, o humor melam oll m
é o “banho do diabo”, com paração clássica que Burlón, pudre ah
glicano, retoma por sua conta .m Ele diz ainda que

“a cólera negra” é um ajudante, uma isca Ida qual o demônio >■


serve] para atrair os melancólicos, de modo que mullo* MllorPi
fazem da melancolia uma causa ordinária e um sintoma d o •l«
sespero. Porque os atrabiliários, em razão das más dlspi >slt, •.. s d»
seu temperamento, são particularmente inclinados a dcseoiilliin
ça, ao medo, ao sofrimento, ao erro e amplificam suas Imagina
ções absurdas c suas falsas apreensões.3589601

358. Cf. INSiiTORIS, 11.: SPRIÍNR HíR, j. I.r M urta n..., p. *» '' MU
359. Ibid., p. .* \.
360. BURTON. U. T hrA naiom y,, II!, p. 394.
361. Ibtii oípoNkno oni lltlil,, p. 395 39'/,

:M h
( m ám enle, afirma Huilón, apóN nutras autoridades, "me
I un <ilia e desespero, embora freqCienlemente ligados, nao se en-
••miiam sempre reunidos’’. A melancolía, por si só, pode, em
mal t th mu caso, ser “urna causa suficiente dos terrores da cons-
■irm la" Almas demasiado inquietas chegam a duvidar do perdão
le Iik i i alé a se perguntar se Deus existe. Um excesso de medi-
i H lo sobre os l’ins últimos e sobre a eternidade do inferno aca­
to |ii ii perturbar o espirito. De novo melancolia e acidia sé reco­
tín ni uma a outra. Jejuns abusivos, uma solidão prolongada, re­
tí- m ti -i exaustivas sobre o além podem levar à vertigem fatal. Kn-
ii" Huilón apresenta a questão de saber se todos os suicidas.são
ob|i h de danaçào com o Judas e Pilatos. Sua resposta é comple-
- i ni.r- afinal benevolente: para aqueles que morreram tão obs-
1111 idamente c tão rapidamente que não puderam pedir perdão,
di se temer o pior”; para aqueles que levaram álgum tempo
Pmi morrer, a caridade convida a crer que tiveram tempo de se
un pender, Enfim, se alguém tirou a própria vida “por loucura ou
un I i i i h olla... levando em conta que cometeu esse gesto menos
P - n sua própria vontade do que pela força da doença, devemos
iiii< i pret.ir pelo lado melhor, à maneira dos turcos que créem que
- MIn*, os loucos e dementes vão diretamente para o céu”.30- Es
paniii'i.i pirueta final que revela o progresso da noção de “cir
- miMiitiHias atenuantes”, graças à medicina, no interior de um dis-
•ni so mui premissas culpabilizantes.
As questões e as hesitações de Burton remetem a urna
- ........i que se interroga intensamente sobre o suicidio. Montaigne
■i msagra um capítulo inteiro dos Ensaios (livro II, cap. III, “Cos-
iiiiin da lllia de Cea") a essa “doença particular, e que não se vê
- ui nenhuma criatura, de se .-odiar e desdenhar” e a esses “humo-
n , la ni asíleos e sem discurso que incitaram não somente homens
pailli tila res, mas povos a se perder” (alusão aos milésios). Pode-
ii i-ntao perguntar sé, na época da Renascença, os suicidios se
i- ii n.ii.mi mais numerosos que antes. Erasmo parece acreditar nis-
-I - <lomo vemos hoje tantas pessoas voltar a mão contra si mes-
iii i*i, escreve ele no coloquio Funus, o que seria então se a mor-
i- nao tivesse nada de horrível?”365 A Alemanha do séculó 16 te-

V.2. Ibid., p. 408.


Vi C ( litado em MANDROU, R. Introduction à la Frunce moderne. Paris; Al­
bín Miclicl, 1961. p. 328. O colóquio Funus encontra-se em Opera om nid D.
ihUm i, cd Amstcrdam, 1969s.: I, 3.

: hd
riu sklo atingida em varias ocasiões por epldcmlas'localN «l«• mil
c kl i o s , Mus i >s leslcmunlu >s ,i rs se res| >rHt) sd<) ilrmu,sl.u It> aili
jetivos” puru i|iir sr possa (Irar conclusões pertinentes Para > . ••
período, ful(um estatísticas serias que nos esclareceríam r nao li i
dúvida de que faltarão sempre.'''’’ Considerando as Inlerdlçótvi re
ligiosas e o castigo público infligido ao corpo do suicida, pndt
mos; pensar que os mortos voluntários eram muito raros ( dl» tl*
los aleatórios sobre os Bilis o f mortality londrinos (I (>,¡‘> Iniiin
chegam a 0,1% de mortes por suicídio (11,3 nu Inglaleira dt‘
1958).566 A palavra “suicídio”, utilizada de início em latim pi li
casuistas dó século 17, só aparece em francês em I7.V1,'" lm
compensação,, tudo leva a crer que a Renascença Interessou se
pelo suicídio mais que a Idade Média.
Um estudo feito por Jacques Le Goff e sua equipe sobir o
vocabulário de um coletânea de exempla , o Alpbahelum m ina
tionum (compilação terminada ao redor de 1308- 131 revclit
que a desesperado só preocupava modestamente os pn gudor»
desse tempo. Éssa palavra só figura em 11 exempla c so m >ui
(empatada com vários outras) na vigésima oitava posição, n»
quanto a classificação por frequência põe em clestu(|ue as d. pn
lavras seguintes: Dem õn (77 exempla), M u lie r (61), Mois i |'M
Temptado (41), Deceptio (38), Timor (35), Freíalas I ‘relado ( U i
Contemptus (33), Oratio ( 33), Penitenda (33). Ora, o exem/>huii
era um artigo cultural “produzido em série e maciçamente t •nr,u
mido”. Ele revela, portanto, os temas principais de uma InluilWl
aculturação réligiosa e moral.
Inversamente, o desespero atrai realmente a atenção dtl
cultura dirigente no início dos tempos modernos, Isso é Veidíl
deiro para literatura, desde a A m in ta jie 1’a.sso até I l.unlel (qtii?
lamenta que o Cristianismo proíba o suicídio), mas l,imin ui
para as “Artes de bem morrer” que, graças à imprensa, i onlte36457*

364. MANDROU, R. Inti-oduction, p. 328.


365. Cf. a esse respeito o excelente artigo de SCHMÍTT, ). < I. I > Siili |i|i
au Moyen Age”, p. 5 e a discussão apresentada por PAUI.IN, It, /'// i <<#»«•
à la plum e. Le suicide dans la littémture tingláis? d? la R m ihuinte, (IVU)
1625). Lyon: I.TIcrmès, 1977. |>. 151 152,.
366. PAULIN, B. Dtt O niietiu..., p. 151,
367. Ibid., p. 4. BAYI;, I’, A, /.? Suicide «t tti Montl, Paris, 1922, p SMM
-v .368. B.N. Niles ,i< t|. I.it. / 91, Agradeço iniensaniciHe ,i |iiu|iicn I . <,..ll ntll
ter nie apresentado os lesiiliailnN ilr'Ma peMiuisa,

:tno
ii ni um miccsso con.sldorávd de meados do século IS ;ilc* os
i...... i " Ora, eles comporiam scmprc mu -capítulo consa-
iii Hlii a lula, no momento da agonía, contra a ten tatito de de-
• i|Hi,ii di i perdáo divino. “Nada ofende inais. a’ Deus do que o
di i iprin", lê-,se numa edição, provavelmente alema, da Ars
nm ilcudl (por volta de 1470).370
<> suicidio é um dos corolarios possíveis da desesperado.
Mas piule lia ver outros motivos. Assim, vemos que, na época da
I*. u,en enea, ele é objeto de uma reabilitação parcial. Montaigne,
di |" i|s de ler escrito que “todos os inconvenientes não valem que
ni qiieiia morrer para evitá-los”, consagra o final do sen capítulo
ni llar 11 "l iostume da ilha de Cea” a fazer o elogio daquelas e da­
qui I. s que tiram a própria vida por grandeza de alma.371 Porque
m n ii.i enlao de coragem e não ele desespero. Exemplos cristãos,
i i|{ ins e o heroísmo estoico confortam e apóiam essa distinção.
110 su i poema O Rapto de Lite reda, Shakespeare se junta a Mon
I tij ni |>.11. i louvar aquela que “em seu seio... agasalha, para aga
ilh ii mui alma, um aço criminoso”, fugindo assim do “seu cala
Iii ti a, o Imundo”/ - Lucrecia é alias objeto de admiração unânime
Ion |i irailos europeus no fim do século 16 e com eço do 17.
I v;e período, com efeito, interroga-se sobre o suicidio. Ñas
111 is t pistolas moráis { 1598), Honoré d’Urfé despreza a morte vo­
lt mi tila dos covardes, mas declara que “o ato que Catão cometeu
•i -I ii. si mesmo ao matar-se, sendo Catão, não foi crueldade, mas
i magein e magnanimidade”.373 Charron repete Montaigne. Como
i uh ultimo, ele pensa que ninguém deve matar-se “por uma pe-
qm ii , i t ii a.slâo”, mas exalta aqueles que o fizeram por uma razão
gl mde e p o d e r o s a . j u $ t a e legítima”, por exemplo, “para nào
iv * i ,i mercê e pela graça de quem eles abominavam”.371 Juste
I Ipsi , Imbuídi >de estoicismo, redige um tratado infelizmente per­
dido, o Th rascas, para defender a legitimidade dos suicídios co-
i i|....... I )uvergier de Hauranne - o futuro Saint-Cyran - dá como

l<i‘), ( i. GHARTIER, R. “Les Arts de mourir, 1450-1600” em Anuales


I S ( :. jan./fev. 1976, p. 51-75.
' '(), ( I, TENENTI, A. La Vie..., notadamente p. 104-105.
v i . MONTAIGNE, Essais, II, cap. III: I, p. 429-433.
V.\ SI IAKESPEARE, Pléiade, I, p. 78.
i ' l .d. ilc 1619, I, p. 145. Em toda esta exposição eu utilizo muito a obra
i|. PAI U.IN, B. Du Couteau..., passim.
V l. <:i 1ARRON, P. D e la Sagesse, II, cap. XI, p. 190.
subtitulo ,i sim (¿UWtíh> fVrtí ( 1609) il explicadlo seguinte Mui*
é moslradi) em qual extremo, principalmente em lempo tle p(i#,
o indivíduo poderla ser obrigado ¡1 conservar a vida do prim Ipr
à custa da sua", Mills nitidamente ainda e mais tongamente, |ohn
Donne escreve em 1608 um tratado sobre o suicídio; o lllalhiithl
tos, baseado sobre umas duzentas "autoridades".' kle conii .ia
que todo suicídio provenha do desespero (ademais, nem lodo dti
sespero é pecado). Ide compara certos suicídios heroicos 0
martírios mais nobres e professa que, em certos casos, o hoim 111
diante da morte é “seu próprio imperador". "Aquele ctijn c 1MIM
ciência, na calma e na ausência de paixão, lhe assegura que 11 «1
saram nele as razões de se conservar pode presumir qut 1 |t*|
1= proibição de tirar a própria viciai igualmente cessou e e|c pud|
então fazer aquilo que de outro modo seria contrario .1 lei.....
O teatro da época, principalmente o da Inglaterra ellsulup
tana e.jacobita, faz eco a esse debate. Primeiro, ele dedil ou mil
espaço considerável ao suicídio. Contam-se tantas peçg.s 1uni» u
do um ou vários suicídios cie 1580 a 1600 quanto durante m , mu
primeiros anos do século,577 calculando-se que, de 1580 a I«»• I,
não menos de 116 personagens se matam efetivamente no pali 11
inglês (24 dos quais nas peças de Shakespeare); 107 outros leu
tam se matar (52 dos quais em Shakespeare).'7" Pntre essi 1
suicidio^ efetivados ou malogrados, há 90, ou seja, 40%, qm
apresentados com elogio (25 dos quais por Shakespeare), I7, qup
eles são motivados pelo âmor, pela honra ou pela castlda» l< 1
notável proporção revela uma reflexão coletiva .sobre a muile si|=
luntária que não é mais um assunto reservado. Mas e prec Iw •m 1
tizar imediatamente essa afirmação com várias considei.no" > I m
números absolutos, há mais suicídios no teatro jacoblla do qu
no teatro elisabetano - excluindo-se Shakespeare dessa t unlahl
lidade. Mas é que os jacobitas produzem mais que os ellsabelii
nos. De modo que o número médio de suicídios por |u\a 1 1
proporção de suicídios mortais baixam durante esse segundo pn
ríodo; por outro lado, o desespero com suas variantes iciui h<io3756*

375. PAUI.IN, B. D u C o u ta m ..., p, 106-121. Biathdfuttot ¿ a umiia^flo i|i


•« morte viólenla.
Biaiothartntos
376. DONNP, |. Bimlutihtios, The facsímile Tcxt Sociotv, New Yml», 1'Mtl,
p. 47.
377. i'AUI.IN, B. /)// C outam . ... p. 264.
37H, Ilritl,, n, V»S "i
i iimili supera doravante os oiiIi'on niollvos: amor, honra e cas-
||d id* Ao i |iK' se deve ;i c rescent a r, num plano mais geral, que a
niu i di I >onne náo pode exercer uma grande influência durante
« iida do autor porque permaneceu manuscrita, enquanto Juste
llp'u di miruin ele próprio o Víraseos que tinha escrito para cle-
• ndi i a legitimidade do suicidio: prudencia reveladora.
I Mlnlllvamente, a morte voluntaria por desespero perma-
.................. aleñada, Mas, por outro lado, ao termo deste estudo so-
|iii i melancolia, com o deixar de sublinhar a atração da Renas-
H 'ii. i agonizante pelo suicidio? O caso de Donne é esclarece-
Ihi II. la/ d elogio da morte heroica, mas ele próprio está su-
i ii ■ m de .animo: “Ru tenho freqüentemente urna grande incli-
iM. iu doentia, escreve ele no prefacio do Biathanatos... Cada
ti i pie uma aflição qualquer me assedia, parece-me que tenho
• i h.iM Mda minha prisão em minha própria mão e nenhum re-
... di. * . apresenta prontamente a meu coração a não ser minha
Iniipila eMpada,Vr,>
\ literatura da época e, mais particularmente, o teatro
p i........ ii ir,límente ter exercido nesse domínio um papel de
i ........ Io, ou melhor, de cathafsis. Os psiquiatras, com efeito,
iniMiliaiam que um escritor pode sublimar sua tentação ao sul-
. idln . 11.indo uma obra onde essa tentação tenha livre curso .m
c u que o Indiscutível interesse da época pelo suicídio não re-
i 11 111 hlsiorlador uma tristeza coletiva - pelo menos no pla­
no d,i i ulturn dirigente - que é importante esclarecer? Não se
ii ii. hi somente de uma moda, mas de um “mal-estar” mais pro­
fundo, de um desencantamento agudo associado a um olhar
p. ilmhia sobre o mundo. Garzoni afirma na sua descrição do
Ho ¡dial d o s... incuráveis-. “Nós vem os uma infinidade de lou-
.........Melancólicos”. B u r t o n é da mesma opinião no prefacio
do umi A u a to n iy... onde confunde intencionalmente medicina
. ........11. e traça sem indulgência o quadro de um universo
mdc nulo vai mal. Juntando-se a Sébastien Brant, Jérôm e
|lo . h e os censores do “mundo ao contrário”, ele não hesita
... di . I.ir.ii: som os todos melancólicos:

l '9, i .'irado cm Ibid, p. 119. DONNE, J. Biathanatos, p. 17-18.


ISO. Ibid., p. 592. DESHAIES, G. La Psychologie du suicide. Paris: PUF,
1947. p. 247.
VHI. GARZONI, T. ¿'H ospital..., p. 31.

3613
Qucm nño <• louco? pergunta ele, Quem esi;1 Isento 11«' melai»
eolia? Quem na<> e mais ou menos tocado por ela d»' mannlia
passageira ou permanente? ... Quem nao ó governado pela pal
xão, pela angústia, pelo desejo, pela Insatisfaço, pelo meilo e o*
sofrimentos?’10

A infelicidade existe porque existe o mal. l)m e otilm st»


explicam pelo pecado, do qual a melancolia é filha.

382. B U R T Q N , R. T h e À n u to r n y .... I. p. 3{M 0 ( l ) c m o c u u i N m il» ' Ui « I. il


parte 2
'A

falência da
redenção?
capítulo 6

a súmula do exame
de consciência

nina teologia do pecado


( >s cinco capítulos que acabamos de lcr colocaram-nos
di inli de uní lato de grande dimensão, geralmente subestimado:
i .........mio pessimista de nossa civilização no início da moder-
uldiidi A atração pelo macabro, o sentimento de'que o mundo
i \■II h i o va i ele mal a pior, e a convicção de que o homem é
li ipil foram vivenciaclos por urna parte ampla da elite eanarca-
i mt profundamente a cultura da época. No centro dessa “melan-
nlla", descobre-se a amarga certeza de que o homem é um
ei indo pecador. Daí a necessidade para nós, rium segundo mo-
....... i" de nossa pesquisa, de penetrar até mesmo no interior da
ili milIna do pecado.
Com o todos os outros temores estudados num volume ari-
I» iloi, o medo de si mesmo, que culmina na Europa no inicio
Ion lempos modernos, explica-se por uma longa •historia. O
• ii «II.mismo colocou o pecado no centro de sua teologia, coisa
ipil não tinham feito as religiões e as filosofias da antigüidade
..........romana. No Édipo em Colona, Sófocles põe na boca do in-
h Ir filho e assassino de Laio: “... Meus atos..., eu sou mais a ví-
ilina deles do que o responsável... Como seria eu crimihosp de
•oí ,k ai >? ( i<)lpearam-me, eu revidei... Mas cheguei a isso sem sa­
ína, ao passo que eles [os Deuses] premeditaram minha mor-
' Kelletindo em várias oportunidades sobre o problema da
•ñipa, l'laláo no Gorgias, no M enon e nas Leis — explica pela

I. (lü /ip eá Colorirte, tradução de R. Pignarre. Paris, Garnier, 1947, p. 268-269.

:ir>7
boca ele Sócrates que "ninguém c mau voluntariamente'' <> * ul
pado é um homem que se engana: "... Aqueles que <> Ignoiam
não desejam o mal... O objeto de seu desejo é urna misa qiltl
julgavam boa, embora fosse má: de modo que desejando •»oi
mal que não conhecem e que julgam ser bom, e o bem <pu it i
realidade eles desejam’’.2 Aristóteles, por sua ve/., apega ■«» a
uma noção imperfeita da liberdade e a uma concepção luipn 11
sa do dever, enquanto a culpa é para ele uní erro e urna liuilll
lidade, e não a violação de uma ordem divina e urna ofensa i m
relação a um Deus que ele concebe como impessoal.
Em compensação, o estoicismo operou essa retérén» la da
ação humana à ordena divina das coisas, que faltava u n Alistóla
les, e é por intermédio do estoicismo '(.notadamente graças ao />»•
Ófficiis de Cicero) que os termos gregos para designar o pe» id*
(d gap T Ía et ágapT riiia), correspondentes ao latlm (ira tilín •
peccatum , passaram para o uso geral. Para os estoicos, toda la
■Deus, a alma do mundo, não é um ser pessoal e, por oulro latín,
não existem graus na virtude e no vicio: todos os pec ados n,ii»
iguais. Mais próximas do Cristianismo eram as religiões <<>m mi»»
térios, florescentes no mundo greco-romano no próprio mmiieii
to em que se difundia a mensagem evangélica. Como esta iililiua,
elas insistiam sobre o pecado, mancha da alma e obslaeul» i ii ■*1
vação, mas dando maior ênfase à purificação ritual do que ao e||
tido moral dos atos humanos.3 Inversamente, o Cristianismo, *»*»»
guindo a esteira do judaísmo, fez do pecado uma oposição d.i
vontade do homem à vontade de um Deus pessoal npmicrin
que não se manifesta apenas por atos exteriores, mas (aml........ mii
pensamentos e sentimentos. Ele criou os termos p e ca ito rv />o i o
t)ix que não èxistiam no latim clássico e que assumiram piogi» ■<
sivamente uma importância extraordinária na nova civilização
No Antigo Testam ento/ o pecado de Atlâo e apu ■•> nl ido
com o uma desobediência voluntária do homem a um pre»»lio di
vino. Por causa dessa ruptura, cuja responsabilidade <abe ap« ii i**

l.M én on , tradução de. A. Croiset. Paris: Bellcs L.ettrcs, 192 Ç / ' ll1I' l (
BOUCHEZ, M. La Faute. Paris: Bordas, 1971. Notadameuic |», M"» 'M
3. Discussão sobre á questão em SIMON, M. La Ciri/isatlon de / 'AnlIiftilHim
le Chrístianisme. Paris-Grenoble: Arthaud, 1972. p. 8.3-94.
4 . 0 que vem a seguir cst;í de acordo com o Vocabulairc de llhhdo^h ÓA/itMff
(sob a dir. de X. LlfoN-DUFÓUR), Paris, <:crf, 1971, to l.l) t.» 94<> * / - •-»*»
naire de Thiologie eatboUque (£). I X Paris, Lctoirzcy, XII, 1933, »<i| I lu »,H
mi homem, o pecado entrou no iihiihl«»¡ doravante ele marco
i'"l,i .1 historia, c notadamente .1 de hiael. I ,ii* povo rebelde que
lili a,1 o bezerro de ouro e prefere .1 carne ao maná afasta-se
•1iiiMantcmente dos caminhos que Deus Ihe iraca. Os sucessivos
pmlrlas censuram suas iniquidades - violencias, adultérios, injus­
ta a\ mentiras, etc. - que “cavam um abismo” entre ele e Javé.
Ni i iiii miio tempo, eles lhes revelam as dimensões e à natureza *
pinlimda do pecado: ingratidão para com um pai muito amoro-
'■ ib, (11,7 ); infidelidade comparável à da esposa que se prostitui
- um qualquer um, indiferente ao amor inesgotável de seu espo-
■•1h V 12; Ez 16,23). Eles lhes indicam os caminhos da conver-
iiii confissão, cinza, expiação, fé - que lhe valerão o perdão.
I I- , lhe anunciam o Redentor, dispensador desse perdão.
o Novo Testamento não concecle ao pecado um espaço
mriii H que o Antigo. Jesus, o Servidor, veio entre os homens não
paia ' »•. justos, mas para os pecadores (Mc 2,17). Ele “redime” os
pi 1 idus, para grande escândalo dos fariseus. Ele conta a parábo-
II dn pai misericordioso que espreita cada dia na estrada o retor-
I" filho pródigo (Lc 15,1 ls.). São João diz de Cristo que ele
■1 m "(Irar o pecado do mundo” (Jo 1,29). Este último é recusa da
In/ 1|i • 3,19-20) e do amor <Mt 7,12). As obras de Satã e daque-
li 1 que lhe são subordinados são o homicídio, a mentira (Jo 8,44)
■ 11 ódio (Jo 3,20) - aquele ódio que levará à morte do Filho de
I «i iis (Jo 3,37). Mas essa morte, seguida de uma ressurreição, é a
\llmla sobre “o príncipe deste mundo” (Jo 12,31; 14,30; 16,33);
....... ¡ué Jesu s se fez “propiciação para nossos pecados” (ljo 2,22),
i- ele transmite o Espírito aos apóstolos a fim de que eles possam
irmli os pecados” (Jo 20,22s.).
Com São Paulo, a doutrina do pecado adquire um caráter
■ Imlurado: depois cio.pecado de Adão, o homem, independen
li menie cia redenção, está “vendido ao poder do petado”
l Mm l i) certamente ainda capaz de desejar o bem, mas não de
n ill m Io (Km 7,15-18), e necessariamente votado à morte eterna
i|iii r .1 "realização” do pecado (Rm 6,21-23; 7,24). Nas Epístolas
III s.iu Paulo, já sc encontram aquelas listas de pecados (deriva
•I 1 u m dúvida de listas estoicas) que inundarão o Ocidente na
c| 1111.1 da Imprensa, sendo os mais graves dentre eles, segundo o
i|iu ,|()|<>dos gentios, a idolatria, as desordens sexuais, as injusti-
• 1. uh lals e, mais ainda, a cobiça, que é apenas outra forma da
Idolatria (Rm 1,23-25; 7,7). Esta nossa pintura está assim tão for-
li um nte apoiada apenas para ressaltar por confronto a necessida-

:ir>j)
de e as dimensões da obra redentora de ('aisló, l’eeado oilglmu
e pecado pessoal tornam se parte integrante de um sistema da
salvação cuja outra peça é a justificação. Onde o pecado luí
abundante, a graça foi superabundante. O pecado de Adão pro
vocou e permitiu a redenção que triunfa sobre ele. Pela le < pelo
batismo, o homem se torna urna “nova criatura" (2Cor 5,1 ') me.
mo se, vivendo num éorpo mortal, ele recai as vezes sob o Im­
pério do pecado e “se curva a suas concupiscencias" (Km (>,li)
Por sua morte salvadora, Jesus foi p primeiro que passou d.i culi
dição carnal para a condição espiritual (Km 8,32). lile vencen .¡o
mesmo tempo a morte e o pecado, e abriu assim á humauld id»
o caminho da salvação eterna.
Mensagem dos textos bíblicos com sua insistência subn "
arrependimento, dificuldades e tensões no interior da lgre|a, dt .
de antes de Santo Agostinho, levam .a uma continua medita», .tu
cristã sobre o pecado, das quais basta lembrar aqui alguns poli
tosÁ O Pastor de Hermas, redigido epi Róma em meados do sé­
culo 2o, inquieta-se pela multiplicidade chapecados c|tie |a d. -,||
guram a Igreja: as dos apóstatas e dos traidores, dos Impostóte#,
dos querelantes, dos semicristãos cuja conduta desmente a le Ki
tomando o tom dos profetas de Israel, o autor lança um i aloman
apelo ao arrependimento. Tertuliano (f por volta de* 220), o lm
mem dos extremos e do rigorismo, insiste por sua vez em du.i#
obras de veemência crescente (o D e Poenitentia e o De 1‘iii/h llhi)
sobre a culpabilidade e a necessidade do arrependimento, No
gundo desses livros, marcado pelo montañismo, ele aflmut, toda
via, que a idolatria, a impudicicia e o homicídio constituem tica
pecados irremissíveis. Além disso, no DeSpectacults, ele evo» i o
salutar combate das virtudes contra os vicios: a Impúdica la ilplTU
bada pela Castidade, a Perfidia massacrada pela lioa l e, a « m. I
dade abatida pela Piedade; o Orgulho eclipsado pela I Iunilh I id»
Clemente de Alexandria (f por volta ele 216.) e sen dio tpu
lo Orígenes (f 252) lembram ambos aos cristãos tentad» >s a t iqtii
cer que o batismo não garante uma vida inocente c‘ qm•o pn tdn
é fruto de nossa liberdade. A partir do século i", os tratados o ibm
o pecado e a penitência se multiplicam, notada mente para respnn

5. Cf. notadamente D.T.C., I, verbetc “Angustia”, (col. 2.440 2,44J!| II, I)


verbete “Capital” (col, 1.688-1.692); XII, l, verbetes “IVclu?" (u»l, 1411 li *41
e “Pénitence” (col. 7 2 2 -1 .138).
6. ¿>c Spectaculis, cap. X X X IX : IVttr. Lm ., I, col. 733.
ilri ao.s noviuianos que noguvani qiialqiiei remissão possível dos
peí ,ulos cometidos depois tío IhUIhiiio, l.u i,nu lo (| 325), nas suas
h h llin io h’"' divinas, convida a colorai se na presença daquele que
i ni um día o soberano Juiz e c|ue ja e a irrec usável testemunha de
ia i'im),s atos mais secretos (Ju d exet tesiis tdem futuras). Mas ele ó
Itimbem aquele que, sozinho, pode remediar a nossa corrupção,
Manto Ambrosio (f 397) redige um tratado D e Poenitentia e Sáo
|i i io ( Irlsósiomo consagra nove homílias ao mesmo assunto, insis­
tindo sobre o inesgotável perdão divino. Seu contemporâneo es­
panhol, Prudencio (f por volta de 415), reelige um poema, a
/'\p honiacbíe, que vai fornecer à iconografía religiosa medieval
um dr scus temas favoritos: o combate das virtudes e dos vicios:7

lis aejui aquele que opõe a Castidade à Luxúria:

... A virgem Castidade... se apresenta na planície relvada,


pronta a combater; ela resplandece em sua magnífica armadura.
A l uxúria, filha de Sodoma, munida de tochas de seu país, a ata­
ra <• lhe lança ao rosto um tição de pinho recoberto de piche e
de enxofre inflamado... Mas sem se deixar amedrontar, a virgem
lere a golpes de pedra o braço da fúria ardente e os traços de
logo da sinistra jovem... [Uma vez desarmada a cortesa] a Casti-
dade apóia a espada'sobre sua garganta e a transpassa... etc.

Prudencio apresenta igualmente o Orgulho com o um fogo-


ii i guerreiro a cavalo que afronta com insolência as virtudes im­
passíveis. Mas a Fraude cavou no campo ele batalha uma fossa-
iimiiidllha na qual logo caem cavalo e cavaleiro. A Humildade só
a ni <|ue pegar a espada que lhe estende a Esperança e cortar a
•,il><\a do Orgulho.” Lembrando-se do texto de Prudencio, os es
i nitores romanos e góticos representarão com verve e vigor es
.rs i ombates alegóricos entre o Bem e o Mal.9
A ciencia do pecado adquire uma dimensão nova com
•i.inlo Agostinho, que doravante vai reinar como mestre sobre

/. MÁLE, E. LArt religieux du XIII' sih le en France. Paris: A. C olin, 1958.


p. 99-102. '
8. P R U D E N C E . Psychomachio, Col. Budé, 15111 trad. M . Lavaienne, 1963,
p, 52 c 57-61.
'). Cf, H O U L ET , J. Les Combáis des venus et des vices: lespsychomachies dans
/ ‘un. Paris: Nouvelles Editions Patines, 1969.

:mi
essa imensa materia, A teologia crista adotará sua celebre defini
çâo: “O pecado c toda ação, palavra <>u cupidez contra a b I eli i
na”.10 Ele é auersio a Deo e convenio tul creaturam , enquanto ••
arrependimento é a atitude inversa. () Hispo ele I lipona rcpn >u
ta o pecado, ora como uma ofensa à obra do Criador, ora ..........
uma injustiça que viola o soberano domínio de D eus s o l........
mundo e sobre o homem. Dessas duas maneiras, a desordem do
pecado é injúria a Deus.
De Santo Agostinho a Lutero e a Pascal, passando poi Nao
Gregório (f 604), ele também “um dos mestres na'clónela do pi
cado”, Hughes de Saint-Victor (f 1141), Abelardo (j II i I’l« m>
Lombarci (f 1164), os Padres do Concilio ele Tren to e os ne«) es
colásticos dos séculos ló e 17, a meditação crista nao cessou du
interrogar-se sobre o pecado, de precisar a sua dellnlçao e mcdlt
o seu alcance. Mas a Santo Tomás de Aquino cabe o mérito da
reflexão mais serena e mais ampla tentada na Idade Media •»«>1u»fi
essa questão. Ela ocupa uma parte notável da Sufna teoloi\h,i "
Além disso, o D e M aio é inteiramente consagrado ao mesmo a*
sunto. Santo Tomás esclarece a noção filosófica de pecado <poJ
.todo homem pode elaborar sem recorrer a Deus. Como o« lllo
sofos antigos, Santo Tomás pensa que a vontade só deseja o hi ui,
real ou aparente. Mas ele integra essa convicção d e n tro d .........
esquema cristão. O pecado é certamente contrário as regias da
razão.1- Mas a teologia descobre no pecado uma dimensão malí
ampla, já que ele se opõe à lei eterna, medida soberana e pilnieh
ra da ação humana. O “doutor angélico” é levado assim a em olí
trar e aprovar a definição de Santo Agostinho “o pecado d Ioda
ação, palavra ou cupidez contra a lei eterna”.1' Mas el......... lu|
que ela inclui também os pecados por omissão. Porque "i a ii|
pre para juntar dinheiro que o avarento saqueia os outros e mui
paga suas dívidas. Do mesmo modo, é para satisfazer sua guloi
N dice que o guloso come demais e não jejua quando c obllg ilO
rio”.1' A omissão culpada é, portanto, uma negação ligada a iiiih
afirmação má. O convite para interrogar-se sobre o pe< adu dtf10234

10. Contra Faustum, 1, XXII, cap. 27: Putr, Lat., XLII; col. ã IH
11. Na edição publicada por Desche depois Lc Ccrf, dois volume» mlin ' h
pecado” e três sobre “a penitência”.
12. Suma Teológica, I-IP, quest. 71, art. 2.
13. Ibid., qnest. 71, art. 6.
14. Ibid., qnest. 72, art. 6.
iiinlviilo, agora claramente definido, n a o tU;lx<>u e nao cessou
tic marcar a consciencia ocklenlal Santo Tomás esclarece por
i miro laclo, ampliando uma reflexão de Plerre Lombard, cpic tocio
alo mau 6 pior do que o vicio, sendo este apenas urna dlsposi*
<iin a la/er o mal, ao passo que o pecado marca a passagem da
pnicncla ao alo. liste último “predomina so b reo hábito tanto no
I» m como no mal”.1, Independentemente da desordem que in-
11*idu/ na criaçào, o pecado turva a alma que o comete, a qual
lii ide seu brilho e deixa de ser luminosa. Mas iríais do que isso,
c|i c desafio a Deus. Ele ceitamente deixa intacta'a dignidade di-
i lita Mas Isso nao depende mais da vontade do pecador que te-
ii i querido, se fosse possível, ofender ao seu Criador: daí o as­
pe» lo Infinito do pecado. “Todos os#pecados são contra Deus”.1"
A despeito dos esclarecimentos de Abelardo e ele Santo
luinás, os sermões e a iconografia continuaram a confundir fre­
quentemente pecados e vícios. Em compensação, os especialistas
d i teologia moral, esforçando-se no curso das épocas para cate-
M'Mi/ar os pecados, tentaram sucessivamente diferentes distin-
Li 'i pecados por excesso e por falta (uma diferenciação inspi-
i ida por Aristóteles); pecados carnais e pecados espirituais (São
• .h corlo); pecados de pensamento, de palavra e de ação (Tertu-
ll 11ii i, <Jrígenes, São Cipriano: distinção reutilizada por Santo Al­
lí' do, o ( irande, São Boaventura e Santo Tomás de Aquino); pe-
' idos para com Deus, para consigo mesmo e contra o próximo
il'lcnc Lombard), etc. Mas esses diferentes critérios de identifica-'
■ c i lntcgraram-se finalmente a dois grandes conjuntos - não ex-
•Ilativos dos anteriores - chamados para uma longa história: de
um lado, a lista dos pecados capitais; de outro lado, a oposição
i'iilic pecados mortais e pecados veniais.
A reflexão cristã, por sua vez, hesitou durante muito tem-
I " ' .obre o sentido da expressão “pecados capitais” - pecados
m ili iic.s ou pecados fontes de outro pecados? - e sobre o seu nú
ii" io, As Epístolas de São Paulo e de São João são pouco explí-
i lias sobre ambas as interrogações. O primeiro, em seqüêncla
i" Ia Irsiastico (10,15), .atribui uma gravidade especial à cupidez,
u i/ de todos os males” (lT m 6,10) verdadeira “idolatria”
" , v o, o segundo engloba tudo “o que vem do mundo” sob
i , 11cs rubricas: “Cobiça da carne, cobiça dos olhos e orgulho dá

' IS. Ibid., quest. 71, art. 3.


I(i. Ibid., quest. 72, art. 4.
riqueza" ClJo 2, 10). Em compensação, adivinha .se na anilla di
ciplina da Igreja, por exemplo, através da DUtachO e das ul na* 11>
Tertuliano, unía lista de pecados cuja remissão so se obtinha p*M
urna penitencia pública: idolatria, blasfêmia, homicidio, .idiiltérlfh
estupro, falso testemunho e fraude.1 Depois, Orígenes entlint •a
várias inclinações más que sao como os principie>s dt ••• peí ai lo*»
a cada uma delas é preposto um demônio particular. Ao nn mu
tempo, ele reserva a expressão “pecados capitais” para cerli 11 pe
cados intelectuais particularmente graves, tais como a lien Ul
Gom Évagro, o Pontico (f 399), monge do deserto cgi|......... UII
nições e listas tornam-se mais precisas. Com efeito, ele <mil ililll
za oito “espíritos de malícia” ou “pensamentos genéricos" mdlll
que engendram respectivamente a gulodice, a fornlcaçáo, a i mIiI*
ça ( avaritiq ), a tristeza, a cólera, o desánimo ou "acidia”, a VMIM
gloria e o orgulho.118 790
2Essa classificação pretende ser hieran|tiint
Ela indica em que ordem combater as más tendencias em 1'tlllL'Al
da resistência crescente que elas opõem à ação da vontade Mm,
por outro lado, gulodice e fornicação não constituem ..................
as primeiras tentações que monges deviam encontrai? NolciitiHH
ademais, a importância concedida à tristeza e ii ”at ídla" <|iu » j
preitam conjuntamente ascetas subnutridos. A lista dos p» i idnu
capitais, portanto, foi elaborada sobretudo por e para algumas al
mas cie elite que se tinham consagrado à mortificação, Assim 0
que vemos Cassiano (f por volta de 432), em intcnça<» d< >s h "
bitas, retomar por sua conta a enumeração dos oito vu los piim (fl
pais de Évagro.-0Com São João Clímaco (| por volta de h-lO), aba
de do Sinai e autor de uma Escala Santa , os vícios pi lncí 11
reduzidos a sete, encontrando-se confundidos orgulho c vanglo

17. La D idachê, cm QUÉRÉ, Fr. Les Peres apostoliejues, l\uiv '« ml I ''MM
p. 93-95. Adv. M arcionem , 1, IV, cap. 9: Patr. La/, II, col, V/S I )|»*f M
anteriormente que no fim de sua vida Tertuliano considciiiiil a lilnhiili, |
impudência e o homicídio como pecados irremissíveis.
18. In Levit., VIII, 10, 11: Patr., G r: XI, col. 502#-506\
19. Cf. D ictionnaire despiritualitéascéticpic et mystique. F.u is, Mcam lii n», I' '
col. 178. Sobre a história dos sete pecados capitais, cf. ZO< ¡KI I' U, <> / »,*• /, Nt
tüek von den sieben Hauptsünden, Munich, 1893; IM.OOMI II I I >, M Vt / Ajf
Seven Deadly Sins, Michigan Univ. Press, 1952; 2. cd., 1 % / <■ u-. nalullin ã»
Mme. Vincent-Cassy citados a seguir, notadamente a partir da nula ' 1 pin .im i
20. D e Coenobium institutis, I, IV, cap. 1: Patr, La/., XI .IX, tnl, 2(12* • *
tio, V, cap. 10, Patr. Lat„ ibid., col. 6 2 Is.
ilii 1 (,)ininto ¡i Silo Gregórlo, n Grande, <| hl)-i), do ,siiu;\ lora da
11..... o orgulho snporblfi com o sendo a "raiz de todo
uiiil" e .1 "rainha dos vícios", depols onumora os seto “vícios capl-
lilh que sao a vanglória, a inveja, a cólera, a tristeza, a cupidez,
i giilodlcc e a luxúria.22 Nessa lista, a Invcja-dúmé Faz a sua apa*
ili i" l’or outro lado, Sao Gregorio incorpora à tristeza a pregui-
■ i t •iplrltual (torpor circapraecepta). II nfim, para ele, existe urna
un sao psicológica, portanto unia filiação, entre os sete vicios
....... id' ni que ele lhes atribui. Daí por diante, as classificações de
I" ■ a li is ( apitais adquiriram direito de cidade no pensamento tço-
|i igli«• Isidoro de Sevilha (f 636) enumera os mesmos vícios que
Tio Gregorio, c bem verdade que numa ordem diferente, mas
ilillnilndo um lugar idêntico ao orgulho.23 Alcuino (f 804) prefe-
1- 1 - lassllicaçáo de Évagro e de Cassiano,24 mas Pferre Lombard
11 I Ih l ) volta à de São Gregorio25 que é também aquela sobre a
qu il trabalhou Santo Tqmás de Aquino.
Na sua enumeração, Santo Tomás de' Aquino, como São
|nan <ilímaco, junta numa coisa só orgulho e vangloria e coloca
n r un: 1 (abandono ou desprezo clõs bens espirituais) no lugar de
rJln , Sua lista é, portanto, a seguinte: vangloria, inveja, cólera,
i< luva, lristeza, gulodice e luxuria. Santo Tomás vincula as sete
^landes categorias de pecados aos fins procurados: seja a procu-
1 1 de bens aparentes mas não reais, seja a fuga de um mal apa-
n ule mas nao real.20Ademais, ele diverge de São Gregorio sobre
m i pontos. São Gregorio, exatamente como a Psychom achie cie
Cliidênclo, opunha os sete pecados aos sete dons do Espírito
Plinto Sao Tomás não mantém essa oposição, porque não se
Ih 1 a desviando-se da virtude, mas amando algum bem perecí-
' •I l’or outro lado, embora conserve a ordem proposta Por São
<m grtrlo, nem por isso estabelece uma passagem lógica cie uns
paia outros.2" línfim, enquanto para São Grçgório “capital” signl-
li* 1 "maior", para Santo Tomás, os sete pecados merecem ser

11 S u thparadisi, XXII: Patr. Gr., LXXXVIII, col. 948s.


' M oralium Libri, I, XXXI, cap. 45: Patr. L a t, LXXVI, col. 620s.
.M. D ifjerentiarum ... I. II, n. I6ls: Patr. Lat., IXXXIII, col. 95-98.
.' I. Líber dc virtiitibus et vitiis, cap. XXVIIs.: Pat. Lat., Cl, col. 632s.
Scntentiarum libri quatuor, I. II, dist. XLII: Patr. Lat., CXCII, col. 753-754.
2(), Suma teológica, I -II", quest. 84, art. 4.
27. Ibiil., quest. 71, art. 4; quest. 73, art. 1.
2H, Ibido quest. 72, art. 7.
chamados ‘‘capitais", sobretudo porque cada um deles é a tal/ •
O chefe de lila (capul) de outros pecados que dele derivam/'
Na época de Santo Tomás de Aquino, e principalmente
graças a ele, o setenario dos pecados capitais está enláo li ido
Esse número de poder excepcional mio podería surpreendei no
contexto medieval. São Gregorio tinha oposto os sele vícios anu
sete dons do Espírito Santo e os tinha comparado aos s e te p< *\••*»
de Canaà/0 Hugues de Saint-Victor explica em seguida qtu 1
é o número humano por excelência já que é composto de <|(M
tro, algarismo do corpo e de três, algarismo da alma. A vida Ittl
mana ela própria se divide entre sete épocas que corres|......li ||1
às sete virtudes; Estas combatem os sete vícios, os sele p< dldi
do Pater e os sete sacramentos (cuja lista se fecha no set tilo I ' >
exercendo a mesma função.2 3
0
912
3A literatura espiritual da Idadi i
dia utilizará doravante de todas as maneiras esse número de vir
tudes mágicas. Haverá as sete obras de misericórdia, os sete ml
mos da penitência, as sete horas canônicas, as sete parti •. do n
mamento espiritual, os sete sinais do nascimento de Grlslo, elt|
Alguns autores afirmarão que o sangue divino escorrendo da
sete chagas lava os sete pecados capitais. Uma xilografía do
culo 14 figurará o Crucificado, cujo sangue submerge sete peque
‘nos personagens colocados em torno da cruz e que slmlxil........
os pecados capitais. Dentro do mesmo espírito, uma pintura II i
menga de 1460, conservada no bispado de Teruel, representa Ma
ria rodeada dos mesmos sete pequenos personagens: as sete do»
res da Virgem apagam aqui os pecados capitais/’
A despeito da sorte atribuída a esse número mágico, a e¡r
cultura romana, e até mesmo a escultura gótica do século 1
mantêm um número par de vícios e de virtudes, listas tílllin t
jovens mulheres armadas de lança e de escudo que ameaçam " t i
abatem o ^ício que lhes é oposto - de oito, no máximo, na j
ca romana, passam a dez na catedral de Estrasburgo e a d< >/• ■m

29. Ibid., quest. 75, art. 4 e sobretudo quest. 84, art. 4, / V Alu/n, qu« «I H I f
30. H om iliarum in Ezechielem, libr. I: Patr. Lat., I.XXVI, col. 9.10,
31. Expositio m oralis in A bdiam : Patr. Lat, Cl.XXV, col. 400.
32. VINCENT-CASSY, M. L ’E nvie en Frunce du X III’ nu AT uA/c, uu .1,1. i
Paris IV, 1974, aqui p. 37-39. Cf. também do mesmo autor "I Tnvii <ui Mu
yen Age” em Afínales E.S.C., mar./abr, 1980, p. 2 5 3 -2 7 1. MÁI E, lt / ',le I*
ligteux en Frunce nu X III tild e, p. 44; e LArt re/igieux A hl fin du Muyen
Paris: A. Colín, 1925. p, 103.
\ml<’ir. e na Notrc-Damo de I’íM'Ih, lí tjiii* oh artistas apegavam-se
t ilmriila," Mas depois, tanto na arte como na literatura, se limi
lai.in ( ada v e/ mais ao número sete tanto para as virtudes como
paia ' vícios: indício de um impacto crescente da especulado
t «i olastica. Se no sombrio funil do inferno Dante não dispunha
•», círculos dos sofrimentos em função das indicações de Santo
lomas de Aquino - mas esse era talvez seu projeto primitivo
•ui ' ompensaçào os sete patamares sucessivos cio purgatório cor-
c tpondem aos pecados capitais por ordem decrescente de gra-
i Idade a medida que se sobe para o céu.

Santo Tomás também dirigiu sua reflexão sobre a pena de­


uda ao pccadó:

"Tudo o que se insurge contra a ordem das coisas, escreve ele


na Sum a teológica, deve esperar uma repressão da própria ordem,
por meio daquele que.é seu chefe.” Ora, "a natureza humana é
subordinada em primeiro lugàr à sua própria razão; em segundo
lugar, àqueles qué têm o governo exterior ao espiritual e ao tem-
poral, na cidade ou nà família; em terceiro lugar, àquele que rege
o universo”. O pecado perturba cada uma dessas três ordens: “Daí
.1 tripla pena em que incorre o pecador: uma vem dele mesmo -

o remorso; outra, dos homens; uma terceira, de Deus”.34

Nessa concepção, a pena do pecado não é a'reparação


ii|in pertence à penitência), mas a contrapartida da falta com e­
nda I Ia restabelece o triunfo da ordem perturbada pela desor-
dt ui A justiça de Deus quer que haja uma sanção do pecado,
••mil ivsia e para a vida culpada aquilo que o mérito é para a
\Ida virtuosa. Nesse sentido e em termos mais comedidos, San
i" bmi.is so junta a Santo Agostinho que tinha afirmado numa
Imm - terrível do D e libero arbitro : “A fim de que a beleza do
i i i i i m t m ) nao fique manchada, é preciso que a vergonha do pe
• idn nao fique jamáis sem a beleza da vingança”35- fórmula da
'|U,il "■ lembraram os autores do Martelo das feiticeiras .36 O peI

I V IIOULET, J. Les Combats..., notadamente p. 14, 18, 44, 53, 57-58, 61, 69.
Vi, Suma teológica., T-2”, quest. 87, art. 1.
IS, De Libero arbitro, III, cap. 15, 44: Patr. L a t, XXXII, col. 1.293.
Wi, INSTITORES,, H.; SPRENGER, J. Le M arteau des sorcières. trad. A. Da­
nei, Paris: Plon, 1973, p. 260.

307
i'¡ul< >i está .i ShI h i t*i11 i li*l illt) pui'U com l H’IIS O l<n |( i peí ai In aiiU»
reta .t ohrlgaçáo da pena (realas jxvn iie).' Mas será que enM
pode nao ser proporcional a gravidade do cuso? I■•••..i •pi>siiii,
constantemente apresentada e retomada no eurso do h nipo,
leva á segunda grande divisão anunciada anlerlormenle * mi im
pecados moríais e pecados veniais, ficando todavía cm lai< i ido
que certos autores estabeleceram uma equação ruin priiidn)|
capitais e pecados moríais,
Nào é possível encontrar fontes bíblicas para a dhilnuhl
entre venial e mortal a nao ser um texto obscuro ríe Mão |o io
“Se alguém vir seu irmào com eter um pecado (pie nao a 1 1 d§
morte, reze e lhe será dada a vida... (Isso se tal pei ado n to ba
mortal, porque h á'pecado mortal, e por esse nao digo ■pu>
ore.) Toda injustiça é pecado, mas há pecado (pie nao e t m »
de m orte” ( l j q 5,16-17). Pode-se pensar que o apóstolo Idt hll
fica pecado contra o Espírito (cf. Mt 1 2 ,3 0 e pet ado tpi» I- \ <
à morte. Durante os primeiros séculos do Cristianismo, em i on
trapartida, distinguem-se dois níveis de pecados em ...............
tipo de remissão que eles exigem, mas sua delimitação viu Ia wf»
gundo os autores (Tertuliano, Orígenes, etc.) e s e g u n d o o i
gimes penitenciais: serão eles remidos por Deie. ap« na ou
pela Igreja? Eles levam ou não a unia penitência piiblli a » a In
tervenção da Igreja que reintroduzirá o pecador na enmuiillrtft
dos fiéis? Seu perdão será ou não retardado pela lgre|a ah o
artigo de morte?3 3
78
Essas hesitações encontram fim com Santo Ag< miluliii,
que esclarece de tal maneira a distinção entre pet ados ...........
e pecados mortais que ela comandou toda a teolog ia po?m no)
Os primeiros, explica ele - crim ina le via , cjnotídUuni, reitinlti
- não tiram a vida da alma que permanece unida a I )eus \ma
se a cr ja tura, não contra Deus, mas fora dele. Portanto, <l« * nao
acarretam a danação e são remidos pela oração, o jejum » a*
esmolas. Os segundos, em com pensação - crim ina ietdlhà
mortífera - , são incompatíveis com a graça que eles extlngimiHj
fazem perder o direito ao céu adquirido pelo batismo e nó |•••
dem ser remidos pela Igreja em virtude cio podei das « Imv* *
dado a São Pedro. Assim é estabelecida doravante uma deiibii

37. Suma Teológica, 1 '-2AC, quest. 87 inlciiamonte consagrada a oto i« mm


38. Cf. D .T.C., I, verbete Augustin, ml .1 - 1 0 XII, I, vctltet» IV» ll|*|
col. 223-226.

368
it. ii i ,11).'i<>luta entre duas eutcgt u Ias •Ir |m m li »*. i <>nl< >rme eles
mm n\am ou nào o fogo eterno.'"
I ntretanto, a questão da natureza «l<>pecado venial conti-
mtMii ,i provocar debate. Santo Anselmo e Abelardo principal'
m» ule Interrogaram-se sobre ela. Daí a grande súmula de Santo
i ui r. de Aqíilno que confirmou e esclareceu a clistinçào esta­
la In Ida por Santo Agostinho. Todo ato voluntário, explica San­
io banas, e necessariamente ordenado a um fim último. Ora, a
l illa venial nào é aplicada a um mau fim último (sem o que ela
■ila nu alai), mas ela nào é redutível a um fim último bom (por-
ipn i nlào nao haveria pecado). Segue-se daí que o p ecad o ,ve­
nid passa ao lado da lei (praeter legem), sem realmente contra-
.11 11 ,10 passo que o pecado mortal é totalmente dirigido con­
tri a Ir I (slmpllciter contra legem), lile é então um pecado com-
pli to ao passo que o outro é um pecado inacabado. Sem dúvi-
il i * sir pode ser uma disposição para os pecados mortais, e seu
ob|rio r sempre "desregrado”, mas ele não é produzido pela ,
mullí Ia", Ademais, um pecado cie surpresa jamais é mortal e,
Mili i da Idade do discernimento, a criança não comete nem pe-
ti Io mortal nem pecado venial."0 Muitos teólogos e moralistas
• Holli os, desde a Idade Média até uma época recente, pensa-
\iiin que a divisão dos pecados entre as duas grandes categorias
•I' "nuMiais” e de “veniais” elaborada por Santo Agostinho e San-
lo lomas linha esgotado a questão do mal moral. Entretanto, o
inundo ( irlodoxo a ignorou, ao passo que a Igreja latina atribuiu-
IIa' tuna importância enorme já que impôs contar em confissão
linios os pecados mortais.
Com o récuo do tempo, parece que a distinção mortal-ve-
iii il so assumiu toda sua importância com o IV Concilio de La-
liao ( 12IS) que obrigou a confessar todos os "pecados mortais”,
l ii iiavante, foi necessário decidir em cada caso concreto se cada
pi i ado era mortal ou venial.

U). ( T. lunadamenteEnchiridion, cap. LXIX-LXXXI: Patr. Lat., LX, col. 265; De


Symbolo, cap. VII, n. 15: Ibid., col. 636; De fid e et oper., cap. XXXVI: Ibid., col.
De Civil., I. XIX, cap. XXVII: Ibid., XLI, col. 657 e I. XXI, cap. XXVI,
li, 4: Ibid., col. 748.
•|(). ( ,T. sobretudo envSãõ Tomás o D e M alo quest. 7,; art. 1 e Suma teol. Í-H ”,
quest. 72, art. 5; quest. 73, art. 8; quest. 74, arts. 3, 4, 8, 10; quest. 77, art. 8;
quest. 78, ait. 2.

:{f>!)
os regimes penitenciáis
Ao mesmo lempo em cpie esclarecia su a doutrina do pi
cado, ti Igreja elaborava, a|)ds longas hesitardes, urna pian» a di!
confissão e da penitência. Três regimes penitenciáis suu di i mi
se ao longo das épocas." No antigo costume, a conllssa»» don p»
cados era feita ao hispo sob urna forma que ignoramos Sem dita,
vicia, ela nao era pública, mas o processo penitencial, slm Noli i|
controle do bispo, era a comunidade que admitia o peí ndilf M
rol dos peniténtes, -mais freqüentemenle. no inicio da »|iiai» ‘m iili
e o reconciliava na Quinta-feira Santa. Rituais solenes man ilVttj]|
a admissão à penitencia. Durante seu estágio de cxplaváo, os pm
cadores eram relegados a um lugar inferior na igreja. A m »un ||
liação era proclamada diante da assembléia reunida que oiilVtq
chorava, gemia pelos penitentes. Mesmo reconciliad!>s, eM» p-•.
maneciam até o fim da vida sob o efeito de proiblyòes: |o •>d>n ». i
de víver urna vida matrimonial normal, de casar se ou l» ii'nai .1 1 1
sar-se, de ocupar cargos públicos, de pleitear em juslK a. «le 1 » 1
cer um comércio, d e tornar-se diácono, presbítero ou hispo
clérigos não podiam beneficiar-se da reconciliarão, ( ),s otiIniM (¿f
eram autorizados a ela urna vez na vida. Assim, os liéis liigMiil
da penitência e na maioria das vezes só recorriam a ela as vlujl
nhanças da m’orte. De fato, esse sistema, como diz (!, Vngt I d»
sembocava num “vazio penitencial” e num “deserto e.spiiiiu il

41. Ver a esse respeito VOGEL, C. Pécheur etpénitence data /'lyjn> mHf
Paris: Le Cerf, 1966; Le Pécheur et ia pénitence au Aloyen Age l\ui l 1 i|
1969 e os “L ibri paenitentiales”, Tournai, Casterman, 1978 (t mu 1 »n 11 * » M*
bliografia). VAN LAARHOVEN, J. “Een Geschicdcim van 1 I1 biu ln> (ib 1 *
(Urna historia do confessor) em Tijdschrifí voor Thtologie, Vil. I'N, p I »
422. Uma análise crítica foi apresentada no meu seminário por WM I I' H’r ||
W.; REKKINGER, E “Die Geschichte der Beichtc in Sticlnvórin" •111 / l/r |r«
regung, 1970, caderno n. 3; HERRERQ, Z. “La Penitencia v mi» Iuiiim» I'#*»
men de su evolución histórica” cm Istiidios angustiaos, 19/,’ , p. Mt | » »*<
225. De maneira mais geral, sobre a história da penitíiu í.» >I noiail mil ||H
LEA, H. C. A History o f Auricular Confesslon and Indúlgeme* /</ //*» / «mi
Church, Filadélfia, 1896, 3 v. WATKINS, 0 . 1). A IUstory o f Péname, * v , I h))É
dres, 1920; ANC d.Al IX, P l a Théotogie du saem nent tle /lénllem e ao \tf iff
ele, Paris, 1949; POSGHMANN, B. Penante and ihe Anohtlmy ,*/ dn
New York, 1964 e .»•■ obras já citadas de ZÕCKLER, O, e MI (>< 'MI II I 11,
W. M.; BHRRC)l IAUI), M, l'r. "1 .1 Péritcncc publique diirain Ir» «,1 pn nt| |
sièclcs. Hlítolrc ei mu lologíc" cm l a M aisonD ieiti, n. 118, 19 1 , p 'U |til

:i7()
Non indos monásticos dos séi u l<»*• i" r desenvolveu-se
Io i igie-atlva mente o secundo grou penlteiu l.il e apareceu uní per
agem novo, o diretor ou pul espliltu.il, ao qual anacoretas e
II nolilias sentiam necessidade de conflar-se. A partir daí, estamos
i •amlnho tia confissão particular, lila se desenvolverá logo de
pob nos mosteiros celtas e anglo-saxóes que parecem jamais ter
11 tullecido a penitência antiga, e é graças aós missionários vindos
d is ilhas que ela se imporá progresivam ente sobre o continente
i p iitli d o século 7o e para o conjunto da população.
Ibdavla, ate meados do século 12, a confissão é apenas
um dos meios para a remissão dos pecados ao lado da oração,
da i .'«mola e dos jejuns. As características do novo regime peni-
h in ui sao as seguintes: todos os pecadores, clérigos ou leigos,
pod« in reconciliar-se tantas vezes quantas pecaram. O pecador
dlilge se em particular a um padre (e não mais ao'bispo apenas).
I • perdão todavia só é obtido quando as tarefas penitenciais
........ . a c o e s diversas, esmolas, etc.) foram cumpridas. Todo o
......... . .o de reconciliação é secreto. Desaparecem as vestimentas'
l" i lal.s dos pecadores è seu lugar particular nos ofícios religio-
*■i*. Uma vez cumprida a penitência, eles nãò são objeto de ne­
nhuma proibição. [Entretanto, a penitência pública subsiste para
0 pi ■( ,ul(>s graves públicos. A Renascença carolíngia por sinal es-
II iii ,i se para voltar a dar-lhe importância.
<) novo sistema foi chamado de “penitência tarifada”. Com
1 h lio, o confessor aparece aqui sobretudo como um juiz que in-
li itoga, investiga e pronuncia a sentença, depois de avaliar os
p« t ad« ».s. Ide tem necessidade portanto .de listas de casos com as
m< i ii vi correspondentes. São os famosos “Penitenciais” que apa
d 11 ui nas ilhas no século 6°, passam para o continente no 7° e

pi imunceerâo em vigor.até os séculos 11 e 12. Eles aplicam o


l •11u»ipli >contraria contrariis e impõem o jejum ao guloso, o ira
ImIIio ao preguiçoso, a continência ao luxurioso. As sanções sao
a i nii ámenle muito pesadas. Assim o Penitencial do pseudo 'ico
Jo io (por volta de 690-740?) prevê para um ato de fornicaçao
qiiatio anos de jejum, para o desejo de fornicação, 40 dias, para
m u homicídio numa rixa, 10 anos, e para um perjúrio, 11 anos de
|» 111111 Assim, a confissão de alguém que fosse culpado desses
quatro malfeitos teria por conseqüência 25 anos e 40 dias de j.e-
|i11ii Com toda a evidência, essas tarifas eram inaplicáveis. Daí,
i gímelo o modelo germânico do Wehrgeld , o recurso a listas de
qiilvalèncias (um ano de jejum compensado por 12 vezes 3 dias

;i7 i
*K* |e|um conlinuo ou pela recllaçái >dr .*> livros de sal nu >•. ou p.i
cerlo número t k • chibatadas) o sobretudo a "rtVíuuuV sob i. <mil
de numerário ou de missas rezadas para Uns penlleiu lals r 11||)|
preço era lixado. Os ricos podiam evidentemente lonsrgtili pMfifc
mutas que eram impossiveis para os pobres, obrigados a * s p l«
pessoalmente. Ademais, o sistema'da penitência tablada mim lt|
rava mais o pecado material do que a inlençáo c mais i .*p|)|l
ção concreta do que a contrição, Portante), ele, por sua ve*, da
semboéava num impasse.
O corretivo veio de uma evolução psicológica « n h•>iim||
que se afirmou, ela também, nos meios monástlc» >s » dei....... ..
a um valor novo que á antiguidade greco-romana nao i onlu i Mj
o arrependimento redentor.*2Nos séculos 9" 1 I, Sa«>Nilo ti <
imialdo, São Pedro Damiào, apóstolos do coiili'iii/ilth HiHItffÊ
pregam com ardor uma conversão dramática c transi» aniaili m 11
quál'eles próprios tiveram a experiência.*' Depois, no se. u|o ||.
Abelardo, Santo Anselmo, Ilugues de Saint-VIelor Insistem («nbtff
a consciência, a intenção, a vergonha necessária, as lagí lutas É|
Pedro depois que ele renegou João. fissés teólogo-, . 1.. .. o u. n (»|
nismo que põem em destaque a responsabilidade d. > p. nlli uh
são ao mesmo tempo - e é lógico - filósofos da llbetdadi IttlllM
na." Menção particular deve ser feita aqui a Abelardo l'Miqiti t
ele, escreve Jacques Le Goff, quem, “sob uma forma t-lnU i.id
desloca o centro da penitência da sanção exterlot paia i ii|illi
ção interior e abre ao homem, pela análise das inlençt. . . . . . mm
po da psicologia moderna”.*s No que ele se opòe a Sito M. ttlHlfl
cio, mais tradicionalista, que certamente insiste sobre i ............
ção da confissao.e do remorso salutar, mas declara qm- o pmg
dor não tem desculpa e que a indiferença ou a IgnorOru Ia Miti» h
minui o pecado."
t ; Ó V . V . ■: % '4
6
5
3
2

42. Cf. a esse. respeito PAYEN, J. Ch. Le M otifd u refienlir dau\ /,/ A•
fi-ançaise'm édiévale {des origines à 1230). Genèvc: Droz, 1%H,
43. Ibid., p. 33-34.
44. Ibid., p. 36-69.
45. LE GOFF, L. “Au Moyen Age: temps de I'tigli.se et lemps tlu m ... I..i.,I
em Anuales Ê.S.C., 1960, p. 429, republicado cm 1'our nn ature Mi<h'H
Paris, Gallimard, 1978.
46. DELHAYE, Pli. Le Problhne de Ia consciente monde ches utlnt ti>>
Namtir, 1957 {Ana/ecta, m ediaevalia namurcensia, n. ')), sobimi.l.. ... qt ili
PAYEN, J. Ch. l.e m otifdu rep eti i ir ,,., p, 63-66.
Ni i,*» seeulo.s 10" I I, aparecem as |>rliiH*lr.i*««>i.k t >c*s f>n>/)c-
iiihnh hu rlnifinun (Ligrimas de arrependimento, entende-se)
i|iii upeiem uma doutrina e uma prática dos monges do Oriente.
mm „ , uln 12, o monge de Cluny, hierre de Celle Cf 1183), que
i i pispo de ( '.Parires, dirá que as lágrimas sào o pão da alma ar-
11•|o ui lida: elas extinguen! o fogo das paixões, sufocam os vícios,
ipagam os pecados, amolecem o coração, irrigam os bons pro-
p o lios, fecundam as virtudes, atraem a misericordia e a benevo-
h io Ia de Deus.'" Logo se passará da contrição transformadora
paia a »onflssáo freqüente. Mas durante séculos não se deixará
ui im de lalar da “com punçào” (o conhecimento de si mesmo
m i n o peí ador) e é lançada agora a idéia, contra a penitência ta-
iil id.i, d e (|iie a humilhação e a vergonha inerentes à confissão
i mi, ili n e m por si mesmas a expiação propriamente dita. Daí a
|nn igem para o terceiro regime penitencial que concede a ab-
i ils h a o Imedlatamenté após a confissão. Estando já cumprida a
gHpl i* ao com a “confissão”, não há mais razão para adiar o per-
dao \ enlase doravante é sobre essa própria confissão (elá-aca-
liii |ioi designar todo o processo penitencial), portanto sobre o
» silmc de consciência.
Uma prática regular deste último, prova de lucidez e de
i sii'ciu |,i moral, devia logicamente levar ao abandono do contri-
ih mismo (|tie é “contraditório à prática da confissão freqüente.
• m111 eleito, ele supõe que a penitência seja bastante rara para
i|ih o penitente se deixe impressionar; supõe também a confis-
itlo de pecados graves cuja lembrança seja capaz de abalar aque-
I. 111ie os confessa”.*8 O progresso da interiorização no estágio
dos teólogos e dos monges levou então a Igreja, no IV Concilio
d* I ali.lo ( 12 1S), a impor a todos os fiéis (canon XXI) uma prá-
l|i i que, sem dúvida, já devia estar em vigor num lugar ou hou-
11o 1 a confissão anual obrigatória de cada cristão ao vigário da
P in >qui.i - uma decisão capital na história das mentalidades e da
vida cotidiana (suavizada, é bem verdade, na prática’pela. ação

I I'AYI'.N, J. Ch. Le M otifdu repéntir..., p. 38, n. 92. D e Panibus, XII; Patr.


luí, CCII, col. 983-986.
48. Iblcl.', p. 76.
•i*). ( lanon XXI, proprio sacerdoti: trad. franç. de FOREV1LLE, R. em H istoi-
/<■des cortóles oecuméniques, VI, Paris, Editions de 1’Orante, 1963, p. 357. GY,
P, M. "I.c Précepte de la confession armuelle et la nécessité de la confession”
cm Reuue des Sciencesphilosophiques et théologiques, t. LXIII, n. 4 (out. 1979),
p. 529-548.

373
chis ordens mendicantes, milis tarde pela dos missionários di* in
terlor), Verlos concilios regionais agravaram alucia iVutls un impe«
raíl vos de Litráu i" e Impuseram três confissões atuiu is,
Essa evolução para a eulpublllzaçáo cru/ava se mm uiitng
que tendia, na mesma época, a lixar a teologia dos sacratUPIlU*
e a aumentar por reflexo os poderes tio clero. Pela aloulv ¡ i
dada ao pecador arrependido e t|ue deseja emendar se, u padu
não somente concede o perdào mais ainda confere múltipla'* gm
ças que vão ajudar o penitente a manter-se no bom camluln iqii
reencontrou. Poder realmente enorme do homem de Deus, quM
é o canal através do qual age toda a Igreja enquanto c o q ........
tico e comunhão dos santos. Só ele doravante concede a almol
Vição (enquanto, as canções de gesta atestavam certo iim i da ......
fissão feita a leigos), e essa absolvição é fonte direta de giat, 11
Existe então, mediante a ação cio padre, uma eficácia do sai fm
mento por si mesmo (ex opere opéralo) . \l dessa maneira <|iu m
to Tomás de Aquino expõe a doutrina da penitência que vai Im
por-se como oficial.50
Será que o preceito da confissão anual implicava, nu *mpi
rito dos Padres conciliares, uma afirmação doutrinai sobre i m
cessidade da confissão em geral? Parece que não. A maloiia di
via pensar ainda com o os canonistas da época que u <unlh.au
auricular é obrigatória somente em virtude de uma iradlt, tu da
Igreja latina. Razão pela qual a Igreja grega, que tem oiltrtt Ihlfl»
çâo, não a impõe, da mesma maneira que não obriga os pitdh H
ao celibato e não consagra o pão ázimo, mas o pão fermentado
Em compensação, desde a geração de Santo Tomás, os teulugu|
apresentaram a obrigação da confissão como de “direito dlv Inu ,
isto é, de instituição divina, o que foi confirmado pelo < mu illo
de Trento (sessões XIV, cap. V).
Ao tomar a decisão de 1215, a mestra Igreja tinha em vl
ta evidentes objetivos pastorais. Ela queria não somente destMll
volver a prática d o exame de consciência, mas também prnultlf
ao confessor julgar os conhecimentos religiosos dos fiéis e dtll
lhe a oportunidade de catequizar estes últimos durante o Inli i
rogatório e o diálogo com os penitentes método slngul.imn n
te eficaz de aculturação religiosa. Em contrapartida, a obdgiit i*»
da confissão anual fornecia doravante ao clero um melo d< pu
são considerável sobre as almas. Daí, no segundo Nonum * « , t,i

50, Suma III'1, «pu*s(. na r s \

\m
m retrato satírico de falso Nemhlanu , MinIc .Mti hipócrita
-!• poder enorme que admite: "lí pela salvavdo das almas /'ln
I» n o g o senhores e senhoras / lí sohre todas as suas manias, / As
Innpiledades e as vidas”.MKm segundo lugar, a nova teologia da
I" iillèncla, ampliando o papel do padre, corria o risco de dimi-
11M11 ii do pecador e sua necessária contrição. Como a ênfase era
dada piliu lpalmente à confissão - o Concilio de Tiento formu-
I ml mais tarde a obrigação de enumerar todos os pecados mor-
i a . será que se podia insistir também sobre as intenções que
Unham levado o pecador ao erro? O novo sistema penitencial
mi|matava então um perigo de formalismo e de juriclicidacle na
medida em que muitas pessoas, sem se preparar suficientefnen-
i> paia a recepção do sacramento por meio de exercícios espiri-
iii ii.. procuraram sobretudo acertar as contas com a Igreja. En-
llni, havia aí uma obrigação à qual, no regime cia “cristanclacle”,
IIai * era possível escapar.

.sumas de confessores e manuais


de confissão
<) cá non XXI do IV Concilio de Latrào provocou um es-
pi iai iil.u (k-senvolvimento da literatura relativa ao pecado. Ima­
gina mc com efeito que os vigários de paróquia - logo respalda­
dos por religiosos das ordens mendicantes - foram tomados de
i idadeiro pânico ante a perspectiva de ter de interrogar e jul­
gai regularmente suas ovelhas no tribunal"da penitência. Eles,
pn i Isaram de livros para esclarecê-los e guiá-los nessa pesada
i ui l.i Kor outro lado, procurando lutar contra a rotina cia con-
li cai» anual, os mais zelosos homens de Igreja e os mais preo-
•upados em cristianizar as massas, procederam a uma culpabi-
li ,n ,u> Intensiva da opinião, insistindo sem descanso - e duran-
i. '.eculos - sobre as diferentes categorias de faltas e a grávida
di mitológica d ó pecado.
I >cssas duas necessidades convergentes nasceram múltiplas
umas de confessores” e múltiplos “Manuais de confissão” que

S|. liil. I.ccoy, Paris, 3 v., 1966-1970, H. Champion: II, v. 11.556-11.558.


suli.stliuii.ini ii.s larlláçtíes da époea anterior, s'endo verdade, ioda
via, que a obrlgnção ela confissão anual decretada poi l.iiqio i
nacía mais fez cio que conIImiar uma evolução cm curso c <|u> tl
gumas obras marcadas pela preocupação dc uma pastoral i.....
tendal foram redigidas antes tk\ 121S ou ao redor dessa dala I
notadamente o caso do LíberpoenItentialls ele Alaln dc l.lllc, i mu
posto nos últimos anos do século 12 c das obras paralelas \ m II
tas por volta de 1210-1215 por clois Ingleses relacionai leis <um n
meio universitário parisiense, Thomas dc Chabham c llolu u >l>
Flamborough.^ Doravante, as obras relativas aos pecados \.in se
dividirem duas categorias. Umas, em forma de pesados volumen,
v são tratados de moral jurisprudencial que devem permltli um |tl|
gamento exato sobre os atos relatados em confissão <•, em 11HVKf
qüência, prescrever a satisfação conveniente e os remedios que
evitarão sua repetição53- deram-lhes o nome geral de "Sumas dtrt
confessores”. Outras, mais concisas e mais mancjãvels, d.io imt
padres que cuidam das almas e aos penitentes apenas as dln ii >
indispensáveis para uma boa confissão, devendo esta remill II m
admissão de toda falta grave cometida pelo pecador. I •■■■• ■uai i
dos de títulos diversos - às vezes chamados apenas de "Sum.ut
são comumente denominados “Manuais de confissão".
O modelo dos primeiros foi concebido nos anos Uãtl
1240 pelo dominicano catalão Raimond de Pchaforl. Sua Aiinmlft
de casibus poenitentiaê, logo enriquecida de glosas poi ou lio
dominicano, conheceu um sucesso considerável. A pari Ir do se
culo 13, foram redigidas algumas condensações, No sei uIo i
alguns poetas fizeram adaptações versificadas." Km loriV Noitnt
providenciou .uma edição, dois anos depois de ter i anonl/ tdn o
autor. O exemplo dado por Raimond de Peñafort lõl seguli li i il
o Grande Cisma por diversos franciscanos cvdominleanos N.io £
de surpreender o lugar ocupado por esses religiosos em ripillfl
lhante domínio. Pregadores ou inquisidores, ou as duas miK im
ao mesmo tempo, e logo autorizados a confessar a despelli» do
privilégio concedido aos vigários de paróc|uia, eles baseaiai»!

52. Esses esclarecimentos e os que seguem cm MIC 'I IAl U > ( )l i.U 11III I1
Sommes dc cdsuhti<]ue et manurh de eonjhsion au Aloyen Aye (XII \ 1 / i /, > V f
Louvain, 1962 {Ana¡ceta meditievalia narnutrentia, n. lã). Vri i.imlnm hh In
dicações dn notn 60 próxima.
53. Ibkl., p. 40.
54. Ibkl.» p .') I i V

:i7b
11hl.i ,i mui pastoral de crlslIanl/iKao sobre .1 culpabllizaçao. As
«ln1, podemos com toda a razão slmai no Início do século 13
uma cesura capital na história d.i crlsiajulade, já que nos seis
tinos 1210 I2IS coincidiram a criação dos franciscanos, a dos
dominicanos e o IV Concilio de Patrão.
I)e certa maneira, as “Sumas casuísticas” aparecem como
uma produção internacional: elas sào redigidas na Espanha, na
\li manha, na França, na Itália. Mas as fronteiras são fluidas na
•pm a. Na realidade, todas essas obras latinas saem de um meio
homogêneo: o dos monges mendicantes para os quais a Europa
• ainda ierra de missão. Lembremos aqui apenas as obras prin-
. Ipal.s dessa literatura no período anterior a 1378: a Sum m a con -
/ i'sn*ovn i (por volta de 1290) do dominicano alemão Jeah de Fri-
liiiuni, a Sum m a elepoenitentia (1295-1302) do franciscano Jean
di ilurl, remanejada por outro franciscano, Durand de Cham­
pagne; ,1 mortu mental Sum m a Astesana (por volta de 1317) com-
111nía pelo franciscano Astesánus d’Asti; a mais breve Sum m a ele
. lUlhus conscientiae (1338) devida ao dominicano Barthélémy
l. risa (daí o nome de Pisanellap enfim o Supplemenlum
m i n ) ,1 Pisanella redigido pelo franciscano Nicoló d’Ausimo
i|iii acrescentou referências à obra de seu predecessor, conside-
Iiida breve demais.
A preocupação primeira dos “sumistas” foi ajudar os-con-
h »res em confronto com a diversidade dos casos especiais, in-
dli nulo llies com o interrogar q penitente (notadamente sobre os
|h « ai los capitais), como guiá-lo no seu exame de consciência,
....... esc larecer os móveis e as circunstancias, e assim avaliar a
giavldade do pecado, como vencer os obstáculos (medo, vergo-
nha, presunção, desespero) que se opõem a urna boa confissão.
Mas os redatores de /sum as”, a com eçar por Raimond de Peña-
IImI, rram canonistas. Eles viam nos confessores verdadeiros juí-
1 ■. sediados no “tribunal” da penitência e encarregados pela
Igicja do "julgamento das almas”. No seu espírito, pecado signi-
In .1\. 1 transgressão da lei (divina, eclesiástica ou civil) e seu dis-
I m •.(> funcionou em torno das duas categorias, do “lícito” e do
iln Um", Daí a contribuição maciça do direito em suas obras e
ai.i’t c<aislantes referências a textos legislativos que deram às suas
palavras uma tonalidade muitas vezes negativa e repressiva. As
Mimas" esvaziaram então progressivamente as preocupações
IIr.ii irais, Elas foram cada vez menos guias práticos para uso dos
11 uilrssores e suas ovelhas e cada vez mais obras autônomas ex-

M77
pondo nina disciplina difícil - ti dos "cu,sos", cía proprla < au lia
mente libada .u ><llrelu><anónlr» >, l.ssa nov;i ciência tornou ■>< t ili
jeto de ensillo e cngajou-sc mima especulação cada ve/, mals te
finada e exaustiva, () número de "casos” examinados transí» u
mou-se em bola de neve e, para resolvê-los, os sabios animen
apoiaram-se num número crescente de autoridades (ainlorlla
tes), de demonstrações ( regiones) e decisões jurídicas (jura),
O Grande Cisma deleve por algum tempo a produçá» >di
sa categoria de obras. Mas ela foi retomada com vigor ainda
maior por volta de 1500ss com as “Sumas” sucessivamente pul di
cadas pelos franciscanos Battista de Salis (1480-1490) e Auge de
Chiavasso (mesma década) e pelos dominicanos Sylvestrc Prleilas
(por volta de 1516), Jean Cagnazzo de Taggia (1517) e o ivlrlm
Cajétan (1525). Com exceção desta última, que pretendía sei Im
ve e relativamente poúco jurídica, as “Sumas” dessa nova serle
(exclusivamente italianas), malgrado certas veleidades pastoral*,
acentuam as características de erudição e tecnicidade ja notad t
no período anterior ao Grande Cisma. Particularmente revelad»»
ra nesse sentido é a Sutnma sum m arum de Prierias com ambl
ções enciclopédicas. O autor declara ter utilizado os trabalh» > <k
48 teólogos, 113 juristas e 18 “sumistas”. Mas Jean Cagnazzo de
Taggia vai além, já que aumenta de mais ou menos 20% o minir
lo de autores citados e de artigos: exagero de um saber que pie
tendía basear-se em casos concretOvS mas que tinha perdido o
contato com a realidade. Esses lembretes fazem compreendei
melhor a hostilidade de Lutero ao direito canônico, "adversado
de Deus”, e sua tomada de posição, notadamente no D e ('a/>tlrl
tate babylonica , não contra a confissão, mas contra o uso qiu a
Igreja fazia dela. Para ele, o sacramento da penitência tinha se
tornado o mais poderoso instrumentó de dominação da hicrui*»
quia romana.56Entre os negociadores romanos que não consegui
ram entender-se com ele encontramos precisamente Cajétan e
Prierias. Na fogueira de dezembro de 1520, o Reformador jogou,
ao mesmo tempo que a bula Exsurge Dom ine, a Sum m a cingeli
ca de Ange cie Chiavasso que ele chamou de Diabólica o que a
seu ver encarnava todos os defeitos da prática penitencial caióll
ca. Depois do Concilio de Trento, florescerá uma nova casuística

55. Ibid., p. 98-106.


56. LUTHER, M. UUtvm, II, l%(> (/V /*/ b a ty bn fain t //r r iy lM ,
p. 226-230.

:J7H
mi 'hit') ji iridien Inspirada por <nitro espída» ( ionio n di relio caía >
nr o lomuda respostas cada ve/ menos .ide(|iiadas para situ a re s
urn as na,si Idas da transformação da soeledade, serão feitas refe-
i* tu la*, náo mais a Icis escritas apenas, mas também a urna lei
un nal Inscrita na consciência; será desenvolvida ao mesmo tem­
po a noção de circunstâncias atenuantes.
Mesmo se a contribuição do direito, por níveis sucessivos,
Inlliienclou durante séculos a teologia e a prática da penitência,
I........Iu n irse na segunda categoria de obras - os “Manuais de
i nnlksao" preocupações mais nitidamente pastorais. Trata-se
di ».ia ve/, do século 13 ao início do 16, de uma enorme ljteratu-
i i •mde numerosos livros anônimos convivem com os escritos de
pi nonagens célebres. Entre os primeiros, cabe um lugar particu*-
I ii a<» M anual cios pecados, obra anglo-normanda composta na
i gimda metade do século 13 "' Hntre os segundos, encontramos
coladamente a Sum a cio Rei, tratado de moral destinado a facili­
llo i» exame de consciência, devido ao pregador Laurent, confes-
111 do Uel da I'rança, lili pe 111, o Ousado, e composto por volta
li I *H() a pedido do próprio soberano;58o Specchio delia vem pe-
uilriica do dominicano Jacques Passavanti de Florença (f 1357);
i n iluls tratados complementares um do outro (Lum en confesso-
inm e Moilus confitendi) do beneditino espanhol André cl’Esco-
b.ii (| I 127>, o Specchio delia confessione e o Renovam ini do
I i .iik Isca no Sao Bernardino de Sièna (f 1444), três opúsculos do
<|i iinlnlc ano Santo Antonino de Florença (f 1459): O m nis morta
hum cura; duram Ulitis habe; Confessionale, que precederam sua
. i uule Suma teológica. Esta última constituiu a primeira obra de
h ulogla moral” redigida na Europa cristã e pretendia ser “ciên
' Ia diretiva da conduta humana”.59Fora dos países mediterrâneos,
i r, principais títulos foram o D e Confessione de Henri Langensteln
i| I.V)7), o M am ulle confessorum do dominicano Jean Nldei
II I i4H), autor aliás do célebre Form icarius dirigido contra as lei
ilielius, o ’l'ractatus de confessione de Matthieu de Cracovia

( T. ARNOUl.D, E. J. Le Manuel despéchés. Etudé de littérature anglo-nor


inunde. Paris: Dio/, 1940. Notadamente p. 245-246; MICHAUD-QUAN-
TIN, I*. Sotnines de casuisHcjue..., p. 27-28; PAYEN, J. Ch. Le M o tif du re-
/•eiilli'..., p. 563, continua a atribuí-lo a William de Waddington.
5H. MRAYER, E. “Contcnu, scructurc et combinaisons du M iroir du monde et
de Li Somme le Rol", cm Romanía, t. LXXIX, 87" ano, 1958, p. 1-38.
59. MU ¡HAUD-QUANTIN, P. Sommes de casuistiejue..., p. 74.

¡1711
(f MIO), e do chancelei (l.i I Inlversldade ck* Paris, Jcmii ( ieison,
o Espelho da alma e Ihi (.'ou/hsdo «|Uf d e juntou cm I KM a
de bem morrer num U rro dos hvs /tartes. I )uas obras Inlnin» dl»l
rias entre "sumas” e "manuais" merecem uma menção p.iiihul.M
em razào cia audiênc ia c|iie granjearam. Trata se cio .Manl/inhM
curatorum de Guy de Monlrocher, vigário em Teruel n<> *ui »||l
14, e cio Confessionale do humanista neerlandés ( iode*.» al* Momm
mondt, contemporâneo de Erasmo e de I,útero.'"
Como as “Sumas cie casos”, os mais conhecidos "Manual*»
de confissão” foram com frequência redigidos poi idlglo*n<t
oriundos cias ordens mendicantes. K mais uma prova de mm
preocupação em encarregar-se da direção da obra c iisilanl. ad»t
ra. Por outro laclo, como anteriormente, essa produção inli m»
cional permanece muito homogênea porque reflete as pico» upa
ções pedagógicas que se desenvolvem nã época dentro da paiin
mais militante da Igreja. Alguns “Manuais de confissão" são maio
especialmente destinados aos padres que eles se esfop im |<m
guiar na administração do sacramento da penitência, I o chmii p il|
exemplo cio Confessionale de Santo Antonino e do Mauuule >oit
fessom m cie Jean Nicler que contêm, tanto um como outro, dlnlfl
tivas para o interrogatório do penitente, a maneira de a< misdliã
lo, a satisfação a prescrever, a maneira de administrai a alnohl
ção. Quanto ao Tractatus ele Matthieu de Cracovia, ele e i< dial
cio sobretudo para uso daqueles que devem confessai u ligio
daí as precisões sobre os pecados contra os votos e as regina \l »
vida conventual.
Em contrapartida, outras obras visam expressa menk* »•»
público dos fiéis. O prólogo do M a n u a l dos pecados anum Ia i hk
ramente: “Pará a leiga gente é feito”. Outros autores e.st I ............
que escrevem para amueles “que não são gramáticos", "que ii-lu
sabem de clerezia”, “Para aqueles que não sabem nada n* m d.
literatura nem de clerezia”.01 Estas últimas fórmulas devem m i eil*

60. TENTLER, Th. N. Sin an d Conjvssion on the Eve o fth r R<i<>n>utthni Ki Im


ceton: Princeton Univcrsiry Press, 1977. p. 37-38, Do mesmo ituim, 1I h.
Summa of confessors as an instrument of social control” com a ipuiodil i|»
BOYLE, L. E. "The Summa of confessors as a genere antl its religión lint m
em The Pursuit o f lloUntw, ohrn coletiva ilmgiila por TIUNKAI Pi, « li i
OBERMANN, II. A. I.cyilc, Brill, 197*1, p. 10,5-137. Resenha sugrsllvn ih
obra por IT.NI PU.TIi. N, Sin and Con/èsdon... por MARTIN, II mi Imirf
les fi.S.( nov. <lr/. 1979, p, 1,260 1,262.
61. ARNOUI l>. I I I r Manuel da ptftéét,... p. .34-3*».
i* mili1.1*4no sentido ;implo e pare» «• que englobavam nílo somni
ii oh leimos, mas também numerosos vigários de paróquia cuja la
nilllaildade com o latim nao era evidente, I1'., de lato, para esse
duplo publico que se dirigiram na maioria das vexes os autores
di "M,uníais de confissão”: o que explica seu freqüente recurso
0 Iniguas vernáculas. Passavanti reelige em italiano seu Espelho
1 lo (vhlthleím penitência, Sào Bernardino de Siena faz o mesmo
mu dols tratados mencionados anteriormente. Santo Antonino da
di Mii'i escritos sobre a confissão uma versào latina e uma ver-
oi i Italiana, lima Sum m a pacifica, na realidade mais “manual”
tío que "suma”, do franciscano Pacífico de Novara é escrita dire-
i mu ule em italiano. Quanto a Gerson, ele traduz em latim, para
iii' I ii uiii. i audiencia internacional, mas tinha.de início redigido
• ni 11a ui es o Espelho da alma, D a Confissão e a Arte de bem mor -
/. i iei midas no livro das três partes.. Enfim, inúmeras “fórmulas
I..........fissão” anônimas, em verso ou em prosa, que se multipli-
i tim no século 15, notadamente na Inglaterra e na Alemanha, re-
tttiiem as línguas vernáculas.62
Assinados ou nào, os “Manuais de confissão” são na maio-
ii i das ve/es susceptíveis de urna dupla utilização, pelo padre e
pi lo liei. De maneira didática, eles ensinam como administrar e
i unió rei eber o sacramento da penitência. Doutrina penitencial e
lormavão espiritual são fornecidas no interior de um quadro que
•ugli ti ia as três fases sucessivas do ato sacramental: a preparação
d .. penitente (acolhida, exortações), suas confissões, e enfim as
oiim qüêneias destas últimas (satisfação a prescrever e absolví
. i.o '' Mas dentro desse plano obrigatório, o interrogatório ( laclo
. 1. i . i mlessor) e a confissão (lado do fiel) retêm particularmente a
ili ii. ai) dos autores. O exame de consciência é conduzido por re
I. o ui Ia aos sete pecados capitais, aos dez mandamentos, aos cin
■.. .. iiildos, ás vezes também aos doze artigos do Credo. Ao que
iliMiir. "Manuais” acrescentam ainda por cima outros parâmetros;
. . »iii >Beatitudes, as seis ou sete obras corporais de misericórdia,
i . .< is ou sete obras espirituais de misericórdia, as quatro virtudes
• inleais, as três virtudes, teologais, etc. Assim, à medida que as
. . b u s se multiplicam, a reflexão penitencial aumenta sua,busca
das circunstâncias - freqüentemente agravantes - do pecado e
multiplica os pontos de vista segundo os quais deve ser conside-

MK.'HAUD-QUANTIN, P. Sommes de casuistique..., p. 95-97.


<0. Ihiil., p. 76.

: i hi
rucia a ralla i <andida, Sanio Ante mino, Pac ifico ele* Novara e, na ex
telni deles, inultos redatores de* "Manual,s" anónimos Integram >10
exame de e<>n,si léñela considerações relativas ao eslatulo pmlh
sional ele) penitente e* a seus deveres de estado,1" Mas sobretudo a
mania escolástica da subdivisão, sua propensão a categorizar, n
finar e complicar levam, em parlicúlar nos "Manuais" anónimos, a
uma inflação prodigiosa do número de* pecados. I\ssa evolu^ito
encontra, confirma e acentua um movimento mais ampie >t pu leva
uma civilização inquieta a debruçar-se cada vez mals sobre a •ul
pabilidade. A partir daí, o interrogatorio do penitente januilft sent
considerado com o suficientemente exaustivo, nem o exame de
consciência suficientemente minucioso. Percebe-se ¡sso pela leí
tura de unía Confessio genera lis, brevis et utilis que enumt u pi 1
ordem de gravidade crescente, os diferentes pecados .sexual*»
um assunto sobre o qual a Igreja sempre quis que" os fieis I» »*e«i m
muito vigilantes e sobre o qual voltaremos no capítulo segullIU
j As dezesseis categorias de pecados se apresentam assim: I ) o be|
jo impuro; 2) o toque impuro; 3) a fornicaçãp; i) a llbertlmtg» m
geralmente entendida com o a sedução de uma virgem; S) o adtll
tério simples.(quando um só dos parceiros é casado); 6) o adtll
tério duplo (quanclo os dois parceiros são casados); 7) o *,a« lili'
gio voluntário (quando um dos parceiros pronunciou votos n ll
giosos); 8) o rapto e a violação de uma virgem; 9) o rapl<) e a viu
lação de uma mulher casada (pecado mais grave que o pr< u d* n
te já ‘que se complica de um adultério); 10) o rapto c .1 vlol \\ 10
de urna freira; 11) o incesto; 12) a masturbação, primeiro tios pi
cáelos contra a natureza; 13) as posições inconvenientes (mesmo
entre esposos); 14) ás relações sexuais não naturais; 13) .1 moiIh
mia; 16). a bestialidade.
Certos “Manuais” se transformam assim numa longa II 1 1
de todos os pecados possíveis, a qual, como acabamos d< \» 1
pelo exemplo anterior, toma o nome de cofi/vssio gez/e/v///s l ■ <
termo pode designar, em Gerson por exemplo, uma conll 10
que abrange toda a vida do penitente desde a idade da m/ílo
Mas nos séculos 14 e IS, ele designa, sobretudo, as longa.*........
merações de pecados ofci;ecidas aos confessores para qiu 1 li645

64. Ibid., p. 74, 7S c *)(). I I (¡OI I , |, "MriiciN et: piofcs.sion d’apií ■


, li •<nu
nucís de confessem,s <111 Mnvrn Ap.c", cm l'our une iinliv histohf I\»tU 1i 4li
mard, 1977. p. 167 I HO.
65. TIANTI .1‘ K, Th. N. Sht iiml <on/bvoih , p, 141*147.,

: ím: i
i apiesçntem por .sini v e / an.s priillcnh Neslr caso, sobredi
•lo, InlervCm refinamuñios e desdnbinmvntos,"" llin datado inti*
miado (Juta circa confessionem enum ua I >.-S pecados dp pensa-
un nio, de palavra, de ação e de omissão. I lm outro Primo con-
m> ir* dvht'i identifica 168 faltas e 106 deficiencias pecaminosas,
l m lereclro, Confessio generalís exigít, divide os pecados em
lina .10 de sua oposição às virtudes e descobre assim 92 tipos ele
l illas A Interrogação do Tractatumpraesentem divide o exame
d. . ada uní dos dez mandamentos a partir do quarto em três
paid i que comportam cada uma, em média, de oito a dez peca­
dos () que não impede em seguida urna lista dos pecados mor-
i ils . om suas “filhas”,e a enumeração de uma quinzena de fal-
i 11 dis ei sãs. Ksse excesso de sutileza faz compreender o protes­
to ulterior de hulero contra essas “eXcogitações de charlatões”
lm lm a lulo se o espirito

I i propósito] das mães, filhas, irmãs, parentes, ramos e frutos dos


pe< .idos. I lomens muito sutis e perfectamente desocupados imagi­
nai.un assim a respeito dos pecados não sei que árvore genealógi-
i a |eom seus graus] de consangüinidade e de parentesco, tão gran-
de »• a fecundidade de sua impiedade é de sua ignorância.”"

A partir do fim do século 14, certos autores acrescentam


i..', pirados clássicos (capitais, contra os mandamentos, relati-
\i is aos cinco sentidos, etc.) os pecados contra o céu ( clam an-
n,i In cocluni) particularmente revoltantes - assassinato, sodo­
mía, rir.. , os pecados de cumplicidade (.aliena) e os pecados
. mida o Espirito - endurecimento no mal ou no erro, desespe-
ii >, •ii Essas listas cada vez mais exaustivas e pletóricas, eviden-
.......... correm o risco de transformar a confissão na recitação
I......... e quase mecânica de certo número de pecados muito
Iii ni i ala logados. Mas é preciso perceber o que havia por lrá.s
d i mentalidad^ coletiva da Igreja doutrinária: o medo da confis-
»i,u i mal feita e sacrílega, que inquietava tanto Gerson,'’8 a con-
■i' >a«» de que um Deus credor mantém uma conta exata de cada
i - ■ado c de cada dívida. Para escapar a um juiz tão rigoroso,

(t(i, Para o que segue: Ibicl., sobretudo p. 69, 82-83, 87-90.


(>/, blJTHER, M. CEuvres: II (De la captivité babylonienne...), p. 228.
(>M, <¡IÜISON, J. De Modo audiendi confessiones, ed. Du Pin, Anvers, 1706: II.
col, 446-453.

383
nunca sera demais e úlpa blllxar se, I > i <j i u■ "e iin iü colsa mu, giii
ve v potigosa, esquecer i u 11 'iilfinfnlt* seus pecados....
Examinar s e cuidadosamente s o e possível quando wi» mi
nhecem todas as artimanhas pelas (|iials o Maligno, adaptando
sua tática ¿i personalidade de cada um, pode zomba i das ínclito
res intenções e arrastar para o pis ado a alma mals bem dlspo^i i
mas insuficientemente lúcida sobre si mesma. Assim, (leisnit ps
dige (em francés) um Tratado das diversas tentações do Ininneo "
no qual, com urna grande acuicladé psicológica, eselarei e ...........i
tiplos> deslizes pelos quais alguém se toma pecador acredlttflltli
ser virtuoso. Para isso, ele estuda nada menos que '->Mcasou ou
“tentações” durante os quais essa conversão do bem em mal i nr*
re o risco de operar-se quase sem nosso conheeimeni" I’••* o
zes, o Inimigo deixa de nos tentar durante um certo tem|........
de adormecer nossa vigilância. Ele encoraja alguém a empinen
der “altas e fortes obras de virtudes”, sabendo que ele u.m pode
rá levá-las a bom termo e afundará na tristeza. A outro <1. . n\ ia
“dores muito grandes e maravilhosas em forma de devoção a lim
de que a'pessoa sinta o maior prazer em tais dores e só qiinlhl
amar a Deus ou seivi-lo para tê-las” - uma tentação bem »oiiliti-
cida dos místicos. Uma outra vez, o Inimigo envia bons pendil
mentos a uma pessoa: não é para o bem, mas para Impedi |m de
rezar, por exemplo na missa. Ou ainda, “a pessoa arrepiMuJltlfl
pergunta se tem a boa vontade de nâo pecar jamais; e •> Inimigo
põe diante dela ... como ela é frágil e como por lautas vc/ ch ln
correu em pecado”. Gerson nào procura inquietar pot pia/» i l 'm
de seus opúsculos ensina O proveito de saber qu al o />e<. a<h tnov
tal e venial.71 Da mesma maneira, o Tratado das diversa s leahi
çôes pretende ser tranquilizador e coloca em face de i ada ninia
dilh.a satânica a defesa apropriada. Podemos entretanto i" .......
tar se esse refinamento na introspecção e essa incessante luiente
gaçào sobre si mesmo nào correm õ risco de levar a uma t 'pu«
cie de paralisia interior. Em todo caso, as obras morais d» ( int
son, considerando a sua audiência, exerceram um papel Impoi
tante na história do pecado no Ocidente.

69. G ER SO N , J. iiswnen de eonuúenee.... «I. KllicS Du Pin, 170o, II. |< i lii o l
70. G E R S O N , j.ih d tif dex diverses tentritlom de TEnnetni, UI , ( i l m l t um, \II
p. 343-359.
71. Ibiil.i p. 370 389.

: íh l
Para medir essa propaganda » ulpablll/udnia, alguns mime*
i " . ,,n> necessários, o lexto da Suma tio AV/ e conservado por
uma i entena de manuscritos,'-’ de/, d oh quais são traduções ingle-
sa»i <) M anipulas curatorum de (iuy de Montrocher deu lugar a
pi 111 menos 98 edições^no século IS e a uma dúzia no 16 (em
r ni., l oiulres, Veneza, Lovain e Anvers). Da Summa angélica, vi-
llpendlada por I,útero, conhecem-se 24 edições de incunábulòs
i impicss.is em Veneza, Lyon, Nuremberg e Estrasburgo) e 23 do
0 i ulo l(>. () Opus tripartitum de Gerson - 16 edições no século
1 . conheceu um sucesso duradouro até o século 18, com os
bl pus franceses continuando a recomendar sua leitura. Aparece-
lam traduções em flamengo, em sueco, em alemão e em espa-
uliul, not.idamente no México em 1544. As obras completas de
•icisi >n foram elas próprias impressas 10 vezes antes de 1521. Do
.i ii / >e modo au dien d i confessiones, foram assinalados 54 manus-
tiliu', Entretanto, os" dois “gigantes” no domínio da literatura
i i li slastk a consagrada ao pecado e à penitência foram André
•II siubar e Santo Antonino. Do primeiro, o M odus confitendi
I•\• •civa de 86 edições diferentes publicadas no século 15 em
' \ •idades da Europa, enquanto o Lumen confessomm, por seu
i idu, era difundido por 48 edições de incunábulòs. Quanto ao
• onfcsslonale de Santo Antonino, ele foi impresso 119 vezes no
»u •ulo 15 em 32 cidades.7 7
23
Essas obras de autores muito conhecidos não podem fazer
• n|iiccer'os tratados anônimos sobre a confissão que a imprensa
ignia espalha em profusão por toda a Europa: assim, na Alema­
nha, i Miele hulero vai logo entrar em cena, o Fspelbo da confissão
do\ /u'uidores ( Peycht Spiegel der Sünder) publicado em Nurem-
bcig em 1510 e o M a n u a l para os padres das paróquias que al-
•uuça cerca de 15 edições no século 15 e três outras ainda em
I d .’. IS li. O primeiro, em língua vernácula, dirige-se aos fiéis:
|m\viii confessor, declara o autor, fui solicitado por vários peni-
i•ules a compor para os leigos um pequeno tratado sobre a con-
llssai)" (pie tem, entretanto, 200 páginas. O M an u al para os pa
do-\ das paróquias, ao contrário, é em latim, mas de escrita fácil
• manuseio cômodo. Ele parece ter sido, na Alemanha central

72, BRAYER, E. “Contenu, strueture... p. 2.


\V lista indicação e as que precedem em TENTLER, Th. N. Sin an d Confes-
tion..., p. 35-41. Cf. também FÈBVRE, L.; MARTIN, H. J. LA pparition du
livre. Paris: Albin-Michel, 1958. p.,382.
(.Io n anos Imetllalamenle anteriores .1 Reforma, lint (I o n llV h H di
cabeceira dos párocos,'' Ma.s essas obras, convem repelir, miMU
(uem apenas dols elementos de nina enorme blblloici ,1 mide J
encontram, manuscritos ou Impressos nos sáculos l > < ln imi
meros “Espelho de pecadores" e outros jaulas para nina boa mu
fissão. Um catálogo alemão conseguiu levantar so para a palavft{.¡
“confissão” cerca de 35 edições diferentes de obras anónima* |«H
blicadas entre a invenção da impfensa e o ano de l >011 Mi iMti
particular deve ser feita aqui de poemas de 100 a ¿00 \emo* t, n|H
tema comum era “confessa-te depressa” (poeultcas 1 lio) I ' im h"
século 15, foram identificadas seis versões diferentes dessa advtfn
téncia urgente. A mais difundida, em i I I versos ruin ............ un
e glosas entre as linhas, era intitulada Llbellus de modo /meríffeMT
d i et confitendi. Foram encontradas SI cdiÇoes pubis adaft •1
1485 e 1520, das quais 6 em Colonia e urna díizla em 1 ida unta
das seguintes cidades: Paris, Anvers e Deventer.
O convite à introspecção dirigido pela lgre|a aos leigo* d
via forçosamente utilizar o canal das línguas correnlemenle la|£fl
das na Europa da época. Assim, o M an u al dospesados, ulna ut
glo-riormanda, foi traduzida em inglés a partir do mona itln >m
que o francês começou a ser “muito desconhecido" alein do
nal da Mancha. Senão ele corría o risco de empoelrar na lo|a dtf
antiguidades. Daí sua adaptação em inglés no século I 1 pifo
Monge Robert Mannyng sob o título Ilandlynp V|*////*• um pi1*
, ma de mais ou menos 12.630 versos enriquecido de ,medula* |
de contos.’’0
Duas obras oriundas cios meios eclesiásticos, mas d. ima
das a um público relativamente amplo e escritas portanto ■m In»
gua vernácula, merecem na França menção partlculai, o / umif
nal para as pessoas simples e o Composto e Calendarlo do\ /•,(*
tares. Existem dois D ou trin alC uma versão curta atribuida a* VÜn7456

74. tbid., p. 42-41.


75. Ibid., p. 47-48. MARTIN, H. Anuales E.S.C., »ov.*dc». 10 *•». ,, 1 <m|
insiste sobre 0 interesse de um estudo dos manuais de confhsdo aluda ui-mni
tritón. Mc l'cr. um deles ser estudado na Universit^ de l iante Hniayin il<»H
nes) por um estudante de mestrado, UftKAU, K. lüHtlon «7 1 omm, ntalto I
ms H.N. Anafyse dan manad de confesseur, ex, dact., Kenue\ I'» '»
76. ARNOUU). I'.. l e M anad.,., p. 292-355. ( 1 tambrín Dllltt >1 M M
I.a Uttémturt anglaise da Moycn/Igc, Paria: PUI;, I9(>2, p. 107.
77. (1 AMAI VI MI/.ZI, ( !h, l e "Doctrinalanx tlttiplft grtn “ ou "I ú,
Sapitncc". cd. crítica e comentarlo: lese dc ITdoIc des ( liam |9 li
,i Gtiy cU* Roye, Arcebispo ele,’ Srns (1385-1390), depois de
I*. 11ii i ( I soo 1*109), outras vezes a Gerson; uma versào longa, as­
ín lila por um monge de Cluny c|ue d l/ tê-la composto em 1388.
•' m Um e urlo e representado por 20 manuscritos, a maior parte
■In quais pertenceram a leigos. Mas ele só conheceu uma única
ili» i" antiga. Km com pensação, o texto longo, que foi traduzi-
lo . ui provençal e em inglês, é conhecido não apenas por 15
m um .i ritos mas ainda por umas 37 edições escalonadas de 1478
ii. 11n ados do século 17. As quatro mais recentes, com um tex-
|i i ........vado ao gosto da Reforma católica, fazem parte da “Bi-
lillnli i ,i azul” de Troyes. Inspirado ao mesmo tempo na Suma
i/n e no M anipulas de Guy de Montrocher, o-Doutrinai para
o. prwnus simples ou D outrinai de sapiência (versào longa) é ao
ito lino tempo um breviario da fé, um tratado de moral, um guia
I* o i le. párocos c um livro de devoção. Catálogo de verdades da
. |i in a, mas também de proibições, ele concede maior espaço à
...... il th i que ao dogma; insistindo incessantemente sobre a pai-
tiitli- ( ,i Isto, ele convida o homem a sofrer e a afastar-se de um
itiniH1 1 pecador.
Mais original é o Composto e Calendário dos pastores pü-
blli ii lo em M9I pelo impressor-livreiro Guyot Marchand, padre
aill ila i u|a oficina situava-se atrás do Colégio de Navarra (antiga .
|i••all/açao da Kscola Politécnica). A edição de 1493, consultada
•tipil, e mais completa que a anterior e enriquecida com desenhos
ili Sntolne Vérard.7* O livro pretende ser enciclopédia para pes-
iiiiis simples. () pastor, que supostamente redige este almanaque
ilu iii Hli >, fornece a seus leitores toda espécie de indicações úteis
oble as luas novas e os eclipses, sobre “a física e regime de-saú-
ili sobre “a astrologia dos signos, estrelas e planetas e fisiono-
miI.i dos pastores”. Mas mais de um terço desse calendário muito
illililllco c* consagrado à “árvore dos vícios, à árvore das virtudes
• t tom* de sapiência figurada”. Com muito refinamento, o autor
idi niilii a os 87 galhos entre os quais se diversificam os pecados
• ipil,tis c ainda os subdivide atribuindo três ramos a cada um, ou
i 11 um total de 2 6 1 “ramos”. Mas estes, por sua vez, dão origem
•iida um a três "folhagens” distintas, de modo que chegamos ao
ini.il impressionante de 783 possibilidades de cair em um dos

H, / r' Comjfost et K alcndrier des bergiers, repr. em fac-símile da ed. de G.


M.u diam (Paris, 1493), intr. de CHAMPION, Pierre. Paris: ed. des Quatre-
( licmins, 1926.

¡187
íícll'' pct'lU.loN <.ipllitls, I.OglCMIlK'Mte i’.sMil Ii dtfNcrlÇilO d,l dlVOl
re dos vicios r seguida d.i evocação eom Ilustrações das pt
ñas do inferno, comlnatõrla.s dos pecados", cuja conlrapurtklu á
a “ciência salutar o a árvorc ou campo das virtudes", Ao termo
dessa lição de moral tito detalhada, um diagrama hem es» ohhlh
co expõe a arquitetura da "torre de sapiência" em rujo pico se oí
um cadafalso e um enforcado: essa c a puniçào que espera o*
“maus”, Como as danças macabras das (|uais ele integra urna \co
são, o Composto e Calendário dos pastores ê um apele) uigeni. á
urna pronta confissão:

Homem em perigo saiba certamente


Que, se tu não tens outro’ desejo brevemente
De te emendar, nem outra devoção, .
Tu te verás um dia subitamente
Homem desfeito e em perdição.7''

Com ou sem ilustração, esse calendário foi constanleiiu it


te reimpresso durante três séculos pelos editores especiall/.idun
808
9
em obras “populares”.7 12

o pecado na literatura leiga


Ao lado dos eclesiásticos, os leigos - como São lui.
pòem-se, por sua vez, a dissertar sobre o pecado e nos mesiiu >>. it i
mos que eles. É o caso, desde o século 13, do cavaleiro |<,m dt
Journy que redige em Chipre um poema unicamente cons.igi i d o i
confissão, o D ízim o de penitência, trabalho que lhe l'b| Impo i
para a expiaçào de seus pecados e que ele executa "alegivmenli ’

79. P 32v°.
80. MANDROU, R. De In eu/ture populaitv aiix XVII'-XVllI sièe/ru Io J
ed.), Stock, p. 44. BOLl.kMlí, ( I, Àbnttnuchspopuluires <m\ XVH o \l IIt
sièdes. Paris-La Hayc: Mentón, 1969.
81. Cf. O’CONNI‘1 I , l>,; I I1 tiOI;l;, |, les Propos de Siihit luuí\ l\uU*
Gallimard ("Archivo."), I*) ’ i. p, 142 bi-1.
82. ARNOUII), I•■I e Mente/ . p. S6‘) V/S. Umu alisto il*i Jditie de p,'nl
tunee fbl trio |>oi 11, bicynniim, TUbiiitycn, IH74.
11» t'\p ||u ! que nos.HU carne 0 um "espia" (um espião) que nos cs-
Ioi li.i r (|iic! nosso corpo não cessa tU■ nos combater com um exér-
•iim i |uc iom por ca piules Inveja, Ira, Avarc/a e, sobretudo, Orgu-
llii •• Arrogância. Alguém só pode "se vingar" de seus pecados pela
pt ullênela que compreende a contrição, a confissão e a satisfação.
\ amargura" ou contrição é como uma lixívia que exige cinza ati­
va e longos movimentos da roupa suja. Tão logo o homem toma
t min léñela da extensão de seus erros, “tão logo os diga sem de­
ntina" (,)ue ele remexa suas faltas como a lavadeira faz com a sua
milpa, I lina vez feita a confissão ao padre, que ele aceite de bom
Miado |e|uar (a arma suprema contra a carne) e realizar as outras
i iln i . de penitência que arrombam a poita da prisão onde o Inimi­
go m.miem o homem cativo. Menos didáticos, mas mais comoven-
|i . são os (À)iií>cs de jean Bodel, o poeta leproso, que datam do iní-
i Io do século 13 e constituem talvez a mais antiga confissão literá-
tl,i em francês."' () trovador de Arras pecou: ele aproveitou mal os
pia/eies da vida. Deus, por meio de uma horrível doença, o leva
...... .. ai •arrependimento e o faz entrar numa “quaresma prolonga-
d i .■ uma "penosa semana” (isto é, uma Semana Santa) que se pro-
li 'iii' iia ale sua morte. Ele aceita esse sofrimento como uma expia-
•ao que deve levá-lo a Deus:

(,)ue Deus me faça então suportar


i > mal que atormenta meu corpo
(,)uc eu consiga aceitá-lo
r.ii .1 a Deus minha alma apresentar (v. 537-540).

Uulebêuf, contemporâneo de São Luís, que conheceu infe-


lii id.idfvs conjugais e dívidas de jogo, é animado por uma violen
i i animosidade contra as ordens mendicantes. Mas ele aprendeu
da Igieja por onde passa'o caminho do céu. Esse itinerário, cia
lamente balizado em A Viagem do paraíso*' afasta-se sistemática
i nenie dos lugares onde habitam os pecados capitais. Piedade
um homem casado em Caridade - indica ao poeta como se tllii
gil i i asa da Confissão evitando a perigosa residência do Orgu
U m i. "amigo de todos os pecados”. Um pouco mais al^aixo da casa

Ht, lliitl., p. 579-586. Cf. FOULON, Ch. L ’CEuvre de Jean Bodel. Paris: PUF,
I95H.
H i. Resumo do Voyage deparadis em DUFOURNET, J. Rutebeuf. Poésies. Pa- .
lis: 11. Champion, 1977. p. 74s.
lio ( Huillín, i Icm i’Mtlo mil HCglO vlllf, els ;l l'ilNil il.l Aviliv/i», l II
jos vassalos sao nebros, depols o domicilio ila Cólera "que •|io i
sempre cerrar os denles". Seus pilares sao (ellos ele odio e *UA
porta de tristeza. No fundo de um vale escuro, ele onde a luz de
sapareceu, esta escondida a Inveja, nao muito longe ele onde i *| i
instalada a Ociosidade, "a tia da preguiça". A alguns passos dali
'na estalagem do Acaso, vive (íulodice, "Irma ele Excesso" t„)uan
to a Luxúria, ela é vizinha próxima ele (iulodlce. (v)uem entia a
cavalo em sua casa, sai dela nu e sem sapatos, lila eleslról o col
po e a alma e cobra caro seus serviços, lóelo homem i,Motive)
deve então evitar esses maus domicílios e dirigir se sem desviou
à Cidade do Arrependimento onde a desgraça jamais t liega paia
ninguém. Essa cidade foi fundada após a ressurreição de < il lo
no dia de Pentecostés, no próprio lugar em que o Espirito Santo
veio à terra para inspirar aos apóstolos a conversão dos peilldiM
judeus. Ela é protegida por quatro boas portas que se chamatit
respectivamente Lembrança, Esperança-na-bondade do Sah id •
Medo e Verdadeiro Amor. Esta última dá acesso á casa d e ........
são que purifica tudo.
Essa estrada difícil que leva ao paraíso, Dante lambem i
segue naquela grandiosa epopéia de um tipo novo, a Plntim < n
média, que é a mais bela realização.literária da Idade Media I
sintomático que essa obra poderosa seja inteiramente base,ida so­
bre o pecado, já que é a evocação dos castigos definitivo* ittl
provisórios daqueles que cederam ás tentações satánicas e das n
compensas* concedidas às almas de elite que resistiram a « Ia*
Desde o primeiro canto da Comédia, parece que o eamlnhi * pai i
a graça divina é barrado por três animais: a lupa (cupidez), a /<
za (luxúria), o lione (o orgulho). Dante foi o genial i . n u .......li
condenados, mas também dos eleitos do purgatório, l’oiqin i I.
não se contenta em descrever o banho ignóbil onde se eslinga
Tais encolhida, os túmulos de fogo onde estão aprisionado* «ia
que negam a imortalidade da alma ou o espetáculo alm Inanlg
dos autores de discórdia que exibem eternamente seus ««npi M
despedaçados. Ele reserva também duros suplícios aos Iniuio*
bem-aventurados purificados por algum tempo no purgali >rln Np
inferno, os coléricos são afogados na lama do Styx, os do pmg i
tório procuram com dificuldade seu fôlego na espessa Inmaçit
que enche o patamar em que se encontram, Os simonía* o-, dn
oitavo círculo são enfiados de cabeça para baixo na terra de que
foram ávidos, os avarentos e os pródigos do quinto patamai * »
Un estreitamento ligados ao solo No Inlerno, línguas de logo
* aun sobre os condenados por sodomía; no purgatório, um muro
di t liamas bloqueia os luxurlosos no sétimo patamar, homósse-
mials e heterossexuais juntos, Mesmo se o poeta, pela ficção de
uma viagem ao além, proporcionou a si mesmo cômodas oca-
iloes de vlngar-se de seus inimigos, é impossível nào colocar a
C u in o Com edia no centro da história do pecado no Ocidente,
olirruido (piando se leva em conta sua ampla difusão OS edi-
. i íes no século IS, 30 no 16), que nào é sinônimo todavia de urna
\udadelra compreensão por parte dos humanistas.85 Pela sua
nina prima, Dante demonstrava em todo caso que a culpabiliza-
i an iInlia se tornado desde o século 14, mesmo entre os leigos,
a glande preocupação da cultura dirigente.
I o que provam de outra maneira dos Contos de Canter-
bnry Nesta coletânea redigida por volta de 1386, o poeta escu-
d< ii'», que desposou urna dama de honra da rainha, ouviu os ser-
..... es de Wyx'lif e conheceu Froissart, pretendeu traçar urna vas-
ln quadro da sociedade inglesa de sua época. Ele evoca grandes
h ni lores e cavaleiros, clérigos e monjas., mercadores e campóne-
.i s, ira ha Unidores e ladrões, tendo com o quadro desse afresco a
peregrinação que todo ano atrai a Canterbury multidões de fiéis,
i »ia, o ultimo c/onto - mas será que é.de Chaucer? - é um trata-
dn mullo didático sobre a penitência, colocado na boca de um
■Igado de paróquia.*6 O caminho da salvação, declara ele, passa
pela penitência que é uma árvore cuja raiz é Contrição. Confis-
sao constitui seus ramos e folhas, Satisfação, o fruto, ficando en-
lendldo (|ite Arrependimento não concerne apenas os atos mas
lambem as intenções, não apenas os fatos mas também as pala-
vias A Contrição, que se acompanha de “maravilhosa angustia”,
de\ e durar tanto quanto a vida do homem. “Ela destrói a prisão
di i Inlerno, enerva e enfraquece as forças do diabo, restabelece
m dt ms d< i Espírito Santo”. O vigário do conto que leu Santo To-
ma,i de Aqulno, estabelece a mesma distinção que ele entre pe-
• ido mortal e pecado venial. No primeiro, “ama-se a criatura
mais que Jesus Cristo”; no segundo, “ama-se.Jesiis Cristo menos
dn que se deve", 'lomemos cuidado com a acumulação de peca-

to. iT.BVRE, L. c MARTIN, J. LApparition du livre, p. 388-389. RENUCCI,


I! l\mu\ Paris: Hàtier, 1958. p. 225.
H(). Utilizo aqui a tradução francesa publicada por Alean, Paris, em 1908,
p. 51 1-523.

:u)i
dos veníais: "I Iimii guilde o ik Iu do mur vrm as viv .cn mili Mó
gnmck* vloléndti que engole o navio. f. essa inesmu desgrana, *áu
íis vezes pequeñas golas de agua (|iic a proclu/.em, quatulo |m
netram na semina por uma estreita lenda e dai alé i> fundo dt*
navio, se os marinheiros nao cuidarem de esvaziar".
Segue uma analise detalhada dos peeados capitais e dio
remédios para combate los. I >c- Orgulho nascem laníos ramo«i
que “não há padre que os saiba enumerar". Mas Inveja é "o plo|
dos pecados porque, enquanto todos os outros pecado?....... uh •
tem uma virtude particular, Inveja combate todos". Coleta, pm
sua vez, “é a caldeira do diabo, que esquenta o logo tio Inh i
no”. Ela destrói todas as coisas espirituais, com o o logo dt tio|
as coisas terrestres. Preguiça sobrecarrega o homem c e pet ado
mortal porque o Livro diz: maldito seja aquele que fez, m gllgt ti
temente o serviço de Deus. A Avareza, concupiscencia do «oui
ção pelos bens da terra, é uma atitude ele idólatra, "so que o ido
latra por acaso nào tem mais do que um ídolo ou dol.s, enqutth
to o avarento tem varios. Porque todos os florins de sen mffl
são ídolos para ele”. Guloclice corrompeu o mundo, como mu \P
no pecado de Adão e Eva. Ela tem diversos galbos, e prlmelio a
Embriaguez que é “a sepultura da razão humana", lüs os oiilno,
segundo São Gregorio:

A primeira é comer antes da hora; a segunda c pro< uiai • atún


e bebida delicadas; a terceira é comer exageradamente; a qtiiHlil
é curiosidade em cozinhar e temperar as carnes; a quinta • • ■ i
m er gulosamente. Esses sao os cinco dedos da m á o d o dial ■■ • |■ ti
m eio tíos quais ele atrai os homens ao pecado.

Mas os galhos da Luxúria são os cinco dedos da oulra mito


de Satã, sempre desejoso de arrastar o povo à “infâmia";

O primeiro dedo é o olhar louco; o segundo, falso.s ti >•pi»


porque quem toca em mulher toma em seus dedos .serpente que
mòrdé ou piche que mancha; o terceiro, palavras sujas -u-melhan
tes a fogo que devora o coracáo; o quarto, beijos; na verdad» tn
sensato é aquele que aproxima seu.s lábios cie uma fornalha, nu i
mo em legítimo matrimônio, porque alguém pode nmt.u .se »«nu
seu próprio cutelo ou embriagar'.se bebendo em seu tonel <»
(juinto dedo e o pet ado fétido tle llbeitln.igem.
A hornilla termina rom ronuellion sobre a maneira ele se
I Iinl'essiir e um convite para e\'llai quatro ohsiarulos C ]u e atrapa­
lham a penitOnda: 'o meció da explanan, a vergonha de recitar
n u*. pecados; a esperança de viver multo tempo ou ele obter sem
rd o rço a piedade de Deus; ao inverso, a desesperança da mise-
iii onlla divina e de sua própria correção. Evidentemente, essa
piegaçao plena de unçào é tributária das diferentes “Sumas” e ou-
IIIis "Manuais de pecados” escritos anteriormente e dos quais en-
lievlmos a longa lista. Ela”permite, senão medir, pelo menos adi-
vInhar a propagação para um público cada vez mais amplo da
onda de culpabilizaçãò proveniente dos meios eclesiásticos. Da
mesma maneira, o H andlyng Synne é reutilizado em meados do
ii'rulo IS por um nobre inglês, Peter. Iclle, que redige Instruções
•li ".tinadas a seu filho - coletânea da qual nos chegaram oito ma­
ní im ritos. De fato, Peter Idle não se dirige apenas a seu filho, mas
a Iodos os cristãos que ele põe em guarda contra “o mundo, a
. arnc c o diabo”, lile os incita então a examinar-se à luz dos dez
mandamentos e dos sete sacramentos, a fim de evitar “o pecado
mortal no qual os homens caem diariamente”.87
Na I'rança, o Adm inistrador de Paris é também uma cole­
tai Hu de “instruções”.88 Um burguês parisiense rico e idoso o
i ompòe por volta de 1393 pára uso de sua jovem mulher, mas
também para outras. Porque “eu sei, escreve ele, que depois de
u". < de mim este livro cairá nas mãos de nossos filhos ou ou-
lio.s amigos nossos”.80A obra contém alguns lembretes históricos,
liilormações úteis sobre os alimentos consumidos pela Corte e
pela população parisiense, preceitos sobre a arte de dirigir uma
i asa, conselhos sobre jardinagem e a escolha de cavalos, um ex-
tenso tratado de cozinha e um outro não menos detalhado sobre
,i i .a. a com falcão. Mas ele começa por uma lição de moral e úm
manual de confissão, baseados sobre a lista agora clássica dos pe~
i ad os mortais e das virtudes que lhes servem de remédio:

Agora vos mostrarei ... em que vós podeis haver pecado; e to ­


memos primeira mente os nomes e condições dos sete pecados
mortais que sào tão maus com o todos os pecados que dependem
deles, e são chamados mortais pela morte a que a alma é arras-

H7. ARNOULD, E. J. Le M anuel..., p. 338-339.


88. lulit. J. Pichón, Paris, 1846, 2 v.
89. íbitl, I, p. 62.
tuda quando o Inimigo pude envenenar o coração por ulna di
les, I também, paia vos salvaguardar doravante daqueles peta
dos, eti vos nu>sii.uvl r ensinarei oh nomes e os poderes das sety
virtudes que sao contrarias aos sute pecados anteriormente u le
ridos c sao medicina c remedio contra aqueles pecados que nao
são dependentes e que si1chamam mortais porque assim qut a
virtude chega, o pecado Coge completamente.'"'

Cada pecado é naturalmente subdividido cm "ramos", de


cuja enumeração decorre uma moral austera: porque e urna esh
têntia bem regulamentada cjue o marido propóe, ou melltui luí
põe, à sua jovem mulher: nada de.dormir até tarde, nada de es
cesso à mesa, nada de fantasias inconvenientes com seu cnii|ugei

O terceiro ramo da preguiça é a carnalidades (ãirnalld.idi


quando se busca o desejo da carne, como dormir cm bous i a
mas, repousar tongamente, dormir até tarde, e de manha quando
se está bem à vontade na cama e se ouve o sino da missa, nao
dar atenção e virar do outro lado para dormir de novo,,, <) pil
meiro ramo [da gulodice] é quando uma pessoa come antes do
que deve, isto é, de manhã fnuito cedo, ou antes dc rezai suas
orações ou antes de ir ao mosteiro e de ouvir a palavra de I »i u>«
e seus mandamentos; porque a criatura deve ter senso < <11<<11
çào de que não deve comer antes da hora terça |9 horas d .......
nhãf.se não for por causa de doença ou de fraqueza ou poi i|
guma necessidade que obrigue a isso.

A jovem esposa é então convidada a contar ao seu eoiilcssoí,


“Eu muitas vezes bebi sem sede...; carnes também eu coml sein
fome e sem necessidade...”.
No “quinto ramo de luxúria”, é pronunciada a advertem Ia se
guinte: “Todo homem pode bem grandemente e de multas ma
neirás pecar com sua esposa”, quando os cônjuges se compoii uu
“contra o direito e nada honestamente".”1

Uma das características principais da cristianizaçai >Intcnsi


va na época em que nos situamos consiste na extensão a uma
população inteira de uma regra de vida concebida para .iseelii*
Ampliada às dimensões de uma civilização, essa ética dr.u oiilauu

90. Ihid., 1.1>. 2tt.


91. Ibkl.. I. p, l() II, P> s.'

MiU
•.o Integra o casamento a coiilugi >si<> voltaremos a fular dlsso —
• mede com rigor os divertimentos dos leigos. Na ldadc Media,
a*, relações sexuais eram proibidas para as pessoas casadas du­
rante as épocas de penitência coletiva quaresma, vigílias, nove­
nas e triduos. Um jejum sem continência era apenas um meio-je-
|um, Alegrias da mesa e alegrias da cama eram consideradas
tom o companheiras. “Um cálculo rápido desses dias [de proibi-
i, ao| no calendario medieval, escreve Franco Chiovaro, leva á
11 inclusão que, durante quase a metade do ano, era necessário
abster-se de relações amorosas no casamento. Se a tudo. isso
acrescentarmos os períodos de menstruação é dé gravidez - três
meses antes e quarenta dias depois do parto - , deve-se dizer que
a malor parte do ano o amor era proibido entre os esposos.””-
No momento em que se esboça a modernidade européia,
a meditação sobre o pecado invade a consciência da elite culta e
se exprime principalmente no discurso poético. Numa célebre
paráfrase do Pater, o retórico Jean Molinet (1435-1507) desenvol­
ve assim o versículo Debita nostra-.
1 '
Por falso olhar, língua gulosa,
Boca muito glutona e vadia
Tanto em falar como em carne,
Nossa pobre alma, vil e suja„
O curso da razão desborda...

Y. ITançois Villon confessa:

bu sou pecador, sei muito bem,


Entretanto, não quer Deus minha morte,
Mas que me converta e viva no bem,
1! assim tocio homem que o pecado morde.'1

l)2. CHIOVARO, F. “Le Mariage chrétien en Occident”, em DELUMFAU,


|. H istoire vécue du peuple chrétien, 2 v., Toulouse, Privat, 1979: I, p. 240.
(. ionclusões concordantes, e até mesmo agravadas, sobre a Alta Idade Média,
de FLANDRIN, J.-L. Un Temps pour embrasser. Paris: Seuil, 1983. botada­
mente p. 112-116.
93. Bibl. Sainte-Geneviève, Paris, ms. n. 2.734, f” 3s. Citado em CHAM­
PION, P. H istoire poétique du X V siècle, I, p, 410-411.
l)4. VILLON, F. CEuvres, ed. A. Longeron e L. Foulet, Paris, Honoré Cham­
pion, 1966, p. 15 estrofe XIV do Testament.
I reveladni que, nos países tio língua alema, o poenui de
Sébastlen Brant, .1 Nau </uv hisensciUKS iNcirrenscb(fl) ■ I i‘) i u
nha conhecido um extraordInfrio sucesso, "Poucas obras, escimi
verá alguns anos ck-pols lllrlch ele Mullen, na llleratura de indo*
os tempos e de todas as nações, exerceram uma açao lao ampla
e rápida.”'* Seu autor foi comparado a Homero, Dante < I** li u
ca. O pregador Geiler pronunciou na catedral de l'siiasbuigo
uma centena de sermòes cujos temas eram extraídos de I \.n>
dos insensatos, a qual inspirou também Murncr, Fl.schail, l m im
e Sachs. A obra conheceu rapidamente uma adaptação lallna m
traduções* em francês, inglês, flamengo, etc. l-oi um dos giaiidt*
sucessos de livraria do século 16. Filho de um estalajadeiro de I ^
ttasburgo, “doutor nos dois direitos’’ pela Universidade de IIa a
léia, S. Brant retomou em 1500 (aos 42 ou 43 anos) a sua t ldad|
natal da qual se tornou secretário até sua morte em IV J i M
leigo casado e pai de sete filhos leu todos os autores <lassl» im ul
nhecidos, latinos e gregos, e nutria uma viva admiração pul S Io
gílio. Mas sério, irritável, piedoso e pessimista, ele escreveu »tiÉ
35 anos seu poema sobre o pecado. Porque assim e o A,m , in
chiff. “Os loucos são os homens atormentados de vícIon que
ignoram, os insensatos'cujo comportamento contrário a b l dh I
na os destina à perdição.”% Brant também denuncia com Igual VI
gor os defeitos veniais —mania de viagens, desobediência ai •mh
dico, hábito de cantar serenatas noturnas - e os vícios mal< nea «
orgulho, cólera, inveja, etc. Os pecados capitais sao enUlll d»<
novo vilipendiados, é bem verdade cjue em desordem e em inclit
a diversas sátiras ridicularizando os charlatáes, os escribas, »»s ml
dados e os falsos eruditos. Como um pregador, Brant lihilga i
dança: "... Refletindo que a dança nasceu/ com o pecar lo \I mi||
clareza que ela saiu do diabo que criou o bezerro de ouio paitl
zombar de Deus / ... ela anuncia a morte de toda honestidad^
O pecado de omissão tem direito a uma menção parti» ulai i •
tem muitas árvores / Que queimam no inferno Por nao lei que
rido produzir bons frutos”.08 Hssa sombria evocação ck* uma Im
manidade louca e titubeante está incluída num panorama e*i alo»
lógico, sobre o qual insistiu o volume anterior: o llm do muiulÉ

95. Citado e m BRANT, S, /*/ Ne¡d e s Jbtü (prcfiicio de 1*1». I )olllnp,f i)


96. Ibid.i |>. XII,
97. Ibid., |>. -Dl.
‘)H. Ibid , |i ■!.!(>

MIM!
• no horizonte*: "O Dia do Julgamento m- aproxima de nós! /
•odio desprezou o perdáo dos pc*t ado\ luz ela graça, /as tre-
' i', i oíais / vilo logo nos mergulhar / numa noite opaca; / vai n o ss
d ohlecer / o que jamals se den: / a Ñau será logo / virada, de
quilha para o ar”.<r>

00. Iliiil., n. 414.


capítulo 7

o territorio do
confessor

a iiiveja
A obrigação da confissão, decidida pelo IV Concilio de La-
11,1*> ( 1215), provoca urna enorme ampliação do poder e do ter-
i Hurlo do confessor, transformado agora em especialista ele casos
dr consciencia. Urna casuística ao mesmo tempo refinada e ma-
i ii ,i modificou profundamente as mentalidades huma civilização,
ela própria, em via cie transformação.
O estudo cie Maclame VincentrCassy consagrado à Inveja
ihi I''rança do século 13 ao 15 mostrou bem como os esforços da
Igreja, aliados à evolução econômica e social, levaram a uma to­
mada de consciência coletiva daquele pecado capital, antes mal
percebido pela opinião média. Certamente que ele figurou muito
i edo na lista negra dos pecados maiores estabelecida pelos espe-
•lallslas da teologia moral. Mas muitas pessoas confundiam a in­
veja com o ciúme amoroso e, antes do século 13, “com algumas
exceções, ela jamais é realmente reconhecida, nem nos manuscri­
tos, nem na escultura, nem na pintura. Ninguém sabe representá-
la, porque é um pecado cujo conteúdo não se apreende”.1 Em
( ompensaçào, desde 1216-1219, nos estatutos sinodais de Angers,
do qual cada padre dessa diocese clevia em princípio possuir um
exemplar, encontra-se esta fórmula: “O confessor perguntará ao
penitente se ele se aflige ou é afligido pelas vantagens do próxi­
m o, ou se ficou contente pelo seu infortúnio”.2 Por seu lado, San-

1. VINCENT-CASSY, M. LEnvie en Frunce..., p. 52.


2. <aculo em Ibid. p. 53. Cf. PONTEL, O. ed. e trad. dos Statuts synodaux
français du X III stècle I, Les Statuts de Paris et le Synodal dé l ’Ouest: v. VIII dos
Por. inédits de 1’h istoire de Frunce, p. 221.

:ií)i)
to Tomás tic Aqulno mostra c|iic I.úelftT c os demônios so m iiii1
teram e com ctcm dois pecados: o orgulho c .1 Inveja. I! poi mgu
lho que eles desobedeceram a Deus. Mas sua decadenc ia eoush
te em ser dilacerados pelo terror da Inveja, uma ve/, que, poi um
lado, eles olham em vào para a direção do paraíso perdido e, ptit
outro lado, desesperam-se por ver-os homens chegando ao lui al
da felicidade, de qnde foram excluídos. Então eles procuram pela
tentação impedi-los de atingir o porto da salvaçao.'
O cistèrciense normando Guillaume de Digullevllle, <pu-
redige entre 1330 e 1358 um poema alegórico em três parle . 1Pe
regrinação da vida hum ana, Peregrinação da alma e Peregrina
ção de Jesu s Cristo), dá uma descrição evocalória da inveja. < oill
efeito, o peregrino que ele pòe em cena encontra uma velha mu
Iher macilenta que se arrasta como uma serpente. <)s dois daidi m
que seus olhos lançam são “furor pela alegria do próxlmc >" 1 tii
gria pela adversidade do próximo”. Ida carrega nos ombro1, li a
Ção c Detração. A primeira, perita em enganar, dissimula uma
faca e uma caixa de veneno. Ela morde sem latir, encolhe se na
relva como a serpente que espreita sua presa, l ia é prancha •ai
comida que se rompe sob oi> passos. “Detração” ( - maledlc ém Ia)
tem entre seus dentes a extremidade de uma espada que .ilrave»*
sa as Orelhas c|iie foram complacentes para as suas cruéis menti
ias. lia tem o rosto ensangüentado como o lobo que estrangul' itl
uma ovelha.' Essas descrições assumem toda a sua Importam la
<|uando se sabe c|ue as obras de Guillaume de Dlgullevllli •111
particular a Peregrinação da vid a hum an a, conheceram um vivo
m u esso até o século 16 e mesmo além. Porque a célebre I (agem

do peregrino (1678-1684) de John Bunyan, que permaneceu du


ranle multo tempo entre os anglo-saxôes com o o mais populni
de Iodos os livros depois d a Bíblia, é uma imitação da Perigrl
nação da rida hum ana.
Realizando sondagens nas crônicas, romances, poema* e
obras satíricas francesas dos sécujos 13-15 e relendo para <ada
século um número sensivelmente igual de páginas, Madamc Vlit
cent-Gassy apercebeu-se da muito fraca frequência da palana
"Inveja" no século 13 (o que parece verdadeiro também paia o

V. IbKl., p. 7H. < ’l. Sumi teológica, l\ guest. 63, art. 1 c li ll a qucM. 10, mi '
1. Ibiil., p, 71-73. Mine Vintenia ússy remete ao texto e iVs ininliutli.u á" m»
1130 ila Bibl. SaiiHc C¡cncvièvc.

400
I ). () tu mo so é empregadv>iluus vezes por Vlllehardouin e nao
ii encontram mais que seis menções nas 1500 páginas iri-4° que
icpiesenla a versão de 1225 ele Lint celóte do lago na edição de
Sununer. Durante a primeira metade do século 14, a situação não
muda em nada: nenhuma menção em Joinville, nenhuma em
|i m de Venette, duas apenas no cronista Guillaume de Nangis.
I ui compensação, registram-se 78 em Gilíes Li Muisis, abade de
Intimai, que escreve por volta do ano de 1350. Nas poesias de
I m.iachc Deschampa, inveja torna-se uma palavra-chave. No sé-
i iiln IS, o termo aparece 80 vezes em Monstrelet e 111 vezes em
1 liasicllain. Parece portanto que primeiro a Peste Negra, depois
ms acontecimentos trágicos dos anos 1380, aceleraram no plano
loleilvo uma identificação da inveja que antes só era clara nos
Hielos eclesiásticos.
( )utra pesquisa paralela à precedente e, desta vez, sobre a
li mingrafia da inveja na França durante o mesmo período chega
i et inclusões concordantes. Maclame Vincent-Cássy só descobre
11cs representações da inveja no século 13 e quatro no 14, mas
i • no 15. Mesmo se numerosas reconstruções de igrejas foram
uri essa rias depois da Guerra cie Cem Anos - o que pode expli-
• , i i parcialmente o último número - , impossível não encontrar na

din umentaçào imagética uma confirmação da pesquisa onomás-


111 ,i 1 Tudo se passa com o se uma civilização, pelo menos no ní-
vi I de suas elites, tivesse tomado uma consciência cada .vez mais
iguda do conteúdo e da gravidade da inveja. O que se pode tam-
bem atlivinhar graças ãs palavras-chaves que os textos associam
,i Inveja. No século 13, a sua conotação principal é a maledicên-
i i.i, no Li, a cobiça; no 15, o ódio: gradação reveladora ligada à
i voluçao do contexto social,7 revelando também uma sobrecarga
pu igressiva do conteúdo desse pecado. Porque a cobiça se soma
i maledicência e o ódio aos dois outros sentimentos.
Num primeiro estágio, a inveja é um pecado de língua co-
melldo pelos fracos e pelos inferiores que têm ciúme de seus su-.
perlores hierárquicos e se vingam assim de sua situação subalter­
na e o nível da maledicência. Depois - segundo momento - o
dinheiro e a alta burguesia introduzem relações novas na socie-
diiile. () clero, em primeiro lugar, é acusado de cobiça. Sobretu-

s.lbid., p. 115-120.
(>. Ibiil., p. 121-131.
y.flml.. p. 161-249.

101
cio os nobrt'N *' os novos ricos, cm razão chi mcs.i suntuosa e dai
vestimentas Insólenles, Icv.mi os pobres ¡1 cobiçar seus bens 1 1
povo deseja ;is riquezas dos abastados ckif as revoltas do sn 11
lo 14 —ao mcsm< •tempo poi sinal c|ue cert<>s senhe>rcs empol ire
cidos denunciam o ritmo de vida oslenlatorio dos arrlvlstas I n
fim, ao termo dessa evolução c‘ enquanto "a frequência d.i pala
vra ‘inveja’ explode”, eis que ela é associada ao ckllo, A 1 obl\ 1
do poder leva efétivamente a ódios inexpiáveis revelados |" Io
Cisma dó Ocidente, as guerras civis da França e da Inglaterra, a
competição entre os duques de Borgonha de um lado, 0 os ivll
da França, do outro. Os homens torpam-se Caim uns paia o-, otl
tros. A inveja, contrária ao amor e à caridade - com o ja notava
Santo Tomás de Aquino - , é pior que a morte. Fia e uma d um
ção sobre a terra. O Composto e calendário dos pastores ludlvl
dualiza nada menos que 13 galhos, 39 “ramos” e I 17 folhageim
para a inveja e a iconografia na virada dos séculos IS e 16 dlviil
ga amplamente as imagens do castigo infernal que espera os Im
manos culpados desse pecado:

Os invejosos e as invejosas estão num rio congelado e meigu


lhados até o umbigo enquanto por cima sopra um vento mullo
frio e quem quer evitar esse vento mergulha no referido gelo

Assim reza uma das legendas colocadas sob o grande |u!


gamento Final de Albi, que retoma um tema da segunda edlv io
do Composto e calendário dos pastores.
Se fizéssemos pesquisas paralelas a respeito dos outr< >s pe
cados capitais, será q u en ão encontraríamos o equivalente dessa'»
etapas de interiorização e de ampliação da noção de Inveja? Fu
demos pensar que sim.

a luxúria
Tomemos de início 9 caso da luxúria. O setenario oíl» 1 4
a coloca em última posição. No Composto ... dos pastores , ,1
exemplo da gulodice, ela e divida cm ap en as 5 galhos, |5 ramos
e 45 brotos, enquanto esses números transformam-se respectiv a
mente em 20, 60 e IHO para a "avareza" (l.slo e, a cobiça) 1
classificação e essa relativa lalia de Interesse pela luxúria (e pela
gulodkv) constituem uma herança «Ia li/a.i miirora estabelecida
l»ui Kvágrlo, o Pôntlco, (juc* aronsclluva aoâ Mondes do deserto
i|iie começassem por vencer a guloilkr e a luxúria para em se-
(Milda atacar pouco a pouco c por ordem de dificuldade cresccn-
lt os vícios mais resistentes. Mas, no Início dos,tempos.mocler- \
n o s , n o espírito de muitos diretores de consciência da cristanda-
»l«•, ,i luxúria encerra uma gravidade que contradiz sua habitual
i ulocacào no fim da lista. Um penitencial anônimo dos anos
I |0() ensina que a fornicaçào é um pecado “mais detestável que
0 homicídio ou o roubo que não são substancial mente maus”.
1'oique, em caso de necessidade, somos autorizados a matar ou
1 roubar. Mas “ninguém pode fornicar conscientemente sem co­
meter um pecado mortal”.8 Para os autores do Martelo das feiti-
>riras , que escrevem também no fim do século 15, “o mundo
esta cheio de adultérios e de fornicações sobretudo. entre os
principes e os ricos”; é o “tempo da mulher” e do “amor louco”
marcado para a desgraça de todos. É preciso suprimir pelo fogo
a mais grave das perversões heréticas - a feitiçaria: porque é o
picço a pagar pelo restabelecimento da ordem, primeiro no ní­
vel da moralidade sexual.9 No D outrinai de sapiência (ed. de
f r u y e s , 1604), obra amplamente difundida, é dito da luxúria, co­
lín. ida aliás na quarta posição dos pecados capitais contraria­
mente a ordem mais frequente: *
f

Não existe nenhum pecado que desagrade tanto a Jesus Cristo \


quanto o pecado da carne, e foi isso que fez Santo Agostinho di­
zer: que muitos daqueles que cometiam impurezas na noite em
que Jesus veio ao mundo morreram de morte súbita. E-cleve-se
até mesmo observar que durante todo o tempo de sua paixão,- ele
(amais permitiu que seus inimigos misturassem a mínima repro­
vação desse vício infame entre o grande número de*injúrias, de
blasfêmias, de ultrajes, e de calúnias que lhe faziam sofrer, é o vi
cio que dá mais prazer ao diabo, já que é a isca mais encantado­
ra e mais eficaz para atrair as almas nas suas armadilhas. Não ha
nenhum pecado cujas circunstâncias sejam todas'mortais como

8. Eniditorium penitentialc, 1490 (?) H6b-Ila. A respeito da luxúria, as referên­


cias, salvo indicação contrária, são estabelecidas segundo TENTLER; Tb. N.
Sin ¡Hiel Confession...
'). INSTITORIS, H.; SPRENGER, J. Le Marteau. des sorcières, notadamente
p. 5S-56, 100, 219, 465 e 467.

4o a
do pcctidn tlr Imptiie/n. I lm pequeño linio e mu pequeño il» a
so de ( nieta Silo .tpcii.is pecados veníais; mus mu . •Ilt.ti lulitlt o §
um pensamento Impuro com a menor coinplacéiu l.i sao po oPm
moríais, que i oiulenam as chamas ciernas lullm, nao lia \|* lu
qye arraste um lito prodigioso número de almas aos luh num
como a impure/a. Infeliz daquele que for desse nUmeio 1

Na sua versão do início do século 17, o ¡ hm lrliiiil Jo uf


piên cia exprime um rigorismo que adquire uma dure/a n iuitti
da em relação à carne na época da Reforma católica, .....................
verdade que a Igreja sempre julgou de maneira severa os peni
dos sexuais fora do casamento. Mas a prática d a confissão |»<vi IU
os diretores de consciência a interrogar-se - e a Inlerrogai nulil
vez mais os penitentes - sobre as condutas pecaminosas no pió
prio casamento. Na longa duração, os moralistas calóllt ns tll\ idi
ram-se sobre esse difícil assunto entre três grandes lendi l u l a
urna, rigorista, que estava arraigada num ensinamento m u l lo an
tigo; outra que, cada vez mais, se abriu à compreensão d a s p< t
soas casadas; e enfim uma terceira situada entre as (luas < <po h a
majoritária.10
1112
No mundo greco-romano dos primeiros s é c u l o s d e n o s sa
era, várias tradições convergentes - estoica, pilagórlt a, u n o pia
tônica, etc. - opunham carne e Espírito, casamento e amor e pfu
fessavam que “os órgãos sexuais são dados ao homem mio p a i
o prazer, mas para a conservação da raça”.1-1 O C r is t ia n is m o lm
plantou-se então numa cultura que, de um lado, a c e lla v .i, oli aie
deificava o prazer, mas do T>utro, e cie maneira c o n t r u d l lo i l a , o
desprezava e o denunciava opondo-lhe a renúncia sextltll i)k|
pelo menos o dever absoluto de procriação. As c o r r e n t e s gn o sll
cas e depois o maniquetsmo agravaram ainda mais a eondem it, do
da sexualidade, de sorte que a ortodoxia crista l e v e que .< atuai
em relação a eles para proclamar a legitimidade d o c a s , m í e n l o o
que ela só fez, todavia, afirmando a “c o n c u p i s c e n c i a da edim

10. l e D octrina!..., Troves, 1604, p.


1 1. Nas páginas cpic seguem, vou utilizar sobretudo TENTI PU, I li 11
an d Confission, p. 161-273: capital sobre cvsc tema ó NOONAN, ]. I i ,>a
im rp lion et marlagr. Paris: [.<• <Vil, l% 9, p. Ml -308 c PI.ANDUIN, I I
L'ligUse et le contrôlt des ndhsancts. Paris: f lammarion, 1970, p, 39 (>I.
12. fórmula de Occllus I iiciuhin, ncopitagóilco, no seu tratado /V h nallOt
de l'uniwn, citado por PI ANIMUN, |. I , I'lig/lte,,., p, 20.
•|in vi'in «Io "príncipe deste mundo", l'*<iu tililnu, Inevllavelmen-
i. p n sm le no ato sexual, deve ser justificada pela proerlação. No
I >i Itoiio am jugalí, Santo Agostinho define os ires "hens” do ca­
samento: /troles, fidas, sacram entam . Proles significa ao mesmo
it nipo ,i proerlação e a educação (crista) dos filhos; fid es, não
apenas ,i fidelidade nas relações sexuais, mas ainda o fato de de­
sempenhar o dever conjugal em todos os planos; sacramerítum
ni idii/ldo mais tarde por “sacramento”), a indissolubilidade do
' mi tilo matrimonial.13A análise agostiniana, em seguida, inspirou
impíamente a reflexão cristã sobre o casamento. Ora, ela não di-
11 nada das relações de amor entre marido e mulher e não cita-
■ i ,i Ppistola ele São Pedro aos Efésios (5,25): “Maridos, amai vos-
M'. mulheres com o Cristo amou a Igreja”.
No curso das épocas, a corrente rigorista em relação à se­
na lid.ule referiu-se constantemente a Santo Agostinho, amplian­
do .» ,c necessário. Na sua célebre Sum a, Raimond ele Peñafort
u tuina a distinção já clássica dos três bens do casamento e cle-
. I.ii.i (|ue eles "desculpam o pecado”. Depois, enumera as quatro
..... Itv.ições possíveis do ato conjugal: desejar filhos; cumprir o
d. ver" para o outro esposo; procurar um remédio para a incon-
iiii*'111 la mi para evitar a fornicação; satisfazer seu desejo. As duas
pilmeiras são sem pecado, a terceira é pecado venial, a quarta,
......tal. O dominicano Guillaume de Rennes,.que completa e co­
menta a R aim undina (de modo que muitos manuscritos desta
....... .. irlaram também as glosas de Guillaume), agrava ainda mais
i a\ a Ilação de seu predecessor: existe sempre algum pecado, jul­
ga ele, no ato conjugal quando ele é realizado por outro motivo
q iir não a procriação.14 Esta última afirmação estava de qualquer
mudo atrasada em relação ao* ensinamento de Gregorio, o Gran-
li (|uc tinha escrito ao Arcebispo de Canterbüry: “Este prazer
ma união legítima dos esposos) não pode existir sem pecado.
Poique nem do adultério, nem da fornicação, mas do casamento
I. gal nasceu aquele que disse: ‘Nasci na iniquidade, e minha mãe
nie <o n ccb eu no pecado’ (SI 50,7 ) ”.15 Essa opinião ele Gregorio é

13. Patr. Lat., XL, col. 374-396. NOONAN, J. T. Contráception..., p. 166-172.


14. Raim undina seu summ a... depoen iten tia et m atrim onio cum glosis... (ed. dc
1603, rcimpressa em 1967 em Farnborough), IV, p. 519-520.
15. Patr. Lat., LXXVII, col. 1.196-1.197. NOONAN, J. T. C ontráception...
p. 193-196. Este Responsum beati Gregorii é atualmente atribuído a Nothelm
ilc ( iamerbury.

ior>
■retomada no "supIcMiienlo" <|ik • o Iranelxcano Nlcblo tlc* < ímIiiii »,
amigo e colaborador de São llcrnardlno de Siena, acrescenta em
1444 à Piscincllci, Segundo ele, o alo sexual cios esposop mu ■
isento de pecado se na< >houver nele "nenhuma deleita». .1»>da \u
lupia”. O que púnicamente nao é jamais o caso: dai um pei ddfl
pelo menos venial."’
Raimond de Peña Fort, ao mesmo tempo em que propon a
célebre distinção entre as quatro motivações do ato con|ugal i ll i
um adágio pagão qualificando dè adúltero todo homem que #
apaixonado demais por sua própria,mulher - fórmula retomada
em seguida por .Santo Agostinho, São Jerónimo, Graciano - l'let
re Lombard (omnis am atarferventior est adulter). I'.xpll<itai nl<■
ou denegrindo - o pensamento.de Raimond, Guillaume «I. M u i
ríes cita um rigorista do século 12, Huguccio, é declara com el#
que excitar-se pelas mãos ou em pensamento ou usando bebida#
quentes “de maneira a poder mais vezes copular com sua mu­
lher”1617 é pecado mortal. No Directorium a d confitendum de Alt
toine.de Butrio (impresso em 1474), um penitente su posta mentí*
confessa: “Eu pequei ao contrair matrimonio para a procura di)
prazer ... e não em vista da procriação ou a fim de cvitai a h mil
cação”.18 Denys, o Cartuxo, na mesma época, reconhece qiu u
ato sexual no casamento é sem pecado quando se1 tem em vista
Somente os filhos, d dever conjugal ou a fuga da lórnlcaoin
Mas, segundo ele, muitas pessoas casadas pecam morlaliui ni>
por uma excessiva procura do prazer.19 No início do século le, o
Confessionale de Godescalc Rosemondt comporta este tipo di
declaração: “Eu procurei e obtive o prazer da carne de mam h i
ilícita e sempre com demasiado ardor. Eu pensei muito pota <> n.t
procriação, esse bem para o quaí o casamento foi prinelpalim u
te instituído”.20A opinião mais drástica sobre a questão l<>1 dad i
entretanto por Nicoló de Osimo cujo raciocinio era o seguinte i >
que somente três motivos legítimos autorizam as pessoas casada#
a ter relações sexuais: a procriação, o dever conjugal e a fuga d i

16. OSIMO, N. de Supplementutn surnrm cpisanel/ae, 1489, “1)d>imm - on


jugale”, 4.
17. Raim undina... p. 519-520.
18. BUTRJÓ (Antoinc de). D hrttorintn ¡ui confitendum, Roma, M ' l, Is
pecatis contra sacramcimim mauimomi".
19. CHARTRl-.UX, bciiv, lc. Spcctdtnn anu>crs¡onispriaitoriini, M ' I, X(ii\
20. ROSEMÓND T. õ . < 1518. s (6), lol. 94v".
li imlcdçào, "segue-se (|iic cm todos os milcos i .i■.<m cnl-se na lor-
itlt.içáo, (|iic 6 um pecado morlal |.i t|iic vlul.i o sexto manda­
mento do decálogo”.21
( )s diretores de consciência nao podiam evitar interrogarse
sobre a licitude das diferentes posições no ato sexual. Uma só —
0 homem em cima da mulher deitada de costas - é então consi-
tlrnula como “natural”. Mas em que medida ¿se peca quando se
a lotam outras posições em que os órgãos genitais dos.esposos,
entretanto, se unem? Os rigoristas tendem evidentemente para
uma avaliação negativa, sobretudo quando as relações conjugais
01 m iem "à maneira dos animais”. Guilíaume de Rennes, Jean de
l ilbourg, Astesanus, Guy de Montrocher, Jean Nicler, Goclescalc
Ui isemondt, etc., julgam que, neste último caso, sobretudo, há pe-
■ado mortal se tal posição foi adotada para procura do prazer e
nao em razão da gravidez da mulher ou enfermidades diversas.22
( )s moralistas mais austeros corroboram naturalmente e às
\e/.e.s reforçam os velhos tabus relativos às épocas e aos locais
Improprios para o ato de amor. Nider, por exemplo, julga que se
i le lór efetuado num período de proibição - vigília de festas, dias
de jejum e abstinência, etc. - é um sério pecado de “intemperari-
•,r (Juando é realizado num lugar sagrado, o pecado é venial se
ii.io havia outro local; ele é “duvidoso”, portanto mais grave, nos
oiilros casos.2-1 Astesanus ensina que é -preciso abster-se de rela­
ções sexuais antes da comunhão. Mesma opinião no Diretório
i/nv confessores (atribuído sem certeza a Gerson), que os proíbe
l.mibem nas vigílias de festas.24 O Supplementum à Pisanella de
i>11et )lo de ( )simo é ainda mais categórico. Nele se lê: “É certo que
lodo coito matrimonial, mesmo para cumprir o dever, é um im­
pedimento para a comunhão”. Além disso, fazer uso do casamen­
to e pecado mortal “quando isso se produz em desprezo das épo-
i .1,'. e das regras fixadas pela Igreja”.2!i
l ace às declarações dos mais severos censores do ato sc-
mi. iI, nao parece inútil colocar as opiniões daqueles que, na Igrc

21. OSIMO, N. de. Supplementum, “Debitum conjúgale”, 4.


22. Cf. TENTLER, Th. N. Sin an d Confession..., p. 186-204.
2.1. NIDER. J. Expositioprecepto'nim.., 1482, VI, 4 B2a-b. Sobre os tabus dc
impureza cf. FLANDRIN, J.-L. Le Temps d ’embrasser, notadamente p. 72-114.
24. ( iERSON, J. (?) Le Confessionnal autrem ent appelé le D irectoire des confes-
seurs, ed. de 1547, 2b-3b.
23. OSIMO, N. de. Supplem entum..., “Debitum conjúgale”, 7.

407
ja, esforçaram se paia ii!ii,i maior compreensão das pessoas «
das, J, T, Noonan mostrou bem t|iu* essa corrente mais humana
V
foi-se ampllaiulo t lentamente, e verdade) ao longo do icmp»»,< >
imenso cslorç<>ele* reflexão sobre a e<>nfl,ssá( >, pr<>voeail<» pela de
cisão de I2IS, produ/lu, enire oulros resultados, uma mais |usla
apreciação das condiçoes concretas da vida sexual no i as amen
to. No fim de sua vida, Alberto, o (irancie, inseriu na sua Suma
teológica uma frase espantosa para a época: “Não existe pecado
na relação conjugal”.-" A fórmula era, a bem dizer, ambígua, mus
Alberto, o Grande, tinha ensinado há muito lempo o seu aluno
Tomás de Aquino a não permanecer prisioneiro do pessimismo
agostiniano. Certamente que este não está ausente da obra do
“doutor angélico”. A.concupiscência nascida do pecado original
marca, pensa ele, a vida sexual de todo homem e “na unlao du
homem e datnulher, há um prejuízo para a razão”. Porque "esta
última é absorvida pela veemência do prazer até não mais poder,
nesse momento, dedicar-se a uma atividade intelectual..."." Mas
em contrapartida, Santo Tomás declara que, se o coito conjugal i
bom, ocorre o mesmo com o prazer ao qual está ligarlo, < qu.
seria ainda maior se o homem não tivesse cometic lo o pecad» >oi I
ginal.-0 O prazer é então reconhecido como valor positivos mas
totalmente ligado à finalidade procriadpra.'0 No curso desse mes
mo século 13, -um'franciscano inglês, Richard Middleton, apresen
ta uma defesa do “prazer moderado” fazendo valer, contra Sanio
Agostinho e contra “a opinião mais corrente”, que “sallslazet a
concupiscência e desejar um prazer moderado não sao duas »< a
sas semelhantes”.J1
O que é um prazer “moderado” e, portanto, permitido/
Gerson explica nas suas Regulae morales que o prazer sexual é
sempre lícito quando os esposos desejam oú procriar, ou ctim
prir o dever conjugal, ou evitar a fomicação; e c|ttando se pio

26. Esta visão geral destaca-se do conjunto do livro dc j. T. Noonan,


27. SAINT ALBERT, Somtne théologique cm Opera, cd. Borgnct, PiuIn, I H*M)
18 9 9 ,XXXIII, 2, 18; 1-4. NOONAN,.). T. Contmceprlon..., p. .WiH Ui9,
28. THOMAS D'AQUIN, ftw c/fiiistlm a catnmentaria in i/uatuor Hfrnn \n>
di.vi. XXXI. tjticHi. I,cd. |. Nicolás. Paris, W>v>, ||,
tentíamm. I! [.ombtinli, IV,
p. 501.
29. Ibid., qncst. rrspoNlrt à o!i)è(,rto V
,10. N(H>NAN, I. T. <vniiuiYpilon,,,, p ' \ 1>,
31. Ibid., p. .)78,

l()H
i um apenas o pra/cT, nrto lu p riad o un
lili o
I ) pecado é apenas

venial unía vez que "nao se sal dos limites do casamento”.5i


i .la ultima fórmula, segundo a oplnlao de muitos confessores,
• ngloba duas condições: "Nao ser possuído por uma paixão táo
li un a a ponto de desejar fazer amor com o cônjuge, mesmo nào
a lu li i casado; durante o ato sexual, nào pensar em outra pessoa
que nao seja o seu parceiro legítimo”. Santo Antonino de Floren-
i. a e da mesma opinião que Gerson.53 E igualmente Ange de
< lilavasso que, no capítulo “dever conjugal” de sua Summa, per­
gunta se- o ato conjugal realizado “para a procura do prazer” é
pet ado mortal, quando por exemplo alguém excita seu desejo.
. um pensamentos, com toques ou com bebidas quentes, a fim
de poder fazer amor mais frequentemente”. Sua resposta é que
■i pecado é apenas venial contanto que esteja ausente a inten-
- .a »i le agir assim fora do casam ento.34Na mesma linha, a Sylves-
I i í i i i i precisa que, seja qual for o grau de apetite para o prazer,
nao Iui pecado mortal se não se deseja outro parceiro a não ser
•teu cônjuge legítimo.35
I )ois mestres parisienses, no fim do século 15 e com eço cio
In, u francês Martin Le Maistre e o escocês John Mair, têm a co ­
lagem de superar os pontos de vista discretamente inovadores
que acabamos de citar. Seguindo J. T. Noonan,36 é preciso dizer
da Importância cie-suas tomadas de posição mesmo se elas tive-
uiii na época uma repercussão limitada. Le Maistre declara: “A
leia razão nos diz que é permitido unir-se pelo prazer, do mes­
mo modo que me é permitido comer cordeiro ou carneiro, e pre-
I« rir o cordeiro se isso une convier... Aristóteles não vê nisso ne­
nhum mal, contanto que seu uso sêja moderado”.37 J. Mair, que
julga a maioria dos moralistas, eclesiásticos demasiado severos,
vai na mesma direção que M, Le Maistre. “D‘iga-se õ que for, es-
•reve ele, é difícil provar que um homem pecou se ele se une à

,12. ( ¡1ÍRSON, Regulae morales, ed. E. Du Pin das Opera om nia, Anveis,
1706: III, 95B-C.
,13. ILORENCE, Anronin de. Summula confessionis (Confessionale-D efece-
runi), 1499, p. 30.
34. ,Sum à angélica, ed. de 1534, “Debitum conjúgale”, 4.
.15. Sylvcstrina, “Debitum conjúgale”, quest. 2 § 4.
36. NOONAN, J. T. Contmception, p. 390-398.
37. LE MAISTRE, M. Questiones morales, 1490, v. II, “De tempeiantia”, foi.

•101)
mui muIIir r para Ut pra/er", Nao lia malor pecado cm unirse
pelo pra/er (no i .o.am ena >, heñí entendido) cío (|iie em " k i iih h
unía befa maca pelo pra/er <|iie Isso proporciona". Adémala, e
absolutamente legítimo Ut relações para a prbprla .'.ande e a da
mulher: Aristóteles o recomenda,'" Pensadores ousados, M, l«
Maistre e J. Muir tiveram em seu lempo, como |a dissemos, uma
audiência apenas restrita.
Entretanto, os confessores deviam de (|ual(|Uer mudo sulu
cionar os casos concretos que lhes expunham os penitentes
Ademais, os diretores ele consciencia da cristandadc sem pre ju|
garam que os esposos deviam prestar mutuamente o ...................i
jugal”. São Paulo tinha, com efeito, escrito aos corintios: "t,)ue o
marido cumpra seu dever para com sua mulher c Igualmente a
mulher para com seu marido. Não se recusem uni ao outro, se
não for de comum acordo” (IC or 7,3-3). Mas ate <|iie ponto ••<
tender a legitimidade do pedido de um dos esposos e a aceita
ção cío outro? Gerson estima que se pode recusar o devei eonju
gal por urna importante razão de saúde ou para c*vltar um abui
to. Mas “nem todas as desculpas são válidas: épocas e locáis sa
grados não isentam o parceiro ou a parceira da obrigarão de
cumprir o dever conjugal”.w O Com pendium thcolo^iac atribuid* •
por engano a Gerson raciocina da mesma maneira: os dois * spi t
sos não devem realizar o ato sexual em público. "Mas a qualqiu i
hora, em qualquer circunstancia, antes de tudo, quando se sabe
que o outro está num estado de desejo perigoso; deve-se prot ti
rar um canto secreto e cumprir o dever”.10 Para bertoldo de I ii
burgo também, deve-se cumprir o dever conjugal mesmo num li»
cal sagrado. P. claro que o outro esposo eleve então esforçai se
para dissuadir seu conjuge de exigi-lo, Mas, se náo conseguir, i li
devé aquiescer. Ademáis, reclamar o dever num lugar sagiadn
para evitar a tentação ou para procriar não constitui um pecado
venial. Mas será preciso tornar a consagrar o local poluído."
Quanto às relações sexuais que na época pareciam "mn
Ira a natureza”, notadamenle a posição a tergo%serão elas sem

.18. MAIR, |. In tjuartum Smtentiartnn, IS |‘), A, .11,


,ll). Cil.íRSON, Opus tñpartltutn, II («I. I I>u Pin. I, p, *K i liA) < I
rninbém Regulnt motn/fs (l\ I >n Pin, III, p, I ()í>A).
4(). (.'oniprmlíiini t/teologlae (nu «I. I*, I Mi Pin. I, p, 2‘),1A),
A l. l'IUHOUlUi, Mi'iihulil tlr, SuniHhi /otinnh, fitUttcb, M72, O ucm. I **l
piv pecaminosas? AII>crtc>, o Giandr, tiniu declarado que ela.s
•i mirariam a concepção e revelam uma t oncuplscênelu mortal, a
menos que uma razão física Imperiosa Impela a posição normal.
’»anlo Tomás, mais prudente, tinha Julgado que a posição em si
mesma não implica sempre pecado mortal. A Angélica é menos
iiglda ainda. Não há duvida que ela aconselha aos penitentes que
náo perseveren! em tais atos. Mas, ao mesmo tempo, pede aos
i nnlessores que não se^apressem em qúqlificá-íos de pecados
mortais. "Alenham-se a essa opinião, diz ela: seja qual for a ma-
ni'lra como o ato começou e se realizou, se o sêmen foi emitido
no orifício apropriado e de tal.maneira qué a mulher possa con-
i< i\u Io, não existe em si pecado mortal.”42 Importa lembrar cie
passagem que a Angélica conheceu uma ampla audiência.
I Ima outra quèstào atormentou os confessores: pode-se ter
n liçõ e s sexuais durante as regras, e o homem peca se reclamar,
m in conhecimento de causa, o dever conjugal nesse momento?
Velhas interdições que remontam ao Antigo Testamento proibiam
.. exercício da sexualidade nas épocas de menstruação. Ademais,
i «lenda da Idade Média acreditava que era possível conceber du­
rante as regras e que a criança corria então o risco de malforma-
t ( i' *x Entretanto, se Guy de Montrocher, Gerson, Nider qualificam
de pecado mortal as relações durante a menstruação, a tendência
dominante dos casuistas é, mesmo desaconselhando-as, ver nelas
apenas pecado venial.'-' O Arcebispo dominicano do século 14,
I'ierre de Palud, chega até a declarar que elas são totalmente líci­
tas. Mas ele é o único dessa opinião. Ele é também o primeiro e
durante muito tempo o único a autorizar o amplexus reseruatus,
isto e, a relação sexual interrompida antes da ejaculação e termi­
nando sem esta.44 Seu isolamento a esse respeito é revelador de
uma mentalidade eclesiástica que condena toda atividade sexual
nao dirigida parta a procriação. Deve-se pelo menos notar, depois
(lesse rápido sobrevoo das tentativas de “laxismo” do século 13 ao
Início do 16, que a insistência sobre a finalidade procriadora le­
vou a uma reabilitação parcial da sexualidade, que de “lícita” tç>r-
nou~.se progressivamente “meritória”.'4Assim, na austera Sylvestri-
na, é dito que as relações sexuais no casamentovsão “meritórias"

42. Summa angélica, “Debitum conjúgale”, 25, foi. 191b-1921’.


43. TENTLER, Th. N. Sin an d Confession..., p. 200-211.
44. Cf. lbid., p. 209.
45. Cf. Ibid., p. 205.

411
k
a diversos mulos, (áunprlndo o'dever para eom o cón|uge, usill
/.a-se uní alo de |u,silva líese),indo l’llhos c|iie serão educado*» RM
amor de Deus, proeluz se mu ato de piedade, Preservando uai
cônjuge do adulterio, faz se prova ele caridade,"' lima anal! « i|i|i
, nào é isolada em sua época,
Resta que a nota dominante das "Sumas” c "Manual*" di»
confissão referentes á sexualidade, mesmo no casamento, e pi *
simista. Uma investigação inquieta percebe nas relações cOltjM
gais múltiplas ocasiões de pecado, estando os conlessoies peí
‘ su a elicios ele que muitos pecados mortais, em particulat ah »s mui
tra a natureza”, são cometidos pelos esposos da época Ih lli Un
elo sem dúvida uma opinião comum ao seu redor, Santa < al m
na, numa visão elo inferno, constata que o único grupo d< pewi
dores que constitui aí uma classe ã parte é formado poi "aqui lt s
que pecaram no estado ele matrimônio”. r Meiò século mah lai
ele, pregando sobre o casamento, São Bernardino de Siena det Ia
ra sem hesitação: “Entre mil Casais, eu creio que1 novecentos e no
venta e nove pertencem ao diabo”.'1* Exagero de pregadoi qm Af
julga obrigado ao uso de uma pastoral aterrorizante, «ertaini lUl1
Mas também convicção do meio eclesiástico de que < pu •I
sensibilizar os leigos quanto aos múltiplos perigos morais que n
casamento*comporta. Ao seu confessor que lhe pergunta poi qu>
as pessoas são mais severamente punidas no inferiu > peh • (
elos nõ casamento elo que por outros pecados, Catarina rewptill
de paradoxalmente: “Porque eles não são tão conscientes m m Aff
arrependem tanto'com o por outros pecados e, portanto, stu um
bem àqueles com mais frequência”. 1''
A culpabiíização, em matéria sexual, a partir da ■1mli li
operarse na época de maneira complexa. Porque as Ia slt n m
dos autores especializados, as diferenças de opinião de mu p ui
outro não facilitam a tarefa dos confessores nem a dos |x ulli n
tes e só podem criar uma atmosfera de mal-estar. Assim, <>s i |gii
ristas obrigam a abster-se do'ato amoroso antes da eomunhdn46789

46. Sylvestrina, “Debitum conjúgale", quest. 12 § 14.


47. CAPOUE, Raymond de. Vita <ic S, Cathamut senemi, 2, 211 1 m I,m
sànctonm, Anvcrs 1671, ,10 abril, p, 906 (§ 211), ( T. N(K )NAN, | I > ,<ii
traception.... p. 290.
48. SIF.NNP,, Hei luulin ilc. / (' h y rfkh e fWip/y, ed. i1, bargdliiii, Milán, 1111(t
p. 400. ( í. NOONAN, |. i: ConiniiY/fiioii. „ p. 291.
49. Ver noia 4 / atueilni.
M tu oiilros julgam 11iic* elo é permitido quando lem cm vista
•t ,i pioerlaçào ou () "dever" conjugal " I ilvcrgcnclas semellmn-
i¡ • s 1'tU'in lambém, com o já vimos, .1 respeito das relações con-
|mii ii, cm épocas c locais sagrados, do eolio 11 tergo ou durante
1 K gia*. c a gravidez. Mesmo se muitos autores têm tendência
1 •1111111u 11r sua gravidade até o nível do pecado venial, subsistem
Im idas no espírito tanto dos que interrogam quanto no dos que
0 Interrogados. C) exame de consciência em todo caso impõe
•p1» se questionem sobre tais comportamentos. Aos escrúpulos
qia despe riam essas diferenças de avaliação se juntam aqueles
I ngt mirados pela imprecisão de certas análises. A noção de pra- „
1 1 t uIpado é difícil de definir. Onde se situa a derrapagem en-
........... lesejo de fazer amor para evitar a concupiscência e o de
» nin prazer no ato sexual? Ademais, os casuistas freqüentemen-
it \eem um pecado mortal no fato de desejar a mulher com ta-
m 11d11 violencia a ponto de deitar-se com ela, mesmo sem casa-
iiiciiIo . Mas aqui se trata concretamente de um caso irreal. No
lu g o da paixão, será que o futuro penitente pensaria muito tem-
l", l Ussemos também que os pecados “contra a natureza” dei-
lui.un enormemente embaraçados os moralistas, que às vezes ti-
\1 um lendência a ampliar essá noção. Enfim, em diversos ma-
iiiMl'i dc confissão, os penitentes são convidados à lembrar se
...... pecaram contra a castidade “por toques, abraços, beijos e
millos gestos desonestos que podem ser pecados mortais por
II a 1 estar de acordo com a santidade do casamento”. Assim fala
I I oic.li em um Confessionaleseu interrogatorium impresso cm
Veiuva em 1497SI e que n ão'é o único a apresentar èssa ques­
illo, Mullos moralistas com efeito só têm suspeiçào a respeito das
csilmulaçòes eróticas. '
A culpabiíização nascida das divergências entre casuistas
.......Ia Imprecisão de suas questões, junta-se aquela que é pro-
\oi ada por afirmações categóricas, tal como a obrigação de
umprlr o "dever” conjugal. Será preciso esperar Dominique ele
\ m |m na metade do século 16 para que seja proposta uma ate­

nuai, ao a essa regra, quando os pais estão na impossibilidade de


alimentar mais filhos do que já têm.52 Antes dele, a recusa por

•>(). TENTLER, Th. N. Sin and Confession..., p. 214-215.


51, FORESTI, J. Confessionale seu interrogatorium , 1497, p. 17b-18 '.
52. SOTO, O. de. Commentarium in qiiartum Sententiarum, Salamanca,
1574, IV, 32; 1, 1.

lid
esse motivo c sempre qunlllleada de pecado nu>rt;iI. Oeorie o
mesmo ti fo iH o ti rom toda forma eleonunl.smo e com .1 uuNui
baçáo, a respeito da <p1.11 um tratado freqücntcmenle atribuído a
Gerson c bem explíello. Nessa matéria, lê se nesse doewiVHMltM
espantoso, o confessor deve "exortar cada ve/, mais abei lamen
te o penitente a dizer a verdade”, Quando se trata de um In miem
jovem, deve-se primeiro falar-lhe "com um rosto tranqüllo pm •
fazer parecer que aquilo sobre o que ele está sendo questiona
do não é desonesto, mas, ao contrário, é algo sobre o qm * li
pode ficar descansado”. Todavia, se o jovem penitente rei usa ne
a confessar, devq-se abandonar o artifício e passar a pergunUi*
diretas. Assim “[na idade de dez ou doze anosl, por acaso vtitf§
tocou ou esfregou o seu membro como os meninos têm 0 co|Í
turne de fazer?”5* É claro que no pensamento do autor do n u 1
do tais atos comportam risco <le danação. Lembremos do <tiMl
go de Sodoma è Gomorra.
Esta curiosidade inquisitorial e este excesso de detalla'*
não são habituais em Gerson e, mais geralmenlc, nos autores ilp
“Manuàis” e de “Sumas”. Extrapolar desta obra para o re-.lo da li
terãtura sobre a*confissão constituiría um erro histórico, MulUl*
vezes, pelo contrário, autores de peso - Gerson precisamenU?,
Santo Antonino, Sylvestre Prierias - aconselham o confessor a as
sociar prudência e diligência e, na interrogação, não ultrapassai
os limites razoáveis da discrição. Num manual (em francês) d(l
século 15 destinado aos padres, cõhvida-se o confessor a uma all
tude discreta, “seus olhos no chão deve manter”. Senão, lun........
o risco dé o penitente não-ousar dizer seus “pecados vergonlio
54 Essa circunspecção irá por sinal se acentuando em segui
3
sos”.5
da, a convite de um São Carlos Borromeu que, entretanto, era il
goristá.55*Th. N. Tender convida com razão a não imaginar a »on
fissão da época sob a forma de um questionário exagera»lamen
te realista e indiscreto. Os penitentes não eram forçados a conUn
em detalhes toda sua vida sexual no casamento,,6 a qual rcalnit 11

53. GERSON, De confessione mol/itiei, cd. Gloricux, I, p. d1). ARIf*** Pli


LEnfant et la vieJhnultale sous /'Anden Rétfme. Paris: Senil, 11)73. p. I0l) 11 I
54. LIBFAU, R. lü lith n et com m cnM im <lu ms, 9 4 4 de Li li.N, I " 57v" dtMi
ms; versos 4 ,i II, A^iadc^o ¡mensamente a I lerv<? Martin por tci se dlpi u|o
assinalar nie e miruinlcar mr este memorial de mestrado.
55. ( ’f, N OON AN , |, T, ( 'otuiuee/ulon,,., p, 47M.
5(>, I I N I I l lt, Th. N, Sin iind C o n fesió n ,,,, p, 22 \ 2 2 4 .
•' iMi» lntc:re«sav;t lanío aos amores cI* "Sumas" e "Manuais”
i|iimiit o.s Impedimentos jurídicos ao vinculo matrimonial: votos,
i. i iii-t ti paren leseo, ele. Enfim, se* os problemas da sexualidade
0 upam nm lugar importante ñas obras relativas a confissão, nem
Iti ii isso eles as invadem por completo. Santo Antonino concede
* i< ve/.es mais espaço ao mandamento “não roubarás” do que
n i nao cometerás adultério”/7
Entretanto, mesmo colocado dentro de seus verdadeiros li-
lililí . o discurso eclesiástico sobre o sexo entre o século 13 e o
i•>|i ii quantllalivamente importante. Ele era censura de costumes,
mi , nao silencio sobre eles - e nesse sentido eu me associo à
in ili ir de M. Eoucault, remontando no tempo. Com os meios e
1 i......lalldade da época, a Igreja esforçou-se para constituir urna
585
7
i li ni la da sexualidade”. E "a confissão foi ... a matriz geral”5 9que
n i;, n sua produção. Ora, precisamente porque foi constituída à
lucir de confissões, a elaboração dessa “ciência” constitui um epi-
inillii Importante da culpabilização global do Ocidente no início
ilii'i tempos modernos. Não é sem motivo que M. Le Maistre es-
11»sia .1 respeito das frequentes proibições de fazer amor duran-
i> a gravidez: “Eu me pergunto a que perigos eles [meus a dver­
il h i**|expõem as consciências de esposos escrupulosos ... [Por-
qiii I eles condenam a pecar mortalmente aquele que procura o
flrhlliini, a menos que esteja certo de fazê-lo para evitar a forni-
•.i< ii i 1Mais geralmente, o público cristãò foi convidado a inter-
ii se i i instantemente sobre o uso da sexualidade no casamen­
to Os cônjuges por acaso recusaram o dever conjugal, excitaram
i n d esejo além do limite, ignoraram as épqcas e os locais sagra­
da is, passaram por cima da menstruaçàp, procuraram o prazer por
I mesmo: são perguntas que eles deviam fazer. Uma dupla con-
. liis.iu se Impõe então: a) “a casuística aplicada aos impulsos se-
ii iIs abriu um leque de culpabilizações que nenhum outro dos
pi i ados capitais oferecia”;60 b) jamais uma civilização .inteira ti­
nha slilo submetida a semelhante investigação sobre a sexualida­
de, tu fiadamente no casamento.

57. Ibid.. p. 223.


58. FOUCAULT, M. Histoire de la sexualité. I: La volonté de savoir. Paris: Galli-
■inaal, 1976. Notadamente p. 21 e 82-84.
59. LF MAISTRE, M. Questiones morales, II, “De temperantia”, foi. 50'“,
liml. cm NOONAN, J. T. Contraception..., p. 394-395-
(»(). TFNTLER, Th. N. Sin an d Confession..., p. 220.

415
a u s u r a <» a a v a r e z a
DI.sísernos anteriormente que os autores ele "Sumas" e "Mil
nuais” dos seculos l,V l(i sdo menos obcecados pelos p e í .idos ’u>
xuais do que se poderla crer a prlorl, A secunda parte da simiti
de Santo Antonino, especialmente' consagrada às diversas t ali go
rías de pecados, revela a seguinte divisão: a cobiça (a ra rlU ii) "1
capítulos; a obrigação de restituir, 8 capítulos; o orgulho, l i t a
pítulos; a vanglória, 9 capítulos; a luxúria, 15 capítulos; a gulodl
ce, 8 capítulos; a cólera, 8 capítulos; a inveja, 9 capítulos; a at I
dia, 16 capítulos; a mentira e o perjúrio, 8 capítulos; os volt NI e
sua transgressão, 2 capítulos; a infidelidade, 11 capítulos, l'oitan
to, é à cobiça e à necessidade de restituir que cabe, de longt , o
prim eiro lugar nas preocupações do arcebispo; 25% dos i apilu
los, mas 32% das páginas na edição de Veneza de 1571 Ora, lia
ta-se neste caso de uma distribuição bastante clássica relnmatlrt,
lembremos, pelo Composto... dos pastores. Neste, todavia, desil
nado a um público relativamente modesto, a usura é apenas uitl
dos vinte ramos da “avareza” . Em contrapartida, dentro do- di
senvolvimentos que Santo A ntonino atribui a este pecado, i i
capítulos se referem à usura cpbrindo 74 páginas 019 so pañi a
luxúria). Numa época de ascensão econômica e enquanto se liis
talava um ampio capitalismo comercial,61 a civilização cristã Intel
rogou-se intensamente sobre a licitude das transações men aMilu
e bancárias. A culpabilização, portanto, atuou lambem plenamen
te neste dom ínio.
Como sempre, ela se'apoiou sóbre referências vcnerávulf
e antigas. O Êxodo (22,25), o Levíticq (25,33-37), o Deuteionõ

61. Panorama geral da questão em DELUMEAU, ]. La Cioi/isillioii de l,i A*.


naissance. 2. ed. Paris: Arthaud, 1973. p. 229-282. Nas pãginux que
vòu utilizar essencial mente o D ictionnaire de Théologie cathoHque, XV,', an
“Usura” (G. Le Bras), col. 2.316-2.390; ROOVER, R. de. LFeolutlo» ,/, U
lettre de change. Paris; A. Colin, 1953; NOONAN, ]. T. Scho/aslie . lnaly\h
Uswy, Harvard Universitv Press, 1957; ROOVER, R. de. La /V//wV A un,mil
que des scolastiques. Paris-Montréal: Vrin, 1971. Cf. também MelAbGI II Itl
T. R “The Teaching of the Canonista on Usury (XII -XI Vc.)” cm M edia, o,d
Studies, I (1939), p. 81 147. II (1940), p. I Ú c N El SON. IV Ih t Idea of
Uswy, From T ribal lirotherhood to ( hiirersal Othetvod, 2, cd., ( lilcagu, l‘>(><)
I.E GOIT, |. “The Usuree aml Purgutorv" cm Lhe Pawn o f M odem Laiikhit,
Ccntce for Medieval and KrnaUMiUT Nludlcs, Univ. oí California, Copydglil
b> Yalé i Jnlv 19 p 1■

lld
iii Im (,'.3,IP-25) proibiam o empréstimo .1 |n 1<>'• entre on Israelitas,
Mi lato, <> Livro de Kzcqúlel (22,12) prova e|iu* em Jerusalém a
111111 >1 era corrente. No m undo greco-romano, os filósofos, em
|i iiil< 11l.11 1‘latào e Aristóteles, ergueram-se contra o empréstimo
1 |tinis, Nesse sentido, a análise de Aristóteles deve ser lembra­
da, considerando sua longa posteridade através da escolástica.
ginulo (.da, a p io r atividade social é a de alguém que empresta
dinheiro, poi’(]ue ele pretende tirar um produto de uma coisa es-
1111 1 i unió a moeda. Ora, esta última tem como únicá função ser
uma medida das coisas (P olítica, I, 10). A Idade Média dirá clen-
......Io mesmo espírito: o dinheiro não engendra o dinheiro. To­
davia, apesar dessa condenação e dos ataques de Aristóteles, Plu-z
I in o, Planto, Cíçero, Tácito, contra os usurarios, as legislações
mm gas c romanas não contestaram seriamente a legitimidade do
• mprestlmo a juros, esforçando-se no máximo para. lim itar a taxa.
V. 1 olsas mudaram na cristandade.
Jesus tinha aconselhado a emprestar “sem nada esperar em
II torno, Vossa recompensa então será grande” (Lc 6,34-35). Mas
. v.,i recomendação não era uma condenação do empréstimo a
|u 11 e., (|iie os Padres da Igreja, ao contrário, tanto gregos como
latinos, fustigaram sem piedade. Clemente de Alexandria, São
«iiegório de Nazianzo, São Basilio, São Gegório de Nissa, Sao
I' i.i<) ( ãisóstomo, Santo Ambrosio, Santo Agostinho, São Jerónimo
pmlessaram juhtos que o usurario colhe onde não semeou, que
1 mprestar a juros é tomar o bem do próxim o, que o rico deve
emprestar gratuitamente ao pobre e que a usura é contrária ao
mesmo tempo ã religião e à lei natural. Assim, ela deve ser espe-
• talmente proibida* aos clérigos - uma proibição confirmada pe-
los concilios a partir do século 4o. Em compensação, foi somen­
te sob Carlos Magno (A dm onitio generalis de 789) que a-legisla-
• ao civil proclama a proibição geral a todos - clérigos e leigos -
do empréstimo a juros assimilado à usura. Em seguida, concilios
locais e estatutos episcopais consagram e difundem essa proibi-
v-to. Enfim, no século 12, o decreto.de Graciano (C oncordantia
iU sconlantium canonum ) e as Sentenças de Pierre Lombard re­
petem que há usura quando o emprestador exige, em dinheiro
ou em espécie, algo além do bem emprestado, sendo tal prática
proibida pelo quarto mandamento.
A despeito dessas condenações repetidas, a noção de usu­
ra permanece ainda bastante vaga, a justificação racional de sua
proibição, imprecisa, e a distinção dos casos, apenas esboçada,

117
Ora, .1 111(111i | >11> dofi símbolos monetarios, o i irse Imcnlo
econômico, o surto ilo com ételo na terra o no mar, o drxenvol
vim ento das luirás de Champagne, colocam doravante p io b lr
mas cada v e / ivíais complexos: associação c remuneração do
capitais, transferência c cílm bio notadamente para as neicssida
des da Santa Sé, danos e riscos ñas empresas. Além disso, lasa»»
de juros consideráveis (da ordem de 30 a 40% ao ano") sao en
tão praticadas correntemente mis cidades mercantis Italianas n
pelos “ lom bardos” da França."- Fnfim - conjunção a subllnliiil ,
a obrigação da confissão anual desde 1215 obriga os moralisUIQ
a estudar os diferentes aspectos da usura tanto ou mais <|iit i»
da atividade sexual.
Os casuistas do século 13 põem como principio que o u u
rário vende indevidamente o tempo,' bem comum a todas as ( ila
turas. Guillaum e d ’Auxerre ( f 1229) parece ser o prim eiro a a\an
çar este argumento em sua Summa aurea-.

O sol, escreve ele, é obrigado a fazer doação de sl paia Hum!


nar; do mesmo modo, a terra é obrigada a fazer doação de tiulti
o que ela pode produzir, e do mesmo modo a água, Mas mula
faz doação de si de 6ma maneira mais conforme a ualure/u do
que o tempo; por bem ou por mal, as coisas têm tempo, Ia qui
o usurário vende então aquilo que pertence necessariamente a
todas as criaturas, ele lesa todas as criaturas em geral.,.: e e uma
das razões pelas quais a Igreja condena os usurarios. I)e oiidi u
sulta que é especialmente contra eles que Deus diz: "(guando eu
retomar o tempo, ou seja, quando o tempo estivei1 em mlnli i
mãos de tal modo que um usurário não poderá vendê-lo, enUlti
eu julgarei conforme à justiça”."'

Inocêncio IV reutiliza em seguida esse raciocinio, cu|.t l" i


ma mais concisa é assim expressa por um leitor geral da <)nlt m
franciscana do início do século 14: o Usurário vende o icinpi n pn
pertence somente a Deus.6'

_______________________ a___

62. FOURQUIN, G. H istoire ¿conomique de l'Occuie/it mM'Uvtil l'.uii <4


Colín, 1 9 6 9 . p. 2 6 0 .
63.Summa aurea. III. 21,1 ,’..’ SV". ( T, NOONAN,). T. ScM m U /I nnfoh ,
p. 43-44. LE GOIT, J, "Au Muyen A^e: temps He IT.glist* et tentpn iln niiii
chand”, em Pour 101 iinitr M oyfn dtv Paris: <Inlliiiwid, I97H. p. 46 <i '
64. LE GOI I , |. Ildd,

IIH
Mas mais capital, sem dúvida, •• a Intervenção <l«• santo To
ui,is de Aqulno no debate sobre a usura Apolaiulo se sobre um
Nilsiótelos recentemonte descoberto, o doutor "angélico" declara
lili li a ioda prática que leva a exigir um empréstimo (n rn tin u n ),
te|a como Ibr, acima do principal, lo d o empréstimo náo gratuito
• usurário e leva a pecar nào só o credor, mas também o deve-
d< >i' () usurário vende efetivamente o uso da coisa cuja proprie­
dade ele transferiu. Não se deve vender seu vinho ou seu trigo e
a* >mesmo tempo o uso desse vinho e desse trigo porque se ven­
de duas vezes o mesmo bem .6 66 Além disso - lembrança da análl-
5
,i aristotélica - ò dinheiro, instrumento de troca e dc medida,
nao e frutífero; ele não devç engendrar lucro .67 O usurário é cul­
pado de pecado m ortal .08
Semelhante condenação leva às vezes m uito longe. Se al­
guém vende acima do preço justo porque espera para o paga­
mento a conveniência do comprador, existe “usura manifesta” . I
Igualmente se o com prador paga abaixo do preço justo porque
salda a quantia antes da entrega da mercadoria. “Em compens.)-
^a<), se o vendedor, para ser pago mais depressa, consente em re
baixar o preço justo, não existe pecado de usura ”.69 Como todos
ns seus precleêessores, Santo Tomás não distingue entre empres
limos de consumo e empréstimos de produção. E entre os prl
melros, ele não considera aqueles que poderíam ser concedidos
,i alguém mais rico. Ele é herdeiro de uma corrente mora lista ju­
deu cristã que só percebe os empréstimos consentidos a pessoas
em dificuldade: tais serviços devem ser gratuitos. É só no Início
d«> século 16 que Jacques Lefèvre d ’Etaples (1455-1537), precur-
o a dc- Calvino notadamente nesse aspecto, inventará a expressão
econom ia pública” , estabelecendo. assim uma distinção entre
esta última e a economia doméstica .70
Por outro lado, Santo Tomás, como Aristóteles, considera
apenas o dinheiro em si, independentemente dos m últiplos usos

65. Somme théologique, UME', toda a quest. LXXVIII.


66. Ibid., notadamente art. 1 e sol. 5.
67. Ibid., notadamente art. 1 e sol. 3.
68. Ibid., notadamente art. 1 concl.
69. Ibid., notadamente art. 2, sol. 7.
70. LEFÈVRE D’ETAPLES, J. Politicorum L ibri octo, E conom lconm duo..,,
Economicariim pu blicar um umis, Paris, 1506. RÔOVER, R. dc. /,</ Veméc i'io
nom ique..., p. 20.

III)
(jilo se | >( k l«' la /r i d i'Ir I Ir so 11 msldeia o m rt.il e luz .11>str,KUi>
dac|iillo c|iir ele |»n>|x»n lonai .1 l.nílm , ele nao diz unía palaviu
dos câmbios que esiuvám assumindo uma Importância con,sido
rável. 'lambem, sob mullos aspn los, o ensinamento do Santo l<»
más sobre a usura, loiulo om conta sou Impacto, Incomodou o*i
negociantes, Mas nao constituiu um bloqueio, porque delxavu
portas abertas. Sem duvida, o doutor "angélico” so concebe a íal
ta de lucro e a compensação ele 11111 sacrifício sofrido por ocasião
do empréstimo independentemente de qualquer pacto expío lio
concluído de saída e somente a partir do vencimento do erédl
to .71 As noções de lu cru m cessans e ele dam m im emergeas será»»
precisadas e ampliadas somente depois dele. Mas se também na» •
conhece a noção de p e ricu lu m sortis (risco que corre um 1 apllal
com prom etido) admitida pelo jurista Paul de Castro no fim d<»sé
cu¿o 14, ele só condena aquelas que são “leoninas” . Parece Un
normal que o negociante que faz seu comércio ou o artesão sua
obra com o dinheiro de um sócio pague a este ultim o urna pai
te dos lucros .72 Urna ampia abertura era então oferecida a 1oni<
m enda e às sociedades em nome coletivo.
Em seguida a Santo Tomás, os escolásticos vão doravante
trabalhar sobre a “usura”, ora am pliando seu dom inio, ora un
contrario restringindo-o. Mas, independentemente das desiguais
dimensões do espaço que eles lhe atribuem, este pecado acha-se
agora plenamente qualificado e fortemente reprovado. Santo To
más afirma que “ele fere a justiça natural” . Guillaume d ’Auxerre
o tem por mais grave que o hom icídio, porque enquanto este ul
tim o pode ser legítim o, a usura (com o a luxúria) jamais o r l;la
é um pecado em si (secundum se), sendo sempre “¡moderado' ,
diagnóstico que se encontra notadamente na Sunm ut de Astesu-
nus. Santo A ntonino vê na duração da transação uma cireimstán
cia agravante. O Concilio Ecumênico de,Viena (1311-1312) dccre
ta: “Se alguém cair no erro de afirm ar obstinadamente que exei1
cer a usura não é um pecado, que ele seja punido como liereil
co ” .73 Os pregadores nos seus exempla insistem todos sobre .1 sor­
te dos usurarios que, já aqui na terra, vivem na companhia de de

71. Som m e'thiologique, II' II" quest. 78, ar». sol. 1-4, 6. Cl. tainbiíni o /»r
M aio , quest. 13, urt. 4, sol. S, 10, 12, 13.
72. Ibid., qiics». 78, nrt. sol.
73. Concllforum <>•<unioihvnmi 07,/. «I, (í. Alberi^o, Holounr, Isditito pet
1c scico/.c t'cligiorc. 1073, |». Wl>t UIS

<l:!0
mônlos. ' A legislação canônica n*. cw om tinga e ordena sua se7
pultura lora dos locais consagrados, Kobert dê Courçon, num 'tra­
tado De usurà redigido no Início do século 13, deseja que seja in­
fligido como penitência aos paroquianos “em lugar de jejuns, es­
molas e satisfação ordinária, a obrigação de acusar os usurarios” .
Ainda mais, ele determina com cuidado os nove modos faltosos
di* participação na usura: ordem, conselho, consentimento, lou­
vor, receptação, relação, neutralidade, tolerância.
A corrente rigorista manifestou-se no dom ínio da usura
como no da sexualidade .74 75 Guillaume de Rennes, glosador de Rai-
moncl de Peñafort, qualifica de usurario o moleiro que empresta
,10 padeiro para conseguir sua clientela e o professor que adian-
1.1 dinheiro a seus estudantes a fim de que estes sigam seus cur­
sos. Os Decrétales de Gregorio IX (1239), que se tornaram uma
parte importante do direitò canônico, condenam no título De
usnris a comissão recebida por um credor que aceitou os riscos
do transporte m arítimo das quantias que emprestou. Essa conde­
nação é retomada por Inocêncio IV ( f 1254) num comentário dos
Decrétales. Toda superaban d a n tia , mesmo baseada sobre o ris­
co, é reputada usuraria. É, portanto, uma recusa do pe ricu lu m
sortis. A Sun?ma de Gofredo da Trani ( f 1245), as de Hostiensis
(I lenri de Suse f 1271) e de Barthélemy de Pise ( f 1347) decla­
ram ilícita toda operação de câmbio em quç se faz um arranjo
para jogar com a variação da cotação das moedas. O mesmo jul­
gamento pegativo qualifica os empréstimos prorrogados de feira
em feira (de n u n d in is in nundinas). Astesanus, cuja grande obra
e escrita ao redor de 1317, percebe com razão que inúmeros
câmbios camuflam empréstimos. Então ele os repròva quando o
emprestador recebe mais do que emprestou. A A ngélica, com­
preensiva a respeito da sexualidade conjugal, é mais rigorista em
matéria de câmbios. Ela se recusa a ver neles uma transação de
compra-venda de moedas e só aceita os que são fechados para
vir em auxílio a viajantes ou quitar dívidas no exterior. O antigo
banqueiro Pandolfo Rucellai ( f 1497), que se tom ou dom inicano
e discípulo de Savonarola, e que sabe por seu antigo ofício que
(> juro se dissimula muitas vezes por trás das cotações de câmbio,

74. Cf. WELTER, J. Th. L'exemplum dam la littérature re/igieuse et didactitjue


dn Moyen Age,. Paris, 1927, p. 246, 251, 288, 311 e 382.
75. As indicações que seguem são de acordo com q D .T.C. R. De Roovcr e
J.T . Noonan dão as referências completas.
aprova, a contíiiHonio, nó <>,s eftmbloN reais, som os (|uals o m*
mérelo serla paralisado, Ma*, ele aconselha aos banqueiro*. • po
querem salvar sua alma a abandonar sua profissão, No sei uh > Ui
Francisco cio Vitoria (| I.K») cíclense>r tios direitos dos índios i)
um dos fundadores do dirollo Intei nacional vê no eonlraio di
câmbio uma pennuUUio lícita mas justificável apenas entre luna
res afastados. Os câmbios dentro do um mesmo reino pateu m
lhe usurarios, já c|tic o lucro (|U0 deles decorre, nao e íca ll/iid i)
em razão de uma transferencia, mas de um empréstimo. I l« n.to
leva em conta, portanto, a diversidade das os pecios,
Mais severo ainda, o anglicano TI tomas Wilson <| I . i >
considera como usurarios-iodos os câmbios que nào m u h . lia
dos ao par, percebendo bem que a cotação das bolsas dlsslmttlri
os juros/tomados pelos cambistas. Quanto ao austero Pio V, e|(g
publica em 1571 uma constituição célebre sobre os câmbios "i|lt<S
os condena não apenas quando são simulados voltaremos a Ia
lar disso mais adiante - mas até quando, reais, des i anutllam um
empréstimo: assim os “depósitos” que, no sentido do .ms tilo In,
eram empréstimos tomados por príncipes ou particulares e dl i
mulados sob a aparência de câmbios cie feira em lelra, < > p a p a
decide ainda que, mesmo* em caso de atraso de pagamento, o
juro não pode ser “certo e determinado” , nem “ medido ao leim i|
do vencim ento” , mas somente proporcional à distância do Ing u
de pagamento. Pio V ergue-se igualmente contra aqueles qm
monopolizam a moeda para provocar alterações na cotação d o |
câmbios” . Assim, toda uma corrente rigorista c|ue vai de «in go
rio IX e Inocencio IV a Pio V cuípabilizaram e encurralaram
emprestadores' que exigiam juros.
Km contrapartida, a maioria dos doutores aceitaram m m
por-se com a realidade cotidiana e absolver certo mimen >«l< pia
ticas que se tornaram indispensáveis á vida económica da < p ... (
Assim, num empréstimo gratuito, declarou-se lícita a pornd lin
posta pelo credor ao devedor retardatário. O importante m n ll
nuava sendo que o atraso e a poema nào tivessem sido piv\ hln«i

76. Bullarium... Rom. pontificam, Turin, 1860#, Vil, p. h, MANI >)(III, ti


/.£* Pticte lie Ricorsii et le marché ¡tal¡en tia chances au XVIi \Hele. Piiilm A
Colin, I9S.I. Sohicnulu |>, I<1*> l-io D f l.ljMEAUí |. Vie écunomit/tir et
chite iie Rqme fiam ia urotu/e moitié t/n XV/' tilde v. Piuiv I V llim u.l
I957-1‘)5‘): II. |>. H67 M(»*> < mnlu^.ulu mi PKI.UMKAU, |. Romean \\t
.tilde, I’íU'In: Plurlcl, PPM, |i,J. |0,
i. m Ic o Infclo do contraio l ’oi o tilro lado, a noção de periculum
• '/ 7/.s justificou o seguro m aridillo com prêmio pago ao segura-
din lal como o conhecemos em nossos dias. Hla é atestada sob
■ isa lorma desde o fim do século I i.
lí depois foi bem necessário aceitar a letra cie câmbio uti­
lizada pelos florentinos e os sienenses antes do fim do século 13 .
i » danei,scano Alessandro Lombardo ( f 1314), o fervoroso prega-
doi ( ílovanni da Capistrano (1456), o teólogo Luca Pacioli, amigo
di i . i (nardo da Vinci, que publica em 1494 sua célebre Summa
,l<‘ a iilb m e ífca , concordam em fazer o elogio cia ars campsoria.
I les vèem nela uma instituição indispensável à» manutenção da
.i K ledade e também tão necessária ao comércio, declara Luca Pa-
i li dl, t|iianto a água para a navegação. Quanto às razões que jus-
lII 0 .iin o câmbio, os moralistas diferem. Alguns, como São Ber-
n.m llno de Siena, Lorenzo Ridolfi ( f 1442), mais tarde Vitória, De
•.i i|o e l.ainez vêem aí uma p e rm u ta d o pecuniae, isto é, uma con-
m if.ao de moeda local em moeda estrangeira. Outros, em parti-
i nl.ir Iktldo clegli UbaldQ romanista m orto em 1400, Cajetano,
l •tu iias, e mais tarde Diana, o consideram uma compra-venda se-
iiielli.m te às outras transações desse tipo. Alguns enfim, como
s.mlo Antonino e Azpilcueta, tio de São Francisco-Xavier, o con­
sideram como um contrato su i generis desconhecido do direito
n miañó c que necessita uma análise nova. Ademais, todos esses
,mimes mostram que o cambista tem direito a uma compensação
p< a .seus trabalhos e seus riscos - opinião expressa notadamente
por Santo Antonino, que esboça p or sinal uma teoria do valor
i • a l elamente baseada na utilidade e na rariclacle.7778 Geralmente, os
doutores só admitem o câmbio de um país para outro. Mas em
l 'd >, Miguel Palácios, professor em Salamanca, aceita a p e rm u ­
tado *Io câmbio dentro de um mesmo Estado. Alguns anos antes,
\/.pllcueta tinha posto em dúvida a teoria aristotélica cia esterili-
d.icle do dinheiro e observado que o dinheiro do negociante fru-
llílca como a semente do semeador.
Permanecendo proibido o empréstimo a juros, as operações
de câmbio serviram muitas vezes para camuflá-lo graças a subterfú-
g|i >n conhecidos sob nomes diversos: “câmbios solare Veneza” , câm-

77. Cf. MELIS, F. Origini e sviluppi delle assicurazzioni in Italia* (XTV-XVIs):


1: Fonii. Rome: Istituto Nazionale delle assicurazioni, 1975.
78. Cf. MARCAY, R. Saint Antonin, archevêque de Florence, Paris, 1914, so­
bretudo p. 366-376.
N on chamados de "lyo n " e d i 1 "Ucsanyon"," câmbios "com reí up
so", Naqueles duim;idus "•,<>1>iv Veneza", elos quais Sanio Antonlno
desconfía, as coisas se passam assfín: "alguém loma emprestad» i lli >
rins em Florença e se com plánele a restiluí-los ao fín u le lerlt i |i ni
po em Florença mesmo, mas na cotacao que des lerdo cuido em
Veneza. Trata-se de um m iitu u m , com Intenção de lucro; e\lsu i ■ u
tanto usura “embora se diga câmbio" porque - agravaçdo do» asi i
o dinheiro nào saiu de Florença. Num câmbio suspeito s« »l>ie I yon
(ou “Besançon”), um credor em Florença empresta a algucm 01 ipil
valente florentino de 100 escudos ao sol de Lyon, ou se|a, KM t
escudosflórentinos. O devedor devedevolver os 100 escudi >s .u i >ni|
na próxima feira de Lyon. Mas esse pagamento nào ocorrei a I luí
protesto intervém e por meio de um recambio em sentido Inv* i m
o devedor reembolsará em Florença os 100 escudos, ou se|a eitl.ln
106 2/3 escudos florentinos. A posição de força da moeda d< It It |
em Lyon (ou em “Besançon”) fazia com que o recambio rendí s u
praticamente sempre um lucro ao emprestador. O câmbio "com u
curso” é um aperfeiçoamento do sistema anterior. Porque se evlUl ■ •
protesto e toma-se cuidado de sempre transmitir efelivamenle l< tías
de cambio da praça para a feira e inversamente: o que se* <imilla ge
raímente nos cambios chamados “de Lyon”. Seria necessário p m |
sar que muitos devedores eram mantidos por longo tempo "sobn
os câmbios”, por não poder pagar na primeira feira e a dívida au
mentava de três em três meses por esse jogo de ir e voltai
Não sp Santo Antonino, mas praticamente todos os douto
res antes dos casuistas m uito laxistas do século 17, Turl c I liana
reprovam os câmbios anteriormente qualificados de "secos I h o
V, por sua vez, pela sua constituição de 1571, condena os "i ,tm
bios secos” pelos quais se simula uma negociação para outra li h i
lidade, enquanto, de fato, as letras nào são emitidas, ou o <.a<» mas
sem ser transmitidas, ou então são emitidas e transmitidas, mas uai i
para um pagamento real.8*’ Assim, em país católico, no fim do i
culo 1 6 , como a distinção entre empréstimo de consumo e empies
tim o de produção nem sempre estava estabelecida, o empréstimo
a juros - e o desconto - permanecem proibidos e os que »>s pial!
¿am são em princípio culpados do pecado mortal de usura,7 0
8
9

79. No fim do século XVI r início do XVII, as Icios chamadas de "Mcsain,mi


não ocorrem mais ncsia cidade, mas cm 1'laisancc,
80. Uxcclcntc resumo dessa i oi)MÍuili,ao cm MANI ’l I, ( i. I r /!/«•/»•<1? ihviMi
o. 147, n. 106,
I'odavla, ¡i casuística atuou plenamente neste domínio,
i *• ot |i k * alguns latitudinários continuaram ¡i admitir câmbios que,
u i n .illdadc, eram "secos” sob pretexto de que havia compra-
v i ud.i d r moedas (inclusive quando se tratava de moedas de fei-
u i i- quando ele* eram fechados a “preço justo” , isto é, na cota-
• i.i d< i mercado e nào a uma taxa fixada de antemão. As hábeis
i imuHagcns dos banqueiros e os desacordos entre doutores per-
mil liam a continuação e a m ultiplicação de práticas indiscutivel-
iiii iiir contrárias ao espírito dò direito canônico em matéria de
n ana Como dizia o dom inicano De Soto na metade do século
ln I v,a questão cie câmbios, já suficientemente abstrusa em si
nu una, é obscurecida cada vez mais pelos negociantes e as opi-
nloeM contraditórias deis doutores ”.81*
km todo caso, a Igreja cobriu com sua absolvição as ren­
das i (instituidas, os empréstimos públicos e as vendas de car­
i e , de que ela própria se servia, seja no nivel superior da Ca­
ín ti,i apostólica, seja no plano mais modesto das pessoas e dos
in d ilu io s eclesiásticos de todas ás categorias. A renda constituí-
d i era um em préstim o a juros m aquiado legalmente em contra­
iu de venda. Um credor “com prava” p o r urna soma global o di-
n liu de auferir uma “ renda anual e perpétua até o reembolso” ,
baseada sobre certas terras explícitam ente descritas do deve­
di n Inocencio IV decidiu que não havia usura enquanto a ren-
da nao excedesse a renda norm al de uma terra de valor igual à
miiia paga. No entanto, os casuistas continuavam a interrogar-
ii ,i esse respeito. Daí as tomadas de posição de M artinho V em
i i ’ i e de Calixto III em 1455, que declararam lícita a renda
i onstlluída com a condição ele ser realmente baseada sobre
bi ns Im obiliários e não ultrapassar 10%. Pio V, que lutou con
li.i os câmbios “secos” , tentou também lim ita ra prática das ren­
das constituídas. Kle colocou com o prin cip io que o preço de
si ii resgate deveria ser o mesmo que o da compra - o que náo
I. \ ,i\.i em conta a alta dos preços e desfavorecia o credor. Ao
no smo lempo, ele editou disposições retirando do credor qual
quei recurso contra o devedor retardatário .83 Restrições estas

81. SOTO, D. de. De Justitia etjure, 1. ed., Salamanca, 1563, livro VT, quest. 8,
.ni. I, ROOVER, R. de. LaPensée économ ique..., p. 36.
8,*.. ( T. entre outros FOURQUIN, G. H istoire économ ique..., p. 222-224.
GOURERT, P. LAncien Régime. Paris. A. Colin, 1969. t. I. p. 127-128.
83. BulL rom ., Vil, p. 736-738.
que foram abandonadas por mui sucessor (ire g o rlo MU " D i
lato, ja 'lu í varios séculos a renda constituida ilnha se i<>iim »I»i
uma peça-cluive da economia ocidental.
A ficção da compra-venda permitiu Igualmente justllli ai h H
empréstimos públicos e as rendas anuais as quais eles dav am In
gar. Descle o século 14, cidades italianas - (iênova, I loieiu.a, \»
neza - recorreram a empréstimos forçados que nao ptuleiaili
reembolsar. Elas decidiram entào, em compensação, pag.tt to
credores um juro anual e perpétuo. C) sistema aperfeiçoou se eut
seguida de duas maneiras: os governos lançaram < ni|)t< llm
públicos não obrigatórios rendendo um juro anual e o ll/e iu in
numa escala que ultrapassava o horizonte municipal: in o iill p o n ­
tificais, rendas da prefeitura cie P.ari&, Juros espanhóis, el< I n ii|
1526 e l606, o papado tomou emprestado, por esse melo, 1 eu a
de 382 toneladas de prata fina, a Espanha, de ISIS a I(>()(), mah
ou menos 78 milhões de ducados.8- Mas antes da gencrall/avAli
desses empréstimos, os casuistas tinham-se interrogado .•«ohn t
licitucle do processo. São Bem ardino de Siena aceita que alguém
receba um pequeno juro d o dinheiro qué foi obrigado a pagai a
municipalidade. Em compensação, não se deve, s e g u n d o r|n,
comprar espontaneamente títulos cio M o n te 80 para oblei poi eus#
melo uma gratificação anual. Quando lhe objetam que le ligl.......
o lazem e que os papas e os cardeais são menos Intianslgenl» «
t|iie ele, o grande pregador franciscano responde: "Quando h,|
divergência de opinião entre os teólogos, existe dúvida, e nu dn
vida e preciso abster-se: está em jogo a salvação da alma"
Ademais, expor-se a cometer um pecado mortal |.i 0 mu
pee a d o m o rta l, segundo Santo Tomás; e comprar os re fe ild o n 11
lulos e justamente expor-se, já que há dúvida sobre a leglilmlda
de em fazê-lo. Confrontado com a mesma dificuldade, o d o in l
nleano Santo A ntonino tende, vinte anos mais tarde, para a all
lude oposta:8 5
4

84. DELUMEAU, J. Vie économitjue..., II, p. 870; fíotne nn X\ 'l fIMe, |t Mil
2 1 1, c UI.l.OA, M . Lu Hacienda trai de Castilla en el trinado de lrllf>e II ' ni ,

Madrid, 1977, p. 118-123.


8 5 . M csm u s r e fe r ê n c ia s d a n o ta a n te r io r , r e s p e c tiv a m e n te , p, 7 8 3 8 7 ' • l 'M

1 9 8 . ( !f . t a m b é m D E L U M E A U , J. La CivUisntion de lu Renubunce, p 2 ( i' 'n i,

H (> . S I E N N E , B c m a r c l i n d e Ofiem, c d , J. d e l a 1 l a y e , 2 v ,, P a r ís , l(i v , I , «« u u i t n

d a q u aresm a n . 4 1 , p , 7 2 5 '7 4 0 , M A ItC A Y , U . Saint Antonia.,., p . 3 < > () V nl


"Nos casos duvidosos, afirma se, c prec iso seguir o caminho
mais seguro, Esse princípio e verdadeiro quando se trata de dar
,i nossa acao a maior perfeição possível, mas não se podería eri­
gi-lo em regra de consciência para resolver todas as dúvidas. Se­
não, todo mundo deveria abraçar a vida religiosa, já que é uma
via mais segura do que a vida secular.” Ademais, no caso dos tí­
tulos sobre os monti: “Não existe verdadeiramente dúvida. Uma
ve/ que a Igreja não falou e que muitos peritos [doutores] julgam
.1 coisa permitida, forma-se a consciência segundo uma opinião:

aquilo que é legítimo”.*7

Assim se encontrava expressa, a propósito dos títulos da


di\ Ul.t pública, a doutrina mais geral dos probabilistas que Pascal
devia ainda combater no século 17. Mas fo i essa a doutrina ado­
t a d a pelos governos que, notadamente no século 16, usaram e
abusaram do lançamento de empréstimos de Estado.
. A margem da discussão sobre os empréstimos públicos
di mi volve-se outra sobre os m ontepios, uma reagindo sobre a
mura. No século 15, pregadores franciscanos como Bernardino,
de fe ltre nào apenas saíram em guerra contra a usura, mas ain­
d a propuseram uma solução concreta para aliviar as dívidas
dos pobres. Lançaram então a fórm ula dos m ontepios destina­
d l e , a conceder empréstim os contra penhores de valor dup lo
a o d a quantia emprestada, com um ju ro leve - geral mente, cie
«"o co brindo as despesas de administração. Os dom inicanos
e <rs Agostinianos contestaram muitas vezes, e com força, a per-
i op ção dessa porcentagem . Um Agostiniano, hostil a Bernarcli-
no de Feltre, escreveu um tratado De m onte im p ie ta tis .8 9Mas o
888
7
bem público se im pôs sobre essas objeções e os m ontepios se
m ultiplicaram na Itália na segunda metade do século 15 e, mais
larde, para além da península. A generalização e a legalização
drs.se sistema atuaram diretam ente em favor da prática dos em­
préstimos de Estado.
As vendas de cargos constituíram uma variante destes últi­
m os,’” Um governo, pressionad o p ela n ecessid ad e de dinheiro,

87. FI.ORENCE, Antonin de. Summa, II, título I, cap. XI.


88. Cf. notadamente MOLLAT, M. Les Pauvres au Moyen Age. Paris: Hachet-
tc, 1978. p. 337-338.
89. Para os cargos pontificais cf. DELUMEAU, J. Vie économ ique..., II, p. 772-
782; Rome au XV? siecle, p. 189-192.

-12 7
criava e |>111\lui .1 venda certo número de cargos ■ gcrulmenle mil
lela .ion quais e u destinada uma iviuln anual, por exemplo i||
10%, garantida .sobre receitas determinadas. ( ),s papas dos s0«t||(jg
15 e 10 c a monarquia francesa do Antigo, Uegimc, para Ikai em
dois casos bem conhecidos, utilizaram em larga escala esse 'ilum­
ina que, como os empréstimos de listado, desviou o dlnhelio dos
poupadores dos investimentos produtivos e sobrecarregou di ma
neira crescente a dívida publica. Km todo caso, sob a apaiein Ia d»
uma transação de compra-venda, ele evidentemente camullavil
empréstimos a juros que os particulares concediam aos govetlUHli
Mas duas outras justificações teóricas vieram juntai se a
noção de compra-venda para autorizar a cobrança de um |ui< i no
tadamente nos m onti. Trata-se do lu crum cessans (quando htli l
vém a ausência de lucro) e do dam num emergens (quandi >se mm
fre uma perda financeira). Pela primeira vez, um doutol do sd u
lo 13, Hostiensis, aprova o lu crum cessans.quando algia m l(
abstém de negociar para emprestar a uma pessoa necessitadai*
Este ponto de vista é adotado no início do século segulnli p-->
Astesanus que introduz igualmente a noção de dam num emef*
gens. Esta e a precedente são porém rejeitadas no se< ulo I I pnt
autores importantes, como o nominalista jean Ikirlilan (| poi vol
ta de 1358). Mas a multiplicação dos m onti leva Sao lle in .iid ln ii
de Siena e Santo A ntonino a aceitá-las no caso dos cmprcsIiniiMi
forçados. Porque, neste.caso, pessoas são privadas de seu dinlu i
ro (dam num emergems) e não podem empregá-lo em iians.it, mcs
diversas ( lu crum cessartç). Com a prática fazendo progredli a li o
ria, essas duas justificações acrescidas ã noçáò de i <>mpi i enda
perm itiram a aquisição com a consciência tranqülla de título da
dívida pública, de rendas constituídas e de cargos,
Na altura do fim do século 16, constafa-.se que em par. i i
tólico o empréstimo á juro encontra-se sempre proibido e usMltl
permanecerá oficialmente até 1830. Mas as noções de />«•//« n/nm
sortis, poena, lu cru m cessans e dam num emergerts de.s» ulp.iblll
zaram muitas transações efetivas de empréstimos a |um Alem
disso, contornando a doutrina oficial, estes funcionam de mam I
ra maciça nas feiras bancárias onde os soberanos p rln d p .ili......
tom am 'de empréstimo somas enormes pára as suas nei eNsIdiidmi9 0

90. Nos seus Comnientariu su/>rr libio* (Ituioiuliuni, V, De i imii1h , I <• >1
NOONAN, J.T. SthoblUb.... |>. I IHr.. Ao ijiiul eu remem u m l x m |m i i u i|iu
vem a seguir.

428
Iii iliiii,is, <) sistem atle letras de cámbln |in n ilie 11íes entilo, como
ii • - simples particulares, obter a erudito o dlnlielro de que neces-
•iliam, No total, e considerando a complexidade das operações
(Minadas que confundiu mais de um doutor, a moral oficial foi
Ulitis aberta no d o m inio da “ usura” do que no da sexualidade.
Mas seria compreender mal as mentalidades da época con*
-idi i ai a culpabilização como algo desprezível, mesmo nesse clo-
niinln Se Gal vino,' rompendo com a tradiçào escolástica, admite
- - - m ip irs tlm o s de empresas nos quais “a usura não é pior do que'
unía compra ",''1 em compensação ele declara, “indigno de um ho-
ii ii ni i rislao e honesto” ,9- ser emprestador profissional. Quanto a
I mi n i, ele não deixou ele marcar urna violenta hostilidade à “usu-
i i , que entendeu de uma maneira totalmente medieval e comba­
tí ii .a i longo de toda a sua carreira: no Apelo ci nobreza da nação
iili'in d ( IS20), num tratado de 1524 intitulado Do com ércio e da
iis lim , no i Irá n de Catecismo de 1529, numa instrução ^4os pasto-
>i s para pregar contra a usura (1540) e também nos Propósitos de
mesa, () Reformador fica desolado ao constatar que “o mal [a usu-
i i| le / enormes progressos e... predominou em todos os países” .9*
i le líala tle “bandidos entronizados, bandidos e ladrões de estra­
da aqueles que, sentados em seu trono, são considerado^ como
glandes senhores, respeitáveis e piedosos burgueses, e que sa­
queiam e roubam com a aparência de honestidade ” .94 Ele declara
nao compreender “que com cem florins se possa ganhar anual­
mente vinte e até florim por florim , e tudo isso sem tirar da terra
e do rebanho ” .99 Estritamente fiel à concepção rigorista do emprés­
timo, ele afirma: “Trocar alguma coisa com alguém ganhando so­
bre a troca não é fazer obra caridosa, é roubar. Todo usurário é
- llgn<* da forca. Eu chamo usurarios aqueles que emprestam a cin-
lo e seis por cento ”.96 Lutero ataca aquéles que “não sentem ne­
nhum escrúpulo em vender suas mercadorias a crédito e a prazo
mals caro do que a vista”.9” Ele recusa completamente as socieda-

9 1. Comm entaire sur Mo'ise citado em BIELER, A. L a Pensée économ ique et so­
lía Je de Calvin. Genéve: Georg, 1959- p. 464.
92. Cómm entaire sur E zéchiel citado em Ibid., p. 468.
93. LUTHER, M. CEuvres, IV, p. 123 (Du commerce et de l ’usure).
94. Ibid, VII, p. 69 ( Grand Catéchisme).
95. Ibid., II, p. 152-153 {A la noblesse chrétienne).
96. Propos de table (ed. G. Brunet), p. 358.
97. LUTHER, M. CEuvres, IV, p. 135 {Du com m erce...).

■121)
clc.s comerciais. "Tudo nela e tao sem fundamento e hciu rayan,
escreve ele, m m cublva »■ ln|u.stlya apenas, que não o povaw I i n
centrar nela nada que se possa iraiar com total boa coivm b'ii« l»t
Se as sociedades devem subsistir, será preciso que a Instiga o a h><
nestidade desapareçam. Mas se a justiça e a honestidad» d» • m
subsistir, as sociedades devem desaparecer.,M |M
Não há dúvida de que, tanto na Alemanha como em otn
tras partes, continuou-se a emprestar a juro, mas os liona n » de
negócios do início dos tempos modernos eertamente nao st s» n
tiam m uito à vontade com sua consciência. I)aí as mulll|da doa
ções feitas à Igreja em seus testamentos pelos negociantes »atoll
eos e das quais se aproveitaram, em particular, as ordens mendi ­
cantes que, implantadas sobretudo nas cidades, eram multo liga
das à burguesia emergente. Lembremos também a reacilo de I i i
Santi Rucellai, antigo banqueiro agora dom inicano, No seu nata
do De cam bi, ele estigmatiza os câmbios secos e quallíh a d ........
rários os câmbios “de Lyon” . Segundo ele, os câmbios eMrtn • m
perigo de perder sua alma. Fato revelador: os negociantes d.t po
derosa colônia espanhola de Anvers enviaram, cm l>V,, seu • o il
fessor a Paris para submeter aos doutores da Sorbonne dheisoU
casos de consciência referentes aos câmbios. Ora, n.to era a pil*
meira vez que se dirigiam aos teólogos de Paris, porque neMlil
época elas fazem alusão a uma consulta anterior.'" A linha gt i il
da resposta parisiense é que os juros do câmbio sao iIk iti >s r usu
rários e que o fator tempo não conta. Só as despesas matei lati)
ocasionadas pelo câmbio podem ser legítimamente conlablll t
das. A resposta dos teólogos parisienses é seguida das \ islas | mi
Aculares” dé Francesco de Vitoria, que é ainda mais rigorista e n •
cusa principalmente toda noçàp de lu cru m cessa ns.
Essa severidade torna-se; mais clara se confrontada n mi u
que escrevia Ludovico Guichardin na sua célebre Desi rl^tlo i/r lo
dos os Países-Baixos (1567) a propósito dos “depósitos" .allanta•
mentos concedidos de feira em feira a particulares ou a m >1in.iin • •
Os negociantes, escreve ele, “para cobrir ti infamia da coisa m ili
um título especial, chamam agora depósito, quando se tía um i
soma em dinheiro a alguém por ceito tempo, medianil' p u v a
juro limitado e determinado, ou seja... à razão de doze poi t . uto

98. IbiiL, p. M 2 \44,


99. GORIS, |. A, ih u lt uir A-t colottifs n u m h u n d i í iH é l'id io H illo , •> Itirm ■/,
1468à /so ”, Loiivtiln, p. M),l vis,

•uto
iiii uní)","111 lísse julgamento permite .u llvlnh.ii como a influência da
di Minina escolástica permanecía forte entrp <>s negociantes, que se
>'iloivavam para aplacar sua consciencia usando de estratagemas
11»ii* nos parecem hipócritas. A proibição global dos “câmbios se-
11 n por Pio V em 1571 atingiu notadamente os depósitos ou “cám-
bli »*. de feira em feira” . Certamente, durante algum tempo, notada-
mente em l.yon, continuou-se a indicar a cotação do depósito das
lelias Impressas onde se escreviá na última hora números à mão.
I nlrelanto, a prática tinha recebido um golpe sensível e os ban-
i|iielr< >s utilizaram cada vez mais o “câmbio com recurso” ( ricorsa)
i|iie, com seus sutis movimentos de ida e volta entre uma cidade
• uma praça de feiras, confundiu mais do que nunca as autorida-
i l i religiosas. I Iipocrisia mas ao mesmo tempo escrúpulos que
jilcslam a importância que assumiu nas mentalidades mercantis o
dhi urso eclesiástico sobre o pecado da usura.

;i preguiça
P., sem dúvida, graças ao meio mercantil e sob o impulso das
mudanças econômicas e sociais que a cristandade latina fez a des-
1 1 iberia tio pecado “mortal” da preguiça. A julgar pelo caso francês,
a*i palavras quê se referem à repugnância diante do esforço eram
<li ■ um emprego relativamente raro no francês medieval: pereise; pa -
irlsc, p(irc( (>, parecier existem certamente, -mas só dão lugar a utili­
zações episódicas. Mais freqüentes, é bem" verdade, são as que gi-
iam em torno da ociosidade .101 Mas esta nem sempre é tomada no
mau sentido. Ainda no século 16, alguns humanistas opõem o
o llim i, isto é, o recolhimento longe dos ruídos do mundo, ao nego-
lltim , que designa então a agitação e a dispersão em extenuantes e
i .lereis ocupações. Quanto ao termo fa in é a n t 1= vadio], atestado
em ( alvino e Montaigne, não parece muito freqüente antes deles.102

100. ( ¡UICHARDIN, L. Description de tons les Pays-Bas, Anvers, 1567, p. 320.


IUI. Cf., além do Littré, os dicionários da antiga língua francesa de F.
( iodefroy e de A. Hatzfeld.
102. ( if. BURCKHARDT, J. La Civilisatian de Ia Renaissance en Italie, ed. Plon-
( ilubdu Mcillcur Livre, 3v„ Paris, 1966: II, p. 258-360. DEI.UMEAU, J. Llta-
He de Rotticelli a Bonaparte. Paris: A. Colin, 1974. p. 145.

4111
liin çom plem enlt) .1 essas Indicações, veja se o resultado est I u•«>
dórele urna contagem ivall/ada por |, I,e (io lT e Mía equipe Mirilla
unía coletânea de (wvmftld do Inicio do século 14. Na IrenU v#l||
Dentou I I >emónlo| c*m 77 e.wmplci, M n lle rh Mulherl em fi i l/n>|
1= Mottel em 49: conllrmaçà» >, seja dllo de passagem, d<)s medí w m
tudados em nosso primeiro volume. Km contra pan lela, a Aci;/f,t|fty|4
cia só tem direito a seis menções, a AccíclUt a cinco, o (h tlitH 1
cinco, a P igricia a tres e o Labor, noção inversa da pteiedenu •
seis.10310
5Trabalho e preguiça na época nao sao portadlo pn • •• upa
4
ções dominantes dos pregadores. Ksses meio-siléñelos e ewMN qtt»|ij
se-ausências remetem a uma civilização que nao eonhet la a i ililW
são da produção.
Mas, desde os tempos dos Padres do deserto, a Ign |a to n
siderou com o grave é m uito logo mortal o pecado d* m itih i \
“acidia” significava o torpor espiritual, a aversão aos e x c ri'M u l
religiosos, urna tristeza desanimadora que lira da alma a i» mi m.i
tempo o desejo de servar a Deus e a vontade de vlvet SatiU• lo*
más de A quino prefere chamá-la precisamenle "tristeza'' in d i
tía - e a define como um “vazio da alma” , uní “ tedio" p io liin d il
em face do bem espiritual por causa do esfe >i\<) lisie o que eli i a i
ge; e liga-se a ela a ignorancia (voluntaria) em materia de n libido
“pela qual alguém se recusa a adquirir bens espiritual*, pm . m o
do trabalho que isso dá” .m Chegando ao quinto em ulo do lulta
no, Dante parece lembrar-se da análise do doutor "angi ll« o
águas negras do Styx, ele descobré ao lado dos coléricos, os ,h
cidiosi que carregaram “no coração tristes fumaças", Agota * I*n
trazem “lu to ” em “ lodo escuro” . É bem verdade que, Do qiuirlJ
patamar do purgatório, agitam-se febrilmente aqueles qtii n ■
tam agora p o r esse “ fervor agudo” suas “ indolencias", sena \tlhi*
sos” e seu “ to rp o r” na terra. Essa morosidade aparenta se • lilao
com a preguiça. Todavia, eles são punidos esseru lalmenle po|
falta de zelo e de amone, sobretudo, por ter cedido ao desanimo
com o certos hebreus que, após a travessia do mar Ve mu II .........
daram a seguir Moisés e pereceram no deserto e como dl ve 1*0 i*i

103. Agradeço ¡mensamente a Jacques í.c GoíFpor ter mc coimmli ,nln .. t,


sulcado desta pesquisa sobre o l'Alfthdbetwn ndrMtionum compilado |<••t •iiltü
de 1308-1310 pelo domink.mo Arnold de I.Urge. A obra úunpoil.i ...
bricas ordenadas por ordem nlíabétic.i desde abbtis at<f Mfaiypti,
104. Som m ? thfoloftitjuf, I II ", queji. 84, aii. 4.
105. 1huuc, Knlei, i ap. Vil, v, I I s 124, p.
milanos que se detiveram na Sicilia ao Invr, de acompanhar
I nelas alé o Latlum ,106 Esse desánimo nao passa então de um pri-
i i mi distante da preguiça no sentido moderno tío termo. Notemos
di passagem com o a Igreja da Idade Média e do inicio dos tem-
IMis modernos combateu a tentaçao do desánimo entre ds fiéis.
\ Ih'spem cio retorna em 11 dos exemplei estudados porjaeques
I . <.<>11 r sua ec|iiipe. As Artes m o rie n d i, cada vez inais numeró­
os a partir do século 15, acentuaram ainda mais a luta contra o
i li ii vspen >do agonizante que, repassando em espírito os pecados
di sua vida, não crê mais poder conseguir o perclâo divino. Essa
i /i 'i / kw / i /o aparece então como uma forma extrema da acidia.
() sermão do vigário cie paróquia no últim o Conto de Can-
lerhnry mostra, ele também, uma espécie de acidia .10710 8É um pe-
• adi • mortal porque a Bíblia diz: M aldito seja aquele que faz ne-
gllgi lilemente o serviço de Deus. E o vigário esclarece: “ No esta­
do de Inocência, o homem deve trabalhar para glorificar e ado-
i ii a I )clis; no estado de pecado, a orar por sua correção; no es-
lad< • de graça, é instado a realizar as obras de penitência” . O pe-
i ado fustigado pela hom ilía é então uma preguiça espiritual que,
II informe o caso, engendra o desespero, sem dúvida, mas tam-
liem a sonolência que entorpece o corpo e a alma, á Negligência
"nutriz de todo mal como Ignorância, é sua mãe” - a Lentidão
i hin/llets) que afasta o homem cie Deus e a Tristeza que causa a
ni'ule da alma. A virtude oposta à acidia é a F ortitudo, mistura
d r coragem, de grandeza de alriia e de constância. Ela própria
d< \c apoiar-se na meditação sobre os castigos eternos e as ale-
gilas do paraíso e sobre a fé na graça do Espírito Santo.
(íerson, expondo O Proveito de saber q u a l épecado m or­
ta l r ven ial,m utiliza a palavra paresse 1= preguiça], mas no senti­
do de "tédio do bem espiritual” e “dim inuição do fervor de cari­
d a d e '. Esse pecado só se torna mortahse “por ele se deixa de fa-
ei aquilo a que se é obrigado por mandamento” ou se “o tédio
e tal que se sente desgosto de viver e por isso se cai em cleses-
I ii ro Para Gerson, “ paresse” é então a tradução francesa de “aci­
dia Como esclarecem os exemplos pelos quais ele concretiza
sitas palavras: se alguém, obrigado por voto sagrado ou por man-

106. lbid., Purgatoire, cap. XVIII, v. 103-145, p. 1.245-1.247.


107. < i IAUCER, G. Contes de Canterbury. trad. por 21 autores. Paris: Alean,
1008. p. 513-523. Não é certo que este conto seja de Chaucer.
108. ( TUSON, J. CEuv.res completes, ed. Glorieux, VII, n. 328, p. 376-377.
damenlo ;i d l/e i suas "horas", delxtl voluntariamente de la/e In,
ou se, ao rccltâ las, evita conscientemente pensar n u I )c*ii,*«, ■ I*
comete um pecado morUil. <)corre o mesmo m m tod.i pessoa
que, sem "escusa razoável", falta a missa de dom ingo e nos dias
de festa obrigatória.
Pode surpreender-nos a Importancia assumida pela "p ie
guiça” no Composto ... dos /vistores: 17 galhos, SI ramos, I M ln o
tos. Mas, entrando-se nos detalhes, percebe-se que a noção nftu
é clara e que ela cobre pecados muito diversos: “Cogltaçao m il
dosa. Tédio de bem. Leviandade a mal. Pusilanimidade, Ma vou
tade. Fração = ruptura devotos. Impenitência. Infidelidade Igno
rancia. Vã tristeza. Covardia. Má esperança. Curiosidade. ( hlosl
dade. Divagação [do espírito fora do reto caminhol. Impedlmen
to de bem. Dissolução” . Trata-se, portanto, de um pecado em ■ pu
cabe tudo o que se refere à “acidia” - aversão espiritual, pusll t
nimidade e covardia, ignorância voluntária, desânimo mas u m
bém diversas atitudes que lhe parecem alheias: má vontade, lull
clelidade, curiosidade, dissolução, etc., a “ociosidade" constitui
apenas um dos 17 galhos desse pecado polim orfo, e nao cones
ponde ao que esperávamos. Com efeito, eis aqui as definhou*»
sucessivas de seus três ramos: “a) Cessar de fazer bem, Ouei dl
zer: as boas cogitações, as boas palavras e as boas obras b) Pio
curar fazer mal. Quer dizer: as.concupiscencias da carné; as i o it
.cupiscências dos olhos. Avareza e (concupiscencia) em viver o|V»
gulhosamente. c) Não resistir ao mal. Pelo amor que se tem ao
mal. Pelo tédio que se tem do bem. Por negligência th- sl u ns
m o” .100' Vê-se que nesse enunciado são condenados IndlxtlnUl
mente pecados de omissão e de não resistência ás tentado»
além de iniciativas em direção do mal. Ademais, a recusa de lia
balhar se acha mais subentendida do que claramente ......... ..
Este docum ento é éhtão interessante na medida em que n« is d. i
xa adivinhar a dificuldade outrora sentida pelo discurso ei lestas
tico para conceituar a preguiça.
Entretanto, os provérbios hebreus, parte integrante da Iti
blia, tinham incitado aqueles que têm tendência a dorm ir ou <>«
chilar a observar a atividade da formiga.1"’ liles diziam "a Indoh n
cia não assa sua caça” .1” “Todo labor dá lucro, () falalórlo só pio 19
0

109. A cdiçtlo ele I á1);) ioimiiIukIii tu|iii nlto comporta pagin^Ho.


110. Proverbios 6,6 l
111. Ibiil., I2..V.
ilii-' | nM U irU is". "A iiImu Indolente In.l lome" Sobre aquele que
•ni/,i os braços e se esiiea vira a indigem la como uní vaga bu n-
ilo r ,i miseria como mu m endigo'1,1" l■•••..i.*, sentenças tiveram uma
li mga posteridade. Reencontramos seu espirito e às vezes até a le-'
ti,i nos ditados que tinham curso na I■'rança do século d 6 : “ Pregiii-
«mso o sempre miserável” . “ Preguiçoso na juventude, sofredor na
vi llilce", "Quem dorme até o sol nascer vive em miséria até ele
n io i l e r ’ Essas advertências eram claras. Má;s não tinham nada
d* religioso. Assim a Igreja, dirigindo primeiro sua reflexão e a
• iilp.tblllzaçào para a acidia, teve dificuldade em passar desta para
i lepugnáncia diante do trabalho e em elaborar um conceito bás­
tanle amplo para significar ao mesmo tempo o tédio espiritual e a
ii i usa i l e esforços concretos quê nos propõe a existência cotidia­
na l i e s caminhos convergentes levaram a uma síntese.

() prim eiro pôs em destaque os perigos morais da ociosi­


dade, velho tema moral já presente no Eclesiástico e facilmente
1 1Istlanlzado, mas que, de etapa em etapa, desembocou no elogio
di i trabalho pelo trabalho. Tomemos aqui como ponto de partida,
um tanto arbitrário sem dúvida, a D iscip lina degli s p iritu a li redi­
gida pelo dominicano pisano Dom enico Cavãlca ( f 1342), O au-
11 a laz aqui 6 processo da ociosidade e pede ao homem que can­
sí 11 seu corpo, servidor rebelde ao qual, se deve retirar toda pos­
sibilidade de ser recalcitrante .110 Além disso, o ocioso “coloca-se
numa sltuaçàp mais vil que a dos animais, porque a estes é per­
mitido comer. () Santo apóstolo Paulo declara que, ao contrário,
aquele que não trabalha não tem o direito de comer” . Esse aviso
His 'contemplativos que,não querem fazer nada e viver somente
be esmolas”" 7 ressurgirá várias vezes na história: na época da Re-
|i uma e depois nos séculos 17 e 18. Daí esta fórmula incisiva: “Se
tu e s um homem, vai, trabalha e come o pão de tua fadiga” .“ H
Retomemos agora o M éhagier de Paris. Ao lado da negli-
gi*m Ia, da "carnalidacle” e da “desesperaçào” , ele engloba indistin­

t a . Ibid., 14; 2 3 .

1 13 . Ibici., 1 9 ; 15.
1 1 4 , Ibici., 2 4 ; 3 3 - 3 4 .

I IS. Mlí URI RR, G. Recueil de sentences notables... Anvers, 1568, n. 2.605,
2.628 c 3.218. Agradeço a Daniel Rivière por ter me comunicado esses ditados.
I 16. CAVALGA, D. D isciplina degli spirituali, ed. Bottari, Milão, 1838, p. 128.
117. Ibid., p. 129.
I 18. Ibid., p. 131.

•i:ir>
lamente ií.i preguiça <> rancor, ;t "vaidade no coração" c .1 presuiV
Vilo, Sua concepção cío quarto peálelo capital enláo permanei c
aínda bástanle confusa. Todavía, ele Insiste sobre a "ociosidade'

... No lívangelho, t; dito que a vida tio corpo ocioso c In111ii>v<


mortal da alma c Monsenhor Jerónimo d i/ esta autoridade 1 a •
sempre alguma coisa a Um de que o Inimigo Hilo le encontiv
ocioso... e Monsenhor Santo Agostinho diz... que nenhuma |"
soa capaz tic trabalhar deve flcar ociosa.""

Lembremos, ademais, (|ue essa obra c redigida poi mu


burgués sólido e austero na Intenção de sua jovem m ullitT * <pu
na mentalidade masculina da época, a ociosidade c um perigo
moral <|uc ameaça particularmente a metade feminina da luima
nlcbule*, Iis.se lugar-comum foi notadamente explorado pot san
llernardino de Siena num sermão muito misógino citado no vo<
lume anterior: "I nquanto mantiveres tua esposa ocupada, acón
selluiva o grande pregador, ela não permanecerá na janela e nao
lite passará pela cabeça, ora urna coisa, ora outra".1* ' O liumauis
la I.cuite Itallista Albertl, arquiteto mas saído do meló "meii.iu
ill nau laia outra linguagem nos seus L ib ri dellci f a m ilia ( I i t t
1 11 ‘o r na i le, su as constantes ocupações podem combatei .1
Iih onsiaiH la, .1 leviandade e a frivolidade cias mulheres e Impt
di las de ll< ai olhando na sacada. Porque elas sáo nadir,límenle
tus 1 . 1 mau, elas devem lugar contra esse deleito; e cabe ao
muí l<b 1 d ia l as condições que permitam á esposa náo suctimbli
a ele 1 1 ludavla, a ociosidade é nefasta para todos e arruina ,1
sailtle Albertl e categórico a esse respeito: “ Pela ociosidade, .11
\eias enchem a linfa, tornando-se aquosas e esbranquiçadas 11
estómago se debilita, os nervos se entorpecem, o corpo engoida
e adormece, Além disso, muita inatividade torna o espirito pesa
do e confuso e as virtudes empanadas e inertes” ,1''

11‘), /,{* Mimgíer de París, I, p, 39-40.


120. DlíLUMBAU, J. l« Peuren Occidente, p. .0*>. Cf. MONNIM', l’li
2 v,, Paria, 1024, II, p. 198.
LeQttot trocen to,
121. AUIKRTI, I.. II. /Ubrl della famlglía, al, A. Tcneiuic R, Roimtiiu, Iti
rin, l'.iiituitll, 1969, p. 57-68. Cf. AUSCHPR, M. 1 'Bducation tic /,/ /,nnnc
hmifftoise cu Tascaste tiu XIV ct XV síteles: de Li jame filie h l'épóine, I Hpliiiiiit
dii P.l II'.SS cinc, 197H, p. 16-17, 24, 162-16,1.
122. Ibiil., p. 39,
() segundo Itinerário para ,i condenação global da pregui-
i. atravessou o país da pobreza cti|o horror médiu^sc melhor a
,i

partir do século I V ’' No segundo Romance da Rosa, o pobre,


i mirora Imagem do Cristo, torna se gradativamente objeto de des-
p ie /o , de suspeição, de condenação e de temor. Da mesma ma-
Itelra, Chaucer põe na boca do homem da lei: “Mais vale a mor-
li do t|ue a indigencia! ... todos os dias do pobre são maus”. O
A\ mu mee de M andevie de jè a n D upin (1302-1374) ensina-. “[O po-
b iel c o m grande dificuldade poderá subir na roda cia fortuna...
Veja sempre o preguiçoso pesado e melancólico... Àquele que vi­
ver ociosamente será perenemente louco... Se quiseres riqueza,
(nao deixes) nada para amanhã” .-12“ Alberti faz eco ao declarar:
Nem mesmo os deuses amam os pobres... Mais vale morrer do
que viver em pobreza” .'
Mas cada vez mais se precisa a idéia de que a pobreza não
• so lamentável, mas também culpável. No segundo Romance da
Rosa, ela aparece como imbricada no pecado. Porque a corrupção,
lê se, "entrou no mundo quando foram deixadas na terra Pobreza
c seu filho Roubo ”.12314 6É instrutivo nesse sentido voltar ao autor do
12512
Mcnai>ier de Paris. No seu escrito, embora a ociosidade seja con­
denada, a preguiça, como vimos, permanece umá noção confusa.
Mas ele faz o seu tratado ser seguido do poema escrito em 1342
pelo notario real Jean Bruyant sobre o tema do Cam inho da Po­
la r ¿a e da Riqueza. E se ele o recopia, diz que é para “me ajudar
com a diligência e perseverança que um recém casado deve ter” .120
( )ra, o poema de Bruyant constitui para nós um marco visí­
vel na laicização da preguiça e a passagem para uma condenação
t Ia p< >breza. Do próprio vício que causa tanto mal, ele diz: “As pes-
*i<>as o chamam preguiça / e Os clérigos o chamam acidia ” .127 Isso
l ura a secularização. Quanto à Pobreza, ela é certamente lamentá­
vel; é “ t Ima dama que não é apreciada / Neste mundo, não admi­
tida ' Nem como um velho cão, na verdade”. Ela traz consigo “toda
adversidade, / Desgraça, dor, tédio” . Mas Bruyant vê nela a conse-

123. Para o que vem a'seguir cf. MOLLAT, M. Les Pauvres au Moyen Age,
p. 266-316.
124. DUPIN, J. L e Román de M andevie ou les m élancolies sur la condition hu-
tnaine (B.N. Res. Y2761 in-4°), VIII, cap. 29 “Des paresseux”.
123. Román de la Rose, ed. R Lecoy, II, v. 9.511-1.512.
126. Le M enagier de Paris, II, p. 3.
127. Ibidi, II, p. 17.

4M7
qüOnela de iiniii escolhu s<>1un(.trl.i . l ie delxu entender que Iih Iii
hornera eneonlm tlols caminhos dlante ele si. <) da di rol tu, lelilí de
“diligência" o de "perseverança", leva a riqueza aquele qm 't i"
'manter-se nele, () da ".sinistra" leva ao contrário para a "angUMllii”
e a “miseria", lile nao encontra ai "conforto, nem ajuda Nem i olti
selho, nem esperança, nem bens; / Hxcelo dor, tedio e Inlnitim io
Ao bom entendedor, meia palavra: "Para atrás é bom enl.to ala*»
tarase / Do caminho que leva a isso” ( Afastar-se do caminho que
leva à pobreza). Finalmente, os pobres não merecem cmiipahílMi
“De tais pessoas, na verdade / Devemos ter pouca piei l.u le < »it f
tenham incômodos, é justo” . A acusação é agora bem laut oda .
durante séculos, nào se deixará de misturar numa mesma m iu lw
nação global “rufiões, malfeitores, ladrões... pessoas Inúteis e d( ' (I
condição” . As pessoas “sem eira nem beira” e “sem domk ill<» *>e
rão chamadas “sem confissão” e de “ má fama”. F.sscs analcma'i b •
ram a contrapartida da multiplicação de desempregados nu I uih
pa do início dos tempos modernos - um assunto agora bem eslu»
dado e sobre o qual é inútil insistir mais.1*
O terceiro caminho, mais sutil, para a plena Idenllll» >i •i•»
da preguiça foi traçado a partir de uma reflexão sobre o icmpM,
cuja origem se encontra talvez numa fórmula atribuída u '.ao
Bernardo: “Nada é mais precioso dò que o tempo,.." 1 l ia i •
plicitada no século 14 por Dom enico Cavalca que, na sttu /)/#i l
p lin d degli s p iritu a li consagra dois capítulos á "perda de le m |iiiM
e ao dever de “prestar conta do tem po” . Por meio d« um i Im
guagem de mercador, observa Jacques Le Gol f,1'" ele u a s n l la
tem po e espiritualidade e compara o tem po desperdiçaiI....... lu
lento oculto e estéril da parábola evangélica. Deus nos pcdliU
conta nào apenas do mal que teremos cometido, mas la m b e m
do bem que não tenhamos realizado por não termos e m p n g.i
do bem os dias de nossa vida .131 O autor do M c m i^lc r do /W t/q

128. Além da obra já citada de M. Mollat e as que figuram mis num» do ulil
mo capítulo de La Petir en Occident, cf. Les M arginanx et les e\< ht\ t/am
toirc (obra coletiva). Cahicrs Jussicu n. 5, Paris, 10/18, I’)"/1» Solo* o t.mt
mais particular da acidia cf. RICAJID, R. “Pour une hiscoirc tlc I o •.11. . m
Nouvelles Enteles re/igieuses, 1973.
129. “Gaufrididcclamrttioncs cx x. Bcmaixli scrmnnihus": Patr. /<// . ' ! P
col. 465. l.RGOPK |. "I r lémps du rravall duns Ia crise du \ IV a, •l> ,ln
temps médiéval au temps moilemc" cm Pour um ñutir Aloyen p,
130, LEGOIT, |. Ibkl,
131, GAVAI.i A, I). IHwlpllnn.,,, cd. lUntarl, p, 132 133.

m
dentro do mesmo espírito, aílrm.i, "No dia do Julgamento, toda
piwioa ociosa deverá prestar conta do tempo que terá perdido
pela sua ociosidade” .lw Dessas considerações, cujo espírito, era
nitidamente religioso, resvalou-se para uma secularizaçào cres-
i ente. Na virada dos séculos 14 e IS, o possuidor de urri mahus-
i uto do U lu cid a riu m apresenta um uso do tempo característico
do t om portam ento e da mentalidade de um burguês bom cris­
tão Alguns anos depois, o biógrafo de Gianozzo Manetti lou­
va o senso do tem po que ele tinha observado no humanista. Este
ultimo, relata ele, tinha o costume de dizer que Deus contabili-
m o tempo passado a comer ou a dorm ir e que no dia do julga­
mento ele pedirá razão não somente dos anos e dos meses de
nossa vida, mas também dos dias, das horas e dos mais breves
Instantes. Então, Manetti nào queria desperdiçar a menor pareé­
is ilo tem po que lhe havia sido dado.13" Na época em que apa-
n r i ’iii os relógios mecânicos, quando as cidades começam a rit­
mar suas atividades pelas indicações dos campanários, quando o
humanismo após Petrarca descobre a história e nasce também a
I >erollo m oderna com seus conselhos de método para uma boa
oração, homens de negócios, de Igreja e de letras descobrem
i • injuntamente - e sem dúvida apoiando-se mutuamente - o pre-
I. o de cada instante e a gravidade da indolência.
Pode-se apreender essa descoberta (e as hesitações que a
precederam) na Suma de Santo Antonino. Escritor espiritual, ele
i oncebe a acidia de maneira ainda tradicional: uma “tristeza” ,
um “ torpor” , que deprim e tanto a alma humana que ela nãó se
•tente mais motivada a fazer o bem .13214
135 Ele não deixa passar em
silencio a ociosidade ,136 vício que leva ao inferno e engendra
uma m ultidão de males. Mas ele a considera fora de qualquer re-
leien eia ao trabalho cotidiano, Cristo, diz ele, fo i infatigável ao
li ingo de sua vida pública. O reino dos céus nào será então dado
aos ociosos e aos negligentes, mas àqueles que o pedem pela
oração, o procuram pela leitura e a audição de textos sagrados,

132. M énagier de Paris, 1, 3.


133. I.E GOFF, J. Ibid., p. 78. LEFÈBVRE, Y. LElucidarium et les Lucidaires.
Paris: De Boccard, 1954. p. 279, n. 1.
134. I F. GOFF, J. Ibid., MURATORI, Rerum italicarw n scriptores, XX, p. 582.
135. SAINT ANTONIN, Sum m a..., ,2a parte, título IX “De acidia”.
136. Ibid., cap. 14.

4: $i)
o impulsión.un por nii . in boas obras", E o arcebispo e.scluret e
a pos Sao bernardo <|u«■ "otaipar se de Deu.s nao e ociosidade r,
portanto, pecado, mas ao contrário é a ocupação das ocupa
ções” . O termo p lg rú lo aparecí1 em seu escrito, mas para deslg
nar a lentidão a converter se, a confessar se e a bem agir.1’ < > di
retor de consciência so tem em vista, portanto, objetivos esplii
mais, até mesmo eclesiásticos, () essencial de seus desenvolví
mentos a esse respeito incide sobre as múltiplas “ negllgém las'
que sobrecarregam a vida religiosa dos clérigos c dos lelgoN
prelados recusam instruir-se ou cum prir os deveres di' seu caí
go; religiosos nào recitam as horas canónicas; fiéis nào observam
as festas de guarda, esquecem a confissão e a comunhão anuais,
não vão aos sermões ou os ouvem sem escutar ou os escutam
sem colocá-los em prática.1-* Mas, depois dessas considerações
bem clássicas, Santo A ntonino assinala de maneira mais Inter» s
sante para nós o inestimável valor do tempo. Como Sa< > bernai
do, ele afirma: “Nada é mais precioso do que o tempo, mas nada
hoje tem reputação mais v il” . E prossegue:

Não avalie por pequena coisa o tempo 'despendido em Inllll


dades e propósitos ociosos ... O tempo é tão precioso que num
breve momento de sua duração o hompm pode obter seu peula< •
e merecer a vida eterna, como o ladrão crucificado com (¡rlstu
num cuito instante ganhou o paraíso. O tempo é (ao piei loso
que daríamos todos os tesouros da terra para obter um momen
to de vida a mais a fim de fazer penitência e escapar aos iiipll
cios do inferno. Nada é tão exclusivamente nosso como o leiri
po; daí aquelas palavras de Séneca: todos os outros bens nos Nfln
êstranhos. Só o tempo é nosso.w

Eis aí a nova fórm ula - nada é mais nosso do que o lem


po - ao passo que antes a Igreja ensinava que ele pertencia a
Deus: razão pela qual não se devia vendê-lo nem exigir Juros
em função do prazo de um empréstimo. A essa afirmação cli
Santo A ntonino responde um diálogo que figura nos U bf l
fa m ig lia de Alberti:

137. lliiil.. cup. 1v


13». Ibicl.. mp. 3 ii D.
139. ANTONIN DI I (.OKI N( I , Sumhm, II, título IX. oip. XIV.

I MI
( ilanni)/./(»; lli i i i i m l'u'i <|ik * i i liomom pode considerar
m u ís na medida em <|iir, «U<>uU* o día em <|ue vem ;i luz, a natu­
reza as dá com liberdade di1 ullll/a las secundo tua vontade para
o bem ou para, o mal, I , a nalureza ordenou que elas estejam
sempre ao teu lado e que aí permaneçam juntas até o último dia,
Uma é este espírito móvel pelo qual desejamos e nos inquieta­
mos ... A outra ... é o corpo.
- I.ionardo: Qual será a terceira?
- Giannozzo: Ah! Uma coisa muito preciosa. Minhas máos e
meus olhos não são tão meus quanto ela.
- I.ionardo: Maravilha! E o que é?
- Giannozzo: Uma coisa que não podes dar por testamento nem
retirar. É impossível que ela não seja tua desde que tu a vigies.
- I.ionardo: Posso dá-la a outro?
- Giannozzo: Quando, quiseres, ela não será mais tua. Essa coi­
sa é o tempo, meus filhos.

Essa insistência sobre o valor de cada instante perm itiu a


passagem do tempo religioso para o tem po secularizado, do tem­
p o tia salvação para o tempo do lucro e da competição entre os
homens. Já na metade do século 14, o toscano Paolo da Certaldo
numa coletânea de provérbios, por sinal m uito medieval no tom
e n o espírito, o Libro d i b u o n i costum i, tinha dado este conselho:
"Se es negligente em teu trabalho, jamais poderás ser outra coisa
a n à o ser um pobre... Não digas: vou fazer amanha. O que tens
que lazer, faze-o rapidamente ”.141 Em 1408, um tabelião.escrevia
ao negociante Datini: "Eu não esqueço vossa fórmula: supera o
ouiro quem sabe m elhor que ele utilizar o tem po” .1'- Nos escritos
de Alberti, essas máximas dispersas se juntam num discurso cla­
ramente elaborado:

- Giannozzo: Para não perder riada de uma coisa tão preciosa


[como o tempo], eu me dou esta regra: jamais permanecer ocio­
so, fugir do sono, só ir para a cama vencido pelo cansaço. Porque
me parece uma coisa vergonhosa cair e me estender vencido sem

140'. ALBERTI, L. B. I U M .., p. 204-205. Cf. LE GOFF, J. Pour un nutre


Aloyen Age, p. 78-9.
141. Ibid., introd. de Romano e A. Tenenti, p. IX Le Libro d i buoni costumi
foi editado por A. Scchiaffini, Florença, 1945.
142. Ibid.
U'l lili,lili) I II |ll|<> lll) N o n o C lili Oc lONlllíllk' líl/cMulo NC|I|| i |i >||
gum.i c o b a , i i ),i i . i i|tir u n u o c u p a ç ã o n a o se m l s l m e io iii mili i
... s a b e m o (iiic cu lavo, rneus Millos? I >c m a n h a , anl<"• «Ir im |.
vantar, c u p e n s ó c o m i g o m e s m o : o q u e c u te rol pitra la/ei lio|nP
'I o d a s as co is a s, I! as e n u m e r o , p e n s o nela s e a c.ul.i urna e u iiil
b u ó u m m o m e n t o particular; esta ele m a n h a .. ,, a<|tiela a n o lie Sr
sim , ca d a tra b a lh o é r ea liz a d o na o r d e m e s e m ladina
... Õ tempo foge Idas mãosl do homem negligente eu pe II
ro perder o sono e náo o tempo, cjue é a époc a do (ruhalho i 1
sono, as refeições-e outras coisas semelhantes, cai posso rei upm
rá-las... Mas não os momentos do tempo."'

Em outra passagem do diálogo, Gianno/zo enuncia ainda 1 nM


sentença: “Aquele que sabe não perder seu tempo sabí ..........
mente fazer tudo: quem sabe empregar o tempo, possiilrtt tudo n
qiie quiser”.1"

Esse tempo dessacralizado, que rejeita toda preguiça, n n i i


cebido em função da utilidade e do lucro. O célebre conselho • h
Franklin: “Lembre-se que tempo é dinheiro...” foi inieinlmente h*r
mirlado pela Renascença italiana. É mais uma vez Alberii que >»r
deve ler a esse respeito, já qué, para ele, empregar bem o leiiipn
é enriquecer: “Se o dinheiro, escreve ele, prové a Iodas as iuh 1
sidades, para que ocupar o espírito com outra atividade que ........
dinheiro?” . P o u c o menos de um século depois, ( luichardln chi u
ve dentro do mesmo espírito: “Tenha como certo que, poi hn ,
que seja a vida humana, para quem sabe, porém, capitalizai <• h ui
po e não consumi-lo em vão, ele rende m uito ”."'1 Assim, t<•<>liigi • 1
humanistas e negociantes descobriram e declararam conjimiamen
te que o tempo é o bem mais precioso do homem. Mas h >1 *,■ .1m
tudo a concepção secularizada do tempo que fez aparecer nlllda
mente a gravidade da preguiça como desperdício das pos.slhllld 1
des humanas; e foi o mundo laico que levou a Igreja da Ci >ndi 111
ção da acidia para a da preguiça - vício gravemente nocivo mima

143. Ibid., p. 215-216.


144. Ibid., p. 261. Outros texto*. concordantes citados poi ITNHN I I, \
SI I Sen so..., p. 44-45.
145. Ibid.; p. 299-300.
146. Ibid., p. XII, (JUK t IAKI>INI. K AVtwv//, cd, K, Spongnnp, l,luipiii,rti
1951, p. 157,

II 5
Mocledadc que clá ênlase cada \ r / 111.11*<.1 »ii Ivlduclc* ierre nu, ao lu
• i<> c .10 dinheiro. A acidia era .11>c'n. 1 . um |x*cado individual. A
picgulça assumiu rapidamcnic feição de flagelo social.
N cbasiicn Brant c uma boa testemunha dessa evolução. O
1 i| titulo XCV1I da N au dos insensatos consagrado “à preguiça c à
ni li tfildadc’'1*” retoma temas morais clássicos: “a ociosidade é mãe
1I1 l<idos os vícios” ; o diabo “se apresta a explorar a preguiça e a
meá Ia". Mas certas fórmulas já soam de maneira mais moder­
na "<) preguiçoso nào serve a ninguém... Feliz o lavrador que
• uva com ardor... Deus castiga a indolência e abençoa o traba-
II mi' liste é, portanto, valorizado como um absoluto. Além disso,
,1 abertura do capítulo determina que a sátira visará sobretudo os
1 l iados e criadas. Mas mais revelador é o capítulo LXIII"* que ata-
• .1 "a mcndicidade”, a qual enriquece muitas pessoas inclusive as
ordens monásticas, os negociantes de relíquias e de “bugigan­
gas". Brant admite que a miséria, às vezes, “ força” infelizes a
mendigar. Mas,-essa breve concessão nào contrabalança a longa
diatribe contra os falsos aleijados, gatunos, vadios e outros “can­
didatos à forca que circulam nas feiras” . Certas generalizações sào
Inquietantes, como esta, por exemplo: “Todo mendigo tem sua
rapariga que mente [e] rouba” . Em definitivo, sob o disfarce in ­
consciente de uma condenação global da preguiça, Brant expri­
m i 1 o medo que sentem dos pobres as pessoas de posição do iní-
<iu dos tempos modernos: “Eles Los mendigos!, infelizmente sào
numerosos e estão aumentando... Muitos exercem esse ofício
para divertir-se, fornicar e viver largamente, e é um ofício segu-
10 que nào teme o desemprego... Ninguém proíbe de mendigar
nas estradas; jamais se confisca o bastão do m endigo” .
A despeito desse texto e de outrossemelhantes, foi preci­
so tempo para que a preguiça fosse objeto de uma condenação
universal e se integrasse em suas mais amplas dimensões ao d is
curso culpabilizador. No painel consagrado por Jérôme Boscli
aos Pecados capitais (Museu do Pradò) é a acidia que é Fustiga
da. I Ia é simbolizada por um religioso adormecido no canto do
logo ao qual estendem em vào um rosário. I.utero revoltà-se con
Ira a ociosidade, mas pensando sobretudo na dos monges. C) que
o leva a valorizar os ofícios e o hum ilde trabalho cotidiano dos
leigos: ninguém deve abandonar um ofício para se “ enfiar num 1 8
7
4

147. BRANT, S. L a N efdes fous, p. 378-380.


148. Ibid., p. 226-231.

443
convento" I Jen?* "n.io se tlelxa... satisfazer pelo lato de le i<miot
res um asceta, mu monge, unía freirá, mu pároco. Isso Ihe i gi ■
da m uito menos que o mals modesto olYclo da térra",11" Mas i • Ib
form ador que, como a l'.scrlttira, despreza os indiferentes,'" lie
qüentemente redu/ a preguiça a acidia, misto tic inórela e di o|
gulho espiritual. No G rande Catecismo, ele utili/a sobre ewtf»
tema expressões totalmente tradicionais e insiste como Santo Su
tonino sobre a alergia à pregação:

Deve-se censurar, escreve ele, aqueles espíritos delicados, i|iu


depois de ouvir um sermão ou dois, estão cansados <■ sai ladon
como se agora soubessem aquilo por si mesmos e nao tlvesu ni
mais necessidade de mestres. Porque esse e o pecado que, alt'
agora, era contado no número dos pecados mortais, que e . h i
¡nado a c id ia , isto é, preguiça ou saciedade, chaga odiosa, p» mi
ciosa, pela qual o diabo enfeitiça e engana inúmeros coia«,or i i
fim de nos surpreender de improviso e nos arrebatar de m »v» i eni
segredo a palavra de Deus.IM

Da mesma maneira, o jesuíta Çanisius, apóstolo da ( anilla


Reforma na Alemanha do século 16, continua a mencionar a .n i
dia n asua lista de pecados capitais. Será que se pode dl/ei qm
Montaigne, ao contrário, sai em guerra contra a preguiça n<>s <f ih
capítulos dos Ensaios consagrados respectivamente a "ot io.sldu
de” e à “vadiagem ”?14
0
15
9 4Sem dúvida, ele quer aproveitar seu la/ei
15215
3
para disciplinar e por em ordem seus pensamentos que, de ou
tro modo, gerariam “quimeras” e “monstros fantásticos ".1 i I*
louva a atividade dos imperadores que morreram “de pé" e ad»
mira a grandeza de alma daqueles que mantem “sempre .1 alma
e o corpo ocupados em coisas belas, grandes e virtuosas" 1 1 h u
compensação, desparece pouco preocupado com uma utlll/.lÇiUi
funcional cio tempo e a obsessão de perder o m ínim o ¡lisiante

149. LUTHER, M. (Euvres-, VI, p. 220 (Comentário do Siihuo < Yl 7/) • I


também III, p. 63.
150. Ibid., VI, p. 211 (Com entário do Salmo CXVU).
151. LUTHER, M. CEuvm, VII, p. 4l) (O Chande Catecismo).
152. Essais, I, cap. VIH c II, cap. XXt.
153. Ibici., I, cap. VIII: t, I da rdiçtn ilc bolso,
154. Ibid., II, cap. XXI: 1. II, p, M ’

III
Mr.•■mó (.Indurando c|ut* .1 "IndoU'in la' r um "vicio” , ele confessa
I m íu Iit 'evidentemente" para c l.i pm au "compleição".11"
l ssa é uma tentação descorçheelda de (d iv in o cuja obra lo
lall/a as diversas reflexões e condenações anteriores a respeito d.i
pivgulça, Na In s titu iç ã o cristel, ele pensa na acidia quando trata
do'i perigos da “ indolência e do orgulho” espirituais. Essas atitu-
di *. extinguem “a humildade e reverencia de Deus” e induzem
em esquecimento de suas graças” .151561578*Mas Calvino assimilou o dis-
• urso da Renascença sobre o tempo:

... Assim como a brevidade da luz deve convidar os operários


,1 trabalhar e ser diligentes, para que aos primeiros eéforços as
trevas e sombras da noite nãb os surpreendam, assim também
quando vemos que pouco tempo de vida nos é dado, tenhamos
vergonha de permanecer ociosos.1,7

Por outro lado, o trabalho é uma “lei da natureza” , inde-


prndentemente até mesmo cio pecado original:

I )eus poderla bem enviar-nos alimento sem que nos custasse


nada, mas agrada-lhe exercitar-nos, que tenhamos solicitude, que
trabalhemos, que cada um, segundo o estado a que é chamado,
aplique-se a fazer aquilo que vê como próprio. ... Deus ... não
1 |uer que se descanse, que.se permaneça estagnado e que não sai­

bamos o que é lavrar a terra, nem trabalhar de outra maneira.IW

Pie não quer que “sejamos frouxos e ociosos como. troncos de


madeira”.1'"

Deus “ não quer que se descanse” : fórmula terrível que ilu


mina toda unia civilização e faz com preendera gravidade cio ana

155. Ibid., II, cap. IV “A demain les affaires”: I, p. 435.


156. ( ’A LVIN, J. Institution..., II, cap. J, 1: I, p. 23; cap. XX, v. 7 , 1, p. 444.
157. CALVIN, J. Commentaires sur le Ñouveau Testament (João, cap. IX, 4).
Citado cm BIELER, A. L a Pensée..., p. 407.
158. CALVIN, J. Sermón sur le Deutéronome (Calvini Opera, Brunswick, 1863-
1000, t. XXVIII, p. 379-380). Citado em STAUFFER, R. D ieu la création el
la providertce dans la prédication de Calvin. Berne: R Lang, 1977. p. 269.
1S1). CALVIN, J. 28r Sermón sur Isaie (Supplementa calviniana, 11, p. 262).
Citado cm Ibid., p. 273.

•i.ir>
tenia que botavante cía coloca sobre a pichulea (,Miando
Bruoghol, o Vc IIim, grava cm ISSfi ISS7 a .seqiiéiicla dos sc/c /mv
caclbs capftais (biblioteca Albcrl I, Bruxelas), ele fustiga nao a
acidia, mas a p re til Iva que toma pobre'. A legenda e assim icdl
gida: "A Preguiça, Os preguiçosos e poltróes o todos e.s.srs \ o 11<• i
são sempre bem providos dc* vento, mas não ck- dinheiro" Nflil
se trata mais aqui de torpor religioso ou dc' lentidão para orar I Itl
compensação, há pessoas que "caçam moscas cm lugai de liaba
lhar” . “Ociosas não cozinlgim nem fiam nem costuram" Mm lio
mem cata as pulgas de um cão. Outros vêem cegonha*. qu* i i
sam, etc .160 A esse respeito, o D o u trin a i de sapiencia, na sua s* i -
são modernizada cie 1604, fala como Calvino. Encontra se Inii
grada aqui a concepção da preguiça: ao mesmo tempo "entoipc*
cimento que nos torna frouxos e lentos no trabalho" e "despi• . •
e aversão das coisas espirituais” .
As mensagens de Santo Tomás çleWqiiino, dc Sanli» Anlii
nino e de Alberti estão aqui reunidas - inconscientemente sem
dúvida - pelo autor anônimo que deu a lume o velho texto do
D o u trin a i. Ele fustiga, certamente, aqueles que começam algimiii
boa obra e não a terminam, ou que têm aversão pelas p» isoa
virtuosas, ou que procuram “indolentemente dc todos oh lado*
criar ou ouvir contos inúteis que divertem o espírito". Mas, ■ il m
tudo, ele insiste sobre o valor do tem po e a imperiosa neee.sslda
de de jamais estar inativo:

Aquele que procura [a ociosidade 1 é extremamente Insano .


acabará repleto de miséria e de pobreza ... Jó assegura qu< o Iu •
mem nasceu para o trabalho como o pássaro para voar, ,Sendo
muito curto e precioso o tempo de nossa vida, e Importante nítii
deixar perder inutilmente a mínima parte. Deus prepara castigou
muito rigorosos contra os preguiçosos; são servidores que ••1 1o
jogados nas trevas ... São árvores que, não produzindo frutos, sc
rão cortadas e lançadas ao fogo ... A ociosidade torna o Itomem
incapaz de tocias a.s coisas: ela o faz encontrar por toda p.un •
pinhos e dificuldades. O,que pesa menos que uma pluma pata "
diligente parece uma massa de clmmbo para um preguiçoso A
preguiça nos pilha ou nos rouba a coisa mais preciosa do mun
cio, que é o tempo.

160. I.AVAI I íVT, |, liin ii i'iiH I ryi/i'ii, hrtti' HruígM /'(incidi, (iniriiifi,
Alt» et Md leis p*oq >bi*i o |\ulh, I*)(■»(•, 1,1 purtCi p. 't.*..
I >;i¡ os conselhos: "I U'w ■<> <i h .11.11 1,11 l.i <ll.i t|ue começa como
se Ibsse o último cl;i vida: «■ p ro b o controlar e regular hem o
tempo para o sono, paia .1•* relclçOes e para tocios os deveres e
(arelas do dia”.'"'

A mira do texto permanece voltada para a mortificação o


,1 preparação para a morte. Entretanto, a lição ministrada pelo au-
loi e mais ampia na medida em que insiste sobre o dever de.em­
pregar plenamente o tem po e de banir toda ociosidade. Ela ex­
trapola involuntariamente o dom ínio da piedade e apresenta m i­
seria e pobreza como a conseqüéncia lógica da indolencia. Com­
paremos essa versão tardia do D o u trin a i de sapiência com a edi-
. .10 de 1478 que está na Biblioteca Nacional de Paris, na qua) a
enlase é colocada apenas sobre a preguiça espiritual e onde se
encontra até mesmo um apólogo que deprecia o trabalho. A ane-‘
dola (um exentplum ) póe em cena dois artesãos. Um é m uito
bom trabalhador; porém, é pobre. Seu “compadre” não o iguala
110 plano profissional, mas é rico. Por quê? Porque ele frequenta
a Igreja assiduamente. Ele aconselha então o seu colega a fazer
1 (uni) ele: “Saiba que jamais encontrei outro tesouro além da igre-
ja e tenho fé que se tu a frequentares 'serás rico como eu. E as­
sim Io outro] ficou m uito rico após o que freqüentava a igreja e
os sermões ”.lb2 Essa “história” desapareceu da edição de l604.
Todo um panorama social se desenha por trás dessa cen­
sura e do severo discurso da edição tardia (aquele que procura a
ociosidade... acabará repleto de miséria). Na época em que men­
digos e vagabundos se m ultiplicam na sociedade ocidental, de­
semprego c ociosidade se acham identificados. A preguiça amea­
ça a ordem estabelecida è os preguiçosos são uma classe perigo­
sa. E prudente deter os pobres errantes em “casas de trabalho"
ou, com os loucos, em hospícios.

a iconografia do pecado
A ascensão da classe burguesa e uma situação econômica
que punha em circulação numerosos mendigos provocaram, por­

tó 1, D octrinal de sapience (ed. 1604), p, 66-69.


162. Ed. Genebra, 1478, P XLIV V \
lanío, uma l<imada de c<ihm léñela da gravidade da preguiça, MiW,
recolocada num contexto mais ampio, essa lomada tic con*» leu»
cia, ela própria, fol apenas mu aspecto de urna culpdblll/iiçílll
global durante o período que acabamos tic evocar, Ao llm di a
a Igreja conseguiu impor o sistema dos pecados capitais t orno i a*
tegoria mental coletiva. Quando Carlos Vil entrou solenem» ni
em Paris em 13 ele novembro de 1437, Virtudes e Vicios ligia i
vam no seu cortejo: “E depois vieram os personagens d.. »«|
pecados mortais é das sete virtudes, montados a cavah >e esi.n ani
todos vestidos segundo suas propriedades. Os, quais persi inageiti
seguiam os senhores do parlamento e magistrados, Depois, *
guiam os presidentes”.165 Uma M oralidade do homem /«', adoi,
encenada em Tours, impressa por Vérard em 148*1 e varias vt'ttM
reeditada, uma outra M oralidade do homem ju s t o e d o h o m e n i
m undano, igualmente impressa por Vérard em 1308, expunham
diante do público o combate das Virtudes e dos Vícios, que
reencontra no pequeno e gentil poema de Gringore (| 1’UMi In
titulado Castelo de la b o r é Neste poema, Rax.ào conforta um |it
vem marido dizendo-lhe: nào tens outros inimigos a nao ser |eul
vícios. Luta com coragem contra os sete pecados capitais seni I*
mer sua lança e seu escudo.
A iconografia apoderou-se também, entre os sè< ulos i i •
16, do tema dos pecados capitais. Anteriormente, haviam sii Io u
presentadas psicomancias nos pórticos das igrejas. Mas Isso anlen
que as eruditas elucidações do setenario pelos especlallsl i»« dn
confessional tivessem penetrado na consciência coletiva I m u-i
época (primeira metade do século 14), as justaposições dos pe
cados capitais, lado a lado sob as arcadas, realizadas poi tiioiiu
na Arena de Páclua e por Lorenzetti em Siena constituínim quase
antecipações. No século 15, ao contrário, a figuraçao da*, pe. a
cios capitais aparece até na fachada de casas burguesas: em
Thiers, Orléans, Blanc, Aguillar de Campo (Pa.Iencla1634*

163. MONSTRELF.T, E. de. Chronique, cd. de la Société d'luMmn d< I ou


ce, 1866, V, p. 302.
164. As indicações cm MAl.I•, lí. l.'Art rdigieux de la fin dii Muyen !>•,
p. 336-337.
163. Para toda csia |>
c x U > , ni m c inspiro numa comunicando cm u n u
o n íç í h

mi mirlo dc Mmc Mircillc Vincciu Ciumiiy a quem agradeço ¡ ' . o > n o


o k i i m

"I.e Sysicnu* drn inSlié. inpluuix ilniit fari dc Ia fm du Muyen A|ic", A n »ata*
tl'( )iL<.ui‘. i- di i Mam Imam deuiuida*..
llm dos sistemas de ivpivst'nlnváo dos vicios - ou pe-
i .idos principáis f'oi o da árvore do mal, Inspirado em Sao Gre-
g o rlo c precisado por I I ugues de S ain t-V íctor.A idéia geral re­
tí mi,ida do Eclesiástico. (10,6-18), é <|iic lodos os vícios saem do
oí guillo e escapam de um troncó comum em forma de gal líos
i um |<ilhas e frutos maus, que o artista freqüentemente inclina
para baixo, enquanto eles tendem a elevar-se nas árvores do
Imim. Esse tema iconográfico naturalmente diversificou-se em di­
versas variantes. Ora o orgulho está na raiz da árvore enquanto
no alto desta impera o Maligno, de braços cruzados, regozijan­
do •se, Ora, com o em algumas pinturas murais inglesas do sécu­
loo |p "1 Eeviatà e seus seguidores formam as raízes da árvore. Os
galhos terminam cada um por uma cabeça de dragão da qual sai
um personagem representandojam vício. O Orgulho está empo­
lo lia d o no último galho. Ou então, numa miniatura francesa do
seetilo l í ilustrando o Vergei de consolação , os vícios saem da
0,mda de dragões e constituem outras raízes para uma árvore en-
1 Imada pela rainha do mal (superbia ).16 1768
Outro tipo de filiação dos vícios vem de São João Clímaco
que linha mostrado que eles se mantêm juntos como os anéis de
uma corrente. Madame Mireille Vincent-Caussy nota que todas as
pinturas murais que representam os vícios na França do século
IS amarram os pecadores um atrás do outro por uma enorme
IIu rente, apertando-os na cintura ou no pescoço, e puxados por
demônios. Estes os arrastam para o inferno. Por uma razão aincla
mal explicada, tais pinturas estão localizadas na região alpina e
na região do Lot. Essas cavalgadas de vícios, que freqüentemen-
le ocupam toda uma parede lateral de igreja ou capela, geralmen-
le fazem face às virtudes pintadas na parede oposta. Todavia, nos
Vlgncaux (Altos-Alpes), o afresco dos vícios se encontrava fora
da Igreja para que os habitantes pudessem vê-lo indo e vindo da
i Ulacle. As intenções pedagógicas dos que encomendaram essas
i omposições eram evidentes.
A imagem do círculo também serviu para exprimir a solida-
i lr< lacle dos vícios ente si. Ela é utilizada desde o século 12 para ilus-

166. D e Fructibus carnis et spiritus, em Patr. Lat.> CLXXVI, col. 999.


167. WALL, J. M edieval Wall Painting, Londres, 1920, p. 193. TRISTRAN,
R. W. English W all Painting o f the Fourteenth Century, Londres, 1955, p. 102.
168. B.N., Paris, Ms. fr. 9.220 e Bibl. Sainte-Geneviève, Ms. 2.200.

449
irar um manuscrito do i ><• wptoutirtts de litigues de Salpl Vlrtoi1""
e para enfeitar bailai litúrgicas em bronze «pk• a presunta m «»•. nu
mes dos vícios girando cm torno do prato.1" l)o mesmo modo, a*
rosáceas de Notrc Dame d<• Paris o de Auxerre en cen am a palto
maneia dentro de- um círculo dominado por Deus. () tema e enil
quecido em seguida. Ilm manuscrito em iluminura da ( 'lilih lr i/e
Deus (século 15) representa uma cidade cercada por uma muralha
circular e dividida por raios em sete bairros onde personagens em
movimento simbolizam os pecados capitais e as virtudes <pu
opõem a eles.1607117
17
9 3Duas pinturas murais inglesas tiram partido <Ia m<
2
ma imagem e fazem partir de um inferno central os ralos d< uma
roda que separam os compartimentos dos vícios do setenílrlo 1
Uma gravura realizada em Augsburgo em 1477 apresenta uma nora
de água da qual cada vício é um balde. Girando, ela despeja < t lili
pados num lago infernal onde os esperam monstros c demônio*»' '
Outra gravura alemã - de 1490 - coloca Deus no centro de uma
roda. Ele está rodeado por circunferências concêntricas que I» \ im
os nomes dos vícios e das virtudes.174É quase uma síntese de vdilt i*
temas que acabamos de evocar realizados por Jérôme Boscli no |>al
nel dos Sete pecados capitais que se encontra no Museu do Prado
O olho de Deus, cuja pupila representa o Cristo ressuscitado vigia
um círculo. Este está dividido em sete compartimentos onde uu Ia vl
cio é etiquetado e evocado por uma cena falada.
O vínculo entre a Besta do Apocalipse e o$ pecad» >s di >se
tenário veio rapidamente ao espírito dos moralistas cristãos, <a
suístas ou artistas. Sobre um alto-relevo de Solesmes (secul» i Pa
sete cabeças orgulhosas se torcem sobre seus monstruosos pi s
coços. Irmão Laurent, autor da Sum a do Rei, vê nas sele » aln\dH

169. Pm Ldt., CLXXV, col. 405s.


170. Segundo Mme Mireille Vincent-Caussy, eis as referências: KISA, A I l||
gravierten Metalschüsseln des XII und XIII Jahhunderts", Z eitsrbdjl ///; , b fi>
tliche Kunst 1905, p, 374. SCHWEDELER-MEYF.il, E. "Dic I >.imdlim|
von Tugenden und Lascern auf einem gravierten Bronzebcckcn dt> Ml |,ili
rhunderts”, em Bulletin de la Société[>our la conservation des nionunienh bine
riques d’Alsace, v. 18, 1896, p. 203-221.
171. Bibl. Sainte-Genevièvc, Ms. 246.
172. Em A. Ingatestonc (líssex) cf. W A I .I J . M edianil... p, 105, lig. MS «•t ui
Hurstbourne-Tarraiu (I lampshirc), d. TIUSTRAN, E. W. buy/isb,, . p, III \
173. SCH REIBI R. W. I . Uandbuek der Hola and Metallschnitte <!a .VI lab
rhunderts, Lcip/ig, IV, I H(> ',
174. C:f. BAII Kll.SAI I IS, I, I e M oyrn Ay,e /à u u s liq n e . p. 252.
(la Br:sia a Imagem exala dos |u*i ti «I * i apílala. K razoável supor
c|iic *u,s homens dos séculos I i I(». cpia iu l<> olhavam as figurações
lio Apocalipse, a ele Dürer por exermplo, estabeleciam uma cor­
relação entre as sete cabeças da Besta e os sote vicios cataloga­
dos pelos especialistas.17'1 A evolução do tema levou a 'passar do
monstro apocalíptico ao corpo do homem. Varias pinturas muráis
Inglesas dos séculos 14-15 põem em cena um homem de alta es­
tatura sobre o corpo do qual percebem-se sete dragões cobertos
de escamas: da goela de cada monstro sai um pequeño persona-
gem representando um pecado capital.170 Enfim - nova transfe­
rencia - um baixo-relevo em granito do século 16 em Saint-Léry
(Morí alian) representa um homem atacado por sete animais na
Itarte do corpo mais especialmente destinada a cometer cada pe-
<ado, o orgulho morde a cabeça, a inveja o ombro ciireito, a In­
suda o scjço, sendo o homem representado177 nu, porque a nu­
dez lembra o pecado original.
Estamos agora diante de um novo sistema iconográfico que
consistiu em associar animais aos pecados. Uma tradição literária
linha indicado este caminho. Já os Padres do deserto, depois Pier-
ie Damien, Raban Maur, Honorius d’Autun, Vincent de Beauvais
Unham comparado os vícios a animais. Essa assimilação se encon­
tra lambem no Hortiis deliciarum, o florilégio que a abadessa das
cõiH‘gas de Sante-Odilde, Herrade de Landsberg (f 1195), compôs
para suas monjas e numa Dieta salutis falsamente atribuída a São
Boa ventura.1"8 Todavia, se “as aplicações diferenciadas do simbo-
ll.smo animal ã gama dos vícios são bem cedo observadas, [elas]
m > foram verdadeiramente sistematizadas a partir do século 13”179
e sobretudo do 14. Portanto, a partir do momento em que a Igre-
|.i lançou sua. grande ofensiva cie culpabilização.
Enquanto nas catedrais de Chartres, Paris e Amiens, os
animais só têm ainda um papel episódico na evocação dos pe-
rudos (a lebre diante da qual foge a covardia, o cavalo do qual
o orgulho cai, etc.), cem anos mais tarde, o simbolismo animal

175. Cf. VAN D ERM EER, Fr. LApocalypse dans Vart, ed. du Chêne, Paris
Anvers, 1978.
176. WALL, J. Medieval..., p. 196s.
177. Cf. DEBIDOUR, V. H. Le Bestiaire sculptél Paris-Grenoble: Arthaud,
1961. pi. 448, p. 324.
178. Opera omnia, ed. Quarachi, X, p. 24s.
179. DEBIDOUR, V. H. le Bestiaire sculpté, p. 323.

1,1
tornou-se nuil* pruebo, Num muniisc'rlto cl;i Hlbllotci w Ntn Iniuil
(por vollil de l,V,)0) esludwdo por I,, Mílle, ;i,s lektçoes c u tir pt
cado, nivel soclnl c simbolismo imlmul sao ckinimenle « Itu i«lo
das, e os vicie>s sao rc|>re,sent;ulos de nina maneira que lia se loi
nar clássica, cavalgando animais,1""

O Orgullio c iMMr< i •111. um leito e uma águia


cavalga carrega
A Inveja um monge um cAo um tilinto
X
A Cólera uma mulher um javali um galo

A Preguiça um aldeào um asno um nioiitOi

- A Avareza um mercador (uma toupeira ou uma eiati|a


um esquilo)

A Gulodice um rapaz um lobo um gavlflii

A Luxúria uma mulher uma cabra uma pomba

Outras atribuições ceitamente foram aceitas: para o <>ign


lho, o pavão; para a Luxúria, o bode; para a Avareza, o ma< am
ou o sapo; para a Inveja, a serpente- ou o galgo, (> ImpotlanU
para nós é que esse simbolismo animal aplicado aos pei .ulm . ,i
pitais tenha sido então correntemente aceito e facilmente h gi\ , l
E. Mâle observou que ele é frecuentemente encontrado nas Ign
jas da campanha,182 coiiio se tivesse se tornado o lnsirumenli;|
adequado para a pedagogia moral quando esta se dirigia io*
camponeses. Mas ele ultrapassou a fronteira das ciasses ......... . (
dos Estados. Como prova, o Lumen anim an escrito por volta du
1330 pelo Monge vienense Mattias Farinator - urna psli omata la
em que vicios e virtudes eram figurados por cavaleiros aunado*
cavalgando animais. Assim, o Orgulho, montado num tliomi d i
rio -a n im a l ráp id o -, carregava um escudo ornado com um lt ao,
um elmo encimado por um pavão, uma loriga enrlqun ida i
uma águia. Substituído por uma obra publicada em Augsbuigo

180. MAU*, lí, 1,'Art rfllgitux tis h i j l n d ii M oycn /(çv, |>, ,MI. M.N, M» lim
181. lbicl., |>. I2‘) ,W ..
182. 11)1(1,, |). m ,

o,:
«ni M7 i, o U rro dos sele /»<•( o jo s niorhds e dos sete virtudes , o
lum en uninute inspirou gravadme» e la peed ros na Alemanha e
n.i I landres do fim do século I'1 e Inicio do 16.
A depredação dos animais assim associados aos pecados
i apitais merece que nos deten liarnos mais sobre eles. Ela remete
i « llámente a ura ensinamento bíblico njaior que, colocando
Atl.io no centro da criação, afirma que apenas ele foi feito h ima­
gem de Deus. Daí a necessidade de marcar a distancia entre ele
i o s outros seres vivos. Por isso, São Bernardo desconfiou de
urna arle cristã que concedia demasiado espaço ao bestiario e
• saltava exageradamente o reino animal. Na esteira desse prótes­
is, os pensadores da Igreja dos séculos 14-15 consideram que o
|i<unem pecador se rebaixa ao plano dos animais, com essa sim-
bollzação dando a medida da queda. Eles se afastam então de.
uma tradição iconográfica que, notadamente durante os primei-
los séculos do Cristianismo, deleitou-se em associar a fauna e a
llora a mensagem evangélica numa espécie de paraíso reencon­
trado. Para melhor compreensão, evocarei aqui dois exemplos
que falam por muitos outros. Próximo ao lago de Tiberíades, o
mosaico (século 4o) da igreja de Tabgha representa a multiplica-
• a o d o s pães e dos peixes, mas faz evoluir patos, garças e pavões
tu i meio de uma vegetação de lótus inspirada pelo Egito. Da mes­
ma maneira, em Jerusalém, um grande mosaico do século 5o, que
servia de pavimento a uma capela armênia, é unicamente com-
p<>sl< >de motivos animalescos e florais, criando uma atmosfera de
tranquila felicidade. Essa harmonia entre o~homem e a natureza
encontrou mais tarde no célebre Cântico ao sol cie São Francisco
uma d e suas mais belas expressões.
Mas na época em que cresce o sentimento de culpabili­
dade na Europa dos séculos 14-16, os inspiradores da arte reli­
giosa tendem pelo contrário a marcar a distância entre o animal
e o homem, cio qual o m acaco, por exemplo, é a caricatura. A
literatura freqüentemente segue atrás. O tabelião real que com-
pós no início do século 14 o R om ance de Fauvel fez deste últi­
mo um animal simbólico, asno ou cavalo, que encarna todos os
vidos humanos nas seis letras do seu nome: Flatterie [= Lison­
ja I, Avareza, Vaidade, Vilania, Envie [= Inveja] e Lâchetç 1= Co-
vardial, enquanto todos os homens - papa, rei, senhores, pa-
•11es, burgueses e aldeões - não têm outra ambição a não ser
espancar Eauvel”. Todo um simbolismo anteriormente recebi­
do encontra-se então posto em questão, ou até invertido no

453
sentido negativo: <> pavao, que un les significava a vida etenuh
c agora Identificad* > ai> <)rgulht>.
Como a p reocupado do pecado mortal era onlpresenle
nos espíritos, os artistas imaginaram lodo tipo de rcprescutaçne*
para evocá-la. Alguns utilizaram a história. Os tapeeeiros, m i p u
ticular, que se dirigiam a mu público culto, recorreram eom pie
dileção a comparações entre os vícios e personagens c<’lelm i
Tarquínio, Holofernes, Judas, Ñero, Maomé. A idéia dessas com
parações parece ter nascido na Itália onde ela é explorada em dl
versos manuscritos do século 14 .m Mas ela transpõe rapldameit
te os Alpes já que, desde 1396, Filipe, o Ousado, compra uma la
peçaria (de Arras) na qual virtudes e vícios são simbolizados pot
imperadores, reis e ouros personagens célebres. Mais tarde cm
1488 - , as Horas pa ra uso de Rom a de Simón Vostre mostram a .
virtudes triunfando sobre seus mais célebres inimigos: ,i I. «l> i
ruba Maomé, a Esperança, Judas, a Justiça, Nero. Sobre a grande
tapeçaria (flamenga) de la Granja,184 ao redor da Justiça sentada
num trono, agrupam-se os grandes homens que a honraram, cn
quanto ao fundo estão acumulados os antigos criminosos e re\ •>|
tados famosos que o céu fulminou.
Todàvia, considerando a imagem negativa que .i lgre|á II
nha então da mulher, esta não deixou ele ser identificada ao pc
çado pela iconografia.185 A “rainha dos vícios” no pico das di vo
res do mal é sem dúvida a superbia, mas será que não e lambí m
mais simplesmente a mulher? Na Peregrinação da vida hum ana
redigida por Guillaume de Digulleville, o viajante, que c cada um
de nós, encontra tantas mulheres quantos pecados. Estampa*
francesas do século ló, mencionadas no volume anterior.. e 11 m
sagradas aos pecados capitais, simbolizam ora cinco, ora seis de
les por figuras femininas. Mas mais impressionantes e revi lado
res são aqueles verdadeiros diagramas que constituem Imagen*
boêmias e alemãs representando a Mulher-vício. Coroada de plu
mas de pavão, símbolo do orgulho, ela simboliza a totalli la<li «h >
pecados capitais graças a achados iconográficos cjue os contem
porâneos interpretavam facilmente: uma cie suas pernas em Imi
ma de pata cie ave, chamada acedia , c mordido por sua outrtl

183. Ibid., p. 335.


184. Outrora no Pálido Kenl ilc M.ulii,
185. MÂI.K, E. Ibid.. p. VK> ,V\ *
186. DHI.UMEAU. |. /,/ , I, p, Hl
perna em forma de serpenle (.1 tn\•|.i). Com urna das mãos, ela
segura um arco (a cólera) o, com a outra, uma trombeta (a cobl-
1. ,i), ele. A Mulher-vício é o qundro slnótleo do pecado.18"
K. Male observou justamente que na França do século IS
(mas isso é verdade também para outros lugares) as imagens das
virtudes sao menos numerosas que as dos vicios, urna vez que a
Igreja procurou ensinar, sobretudo, as primeiras desdenhando
dos segundos.18 18818
7 9Pinturas, esculturas, vitrais, tapeçarias, iluminu­
ras, ilustrações de livros impressos passaram então a apoiar pela
Iconografia a mensagem de tantos Espelho da alma pecadora,
Destruição dos indos, Doutrina para as pessoas simples e outras
Arte de governar o corpo’e alm a , a saber que:

Não há nenhum homem, por perfeito que seja, ao qual este


execrável setenário não deva causar medo... porque os sete pe­
cados mortais [assinalemos de passagem a confusão entre “capi­
tais" e “mortais”] são como as sete cabeças da hidra, renascem as­
sim que são cortadas...'89
^' .
* ..V

lí o que ensina o belo púlpito de madeira esculpida (por


volta de 1480) cia capela de Saint-Fiacre do Faouet (Finistère):
do lado do coro um homem, personificando ao mesmo tempo
.1 Inveja e ,o roubo, colhe frutos sobre uma árvore que não lhe
pertence; outro vomita uma raposa: é a gulodice degenerando
em embriaguez; um tocador de gaita de fole significa a pregui­
ça, etc. Fsse é apenas um exem plo entre muitas outras obras de
arte consagradas então ao tema dos pecados capitais. Citemos
fora cie ordem um conjunto esculpido atribuído a Peter Dell
(Nuremberg), uma tapeçaria flamenga conseiVada em Saragpça
e, bem entendido, o painel de Jérôm e Bosch que se encontra
no Museu cio Prado. No centro, o olho clivino está rodeado por
uma temível sentença, Cave, cave, D om in u s videt (Cuidado, cui­
dado, o Senhor vê). O círculo que gravita em torno cio olho é
dividido em sete compartimentos onde cada vício é representa
do por uma cena evocativa. Assim, a Cólera é figurada por uma
mesa que um gesto violento derrubou e por um homem arma-

187. Estas informações ainda no artigo de Mme Vincent-Caussy menciona­


do anteriormente.
188. MÂl.E, E; L ’A it religieux de la fin du Moyen Age, p. 328.
189. I.e D octrinal d e sapience.. (ed. 1604), p. 46-48.

455
do ilr uma luí .1 que liin.i mullid lenta deter, N;lo somt’uli
Busch deu diversas veisnes dessa obra, jiniih .iluda retomou o
tema dos pecados i.ipltals e das punições Infernáis <|lk* eles
acarretam ¡\ns Ja/^amentos fin a is de llruuc.s e de Vlena, <> pal
nel direito do Ja rd lm J a s (/cítelas (Musen do Prado) volia, poi
sua vez, aos suplicios merecidos e sofridos por cada e.iiegiiiiu
de pecador, estando claro que o jardim das delicias uní patai
so para nudistas num gigantesco parque de a tra p e s longe de
representar o paraíso terrestre, evoca sobretudo um mundo en
tregüe à luxúria.190 Nem sequer está excluido que, na T raillólo
de Santo A nton io de Lisboa, os sete sedutores rodeando o ero
mita não Simbolizam os pecados capitais, l’.m outra de ,sua*i
obras mais célebres, A carroça d e fe n o , Bosch ataca o a mui lu
sano das coisas terrestres que faz esquecer a única realldadi
que conta: a salvação. Ainda, em neerlandés antigo, a pal.n i i
H oo i (feno) significava alegóricamente o caráter efêmero das
coisas deste mundo. O conjunto forma um tríptico que p< >d< ii i
ter como legenda: “Nascimento, propagação e castigo d< > mui"
À esquerda é lembrado o pecado original; á direita aparece o
inferno para onde os demonios arrastam a carroça e todos
aqueles que furtam feno para saciar sua cobiça. Sentados sobl’t
o enorme monte, dois namorados, fascinados pelo dcse|o i ul
pado e encantados por uma melodia demoníaca, náo escutam o
anjo da guarda que, desanimado, se volta para Cristo. Ao tedoi
do feno, imagem do ouro perecível, apressam-se mi entn i lm
cam-se papa, imperador, monges, bandidos e representantes di
todas as classes sociais. A dominante da obra c, portanto, a di i
pía denuncia da luxúria e da cobiça.
Brueghel, o Antigo, sucessor de Bosch a vários utulim
consagroir, por sua vez, uma série ele estampas ao tema d< •. |h
cados capitais.101 Os personagens monstruosos e as visees Inlei
nais de Bosch, sua mescla ele realismo agudo e de íaniusilin
aterrador ressurgem nas sete gravuras realizadas poi Brueghel
sobre o tema dos pecados capitais, A mulher que simboliza a
guloelice bebe gulosamente, enquanto um porco selvagem qm
ela pisoteia e um cão disputam nabos entre si. No Jardim tio

190. MARIJNISSEN, R. 11. r col. ¡Mtnc Houb, llmxdlcs, Al. Au.ulc, 19,0,
p. 126, 150-152. C f. aunhI TOI.NAY, Ch, dc. l/ltnmymus Botch> Lomlui
Mcilmcn, 1966. Noiuduiuciuc p Slt (i9.
191. I.A V A I I l\Y I,, |. t uiii» isiii li vt/i u , pl, II ,i 97 inclusive,

li >b
•mu )i cvtpaço cl;i luxiirlu umu nuilhci nua se entrega a um
monstro com cabeça de peixe, rh
Às vezes, os artistas simbolizaram mais particularmente
um dos vícios capitais. Penso aqui no tema da “'forre de Babel”,
ni.igl.slralmente tratado por Bruegliel (Viena, Kunsthistorischcs
Museum), mas que foi explorado nào apenas pela pintura, mas
também pela iluminura.192*Compreende-se que ele tenha seduzi­
do os artistas da Renascença. Porque ele fornecia a ocasião de
n produzir a arquitetura tão admirada do Coliseu e evocar ao
mesmo tempo a técnica da época, notadamente ^as grúas que
i ada um podia ver em Bruges e em Anvers. Mas a essa leitura
deve-se acrescentar outra, de ordem diferente. Os homens dos
séculos 15 e 16 viam na torre dei Babel o símbolo do orgulho
punido por um duplo castigo: o desabamento dos andares su
periores que focavam o céu e a confusão das línguas, lista últi­
mo significava a impossível com unicação entre os homens que
Insistem em seu pecado.
Os homens do Ocidente no início cios tempos modernos
eram colocados constantemente na presença do pecado c de sua
punição. Até mesmo o meigo, e luminoso Fra Angélico pintou
um inferno (no Julgam ento f in a l do Convento de San Marco, em
I lorença). Por toda parte surgiram representações da grande
prestação de contas e das evocações do julgamento individual
em que os demônios procuravam fazer a balança pender para o
lado do inferno.195 Mas há um pecado curiosamente esquecido
pelo setenario clássico e que os contemporâneos encararam com
temor (e deleite) novos: a maldade, principalmente aquela que
se exprime pela crueldade. É reveladora a esse respeito a proli­
fera iconografía do século 14 ao século 16 (inclusive) consagra­
da não apenas à crucificação do Salvador, mas também às dolo­
rosas etapas de sua Paixão. Nenhuma época na história da arte
cristã pôs tanta aplicação e exagero na representação clps carras­
cos odiosos que injuriam o Cristo coroado de espinhos, o flage­
lam ferozmente e tornam a golpeá-lo quando ele cai, extenua­
do, no caminho cio calvário. 0 “Homem das dores” - Devoto

192. Cf., entre outros, de Tobias Verhaecht (1561-1631) uma grande torre de
Babel ameaçada por um céu de tempestade (Museu Real de Belas Artes, Anvers)
c uma miniatura de- 1433 conservada em Londres reproduzida em CALI, Fr.
L'Ordreflam boyant, Grenoble, Arthaud, 1967, p. 87,.
i 93. Por exemplo na sala 32 do Museu de Arte antiga de Barcelona. Sobre a
crueldade cf. a última parte do cap. V do presente livro.

457
Cristo ele IVrpIgnan, Crurll'lunlo de Issenhelm ou "Cristo mm
clor de denle" dii »aledral de Vlena (Áustria) ■ aparece entilo
como a vitima privilegiada da maldade humana (|Ue se deleita
em torturar, De maneira pedagógica, itm triplico pintado eut
1507 por (loo,sen Van der Weyden (Museu das Helas Artes, Alt
vers) coloca no centro a cruz e, atrás dela, mu quadro represe n
tativo clos instrumentos, crueldades e traições da Paixão. Na lm
nografia da época, o sadismo dos carrascos explode também
contra os santos confessores da fe. O martirio destes últimos |iín<
pirou os artistas tanto quanto o .de Jesus.
AconteCeu-me varias vezes em museus - em Barcelona,
em Anvers, em Varsóvia, etc. - de fazer a experiência seguinte
(menos evidente na Itália ou quando se trata de obras italianas!
passando de sala em sala, e descendo da alta ldade Media pata
os séculos 14-16, eu via multiplicarem-se as cenas de tortura l;' a
época em que se corta, se queima, se esfola, se atenaza, Assim,
incessantemente, uma sociedade representou e denunciou iiium
sem dúvida também saboreou - a crueldade, a qual parece’ ler as
sumido uma dimensão e uma extensão novas entre a época das
Grandes Companhias e o fim das Guerras de Religião, I oi oln n
vado194 que a Legetjda dourada, tão frequentemente pul>ll< ida
em iluminura ou pintada e depois impressa, tinha constituid...... ..
verdadeiro “manual cie torturas”. Julgue-se: São Bonifácio vé en
fiarem agulhas sob suas unhas e São Quintino, pregos em sua i a
beça, São Vital é enterrado vivo, São Brás varado com pinos, San
ta Eufêmia prensada entre as mõs de um moinho, Santo I llpollio
atado pelos pés e mãos às costas e amarrado à cauda de um i i
valo, São Sebastião crivado de flechas a ponto de parecer um <ui
riço, São Cristóvão sentado à força sobre um banco mcuilii.........
brasa. Uma notável ilustração dessas cenas de torturas esta <mi
servada no Victoria and Albert Museum de Londres. Trata se diá
um políptico pintado para uma confraria do início çl<> século l >
por um artista alemão que vivia em Valencia (Espanha). Eli »
põe com uma surpreendente riqucy.a cie detalhes todos os suplí
cios sofridos por São Jorge “o grande mártir”. Perguntam»» nos
como o herói pode sobreviver a tantas provações já que, miles
de ser decapitado, ele é escalavrado com rodas dentadas, mergu
lhado em óleo fcrvcnte, esfolado s<>bre uma mesa, Seus algo <s
tinham até com eçado a sena Io como um animal de .g o n g u e

IlM, » Al t, I i. I '( hi/ir p. I()4 ” I 0 S,

458
Tuilo.se pus,s;i com o .*>»•, m v m «l< >inlnl< >, o h fatos tivessem
apanhado ele surpresa .1 i mu «<111ia11e.1 .i<>: uma civilização se
descubre cruel antes que os moca lisias tivessem tido tempo de
Integrar a maldade - pecado, porén*», tão capital quanto os ou­
tros - nas suas categorias Intelectuais. O discurso sobre ela foi
mais iconográfico do que teórico; ele pode a justo título pare-
t er-nos ambíguo. A ausência da maldade crueldade (que nao é
forçosa mente um subproduto da cólera) na lista dos pecados
1 apitais constitui uma nova prova que o discurso culpabiliza-
dor tinha elaborado dentro do ambiente monástico. Essa omis­
são por parte dos monges era natural... e para sua honra. Eles
podiam sentir tentações de orgulho, de invjeja, de ciúme, de có ­
lera, de tristeza, de luxúria ou de gulodice. Mas é difícil imagi­
na los cruéis. Então esqueceram de incluir a maldade na lista
dos pecados maiores.
Resta que, num mundo radicalmente dividido entre o bran
co e o preto, os cristãos da época foram convidados por adver
lencias repetidas e multiformes, por palavras e por imagens, a
abandonar às pressas o espaço da perdição para se lançar do
laclo certo da barreira da salvação. Um retábulo alemão cio fim d< >
século 15, outrora em Gdansk e agora conservado no Museu Na
cional de Varsóvia, fornece sobre o tema geral cios dez. manda
rnentos uma clara ilustração dessa pedagogia insistente. Compar
límenlos, cada um dos quais dividido em duas partes antitéticas,
põem em contraste, termo a termo, atitudes virtuosas e condutas
pecadoras. Um desses painéis opõe, de um lado, a assistência pa
eífica e recolhida ao sermão clc um pregador e, de outro lado,
uma série de ocupações frívolas entre as quais figuram com des­
laque a freqüência a um cabaré e perigosas companhias femini­
nas. A homilia do pregador é fácil de ser reconstituída a partir de
Inúmeras dissertações sobre os pecados capitais que foram então
propostas aos fiéis. Esta, por exemplo, mais uma véz tirada do
Doutrinai de sapiência-.

Saibam ... que é com muita razão que se deve atacar sem des­
canso os sete pecados capitais, e levá-los à morte, porque são lan­
ías cabeças que, uma vez abatidas, causarão a ruína e a derrota
completa de todos os outros vícios: são os sete demônios que Je ­
sus Cristo expulsou do corpo de Madalena, e que, com sua fuga,
dissiparam e levaram à ruína todo o resto de sua legião. São, en-

451)
Mm, <>Mmi'U' Inlllilgi>s ilo |rovo de l.sr.icI, »|iu* •(lew iu't CMnilftp
mente vencer p a ra entrar n a ierra de proml.ssãu, cine e o iru 1

Quando começa osecillo l(), ¡i Igreja católica julga leí 11-1■


minado a identificação das diversas formas do mal c d o s mullí
pios caminhos utilizados pela tentação, ida elaborou o s detalla *
do necessário exame de consciência ao qual o crlsiao deve en
tregar-se durante sua vida. Até a metade do século 20, ela nao i o
locará em causa esquemas moráis lao minuciosamente clabnni
dos. Em compensação, pelo sermão e pelo catecismo, ela se t
forçará para que sejam assimilados por camadas cada vrr, mu
amplas da população. Os séculos 16-19 verão desenvolveren
sob o impulso do período anterior, a mais poderosa culpnblll i
çáo coletiva da historia..

I')S . 11 DoctiihtíL. (cd . K tO 'l), p. d V


capítulo 8

o pecado original

o pecado original no centro


de urna cultura
No curso dos capítulos anteriores, giramos epn torno de urna
explicação central para a qual éramos incessantemente remetidos:
0 pecado original. Precisamos agora conceder a ele todo o sen
espaço - que é imenso - dentro do universo mental do passado.
À pergunta: “Por que Deus permite a morte dos ino­
centes?” o mestre do Sacro Palacio, Bartolomeo Spina, responde
em 1523: “Ele o faz de maneira justa. Porque sé eles não mor­
rem por causa dos pecados que cometeram, morrem sempre
culpados pelo pecado original”.1 A lógica dessa explicação
pediría que os animais não sofram já que não pecaram: foi o que
ensinou efetivamente Malebranche, que justificou pela doutrina
do pecado original a teoria cartesiana dos animais-máquinas. Se,
escreve ele, os animais tivessem uma sensibilidade, “àconteceria
que, sob um Deus infinitamente justo e todo-poderoso, uma
criatura inocente sofreria pela dor que é uma pena e punição de
algum pecado”. Seu silogismo era então o.seguinte: os animais
nao tocaram num “feno proibido”, então eles gritam sem dor.2
1 mpressionante demonstração!

1. SPINA, B. Quaestio de strigibus et,lam iis, Venise, 1523, p. 9. Esta obra foi
várias vezes reimpressa com o M alleus m aleficarum , notadamente na ed. Bour-
geat deste último, Lyon, 1669.
2. MALEBRANCHE, Recherche de la vérité, 2 v., em CEuvres complètes ed. por
G. Rodis-Lewis, Paris, Vrin, 1963, IV, IX, § 3: II, p. 104. Cf. também V, III,
p. 142-157- Agradeço a M. Jèan Mellot por ter me chamado a atenção sobre
o silogismo de Malcbrauchc.

1(11
St* Lulero iiniHU .i i.i/,lo di' ser urna "maldita |n11,r , n
porque ela lol viciada pelo pecado de Ailílo, I.Ico,sienes u ■ .ili *
que o primeiro acontecimento "monstruoso" da historia lol pro
duzldo pela diabólica serpente que .sedu/lu I.\.i, Donue dn I im
o homem pior do que o sapo e a aranha, porque "iiiini i aillo
invisível” de si me.smo, ele esconde urna reserva de veneno
consequência do primeiro pecado que corrompe todas as vía*
ações. O poeta puritano Cícorge Wlther (| l()67> aprésenla a
retórica como uma (necessária) concessão a fragilidade e a <mi
rupção cío homem que, se ni o pecado original, nao lerla lldo
necessidade dela. Ela se dirige aos sentidos que, depoh da
queda, destronaram a razão.3Louis 'l’ronson (| 1700), .............. d>
São Sulpício, ensina a seus seminaristas que “nos so deveilannm
usar [nossa roupa de baixo] sempre com profundos sentimento#
de penitência; porque [ela] é uma marca contínua de n< > .........|)(
No estado de inocência, o homem não precisava de nenhuma
roupa para vestir-se, porque um certo jorro da gloria de I leus quis»
o rodeava, até mesmo por fora, servia-lhe de vestimenta" 1
Um pregador francês do século 16, Simón Vigor, \>■d> ni I
mente antiprotestante, acusa Adão de heresia: "... DepoU II tal o
apresentou [o fruto] ao seu marido, Adão, que se deixou enganai
por sua mulher e o comeu: de tal modo que o prlmeln • pe» ido
do mundo foi a heresia (eu o digo depois de Tertuliano), pi Io
motivo de que o homem preferiu acreditar em sua mulla i i tai
diabo que lhe diziam mentiras, e não em Deus que lhe havia dllif
a*verdade”.5 Numa obra publicada em 1699, o relórmadi« |a» qtu -i
Basnage vê também em Adão “o primeiro herético" da lih..... ..
“Ele deveria, diz o autor, manter a sucessão da dotltfllUl Ma#
embora tivesse [tido] - no paraíso terrestre - uma luz pura e tilllil
santidade suficiente para guiar-se; ele nào deixou d»- mudai a
religião que lhe havia sido confiada"." Igualmente slgnlllt unt o

3. Cf.'RANNOU, A. George Wither critique et tèmoin d e sou lem /m, 11 «t i|> l||vi
tado, Paris IV, 1981, ms. dat., p. 485.
4. TRONSON, L. CEuvres comp/ètes, cd. Mignc, 2 v., Pari'.. IMS I, p •! M
{M anuel du séminariste, IV “du lever").
5. VIGOR, S.-Sermons catboliijues sur les d ¡manches etJ?tes, IV)/, p 'II \ l^iit
foi Arcebispo de Narbonne e pregador do rei. Semiíto compoMo |.......Ih I
1597 (3o domingo depois da Páscoa). Ulc remete u Trmiliiuio, i onm M ,n,h•
nem, 1, II.
6. BASNAGE, J. H istoire de L'Eg/ise, 2 v., Anisicrdum, I, mp I i I '*•
scin de cct ouvrage").

• 1(12
•«iio os tn\s textos seguintes, proposll.ul.miente escolhidos longe
mi1, dos outros pelas dalas e pelas Intenses. O primeiro se refe-
ii ao nascimento da melancolía e tem por autora Santa I lildegarcla
d» IUngen C.fl 179), autora, entre outros, de uní tratado de, medic­
ina, ('miscie et curae:

No momento em que Adão desobedeceu à ordem divina, nesse


mesmo instante a melancolia coagulou-se no sangue da mesma
maneira que a claridade é abolida quando a luz se extingue
enquanto a estopa ainda quente produz uma fumaça malchei­
rosa, Assim aconteceu com Adão, porque enquanto a luz se
extinguía nele, a melancolia coagulava-se em seu sangue, então
brotaram nele a tristeza e o desespero. Com efeito, quando da
queda de Adão, o diabo insuflou nele a melancolia que torna o
homem fraco e incrédulo.’
i
Na esteira dessa explicação* Robert Burton, no século 17,
Miuu-ça muito logicamente sua Anatom ia da melancolia com
i i i i i . i exposição sobre o pecado original que transformou o

homem, “milagre da natureza”, num ser miserável suscetível à


doença, à infelicidade, ao medo e à morte: Heu trístis et lachry-
mosa commutatio !* . N
lí Is agora, em 1649, a explicação dada por mestre Robert
Mentol de Salmonet para as revoltas do seu século, notadamente
n.i ( Irã-Bretanha: »

A desobediência do primeiro homem colocou a desordem e a


morte no mundo... Todas as criaturas então se revoltaram contra
ele e não o reconheceram mais. Ele também sentiu imediata­
mente uma revolta dentro de si...: os elementos de que é com­
posto seu corpo e que em seu favor tinham esquecido sua ini­
mizade natural retomaram seu ódio primitivo e não cessaram de
guerrear entre si até que esse edifício admirável foi reduzido a
poeira. É por essa- revolta interna que os homens se tornaram
semelhantes a lobos que se devoram uns aos outros...789

7. HILDEGARDE (de Bingen), Causae et curae, ed. Kaiser, Leipzig, 1903,


p. 143. Citado em STAROBINSKI, J. H istoire... de la m élancolie, p. 33.
8. BURTON, S. Anatomy ofM elancholy..., I, p. 130-131.
9. SALMONET, R. Mentet de. Histoire des troubles en Grande-Bretague, ed.
Consultada, Paris, 1661, in-f". Avant-propos. B.N. foi. N.C. 292. Citado em
MOUSNIER, E. Fureurspaysannes. Paris. Calmann-Lévy, 1967. p. 307-308.

4(M
Dentro tío mesmo espirito, uní sermão preparado poi Silo
Vicente ele Paulo (e sen seerelarkul< >) para ser ullllzatI»>p e l t mi'»
sionários do campo faz esia pergunta Inesperada: se »* piluu im
homem tivesse conservado seu estado de IriocOnela, todos o
seus descendentes teriam sido igualmente nobres? Kesposla
(dada como provável): havería superiores e inferiores, mas ns
primeiros não teriam governado os segundos "despóticamente",
e não os teriam considerado com o seus servidores. “O homeni so
atraiu para, si esse nome [de servidor] por sen pecado, De sorle
que, se O'homem nao tivesse pecado, vós não lerieis nenhuma
autoridade sobre ele... Por conseguinte, se vós comandais esse
senador, é o pecado que vos dá esse direito”. O sermão concluí
dirigindo-se aos mestres: “Vossos servidores são homens como
vós e vós sois pecadores com o eles”.101
Contrariamente ao islamismo que - notemos de passagem
não mergulhou no macabro, a civilização'cristã colocou a queda
original\no centro’ cie suas preocupações e a compreendeu comu
uma catástrofe que marcou o início da história." Embora a narrai!
va do pecado de Adão e Eva figure no primeiro Livro do Antigo
Testamento (Gn 3,1-24), o judaísmo antigo não centralizou sua
teologia sobre o primeiro pecado. Foi somente nas vizinhanças da
era cristã que alguns escritos judaicos. (nào-canônicos) la/eiri

10. Sermons de Saint Vincent-de-Paul, de ses coopérateurs et, » w w > humé


diats pou r les missions des campagnes, ed. pelo Abade Jèanmaire, 1’nrh, 1 \
1859: aqui, II, p. 86-87. Doravante as notas que remetem a esta cili«,a<»1utm
çarão por Jeanmaire.
11. A literatura sobre o pecado original é imensa. Eu utilizei sobretudo Wll
LIAMS, N. P. The Ideas o f ¡be F ali an d O riginal Sin, 1929. KORS, |, M, I ,i
Justice prim itive et le p éch é originei d ’aprés saint Tbomas. Paris: Vrin, |‘H(|
GAUDEL, A. o artigo “péché originei” no D ictionnaire de Thiologle ealholl
que, t. XII, 1933. DUBARLE, A-. M. Le Péché originei duns IJurin nr, PitrU,
Cerf, 1958 (2. ed. 1966) e “Le péché originei: recherches récenles el oriento
tions nouvelles “dans Revue des Sciences philosophiques et théologujtm, I. 1 111,
1969, p. 81-114. Théologie du péché {obra coletiva), Paris, Desclée, 1900 MI
COEUR, P. Finitude et culpabilité, 2 v., Paris, Aubicr, 1960: I, I d ¡omine ¡mi
lible; II, L a Sym bolique du mal, 1963. SCHOONENBKRG, P. Lilom m e et /,
péché, Tours, Mame, 1967. RONDET, H. Le Péché origine! dans la tradmon
patristique et théologique. Paris: Fayard, 1967. GRELOT, I’. Ré/lexiom mi /,
problém e du p éch é originei. Paris: Gastcrman, 1968. GUILI.Y, P. ¡a ( 'iilpalnll
té fondam entale. Péché originei et anthropologe moderno. ( iciubloux: I huillín,
1975. Assinalo também Une Introduction i) Ia fot calholique (o cata Imiio lm
landés), Idoc-France, 1968, p. 337 348 o REY-MKRMl'T, Th. Ctvhr, I v„
Limoges, Droguct-Arduin, 1976 197'), aqui. I. p. ISO 158.

464
remontar a Adào om i .i-iilgi t i qnc pr'i.im .<»l>u■.i humanidade, mas
•>t in marcar nitidamente a liansmhNáo cio estado pecaminoso cio
primeiro pai à sua raça, Nos I \.mgelho,s c no símbolo de Nicela,
nao se laia do pecado original, lí sobre o “pecado do mundo" que
lesus insisle e ele nào faz menção a Adào. Sào Paulo, em com­
pensado, num texto celebre da lípistola aos Romanos (5,12-21)
pòc vigorosamente em destaque o papel de-Adào: é por ele, diz o
apóstolo, que nào apenas a morte, mas também o pecado
entraram no mundo. Todavia, o objetivo do apóstolo cios gentios
c sobretudo mostrar que a graça predomina sobre o pecado e que
<> ( íristo redentor apaga a “condenação” aplicada contra a
humanidade. Graças ao sacrifício da ■•cruz, “a multidão será consti­
tuída justa”: trata-se portanto de uma linguagem de esperança.
Iím seguida, até o ultimo quartel do. segundo século, a
questão do pecado original permanece obscura nos textos dos
padres apostólicos e dos apologistas cristãos. “A narrativa da
queda, èscreve o Padre Rondet, não é obsessivo [para eles). O
dogma da Redenção não é baseado em primeiro lugar sobre o
pecado de Adão como sobre uma catástrofe primordial".1- “O
pecado original, continua o mesmo autor, só faz parte da fé cristã
de uma maneira ainda bastante geral. É conhecida a narrativa do
( lênesis: Adào e Eva pecaram, mas qual foi a natureza desse peca-
11<>; quais foram em detalhe suas consequências, que lugar se deve
dar ao pecado individual no estado miserável do gênero humano,
quanto a isso, a Igreja ainda não se preõcupoú exprofesso.”" Em
compensação, no fim do século-2° e durante o século 3o, Irineu,
Tertuliano e Orígenes, cada um à sua maneira, interrogam-se
sobre o pecado de Adão, que vai-se tornar a preocupação'essen­
cial de Santo Agostinho. Provável criador da expressão “pecado
original”, o Bispo de Hipona faz ao mesmo tempo uma sistemad
zaçào e uma dramatização da doutrina à esse respeito. A formu­
lação que ele propõe contra Pelágio e seus adeptos irá dòravante
exercer um papel decisivo na história - e na vida cotidiana - da
cristandade latina, enquanto na tradição oriental o pecado apare­
cerá menos do que no Ocidente “com o a categoria maior e lun
dadora da experiência da salvação”.1412 4
3

12. RONDET, H. Le Péché origin ei.., p. 47.


13. Ibid., p. 86-87.
14. Fórmula do POHIER, P. J. M. no artigo “Péché" da Encyclopaedia Uni-
versctlií, XII, p. 663.

405
Esquemáticamente, <> slsletua do pecado segundo S.tillo
Agostinho "apilguóse transformada numa quase g n o se'1 »t|m
sen tu sc* assim: no estado primitivo de retid.to e de jusllca, Ad to
e Eva controlavam peifeltamenle todas as aspirações de seus i nf
pos e notada mente seus desejos sexuais (e uma ret< >mada do ideal
estóico do sábio governando suas palxòes). Se o paraíso tem sln
não se tivesse desfeito, os homens teriam gerado lllltos *• m
nenhuma volúpia ou pelo menos com uma volúpia governada 1
regulada pela vontade”."' A dàoe Eva eram mortais por ualitn i
mas a morte náo penetrava no paraíso terrestre. <)s animais saiam
dele para morrer1' e nossos primeiros pais escapavam da ntoih
comendo os frutos da árvore da vida.1" Sua alegria era perpetua t
sem qualquer'sombra. Eles desfrutavam de Deus. Ides eram I><u
Eles eram habitados por uma caridade ardente, uma le sluteia,
uma consciência reta."' Mas a desobediência mudou tudo. Aduo ■
Eva escorregaram da eternidade para o tempo (que <• o Itigui dt
Ioda degradação), da abundância para a miseria, da estabilidad»
para a debilidade,111 liles nào foram apenas submetidos ,u> sohl
mento e a morte, mas perderam aquela subordinação das palsoew
a vontade que lhes tinha sido outorgada com o uma grava espu
clal Da mesma maneira que os animais se revoltaram contia "
homem a ponto de alguns procurarem devorá-lo, assim lamín m
o homem tornou-se um feixe de tendências contraditórias I •• idt
enl.to "ele e dividido, disperso, estranho a si mesmo".Jl
Com o pecado inaugural apareceram a Ignorância • a
cnncuplseêncla, esta última se manifestando partleulamtenle na
e l n vt-M enela .sexual q u e a razào nào con trola m ais, a tal ponto
qu e mesmo um casamento legítimo nada mais ê q u e o limii too 1 5678920

15. KICOEUR, Le G o n flit des in terp rétation s, Paris: Senil, 1%9 p 20


16. Patr, ¡m i ., XLIV, Contra Julianum, livro IV, cap. 5, col. /V.
17. Piiir. lili., XIV, Opus bnpcrfectutn contra -Juliánum, livn» t, •,ip i l ’ ,
col. 1307.
18. l\ttr, lili., XI,IV, Docompúone etgmtia, cap. XII, n. 3-1, col. 936 'M '
19. Cité de P íen, livro XIV, cap. 10 c 2p: cil. Comben, i. XXXV, p t'K) mi
c 457-4 V).
20. Patr. Lili., XXXIV, P e Vcnt re/igionc, livro I, cap. 20, 1(4. I Vi. Sulm
<» tempo que precisamos vjver como uma "ferida oculta", cf, MAHIU >11,
El. I. LA niI)i vnleuee du leiups de l'histotre e/jet Saint Anguuin, París, l'i.ti
p, 47 e 54.
21. RONPIÍT, II, l e Péchtorigine/,,,, p, 141,
(Ir tuna colsa nía," N h n mhvkp» heríU'in>n dessa Ignorância o
«li•s.s.i concupiscencia c, uut>ivLi, m hiids culpados por olas,
l'niquc no momento do sen petado, Adao formava um só
homem com sua posteridade. Estávamos todos contidos nele. A
unidade da raça humana em Adao explica que o primeiro peca­
do seja também nosso pecado. ' Daí a afirmação agòstiniana de
<|iic a humanidade pecadora constitui doravante uma “massa de
perdição”-1 incapaz por si mesma de verdadeiras virtudes. ()
hallsmo é a condição indispensável cie uma regeneração que
permite escapar ao “suplício da morte eterna” e apaga a culpa­
bilidade, sem por isso retirar a concupiscência e a ignorância
i n lglnadas pela desobediência de Adão e de Eva. De modo que
"os filhos que nào receberam o batismo sofrerão os efeitos da
sentença pronunciada contra aqueles que nào creram e que
serão condenados”.2 456
3
2 2O necessário batismo dos filhos fornece,
por sua vez, a Santo Agostinho a ocasião de precisar que “a
giaça nào é dada a todos os homens, e que aqueles a quem ela
e dada nào a obtêm segundo o mérito de suas obras, nem o de
sua vontade, o que se vê particularmente nos filhos”.21’
O Concilio de Caitago (418), que condenou os pelágicos,
ratificou as posições de Santo Agostinho declarando principalmente:

Se alguém disser... que existe no reino dos céus, ou em outra


paite, um lugar intermediário onde as crianças mortas sem
batismo vivem felizes..., que ele seja anátema. O Senhor disse
com efeito: “Aquele que não renasce da água e do Espírito não
entrará no reino dos cé.us”; então, que católico hesitaria em con­
siderar co-herdeiro do demônio aquele que não mereceu ser co-
herdeiro de Cristo? Aquele que não estiver à direita estará inevi­
tavelmente à esquerda.27

22. Patr. Lat., XLIV, ContraJulianum , livro 3, cap. 21, n. 42, col. 723. Cl. um
bém Ibid., D é Nuptiis et concupiscentia, livro I, cap. 25, n. 38, col. 429-430.
23. Patr Lat., XLIV, D e N uptiis..., livro 2, cap. 5, n. 15, col. 444-445. Ibid.,
De Peccatorum m eritis et remissione, livro 3, cap. 7, n. 13, col. 193.
24. Patr. Lat., XLIV, Contra Julianum', livro 3, cap. 18, n. 35, col. 720-721 c
livro 5, cap. 14, col. 812-813.
25. SAINT AUGUSTIN, Lettre 217, 5 (16-17), ed. Péronne... Reproduzida
em MARROU, H. I. Saint Augustin et laugustinisme. Paris: Seuil, 1965.
26. Mesmas referências que a nota precedente.
27. Canon 3 do Cóncílio de Cartago (conforme alguns manuscritos) DEN-
7.INGER, H.; BANNWART, Gl. Enchiridion symbobrutn, definitionum etd e-
ciarationum de rebu sfidei èt morum, ed. de 1922, p. 47. n. 3.
Por Ir.is di v,,i 11 >iuli'ii.K ,i(»dos IIIIk>s ná<) I>at Izados, tIrmi ••
brc-so de novo .i visão dramática tío uní pecado prlmlllvo, á i><I
ponto enorme que deveda logicamente levar a justiça divina
ofendida a lanzar no Inferno ioda a humanidade pecadora •m
Adão. Mas a redenção isenta os eleitos desse trágico destino
Foi tão grande o impacto dessa concepção do per ...........i
ginal, que daí por diante no Ocidente cristão toda relio li»
teológica sobre esse problema se situou em relação a ela nía
para suavizá-la (com Santo Tomas, Frasmo ou Molina, ora paia
agravá-la mais um pouco ainda: o que fez notadamente I uieu i
Mas o que nos importa aqui, no quadro de urna historie igral'l i da
mentalidades, é que o pessimismo agostiniano atingiu sua HUllA
forte coloração e sua mais ampia audiencia no período |>ii\ 11>
giado de nosso estudo: ou seja, do século IS ao 17 inclusive I Ml
uma. reação em sentido contrário: o molinismo c|iie se tornou
logicamente o alvo preferido dos “antipelágicos” e Ibrner eu um
alimento novo à sua melancolia. Não é exagerado afirmai q........
debate sobre o pecado original com seus diversos sul>pi«»diilo
problemas da graça, do servo ou do livre arbítrio, da piedi II
nação - tornou-se então uma das preocupações prlivlpal da
civilização ocidental e abrangeu finalmente todo mundo, desdi
os tçóíogos até os mais modestos camponeses. Porc|ue rsii < •••
viram presos no turbilhão das Guerras eje Religião. Alé os índio*
da América foram batizados às pressas para que na morie nãil
fossem encontrar seus ancestrais no inferno.
Temos sem dúvida alguma dificuldade hoje em inedii o
lugar que o pecado original ocupou nos espíritos e em h »«l<is <is
níveis sociais. Esse lugar era certamente muito maior qu< iqin l
que ocupa hoje a noção de “luta de classes”, que não c realnu lili
Vivida por uma ampla fração das populações. I um falo qm no
início da modernidade européia o pecado original e suas i uirm
qüências ocupam o centro do palco - um palco multo agll uln \
Reforma protestante é de início e sobretudo a proclamação da
justificação pela fé, sendo esta absolutamente necessária ao
homem decaído. No seu tratado sobre o Servo arbítrio, <|u|
responde a uma obra simétrica de Erasmo sobre <> l.lvre ..........o
I.utero dirige ao seu adversário este estranho cumprimento In
pelo menos, não me cansas com tuas chicanas dr lado solm o
papado, o purgatório, as indulgências e outras ninharias. . lu rtf
o único c|ue pegou o no da questão, lu mordeste na \» Ia

dílH
obrigado, liras nu Dentro iln mesmo espírito, Belarmino
exclamará: "Toda a controvérsia cnln* católicos e íuteranos é
saber sc a corrupção da natureza e sobretudo a concupiscencia
cm si, tal com o ela permanece nos batizados e nos justos, é pro­
priamente o pecado original V"
I.útero e Belarmino tinham razão. Certamente, o conflito
entre católicos e protestantes se ampliou e se dispersou por
múltiplos terrenos - eclesiologia, tradição, sacramentos, presença
real, jejum, etc. Mas o essencial era realmente aquilo que, desde
o Início, o doutor Martin tinha designado como o problema
maior. Do mesmo modo, a Confissão de Angsburgo (1530)
exprimiu sua concepção - bem agostiniana - do pecadq-original
Imediatamente após ter proclamado sua fé na Santíssima Trin-
dade.'" O Concilio de 1 rento, reunido em dezembro de 1545,
respondeu-lhe em junho do ano seguinte, depois novamente em
janeiro de 1547, sublinhando a parte do esforço humano na obra
da salvação. Foi só em seguida que se ocupou dos sacramentos:
prioridade reveladora.51
Alguém podería julgar que as posições sobre a gravidade
e as consequências do primeiro pecado estavam esclarecidas e
lixadas pela divisão da cristandade latina em duas partes agora
hostis uma ã outra. Absolutamente não. Era tal o interesse por
esse problema incessantemente renovado e mostravam-se de tal
modo inesgotáveis as interrogações a esse respeito, que'surgiram
conflitos cada vez maiores no intérior de cada confissão. Os
católicos se dilaceraram entre jansenistas e motinistas, e os
Protestantes entre Arminianos e Gômaristas. Em todos os casos,
ira lava-se não apenas de medir o impacto do pecado original
sobre a natureza humana, mas também de sondar os mistérios da289301

28. LUTHER, CEuvres, V (Du S erfarbitre (conclusão), p. 235). Usei a tradu­


ção de A. Godin, “Une lecture sélective d’Origéne à la Renaissance...” em O ri-
geniana, Q uaderni d i Vetera christianonim , 12, 1975, p. 87, n. 15.
29. BELLARMIN, R. De Amissione gratiae et statupeccati, livro V, cap. 5: ed.
Vivès, 12 v„ Paris, 1870-1874: V, p. 401.
30. Tradução do texto da Confession d ’A ugsbourg em CASALIS, G. Luther et
1’Eglise confessante. Paris: Seuil, 1962. p. 141 e em JUNDT, P. La Confession
d'Augsbourgi Paris-Genève, Centurión, Labor et Fides, 1979.
31. Sessão V: “Decreto sobre o pecado original” (17 junho 1546); sessão VI:
“Decreto sobre a justificação” (13 janeiro 1547: efi ed- ALBERIGO, G. Con-
riliorum ... decreta; p. 665-667 e 671-681.

460
predestinado, emitíanlo os Gomarlstas afirmavam que o ilet reíd
da eleição ou da reprovação é anterior ao da c|iietla de \•11- •
Todo o peso da crítica global de Volta iré contra o (Irisllanlsinq
devia, em breve, incidir sobre o pecado original''1 tal tom o era,
então, ensinado.
Ele era constantemente apresentado aos fiéis pela livutgr m
e pelos textos. A iconografia consagrada ti esse tema <• anliga MA
tentação e o primeiro pecado já figuram numa plntllrtl dal
catacumbas de São Januário em Nápoles (sécu lo 2"), de|.........
afrescos "cie Doura-Oropos. Ao longo da Idade Media, sao em oq#
trados nas paredes de Saint-Savin, nos capitéis cie ( lluny ott dl
Saint-Benoit-sur-Loire, nos mosaicos de Monreale, nas l,u liada*
cie Notre-Dame-la-Grancle em Poitiers, da catedral cie E.sliashuq i
e em muitos outros santuários. Entretanto, a proliferação ma sima
cias representações do pecado cie Adão e Eva se locaII » uo
séculos 15-17 sob o duplo efeito cia multiplicação das u b i a s . l.a
arte e das preocupações conjuntas das Igrejas docente e d Is» enle
Não féria fim enumerar os artistas de renome que, durante ■»« ••
período, evocaram a trágica desobediência: de Ghiberll a Pult» ii
de Hugo van der Goes a Ticiano, passando por Ki/zo, I Min i
Lucas Cranach, o Antigo, Rafael e Miehelangelo. O n/e gravunfl
de Lucas de Leyde são consagradas ao pecado original 1 Ma
sobretudo, ao lado das obras maiores, quantos vi Ira Is, e qu mti
retábulos incluíram o primeiro.pecado na sua catequese colmldal
Alguns marcos permitem balizar a crescente dllusao da
doutrina. O Dram a de A dão (século 12) foi uma das pi lim li n
obras dramáticas representadas fora da igreja. Entretanto, ai< o
século 15, os textos sobre o pecado de Adão e Eva são sobrei u
cio obra de teólogos dissertando para o círculo restrito d< is <li 11
gos. As coisas mudam a seguir com o sucesso dos "mistérios" c
a invenção da imprensa. Um público cada vez mais ampl..........a
ta agora sobre o primeiro pecado e suscita obras de grani 1» repéi
cussão. A primeira jornada da Paixão de Arnoul Grélxm ( M
apresenta de início a história cia criação até o assassinato de \l»*i
e a morte de Aclão; depois, vemos nos limbos Adão rogar p< n um
Redentor, enquanto no inferno os demônios cantam ,i perdí» to32*

32. Cf. seu verbete “Péché originei" do Dictiotmairephiloso/>bi(jiit‘


33. RÉAU, I,. Teonogiuphie tlf Dtrt ehrAien. Paris: PUF, I956. II. I. p »M
Lexikvn der chnuHchcn tkoiwfymphit, Pille Vicmic, Hcixicr, l%ft: I, p. i 1 il
M . C f LAVALI.FYE, |. I.m m VttH D ydtn.

170
do gênero humano, Enfim, io ••<u, ,i Mrdeiiçdo c dedclida, Num
outro mistério, o do Velho Tcslamculo, Impresso por volta de
1500, Eva morre diante dos espeeladores deixando escapar este
triste “adeus”/

Ai de mim! Vejo meus filhos, que eu deixo


Todos ligados ao meu maternal vício.
Adão Pecou; eu fui a mediatriz,
Para tentá-lo a comer a maçã;
Da falsa serpente fui companheira e cúmplice.
Então guerra nasceu entre Deus e o homem...”

O poema anônimo A morte da maçã (por volta de 1470)


nos importa de novo aqui por ser revelador de um vínculo certo
entre o macabro e a dramatização da doutrina do pecado origi­
nal (porque Adão e E v a'comeram a maçã, todo poder foi dado a
morte). Ide suscitou uma iconografia que devia desembocar nos
Sim ulacros da Morte de Holbein.*
lí no fim do século 16 e durante o 17 que culmina na classe
culta o interesse pelo pecado original. De um país a outro, corre-
spondem-se os textos literários que evocam a glória e depois a
miséria do primeiro- homem:57 Segunda sem ana de Du Bartas
<1584) muito imitada na Inglaterra, A dam us exu l (1601) de I lugo
(irolius, Adam o (1613) do prolífico dramaturgo Giambattista
Andreini, A dam o (1640) poema em prosa de Francesco Loredano,
fundador cia mais importante academia veneziana. La Scena trág­
ico d A d a m o e Eva (1644) drama em prosa de Troilo Lancetta,
. Idanio cadulo (1647) tragédia de Serafino clella Salandra,
Mnndorum explicado ( l 66l) ampla história do mundo cie Samuel
Eordage, Aclào banido (1664) do grande dramaturgo holandês Jost
Van den Vonclel e, enfim, tributário de várias das obras anteriores,
o Paraíso perdido de John Milton (edição completa, 1674). Na
França, toda a reflexão religiosa cie Pascal constrói-se a partir do
pecado original “que é loucura diante dos homens... Porque sem3567

35. Sobre este mistério, que na realidade é um conjunto de vários mistérios


distintos, cf. JULLEVILLE, L. Petit de. L esMystères, 2 v., Paris, Í880: II, p.
352-378.
36. MÂLE, E. LA rt religieux de la fin du Mayen Age..., p. 379-380.
37. DUNCAN, E. M iltons Earthly Paradise; a historical Study ofE d en , Min-
ncapolis, Univ. of Minnesota Press, 1972, p. 10Q.
isso, o c|iic so dirá que e o homem? Todo o seu estado dependr*
desse ponto Imperceptível".'" Antes dos Pensamento'», a*
Provinciais ( I65()-I()57) tinham no essencial constituído um lula
do, ora irônico e ora veemente, sobre a gr;tça "suílelcnle" •po
deixou de ser suficiente depois da prevaricava» > de Ad;to. Na
esteira de Santo Agostinho, Pascal afirma aqui que a ignoráiu ia dt i
mal, oriunda do primeiro pecado, não desculpa <> mal e que o luM
ismo dos jesuítas e de outros casuistas “oferecem leitos de pluma*
aos pecadores” inveterados que todos nós somos desde a expul
sào do paraíso terrestre. Ora, as Provinciais foram um sucesso de
livraria: onze edições francesas entre 1657 e 1700,"’ uma iradin b »
inglesa em 1657, uma tradução latina (de Wendrock, aliás NI» oh i
em 1658, reeditado quatro vezes antes de 1700.
Tratar da graça em tom dê comédia (pelo menos nas
primeiras Provinciais) era uma novidade que explica a i.iplda
difusão das “pequenas cartas” por baixo do pano, Mas essi|
sucesso explica-se também porque o assunto interessa ao piíbll
co. A austera obra de Antoine Arnauld sobre a (om unhao In
(|üente (1643, 490p. in-4°), inspirada pela mesma antropologia
([iie as Provinciais , já havia constituído um acontecimento, I
primeiro grande livro daquele que foi chamado “um teólogo de
guerra civil”, “um silogismo vivo..., de capacete na culnvi,
eriçado”,’10conheceu seis edições de 1643 a - 1648. Quatro nulhift
se seguiram de 1656 a 1703. É que uma civilização Inteira se
encontrava então constantemente colocada em face do pecado
original. O menino que abria seu catecismo - ou que eia en»»l
nado oralmente - aprendia desde as primeiras lições: "P; Qual
foi essa desobediência (de Adão) ? - R: K que ele comeu um
fruto que Deus lhe havia proibido. - P: líssç pecado de A dáo
lol multo grande? - R: Sim, visto que mereceu a maldição du
Deus sobre todos os homens”." Os autos de Natal, por oulio
lado, as vezes contavam com humor a história da queda Nas
festas de l.e Moigne, Vigário de Poitou, a cena do pecado c
assim descrita (I"ed ição , 1521):

18. PASCAL, Pensées, n. 445 da cd. L. Bruniclwicg


39. Depois da publicado das ibovinciales brochura após broclum».
4(1, 1'xprcssòcs tic I. Carrcyrc no verbete “A. Arnauld” do Dlalonthnir #/«* </>i
ritiuillté, I, p, 882.
4 l . ( it.u,3o extraída do Caitchimc du dioche de Bayeta, 1700, p. XNVII
XXVIII (3« llçflo).
Ailiio mordeu .1 i i i . k . i
Elo não tinha nonluimu l.u'11
E comeu um pflfçlãço,IJ

Quando foi provar


I)a maçã amarga
Ida não pode passar
Pelo nó da garganta;
Ide a regurgitou
Pela goela.13

Quando ele errou


Querendo agradar [a Eva].
Conheceu o seu feito,
Pez la'mentável figura
Ideou mais branco
Que um emplastro
Viu-se todo nu.
Escondeu sua nádega
E seu pênis.'1

Antes do pecado original, pensava Belarmino, o homem


andava naturalmente nu. Depois, sentiu-se sem roupa.

origem do mal e paraíso terrestre


O simplismo pedagógico e a espontaneidade do Natal do
Vigário Le Moigne não devem dissimular a importância da dou­
trina que ele veicula.
Será que a humanidade pode deixar de interrogar-se sobre
a origem do mal? Em certos sistemas de pensamento diferentes do
( risiianismo - mitos religiosos ou filosóficos a responsabilidade

42. BENESSE, Ja DARR1EU, M. “Noèls français du XVL siècle” em L aM ort


des (uiys de Cocagne (sob a dir. de J. Delumeau), p. 62-63: Noel n. 6 de Lucas
Le Moigne.
43. lbld., Noél n. 5.
44. Ibid.

47B
do homem no aparei linenio do ni.il sol)iv a ierra e alenuáila, <|iuin
do não suprimida: uní principie» mau <>põs se* ao I >eus hom; 011 um
Deus perturbou a obra dos outros deuses; ou an|os maus enslnti>
ram aos humanos as arles perversas da civilização; ou as alma*, pi
caram antes ele sua existência terrestre e entibo "caíram" pot etico
lha nesse corpo transitorio que c seu castigo. Os idealistas alem ti
dirão que o mal nada mais é que um momento dialético do desi n
volvimento do bem. Em compensação, o judeu-crislianlsmo, sem
cancelar a iniciativa da serpente tentadora* deu ênfase ao IIvn •p«
cado do homem e a inevitável solidariedade entre Adão e m u di
cendência. Sob certos aspectos, Kant permanece fiel a explli ação
crista quando detecta no homem um “mal radical”, lima tendí m la
natural à perversidade.4’ Todavia, para o filósofo de Kónlgsbi ig
deve-se renunciar a procurar a raiz desse mal num fato passai I. * m
a Bíblia fala de um começo do pecado, não se deve entendei I.....
historicamente. Adão é cada um de nós. A dimensão diacrónli a, ai •
contrario, é restabelecida por Freucl que, ao mesmo tempi >em i pn
esvazia a transcendência, coloca na origem do sentimento de <ul
pabilidade um grande acontecimento traumático: o assassinato do
pai da horda.16, Th. Reik tem então razão ao escrever que "
Cristianismo e a Psicanálise, nas suas tentativas de elucidaçái», pai
tem de uma mesma suposição, ou seja, que um acontedmeul<» pu
histórico é a causa do sentimento de culpabilidade coletivo",1 seu
do verdade, entretanto, que Freud em seguida rcintroduz no *.« 11
sistema explicativo um elemento diferente do pecado hertslliailo
o “instinto de morte” que se junta ao “mal radical” de Kanl,
Se tentarmos distinguir as características principais d.i dou
trina cristã tradicional relativamente ao pecado hereditário qu.i
tro elementos sobretudo se impõem: J°) a constatação da exlslén
cia do mal sob todas as suas formas através da história hutiniiut
2°) o imensQ esforço teológico para esclarecer a esse ivspHto i
responsabilidade de Deus, o que foi feito colocando a carga no
homem. Como escreve São Boa ventura:

Se, desde o começo, Deus tivesse criado o homem no mel<. <I. •


tantas misérias, não haveria nem piedade nem justiça; .. *.«* I tnn4567

45. Sobretudo cm /,./ Religión dam les lim ites de Ia Raison, cil. I <■il •>Iln
1952, p. 50-60.
46. FREUD, ,S. lotou et talam. Puris: 1’ayot, 1976, p. 162-165.
47. RI.IK, Th. Mythe et citl/utliHM. (rim e et ehàliment de llittmitiiite l'm
PUF, 1979. p. 166,

171
nos tlvcasc .sobiei .hii j 1111...... ni 1111111111 misérias ou permitido que
o fôssemos sem nenhuma i ulpo. .1 divina providência oào nos
governaria nem com piedade, nem eonlbrme a justiça. Nosso es
lado atual, sob o governo de um Deus justo e bom, só pode en­
tão resultar de uma punição.'"

V) a afirmação de que a morte do homem é a conseqüência do


primeiro pecado; 4o) a proclamação da salvação por uki Redentor.
I essa "boa nova” que marca a diferença entre o Cristianismo e cer­
tos mitos africanos que explicam, por sinal de uma maneira bem
próxima, como, nas origens do mundo, Deus “afastou-se” de seus
filhos, bis aqui um desses mitos na sua versão ruanclesa:

( )utrora, nos tempos mais recuados, Deus habitava entre os ho­


mens e conversava çom eles. Mas tinha-lhes proibido, sob pena
de atrair desgraças, de jamais procurar vê-lo.
I lina moça tinha por tarefa depositar todas as noites água e le­
nha na entrada da cabana circular onde Deus habitava ao abrigo
dos olhares. Uma noite, entretanto, quando trazia a cabaça cheia
de água da fonte, a filha de Deus sucumbiu ao desejo que ardia
dentro dela: resolveu espiar seu Pai divino às escondidas para vê-
lo. lila se agachou atrás da cerca esperando ver pelo menos a
mão de seu pai. Em determinado momento, Deus veio pegar a
cabaça e avançou seu pulso ricamente ornado de anéis de latão,
li ela viu aquele braço divino suntuosamente enfeitado. Gomo
seu coração batiá à vista daquele esplendor!
Mas Deus soube da desobediência de sua filha. Na noite se­
guinte, ele ordenou aos homens que entrassem em suas cabanas
e lê-los ouvir amargas censuras. Para puni-los ele ia retirar-se
para sempre; doravante eles deveríam viver sem ele. Ele desapa­
receu para além do lago. Depois, ninguém mais o ouviu, li com
Deus desapareceram também a felicidade e.a paz; os frutos, a
caça e todos os alimentos que antes se ofereciam espontanea­
mente, tudo se fez raro. Mais ainda, a morte fez sua entrada, além
de outras misérias.1'*489

48. SAINT BONAVENTURE Brcviloquium texto latino de Quaracchi, trad.


franc., Paris, ed. franciscanas, 1967: III, p. 75.
49. Citado em MEESTER, P. de Oü va lE glise cl’A frique. Paris: Cerf, 1980.
p. 83-84. E possível que este mito tenha sido influenciado pelo Cristianismo,
mas clç não desemboca numa redenção.

475
Como iiiio tu >i ,ii iitt semelhanças entre essti nurratlvn e .i i lo
Génesis cjuc- sublinham, tim.i e oulru, .1 curiosidade da Mulher, ,i
necessária solidariedade dos humanos entre si, a punição man a
da pelo afastamento de Dens, o tlesap«ireí Imenló do paraíso leí
restre e a erupção da morte?
O texto do Génesis, entretanto, não ocultou aos espíritos
mais penetrantes o caráter misterioso do pecado e da culpabllld l
de hereditários. Um teólogo do século 12, Robert de Md In, Intuí
rogando-se particularmente sobre a sorte das crianças não batl/a
das, declarava: “Ninguém deve fazer a pergunta: de onde vem que
a alma da criança seja culpada diante de Deus por causa do pei 1
do”, acrescentando mais uma vez: “É preciso reconhecer com I In
gues [efe Saint-Victor] que a justiça de Deus, se é irrepreensív el, »•
incompreensível”.50Pascal não hesita em escrever: “Nada nos to» ,1
mais do que essa doutrina... O nó de nossa condição pega suas
dobras e suas voltas nesse abismo”.515 4
3
2São Vicente.de Paulo, num 1
conferência a seus missionários, declara: “Senhores c meus lrma< >s,
é preciso que haja alguma coisa de grande que o entendimento
não pode compreender nas cruzes e nos sofrimentos”. ”
Bayle, sobretudo, foi obcecado pelo problema do mal, qui
tão insolúvel colocada à fé num Deus único e bom.' Porqu< «
Deus “previu o pecado de Adão, e se não tomou medidas liem >•1
tas para evitá-lo, ele carece de boa vontade para com o homem, ,
Se ele fez tudo o que pôde para impedir a queda do homem, 1 .1
não pôde chegar a bom termo, então ele não é todo-poderosn
como o supúnhamos”.51 Bayle continuou cristão, nota J. P. Jossua
que destaca esta declaração final: “Eu morro como filósofo <lisl/m,
penetrado e persuadido das bondades e da misericórdia de I leus' '

50. MARTIN, R. “Les idées de Robert de Melin sur le péché originei ■ni AV
vues des Sciences philosophiques et théologiques, IX, 1920, p. I IS.
51. PASCAL, Pensées, n. 434 da ed. Brunsclivicg
52. PAUL, Vincent de. Entretiens spirituels aux missionmires, cil. A, I
Paris, Seuil, 1960, p. 129.
53. Sobre Bayle cf. o notável trabalho de LABROUSSH, U. P iare H,iyJc, I I S,
pays de Foix h la cité d'EtUStne; II / léiéivdoxic et rigorisme, La Haw, M I li|
hofF, 1964. Sobretudo aqui t. II, p. 146-387. Cf. também [OSSUA, I I'
P iem Bayle ou lobsessiou du inul, Paris: Atibier, 1977; D iscotas chiétiem el
scandale dunutl. Paris: Chalet, 1979.
54. Répon «vi nus que\tion\ d'ttn ptvvim htl, ¿,[ pane, cap. Hl (cm Uiutw\ t/hiei
ses), La I lave, 1/31, III. p. 063 dtiidu em |t)SStIA, L I! Discouts, , p, 111.
55. IO S SI IA. I I! P i e m H,iyle , p, Io/. I.ABIU HJ.SSL, b. /,' Rqy/c, I. p, ’o9,
Másele mio procurou negai ,i linpi tvilhllkludc para a razão de com
preender o porque tío mal. Nomiu Inteligência deve humilhar-se
dlanle desse misierlo <|iu' la/ ao mesmo lempo “o homem conhe-
i ei Mías trovas o sua Impotencia, o a necessidade de outra, revela
i .a i"," Eormulando esse fideísmo, Bayle nao está muito afastado, no
Ilindo das coisas, de Pascal e de Bossuet. Todavia, mais do que es­
te.',, ele dá ênfase ao caráter incompreensível do mal e do malefí-
i ii>, enquanto os Pensamentos ele um e os Sermões de outro acen­
tuam vigorosamente que a solução foi encontrada.
Pascal mostra que a fé propõe duas verdades “igualmente
»<justantes”: urna, que o homem no estado da criação ou no da
giaça está acim a'de toda criatura, torna-se semelhante a Deus e
participante de sua divindade; outra, que no estado ele corrupção
ou de pecado,'ble decai daquele estado e tornã-se semelhante
aos animais”.ST Quanto a Bossuet, 'ele anuncia quase triunfante:
"Nos explicamos o enigma. O que há de tão grande no homem
e uní resto de sua primeira instituição, ... mas por sua vontade
<lepravada ele caiu em ruinas”.5 *58Bayle sem dúvida não teria acei­
6
tado com tanta segurança fazer o homem assumir toda a respon­
sabilidade do mal e do maleficio que desolam a terra. Ele critica
os diversos teólogos cristãos - do Tomismo ao Socinianismo -
por querer resolver um enigma que ultrapassa ó entendimento
humano. A explicação pelo pecado original não.é urna explica­
d lo. "A maneira como o mal introduziu-se sob o império sobera-
n< >de um Ser infinitamente bom, infinitamente santo, infinitamen­
te poderoso(é nao apenas inexplicável, mas até mesmo incom­
preensível.”59 Não se resgata Deus imputando a culpa a Adão:
"Permitir uma coisa, propriarhente falando, é deixá-la seguir um
curso que se podería impedir”.60 Nossos contemporâneos, agora
prudentes, concordam com Bayle e co m je a n Nabert que é pre
ciso “renunciar a perguntar por que existe mal e com o o mal e

56. BAYLE, D ictionnaire historique et critique, verbete “Diogène”, Nota N.;


verbete “Manichéens”, Nota D.
57- PASCAL, Pensées, n. 434 da ed. Brunschvicg.'
58. BOSSUET, Sermón sur laprofession de M me de la Valliére em CEuvres com­
petes, Rennes, ed. dos Padres, de Saint-Didier, 1863, III, p. 85.
59. BAYLE, CEuvres diverses, III, Réponse aux questions d’un Provincial, II, §
CXLIX, p. 807b. Citado em LABROUSSE, E. Pierre Bayle, t. II: H étérodoxie
ct rígorisme, p. 386. ¡
60. Ibid., II, § LXXV, p. 654b. Citado em LABROUSSE, E. II, p. 369.

477
possível num universo cuja existência se começou ;i ¡itrlluili .1 um
princípio (|ue garante* sua ordem e sua hondada","1
Ao contrário, para a Imensa maioria dos europeus de ,m
tlgamcntc, ate o século IK ainda, náo existia realmente* um mis
té'rio do mal. Ides pensavam com o Iios.su et que "o enigma" rntd
esclarecido, lima "questáo Insolúvel da filosofia humana"' loi
na sc* clara pela religião que Indica "o momento preciso em qm
|o liomeml foi despojado da justiça’’,"^ ) pecado original tornou
se para uma elvllizaçáo inteira uma espécie de deus c,\* iinn hi
ua utilizado a lodo instante como razáo última c* definitiva de
tudo o que vai mal no nosso universo. () recurso a essa expll
caçao constitui um lato histórico de primeira grandeza: como
nota justamente, um teólogo de nossa época, o Padre Martelei

... A partir de Agostinho e sobre a dupla ha.se da narrativa h(


1)1lea da queda e das afirmações de Paulo na I{pistola aos Ituina
nos, um tipo de explicação instalou-se no Ocidente, .1 qual dn
ranle múllo tempo açaimou os espíritos c* os corações; se o lm
mem sofre e morre, explica-se entilo, é porque o homem primi
Inlclalmente, não foi assim, não devia ser assim. Por causa cie •<u
pecado, Adão desequilibrou a natureza para o homem: ele o pil
vou de uma economia,-agora perempta, em que o sofrimento •
a morte* não teriam existido.''1

Cimi grande força poética, Milton exprimiu a oplnláo ou


li o ia comum a esse respeito, lile mostra como, depois do primei
ro pc*( ado, "a Morte fareja com.delícia o cheiro da mudança moi

61. NABERT, J. Essai sur le mal. Paris: Aubier, reed, de 1970. |). *i(> ’>/. A^ia
deço ¡mensamente à filha de Jean Nabcri por ter chamado minha aicnçin
para 0 ensaio dc seu pai. Cf. também ADAM, M. Le Sentiment du M /V (iene,
Paris, 1967), p. 127.
62. MONTAZET, A. dc. histfuction pastonde ... sur les sotares de /'incrd/itlih1
ei les fondernents de la religión, 1776, p. 136. CROI*. I'HUYSHN, H, Origine1
de l'esprit bottrgeois, Paris, Callimard, cd. de 1956, p, 136 Mnntpa/rt,
Arcebispo de I.yon era favo nivel ao Jansenismo.
63. DU CiUb.T. J. |. lispllciition dit Unir de ht Cíenhe, 1732, I, p. 3H2. <iRt )l
l'l íUYSEN, II. Ibid. Ih iC u e t fol amigo do Antoine Amauld.
64. MAR'I T'i T'.T, < Vítor o 11/01111 / 'hui l,t foi de tottfoiirs: irlecturt dn ordo l'a
lis: <’.crl. 197/. p, |9, |, ......iiabdeiiilo a partii <le conferências dada* 0111
N01ic I )anie de l'arU,

I7H
lal ocorrida sobre .1 tena 1 <> >«nl m che .1 ordem de mover-se e
ile brllluir de manelr.i .1 ,1leí, 11 .1 lena au n um frió e um calor ape­
nas suportáveis, de tra/.ei do norte o inverno decrépito, de trazer
do sul o calor solsticial do verán,““ Anjos ensinam “às estrelas fi­
xas corno derramar sua influência maligna” e aos ventos quando
deverão “perturbar o mar, o ar e o litoral”.6567 Adão desesperado
queria morrer. Ele se lamenta dizendo: “De mim, o que pode sair
<1ue.não seja corrompido?... [Eul unicamente sou... a fonte e a ori­
gem de toda corrupção”.08
A historiografia das mentalidades deve evidentemente es-
forçar-se para compreender com o uma civilização pode tomar
para si a explicação - sobretudo agostiniana - que Milton, com e
após tantos outros, lembra no Paraíso perdido. Bm primeiro lu­
gar, quase ninguém sabia na Europa dos séculos 15-17 que na Bí­
blia adão é muito mais um nome, coletivo do que um nome pró­
prio. Não se levava em conta o conselho de Richard Simón:
“Como então a maioria das palavra são equívocas, principalmen­
te na língua hebraica, é necessário saber todas as suas diferentes
significações; depois aplicaremos- aquele que convém melhor à
matéria de que se trata”.69 Em hebraico, a mesma raiz exprime
normalmente o todo (o homem) e a parte (Adão). Daí as ambi-
gü idades. A Bíblia de Jerusalém traduz Gênesis 4,1: “O homem
conheceu Eva, sua mulher”, e Gênesis 4,25: “Adão conheceu sua
mulher”. De fato, nos textos bíblicos, adão é empregado 539 ve­
zes no sentido coletivo de “homem” e mais precisamente de “ter­
roso” e menos.de uma dezena de vezes com o nome próprio; “Je ­
sus, por sua vez, jamais fala de Adão nem cio pecado de Adão”.70
A atribuição ao primeiro homem de um pecado de dimen­
são cósmica foi facilitada pela idéia unánimemente aceita de que
a história humana se desdobrava dentro de uma cronologia cur­
ta (de seis ou sete mil anos) que se aproximava de seu termo.
Não se tinha a menor idéia da espessura dos arquivos geológicos

65. MILTON, Le Paradis perdu¡ livro X, versos 272-273: trad. P. Messiacn,


Paris, Aubier, 1955; II, p. 194-195.
66. Ibid., X, versos 651-656; II, p. 212-213.
67.1bid., X, versos 661-666; II, p. 214-215-
68. Ibid., X, versos 824-833; II, p. 220-223.
69. SIMON, R. H istoire critique du vieux Testament, Amsterdam, 1685, p. 376.
70. REY-MERMET, Th. Croire, I, p. 156. Agradeço a M. Jean Dcloífrc pela
nota que me enviou sobre os dois sentidos da palavra “Adam”.

471)
%

e paleontológicos cia ierra e da humanidade. Nao se suspeitava


o que é unía evidência para nos c|iic* "mals de 99% da hlsloila
do género humano pertence á pré-história". 1
Deve-se, porém, assinalar que,Santo Irineu leve a Inlulçflti,
não de uma longa maturação do universo para ele l.tmhcm ••
mundo só tinha a idade de alguns milênios mas do val............
trutivo do tempo. Adão e Eva eram como crianças: "Deus pndt
ria... dar desde o com eço a perfeição ao homem, mas o la un» IH
era incapaz de recebé-la, porque ele era apenas urna t rlaia i pt
quena ”.~J Nunia concepção com o essa, o primeiro pecad........
poderia revestir o caráter de enormidade que c sen fon, osa ilien
te quando se representa Adão e Eva como adultos radiantes, \» i
dadeiros deuses sobre a terra. “Adão, escreve Irineu, mellón a
desobediência por inadvertência e não por malícia" I*..........
Bispo de Lyon, “a historia da humanidade não é a historia de um i
penosa escalada depois de urna queda vertical; mas a malí hit
providencial para um porvir pleno de promessas". 1 Daí <> atual
retorno ,à çloutrina irenista de todos aqueles que procuram enil
ciliar ciência evolucionista e revelação cristã.7S Mas, por u m lado,
a mensagem de Irineu foi expulsa pelo pessimismo agoslInldUM
e, por outro lado, a revolução mental que fez progressiva meitli
abandonar a cronologia curta da história .humana só g j n l i o u t« i
reno lentamente. Como prova, a hostilidade geral que .1 UmM'lH
dos pré-adamitas encontrou no século 17. Seu autor, l.saai di Ia
Peyrère (1594-1676), era huguenote. Persuadido de que as naritl
tivas bíblicas estão em contradição com o que se sabe da In tu
ria dos povos antigos ckvOriente e da América, l.a Peyren pi
pôs uma hipótese audaciosa: Adão não é o primeiro .....................
apenas o ancestral do povo eleito; a Bíblia não revela .1 lil il>til 1
da humanidade inteira, mas apenas a dos judeus; antes de AtliUl

71. REIK, Th. M ythe et culpabilité, p. 144.


72. SAINT IRÉNÉE, Advcrsus baem es, IV, 38, 1; cd. c erad. A. Uoussism, l'i
ris, Cerf, 1965, II, p. 946-947. Citado também cm RON D l'T, I I / . iVilu'
origuyel, p. 52.
73. Ibid., IV, 40, 3: cd. A. Rousseau, II, p. 981.
74. RON D ET, H. l.e Péchê origin ei p. 49.
75. O grande estudo mais recente sobre Santo Irineu i o de I.ASSIAT, I I i Wto
úon, liberté, in<omtptibi/tté, Inteetion du thhne ítntbropploghjue de Li /emir iindl
tiott mnutine diins Den n r d'/rénée ¡le lyon, (rcproduyfto das teses de l,lllt> III,
1972, 2 v, Aqui sobretudo II, p, 4 8 / 5,38),

dHO
viveram os pré-adamllUN A oliia, l'tvdihmilUH’ .. (1655), agraciou
aos libertinos mas suscitou as coleras conjuntas dos católicos e
do*, protestantes. Sen autor lól preso na Bélgica por ordem do
Anchispo de Malines e o livro condenado pelo Parlamento de
l'ails. l.a Peyrére retratou-se e abjurou o Protestantismo.'
No universa mental da Europa pré-industrial, outro ele­
mento importante, solidario ao precedente, é a crença geral no
paraíso terrestre. Pascal, é certo, recomendava que se falasse dele
i om prudencia: “Nós nao concebemos, escreve ele, nem o esta-
•li i glorioso de Adão, nem a natureza de seu pecado, nem a trans­
missão que se fez em nós. São coisas que se passaram no estado
de uma natureza totalmente diferente da nossa e que ultrapassa
i» csUlgio de nossa capacidade presente”.”’ Milton, entretanto,
•i mtemporáneo de Pascal, tinha prazer em evocar “o estado glo-
i li i.si >” de Adão. Tendò ficado cego, ó poeta compensou essa en -
I» rmidade dando uma descrição do paraíso terrestre tão colorida
• I.lo Inebriante (livro IV) qüe geralmente é vista como o auge de
s eu poema. Ele mostra Satã chegando à beira do Éden. Desco­
brindo uma paisagem maravilhosa, os animais fraternais entre si,
i ' homem e a mulher belos, puros e nus, ele quase lamenta seu
|lis ado. Piores e frutos formam “um esmalte mesclado de ricas
11ires"; brisas suaves e perfumadas espalham uma alegria prima-
verll; de uma fonte de safira correm riachos que rolam “sobre pé-
11ilas brilhantes e areias de ouro”. A serpente avista Adão e Eva,
"d mais belo casal que jamais se uniu nos abraços do amor”.
Mais adiante “o leão brincando empina e nas suas patas acalenta
o i ervo; ursos, tigres, linces, leopardos dão cambalhotas diante
deles V Para além dos séculos, a descrição idílica de Milton jun­
ta se as dissertações prolixas de Santo Agostinho sobre o Jardim
do Éden.7'’7689

76. RONDET, H. Le Péché originei, P> 259-261. D .T.C., VIII, col. 261S
2616, “La Peyrère”; XII, col. 2793-2796, “Préadamites”. HAAG, La Fratue
protestante, VI, p. 305-307, “La Peyrère”. PINTARE), R. Le libertinage érudit,
Paris, 1943, p. 362.
77. PASCAL, Pensées, n. 560 da ed. L. Brunschvicg.
78. MILTON, L e Paradisperdu, livro IV, versos 130-358, trad. P. Messiaen,
p. 200-201.
79. Sobre o estado glorioso de Adão antes da queda segundo SANTO AGOS­
TINHO; cf. notadamente D e Genesi a d litteram, VI, XXIV-XXVII, 35-38
(Patr. Lat., XXXIV, col 353-355), IX, X-XI, 18-19 {Patr. Lat.,. \bid., col. 399-
400), XI, 1 ,3 {Patr. Lat., Ibid., col. 430); D eN uptiis et concupiscentia, II, XIII,

481
A erenvii num estado *’<|ua.st* feérico"”" da humanidade n.r<
con lo permanecen por longo lempo mullo viva na nos,su civiliza
vão ocidental. lintretanto, os primeiros escritores aislaos ilnliam
rejeitado em bloco a época de ouro e as libas encamadas da pi n
sia greco-romana, Mas desde o século 2", com Sao Justino, esseii
mitos pagaos se introduzem no comentário do Génesis.’" bles san
Helos como uma versão pagà do bden cristão. No Orlenle, o llr
xam m rn de São Basilio (| 379) e as homílias anónimas Inspirada ,
por ele contribuem amplamenle para propagar a Imagem populai
de um paraíso terrestre situado sobre urna alta montanha, com um
Clima sempre temperado, repleto de llores e ele frutos, com ríos
de mel e de leite e animais sempre mansos, hm (al amblcult ,
Adão e bva viviam como anjos: belos, imortais e sem paixão, São
João Damaseeno (| 749) completa esse quadro idílico precisando
que o paraíso terrestre estava situado a leste da terra, sobre uma
montanha mais elevada que todas as outras e vivia mergulhado
numa luz, maravilhosa. Todos esses detalhes encontram-.se* ainda
melhorados no Conicntcirip cio paraíso, redigido em siríaco no sO
t ulo U" por Moses Bar Gephas, Bispo de Mossoul. Sua obra e uma
•ilnlesi de iodos os escritos anteriores consagrados ao bden,
Na t tistandade latina, os grandes divulgadores da Imagem
pai o li ,i,»< ,i du lilen são Santo Ambrosio e Santo Agostinho, I l« .
Ini* giam a época de ouro a narrativa da Bíblia e Imaginam uma
naliin a que responde a todas as necessidades de um prlmelio
• • il mgi Ileo e Imortal, vivendo sem cuidados num. constante
l o i a l.o e i mu I >eu.v h nessa trilha que se situam os poetas e os
t tu |i li ip n 11.*11.i*• dn ( )clck*nte cristão que, do século 5° a<> 7", evo-
■ un 'i pa taino terrestre: l'rudéncio, Santo Hilario de Arles, Avilo,
entre o?, primeiros; Santo Isidoro de Sevilha e Beda, o Venerável,
entre os segundos, Isidoro de Sevilha localiza na Ásia o "Jardim
das delicias" agora proibido e o descreve cercado de chamas cor

2(>; XIV, 29; (Pao: Lat., XUV, col. 451,45 3 ,4 5 8 ,4 6 7 -4 0 9 ); De Peccatomn na


r/tis et tvmlsslone, I; XVI, 21 (Patr. Lat., XUV, col. 120-121); ContraJn/ianinn,
IV, V. 35 (Patr Lat, XI.IV, col. 756-757); 0/mlmperfcctum, V, 16-17 (Pan. lat.
XIV, col. 1.449-1.451); De Percato originali. XXXV, 40 (Pan: Lat., XI,IV, col,
405); De Chítate Del, XIV, XXI1I-XX1V, I (Pan: Lat, XI,I. col. 430 -i 12).
80. Fórmula do H A. M, Buharle no verbere “I'ócluf originei” da Lniyiíopae
illa Unlversalls, XII, p, 667.
81. Pura toda esta exposí^So ¡sobre o paraíso terrestre utili/.ci nítido I )l IN( AN.
|. I', Milton i liarthly Patudlte, sobrcttulo p. 25-IOO,
Linios como espuelas e que Mihcm | n i i .i u ven, Pwxi liccla, o Ve-
lUM'ílvel, os quatro ríos «lo puiaiso lenvslie mencionados pelo
Génesis passam sob a tena e tlepols ivsaurgem formando o Ti-
m't*. o Eufrates, o Ganges e o Nilo, Doravante é uma opinião ge­
neralizada que o paraíso terrestre tornou-se-inacessível, mas que
aínda existe. Joinville, na sua narrativa da Vil Cruzada, não põe
em dúvida a origem do Nilo:

('limpie agora, escreve ele, falar do rio que atravessa o Egito e


vem do paraíso terrestre... No local em que o Nilo penetra no
Egito, as pessoas acostumadas a essa tarefa lançam à noite suas
redes abertas no rio; e quando a manhã chega, eles encontram
nela especiarías preciosas trazidas para o país, gengibre, ruibar­
bo, aloés e canela. Dizem que essas especiarias vêm do paraíso
terrestre, caindo sob o vento das' árvores do paraíso, como a ma­
deira seca que o vento derruba na floresta.8-

Santo Tomás de Aquino, levando em conta sua grande


autoridade (a partir do séculov16), contribuiu muito para confir­
mar a imagem “histórica” e “realista” do paraíso terrestre. Ele
também acreditava que este ainda existia, em algum lugar ao
longe. E escrevia:

... O que é dito na Escritura sobre o paraíso [terrestre] é apre­


sentado à maneira de uma narrativa histórica. Ora, em todas as
coisas que a Escritura relata dessa maneira, deve-se tomar como
fundamento a autenticidade da história e é sobre ela que se de­
vem construir as interpretações espirituais. O paraíso é, então,
' como diz Isidoro, “um lugar situado no Oriente cujo nome tradu­
zido do grego em latim é hortiis [jardim]”. É com toda a razão que
o situam no Oriente. Devemos crer, com efeito, que ele está Co­
locado no lugar mais nobre da terra. Ora, uma vez que o Oriente
é a direita do céu... e que a direita é mais nobre que a esquerda,
era conveniente que o paraíso .terrestre fosse instituído por Deus
no Oriente.83
{

82. JOINVILLE, H istoire de Saint Louis, em H istoriem et chroniqueurs du M ô-


yen Age, Paris, Pléiade, 1952, p. 247-248; citado em LE GOFF, J. L a C ivili-
sation de l ’O ccident m édiéval, p. 177.
83. SAINT THOMAS D’AQUIN, Somme théologique, Ia, qu. 102, art. 1, res­
posta (ed. du Cerf, 11, p. 271).

m
Sanio l'uniílfi i s|»ll« ,i ainda; "( orno ill/ Sanio Agostinho, deve
sc* pensai t|iii* lugai e.nirt multo afastado elas Investigações
humanas,.., que os rios i li is quais m * dl/ i |iio as |<mies sa<><onllí­
etelas se perderán) cm alguma paru* nas (erras e tornaram a l>io
tar em outros lugares Codi elello, (|uem ignora que esse e um
fenômeno que costuma ocorrer com certas águas?""1

Santo Tomás pergunta ern seguida se o paraíso terrestre se eu


contra sob o equador. Sua conclusão prudente é esla: "Se|,i como
fqr, deve-se pensar que o paraíso foi colocado num lugar milito
temperado, seja sob o equador, seja em outra parte","''

Certos mapas medievais colocavam o paraíso tenvsliv im


pico de uma montanha do Azerbaidjão. Alguns geógrafos (I) ga
rantiam que eram necessários 40 dias para atravessa Io. Para ou
tros, ele só tinha algumas léguas cie diâmetro. Na soa uanalha
fantasista de uma viagem que teria realizado na Ásia, John Man
devielle (f 1372) não deixa de consagrar um capítulo ao paraíso
terrestre. É bem verdade que ele próprio confessa não ter leio uh
lá. Porque esse lugar de felicidade tornou-se inacessível, Mas <
exatamente aí que o Ganges, o Nilo, o Tigre e o Mufrates têm stuis
verdadeiras nascentes.80A'obra de Mandeville conheceu uma cs
traordinária popularidade no fim da Idade Média. Dela nos iva
tam 300 manuscritos em dez línguas. A lenda do reino de l’u .u
João, que se espalhou na Europa a partir do século 12, lalllh «ni
os ensaios de localização do paraíso terrestre, que foi as ve/es *il
tuado além do país, já em si mesirio maravilhoso, desse pledt m i
e rico soberano.
Entretanto, ressurgiam os mitos antigos da época de mim
e do jardim das Hespérides. O Rom ance da Rosa atualiza os nilM
suas primeira e segunda partes. Daí uma nova contaminação t mu
o paraíso terrestre cristão, sensível principalmente no eanlu
XXVIII do Purgatório ,de Dante quando o poeta escreve:

Aqueles qíie por antigas rimas cantaram


A época cie ouro e sua hela fortuna8456

84. Ibici.
85. íbicL urt. 2, |>. 2HI.
86. Maiificri/lò ihivct , ni, l! I l . m u l m v., loiitlics, ll)|*) l.p, 100
204.

IH-I
Sonharam esse lugar i i lv. t mi Parnaso,
Ali existiu a inocente ial/ humana;
Ali a eterna primavera r todo fruto:
Ali o néctar do qunl todos lalam."'

Outra associação significativa, aquela que foi apresentada


quando da entrada triunfal de Henrique VI em Londres depois de
Mia coroação: figurou-se uní paraíso terrestre de onde partiam os
quatro rios assinalados no Gênesis. Mas quando eles reapareciam
após uma passagem subterrânea, suas águas tinham-se transfor­
mado em vinho. Elias e Enoque apareciam ao lado de Baço e de­
sejavam longa prosperidade ao soberano.88O novo interesse pela
época de ouro explica, nos seus prolongamentos ulteriores, tan­
to o jardim de Armida na Jerusalém libertada de Tasso, como a
Acádia do Pastor fid o de Guarini (1580-1583).
Além disso, por trás da maravilhosa imagem que faziam do
( íriente, na origem cie sua busca por mercadorias preciosas além
ilos mares e nas tentativas para descobrir o Eldorado, será que os
europeus não tinham o desejo mais ou menos consciente de en­
contrai' o paraíso terrestre, ou pelo. menos de recolher os poucos
fragmentos que ele deixava escapar?89As grandes viagens de des­
coberta foram inseparáveis do sonho de um Éden oculto e de
uma geografia imaginária, situando em algum lugar ao longe paí-
n c s que o pecado original não teria contaminado e onde a épo­

ca de ouro teria continuado. Durante certo (empo - essencial-


mente o século 16 - , a realidade fortaleceu essas ilusões.
Foi dito num capítulo anterior:90a crença na época de ouro
jamais foi mais viva do que no tempo cia Renascença. Ela expri­
miu se nas Utopias, nas descrições por vezes mais míticas do que
lieis de uma América doce e luxuriante e de seus felizes habitan­
tes, nas evocações da Fonte cia Juventude e dos Países de Coca
nha e na inesgotável iconografia consagrada ao primeiro casal
desabrochando sobre uma terra bendita. Os nomes cie Bosch, de

87c D A N T E , Purgátoire, cap. X X V III, v. 1 39-144 (trad. Pézard, Pléiadc,


p. 1 .3 2 1 -1 .3 2 2 ):
88. I.YDGATE, J. The Minor Poems, 2 a parte, ed. H. N. MacCracken (Early
English Text Society, orig. series), Londres, 1934, C X C II, p. 6 4 1 -6 4 3 .
89. Cf. PEN R O SE , B. Travei and Discoveiy in the Renaissance, 1 4 2 0-1620,
Harvard Univ. Press, 1952, p. 10-12.
90. Cf. anteriormente p. 141 -143.
Dílrer, de Mli hclangelo, dos hrueghel so Silo citados aquí i omu
responsáveis mui lores de uma prolifera produção artística allmcn
t.id.i por esii‘ son lio lena/: uma humanidade sem peí ado num
jardim das I lespérldes,
línlro o fim do século IS e a metade do 17, quem nao es
ereve de uma maneira ou de outra sobre o paraíso terrestre:* < mu
eleito, e um assunto abordado por católicos, anglicanos, lutria
nos e calvinistas e, divididos entre as confissões rivais, comenta
rlstas da bíblia, teólogos, historiadores, geógrafos, vla|antes, mu
ralistas, políticos, místicos, poetas, etc, l)e maneira reveladora, a
História do m undo (1616) de Walter Kalelgh começa por uma
descrição do homem nos.primeiros tempos que seguiram a sua
i tias,:to e por um estudo sobre a localízaselo do paraíso, ( )ta, Ira
Ia se de uma obra que, embora inacabada, foi muito pnpulat na
Inglaterra e influenciou Milton. Os numerosos comentarlo’, do
( ieuesis escritos na ocasião da Reforma só puderam reloi\ui i
crença coletiva numa situação Idílica do primeiro casal ante’, do
pecado, Para as Ilhas britânicas, entre 1527 e 1633, foram assina
lados VS comentarlos do Gênesis em latim e 6 em Inglês:'" na
maioria das ve/cs tratava se de pesados in folios, Além disso, a
lo nau «sica divulga as obras de Santo Agostinho e de Santo Am
bn *s|i >, icata relações com São basílio e São João I)am ascem », tia
du/ do sliíuco pata o latim (em 1569) o Comentário do/w iuho,
■I* Mn ,i s M ii ( <q>|ias, reeditado três vezes nq século I A épo
• i ptoilu/ ate obras especial menté consagradas ao paraíso ierres
tu o s'M/n/*\7,s' ¡utrudlsl ( 1593) de John Hopkinson, um oriental!*
ia que localiza o filen na Armênia; o Treatise o f Parad Isc ( ln| 'i
do l'adie Anglic ano John Salked que descreve a situacao e a na
lute/a do filen e até a beleza da serpente tentadora; a Historia
saern ¡xtradlsi terreslris do jesuíta siciliano Agostillo Inveges
( l()5|), a obra mals completa no género que discute sobre a I"
eallzaçâo do jardim maravilhoso, sobre suas característic as, subte
as ocu pavões de Adão e Uva, elc.‘M
()pondo-se a dura realidade européia da época, a creí Kit
reforçada nos aspectos Idílicos do paraíso terrestre so podía da i

4)I. WII .1.1AMS, A. Ib e Comtnon Expositor: on occoutlt oj thc ( ownirnt.ina oo


Cicnesis, 1527*1633, <lliapcl 1lili, 1948, p. 3 l‘). DUNC 1AN, J. f, Ml!m\ ,
p, 9 1.
92. DUNCANJ. Lt. Milton s.,,, p. SO.
93. Ibltl., p. 95*96,
um aumento de eiedllílllil.ulf ,i iiuiuilva d.i queda. Convém ain­
da assinalar o vínc ulo que >m ám enle existiu entre o pessimismo
religioso da modernidade ihin<ente* c a nova fortuna da época de
ouro cristianizada., Um refpiy>u o outro. De maneira geral (e até
mesmo fora do período da Renascença), quanto mais se denegriu
o primeiro pecado, mais se embelezou a situação que o havia
precedido, e vice-versa. Como prova de convicção - e como caso
limite eis como a visionaria Antoinette Bourignon (í6 l6 -l6 8 0 ),
favorecida aos 19 anos por uma aparição de Santo Agostinho,
Imaginava o corpo bissexuado de Adão antes da fatal prevarica-
çao.'” I !m horror ambíguo da sexualidade explica evidentemente
.1 surpreendente anatomia atribuída ao primeiro homem por uma
mulher que não se encontrava à vontade primeiro no Catolicis­
mo, depois no Protestantismo:

|Seu corpo] era mais puro e mais transparente que o cristal,


todo leve«e flutuante, por assim dizer: no qual e através do qual
viam-se veias e rios de luz a qual penetrava' de dentro para fora
por todos os seus poros, veias onde corriam licorês de toda es­
pécie e de todas as cores, muito vivas e muito diáfanas, não so­
mente de água, de leite, mas de fogo, de ar e outros. Seus mo­
vimentos produziam harmonias admiráveis: tudo lhe obedecia;
nada lhe resistia e nem podia prejudicá-lo. Ele era de estatura
mais alta que os homens de hoje; de cabelos curtos, aneladós,
tendendo para o preto; o lábio superior coberto de fino pelo: e,
no lugar das partes bestiais que não se nomeia, ele era feito da
maneira corno serão restabelecidos nossos corpos na vida eter­
na, e que eu não sei se devo dizer. Ele tinha nessa região a es­
trutura de um nariz da mesma forma que o do rosto; e havia a li
uma fonte de odores e de perfumes admiráveis: dali deviam tam­
bém sair .todos os homens dos quais ele tinha em si todos os
princípios; porque tinha em seu ventre um vaso onde nasciam
pequenos ovos e outro vaso cheio de licor que tornava esses
ovos fecundos. E quando o homem se inflamava no amor de seu
Deus, o desejo de que houvesse outras criaturas além dele para
louvar, para amar e para adorar essa grande majestade fazia es­
palhar pelo fogo do amor de Deus aquele licor sobre um ou vá­
rios daqueles ovos com delícias inconcebíveis, e esse ovo torna-94

94. Sobre Antoinette Bourignon cf. K O LA K O W SK I, L. Chrétiens sans Eglise.


Paris: Gallimard, 1969. p. 6 4 0 -7 1 8 .

'IH7
do k'i mulo .‘iillii algum lriii|>u 11| I •<>|s por ,i<|UI*I« * ( Iill.ll I<I| .1 (lo
lloilK'ln cm loilii.i de ovo, c poliro rlcpol.s vlllllíl eclndll rni lio
1110111 | >1*1 U 'lli

lis.sii descrição surpreendente ilustra de nutnolr.i <.iti« al 11


ral, mas reveladora, o sentimento dos Ago,miníanos, principal
mente ’Baíus e Jansenius. Se eles exageravam ao extremo , im
sequências desagradáveis do pecado original, e porc|ue Imagina
vam de maneira extraordinariamente otimista o estado da i lialll
ra racionável saída das maos ele Deus. làn linguagem tnniN.i,
pode-se dizer que eles naturalizavam o sobrenatural. Im I')
André Chamson clava com o título a um de seus artigo-. "I'enlt 11
s e o pecado original”.9 96 Seria mais justo escrever: "IVrdeil ni i
5
paraíso terrestre”. Hsse sonho era outrpra artigo de It \nli
questão: “Onde Deus colocou o hom em .c|iie ele erlow?", toiliM
os catecismos respondiam a urna só voz: “No paraíso tenesin
lugar de delicias”.97 Ora, as imagens radiosas de Adão o I \a •n
meio a uma natureza luxuriante e amiga cpie atraíram otilmi'i
tantos artistas, nossos museus modernos e nossos maiuul.-. d( <11
sino as substituíram por eruditas reconstituições dos homem pn’
históricos e do seu meio-ambiente. O homem de Neancleiili.il m <
é apresentado com. l ,60m de altura, uma cabeça volumosa, 1111
crânio achatado, um rosto em forma de focinho, um nariz sallen
te, órbitas grandes e redondas, arcadas superciliares lormundt
dobras, uma mandíbula inferior robusta mas som queixo, un
osso occipital em forma de coque, um corpo maciço plantadi
sobre pernas curtas. Algumas montagens nos restitucm sua vld|
ñas cavernas: seu alimento, seus utensilios, su as ve:alnieiiin>> 1
partir de peles de animais cortadas, etc. O Edén desvaí iei eti »«
com o uma miragem. Adão e Eva desapareceram. Eol snlm lililí
a partir do século 18 que se perderam seus traços. E. por Issi 1 1p 11
o Cristianismo se vê hoje forçado a raciocinar sobre o primi i11
pecado sem situá-lo num lugar idílico e nimia época <lr otm

95. POIRET, R Vte continué* de Mlle liourígnon (cm (Jiuvm de Mlle


em 19 v.), Amstcidam, 1679-1686: atpii. II. p, .115-316. lisie texto luí mmuti
do por BAYI.E. nas notas do vciáctc “Adum" de sai P iriio n m tiir , p, 'ni .|i
cd. de 1820 (t. I).
96. No l.ti Ftftuv dí> I 6 de man,o de 1072.
97. Asxim.no Ih/ncno ( ¡lech in o da dlocqKe de Brtycux, em 1700, p NXIS

-18H
¡ijjjori) milita. )á ha scsseiil.i am»1*, lelilí.irtI de Chardin linha as­
sinalado as dificuldades da lepiesenlav^o tradicional do paraíso
terrestre ao escrever:

Pxiste urna dupla e grave dificuldade para nós em conservar a


antiga representação deypecado'original, e essa dificuldade pode
exprimir-se assim: “Quanto mais nós ressuscitamos científicamen­
te o Passado, tanto m enos-nós encontramos lugar, nem para
Adão, nem para o Paraíso terrestre”.-
O Paraíso terrestre não pode mais ser compreendido, hoje,
como uma reserva privilegiada de alguns hectares. Vemos ago­
ra que tudo se mantém demasiado fisicamente, químicamente,
zoologicamente..,, no Universo, para que a ausência estável de
morte, de dor, de mal (mesmo para uma pequena fração das
coisas) possa ser concebida fora de um estado geral do Mundo
diferente do nosso. O Paraíso terrestre só é compreensível
como uma maneira de ser diferente do Universo (o que é con­
forme ao sentido tradicional do dogma, -que vê no Éden um
"outro mundo’’). Ora, por mais longe que olhemos no passado,
não vemos nada de semelhante a este estado maravilhoso. Nem
o menor vestígio no horizonte, nem a menor cicatriz, indicando
as ruínas de uma época de ouro ou nossa amputação de um
mundo melhor. A perder de vista, para trás, dominado pelo Mal
físico, impregnado de Mal moral (o pecado é manifestamente
"em potência” próxima desde o aparecimento da mais fraca es­
pontaneidade...), o mundo se mostra a nós em estado de peca­
do original.
Na verdade, a impossibilidade de fazer entrar Adão e o Paraí­
so terrestre (imaginados literalmente) nas nossas perspectivas
científicas é tão grande que eu me pergunto se um único ho­
mem, hoje, é capaz de ajustar simultaneamente seu olhar sobre
o Mundo geológico evocado pela ciência, e sobre o Mundo co­
nmínente contado pela História Sagrada. Só é possível conser­
var as duas representações passando alternativamente de uma
para outra. A associação de ambas destoa, soa falso. Unido-as
num mesmo plano, estamos certamente sendo vítimas de um
erro de perspectiva.'^

98. CHARDIN, P. Teilhard de CEuvres, t. X: Comment j e crois. Pari: Senil,


1969. p. 62-63 (texto anterior à Páscoa de 1922).

dHI)
a autoridade de santo agoslinho
contra a culpabilidade atenuada
Nossos anceslmls acrecí liavam no paraíso lerre.sirc I iu
compensação, elc‘s tinham menos do <|iie nos a noçao cie i In uns
líindas atenuantes, ou melhor, de culpabilidade atenuada. <)s ca
suíslas (tilo menosprezados por Pascal) eertamente c onlrlhuliam
para Identifica Ia e difundi la. Inversamente, a concepção agiwll*
nlana do pecado original freou sua formulação e sua expansao
Santo Agostinho, com efeito, afirmou claramente que nos tc uh «o
lomos culpados cm Adao porciuc "nos fomos todos esse homem
unlco”, D a í eletiva nossa miséria: nds nascemos culpados •,
alem disso, a concupiscencia liberada pelo primeiro pecado nos
leva a cometer pecado sobre pecado. Kazao pela qual o auloi
mullí) AgOstlnlano da Imitação, dirigindo-se- a Deus, lamenta »n
nestes lermos:

M i'. s in o q u e d e rra m a sse lá g r im a s t á o a b u n d a n te s <p 1.11tti * im

a g u a s d o m ar. e u a in d a n a o s e r ia d i g n o d e v o s s a s c o n s o l . iço * s
N a d a m e e d e v i d o a n a o s e r a v a r a o o c a s t ig o ; p o r q u e m u i t a 1
v e / e s < g i . n 'e m e n t e e u v o s o fe (ld i, e m e u s p e c a d o s s á o s e m ntl
m e io , H nltlo, i l e p o l s d e u m e s tr ito e x a m e e u m e r e c o n h e ç o lu
d i g n o d a m e iio i c o n s o la ç ã o . . . \
N,to i m l i o nenhum a l e m b r a n ç a d e ter le it o a l g u m h e m ; ao
m i m a r l o , s e m p r e fu l p r o p e n s o a o v í c i o e le n t o a m e e o n l g l l
i » cjiie m e r e c í p o r m e u s p e c a d o s a n á o s e r o In t e r n o e o í o g u
e ie r m ti'1”"

hulero níto se sentiu menos culpado, halando a Deus, » h


lambem lhe diz:

V c \ e t á o v e r d a d e ir o q u e e u s o u p e c a d o r d ia n t e d e li, q m sito
p e ca d o s tam bém m in h a n a t u re z a , m e u s e r p r liu Ip la iiu , m in h a
concepção, com m a io r raxao m in h a s p a la v r a s , m in h a s o h iits ,
m e u s p e n s a m e n t o s e a s e q ü é n d a d e m in h a v id a , " "

l)0, ( '¡li1i/r tHeu, XIII, cap. M; cd. Combfcs, t. .)*>, p. Z.HS.


100. Hítuimlon.,,, l ivro III, cap. I II, Senil, I%1, p. IH,VIH<1,
101. I.UTHKK, Úitww, I, p. *>.! (/.cs í<?/>t fif Li pénitrniv),

•11)0
O homem pode ceiltimenle esperar o perdão divino, mas
ele não lem desculpa, Apoiando se em Sao Bernardo, Bucer cle-
i Iara: "Se considerarmos (oda a nossa justiça.(nossas boas obras)
a luz da verdade, ela aparece com o a roupa manchada ele urna
mulher incomodada”.10' No universo agostiniano, a moral da in­
tenção, à qual Abelardo já tinha dado ênfase, passou em silêncio,
lambem Pascal pode escrever: “Nossos pecados... sâo horrí­
veis”.10'Jesus confirma dizendo: “Se conhecesses teus pecaclos, tu
p e r d e r í a s coragem”.10
4 Linguagem jansenista, dirão alguns? Não
só. Num sermão redigido por São Vicente de Paulo ou seu secre­
tariado, descobre-se esta adveitêhçia terrível: “O cristão não pode
apoiar-se em nenhuma desculpa^quandó viola os mandamentos
de seu Deus”.104
Kntre os pecados sem desculpa figura até mesmo a igno­
rância. Os pregadores do século 17 são inesgotáveis sobre “a ig­
norância criminosa”. É bqm verdade 'que sua insistência sobre
esse tema é freqüentemente um urgente #convite aos fiéis para
•|iie sigam os sermões de uma missão. Numa cias homílias que os
la zaristas levavam com eles imagina-se este nkle diálogo entre a
alma condenada e o Cristo do julgamento:

Ignorante, eu não conhecia a malícia; por que então, ó meu


Deus, não me perdoareis como a São Paulo?
- Mas tua ignorância é criminosa; não tinhas falta de luzes, elas
te eram suficientes, mas não quiseste ser instruída por tantos pre­
gadores: N olui in telltgere (SI 35,4). Trata-se cie uma ignorância
desejada e, portanto, punível.100

L, portanto, a negligência culpada que é. fustigada aqui.


Mas a condenação da ignorância foi mais longe. Santo Agostinho
ensina categoricamente que a ignorância, filha do pecado origi­
nal com o a concupiscência, também é pecado. É por isso que
Pascal lança ao jesuíta de sua Quarta Provincial-. “Meu pai, ces­
sai de resistir ao príncipe dos teólogos que decide assim esse 1023456

102. BUCER, Résum ésom m aire..., p. 45.


103. PASCAL, Pensées, n. 506 da ed. Brunschvicg.
104. Pensées (“Le Mystère de Jesus”), n. 553.
105. JEANMAIRE, Sermons..., I, p. 389.
106. Ibid., I, p. 214.

491
ponto, no livro I de n u í i .n 'Rotm e tu i to n o s cap, XV: " A<pu-U •* i pi*
pecam por Ignorância so fazem sua apio porque querem I.i ■« i ,
embora pequem sem que queiram pecar",1"" I cerlo que I’,cu â •
Santo Agostinho admitem uma hie*rar<pila na culpabilidade da Ig
norancia, mas esta nem por isso c menos cond enável, pi>rque,» i
creve o Bispo de I lipona:

A ignqrância não desculpa um único’homem a ponfo di ini|» d|


lo de queimar nO fogo eterno, mesmo se a ra/ao tle sua Igi........... •
é que ele nunca, ouviu falar daquiló que era preciso i rcii man e
possível que ele seja entregue a chamas mais suaves."1''

São Vicente de Paulo interrogou-se, lis vezes, sobre a val!


dade.de semelhante rigorismo. Numa conferencia a setls mhslo
nários de 1656 “sobre o dever de catequizar os p o b resel< I» ni
bra “o que clizém Santo Agostinho, Santo Tomas e Santo AtaiHÍ
sio: que aqueles que não souberem explícitamente os uiPiinlim
da Santíssima Trindade’e da Encarnação não serão salvos" "" I It
acrescenta, porém: “Eu sei bem que há outros doutores qm n •■
são tão rigorosos e que afirmam o contrário, porc|Ue, dizem * It t,
é muito duro ver que um pobre homem, por exemplo, <|iic \heii
bem, seja condenado por não ter encontrado alguém que lia •n
sínasse esses mistérios”. Na “duvida”, conclui então Sao VltvMUü,
“será sempre uma grande caridade nossa se Instruirmos cssilfi pi.l
bres pessoas, quaisquer que elas sejam”."1 Nessa Instrução rio
deixa então uma porta aberta para a salvação dos IgnoranU'Ki
Mas, ele torna a fechá-la numa conferência de dois anos d* |mh.

Vós sabjeis, diz ele a seus missionários, cia Ignorância d ........ it


pobre, que é quase incrível, e sabeis também que n.lo h.i m nllll

107. Retractationum lib ri duo, livro I, cap. XV, 3: Ruir. Lu ., XXXII, ml titl'1
Cf. também Patr. Lat., XLIV: Contra Julianum , livro IV, i.ip. 0, n ('• ml
850-851. Exposição importante sobçe a culpabilidade tl.i"ip.iu>iáim i>
em SELLIER, Ph. Pascal et saint Augustin. Paris: A. Colín, 19/0. p '<■ . *i, n
108. PASCAL. Provinciales. Paris: Garnicr, Pléiadc, 1950. p. 4/1 I '
109. SAINT AUGUSTIN, D e G ratia et libero arbitrio, cap, l, Si l\in Lu
XLIV, col. 885. SELLIER, Ph. Pascal..., p. 267.
1 lO.tDODIN, A. Entretlensspiritucls (dc São Viccnte-de Paulo), au\ ui/ulfH
m ires. Paris: Scuil, 1960. p. 347.
111. Ibid.

41Kl
m:i salvação para *i*. |h-mmimm i |tir igmiraní .is verdades cristãs noces-
síirkis, a sabor, segundo«*•< iciitlmrnlos tio Santo Agostinho, do San­
to Tomás o outros que estimam que uma pessoa que náo sabe o
que é o Pai, nem. o Pilho, nem o Espírito Santo, nem a Encarnação,
nem os outros misterios, nao pode salvar-se.

Sobre essa questão, portanto, São Vicente compartilhava


i* sentimento da maioria dos homens da Igreja de sua época,
muitas e muitas vezes expresso. Em 1571, Santo Alexandre Sau-
II declarava nos estatutos si nocla is de' Aleda: “Ninguém pode
salvar-se sem crer nas coisas necessárias à salvação... a saber: o
l'dter Noster, a A ve M aria, o Credo, os dez mandamentos, os
sete sacramentos, etc.”.11213 Um pequeno livro que foi muito utili­
zado, A C iência sagrada do catecismo ( I a ed. por volta de 1675)
cio arcediago de Evreux, Henri-Marie Boudon, continha, ele
lambem, esta advertência categórica: “... Sem a fé distinta1das
vcidades fundamentais de nossa Santa Igreja, é impossível agra­
dar a Deus e ser salvo, sejam quais forem as cerimônias exte­
riores que se observe”.11415
A culpabilização. da ignorância religiosa por parte dos
Agostinianos - e eles eram numerosos - esclarece então um fato
que a ultrapassa e a engloba: a assimilação e a difusão relativa­
mente fracas, a nosso ver pelo menos, da noção de circunstân-
i Ias atenuantes. Encontraríamos outras confirmações no exercício
da justiça de outrora - por exemplo, a execução de animais res­
ponsáveis por uma morte humana. Em todo caso, faltava a mui­
tos a distinção entre pecado e culpabilidade atualmente esclareci­
da por Jean Nabert113e Paul Ricoeur. Este último escreve, com efei­
to: "... A condição pecadora não é redutível a uma noção de cul­
pabilidade individual, tal como o espírito jurídico greco-romano a
desenvolveu para dar uma base de justiça ã administração da pe­
nalidade pelos tribunais”.116 À experiência igualitária do pecado,

112. Ibid., p. 496-497.


113. Citado em VENARD, M. “Le Catéchisme au temps des Réformes” cm
Les Quatre fleuves. Paris: Beauchesne, 1980. n. 11. p. 43.
114. Citado em Ibid., p. 45. BOUDON, H. M. La Science sacrée du catéchis-
me, cd. de 1749, p. 29. Sobre ele ver DHOTEL, J.-CI. Les Origines du caté­
chisme moderne. Paris: Aubier, 1967. Notadamente p. 156-159.
115. NABERT, J. Essai sur le mal, p. 70-72.
116. RICOEUR, P. Le C onflit..., p. 278.
i'<UWldcra ainda Paul Uleivur, o p o e se a experiência >^r.uIuaI dil
culpabilidade: o homem e Intelramenlc e radicalmente pccadoi
(allrmaçáo protestante*), nus mais ou menos culpado,
Será que a distinção entre pecado e culpabilidade n il.i
se operado melhor e mais cedo se a autoridade de Santo Agos
linho tivesse sido menos indiscutível e menos penetrante na
crlstandade latina? Pode-se eletivamente perguntar, Km todo
caso, e impossível com preender a cultura dirigente ocidental,
no Inicio da modernidade, sem restituir a Santo Agostinho todo
0 espaço <|ue ela lhe concedia, A retomada dessa situacao den
tro de um universo mental exige1, todavia, duas observardes, A
primeira é que a mensagem agosliniana jamais se reduziu ,io
agostlnlsmo, se entendermos por esse termo as tomadas de po
slcáo anil pelágicas sobre a graça e a justificação. A obia do
bispo de Nipona é Imensa. Ida tocou em todos os grandes p i o
Memas dogmáticos, morais, ascéticos e místicos, Ida orientou
nossa civilização para o conhecimento e (^aprofundamento do
homem Interior, Antes dos Unsaios de Montaigne, as (\>n/ls,sò(,s
loiam o mais vivo testemunho pessoal da literatura ocidental
\ i 1,/iiJc </e Ih'ii s permanece para todo cristão com o o esfui
■ mais podei oso jamais tentado para definir o sentido naluial
di Ia i*o ia ( ) . grandes temas agostinianos — conhecimento,
auioi e i ibedorla, memoria e presença alimentaram o pen
1 illa nlo europeu durante séculos. Ao longo do tempo, todas
t u uasi i su as cristas se abeberaram em Santo Agostinho como
lima h Hile llicagtrtável.
A segunda observação é que, mesmo se o apogeu da In
Hueñi Ia agosliniana situou-se, em extensão e em profundidad» ,
entre os séculos IS e 18, desde o fim da Antiguidade o prestigio
do bispo de Nipona não cessou de dominar a especulação leo
lógica de expressão latina, línquanto a tradição patrística se pio
longa no Oriente sem solução de continuidade através de ioda
a época bizantina, a destruição do Império romano, ao contia
rlc», deixou Santo Agostinho sem continuador e, por is,s<» mcsiVK •,
aumentou a estatura do maior dos doutores latinos," ’ ele t |iie ha
via dado autonomia á teologia ocidental. Um afresco de l.aiiao
d.i primeira metade do século 6", que é a mais antiga represen
taçáo do Santo, comporta esta legenda significativa: "< )s diversos17

117. í ’l. ti esse icupcito a» cxpo»i<,Ac» c&dfircccáortui ilc MAItIU )l i, 11. I, \ iim
AuftHstht et l'niiyuttlnhfnf. I . c i l . 1'iuis: Senil, tH s s .p , M l) 180.
padres explicaram tllv«'i *i.c. coisas, mas só cie disse tudo em la-
tlm, explicando os j h Is Ic i Iom no trovão de sua grande voz”.1'8
Na crista ndade l.itlna, portanto, Santo Agostinho esteve
constantemente no ápice, Isidoro de Sevilha o coloca acima de
todos os padres gregos e latinos. Sào Cesário de Aries (f 543) e
Sao Gregorio, o Grande (f 604), apresentam-se, com demasiada
modéstia talvez, com o continuadores e adaptadores do Bispo de
I lipona. Beda, o Venerável (f 735), coloca Santo Agostinho ime­
diatamente depois dos apóstolos: M axim us post apastólos eccle-
slam n i instructor .u9 A fórmula é retomada por Gottschalk, o filho
de um conde saxão"convertido por Carlos Magno, que ele tam­
bém vê no grande doutor post apostólos omniunt ecclesiarum
mugiste?*.'10 A obra abundante de Santo Agostinho inspira tanto os
conselheiros religiosos dos carolíngios quanto o humanismo pla­
tonizante das Escola de Chartres no século 12. Numerosas famí­
lias de cônegos regulares no curso da Idade Média colocam sua
vida sob o patronato da Regra atribuída a Santo Agostinho e de
seu ensinamento. São Domingos, por sua vez, dá à sua ordem a
regula sancti Augustini. Até Santo Tomás de Aquino, portanto,
pode-se falar de uma “presença quase obsessiva do agostinis-
ino"1-1 na teologia. Ele é o mestre privilegiado, a autoridade por
excelência, o filósofo inconteste.
A síntese tomista, cristianizando o aristotelismo, modifica
parcialmente essa situação, mas só parcialmente. Porque ela inte­
gra parcelas inteiras de agostinismo. I^ão é por acaso que na épo­
ca dos grandes debates sobre a graça (séculos 16-17) os Tomistas,
no conjunto, serão antimolinistas. De fato, a torrente agostiniana
continua seu caminho preparando a inundação agora próxima. A
Ordem Franciscana pede a Santo Agostinho a inspiração de sua
teologia. Era 1256, Alexandre IV funda os Eremitas de Santo Agos­
tinho que logo em seguida, depois dos carmelitas, se tornam a
quarta Ordem Mendicante. Será a de Putero. E eis que nos sécu­
los 14 e 15, no clima de inquietação crescente que conhecemos,18920

118. Citado em Ibid., p. 154.


119. Patr. Lat., CLXXXII, col. 405: Epist. a d Bernardum abbatem em Opera
S. Bem ardi, (epist. CCXXI, n. 13).
120. Citado em MARROU, H. I. Saint Augustin..., p. 154. GOTTSCHALK,
CEuvres théologiques et grammaticales, ed. DC. Lambot, Louvain, Spicilcgium
sacrum Lovaniense, 1945, p. 327.
121. Expressão de MARROU, H. I. em Ibid., p. 160.

405
se firma a tendência dura c pessimista do agostlnlsmo atraves das
obras de Gregórlo de Rlmlnl (f I3S8), que condena a.s crianças
nao batizadas; tio Arcebispo infles Hradwardinc (j I.Vih), "o d<mi
tor profundo”, autor de uní tratado antipelágico;1" de Wyclll (|
1384), que associa anticlericalismo e negação do livre adMirlo,
Esse crescimento do pessimismo teológico coincidiu com
a reação antiaristotélica, o interesse novo pelo platonismo e n
desejo de retorno às fontes (inclusive as fontes cristas, olí ne|a,
os escritos dos Padres da Igreja) que caracterizaram a llena,si en
ça. Daí uma situação complexa e aparentemente paradoxal: p m
um lado, Santo Agostinho, notaçlamente pelo seu De Ihxlrlihi
christiana, foi um guia e um animador do humanismo, de 1'e-
traréa a Erasmo;1212312
4e, por outro lado, mais do <|uc num a "na pu
meira página” da cultura, ele serviu de porta-estandarte 1 1I1
ponto cie encontro a todos aqueles que denegriam o quadn» tia
condição humana. Assim, para qualquer lado que se oll.........
época da Renascença e depois na era do Classicismo, em outra
se Santo Agostinho. Ele favorece a moda neoplalónica, ensina a
despojar Os templos antigos para enfeitar a Igreja de <ãlsli ><l< .
integrar na.medida do possível a cultura greco-romana ao uni
verso cristão) e, ao mesmo tempo, ele cauciona e encoraja .1 dn
preciaçào do homem pecador. O papel exercido no século lh
pelo autor da Cidcule de D eus demonstra mais uma vez que nao
se eleve forçosamente associar humanismo e otimismo, <) gran
de poeta Luís de Leon, do qual já lemos anteriormenti beli 1
mas passagens inspiradas pelo contemptus m u n d i , pertenciam a
Ordem dos Agostinianos.
Múltiplas indicações restituem o enorme espaço ocupado
por Santo Agostinho a partir da Renascença. Ide e o 1’adn da
Igreja mais citado no Enchiridion de Erasmo,12' O nielhoi espe
cialista francês de Thomas More escreve a respeito deste: ",Ni
fosse preciso nomear um autor latino cujos, registros cU < q»n
são e cie comportamento geral se encontram em More mais que

122. Cf. a esse respeito LEFF, G. Bradwardinr and lhe 1'elayjans, ' .milnlily»
1957; OBERMAN, H. A Archbishop Thòtnas Bradwardinr, a ¡‘ourirriiih < , n
tury Augustinian, Utrecht, 1958.
123. Cf BENE, Ch. Erenme et saint Angustín ou 1'influence de mim .Intfinl/H
sur Ihumanisme d ’Emsme, Gcnèvc: Droz, 1969. NoiaJiUticiiic p, I M» I I '
124. Ibid.
qualquer outro, cu proporia sanio Agostinho".12'1 I', entilo que
nascem e se multiplicam a1. |irlnk*11ar» gratules ediçôev s de con­
tinuo da obra' do Doutor latino:1" a cie Amerbach (Basiléia,
1506), a de Erasmo (Basiléia, I1’roben, 1527-1529), reedições de
1551 a 1584 em Basiléia, Paris, Lyon, Veneza), aquela, notável,
realizada por 64 teólogos de Louvain (Anversf Plantin, 1564-
1577), com seis reedições de 1586 a l 6l 6 em Paris, Genebra e
Colônia). Em 1654-1655, o Oratoriano Biguier publica em Paris
cm dois volumes um supplementum a todas as edições anterio­
res inçluincto principalmente sermões e o Contra Ju lia n n m . En­
fim, em 1679-1700, aparece a grande edição em 18 volumes dos
beneditinos de Saint-Maur.
Alguém se espanta de encontrar Erasmo na lista preceden­
te? E bem verdade que no fundo de si mesmo o humanista de
Roterdã preferia São Jerónimo e Orígenes a Santo Agostinho. Mas
ele admirou o Bispo de I lipona e contribuiu para aumentar mais
ainda a sua estatura na opinião letrada do século 16. No prefacio
da edição de suas obras, ele exclama: “O que é que o mundo
cristão possui de mais brilhante e de mais augusto do que esse
escritor?” Da mesma maneira, São Erancisco cie Sales, que não
compartilhava o pessimismo dos escritos antipelágicos, foi porém
um grande leitor de Santo Agostinho. Nos seus tratados, o Bispo
de Annecy faz 70 citações tiradas de 24 obras dele.12 *127 De modo
5
que os Agostinianos mais categóricos parecem agir conforme o
sentimento geral da época reiterando com novo esforço o elogio
de seu grande inspirador e abeberanclo-se abundantemente em
sua obra. Certam ente que Lutero teve às vezes a impressão de su­
perar o Mestre. Um dia, ele escreveu de maneira significativa ao
mesmo tempo sobre si hiesmo e sobre a sua época: “Agostinho
não alcançou suficientemente o pensamento e o sentido de São
Paulo, embora se tenha aproximâdo dele mais do que os esco­
lásticos. Mas eu puxo Agostinho para nós, por causa da grande
consideração cie que ele goza junto a todos, embora não tenha

125. MARCHADOUR, G. Thomas M ore et la Bible. La p lace des livres saints


duns són apologétique et sa spiritualité. Paris: Vrin, 1969. p. 537.
Í26. Cf. sobre essas edições e sobre tudo o que cónceme à influência do Bispo
de Hipona o verbete “Augustinisme” do D .T.C. I, col. 2.398-2.554.
127. MARCEAU, W. L'Optimisme dans 1’ceuvre de saint François de Sales. Pa­
ris: Lethielleux, 1973. p. 96. •

407
e x p lic a d o .s u fic ie n t e m e n t e .1 j u s t l f l c a v á o p e la l e " . 1'" T o d a v ía , on
teste m u n h o s d e a d m lh R á o de I, u le r o e in r e la ^ á o a o a d v e r sa rlo
d o s p e l á g ic o s s it o n u m e r o s o s :

lile fe licita P le rr e l. o m h a r d " p o r q u e e m t u d a s a s co isa.s e le se


a p o la ñ a s lu / e s d a Ig re ja e a d m a d i ' t ild o n o a s t r o (a o llu sin » r
Ja m a ls as,saz l o u v a d o " ( S a n t o A g o s t i n h o ) . 1"
N ó S e r v o a r b i t r i o , a f r o n t a n d o E r a s m o , e le lh e atira: " A g o s t in h o ,
q u e tu p a s s a s e m s ilê n c io , e stá In t e ira m e n t e c o m i g o " . 1"1
N o s D i s c u r s o s J e m e s a , e le d e c la r a : " T ir a n d o a p e n a s A g o s i i
n h o , a c e g u e i r a d o s p a d r e s é g r a n d e . D e p o i s d a E s c r it u r a , « . le
que se deve le r p o rq u e seu ju lg a m e n t o e v iv o " ." 1 l m u.
" A g o s t i n h o é o m e l h o r in t é r p r e t e d a E s c r it u r a , a e lm a d e l o d o s
o s o u t r o s " . nj

Dentro do mesmo espírito, Cülvino escreve; “Agosllnht. .


sem conte,stavño, superior a todos-os dogmas”.1" Eoram conlad»l
1 I(K) ella», <)cs de Santo Agostinho na obra de Calcino: 1,700 cuín
•■ ’ ido '.ein referencia.IMOs jansenistas naturalmente cobriram dn?
lloren set 1 grande mestre, “o primeiro dos doutores, escreve lansi tt,
o pilmelio dos padres, o primeiro dos escritores eclesiásticos apiri
os doutores 1anAñicos, padre dos padres, doutor dos doutores, su
M i . "ilidii iiivliagavel, angélico, seráfico, excelentíssimo e Incfavi I

I 01 I 111 |M U, Wirkc, cil. Wciniar, 1883s. III, p. 18), Sobre <> «igomiiiiMiui»
lie I 11100 d, iiiHiulamciue MÜLLER, A. V. Luthers Werdegctng bi\ cien lltr
nifi/elnih, (¡othn, 1920. VICNAUX, P. Luther commentalenr de . "Sentem ,.",
0>35, p. o JO. ( 1RISTIANI, L. “Luther ct Saint Angustia”, cn\ Auyin/tnui
mayhter, Paris, 0)54, II, p. 1.029s. BENDISCIOLI, M. “I.’Agosiinhiim .lo
riíonmuori protcstaitti”, em Revue destituyes agustiniennes, I, 1955, p, si v,
(< HJR( .ELLE, P. “Luther interprete des Confessions de sainé Augiistia", un
Reúne d lih to ire trt de phllosophte religiettses, 1959, n. 3, p. 235 251,
129. LUTHER, Werke, ix, p. 29.
130. LUTHER, CEuvres, V, p. 57 (Du Ser/arbitre).
131. LUTHER* Werke, IV, p. 380.
132. Ibid.,.V, p. 664. i
I 13. CALVjNi Opent omn'ta,.. {Corpus Refórm atorim ), BrinwwLk, I Hf. i*. I\,
p. 835.
134, SMITS, l„ Saint Angustia dans l'cetwnt dejean C'a/uin, 2 v., Aancii, los 1
1058. ( :r. também ( -Al)IER, J . " ( !.tlvin ct snint Angustí n" un Angnstbint un\
gister, París, 0)54, II, p. I.039s.

lilH
mente admirável" Indo <i "lis t•i di ,iliniin.i do lomo II de Alt
\\nstlnns e um longo elogio di 'Millo Agostinho: o capítulo XIV
nílrma que sua doutrina da gruç.t e "evangélica, apostólica e de
uma iiTcfragavcl autoridade, l ie escreveu por toda a lgreja, en
quanto os outros escritores se calavam’’;1'0o capítulo XXIII declara
que Santo Agostinho é "único”, lile "ocupa o lugar de todos”, ele
é "superior a todos”;13
1637 o capítulo XXX conclui que seria melhor re­
5
tirar da teologia aquilo que nao vem dele.138 Mas no século 17,
mesmo fora do círculo dos jansenistas de estrita obediência, mui­
tos viram em Santo Agostinho “a águia dos doutores”, o “doutor
dos doutores” - fórmulas de Bossuet - e um "oráculo” infalível, li
também Bossuet quem escrevia (contra Richard Simón): "... O cor­
po da doutrina de Santo Agostinho, sobretudo nas suas últimas
obras (isto é, cóntra os pelágicos), para quem todos os séculos se­
guintes mais.se declararam, está acima cie qualquer ataque... Per­
sistir ainda em encontrar inovações nesses livros, seria acusar toda
0No capítulo Dos
a Igreja católica de se desmentir a si própria”.13914
Ispírítos fortes, La Bruyère, um amigo de Bossuet, iguala Santo
Agostinho a Platão e a Cícero:

Que prazer amar a religião e vê-la acreditada, apoiada, expli­


cada por tão belos gênios e por tão sólidos espíritos! Sobretudo
quando se vem a conhecer que pela extensão de conhecimentos,
pela profundidade e penetração, pelos princípios de pura filoso­
fia, pela sua aplicação e desenvolvimento, pela justeza das con­
clusões, pela dignidade do discurso, pela beleza da moral e dos
sentimentos, não existe nada, por exemplo, que se possa compa­
rar a Santo Agostinho, exceto Platão e Cícero."1’
I
O prestígio de Santo Agostinho na época clássica é tanto
que há um esforço, às vezes sem segundas intenções e às vezes

135. JANSÉNIUS, C. Augustinus (ed. consultada 1643), t. II, cap. XVIII, p. 17.
136. Ibid, p. 14.
137- Ibid., p. 17.
138. Ibid., p. 98.
139. BOSSUET, Défense de la tradition et des saints Peres, t. VI das CEuvres
completes (ed. Rennes, 1862), p. 442.
140. LA BRUYÈRE, Les Caracteres, ed. A. Destailleur, Paris, 1854, 2 v., II,
p. 264-265, cap. “Des esprits forts”. Esta passagem significativa é citada por
MARROU, H. I. Saint Angustin..., p. 169.
tom uma ponía do olumo, para estabelecer urna córrespondéiu la
entro sua doutrina o "os senil montos tío Monsleur Desearles"
Pascal nota, a propósito do cogito, <|uc Santo Agostinho "llnlwi
dito a mesma coisa mil o duzentos anos antes”, N o contalo i mu
Descartes, escreve Arnaultl, descobrc-so em Santo Agostinho um
“homem de-grande espirito e de lima singular tloulrlna, nao *<0
mente em matéria de teologia, mas também nb que concomí' ít
humana filosofia”. "J E revelador que o oraloriano Malobram Iu•
tenha tentado organizar a filosofia crista dos novos tempos
apoiando-se tanto em Santo Agostinho como un Desearles, < 0111
efeito, é comum ao Padre da Igreja e ao filósofo do cogito ,1 no
ção de que a existência de Deus é inala em nós cnquanlo idol.i,
Harnack, portanto, estava correto ao escrever: “Onde* encontrai
na historia do Ocidente um homem que, pola influência, possa
ser comparado [a Santo Agostinho]”;11' e mais: "A longa corrente
de reformadores católicos é agostiniana... até os. jansenistas nos
séculos 17 e 18, e até depois deles”.1" O que é ainda mais venia
deiro dos Reformadores protestantes.
Insistamos, todavia, contrariamente talvez a historiografía
mais corrente, sobre o fato de que a dominação de Sanio A gos
tlnho sobre a cultura ocidental não culminou apenas durante o
século 16 011 17. A Renascença e a época clássica formam nesse
sentido um único conjunto atestado pela iconografía. Manuserl
tos em iluminura da Cidade de Deus, pinturas e esculturas nao
cessaram durante três séculos de exaltar o grande Doutor, Imíe
«i', artistas mais célebres que o representaram encontramos l ia
Angélico, l.uca e Andrea della Robbia, Benozzo Gozzoll, Bolllcelll
Gorregglo, Greco, Van Dyck, Rubens, Ribera, Murillo, eh Na
época barroca, muitas igrejas colocaram perto das volutas de seus
Ironioes a silhueta do Bispo de I lipona, de mitra na cabeça, bal
ba e nobres vestimentas agitadas pelo vento. Ainda no século IM,
a Igreja de Santo Agostinho do México evocará o Triunfo do San
lo sobre a heresia num imenso ambiente plateresco, Traía se real
mente de um grande tema de história cultural, estudado e esi la

141. PASCAL, Opuscules, "De l'Esprit g¿oniétrk|iic” cd, da Pldmlc, p, 01 C


142. Objcaiom contri' M. Descurtes: t. XXVIÍI, p.9 das iiutvm de A. AniiiuM
(cd, de Paris, Luisannc, 1775-1782).
143.1IARNAc :K, A. Lthrbucb der Dopncu^eschichte, ,V al. nn 3 v., liiliomn
Iripzig, 1894-18l>7: III, p, 95.
144, IIARNAGK, A. l.'tssence du christiattistue, Pariu, 1907, p, 31 I,

r> o o
i e i Ido por J c i i n n o e IMenv C t m i i • llt < 11k * < t tn.Nagraram tjiuiirt> rl

11>s volumes ;i iconografía ago'iilnluna de MOO .t 1800. Sen proje


l o desde o Inicio era mosli.ii "cuino rM.i s e lormou no século I•i”
pañi se tornar “florcseenié no IS", ocupar "no 17 um lugar Im­
portante e enfeitar numerosos lelos barrocos no 18”.b5
O primado de Santo Agostinho mesmo, fora deste círculo
estreito dos teólogos, é entáo um lato de historia que atingiu sua
maior dimensão no início da modernidade européia. Só um estu­
do sintético das mentalidades de outrora permitiría restituir-lhe
sua significação pela análise de seus componentes (neste caso, a
conjunção do humanismo e do pessimismo) e por uma retoma­
da localizada dentro de um amplo contexto. Um elo cie ações re-
<iprocas existiu com efeito entre a exaltação do Bispo ele I lipo­
na na época da Renascença e o clima escatoíógico em que mer­
gulhou grande parte da elite religiosa da época. O autor da 67-
tlacle cie Deus, escrevendo no momento em que o império roma­
no estava abalado por invasões, contribuiu muito para propagar
o tema da velhice do mundo. Ora, esse tema conheceu uma re­
novação de atualidade entre os séculos 1$ e 17 e numerosos pro­
testantes - ortodoxos ou extremistas - analisaram sua própria luta
pela oposição agostiniana. entre as duas cidades: a de Deus e a
do anticristo,14 146 não sendo aceitável nenhuma acomodação com
5
esta última.
Mais amplamente ainda, uma cultura de elite, mas cada
vez mais difundida, exaltou o grande Doutor - denominador co ­
mum do Catolicismo e do Protestantismo - ao mesmo tempo em
que sonhava com o paraíso perdido, confundia pecado e culpa­
bilidade, denegria com o por prazer, sem dúvida em razão das cir­
cunstâncias, a descrição do homem, e se interrogava incessante­
mente sobre um livre arbítrio que a Fortuna, as estrelas e Satã não
cessam de assumir. De maneira penetrante, Marcei Bataillon evo­
ca, para o início do século 16, aquela “vasta comunhão interna­
cional” que é “a Europa da justificação pela fé”.147 Não se creia

145. COURCELLE, J. e P. Iconographie de saint Angustin (publ. dos estudos


agostinianos, Paris) I, Les Cycles duXLV siècle, 1965, a citação anterior é p. 14: 11,
Les Cycles du X V siècle, 1969; III, Les Cycles duX V I et du XVII' siècle, 1972; IV,
Les Cycles du X V III siècle, I, EAllemagne, 1981.
146. Cf. CHRISTIANSON, P. Reform en an d Babylon. English apocalyptic
Viewsfrom the Reform ation to the Eve o fth e C ivil War. Univ. of Toronto Press,
1978, p. 15.
147. BATAILLON, M. Éntsme et lEspagne, Droz, Genéve-Paris, 1937, p. 555.

501
(Iut• .1 ll.ill.i letrada da Urnas<ença se encontrava ausente dela
Mullos humanistas desse |min penderam |>ai.t essa doulrlna paia
livrar-se da angustia do pot ado,"" Semelhante catequese tornava
Santo Agostinho Intocável o explica o drama do janscnlsmi»iU n
tro da Igreja católica, dom clclio, rom o exaltar o Ilispt) ile I ll| •
na e, ao mesmo tempo, condenar as doutrinas extremistas exiiai
das de sua obra? C) ( lardeaI Albl//I era mais uma exceção <pian
do declarava em 16S6: ao inves de dar mais autoridade aos |,m
senistas esclarecendo que a doutrina de Santo Agostinho n.o >lo|
condenada pela bula Cum occasione, “seria melhor se piidessi
mos suprimir Santo Agostinho”."" Na falta desse esçlaret Imoulu,
os jansenistas, encontraram facilidade para abrigar-se atras do
Doutor por excelência para justificar suas posições e embaraçai
Roma e foi preciso esperar até 1690 para que um papa - Alosan
dre VIII - condenasse esta fórmula que muitos doutores tinluim
implícita ou explícitamente adotado no curso das épocas: " N e o I
guém acha que uma doutrina é claramente baseada em Símio
Agostinho, ele pode defendê-la e ensiná-la sem consideração a
nenhuma bula do soberano Pontífice”."0

pecado original e sentim ento


da infância"'
Santo Agostinho marcou profundamente gerações de ot I
dentais. Inversamente, uma cultura se reconhecia nele e de <« na
forma o empurrava para o centro do palco. De maneira mais ge148950

148. GINZBURG, C. “Folklore, magia, religione” cm Storiadlhdiii, Tumi, M


uauili, 1972: I, p. 635-641-642. Sobre o interesse pelo livro religioso na haIl,i
do século XV cf. SCHUTTE, A. J. “Printing, Picty, and tbc People in Iitily I Io
íirst thirty ycars”, cm Archivfilr Reformutiomgemhicbte, v. 71. 1980, p, s |9
149. Citado em NEVEU, B. “Jugc suprêmc et doctcur iníuilliblc: le p<m(itl
cat romain de la bulle In eminenii (164.3) i\la bulle Auctofem Dei ( I /9<|)", viu
Mélnngcs de 1'Ecole fiançaise de Rome (Al.A. TAL), 1981, I, p. 239 t|ue «lá d
guns outros textos do mesmo espírito.
150. DENZINGHR..., H. Rnchiridion, n. 1.320, p. ,366,
1*>1. Esta scçllo do meu livro já estava escrita quando apareceu o notável i. II «Ia
l/luohvgAiMde de lenseignement et de l'édncitlion en Tnnice (Paris, Nmivellr I •
hil, mn;i teologia é .10 mesmo !• i i i |mi tilii'i.i r rlello, I I.i modelo
r. mentalidades, mas Igwulmenii >i*» • sprline, A.sslm, nina con-
ii |>v.U) agostiniana do pecado original levava a misoginia. Mas,
mil sentido contrário, nina misoginia milenar reativada pelo meio
clerical de outrora encontrava no momento exato urna justifica-
V.to na narrativa do primeiro pecado. Testemunha aqui, entre mil
outros textos que poderiamos citar, e esta passagem do Martelo
tías feiticeiras-. “Eu acho a mulher mais amarga que a morte...,
porque mesmo se o diabo levou Eva ao pecado, foi Eva quem
seduziu Adão. E já que o pecado de Eva nao nos teria levado à
morte da alma e do corpo, se nào tivesse sido seguido pelo pe­
tado de Adão ao qual foi Eva que o arrastou e nào o diabo: po­
demos então considerá-la mais amarga que a mqrte. Mais amar­
ga que a morte mais urna vez: porque esta última é natural e
mala apenas d corpo; mas o pecado que começou pela mulher
mala a alma, privando-a da graça, e arrasta assim o corpo na dor
ilo pecado”.1”
Do mesmo modo, precisar o lugar do pecado original ñas
mentalidades de outrora é também contribuir para um,melhor
conhecimento das atitudes coletivas em relação à criança peque
na. Porque toda doutrina, rigorista ou nào, esforçando-se para
definir a natureza e as conseqüências do primeiro pecado impli
cava uma tomada de posição não apenas sobre a sorte dos rc-
<em-nascidos mortos antes do batismo, mas de maneira mais ge­
ral sobre o estatuto da infância. Desta vez, também a doutrina re­
ligiosa e a sociedade influenciaram-se mutuamente.
A Europa dos séculos 14-17 recebeu da Antigüidade duas
heranças opostas em relação à infância:153 de um lado, uma certa

brairie de France, 1981) realizada por Fr. Lebrun, M. Venard e J. Quéniart.


Existe profunda consonância entre meu propósito e o de meus colegas: cf. em
particular sua conclusão, p. 601-606.
152. INSTITORIS, H.; SPRENGER, J. LeM arteau ..., p. 207-208. Cf. DE-
LUMEAU, J. L a Peur..., I, p. 305-340.
153. Utilizo aqui as obras clássicas de ARIES, Ph. L'Enfant et lã vie fam ilin le
sons lA ncien Régime. 2. ed. Paris: Seuil, 1973. SNYDERS, G. La Pédagogie cn
France aux XVIL et XVIIL siecles. Paris: PUF, 1965. Do mesmo autor, II nest
pos fu cile d ’aim er. 2. ed. Paris: PUF, 1982. Sobretudo p. 64-75. CHARTIER,
R ; COMPÈRE, M.-M.; JULIA,' D. LEducation en France du XVI' au XVIIL
siecle. Paris: SEDES, 1976. Estes quatro livros remetem à bibliografia do as ­
sunto. Cf. 0 capítulo “L’Enfant et Tinstruction” em minha Civilisation de ia
Renaissance, p. 403-420.

503
ternura atestada por numerosas In.st rlções Iuium;irl.i.s «Ion <[u.ili<>
primeiros sáculos de nos,s;i era; o, de outro Litio, sentimentos «U
dureza provados pola exposlçáo tías crianças abandonadas poi
dcclsáo do pctterfamilias. Puer, cm latJm, significava ao mesmo
lempo "menino” e “oseravo". No momento om cjtit* começa a nm
dernltlado eufopéia, a atitude do inoomprcensáo om relaçdo ,i m
liVncda aparooo sempre amplamente disseminada o reveste dois
aspectos complementares um tio outro: todos sao pouco sensi
veis ao frescor o à inocência tia criança pequena, pouco comoví
do por sua fragilidade; e, de outro lado, há uma tendência em ve|
a criança em idade escolar (assim diríamos lio|c) como um ton
junto tle defeitos, um ser malvado e vicioso que ê absolutamen
tc necessário treinar para que nho se torne um mau Indivíduo \
Isso se deve acrescentar que as duras condições da exlstêru Ia
para muitas pessoas e uma alta mortalidade no primeiro ano de
vltla e mesmo até vinte anos levam sempre inevitavelmente ao
endurecimento dos corações: a morte de crianças e de adolesi en
les era mais banal tio que hoje. Os provérbios em uso nos sé» u
Io IS-16 (e depois ainda) revelam essa gama de sentimentos ne
gullvos em relaçào ao filhote de homem: "lí feliz quem tem filhos
e nao e Infeliz quem não tem”.1,4 “De criança pequena, luto pe
i |iieii< »“ 1 "(.Hiem vê criança, vê rtadja”.1** “Diz grande ofensa ao
lioinem quem criança o chama”.r’7 “Crianças, galinhas e pombas
fiiam e sujam as casas".1'"' "Bem age quem o filho castiga",1" l'al
t e mo e piedoso torna seus filhos infelizes e preguiçosos",..... Nao
se deve contar segredo para mulher, louco e criança".1"1
I ss.i amostra, por mais sucinta que seja, fornece todavia
est lurei imentos convergentes: a criança nào é reconhecida como
tal lile sõ lerá valor depois cie treinado e se tornado homem As

ISd. Anthologíe ou confirences desproverbes (XV' s.), citado cm 1.1N< A', M I •


Roux dc. /.c Livre des proverbes, I. p. 217.
I ss. MIÍURIER, (¡. /'Mordes seniences (XVI' s,), citado cnçlbid,
156. Proverbes communs.,. (l.von, 1539), citado cm Ibid.. p. 2IH.
157. Ihwerbcsgtd/icam (XV' s.), citado cm Ibid., p. 217.
158. MEURIIiR, (I. /Mor,.., citado cm Ibid., p. 21b.
159. Anciens proverbes (XIII’ «,), citado cm Ibid., p. 21b.
‘ lb(), hvverbescommtw..., n. 732. liste provérbio me loi comimiuido poi I bt
niel Rlvièrc, a quem agradeço.
161, BOVKI.UíS, Cl», de. Proverborium vnlgarhim llbrl /m,,,, 1531,1. it, 50,
Provérbio igualmente comunicado por Daniel Rlvièrc.

noi
fórmulas anônimas <|in ,a al hiih <, «|« In n .un cm consonância
com as citações de Monlalgin , I a fonlalnc, l.a Bruyère, ele., tan­
tas vezes c multo )iisiamcnlc avançadas pelos historiadores que
se ocuparam da história da Inláiu Ia: "Hu perdi dois ou tres filhos
pequenos, nào sem pesar, mas sem tristeza” (Montaigne).11,2 “lista
época é sem piedade” (l.a l,'ontalne).1<,•
, “Qs meninos sào altivos,
desdenhosos, raivosos, invejosos, curiosos, interesseiros, pregui­
çosos, volúveisy tímidos, intemperantes, mentirosos, dissimula­
dos; ...nào querem sofrer nenhum mal, e gostam de fazê-lo; eles
|a sào homens” (La Bruyère).16'* Quanto a Descartes, ele nào du­
vida cie que “o espírito, tão logo é infundido no corpo cie uma
criança, já começa a pensar”.165 Mas ele corrige essa afirmação po­
sitiva por sentenças opostas; “A faculdade cie pensar está ador­
mecida na criança”.166 “Se a alma é sempre incomodada pelo cor­
po para pensar, é na primeira idade que ela é mais”. “A primeira
e principal causa de nossos erros [de adultos] .... são os precon­
ceitos de nossa infância”.10' Esta é fraqueza e erro.
Poderiamos facilmente alongar adista de citações dessa
espécie, todas marcadas pela incompreensão em relação a
criança. Encontraremos outras no meio do caminho. Mas várias
correções de leitura se impõem. E de início esta: a cultura que,
na época, se exprime pela escrita ou pela imagem é a cultura
dirigente, e isso é verdadeiro, pelo menos parcialmente até
para os provérbios. Será que se deve então extrapolar para o
conjunto cia população dando importância, com o com plem en­
to de prova, às alusões de Lutero e de Félix Platter à dureza de
suas respectivas mães? Seria talvez arriscado. Porque da Idade
Média até o século 18, quando narrativas cie milagres permitem
um mergulho numa sensibilidade coletiva que ultrapassa a da
elite, o que descobrimos? Um lugar importante ciado à criança;
pais que pedem e conseguem a cura e a vida cie seu filho em

162. MONTAIGNE, Essais, I, cap. XIV: I, p. 90.


163. LA FONTAINE, Fables, ed. J. P. Collihet, em 2 v., Paris, Gallimard,
1974. “Les deux pigeons”, I, p. 55.
164. LA BRUYÈRE, Les Caracteres, ed. A Destailleur: II, p. 62 (“De 1’homme”).
165. DESCARTES, M éditations et réponses (1641, trad. franc: 1644): “Qua-
triémes réponses de Dieu” (ed. Garnier, Paris, 1979), p. 333.
166. Ibid., “Quatrièmes réponses; de la nature de Pesprit humain”, p. 319.
167. Conveisations avec Burman sur la Première M éditation, em DESCARTES,
CEuvres et lettres, Pléiade, 1953, p. 1.360.

5or>
perigo. Milagres ohtUlos por Intermedio de Santa Melena na
abadia'do Ilauvlllers (Champagne) beneficiam criança* e ado
lescentcs em 25% dos casos no século I I e em 3l)% no se» ulo
1776* Entre os milagres de Santa Ana de Aurny em lO.Vl luiu,
encontramos 34,5% de crianças, ou seja, IH(> casos entre >11 I
entre essas 186 crianças, 147 tinham menos de onze anos (e
103 menos de cinco an os).10” Não nos pronunciemos, poilimlu,
sobre o conjunto da sociedade. Em com pensação, podemos
considerar com o quase certo que no estagio cultural mais tic
vado, entre os séculos 15 e 18, subsiste uma forte prevenção
em relação à criança.
Mas uma segunda correção se impõe aqui: a posse da p '
lavra nesse nível cultural era essencialmente masculina. A leim i
ra pelo recém-nascido, a gentileza para com as crianças, seriam
primeiro as mulheres que pocleriam exprimi-las. Mas elas multo
raramente revelaram seus sentimentos sobre esse capitulo assim
como sobre outros. No nível da cultura escrita, a mulhei de ei\
tão permanece frequentemente silenciosa. Não c cia quem, li ibl
tualmente, redige os livros de razão. Mas se, por exceção, clã
conta sua vida privada, então vem ã tona a felicidade de sei mãe
ou avó. Maclame de Sévigne, por mais que se desculpe, ama a pai
sonadamente sua neta Pauline:

líu a amo muito. Mandei cortar seus cabelos: ela r.siá p< n(< I
da de modo extravagante; esse penteado é feito para cia Sua <u
tis, seu busto e seu corpinho são admiráveis. lia faz uma «ciile
na de colsinhas, fala, acaricia, bate, faz o sinal da cruz, pede pri
dão, faz reverência, beija a mão, ergue os ombros, d.mçn, I m | ii
Ia, segura o queixo: enfim, ela é linda em todos os pomo*1689

168. SIGAL, R A. “Les Miraclcs de sainre Hélènc fabbayc d'l Iamvillt i .tu
Moyen Age et à 1’époque modernc” cm Actes da 9? congvh des sorttiA hustH
tes, Nantcs, 1972: Philol. et hist., p, 499-513. Cf. também l:INU< ANI', M
Miraclcs and Pilgrhns. Popular Beliefi in Medieval Chwr/j, I multes I >mi
1977, p. 109-110.
169. St JANSSEN-PEIGNÉ. "Lcs Miraclcs de sainte Annc d Atiiny" em /h
Mort des Pays de cocagne (sob a dir. dc J, Delumcau), p, I 73 <•cm I >1 I U
MI'.AU, J. Un Chmin d'histoire, p. 199. Mas, proporção de apcmi* I "n I
crianças cm três “lares de sacralidadc" entre Picardía c Bmgonliii, nn tiltt
XVII: R A I U M N , H.¡ PUTEI L, J.-R "Mímele et pèlcrinagc au XVII •a.,!, ,
cm Hevue d!listoiir de lig/ise de Dance, n. 167, Jul.-d<v.. 1973, p. '46 ’3ti
D l v I r t o - m c c o m c id l i m . i . m ic ii. c . N;u> q u e r o q u e is s o m o rra ,,.
niU> s e i c o m o e p o s s í v e l n .io a m a r sua própria filha.170

Sc a literatura francesa (c européia) ela Renascença c da


época clássica tivesse contado com igual número de escritores
mulheres e homens, será que nossa atual historiografia da crian­
ça nao seria profundamente modificada?171
Enfim, uma terceira observação, já apresentada com nume­
rosos exemplos por Ph. Ariès e G. Snyders e que nos limitaremos
a resumir aqtfl, é que na arte e na literatura do Antigo Regime
coabitam dois sentimentos opostos em relação à criança: um que
a despre'/a e a culpabiliza, outro que a valoriza e a inocenta. E
esle segundo sentimento no curso dos decênios tende a ocupar
um lugar crescente. A iconografia mariana, a representação da
Virgem-Màe e da natividade contribuíram a partir do século 14
para difundir uma nova sensibilidade em relação à criança. Uma
certa dessacralização de Jesus bebê faz progressivamente dele
um láclente com o os outros, notadamente nas obras de Leonar­
do e de Rafael: ele se encolhe contra sua mãe ( Virgem do grào-
diufite), brinca com o pequeno João-Batista ( Virgem dos roche­
d o s , Bela Jardineira), diverte-se com uma flor ou um passarinho
( 17rgem com pintassilgo). Correggio, no Casamento de Santa C a ­
tarina e a M adona de São Jerónim o, deleita-se em exprimir a ter­
nura divertida das pessoas adultas que prestam às brincadeiras do
menino divino. Este é cada vez mais representado nu: de início,
como bebê sob o pincel de Jean Van Eyck è de Fra Angélico e,
logo, com o um menino que já sabe andar nas obras de Leonar­
do, de Rafael, de Michelangclo. A arte religiosa permitiu, portan-
lo, a expressão da em oção em relação à criança pequena e mais
geralmente uma valorização da infância e da adolescência. As
duas cantorie esculpidas por Luca delia Robbia e Donatello para
a catedral de Florença exprimem ao mesmo tempo a alegria e o
valor dos primeiros anos da vida. Elas são contemporâneas cia
multiplicação dos corais religiosos, do aparecimento dos “meni­
nos coroinhas”, da moda crescente dos cânticos de Natal.

170. SÉVIGNÉ, Mme de. Lettres, 1646-1696, Les Grands Ecrivains de la


France, III, p. 79 (20 maio 1672).
1 7 1 . 0 livro de FOUQUET, C.; KNIBIEHLER, Y. LH istoire des mires. Pa­
ris: Montalba, 1980, sobretudo p. 12-13 vai na mesma direção que eu ao evo­
car, ele também, as narrativas de milagres. Mesma reflexão em FAVRE, R. La
M ort au siècle des Lumières, p. 126.

G07
I s.s.i sensibilidade nova tende já a extrapolar do quadro
religioso. Dos trípticos cm que, no compartimento reservado
aos doadores, as crían o s aparecem com seus pais, passa se nos
meados do século 10 aos quadros de família que nao sao mais
destinados a igrejas ou a capelas. Além disso, cada v e/ mais nu
merosas são as iluminuras, depois as gravuras, os calendados,
as tapeçarias que evocam as profissões, os trabalhos do ano, as
épocas da vida com as mulheres e as crianças em posição de
destaque. Outra inovação interessante aqui; o aparecimento
sempre no século 16 - das efígies funerárias de crianças falei I
das. Doaclóres cie retábulos fazem-se representar com seus li
Ihos vivos e mortos, com estes últimos segurando uma peque
na cru /; ou ainda uma criança levada prematuramente aparece
sobre um túmulo, seja ao lado da mãe, seja aos pés de delun
los, I' eis que aparece, no início dos século 17, o primeiro lu
mulo Isolado dedicado no Ocidente a uma criança morta em
lema Idade: um berço de alabastro encomendado por Jaime I
para uma de suas filhas nascida e morta em 16061'* (abadia d<
VVesimlnslei), Alguns anos antes, o maior poeta polonês do sé
culo lii, Kochanowskl, tlnlui consagrado a melhor de mi.ii
obij-t, ,r. I>c i'tioiv Hlofttas, a sua pequena Ursula desabarei Ida
aos qualio anos,
\ U e ii.iN c e n ç a e x e r c e u , p o r t a n t o , u m p a p e l im p o r ta n te na
it u b l l l l u v u o d a c r i a n ç a , e u m m e lh o r c o n h e c i m e n t o d a a rte a n il
H i l.u l l lt o u M i a t a r e f a n e s s e s e n t i d o . P o r q u e e x i s t i u u m v í n c u l o
p i • • h u m o s r e p e t ir e n tre e s s a r e a b ilit a ç ã o e a r e p r e s e n t a ç ã o d a
Ilu d e / In la n lil, A fo rt u n a e x t r a o r d in á r ia d o putto (a p a r t ir d a ha
II. D d e v e , c o m e f e it o , s e r p o s t a e m r e la ç ã o c o m a p r e d ile ç ã o d a
época p e la e s c u lt u r a ro m a n a . In v e rs a m e n t e , um a s e n s ib ilid a d e
que p ro cu rava p o r ta s d e s a íd a e n c o n tro u n e ssa r e u t iliz a ç ã o d o s
a m o r e s a n t i g o s u m n o v o m e i o d e e x p r e s s ã o . D o ¡ '.r o s A t t i s d e I >o
n a le llo a o Triunfo de Bctco c de A tia dn e n o P a lá c io P a rn e s c , pas
. sa n e io p e l o s b a i x o s - r e l e v o s d a P o n te d o s In o c e n t e s , o bebe nu,
s o r r in d o e r e c h o n c h u d o c o n q u is t a p r o g r e s s iv a m e n te a lc o n n g iu
lia o c i d e n t a l . L o g o n ã o s e c o n c e b e r á m a i s p i n t a r u m p a r a ís o s e m
p o v o á - l o d e a n j in h o s b o c h e c h u d o s e In m d u d ln h o s c L u ís X I V v a i
q u e r e r "In f â n c ia p o r to d a p a r le " - In f â n c ia n u a , e c la r o n o s jai
cU n s d e V e r s a lh e s , 1
2
7

172. ftrproduvto na minha CívlUsiitlon d e ¡a R o ír titíio itr, III. ISO, p, >112 II '
Mas, no Início tía modernidade européia, o Interesse pela
criança nem sempre significou, longe disso, admiração pelo seu
frescor ou .reconhecimento de sua alteridade. Os pedagogos -
Gerson, Melâncton, os jesuítas, os mestres das “pequenas esco­
las” de Poit-Royal, os oratorianos, etc. — atribuem, sem dúvida,
muita importancia ã educação e à instrução, mas eles só têm um
objetivo: formar homens. Julgando segundo os critérios do adul­
to, eles não pensam no presente da criança. Só vêem o futuro
tiestas e concebem sua tarefa com o uma correção propriamente
"medicinal” das fraquezas e tendências más inerentes à tenra ida­
de. Aristóteles tinha escrito: “As crianças que julgamos felizes só
sao declaras assim em razão das esperanças que dão”.173Daí a ne­
cessidade do enquadramento, do isolamento em relação ao mun­
do exterior, do silêncio, de uma perpétua vigilância, da discipli­
na, da recusa de qualquer ociosidade, como exaltam em comum
todos os tratados educativos da época. Numa obra muito lida no
século 17, o Testamento ou conselhos fiéis de um bom p a i a seus
filhos (1648), Fortín de la Hoguette ensina que “a negligência do
eueiro do corpo e da alma inicia todos os defeitos” do corpo e
do espírito.174 No regulamento do seminário paroquial de Saint
Nicolas-du-Chardonnet (sem dúvida do fim do século 17), encon­
tra-se esta afirmação:
1
Como'o espírito do homem, estando por si mesmo envolvido
na carne e nas trevas, é incapaz de qualquer assunto, de qualquer
erriprego, de qualquer profissão, se não for esclarecido, instando
e formado com cuidado, deve-se necessariamente fornecer-lhe
meios próprios para poder ser treinado para alguma coisa,r '

É aqui que intervém de novo o pecado original, especial­


mente na sua versão agostiniana, com o justificação de sem e­
lhante pedagogia e com o freio a uma reabilitação cio valor pró­
prio da inocência da infância. A criança pequena é má. Para

173. ARISTOTE, Ethique à Nicomaque, I, cap. IX, 10, cd. J. Voilquin, Paris,
Garnier, s. d., p. 33. Ver também III, cap. XII, p. 141 e V, cap. VI, p. 225-227.
174. FORTIN DE LÁ HOGUETTE, Testament ou conseils pídeles d ’un bon
p ire à ses enfants, 1648, 3a parte, cap. 3, p. 394. Em toda a exposição que se­
gue eu extraio várias citações da obra de G. Snyders, La Pédagogte...
175. A.N.: (MM. 474). Reglement du sém inaireparoissial de Saint N icolas-du-
Chardonnet, p. 225.

r»ot)
Santo Agostinho, é um.i evidência: "Tão pequeno, e |.i Iflo grau
de pecail<>r", "l.ii lnl e<invehido na Inlqüldade... foi no pecado
que minha mãe mc carregou,,. ( )mlc, Senhor.,., onde e quando
eu fui Inocento?"1'" I. o ¡mini das (¡ouflssòcs acrescenta e.sia ou
tra questão: “Não era um pet ado cobiçar o selo ehorantlo, poi
que se agora eu eobivas.se com igual ardor um alimento eonve
niente à minha idade, zombariam de mim e me repreenderíam
com razão. Era Iportantol uma avidez ma, já que, ao crescer, nos
a arrancamos e a rejeitamos’'.1’ Se deixássemos a c riaik.a eren
cer seguindo seus instintos, ela se tornaria um monstro:

Quem não sabe, com efeito, com que ignorância da veuladi


manifesta desde o berço, e com que variedade de instintos eiigd
nacloreS, já visíveis nas crianças, o homem vem a esta vida, " llti
fosse permitido viver segundo sua vontade e fazer tiuIo o <pu lia
agrada, todos esses crimes e malfeitos que mencionei e os qtif
não pude mencionar, ele viriá a cometê-los todos, ou pelo me
nos um grande número.,17* ,

G. Snyders comenta com razão: a infância para <> bispo d.


Hipona “é o testemunho mais arrasador cie uma condenação lati
çada contra o conjunto dos homehs, porque manifesta cmelmeti
te como a natureza corrompida se dirige, se precipita pata o
mal”.17
1879 Bossuet,' sem dúvida, aprova Santo Agostinho r aliona
6
por sua vez: “Desde o.ventre cie nossas mães, onde a razão eshl
mergulhada e dominada pela carne, nossa alma e sua escrava e
esmagada por esse peso”.180À pergunta “Ó Senhor! Por que d< i
ramais vossa cólera sobre está criança que acaba de nascer? \
quem ela fez mal? Qual é seu crime?”, Bossuet responde "I Ia
filha de Aclão, esse é seu crime. É isso que a faz nascer na Iguo
rancia e na fraqueza, isso que lhe pôs no coração a fonte de Ioda
espécie de maus desejos".181

176. SAINTAUGUSTIN, Confcssiom, XIII, cap. 12 (Patr. l,tt„ XXXII,. i. dl


177. Ibid., I, cap. 7- (col. 665).
178. C ité de Dicu, XXII, cap. 22: al. Combés, t. 57, p. 664.
179. SNYDERS, G. l a Péduyoyic..., p. 181-182.
180. BOSSUET, lilévatiom tur les mytthrt, 7* semana, 4" cIcvaçAni I/' hhw
(ed. Retines, 1863), IX, p, *>
181. Ibid,, 4" elevas ít<», p. s i.

r, io
Pecado, igiioráni l.i < li.iqucza: no discurso religioso de an*
ligamente essas três realidades negativas sào inseparáveis. É por
Isso que a fraqueza é culpabilizada e apresentada como um lia
casso. Até mesmo Sào Francisco de Sales escreve: “Nós nascemos
para <> mundo na maior miséria que possa imaginar, porque nao
apenas no nosso nascimento, mas também durante nossa infân­
cia, somos com o animais privados de razão, de discurso e de jul­
gamento”.18- Bérujle é ainda mais categórico: “O estado da infan­
cia, escreve ele, léj o estado mais vil ejn ais abjeto cía natureza
humana, após o da morte”.183 A infancia “é dependência, indigen­
cia, impotencia, dependência até à indigencia, indigéncia até a
impotência".1* Condren, sucessor de Bérulle à frente do Oratorio,
opina no mesmo sentido: “1A infancia], afirma ele, é um estado
cm que o espirito está mergulhado na fraqueza, e em que os sen­
tidos da natureza corrompida reinam sobre a razão. Nesse esta­
do, a graça da nossa adoção divina e o espírito de Jesus são ca­
tivos da impotência e reduzidos a um aniquilamento”.183 Perigosa
fraqueza. “O diabo ataca as crianças, e elas não o combatem”, lê-
se na Conversação entre M . de Saint-Cyran e M . Le M a í t r e . For­
mula que o jansenista Claude de Sainte-Marthe ultrapassa assim:
i

As trevas em que nascemos são tais que não sabemos nem o


mal que devemos evitar, nem o bem que devenios abraçar, e-as
seqüências dessas trevas são estranhamente funestas. Porque se
não tiverem o cuidado de nos esclarecer, a. sequência de nossos
anos torna nossa cegueira mais criminosa; nós nos desviamos
sempre do bom caminho quando o ignoramos e nos precipita­
mos em todos os abismos que nos rodeiam quando não os ve­
mos. A corrupção natural do nosso coração o liga a todos os ví­
cios que podem perder-nos e nos,faz odiar todas as virtudes...

182. FRANÇOIS* DE SALES, Sermón pou r Ic jou r de la nativité de Notre-


Dame, ed. Paris, 1833: IV, Sermons, p. 504.
183. BÉRULLE, CEuvres depiété, n. XLVII, em CEuvres completes, ed. de 1644,
p. 839.
184. Ibid., n. XLVIII, p. 846.
185. CONDREN, Ch. de. D iscour lettres, ed* de 1648, p. 312.
186. Em FONTAINE, N. Mérnoires pour servir à Ihistoire de Port-Royal, 2 v.
(1736): I, p. 195.
187. SAINTE-MARTHE, Cl. de. Lettres sur divers sujets de p iété et de morale, I,
17.09, carta n. 44, p. 390-391.

r> i i
I'. s s e s e n u n c i a d o s p e s s i m i s t a s p a r e c e m l.il.n p m n m
c, e e r t a ilie n le , r e v e la m n ñ o ; i p v n iiN m i u .•*!i»»|m <lv«M » • Ml u l
In lT ln c la , m a s n a v e r d a d e n i n a c o n d e n a b a n d e l a
I nlrctanln, eles desembocaram «U* ceda man» lia MM
Untas positivas e o>mpfecn,slvds, (ie org e Snydeis h I mui
com juste/a. Por isso, devem os altula percorrei mim m t m lt#|
in ln lio com este autor. I de Início, |a (|tic * \h n Icapa <
tié n d a sc Im pòc aos mestres; M. ele* Saint t \ia n , n laia ! m
"(|iiorla c|tic suportássemos las crlancasl nos seu* cim a »* ty;
/as a Um de com Isso o b lig a r Delis a lei m ls e iln lit llll d n á
sos"."" <) pedagogo Plerrc C.ouslel dil o mesmo coma Ih r
rar sua falta de aplicarán ao estudo e Indos os seus im liH fl
tos com grande pacléhda.., T u la los com multa iirm a d a o
pregar mais as exortardes do que o rlgoi e as ameauis
tio particularm ente evidente na eilanvu a n a iu n va t o iio m p
ser luim ano, o o jíe lo tle ensinar est.i entre os mais d u i o s : |
terrível, porém , <|ue o do artesao que sc enledia na s u a
ou d o negociante exposto aos naufragios I »• pois 11* ■»ia!
essas com parardes, o Padre Jouvency 11 I '| d l um |i “ iiiM
ml iva uma obra destinada aos prnlcssnien poi esu in io ia l*
lo. resignado, onde aflora de novo o p n ado o iig ln a l

lia niio Ignoro que e penoso e canmilloi p i n i m iu


época da juventude e comprometer, as ve/cs, a >,<10, t, na
das classes; girar, íis ve/.es, essa roda tle moinho dui iMI
tempo; suportar as hesuiras e .1 maldades d,cm ii um i •>. »
mundo compreendera também que ii.en enio i mi i nal
que somos condenados a Isso ñau n in io i pm > m i di
pecados quanto por causa tío petado ........ >> pnm a >.
() trabalho é o que lia tle nuils útil paia lav ■ c ■ .... i|
Dio solicita lo. lis,se trabalho O penoso, 1 u nl nli lili;
noso que seja, considerai .1 recompensa eterna ■ po u n
será t|ue n.io devenios por Isso engullí mullo ihom a

IHH. I,AN< iU .O ii ( I. MdiioiiTs tomlumi la vii iU M á> hmiM i


Mlciuliw cm I /AH), SI,alúne Rcprlnin, <¿e1hv, pian. II p lil i» 1
pítulo XI, deite livro).
18*). ( X>USTIÍII» / ts A'ty/e dt. iVduMllitn d n ul ti* 1 Mt I t^|
p. 175-18,1.
p)0, JOUVI'.NCY, I’. tle. ('hrittlñtih llltfhiriim wgifAn/i, ih tu H W
doirndl, iratl. I I, Irruí, IHV).\ >' p.uu . 1,ip, 1, an 1, jt, 1

512
I it 11iti iii ’liii eonc< udanie, J.ift |tu*lln(* Pascal julga difícil Ins-
ltmu un nlna>, "tendo multo a .suportar densas pequeñas criaturas”.1,11
M i ■ Mimo si' (iota ilr endireitar uma natureza estragada pelo pe-
i i I" nao eslste tarefa mais elevada. M. de Saint-Cyran, diz ainda
l huí I. .i 'apiri lasa de tal modo a caridade daqueles que se em-
|n nli e mi i'in educar de maneira crista as crianças, que dizia nào
li e i i i Hupadlo mais digna de um cristão na Igreja”.192
Mas a Inl.jncla para o adulto nüo é apenas ocasião de,su-
l .............. de i arldade. ! ' "preciso condescender” com as fraque-
i 11 i ii,un, as e ainda Lmcelot quem fala - como “Jesús Cris-
|m |i <i i ii iii se senK’lhante a nos para nos tornar semelhantes a
1 Aquí l ancelot se encontra com Bérulle que "glorificou o
mi i. Un de )esus menino. Deus voluntariamente escolheu duas
mi ■o i , mullo »ruéis, duas humilhações: ser criança e ser crucifi-
> i • l Ii se rebaixou "na carne, nas fraldas e no estabulo”. A
i i i i . gli nía" escondeu-se “na infancia, na impotência,.no sofri-
11•> Mi** i » lodo-Poderoso nadificou-se. Desse modo o nada se
|< ............iii |
i I. I )eus escolheu “o embrutecimento” para humilhar
m

i i i ii. ||lllhitna c nos ensinar a mansidão.194 “Sejamos diante do


■i! uloi . niiio crianças pequenas: as crianças nào têm nenhuma
VhmI idi | H11| >i 1.1 para tudo elas dependem d a <decisão de seus
|i i i . di 11!• 'iiiij maneira, nós devemos depender da boa vontade
• i 1 M |ii ii iiiiij total submissão cie nossa vontade e de nossa ra-
in 1 Na esteira de bérulle, o sulpiciano Blanlo aconselha “o
a. uni...........i I >cun desfigurado pela infância”.196 Quanto ao jesuíta
..... I......... le declara em A Vicia cie M . de Renty. “O espírito de
I m I i mi |, i e mu estailo cm que devemos morrer para todos”.197

PM PASCA I , ). Réglement p ou r les enfants. Constitutiom de Port-Royal


i Id(Ci), i it|i, XVI, "Dc finstruetion des perites filies” em Lettres> opuscules et
ni,'ni,<ni>i de M m e Périer et de Jacqueline, soeurs de Pascal ed. M. P 1Faugère,
PaiU. I M4*S, |>. 102.
Ia 1 t.ANC I t.OT, C:i. M ém oires..., II, p. 334.
i•»t. íbitl.
i1* l lllUt II I I>. lunadamente CEuvres d ep iété, n. XLVII eXL.VIII e citações
um. uuMiios que figuram cm COCHOIS, P. B éndle et 1’E colefiunçaise. Pa-
ii ml, l% 3, p. I 19-120. Cf. ORCIBAL, J. “Les CEuvres de piété du car-
iliii il ili Itémllc, csMii dc classemcnt des inédits...” em Rev. d ’PIist. eccl., 1962,
p, Hl.t H02.
I'i'i ( )utro inédito citado em lbid.
I oo |t| ANI .l), |. / ’/ infancechrétietme, I. ed„ 1630, teed. Lethielleux, s.d., p. 43.
Io SAINT |URK, |. K i a Vte deM . de Renty, 2. cd. 1652, p. 258.
A teología IhtuIIIíiii.i n>iHiII>uhi pura propagar o aillo de
Jesús menino, poli auto, por mn.i reviravolta de situação í pía nada
tem de paradoxal, ela favoreceu em certa medida a valorização
da infância ao pàsso (]ue de Início ela Insistia sobre o nada da
primeira idade.
Além disso, ela retomava uma interrogação sobre a cena d< •
Evangelho em que Jesus deixa vir a ele as criancinhas e convida
os adultos a\ se tornarem iguais a eles (Mt 19,13-14; Mc 10,13 10;
Lc 18,15-17). Este episódio nào era facilmente integrávcl a uma
concepção pessimista da infância. Interrogando-se sobre "a Ino­
cência” infantil, Santo Agostinho escrevia:

É a fraqueza dos membros infantis que é inocente, não a alma


das crianças. Eu mesmo vi e observei o ciúme num menino pe
queno. Ele ainda nào falava e fixava, pálido, com um olhar amai
go seu irmão de leite.'1*

Calvino, ele também, não tem ternura pelas crianças: "Sua


pa tu reza, escreve ele, é uma semente do pecado; portanto, ela só
pode ser desagradável e abominável a Déus”.lw Todavia, olr sc
lembra da cena evangélica e tira daí a conclusão contra os anaba
listas de que é preciso batizar as crianças pequenas.19
1200E revelador
8
que a cena em-que Jesus pede aos apóstolos que deixem vir a ele
as criancinhas (que não eram batizadas) tenha sido tão raramente
representada no curso da Idade Média.201 Em compensação, ela de
semboca na iconografia no século 16 - graças às estampas e, mais
tarde - essencialmente no século 19 - ela será chamada a uma eer
ta 'fortuna. O século 17, por outro lado, vê desenvolver-se o tema
do anjo da guarda protegendo cada criança, e multiplicarem-se as
representações de Jesus menino sozinho, ao passo que antes eh
era sempre associado a Maria. O culto do menino Jesus se propa
ga. Nos colégios, são lidas agora aos alunos vidas de crianças nm
délos, até mesmo mártires, e a primeira comunhão que se genera
liza torna-se, como o Natal, uma festa da infância.202 Esta vê entá< >
progressivamente valorizada p o r uma onda repentina que penetra

198. SAIN T-AUGUSTIN , Confissions, I, cap. VII (Patr L m ., XXXII, col.


666).
199. CA LVIN , Institution..., II, cap. I. I: II, p. 18.
200. Ibicf, IV, cap. 16, 7.
201. ARIÈS, Ph. L'EnJiWt.,,, p, 128.
202. Ibid., |>. 127-1.11.
até nos meios muís agosiliiliiii» is '«.uni Cyi.m, relutam seus biógra
los jansenistas, "demonsiuv ,i seniprc pelas crianças uma bondade
que chegava ate .1 uma espe» le d e respeito para honrar neles a Ino­
cência e o Espirito Sanio «|ue as Ilahlia".Q uanto a Jacquelirie has
cal, ela tinha inserido esta oração no regulamento para as meninas
pensionistas em Port-Royal: "Fazei, Senhor, que sejamos sempre
crianças pela simplicidade e pela inocência...”.201 Este último termo
surpreende por parte de uma jansenista.
A reunião de indicações iconográficas e textuais a qüe aca­
bamos de proceder nào deixa de ser significativa. Sobretudo para
nós que sabemos como evoluiu em seguida a sensibilidade ociden ­
tal. Acabamos de ver colocados dentro cia cultura dirigente, e ate *
mesmo no centro de um discurso que culpabilizava o recém-nas­
cido, os elementos de uma avaliação positiva da criança. Entretan­
to, seria perigoso aumentar a importância de fatos que permane­
ciam ainda pontuais. Antes de 17Ô0, será que há mais do que uma
pré-história da criança, tratando-se, convém repetir, da emergência
de uma imagem nova desta última pondo em relevo ao mesmo
tempo sua alteridade e a inocência dos primeiros anos? O peso do
sistema educativo permanecia enorme e era globalmente baseado
no desconhecimento da originalidade e da riqueza próprias da in­
fância. Os inícios de uma conscientização verdadeiramente coleti­
va do frescor e da singularidade do filhote do homem parecem da­
tar realmente do século 18. Ora, é precisamente o momento em
que começou a fraquejar a concepção tradicional - insisto sobre
este adjetivo - cio pecado original. Desenvolveu-se então, nào obs­
tante pesadas inércias, uma desculpabilização da Criança, ela pró­
pria parte integrante de um fenômeno mais amplo.

os santuários de trégua:
“inútil ternura?”
Em país católico, a concepção tradicional, predomi­
nantemente agostiniana, do pecado original explica em grande2034

203. LANCELOT, Cl. M émoires..., II, p. 332.


204. PASCAL, J. R iglettientpoiir les enfants..., p. 1Ó2.

515
pai(c d fenómeno NiiMliüIrli »•» "tic liegiui", sobre o qu.il .1 hls
lorlogntfia atual se clc*l>11iv'.t enm I n t e r e s s e ,"1 ;io mesmo irmpn em
que e esclarecido tle maneira dellnlllva pelas trabalhos deJaequcN
(íe lls, dos quais sou particularmente tributário aqui.
Para esses santuários, dedicados ora á Virgem caso mais
frequente , ora a outros Santos, eram levadas crianzas morías
aijlcs do batismo. O pequeno cadáver, frequentemente nu, era
colocado, conforme o caso, sobre o altar ou sobre o degrau do
altar, sobre a escada do coro do santuário ou ainda sobre uma
pedra situada abaixo ou ao lado da "imagem milagrosa". Aeen
diam se velas, rezava-se, mandavam celebrar missas. Km dclerml
nado momento, os assistentes - pais» amigos, parteira, vigário ou
religioso - acreditavam ver a manifestação de sinais vitais: "< ulor"
na região do coração, "notável e visível rubor" do rosto, abeilu
ra de um olho, gotas de sangue no nariz ou nos ouvidos, Jato de
urina, movimento de um braço ou de uma perna, língua saindo

.tOS, [aeques Gélis concordou cm apresentar suas pesquisas no meu nemlitít


lio, ( !f, também o texto de sua comunicação “Le rctour tempo mire .1 Ia vi. ,|.
cnlants morts ã Ia naissance”. Ensaio de análise e intcrpretaçflo dos "Mhliiil
rios de tlégua" no Colóquio sobre "O corpo, a saúde, a doença" dos l*e\quhada
ivs 1I0 C.N.R.S. em llisl. Mod. c Cont., março 107'), Seus estudos j.i pnltllut
dos sobre 1 qiiesiao são “Les Miracles du Bon Pèrc Gascbon", em /Ir/et ./. hi
lonrnVc d Vinde de Ia SociétédE lhnologiefinnçaisc, 1979; “I >e Ia iiuhi a Ia vlt
I 1 . sam tuaíres à répit"cm Etlm ologicfrançaise, XI, 3, 1981, p, dl I d ' l, "Ml
1 1 . I. . 1 meda inc aux siècles classiques: lc corps médica! ct le letom 1 . uipo

ralle ã Ia vie des enfants morts à ia naissance”, cm H istórica/ Re/Iexioih, I hilv


ol'Wftteiioo, Ontario, 1982, J. Gélis publicou pela Fayarcl, cm l9Wd, / '!*/•»,
et le /rail, < I. também notadáincntc - CORBUíT, J, ílistoire dogma tique,
/llnrgique et archVologique du sacrement de baptfrne, 2 v., I’aris, 1882, solm 111
do I, p, 100-169. SAINTYVES, P. “Lcs Résurrections d'eníhnts moni mS o
les saiu tuaircs répit", em Revue dVthnogruplbe et de socio/ogie, II, I ', I'•I I
p. 65-74. VAN GÉNNEP, A, M anuel de folklore français contempoiaim Pari»,
1943s., I, 1, p, 123-124 (com btbliogragia). PLAT1 I I ,E, 11. les ( ilnVtiein /nu
att m iníele, L illeau XVII siVc/e, Paris, Ccrf, 1968: PU )IHR, J, < I». "I bi Sam
utaire á répit du diocèse de Langres. L'église de Eayl-Blllot, I lume M.uin,
d'aprés les actcs notariés du XVIP siéclc” cm MVtanges de Sciences le/igiem ee
1968, p: 3-21. SAUZKT, R. "Miracles cr Goiurc-Réformc en Bus I angtirdta
«mis bouis XIV"cm R âpuedltistolre de Ia spirttualitV, n. 48, 19/.’, |. I /') I'»1
PARAVY, P. "Angoissc collcctive et miracles mi senil dc Ia mon: résiirret tliill»
ct baptémes d citfiuits morts nés cu batipbiné au XV' siéclc" cm / a Mon ao
Moveu Age (colóquio da 'Sociedade dc Historiadores Mcdicvalisiai, l‘) "U,
Siraabourg, Istra, 1977, p. 87-102. PERNOS, M. "Réflcxions sur tut mirai I*
ã rAnnonciadc d’Aixcn Provencc, ( amtribution h l éittde des naiKluulie» ,i
répit", cm Anuales du M idi, jau./mar. 1980, p. 87-93,
da boca, etc. Uní no di , . mIim I,** parcela suficiente para que se
proclamasse o milagre e se hail/asse as pressas o bebé. liste, na
Imensa maioria tios ( a,min, inrnava a cair morto logo em seguida,
Mas agora ele eslava salvo e potlia-se entoar um Te Deum ele
avào de graças ou ate mesmo tocar os sinos para anunciar aos ar­
redores o feliz acontecimento. Os pais marcavam seu reconheci­
mento por ex-votos, doação de dinheiro ao santuário ou ofertas
de missas. Esses gestos exprimiam um alívio: pais e mães não se
sentiam mais culpabilizados. Tinham conseguido batizar seu fi­
lho. Este tinha voado diretamente para o céu. Fèliz sorte cias
crianças livradas do pecado original e às quais a vida não tinha
dado a oportunidade de perder a inocência reencontrada! A cer­
teza cio paraíso para elas era preferível aos azares de uma exis­
tência terrestre cheia de perigos e de misérias. Nicole ensinava
que “as crianças batizadas e mortas antes da idade da razão for­
mam três quartos dos eleitos”.206.
Durante longos séculos, a despeito dos teólogos, não hou­
ve muita preocupação com a sorte das crianças mortas sem ba­
tismo, a julgar pelos prazos geralmenteànuito longos que separa­
vam o nascimento da administração cio sacramento.207 A prática
dos batismos coletivos, freqüentemente por imersão, é um índi­
ce dessa “negligência”. Mas, a partir do século 14, o batismo in­
dividual por aspersão é que prevaleceu. O clero inteiro e' logo
também os pais tiveram então consciência do perigo que corria
um recém-nascido não batizado. Ora, é nesse momento que apa­
receram os santuários, de “trégua”.
“A freqüência aos santuários de trégua, nota Jacques Gé­
lis, inscreve-se na longa duração; a primeira manifestação reco­
nhecida (na França) data de 1387 em Avignon e as práticas per­
sistiram às vezes até o início do século 20.”208 Na França, foram
contados até agora cerca de 220 santuários, localizados sobretu­
do no norte e no leste do país. Mas houve também por volta de
trinta deles fora do espaço francês: na Bélgica, na Suíça e na Ale
manha, na Áustria e nos Alpes italianos. Bento XIV que, em mea­
dos do século 18, condena de maneira categórica o batismo de
crianças nascidas mortas, declara que “esses santuários existem
sobretudo na Germânia” e faz m enção particular ao “mais céle-

2 0 6 . N I C O L E , P. Essais de morale, ed . d e 1 7 2 5 e m 1 4 v.: X I I , p. 1 4 4 .

207- H istoiregénérale de l'enseignement..., t. I I , p. 6 0 2 - 6 0 3 .

2 0 8 . G É L I S , J . “M ira c le e t m é d e c in e ...”, p. 8 6 .

r,i7
Imv detltlV eles, o (Jr llispetg nu Siiábl.t, n.i diocese de Allgs
bourg c que está confiado ,ium i ónego,*» regulares promonsi talen
se.sVw( ) ) cliis ctmsei V.lç u r %de .tlt ItlIVoN deli a COIlliet et IH
casos de “ircgiiu" entre l lSo e l-iHi) cm Viena (cia 1'rança) .sobre
o túmulo dc unia piedosa leiga entenada no claustro de Salnl
Mau rice,210 489 eni 1’averney (Doubs) de I369 a ISP.V11 ou se|a,
cerca dc vinte por ano, c 1.35 cm A\ l<>i11 (Meuse) dc l(»2 i a
l()7,l L Mas a série aqui só c contínua dc l()57 a 1673, então eoiu
sele ou oito batismos por ano. Nestes dois últimos santuários, as
exposições dc crianças foram evidentemente mais numerosas, já
que, como em toda parte, havia fracassos dos quais nao se co n ­
servava traço escrito.
Com mais freqüência o pequeno defunto era levado ¡media
lamente após a morte. Mas era preciso ter em conta a distância en
Ire o lugar do falecimento e o santuário, “em regra geral um pra
/o de dois a quatro dias a cavalo ou de carroça".^ Mas citam se
( asos de crianças “ressuscitadas” para o batismo oito, ou oto quln
ze dias após o nascimento. Tinham sido então enterradas depois
desenterradas, por exemplo, ao retorno de um pai ausente na oca*
slão do nascimento. A decomposição já devia ter começado. Do
mesmo modo também quando o milagre demorava a produzir se
e se deixava o pequeno morto ficar no santuário á espera da "ire
gua". () protestante Gabriel dTániliane, de passagem por Dljon,
conta no fim do século 17:

Por volta das dez horas da manhã, fomos àquela igreja onde
estava a milagrosa imagem da Virgem chamada geralmente de
pequena Nossa Senhora de Sào Benigno, e vimos duas crianças
natlmortas que lá estavam há dois dias totalmente lívidas e estal­
las, e quase completamente decompostas. Os pais,-que eram das
melhores famílias de Dijon, durante esses dois dias tinham man
dado celebrar nessa igreja mais de duzentas missas a um escudo
cada uma, para Obter de Deus, por intercessào desta Imagem e

20'), BliNEDICTUS X IV ..., Opcrum editio yovküma, Prato, 18*14, i. XI,


cap. VI ilo livro VII: De Synododioectupui, p. 204 -205. Eu agradeço .u> Padre
W. wlttcrs por ter me indicado este documento..
210. PARAVY, P. "Angolíüc...", p, *12.
2IT Arquivot tic I Imite SaAnc: d. SAIN I VVI S, l! "les Rómrrcctions...", p. 70.
212. Sítin estudado pot |ar<pn s <..'li.
2U. VAN ClIíNNItU A. Ahmutl, , I, l, p 12*1
pul; is preven tlenirn u'li^lt »mis, o iiiulo tic vida c|tie serla necessá­
rio a estas pohies i rlMK.in para receber o santo batismo.2"!

Gabriel d’Emlliane afirma com malevolência que os reli­


giosos, por avidez, bem que teriam retardado ainda mais o mi­
lagre. Mas o cheiro se tornava insuportável. -Então, um monge,
que ajudava a missa deu um jeito para balançar o altar sobre o
qual estavam as duas crianças... que se mexeram. Apressaram-se
em batizá-las.
A ironia do narrador reformado, à qual faz eco no início
do século 20 a do positivista Pierre Saintyves, não deve ser assu­
mida por nós. Mais vale,, ccimo Michel Bernos21*5 e Jacques Gélis
nos sugerem, reencontrar todas as dimensões etnográficas e reli­
giosas de práticas que se tomaram desconcertantes para nós e
que por sinal - repetiremos isso daqui a pouco - a Igreja oficial
reprovava. No estado atual da pesquisa, a localização de santuá­
rios de “trégua” ainda não está explicada cie maneira satisfatória:
por que, na França, eles são numerosos rio leste e no norte as­
sim como no Bourbonnais, na Borgonha e em Auvergne, e ao
contrário pouco densos na região parisiense, na Normandia e
Bretanha, quase inexistentes na Languedoc?2 516 Podemos apenas
14
notar uma certa coincidência entre o mapa de sua implantação e
o da rede cerrada de mosteiros do eixo Lorena-Provença. Essa se­
melhança ocorre de 'novo sobré o rebordo germânico dos Alpes.
Muito logo, os nlonges dedicaram uma solicitude particular à toa-
lete de seus mortos^ à oração para eles e ao cemitério, terra ben­
dita que lhes parecia uma antecipação da. cidade celeste. Cluny
teve uma verdadeira predileção pelo culto dos defuntos.217*
Não é absurdo, portanto, supor um vínculo entre propaga­
ção de conventos e presença de santuários onde se abriam as
portas da eternidade bem-aventurada para crianças que de outro
modo seriam excluídas dela. Além disso, os beneditinos só po­
diam ser favoráveis a um tipo de milagre que lembrava uma res­
surreição da criança operada por-São Bento. Atuaram também na

214. D’EMILIANE, G. H istoire des tromperies, Rotterdam, 1963, I, p. 17s.


Citado por SAINTYVES, P. “Les Résurrections...”, p. 72.
215. BERNOS, M. “Réflexions...”, p. 5 e 17.
216. SAINTYVES, P. “Les Résurrections...”, p. 66-70.
217. Estas observações foram apresentadas pelo Padre W. Witters no meu se­
minário em 1980 em sequência a uma exposição de J. Gélis.
(Ion, suicidas por desespero m i eóleio, nim ios em duelo, c(une
(liantes, farsistas, bulóes, in s u d ó le s públicos e outros n,io pnitl
cantos notorio,s, ' Secundo o d iic lto canónico do oulrora, a Iml
ina<,;.io oni ierra erlstá do nina i ría n la ni< ala untos do hatl.siiu»lin
nava o coniitório pro ib ido , lira preciso exum ar o po<|uono cailá
ver o "reconciliar" o cem itério “ p ro fa n a d o "/*' Sobro a im portáiu la
da Inum açào cm torra consagrada, urna ancdolu referente a S.io
Francisco do Sales o relatada por Fierre Salnlyvos ó reveladora

I lavla em Tonon, no subúrbio do Saint-Hor, urna n u illioi oh*


tinada na heresia do Calvino, a qual linha lid o dias antes uni li
Iho do séu marido. Como demoravam a lová-lo ao batismo, m m
ron que ole morreu sem tê-lo recebido; raxào pola qual essa ma*
extremamente aflita se debulhava em lágrimas, o enchia ioda .1
casa do lamentações. Todavia, vendo que náo havia qualquoi 10
médio, ela resolveu ir procurar D. Fierro Bouvorat, o padre, .1
fim do obter um lugar no cem itério para sou filho. No caminho,
ela encontrou o homem apostólico iSào Francisco do Nulesl, qiii
tinha trabalhado m uito para convertê-la; ela se jogou aos mmin
pés; renovando suas lágrimas e exclamou: "O meu pal, ou 1110
tornarei católica se por vossas preces fizerdes que meu llllio
viva, a fim de poder ser batizado” . I.nláo o bem-aventurado
Francisco dobrou os joelhos, e rogou a Deus sobre a fé daque
Ia mulher; e na mesma hora o m enino voltou a vida, Seu*, pai',
renderam graças a Deus, e o levaram ao batismo, depois do qual
ele viveu ainda dois ,dias.Ji’

Ms aí entilo um pedido de “ trégua" motivado de Inició |’>elo


desejo de obter para uma criança um lugar em terra abençoada
A rejeição para fora desta e a nào inscrição • na França alé por
volta de 1736 — nos registros de catollcldado das crianças nuil
morías será que nào significa que estas últimas eram excluídas do
espaço sagrado c seguro da Igreja e abandonadas a uma sorte
duvidosa? A própria palavra “limbos", criada no século 13 poi
Santo Alberto, o Cirande, e Santo 'Tomás de Aqulno, quer d l/e i
"limites". Ora, de que bordas podería tratar-se a nào ser a.s do lu27
6
5

225. Rituel e/u dioche de U bis, cá. dc 1730, p. 14.


226. CORhlTT, ), l í istoire ... dú bitptême, I, p. 167.
227. SAI I S, Ch. A. dc. I listóle du bienbemvnx Intnçois de Sales, Tarim, 18 '0. I,
p. 202 arado cm SAINTYVTS, I! “l,c,s K&uiTcctioiu...", |>. 68,
fem ó ?Compreende se que .linda no fim do século 18, em Kintz-
helm, na Alsácin, alguns pais tenham enterrado seu filho falecido
sem batismo debaixo da calha da igreja. Assim, a água da chuva,
depois de escorrer sobre o teto do edifício sagrado, viria apesar
de tudo batizar seu filho.22* Em país ortodoxo - na Romênia, por
exemplo - , as crianças nào batizadas eram igualmente rejeitadas
para fora dos cemitérios cristãos; e então, neste caso também,
ocorriam os batismos de pequenos cadáveres que julgavam ver
reanimar-se.2 829
2
Visto que estes eram seres .marginais antes de sua reinser-
çào no espaço cristão pelo sacramento, para a administração do
batismo recorria-se de bom gradq a alguns eremitas, personagens
por si mesmos marginais em relação às comunidades humanas.
Os eremitas sem dúvida encontravam alguma vantagem em ins­
talar-se nas proximidades de um santuário de “trégua”. Mas so­
bretudo vivendo perto de capelas isoladas, em contato com uma
natureza selvagem e misteriosa, eles apareciam como mediadores
privilegiados entre o mundo comum dos vivos e o universo in­
certo e inquietante de onde era necessário conseguir tirar as
crianças não batizadas. As ordenações gerais dá diocese de Toul
em 1658 prevêem “proibição a todos os padres de batizar as
crianças natimortas, sob pena de suspensão, e aos eremitas, sob
pena de expulsão de seus ermitérios e censuras eclesiásticas”.230
Que o batismo tenha sido concebido por certas populações
da cristandade como um ritual mágico proporcionando antes e so­
bretudo uma proteção terrestre, isso foi amplamente demonstrado
por Keith Thomas para o fim da' Idade Média a partir do caso in­
glês.231 Uma pesquisa conduzida pelo clero em 1975-1976 num es­
tado brasileiro do sul deu resultados concordantes.232 Mas, cie ma-

228. Anedota citada por GÉLIS, J. “Miracle et médecine...”, p. 99. segundo


LAMB, A. Uber den Aberglauben in Elsass, Strasbourg, 1880.
229. STAHL, P. H. “L’Organisation magique du territoire villageois roumain”,
em L’Homme, jul.-set. 1973, p. 160.
230. Citados emTHIERS, J. B. Traité des superstitions, II, p. 64. Ed. latina ci­
tada em A. ARTONNE, Répertoire des status synodaux de 1'ancienne France, Pa­
ris, 1963, p. 436.
231. THOMAS, K. Religión..., p. 36-38. É feita menção também nesta obra
de batismos de gatos, cães, carneiros e cavalos.
232. Esta pesquisa (que não sei se foi publicada) tinha sido apresentada cm
1976 no meu seminário na Universidade de São Paulo. Para 7p% das pessoas
interrogadas, o batismo protegia a criança contra as doenças e os acidentes.
iK’lr.i mu In profunda, o I m Hmiiim uUólk'i» assegurava u entrada ,m
lomátlca no paraíso p.u.i a ■ llanca pin l.ilecia antes da Idade da
razão, Asslm, as lgre|as ptolesianlt ■ llveiam dificuldades cm la/ei
eom (|ik * as populações sob seti controle aeellassem lima pr.uli a
menos forma lisia do btUlsmo e uma teologia mais flexível i|iie
deixava entrar no paraíso crianças nao batizadas, contanto que
seus pais fossem cristãos. Na Inglaterra, alguns dos primeiros dls
sidentes religiosos que de Inicio tinham rejeitado o batismo das
crianças, voltaram à Igreja estabelecida quando se'tornaram pais
liles lambem tinham medo de que sua progenitura morresse sem
receber o sinal do C ristianism o.^ O abade de Vertot nota que na
Suécia, no fim do século. 17, “a maioria das mulheres temiam
(mesmo depois da Reforma) que, sem o uso do sal e dos exoi
clsmos ordinários, suas crianças não fossem bem batizadas", '" Na
•K)'1 "visita ou consolação” de Charles Drelincourl, um pastoi se
surpreende ao ver uiha Reformada chorar porque seu filho mm
reu antes do batismo. O pastor lhe diz:
Consolai-vos... porque.se a morte levou esta criança,., colocou a
no seio de Deus e ela suga as telas de suas consolaçOes eternas.

Mas a mulher lhe responde: "Se meu filho tosse balizado, eu mio
duvidaria de sua salvação... mas lelel morreu sem ser balizado e
esse é o verdadeiro motivo de minha dor"."1'

lim 1674, o sínodo do baixo Languedoc deverá proibir os


pastores de interromper seu sermão para administrar com urgen
ela o batismo a crianças doentes.-*' Na mesma época, em h e .irn ,
Ibi observado que pais reformados preferem o batismo católico
ao batismo dado pelo pastor. Parece-lhes mais seguro.M'
A vivência religiosa nos leva então a uma teologia a despei
to de todos os aspectos etnográficos do batismo, listamos no cen

2.lã. THOM AS, K. Religión..., p. 56.


2.14. VERTOT, R. A. de. híistoiredes révolutiom de Siiide, 1645, 2 v., I, p. IOH.
2.15. DRF.l.INCOURT, ( !h. Les Visites chnritables ou Lesconsolatiom dmllleniie*
jiour touttt sortes de personnes affligées, <¡eneve, 1664, 4“ parte, p. 260s. <üuulo
cm M. BERNOS, “Rtfdcxions...”, p, 8.
2.16. SAUZET, R. "La Religión popilhirc Itus l.tngiicdocienne au XVII' ski l>
Entre Ia Rdormcct Ia Coiurc-Réínrmc", cm In Religiónpopuluire (col. 14/ '),
public. do CHRS, 1474, p. 107, n. 21.
2.17. Coimmiaiçfto de Mil* l.ill.ui no meu «'inliitlrio dc mcítfiuio de l\trU I
(1472).
tro de umu aatllui'.Kiii», <>u <mn presença de uma doutrina
que assume ritual*, a migo*., mas que transforma amplamente sua
finalidade. Nào lia dúvida de que o batismo parece procurar urna
proteção da criança viva; e para o corpo do bebê morto ele pro­
porciona o repouso em terra consagrada, graças ao qual ele não
se* tornará um fantasma inquieto e errante. Mas, sobretudo por
meio de rimais apropriados, ele abre a porta do paraíso. Ele per­
mite então ao pequeno defunto escapar do desconforto dos lim­
bos e aos seus pais não se atormentar por seu destino eterno.
Em todas as épocas da história crista, teologías otimistas re-
cusaram-se a acreditar no castigo das crianças moitas sem batis­
mo e a seguir Santo Agostinho (dos últimos tempos) e São Ful­
gencio na sua convicção de que essas crianças “serão punidas
pelo fogo eterno porque, embora não tenham nenhum pecado
pessoal, foram tocados pela mancha do pecado original”.238A cor­
rente tomista afirmou que a criança morta com o pecado original
não merece a pena do fogo. Gerson num sermão e o Cardeal Ca-
jetán num comentário sobre a Sum a teológica de Santo Tomás
imaginaram até mesmo que Deus atende à prece dos infelizes pais
cujos bebês falecem antes do batismo e admite estes últimos na
bem-aventurada eternidade.239 Mas, globalmente, o ensinamento
da Igreja permanecia - já dissemos - mais inquietante, indepen­
dentemente até da doutrina dos Agostinianos que, de Isidoro de
Sevilha240 ao franciscano Conrius241 (f 1629) e ao Cardeal Noris242
(t 1704), passando por Santo Anselmo243 e Gregorio de Rimini,244

238. FULGENCE, De Veritate praedestinationis, I, cap. 12, 27: Patr. Lat.,


LXV, col. 616-617.
239. Em seqüência a BERNOS, M. e PARAVY, P. remeto-a GERSON, Ope­
ra, ed. Anvers, III: Sermo in N ativitate M ariae, p. 1.350 e para CAJÉTAN, Th.
Commentaires sur la Som me..., 311 parte, quest. 68, art. 1 e 2. Cf. PALLAVICI­
ÑO, H istoire du concile de Trente, L. IX, cap. VIII, ed. Migne, p. 348.
240. SEVILLE, Isidore de 1 .I. Sentent., cap. XXIh Patr. Lat., LXXXIII, col. 588.
241. As edições francesas do Augustinus comportavam em apêndice um seve­
ro tratado do franciscano Florent Conry, vulgo Conrius, que negava a existên­
cia dos limbos e lançava no inferno as crianças mortas sem batismo.
242. NORIS, H. Vindiciae Augustinianae, ed. Vérone, 1729, cap. III, § 5 : 1,
p. 981..
243. SAINT ANSELME, Líber de conceptu virginali, cap. XXVII: Patr. Lat.,
CLVIII, col. 460-461. .
244. RIMINI, Grégoire de Lectura in IIS en ten t., dist. XXXIII, q. 3.
continuavam a lançai nas chamas <(■> inlenm as crianças nao ha
tizadas, O Concillo de Plorençd 11<* I i,V), repetindo o de l.yon de
127-1, declarou: "As almas daqueles <|ii<* morrem cm estado de
pecado mortal ou apenas com o pecado original, descem ao In
lerno, porém, para serem punidas com penas desiguais". ''
Menos categórico, <> Concilio de 'IVento lançou, entretanto,
"o anatema" contra aqueles que "negam a necessidade de balizar
as crianças recém saídas do titcTo materno", sob pretexto de que
os próprios pais sà o /"’ Essas declarações doutrinais e outras do
mesmo teor desde o Concilio de Cartago de 4 18 baseiam-se num
versículo do Evangelho de São João (3,3): “Quem nào nasce da
água e do Espírito nào pode entrar no reino de Deus". E prova
vel que a interpretação dramática desse texto dada pelo Concilio
de Elorença reavivou a angústia coletiva diante dos falecimentos
de crianças ainda nào batizadas/'7
Entretanto, os tomistas diziam que no limbo as crianças
s.io privadas da visào beatífica (o castigo do “dano"), mas nào so­
frem, |a que nào sabem cio que são privadas. Dante esta próximo
de Santo Tomás de Aquino quando, evocando "o limbo do infei
no ','1" descreve-o com o um lugar sem sofrimento, mas também,
se|a <llti>, sem alegria:

Aqui, lauto quanto se pode ouvir,


I límenlos nao lia, a não ser lentos suspiros,
i la quals l.i/lam o ar eterno tremer.
Isso tK orre por tuna clor sem martirio
<2uc léin no fundo tía alma essas grandes multidões
I >r <ilaix Inlias, de mulheres e de homens/1''

Mas, por um lado, os limbos só foram oficializados pelo


magisterio pontifical com Pio VI no fim do século I8/ ,UE, por ou
tro latió, existia uma relaçào semántica evidente e inc|uietanle en

.MS. DEN2INGER..., H. Enchiridion..., n. 464.


¿46. Conállorutn... decreta (cd. J. Albcrigo), sessão V, c. 4, p, 666.
¿47. E a opinião de EAllAVY, R cm “Angoissc tollcctivc,,.", p. 8‘).
¿48. DAN TE, Purgatoire, cap. XXII, v. 13 (cd. A. Rócurd, Pldndc, p, 1.271).
249. DANTE. ¡infin cap. IV, v. 25-30 (p. 901).
250. />./.(., verbete “Llmbes", IX col. 760 772. Cl, lambón os vcrbcies
"IJaptême". II, col. 364 378; "D.im", IV, col. 6-27, "Scln d Abnibam , I,
col. l i l i 16.
Ire "elimo” r "il.m.u.io" I nslnava-sc correntemente que o “dano”
(privação, piv|uízo) r um sofrimento terrível.,Assim, lê-se numa
edição de 1604 do Doutrinai de Sapiência, no capítulo consagra­
do ao “inferno”: "Considerai que a pena do dano é incompara­
velmente maior Ique a pena dos sentidos] e consiste em ser pri­
vado para sempre da visão de Deus e da agradável companhia
dos bem-aventurados”.251 De maneira concordante, um Mistério
dos Ram os encenado em Embrun em 1529 garante aos especta­
dores que as crianças que mórrem sem batismo “não descem
para o grande abismo, lá onde estão os outros condenados. Mas
elas são privadas do verdadeiro Deus e de sua divina essência”.
E se os pais e as mães foram a causa dessa “danaçào e da referi­
da privação”, no dia cio julgamento seus filhos serão testemunhas
de acusação e reclamarão a Deus “justiça” contra eles.252 “Dana-
ção ”, “privação”: terrível ambigüidade clesses termos empregados
aqui com o sinônimos.
A pastoral de outrora, tal cómo os rituais nos dão a conhe­
cer, insistia constantemente sobre o pesado pecado que a criança
não batizada trazia consigo. Ainda nos ános 1940, na Bretanha e na
Ardèche (mas sem dúvida também em outros lugares), piedosas
mamães não beijavam seu bebê enquanto ele não fosse batizado.2532 4
5
Essa recusa significativa motivada por uma teologia traumatizante
pode ser comparada a uma interdição que figura no Ritual de Toul
em 1760: “Os párocos devem absolutamente impedir que crianças
sejam levadas ao batismo com violinos ou outros instrumentos.
Que se lembrem que são criminosos e filhos da cólera que vão ser
apresentados à misericórdia de Deus; que nesse estado eles sào pri­
sioneiros do demônio; que assim nada convém menos à sua con­
dição do que esses loucos regozijos”.2'* Os pais cie Quebec, antiga­
mente, tinham costume de dizer com humor depois do batismo (de
um menino): “Agora ele pode xingar” — já que se tornou cristão.

251. D octrinal d e sapience, revu et corrige, Troves, 1604, p. 105.


252. Citado em PARAVY, P. “Angoisse collective...”, p. 89-90. Cf. Les Ra-
meaux. Mystère du X V I' siécle en dialecte. embruñáis, publicado por L. Royer,
Gap, 1928, p. 84-86. CHOCHEYRAS, J. L.e Théâtre religieux en D auphinédu
Moyen Age au X V II siecle. Genève: Droz, p. 75-77.
253. Obtenho esse detalhe de vários padres de Ille-et-Vilaine e das Côtes du
Nord. Um deles (em 1945) teve um irmão dezesseis anos mais novo que foi
batizado ao fim de oito dias. A mamãe só o beijou depois do batismo. Caso
análogo em Ardèóhe.
254. Rituel de Joul, ed. de 1760, p. 25.
A lgre|a católica faz la cuido tim ta so de i onsclém l.i pata
OS país qUalqtKT alfUSO 11.1 .id m lllh tl.K .h » (lo .Sí UTí IHK'IIIo >111*1 i r
cém nascidos, O h’itu iil h 'o n n u io c x p llrã :

listo sacramento r de imu 1 1 0 i'ssk.kiclr uto grande, t|tu* 1 1 I11


guém pude participar da vida eterna se nao lor regenerado p> Ia■>
aguas do butlsmo... 0 1 1 se nflo tlvcr pelo menos a sua promessa
acompanhada de uma caridade perfeita.
Sendo o batismo de uma necessidade tito Indispensável paia 1
salvação, os párocos torito o cuidado de advertir sempre os pal >
e as ñutes para nao adiar o batismo de seus filhos, a pretexto di
esperar um padrinho ou unia madrinha ou por (|uak|Uci outia ia
xáo <|ue seja; eles lhes mostrarlo que toda consideração iiuinana
deve ceder ao perigo da m in a e t e r n a que ameaça toda 1 rlanva
nao balizada; que oles nao devem prorrogar além de vlnte e (|ua
tro horas apos o nascimento; que o prazo tío olio tilas eia añil
gañiente punido com a excomunhão e que se essa pena nao está
mais em vigor, ela indica polo menos que esse pra/o era t onsl
dorado matéria do pecado mortal.'"'"

I ' ss.in íveom endaçòes dramáticas relletem o discurso ct le


si,milco conm ínente d irig id o aos fiéis. Vé-se <|iie ai tuto se faz
m riK .iM .ios limbos. Os pais eram então bem instruidos .1 temei
1 iiiin .1 eterna" de um bebê falecido antes do batism o, |,i que
este tln li .1 perm anecido, com o um '“ filh o da ira", segundo .1 loi
ínula paulina (I I ¿,3.) m il vezes repetida no curso dos séculos,
mas que o apóstolo dos gentíos tinha u tiliza do num co nte xto lo
talm ente diferente ( "Nos todos.,, que outrora lom os daqueles |pe
1 a ilo ie sl, v iven do segundo nossos desejos carnais, servindo aos
caprichos da carne 0 dos pensamentos culpados,... eramos vola
dos p or natureza ;t cólera de Deus"), lissa passagem de Sito l\m
lo nao se referia as crianças, bntretanto, fo i sobretudo a elas que
se a plicou em seguida.
Na fran ça, uma ordenação real de 1698 lem brou ,1 o b rig a ­
ção de batizar as crianças nas vinte e qua tro horas seguintes ao
nascimento. Além disso, os rituais m ultiplicavam os conselhos
aos párocos ao mesm o tem po sobre a escollui das parteiras o so

l )cm.k|uc meu.
2S6. RltUtl rotuiiin 1) 1'tuuge i/u dlocisc <le Hoiy/niitx, I. cd. I (>2'1; cd. ligei 1a
mente muililiwula de 1728 rccdiuuki cm I82‘), p, (>.

r>uH
bre os butlsmo,s ,i scivm realizados durante os paitos difíceis. Era
normal que se exigisse das parteiras que fossem “instruídas sobre
a maneira de administrar o batismo”, já que elas tinham “às ve­
zes entre as mãos a salvação eterna”' das crianças.257'Uma salva­
ção que palavras mal pronunciadas podiam comprometer para
sempre. O Resumo do D icionário dos casos de consciência de
Pontas (1715) publicado em 1764 pelo Lazarista P. Collet apresen­
ta no verbete “batismo” o caso de uma parteira ignorante que ba­
tiza “in nom ine m atris” em vez de “in nom ine patris”. Esse ba­
tismo será nulo “porque essa mudança destrói absolutamente o
sentido católico da forma desse sacramento”.2582 9Em compensação,
5
um camponês empregando a fórmula: “Ego te baptizo in nom ine
patria, etfilia , et spiritu sanctd" terá administrado um batismo vá­
lido, porque “patria para um homem que fala mahuma língua
significa o mesmo que patris para um homem qué fala bem”.250
Mas há uma questão mais delicada ainda: a partir de que
momento durante um nascimento difícil deve-se conferir o batis­
mo? Dito de outro modo: a partir de que momento a proteção es­
piritual da mãe batizada não cobre mais a criança? O Ritual de
Blois de 1730 ensina: “Não se deve ordinariamente batizar uma
criança que ainda não tenha saído? Resposta - bastante embara­
çada - do Ritual de Blois consultado: se um membro apareceu do
lado de fora e por seu movimento deu sinal cie vida, deve-se ba­
tizar sobre essa parte. Se depois disso ele saiu inteiro e estiver
vivo, será rebatizado sob condição”.260Mas que conduta adotar se
a mulher morrer antes que a criança tenha saído? Resposta - bas­
tante embaraçada - do Ritual de Blois, consultado aqui a título de
amostragem significativa:

Nào é permitido abrir uma mulher antés de sua morte para sal­
var seu fruto e dar-lhe o batismo. Porque sé ela morresse antes
de completar o parto seria preciso manter sua boca aberta, para
que a criança não seja sufocada, e recorrer prontamente a um ci­
rurgião ou algum outro para abrir as entranhas da mãe, puxá-lo

257. Ibid., p. 76-77.


258. COLLET, M. Abrégé du D ictionm ire des cas de conscience, 1764, 2 v.: I,
p. 128-129. Este caso é citado em KNIBIEHLER, Y.; FOUQUET, C. L ’H is-
toire des m hes... p. 82-83.
259. Ibid.
260. Rituel de Blois, 1730, p. 14.
cuidadosamente r I m I! 1 |u M •CI, |r .l> i o menoi sinal de vklii, Por*
(|iic se l<»r tirad*i morto sem que | m . -< hall/ado, n i l t >se deve
im i i i

enterra Io em torra santa; m.i - num lugar u.io abençoado o dcNtl


nado a enterrai’ as crianças moitas sem batismo. Sn ele permitiu*
cer no ventre cia man, deve se Inum.i Io eom ela, sem temor de
que o lugar santo soja poluído, porque nesse estado ele e eomo
paite da mãe.*’1

Assim, o bebê era considerado batizado, cristão e salvo se


não saísse ou se não o fizessem sair — do ventre materno. Mas
se ele pusesse apenas a cabeça ou um pé para fora, ou se o ci­
rurgião o retirasse do corpo morto da mãe, ele era um “filho da
ira” e o paraíso lhe estava fechado desde que expirasse antes cio
batismo provisório.
A Igreja Católica, portanto, propagou - mas ela própria
também viveu - o medo da morte sem batismo. Essa é a razão
principal do edito de Henrique II em 1556 ordenando às moças
grávidas (¡tic declarassem seu estado, e depois o seu parlo, as au
torldãdes, agindo então o rei num contexto de cristandade como
responsável pela vida, mas mais ainda pela salvação espiritual de
seus súditos/'"' () texto do edito prova que o grande temor tio so
I•> ram' e de seus conselheiros era que as moças seduzidas, fazen
11'1di suparecer os filhos ilegítimos, os privassem do batismo, ()
Inltililk tdlo era grave, sobretudo porque excluía a vítima do pa
iai .ii lend o a criança "sido privada do batismo [e daj sepultura
puhlh a e habituar, declara o edito que a mãe seja “tida como as
II ana de seu lllho. K como reparação punida de morte e tlerra-
di tro suplício, e eom o rigor que a qualidade particular do caso
m erecer Essa legislação draconiana foi aplicada de maneira
desigual conforme a época e o local. No fim do século 18, ela
caiu em desuso, Mas - detalhes reveladores para nós - Henrique II
linha prevlstp que seu edito seria publicado de três em três me-

261, Ihkl., p. 15.


262. PHAN, M. Cl. “Les déclaradons dc grossesse en Liante (XVL XVIIL
sièdc). L.ssai insticutionncl.” em Reune d'Histolre modem c ei contcmpomlne,
1975. Les A puoun ilhfg/tinies à Carcassoue, 1676-1786; d'a/>rh /es dédtirtlüom
de grossesse et /es procéduns critulne/lesi Tese dc 111 ciclo, Paris |, 1979, cx. dat,
26.1. l .stc edito dc fevereiro dc 1556 cm ISAMBKRT; CRUSY; ARNI.T, Re
cuelldes ttmiennes lois fiunçatses, 28 v., Paris, 1827..., Aqui t. XXIII: registrado
cm *1 dc inarço dc 1556 pelo Parlamento dc Paris. Cf. também I dil dn Roy sur
k /'ifkl des /humesgrosses et des en/itus mon-Uiiix, 1556, B.N. K 46.814 (2),

5:10
sos o c11ic* os |).in it os c vlin ios deveriam lê-lo no sermão. O edi­
to foi ademais renovado por Henrique III em 1586, Luís XIV em.
1708 e Luís XV em 1751. Ainda no início do século 18, ¡números
parlamentos ordenavam aos juizes que cuidassem para que os
párocos fizessem a leitura no serm ão.264
Essa concepção dramática do batismo sobreviveu mais ou
menos dentro do Protestantismo, não apenas no nível das popula­
ções - como lembramos mais atrás - mas também, durante certo
tempo pelo menos, no nível do discurso teológico e da pastoral.
O artigo 9 da Confissão de Augsburgo condena os anabatistas que
concedem a salvação às crianças não batizadas, e o artigo 2 decla­
ra que quem não for regenerado pelo sacramento da água cai na
morte eterna.265 Na Inglaterra, o primeiro PrayerBook insiste sobre
a necessidade de conferir o batismo nos primeiros dias de vida, e
aquele qüe o sucedeu na época elisabetana permite que em caso
de “necessidade” o sacramento seja administrado fora dos domin­
gos e festas. É bem verdade que a maioria dos teólogos anglicanos
do fim do século 16 e início do 17, embora considerando o batis­
mo como “formalmente” indispensável, recusam-se a julgá-lo “ab­
solutamente” necessário para a salvação. Mas, em 1569, o vigário
de Ashford, no Kent, declara- que as crianças não batizadas vão
para o fogo do inferno. A questão permaneceu durante muito tem­
po controvertida também dentro do Protestantismo francês.266 .

Voltando aos santuários de “trégua”, constatamos inicialmen­


te, pela reunião de indicações fragmentárias, que alguns pais e tes­
temunhas provenientes de todos os meios sociais foram solicitantes
dessas ressurreições provisórias às quais não se pedia nada mais do
que a graça de um prazo que permitisse o batismo. Em Valência,
no século 15, duas das 18 famílias que obtiveram uma “trégua” para
seu filho junto ao túmulo da piedosa Filipa de Chantemilan são “no­
bres”.267 Na Igreja da. Anunciação,' em Aix-em-Provence, quando de
uma “ressurreição” ocorrida em 1558, seis cias sete testemunhas são
negociantes ou artesãos que possuem pelo menos 200 florins de
bens, enquanto o sétimo era um adolescente de 15 anos.268No fim

264. KNIBIEHLER, Y. e FOUQUET, C. H istoire des mb-es..., p. 125-126.


265. CASALIS, G. Luther et VEglise confessante, p. 141.
266. Cf. THOMAS, K. Religión..., p. 55-56 (com bibliografia sobre o assunto).
267. PARAVY, P. “Angoisse collective...”, p. 97.
268. BERNOS, M. “Réflexions sur un rnirade...”, p. 12.

r>:n
ilo século 17, c’in I Jijón, o Irónico ( jabíleí d'l.mlllane nota que ¿i.s
linas crianças Invadas dlanle da "pequena Nossa Senhora” de S.lo
Benigno pertenciam as "melhores lamillas" da cldade.200Jacques
( ¡élis constata por sua ve/ a variedade das origens sociais dos pe
rcgrlnos que se dirigem aos santuários de protelarão: em Benoitc
Vaux (diocese cie Clarmont) no século l como em Amberl, ao ui
mulo do Padre Gaschon, no século 19. Além disso, as protelações
nao se produziram apenas em santuários rurais. Acabamos de
mencionar Valencia, Aix-em-Provence e Dijon. Anteriormente lia
víamos invocado o milagre realizado por São Francisco de Sales
em.Thonon. O oratório de Nossa Senhora de Loos onde, no séeu
Io 17, eram obtidas protelações, entre outros milagres, estava situa
dó "no primeiro marco depois da cidade de Lille”, portanto na vl
zlnlnmça imediata de uma grande ciclade.270Entretanto, parece que
na época clássica os santuários de protelação mais numerosos e
mais reputados se encontravam agora na campanha, longe do
olhar suspeltosQ da hierarquia.
( )utra constatação notável - feita ainda por Jacques ( ¡élis:
» sei tilo I ' que vê a "multiplicação”, ou até a “explosão” des
srs santuários i ujo apogeu se situa por volta de 1700. O leñóme
no riiltlo ,ii entiiou se na época de o.uro da Reforma católica e en
qiianlo um eslorço de crlstiani/ação sem precedentes era em
piei ndldo ' iii direção ao universo rural. Essa correlação deixa
idhlnliat qiii a catequese da época fez crescer no mundo cam
pi oi< • a angustia diante da morte das crianças não batizadas. A
■ \ to ao ballsmo” proposta notadamente pela escola franco
o di fsplrllualldade, .i abundante literatura batismal da época o
as tentativas pastorais para santificar o dia do aniversário de ba
llsiito 1 tiveram como consequência distante no nível mais coti
dlano um reforço na solicitação de um sacramento tão neeessá
rio que sua lalta privava da eternidade bem-aventurada a criança
morta rápido demais.
Entretanto, a Igreja oficial era hostil aos santuários de pro­
telação. () pároco Jean-Baptiste Thiers, no fim do século 17, lem
brou no seu Tratado das superstições que se referem aos sacra
meatos... os principais textos que condenam o recurso a tais san

269. Cf. anteriormente, p. 305.


2/0. PI ATFLLH, H. Les C h rétw ü fa ce au miníele, p. 26 e 69-70.
271. BRliM OND, H. Histoire Lhtéraire..., IX, notadamente p. 1, 21, 37 c
mais geral ineme I -42,

n:i:»
tuárlos. Fies ciitiin.n,im '•«mcv.lviimonte dos Bispos de Langrcs em
1452 e MSS, dos «"•l.ilulin slnodals de Sens em IS24, de Lyon em
I5S7 e 1566, de lU-s.inçon em IS92 e 1666, das ordenações gerais
da diocese de Totil em l()S8. Bento XIV, um papa das Luzes, que
não acreditava, ele tampouco, nas ressurreições dos pequenos c a ­
dáveres, cita numa passagem consagrada ao batismo o decreto
exarado pelo Santo Ofício, em 27 de abril de 1729, condenando
o costume de levar as crianças natimortas a certos locais de culto,
particularmente Ursperg, na Suábia.272 Esses textos nos surpreen­
dem pelo espírito crítico de que dão provas desde o século 15. No
estatuto sinodal dé 1452, o Bispo de Langres, Filipe de Viena, es­
creve: “Muitas vezes nascem crianças que não têm nem vida nem
alma e são batizadas por certas pessoas ignaras, que acreditam
que éssas crianças têm uma vida e uma alma, porque as vêem mo ­
ver-se aó movimento do fogo e por causa do calor que se produz
geralmente em torno dessas crianças em certas igrejas ou locais
piedosos de nossa cidade e de nossa diocese...”.273 No outro ex
tremo do período, Bento XIV obseiva de maneira concordante:

... Os sinais pelos quais se pretende declarar a ressurreição de.s


sas crianças são'muito ambíguos e... as testemunhas que atestam
esses fatos são na maioria de pouca credibilidade e pouca autori­
dade. Porque consideram como sinais certos da revivescência ou a
mudança da cor pálida para a cor vermelha, ou a flexibilidade dos
membros que antes estavam rígidos, ou o sangue que escorre das
narinas ou alguma gota de suor aparecendo sobre a fronte ou o
ventre... Os referidos efeitos físicos podem facilmente ser atribuídos
ao calor que provém das tochas acesas em tornó dos cadáveres das
crianças e outros fogos acesos para aquecer esses santuários.-’7'

E o papa prossegue notando que.os relatos desses preten­


sos milagres não mencionam “nem grito, nem gemido... que, em
matéria de ressurreição, deveríam ser considerados com o tendo
uma grande importância. Porque eles são os menos suscetíveis
de fraude ou de falsidade”.275

272. Mesmas referências da nota n. 209.


273. THIERS, J. B. T raité... sacremens (ed. 1741), II, p. 61. ARTONNF...., A.
Répettoire..., p. 260.
274. BENEDICTOS XIV, ... Operum editio..., XI, p. 204-205.
275. Ibid.

53:)
1’sse espírito critico é acompanhado dc um estrem o .1 ou
Ik ) do período por um lom de d* spn " em relação aos* balizan
le.s mullo apressadas e .1. lestciminluis 1 rédulas ou interessadas.
Os primeiros são tratados de "pessoas Ignaras"'’" ou “pddres mal
instruídos’* . 'O s segundos sao em geral (|uallílcados cK* mullie
res desprezíveis: “Kxistem certas mulheres que por lucro pecunia
rio se metem nesses abusos"'7- (sínodo de l.angrcs, 1455). “Velhas
mulheres hêhedas e de pouca consciência observam essas crian-
cas nas igrejas durante dois, três ou vários dias e em seguida
prestam testemunho de que esses sinais de vicia apareceram”- "
(estatutos sinodais de Besançon de 1592 e 1656). “São na maio­
ria mulhcrzinhas incultas que são testemunhas desses fatos”(Ben­
to X I V ).lís s a s acusações antifeministas demandam duos corre­
ções: a) as testemunhas não eram forçosamente mulheres. Na
Anunciação de Aix-em-Provence em 1558, são todos homens; b)
e provável; entretanto, que as mulheres fossem maioria ao redor
dos pequenos cadáveres: o que há de anormal nisso, trátando-se
de rec ém-nascidos e, portanto, de uma legítima solidariedade na
dor c na esperança entre aquelas que ,dão à luz e que sem dúvi ­
da solVíam mais do que os homens ante a idéia de que o bebê
n.io conhecería as alegrias do paraíso?
<> clericalismo masculino esforçou-se, então, paio proibir
' ■’* sanluailoN de protelação e a inumação dos “abortados” em tor­
ta ...... sagiada Mas pelo menos alguns desses santuários conti
imaiam a funcionar até o século 20, sobretudo nas campanhas. I;
que a angustia dos país era muito forte: uma angústia que pode-
<la sei aplacada por outra doutrina do batismo e que provável
mente <>'. pais cristãos dos primeiros séculos da Igreja não conhe-
<Iam A prova e esta Inscrição galo-romana de La Cayóle <]ue data
do llm do século 5", e na qual os pais afirmam sua esperança no
destino bem-aventurado do filho m<prto antes do batism()-'

27h. No texto do Bispo dc Langres citado anteriormente, n. 273.


277. Nos estatutos sinodais dc Besançon dc 1592c 1656: THI1'R5> J. B. fiui-
h1.. saermens, II, p. 63-64. ARTONNE..., A. Répertoirc..., p. 129-
2'7w. THIERS, J. B. Traité... sacremens, II, p. 61. ARTONNli..., A. Réptrtoi-
re.... p. 260.
279. TI IIERS, J.B. Traité... sacremens, II, p. 63-64. ARTONNE..*> A. Répn
toitr..., p. 129.
2H0. HKNEDICTUS XIV, Optrum... editio , XI, p. 204-205.

r > :ii
listo gnu loso menino munido do sinal da cruz / cuja inocência
nao eslava manchada por nenhum pecado, / o pequeno Teodo­
ro ao qual os pais, com justiça, desejavam o santo batismo, / Uma
cruel morte o arrebatou; mas o senhor do céu supremo / conce­
derá o repouso ao seu despojo que o nobre sinal / da cruz tinha
marcado e ele será chamado Herdeiro de Cristo.-*1

Os santuarios de protelação constituíram uma resposta li­


mitada, mas tranquilizadora a un^i teologia traumatizante, para a
qual o grande Arnauld, conforme seu hábito, deu uma justifica­
ção peremptória:

Eu desejaria ... qu e todo mundo tivesse em mente uma consi­


deração muito jucliciosa do Cardeal Belarmino. É que a piedade
que nós temos das crianças-não pode servir-lhes para nada, e que
mesmo a severidade cie nossos sentimentos não torna sua condi­
ção efetivamente mais infeliz. Assim, não é pelo «gesto humano
de uma inútil ternura para com os moitos que se deve julgar ès-
sas coisas, como fazem a maioria dos homens: mas pela luz da
Escritura, dos concilios e dos padres.-*-''

Arnauld reconhecia, entretanto, que “a maioria dos ho­


mens”, apesar dos teólogos, deixava-se .levar pelo “gesto” dessa
“inútil ternura”.
, / ' . . .. '

281. Citado em DIDIER, J. Ch. “Un sanctuaire à répic...”, p. 3. DIEHL, lns-


cripríones latinae christianae veteres, n . 1.512. A inscrição encontra-se agora na
igreja de Brignoles.
282. ARNAULD, A. CEuvres completes, ed. Lausanne, 1778..., t. XXIX, p. 263
(Apologie pour M. la b b é de Saint-Cyran).
capítulo í)

a massa de perdição e
o sistema do pecado

“m uitos são os cham ados, mas


poucos os escolhidos”
A concepção tradicional do pecado original explica a im­
portância extraordinária atribuída até o século 19 na doutrina ca
tólica mais oficial - mas também entre os protestantes1 - àquela
pequena frase de São Mateus (22,14): “Muitos são os chamados,
mas poucos ps escolhidos”. Esse vínculo foi claramente sublinha­
do por Santo Tomás de Aquino que, entretanto, esforçou-se para
reagir nesse dominio contra o pessimismo agostiniano. Lemos,
com efeito, na Sum a teológica:

Quanto ao pequeno'numeró de escolhidos [que. Santo Tomás


não põe em dúvidal, eis o que se pode dizer deles. O hem que
corresponde ñ comum condição da natureza se realiza com
muita frequência, e a falta desse bem é rara. Mas o bem que
excede o estado comum das coisas encontrarse realizado num
pequeno número, e a falta desse bem é freqüente. Vemos as­
sim que a maioria dos homens são dotados de um saber sufi­
ciente para a conduta de sua vida, e que pequeno é o número
daqueles que chamamos idiotas ou insensatos porque carecem
desse conhecimento. Mas bem raros, entre os humanos, sao
aqueles que chegam a uma Ciência profunda das coisas inteli­
gíveis. Portanto, como a beatitude eterna, que consiste na vi
são de D e us, excede o nível comum da natureza, sobretudo de

í. Ver mais adiante, p. 579 e 611.

5¡)7
pois <|iir n.iliiri i h <i | HIv ii 11 i l,i gi ,n ,i | >i*l(i ti >mi|>ç.\o do
pec ;ulo orlgln.il, cshit m pi nu i >, In >in«' 11‘>nal vos.

Essè texto, multas vezes leullll/ado no curso dos-séculos


posteriores, revela ao mesmo lempo o t aralor geral de uma con
vicçáo no nível dos teólogos e uma Ialio de lógica na construyo
tomista. Porque a diferença estabelecida pelo doutor angélico en­
tre natureza e supranatureza deveria té Io levado a uma distinção
análoga entre o paraíso aberto só aos escolhidos e um lugar de
acolhida, no mínimo sem sofrimentos, para a massa daqueles que
realizaram sobre a terra “o bem que corresponde à comum con
diçao cio natureza”. Mas a geografia do além-tümulo não pernil
tia na época essa ampliação dos limbos, eles próprios incertos.
As referências bíblicas sobre as quais se baseou “a hor­
rível e pavorosa” doutrina do pequeno número de eleitos - a
expressão é do Cardeal Bona (t 1Ó74), grande liturgista, que
aderia a ela1- devem ser lembradas. Trata-se, de início, da pró­
pria fórmula de São Mateus, “nm lti su n t vocati , p a n e i electí ”,
no fim da parábola cia festa nupcial (22,1-14), depois dos dois
textos de São Mateus ainda (7,13-1/4) e de São Lucas (13,23) so­
bre “a porta estreita”. Nesta última passagem, vemos alguém
perguntar a Jesus: “H o pequeno número que será salvo?”, e ele
responde: “lisforçai-vos para entrar pela porta estreita, porque
muitos tentarão entrar e não conseguirão”. Em apoio a essas
sentenças, teólogos e pregadores freqüentemente acrescenta­
ram Deuteronômio 30,15 e Salmos 1,1 que,-tanto um com o ou­
tro, propõem a escolha entre os dois caminhos, a 2a Epístola
de Pedro (2,5-S: alusões ao Dilúvio e ã destruição de Sodoma
e Gom orpi), a T’ Epístola aos Corintios (9,24: no estádio, “to
dos correm, mas um só conquista a vitória”), e enfim, alguns
versículos de Isaías (24,13-15). Na evocação apocalíptica da d
dade destruída, o profeta .anuncia que a cidade nada mais é do
que escombros "... com o no varejar das oliveiras, com o no re­
buscar das vinhas, a vindjma está feita”. Belarmino utiliza as
sim essas violentas imagens:

2. THOMAS D’AQUIN, Soniinc Ia, t|iic.xt. 23, art. 7 (na ed. Des
cléc, trad. A. D. Sertiltaiige*.: /Ve/t, (. p. 206-207). Ver neste volume a cx
célente discussão solue “o |>r(|tu'iio mimem de eleitos”, p. 326-329.
3. B014A, J. Opem onuihi, VpiiL» , I ’(**l him /phi viuif chrhtittnae, cap. XUX,
p. 52.
O mimem ilu*t reproviidos será semelhante à multiplicidade
das olivas que caem por terra quando se sacode a oliveira; e o
pequeno numero de escolhidos será comparável às poucas olivas
que, escapando das màos dos colhedores, permaneceram no alto
dos galhos e serão colhidas à parte. Da mesma maneira ainda, a
multidão de reprovados será comparável à vindima que enche
numerosos janos com os cachos de uva que os camponeses re -.
colheram; e o pequeno número de escolhidos se assemelhará aos
poucos cachos que, terminada a vindima, ainda sè encontram por
acaso na vinha.'

Essas comparações já utilizadas por São Jerónimo4 5 se en­


contram também no célebre Curso de teologia dos carmelitas
(descalços) de Salamanca po século 17.6
A exegese contemporânea esclarece as fórmulas evangéli­
cas melhor do que se podia fazer outrora. Por trás de Mateus ■
(22,14), descobre-se um ditado familiar cujo paralelo mais pró­
ximo se encontra no 4o Livro de Esdras (8,3), sem a imagem do
banquete: “Muitos na verdade*foram criados, mas poucos serão
salvos”. A idéia expressa por esses dois textos concordantes
(nem todo mundo terá parte no mundo futuro) era banal na épo­
ca de Jesus, a julgar pela multiplicidade cie ’atestações tanaítas
que nos restam, isto é, pelo ensinamento dos dout.orescla Tórá
no século 2o depois de Cristo, cujas sentenças refletem as idéias
religiosas judaicas dos séculos Io e 2o. Mas, no pensamento pa-
lestiniano da época, essas questões eram deixadas ao juízo pes­
soal de cada um e não forneciam qualquer matéria para formu­
lações normativas.7 Além disso, na parábola do “festim nupcial”,
o ditado “muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos”
não se liga bem à cena anterior: os servidores do rei convidam
para as núpcias “todos os que podem encontrar”, e um só é re­
cusado, porque não tem a veste nupcial. Enfim, o sentido mais
provável da fórmula é: todos os que são chamados não serão
forçosamente escolhidos. Quanto aos dois textos evangélicos so-

4. BELLARMIN, R. D e Gemitu colom bae: CEuvres, ed. Vives, VIII, p. 404-405.


5. SAINT JÉRÔME, Patr. Lat., XXIV, col. 294, “Comm. in Isaiam”.
6. SALMANTICENSES, Cursus theologicus: D epraedestinatione, disp. X, dub. 2:
annotationes circa art. VII.
7. Devo estas precisões ao meu amigo CAQUOT, André titular no Collège de
France da cátedra de hebreu e aramaico.

58»
I>l'e ";l |)< )l'l.l estreita", iii t i n i l l r x h m |,i |t r e g ã Ç â t ) d e Je .N lls n o m e l o
h e b r a i c o , c c l a r o r |i u* * I» •. ■<i >•11111« , u n a r e c u s a d o s J u d e u s I n f i é i s
c o a p e l o e lo s p a b i l o s , No que sao c o n so a n te s co m .1 v l s í l o d e
S a o J o ilo a v is t a n d o d ia n t e ilo t r o n o d o c o r d e ir o , e a o la d o d o s
I i i m il s o b r e v i v e n t e s d e Is r a e l , " u m a m u lt id ã o im e n s a , Im p o s s í
\ 'e l d e c a l c u l a r , d e t o d a n a v á o , ra ça , p o v o o u l í n g u a ”, l í s s a p a s
sage m d o A p o c a l i p s e ( 7 / í - 12 ) n a o d e i x o u , a l iá s , d e e m b a r a ç a i a
t e o lo g ia c lá s s ic a , ”
lista última, em compensação, IVeqlientemente apoiou se
num sermáo de São João Crisóstomo dirigido aos habitantes de
Antloqula e no qual se lê: “Quantos salvos credes que haverá
nesta cidade? () que eu vou dizer talvez ofenda a muitos, mas eu
direi. Dos milhares qjue habitam esta cidade, nào há mais de cem
que será o salvos, e ainda duvido desse número”.’1 huís de Crana
da numa hornilla10e Louis Tronson numa “meditação” de retiro"
se referem ambos àquele sermão de São João Crisóstpmo: dois
casos entre muitos, Entretanto, “até Santo Agostinho, os padres
acreditavam de bom grado numa salvação bem ampliada, pelo
menos entre os cristãos, e alguns até, como Orígenes e os <)rlge
nislas, na salvação universal. Depois dê Santo Agostinho, teve* lu
gar uma reação ...”.1-
Esse resumo histórico cio Padre Sertillanges convida a por
de novo em destaque a importância de Santo Agostinho, do qual
algumas afirmações ligadas à doutrina da “massa de perdição"
parecem hoje surpreendentes. Kle escrevia a Optatus: “Aqueles
(|ue ele previa cjue não corresponderíam à sua graça, Deus os
fez tão numerosos que sua multidão é incomparavelmente maior
do que o número dos filhos da promessa que ele predestinou a
glória de seu reino. Assim, a própria massa dos rejeitados de
monstra que urna ¿quantidade tão importante quanto se queira de
homens condenados justamente não põe absolutamente em cau

8. Cf. a esse respeito “Le premier sermón pour laToussaint" de Louis ilo <ire
11.ule, cm CEuvrescompletes, Paris, Vivès, 1865: VIII, p. 352-353.
‘). Patr. G r,, LX, col. 18‘) (hornilla 2-1).
10. ( JRKNADE, Louis de "Sermón II pour le M ' dimundic après Ia IVutcirt
tc"; CEuvres..., VI, p, 32 1,
11. TRONSON, I , Retnthe nyléiiUtíifiir utívie </e médittttions, «I. de 182 \,
p. 262.
I 2. ( 'omcntitilo du Pittln* A, I > St iilllaniv <ua sua uaduyiin tia Sotume tbt'o
loghjur, <ip. dt,, p. Ull.

b io
sa a justiça de Deus".1'A essa sentença se junta um texto célebre
da C idade de Deus que o explicita:

Assim se divide o gênero humano: em alguns aparece aquilo


que pode a graça misericordiosa, em outros uma justa vingança.
Uma e outra não poderíam mostrar-se em todos, pprque se todos
permanecessem nas penas de uma justa condenação, em ne­
nhum aparecería a graça misericordiosa, e, em contrapartida, se
todos fossem transportados das trevas para a luz, em nenhum
aparecería a realidade da vingança. Esta última encerra muitos
mais homens do que aquela, para que, desse modo, seja mostra­
do o que é devido a todos."

É preciso constatar com o um fato histórico a concordância


sobre o pequeno número dos escolhidos éntre os representantes
mais eminentes do pensamento cristão ocidental desde o fim da
Antigüidade até o século 19. Uma obfa latina publicada em Bru­
xelas em 1899 sob a assinatura do Padre Godts não teve dificul­
dade em demonstrar isso apoiando-se em “7 3 Padres e Santos da
Igreja”, “74 teólogos e 28 intérpretes da sagrada Escritura”.13
*15 San­
to Tomás de Aquinó, cujo sentimento sobre a questão já lemos
anteriormente (o qual pesou muito, ao lado do de Santo Agosti­
nho), nesse aspecto, achou-se então em consonância com a
maioria dos porta-vozes da Igreja. Quanto às provas, só temos di­
ficuldade de escolha. São Gregorio, o Grande, declara numa ho­
mília: “Não deveis vos atormentar porque na Igreja há muitos
maus e poucos bons”. Vede a arca “no meio das águas do dilú­
vio: ela era larga no lugar em que continha os animais, mas es­
treita onde encerrava os humanos”. Do mesmo modo, “a Santa
Igreja é ampla carnalmente ,e cerrada espiritual mente”. Assim,
deve-se •“sempre repetir e jamais esquecer que muitos são os cha­
mados, mas poucos os escolhidos”.16
São Bernardo, por sua vez, afirma nutn sermão: “Até o
mais modesto fiel, quem ignora que o Senhor virá para julgar os

13. Patr. Lat., XXXIII, col 860, n. 12: Epist 15 7 (alias 190) a d Optatum.
\4. C ité de D ieu, livro XXI, cap. 12: ed. de Combés, p. 21.
15. GODTS, F. X D e paucitate salvandorum qu id docuerunt sancti?, 3. ed.,
Bruxelles, 1899. Este livro, cuja doutrina parece hoje ultrapassada, é muito
útil pelas suas referências e citações. Eu o utilizei muito por essa razão.
16. Patr. Lat., LXXVT, col. 1.286 e 1.290 (homilía XXXVIII).
vivos c (>s u n )i'l(),s e il.ii ,i i lil i mu H Mtm.lo siiiis <jbriis? Km rom
pensaçáo, c*is .t(|uI uniii i Iriii i , i i|iir nnn lodos, nrm mullos, mus
som rnlr alguns posmieni, ,i s.ihn i|in* lia vcidndelramente pou
ros (|iir se salvam".1 I' Inméiu'ln III explica: "Ném todo mundo
eró no Evangelho de Cristo, <ira, quem nao ere já está julgado,
Logo, como os incrédulos sáo mals numerosos do que os eren
les, sem dúvida nenhuma 'Mullos sao os el jamados, mas poucos
os escolhidos’. Mas muitos dos liéis lambém seráo condenados,
ou seja, aqueles que renegam sua le por suas obras: porque 'e
melhor nao conhecer o 'caminho da verdade do que retirar-se
dele depois de tê-lo conhecido’ (2Pd 2,21)” .18São Boaventura re­
pelí' e explicita Santo Agostinho:

Quando Deus condena e rejeita, ele opera segundo a justiça;


quando eje predestina [à salvação], ele age por graça e misericór­
dia, as quais não excluem a justiça. Porque todos, pertencendo à
massa de perdição,deviam ser condenados. Por isso, há mais re­
provados do que eleitos a fim de que seja manifesto que a salva­
ção vem de uma graça especial enquanto a danação resulta da
justiça ordinária...11' •

I.udolfo, o Çartuxo, cuja Vita Christi composta no Século


M foi, cm seguida, um dos grandes sucessos da imprensa nas­
cente, comenta assim a parábola cios salários dados aos trabalha­
dores da vinha:

Se todos nesta parábola receberam um denário, não se deve


concluir daí que todos aqueles que são chamados à fé sejam sal­
vos; daí estas palavras terríveis: p o rq u e m uitos d o s trabalhadores
da primeira, da terceira, da sexta, da nona e da última hora sã o
ch am ad os, m as p ou cos sã o escolh id os e recebidos no céú. Muitos
que fazem parte da Igreja militante não farão jamais parte da Igre­
ja triunfante.-’01789

17. Patr. Lat„ CLXXXIII, col. 96: Sen no tento in vigília nativitatis D ei.
18. Patr. Lat., C CXV IJ, col. 357: Servio .V in Septo,tg.
19. BONAVENTURE, Saint Brevilvijoíooi, M parte, cap. IX, trad. fr. (ed.
franciscanas, 1967), I, p. 1ll>.
20.1UI >OJ PHE LE ( M i R] \ 1 /, f é m «'heist, trad. M. P.
Angustia, Paris, 1865; Aqui 111. p, wi i
() Anel )h|>< •sum<» Anlonlno de Morença ( f 14*59), amigo de
Era Angelito e lumianlsUi, cuja audiência como casuista já foi men­
cionada/1 pergunta como conciliar a fórmula pa u ci sunt electi com
o capítulo Vii do Apocalipse que, ao contrário, deixa perceber
uma multidão imensa de salvos. Ele resolve a contradição da se­
guinte maneira: parece-nos impossível conseguir contar os eleitos;
entretanto, eles são numerosos em relação ao número de repro­
vados. “Da mesma maneira, os. grãos de areia de um saco são
quase inumeráveis, mas com o são pouca coisa em relação a toda
a areia do mar!”2 1222
4
3
Na Igreja romana, foi de “fé” até a uma época recente que
a maior parte dos humanos estava destinada à danaçãó. Era cer­
tamente o sentimento da escola rigorista, e Pierre Nicole ò expri­
mia afirmando: “Não existe verdade mais espantosa na religião
cristã do que aquela que nos assinala o pequeno número dos es­
colhidos; entretanto, não há nénhuma outra que o Espírito Santo
tenha tido mais cuidado de exprimir em termos claros. Quem nos
garantirá, então, que nós pertencemos mais ao número daqueles
que correm com sucesso do que daqueles que correm inutilmen­
te?”.25 Ainda mais revelador é o dramático sermão de um Bispo
de Vence em 1788 que não posso deixar de citar em seguida a
pichel Vovelle.21 O orador (Mons. de Surian) não procura aqui
apenas causar medo; ele confessa seu próprio medo diante da
certeza do grande número de reprovados:

Porque, enfim, quando examino as seqiiênçias terríveis da


morte, quando considero-o aparato tremendo do julgamento,
quando em espírito eu desço aos infernos, esses espetáculos
diversos me alarmam; entretanto, se tudo isso só dissesse res­
peito a poucas pessoas, eu convencería da grandeza do mal
pelo pequeno número dos miseráveis. Mas. quando em conse-
qüência deste oráculo de Jesus Cristo - poucos escolhidos - ,
eu penso que esta morte será a morte eterna de quase todos os
cristãos que me rodeiam; que este inferno será a morada fixa
de quase todos aqueles com quem eu vivo, com quem eu falo;

21. Ver mais adiante p. 228. .


22. ANTONIN, Saint. Surnma, Ia parte, título IV, cap. VII: ed. Venise, 1581,1,
p. 93. 1581,1, p. 93.
23. LEsprit de M. N icole..., pelo Abade Cerveau, Paris, 1765, p. 490-491.
24. VOVELLE, M. M ourir autrefois..., p. 120.
quan d o cu penso 1111 «• i v;,i i. i i iiilvi m lnlu Nórle <■ metí qul
nliáo, con lo,s,so que mío moii iiiiiIm d on o do molí tomor, lu d o
me1 aflige, ludo mo desagrada rtible ,t loir.i, o mo slnto mal om
ter (|uo vo.s Fular, (|uando so lonho d isp osição para a d or o ns
. ligrim as.1'

Mesmo um santo de lima grande bondade com o Silo VI


cento de Paulo faz sua a concepção estrella da salvarão. Um illa
ele declarou aos seus missionários: "... lí grande o número da
queles que entram pela porta larga que leva ao inferno", I’, o
superior dos Lazaristas apóia-se sobre a tradição da Igreja e a
aritmética escriturai clássica: “Tenhamos cuidado, vejamos o
que os santos disseram e com o eles julgam que haverá poucas
pessoas salvas. Consideremos qué na arca de Noé se encontras
sem apenas sete ou oito, e que todos os outros pereceram, e
que de dez virgens cinco foram reprovadas, e que de dez le­
prosos purificados só houve um que retornou a Jesus Cristo. I;„s
ses exemplos são marcas do pequeno número de escolhidos", '11
Outra máxima de São Vicente de Paulo sobre o assunto era
esta: “Pu creio que a metade do mundo, ou até mesmo três
quartos, serão condenados pelo pecado da preguiça”.2 672
2
5 8Num es­
crito destinado a um público' restrito {Carta circu lar aos A m !
fios da Cruz), Grignion de Montfort afirma “para marcar o pe­
queno número de escolhidos”:

lUe é tão pequeno, tão pequeno, que se nós o conhecéssemos,


desfaleceriamos de dor. Ele é tão pequeno, tão pequeno, que en
Ire dez mil só há um, como foi revelado a diversos santos... Ele
é tão pequeno que se Deus quisesse reuni-los, ele lhes grilaria,
como fez outrora pela boca de um profeta: CongregamInl unus
et unus (Is 17,12), reúnam-se um a um, um desta província, um
deste reino.-'

25. Cf. Ibid. Sermons de M. de Surian, ¿vêque de Vence... Petit cctrfone, Paris,
1778, p. 278-279.
26. SAINT VINCENT DE PAUL, là t m k m sp lrltu tk p. 542.
27. Ibid., p. ,103. Todavia, Sao Vicente Mito i|ticl'l« ver ensinada a doutrina da
“massa de perdição". C f COSTE, l! X ihil Vlncent de ñutí. Corm gondance.
lüitrethns. Documeftts, 14 v., I\uk 1920 19 III, p. .118-.M6, 362-374s IV,
p. 633i XIII, p. 650.
28. MONTFORT, E, t irignlon de </ m »«i (rd, du Senil, 1961), p, 229.
Respondemlu ,i% i mli.as de Malcbranchc, Función, por sua
vez, escreveu: "(,)ue o autor entilo nào venha mais nos perguntar
por que tantos homens perecem, já que Deus que quer salvar to­
dos eles, poderla, sem lhes ferir a liberdade, fazê-los desejar tudo
o que lhe agrada.. Como Santo Agostinho, eu respondo que ig­
noro... Experimente então, direi eu ao autor, se assim quiser, son ­
dar o fundo deste abismo cios julgamentos divinos”.-0 Santo Afon­
so de Liguori (f 1787). Fundador com o São Vicente de Paulo de
uma congregação de missionários, esforçou-se para conservar o
meio-termo, entre rigorismo e laxismo e esbarrou em contradi­
ções jansenizantes.30 Mas várias, vezes ele afirmou que “o núme­
ro de reprovados é muito mais considerável que o dos escolhi­
dos”,31 declarando um dia: “O caminho do céu é estreito, como
se costuma dizer, ele não pode absolutamente conter carruagem;
os que quiserem chegar à ele de carruagem nào poderão entrar.
Bem poucos lá chegam, porque bem poucos se violentam para
resistir às tentações”.3^
Será que se pode dizer que a partir do século 16 a corren­
te jesuíta trouxe um sensível abrandamento para uma concepção
da salvação que podia levar ao desânimo? Seria um erro. Muitos
porta-vozes da Companhia partilhavam a opinião comum dos
teólogos a esse respeito. O Padre Godts, no seu catálogo dos au­
tores favoráveis à doutrina do pequeno número dos escolhidos,
nào inclui menos de 31 jesuítas dos séculos 16-18. É bem verda­
de que às vezes ele procede-a um tal recorte das citações que a
argumentação do livro se vê enfraquecida.33 Entretanto, é difícil
não ficar impressionado pelo consenso que se manifesta, mesmo
entre os jesuítas de amigamente, de Belarmino a Bourdaloue, em
favor dos efeitos limitados da Redenção. Tomemos com o exem ­
plo o pensamento (moderado) de Suarez (f 1617) a esse respei­
to. Podemos resumi-lo em três proposições: a) a opinião “comum

29. FÉNELON, CEuvres, ed. Paris, 1848: II, p. 157 (Réfutation du P. Malty
branebe, cap. XXXVI).
30. REY-MERMET, Th. Le Saint du siècle des Lumières, Alfonso de Liguori, Pa­
ris, Cité Nouvelle, 1982, sobretudo p. 433-450. Cf. as diferentes citações da­
das em GODTS, E X. De Paucitate..., p. 49-51.
31. Cf. as diferentes citações em GODTS, R X. D e Paucitate..., p. 49-51.
32. LIGUORI, Saint Alphonse de. “Sermón pour le 3" dimanche de l’avcnt”
em CEuvres compíètes, em 29 v., Paris, 1843, aqui'XIV, p. 43.
33'. O livro do Padre Godts combate a obra de um jesuíta, Padre Castelein, inti­
tulada, Le Rigorismo, le nombre des élus et la doctrine du saint, publicada em 1898.

rvir>
o vcrfclkil" e (11k* ,i in.tlnl |nirti* «|u*i luiMl.inos sera condenada; I))
se conxlderuríno.s n^orn mi o*» hall/,k l « . levando cm conta todos
o.s. heréticos, cism áticos e m.iii'i i ulollc»»s que se encontram entre
eles, a maioria dos cristãos lambem perecerá; e) em compensa
cao, a maioria dos católicos chega a *.alvavao porque, por um
lado, muitas crianças falecem antes da Idade da razão e, por ou
tro lado, os adultos l'rcc|üentemenle se arrependem e recebem os
sacramentos antes da morte.'1
A doutrina do “pequeno número dos escolhidos” foi proles
sada pelos mais eminentes jesuítas: Canlsius, Salmerón, delarmlno,
Suarez, Vasquez, Lessius, Bourdaloue, etc. Jean-Baptistc Saint Jure
( | I0S7), cuja autoridade na Companhia foi grande no século I \
após ler declarado (|iie "o número daqueles que se condenam" e
"Incomparavelmente maior que o daqueles que se salvam”, resol ­
via nestes termos a difícil objeção: “Porque se rae perguntardes
como é possível que Deus que ama os homens tào períeitamente,
que tem tanto desejo de salvá-los e sofreu tanto para esse efeito,
queira vir a condená-los quase todos, eu vos respondo que ele
tem ainda mais amor por eles, e mais desejo pela sua salvação do
que nós podemos dizer ou pensar...”'11 Sabe-se, enfim, que Bour
daloue, por sua vez, abordou de frente o terrível assunto:

Consta, escreve ele, que o número de escolhidos será o menor,


o que haverá incomparavelmente mais reprovados... líhl () que
existe de fato de mais marcado no Evangelho do que esse peque
no número dos escolhidos? O que existe que o Salvador do mun
do nas suas divinas instruções nos tenha mais auténticamente de
clarado, nos tenha mais frequentemente repetido, nos tenha lei
to ouvir mais formalmente e claramente?'" v

r bem verdade que foi um jesuíta, Gravina, mas somente


na segunda metade cio século 18, quem defendeu pela primeira
vez com nitidez a tese de que “a maior parte da humanidade será345

34. SUAREZ, Fr. Tractatus de divinapm edeninatione et reprobdtione, livro VI,


cap. 3: “Situe major números praedestinorum, an reproborum?", cm 0/h ‘di
munia, ed. I,. Vivès, Paris, 1856..., 1, p. 524-552.
35. SAINT JURE, Jf.-Ii, D t !<t eonnahmur et amourdu F ils <ltD ietu 1634, I .
III, cap, IX, scct. ( àm,soltei a cil. de Pai is, 1666, p. 70') (a 10" ed, deste in
I de 035 p. I). Sobre este jesuíta "bõulllano", 11. notadamente BREMl )NI >,
II. / lisio ire.,,, III, p, 2SM >/').
U>. hOURUAEnUI-, /VwuVt utv tiliri\ W¡>‘h ifr irllgioil d ( momh' dil sa
hit", ctl. das ( ¡'iwivt ivm/t/lli11, Eatis, IMK), at|lll XIV, p, 110 I II.

IVIO
salva”.r Professor nu colegio ele Palermo, Gradina publicou em
1762 a obra de um de seus confrades falecidos, o Padre Plazza,
Dissertatio cu la g o te a , ibeo lógica, paraenetica de paracliso, inse­
rindo nela um capítulo sobre o número dos escolhidos. É revela­
dor que a obra suscitou um protesto geral nos meios eclesiásti­
cos de Palermo e que foi condenado pela Congregação, cío Index
em 1772. Todavia, delineava-se agora urna corrente que, notada-
mente entre os jesuítas e logo entre os ex-jesuítas, mas também
fora da Companhia, ia na mesma direção que Gravina. O Padre
Perrin (f 1767), dirigindo-se aos rigoristas jansenizantes, dizia-
Ihes: posso eu amar um “tirano impiedoso e bárbaro, um Deus
(|ue seria digno de meu ódio? Vosso Deus não é o meu; amo um
(|iie é pleno dè justiça e de clemência, e absolutamente não co­
nhece aquele que vosso' coração tenebroso forjou”.38 O capuchi­
nho Ambroise de Lombez, numa obra de título significativo, Tra­
tado da p a z interior, fazia a pergunta: se Deus fez saber aos san­
tos que os predestinava à salvação, “alguma vez pôs no espírito
de algum reprovado que ele o seria?”59. Um piedoso nobre de
ITanche-Comté, Lezay-Marnésia, acusava os discípulos de Port-
Royal (mas sabemos que eles não eram os únicos em causa) “de
tornar o Cristianismo quase impossível” e de reduzir Deus “a po­
voar o céu só de crianças mortas antes da idade da inocência”.'0
No século 19, Lacordaine, Ravignan, Monsabré, Cáístellein, etc.,
eforçaram-se por reverter uma crença de mais de mil anos. Lacor-
daire observou: “O pequeno número de escolhidos não é um
dogma de fé, mas uma questão livremente debatida na Igreja” e
acrescentou com ênfase: “Cristo tudo reparou, tudo abençoou,
tudo venceu e suas mãos generosas abraçam & universo”." Des­
de então, começou a ser combatida uma teologia que, na práti­
ca, tinha ensinado a falência da Redenção.

37. Em torno das mesmas datas, na França, diversas vozes - notadamente de


jesuítas - se ergueram para pleitear em favor da salvação dos pagãos virtuosos
e de. um Deus que não fosse um “tirano impiedoso e bárbaro”: FAVRE, R ..L a
M o rí au siecle des Lum ières. Lyon: P y, 1978. p. 99-103.
38. PERRIN, Ch. J. “Sermón sur l’amour de Dieu”, em M IGNE, Collection
LUI, col. 1.048. Citado em FAVRE, R. L a M o r t..., p. 100.
des om teurs sacrés,
Para toda esta exposição eu me inspiro neste livro, p. 99-107.
39. LOMBEZ, Ambroise de. Traitéde ¡a p a ix intérieure, 5. ed., 1776, p. 239-242.
40. LEZAY-MARNESIA, Pernees, em P lan de lecturepotír unejeim e dam e, p. 153.
41. LACORDAIRE, Conférence de N otre-D a m e, 1851: CEuvres cóm plices,
Bruxelles, 1854, IV, p. 121.

r>-i7
P o d o , s e m e d i r o » iim ln t i« • p* u n í t i d o e m m enos de duzcn
io s u n o s p o r e s ia fr a s e d o < u id c a l M a m i la e m l % 7 , n o p r e fíle lo
d e u m a A p r e s e n t a r ã o d o J o n i t o l h o e d it a d a p e l o s e c r e t a r ia d o r o ­
m a n o p a ra o s n ã o cre n te s: Nenhum hom em p o d e j u l g a r s e al
g u é r n i n c o r r e u e m s e m e l h a n t e d e s g r a n a |o I n f e r n o l . S ó D e a s s a h e
q u a i s s i l o e s s e s h o m e n s e s e e l e s e x l s t e m " . ,J

o homem criminoso e
o deus terrível
Aquela reconfortante declaração de Lacorclaire anterior­
mente citada, o grande Ama nid e muitos outros com ele feriam
oulrora respondido: “A natureza humana é uma mulher possuída
pelo diabo”.1* “Nós somos doentes que precisam ser curados e
pecadores que precisam ser punidos”44 e, na “vergonhosa neces­
sidade de corar pelas ações mais naturais, mesmo quando são
permitidas”.'4 Fórmulas extremas certamente, pelo menos aos
nossos olhos de homens do fim do século 20, mas elas esclare­
cem o vínculo estreito conmínente estabelecido pelos antigos
teólogos,entre o pequeno número de escolhidos e a enormidade
do pecado em geral e de cada erro em particular.
Do ponto de vista cristão, a história humana é, sem dúvi­
da, uma história do pecado, mas ela é ao mesmo tempo uma his­
tória da salvação. “E em virtude da superioridade da graça sobre
as forças do mal que a revelação cristã tem o direito de se cha­
mar uma 'boa nova’.”46 Ora, no discurso doutrinai pronunciado

42. Cf. Documentation catholiqúe, n. 1.491, 2 abril 1967. t Espérame qui CSl
en twus. Breve présentation de la fo i catholiqúe par le secrétariat pour les non
( íircticns, IVefácio do Cardeal Marella. ,
43. ARNAULD, A. CEuvres, Lausanne, 1775-1783: t. XVII, Seconde apologic
de Jansénius, p. 331. Citado por GROETHUYSEN, B. Origines..., p. 140.
44. Képonse de M** à M. 1'bêque de** sur cette question: y a-t-il quelquè remi­
de ítux tnaux de 1’Eglise de Francf, '1778. Citado por GROETHUYSEN, IV
Origines..., p. 136.
45. ARNAULD, A. SecondeapologiedeJamlnlus (t. XVII das CEuvres), p. 140.
Citado pttr GROETHUYSEN, IV Origine* , p I D
46. Une huroduetion /) tu fo i catholiqúe I e t nh'ihione holfandais, TouIounc,
Privai, 1968, p. 345.

r>48
com maior livqOtTuiu anlcs da revolução religiosa de nossa épo­
ca, o pecado aparecia com o o essencial da existência, e a noção
de circunstâncias atenuantes não estava claramente estabelecida,
salvo pelos casuistas desprezados por Pascal. Depois do pecado
original, Deus tornou-se um credor terrível apresentando ao ho­
mem uma dívida à qual ele não podia nem se furtar, nem saldar.
O Homem crim inoso..., esse é o título de uma obra publi­
cada em 1644 por Jean-François Senault, capelão do Cardeal de
Bérulle, mais tarde quarto superior do Oratório e considerado o
melhor pregador de sua época474 8- seus sermões eram vendidos
em manuscritos. Hostil ao jansenismo e favorável ao Formulário,
Senault é um excelente representante do agostinismo ortodoxo
dentro da Igreja Católica. O “homem criminoso” ofendeu a Deus
pelo pecado original. Desde então, “o sol está manchado por ilu­
minar culpados... e a luz deixa de ser inocente quando ilumina
criminosos”. Mas esse é apenas um dos aspectos da punição co­
letiva e geral decidida pelo Todo-Poderoso:

Porque parece que a justiça divina trata os pecadores como a


justiça humana trata os maiores criminosos. Esta última nãq se
contenta em punir um culpado na sua pessoa, ela descarrega
sua cólera sobre seus filhos e seus escravos, ela crê que tudo
aquilo que lhe toca está sujo; ... ela mistura o sangue dos filhos
com o do pai, envolve numa mesma punição o inocente e o
culpado e, para tornar o crime mais odioso, ela pune tudo o
que pertence ao criminoso. F.la nào poupa sequer as coisas in­
sensíveis, ataca os mortos depois de ter castigado os vivos: pois
ela põe abaixo as casas e arruina os castelos do inimigo, quei­
ma o que nào pode ¡derrubar, e como se o culpado vivesse em
cada parte dê suas obras, ela pretende dar-lhe tantos mortos
quantos sãó os edifícios que destrói... É assim qüe a justiça di­
vina trata o homem pecador."1

Senault prossegue afirmando que o “nascimento” dos ho­


mens “produz todo o seu crime. Basta que Adão seja seu pai para
tomá-los culpadqs”. Deus então não tem necessidade de esperar
“que eles violem seus mandamentos para puni-los: ele lhes ante-

47. Cf. BREM OND, H. H isto ire ..., notadamente III, p. 218-219.
48. SENAULT, J.-F. LH om m e crim inel ou la corruption de la nature p a r le pe­
ché selon les sentim ents de sa in t Augustin, Paris, 164 4 , p. 854-855.
cipa o uno iki r.i/.ii i, r m t<MMil mhctávcl antes (ki Idade, >i Um de
<|iic se solha que eles são i (i l i t « ».*• antes de sou nascí ment<>"
l)o liiio, o pecadoi duplamente criminoso porque ele
provoca ii morto nào apenas de si mesmo, mus liimhom cio I >eus
I Hcrulle que o afirma:

A grandeza de nossos pecados, escreve ele, |é uma| guíale


/.a perniciosa e abominável, grande/,a de uma eficácia ruinosa
e mortal, grandeza poderosa c. eficaz para provocar a morte,
nao apenas do homfcm, mas do próprio I lomem-Deus: grande
/ a anl(|Ullaclora, nào apenas os pecadores, mas de certa marici
ra o próprio Deus, tendo-se feito homem quando quis imlqitl
lar o pecado, Tez pecar a si próprio; e vítima pelo pecado, se
guntlo seu apóstolo, submisso, cativo e como escravo üob i
força das trevas.'"

T.ssa análise difere sensivelmente do ensinamento bíblico


que, sem dúvida, nào apresenta um Deus indiferente como o de
Aristóteles, mas o mostra fora do alcance do pecado. I dito cm
|i (7,19): "Taxem libaçòes a deuses estranhos para me ferir, Será
(|iic <■ a mim que eles ferem, oráculo de Javc, nào sera antes a >*l
mesmos por sua própria confusão?" e em Jó (3S,6): "Se tu pe» as,
em que o atinges? Se multiplicas tuas ofensas, tu lhe causas al
giim mal?".
(ontagem reveladora: numa obra clássica como o D o /\v
/e. ilniilhns niorlbuscjue dtvínis (1620) do jesuíta kessius (j I62.D,
advenirlo de liaíus, o índice por matéria comporta mais remes
sus ,i palavra pecado" do que a qualquer outro assunto aborda
do na obra; além disso, os livros XI e XII que tratam da "bonda
de" e da "misericórdia’’ de Deus só tota lixam 147 páginas na edl
eáo de I 8 7 V enquanto o livro XIII ("Da justiça e cólera de
Deus") cobre 214. Santo Tomás definiu o pecado mortal como
uma vontade de desviar-se de Deus, kessius deduz, que essa <ir<r
slo comporta “desprezo" e “Injúria” em relação ao Legislador m i
premo.'- T.ssa injúria é patente mesmo que nào seja formulada
numa blasfêmia ou num gesto de ódio caracterizado, Se Deus

4‘). Ibkk, |>. 8*>V85G.


*50. m-.RUl IT. (Euvm ivtnp/ètcs, Paris, 1644, p, 762 {(liuvm de pié té, XII, -I).
M. lá. kcthicllrux, Paris, .187*>,
LLÍSSIUS, !,. D ePerftcthnibui,■, I. XIII, p. 484 48\
n . i o e x i s t i s s e , t o d o s o s p i s a d o s . s e r ia m v e n l a l s . M I ) a m e s m a m a ­
n e ir a , s e m a s p r o i b i ç õ e s d i v i n a s , .1 s i m p l e s t r a n s g r e s s ã o d a le i n a ­
tu ra l t a m b é m n ã o s e r ia p e c a d o m o r t a l. "
Mas a "l.el eterna" existe com seus mandamentos.. O -pe­
cado mortal é o "desprezo” destes últimos. Portanto, ele está
carregado de uma “malícia infinita". Porque um único pecado
mortal "contém a malícia de todos os pecados juntos”5 45 e equi­
5
3
valí' ao desprezo de “toda a Lei".565
7Ele m erece então a pena.eter-
na e pelo seu “simples peso” que é “imenso” ele arrasta para
o Inferno.58 “H tão grande a malignidade do pecado mortal que,,
colocado sobre o prato da balança divina, ele ultrapassa todas
as boas obras de todos os santos, mesmo que estas fossem mil
vezes mais numerosas e maiores do que realmente são: consi­
deração verdaderam ente terrível!”59 Todo pecado mortal, por­
tanto, é “por sua natureza irremissível, salvo pela reparação de
Cristo”.60 Nenhuma criatura pode oferecer reparação pelo seu
pecado.61 Nenhuma dor, nenhuma contrição apaga o pecado se
o perdão gratuito de Deus não intervier.62 Enfim, não é injusto
que “toda uma multidão seja punida (na terra) pelo pecado de
um só ”, com o acontece aos israelitas por causa de Davi,6-5 sen­
do aliás certo que a acumulação dos pecados “precipita a vin­
gança divina”:64
Deve-se nào apenas evitar o pecado mortal, mas também
nào acrescentar os pecados veniais. Lessius lembra a esse respei­
to a concordância unânime dos doutores. O abuso dos pecados
líienores esfria o fervor, impede a ajuda divina, dispõe para uma
queda mais grave. E o jesuíta cita Santo Agostinho (De Decem

53. Ibid., p. 485-486.


54. Ibid., p. 4 8 6 -4 8 7 .
55. Ibid., p. 4 8 7 -4 8 8 .
56. Ibid.
57. Ibid., p. 4 6 7 -4 6 8 e p. 5 0 2-503.
58. Ibid., p. 251.
59. Ibid., p. 488.
60. Ibid., p. 251.
61. Ibid., p. 488-489.
62. Ibid., p. 4 9 4 -4 9 5 .
63. Ibid., p. 380.
64. Ibid., p. 381.

551
( hoi'í/ls),'" "( ) pecado venial iu I h i d in iin l in . il t o m o o l e á o q u t ?,
n u il u n í s ó g o lp e , n o s <| im i> i.1 o pi tençn M us m u it a s ve/,e s .11
guns animal/inhos, mullo m iiu e io .... . 1,unhem matam, Joguem
alguém num lugar cheio ele pulga1., sera que d e nào morre?
(lomo sào minúsculos os graos de arela, mas encham com eles
um navio, este afundará a ponlo de naufragar, domo sào peque
nas as gotas da chuVa! Mas nào sào elas que enchem os rios e
derrubam casas? Então, nào desprezem os pecados veniais”.''"
Essas considerações nào se juntam apenas ao tema e à ico­
nografia há muito já clássicas da solidariedade entre os pecados,
expressa pela árvore dos vícios ou a corrente dos pecados." Elas
pretendem confirmar um versículo cie Sào Tiago (2,10): “Aquele
que observa a Lei inteira, se cometer um desvio sobre um único
ponto, é do todo que se torna culpado”. Como acontece freqüen
temente, essa fórmula, fora de seu contexto, foi dramatizada. Por­
que o apóstolo explica logo clepois: “Se tu evitas então o adulté­
rio, mas cometes um assassinato, tu te tornas transgressor da Lei”
(2,1 I >. E por isso que Santo Tomás de Aquino dedica-se a mati­
zar a fórmula: “Aquele que cai num sõ pecado está sujeito a to­
dos os outros”. “Qualquer ato, explica ele, não suprime a virtude
contrária. O pecado venial não suprime nenhuma virtude... Um
único ato, mesmo cíe pecado mortal, não destrói o hábito da vir
lude adquirida. Somente quando os atos se multiplicam a ponto
de engendrar um hábito contrário, o hábito da virtude adquirida
desaparece”.08 Um pouco mais adiante, dentro da mesníia “ques­
tão”, o doutor angélico julga também que “a diferença de gravi ­
dade se apresenta para os pecados como para as doenças... fe
quel um pecado é mais ou menos grave conforme-ele incida so­
bre um ponto mais ou menos capital”.6 89
7
6
5
A despeito dessas análises serenas, é mais freqüentemente
a dramatização que prevalece no discurso religioso do passado.
Num sermão pregado em Bruges, o franciscano Olivier Maíllard
(f IS02) dizia a seus ouvintes:

65. Patr. Lat., X X X V III (sermão IX ), col. 88.


66. Texto citado em LESSIU S, p. 398.
67. Cf. anteriormente, p. 265-272.
68. SAINTTHOMAS [TAQUIN, Soinm? i/i/oliiyji/ur, I 11-, qu. 73, art. I:
L<‘ Péché, I, p. 88 (etl. Descido dc Ilmiivvn).
69. Ibid., art. 3, p. 96-97.
Ivsi.i i' tiiiiu |k'Ii i dedo ilc Deus, diz o bendito sao Tingo, que
aquele (|iii‘ guardai tocia a Ici e laltar num dos mandamentos sera
culpado de iocIon os outros. Com certeza, senhores, não basta
apenas dizei: eu nao sou assassino, não sou ladrão, não sou adúl­
tero. Se faltares ao menor (és culpado de todos) (situa-se aqui a
extrapolação cio texto de São Tiago: “o menor” não é sinônimo de
“um só”). E Maillarcl prossegue: “Basta apenas um pequeno furo
para afundar o maior navio que esteja no mar. Basta uma peque­
na poterna para tomar a cidade mais forte ou o mais forte caste­
lo do mundo. Basta uma pequena janela aberta para roubar a
maior e mais poderosa loja comercial que existe em Bruges”.’"
t
Em contrapartida, Gerson escreveu, como lembramos,7 71
0
um tratado bastante matizado sobre O Proveito de saber qual é p e ­
cado mortal e venial, no qual notava que “não chamamos mor­
tais os sete pecados, orgulho, inveja, ira, avareza, preguiça, luxií-
ria, gulodice, porque tóelo orgulho ou toda ira, assim como os
outros, seja pecado mortal, mas freqüentemente é venial,,.".
Para Gerson, só o “pleno consentimento” cria o pecado mortal
Mas esse ponto de vista humano será o de Deus? Teodoro de
Bèze nào pensa assim e exclama nas Meditações Cristãs-. “Ó Deus
que disseste que o meio de não ser julgado é julgar a si mesmo,
eis aqui este infeliz que reconhece diante de Ti e de teus anjos,
diante do céu e da terra, que o menor pecado entre um milhão
é mais digno cie tua cólera tão terrível que nada a poderia supor­
tar, porque ninguém é igual a Ti”.”3 Bérulle nesse aspecto junta-
se ao amigo e sucessor de Calvino acumulando estas fórmulas
surpreendentes: “O nada e a privação da graça a que o pecado
nos reduz é muito mais prejudicial e deplorável que o puro e
' simples nada de ser em que estávamos antes da criação”.717 4“Um
pecado leve pesa mais na balança de Deus do. que pecado gra­
ve”,75 e ainda: “Não se pode considerar pequeno nenhum peca­
do pelo qual o sangue de Cristo foi derramado”.76

70. MAILLARD, O. Sermons etpoésies, ed. A. de la Borderie, Paris, 1877, p. 6-7.


71. Cf. anteriormente p. 256 .
72. G E R SO N , LCEuvrefrançaise (ed. Glorieox), n. 328, p. 371.
73. BÈZE, T h . de. Chrestiennes méditations (meditação sobre o salmo V I), p. 54.
74. BÉR U L LE , CEuvres..., p. 443 (Preâmbulo a La vie de Jésus, X I).
75. Ibid., p. 27 (T raitédes énergumenes, cap. V II, 2).
76. Ibid., p. 90 2 {CEuvres d epiété, LXXXV, 1).

553
I )(• imilK'lm COIlCl H'tliIMU I' l a til l.il.t das " ( '( )IVSl*(|lU',I K ,l;l.,« e
seqüénclus.,, terrível» don utlitlim |m ,iili i* M ía irmdjacque
llnc da esta orientação as religiosas eruanegadus tías eriancas tle
l’orl-Royal: "li bom c|iic Has las menlnasl nao laçam tanta dlle
renca entre os graneles pecados »■ u-, menores para sentirem me
nos horror, li por Isso <pk* devenid» tll/ei lites (|ite para urna alma
<|ue ama a Deus, náo há nada de pom a eonseqiiéneia”. " l;ol sem
diivkla urna educação desse tipo (|tie Maria Teresa da Áustria ll
nha recebido na sita Pispan ha natal, embora longe das orlas <ln
jansenismo. Na oração fúnebre c|ue pronuncia em sua liorna,
bossuet nota: “lila nào compreendia como se podia voluntarla
mente cometer uní só pecado, por menor que fosse, linldo ela
nap dizia: ‘ti venial’; ela dizia: ‘li pecado’, e seu c o r a ç ã o Inocen
le se transportava. Mas, como escapa sempre algum pecado a Ira
gilldade humana, cia nào dizia: Ti leve’, mais urna vez, T i peca­
d o ’, dlzla t“la’’. Antes, Bossuet tinha exclamado: "Cristão! T u sabes
muito bem a distinção entre pecados veniais e mortais’’,"’
A ê n fa se c o lo c a d a p e rp e tu a m e n te so b re o p e c a d o t e n d ía ,
por um a in e v it á v e l c o n t r a p a r t id a , a a u m e n t a r a im a g e m t e r r ív e l
do D e u s j u iz . lis t a i m a g e m , c o m o s u c e s s o c r e s c e n t e d a lile r a lu
ra a p o c a l í p t i c a d e p o i s d a P e s t e N e g r a , a s s u m i u u m d e s t a q u e s u i
p r e e n d e n t e n a liu r o p a d o s s é c u lo s l í - 16 . T a p e ç a r i a s , v it r a l» , Il u
m ln u r a s c g r a v u r a s m u lt ip lic a r a m as re p re se n ta çõ e s d o 1’l l h o - d o
I l o m e m - c o m - u m a - e s p a d a - e n t r e - o s - d e n t e s . ’* ’ L e m b re m o -n o s d<>,s
te m o re s c o n fe ssa d o s por h u le r o : ‘T i u nào a c re d it a v a em C ris t o ,
m as eu o tom a va p o r u m j u i z s e v e r o e t e r r ív e l, tal c o m o o p in
ia m se n ta d o so b re um a r c o - í r i s ”;’" e a i n d a : “M e u s c a b e l o s se a r­
r e p ia v a m na cabeça quando eu p e n sava n o j u lg a m e n t o f i n a l ” ,’"
lis s e ju iz t in h a - s e torn ad o um g u a r d a - liv r o s r ig o r o s o m an te n d o

T J. PASCAL, Pemiles, n. 506 da cd. Brunsdivicg.


78. PASCAL, J. "Règlcmcnc pour les enfants dc Porc-Royal", cm l em es, opus
cu le s..., p. 285.
70. BOSSUET, (luanes rompibles (cd. Rcnncs, 1862), I, p.,453.
80. Pensamos aqui, entre outras, na tapetaria dc Angcrs, na do Apocalipse lia
mengb de por volta dc 1400 c conservada na BILI. Nae. (B.N. neerlandesa, 3),
na de Dürcr, etc.
Ml. I.UTHER, Wcrke, cd. Wclmar, XIV, p. IH Lxjdlcntion de jean, I I: Io
(1537). Citado porSTROlIL, II. /mhee/uu/nen /5JV, p, 5,’,
8.’. LUT1IP.R, Weeke (mcsinn cd XXXVI, p 55.L I spliiaçío dc iCor, 15
(1534), citado em llild. p '<'
registro dos l;iin\ c gestos de cada homem. Daí a evocação, por
exemplo em Alhl, dos humanos comparecendo no último dia
diante do tribunal divino trazendo, pendurada no pescoço, a lis­
ta em duas colunas de todas as suas ações, boas e más.
Os textos garantem uma longa sobrevida a essas imagens.
O guarda-livros supremo estabelece quando a “medida” dos pe­
cados cie uma comunidade está “cheia”. Lessius insiste sobre
esse tema recorrendo a numerosos exemplos tirados do Antigo
Testamento (o Dilúvio, a destruição de Sodoma e Gomorra, etc.)
e adverte seus contemporâneos: “Eis aqui algo muito digno de
consideração: quanto mais numerosos são os ímpios que, numa
república cristã qualquer, pecam impunemente, tanto mais rapi­
damente se enche a medida, e mais pesada e mais pronta será a
vingança que ela. deve esperar”.83 Mas essa noção de “medida
cheia”, ligada aqui à idéia muito antiga de que a Divindade pune
já aqui na terra as coletividades culpadas, é interiorizada e indi­
vidualizada por Tronson. Uma das meditações que ele propõe
aos seus ouvintes no retiro religioso trata com efeito “cio núme­
ro dos pecados” e da “medida das graças”.84 Que todos se lem­
brem, diz ele, das “três terríveis palavras” que o orgulhoso Bal­
tazar viu escrever na parede da sala onde “ele enchia a medida
de suas iniquidades”: M ane, Tecei, Phares, isto é; “contado, pe­
sado, dividido”. Tronson deduz daí cinco “verdades”. A primeira
é que Deus, de toda a eternidade, contou os dias e momentos
de nossa vida “que é impossível ultrapassar”. Do mesmo modo,
“ele sabe também o número tanto dos pecados que tem a inten­
ção de sofrer de cada homem, com o das graças que resolveu
lhes dar”. Daí se segue - é a segunda verdade - que “do último
pecado cometido que enche essa medida, ou a última graça re­
jeitada, que é a que completa esse número, depende a decisão
de nossa eternidade”. Então não há mais graças a esperar, e... “a
misericórdia de Deus está esgotada para nós”. A terceira verda­
de é.q u e “essa medida dos pecados é diferente em relação a
cada homem; vós direis o mesmo das graças: porque para alguns
esta medida é maior, e para outros, menor”. “Ora, saber quanto
falta [em pecados] para encher vossa medida, declara Tronson
aos ouvintes, é o que vós não sabeis; talvez depois de todos
aqueles que cometestes, faltará apenas um”. A quarta verdade é

{
83. LESSIUS, D e P erfectionib u s..., n. 65, p. 381.
84. É a “meditação IV do 3o dia”: R etra ite..., p. 129-131.
que o ultimo pecado "que t tu lii .1 medida ii.io o de outra expé
( Ir, nrm (Ir QUtra naluu va qm m t tul i<>*•, urm r nrrrss.u io <|i|r
r lr seja malor". A última Ilota da vida que precipita na morir
será mala longa do que as Otilias? A <|uinta verdadtj d eto n e das
p rrrrd rn lrs: este ultimo priado "que encherá vossa medida,..
Ulive/ só chegue dentro de vlntr anos; talvr/ d e/; talvez este
ano; tal v e / lioje”. líntáo temamos todo pecado "como a morir c
a morte eterna”.
Uourclaloue usa a mesma linguagem sobre a aritmética di
vina num sermão sobre “a cegueira espiritual”:

Tende cuidado, diz ele a seus ouvintes, para que essa honda
de Ido Senhor] enfim nào se canse e temei a própria paciencia de
um Deus que golpeia tanto mais rudemente quanto mais tempo
releve seus golpes. Quem sabe se ele resolveu esperar mais?
(v)uem sabe se nào será depois do primeiro pecado que ides co ­
meter que ele apagará para vós suas luzes e vos cegará? Quem
nao deverá sentir-se tomado de pavor pensando que há um pe
cado que Deus marcou como o último termo de su a graça, en
digo daquela graça poderosa sem a qual jamais nos salvaremos?
Qual é esse pecado? bu nào posso conhecê-lo; depois de qué nú
mero de pecados ele vira? tí o -que ignoro; de que natureza, de
que especie ele é? Outro misterio para mim; será um pecado par
ticular e extraordinário? Será um ‘p equeño ordinario e comum?
Abismo onde nada descubro, l udo o que sei, ó meu Deus! 6 qui­
nao devo esquecer nada, economizar nada para prevenir a des
graça com que vós me ameaçais.”*'

I'.ssas advertências surpreendentes e cujo efeito sobre o au­


ditorio pode-se adivinhar juntam-se a uma grande quantidade de
outros documentos distribuídos através dos séculos e que deram
uma imagem alarmante de Deus. Uma rápida contagem revela
que S() provérbios em uso na França no século 16 estabelecem
uma relação entre pecado e punição e 5 apenas entre pecado e
perdão,"” () que aconteceu com aquela "misericórdia” paterna xo
b r e a qual insiste em nossos dias João Paulo II na bncíclica D eu s
rico om misericórdia? Num sermão, Tauler compara Deus a um

HS. UOURDAI.OUb, trhuc Srrmuii "Sm l'iivrii^lnnoni Npiiltucl", em


M K íN b , Colitction f/ts omitan uim1t, X I V , »«»l '<)'>,
Híi, Devo cMit ItultcaçBo .i I Unid Itivió»
calador que nos encurrala com castigos e tentações. É bem ver­
dade que e para nosso bem:

... Deus não quer ser o único a nos castigar, ele quer que seja­
mos punidos por todas as criaturas. O homem é perseguido
como uma caça que se quer oferecer ao Imperador; ele é caça­
do, dilacerado e mordido pelos cães, e assim ele é muito mais
agradável ao Imperador do que se fosse apanhado suavemente.
Deus é o Imperador que quer comer a presa apanhada na caça.
Ele tem também seus cães de caça; é o Inimigo que caça o ho­
mem com tentações de toda espécie; ele desliza sobre ti de to­
dos os cantos, de toda espécie de maneiras e te caça por múlti­
plas tentações; às vezes, é o orgulho, a avareza, vícios de toda
espécie, outras vezes por um abatimento e uma tristeza desorde­
nada. Caro filho, aguenta firme, isso não te prejudicará em.nada;
é necessário que tu sejas caçado/’

Um biógrafo de Santa Joana ele .Chanta!, cuja obra foi pu­


blicada em 1653, escreve que “Deus a tratou como trata aquelas
grandes almas de uma têmpera inteiramente celestial, cujos lon­
gos sofrimentos ele recompensa com novos suplícios a fim de
tornar sua fidelidade mais depurada, seus serviços mais gloriosos
e suas penas mais'dignas cie coroas”.8 888
7 0
9
Documentos desse teor ajudam a perceber a passagem cie
uma imagem já severa do juiz supremo ( “Deus paga tudo”, ensi­
nava um provérbio em usò no século 16) para a de uní Deus
“perverso” à força de justiça.8” Boaistuau, que lançou na França
no século 16 a moda cias Histórias prodigiosas, escreveu também
- nós já o utilizámos" - um Teatro do m undo... que eleve muito
aos anatemas medievais contra o mundo. Esta obra nos interessa
de novo aqui porque o autor, no impulso cias danças macabras,
desenvolve a idéia de que na morte cada um tira sua máscara.
Nesse momento, não há mais nem reis, nem condes, nem barões,
mas- ^penas homens. “E então o Senhor que está no céu ri cie

87. TAULER, Serm ons... (“2' sermón ponr le saint sacrement”): II. p. 93.
88. TOUR, H. de Maupas du. La Vie de la vénérable M ère Jea n n e Françoise
Paris, 1644, p. 443.
Frem iot de Chantal,
89. Cf. BELLET, Mi Le D ieu p ervers. Paris: Desclée de Brouwer, 1979. Nota-
damente p. 168-175.
90. Cf. anteriormente p. 137.
m u .'. I<uicurás, I.K.mlu'i i v a líItitU in mih>lr,«l<,nuinlui I)¡ivl), ñus
de um riso tào ¿ik’ii.idi*i, qu* m i . I i mu oIIht tic metió e tremer
toda a térra"."1 Deu.s s.u tuIUl<> |mi uiTi liso enorme e medonho
diante das vaidades humana*., i|iir t'Mi.inho espetáculo! Hntrelan
to, essa representação do l'<>tlo hodeioso |unla se de certa manel
ra ao Caçador de Tauler, ávido de "lomee a cava”; e a esta allí'
maçáo tío célebre pregador cego tio século 17, o Padre Lejeune,
num sermão “sobre os energúmenos": ' <)s divertimentos ordiná­
rios de Deus é de vos ver hitar corajosamente contra o leão rugi ­
dor”.''-’ Os fenômenos de possessão demonstram justamente que
Deus utiliza Sata para por à prova os humanos e manifestar sua
gloria ou suas vinganças. Daí esta declaração que não está mui­
to longe do pensamento do Padre Lejeune, colocada na boca ¿le
Deus por um texto saído dos meios “convulsionarios” do século
18: “Deixai-me jogar no .meu furor um jogo terrível”."'
Um Deus “totalmente ocupado em vingar-se” dos conde­
nados, fazendo escorrer sobre eles “fontes inesgotáveis de betu­
me e de enxofre”: assim o descreve no século 18 um técnico da
pregação."' A imagem do Deus terrível foi durante muito tempo
familiar ã elite religiosa do Ocidente. Como prova, entre muitas
outras, aquilo que se escreveu no século 17 sobre M. de Quério-
let, conselheiro no parlamento de Rouen, que se “converteu” ante
o espetáculo dos possuídos de Loudun, tornou-se padre e, ele
próprio, um reputado exorcista:

... Novo Saul, caído e prosternado por terra, lele estava] tào trê­
mulo e tào assustado que jamais ousou depois elevar os olhos
para o alto, a não ser para considerar os raios e trovões que de­
viam esmagá-lo e reduzi-lo a pó. O temor o mantinha sempre de
olhos no chão; e ele se apegava a isso fortemente para refrescar
sua memória da horrível visão que tinha tido do inferno, onde
seu lugar estava marcado, e onde ele ficaria para sempre, se Deus
o castigasse segundo a enormidade de seus crimes... ele ficaria91234

91. BOAISTUAU, P. Le Théâtre du m o n d e..., ed. dc 1572, dedicatória, II1.


92. LEJEUNE, J. Serm ons, 12 v., Lyon, 1825-1826: XI, p. 348 (sermão 323
“Dc Ia possession").
93. KURAI., R. Elude de deux manuserils de eonvulyionihiim jaménistes du mi-
lieu dtt XVJÍJP siècle, memoriçil demostrado, ms, dai l'arls I, 1971, p. 127-128.
94. M ONTARGON, H. dc D lellon tiu he .//'mm/ó/m, l UH, II, p, 382. Cata­
do por G RO ETHUYSEN. B. O n lin e i , p MM

558
extremam»'lile ,i|mvn,slvo ele cair entre as mitos de um Deus en­
furecido conlra ele...
lile pensava e repensava sempre em seu espírito àquilo que ti­
nha lido e ouvido pregar sobre o pequeno número dos Eleitos...
Ruminava sem cessar o rigor dos julgamentos de Deus, o horror
da morte, a fúria dos condenados, e as penas inconcebíveis das
almas que estão nas chamas do purgatório..

O pessimista Nicole, cujos Ensaios de moral (muito lidos


no século 17) consagram um “tratado” ao “temor de Deus”, evo­
ca a justiça divina em páginas alucinantes, dificilmente superá-
veis.% Considerando o “número terrível” dos reprovados (porque
mesmo dentro da Igreja o número de maus cristãos é “prodigio­
so”), Nicole calcula que “todas as pessoas cegas e entregues à sua
paixão,, são provas do rigor da justiça de Deus”. “É ela, prosse­
gue ele, que as entrega aos demônios”, os- quais as dominam,
zombam delas, enganam, lançam em mil desordens, afligem nes­
te mundo por uma infinidade de misérias para precipitá-las em
seguida no abismo eterno. “Assim, o mündo é um lugar de suplí­
cios, onde pelos olhos da fé só se descobrem os efeitos terríveis
da justiça de Deus”, enquanto “a boca do inferno éstá sempre
aberta, e os grandes e os pequenos, os ricos e. os pobres entram
misturados a todo instante”. Retomando por sua conta um versí­
culo de Jeremias (47,6), Nicole exclama: “Ó espada da justiça de
Deus, não descansais nunca? Enchereis sempre a terra de mortos?
Não cessareis nunca de desolar a própria Igreja?...”.
Traçando a imagem de Deus tal como era proposta pelos
teólogos, chegamos ao próprio centro de uma história das men­
talidades, a qual descobre um vínculo entre depreciação de uma
humanidade terrivelmente pecadora e rigor do juiz supremo. A
cólera deste último foi tamanha que ele nem sequer teve pieda­
de de seu filho.
Semelhante doutrina tinha o aval dos autores espirituais
mais penetrantes e dos bispos mais autorizados. Tronson a toma
para si e a explica aos participantes de seu retiro para mostrar-lhes956

95. D O M IN IQUE DE SAINTE-CATHERINE, Le G randpécheu r convertí


représenté dans les deux estats de la vie de M , de Quériolet, prestre, conseiller au
parlem ent de Rennes, 1677, p. 358-362.
96. NICOLE, P. Essais de morale, ed. 1725 em 14 v.: I, p. 125-135 (3o tratado
cap. V).

559
;i tMiornilcliitlc cío pt'i¿ui»», |,i que |. ar. ae deu como guruntlu pe
los pecadores" e .so cobre da "a|imOiu l.i iIo pecado", enlão "Deus
Pal o abandona, entrega o .1 lm 1,1 dos puUmim, trata <>como o mais
abominável dos homens; c após uma infinidade de opróbrlos, de
Ignomínias e de sofrimentos, sem lei nenhuma consideradlo e de
que ele é seu ¿Pilho, o faz morrer pelo suplício mais vergonhoso
e mais cruel que jamais existiu... lile exerce sobre ele sua ylrigan
va, como se ele nào lhe pertencesse. Será possível que o pecado
seja tão horrível para cobrir de horror o Filho de Deus e torna Io
abominável aos olhos desse terno Pal? Ó pecado, como és negro
e como és horroroso!”.97
Bossuet fala a mesma linguagem num patético sermào de
Sexta-feira Santa consagrado ao “divino leproso”. A ofensa feita
ao Criador pelo pecado original foi de tal dimensão que “era
preciso uma satisfação digna de Deus, e que um Deus a fizesse;
uma vingança digna de Deus, e que fosse também Deus que a
fizesse". Depois de assinalar esse crescendo da “satisfação” a
“vingança”, Bossuet não teme ir até o fundo de uma lógica que
obriga o Pai a oprimir o Filho:

Com efeito, só cabe a Deus vingar suas próprias injurias, e en­


quanto sua mão não age, os pecados só são punidos fracamen­
te: a ele só cabe fazer como se deve justiça aos pecadores; e só
ele tem o braço suficientemente poderoso para tratá-los segun­
do seu mérito: “A mim, a mim, diz ele, a vingança: ah! Eu sabe
rei bem retribuir-lhes o que lhes é devido” - mihi'vindlcta et
ego retribuam. Era preciso, então, meus irmãos, que ele próprio
viesse contra seu Filho com todos os seus raios: e como tinha
posto nele nossos pecados, devia pôr também sua justa vingan­
ça. Ele o fez cristão, não duvidemos disso. É por isso que o
mesmo profeta nos ensina que, não contente de tê-lo entregue
á vontade de seus inimigos, querendo ele mesmo tomar parte,
rompeu-o e esmagou-o com os golpes de sua mão poderosa: /:'/
Pombais voluit conterere eum in infirmitate (Is 53,10). Ele o
fez, disse, ele quis fazê-lo - voluit conterere; é por um desígnio
predeterminado...98

97.TRON SO N , L. Retraite... (III dh. mnÜi,isfln). p. 109-110.


vé. BOSSUET. CEuvivs, «I, Rcnne.. IMO,', 1 II, p I lll, Scmulo prominciiv
do entre 1056 c 1658.
Bo.hsium «onilmi.i mostrando que o Pai cNrlglu para o liliu>
o rqsto que apivNenu aos reprovados e “aquele olhar terrível que
acende o fogo diante de si’’. Ele marchou contra Jesus “com todo
o aparato de sua justiça”.
Bourclaloue - um jesuíta - nào tem outra imagem de Deus
para apresentar aos fiéis a não ser 6 Agostiniano Bossuet. Num
\ sermão — verdadeiro trecho de antologia - consagrado à Paixão
do Salvador ele evoca o Padre eterno que,

por uma conduta tão adorável quanto rigorosa, esquecendo


[que Jesus] é seu filho e considerando-o como seu inimigo (per­
doai-me todas essas expressões), declara-se seu perseguidor, ou
melhor, o chefe de seus perseguidores...; a crueldade dos ju­
deus não basta para punir um homem tal como este, um ho­
mem coberto dos crimes de todo o gênero humano; era preci­
so, diz Santo Ambrosio, que Deus interferisse, e é isso que a fé
nos revela sensivelmente...
Porque fostes vós mesmo, Senhor, que justamente transforma­
do num Deus cruel, fizestes sentir, não mais a vosso servidor Jó ,
mas a vosso Filho único, o peso de vosso braço. Há muito tem­
po que esperáveis esta vítima; era necessário1reparar vossa glória
e satisfazer vossa justiça: era esse vosso pensamento; mas vendo
no mundo apenas indivíduos infames, mentes criminosas, ho­
mens fracos cujas ações e sofrimentos nào podiam ser de ne­
nhum mérito diante de vós, eis-vos reduzido a uma espécie de
impotência de vos vingar. Hoje tendes como fazê-lo plenamente;
porque aqui está uma vítima digna de vós, uma vítima capaz de
expiar os pecados de mil mundos, uma vítima tal como desejá­
veis e como mereceis. Este Salvador pregado na cruz é o indiví­
duo que vossa justiça rigorosa preparou para si mesma. Golpeai
agora, Senhor, golpeai; ele está disposto a receber vossos golpes;
e sem considerar que é vosso Cristo, não lanceis mais os olhares
sobre ele a não ser para vos lembrardes que ele é nosso, isto é,
que ele é (nossa vítima e que, imolando-o, vós satisfareis aquele
divino ódio com que odiais o pecado...
Não é absolutamente no inferno que [o Senhor] se declara mais
auténticamente o Deus das vinganças, é no Calvário: D eus ultio
num D om inus (SI 93). É lá que sua justiça vindicativa age livre­
mente e sem opressões, não estando constrangida como em ou­
tras partes pela pequenez do indivíduo a quem ela se faz sentir:
D eus ultionum lib ere egit [Ibid.l. Tudo o que os condenados so-

r > d i
llVI'Ao r .11)CI|,i‘. iilllil 111>I i \ lllgillli i ele; esses lAIlgldos (Ir
tlc'IltC'S, esses gemidos t i i h(i|||i!i . • v.e,1*t higos <|lie jilinals
devem extinguir -se, lililí >i-m i ttit> • • iiiii Ia i ui quase nada em com
paraçíto com o sacilltclo ilr l< ui . < ih to ao morrer,'’”

Se Deus agiu assim contra seu filho hem amado, que dirá
contra nós? Kssa pergunta vem espontaneamente ao espírito e
Tronson nào deixa de fazê-la a cada um dos participantes do re­
tiro de Sáo Sulpício: “Se o pecado tem tanto horror era si, mes­
mo a ponto de pôr em fúria o pai contra o filho, e o pai tão cle­
mente contra um filho tão amável, tão caro e tão precioso, um
filho que forma um todo com ele: qual será o horror que dará a
Deus uma criatura tão abominável no nascimento, já banida e
separada dele, que tem em si mesma um fundo maldito, insu­
portável aos olhos de Deus? Enfim, se nosso Deus exerce sua
vingança, se ele faz passar pela fornalha uma madeira imprópria
para queimar Ijesusl; o que será da madeira própria para ser
consumida pelo fogo?”.100Esse destaque dado pelo discurso ecle­
siástico de alto nível à “fúria” e à “vingança” divinas explica a in­
sistência mil vezes assinalada nas obras de piedade, nos catecis­
mos c sermões sobre os “decretos” do “juiz infalível”, as “contas”
que será preciso prestar-lhe, a “condenação” pronunciada sobre
a humanidade “após o pecado original”, o “terrível” julgamento
pailleular, "o tribunal da penitência” e os Padres “juizes” estabe-
lei Idos para abrir ou fechar o céu por meio de suas sentenças.101
lambem os pedagogos ensinavam com Pierre Coustel: “A felici­
dade do homem sobre a terra consiste, diz São Bernardo, a te­
mei mullo o S en h o r... Para isso deve-se mostrar bem às crianças
os terríveis eleitos de seus julgamentos na punição dos anjos re-
bi Ides no céu ”.1"* Numa pequena coletânea de piedade impres­
sa em 17,30 na intenção dos alunos do colégio oratoriano de An-
gets, recomenda-se aos estudantes que roguem a Deus tremen­
do “exalamente com o o infeliz acusado quando ele se expõe aos

BOURDALOUE, M ystbes. Sermão IV: “Sobre a paixão de cm


MKiNI'., Collection des orateurs sacrés, XIV, col. 1.033-1.034.
100. TRON SON, I.. R e im te ... (III" dia, 2* medicação), p. 111-112,
101. Esta última formula por exemplo no Catécbism c de Bayeux, 1700, p. 143.
t )l. por outro lado GROETHUYSEN, B. O rig in es..., p. 67-88.
102. CO U ST IT , lí Les Regles de IVducdlion des en fa n ts..., Paris, 2 v„ 1687: li
vm legundo, cap. II, § X, p. 224-225.
olhares do |ulz" "" <) espírito dessa recomendadlo e, evidente­
mente, oposto ao da encíclica cie Joào Paulo II de título significa­
tivo, Deus rico em misericórdia , onde o papa afirma negadamen­
te: “Assim, a misericórdia se situa, em certo sentido, ao oposto da
justiça divina, e revela-se em muitos casos não só mais poderosa,
mas também mais fundamental que ela... O amor, por assim di­
zer, é a condição da justiça e; definitivamente, a justiça está a ser­
viço da caridade”.104 Essas frases cie João Paulo II marcam uma
verdadeira ruptura com a longa e pesada tradição “agostiniana”.
À imagem do Deus terrível cuja justiça predomina sobre a
misericórdia responde a exclusão do riso na vivência cristã. Encon­
tramos na pena de Tronson esta descrição (sem antecipação de
ecologia) do cristão tal como deve ser: “Não lhe acontece de colher
flores, nem de cheirar algumas, pelo simples prazer cie cheirá-las’V(rt
e sobretudo a espantosa afirmação de Nicole a respeito de Jesus.
Evocando a “vida laboriosa e penosa de Jesus Cristo durante o tem­
po em que pregou”, ele garante que Cristo não se recusava a co­
mer o que lhe era apresentado, mas que “tudo isso era porém
acompanhado de uma soberana mortificação, que ultrapassa de
longe a de todos os outros humanos”. Depois éle acrescenta que o
Senhor “sempre teve sua cruz diante dos olhos... Que se julgue por
aí que satisfação ele podia ter no mundo”. Assim, ele jamais riu:

Assim, observa-se que ele jamais riu! Nada jamais igualou a se­
riedade de sua vida: e é claro que o prazer, a diversão e tudo o
que pudesse distrair o espírito não faz parte dela. A vida de Je ­
sus é totalmente tensa, totalmente ocupada com Deus e com a.s
misérias dos homens, sem que ele nada desse à natureza, a não
ser aquilo que não lhe poderia recusar sem destruí-la.106

103. D eQ u ib u sd a m o fficiisp ieta tis scholasticorum , Angers, 1730. Cf. MAIL-


fA R D , J. LO ratoire à Angers a u x X V II' et X V III' siècles, Paris: Klincksicck,
1975. p. 155.
104. JEAN-PAUL II. D ieu riche en m iséricorde. Paris: Le Gerf, 1980. p. 22-
23. Em oposição à doutrina tradicional que apresentava Deus Pai exigindo a
morte de seu Filho, ver RATZINGER, J. F o i chrétienne hier et aujourd'hui. Pa-
ris-Tours: Mame, p. 197 e VARILLON, Fr. Jo ie de croire, jo ie de vivre. Paris:
Centurión, 1981. p. 69-79.
105. TRONSON, L. Exam ensparticuliers sur diven sujets... cd. 1811, II, p. 208.
Citado por CROETHUYSEN, B. O rig in es..., p. 150.
106. NU '<)| F, P, issãis de moretle, XIII, p. 285-288. Este texto é citado tam-
l.rin poi <iU( >F l i IUYSKN, B. O rig in e s..., p. 150-151.

ROM
I'.SN.I uplnlílo Cl.l M t|ll|lil!lllllilil(l |IIII Bossilet, qtic CSCrCVCll
ñas M áxim as,, so h tva <anii'Jlii

Insistamos com o '>.i<» l'.iulc <m ci>ivsUk‘i'íir Jesús o autor o o


Consumador da bossa le aquele |rsus que, querendo assumir to
das as nossas fraquezas por causa da semelhança, rom exceção
do pecado, assumiu também nossas lacrimas, nossas tristezas,
nossas dores e até nossos temores, mas nào nossas alegrias nem
nossos risos, e nào quis que seus lábios, onde a graça estava es
palhada, fossem dilatados uma única vez por um movimento que
lhe parecia acompanhado de uma indecência indigna de um
Deus feito homem.1" '.
' ': '■ s ' A; , *( %
Nao é cie espantar qu e Raneé, co m o Bossuet, tam bém
acreditou que Jesus jamais riu.10
10810
7 9

neurose coletiva de culpabilidade


Um Deus terrível, mais juiz do que pai, a despeito da mi­
sericórdia que lhe é creditada por acaso; uma justiça divina assi­
milada a uma vingança; a convicção de que, apesar da Redenção,
o número de eleitos permanecerá pequeno e a humanidade intei­
ra merece o inferno pelo pecado original; a certeza de que cada
pecado fere e injuria a Peus; a recusa de qualquer distração e cie
qualquer concessão ã natureza porque elas afastam da salvação:
todos esses elementos cie uma “teologia primitiva do sangue”,
para retomar a expressão de Bultmann,10? remetem a uma “neuro­
se cristã” que as pesquisas da psiquiatria contemporânea nào per­
mitem mais pôr em dúvida. Duas obras, sobretudo, vão ser-me
úteis para esclarecê-la. A primeira reúne os trabalhos de um coló

107. U RBAIN» Ch.; LÉVESQUE, E. UEglise et le théâtre. Bossuet. Máximes et


réflexitms sur la comédie. Paris: Grnssct, 1930. p. 773.
108. RANCÊ, A. tlc. Bclaircissements de éjiielt/un difficttltà que ion a formies
sur tf Um.» de la Vie motutsüque, limi#, 168**. p, 733.1IUI1AIN, Ch.¡ LrtVE
SQUK, l VEglisect le théátie,... p. .DH 7V),
109. 1UU.I MANN, R. Keiygtna and Mvihm, I btntlimiip,. I'.viingcliNcbci' Verlug,
I. p. 42.
qulo sobiv ,i i h m i i o m ' obsessiva."0 Numa notável introdução, Yves
Pélicier esial)ele»c .1 Junção entre as análises médicas atuais dessa
doença e a leitura que dela fizeram na época clássica os ínoralis-
tas cristãos preocupados em lutar contra os tormentos das almas.
Logicamente, Yves Pélicier acrescentou às comunicações do colo­
quio o Tratado dos escrúpulos de Jacques-Joseph Du Guet (1717).
O segundo livro é de Antoine Vergote, D ívida e desejo. Dois eixos
cristãos e a deriva patológica .m Quero expressar também meu re­
conhecimento em relação a este belo livro pacificante que inclui
e ultrapassa as análises freudianas e lança um olhar cristão sobre
a neurose cristã. Também desta vez se verifica a convergência en­
tre Historiografia e Psiquiatria sobre a qual eu já havia insistido no
primeiro capítulo de O Medo no Ocidente. A história reúne docu­
mentos que as análises psiquiátricas permitem tratar.
Cumpre de início introduzir toda uma série de observações
importantes sobre um assunto que não tolera o simplismo.112 Por
um lado, os clínicos sabem que a patologia cio pecado não é pró­
pria dos crentes e que a obsessão religiosa obedece a leis psico­
lógicas que são universais. Por outro lado, acreditar que se pode­
ría um dia fazer desaparecerá sentimento cie culpabilidade pare­
ce uma utopia. Contrariamente ao que pensa André Hesnard,
nem todo sentimento de culpabilidade é mórbido e caracterizar
o pecado apenas pelos traços da culpabilidade doentia seria res­
tringir a observação. Se classificarmos brutalmente a culpabilida­
de entre os' distúrbios mórbidos, por que não incluir também aí
toda a vivência afetiva e íntima: a indignação, o amor, o prazer?
Na realidade, a culpabilidade pertence à consciência que se faz
consciência moral e Freud tinha razão ao observar que “aqueles
que se acusam de ser os maiores pecadores são os que ela [a
consciência moral = o supeíego] terá feito avançar mais longe no
caminho da santidade”.113

110. PÉLICIER, Y. Colloque sur la névrose obsessionnelle, su iv i de 1'intégralité


du Traité des scrupules de J . J . D u G u et: caderno Vapeurs 2, ed. Pfizer, Paris,
1976. Utilização desta obra mais adiante p. 3$2s.
111. Publicado pela editora Seuil em 1978. Cf. também SO LIGNAC, P. La
Névrose chrétienne, Paris, ed. de Trévise, 1976, sobretudo p.
82-114. A obra de
HESNARD, A. L ’U nivers m orbide de la fa u te. Paris: PUF,
1949, parece boje
demasiado simplista.
112. Para as exposições que seguem remeto principalmente a VERGOTE, A.
sobretudo p. 20-22, .64-137, 153-161, 253-254.
D ette et d é sir...,
113. FREUD, S. M alaise dans la civilisation . Paris: PUF, 1971. p. 82-83.

r>(sr>
111M sentimento nuriiul de culpabilidade aparece como
um apoio não .1 .supressão, mas a •transi nrmnçáo c a subllmuçan
das pulsões (|iic estilo cm (lesai ordo com o Ideal do eu e ,1 re
lação com Deus, Mais geral mente, e destue, indo essa observarão
de 1’reud do seu julgamento global negativo sobre a religião, po
demos dizer que toda religião se 1ontenla com "renuncias 1ultu
rals” e exigencias morais,111 No capil 111<>das nuancas necessárias,
uma observacao se Impõe ainda: .1 auto-acusacào frcqííenle na
neurose obsessiva não é forçosamenle assimilável a confissão
dos pecados visando ao perdão. A confissão dirigida para um
melhoramento moral não deve ser confundida com um "dl/ei
tudo” tagarela resultante de uma introspeceào narcisista e que
nem sempre comporta o arrependimento. Para resumir com An
tolne Vergote essas referencias preliminares: basear-se numa psl«
cologia dá "grande normalização” para "alinhar sem mais a per
versão masoquista, a neurose, a ascese e a espiritualidade (|ite
pretende participar da cruz de Cristo, é um discurso... tão lYilll
(juanlo fácil de sustentar".Do mesmo modo, 6 difícil traçar
uma fronteira segura entre o normal e o patológico, "entre a ma
consciencia que aumenta a obscuridade e aquela que leva a cia
1Idade de uma vida na verdade”.110
Uma vez enunciadas essas observações Indispensável1., e
Impossível tanto ao clínico como ao historiador ijegar que <>
Cristianismo carrega consigo o risco de fazer pesar sobre seus
lieis uma culpabilidade desconfiada e repressiva, lile comporta,
com eleito, duas vertentes: por um lado, ele tranquiliza, já que
Delis perdoa por Jesus e promete ao homem um amor fiel; mas,
por outro lado, ela incita a má consciência. Porque nada desta
ultima escapa ao olhar cie um Juiz exigente que sabe tudo,
Como associar numa síntese harmoniosa a justiça que justific a o
homem e aquela que o julga? Mesmo porque o "pecado” pesa
mais do que o "erro”, já que ele inclui a noção de uma res pon
sabllidade pessoal não só diante dos homens, mas também
diante de "um Outro que não se poderla mistificar"."' fazendo

114, PREUD, S. M lüsc et le tnonothii/ttue. 1’atis: (iallimard, 1948. |>. 150 I v.,
115. VERGOTE, A. Deite«tdéslr.,., p. 252.1IUSNARD. A. l.Uilven... p. 2V>¡
" Iodas as transições existem cutre a «.ul|nibilithuU* i mli'ipciu dos indivíduo1. >101
mais c a culpabilidade totalmente irreal tio donuc mental",
11(>. Iliiil,, p. 117.
117. lliiil. |>. 64.

5ti(l
da confissão do pecado uma exigência fundamental, solidária
da mensagem de libertação, o Cristianismo expõe o homem a
uma. culpabilidade mórbida.
Nào é de espantar, por conseguinte* se efetivamente se
produziu uma deriva nesse sentido, assumindo em certos meios
um verdadeiro aspecto coletivo, em particular durante'as: épo­
cas estudadas no presente livro. Os documentos já citados e os
que serão em seguida por acaso não fazem aparecer claramen­
te uma angústia patológica diante do julgamento de Deus, um
aumento de escrúpulos, uma ruminação mental do pecado (ori­
ginal, mortal e venial), uma fixação sobre a morte? Impõe-se en­
tão o diagnóstico de uma neurose coletiva de culpabilidade que
não se trata de julgar, mas sim de esclarecer e de explicar. Por
neurose de culpabilidade entendemos aqui “o desvio religioso
e patológico de um Cristianismo que focaliza sua mensagem so­
bre a lembrança do pecado e se resume em dispositivo de luta
contra ele”.118 Seu caráter obsessivo se manifesta por conteúdos
psíquicos que “assediam” o espírito, que se impõem ao sujeito,
que o arrastam a uma luta inesgotável contra si mesmo (às ve­
zes com verdadeiras anorexias). Ele se debate em incessantes
exam es de consciência, entrega-se a uma escalada de mortifica­
ções, fixa seu olhar interior sobre o pensamento da morte. O
nuindo exterior parece-lhe vazio de substância; os objetos, ir­
reais; a existência, um combate perpétuo contra as ameaças de
um mundo impuro e apodrecido.119
A psiquiatria percebe por trás dessa culpabilidade exacer­
bada uma agressividade recalcada. A célebre explicação de Freud
não perdeu a validade. A consciência culpada, pensa ele, forma-
se pelo retorno sobre si de uma agressividade normalmente diri­
gida para fora e sentida como destruidora dos vínculos de amor
e de amizade.120 Ora, ao longo das épocas e mais particularmen­
te na época da Reforma católica e nos meios mais religiosos, uma
formação opressora demais superculpabilizou e feriu a necessá­
ria agressividade, ou se se preferir, a “pulsão de domínio” que é

118. Ibid., P. 97.


119. Cf. EY, H.; BERNABE), R; BRISSET, Ch. M a n u el depsychiatrie. 5. ed.
Paris: Masson, 1978. p. 490-505. CEMPERIÈRE; FÉLINE.. , A. Abrégé de
psychiam e de la d u lte. Paris: Masson, 1977. p. 112-115. Verbete “obsession et
névrose obsessionnelle” dà Encyclopaèdia U niversalis, XI, p. 1.025-1.027.
120. FREUD, S. M a la ise ..., p. 98.

5 (|7
essencial ao desenvolvimento <l> i<••li. i . allvldades humanan. A
repressão da agressividade, dupla ando • agravando a da sextta
Helado, exallou para além don llmllcs la/oávels as virtudes passl
vas de obediência e de humildad» |)ai uma vlravoltu ao mesmo
lempo contra si - a má consciência e a doença do escrúpulo e
contra os pecadores. Como nao ficar Impressionado pela violen
cia e a freqüênda> dos anatemas lançadas pelos homens da Igre­
ja contra todas as categorias de pecadores? lí exatamente uma
agressividade recalcada que retorna à superficie no discurso mil
vezes repetido contra “o homem criminoso”.
Quando relemos as inúmeras afirmações de outrora sobre
o pequeno número de.eleitos e_a dureza das “vinganças” divinas,
ficamos Impressionados pela coexistência nos mesmos espíritos
de duas imagens de Deus que se contradizem, uma sublinhando
sua justiça e outra sua misericórdia, de maneira que dois senti­
mentos parecem dividir a consciência: um ódio recalcado mas
presente do Perseguidor e um amor altamente afirmado, líssa
coabitaçUo de sentimentos contrários foi admiravelmente analisa­
da por Sao f rancisco de Sales quando escreveu no Tratado do
a m o r d r / >e//\: "iDcve-sel adorar, amar e louvar para sempre a
justiça vingadora e punitiva de nosso Deus... e beijar-lhe, com
uma dllet çao e reverência igual, a mão direita de sua misericór­
dia e a mâo esquerda de sua justiça”.121 Semelhante ambivalência
alellva parece aos psiquiatras o centro da neurose obsessiva. A
..............i simultânea de ódio recusado e de amor acentuado pela
piopila delrsa, t í-, al o conflito que provoca a neurose e corre o
ihi o de exaurir o indivíduo numa incessante luta interna.
Iis.se "mal-estar" da alma dividida é ele próprio tributário
da acenluaçâo exagerada de; dois elementos da mensagem reli­
giosa a m.K tila e a dívida. Congelar estas últimas em idéias fixas
<• desembocar no desconhecimento do homem real. “A nostalgia
da pureza e o sentimento da insolvável dívida pertencem a es
senda da problemática religiosa, Quando o obsessivo penetra no
amago de suas interrogações, ele se choca com as antinomias do
puro c do impuro, do prazer e da dívida.”12-’
A obsessão tia pureza absoluta transforma o exame de
consciência em olhar hostil a toda conivência com as esponla

121. SAI.lí.S, Prançois de Clüwm, Paris, 1833: Vil, Tmilé de 1'amour <le
Piru, I, IX, cup. 8, p. 144.
I V l i K t iOT Iií, A. Dem et dAir..„ p. 88.

non
fieldades carnais. 'lodo pecado é qualificado de “impuro” e se
torna urna substancia quase material que “mancha” a alma (a
ponto de explicar a transmissão do pecado original pela heran­
ça biológica da procriação). Uma excessiva materialização do
pecado faz com que o impuro físico atraía para si o impuro re­
ligioso e moral. Hssa degradação leva não somente à condena­
ção cie todo prazer carnal, mas a um verdadeiro horror da obs­
cenidade do mundo. No mais profundo cío psiquismo, descobre-
se a recusa de aceitar a si mesmo com seus desejos e com seu
corpo. O obsessivo quer ir cliretamente para a pureza sem o tem­
po da paciência e sem se deixar ensinar por seu ser instintivo.
Como já foi assinalado,123 esse angelismo remonta longe na his­
tória cristã (e, ademais, ele não é uma exclusividade do
Cristianismo). Santo Atanásio escrevia: “O primeiro objetivo de
Deus era que os homens não nascessem pelo casamento e a cor­
rupção, mas a transgressão do seu mandamento levou à união
sexual, por causa da iniqüidadé de Adão”.124 São Gregorio de
Nissa reitera explicando que essa divisão em sexos não concer­
ne de modo nenhum ao divino arquétipo; ela torna o homem
próximo dos seres irracionais. O Criador fez o homem à sua inda­
gem, isto é, 'nem macho nem fêmea. Mas “como ele viu de an­
temão na sua ‘potência presciente’ a tendência que, em plena
possessão cie si mesmo, (devia seguir) o movimento cia liberda­
de humana, no seu conhecimento do futuro, ele estabeleceu na
sua imagem a divisão em macho e fêmea, divisão que não se re­
fere mais ao moclelo divino, mas... nos classifica na família dos
seres sem razão”.12512
6Não se pode contradizer mais nitidamente o
texto do Gênesis. Mas essa tradição de angelismo faz compreen­
der o horror da carne experimentado por M. Olier, esse “herói
cie humildade crista” cujo fragmento a seguir, já citado por Re­
nán,120 é representativo de uma tenaz corrente de pensamento:

123. Ver anteriormente p. 275.


124. Citação dada como referência por SOLIGNAC, P. La N évrose chrétienne
p. 97. O pensamento de Santo Atanásio a esse respeito é expresso notadamen-
te no seu Contra gentes (Patr.: G r e c .,X V , col. 876-879).
125. NYSSE, Grégoire de. L a Création de Ihom m e. trad. J. Laplace. Paris: Le
Cerf, 1943. p. 159. Cf. DANIÉLOU, J. Platonism e et théologie mystique. E ssaisur
la doctrine spirituelle de saint Grégoire de Nysse. Paris: Aubier, 1944. p. 50-65.
126. RENAN, E. Souvenirs d ’enfance et de jeunesse. Paris: Calmann-Lévy, s.d.
p. 117 118.
Meu Dousl O que r ,i i film I ii i It'llu iln pecado, ó o prliu i
pío ilo pecado. I'ojo o oilln, Inda ,i iiuikllipio, ,i perseguição
(|iio cuchi sobre o demonio ■ b \ • ni «olí noble .i carne e sobre to
ilos os seus movimentos I >« \ ■ •«> i .i. • i i onio aquele santo <|ue
outrora loi levado ao suplicio poi uní »lime <|ué nao cometeu e
do qual náo quería se Justificar, dizendo para si mesmo que o te
ria cometido, e bem maiores alnila. so I >cus nao o tivesse impe­
dido. - Os homens, os anjos e alé mesmo Deus deveriam entilo
perseguir-nos sem cessar? - Sim, deveria ser assim.ir i

Jean-Jacques Olier ligava assim clè maneira inextricável


ódio. da carne, imagem do Deus “perseguidor” (a palavra está lá)
c desejo de punição.
Outro componente iáo estado d’alina que o amor e o ódio
acarretam é “o sentimento da insolvável dívida”. Como recebe­
mos tudo cie Deus e como somos pecadores, ficamos infinita­
mente em débito com esse credor ciumento. Será que essa noção
do preço a pagar alcançava subterráneamente o Vergeld do direi-
lo germânico? Em tocio casó, o sentimento de que uma orclem
deve ser restaurada pela expiação foi amplamente difundido na
mais alta espiritualidade católica. Catherine du Bar julgava que os
beneditinos do Santo Sacramento estavam destinados a “reparar”
as ofensas que Jesus sofria na Eucaristia e Barnières, ele também,
falava em “reparar a injúria d e D e u s”. Esse drama da reparação
exprimiu-se evidentemente nos esquemas monárquicos da épo­
ca, com o Soberano supremo irritado pelos erros de seus súditos ^
e ameaçando-os com sua cólera,12 128
7
A dívida a pagar era tanto mais pesada porque os mais
santos dos cristãos tinham eles próprios a convicção de serem
grandes pecadores. Santa Margarida-Maria Alacoque escreveu um
dia: “Parece-me que tudo me condena a um eterno suplício.
Tudo o que posso fazer de bom só pode reparar a menor de mi­
nhas faltas por vosso próprio meio. Eu sou insolvável: vós o sa­
beis bem, meu divino Mestre. Colocai-me na prisão, eu consinto,
contanto que seja em vosso sagrado Coração...”.129 Todo prazer

127. OLIER, J . - J . Catéchum e ctm 'tk’n pone hi ric ihtéríeurc cm CEuvres com ­
pletes,cd. Mignc, Paris, 1856, col, 472-474.
128. C:f. a esse respeito Diiiiotinuhr de t¡>h'iiii,dit¿ I.im . I .XIV XIV, col. 349*395.
129. LANGUET, J. f l >< ' T de l,i v M h tb ft M h r M tvpucrhc-M d)’ie (1729),
ctl. utilizada Paris, 1H(>(), p, Vrl,

570
terrestre <• n i!.in milhado tic Deus. Daí a luta sem trégua das duas
Reforma.', contra as danças e outros divertimentos profanos. o
carnaval foi suprimido nas cidades reformadas da Suíça; chegan­
do ao poder na Inglaterra em 1642, os presbiterianos fecharam os
teatros, etc. A certeza inconsciente que sustenta tais atitudes c a
de que só existe um lugar e que Deus e o homem nào podem
ocupá-lo juntos. “De direito, ele cabe ao Pai. Afirmar-se, vencer,
gozar, até mesmo existir, é saquear o Pai, matá-lo imaginariamen­
te, o que equivale a assassiná-Lo segundo as leis do psiquismo.
Impossível então nào contrair com Ele uma dívida insolvável e in­
cessantemente renovada, a menos que se ceda tudo a Ele”.1'1’ Um
pai enorme e sem fraqueza esmaga o filho por uma herança fan­
tástica, provocando-o a igualar-se a ele, mas condenando-o ao
mesmo tempo a permanecer sempre aquém de um ideal imagi­
nário.1'1 No limite, chega-se, mais uma vez, à negação do huma­
no e não se percebe mais a autonomia dada ao homem pelo Cria­
dor. Existe desejo de confusão - mas uma confusão irrealizável -
entre este último e sua criatura.
Logicamente o Deus credor e ciumento torna-se sanguiná­
rio quando os pecados da terra ultrapassam à medida e as dívi­
das para com ele aumentam. Então, suas “cóleras” são terríveis e
o incitam à “vingança”. Quantos textos nesse sentido na literatu­
ra cristã sobre os castigos já neste mundo das coletividades peca­
doras e sobre os suplícios prometidos aos condenados! E quan­
tas afirmações categóricas sobre a morte do Filho,' “satisfação”
substitutiva para os pecados! “Porque Jesus sofreu tanto e mor­
reu?”, lemos num “resumo” siciliano do Catecismo romano publi­
cado em 1768. “Para pagar a pena cios pecados de tóelos os ho­
mens.”13132 “É possível imaginar fantasia mais obsessiva do que a de
0
um Deus que exige o suplício à morte de seu filho para saciar
sua cólera?”133 Era essa fantasia, entretanto, que habitava Bossuét,
Bourdaloue e Tronson e mil outros diretores de consciência do
Ocidente. O cordeiro de Deus tipha-se tornado um bode expia­
tório carregado de pecados de toda a terra e cuja morte devia

130. VERGOTTE, A. D ette et d é sir..., p. 156.


131. Ibid., p. 126.
132. Dl FAZIO, G . “Salvatore Ventimiglia e il rinnovamcnto delia catcchesi
nclf Italia dei Scttccento” em Orientarnenti sociali>XXXV, 1, jan./abr. 1081,
p. 88.
I VI. VIÍUí .< VITF. A. D ette et d é sir..., p. 161.

571
"satisfazer" a Ira do um l)oih l<' •>«<l<> om ,suu honra om eonsc-
c(üOncl;i do um conflito mortal onliv oh* o o homoin,
St) so escapa a essa tom opean geradora do neuroses Ion
do tio outra maneira a narrativa da Redenção o interpretando di­
ferentemente o “sacrifício" do Jesus o, do maneira mais geral,
todo sacrifício pelo qual se oldreoo a I >eus o melhor daquilo que
existo neste mundo. Estabelecendo um vínculo entre o humano
o o divino, o sacrifício autêntico se situa "além da luta imaginá­
ria por um mesmo lugar... [Ele] nào é a autonuitilaçâo para pagar
uma dívida insolvávèl. Ele não procura pagar uma dívida; ele a
afirma como não sendo para pagar”.1WA presente análise coinci­
de polo menos num ponto com a de René Girard.13 135 Como este
4
autor, eu creio, pela leitura dos evangelhos e notadamente o de
João, que Jesiís, no curso de sua paixão, sofreu uma violência
"dessàcralizáda” que vinha dos homens e não de Deus: ele tinha
vindo entre os seus e os seus nào o receberam.
Medo-pânico da mácula e consciência de uma dívida insol-
vavcl, imagem de um Deus devorador, ao mesmo tempo odiado
0 amado, que não concede nenhum desejo próprio a seus súdi­
tos e se satisfaz cóm o martírio deles, são alguns fatores que im­
pelem ao mesmo tempo ao perfeccionismo e ao narcisismo. Por­
que o sentimento de culpabilidade associa dois temores: o de
perder o amor do outro e o de ser indigno de si mesmo. Quan­
do (al sentimento se exaspera, o preço a pagar pelo amor do ou­
tro jamais parece bastante elevado. A impossível identificação
com o pai idealizado leva a automutilações que desvinculam o
paciente de seu destino humano. Ele é tomado pela vertigem e
pela obsessão de ultrapassar os limites do humano. Mas essa es-
1alada nào proporciona a tranquilidade. Porque quanto mais uma
consciência é exigente, mais as renúncias sucessivas correm o ris­
co de excitar púlsões e tentações que se tornam, por sua vez,
Ibnles de angústia moral. Lembremos o interminável debate so­
bre a culpabilidade da tentação (na qual Lutero acreditava total­
mente.'). Os mestres espirituais diversas vezes denunciaram a ar­
madilha do perfeccionismo. Perceberam nele o perigo de uma
c .iibra narcisista e de um ,olhar incestuoso sobre si mesmo e o

134. Ibid.
135. GIRARl), R. Des Chases w e h to firpuh l<i fondiillon du monde. Paris: Gras­
sei, 1978, notadamente p, .’.M . < I Minltdm "Qu.ind íes dioses commence-
ront,,.", entrevista com l’li. M iiitmv •ni A/ tjn eí n, 'H, inverno 1979, p. 49.
impossível d e s e jo d e sc* pretender sem lalhas. Ademais, um me­
canismo d e delesa contra uma culpabilidade invasora pode levar
as coletividades religiosas, mas também os indivíduos, a por em
açào um legalismo que tente aliviar a angústia da consciência
pela observação meticulosa de rituais exigentes. Mas relembre­
mos aqui em poucas palavras as observações apresentadas no
início deste estudo sobre “a neurose coletiva de culpabilidade”: o
quadro clínico apresentado anteriormente corresponde aos com­
portamentos patológicos. Ele só é aceitável em cada detalhe se
acrescido de nuanças, e nào subestima o alto valor religioso de
uma sublimaçãovpela qual alguns místicos superaram um “maso­
quismo primário”. No caso deles, uma “identificação compassiva”
(São Bernardo) com o Cristo sofredor tornava-se descentralização
de si (e não narcisismo) e participação na vida do Amado.
Feita essa observação, será que se pode negar a existên­
cia de um superego hipertrofiado da Igreja no curso das épocas,
mas mais particularmente no momento do triunfo das duas Re­
formas sobre seus rêspectivos terrenos? No Ocidente, o auge da
culpabilização situòu-se nos séculos 16-17. Essa constatação
constitui, por si só, uma aquisição historiográfiea. Mas onde e
com o encontrar a, ou melhor, as chaves dessa situação? No pla­
no individual e em nossa época, parece às vezes que a presen­
ça numa família de um pai apagado e humilhado - ou ainda a
ausência do pai - deixa uma casa vazia na qual os filhos têm ten­
dência a colocar um Deus todo-poderoso, perseguidor e devo-
rador. Ao mesmo tempo, eles recolhem desse pai insuficiente
(ou ausente) uma mensagem de renúncia.1,(5 Mas a experiência
prova também que uma obsessão de culpabilidade pode nascer
em circunstâncias inversas e que um pai demasiado autoritário-é
susceptível de criar em seu filho um universo mórbido do pecar
do: com o em Kafka. De qualquer maneira, essas análises, por
mais interessantes que sejam, dificilmente são transferíveis para o
passado, mesmo que possamos pensar que a primeira hipótese
se aplica a Santa Margarida-Maria Alacoquç (pai falecido quando
ela tinha oito anos) e a segunda a Ditero.137 Referindo-se a perso­
nagens de outrora nossos arquivos psicológicos só podem ser in­
completos. Ademais, quem poderá jamais reunir e catalogar a

136. VERGOTE, A. D ette et d ésir..., p. 85-86.


I 3 I um tios temos do livro de ERIKSON, E. H. Luther avant Luthter. Pa­
ris: IKimmarion, 1968.

r>7:i
multiplicidade clt* casos que inilimiii m»• Hinl.iuin para criar ¡1 In
cllscufívol "neurose coletiva de iiilpiihllld.uk'11 que existiu cm ,se­
tores mais 011 menos ampl<r< di* 111 »*.-.• 1 ( hIdenle? () papel do hls
(orlador entilo consiste sobretudo em estabelecer concomitancias
e relações (|tie esclarecem, sem pretensão a exausllvidadê, um fe­
nómeno dessa importância,
A humanidade nem sempre sonhe relativlzar o pecado.
Durante muito tempo ela careceu de uma noção que se tornou
familiar para nós: a de culpabilidade atenuada (ausente em hu­
lero). Do mesmo modo ela teve - e tem ainda hoje - tendên­
cia a confundir justiça e vingança, porque uma inércia profun­
da a levava a permanecer no estágio das Eum ênides de Esqui­
lo,l,H O discurso religioso que acabamos de analisar deu em
todo caso amplo espaço a essa terrível equação, por sinal mui­
to presente no teatro elisabetano assim com o nas Novelas de
handello. Os homens cia Igreja da época consideraram a si pró­
prios com o vingadores de Deus a serviço de um Todo-Podero-
so mais zeloso do que misericordioso. Quanto à idéia, tantas,
vezes encontrada ao longo de nosso estudo, cie que'D eus se
vinga neste mundo dos indivíduos e das coletividades culpadas,
ela também finca suas» raízes num passado distante. O Antigo
Testamento a põe muitas vezes em destaqué, embora o exem ­
plo de Jó vá no sentido contrário, uma vez que este justo é
oprimido de sofrimentos.
E preciso lembrar que Jesus, por três vezes, levantou-se
contra a associação explicativa entre pecados e desgraças: a pro­
posito do cego cie nascença (Jo 9,1-4), cias vítimas da torre de Si-
loé e dos galileas massacrados por Pilatos (Lc 13,2-6). Mas essa
lição lào moderna cio Senhor durante muito tempo foi esqueci­
da. Na época clássica, assim com o na Idade Média, os pregado­
res cristãos são unânimes em ver as catástrofes coletivas com o
respostas de um Deus colérico a uma excessiva maldade huma­
na. No início cio séciilò 19, Joseph de Maistre atualiza eSsa ex­
plicação. Em As Noites de São Petersburgo (1821), ele nota que
Jesus só curava os doentes após a remissão de seus pecados e
faz um de seus porta-vozes dizer: Deus não é o autor do mal
moral, mas “do mal que pune, isto ,é, do mal físico e da dor,
com o um soberano é o autor dos suplícios que são infligidos sob

1)8. Cf. GREKF, ti. tk\ /.« fm/hidt íA'/iW n >!>' .1ym/hit/tit, Paris: PUF,
1947. p. 40.
suas Id*",1'" l uí lM ' I, .1 Igreja francesa vê na recente derrota uma
punição illvlna. Ainda em 1897, um dominicano, pregando em
Notre-Dame por ocasião do serviço oficial pelas vítimas do in­
cêndio do Bazar da Caridade, lembra o velho tema: “Nossas lá­
grimas [sãoj.o preço com que se paga nossa entrada na miseri­
córdia... A França mereceu este castigo por um novo abandono
de suas tradições”.110 Mais perto de nós, Leon Blum constata em
1945: “Uma calamidade nacional - alusão à débâcle cie junho dé
40 — liga-se desde a origem dos tempos à idéia de um pecado
ou de um erro, com seus desenvolvimentos naturais: contrição,
expiação, redenção”.13914041 Assim, até os difíceis questionamentos de
um período recente, as coletividades de outrora tinham como
certo o vínculo causai entre pecado e “justa” vingança divina já
neste mundo. Nos séculos 15-17, os processos repetidos contra
feiticeiras e blasfemadores só se tornam inteligíveis quando rela­
cionados à convicção antiga - mas então exacerbada - de que
Deus, irritado por esses crimes individuais de “lesa-majestade”,
não deixaria de vingar-se sobre as comunidades humanas que
toleravam tais infrações.
Convicção “então exacerbada”, por quê? Os europeus que
viveram entre a chegada da Peste Negra e o fim dos conflitos re­
ligiosos tiveram a sensação de um acúmulo de desgraças - epi­
demias, misérias repetidas, guerras civis e estrangeiras, rupturas
confessionais, ameaça turca. Eles as identificaram como punições
.vindas do alto e acreditaram perceber na proliferação do mons­
truoso o signo precursor de castigos ainda mais pesados. As vin­
ganças divinas só tornavam mais evidente a onipresença do pe­
cado que as suscitavam.
Entretanto, apesar de medos e fracassos, ou talvez por cau­
sa deles, a civilização ocidental ia à frente, tomada por um dina­
mismo profundo. Nos intervalos deixados livres para as experi­
mentações, ela inventava, inovava, descobria, enriquecia, ofere­
cendo, a alguns pelo menos, possibilidades inéditas de promoção
individual. A época chamada “Renascença” apresenta-se então a
nós como uma associação de fortes impulsos de vida e de mergu-

139. MAISTRE, J. de. Les Soirées de Saint-Pétersbourg, 2 v., Paris, 1831: 1, p.


27 e 49 (Ia Entrevista). JOSSUA, J. P. D iscours chrétiens et scandale clu m al.
Paris: Chalet, 1979. p. 88-89.
140. JOSSUA, J. P. D isco u rs..., p. 132-133.
141. BLUM, L. A l ’E chelle hum aiñe em 1’CEuvre de Léon B lum . Paris: Galli-
mard, 1945, V, p. 412. HESNARD, A. L V n iv e rs.... p. 438, n. 1.
Ihos pum ¡i morte, projcfti>•«. pmgn ssos < festas, más também de
'.riu,mios e morbicle/. Vonliidr tle u cm lucile <■ sentimento de
fracasso coexistiram entilo estreltamenle Phlllppe Aries tinha ra
/a o em Insistir sobre esse senllinentu d e Irai asso na época do
“macabro”."- Nossas análises coincidem com seus propósitos,
lima elite dinâmica teve uma percepcao aguda de seus limites e
se sentiu prisioneira das estrelas, da fortuna, do servo-arbítrio e do
pecado, Daí sua propensão à melancolia e â meditação sobre a
morte; e a necessidade, na reconstituição de um universo mental,
d e marcar os vínculos que então ligaram aumento do individua­
lism o , consciência da fraqueza humana e propensão à tristeza.
li esse homem dividido que o discurso culpabiüzador da
lgre|a reencontrou: um discurso elaborado por e para monges, mas
<ada vez mais difundido na direção dos leigos e que insistia incan­
savelmente sobre o pecado. A moral monástica muito cedo tinha
Incluído uma concepção mais grega do que hebraica e mais neo-
plalônica do que cristã, depreciando o corpo em proveito da alma
e levando ao “desprezo do mundo”. A evangelização das massas
pretendeu ser conversão ao ascetismo. A vida cristã teve que mol-
i lar se sobre a vida dos conventos. Estes inspiraram também o esti­
lo e a disciplina dos seminários da Reforma-católica. O Protestan­
tism o, em Contrapartida, rejeitou em bloco o valor salvador das
obras, conventos e celibato eclesiástico. Mas é porque ele perce­
beu uma dose de pecado fora do mundo tão forte quanto no mun-
d<». Ele foi uma constatação dramática da imensidade do mal e da
Impotência radical do homem sozinho. Assim, o homem do Oci­
dente, a partir da Renascença, teve a escolha entre duas instâncias
concorrentes sobre o pecado, a mais recente sendo finalmente a
mais pesada. N o interior desta última, ascetismo e ritualismo não
deixaram de reintroduz.ir-se em favor de um refinamento cultural
que foi geral no Ocidente. Com efeito, ò humanismo agostiniano,
o estoicismo reencontrado, as duas reformas religiosas e sua ex­
p ressão literária - a preciosidade - contribuíram conjuntamente
I>ara um i lesprestígio do corpo. Uma linguagem cada vez mais abs­
trata traduz então esse afastamento voluntário em relação a expres­
sões Instintivas que devem ser vigiadas de perto. “As coerçòes de
um refinamento social interiorizam-se em coerçòes internas.”"*I

I Al. ARIf.S, Ph. L’H omme..., p. 1AH MO.


143. VKRCOTTIÍ, A. Detle rt di‘\n , |. ou, i I, I I IAS, N. I.a Civilistition des
nitruix Paris: ( àilniann Uvv, I '> i I ( )l •< Al MI, M, Wxtohe de ht seüiudité I:
Iji ttolonti de savoir, Pari»: (¡dlluniiil, P* <• n "t to
! lililí). M'u (|iie na Igreja romana a transição para o ritua­
lismo r o mhrk'lsmo que se acentua na época da Reforma cató­
lica nao traduziu de outra maneira o distanciamento crescente em
relação ao corpo instintivo? Na época do cerimonial, um culto ex­
cessivamente ritualizado se transforma em técnica e barra a ex­
pressão dos sentimentos espontâneos. Por essa liturgia reforçada,
a hierarquia pretende certamente reafirmar uma unidade ferida
pelas dissidências protestantes. Mas, ao mesmo tempo, “cidadela
sitiada”,1-H ela quer cortar toda conivência interna com os inimi­
gos do exterior. Assim, uma dupla suspeição a impele para um
formalismo rigoroso, parte integrante da obsessão coletiva que se
tenta descrever aqui.

T-;,' ’• ' r' . . ' K. <

>\ ' ■' i

lu I ' o subtitulo de La Peur en Occidcnt.


/
capítulo 10

o “mal-estar”
religioso

o dolorismo
Duas conseqüências notáveis da neurose de culpabilidade
na sociedade católica de amigamente foram o dolorismo e a
“doença do escrúpulo”.
O cristão deve ser bastante corajoso para ter medo de Deus.
O ímpio, declara Massillon, é alguém “que, não podendo suportar
e observar com olhar firme os terrores e as ameaças da religião, ten
ta se distrair repetindo sem cessar que são temores pueris”.1 Den­
tro do mesmo espírito, um especialista da pregação, Hyacinthe de
Montargon (f 1770), afirma a seus ouvintes: “Infelizes... daqueles
homens que, não gostando de pensar naquilo que os inquieta, afas­
tam de seu espírito a terrível idéia de um Deus vingador; saibam
eles que apenas as almas temerosas é que terão motivo de espe­
rança no último dia”.2 Esse tema religioso foi muitas vezes associa
' do ao da recusa do mundo, isto é, do nosso universo, que coinci­
de, é bem verdade, com .o de Satã. Saint-Cyran escrevia: “Os mate­
máticos consideram a terra apenas como um ponto e a Escritura só
fala dela como um deserto, unia prisão, um hospital e uma imagem
do inferno. Infelizes então daqueles que se apegam a ela e que não
se esforçam por morrer pára todas as coisas da vida presente”.' Nos

1. MASSILLON, CEuvres, I, p. 349. “Sermón sur Ies doutes de la religión".


Cf. GROETHUYSEN, B. Origines..., p. 74.
2. MONTARGON, H. de. D ictíonnaire apostolique, 1768, III, p. 234s.
GROETHUYSEN, B. Origines..., p. 84.
3. SAI NT-( 1YRAN, Instructions chrétiennes (publicadas por Aniaukl d’Andilly),
16/H, |). I IH, TAVENEAUX, R. Jansénisme etpolitique. Paris: A. Colín » 1963.
p. IH.

ÍY7I)
-sormòo.s (|iio no século 17 «■ no inh Iii dn IM rram fornecidos nos
lazarlstus (|iio partiam un missão, llguia • ,u sentença: "O mundo
c tima pristió da qual so saímos pola morí o".'
As duas idéias-força c|iic u< abamos de sublinhar lovavam,
uma reforçando a outra, a desvalorização elo si, a busca elo sofri­
mento o à recusa elas alegrias humanas, devendo a criatura jul­
gai se - ó Arnaulcl quem diz - “digna do toda especie de despre­
zo, do humilhações e de aniquilamentos".'' Lembremos esta pas­
sagem da Imitação já citada: “Nada me é devido a nao ser. a vara
o o castigo... Após ... um estrito exame eu me .reconheço indig­
no da menor consolação”.6 São de fato os mais santos - Freud
tem razão nesse ponto - que foram os mais críticos sobre si mes­
mos, a exemplo do autor, da Imitação. “Só íiá- vicio em rriim”,
constata Santa Catarina de Gênova.' Santo Inácio cie Loyola escre­
ve* um dia a Ribacleneíra: “Son apenas estrume” e desèjávque após
a morte seu corpo seja jogado às aves e aos cães. “Não é isso que
devo desejar para o castigo cie meus pecados?”8 Santa Teresa de
Avila qualifica-se de “miserável hospedaria do Senhor” e de
"oceano de misérias”.6 São Vicente de Paulo trata-se de “abomi-
nacao” e confessa no crepúsculo de sua existência: “Ai! Não vejo
nada em mim que não mereça castigo; todas as ações que prati-
quei são só pecados, e é o que me faz temer os julgamentos de
Deus”,10 lima das mais surpreendentes confissões de culpabilida­
de pela pena de uma santa é a de Maígarida-Mariâ (f 1690). A
seu ver, ela era um “monstro”:

IDurante um retiro] no segundo dia, foi-me apresentado,


como num quadro, tudo o que eu tinha sido e o que eu era
agora: mas, meu Deus! Que monstro mais defeituoso e mais45678910

4. JEANMAIRE, Sermons..., I, p. 224.


5. ARNAULD, A. CEuvres, X X III A pologie pou r les religieuses de Port-Royal,
p. 266. GROETHUYSEN, B. O rigines..., p. 74.
6. LIm itation, III, cap. LII, p. 272-273.
7. Cf. anteriormente p. 8.
8. LOYOLA, Ignace de. Scripta de Sto. Ignotio. I, p. 379 cm M onum ento. Igna-
tiana (M onum ento histórica societatis Jesu ). <)f. RIRADEAU-DUMAS, Fr.
(im ndeur et m ishe des Jésu ites, Paris, 1963, p. I '>V
9. THÉRÈSE D'AVILA, Vie cm U\uvty\ u n n p lcio , Al. M. M. Polit, Paris,
1907-1910. Aquí. II, p. 156 c 117,
10. VINGENT DE PAUL, lintivtleot \phlinrh, p ' a <■ 786.

r>H0
horrível di’ veri lili nilo via nele nenhum bem, mas tanto mal
que era um tormento só pensar. Pfirece-me c|iie tildo me con­
dena a um eterno suplicio, pelo grande abuso que fiz de tantas
graças, para as quais só tive infidelidades... N ã o 'me reservo
nada em toda a vingança que cabera a vossa divina justiça exer­
cer sobre esta criminosa, exceto que vós não a abandoneis a si
mesma, e que por novas recaídas nao me castigueis de meus
pecados precedentes."

Em Margarida-Maria, o amor, mais geralmente - mas nem


sempre - , ultrapassava o temor. Mas o medo da danação manti­
do pelas “Preparações para a morte”, pela iconografía,- pelas
obras de espiritualidade e pelos sermões habitaram real e profun­
damente inúmeras almas inquietas. O pintor Hugo Van der Góes
(t 1482), que se tornou irmáo leigo num mosteiro e morreu lou­
co, passou o fim de sua vida na obsessão da danação. Foi neces­
sário impedi-lo de suicidar-se.12Torquato Tasso (f 1595), obceca­
do pelo terror da heresia, não podia também libertar-se da idéia
dé que estava condenado à danação. Procurou a tranquilidade
nas confissões gerais, notadamente ao inquisidor de Fèrrara que
o considerou absolvido. Suas dúvidas subsistiram: queriam enga-
nádo, tinham jurado levá-lo à perdição...13 O jesuíta Jean-Joseph
Surin (t 1665), que exorcizou os mais célebres possuídos de Lou-
dun, mergulhou durante vinte anos numa terrível tristeza que o
fazia ser considerado demente. Ele exprimiu num livro alucinan­
te, A Ciência experimental das coisas da outra vida , suas torturas
morais durante esse longo período. Ele tinha então a sensação ir­
resistível de ser um condenado e, mesmo sabendo que outros
místicos antes dele - Louis de Blois, Henri Suso, São João da
Cruz, Santa Teresa de Ávila, etc. - tinham passado pelas mesmas
provas, não se sentia reconfortado. Debatia-se dentro de um
sombrio dilema: já que estava irrevogavelmente condenado ao-
inferno, a lógica exigia que ele se comportasse de conformidade
com esse decreto. Seu dever era então de fazer o mal. Deus qué-
ria assim. Mas ele ousava desobedecer a Deus. “Meu crime mais

11. LANGUET, J. J. La Vie de ... M arguerite-M arie, p. 363-364.


12. KLIBANSKY..., R. Saturn..., p. 80. Cf. também o artigo de SANDER,
H. G. em Repcrtorium fiir Kunstivissenschafi XXXV, 1912, p. 519s.
13. Cf. o artigo de GETTO, G. “Torquato Tasso” em Letteratura italiana,
Mar /.ui,ui, Milau, 1 9 1 6 ,1 ,1 M aggiori, p. 459-495.

r.Hi
terrível era de aínda ter cn| u■i,i 11 e 111u*i <-*i lentur lazer o bem,""
I le eslava obcecado por Idélas de oíili'lilit>, enviadas por Sata.
I Hirantc noites Inteiras, ele manteve uma lat a contra a própria
garganta. Urna ve/., ele pulou pida Janela e quebrou o joelho, Id­
eou aleijado.
I lina obra como a Anatomia da melancolía de Robert Bur­
lón permite passar desses casos célebres para a angústia religio­
sa de homens cômuns e deslizar assim do singular para o plural.
Nao é por acaso que um autor do início do século 17 insiste so­
bre a melancolia religiosa. Tratando longamente desta última,
Murtón nào poderia esquecer a obsessão da danaçào.15 Referindo-
se a Félix Plattqr16e a Pierre Forestáis,17 ele cita o exemplo da mu­
lher de um pintor, em Basiléia, desesperada após a morte de seu
filho. Deus, pensava ela, recusava-se a perdoar seus pecados.
Durante quatro meses, ela foi presa de delírios, já se vendo no
Inferno. Aparece agora um mercador que tinha deixado deterio­
rar uma pequena quantidade cie grãos que ele tinha guardado
durante um tempo demasiado longo. Embora piedoso e instruí­
do, ele se cobria de censuras: por que não tinha vendido esses
grãos a tempo? Por que não o tinha dado aos pobres? Ninguém'
conseguia chamá-lo à razão; ele se julgava condenado. Terceiro
caso: um padre observava com exatidão os jejuns da quaresma e
mergulhava em profundas meditações: ele acabou por cair no de­
sánimo; via demônios em seu quarto e desesperava-se pela sua
salvação. Ultima história: um homem que cometeu um erro gra­
ve não queria comer nem beber nada durante 14 dias. Qs padres
nao conseguiram aplacar sua angústia e ele morreu. Dessas his­
torias, Burlón passa ã conclusão, retomada de seu preclecessor
Guatinerius: “Muitos [notemos cie passagem o indefinidoj caem
no desespero por temor do julgamento final”. E observa que o
excesso de solidão, de jejuns prolongadps, cie extenuantes medi-

14. SURIN, J.-J. Lettres spirituelles, ed. L. Michelet e F. Cavadera, 2 v., Tou-
louse, 1926-1928. Aqui, II, p .20, 32, 54‘ Cf. BREMOND, H. H istoire..., V,
p. 148-310. .SURIN, J.-J. Correspondance, ed. M. de Certeau, Paris, Desclée
de Brouwer, 1966, notadamente p. 15 e 133. KOLAKOWSKI, L. Chrétiem
satis Eg/ise, 1969, p. 443-491.
15. BORTON, R. TheA natom y... III, p. 396-399.
16. Para esta nota c as duas seguintes i í, novumrmc BURTON, R. The Ana-
totny..., III, p. 398-399. PI.ATI I K, I <>/>srri‘,it¡onuni tihri tres (1614), cap, 3.
17. FORRSTUS, P. (Picrn? Van I W m). O h ,n aílon es (1602), l.X , cap. 12.

t»h:j
tações, uma Indiscreta "contemplação” dos julgamentos de Deus
e uma Incessante ruminação do mistério da eternidade, “com seu
número infinito de milhões de anos”, só podem levar à melanco­
lia. A mira dessa argumentação estava evidentemente dirigida
contra a Igreja católica acusada de encorajar mortificações abusi­
vas e miniiciosa contabilidade das boas obras. Pastor anglicano,
Burton agradece a Lutero por ter encontrado uma solução para
essas “torturas” e “crucificações” de si mesmo e cita São Bernar­
do que escrevia: “Não devemos falar do julgamento sem falar
também do perdão...”.18 Afastado ao mesmo tempo do
Catolicismo e do Puritanismo, Burton observa enfim - voltaremos
a isso19 - que certos pastores protestantes mantêm também nos
fiéis o medo do além.20
O temor dos julgamentos de Deus, uma busca desespera­
da da perfeição, a convicção de qué os pecados continuam a cru­
cificar Jesus e que é preciso “reparar” não somente seus próprios
erros, mas também os do mundo e uma sede de humilhação im­
peliram, ao longo das épocas, a um “heroísmo cristão” cujas
proezas causam espanto. Entretanto, não se deve tomar ao pé da
letra os detalhes excessivos e terríveis das penitências de Henri
Suso, morto aos 71 anos em 1366, que nos são ciados pelo autor
cie sua Vida.11 A crer nesta, o piedoso dominicano conservou o
silêncio à mesa clurante trinta anos, só o rompendo uma vez. Ele
usou por muito tempo um cilicio e uma corrente de ferro, só os
abandonando quando o sangue escorria. Mandou fazer em segre­
do uma camisa de crina que aderia ao corpo e fixou nela correias
guarnecidas de 150 pontas voltadas para a carne. Essa vestimen­
ta dolorosa, que ele jamais tirava, atraía os vermes e muitas vezes,
à noite, parecia-lhe “estar cleitado sobre um formigueiro, tantos
eram os vermes que subiam por ele”.22O livro que se chama Suso
relata aincla outros achados do herói, outros suplícios que ele in-

18. Mesma referência da nota 15 anterior.


19. Ver mais adiante p. 551-564.
20. BURTON, R. The Anatomy..., III, p. 399-400.
21. SUSO, H. CEuvres completes. A introdução de Mme Ancelot-Hustache é
notável: ver notadamente a respeito das mortificações de Suso nas p. 59-60.
Cf. também sobre o mesmo assunto: FESTUGIÈRE, A. J. “Miscellanécs sur
la Vio dTIcnri Suso” em Revue de Thistoire des religions, CXCIV-2, out. 1978,
|V 159 I HO.
Sl )M), 11, iT.uom ,.., p. 182.

r»8:i
Illgla ¡i si mesmo, Assim, He i<ii.t iistitl", i nnst.mlemente duran
lo oito anos", "sobre suas instas nuas, <oili<* os ombros", uma
c m / guarnecida de trinta progn* de leito o de sele agulhas pon­
tudas, estas últimas em lembrança das vlouvtde Maria/’ A aeumu
laçâo‘de detalhes horríveis torna Impossível que o santo religio­
so st' tenha infligido ao mesmo tempo todas essas provações.
Além disso, como tena ele mantido secretas tantas mortificações
<|tie teriam muitas vezes manchado de sangue suas vestes bran­
cas? Com a sábia Madame Ancelot-Hustache, devemos então ra­
zoavelmente pensar que “o relato das mortificações, tal como o
lemos na Vicia, |él ... absolutamente suspeito”.2* Mas é verdade,
por um lado, que Suso foi incontestavelmente um hoiriem de pe­
nitência e, por outro lado, que foi “um dos autores mais consu­
midos do fim da Idade Média”.2324S26A imprensa contribuiu em segui­
da para fazer conhecer suas obras entre as quais sua Vida figu­
rou várias vezes.20 Daí a disseminação de semelhante exemplo.
Nos séculos 16-17 - para nos limitar a essa fatia de histó­
ria as proezas ascéticas preenchem a crônica. Em Manresa,
Santo Inácio de Loyola passa noites inteiras em vigília, fica uma
semana sem comer, açoita seu corpo com correntes de pontas,
golpeia o próprio peito com uma pedra, faz orações sete horas
por dia. Como o poverello, ele dá o “beijo franciscano” a um in-
1’ellz abandonado por todos, aplicando seus lábios sobre uma
chaga e “sugando a podridão para curar o doente”.272 8São Pedro
i le Alcântara surpreende até Santa Teresa. Ele era tão magro que
"tinha a aparência de raízes de árvores”. Ele confessou à
carmelita de Ávila que “durante quarenta anos... só tinha dormi­
do uma hora e meia por dia, e que jamais tinha conhecido pe­
nitencia mais implacável; no início, para vencer o sono, ele per­
manecia sentado, com a cabeça apoiada num pedaço de madei­
ra fixado na parede... Habitualmente, ele só comia um dia em
i ada três". '" Quando São Carlos Borromeu é despido para sua

23. Ibid., p. 183.


24. Ibid., p. 60. Conclusão concordante de COGNET, L. Introducción aux
tftystujues rhéno-fhm ands. Paris: Desclée.de Brouwer,“1968. p. 160-164.
23. Ibid., p. 122.
26. Ibid., p. 122-132.
27. I.OYOLA, Ignace de. Autobiographic, cd. A. Guillermou, Paris, Senil,
1062. p. 70-72.
28. THfikliSE D ’AVILA, G iu v m com petes, I, p. 147- 348.
toalcle lllnebiv t*U• linha 46 anos —, descobrem que seus om­
bros calilo cm a lavrados pela disciplina, seu corpo dilacerado
pelas ponías do cilicio.29
I lm pobre padre do fim do século 16, cognominado por
antífrase talvez, o Lettemto , recolhe as crianças abandonadas de
Roma. Mas seu zelo não o impede de conhecer as tentações da
carne. Um clia, não suportando mais, ele pega um recipiente de
água fervente e decide “superar o calor da tentação pelo da água
fervente”. Assim fazendo, “ele ofendeu tão gravemente as partes
de seu corpo que se recusavam a obedecer à razão” que passou
muitos meses doente. Mas tinha vencido definitivamente a carne.
D. Cláudio Martin, filho de Maria da Encarnação, também luta
contra a concupiscência com remédios fortes. Uma noite, em An-
gers, imitando São Bento, ele rola despido sobre groselheiras pi­
cantes, depois cobre o corpo de urtigas, extinguindo assim as
chamas do desejo que o torturavam há dez anos. Em 1608-1609,
a madre Angélica, então jovem abadessa cie Port-Royal, lança-se
em penitências extraordinárias. Ela se veste com o pano mais
grosseiro, escolhe para dormir a cama mais dura, levanta-se se­
cretamente à noite para rezar. “Ela foi surpreendida, à noite, cau­
terizando seus braços nus com cera ardente.”30São Francisco de
Sales faz as monjas cistercienses de sua diocese usarem camisas
de sarja cias quais elas logo se queixam a ele, porque lhes atraem
vermes. Ele responde que “não era nenhuma maravilha que ver­
mes comessem vermes”.31 Reencontra-se aqui o macabro e a dí­
vida a ser paga.
Era então uma idéia corrente que, quanto mais se sofre
nesta vida, menos se terá que pagar na outra. Alberto Tenenti
apóia essa observação com textos impressionantes que retomare­
mos aqui. Marcello M ansio,. numa obra intitulada Docum entos
para ajudar a bem morrer, escrevia: “Nosso corpo assemelha-se
a uma vinha sobre a qual Nosso Senhor Deus envia uma tempes­
tade de doenças e de tribulações que são como pedras preciosas

29. Sobre a vida ascética de São Carlos Borroineu, cf. notadamente ORSE-
NIGO, C. La Vita d i San Cario Bonom eo, Milán, 1929 e DEROO, A Saint
Charles Borromée, cardinal reform atam Docteur de la pastorale. París, ed. Saint-
Paul, 1963.
30. SAINT-BEUVE, Port-Royal, Pléiade, París, 1 9 5 2 ,1, p. 159.
31. < ¡(.ido por ORCIBAL, J. Jean Duvergicr de H auranne, a b b é de Saint.
<yiiin <i \on lem ps (t. II das Origines du Jansénism e). París: Vrin, 1947. p. 57,
o ipn n iiict* .i M ém oires d'U trecht, 1 7 4 2 ,1, p. 316.
(I<) |)iiríifs( >". "O liomctu pode 11mI.i i li >i |inmiir m •crede>r de I )<*ii*.,
permanecendo por outro hulo mu devedni I*<>i\|tic sofrendo He
clã n Deus d,o sou próprio bem, enquanto nas outras coisas cio
recebo de DeusV* Assim o entendia uma "Madona 1'austlna", la
leclda em IS62 que, quase na agonia, trocou com o Padre Giro
lamo Cacdaguerra - amigo de Plllpe Nial • palavras espantosas:

() padre lhe dizia: "Já náo lhe basta o que você está ,sofrendo?
- Náo, respondeu ela, porque eu ainda queria sofrer tanto que só
me restasse a pele sobre os ossos". O religioso observa: "Mas
você obteve essa graça: só lhe resta a pele sobre os ossos", Al­
guns dias depois, o estado da doente se agrava e Cacdaguerra
lhe diz: "Todos os sofrimentos que você tem deveriam bastar-lhe
e você deveria contentar-se com eles”. A moribunda retruca: "Oh
rulo, padre, nào me contento. Eu queria ver com meus próprios
olhos os vermes comerem meu corpo”."

Nào leria fim enumerar as mortificações dos heróis crislàos


na época de Polyeucte. Santa Joana de Chantal, nova "Sunamita”,
tem "a coragem e a generosidade de pegar um ferro todo verme­
lho de fogo e, usando-o como um buril, grava ela mesma o Sab­
io c Sacro nome cie Jesus sobre seu peito”." M. Mamón, médico
de Port-Uoyal, cobre-se de andrajos e se deleita em comer o pão
deixado para os càes, dando o seu aos pobres.35 De Margarida do
Santo Sacramento, morta aos 29 anos no Carmelo de Beaune,
conta-se o seguinte:

Como ela possuía uma natureza muito delicada e apreciava a


limpeza, ela se aplicava particularmente em superar-se sobre esse
ponto, nào somente tocando e cheirando as coisas das quais ti-3245

32. MANSIO, M. Documentiper ahitare a l ben moriré, Bologne, 1607, p. 33-34.


TENENTI, A. IlStnso..-., p. 302 ç 337, n. 19.
33. CACCIAGUERRA, G. Lettere spirituali, Vcnisc, 1584, I, p. 187 (tradu­
zidas cm francês cm 1610). TENENTI, A. IlSenso..., p. 302.
34. TOUR, H. de Maupas du. L a Vie ele ... Jeitune Jran çoise Frém iot, 1644,
p. 170.
35. SAINTE-BEUVE, Port-Royal, 11, p, 29/ c 792. GA/.IER, C. Ces Mes-
sieurs ele Port-Royal, Paris, 1932, p. 181 182. IAVT.NEAUX, R, "Port-Royal
cm rhêrolsmc dc la saintetê cm l/ibvhme et >n'.uion litténtlró sous les rignes
d'IIenri IV et ele Xouls Xl/h ml, Siiu»hmun, mulo 19/2, Paris, Klinclísicclt,
1974, p. 105.
nli.i tt'iMi^ii.ihi Iti, m.i.'t, para so mollificar aínda m.ils, ola as pu
nha na Imm a < nao encontrava nenhuma coisa suja, como escai
ro, luuiof) o olmas coisas assim, que ola nüo comeSvSo, maniendo
essas oolsas na boca alé que sentisse repugnância: coisa que ola
praticou nos tres ou quatro primeiros meses om que estovo na
Santa Religião listo é, no convento]/'

Encontramos igualmente em Santa Margarida-Maria urna


secle extraordinaria de humilhações. “Ela acreditava tào sincera­
mente, escreve Monsenhor Languet no século 18, que- todas as
criaturas tinham direito de tratá-la com desprezo, que ela se afli­
gia de não ser bastante desprezada. Ela pedia de boa fé a suas
superioras que a humilhassem sempre...”/7 O biógrafo acrescen­
ta que “o ódio, o cilicio, as-disciplinas sangrentas e freqüentes, os
cintos.de ferro guarnecidos de pontas bem picantes, e mil outras
invenções próprias para torturar o corpo e fazê-lo sofrer, eram
para ela de uma prática diária, ou pelo menos objeto de seus de­
sejos e dos pedidos contínuos que ela fazia a suas superioras”.w
Mais adiante, Languet cita uma confissão da própria santa, que a
aproxima muito da carmelita de Beaune:

Eu era tão melindrosa, que a menor sujeira me virava o estô­


mago. Ele listo é, Jesus] me repreendeu com tanta força nesse
ponto, que uma vez, querendo limpar o vômito de um doente,
não pude evitar de fazê-lo com a língua, dizendo a Jesus Cristo:
se eu tivesse mil corpos e mil vidas, eu os imolaria para vos ser­
vir, ó meu Esposo. Eu achava tantas delícias nessa ação que to­
dos os dias eu queria então encontrar ocasiões semelhantes pára
aprender a me vencer e a ter só Deus por testemunha.w

E o biógrafo comenta: “Eu estremeço ao relatar esses pie­


dosos excessos...”; que eram também os de Maclame Guyon. Ela
praticava longas disciplinas, usava cintos de pontas, queimava -se
com velas, fazia correr pelo corpo cera derretida, envolvia-se com
urtigas, mandava arrancar dentes sadios, caminhava com pedras36789

36. Citado em ROLAND-GOSSELIN, J. Le Ccmnel de Beaune, Rabat,


1969, p. 71.
37. LANGUET, J.-J. La Vie d e ... M arguerite-M arie, p. 70.
38. Ibid., p. 94.
39. Ibid., p. 100-101.

587
nos sapillos, comía misas honoiosas I >111 illa, lamhcm Ha colo
m u ‘•leus lalilos sobre uní liorru •I uo» a n o 1 I icpols ele* preceden
les como essvs, os "pequeños" e "guindes s o c o i t o s " dos grupos
convulsionarlos do secuto IH parce u n m enos Incríveis, As vítimas
voluntárias, para as quais a dor era o i amlnlio real da salvado,
pediam (|ue lhes aplicassem golpes na i .ibrç.i ou na barriga com
paus, pedras, bastões de ferro ou pesados volumes in-fólio. Al­
guns eram entregues a um início de* esquarlejamento, outros
eram aperlados “por urna máquina que linha sido Imaginada para
essa finalidade”. A apoteose, é bem verdade que excepcional, era
a crucificação, às vezes com cravos verdadeiros.41 Esses sofrimen­
to.'» no corpo davam aos visionários o direito à profecia e lhes
permitiam anunciar a volta do Crucificado e o restabelecimento
de uma Igreja purificada.
Menos espetaculares e mais ordenadas, as austeridades
que Kancé': estabelece para a Trapa suscitaram uma polêmica no
ser illo 17: supressão de peixe, ovos, especiarias, açúcar, xaropes
ou mnfeitos e legumes de qualquer espécie; aumento da dureza
d.is camas; obrigação de dormir vestido com o hábito; silêncio
perpétuo; proibição de cartas e visitas; proibição de acender fogo
anle.s da prima (= seis horas, mas levantava-se às três horas e
niela) e depois das completas. As celas foram destinadas unica­
mente ,i<> repouso; para elas jamais se levaria luz. O estatuto dos
doentes excluía agora a chamada de médico; os doentes jamais
pei m.meceriam acamados, mas seguiríam o ritmo da comunida­
de, eles lambem dormiríam com o hábito; iriam à igreja receber
os últimos sacramentos; não se acendería fogo na enfermaria an-
l< . da prima. Outra disposição espantosa; o religioso que acaba-

'10. I <i Vic de M me J.M .B . de la M othe Güyon, écritep ar elle-mêtne, 3 v., Co-
lognc, 1720: I, p. 88-90. KOLAKOWSKI, L. Chrétiem sans Èglise..., p, 523.
11. Utilizo aqui utn memorial de mestrado de Paris I, 1971, ex. dat. KURAL, R.
i.m de de deux manuscrits convulsionrütires jam éniste du XVIII' siéc/e, p. 45-48 e a
tese de III" ciclo de COTTRET, Mme Monique. Les Représentations mythiques de
riiglise prim itive dam les polémiques entre lesJansénistes et les Jésuites (1713-1760),
2 v., dat., Utiiv. Nantcrre, 1979 (sob a dir. de R. Mandrou). Aqui: t, p. 70-74.
42. As duas melhores obras antigas sobre Raneé com valor de documentos s5o
as dc I.E NAIN, R. P. La Vie de Dom A m iand-Jean de Raneé... a b b é d ela Trap-
pe, 1715 c 1719, e dc Dom CiERVAISE, Jugem ent critique mais équitable des
vies de fèu M. V abbé de Rance ¿evites p ar les sieurs M arsollier et M aupeau, Lon-
dres (Reims), 1742. O Raneé de Chateaubriand não é uma biografia propria-
mente dita. Obra muito útil é a de BRJiMOND, H. “LA beé Tempête" de Ran­
eé, Paris: I Iacheite, 1929.

fiHH
v;i tic |MTtlcr n |Mi uu .1 máe devia calar a dor que o atingía, |íi
que, alln.il, li ni o eMá morto para ele no mundo”. Foi necessário
atenuar u n seguida algumas das austeridades impostas pelo rucie
reformador. Mas, por um lado, a despeito das críticas, a Trapa
atraiu vocações - a comunidade passou de 10 a 300 membros en­
tre 1664 e 1700, ano da morte do “abade Tempestade” e, por ou­
tro lado, “a obra do abade de Raneé atravessou vitoriosamente a
prova do tempo”.*43 O que mudou, em compensação, em relação
à época do fundador, foi ó espirito das mortificações.
Sob a escrita (inesgotável) de Raneé encontramos o dolo-
rismo mais agudo e suas mais perturbadoras motivações. Na sua
célebre Carta a respeito das hum ilhações e outras práticas de re­
ligião ,HRaneé não cessa ele ter diante dos olhos o modelo angé­
lico, e ã palavra “anjo” retorna frequentemente sob sua pena. As­
sim, deve-se “humilhar e... confundir os monges enquanto eles
não tiverem nem a mortificação do Calcificado, nem a santidade
dos Apóstolos, nem a pureza dos anjos”.434 5Ora, os monges estão
longe da conta. Eles são “criminosos”. A conclusão da Carta é
surpreendente a esse respeito:

Para as congregações monásticas, escreve ele, sào os bandos de


criminosos e de penitentes públicos que, tendo faltado à fidelida­
de que deviam a Deus e tendo-o irritado por sua desobediência,
nada mais podem pretender de sua bondade a não ser depois de
satisfazer à sua justiça por castigos dignos de seus pecados.46

E Raneé prossegue: os monges são “meninos prodígios


que abandonaram a casa do pai e dissiparam os bens que dele
receberam”. Somente humilhações “profundas” e “sinceros rebai­
xamentos” poderão abrir-lhes “as portas da misericórdia” divirta.
É necessário então que, “segundo o pensamento de São Grego­
rio, não podendo adquirir pacificamente a herança dos justos
pela santidade cie suas vidas, eles a conquistem por seus suores
e por seus combates, já que Deus-quer que eles o forcem a per­
doá-los e que o violentem”. O homem sempre “criminoso” ante
o Deus credor que exige incessantes “satisfações”, tais são a an-

- i
43. BREMOND, H. “V A bbé Tempête...", p. 245, citando Dom Canivet.
44. Publicada em 1677.
45. RANCÉ, A. J. de. Lettre sur le sujet..., p. 7.
46. Ibid., p. 212, e para o que segue p. 212-217.
tropología o .1 teología conjuntas •po o H’lormailor da Trapa de
leí ule apolantlose em S¿1« i Joan ( Jlmai o Mas, dirão, nã( >existem
monges justos? Ranee responde sem liesllai

... I lm justo delxa de ser i (insldenulo como tal no Instante em


que é monge... Ide perde mu InoeOiu la ao lechar-se no mostei­
ro, da mesma maneira que Jesus Cristo de c erto modo deixou de
passar por santo no m om ento em que se mostrou ao m undo com
as vestes e sob a forma de um pecador, nao somente na opinião
dos homens, mas também no tratamento rigoroso que recebeu da
mão de seu Pai.

las aí mais urna vez, como em Bossuet, Bourdaloue e


Tronson, o Deus juiz que nào conhece mais seu filho. Raneé con­
clui que “o claustro é uma prisão que torna culpados tanto aque­
les que conservaram a inocência, com o aqueles que a pçrderam”.
(litando alternadamente Sao Bernardo e São Gregorio, ele afirma:
"Nós não nos fechamos no claustro para outro fim que não seja
para chorar nossos pecados e os das pessoas”. Que os monges
então conservem “o pensamento da mõrte durante todo o tem­
po, que eles mantenham os olhos baixos, a cabeça pendida para
o c hão, que eles se vejam como criminosos que estão sempre a
ponto de comparecer ao julgamento terrível de Deus, para pres-
lardjte contas de seus pecados...”.
Mas, dirão, os mosteiros são “abrigos e portos”. Os “solita­
rios" que lã vivem estão “ao abrigo das tempestades e das agita­
ções do século”. Sua tranqüilidade jamais é perturbada. Eles nada
lem a sofrer “nem por parte do mundo, nem por parte de seus ir­
mãos”. "Nada se lhes apresenta que lhes possa causar a mínima
d o r Então, como se entregarão eles às indispensáveis humilha­
ções de que necessitam para vencer o primeiro dos pecados ca­
pitais: o orgulho? Raneé responde: “Sua condição seria bem infe­
liz se um superior nào tivesse uma dedicação particular em pro­
pon lona r-lhcs por todos os meios mortificações e humilhações
que julga as mais úteis e as mais convenientes, aquilo que Deus
opera nas pessoas do mundo.fpelas provações que elas sofreml”. 'a
Essa obrigação de inventar ocasiões para humilhar os monges é\o
lema principal da Carta... “A intenção de São Bernardo, assegura478

47. Ibid., p. 13.


48. lliiil., |). 14.

EDO
Ranee, In! (Ir que t i‘i religiosos fossem exercitados pelas Immilh.i
çòos" e, ( ( uno n mundo natía mais pode sobre eles, "é preciso
cpie se|am necessariamente seus superiores que lhes forneçam os
meios, destinándoos a ocupações infames e humilhantes, ou
exercitando-os por meio de humilhações e de opróbrios”.'0
Semelhante doutrina suscitou reprovação, inclusive nos
meios monásticos. O Geral dos Cartuxos, Le Masson, em 1689
surpreendeu-se de que se pudesse afirmar “que nào se vem ao
mosteiro para ali viver, mas para ali morrer” e recusou-se a acre­
ditar “que se deva praticar austeridades considerando-as como
meios de abreviar a vida e diminuir a santidade até perdê-la to­
talmente”.% Mabillon revoltou-se igualmente contra a recusa de
Raneé em permitir a seus monges trabalhos intelectuais sob o
pretexto de que “o estudo destrói a humildade” e transforma ca­
sas de paz e de retiro em “academias tumultuosas”.51 H. Bremond
tem razão de' pensar que os rigores excessivos do abade da Tra­
pa impediram sua canonização. Mais geralmente, será que não
somos tomados de perplexidade e de vertigem diante dos pou­
cos exemplos de mortificações espantosas qlie extraímos dos lon­
gos anais da santidade cristã? Aqui. se impõem um momento de
pausa e uma reflexão serena.
Georges Bataille escreveu com desânimo: “Eu esperei a
Tachadura do céu. Eu a esperei, mas o céu não se abriu”.52 E ele
cita, com nostalgia esta passagem .do Livro da vida crucificada
de Jesu s, de Ângela de Foligno (f 1309): “Quando Deus apare­
ce nas trevas... todas as amizades fque ele me fez], numerosas
e inenarráveis, e suas doçuras, e seus dons e suas palavras e
suas ações, tudo isso é pequeno ao lado d’Aquele que eu vejo
na imensa treva”.55 Existem aqueles para os quais o céu “se
abre”: Ângela de Foligno, Santa Teresa de Ávila, São João da

49. Ibid., p. 124.


50. Explication de quelques endroits des anciens statuts de l'Ordre des Chartreux
avec des éclaircissements sur le sujet d ’un libelle qu i a été composé confie l ’Ordre
et qu i s’est divulgué secrétement, 1689. Citado em BREMOND, H. “LA bbé
Tempete"..., p. 193.
51. MABILLON, Traité des études monastiques, 1691. Citado em Ibid., p. 165.
52. BATAILLE, G. CEuvres completes. Paris: Gallimard, 1973: La Somme
athéologique, I: Le C oupable,'p. 248.
53. Ibid., p. 251; Ia tradução francesa do Livre de la vie... em 1604. Trad. uti ­
lizada por G. Bataille, a de E. Helio, cap. XXVI.

51)1
( áuz, etc. Tendo decidido "(i»iiin|>«h >i piiv,,igem", "arriscar lucio
por Dons”, não negociar com t lr, rxpot mu vkki, "só dcpen
der do bom prazer" divino,’1 eles i liegam a experiência mística
e podem dizer com o poeta do (YInlUo cs/tlrUmil: "Descobre-
me tua presença. Que a visão de tua bcle/a me m ate".’’ Seu iti­
nerário passa necessariamente pelo sol rímenlo, pois "dos aman­
tes, penas são as insígnias”. ’'' Classificar de imediato a experiên­
cia mística com seus inevitáveis sofrimentos e suas terríveis re­
nuncias prévias na simples categoria do patológico é nivelar a
historia humana, querer que nela só existam planícies, negar a
existência do Himalaia.
Mesmo no plano mais modesto das Angélica e dos Raneé,
será que é razoável desprezar de modo demasiado racionalista
seus excessos de renúncia? Raneé irritou bom número de contem­
p o râ n e o s , mas também teve admiradores: Bossuet, Saint-Simon,
e t c e sua obra permaneceu. Saint-Beuve, em seu Port-Royal, de­
saconselha qualquer-julgamento simplista sobre comportamen­
tos, certamente desconcertantes, mas que é preciso apreciar à vis­
ta de seus resultados. “É à custa dessas particularidades [das mor­
tifica çõ e s com o as da Madre Angélica]... que a alma humana che­
ga... a certo estado fixo é invencível, a um estado realmente he­
ro ic o , de onde ela executa em seguida suas maiores coisas... Não
ha muito de que sê admirar da singularidade, ora repulsiva, ora
fú til em aparência, desses meios”. Para “forçar” “a barreira entre
o mundo e Deus... toda abertura é boa se por ela se penetra”.S7
() grande historiador de São João da Cruz - o agnóstico Jean Ba-
ruzl - escreve de seu herói: “A despeito de limites e de pobre­
zas Ide ordem filosófica!, ele triunfou, para além das regras co-,
muns, das taras nervosas”;™ e elè constata que “o esquecimento
e a alienação de todas as coisas do mundo”, “a mortificação de
todos os apetites e de todos os gostos” fizeram-no atingir uma
"tranqüilidade” e uma "ordinária suavidade” que não o abando-.

Sá. Estas expressões são do Padre Lallemartt cicadas por BREMOND, H.


Unto ¡re lititfm ire..., V, p. 24-28.
55. SAINT JEAN DE LA CROIX, CEuvres compites, ed. Paris, Dcscléc de
lUouwcr, 1959, p. 748.
56. ( litado cm PELLE-DOUEL, Y. Saint Jean <lc ta Croix et la nuit mystique.
Paris: Senil, ) 960. p. 43.
57. SAINTIv IIB.UVE, Pon-Htyah 1, p. 161-162. if. (ambón p, 1.058 1.059.
58. BARUZI, J. Sitini Jean dela (ruis , p, VII
nm,un in.ils 1 <) ( .inilnho para o Crucificado passa pela dor,
"Quem «Ir amor divino quer gozar, prevé Suso, suportará mullo
sofrimento.... Km outra passagem, Suso atribui estas palavras a
Sabedoria Eterna, isto é, a Jesus: ,

O sofrimento é para o mundo uma abjeçào, para mim ele tem


uma imensa dignidade. O sofrimento extingue minha cólera e
conquista meu favor. O sofrimento para mim torna o homem
amável, porque aquele que sofre é meu semelhante... Ela faz de
um homem da terra, um homem do céu. O sofrimento torna o
mundo estranho e dá em troca minha fiel intimidade... I . preciso
que seja completamente renegado e abandonado pelo mundo,
aquele que eu acolho amigavelmente/’1

O asceta cristão sofre com Jesus e por causa dos pecaclos -


os seus e os cio mundo. Mas esses sofrimentos são provocados
pelo amor e superados por ele. A regra de São Bento pede ao
monge que conceba sua vida comum com o “uma partilha dos so­
frimentos”62 de Jesus. Que ele então não prefira nada ao amor de
Cristo. Desánimos e tentaçõès( se quebrarão contra esse rochedo.
São João da Cruz assegura que “os tormentos ou as penas supor­
tadas para Deus são com o pedras preciosas que, quanto maiores,
têm mais valor e inspiram amor naquele que as recebe por aque­
le que-as dá”.63
Santo Inácio de Loyola revela que em Manresa “ele estava
determinado a fazer grandes penitências tendo em vista não tan­
to expiar seus pecados, mas ser agradável a Deus e causar-lhe
prazer”.6'1 A ascensão espiritual de Santa Teresa de Ávila começa
no dia em que ela vê uma imagem que, escreve ela, “representa­
va de maneira tão edificante um Cristo coberto cie chagas... que
eu fique toda perturbada pelos seus sofrimentos por nós. Meu co-
' ração se partiu de remorsos pensando na minha ingratidão por

59. Ibid., p. 669.


60. SUSO, H. CEuvres completes; Sentences, p. 535.
61. Ibid., Livre de la Sagesse ¿ternelle, cap. XIII, p. 362.
62. “La Régle de saint Benoit” em Regles des moines, ed. J. P. Lapierre, Paris, f
Seuil, 1982, p. 57, 65, 138-139: fim do prólogo, regras 4, 5 e 72. Cf. JEAN
NESMY, J.-Cl. Saint Benoit et la vie m onastique. Paris: Seuil, 1967. p. 34.
63. Citado por PELLE-DOUEL, Y. Saint Jean de la Croix..., p. 43.
64. LOYOLA, Ignace de. Autobiographie, p. 56.

50: i
essa.x ehagiiN, Mu nu* laiael i Ir |t u*l|t« ».*• I .t compaixão pelo
Anuido <|iu* explica todos nu liUHlveMi "IU*l|us , ion leprosos" da
historia (. lisia, A carmelita dr Mcaune Margarida cío Santo Sacra
mentó, como relata lima biografía do sceulo 17, "s('> vía e so po­
día discernir a pessoa de Jesus na pessoa daqueles pobres, e co­
locando a boca sobre suas chagas todas repletas do pus (|ue sala
dr suas úlceras, ela carregava uma Impressão das chagas sagra
das de Jésus Cristo, e parecla-lhc. ter a boca chela de seu, precio­
so sangue"." Dolorlsmo, certamentel Mas de i|ualc|uer modo
olhemos mais além: em sua raiz, existe um amor louco. Margad
da-Maria (|iie se reconhece “insoívável,,ft7 em relação ao seu dlvl
no amante, entrega-se a ele nestes lermos: “Para o meu bem
amado, eu sou para sempre sua criada, sua escrava, sua criatura,
|,i (|ue ele é todo meu. Sua indigna esposa, irmã Margarida Ma
ria, morta para o mundo. 'Tudo em Deus e nada em mim. Tudo
a I >eus e nada a mim. Tudo por Deus e nada por mim".,’M
Outra linha de reflexão sobre as proezas ascéticas em ter­
ra cristã revela que os excessos mais insólitos não duram toda a
vida, Mies correspondem a um período (mais ou menos longo) de
( rlse espiritual. Depois do qual as penitências não desaparecem,
mas assumem um caráter menos desumano e, por outro lado,
» mais regular. Ao mesmo tempo, o santo se volta mais para o
apostolado exterior. Suso entrega-se desde os dezesseis anos as
mortificações que sabemos quando uma visão o aconselha a
abandonar doravante aqueles exercícios pelos quais “toda sua
natureza estava arruinada”. Deus “mostrou-lhe que aquela auste­
ridade e todas essas maneiras de agir tinham sido apenas um
bom com eço e uma conversão de sua natureza indomável... Ago-
ra ele devia ir mais lortge de outro m odo...”.'“° Suso joga então no
Keno todos os seus instrumentos de tortura. Santo Inácio inflíge­
se em ÍVlanresa as penitências mais duras. Ademais, ele faz voto
de nao mais comer carne. Mnfim, ele substitui freqüentemente o
sono por aquilo que de início ele toma por conversações com
Deus. Mas ao fim de um ano, ele reconsidera, conclui que é me657*9

65. TI IrtRÊSE D’AVII.A, CEum s... : Vir, cil. 1000.


66. Cf. ROLAN D-GOSSELIN, |. I r ü im ie L , p. 7».
67. LANGUKT, J.-J. La vietir... M tiiyutrht M arir . , p. ,U>4.
6H. Ibiil., p. 67.
69, St ISO, II, ( lúuavs <vmji/l'ir\, I V,. > ip Xl\, p 0)1, COGNHT, I . lutiv
riuction..., p. 163 16-1.

504
Ihor "clonnli dniiinli' n lempo destinado ao sono", decide voltar
a comer <arne e "nbiuulonar as medidas excessivas que tinha to­
mado antes","
Dom Marlene, discípulo, amigo e biógrafo de Dom Martin
(filho de Maria da Encarnação), narrou as “penitências terríveis”
que seu mestre se infligiu para fazer cessar nele as tentações da
carne. Mas ele nos conta também que a vitória foi enfim conquis­
tada. A partir daí, as mortificações desumanas nào eram mais ne­
cessárias. O fato é dado por Dom como uma regra bastante ge­
ral. Depois que a Sabedoria manteve amarrada e na escravidão
uma alma fiel e... a fez passar por certos trabalhos necessários,
ela a põe em liberdade e... só a prende.por seus abraços eternos,
que são uma espécie de corrente muito forte na verdade, mas
qiie se usa com um prazer que ultrapassa tudo que se possa di­
71 Madame Guyon explica por sua vez que a passagem pelos
0
zer".7
suplícios voluntários deve ter apenas um tempo, porque “o de­
masiado apego às mortificações impede a do espírito e da pró­
pria vontade". Aquele que morreu da morte dos sentidos e de sua
própria vontade “não tem mais necessidade dê mortificações,
mas tudo isso passou para ele”.727 4
3
Enfim, terceiro elemento desse processo: os mestres espi­
rituais, de maneira constante, desaconselharam o abuso das mor­
tificações. Súso, em primeiro lugar, recusa que o imitem e repro­
va o exagero do ascetismo. Às monjas que se infligem verdadei­
ros suplícios, ele declara que estes são inúteis e perigosos.75 San­
ta Teresa de Ávila, dirigindo-se às prioresas dos conventos que
ela fundou, diz: “O que eu digo é muito importante, sobretudo
no que concerne à mortificação. Que as superioras prestem aten­
ção nisso, pelo amor de Nosso Senhor. Nesse assunto, toda dis­
crição nunca será demais, assim com o aplicar-se em discernir as
diversas aptidões. Se não forem extremamente circunspectas em
tudo isso, as prioresas, em vez de serem úteis às suas religiosas,
lhes SÍerão muito prejudiciais e as lançarão na inquietação”.7' Ao

70. LOYOLA, Ignace de. Autobiographie, p. 72-74.


71. MARTÈNE, Ed. La vie du vér\érabíepére Dom Charles M artin..., Tonrs,
1967, p. 82. BREMOND, H. H ístoire littéraire..., VI, p. 91-92.
72. La Vie de M m e... Guyon..., I, p. 97-99-
73. SUSO, H. CEuvres completes, p. 57-58. COGNET, L. Introdu ction...,
p. 163-164.
74. THÉRÈSE D’AVILA, CEuvres complètes, III, p. 243-244.
penitente que se dedica "» si n i< h r*.| tlrllual.s", Sumo Inácio
de I.oyol a ensina a cóndüta .1 mantel' no <|u<~c«)ncerne á comida:
"I lablluar-se a pratos grosseiros", comer píalos delicados “só em
peí|iiena quantidade”, atingir no beber e no comer o “nível mé­
dio... que convém” a cada uin. I'. se a pessoa percebe que por
suas abstinências “ela nào tem mais força física suficiente nem
disposição para os exercícios espirituais, ela chegará facilmente a
julgar sobre o que convém mais à sua subsistência corporal”.75
Numa obra destinada às religiosas, Santo Afonso de Liguori reco­
menda, é bem verdade, as mortificações, mas ao mesmo tempo
praticá-las com moderação: “São Basilio, ele também, exortava
cada religioso a contentar-se tanto quanto possível com coisas or­
dinárias e comuns. Isso vale mil vezes mais do que sobrecarre­
ga r-se de jejuns, de disciplinas e de cilicios e economizar na co ­
mida. As exceções foram o ponto de partida do relaxamento para
muitas ordens religiosas”.76
De maneira constante e categórica, os fundadores de Or­
dens sempre pediram aos religiosos e religiosas que colocassem
a obediência antes das mortificações corporais. A regra de São
Bento exige - é o oitavo grau cie humildade - que um monge só
laça "o que é prescrito pela regra comum cio mosteiro ou acon­
selhado pelos exemplos.dos antigos”.77 Santa Teresa de Ávila cita
o caso de uma virtuosa bernardina que “os jejuns e disciplinas
enfraqueceram a tal ponto que a cada comunhão, e cada vez que
sua piedade se inflamava, ela caia no chão e ali permanecia por
oito 011 nove horas”. O confessor da religiosa avisou Teresa que
diagnosticou falsos desmaios e aconselhou “que ele lhe proibis­
se jejuns, disciplinas e que recomendasse diversão. A religiosa era
obediente, ela se submeteu. Quando recuperou as forças, não
houve mais desmaios...”78 Postulante entre as visitandinas, Santa
Margarida-Maria, na sua sede de sofrer pôr Jesus, resolveu um dia
“estender determinada austeridade que lhe tinham permitido,
para além do que a obediência exata tolerava”. São Francisco de

75. I.OYOLA, Ignace de. Exercices spirituels, trad. Fr. Courel, Paris, Desclée
dc Brouwer, 1960: 3a semana; 3a e 4 a regras, p. 116-117.
76. ALPHONSE DE LIGUORI, La Vraie ¿pouse de Jésus-Chirist ou lã sainte
religieuse, trad. F. Delerue, Paris-Saint-Edcnne, 1926, p. 116.
77. Règles des moines: Pacôme, Angusún, Benott, Fmnçois d ’Assise, ed. J.-P. Lapiene,
p. 77.
78. THÉRÈSE D’AVILA, Le Lim e des Im da/ionu cap. VI, p. 42.

500
S;ilev» llir .ip.iicicu c ivpreendeu-a severamente: "(lomo? Pensáis
agradar .1 Detis, d i/ ele, passando os limites da obediência? lila é
o principal sustentáculo desta congregação, e nào as austerida­
d e s " . 'Um pouco mais tarde é Jesus quena lhe diz: “ Tu terás por
suspeito tudo o que te afastar da exata prática da regra, quero
que tu a prefiras a todo o resto”.7 80
9
Essas precauções remetem a uma distinção proposta no
início da presente obra entre “desprezo do mundo” e “afasta­
mento do mundo”: alguém pode retirar-se do mundo sem lançar
o anatema sobre a criação; e igualmente praticar a ascese sem se
destruir. Mas é bem verdade que ao longo da história cristã es­
sas duas atitudes efetivamente se produziram. É verdade também
que, no caso de Rancç, por exemplo, a negação da criação ás
vezes predominou sobre o amor ardente. É verdade, sobretudo,
que a pedagogia religiosa deu o excepcional como modelo, o
não-imitável com o exemplo, e insistiu mil vezes sobre alguns
destinos tão fora do comum que acabaram por suscitar nos fiéis
desânimo ou aversão. Entre a austeridade tão elogiada e uma
vida normal, onde se encontrava a passagem? O apelo continua­
mente dirigido aos religiosos e religiosas para viver de “olhos
baixos” tornou-se difícil de compreender quando levou ao des­
prezo da beleza e da criação. Ora, até o sorridente São Vicente
pede às irmãs de caridade para “não olhar as belas coisas quan­
do a curiosidade incita a fazê-lo”, e para mortificar os ouvidos
“que se deleitam em ouvir os cânticos, as músicas, os louvores
que vos são dados, o canto das aves. Os ouvidos se regozijam
com èssas coisas; mas é preciso mortificar-se e fugir delas, em
lugar de procurá-las”.81
Enfim, o drama da reparação assumiu um tal volume no
discurso eclesiástico que levou às vezes a insustentáveis quantifi­
cações. Nào faz cinqüenfa anos que algumas religiosas - na Suí­
ça, por exemplo - liam para as crianças, durante a via-sacra, a se­
guinte lista tirada das “revelações” feitas por Jesus às Santas Eli-
sabeth, Brigitte e Metchilcle “que tinham desejado saber o núme­
ro de golpes que ele tinha recebido na sua paixão”:

79. LANGUET, J.-J. L a Vie ... de M arguerite-M arie, p. 51-52.


80. Ibid., p. 61.
81. G O ST E , P. Corrcspondance. Entretiens, Documents, Paris, 1923, II, IX-X,
Conferência 72 <lc 2 nov. 1655, n. 1.439 cia ed. ¡tal. de L. Mezzadri, Confe-
ir/h'c i/i¡r¡iiiii/¡ tille /'iglie della Carith, p. 945-946.

507
( iiin.ililtM.il, m inino irn iiii, i|ii* tu • l« nuinel poi non u.’ .'<><> lagil
InniM, »• gotas <U sangue ti" h u illín das Oliveiras, / ao *
Iteeel>1 sobre iihmi em po sagiado I <u*' quipus,
bofetadas sobre minhas <|plh ada >hu < 110,
( ¡olpes no pescoço, lo*
Nas cosías, ,AH0,
No pello, 13.
Na cabeça, HS,
No.s llamos, .AH,
No.n ombros, 62,
Nos bravos, 4().
Nun coxas e nas pernas, 32.
Maleram-me na boca 30 vezes.
lançaram sobre minha preciosa face sujos e infames escarros,
¡32 vezes,
Trataram-me a pontapés, como um sedicioso, 370 vezes,
hmpurraram-mc e me derrubaram no chito 13 vezes.
Puxaram-me pelos cabelos 30 vezes.
Arrancaram-me e arrastaram pela barba 3H vezes,
One vosso cora vito se inflame.
No coroa mento de espinhos fizeram-me na cabeça 303 furos,
r:u geml e suspirei, pela vossa salvaçáo e conversão, 600 vezes,
Tormentos capazes de causar-me a morte, eu sofrl 162,
bxlremas agonias, como se estivesse morto, 16 vezes,
|)o Prelórlo até o Calvário, carregando minha cruz, eu dei
1320 passos,
Por tudo Isso, eu só recebí um ato de caridade de Santa
Verónica, que me enxugou o rosto com um lenço onde
minha face llcou Impressa com meu precioso sangue,,,"'

a doença do escrúpulo
() dolorlsmo foi frcqüenterncuile .icot upan hado cie exaiis
Uvas Interrogações, (),s ascetas crlsiaos, nos momentos em i|tie

H2. I'\tu "(Ihiivc do pniüíno" c oae "i umlhlio tlu u*ti" cttflu impicsito.% (n.I.ii.cI.)
un qiiiitrn pitglna» urninptinlitidnc <l«- um * Imito" de Itnm Socorro edc imiii
oi.ti,,to cm honiti de Sumo I lulusio
\

MIM
se eim vgavti in muís rudes excessos de penitencia, cram
atormentados pcl.i doença do escrúpulo, a convicção de sua
danaçáo e .1 lentaçdo do desânimo. "Tinham dito la Susol (]ue
sua entrada na Ordem Idos dominicanos] foi obtida doando um
bem temporal; esse é o pecado que se chama simonía." Duran­
te dez anos, Suso foi torturado por esse escrúpulo e “sempre se
considerou com o um condenado”. Ele se dizia: “Tu estás perdi­
do, faça o que fizer”.838
4Enfim, ele se confessa a Mestre Eckhart,
“que o livrou de sèu sofrimento”. Santo Inácio de 'Loyola, ele
também relatou a crise de escrúpulos que atravessou em Man­
tesa: a análise que ele deixou de seus estados de alma na épo­
ca constitui um modelo de penetração e poderia figurar num ar­
quivo médico:

Embora sua confissão geral ele Montserrat tenha sido feita com
muita diligência e inteiramente por escrito..., entretanto, parecia-
lhe, às vezes, que ele não tinha confessado certas coisas é isso
lhe dava muita aflição. Embora se confessasse de novo, não fica­
va satisfeito... Finalmente, um doutor da catedral... lhe disse em
confissão que ele devia escrever tudo de que podia lembrar-se.
Ele fez isso e, depois de confessar, foi assim mesmo assaltado por
escrúpulos, com as coisas ganhando cada vez mais em sutileza,
de tal modo que ele se encontrava aflito. E embora percebesse
que esses escrúpulos lhe causavam grande mal e que seria bom
desfazer-se deles, ele não podia conseguir.8'

O confessor lhe ordena então que de seus pecados pas­


sados só confessasse aqueles que lhe pareciam “b em claros”.
Mas Inácio os tem “todos com o muito claros” e continua “ain­
da em pena”. Ei-lo então-em plena crise: dedica sete horas por
dia à oração de joelhos, chama Deus “em socorro”, pensa em
lançar-se num grande buraco próximo ao lugar em que está re­
zando, mortifica-se de todas as maneiras. Tudo em vão. Lem­
brando seus pecados e “tratando-os com o um objeto que se en-
fileira um depois de outro”, ele vai “em pensamento de um pe­
cado da época passada a outro pecado” e julga-se obrigado a
confessá-los de novo. Enfim, com a ajuda de Deus, faz-se a luz
em seu espírito, eAele decide “não mais confessar nenhum de

83. SUSO, H. CEuvres completes; Vie, tap. XXI, p. 199-200.


84. LOYOLA, Ignace de. Autobiographie, p. 68.

500
SOIIS p e t a d o , H | >,l'iN,ld< I>| \ | >>11111 dem< 1 11.1, II» (>11 llviv clt * s e tlS
C.MTÚpulON",'"
A crise cU* Santo In.a In *»o durou alguns meses, ma.s a tio
Smln prolongou-se por vinte .mos |)o mesmo modo, Margarida
tio Santo-Sacramento parece ler remoldo durante totla a vitla
.m u í s pecados (?) de Infância. Aos três anos, ela mentiu para des­
culpar uma criada em falta, Carregou tantos remorsos por Isso
que, tornando-se religiosa, acusou-se mais de cem vezes, termi­
nando por expiar esse pecado por rigorosas penitências. Seu
confessor a tranqüilizava dizendo: "Irmà, sabeis bem que as
criantas nunca pecam antes de ter a idade da razào”. Ao que ela
respondia: “Sei muito bem, mas isso faz ver a malignidade do
fundo que está em mim”.80Quanto a Santa Margarida-Maria que,
ainda no fim da vida, considerava-se com o um “monstro”, no iní­
cio da vida religiosa, era tomada por mortais inquietações antes
de cada comunhão. Seu biógrafo do século 18 relata que “fre­
quentemente seu exam e de consciência era tão rigoroso, que a
lançava na perturbação e no temor, de tanto que ela temia levar
a mínima mancha para a Santa Comunhão... Ela não via quase
nenhum pecado a acusar, e julgava que eram sua cegueira e seu
endurecimento que os escondiam. Nessa pretensa cegueira, ela
condenava em si mesma todos os pecados que não via, e dos
quais se julgava culpada”.87
Em nossa civilização ocidental, essa doença da alma não
atingiu apenas personagens fora de série. Ela foi um fenômeno
relativamente disseminado, identificável, suscitando a reflexão
dos especialistas da melancolia.88
Emmanuel Mounier teve razão ao notar que “o escrúpulo
tem fronteiras históricas. Ele era desconhecido da Igreja çlo
( írlentc. Mesmo no Ocidente latino, não o encontramos mencio­
nado antes dos teólogos moralistas da segunda metade cia Idade
Média".80 A Igreja do Oriente, com efeito, não conheceu a distin­
ção entre pecado mortal e pecado venial e jamais obrigou os fiéis

HVJbkl., p. 71.
86. ROLAND-GÓSSELIN, J. Le Carmel de Beaune..., j>. 60.
87. 1.ANGUET, J.-J. La Vie ... de M arín en teM arie, p. 91.
88. Ver mais adiante p. 619-622.
89. MOUNIER, E. Trailédu nnaethe, cm (làw m , i. II, Paris, Senil, 1961,
p, 694. Agradeço ao Padre Pr. Boiudcau pin ter me dtamado a atenção sobre
este texto,

000
.i conílvido di i.illi.ul.i dos pecados. Portanto, ela nao compeliu a
analise exau.sllv.i dos casos de consciência.1X 1 lista última, inversa­
mente - Impulsionando, é bem verdade, um extraordinario de­
senvolvimento da introspecçâo desenvolveu-se na Igreja latina
com a confissão anual e obrigatória de pecados precisos e classi­
ficados em rubricas.
Na época de Santo Tomás de Aquino, o fenômeno ainda
nào tinha adquirido a amplitude que conheceria em seguida. O
grande doutor trata da “consciência” somente como filósofo, in­
dagando se ela é ou nao uma “potência”. Ele não estuda o es­
crúpulo. Mas muito logo se multiplicam “Sumas” de casos de
consciência e “Manuais” ele confessores,9 91 porque é preciso es­
0
clarecer os padres e os fiéis. A inquietação escrupulosa no sécu­
lo 15 já se tornou um fenômeno de civilização, pelo menos num
certo nível social e cultural. Ela atinge sua maior dimensão nos
séculos 16-18, mas em seguida desaparecerá lentamente. Calcu-
la-se que de 1564 a 1663 nada menos, que 600 autores católicos
- franceses, italianos, espanhóis, flamengos, etc. - compuseram
tratados de casuística.929 3
Ora, a função dessas obras ,era permitir aos confessores
orientar-se dentro da floresta fechada das situações concretas e,
portanto, trazer soluções às interrogações dos fiéis. A casuística
é inseparável da história do escrúpulo. Mas esta última extrapo­
la ò extenso campo dos catálogos comentados de casos de cons­
ciência. Porque ela se lê melhor ainda nos tratados especializa­
dos que procuravam acalmar as almas inquietas. Seu repertório
seria longo. A montante, descobrimos notadamente a Consolatio
theologiae do dominicano Jean von Dambach (século 14) e so­
bretudo o s ' escritos de Gerson: Instm ctio contra scrupulosam
conscientiam ; Tractatus de rem ediis contra pusillanim itatem ,
scrupulositatem. . Tractatus pro devotis sim plicibus qualiter se in
suis exercitiis discrete et cante habere debent?- etc. A jusante, fi-

90. Ele condui que elaé um “aro”: Somme th êol, T q. LXXIX 13: Desclée de
Brouwer, 1961, 9, p. 260-264.
91. Ver anteriormente cap. 6, p. 222-229. .
92. H istoire des religions, Pléiade, 1972, II, p. 1.083: “Le Catholicisme posttri-
dentih” por R. Taveneaux.
93. Estes três tratados em Opera, ed. Du Pin, Anvers, 1704, III, col. 242-243;
579-589; 605-618. Sobre o escrúpulo no fim da Idade Média e no século
XVI, cf. TENTLER, Th. N. Sin an d Confession..., notadamente, p. 75-78,
113-115, 156/348.

601
gumm noludamente as « d t t a s e^ptHIuuls sobre a p a c Interior
(1766) do capuchinho Ambrohr d* In m b c/." I,niic* esses mar
c o n emergem obras com títulos reveladores; o Diretor pacifico

<las consciências... do capuchinho |«an I tançois de Rei ms (ed.


completa, 1634), o Diretor dos eonseiihicitis escrupulosas..."’' do
franciscano Colomban Glllolle (I" etllçáo, 1697), o T r a t a d o d o s
escrúpulos^ c\o jansenista moderado Jacques Joseph Du Guet ( Ia
edição, 1717), etc. Esses livros muitas vezes conhecem um su­
cesso que prova a demanda de um público: em 1666, o enorme
Diretor pacífico das consciências,,. (974 p., in-8°) está em sua
sexta edição. O tratado de Gillette é republicado seis vezes de
1698 a 1753.
Obras de casuística e dissertações sobre o escrúpulo tam­
bém náo esgotam a análise deste último, que está presente ain­
da em numerosos escritos sobre a espiritualidade, entre os quais
podemos citar aleatoriamente um serm ão de Suso,90 “notas para
ajudar a sentir e*a julgar os escrúpulos” inseridas nos Exercícios
espirituais f o Tratado do am or de D eus de São,Francisco de Sa­
les,''" diversas “Cartas de direção” de Fénelon99e A Santa Religio­
sa de Santo Afonso de Liguori,100 etc. As balizas anteriores deli­
m itam o espaço (internacional) em que se desenvolveu no Oci-
denlc a "selaria de consciência”101 e dentro do qual historiadores
c i Unicos podem estudar como em laboratório uma doença do
escrúpulo que os moralistas distinguem cuidadosamente da

l)4. Cf. PÉLICIÈR, Y. Colloque sur la névrose..., p. 15 e 147.


95. O título inteiro é o seguinte: Le D irecteur pacifiqu e des conscientes ou les
pem nn es clévotes tant rçligieuses que seculieres pourront connoitre clairem ent l ’é -
tat de Uur conscience, seclaircir de toutes leurs dificu ltes, discerner le péché m or­
id d'avec le viniel, découvrirplusieurs abus et tromperies, se délivrer de leurs soní­
pides et tentations et apprendre à se confesser sqns inquietude.
96. SUSO, H. CEuvres..., “sermão n. 1”, p. 542-548.
97. 1.<•)YQIA, Ignace de. Exercices spirituels, p. 181-183. Cf. também suas Re­
gí da e de scrupulis.
98. Notadamente o cap. 14 do livro VIII. Cf. PÉLICIÊR, Y. C olbqu e sur la
névwse..., p. 16.
99. EKNHl.ON,JLettres de direction, ed. M. Cognac, Paris, 1902, p. 195-198,
205, 207, 261-263, 270, 272, 282.
100. AIJPHONSE DE L.IGUOR1, La Vntie épouse ott la sainie re/igieuse..., no-
todamente cap. XIII “La pariente", ed. I, I iclcrur, p. 260-286.
101. Expressão citada cm DI-IOTEI., ). < I. /«•* Chiginei.,„ p. 341.
"S¿i ni .i Iiitiul*'l ik .Ic* c* do "salutar temor de Deus”, próprios das
c’on.si Iciu las "delicadas”.
"A ansiedade, a timidez, a inquietude que torna a alma tre­
mente sobretudo”10' se desenvolvem muitas vezes sobre um ter­
reno predisposto, isto é, em personalidades obsessivas ou psicas-
tênicas. As primeiras, que estão em luta contra as pulsòes pré-ge-
nitais, têm tendência à meticulosidade, a um asseio excessivo, ao
perfeccionismo, à obstinação, à economia, à observação mais
- que rigorosa dos compromissos.104 As segundas experimentam
um sentimento de incompletucle, são assediadas por dúvidas, ru­
minações mentais, preocupações introspectivas, tendem para a
tristeza, são arrastadas para a inibição e a impotência. A perda do
amor de si mesmo e o pensamento da morte as levam a uma me­
lancolia que Freud assimilava a um “luto”.105 Esses temperamen­
tos são xde todas as épocas. Mas condicionamentos culturais po­
dem acentuar suas tendências primitivas e, além disso, fazer nas­
cer a doença do escrúpulo em pessoas que de início não estavam
inclinadas a ela.
Do século 15 ao fim do 18, para não prolongar a pesqui­
sa até nrais além, o discurso eclesiástico sobre o escrúpulo nos
impressiona por sua homogeneidade. Freqüentemente, os auto­
res que tratam desse assunto referem-se explícitamente a dois
grandes pioneiros: Gerson e Santo Antonino de Florença. O pri­
meiro, como dissemos, aborda várias vezes a questão do escrú­
pulo. O segundo, na sua célebre Sum a, consagra um artigo ã pa­
lavra “escrúpulo”, termo na origem bem concreto e que é um di­
minutivo de scrupus (seixo). O escrúpulo, de “pequeno seixo” ou
de “pèso leve”, tornou-se o “pequeno incômodo” que fere.11*0San­
to Antonino, que estuda sucessiva mente as consciências “boa”,

102. Cf. a este propósito DEPRIJN, J. La Philosophie de 1'inquiétude, Paris,


Vrin, 1979, sobretudo cap. IX e X e mais particularmente aqui p. 154-156
(mais as notas).
103. Cf. entre outros VAUGE, G. (Oratoriano). De VEspérance chrétienne con-
tre 1’esprit de pusillanim ité et de défiance, e contre la crainte excessive. Paris,
1732, cap. VIII, séc. II, reed. 1777, p. 224.
104. LEMPERIÈRE, Th. Psychiatrie de 1'aAulte..., p. 126-128. Ey..., H. M anuel
de psychiatrie, p. 490-505. PÉLICIÊR, Y. Colloque sur la névrose.... p. 13-14.
105. Mesmas referências e também Revue de M édecine, n. 2, 12 jan. 1980,
p. 77-102. “Le Noyau dépressif”, n. 14, 7 abril 1980, p. 673-704.
106. GILLOTTE, C. Le D irecteur... (ed. 1723)! p. 1. Cf. PÉLICIÊR, Y.
Colloque sur la névrose..., p. 13.

(in:t
"III,I" ( ■"e.scrupuhisa' n<iU’iih ».*»»1 1 tiiitililu > |>erc< )n kl() desde Sá<i
Te unas , define o eserúpllh •u)|iii • "urna duvida 11lie* c acompa
ni tilda de temor sem fundumeniu e (|iir, vinda do algumas con-
loluras frágeis o incertas, aflige o espirito o o faz apreender o pe
<ado onde ele nao existe".1"' (illlotle, que da essa tradução, pre­
cisa (|iie lodo escrúpulo é dlívida, mas que nem toda dúvida é
escrúpulo, porque se pode duvidar rom fundamento. Em com ­
pensação, "a consciência escrupulosa duvida sem razão".l0H Para¡
Santo Antonino, “o tédio e a tristeza" que oprimem uma alma a
ponto de paralisá-la sao suficientemente graves para que^se com ­
parem "a tempestade que, abatenclo-se sobre o Egito, consumiu
tudo o que aIi encontrou de verdejante”. Da mesma maneira, “a
tristeza causada pelo escrúpulo consome o vigor e a força cía
alma".1"'' Porque é próprio das almas com boa saúde' “não ver o
pecado onde ele não existe”.10 910
18
7 d ,
Lidos a través da análise eclesiástica os comportamentos es­
crupulosos de outrora apresentam vários aspectos dominantes.
Ues;salta enf primeiro lugar a importancia das “imaginações sujas”,
|,t que muitas almas piedosas são obcecadas por tentações de or­
dem sexual. Guillotte é formal a esse respeito quando escreve:
"(ionio os escrúpulos que vêm por ocasião dos maus pensamen­
tos sao os mais freqüentes, e do número daqueles que mais afli­
gem o espirito, os autores espirituais estenderam-se mais para en­
sinar os remedios que devem ser usados a fim de expulsá-los”.111
I >u Guet, no artigo XVIII de seu Tratado... esclarece igualmente:
"No me resta urna última espécie de escrúpulo a examinar: mas
que e mais fecunda que nenhuma outra; e que tem por objeto a
castidade”.112 E sobretudo nesse domínio que as almas inquietas
têm tendencia a identificar tentação e pecado.
Urna segunda categoria de escrúpulos, não excluida da
anterior, nasce da tentação de blasfemar. Vários caminhos con-
vergentes levam a essa situação dramática que Du Guet prefere

107. ANTONIN DE FLORENCE, Sum ma... Ia parte, título 3, cap. 10, § 9


c 10: cd. Vcnise, 1581-1582 em 4 v.: aqui 1, p. 67-71. La Summa de Sylves-
tre 1Nid ias comporta também uma rubrica “scrupuius”.
108. CJILLQTTE, C. L e D irecteur..., p. 5.
109. ANTONIN DE FLORENCE, Sum ma.... I, p. 68.
110. Ibid., p. 70.
I I I, ( lIU O T T E f C. Le Directeur.... p. S.
lulo dcMH’svi, |x>r<|iic‘ “seria perigoso assustar as imaginações
tios outros tom uma pintura que deixaria traços pelo próprio
horror que causaria”.Uí Uma “piedade triste”, um certo “tédio” cia
religião, o temor dos castigos divinos, “pensamentos inquietan­
tes... que levam a duvidar de ter fé”"4 induzem uma “melancolia
espiritual, uma perturbação da alma, um certo aniquilamento e
desespero”."s Daí as explosões de rebelião contra um Deus de­
masiado exigente, que podem se tornar particularmente violen­
tas e perigosas na hora cia morte.113516 Encontramos aqui a segun­
4
da tentação descrita pèlas Artes m o r ie n d if7 um tema, clássico da
pedagogia religiosa. O Padre Gillotte escreve no seu Diretor das
consciências escrupulosas que essas “tentações de blasfêmia que
o demônio às vezes faz o cristão moribundo sofrer atacam mais
freqüentemente uma alma escrupulosa na hora da morte”, e ele
logicamente inclui na sua obra longas passagens da Arte de bem
morrer (1622) do espanhol Juan de Jesus-Maria que tratam da
“maneira de resistir às tentações de desespero” nas proximida­
des da morte."8
Outra propensão de inúmeros escrupulosos é de confun­
dir pecado mortal e pecado venial, apesar dos sábios conselhos
dados por Gerson a esse respeito no início do século 15.119 Den­
tro do mesmo espírito de Gerson, o capuchinho Jean-Fançois de
Rei ms redige seu Diretor pacífico das consciências com o ; objeti­
vo de ajudar as pessoas devotas a “discernir pecado mortal de ve­
nial”,120 Du Guet, por sua vez, acusa certos escrupulosos de não

113. Du GJJET, J.-J. Le Traité des scrupules, ed. Y. Pélicier (Vapeurs 2), 1976,
p. 198.
114. Ibid., p. 190.
115. BÉNÈDICTI, La Somme despechezet remedes d ’iceióc, Paris, 1595, p. 621.
116. Cf., entre outros, REGNAULT, V. (S.J.) Praxispoenitentialis ad d irectio-
nem confessarii in usu sacri sui muneris, Mayence, 1617, livro II, cap. 9 e 10,
p. 88-94. LOARTE, G.; FORNARIO, M. (ambos S.J.) Enchiridium seu ins-
tructio confessariorum, Paris, 1653, cap. XVIII, p. 180-189. REIMS, Jean-
François de. Le D irecteur pacifique, 2a parte, 1. I, art. III, p. 222-227.
117. TENENTI, A. La Vie et la m ort..., p. 104-105.
118. GILLOTTE, C. L e D irecteur..., p. 180-195.
119. GERSON. IdCEuvre finnçaise: Le P rofit de savoir qu el est p éché m ortel et
véniel, ed.Glorieux, p. 370-389.
120. Esta indicação figura na explicação do título. C f também nesta obra 2“
parle, I. III, inste, V, art. 1, p. 6 3 6 $.
.sabor "distinguir entre aqullt>que dev riu e»trrlglr r .K|uilo que sao
obrigados a sofrer; entre .i<|u11<>que os macula o ac|iillo que lhes
é deixado para humilha los <■ paia manir los em v ig ilâ n cia ".L e ­
vando mais longe a análise, ele condena também a tendência "a
ver pecados bem leves como ocasiões próximas de pecados mais
Importantes, porque se está persuadido de que Deus os pune
ordinariamente por esse terrível castigo”.1 '
Adicionando-se muitas vezes às perplexidades anteriores e
derivando delas, um comportamento frequente dos escrupulosos
consiste em multiplicar as confissões, às vezes até mesmo as con-
li.N.soes gerais:1--1 versão espiritualizada da obsessão de se lavar
com frequência descrita pelos psiquiatras.1-' Exames de çonsciên-
cla extenuantes com redação da lista de pecados, procura de uma
contrição cada vez mais forte, retornos constantes ao confessio­
nário, ou até peregrinação “de tribunal em tribunal” (da penitên-
i Ia): são procedimentos mil vezes evocados nas .obras que pro­
curam "ajudar” e “.acalmar” essas almas inquietas, frequentemen­
te "insuportáveis”'-5 para os outros e notadamente para os confes­
sores. (ii llotte define assim a tipologia cia pessoa sempre insatis­
feita de suas confissões:

Quando ela acredita que a maioria das confissões que fez são
nulas e sacrílegas, seus escrúpulos e suas penas aumentam, tan-
(o mais quanto ela vê por uma falsa persuasão que aquilo que
lhe devia servir de remédio a tórna mais doente do que nunca;
e que aquilo que é instituído para a destruição dos pecados é
causa de que o seu número aumente. É o que acontece quase
sempre; ela leva um tempo nào apenas suficiente, mas até mui­
to mais longo do que o necessário para examinar seus pecados
que ela escreve com uma exatidão extraordinária, e para se dis­
por com a graça a unia verdadeira e sincéra dor por tê-los co­
metido: e todavia, quando ela se confessou inteiramente, não só
ela relê seu papel onde seus pecados estavam escritos, mas ain­
da faz um segundo exame de consciência, mais longo que o pri­
meiro, para saber se não esqueceu nada, se explicou-se sobre12345

121. 1)u ( íUET, J.-J. Le Traite des scrupules, p. 156.


122. Ibid., p. 188.
123. Bf.NÉDICTI, J. La Som m e..., p. 621.
124. ri'l.ICIER, Y. Colloque sur la névrose..., p. 16-17.
125. lUiNÉDICTI, J. La Som m e..., p .621. <¡ll I.OTTK, C. Le D irecieur...,
p. 131.

(10(1
iodii‘1 ,i*i divuiwlAnchis; o como ela está nas austeridades, Imagi­
na que ii.lo lem a contrição necessária, porque ti contrição não
luí sensível.1*

Outro comportamento próximo cio anterior refere-se aos


exercícios de piedade que alguém repete por julgar que os exe­
cutou mal. Umà religiosa nào tem certeza se recitou bem o ofício
por falta de atenção suficiente. Então, ela retoma as mesmas pa­
lavras e os mesmos versículos sem obter melhor resultado. Um
padre recomeça igualmente a leitura de seu breviario. Essa atra­
ç ã o , pela repetição, clássica nas neuroses obsessivas, é evocada
por vários casuistas12 12712
6 *e bem descrita por Du Guet:
8

Alguém não pode recitar seu breviario sem ser alarmado


pelo medo das distrações, e por esse medo ele as atrai; quer
estar rigorosamente atento a tudo... Ele repete aquilo que julga
ter dito mal, e o diz de maneira ainda pior ao repetir, e de uma
ocupação que deveria consolá-lo, ele faz uma tortura que lhe
rouba o tempo, a liberdade e a paz.1-"

N Essa mania d,e verificação à base de perfeccionismo e de


culpabilidade12.9 leva o padre ansioso a tremer no momento cia
consagração, “não de terror, nota Du Guet, pelos Santos Misté­
rios, mas por temor de não articular de maneira bem distinta e
eficaz as palavras do Salvador”. Além disso, depois de comungar,
ele fica suspenso e paralisado por temer que ‘alguma partícula
insensível Ida hóstia] escape de seus olhos e de suas mãos”.130 A
doença do escrúpulo leva, então, à paralisia cia atividade ou as
ritualizações se pretendem tranquilizantes.
Os diretores espirituais do Ocidente distinguem fe ra l­
mente três tipos cie “borrascas e turbilhões de escrúpulos” que

126. GILLOTTE, C. L i D irecteur..., p. 198-199. Descrição concordante no


anônimo Traité de 1'espémnce chrétienne, cap. VIII citado por PÉLICIER, Y.
La Névrose..., p. 15-16,
127. Por exemplo, PONTHAS, J. D ictionnaire des cas de conscience, 3 v., Pa­
ris, 1730: III, “scmpule”, p. 755-771.
128. Du GUET, J.-J. Traité des scrupules, p. 170. Cf. também REIMS, Jean-
hançoisde. Le Directeur pacifiqu e..., IIP parte, 1. 2, instr. II, p. 842-873.
I 29, ( I lv..., H. M anuel de psychiatrie, p. 490-491.
I Kl I > i ¡I Ml, J.-J, Traité des scrupules, p. 170-173.
ii
assaltam a.s almas. Il,i urv*' «|iu* vOlll «l« Deus •o Deus “caçador”
de 1'auler (|iie deseja pôi ,i pio\a Individuos de elite (Sanio
Anlonlno, entretanto, cala se sobre esse lema). I lá outros que
sáo suscitados pelo demônio que, com a permissão divina,
"oprime b espírito do homem com escrúpulos perigosos a fim
cie desagradá-lo e desviá-lo do caminho da virtude”;1*1 é a ver­
são espiritualizada das provações de Jó. Má outros enfim que
lem causas puramente humanas. Sobre esse capítulo, todos os
especialistas da confissão desde Gerson- e Santo Antonino põem
em causa a “compleição natural”13 132 das pessoas que são de um
temperamento “frio e melancólico” e,.portanto, predispostas ao
temor c à dúvida.133134Mas “a má disposição do cérebro e particu­
larmente de sua parte anterior, que é a sede da imaginação, é
também a causa dos escrúpulos: porque é da imaginação que o
entendimento recebe as aparências das coisas sensíveis. Assim,
ocorre IVeqüentemente que o espírito pense mandas coisas, pe­
las falsas aparências de um mal imaginário que ele recebe des­
se poder".131 Os médicos de almas sabem também que a pusila-
nlmidade e os temores dos escrupulosos podem nascer de um
excesso “de jejuns,, de lágrimas, de vigílias, dé disciplinas, de
orações, de meditações, de imaginações, referentes a questões
sutis ou a coisas divinas, ou de pensar clèmais nos horrores da
morte, do julgamento, final, do inferno e outros assuntos seipe-
Iliantes”. Assim fala Gerson.135
Ksse diagnóstico põe em causa um ambiente cultural. Tan­
to que os casuistas não deixam de incriminar certos diretores de
consciência que provocam a doença do escrúpulo. Jean von
Dambach explica com humor que “se um homem escrupuloso
devesse confessar-se de conformidade com tudo o que foi escri­
to sobre a confissão, ele precisaria de um confessor no bolso”.136
<) Confessionário (1518) do humanista neerlandés Rosemondt
constata que certos confessores zelosos mas ignorantes “impõem

131. QILLOTTE, C. Le Directeur..., p. 6-7.


132. REIMS, Jean-François de. L e D irecteur pacifiqu e..., p. 9.
133. ANTON IN DE FLORENCE, Summa /, p. 68-69. GILLQTTE, C. Le
D irecteur..., p. 9.
134. Ibitl., p. 10-11.
135. GERSON, Opera, III, Tractatus pro deixais àmpHcibus..., col. 606.
136. VON DAMBACH, J. Consolaiio theoloçjue, Sir.iihoing, 1478, XIV, 8, 9.
TENTl.KR, Th. N. Sin an d Confcssion., , p, I I i

(108
um jugo c >*,i,imlivi lucilos c|iie o.s pecadores nao podem carregar
nus losiiis” " () franciscano Benedieti, ainda mais severo, alaea
os "confessores pouco experimentados em tratamentos de almas
ou demasiado escrupulosos que pretendem, diz um doutor es
panhol (Bart. Medina, D ePoen iten tia, 1. I, cap. 12), manter as al­
mas dos penitentes entre suas màos co m o ‘escravos, e notada-
mente pobres e miseráveis mulheres”.137138 O capuchinho Jean-
François Reims ataca, ele também, “certos diretores que condu­
zem as almas com demasiado temor provocando-lhes escrúpulo
de quase todas as coisas, de modo que elas não ousam em­
preender nada sem m edo”.139*Du Guet, por sua vez, crê que é de
seu dever “advertir que às vezes são lançadas na tentação pes­
soas de uma piedade sincera, mas cie uma imaginação viva,
exortando-as a sondar seú próprio coração, e perguntar se esta­
riam em condições de superar todos os obstáculos que se opo­
nham à sua salvação”.130
Na mesma ordem de idéias, Gillotte desaconselha aos es-
crupulosós a leitura das obras “que tratam da predestinação e da
graça e aquelas que, sob um especioso pretexto de reformar os
abusos de uma doutrina relaxada que se deve evitar - alusão aos
jansenistas e outros rigoristas da época vão ao outro extremo,
contendo uma moral demasiado severa, exagerada e inteiramente
contrária ao espírito de Jesus Cristo, que é um espírito cie doçura
e cie misericórdia.141 De maneira mais geral, os diretores espirituais
cie outrora observam que a doença do escrúpulo é contagiosa. San­
to Antonino já tinha dito: “Um escrupuloso torna o outro escrupu­
loso”.142143Jean-François de Reims afirma, ele também, “os escrúpu­
los podem vir da frequência de pessoas escrupulosas”" 3 e Gillotte
insiste notando que os escrúpulos “são também causados por uma
má conduta: por exemplo, quando alguém tem demasiada convi-

137. ROSEMONDT, G. Confessionale, Anvers. 1518, I, 7, p. 77-78. TEN-


TLER, Th. N. Sin an d Confession..., p. 338.
138. BÉNÉDICTI, J. La Som m e..., p. 621.
139. REIMS, Jean-François de. Le D irecteur pacifiqu e..., p. 7. Mesmo sent i­
mento expresso por GILLOTTE, C. Le D irecteur..., p. 25.
140’, Du GUET, J.-J. Traite des scrupules..., p. 180.
.141. GILLOTTE, C. Le D irecteur..., p. 12.
142. SAINT ANTONIN. Sum m a..., I, p. 68.
143. REIMS, Jean-François cie. Le D irecteur pacifiqu e..., p. 8 (a fórmula í ira-
dti/, ida ilc Santo Antonino).

BOI)
vénda com as pessoas csi ni|mloM.i'i pin estima, Iporquel al
gucm se lom a escrupuloso i um to e n uipulosos com o se torna
mau com os maus".1" Nao se poderla sublinhar m elhor o aspec to
coletivo assumido por essa neurose obsessiva
Ioda uma literatura esforçou se para concillar e aplacar as
almas Inquietas indicando-lhes os melhores remedios contra a pa­
ralisia do escrúpulo: evitaros excessos de mortificações, tratar pela
medicina os humores melancólicos e as perturbações da imagina-
cao, saber distinguir os peeados mortais dos pecados veniais e a
teniac/ao do consentimento, nào repetir o passado, nào repetir con-
flssoes feitas com um coração sincero, nào repetir orações'em que
distrações se introduziram (“nossa fraqueza é tão grande que mal
podemos dizer um Pater noster sem distração”),145 nào ter uma
Idéia orgulhosa de si mesmo e saber ver sem perturbação suas im­
perfeições,1'"’ confiar-se a Deus com simplicidade, obedecer docil­
mente aos avisos razoáveis de um diretor de consciência bem es­
colhido (este importante personagem era antigamente a necessária
contrapartida da doença do escrúpulo), etc. O Supplementum (sé-
culo M), embora rigorista, na Summa pisanella, convida a não sé
acusar de pecados que não se cometeu e a não tomar ao pé da le­
tra a tão célebre fórmula cie São Gregorio, o Grande: “IO homem
pledosol se reconhece culpado mesmo quando não o é”.1'7
Entretanto, a própria massa de obras que pretendiam tran­
quilizar prova que a inquietação subsistia. É que a linguagem re­
ligiosa de outrora era contraditória consigo mesma e soprava si­
multaneamente o quente e o frio. Aconselhava a “amar e servir a
Deus nao em vista do paraíso e do inferno, mas simplesmente
porque ele merece por si mesmo ser amado e servido;148 mas
quantos sermões insistiam sobre o inferno! Ela convidava a não
se deixar desconcertar pelas “sujas imaginações”; mas os exames
de <onsciência propostos aos fiéis, por exemplo em O Bom C on­
fessor de Sào João Eudes, podiam fazer brotar todo tipo de escrú­
pulos a propósito da sexualidade.1'9 Ela ensinava a “discernir o

144. CIU.OTTE, C. LeDirecteur..., p. 11.


I -1S. REI MS, Jcan-François de. Le Directeur pacifique..., p. 861.
146. Cf. por exemplo FÉNELON, Leltivi de ilirection,.,, p, 207
147. AUSIMO, N. dc. Supplementum ununiiie plutnellae, Vcnise, 1480:
"Confcssio", I, 9. TENTLUR, Th, N. Si» ,tm! <on/ruion..,, p. 156.
148. RKIMS, Jcnn-frnnvois ilr, l e niireteiirpii<l/h/Hr. , p. 9 l(>,
14'), EUDIcS, J. Le Bou ( 'otifèweur, 164», rd * on*tllttultt 1669, p, 274 290.
pecado mortal do venial”; mas a pastoral da época sublinhava a
gravidade dos pecados veniais e as cartas de espiritualidade inci­
tavam as almas mais devotas a ver-se com o abismos de iniqüida-
de. Jean-Jacques Olier, por exemplo, exortava a Esposa de Cristo
“a ver-se por dentro com o uma excomungada e digna de ser ex­
pulsa da sociedade e da companhia dos santos..., nào podendo,
segundo essa visàò, ser mais desprezada, contradita e persegui­
dla, tanto ela é digna não só de desprezo, de esquecimento e de
abandono, mas de horror, de condenação, de anatema, e de exe­
cração, merecendo por si mesma apenas o inferno”.150
Queriam dar uma imagem tranquilizadora de Deus, mas,
mesmo nas obras que se pretendiam pacificantes, sublinhavam
seus aspectos inquietantes. “Ocorre freqüentemente, escreve
Gillotte, que Deus seja o autor dos escrúpulos, quando, segun­
do os sábios decretos cie sua providência, apraz-lhe não so­
mente abandonar uma alma em suas penas, mas também pro­
duzir ele mesmo no fundo de seu coração temores e inquieta­
ções que ela julga cair pelo pecado na desgraça de Deus: dei­
xando por outro lado essa . alma numa escuridão tal, que ela
tem uma dificuldade extraordinária para discernir os caminhos
em que anda, e o que deve fazer ou evitar para sua salvação”:151
o Deus perseguidor.152154
3
Da mesma maneira, também os diretores espirituais acon­
selham evitar “os pensamentos de predestinação”;155 mas conti­
nuavam a ensinar que “o número dos reprovados é muito maior
que o dos predestinados” porque “há poucas pessoas que obser­
vam os mandamentos de Deus”.151 Para Du Guet, a doutrina se­
gundo a qual “existe uma medida de graça depois da qual Deus
não dá mais” leva a o ‘escrúpulo “almas tímidas ou imperfeitamen­
te instruídas”.155 Mas essa doútrina era ensinada em São Sulpí-
cio.156 Enfim, como negar o impacto considerável sobre os cris­
tãos mais fervorosos das advertências rigoristas provenientes de
Antoine Arnauld e de seus primos espirituais? As absolvições

150. O L IE R , J.-J. Lettres spirituelles, Paris, 1672, lettre X II, p. 36.


151. G IL L O T T E , C . Le Directeur..., p. 6-7.
152. Cf. anteriormente p. 3 2 5 -3 3 1 .
153. R E IM S, Jean-François de. Le D irecteurpacifique..., p. 2 1 6 -2 2 2 .
154. G IL L O T T E , C. Le Directeur..., p. 169.
155. Du G U E T , J.-J. Traitédes scrupules..., p. 188.
156. Ver anteriormente p .,317.
.k II.k I.i'.1 c o tremor diante i I, i liiiaihiia .d |x x Ii. i in engendrar
(li>I<n'(>s()s escrúpulos, Apoiando si ciu Silo Francisco de Sales,
Arnauld, na sua obra Del l'ivt/ili'nlr < nnuinhilo, admite (pie aque-
les que so tcm pecados veníais reí i'bam a lioslla todos os domin­
aos, "mas com duas condições extremamente consideráveis, lima
e <|tie antes de se aproximar tía mesa sagrada lelesl se purifiquem
«le setis pecados, mesmo leves, com orações e com lágrimas, E a
outra (que é de extrema importância para a conduta das almás.,.)
e de nao ter a vontade comprometida nesses pecados veniais.
Portille, como ensina ele maneira excelente M. de Genéve na sua
l'ilotclci, existe urna grande diferença entre os pecados veniais e
a afeição aos pecados veniais... Essas afeições são direta mente
contrárias á devoção e tornam a alma extremamente doente, em­
bora náo a matem".1<w Dentro do mesmo espírito, quantos ser­
mões e catecismos apresentaram a Eucaristia como o sacramento
"mais temível e mais terrível”!159
Uma ampla concordância sç estabelece entre os autores para
julgar as mulheres mais sujeitas que os homens à doença do escrú­
pulo. Santo Antonino, principalmente, afirma que a pusilanimidade
«la alma, (piando provém cie uma “compleição frígida”, é particular­
mente frequente “entre as mulheres velhas c melancólicas”.160Essa
expressão é geralmente retomada por seus sucessores cuja misogi­
nia sem dúvida subestimou as angústias masculinas. Em compen-
saçáo, há hesitação e discussão-sobre o nível cultural das pessoas
atingidas, Gerson tinha escrito o sêu tratado contra as mortificações
"indiscretas" em intenção das “pessoas simples”, insuficientemente
Instruídas para saber distinguir entre o razoável e o excessivo.161
Mas o Padre Gillotte explica “que os belos espíritos, assim como os
fracos, e os sábios como os ignorantes podem se tornar escrupulo-
s( >s", () público, acrescenta ele, crê que apenas os simples e os ig-
n<iraníes é que conhecem os escrúpulos mas isso é ir “contra a ra­
zan, contra uma experiência de todos os dias e contra a doutrina

I 57. ( ’f. PLA N TE, G. Le Rigorisme au X V II' siècle. Mgr de Saint-Vallier et le


Sdavmenf depénitence Gembloux, Duculot, 1971, notadamente p. 73-97 para
a absolvição adiada.
I 38. ARNAULD, A. De lafréquente Communion. P parte, cap. XXII', t. XX V II
da cd, dc Lausanne, 177^9, p. 238-239.
I5 (>. t)| IO T E L , J.-C I. Les Origines,,., p. 41 *J. Ver mais adiante p. 530-5,35.
160. A N T O N IN D E F L O R E N C E , Sinnnu , I. p, ou,
l o i . ( iE R SO N , Opem III, p. 60 5 o m .

u i:!
dos mili'» <<'li<1>ii ¡tutores espirituais”.I0J E o franciscano ella os es
crupulosos mals lamosos: Sao Boaventura, Santa Catarina de Geno
va, Santa Madalena dos Pazzi, Santa Ángela de Eoligno, Ilenri Suso,
Santo Inac ió de Layóla, os padres Baltazar Alvares e Zanches de
Ávila, confessores sucessivos da grande Teresa, a Madre de Quin­
tal, Surin, o Padre Juan de Jesus-Maria, Geral dos carmelitas, etc.
O autor do Diretor das consciências escrupulosas sem dú­
vida tem razão. De fato, os escritores espirituais procuram sobre­
tudo tranquilizar devotos relativamente instruídos. Observa-se,
como contra-prova, que os sermões para grande público detêní-
se muito pouco sobre o escrúpulo. O Bom Confessor ( 1642) de
São João Hueles, um clássico para uso dos missionários do inte-
> rior, não -diz uma palavra sobre essa questão.103 Na época clássi­
ca, a doença do escrúpulo parece ter então atingido sobretudo os
meios mais envolvidos pela Reforma católica, ou seja, ao mesmo
tempo os mais piedosos e os mais cultos, e é verdade què den­
tro desses limites ela conheceu uma verdadeira extensão, que in­
quietou os confessores. No seu D icionário dos casos de consciên­
cia, Ponthas escreve que o escrúpulo é “uma doença da alma das
mais incômodas e tcom a qual] se deve ter muito cuidado, como
reconhecemos por uma experiência de cinqüenta e seis anos”.1<vf

a dificuldade de morrer
As constatações apresentadas anteriormente apontam para
uma conclusão mais ampla e de grande alcance. Em nossa épo­
ca, adquirimos o hábito de insistir sobre a coerção exercida ou-
trora pela Igreja sobre as consciências. Nós percebemos melhor
do que nossos antecessores os vínculos éntre poder e doutrinas,
estas reforçando aquele. DòTnesmo modo que o discurso dolo-
rista tendia a fazer os pobres aceitarem docilmente as “misérias
desta vida”,16
465 assim também uma linguagem aterrorizante reforçou
13
2
efetivamente a autoridade do corpo eclesiástico. Não se poderia

162. G IL L O T T E , C. Le Directeur..., p. 21-2 3 . Mesma enumeração em P O N ­


T H A S, J . Dictionnaire... III, p. 75 8.
163. Edição consultada, Lyon, 1669.
164. P O N T H A S, J. Dictionnaire..., III, p. 755.
165. LA G R EE, M . “Le Langage de 1’ordre. La souffrance dans le d iscou rs
N d’un évêque français au X IX ' siècle” em Conciliim, n,. 119, 1976, p. 27-37.

(}|:t
J
negar aquela "pastoral do medo", glande litli) histórico sobre o
(|ii.il Insistirão nossos Oltiliu>*« eapllulns M.i*» o erro consistiría em
I k t)cr apenas os aspectos "utilitarios" dessa pastoral e em crer
c v I

<pii* ela foi somente um melo de governo da coletividade crista. A


realidade foi mais complexa e mais rica, e ela ale convida a inver­
ter as perspectivas, porque foram as próprias elites cristãs que fo-
ram aleladas pelo medo espiritual. Reencontramos assim aqueles
merlos "refletidos” sobre os quais se deu ênfase num primeiro vo­
lume e que são mais obsessivos e mais duráveis que os medos “es-
p<mtáneos"1"" sentidos por ocasião de um perigo ocasional. Os me­
dos espirituais às vezes se prolongam por toda a vida.
I'. normal que eles tenham atingido prioritariamente e de
maneira mais forte as pessoas de Igreja. Os padres (mas também
as religiosas) foram mais culpabilizados que os fiéis comuns. A
"sobreeminente dignidade” deles, constantemente, exaltada e
lembrada, teve com o contrapartida um convite permanente à má
consciência. Citaremos como única prova - mas que vale para
vários séculos e para o conjunto do mundo católico - a lingua­
gem que Tronson usava para os seminaristas de São Sulpício.
Propondo-lhes uma meditação sobre as “circunstâncias que tor­
nam os pecados dos eclesiásticos e dos padres ainda mais enor­
mes e mais terríveis”,16 167 ele desenvolve três considerações:
I") "... De todos os pecados não há nenhum mais enorme
que o pecado de um padre... É o mais horrendo de todos os
monstros; é a mais abominável desolação que jamais existiu”.
( lomo "o padre recebed mais graças de Deus, ele é também mais
obrigado ao reconhecimento”. Nosso Senhor confiou nele a pon­
to de laxe Io partícipe de seus segredos. “Que mais horrível trai­
ção do que,., levá-lo à morte, por consentir no pecado!” len d o o
padre "mais conhecimentos e mais luz, ele não pode dizer que
peca por ignorância; do mesmo modo, tendo mais graças, não
pode dizer que peca por fraqueza; assim seus pecados... só po­
dem ser de pura malícia”. “O pecado do padre é extremamente
i ontagloso na Igreja, e é capaz de perder uma infinidade de al­
mas", Além disso, que estima se pode ter dos mistérios de Deus,
<litando "aquele que os tem sempre entre as mãos entrega-se tão
livremente ao pecado”?

1 6 6 . D F .L U M E A U ; J. LaPeur..., p. 2 4 c 107.

1 6 7 . T R O N S O N , Retinto... ( 3 o d ia . t 1' i n n l l t n ^ f l o ) , p . 11 4 1 2 8 . L e m b r o q u e

a cd . c o n su lta d a c d c 1 8 2 3 .
"Um padre deve temer terrivelmente o pecado", por
que quando cai nele “é extraordinariamente difícil que se erga,
isso é muito raro”. O motivo é que ele cai de muito alto.
3°) “A terceira consideração que nos deve fazer tremer
fnós, padres! ao pensar no pecado é o furor absolutamente ex­
traordinário de Deus contra o pecados dos padres e os castigos
assustadores com os quais ele nos pune”.
Eis-nos aqui diante de uma linguagem do medo dirigida
não às massas, mas à elite das elites cristãs, e diante de uma par­
tilha de padre para padre de um autêntico terror da alma. Medi­
tações desse estilo não poderíam deixar de engendrar a doença
do escrúpulo no meio das pessoas da Igreja. O temor da dana-
ção foi mais duramente sentido pelos santos do que pelo povo
comum. Até mesmo São Francisco de Sales o conheceu no início
de seu itinerário espiritual. “Tomado por terrores, lembra Bos-
suet, unja negra melancolia e convulsões... faziam-no perder o
sono e o apetite (e) o levaram tão próximo da morte, que não se
via remédio para seu mal...”168 O Cardeal Bona (f 1674), antigo
Geral dos Trapistas e personagem ascético, escreveu nos seus
Princípios da vida cristã-. “Quando recordo as ações de minha
vida passada e faço um ,sério exame, sinto horror por ter trans­
gredido tantas vezes a‘ lei de Deus... Quando volto meu pensa­
mento para o futuro, apreendo o julgamento de Deus, e não es­
tando seguro nem do perdão de meus pecados, nem de minha
salvação, eu tremo de corpo inteiro”.169
Daí a dificuldade de morrer mesmo para os ascetas: “Até
meados do século 13, escreve André Vauchez, os últimos instantes
dos servidores de Deus não parece ter merecido especial atenção.
No máximo, nota-se que depois da morte seus corpos permanece­
ram bem conservados e um odor agradável emanava deles... De­
pois de 1300, em compensação, tem-se a impressão de que a qua­
lidade de uma existência se julga pela maneira de morrer”.170 Mas
éssa bela morte não é forçosamente tranquila. No seu sermão “so-

168. B O SSU E T , CEuvres Etats dbraison, p. 5 6 4 .


(ed . de R e n n e s ), t. I X :
T O U R , H . de M aupas du. L a Vie du venerable serviteur de D ieu François de
Sales, 2 v. 1 6 5 5 - 1 6 5 8 : 1, c a p . V , p. 2 5 - 2 6 .

169. B O N A , J. Principes de la vie chrétienne, I, c a p . IV . E m Choix d'otivrages


mystiques, ed . J . B u c h a n , P aris, 1 8 6 0 , p . 4 9 1 .

170. V A U C H E Z , A . L aS ain tetéen O ccident aux derniers siécles du Mayen Age.


Paris: D e B o c c a rd , 1 9 8 1 . p. 5 9 8 .

tu r>
bre o pcc|ucno número dos elHIo’» , M.isaIIIoii evoca a livqüentc
angustia dos heróis cristãos .1ni>* a apiosliu.Kao da morte:

( i rancie Deus! Como se cunhe» m i pon» o no mundo os terro­


res de vossa lei! Os justos de tocios o*, séculos secaram de ter­
ror meditando a severidade e a profundidade de vossos julga­
mentos sobre o destino dos homens: vimos santos solitarios,
após urna vida inteira de penitência..., entrar no leito de morte
em terror que quase não se podia acalmar, fazer tremer de pa­
vor sua cama pobre e austera, perguntar continuamente a seus
Irmãos com voz moribunda: “Credes que o Senhor me fãça mi­
sericórdia?” e estar quase a ponto de cair no desespero se vos­
sa presença, ó meu Deus, não tivesse num instante aplacado a
tempestade e ordenado mais uma vez aos ventos e ao mar que
se acalmassem.1'1

Iluas leituras concomitantes desse texto são possíveis e de­


sejáveis. A primeira capta uma pastoral aterrorizante destinada a
sacudir os cristãos adormecidos. Mas a segunda detecta uma
constatação e uma confissão: o medo da clanação nem sempre
poupa os mais piedosos dos fiéis que chegam à ante-sala da mor-
le, lí bem verdade que numerosos testemunhos vão em sentido
»1 Miliario ã essa afirmação. Santa Teresa de Ávila e muitas religio­
sas dos séculos 16-18 morreram na “alegria”;17' elas tinham pres­
sa de encontrar o Bem-Amado. Maria da Encarnação, “nos últi­
mos dias de sua vicia parecia estar como em êxtase, a alegria no
rosto, a vísta modestamente baixada ou voltada para o crucifixo
que ela segurava nas mãos; ela falava pouco, mas sempre com
11m. 1 suavidade tranquilizadora”.173 Recentemente, foram descritos
os últimos momentos de diversas Visitándinas francesas dos sé-
<tilos 17-18. Uma (em Autun) “estremecia de alegria à medida
que seu mal aumeptava. Anunciaram-lhe a boa notícia: que sua1723

171. MASSILLON, Pctit carême suivi fie smnom,.., cd. 1824, p. 320.
172. Cf. THÉRÈSE D’AVILA, Le Livre des fondations,' p.' 68-71 (morte de
I5«fatiitc ile rincarnation).
173. MARIK DE CINCARNATION (IV19 1672), Cormpondancc. cd. G.
Oury, Solcsmcs, 1971. p. 1.029.
liou iiio tle.sejadu chegava..'.”.171 As últimas palavras de nina visl
(andina (de Bourges) foram estas: “Os horrores da morte e da se­
pultura, cjue me causavam tanto mal amigamente, agora fazem a
minha alegria. É um prazer para mim pensar que serei destruída
e que pela minha anulação prestarei homenagem ao Ser imutá­
vel de Deus”.17 175 Uma terceira religiosa da mesma Ordem (em Au-
4
xerre, desta vez) recebe assim o anúncio de sua morte próxima:
“Oh, que boa notícia, logo irei ver meu Deus, irei desfrutar da­
quele que há tanto tempo desejo”.176 Mortes assim são freqüentes
em numerosas biografias de santos personagens que nos deixou
a época clássica. O oratoriano Jean Hanant, numa evidente preo­
cupação apologética, apresenta-se numerosos fins serenos, e até
mesmo desejados, de piedosos cristãos dos séculos 16 e 17.177
Mas esses relatos mascaram outros onde se percebe que os
últimos dias de homens e mulheres profundamente cristãos fo­
ram muitas vezes trágicos e só no fim do percurso desemboca­
ram numa serenidade confiante. Ainda em nossòs dias, Paul Mil-
liez nota, por um lado: “eu vi padres e religiosas, sobretudo jo­
vens, morrer santa e alegremente”, mas por outro lado também
constata: “Eu sempre fiquei impressionado pela morte de certos
padres. Às vezes, eles morrem mal. Eles crêem demais no infer­
no ou no nada...”.17- Mas voltemos ao século 17. O melhor bió­
grafo de Raneé, Gervaise, escreve resumidamente do seu herói:
“Desde esse triste momento, o santo homem não teVe mais dias
felizes, perecia a olhos vistos, definhava e nada mais; uma som­
bria e triste melancolia minava-o insensivelmente e alguns meses
depois levava-o enfim ao túmulo”.179 Bossuet foi visitado pela in-

1 7 4 . C ito a q u i o a rtig o d e B A U D E T - D R I L L A T , M m e G e n e v iê v e . “ R eg a rd à
1’ in té rie u r d es c o n g ré g a tio n s relig ieu ses” p u b lic a d o p rim e ir o e m DELU -
M E A U , J. La Mort des pays de Cocagne..., p. 1 8 9 - 2 0 6 , d e p o is e m D E L U -
M EA U , J. Un Chemin d'histoirey p. 2 2 7 - 2 2 9 .
1 7 5 . D I N E T , D . “M o u r ir e n re lig ió n a u x X V I L e X V I I P siécles. L a m o r t d an s
q u e lq u e s co u v e n ts des d io cèse s d ’A u x erre, L a n g res et D ijo n ” e m Revue histo-
rique, C C L I X , 1 9 7 8 , p. 4 7 .

1 7 6 . Ib id .

1 7 7 . H A N A R T , P. Les Belles morts de plusieurs séculiers, D o u a i, 1 6 6 2 . E d .


c o n s u lta d a 1 6 6 7 .

1 7 8 . M I L L I E Z , P. Médecin de la liberte. P a ris: S e u il, 1 9 8 0 . p . 3 1 7 - 3 1 8 .

Jugement critique mais équitabledes vies de feu M.


1 7 9 . G E R V A I S E , Fr. A .
L'abbé de Raneé écrites par les sieurs Marsollier et Maupeou, L o n d re s (R e im s ),
1742, p. 551.

(117
quletaçáo n;i>s .susv.s li 111111•i *• m iii . i i m i *mmi ’iccreUliio, l.o Dicu, ñola
cm abril de 1704: "|Scu| espirito • >i.1 bcm presente ê mareado
pelo ruedo dos Julgamentos de Den ., ele confessa".1"" Seu auxi­
liar conta, por sua voz, depois d.i mulle do grande hispo e a res­
peito de sua última doença: T ruino as vezes cu lhe dizia que
eslava espantado de que ele (|iilsosse me consultar, ele a quem
Deus tinha dado tão grandes e vivas luzes: ‘Nao vos iludais, di­
zia, ele só as dá ao homem em favor dos outros, deixando-o mui­
tas vezes nas trevas quanto à sua própria conduta’.”180181
Não parece oportuno insistir aqui sobre o medo extraordi­
nário da morte que durante toda a sua existência demonstrou Ma-
dame de Sablé, que, na segunda parte de sua vida devota, tor­
nou-se glutona e jansenista. Foi Tallemant de Réaux quem nos
deu essas informações maldosas.18218 4Em contrapartida, é mais es­
3
clarecedor para nós descobrir numa biografia de Santa Joana de
Chamal que esta, no fim da vida, conheceu sofrimentos físicos e
angústia dó além-túmulo. “Deus a tratou, lemos na obra de Mau-
pas du Tour, como trata essas grandes almas cie têmpera absolu­
tamente celeste, cujos longos sofrimentos ele recompensa còm
novos suplícios (sempre o Deus perseguidor), a fim de tornar sua
fidelidade mais depurada, seus serviços mais gloriosos e suas pe­
nas mais dignas de louros... Ele aincla se escondeu ao seu olhar
Interior pelo resto cia vida, deixando-a nos abandonos e nos in­
cômodos de sua ausência [pensamos em Santa Teresa cie Lisieux],
tão acerbos e tão horríveis que ela dizia sempre que se olhasse
para dentro de si morrería imediatamente”.185 Durante sua última
enfermidade, ela conservou um perfeito domínio de si mesma.
■ouando tinha um pouco de força, via-se um rosto risonho, di­
zendo o que podia para consolar... as irmãs que estavam ao seu
lado”,181 mas admitindo ao seu confessor: “Ah, padre, como os jul­
gamentos de Deus são horríveis! - Isso vos causa sofrimento? per­
gunta ele - Não, mas vos garanto que são bem horríveis”.185

18 0 . A bbé L E D IE U , M ém oires et jou m a l sur la vie et les ouvrages de Bossuet,


cd . C u c tté e , 4 v., P aris, 1 8 5 7 : I I I. p. 9 5 .

1 8 1 . Ib id ., I I , p. 2 6 6 : re la tó rio d o ab ad e d e S a in t-A n d ré .

1 8 2 . R É A U X , T a lle m a n t d e s. H istoriettes, 2 v., P a ris, P lé ia d e , 1 9 6 0 : I,


p. 5 1 5 - 5 2 1 .

18 3 . T O U R , H . de M aupas du. Ia Vie d e .... l'mn\oise Iremiot, p. 4 4 3 - 4 4 4 .

1 8 4 . Ib id ., p. 5 0 3 .

1 8 5 . Ib id ., p. 5 0 8 .

Ú1H
Siilnic lloiive, que notou (jue Nlcole era exlraordlnarlamen
te m a Iroso,""' evocou de modo comovente os temores du Madre
Angélica nas suas ultimas semanas (.1661):

... Essa pessoa tão pura e que, há mais de cinqüenta anos des­
de que recebeu o véu sagrado, não cessou de vigiai- é de traba
lhar sobre si mesma, na aproximação do fim foi tomada de um
indizível terror e teve de sofrer todüs as angústiás de uma ver­
dadeira agonia. Ela se via diante de Deus, segundo sua própria
expressão, como um criminoso junto ao postigo, que espera a
execução da sentença de seu ju iz ; e, pronunciando essas pala­
vras, parecia que ela estava destruída e aniquilada. Nada mais a
ocupava além disso. A idéia da morte, uma vez entrada em seu
espírito, ali permaneceu gravada e não mais a deixou um só ins­
tante. Todo o resto desapareceu; ela só pensava em preparar-se
para aquela hora terrível. Ela pensou nisso a vida toda: “ Mas o
que eu imaginei, dizia ela, é menos do que nada em compara­
ção com o que é, com o que eu sinto e comprèendb nesta hora".
Ela tinha medo da justiça suprema, e havia momentos em que
não ousava ter esperança na misericórdia.I8'

Estamos muito longe aqui da “bela morte”, serena e edifi­


cante que se costuma invocar - não sem razào, aliás - quando s¿c
trata da época clássica)88 H. Bremond sublinhou com razão o ca­
ráter trágico de certas mortes cristãs, dando como prova a agonia
da segunda duquesa de Luynes (f 1684), contada pelo Abade
Jean-Jacques Boileau. Até o último momento, a piedosa duquesa
conheceu o medo terrível dos julgamentos de Deus. “Quatro ho­
ras antes da morte, ela se achou no estado do profeta desolado
à vista do último dia..Ela gemeu, inundou seu leito de lágrimas,
seu olhar ficou turvado pela apreensão do furor do Todo-Pode
roso.”18
1789Refletindo sobre esse fim que encheu os circunstantes de
6
“desolação”, o Abade Bremond observa: “A história da Igreja está
plena desses exemplos. E, pensando bem, eu creio que o temor

1 86. S A IN T E -B E U V E , Port-Royal, 1. IV , P lé ia d e, I I , p . 4 8 9 .

1 8 7 . I b id ., p. 647-648.
188. V O V E L L E , M . L a M orí en Occident... e t M ourtr autrefois..., p. 8 9 - 1 0 0 .
A R IE S , Ph. VHomme..., p. 3 0 6 - 3 0 7 . N o tá v el ex em p lo d e m o rte cristã seren a cm
CZA PSK A , M . Une Fam ille d'Europe centróle. Paris: P lo n , 1 9 7 2 . p. 2 0 5 - 2 0 7 .

1 8 9 . C ita d o p o r B R E M O N D , H . H istoire..., IX , p. 3 4 1 .
nas m.ios; Molitiva puilum lii iimplim < a otivlam mullas vives
repetir com lacrimas i'sias palavias 11htTh'dhlIt-i, nwit Dais, mi
w rlcórdlci, Mma das rcllglt».kim, i * arm iinlu »Ira,so lalo, illsse <|ue
ela lhe assinalou que mu dos motivos do son lomor ora a vistió
cia perda de tempo, que ola |ul^ava nao toi empreñado bem para
su a salvação".1’’

Mas, depois de receber a extrema-unção, “ela permaneceu


algum lempo numa grande calma e, após proferir o Santo nome
de Jesus, entregou sua alma "d™ Os últimos momentos de um pie­
doso cônego de Chartres, Paul Cassegrain (f 1771), diretor de
uma congregação de religiosas, são também reveladores dos te­
mores do além sentidos por excelentes cristãos. Esse padre que
só tinha vivido por Deus foi tomado pelo terror “de ser reprova­
do” no momento em que lhe trazem a extrema-unção. Alguns
instantes antes de entregar a alma, ele queixa seus temores a ura
parente que lhè responde chorando: “Nós sabemos que vida vós
tivestes; nós conhecemos a nossa: se a vossa não é capaz de tran-
qüilizar-vos, que outra saída nos resta a não-ser o desespero?”.
Enfim, a ternura de um sobrinho, a afeição das religiosas presen­
tes e o sentimento de que um diretor de comunidade não deve
ceder ao desespero devolvem a serenidade ao moribundo.'1"
Durante seus últimos anos, o herói ascético que foi Santo
Alfonso de Liguori foi visitado pelo medo. Com a idade de 82
anos (ele morreu com 90 em 1787) ele confessava: “Eu tremo em
pensar na conta que logo deverei prestar a Jesus Cristo”. Em
1784-1785, ele passou por fases de desânimo espiritual. “Quem
sabe, dizia ele chorando, se eu estou na graça de Deus e se me
salvarei.” Ele se voltava então para o crucifixo: “Não, Jesus, não
permitais que eu seja condenado, porque no inferno não se pode
mais amar a vós”. Um visitante lhe pergunta: “Como estais?”. E ele

197. L A N G U E T , J.-J. La Vie de ... M arguerite-M arie..., p. 3 6 7 .

198. Vie et ccuvres de la, bienheureuse M arguerite-M arie Alaeoque, P a ra y -le -M o -


n ia l, Paris, 1 8 7 6 , 1, p. 3 3 1 (relato de u m a relig iosa). S o r o r M a rg u e rite d u S a in t-
S a c re m e n t ta m b é m c o n h e c e u gran d es te m o res q u e se a ca lm a ra m c o m a a p ro ­
x im a çã o da m o rte : R O L A N D - G O S S E L I N , J . Le Carm el de Beaune. p. 4 7 7 .

1 9 9 . B E R R I O T , Fr. “D ire c te u rs de c o n s c ie n te s e t con fesseu rs d an s la tra d itio n


trid e n tin e d ’aprés la Vie e t les CEuvrcs n ian u scritcs d e 1’ab b é C asseg rain ( 1 6 9 3 -
1 7 7 1 ) ”, e m Intermédiaires culturéis (A tas *l<>c o ló q tiio de H is tó ria S o c ia l das
m en talid ad es e das cu ltu ras, A ix cn Provem <\ I9 7 H ), Paris, H . C h a m p io n ,
1 9 8 1 , p. 4 6 - 4 7 .
respondí*: "Knconlro-me sob o flagelo da Jusilla de Deus", llm
outi'O Ihe di/: “Tendes um ar melancólico, vós que víamos sem ­
pre tào alegre. - Alegre, replicou ele, estou sofrendo um Inler
no”. Mas, na véspera de sua morte, viram seu rosto resplandecei!
te enquanto ele sorria para uma imagem da Virgem.J,K)

Assim, até mesmo para os santos, a morte às vezes é difí


cil e, na época que nós estudamos, o medo do além foi primei­
ro e sobretudo o trágico privilégio de uma elite,cristã. Tronson
dizia aos participantes do seu retiró: “Existem poucos padres que
respondem a todas [suas] obrigações; de onde eu infiro uma con
seqüência bem terrível: que há poucos padres salvos”.-"1

2 0 0 . E stas in fo rm açõ es em R E Y - M E R M E T , T h . Le Saint du siècle des Lutnihes,,.,


p. 623-62$.
2 0 1 . T R O N S O N , L. CEuvres completes, éd. M ig n e , 2 v., P aris, 1 8 5 7 . Ai|ui: I,
p. 6 9 8 (Entretiens ecclésiastiques: X V I '. D is cu ssã o “s o b re o p e q u e n o rui m ero de
pad res salvos”).

(Mi
Sobre o Livro

Formato 1ͻx23c:m

'tipología AGaramond. (texto)


1TC Centiiry IJglil (títulos)

Papel Reclclato 70g/m2 (m iolo)


Cartão Suprem o 250g/m’ (capa)

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Acabamehto Costurado e colado

Tiragem 1.000

Equipe de Realização

Coordenação Executiva Luzia Bianchi

Produção Gráfica Renato Valderramas

Edição de Texto Renata Vieira e Villas Bôas

Assistentes de Edição de Texto Beatriz Rodrigues de Lima


Fernanda Godoy Tarclnalll
Valéria B londo

Parecer Técnico Jo s é Job son de Andrade Arruda

Revisão Fernanda Godoy Tarcinalli


Ingrid Fonseca Mazutli
M ariangela de Góes Arnorim

Projeto Gráfico Carolina Roveda


.%•!:& ' Jú lio Furtado

Criação da Capa Carlos Fendei

Catalogação Eliane de Jesu s Charret

Diagramação Thais de Andrade Lopes


Rodrigo Ríunos

Impressão e Acabamento

IIIB1 ^
liANI J)f¿IRANK-.S
0 N D M A N 1)
(¡ntílni HiiiulGl nuiles S/A
w

lean Delumeau .

doutorou-se em História (1955) com uma


tese sobre Roma no século 16. Foi professor
nas universidades de Reunes (1955-1970),
■ . ■
Pantheon Sorbonne (1970-1975), e ocupou
a cátedra de História das Mentalidades
Religiosas no Ocidente Moderno (1975-
1994). Desde 1988, é membro da Académie
des Inscriptions et Beíles Lettres e é doutor
honoris causa pelas universidades do Porto,
Sherbrooke, Liège e Bilbao-San Sebastian
(Deusto), Publicou, entre outras obras,
La Peur en Occident (1978), Rassurer et
Protéger ( 1989), L’Aveu et le Pardon
( 1990), Le Jardín des déliccs ( 1992), Millt
ans de bonheur ( 1995) c(.)iu‘ ic.sie i ¡I dn
Pai adis? (2000).

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