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Pietro Ubaldi

I – PARTE II – PARTE III – PARTE


HISTÓRIA DE UM HOMEM

PREFÁCIO .................................................................................................................................................................. 1
I. DO SEU DIÁRIO .................................................................................................................................................... 5
II. O PROTAGONISTA E O AMBIENTE ............................................................................................................... 6
III. O SIGNIFICADO E O MÉTODO DA VIDA .................................................................................................... 8
IV. NASCE UM HOMEM E UM DESTINO.......................................................................................................... 10
V. A PROCURA DE SI MESMO ............................................................................................................................ 12
VI. PRIMEIRAS ESCOLAS E PRIMEIROS PROBLEMAS ............................................................................. 15
VII. ESTUDOS UNIVERSITÁRIOS E EXPLORAÇÕES INTERIORES.......................................................... 17
VIII. OS TRÊS CAMINHOS DA VIDA ................................................................................................................. 19
IX. A DOR NA LÓGICA DO DESTINO ................................................................................................................ 21
X. O PROBLEMA DA RIQUEZA, DO TRABALHO E DO EVANGELHO ..................................................... 23
XI. POBREZA E TRABALHO ............................................................................................................................... 25
XII. ATRIBULAÇÕES ............................................................................................................................................. 27
XIII. A DIVINA PROVIDÊNCIA ........................................................................................................................... 28
XIV. AFIRMAÇÕES ESPIRITUAIS ...................................................................................................................... 31
XV. SOFRIMENTOS E VISÕES ............................................................................................................................ 33
XVI. OS ASSALTOS ................................................................................................................................................ 37
XVII. OS CAMINHOS DO MUNDO ...................................................................................................................... 38
XVIII CONDENADO ............................................................................................................................................... 41
XIX. NO INFERNO TERRESTRE ......................................................................................................................... 43
XX. REVOLTA ......................................................................................................................................................... 45
XXI. A TRAIÇÃO DE JUDAS ................................................................................................................................ 48
XXII. MENTIRAS E JUSTIFICAÇÕES ................................................................................................................ 50
XXIII. O EVANGELHO E O MUNDO .................................................................................................................. 53
XXIV. A LUTA PELO IDEAL ................................................................................................................................ 55
XXV. RESSURREIÇÃO .......................................................................................................................................... 57
XXVI. AMA O TEU PRÓXIMO ............................................................................................................................. 60
XXVII. ASCENÇÕES HUMANAS ......................................................................................................................... 63
XXVIII. ÚLTIMOS ACORDES .............................................................................................................................. 65
XXIX. ADEUS À IRMÃ DOR ................................................................................................................................. 67
XXX. CHEGADA DA IRMÃ MORTE ................................................................................................................... 70

FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO

PRIMEIRA PARTE – APRESENTAÇÃO .............................................................................................................. 75


APRESENTAÇÃO.................................................................................................................................................... 75
PROGRAMA............................................................................................................................................................. 76
PRINCÍPIOS (1952) ................................................................................................................................................. 77
A VERDADEIRA RELIGIÃO (1952) ..................................................................................................................... 79
CARTA ABERTA A TODOS (1933) ...................................................................................................................... 80
SEGUNDA PARTE – A EVOLUÇÃO ESPIRITUAL (1932) ................................................................................ 81
PREMISSA ................................................................................................................................................................ 81
I - OS CAMINHOS DA LIBERTAÇÃO ................................................................................................................. 81
II - A EVOLUÇÃO ESPIRITUAL NA CIÊNCIA E NAS RELIGIÕES ............................................................. 88
III - O REINADO DO SUPER-HOMEM ............................................................................................................... 93
IV - EXPERIÊNCIAS ESPIRITUAIS .................................................................................................................. 103
TERCEIRA PARTE  VISÕES .............................................................................................................................. 107
O CANTO DAS CRIATURAS (1932) ................................................................................................................... 107
TRÍPTICO (1928) ................................................................................................................................................... 107
CÂNTICO DA DOR E DO PERDÃO (1933) ....................................................................................................... 109
TRÍPTICO (1934) ................................................................................................................................................... 109
QUARTA PARTE – O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO ....................................................................................... 110
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO (1939) ............................................................................................................. 110
A PSICOLOGIA DA ESCOLA – IMPRESSÕES (1933) .................................................................................... 113
A ARTE DE ENSINAR E DE APRENDER (1934) ............................................................................................. 114
QUINTA PARTE – PROBLEMAS ATUAIS ......................................................................................................... 116
A HORA DE NAPOLEAO (1939) .......................................................................................................................... 116
O PROBLEMA AGRÁRIO (1939) ........................................................................................................................ 117
O PROBLEMA RELIGIOSO (1939) ..................................................................................................................... 120
URBANISMO E RAÇA (1939) ............................................................................................................................... 121
A EVOLUÇÃO E A DELINQUÊNCIA (1939) ..................................................................................................... 123
SEXTA PARTE – PROBLEMAS ESPIRITUAIS ................................................................................................. 124
AUTO-OBSERVAÇÃO DA MEDIUNIDADE (1933) .......................................................................................... 124
CONSCIÊNCIA E SUBCONSCIÊNCIA (1930) ................................................................................................... 126
POR UMA VIDA MAIOR (1930) .......................................................................................................................... 127
A RECONSTRUÇAO DO TÚMULO DE SÃO FRANCISCO .......................................................................... 128
OS IDEAIS FRANCISCANOS DIANTE DA PSICOLOGIA MODERNA (1927) ........................................... 129
O PROBLEMA DA VIDA E DO ALÉM NO “FAUSTO” DE GOETHE (1931) ............................................. 134
GÊNIO E DOR (1935) ............................................................................................................................................. 136
SÉTIMA PARTE – NOVELAS: EM BUSCA DA JUSTIÇA (Tríptico – 1953) ................................................ 138
I. A JUSTIÇA ECONÔMICA ................................................................................................................................ 138
II. VERDADEIRO AMOR ..................................................................................................................................... 140
III. O ENCONTRO CONSIGO MESMO ............................................................................................................. 141

A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO


PREFÁCIO .............................................................................................................................................................. 145
I. A VERDADEIRA CIViLIZAÇÃO ..................................................................................................................... 145
II. O INVOLUÍDO E A PROPRIEDADE ............................................................................................................. 149
III. TIPOS BIOLÓGICOS E MÉTODOS DE AQUISIÇÃO .............................................................................. 153
IV. ERROS E ASCENSÕES HUMANAS ............................................................................................................. 156
V. AS GRANDES UNIDADES COLETIVAS ....................................................................................................... 158
VI. A LEI DA HONESTIDADE E DO MÉRITO ................................................................................................. 163
VII. RUMO A NOVO MUNDO ............................................................................................................................. 168
VIII. ENTENDIMENTO, RECONSTRUÇÃO, PROGRESSO. ......................................................................... 171
IX. DAS TREVAS À LUZ....................................................................................................................................... 175
X. O PROBLEMA DO MAL .................................................................................................................................. 177
XI. A ECONOMIA DO EVOLUÍDO..................................................................................................................... 180
XII. POBREZA E RIQUEZA ................................................................................................................................. 183
XIII. PROBLEMAS ÚLTIMOS ............................................................................................................................. 186
XIV. CONSEQÜÊNCIAS E APLICAÇÕES......................................................................................................... 188
XV. TIPO BIOLÓGICO DO FUTURO ................................................................................................................ 191
XVI. VISÃO (1o TEMPO) ....................................................................................................................................... 194
XVII. VISÃO (2o TEMPO) ..................................................................................................................................... 198
XVIII. COMENTÁRIOS E PREVISÕES ............................................................................................................. 201
XIX. O SERMÃO DA MONTANHA..................................................................................................................... 203
XX. O PENSAMENTO SOCIAL DE CRISTO .................................................................................................... 209
XXI. CRISTO PERANTE ROMA ......................................................................................................................... 211
XXII. TEMPESTADE ............................................................................................................................................. 215
XXIII. VINGANÇA OU PERDÃO ........................................................................................................................ 221
XXIV. NOSSO LIVRE DESTINO ......................................................................................................................... 224
XXV. O DUALISMO FENOMÊNICO UNIVERSAL ......................................................................................... 229
XXVI. A MÚSICA - A VIDA DUPLA ................................................................................................................... 235
XXVII. A PERSONALIDADE HUMANA (1a PARTE) ...................................................................................... 242
XXVIII. A PERSONALIDADE HUMANA (2a PARTE) ..................................................................................... 248
XXIX. SÃO FRANCISCO NO MONTE ALVERNE (1a PARTE)..................................................................... 255
XXX. SÃO FRANCISCO NO MONTE ALVERNE (2a PARTE) ....................................................................... 260
CONCLUSÃO .......................................................................................................................................................... 264
CONCLUSÃO (Da II Trilogia) .............................................................................................................................. 266

Vida e Obra de Pietro Ubaldi (Sinopse)....................................................................................página de fundo


Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 1
bre a natureza, todas estas grandes a admiráveis coisas não po-
HISTÓRIA DE UM HOMEM dem suprimir aquela lei do sacrifício individual, que pertence,
ela também, à vida, e que o homem de hoje, perseguindo os ide-
A meu filho, morto pela pátria. ais abraçados, teria de fato muita vontade de esquecer. É crime,
porém, trair o ideal, qualquer que ele seja, quando por ele tantos
―O progresso das comunidades depende do sucesso de rarís- mártires se sacrificaram. Chamado trágico e desesperado, mas
simos sábios, que se esquivam ao contágio da mentalidade quem sabe compreenderá; chamado feito numa hora histórica e
comum‖. solene, pleno de sua força e do seu desejo de dar a quem sofre fé
JOSEPH JASTROW e esperança em coisas sempre mais altas.
Este volume não é autobiográfico. Traduz, entretanto, as
PREFÁCIO experiências do autor e reflete estados de espírito reais, por ele
realmente sentidos ou, pelo menos, idealmente vividos. Como
Quantos lerem este volume, crendo encontrar nele o mes- sempre, atrás de cada palavra há uma real vibração de vida es-
mo Ubaldi dos seus livros anteriores, ficarão desiludidos. A piritual, um verdadeiro tormento de paixões, há freqüentemente
cada novo livro ele transforma e renova a sua personalidade. uma experiência vivida, uma prova enfrentada e superada, uma
Cada um dos seus volumes é um documentário daquilo que foi, dor suportada, talvez ainda um caminho percorrido, um pouco
real e espiritualmente, uma fase de sua vida. Inútil, portanto, do trágico e doloroso caminho da vida seriamente vivida.
procurar-se nestas páginas as mesmas proposições e atitudes Não obstante esta renovação, os princípios dos volumes pre-
dos seus trabalhos precedentes. É necessário desde logo este cedentes não são aqui negados. Ao contrário, eles são revigora-
esclarecimento, para que o leitor não seja enganado e porque dos, porque, desenvolvendo-se agora sob outra visão e com dife-
os mal-entendidos são detestáveis. Nada existe aqui de mediu- rente estado de espírito, ou seja, com ceticismo demolidor, res-
nidade, biosofia, espiritualismo e semelhantes. A personalida- surgem mais belos e mais fortes, com uma fé menos ingênua,
de do autor, que nunca fez parte de nenhum grupo nem se li- com menor simplismo, com um senso mais trágico, de angustia-
gou a qualquer escola, permanecendo sempre livre e indepen- da humanidade. Dessa maneira, o leitor reencontrará nestas pá-
dente no seu desenvolvimento, atinge agora, completamente ginas a personalidade de Ubaldi, mais completa, amadurecida
renovada, outras afirmações. É horrível repetir-se, permanecer- através de novas experiências, levada a uma nova fase que, se é
se estagnado em determinado campo. Somente quem se reno- a continuação lógica das precedentes, assemelha-se às vezes ao
va, vive. A constante especialização no particular poderá ser reverso, tão violentos foram os golpes e a desordenada tormenta
materialmente útil, mas é paralisia do espírito. que a envolveu. Aqui, o autor se debruça sobre o abismo infer-
A precedente tetralogia, em que o autor, partindo da matéria nal da vida estúpida do mundo que ele descobre. Por um mo-
e chegando ao espírito, percorre o caminho que vai da Terra ao mento, as náuseas o sufocam e o terror o paralisa, mas as forças
Céu, tetralogia representada pelas Mensagens Espirituais1, A do espírito são poderosas, e o equilíbrio, por fim, se restabelece.
Grande Síntese, As Noúres e Ascese Mística, é um edifício com- A concepção evangélica, que parecia vacilar, resplandece de no-
pleto, uma fase superada, um período encerrado. Ocorreu de- vo, mais luminosa do que antes, consolidando-se nas provas su-
pois, no espírito do autor, uma crise terrível, necessária para peradas e agora já definitivamente triunfante.
uma renovação, um completamento e uma continuação, coisas O tipo de leitor a que estas páginas se dirigem é diferente, e
que, sem tormentas e crises, não podem acontecer. Aqui, Ubaldi os mesmos princípios são apreciados aqui de outro ponto de vis-
reaparece, depois de um silêncio em que passou pelos dolorosos ta, de maneira a desconcertar, talvez, o observador superficial,
sofrimentos que esperam os que seguem os caminhos do ideal.
ainda apegado às perspectivas anteriores. Este pretende ser um
Antes, ele era um teórico e sonhador, podia dizer-se. Mas, agora,
livro forte, de colorido humano, marcado por violentos contras-
ele já bateu a cabeça na realidade da vida humana e não o é
tes, um livro real e atual, não mais olimpicamente pensado na paz
mais. O golpe foi duro para ele e destruiu aquela fé ingênua e
do céu, como A Grande Síntese, mas tragicamente vivido nas lu-
simples que lhe fazia dizer tudo com franqueza, sem a astúcia
tas da Terra. A mesma verdade é aqui diversamente observada.
das prevenções humanas. Avalie-se, pois, este livro também por
Aquele é um livro de clara visão da verdade, contemplada na paz
aquilo que o autor teria podido dizer, mas que preferiu calar.
serena de um ser tranqüilamente situado fora das competições
Desencadeou-se naquela alma, partindo do homem, uma grande
tempestade, que terminou ante a face de Deus. Ele não se lamen- terrenas. Este é, pelo contrário, um livro escrito por quem vive na
ta de tudo isso, pois sabe que vislumbrou uma novidade impor- Terra, imerso na sua psicologia, fazendo própria a alma infernal
tante, embora através da amarga experiência, sabe que aprendeu do mundo, por quem viveu as suas dores e, lutando e sangrando,
a conhecer o homem, porque fez uma nova e grande descoberta, as descreve. É natural que a mesma realidade da vida não obser-
ou seja, que as conquistas espirituais, como a matéria e a vida, vada na paz das alturas, mas na luta e no tormento da Terra, e
são indestrutíveis e que as incompreensões, os obstáculos e os expressa às vezes com a psicologia do mundo, vista assim de um
sofrimentos refinam e purificam o espírito, ao invés de abatê-lo. ângulo diverso, ofereça-nos diferente quadro. Mas, desta vez, era
Está satisfeito porque, com o seu ideal, atravessou um período necessário descer ao mundo das realidades humanas e falar tam-
de morte, ressurgindo mais forte do que antes, e a sua fé renas- bém a outra categoria de pessoas, àquelas que vivem plenamente
ceu ainda mais profunda, mais consciente, mais sólida. Ele ofe- a vida; era necessário falar com a sua própria linguagem e segun-
rece as páginas escritas com o sangue do seu tormento ao mundo do a sua maneira de pensar, mesmo a quantos haviam até agora
cético e sábio, que sabe o que faz porque conhece a vida e não sorrido e dado de ombros, como se faz ante a ingênua e imprati-
se importa, rindo dessas paixões e afirmações ideais. Mas ele cável utopia de um idealista sonhador. Era necessário falar, desta
conhece, por sua vez, as leis que regem esses fenômenos e sabe vez, não somente aos eleitos, capazes de intuir e de crer, já ama-
que o riso, a incompreensão que lhe volta as costas, a indiferen- durecidos, videntes, sensíveis às provas da razão, às explosões do
ça e a desaprovação, que não é de uma classe social, mas a ex- sentimento, ao fascínio do belo e do bem, já encaminhados e ávi-
pressão do homem comum de hoje, devem naturalmente estar na dos de maiores ascensões espirituais. Era necessário, agora, falar
vida de quantos seguem o caminho da redenção humana, indi- também aos cegos e surdos, colocando-se no seu próprio nível,
cado por Cristo. Sonhos de grandeza, vitalidade expansiva, para se fazer compreender; falar aos insensíveis, ligados à maté-
conquista vitoriosa e, ainda, potência de gênio e de domínio so- ria como a sua única forma de vida, aos involuídos, aos inertes,
aos rebeldes, aos negadores sem fé e sem esperança. E, para se
1
Ou Grandes Mensagens (N. do T.) fazer compreender, era necessário tornar-se um deles, fazer pró-
2 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
pria a sua cegueira, a sua revolta, a sua cruz. Esta nova voz não as, como uma explosão. Quiçá a vida real se apresente, às ve-
podia mais descer do céu, límpida e melodiosa, mas devia, peno- zes, mais trágica e desapiedada do que esta imaginada pelo au-
samente, sair do inferno, áspera e fatigada, não mais de anjo, e tor, e a certos indivíduos negue também a consolação dos últi-
sim de condenado. Quando o homem do mundo ouvir esta lin- mos anos, que, na sua grande fé na vitória final de quem luta
guagem, mais facilmente abrirá ouvidos e compreenderá. Quan- por uma idéia, o autor não pode deixar de concedê-la ao seu
do, desta vez, ouvir falar alguém que mostra conhecer a realidade protagonista. Mas o princípio não é abalado, e a tese não resulta
da vida, com todas as suas mentiras, maldades e traições, ele menos válida por isso. Talvez não haja tempo, no presente vo-
mais facilmente se persuadirá, e não lhe será mais tão fácil sorrir lume, para se demonstrar tudo aos céticos. Há neste livro mui-
com ceticismo, acusando de ingênua e incongruente utopia o ide- tas teorias. Sua principal demonstração será dada pelo fato de
alista sonhador. De resto, é natural que assim apareçam, na Terra, que elas foram vividas e aplicadas, concluindo na própria vida.
as coisas vistas do céu. É necessário, então, vê-las na própria Ter- Essa demonstração saltará sempre, igualmente evidente, da lo-
ra. Questão de perspectiva. E, por fim, tudo se mostra mais real gicidade do desenvolvimento do conjunto, da ardente fé revela-
do que antes. Os mesmos princípios, antes só teórica e racional- da pelo autor, da objetividade com que a experimentação é
mente afirmados, atingem aqui diferente potência, quando, ao in- conduzida na história aqui narrada e, por fim, da excelência das
vés de descer do céu, emergem ensanguentados do inferno terres- conclusões. Este é um livro escrito numa hora de espasmo
tre. E uma verdade que resiste a esta prova humana de lama e de mundial. É verdade que são excelentes e santas as teorias pre-
sangue, adquire a força que antes não tinha, ao menos sobre a gadas, talvez mesmo com fé e convicção, no campo religioso e
Terra, e pode então proclamar-se mais alta, pois também aqui, civil. Mas este livro não se firma em teorias. Quer, pelo contrá-
experimentalmente, provou a sua realidade. rio, ter a coragem de olhar no seu íntimo a realidade biológica,
Nesta nova posição, o autor espera ter encontrado outra ma- aquilo que de fato o homem é, e não aquilo que acredita ser ou
neira de fazer o bem. E nisto consiste a continuação, o comple- desejaria ser, ou só excepcionalmente o é. Não é verdade, por-
tamento do seu passado, o seu progresso. Talvez fosse necessá- ventura, que estamos numa época construtiva e de grandes au-
rio um livro de verdadeira experiência espiritual, como especial dácias? Pois bem, então é necessário termos esta grande cora-
reação a certos romances estrangeiros, livros de inconscientes, gem de olhar tudo face a face, sem nos iludirmos e sem mentir.
feitos para demolir aquilo que de mais elevado o homem pos- A hora presente, mesmo a despeito de todos os míopes e de
sui, conquistado à custa do sacrifício dos mártires e da ruína de todos os fracos que a maldizem, é ampla e vigorosa, exigindo-
tantas vidas; feitos para enfear-nos e envenenar-nos a existên- nos largueza de visão e a coragem dos fortes. Esta não é a hora
cia, roubando-nos a fé no bem e a esperança no futuro; livros, da tranqüila e prazenteira psicologia mozartiana, do anjo que fa-
enfim, desapiedadamente demolidores e sutilmente maléficos, la aos felizes, que são pouquíssimos; não é a hora dos doces
que o povo avidamente devora. Quem, como esses livros, tudo equilíbrios da beleza, mas é a hora da humana, trágica e potente
nega, mutila e mata primeiramente a si mesmo. Esta ―história psicologia beethoveniana, feita de luta e de tormenta, de fadiga e
de um homem‖, pelo contrário, a cada passo diz: Sim! E quem de dor, que fala aos sedentos de felicidade, que são em maior
afirma, constrói, cria, reencontra a vida que a negação lhe rou- número. É a hora dos impetuosos e fortes sentimentos da cria-
ba. A criação é uma afirmação. Deus é o Sim; Satanás, o Não. ção. Este é o estilo do presente livro, dado pelo espírito de nosso
Desta vez, o autor fala a um mundo de estridores infernais e tempo, que é essencialmente beethoveniano; não rossiniano, mas
deve usar uma linguagem de contrastes e de tormenta, de luta e wagneriano; não rafaélico, mas miguelangesco; não ariôstico,
de revolta. Estamos, agora, não mais no céu, mas verdadeiramen- mas dantesco; não barroco, mas revolucionário, napoleônico,
te na Terra, na dura realidade da vida, numa atmosfera baixa e ferreamente retilíneo, novecentista. Tantos, como formiguinhas
tenebrosa, que a luz custa a rasgar, e onde os seres lutam e so- presas à terra, não vêem senão as pequenas coisas vizinhas e, as-
frem. Uma guerra de todos contra todos impera sem tréguas, im- sim, se perdem em considerações de somenos, sem imaginar o
pedindo a serenidade da contemplação superior. Toda energia es- gigantesco quadro de conjunto, que torna apocalíptica a hora
tá empenhada nas rivalidades humanas, na necessidade se sobre- presente. Tantos não sabem, como tantos não sabiam, às véspe-
por-se. Tentar evadir-se é inútil. Em tal mundo, o céu, lugar de ras da Revolução Francesa, o que hoje se prepara, e, quando se
ventura, não pode parecer senão uma utopia. Todos, mais cedo lhes explica, eles não compreendem. Mas quem o sabe, treme,
ou mais tarde, fazem esta dura experiência. O autor, também, de- exulta, vive de febre e também de esperança. Este livro é um
via e quis fazê-la, mas não para se sepultar com ela, e sim para grito lançado, sobretudo, aos pósteros e aos que hoje os anteci-
ressuscitar ao final, indicando a todos as vias da ressurreição. O pam, é o grito de fé do novo homem, que espera para poder vi-
mal não é aqui invocado para demolir, mas para construir, com a ver a nova civilização do Terceiro Milênio, não mais a passada
finalidade do bem. Este livro foi escrito numa pausa arrancada a civilização da força, nem a hodierna civilização do dinheiro,
essa incessante tensão infernal, numa trégua brevíssima, roubada mas a do espírito. Desta era e sobretudo para ela fala o nosso au-
à inquietante necessidade do trabalho e da luta pela vida. O pró- tor, sabendo que só então poderá ser plenamente compreendido.
prio autor sofreu a dura lei de todos, a vida humana imersa na Fala hoje para preparar por enquanto os espíritos, para apontar
matéria, o espírito invadido pelas suas impiedosas necessidades. problemas e soluções, para dar a sua contribuição à maturação
A experiência e a superação que ele nos descreve são as que o do homem novo da nova civilização. Se o autor fala alto e sole-
mundo também, seja embora por mil maneiras diversas, deverá ne, é porque sente que nos encontramos, realmente, numa gran-
realizar. O relato tem, portanto, significado e interesse universais, de curva biológica, em que o homem primitivo, ignaro e feroz,
pois, no seu caso particular, vemos agirem as leis universais da está para sair da sua menoridade e se prepara para novas formas
vida, que guiam a todos. Trata-se, nestas páginas, de um céu vis- de vida, nas quais, cansado de ser uma inconsciente marionete,
to pelos olhos críticos e positivos do homem que sabe o que é a guiada por uns poucos instintos, viverá na lógica, na potência di-
luta da vida e conhece a dor, visto com a mentalidade objetiva da retora, na consciência, liberdade, bondade e justiça do espírito.
ciência e do bom senso, através do critério prático e realista, co- Este é um livro de reação ao mundo atual, ao homem que se
mo realidade do amanhã, em que se conciliam o conceito cientí- fez inerte, egoísta, falso e bestial, no seio da chamada moderna
fico da evolução biológica e o conceito religioso da redenção civilização, e o seu escopo é torná-lo melhor, dando-lhe nova-
cristã, um Céu, enfim, que a própria razão nos indica como o ló- mente, em primeiro lugar, luz, fé e esperança, dando-lhe uma
gico e necessário porvir da humanidade. direção ao desencadeamento das forças primordiais. Reação que
Embora não sendo autobiográfico, este livro foi, entretanto, pode ser talvez brutal, mas a linguagem enérgica pode ser um
realmente lutado e sofrido. Foi escrito, de fato, em quarenta di- bem, quando o espírito não escuta mais, habituado as fórmulas
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 3
rotineiras de advertência. Por detrás dessa forma, a substância é todo momento ou situação histórica. E a ação das circunstâncias
evangélica. E o mundo, ao chegar ao fundo da sua atual e trágica é hoje de tal maneira titânica e urgente, que mobiliza tudo, in-
experiência, terá certamente fome dessa substância e procurará clusive o espírito, absorvendo-o em si mesma. Mas o autor não
reencontrar as coisas do espírito, sobrepondo-se à sordície da pode olvidar os objetivos distantes e se dirige também às gera-
matéria, venerada hoje em particular, e de fato até à idolatria. ções futuras, que, colocadas em condições diversas, por certo
Pobreza e dor serão salutares, por despertarem as almas, e este pensarão diversamente e de outras afirmações necessitarão. Ele
livro as prepara, pois nele, mesmo das profundezas do inferno, é não pode senão completar e antecipar com uma visão que às
sempre o céu que se olha. Nele é sempre seguido, seja embora massas de hoje poderá parecer utopia. E aqui está esboçado um
por vias diversas das precedentes, o mesmo objetivo evangélico, ideal que, hoje, não é atual para a maioria, mas talvez o seja
que é a meta constante e jamais desmentida do autor. amanhã. Entre a concepção que este livro oferece e os tempos
Se neste livro se fala com energia e se enfrenta corajosamente presentes não há antagonismo; trata-se apenas de uma posição
a realidade humana tal qual é, e não como será ou deverá ser, a diversa no caminho da evolução. O autor compreende muito
franqueza não é usada somente para condenar, mas também para bem e admira o esforço dos povos para se organizarem em no-
compreender e para ajudar. Por detrás de uma forma áspera está vas ordens sociais, o esforço da ciência para descobrir os segre-
o cumprimento de uma missão de bem. Nele está compreendida a dos da natureza, o esforço coletivo do trabalho para dominá-la e
trágica paixão do homem que sofre para se libertar, subir, redi- utilizá-la. Mas roga que se compreenda também o esforço do
mir-se da animalidade. O autor a sente e a vive, porque é também homem isolado que conquista outro tanto, perigosa e utilmente,
seu aquele afadigado anseio pelo ideal e a humana impotência pelas vias do espírito. Estas serão hoje, talvez, vias de exceção
para atingi-lo em cheio. Para convencer e impulsionar em direção muito complexas para que a ciência as compreenda e o homem
à saída, ele se apega às verdades biológicas, que não são questões comum as siga, mas, justamente por isso, tornam-se mais inte-
religiosas, de filosofia, de classes sociais ou de opiniões particu- ressantes, pois representam um tipo determinado entre os tantos
lares e, portanto, motivos de discórdia, mas verdades aceitas por caminhos do porvir. Quase sempre o futuro é utopia somente
todos, porque todos as aplicam, não importa se acreditem ou não, enquanto não se torna presente, e aqui é antecipada uma fase
se as professem ou não, e no-las atiram ao rosto com a energia da que, se hoje pode parecer absurda, amanhã poderá ser normal.
desesperação, pois a crise do mundo é de fato desesperada. Para Devemos bem compreender que o autor não destrói ou condena,
despertar e convencer, ele se apega também a estas verdades mas apenas previne. A sua atitude não é, pois, uma evasão do
mais compreensíveis, porque tangíveis e próximas, que todos têm mundo humano, que no seu plano ele deve aceitar, mas um
ao alcance da mão, encontrando-as a cada passo, na realidade da complemento do mesmo, com visões mais vastas e longínquas.
vida. Nenhuma via despreza para chegar ao seu escopo, que é o Ele mostra-se, assim, de pleno acordo com a hora presente.
bem. Se por momentos, com áspera linguagem, desnuda a huma- Ninguém mais do que ele respeita os sacrossantos direitos e tra-
na baixeza, logo mais afronta e racionalmente resolve os proble- balhos do homem sobre a Terra. Mas ele não pode deixar de
mas. Com o senso do amor e de uma compreensão profundamen- olhar mais longe e mais alto, de lembrar que há, antes de tudo,
te humana, aproxima-se fraternalmente do homem, para esten- outro mundo no céu, que é a meta da caminhada neste. Ele não
der-lhe a mão e ombrear-se com ele, sob a mesma cruz e sobre o pode, portanto, limitar-se a conceber o espírito como instrumen-
mesmo caminho das ascensões humanas. to exclusivo da luta terrena, escravizado aos fins da matéria, mas
◘ ◘ ◘ tem necessidade de lhe traçar neste livro os objetivos maiores,
Aqui se trata do espírito. É bom esclarecermos logo, para que se encontram além da Terra e da vida terrena. Este comple-
evitar mal entendidos. Aqui o espírito não é concebido no sen- mento é necessário e útil. Acreditamos ainda que as perspectivas
tido materialista, como o é por alguns, em determinada mística de certas audaciosas e inusitadas superações, a narração de cer-
moderna. O espírito, para o autor, não é um órgão ou uma fun- tas experiências fora do comum, possam ajudar os espíritos, seja
ção da vida animal, posto a serviço desta, somente para que ela por lhes mostrar a afinidade entre as metas próximas e aquelas
triunfe nas lutas da existência terrena. O espírito, para ele, é mais altas e distantes do porvir – que o homem um dia, mais ci-
qualquer coisa de muito maior, qualquer coisa que pertence, vilizado, deverá chegar a compreender e começar a viver – seja
além dos limites da vida humana, ao absoluto e à eternidade. É porque tudo isso dá um senso profundo de orientação à vida e,
verdade que o materialismo hoje se requintou a ponto de alcan- sobre ela, projeta um útil e fecundo princípio de ordem, uma
çar o campo do espírito. Não é mais, a não ser para alguns re- confortante esperança, uma luz que satisfaz e guia a razão, rumo
tardatários, o materialismo grosseiro e negativista de cinqüenta a realizações sempre mais nobres e boas. A visão daquilo que é
anos atrás. Mas a sua substância e os seus resultados podem ser moralmente mais elevado é sempre uma lição de sabedoria e,
os mesmos. A colocação materialista dos problemas do espírito portanto, só pode ser benéfica. Não poderá jamais prejudicar a
não pode ser aceita pelo autor, que sabe muito bem da existên- alguém o relato de uma experiência de vida em que o motivo fe-
cia de todo um outro mundo, além do mundo terreno. Ele o co- roz e desapiedado da luta brutal se eleva ao motivo do amor
nhece tão bem, que faz viver nesse mundo o seu protagonista, evangélico, o sentido da existência é elevado a plano mais alto, e
do princípio ao fim, e no-lo mostra tão vivo e operante, que a ascensão nos rumos do bem individual e coletivo é proclamada
serve de exemplo e de aviso aos que o conheceram e esquece- através do exemplo experimentalmente efetuado.
ram, e de demonstração aos que o ignoram. Entendamo-nos lo- Neste livro, o autor não renega a realidade humana. Demons-
go. Não é o espírito o servo da vida terrena e humana, mas esta tra, antes, tê-la compreendido e vivido e nem sempre a condena,
é o meio de que se serve a vida do espírito, que tem outros ob- mas sabe também compreendê-la e compadecer-se dela, a ela se
jetivos e outros limites. Este livro o demonstra bem claramente. voltando para auxiliá-la, segundo o evangélico ―ama o teu pró-
O espírito é qualquer coisa que supera todas as humanas afir- ximo‖. Mas não pode deixar de lhe fazer brilhar à frente as su-
mações utilitárias, e a moral do autor não admite que ele seja premas finalidades do espírito, que são a chave da redenção. Ele
reduzido a simples instrumento de conquistas materiais. se mantém em posição de equilíbrio. De um lado, aceita a mo-
Tudo isso não impediu o autor de compreender o sentido da derna concepção biológica do espírito (A Grande Síntese) e faz
atual hora histórica e admirar o seu titânico esforço construtivo, deste não uma unidade abstrata, isolada, estranha à vida, mas
que ele sempre sustentou e secundou. Ele quer somente manter- fundida na realidade humana e na unidade orgânica do todo, sen-
se no equilíbrio da verdade universal de todos os tempos, não tindo a fecunda colaboração entre espírito e matéria. De outro,
desejando limitar-se a um dado ponto de vista, como é necessá- ressalva, entretanto, a finalidade superior daquela fusão e colabo-
rio para quem se vê arrastado pela força das circunstâncias, em ração, finalidade que se encontra no espírito, inteiramente acima
4 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
das menores e contingentes finalidades relativas, filhas do mo- Talvez seja ele uma expressão instintiva e inconsciente, mani-
mento e situadas no plano da matéria. Este seu livro é justamente festada através da sensibilidade do autor, do impulso biológico
uma equilibrada chamada às finalidades últimas no campo das criador, que é próprio da natureza, ora ativa sobretudo no campo
finalidades próximas, compensando assim as concepções unilate- psíquico-espiritual. O livro encontra-se, portanto, entre as boas
rais, que tudo procuram reduzir ao ponto de vista humano, em forças criadoras, que levam a Deus, e não poderá senão desper-
função da utilidade da vida terrena e transitória e em detrimento e tar, no íntimo das consciências sadias, uma vibração de aprova-
sufocamento do ponto de vista super-humano, divino e eterno. ção e de sincera adesão. Embora, em certos momentos, as pala-
O mundo atual aspira a dominar, e isso é justo no seu plano. vras sejam enérgicas e a advertência possa tornar-se calorosa,
Mas, para dominar, precisa tornar-se melhor e, para tornar-se não há, contudo, por trás delas, qualquer interesse a ser defendi-
melhor, não lhe basta a simples concepção utilitária do espírito. do. Com toda a franqueza, trata-se tão somente de um ser since-
É necessária uma concepção mais vasta e orgânica, que supere ro, que não se permitiu outra riqueza além da coragem de dizer a
os limites deste simples rendimento prático e imediato sobre o verdade. O autor se sentirá, por isso mesmo, satisfeito e se con-
plano humano e terreno. Para vencer na vida, para ter um obje- siderará recompensado do seu trabalho se puder constatar que,
tivo, uma razão e o direito de vencer, e dar um sentido à vitória, com esse livro, ainda melhor atingiu a finalidade dos preceden-
é necessário que veja também as metas distantes e super- tes. Se verificar, enfim, que, instigando a subir rumo a formas
humanas do espírito. Estas não poderão tornar-se suscetíveis de mais elevadas de vida, conseguiu fazer um pouco daquele bem
aplicação imediata, porque o mundo está ainda atrasado. Mas que é a sua aspiração mais ardente.
somente elas podem dar-lhe uma orientação segura. A concep- ◘ ◘ ◘
ção puramente utilitária permanece egoisticamente isolada no No seu último volume, Ascese Mística, que precede a este, o
funcionamento orgânico do universo. E, no caminho da evolu- autor, no último capítulo, ―Paixão‖, concluiu com estas palavras:
ção, é como um instrumento quebrado ou um órgão mutilado, ―(...) A hora é intensa para todos. Não se pode parar. Preparada
ante a visão das grandes linhas e das metas longínquas. pelo tempo, ela se precipita. Tenho medo de olhar. (...) Rasga-se
Por isso, no presente trabalho, mesmo que o protagonista nem então diante de mim a visão da terra e do céu... A terra treme
sempre seja vitorioso, apresenta-nos o modelo ideal de um ho- convulsa, no pressentimento de uma catástrofe sem nome. (...)
mem que busca, num trágico esforço, elevar-se, em clara oposição Vejo um turbilhão de forças que se projetam sobre a Terra, e vejo
ao tipo normal, com bem diversas qualidades, estaticamente liga- a Terra abalada, convulsa, submersa num mar de sangue. Tétrica
do à Terra e desejoso, por si mesmo, somente por força do núme- é a hora da paixão do mundo. E parece sem esperanças. O círculo
ro, de torna-se o modelo da vida. A este tipo biológico, hoje nor- se estreita, se estreita e logo estará fechado, e será tarde para fu-
mal, o autor opõe e indica um novo tipo de homem, que luta de- gir ao seu aperto. A mão do Eterno empunha o destino do mun-
sesperadamente para se tornar superior e melhor, projetando-se in- do, estão prontas a se desencadearem as forças para o choque fa-
teiro na direção do futuro. As leis da seleção, já agora atuando no tal. Avizinha-se a hora das trevas, do mal triunfante, da prova su-
plano psíquico, parecem tender justamente para a formação e a prema. Bem-aventurado quem, então, não estiver vivo sobre a
normalização daquele tipo, hoje de exceção. A moderna descober- Terra. (...) Já disse há tempos: preparai-vos, preparai-vos, mas
ta científica da energia e o seu domínio, conduzindo o mundo da não me ouvistes. Breve, será tarde demais. O drama está próxi-
fase estática da matéria à fase dinâmica do movimento, introduz o mo, eu o percebo... Naquele momento, senti tremer a terra... Den-
homem, desde agora, no limiar daquela nova civilização do espíri- tro de mim, está a visão do real. Senti, realmente, a terra tremer‖.
to, de que o irrequieto dinamismo do tipo 900 é já um primeiro, Se esse livro, publicado em 1939, claramente predizia, como
embora elementar, degrau. Este tipo de homem novo é hoje uma iminente, o atual cataclismo mundial, o presente volume, Histó-
concepção biológica aristocrática e individualista, que, entretanto, ria de um Homem, continuando o caminho seguido em Ascese
não se encontra em antagonismo com as hodiernas concepções Mística, conclui, ao invés, da seguinte maneira, no testamento
socialistas, niveladoras e coletivas, porque é justamente ao serviço espiritual do protagonista ( cap. XXX ): ―Estudai sobre o grande
dos demais que o protagonista coloca as suas qualidades e con- livro da dor; aprendei a sofrer, se desejais subir. É bom que o
quistas. Este livro é um desafio ao mundo, mas a favor do mundo, mundo sofra, para que possa corrigir-se e avançar. (...) sem dor
a quem mostra um tipo ideal, ante o qual o melhor que se pode fa- não há salvação. A esta lei fundamental não se foge. Mas, depois
zer é voltar-se para ele, e que, se pode ser melhor, faz com isso da paixão e da cruz, há a ressurreição e o triunfo do espírito.
perdoável a sua superioridade. Ele, se é rico em bondade, em te- Aceitai, portanto, o batismo da dor, a expiação que purifica, por-
nacidade, em espírito de altruísmo e sacrifício, demonstra e utiliza que esta é a única via de redenção. Deixo-vos o aviso de que na
essas qualidades não egoisticamente para si, mas no que elas re- necessária paixão do mundo está a aurora da nova civilização do
presentam de alto valor coletivo, no que elas têm de necessário à espírito‖. Este novo volume, publicado em 1942, escrito em meio
formação de mais compactas unidades sociais. da já anunciada tormenta, encerra-se, portanto, com o anúncio da
Isso poderá provocar as fáceis acusações de orgulho. Mas o aurora de um novo dia. Depois da destruição, a reconstrução; de-
protagonista nos mostra, nestas páginas, o trabalho antes do pois da dor, a alegria de uma vida mais alta; depois da necessária
triunfo, o martírio antes do sucesso. E este se expande no céu, paixão da guerra, desponta a nova era do espírito.
longe da Terra, da qual, dessa maneira, não prejudica nem per- É este, portanto, o livro da ressurreição, que se anuncia no
turba os interesses. Nesta obra se demonstra como o primeiro final, porque não pode chegar para um, como para todos, senão
atributo de toda superioridade são os seus correspondentes deve- depois de percorrido o necessário caminho da dor purificadora.
res, como tudo é conquistado e merecido, o quanto são severas e Se este é o livro da prova e do sofrimento, do angustioso aperto
justas as leis do progresso, quão grandes compensações coroam entre as garras do mal, é também o livro da esperança, do triun-
esses esforços de superação, e que coisa profunda, séria e grande fo do espírito e do bem. A trabalhosa elaboração da ascensão é
é, ainda no caso mais doloroso, a vida. Tudo isso é altamente aqui impulsionada, para o indivíduo, na história do protagonista
moral. Este livro quer ser para todos um estímulo no caminho da e, para o mundo, na consciência da sua atual e apocalíptica
superação. Seja para os menos elevados, aos quais se dirige, experiência. Ao contrário da cena de terror e de paixão com que
assumindo quase sempre a sua forma psicológica, seja para os se encerra Ascese Mística, o presente volume conclui invocan-
mais avançados, através de sua substância e das suas conclusões do e chamando, das entranhas das maturações biológicas, o
evangélicas, aos quais deseja guiar como aos primeiros. O livro homem novo, consciente no espírito, e anunciando e saudando
está, nesse sentido, sobre as linhas da evolução, constituindo a alvorada da nova civilização do Terceiro Milênio.
uma força que age segundo as mais poderosas correntes da vida. Natal, 1941.
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 5
I. DO SEU DIÁRIO formação e proteção do material primitivo da vida. O homem,
tal qual o ar e o sol, é ativo e fecundante; é como o martelo que
O universo é ordem, ou caos? O universo é ordem. Isto é o forja, como o dinamismo que seleciona e renova. A primeira
que me dizem a ciência, a história e tantos anos de observação e metade do ciclo, criadora da quantidade, resta inútil, se não se
de experiência. Cheguei à conclusão de que o universo é um completa com a segunda, criadora da qualidade. A mulher vale
funcionamento orgânico em marcha para determinada meta; tanto quanto vale o homem, e este, tanto quanto a mulher. Cada
que todos os fenômenos se encandeiam segundo uma lei, em um dos dois tem a sua função e missão, de cujo cumprimento é
cujo âmago sinto o pensamento e toco com as mãos a vontade sumamente cioso. O homem é, assim, invejoso de qualquer ou-
de Deus, presente e atuante. Assim concluí, com a segurança tro que tente superá-lo na sua tarefa de seleção; sente nele o rival
que me deram trinta anos de estudo, de experiência e de dor. e, cioso de sua função evolutiva, acusa-o de presunção e velha-
Se desta verdade universal desço a verdades mais particulares caria. A mulher é também invejosa de qualquer mulher que tente
e mais próximas, mais relativas e mais tangíveis, descubro que a superá-la na sua tarefa de proteção e conservação; sente nela a
vida do homem e do planeta que ele é agora chamado a reger, rival e, ciosa da sua função de amor e reprodução, acusa-a da-
correspondem a uma ordem particular e a um funcionamento or- quela desonestidade que atraiçoa a missão de mãe. Nenhum dos
gânico, cuja meta é indicada por estados sempre mais perfeitos a dois suporta que outros lhes usurpem ou os superem na função
atingir, cuja lei é o progresso. Verifiquei, afinal, que a lei do nos- que têm o direito e o dever de realizar, porque nela está o objeti-
so planeta é progredir em todas as formas; evoluir sempre, em vo da sua vida e a realização de si mesmos, porque no obedecer
todo sentido, é a idéia dominante. A evolução é uma incessante ao comando da Lei está a maior alegria, enquanto que não obe-
marcha ascensional de todos os seres da Terra, do mineral à plan- decê-la é a maior dor que o ser possa provar.
ta, ao animal, ao homem, ao gênio: a marcha em direção a Deus. Ambos desejam a mesma coisa: a vida; expressam a mesma
Descendo sempre mais no particular e relativo, sempre mais lei: criar; um dizendo sim, a outra dizendo não. A Lei faz que
próximo e tangível para nós, descobrimos que o homem está à se unam os contrários para o seu mesmo objetivo. A satisfação
frente do movimento. A sua lei é a seleção do melhor, conse- do indivíduo está no cumprimento do instinto, ou seja, na obe-
guida através da luta. diência ao comando. E o homem, quanto mais ignaro e primiti-
Homem e mulher, masculino e feminino, são os ministros vo, mais cegamente obedece; quanto menos evoluído, menos
desta lei, que, no particular, se bifurca em dualismo, que é tam- emancipado do determinismo originário da matéria. Nos mo-
bém complementação. Como tudo, também esta unidade huma- mentos históricos do regresso involutivo, o homem canta a li-
na é dada pela fusão de duas unidades menores e inversas. Em berdade, acreditando que se liberta. Mas não se livra senão do
posições e movimentos inversos e complementares, elas fe- trabalho de evoluir, submetido às superiores leis sociais, que
cham o mesmo circuito. O homem diz: ―Eu sou a vontade, a lhe impõem ordem, disciplina, virtude. Não se livra senão para
força, a conquista, a vitória. Eu sou o senhor. Não há outro se- tornar a trabalhar, mais cegamente, a serviço das mais elemen-
nhor além de mim. Submeto a mulher para que me dê filhos tares e férreas leis da vida, inscritas no instinto.
fortes e vencedores como eu‖. A mulher diz: ―Eu sou a beleza, Peregrinei pelas longínquas e abstratas filosofias do absolu-
a bondade, o amor, a conservação. Eu sou a esposa e a mãe. to. Mas a que agora me interessa é esta filosofia específica e prá-
Não há nisto outra mulher além de mim. Escolho o homem for- tica, mais próxima de nós do que os princípios abstratos, relativa
te para que me dê filhos fortes e vencedores como ele‖. e pequena, mas traduzida em ações; objetiva e concreta, aquela
Dois são, portanto, os grandes motivos da vida humana: o que, a cada passo, se encontra na realidade humana vivida, aque-
macho e a fêmea. São opostos e se atraem. Embora dividindo la que cada homem, mesmo sem compreender, pratica.
entre si o campo da vida, liga-os o recíproco fascínio. Bastam Na raiz da vida humana encontra-se este mecanismo. Ele
estes dois motivos para cantar-se até às últimas notas a sinfonia implica rivalidade, luta e, por fim, seleção. Assim, guerra e
da vida, num entrecho e numa compensação contínua. Cada um amor são as duas funções fundamentais desses dois termos:
desses dois princípios é uma afirmação em si mesmo, mas uma masculino e feminino. O amor protege e cria, a guerra destrói e
negação em frente ao outro, um vácuo que aspira ao oposto, de- mata. Inversa complementação, mesmo nos efeitos. Nela se
sejoso sempre de se encher com a oposta afirmação, e, assim, se cumpre, em equilíbrio, o ciclo, e se completa o circuito da vida
precipitam um no outro, saciando-se apenas ao fechar-se na sua e da morte. Assim, na morte, condição de vida é a vida, e, na
soldadura com a metade oposta do circuito. Nenhum dos dois é vida, condição de morte é a morte.
superior ou inferior. A mulher domina como o homem. Não im- É inútil discutir. A lei biológica assim ordena, quer e age; não
porta se a primeira se afirma calando e negando, o segundo gri- se corrige, não se burla, mas apenas se cumpre. A guerra e o
tando e comandando. O princípio feminino tem tanto o que amor são o binário sobre o qual avança a vida. É inútil perguntar-
completar, quanto o masculino. Ambos reinam igualmente, mas se: por que assim, e não de outro modo? O fato é que assim fun-
através de formas e tarefas contrárias e complementares. Mas ciona o nosso mundo. O fato é que os objetivos impostos, certa-
cada um dos dois se sente isolado no seu reino incompleto e de- mente por uma inteligente vontade oculta, são assim atingidos:
seja completar-se, revertendo-se ao seio do oposto. A fragilidade continuação e seleção. Pois que, com esse fim, é garantida pelas
da bondade e o altruísmo do amor são potentes como a força da supremas defesas a conservação individual assim como a coletiva
conquista e o egoísmo do domínio. Cada qual tem as suas ar- e assegurada a evolução da espécie. O mundo chegou até aqui,
mas; armas opostas e complementares, feitas não para se comba- atingindo o estado atual, porque estes objetivos foram atingidos.
terem, mas para se abraçarem. Entre essas armas não pode exis- Tudo isto é luta, risco, fadiga imensa. E no que resulta? Na
tir rivalidade, porque não tendem a se excluir, mas a se ajudar. O seleção, no progresso. A significação do processo está na
princípio masculino faz parte do feminino, o pressupõe, o evolução. Fazer, pois, um homem, uma nação, uma raça sempre
compreende e o completa. Cada ser humano nasce no seio de melhor, este é o resultado que a lei biológica quer. O materia-
um desses princípios, carrega-o em si mesmo e o representa. lismo ateu não compreendeu que a sua evolução significa jus-
Cada um deles existe e tem sentido somente em função do outro. tamente criação no espírito. Assim avança o mundo. Este é o
Opostos apenas para se unirem, eles dividem o trabalho e as significado do poder de comando que o instinto revela.
opostas funções da vida: criar conservando, acumulando, proli- O nosso mundo social é um campo onde se chocam forças
ferando, e criar destruindo, renovando, selecionando; sempre diversas, que na sua oposição desejam elidir-se e, assim, se corri-
fundidas as opostas posições na mesma função de criar. A mu- gir. É necessário reconhecer que na sua disposição há profunda
lher, como a terra, é conservadora e fecunda, ou seja, apta à sabedoria, pois desse caótico coexistir emerge não destruição ou
6 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
desordem, mas a construção de uma ordem sempre mais perfeita. Não pretendo que a minha verdade seja absoluta, nem que se
O progresso verificado no mundo consiste precisamente na pas- deva impô-la a alguém. Esta é a minha experiência. Os outros fa-
sagem da desordem primitiva ao estado de ordem, que progressi- çam, a seu modo, a sua. Cada um recolhe para si o resultado do
vamente se realiza. O progresso é um progresso de harmoniza- seu sistema. Uma experiência conduzida honestamente, com
ção. Assim, o universo caminha para Deus, que é harmonia, ou convicção, objetividade e seriedade científica, sempre merece
seja, realiza cada vez mais a manifestação do Seu pensamento. respeito. Uma hipótese de trabalho que, após trinta anos de con-
Assim nascem e renascem, sempre mais perfeitos, por evo- trole, corresponde ainda aos fatos, resolve os problemas e resiste
lução orgânica, mas agora sobretudo psíquica, os homens, as na- à experiência de uma vida, deve conter qualquer coisa de verídi-
ções, os povos, as civilizações, a humanidade. Assim, povos e co. Passei pelas verdades particulares – rivais, em luta entre si, fi-
civilizações, tal como os homens individualmente, crescem, en- losofias e teologias – mas o sólido, qualquer coisa de objetivo,
velhecem, decaem, morrem e renascem, para completar – par- sempre presente, inderrogável e convincente, não o encontrei nas
tindo de bases sempre mais elevadas, construídas com os mate- construções da psique pessoal, que não são mais do que elevação
riais precedentemente conquistados – ciclos sempre mais altos. a sistema do próprio temperamento – um caso biológico – mas
A luta é, portanto, necessária, útil; é lei da vida, fundamen- encontrei-o na observação do funcionamento orgânico do univer-
tal, criadora, inevitável. A harmonia divina não se pode realizar so. Na convicção de que somente este, na forma em que ele se
na Terra senão através desse grande esforço, preço da redenção realiza, nos pode exprimir o pensamento de Deus, segundo o
humana, condição da vinda do reino dos céus para a Terra. qual, sem dúvida, tudo é dirigido e guiado, eu o deduzi dos fe-
Desta luta, uma forma, no mais baixo plano humano, é a nômenos de todo gênero. E nestes, que estão sempre presentes,
guerra. Nela, sempre nos encontramos, porque a ela está confia- eu o vi continuamente em ação, como recôndito motor, que é pa-
da a evolução do mundo, com a supressão do involuído, do pa- ra mim uma realidade objetiva, inegável, porque sempre funcio-
rasita, do inepto. Ela é, por certo, a forma primitiva da luta, pró- nando. Tudo, a cada momento, dele me fala. Deste pensamento e
pria da fase não evoluída em que o homem dito civilizado ainda desta realidade tenho vivido. No caos das conclusões humanas,
se encontra. E enquanto, pela evolução, aquela forma não puder dissonantes até à oposição, apeguei-me a esta realidade biológi-
ser superada, a luta, que será sempre necessária, deverá subsistir ca, isto é, a esta realidade de vida. Deixei-me guiar pela sábia voz
naquela mesma forma. Até hoje, a guerra é lei inexorável, como da natureza, que nos indica aquela realidade a cada passo. Todo o
parte integrante da zona de determinismo do destino humano, e meu ser, das zonas inferiores às superiores, dela se tem nutrido,
isso porque ela está no passado biológico da humanidade. Até, como de uma fonte divina. Se me tenho proposto inusitados obje-
portanto, a neutralização desse passado, pela superação, a guerra tivos e tentado experiências a que os outros fogem ou ignoram;
será uma fatalidade biológica. E isso porque a luta é o meio de se tenho caído e às vezes falhado; se perigosamente tenho vivido
que dispõe a natureza para conseguir seleção e progresso. Não é e duramente sofrido, tenho, sem dúvida, trabalhado em harmonia
a luta o que se pode suprimir, mas somente as suas formas mais com a criação. Se o progresso é um processo de harmonização
atrasadas. Mas estas não podem ser superadas enquanto o ho- com o pensamento de Deus, atuante no mundo, e vai do caos à
mem não tiver aprendido por si mesmo, com a sua fadiga, a su- ordem, eu, depois de haver baseado a minha vida numa concep-
perá-las. Cada humanidade tem as leis biológicas que merece. ção universal de ordem absoluta, consegui trazer para o meu des-
Sob pena de trair o supremo escopo da vida, que é o de su- tino essa harmonia e essa ordem, não obstante tudo. Assim, lutei
bir, a forma de luta que é a guerra não pode ser abandonada en- e venci o caos e o mal, que podem aparecer em dado momento
quanto o homem não tiver aprendido a transformá-la em formas da vida individual e coletiva, mas dos quais triunfa aquele que
superiores de luta, dirigidas a fins superiores. É necessário que possui as bases do equilíbrio, a orientação fundamental e a chave
a humanidade tenha primeiro a força de se transportar inteira do funcionamento fenomênico. Decidi-me assim a marchar,
para um plano mais alto. Hoje, a guerra e o amor se equilibram creio-o, na direção fundamental da vida, que não é a de vagabun-
no recíproco esforço corretivo. Se esta força do amor, que con- dear ou gozar, mas a de lutar para conquistar e ascender.
serva e multiplica, não fosse corrigida pela destruição seletiva e
reconstrutora da guerra, terminaria igualmente na estagnante II. O PROTAGONISTA E O AMBIENTE
podridão da morte. Não basta multiplicar os homens com o
amor. É necessário refazer os povos com a guerra. Proteger e Quem escrevia assim?
prolificar não podem ser mais do que um meio para atingir o O protagonista deste relato, o homem cuja história narra-
fim, a que só a luta conduz: destruir para reedificar. mos. Com aquelas suas palavras, o individualizamos e apre-
A verificação destas leis me levou à conclusão de que a vida sentamos.
é e não pode ser senão dura, séria, útil; que ela não é uma ale- Mas, para melhor compreender, é necessário narrar ainda.
gre excursão de gozadores, mas um trabalho sério, dirigido so- A história desenvolve-se na hora titânica e apocalíptica que,
bre o plano orgânico de leis biológicas, rumo a objetivo elevado como um rasgo no céu, aparece cada vez mais lampejante, sobre
e preciso. Cheguei à conclusão de que é inútil tentar evadir-se, a outra metade do século XX, prenúncio da hora ainda mais gra-
na inconsciência e nos prazeres fáceis, a este necessário esforço ve. Esta história é um pouco a história de todos os espíritos sen-
de evolver, a esta lei de progresso que está escrita em nosso síveis e amadurecidos, que têm uma vida individual profunda e
sangue e em nosso destino humano. Quem tenta evadir-se é própria. Neste espírito, espelho refletor de todas as luzes do seu
inexorável e terrivelmente punido pela invisível Lei. Quantas tempo, refletem-se em parte as grandes tempestades ideológicas
coisas invisíveis têm tremenda força! que o século vinha maturando. Nascido nos fins do século XIX,
Sob tais conclusões, estabeleci uma vida dura, séria e útil. A ele tinha visto, depois, realizarem-se ao seu redor as maiores
utilidade não é aquela que comumente se entende, ou seja, a das transformações políticas, sociais, intelectuais, espirituais e cien-
vantagens materiais: é a conquista dos valores morais, que não tíficas. Crescido entre velhas ideologias, em ambiente de pro-
se vêem, mas que regem o mundo. Estou convencido de que víncia, intelectualmente restrito, tinha visto a vitória do automó-
cada um pode escolher os próprios objetivos, independente- vel, do aeroplano, do rádio e assistido profundas transformações
mente da opinião dominante entre os seus semelhantes. Estou no campo cultural. Muitas vezes, fora obrigado a mudar a pró-
convencido, também, de que a verdadeira verdade é simples, a pria orientação e renovar as suas conclusões. Num mundo em
que serve para a vida; que é inútil o complicado e erudito filo- evolução assim tão rápida, ele, ágil de mente e de corpo, havia-
sofar, pois o que importa é viver aquela verdade, antes de pro- se renovado ainda mais rapidamente. Apreciara o frenesi de di-
fessá-la e pregá-la. Assim tenho feito e vivido seriamente. namismo, o esforço de ascensão. E sentia-se satisfeito de ter
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 7
nascido em hora tão intensa e interessante para a sua ânsia verti- be caminhar senão em rebanho, que não sabe pensar senão em si,
ginosa de renovação, para as suas tentativas de elevação, tor- que não sabe fazer senão aquilo que todos fazem. Ele é feito de
mentosas e, ainda que por momentos, frustradas. Lançou-se no muitos homens diversos, de muitos tipos de gradações. Ele é co-
turbilhão, não para girar como tantos, em torno de si mesmo, mo a expressão pública dominante, à qual todos se equiparam,
num torvelinho inútil, mas para compreender o sentido profundo pelas necessidades da vida prática, nas relações sociais. Homens,
daquele turbilhão e dele tirar o mais elevado proveito. Tinha a até mesmo, de alta percepção, homens de todos os níveis, assu-
completa sensação daquela hora histórica, grave e solene, e a vi- mem, pela necessidade prática, a expressão desta psicologia do-
via toda, avançando e fremindo, para realizar-lhe o significado minante, que resume os traços do maior número prevalecente.
mais real, eterno, ou seja, a trabalhosa ascensão do homem rumo Ela é um meio de se entenderem, é a unidade monetária das tro-
a melhores formas de vida. Ergueu a cabeça ante os adormeci- cas e contatos comuns, um ponto prático de referência. É a psico-
dos, em que tropeçava, na sua luta para salvar os valores morais logia das ruas, comum a todos, como um hábito que todos devem
do mundo e conquistar entre eles os mais elevados. Foi asfixia- adquirir quando descem à rua. É a psicologia corrente, que faz a
do, desprezado, incompreendido. Vida de fadiga e de desgastes, opinião pública e o uso, a que todos se adaptam para poder exis-
mas vida de ascensão interior e de conquistas espirituais, pro- tir: a religião, a imprensa e todas as derivações da vida pública.
fundamente concebida, além de todas as formas; aderente à Mas se ela constituirá frequentemente o ponto de referência, a
substância, vida de laborioso silêncio criador, de fé e, não raro, substância deste trabalho situa-se em outro plano. Para os nega-
de desespero e de sangue. Ele foi, assim, um lutador, e lutador dores do espírito, que, pela sua própria cegueira, sentem-se auto-
no mais elevado campo, que é o do pensamento e da ascensão rizados a lhe negar a existência, será uma prova, muito mais con-
moral. Algumas vezes caiu, foi traído pelo ideal e pelos homens, vincente do que tantas argumentações, a narração desta vida, vi-
traído até ao desprezo, ao ridículo, à desesperação; na solidão, vida no seu próprio mundo, no meio deles; vida, do princípio ao
viveu horas trágicas, não vistas e não compreendidas. Mas a fim, em plano lógico e orgânico, dirigida não às conquistas efê-
idéia alta e reta não é o caminho do sucesso fácil. E, embora meras, mas a outras, situadas inteiramente no espírito, dotadas de
possam rir os gozadores, facilmente triunfantes, ele queria para potência e lucidez. Àquele tipo de homem, hoje comum, contra-
si a vida séria, com sério objetivo. E, se ao mundo pareceu fali- põe-se aqui um tipo de homem novo, para cuja formação luta es-
do, estava muito satisfeito com a própria consciência. te livro com toda a energia com que foi concebido. Homem no-
O nosso protagonista é assim um símbolo, uma idéia que, vo, não mais inconsciente. Lutador viril do ideal, cujo valor e uti-
vivida, transforma-se em realidade, uma experiência realizada, lidade na senda do progresso ninguém, ainda que necessitado de
em cujo seio se atormentam e amadurecem ainda tantos outros evolução, pode desconhecer e cuja formação, nesta hora histórica
espíritos ousados. em que alvorece o limiar do Terceiro Milênio, é uma necessidade
Sobre o fundo longínquo da cena está a multidão anônima, vital, se a civilização não quiser precipitar-se na morte.
rumorejam as grandes massas amorfas, instintivas, ignaras, Assim, não se encontrarão neste volume os habituais moti-
inconscientes, o grande povo, vaga entidade para a qual de- vos passionais, nem os costumeiros enredos de ficção, com ti-
vemos dirigir-nos, obedecendo ao antiqüíssimo ensinamento pos que se movimentam fisicamente em vários ambientes e em
evangélico e ao novíssimo ensinamento das mais recentes várias circunstâncias. Se personagens e fatos se apresentarem,
concepções sociais. A multidão é uma das forças que se mo- isto será somente para dar forma ao movimento de correntes de
vimentam neste enredo. Aqui, ela é um indistinto rumor de pensamento e de vontade, dar vida tangível ao entrechoque de
fundo, imenso como o do mar; um som coletivo, resultante de idéias e de forças, pois que estes são os verdadeiros persona-
muitos pequenos sons; um vago som confuso, que não se sabe gens da narrativa. Esta será, assim, mais rápida, mais sintética;
de onde nasce, porque vem de todos os lados, nem de quem os fatos serão reduzidos à sua pura substância. Para isso, deixa-
procede, porque provém de todos. Entretanto ela é uma força remos de lado os acontecimentos mais comuns da vida do nos-
que toma, às vezes, forma de pensamento definido e de vonta- so personagem, aqueles que o fazem assemelhar-se aos demais.
de decisiva e, em certos momentos, tudo transforma, impon- Não é interessante, segundo pensamos, a referência às coisas
do-se à história. Aqui, a multidão aparece como termo de que todos fazem, que todos sabem, que todos dizem e que são,
comparação, como elemento de resistência, de misoneísmo, até mesmo nas narrativas, sempre repetidas.
como inércia em face da força, como grande terra, pólo nega- Justamente numa hora em que tudo se torna coletivo e não
tivo, sobre a qual o verdadeiro homem, pólo positivo, cami- se pensa nem se age senão em massa, sem espírito próprio, o
nha sozinho, rumo aos seus objetivos, tão distanciados das nosso protagonista permanece solitário, como se estivesse fora
multidões de hoje. Ele é uma idéia, uma vontade que reage à do seu tempo, talvez por havê-lo compreendido demasiado; é
psicologia coletiva e contra a qual esta reage. Veremos aqui se um rebelde, decidido a viver a todo custo a sua própria vida.
formarem os circuitos de ressonâncias e o seu dispersar-se em Por certo, alguns temperamentos e alguns destinos não se esco-
discordâncias; ouviremos acordes e dissonâncias. Observare- lhem e estão muito acima da própria vontade. Ele não quer nem
mos sintonizações com outras forças do imponderável. poderá aceitar e suportar o pensamento alheio. Quer aceitar a
Neste trabalho, encontraremos freqüentemente citados o sua experiência da vida sozinho, diante das forças cósmicas.
mundo e o homem comum. O mundo tem aqui o sentido evangé- Quer permanecer sempre ele mesmo, um desenvolvimento ló-
lico de lei humana da Terra, inferior, contraposta às mais altas gico, dirigido a um objetivo próprio, conscientemente escolhi-
leis do céu. Por homem comum, ou normal, ou qualquer, enten- do, seguido tenazmente até ao fundo. Cheio de disciplina, fer-
demos o tipo dominante, modelo em série, com a sua psicologia reamente ligado ao dever, mas observador e árbitro de tudo, e,
uniforme. Esse, não há dúvida, existe na prática. É o homem da ao menos no seu íntimo, onde somente lá se pode sê-lo, livre,
rua, o que constitui o público anônimo e amorfo, um tipo a que se independente de tudo e de todos. Assim, coordenou as forças de
reduzem todos os outros, no momento e pelas exigências da sua tormenta, em meio à tormenta do mundo.
normal convivência social. É o homem da mediana cultura dos O seu tempo lhe oferecia um pensamento caótico. O mundo
jornais, simplista, restrito aos elementares impulsos animais, en- estava abalado pelo entrechoque de tantas verdades diversas,
vernizado de alguma erudição e educação; o homem que vegeta, dividido entre o desmoronar de edifícios milenares e a tensão
luta pela mulher e pelo amor, pelo necessário e pelo supérfluo, construtiva de novos valores, em todos os setores humanos. O
permanecendo no campo material. É o homem que pensa por si e seu tempo era um campo de batalha de grandes maturações, em
pelos seus, movido pelos instintos fundamentais da vida, incapaz que o passado, solidamente firmado, mas, justamente por isso,
de vibrar ante as altas paixões do espírito. O homem que não sa- ossificado, resistia, com grande força da inércia, ao novo que,
8 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
fremindo de vida, irrompia da velha casca. O nosso homem en- O retorno, a necessidade de se refazer desde o princípio,
carou profundamente a grande luta em que a civilização jogava resumindo o trabalho realizado antes de prosseguir, como para
a sua cartada suprema e entregou-se todo, de alma e corpo, à reter o impulso ante a nova tarefa construtiva, corresponde à
preparação do advento da nova civilização do Terceiro Milênio. lei universal dos ciclos fenomênicos, da qual não é mais que
Assim, o solitário fundiu a sua vida na substância do seu tempo, um caso particular. Para que cada fenômeno avance na evolu-
consciente disso como poucos, vidente e atuante, e, como pou- ção, é necessário a consolidação das suas bases, resultante da
cos, preocupado pelos destinos do mundo. Distante do inútil repetição e revisão do passado2.
burburinho, ausente da hora fácil dos direitos e da colheita, pre- Tudo isso o ser realizou sem nada saber. Pouco do presente,
feriu estar presente no trabalho silencioso, na hora do dever, do nada do passado e nada do futuro. Tanto assim, que só por últi-
esforço obscuro da semeadura. Assim, viveu muito mais ligado mo chegou à formação da consciência, única que pode saber e
aos seus semelhantes do que podia parecer, pois preferiu envol- compreender as coisas. Há, portanto, um princípio diretivo e in-
ver-se nas suas dores, mais do que nos seus triunfos. Assim, e teligente, que tudo guiou com lógica, economia e técnica, que
não de outra maneira, quis ser a qualquer custo, mesmo a preço nos aturde e que não se encontra no ser, ignorante de quase tudo.
de decepções e de desprezo. Preferiu uma vida de luta, a fim de Ora, não se compreende como a ciência darwiniana e haeckelia-
permanecer sempre coerente consigo mesmo. Quis ser um ver- na, que descobriu aquela verdade, tenha desembocado no ateís-
dadeiro homem, vivendo a sério. Esta nota fundamental de ho- mo, quando o materialismo é a mais profunda demonstração da
nestidade, qualquer seja o erro que ele tenha podido cometer, existência de Deus. Demonstração cientificamente sólida, muito
nunca o abandonou. Não pactuou jamais com o mundo, contra mais do que as filosóficas, teológicas, abstratas e racionais.
a sua consciência. Teve de andar contra a corrente, a corrente A comprovação de que o organismo humano repete a sua
real, não aparente, antes bem oculta, das ações humanas. Foi história, o que claramente nos mostra, dos primeiros até aos úl-
por muitos considerado um imbecil. Por isso, não querendo timos graus, o desenvolvimento biológico, diz-nos ainda outra
nunca reduzir-se à vileza de uma traição aos seus princípios de grande coisa: fala-nos também do parentesco e, portanto, da fra-
retidão, viu-se constrangido a ser um solitário. ternidade de todos os seres e da comunhão de destino biológico
Se o leitor não ama um ideal, se não tem paixão pelas coisas entre o indivíduo e o gênero humano. O indivíduo traz em si, na
mais elevadas e santas da vida, se não sabe vibrar nestes dra- constituição celular, na estrutura orgânica, nas diretrizes do seu
mas do espírito, se não tem vivido ascendendo através da dor, instinto, uma experiência e uma sabedoria não somente indivi-
se não compreendeu a gravidade do nosso tempo, se não sente, duais, mas que pertencem à raça. Ele possui em si mesmo quali-
enfim, a necessidade de fugir à cotidiana miséria da vida, não dades que são coletivas, patrimônio de todos, e que a economia
poderá interessar-se por histórias como esta. Aqui, não encon- da natureza o faz encontrar já realizadas ao nascer, com grande
tramos amor senão por Deus e pelos que sofrem, nem paixão poupança de esforço criador, prontas para a imediata utilização
senão pelo bem. Este não é um livro de vida fácil, que se rebai- nas necessidades da vida. O feto insignificante resume e sinteti-
xa, mas o livro da vida dura e severa, que constrói e se eleva. za a espécie, traz em si o passado e sobretudo, ainda em germe,
Quem aqui procura, para o seu deleite, qualquer vaidade literá- o futuro. Aquele ser é uma força cósmica, a vida, força que não
ria, quem gosta somente de curiosidades para distração, quem se pode deter. Repetiu, no seu desenvolvimento vibratório, a his-
pensa encontrar aqui, repetidos, os motivos que costumam mo- tória genealógica da humanidade; percorreu de novo o caminho
ver os homens e as suas paixões, largue o livro. Quem não tem da formidável ascensão que, dos unicelulares às amebas, aos in-
buscado e seguido, na luta e na dor, as ásperas vias da ascensão, vertebrados, aos peixes, às feras, aos pitecóides, aos antropóides,
caminha na vida sobre outros trilhos. Cada um tem os seus e vai conduz ao homem, sempre pela mesma lei. Esse homem, que
para onde quer. Largue o livro, mas lembre-se de que, em qual- tanto caminhou, não se pode deter, e a sua vida presente não po-
quer posição social ou espiritual em que se encontre, participa de ter outro significado senão o da continuação daquele cami-
também da narrativa, chamada história de um homem, mas que, nho. A cegueira imperdoável do materialismo consiste no fato
na realidade, é a história de todos os homens. de não perceber o íntimo motor espiritual deste crescimento e,
portanto, a diretriz da continuação daquele ilimitado, incessante
III. O SIGNIFICADO E O MÉTODO DA VIDA e irrefreável vir a ser da espécie. O erro nasceu do desejo de per-
sistir na precedente visão unilateral da evolução puramente or-
Ele nasceu como nasce um homem qualquer, num ambiente gânica, que, pelo contrário, nada mais é senão o efeito do desen-
comum e insignificante. Nascer é coisa tão simples e natural, volvimento de um princípio espiritual. Que nos indica a história
que parece de fato não merecer atenção. Em geral, ninguém se da civilização humana com a construção orgânica e, mais espe-
surpreende com as coisas mais maravilhosas da vida. Entretan- cialmente, a psíquica? Aqui, pois, torna-se evidente, ressalta e
to, naquele feto que vem à luz, há abismos de sabedoria e de domina a psíquica, atuante sobretudo no campo nervoso e espiri-
mistério, tanto do ponto de vista orgânico como do espiritual. tual. E acreditamos seja cientificamente sólido e persuasivo con-
Aquele organismo humano teve de percorrer longo caminho pa- siderarem-se as conquistas espirituais e morais como constru-
ra se transformar naquilo que é ao nascer. Não era, no princí- ções biológicas. Somente assim elas adquirem um significado
pio, senão minúscula célula, o ovo humano fecundado, e teve de orgânico, em conexão com o desenvolvimento da vida.
recomeçar desde a origem a sua existência, retornando até às É verdade que o moderno materialismo foi constrangido,
raízes da árvore genealógica da vida, ou seja, a uma forma uni- quisesse ou não, a avançar e orientar-se nos rumos do espírito.
celular, como a da alga ou da ameba. Transformou-se depois, Este é uma força tão poderosa e evidente na natureza, que não
lentamente, em pluricelular, em esfera de células. Só à força de poderia permanecer perpetuamente sem ser vista. E já é grande
multiplicações e diferenciações, tornando-se sempre mais com- progresso, em face do velho materialismo ateu. Mas, apesar
plexo, chegou à forma humana completa. Em nove meses, re- disso, a ciência não vê ainda senão os primeiros sinais do espí-
capitulou toda a escala biológica evolutiva da qual descende, rito, ou seja, apenas aquilo que se pode ver do plano material,
que precedeu e amadureceu a sua forma atual. E, só então, pôde em que a ciência se mantém. E isso não é suficiente. Para com-
vir completo à luz. Esta indiscutível verificação é de fato sur- preender a vida e vivê-la seriamente, é necessário, ao invés,
preendente e nos mostra quão gigantesco trabalho o imenso uma integral concepção do espírito. Mas se dermos tempo para
passado teve de realizar para atingir as formas presentes. Mos-
tra-nos que ciclópico feixe de forças faz pressão sobre aquele 2
Ver A Grande Síntese, do mesmo autor, Cap. XXVI: ―Estudo da tra-
feto, para que o impulso não se detenha e a vida continue. jetória típica dos motos fenomênicos‖. (N. do A.)
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 9
a ciência materialista ascender segundo aquela lei fatal de evo- escrúpulos para atingi-lo, egoísmo ilimitado, adoração ao su-
lução, por ela mesmo afirmada, ela chegará ao espírito, de ma- premo deus dinheiro. Em que coisa se transforma uma socieda-
neira jamais vista na história, efetiva, sólida e completa. Só en- de de tais indivíduos? Um campo de batalha, onde quem se dis-
tão se poderão lançar as bases da nova civilização do Terceiro trair é atropelado; um inferno, e isso do nascimento à morte,
Milênio, que, se não quisermos retroceder à barbárie, não pode- por toda a vida, sem nenhum descanso. Esta é a realidade. O
rá ser outra senão a do espírito. resto é exceção, sonho ou hipocrisia. Assim, o mundo criou a
Seria absurdo que aquele impulso evolutivo, que, do ponto de voragem do próprio suicídio, sem ter força para fugir dele.
vista orgânico, se faz tão evidente no feto, até ao seu nascimento, Ninguém sabe explicar como, em meio à tão decantada civili-
depois se detivesse, justamente quando começa a vida individual. zação, em meio à riqueza e ao bem estar dos povos civilizados, a
E, se aquele impulso, que é lei da vida, como de todos os fenô- vida contenha ainda tanta dor e tão amaras desilusões, a ponto de
menos, não se pode deter, logicamente o seu prosseguimento não espantar aquele que não seja um inconsciente. Mas isto se dá
pode assumir, como os fatos de resto confirmam, senão a forma porque o homem não vive só de pão, que não basta para satisfa-
psíquica. E, assim, ainda aqui notamos que o homem recapitula zê-lo, pois, mesmo tendo saciados os instintos da fome e do
na infância, repetindo todos os graus de desenvolvimento, não amor, ele possui outro instinto, tão fundamental como aqueles,
mais a história orgânica, mas a evolução espiritual já feita, que é que é o instinto do progresso. Este é menos concreto, mas nem
a própria substância da história da vida nesta fase superior que a por isso menos poderoso do que os outros, porque preside ao
humanidade atravessa. E, tal como o feto só se apresenta comple- cumprimento das mais altas finalidades da vida. Ele é, também, o
to na vida orgânica, depois desta repetição do seu passado nesse instinto de satisfação mais difícil, e, por isso, o homem procura
plano, assim também a consciência do jovem se apresenta ama- eximir-se de cumpri-lo, sem compreender quão profunda é a de-
durecida, na vida psíquica e espiritual, somente depois de idênti- silusão que lhe resta, seja embora vagamente, na sua consciência,
ca repetição desse passado, em plano superior. Concluindo, o por essa recusa ao cumprimento da maior vontade das leis da vi-
significado biológico da vida humana, na sua madureza e velhi- da. Essa desilusão é uma vaga, impalpável, íntima dor, que ele
ce, não pode ser outro que o da formação de uma personalidade não compreende, mas tem de suportar, como inevitável reação da
sempre mais completa, através de provas, dores, lutas, de todas Lei, que assim castiga qualquer traição. A sociedade moderna es-
as experiências úteis para o progresso espiritual, individual e co- tá envenenada por esta dor, que não se sabe onde se localiza, mas
letivo. Se, organicamente, o homem nasce no ato do parto, espiri- que se encontra em todas as coisas, porque os nossos atos, muito
tualmente ele é um feto em gestação até à sua maturação juvenil, frequentemente, constituem uma rebelião às leis da vida.
e só então ele nasce consciente para a vida e se prepara para a Não obstante o absurdo do arrivista sistema moderno, há al-
continuação do trabalho criativo e sem fim do seu próprio espíri- guns que vencem. E, quando vencem e saciam o ventre, regalam-
to. Nascendo, o nosso homem se apresentara, portanto, à vida, e se nos prazeres sensuais, pavoneiam-se de honra e de poder; jus-
eis o que o esperava. Eis em que sentido ele orientará a sua exis- tamente então eles sentem, amaríssima, essa desilusão, que não
tência, que apenas começamos a narrar. está nas coisas humanas, mas somente na sua maneira de utilizá-
Trata-se de uma experiência realizada contra a corrente hoje las. E espantam-se, então, de não encontrar pela frente senão um
seguida pela maioria. As teorias, os ideais pregados não têm grande vácuo no espírito; espantam-se de perceber, justamente
importância, a menos que sejam também vividos. As simples quando pensavam ter conseguido tudo, que nada conseguiram.
palavras, biologicamente, têm pouco valor. Tratar-se-á de uma Nada a invejar-se, portanto, destes esplêndidos vencedores, in-
reação e de uma rebelião contra o mundo, em nome dos mais ternamente roídos pela desilusão. A sua felicidade é só aparente,
altos valores do espírito, ao qual se dá, aqui, uma sólida base eles bem o sabem; é uma felicidade traída, como é justo caber
biológica e, portanto, científica, lógica, persuasiva. Não é mais aos traidores das leis biológicas. Não se pode impunemente trair
tempo de nos iludirmos. O método corrente de viver e de con- o instinto fundamental da vida, do qual os demais instintos não
ceber a vida está completamente errado. O mundo está hoje, de são mais do que instrumentos. A vida impõe o trabalho de evolu-
fato, fora do caminho. Esta afirmação não se encontra apenas ir. Trabalho que custa tão grande esforço, que, preguiçosos, dese-
na mente de algum vidente isolado, que seria fácil não ouvir ou jaríamos esquivar-nos de fazê-lo. Para não ouvir a voz da consci-
fazer calar, mas está nas próprias leis da vida, a que ninguém ência, que nos adverte, tentamos aturdi-la por todos os meios,
jamais poderá fugir. No comum, o homem obedece cegamente procuramos não compreender e esquecer os fins supremos para
ao instinto de crescer. Instinto elementar, que se inicia na célula os quais nascemos, precipitando-nos, assim, de queda em queda,
e exprime a vontade fundamental da criação, que é a de evoluir. cada vez mais abaixo, até à desesperação. É inútil tentar fugir. É
E atira-se ao crescimento como um louco, egoisticamente, cao- inútil que a nossa civilização cientificamente refine a sua sabedo-
ticamente, isoladamente, desesperadamente. O princípio do ria na arte do prazer, que envenena; do estupefaciente, que ator-
crescimento é justo, mas o homem normal não tem a mínima doa; da astúcia, que se esquiva; da força que se rebela. Do ponto
idéia de um método racional para segui-lo. Só um método que de vista científico como do religioso, a vida deve ser evolução,
nos harmonize com as diretrizes dominantes no funcionamento ascensão, ou seja, esforço de redenção. Não há prazer, estupefa-
orgânico do universo poderá ser satisfatório, ou seja, sem dis- ciente, esperteza ou força humana que nos possa subtrair a esta
persão de energias, levando-nos a um resultado substancial útil. lei fatal. Se não nos lançarmos de boa vontade pelo caminho da
A vida do homem de hoje é um convulso agitar-se para se apo- ascensão humana, rumo ao divino, fá-lo-emos constrangidos pela
derar do mais que possa, de todos os lados e por qualquer meio, desesperação. É justamente a isto que o mundo de hoje chegou e
para si e para os seus. É uma luta desesperada, sem método, tem de fazê-lo não mais pelo amor, mas pela força. Ao final do
sem critério diretivo, sem consciência das leis que, pela vontade segundo milênio, para a civilização européia, esta é a única dire-
divina, dirigem a vida. Naturalmente, com esse louco sistema, triz possível para continuar a viver.
não pode o homem atual senão colher desilusões. Há uma desi- Este livro deseja expor outro sistema de vida, no qual não
lusão que é quase normal ao fim da vida e depende toda de nos- importa enriquecer, conquistar poder, honras, prazeres. Não se
sa posição errada diante dela. Comportamo-nos, freqüentemen- dá nenhum valor àquela dispersão de trabalho para a produção
te, a este respeito, como verdadeiros inconscientes. de coisas tão relativas e aleatórias, mas se dá, pelo contrário,
A primeira pessoa que encontramos na rua sabe muito bem todo o valor à construção moral de si mesmo. Este livro deseja
que o problema fundamental da vida consiste no próprio bem- demonstrar como se pode fazer da vida um grande edifício sem
estar material. Sonho supremo, último horizonte, além do qual se tocar em dinheiro ou honrarias, e até mesmo combatendo es-
se encontra o paradisíaco Nirvana do repouso. Daí a luta sem tas coisas. Em nosso mundo, pensamos que a felicidade esteja
10 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
num lugar, quando está noutro, ou seja, não nas vantagens do mente com vantagens e gozos materiais. Além destas aquisições
oportunista, mas na ordem, na harmonia com o próprio vizinho há todo um outro mundo, com mais vastos horizontes. O espírito
e com as leis da vida e de todo o cosmos. A verdadeira felici- sente, por instinto, a necessidade de orientação conceptual, de
dade, que nos satisfaz, não está fora, no plano material, mas finalidade das ações, de coordenação dos seus próprios esforços
dentro de nós mesmos, no plano moral. Não está em nos reves- para a meta de si mesmo no todo. Sente a necessidade de reali-
tirmos de roupagens fictícias e passageiras, mas na construção zar qualquer coisa de sério e imperecível para quando tiver che-
de nós mesmos, na aquisição de qualidades, que são bens impe- gado ao fim da vida. Se o homem não possui também estas coi-
recíveis, eternamente ligados à nossa personalidade. Não se po- sas imponderáveis, sente-se frequentemente, sem saber como
de negar quantos esforços a Terra se impõe, entretanto que ren- explicar, insatisfeito, infeliz.
dimento eles dariam, se fossem mais bem orientados! É verda- Enquanto o mundo se ocupar das construções materiais, an-
de que a vida é uma experiência que se tenta. Mas que desper- tes das construções espirituais, e não se ocupar destas como
dício de energias, quando não se sabe que direção se deve dar coisas principais, a vida será desperdiçada, as leis biológicas
aos próprios esforços! Passam-se, assim, vidas inteiras comple- serão traídas e será insensato, nesse regime de insensatez, pre-
tamente desperdiçadas, vidas cujo resultado se resume em tender colher felicidade ao invés de desesperação. Pode-se sor-
compreender que tanto trabalho foi inútil, e que a direção devia rir com ceticismo e expulsar o enfadonho pregador dessa ver-
ter sido outra. Assim, os destinos se desenrolam estupidamente, dade, mas o dilema é hoje tremendo: ou criar uma nova civili-
perseguindo quimeras, e não se encerram senão numa triste co- zação, ou retornar à barbárie. As leis da vida exigem e fazem
lheita de amarguras. Assim se consomem existências inteiras, pressão para resolver dois milênios de preparação e de espera,
em inauditos esforços para a conquista daquelas coisas que são e não há lugar para a inconsciência dos que dormem ou gozam.
os produtos secundários do nosso trabalho, não tendo substan- Se não houver o esforço para se criar uma nova civilização, a
cialmente outro valor que o de instrumentos transitórios e rela- barbárie de substância, não importa se envernizada de civiliza-
tivos. É inútil gritar, depois, que a vida é ―vanitas vanitatum‖ 3, ção mecânica, será uma punição para todos.
quando todos os princípios estavam errados e foi traído o ins-
tinto mais alto, o divino comando a que não se pode fugir. IV. NASCE UM HOMEM E UM DESTINO
Quão diferente é a conclusão para quem trabalhou satisfa-
zendo aquele instinto e obedecendo àquele comando! Que ale- Ele havia nascido na mística Úmbria4, em fins do século
gria brilha através das necessárias dores da vida, que messe de XIX, quase à sombra de São Francisco, figura que se agigantou
íntimas satisfações adoça e premia o esforço da ascensão! En- no seu espírito. Penúltimo de numerosa série de filhos, não es-
tão não se colhem no fim desilusões, mas se compreende a perado, viu-se no mundo como por engano e provocou atenções
grande utilidade e a potência construtiva da dor. E, embora so- especiais. Nascera numa tarde de agosto, na simplicidade, de
frendo, louva-se a Deus, porque uma íntima satisfação do espí- uma casa simples, num velho bairro de ruas estreitas, enquanto
rito nos convence que não perdemos tempo e que os verdadei- a turma dos irmãos, para dar paz à casa, tinha saído a passear.
ros objetivos foram atingidos. Uma sensação interior, que não E, assim como nascera, viveu longe das vãs complicações da
pode enganar-nos, uma satisfação instintiva, não obstante tudo, riqueza, livre da escravidão de tantas exigências. Feliz de quem
assegura-nos que não lutamos e sofremos em vão e que qual- nasce na simplicidade, onde não falta o necessário, mas não se
quer coisa de imponderável e imperecível se encontra em nós, é escravo do supérfluo, onde a vida, que em tudo sempre deseja
conquistada por nós, merecida e, portanto, realmente nossa pa- crescer, partindo do humilde, tem espaço para subir. Que cami-
ra sempre. Contudo, quantas vidas restam traídas pela pregui- nho resta a percorrer a quem já nasceu rico e poderoso, senão
ça, pela ignorância, pela teimosia de não querer compreender e decair? A vida é um vir-a-ser e não se pode pará-la. Um cami-
seguir os verdadeiros fins da vida! nho é necessário. Se não se puder fazê-lo em ascensão, termina-
A ciência e a razão têm prometido vários paraísos na Terra, se por fazê-lo na descida. Essa é lei fatal da vida. Haveria um
mas eles não foram realizados. Dizemos isto não para combater remédio: livrar-se logo o privilegiado da sua posição de privilé-
ou subestimar o imenso passado e o atual esforço, heroico e jus- gio, da injustiça que pesa sobre ele reclamando justiça, livrar-se
to, do mundo para se colocar numa nova ordem, mas para acres- logo do débito contraído para com os semelhantes ao nascer em
centar-vos que a nova civilização, que não pode ser senão a do posição favorecida, débito do qual as justas leis da natureza
espírito, não se poderá efetivar se, antes, cada qual, individual- exigem o pagamento. Mas livrar-se é muito difícil, seja para o
mente, não modificar a sério a sua concepção e o seu sistema de bem nascido, que cresce enfraquecido pelas facilidades da vida,
vida. Se o mundo não se transformar de fato, através de cada um que não lhes ensinam desde cedo a luta, seja pelos pais, que o
dos seus componentes; se, não somente em palavras, mas tam- amam. Essa desgraça de haver nascido já feito não merece, por-
bém na realidade da vida, não se inaugurar em vasta escala uma tanto, como se costuma fazer, a nossa estúpida inveja, mas sim
nova tábua de valores, uma nova civilização não se formará. As- tem o direito à nossa benévola piedade e ao nosso auxílio.
sim como hoje se ri do senso de honra da Idade Média, que con- Feliz, pelo contrário, quem nasce com a riqueza do espírito,
sistia em passar a fio de espada os inimigos, também os séculos que mais facilmente se encontra e se desenvolve na pobreza
futuros haverão de rir de alguns dos nossos conceitos de respei- das coisas humanas. Os tesouros da Terra podem ser perdidos,
tabilidade e de honra, baseados na riqueza, nos títulos e nas po- mas não os do céu. Em meio à barafunda das incertezas huma-
sições sociais, filhos da egoísta luta individual. O problema da nas, há aquela maneira incrivelmente segura de investirmos as
felicidade, que logo deverá ser compreendido, não se resolve nossas riquezas nos valores imperecíveis do espírito. Estas
com o bem-estar material, mas somente atingindo, além daquele, primeiras referências são feitas aqui justamente por exprimi-
um elevado grau de consciência de que aquele não é mais do rem o tom fundamental que dominará esta história em todo o
que meio. Enquanto fizermos da riqueza um fim em si mesmo, seu desenvolvimento. Desde o princípio, oposição absoluta en-
ela continuará envenenada e envenenará quem a possuir. A feli- tre espírito e matéria, luta dos princípios morais contra o utili-
cidade não é uma forma de abastança, mas uma íntima satisfa- tarismo do mundo. Desde o princípio é mostrada aqui, bem
ção do espírito, um equilíbrio moral, ―uma harmonia individual clara, a inversão evangélica dos valores humanos. Neste relato,
na harmonia cósmica‖. O homem possui também, indiscutivel- veremos desenvolverem-se os ásperos sucessos dessa trágica
mente, um espírito, e este não pode iludir-se e satisfazer-se so- batalha, nem sempre vitoriosa. Essa história de um homem es-
3 4
Vaidade de vaidades. Foligno, próxima a Assis, cidades da Úmbria. (N. do T.)
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 11
tá, portanto, em perfeita harmonia com a substância do cristia- não luta sem tréguas, para o forte e para o fraco, para o evoluído
nismo e com a revalorização das forças do espírito, hoje, sob e para o involuído. Verdadeira escola, e ai de quem a ela se exi-
certos aspectos, abertamente sustentada. me. Ai dos jovens a quem os progenitores, por excessivo e mui-
Como todos, ele trazia em si as notas da sua raça: a caracte- to prolongado afeto, que exagera as funções protetoras da crian-
rística úmbrica, assinalando o tipo geral italiano. Diz-se que os ça além dos limites naturais, entregam os meios fáceis de se
antigos romanos possuíam o dom da vontade e do equilíbrio, os eximirem à luta. Certas educações cômodas e fáceis são pagas,
toscanos o da expressão, e os umbros o da intuição. Assim o depois, duramente. Não é possível eximir-se; é necessário exer-
lugar do nascimento e o tipo da sua gente, taciturna, sóbria, tra- citar-se cada um no seu plano, no seu nível, segundo o tipo fun-
balhadora, já esboçavam um pouco o seu destino. damental dado pelo nascimento. A luta não é violência e subju-
Também a hora, o dia, o mês, o ano, as constelações, assim gação senão embaixo. E nem todos sabem subir. Nem leis nem
diz a astrologia, influem no destino de um homem. E seria absur- religiões puderam agir tão profundamente para civilizar o fundo
do negá-lo ―a priori‖, por simplismo ou ignorância materialista. bestial da natureza humana. Mas, para quem quer e sabe, há
A radiestesia, ciência das vibrações que todas as coisas, inclusive formas superiores de luta viril e generosa, que não são a conde-
o homem, transmitem e recebem, está apenas nascendo. E já está nação à animalidade, mas a afirmação da mais alta potência no
séria e cientificamente justificada a desconfiança de que existem espírito. Neste campo, é necessário aprender a lutar. A luta é lei
muitas coisas sutis, no céu e na terra, inegavelmente reais, embo- da natureza, necessária, e não está no poder humano evitá-la.
ra imponderáveis. Certamente, em meio a tudo isso que existe, o Mas aquilo por que somos responsáveis é a forma de luta, forma
homem transmite e, sobretudo, recebe uma quantidade infinita de que nos cabe escolher, segundo aquilo que somos, sobretudo se-
vibrações, das quais se ressente, mesmo que a sua atual insensibi- gundo aquilo que queremos e sabemos nos tornar. ―Diz-me co-
lidade não lhe permita percebê-las com clareza. mo lutas e por que lutas, e eu te direi quem és‖.
Não importa saber que nome o protagonista recebeu ao nas- Temos falado do destino. Mas há realmente um destino? E
cer. O leitor lhe dê um nome qualquer, o que mais lhe agrade. em que sentido? A vida é um encadeamento de causas e de efei-
O verdadeiro nome do homem não é dado pelos registros soci- tos que se pode perquirir, remontando muito aquém ao momento
ais, mas pelo seu tipo, pelo seu destino, pelas suas obras. O em que o indivíduo nasce. Assim os filhos são uma conseqüência
nosso personagem aqui se encontra como um soldado anônimo dos pais. Mas, ao nascimento, aquele fio comum que se transmite
da vida, no qual poderá encarnar-se quem o quiser. É um tipo a de geração a geração torna-se particular, próprio de cada um, e se
que só se poderá dar um nome ao fim do seu caminho terreno. chama ―eu‖. Destaca-se do ―eu‖ anterior, do qual muito depende,
Assim, ele se encontrou a viver nesta terra, imenso campo e conserva-se distinto dos eus sucessivos, nos quais, aliás, conti-
de exploração, qual força progressiva num mar de forças em nua e quase sobrevive. Ora, naquele ―eu‖ que é estritamente nos-
ação. Em torno dele vibraram efeitos de próximas e remotíssi- so, a parte que é conseqüência do passado, isto é, a constituição
mas causas, de que não tinha conhecimento. Para esse recém- fundamental do germe do qual deriva o tipo de personalidade, já
nato, o mundo apareceu como trevas, em que a centelha espiri- está, então, fora do nosso livre-arbítrio. Para nós, ao menos, que
tual, concentrada no eu, deve, por si, aprender a ver. A infância o possuímos na forma já cristalizada, definida na entidade germe,
se lhe mostrava incerta e temerária, e cada hora, cada passo, ela é qualquer coisa já então solidificada num tipo. E, dessa for-
era uma conquista. Indagar, explorar, experimentar, é o seu de- ma, sem qualquer inquirição, o recebermos ao nascer. Não ire-
sejo e a sua tarefa. Ele aprende primeiro as grandes palavras da mos mais fundo, neste trabalho. Algumas mentes se perturbam
vida: ―mamãe‖, que é a gênese, ―eu‖, o centro da consciência; ao ouvirem falar de reencarnação, e não se tem o direito de per-
―quero‖, expansão e concentração no eu; ―por que‖, a grande turbá-las. Certas salutares ignorâncias serão respeitadas. Saluta-
pergunta a que nunca poderá dar a última resposta, mas que res porque a humanidade está ainda muito selvagem para ser pos-
contém a busca sem fim de Deus. Aprende a caminhar, porque, ta a par de certos conhecimentos. E quem os possui faz bem de
materialmente e moralmente, caminhará toda a vida. Mas sabe não divulgá-los, porque eles não podem e não devem ser conce-
chorar desde que veio à luz, porque a dor já o tomou em suas bidos senão por quem os mereceu, ou seja, por quem os conquis-
garras e não o largará mais. tou através da maturação. Sem isso, eles não podem ser compre-
Mal nasce, começa, para a criança, a se desenrolar um fio, endidos nem admitidos. Aqui se fala, portanto, simplesmente do
inicia-se a marcha que será batida, até à morte, pelo ritmo inexo- passado da hereditariedade fisiológica e psíquica, e esta não se
rável do tempo. Mas nem o fio se desenrola, nem a marcha pode negar, porque a ciência a toca com as mãos.
avança ao acaso. A consciência da criança é semente que se de- Há, indiscutivelmente, em nossa personalidade uma zona de
senvolve e se expande, mas é germe que traz em si todas as ca- determinismo. Ela se encontra no fundo do nosso destino: é o
racterísticas fundamentais da futura personalidade. As notas instintivo, indiscutível subconsciente, que às vezes se impõe à
centrais já estão dadas, e não se mudarão mais. Isso acontece nossa vontade, antes que a própria consciência desperte. Mas,
com todos os germes vegetais e animais. Vem depois a educa- sobre este fundo hereditário, filho do passado em todos os senti-
ção a que a criança é submetida, à qual ela se adapta ou reage, dos possíveis, eleva-se uma zona de livre-arbítrio, um campo de
segundo os casos. Intervêm depois as forças externas, as exigên- novas e livres construções, porque o ―eu‖ se forma e se reforma
cias dos outros seres, as imposições da convivência social, os sempre, sem jamais se deter, construindo-se especialmente atra-
freios morais do dever e da virtude, que se sobrepõem ao instin- vés de explorações e experiências que atravessamos neste ambi-
to. E o tipo originário, qual o construíra a sua história biológica, ente terreno. E é justamente para a sua construção, ao menos no
para se adaptar, mais ou menos, enfrenta todas as pressões; um que respeita ao tempo da vida humana, que nós a atravessamos.
pouco se transforma, um pouco aprende a mentir e a esconder o Por destino não devemos, portanto, entender um cego fata-
seu verdadeiro eu; algumas forças externas se dobram ante a sua lismo, um fato inexoravelmente imposto, mas um impulso ante-
vontade, por outras termina dobrado. Com o seu eu originário, rior, que pode ser corrigido e está em nós fazê-lo. Ao passado
com as qualidades boas e más, com os recursos e as deficiências, cristalizado podemos opor a força da nossa vontade presente,
ele deve saber chegar até ao fim, abrindo caminho num mar de que pode retificar a trajetória daquela massa, que não caminha
forças que o circundam e de todos os lados fazem pressão para somente pela inércia, mas também guiada pelo impulso da nos-
invadi-lo. Cada uma, à sua própria semelhança, lhe diz: ―eu‖ e sa atual, inteligente e livre vontade. Se isso implica uma zona
―quero‖, e não encontra a paz enquanto não se realiza a si mes- de relativa e transitória irresponsabilidade, que só o é no pre-
ma. Assim começa a vida, que é luta e, da maneira como está sente, porque o subconsciente é filho do passado, não viola, en-
biologicamente implantada em nosso planeta, não pode ser se- tretanto, a zona muito vasta de responsabilidade consciente do
12 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
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presente, sempre livre nas suas correções e criações . E, se de- haver alguma luz, porque um secreto e incoercível instinto lhe
vemos admitir, sob pena de nada compreender ou de acusarmos dizia que Deus é justo e bom e que o universo é obra de sabe-
de injustiça o Criador, um passado nosso, livre e desejado, doria, conscientemente guiada. Esboçavam-se, assim, os fun-
mesmo que ele hoje se apresente fixado em forma de determi- damentais motivos condutores de sua vida. Os germes se de-
nismo, está claro que, na realidade, a responsabilidade abarca senvolviam; ele amadurecia em silêncio.
todo o nosso destino. O destino humano, momento do eterno e A primeira sensação consciente de que se lembrava, ligava-se
necessário vir-a-ser, é, portanto, o desenrolar de uma luta entre ao terceiro ano de sua vida. Foi uma sensação indistinta, mas as-
determinismo e livre-arbítrio, entre o passado que quer resistir e sim mesmo tão impregnada de angústia sutil, que jamais pode
o presente que deve corrigi-lo. E a balança da justiça pende en- esquecê-la. Lembrava-se perfeitamente a princípio, ou seja, na
tre uma responsabilidade no presente, ligada a uma fatalidade, e sua psique, a recordação aparecera direta e imediata; depois, tor-
uma liberdade que, para vencer, deve, agora, quebrar a resistên- nara-se a recordação da recordação; depois, ainda, a recordação
cia do determinismo, que está no próprio destino. dessa última; e, assim, reevocada sucessivamente, a impressão
sobreviveu ao contínuo cancelamento das superfluidades da lem-
V. A PROCURA DE SI MESMO brança humana. Os psicólogos, sempre à caça de psicopatias,
prontos a confundir subnormal, anormal, e supranormal, apres-
Assim começou a desenrolar-se o fio da vida do nosso ho- sar-se-ão – talvez para satisfazerem àquele instinto fundamental
mem. Há tipos lineares, simples, evidentes, de consciência super- de luta, que leva o indivíduo a sobrepor-se aos outros, julgando e
ficial. A personalidade pode, então, revelar-se logo. Há indivíduo demolindo os tipos diferentes dele mesmo – a descobrir, também
que se manifesta mais facilmente inteligente, de mente brilhante, neste caso, algum sintoma neuropatológico. Porque o indivíduo,
e tudo exterioriza com rapidez, podendo logo ser apreciado e des- para ser são e normal, deve possuir uma psique simples, sem su-
frutar a sua posição no mundo. O centro da consciência, no nosso pérfluas e incompreensíveis complicações. De outra forma, será
homem, estava, pelo contrário, tão profundamente situado, que um anormal e, portanto, um fora da lei, que se poderá impune-
permaneceu, para ele mesmo, longo tempo escondido. Ele sentia mente aniquilar. Que maior satisfação na luta pela vida? O im-
qualquer coisa de imenso dentro de si, no seu passado, e uma tão pulso é tão instintivo e irresistível, que se torna quase um dever.
vasta complexidade no próprio eu, que levou muito tempo para E a lei da luta não lhes passará no subconsciente um terrível lo-
reencontrar-se, e não pôde fazê-lo senão lentamente, laboriosa- gro, de vez que é a própria luta que leva cada um a descobrir de-
mente, parecendo, enquanto isso, inepto, tímido, medíocre. A sua feitos no próximo para sobrepujá-lo? E os melhores não foram
consciência devia ser encontrada não apenas na superfície, mas sempre os gênios? E não será esta a íntima e inadvertida determi-
em profundidade. Não podia viver por imitação, nem aceitar ver- nante das teorias lombrosianas? E essa mania do patológico não
dades já confeccionadas para o uso prático. Não lhe bastava pau- será uma ofensa à natureza, que tudo equilibra e compensa cada
tar as ações de sua vida pelas simples idéias correntes ou pela deficiência, tornando tudo útil, até mesmo o que possa parecer
simples orientação dos instintos. Sentia a necessidade de penetrar patológico, e a tudo dando uma função para alguns dos seus fins?
a substância e de inteirar-se diretamente das razões da vida. Não Eis o fato. Nada exterior, todo subjetivo. O quadro da re-
sabia nem podia agir senão de maneira consciente. Não podia fa- cordação constitui-se de um aposento pobre, com um fogão em
zê-lo de outra forma. Tal era o determinismo do seu tipo. terra, baixo, de fogo extinto, junto a uma janela, por cujos vi-
A sua meninice foi exteriormente insignificante. Nada de dros sujos se filtra, com infinita desolação, a tétrica e pálida
notável, de particular, que a distinguisse das demais. Enquanto luz de um lento entardecer, triste como um pranto ao crepúscu-
sofria, suportava o ambiente, mas tudo observava. Poderia lo. O motivo repete-se, volta mais fortemente, mais tarde. Ha-
chamar-se a esse o período das explorações, anteposto ao da via ainda uma cozinha escura, à noite, uma luzinha a óleo e um
experiência. E, observando e registrando, preparava-se para jul- som desolado de sino distante. Que coisa contêm estes terrores
gar. Preparava os primeiros acordes das futuras sinfonias espiri- pueris, estas impressões vagas e, no entanto, profundas? De
tuais, estremecendo ao choque dos primeiros contatos do ambi- onde emergem elas, e como possuem tanta força para traçarem
ente terrestre. Sob a aparência de uma meninice insignificante, no espírito um sulco sobre o qual sempre retornam? Por que
de menino dócil, obediente, estudioso, ocultava o complexo depois, sempre, aquela sensação de aflita tristeza ao som de
trabalho de um eu que se cansava na procura de si mesmo. Se, um sino na tarde? Por que certas coisas, de preferência a ou-
exteriormente, aparentava uma personalidade comum, simples, tras, se fixam na personalidade de alguns tipos humanos e não
vulgar – aquela que os outros viam e continuariam a ver, quase mais se apagam, mas, pelo contrário, se reforçam com os
todos, durante a sua vida – ele sentia revelar-se vagamente no anos? São recordações? Que recordações? São, sem dúvida,
seu íntimo, e avidamente buscava, movido por um profundo atrações, repulsões, simpatias, amores, ódios. Por quê? Em vir-
instinto, uma segunda personalidade, com uma segunda vida, tude de que leis, desde o nascimento, se revelam estes motivos
tão mais vasta, bela e profunda, que lhe parecia quase não per- e ligações do espírito com as coisas? Por que a presciência, por
tencer à Terra. Com a sua percepção interior, sentia esse enig- que estas diversidades, se as almas são todas criadas ao nas-
ma e não o compreendia. Havia lá, no recôndito de si mesmo, cer? Ou há nelas um passado que torna à luz nesses momen-
outro mundo, um abismo que lhe parecia insondável, indecifrá- tos? Só os espíritos inertes e sonolentos podem viver sem sen-
vel. Tinha a vaga percepção de uma dor imensa e se perguntava tir uma ardente necessidade de compreender. E quem vibra
por quê. Sentia uma vaga sensação de uma terrível queda, se- num espírito como este não pode, absolutamente, reduzir-se a
melhante à de esplendente estrela que, precipitada da sua luz, tal suicídio espiritual, que desejariam os insensíveis impor a
caísse prisioneira da Terra, privada da imensa liberdade dos es- todos os que não são, como eles, natimortos do espírito.
paços, nas profundidades abissais de um oceano escuro e pavo- A substância do fato não era o lugar nem a hora, mas o re-
roso. Não percebia senão alguma coisa de relance, como num velar-se da nota dominante de uma vida. Cada vida é um moti-
súbito reencontro, como uma revelação. A vida aparecia-lhe, vo que se desenvolve. Ele é dado logo ao nascimento, inexora-
então, como terrificante experiência, que exigia uma coragem velmente, seja alegria ou tristeza, atividade ou preguiça, bonda-
heróica para superar, e que não obstante devia ser superada. Es- de ou maldade, inteligência ou estupidez, e assim por diante. A
tava diante de uma prova tremenda, além da qual, porém, devia coloração fundamental é dada e acompanhará o ser por toda a
vida. É ela a onda da alma, o tipo de vibração inerente à perso-
5
Para uma exata compreensão do subconsciente, ver Ascese Mística, nalidade, a constante emanação, o sabor indelével de todo o in-
do mesmo autor, Parte I, Cap. XIX e XX. (N. do A.) divíduo. Até mesmo as plantas o possuem e o revelam em toda
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 13
parte, com suas simpatias e antipatias, de tal forma que consta- de uma figura simples e humilde, que passava fazendo o bem.
tamos, às vezes, entre elas, inimizades tais que, se crescerem Irradiava tamanho esplendor espiritual, que todas as trevas se
próximas, se aniquilam mutuamente. dissolviam ante ela, todos os terrores se dissipavam, os ódios
Mais tarde, esse motivo muitas vezes repercutiu no espírito desapareciam e as dores eram consoladas. Era a figura de São
do menino, que se tornara adulto. Reapareceu, condensando-se Francisco. E, na sua vida, ele a seguiu em silêncio, além de As-
em diferentes quadros, porque a vida está sempre em movimen- sis, até Verna, a Greccio, sobre o Trasimento, e a tantas outras
to, embora repetindo, e, ao retornar, retoca e modifica os seus cidades menores, por toda a parte a que pudesse ir, beijando-lhe
motivos. Nas antigas cidades medievais da sua Úmbria, as pe- angustiadamente as santas pegadas. E em cada lugar se pergun-
dras antigas lhe contavam então histórias estranhas, macabras, tava: Foi aqui, foi ali, onde, quando? Assim amou Assis primei-
dilacerantes, como de pessoas queridas, assassinadas na estreita ramente, depois amou Gubbio, como à sua pequenina irmã
soleira de uma daquelas portas augustas, chamadas ―do morto‖. franciscana. Conheceu depois a Itália inteira, a Europa e as
Aquelas pedras se animavam e lhe falavam, como transmitindo Américas, mas nenhuma cidade encontrou a que pudesse amar
antigas vibrações, de fatos longínquos ali acontecidos, vibrações mais do que aquelas duas. São Damião, a Porciúncula, o túmulo
de que se haviam saturado e que então restituíam. Quando, nas de São Francisco em Assis, a Capela das Estigmatizações, em
tétricas noites hibernais, já homem, ele vagava pelas antigas ruas Verna, haviam sido os lugares de mais intensa e evidente sinto-
de Assis ou de Gubbio, as cidades do silêncio e do sonho, as ve- nia com o seu espírito, como outras tantas etapas da sua paixão.
lhas paredes lhe pareciam animar-se daquela vida profunda que Naqueles lugares, reencontrou o sentido mais profundo do seu
possuem as coisas mortas, que não obstante não podem morrer. destino, reencontrou engrandecida aquela primeira luz da sua
Ele interrogava as velhas paredes que tanto tinham vivido, entre infância, alcançou a visão daquela afirmação que ultrapassa a
as quais o homem por tão longo tempo havia passado, com as terrificante prova da vida, encontrou a força de se redimir, su-
suas lutas e as suas dores. Certas vielas tortuosas, em que gosta- perando os terrores do passado, conseqüências naturais de suas
va de vaguear, especialmente à luz incerta da tarde, provoca- grandes culpas e dos seus desvios. Eram forças por ele mesmo
vam-lhe às vezes estranha estupefação, como imprevista revela- desencadeadas em algum tempo e que agora se lançavam de-
ção. E ali ficava atento, de alma suspensa diante do grande mis- sesperadamente contra ele, para espedaçá-lo, a ele inexoravel-
tério do tempo, do mistério daquela inexorável e eterna palpita- mente ligadas pelo determinismo do seu destino.
ção, ali retida, não se sabe por que milagre, naquelas pedras. Havia cometido, por certo, uma queda, que agora, fatalmen-
Permanecia ali atento, espreitando a magia dessas fixações e te, reclamava justiça e expiação. Um dia foi a Versalhes, para
desses retornos, dessa sobrevivência de coisas longínquas, re- reconstruir dentro de si mesmo a torpe frivolidade do mundo de
nascendo aos fluxos para repetir, com uma estranha e profunda Luiz XV e aquela trágica hora de prostituição do poder e da ri-
música, a eterna identidade do drama humano. E o seu espírito queza, de que nasceram os horrores da Revolução Francesa. E,
escrutava, buscando a recôndita imagem do eterno através do ali chegando, de novo se perguntou se não os reconhecia. Quem
respiro dos séculos, a imagem gravada na alma daquelas cida- sabe? Ainda ali, por certo, alguma coisa o prendia, o atraia,
des. O seu espírito interrogava, procurando encontrar, na voz como um canto enganador de sereia, como os tentáculos visco-
das árvores, das rochas, do vento, na voz da terra e do céu, no sos de um polvo, molemente atraindo-o para o fundo de um
fundo da grande voz do silêncio, a voz de Deus. abismo em que se encontra a morte. Em Versalhes, conserva-se
Escutava à noite o zumbir da tempestade, ululando ao longo ainda no centro o quarto, com o leito e os móveis de Luís XIV,
das velhas paredes, como se arrastasse consigo uma fuga de es- ―Le Roi Soleil‖6, em tudo orientado pela grandeza solar.
píritos, sibilando antigas histórias de ódio e de vingança. E sen- Ele havia olhado o seu retrato, que se achava naquele quar-
tia que as trevas o miravam e lhe falavam. Interrogava-as e, co- to, feito de cera, com longos cabelos verdadeiros, expressivos, e
mo um rabdomante à procura de subterrâneas correntes de água, o olhara com antipatia. Detestava os soberbos, particularmente
vagava indeciso, parando entre as velhas casas. Foi aqui, foi lá, aquele soberbo. Mas havia tocado com interesse os quixotescos
onde, como? Não encontrava, não percebia nada claramente, não e frívolos gobelinos do quarto de Luiz XV, dirigira-se ao Grand
obstante ele estava ligado àquelas cidades por uma indecifrável Trianon, ao Petit Trianon, à Maison de la Reine, sobre o peque-
angustiada nostalgia de um grande afeto, tragicamente espeda- no lago; havia explorado os recessos do parque, procurando nos
çado. Quem sabe? Depois, nos seus escritos, descreveu e exaltou pequenos aposentos de Versalhes a figura de Maria Antonieta.
as suas úmbricas cidades do silêncio, que tanto havia amado. E Luiz XVI mal aparecia, grosseiro, apagado, insignificante. Mas
os habitantes atuais dessas cidades viram nisso uma exaltação as vibrações mais decisivas permaneciam e lhe falavam. Todo
natural das mesmas. Mas ele não via naquelas cidades o presen- um mundo de loucuras, frívolo e trágico. De Versalhes, ele o
te, e procurava outra coisa. Estabeleceu-se, assim, entre estas e o seguiu com o pensamento a Paris, às Tulheiras, para a trágica
seu espírito uma sintonização que se lhe tornou profundamente fuga de Varennes, ao Templo e, por fim, à guilhotina de Luiz
cara. Mais precisamente, conseguiu despertar em si a sensação Capeto e de Maria Antonieta. E o Delfim desaparecido. Eis o
dessa sintonização, que já se encontrava no seu íntimo, como período do terror, os cárceres regurgitantes de aristocratas con-
um instinto anterior, antes mesmo de qualquer percepção cons- denados. Eis Robespierre, elegante, o incorruptível, e Danton e
ciente. E, sobretudo nas tristes e obscuras tardes do sonolento Marat, devorados pela sua própria revolução. E tudo se afunda
outono, sob o amarelecer das folhas das grandes árvores amigas, no sangue. O terror da revolução era o seu próprio terror, e ao
ele procurava e conseguiu encontrar novamente os acordes da- rebuscar-lhe as causas nas imponentes salas de Versalhes, arre-
quela sintonização que provinha do passado, um passado que piava-se, como diante de uma sensação real.
ressuscitava e que sentia ser o seu próprio. Há, sem dúvida, em Ele se perguntava: que tenho eu com esse mundo, como as
algumas almas, imensos e terríveis mistérios. suas culpas podem ser as minhas, qual é o significado desta sin-
Mas nem tudo, no seu espírito, era trágica tristeza. Havia tonização, que me faz vibrar com os seus episódios, desta atra-
luz também, e quanta luz! Lembrava-se de haver sido tocado, ção que me prende, pois tudo isso eu sinto reviver em mim? Está
em criança, mais na vista interior do que nos olhos, certa tarde, ali, talvez, a causa da minha atual expiação, que por isso adquire
numa igreja, por uma luz amiga que fluía do alto, não sabia forma tão precisa e específica, a ponto de parecer a correção da-
como. Contou o fato, mas ninguém o compreendeu, e então se quelas culpas? Por que tal correspondência de sensações e de
calou. Mas nunca o esqueceu! Depois, nas suas úmbricas cida- posições? O fato de que a dor não golpeia ao acaso, mas insiste,
des do silêncio, sobrepondo-se ao terror das atrocidades medie-
6
vais, reencontrou, com a mesma angustiada nostalgia, o encanto ―O Rei Sol‖ (N. do T.)
14 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
quase com lógica e método, sobre certos pontos, que numa vida paralelos e correspondências entre hipóteses e experiências,
são quase sempre os mesmos, faz nascer a idéia de uma expia- descobrir uma explicação dos fatos presentes, dos seus próprios
ção específica. E é ainda justo que uma dor seja a correção de impulsos instintivos, das idéias e atitudes inatas, do desenvol-
determinados erros, erros próprios, e em proporção a eles, e não vimento da trajetória da sua vida, da natureza e significação do
dos erros de um místico e distante Adão, do qual tão pouco se seu destino, e encontrar, portanto, a direção a dar à própria ati-
sabe. Só assim, a vida é escola, é campo de provas, em que se vidade, para fazer da sua existência terrestre não uma vaga ten-
corrigem antecedentes; só assim se adquire o senso de completa tativa, mas um trabalho orgânico e consciente. E pôde precisar
justiça na dor, da sua utilidade específica e do seu funcionamen- o significado daquela sua íntima sensação de queda, daquele
to lógico. A dor tem assim uma explicação e uma justificação seu temperamento incomum, daquela sua inadaptabilidade ao
precisas, um significado mais convincente, e resulta, não só de ambiente humano, daquele seu senso tão doloroso da vida.
modo vago, mas também prático e exato, em nossa utilidade. O seu passado era, sem dúvida, extenso e rico de profundas
Ele satisfazia assim à sua necessidade de ver claro os por- experiências. Não podemos aqui aludir senão às mais típicas e
quês da sua vida e dos seus atos, para traçar a rota do seu desti- mais decisivas. Um conhecimento havia sido, pois, conquistado
no, porque este continha também os seus objetivos. Apenas e, embora ofuscado mais tarde pela queda, ainda restava, por-
uma coisa não compreendia: como podiam os seus semelhantes que aquilo que uma vez se conquistou não se pode mais perder.
viver sem sentir a necessidade de se orientarem, de precisar o Ainda quando a consciência humana, oprimida pelo cansaço de
significado específico da sua vida e o conteúdo a lhe dar? mil dores, houvesse naturalmente vacilado, havia nele um sub-
Era certo que percebia esta sintonização, instintiva e indiscu- consciente gigantesco, que nenhum assalto podia destruir.
tível, com ambientes históricos, contendo condições de vida que Mesmo marcado por mil fadigas, arrastado por um destino de
ele verificava estar revivendo, agora, de maneira inversa, contra- expiações cruciantes, inexoráveis e tenazes, até às portas da sua
posta, como uma compensação. Por que esta sintonização, esta alma, aquele passado estava escrito, indelevelmente, no seu
atração de simpatia justamente por aqueles ambientes e, como subconsciente, era seu, como inalienável produto do seu traba-
nunca, esta correspondência de posições contrárias? Não podia lho. Diante desses substratos da personalidade, a dor não pode
cientificamente negar, ―a priori‖, a possibilidade desta impregna- destruir, mas somente elevar, aperfeiçoando o indestrutível. Em
ção vibratória das coisas, nem a sua atual irradiação após a satu- tais casos, a dor, que aniquila e avilta os normais, ao contrário
ração no passado, nem a possibilidade de um hipersensitivo, co- exalta, eleva, embeleza; é instrumento de ressurreição.
mo ele, pesquisar essas correntes vibratórias, registrá-las e com Havia, entretanto, entre ele e aquela luz do seu passado, um
elas sintonizar-se, fosse por concordância ou dissonância, simpa- período de trevas humanas, de graves erros cometidos, pelos
tia ou antipatia, segundo a natureza das próprias ondas psíquicas. quais era responsável, que gravavam o seu espírito alado e o li-
As últimas descobertas científicas o induziam a admitir a possibi- gavam às tristes vicissitudes da dolorosa experiência terrestre.
lidade de estabelecer relações com ondas longínquas; a nova ci- O seu destino, portanto, enquanto revelava de forma evidente a
ência das vibrações o levava justamente a tais conclusões. função redentora da dor, continha também, de maneira superla-
Só quem vegeta sem sofrer pode ficar adormecido na igno- tiva, essa trágica alternativa de treva e de luz em que se desen-
rância e contentar-se com as simples explicações filosóficas so- volve a luta mais sangrenta da vida; seu, de maneira particular,
bre a dor. As belas teorias servem muito, mas para as dores era o grande drama do bem e do mal, que é o eixo do mundo. O
alheias. Quem sofre, porém, seriamente a sua própria dor não significado da sua atual experiência era, sem dúvida, em pri-
encontra a paz enquanto não lhe descobre pelo menos as cau- meiro lugar, o de expiação; dada a sua posição, assim estreita-
sas. Se, para outros, a sensação fundamental da vida pode ser mente individual, a sua vida era uma prova dolorosa para res-
de gozo e a posição normal de tranqüila inconsciência e de sarcimento de equilíbrios perturbados, para correção de experi-
inércia, para ele, cuja sensação da vida era de dor, a posição ências erradas, para atingir a assimilação de novas experiências,
normal não podia ser senão de atividade e de procura. Ele era, dirigidas agora em sentido oposto, difíceis de suportar, mas
portanto, um investigador nato. E queria resolver não só o pro- destinadas a construir na sua alma qualidades mais elevadas,
blema do conhecimento em sentido universal, mas sobretudo no que ainda lhe faltavam. A sua via não podia ser outra, senão a
sentido particular do seu próprio destino. da cruz. Em meio a tantos caminhos diversos, de tantos homens
À força de observar, de procurar sintonizações diversas, gui- diversos, este era o tipo do seu destino. Cada qual tem o seu,
ado por um senso especial e uma sensibilidade sempre mais re- assim como cada personalidade tem o seu tipo inconfundível.
finada, com o avançar da vida pela escola da dor, impulsionado Na vida social, os destinos se enredam em ações e reações, se
pela necessidade de escapar de uma existência que era prisão pa- chocam, se influenciam, se corrigem, mas não se confundem
ra o espírito, à força de experimentar, confrontar e meditar, con- nunca, e cada um permanece nu e só, diante de si mesmo.
seguiu estabelecer confrontos e, depois, relações de causalidade, Mas, além da cruz, esplendia a libertação; além da luta pe-
que assim lhe deram, ao menos por meio de hipóteses, uma pro- la redenção, surgia a ressurreição. Expiação pela dor era, por-
vável explicação do seu estado atual. Porque uma hipótese de tanto, a primeira palavra de ordem da sua vida no caminho da
trabalho era o mínimo necessário para poder trabalhar no desen- cruz, mas havia depois, também, outro aspecto. Mesmo su-
volvimento do seu destino. E seguiu aplicando esta hipótese, bindo pela via dolorosa de Cristo, haveria espaço para ele
porque ela correspondia àquela íntima convicção instintiva que prestar benefícios, em alguma parada, em algum descanso, em
está além de todo raciocínio e é a que mais persuade; aplicou-a algum afrouxamento das tenazes fatais, lhe restaria ainda uma
porque ela concordava com as leis que ele descobrira regerem o possibilidade de missão, para conceder aos outros, no inferno
funcionamento orgânico do universo, e isso harmonizava o seu terrestre, alguns reflexos da luz uma vez conseguida e que
espírito; enfim, porque era ela a única coisa que lhe dava uma permanecera inesquecível.
lógica explicação de tudo, permitindo-lhe satisfazer a sua neces- Este destino que narramos, vê-lo-emos desenvolver-se no
sidade de compreender e de agir com conhecimento e retidão. caminho do Calvário, sobre as pegadas de Cristo. Não se trata
Podia assim reconstruir um pouco da sua própria história e mais, agora, de simples sintonização, talvez pela memória, com
aprofundar o conhecimento de si mesmo. Bem poucos, cremos, ambientes medievais franciscanos, de um amor pelo santo da
sabem dar uma resposta à pergunta: quem sou eu? Para desco- bondade e da humanidade, que quis fazer a experiência integral
brir uma, tentou a grande aventura da exploração de si mesmo, do Evangelho, mas da convergência de todo um destino, como
conseguindo assim reencontrar alguns lineamentos da sua ver- prova de dor e como missão, para a figura de Cristo. Trata-se
dadeira, profunda, eterna personalidade. Conseguiu estabelecer de uma suprema experiência, toda tensa na realização vivida do
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 15
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pensamento, da bondade, da paixão de Cristo. Veremos, mais o sistema do ―do ut des‖ , em que se limitaram os seus trabalhos
adiante, o grave sentido destas palavras e a que tipo particular escolares: o mínimo para obter aprovação. Não pediu à escola
de experiência humana, orientada para o divino, a vida que rela- mais do que diploma, porque havia compreendido que a escola
tamos quis realizar ou, pelo menos, sonhou e procurou atingir. não podia dar mais do que isso, ao menos para ele. O esforço da
Veremos uma tentativa, direi quase desesperada em face do vida lhe parecia bem diverso daquele de fazer reviver as línguas
homem atual, de uma integral aplicação do Evangelho. E vere- mortas do latim e do grego! Passatempo de luxo, exatamente on-
mos a desforra do mundo: as resistências, as reações, as conde- de tudo é luta! O exercício da vida, na escola, ele o encontrou
nações, as falências e as traições, o escárnio de quantos quise- não nos ensinos, mas na convivência com os colegas. A escola,
rem fazer, no campo do espírito, qualquer coisa verdadeiramen- para ele, só era exercício graças à convivência, da qual os ensinos
te séria. Registraremos choques, incompreensões, anacronismo. nada mais eram que simples pretextos. Pois que toda convivência
Um dia, o encontro entre o nosso homem e o mundo ocorreu, e é escola. Entre os jovens forma-se uma classe social própria, toda
então já não foi mais possível retroceder. uma realidade de vida, bem diversa da que oficialmente se pre-
Mas Cristo esplendia naquele destino, no seu passado, no seu sume e proclama, independente e até mesmo contrária a dos
futuro. Como uma lembrança e como um pressentimento, o en- adultos, distinta e à parte. A classe dos jovens tem a sua gíria, as
volvia todo em luz, tanto que o breve espaço daquela vida de suas leis, a sua moral, o seu particular conceito de dever e de
treva dolorosa se fechava entre dois esplendores. Aquela luz es- honra. Nesse ambiente, verificam-se as primeiras experiências, as
tava antes da culpa e depois da expiação. Cristo era a sintoniza- primeiras tentativas e tiram-se as primeiras conclusões, mais tar-
ção mais palpitante daquela vida e sempre ressurgia diante da- de retomadas e retocadas. Mas tudo tem uma tão virginal sinceri-
quela alma, sempre com profunda emoção. Este era o sulco mais dade biológica, que parece, de fato, que o homem percorre de
fortemente traçado e que ali se tornara indelével. Parecia sempre novo, nos seus primeiros anos, o caminho evolutivo, a ascensão
àquele homem ver a grande e amada figura andar pelas terras da psicológica da espécie. O indivíduo faz, então, como que uma
Galiléia, às margens do lago de Tiberíades, de Belém a Nazaré, rápida repetição do seu passado biológico-psíquico, antes de se
a Jerusalém, da pobre manjedoura ao Getsêmane e ao Gólgota. preparar para continuá-lo através de novas experiências. Os jo-
E a seguiria como exemplo, em silêncio, pelos caminhos da vi- vens são ricos, exuberantes, como os primitivos. A humanidade
da, amando e sofrendo. Cristo era, para ele, antes do nascimento já foi, talvez, composta de adultos semelhantes a eles; a humani-
e depois da morte, a última síntese de todos os valores humanos. dade do futuro será, talvez, constituída de jovens psicologica-
mente amadurecidos como os nossos velhos.
VI. PRIMEIRAS ESCOLAS E Diferindo da maioria dos seus companheiros, procurava o
PRIMEIROS PROBLEMAS estudo sério e, sobretudo, livre; procurava um estudo superes-
colástico que lhe revelasse o porquê das coisas. Mas, na verda-
A descrição do desenvolvimento interior do personagem im- de, se o homem não possui este porquê, senão em fragmentos
pôs-se, por sua própria força íntima, neste escrito, antecipando a contraditórios, a escola não lho podia dar. O seu temperamento
dos fatos exteriores. E isso porque é naturalmente muito mais dócil e respeitoso, mas tenaz e irremovível, não lhe permitia sa-
importante e leva à compreensão destes, aos quais devemos dar, crificar a independência original da sua personalidade para se
entretanto, um rápido olhar, sobrepairando o secundário, tudo desdobrar sob o influxo dos formalismos escolásticos, prontos a
quanto, de material, não tinha sentido espiritual. Os fatos exteri- deformar o seu pensamento virgem e a esmagar o livre desen-
ores da vida não têm, freqüentemente, o significado substancial volvimento da sua mente. Foi bastante forte para resistir à esco-
das experiências interiores. Eles obedecem, no geral, somente a la, para não se submeter a ela, para não se enredar nas suas
uma causalidade mínima e próxima, de superfície, e o ser que só classificações, para rebelar-se e impor-se às suas constrições.
vive exteriormente sofre sem a compreender, sendo levado na Preferiu, a qualquer custo, ficar sempre ele mesmo, sem aceitar
deriva, sem liberdade nem conhecimento, sem domínio, para ninguém; melhor ser a planta selvagem do bosque do que não ser
acabar ligado ao determinismo do mundo físico. Mas isso não ser livre. Queria encontrar por si mesmo a solução dos proble-
impede que até mesmo os acontecimentos exteriores, às vezes, mas, sem mediadores. Detestava, assim, as interpretações já fei-
se liguem à substância interior e sejam a expressão de impulsos tas, confeccionadas para o uso das mentes estreitas. Dessa ma-
das forças do destino, que também, naquela experiência, neces- neira, ninguém na escola conseguiu enquadrá-lo, fechar o seu
sitam manifestar-se. Assim, interiormente animados e ilumina- pensamento em qualquer categoria preconcebida. Procurava por
dos, eles então revelam uma vontade convergente para determi- si mesmo, livre, por toda parte, avidamente empregando o úni-
nados pontos e assumem outro significado. co método então possível para ele: a tentativa. Procurava e lia
No caso do nosso protagonista, a juventude representou um por toda parte, nos livros e na vida. Em cem livros, encontrava
período de lenta e tranqüila preparação. As provas, devendo apenas um que pudesse levar a sério e que lhe dissesse alguma
ser graves, esperavam que ele se formasse; devendo ser ínti- coisa. Mas mesmo aquilo que o persuadisse não era para ele
mas e complexas, exigiam, como necessária premissa, uma uma aquisição passiva de conhecimentos, era antes um reen-
profunda maturação. Ninguém de fora suspeitava que germens contrar dentro de si de noções já adquiridas, um reconstruir na
se elaboravam naquela juventude, aparentemente tranqüila e sua consciência dos lineamentos de um conhecimento anterior.
insignificante. Aquele destino complexo, não podendo revelar- Era quase como se já soubesse, mas não recordasse, e pedia
se senão no homem maduro, aguardava, no seu lógico desen- ajuda aos livros para fazê-lo. Tomava os livros mais estranhos,
volvimento, que ele se apoderasse do sentido mais profundo da de todos os gêneros, procurando ligações inusitadas e relações
vida. Ele, enquanto isso, andava a procurá-lo. entre as coisas mais distantes, de naturezas opostas. A leitura
Assim passou a sua juventude, estudando na escola, como não lhe servia tanto para aprender o pensamento alheio, quanto
tantos. Vida cinzenta, uniforme. A escola, sendo convivência, foi como agente do qual nascia uma reação de pensamento, somen-
para ele um estudo de adaptação à vida humana. Observou tudo te no qual ele verdadeiramente lia. Com um senso próprio, ins-
que os professores exigiam dele, as condições que lhe propu- tintivo, de uma verdade sua, indagava, provava, reconhecia. Es-
nham para conceder-lhe a compensação procurada: passar nos cutava sempre, de dentro e de fora, as infinitas vozes do mundo
exames. E deu à escola aquilo que ela pedia, como se dá a Deus o e do seu próprio ser, para saber, para reencontrar, reconstruir,
que é de Deus e a César o que é de César. Ali mesmo, cultivando sacando daquele imenso mistério que estava em si mesmo.
o espírito, queria pensar em si. Dominado, portanto, o mecanis-
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mo da escola, obteve as várias aprovações, aplicando nesse caso Dou para que dês. (N. do T.)
16 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
Uma vez, no liceu, ouviu o professor de ciências naturais versos sobrepostos, dois planos de valores, um mais elevado,
pronunciar (estávamos nos princípios do século XX) a pala- melhor, mas fictício, estendido como um nobre manto de apa-
vra ―evolução‖. Foi um átimo, um relâmpago, um susto. De- rências sobre outro mais baixo, pior, mas real. No de cima, pos-
pois, trevas. Os rapazes de sua idade sofriam emoções bem tas bem em evidência, quase com pompa, em franco exibicio-
diferentes. Que idéia havia passado? Ainda não compreendia nismo, estavam as verdades reconhecidas do bem, do dever, da
bem. Mas aquela idéia teria de ser a espinha dorsal do seu virtude, do sacrifício, altamente proclamadas e professadas, um
sistema e do seu destino. plano de idéias esplendente de grandeza, generosas e sonoras.
Entretanto, já desde criança, começara a explorar as possibi- No de baixo, pelo contrário, estava a necessidade férrea e desa-
lidades sensoriais e perceptivas do seu organismo físico, como piedada: ao invés da generosidade, a conveniência; ao invés do
um condutor que experimentava a máquina para a viagem e a ob- altruísmo, o egoísmo; ao invés da sinceridade, a mentira; ao in-
serva como simples instrumento de ação, sentindo-se bem distin- vés da justiça, a força. Um mundo regido por moral diversa e
to dela. Tomava-o um grande espanto ante os limites misteriosos oposta, mas, ainda assim, tão orgânico e lógico no seu nível,
do espaço e do tempo. Multiplicava-os, decompunha-os, ultra- que se sentia autorizado a julgar o mundo mais alto como coisa
passava-os, sem conseguir resolvê-los. Havia nele como que ou- de loucos, a ponto de nem sequer sonhar em tomá-lo a sério.
tra concepção e sensação fundamental do ser, que se cansava ao No de baixo havia luta surda de rivalidades sem trégua, de trai-
adaptar-se ao ambiente terrestre e às suas limitações. O seu ver- çoeiras agressões, uma realidade falsa e feroz, que dava, porém,
dadeiro elemento conceptual não era o limite, mas a eternidade o seu rendimento imediato e concreto. Se as aparências eram
do tempo e o infinito do espaço. Agitava-se ainda na sua alma douradas, por baixo havia uma realidade indiscutivelmente in-
um anseio de incontida liberdade, e a existência num corpo físico fernal, para ele inaceitável e insuportável. Se as formas eram as
lhe parecia insuportável prisão. E passou a vida procurando eva- de uma civilização cortês e refinada, a substância era a lei feroz
dir-se, superar todos os limites da sua constituição humana, para do mais forte. Estes eram os fatos, estes os princípios em que o
reencontrar um mundo que sentia realmente seu e que, no entan- homem, com as suas ações, ao contrário de tudo quanto dizia,
to, agora lhe escapava, não sabia para onde, além das suas possi- demonstrava acreditar. Por que esta estrutura dúplice e contra-
bilidades conceituais e sensoriais, além daqueles torturantes limi- ditória? Por que este escandalizar-se em público justamente da-
tes, inexoravelmente postos na sua vida atual: espaço e tempo. quilo em que mais firmemente se acreditava em particular, por
Mas devia fazer ainda outro esforço: compreender o mecanismo que estes fingimentos de uma vida fictícia, esta mistificação?
psicológico, motor oculto dos atos dos seus semelhantes; com- Por que, se o homem é um vil, não tem a coragem de aparecer
preender como podiam funcionar e como funcionavam aquele como é? O problema era certamente complexo.
motor e aqueles atos; e devia, por fim, saber adaptar-se a todas as Sondou assim, a fundo, as expressões deste dúplice rosto hu-
normas sociais que deles derivavam para todos, e também para mano, um visível, o outro oculto; perscrutou o verdadeiro signifi-
ele. Encontrou-se, assim, diante de uma dupla tarefa: redescobrir- cado da palavra dita não para exprimir, mas para ocultar e disfar-
se a si mesmo e compreender o que eram, na verdade, os seus çar o pensamento, dos atos praticados com objetivos aparentes,
semelhantes, se o que aparentavam ou coisa diversa. diversos dos reais. Não que tudo fosse absolutamente assim. Ha-
Esta última foi a sua mais fatigante pesquisa juvenil. Pois via também os representantes do plano mais alto, daquela outra
que, naturalmente sincero, havia ingenuamente acreditado na moral diferente, mas eram tão poucos e os representantes do mais
sinceridade dos homens, entendendo que a forma exterior cor- baixo eram tantos, que quase determinavam a regra. Sempre este
respondesse à realidade. A princípio acreditara que aquele res- jogo de contínuas inversões, uma incoerência, um contradizer-se
peitável senhor, tão sério, reverenciado e carregado de títulos, em tudo, entre a realidade e a aparência. Isso tornava o jogo da
fosse um cavalheiro. Acreditara que aquela senhora tão piedosa vida muito mais difícil. Perguntava-se qual seria a lógica conve-
e gentil fosse de bom gênio e conduta exemplar; que aquele niência de tão inúteis complicações, por que razão todos teriam
santo homem, tão religioso, fosse de fato crente, e não pratica- que suportar tão inútil peso, por que essa fadiga de caminhar em
mente ateu. Acreditara que aos nomes correspondessem as terreno que tornava tudo falso, tão voluntariamente semeado de
coisas e que as várias atividades humanas fossem praticadas pa- traições. E perguntava-se ainda que coerência havia, depois dis-
ra o fim que as qualificava. Acreditara que o médico curasse, so, na predicação da bondade evangélica, se de fato não existia
que o advogado defendesse, o administrador administrasse, o em baixo mais do que rivalidade impiedosa. E dizia a si mesmo:
filósofo soubesse, a lei protegesse, a escola ensinasse, a religião será o ambiente humano tão tristemente assim constituído, que o
educasse, a ciência concluísse, o crente acreditasse, o altruísta ideal não pode se mostrar senão na forma de uma impotência a
pensasse também nos outros. Uma triste realidade lhe apareceu, persegui-lo? É condenação sem esperanças esta trágica luta pela
apenas se arriscou a olhar para trás dos cenários. Foi uma libertação e pela redenção? Se o espírito humano havia sabido
amarga desilusão. Daquele dia em diante, desconfiou do ho- atingir a concepção de certos princípios, por que não os aplicava,
mem e o desprezou. Devia andar muito ainda, por vias não hu- e se não os aplicava, por que tornava assim tão difícil fazê-lo?
manas, para chegar, não obstante tudo, a amá-lo. Certo, o sistema humano era realmente aquele, e ele lhe
Compreendeu então que a sua sinceridade era tomada por aquilatava a inegável estrutura. Cada jogo tem as suas regras.
ingenuidade; a sua bondade, por tolice; a sua paciência, por Ele se havia ligado àquele ao nascer e devia compreendê-lo e
fraqueza. Aprendeu, assim, na verdadeira escola da vida, uma sofrê-lo. Assim era a vida, e assim devia aceitá-la. Mas se ad-
linguagem muito diversa da sua e que, contudo, ele devia fa- mirava de que a esse mecanismo o seu instinto não aderisse tão
lar, porque era a linguagem do mundo em que tinha de viver; espontaneamente como o dos outros e perguntava-se o porquê
aprendeu assim, duramente, a verdadeira ciência que não es- dessa diversidade. Não se deveria, acaso, culpar o homem? Era
tava nos livros. maldade ou, antes, fatalidade? Quem havia estabelecido essas
Vencida a primeira surpresa, da descoberta de uma realida- leis? Talvez o homem não fizesse mais do que seguir a sua,
de tão diversa, nos fatos, da que ele sentia nos espíritos, a ingê- que o obrigava a exigir da vida o rendimento concreto; talvez
nua credulidade caiu, e atirou-se seriamente ao estudo da ver- ele apenas sofresse uma necessidade inferior, feita de duras
dadeira natureza humana. Encontrada a chave do sistema, quis provas, sem possíveis margens para generosos ideais. Talvez o
aprofundar pela observação o conhecimento, para compreender homem fosse mais miserável do que mau, merecendo mais pi-
a fundo a técnica deste método humano de luta, feito de força e edade do que condenação.
de astúcia, ao invés de justiça, bondade e sinceridade, como ha- Coexistiam, portanto, sobre a Terra duas fases contíguas,
via acreditado. Surgiam-lhe então como que dois mundos di- mas muito diversas, da mesma lei de evolução, dois níveis de
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 17
vida, duas possibilidades em conflito, disputando-se o campo da A absurdidade de tantos conceitos no campo jurídico, soci-
atividade humana. E, segundo o próprio grau de sensibilidade, o al, econômico, foi a única convicção que lhe restou daqueles
homem oscilava de um plano a outro; o primeiro, um resíduo da estudos. Não o convenceu a base hedonística das ciências eco-
passada animalidade, o segundo, uma antecipação da perfeição a nômicas. Sorriu da ingênua pretensão de se poder construir
atingir. E todo o gritante, inconciliável contraste, derivava de conceitualmente sobre os desagregadores princípios do egoís-
encontrar-se ele, espontaneamente, por sua natureza, equilibrado mo, e rebelou-se contra todo o sistema. Não o convenceu a
num plano, enquanto o tipo humano normal se encontrava equi- concepção do jus8 romano. Para ele, entre a força e a justiça ha-
librado em outro. Questão de grau na evolução biológica. E se via um abismo. Tratava-se de dois contrários, inconciliavel-
ele se sentia mal, a culpa era sua, que era diferente dos demais, mente adversos, feitos para se elidirem, e não para se fundirem.
os que fazem a lei e, ao menos na Terra, têm razão. Aquelas Não se podia chegar ao verdadeiro direito através da codifica-
formas de vida do homem normal, que lhe pareciam infernais e ção das conseqüências da luta. Segundo pensava, não se podia
insuportáveis, deviam, entretanto, estar proporcionadas à igno- chegar à justiça partindo desse indelével pecado original que é
rância, involução e insensibilidade do homem comum, se este ali a força; nenhum aperfeiçoamento ou sapiência aparente podia
se encontrava tão à vontade. Tudo lhe dizia que ele era diferente, corrigir este insanável erro e vício de substância, podia conse-
talvez superior. Conforto teórico, real condenação, ou seja, vida guir transportar isso que pertence a um mundo inferior, onde
de luta e de dor. O desprezado, o exilado, aquele que estava er- manda o mais forte, até às alturas de um mundo superior, onde
rado neste mundo era ele, e contra a exceção reagiam as imedia- somente o mais justo deve reinar. Rebelava-se contra aquela
tas sanções da lei biológica, que tende ao equilíbrio. Na sua sin- axiomática aceitação, que se tornara reconhecimento e legaliza-
ceridade, era um desarmado e uma bela presa ao mesmo tempo. ção do fato originário da força e que ele condenava completa-
A lei férrea da luta começou a envolvê-lo, a experimentá-lo, pa- mente, como expressão de um plano biológico inferior, o qual
ra demoli-lo; tomou-o de assalto, para demonstrar-lhe, através jamais poderia considerar como seu. Voltava aqui o contraste
dos fatos, que quem estava errado era ele, para lhe fazer pagar entre as leis de dois diferentes planos de existência. Ele não po-
caro a sua pretensa superioridade e, com ela, a sua tentativa de dia tomar a sério senão a justiça integral do Evangelho, o códi-
independência e de evasão. A vida queria fazer-lhe saber que a go substancial, escrito apenas na alma, sem outros juizes além
superioridade consiste em coisa bem diversa, e o constrangia à de Deus. Compreendia, entretanto, o esforço humano e aprecia-
prova. Era congênito o antagonismo, e os primeiros e ásperos va então a concepção romana, destinada a civilizar a força, im-
choques já se prenunciavam. O embate a fundo se fazia inevitá- pondo-lhe ordem, equilibrando os seus impulsos contraditórios
vel. E o grande duelo começou, sutil, em surdina, indiretamente, e em luta. Sentia que, mesmo ali, se podia ser gênio. Compre-
sem aparecer, para tornar-se cada vez mais grave. A luta pegara endeu, mais tarde, que a força e a justiça não eram mais do que
logo o nosso homem pela garganta. O desafio já estava implici- os extremos da mesma lei em evolução e admirou no homem o
tamente lançado, e devia aumentar sempre, em encontros que se esforço desta fatigante transformação. O jus, a lei, é ordem, e
tornariam de vida e de morte. Mas ele era ainda menino, e então toda criação de ordem é um passo do homem para Deus. Mas
aquele era o lento caminho humano, que chega à justiça através
as coisas ainda não se fazem a sério.
da disciplina, da organização, da codificação; era a longa estra-
da, embora necessária para o homem, da constrição exterior,
VII. ESTUDOS UNIVERSITÁRIOS E
enquanto ele preferia as vias interiores da convicção, simples,
EXPLORAÇÕES INTERIORES
mas substanciais, preferia chegar direta e prontamente ao centro
da consciência, no campo das motivações, à raiz dos atos hu-
Chegou assim à Universidade. Pôde observar o que é a vi-
manos. Questão de maturidade e de temperamento. Ao contrário
da numa grande cidade e aprendeu a detestá-la. Continuou
dos seus semelhantes, voltado antes para o divino do que para o
preferindo, sempre, ao artifício do homem, a simples, boa e
humano, ele sentia mais substância na cruz do perseguido e
nutriente potência da natureza. A cultura superior não o per-
humilde Galileu, do que na águia do domínio romano. Vagando
suadiu. Não a estudou senão para combatê-la, cada vez mais por Roma, onde se encontrava estudando, sentia que as cata-
decidido a se conservar ele mesmo. Observava-lhe os métodos cumbas subterrâneas desafiavam o Coliseu e, em certo sentido,
e a aplicava mecanicamente sobre o seu espírito, como o ver- o haviam vencido. Acrescente-se que, na escola, na imprensa,
niz que os tempos exigiam, enquanto os germens da sua per- na conduta humana, ele via então dominar uma idéia de Estado
sonalidade amadureciam. Praticava uma espécie de mimetis- tão convencional e retórica (estava-se em pleno parlamentaris-
mo, aceitando os seus conceitos para a vida cotidiana, para mo), que não podia, na sua sinceridade, admirar muito. Depois,
melhor ocultar o seu eu, que desejava desenvolver-se a sós, os tempos mudaram, dando razão à sua repugnância. Muitas
independentemente, em profundidade. As possibilidades de concepções jurídicas, políticas e sociais do seu tempo foram
qualquer compreensão iam sendo sucessivamente afastadas, e depois corrigidas, no sentido que o seu instinto lhe indicava.
ele só pedia para não ser perturbado. Ele também, amadurecendo nestes aspectos menores, reviu e
Foi levado pelos seus familiares à Faculdade de Direito. corrigiu os seus valores, compreendendo melhor a função da
Empregou os primeiros dois anos para compreender o meca- Águia9, mas de uma Águia que não iria além das suas funções
nismo psicológico daquela nova forma de estudo, para adquirir específicas na obra humana e terrena. O seu instinto, a sua fun-
agilidade de pensamento e de palavra, e o sentido de orienta- ção e missão estavam e permaneciam no campo da Cruz, mas
ção daquele campo cultural. Nesse tempo, aproveitando-se da também esta não iria além da sua função específica, referente ao
liberdade de iniciativa que os novos estudos lhe permitiam, campo divino do espírito. Águia e Cruz, Estado e Igreja, foram
aprendeu várias línguas modernas e completou os seus estudos para ele os expoentes, as expressões concretas das duas leis,
de piano. Com as línguas, aprendeu a psicologia dos povos; humana e sobre-humana, em que vira o mundo dividido. Consi-
com a música, assimilou o espírito dos grandes músicos. Fre- derada cada lei no seu plano, compreendeu-as e respeitou-as na
qüentou muito pouco a Universidade. Compreendido o meca- justa posição que lhes cabia. Mas a sua congênita inconciliabili-
nismo dos exames, esforçou-se para vencê-los nos dois anos dade com o ambiente humano não lhe permitia estar plenamente
que lhe restavam. Distinguiu-se apenas na defesa da tese, por- presente e ativo senão nos terrenos tendentes a superá-lo. Por
que somente então teve liberdade de escolher o tema. Nos instinto, era levado antes a procurar evadir-se do que mergulhar
exames, não havia tirado mais do que um magro 18, por não
ter podido aplicar-lhes o seu sistema rebelde, dirigido em cheio 8
Direito (N. do T.)
9
contra as teorias dos professores. Roma. (N. do T.)
18 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
nele para o trabalho. O seu terreno foi, portanto, não a vida polí- formismo. Mas tudo isso não importa. A ciência muda continu-
tica, mas a aplicação do Evangelho. Não expomos aqui princí- amente, e não sabemos o que nos poderá dizer amanhã. Ainda
pios universais e absolutos, mas somente os relacionados com a que a evolução, na ciência de hoje, não conserve o sentido deri-
personalidade do nosso personagem, narrando a sua história. vativo como o entendiam os monogenistas, aquela idéia central
Assim lhe pareciam as coisas na sua posição evolutiva. De ou- de uma ascensão evolutiva de todos os seres, rumo a formas de
tras posições, a visão pode, sem dúvida, ser muito diversa. vida orgânica, psíquica e espiritual sempre mais altas; aquele
Perambulou através do direito romano, do direito canônico e conceito justo, lógico e poderoso, que tanto havia impressiona-
da história do direito, interpretando-os a seu modo, aceitando do o nosso protagonista, permanecia nos fatos e na sua experi-
apenas o que queria, disposto a fazê-los, sobretudo, instrumento ência, e até mesmo na ciência, que, progredindo através de su-
de uma fantástica reconstrução interior de certos ambientes his- cessivas teorias, também o prova e não pode negá-lo. Daquele
tóricos, vistos também em seus aspectos jurídico e político. As conceito sentia toda a inegável verdade que está na substância
disciplinas econômicas e sociais o atraíram como qualquer coisa das próprias religiões, e o sentia com tanta sinceridade e impar-
menos intencional e artificiosa do que as jurídicas e mais biolo- cialidade, que não participava do sentido antirreligioso e mate-
gicamente verdadeiras. Interessou-lhe a pesquisa estatística das rialista que, por simples reação do momento, o princípio evolu-
leis do fenômeno social, estudo que o adestrou para a pesquisa cionista havia tomado. Concebeu-o, pelo contrário, como parte
das leis de todos os fenômenos em todos os campos. Comoveu- da própria ascensão espiritual, não como negação, ―mas como
se com a dispersão de tantos italianos pelo mundo, com uma afirmação da evolução das almas para Deus‖, concebeu-o vivo
emigração ainda sem orientação, nem proteção. Amava a sua e operante, como nas religiões.
Itália, mas a queria diferente, mais unida, mais forte, mais cons- Paralelamente, pervagava pela literatura estrangeira. Havia
ciente. Enfim, o próprio fato de discutir e debater estas questões já, no liceu, conversado Dante; agora lia, em alemão, O Fausto,
demonstrava quanto as tomava a sério, quanto se distanciava do de Goethe, entusiasmado. Certas cenas de Walpurgisnacht im-
ceticismo e indiferentismo dominante, quanto sofria por não en- pressionaram-no profundamente. Repassava pela sua mente,
contrar nada de sério, que lhe merecesse fé, e com que ansiedade como recordação, a visão de uma Alemanha medieval, nebulo-
lhe andava à procura. Nunca seguiu os seus estudos universitá- sa, densa de sombras, com as cidades antigas como Nuremberg,
rios como meio para conquistas econômicas, como preparação os céus cinzentos, amortecidas luzes invernais pelas ruelas es-
de negócios, como armas refinadas da luta pela vida. Outro teria curas, entre os telhados de cumeeira afilada. Havia encontrado
podido considerar a riqueza como supremo ideal e tudo fazer um pouco desse ambiente nas torres e naves internas de Notre
por esse objetivo supremo. Acreditava que nesse sentido se po- Dame, em Paris, como se o Quasímodo de Victor Hugo ainda
dia fazer alguma coisa, mas não tudo. Mesmo porque os seus vagasse por ali, ao cair da noite. O norte germânico tinha, para
objetivos eram diversos dos da maioria. Antes do problema eco- ele, um fascínio pleno de misteriosa atração. Sobretudo as anti-
nômico, atormentava-o o problema do conhecimento. Outra era gas e grandes catedrais góticas, apareciam-lhe numa luz de so-
a sua fome, que não a dos demais. Outros deviam ser os seus es- nho. Não havia podido escrever à mão, em alemão, senão usan-
forços e as suas conquistas, que se dirigiam agora para rumos do as antigas letras góticas. Atração, instinto? Por quê? Logo
incomuns. Traçava já, inconscientemente, o seu programa. Os que diplomado, demorou-se alguns meses nos Estados Unidos
seus inimigos teriam de ser as suas últimas ligações com as leis da América, que percorreu até à Califórnia, visitando todas as
biológicas do plano humano, que ele teria de superar. Mas preci- suas belezas naturais, realmente grandiosas. Outra coisa não
sava, antes, descobrir o entrosamento orgânico desse plano com viu. Achou as cidades monótonas; a linguagem, os costumes, a
o universo. E o problema era imenso. Entretanto, naquele perío- maneira de vestir, tudo estandardizado, de um oceano a outro.
do universitário, se não havia descoberto a face da criação, havia Um mundo rico de recursos, de espaço, de dólares. Mas do
pelo menos visto a face cultural do homem. Acreditara, a princí- ponto de vista intelectual, um mundo pueril diante da Europa.
pio, ter encontrado a verdade, quando não descobrira senão uma O Oriente asiático, da Palestina ao Egito e às Índias, ele o
das suas fases. Partiu desiludido, para procurar em outra parte. procurou nos livros, o reconstruiu por todos os meios de docu-
Ele teria podido, talvez, seguir com muito mais convicção mentação fotográfica. E, tratando-se de ambientes históricos, de
as disciplinas científicas da Faculdade de Medicina. A ciência civilizações mortas, pôde reencontrá-las com suficiente aproxi-
não pode fazer calar a grande e sábia voz da natureza. Este é o mação e satisfação, sem visitar os locais. Muitas vezes, a crua
material que ela maneja, sem poder suprimir o grande pensa- realidade do presente, tão diversa do passado histórico, torna-se
mento que a agita, nem impedir que surja a cada passo, no seu obstáculo ao invés de ajuda a essas reconstruções, às quais se
caminho, a voz sapiente das leis da vida. Mas devia tornar-se chega melhor pelos caminhos interiores do espírito. Atraía-o so-
advogado. Naquele tempo, a autoridade paterna era quem esco- bretudo o antigo Egito, o grande templo de Karnak, com suas
lhia. Temperamento sincero, porém tinha tal horror pelas cavi- imensas colunas, a sabedoria oculta dos seus sacerdotes, o mis-
lações, pelo ceticismo interior e pela aceitação das verdades re- tério dos seus ritos, dos seus mágicos poderes. Atraía-o, na
lativas e elásticas, que, como pôde, se pôs a salvo. mesma direção de pensamento, a antiga Índia, mais distante no
Diplomado, atirou-se à vida, e começou para ele o verdadei- tempo, mais velada na lembrança, mais misteriosa e profunda na
ro estudo, aquele da luta e da experiência. Outro mestre o espe- sua consciência. O seu sonho retornava ao longo das preguiço-
rava para lhe ensinar coisas muito mais profundas: a dor; sobre sas e lamacentas águas do Ganges, da foz às ardentes escadarias
livros bem diversos devia estudar e aprender: as tribulações. de Benares, retomava o Brahmaputra até aos confins do Tibete
Entretanto continuava a indagar no campo da ciência. Mas a ci- misterioso, ao coração do Himalaia. Que havia na cidade sagra-
ência não lhe dava as últimas conclusões, que procurava. Admi- da de Lhasa? Mas onde a sua alma vibrava com violência era na
rava Darwin e Haeckel. Então, lá por 1900, eles estavam em recordação da Palestina ao tempo de Cristo. Era esta, para ele,
voga. Depois, foram em parte esquecidos, em parte corrigidos. uma visão de extrema doçura e profundidade espiritual. Apare-
A teoria de Darwin não teve da paleontologia a confirmação cia-lhe a terra bendita da Galiléia, como uma música, como um
esperada, por causa do ―missing link‖ (o elo perdido) entre es- vasto fundo orquestral de conceitos, sobre o qual triunfava o
pécies contíguas e afins, tanto que hoje se encontra modificada. Cristo, como um arpejo de harmonias cósmicas. Sorria-lhe entre
Justamente em 1900, De Vries redescobria a lei de Mendel, doces ondulações o lago Tiberíades, profundo e tranqüilo como
acrescentando-lhe a teoria muito sua das mutações, da qual o sorriso de um anjo. Parecia-lhe sentir as figuras do Evangelho
procede a hologênese do nosso De Rosa. E, a partir do Con- movimentarem-se nesse ambiente, como outros tantos motivos
gresso de Budapeste, os zoólogos declararam guerra ao trans- musicais, entrelaçando-se entre si, e com grande motivo de fun-
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 19
do, com o supremo motivo de Cristo, numa gigantesca sinfonia não sabiam nada. Quem lhe haveria, pois, de dar uma resposta? E
espiritual, dulcíssima e solene. Por essa terra bendita parecia-lhe que havia feito de útil até então o homem, e como teria podido
ver andar a figura do grande Mestre e dos seus discípulos, e ou- dirigir-se, se não tinha sequer compreendido o porquê da vida?
via-lhe a voz e o pensamento ainda a ecoar-lhe no coração, e Só mais tarde compreendeu que o sistema corrente, de ação
sentia o seu olhar acalmar e resolver no seu íntimo todas as do- dirigida somente pelo instinto, e não por amplo conhecimento do
res, todas as ânsias, todos os problemas da vida. Interrogava os universo e profunda consciência da própria função dentro deste,
Evangelhos, o grande livro da boa-nova, e, relendo-os, não se era o sistema prático e econômico da natureza. Para ser mais fa-
cansava nunca de percorrê-los, para sempre melhor compreen- cilmente prolífica, dado que lhe interessa antes de tudo a vida, a
der e sentir o caminho de Cristo, da manjedoura à cruz. natureza simplifica as construções, fazendo-as em série, movidas
Ele continuava assim a exploração do mundo exterior, e, por diretrizes simples, inconscientes e instintivas, entretanto sufi-
com isso, lentamente se definia, no íntimo, a visão dos linea- cientes para uma vida precária, feita muito mais de lutas que de
mentos do seu mundo interior, onde se encontrava o nó central pensamento, qual a vida humana atual. Assim, se o indivíduo
do seu destino. Mas quanto caminho a percorrer, que exaustiva normal leva existência gregária, poupa com isso muita energia. A
série de experiências! Muitos germens já haviam despertado; vá- natureza, que é sobretudo econômica, evita o dispêndio de esfor-
rias forças estavam em movimento naquele destino e agiam, ços supérfluos; não dotou a massa de certas diretrizes mais com-
avançando e amadurecendo. As pequenas ocorrências superfici- plexas, de centros orientadores de maior amplitude, que hoje, na
ais, filhas do determinismo da vida física, não tinham, para ele, maior parte dos casos, tornar-se-iam desproporcionais ante uma
nenhum sentido profundo no desenvolvimento lógico e orgânico vida humana ainda tão primitiva, feroz e aleatória.
do destino. São as pedras da grande estrada, que, não obstante, O nosso protagonista queria compreender e começou a in-
ensinam a caminhar; são tropeços, paradas, pequenas resistên- terrogar ciência. Esta, porém, partia da dúvida, e essa premissa
cias, que, no entanto, fazem pensar e compreender; são os ata- de incerteza demolidora inquinava e destruía tudo já antes de
lhos laterais, que, nos induzindo ao erro na tentativa de digres- começar. De fato, presa ao seu objetivismo, aquela ciência não
sões, ensinam a corrigir. É a maturação secundária, menor, co- concluía; presa à experimentação, permanecia sempre no relati-
mo um refinamento de pormenores, que, como pode, vai preen- vo, sem saber atingir os princípios que ele procurava. Era uma
chendo os interstícios do grande trabalho central. Quando faltam ciência materialista, que negava o mundo espiritual em que ele
o tempo e as forças, deixa-se levar à deriva por ela, que perma- vivia sobretudo, e era ainda uma ciência catedrática, mais pre-
nece incompleta, sem prejuízo. Não tem importância o relato sunçosa e dogmática do que os dogmas religiosos que comba-
destas pequenas vicissitudes, e passamos sobre elas. Seguimos, tia! Interrogava a fé. Libertava-se assim do longo caminho da
ao invés, as vias mestras do desenvolvimento daquela vida. razão, para atirar-se às grandes vias da intuição. Abriam-se-lhes
as portas do mundo imenso do espírito. Mas as religiões não lhe
VIII. OS TRÊS CAMINHOS DA VIDA davam uma resposta completa, precisa, persuasiva, nem mesmo
para os elementares ―porquês‖. Não chegavam, como ele neces-
Liberto do esforço dos estudos oficiais, conseguindo com sitava, até ao fundo das questões, e muitas coisas deixavam in-
eles o resultado prático do diploma, encontrou-se diante de três definidas, sem solução, na sombra. Desagradava-lhe também o
grandes problemas a resolver, de três graves provas a superar, seu exclusivismo e a sua ilógica rivalidade, contradizendo-lhes
de três poderosos inimigos a vencer, pois que o seu destino já o princípio fundamental de fraternidade, nos obséquios a um
então amadurecia, e os seus impulsos, favoráveis ou contrários, Deus que devia ser o mesmo para todas as religiões. Não podia
deviam manifestar-se com plena eficiência. Esse período de aceitar algumas das sua explicações, que tornavam injusto esse
vinte anos, que vai dos vinte e cinco aos quarenta e cinco anos, Deus, dissonância para ele inconcebível, justamente no centro
é o mais obscuro da sua vida, exteriormente insignificante, inte- da ordem. Havia interrogado os eruditos na matéria. Repetiam-
riormente tempestuoso e trágico. Foi esse o período da mais du- lhe frases formais e decoradas, não assimiladas, não sentidas,
ra expiação. Ele, que quase não havia conhecido o estouvamen- não vividas. Um deles foi bastante sincero para dizer-lhe que
to da juventude, nem gozado aquela instintiva alegria de viver, não havia compreendido nada e que fora constrangido a renun-
que se afina mais facilmente com a inércia espiritual do que ciar a compreender. Apesar disso, mais tarde, este mesmo fez
com uma laboriosa maturação, por vinte anos não teve mais bela carreira no caminho escolhido. Outro, ainda mais sincero,
trégua. Mas quem tem qualidades deve sofrer-lhes o peso e pa- confessou-lhe, como conclusão de santas considerações sobre o
gar-lhes o preço. Quem traz forças dentro de si deve aprender a valor do espírito, que o que realmente lhe importava não era
manejá-las e dominá-las, porque elas se desencadeiam irrefreá- senão a riqueza. E o disse com tanta convicção, num desabafo
veis e querem manifestar-se e agir. Quem se traçou uma rota tão espontâneo, que ele se calou. Persuadiu-se então de que
deve apressar-se sem ócios ou repousos em tomá-la e realizá-la, muitos daqueles a quem pedia a verdade eram de fato ateus, e
porque a vida é breve e o destino tem pressa. Quem mais tem, não mais se admirou do indiferentismo religioso dominante.
mais deve. Quanto mais se é forte, mais se é agredido. Quanto Havia olhado na alma dos seus semelhantes. E, muito fre-
mais longe se deve chegar, mais se tem de correr. qüentemente, não havia encontrado ali mais do que trevas; mo-
Em primeiro lugar tratava-se de compreender, ou seja, resol- tivos dominantes – os instintos animais. Espetáculo pavoroso.
ver o problema do conhecimento. Ele não era como os outros. Para onde voltaria, pois, o olhar, e quem haveria de lhe dar uma
Não podia agir senão depois de se sentir claramente orientado resposta? Se o homem não sabia dar-lhe esse conhecimento, de
quanto ao funcionamento do universo que o circundava. Esta que tinha absoluta necessidade, só lhe restava descobri-lo por si
premissa de claríssima visão lhe era absolutamente necessária pa- mesmo. Não teve forças para tomar a sério as abstrusas e áridas
ra agir em consciência e com consciência. Necessitava dar uma elucubrações dos filósofos que encontrara e que o cansavam,
resposta convincente e exaustiva pelo menos aos ―porquês‖ fun- sem terem a força de convencê-lo. Só mais tarde pôde aproxi-
damentais da vida: de onde venho, por que vivo, aonde vou, por mar-se do melhor da nossa época, como Boutroux, Bergson,
que sofro? Perguntas que as crianças fazem e a que os sábios não Blondel, Petrone, I. Caird, Whithead, Von Hugel etc, e os me-
sabem freqüentemente responder. Tinha sido enviado à escola nos recentes, como Rosmini, Gratry, Ravaisson, Kirkgaard,
aos cinco anos. Estudara sempre e haveria de estudar toda a vida. Lotze, Krouse etc. Não lhe restava, assim, mais do que cingir-
Aos vinte e cinco anos, depois de haver interrogado todos os se corajosamente e sozinho ao trabalho. E foi talvez um bem,
campos do conhecimento humano, uma só coisa sabia: que não pois como poderia ser orientado no conhecimento humano, ante
sabia nada. E uma coisa ainda pior ele percebia: que os sábios a dificuldade de se orientar em meio ao funcionamento orgâni-
20 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
co do universo? Urgia ler, viver, interrogar os livros, a ciência, to que ninguém pode, mesmo no fundo das mais terríveis des-
a religião e, sobretudo, a vida. Havia tantas verdades esparsas graças e sob a mais severa condenação do destino, destruir a
pelo mundo, fragmentos de verdade, separados, contraditórios. consciência de íntima e própria nobreza, que não é soberba,
Precisava despojá-los do supérfluo, descobrir-lhes a substância, porque se cala, e não pode excitar a inveja, porque é frequen-
reencontrar-lhes o nexo, rejuntá-los de novo. Precisava conser- temente sepultada sob a mais esquálida miséria.
var-se livre, não se prender a nenhum deles e, não obstante, Tanta consciência queria ter dos seus atos, que sentia o de-
percorrê-los todos. Precisava penetrá-los, mas saber evadir-se, ver de conhecer primeiro o plano universal, para, no meio des-
para não ficar prisioneiro de nenhuma limitação preconceitual, te, descobrir o seu particular plano de vida. Este era para ele, e
em nenhuma daquelas circunscrições do interesse humano que não podia deixar de ser, uma construção orgânica, um edifício
se haviam formado em torno das várias verdades. Precisava complexo, para cuja edificação se fazia indispensável um proje-
pesquisar além do homem, interrogar antes o espírito pela in- to exato. Quanta distância de certa leviandade inconsciente,
tuição, a natureza através da ciência; precisava dirigir-se dire- quanta seriedade em face de certos epicurismos de gozadores!
tamente à observação do universo no seu funcionamento orgâ- Apesar disso, talvez este relato corra o risco de não interessar,
nico, para descobrir-lhe a técnica, a lógica, o significado, o ob- pois uma consciência tão profunda será considerada, provavel-
jetivo. Sentia, pela intuição, que o universo devia ser um siste- mente, por muitos como procedimento de louco. Que grave
ma de leis. Era necessário encontrar a chave desse sistema, que timbre de bronze adquiria então o som dos seus pensamentos e
devia ser a verdade. Esta ordem não podia ser senão a manifes- o significado dos seus atos! Preparava-se, assim, para um traba-
tação exterior e sensível da causa universal que se chama Deus. lho bem grave, para o qual sentia não poder encontrar ajuda se-
Essa verdade devia ser a expressão do pensamento de Deus. não em si mesmo: compreender o universo, compreender-se a
Mas logo outro grave problema se lhe apresentava. Conse- si próprio e, na vida do universo, entrosar a sua vida.
guido o conhecimento do grande plano universal, enquadrar nele Entretanto já sentia quão pouco teria feito ao conseguir tu-
o plano da sua própria vida; encontrar, enfim, na ordem univer- do isso e já via quanto ainda lhe restava a fazer. Chegando até
sal, o sentido desta ordem menor, as suas causas, a sua trajetória, lá, não conquistava mais do que uma luz fria, pois a simples
os seus objetivos. Devia compreender claramente a si mesmo e aquisição do conhecimento não modificava nada, não atuava,
ao seu destino. Talvez, o homem comum pudesse viver sem esse não fazia amadurecer, não transformava. O farol indica, mas
conhecimento, bastando-lhe, para agir, os instintos. E, neles, não percorre o caminho. Depois de compreender, é necessário
obedecendo cegamente às leis de Deus. Na prática, não há ne- atirar-se ao campo e seguir a rota. Tratava-se de um áspero
nhuma necessidade de se conhecer o porquê das coisas, a razão caminho espiritual, no qual ele estaria ainda mais solitário do
de pô-las em execução. A natureza preocupa-se em ser obedeci- que na procura do conhecimento. Após mobilizar todos os re-
da, não de elucidar-nos sobre o porquê das suas ordens. O co- cursos da inteligência, do estudo, da observação, da intuição,
nhecimento é talvez uma necessidade útil, mas somente em cer- era necessário acender a grande flama do coração, do senti-
to grau da evolução, quando se faz sentir, não podendo, portan- mento, da paixão, porque só quem arde realiza, amadurece e se
to, aparecer antes dele. O fato é que ele sentia essa necessidade e transforma. Precisava agir, precisava modificar-se. O pensador
devia satisfazê-la. O seu grau evolutivo não lhe permitia agir in- arrisca-se a permanecer um teórico: quanto mais pensa, mais
conscientemente, como os animais, pelo instinto. Não podia, tal foge à ação. Após a iluminação da mente, era necessário lançar
como era, transformar-se em cego instrumento de forças desco- o coração, e após o coração, o seu próprio ser, inteiro. O pro-
nhecidas. Para obedecer, devia saber; para guiar-se, carecia de blema não era mais compreender, e sim arder, consumir-se. As
orientação; sentia o dever de manter-se consciente e de tomar concepções deviam transformar-se em sensações, o conceito
parte consciente e responsável na direção da sua vida. Esta era de Deus em sensação de Deus. Que tremenda transformação
espiritualmente muito complexa, para que uns poucos instintos biológica o esperava! Devia trocar continuamente os gêneros
bastassem para guiá-la. Tinha necessidade de consciência dos de trabalho, modificar sua capacidade e aptidões, adaptar-se e
seus atos, uma consciência profunda, completa, que se harmoni- saber transformar-se segundo as mutáveis exigências do cami-
zasse com a consciência do funcionamento universal. Por um nho a percorrer. Hoje, busca e reflexão; amanhã, paixão; de-
senso de íntima convicção, sentia-se no direito de participar da pois, ação e transformação, e depois ainda, sensação no mundo
direção do seu destino, no direito de conhecê-lo, para corrigi-lo do espírito. E qual era o supremo objetivo, a máxima realiza-
e melhorá-lo. Sentia poder e ter o dever de assumir a responsabi- ção? O sonho tornava-se, nesse momento, gigantesco, além das
lidade dessa direção. Não podia ser ―uma coisa‖, mas queria ser possibilidades da sua compreensão; o anelo de ascensão atin-
―um homem‖, colaborador honesto, consciente e responsável da gia uma vibração tão intensa, que ultrapassava as suas possibi-
obra divina. Encarou, então, face a face as leis biológicas e, sem lidades de percepção. Assim lhe aparecia a princípio confusa,
preocupar-se com o homem, perguntou-lhes ardentemente o mas lhe surgiria sempre mais límpida e evidente, aquela zona
tremendo porquê do seu próprio destino. de luz que estava no seu destino, ao fundo, além do báratro es-
Desta verdade menor e mais próxima ele tinha necessidade curo das provas. Nessa luz se cumpria o ciclo da sua vida.
para orientar a sua vida no campo das ações. Queria conhecer Nessa luz se reencontrava com o Cristo.
os princípios que devia seguir, o conteúdo que devia dar às suas Mas surgiu-lhe desde logo um terceiro problema. O pro-
horas, a direção a imprimir aos seus passos. Sem uma precisa blema da prova e da dor. A sua vida continha nada menos que
direção impressa em nossos passos, sem uma precisa finalidade um abismo de sofrimento, um mar de obstáculos a superar; de-
guiando nossas ações, a vida se transforma num recipiente va- frontava-se com uma vontade tenazmente adversa, que lhe con-
zio. A vida é uma vaso a que se deve dar um conteúdo, um trariava essa realização suprema. Era necessário enfrentar, so-
meio que necessita de um fim. E não lhe bastava um fim gené- frer e vencer tudo isso, era necessário saber atravessar esse in-
rico, de uso geral, feito para todos. Sentia-se irremediavelmente ferno sem se perder, saber sair ileso e triunfante. O seu edifício
diferente; pressentia um trabalho, mas também um objetivo es- de pensamento e de paixão devia resistir a esse tremendo cho-
pecial. Não podia absolutamente reduzir-se à situação de ovelha que sem se abalar. Diplomado, entrou na vida. Teve o pressen-
no rebanho, de homem construído em série. Tinha o seu cami- timento da hora pavorosa e tempestuosa que o esperava. Quan-
nho inexoravelmente traçado, doloroso, perigoso, exaustivo, do o destino ―quer‖, ninguém pode obter ajuda e mudar as pro-
mas seu, inconfundivelmente seu. Fosse embora com humilda- vas. Encontrava-se então na sua zona de determinismo. Não
de e incompreensão, sozinho, sob a cruz da dor, devia percorrê- havia salvação. Estava só, contra aquelas forças desencadeadas.
lo. Era seu sagrado dever conhecê-lo para percorrê-lo. É um fa- Sempre estamos a sós em face do próprio destino.
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 21
Concluindo a sua juventude, se lhe apresentavam três vias, cessos reflexivos da razão, mas de um ato de intuição, que bro-
pelas quais devia percorrer um tríplice caminho: ―compreender, tava da sensibilização do seu ser como uma nova capacidade
atuar, sofrer‖. Tríplice escola o esperava: a escola do pensamen- perceptiva, um poder de visão resultante da maturação que nele
to, do coração e a escola da dor. Todo o seu ser devia agitar-se a se operava através da luta na dor. E percebeu que a obra da sua
fundo, com todos os seus recursos: inteligência, sentimento, transformação, a conquista da sua ascensão espiritual, não po-
vontade. Todas as suas fibras deviam ser postas em ação, traba- dia resultar senão deste conhecimento profundo, íntimo e intui-
lhar e dar o seu rendimento. A sua vida era digna dele. tivo, que se fundia com a sua própria maturação e nascia da
Diante da sua juventude, as três estradas se abriam simulta- grande experiência da dor.
neamente. Na lógica do seu destino, eram um único roteiro, Qual foi a sua dor? Qual a forma que o destino escolheu e
com um só significado. Isto porque ―compreender‖ significava lhe ofereceu entre as infinitas amarguras da vida? Existem as
encontrar por intuição, em si mesmo, a grande verdade, o pró- grandes dores heróicas, que dão direito à gratidão da pátria; as
prio ser universal e, no seu seio, a própria verdade particular, o dores excepcionais, ardentes e gritantes, que provocam nos ou-
ser humano. Encontrar, pois certas sínteses supremas não se tros admiração, entusiasmo, e têm um sentido de grandeza; as
atingem com a razão, não se improvisam, e quem não a alcan- dores afagadas de comiseração, aquecidas pela compreensão do
çou por maturação, não a possui, não a encontra. Depois, ―atu- próximo; aquelas que despertam um sentido de piedade, dores a
ar‖ significava a sua catarse mística da ascensão do plano hu- que se pode e se dá ajuda e conforto, e para as quais se encontra
mano até ao plano divino. E ―sofrer‖ significava atravessar a alívio nos afetos, na piedade, na bondade dos outros. Essas são
sua purificação na expiação. as dores de luxo, que têm direito a lágrimas, à compaixão, à
Aquela tríplice estrada que se lhe abria não era senão uma consolação. Vêm depois as dores pobres, deserdadas, que não
tríplice forma de realizar-se a si mesmo, de três maneiras: dão direito a nada de tudo isso; dores sem glórias, obscuras,
1o) Encontrando-se no conhecimento do universo e de si mudas, geladas, que dão uma sensação de inferioridade e de
mesmo; miséria, ocultas com tristeza, que não enobrecem nem exaltam,
2o) Purificando-se da dor, ou seja, conquistando a própria mas aviltam e deprimem: pequenas dores, enfermidades e fra-
redenção através da expiação; quezas de corpo e de espírito, dores tolas, estúpidas, ridículas,
3o) Operando a própria transformação, a ascensão espiritual sem grandeza, sem compreensão, sem comiseração. Para elas
que o havia de levar até à visão do Cristo e a sua união com Ele. não há ajuda, não há conforto, não há piedade. Elas não dão di-
As três estradas estavam ligadas por um nexo profundo e reito à compaixão, à consolação. Elas provocam o riso, o insul-
convergiam para o mesmo ponto. A trajetória única do seu to, atraem o desprezo. É dever, é virtude condená-las e perse-
destino estava claramente traçada e completa. O significado gui-las. Há dores malditas e dores desesperadas, que não como-
da sua vida e o caminho a percorrer estavam evidentes, das vem ninguém, antes provocando ódio e horror.
premissas às conclusões. Há a dor do culpado e a dor do inocente, a dor consciente e
nobre do sábio e a dor estúpida do imbecil. Há a dor que muda
IX. A DOR NA LÓGICA DO DESTINO e passa e a dor sem esperança e sem remédio, que em vão pede
―Sem dor não há redenção‖ paz à morte. Existem as nossas próprias dores, que sempre nos
parecem tão grandes, e as dores alheias, que sempre nos pare-
Neste relato, não temos mais do que percorrer o caminho cem tão pequenas! Existem as dores físicas e as dores morais,
ao lado do nosso protagonista. Trata-se, sem dúvida, de peque- as dores grosseiras da matéria e as dores sutis do espírito.
no acontecimento individual. Mas nele se reflete o grande Existem dores tão refinadas, que consomem toda a alma por
drama do mundo, da luta entre o bem e o mal, da redenção do dentro, em silêncio, sem se exteriorizarem, e matam suave-
homem através da dor. E o acontecimento não é exposto como mente, sem desgastar o corpo.
teoria, mas em forma vivida, palpitante, experimental, de vida Quantas dores diferentes! Mas todas se estampam no cor-
real, em antítese à vida também real do mundo, da maioria po e na alma; cada rosto humano é por elas assinalado e as
humana. E ambas estão em absoluto contraste. O desafio é exprime. Entre tantas formas diversas, cada homem tem a sua
grave, o embate é gigantesco. Pois que, se o mundo é de tantos e avança arrastando a própria cruz. Entre tantas formas diver-
e o repelirá, nem por isso o nosso homem está só; ele está com sas, todas elas são dores, e nelas sempre se cumpre qualquer
a dor, que por toda parte oprime o homem. Na senda da reden- coisa grandiosa que conduz à redenção. Somente Deus vê to-
ção, ele segue o Cristo. Por isso podemos dizer, em princípio, das, pesa-as e julga-as com justiça, e lhes dá, no destino de
que aqui se encontra um pouco da história de todos. Na dor e cada um, a compensação.
na expiação, ele é um pouco o irmão de todos. Se este homem Qual foi a dor do nosso protagonista? Não importa o nome
for considerado louco, a sua loucura inclui também as coisas e a forma, importa a substância, que é dor, importa a sua ação
mais elevadas e veneráveis que o homem possui. iluminadora, a sua obra de redenção em nosso espírito. O leitor
O mais ativo agente que o levou a encontrar-se a si mesmo, que dê aos sofrimentos do nosso homem a forma e o nome que
o estímulo mais enérgico que o forçou a compreender o próprio entender, ponha as suas próprias dores na dele e diga: vejamos
eu e a operar a sua formação e ascensão, foi a dor. Esta foi a como ele resolveu o seu problema, que é o meu, o problema da
primeira e mais intensa realidade que se lhe apresentou na vida, dor, que é o problema de todos. Qualquer que tenha sido a
a força que mais profundamente agiu sobre o seu espírito, o forma do seu sofrimento, o que importa compreender e seguir
choque que o feriu, o abalou, despertando-lhe as mais fortes re- é a atitude e a posição que ele escolheu em face da dor, que
ações e os mais íntimos recursos. são os antípodas daquelas preferidas pelo mundo. Este a olha
Ele havia acreditado, a princípio, que o conhecimento devia com ódio e terror, procura fugir-lhe ou destruí-la, sem perceber
ser o resultado de uma pesquisa cultural, um produto de erudi- a sua indispensável função criadora, de agente e estimulante da
ção, e que esta lhe podia vir de fora, conquistando-a ele com evolução. A maior sabedoria do nosso protagonista foi a de
um trabalho intelectual. Depois percebeu quanto era superficial amar e, assim, domesticar fraternalmente a dor, transforman-
este gênero de conhecimento em face ao outro, que lhe vinha da do-a de inimigo em amigo, utilizando-a como meio de ressur-
experiência da própria dor. Este outro apareceu-lhe como qual- reição, fazendo do mal um bem, de uma pena e negação huma-
quer coisa muito mais profunda, substancial, verdadeira. Era na a afirmação e alegria do espírito. A sua sabedoria estava na
como uma revelação que emergia do íntimo, ao invés de ser re- sua atitude, não de aversão e de revolta, que desespera, nem de
cebida de fora, e nascia não das aquisições culturais e dos pro- passiva resignação, que imbeciliza, mas de ativa, dinâmica re-
22 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
ação para o bem; estava no saber transformar as resistências ráter dominante, um sentido que persiste do nascimento até à
hostis da vida no jogo de exercícios, na escola de aquisições, e morte, e a cada destino corresponde determinada forma de dor.
fazer de uma aparente condenação um instrumento de conquis- Quem pode negar, a ―priori‖, que todas essas forças, que tão
ta, de redenção, de felicidade. profundamente atuam em nossa vida, não tenham uma natureza
Interessa depois conhecer a lógica com que agem estes im- inteligente? Às vezes, elas se apresentam tão precisamente do-
pulsos da dor, o modo por que se apresentam, os pontos que sadas e dirigidas, que fazem pensar num mestre traçando as
golpeiam, o método pelo qual se sucedem, a meta a que se diri- disciplinas de um curso e as classes de uma escola. Freqüente-
gem. O destino é sem dúvida um desenvolvimento de forças não mente, a quem olhe em profundidade, aparece esta ordem mai-
casual, mas dirigido segundo um princípio e uma lei adaptados a or, que controla a aparente desordem do particular. A natureza,
cada caso. Se não fosse assim, a dor seria um crime e uma lou- ou seja, a inteligência das leis da criação, ou pensamento-
cura do Criador, e todos os fatos nos demonstram o absurdo de verdade de Deus, não nos prodigaliza gratuitamente as qualida-
tal hipótese. Diante disso, interessa conhecer o sistema segundo des e as aptidões, mas nos impõe a sua conquista através do es-
o qual o fenômeno se desenvolve. Todos os organismos, seja no forço, obrigando-nos a aprender com a experiência, quando não
plano físico ou no espiritual, isto é, tanto o nosso corpo como a as determina por meio de reações, obrigando a aflorar aquilo
nossa alma, têm um ponto de menor resistência (locus minoris que já estava latente em nosso espírito. Age, portanto, moven-
resistentiae). Ora, parece que a natureza escolhe justamente este do-se em direção oposta, diremos quase por inversão. Para che-
ponto de maior fraqueza, de maior vulnerabilidade, para conver- gar à afirmação, parte da negação. Satanás serve a Deus.
gir sobre ele os seus mais veementes golpes. Este ponto, de pre- Assim aconteceu com o nosso homem. Se as forças que se
ferência, ela fere nas doenças físicas como nas imperfeições mo- preparavam para submetê-lo à prova se desencadeassem todas
rais. A natureza não gosta de pontos fracos, lança-se contra eles, de uma vez, atirando-se sobre ele com todo o seu ímpeto, num
seja para provar-lhes a resistência e, se esta é pouca, abrir-lhes só golpe, o teriam sem dúvida esmagado. Cercaram-no, porém,
prontamente uma brecha e resolver o caso, matando o indivíduo, pouco a pouco, dando-lhe a possibilidade de uma adaptação
seja para estimular as suas reações e, com isso, impulsioná-lo a progressiva e de uma compreensão relativa. Começou assim a
se reforçar, a reativar as suas defesas, e ensinar-lhe a salvação, formar-se ao seu redor como que um cerco de adversidades, e
obrigando-o a vencer, a aprender a ser forte, para sempre saber este cerco foi, passo a passo, estrangulando os gânglios vitais da
vencer. A resposta depende do indivíduo, e será vida ou morte, sua vida humana, ocupando os pontos estratégicos nas vias de
libertação ou dor. Assim, cada pena é uma doença, e cada doen- expansão da animalidade, da realização do eu inferior. A cada
ça uma prova. Em cada caso, a dor tem um significado, um es- um dos seus ímpetos, a cada um dos seus desejos de espírito
copo útil, e nos atinge para o nosso bem. É uma tentativa salutar exuberante, como que uma coalizão de forças dizia, quase pre-
de correção de algum erro, para restabelecer o equilíbrio, a or- meditadamente: não. E a negação se dirigia a determinados pon-
dem divina das coisas, somente na qual a felicidade existe. A na- tos, constantemente, com tenacidade. Voltando, como todos, pa-
tureza, ao infligir-nos as provas, parece desapiedada. Mas com ra as fáceis projeções exteriores, sentia-se precipitado nas trevas,
elas se completa a grande escola da vida, na qual se aprende, ca- cegado pelo espancamento das claridades da vida. Só mais tarde
da um por si mesmo, a corrigir os impulsos mal dirigidos do haveria de compreender o sentido das forças negativas. A con-
próprio destino. De fato, somos nós mesmos que, nascendo com denação à cegueira terrena era a condição para a conquista da
uma dada constituição física e moral, trazemos já em nós, defi- luz do céu. O destino agia nele, excitando as reações do espírito,
nidos e localizados, os pontos de menor resistência, a nossa for- e começava por mutilá-lo em tudo o que se referia ao plano hu-
ça ou a nossa fraqueza, já implicitamente assinalando a nossa vi- mano. Inexoravelmente adversa, pareceu-lhe infernal aquela
tória ou a nossa condenação. O ambiente prova indistintamente mesma vida que, para os outros, é naturalmente ditosa. Relativi-
todas as pessoas, a nossa resposta é que é diversa; as causas da dade de posição e de destino. Incompreensão congênita.
dor estão em nós. A natureza é imparcial, é justa. Se fosse pie- Quanto esforço no fundo dessas trevas humanas para achar
dosa, não seria justa e trairia a maior finalidade da vida: a evolu- o seu eu mais profundo! Quem encontra as portas escancaradas
ção, que nos faz progredir e aperfeiçoar. para o exterior e por elas se atira, ignora os tormentos, mas
Por que nascemos de maneiras tão diversas, com tão diferen- também não lhes colhe os frutos. Este pode passar a vida satis-
tes bagagens de forças e de fraquezas, de direitos e deveres? A feito com todas as suas pequeninas coisas, pode continuar a crer
cada um cabe justificar a sua prova e a sua dor, tão grave e diver- em ilusões e a seguir quimeras, continuar a jurar, convicto, so-
sa. Esse é um problema que deverá ser resolvido pelos que crêem bre muitas coisas estupidíssimas e, só na velhice, diante da
na criação dos espíritos do nada, todos iguais, ao nascimento. Pa- morte, pô-las em dúvida e perceber a verdade. Então, entre a
ra que a dor seja justa, cumpre sejamos responsáveis pelas causas dúvida e o remorso, ele se pergunta admirado: por que viver? O
que a atraem, por as havermos provocado. Urge, como preceden- nosso homem fez logo essa pergunta, colocou-se logo diante da
te, uma causa livre e nossa, para que haja justiça, quando nos fere morte e da eternidade. A dor o atingira e não lhe permitia juve-
um efeito doloroso e inexoravelmente nosso. As teorias vagas, nis esquecimentos. Ela o obrigou a se tornar consciente dos
que nada esclarecem neste terreno, são muito boas para as dores grandes abismos da vida, desde o princípio. Foi triste, mas o
alheias, mas não servem para compreendermos, resolvermos, encouraçou. A natureza despertou nele, por essa maneira, todas
guiarmos e suportarmos as nossas. Sem aquele precedente livre e as defesas. Ele mobilizou as suas energias, reagiu e se reforçou.
nosso, não nos resta mais do que a horrível idéia de um Criador Assim, de uma pequena vida humana negativa, ele haveria de
injusto ou inconsciente, ou a idéia atéia do caos. Se, para sairmos fazer uma grande vida de espírito triunfante.
bem, devemos renunciar de uma vez a compreender, não nos res- Não compreendia, mas Deus o vigiava. Aquilo que sentia
ta mais do que completar o nosso suicídio espiritual. como sufocação era antes o caminho da expansão; aquilo que
A natureza, que parece desapiedada, é justa e benigna. No sentia mortal era introdução à vida; aquela opressão lenta que o
fundo, a negação aparente da dor é uma afirmação; aquelas in- arredava das coisas humanas o conduzia para as coisas divinas.
vestidas contra a vida são a favor da vida. Quem observar o Eis a substância, o significado da sua prova. Se esta se apresen-
próprio destino, verá que as suas forças não golpeiam ao acaso, tava na forma negativa, quase de punição, amarga e inexorável
mas tendem a seguir particulares direções e a conservá-las; pre- como uma vingança, se tinha uma lógica compensadora e fun-
ferem alguns pontos, diferentes para os vários indivíduos, mas ção expiadora, tinha também ação positiva, recriadora, benigna:
quase sempre bem definidos e constantes para cada um em par- era a doença da ressurreição. Cair na angústia e debater-se nas
ticular. Como cada destino, a dor, para cada pessoa, tem um ca- trevas, para conseguir compreender por si mesmo, encontrar-se
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 23
a si próprio, isto era o que lhe impunha o método de ação do sufocado numa esterqueira. Nasceu nele a náusea, depois repug-
seu destino. Acabou abatido, caiu no chão destruído. As inves- nância invencível por aquele gênero de seus semelhantes, ódio
tidas sucederam-se com intensidade progressiva. Viu-se só, es- pela riqueza, que os atraía. Neste ponto, aquilo que era conside-
carnecido, desesperado. Arrastou-se com as unhas e os dentes, rado fortuna pelos outros não o era por ele, e mudou-se também
deixando nos espinhos da estrada pedaços da própria carne. para ele em fortuna, mas no sentido espiritual. A opressão da
Mas compreendeu. À prova gigantesca reagiu com resposta gi- prova excita a sua reação, em que ele se revela a si mesmo.
gantesca. O seu espírito podia responder, e respondeu. E todo o Amava os espíritos nobres, desinteressados; a riqueza, ao contrá-
centro da sua vida se moveu, deslocando-se para frente, para se rio, atraía para ele as almas mais baixas e ávidas. Então, para fu-
transferir inteiro a um plano mais alto. gir à sufocação do fedor espiritual que delas emanava, desponta
Via dolorosa, caminho da cruz, que teria de encontrar mais nele o pensamento de se libertar da causa que as atraía: a riqueza;
tarde o seu Getsêmane. Os primeiros passos foram duros, não inicia gradativamente a realização prática do programa evangéli-
compensados pelas conquistas espirituais, não iluminados pela co, a espinha dorsal da sua ascensão espiritual, por cujo motivo
luz que delas provêm. Só havia então a dor humana, sem o con- tinha nascido e para a qual queria viver.
forto divino. Deus o guiava, sem dúvida, mas ele não o sabia. Por essa via, começou a encontrar-se a si mesmo. O seu
Uma contrariedade dispersa por todas as circunstâncias da sua verdadeiro ser se revelava. Começou, assim, não mais a sofrer
vida o perseguia, acintosa e maligna. No entanto ele era tão a vontade, as concepções, as unidades de medida que a maio-
bom, dócil, sincero, desinteressado. Talvez, justamente por is- ria fazia para si mesma e lhe queria aplicar, mas a agir ele
so, havia caído na vala do mundo, onde surgiam para feri-lo os mesmo, como era e como queria ser. Dava, pois, um passo
sentimentos mais opostos. Os contrários se atraem. Viu-se cer- avante, simultaneamente, nos três caminhos que o esperavam:
cado pela avidez de dinheiro, ele que nunca foi atraído pela ri- avançava no conhecimento de si mesmo; aprendia, na dor, a
queza. Não pedia à vida mais do que paz, e de paz necessitava primeira lição de renúncia libertadora do espírito; iniciava a
no seu anseio de resolver o problema do conhecimento univer- sua própria transformação, avançando para o Cristo. O destino
sal e particular; e ei-lo, jovem, com dois patrimônios sobre os sabe propor quesitos especiais a determinados espíritos, pos-
ombros, cobiçadíssima posição para qualquer um, mas criadora sui métodos sábios de distribuição das provas. Circunda uma
de grandes responsabilidades. Não tinha sede de riquezas, não alma anelante de espiritualidade das mais grosseiras tentações
tinha ambições. Enquanto procurava resolver o significado do humanas, oferece ao homem a riqueza, mas a cerca de tão
seu destino, a luta baixa, banal, da vida material, o cercava, nauseante baixeza humana, que ele não lhe vê senão a falsida-
exigia toda a sua atenção, pedia toda a sua atividade, esmagan- de, a injustiça, os perigos, e lhe sofre os gravames, aprenden-
do-o de responsabilidades, tomando-lhe o tempo, a tranqüilida- do assim a detestá-la. Rebela-se a si mesmo, opondo-se a tudo
de, a liberdade de espírito, absorvendo-lhe aquelas faculdades, e a todos. Esta reviravolta, livremente desejada, foi o primeiro
em cujo exercício estava, para ele, a vida. Mas naquele espírito passo da sua ascensão. A primeira decisão fora tomada, a
havia uma força que, quanto mais era comprimida, mais energi- primeira lição estava compreendida. E ele sentiu tamanho no-
camente era impulsionada a reagir. Ávido de bondade, sujeitou- jo da riqueza, que a odiou enquanto viveu.
se assim a contatos humanos que o nausearam até o horror. E,
por primeira experiência, teve de estudar o homem na face tor- X. O PROBLEMA DA RIQUEZA, DO TRABALHO
va do Judas. Ao invés da doçura de uma descuidosa alegria, te- E DO EVANGELHO
ve de beber o mais amargo fel do espírito humano. ―Quem não trabalha não come‖ (S. Paulo).
Estava no seu destino esta força, que parecia maligna, de des-
fazer as construções, de envenenar as satisfações, de tudo enredar Não é a riqueza em si que merece condenação, pois ela é for-
e complicar em inumeráveis aborrecimentos, de amontoar erros ça que pode, quando bem empregada, ser um meio poderoso de
sobre erros, para que ele visse no exterior um invencível labirinto realizar o melhor. Merece condenação a psicologia de avidez que
de males. As melhores intenções, as mais prudentes previsões, as é a sua auréola natural, a atmosfera sufocante que dela constan-
atitudes mais cautelosas, suas e dos seus, terminavam sempre na- temente emana, o mal que, para conquistá-la, não se tem receio
quele emaranhado. Alguma coisa queria, contra todas as previ- de praticar, as aberrações que provoca, a horrível espécie de al-
sões humanas, manter essa rede de adversidades pequenas e mas que atrai e de que se circunda, a escravidão, a asfixia, a abje-
grandes, para circundá-lo e sufocá-lo. E ele, que compreendia o ção espiritual que freqüentemente são o seu preço. Para libertar-
jogo, devia sofrer a humilhação de passar por inepto, enquanto se de tão triste companhia, era preciso livrar-se da sua causa.
sentia que não o era. A riqueza, para não se perder, deve ser de- Não era fácil. Não é fácil no mundo moderno, onde tudo o
fendida, e não poder defendê-la significava, para ele, grave res- que se refere à propriedade é exatamente regulado por meio de
ponsabilidade moral junto aos seus. Um cúmulo de fastio, de mil veículos jurídicos, complexa rede de interesses em equilíbrio.
preocupações, de desprazer. Conflito insolúvel de deveres. Os Não é tão simples resolver o problema, como no tempo de Cristo
costumes correntes eram realmente os do egoísmo, e com este e ou de São Francisco. Havia, pois, complicado conflito de deve-
por este era que tudo se resolvia. Mas ele estava em outro cami- res, em que se jogavam os direitos alheios, que não se podem le-
nho e não podia servi-lo. O seu destino apresenta-se como caso sar. Como resolver o caso entre tantos deveres, voltados para di-
típico de provas ao revés. Era rico de qualidades espirituais e an- reções contrárias, e todos autorizando, perante a consciência, pe-
sioso de exercitá-las e desenvolvê-las, porque nelas estava a sua didos de satisfação? Como cumprir uns sem lesar os outros? São
vida, mas via-se na posse dos mais preciosos dons materiais, os Francisco, por exemplo, devia lesar o dever de obedecer ao pai,
mais cobiçados pela média humana, os menos desejáveis para porque tinha de obedecer a um dever maior. E qual, no nosso ca-
ele, e que, assim, se transformavam numa condenação. Devia ex- so, era o dever maior? Todos falam sempre de seus direitos; entre
teriormente parecer afortunado e sofrer a inveja dos outros. Dizia os seus deveres, ele achava difícil a escolha. Não bastava esque-
de si mesmo: sou como uma planta que, se quiser viver, deve vi- cer os interesses e o egoísmo para resolver a questão.
ver ao contrário, com as folhas enterradas e as raízes para cima. Os seus bens eram hereditários, ou seja, obtidos gratuita-
Da riqueza não sentiu senão o peso, a responsabilidade, a escra- mente. Não eram fruto do seu trabalho. A sociedade do seu
vidão, os perigos. Ávido de outras conquistas, bem logo a mal- tempo admitia essa forma de aquisição, que a consciência lhe
disse. Buscava os ricos dotes do espírito, a inteligência, a bonda- declarava injusta. Não condenou os outros, mas apressou-se a
de, a retidão, a sinceridade, e foi levado pela riqueza ao contato corrigir-se a si mesmo. A aquisição gratuita de bens por heredi-
da mais fétida imundície do espírito; teve a sensação de morrer tariedade era, ―para ele‖, para a sua lei moral e pessoal, coisa
24 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
ilícita, imoral, inadmissível. Cuidava de si e respeitava a lei dos tava-se de trabalhar com a maioria e de ganhar o próprio e justo
outros. Mas devia viver conscientemente a sua lei. pão cotidiano. Tratava-se de caminhar seriamente com o povo,
E esta não era somente a lei instintiva da sua consciência, começando por si mesmo, e não pelos outros; pelos deveres, e
pois era também a lei do Evangelho. Ouvia a voz longínqua a não pelos direitos; praticando antes de pregar. Sentia, na consci-
repetir-lhe: ência, que só o fruto do seu trabalho podia ser honestamente seu.
―Bem-aventurados vós que sois pobres, porque vosso é o Sentia que essa era a forma da verdadeira fraternidade evangéli-
Reino de Deus! Mas ai de vós, ó ricos, porque já tendes a vossa ca e a verdadeira realização da justiça social.
consolação!‖. Considerava o trabalho não só como dever para com o pró-
E ainda: ximo, mas como direito na escola da sua formação individual.
―Dá aos que te pedem e, se alguém te tirar o que é teu, não Segundo a velha concepção, os valores maiores são representa-
demandes com ele‖. dos pela riqueza, ante a qual o homem é um meio. Segundo a sua
E por fim a máxima: concepção, que era a dos novos tempos, o maior valor é o ho-
―É mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha mem, ante o qual a riqueza é um meio. Se antes se antepunha a
do que um rico entrar no Reino de Deus‖. riqueza ao homem, amanhã se deverá antepor o homem à rique-
Ele sentia bastante o Evangelho no coração, para não tomar za. O trabalho, então, não é mais um meio de aquisição de bens
a sério estas palavras. E o aborrecia bastante a elasticidade de econômicos, mas uma forma de exercício e aquisição de capaci-
consciência e as acomodações, para não sentir o dever de tomar dades novas, a que cada um tem direito de ser admitido, porque
uma posição bem definida entre Cristo e o mundo. Preferiu isso representa a sua formação e a sua evolução. Assim concebi-
Cristo, mas o mundo o condenou, e começou a luta. do o trabalho, ele quis a sua parte, como dever e como direito.
Não pretendia, de fato, no seu coração, aplicar aos outros a O fato de haver tomado, espontaneamente, a parte que lhe
sua lei. Não condenava, não julgava; perdoava, pensando que, cabia no peso da vida, proporcionava-lhe, por fim, implicita-
assim como medirmos, seremos medidos. Não podia deixar de mente, maior estabilidade de posição social, que é sempre mais
sentir a injustiça originária que está na base de toda acumulação solidamente equilibrada quanto mais em baixo, quanto mais se
de riqueza, que muito raramente se pode formar apenas com o aproxima da normalidade e se afasta da exceção. Mas tudo isso
trabalho, sem ao menos um início de fortuna. Esta injustiça ori- não era fácil realizar. Quem o haveria de ajudar?
ginária se agravava com a gratuita transmissão hereditária. Com a ação começaram as dificuldades. Toda a rede de in-
Achava absolutamente anticristão, ainda que em parte, viver teresses que se forma em torno de uma riqueza reagia. Tudo
a vida à custa do que não fosse o fruto do próprio trabalho; viver quanto já se formou e estabilizou, em qualquer posição, repre-
do trabalho alheio, isto é, daquele próximo que se deve amar, senta um equilíbrio que se defende e resiste. Em qualquer lugar
sobre cujos ombros não é, portanto, lícito a um cristão acomo- e momento formam-se prontamente estas coalizões, estes táci-
dar-se para se deixar levar. Achava absolutamente anticristã essa tos consensos, em que se harmonizam tão espontaneamente os
concepção egoísta da vida, base de explorações e causa de lutas, homens quando vêem nisso uma utilidade, e que são verdadei-
porque o pobre é por ela instigado, talvez mesmo constrangido, ros organismos armados contra tudo. Para se libertar a si mes-
a fazer justiça, com a esperteza, com o furto e a violência. As re- mo, devia libertar também muitos dos seus dependentes, ou se-
ligiões preferiam acomodar-se, passando por cima deste ponto ja, desalojá-los de suas posições, a que estavam bem agarrados,
fundamental da eqüidade evangélica, mas ele quis estar inocente pois pensavam de maneira bem diversa. Sucedia-lhe, em menor
diante das condescendências anticristãs e das suas tristes conse- proporção, como a certos chefes que são os servos da casta, que
qüências morais e sociais. São Paulo, falando de si mesmo, di- os sustém na posição enquanto isso lhe convenha. Aprendeu,
zia-lhe que ―trabalhava com as próprias mãos, para não ser pe- assim, a logo conhecer a verdadeira face do homem.
sado a ninguém‖ (Atos, XX, 33-34). Os sistemas do mundo re- A sua particular experiência o levava à conclusão de que
presentavam convenções, estavam consagrados pelos costumes, administrar pode ser sinônimo de roubar. Bastava deixar-se
eram uma contradição admitida. Tudo aquilo era aceito, corren- administrar, para conseguir de pronto a libertação. Mas ele
te, legal no mundo; a sua consciência, porém, não aceitava com- não era um inepto, que se deixa destruir por preguiça ou inca-
promissos e definia claramente as suas posições. Não podia en- pacidade, e não podia absolutamente fazê-lo em benefício do
dossar tudo aquilo sem se tornar cúmplice; não podia aceitar os furto. Não poderia ser proprietário, sem se tornar cúmplice
benefícios sem incorrer na responsabilidade. responsável. Assim percebeu que a libertação de um patrimô-
A injusta distribuição da riqueza era o problema do seu nio, para atingir a pobreza franciscana, era problema moral e
tempo, e contra ela se batiam os homens, as classes sociais e os material muito complexo em nosso mundo moderno. A mes-
povos. O espírito do seu século insurgia-se contra aquela injus- ma humanidade que lhe pedia fraternidade o impedia de reali-
tiça, que tanta luta custava. O mundo debatia-se para preparar o zá-la com a sua feroz avidez, demonstrando-lhe como o mun-
advento da justiça social. O instinto da ávida acumulação egoís- do é pouco disposto a compreender tais sacrifícios, que, entre-
ta era biologicamente justo, mas correspondia a fases evolutivas tanto, tem a coragem de pregar e de pedir. Percebeu quanto é
do passado, que hoje devem ser superadas por outra fase, de difícil para o indivíduo, num mundo estruturado em sentido
mais justa coordenação orgânica coletiva. E se esta preparação oposto, saber resolver o problema da exploração econômica
custava tantos esforços e sacrifícios, podia ele, por interesses sem provocar qualquer prejuízo. Isso ainda porque cada qual
pessoais, lançar-se contra o futuro? quer compreender os motivos dos atos do próximo e desconfia
Sentia que a fundamental injustiça da exploração econômica sempre. Ora, os seus motivos ninguém conseguia compreen-
devia ser corrigida pelo ―Quod superest date pauperibus‖10, pois der e, se os compreendesse, não os admitiria. Toda a socieda-
o supérfluo é realmente roubado aos pobres, que dele necessitam de era impulsionada por uma vontade em sentido contrário:
para viver. Além disto, um grande preceito lhe vinha de Cristo: pilhar, acumular, enriquecer. Todos os caminhos dirigiam-se
―Ama o teu próximo como a ti mesmo‖. Devia cumprir também naquele rumo e todos andavam naqueles caminhos. Todas as
este dever. Não se tratava somente de livrar-se do peso, das liga- instituições, leis, costumes pressupunham aquelas motivações.
ções, da injustiça, da riqueza. Tratava-se, para amar o próximo, Bem longe de admitir a possibilidade de existir um honesto
que na sua maioria é pobre ou quase pobre, de abraçar a sua vi- que afasta de si a riqueza por um senso de justiça, o mundo se
da, participar das suas fadigas, suportar as sua tribulações. Tra- arma de desconfiança contra o homem que, cheio de escrúpu-
los, tem muita pressa em se desfazer da riqueza. E tudo se
10
―Dá aos pobres o que te sobra‖. volta contra quem vai contra a corrente.
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 25
Os seus deveres não eram egoístas, utilitários, dos que per- se poderia verificar-se. Tremia no mais íntimo de si mesmo, por-
mitem fazer bela figura e, ao mesmo tempo, dão bom rendimen- que compreendera que a sua atitude, no fundo, era um desafio de
to. Eram deveres reais, de consciência; deveres estranhos ao obediência a Cristo. Mas sabia também que se entregava todo,
mais longínquo rendimento, deveres incompreensíveis e, portan- jogando a cartada da vida, e quem assim procede talvez tenha al-
to, inadmissíveis. Estes deveres escandalizavam os outros, que gum direito mais do que os outros. E se, ao contrário, o mundo
desejam resultados concretos para poder avaliar. Os espertos do derrotasse o Evangelho, demonstrando-lhe, através de fatos, nes-
mundo julgaram-no mais esperto do que eles; acreditavam que, ta experiência decisiva, a sua absurdidade prática? Se a Divina
para fins de lucro, disfarçava-se em altruísta. Os homens de bom Providência, com a qual ele contava, o abandonasse; se esta força
senso, ainda mais espertos, chegaram a descobrir, por meios imponderável lhe escapasse na sombra, que meio teria para man-
muito complexos, os seus recônditos objetivos reais. tê-la presente e ativa, que direito teria de considerar-se um predi-
A luta foi longa e corpo a corpo, mas o fez conhecer o ho- leto, particularmente ajudado por Deus? A sua fé era grande: em-
mem. Descobriu que era muito difícil saber dar sem fazer mal. penhava a vida em confiança, sob a palavra de Cristo. Era, então,
Via que, quase sempre, o pobre não era senão um rico frustrado, assim terrivelmente forte a voz de Cristo nele? E se este Evange-
cheio de toda cobiça, insaciável, de alma agarrada ao dinheiro, lho, sobre o qual empenhava todo o seu ser e investia todas as
muito diferente do pobre de espírito, e cada ato magnânimo ser- ações e todo o capital da sua vida, o traísse, o que lhe restaria?
via de estímulo àqueles sentimentos. Percebeu que o homem, Restar-lhe-ia algo simplicíssimo: o direito de dizer em plena
freqüentemente, ao ato passivo de receber, preferia ser ativo no consciência, de alma nua diante de Deus e em nome da divina
pilhar; preferia a conquista à esmola. E isso é biologicamente justiça, que, seguindo o Evangelho, tinha errado e que não é pru-
normal, mas tende a fazer do homem, em última instância, um dente acreditar sem ver. Na sua alma, ter-se-ia dado um terrível
malfeitor. O seu signo, porém, é positivo, e a ele a natureza con- abalo, que teria sido a sua destruição. Mas que lhe importaria a
fia o trabalho da seleção, e não o da conservação, que compete à sua alma, quando naquele abalo teriam caído também o seu Cris-
mulher. Descobriu no homem o seu aspecto de mais ou menos to e o seu Evangelho? O dilema era impiedoso e tremendo. O lei-
cego executor das leis biológicas; espantou-se com a imensa, in- tor não se espante, porém, porque, quando uma consciência age
suportável distância que o separava do Evangelho. Na luta corpo retamente, nunca é abandonada por Deus.
a corpo para a realização do seu plano, ele era o supremo utopis-
ta, escarnecido e incompreendido. Essa foi a resposta bem clara XI. POBREZA E TRABALHO
que o mundo francamente lhe deu, segundo a sua lógica natural. ―Não há conquista sem renúncia‖
As leis biológicas, aplicadas ao homem pelo instinto, embora es-
te não as compreenda, rebelaram-se contra ele, precipitaram-se O nosso protagonista começou a pôr metodicamente em
ao seu encontro, como que enfrentando um violador. No mundo, execução o programa da sua própria espoliação, inteligente es-
ele estava errado. Por certo, a sua forma de luta era muito dife- poliação. A sua atitude não era de fuga, como a de quem, sem
rente da que as leis da natureza impunham à Terra; buscava uma preocupar-se com as consequências, com as reações desta força
seleção muito elevada, muito complexa e de muitos remotos re- que se abandona, a riqueza, entrega apressadamente tudo aos
sultados, para que as suas ações pudessem ser admitidas num pobres e volta as costas ao mundo, para se ausentar no seu mis-
mundo em que se desenvolvia outra luta, dirigida no sentido de ticismo, solitário. A ele cabia, pelo contrário, o trabalho entre
outra seleção. De resto, aquele mundo estava bem solidamente os deserdados, para suportar com eles o peso e compreender o
situado e equilibrado e, na sua férrea lógica, no âmbito do seu sentido da sua vida. A esmola, que mostra no benfeitor um rico
plano, tinha razão. A grande maioria vivia aquela lei, enquanto e no beneficiado um pobre, não aproxima os homens, não cobre
ele estava só ou quase só; achava-se, portanto, deslocado. O o abismo que os divide, não resolve a injustiça das diferencia-
nosso utopista tinha consigo o Evangelho e se havia lançado jus- ções econômicas. Essa esmola é um paliativo a que o rico re-
tamente na via da sua aplicação integral. Chocava-o a enorme corre porque, custando-lhe relativamente pouco, oferece-lhe a
dificuldade de realizá-lo na prática e o gritante antagonismo em vantagem de tranquilizar-lhe a consciência e dar-lhe a ilusão de
que o mundo se encontra com o Evangelho, e o Evangelho com garantir o paraíso. O cálculo indica uma vantagem maior para o
o mundo. E se perguntava por que a lei biológica, destinada por sacrifício, e a coisa se torna conveniente. Mas o pobre, sendo
Deus a reger a vida humana e gravada nos instintos do homem, talvez somente um rico frustrado e, portanto, pior que o rico,
tinha de estar nos antípodas da lei evangélica, igualmente desti- pedindo justiça apenas quando esta significa a defesa do seu
nada por Deus a reger aquela mesma vida humana. egoísmo e sendo quase sempre indigno de esmolas, porque ele
Este livro quer antes relatar experiências do que formular teo- mesmo foi a causa da sua pobreza, por preguiça ou esbanja-
rias. Narremos, pois. Ele continuou inabalável, enquanto regis- mento, não precisa tanto do piedoso supérfluo dos outros quan-
trava em si mesmo essas observações. O nosso relato é breve, to da sua aproximação fraternal, da descida dos outros até à sua
mas, para ele, a luta foi longa. Nós fazemos simplesmente um re- própria miséria, para vivê-la cotidianamente, provando toda a
lato, enquanto ele construía um homem. Ele continuou. Havia ju- sua amargura, até à sua degradante baixeza. Só diante dessa
rado fé no Evangelho e, com o Evangelho, queria ir até o fim, se descida até ele, o pobre sente que a justiça foi feita e que não
necessário, até aos extremos da desesperação e da morte. Havia lhe resta mais o direito de pedir, porque só assim o abismo é
decidido dar agora à sua vida este conteúdo: a experiência su- transposto, a distância é destruída, porque então o ser que vivia
prema do Evangelho, integralmente vivida. Que aconteceria? outra vida e parecia de outra raça tornou-se dos seus, vive a sua
Observava e registrava. Nele se travava o grande duelo: quem te- mesma vida, com as mesmas necessidades, psicologia e dores.
ria razão, o Evangelho ou o mundo? Enquanto a sua vida prosse- Este é o veemente egoísmo do pobre, tão cheio de avidez, que
guia, observava os entrechoques da batalha. O mundo derrotaria não concede ao rico nem mesmo o supérfluo que o rico lhe da-
nele o Evangelho, ou o Evangelho venceria o mundo? Neste se- va. Mas o nosso protagonista, que sentia a justiça de Deus, sen-
gundo caso, a sua vida não era mais uma utopia. Não era um lou- tia também que aquele egoísmo era em grande parte um direito
co, como se dizia; o triunfo do seu espírito estaria completo, a via à vida e ao progresso, e que era seu dever dividir as suas vanta-
excepcional que seguiria não era errada. O seu caminho, porém, gens, pois não passava de verdadeiro furto tentar monopolizá-
era tão contrário às leis do mundo pelo qual avançava, que seria las para si. Sentiu que a esmola não é completa se não se tomar
necessário um contínuo milagre, a presença nunca suspeitada de nos próprios ombros a cruz do pobre, para carregá-la com ele,
uma Divina Providência, que o salvasse a cada passo de tudo e ao seu lado. Sentiu que somente essa é a verdadeira esmola, que
de todos. E olhava em torno para ver se o milagre se verificava e irmana, que nos faz, sem distinções, todos iguais, como filhos
26 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
de Deus. Sentiu que – não importa se as religiões se descuidam gamente que a estima e a atenção dependiam da sua posição so-
desta questão vital – só assim se podia aplicar o Evangelho e ter cial. Tornou-se o imbecil, o alvo preferido dos críticos fáceis,
o direito, sem mentir, de se dizer cristão. triunfantes, sempre heróicos diante de um vencido, mas animai-
Assim, ele, como cristão, não quis fugir ao cumprimento de zinhos tímidos e obsequiosos diante de um forte. Aprendeu a
seu dever, nem acomodar-se na passiva solidão contemplativa, conhecer toda a vileza humana. A experiência da verdadeira
onda há excesso de tempo e de paz, ou em ociosa pobreza de imitação de Cristo começava a se tornar trágica. Que seria feito
resignada e inerte aquiescência, indiferente às fadigas e às dores dele? Atrás da sua posição social, teria naufragado também a sua
do mundo. Mas abriu, como cristão, os braços às fadigas e às alma? Que horas de desespero o aguardavam, a ele, o louco?
dores alheias, fazendo-as suas, e quis, como cristão, o seu posto O julgamento da opinião pública, no seu ambiente, se fixava,
de luta na vida. Sentiu que nenhuma espécie de penitência pode se consolidava e se divulgava. Ao seu redor, em lugar da antiga
justificar o sutil pecado do isolamento, que nos afasta da frater- auréola de estima e de atenção, expandia-se agora um odor de
nidade na luta e na dor, ou o pecado capital do ócio, que nos apodrecimento. Há seres vis na sociedade; vivem, como certos
afasta do grande dever individual e social do trabalho. Não é vermes imundos, de todos os produtos em desagregação e os fa-
acaso suficiente matéria de penitência a dor do mundo, para que rejam de longe, para correrem prontamente, ao primeiro sinal,
se deva artificialmente buscá-la de outra forma? Fixada a sua em busca da presa. Eles cumprem a função biológica de apressar
posição, preparou-se para agir. Quem verdadeiramente crê nu- o fim e de transformar aquela podridão em outra forma de vida,
ma coisa começa a praticá-la, ao invés de pregá-la. Amava a fé seja embora inferior. Ousara desafiar as leis do mundo; era justo
criadora, as virtudes dinâmicas e operosas, e se lançou à obra. que este se vingasse. Ninguém poderia já agora detê-lo. A prin-
Enquanto as suas intenções não se manifestaram em fatos con- cípio, o sacrifício é belo, livre, generoso, heróico; mas, por últi-
cretos e não se tornaram claramente visíveis no exterior, as coi- mo, nos ligamos inexoravelmente a ele, que é então miserável,
sas andaram discretamente. O mal-entendido o defendia; os forçado, atroz, impiedoso. A sua nova posição trouxe consigo os
seus atos podiam ser interpretados de maneira diversa. Deixa- piores Judas do mundo dos negócios, espertalhões, ávidos de li-
ram-no viver. Mas, quando, pouco a pouco, começaram a com- quidá-lo, sugando-lhe tudo o que fosse aproveitável. Amarga-
preender o que ele de fato queria fazer, os seus dependentes, mente, estudou aqueles rostos ávidos e a sua psicologia. Com
que receavam perder as suas posições e ser despojados das suas que prudência farejavam a vítima à distância, como giravam de-
utopias, ocultamente se congraçaram para tomar conta de tudo, pois ao seu redor, cautelosos, assegurando-se de que ela já não
antes que qualquer outro o fizesse, e começaram o cerco. podia morder! Com que garbo felino a cercavam de todas as as-
Quando principiaram a compreender as suas verdadeiras inten- túcias, a amarravam, como faz a aranha com a mosca, para que
ções, deram início às apreciações, aos juízos e, com estes, à não mais pudesse mover-se e, então, amparados na justiça, a en-
condenação. Começava assim, econômica e moralmente, o tra- volviam na sua baba e a sugavam! Com que olhar ávido de
balho de sua demolição. Eram essas as leis normais e naturais; vampiro espreitavam os seus últimos arrancos, para desferirem o
devia suportá-las. Agem inexoráveis no seu plano, seguindo a ataque final e se banquetearem sobre a vítima enleada! Apare-
própria justiça. Não importa se trata-se de um mártir ou de um cia-lhe então horrorosa aquela riqueza, que atraía semelhantes
santo. As suas reações pertencem a outros mundos, que a natu- espíritos. Maldisse o esterco do demônio, ídolo do mundo!
reza terrena ignora e dos quais não se dá conta. As compensa- Vamos ao fim. Os vampiros, afinal, arrancaram as máscaras.
ções surgirão depois, noutro lugar, não aqui na Terra, onde rei- E a luta se tornou, então, sem quartel e sem escrúpulos, a verda-
na outra lei, a do mais forte. Ele encontrava-se entre os venci- deira luta corpo-a-corpo, a luta feroz pela vida, sem tréguas e
dos; aqui em baixo não importa que um destes se destine a ele- sem piedade. E, em breve, ele se encontrou por terra, pobre,
var-se mais tarde. Tinha de sofrer, portanto, a sorte impiedosa abandonado, desprezado. Cumpria-se o primeiro grande ato de
dos vencidos. Suportar todas as torpezas do aniquilamento. seu destino. Estamos no momento mais desolado, no mais pro-
Não pediu ajuda a ninguém, porque sabia que este era o seu fundo ponto da descida. E eis que ele tem de abandonar seu ni-
caminho e queria segui-lo até o fim, para não renegar o Evange- nho, tem que se pôr a vagar pelo mundo sem ter mais a sua casa.
lho. E, além disso, sabia muito bem que quem sabe negociar Arrancaram-no de seus caros e velhos hábitos; foi destruída toda
gosta de fazê-lo apenas em benefício próprio. Assim, superou a a sua delicadíssima sintonização vibratória, que ele ajustara ao
tentação de recorrer a parentes e amigos, e o cerco continuou. seu ambiente; foram dilacerados todos os doces afetos. Todas as
Enquanto os interessados no caso o atacavam e espoliavam, o suas coisas, recordações de outros tempos, que eram a sua pas-
mundo o julgava. Os primeiros o assaltaram com trapaças e trai- sada vida, foram atiradas, sacudidas para todos os lados, servi-
ções, o segundo o cercou de uma atmosfera surda de desprezo. das, pedaços de sua alma jogados ao vento! Que destruição! Era
Desprezo, porque não sabia vencer no plano humano dos valores seu próprio cérebro que estava disperso. Que desolação não ter
comuns; desprezo, porque perdia o poder que já possuía e tinha mais um lugarzinho próprio para descansar a cabeça; um lugar
de cair entre os pobres, os deserdados, os mendigos. Devia, pois, onde pôr em ordem as suas coisas, para poder ordenar, sobre
sofrer a mesma sorte destes, ser considerado um falido na vida, elas, seus próprios pensamentos. Desordem que penetrava tam-
como estes eram considerados: coisas sem dono, carne feita de bém em sua alma, sobretudo a sua mente. Encontrou-se, de súbi-
miséria, que se pode pisar impunemente, feita mesmo para ser to, longe de sua casa e dos seus, perdido numa desolada região
pisada. Sentia a injustiça do julgamento, mas se confortava na da Sicília, num pobre quarto de pensão, com uma cama e uma
tranqüilidade e na satisfação da sua consciência. Restava-lhe, mesa, pobres e não suas. E os ajuizados desprezavam-no, repeti-
porém, a humilhação, e esta queimava. Não como humilhação, am-lhe sábios e prudentes conselhos de sua própria experiência
porque o seu interesse ele o colocava em coisas bem diversas, e e o faziam com tanto maior autoridade, porquanto os fatos lhes
sabia que o juízo do próximo não o podia elevar nem abater, davam razão. Ele fora um rebelde, um teimoso, e em sua intran-
mas queimava porque o isolamento é doloroso para todos, mor- sigência em seguir seu absurdo escopo, atraíra a inimizade de
mente para os espíritos mais retos e sensíveis, que sentem de conhecidos e parentes que não estimavam pobres perto, que são
maneira mais viva a necessidade da fraternidade humana. Foi um contínuo perigo, gente para ser mantida. No entanto, quão
julgado sem piedade como inepto, pois só assim se podia expli- mais atraente e simpático se torna aquele que triunfa! Que res-
car e admitir o empobrecimento. Reprovaram a sua inaptidão, peitável, que estimável pessoa! É tamanha a simpatia, que todos
suspeitaram da sua boa-fé; quanto mais ignorante era o seu pró- fecham um olho voluntariamente aos casos de honestidade e ou-
ximo, mais se apressava a julgá-lo da maneira mais inexorável. tras coisas. Que fascínio a riqueza! Mas de tal projeto de pobre-
Perdeu todo o respeito da parte dos outros. Compreendeu amar- za que poderia nascer, senão sempre novas derrotas?
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 27
As experiências evangélicas deste gênero fazem-se apenas certas coisas não se vêem nem ao microscópio, nem na análise
em teorias; na prática, se forem feitas, o são muito superficial- química; não se percebem por métodos mecânicos ou racionais.
mente. Geralmente, esta parte mais real e substancial dos ensi- Sentem-se apenas por intuição e alcançam-se por síntese.
namentos de Cristo – que foram ditos não apenas para serem Um médico que tivesse compreendido o caso especial teria
pregados, mas também aplicados – vem sendo, prudentemente, dito, honestamente, que não sabia a causa da doença e nada pode-
deixada no esquecimento, e todos evitam chamar sobre ela muito ria fazer, que sua origem era uma questão de temperamento e que
claramente a atenção. Prefere-se fazer ressaltar os aspectos que o doente encontrasse por si e seguisse o regime mais convenien-
dão autoridade, poder e que reforçam, em vez de enfraquecer, o te. Mas como se pode pretender o antibiológico, isto é, que o
homem no plano humano. E das conquistas e exaltações do plano homem que mora dentro do médico, o homem biologicamente
do espírito fala-se em forma retórica, sem se pensar que elas pos- normal, reconheça a sua própria ignorância e que o edifício cons-
sam ser realidade de vida. O homem normal considera espantosas truído por meio de afirmações se destrua a si mesmo para admitir
as dificuldades das primeiras provas e inacessível o triunfo espi- a própria incapacidade? E as exceções não se podem encontrar a
ritual de que elas são a promessa; afinal, as duas coisas: condição cada passo. Certas visitas médicas são planejadas em série, sob a
e resultado estão igualmente acima da sua capacidade. E, sem es- necessidade de lucro, e feitas a um público que, pelo fato de pa-
forço, unicamente por instinto humano, ele se prende a um tácito gar, impõe mais ou menos ao médico a sua psicologia e oferece
acordo, com o qual a maioria concorda e que se transforma em alterações de grande importância, situadas no plano físico.
uso geral: cuidar das belas coisas que se dizem, mas não se fa- Estas visitas médicas são apenas, por sua própria natureza,
zem. Isto dá impressão de mentira e de contradição, mas o ho- um rápido exame externo, no qual é o doente que, declarando
mem é o que é, e como se pode pretender que ele tenha a heróica os sintomas, prepara o diagnóstico. Não podem ser uma obser-
coragem de se prender aos fatos ao invés de às palavras nestas vação longa e profunda, que só o doente, por estar em contato
tão terríveis experiências evangélicas? É mesmo natural que, se constante e direto com o fenômeno, pode fazer. Este gênero de
algum temperamento de exceção quiser convencê-lo, o homem auxílio médico não lhe podia trazer senão fastio. Isto se conclu-
comum não o compreenda, não o admita e ainda o condene. Sa- ía pela habitual prescrição oral, ou pior, por injeções, isto é, a
bia tudo isto e não esperava nada e nada pedia aos seus seme- forma mais violenta, inassimilável e mortífera.
lhantes. Mas tudo pedia e tudo esperava de Deus, ou seja, da for- Mas seu organismo era de ferro: resistiu durante vinte anos.
ça de outra ordem e de outro plano. Sabia que não lhe restava ou- Um médico tratou-o com lavagens gástricas e, para sofrer me-
tro caminho a seguir e que assim devia comportar-se, se desejas- nos, ele acabou fazendo-as sozinho, engolindo um comprido
se progredir na estrada da ascensão espiritual. Pois que a lei justa tubo de borracha. Outro havia declarado uma doença do peito
e fatal é que, sem uma limitação no plano humano, não se pode por vários sinais descobertos na radioscopia. O diagnóstico de-
alcançar a correspondente expansão no plano divino; que o cres- pendia muito da especialização do médico. Um homeopata
cimento do espírito pede a mortificação da matéria; é lei também aplicou-lhe, naturalmente, a homeopatia. Uma vez, recorreu a
que não se pode realizar uma conquista sem renúncia. um famoso doutor de doenças nervosas e foi tratado como neu-
rastênico. Não lhe escapara, durante a visita, o aspecto nervoso
XII. ATRIBULAÇÕES e agitado do médico e não tinha compreendido como tal sumi-
dade não soubera curar-se a si mesmo. Escapou por pouco de
Outro fato agravava a sua posição. Estava doente. Grave e cair em uma clínica onde já se projetavam tão sábias complica-
imperdoável erro! Porque um doente é um débil que se deve ções, que não lhe seria fácil sair dali vivo e são.
expulsar ou um peso que se deve suportar – sempre igual- Não se prejudicam com isto os maravilhosos e benéficos
mente detestado. progressos da medicina, nem o mérito dos grandes que, com tan-
Na luta pela vida não há margem para auxílio nem repouso. E ta abnegação e fadiga, os conquistaram. Nem se afirma que o
qual era a sua doença? Os médicos giravam-lhe em torno havia médico seja sempre assim, mas apenas que assim se afigurara ao
vinte anos, sem compreender nem concluir nada. E ele, pacien- nosso protagonista. O leitor saberá se o caso é frequente ou raro.
temente, se transformara em campo experimental das suas infru- Sem dúvida, existem na medicina orientações sadias ao lado
tuosas tentativas e em fonte de rendimento. Despesa e sofrimen- dos sistemas de equilíbrio que a natureza ensina e deseja, mas a
to, o único resultado. Há gente que acredita que, para sarar, basta medicina oficial tende, com freqüência, à intervenção forçada e
ir ao médico e tomar seus remédios. E isto pode acontecer, sem unilateral; em vez de se aplicar por meio de síntese e intuição
dúvida, em muitos casos, sobretudo naqueles evidentes e bem de- nas leis da vida, consciente do paciente, tenta convencê-lo por
finidos por sua natureza, mais acessíveis a uma ciência necessa- via de análise e cerebralismo, não conseguindo com este instin-
riamente mecanizada em sua aplicação. Mas há doenças que são to másculo da imposição e constrangimento senão perturbar os
um temperamento, e há temperamentos que são uma doença. complexos equilíbrios da natureza.
Existem constituições que, por estrutura orgânica congêni- Todo o nosso tempo – também nos outros ramos da ciência,
ta, trazem consigo um insuprimível desânimo de viver, uma como na música, na pintura e na literatura – é uma hipertrofia
sensação fundamental de mal-estar ao invés de bem-estar. A de cerebralismo, de virtuosismo técnico, de mecanização, onde
dominante medicina atual agarra-se ao lado físico do indiví- a luz do espírito sintético, intuitivo e criador é sufocada e extin-
duo e não cura o lado espiritual, que, em algumas pessoas, ta. Mas esta é a hora da matéria, e é preciso vivê-la enquanto o
pode ser preponderante. ciclo não for superado.
Ele não tinha lesão alguma; todos os órgãos estavam em per- E, assim, ele se enfastiou até à náusea; foi sugado enquanto
feito estado, portanto, teoricamente, devia estar bom. Tinham-lhe teve dinheiro, e seu organismo ficou saturado de medicamen-
feito os mais disparatados e inconciliáveis diagnósticos, tanto que tos. Eis o que o mundo lhe dera. Não era a ciência, a medicina –
a medicina não lhe parecia mais que uma opinião. Mas todos se era o homem o responsável que, sob qualquer pretexto social,
agarravam a este ou àquele órgão; ficavam de fora, eram analiti- atirava-lhe sempre a mesma verdade biológica: lutar é a lei; ai
camente parciais, embora sinteticamente totalitários, enquanto dos fracos que não sabem defender-se, ai daqueles que implo-
que a chave estava num dissídio no funcionamento mais íntimo ram socorro! Esta é a substância permanente, infalível, presente
das trocas celulares, quase um dissídio entre espírito e matéria, em todos os diagnósticos, mesmos os mais discordantes. E tal
entre o aparelho elétrico diretor, rebelde aos que desejam dirigi- foi, portanto, a sua conclusão desta experiência: defender-se.
lo, e o metabolismo bioquímico de seu organismo. Foi-lhe, afi- E um dia disse: ―é melhor morrer que chamar o médico‖, e
nal, aconselhada uma intervenção cirúrgica: cortar para ver. Mas manteve a palavra. Foi esta uma das primeiras vantagens de sua
28 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
pobreza: a necessidade de aprender, antes de tudo, com um sábio ante na evolução. No fundo, era o mais dinâmico entre os dinâ-
regime, a defender a sua saúde, pois que só ele podia conhecê-la micos, o expoente do tipo Século XX, o tipo do espírito que é,
bem, evitando o perigo de pedir ajuda e colocá-la sob a adminis- sobretudo, ativo – o tipo biológico da nova civilização do Ter-
tração de manuseio de outrem. De resto, já percebera que, em ceiro Milênio. Realmente, amava o trabalho e tinha a coragem
qualquer assunto, aquilo que se confia à administração de outros para as mais arriscadas aventuras espirituais. Magro, ágil, sem-
está perdido. Estes são os perigos da riqueza. Esta insinua que pre em movimento, resistente à marcha, à escalação de monta-
pode fazer com que se fuja da luta, do sacrifício, da disciplina das nhas, ao calor e ao frio, bronzeado pelo sol, robusto, filho de
leis da vida. Tudo isto é uma insuprimível norma da natureza, e o pais longevos, destinava-se a ser também longevo. Sempre ao ar
convite ao repouso e ao arbítrio não passa de mentira. livre, amante de banhos, tomava-os quentes e frios e a toda hora,
A vida é séria e dura. Cada um precisa saber defendê-la e não obstante a suposta doença do peito – nada mais que um res-
discipliná-la por si mesmo. A tarefa da proteção da própria friado. Detestava a calefação e vivia entre ásperas montanhas,
saúde não pode ser mediante pagamento. As leis econômicas numa choupana exposta, no inverno, a todos os ventos.
têm um limite, e o dinheiro não pode tudo. A saúde será natu- Isto não era senão um efeito. O centro de sua vida estava no
ralmente resguardada com a observância das leis biológicas espírito, como todas as suas maiores alegrias: conceber, criar,
que a outorgam – não a troco de qualquer riqueza, mas apenas conquistar, progredir. Ele parecia a célula nervosa da socieda-
àqueles que a merecem. de, projetada para diante, especializada em funções evolutivas.
No entanto ele havia aprendido a conhecer o próprio orga- Era inútil pretender que a medicina compreendesse e curasse o
nismo: o estudo, mesmo elementar, da medicina fora para ele íntimo dissídio físico-espiritual do seu ser, e que fosse possível
muito atraente. Como em tudo o mais, desejava, antes de tudo, acalmar seu tormento. Não se podia reequilibrar no plano hu-
compreender-se. Para sobreviver a vinte anos de tratamento, mano. Fora construído para a luta, nascera em um século de lu-
seu organismo havia dado provas de uma resistência excepcio- ta e devia correr com todos e a frente de todos. Não lhe restava
nal. E, de fato, seu sofrimento não o impedia de estar sempre senão equilibrar-se na luta. No repouso não vivia. Esta era a sua
ativo, sempre trabalhando – dinâmico, criador, temperado pelo natureza, das suas qualidades morais às suas características ce-
cansaço físico e intelectual, rico de uma produção contínua. lulares. Tal era ele, alma e corpo. E, se podia ter a aparência e o
Naquele corpo magro, todo pensamento, nervos, sentimento e sofrimento de um patológico, aprendera a compreender a fun-
vontade, existia um espírito extremamente rico, indômito, ine- ção biológica deste patológico, a significação evolutiva daque-
xaurível, que comunicava a cada fibra do organismo a sua for- las aparências e as razões que justificavam aqueles sofrimentos.
ça e a sua resistência. Parecia queimá-lo e decerto o fazia, exi- Estes continuavam, mas o espírito resistia. O espírito suportava,
gindo dele uma atividade que é natural ao espírito, mas que o afrontava, resolvia e superava tudo. Ele deixava agir a grande
corpo não pode seguir. sabedoria da natureza, que deseja a vida, e não a morte, e pro-
Esta exuberância espiritual parecia manter-se à custa do fí- tege a laboriosa gestação da evolução.
sico, ao qual depauperava continuamente. O segredo de seu so-
frimento parecia estar neste desequilíbrio de proporções, nesta XIII. A DIVINA PROVIDÊNCIA
hipertrofia evolutiva psíquica e sensitiva – desequilíbrio que se
recuperava continuamente em algum misterioso contraste no Aquele primeiro ano de exílio em região perdida no extre-
fundo do fabuloso processo da vida, que é a troca das células. mo da Sicília, tão espiritualmente longe da sua mística Úmbria,
Ali, por certo, as qualidades espirituais do indivíduo se põem foi de profundo sofrimento. Era este o primeiro gole do cálice
em contato com os mais complexos processos de química or- da sua amargura. Parecia-lhe impossível descer mais baixo.
gânica. É ali que as zonas inferiores do espírito, representadas Que desolação de alma, de trabalho, de ambiente! Os habitantes
pelo sistema nervoso, se confundem num estreito abraço com do lugar, muito corteses, lhe diziam: ―Mas fique conosco. Aqui
as zonas superiores da vida da matéria. E aí estaria, certamen- é tão bonito!‖ E ele pensava: ―Oh, poder fugir!‖.
te, o desequilíbrio não percebido pelos médicos, não acessível Parece seja necessário, para que se possa manifestar alguma
à medicina. O inevitável contraste entre espírito e matéria, que lei superior da vida, que uma alma deva primeiro ser espoliada de
estava na linha do seu destino, estava tão profundamente im- tudo; parece que antes de se revelar por atos, aquelas leis espe-
presso em seu ser, que se projetava ativo e sensível em seu or- ram que ela se tenha flagelado ao extremo. Parece que essas leis
ganismo. Como a sua vida espiritual demasiado intensa não se exigem como garantia a prova do máximo que o indivíduo possa
adaptava ao ambiente humano, assim também seu organismo suportar, segundo suas forças. O espírito deve chegar a um vérti-
espiritual não se adaptava ao seu corpo físico, com o qual não ce de tensão e desespero, que é o momento crítico no qual o fe-
estava em acordo, mas em contínua desavença. nômeno da catarse espiritual se realiza. Chega então um ressur-
O homem do nosso século, dinâmico e esportivo, não acha- gimento, pelo qual as forças negativas assaltantes ficam venci-
rá simpático que o protagonista seja apresentado como um do- das. De negativas se transformam em positivas e, em vez de de-
ente, ficando justamente desconfiado com a exaltação de men- molir, constroem. Para que se possam verificar tais prodígios, são
talidades elevadas em corpos doentes, o que vale para a média, necessárias condições especiais de espírito e de ambiente. Mes-
pois que as criaturas normais devem ser, antes de tudo, sadias mo sem o saber, guiado por seu instinto, ele as havia preparado.
de corpo. Mas a sua não era doença no sentido comum, impli- Estas culminâncias não se improvisam. Só podem emergir de
cando inferioridade orgânica. Era a pseudodoença da evolução, longos períodos e preparação subterrânea, que progridem sem
era o pseudopatológico, que a tantos induz em erro, caracteri- que a consciência o saiba. Quando tudo está maduro, então o fe-
zado pela maior fecundidade e dinamismo construtivo, com a nômeno se precipita rápido e irresistível como uma explosão.
febre resultante da intensa maturação do espírito, pelo desequi- Apenas as forças do destino o fizeram tocar o fundo do abismo,
líbrio das profundas transformações biológicas. logo se transformaram para elevá-lo e salvá-lo. Em vez dos im-
Realmente, no fundo de seu sofrimento estava o germe de pulsos que poderiam lhe aparecer como demônios enfurecidos,
suas mais potentes criações intelectuais e morais. A sua tentativa desejando destruí-lo, ele se viu circundado de impulsos que eram
de superação humana tinha raízes tão profundas em toda a sua como anjos que, amorosamente, o rodeavam, confortando-o.
natureza, que se revelava, primeiro, em seu organismo. Dos pla- Que houve e como se deu essa transformação? Fora obriga-
nos superiores do espírito aos ínfimos planos da matéria, ele era do a atuar na sua heróica experiência, mas era, por certo, uma
um só e mesmo fenômeno, a mesma tensão do destino, a mesma interrogação colocada diante daquela providência, à espera de
transformação, alma e corpo – todo ele estava projetado para di- uma resposta decisiva. Neste momento crítico houvera uma
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 29
complicação no seu destino, e ele a ligara ao nome de Cristo. dia logicamente esperar. E, agora, esse lucro era seu. Podia vi-
Tê-lo-ia Cristo escolhido? O seu destino estava naquele mo- ver agora também economicamente, como era justo.
mento crucial em que surgia a trágica pergunta: ―O Evangelho A intervenção da Providência, a presença de seu auxílio, a
seria humanamente aplicável, ou quem o aplicasse deveria ficar prova da verdade do Evangelho não se demonstraram só em fa-
destruído?‖. Esta pergunta era uma força, porque se fundava em tos exteriores, mas também em acontecimentos interiores, em
fatos e pedia aos céus uma resposta concreta. E não podia calar. seu espírito. Para ele, estes foram mais comprovadores. A mai-
O nosso homem acreditava-se no direito de impor-se uma ques- or transformação não se realizou no plano físico, mas no plano
tão: Ter-me-ia o Evangelho enganado? E de levantar o dilema: espiritual; não na sua posição humana, mas em sua alma. Tudo
Se o Evangelho é verdade, Deus deverá me salvar; se Deus não lhe apareceu iluminado por uma luz diversa, que a tudo dava
me salvar, o Evangelho não é verdade! Com seu empenho tão um sentido mais profundo. Toda a personalidade se transforma-
sincero, pleno e definitivo com respeito aos ensinamentos ra em seus meios de percepção, e o universo lhe aparecia sob
evangélicos, tinha dado às forças da vida tal impulso, que a sua nova revelação. A mudança de sua posição social era coisa de
posição atual exigia solução e resposta. valor secundário para ele. O verdadeiro resultado era este, espi-
Gostava de se retirar para suas preces à solidão de uma co- ritual. Aqui estava o rendimento verdadeiro de todas as provas
lina rochosa, sobreposta à região, entre cardos e figueiras bra- superadas; este era o fim maior, diante do qual tudo o mais era
vas. Ali, esperava nova revelação interior. Fora, nos trâmites da um meio apenas. E que significação evolutiva teriam as provas
vida, esperava a passagem da Divina Providência na sua já ago- se não fossem dirigidas para o campo espiritual?
ra necessária manifestação. Sentia indistintamente que alguma Ele semeara e já colhera. Começa, para nosso protagonista,
coisa havia de nascer, de dentro e de fora, e que aquela hora era outra fase de seu caminho, que vai dos quarenta e cinco aos
o ponto convergente em que se manifestariam os resultados de cinqüenta e cinco anos. Este período, que é a continuação lógi-
toda a precedente preparação de sua vida. ca e a maturação dos precedentes, assim como é a preparação
A Divina Providência operou sua intervenção nos dois dos que se deverão seguir, tem um conteúdo típico e particular
campos: o interno e o externo. Observemos, primeiramente, o de ressurreição. É sobretudo colheita, mas é também sementei-
que sucedeu exteriormente. Na situação de pobreza a que se ra; é conclusão do período precedente, mas é também princípio
reduzira espontaneamente, o trabalho já não era um dever ape- para o seguinte, em que se desenvolverá aquele destino. Por dez
nas, era também um direito e uma necessidade, porque não anos, é a nota triunfal, a que domina. Veremos depois aonde
dispunha de outros meios para viver. Sentia que a consciência conduz este Domingo de Ramos.
lhe dava o direito de pedir e obter de Deus, em nome de sua As três estradas a que ele, quando jovem, se atirara, ti-
própria lei, que aplicara, um trabalho adaptado às suas capaci- nham sido, por vinte anos, estradas de trabalho e de martírio.
dades. E, quando, em consciência, se sentia autorizado a obter, E transformavam-se agora em três estradas de ascensão e de
miraculosamente aconteceu. Já considerava seus semelhantes triunfo. Aqueles três motivos do seu destino invertiam-se ago-
como vontades nem sempre autônomas, mas movidos por mo- ra. A cada precedente negação sucedia agora uma afirmação
tivos mais altos. Desta vez, viu que realmente uma vontade su- correspondente; a cada renúncia e constrangimento, uma ex-
perior guiava as vontades humanas. Deu-se maravilhosa con- pansão; a cada tristeza, uma alegria. Tudo agora ressurgia no
vergência de circunstâncias, as mais diferentes, de atos dirigi- plano do espírito, tudo o que estivera sufocado no plano da
dos sempre ao mesmo alvo, em sucessão, devidos às pessoas matéria. E estas constatações exprimiam as leis daqueles fe-
mais diversas – uma sorte tão sagaz, previdente e inteligente, nômenos. Parece que a negação das coisas humanas é a con-
que ele não podia absolutamente concluir, se quisesse continu- dição da ressurreição nas coisas divinas.
ar objetivo, que os resultados obtidos pudessem ser fortuitos. As estradas que seguira por vinte anos juntavam-se num
O acaso não constrói, não pode construir todo um edifício que primeiro resultado, em uma sua e primeira solução: ―Compre-
traz uma fisionomia de evidente lógica. E tratava-se de fatos ender, Agir, Sofrer‖, e chegavam a um único fim.
externos, combinações só mais tarde compreendidas; tratava- 1) Compreender – O problema de consciência que ele se
se não de atitudes do espírito, mas de mutações radicais, das propusera em sua juventude, ao entrar na vida, estava finalmen-
quais derivava uma posição econômica e social – coisas que te resolvido. Continuara, depois de seus estudos universitários,
não se realizam por sugestão. Nem sempre se concretizam as- a procurar nos livros, interrogando as filosofias, as religiões, a
pirações preparadas desde longo tempo e com sagacidade, cui- ciência. Essa fonte secara. Poucos livros tinham sentido pro-
dadas com atenção e esforço, defendidas por uma forte vonta- fundo. Abandonara-os. Substituíra-os pela maceração interior,
de e habilidade – e aqui tudo se realizava, de golpe. Um resul- silenciosamente dirigida à intuição imediata da verdade. Sentia
tado complexo, apenas preparado e incertamente desejado. que apenas esta o satisfaria. Por intuição, obtivera uma visão do
Quem preparara e desejara de forma tão adaptada às neces- funcionamento orgânico do universo. Tivera deste a profunda
sidades, medidas com tanta precisão pela força e capacidade do sensação que só a persuasão oferece. Tinha posto de lado as vi-
interessado? Quem, em lugar dele, fizera isso por ele? O resul- as da razão, impotentes diante do absoluto, e se avizinhara de
tado ali estava, e tinha de existir uma causa. Agradeceu a Deus Deus pelas vias da fé. Tinha feito do sistema da intuição um
e concluiu que a Providência não abandona os justos e que, ao verdadeiro método de pesquisa.
menos até agora, o Evangelho não o traíra. Em seu espírito fizera-se luz completa. Resolvera, ao menos
A sua utopia fora confirmada pela realidade – confirmação para si, o problema do conhecimento. Como acontecera isto?
objetiva do método experimental, demonstrada pela intervenção Conseguira-o, não seguindo as vias comuns de aquisição de
da divina Providência. Esta intervenção não era uma afirmação cultura, mas um caminho bem diferente. Não enchera sua men-
teórica e genérica, um puro ato de fé, mas um ato experimental, te de erudição, mas conquistara um novo sentido de compreen-
para ele, pelo menos, um documento indestrutível, de valor são, como um novo olho para ver. O conhecimento era para ele
comprobatório indiscutível. Pusera o Evangelho à prova, e uma nova forma de consciência, resultante não do estudo, mas
Cristo, milagrosamente, lhe respondera: Sim. da maturação na dor. Esta maceração produzira nele uma trans-
Libertado por justiça de seus bens hereditários, em poucos formação de personalidade, levando-o a um novo estado, no
meses encontrou-se numa posição social verdadeiramente justa, qual o conhecimento é como um novo sentido, uma qualidade
porque exclusivamente dependente de seu trabalho. E eis que espontânea do espírito. Estas não são coisas habituais no mun-
não sofreria a falta do necessário, como receara e como, em do dos outros, mas são fenômenos que, embora excepcional-
conseqüência de sua conduta, do ponto de vista humano, se po- mente, ocorrem. Ao passo que a cultura não seria senão uma
30 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
aquisição exterior, um verniz cerebral – neste caso, todo o seu ações humanas. Sua maturação não o levara apenas ao conhe-
ser adquirira, por maturação evolutiva, uma transformação de cimento, mas à consciência de si e do universo; não à simples
consciência. Em outros termos, ele se encontra no mais fundo percepção das coisas, mas a um novo modo de existir, que de-
de si mesmo, onde existe a mais completa consciência de si e sejava ser ativo e operante, para se realizar também externa-
do universo. Trata-se de um processo completamente diferente mente, nos outros, nos seus semelhantes. Se ele havia conse-
da aquisição de cultura com a qual o homem comum procura guido sentir-se membro da comunidade de todos os seres do
compreender as coisas. Consegue-se apenas através da experi- universo, tal se sentia também, de modo particular, da comuni-
ência da vida, na escola das provações, na luta e na dor, pois dade terrestre, mais próxima, onde devia especialmente agir e
que não é algo que vem de fora, trazido para o nosso eu, mas realizar-se. Compreendia então que o grande passo de sua
uma revelação de sua profundidade. Só se pode conseguir atra- transformação não dizia respeito apenas a si mesmo, por mais
vés da purificação, porque é como que uma sensibilização, um importante que isso fosse, mas completava-se e se valorizava
mergulho à consciência dos estratos mais profundos da perso- com outra finalidade. Enfim, a transformação implicava a ex-
nalidade. O mundo de sensações e concepções latentes que ali plicação de sua missão terrena, que se manifestava agora pelas
se contém ressurge junto à consciência, pois a evolução é ape- forças em ação no seu destino e que era a valorização prática de
nas a expansão de consciência, sobretudo nos planos internos sua vida. Não podia guardar só para si os resultados consegui-
do eu, que são os planos superiores. Deus, que é a sua meta, es- dos. Divulgando-os, podia dar imediata contribuição ao conhe-
tá de fato no interior de nós. A luta e a dor conseguiram a capa- cimento e ao bem da coletividade humana. Suas canseiras não
cidade de sutilizar a casca física da alma, torná-la mais transpa- ficariam encerradas nele; não dariam rendimento evolutivo para
rente, permitindo-lhe revelar sua íntima potência. Era este, pre- ele apenas. Podia, finalmente, explodir e expandir-se também
cisamente, o fenômeno que agora se verificava. Esta descoberta na alma de seus semelhantes. Devia dar público testemunho de
de seu eu mais vasto, orientado para o funcionamento orgânico suas experiências íntimas, para o bem de todos, mas também a
do todo, dava-lhe um indestrutível senso de equilíbrio, de do- uma atuação mais íntima o levava esse período de sua vida.
mínio sobre os eventos, de independência, de paz. Divulgou em A transformação interior que o atingira, difundia-se e, na-
publicações os resultados deste seu reencontro. Foi compreen- queles dez anos, continuava a se desenvolver, fortificando-se
dido, entendido às avessas, não compreendido, condenado – como sensação, progredindo como poder e elevação. A reali-
tantos são os pontos de vista humanos. Mas isto não importava. zação do grande sonho da compreensão de tudo continuava,
O que realmente importava para ele era ter conseguido a plena completava-se na realização daquela sensação das coisas divi-
maturidade. A divulgação dos resultados interessava apenas à nas e da união com Cristo. A maceração interior que o amadu-
cultura e ao melhoramento dos outros. Ele estava agora consci- recera até à síntese do conhecimento, conduzia-o agora pelos
ente de sua verdade, e isto lhe bastava. caminhos da ascensão mística. No período de dez anos que o
Dentro desta mais vasta verdade, compreendera o significa- esperava, percorreria esses caminhos, extremamente apressa-
do do seu destino de expiação e de missão, entendera a infran- do, pois desejava alcançar a mais profunda assimilação, a mai-
gível verdade do Evangelho e o seu direito de confiar nela. or profundidade. Esta forma de agir encontrava seu desenvol-
Perdera a riqueza de forma tão horrível, com tão nauseantes vimento e assim se completava.
contatos, que não lhe ficara na alma nenhuma saudade, mas, an- E todos eram caminhos de afirmação, de expansão máxima.
tes, uma grande repugnância por ela e um sentido de piedade Expansão de pensamentos, de atividade, de sentimento. Cada
para os que a possuem. Portanto a experiência dera plenos re- fibra de seu ser fora joeirada, mas dava agora seu rendimento
sultados, e a lição fora definitivamente aprendida. Em compen- elevado à superior potência do espírito.
sação, encontrara uma riqueza inalienável e indestrutível, isto é, 3) Sofrer – A dor, como meio, havia agora alcançado seu
a libertação de tantas necessidades que a civilização impõe e, fim. Fora posta à parte, porque era preciso assimilar os resulta-
ainda, imensa satisfação espiritual, uma sensação de agilidade e dos conseguidos. Sem esta assimilação, as provas não teriam
leveza e de quase superioridade moral ante o mundo juiz e sentido. Vencera corajosamente, e o destino lhe concedia uma
pronto a desprezar. Tornara a encontrar, muito viva em seu es- trégua, pois que a lei de Deus não quer a dor pela dor, como
pírito, a sensação de Cristo, e esta era a sua maior alegria. Já inexorável punição, por malévola vingança. O fim não é fazer
agora, acontecesse o que acontecesse, compreendera também sofrer, mas fazer compreender, macerar para progredir. Atra-
isso, que era uma bússola sempre orientada. Sabia para onde es- vés da dor, ele conseguira certa purificação, alcançara lumino-
tava destinado e para onde queria e devia seguir. Via, nitida- sidade, realizara um refinamento, o que lhe permitiu emergir,
mente traçada, a estrada que tinha de percorrer. viver e construir, nas mesmas proporções, no plano espiritual.
2) Agir – Resolvido o problema universal, definido e enqua- Agora, a negação se convertia em afirmação proporcional.
drado nele o seu problema particular, podia realizar-se a si Aquele destino ressurgia, demonstrando que não se sofre em
mesmo, dando a própria contribuição, livre e consciente, ao fun- vão, sobretudo quando se sabe sofrer. O passado dava seus fru-
cionamento do organismo universal. Sabia que não passava de tos. A lei de esmagamento se convertia em lei de expansão. O
um grão de areia no deserto, uma gota no oceano, mas estava Evangelho de Cristo era verdadeiro. Ele não só se tornara dou-
consciente e operante. Sendo mínimo, podia dar tudo e, dando- to, mas fora fartamente compensado no espírito, e as coisas da
se, entrar na comunidade universal dos seres que agem e vivem Terra lhe haviam sido dadas em abundância. O voto de pobre-
na execução do pensamento de Deus. Nesta direção, podia ago- za fora substituído por uma nova posição social. O conheci-
ra, conscientemente, coordenar os seus esforços aos de todas as mento dos grandes problemas fora alcançado e seria divulgado
criaturas irmãs, para subir até Deus. Tornava-se membro e parte em triunfo. As provas tinham sido compreendidas por ele, ti-
funcional do grande organismo, como roda que, por menor que nham dado o seu resultado, e sua personalidade encontrava-se
seja, é indispensável ao mecanismo imenso. Sua vida adquiria transformada. Superadas as dissonâncias, o seu destino, har-
significação tanto mais profunda e tornava-se música harmoni- monizando-se com o universo, estava em paz. A missão de
zada com as mais longínquas esferas do universo. Nesta vastís- bem revalorizava agora a sua vida. A fase mística coroaria a
sima atmosfera, unia-se a uma imensa realização do seu mais maturação espiritual, completando-se para ele a transformação
profundo eu. Sua vida movia-se em uníssono com a vontade de biológica. À fase de expiação sucedia agora a realização em
Deus e seu destino se desenvolvia de acordo com a Sua lei. todos os campos. As três estradas convergiam para uma com-
A realização de si mesmo atuava também de forma mais pleta revalorização, no plano do espírito, de tudo quanto em
concreta, não apenas naquele sentido, mas ainda na prática de seu ser fora destruído no plano da matéria.
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 31
XIV. AFIRMAÇÕES ESPIRITUAIS próprio tipo e destino. Neste campo, do qual a maioria nem
mesmo suspeita a existência, tivera que se mover, porque ali
Durante dez anos, sua vida foi uma festa de criação, uma con- ouvira o apelo do destino, a única verdadeira realização de si
tínua exuberância de espiritualidade, uma intensa alegria de vi- mesmo, porque fora irresistivelmente atraído por aquele santo
ver, bem-fazendo e subindo, na mais profunda realização de si impulso de se exteriorizar, no qual se manifesta o choque de
mesmo. Ele se harmonizara com o Criador, e todos os seus atos forças contrastantes, que são a base da evolução.
eram um hino de gratidão ao Criador. Sua existência tornara-se Conseguira uma forma de pensamento e de ação onde não
um fervor contínuo de concepção, e esta era a sua maior sensação existia o frustrado, o desviado, o fora da lei, o expulso da
da alegria de viver. Ele, que jamais pudera encontrar a alegria no normalidade. Havia equilíbrio e harmonia na sua lei, com a
plano humano, encontrava-a finalmente no plano do espírito, pa- qual se impunha à atenção dos seus semelhantes. O mundo
ra onde se transferira o centro de sua vida. Tudo isso representa- não o podia aceitar senão como um desafio. O mundo só aten-
va para ele, em verdade, uma existência nova, plena de novas sa- dia à sua própria lei de luta, que impõe a rebelião aos que não
tisfações. Gozava dessa sensação de liberdade e de domínio que querem ficar destruídos.
só o vôo pode dar e que os répteis não admitirão jamais como Finalmente, um fato novo viera transformar a situação. Um
coisa possível. Parecia-lhe possuir novos sentidos, sentidos da fato que emergia do mistério, enviado pela Divina Providência,
alma, pelos quais esta podia finalmente revelar-se, agora que a incrivelmente determinada a proteger aquela mesma decidida fé
sua casca corpórea, macerada pela dor, tornara-se mais transpa- que ele tivera nela, naquela sua vontade férrea que o mundo
rente. O seu ser sentia-se como mergulhado num oceano esplen- tanto condenara e que agora produzia frutos tão altos. E todos
dente e vibrante, onde ele se multiplicava e se expandia, onde a quantos o haviam desprezado olhavam-no agora admirados da
sua consciência podia agora transpor os limites impostos à natu- inesperada revelação de capacidade de um inepto e interroga-
reza humana – os limites do espaço e do tempo. Ele, que desde vam o seu rosto sem compreender. O mecanismo dos instintos é
menino a julgara inaceitável e sufocante, sentia que encontrara suficiente para guiar uma existência primitiva; é, porém, ins-
agora as verdadeiras dimensões do próprio ser, que chegavam ao trumento muito impróprio para compreender o mais. Em seu
infinito, e da sua verdadeira natureza livre, que estava no espírito. ambiente surgiam efeitos que não podiam ser tocados com as
Assim, intensa de embriaguez, foi essa alegria, que lhe pareceu mãos, mas de presença real. As causas, para as pessoas ignoran-
quase uma orgia – a orgia da superação e da evasão que existe na tes do complexo organismo das forças do destino, deviam per-
velocidade; a orgia de liberdade e de luz a que se entrega o prisi- manecer um enigma. Andava, agora, firmemente pelo seu ca-
oneiro finalmente liberto do cárcere estreito e escuro. Ele havia minho, sem se preocupar com outras coisas. As novas atenções
encontrado a si mesmo, as suas alegrias espirituais, as verdadei- surgidas depois de tanto desprezo deixavam-no indiferente co-
ras alegrias, a sua vida, a verdadeira vida. O paraíso não é um lu- mo as anteriores, que eram de condenação. A incompreensão
gar, mas um estado d‘alma. É a completa realização do mais no- permanecia a mesma, na derrota como na vitória. A realidade
bre de si mesmo – e ele alcançara esta realização. interior e profunda da sua vida continuava sempre igualmente
Os caminhos do mundo, que se abrem diante de todos, tão distante da psicologia de seus semelhantes.
bem adequados e proporcionados aos seus desejos, como cami- Como eles não tinham podido compreender o seu maior so-
nhos de afirmação, tinham sido para ele caminhos não adapta- frimento, que fora a razão de seu espírito permanecer inconcili-
dos à sua natureza – caminhos de negação. Fora no mundo um ável com o mundo, nem aquele temperamento original que o
desastrado, um inepto, e o mundo o condenara. Rebelara-se. impedia de participar da vida terrestre, agora não podiam com-
Destruíra as circunstâncias de vida que o ambiente tentava lhe preender a sua maior alegria, que era a de ter encontrado no
impor, afastara-as e agora encontrara a sua verdadeira vida, que plano do espírito o seu verdadeiro centro vital de atividade.
não podia ser de matéria, mas de espírito; não podia estar com o Deste novo estado, das incompreendidas afirmações espirituais,
mundo, mas contra o mundo. A adversidade, afastando seu es- restavam as conseqüências, restavam os fatos. E os fatos não
pírito da natural projeção exterior, recalcando-o para o interior, podem, mesmo para quem não os compreenda, deixar de exis-
guiara-o não à natural dispersão, mas a uma concentração di- tir. As conseqüências sensíveis da invisível intervenção das for-
nâmica, até à compressão do explosivo, constrangendo-o àquela ças da Divina Providência chamavam a atenção geral. Ele tinha
profunda elaboração interior de que puderam nascer as grandes agora uma posição social. Escrevia e publicava; seus livros se
maturações. Dor salutar e preciosa, que o obrigara a reagir em vendiam. Estava cheio de vigor e de entusiasmo. Trabalhador
busca de uma saída, que não pudera encontrar senão elevando- incansável, dava provas de inteligência e de vontade. Em vez
se às formas de vida mais altas. de ficar esmagado com seu fracasso econômico, mostrava-se
É na reação que o homem se revela. Tudo isso o forçou a muito satisfeito e corajoso; de muitos modos, provava ser um
demonstrar a sua verdadeira natureza e a sair para se encontrar vencedor. ―Caprichos da sorte‖, diziam alguns. ―Cada um tem
num mundo maior, aí conquistando a sua posição. Mais tarde seu gosto‖, diziam outros, sem saber ir mais adiante.
haveria de compreender ainda melhor as funções criadoras das O que impressiona as pessoas são os efeitos. As causas são
provas e da dor, a cujo duro aguilhão devia o ter-se despertado muitas e podem ser uma opinião, mas os efeitos não se discutem.
em tempo e o ter percorrido um caminho que, de outro modo, As pessoas olham, julgam e correm fanaticamente, cegamente,
jamais teria coragem de empreender. Se não fosse a dor, que atrás dos que vencem. São atraídas pelo instinto, inspiradas pela
outra coisa teria a força de mover e fazer avançar o homem pelo lei biológica da seleção. Fascinadas, como a falena, giram em
caminho exaustivo da ascensão? torno de uma chama até queimar as asas. Aqui estavam fatos,
Na maior parte dos casos, os seres humanos lutam com seus aqui estava o sucesso, essa coisa estupenda sobre a qual não se
semelhantes e desabafam com o outro sexo. Repetia com raciocina mais, tão admirável que não admite perguntas e inda-
Beethoven: ―Se eu tivesse sacrificado de qualquer modo a gações a respeito da procedência, do mérito que existe nela, até
energia vital, que teria acontecido de melhor?‖. Era cioso, mas mesmo dos erros que possa conter. A vitória é vitória – adora-se;
em outro plano. Elegera seus termos de comparação – seu rival assim como a derrota é derrota – despreza-se. Assim é o mundo.
e seu amor – um tipo ideal e se pusera a lutar desesperadamente Se o vencedor é um assassino e o derrotado um mártir, o mundo
para alcançar o supremo amplexo na identificação. Só neste ter- não compreende senão mais tarde, quando o mártir for liquidado,
reno sentira-se digno de combater. Tivera que triturar-se para sem remédio. E o mundo lhe fará um monumento, não para glori-
conseguir superar a animalidade humana. Mas não se pode ab- ficar o mártir, mas para sufocar os remorsos de tê-lo massacrado
dicar da própria natureza nem das afinidades fundamentais do e para melhor utilizar-se, em vantagem própria, daquele pretexto
32 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
de mérito e virtude. E ele, agora, aos olhos de toda a gente, ven- bem. Era uma hora de abundância espiritual. A ceifa se faz sob o
cera. O inepto – o sonhador inútil, o miserável – sabia agora fazer sol quente, depressa, sob a embriaguez da vitória, que é sempre,
muitas coisas e, portanto, os seus sonhos não deviam ser tão idio- em todos os campos, a maior exaltação da vida. Não há tempo
tas, se no que ele escrevia se encontravam tantas verdades, e o agora para a mente se deter a prever qual será o rigor do próxi-
mais importante era que se encontrava bem economicamente, mo inverno. Quando ele chegar, veremos. Agora é festa, e basta.
porque o seu trabalho lhe rendia o bastante para fazê-lo indepen- Ele estava todo entregue à grande colheita e ceifava em grande
dente. Os intrigantes, os que o desprezavam, começaram a levan- quantidade a messe abundante, e acumulava. Tinha pressa de co-
tar a cabeça e a olhá-lo, pasmados. Convenceram-se de que a rea- lher tudo. Não queria, não podia perder nada do instante intenso,
lidade dos fatos era inegável e, diante da constatação irrefutável, mas sempre em fuga. A sua alma era um incêndio, mas ele esta-
não puderam resistir ao desejo da admiração. Não há nada mais va ali presente em plena consciência e, embora ardendo, obser-
instável do que os estados psicológicos. É o que se diz dos outros vava e registrava tudo. Uma grande, impetuosa, destruidora cor-
que é digno de fé. Parece que, apesar de toda a mania de julgar, rente de pensamento atravessava o seu espírito, e ele tinha um
ninguém sabe julgar a si próprio. A admiração de terceiros, dos duro trabalho para contê-la dentro dos obstáculos da palavra, pa-
estranhos, aquela que vem de fora de casa, de longe, é a mais ra canalizá-la na forma de redação, para discipliná-la no desen-
convincente. E, quanto mais de longe vem, mais convincente é. volvimento conceptual que jorrava de sua pena.
E, assim, para se fazer admirar e conhecer do vizinho de casa, é Naqueles dez anos desenvolveu uma atividade enorme, sem
necessário, às vezes, que a admiração tenha feito a volta ao mun- repousar nem por um momento, num estado de tensão criadora,
do, porque, se ela vem do ponto cardeal oposto, então sim é plau- que devia depois acalmar-se, pois do contrário o destruiria. Mas a
sível. Se vem do exterior, é interessante e, se vem do outro he- própria febre o sustentava. E, nesse estado, lançou uma produção
misfério, é irresistível. Assim, a admiração se reforça, cresce, se literária tamanha, que mais tarde o assombraria por ter sido capaz
estende e se torna estima, isto é, aquela corrente de favor com de tanto. Não se pode explicar o arroubo e o triunfo de certas fes-
que socialmente se circunda e se define um indivíduo. tas do pensamento a quem não as experimentou e não está espiri-
Assim se realiza lentamente, em torno dele, a estranha revi- tualmente desenvolvido para as compreender. As orgias humanas
ravolta – estranha para quem atribui um sentido sério à vida, nada são em comparação. Todo o ser tem uma sensação de ex-
aquele que aqui se sustenta. Reviravolta que era como o lento pansão além dos sufocantes limites do espaço e do tempo; nave-
girar para o sol dessa flor que se chama justamente girassol. E, ga no seu elemento infinito, acima de todas as dimensões huma-
parece mentira, ele era agora admirado e estimado, mesmo por nas de poder, de domínio, de limpidez de visão. Numa exaltação
aqueles que antes haviam rido dele, mesmo por aqueles que, não sensorial de superfície, mas tão espiritualmente profunda, tão
quando estava vencido, mais o desprezavam. Assim são as con- mergulhada na substância do ser, que se poderia definir como um
vicções humanas. Afinal, é lógico que a vitória seja tanto mais arrebatamento. A verdadeira concepção é, realmente, um êxtase
admirada e a derrota desprezada quanto mais o indivíduo que e uma visão. E tal era para ele. Um turbilhão de correntes espiri-
julga é fraco, vil e constrangido a mentir. tuais envolvia-o, arrastava-o fora de si, não sabia para onde, de
Ele olhava e sorria, sempre longe da algazarra humana. Este visão em visão. Seu olhar interior assistia, pasmado, à dilatação
seu primeiro ensaio de notoriedade, em lugar de o entusiasmar, dos horizontes na vastidão dos planos da intuição, levado em
deixava-o desiludido. Os triunfos mundanos não o seduziam, novas dimensões conceituais, até à sensação da grandeza infinita
porque os via dos bastidores. Via que a glória não lhe dava o do funcionamento orgânico do universo. O pensamento parecia-
amor de seus semelhantes, nem a estima, nem a satisfação de os lhe verdadeiros relâmpagos, imprevistos, vivos, cegantes como
haver melhorado. Ao contrário, aparecer em destaque no hori- centelhas. Acompanhava-o a custo sua pobre pena, não conse-
zonte psicológico equivalia a excitar a cupidez, os instintos de guia registrar tudo, e seu coração entumecia na exaltação da ale-
exploração, de inveja e uma secreta reação demolidora. Repu- gria da concepção. Parecia-lhe até que este pensamento nascia
diava tais frutos como prêmio aos seus trabalhos. Ser conhecido de um novo gênero de amor espiritual que descia do céu, infla-
significava, pois, perder liberdade e paz – coisas tão necessárias mando-o como um turbilhão de fogo.
à sua produção intelectual e profunda vida de espírito. Quanta E ali estava ele, pobre escriba, mas consciente registrador,
gente vazia, que corre ao primeiro rumor, se interessava agora fiel e enamorado executor. Em torno, sobre a terra, silêncio. E o
por ele! E essa gente julgava, media tudo – e era preciso supor- grande campo adormecido sob o céu estrelado. À luz débil de
tar o seu vão falatório! Que atribulação aquelas apreciações uma lâmpada, uma pena corre rápida e sem rumor, como sem
sem sentido! Depois, lembrava-se de que os livros não lhe per- rumor correm as estrelas pelo espaço sem fim. Não há ao seu
tenciam mais. Pusera neles sua própria alma; não podia mais lado senão um maço de papéis em branco. Mas por dentro há
nada acrescentar, evitar ou modificar, pois que fixavam, irrevo- um incêndio de pensamentos, de fé e de amor. Certamente, lá
gavelmente, a sua figura espiritual. A cristalização de si mes- do alto, o bom Deus olha e sorri, piedoso e benigno, porque um
mo, vivo, num passado formal, sufocava-o. A obra concluída desgraçado, no fundo do inferno terrestre, levanta o olhar para
encarcerava, ao menos por um lado, o seu espírito e fechava a Ele e, cheio de fé, acredita que o sente e lhe obedece. Quem sa-
sua vida. Ocorreu-lhe então que o homem, chegado à glória, é be? Quem pode dizer qual o mistério daquelas horas sublimes?
uma estrada percorrida, um cadáver de que a vida deseja se de- Quem pode dizer que coisas, realmente, ardiam naquele incên-
sembaraçar depressa. Seu pensamento já agora não era mais dio? Sabe-o a ciência? Sabe-o a religião? Ninguém foi testemu-
seu, era o pensamento dos outros e, movido por outra vontade, nha; os metros comuns não servem para medir as expansões da
andava por onde os outros desejassem. E isso lhe bastou para alma. Ele sabia apenas de sua fé grande e sincera e, na simpli-
sentir o amargor que está no fundo das aproximações humanas, cidade desta fé, ardia ansioso somente por obedecer e dar-se.
a vaidade e a ilusão que existem nas coisas da Terra. E, então, Será assim tão imperdoável culpa para o mundo o crer e dar-se?
sentiu bem claramente que, se tivesse seguido os caminhos do E por que se diz, então, que só a fé basta e tanto se exalta o al-
mundo, não lhe restaria senão a sensação final de anulação. truísmo? Ele acreditava, e isto lhe bastava. E abandonou-se à
Voltou o olhar para horizontes mais vastos e confortou-se na infinita potência criadora da fé.
verificação de suas novas realizações espirituais. Quando huma- No entanto, diante do mundo prático e cético, um homem
namente triunfava, estimava-se menos que antes, quando sofria, que assim age é desprezado. E a sua não era uma fé inerte, mas
porque aquela era a hora maior de sementeira e esta era apenas a feita de cansaço e sacrifício. No esforço para seguir e realizá-la,
hora da colheita. Ele se alegrava diante do resultado de seus es- ele se dava e se consumia. Por que o mundo o considerava um
forços. Os espíritos eleitos compreendiam, e ele podia fazer o ingênuo? Por que, na prática, se estimam e se exaltam aqueles
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 33
que demonstram egoísmo e que são os hábeis acumuladores de ção tão madura e pronta dentro de si, que não lhe tomava tem-
riquezas, talvez tão sem escrúpulos, que podem constituir um po. O trabalho normal de preparação cultural, bibliográfica, de
verdadeiro perigo social. Haviam-lhe lançando em rosto que assimilação do argumento, estava já automaticamente realiza-
seus esforços não rendiam dinheiro e retornaram ao tema de sua do. Não precisava senão do tempo indispensável para a compi-
imperdoável inépcia... Mas ele estava absolutamente nos antí- lação material da escrita em duas vezes: uma primeira, ilegível
podas do tipo corrente de homem-máquina acumulador de di- para os outros, porque feita com extraordinária rapidez, e uma
nheiro. Acumulava bem outros valores e, no seu campo, era o segunda, cuidada, clara, para o editor. Os períodos nasciam já
lavrador e o escrupuloso economizador. Se, por um princípio quase sempre automaticamente harmônicos e coordenados; a
superior, desprezava o rendimento econômico, que rendimento palavra vibrante e espontaneamente fundida ao pensamento, em
moral tinha em compensação! Como se sentia hábil neste cam- estilo rebuscado, sem dúvidas, sem penosas incertezas, sem ne-
po, e que resultados obtinha! Parecia estar em ócio; quanto cessidade de corrigir ou refazer. A prosa era um ímpeto de pai-
mais intenso era seu trabalho, tanto mais procurava esconder- xão e de conceito. Alternadamente, segundo o argumento, ele
se, para não ser perturbado. Parecia repousar, e todos diziam: sentia arder a mente ou o coração, e vivia nesta chama da qual
―Mas ele não faz nada!‖ – porém depois se surpreendiam vendo sentia ter saído e por cujo intermédio estava sempre alimenta-
o resultado tão evidente brotar daquele nada e daquele ócio. Em do. Esta chama tinha a função de criar os escritos ardentes que
cada passo, em cada movimento, em cada atitude que tomava, nele nasciam em rápido incêndio e de transformar o nosso ho-
encontrava-se em irredutível contraste com o mundo. Natural- mem, operando nele ainda mais intensa maturação espiritual.
mente, não podia ser compreendido nem admitido, porque dava Vários elementos e momentos se interpenetram cooperando
às coisas do espírito a mais extrema importância. para a maturação desse período:
Por enquanto, estava protegido por um mal-entendido, gra- 1o) A maturidade de um destino em pleno rendimento. O su-
ças ao qual o mundo o apreciava, devido a efeitos secundários jeito em alta tensão espiritual, da qual jorrava a produção contí-
derivados de seu novo estado, ao qual ele não dava a menor nua, em que reside a sua realização no cumprimento da missão.
importância. Realmente, só um mal-entendido podia servir de Estado de grande rendimento também como resultado prático.
base a um acordo que, em verdade, era fictício e breve, entre 2o) No exterior, um mundo surdo e negativo, que admira só
ele e o mundo. Ele podia gozar da inapreciável vantagem de ser o lado espiritualmente insignificante do fenômeno, isto é, a po-
deixado em paz. Que mais podia pedir aos seus semelhantes? O sição econômica concedida ao sujeito pela Divina Providência,
mal-entendido podia se manter e estender pelo fato de ele traba- somente para que ele tivesse em que se apoiar na Terra, sem lhe
lhar em silêncio, sem fazer alarde de si, sem usar daquela pro- faltar o necessário. Ele está temporariamente afastado deste
paganda que usam os que desejam figurar no mundo. Suas me- mundo por uma incompreensão que se transformará em agres-
tas eram diversas. Movia-se não por vanglória ou por vantagens são à medida que, continuando a publicação de suas obras, me-
materiais, mas para obedecer à imposição que deriva da com- lhor se compreenda o seu pensamento. Há, todavia, pequena
preensão de seu destino. Nada tinha para exibir, porque nada minoria de eleitos que será chamada a colaborar, que compre-
pedia aos outros. Nada esperava dos outros, ai deles! Cuidava ende e encoraja. Apoio concedido pela Providência para que a
de construir como podia, sozinho, em plena sinceridade, crente missão se pudesse cumprir.
em Deus, por íntimo sentido de missão. Também no método, 3o) A alta tensão espiritual e a permanência do sujeito nesta
ele estava nos antípodas do mundo. elevada atmosfera, neste estado de graça, permitiram-lhe a ace-
Mas sob o mal-entendido incubava-se a discórdia, que era de leração da maturação evolutiva numa tão rápida expansão de
substância, profunda e insanável. De um lado, ele, ativo no espí- todo o seu ser para o alto, que o fenômeno se precipita da fase
rito, ligado ao Evangelho, progredindo sempre pelo caminho da inspirativa na catarse mística, e o registro conceitual transfor-
ascensão mística, e de outro o mundo, ativo na matéria, vivendo ma-se em contemplação e visão. Com esta realização suprema,
em desacordo com o Evangelho, sempre mais preso aos interes- conclui ele este período.
ses terrenos. À medida que o seu destino se desenvolvia, as duas A grande força que sustinha tudo era o seu íntimo incêndio
estradas se faziam mais divergentes e inconciliáveis. O desafio, espiritual. No momento, vivia disso e, mesmo exaurindo-se,
por enquanto, era latente, mas já era uma semente que havia de não desistia, não sentia cansaço. Além disso, à exultação inte-
se desenvolver e que, lentamente, chegaria à maturação. Muitas rior juntava-se a pura e intensa satisfação do triunfo exterior.
provas haviam tornado aguerrido aquele homem para que ele Os seus escritos tinham encontrado subitamente os melhores
personificasse o desafio e dirigisse a batalha. Cedo ou tarde, o editores e se traduziam e divulgavam no exterior. Como escri-
mal-entendido deveria dissipar-se, para revelar o íntimo desa- tor, ignorado entre os mais ignorados, surpreendeu-se e expli-
cordo e levá-lo a um embate, pois que tudo é luta na vida, tam- cou o milagre com a intervenção, também nesse campo, da
bém no espírito, e nada se consegue sem luta. Providência, que agora, tão decididamente, lhe abria novos
Sua alegria era grande, e ele gozava agora um grande triun- caminhos. Em sua vida privada, já obtivera provas surpreen-
fo. Mas, no contínuo progredir de todas as coisas, meta nenhu- dentes. Também aqui, uma inteligente convergência de forças
ma pode exaurir-se em si mesma nem conquista alguma deter- queria, preparava e agia. Ele, marinheiro de primeira viagem,
se com a sua consecução. Toda vitória verdadeira, sadia e posi- navegava em pleno oceano, na tempestade, entre tantos esco-
tiva – que não queira, dormindo sobre os louros, transformar-se lhos, sem evitá-los e com êxito. Alguém devia, certamente, di-
em podridão – contém em si o germe de uma nova batalha, é a rigir por ele, pois estava absorvido no trabalho de execução.
preparação de um novo esforço. Mas somente assim ela pode Avançava com segurança e sucesso, sem hesitar, deixando-se
ser também a preparação de um novo triunfo. guiar por um instinto que resolvia e concluía, sem lhe revelar a
análise nem o segredo de suas operações. Era a hora da abun-
XV. SOFRIMENTOS E VISÕES dância, e nenhum auxílio se recusava. Seu nome se divulgava e
se tornava notório. Por um momento, ele foi tão humanamente
A sua grande festa do espírito, a sua exultante euforia, o flo- ingênuo, que quase chegou ao ponto de acreditar na fama. Mas
rescimento daquele complexo destino, durou dez anos. Neste nem mesmo experimentara senão uma pequena parte dela e já
período, abandonou-se plenamente na alegria do cumprimento compreendera que amargo engano ela significava, tratando de
de sua missão. Nos únicos dois meses que, no verão, o seu tra- se livrar dessa ilusão, na qual tão facilmente se cai. O mundo
balho lhe deixava livres, conseguiu escrever um milheiro de via os efeitos práticos, admirava e aplaudia – justamente esse
páginas, que publicou em artigos e volumes. Sentia a concep- mundo que, de novo, preparava-se para condená-lo. Alguns, de
34 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
espírito de eleição, tinham compreendido não os rumores, mas que lhe davam penosa sensação de tristeza. A pena parava, e a
as originárias alegrias e dores. mente divagava. Aquele mosteiro parecia-lhe a Cartuxa de Val-
No entanto nem tudo era sempre festa no seu trabalho. Ha- demosa, onde Chopin, aterrorizado por íntimos pavores, com-
via as horas de embriaguez da concepção; havia os auxílios da punha em seu pobre piano maiorquino, sozinho, na noite tem-
Providência, que pareciam miraculosos; havia a realização de pestuosa, os amargurados prelúdios. E também, como Chopin,
si mesmo em resultados concretos. Mas havia também o can- ele via desfilar pelos tétricos e silenciosos corredores uma pro-
saço do trabalho, as resistências estúpidas do mundo cego e cissão de frades salmodiantes, à incerta luz de candeias. Fitava
inerte, o tormento de mil pequenas dificuldades, que precisava os olhos mortos e perguntava: ―Quem sois? Por que a vida e a
superar por si mesmo. Já estava assoberbado por outro traba- morte? Por que vivestes? Por que sofro? Por que se deve sofrer
lho, que lhe tomava as forças e a energia. Tinha que roubar ho- tanto?‖. E a fila continuava, e desapareciam quem sabe onde,
ras ao sono, e o organismo se ressentia. Violava a lei do equi- com o cântico lento e dilacerante. E ele despertava sobre a ata.
líbrio, impondo-se um esforço demasiado violento, que a natu- A vida batia-lhe com ela na face, como bofetada.
reza haveria de lhe fazer pagar. A alta tensão nervosa exauria- Voltava para casa tarde, seguindo caminhos escuros e soli-
o. Em volta, tudo ficava indiferente ao seu fragílimo estado de tários. No inverno fazia muito frio naquele povoado de monta-
hipersensibilidade. Continuava a caminhar pela sua estrada, nha, e ele morava justamente numa garganta entre morros, onde
ignorante da tensão que, às vezes, o empurrava brutalmente. a ventania soprava com violência. Mas o que ele temia eram os
Ninguém compreendia nem admitia este segundo trabalho, esta homens, e não os elementos.
sua segunda vida invisível em que se atormentava. Os seus su- Sua casinha estava situada entre ásperos escolhos, aberta
periores exigiam dele, justamente, constante rendimento. A vi- para o vale, onde dominava o vento. Era simples e pobre, e, em
da tem suas leis desapiedadas. E ele não tinha senão os seus torno, a força dos grandes movimentos telúricos parecia ter
pobres meios para avançar, e temia que lhe pudessem vir a fal- imobilizado as massas em atitudes de gigantes. Essa paisagem
tar as forças antes de terminar toda a obra. estava em perfeita sintonia com seu espírito; paisagem toda fei-
As férias de verão, oficialmente, significavam repouso. ta de força, com evidentes lineamentos audazes e violentos, nos
Quando ele, exausto de seu trabalho, retornava às ocupações quais a vertical era dominante. Estava em perfeita sintonia com
humanas, os superiores o esperavam para lhe dizer: ―Agora que seu espírito, exprimindo o mesmo doloroso anelo de ascensão,
repousou bastante, trabalhe‖. E ele trabalhava. essa paisagem atormentada, contorcida como se o espasmo de
Era um trabalho monótono, insípido, tão anti-intelectual, que uma íntima dor criadora tivesse ficado impresso na sua carne
o estupidificava. Justamente no período da mais violenta produ- martirizada. Quanto devia ter lutado essa terra forte e ousada
ção, Fora apanhado por um superior sem energia nem discerni- para elevar-se a essa altitude! Aquelas ciclópicas contorções te-
mento, mas em compensação implicante até ao exagero. Pobre lúricas pareciam falar-lhe do profundo tormento construtivo da
infeliz! Quem sabe em que miséria física e moral terá lutado pela ascensão, de que ele próprio sofria. Também a Terra, no seu
vida! Não era capaz de compreender que não tinha o direito de se plano evolutivo, muito havia lutado e certamente sofrido para
fazer socorrer por quem estava em piores condições que ele. poder chegar à formação daquelas soberbas catedrais de rocha,
Quando, finalmente, se foi embora, foi uma libertação para todos. obedecendo ela também à lei que ordena que, sem um profundo
Morreu a mãe de nosso protagonista. Pois tiveram a cora- e íntimo trabalho, não se pode construir coisa alguma. Ele que,
gem de não lhe dar nem um dia de licença. Uma vez fizeram-no com audácia semelhante, tentava construir a catedral do pensa-
voltar de mais de cem quilômetros de distância, quando estava mento, via-se na tensão daquelas agulhas de pedra e se encon-
nas férias de verão, perdendo um dia de viagem, apenas para trava a si mesmo meditando, como se, para chegar também ao
fazê-lo escrever duas palavras esquecidas numa ata. Coisa de vértice do espírito, fosse necessário atravessar e sofrer as mes-
loucos! O nosso homem amava o trabalho, o trabalho eficiente, mas convulsões, iguais desabamentos de planos inteiros de
não as inúteis formalidades burocráticas. A perda de tempo consciência e semelhantes reações de emersões salvadoras.
sempre lhe parecia um crime. Em seu quarto não havia senão o leito; não havia ali outros
Nestes pequenos contrastes, na resistência cotidiana de uma seres humanos para disputar-lhe a estrada, livre para se comu-
vida simples e pobre, ele se temperava. Certas humilhações ti- nicar com o céu. Quando voltava, a casinha estava deserta. Tu-
nham a força de lhe aprofundar o pensamento e lhe adoçar o do estava em ordem, como deixara, mas faltava o calor do afe-
julgamento de seus semelhantes, que são mais doentes que to. A temperatura da casa era muito fria, mas isto não era nada.
maus, embora relativamente culpados. Evangelicamente, supor- Ela era fria sobretudo para o coração. Era angustiante. Às ve-
tava e exercitava as virtudes da humildade e da paciência, des- zes, sentava-se, sozinho, nas escadas diante da porta, sem ter
prezadas pelo mundo, que exalta a força e a vitória. Em certos coragem de entrar, para não sentir aquele gelo. Também aqui se
momentos desdobrava-se e, como esteta da beleza moral, con- temperava. Certas solidões, intensamente dinâmicas e fecundas,
templava as suas condições de vida. E achava moralmente artís- são sofrimento útil e precioso. A sua solidão não era nem pací-
tico alguns contrastes violentos; achava moralmente conforta- fica aquiescência, nem inércia de espírito. Era um silêncio dese-
dores certas condições de abatimento humano. Em cada mo- jado e apenas exterior, para melhor ouvir a voz de Deus; era
mento, ele era sempre o irredutível inimigo do mundo, a ponto uma calmaria aparente, plena das mais macerantes tempestades
de não encontrar a sua própria exaltação senão na renegação, na e laboriosas maturações de alma; era uma inércia das coisas,
subversão, na destruição de tudo o que o mundo exalta. admitida apenas para não perturbar o ardente dinamismo interi-
O seu trabalho desenvolvia-se no local de um velho conven- or; era uma sufocante compressão de fora, que condicionava a
to. Às vezes, tinha de ficar trabalhando até tarde da noite para explosão criadora interna. A gélida privação de afetos humanos
terminar algum serviço atrasado. Acontecia, com freqüência, ter é, talvez, um constrangimento necessário para se encontrar o
diante de si uma daquelas terríveis atas, prosa sem sentido, que amor evangélico pelo próximo.
o superior examinaria, depois, até às vírgulas. E tinha de prepa- Passava os longos invernos de montanha naquelas solidões
rar diversas. A mente fugia para outros lados. Por dentro ardia geladas e nervosas, entre as tempestades e os montes. A solidão
um incêndio de pensamentos vivos, anelantes, que não sabiam é espantosa e sublime. O homem comum lhe tem quase medo.
ossificar-se numa ata. Tinha de escrever, e a mente rebelde di- Encontra-se sozinho diante dos grandes mistérios da vida, que
vagava, tanto mais ativa quanto mais detestável era o trabalho a dão vertigem. Sufocam-no os grandes silêncios, onde fala o
realizar. O edifício era frio, desolador, tétrico no silêncio e na Eterno e a alma escuta. É como se ele não tivesse força para se
solidão! Daquelas paredes nuas emanavam vibrações pesadas, apoiar nos pontos de referência situados no absoluto, por cima
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 35
do seu cotidiano relativo. Mas o nosso homem não temia aquele ção contínua e, sobretudo, a frivolidade com que era exercida,
silêncio. Solidão gelada, digna de ser vivida. ―Bem – dizia ele – incomodava-o. Nada é mais terrivelmente desapiedado que a in-
à porta da minha casa, a humanidade hesita, cala-se, não entra‖. consciência irresponsável. Só os maiores imbecis são capazes de
E o seu vulto, abatido pelo pensamento, curvado pela dor, com cometer as mais atrozes crueldades e, por isso mesmo, merecem
seu olhar triste e profundo, tornava a voltar-se para o alto, para perdão. Os rapazes que andavam pelas estradas daquele povoa-
o céu. Visões desciam, então, a confortá-lo e, assim, mais forte do montanhoso sentiam-se no dever de, apenas o viam, insultá-
se fazia o turbilhão de sua vida espiritual, e o seu ser se expan- lo com palavrões e, naturalmente, por excesso de coragem, sem-
dia para o alto, inebriando-se de liberdade. Sentia quanto fazem pre de longe. E ele indagava que grau representavam aqueles ra-
bem à alma e quanto são necessários estes grandes e terríveis pazes na evolução espiritual humana, que lei biológica do des-
silêncios para chegar ao fundo, onde está a realidade das coisas, conhecido instinto movia o insulto tão pronto e sinceramente
além das aparências e das ilusões humanas. Renunciava à vida sentido daqueles inconscientes. Nascidos ontem, eles sabiam
de todos, mas para conquistar uma nova vida; recebia revela- perfeitamente repetir as velhas cenas de vinte séculos, mas sem-
ções que depois divulgava em seus escritos. pre novas e renovadas, da crucificação de Cristo. Certos juízos
Tinha que descer muito profundamente para ouvir a voz de que faziam dele, com superficialidade e ligeireza, amarguravam-
Deus. Seus leitores pensavam que o estro inspirador, que tudo no. Há vidas obscuras, tristemente aprisionadas no silêncio; do-
parecia criar de golpe com tanta espontaneidade e facilidade, vi- res mudas que, mais que as outras, merecem respeito. Não sabia
nha-lhe gratuitamente, sem esforço. Não! A lei é que, sem dor, explicar certa persistência na maldade senão levando-a à conta
não há criação. Sabia quão duramente merecia aquela inspiração de profunda inconsciência e de completa insensibilidade.
vertiginosa; com que profunda maceração na dor e com que len- O riso de escárnio do julgador está perturbado pelo terror de
ta maturação fora preparada. Sabia que somente sob tremendas poder compreender e dever admitir que, naquele silêncio, existe
chicotadas do destino podiam nascer certas páginas, que pareci- um drama que não se ousa afrontar e, em conseqüência, há
am escritas com sangue; que somente sob o estraçalhar do espí- também um heroísmo que olha tudo de cima. Talvez haja nisso
rito podiam surgir aquelas palavras, que soavam com o timbre um destino de trabalho e de dor, que, para ser mais trágico, se
do bronze, aquela concepção lampejante e profunda que parecia veste de ridículo. Faziam-se dele os mais disparatados juízos.
mover a essência das coisas. E sabia também, e muito bem, que Decerto, quase ninguém compreendia. Entre outras coisas, ele
a vida do espírito tudo pede e exige para si, não podendo compe- não era considerado religioso, porque era pouco praticante. O
tir com os lucros, os interesses, as satisfações humanas. Precisa- mau cheiro emana da multidão mesmo quando está nas igrejas.
va, portanto, fazer o mínimo daquilo que é humano, que é terre- As verdadeiras preocupações que ele sentia dominar o espírito
no, e negar comodidades ao seu corpo, para ser livre no espírito, sufocavam-no. As emanações espirituais daqueles ajuntamentos
independente de tudo e de todos, para que nenhuma necessidade tolhiam-lhe a respiração, e ele tinha que fugir. E assim passava
material o fizesse cortejar os bens terrenos e aqueles que os pos- por misantropo, soberbo, incréu. Sofria por ver em muitas pes-
suem. Urgia possuir a coragem heróica de não ter piedade de si soas devotas a virtude reduzida a pretexto para censurar o pró-
mesmo, pois que, sem sacrifício e renúncia, não se realiza a ximo, por ver tanto zelo na subversão do Evangelho.
missão nem se consegue chegar a elevado destino para o bem De outro lado, como poderiam renunciar a isso, se tinham
dos outros. Sabia que, para criar, é preciso purificar-se e que, conseguido, quem sabe com que estratagema, realizar a difícil
para se purificar, é preciso arder e consumir-se. Para ouvir a tarefa de conciliar o ímpeto dos instintos agressivos com a con-
música de Deus e fazer explodir o irrefreável canto interior, te- vicção, embora ilusória, de assim poderem conquistar o paraí-
ria que viver a trágica surdez de Beethoven, a consumpção de so? Ele perdoava e não deixava passar ocasião de, em segredo,
Chopin, os tormentos de Catarina de Siena; devia voltar as cos- ajudar. Em lugar de se magoar, sentia que ao julgamento de um
tas ao mundo, para poder voltar a face para Deus. Sabia que o pequeno mundo não devia dar importância alguma, pois era
caminho empreendido implicava um empenho sério e tremendo muito fácil compreender quão pouco isso valia.
com Deus e consigo próprio, de perseverar na luta contínua do Quando se encontrava diante da má vontade do próximo,
espírito, até conseguir a libertação no espírito. Tinha que mor- dizia a si mesmo: ―Quem deseja me fazer mal não pode senão
rer para renascer; devia ter primeiro sentido toda a sua dor e a fazer-me bem; só pode fazer o mal a si próprio. Não posso nem
sua parte da dor do mundo, porque só quem se dá em holocaus- devo tolher-lhe o direito de experimentar e, sofrendo, compre-
to e superou o martírio da própria humanidade pode ressuscitar ender. Não tem culpa da sua involução, insensibilidade, igno-
no paraíso e ouvir a música divina. rância das leis da vida. É bom que sofra. Mas eu devo perdoá-lo
Cada uma de suas palavras gritava ao mundo que, sem o so- e tenho que ajudá-lo a redimir-se‖.
frimento profundo, nenhuma grande criação é possível; sem Apreciava o contínuo afastamento das coisas e das pessoas,
despedaçar a alma, a inspiração não vem, porque até ao céu não porque o destacavam da Terra. Aquele silêncio, aquela solidão
se chega. Para chegar ao triunfo, era necessário trazer sempre desolada, aquele desconforto na luta contra os elementos, o tra-
alta, em nome de Deus, a chama sagrada, queimar-se no incên- balho, a intolerância e a incompreensão – ele sentia bem no co-
dio das labaredas, para que levasse a Deus a voz de sua alma ração – eram as condições de sua ascensão espiritual. Que pro-
até o último alento. Sabia de tudo isto e se atirava ao duro tra- fundidade de sensações íntimas naquela tristeza, que intensa vi-
balho, lutando tenazmente, em silêncio. da interior, que fervor de maturação!
Assim vivia em simplicidade, reduzindo ao mínimo, para ser Ele, que compreendia, apreciava e tanto amava estas coisas,
livre, as necessidades humanas que servem à matéria, totalmente nelas encontrava grande recompensa. Sabia como são necessá-
preso a uma gigantesca vida do espírito. No exterior, nas mara- rias, para se conseguirem certas conquistas espirituais, as con-
vilhas do criador, a magnificência da obra de Deus – no interior, dições de sofrimento, sobretudo morais, que lacerando, desta-
uma ciclópica tempestade de pensamento. Outras coisas mais cam e, destruindo, criam. É toda uma elaboração íntima que re-
próximas traziam sofrimentos à sua alma. O povoado era peque- nova. E ele a gozava profundamente.
no e, como todos os povoados, estava ávido de tudo indagar para Algo do mundo do espírito descia para compensá-lo da
se abastecer daquela nutrição cerebral necessária a todos. Os falta de satisfação das necessidades mais elementares e fun-
mexericos reinavam como mosquitos importunos, girando-lhe damentais da vida de sentimento. Enquanto que aos estranhos
sempre em torno. Ele se reduzira à vida de um frade: solidão e parecia misantropo e egoísta, era, em verdade, uma alma ar-
trabalho são fraco alimento para o apetite dos curiosos. Parecia- dente e apaixonada. Tinha necessidade de expansões superio-
lhe viver sobre o palco, diante de uma platéia. Aquela observa- res. As pessoas comuns, mesmo boas, lhe pareciam terrivel-
36 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
mente superficiais, vazias, inertes e absolutamente incapazes aquela alegria. Nada de estranho, afinal. Se certos fenômenos
de compreender como se lhe afiguravam assim. Uma voz ín- fossem compreendidos, neles se veria a Lei, que, para o grande
tima lhe falava sempre na alma, e ele se punha a escutar. e o pequeno, é sempre a mesma.
Eram colóquios em espírito, feitos somente de pensamento, Assim como a profunda elaboração da matéria na formação
sem sons nem forma de palavras, mas plenos de conceitos e do feto se processa oculta à luz exterior, protegida de invólu-
de bondade. Havia toda a substância de um ser pensante, mas cros, toda entregue a um fervoroso trabalho interior, e só nes-
nada de sua aparência. Os seus sentidos não viam nem ouvi- tas condições pode o novo ser vir à luz e lançar o seu grito de
am; percebia igualmente, com os sentidos da alma, uma vi- vida, assim também a profunda elaboração do espírito na ca-
bração bem individualizada, que se dirigia a ele e o tocava. E tarse mística se desenvolve igualmente escondida e protegida,
era confortante. Parecia que aquela voz tinha a faculdade de e só à custa do trabalho interior de maceração e de aperfeiço-
dissipar sua tristeza, de preencher sua solidão e o persuadia amento, de destruição e reconstrução, só quando um período
sempre para o bem, como se fosse pessoa viva. Ele ouvia com de paz e de alegria produziu a completa saturação, pode o novo
afeição. E a voz nunca o repreendia, mas o aconselhava e en- homem vir à luz do mundo e aqui se afirmar com o seu grito
corajava. Quantas vezes, na angústia de alguma contrariedade, de desafio. São necessários anos de silêncio, de vida oculta,
tornara-se tranqüilo! Nenhuma voz humana proveniente de fo- para fazer um homem, prepará-lo, dotá-lo dos meios de com-
ra jamais fora assim convincente como esta voz interior. Co- bate. A ingenuidade deste sonho idílico, do Evangelho sentido
mo poderia uma criação ilusória de sua fantasia chegar a tais como alegria que desce do céu, em vez da batalha que se terá
extremos? Como poderia uma alucinação persuadir e acalmar? de combater sobre a Terra; como primaveril doçura de amor,
Como poderia um desdobramento de consciência conter um em vez de tempestade de desapiedado martírio, não era satisfa-
pensamento diverso e oposto ao do sujeito, a ponto de provo- ção gratuita, mas premissa necessária.
car discussão, um pensamento superior a ponto de discordar E, nesta espera, o destino dava uma hora de repouso. Assim,
do outro pensamento e, no entanto, deixar o indivíduo satisfei- em paz e alegria, se cumpria a catarse mística de nosso perso-
to? E, depois, aquela voz era tão sábia, tão elevada, tão bon- nagem. Houve uma hora culminante, que é preciso narrar.
dosa! Parecia-lhe ouvir a voz de Cristo. E o doce sonho, às Uma tarde, voltando à pequena cidade onde vivia, tarde de
vezes vivo como uma recordação, embalava-o e, em todas as inverno, sozinho, em carro de terceira classe de um pequeno
suas atribulações, sempre o pacificava. trem gélido e chocalhante, acomodara-se sobre o duro assento,
Às vezes o colóquio se fazia tão intenso, tão forte aquele com a alma amargurada pela solidão, num pressentimento de
pensamento batia às portas de sua alma, que lhe parecia encarnar qualquer coisa dolorosa que se preparava. Ninguém o esperava
uma forma branca, luminosa e diáfana, que lhe recordava a figu- à chegada. A casa estava gélida e vazia. Sentia a alma apertada
ra de Cristo. E ele a olhava para fixar-lhe os lineamentos feitos num torno, uma tristeza mortal. Começou a orar, pensando na
de luz. Às vezes, sentando-se à mesa, era tão viva a impressão paixão de Cristo, revendo, na contemplação, especialmente a
da presença dessa figura, que ele, sem o querer, punha outro ta- íntima cena espiritual do Getsêmane e revivendo-lhe a profunda
lher, como se tivesse um comensal. E este lhe sorria com um angústia. Apenas mergulhara nesta visão interior, quando lhe
sorriso todo seu, de quem compreende e perdoa, e mirava-o com pareceu ver, na cadeira defronte, aparecer, emergindo da som-
um olhar que parecia atravessar-lhe toda a alma. Surpreendia-o, bra em que a luz incerta deixava aquele canto, uma como que
acima de tudo, a força de penetração daquele olhar, que, no en- fosforescência, uma luminosidade vaga que se ia fazendo mais
tanto, mal se distinguia. Parecia que nada se poderia esconder intensa e definindo seus lineamentos em forma que, também
dele, nada lhe poderia resistir, e que cada pensamento se torna- desta vez, sem dúvida, tomava a semelhança de Cristo. E, como
va, para ele, transparente. Aquele olhar era uma tal síntese de de outras vezes, nascia primeiro o olhar, e esse olhar lhe falava.
vida, uma vibração tão intensa e total, um raio tão potente, quen- Observou longamente, para se orientar, para decifrar o pen-
te e profundo, que persuadia com a sua simples presença. samento que estava nas vibrações daquele olhar, que era um
Não se explicam tais fenômenos apenas dando-lhes nomes olhar triste e piedoso, no qual parecia fundir-se toda a dor do
de origem grega e definindo-os como anormais ou patológicos. mundo. Aquele olhar parecia descer de um vértice de amor e
A ciência das vibrações está apenas nascendo, e não temos au- dor: a Cruz; parecia evocá-la, como meio de redenção. E a voz
toridade para negar ―a priori‖ a possibilidade de fatos de ordem internamente dizia:
suprassensorial, só porque não se deixam medir pelos nossos ―Eis que o meu amor te traz sofrimento. O mundo me foge
grosseiros instrumentos. E mesmo que se tratasse de ilusões, e me engana, repele a redenção porque não quer sofrer. Eu dei
cometeria delito uma ciência que desejasse privar a alma deste o exemplo. Tu, que me amas e me segues, prepara-te. Eis que
conforto, sem saber fornecer nada capaz de substituí-lo. se aproxima a tua hora, a prova maior. Prepara-te. Eu dei o
Assim, ignorado do mundo, na paz e na solidão de uma vida exemplo‖.
simples e obscura, protegido pelo silêncio, florescia este doce Aquele olhar anunciador fixava-se sobre ele e sobre o mun-
sonho fervoroso e tranqüilo, em que palpitavam as recordações do. E ele o via reaparecer na doce figura de Cristo, inclinada
da Galiléia. Era como se o céu, às vezes, desejasse e pudesse sobre cada homem que sofre. Quantas dores diferentes! E cada
descer à terra, a esta nossa terra infernal, mas furtivamente, pro- homem tem a sua dor, e sobre cada dor se curvava aquela figura
tegendo-se com formas sutis e evanescentes, que, para os senti- e aquele olhar. Quantas faces de Cristo apareciam ao mesmo
dos grosseiros do mundo, permanecem invisíveis e, dessa for- tempo em tantos lugares diversos, junto a tantas almas angusti-
ma, podem escapar à sua intervenção agressiva e destruidora. adas, com tantas diversas dores, dispensando a cada um o con-
E, assim, o alto pode, com tranqüilidade, operar sua irradiação forto! Ele via, em fileira infinita, multiplicar-se a figura de
de força, inundar com ela alguns seres, produzindo aquelas pro- Cristo para a multidão imensa do mundo e a cada um repetir:
fundas saturações espirituais, que são a premissa necessária de ―Prepara-te. Eis que tua hora se avizinha. Eu dei o exemplo‖.
certas explosões que, depois, o mundo se limitará a comprovar Uma sacudidela mais forte o acordou, advertindo-lhe que
e aceitar, sem ser capaz de lhe traçar a misteriosa preparação. tinha chegado. Saltou do carro e se foi sozinho, pelas ruas escu-
Ele as absorvia lentamente, num estado de idílica simplici- ras e desertas, para a casa vazia. Aquele olhar o havia fitado por
dade, defendido ainda pelos mal-entendidos em que caem a ig- último, imprimindo-lhe na alma um sentimento inesquecível de
norância e a insensibilidade humana, que, nada vendo, nada amor e de dor. Talvez fosse um aviso de paixão, uma prova de
pode destruir. Ninguém podia imaginar que tempestades se união, uma ordem. Esse foi um momento culminante, que ele
preparavam naquela serenidade, quantas dores já continham jamais pôde esquecer.
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 37
XVI. OS ASSALTOS precipitou pela descida da onda, pela depressão que fatalmente
se abriu diante dele. Ao fim desse período, os motivos nele do-
Há tantos tipos de destino quantos são os homens. Destinos minantes conseguiram sua plenitude; todos os valores anterior-
que elevam, que estacionam, que descem. Uns ardem na ânsia do mente acumulados tinham dado o seu rendimento. Então a ex-
aperfeiçoamento moral e se entregam a provas intensas por um pansão, exaurido o seu ímpeto, susteve-se.
caminho acelerado; outros estacionam, vagabundando pela mar- Continuemos a observar o desenvolvimento das várias for-
gem da vida; outros destroem seus valores espirituais, brutalizan- ças que operam neste destino e que, presentes ao nascimento,
do-se na matéria. E cada um, segundo aquilo que é, julga a vida, deverão desenvolver-se até à morte; forças já delineadas prece-
mas, no fundo, não julga senão a sua vida e a si próprio. Os que dentemente, mas continuamente corrigidas pela livre vontade
estão destinados ao céu dizem que a Terra é um purgatório, um do indivíduo, que as utilizava para continuar sua ascensão. Es-
lugar de sofrimento e que a vida não pode ter outro valor ou sig- tas forças, sempre em ação, mutáveis no seu desenvolvimento,
nificado além da redenção através da dor. E sofre, sabendo que são os verdadeiros personagens deste livro. Este não é apenas
sofre utilmente, numa dor consciente e construtiva. Este tipo de um conto, é um estudo dos mais íntimos impulsos da vida, que,
destino tem a sua meta além da vida e nessa meta se realiza, para nós, sempre assume um significado orgânico, lógico e pro-
permanecendo em irredutível contraste com a vida terrena. Trata- fundo. Tão lógico e profundo, que é possível sentir e reconhe-
se, em geral, de almas caídas na Terra para expiação ou missão. cer aqui, naquelas forças, uma inteligência motriz que cintila de
Há também os que, equilibrados em posição estável no am- pensamento divino, uma inteligência que nos permite ver cum-
biente terrestre, não tem função de suportá-lo apenas para que prir-se o destino de cada personagem. Esperamos que não se-
aprendam e avancem, mas também para trabalhá-lo, a fim de jam inúteis as afirmativas deste livro, elaboradas para dar um
que a animalidade terrestre evolua. E podem ser honestos traba- sentido sério e substancial à vida, se forem compreendidas.
lhadores, mas ainda não sabem se realizar nos mais altos planos Veremos que, ao fim deste período, compreendido entre os
do espírito. Para eles, aqui é um lugar de trabalho e aqui querem quarenta e cinco e cinqüenta e cinco anos do nosso persona-
colher seus resultados. Para eles são inconcebíveis os supera- gem, cada germe amadureceu o seu fruto e que, em cada cam-
mentos e as fugas. Finalmente, há o grande lodaçal onde estag- po, foi feita a colheita. Cada um dos três motivos, continuando
nam em putrefação os que vivem no estado de inércia. Ignoran- seu desenvolvimento, expõe sua posição.
tes, indiferentes, gozadores, oportunistas, incapazes de crer em 1o) O conhecimento, inicialmente esperado e procurado, foi
outra coisa senão no seu bem-estar, guiados pelos poucos instin- conseguido em primeiro lugar e também, neste período, regis-
tos através dos quais imperam as leis da vida – esses consideram trado e divulgado com sucesso.
a Terra não como um lugar de expiação ou missão, nem como 2o) Isto representa o remate da atuação: aquela vida dava
lugar de trabalho, mas como lugar para o gozo. Vegetam na todo o seu rendimento no cumprimento de sua missão. Aquela
animalidade e são agarradíssimos à vida e aos seus prazeres. força amadureceu o seu fruto, para o bem dos outros; tornara-se
Acham-na, às vezes, espinhosa, mas são dotados de tal indife- ação humana, operando na sociedade. Os resultados que esta
rença, insensibilidade e egoísmo, que, mesmo assim, conseguem atuação trouxe ao mundo, uma vez quebrado aquele mal-
encontrar alegria. E ficam satisfeitos, não sabendo conceber na- entendido temporário, provocariam agora a agressão. A atuação
da melhor. Esses louvam a vida e concluem que, apesar de tudo, é um desafio para a luta.
chora-se muito bem neste vale de lágrimas. Para esses, a dor não 3o) Os dois motivos precedentes se completam num terceiro
é senão um inimigo que se deve combater e destruir por todos os que se desenvolve paralelamente. No estado de graça durante a
meios. Ignoram a sua função evolutiva! Esta inútil escumalha registração e no cumprimento da própria missão, amadurece no
humana vai à deriva; é o rebanho amorfo, a grande massa social sujeito a catarse mística que tínhamos descrito, na qual a expia-
a cujo nível devem descer todas as concepções religiosas, políti- ção na dor tem uma pausa e um conforto, sobrevindo, qual as-
cas, sociais, se desejarem sobreviver e agir na massa. É natural censão espiritual, uma primeira libertação e redenção.
que, sendo assim diversos os pontos de vista e a posição de cada Após um período de formação primária e depois das afir-
um, os juízos estejam em desacordo e as mesmas coisas tenham, mações individuais, aquele destino assumia um significado co-
para os vários indivíduos, significação e valores diversos. O letivo. Os três impulsos se cruzavam e fundiam numa única rea-
contraste entre o nosso personagem e o mundo não é, no fundo, lização. Conseguida a transformação do sujeito, eles agora se
senão uma divergência de tipo individual e de meta. irradiam em ação exterior mais vasta, da qual ele era o centro.
O destino que aqui estamos observando pertence ao primei- Mas, para chegar a este novo rendimento, era necessário voltar
ro tipo, que se pode chamar de irredutível ou inadaptável. Su- ao grande trabalho purificador da dor, ao esforço da redenção.
portam tudo com heróica paciência, mas consideram sempre a Encontramo-nos, neste momento, diante de três vértices de
Terra como um exílio e um inferno. E tal é, para sua tristeza. realização, e são justamente os vértices que atraem o assalto. Um
Tanto mais quanto eles compreendem tudo, não tendo a prote- vértice é, no fundo, uma culminância de forças, uma concentra-
ção nem da ignorância, nem da insensibilidade, como aqueles ção de impulsos num só ponto, um desequilíbrio que exige com-
outros. Diante dos destinos estacionários ou descendentes, estes pensação. As leis da vida não vêem se aquele desequilíbrio no
podem se qualificar como destinos ascensionais: destinos ao seu plano se formou em vista de equilíbrios mais elevados e
mesmo tempo felizes e desgraçados. Desgraçados pelo caminho complexos que se hão de realizar em outros planos. A natureza
a percorrer, mas felizes pela meta que deverão alcançar, consti- não sente esse gênero de escopo que a supera. Haverá, natural-
tuindo sempre um tremendo trabalho. mente, uma compensação mais longínqua, porém ela, completa-
Para dar repouso e trégua à expiação, permitir a assimilação mente mergulhada na tensão do trabalho em seu próprio plano,
das provas, proporcionar a compreensão das missões e evitar a não o leva em conta. Suas leis assinalam o desequilíbrio no seu
destruição do homem sob a cruz, estes destinos ascensionais nível e se limitam a corrigi-lo automaticamente. Quem se atira ao
saem muitas vezes não segundo uma reta, mas por ondas, cujos vácuo cai e se esfacela, embora seja herói ou mártir que arrisca a
vértices, nos máximos, estão sempre mais alto e, nos mínimos, vida para salvar outra ou para o bem do mundo. A lei humana
sempre menos baixo. Isto implica uma ascensão de todo o con- terrestre diz: ―Serás compensado, mas agora tens de pagar‖.
junto, mas significa também que, depois de cada período de as- Por essas razões, atingido esse ponto do seu desenvolvimen-
censão, segue um de descida ou queda. Neste ponto, estamos no to, os três motivos daquele destino que se tinham reunido em
fim do período que vínhamos narrando. O nosso personagem três vértices, devem sofrer três assaltos. A continuação do de-
havia chegado a um vértice, e foi a própria altitude deste que o senvolvimento não poderá se dar senão através da correspon-
38 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
dente inversão de posições. As três estradas continuam, as três superconstruções sozinhas, abandonadas às próprias forças, à
forças devem avançar, mas se invertem e agem em direção con- própria responsabilidade e ao próprio destino.
trária. Cada impulso favorável transmuda num impulso oposto A regra protesta e se levanta contra a exceção, exprobrando-
de reação. A Lei dera gratuitamente e agora se apresenta como lhe a imperdoável lei divergente. Ele ficava lá em cima, sozi-
um credor que tem o direito de exigir o seu preço. Tinha exal- nho, suspenso entre o céu e a terra, entre dois planos, entre duas
tado e agora abate. E volta a hora das provas, na qual o sujeito, leis diversas, desprotegido de ambas. A sua posição era o pro-
triunfante por efeito do auxílio daquelas forças, vê-se justamen- duto de um esforço excepcional; não podia resistir muito nesse
te por elas severamente examinado. equilíbrio de vôo. Para o triunfo da mediocridade imbecil, Ícaro
O caminho do conhecimento lhe havia produzido um máxi- devia precipitar-se. Assim também aquele píncaro espiritual
mo de rendimento individual e coletivo. A divulgação se cum- que alcançara exigia que caísse, para que o equilíbrio fosse res-
pria. A semente estava definitivamente brotada e era agora im- tabelecido. Quando, um dia, a natureza se negou a fornecer
pulso autônomo, como um filho que já não precisa da mãe. Não energias antecipadamente e retraiu-se ao risco da aventura, con-
restava ao nosso personagem senão ser o administrador do ideal, trapondo sua lei de conservação à lei da evolução, que se atirava
isto é, acompanhar praticamente a divulgação. Mas esta afirma- muito longe, então se acalmou a febre criadora, arrefeceu-se o
ção implicara numa negação; este superior equilíbrio produzira entusiasmo da ascensão. E, para que ele não fosse queimado e
um equilíbrio inferior que agora exigia a sua compensação. To- sobrevivesse, a alta tensão espiritual caiu e a luz interior se apa-
do o seu organismo, a expensas de cuja energia se realizara gou. Cai sobre a terra um fragmento. Jazem no lodo os restos pi-
grande parte do trabalho, sofria agora as conseqüências. A alta edosos do anjo que queimara as asas ao sol. Aqui também, ele
tensão nervosa em que vivera durante anos para produzir, nas tinha de pagar. E chegou a cegueira espiritual. Perdida a força
condições mais desfavoráveis, tinha-o esgotado. A ―matéria‖, capaz de alcançar a alta tensão, as doces visões desaparecem e,
que se havia prestado ao esforço do ―espírito‖, devia agora pagar assim, a sensação de Deus. Ficou sozinho sobre a terra inimiga
por isso. Quando cessou a febre de exaltação produtiva, quando que renegara, sendo por ela agora renegado, muito cansado para
voltou a calma normal, ele viu que sua saúde estava abalada. O saber voltar ao céu. Muito forte era ainda a memória da grande
esforço intenso e contínuo reduzira-o a um farrapo. Chegara à experiência vivida para poder adaptar-se a viver na Terra. Sen-
mais alta realização de si mesmo no conhecimento, mas, com is- tiu-se então abandonado por Deus, e na sua alma não restou se-
so, violara o equilíbrio da natureza, econômica e conservadora, não a visão do espantoso inferno terrestre. Não teve diante de si
que o fazia ver agora, no seu plano, o quanto ele lhe devia. Nada senão a realidade humana, que contra ele se voltava.
se dá de mão beijada, e ele devia agora amontoar em seus om- Assim, com a sua completa destruição, tudo pagava. E estas
bros esta nova dívida. E caiu em profunda exaustão. são as provas que esperam aqueles que enveredam pelos cami-
O trabalho demandado pela atuação produzira a colheita, a nhos do espírito. E caiu desfalecido sob a cruz.
alegria das messes maduras e abundantes. O conhecimento di-
vulgado tornara-se força operante no mundo; a missão estava XVII. OS CAMINHOS DO MUNDO
afinal realizada. Fora realmente um sucesso exterior, que pro-
vocara admiração e exaltação, exaltação necessária para que Encontrava-se bem esgotado quando chegou ao fim. É hu-
aqueles livros pudessem penetrar e alcançar os espíritos madu- mano que, quando se chegue ao fim da luta, se espere encon-
ros, prontos para compreendê-los. Mas era preciso pagar. O trar, senão um triunfo, ao menos uma compensação adequada.
vértice de exaltação do mundo é justamente o desequilíbrio E é indispensável encontrar um pouco de alívio, para se confor-
que exige compensação. É a preparação lógica e natural da tar e recobrar força e coragem. O normal para ele, nesse nível,
agressão do mundo (Domingo de Ramos). No caso particular era encontrar as mais duras provas. Tal é a lei desses fenôme-
que narramos, nada fazemos senão aplicar uma lei de caráter nos. Ele, que superara a vida inferior animal para ressurgir na
universal, sempre pronta a se fazer valer a qualquer momento vida superior do espírito; ele, que saíra vitorioso dessa prova,
para quem quer que siga a estrada da ascensão. Trata-se de lei assimilando-lhe toda a significação, encontrava-se agora diante
universal, válida tanto para casos singulares como para coleti- de uma tarefa maior, constrangido a arriscar-se a uma prova
vos (determinismo histórico). O momentâneo compromisso de mais árdua. Suas novas conquistas e qualidades eram subita-
paz mantido pela incompreensão já não tinha mais razões mo- mente provadas e examinadas. Chegava ferido no próprio espí-
rais nem possibilidades materiais para se manter e devia cair. rito, privado subitamente de todas as suas alegrias e afirmações,
Em seu lugar não poderia tardar em aparecer a substância da- golpeado no centro de sua nova vida, na sua nova consciência.
quela atuação, que era desafio e luta, e a substancial inconcili- No decênio que agora findava, todos os nós de seu destino se
abilidade entre o ideal e o mundo. Com a divulgação dos escri- tinham afrouxado e desfeito; iniciava-se agora um período em
tos, isto seria compreendido, revelando o que o autor em ver- que todos aqueles nós se apertavam de novo. Eis a compensação
dade pretendia, e, ante esta revelação inesperada, haveria a re- que ele encontrava depois de tanto trabalho e dedicação. Tam-
beldia. O mundo ali estava para se vingar. Ele mexera com as bém a colheita é dor. Caminha, caminha! Quantas estradas per-
leis de interesse humano, tinha acusado em nome do bem e da correra para chegar e eis que estava, novamente, no começo!
verdade, havia tentado destruir para superar. Portanto devia Quanto trabalho! Quanta canseira! Como é longa a vida de quem
pagar. Era chegada a hora da traição. luta e sofre! Mas eram necessárias novas dores, novas quedas e
Afinal, o caminho, ainda que de expiação, havia conduzido experiências, para não apodrecer sobre os louros e, assim, poder
aos seus frutos, ou seja, à purificação e, com esta, à ascensão ressurgir sempre mais alto! Por agora, porém, eram as trevas!
espiritual na catarse mística; chegara até à inspiração e às vi- Geralmente, vistos de fora, certos sentimentos incompreendidos
sões; que mais podia sonhar? A realização, que para ele era parecem desfalecimentos, que o mundo julga com desprezo. Mas
máxima, exigia uma compensação adequada. Aquele vértice era é sempre grande o destino de uma alma que sofre e, sofrendo, se
uma antecipação muito apressada de evolução, um desequilí- redime. Desgraçados dos que não se redimem, porque ninguém é
brio das forças da natureza, agarrada não à renovação, mas à perfeito. Se fosse perfeito não estaria na Terra.
mais segura estabilidade das posições já conquistadas. Este mi- No belo sonho espiritual, esquecera-se da realidade da vida
soneísmo conservador é uma posição de inércia dominante, humana. Até agora, a sua existência fora projetada para o alto,
completamente negativa ante as superconstruções biológicas. fora uma estratégia de fuga do plano humano, da terra para o
Assim, enquanto aquele misoneísmo oferece ao homem normal céu. E, agora, se lhe antepunha a experiência de sombra, como
larga base de apoio e garantia de sobrevivência, deixa aquelas reação à precedente experiência de luz; uma fase de desolação,
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 39
mas também de aperfeiçoamento por um lado ainda não explo- desta vez em maior profundidade, com mais calma e consciên-
rado. Não escolhia nem desejava. As reações que o rodeavam cia do que na primeira e precipitada conquista. Só isto lhe po-
arrastavam-no, tornadas fortes pela sua fraqueza, e ele foi atira- deria dar estabilidade. Agora era necessário resistir, sobreviver
do em cheio àquele estado e teve que superar o embate desapi- ao esgotamento físico e mental, ao abatimento, ao abandono, à
edado da realidade humana. noite espiritual, aos assaltos materiais – sobreviver contra tudo,
O primeiro impulso do mundo, diante de uma construção com seus próprios meios e à sua própria custa.
nova, é agredir. Destarte avalia o valor e a solidez da mesma. É Nos momentos mais difíceis, em vez de se desesperar, es-
o exame da escola da vida, a garantia biológica. Era chamado a perava, sentindo que há na própria força dos acontecimentos
descer dos seus céus e constrangido a viver sobre a terra, que lhe uma tendência a resolverem-se automaticamente, pela lei da
impunha suas leis, reprovando-lhe a fuga. A realidade biológica vida. A experiência era terrível. Sentia-se acabado, e tudo era
o esperava de emboscadas, para cair-lhe sobre os ombros e sub- contra si. Não havia meio de escolher. Não importava senão
metê-lo a exame bem diverso da espiritualidade a que se habitu- uma coisa: sobreviver. Os motivos triunfais de seu destino gi-
ara. O exame seria muito mais severo, porquanto ele era menos ravam agora como impetuoso vento de morte. A primavera
preparado e sempre desejoso de fugir. A sua emersão de espírito era uma recordação longínqua – ela dera o seu fruto, que já
se projetava sobre a terra, os seus superamentos o tornavam vi- fora recolhido. Era preciso, agora, atravessar o inverno e re-
sível, o mal-entendido protetor de sua paz caía, compreendia-se começar o trabalho de preparar, desde o início, uma nova co-
que ele era o amigo do Evangelho e o inimigo do mundo. A luta lheita. Tudo se lhe afigurava muito longe, inatingível, impos-
devia, logo, provar a sua resistência, índice de seu valor subs- sível, além de toda a esperança.
tancial. Esta era a lei biológica que lhe impunha o seu férreo di- O mundo, que condenava, era extraordinariamente dividido
lema: ou vencer e reforçar-se, ou perder e ser eliminado. em opiniões, credos, escolas e sistemas filosóficos, sociais, re-
As leis da Terra são antes de força que de justiça; e de justi- ligiosos, científicos, políticos, literários e artísticos. Cada um
ça apenas através da força. Não se tinha, dirigindo-se ao céu, proprietário de sua própria terminologia, freqüentemente centro
colocado em posição de desafio para com a terra? Devia aceitar de uma exclusivista construção orgânica de interesses que re-
a luta. Não podia mais recuar, nem deixar-se ficar entre o céu e presenta e sintetiza, armado contra todas as outras escolas e sis-
terra. Tomara uma posição extrema e decisiva. Obrigado assim temas. A forma dominava a substância. O mundo era uma caco-
a vir a campo, devia enfrentar, num desafio supremo de vida ou fonia de vozes discordes e rivais. Ele preferia a verdade simples
de morte, o mundo, que o afrontava, e decidir. Vencer ou mor- do Evangelho, única, esquiva de forma, toda substância. Resol-
rer. O seu ideal devia ainda superar a prova da luta. Não era es- veria todos os problemas com simplicidade, indo direto ao co-
te, afinal, o ponto essencial de seu destino e não se cumpria ne- ração do homem. O mundo estava divido em muitos campos
le a realização de sua missão? separados, exclusivistas, sempre em luta entre si, mas todos
Os seus livros, a sua vida, eram contra o mundo. A simples igualmente lutando pelo monopólio – única coisa em que todos
presença do autor e da sua obra eram para o mundo uma expro- estavam sempre concordes e eram sempre iguais. Não era tanto
bração, uma acusação mútua e contínua. Isto era perturbador, a verdade universal, igual para todos, o que interessava, mas a
porque a vida real detesta o Evangelho e aquele que o vive seri- solução do problema relativo, limitado, humano e imediato. Isto
amente. Quando se compreendeu qual era o seu verdadeiro pen- dominava na substância. E, depois, no fundo de tudo, embora
samento e sua verdadeira vida, ou seja, a aplicação a sério do camuflado de mil formas, atrás de todas as fachadas, sempre a
Evangelho, muitos se revoltaram, sinceramente escandalizados, mesma verdade biológica do egoísmo e da luta. Em meio a tan-
mas sobretudo aborrecidos com as consequências práticas, lesi- tas distinções, ele via que o mundo não fazia, em verdade, se-
vas aos acomodamentos que tanto trabalho tinham custado para não uma distinção: a do eu e do não-eu. Por outras palavras:
serem subtraídos à vigilância do espírito. Com palavras e ações, ―Você é do nosso grupo? Está conosco? Então está com a ra-
ele perturbava o mundo, e o mundo reagia. Condenava o mundo zão. Não está conosco? Então está errado‖. Cumpria-lhe estar
com suas medidas, e o mundo retribuía-lhe do mesmo modo. acima de todas as divisões e de toda luta, ser imparcial e uni-
Achava-se em estado de exaustão nervosa e precisava de versal. Tinha, ainda, necessidade de unificar tudo aquilo que
repouso, encorajamento e conforto. Mas, assim como estava, tende sempre a se dividir. Procurava, em lugar da cisão, a uni-
tinha de atender às suas obrigações, para ganhar o pão. E nem dade – unidade superior, jamais disposta a cindir-se e abastar-
mesmo o fruto do seu trabalho, que de direito lhe pertencia, o dar-se para se transformar em interesse particular. Aquelas sin-
guardava para si; dava-o para ajudar os pobres. Se algo sobra- gulares verdades separadas apareciam-lhe como castelos mura-
va, ele se considerava apenas como depositário que guardava dos e armados, onde a vida transcorria como na era medieval,
para alguém que pudesse precisar mais do que ele. Cansaço, dos tempos ferozes, obrigada a refugiar-se para não ser destruí-
cansaço – era o que lhe minava cada vez mais a saúde. Não lhe da. As barreiras materiais dos tempos medievais tinham caído,
restava senão um duro trabalho mecânico e uma vida oprimida mas as barreiras morais permaneciam, impedindo o caminho a
por todos os gêneros de contrariedades. A natureza vingava-se cada passo. A causa era a ferocidade dos tempos.
asperamente de quem violara suas leis fundamentais de conser- As verdades particulares estavam prontas para aceitá-lo as-
vação. O menor dos incidentes parecia encarniçar-se contra a sim que ele circunscrevesse o seu pensamento e a sua atividade
pessoa. Não sobrara para ele, que saboreara a grande alegria da dentro de seus âmbitos. Ofereciam proteção, mas impunham a
vida do céu, senão a amargura da vida bestial da Terra. E o domesticação, a prisão. Impunham, sobretudo, o exclusivismo e
grande incêndio interior que o animara, extinguira-se. O facho o interesse dos homens que as professavam, mas a guerra contra
tombara e jazia sobre a terra em cinzas. Vivia nas trevas, em o exclusivismo e os interesses de todos os outros, pois que ne-
que dominava uma sensação, certamente irreal, mas não menos nhum homem defende outro se não vê nessa defesa a defesa de
viva por isso, do abandono por parte de Deus. Essa sensação si próprio. Naturalmente, a culpa não era desses homens; a luta é
abria as portas à dúvida infernal: ―Estarei enganado? Ter-me-ei a lei mais imperiosa da vida; coisa alguma poderá existir sobre a
sacrificado por um sonho, por nada?‖. Terra, até mesmo o céu, se a ela descesse, se não estiver prepa-
Todos os valores, construídos com tamanha fadiga, rolavam rada para guerrear e se defender. Não era culpa deles se ―ataque
por terra, demolidos. Sobre eles passara uma tempestade des- e defesa‖ são a linguagem dominante na Terra, onde tudo que
truidora, gelada. Seria forçoso, mais tarde, depois de passado o deseje existir deverá assumir essa forma. Não era culpa do ho-
tufão, saber reencontrá-los, pegar aquele impulso e tornar a de- mem se tudo, para poder vencer, deve fechar-se em grupos, em
senvolvê-los, refazendo-se desde o começo, para reassimilá-los coalizões de interesses, onde o egoísmo é necessário; cada um
40 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
defende o seu grupo na proporção em que ele é o seu próprio eu, bém santidade, mas, seguramente, cheirava anarquia e rebelião,
defendendo-se a si próprio. Não é culpa do homem se assim ca- enchendo de suspeitas as almas piedosas. Exigiam-se dele as coi-
da um é inimigo do grupo onde não se vê a si mesmo. E, assim, sas que todos faziam, justamente as menos adaptadas para ele.
cada grupo combate todos os outros grupos, como cada ―eu‖ Fora julgado de cem maneiras diferentes, segundo o ânimo
combate todos os outros ―eus‖. Não é sua culpa se o homem está de cada um que o observava. Cada um lhe aplicava sobre as
imerso no relativo. Ele não pode compreender verdades mais costas a sua própria etiqueta. O mundo gostava de catalogar e
universais do que as que cuidam da defesa de sua vida. enquadrar na prática terrena. Assim, ele fora definido como
Ao se observarem, em cada grupo, as opiniões e teorias médium espírita, espiritualista, modernista, panteísta, monista,
que cada um defende, ver-se-á que, não obstante a grande di- cientista, filósofo, estudioso, inspirado, místico etc. Cada um,
ferença, elas são invariavelmente iguais no fato de que as suas vendo-o com seu olho particular, classificara-o definitivamente,
conclusões e a moral que trazem são tais que se dá razão a segundo acreditava, sem perceber que ele, se naquele momento
quem as professa, colocando-o em posição de superioridade atravessava o campo de sua classificação, pouco depois, se-
em relação aos demais. Assim, o forte sustentará a filosofia guindo seu caminho evolutivo, já estaria muito fora dele. Fora
dos fortes porque é forte; o astuto, a do astuto, porque o é. O tomado pelo que não era; fora confundido com as coisas mais
mesmo com os fracos e com todos os tipos humanos. Nos fa- diversas. Ele era todas elas e não era nenhuma. A sua verdade
tos, cada um sustenta a filosofia em que triunfa, jamais aquela era dinâmica, em evolução contínua, e não podia ser senão um
em que permanece fraco e derrotado. Portanto a verdade, pra- produto seu, filha de suas experiências. Ninguém era, por prin-
ticamente, está na defesa de cada um contra todos os outros; cípio, mais respeitador de todas as autoridades do que ele. Mas
cada opinião e filosofia em cada campo não é mais que um ato tinha necessidade de compreender e ver por si mesmo, guiando-
de afirmação egocêntrica, ditada pela exaltação do eu e pelo se nas grandes coisas do espírito, e não podia delegar a nin-
menosprezo dos outros. Neste nível, cada verdade mais alta se guém esse direito fundamental, inato em sua consciência.
vê reduzida ao mínimo. Ë por isso que os grandes princípios, Que atribulação, não poder dar um passo no mundo sem
as grandes leis, as grandes metas não são alcançadas pela esbarrar subitamente num obstáculo de pensamento, numa das
maioria. O homem comum limita-se ao trabalho de conserva- muitas divisões humanas, todas prontas para encaixá-lo, espe-
ção individual e coletiva. Ele não é a célula social de exceção, rando fazer dele uma peça a seu serviço! Que desejo de liber-
especializada na função de órgão nervoso de seleção, de ante- tar-se de todos estes empecilhos! Que repugnância ao ver to-
na que antecipa a evolução. Este tipo de exceção, que sente o dos os problemas, na prática, transportados da substância para
universal, supera os grupos particulares e professa verdades o plano dos interesses e ver que nisto quase todos concorda-
mais vastas, situadas acima dos interesses próprios e do gru- vam! No entanto isto era lógico. Nem poderia ser de outro mo-
po, não tem defesa contra nenhum dos outros, porque está fo- do sobre a Terra, dado que aí vigora a lei da luta, que não dei-
ra do seu egoísmo. Ao contrário, é agredido por todos. Mais xa outra forma de vida senão o ataque e a defesa. O pensamen-
tarde, se um grupo se apoderar dele, usá-lo-á como estandarte. to puro, o ideal e a bondade que não estejam fixados no invó-
E assim se progride, mesmo que a divulgação e a assimilação lucro de egoísmo e de interesse, não têm defesa e não podem
não se possam atingir senão através do desfrutamento. O pon- sobreviver em tal mundo. Não se arriscando a degradar-se no
to de partida humano para o universal é o particular; para o al- lodo, o ideal não pode funcionar sobre a Terra e não age sobre
truísmo é o egoísmo; para o absoluto é o relativo; para o pro- o homem. Se ele não se avilta na matéria, a matéria não o fixa,
gresso coletivo é o progresso individual. Para sobreviver e fa- não lhe conserva a impressão. As adaptações, as traições do
zer-se entender, é necessário entrar no grupo, no particular, no ideal, são naturais e constituem condições indispensáveis à sua
relativo, no egoísmo individual; é necessário que o ideal (para descida ao mundo. É naturalmente isto o que espera na Terra o
não ficar letra morta, se os tempos não têm força para se ele- homem superior que professa um ideal. A cruz é uma lei bio-
varem até ele) desça e se avilte até ao nível dos tempos. lógica; é a matemática resultante do encontro das forças do céu
Tudo isto o nosso personagem compreendia, mas sentia e da terra. A estase horizontal da terra, combinado com o di-
também que a verdade pura e completa não pode ser senão uni- namismo vertical da ascensão, forma, também geometricamen-
tária e universal; aquilo que um inimigo vê no vizinho não é a te, a cruz. Sem cruz, o ideal não sobe. Sem traição, ele fica
verdade. Ele amava a grande verdade unitária, total, compre- inacessível e inassimilável. O céu não pode tocar a terra senão
ensiva, a verdade de Deus, que abraça tudo e todos. Sem dis- em um ponto que se chama martírio. A reação é o natural exa-
tinções nem preferências, as particularidades interessadas, to- me do ideal, é a prova da sua presença, o índice do seu valor, a
das indistintamente, o repugnavam. Amava a verdade que, medida da potência substancial de uma idéia.
mesmo compreendendo e admitindo as lutas humanas, perma- Ele atravessara todos os campos e verificara quão poucos
nece sempre acima delas. Não a sabia compreender senão as- homens verdadeiros existiam em cada um. E, em vez de se in-
sim. Sem tomar o partido de ninguém, negava razão a todos, teressar pelas categorias, que mantêm os homens divididos,
pela falta de senso que em todos havia. E, por isso, porque não procurava aquilo que poderia uni-los. Procurava o homem, o
tomava partido, era repudiado por todos. Foi assim que, verdadeiro valor, tão raro, tão pouco agarrado aos interesses;
achando inaceitável a verdade cindida, relativa e utilitária, e procurava o homem em si, sem se importar com a aparência;
não podendo fechar-se num castelo particular, ficou só, expul- procurava a substância, sem se deixar enganar pela forma.
so de todos os lugares, mas livre. Repugnava-lhe sobretudo uma coisa, e essa ele não a perdoa-
A irresistível necessidade de liberdade atirou-lhe sobre as va aos seus semelhantes: ser um homem, mas não ser honesto
costas todos os mal-entendidos. Foi tomado por irreligioso; in- e sincero. E uma coisa, sobretudo, o fazia rebelar-se: as estu-
crédulo para alguns; excessivamente zeloso para outros. Em cada dadas transigências humanas que prostituem os princípios em
campo, era visto com maus olhos, porque perturbava os hábitos; favor da comodidade. Achava preferível ser, e não parecer.
era rebelde às tradições, pretendia ter direito a uma independên- Este era o verdadeiro, insanável, dissídio entre ele e o mundo.
cia de consciência que, mesmo dirigida para o bem, era sempre Tomava as coisas a sério e fazia, de modo terrivelmente sério,
insubordinação e escândalo. O Deus das religiões é também um aquilo que os outros sustentavam apenas com palavras e com
rei, e não é lícito falar-lhe muito diretamente a sós, sem os devi- tanto mais ruído quanto menos acreditavam e quanto mais fa-
dos intermediários humanos. Ele tinha a sua consciência e assu- ziam empenho em fazer crer que acreditavam. À insolência
mia sinceramente a sua responsabilidade. Era um homem não desta forma estampada na face de todos, ele respondia com a
alinhado, que não pode viver com o rebanho. Isto podia ser tam- substância, vivida em silêncio. Este era seu desafio. A sua re-
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 41
ligião do trabalho, do amor ao próximo, mais que a religião não sendo possível compreenderem-se as duas linguagens di-
das prédicas e das práticas, era a religião da bondade e do sa- ferentes, ele não tinha, também, direito de se autodestruir. Re-
crifício. Não acreditava na discussão, pois sentia que, por trás fletia a frase do IV Concílio Luterano: ―Quidquid fit contra
das palavras, havia um pensamento diferente daquele que era conscientiam, aedificat ad gehennam‖ 11.
expresso. Não acusava, e perdoava, mas sentia que seu anta- Pela imprensa, não procurou discutir; queria esclarecer. Mas,
gonismo não era contra esta ou aquela doutrina, mas sim con- também aqui, a compreensão e o esclarecimento lhe foram ne-
tra o homem – sempre o mesmo sob todas as doutrinas. Via gados. Não obstante todos os sinceros esforços, o mal entendido
sobre a Terra um mar de interesses que permaneciam os mes- se agravou. Os jornais fecharam-lhe as portas. Não teve outro
mos sob os mais variados estandartes. Não encontrava senão remédio senão calar-se. Um último artigo, no qual voltava à
egoísmos utilitários e coligações de tais egoísmos. E ele não questão para concluí-la, foi suprimido por mão oculta do campo
procurava senão o Evangelho. Os dissídios de forma podem oposto. Ele, que conseguira pelo menos ser coerente, sentiu-se
ser superados, mas, quando são profundos em substância, se abatido com a triste prova de falta de lealdade justamente por
tornam insanáveis. Fugiu a todas as discussões, e em sua alma parte das pessoas de quem tinha motivos para esperar caridade
se fez um grande silêncio. cristã. Esta verificação foi para ele o último e irremediável gol-
pe. Aceitou sem reagir, mas ficou profundamente abalado. A
XVIII CONDENADO impressão permaneceu indelevelmente estampada em sua alma.
Tudo foi sufocado no silêncio. E silêncio foi a sua última pala-
Um dia, enquanto ele se encontrava neste estado, uma clas- vra. Renunciou então, tristemente, a fazer-se compreender, e ca-
se de homens julgou oportuno condenar o mais significativo de lou. Perdoou com o Evangelho. Mas que ruína fora feita naquela
seus livros. Seu pensamento via-se, assim, rechaçado naquele alma! Acreditara ser seu dever explicar-se sinceramente. Nas
meio. A notícia o colheu de surpresa em sua laboriosa solidão, suas boas intenções, na sua ingenuidade evangélica, em vez de
numa triste tarde de novembro. Então, renovou o cotidiano unificar as almas elevando-as, ele não produzira senão perturba-
exame de consciência e não encontrou no fundo de si senão a ções. E esses fatos atiravam ao seu espírito a semente da dúvida.
sua habitual harmonia com Deus. Sua alma sentiu que nada ti- Sacudiu-o aquela diversa realidade da vida, na qual o homem é
nha a se reprovar e permaneceu em paz. quem manda. E também aqui o mundo era inimigo.
No fundo, era lógico que, entre tantos pontos de vista, alguns As apreciações do mundo, diante do fato novo de sua conde-
deviam existir que não podiam ter sido previstos. Não lhe fora nação, foram diversas. Qualquer um teria visto aí uma oportuna
possível tomar conta de tudo, tão solicitado estava por suas me- publicidade para melhor lançar os seus livros. Mas ele não se in-
tas e métodos. Não se admirava senão de que a aplicação ao seu teressava por tais questões econômicas, que não tinham sentido
pensamento de uma unidade de medida não prevista, tivesse da- diante do seu trabalho espiritual. A sua moral lhe impunha fugir
do aquele resultado. Num exame formal (baseado em que pre- de qualquer compensação pelas atividades deste gênero. Ter-
missas!), que ele não pudera perceber, pois estava inteiramente lhe-ia parecido uma horrenda profanação mercadejar e vender o
tomado pela grande voz dos fenômenos, preso à sua terminolo- fruto sagrado da inefável alegria de poder elevar-se até Deus. Os
gia e a uma orientação individual, era natural que concluíssem meios para viver deviam vir-lhe de outras ocupações. Não traba-
que ele, feito de substância, e não de forma, retinha um mal en- lhava com o espírito para ganhar, mas para realizar seu próprio
tendido. ―A letra mata, o espírito vivifica‖. Procurou, por todos destino. Por isso, tinha necessidade de o conhecer a fundo. Exi-
os meios, esclarecer, mas o juízo permaneceu agarrado à letra. gia em pagamento muito mais do que a conquista da riqueza –
Procurou esclarecer, especialmente pela imprensa, que não exigia a conquista das almas. Mas nada podia fazer senão obser-
tinha intenção de se fazer rebelde. Por princípio de ordem, var a crescente divulgação de suas obras depois de terem sido
daquela ordem universal em que vivia, respeitava a autorida- condenadas, como sempre acontece, e nisto viu ele a ação da
de, sem indagar, deixando-lhe toda a responsabilidade dos Providência, que auxiliava a sua difusão. Confortou-se com isto.
próprios atos. Obedecia à autoridade, dando a César o que era Se não os homens, Deus, pelo menos, parecia estar com ele, e
de César e ficando livre, na inviolável liberdade do espírito, sua missão, não obstante tudo, continuava a se cumprir.
para dar a Deus o que é de Deus. A autoridade, seja quem for No entanto, aqueles livros iam sendo lidos e estudados, e
que a personifique, é um princípio de alto valor, por ser um seu pensamento se difundia sobretudo no campo de onde lhe
ponto sólido na organização da ordem, cujo fim é a ascensão viera a condenação, e isto era importantíssimo para o bem das
humana. Demolir esse princípio é atentar contra a evolução. almas. Não são justamente as batalhas que mais difundem as
Aqueles que compreendem têm, para com os rebeldes e igno- ideias? A semente fora lançada naquele campo e lá poderia
rantes, o dever de dar o exemplo e a obediência. ―A autorida- germinar nas almas, pois que, não obstante as desconfianças e
de – dizia ele – respeita-se. Quando se deve temer e não se os preconceitos, a convicção se adquire do modo mais inespe-
pode obedecer, esquiva-se; mas sempre se respeita‖. Ele pro- rado. Quando se trata de uma verdade, a consciência, que a
curou esclarecer em particular – não era possível o entendi- recebe por intuição, apossa-se dela, mau grado a vontade e a
mento através do espaço e da forma mental, por entre a buro- razão, porque, antes que aquelas intervenham, já a incorporou.
cracia intermediária. A sua complexa questão de pensamento Abaixam-se as barreiras das resistências negativas, que, sur-
e de consciência não se podia resolver formalmente como fora preendidas, são penetradas antes que o próprio homem se
exposta, mas apenas por íntima comunhão de espíritos, em aperceba, sem que se tenha pedido permissão ao acordo das
presença de Deus. Ficou esmagado, vendo o seu caso – tão convenções humanas. A consciência, que tem espontâneo o
importante para ele, tão denso de sacrifício e no qual estava o sentimento e o desejo da verdade, incoercivelmente sente, re-
significado da mais intensa paixão de sua vida – tratado e re- conhece, julga e irresistivelmente atrai e, por esta atração,
solvido friamente, de acordo com os manuais, em vez de o ser obriga a aceitar as coisas que vêm de Deus. É este íntimo e
com a consciência. Foi-lhe exigida uma clara retratação. Já fi- secreto método de funcionamento do espírito, por si mesmo
zera, voluntariamente, o seu ato de obediência à autoridade, dirigido à verdade e construído para alcançá-la, que explica
mas a sua consciência lhe proibia isto, que seria para ele um como a verdade dissipa automaticamente todas as coerções
suicídio espiritual. Se tinha podido e espontaneamente queri- racionais, feitas mais para ocultá-la do que para revelá-la. A
do humilhar a sua pessoa, à qual não dava nenhum valor e de
quem era dono, não podia abjurar a verdade, que valia mais 11
Quem age contra a consciência prepara o seu sofrimento espiritual.
que sua vida e da qual não podia dispor. Compreendeu que, (N. do T.)
42 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
verdade penetra, convence e conquista a consciência, não por sentasse. Ele perdoava. Repetia aquelas sublimes, mas tremen-
constrangimento de lógica, ou de luta, mas por atração espon- das, palavras: ―Perdoa-lhes, porque eles não sabem o que fa-
tânea e juízo intuitivo da alma. Os processos de raciocínio se zem‖. Olhava os homens e perguntava: ―Serão eles realmente
reduzem a excitar, na rixa, as razões defensivas da consciên- culpáveis de não saberem emergir do plano animal, de não sa-
cia e não podem, por isto, descer em profundidade. Assim o berem superar as leis da realidade biológica?‖. E, de sua parte,
método racional, por um simples erro psicológico, fica na su- da parte do espírito, encontrava Cristo e a Cristo, desesperada-
perfície e jamais persuadiu realmente a ninguém. Deus armou mente, se agarrava. Esta união era toda a sua razão, justificativa
a substância da verdade e protegeu-a do assalto e das armadi- e força. O mundo, imerso na luta pela vida, atentava também
lhas de todos os sistemas humanos, comunicando-a direta- contra seu refúgio vital. Ele não condenava o homem, cego
mente ao espírito, falando a ele, que a ouve e compreende executor, através dos instintos, das leis da sua vida. Observava
muito bem, sem intermediários. a batalha apocalíptica que se travava entre o bem e o mal como
Outros viram na condenação uma ocasião para soprar o fo- se fosse não espectador, mas ator. E perguntava a si mesmo:
go, turbar as almas com a semente da rebelião e ficar de lado. ―Por que o encarniçamento da matéria contra o espírito? E por
Aqui também, o mundo lhe era contrário, e ele se rebelou por que tem de sofrer a sua hora de trevas e sentir o peso da derro-
todos os meios contra esta intervenção. Não lhe agradava aque- ta? Por que aqueles que se elevam mais alto devem atravessar a
le sistema das verdades particulares e antagônicas, rivais e prova de ser atirados à lama como Cristo sob a cruz; devem ser
agressivas. Não queria se tornar instrumento da psicologia do expostos, inermes, ao assalto do que existe de mais baixo e de-
mundo. Também na defesa e na reação, perturbavam-no aque- vem saber resistir às mais ferozes tentativas da demolição? Por
las realidades tão diversas da vida, em que manda o homem. que Deus o permite, que significam, na sua harmonia, os aten-
Sem distinguir de que ponto particular da psicologia huma- tados e este dever de resistência dos que estão mais avançados
na, nem de qual das muitas divisões do pensamento humano, no caminho que vai até Ele? Por que o bem, em vez de ser en-
lhe vinham os ataques, o fato era que a batalha estava sendo corajado, é perseguido? Por que o tormento do justo; por que a
travada e era contínua; o mundo se tornava seu inimigo e o as- condenação justamente de quem é reconhecido entre todos o
saltava cada vez mais profundamente. E, desta vez, os assaltos melhor; por que a impotência da bondade diante da força, a de-
vinham dirigidos justamente contra os centros mais vitais do bilidade do evoluído diante da bestialidade do involuído; por
seu destino, ou seja, a explicação de sua missão. Esta era repu- que a luta de todos contra todos? Por que a falência do ideal, a
diada, negada totalmente. Os que haviam seguido o desenvol- rebelião contra ele da parte do mundo, que justamente o pro-
vimento lógico do seu destino podiam agora compreender que clama e venera; por que o terrível trabalho do homem para su-
aquela negação significava paralisar cada valor e escopo de sua bir, a luta dentro dele próprio para fugir do inferno e a necessi-
vida – dar-lhe a morte espiritual. A retratação significaria, para dade de ficar e demorar? Por que o instinto do homem de fazer-
ele, aceitar a morte e ser cúmplice do próprio suicídio moral. A se teoricamente um modelo superior para si mesmo e por que a
condenação era formal e ignorava estas coisas, que, no entanto, sua impotência prática de realizá-lo?‖.
permaneciam. Ela se dirigia contra a sua fé, para destruí-la, pa- Ele se sobrepunha aos atores humanos do drama. Procura-
ra atirar ao chão o produto de tanto trabalho e tanto sacrifício, va a substância, a significação de tudo. Recordava o drama de
para lhe tolher toda a esperança e subverter a significação de Cristo sobre a cruz. Haveria, então, uma lei de rebelião, pela
sua vida. Talvez tudo isto não estivesse nas intenções da con- qual o inferior fareja o superamento que o ofende, que o cas-
denação, mas estava, com certeza, nas suas consequências. Ti- tiga por sua incapacidade de subir, que o condena como uma
nha o dever do respeito e aceitava a imposição do silêncio. Tu- derrota no seu dever de se elevar? E isso não lhe deixaria ou-
do estava tranquilo na superfície, mas a preço de que destrui- tro desejo senão o de se revoltar contra o exemplo de seu
ções nas profundezas! Não lhe restava senão o recurso de se maior dever, que ele não soube cumprir. Ou talvez fosse o te-
aturdir, já que não podia anular-se. mor do inexplorado; o terror da dilaceração da certeza das ve-
Acreditara sincera e profundamente, e estes resultados lhe lhas estradas; a resistência à vertigem avassaladora do ignoto
demonstravam agora o absurdo de sua fé. Sentia-se traído em e do novo; o ódio ao trabalho exaustivo; o instinto de conser-
suas mais elevadas aspirações. O ataque do mundo conseguira vação; o horror do vazio; o pavor da descontinuidade, da cer-
destruí-lo. Para não ver sua fé vacilar e desmoronar, procurava teza transformada em dúvida, que implica o tormento de en-
aturdir-se, começando por quebrar a sua pena e renunciar a es- contrar uma nova certeza à custa do próprio risco e do próprio
crever, a compreender e a pensar. Não querendo se rebelar nem trabalho? É a rebelião das trevas contra a luz. É a luta que,
podendo se justificar, não lhe restava senão o caminho da pró- contra o cérebro, está no ventre do mundo. Por que este dra-
pria destruição espiritual. Saberia ressurgir de tamanho deses- ma? Por que a verdadeira bondade, a verdadeira superioridade
pero? Acreditara com tamanha força que caminhava em direção intelectual e moral ofendem tão imperdoavelmente aqueles
a Cristo, pela estrada do bem, e agora recebia este golpe dos que, por não saber atingi-la, a olham de baixo? Por que a ani-
homens com os quais devia estar em perfeito acordo sobre o malidade humana está tão convencida da própria importância,
caminho da ascensão espiritual! E este ataque chegava agora, a ponto de não tolerar superamentos? Ah! Que luta! Que can-
que ele fora sacudido por tantas outras coisas, somando-se às saço por haver ousado avançar! Ele sentia-se aterrorizado e
suas já graves atribulações. Poderia a sua fé resistir a tanto? E desejava a morte. De que servia lutar? Não era contra os ho-
ele invocava: ―Meu Deus, por que me abandonaste?‖. mens que lutava, mas contra as inexoráveis leis biológicas de
Que distância da filosofia fácil e feliz dos que tão facilmen- que eles eram o inconsciente instrumento de execução. E co-
te se atiram à solução de seus problemas, afogando-os em qual- mo vencer as leis biológicas?
quer gozo material! Diante do mundo unicamente ávido de pra- Por mais que se esquivasse aos aplausos do mundo e fosse
zeres, até parecia que ter uma alma, um ideal, era uma anorma- além dos seus íntimos superamentos, era acoimado de soberba.
lidade. A sinceridade, a fé no superamento de todas as misérias Tudo isto lhe era doloroso. A inevitável atitude de solitário não
terrestres – uma anomalia patológica! Rebelde à vida animal da era perdoada. Difícil vencer a repugnância pela descida até ao
Terra, fora inexoravelmente isolado. As leis biológicas impeli- nível da multidão e conseguir desembaraçar-se da posição es-
am o homem ignorante à destruição da exceção, da emersão do pecial que os outros definiam como soberba. Sentia a injustiça e
pântano da mediocridade. O encontro era sempre entre ele e o o peso deste juízo e a tristeza do isolamento consequente. E não
homem, entre o espírito e a matéria. Sempre o mesmo desafio lhe vinha nenhum auxílio para encorajá-lo a suportar o árduo
dele contra o mundo, não importa sob qual aspecto isso se apre- trabalho. Em meio ao terrível desbaratamento que o constrangia
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 43
à solidão dos incompreendidos, atentava-se também contra a úl- seguir até ao fundo. Como um culpado, seu espírito era cha-
tima alegria que lhe restara: a consciência de sua posição, o ín- mado a prestar contas à razão prática pelos seus sonhos e ide-
timo sentido de sua função e missão. ais. Queria ver o que aconteceria com estes, uma vez estraça-
Então apresentou-se-lhe a nova posição em toda a sua crua lhados pelo inferno terrestre. As partes se invertiam. Agora era
nudez. Extinguiu-se-lhe nos olhos a doce miragem evangélica; o mundo, no qual ele tivera que cair, que com ele desafiava o
caiu a venda do seu fascínio, e percebeu em que infernal rea- Evangelho. O que responderia este? Que aconteceria àqueles
lidade de vida estava jogado. Compreendeu que nova e terrí- delicados sentimentos de bondade, perdão e amor transporta-
vel experiência o esperava. Vivia no mundo; este era quem dos ao reino da força, onde o maior mérito está em saber rebe-
mandava, e o seu reino vencia. Não mais a fuga. Tinha que lar-se e vencer. Se a lei do Evangelho, no céu, subverte as leis
viver no mundo, pertencer ao mundo, debater-se sob a sua da Terra, estas, na Terra, subvertem aquela. Tornava-se, assim,
inexorável lei. Tinha que descer ao inferno terrestre. Tratava- arruinado o motivo fundamental de sua vida. Já não se tratava
se de experiência inteiramente diferente da anterior, comple- de olhar do alto do céu as misérias da Terra, mas ver, a partir
mentar e indispensável. Tratava-se de recomeçar o exame, sob destas, quanto o céu estava intangível e longínquo.
nova luz, de todos os valores já conquistados e joeirá-los ago- Era a hora de pôr em contato com a crua realidade aqueles
ra nesta prova de fogo. Estava demasiado exausto para resistir ares de super-homem do espírito, que vai à cátedra para julgar
ainda a tudo e a todos. A maioria submergia-o. Ele estava só. e condenar o homem comum. Era a hora de encolher-se às suas
Tudo o impelia para baixo: seu cansaço, o abandono do céu, medidas, responsabilizando-se pelas próprias desgraças e mi-
os assaltos da terra. Luta, luta, e um dia as forças do espírito o sérias. Era a hora de se tornar vil e desgraçado, humilde nuli-
abandonaram. De qualquer modo, não importava a que preço dade dos caminhos, despindo o orgulho de passados supera-
e com que meios, precisava sobreviver. O barco afundava. Era mentos, deixando a aristocracia do pensamento e do sentimen-
preciso aliviá-lo de tudo o que fosse dispensável. Quando a to, que se reduzia a isenções de privilegiados, por uma realida-
vida está em perigo, a própria natureza, para salvá-la, se de em que havia necessidade de olhar face a face. Eis o que o
apressa a demolir as superestruturas. O edifício, com tanta di- mundo lhe dizia agora, que se tornara um deles, oferecendo-
ficuldade construído, desagregava-se. Era a hora das trevas. lhe uma rude lição, em cuja brutalidade devia encontrar salutar
Para não morrer fisicamente, tinha que reagir a todos os assal- lição de humildade: ―Fica sob o jugo, conosco, se, em verdade,
tos com reação puramente humana, necessária para sobrevi- como dizes, somos todos irmãos segundo o Evangelho‖. Era
ver. As forças do destino chegavam agora em ondas violentas. isto que o mundo lhe dizia. A experiência era importante. Num
Era preciso sofrê-las, atravessá-las, superá-las, antes de poder retrocesso involutivo, devia perder as vantagens da libertação e
livrar-se delas. Lutar, rebelar-se, era a lei do mundo, e ele ti- arrostar todos os gravames da matéria. Então, o que é mais im-
nha que aceitá-la. Precipitando-se do céu luminoso ao palude portante: aperfeiçoar-se para fugir do mundo, voltando-lhe as
tétrico, viu-se submergido até ao pescoço. Um feroz riso de costas, ou esquecer-se de si próprio, para imergir no mundo,
escárnio o recebera. Aos seus olhos assombrados, a vida apa- suportando com os seus semelhantes as suas penas? Não tinha
recia no seu aspecto bestial, e ele retomou o caminho com a ele, livrando-se da riqueza e aceitando o trabalho comum como
coragem do desespero. Tornou-se normal. Então compreendeu um dever, escolhido esse caminho? Provavelmente, a ascensão
e foi compreendido. Abandonou a convicção de superiorida- não pode ser completa sem a descida, e o progresso se apro-
de, de exceção, de missão; meteu-se na fila, na multidão, lado funda e completa-se nos retrocessos.
a lado com os outros, e viveu a lei de todos. Sua vida degra- A descida era terrível. Não tinha experimentado a lição da
dou-se até ao plano animal comum, e o espírito emudeceu. bondade e do ideal e não fora, pelo menos por agora, traído?
Por agora, o mundo o vencera. Por que insistir na utopia do Evangelho, se tais eram os resulta-
dos? Talvez Cristo lhe tivesse sido uma grande ilusão, não
XIX. NO INFERNO TERRESTRE compartilhada pelo mundo, que insistia em reprová-lo, demons-
trando-lhe a falsidade com seu oposto teor de vida. Aqui em
E, então, uma dúvida atroz se apossou dele. Dúvida que o baixo, não tinha sentido o insensato amor por Cristo, a tola fé
impeliu a engolfar-se em nova realidade da Terra, antes negli- em Deus, o espírito de sacrifício na intenção de atingir, quem
genciada. Qual seria a lei que o condenava com tanta seguran- sabe quando, um céu longínquo e, por agora, inatingível. O
ça e convicção? E, no dissídio entre ele e o mundo, não podia mundo dava-lhe uma lição de senso prático e utilitário.
ser que fosse ele quem tivesse errado? Conheceria, em verda- Por que andar em busca de resultados tão afastados, quan-
de, este mundo que sempre reprovara? Por que as coisas acon- do os havia mais próximos sobre a Terra? Sem dúvida, pelo
teciam de tal modo? Podia ser que o mundo tivesse boas ra- menos por agora, a experiência da bondade fracassara para
zões e que houvesse nele uma lógica diferente, que ele não ele. Isto o levava a mergulhar na experiência da vontade e da
compreendia ainda, por não a conhecer. Que lógica seria essa, força, na esperança de que estas não o traíssem, como o fizera
e por que seria assim? Havia ali em ação qualquer força igno- o ideal. Era provável que estas fossem igualmente falazes,
rada, que escapara à conquista dos seus conhecimentos? Além mas ele não as experimentara e, talvez por esta única razão,
das afirmações já experimentadas pela inteligência e pela bon- não fora traído ainda. Já realizara a experiência da inteligência
dade, poderiam existir afirmações diversas, ainda não explora- e do coração. Não lhe faltava senão a experiência puramente
das por ele? Quem teria razão: ele ou o mundo? Quem era su- humana e viril da vontade e da força. E, assim, entrava em
perior? Se o mundo era sedento de prazeres materiais, não era nova fase de vida. Superada a prova da dor como instrumento
ele sedento de prazeres espirituais? Se o mundo procurava fu- de redenção (concepção altruísta feminil da vida), atirava-se
gir à dor com o gozo de seus sentidos, não procurava ele agora à prova da luta como instrumento de conquista (concep-
igualmente fugir à dor no gozo do espírito? ção egoísta masculina da vida). A velha experiência trocava
Começou, então, a partir desse novo ponto de vista, a revi- de natureza e se completava na outra, que era inversa e com-
são de seus valores espirituais. O mundo cercara-o, assediara- plementar. A aceitação passiva se transformava em ação viril.
o, penetrara-o, estava agora dentro dele, e ele próprio continu- Por um momento, desprezou o aspecto negativo e passivo do
ava agora a obra do assalto, cumprindo a própria autodestrui- ideal feito de sacrifício, de piedade, de bondade, de espera –
ção. Os fatos levavam-no a crer que toda a precedente direção para realizar seu aspecto positivo, feito de vontade, de força,
de sua vida fora desbaratada e lhe era necessário, agora, uma de luta, de conquista. Era uma descida do céu à Terra, talvez
direção inteiramente nova, que, uma vez começada, teria que útil para assegurar a sua posição.
44 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
Tinha, agora, que fazer suas não as leis do céu, mas as da onde urge a defesa e impera sem tréguas a lei desapiedada da
Terra e aguardar os resultados. Tinha que realizar nova experi- luta de todos contra todos. Um ambiente em que se procura, se
ência, sabendo bem que esta não se pode fazer por intermédio exalta, se adora a força. Bondade e justiça são refinamentos dos
de outros, mas somente com meios, perigos e também resulta- grandes senhores, são luxos criados para os anjos que estão no
dos próprios. Precisava mudar. Não se tratava mais de ordem, céu, não para os demônios que vivem na Terra. Aqueles que
de harmonia do divino, de amor ao próximo, de bondade e jus- dispõem de força usam-na para si mesmo; apenas os fracos em
tiça; tinha que sair deste paradisíaco concerto e entrar num busca de auxílio se refugiam no Evangelho. E o Evangelho, fei-
mundo caótico de luta e dissonâncias, de agressão e prepotên- to para a ascensão humana em direção ao espírito, redunda em
cias, onde o necessário não é coordenar-se, mas reagir e vencer refúgio de inaptidões. O exército que o segue não passa de mul-
impondo-se a tudo e a todos. Seria isto verdadeiramente diabó- tidão à procura de acomodamentos parasitários e de evasão da
lico e infernal, ou havia certa nobreza na ferocidade, certa justi- inexorável e desapiedada justiça das leis biológicas. Se essa
ça na força, certa respeitabilidade na baixeza? justiça é salutar para arrancar do refúgio todos os retardatários
Às vezes, parecia-lhe quase maravilhoso o novo ponto de da evolução, todos os refratários ao trabalho que o progresso
vista. Havia, sem dúvida, admirável coragem no insignificante impõe, todos os preguiçosos e ineptos que resistem à lei de se-
homem para ousar, sozinho, desafiar o caos e impor-se a ele, leção do mais forte, ele se perguntava que resultados antibioló-
sem o conforto das harmonias divinas, de auxílio superior. Ha- gicos, que seleção às avessas, a lei evangélica acabaria por pro-
via terrível coragem no franco reconhecimento de ser fera e de duzir, de tal modo alterada em sua aplicação e de tal modo
querer adaptar-se à lei das feras, com todos os riscos e perigos. transplantada para o ambiente terrestre. Não era esta adaptação
Havia na inferioridade de grau evolutivo, na primitiva insensi- uma terrível vingança da Terra contra o céu, não era a demons-
bilidade, na rudeza elementar – a potência do bloco de mármore tração do absurdo da prática do ideal, uma traição contínua ao
ainda não esculpido, e sempre, embora em germe e menos evi- martírio de Cristo? E, se, sobre a Terra, o Evangelho não podia
dente, a mesma centelha de vida de Deus. Do ponto de vista da existir senão assim alterado, de que servia havê-lo proclamado?
rude virilidade, a piedade e a bondade pareciam-lhe debilidade Se estes eram os resultados práticos, não era uma aberração in-
e incapacidade. Visto pelo homem da Terra, atleta da força, sistir nesse caminho? No entanto, não se podia negar que sobre
aquele outro homem do ideal parecia abandonado e inconscien- a Terra também havia uma lógica, embora terrível. Mas as duas
te, embora fosse um atleta do pensamento. lógicas – do céu e da Terra – não podiam se encontrar senão fa-
No entanto, aquele tipo de homem comum que ele tanto talmente se invertendo, traindo-se e destruindo-se mutuamente.
condenara, era perfeitamente equilibrado no seu ambiente ter- Ele, que vivera a experiência da vitória da lógica do céu so-
restre, ao passo que ele não o era. Via que a natureza premiava bre a da Terra, deveria viver a experiência inversa. Ao menos
com o sucesso a prepotência e a astúcia, garantia a vida aos que agora, no mundo, esta segunda era uma realidade. Duas posi-
sabem usar a força para vencer. Via que, na prática, o triunfo ções exclusivistas, inconciliavelmente contrárias. Cada uma das
pertence àqueles que destroem o inimigo; os que não sabem se duas afirmativas, no seu absolutismo, implicava a completa ne-
defender e oferecem a outra face têm um fim brutal. Agora via gação da outra. E ambas investiam profundamente sobre o ho-
o que o mundo é, não o que será e deveria ser. A lei que os fa- mem, que, para viver uma, tinha que necessariamente renegar a
tos lhe mostravam não mandava ser bom e altruísta, mas forte e outra. E ele era tão irredutivelmente honesto e leal que não
egoísta. Via uma natureza desapiedada, que não socorre os fra- mais podia se adaptar à aviltação de um acomodamento.
cos; pelo contrário, os condena e persegue para liquidá-los. O Aqui estava, então, a terceira posição, cuidadosamente ela-
tipo que o mundo exaltava, o modelo que se apresentava como borada nos séculos, aninhada agora no centro da fé e bem arma-
ideal a se imitar, é completamente diferente do modelo evangé- da de defesas; uma posição na qual se triunfava jogando com pa-
lico que adotara para imitar Cristo. lavras, à força de prudentes silêncios sobre os princípios mais
Quando de sua experiência neste sentido, não fora com- profundos, sofismando a consciência, refugiando-se nas formas,
preendido; ao contrário, fora condenado. O mundo tratara-o até pôr de acordo, ao menos em aparência, a Terra com o céu.
como um imbecil, porque estava convencido de que o era. Via Tinha-se a doce ilusão de se poder conquistar o céu sem se
no mundo completa indiferença por tudo aquilo que não signi- incomodar o corpo. Isto se formou por tácito consenso, tão
ficasse vantagens imediatas para o próprio egoísmo; completa profundamente instintivo, que todos estavam de acordo sem o
indiferença para com o sacrifício e o altruísmo, que só inte- saber: uma convenção tão estável, que se fixara em costume.
ressavam quando podiam trazer vantagens pessoais. Que im- O instinto da vida animal, o impulso das leis biológicas adap-
portava aos outros se ele pudesse ser mesmo um gênio, um tavam-se à subversão celeste, aceitando-a parcialmente, em
santo ou um mártir? Os seus semelhantes não podiam se inte- parte sustentando-a e em parte reagindo contra ela. Resultava
ressar senão pelo rendimento prático, e o seu valor era avalia- daí a formação de um tipo híbrido, nem animal nem anjo, em
do pela medida em que pudesse ser utilizado para vantagens íntima contradição consigo mesmo. Compreendia como a me-
dos outros. O super-homem é um fraco no campo humano; o díocre natureza do homem comum podia se adaptar a essa vi-
supernormal é, por compensação de equilíbrio, condenado à da de anfíbio. Talvez fosse a sua natural fase de transição na
miséria do anormal. O caminho de ideal é caminho de sacrifí- evolução. Revoltou-se contra isto. Queria continuar sendo ele
cio e de martírio. O gênio é um inepto para a prática da vida. mesmo, ainda na queda, e preferiu cair inteiramente, manten-
Compreende onde os outros nada compreendem, mas, em do-se coerente. Detestava os sonolentos, os prudentes, os
compensação, não compreende nada onde os outros tudo acomodatícios, as meias medidas. Queria um equilíbrio está-
compreendem. É insignificante onde os outros são tão exube- vel na Terra, não um incerto esvoaçar sobre o pântano; queria
rantes. Tudo isto nada importa ao homem comum, que apenas afrontar com coragem o inferno terrestre, em vez de se colo-
se interessa em descobrir qual o ponto fraco do tipo de exce- car como indigno às portas do paraíso. Na terrível aventura,
ção, para aí feri-lo e, então, desfrutá-lo ou destruí-lo. queria ser coerente e honesto. Seguia o seu instinto e a sua na-
Via que a lei altruísta do Evangelho não era, nesse mundo, tureza. A fundamental retidão do seu caráter, a sua inadaptabi-
sentida como verdade senão pelos fracos, os quais, procurando lidade às combinações e à mentira, a sua revolta contra a vile-
proteção no altruísmo, dele esperam tudo. Não era sentida se- za de pensar só no próprio interesse foram o fio que não se
não como mentira pelos fortes, para os quais o altruísmo dá rompeu nunca e que ainda o mantinham, mesmo nesta hora de
prejuízos. Em suma, a Terra não era lugar de paz, de segurança trevas, ligado ao céu. O único fio que lhe permitiria, embora
paradisíaca, como o Evangelho pregava, mas de grande miséria, não previsse, tornar a subir.
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 45
XX. REVOLTA tível. Era preciso fazê-la falar pela voz dos fenômenos que a
exprimem no ambiente terrestre. Só essa podia ter a solidez que
Foi por este tempo que Nietzsche lhe falou no seu Also apenas a aderência experimental à realidade pode dar. Só com
Sprach Zarathustra12: esse método mais universal poderia medir tudo e explicar a
Repara, ó meu amigo, na solidão! conduta dos homens, religiosos ou ateus, de todos os homens,
Onde termina a solidão, aí começa o mercado. fossem quais fossem suas afirmações teóricas. Desejava com-
Longe do mercado e da glória, tudo o que é grande se retrai. preender por quais razões, biologicamente verdadeiras, tinha o
Foge da solidão! Inumeráveis são os pequenos e os miseráveis. homem, que ele agora observava, agido assim. As delicadas
Salva-te da sua invisível vingança. Contra ti, todos eles desejam vin- construções espirituais do céu não resistiram. E desta derrocada
gar-se. queria compensar-se com a conquista de solidez sobre a Terra.
Sim. Os vis são prudentes. Já que tinha de limitar seu campo, queria ao menos resultados
Pensam muito em ti, na sua pequena alma – tu lhes deste motivo seguros. E a Terra tinha a ciência materialista, já orientada nes-
a suspeitas! te sentido, objetiva, experimental, concreta, utilitária. Sem mais
Punem-te por tua virtude. E, no fundo, não te perdoam senão teus imersões no imponderável – agora negadas a ele por sua ce-
erros. gueira, como o eram a seus semelhantes – a sua verdade já não
O teu orgulho taciturno irrita-os. A sua miséria arde contra ti no podia ir além dos resultados oferecidos pela percepção dos sen-
desejo de uma vingança invisível. tidos. Tinha de se limitar a ouvir a voz dos fenômenos, para que
Aquilo que em ti é grande não faz senão torná-los mais desejosos estes lhe revelassem o próprio significado e, com ele, a verdade
de fazer o mal. terrestre que continham, porque neles ela devia estar sempre
Depois destes conselhos, Nietzsche punha a nu toda a sua presente. Devia agarrar-se às manifestações dos fenômenos e da
revolta: vida, porque certamente elas exprimiam as suas leis. Podem
Parece-me agora o mundo obra de um Deus sofredor e crucificado. existir também outras leis, mas esta é, sem dúvida, a lei do am-
Aquele Deus que eu criara era a louca obra de um homem, como biente terrestre, a sua verdade. E encontrou a realidade biológi-
são todos os deuses. ca, impiedosa e bestial, lei de luta pela vida, de seleção dos
Aquele outro mundo está muito bem fechado para os homens. mais fortes; encontrou-se diante dos instintos primordiais da
Aquele mundo humano e desumano é um nada celeste, e o útero do animalidade, os motores elementares da existência: a fome, o
ser não fala absolutamente ao homem. amor, a evolução – para a conservação individual, assim como
Na verdade, é muito difícil provar que o Ser é; mais difícil fazê-lo para a conservação da espécie. Era uma verdade bem magra,
falar. esquematicamente animalesca, mas indiscutível. Certamente,
Não escondas mais a cabeça na areia das coisas celestes, mas era triste esta mutilação de quem reduz todo o seu ser à sua
levanta-a com liberdade: uma cabeça terrestre que cria o sentido da própria estrutura animal. Mas não era esta a realidade da vida?
Terra. Não era vão tentar a superestrutura do ideal? Não era essa a ho-
A guerra e a coragem realizam coisas maiores que o amor do ra da degradação involutiva? Ele poderia ter-se retraído para
próximo. permanecer no centro morto de seu espírito, ali se deixando ex-
Na sua descida involutiva, o nosso personagem ia habituan- tinguir sem reagir, em triste depressão e renúncia à vida. E em
do-se a esta outra orientação, que lhe oferecia visão diferente e verdade, foi esta a primeira tendência de seu espírito logo de-
dava novo sabor às coisas. pois dos casos descritos. Viveu, depois dos golpes recebidos,
Assim, via os homens e a vida não mais se colocando no um período de anulação que o teria levado à morte, se não ti-
alto dos céus, mas da própria Terra, e, naturalmente, tudo lhe vesse sobrevindo um irresistível instinto de vida. Tinha de revi-
parecia diferente. No profundo de sua nova miséria, compre- ver, senão mais no céu, ao menos sobre a Terra, não importa se
endeu que ia precisar de terrível coragem para viver assim sem diferente, e seguir um período de renovação, ainda que em sen-
Deus, sem a doce música espiritual do Evangelho, sem espe- tido inverso. Ao abatimento da morte seguiu-se, então, a reação
rança, sem poder pedir auxílio, no meio de uma realidade im- da vida; à resignação do vencido, a revolta de Lúcifer. Tudo era
piedosa. Certamente, a figura de Lúcifer tinha sua grandeza e lícito, menos renunciar à vida. Não era hora das virtudes passi-
sua beleza, um Lúcifer revoltado que ousa, sozinho, desafiar o vas da paciência, mas das virtudes ativas da força. ―Quero vi-
universo. Já não era o tempo dos doces sonhos. Era preciso ver!‖, gritou ele. E sua vida foi um grito de revolta. Aliás, não
dar-se aquela coragem, amarga e terrível, de saber viver por si, tinha escolha. Se desejava sobreviver, não lhe restava outro ca-
entre cegos perdidos no universo. Não era homem para apie- minho. Não era esta a hora das trevas? Portanto, coragem! Pre-
dar-se de si mesmo e pedir socorro. Preferia ir até ao fundo, cisava suportar até ao fim a prova da animalização. Quem inicia-
enfrentando o problema sem acomodamentos. Precisava fazer, ra este suicídio espiritual? Quem o provocara? Ele o procurara
com urgência, para si mesmo, uma filosofia objetivamente só- ou desejara? Tudo estava disperso, condenado, repelido; tudo o
lida, que o orientasse na realidade. Precisava fundar outras ba- que de melhor havia em sua alma e que ele dera pelo bem.
ses objetivas para uma nova verdade, que explicasse este mun- Suas intenções tinham sido alteradas; os seus livros foram
do; uma verdade mais resistente e concreta que a outra destruí- acusados; a voz mais alta e verdadeira de sua vida havia sido
da; uma verdade que pudesse, afinal, não mais desmoronar. negada e sufocada. Semeara sobre Terra envenenada; atirara
Fora desiludido; queria agora coisa segura, sólida – uma reali- seus trabalhos, suas dores, seu sangue, na lama. Não podia
dade de ferro, materializada em fatos, indiscutível, universal e mais. Não lhe era possível deter as consequências, impedir as
sempre presente, sempre válida e aceita pelos seguidores de reações. Desenvolvia-se nele um drama terrível, superior às su-
todas as verdades. E onde encontrá-la senão no mundo dos fa- as forças, drama do qual ninguém se ocupava, ninguém via, e
tos, na realidade da vida? Só a verdade biológica representava, no qual ele morria. Um turbilhão gigantesco o arrastava, mais
ao menos na Terra, a linguagem universal, que permite enten- forte que sua vontade e sua resistência.
der e é entendida por todos, mesmo pelos animais; uma verda- Que o mundo era inimigo, ele o sabia; mas não que Deus o
de finalmente aceita por todos, verdadeira, sempre aplicada aos abandonasse assim, quando estava naquela exaustão e sozinho!
seres, vivida por todos, mesmo pelos que a ignoram, ou não Não possuir forças para se voltar para Ele, não poder salvar-se –
creem nela, ou a negam. Esta era, finalmente, a verdade do isto estava acima da sua compreensão e das suas forças. A su-
consenso unânime imposto pelas leis da vida: verdade indiscu- prema ironia do mal vitorioso ria-se em torno dele, enquanto se
desmoronava em ruínas o edifício espiritual construído com tan-
12
―Assim Falou Zaratustra‖. (N. do T.) to trabalho e tantos anos de sacrifício. O último fio de vida gri-
46 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
tava: ―Quero viver! Não posso morrer!‖. Este era o delito de sua A tal ponto descera no mundo, que assumia e fazia sua toda
revolta. Com certeza, Deus, sempre presente, observa vigilante o aquela psicologia. Só assim poderia compreendê-lo, antes de
fundo destes desesperos. Mas ele não o sabia. Se o inferno exis- tudo colocando-se na sua posição, no seu ponto de vista, que
tisse sem a sensação de Deus, que inferno seria! justificava seus atos e considerações. Precisava viver no mun-
Jamais se procura tanto a Deus como quando se está perdi- do, com o mundo, tornar-se mundo. Sua posição atual tinha
do; jamais Ele é tão afirmado como quando é negado; jamais uma lógica impiedosa, que, em consequência dos últimos acon-
está tão presente como quando parece ausente. tecimentos, não podia ser diversa. De resto, essa lógica seria a
Aprofundou-se lentamente, por sucessivas demolições, en- mesma que, prolongando-se inexoravelmente, deveria mais tar-
quanto Cristo ficava longe de suas sensações, na glória dos Seus de salvá-lo. Ele podia ser tudo, menos um preguiçoso inerte e
céus. Ao contato da dura realidade humana, as passadas visões hipócrita. Era o tipo indômito no espírito. Esse tipo não se pode
tinham-se pulverizado. No seu novo estado, perguntava se ver- imobilizar. Poderá ceder, mas não renunciará à própria ativida-
dadeiramente elas tinham existido, se não teriam sido unicamen- de. Não era um homem de acomodações, já o dissemos, nem
te criações de sua fé. Assombrara-o o súbito abandono do alto, a para se conformar a vegetar. Já vimos que o céu lhe fora fecha-
inesperada cegueira e a observação de que, quando já não tivera do por muitas forças contrárias e convergentes para aquele re-
forças para subir até Deus pela própria tensão da fé, Deus desa- sultado. Não lhe restava, para sobreviver, outra escolha senão
parecera de suas sensações. Perguntava a si mesmo: ―Se os ca- seguir a experiência do mundo, ou seja, a da força e da vontade.
minhos da fé podem fechar-se assim, se tais realidades estão na Dada a derrocada imprevista de suas superconstruções espi-
dependência do meu estado nervoso, da minha capacidade de rituais, a sua reação, forçosamente, tinha de ser inferior. Impor-
percepção, existirão elas objetivamente ou são as condições que tava que ele trouxesse em si mesmo o princípio da reação, que é
as criam? E, se, quando a minha força de percepção vem faltar, o princípio da vida, aquele que faz o homem vencer tanto no
elas logo desaparecem, que valor probatório pode ter uma reali- plano da matéria como no plano do espírito. Os que possuem es-
dade experimental que a cada momento está sujeita a desapare- te princípio de vida sempre se salvam, e isto é uma riqueza de
cer? Naturalmente, não são os nossos sentidos os objetos que recursos, uma potência congênita que supera os vagalhões da
percebemos, mas é certo que, sem esses sentidos, os objetos, ao tempestade e guia ao sucesso. Vale mais uma alma pronta e ati-
menos para nós, não existem, e a dúvida, nesses momentos, é va do que cem almas inertes. A primeira cairá em todas as crises
justificada. Tratando-se de coisas menos garantidas do que habi- – com o que as segundas sentirão o dever de se escandalizar –
tualmente, menos valorizadas pela experiência de todos, a dúvi- mas se salvará. As outras, com suas práticas metódicas, perma-
da é mais plausível‖. E concluía: ―A fé é uma ilusão de ótica pe- necerão no pântano, onde o espírito morre. As almas ardentes,
la qual vemos como reais as projeções das criações de nosso feitas de tempestade, se têm os grandes vícios e as grandes fra-
pensamento. As verdades estão em nós, e não fora de nós. Por quezas, têm também os grandes recursos. E, se são capazes de
isso existe aquilo em que cremos, mas apenas porque acredita- muito pecar, são capazes também de muito amar e muito subir.
mos. Os conceitos em si não existem; são vibrações de pensa- A primeira reação, dirigida ao plano inferior, muito escan-
mento no cérebro humano. Os ideais não existem: há pessoas dalizou os métodos bem-pensantes, mas foi para ele o meio de
que acreditam neles. O homem realiza inutilmente o esforço de alcançar a segunda reação, de que aqueles jamais seriam capa-
criar com a fé uma realidade diversa da horrível realidade da zes. E esta o salvou, reconduzindo-o ao bem, muito mais alto
Terra, porque o projeto de construção que ele antecipa com sua do que antes.
fantasia, o modelo em torno do qual trabalha, é tão alto e inaces- O destino lhe prepara essa prova, que era de novo gênero, e
sível, tão cercado de obstáculos da resistência da Terra rebelde, ele a aceitou, como aceitara todas as outras. E não só aceitou,
que não se realiza nunca. Na prática, nada cria, nada move‖. como a utilizou. Encontrou ocasião de observar este mundo, pa-
Uma dúvida o atormentava sobretudo, natural consequência ra compreender-lhe bem a estrutura, estando dentro dele, depois
do seu novo ponto de vista: a sublime utopia do Evangelho é de o haver observado sempre de longe. E ele, que sempre figura-
aplicável na Terra, ou ter-se-ia ele enganado, sacrificando inu- ra como um fracassado, procurava por instinto os pontos débeis,
tilmente a sua vida, tendo talvez de recomeçar do princípio? O para vencê-los, já agora com maior competência. Assim, aquele
problema não interessava a ele somente, mas tinha um âmbito mal se transformaria em bem. Se as adversidades o prostravam,
muito mais vasto. Por que o irredutível contraste entre o Evan- nem por isso ele se transformara em outro. O tipo de um homem
gelho e os instintos animais do homem, expresso nas leis bioló- não pode ser profundamente mudado por circunstâncias exterio-
gicas? Será o Evangelho antibiológico? Como se poderá preten- res. O tipo não se destrói. E, já que, por enquanto, não podia vi-
der que a lei do céu seja aplicável na Terra, onde existe a maté- ver segundo a lei do céu, ele se enquadrou na lei do mundo, para
ria humana, e não o espírito angélico; onde os instintos, o corpo, ver se assim lhe seria possível viver. Se o sistema precedente
as exigências do ambiente, as leis da vida, tudo é tão diverso? O havia dado tão tristes resultados, não lhe restava senão modificá-
mundo guiava-se por outra tábua de valores, por cima da qual lo. E concluía que a vida, embora horrorosa pelas adversidades e
está a força, ante a qual todos se prostram, e que tem o seu decá- pesada pelos trabalhos, superamentos e provas, é sempre uma
logo, no qual é condenada a resignação, a miséria dos fracos, e é experiência muito interessante. Embora brutal, sempre era digna
exaltada a revolta, a virtude dos fortes. Condena-se a fraqueza, de ser vivida. E já que era necessário entrar no mundo, onde não
pecado capital, e condena-se o Evangelho, refúgio dos venci- existia piedade para os fracos, mesmo que mártires, e onde a re-
dos... A paciência e o perdão são tolices supremas... Os dois volta é condição de vida, o seu grito foi: ―Rebelião‖.
mundos tinham cada um o seu sistema completo, que se contra- Colocado no mundo, olhava agora todas as coisas com um
dizem. Ele perguntava se os ideais espirituais não seriam antibi- senso diverso e tornava a fazer, de um ponto de vista prático, a
ológicos, antivitais, um verdadeiro suicídio no plano animal; se pergunta: Seria o Evangelho antibiológico? A ação das religiões,
não seria absurda e impossível a pretensão de realizá-los no am- julgadas através da realidade biológica, parecia-lhe desastrosa.
biente terrestre; se não seria suprema utopia a tentativa de trans- A realidade biológica deseja a seleção do mais inteligente, ativo
plantar tal ordem de valores, construídos para o céu, a um ambi- e forte em todos os campos. Ora, o princípio religioso da bonda-
ente criado para a Terra. Não falava claro a inconciliabilidade de, que na origem tinha uma sadia função biológica, criadora de
congênita, a revolta da matéria contra o espírito? Não lhe mos- coesão social, transformara-se, à força de desvios, acomodações
trava a realidade prática que, em lugar de se compreenderem e e, digamos mesmo, traições humanas, num sistema de proteção
fundirem, os dois princípios lutavam para se excluir? Tudo lhe que possibilitava o pacífico crescimento dos ineptos, dos fracos,
dizia que o Evangelho é uma linda, mas irrealizável, utopia. dos parasitas. Olhava tristemente o lânguido exército, a tépida
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 47
corte de seguidores que a chama original dos mártires, por eles Fazia tais perguntas, agora que estava no mundo, e assumia
também imolados, não conseguia mais agitar nem inflamar. Pra- seus pontos de vista, suas dúvidas e suas incertezas. Agora, que
ticado na Terra, qual melancólico sonho, esse reino dos céus foi estava no mundo, gostava de revirar a face da verdade, que já
falsificado para enquadramento de débeis acomodados. Repug- conhecia, para contemplar o lado oposto. Com isto, exercia
nava-lhe a virtude mutilada da ação e reduzida ao negativo, a controle sobre si mesmo, conseguia um equilíbrio mais seguro
bondade abastardada, a indolência, a religião transformada em e consciente, de modo que a sua nova verdade fosse para sem-
sinecura hereditária. À sombra protetora daquela bondade se pre temperada e fortalecida pela vitória sobre todas as tempes-
conseguira suprimir o trabalho da luta, que é a base do progresso tades. Nesta revisão e nestes contrastes, não encontrava contra-
da vida, e se pudera operar uma seleção inversa. Assim modifi- dições nem renegações, mas um cumprimento de um dever – o
cadas, as religiões invertiam suas funções e resultados. E ele dever de continuar a vida a qualquer preço e consolidar, se pos-
perguntava a que criação de estranho tipo biológico se chegaria sível, a sua posição, tornando a encontrar o Eu mais profundo
depois de algum tempo, caso se continuasse nesse caminho. de si mesmo; o dever de corrigir eventuais excessos e de com-
Afligia-se ao ver tão poderosas forças espirituais, assim falsea- pensar concessões, eventualmente unilaterais, com outras, to-
das, falirem e deformarem-se até se tornarem o oposto do que madas do ponto de vista oposto. Sua natureza era muito rica de
deveriam ser. Só a salutar reação das leis biológicas inferiores e valores espirituais para que um contato com o mundo pudesse
condenadas poderia sustar esse adormecimento, desalojar os pa- apagá-las e substituí-las. Momentâneo admirador de Nietzsche,
rasitas, agitar o lodo, para evitar a putrefação. não cairia no trágico epílogo: a louca exaltação do super-
Tentara falar, mas a sua voz, perturbadora dos adormecidos, homem ao qual fugiram todas as verdades. Nada desta unilate-
fora sufocada. A palavra estava agora com as leis da vida. Pois ralidade havia em sua natureza rica de contrastes, pronta a per-
que é absurdo tentar matá-las com a preguiça. A vida sabe se ceber todos os aspectos das coisas.
defender e insurgir-se; solta seu brado de guerra, que afasta as Algo aprendia agora, abrindo os olhos para a realidade hu-
incrustações antivitais que sufocam o progresso. A esta lei su- mana do mundo. Aprendia que, onde tudo é luta, é natural que a
jeitam-se todos os que vivem sobre a Terra. Quando o espírito força tome para si todas as coisas e que o Evangelho seja con-
trai a sua missão e se degrada no ócio, então as leis inferiores siderado como verdade pelos fracos, que nele se amparam, e
da Terra são chamadas para lhe dar uma salutar lição. Então, a como mentira pelos fortes, que o repudiam. Aprendia que o tão
Terra é mobilizada para despertar, com a dor, o apetite das coi- condenado egoísmo é necessário e que o altruísmo, tão exalta-
sas do céu. Quando o espírito se afoga na forma e a religião é do, é individualmente uma utopia e um prejuízo. Compreendia
um convite para vegetar, quando se exalta a obediência para que as virtudes são coisas para serem recomendadas e exigidas
que seja mais fácil o comando do homem sobre o rebanho, en- do próximo, pois constituem um ótimo meio de submetê-lo e
tão são, sem dúvida, salutares todas as tempestades que saco- explorá-lo, mas não são as coisas que se pratiquem, porque só
dem os ângulos mortos da vida e trazem tudo à luz da luta, à luz trazem sofrimento e limitação. Compreendia a utilidade da as-
do sol. Então, o espírito que renunciou à sua supremacia verda- túcia, do apego aos bens, da elasticidade de consciência, do
deira, não conseguindo libertar-se das leis da Terra, a esta se li- ataque e da defesa. Aprendia que aquilo que se exalta em públi-
ga, colocando-se em seu nível, indefeso diante da lei do mundo, co é apenas uma atitude que, com o louvor, procura-se compen-
que o macera até à sua primitiva pureza. sar e mesmo incitar, enquanto traz utilidade. Compreendia ago-
Nessas comprovações, ele encontrava a explicação da in- ra muitos embustes, o jogo dos bastidores e muito do mecanis-
conciabilidade prática entre a lei do céu e as leis da Terra. Se mo secreto da vida social, tão agradável quando vista de fora,
o Evangelho era elevado demais para ser aplicado ao mundo, com sua distinta aparência. Persuadira-se também que é idiotice
o mundo estava baixo demais para ser erguido até ao Evange- iludir-se com esta realidade infernal; que em verdade, aqui em
lho. Compreendia o homem e compadecia-se dele. Como pre- baixo, Deus está longe, tão longe, que não se pode ver. Sua
tender que este superasse as leis biológicas? No mundo, a luta ação custa tanto para se mostrar no fundo destas trevas, que,
salutar e esclarecedora adoece na preguiça; a coragem tem a praticamente, é como se Deus não existisse, e assim se explica
sua sombra na astúcia; cada virtude tem uma irresistível ten- como tantos podem viver como se Deus nada fosse. A cada
dência para enfraquecer. passo, neste mundo, a matéria nega o espírito, a Terra é vitorio-
Ao lado do triunfo do vencedor está a miséria do vencido. sa sobre o céu, a experiência é contra a fé, a realidade esmaga o
É natural, por isso, o parasitismo e a busca das posições prote- ideal. Que lhe pedia o mundo? Além da mentira das palavras,
toras. É natural a presença dos fracos e é natural que, na luta que coisa realmente lhe pediam todos? Que ganhasse riquezas e
sem tréguas de todos contra todos sobre a Terra, a miséria se as acumulasse, porque só o rico é respeitável. Ser besta de car-
refugie onde puder, inclusive nas religiões. Como se poderá ga, ávida e impiedosa; ser máquina de fabricar dinheiro. Só o
pretender aplicar a tais seres a lei dos santos, dos super- triunfo é compreendido e admitido sobre a Terra. Os triunfos do
homens heroicos? Que se poderá conseguir de tal aplicação, céu não se veem, não se compreendem, nem se admitem. São
senão adaptações, seres híbridos, naturezas contorcidas, menti- sonhos de exaltados. Enquanto ele se consumia em tais afirma-
ras? Como poderá a massa fornecer certos heroicos supera- ções, era um ocioso; enquanto não dava provas de saber vencer
mentos, como se poderão pedir certos sacrifícios supremos a no mundo, obtendo o sucesso por qualquer meio, era um imbe-
quem não é forte e maduro? Como pretender que, num mundo cil. No fundo, diziam-lhe que atirasse fora o supérfluo, demolis-
onde tudo é ataque e defesa, a piedade não venha a ser utiliza- se o espírito, se tornasse normal, entrasse na fila, se tornasse
da como elemento de defesa. homem do tipo em série, como os outros que vivem na Terra, e
Todavia, em meio a tantos contrastes, contrafações e trai- não no céu. Enquanto ele não tivesse adquirido todos os defei-
ções, ele não podia deixar de admirar a sublime ingenuidade e tos, as culpas, as fraquezas, as baixezas humanas – seria visto
a coragem do espírito que, descendo do céu, pretendia, inerme, como suspeito. A tentativa de evasão não se podia admitir e ge-
desdenhando os meios humanos, impor-se a este mundo infer- rava desconfiança. Isso não era fraternidade na miséria, mas de-
nal de força e de miséria; não podia tanto mais deixar de admi- claração de superioridade e desafio. Era pretensão de estar su-
rar aquele espírito que, muitas vezes com tão estranhos meios, bordinado a outra lei, para se eximir da lei de todos, era soberba
conseguira vencer. Haveria, então, no espírito uma arma, uma imperdoável e ofensiva soberba. Para ser compreendido, admiti-
força secreta, um método de luta que, apesar de tudo, lhe per- do e tolerado no mundo, tinha que fazer suas as leis da Terra,
mitia vencer? E como o mundo, mestre nas lutas, não percebe- onde a revolta é virtude; devia operar um processo inverso àque-
ra o novo meio de lutar? le já realizado na ascensão mística: o processo de bestialização.
48 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
XXI. A TRAIÇÃO DE JUDAS céu. Partindo desta base, é lógico que Judas se considere traído
por Cristo, tanto quanto Cristo se poderia considerar traído por
Por um ano viveu este drama, fazendo seu o drama do mun- Judas. Se as metas eram opostas, era fatal o encontro das forças
do. Tentara a arriscada aventura por uma questão de lógica ex- e a tragédia da traição. Judas aspirava a uma grandeza terrena e,
cessiva, mas em plena consciência. Recordava o passado e sen- por isso, seguia Cristo. Quando percebeu que o Mestre não tra-
tia que ele não podia estar completamente destruído. Não com- zia senão bens espirituais, quando descobriu que a grandeza
preendia ainda como poderia ressurgir. Sentia que, agora, com que se poderia esperar de Cristo não era terrena, mas apenas ce-
respeito ao céu, estava cego e que seu espírito se dirigia para ou- leste, então Judas se desiludiu e, na sua lógica, sentiu-se no di-
tros pontos. Compreendia e perdoava ao mundo muitas coisas. reito de se considerar traído e, portanto, de se vingar, restituin-
Trocara de posição; pretendia, porém, arar mais fundo no sulco do a traição recebida. Esta é a psicologia do mundo, que deseja
da vida. Sofria e trabalhava com o espírito. Seu sofrimento era alcançar os seus fins e não admite outros. A base da traição é
mais profundo e mais maduro. A descida aos estratos inferiores esta anteposição de uma finalidade a outra e esta diferente valo-
da evolução, de onde sempre emerge a vida, que ascende, se o rização das coisas. Se o mundo compreendesse o maior valor
embrutecia, também o fortalecia, alimentava o seu ideal, robus- do céu, seria absurdo, para ele, continuar a olhar para a Terra.
tecia-o na escola da luta, reforçava-o, e, no contato com a força, Mas não o compreende, porque ainda é involuído – está no pla-
muitas de suas ingenuidades e de suas simplicidades caíam. no animal, é o bruto que espera sua redenção.
Achava que o homem nem sempre era mau, e nunca o era pelo Aí está o drama da Terra, que cumpre a sua lei. Cristo foi, em
prazer de fazer o mal pelo mal. O mundo lhe dera respostas ru- verdade, crucificado. Mas, alcançada a meta, as coisas se trans-
des, impiedosas, mas razoáveis e honestas. Havendo necessida- formam. Até Judas, a besta cega, compreende que sob os despo-
de e dever de viver, ao que se pode agarrar a conservação indi- jos do homem que ele acreditava haver morrido, há outro ser, que
vidual senão ao próprio egoísmo, desde que o altruísmo não pas- não está morto, mas que vive sob uma lei muito diversa, que lhe
sa de retórica? Portanto o egoísmo é necessário para completar o dá o triunfo. Judas percebe que a Terra, que para ele era tudo, não
dever de viver, logo não é culpa – é dever. Iniciar no mundo a era para Cristo senão um lugar estranho, como se Cristo tivesse
aplicação individual e integral do Evangelho é caminhar para a outra pátria e fosse de outra raça. Ante esta descoberta, Judas fi-
morte certa. Como se pode viver em oposição ao ambiente e em cou atordoado. Viu o crucificado na ignomínia triunfar na glória.
contínua revolta à lei dominante? A ferocidade dos outros impõe E esta transformação misteriosa apavora-o. Vê que Cristo, com a
a ferocidade própria. O reino do Evangelho não pode ser senão morte, realizou totalmente o seu sonho e que ele, Judas, ficou
uma conquista coletiva. Os pioneiros isolados não podem fazer abandonado no fundo, porque o verdadeiro traído e vencido é ele,
mais que ficar despedaçados. Com isto, justificava-se a si mes- transformado em instrumento cego nas mãos de quem desejara
mo por sua queda, mas procurava também justificar o mundo trair. Ele, Judas, sem o compreender, representara naquela paixão
pelo delito de não ter, depois de vinte séculos, aplicado quase a parte pior e fora um dos fatores fundamentais e necessários pa-
nada do programa de Cristo. Assim, compreendia como o belo ra que chegasse o triunfo agora concluído. Primeiramente, traíra,
sonho do céu tivesse permanecido estéril para a massa, justa- mas vencendo a seu modo. Depois, fora derrotado. Não fizera
mente porque, dado o estado de coisas humanas, aquele sonho dano senão a si mesmo, e daí o seu desespero suicida. A sua lógi-
seria irrealizável integralmente. O homem normal não é, certa- ca é férrea até ao fim, e isto demonstra que, tal qual ele era, dado
mente, o herói possuidor de força sobre-humana, em especial se o seu tipo como premissa, a conclusão era fatal, tanto mais que a
tomado isoladamente, para erguer a pesada lei da matéria até aos sua livre vontade, dando um impulso suplementar à vontade fun-
rarefeitos planos do espírito; para transformar a lei da justiça bi- damental do seu temperamento, a revalidara e reforçara de tal
ológica, que é a do mais forte, na lei da justiça evangélica, que é modo, que o arrastaria até ao fim. Arrepender-se teria significado
o bem comum. E estas leis, naturalmente fortes na ação, não se mudar de rota, trocar de natureza, entender o valor do céu – o que
deixam anular. Onde a conservação individual está presa ao ego- ele jamais compreendera e não sabia absolutamente compreen-
ísmo, o altruísmo é absurdo e impraticável. É bem árduo querer der. Ao contrário, ávido como era, procuraria salvar qualquer
fazer um acordo entre o Evangelho antibiológico e a vida terres- coisa e conhecia os caminhos para isso, porque Cristo sempre lhe
tre antievangélica. Se o Evangelho for a lei do futuro, isso não dera o exemplo do perdão. Eis o resultado de tal jogo de forças.
impede as condições irreconciliáveis do presente. Por isso, Re- No fundo, porém, o dominador foi Cristo, que compreendia Ju-
nan, em sua Vida de Cristo, pôde dizer que ―o ideal, bem no das, ao passo que Judas não compreendia Cristo. Isto mostra que
fundo, é sempre uma utopia‖. E Platão disse: ―Sem loucura, não Deus domina o mal, repassando-o e constrangendo-o nos confins
haveria nada de belo e de grande no mundo‖. do bem. Livre, Judas estava entregue aos impulsos do seu tipo, a
Cristo bem compreendera que o acordo não seria fácil, tan- um destino ―seu‖, que continha os germes que se deveriam de-
to que o seu Evangelho toma uma posição clara: é desafio senvolver e, tal como era, foi utilizado. Mas houve um momento
permanente ao mundo, inconciliável inimigo... Jamais foi de- de livre arbítrio, de hesitação, no qual Judas vacilou. Por um áti-
clarada uma guerra mais terrível e profunda, sem possibilida- mo, a paixão de Cristo dependeu dele. Um átimo de liberdade,
des de paz, como essa movida por Cristo sob a amorável forma suficiente para estabelecer a responsabilidade, mas não capaz de
de suas boas-novas. Neste encontro entre o céu e a Terra, entre suspender a paixão, pois que, naquele fermento de povo de trai-
o espírito e a matéria, entre o bem e o mal, entre o Evangelho e dores, em breve haveria uma fileira deles.
o mundo; deste titânico embate, Cristo e Judas são dois prota- No fundo, está é a posição da Terra perante o céu. Judas é a
gonistas, os representantes das duas leis e das duas vidas que voz da Terra, que acusa e mata; Cristo é a voz do céu, que ven-
demonstram o assalto das potências contrárias em forma de ce, mas depois da morte, isto é, depois que as forças interiores
drama vivido. Tratava-se de duas leis inimigas. A luta era ine- foram libertadas para alcançar sua finalidade. Estranha vitória
vitável, e o encontro, fatal. A relação é a mesma do caso atual. para a Terra, que não a compreende. A lei da Terra é a lei de
Quem vencerá? Quem está com a razão? curto alcance, de realizações próximas e pequenas. A lei do céu
Cada um dos antagonistas tem os seus recursos, as suas ar- é, ao contrário, de realizações afastadas e vastas, tanto que há
mas, a sua lógica, a sua justificação. Judas, em seu plano, é uma tempo até para o abandono de Deus. O mundo desempenha a
força, representa uma psicologia, uma lei e, em certo sentido, parte ignorante, do pressuroso logrado. Realiza depressa, mas
um direito. E daí, a sua capacidade de agir. O drama é todo ba- de forma instável, quando não é pura ilusão. O céu vai sem
seado na posição inversa do ponto de partida. Judas via as coi- pressa, seguro através dos insucessos momentâneos, lento por-
sas do ponto de vista da Terra e Cristo, do ponto de vista do que profundo. O mundo acredita ter vencido, mas perdeu; o al-
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 49
vo que pensa ter alcançado lhe escapa das mãos, e a vitória se pode manter abrasado num indivíduo por mais de meio século,
esboroa. É esta uma característica dos métodos satânicos: a ins- porque queima o organismo e, para se alimentar, precisa de com-
tabilidade do equilíbrio e a precariedade dos resultados. Trata- bustível, dado pelo sucesso ou por reações que excitem a vida.
se de um método de construir que não se rege por si, baseado A astúcia moderna, que compreendeu isto, já não comete o
na força; assim que esta o abandona, tudo desmorona. Trata-se grosseiro erro de exaltar um homem e valorizar sua ideia só pe-
de um método desarmônico, isto é, isolado do funcionamento la força da perseguição. Não comete o erro de criar o mártir,
orgânico do universo; método do egoísmo, isolado do amor que nas fileiras alheias será sempre um maravilhoso estandarte,
universal; uma dissonância que faz centro em si mesma em vez uma força criadora que o inimigo não se cansará de aproveitar
de ter como centro Deus, que é a harmonia universal. em proveito próprio e contra os outros. Hoje se evita perseguir
A Terra parece em ruínas no céu; o céu parece em ruínas na abertamente, porque isto seria criar mártires e dar força ao ini-
Terra. Ambos se renegam reciprocamente. O céu, na Terra, não migo. Prefere-se destruir em silêncio. Assim, o ideal se extin-
pode existir senão como negação da Terra; só será positivo guiria em suas mãos, como aconteceria a qualquer um que se
quando no próprio céu. Aqui, ele tem que se submeter à reação, tivesse encontrado em suas condições e, como ele, não tivesse
à vingança das forças humanas. A Terra é o campo de batalha merecido a solução rápida e conclusiva.
onde as duas forças se encontram. Primeiro vence a Terra. A civilização moderna, voz da Terra, tem um sistema muito
Quem desce a ela, tem que sofrer esta prova. Aqui, o céu está seu para sufocar o espírito. Não o combate frente a frente, não o
em casa alheia; deve se submeter às leis locais e aceitar os erros nega, apenas o observa. Não lhe diz: ―Tu não existes‖, porque
que lhe são impostos. No entanto ele triunfa, não na Terra, onde isto seria um reconhecimento do direito à defesa. Diz-lhe: ―Eu
desfaleceu; a compensação se realiza no céu, do qual a Terra existo, apenas eu‖ e, assim, o suprime sem matá-lo. Aturde-o
não percebe senão um reflexo. A grande luta da humanidade es- com os rumores externos, com distrações contínuas, com o di-
tá nesta invasão apocalíptica que o céu deseja operar na Terra e namismo mecânico e vazio que lhe dá a ilusão de fazê-lo viver,
contra a Terra, luta que se chama redenção. Os grandes campe- mas que, em verdade, o deixa morrer. Rouba-lhe cada minuto do
ões desta batalha são os santos. Por estas poucas palavras, vê-se tempo que ele tem para refletir e se encontrar a si mesmo. Ar-
quanto o problema de sua afirmação é mais complexo do que ranca-o da solidão, para atirá-lo no vórtice das metrópoles. Não
parece nas ingênuas e simplistas narrações de suas vidas. lhe dá tréguas. E a vida exterior exige, de fato, toda a nossa
Parece grande pretensão querer vir praticar na Terra a lei do atenção. Não nos podemos deter nas margens. Nos raros mo-
céu; adaptar ao homem comum esse manto feito para espáduas mentos de paz, percebemos que há dentro de nós um estranho
muito diferentes. Se há seres superiores que aqui descem, como descontentamento, uma insatisfação amarga, um vazio e uma
vindos de outro mundo e de outra raça, eles devem ser aprisiona- fome, uma tristeza que a civilização não admite, porque não tem
dos, ao menos enquanto estão vivos, por esta realidade humana. meio algum para curá-la. O mundo desistiu de se ocupar deste
Eles não a ignoram; ao contrário, devem sofrê-la. Superam-na, problemas do espírito, tão importantes em épocas que hoje se
mas devem atravessá-la. O nosso personagem aplicava tudo isto chamam de primitivas, atrasadas. Parece que o homem perdeu
a ele próprio. A sua fuga, afinal, fora apenas uma tentativa de completamente o sentido das coisas espirituais, tanto que nem
evasão. Mas fugir é um luxo para os grandes senhores do espíri- mesmo as discute e em nada se preocupa com elas. Esta é a so-
to, um direito apenas dos mártires. Não estava ainda maduro e lução mais radical, ou seja, a supressão do problema, a extirpa-
não podia fugir. Era e devia ser ainda, inexoravelmente, prisio- ção das qualidades necessárias para enfrentá-lo. O mundo se
neiro da realidade humana. A nossa vontade pode alguma coisa preocupa com outras coisas. O seu gênio construiu a máquina, e
dentro dos limites dados pela estrutura e posição daquele orga- agora está certo de que, com ela, ganhou mais um escravo, que
nismo de forças em ação e desenvolvimento que é o destino. Não lhe torna mais cômoda a vida. Mas é a máquina quem manda e
se pode fazer tudo totalmente só pela vontade; de outro modo, se faz servir. O homem criou a máquina, mas não criou ainda o
adeus ordem do universo. O santo não se improvisa, e o martírio juízo para servir-se dela, o que é muito mais difícil. E corre, fre-
não se fabrica por vontade própria – seria um suicídio. Certos quentemente só por correr, para servir à máquina que corre.
epílogos rápidos e gloriosos presumem uma preparação profunda O homem hoje se preocupa com a situação das massas. Os
e orgânica, a maturação de um destino; são a conclusão de uma problemas individuais e aristocráticos não mais interessam. Ho-
vida, e não de seus ensinamentos. Por isso podem ser rápidos. je, a evolução é em superfície, e a consequência natural é que se
Ele se perguntava por que razão e por que justiça a paixão tenha de renunciar a evoluir em profundidade. O fermento do
de Cristo – e não era o único caso – pudera se exaurir numa la- progresso não ataca somente alguns pioneiros; ataca a massa
bareda violenta de poucas horas, ao passo que seus sofrimentos enorme dos povos. É um movimento vasto e superficial. A civi-
e de tantos outros simples mortais duravam mais de meio sécu- lização está em grande desenvolvimento, e seria grave erro igno-
lo. A razão é que Cristo concluía, ao passo que ele e os outros rar-lhe a importância. Trata-se de um grande trabalho social di-
estavam começando, e um incêndio não pode lavrar como lavra rigido a grandes fins coletivos e que merece todo o respeito. Isso
um estilicídio13 cotidiano. não se pode considerar senão como um rumor oceânico de fun-
Por isso não lhe tinham chegado ainda os meios para se sacri- do. Diante da maré enchente de massas humanas, deve ser lícita
ficar por sua ideia. No entusiasmo da primeira hora, se os meios a sobrevivência, embora isolada e por exceção, de indivíduos
se tivessem apresentado, ele os teria aceitado. Mas é raro que a que se fizeram por si e que pensam por si. E este livro não é se-
imitação de Cristo se possa fazer na Terra de forma tão rápida. E, não a história de um aristocrata do espírito, de um solitário que
então, não sendo possível manter longamente certas tensões he- se rebela contra todas as correntes do seu tempo, para não ser
roicas, nem o esforço de certas posições de projeção para fora da esmagado pelo número, para não ser submerso e anulado pela
Terra, em direção ao céu, nem lhe tendo sido dada a possibilida- multidão. Justamente hoje, que se fabrica e se valoriza o homem
de de sair por meio da morte – pois que certas atitudes arriscadas em série, este tipo fora de série poderá se tornar uma interessan-
não se poderiam resolver de outro modo – ele tivera que se pre- te raridade. É claro que tais experiências de caráter aristocrático,
cipitar. O desenvolvimento dos germes teria fatalmente recome- conduzidas em profundidade, não são para a massa, que, por sua
çado, mas, por agora, era preciso impedi-lo. Certos heroísmos, já natureza, é rude e grosseira. Certas provas são observadas por
completamente aquecidos por sua chama inicial, não resistem na muito poucos. Os direitos e deveres do rebanho são proporcio-
Terra, não se podem prolongar indefinidamente. O ideal não se nais à sua capacidade, sendo diferentes daqueles de um ser iso-
lado. É natural que a massa não possa ser individualista, pois is-
13
Estilicídio: gotejar de um líquido. to seria criar a anarquia e o caos. Portanto nem mesmo ela tem o
50 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
direito de tentá-lo. Mas quem é mais individualista que os che- ambiente, desde que esta desse provas de coerência. Mas jamais
fes, e quem é mais totalitário que o individualista? E que homem lhe perdoaria a vileza de defraudar a sinceridade sob falsas apa-
será mais detestado e mais imitado que o homem fora de série? rências. Estava pronto a desmontar, consciente e honestamente,
A lei biológica é sempre a mesma: seleção dos melhores e aban- todas as suas construções e conquistas, pronto a perder a cabeça
dono da multidão amorfa para os inconscientes. Esta história é a no suicídio espiritual, pronto para tudo. Mas metera-se com o
reação, com funções equilibradoras, do individualismo contra a Evangelho. Sua vida tinha sido uma experiência do Evangelho.
multidão, da minoria contra a maioria; uma reação contra a clas- Se ele tinha de cair, também o Evangelho devia cair, e, caindo
sificação, como tipo ideal, do indivíduo normal de valor duvido- este, cairia também tudo quanto ele continha: justiça, bondade,
so; uma reação contra a uniformidade mecânica moderna que fé, religião, ideal. Então, adeus tudo. Adeus tudo, se tivesse que
invade até os valores espirituais; uma reivindicação da liberdade haver mentiras. Ou honestidade, ou nada. A cruz é um símbolo
interior, que, pela lei da vida, é sempre inviolável, filha que é supremo e terrível. Olha-se de frente e com seriedade. Se for um
unicamente do próprio destino. Este livro é, portanto, a exalta- símbolo falso, que caia. E que haja a coragem de fazê-lo cair
ção da liberdade do espírito contra a escravidão da matéria e abertamente, mas que isso jamais resulte da vileza e da mentira.
também uma reação contra os tempos. É uma luta e um desafio. Esta, mesmo no reino da força dirigida, embora para a violência,
Mantém-se em forma elevada e abstrata justamente para colocar mas dirigida, é incoerência, e a incoerência é violação, é traição
distante desses problemas o vulgo ignorante e ávido de se imis- de todas as leis, tanto da Terra como do céu. Seria vileza e ver-
cuir e demolir. Poderá não interessar, mas contém elementos que gonha imperdoável sobre a Terra. Se a cruz é um símbolo falso,
hoje a sociedade pôs de lado ou esqueceu; conceitos atrofiados tenha-se a coerência de fazê-la cair honestamente. Mas se é um
hoje, mas que poderão ser úteis amanhã, quando as concepções símbolo verdadeiro, ai do mundo! Ai, sobretudo, dos responsá-
dominantes se demonstrarem, pela amplificação do horizonte, veis espirituais pelo mundo! Não é lícito mentir diante da cruz,
insuficientes para resolver todos os problemas da vida. não é lícito mentir diante dos mártires que a seguiram.
Ele procurava, mas não encontrava a coragem da revolta, e
Pode acontecer, então, que a sobrevivência destes poucos
sim a verdade espremida, explorada, falseada até se tornar irre-
seres isolados – aos quais as leis da vida confiam a conservação
conhecível; o bem pervertido até se tornar mal; o sumo espiritual
do sutil fio da espiritualidade, para que este não se destrua e se
da vida manipulado até se transformar em veneno. Observava,
perca nesta orgia de forças – com seu trabalho silencioso, in-
aterrorizado, a dissolução moral do mundo, o seu método de fal-
compreendidos e condenados, seja um dia considerada como
sificação do ideal, de traição ao céu. O fato de ter querido obser-
providência e salvamento em tempo de naufrágio, entre os pre-
var a vida por trás dos bastidores havia demolido nele todas as
ciosos tesouros conquistados pela civilização.
ilusões. O mundo não era senão simples representação de coisas
É inútil discutir. Cada força deseja o seu desenvolvimento, nobres e virtuosas, de exaltações convencionais, de acordos táci-
que se processa completamente independente da compreensão tos não revelados aos ingênuos. Não era possível entender-se
humana. O pensamento das leis da vida se exprime sem discu- com duas linguagens tão diversas: a sinceridade e o fingimento.
tir, por assomos; não com demonstrações e arrazoados, mas As verdades que ele dizia eram recebidas como mentiras, ao pas-
com fatos. O mundo é uma realidade concreta; cada um de seus so que ele tomava como verdades as mentiras dos outros. Não
pensamentos se revela em forma de ação. Não se fala, e sim vi- havia possível entendimento entre quem procurava o ideal com
ve-se. Obedece-se sem pedir explicações. As leis da vida fa- seriedade e o mundo, que dele fazia um estandarte para seus de-
zem-se obedecer e não se preocupam de fazer-se compreender. sígnios, para com ele conseguir vantagens materiais. Ele não
E cada um vai pelo seu caminho, com seus riscos e suas metas compreendia por que, sobre este terreno de utilidades, era sempre
instintivamente, irresistivelmente, com suas boas razões para vencido, enquanto os outros saíam vencedores; as mesmas coi-
segui-lo, mesmo que não o compreenda. O mundo vai pelo seu sas, assim diversamente tratadas, produziam efeitos opostos.
caminho, tentando a sua grande aventura épica e sanguinária. Era tomado por ingênuo. Se ousara dizer qualquer coisa, sua
O nosso personagem ia, também ele, solitário por sua estra- simplicidade provocara escândalo, sua sinceridade era ofensa.
da; e cumpria, também ele, o seu destino. Não se gosta de ouvir certas verdades, que devem permanecer
ocultas. E pensou quanto seria útil para ele aprender um pouco
XXII. MENTIRAS E JUSTIFICAÇÕES do lindo jogo das pessoas respeitáveis. E pensava isto não com
espírito de sátira, mas com profunda amargura. Não pretendia
Assim, ele entrara no mundo, decaído, mas livre e consciente dar a estes julgamentos valor absoluto. Tratava-se simplesmente
para conhecer toda a verdade, qualquer que ela fosse, em todos da impressão que as coisas lhe faziam, vistas de sua posição.
os seus aspectos. E, assim, continuava a avançar na vida, sem Eram inconciliáveis com o seu temperamento, e ele reagia, ape-
temores nem preconceitos, com plena sinceridade. Desta since- na isso. Sua reação era lenta, complexa, profunda. Tinha que
ridade terá o mundo rido como um sistema de ingênuos. Mas is- demolir com consciência e pela consciência, conservando ínte-
to era também uma força. Esse era o seu método retilíneo, e ele gras a honestidade e a justiça. Mas sentia, já indistintamente,
não o mudaria; aqui se revelava e sobrevivia o seu tipo inflexí- que não poderia resistir a esse ambiente por muito tempo, adap-
vel, caído na Terra, mas não pertencente a ela, e que jamais po- tando-se e esquecendo o seu passado; que, com o tempo, não
deria aceitá-la definitivamente. Aqui, ele era sempre um estran- poderia fazer menos que reagir a esta nova realidade, tão inferior
geiro, em exploração. Olhava o mundo francamente, de frente. àquela já conhecida; que, dado o seu temperamento e os prece-
Se o mundo tivesse uma verdade a dizer-lhe, seria constrangido dentes, seria inevitável uma nova revolta e, depois, uma ressur-
a dizê-la. Se era mentira, ele a desmascararia. Aceitava, fazia reição. A nova experiência que ele acumulava atravessando o
sua a lei do mundo, para experimentá-la seriamente, mas tam- mundo das trevas, não viria justamente para devolvê-lo, com
bém para atirar à face do mundo o resultado de sua experiência, maior impulso, com maior vigor, em direção à luz?
se esta não fosse digna de um homem. Ele devia experimentar Sentia no mundo um conteúdo inaceitável que, decerto, já
tudo e tudo saber. Estava já agora disposto a agarrar desespera- formava dentro dele, ainda não claramente delineada, a base da
damente pela gola as leis terrestres e dissecá-las a fundo. Exigia revolta. O primeiro impulso para a sua nova transformação não
a mesma sinceridade que oferecia. Assim, poderia encontrar a era tanto a atração do alto, mas uma invencível repugnância pe-
significação do mundo, para justificá-lo ou, por seus pontos dé- los métodos do mundo, uma repulsa pelo inferior. Realmente,
beis e suas contradições, acusá-lo e condená-lo. No entanto nada lhe parecia mais inaceitável e insuportável do que a falta
aprazia-lhe a luta apocalíptica pelo ideal, mas queria a franqueza de sinceridade e de retidão. Ademais, sentia que era inútil acu-
honesta e corajosa. Teria considerado respeitável a fera em seu sar, pretender reformar, ou pedir, porque o mundo desejava se-
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 51
guir pelo seu caminho e estava bem equipado para isto e bem desfazia facilmente, o mundo feito de ilusões. Neste terreno,
armado para defender a sua vontade. E, se era impossível do- em tal atmosfera de falsidade, devia o homem trabalhar peno-
brá-lo ou entenderem-se, e se ele também não podia dobrar a si samente, procurando realizar-se. Devia fazer da desconfiança
mesmo, que lhe restava senão voltar-lhe as costas? um hábito e uma qualidade, neutralizando a cada passo a astú-
Continuando sua exploração, observou como a sociedade cia traiçoeira do seu vizinho. Que terrível e infernal peso, mas
funcionava segundo esquemas que cada geração deixa para a se- que paradisíaca libertação pode emergir em plano mais alto, de
guinte, nos quais se enquadram todos os homens e o seu trabalho. sinceridade e de fé! Temeroso, olhava este mundo de aparên-
No âmbito destes esquemas – as categorias sociais, políticas, re- cias, o fazer-se e desfazer-se daqueles mutáveis e fictícios vul-
ligiosas, militares, econômicas, as distinções e agrupamentos tos das coisas, sem poder acreditar em mais nada sobre a Terra.
que, pelas mais disparatadas razões, unem ou dividem os homens Que respondia o mundo a estas suas acusações? Primeiro,
– dentro desses recintos artificiais, devem acomodar-se os tipos isto: ―Vós nos acusais de mentirosos, mas vos esqueceis de
biológicos mais diversos, cada um com sua capacidade, que pode que, na Terra, o regime não é de justiça e de verdade, mas sim
estar em irreconciliável contraste com a posição socialmente de luta, onde a mentira é uma arma de ataque e defesa. Tudo
ocupada. Então nasce a luta entre o esquema e o homem, entre o isto caminhará para a justiça e a verdade e será um recurso pa-
tipo verdadeiro e a roupagem falsa, luta em que cada um deles ra conquistá-las; mas são coisas longínquas e estão hoje ausen-
procura dobrar o outro: o esquema procurando transformar o tes da realidade da nossa vida. É absurdo pretendê-las. E se
homem segundo o modelo prefixado; o homem procurando vós exigis a nossa sinceridade neste mundo, não pode ser se-
transformar o esquema e adaptá-lo ao seu próprio temperamento. não para nos tirar nossas defesas e deixar que, assim, sejamos
Dada a possibilidade que sobre a Terra tem o homem de dis- mais facilmente vencidos‖.
farçar a sua verdadeira personalidade e dada também a impossi- E respondia ainda: ―Somos os involuídos, ainda não redimi-
bilidade de conhecer sua verdadeira natureza, os esquemas são dos. E quem nos dá força para transformar a vida, levando-a dos
forçados a considerar apenas as aparências, as formas, sob as estridores da luta às harmonias evangélicas? É inútil o convite ou
quais é sempre possível ocultar qualquer substância. Daí, os mais a ordem do céu. Quem poderá transportar estes densos invólucros
estridentes contrastes e contradições. E ele percebia que caíra no de matéria até àquela rarefeita atmosfera? Quem poderá afinar a
reino da forma, onde dominam os esquemas. Dedicou-se, pois, a nossa rústica sensibilidade a ponto de podermos perceber a eva-
ir direto ao indivíduo, sem levar em conta os esquemas; procurou nescente realidade daquele elevado mundo? Cada um é feito para
o homem e nada mais, prescindindo absolutamente de sua posi- o seu meio. Vós, anjos, não sois feitos para a Terra e estarão mal
ção e aparência exterior; decidiu demolir todo o edifício da cata- aqui em baixo, como nós não somos feitos para o céu e estaría-
logação social, desvinculando do tipo as vestes que o envolvem e mos mal lá em cima. Nós somos inferiores. Aqui temos a nossa
disfarçam, para, sem dar nenhuma importância às transformações animalidade, a ela sabemos adaptar- nos e possuímos a força de
da aparência, conseguir alcançar a substância. suportá-la. Vós podeis ter os olhos voltados para o alto, mas nós
Este era o método do espírito, e ele verificava que, na Terra, estamos presos à Terra, e nosso olhar tem que estar voltado para
o que reinava era o método da matéria. Quanto mais o ser é in- baixo. Quem nos julga egoístas, impiedosos e agressivos dá pro-
voluído, tanto maior importância dá à forma, à aparência exte- vas de uma grande ingenuidade e ignorância da realidade da vida.
rior; quanto mais é pobre em valores reais, mais procura se pro- O ambiente terrestre não é um paraíso de alegrias gratuitas: é um
teger com o manto de valores fictícios. Subir conduz à luz o mundo de forças inimigas, onde nada se obtém sem violência e
verdadeiro eu interior, tornando-o, ao mesmo tempo, mais dig- imposição. O anjo tem razão, porque vai partir. Mas, se tivesse
no de poder aparecer. Assim, para fugir aos enganos e alcançar que ficar aqui, teria que se transformar, ou seria eliminado. Estas
a realidade, ele não considerou mais a forma e o esquema; não são as condições reais, e é inútil procurar suas causas. É verdade
deu mais atenção à veste exterior do homem. que tudo isto é bem rude e tem sabor de punição. É verdade que,
Procurou arrancar a máscara das coisas, as formas fictícias se o nosso destino é chegar a Deus, isto significará sempre um
sob as quais tudo se esconde na Terra. Compreendia que, onde pavoroso trabalho. Condenação e trabalho não impedem que o
a luta é motivo fundamental da vida e meio universal de reali- nosso egoísmo feroz seja, dada a vida humana e seu ambiente,
zação, é necessário o egoísmo, é necessária a mentira. Quem uma necessidade normal. Esta punição e abjeção, se não deter-
não tem força, se não recorrer à astúcia, ficará sem defesa; e um minadas pela justiça divina, quem sabe por quais culpas nossas,
ser indefeso, sobre a Terra, está liquidado. Portanto é, indiscu- já que nascemos hoje e morremos amanhã sem nada saber, decer-
tivelmente, muito mais útil apresentar-se como cheio de virtu- to fazem parte do fatal determinismo inerente ao destino humano
des. A palavra poucas vezes diz alguma coisa, raramente diz e são um tremendo peso que cumpre carregar, pois que, depois
coisas dignas de serem ditas e, quase sempre, em vez de expri- de vinte séculos, parece que nem mesmo o holocausto de Cristo
mir o pensamento, serve para escondê-lo. O ilusionismo faz conseguiu libertar-nos. Portanto, ao se tentar transplantar para a
parte do armamento protetor da natureza. Mas ele, que sentia a Terra as coisas do espírito, estas fenecem rapidamente na atmos-
elevação dos ideais, horrorizava-se com esta profanação, com fera imprópria e são levadas a morrer. São demasiado delicadas e
esta inconsciência, que pretendia pôr o céu a serviço da Terra, sutis para serem percebidas, demasiado leves para terem peso en-
considerando as coisas mais preciosas e elevadas como vulga- tre gente de sensibilidade de ferro, em meio à feroz realidade. As
res meios de proteger a vida. Repugnava-lhe a triste necessida- leis biológicas não são um princípio abstrato, mas sim uma von-
de de reduzir tudo, até o céu, ao plano humano; de usar tudo, tade concreta que exige obediência.
sem distinção, em função da luta pela vida. ―Seguir o Evangelho significa rebelar-se a essa vontade e ex-
Grande inconsciência, mas também grande miséria, esta por-se à vingança daquelas leis, que na Terra dominam e imolam
triste necessidade. A luta universal e impiedosa invade tudo, quem as viola. Ai de quem não as respeita! Será triturado. Todos
exige e se impõe a tudo. E, aqui, ele compreendia a significação as suportam e aplicam, inclusive os teóricos que pretendem do-
e a lógica da imperdoável mentira. Mas que pavoroso terreno miná-las e superá-las. Não é culpa nossa se o Evangelho e o
inseguro e escorregadio, que realidade de duas faces, que misé- mundo são inconciliáveis. Não podemos, para cumprir o dever de
ria o ser constrangido a tais meios para sobreviver! Que incons- aplicar integralmente o Evangelho, eliminar o dever de viver.
ciência para poder ter a coragem de realizar tais profanações. A Não temos direito ao suicídio. Para se realizar qualquer coisa so-
mentira pareceu-lhe a exaltação mais irrespirável da Terra e bre a Terra, é preciso primeiro a força, depois a astúcia; a bonda-
tornava a sua atmosfera mais impura e sufocante. Causavam- de vem por último. A bondade é o meio mais inadequado em um
lhe agonia o método tortuoso, a realidade inconsciente que se ambiente onde se trata não de amar e sonhar, mas sim de agir, e
52 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
com ela nada se faz aqui na Terra. Temos que nos realizar pri- sal não é normal, não é compreendido, não é permitido. Aqui na
meiro na Terra e depois no céu. O contrário é absurdo, nem há Terra, o relativo impera no seu reino e condena o absoluto. Que
margem para semelhantes experiências. Temos que nos ater ao importa a inteligência do gênio, sublime instrumento de música
positivo: fugir à dor, procurar a alegria e nesta conseguir rapida- divina, se não pode ser usada como bastão de ataque e defesa?
mente o prêmio da luta. É preciso que o bem seja útil. Os resulta- ―A culpa é do gênio, por ser um anormal. Na Terra ele está
dos longínquos e hipotéticos não interessam. Aqui é preciso viver só, ou quase, e quem está só não tem razão, e quem não tem ra-
e não cair. Os que caem são arrastados. A luta é árdua, e não so- zão está fora da lei e pode ser impunemente destruído. De resto,
bram energias para ajudar aquele irmão que caiu, porque ele é a superioridade se paga. Que ele se normalize, desça à fossa co-
sempre um rival e a piedade por ele nos rouba a vitória. Na Terra mum da miséria e da ignorância e faça seus os instintos primiti-
não há lugar para o Evangelho, não há possibilidade de fraterni- vos de todos. E se não souber fazer isto e morrer, pior para ele.
dade nem de altruísmo. O que surge é uma só coisa: lutar e ven- Dele nos riremos. Não nos interessa o espírito, mas sim o estô-
cer. Sob todas as máscaras e sob todas as modas do tempo, esta é mago. Se Deus está com ele, por que não desce à Terra para de-
a única substância estável, que jamais muda. O que nos vindes fendê-lo? Isso são luxos, utopias. A Terra é feita para os involu-
contar? Não! Não nos coloqueis em vossos ideais altruísticos. ídos, para nós, que somos muitos, e não para eles, que são tão
Desejais destruir e enganar a natureza? Ela não pode admitir a poucos. Talvez sejamos inferiores, grosseiros e mereçamos des-
piedade onde se desenvolve a luta pela seleção. A justiça, então, prezo, mas estamos em nossa casa, temos a nossa lei e somos
se obtém não pela piedade dos superiores, mas pela rebelião ego- proporcionados ao nosso ambiente, ao passo que, aqui na Terra,
ísta dos inferiores, ou seja, não por amorosa conduta evangélica, eles não o são. Tendo isto em conta, somos bem feitos e não de-
mas por extorsão, porque a luta é contínua e apenas os mais for- sejamos nos refinar e enfraquecer. Não podemos confraternizar
tes conseguem vitória. A realidade biológica não tem interesse com seres de outras raças. Se eles exauriram suas provas aqui e
algum no prolongamento da piedade maternal além de sua fun- superaram nosso mundo, tanto melhor para eles, e que se vão.
ções protetoras da maternidade. Proteger além destes limites é ―Nós não o superamos. As nossas provas são aqui na Terra
antisseletivo. A vossa lei é fraca e só produz ineptos. A nossa jus- e devemos ter a força e a coragem de afrontá-las. Hoje, o nosso
tiça é férrea, inexorável e cria fortes. A lei biológica não pode Deus ainda não pode ser a bondade, mas apenas a força. Este é
aceitar o Evangelho. Em nosso mundo, a piedade e a bondade o reino da matéria, e a matéria só obedece à força. Aqui, os que
não funcionam, ninguém paga o sacrifício, e não há espaço para sonham coisas ideais são verdadeiramente imbecis‖.
os ideais. A lei suprema é agir por si mesmo, sabendo bem que
E o mundo me responde ainda: ―Nós não somos apenas in-
não se deve pedir auxílio e que não se encontrará piedade, porque
voluídos, isto é, seres que vós, das alturas do vosso espírito,
o nosso vizinho está mais empenhado do que nós. Não nos resta
tratais como inferiores; somos também desgraçados. Vós nos
senão negar todo o auxílio e não ter piedade. Esta é a nossa justi-
condenais, mas conheceis vós, superseres julgadores – anjos
ça. O nosso mundo é um vórtice que nos impele e a todos arrasta.
sentados em vossos tronos de glória – conheceis a infinita mi-
Isolar-se, rebelar-se, é impossível. E nos agarramos desespera-
séria de nossa dor?
damente ao vórtice, com todos os meios e alegrias, repelindo a
dor como podemos. Por que faríamos esforços por resultados ―Não somos apenas involuídos. Estamos ainda esmagados
longínquos, quando temos que lutar pelas necessidades imedia- sob o peso de mil trabalhos, e nossa natureza humana está acor-
tas? Pelos caminhos do Evangelho, o cansaço é próximo e o re- rentada à matéria, aprisionada em cárcere de ferro. Aqui não há
sultado hipotético e longínquo, por isso é natural que a natureza margem para doces sonhos nem para contemplações. A realida-
evite tais caminhos. Ela é positiva, utilitária, econômica, prudente de é dura – se não se luta, morre-se. Aqui os fatos provam a to-
– não admite riscos; se alguns loucos despendem energias perse- do momento que o ideal é sonho e a realidade é dor. A nossa
guindo ideais e resultados incertos, ela não tolera o cansaço, que posição humana de desgraça, o grande peso da expiação – tudo
deixará o homem extenuado aos pés de um sonho. isso nos dá direito a certas reações desesperadas, a certas horrí-
―A natureza, que está no instinto, faz suas contas e exige o veis descidas, que negam o céu porque, no limite das forças,
pagamento tangível, seguro, na Terra, para si, para viver. Não tudo se abandona, mesmo o ideal, para que se possa ter um
lhe interessam os pagamentos após a morte, aquele abismo de pouco de repouso. No alto há muita potência, muita justiça,
trevas além do qual a vida humana não vale nada. Talvez seja- muita bondade, muita felicidade. Aqui na Terra há muita misé-
mos cegos, mas somos feitos de bom senso prático, somos posi- ria, muita injustiça, muito mal, muito sofrimento. Temos a dor,
tivos. O céu não pode existir sobre a Terra. O além é um misté- que, mesmo quando não nos atormenta, pesa sobre nós como
rio, e não se fazem sacrifícios heroicos, como os exigidos pelo ameaça. Conhecerá o céu esta miséria dos desesperados? E não
Evangelho, por um mistério. é fácil a libertação, porque ela destrói de preferência aqueles
―Sim! Passam às vezes por aqui esses estranhos seres chama- que trabalham para o bem e procuram salvar-se, na esperança
dos santos, com os olhos sempre postos no alto. Que coisas verão de poder deixar a Terra. Se é cansativo ficar, é mais árduo sair.
eles lá em cima, não sabemos. Talvez seja outro mundo, com ou- E, por isso, pouco se tenta fazê-lo. Esta dor é um direito terrível
tros fenômenos e outras leis; não podemos negá-los a princípio, de levantar a cabeça envilecida e impõe respeito. Ela é a expia-
mas não o conhecemos. Suas realizações ideais estão longe de- ção que nobilita o condenado e justifica a sua baixeza. Sobre
mais para que possam ser tomadas em consideração. Fogem este lado de que se diz que somos feitos cai continuamente uma
completamente à nossa experiência, e o que está fora desta é para chuva de fogo. Pouco mais sabemos. O conhecimento nos foge.
nós praticamente inexistente e não interessa à vida. Visto dos Somos cegos. Olhamos em vão o mistério e nada vemos. A
planos biológicos, o ideal se afigura muito diferente e não pode única coisa que verdadeiramente sabemos é que somos conde-
ser avaliado senão em relação ao seu proveito utilitário, de acor- nados a sofrer com a vida. E aquele Deus que é a razão e causa
do com o que possa render em nosso plano. É natural, pois, que de tudo, esconde-se numa abstração vertiginosa e inatingível‖.
tudo seja revirado, falseado, explorado. E, realmente, aqueles su- Ante estas respostas, o nosso personagem tomou-se de pro-
periores seres do ideal são perseguidos pelas leis da Terra, são fundo sentimento de piedade. E, então, compreendeu quão mais
incompreendidos e maltratados, porque estão deslocados. A mai- vasto é o significado do Evangelho; desceu da cátedra, esque-
oria tem razão em repudiar estes seres que saem do plano normal ceu-se de si mesmo e da sua posição de combate e compreen-
da vida. Em vez de viverem como os outros, na luta e na miséria deu que só quem se eleva pelos outros e com os outros é que
da Terra, pretendem ser exceção e, com isto, eximir-se aos traba- sobe verdadeiramente. E voltou-se para seus semelhantes de
lhos que são o quinhão de todos. Quem superou as divisões hu- braços abertos. O mundo dera-lhe a sua grande lição. A nova
manas se torna expulso de uma vida feita de divisões. O univer- experiência não fora feita em vão.
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 53
XXIII. O EVANGELHO E O MUNDO sões, a vastidão apocalíptica da batalha. Ousar contra a lei su-
prema da Terra, desafiar as leis da vida do planeta, afigurou-
Cristo disse14: se-lhe a mais gigantesca aventura que um homem poderia em-
1. Felizes os pobres de espírito. Ai de vós, ricos, que neste preender. E assim vivia o maior drama já concebido pela men-
mundo mesmo encontrais consolo! te humana: o de Cristo em sua paixão, o de Dante na Divina
2. Felizes aqueles que choram, porque serão consolados! Comédia, o de Goethe no Fausto; um drama cujo epílogo esta-
3. Felizes aqueles que têm fome e sede de justiça, porque se- va no céu, o desenvolvimento sobre a Terra, como um desafio,
rão satisfeitos! e a substância na humana destruição de si mesmo, para elevar
4. Felizes os misericordiosos, porque encontrarão misericór- mais alto a própria ressurreição.
dia! Ele tudo ousara e jogara na palavra de Cristo. Se fosse der-
5. Felizes os de coração puro, porque verão a Deus! rotado, aquela palavra seria desmentida, ao menos no seu caso.
6. Felizes os pacíficos, porque serão chamados filhos de E agora revivia plenamente aquele motivo central do seu
Deus! destino, na hora trágica e intensa em que era disputado pelas du-
7. Felizes os perseguidos pela justiça, porque deles é o reino as vidas, cada uma delas ansiosa por chegar às suas conclusões.
dos céus! Quando Cristo e Pilatos se encontraram, as duas verdades
E o mundo responde: se fitaram em silêncio, desafiando-se. Pilatos perguntou a
1. Os pobres são os vencidos. Nós, os ricos, somos os ven- Cristo o que era a Sua verdade 15, porque a sua própria ele a
cedores da vida. A riqueza é a felicidade que se espera, porque conhecia. Era a verdade biológica, prática e concreta, que lhe
é o justo prêmio por lutar e vencer. dizia: ―O teu chefe é o imperador, o vencedor pela força,
2. Desgraçados os que choram. Os vencidos merecem des- aquele que manda, o único que tem sempre razão. Obedece-
prezo. Não há piedade para os fracos. A vida deseja os fortes. lhe e conserva teu posto. Além disso há uma ordem social, e
O mundo pereceria se, graças à piedade, fosse reduzido a um tu, que a representas, não a podes subverter. Não tem sentido
asilo de ineptos. a verdade de quem vive fora do mundo‖. Pilatos era simples-
3. Aqueles que têm fome e sede de justiça nada conseguirão mente um homem prático e teria compreendido Cristo se Ele
esperando-a de braços cruzados; devem procurá-la à força. So- lhe tivesse falado com a linguagem do mundo. Naturalmente,
bre a Terra reina uma férrea e feroz justiça, que se curva ao nem mesmo esperava pela resposta, que Cristo não deu. Nem
mais forte, ao que soube merecer sua posição pela coragem, ar- um nem outro falou, e a verdade não passou desta pergunta.
riscando e trabalhando; reina uma justiça que não deixa lugar Mas os dois responderam com fatos e conclusões diversas. Os
aos fracos, aos sonhadores, aos idealistas inconsequentes. fatos, e não as discussões, são as respostas mais sérias; uma
4. A Terra não é lugar de misericórdia. Estas piedades dese- vez determinados, temos que lhes assumir a responsabilidade
quilibram as sadias leis da vida, levando a uma seleção de inep- e suportar as consequências. Cada um seguiu o seu próprio
tos, de vagabundos e hipócritas. As sadias leis biológicas de- caminho, alcançando sua meta diferente. Era inútil explicar,
vem afastar estes parasitismos misericordiosos que detêm a vi- mesmo porque não seria possível compreender. Assim, situa-
da e a levam à degenerescência. das nos antípodas, as duas verdades se acusavam mutuamente
5. A vida pertence aos fortes, e não aos puros. Aos que ven- de extrema ignorância. Pilatos não pretendia, realmente, dar
cem nada se pergunta, porque eles têm razão; aos que perdem fim ao mártir, coisa sem importância, embora com o pior dos
pergunta-se tudo, porque eles estão errados. significados para ele e seu ambiente. Pilatos é o verdadeiro
6. A lei da seleção não deseja os pacíficos, mas os lutadores símbolo do mundo, que se baseia no cálculo utilitário, não
e vencedores. Assim fala realmente a natureza no instinto femi- admite o ideal, considerando-o loucura. E o ideal não tem ou-
nino da escolha sexual. tra resposta senão o silêncio e o martírio.
7. Sobre a Terra, a justiça é o triunfo do mais forte. Os per- Ante estas afirmativas mudas e terríveis, a Terra continua a
seguidos, enquanto não se revoltam e vencem, estão sempre exprobar ao Evangelho a ignorância das condições de fato, tão
errados. Na Terra não existe respeito pelo céu. Não se respeita adversas ao homem que, se este quiser sobreviver, deverá sa-
aquilo que está fora de nossa experiência e da possibilidade da ber dobrá-las ao seu próprio domínio. Em tal ambiente, uma
nossa ação. bondade que vá além da função feminina da proteção de sua
Assim responde o mundo. E poderia ainda ajuntar: ―Não prole é antivital. A direção da vida está confiada ao homem –
fomos nós que fizemos a lei que impera sobre a Terra. Está conquistador sem escrúpulos e sem piedade. O martírio, con-
escrita em nossos instintos, que nasceram conosco; está escri- clusão lógica da vida do pioneiro evangélico, é um absurdo an-
ta sobre toda a vida em nosso planeta. Portanto, pelo menos tibiológico e anti-humano. A verdade é vencer. Seu eu for ge-
em nosso plano, esta lei não exprime a vontade e o pensamen- neroso, o meu vizinho me arruinará; a minha bondade será to-
to de Deus?‖. mada como fraqueza e a minha derrota será o seu triunfo. So-
Quem tem razão? Por que o céu desmente a Terra e a Terra bre a Terra não se admitem outras verdades senão as que são
continuamente desmente o céu? Por que o Evangelho diz: úteis para viver e vencer. E o Evangelho, de início, desarma o
―Ama o próximo como a ti mesmo‖, mas o mundo, na realida- homem e o manda combater na Terra sem armas. E isto – ten-
de, aplica este outro princípio: ―Destrói o teu próximo, se não do pela frente lutadores violentos, sem escrúpulos e que espe-
queres que ele te destrua‖? Como será possível conciliar sis- zinham seus próprios deveres – significa morrer. O ideal evan-
temas tão opostos? Não é apenas um problema do Evangelho e gélico poderia ser realizado se, durante alguns anos, fosse
do mundo, mas o problema do destino do nosso personagem, mantido em condições especiais, à custa de uma contínua ten-
que empenhara sua vida na aplicação integral do Evangelho. são espiritual, com o alimento de um grande sacrifício. Mas,
Ele procurava uma solução para o problema que se lhe apre- não se podendo manter continuamente contra leis opostas, de-
sentara tão logo enfrentara a psicologia do mundo. Estava nes- pressa cairia, arrastando consigo o seu primeiro autor ou intér-
te contraste a grande batalha de sua vida, assim como nele es- prete. Esta é a verdade dos falidos, e a Terra não a aceita.
tava a trágica luta entre Cristo e a realidade biológica, as duas Eis o mais rude ponto do drama do Getsêmane. Talvez,
grandes verdades contrárias. Bem sentia as titânicas dimen- naquele momento, Cristo tenha sentido todo o absurdo bio-
14 15
Mateus, 5:3-10; Lucas 6:24. (N. do T.) João 18: 37-38. (N. do T.)
54 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
lógico de sua sublime lei, a sua imensa distância da verda- pleta na expansão espiritual, representada por novas formas de
deira natureza humana, a sua inaplicabilidade à Terra, tal convivência, de pensamento, de civilização. Satisfeitas as ne-
como esta é. O supremo martírio não seria, séculos afora, cessidades de conservação do indivíduo e da espécie, levanta-
uma suprema derrota? A realidade da vida não terá neutrali- se, exigindo satisfação, o instinto de progredir, para servir a
zado muitos sacrifícios; não terá sido vão o esforço para le- uma necessidade mais alta, situada no ápice do edifício, onde
var o homem ao alto, através de impossíveis superamentos? impera a lei da evolução.
Havia fartos motivos para a dúvida, a dúvida humana mais O instinto de progresso, sendo o último aparecido, ou seja,
atroz, que pode assaltar o gênio, o herói, o santo – justamen- biologicamente de formação mais recente, é, naturalmente, o
te às portas do holocausto supremo. Porque tal é, em verda- menos radicado em profundidade e, por ser menos sólido, o que
de, a realidade da vida que eles contam superar. E depois de mais depressa cai ante as primeiras dificuldades. É quando a
tanta dor, em lugar de recompensa, eles receberão indiferen- vida se apressa por reequilibrar-se mais em baixo, na posição
ça e condenação. Mas de quem é a culpa por ser a lógica da mais elementar e mais estável das leis inferiores, pois que a na-
Terra tão diferente da lógica do céu? Chegou o momento de tureza antepõe a segurança da conservação ao risco da seleção.
enfrentar o problema e resolvê-lo. A essas três leis correspondem três formas de luta: pela de-
A lógica da Terra se exerce através de três leis, que todos fesa pessoal, pela defesa da família e pela expansão material e
vivem, inclusive os que as ignoram e as negam, e que se encon- espiritual. A essas leis correspondem ainda três principais ór-
tram presentes sempre e em qualquer lugar, como linguagem gãos do corpo humano: o estômago, o sexo e o cérebro, com
universal da vida. Essas leis não são somente uma norma, são suas respectivas funções – digestão, sentimento e pensamento.
uma imposição concreta que fala e obriga à obediência através A cada função corresponde um instinto e uma voluptuosidade
dos três instintos fundamentais: a fome, o amor, a evolução. específica, que pode levar ao excesso e criar um vício.
A ―fome‖ é a lei fundamental que preside à conservação in- O cérebro, com o sistema nervoso, é realmente o órgão da
dividual, que implica, impõe e justifica o egoísmo; a ela está evolução, o órgão condutor que, como antena sensibilizada,
confiada a função básica da vida: proteger-se contra tudo e so- perscruta em torno e se atira adiante, tentando novas experi-
breviver a qualquer preço. A vida funciona por unidades ego- ências. Ao espírito pertence o poder, a conquista, o futuro,
cêntricas que jamais abdicam. Aumentando, a fome se torna o mas igualmente o risco e o cansaço de vencer a resistência do
centro de todos os outros apetites e o egoísmo o centro de todas passado conservador.
as aspirações. Esta é a primeira, irrevogável e fundamental po- A atuação destas leis depende de um impulso que se mani-
sição da vida, que é egocêntrica e afirma: ―eu sou‖. festa como instintivo desejo de satisfação e de um contraim-
O ―amor‖ é a segunda lei, continuação e complemento da pulso que é o sofrimento causado pela insatisfação. Alegria de
primeira. O egoísmo cinde-se e se prolonga em outro instinto, um lado, dor do outro. E, por este sistema, a natureza conse-
que preside à conservação da espécie. Aqui, o indivíduo não lu- gue fazer-se obedecida por todos. Ela premia com a alegria a
ta para proteger a si mesmo, mas para proteger seus filhos. É a obediência ao impulso que leva à vida e pune com a dor a de-
segunda posição da vida, já não individual mas social, em que a sobediência, os abusos, os excessos e tudo quanto põe em pe-
família nasce como primeiro núcleo, que, avançando do menos rigo a vida. Alegria e dor, refinando-se, afastam-se da anima-
para o mais, se estende da família à cidade natal, à região, à na- lidade. E, para cada ser, são fundamentais e instintivas as fun-
ção, à raça, à humanidade. E a coletividade humana, posição ções do plano onde, segundo a sua fase de evolução, se equi-
egocêntrica mais vasta, afirma: ―nós somos‖. libra o centro de sua vida.
A ―evolução‖ é a terceira lei. Assim como a segunda não Às três leis correspondem ainda três egoísmos de amplitu-
aparece senão depois de satisfeita a primeira, também a evolu- de diferente, igualmente sagrados, imperiosos e importantes
ção não pode atuar senão depois de satisfeitas as duas primei- em seu próprio plano, porque presidem à defesa de um dado
ras. Esta lei, a última a aparecer, continua, completa e coroa as tipo de trabalho e à consecução de uma diversa função bioló-
duas precedentes. Segundo ela, o indivíduo não luta pela sua gica. O homem preso à primeira lei, nada percebe além da de-
conservação, nem pela da espécie. Superando o problema da fesa de si mesmo; está encerrado numa casca de pequeno ego-
proteção, trava-se a batalha da seleção do melhor, para que a ísmo pessoal. E isto é necessário para que ele possa viver. É
espécie atinja formas de vida sempre mais altas. É a terceira um direito que se respeita. Quando o homem se eleva à se-
posição da vida, posição coletiva, dinâmica, que diz: ―nós gunda lei, o seu egoísmo se dilata até abranger a sua família,
avançamos‖. A lei da evolução é, portanto, seleção e expansão, de tal modo que, diante do egoísmo mais restrito da primeira
e, por meio dela, a humanidade se mantém em marcha pelos lei, parece altruísmo, mas é uma ampliação capaz de cobrir
caminhos do progresso. um campo mais vasto. Quando, afinal, o homem passa a viver
Estas três leis correspondem às três dimensões do espaço: no plano da terceira lei, o seu egoísmo se dilata ainda mais,
linha, superfície e volume. São como os três planos de um edi- até abranger o próprio grupo, depois a nação, a raça e, final-
fício; não se podem edificar os andares superiores sem ter edi- mente, toda a humanidade. Cada tipo de egoísmo, em con-
ficado primeiro os de baixo. Os três instintos correspondentes fronto com o precedente, é uma dilatação, sendo visto como
surgem e agem sucessivamente, sempre após a satisfação dos altruísmo pelos homens dos planos inferiores.
precedentes, que são a base. O primeiro é mais importante que Eis porque se considera virtude o altruísmo. Porque é supe-
o segundo, e este mais que o terceiro. Com isto, a natureza ração, dilatação da consciência individual, ascensão evolutiva.
demonstra a solidez de seu sistema de construção. Assim, o É um processo de expansão e libertação daquela casca do ego-
instinto mais alto desponta após a saciedade do precedente. ísmo restrito, onde ainda o homem superior vê confinado o ho-
Atendido o imperativo inferior, passa-se ao superior. Satisfeita mem inferior. A passagem de um tipo de egoísmo para um mais
a fome, satisfeitas todas as necessidades egoístas da conserva- vasto, isto é, a sua dilatação no seu relativo altruísmo, é cansa-
ção do indivíduo, obtido o bem estar, passa-se à procriação. tiva. Nessa fadiga está o valor da virtude, da qual o conceito, o
Então a exuberância demográfica faz pressão, nasce a necessi- valor construtivo e a lenta graduação são exigências da Lei ao
dade de expansão material, e se fazem as guerras e as revolu- longo do eixo central da vida, que é a evolução. O cansaço do
ções. Rapidamente, o homem, que é tão impiedoso e ávido na retorno a Deus pelos caminhos do progresso tem de ser nosso.
conquista da riqueza, que lhe custa tanto trabalho, tudo des- É o sacrifício do eu, quando rompe a casca do egoísmo indivi-
perdiça durante a guerra, tornando fundamental pagar tributo dual, que dolorosamente se abre e se dilata em altruísmo. O re-
em benefício da seleção. Assim progride, e a ascensão se com- torno a Deus é conquista de felicidade, que não se pode alcan-
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 55
çar senão através de renúncia e sacrifício, ou seja, demolindo o XXIV. A LUTA PELO IDEAL
separatismo egoísta para atingir a comunhão evangélica. Os
homens da primeira lei já tentam identificar-se no egoísmo fa- Estranho ser o super-homem, envolto em terrível tragédia
miliar, que supera o individual. Eles amam egoisticamente, sem de incompreensão e de martírio, destinado a ser odiado pelos
elevações altruísticas. Ao contrário, o homem da terceira lei se homens normais, inferiores, egoístas, invejosos e rivais; odiado
vê em toda a humanidade, sente o seu eu nos seus semelhantes, porque detestamos quem destrói nossa aparência de superiores.
em cuja defesa e bem-estar encontra a própria defesa e bem- Aceita-se apenas o que se pode desfrutar. O gênio é, sobretudo,
estar. A essa defesa ele se entrega com a mesma espontaneida- sensibilidade, e isto é sinônimo de sofrimento. O mundo todo
de e energia com que o faz o homem da primeira lei na defesa parece refletir-se no espírito superior; tudo encontra eco em
de si mesmo, pois que seu semelhante é ele próprio e, por isso, seus nervos e em seu cérebro, como se eles fossem órgãos ner-
merecedor de proteção a todo custo. vosos e cerebrais do ser coletivo, a antena com que o super-
Por aqui se vê que compacto organismo de interdependência homem explora o futuro, o centro da síntese consciente da hu-
é a vida. Quando uma criatura se eleva, separando-se dos seus manidade, o extremo limite das dores e dos esforços de toda a
irmãos que ficaram, a Lei o impele, pelo instinto, a voltar-se vida terrestre. É como se o super-homem fizesse seu todo o
para eles, para ajudá-los a elevar-se consigo. As três leis são cansaço da ascensão do mundo, todos os seus perigos e sofri-
como três fases, três etapas contíguas de evolução, que o ho- mentos. O ser superior, o gênio, seja ele pensador, herói, chefe
mem tem de percorrer na trabalhosa ascensão. E quanto está ou santo, não tem atrás de si senão um rebanho brutal, que des-
mais próximo de Deus e da realização em si do pensamento de confia, destrói e rouba-lhe a tormentosa conquista, embora a
Deus, o homem da terceira lei! Aí está a profunda significação reprove. Tem diante de si a vertigem do mistério e o dever de
do conceito evangélico: ―Ama o próximo como a ti mesmo‖. É explorá-lo. Ninguém o ajuda. Todos o consideram anormal e o
uma ordem dada ao homem para que alcance e viva na terceira condenam porque ele não compartilha do gosto e opiniões dos
lei, difícil e cansativa, porém mais vizinha da ordem e do amor, demais. Debate-se numa terrível inaptidão para viver como os
que é Deus. E isto é suficiente para se formar a moral em que é outros, que o olham com suspeição. Mas ele é um hipersensível
virtude o poder evolutivo e vício a tendência para regredir, e não pode viver senão em plano mais alto e enxergar mais lon-
afastando-se de Deus, em direção involutiva. ge. Quando se é de tal tipo, tem-se irrevogavelmente uma mis-
Da gradação de fases e de leis se deduz e conclui que o são e se está fatalmente destinado ao martírio. Pelas leis da vi-
ideal e o Evangelho não podem encontrar campo senão no da, isso é inevitável para todos os que subiram àquele nível.
ápice da evolução, ou seja, nas mais recentes conquistas bio- Não lhe resta, então, outro caminho senão o heroico triunfo do
lógicas, menos consolidadas na assimilação humana, especi- mártir. É inútil querer recuar.
almente nas zonas de maior risco e maior incerteza, aquelas A humanidade, que alimenta a sua vida e deve o seu pro-
em que o misoneísmo provê segurança. É um plano verda- gresso às conquistas do gênio, já fez notar, historicamente,
deiramente nobre e excelso. Mas, sobre a Terra, dominam que não o protege nem o encoraja, nem mesmo o deixa traba-
pelo número os homens da primeira e da segunda lei. O do- lhar em paz. O que costuma fazer é condená-lo e persegui-lo.
mínio da maioria, que procura se realizar, não tolera o ho- Ela é, portanto, uma ladra daqueles atormentados produtos, a
mem da terceira lei – um rival que lhe disputa o campo da que – num regime de justiça, e não de violência e de usurpa-
vida. É natural que este seja incompreendido e perseguido, ção – não teria direito. O sistema pelo qual a grande massa
porque sua missão é soberba e suprema. Mas o seu destino é dos medíocres trata os homens superiores, a quem tanto de-
o martírio, e ele terá que correr todos os riscos. Se fracassar vem, é sempre o mesmo: indiferença ou perseguição. Depois,
em seu ideal, ninguém o lamentará. tarde demais, compreensão, exaltação e desfrutamento. Mas
Se isto for verdadeiramente útil ao progresso, então o san- nada de auxílio nos momentos adequados. Assim deve ser,
gue do mártir se espalhará no mundo como chuva fecundado- porém, porque o inferior ignorante deve ser arrastado para
ra, a luz do espírito iluminará a Terra e, a seu tempo, a semen- cima, mesmo contra sua vontade, para que o gênio nada deva
teira germinará. Eis a posição do Evangelho na Terra. Que fio à sua imbecilidade e, afinal, porque a missão que o gênio
frágil sustenta essa vida! Não é ainda senão frágil semente ca- cumpre nutre-se, sobretudo, de luta e martírio.
ída dos céus sobre a terra, nua e exposta a todas as intempé- Serão tais seres felizes? Em confronto com a fácil e alegre
ries. No entanto essa semente é uma realidade futura, e ne- inconsciência de uma existência vegetativamente satisfeita, a
nhum centro dinâmico luta com maior energia pela sua reali- sua vida é muitas vezes uma pavorosa sensação de viver, cheia
zação do que ele. Cada ação deve ser seguida por uma luta, de ânsia e de tristeza. Uma inteligência maior não pode se man-
que tem função de eliminar os incapazes, exigindo resistência, ter iludida pelas miragens comuns e traz consigo novas neces-
que é a garantia do valor íntimo. Enquanto céu e Terra lutam sidades, uma grande insaciabilidade e um cansaço oriundo de
como inimigos, o fio da evolução liga-os e uma lei de com- mais vastas indagações. A inteligência é um dom que cria para
plementariedade os atrai, até que finalmente, mesmo se com- os outros, e não apenas fonte de prazer para o seu possuidor.
batendo, um cairá nos braços do outro. Somente os tolos acreditarão o contrário. A inteligência é ape-
Este foi o nó fatal do Getsêmane: amor e dor. Os que supe- nas uma posição de vanguarda para um trabalho de vanguarda,
ram a Terra só podem esperar a morte na cruz, mas a sua supre- mais difícil, mais forte, mais perigoso e de mais pesado dever,
ma função biológica é a exploração do futuro e sua obrigação é porque é mais consciente que os outros. Se o gênio tem uma fe-
ditar ao mundo a nova norma de vida. Sua missão é inderrogá- licidade, ela é diferente da comum, é cansativa e heroica, pro-
vel. A superioridade implica, pela lei do equilíbrio, tremendos duzida principalmente pelo poder da criação. Neste poder está a
deveres. Entre as lutas da Terra, a que supera todas é essa entre desforra daquela alma que, no plano humano, é abatida, sozinha
o divino e o humano, pela qual o céu quer e deve imiscuir-se e e sofredora. Neste poder está a sua ressurreição, seu triunfo, sua
fundir-se na Terra rebelde. A Terra revolta-se. Mas trata-se de justificação. Mas a insatisfação das coisas humanas não se es-
sublime e irresistível violação. Na descida violenta do espírito tagna num estéril pessimismo, não permanece como negativa
sobre a matéria há qualquer coisa do mecanismo da fecundação. amargura, mas se torna agente de reação, impele para subir e
O gênio e o santo descem das inacessíveis alturas para atirar-se descobrir. Só os insatisfeitos são levados a criar. E essa angús-
ao lodo, ao mar de dor e de miséria; o divino se abaixa até ao tia, que os normais chamam de loucura, conduz a um trabalho
humano; o absoluto vem chorar no relativo. É esta fatalidade que termina sempre por encontrar alguma coisa que servirá para
que esmaga e oprime o escolhido, até à cruz. todos, inclusive para os ociosos e ignorantes, que julgam e con-
56 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
denam. O gênio trabalha, pois, sobretudo para os outros. Essa é mostra que os homens o sentem, até demais. Nada o ofende
a sua missão, a sua felicidade. Para si mesmo, é um infeliz; não mais do que a visita de um ser que se empenha em ensinar e
lhe é dado conforto algum, apesar de tanto o necessitar e mere- que já conquistou aquelas virtudes que ele receia jamais poder
cer. Tem diante de si imenso trabalho; sabe que sua vida é um alcançar. Desta ofensa nasce uma guerra que, se é vingança da
martírio e sabe também que lhe está confiado o progresso do impotência, o é cheia de lágrimas. Assim, com um suspiro
mundo. Gostaria de ter mil braços para trabalhar, mil bocas pa- nascido do coração, o homem volta as costas ao arriscado im-
ra falar, e não pode deter-se na autocompaixão, coisa insignifi- pulso do ideal, que pretende revolucionar a vida para melhorá-
cante, que para os outros merece tanto cuidado e proteção. A la, e, preguiçosa, mas seguramente, contentando-se com os ve-
sua alegria é criar; criando, ele esquece o próprio tormento. Sa- lhos costumes, recai na solidez das leis biológicas conservado-
be que faz o bem e, se o presente não o compreende, lança sua ras, econômicas e prudentes.
voz às gerações futuras, porque sabe que suas palavras serão Homem e super-homem não são nesta batalha senão atores
recolhidas. Sua comunhão com os próprios semelhantes é co- movidos por forças profundas. A verdadeira guerra se trava en-
munhão de sacrifício e de dádivas. tre as duas fases contíguas da evolução; a luta que cada semen-
Às vezes, o gênio oferece o trágico espetáculo de um ser te enfrenta para germinar e cada vida trava para vir à luz. Sem
que parece do outro mundo, descido a uma terra que não é a dúvida, o passado sempre criou muito e representa o caminho
sua, caído aqui embaixo, onde fica se debatendo desesperada- mais experimentado e seguro, de resultados peneirados na
mente com as asas mutiladas, ferindo-se e sangrando, onde para aplicação prática, cujas vantagens o presente desfruta. Mas, se
os outros a alegria é tão fácil. Fecha-se, então, num isolamento estas normas construídas pelo passado são um guia, são tam-
carregado de tristeza e aí canta, cheio de melancolia, uma estra- bém uma mentira e uma prisão. Os princípios foram recobertos
nha melodia de arrebatamento que jamais se cala, de fome que por tantas incrustações, desviados por tantas adaptações huma-
jamais se sacia, de tristeza que não tem consolo. Este canto de nas, que já não se reconhecem. Mesmo assim, a alma humana
dor é o mais profundo canto da vida, é a música mais intensa e continuou a se desenvolver, concebendo novas necessidades, a
sutil, que piedosamente nos embala ou tragicamente nos abate. ponto de não poder mais cingir-se aos antigos moldes. Se o
O homem comum fica do outro lado a ouvi-lo, sentindo que passado representa segurança e o novo, ao contrário, represen-
naquele canto um raio desce do céu e o véu que cobre o misté- ta risco, o progresso há de tal modo amadurecido tantas coisas,
rio foi arrancado ao sangrento cansaço do gênio. que a pressão destas acabará impondo o desmantelamento da-
Mas há também a tragédia oposta, a tática do humano para quela cômoda segurança, a tarefa da destruição do velho e a
alcançar o ideal. Ao lado da fatalidade, desejosa de que o alto se coragem e o risco da construção do novo. Um dia, então, apa-
faça humilde para se tornar acessível, há outra fatalidade, que recerá a necessidade de se romper a velha casca protetora, por-
impele o humano, mesmo com toda a sua impotência, em dire- que a vida transborda de seus limites.
ção ao inacessível divino. É estranho: o mundo detesta e comba- Assim, cada geração tem a vantagem de se utilizar das
te tudo isto, no entanto sente-se dominado por uma instintiva construções dos seus ancestrais e sente o ímpeto de se superar,
atração, por um pressentimento de futuro, que o deixa fascinado. destruindo e reconstruindo. A substância do fenômeno está
A matéria odeia o espírito, mas depende dele. O inferior detesta sempre na fatal maturação evolutiva e na pressão interior do
o superior e rebela-se contra ele, mas sente a sua força e acaba progresso, que deseja romper e realizar-se. E então, finalmen-
por obedecer-lhe. É o que ordena a invencível lei da evolução. te, agarra-se a mão que o gênio inutilmente estendeu e procu-
Se o mundo, pois, se rebela, se a realidade biológica impede ram-se avidamente, como elementos vitais, os progressos bro-
os passos rumo ao ideal, se a Terra é ambiente absolutamente tados de seu tormento, os quais o homem, na sua louca agres-
inadequado às afirmações do céu, mesmo assim percebem, por sividade inconsciente, não conseguiu destruir, e com essas cen-
um instinto em formação, ainda confuso, a superioridade do es- telhas se ilumina o caminho das ascensões humanas. Só então
pírito. Mas que canseira a do espírito para dominar a matéria! E se cumpre a missão do gênio.
que impotência a da matéria para seguir o espírito! A maior luta Assim, colocando a questão não em forma racional e abs-
do mundo é travada contra si mesmo, para vencer sua resistência trata, mas biológica e prática, torna-se compreensível a posição
à atração que o impele irresistivelmente para o espírito. O ideal do problema evangélico ante o mundo, a razão do contraste en-
evangélico é um enigma para o homem, porque lhe repugna, lhe tre terra e céu.
é difícil e cansativo, mas, ao mesmo tempo, é um convite, uma Deste modo, o nosso protagonista se orienta claramente,
censura muda, uma ordem. Esse ideal se lhe apresenta como em plena consciência, diante de sua última experiência no
atração e repulsão, contradição de forças que, por caminhos mundo, e dessa compreensão tirará todo o possível rendimento
opostos, o agita e interessa. Há para o homem, naquelas doces da nova prova. Ele tinha agora, diante do seu olhar, as duas re-
palavras desarmadas, uma ordem irresistível como uma ameaça. alidades: a do céu, que conhecera primeiro, e a da terra, que
A grande tragédia humana está se aproximando deste dua- agora compreendia. A vida real apresentava-se-lhe como um
lismo: reconhecer no íntimo a superioridade do ideal, mas não duplo jogo; duas visões opostas que, exprimindo-se em lin-
saber realizá-lo; sentir a sua grandeza e beleza, mas convencer- guagens diferentes, não se compreendiam. De um lado, o jogo
se da própria impotência, o que gera a aversão e a revolta; curto do materialismo, hedonista e epicurista, que se apoia no
compreender que existem formas mais altas de vida, que se po- passado, escolhe os caminhos da animalidade e os resultados
dem viver, mas que são inacessíveis; ver de longe o céu, mas imediatos, como o gozo, o bem-estar, a expansão no plano da
não poder alcançá-lo; conceber na mente o sonho, mas não ver matéria. De outro lado, o jogo longo do idealismo altruísta,
senão a própria miséria. No fundo da utopia do ideal há esta que se apoia no futuro, escolhe o caminho do espírito e a reali-
grande paixão humana de não poder realizá-lo. zação longínqua, sacrificando a isso o presente, não se expan-
Todos sabem que é a vida humana o que o homem deseja, dindo na terra, mas sim no céu. Em nosso mundo, a vida oscila
mas ninguém sabe desejar acima da animalidade, porque ele- entre estes dois extremos. Míopes e presbitas esbarram em di-
var-se isoladamente para o mais alto, é martírio, e do martírio ficuldades, e cada vantagem é paga e compensada.
se foge. Cada um de nós espera que o vizinho o faça, e o vizi- O jogo curto leva a vantagens imediatas e tangíveis. O re-
nho o espera de nós. E, se um homem de exceção o tenta sozi- sultado está próximo e é alcançado rapidamente. É um método
nho, todos se encarniçam em destruir esta insuportável vergo- positivo, concreto, humano, o preferido pelas pessoas práticas.
nha de todos. A guerra que se move aos que realizam o ideal Conquista-se apenas o que se vê e já existe realmente sobre a
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 57
Terra. Mas este jogo tem um defeito grave: acaba-se com a pensamento seja letra morta, deve estar sempre em contato com
morte, quando tudo desmorona, deixando apenas as cinzas da os homens da primeira e da segunda lei, aos quais aquele pen-
ilusão. E, mesmo antes disso, quantas traições, quantas lágri- samento se dirige para sua aplicação. Muitos problemas propu-
mas, que íntimo sentido de vacuidade nos resultados consegui- sera o nosso personagem a estes homens e obtivera a resposta.
dos com tanto trabalho! Por fim, não resta na alma senão uma Compreendera que era incompleto qualquer conhecimento
triste amargura de insatisfação, uma pavorosa sensação de va- que não levasse em conta a realidade biológica, à qual todos
zio, a certeza da inutilidade dos esforços realizados. O secreto devem descer para atuar e onde tantos fenômenos falam, reve-
instinto da evolução deixa-se manifestar pelo desespero final, lando seu pensamento diretor e animador. Compreendera que
que é a herança de todos os que viveram inutilmente, isto é, os pioneiros na vanguarda da evolução, especializados na obra
sem progresso, sem evoluir. criadora de novos modelos de vida, as células sociais de função
O jogo longo é de resultados longínquos e de realizações nervosa e cerebral, aí estavam, quais delegados da raça, para
demoradas. Conquista bens imperecíveis, mas colocados fora cumprir o específico trabalho de antecipação evolutiva das fu-
da Terra, num mundo que foge aos nossos sentidos. Compreen- turas formas a serem realizadas pelas massas. Compreendera a
de como dever a construção de si próprio com sabedoria e so- razão de seu desequilíbrio e de seu fatal destino de solidão e
frimento, ao passo que os que gozam e vivem no ócio desperdi- martírio. Mas compreendera também a sua inderrogável função
çam a vida e, para sua desvantagem, destroem a si mesmos, biológica, tão importante como a conservação individual da es-
pois tais bens só são conquistados à custa de graves sacrifícios pécie; compreendera que, apesar de todos os obstáculos, a sua
e lutas na vida presente. O instinto secreto da evolução é satis- posição era verdadeira e se mantinha inviolável, acima de todas
feito com as conquistas realizadas, mas quantos riscos e sacrifí- as condenações. Compreendera toda a lógica do complexo fe-
cios, que cansaço e que tensão em toda a vida! nômeno da redenção humana e a fatalidade de suas leis; com-
Seja qual for o caminho escolhido, não há uma saída gratui- preendera também a que explorações humanas os ideais haviam
ta que nos livre do trabalhoso dever de evoluir. É inútil procu- de submeter-se no ambiente terrestre, onde tudo, a fim de so-
rar animalizar-se. Há na alma humana uma necessidade instin- breviver, deve prestar para produzir um rendimento útil: condi-
tiva de melhoramento, um irresistível sentido de insaciabilida- ção indispensável de sobrevivência na Terra. Compreendera
de, que fatalmente estimula e impele. E os caminhos terrestres que degradação deviam os ideais suportar para que fosse possí-
são cansativos e inseguros. Valerá a pena, então, sacrificar a vel sua assimilação na Terra e como o homem normal impõe os
consciência e tanto trabalho por um resultado tão incerto? Sim! seus limites e as sua condições, reduzindo tudo, inexoravelmen-
A moral biológica do mais forte, sempre vencedor, é viril e te, à medida de sua própria compreensão; que aviltamento, que
grandiosa; mas quantas tristezas, quantas traições, quanta misé- deformações são necessárias para fazer descer o céu aos usos
ria atrás da cena; que vís explorações, que instabilidade implica comuns da Terra, para tornar possível o homem comum apos-
o sistema da força! Isso se reduz a uma luta sem tréguas. sar-se dele e utilizá-lo na sua própria evolução! Que imensa re-
Destas considerações devem ter nascido na Idade Média os sistência oferece a inércia das grandes massas humanas e que
ideais de pobreza absoluta, de renúncia a tudo, que, do ponto de dificuldades para vencê-la.
vista humano, são os ideais do desespero. Quanta paz dá à alma Mas só assim o ideal germina e frutifica. A visão da fatali-
o Evangelho com sua confiança em Deus, ante esta atroz lei bio- dade da traição do mestre por parte de seus companheiros, das
lógica que desencadeia todos os apetites, sem lhes garantir a sa- explorações e acomodamentos humanos, das distorções de
tisfação! A que preço se vence! Que fadiga é a vida! E que desi- consciência, das adaptações deformadoras, necessárias para
lusões se recolhem! Então a dificuldade move o instinto do pro- aplicação a uma realidade diversa – eis os maiores tormentos
gresso, que estimula as tentativas de evasão do pestilento pânta- do homem que luta pelo ideal.
no terrestre. Então se realiza o esforço para elevar-se a qualquer Não são os discípulos, geralmente, os maiores deformado-
custo. É assim que, em nossos tempos loucos de sapiência, doi- res? No entanto são necessários. Ele sofria com esta fatalidade
dos de dor, desesperados no bem-estar, torturados nos gozos, es- que assalta a criatura mais querida do homem da terceira lei,
ta pobre humanidade, insatisfeita de tudo, armada até os dentes golpeando-o justamente no coração de seu trabalho.
para defender a sua insegura posição, agita-se sem repouso, em Chegado a este ponto, o nosso personagem se impunha al-
busca de caminhos mais altos, mais civilizados, mais dignos. gumas graves questões:
O ser evoluído tem realmente, e até que ponto, o dever de se
XXV. RESSURREIÇÃO sacrificar pelo involuído? Tem o ser inferior, para sua elevação,
―Durch Sturm empor‖16 (Beethoven) o direito de tudo abaixar até si próprio? O ser normal tem o di-
reito de trazer até seu próprio nível o supernormal, para ascender
Já agora, o nosso personagem tinha diante dos olhos, bem à sua custa? Quais são as relações entre o superior e o inferior e
clara, a visão da verdade biológica, bem como da verdade ao contrário, na hierarquia dos verdadeiros valores da vida que o
evangélica, e podia dirigir com perfeito conhecimento a conti- homem representa? Tem o gênio o direito de se sacrificar, de
nuação do seu caminho. Compreendera que, colocado assim, descer e aviltar sua superioridade em homenagem ao amor
biologicamente, o problema se tornava compreensível e que a evangélico, a serviço do próximo? Por que a um homem que so-
solução somente podia ser oferecida pelo bom-senso prático em fre não é uma injustiça que outro homem, embora seja um gênio,
contato experimental com a vida, e não por erudição, abstração tente eximir-se, fugindo ao peso da inferioridade, isolando-se no
ou processos racionais. culto único da elevação individual? Ou terá o super-homem o
Encontrara assim, na realidade, uma lógica que não é a dos dever de se salvar primeiro a si mesmo, fugindo à normalidade
silogismos e compreendera que a sábia resposta do oráculo es- se necessário? Terá ele o dever, para servir à sua própria eleva-
peculativo de nada serve para a vida prática, onde um homem ção, de se isolar e voltar as costas impiedosamente aos inferio-
qualquer sabe mais que um grande filósofo. E é este mínimo e res, deixando-os entregues ao seu triste destino? Este abandono
sólido bom-senso do homem comum a pedra de toque dos gran- será um dever ou um crime? Se não se deve dar pérolas aos por-
des filósofos, o filtro que controla o seu valor prático, a medida cos, deve-se então deixá-los na pocilga? Ou cada aristocrático
de sua atuação. Se o homem da terceira lei não quer que o seu refinamento no espírito, seja ciência, arte ou santidade, não é um
roubo à vida subterrânea dos primitivos e abandonados, que pe-
16
―Arrastado para o alto pelo vendaval‖. (N. do T.) dem fraternal socorro? Se quem sofre é um homem irmão, tem-se
58 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
direito à isenção de sua dor e à tentativa de fuga na alegria do tando implícito o direito à proteção e ao reconhecimento ne-
triunfo espiritual do próprio e egoístico superamento? Pode-se, cessário para que o fruto possa amadurecer, pois que o seu in-
diante de um ser involuído, pensar primeiro e somente na evolu- teresse é o interesse de todos.
ção de si próprio? Deve-se, então, ser impiedoso e deixar para Portanto também o super-homem deve lutar pelo que é, na
trás os que valem menos, para que estejam à frente os que valem defesa das coisas superiores que ele representa. O espírito de
mais? Na luta entre homem e super-homem, quem tem mais di- sacrifício, a piedade, o altruísmo evangélico encontram um li-
reito à vida? Até que ponto a piedade se pode impor à justiça, e mite neste dever. Aqueles que têm qualidades não têm o direito
qual será o limite dos direitos do amor ante os direitos do pro- de sacrificar seu rendimento para o prazer dos que não mere-
gresso? Que valerá mais, biologicamente, a evolução ou o altru- cem tal sacrifício, porque, assim fazendo, estariam privando
ísmo evangélico? E a qual deles dar a preferência? dos resultados aqueles que o merecem. O amor ao próximo se
Orientemo-nos. Todos os homens se podem individualizar, torna defeito quando se desenvolve no sentido destrutivo, e não
agrupar e distinguir segundo as três leis biológicas que, como construtivo. É verdade que a dor é a grande mestra da vida, mas
vimos, presidem ao funcionamento da vida. Estas três leis são os não basta sofrer – é preciso sofrer utilmente. A resignação estu-
três planos ou níveis de altura do edifício da evolução. Destes pidamente passiva, o desperdício das próprias energias em su-
três planos, os homens que neles estão situados e os represen- portar pacientemente as contrariedades é inútil, porque moral-
tam, mantêm-se em posições diversas, pelas quais lutam mesmo mente improdutiva, tornando-se culpa, e não virtude. Não se
sem o perceber. Mas é uma luta de seres que procuram um ao tem o direito de se autoconsumir para suportar um choque, nem
outro, porque têm necessidade de se unirem, já que não podem de se sacrificar um nobre trabalho para renunciar ao necessário.
existir senão vivendo no mesmo edifício. Cada homem luta para A vida deseja rendimento, e não sufocação das qualidades. A
defender e afirmar os valores da própria lei, porque neles está a dor deve ser escola e instrumento de ascensão, e não suicídio.
sua própria função vital. A vida é sempre luta, que forma as qua- Não deve ser renúncia senão enquanto esta é dinamismo cons-
lidades, reforça as posições e as defesas, garante os valores re- trutivo para o alto. É luta sem piedade de si mesmo, porque
ais. Assim, os homens de cada uma das leis são rivais entre si, somente o ideal triunfa. Mas, quando do outro lado está o ren-
porque cada um vê apenas o seu próprio campo, acredita-se no dimento espiritual, então é lícito o martírio que maltrata o cor-
centro da vida e, no impulso pelo cumprimento do próprio desti- po. Não sendo assim justificado, o martírio se torna suicídio e
no, é levado a invadir o campo dos outros, chocando-se com seria justificada a renúncia a este rendimento por um errôneo
eles. Todos acreditam, reciprocamente, que cada um não tem va- senso de sacrifício votado à comodidade do próximo – o verda-
lor senão em seu lugar: o da 1a lei pensa na conservação indivi- deiro suicídio. É justamente a finalidade do bem, o rendimento
dual com o seu egoísmo, o da 2a lei pensa na conservação cole- da ação, o que distingue o suicida – que foge inutilmente da vi-
tiva e na reprodução; ambos, porém, não se preocupam com o da por vileza – do mártir, que, pelo triunfo de um ideal capaz
progresso social, que é o escopo do homem da 3a lei. de fazer progredir o mundo, se oferece em holocausto.
Mas, se o super-homem não se encontrasse com o ser nor- Concluindo, a moral biológica não tolera esbanjamentos,
mal – representante dos seres humanos, que se mantem vivo dispersão ou desfalecimentos; quer cada um corajosamente
pela proteção necessária e salutar do seu egoísmo e, com o seu colocado em seu posto de combate, como vencedor; quer que
instinto de reprodução, frustra a obra da morte, provendo a cada um faça frutificar utilmente para si e para os outros as
continuidade da raça – com que material poderia ele trabalhar? qualidades que lhe foram confiadas e que ele representa e per-
Nada teria para plasmar, para fazer progredir, para imprimir sonifica. Aos que têm qualidades cabe o dever de tudo sacrifi-
sua própria visão de um mais elevado modelo de vida. Sem os car por seu rendimento e de defender esse sacrifício para que
menos evoluídos, ele seria um solitário pregador no deserto e alcance o seu fim.
não poderia realizar a própria missão. Mas, do lado oposto, se Finalmente, admite-se apenas o sacrifício evolutivo que
os normais não se encontrassem com o supernormal, que co- conduz ao alto, apenas a queda que leva à ascensão. As leis da
nhece, antecipa, guia e, reservando-se a função cerebral e espi- vida não admitem que o egoísmo, agindo na defesa do ser, ceda
ritual da vida, o faz progredir, todo o seu trabalho também se- lugar ao altruísmo, que é a sua negação, a menos que, em com-
ria estéril e sem sentido. Tal é o edifício das funções da vida. pensação, se consiga adquirir um rendimento que supere ou ao
Coloquemos cada coisa em seu lugar neste edifício e teremos menos valha aquilo que se perde. Um sacrifício louco, um al-
respostas para as perguntas precedentes. truísmo simplesmente destruidor, uma perda de utilidade que
Em primeiro lugar, para cada homem, segundo a sua natu- não consegue ressurgir em alguma reconstrução, é um erro bio-
reza, lei e posição no edifício, é um dever a realização da pró- lógico, um condenável ato antivital.
pria função vital. É um dever, para cada um, alcançar o máximo Colocado diante de tais conclusões, o nosso personagem
rendimento da própria capacidade, e cada um é levado pelo quer orientar-se em nova posição. Ele era inexoravelmente o
egoísmo de seu nível à defesa do cumprimento deste dever. Se homem da 3a lei. Sentia-o claramente e não o podia negar a si
os outros, por inconsciência, tentam invadir o seu campo e pre- mesmo. Tinha, então, o dever de aceitar e proteger a sua mis-
judicar a sua função, ele tem o dever da defesa, porque, no ple- são, de dar rendimento completo de acordo com a sua natureza
no respeito a todos os representantes das outras forças da vida, e capacidade. Enfileirou-se ao longe, atrás dos grandes idealis-
ele tem direito ao respeito a si mesmo, como representante de tas. Considerou a situação, reconhecendo em primeiro lugar su-
uma força que, como as outras, deve ser conservada e frutificar. as próprias limitações. Sabia que era limitado e que não lhe
Assim, se o super-homem não é compreendido, ele tem o competia reformar o mundo, mas simplesmente dar a sua con-
dever de expulsar os profanadores inconscientes de sua mis- tribuição, fazendo florescer e frutificar aquele pouco que possu-
são, porque seria crime não se impor para seu bem e ceder aos ía. Não podia cometer o delito de desperdiçar o que tinha e de-
obstáculos, renunciando à utilidade coletiva que poderiam pro- via oferecer, e para isso iria até ao limite de sua capacidade e de
duzir os recursos de sua personalidade. O super-homem, que suas forças. Mais não tinha, nem podia. Entre o limite do que
representa o bem de todos, seria um traidor de sua função se era e o além que não sabia ser, queria agir em plena consciência
permitisse que os que não compreendem fossem obstáculos à e a fundo, até à exaustão de todas as possibilidades interiores.
sua missão. Seu dever é defender o bem de todos que ele re- Tinha o dever desse rendimento máximo dentro do relativo.
presenta. Se isto implica para ele o direito à própria defesa e ao Não iam além disso o direito de sua própria realização e o de-
próprio trabalho, implica também o dever de se dar até ao ex- ver de justificar a própria missão. E aqui ele parou, consciente
tremo, de fazer frutificar suas qualidades para o bem geral, es- de sua relatividade e pequenez, confiando o resto a Deus. Os
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 59
anos seguintes seriam para ele uma lenta realização do bem tude do não fazer, julgam, escandalizam-se e, tudo desejando
alheio, o que daria à sua vida o máximo rendimento. Um sacri- reduzir à sua vida negativa, pesam o homem de Deus.
fício de si mesmo que não era suicídio nem aniquilação, e sim A última palavra que escrevera fora ―silêncio‖ e a manti-
maceração elaboradora de espírito, porque sua morte lenta dava vera. Decidira quebrar a pena, renunciar a escrever, renunciar
vida aos outros. Morreria, pois, exausto de fadiga, mas satisfei- a compreender e, afinal, renunciar a pensar. Sua vida estava
to em sua paixão de bondade e amor para com o próximo, tendo no pensamento, e isso significaria para ele o suicídio espiritu-
cumprido o dever de nada esbanjar de si – nem um minuto de al, aceitação, pelo senso do respeito e do dever, da morte da
tempo, nem um grama de força – dando tudo quanto tinha, fa- alma. Oferecera a Deus o sacrifício máximo. Impusera-se,
zendo tudo o que sabia e podia, utilizando tudo para o bem dos sem indagar, os últimos limites. Mas não compreendera que
outros. Dados os limites da sua vida, essa mesma era a medida sua vontade não bastava e que não é possível, mesmo que se
de sua completa realização na oferta e no sacrifício. queira, sufocar o espírito. Deixara-se precipitar, mas não po-
Portanto sua posição agora era clara. Sendo homem da ter- dia se destruir. Sua mente não podia ser fechada e, com o
ceira lei, devia, em primeiro lugar, aceitar todos os trabalhos e tempo, sem mesmo o saber, pelo simples fato de continuar a
deveres. Oferenda e sacrifício eram regras para ele. Sentia, de existir, ela continuou a funcionar, superando inevitavelmente
resto, que todos os caminhos de evasão, até agora tentados, não os limites impostos, ultrapassando instintivamente a decisão
exauriam e não resolviam o problema da sua vida de espírito. de não pensar e não compreender, elaborando inadvertida-
Era impossível a fuga da Terra através da ascensão mística, im- mente um novo pensar e um novo compreender. Se bem que
possível a sua anulação na tentativa de se animalizar no plano estivesse armado de retidão e decisão, a suspensão das fun-
da realidade humana. Não lhe restava senão o caminho da cruz. ções da alma acabou em alguma coisa superior ao seu próprio
Os últimos obstáculos, ofensas e condenações não tinham feito, poder. Certamente, as leis da vida não permitem a consuma-
afinal, senão reforçar nele o sentido de sua missão. Sua queda ção destes atentados, embora ditados por nobres e heroicas in-
fora profunda, e a reação fora enérgica mas breve, exaurindo-se tenções. Não conseguiria fechar o pensamento, que assaltou
em doze meses. Isso fora necessário para que pudesse resistir a os limites impostos, vencendo o abatimento e a crise, ressusci-
todos os assaltos. Mas a reação continha um impulso de ressur- tando mais fortalecido. Não é divina a impossibilidade de uma
reição, embora iniciada por baixo, e este impulso não se podia autodestruição, apesar de todas as dores, de todas as adversi-
deter. A experiência fora útil, e ele trazia consigo agora uma dades, de todos os assaltos, da própria fraqueza e abatimento e
nova sabedoria e nova solidez. E as forças do espírito que se mesmo da nossa vontade, demasiada cansada de sofrer? Não é
moviam no seu destino agarravam-no pelos cabelos para arras- divina a impossibilidade de se anular? Não é, pois, a vida um
tá-lo novamente ao alto, para que tudo se cumprisse. O homem irresistível superamento contínuo, mais forte que nós mes-
é indestrutível em suas notas fundamentais, e o ataque das for- mos? É impossível inverter a essência das coisas.
ças contrárias jamais tem o poder de desviar um destino fora de Assim, ele experimentou o funcionamento da lei do equilí-
seu binário. Neste período de prova, conseguira dominar a on- brio, que é justiça para os que estão esgotados, indiretamente
da. Era necessário, agora, tornar a sair, por aquela mesma lei de destruídos, tanto mais quanto menos se reagir. Ele compreen-
sua vida que primeiro o derrubara. Os assaltos estavam esgota- deu então o mecanismo da falsificação evangélica pelas leis do
dos. Pagara, em moeda de dor, ao mundo inferior o seu preço mundo, que faz a derrota se transformar em triunfo. Compreen-
pelo progresso conseguido. Agora podia retomar o seu trabalho. deu que, além do simplismo brutal da lei biológica, havia outras
E, admirado, observava como o espírito, em vez de se esgotar, forças que, mesmo agindo plenamente num mundo mais alto,
temperava-se no trabalho do superamento das provas. E que irrompem também sobre a Terra, impondo-se, invisíveis e im-
novos conhecimentos, que nova síntese experimental trazia ponderáveis. Assim, depois de ter sentido o sabor amargo da in-
consigo ao emergir das profundidades do mundo em que fora justiça do mundo, pôde saborear a justiça do céu e compreen-
atirado! A sua fé superara a prova e fora consolidada. Durante der, ante as leis do mundo, a superior potência e a maior estabi-
um ano ficara cego, no inferno terrestre, mas, agora, o vórtice lidade do equilíbrio das leis do céu. Para os astutos da Terra,
da paixão santa por Cristo o apanhara de novo. Retomava o estas leis parecem ingênuas; para os fortes, são fraquezas. Al-
caminho nas pegadas Dele para vencer o mundo não com ódio, guma coisa, nos mais elevados planos da evolução, sentira e re-
mas com amor. Recomeçava a sua missão, corrigida, tempera- gistrara o fato de sua queda. Dir-se-ia que, além das aparências,
da, purificada. Ninguém a poderia destruir, porque isso signifi- pesara a substância, tendo encontrado, além da forma condená-
caria a possibilidade da anulação de um espírito e de um desti- vel, uma realidade de sacrifício; um organismo de forças cons-
no. Bastava uma centelha para reacender o velho incêndio, cientes interviera em defesa do inviolável princípio da divina
grande demais para acabar assim. Que misteriosa sabedoria das ordem da justiça e agira na Terra, transformando a derrota, a
leis da vida se manifestava nestas provas da alma! O retrocesso queda, a mutilação, numa ressurreição.
não fora senão um meio de tomar impulso em direção a novos Tudo isto lhe demonstrava como, em sua vida, em todas as
superamentos no caminho da evolução, para a própria realiza- coisas, além da injustiça superficial, havia a inviolável justiça
ção e para o bem de todos. Então Cristo não o traíra, o Evange- de substância, ou seja, uma ordem que compreende, domina e
lho era verdadeiro, ele é que não tinha aprendido o seu signifi- absorve os elementos de desordem. E tudo isso lhe dava nova e
cado mais profundo, e agora tudo, em vez de desmentido, ficava evidente demonstração da verdade prática daquele Evangelho
reafirmado. Agora, que viajara tão tempestuosamente pelo mun- que a Terra considera absurdo.
do, podia retomar plenamente, no mundo, ante o mundo, em Observava em si mesmo o fenômeno da ressurreição e ad-
completa consciência, a experiência evangélica. Tudo isso lhe mirava a fatalidade da lei do retorno a Deus. Deus é invisível e
mostrava que a ascensão espiritual nem sempre é retilínea e que, irreal sobre a Terra. Quanto mais se desce para o humano, mais
muitas vezes, ela não se consegue senão por ação e reação, co- sua imagem se reduz, apagada, antropomorficamente diminuí-
mo as oscilações de um pêndulo entre o bem e o mal. Não de- da, porém tornando-se compreensível, acessível e confortante.
vemos temer as quedas quando temos a paixão da ascese e uma À medida que se avizinha do divino, a imagem mais se asseme-
alma ardente e capaz de se reerguer. O terrível é, ao contrário, lha ao Deus verdadeiro, fazendo-se também mais alta, abstrata,
possuir uma alma inerte, restrita, formal, incapaz de qualquer longínqua, inabordável, já que o espírito se encontra diante de
oscilação, de grandes quedas e, especialmente, de grandes im- um abismo tão profundo, que Deus se desvanece e se perde no
pulsos de reação. O rebanho, em geral, está adormecido; por isso vácuo do inconcebível. E o Deus verdadeiro se coloca tão alto,
ninguém cai, mas também ninguém ressurge. E, com grande vir- que não se sabe mais invocá-Lo e amá-lo como Deus antropo-
60 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
mórfico, o qual se sente que não é Deus. E – não obstante a XXVI. AMA O TEU PRÓXIMO
imensa distância que assusta os que desejam medi-la, apesar de
Sua altura e de Sua profundidade e da abstração em que Deus O nosso personagem voltara-se para as últimas fases de
se oculta, a ponto de sugerir o ateísmo aos cegos do mundo – sua vida. O processo de animalização falhara no sentido em
que atração para este centro invisível e inalcançável, que neces- que fora tentado e produzira resultados opostos. Desta prova
sidade suprema de subir para se avizinhar Dele, para o retorno a máxima seu espírito saía mais consciente e mais forte. A
Ele, desde que uma vez O tenhamos conhecido! E que cansa- chama de seu espírito vacilara até quase se apagar sob o sopro
ços, sofrimentos e lutas enfrentam as almas para reencontrá-Lo! gelado; mas o próprio sopro acabara por reavivá-la. Sentia-se,
A marcha do progresso do mundo não é senão uma afanosa assim, restituído à fase precedentemente conquistada. Com-
busca de Deus, uma insatisfeita tentativa de retorno. preendia, no entanto, que não se tratava de uma simples resti-
Nosso personagem poderia ficar no mundo em que caíra. tuição, de um mero retorno.
Algo, porém, o impedia. Não era um inepto e teria sabido reali- Uma nova experiência, e bem diferente, passara sobre as an-
zar o ataque para vencer pelo sistema da Terra. Por que não o teriores realizações e elaborara algo de novo, uma face inexplo-
queria? Por que não o podia? A rebelião que ele começara mor- rada de si, criando um conhecimento e com ele um novo dever.
ria-lhe na mão. Por quê? E tudo pela terrível utopia do Evange- Escrutava-se para compreender o que significaria, no desenvol-
lho, pelo insensato amor a Cristo, pela doida fé em Deus. E ele vimento de seu destino, o ter superado aquela nova prova e qual
se sobrecarregava ainda com o peso de novos deveres e, deste- poderia ser o seu rendimento. E, no entanto, sentia-se insatisfei-
mido, retomava, após tantas desilusões, como se nada tivesse to. O passado, embora reconquistado, já não o satisfazia, não
acontecido, o velho e cansativo caminho. lhe bastava. Procurava o que lhe poderia faltar para completá-
Agora que reencontrara o sentido do Evangelho, a realida- lo. Havia ali uma lacuna que procurava preencher, e tudo isso
de biológica na qual acreditara, colocada diante da consciência era a continuação lógica do desenvolvimento de seu destino. A
evangélica, parecia-lhe uma torpe paródia. Apesar de tudo e de experiência humana lhe dera nova semente, o germe de um mo-
todos, surgia em seu espírito a suprema contradição da cruz tivo que procurava decifrar e desenvolver.
repelida e amada, martírio e triunfo, longínqua, inatingível, tra- Começava a distinguir, graças a uma sensibilidade moral
ída, maldita, mas sempre invencível cruz. Em sua luz, ela o fi- mais sutil, algo como um sentido de culpa egoísta em sua mís-
tava muda e o chamava; símbolo do trabalho da redenção hu- tica fuga. E perguntava por que teria sido tão bruscamente
mana, síntese da superação biológica que leva da fase evoluti- truncada sua ascensão mística. Não poderia ela, então, conti-
va humana à super-humana. E, agora, devia retomar a tarefa na nuar sozinha, ou constituiria de tal forma um perigo, ou teria
qual bem sabia estar o único significado da vida. Se não dese- necessidade de se combinar com algum outro elemento para
java involuir e destruir-se, seguindo o caminho do animal, não que não fosse frustrada a sua função evolutiva? Era uma co-
lhe restava senão seguir o caminho da cruz. lheita, e não é necessário demorar muito sobre os louros. Parar
O que acontecera com ele? Como ocorrem estas estranhas e adormecer é apodrecer. O necessário é atirar-se ao trabalho,
maturações, que aparecem subitamente como síntese realiza- começar nova sementeira. Mas como?
da? Sentia-se ressurgir como um homem diferente, tão diferen- Sentia que era restituído às passadas alegrias espirituais, não
te do que fora no último ano, que nem mesmo se reconhecia. para continuar no seu plano de fuga e tentativas de evasão da
Terra. Este fora, afinal, o ponto fraco de sua precedente direção,
Que misterioso reencontrar-se é a vida, sobretudo a vida do
ou seja, a finalidade, a superação procurada para alcançar, só por
espírito, para os seres amadurecidos! É uma revivescência
si, a própria libertação das dores da Terra. Esse era o caminho do
além de todas as mortes, um renascer de todas as crises, um
Nirvana das filosofias orientais. Mas ele se recordava de que no
triunfar de todos os abismos. Os velhos germes, em vez de
Evangelho havia algo mais completo e profundo. Que seria? Pro-
morrer sob a neve, tinham amadurecido e agora germinavam.
curara fugir da Terra para o céu. Quase o conseguira, e o destino
Em lugar de ficar abatido, o espírito reforçava-se na tempesta-
lhe dissera: Não! Procurara, então, livrar-se do céu para se des-
de. Tais experiências estampam-se tão profundamente na alma,
truir sobre a Terra, renunciando à fuga. Mas isto também lhe fora
que se tornam inesquecíveis, e nenhum assalto, nenhuma vicis- vedado. Para onde dirigir-se então? Certo é que muito lhe fora
situde poderão destruí-la. E ele compreendeu então a grandeza dado, mas em troca de que novos trabalhos? Sentia que não po-
da divina lei de justiça, pela qual, uma vez que se conquistou deria ser mais o homem da fuga. O campo a arar seria então a
uma realidade, jamais se poderá perdê-la, e o caminho percor- Terra? Pesquisou mais profundamente, interrogou o Evangelho, e
rido, o cansaço, embora estacionados, não se perdem mais. uma música mais íntima lhe respondeu que mais aceito e comple-
Compreendeu, então, a impossibilidade, para ele, de se anima- to que o amor que chega a Deus, solitário em sua alegria, é o
lizar, de descer, involuir; a impossibilidade da matéria vencer amor que chega a Deus através de Suas criaturas, através de sa-
o espírito; do mal anular o bem. Compreendeu a indestrutibili- crifício na cruz pela redenção do mundo. Realizara, pois, a prova
dade dos valores morais, das conquistas realizadas. As próprias na cruz pela redenção do mundo, tendo que imergir nele; se que-
leis da vida se opunham à sua degradação, que seria injusta. ria agora reencontrar Deus, teria que passar através do mundo. Já
Uma vez elaborado, o eu, cedo ou tarde, desperta. E o seu não se tratava de fugir da Terra para o céu, como o fizera, ou do
despertar não foi o tatear do novato inexperiente, não foi a tra- céu para a Terra, como o tentara, mas tratava-se de assumir uma
balhosa conquista do inexplorado, mas o reencontrar-se rápido posição nova e trazer, com seu trabalho e sacrifício, o céu à Terra
de quem reconhece o caminho, por havê-lo percorrido. Desper- e levar a Terra ao céu. É certo que ele já iniciara esta obra, com o
tou nele a velha fome do espírito, e ele reencontrou e retomou abandono da riqueza e a aceitação do trabalho como dever de to-
as velhas experiências que já possuía em síntese, porque cedo dos. Mas nisto não vira senão o aperfeiçoamento de si próprio na
se lançara pelos caminhos do espírito. realização de um ato de justiça. Era preciso ir adiante, saber es-
Não começara pela vida física, que é a fase normal da ju- quecer-se de si mesmo e, na anulação de todas as metas individu-
ventude, mas tinha, desde os verdes anos, alcançado rapida- ais, ressurgir na vida dos outros. Era preciso abrir os braços aos
mente a plenitude espiritual, à qual chega às vezes a maturidade trabalhos e às dores do mundo, não para ganhar por cálculo ego-
do velho, que tarde demais adquire o sentido profundo da vida. ísta um paraíso particular, mas para auxiliar, em completa igno-
Assim, voltaram-lhe os grandes silêncios, túrgidos de pen- rância de si mesmo, a todos: amigos e inimigos. Era preciso in-
samento; reabriram-se os abismos do céu; reacendeu-se o vórti- cendiar-se e arder em amor pelo próximo, às vezes ingrato e re-
ce de sua paixão; voltou a tempestade de seu destino, para que pugnante; ter a heroica coragem de cortar as asas anelantes no
reencontrasse, continuasse e completasse o caminho da ascese. voo, para se precipitar abaixo e aí viver até o último alento.
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 61
Assim iniciava-se para ele uma nova fase ainda mais madu- humanidade sofredora e todas as ofertas das almas preparadas.
ra, mais fecunda, uma realização mais completa do verdadeiro Era a síntese da bondade da palavra de Cristo, das necessidades
espírito do Evangelho. Mas, para cumprir a nova tarefa, tivera de coordenação social, do anelo evolutivo da raça humana para
que, primeiro, conhecer o céu e a Terra. A nova fase era a sínte- um mais alto e compacto futuro biológico coletivo. Anular-se
se das duas precedentes e nelas se completava, reforçava, am- para si e reviver nos outros. Esse era, para o nosso personagem,
pliava sua missão, que os assaltos não tinham podido destruir. o caminho da maior afirmação de si mesmo nos outros, pois
Neste sentido, o Evangelho lhe falava e nova ordem lhe vi- que, quanto mais intensamente se viver nos outros, mais se dá e
nha de Cristo: era necessário retomar a cruz e carregá-la na Ter- mais se possui. Em lugar de exaltar o altruísmo no próximo, o
ra, seguindo o Seu exemplo, e não por si, mas para o bem dos que seria a demolição do seu egoísmo para vantagens próprias,
outros. Esse o grande e novo motivo que ele devia desenvolver: começar a sentir respeito pelo egoísmo alheio, o que seria a de-
o bem dos outros. Renunciar à própria fuga, detendo-se, agora molição do próprio egoísmo para vantagens dos outros.
que havia aprendido a ensinar aos outros. Não fugir só, mas sal- Fazer, afinal, da virtude algo que começa no próprio dever
var também os outros; não evoluir sozinho, mas com todas as de dar, e não no próprio direito de pedir; algo que começa em si
criaturas irmãs. O novo e mais profundo sentido do Evangelho mesmo como obrigação, e não que se dirige aos outros como
estava neste recuo sobre os próprios semelhantes, não mais des- um pretexto, deles exigindo aplicação para a própria vantagem.
prezados como inferiores, involuídos, primitivos, mas amados e Ocupar-se do trabalho positivo de construção, do qual tantos
ajudados como irmãos. Não é, pois, através da fuga da Terra, fogem, e abandonar o trabalho negativo de destruição e nega-
ainda que em busca de perfeição, mas através do amor ao pró- ção, do qual tantos se ocupam. Se o mundo é mau, ele não de-
ximo, que se encontra mais completamente a Deus e se realiza via perder tempo reprovando-lhe essa malvadez, mas devia
plenamente o Evangelho. O caminho é mais extenso, mas que consumir-se para torná-lo melhor. Tinha que se oferecer em sa-
vastidão de realizações! O antagonismo entre a Terra e o céu crifício para opor um dique à corrente da maioria de egoístas,
não existe para que se lute ao infinito, mas é um contraste na que exigem o altruísmo nos outros para melhor afirmar seu
mecânica da evolução que se deverá resolver com o progresso. próprio egoísmo. Devia se oferecer para reerguer o exânime es-
Trata-se de fatos que devem ser compreendidos: o antago- tandarte do amor evangélico, o desfigurado princípio do altru-
nismo acaba por ser reabsorvido pelo progresso – é um meio ísmo; tinha que começar a aplicar o ideal antes de tudo a si
que se dissolverá quando for atingido o fim. mesmo, como honesto respeito pelo egoísmo alheio, como de-
Ele acreditava que Deus estava no alto, tão longe da miséria ver em favor de outrem, e não como direito contra alguém. Em
humana, que, para chegar a Ele, seria necessário separar-se de- vez de pregar o ideal para vantagens próprias, tinha que se dar
la, esmagando-a impiedosamente; vira o céu tão longe da Terra, ao trabalho de conseguir vantagens para o próximo.
que acreditara ser necessário abandonar a Terra como coisa in- O Evangelho lhe pedia fatos, e não palavras. A própria ra-
digna para poder tocá-lo. Agora, via um Deus mais próximo, zão lhe dizia que não se pode chegar à atuação do altruísmo
não já uma negação da vida humana, um poder que julga e con- através de uma absurda e antivital supressão dos egoísmos ne-
dena, mas uma afirmação presente e operante também na Terra, cessários à vida, demolindo as necessárias defesas biológicas,
uma bondade de pai que sabe descer até aos humildes para mas apenas através da dilatação destes mesmos egoísmos. Re-
amá-los, protegê-los e ajudá-los, a todos chamando para cola- almente, o homem é espontaneamente altruísta naqueles casos
borar nesta obra de elevação. em que vê a si mesmo nos seus semelhantes. O ver os outros
Via, agora, o céu dobrar-se sobre a Terra e, enquanto dava em si mesmo, em ampliação sempre progressiva, é o verdadeiro
de si mesmo o fruto de todas as experiências e os recursos caminho biológico e evangélico para chegar ao altruísmo.
acumulados em meio a tantas provas, corria para colaborar. Ati- O motivo final de sua vida não podia ser senão este: ―ama o
rou-se de braços abertos para seus semelhantes e olhou a Terra próximo como a ti mesmo‖. Já vimos a profunda significação
com confiança; céu e Terra lhe aparecem pacificados, unidos evolutiva desta ordem evangélica. Só assim podia agora sair re-
numa obra de colaboração. Reapareceu-lhe, então, o Cristo que alizando a aplicação total do Evangelho. Era a sua última fase e
já vira, um Cristo de mil rostos, que se multiplicava, colocando- a substância de sua ressurreição.
se ao lado de cada homem e aí permanecendo com aparência Mas a atuação de tudo isso não era fácil. Ele, que experimen-
diversa, um Cristo muito maior sob o peso desta humanização. tara o mundo, compreendia agora todas as dificuldades de sua
Mas só agora compreendia o sentido, antes fugaz, daquela vi- nova tarefa. O gesto era lindo e o entusiasmava, mas a execução
são, que fora como que uma advertência. era dura, cansativa, esgotante. Agora, que ele atravessara a expe-
Precisava, então, procurar, encontrar, realizar Deus não ape- riência terrestre, compreendia a que homens devia se dirigir e sa-
nas no céu, mas também no inferno terrestre. Precisava imitar bia que terríveis experiências continha a realidade biológica. A
Cristo, fazer com Ele a sua mesma descida. O desafio ao mundo dedicação altruísta, quando não é falsidade e retórica, é um gran-
não devia ser mais de desprezo, mas sim de amor. Devia se en- de sacrifício e estrada de martírio. E, seguramente, toda a sua ex-
caminhar para seus semelhantes não com armas como quer a tenuante fadiga ficaria confusa e submersa na grande maré da
Terra, mas sim com amor como quer o céu. Da reação que divi- mentira humana; o seu esforço para o bem seria inutilizado pela
de, ele devia passar à compreensão que une. A luta deve produzir potência do mal. Por isso tinha de colocar em segundo plano a
um resultado benéfico – não guerra pela guerra, pela vitória da divina fuga do místico para mergulhar, mesmo depois de ter co-
Terra, mas guerra pelo progresso, pela vitória do céu. Era preci- nhecido toda a sua brutalidade, na infernal experiência humana.
so, com o céu, fecundar a Terra, canalizar numa corrente ordena- Precisava, com ânimo diferente, saber reentrar no impiedoso rei-
da as forças caóticas. A vontade e a força não mais dirigidas à no da força e ter a coragem de perdoar, de amar, de compartilhar
destruição, mas sim à construção. Neste gesto de estender a mão e atuar. Precisava procurar e saber encontrar Deus também no lo-
aos seus irmãos sem distinção de inferioridade ou superioridade, do. Precisava renunciar ao céu para si, para entrar nele mais tar-
podia estar a única conclusão digna da vida de nosso persona- de, mais forte e com os outros. Precisava abraçar seus irmãos,
gem, como também pode ser a única conclusão deste livro. embora estivessem sujos e repugnantes, e, nesse abraço, reencon-
Nada vale saber vencer por si, se não se sabe vencer pelos trar Deus presente e vivo como em seu céu, ou mais vivo ainda.
outros. Ele devia procurar a sua valorização máxima não mais Heroica renúncia ao Deus dos céus para reencontrá-lo maior no
em si, mas em seus semelhantes. Esta sua nova diretriz corres- amplexo com a miséria e a dor. Supremo sacrifício da descida
pondia não só à orientação evangélica mas também à biológica e para um maior irmanamento. Precisava fazer seus a miséria, o
social. Para aí convergiam todas as vozes, todos os espasmos da cansaço, a dor do homem irmão – não como o fizera antes, mas
62 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
retomar, com o irmão sobre os ombros, o trabalhoso caminho da primeira condição do comando; invoca-se o altruísmo nos ou-
ascensão já tentado e facilmente concluído a sós. Precisava deter tros, para se servir melhor ao próprio egoísmo. Eis o que, na prá-
a própria emersão demasiado rápida, para voltar atrás e fazer sua tica, se faz do ditado ―ama o teu próximo‖.
a grande tragédia da impotência humana para a realização do so- Era preciso andar por um mundo onde o Evangelho está
nho do ideal, o pressentimento do futuro. Precisava fazer sua a demolido, para reedificá-lo com o exemplo e com o sacrifício.
aflição da animalidade, que não sabe se superar, e oferecer o fru- Era preciso sanar essas híbridas acomodações, essas falsas po-
to da própria vida, já agora maduro, para ajudar esta superação e sições que a realidade biológica da Terra alterou e falseou para
esta libertação. Precisava, livre no espírito, reduzir-se à escravi- adaptar-se à lei do céu. Tratava-se de enfrentar e dobrar os ins-
dão na matéria, para oferecer liberdade. Só assim suas anteriores tintos mais arraigados e resistentes, por serem de mais antiga
experiências poderiam verdadeiramente dar seus frutos. As for- construção na evolução humana – os instintos fundamentais de
ças do seu destino continuavam inexoravelmente a arrastá-lo para ataque e defesa, postos pela natureza nas bases da vida.
o seu fatal e lógico desenvolvimento. Como se abandonar à Divina Providência num mundo que
Assim, à fuga do mundo, sucedia o sacrifício no mundo e diz: ―Defende-te ou serás morto‖? Como obter garantias sobre
pelo mundo. Era difícil e heroico. Mas, se era verdade que ele os seus lentos equilíbrios, tão afastados da realidade da Terra,
estava mais no alto, tinha que descer. A superioridade tem os sempre pronta a agredir? Como não ficar triturado em tal batalha
seus deveres terríveis. A vida não pode ter senão este sentido: de egoísmos que não sabem dizer senão isto: ―Toleraremos a ti,
evoluir e fazer evoluir. O caminho fatal não podia ser senão o ao teu ideal e aos teus sacrifícios apenas enquanto eles servirem
da cruz, com o exemplo da paixão de Cristo. Compreendia para tirarmos vantagens de ti. E, enquanto tu dás e te matas por
agora, claramente, a fatalidade da lei biológica da cruz, sem a um ideal, recorda-te que os outros te louvam apenas para te ex-
qual o ideal não vinga. Essa é, já o dissemos, a matemática re- plorar e com a intenção de transformar o benfeitor em servidor
sultante do encontro das forças do céu e da Terra, polarização próprio; recorda-te de que os admiradores procuram tornar regu-
da estase horizontal destas com o dinamismo vertical ascen- lar, normal e estável o teu serviço de concessões altruístas‖.
dente daquelas. Compreendia que somente num ponto o céu Como viver o Evangelho em meio a uma moral que, com os
pode tocar a Terra, e esse ponto se chama martírio. Eis a Lei, fatos, constantemente se desvirtua? Como resistir com as leis de
e, se o seu destino era lógico, a sua missão real e a sua superio- bondade num mundo onde, dia e noite, se procura explorar os
ridade verdadeira, não havia escapatória. A menos que rene- simples e destruir os débeis? Se procuras te libertar para sobre-
gasse a si mesmo, as leis da vida, a palavra e o exemplo de viver e gritas no martírio por não ter mais forças para suportá-lo,
Cristo – o seu caminho era o da cruz. vê que os outros, bem acomodados, não querem renunciar e se
Era preciso descer, ser novamente incompreendido, ser repu- escandalizam com a tua fraqueza, com a tua pouca solicitude em
diado. E ele, que já percorrera esse calvário, sabia bem o que isso servi-los. Com santo zelo, atiram mais lenha ao fogo onde tu te
representava. Precisava ser humano, fundir-se na luta do homem. queimas e te consomes, animando-te para que a tua bela figura
Mas, assim, encontrava nova razão de existir, contribuindo para a moral não se desmereça e continues admirável e edificante para
atividade social. Era preciso anular-se, perder-se no mundo, para as suas almas. Que magnífico ideal o sacrifício dos outros! Co-
se reencontrar a si mesmo e a própria missão. Era doloroso. Mas mo resistir onde todos te atiram na face o egoísmo dos fortes e a
é inegável que, no fundo do caminho da cruz, haveria a ressurrei- falsa virtude dos fracos, dos ajuizados; onde todos se agrupam
ção. Mas, até lá, quantos deveres, quantos trabalhos! E estes tra- em torno daquele que conseguiu, com tanto trabalho, subir um
balhos e deveres de se dar seriam neutralizados pela inércia, per- pouco, para agarrá-lo e atirá-lo ao lodo de todos.
der-se-iam no mar de indiferença que é o mundo. No entanto era preciso decidir. Se não queria se tornar um
Encontrava-se amedrontado ante o instinto dominante de se egoísta e um solitário, o contato social com tal mundo não po-
deixar destruir passivamente por culpa alheia. O ter se abaixado dia senão assumir a forma de sacrifício. As virtudes, postas em
até ao indivíduo dava-lhe a sensação de sufocação espiritual. Os contato com uma realidade invertida, ficam amestradas na arte
inferiores agarram-se desesperadamente, sugam incontidamente da astúcia e da mentira. Já não é necessário oprimir e sufocar,
o melhor do espírito e o fazem sem remorsos, sem culpa, porque mas compreender e educar. Que desastroso resultado chegar,
não compreendem e trazem tudo até ao próprio nível, destruin- assim, ao oposto do verdadeiro alvo! A realidade não foi do-
do, demolindo e matando com a inocência da inconsciência. brada, mas sim obrigada a deixar-se contorcer. Na verdade, so-
Como alcançar certas distâncias instintivas sem se mutilar a si bre a Terra não aparece senão uma triste deformação do céu. A
próprio? Como conseguir se tornar rebanho, mesmo que para o verdade torna-se, então, uma luzinha ainda não descoberta, e o
bem do rebanho? Como conseguir fazer-se compreender e não ideal, em vez de ser modelo, é apenas uma zombaria. E, então,
ser repudiado, se tudo em si mesmo, o próprio modo de compre- os princípios são utilizados como instrumentos de luta, de ata-
ender e agir, visto do plano da normalidade, aparece tão longín- que e defesa, a serviço da realidade biológica.
quo e inaceitável? Como resistir com a regra divina, que é dar Surgem então hábeis formas para salvar as aparências! Mas
sempre e pedir nunca, sobre a Terra, onde a regra é roubar sem- que discurso diferente se faz intimamente, na consciência! Co-
pre e dar nunca? Como difundir justiça num mundo onde o ho- mo tudo parece belo por fora, ótimo, irrepreensível, honesto! E
mem não se lembra dela senão quando se trata de satisfazer o quanta arte para escapar à ameaça contínua da malignidade do
próprio egoísmo e as próprias vantagens? Como resistir se, en- próximo, sempre alerta para surpreender, feliz quando pode
quanto ele se esgotava de trabalho espiritual, os outros procura- agredir e demolir, especialmente quando pode fazê-lo sem riso,
vam roubar-lhe todos os recursos materiais e lhe pediam auxílio, refugiando-se sob o estandarte da virtude! E, assim, o ideal, os
espremendo-o até à exaustão e à miséria? E estavam prontos a princípios mais elevados, tornam-se não só um refúgio de inep-
tomar-lhe tudo, rindo de seus sonhos, explorando-o em tudo tos, como vemos, mas também um precioso manto de proteção
quanto lhes pudesse servir! Como resistir com o método do al- para os parasitas, os ladrões da vitória humana, não lealmente
truísmo num mundo de egoísmo? Como afirmar onde tudo é ne- ganha pela força, mas surrupiada pela astúcia.
gado? Como conseguir viver assim em terra, como uma planta E o respeitável homem deixa o seu castelo bem defendido e
cujas folhas estão soterradas e as raízes fora do solo? Como so- fortificado. Ele vem armado de toda a astúcia, sorridente, cortês,
breviver como homem do dever no mundo dos direitos? Sobre a limpo, impecável, autoritário, fazendo-se idealista e filantropo.
Terra exalta-se o dever dos outros porque isso convém à própria Quem acredita nele? Ninguém, porque o jogo é igual para todos.
vantagem e aos próprios direitos; sustentam-se as virtudes quan- Quem não sabe que a mentira é o método da Terra? Todos fin-
do praticadas pelos outros; encoraja-se a obediência por ser ela a gem crer, porque assim está tacitamente convencionado. ―Por
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 63
conveniência‖, dizem. Que deliciosa troca de palavras corteses, tanta malvadez e injustiça, tem necessidade e ânsia de bondade e
de respeitosos obséquios, de altissonantes títulos, de protestos de de justiça! É como se não se conseguisse nada de belo senão no
estima e generosidade fraternal! Todos exultam em fazer bela sonho do ideal, irrealizável, mas ao menos não tão sufocante. A
figura, enquanto cada um calcula: ―Quanto me poderá render es- onda do mal em que todos submergem gera em nós uma reação
te homem?‖, porque, de qualquer forma, tudo deve render algu- desesperada para o bem. Há no mundo tal miséria gerada pelo
ma coisa. E, quanto mais importante é o outro (o resto pouco abuso, pela traição, pela injustiça, que a fuga para o ideal é irre-
importa), mais profundas são as curvaturas, mais apaixonada a sistível, embora se saiba que ele é impossível aqui. Proclama-se
simpatia e mais ardente a sinceridade fingida da palavra. E, en- o seu absurdo e a sua incoerência com fatos, repetindo-se: ―Sede
quanto em público se elevam altares aos políticos e religiosos, fortes, para vencer‖. E já não há mais repouso. Invoca-se e pro-
em privado se incensa o deus-poder-força-dinheiro. Quem não cura-se algo diferente deste inferno humano, mesmo que seja o
for vencedor nesta base não receberá senão escassas palavras de impossível, qualquer coisa a qualquer preço por uma hora de
compaixão, devidas por conveniência, e será julgado imbecil. paz. Há um processo de saturação no qual até a Terra se cansa
Parece que todos sabem quanto a honestidade e os princípios de sua própria lei e se rebela, ousando arriscar-se em formas de
devem ser louvados, contemplados, admirados, invocados mas vida mais evoluídas. E, então, a Terra odeia o seu ódio, revolta-
abandonados. Sem dúvida, o homem honesto causa piedade, se contra a sua rebelião, renega-se a si mesma e decide-se a en-
como se fosse um anormal, e a honestidade é considerada doen- frentar o esforço necessário para mudar e obedecer o instinto de
ça da consciência, que lhe paralisa os movimentos. O julgamen- subir. Então, o homem da terceira lei é chamado a cumprir a sua
to é este: ―Ele não sabe fazer, é honesto‖. E, depois de ser utili- missão, já que a lei da vida não é ódio, mas amor; não mentira,
zado e explorado, não tem mais valor. Os círculos sociais se mas verdade; não o mal, mas o bem.
apressam em fechar-se, isolando-o. ―Grandes filósofos são os É necessário que o homem se canse de sua animalidade,
homens que suportam e consolam a desgraça alheia. E, se creem considere insuportável o peso das leis biológicas e se recuse a
que o ideal poderá salvá-los, pior para eles e para todos os ingê- obedecer-lhe, iniciando em massa a obra de elevação dos pio-
nuos, que tarde se recordam de que Deus está longe e a luta e a neiros. A lei ascensional da vida é uma, igual para todos, e fa-
necessidade estão próximas; que Deus está no céu sentado no talmente, uns após outros, todos sofrerão o seu impacto. A ex-
trono de glória, do qual a sua Divina Providência não se apressa periência espiritual exposta neste livro, cedo ou tarde e de vá-
a descer, porque lá em cima tudo é eterno e o tempo nunca falta, rias formas, será sentida por todos. E isso não pode ser um ana-
enquanto aqui embaixo se pode facilmente morrer‖. cronismo senão relativamente.
Em tal mundo era preciso descer, dar-se e sacrificar-se pelo Muitos, muitos outros deverão passar por essas náuseas e
bem de tais seres, porque, apesar de tudo, o inflexível Evangelho por essas reações. Dia virá em que a mentira, levada às suas úl-
repetia: ―Ama o teu próximo‖. Em que medida? ―Como a ti timas consequências, colocada diante de uma sensibilidade ner-
mesmo‖. Medida máxima, cuja unidade é tomada no egoísmo, vosa e normal sempre mais aguda, tornará insuportável e im-
mais limitado no homem da primeira lei – egoísmo que se trans- possível a convivência social.
porta inteiro até ao nível da terceira lei, exigindo a mesma potên- A solução não estará na volta ao passado, porque é mais difí-
cia e valor. Aquela ordem nos diz que o mais completo egoísmo cil involuir que evoluir. Será preciso enfrentar problemas novos
que o homem conhece deve se dilatar e explodir no supremo al- com nova consciência e nova responsabilidade. Será preciso que
truísmo sem nada perder de sua força. Esta foi a última ordem de o desentendimento aumente, para que o homem tenha a coragem
Cristo depois da última ceia: ―Dou-vos um mandamento novo: de realizar o esforço mental de enfrentá-lo, ação indispensável
amai-vos reciprocamente. Amai-vos uns aos outros. Amai-vos para progredir. É necessário que o homem, sufocado pela náusea
como eu vos amo, é o meu mandamento. Assim todos saberão de sua própria baixeza, chegue ao mais completo desprezo pelo
que vós sois meus discípulos‖. Portanto não há outro caminho seu modo de viver. É necessário que o atrito entre as duas vidas
para os que desejam ser realmente cristãos, para os que não que- contrárias, a interna e a externa – entre o que é e o que deveria
rem renegar e trair o supremo e o mais profundo desejo de Cristo. ser – leve a um tal cansaço de viver, a um tal desprezo por nós
mesmos, que fiquemos reduzidos à última miséria espiritual.
XXVII. ASCENÇÕES HUMANAS É verdade que à vacuidade das teorias que não dão solução
completa, o homem tem respondido com a indiferença. Mas já
Aquele era o mundo a que cumpria descer; aqueles os traba- vimos que o suicídio espiritual não é tolerado pelas leis da vida,
lhos que o esperavam. Já não se tratava de colocar, mas sim de que contra isso se revoltam mais energicamente do que contra o
resolver a questão do Evangelho antibiológico, de conciliá-lo suicídio físico. O mundo reagirá como tem reagido o nosso per-
praticamente com a vida. Mas havia também o reverso da me- sonagem. Pois que o espírito existe mesmo nos que o negam, e
dalha, outro lado onde conseguir ajuda. Todo este sistema pesa não se vive de nada, no vácuo, na animalidade. Um dia com-
como uma condenação; o mundo está cansado de mentir, de su- preenderão que o mundo é verdadeiramente o que foi chamado
portar o peso desta desconfiança; procura compreender e luta (embora hoje pareça estranho): o inferno terrestre.
por libertar-se dela, afrontando fadigas, riscos e revoluções. Já Sem dúvida, o mundo está sempre amadurecendo. A maio-
começa a pesar demais o jogo da astúcia e, se fosse possível jo- ria, se não conquistou ainda a plena madureza do adulto, certa-
gar as cartas da vida a jogo aberto, mais fraternalmente, mais mente já perdeu a ingenuidade da criança. Mas hoje há necessi-
evangelicamente – que grande alívio seria para todos! dade de substância, de verdade sincera. Os velhos truques já
Apesar de tudo, o mundo possui o vago e incerto instinto das não produzem efeito. O homem sabe o que há atrás dos velhos
coisas superiores; nascido no fundo da alma, há o sentido do cenários. É necessário uma verdade clara, honesta, vivida. O
bem. Isso sugere uma íntima insatisfação, um desajuste espiritu- homem quer compreender a fundo antes de aderir; sabe que seu
al que o estimula a melhorar-se. O mundo nada mais pode obter espírito é livre, e nenhuma vontade poderá dobrá-lo. Já não es-
da mentira, da luta, da força, da destruição, de tão fatigante sis- tamos nos tempos em que se aceitava de olhos fechados o nar-
tema de vida sem repouso, de engrenagem tão pouco ágil, que, cótico do ideal, administrado para tranquilizar os espíritos, em
para funcionar, exige o consumo de tamanhas quantidades de que os pobres, os vencidos, os deserdados se contentavam com
energia. No fundo, o mundo detesta a horrenda realidade bioló- essas consolações destinadas a disfarçar o desespero da pobreza
gica em que vive, a realidade do ―Homo homini lupus‖17. Entre e da renúncia com sonhos místicos de longínqua e hipotética
realização. O homem de hoje conquistou uma forma mental crí-
17
―O homem é o lobo do próprio homem‖. (N. do T.) tica e positiva, não aceita as verdades do céu se não estiverem
64 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
claramente ambientadas e justificadas ante as verdades da Ter- constante pressão – é pensamento, é vontade, é ação. Quer rea-
ra. Não se trata de mudar a verdade, mas a forma mental. Não lizar-se, e a humanidade hoje está numa grande curva de sua
basta mudar as roupagens, é preciso mudar de vida. Este livro é história, em que todos os homens da 3 a lei estão mobilizados,
universal; não está fechado dentro de um determinado recinto porque representam o princípio ativo do espírito, para fornecer
humano. Não se dirige a nenhuma categoria humana em parti- a semente e fecundar o ―húmus‖ do povo. As células nervosas e
cular, mas a todos os que se sentem em contato com estes as- cerebrais do organismo humanidade devem funcionar plena-
suntos. Já dissemos que as formais categorias humanas não têm mente. Não é lícito permanecer adormecido nas velhas fórmu-
aqui nenhuma importância. Este livro não julga em particular, las, seja qual for o campo. Refregas violentas convulsionam o
mas deixa a cada um o julgamento de si próprio. exterior sem alcançar o fervor das maturações interiores. O
As verdades humanas são de fato divididas e rivais, mas tra- mundo tem que chegar à fase do espírito. A sociedade caminha
ta-se de uma questão de forma. É preciso superá-la e ir direto à sempre do primitivo estado caótico para o estado orgânico, e is-
substância. No fundo da alma humana há sempre um instintivo e to impõe a necessidade de confraternização, o que significa o
sincero sentido do verdadeiro, em que Deus fala e que ninguém início da aplicação do Evangelho. A luta não pode cessar, mas a
jamais poderá fazer calar. Mesmo contra a nossa vontade, é um sociedade encaminha-se para a organização e a elevação quali-
julgamento espontâneo e divino, irresistível e insuprimível, com tativa da luta, que será conduzida mais organicamente e inteli-
o qual a consciência humana exprime o pensamento de Deus. gentemente, para finalidades mais elevadas.
É preciso apelar para o sentido com que as almas se veem Esta organização transforma, em parte, a lei da luta em lei
mutuamente, se compreendem, se julgam; é preciso apelar para de solidariedade. A estrutura celular dos organismos, prepara-
esta simples e sadia intuição, que é a mais honesta e convincen- da tanto tempo antes, nos oferece o exemplo que encontramos
te medida das coisas, sabedoria natural e divina, que todos tra- em forma já completa. Também isto é um início de fraternida-
zemos em nós, sem complicações eruditas de estudo. A consci- de, um pouco de céu que alcança a Terra, aqui descendo e se
ência compreende e se deixa persuadir sem difíceis palavras, fixando. O espírito humano se encontra sempre mais a contra-
por meio das mais simples expressões, quando atrás destas, gosto na ferocidade de formas da vida remanescente do passa-
além de haver a convicção de quem prega, há também o fato do, e a casca, sob a pressão interior, terá que rebentar. É claro
real e concreto do exemplo, porque este sim, realmente, persu- que a velha realidade biológica é resistente, mas aquele desa-
ade a todos, mesmo sem saber falar. Os recursos de oratória dos juste faz nascer as tentativas que se destinam a se desenvolver
grandes oradores são vaidade do mundo, são ofensa ao sentido e se fixar na raça. No fundo, o homem é sempre uma fera, con-
do bem e do verdadeiro; a pretensão de convencer apenas pela tudo quão sedento é de progresso!
força da lógica é uma tentativa vã, porque o espírito é livre. A atual crise do mundo se deve ao contraste entre um pas-
Impor-se pela força ou por via racional é tentativa de violentar sado que não quer morrer e um futuro que não tem ainda força
a consciência; é um atentado ao qual ela tem o dever de resistir, para nascer. Mas a humanidade habitua-se cada vez mais à
como realmente resiste por imposição do instinto, para auscul- marcha que leva da desordem para a ordem e se preocupa com
tar em si mesma, entre a prepotente palavra do homem, a es- a realização da justiça social, como já o predissera o Evange-
pontânea palavra de Deus. lho. A lei do progresso impõe fatalmente, apesar de todas as re-
Se queremos que o céu desça à Terra e o Evangelho não sistências, o caminho que vai do egoísmo ao altruísmo, do se-
permaneça um absurdo antibiológico; se desejamos que o pro- paratismo à solidariedade, da rivalidade à fraternidade, da men-
gresso se cumpra e a evolução amadureça os povos (não impor- tira à verdade, da barbárie à civilização.
ta a terminologia com que se exprime o fenômeno), é necessá- Esta é a lei divina. Ao esforço do homem está confiada a
rio seguir a lei à qual se submetia agora o nosso personagem, sua realização sobre a Terra para se alcançar o reino do céu. No
cuja história não foi narrada aqui para a vã curiosidade dos lei- plano da criação, Deus deu ao homem esse particular encargo.
tores ou para alegria literária do escritor. Entre os limites, o homem é o operário, o executor dos planos
Enquanto sobre a Terra se continuar a agir segundo as leis divinos. A criação é contínua, no futuro como no passado, cria-
da Terra, não importa que ideais se professem, com que luxo ção que é evolução, ou seja, manifestação progressiva da divin-
de erudição se defendam e com que coação de raciocínio se im- dade. Assim, o homem é o verdadeiro filho do Pai, colaborador
ponham; enquanto não se começar a viver, aqui, segundo as leis do divino plano da criação. O esforço é grande, mas também o
do céu, este não poderá jamais descer à Terra, e o reino dos resultado será grande. É como se Deus tivesse dito ao homem:
céus, de que se deu notícia e exemplo, mas que deverá ser cons- ―Vai e trabalha este campo do universo. Ele já contém tudo:
truído pelo homem, não virá nunca. força, sementes, leis, pensamento e energia. Entrego-te. Trans-
A esmola piedosa que deixa um rico a grande distância do forma o caos em ordem – isto significa reencontrar Deus. Provê
pobre não resolve nenhum problema, não anula nenhuma dis- para ti mesmo; multiplica-te, transforma essa desordem de ele-
tância. Os que sabem e podem não esperam reformas, exemplos, mentos desencadeados num mundo civil onde tu sejas o chefe.
julgamentos e deveres dos outros, mas começam por si e se O mundo será como tu o quiseres fazer, como quiseres ser. Se-
põem a caminho, fazendo em silêncio a pregação do exemplo. rás livre. Quem semear, colherá. Assim realizarás, com a tua
Doutos e ignorantes – todos compreendem a realidade vivi- obra, a manifestação de Deus, conquistarás o caminho da re-
da, a muda eloquência do exemplo, a força persuasiva dos fa- denção e reencontrarás Deus. Reconstrói. Esta será a tua reden-
tos. A verdadeira verdade parece que refuga a sapiência erudita ção. Redime-te através de teu trabalho e da tua dor. Constrói o
e prefere se revelar, sem complicações supérfluas, às almas vir- teu reino, e ele será teu, e serás rei‖.
gens e simples. Há no homem comum, frequentemente, um Então, depois de tanto trabalho, ao fim de longo caminho, a
sentido instintivo profundo, que parece atingir, quem sabe co- visão radiosa de um futuro longínquo e melhor apareceu aos
mo, as eternas fontes da vida, um sentido que conhece por in- olhos do nosso personagem. Era o prêmio depois do trabalho, a
tuição e por síntese e sabe julgar, sobretudo quando ele se en- alegria depois da dor, o reino dos céus depois da cruz. E ele
contra ante a habitual realidade, que é feita de ação. compreendeu que o mundo não era mais um inferno de onde se
O futuro está no povo, nesse grande reservatório de germes, deve fugir, mas um lugar de criação, onde cada rastro fica im-
de onde tudo emerge. Se o povo é o receptáculo de todas as mi- presso e cada esforço frutifica levando a Deus. A nossa cons-
sérias, é também a reserva de todas as ascensões. Se é o fundo trução não pertence ao passado, mas ao futuro, e é coisa que
ao qual tudo desce, é também o húmus em que tudo se elabora, temos de realizar sem adormecer sobre as recordações, espe-
onde tudo germina e revive. A evolução é uma lei fatal, em rando o sinal e o auxílio do alto. Só os que subiram a escada da
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 65
evolução e ajudaram os outros a subir não terão vivido em vão. XXVIII. ÚLTIMOS ACORDES
Nenhum pensamento, nenhum ato nosso se perde. Feliz quem
semeia o bem e desgraçado quem semeia o mal. E os que não A vida é uma obra na qual o fruto dos nossos trabalhos es-
tiverem semeado não colherão. O jogo curto da Terra logo tá humanamente destruído. Onde se construiria, então, com
termina, e resta o jogo a longo prazo do céu. Cada semente, estabilidade? No espírito. A vida é, como a criação, uma afir-
segundo a sua natureza, dará o seu fruto para o bem ou para o mação que, com a evolução, sempre criadora, se faz sempre
mal. Será o nosso fruto, o fruto de nossos irmãos. Só o míope, mais clara e mais forte.
o que vê a pequena distância da sua pequena vida, pode rir dos O nosso personagem chegava, já agora, ao outono da vida e
modelos ideais com que o mundo antecipa e idealiza suas rea- não enfrentava a velhice e a morte com a amarga desilusão de
lizações futuras. No entanto esta solidariedade entre as gera- ter perdido o seu tempo, após as instáveis construções do mun-
ções, esta necessidade de coordenação e organização, indis- do. Vários anos se passaram desde a sua reação e ressurreição,
pensáveis para a realização da grande obra coletiva, esta utili- durante os quais ele aplicara o preceito evangélico ―Ama o teu
dade na cooperação entre os especializados, segundo suas ca- próximo‖, prodigalizando-se por todos os meios, superando to-
pacidades, em suma, esta concepção antiegoísta e antissepara- dos os obstáculos, consumindo a sua existência para o bem dos
tista, mais fraterna da vida, impõe-se também como problema outros. Assim, ele cumpria inteiramente a sua fadigosa missão e
utilitário ao homem de bom senso e a todos como coisa mais coroava o edifício espiritual de sua vida, derramando sobre os
elevada, mais profícua, mais digna. outros o fruto de sua própria experiência.
Dentro de prazos mais longos, em uma humanidade mais Os impulsos de seu destino estavam, assim, saciados e tran-
orgânica, capaz de compreendê-lo e realizá-lo, o ideal valori- quilos pela sua realização. O seu destino cumpria-se. Ele o
zar-se-á, perdendo o caráter utópico e tornando-se útil, prático e compreendera e o seguira. Percorrera o seu Calvário e dera sua
necessário. É fatal que o homem, evoluindo, alcance a consci- pequena mas obrigatória contribuição para o bem dos homens.
ência, que hoje nem sempre tem, desta mais vasta utilidade. En- O espírito vencera, mas seu instrumento físico já não reagia, es-
tão ele trabalhará, lutará e se sacrificará por isso, assim como tava abatido, exausto. Mas, agora, ele já podia partir. Tinha esse
antes lutava por um pequeno egoísmo pessoal. O homem do direito, depois de haver carregado a sua cruz e cumprido a sua
ideal, hoje deslocado no mundo, injuriado e condenado, será missão. Antes não o poderia ter feito. Não se tratava da fuga
cada vez mais normal, e um povo composto de homens consci- antecipada para fugir às provas, mas era a paz da alma que se
entes poderá realizar obra de gigantes. Eles formarão um grupo coloca nas mãos de Deus depois de ter cumprido sua obrigação.
orgânico que se imporá ao mundo como força diretriz, pelo di- A sua vida dera seu rendimento. As adversidades, em lugar de
reito que dá a maturidade e a capacidade de saber cumprir a serem evitadas como obstáculos, tinham sido compreendidas e
missão de civilidade. Aos outros, indivíduos ou povos, que con- guiadas de modo a ajudar. Ele falara, trabalhara e agora se reti-
rava em silêncio para ceder o passo aos novos rebentos, a esta
tinuam raciocinando na medida do jogo curto do egoísmo e da
maré de humanidade que tem sede e dever de viver no seu reino
mentira e que têm gozado depressa a pobre colheita imediata,
terrestre. Ele, que vivera no espírito, podia agora ressuscitar no
desprezando e condenando os semeadores dos ideais como uto-
outro mundo, além da morte.
pistas, não poderá restar senão a condição de servos, aos quais
Que imensa fila de gerações o precedera e quantas o segui-
caberá o prêmio ou a punição, onde se conclui a lei da seleção.
riam! Quantas lutas, que infinitas dores antes da sua, para pre-
O nosso personagem concebera o idílico ideal do céu, mas
parar as conquistas espirituais e materiais de que ele se benefi-
não o havia colocado ―depois‖ ante a férrea realidade da vida
ciara! Organicamente, intelectualmente, moralmente, no bem e
humana. Agora, sua concepção era completa.
no mal, ele era o resultado de um interminável caminho percor-
O leitor, embora céptico, que decerto riu primeiro, encon-
rido, do qual seguira apenas um último trecho. E consignava
tra-se agora diante de uma solidez toda biológica, de que lhe agora aos outros o patrimônio comum de miséria e de força,
será difícil fugir, pois que nela está a sua própria realidade, como dos outros o recebera, com o imperceptível acréscimo da
como a realidade de todos; o seu caminho, como o caminho de pequena semente deposta pelo seu cansaço de uma vida – uma
todos. E terá que admitir que não se vive só de pão, que a vida gota no oceano, um átomo no infinito. No entanto, uma gota e
coletiva tem gravíssimos interesses que não se exaurem no um átomo são mundos.
campo material e que ninguém está mais insatisfeito que os No fundo de sua infinita pequenez, sentia a infinita grande-
homens ricos e os povos ricos. Terá que admitir que a progres- za do indestrutível, a beleza da confraternização entre as gera-
siva complexidade da vida coletiva precisa, ao lado das massas ções, a sabedoria do plano orgânico da evolução. E se abando-
de nível medíocre, de elementos superiores que não possam ser nava à lei de Deus, sorrindo do providencial pequeno egoísmo
aviltados na normalidade e enquadrados no rebanho, parali- posto em defesa de cada um para que o todo se cumpra, sorrin-
sando as funções fundamentais da própria vida, com danos pa- do da aparente dispersão do seu pequeno eu, ele que se sentia
ra a vida de todos. Isso seria para eles o mesmo que paralisar, saciado de sua ressurreição no todo e de sua indestrutibilidade
para a maioria, as possibilidades de nutrição e reprodução. Não numa tão vasta vida coletiva.
compreender, importunar, condenar, explorar aqueles seres é Retraía-se, agora, em silêncio para contemplar o trabalho re-
violar e mutilar as leis da natureza, que fornecem a cada orga- alizado. Como os outros, envelhecendo se comprazem na con-
nismo individual ou coletivo suas células nervosas e cerebrais, templação dos filhos que os circulam, das terras, riquezas, poder
sem as quais não há diretriz nem evolução tanto no indivíduo e glória conquistadas com seu trabalho – assim ele se satisfazia
como nos povos. Enquanto se condena o tipo superior, a seu contemplando sua obra literária, nascida da sua mente e do seu
tempo todos o alcançarão. Uma sociedade consciente deverá, coração, construída com tanto amor e trabalho. Como os outros,
antes de tudo, ser capaz de reconhecer estes seres em meio à dera o seu fruto, embora diferente. Como os outros deixavam fi-
multidão e deverá ajudá-los, tanto mais que eles não desejam lhos e obras, ele deixava o seu pensamento e o seu exemplo, ati-
senão poder dar os frutos que valorizam toda a sua vida. rados sobre a terra como semente, para que se multiplicasse no
E se a atual sociedade não é capaz de fazer isto, porque as coração dos homens. Se, na primeira parte de sua existência, en-
vantagens são para os mais espertos e rapaces, que as sabem frentara o problema e carregara a cruz da própria vida, só na se-
conquistar, tenha ao menos o pudor de se calar quando se lem- gunda parte contemplara a obra, enfrentando o problema do bem
brar, tarde demais, do erro cometido e o queira reparar; tenha a dos outros, ajudando-os a carregar a cruz de suas vidas. O traba-
coerência de deixar em silêncio, também depois da morte, o lhador fica satisfeito com a contemplação da própria obra, re-
que sempre foi desprezado em vida. corda a fadiga suportada, as dificuldades superadas e, só agora,
66 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
contemplando o trabalho, tem dele inteira consciência. Só agora, trolando o seu desenvolvimento. Chegando à última fase, esta-
também, ele compreendia a lógica de seu destino e a justiça das va diante do resultado final: para ele, a significação de sua vida,
provas humanas; compreendia que só quem cumpriu o seu dever e, para o leitor, talvez a conclusão do livro. Este resultado diz
pode apresentar-se de cabeça erguida diante de Deus na hora da que quem vence na vida não são as forças que negam e des-
morte. O que está feito será creditado. troem, mas as que afirmam e constroem. A luta será longa e ter-
De outro lado, esquecendo-se de si mesmo e do seu trabalho rível, a fadiga enorme, os assaltos atrozes, os obstáculos tena-
passado e olhando para frente, aparecia-lhe cada vez mais clara a zes – mas, no fim, o bem e a luz triunfarão, porque o homem é
radiosa visão do futuro do mundo, que viveria em maiores medi- feito para o bem e para a luz, e não para o mal e para as trevas,
das, pela mesma lei, a mesma pequena experiência vivida por ele. que ele sente, com inflexível instinto, como sendo a sua infeli-
Quantas lutas, trabalhos e perigos desfeitos! Mas a vitória final cidade e a sua mais triste condenação.
estava garantida. Via as forças em ação no destino do mundo, A moral de sua vida, como a deste livro, é que o mal está
observava a direção dos impulsos e sabia que as sementes, apesar contido entre os limites do bem, somente permitido para os fins
das dificuldades, deviam amadurecer. Via esplender no alto o do bem, e que, diante do verdadeiro Deus do bem, não há um
triunfo do espírito, via realizada a utopia, compreendendo que o antideus do mal. O dualismo é apenas humano, transitório e
Evangelho não o enganara e não enganava o mundo e que o reino aparente; é um contraste necessário para permitir o movimento
dos céus anunciado por Cristo desceria verdadeiramente à Terra. ascensional. Mas, no centro, na substância, reina um único
O futuro biológico dos povos não está apenas no progresso princípio, e seria absurdo que ele abrigasse o germe de sua pró-
econômico, social, científico, cultural, mas sobretudo na ascen- pria destruição. Um Deus que tem de descer para lutar frente a
são espiritual e moral, que é a base de todas as outras ascensões, frente com um antideus já não é Deus, mas sim uma gradação
sem a qual essas não podem suster-se. Via, agora, frutificar o de potências diretoras, e isto seria politeísmo.
sangue dos mártires, o tormento dos incompreendidos, o cansa- O bem vence. O bem é o padrão. Há, sem dúvida, no univer-
ço dos solitários repudiados e condenados. Via os ideais, depois so, uma grande lei de dualidade, segundo a qual tudo o que existe
de tanta luta e tantas quedas, realizados numa humanidade me- é composto de duas partes que se completam, dois impulsos con-
lhor, em que o inferno terrestre se transformara num paraíso ter- trários que se equilibram. Cada unidade é dada por este par de
restre. Então, também para o homem, o trabalho estaria termina- forças, que é um contraste e um acordo e que está na base da
do, e ele poderia se comprazer na contemplação de sua obra e, existência. Mas, se cada coisa e cada conceito têm o seu oposto,
junto à conclusão de seu destino humano, entregá-la nas mãos os dois termos não têm a mesma força. O termo afirmativo está
de Deus, dizendo: ―Eis, Senhor. Obedeci às tuas ordens, o teu na direção da evolução e da vida, o termo negativo está no senti-
pensamento está realizado, a obra que me confiaste está pronta. do contrário. O primeiro segue a corrente, o segundo é resistente.
O teu operário, ao fim de sua jornada no mundo, a Ti se entrega. Não obstante este fundamental antagonismo, necessário para o
O caos se tornou ordem. Carreguei tanto a tua cruz, que a dor se trabalho do progresso, quem está destinado a vencer, dada a
transformou em alegria. Tanto errei, que a ignorância se trans- construção orgânica do universo, não é o mal, mas o bem; não as
formou em sabedoria. Tantas vezes caí, que o mal se transfor- trevas, mas a luz; não a dor, mas a alegria; não é o não, negador e
mou em bem. Tanto caminhei, que cheguei ao fim e te encon- destruidor de Satanás, mas é o sim, a afirmação construtora e cri-
trei. Retomei, com meu trabalho, o caminho da redenção. Agora, adora de Deus. Esta é a conclusão da vida e do livro. Aqueles que
o antagonismo entre a terra e o céu já não terá sentido. Cairá, e concluíram ao contrário pertencem às forças negativas, satânicas,
ambos se confundirão num único abraço, para que a redenção se de destruição. Este livro é construtivo. Não demole negando, mas
complete. Terminará a grande ilusão do mundo. A figura de cria afirmando. Está do lado de Deus. De tanta dor nasce para o
Cristo brilhará na glória dos céus, triunfante e vitoriosa‖. nosso homem, para si e para o mundo, o mais radioso otimismo.
Neste triunfo longínquo, o nosso personagem via reviver o Estas afirmações, feitas com tanta segurança e firmeza, baseadas
seu sacrifício, sua pequena contribuição, dada com tanta fé, na experiência, servem de conforto aos que lutam e sofrem pelo
com tanta paixão, com tanto trabalho e sem restrições. Nesta bem. Se outras vidas e outros livros querem concluir em contrá-
visão, ele podia morrer satisfeito, agora que seu caminho che- rio, isto quer dizer que o homem tem a liberdade de fechar os
gava ao fim. Via tudo reviver ao longe, no tempo, nas gerações olhos para não ver e de se mutilar e suicidar para não progredir.
futuras. Seu egoísmo dilatado eclodira no altruísmo e não era Mas quem nega destrói primeiramente a si mesmo, dirige-se à
aquela utopia que o mundo julgava. Em verdade, ele renascia e morte, e não à vida. E as trevas são terríveis, e a descida é pavo-
revivia nos outros. O altruísmo não fora vão, nem mesmo para rosa para o ser que foi feito para subir. Os que têm olhos amam a
ele. Haver-se dado não fora perda, mas lucro. O maior rendi- luz, e quem tem pernas precisa caminhar. A evolução dirige-se
mento lhe vinha justamente da segunda parte de sua vida, na para a alegria e a vida; a involução se dirige à dor e à morte.
qual se esquecera de si mesmo para se ocupar apenas do bem A caminhada humana do nosso personagem chegava ao fim.
alheio. No triunfo das gerações futuras, ele revalorizava o seu Ele a compreendera e vivera em plena consciência, como indi-
trabalho e se reencontrava. víduo por si e depois pela coletividade. Compreendera o mo-
Compreendia agora que o amor, e não o ódio; o bem, e não mento histórico em que vivera e procurara integrar-se plena-
o mal, são a verdadeira lei da vida, tão fundamente potente e ir- mente nele. Harmonizara-se não só com as forças do seu desti-
resistível, que supera todos os obstáculos. Compreendia que no, mas também com as que operam o destino do mundo. Con-
aquela lei é a espinha dorsal do organismo do mundo, a estrada siderava os homens que formam os povos como a sutil areia das
real sobre a qual caminha e avança a evolução. Compreendia a praias no oceano, sobre as quais se abatem as grandes ondas da
futilidade final do contínuo esforço das trevas para vencer a luz. história. E essa areia recebe e registra a marca dos grandes gol-
Compreendia que os assaltos do mal e a queda do homem não pes dos gênios, das revoluções, das reformas sociais. A marca
eram senão pequenos episódios ante uma ordem maior que di- se imprime, e a resposta nasce na alma do homem comum, mas
zia: ―Progresso e amor‖. Compreendia que, não obstante as re- a tal ponto multiplicada no número, que se torna tão grande
sistências e os sofrimentos, nesta ordem estava a vitória final. como o oceano. A alma é memória que conserva, acumula e
Sua vida terminara como se termina um processo experi- elabora. É a grande reserva biológica da qual tudo nasce e à
mental, e ele tivera assim lúcida consciência de sua significa- qual tudo torna e se imprime. Tudo o que se vive permanece
ção interior. Seguira o seu caminho pelas imponderáveis estra- neste imenso reservatório de registração, de experiência, de sa-
das do espírito e com os métodos objetivos e as diretrizes da ci- bedoria e de valores biológicos, como uma síntese constante de
ência positiva. Vivera o fenômeno do seu destino sempre con- vida, que depois renasce a cada passo, na vida e para a vida.
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 67
Quem nela atirar uma semente, reviverá com ela. O passado é lho e de sofrimento, num martírio lento e profundo, vivido em
uma força criada por nós, que ressurge sempre, indestrutível no plena consciência, sentido e assimilado a cada minuto. Dera em
destino individual como no coletivo. Bem e mal, vitória e derro- holocausto tudo o que podia dar. Mais que o sacrifício da vida,
ta, mérito e culpa – tudo se escreve no sangue dos povos e forma ofereceu consumir-se gota a gota para que sua existência não
o patrimônio da própria riqueza ou o fardo dos próprios débitos. fosse uma fácil fuga indolor e sem resultados para os outros,
Tudo volta a nós, como uma onda propícia ou inimiga, e temos mas fosse, para si e para os demais, obra tenaz de reconstrução
que a suportar e esgotar. O nosso passado nos segue e nos perse- espiritual. Superada a sensualidade, o amor era nele sacrifício e
gue, e não haverá paz senão quando vier a exaustão. É este fatal viril força criadora. Para satisfação de sua consciência, reco-
vínculo que encadeia uma à outra as gerações e liga, no indiví- nhecia ter seguido o caminho máximo entre todos os que o de-
duo, os vários momentos de sua vida. Quem no passado conce- terminismo de seu destino, dentro do vasto destino humano,
beu um ideal, seja ele homem ou povo, moveu uma força naquela poderia permitir. Mas a excessiva tensão de trabalho com a qual
direção e, cedo ou tarde, verá que ela ressurge ativa para se reali- ele, dada a sua riqueza, tinha continuado a dar-se a si mesmo,
zar, ajudando-o a elevar-se até àquele tipo. A concepção ideal é acabara por estraçalhar a resistência orgânica de sua robusta
um impulso que, uma vez excitado, tem irresistível tendência pa- constituição. Assim ele morria, talvez com alguns anos de ante-
ra se realizar. E assim, de modelo em modelo, se faz a escalada cipação, por haver pedido demais às suas forças. Morria de fa-
para a evolução. Aos povos sem ideal falta também a capacidade diga e sem riqueza, mas amado por todos e imensamente con-
de plasmar o futuro, falta o impulso do progresso, falta a linha vi- tente. Morria dizendo a Deus: ―Mais que isto não posso; mais
tal da renovação e do aperfeiçoamento. Os povos que não têm do que isto não soube fazer e não pude dar‖.
um alvo sempre mais alto para atingir, são povos incapazes de Compreendia agora que toda a sua dedicação não podia
ascender, sem futuro, destinados à desaparição. Quem se fecha, mudar o curso das coisas, precipitando o fenômeno evolutivo
morre. Onde falta o ideal à frente da vida, os povos não tem his- do mundo, nem eximir a Terra do trabalho da ascensão e das
tória e são inexoravelmente sobrepujados e submersos. sanções das leis terrestres, nem impedir que as consequências
No caso de sua vida, o nosso personagem olhava em torno. de tantas violações devessem ser inexoravelmente pagas. Dera
Via que, apesar de tudo, o mundo lutava para avançar, tentando o exemplo e o auxílio, mas não podia forçar a liberdade huma-
realizar a justiça social, em direção a um novo estado orgânico na e nem tornar gratuita a redenção. Para se redimir, também o
harmônico, moral, consciente. Era este o trabalho construtivo que mundo deveria livremente compreender por si, com trabalho,
se cumpria em sua hora histórica. A nova realidade se preparava, embora com a ajuda de Deus. No entanto aquele desprendimen-
estava iminente. Na plena consciência do momento, ele dera a to e esgotamento num trabalho para o bem dos outros; aquele
sua pequena contribuição, apesar de todas as dificuldades, lutan- constante espírito de sacrifício na sua decida; aquela renúncia
do e sofrendo na sua dura vida de trabalho. E nessa semente ele aos bens do céu para receber a cruz da Terra, não interrompera,
sobrevivia. Sua missão era, portanto, verdadeira; ele a cumprira, antes apressara a sua maturação interior, que se fazia mais pro-
e seu destino se desenvolvera logicamente, até o fim. Apesar de funda e intensa e lhe abria, com a sensibilidade sempre mais
todas as tentações, jamais renegara a Cristo, e Cristo não o traíra. clara, uma nova visão do céu. Este último trabalho fora para ele
A árdua experiência evangélica dera resultado. O bem vencera qual maceração contínua, que o deixava agora não só em pro-
contra todas as forças do mal. O ideal não fora utopia e, contra funda prostração física, mas também em exultante luminosida-
todas as negativas do mundo, permanecia. Isso dera uma grande de espiritual. Em algum pouso nos longos e verdes silêncios de
luz à sua pobre vida, transfigurando as provas e as dores, dando- sua mística Úmbria, a maturação interior parecia-lhe às vezes
lhe uma significação potente e uma altíssima finalidade. inesperada e o surpreendia como revelação. O corpo estava
Estas conclusões lhe vinham dos fatos, da realidade de uma exausto, afastava-se da vida, mas o espírito estava lépido, re-
vida que fora vivida no mundo, uma vida que conhecia bem por forçava-se, aproximava-se da vida. O seu espírito dinâmico es-
tê-la enfrentado. Seguira pelo caminho do espírito como força tava cada vez mais luminoso e vibrante. Assumia, agora, a tare-
viva e vital. E agora levava consigo o resultado moral desta gi- fa de manter aquele corpo, que sempre mais se abatia. Consu-
gantesca experiência. Individual e coletivamente, sua vida não mia-se lentamente, mas com um vivo sentimento de ressurrei-
fora vivida em vão. ção. Tão grandes eram para ele as alegrias do espírito, que es-
Percorrera corajosamente até ao fim o caminho da cruz, quecia os sofrimentos do corpo. O seu organismo, sabiamente
vencendo todos os obstáculos e todas as resistências. Compre- conduzido por um regime são e sóbrio, atravessava tranquila-
endera e vivera a fatalidade da lei biológica da cruz, sem a qual mente o ciclo da exaustão física, diminuía sempre o ritmo das
o ideal não desce à Terra. Mas tinha, depois de tanto lutar e so- trocas renovadoras, pacificava-se espontaneamente, sem abalos
frer, compreendido por fim a fatal continuação e conclusão da- e sem revoltas, rumo ao repouso final.
quela lei, vivera a fatal conclusão do ciclo que, a todos os que Não temia a irmã morte. Via em paz o seu aproximar-se len-
têm a coragem e a força de segui-lo até ao fim, impõe irresistí- to e natural. Aceitava o repouso que estava para chegar e no
vel e inexoravelmente esta conclusão: Ressurreição! qual confiava, por tê-lo merecido. Aprontara-se cedo e trabalha-
ra nas melhores horas da jornada, no viço de suas forças. Pela
XXIX. ADEUS À IRMÃ DOR tarde, o necessário repouso, esperado e agradável. Não sentiria
―Sem dor não há salvação‖ o travo das desilusões e não correria agora atrás de apressados
reparos, como aqueles que os apegados às vãs quimeras do
Passaram-se anos, e o nosso personagem prosseguiu fiel- mundo procuram fazer para remediar. Não acreditava em certas
mente o caminho traçado. Continuou corajosamente a sua luta bondades outonais, em certas tardias conversões, com as quais
para aplicar, não obstante a resistência do mundo, a lei do amor o homem pensa poder tornar-se melhor e merecer a salvação.
no reino da força. Mas isto sempre o cansava e o obrigava a re- Esta tem que ser o resultado de lenta maturação, de um cami-
pousos, pela necessidade de recuperação física e espiritual. nho que tem de ser percorrido inteiro. Não se podem aplicar, no
Tornava-se-lhe extenuante descer à atmosfera sufocante do campo das severas mas justas leis do espírito, o sistema da
mundo, que o negava, o aturdia, o despedaçava com impressões abreviação e do arrivismo, que dá resultados no mundo. O céu
baixas e choques violentos. Ao desencadear-se brutal das suas não se violenta pela força nem se conquista com a astúcia, co-
forças, aquela alma de hipersensível, cada vez mais refinada na mo se dá com as coisas da Terra. Estas brutalidades não conse-
dor, onde as menores vibrações eram como ciclones – parecia guem subir até lá em cima; permanecem em seu reino. É preci-
estar sendo esfolada viva. Morria de cansaço, exausto de traba- so ter trabalhado no tempo próprio, e vãs devem ver as tardias
68 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
invocações piedosas, pois que a lei divina é verdadeiramente se final à dor na mais completa paz – o seu quinhão. Contem-
justa. Converter-se e trabalhar no fim já é muito, mas é apenas plava a lógica do seu destino, o harmônico contraste de seus
começar; urge trabalhar e concluir. impulsos. Assimilava o seu profundo significado, agora que
Ele amava a irmã morte, depois de tanto haver amado a ir- podia ver tudo num olhar retrospectivo. Desta visão, voltava à
mã dor, que só ao fim se havia separado. Para quem tanto sofre- contemplação do funcionamento orgânico do universo; ouvia
ra, a morte era bem-vindo repouso. Para quem viveu no espírito suas sublimes harmonias; compreendia seu equilíbrio e justiça e
e aprofundou e consolidou a vida, a morte não é apenas o fim agradecia humildemente ao bom Deus o grande dom de haver
do corpo, mas é, sobretudo, a ressurreição da alma. A própria podido colaborar, embora como o último dos servos, na grande
natureza, que se aflige com o vácuo e a morte, goza tais triun- obra das ascensões humanas.
fos supremos, que só sabem reafirmar a vida onde tudo parece Ele tudo dera de si e, agora, ao finalizar a sua vida, medita-
acabado. A morte não é um fim mas um começo, é a exaustão va no maravilhoso fenômeno da transmutação da dor, na eva-
do ciclo de forças fechadas no próprio destino, é um aperto que são final à sua constrição.
se afrouxa, é a fuga da Terra e de suas aflições para o céu e a Este fenômeno – que afinal é muito simples e que o nosso
sua paz. Amava a irmã morte e esta o sobrecarregava de dádi- personagem vivia no término de sua experiência, obtendo assim
vas. Enquanto o irmão trabalho tanto lhe havia ensinado na se- sua comprovação – parece um mistério para a mente humana
vera escola da vontade e da disciplina, o sábio auxílio da irmã porque, hoje, o mundo perdeu completamente a noção do que
dor gradualmente lhe ensinara a distinguir e a desprender-se significa a dor. Ela não é, como hoje se acredita, um incidente
dos vínculos terrestres, a ponto de não temer nem sofrer agora secundário da vida, devido a um erro qualquer, do qual se deva
uma separação súbita e violenta. fugir e que, portanto, seja evitável. A dor é a chave da vida, a
Agradecia à irmã dor por ter realizado a sua maceração e, sua nota fundamental, o mais ativo agente de reações, plasma-
com isto, tê-lo preparado para a ressurreição. Acariciava-a com dora de qualidades; é a sua mais alta e fecunda escola, a indis-
o coração cheio de gratidão, porque agora compreendia a sua pensável e insubstituível mola do progresso, ou seja, a ascensão
lógica e maravilhosa função. Beijava o seu beijo amargo e sua para Deus, que é o alvo da vida.
mordida dilacerante. E agora, no fim, o amigo mais severo era Esta fuga final à dor em que culminava a vida e se comple-
o mais verdadeiro e fiel. Agora, que recolhia os frutos, podia tava a lógica do destino do nosso personagem, concorda com a
concluir experimentalmente que a sua concepção da dor, oposta fundamental lei biológica de redenção que o mundo possui,
à concepção do mundo, demonstrava-se inteiramente verdadei- mas em torno da qual gira como se girasse à volta de um misté-
ra, e ele podia cantar vitória contra o mundo. No entanto, quan- rio, sem o compreender.
to aquela dor lhe parecera dura e inimiga ao princípio! Se o seu É esse também o centro das religiões, especialmente do cris-
brutal impulso não o tivesse atirado, quisesse ou não, sobre a tianismo. É também o pináculo da arte (―Parsifal‖, de Wagner;
espinhosa estrada da ascensão humana, imprimindo em sua vi- ―Pietá‖, de Miguel Ângelo etc.) e das mais elevadas concepções
da aquele trágico tom de luta e tempestade; se a irmã dor, ami- humanas. E esta lei diz que, estando o nosso atual universo em
ga sábia e preciosa, não o tivesse arrancado de todas as posi- fase evolutiva – ou seja, de reconstrução de uma ordem perdida
ções cômodas e não o tivesse premido a reagir, lançando-se em
(queda dos anjos, precedente período involutivo 18), indo do ca-
direção ao céu; se ele não tivesse, de sua parte, com paciência e
os até Deus – a dor, sendo exatamente o agente desta constru-
grande vontade, respondido a este apelo do destino; se ele, pre-
ção e base da redenção, é com ela e por ela o conteúdo funda-
guiçosamente, tivesse abdicado do seu sagrado direito de com-
mental da nossa vida. Mesmo sem a compreender e procurando
bater e sofrer para subir – que teria sido dele agora, sem esta
inutilmente fugir dela, o mundo não faz senão aplicar essa lei
bagagem de martírio por toda uma vida, sem este terrível can-
biológica universal seguida por todos, seja qual for a sua fé re-
saço, ao qual devia toda a sua elevação?
ligiosa, filosófica ou científica.
Que vazia e triste conclusão teria seu caminho terreno se tu-
do tivesse andado bem como se deseja, sem o peso das provas e Em verdade, de acordo com as conhecidas lendas bíblicas, as
os salutares golpes da irmã dor? Agora ele a compreendia ver- quais devem ter um sentido profundo, parece que uma maravi-
dadeiramente, agradecia e amava. Isso não fora senão uma es- lhosa ordem primitiva foi uma vez tragicamente desfeita, dei-
pécie de poupança forçada que a Divina Providência lhe impu- xando o universo rolar num caos que o levou aos antípodas do
sera para que ele conquistasse a sua redenção. Fora uma espécie ser, do bem ao mal, da felicidade ao sofrimento, da luz às trevas,
de trabalho extraordinário ao lado da natural tarefa da vida, des- de Deus a Satanás. Mas as forças primordiais não foram destruí-
tinado a pagar o seguro obrigatório de sua felicidade futura. das, porque nada se pode destruir. Apenas se confundiram numa
Tudo aceitara sem se rebelar; sabendo sofrer, fora um grande horrenda desordem infernal. Não restou ao ser outro caminho
economizador e, agora, era rico em capital espiritual. Acumulara senão reconstruir tudo através de infinitas tentativas, falências e
tanto, que uma chuva de ouro lhe caía em torno. Do lado de fora dores. Isto por uma lógica, justa e exata lei de equilíbrio.
estava sempre a algazarra humana. Mas, por dentro, que festa Assim, se a espinha dorsal da vida é a evolução, esta não
perante a morte, que regozijo diante da dor, que estupendo canto pode realizar-se senão à custa de um trabalho que pertence ao
de vida! Por dentro havia a carícia e o sorriso de Deus, que ser, uma laboriosa tensão reconstrutora de felicidade na ordem,
transforma em alegria cada sofrimento. Encontrava-se na sensa- que se chama trabalho e dor, sem os quais não se pode refazer o
ção estupefaciente da transmutação da dor na alegria divina. A caminho perdido, ou se viveria inutilmente. É assim que o pro-
irmã dor, cumprira a maravilhosa tarefa de lhe plasmar a alma, e fundo conteúdo da existência, a sua substância biológica, é o de
ele, abraçando-a cheio de gratidão, dava-lhe adeus. um penoso mas frutífero esforço, justamente remunerado por
A dor o havia ajudado a demolir lenta e profundamente a conquista correspondente.
sua animalidade, que ele podia agora abandonar de modo defi- É, pois, absurdo o mundo, que não conhece as leis da vida,
nitivo, sem sofrimento. Ele não pensava em morrer como tantos crer que poderá fugir à dor pelo fácil caminho do prazer materi-
outros, olhando um corpo que era tudo para eles e agora estava alista e egoísta – que involui, desce, caminha para a desordem,
se desfazendo, mas sim em ressurgir, olhando um espírito que para a matéria, onde está justamente a sede da dor – porque a
era todo o seu ser e agora estava em plena eficiência. A sua libertação não pode ser encontrada senão na laboriosa recons-
mente, com a qual tanto trabalhara, reforçada por contínua ati- trução do progresso, no doloroso trabalho de ascese, que evolui,
vidade, permanecia límpida e ágil, porque, desde algum tempo, levando àquela ordem, harmonia, bondade, paz, união, somente
para ela se transportara o centro de sua vitalidade. E ele con-
18
templava a justiça das leis divinas, que premiam com o evadir- A Grande Síntese, Cap. XXII. (N. do A.)
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 69
na qual o atual satânico sofrimento do decaído poderá reencon- nada saber das consequências; move-se ao acaso, ignorante de
trar, redimindo-se, a suprema alegria de Deus. O homem, impe- suas relações com o funcionamento orgânico do universo. Às
lido pelo seu instinto de felicidade, atira-se ao baixo prazer epi- vezes, a má vontade soma-se à ignorância como causa de de-
curista, mas sua natureza involui e o leva para a dor. Assim o sordem, o que implica uma parada, um retrocesso, e tudo se
mundo, iludido, na verdade atira-se para a dor, permanecendo expia com o sofrimento – um mal do qual, para se livrar e res-
sob seu jugo, ao invés de se libertar dela. surgir, é preciso enfrentar novos trabalhos e novas dores. Às
Aí está o erro. O momento de felicidade dura pouco e paga- causas gerais da dor juntam-se, assim, o erro e a culpa do ho-
se caro. Isso não quer dizer que a vida não seja feita para a ale- mem, que deseja evadir-se, rebelando-se, violentando e ati-
gria, uma alegria sempre maior, mas apenas que esta tem de ser rando-se fora do caminho. Então é preciso pagar por tudo,
ganha por um trabalho proporcional. E é lógico e honesto que, pois que não se pode anular a lógica e justa lei de responsabi-
entre o homem e a felicidade que o espera, haja esta justa ne- lidade e de equilíbrio, na qual o dar e receber devem se com-
cessidade de conquistá-la. Justamente por isso, as fáceis e bai- pensar exatamente em forma de alegria e de dor própria – lei
xas alegrias que se voltam para o passado biológico, descendo estampada no instinto, que sabe que cada erro ou culpa deve
do espírito à matéria, parecem cômodas usurpações, mas, na re- ser pago. Seria preciso ser bom e consciente, saber enquadrar-
alidade, são uma traição. A justiça da Lei exige um trabalho se segundo a direção das leis da vida. Mas é justamente a
adequado para conceder a compensação merecida. Só se foge à bondade, o conhecimento e a consciência que o homem tem
dor trabalhando para evoluir para alegrias mais altas, e não de conquistar, é justamente isto que deve aprender: a não se
abandonando-se ao prazer, que arrasta a alegrias mais baixas. atirar fora da Lei, mas a cooperar fraternalmente em seu seio.
É este o mecanismo da lei reconstrutora que se chama evo- Assim não resta ao homem senão debater-se, pecando e expi-
lução. Sua primeira característica é que esta rude, mas honesta ando, errando e corrigindo-se, rebelando-se e sofrendo, até
lei de redenção, é dever e herança de cada ser em cada plano saber encontrar por si, à força de penas e tentativas, o único
de vida, desde o mineral ao super-homem; é a cansativa forma caminho de evasão e de solução para a dor.
de existência para os mais afastados irmãos da vida universal. Estes princípios, dor e amor, são os ingredientes necessá-
Essa lei está presente em todos os tempos e lugares, de modo rios ao fenômeno da gênese reconstrutiva e da criação evoluti-
que na raiz de cada gênese criadora há sempre um íntimo tra- va. Só do sacrifício, que é contração e morte, pode nascer a vi-
balho de contração e despedaçamento daquele eu egoísta, que da, a expansão, o progresso. E é importante que, nas raízes do
se limita no sacrifício e se demole na renúncia – a redução por ser, o princípio que tem a chave da criação e da vida seja o
compensação (lei de equilíbrio) da primitiva culpa que as co- princípio feminino. O princípio da gênese é tal que, num imen-
nhecidas lendas definem como orgulho. Assim, não há criação, so amplexo, aperta em si, fecha e protege toda a luta seletiva e
ou seja, reconstrução de ordem e ascensão, senão através da evolutiva do princípio masculino.
dor, com que se deve pagar o que foi perdido e reconquistá-lo. No mecanismo do funcionamento desta lei, a alegria não é
Não são as revoluções telúricas semelhantes aos titânicos es- senão um descanso para o trabalho de subir, repouso e encora-
forços mobilizados nos ciclópicos movimentos do doloroso jamento para que o ser não renuncie à ascensão e retroceda, ati-
trabalho da informe nebulosa para se transformar em sol e pla- rando-se à anulação. O prazer está no estômago, no sentimento,
netas? E a própria multiplicação celular primitiva por cisão, no pensamento – de acordo com as três leis a que pertença o
não parece conter um primeiro rudimento de sacrifício altruís- homem. Mas vai sempre em frente, seja individual, coletiva ou
tico do eu egocêntrico, que se despedaça e se dá em favor de espiritualmente. Aquele perfeito júbilo de São Francisco, que
outros egoísmos? E mais acima, do doloroso parto físico da parece a mais absurda inversão dos valores humanos, não é se-
mulher ao atormentado parto espiritual do gênio, até à reden- não alegria do mais elevado reconstrutor.
ção que Cristo não pôde realizar senão sobre a cruz – não se Por estas leis, tudo o que é ascensão e progresso é também
trata sempre da mesma lei? Lei tão universal, que nem mesmo evasão da dor, porque é elevação para Deus, que é alegria, e
o mais elevado dos seres a ela se pode furtar. afastamento do baixo, que é dor; o abandono do caos e re-
Os próprios fatos confirmam que o princípio construtor não construção da ordem é pagamento de débito, é restauração de
pode vencer e sair do princípio de destruição no qual se precipi- equilíbrio segundo a divina lei de justiça. A felicidade, então,
tou, senão por meio de um trabalho que se chama dor. Sem isso apresenta-se como um bem que se espera, já conhecido, mas
não se gera nova vida contra a morte, novo bem contra o mal, não possuído, e que é reconquistado. O Evangelho, especial-
nova felicidade contra o sofrimento, nova luz contra as trevas, mente em sua ordem suprema: ―Ama o teu próximo‖, é um
nova ordem contra a desordem. Sem dor não se evolui, não se princípio de coordenação social, que limita a liberdade desen-
reconstrói, não se reconquista o paraíso perdido, não se escapa freada, guiando-a para a colaboração fecunda, a paz fraternal
do caminho da descida. Eis a titânica ideia, fundamental e bio- e a grandiosa harmonia de Deus.
logicamente central, que está no ápice das concepções huma- Assim se explica, então, o fenômeno da transmutação da dor,
nas: o mistério do sacrifício pela redenção. Eis o que significa que o nosso personagem vivia agora. Compreendido o verdadeiro
―amargo cálice‖, ―efusão de sangue‖. Eis a função biológica do sentido da vida, que o mundo ignora, ele dera o seu óbolo para a
holocausto; eis o que nos diz o heroico grito dos mártires, os reconstrução, e, agora, a grande lei de redenção, sempre verda-
campeões da Lei, que, antes de todos, dão o exemplo. Também deira, tanto individual como coletivamente, atuava em seu desti-
nos diz que não é através da dor alheia – que foi exemplo, e não no. Ele fizera mais ainda: exaurida a própria dor, dedicara-se à
comodidade para eximir os medrosos – que se pode conseguir a dor alheia, o único caminho para subir ainda; depois de se haver
própria redenção, mas só através da própria dor, tudo vivendo, reconstruído a si mesmo, dava-se à reconstrução dos outros, as-
compreendendo, assimilando, ou seja, dor consciente e sábio sumindo a fadiga alheia. Toda a sua vida avançara pelo grande
instrumento de construção espiritual. Eis o profundo significa- caminho da evolução, segundo o exemplo dos verdadeiros e
do dos conceitos de expiação, imolação, vítima, sacrifício etc. grandes reconstrutores. Era bem natural que, agora, as mesmas
Implícita nestas causas maiores da dor está a causa menor divinas leis biológicas que ele seguira fossem com ele e, através
do erro, que exige contínua correção e compensação, erro ine- de seus justos e férreos equilíbrios, expressão do pensamento de
vitável, porque o trabalho de reconstrução é também recon- Deus, como forças ativas, o elevassem à felicidade. Era natural
quista de luz e de conhecimento e se realiza nas trevas e na que, agora, a dor desaparecesse do seu horizonte, reabsorvida por
ignorância. Ninguém evolui senão através de incertezas, das si mesma no seu automático processo de autodestruição, que é a
tentativas e dos erros. O homem comum age, em geral, sem mais justa, sábia e boa de todas as rudes leis da vida.
70 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
Tudo isso ele compreendia e meditava, avizinhando-se da locausto e a lenta e profunda agonia que aquele martírio repre-
morte, vendo estes mistérios descobertos e atuando em si, e, se- sentou, até o esgotamento; o desespero final que representou a
gundo a Lei, sentia cumprir-se a significação profunda de sua dedicação de um ser assim hipersensível; o direito que isso tudo
vida. Compreendia que a felicidade é de tal modo nossa, que, se agora lhe dava, consumado o martírio que o conduzia para di-
não quisermos conquistá-la, a dor ali está, pronta para agir, ante da morte, de poder finalmente fugir da Terra e de seus in-
obrigando-nos a procurá-la, e não se acomodará senão quando fernais contrastes para o paradisíaco ritmo dos céus, sua verda-
tivermos aprendido a encontrá-la. Compreendia que a verdadei- deira pátria. Toda a sua vida lhe fora uma compulsiva procura
ra felicidade esperada é ganha por reação e que a dor é o esti- da harmonia divina, da qual guardara sempre o instinto e a sau-
mulante dessa tão benéfica reação. Desse modo, a dor nada dade, harmonia que trouxera em seu destino, em meio ao caos
mais é mais que o instrumento de formação da felicidade. Esta infernal da Terra, mas que não podia reencontrar plenamente
é a verdadeira definição da dor. senão na morte, na libertação final, no retorno aos seus céus.
Só agora, no fim desta história, pode o leitor bem compre-
ender qual fora o gênero do sofrimento e a que principalmente XXX. CHEGADA DA IRMÃ MORTE
devia sua dor o nosso personagem. A morte lhe trará a pacifica- ―Na morte está a vida‖
ção na harmonia universal, que é sintonização com os paradisí-
acos ritmos do divino. Vemos assim que o tormento principal Com o correr dos anos, cada vez mais ele se destacava da
de sua vida humana fora o contato lacerante, dada a sua hiper- Terra. O grande rumor do mundo, o ensurdecedor fracasso da
sensibilidade, com a brutal, caótica, infernal dissonância terres- vida humana, brutal explosão de instintos primordiais, diminuí-
tre. Falou-se, a princípio, de sua inadaptabilidade, de sua cons- am sempre à distância. Lentamente, afastava-se da imensa e vio-
trução invulgar, de sua posição de desajustado em contraste lenta maré. Os contrastes caíam. Ele se ia, fugindo às leis da
com o tipo dominante, muito diferente dele pelos instintos e Terra para entrar no domínio de leis de um mundo diferente e
sentimentos. Ao homem comum, citado no princípio, para que mais alto. A luta serenava, a dissonância se harmonizava, a vida
não sinta o seu ponto de vista injustamente condenado, é preci- se pacificava numa doçura suprema. O inferno ficava lá em bai-
so explicar o fato, para ele inacreditável. Tais tipos humanos de xo, impotente para subir acima do seu nível. Ele observava o seu
exceção vivem em outra fase de desenvolvimento evolutivo, em assalto perder todo o poder à medida que a matéria se desfazia.
posição biológica mais avançada, e isto implica uma sensibili- As forças abandonavam-no lentamente. Era obrigado a deixar o
dade nervosa, intelectual e moral que os seres normais não po- trabalho em solidão e silêncio. Chegava a hora do merecido re-
dem fazer ideia. Vista de uma posição tão diversa, a conduta pouso. Mas, onde parecia estar a morte, ele prelibava a sensação
destes representa um desencadeamento de forças tão violento e da nova vida que o esperava. A irmã morte lhe trazia a maior
brutal, que torna o contato social em um verdadeiro tormento alegria: a libertação, pela qual tanto lutara e que tanto havia de-
para o ser hipersensitivo. Trata-se de uma sensibilidade maior, morado. A prova fora longa, tenaz, inexorável, mas o navegante
que não se pode explicar a quem não a possui, mas que se torna sem repouso, o peregrino do amor e da paixão, chegava final-
dolorosamente suscetível à conduta normal da maioria. mente ao porto! Desfaziam-se-lhe todos os nós do destino, caía a
As posições e julgamentos do personagem estão muitas sua dor. Sentia iminente o desabamento dos valores do mundo
vezes em função da maior sensibilidade e, só por meio desta, que o perseguira, onde fora um vencido, e via aparecer e reali-
podem ser compreendidas e explicadas. Dada a sua posição, zar-se para ele a lei do céu. Ao dia dos outros, que fora a sua
ele tinha uma quantidade de necessidades individuais e sociais noite, sucedia agora o seu dia, que era a noite dos outros. Com o
refinadas e complexas, inadmissíveis para os outros, porque gradual enfraquecimento do corpo, o dia se fazia mais claro. À
inconcebíveis. Daí o desajuste, causa do doloroso isolamento. medida que o organismo se abatia em prostração profunda,
Para ele, era de primordial necessidade o conhecimento, a acendia-se-lhe no espírito uma luz cada vez mais intensa. Todas
bondade, a sinceridade, a retidão moral, o altruísmo, os prin- as suas sensações lhe confirmavam a realidade da mais alta con-
cípios. Para os outros, a primeira necessidade é o prazer do tinuação de si mesmo, da ressurreição além da Terra e da morte.
estômago e do sexo, a sede de riquezas, as honras, o domínio, Ao invés da sensação de despenhar nas trevas, acentuava-se
o egoísmo, o interesse. Impossível entenderem-se. A prepo- nele o pressentimento de horas intensas. No entanto refazia os
tência do desencadeamento das forças primordiais por eles momentos mais férvidos de sua ascensão mística, a inolvidável
apresentadas; a qualidade involuída e grosseira daquelas, de- recordação de suas visões, e lhe parecia que aqueles vértices de-
vastavam a sua hipersensibilidade como o tufão por sobre um veriam agora fundir-se para se projetarem, num único arremes-
jardim florido. Impossível entrar em contato social sem dano so, para a última realização – a mais profunda e sintética. Com a
e sofrimento. Era constrangido a procurar esconder-se numa morte, sentia avizinhar-se um grande acontecimento espiritual,
fuga da vida, porque lhe faltava a dura casca de insensibilida- que seria a suprema etapa, síntese e conclusão de sua vida; um
de e de ignorância das leis da vida, proteção contra a dor, bem acontecimento espiritual de há muito prometido pela consciên-
como a instintiva e cega exuberância explosiva da força ele- cia, assegurado pelo instinto, garantido pela razão, incluído na
mentar, tão essenciais aos seres destinados à vida terrestre. E lógica do seu destino e talvez desejado pela lei da divina justiça.
sofria em tal mundo, para ele muito selvagem. Tentara o pro- E preparava-se interiormente com fé intensa, com devoção
cesso involutivo, o retrocesso, que para ele era a bestialidade. e humildade, com trepidante expectativa de alegria sobre-
Mas não conseguiu demolir-se. Sua vida era um sutil fio de humana, como um sacramento íntimo, em que se resolviam
energia, de capacidades vibratórias esquisitas, a tudo reagin- sua vida e seu destino. E já intuía que, naquele momento su-
do, feita para se harmonizar com os acordes de mundos mais premo do ajuste de contas, teria cumprido a suprema dedica-
refinados e elevados. No entanto sua sensibilidade moral pro- ção e consagração a Deus. Um sinal viria do alto, o sinal in-
ibira-lhe a fuga para a mística contemplação dos céus, fazen- vocado e esperado como prêmio único. Chegaria como um
do-o descer e ensanguentar-se no ambiente humano, que lhe segredo de amor e de unificação, rematando-se uma vida de
era um verdadeiro inferno. Com a sensibilidade de um anjo, fidelidade e sacrifício. Intuía que, naquele momento supremo,
levou a cansativa vida do bruto, forçado a esbanjar em torren- ele estaria a sós com Deus.
tes a sua refinada energia, até à exaustão. Recolhera-se a uma casa de campo. Todos de sua família
Agora, o leitor poderá compreender o martírio que foi para estavam ausentes. Um dia, sentiu-se desfalecer, e a morte pare-
o nosso personagem irmanar-se aos seus semelhantes, cingin- ceu-lhe realmente muito perto. Depois, aconselharam-lhe cha-
do-se à lei evangélica: ―Ama o teu semelhante‖; o heroico ho- mar um médico e tratar-se. ―Para que servirá isso?‖, pensava.
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 71
Como poderia tolher as leis da vida? Para que trazer para junto pre perdoar aos que o haviam feito sofrer e lhe haviam pagado
dele o supremo incômodo da ciência da matéria, justamente no o bem com o mal, pois acreditava que o perdão era a primeira
momento de maior importância para o espírito? Porque chamar qualidade dos verdadeiros seguidores de Cristo. Este perdão
estranhos para ouvir palavras de vão encorajamento na cortês evangélico não é, como talvez se acredite, uma fraqueza en-
mentira que, por uma piedade mal entendida, sustém e procura cobrindo impotência e covardia. É consciência da ordem e da
assegurar que a morte ainda está longe, quando ele bem sabia lei de Deus, a cuja sanção não se foge. E, quanto menos o
que o contrário é que era certo e que isso lhe era agradável? homem reage, usurpando a Deus o direito de julgar e punir,
Já se habituara a falar de si mesmo com as forças da nature- passando assim para a parte dos devedores, tanto mais as leis
za, como se habituara a falar sinceramente de si com Deus. Não reagem em sua defesa. E quão mais potente que a nossa não é
desejava ter a seu lado senão o calor sincero dos afetos e dentro a ação de Deus! Cada injustiça sofrida é um grito que chega a
de si o calor da prece. Deus, muito mais eloquente se a vítima se cala.
Por alguns dias, voltaram-lhe as forças. Depois recaiu. O ditado ―a melhor vingança é o perdão‖ pode assumir as-
Uma tarde, depois de breve passeio, voltou para casa, arrastan- sim um sentido terrível para quem foi perdoado. Mas quem
do-se. Era um dia de maio, tranquilo e cheio de sol. O ar estava compreende isto? E, no entanto, são simples e lógicas leis bio-
quente, e o crepúsculo era chuva de ouro. Deitou-se, pensando lógicas, de resultados utilitários. Iludem porque são leis pacien-
que, para morrer, não é preciso mais que ter Deus e paz na tes. ―Deus não paga aos sábados‖, diz-se. Mas pacientes apenas
própria consciência. E ele que, desde algum tempo, vivia no enquanto esperam para destroçar na hora da morte. E ele, que
regime vegetariano, sentia-se esvair tranquilo e lúcido, sem o tanto tinha perdoado, morria tranquilo. A pacificação universal
tormento dos fenômenos tóxicos. e total do seu ser, a profunda harmonização no amor fraternal
Levantou-se um pouco no dia seguinte. Depois, não mais. de Cristo, sintonizava-o com o ritmo paradisíaco dos céus, que
Na tarde do terceiro dia depois de sua recaída, estava sentado já se abriam para absorvê-lo em ritmo de suprema felicidade.
no leito, apoiado a vários travesseiros e, através dos vidros da Já o seu olhar se afastava da Terra. Agora, que o seu traba-
janela, via o sol descer lentamente sobre as colinas, refletindo lho humano estava terminado, a descida ao mundo reanimava a
o seu esplendor no rio que serpenteava pelo vale. Quanta paz ligação, deixando-o livre para se elevar aos céus, que a hora
na natureza! Quanta paz em sua alma! Quanto esperara e so- suprema lhe abria. Na morte está a vida. Verdade, a um tempo,
nhara este último repouso, e como lhe era grato recordar agora tanto do mundo biológico como do espiritual. Em cada caso,
o longo trabalho, as numerosas quedas e ressurreições e todos na economia do universo, a morte é uma ressurreição. E ele
os conflitos de uma vida de dor, de luta, de contrastes. Quan- preparava-se para a sua ressurreição. O que havia de humano
tas vezes o haviam maltratado, mesmo sem compreenderem, em sua vida estava agora morto e destruído, e tudo continuava
incapazes de proceder de outro modo! Quanto o haviam feito vivo e presente, indestrutivelmente estampado na experiência
sofrer injustamente, decerto por incompreensão. Quão segu- de sua alma. A sufocante atmosfera da Terra estava agora mui-
ros, enérgicos e armados de justiça eram os seus juízes. Re- to longe. Ele trabalhara nela com todas as forças. Agora que os
cordava quantos o haviam espoliado porque era desinteressa- vínculos do destino se soltavam, ele podia reencontrar o seu
do, insultado porque era humilde, explorado porque era gene- verdadeiro mundo no espírito. Aquela realidade terrestre, atra-
roso. Tinham-no privado até do fruto do seu trabalho; tinham- vessada com tanto sacrifício, aparecia-lhe agora afastada e ir-
no expulsado de sua própria casa; e riram-lhe na cara porque real como um sonho. E a sua longa vida estava vivida e encer-
não quisera revoltar-se e defender-se. rada. Quantas recordações, quantos caminhos, quanto trabalho,
Talvez fossem inocentes, e não podia julgá-los. A superfi- quantas dores! Tudo se cumprira. Mas nada fora inútil, porque
cial justiça humana estava do lado deles. Talvez fossem sim- tudo se lhe estampara na alma, elaborando-a. Repetia: ―Entre-
plesmente a expressão de forças involuídas e inconscientes, go às tuas mãos, Senhor, o meu espírito‖.
que ele, por sua única culpa, merecera encontrar em seu desti- E já um estranho sentimento de libertação e leveza o inva-
no. Talvez não fossem maus e só lhe pareceram assim porque dia, um acentuado sentimento de expansão, nova capacidade
não os compreendia, e, no fundo, a culpa era sua, porque ele é sensorial, na qual lhe aparecia a realidade do céu em forma
que era diferente dos outros. Que podiam emanar e dar de si sempre mais clara e mais estável. À medida que a velha vida
senão o que eram e o que tinham dentro de si? Tinham culpa morria, a nova surgia. Desde muito, quebrara suas ligações com
de ser involuídos? Não seria, ao contrário, um destino de expi- o mundo; a separação era fácil, límpida, natural, tranquila.
ação que formara aquele caminho de dolorosa incompreensão? Assim, estava em paz, adormecido, quase esquecido de si
E então repetia as grandes palavras de Cristo: ―Pai, perdoa- mesmo, como entre a vigília e o sono, como entre a realidade
lhes, porque não sabem o que fazem‖. E acrescentava: ―Se- da Terra e a realidade do céu. Sua consciência oscilava entre as
nhor, perdoa-me, porque não os compreendi e tomei por mal- duas sensibilidades, entre os dois mundos, na soleira do além.
dade o que era apenas imaturidade‖. No aposento havia a paz solene da tarde; na casa, um respei-
O tempo resolvera os dolorosos antagonismos, deixando toso silêncio dos familiares. O sol continuava a descer sobre as
em sua alma, como benéfico resíduo, qual nova riqueza, a luz colinas em frente, espelhando-se no rio e escondendo-se, às ve-
de ter compreendido os seus semelhantes e a doçura de havê- zes, nas nuvens. Um alegre chilreio de pássaros saudava a tar-
los perdoado. de. Pelos campos estendiam-se em paz as longas sombras do
Com a alma em paz com todos, repousava e orava. A des- crepúsculo; pelos prados e bosques perpassava um frêmito de
cida ao mundo estava completa. Em seu espírito tudo era, primavera. Depois do repouso hibernal, o grande mecanismo da
agora, profunda harmonia. Entregava a Deus a obra de sua vi- vida se punha novamente em marcha no trabalho grandioso e
da, repetindo a frase habitual: ―Senhor, sou o teu servo e nada solene, que ele ouvira agitar-se com irresistível fervor de reno-
mais peço senão isto‖. Dissera-a por toda a vida, ao fim de vação. A matéria era tomada num ritmo mais rápido de trocas e
cada dia. Repetia-a agora, ao fim da mais longa jornada ter- obedecia às ordens da Lei. Ouvia as grandes vagas progressivas
restre. E acrescentava a grande prece: ―Senhor, perdoa-nos as do imenso concerto da ascensão de todas as coisas, do átomo à
nossas dívidas, assim como nós as perdoamos aos nossos de- nebulosa. Também ele seguia, embora de outro modo, a sua
vedores‖. Seu pensamento final era de amor; sua última pala- primavera. E tudo – a sua sensação e a voz do universo – lhe fa-
vra, de perdão. A inveja das rivalidades humanas não se apos- lava da indestrutibilidade do ser na sua eterna ressurreição. An-
sara jamais de sua alma. Jamais se ligara a alguém com tais te esta visão, elevava em seu coração um hino de gratidão a
sentimentos, e nada o prendia aqui em baixo. Procurara sem- Deus, pela maravilhosa harmonia da criação.
72 HISTÓRIA DE UM HOMEM Pietro Ubaldi
Chegado ao alto desta contemplação, o seu pensamento — Senhor, tu sabes todas as coisas, tu sabes que te amo 19.
reencontrava Cristo; reaparecia-lhe a visão daquela triste tarde — Pedro, estás extenuado. Teu caminho está completo. Re-
de inverno, quando tanto o sentira próximo. Revia o Cristo de pousa em mim. Pousa tua cabeça sobre o meu peito e repousa 20.
tantas faces, curvado sobre as infinitas dores do homem, junto Aqui, a visão se dilatou. Apareceram as margens do lago de
a cada dor com uma sua face consoladora diferente. Ouvia Tiberíades, as doces colinas da Galiléia, a noite da paixão, o
não mais o regiro imenso da terra e do céu, mas a voz toda triunfo da ressurreição. E tudo ele, agora fora do espaço e do
humana que lhe dizia: ―Ama o teu próximo‖, supremo desejo tempo, reviu intensamente, detalhadamente, não com o sentido
de Cristo na luta das paixões. E as duas visões cantavam para da nostalgia para com a inalcançável realidade longínqua, como
sua alma arrebatada a mesma música divina. Um concerto em vida, mas com um sentido de paz e felicidade. Via como
harmonioso e potente se elevava de todas as coisas e o arras- aqueles que, terminando um trabalho e um novo roteiro, che-
tava num êxtase sobre-humano. gam à própria realização21.
Permaneceu algum tempo nesse estado, enquanto a matu- Daquele esplêndido sonho em diante ele já não ficou na
ração do fenômeno, independente de sua vontade, sacudia o Terra. Sua visão continuou nos céus. Como o ocaso, morrera na
seu instinto, fazendo-o sentir a vívida expectação de algo de visão de Cristo.
novo, imenso, decisivo, aquilo que o pressentimento e a razão Seu corpo ficou inerte sobre o leito. A sua alma, levada na
já lhe haviam prometido para o momento da morte. Aproxi- visão esplêndida, tantas vezes pressentida, compulsiva e inutil-
mava-se-lhe uma realidade nova, ainda indefinida, misteriosa. mente procurada em vida, jamais conseguida senão na hora da
Uma luz se avizinhava, num canto de beleza e força supremas. morte, voltou-se para trás apenas um instante para lançar um
Tudo era incerto e velado, parecia estar no meio de uma nu- olhar distraído ao corpo que fora a sua prisão, mas também
vem de trevas que o confundia, que o impedia de ver. Uma in- companheiro e instrumento de sua trabalhosa tarefa de reden-
capacidade e um peso que não conseguia superar e vencer. ção. Agora, porém, que não servia mais, não interessava mais.
Assim ficou por longo tempo. O sol continuava descendo Como um eco, chegava-lhe a recordação do que ele escrevera:
no crepúsculo tranquilo. Tocou, finalmente, o cume da colina ―Morta entre as coisas mortas está a tua dor lá em baixo –
e, quando as nuvens preguiçosas se dispersaram, seu último e inútil utensílio largado lá em baixo, na praia deserta de uma
límpido esplendor alcançou o moribundo em plena face. En- triste vida. Mas o seu futuro está aqui, e a alma o observa: seu
tre o sol e o olhar houve como que uma cintilação de ouro. trabalho, sua criação e sua glória‖.
Ele podia olhar o sol, agora parado, sem incômodo. E olhava, Libertada do corpo, a alma se atirara àquele incêndio de
pensando: quantas vezes já se pôs, e quantas vezes ainda irá luz que tomara a forma de Cristo. Tudo ele percebia, agora,
pôr-se no tempo? mais profundamente que antes, qual sutil sensibilização nova
Brilhará ele algum dia sobre uma humanidade mais civili- que lhe centuplicasse a ressonância com as vibrações do uni-
zada e melhor? E tu, Cristo, quando triunfarás, realizando o Teu verso. Percebia que elas investiam para ele vindas de toda a
reino sobre a Terra? imensidão do infinito. E sentiu então o incêndio de Cristo se
Enquanto assim pensava, de ideia em ideia, indo do sol a elevar, como coluna de fogo, para o céu. Para ele, que estava
Cristo, pareceu-lhe que o esplendor do astro se fundia nos re- fora do espaço, aquilo significava o afastamento, o distancia-
flexos do rio, incendiando-o. Na sua sensação, já agora unica- mento qualitativo das infernais vibrações da Terra. Uma ale-
mente interior, a ideia do sol e a ideia de Cristo se fundiram em gria suprema. O estridor da desordem ficava em baixo, na
um só esplendor. Sentia nos olhos e na alma acender-se um in- densa atmosfera da qual ele se livrava, penetrando em outra
cêndio de luzes, que, avançando do céu, penetrou no aposento, mais sutil, límpida e rarefeita. Percebia-as menos nitidamente
iluminando-o. As duas realidades, vistas com os olhos do corpo à medida que iam ficando a distância; em breve não eram
e com os do espírito, sobrepunham-se. A luz que invadira o mais que um eco, uma vaga recordação. A coluna de fogo
aposento começou a delinear-se e definir-se, e todo ele, olhos e atraía-o. Seguindo-a, ele foi levado para fora. Percebeu confu-
alma, se concentraram nela, para lhe decifrar o aspecto que, samente que leis novas se manifestavam em torno de si, leis
sempre sob forma de luz, ia-se delineando. Estupefato, incerto e pertencentes a um mundo novo, no qual entrava agora.
anelante, assistia ao progressivo definir-se da forma e da ideia. Sentia a formação de equilíbrios ainda ignorados, segundo
Evidentemente, já não estava só. Ali estava uma maravilhosa outros princípios, que lhe permitiam deslocar-se e elevar-se
realidade de pensamento, de afeto, de vontade e de forma, que não no espaço, mas em qualidade de vibração, que se refina-
o atraía com bondade e força, inundando-o de suprema alegria. va, se aprofundava, se harmonizava sobretudo, levando-o da
Estendeu os braços num esforço supremo e, depois, deixou- dor à alegria, do choque de dissonâncias contraditórias a uma
se abater sobre o colchão, extenuado pela violência das sensa- paradisíaca sinfonia de vibrações harmônicas. Deste modo,
ções. Aquele pensamento olhava-o intensamente, aquele afeto atingiu o auge, libertou-se, transformou-se e reapareceu em
penetrava-o, aquela vontade arrebatava-o. E aquela forma as- dimensões de vida superiores à nossa concepção humana, se-
sumira lineamentos precisos. Reconheceu-a então. Mas jamais guindo a luz de Cristo.
a divina visão lhe aparecera com tanta força e clareza. E então, O seu corpo foi sepultado com simplicidade e pobreza. Se
contemplando-a com os olhos e com a alma, exclamou: poucos se haviam preocupado com ele durante a vida, nin-
– Cristo, Senhor! guém se preocupou com ele na morte. O silêncio, que ele tan-
E assim ficou longo tempo. Seus lábios não tinham força pa- 19
ra se mover, mas entre a visão e ele, quem tivesse sentidos espi- Compare-se este diálogo com Mt., 16:16 e Jo., 21:17 (N. do T.)
20
Quem vive da forma e da letra e não no espírito não poderá penetrar
rituais capazes, teria ouvido se desenvolver um breve colóquio:
o sentido dessas palavras. (N. do A.)
— Cristo, Senhor! – repetia ele. 21
Para ser bem compreendida esta cena deve ser ligada com a cena fi-
— Reconheces-me? – respondia a visão. nal do volume Ascese Mística. Aquele livro, em seu último capítulo,
— Reconheço-te, Senhor. ―Paixão‖, no qual está claramente profetizada a última guerra, culmina
— Lembras-te? com o holocausto no sacrifício da cruz. Esta História de um Homem
— Lembro-me. culmina, porém, com a ressurreição da morte e o triunfo do espírito.
Além da cruz, atinge a ressurreição. E enquanto a Ascese Mística pre-
— Quem sou eu? nunciava dor e a paixão da última guerra mundial, este livro prenuncia
— Tu és Cristo, o filho de Deus. e prepara o novo homem do III Milênio – o homem da nova e triunfan-
— Tu me amas? te civilização do espírito. (N. do A.)
Pietro Ubaldi HISTÓRIA DE UM HOMEM 73
to amara, estendia-se sobre a sua campa. Nada se via do lado O exemplo do Seu sacrifício diz a todos que, sem dor, não
de fora; para o mundo, nada existira. Nada se escreveu no há salvação.
mármore sob o seu nome, mas o seu corpo teve a honra su- Ninguém pode fugir desta lei fundamental.
prema da pobreza; os seus funerais não foram profanados pe- Mas, depois da paixão e da cruz, virá a ressurreição e o
las declamações, e a sua morte não serviu de pretexto para triunfo do espírito.
expressão da vaidade de ninguém. Isto era o máximo que se Aceitai, portanto, ajudando-vos e amando-vos, a escola do
podia obter do mundo. Assim, mesmo depois que ele restituíra trabalho e o batismo da expiação, que purifica, porque é o úni-
à terra o que a terra lhe emprestara, o seu corpo foi salvo da co caminho de redenção pela dor.
mentira das honras humanas. Um manto de infinita paz se es- Deixo-vos o aviso: na necessária paixão do mundo está a
tendeu sobre os pobres restos de uma vida trabalhosa aurora da nova civilização do espírito.
Foi sepultado como o desejara, no seu humilde cemitério do Assim passou ele, como tudo passa. O mundo continuou a
campo, no declive de uma colina, sob a face do sol. Em torno cometer erros e a pagá-los. Continuou a seguir o seu sistema e a
estavam as grandes árvores amigas, pensativas como ele e que sofrer-lhe as consequências. Continuou a cometer loucuras, a
tão bem conhecia; estava a natureza honesta e sincera e as cria- abusar e, portanto, naturalmente, a sofrer. A sua liberdade, de-
turas irmãs, que ele tanto amara. Ao lado havia uma capela on- terminada por Deus, tinha que continuar inviolável. Todavia,
de tanto rezara, envolta no odor dos pinheiros, rica de pobreza e ainda uma semente fora semeada, um pequeno impulso que se
simplicidade, adornada de solidão e paz. Ele gozara largamente unia aos outros em direção à ascensão, que é libertação da dor.
desse esplendor espiritual, que falta muitas vezes às ricas e or- Ainda um exemplo fora dado para que aquela liberdade se man-
namentadas basílicas, talvez pagãs e profanas na sua espetacu- tivesse – um exemplo mínimo diante do exemplo imenso de
lar grandeza, a ponto de constituírem ofensa ao sentimento reli- Cristo. Servia para recordar ainda uma vez a significação da
gioso. Acima, do alto, continuava a observar o movimento dor, o esquecido sentido do Seu divino sacrifício, que é o de
imenso dos céus. Falava em silêncio a grande voz de Deus. traçar o caminho, sem o que não há redenção, nem ascensão. A
Assim passou sobre a terra este homem comum, de quem linguagem é rude, mas honesta. Quem é sincero e conhece as
narramos a história. Passou como tudo passa, uma forma no re- justas leis da vida e do progresso não pode falar de outro modo.
lativo, aplicação vivente do absoluto, ou seja, da substância que O homem é livre, mas há uma lei pela qual ele é responsável.
existe nas leis da vida. A ele, que tinha verdadeiramente sofrido Se quer superar a dor, tem que aprender a se coordenar nos ca-
e trabalhado no cumprimento de sua missão, a justiça de Deus minhos desta lei, que é o pensamento e a vontade de Deus.
concedia a evasão final à dor na paz completa. Os que lhe ti- A semente caíra e jazia esquecida sob a terra. Mas, nela,
nham querido fazer mal, só lhe haviam feito bem. Sem carrasco a tensão de toda uma vida concentrara a força que agora fa-
não há martírio; sem destruição não há reação; sem dor não há zia pressão, procurando expandir. Era um germe pronto pa-
criação. O mal é contido e guiado entre os confins e os fins do ra o desenvolvimento; era uma invocação de vítima que pe-
bem. Ele respeitara, como era seu dever, as experiências dos dia resposta; era uma oferenda colocada no seio de Deus pa-
outros, seus erros e suas dores, na aprendizagem e na evolução. ra o bem do mundo.
Não culpara os outros pela involução, insensibilidade e igno- Essa semente caíra do holocausto de uma vida ofertada
rância das leis da vida. Perdoara sempre. E conhecera, por ex- com tenacidade, paixão e sacrifício levados até à morte, para
periência, a grande força redentora da dor. Cumprira o seu de- ajudar o nascimento da nova civilização do espírito. A potên-
ver de ajudar os outros, de acordo com a experiência mais seve- cia do sacrifício de que ela se gerara e nutrira torná-la-ia imen-
ra e mais verdadeira. Seguiu Cristo. Construíra a sua vida sem samente fecunda.
dinheiro, nem honrarias, independente e livre destas forças. A semente ali estava, esquecida no seio da terra, entregue às
Eis a substância de seu testamento espiritual: forças das leis da vida, que depois a retomariam, incitando-a a se
Aprendei na escola do trabalho – o primeiro direito da vida. desenvolver; ajudando-a, utilizando-a, porque é fatal, não obs-
Perdoai sempre. tante toda a inconsciência e resistência do mundo, que a ascese
Estudai no grande livro da dor. Sabei sofrer, se quereis se cumpra. É lei de Deus que o espírito vença a matéria, a luz
subir. vença as trevas, a alegria vença a dor, o bem vença o mal, Deus
Que o trabalho, o perdão e a dor vos tornem irmãos. triunfe sobre Satanás. É fatal que esteja cada vez mais próxima e
É preciso que o mundo sofra, para que possa corrigir-se e acabe se realizando a vinda do reino dos céus à Terra.
avançar.
O cálice da redenção que Cristo nos deixou, por Ele be-
bido primeiramente, não é taça de prazeres ou de inércia, FIM
mas de martírio.
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 75
as lerdes. E direis irresistivelmente: ―É verdade‖. E, através dos
FRAGMENTOS DE PENSAMENTO anos, convencerão e arrastarão outras almas, que ao lerem-nas,
E DE PAIXÃO como vós, também dirão irresistivelmente: ―É verdade‖.
Porque a força que me arrebata também vos arrasta, a paixão
PRIMEIRA PARTE – APRESENTAÇÃO que me inflama também vos incendeia e nos une a todos num só
esforço, numa tensão e num trabalho comuns, em favor do bem.
Apresentação Como é grande e bela esta felicidade ilimitada de nos sentirmos
todos irmãos, profundamente irmãos, diante dessa maravilhosa
Apresento-me como homem. voz que do infinito a todos nos alimenta! Como é doce, diante
A entidade que me inspira mediunicamente e sobre mim dela, ensarilhar as tristes armas da rivalidade e da competição
exerce autoridade, no pensamento e na ação, deve ter um repre- que pesam sobre nós e nos amarguram a vida. Que grandioso é
sentante terreno, alguém que assuma todo o peso da luta e da sentirmo-nos todos unidos numa só humanidade, num compacto
responsabilidade; que totalmente se exponha, moral e fisica- organismo; não mais como pobres seres solitários num mundo
mente, aos perigos de uma realização novíssima, ao trabalho inimigo, mas cidadãos de um grande universo, onde cada ato
que toda grande conquista e todo progresso impõem, à necessá- tem um alvo, onde toda vida constitui missão.
ria tensão para ultrapassar todos os obstáculos. A Voz me arrebata neste momento e senhoreia-se de minha
Tal sou e assim me coloco hoje, ao ingressar na vida pública. mão, como o faz sempre que deseja falar por meu intermédio.
Nada possuo além do meu trabalho para viver e da minha Eu a sigo, pequenino, confuso, maravilhado por imensas visões.
obra para triunfar no bem. Dentro de mim e acima de mim, Agora, ela me apresenta o planeta envolto numa faixa de
porém, vibra uma voz que infunde respeito, que me arrasta e luz e me faz ver uma humanidade mais feliz e mais sábia, res-
a todos irresistivelmente arrastará, voz que eu escuto e a que surgindo das ruínas da geração de hoje; mas também a ela
devo obedecer. pertenceremos, e quem houver semeado colherá. Acima de
Já não é mais o momento de dizer: o tempo virá, mas sim de nós que, lutando e sofrendo, semeamos, uma falange de espí-
afirmar: o tempo chegou. Chegou a hora da grande ressurreição ritos puros estende-nos os braços, encorajando-nos e ajudan-
espiritual do mundo. do-nos. Somos os operários de um grande trabalho, do maior
Eis o que sou: o servo desta potência, o servo de todos, a trabalho que o mundo jamais realizou: a fundação da nova ci-
serviço de todos, para o bem de todos. Nada mais me pertence, vilização do Terceiro Milênio.
nem alma nem corpo; pertenço ao bem da humanidade. Deverei Mãos à obra! Levantai-vos. É chegado o momento. A pa-
ser o primeiro no trabalho, na dor, na fadiga e no perigo; e o lavra de Sua Voz encerra uma força misteriosa, intrínseca, in-
primeiro serei nesse caminho e me esgotarei até a última dose visível, mas poderosa; imponderável, mas irresistível, e, por
de minhas energias, até o último espasmo de meu lamento, até a ela sozinha, avança, sabendo por si mesma escolher os meios
última explosão de minha paixão. humanos, solicitando-os a todos, convidando à colaboração
Sou fraco, culpado e indigno; não tenho, porém, mais força todos os homens de boa vontade. Ela avança e atinge os cora-
para sufocar esta voz, que deseja explodir e falar ao mundo, ar- ções; persuade e convence, possuindo e ofertando, a cada
rastar os povos, abalar os poderosos, convencer os doutos e to- momento, de si mesma, uma prova evidente: o fato inegável
dos conduzir a uma vida de bem e de felicidade. Serei conside- de sua automática divulgação.
rado louco, bem o sei. Mas Sua Voz tem um poder a que não Mãos à obra! Espera-me, espera-nos um tremendo trabalho,
mais sei resistir. E eu, o último dos homens, falarei ao mundo mas também uma imensa vitória. Somente sob a direção de um
com palavras novas, num tom altíssimo, de coisas grandes e chefe sobre-humano o mundo poderia empreender uma obra tão
tremendas, em nome de Deus. gigantesca. Temos um chefe no Céu. Ele não traz senão a paz, o
Estremeço e choro ao escrever estas palavras. É o sinal po- amor, o respeito a todas as crenças. Nada tem Ele a destruir do
sitivo de que Ele, o espírito que me assiste, está junto de mim e que seja terreno; a ninguém Ele agride; não toca a forma, que
me faz escrever coisas que são incríveis. não é o essencial: encara a substância. Nada tem Ele a modifi-
Não obstante as almas simples sentem, com um sentido que car do que seja terreno neste mundo; tudo quer vivificar com
a ciência não tem e nunca terá, sentem por intuição de afetos e uma chama de fé, quer tudo aquecer com uma nova paixão de
por penetração de amor, a completa naturalidade e a perfeita amor puro – o amor de Cristo, esquecido.
credibilidade destas coisas incríveis. Nada têm a temer as autoridades nem os organismos huma-
Tão intensamente profunda é essa intuição, que a alma ju- nos. É tão velho e inútil o expediente de modificar as organiza-
venil dos povos do outro hemisfério a sentiu, rápida, vibrante, ções! Não mais criações de sistemas sempre novos e sempre
espontânea, num reconhecimento que dizia: eu sei, em face da velhos, mas criação do homem novo, que tem origem no ínti-
demorada, duvidosa e sofisticada análise científica da velha Eu- mo, onde está a alma, e não no exterior. Toda organização é
ropa. É que a ciência analisa, toca e mede, mas não tem alma, e, boa, quando o homem é bom, e é má, quando o homem é mau.
somente com o cérebro, nada se pode ―sentir‖. O novo reino não é deste mundo, e jamais se tocará no que
Brasil, terra prometida da nova revelação, terra escolhida para lhe pertence. Não está surgindo um novo organismo humano,
a primeira compreensão, terra abençoada por Deus para a primei- com chefes e subordinados, com cargos e funções, com propri-
ra expansão de luz no mundo! Já um incêndio lá se levanta; ins- edades e direitos. Não. Absolutamente nada disso. Trata-se, eu
tantânea e profunda foi a compreensão. Foi um reconhecimento vos digo, do Reino de Deus, do reino que o mundo ainda espe-
sem análise, de quem sabe porque sente, de quem tem certeza ra, que o mundo ainda invoca: ―Veniat Regnum Tuum111‖. É
porque vê. Os humildes, não solicitados, compreenderam e se um reino de almas, de amor e de paz; não possui sedes, não tem
afirmaram os primeiros, sem provas, sem discussões, no terreno riquezas, nada possui; não tem senão a tarefa do dever, o amor
em que a ciência, que tudo sabe, nunca cessa de exigi-las. do bem, a paixão do sacrifício, a grandeza do martírio. E quem
A profunda emoção que me invade ao falar-vos, o espasmo for o primeiro nesse caminho será o maior nesse reino de Deus.
de paixão que me arrebata, o rasgar-se de meu coração a cada Almas distantes que no Brasil tudo compreendestes, distan-
palavra não se podem medir nem calcular; mas vós o sentis, tes pelo espaço, mas tão perto do coração; que o meu abraço
embora a tão grande distância de tempo e de espaço! As lágri- vos chegue forte, profundo, imenso, como eu o sinto agora, nes-
mas que me comovem enquanto escrevo e caem sobre este pa-
11
pel, destas palavras ressurgirão e cobrirão vossos olhos quando ―Venha o Teu Reino‖ uma das petições da oração dominical. (N. do T.)
76 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
ta solidão montanhosa de Gúbio, no mais alto silêncio da noite, presente no interior das coisas e dos seres, não admite mentiras,
com minha alma nua diante de Cristo, cujo olhar me penetra, porquanto é imanente na consciência; não admite violações
me envolve e me vence. nem fugas, pois se situa no mais íntimo do espírito humano.
Humildemente, como o último dos homens que sou, eu vos Eis a absoluta novidade deste movimento na história de
suplico, pela compaixão que pode inclinar-vos para o mais frá- todas as experiências humanas. Dele são excluídos: comando,
gil e abatido dos seres: ajudai-me a compreender este mistério riqueza, força. Ele é construção eterna e não pode, por isso,
tremendo que em mim se processa, ajudai-me a cumprir esta usar senão materiais eternos. Cada empreendimento é uma
obra imensa, cujos limites não alcanço. construção cuja durabilidade depende dos materiais utilizados.
Gúbio (Itália), na noite de 6 de fevereiro de 1934. Quem usar da espada pela espada perecerá; quem usar da vio-
lência pela violência perecerá, pois os meios usados como
Programa causa recaem depois, por força da lei eterna, inexoravelmente,
“Ama a teu próximo como a ti mesmo” como efeito, sobre seu agente.
Se o movimento não atender a estes princípios, será ilusó-
Depois do escrito anterior, Apresentação, importa de imedi- rio e caduco, como todas as coisas humanas. E qualquer ele-
ato precisar os conceitos, para evitar mal-entendidos, falsas in- mento humano que nele introduzirdes ser-lhe-á como um ca-
terpretações, transposição de metas e de princípios. runcho destruidor, uma força lenta continuamente em tensão
O conceito de Sua Voz é claro e exato. Aqui, o exponho para a destruição.
com o menor numero possível de palavras, cristalino e adaman- Como movimento social, inspira-se, portanto, em princípios
tino, qual o sinto explodir em mim, para que resista a todo cho- nunca usados pelo homem na história do mundo. Por estas ca-
que e a qualquer desvio. racterísticas, reconhecereis que ele vem do Alto, de um mundo
O princípio e o conteúdo do movimento são estrita e ex- não vosso, porque nenhum elemento vosso nele é introduzido
clusivamente evangélicos. Tudo aquilo que não pode perma- nem nele está contido; ao contrário, é cuidadosamente excluído.
necer no Evangelho de Cristo não pode igualmente permane- A imediata consequência prática desta claríssima tomada de
cer neste movimento. Não é possível distorcer em nenhum posição diante do mundo é a seguinte: se todos são admitidos,
sentido estas palavras. contanto que puros e honestos de coração, automaticamente são
As consequências são de igual modo simples e evidentes. excluídos aqueles que assim não são. Depuração, portanto, por
O movimento e quantos dele participam devem manter-se força íntima da realidade.
dentro do princípio fundamental do Evangelho: ―Ama a teu Vós, da Terra12, acostumados como sois a vos mover cons-
próximo como a ti mesmo‖. Não existe outro caminho possí- tantemente num mundo de imposição e de força, sem nada po-
vel. Quem não puder assimilar este princípio espiritual natu- derdes obter sem estes meios, dificilmente vos inteirais da inter-
ralmente estará excluído. venção de quais forças sutis, invisíveis e íntimas, poderosíssi-
mas e invioláveis, seja feito este movimento. Destes princípios,
O movimento, qual o Evangelho, é apolítico e supranacio-
aqui enunciados, emana imediatamente esta consequência práti-
nal. É simplesmente humano em sua universalidade. É interior
ca e evidente: não podem tomar parte neste movimento os inap-
e espiritual, não externo nem material, a não ser em suas últi-
tos.
mas e inevitáveis consequências, as quais não tocam, de modo
Por ser ele alicerçado sobre aqueles princípios, os ganancio-
algum, as normas humanas, absolutamente fora de seus objeti-
sos de riqueza, de mando, de glória e poder, sempre prontos e à
vos e de qualquer discussão.
espera para fazer especulação de tudo, até das coisas de Deus,
Assim sendo, o movimento é também suprarreligioso, pois
não encontrarão alimento algum, o mínimo ponto de apoio e,
não atinge nenhuma expressão religiosa, mas as respeita todas,
por si mesmos, se afastarão.
antes de tudo reconhecendo-as, tanto que as envolve todas num
Obtém-se, então, automaticamente, sem demora, sem gas-
único amplexo. Assim faz do dividido pensamento humano
to de energia, o afastamento da primeira ameaça que surge
uma potência de concepção unitária; das separadas e multifor- em qualquer movimento humano: a possibilidade de desfrute.
mes crenças, um ímpeto concorde de fé, de esperança e de pai- Evita-se que o mal possa aninhar-se nele e obtém-se ainda
xão para um Deus que deve ser o mesmo para todos, e uma sua imediata eliminação. Vede qual potência contém o im-
verdade que deve ser a mesma para todos. ponderável fator moral também nas organizações humanas.
Como tal, o movimento a todos convoca para que todos se Esse poder é tal que pode substituir esplendidamente, se ge-
unam em colaboração. Eis porque não existirão, como já se dis- nuíno, todos os vossos exércitos, as vossas complexas transa-
se no precedente escrito, nem chefes, nem subordinados, nem ções econômicas, todo esse tremendo equipamento de obri-
cargos, nem funções, nem propriedades, nem direitos, nem se- gações e vínculos que demonstram não vossa força, mas vos-
des, nem riquezas. A edificação deve efetuar-se, para cada um, sa fraqueza. E, por caminhos assim tão simples, conseguireis
no intimo da própria alma, qual obra e construção sua. Indistin- vantagens e uma perfeição que nenhuma organização humana
tamente, todos são chamados à colaboração, para que cada um pode alcançar. Aqui não existem atritos, pois não há luta nem
seja o criador, no próprio coração, do Reino de Deus. força, nem pode haver traição, porquanto não existe mentira.
Os meios humanos são, portanto, todos excluídos, porque O inimigo é externo: o mal; porém o mal não se vence com
não necessários. O novo reino deve nascer não nas organizações outro mal, mas sim com o bem.
humanas, mas no coração dos homens. E cada um deve realizar As rodas sobre as quais avança este organismo são: altruís-
essa criação antes de tudo em si mesmo, tornando-se melhor. mo (e não egoísmo), pobreza, dever, amor, sacrifício e, se ne-
Não é, pois, preciso outro chefe senão Deus, nem outro co- cessário for, o martírio. Ante o perfume destas grandes coisas,
mando exceto a voz justa da consciência. Dir-me-eis, porém: as almas perversas fogem, e, numa atmosfera assim rarefeita, os
Isto não basta para fazer uma religião. E eu vos digo: Não se indignos sufocam e velozmente se afastam para nunca mais se
trata de uma religião, mas de uma força que deve reavivar todas aproximarem. Eis as bases. Eis o tesouro que vos dará alimento
as religiões existentes. e poder, eis o exército que vos defenderá.
Para quem discordar, não existe qualquer dispositivo de co- É esta, pois, uma cruzada de homens honestos, simples-
erção como nas normas humanas, senão a perda automática da mente honestos. Não importa ciência, nem riqueza, nem pode
posição privilegiada de seguidor de Cristo – a perda da prote-
ção da lei justa de Deus. Isso significa uma rendição à feroz 12
Aqui, o pensamento da entidade espiritual Sua Voz se substitui impre-
lei terrestre da luta e da força sem justiça. A lei Divina, sempre vistamente ao do autor. (N. do A.)
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 77
rio. Disso não temos necessidade. Atrás do justo existe uma O mundo louco arma-se contra si mesmo, com perspectivas
força tremenda: a lei Divina, que o protege. Não vos preocu- sempre mais desastrosas, de recursos tremendos em face dos atu-
peis se não perceberdes essa lei. Ela é a mais profunda realida- ais progressos científicos. Uma conflagração bélica não deixará
de da vida. Não temais se esta realidade permanecer sufocada mais nenhum homem salvo sobre a Terra, se a loucura humana
em vosso baixo mundo de dor, encoberta pela vossa densa at- não se detiver a tempo. Onde o homem assim procede, não existe
mosfera de culpa. Cada homem a sente no profundo de sua senão uma extrema defesa: o abandono de todas as armas.
consciência, como um instinto incoercível. Mas o justo, tão lo- Dizeis: Mas nós temos o dever de viver.
go haja alcançado os mais altos níveis de vida, de imediato a E eu vos digo: Quando vós, com ânimo puro, disserdes:
encontra e a sente com absoluta confiança e por ela se reco- ―Em nome de Deus‖ – então tremerá a Terra, porque as forças
nhece seguramente amparado. do universo se moverão; quando fordes verdadeiramente jus-
Esta cruzada de homens novos se constitui hoje, no mundo, tos, quando inocentes, se a violência vos ferir, triunfando
para sua salvação. Seus componentes serão recrutados em todas momentaneamente, o infinito precipitar-se-á aos vossos pés
as classes, em todas as crenças, em todos os países. para vos dar a vitória e levantar-vos ao Alto, na condição de
Não se trata de vãs utopias. São possibilidades lógicas e triunfadores na eternidade, bem longe do átimo de tempo em
reais, baseadas sobre forças concretas, embora sejam para vós que a violência venceu.
imponderáveis. ◘◘◘
Uma só coisa basta: ser honesto. E basta sê-lo para sentir-se Eis os princípios que Sua Voz me transmite – desta vez não
irmão e unido aos irmãos honestos. Não vos reconhecereis por mais sob forma afetuosa, mas feitos de poder e conceito.
sinais exteriores, mas somente por essa íntima sensação, que Eis o que Sua Voz pede à alma do mundo. Sua alma coleti-
vos lançará irresistivelmente uns nos braços dos outros. Não va, una e livre como uma alma individual, pode escolher, e des-
vos fatigueis, como sempre tendes feito, a escavar abismos en- sa escolha dependerá o futuro. Sua Voz afasta-se, em silêncio,
tre vós em todos os campos, mas lutai para reencontrar-vos to- de quem não a segue.
dos nesta unidade substancial de espíritos. Ela é urgente, pois Eis o que Sua Voz pede, primeiramente ao Brasil, escolhido
que são iminentes e tremendos os tempos, que a impõem como para a primeira afirmação destes princípios no mundo. E esta
questão de vida ou de morte. afirmação deve ser um imenso amplexo de amor cristão. Será a
◘◘◘
primeira centelha de um incêndio que nos deve inflamar de
Nestas palavras, não minhas, mas de Sua Voz, tudo é cons-
bondade, para dissolver o gelo de ódio e rivalidade que divide,
trutivo. Nunca atacam e, se há alguma coisa para destruir, elas
esfomeia e atormenta o mundo.
com isso não se preocupam, mas a deixam em abandono, para
Este é o espírito dos novos tempos. Somente quando virmos
que caia por si; não existe mais ativo agente de destruição do
este espírito voltar à vida dos povos, é que poderemos dizer que
inútil do que um novo organismo vital em funcionamento.
Cristo voltou outra vez e está presente entre nós.
Se um corpo é velho e moribundo, afadigar-vos-eis em des-
Gúbio (Itália), na noite de 12 de fevereiro de 1934.
truí-lo? O que é verdadeiramente inútil cairá por si mesmo, sem
necessidade de se acionar uma causa de destruição violenta,
que recairia depois inexoravelmente sobre quem a movimentou. Princípios (1952)
Acreditais que, para demolir aquilo que é inútil, seja mesmo in-
dispensável a intervenção do homem, ou que ele seja capaz de O primeiro dever de uma revista que nasce é orientar clara-
guiar e escolher com segurança, e que a Lei não contenha em si mente seu pensamento e declarar com sinceridade seus objeti-
os meios para afastar aquilo que não tem razão de ser? Como vos, estabelecendo uma linha de conduta segundo princípios,
podeis crer seja isso possível num organismo totalmente regido aos quais, depois, deverá permanecer fiel.
por um perfeito equilíbrio, qual é o universo? O escopo desta revista é operar a transformação desses
A condição para ser admitido neste movimento é um sim- princípios em vida vivida, isto é, ajudar a nascer, do homem de
ples exame de consciência perante Deus. Coisa simples, pro- hoje, um tipo biológico mais evolvido, representado pelo novo
funda e imensa, fácil e tremenda. Mas isto nada é, dirá o mun- homem do Terceiro Milênio.
do. Entretanto isto é tudo, diz o espírito. Experimentai seria- Este movimento inicia-se no Brasil, tendo lambem em vista
mente e sentireis que é verdade. É esta coisa simples e tremen- sua futura grandeza como nação.
da que o homem deve hoje fazer, à margem do abismo onde, se Enunciar um princípio aqui significa, pois, vivê-lo.
não se detiver, cairá de maneira terrível. Antes de iniciar o argumento, faz-se necessária uma
E se vós, almas sedentas de ação exterior, de movimento e de premissa.
sensações, quereis evadir-vos desta íntima vida do espírito para O signatário pede desculpas se algumas vezes tiver de pro-
ingressar em vossa exterior realidade humana e trabalhar, clamar, nunciar a palavra eu. Por essa razão, é bom esclarecer e estabe-
conquistar e vencer também com os braços e com a ação, então lecer, desde o princípio, que ele nada pede jamais para si e não
vos digo: ―Saí, saí de casa; ide ao vosso inimigo mais cruel, quer absolutamente ser chefe de coisa alguma. Quis, por isso,
àquele que mais vos tem traído e torturado e, em nome de Cristo, que a denominação ABAPU (Associação Brasileira dos Ami-
perdoai-lhe e abraçai-o; ide àquele que mais vos tem roubado e gos de Pietro Ubaldi) fosse substituída pela de ABUC (Associ-
cancelai-lhe o débito, e mais, entregai-lhe quanto possuís; ide ação Brasileira da Universalidade de Cristo)13, para que a ideia
àquele que mais vos insultou e dizei-lhe, em nome de Cristo: Eu se antepusesse a qualquer personalismo. E este é já um princí-
te amo como a mim mesmo, porque és meu irmão‖. pio geral para ser vivido.
Direis: Isso é absurdo, é loucura, é desastroso; é impossível Outro princípio geral: o que importa não é a pessoa, mas a
sobre a Terra esta deposição de armas. Mas eu vos digo: Vós ideia.
sereis homens novos somente quando usardes métodos e recur- Estes princípios já definem a posição do subscritor, que de-
sos novos. De outra forma, não saireis nunca do ciclo das ve- verá ser sempre o primeiro a aplicá-los, vivendo-os. Sua posi-
lhas condenações, que eternamente punirão a sociedade das su- ção é de oferecer, apenas oferecer, o produto de sua inspiração.
as próprias culpas. Pela mesma razão pela qual Cristo se ofere- Isto ele já o tem feito ao mundo.
ceu na cruz, hoje a humanidade deve sacrificar-se a si mesma O Brasil, em primeiro lugar, o compreendeu e o aceitou.
por esta sua nova, profunda, absoluta e definitiva redenção.
13
Porque, sem holocausto, nunca haverá redenção. Associação instituída em Campos. RJ, no Natal de 1949. (N. da E.)
78 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
O signatário deseja apenas uma coisa: que isto seja para a Existe outro princípio que se segue a este: sejamos sempre
grandeza desta nação que ele agora aprendeu a amar imensa- construtivos, isto é, operemos em sentido positivo, unitário,
mente. Sua posição, ele o quer, deve ser apenas esta: a daquele como é o bem, e jamais sejamos destrutivos, isto é, nunca aja-
que serve, e não a de quem é servido; a de quem se põe a ser- mos em sentido negativo, separatista, como é o mal.
viço dos outros, e não a de quem os subordina ao próprio orgu- Tudo o que é agressividade é satânico. O Evangelho não o é
lho, domínio ou egoísmo; é a posição daquele que obedece, e nunca.
não a de quem comanda. Seja nossa obra todo um amplexo ao mundo e, unicamente,
Ele serve ao próximo e obedece a Deus – outro princípio um amplexo de amor.
geral para ser vivido. Guerra, jamais, a ninguém, por nenhuma razão. A vitória
Cada ato de nossa vida deve ser inspirado por estes princí- estável e verdadeira obtém-se apenas com a bondade, o amor, o
pios e pelos que exporemos depois. exemplo, a convicção.
Aquele que está em posição mais elevada, mais deverá vivê- Que o Evangelho, tão pouco vivido até hoje, se transforme
los, mais é responsável diante de Deus e dos homens. na forma de vida do homem novo, num novo método de viver,
Com tudo isto, estamos recordando que todos nós temos o que penetre cada ato nosso, demonstre que somos evolvidos e
dever do exemplo, o primeiro dever, somente com o qual se po- se manifeste com nosso exemplo a cada momento.
dem pregar quaisquer princípios, demonstrando, antes com fa- Que no terreno filosófico, político, religioso, isso signifi-
tos que com palavras, que eles podem ser vividos. De outra que tolerância. Não, porém, uma tolerância raivosa, na atitude
maneira, não se tem o direito de pregar – outro princípio geral. de quem suporta com desdém o erro alheio; ao contrário, uma,
O leitor vê como, desde a primeira enunciação, os princí- tolerância que busca os pontos de contato, os pontos comuns,
pios aqui se apresentam não teóricos e abstratos, mas numa e se alegra quando pode dizer: ―Mas, então, concordamos em
forma vivida ou para viver. muitas coisas! Não estamos, pois, tão distanciados quanto nos
Quem quiser buscar-lhes a justificação sistemática e racional parecia. Podemos entender-nos um pouco e não há necessida-
poderá aprofundar-se em seu estudo nos volumes do subscritor, de de contenda‖.
também oferecidos ao mundo para que aqueles que amam o co- Em sua saudação, repetida em quase todas as conferências
nhecimento aprendam, saciando a inteligência. Ele apenas ofere- no Brasil, o signatário afirmou seus dois princípios fundamen-
ce, por uma convicção espontânea, sem jamais impor. tais: universalidade e imparcialidade.
Eis-nos diante de outro princípio geral para ser vivido: ofe- Que significam eles?
recer, e nunca impor a verdade. Eis o patrimônio espiritual de São o emblema do homem novo.
cada consciência. Nunca introduzir-se na alma alheia com a vi- Sua Voz, já na primeira Mensagem do Natal, em 1931, esta-
olência da argumentação, numa guerra de ideias, para subjugar belecia estes princípios fundamentais, que são, depois, desen-
o semelhante; antes, procurar todos os meios de comunicação volvidos em toda a obra:
que conduzem à compreensão. ―Falo hoje a todos os justos da Terra e os chamo de todas as
É lei vital que a época dos absolutismos, dos dogmatis- partes do mundo, a fim de unificarem suas aspirações e preces
mos, dos imperialismos ideológicos, hoje se vá superando e numa oblata que se eleve ao céu. Que nenhuma barreira de reli-
eliminando. gião, de nacionalidade ou de raça os divida, porque não está
A nova era é da bondade na compreensão recíproca; da longe o dia em que somente uma será a divisão entre os ho-
convicção de todos no seio de um mesmo Deus; é a era do mens: justos e injustos... Minha palavra é universal... Uma
amor. O princípio é: procurar o que une e evitar o que divide. grande transformação se aproxima para a vida do mundo...‖.
Sendo dever nosso viver tudo isto, conclui-se que, aqui, será Brevemente, o mundo se organizará sobre um princípio no-
sempre evitado o espírito de polêmica, pois este é considerado vo, que não será dado por um imperialismo religioso, isto é, pe-
como expressão da psicologia de um tipo biológico atrasado, la vitória de uma religião que, por absolutismo, se imponha a
que está sendo cada vez mais superado pela evolução. todas as outras. Não é por este caminho que se chegará à unida-
Nosso método, portanto, é de nunca oferecer aos ávidos de de, a saber, um só rebanho e um só pastor.
polêmica a resistência de outra polêmica, isto é, o mau exemplo O único pastor será Cristo, e o único rebanho será formado
de luta e guerra. por uma humanidade em que as várias religiões não se comba-
Seja nosso método o do Evangelho. tam e não se condenem mais reciprocamente; ao contrário, se
Este é o método dos evolvidos, ao passo que o outro é o mé- compreendam e coordenem, fazendo dos homens todos filhos
todo que logo revela o involuído, biologicamente atrasado. É o diante de um único Deus, um só Deus, pai de todos.
único método que vence, pois, enquanto ambas as partes se di- Esta compreensão e coordenação é a primeira forma em que
laceram na luta, ganhando apenas em ferocidade e perversida- se revelará o amor em sua era, que está para surgir – a nova ci-
de, com nosso método o antagonista, não encontrando alimento vilização, o Reino de Deus.
para seu espírito de agressão, por si mesmo se desarma e cai. Como aplicaremos este princípio? Fraternizando. Se os ou-
Como se vê, os nossos princípios não são uma novidade, tros condenam, perdoemos e amemos.
pois que são os conhecidíssimos princípios do Evangelho. Pro- Como respondeu Cristo aos agressores? O seu método seja o
pomo-nos apenas a vivê-los seriamente, convencidos de que nosso método. Aos ataques, às polêmicas, às condenações, res-
disso pode nascer hoje o homem novo e, com ele, uma nova ge- pondamos com o exemplo da compreensão. Demonstremos com
ração e uma grande nação. os fatos que o homem novo possui um novo método de vida e
Este deve ser o método usado, pois é o que revela a própria abandonemos o velho método ao homem do tipo do passado.
natureza, o próprio tipo biológico de evolvido ou involuído, a Este vive mais no exterior que no interior. Suas inclinações
própria superioridade ou inferioridade. se dirigem, de preferência, às manifestações exteriores da fé:
A ideia de vencer esmagando o adversário revela imediata- seguir determinada escola, igreja ou grupo, dar-se a certas prá-
mente o involuído. Ainda quando isto se faça em nome de ver- ticas visíveis.
dades absolutas e assim se justifique, na realidade exprime bio- Aquele que compreende e tem a força de renunciar às mani-
logicamente instintos de agressão. festações, indispensáveis aos primitivos, recolha-se o mais que
Compreendamos que a verdade é relativa e progressiva, puder na religião de substância, que é interior, sozinho quando
portanto nos foge em seu aspecto absoluto. Nós, relativos, não for necessário, para eliminar ataques e dissídios da religião de
podemos possuí-la senão por progressivas aproximações. forma, que é exterior.
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 79
A maioria não sabe pensar senão fisicamente, com movi- ção. Outros deles, porém, embora verbalmente se confessassem
mentos do corpo e da boca. O evolvido, porém, sabe que a reli- e, nas práticas religiosas, se manifestassem perfeitamente orto-
gião de substância, mãe de todas as religiões, está acima da doxos, não viviam inteiramente seus princípios, demonstrando,
forma e de toda manifestação sensória; é uma religião mais pro- com fatos, que, em realidade, neles não acreditavam de modo
funda, sentida e vivida, feita de alma e de ação, não de práticas absoluto. Isso me encheu de tristeza.
materiais, na qual todas as religiões encontram lugar. Achei-me, depois, entre os protestantes e os observei. Mui-
Esta, verdadeiramente, é a religião. tos deles eram sinceros e convictos e viviam aplicando, real-
As religiões têm três fases. A primeira, a mais antiga, é a ter- mente, os princípios de sua religião. Sua verdadeira fé me en-
rorista, feita de um Deus vingativo, que se faz obedecer inexora- cheu de admiração. Outros deles, porém, embora verbalmente
velmente, punindo com a lei de talião. A segunda, mais recente, é se confessassem e, nas práticas religiosas, se manifestassem
a ético-jurídica, feita de uma codificação de normas de vida. perfeitamente ortodoxos, não viviam inteiramente seus princí-
É o evolver da natureza humana inferior que pode permitir pios, demonstrando, com fatos, que, em realidade, neles não
uma manifestação de Deus e fazer transparecer cada vez mais acreditavam de modo absoluto. Isso me encheu de tristeza.
Sua bondade. Achei-me, também, entre os espíritas e os observei. Muitos
Somente hoje, a maturação humana pode permitir que, sem deles eram sinceros e convictos e viviam aplicando, realmente,
o perigo de abusos, antes temíveis, seja possível passar à tercei- os princípios de sua doutrina. Sua verdadeira fé me encheu de
ra fase, da compreensão, na qual as religiões são livres e con- admiração. Outros deles, porém, embora verbalmente se con-
victas, cada vez mais transformadas da forma, em que lutam os fessassem e, nas práticas formais, se manifestassem aderentes à
interesses, em substância, que é amor. sua doutrina, não viviam inteiramente seus princípios, demons-
Elas se sucedem, não porque sejam sancionadas por penali- trando, com fatos, que, em realidade, neles não acreditavam de
dades (inferno), mas porque se compreende que significam o modo absoluto. Isso me encheu de tristeza.
nosso bem. Achei-me, depois, entre os teosofistas, os maçons, os mao-
Nesta fase, cai e perde a significação o terror de um Deus metanos, os budistas etc., e observei o mesmo fenômeno.
vingativo. Encontrei-me até entre ateus, materialistas convictos. Não
Assim, por evolução, do conceito de um Deus todo força, o obstante, entre eles, encontrei os que procuravam viver segun-
senhor com o azorrague, como era o homem com seus escra- do superiores princípios de retidão. Senti respeito por eles.
vos, árbitro absoluto de tudo conforme seu capricho, passa-se Qualquer convicção vivida com retidão merece respeito. O que
ao Deus justo, que respeita completamente a lei estabelecida me encheu de tristeza foi ver o ateu materialista, animalesca-
por Ele próprio, assim como o homem moderno deve respeitar mente involuído, somente animado de instintos egoístas para
as leis que ele cria para si mesmo no Estado. prejudicar o próximo.
Desse modo, por evolução, passa-se agora ao conceito de ◘◘◘
um Deus não só justo, mas também bom, que nos ama para a Observando-os todos, perguntei a mim mesmo então: a di-
nossa felicidade, como o homem civilizado e compreensivo de
visão real, verdadeira, é entre homens de uma religião, doutrina
amanhã amará seu próximo nas grandes unidades sociais do fu-
ou crença, ou é, antes, entre os homens sinceros e honestos e os
turo. Assim, por lento transformismo, o terror, na progressiva
homens falsos e desonestos, que se encontram no seio de todas
reabsorção do mal, operada pela evolução, desfaz-se na justiça,
as religiões, doutrinas e crenças? Apesar das várias divisões
e esta se aperfeiçoa e se enriquece no amor.
humanas, em cada uma delas, sempre encontrei esta outra divi-
Hoje se passa da segunda à terceira fase. Ainda se funde e
são universal entre bons e maus.
se confunde o útil com a verdade. O interesse predomina, por-
Perguntemos a nós mesmos então: não será esta a verdadei-
que predomina a forma. O rebanho, para ser apascentado, a que
ra distinção, muito mais real que a outra, em que tanto se insis-
tanto aspiram as religiões, tem sido transformado muitas vezes
em rebanho para mungir, propriedade do pastor. te? Pertencer ao primeiro tipo de homem, antes que ao segun-
Pelo princípio das grandes unidades, a evolução leva à do, não será muito mais importante e decisivo do que pertencer
unificação e guia hoje o mundo em todos os campos – logo, a um determinado agrupamento religioso? Que importa perten-
no religioso também – à fase orgânica, em que não há luta de cer a esta ou aquela religião, quando não se é sincero nem ho-
rivais, mas colaboração de irmãos. Penetra-se na fase do nesto? Não é isto o fundamental em qualquer campo? E não é,
amor. O mundo se distancia cada vez mais da primitiva fase então, esta a mais importante entre todas as divisões humanas,
caótica, e a ordem se faz sempre mais compreendida, convin- muito mais do que a atualmente aceita? Não será essa a divisão
cente, espontânea. que Deus mais assinala, de preferência à outra, que se refere,
O Brasil, dentre suas qualidades, tem, sobretudo, a da tole- mais do que à bondade do homem, aos interesses humanos que
rância recíproca: ausência de intransigência, de absolutismos, em torno dela se agrupam?
de racismo. É, pois, acima de tudo, a terra do amor, ainda que Qual é o fato mais decisivo para a edificação do homem (is-
este esteja, muitas vezes, apenas em suas manifestações mais so constitui o objetivo de todas as crenças): conhecer os por-
elementares. Já é, contudo, amor e pode subir. menores dogmáticos e doutrinários na ortodoxia da letra, ou
Como representa a fusão das raças, também representa a ca- haver compreendido o simplicíssimo princípio do bem e do
pacidade de fusão de ideias. Esta capacidade do Brasil, de amar mal, princípio universal, existente em todas as religiões, inscri-
em todos os níveis, se for desenvolvida em direção ao espírito, to no espírito humano, e, sobretudo, viver esse princípio?
poderá amanhã fazer do Brasil a nação mais capaz de compre- A verdadeira distinção, nesse caso, não é a atualmente vigo-
ender, representar e divulgar no mundo aquilo que aqui cha- rante em nosso mundo, entre católicos, protestantes, espíritas,
mamos religião, isto é, a religião de substância, que é a religião teosofistas, maçons, maometanos, budistas etc., mas sim entre
do exemplo, da bondade e do amor. justos e injustos. Esta é a distinção substancial, que tem valor
diante de Deus, muito mais importante que a outra, que pode
A Verdadeira Religião (1952) ser apenas formal. Pode-se mentir na segunda, que é fictícia,
mas nunca na primeira, que é real.
Encontrei-me, viajando pelo mundo, em todos os ambientes. Por que, então, tantas lutas religiosas e doutrinárias? Não
Achei-me entre católicos e os observei. Muitos deles eram têm elas outro valor senão a defesa do patrimônio conceptual
sinceros e convictos e viviam aplicando, realmente, os prin- do grupo e os interesses que dele dependem? Por que, então,
cípios de sua religião. Sua verdadeira fé me encheu de admira- não reduzir todas as crenças a esse seu denominador comum,
80 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
que é a sua substância, em que todas se encontram, além de to- o mal tudo que está fora de seu eu, do seu grupo ou hierarquia,
das as divisões? E por que não achar nessa substância a ponte nem condena em defesa própria. Não se faz representante de
que as une todas numa característica comum, em lugar de pro- Deus para dominar com sua personalidade, mas reconhece em
curar as especulações sutis que podem dividi-las? Por que não Deus o Pai de todos.
parar e insistir no que importa acima de tudo: a bondade e a O homem está evolvendo, e a religião dos justos será a reli-
evolução do homem? gião unitária que a todos entrelaçará. O estado até hoje vigente
Tudo isso é importantíssimo para a fusão das almas no ca- corresponde à fase caótica do mundo. Ele caminha, porém, para
minho da unificação, que é o futuro do mundo em todos os a fase orgânica, na qual os relativos pontos de vista, em todos
campos. Daí nasceria um grande respeito recíproco, uma nova os campos, se coordenarão numa verdade universal.
possibilidade de compreensão, um superior espírito de fraterni- A religião una será a substancial, a religião do bem e dos
dade. O cioso amor à ortodoxia, justificável em outros tempos, bons, que se compreenderão, por serem evolvidos. Para essa
excitado até ao ponto de preferir a letra ao espírito, pode signifi- compreensão, os involuídos ainda não estão maduros, pois só
car uma satânica falsificação da fé na psicologia farisaica, en- podem crer que a salvação depende apenas da filiação a esta
fermidade de todos os tempos e de todas as religiões. Pode, en- ou aquela forma da verdade, sem cuidar da substância, que
tão, acontecer que se faça da religião o que sempre se tem feito pode estar em todas as formas. Tudo isso, porém, será fatal-
do amor à pátria, que, embora santo em si, se transforma em mente superado.
agressividade e guerras contra outras pátrias. Ora, assim como É lei de evolução que o dualismo em que se dividiu nosso
esse tipo de amor nacional, hoje em vias de desaparecimento, universo se vá reconstituindo gradativamente, em todos os
está superado pela vida, que caminha para a unificação social, campos, em sua originária unidade, de que o espírito caiu na ci-
também será superado nas religiões o espírito de absolutismo e a são, na forma, na matéria. É fatal lei de evolução que chegue
intransigência, pois a vida se dirige para a unificação religiosa. finalmente à Terra a tão esperada realização do Reino de Deus.
É necessário, assim, abandonar o espírito separatista de do-
mínio em nome de absolutismos, por uma verdade que, na Ter- Carta Aberta a Todos (1933)
ra, para o homem, não pode deixar de ser relativa e progressiva,
isto é, em função de sua capacidade evolutiva.
Completam-se, hoje, dois anos desde que Sua Voz começou
A vida, hoje, caminha para a colaboração por compreensão
a falar. É Noite de Natal, e eu me afasto por um momento da
em todos os campos, e os imperialismos, políticos ou religio-
reunião familiar, para meditar e escrever.
sos, pertencem a fases que estão sendo superadas. Os imperia-
Este é um exame público de consciência, que efetuo na hora
lismos espirituais retardam a unificação, que se situa justamente
solene em que se aguarda para comemorar, uma vez mais, o
no campo das convicções e das consciências e não pode ser ob-
nascimento do Salvador do mundo.
tida com o espírito de absolutismo e de domínio.
Não sei qual imenso espanto me invade nesta hora solene,
◘◘◘
na qual o homem é vencido pela maravilhosa voz de Cristo. Ex-
Qual é, pois, a religião de substância em que poderão paci-
ficar-se todas as distinções humanas, encontrando-se em seu tasio-me na visão de um mundo regenerado por essa voz e nela
denominador comum? detenho-me, buscando descanso. É a noite encantada na qual o
A religião de substância é somente uma. A ela pertencem grande signo do amor adquire realidade também sobre a Terra.
todos os honestos que creem sinceramente e vivem suas cren- Cristo está aqui conosco esta noite, para nossa paz.
ças, sejam católicos, protestantes, espíritas, teosofistas, maçons, Amanhã terei que volver a empreender a caminhada sozi-
maometanos, budistas etc. nho, exausto, com uma imensa visão na alma, uma febre inces-
Estão, ao contrário, fora da religião todos os falsos, os injus- sante no coração, um estalido de paixão em cada pensamento.
tos, os que interiormente não creem (embora formalmente em Sinto-me oprimido pela minha debilidade e pela imensidão do
seus lugares), os que não vivem suas crenças, sejam católicos, programa. Quem sou eu para me atrever a tais tarefas? Haverá
protestantes, espiritistas, teosofistas, maçons, maometanos, bu- alguém mais aterrorizado e mais aniquilado do que eu? Cum-
distas etc. Estes então se igualam, pois representam a traição à prirei totalmente com o meu dever e haverei de cumpri-lo no
ideia que professam. futuro? Terei forças suficientes para fazê-lo? Vou mendigando
Na ―Mensagem de Natal‖ de 1931, diz Sua Voz: ―... não está um consolo a todas as almas boas, para que me sirvam de
longe o dia em que somente uma será a divisão entre os ho- apoio à minha debilidade. Se Sua Voz me abandonasse, eu me
mens: justos e injustos‖. Na Terra, em todos os campos, exis- sentiria completamente arruinado.
tem sempre dois tipos humanos: o evoluído e o involuído. En- Entretanto, hoje se completam dois anos que essa voz re-
contram-se em todas as filosofias, governos, religiões, hierar- tumba no mundo e o mundo a escuta. Nada me havia causado
quias e povos. jamais tanto assombro como esta afirmação decisiva, sem pre-
O involuído vive sempre no nível animal, é animado pelo paração alguma de minha parte, nem vontade, num mundo on-
espírito de dominação e é, por isso, intransigente e agressivo; de, com frequência, as coisas mais sabiamente preparadas e
fecha-se na forma, desprezando a substância; é mais ligado à mais intensamente queridas não obtém êxito.
Terra que ao céu; julga-se, em todos os campos, sempre com a Como pode avançar tudo isso com a abstração da minha de-
posse da verdade e da parte de Deus, julgando todos os outros bilidade e hesitação? Como pode produzir efeito e arrastar meu
como situados no erro e da parte de Satanás. Tende à egocêntri- pensamento, que deveria ser sua causa? Que força convincente
ca monopolização da Divindade. reside naquelas palavras escritas improvisadamente, sem que
O evolvido tem características opostas. Vivendo num nível delas eu me desse conta, para conseguir o assentimento de tan-
mais alto, é animado pelo espírito de fraternal compreensão; tos? Que sensação de infinito desperta e abala os espíritos?
tolera e auxilia; fala com o exemplo, dando, e não dominando; Tremo e, no entanto, avanço. Quisera resistir por um instin-
é mais aderente à substância que à forma, mais unido ao céu to de objetividade, e me vejo arrastado. Quem é, então, que me
que à Terra. Não julga nem condena. Tende a anular seu eu em guia? E quem, por mim, conhece a estrada e o futuro? Sofro de-
Deus e no amor ao próximo. Não se faz paladino da verdade salentos terríveis, no entanto, apesar disso, tudo prossegue do
para exigir virtude dos outros, mas começa por praticá-la ele mesmo modo. Que sou eu diante do imenso torvelinho de for-
mesmo; ilumina, não impõe, pois respeita as consciências. Não ças que me rodeiam? Que outro grande mundo existe além des-
pretende ser o único que tem Deus consigo. Não identifica com te que todos veem e creem ser o único?
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 81
Parece indubitável que meu trabalho faça parte de um cada recôndita dor da experiência, tornou-se mais clara. Assim
grande programa de renovação mundial, que ignoro e que não foi aumentando, completando-se num organismo ideológico, so-
pode deter-se. Rebelar-me ou vacilar seria em vão. Isto já é to- lidificando-se sob o fogo das provas. Depois do largo aprendi-
da a minha vida. Não conheço o futuro, mas sei muito bem que zado na escola da experiência, em contato com a realidade, in-
todo movimento iniciado não se poderá deter, a menos que te- vadiram minha psique racional e humana e agora, depois da total
nha completado sua trajetória. assimilação, dominam-na, conferindo-lhe, ante os mais graves e
Nesta Noite de Natal, todos vós, homens de boa vontade, intrincados problemas do pensamento humano, a segurança que
que sentis uma fé viva, uma paixão de bondade, uma alma aber- somente pode outorgar a visão direta. Não mais, pois, vãs ideo-
ta às palavras de Cristo – não importa como a sintais e a mani- logias, porém sim a sabedoria expressa pela luta e pela dor; a
festeis, desde que essa paixão arda dentro de vós em substancia experiência provada e concluída com objetividade, mesmo
– ajudai-me a orar junto ao berço para que o Santo Menino nos quando pessoal, controlada e direta; não mais uma abstração,
faça compreender esta sublime maravilha que desceu do céu senão – o que é mais interessante – um caso vivido.
sobre a Terra: o amor fraternal. O leitor se encontrará, portanto, diante da realidade de um
Parece-me ver o Grande Rei, que veio à Terra por amor, ir drama e senti-lo-á, se lograr ler profundamente, ultrapassando o
mendigando de porta em porta, por este nosso triste mundo, sentido superficial, lógico e racional que precisei escolher para a
implorando-nos por caridade, pelo amor de Deus, um pensa- demonstração e o desenvolvimento da tese. Um drama sobretu-
mento de bondade para os nossos semelhantes. do verdadeiro; um drama que, sem dúvida, existiu também em
Perusa (Perugia, Itália). Vigília do Natal de 1933 muitos espíritos, perdurando ainda em muitos outros, se bem
que encoberto pelo silêncio. Um drama que talvez seja o maior
SEGUNDA PARTE – A EVOLUÇÃO ESPIRITUAL (1932) que a humanidade conheça, porém que poucos o vivem inten-
samente e percebem com clareza. Um drama que deverá ser de-
Premissa senvolvido pela nova filosofia, pelas novas religiões, pela nova
ciência, pela nova arte do futuro, e que poderá ser expresso por
Tratarei, nesta monografia, da evolução espiritual. Fá-lo-ei uma série de argumentações racionais com a magnificência do
em forma de trilogia, com o objetivo de dar equilibro e propor- simbolismo e do rito, ou com a concatenação de fórmulas ma-
ção à estrutura conceptual e nexo lógico ao desenvolvimento do temáticas e em expressão pictórica ou poética das sensações do
tema, tratando: I - Concepção; II - Os meios; III - A Realização subconsciente, ai onde está o futuro da alma e da arte, ou com a
da Evolução Espiritual. orquestração sinfônica, tal como foi concebida por Wagner.
A necessidade de tratar numa única monografia um argu- Wagner vinculou estas concepções ao pensamento coletivo,
mento tão vasto, que não poderia esgotar-se em muitos volu- demonstrando a universalidade das mesmas; concedeu-lhes
mes, impôs-me uma síntese que concluirá sem poder se deter uma importância que excede a minha contribuição pessoal.
nas intermináveis particularidades de uma análise, sem poder Publico-as, induzido por um misterioso, indefinível, mandato
completar-se com o desenvolvimento de questões colaterais, a interior, sob a atração das correntes psíquicas coletivas em via
que tive de renunciar inexoravelmente. de rápida condensação, sob a sensação da madureza dos tempos,
Não obstante este contínuo esforço de condensação de pen- que invocam e reclamam intérpretes. Só o percebe a alma que se
samento, a vastidão do tema nos fará percorrer os campos mais preparou no silêncio e na solidão, sozinha num mundo espiritu-
diversos dos conhecimentos humanos, desde as concepções da almente ausente e alucinado por outras miragens. Grandes tem-
ciência moderna à história comparada das religiões; desde o pestades íntimas, filhas do mistério, junto ao umbral do infinito,
conteúdo espiritual destas e do pensamento dos grandes cam- desenrolaram-se silenciosamente sob a forma exterior da indife-
peões da humanidade até ao estudo psicológico da introspec- rença, em meio a um mundo superficial e absolutamente incapaz
ção, que nos levará às misteriosas profundidades do espírito. De de admitir e compreender tais fatos, que representam sem dúvi-
maneira que, mesmo quando se queira considerar este escrito da um esforço enorme. Uma luta agônica, na qual o homem se
somente sob o ponto de vista cultural, não duvido que possa in- encontra sozinho frente a frente aos maiores mistérios!
teressar às mentalidades maduras, convidando-as ao exame de Se tudo isto reduz o indivíduo a uma vida aparentemente in-
argumentos ultramodernos, interessantes e importantes, por- significante, pois o afasta de toda a afirmação exterior e absor-
quanto constituem o campo inexplorado ao redor do qual traba- ve suas melhores energias, privando-o das vitórias que os ou-
lham a filosofia, as religiões, a ciência e as artes; o campo dos tros podem alcançar, termina, contudo, por acumular nele ta-
futuros descobrimentos e das criações intelectuais e morais. manho caudal de força moral, que um dia lhe criará uma vida
Este escrito, porém, não é tão-somente um ato de estudo e nova, iluminada numa explosão de luz, como uma ressurreição.
investigação, nem apenas um trabalho mental, mas também um Assim, esta monografia poderá interessar também como es-
trabalho de sentimento e de paixão. Nele reside sua maior im- tudo de um caso psicológico e de um determinado tipo de per-
portância. Não se trata da mentira literária de costume, com que sonalidade humana.
frequentemente um escritor prefere mascarar mais do que reve-
lar seu próprio espírito. É coisa bem rara, especialmente hoje, I - Os Caminhos da Libertação
um ato de grande sinceridade.
Os conceitos que exporei, buscados ansiosamente durante Delineamos na primeira parte deste estudo a existência de
vinte anos de estudo (pois que à vida não deve interessar tão uma evolução espiritual, que se manifesta especialmente no
somente a solução dos problemas econômicos, senão também o atual momento histórico, como resultado de dois fenômenos: a
intelectual e moral), foram captados no ambiente das correntes madureza psíquica do organismo humano, que, superando a
espirituais da humanidade passada e presente, e não extraídos animalidade, conduz à transformação biológica do homem em
dos trabalhos de outrem. Achei-os e reconheci-os, qual uma es- super-homem, e a maturidade do pensamento coletivo da hu-
tranha recordação, nos arcanos insondáveis de meu espírito. manidade, que ascende, através da evolução das religiões, para
São, para mim, a revelação de uma recôndita personalidade uma consciência universal.
própria; diria quase de um oculto eu interior, que vive e obra Duas madurezas: madureza de órgãos psíquicos, que deter-
além dos limites da vida e da morte. mina a capacidade de concepções, e madureza de produtos con-
Estes conceitos manifestaram-se para mim gradualmente, ceptuais do pensamento coletivo. Duas madurezas que se pres-
como por uma interna revelação, que, a cada choque da vida, a supõem reciprocamente, se ajustam e se sustêm mutuamente,
82 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
para levantar a humanidade ao plano da linha de evolução espi- gem que desejaria apagar. Submerso em seu próprio egoísmo,
ritual, conduzindo-a a um novo e mais elevado estado de cons- não enxerga mais além do que o espaço que ocupa, e sua miopia
ciência. Na terceira e última parte deste escrito, veremos qual é psíquica o faz acreditar ser possível a separação do bem-estar
esta consciência. Antes de chegar a este ponto, observemos, próprio do bem-estar coletivo. Tão-somente o interesse desperta
nesta segunda parte, quais são os caminhos que conduzem à re- seu desejo, dispondo-o à ação; a miragem do lucro o impulsiona,
alização da evolução espiritual. lançando-o à conquista. Deste modo, ele projeta, ensaia, exercita
Denominei-os, ex-professo14, ―caminhos da libertação‖, pa- e tempera suas forças, progredindo quando vence e sucumbindo
ra indicar de quantas qualidades humanas e subumanas deve- quando perde. É o sistema da seleção, que premia o mais forte,
mos, como almas em expiação, libertar-nos antes de alcançar- graduando a recompensa em proporção à força. Existe uma jus-
mos o reino do super-homem. Grandiosa ascensão humana, tiça também nos mundos inferiores, e, mesmo quando seja por
que, partindo do inferno da animalidade (o mundo da besta), meios ferozes, dignos por certo de quem os escolhe, também os
atravessa o purgatório da dor, que redime (o mundo humano), seres deste nível podem realizar um progresso.
para chegar ao paraíso da realização do divino (o mundo super- Há, pois, uma lei, e, nesta lei, uma série de princípios: da
humano). A lembrança da trilogia dantesca e da fé na ascensão involução deriva a ignorância; desta, o egoísmo; do egoísmo, o
espiritual – que não pertence somente ao poeta, mas a toda a sistema da força; desta, a seleção e o progresso, de um lado, e
Idade Média e à maior religião do Ocidente – nos fará uma boa o mal e a dor, do outro.
companhia neste estudo, que pretende ser uma demonstração Este mundo de leis naturais não conhece a justiça, que é
racional do espiritualismo. Demonstração daquela mesma fé, conceito novo, de um mundo mais elevado. A força, frente à
porém de acordo com os conceitos da ciência e da psicologia lei moral, é violação e injustiça. Entretanto esta injustiça, que
modernas; uma solidificação dos fundamentos desta eterna e parece não possuir limites, porquanto a força pode tudo e tudo
imprecisa aspiração da alma para o Alto, batendo-a sobre a bi- poderia destruir e usurpar, impondo-se desmedidamente, tem
gorna da observação objetiva; elevação, ao mesmo tempo, do um freio em sua própria lei: a força que se desencadeia dos
materialismo para o espiritualismo, continuando e completando egoísmos limítrofes, uma tentativa de equilíbrio, um rudimen-
o primeiro, justificando racionalmente o segundo. Não mais to de justiça, que, mesmo tomando por unidade de medida a
ecletismo, mas fusão entre estes dois extremos do pensamento injustiça da força, garante a cada ser o que lhe corresponde e,
humano, inconciliáveis tão-somente na aparência e transitoria- através do equilíbrio de tantas injustiças, consegue uma espé-
mente; e, mais do que fusão, fecundação, já que, de sua união, cie de justiça primitiva, o máximo que é possível conceber
nasce uma criatura nova, um espiritualismo científico, que é a naquele nível de vida.
verdade mais completa do futuro. Não sendo materialismo e Num mundo em que devorar-se reciprocamente é uma ne-
nem espiritualismo, os partidários de ambas as escolas ficarão cessidade primordialmente orgânica e os vários graus de evolu-
insatisfeitos, porém não importa. Com isso, projeta-se uma luz ção são uma necessidade lógica, poderá parecer difícil pergun-
nova sobre os eternos problemas, agrega-se algo às filosofias tar-se como conseguiu nascer e afirmar-se o conceito de altru-
do passado. Uma fé viva, que não está fossilizada nas mentiras ísmo, bondade e justiça, tão prejudicial para o eu, tão antivital,
convencionais a que hoje ficaram reduzidas as mais altas idea- porquanto se estriba no abandono de todas as ofensas e defesas;
lidades; uma fé mais próxima da nova psicologia dos tempos, um conceito de vida que revoluciona todos os valores anteriores
que exerce forte pressão; uma fé da qual, para aqueles que, co- e que significa uma tão completa negação de tudo quanto pode
mo eu, a possuem, é mister dar o testemunho. ardentemente apetecer a natureza. O que este conceito represen-
Voltemos aos conceitos com que iniciamos este estudo, os ta na economia da vida até pareceria absurdo, no entanto, em
quais deixamos no meio da primeira parte para estudar a evolu- seu nome, alguns homens se atreveram a rebelar-se contra tudo
ção das religiões. A minha insistência sobre esta ordem de idei- o que significa vida em nosso planeta, vivendo fora das leis da
as poderia fazer taxar-me de materialista, no entanto assim o fiz animalidade, sem sucumbir, mesmo quando se haviam despoja-
deliberadamente, porque julguei isto necessário para lançar ba- do das armas de ataque e defesa, antes triunfando, já que eles
ses mais sólidas ao edifício do espírito e, daí, libertar-me num foram gênios e santos. Qual era, pois, essa força que os susten-
impetuoso voo para as mais altas ascensões humanas. Delinea- tava? Existe, então, uma ainda mais sutil e mais potente, uma
rei, desta maneira, novos aspectos da evolução espiritual. força mais ―forte‖ do que aquela indispensável para a vida, ca-
Existe na Terra, sem ir buscá-lo em outras partes, um inferno paz de impor-se a todos, mesmo renunciando à luta?
constituído pelo mundo animal e subumano, no qual tomam par- Normalmente, de acordo com a lei da força, que domina a
te a besta, o homem de raça inferior e, amiúde, também o cha- Terra, o sistema de altruísmo, bondade e justiça vale menos do
mado civilizado. Este mundo possui a sua lei, e os instintos fe- que um escrúpulo inútil. É verdadeira passividade, é gravame
rozes destes seres são os artigos escritos nas formas de vida da- que trava e, pior ainda, é sinal de debilidade, que preludia a der-
quela lei. Aí reina, como valor supremo, a força. Cada ser é uma rota. Aquele que renuncia agredir e defender-se, aquele que
arma, um assalto contínuo, ameaça incessante para todos os de- oferece a outra face às ofensas, como quer o Evangelho, aquele
mais seres. Cada vida não pode aí existir a não ser impondo-se a que se recusa a afundar suas garras na carne alheia para alcan-
todas as demais pela força, como uma extorsão. O indivíduo, pa- çar uma vantagem e, por princípio, não quer obter pela força
ra afirmar-se, deve semear a destruição ao seu redor. Para viver, todos os infinitos prazeres da vida, é derrotado, reduzindo-se a
deve matar. Resulta disso um estado de agressividade e violên- uma existência de dor, ilimitada na expansão, é um vencido à
cia, de incerteza e de luta sem descanso, a fase involuída na his- margem da lei, um desterrado do mundo, uma nulidade que se
tória da vida, na qual as distintas formas ainda não se organiza- destrói. Aquele que segue os ideais superiores, observado pelo
ram em simbiose e lançam-se desordenadamente à conquista do reino da força e com a psicologia da força, parece inerme, inde-
predomínio. O próprio homem, desde há muito tempo, empre- feso, ridículo. É facilmente assaltado, aniquilado sem esforço,
endeu esta luta e a venceu, correspondendo-lhe então, como quase por gracejo. Entretanto o vencedor, nesse mesmo instan-
vencedor, organizar em nosso planeta uma forma de vida dife- te, assim como os que crucificaram Cristo, sente naquela derro-
rente, sobre a base de coordenação, e não de agressão. Contudo ta, naquela debilidade, o mistério de uma força maior, que sur-
é muito recente a recordação e ainda muito fortes os baixos ins- ge de longe, como um estrondo de trovão, despertando um eco
tintos, de modo que, geralmente, ele vive naquele mundo selva- terrível nas profundidades do espírito. Um relâmpago arroja um
facho de luz em sua alma cheia de trevas, revelando o ignoto, e
14
Como quem conhece a fundo a matéria ou assunto; magistralmente. ele pressente a realização de vidas mais vastas, intui o que é
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 83
justo. Assim, o vencedor, no mesmo instante de sua vitória, ex- nos, produto da evolução da vida, a especialização para as apti-
perimenta a sensação da derrota. Então, num calafrio de espan- dões psíquicas, outorgadas por acumulação de experiências, tra-
to, treme e foge, ou melhor, permanece e venera. O vencido ria o afastamento dos vínculos e a desagregação social, se não os
olha do alto como um vencedor, e tal o é, pois descobriu e reve- aproximasse outra necessidade e outra força não reorganizasse
lou uma forma de vida mais elevada e nela triunfa. estes especializados em um organismo coletivo mais vasto, onde
As forças naturais emudecem, desconcertadas, ante este a atividade de cada um segue as linhas de maior rendimento, da-
estranho ser sem armas, que proclama uma assombrosa lei do pelo trabalho no campo das faculdades adquiridas. Esta força
nova e parece pertencer a outro mundo. Qual é esta força tão são os ideais, que, em oposição à violência, constituem o cimento
inexorável, esta nova lei ante a qual o mundo natural treme e precioso que amalgama os instintos egocêntricos e exclusivistas
se dobra? Existem, por acaso, dois sistemas de vida possíveis, em um organismo coletivo maior e mais potente. É assim que os
duas leis, dois mundos próximos e em luta, entre os quais os- ideais, enquanto satisfazem uma necessidade e alcançam um be-
cila a vida do homem? nefício, abrem passagem e traduzem-se em realidade. Eis aqui
Querer concluir sem levar em conta a importância da força uma segunda restrição que a força encontra em si mesma. Ela é
na economia da vida, seria, quando menos, apressado. Foi a um fator de evolução que se manifesta para destruir-se, ou, em
força bruta quem realizou e segue realizando a seleção no reino outros termos, é um fator transitório na grande rota da libertação.
animal. Este é também um modo de progredir, um tipo de téc- A força possui um valor imenso em determinadas circunstâncias
nica evolutiva, mesmo quando implica a gênese da dor, um as- de vida e ambiente, mas conserva seu domínio apenas enquanto o
pecto da grande lei de ascensão, se bem que nos graus mais exijam as supremas necessidades do progresso. A série dos abu-
baixos. A justiça divina – equilíbrio universal – também se ma- sos e das violações tende, através de um mecanismo de reações e
nifesta nela, já que, no choque de forças inimigas em processo choques, a alcançar um estado de equilíbrio mais firme e mais
de contínua agressão, a ação e a reação se neutralizam. O dese- perfeito, e, por evolução, se cumpre o milagre da transformação
quilíbrio do pormenor se equilibra no conjunto, e de uma soma da força em justiça. Prova evidente da relatividade e da mobili-
de injustiças resulta – como dissemos antes – uma primeira dade continua de todas as posições da vida. Prova de um trans-
forma de justiça. Nele, a força encontra dentro de si mesma formismo ascensional de tudo e de todos. Prova de que a vida é
uma primeira limitação. Ademais, foi a força bruta que cumpriu possível em formas e em níveis distintos, a cada um dos quais
a grande função, na história do homem, de levá-lo a afirmar-se correspondendo um organismo de leis e todo um mundo. Um
como primeiro campeão do reino animal. Foi a prepotência – mundo que se transforma em outro sem destruir-se, do qual o ser
carência de escrúpulos e de piedade – que criou os povos domi- vem tomar parte à medida que afloram nele as aptidões para sa-
nadores e vitoriosos. A força, pelo menos nas circunstâncias em ber viver nele e as faculdades de sabê-lo sentir.
que estes se encontravam em seu primeiro período de desen- Tudo isto demonstra a contemporânea existência de dois
volvimento, era-lhes necessária e, sem dúvida, muito criou. Ob- mundos distintos, de duas leis: a força e a justiça, o reino da
servamo-lo na antiga Roma e na América de nossos dias, pela besta e o reino do super-homem, entre os quais o homem osci-
seleção dos indivíduos mais ousados, mesmo quando menos es- la e se debate, cumprindo um passo que significa transforma-
crupulosos, mais ricos de energias ativas e construtivas do que ção e criação biológica.
da perfeição moral tão ambicionada pelas velhas civilizações. A fim de não me estender demasiadamente, delineei as duas
Porém, se a força criou muito, também destruiu muito, e um leis sob o aspecto de força e justiça, que constituem sua caracte-
mundo que se fundasse somente na força acabaria por se destruir rística essencial. Em um sentido mais vasto, a primeira compre-
a si mesmo. Junto a todo vencedor há sempre um vencido que ende o mal, o vício, a violência, tudo o que na evolução significa
lembra, melhor do que aquele, esta destruição. Todas as experi- atraso e no homem recorda a besta; a segunda compreende todo
ências da vida são gravadas na alma humana. As impressões re- o edifício das virtudes que as religiões e as leis se esforçam por
tornam na raça e o instinto recorda, formando-se assim, a par inculcar no coração do homem. As duas leis são o bem e o mal.
com o sentimento de admiração e respeito pela força, também O mal é o passado, e o bem é o futuro. A passagem cumpre-se
um sentimento de repugnância e de ódio, porquanto, no vórtice por evolução, e dela nasce o conflito, que é contínuo, entre as
humano, que se renova incessantemente, o vencedor se trans- duas formas. Portanto o mal e o bem são relativos ao indivíduo,
forma amiúde no vencido, e todos experimentam quantas dores à raça, ao grau de evolução. Isto anula o conceito de culpa, a
acarreta a força quando utilizada em sua própria vantagem. menos que por culpa se entenda a ignorância, que nos faz prefe-
São assim as raças velhas, que, por terem vivido muito, can- rir a desvantagem de retroceder ou retardar a evolução, obstru-
saram-se da luta até à neurose; são elas que mais detestam e que- indo a busca de uma forma mais completa de felicidade. Estes
rem eliminar o uso da força. Este ódio, este desejo de suprimi-la, conceitos éticos sobre bases racionais e científicas se afastam
nasce da necessidade e do interesse que cada qual possui em eli- muito das normas dos códigos penais religiosos e civis, os quais,
minar o exercício daquela por parte dos demais, para conservá-lo ainda que resultem explicáveis em sua gênese como reação e
tão-somente para si. Sendo de todos em particular, converte-se como defesa, carecem de significado no mundo superior da jus-
em desejo da coletividade, e a repressão da força se generaliza a tiça e devem ser relegados ao campo do egoísmo e da força.
tal ponto, que se torna hábito, convertendo-se primeiro em lei re- Quantas vezes, observando a alma humana, perguntei a mim
ligiosa e, depois, na lei civil dos povos. A humanidade cumpre mesmo como é possível a existência contemporânea de duas
desta maneira uma espécie de cerco, a fim de expulsar de seu normas de vida tão diferentes, como podem estas pretender im-
seio aquela audácia, à qual ela deve tanto e que é sangue de seu por-se simultaneamente, e o porquê deste conflito, desta coexis-
sangue, afastando-a paulatinamente, circunscrevendo-a cada vez tência de afirmações opostas, desta contradição no próprio cora-
mais e contendo-a por todos os meios ao seu alcance. É deste ção do homem. Eu sentia seu duplo imperativo em cada ato, e
modo que assistimos a um espetáculo bem estranho, em que a em cada ato havia uma luta. De um lado, o sonho do ideal, tão
força, através do uso, tende a eliminar-se a si mesma. Ela, à me- belo, tão puro, tão perfeito, e do outro, o proveito imediato do
dida que a civilização organiza a sociedade humana, tornando-a utilitarismo. De uma parte, a equidade consagrada oficialmente
mais homogênea, vai perdendo cada vez mais sua importância, por todas as leis religiosas e civis, e de outra, coroada pelo êxito
manifestando-se somente nos indivíduos atrasados, o que é sinal e apreciada incondicionalmente em privado, a força, como tal,
de retrocesso, assim como o seu desaparecimento o é de maturi- sem escrúpulos. Na prática (o que é escusável às vezes, se for
dade. Tudo tende a excluí-la. Os ideais de justiça e liberdade se levado em conta a opressão das necessidades materiais, as exi-
fazem sempre mais necessários. A diferenciação dos tipos huma- gências da vida e a miragem de uma utilidade mais tangível por
84 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
estar mais ao nosso alcance) eu via que os ideais, os princípios, do o esforço para obter um rendimento maior. Deste modo, o
a utilidade maior, porém mais remota, eram tidos em menor homem pode progredir no saber conduzir-se no grande oceano
conta, como uma realidade desagregável, que se desvanece no de forças que é o universo, para conseguir, em vez de dano, van-
mundo dos sonhos. Via, às vezes, acender-se a luta, mas quase tagem. O ignorante, por não saber mover-se no meio delas e
sempre para optar pelo útil, relegando o ideal entre as belas for- desconhecer o efeito de seus próprios atos, pede o que o equilí-
mas de retórica, entre as indiscutíveis verdades, julgadas como brio universal não pode e nem quer absolutamente dar e, assim,
mentiras convencionais, um vínculo do qual, na prática, é mister choca-se de contínuo contra reações dolorosas, crendo ser possí-
desligar-se como de uma posição desvantajosa. Via o anjo ala- vel, pela violência, forçar as leis, para iludi-las. Tenta substitui-
do, de fronte radiante, sempre em luta com a fera audaz e sel- las pelo impulso insignificante de sua própria vontade, rebela-se
vagem. Em cada ato, dois caminhos opostos, uma teoria e uma contra a corrente de todo funcionamento orgânico do universo,
prática, um modo de dizer e outro de agir, uma mentira muito mas a corrente o arrasta. O sábio, ao contrário, pede harmoni-
cômoda e uma realidade muito árdua para seguir. Não compre- camente só aquilo que é lícito pedir, e o obtém. Deste modo, se
endia como era possível, para o mesmo indivíduo, existir con- pode realizar racionalmente, com o máximo rendimento e a
temporaneamente em dois mundos opostos e cumprir duas leis maior aceleração possível, a ascensão de um mundo a outro.
contrárias. A explicação do absurdo somente me poderia ofere- É bem certo que, por outro lado, estas coisas são tão velhas
cer a teoria evolucionista: uma duplicidade contemporânea de como o homem. Repito-as numa forma nova de objetividade
leis somente é possível num regime de evolução, como trânsito analítica, mais verdadeira e mais palpitante, para que recuperem
de uma para outra fase. Somente o ocaso de um período e o al- a vida da qual pareciam haver se afastado. As religiões, as filo-
vorecer de outro podem produzir tais contrastes. Somente o sofias e todo o pensamento humano acumulado no passado,
homem os conhece, não ainda a animalidade inferior, que des- concordam com a crença moderna mais evoluída. As maiores
cansa satisfeita na plenitude de sua fase. inteligências, assim como a alma amorfa das grandes massas
O homem vive, pois, em formas de transição, em níveis dis- humanas, elaboraram-nas, buscando e experimentando todos os
tintos segundo os casos, que vão da besta ao super-homem. Vi- dias, através de vários sistemas, em todos os lugares da Terra,
ve em parte no passado e, em parte, projeta-se para o futuro, com todas as aproximações e resultados possíveis.
ensaiando e explorando o passo para formas mais elevadas. É mister explicar e afirmar aqui a existência de um orga-
Restaram de tudo isto vestígios nas oscilações seculares das nismo de leis, de acordo com as quais, e jamais ao acaso, mo-
religiões, das filosofias, das leis, das instituições; oscilações vem-se todas as forças do universo, leis que são uma vontade e
que poderiam parecer incertezas, mas que são evolução. Nor- um conceito e constituem a alma da criação. Seu imperativo
mas e imperativos que queriam ser absolutos e perfeitos, mas expressa-se sempre nas coisas reais da vida, é sempre um fe-
que são aproximações progressivas de perfeições cada vez mai- nômeno em ação, e encontramo-lo invariavelmente como ele-
ores. Este passo é uma superação biológica, a transformação do mento ligado à matéria, tal como a alma ao corpo. O conceito
homem no super-homem, o maior acontecimento da época mo- existe detrás das coisas, oculto na profundidade do mistério,
derna. Realizar esta marcha é a necessidade mais viva, o objeti- manifestado tão-somente em suas últimas consequências, e é
vo supremo da vida individual e coletiva. Apressá-la, se fosse por sua vez também vontade e ação, assumindo a personalidade
possível, para alcançar uma felicidade mais estável e completa, do eu que pensa, quer e age, divindade invisível, porém onipo-
é a mais profunda aspiração da alma humana. tente e onipresente. Esta concepção naturalista não diminui e
A busca dos meios para realizar e acelerar esta passagem nem anula, senão agiganta o conceito da Divindade. Poder-se-ia
constitui o objetivo deste capítulo. expressar, com as mesmas palavras da gênese bíblica, o concei-
Temos estudado a evolução espiritual no homem, primeiro to antropomórfico: ―o homem criou Deus à sua imagem e se-
como evolução de seu organismo psíquico, em seguida como melhança‖. É natural que, com o progresso da sabedoria huma-
desenvolvimento de concepções na evolução dos ideais. Obser- na, este conceito se engrandeça. Cada profeta, cada fundador de
vamo-la agora em seu aspecto mais universal e grandioso, co- religiões, já nos proporcionou uma aproximação maior. Portan-
mo uma sucessão de mundos e organismos de leis, onde o ho- to, com a evolução da ciência, que continua a evolução das re-
mem vive progressivamente a sua gloriosa ascensão. ligiões, a alma humana vai cada dia sondando e decifrando um
Esta marcha, da qual queremos estudar os aspectos, as leis e novo artigo da Lei, cumprindo relativamente a si mesma uma
os resultados, é um fenômeno susceptível de um estudo positi- contínua e progressiva revelação da divindade. A evolução, a
vo, porquanto admite a observação e a experimentação. É um elevação desde o âmbito de uma lei a outro mais alto, cumpre
fenômeno natural no sentido de que se realiza por si só, em cada dia no ser uma progressiva realização da divindade.
forma espontânea, diria quase automaticamente, por um jogo de Encontramo-nos, pois, perante uma grande transformação
forças irresistíveis e fatais, porque é a vontade das grandes leis que o homem pode executar em si mesmo, dirigindo-a racio-
e a necessidade mais potente do ser; porque o mover-se, e mo- nalmente, em harmonia com todo o funcionamento orgânico do
ver-se ascendendo, está na essência íntima do universo. universo. O trabalho de compreender e o, ainda maior, de reali-
Pode, porém, produzir-se também racionalmente, ou seja, zar o complicado fenômeno tendem, por certo, a uma utilidade
primeiramente compreendido e depois desejado e conduzido pe- final, obrigando-nos a perguntar qual pode ser esta. Falei de uti-
la inteligência humana, sem que tenhamos de estranhar esta in- lidade que justifique o esforço, o compense e nos faça decidir a
tervenção do homem na conduta e na utilização das leis naturais. intentar a difícil prova, porquanto sei, por experiência, que o
A inteligência humana é por si mesma uma força criadora, e das prêmio e o objetivo final de tudo isto não é uma quimérica
mais poderosas. Pode, portanto, não somente entrar em combi- idealidade, um vão espiritualismo, mas sim uma vantagem, que
nação fecunda com as outras forças, senão também, até certo permite alcançar a mais completa felicidade. É um eterno pro-
ponto, assumir sua direção. Movem-se tais forças de acordo com blema que nós outros vamos encarando, problema real, fasci-
leis que, embora sejam algo adiantadas, não alcançaram total- nante, que emana de uma necessidade imperiosa do espírito, de
mente a perfeição; acham-se sujeitas ao esforço do ensaio e ao um instinto misterioso, que outorga ao homem o direito de pre-
perigo do erro, mesmo quando corrigido e compensado. Se o tender e a certeza de obter, mesmo que num futuro distante,
equilíbrio se restabelece de pronto e o progresso se manifesta uma satisfação absoluta. Este problema que estamos estudando,
em seguida, a prova contém sempre um desgaste que a inteli- se bem que o mais difícil, é também o mais radical e o mais po-
gência pode evitar, estudando o mecanismo das leis que tudo re- sitivo para alcançar a meta desejada, já que não se estriba em
gem com precisão matemática, orientando as energias e dirigin- sobrepor exteriormente a si mesmo todos os possíveis domínios
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 85
e possessões transitórios e ilusórios, e sim na transformação da Eis aqui a função da dor. Ela, no carma, destino inexorável,
maneira de ser, numa profunda e definitiva renovação do eu. provê a quem saldou as dívidas do passado, individuais e cole-
Trata-se da fuga de um mundo inferior, de uma transformação tivas, dívidas que é mister haver expiado, antes de poder inici-
da sua lei, da libertação, enfim, de todas as dores que o povo- ar a ascensão para uma felicidade maior. A dor, portanto, não é
am. Aquele que vive no nível da lei subumana permanece iso- somente um fenômeno de reação orgânica e psíquica, pois cor-
lado em seu egoísmo e deve lutar sem descanso contra todos, responde também a uma lei de equilíbrio moral. Promovida de
porém, ascendendo ao âmbito da lei super-humana, já não ne- expiação a renúncia, é um meio para a conquista da felicidade,
cessita lutar nem esforçar-se e poderá, coisa absurda no mundo o instrumento da grande transformação, o caminho da liberta-
inferior, evangelicamente depor as armas de ataque e defesa e, ção que nos conduz ao mundo super-humano. Eis a reabilita-
com estas, a angústia da incerteza e da derrota, porque existe ção pela dor, que purifica e equilibra, que eleva e avança, que
uma força mais poderosa, sob cuja proteção se colocou e que cria acima do instante fugaz.
espontaneamente o protege. Ele se encontra no meio da corren- Observamos as condições de vida nos baixos níveis de evo-
te, e a corrente o leva. Sua lei é a grande lei, sua vontade é a lução, para encontrar aí a origem da dor. Este é o último elo da
grande vontade. Já não lhe é mister o esforço para impor-se cadeia: involução, ignorância, egoísmo, força, luta, seleção –
como exceção, pois vive harmonicamente com a vida universal. cadeia que, se por um lado termina na dor, representa também
Sua sorte converte-se num equilíbrio estável, que tende a per- um lento caminho ascendente, pelo qual transforma o homem
manecer estável em forma espontânea, porquanto não é produto em super-homem, a força em justiça, o mal em bem, realizan-
da força, precário e combatido. Desce uma paz imensa sobre do a evolução e destruindo as condições de vida inferior, onde
todo o ser, um gozo difícil de compreender e de expressar, que nascia a dor. Em outros termos, transmuda também a dor em
é, porém, o mais profundo que o homem conhece. A alma hu- felicidade. Assim como, com o uso, a força tende a uma au-
mana, invadida pela febre atual do trabalho e da riqueza, exige toeliminação e desaparece, quase reabsorvida em si mesma,
resultados menos efêmeros, necessita, para satisfazer-se, de va- mudando-se em justiça, da mesma forma a dor, com a evolu-
lores indestrutíveis, algo que, através do tempo, não mude e nem ção, tende a desvanecer-se, porquanto também ela, como o re-
se desvaneça como uma ilusão. Dada a transitoriedade de todas gime da força, é um fator transitório, inerente a uma fase de
as coisas humanas, somente a evolução, no vórtice de um inces-
evolução, destinada a ser vencida. As leis de um universo no
sante transformismo pulsante de vida e de morte, constitui o que
qual a dor e a maldade fossem incondicionais e definitivas, não
jamais será destruído. O tempo mede, porém não toca este trans-
poderiam ser tidas como correspondentes a um conceito de
formismo, que se muda na forma, se renova sempre, sem perder
equilíbrio e justiça. A existência seria um delito se não conti-
nada na substância, que vibra no ritmo grandioso de sua ascen-
vesse, junto com aquelas, uma força para destruí-las. Esta for-
são. Esse movimento incessante, que no mundo inferior é des-
ça é a maior de todas: a evolução, destinada a transformar o
truição e tormento, é deste modo guiado para a felicidade e se
mal e a dor – que são simplesmente involução – em bem e fe-
converte em meio de conquista de afirmações eternas.
licidade. Processo espontâneo e inexorável; lento se efetuado
Se os resultados são esplêndidos, o atalho é áspero e difícil
com a defeituosa técnica da tentativa, do erro e da emenda, po-
de achar, demandando enorme esforço. Porém não há grandes
rém rápido se, ao contrário, conscientes da rota e das forças,
conquistas sem grandes esforços. Aqui, o homem deve medir-se
em uma luta titânica, não mais contra os seus semelhantes, mas tratamos de acelerá-lo, guiando-o.
sim contra as poderosas leis naturais, invisíveis, tenazes, que es- A dor nasce do regime de força e de luta necessário para a
tão dentro dele e são a sua própria personalidade, que ele deve, seleção e o progresso nos mundos inferiores. Não esperemos
por sua vez, destruir e reedificar, matar e ressuscitar. Esta des- até ver-nos compelidos por esses estímulos, mas esforcemo-nos
truição de si mesmo é o primeiro sofrimento que lhe incumbe para progredir até onde nos seja possível; anulemos a fase su-
enfrentar. Não discerne de imediato o verdadeiro caminho, seu bumana e humana, impondo-nos formas mais elevadas de vida,
impulso para a felicidade é, em geral, cego e recai sobre si e teremos eliminado a dor.
mesmo, inutilmente. Acredita poder agarrá-la em forma estável, O valor prático e tangível da evolução, o significado deste
usurpando-a com uma violação de equilíbrio; crê ser possível, conceito de evolução que temos elaborado até agora, reside to-
num mundo de leis naturais, o absurdo de se obter o que não se do nesta anulação. Estas superações de formas de vida, de fases
tenha merecido. A força é um atalho cômodo que produz efeitos de progresso, são vitórias sobre a dor. O problema da evolução
imediatos, mas também equilíbrios instáveis, que prontamente converte-se, então, em problema de felicidade, e assim o temos
cedem à reação natural. Daí o acervo das desilusões humanas; de conceber. Nossa meta será a destruição da dor. Todos os
riqueza de energias, porém grande miopia. Estimulada pela sede meios que realizam a evolução conseguirão esta destruição, que
dos gozos – enquanto somente a minoria preferiu a estrada mais significa libertação. Na evolução está, portanto, a libertação;
longa e escabrosa, porém mais segura – a maioria se consome e em tudo o que represente um meio de evolução, temos de ver
se revolve na lama, a fim de pedir aos prazeres do mundo subu- um caminho para a libertação.
mano um pouco mais de felicidade, numa luta encarniçada em Os caminhos da libertação são múltiplos; estudemo-los ra-
redor de resíduos mesquinhos. Não só insatisfação, mas sempre pidamente.
novas derrotas na inexorável balança da justiça. Quem, em tro- É mister, em primeiro lugar, uniformizar-se à lei do mundo
ca, trabalha na senda do bem, vai acumulando créditos; um dia, superior que se deseja alcançar, portanto ter como princípio a re-
daquela mesma lei, lhe manará espontaneamente a felicidade. tidão em todos os atos, para alcançar a nobre finalidade da vida,
Não se atendendo a este equilíbrio, nem à misteriosa voz da para acelerar, mediante o esforço da vontade, a realização em si
consciência, que nos admoesta, nem ao furacão de reações que mesmo de uma lei mais elevada. É necessário inteligência para a
as forças da Lei podem desencadear, algo se vai sacrificando ca- compreensão da vida, da missão e do trabalho que nos corres-
da vez mais ao destino inexorável. A cadeia transmite-se de ge- ponde. É necessário vontade para seguir o que a mente viu, e não
ração a geração, e o déficit acumula-se até nos esmagar. Então, o que o interesse e o prazer quiseram. Não se requer grandes he-
no fundo de um céu tempestuoso, aparecem os profetas bíblicos roísmos, mas sim a disputa lenta, constante e quiçá mais heroica
que convocam à penitência. Estalam cataclismos que são como das provas cotidianas, aquelas que vão cavando na alma o sulco
banhos de dor, e a humanidade sai purificada, como se somente de novos hábitos. Uma vez assimilados no instinto, formarão
na dor pudesse readquirir seus direitos e somente através de tão uma nova personalidade. É necessário o esforço, o trabalho da
terrível assalto voltasse a encontrar a possibilidade de retornar evolução, especialmente no princípio, para passar do mal-estar à
ao caminho interrompido de sua evolução. adaptação e desta, pelo costume, à necessidade do novo estado.
86 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
Desta maneira, eliminam-se a tentativa e o erro, que engendram a penetração surge a criação de uma forma mais elevada de vida,
inacabável série das decepções humanas e constituem o sofri- baseada na destruição da dor por meio da própria dor. Eis aqui
mento maior e mais penoso com que a Lei, em sua reação, impõe como é possível considerá-la como um dos principais meios de
o progresso. Queira-se ou não, a evolução é a lei, dura porém jus- libertação. Eis aqui o progresso e a dor estreitamente ligados.
ta, e é mister cumpri-la. Esta é a corrente da vida, que arrasta a Eis aqui explicada a utopia do sacrifício e do martírio. Cristo,
todos e arrebata os rebeldes. Esta é a vontade suprema. A Lei re- que morre na cruz, redimindo com a sua paixão a humanidade,
age contra aquele que resiste, infligindo-lhe a dor como castigo e é o símbolo grandioso que resume este conceito.
acicate. Para quem a segue, lutando e vencendo, a dor vai desa- Sem este conceito da evolução espiritual, a dor é um crime,
parecendo gradualmente. A felicidade, se é uma necessidade ab- como no pessimista caos schopenhauriano. Enquadrado neste
soluta e um direito sagrado de todos, tem de ser conquistada com conceito, eleva-se a instrumento de criação e de redenção, co-
trabalho, e este trabalho é uma ordem. As leis da vida não admi- mo na visão de Os Miseráveis, de Vítor Hugo.
tem ócios, usurpações e nem arrivismos, e dão a cada um o seu Concebo a dor como a reação de uma lei que tende a resta-
justo salário. Mais vale aceitar com satisfação a sua parte propor- belecer o equilíbrio perturbado pelo erro, uma lei que, respon-
cional de trabalho do que aguardar que nos seja imposto dura- dendo a um supremo conceito de justiça, possui a função de,
mente. A evolução é um trabalho tremendo, mas cria em troca os por meio de reações, ensinar ao homem, se bem que respeitan-
maiores valores, o homem e a sua felicidade, conseguindo o in- do a sua liberdade, os verdadeiros caminhos da vida. O homem
crível: a destruição da dor, desde que se trabalhe adequadamente. possui um instinto seguro que o guia para a felicidade e que é o
É necessário realizar a justiça com a retidão, e a justiça somente indicador de sua meta. Ele ensaia todos os caminhos; primeiro
pode ser criada com o esforço humano. Não pode ser reforma so- os mais absurdos, os que conduzem ao gozo imediato e não ga-
cial se antes não foi reforma pessoal e íntima. nho, os da força e da violação, e encontra-os todos cerrados pe-
A renúncia é outro meio de evolução e outro caminho de li- la reação natural da dor, que lhe inibe o passo. Até que o desti-
bertação. Se a retidão é a afirmação da nova forma de vida, a re- no o obrigue, por trás de infinitas tentativas e erros, a tomar o
núncia significa o abandono da velha forma que se deseja ven- único atalho possível, o do próprio progresso. Em outros ter-
cer. Para esta antecipação de nova vida – o nascimento do super- mos, é necessário harmonizar-se com a Lei, para eliminar cada
homem – é mister que se acabe a natureza inferior, que pereça o vez mais a reação constituída pela dor, até que, nos graus supe-
homem com tudo quanto de baixa animalidade haja nele. Transe riores, ela se transforme em renúncia voluntária, ou seja, na
laborioso, luta tremenda do espírito para separar-se da matéria e aceitação livre do trabalho a que a evolução nos obriga.
elevar-se à vida autônoma. Não é um conceito novo este da re- Quando a unificação do eu com a Lei é perfeita, desaparece
núncia, já existente nas religiões, que altamente o proclamaram, toda a possibilidade de reações e a dor é vencida. Concebo a
sem conter, no entanto, aquela explicação que a moderna psico- dor como um mal transitório que se esgota em sua função, que
logia científica requer e que tratamos de dar. A renúncia pela re- existe para devorar-se a si mesmo, tal como a discordância é
núncia é um aniquilamento insensato da personalidade, não se um instrumento para conseguir a harmonia, um meio educativo,
justifica como meio de evolução, que tende à destruição da dor e um acelerador da evolução, um sábio mecanismo pelo qual a li-
ao ressurgimento da felicidade. É melhor, entretanto, deixarmos berdade do ser se vê forçada a integrar-se no progresso. Assim
o desenvolvimento destes conceitos para a Parte III, quando es- entendida, a dor não é uma abjuração, mas pode ser um grande
tudaremos o ingresso do homem no reino super-humano, onde a triunfo, máxime se soubermos utilizá-la como instrumento de
dor desapareceu e cumpriu-se a criação do novo ser. ascensão. Mesmo em suas formas materiais, onde, com maior
A libertação da dor pode ser obtida também em uma forma evidência, parece uma derrota, como no mundo orgânico, a dor
que parecerá impossível à maioria, por falta da penetração inte- pode desempenhar função criativa, como é lógico em um uni-
lectual das causas primeiras, que não ultrapassa o cego instinto verso onde tudo possui um significado e um valor para alcançar
de evitar aquilo que desagrada. A dor é vencida por meio da o bem. Um mal físico tem função criativa no mundo moral,
dor; é destruída pela sua aceitação, assim como se dobra um porque, destilado, transforma-se em instrumento de renúncia e
inimigo abraçando-o. Por uma lei universal de equilíbrio, de de ascensão. É a insuspeita função biológica do patológico.
ação e reação, em um mundo onde nada se cria nem nada se Eu digo aos que sofrem: Valor! Porque o vencido da vida é
destrói, também no campo das sutis qualidades morais, não se amiúde um grande batalhador. As horas mais dignas e mais fe-
neutraliza um efeito senão reconduzindo-o à causa, para que aí cundas são as da dor. Em todos os seus graus, revela o máximo
encontre a sua compensação. Não se anula uma qualidade se es- esforço do ser humano. Eleva-o, ilumina-o e outorga-lhe o di-
ta não for reabsorvida pela vida. A dor pode desaparecer com a reito de olhar a face de Deus.
única condição de ser saldado o débito à eterna lei de justiça; Eis a minha concepção da dor, em oposição à negativa sub-
seja no campo moral, social, histórico, econômico, físico ou tração da vida que é o Nirvana budista; em oposição, sobretudo,
químico, é sempre a mesma Lei, a mesma vontade, o mesmo a essa fuga vergonhosa que significa a concepção utilitarista
Deus. Somente a ignorância pode pretender o absurdo de en- moderna. A dor é energia, luta e criação; tudo aceita para res-
ganá-la, esquivando-se à sua reação. Não se defrauda a Lei, e, surgir numa felicidade maior.
quando se pecou, mais vale neutralizar o mais depressa possível O conceito que nos dá o moderno materialismo científico,
a reação, sofrendo e pagando, pois, mesmo que fujamos, aquela que é a base psicológica de nossa civilização, é muito diferente.
nos alcançará sempre e onde quer que seja. A fim de não agra- No materialismo, a dor não pode possuir funções superiores; é
var o desequilíbrio, nunca devemos rebelar-nos, para não exci- um inimigo e um mal, contra os quais só uma posição é possí-
tar a assim chamada ira divina, ou seja, o mais rude contragol- vel: a de defesa. Esta defesa está habilmente organizada pela
pe, pois a elasticidade da Lei (a divina misericórdia), cuja gran- ciência e pelo trabalho, armas poderosas, mas de concepção
deza contém todo o livre arbítrio humano, acabaria por nos ven- unilateral e insuficiente. Não obstante a luta contra a dor seja
cer, como um destino inexorável. levada a uma tensão limítrofe do terror, a sua ameaça é inces-
A dor, pois, eliminando a reação, saldando a dívida, opera a sante e está oculta atrás das grandezas do nosso progresso. A
progressiva harmonização e efetivação da Lei no eu, ou seja, espantosa série de todos os experimentos sociais e econômicos
determina a evolução. Vimos também que ela existe nos esta- a nada conduz; o homem, ante a desaparição fatal e angustiosa
dos inferiores como consequência do regime de luta e de força, de todas as suas aspirações e ilusões, conserva em seu olhar o
e que pode ser eliminada superando-se aqueles estados. A evo- sonho vão da felicidade jamais alcançada, escondida em uma
lução a elimina. Paralelismo de ações e reações, de cuja mútua realidade mais profunda, que ele não vê.
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 87
Entretanto nunca foi mais ardente a ânsia de viver do que Encontramo-nos diante de dois conceitos opostos: o primeiro
agora. A ciência nos faz entrever a possibilidade de um para- se detém nesta vida e neste mundo, onde pretende realizar um
íso sobre a Terra. Nunca houve tensão coletiva mais frenética paraíso que é sua única meta. Com a ciência, estuda detidamente
para o prazer. O homem, que invoca e ensaia todas as liber- os meios e, com o trabalho, os põe em prática. É todo um fervor
dades, ignora os caminhos da libertação. Busca a felicidade de investigações e de ação, um assalto da inteligência às leis ig-
em baixo, aumentando seus atributos exteriores, e não as noradas da criação, para submetê-las ao seu próprio gozo e ao
qualidades interiores. Não. A dor não é um acontecimento seu próprio egoísmo. Um esforço de vontade, para dominar o
acidental, efeito de causas próximas e suprimível com estas, mundo exterior e convertê-lo em um meio para o seu bem-estar.
mas possui raízes profundas em um mundo aonde a ciência Este conceito tende a plasmar o ambiente de acordo com uma
ainda não chegou, e responde a funções fundamentais de ideia e, efetivamente, o transforma de maneira assombrosa, para
equilíbrio na economia da vida. fazê-lo a morada imperial do homem. Porém, se transforma a
Sendo base do progresso humano, está enxertada na vida Terra, não transforma o homem. Se faz progredir tudo, descuida
como um fator de importância excepcional. É o trabalho neces- o valor maior, que permanece ignorado, ou melhor, permanece
sário da evolução, que é a essência e a razão de ser da existên- subjugado ao progresso material que, de meio, tornou-se fim. O
cia. No equilíbrio exato das leis, a dor é indispensável à vida do espírito triunfa sobre a matéria, porém há, no perfeito equilíbrio
universo. A mentalidade moderna, absolutamente ignorante de das leis, uma espécie de desforra daquela, que, mesmo cedendo
tudo isto, faz o irrisório jogo da supressão das causas próximas o seu poder, absorve toda a atividade do espírito e escraviza-o,
da dor. Homens, classes sociais e nações barganham entre si es- pois o prazer que experimenta para a satisfação dos desejos é
te lastro pesado, que dá volta entre eles e permanece sempre efêmero, desvaloriza-se com o hábito e consegue somente au-
igual, porque ninguém o absorve. Tal um cogumelo maléfico, a mentar as necessidades, que converteram o homem em máquina
dor volta sempre a brotar sob novas formas, apesar de tanta ri- de trabalho. O bem-estar material é uma arma de dois gumes
queza, de tanta civilização e tanto progresso. que, se facilita a vida, é também uma cadeia que a oprime. De-
É mister um jogo mais complexo para suprimir a dor e con- pois de haver pedido o sacrifício da mais alta atividade, que cria
quistar a felicidade. É necessário subir com Cristo à cruz e re- os valores morais, tão indispensáveis para a vida, deixa o espíri-
fazer sobre outras bases a vida individual e coletiva. É preciso to no vácuo, desorientado, pois carece de paz interior, que só de-
encontrar na dor uma força amiga, cuja função se compreenda e riva da consciência de um fim. E, sobretudo, não destrói a dor,
se utilize para a própria ascensão. O que interessa não é acumu- cuja ameaça permanece mais perceptível do que antes.
lar poderes, mas fazer o homem. É inútil pregar ou pretender O progresso material pode, pois, ter o seu valor, porém so-
forçar a história e a evolução; é inútil pedir à alma coletiva uma mente quando considerado como necessário ao progresso espi-
consciência imediata e previdente, o que somente as grandes ritual. Do contrário, os caminhos da libertação se tornam cami-
dores e provas poderão fazer amadurecer; tão-somente quando nhos da escravidão.
este nosso sistema nervoso, que é o substrato do organismo O outro conceito, inconciliavelmente hostil à vida presente
mais profundo – a alma – desenvolver-se a tal ponto, que a má- e ao mundo exterior, aparta-se deles como de um mal irremedi-
quina animal, para este serviço, se lhe converta em cárcere, ável, que se toma em consideração para ser evitado. Descuida
flanqueando-o com suas barreiras, somente então o homem do ambiente exterior, não se preocupa em melhorá-lo, conside-
―perceberá‖ também as leis morais, assim como hoje, com suas rando-o não mais a realização de um desejo próprio, mas ape-
descobertas, começa a vislumbrar as leis da matéria. As leis nas uma necessidade para harmonia universal. Alheia-se, assim,
morais existem, mas estão ainda à espera de seu Newton que as da exterioridade do mundo, sonhando com uma vida diferente e
demonstre. Um dia, a vida do justo será uma necessidade uni- distante, numa aparência de passividade. Sua alma vigilante
versal, porque consequência de uma lei demonstrada e palpá- percebe e sente outra realidade e, nesta, encontra novos pode-
vel, com suas sanções comprovadas, com seus efeitos insupri- res, mais vasta percepção; domina forças sutis e maiores, cria
míveis, e, como tal, governará na realidade a vida, imposta co- os valores morais que regem o mundo, realiza uma expansão e
mo uma obrigação a todo ser racional. Então se terá completado uma afirmação, perante a qual todas as afirmações exteriores
a educação da besta humana. Não será mais necessário este po- resultam irrisórias.
bre e único meio de que hoje se dispõe para domar o homem in- Duas concepções diferentes, que correspondem a duas
ferior, que é o terror do sobrenatural e do mistério, a ideia de evoluções: a da matéria e a do espírito. A primeira é conquista
uma divindade que se vinga e castiga, divindade que os fortes científica, conquista econômica, o aperfeiçoamento das rela-
se atrevem a desafiar e a que os débeis se curvam por medo, ções sociais, o progresso lento da coletividade, um trabalho
enganando-a com os subterfúgios de uma consciência acomo- grandioso de organização e de cooperação, cuja importância
datícia. Então se verá claramente a Lei, sábia e implacável em seria néscio negar. A outra é conquista interior, que aperfei-
sua inexorabilidade, porque despojada dos véus e do mistério; çoa um único valor: a consciência humana; sistema radical pa-
um Deus novo, mais próximo e real, porque estará dentro de ra quitar os males da vida; sistema árduo, reservado a poucos
nós mesmos, em todas as causas, contra o qual não é possível a espíritos de vanguarda.
rebelião nem a felonia. Duas riquezas e duas misérias: miséria econômica, que pode
Na civilização moderna, contudo, já se está levando a cabo ser largamente compensada por uma grande riqueza espiritual;
um intenso trabalho de progresso, ainda que com orientação e ou miséria moral, que riqueza alguma conseguira remediar.
concepção da vida de todo diferente. Estes são: a ciência e o Seria exclusivismo querer valorizar mais uma coisa do que
trabalho, instrumentos de evolução que também devem ser in- outra, execrando o progresso econômico, que pode, por sua vez,
cluídos no rol dos caminhos de libertação. constituir o primeiro passo para o espiritual. Seria visão incom-
Que valor possui o frenético bulício da vida, palpitante de pleta apreciar o lento e complicado progresso da grande alma
problemas e de lutas, ansioso de conquistas, triunfante com su- coletiva, que se projeta mais para o exterior do que para o inte-
as descobertas científicas, transbordante de energia tão juvenil e rior do indivíduo. Cada um, por si, é elemento insuficiente para
de uma fé tão diversa, sem dúvida cheio de beleza, ainda que o conjunto da vida. São elementos complementares. Duas for-
primitiva e brutal? Ao som deste grito, a alma, já farta de tudo mas de evolução, o progresso material e o espiritual, que se
isto e madura, não sente ter encontrado a vida em outras partes? complementam e se condicionam, tendendo a duas criações dis-
O leitor perdoará se corto e abrevio, porque me impus ser tintas: uma exterior e outra interior, que se valorizam mutua-
conciso. mente, quase se sustentando, para ascender juntas.
88 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
A hipertrofia de um e a atrofia de outro, como acontece na ça, da dor à felicidade, do mal ao bem, da matéria ao espírito,
sociedade presente, são o mesmo índice de desequilíbrio. do ódio ao amor, do Inferno ao Céu. Assistimos às cenas fi-
Se os dois conceitos parecem excluir-se por um inconciliável nais. Está por se resolver o grande fenômeno espiritual. Atra-
antagonismo, devido à inversão dos valores, na realidade eles vessa-se o momento crítico da superação biológica, pela qual o
não são mais do que duas metades de um mesmo conceito, dois homem entrará em uma nova vida. Quem sabe ler mais pro-
polos do pensamento humano, a alma masculina – concepção fundamente perceberá neste escrito, junto às argumentações
ativa e positiva da vida – e a alma feminina do universo – con- que se coordenam em uma tese, algo mais que uma declaração
cepção passiva e negativa – destinadas a uma complementação de fé, uma confissão ou, porventura, um testamento espiritual.
fecunda. A própria humanidade parece distribuída como em um Trata-se do relato de outro drama tempestuoso e vívido, que
equilíbrio de partes, segundo as duas metades deste pensamento. culmina na morte, onde tudo o que é humano se funde. Minha
Possuímos no mundo dois tipos de civilizações: a Ocidental e a alma aflora sangrando, porém, ágil e madura, parte ao próximo
Oriental. Possuímos presentemente o moderno Ocidente euro- impulso a que chamo ―Ressurreição‖.
peu-americano, ativo, rico, poderoso e oco espiritualmente, e o
antigo Oriente asiático, inerte e pobre, mas forjador de religiões, II - A Evolução Espiritual na Ciência e nas Religiões
de filosofias e de crenças: a luz do mundo. Dir-se-ia que a hu-
manidade tivesse querido olhar contemporaneamente a vida em Sintetizo alguns conceitos fundamentais, a fim de enquadrar
duas direções opostas, seja para realizar tudo no presente, igno- o argumento em minha concepção cosmogônica. Não é agora a
rando o mais além, seja adiando toda a realização de felicidade oportunidade de entrar em explicações e, muito menos, em de-
para o futuro. Existe, contudo, um trabalho, pois, segundo a Lei, monstrações, que nos poderiam levar muito longe.
todo progresso e todo bem-estar tem de ser ganho mediante um Tudo quanto podemos perceber no universo resume-se a
esforço adequado. Para que a matéria evolua, é necessário o tra- três elementos fundamentais: matéria, que é a sua estrutura es-
balho. Para que o espírito evolua, é mister a dor, que, no fundo, quelética, o universo físico e o dinamismo mecânico que o sus-
não é mais que um trabalho diferente, assim como o trabalho tém; vida, um dinamismo mais complexo, concebida, porém,
não é senão uma espécie de dor. O deus utilitário da civilização num sentido imensamente mais vasto, desde o mineral ao ho-
Ocidental o impõe diariamente, assim como o deus espiritual do mem, existente também em outros corpos celestes; pensamento,
Oriente impõe todos os dias uma renúncia. um dinamismo ainda mais elevado, representado pelo psiquis-
A verdade aparece dividida em dois aspectos que são duas mo humano, através dos nervos, cérebro e espírito.
metades da Terra; nenhum deles esgota todo o pensamento nem É difícil separar um elemento do outro, pois a passagem se
satisfaz a todas as necessidades humanas. Unificados, porém, efetua por evolução, sem solução de continuidade. No fundo,
são uma só aspiração: a ascensão para a felicidade. O Oriente já trata-se de uma mesma substância, cuja maneira de existir é o
não vive mais aqui em baixo, mas aguarda e prepara-se. A par transformismo evolutivo contínuo e que, portanto, se nos mani-
de um enorme tentáculo projetado no mistério do mais além, festa sob forma distinta. Se a consideramos em uma primeira fa-
respira ébrio de sonho outra vida mais distante. Esta ideia da se, que vai da nebulosa à origem da vida, concebê-la-emos como
função evolutiva da dor, da criação espiritual através do isola- matéria; na segunda fase, que parte do início da vida e vai até ao
mento, não parece brotar senão nos povos maduros. A última nascimento do psiquismo humano, chamá-la-emos vida; no ter-
flor e, talvez, a mais bela da vida... Quando se atingiu certa al- ceiro período, no qual este psiquismo se torna autônomo e cria
tura, parece que o ambiente terrestre já não pode mais respon- um novo ser e uma nova vida, teremos o pensamento.
der ao grau alcançado; da impossibilidade de adaptação nasce O universo, desta maneira, se nos manifesta uno e, ao mes-
um desdém pela vida presente, uma necessidade de superação e mo tempo, composto; três universos concêntricos que se com-
de elevação, para encontrar no outro lado uma vida mais pura. penetram e se encontram intimamente ligados uns aos outros,
A iminência de uma realização maior sugere, então, o pressen- pois se sustêm mutuamente para elevar-se um sobre o outro – a
timento da vida nova, invisível para os demais. Declinando e vida sobre a matéria, o espírito sobre a vida; encontram-se em
desaparecendo neste mundo, a alma lança o grito de sua ressur- relação de filiação ou gênese sucessiva, por evolução.
reição. Uma vida maior, em convivência com distintos orga- Assim concebido, pode-se definir o universo como um fí-
nismos em ambiente extraterrestre, cuja existência a astronomia sio-dínamo-psiquismo. Se indicarmos com M a matéria, com V
começa a vislumbrar, talvez no mistério da subconsciência e do a vida, com P o pensamento e com S a substância, poderemos
supranormal. Nossa civilização Ocidental, com suas máquinas, explicar este conceito também com a seguinte equação:
suas riquezas e sua moral materialista, choca-se com as velhas (M=V=P)=S
civilizações asiáticas, sem compreendê-las. Estas se cansaram para indicar que estes três elementos, transformando-se por
de todas as experiências, a ponto de ter já perdido a esperança evolução um em outro, equivalem-se como formas sucessivas
de uma felicidade terrena. Aquela transborda de dinamismo e da mesma e única substância.
de ingênua fé. Esta incompreensão de ideais de raça provocará Sem nos determos em convalidar este conceito com argu-
choques formidáveis, e destes brotarão a compreensão e a uni- mentações científicas, comparando-o com a ideia da ―Trindade-
ficação que compendiarão todo o progresso humano. Una‖, que se encontra em muitas religiões, interessa-nos agora
Resumindo, os caminhos da libertação são, antes de tudo, de destacar uma circunstância fundamental: a forma de existência
ordem moral: a retidão, que conduz à justiça; a renúncia, que única, indestrutível, é, e não pode ser outra, um incessante
leva ao isolamento e à superação; a dor, que, expiando, neutra- transformismo progressivo, quase uma irresistível necessidade
liza a reação da Lei e conduz à felicidade. Secundariamente, inerente à natureza mesma.
são de ordem material: a ciência e o trabalho, que tendem ao Chegamos assim ao conceito de evolução; evolução da ma-
domínio material do mundo. téria, evolução da vida, evolução do espírito. Eis-nos aqui ante
Estes são os meios da evolução espiritual. a evolução espiritual, que é o nosso tema.
Este artigo – um desabafo de paixão ajustado a um desen- Observemo-la, agora, mais de perto, relacionando-a com a
volvimento racional – aproxima-se de seu fim. Desentranhan- evolução orgânica tal como foi exposta por Darwin, de que já
do conceitos em contínua transformação, da exposição preli- se falou bastante. O conceito, lançado por Darwin, da evolução
minar dos princípios gerais, nos acercamos das conclusões. da vida foi logo ampliado, concebendo-se uma evolução (cós-
Seguimos o fenômeno da evolução espiritual como um imenso mica, geológica, química) da matéria. Não necessitamos voltar
drama, através do qual a humanidade ascende da força à justi- a estes conceitos, já aceitos pela ciência, os quais nos servirão
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 89
de ponto de partida para proceder ao exame de uma nova evo- constituindo-lhe uma forma de existência nova, refazendo-o e
lução – a espiritual – ignorada em grande parte pela ciência ou, transformando-o em um ser diferente. Tal como se fosse uma
quando menos, ainda não admitida oficialmente por esta. nova potência espiritual, capaz de existir e evoluir separada, in-
O fenômeno da evolução espiritual somente se manifesta no dependente de seu último sustentáculo material, o sistema ner-
último escalão do reino animal, que, no conjunto, se encontra voso e cerebral. Portanto, se este psiquismo, por um lado, terá
muito distante dela, observando-se unicamente no homem. O como base um sistema que é, por sua vez, o produto mais alto
homem, como um microcosmo, reflete em si a construção do de toda a anterior evolução orgânica, tenderá, por outro, a sepa-
universo e é uno em sua personalidade num organismo tríplice, rar-se cada vez mais do mesmo, iniciando uma nova evolução
composto de uma estrutura óssea (matéria), de um conjunto autônoma e típica: a evolução espiritual.
muscular (organismo, vida) e de um sistema nervoso-cerebral Se queremos, pois, buscar no futuro a continuação da evo-
(organismo psíquico), três partes que se sustêm e se erguem uma lução orgânica cumprida no passado, se queremos definir a
sobre a outra. Interessa-nos ele não tanto pelo que representa seu forma da futura evolução humana, devemos dizer que esta, lo-
passado, mas porque, encontrando-se no alto da escala da evolu- gicamente, não poderá ser senão psíquica: evolução espiritual,
ção, deixou de construir-se como matéria e como vida e, na sua continuação lógica da evolução orgânica.
fase atual, obra e cria no campo da evolução espiritual. A vida do homem moderno já não tende mais, através da lu-
Com efeito, a evolução orgânica em nosso planeta superou o ta e da experiência, a construir órgãos físicos. Com a sensibili-
período de maior impulso de novas criações e permanece está- dade nervosa e psíquica, assimilará novas ideias, que, depois,
vel, tal como, já anteriormente, se havia estabilizado a evolução serão inatas, novos hábitos, que hão de transformar-se em atitu-
geológica. Estabilizar-se significa equilibrar-se em formas defi- des morais, elaborando este novo organismo psíquico humano
nitivas ou quase, que não tendem a novas transformações radi- que é a personalidade. Será ainda possível, sem dúvida, uma
cais, pois alcançaram a forma de maior rendimento. Assim co- transformação orgânica que somente intente algum primeiro
mo, um dia, se detiveram os grandes movimentos da massa ter- esboço de psiquismo, não mais, porém, como fenômeno princi-
restre e a crosta do planeta se solidificou em forma quase defini- pal, e sim apenas como fenômeno subordinado, com efeito de
tiva, a evolução orgânica, cristalizando-se nos organismos da caráter secundário, dependente da evolução psíquica, que há de
individualidade alcançada, tal como hoje os vemos, e tendo guiá-la como dona, considerando-a como meio para seus fins.
cumprido seu enorme trabalho para chegar ao homem, deteve- Deste modo, vivendo, o homem elabora a construção de
se. Deteve-se? Mas o transformismo ascensional é inerente à sua alma, ou seja, de uma alma sempre mais complexa e poten-
própria existência. Os seres continuaram e continuam existindo. te; e, em tal sentido, a alma pode dizer-se um produto da vida.
Existir significa progredir. Onde? Se não é possível que a evolu- Um organismo novo tende a adquirir uma autonomia cada vez
ção se detenha, qual a nova forma a assumir, especialmente para maior, que se cria continuamente e aumenta a cada dia, enri-
o homem, que se encontra no ponto mais elevado da escala? quecendo-se com todas as experiências pelas quais atravessa.
Darwin demonstrou ao mundo científico a evolução orgâni- Certamente, é o mais alto produto da vida, que representa o fu-
ca do mundo animal até ao homem. Com isso, ilustrou todo o turo da raça humana.
passado, toda a história do organismo humano. Mas, e depois? Temos chegado, assim, ao conceito da evolução espiritual e
Atingido o homem, Darwin calou-se, não se atrevendo a olhar o o temos delineado. Observemo-lo ainda mais de perto em suas
futuro, não sentindo e nem intuindo mais nada além da evolu- características.
ção orgânica já cumprida pelo homem. Pouco ou nada se tem falado no passado com referência à
Sem embargo, se existe um caminho ascensional já empre- evolução espiritual, porque o homem ignorou e nunca, anteri-
endido e que não se pode deter, é lícito inquirir qual forma te- ormente, viveu coletivamente em vasta escala este fenômeno. O
nha de assumir a continuação deste caminho, este incoercível e passado não registra movimentos espirituais de massa que pos-
progressivo transformismo ascensional que é a evolução; sobre sam ser comparados com os atuais; não conheceu senão casos
que parte do organismo humano há de intensificar preferente- esporádicos de seres intelectual e moralmente adiantados, pio-
mente sua ação evolutiva, esta grande elaboradora de formas neiros do futuro que viveram isolados e, apenas muito tarde e
que é a vida? incompletamente, foram compreendidos. Somente os tempos
A ciência moderna já considerou como insuficiente o sistema presentes conhecem o despertar em massa da alma humana, e
darwiniano de matar a vida para estudá-la, ou seja, percebeu a isto é justamente sua característica principal. Por isso pode-se
necessidade de examinar os animais não como cadáveres disse- considerar a evolução espiritual como fenômeno eminentemen-
cados anatomicamente, como partes de um organismo morto, te moderno e, indubitavelmente, o fenômeno do futuro.
mas sim como seres vivos e em função, com o propósito de ob- Tenho a mais viva sensação de que a humanidade está hoje
servá-los sob outro ponto de vista, analisá-los mais profundamen- ensaiando os primeiros esboços de novas formas do ser; formas
te, descobrir seus instintos, penetrar no mecanismo quase psíqui- de personalidade que serão as individualidades espirituais do
co que os anima e os vivifica, intuindo que tudo isso constitui futuro. Voltou-se com ardor e firmeza à elaboração de orga-
uma forma de vida muito mais importante do que a orgânica. nismos novos, de uma constituição totalmente distinta, obedien-
Se esta mudança de observação foi necessária para com os te à mesma lei que forçou a natureza a ir buscar, através de re-
animais inferiores, que devemos inferir para com o homem, que petidos ensaios, nos albores da vida, as primeiras formas orgâ-
os supera a todos? Para o homem, o estudo anatômico dos ór- nicas, hoje desaparecidas, reveladas pela Paleontologia: Peli-
gãos poderá revelar-nos seu passado, mas não sua verdadeira cossauros (Permiano), Pterossauros (Jurássico, Cretáceo), Ple-
natureza e o segredo do seu futuro. Sua natureza e seu futuro siossauros, Ictiossauros, Dinossauros, os mais gigantescos, entre
estão num psiquismo em desenvolvimento, cada vez maior, que eles o famoso Brontossaurus.
tende a libertar-se cada vez mais de todo o suporte orgânico. Eram formas de vida estranhas, mastodônticas, incompletas,
Se o sistema nervoso e cerebral é ainda seu órgão principal, destinadas a desaparecer logo, através da luta pela seleção, para
este é levado pelas condições da vida moderna, tão distinta da estabilizar-se em outras formas, com novos equilíbrios. Presen-
primitiva, a funcionar com tal prevalência sobre todos os ór- temente, tenho a sensação de igual efervescência de luta, de um
gãos e, portanto, a elaborar-se com tal rapidez, que mui pron- mesmo fervor de criação, de uma mesma rapidez na aparição e
tamente há de invadir todo o campo da vida. Resultará daí um na desaparição das formas intentadas: monstruosidades grotes-
psiquismo tão intenso e preponderante, que em breve dominará cas, organismos espirituais anormais, almas estranhas, rapida-
todo o ser, revestindo e definindo toda a sua individualidade, mente eliminadas pela seleção.
90 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
Sem dúvida, a evolução humana passa hoje por um período passado está contido, em grande parte, nas religiões. Para traçar
crítico. A evolução, em sua primeira forma de manifestação – a a evolução espiritual, sob seu aspecto de ―evolução de pensa-
matéria (seja cósmica, na história do sistema solar; seja geoló- mento‖, é mister seguir a evolução das religiões. Encontrare-
gica, na história do planeta; seja química, na estequiogênese mos relações tais entre estas, concatenadas quanto ao mesmo
dos elementos), completou-se; vale dizer que alcançou seus fim no seu desenvolvimento, que nos será dado ver e reconstru-
graus máximos. A evolução orgânica, ato fundamental na histó- ir a evolução de um conceito único e constante, que permanece
ria da vida sobre nosso planeta, também se completou, ou qua- fundamentalmente idêntico, ainda quando cresce e se aperfei-
se, e deteve-se. Em sua forma espiritual, a evolução inicia hoje çoa continuamente até alcançar, nos tempos modernos, uma
um novo caminho com a criação de novas espécies psíquicas, madureza de grandes proporções.
ou seja, individualizadas e distintas pelas características morfo- Poderemos desta maneira observar os antecedentes históri-
lógicas de natureza prevalentemente psíquica. Este representa o cos que prepararam a atual maturidade espiritual, até ao triunfo
fato fundamental na história da humanidade. da ciência de nossos dias. Se ligarmos este estudo ao outro, an-
Classificá-lo-emos – num sentido mui lato – como fenôme- terior e paralelo, o conceito de evolução espiritual, esclarecido
no biológico, porquanto a evolução espiritual, não sendo senão sob seus distintos e vários aspectos, parecer-nos-á mais comple-
a continuação da orgânica, é sempre vida, se bem que em forma to e porá termo à primeira parte. Na segunda parte, voltaremos
diferente. Este fenômeno aguarda hoje um homem de ciência e ao ponto de vista anterior, para desenvolvê-lo ainda mais e tra-
de fé que o divulgue e o demonstre, assim como o fez Darwin tá-lo mais detalhadamente; falaremos assim dos métodos para
com a evolução orgânica; aguarda o apóstolo que o defenda e o realizar e acelerar este novíssimo fenômeno da época moderna,
gênio que o revele, não já com os métodos da intuição, patri- que é a transformação do homem em super-homem e a passa-
mônio de alguns eleitos, senão com métodos racionais da ciên- gem para uma ordem de vida e de leis superiores.
cia moderna, acessíveis a todos. A importância das religiões, como expoentes do pensamen-
É indubitável que a alma humana, que começou a despertar to coletivo, não pode ser posta em dúvida. As religiões são as
depois de um sono de quase vinte séculos, apenas consolidadas grandes filosofias coletivas, as únicas nas quais tomaram parte
hoje as suas primeiras conquistas das grandes unidades nacio- as massas humanas, dando-se as mãos e unindo-se como se
nais, posta em contato com uma nova realidade, criada pelos fossem a ciência progressiva da humanidade. O pensamento
assombrosos descobrimentos da ciência moderna, está a ponto delas se enriquece, adquirindo potência e profundidade, à me-
de afirmar-se definitivamente como organismo autônomo. Esta, dida que, com a evolução, aumentam a capacidade e o poder
que podemos chamar a gênese do psiquismo, representa um da alma humana. Intuições progressivas da verdade, em forma
acontecimento novo na história do nosso planeta e da vida; um sempre mais vasta e completa, relações de homens com o divi-
fato que recorda, em sua grandiosidade, a primeira condensação no por obra de alguns eleitos e clarividentes, foram comunica-
da matéria nas formas planetárias e o aparecimento das primei- das, reveladas a uma humanidade que compreendeu e pôs em
ras individualidades orgânicas da vida. prática o que pôde, e que, absolutamente ignara em relação às
Trata-se de uma grande revolução da ordem, daquelas que concepções supranormais do subconsciente, aceitou-as na for-
explodem na natureza quando um fenômeno alcançou sua ma- ma psicologicamente passiva da fé cega, a única possível, dado
dureza, depois de um lento período de incubação silenciosa. o nível espiritual da coletividade.
Trata-se de uma revolução biológica, ou seja, da criação, por Seguindo, através da história das religiões, o desenvolvi-
evolução, de um novo ser; de uma superelevação da vida; da mento deste conceito único e fundamental, encontraremos uma
formação em massa de seres mais evoluídos, até constituir uma religião muito mais vasta, única e universal, da qual seguiremos
nova super-humanidade do futuro. sua evolução, que é a evolução do pensamento humano. Reli-
O homem não foi no passado – espiritualmente falando – gião que vai desde o vedantismo ao bramanismo, a Buda, se di-
senão uma criança em sua grande maioria, e demonstra-o o fato funde pelo Egito, chega ao mosaísmo, para dilatar-se no cristia-
de que a humanidade, até agora, nunca enfrentou a solução dos nismo e até à ciência moderna. Avança em vagalhões, como um
grandes problemas do conhecimento de forma racional, mas oceano em tempestade, agitado e impelido pelo sopro do Eter-
apenas acreditou no que os grandes, isolados e mais adiantados, no. Sobre esta crista espumosa das ondas, relampejam pensado-
haviam visto por si sós e revelado. Somente hoje a alma huma- res, mártires, profetas de todos os tempos e de todos os povos.
na ousou caminhar sozinha, coordenando os esforços de todos, Cada uma de suas formas é um esforço do pensamento humano
com métodos externos acessíveis a todos, e não revelados nos para evoluir; é uma aproximação maior da verdade; é uma ten-
arcanos misteriosos dos templos; em uma palavra, elevando-se tativa da alma humana para erigir-se em tipo de espiritualidade
em massa para uma vida autônoma e constituindo-se em coleti- cada vez mais perfeita. Não é possível, neste escrito, seguir de-
vidade consciente e independente. talhadamente a história de todas as religiões da humanidade; se-
Estas últimas observações nos revelam um novo aspecto da rá mister fazê-lo sinteticamente, limitando-nos às principais.
evolução espiritual. Depois de tê-la estudado como evolução de A evolução espiritual da humanidade pode dividir-se em
órgãos e capacidades psíquicas, apercebo-me que posso consi- três grandes etapas: o budismo, o cristianismo e a ciência
derá-la também sob um ponto de vista distinto, ou seja, como a moderna.
evolução de pensamentos e ideais. Tratando-se de um fenôme- Na antiquíssima Índia, o bramanismo, filho da sabedoria
no sumamente interessante e, sobretudo, de igual maturação, védica, havia realizado – ainda quando pelo sistema de inicia-
iminente no atual momento histórico, é mister não descuidá-lo, ção secreta – a ciência do espírito, que seguia métodos de me-
para chegar ao fundo da questão. ditação e de disciplina ascética, chamados Ioga. Nas profun-
Suspendamos, pois, por um momento – voltaremos a este didades do mundo interior, descobrira alguns grandes concei-
tópico mais adiante, na segunda parte (Métodos de Realização) tos, com os quais havia resolvido os mais vastos problemas do
– o estudo da evolução espiritual, considerada como superação conhecimento. Tudo isto, porém, em uma humanidade igno-
biológica e gênese do psiquismo, e observemo-la sob outro rante, havia quedado, necessariamente, como privilégio de
ponto de vista, ou seja, como desenvolvimento do pensamento uma casta e segredo de poucos iniciados. Somente com Buda
coletivo da humanidade. – última flor do gênio hindu, surgido quando a civilização
Chegamos assim às portas de uma nova ordem de conceitos, bramânica, esmagada sob o peso de seu passado, começava a
que nos transferirá para um campo totalmente diverso: o estudo cansar-se e a declinar – realizou-se publicamente o que o
comparado das religiões. Com efeito, o pensamento coletivo do bramanismo havia realizado em segredo, e lançou-se ao mun-
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 91
do, fazendo-a pela primeira vez patrimônio de todos, a mais No cristianismo, a dor já não é a ameaça e o terror do ho-
profunda filosofia da vida. Foi este o primeiro passo. mem, o inimigo contra o qual se luta, desde que seja, por assim
O budismo divulgou dois grandes conceitos, tão grandes dizer, domesticada e se converta em força amiga e útil para re-
que ainda hoje não se extinguiu o seu eco na moderna Europa. alizar a evolução espiritual, ou uma aproximação cada vez
Estes conceitos são: reencarnação e carma. Reencarnação sig- maior da felicidade. Ao inimigo do homem não se pode vibrar
nifica uma série de vidas humanas sucessivas para a mesma golpe mais rude.
personalidade espiritual. Carma significa encadeamento, su- A transformação da dor, de instrumento de pena em um
cessão lógica dessas vidas, seu desenvolvimento no tempo de meio de felicidade, não só é concepção nova na história do
acordo com uma lei de causalidade, que, com perfeita justiça, pensamento humano, senão também uma estrepitosa vitória, a
cria o destino individual. Foi assim, através do budismo, que maior revolução moral que jamais haja existido. Tudo isto não
esta grande ideia da evolução espiritual começou a formar-se é senão a boa nova predicada por Cristo. Nesta valorização da
na consciência coletiva. dor reside o significado do cristianismo; este é a apoteose da
Afirmada a existência desta evolução com os conceitos de dor e baseia-se sobre a vida do Cristo, que foi o poema da pai-
reencarnação e carma, o budismo começou a realizá-la, seja xão. Buda não teve paixão; ele adormeceu tranquilamente no
com a renúncia, como meio de libertação e ascensão, seja com Nirvana. Eis aqui o profundo significado do drama da cruz:
os métodos de introspecção e análise por intuição. Os misterio- elevação, até aos mais altos graus dos valores humanos, de tu-
sos poderes do espírito – que ainda hoje permanecem vivos e do o que havia de mais abominável – a dor; cruz que se con-
vitais em um mundo tão diferente – conduzindo a novas formas verte em símbolo de uma religião, santificando o que o homem
de visão psíquica e percepção espiritual, revelando e aperfeiço- havia temido e odiado.
ando, voltam a influir até entre os pregadores do materialismo Vencer a dor, abraçando-a e amando-a e, ao mesmo tempo,
científico, causando perplexidade ao homem moderno, acostu- utilizando-a como o mais ativo fator de evolução, como um
mado a perceber tão-somente com os sentidos e a investigar ex- meio sempre ao alcance da mão para fazer do homem um ser
clusivamente com a observação e a experimentação. novo, que vive uma vida mais elevada, mais santa, mais feliz,
O cristianismo dá um passo ainda mais gigantesco. Se o este é o significado da redenção e da ressurreição cristã. O bu-
budismo viu na evolução espiritual a fase da destruição da dismo, embora o grande caminho já percorrido, não pudera de
animalidade (supressão do desejo, renúncia), o cristianismo nenhum modo chegar a uma tão profunda interpretação da vi-
observou a sua fase sucessiva, a reconstrução do super- da; movera todas as forças da inteligência, porém somente o
homem; se Buda disse: ―a evolução espiritual existe (reencar- cristianismo movimentou todas as forças do coração. Somente
nação, carma); buscai-a em vós mesmos (introspecção)‖, so- o Cristo ressurge. O cristianismo é uma elevação imensa e cá-
mente Cristo traçou, no campo desta evolução, a realização lida para a vida, entendida em uma forma mais digna. As pai-
completa de nosso progresso. Porém a distância que separa o xões humanas não são destruídas senão em sua forma inferior,
cristianismo do budismo se evidencia toda no problema da subsistindo e se levantando para um nível mais alto; o paraíso
dor. As religiões, realizando a evolução, não são mais do que cristão não é somente o descanso que deriva da negação da dor
formas de luta contra esta grande inimiga, já que a missão da e do mal, mas é uma nova forma de vida na qual o homem se
evolução é suprimi-la, embora ela signifique instrumento de expande depois de sua reconstrução espiritual, que é a sua res-
felicidade, progresso e até bem-estar. surreição e sua redenção.
No fundo, Buda e Cristo partiram da observação desta lei Não devemos, por isso, conceber um antagonismo entre
atroz e própria da animalidade, da qual o homem não está isen- budismo e cristianismo. Haverá, no máximo, contradição nas
to e que foi definida por Darwin como ―a luta pela seleção do formas, exteriormente, porém, na realidade, não se trata de
mais forte‖, luta que não conhece piedade, necessidade inevitá- uma verdade colocada à frente de um erro. Nenhuma religião
vel no nível das formas inferiores de vida, e que engendra, co- constitui um erro, se ocupa o seu lugar. O cristianismo é, sim-
mo mal irreparável, a dor. Buda, movido por uma imensa pie- plesmente, mais evoluído e mais completo do que o budismo;
dade, foi o primeiro que expôs o problema de sua supressão e é sua continuação lógica; a evolução de um mesmo conceito
buscou um sistema que cortaria o mal pela raiz, no afogamento que, uma vez iniciado, avança e consegue uma perfeição mai-
do desejo na aniquilação da vida. Por último, numa renúncia or. Relação entre o menos, que prepara o mais, e o mais, que
completa, que culmina no Nirvana, na paz absoluta da liberta- pressupõe o menos; uma complementação recíproca de ele-
ção. Uma fuga da vida, para libertar-se dos males que lhe são mentos, indispensável para formar uma religião completa; um
próprios; uma negação global das dores e prazeres, estacionan- cristianismo explicado pelo budismo naquelas partes (reencar-
do na sublime imobilidade. nação e carma) que o cristianismo esqueceu em seu caminho;
Assim, a luta, que é a causa da dor, é atacada no desejo, sua um budismo completado pelo cristianismo (redenção através
primeira raiz posta no coração do homem. Sem dúvida, com da dor). Duas concepções não contrárias entre si, pois a maior
ele, o problema da dor é enfrentado com toda a energia. compreende a menor em seu seio; dois métodos, sendo o se-
O cristianismo, mesmo quando segue e completa o mesmo gundo mais completo do que o primeiro; duas filosofias pro-
conceito, chega muito mais longe; o problema é exposto e re- gressivas que marcam duas etapas no caminho da evolução es-
solvido em forma distinta e mais radical. Se o budismo, para piritual da humanidade; dois graus na mesma escala do pro-
destruir a causa da dor, se conforma – mediante a supressão do gresso humano; duas revelações aparecidas em distintos mo-
desejo – com o aniquilamento da natureza inferior no homem, o mentos históricos, nos quais a humanidade se encontrava em
cristianismo, conduzindo-o de todo a outro nível biológico, o diferentes graus de madureza; dois ideais de diferente potenci-
faz ressurgir em um mundo novo, onde a lei atroz da luta pela alidade que se subseguem no mesmo caminho.
seleção do mais forte – lei bestial da injustiça e da força – é su- Deixei de mencionar, por brevidade, as outras religiões do
perada, e, desta forma, a dor acaba definitivamente vencida. Se passado, que podem vincular-se a estes dois troncos principais,
o budismo se limita a explicá-la e justificá-la, chegando, através como ramos laterais de uma mesma árvore: seja a egípcia, que
da introspecção, aos conceitos de reencarnação e carma, e ensi- possui muita afinidade, em suas concepções da vida, com a an-
na o modo de evitá-la através da renúncia, o cristianismo, di- tiga civilização da Índia, seja a religião de Israel, que não é se-
zendo paixão, redenção e ressurreição, ensina a utilizá-la e amá- não a preparação do terreno em que devia nascer o cristianismo.
la como um precioso instrumento, que serve de alavanca para Estas religiões se auxiliaram e se sustentaram mutuamente, con-
evoluir e edificar-se em uma vida mais elevada. fiando-se a custódia dos grandes conceitos que se deviam con-
92 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
servar, maturar e assimilar, transmitindo-os para que fossem cussão – desastres coletivos dos quais a Europa ainda irá demo-
aperfeiçoados ainda mais, uma vez cumprida sua própria função rar para se refazer, apesar de tudo – dizia – a ciência moderna
histórica. Assim, profetas e povos foram elaborando, pouco a constitui um acontecimento novo na história da alma humana.
pouco, como a construção de um grande edifício, a trama de Se a necessidade de se afirmar a levou a exagerar desde o prin-
uma religião mais vasta, que se levanta sobre os alicerces de cípio e engendrou a atual civilização utilitária, necessariamente
uma verdade única, que se manteve constante através das for- truncada e unilateral, este esforço de pensar por si, no entanto,
mas mais diferentes dos tempos e lugares, manifestando-se ca- com que a humanidade demonstra ter ultrapassado para sempre
da vez mais luminosamente. a menoridade da fé na revelação, é maravilhoso. Até então, a
Não falo da antiga Grécia, fenômeno espiritual mais com- verdade – como já disse antes – era oferecida já plasmada, pe-
plexo, que, se por um lado contém e transmite os germes con- los grandes solitários, os quais, tendo-a intuído com meios pró-
ceptuais do Oriente ao Ocidente, por outro pode ser considera- prios e excepcionais, comunicavam-na em seguida a uma hu-
do – na perfeita realização conseguida do divino no humano, na manidade que, sendo incapaz de encontrá-la por suas próprias
mais harmônica fusão alcançada entre o espírito e a matéria – forças, aceitava-a passivamente. A humanidade, hoje, rechaça
como um descenso daquele nesta e uma pausa no caminho da esta forma primitiva de conhecimento, ousando olhar de frente,
evolução espiritual. Especialmente se vincularmos o helenismo unicamente com suas próprias forças, o mistério. É uma huma-
à antiga Roma (que careceu de conceitos espirituais, pois não nidade em marcha para a sua idade adulta, que deseja olhar o
podia possuí-los o ideal do domínio material do mundo, conse- mundo com seus próprios olhos. Eis o grande passo para frente
guido pelo sistema da organização da força), encontraremos ne- que a humanidade realiza hoje no caminho da evolução espiri-
le a elaboração de um conceito distinto: aquele do qual, mais tual: progresso, porquanto todos são admitidos na investigação
tarde, devia nascer o materialismo utilitarista moderno. Trata-se e colaboram na mesma com métodos novos: a observação e a
de um materialismo primeiramente helênico, depois romano e, experimentação. Todos aqueles que desejam e sabem, podem
em seguida, moderno; uma concepção pagã da vida, que difere conduzir o seu grão de areia na construção do grande edifício
das concepções religiosas do ciclo examinado na evolução espi- da verdade, e os resultados são acessíveis a todos, através das
ritual, porquanto não se propõe – como aquelas – realizar a fe- formas de vulgarização do saber e da democratização dos co-
licidade pelo desenvolvimento no mundo interno, mas domi- nhecimentos anteriormente ignorados.
nando o mundo e a natureza com a inteligência e a força. Estes Isto há de conduzir a humanidade para a sua madureza inte-
são os dois extremos do pensamento humano: espírito e maté- lectual, a fim de seguir, sem antagonismos, o caminho empre-
ria, paganismo e cristianismo, Ocidente e Oriente. O Oriente endido pelo budismo e pelo cristianismo. Sem antagonismos,
permanece indiferente ante o mundo exterior, esquivando-se ao pois, se os teve e todavia os possui, são transitórios e relativos.
seu contato, para dedicar-se exclusivamente ao aperfeiçoamen- O objetivo fundamental da verdadeira ciência é o mesmo que o
to da personalidade humana, e o Ocidente, que triunfa hoje na das religiões: a busca da verdade; e, à força de buscá-la, esta
moderna civilização europeia-americana, segue o ideal oposto. ciência terá de chegar necessariamente onde nunca tivera sus-
As duas concepções, no Oriente e no Ocidente, também hoje se peitado chegar: a demonstração da ideia de Cristo. É natural
encontram frente a frente: o alcance da felicidade através da que se encontrem na meta, que é a mesma, porquanto são so-
evolução do mundo interior e exterior, apegando-se cada vez mente distintas as rotas seguidas para alcançá-las; por uma
mais a este. Em outros termos, dois métodos: renúncia e con- parte, a revelação; por outra, a observação. A verdade, que é
quista, dor e trabalho; dois adversários que se excluem, desti- una, não pode variar pelo fato de ser alcançada por vias dife-
nados, porém, quem sabe, a unir-se e a colaborar. Levar-nos-ia rentes. Esta é, justamente, a função histórica da ciência moder-
muito longe, porém, a explicação das complexas funções destas na, e não mais o fim utilitário, que apenas possui como meta a
forças colaterais que atuam nestas civilizações de tipo distinto. realização de uma felicidade material. Este é seu significado
Não nos cabe falar das ramificações mais recentes, que se dife- como nova etapa na estrada da evolução espiritual do homem:
renciam do cristianismo tão-somente em pormenores; retorne- a demonstração das verdades, até então somente conhecidas
mos, pois, ao argumento interrompido. por revelação, contidas nas religiões.
O cristianismo não se detém no caminho da evolução espiri- Estas perderão seu aspecto misterioso e inacessível que tan-
tual. A ideia de Cristo sobre a redenção do homem apenas se to fatiga a mentalidade moderna. Serão preenchidas suas lacu-
lançou na história do mundo. Em dois mil anos, a humanidade nas, desaparecerão seus antagonismos exteriores e aparentes e
assimilou somente uma pequena parte, permanecendo pagã e suas discrepâncias com várias filosofias. Adquirirão, com a
politeísta como antes. Fixaram-se apenas – e nem sempre em demonstração cientifica, a evidência e a tangibilidade que hoje
forma estável – alguns conceitos nas instituições que hoje cons- atormentam e impor-se-ão – por assim dizê-lo – a todo ser raci-
tituem o patrimônio da civilização moderna, a civilização cristã. onal. Assim, a ciência moderna, seguindo a estrada e comple-
Estamos ainda longe da realização completa da ideia de Cristo, tando a obra do budismo e do cristianismo, assinalará a chegada
aquela que os evangelhos chamam a ―vinda do Reino dos Céus‖. do Reino dos Céus, ou melhor, oferecer-nos-á o super-homem
Para realizá-la, importaria que a moral de Cristo saturasse total- espiritualizado do futuro e realizará uma fase ainda mais avan-
mente as instituições, que se formasse uma humanidade organi- çada da evolução espiritual.
zada sobre bases distintas e radicalmente diferente, sobretudo Resumindo: o mérito de haver primeiramente afirmado a
nos instintos, nas normas de vida, na fé dos indivíduos. A evolu- existência da evolução espiritual corresponde ao budismo; ao
ção espiritual tem, pois, grande caminho a percorrer. cristianismo, o de haver ensinado os meios para realizá-la.
Entretanto um fato novo surgiu neste último século: a ciên- Corresponderá à ciência o de demonstrá-la, divulgá-la e, em
cia. A ciência representa, depois do budismo e do cristianismo, seguida, realizá-la.
um novo grande passo a frente no caminho da evolução espiri- Observamos, realmente, em nosso mundo civil, um fato sin-
tual. A ciência moderna, se bem que tenha começado exceden- tomático de primordial importância para a história da evolução
do-se no afã de concluir, arrastada pelo entusiasmo de seu pri- espiritual. Na Europa moderna, cadinho das ideias do mundo,
meiro aparecimento e também por uma natural reação corretiva em um período febril que quase raia ao neurótico, em um mo-
do abuso que as religiões praticaram; se bem que, apenas nasci- mento espiritualmente critico como o atual, no qual parecem
da, fundira-se no materialismo, infectando o mundo de utilita- agitar-se as grandes ideias da história e das correntes espirituais
rismo, fazendo o homem retroceder àquela animalidade somen- da humanidade, nesta Europa, dizia, encontramos reunidas as
te na qual o havia estudado, produzindo – como última reper- três grandes formas do pensamento humano: o budismo, o cris-
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 93
tianismo e a ciência. O budismo antigo, ressurgido no moderno como já vêm herdando toda a nossa civilização, a nova grande
movimento teosófico, representa a ideia de reencarnação e car- fé e viverão para levá-la mais adiante. Todavia, mesmo que a
ma, o conhecimento de métodos para encontrar uma consciên- Europa tivesse vivido tão-somente para realizar esta criação,
cia interior através das escolas do pensamento, e uma primeira não teria vivido inutilmente.
forma de purificação espiritual por intermédio da renúncia. Es-
tes conceitos profundos da antiga sabedoria hindu são necessá- III - O Reinado do Super-Homem
rios para explicar e completar a filosofia cristã, que, com o cor-
rer dos séculos, os ia perdendo. À teosofia neobudista está, des- Ressurreição! O homem, libertado, ressurge. A evolução
ta maneira, confiada uma grande missão na reconstrução espiri- espiritual se cumpre. A grande lei da vida triunfa. Percebo o ru-
tual da Europa moderna. O cristianismo, nas formas de catoli- gido da maré que avança dos mais profundos abismos e impele
cismo, protestantismo e outras afins, representa a ideia da dor os seres a uma corrida desenfreada de ascensão. É o hálito da
como função criadora no mundo espiritual, o conhecimento dos vida. Sinto a grande lei, princípio e força que anima o universo,
métodos de evolução das paixões e dos instintos, métodos ten- apressar, com o movimento lento e fatal de todo o seu comple-
dentes a realizar a transformação biológica do homem no super- xo organismo de formas e de conceitos, este momento supremo
homem, isto é, o aparecimento do novo homem espiritual, a para onde converge todo o transformismo fenomênico, este
missão de reconstruir a humanidade, reconstruindo o indivíduo. ponto culminante, que é a superação biológica, a transfiguração
A ciência, em suas infinitas ramificações, representa a função no super-humano. Toda a vida se acha empenhada no esforço
da demonstração racional das verdades reveladas e, com isto, a de forjar seu produto mais elevado no grande trabalho da última
obra de divulgar as ideias contidas nas religiões e de realizar na síntese. De um mundo de luta e de dor, a alma renasce em luz
vida os postulados das mesmas; fecundação das ideias dos nova e respira a atmosfera rarefeita das grandes alturas.
grandes solitários mediante o esforço da série infinita dos indi- Antes de empreender o grande voo, há um ponto no qual a
víduos, missão de realizar a evolução espiritual. alma se retarda em vacilação e incerteza, o ponto neutro do
Se, porém, cada uma destas três grandes forças espirituais transformismo. A vida se desenvolve, então, como um canto
representa uma ideia, uma tarefa, um trabalho próprio, as três cheio de nostálgica tristeza, formada por todos os sonhos dis-
juntas tendem a um fim muito maior, que é conseguir a fusão persos no vazio do nada, e, como folhas murchas do outono,
de todas as concepções em uma concepção única e mais am- caem uma após outra as ilusões e as miragens. O canto morre
pla, fusão que será a unificação espiritual de religiões, filoso- em nostalgia sem nome, apaga-se quase em calafrio mortal. Ex-
fias e ciência, síntese de todo pensamento humano, nova reli- traviada em deserto desolado e sem fim, a voz retumbante do eu
gião do futuro, na qual todas as sucessivas e diversas aproxi- se desvanece em canção lamuriante de sonho. Com a entonação
mações da verdade, conquistada paulatinamente pelo homem, doce e triste da recordação, a alma canta desconsoladamente.
encontrarão seu lugar, completando-se e fundindo-se numa só Seu canto é triste como um suspiro; gemendo, afasta-se da Ter-
verdade universal. ra. O eco distante dos amores perdidos ainda vibra no ar solitá-
Temos notado, através do desenvolvimento da ideia religiosa rio, música doce dos sentidos que se extinguiram para sempre.
da humanidade, a presença de um pensamento constante, mesmo Recordação dolorosa. Numa angústia mais profunda, que trans-
quando se vai transformando no tempo em um conceito único e borda do mistério, o último adeus à vida flutua largamente co-
universal, se bem que plasmado diferentemente pelos distintos mo que suspenso no vazio; em seguida, lentamente, desce para
temperamentos dos povos. Existe, pois, apesar das distâncias de desvanecer-se num aniquilamento que já não possui voz, mas
tempo e espaço, uma concordância de princípios fundamentais, tão-somente um latejo de vibração interna. A vida humana dis-
uma relação de partes, um aumento contínuo do mesmo núcleo solveu-se instantaneamente: eis o nada. Algo se delineia naque-
primitivo, que não deixam lugar a nenhuma dúvida. le vazio, como uma nebulosa, e se vai dilatando e transbordan-
Ainda que, aparentemente, estas três grandes forças espiri- do em outro esplendor. Uma estranha vida renasce nas profun-
tuais se encontrem em conflito, tendendo a excluírem-se num dezas; uma sensibilidade anímica, novo meio de percepção,
contínuo estado de luta, não devemos alarmar-nos pelas apa- abre de par a par as portas ao eu esmagado, que vislumbra uma
rências. Lutam pela necessidade mais urgente, que é afirmar-se visão semelhante a um sonho. Eis aqui o supranormal inexplo-
a si mesmas, se bem que separadamente, ou seja, defender, an- rado, em cujo umbral a alma assoma estupefata, e sobre o qual
tes de tudo, a sua própria existência. Sentindo-se cada uma de- se manifestam as pseudoneuroses incompreendidas do gênio e
las um elemento vital, indispensável ao futuro do pensamento do santo. Eis aqui o super-homem solitário e sofredor, enfastia-
humano, defendem-se desesperadamente, como se tivessem o do dos ídolos das multidões, aturdido pelo bulício da vida, abs-
terrível pressentimento de que seu próprio fim poderá prejudi- traído e inepto porque seu espírito nada faz senão escutar aten-
car a reorganização futura dos mais altos destinos do espírito tamente uma canção sem fim que se levanta de seu interior e
humano. Este instinto de conservação individual é natural e sobe de encontro ao infinito. Na sua hipersensibilidade tortu-
providencial, pois, no fundo, se as três forças se chocam entre rante reflete-se o tormento sagrado da criação, em que se des-
si, é também para que se conheçam melhor e porque, na reali- nuda a beleza luminosa da alma. Estranho sonhador, absorto
dade, buscam-se para tocar-se, para sentir-se, para encontrar um nos ócios fecundos que amadurecem sua ânsia interna invisível,
encaixe que, algum dia, lhes permita a fusão. Se a preocupação padece uma paixão que não se endereça mais ao homem, porém
pela própria integridade e conservação é, como no indivíduo, a ao universo. É heroico arcar com o peso de uma grande ideia.
mais pertinaz, não é menos viva, se bem que menos visível, Este peso que esmaga, assusta e oprime com uma sensação de
aquela de poder achar um meio de uma fusão futura. Estes três desproporção e de miséria.
princípios, o budismo, o cristianismo e a ciência, acabarão por Como se poderia calcular o custo destas conquistas, como
fundir-se na Europa moderna, transbordante de ideias, que con- descrever o drama terrível que vivem estes espíritos doridos
tinua sendo o cérebro do mundo, se bem que esteja bastante que levam dentro de si a ânsia de criação? Enquanto nós outros
cansada pelo muito que lutou e viveu. gozamos os frutos humanos que aplacam e dispersam as forças
Nesta Europa ultramadura, a civilização fartamente avança- do espírito, eles se reconcentram para intentar o esforço sobre-
da, para que não deva iniciar sua regressão, antes de extinguir- humano, vivem de coisas imensas, de esperanças e desalentos
se, deseja brindar ao mundo a maior criação do pensamento inconcebíveis, empenhados em lutas titânicas contra forças ti-
humano: a religião sintética do futuro. Outros povos do Ociden- tânicas; pedem à vida aquilo quase impossível, que é a realiza-
te americano, mais jovens e mais aptos para a luta, herdarão, ção do ideal, sem descansar em prazeres fáceis, sem possibili-
94 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
dade de jamais se conformar com a mediocridade, empurrados como, por exemplo, no sonho relatado no Capítulo XXV de I
como num turbilhão, por um trabalho incessante de evolução. Fioretti, de São Francisco, para demonstração de que os ―san-
Como descrever o terror de quem se assoma sozinho ao abismo tos‖, seres biologicamente ―adiantados‖, viveram realmente es-
dos grandes mistérios e percebe, sobre o limiar do supranormal, te drama íntimo em que o espírito ensaia voos e cai. Depois se
a visão de novas realidades sem limites? Como conceber a sen- purifica e recobra forças através de outras provas, para volver
sação de vertigem que dão certas alturas à natureza humana e a a reiteradas tentativas, caindo e ensaiando de novo até que, fi-
triste solidão da alma diante da desmesurada inconsciência das nalmente, consegue o voo vitorioso.
massas, mercê da insuficiência de um mecanismo sensorial e O espírito sofre na longa espera, mas o futuro lhe pertence.
cerebral que não consegue agarrar a parte mais verdadeira e A matéria é tenaz em sua opressão, mas, como filha do passa-
mais profunda da vida? Depois, a luta para ascender sozinho, a do, fenece com este.
desvinculação atroz dos laços da animalidade, que, com fre- O homem atual oscila entre as duas fases contíguas, num
quência, constituem integralmente a vida; o esforço, às vezes dualismo de formas de vida que evidencia o transformismo as-
perigoso e malogrado, para forçar a aceleração do processo cendente, dualismo que observamos em todos os valores huma-
evolutivo. Atrás de cada vitória, a vertigem de uma altura mai- nos e agora voltamos a encontrar no homem. Apresenta-se-nos,
or, até que apareça um novo mundo de grandiosidade arrebata- assim, uma duplicidade de organismos em um único ser, cone-
dora. Dores e angústias recompensadas não mais pela humani- xos e distintos ao mesmo tempo, juntos, mas não fundidos, dis-
dade, mas pelas forças biológicas. Dores necessárias para a cri- tanciados por uma rivalidade que é uma guerra sem quartel, pa-
ação de valores maiores: os espirituais. ra conquistar todo o campo da vida; corpo e alma, matéria e es-
Depois do exame da evolução espiritual como conceito, pírito – assim como a força e a justiça, a dor e o prazer, o mal e
desde o ponto de vista científico até ao religioso; depois do es- o bem – somente representam, no caminho da evolução, o pas-
tudo dos meios para realizá-la, sob o ponto de vista social e es- sado e o futuro. Nada importa, se a existência do espírito – es-
piritual, consideremo-la, agora, com um ritmo mais rápido e vi- sência destilada de todas as experiências da vida, que tudo con-
brante, como um impulso de paixão, na plenitude de sua reali- centra e conserva eternamente – por ser uma entidade sutil e
zação. Completaremos, desta maneira, mudando continuamente impalpável, foi negada. Não importa tampouco se, em muitos
de perspectiva, o quadro desta concepção, que é uma filosofia casos, a alma silencia, pois o seu componente físico é débil. Pa-
universal e completa da vida. ra outros, ela é uma realidade contínua, evidente, indiscutível;
Vimos que os caminhos da libertação nos conduzem ao rei- se não é ainda possível, para a sua demonstração, executar uma
no do super-homem, a cujos umbrais chegamos, onde se efetua exata anatomia espiritual, é devido tão-somente à falta de meios
a superação biológica. O nascimento do super-homem pressu- sutis de investigação. Quem busca provas racionais para encon-
põe a morte do homem, ou seja, um isolamento e uma luta. É o trar a alma atesta a sua própria involução. A alma, como Deus,
isolamento do mundo inferior, é a luta entre o espírito e a maté- não se demonstra; é sentida e alcançada dentro de nós mesmos,
ria, entre o ser novo que se liberta e ressurge e a animalidade por intuição, e não por um esforço exterior de raciocínio.
que não deseja e, entretanto, deve morrer. Na desvinculação en- Em alguns seres avançados, nos quais o espírito se sente
tre espírito e matéria, na libertação deste novo ser que, impulsi- maduro para uma vida própria e reclama a sua afirmação, em
onado pela lenta maturação do tempo, surge estranhamente contraste com um organismo que não quer ceder seu campo e
num mundo novo, com novos sentidos, instintos e conceitos, perecer, a luta pode chegar a ser terrível. Aquele organismo, se
existe todo um esforço de ascensão, laboriosidade do parto, ân- está destinado à eliminação para ser inexoravelmente vencido
sia de criação, e isso, depois de uma incubação milenária, à for- com o tempo, resume toda a animalidade e é a cristalização de
ça de acumular experiências e aptidões, crescendo e aperfeiço- um passado que representa, pela sua massa, uma força e um
ando-se com o trabalho da vida. Há algo que recorda, se bem impulso imensos. À chama ardente do espírito a matéria opõe a
que muito longinquamente, o glorioso nascimento da vida no inércia das grandes massas, agarra-se, como pesado lastro, ao
mundo orgânico – uma grande conquista depois de enorme tra- anjo alado, que se atrasa na impaciência do voo.
balho e prolongado esforço. Podemos imaginar a vida não mais como um ponto, mas
O homem, já chegado ao máximo da evolução terrestre, como um rasto que vai crescendo até cobrir um bom trecho do
avança ainda mais além, apartando-se da animalidade que lhe caminho da evolução. O espírito é o seu limite extremo avança-
era própria, superando-a totalmente com novas e mais vastas do, a locomotiva em marcha que devora distâncias, ou ainda, o
aptidões, até revolucionar a vida. chefe que vê, guia e manobra. A matéria é a massa que, se gra-
O espírito, aprisionado pela matéria já antes de nascer, no vita por inércia, garante a estabilidade; é um corpo que, mesmo
período penoso do ensaio, se debate dentro do organismo cor- dificultando, também assimila, fixa e conserva as conquistas
póreo insuficiente e preguiçoso, como entre paredes de um cár- realizadas, ainda quando se estenda ao limite oposto, do qual a
cere. Urge-lhe crescer, e o mecanismo sensorial já não responde vida se vai afastando cada vez mais. O espírito, que marcha à
mais à crescente vontade de perceber e de viver. Este novo or- frente, em processo de contínua e progressiva criação, ansioso
ganismo, que é a alma, deseja romper a carcaça para expandir- por viver ―mais além‖, tem a seu cargo todo o trabalho da mar-
se na luz do sol; deseja superar o passado e abrir-se nas rotas da cha e é o inimigo natural de tudo quanto vem arrastando atrás
vida, ressurgindo no júbilo de uma renovada juventude. Este é de si. A matéria, em compensação, é um organismo animal, fei-
o significado íntimo dos fenômenos metapsíquicos, que tendem to para abastecer-se a si mesmo, e não às criações espirituais;
a normalizar-se, e das manifestações cada vez mais claras do um organismo cujas células estão construídas para as trocas
subconsciente na realidade cotidiana. Existe dentro de nós comuns, e não para suportar as tempestades do espírito. Este
mesmos, e se vai definindo cada vez mais, uma personalidade organismo é o inimigo natural do espírito, que, para afirmar-se
ansiosa de vida própria. Grita sempre mais forte e golpeia de- a todo o custo, lhe impõe um trabalho pesado e até o agride,
sesperadamente o nosso interior, como se fora a porta cerrada como para matá-lo, a fim de libertar-se dele. Daí esse desequi-
de um cárcere. Cada dia é mais castigada pela estreiteza dos li- líbrio que se quis incluir no patológico, mas que é somente um
mites do mecanismo sensorial e, naturalmente, expande-se cada deslocamento de centro de vida, a aparência exterior de um in-
vez mais, buscando lançar-se fora nas realidades novas e mais tenso trabalho de criação. Dentro da vida se encontram o enor-
vastas, para a conquista de uma vida independente. me trabalho do renascimento e a dor da morte. O espírito é or-
Encontramos esta luta e este esforço perfeitamente descri- ganismo em crescimento contínuo, que, no seu incessante reno-
tos em muitas passagens psicológicas da literatura mística, var-se, vai matando cada vez mais a besta no homem. Cada se-
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 95
gundo é fração de transformismo evolutivo, em que uma parte ao espírito, disputando-lhe qualquer ascensão e intentando me-
do ser morre e volta a nascer; desloca a vida para dá-la ao espí- lhor sujeitá-lo aos seus fins. Estabelece-se desta maneira, entre
rito, subtraindo-a à matéria. Nenhuma criação é possível sem os dois, uma luta pela vida, luta que será tanto mais árdua quan-
trabalho e sem dor. Uma parte de nós outros, dada a autoridade to mais forte e atrasado for o nosso eu inferior.
da Lei, que é um impulso irresistível de evolução, deve separar- Não atendamos à sua voz desesperada. Deixemo-lo, heroi-
se para ser abandonada e substituída por outra forma. A nature- camente, gritar e perecer, vencendo a resistência que aperta cada
za inferior está obrigada a este trabalho típico de reparação do vez mais as cadeias de nossa escravidão. Se soubermos superar
mundo de hábitos e instintos que foi seu e que deve extinguir- o primeiro esforço, que é sempre o mais penoso, experimenta-
se. Isto não quer dizer que ela, sentindo-se desfazer pelo ímpeto mos no espírito, de imediato, uma sensação de bem-estar, uma
da borrasca, não resista por instinto de conservação e não se re- alegria em nossa consciência, que irá aumentando à medida que
bele para não perecer. Apertada em engrenagem que a vai es- avançamos para o progresso, até que se forme em nós o hábito
magando cada vez mais, presa por uma sensação de asfixia e de do mando. A cada vitória, a matéria mais debilitada afrouxará o
terror da morte, luta desesperadamente. Daí essa batalha interi- seu apertão, e o sofrimento perderá cada vez mais algo de sua
or, verdadeiramente épica, e que é a maior de todas as glórias intensidade. Se é doloroso matar a natureza inferior, este é o
humanas. Drama laborioso e fecundo, através do qual resplan- único meio para matar também a dor, que, como vimos, desapa-
dece a função evolutiva da dor. rece com a libertação, pois a pena da separação deriva totalmen-
Existe um duplo trabalho: o florescimento do espírito, ór- te da natureza inferior e não existe para o espírito que se tenha
gão novo que intenta alcançar cada vez mais solidamente as liberto da mesma. O sofrimento reside todo na imperfeição, na
futuras formas, e o sofrimento e a morte de um organismo que impotência, nas limitações que são inerentes à matéria, enquanto
se sente limitado em suas expansões máximas, formado e que, para o espírito, esta é a rota radiante da redenção e da vida.
afirmado solidamente nos séculos vividos, sob a presidência da O fenômeno da superação biológica que nos conduz ao rei-
mesma lei que agora o mata. Esta morte daquela parte de nós nado do super-homem assume, pois, a forma de uma luta entre
mesmos, que em geral é a mais sólida, pois data da herança o futuro e o passado, entre o espírito e a matéria, e efetua-se
dos instintos mais antigos, é o maior tormento. É o justo preço mediante a renúncia, que poderíamos já definir como o proces-
da conquista da evolução. so de realização do transformismo evolutivo. O problema trans-
É bem certo que o caminho da superação, por ser feito de figura-se de superação em luta, de luta em renúncia. A renúncia
renúncia, é o caminho da tristeza e causa horror, encerrando, manifesta-se-nos sob dois aspectos distintos. Para o ser igno-
todavia, uma alegria que compensa. Não sofre o ser em sua to- rante e passivo, que não se move senão sob o empuxo da Lei,
talidade tais restrições, mas somente o organismo inferior, o há uma renúncia forçada, imposta pela evolução, inexoravel-
único que grita, enquanto a parte mais nobre do eu goza e se mente – a dor – o caminho das grandes massas inconscientes,
alegra ao vislumbrar nova e ilimitada expansão. lento mas inevitável, o caminho de libertação, que já examina-
Encontramo-nos, também aqui, à frente de dois conceitos in- mos. Existe a renúncia voluntária, caminho rápido, consciente e
versos e complementares na função da dor, que, no mundo ani- livre, reservado para aquele que sabe e se lança espontaneamen-
mal, é destrutiva e, no mundo espiritual, se inverte em função te, sem aguardar imposições, na corrente da evolução e segue-a
criadora. O que, para os instintos inferiores, significa terror e ativamente, acelera o seu curso, buscando-a e utilizando-a co-
morte, para o espírito é gozo e vida, e ao contrário. A evolução mo um instrumento no caminho da libertação, a que aludimos e
impõe-se sempre dentro de perfeito equilíbrio de justiça; não é que estudaremos aqui. Duas escolas diferentes de progresso,
possível se esquivar a um sofrimento, assim como não se pode igualmente necessárias, das quais não se escapa a não ser para
recusar uma alegria. Quem se entrega aos gozos do espírito deve sair de uma para a outra. Ou a dor ou a renúncia. Eis a exigên-
sofrer o tormento da carne; e quem se entrega aos prazeres da cia da evolução, e a evolução é a vida.
matéria sofre um contínuo desassossego, o remorso da consciên- Dor e renúncia não são, pois, senão duas fases desta opera-
cia, que não é possível abafar, pois despertará quando cair a ilu- ção. Tocam-se como fenômenos contíguos, que tendem, de
são. Parece impossível uma posição de ócio, porque a evolução pontos diferentes, a um mesmo fim: a libertação. Retornemos
é lei inexorável, que nos impõe a conquista de nossa felicidade. ao problema da dor, para ver como esta se transforma gradual-
Espírito e matéria representam duas formas de vida tão di- mente, até resolver-se no problema da renúncia. Chegaremos
ferentes, que o ser não pode contê-los ao mesmo tempo, sem assim a explicar-nos o significado deste conceito da renúncia,
dar a um deles a primazia com menoscabo do outro. Dois absurdo e inadmissível se o separarmos daquele da evolução,
amos, dizia Cristo, aos quais não se pode servir ao mesmo que a utiliza como instrumento de superação e ascensão. Estu-
tempo: Deus e o Diabo. daremos uma questão mencionada anteriormente, a da renúncia
A natureza do espírito é positiva, ativa, criadora. Sua ne- como meio de libertação; veremos como deve ser usado este
cessidade suprema é dar e doar-se. Seu gozo é o altruísmo, o meio, qual é o dinamismo de seu funcionamento, que nos con-
sacrifício. duz ao reinado do super-homem, onde, finalmente, se realiza a
A matéria, ao revés, é negativa, passiva, inerte; para suster- evolução espiritual tão amplamente preparada.
se, necessita receber, absorver continuamente do mundo exteri- Deixei de enumerar entre os caminhos da libertação os sis-
or; acumular constitui seu gozo primordial. Cega e muda por temas de Ioga, escola de pensamento e desenvolvimento espiri-
natureza, não pode viver se não for fecundada e plasmada pela tual, a ciência Oriental da evolução, não só porque este estudo
potência do espírito e reanimada incessantemente por seu abra- nos levaria demasiado longe, senão também porque estes siste-
ço vivificador. Daí o egoísmo, a avidez de sua pobre vida refle- mas são adequados especialmente aos que podem viver em iso-
xa, o insaciável desejo de posse e de domínio. Se o espírito é lamento monástico. Limitamo-nos, deliberadamente, a uma or-
tão inesgotavelmente rico, que pode dar sempre sem se acabar dem de ideias ocidentais e científicas e chegaremos à realização
jamais, a matéria é tão pobre, que nada pode dar sem sentir-se do Ioga com os meios da nossa própria psicologia.
morrer. Sempre sedenta e famélica, ela é toda garras para pegar, A dor, contra a qual de nada valem a riqueza, a ciência e o
feita para agarrar e entesourar, pois, nos mundos inferiores, o poder, entra inexoravelmente em todos os lugares e sabe fazer-
dar importa em diminuição e autodestruição. se sentir também naqueles que ignoram sua função evolutiva,
Disto nasce a sua atitude contraditória. O que para o espírito impondo-se incondicionalmente a todos. Em contato com ela, o
representa a separação dos vínculos de um mundo inferior e a eu, saturado do mundo exterior, sente-se sacudir em suas fibras
libertação, para a matéria é a desesperação da morte. Agarra-se mais íntimas, por uma sensação estranha. A dor oprime, cerra
96 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
todas as vias de expansão para o exterior, obriga o impulso da Passamos, assim, ao mundo super-humano, onde a dor, de
vida a retirar-se em ordem sobre si mesmo, para buscar novos fator negativo e maléfico, se transforma em prazer de criar,
refúgios em outras direções, usando rumos inexplorados. As em amiga querida dos grandes, em alavanca poderosa que re-
forças, que de outro modo se dispersariam caso se lançassem pa- genera o mundo, em uma corrida para a vida. Soa o hino da
ra o exterior, acumulam-se e concentram-se para, em compensa- redenção. Felizes os que choram. Aqui, a dor não é mais dor.
ção, dilatar-se interiormente, numa expansão diferente. O pro- A Lei permanece, mas é a lei santa do sacrifício. O conceito
gresso e a conquista de bens são os primeiros instintos da vida e de ―dor-mal‖ e ―dor-dano‖ se transforma no de ―dor-
a felicidade de que o homem necessita. Tudo que os limita lhe redenção‖, ―dor-trabalho‖, ―dor-útil‖, ―dor-gozo‖, ―dor-bem‖,
causa pena, pois toda a diminuição de si mesmo é dor. O eu que ―dor-paixão‖, ―dor-amor‖, por gradações sucessivas, numa
se encontra rodeado pela dor, sofrendo-a, agita-se freneticamen- contínua ascensão, até ao absurdo aparente do martírio, até
te sob o apertão que o sufoca, preso ao desespero pela necessi- uma Santa Teresa, um São Francisco, um Cristo. A dor, então,
dade insatisfeita, e vê-se induzido a intentar outros meios para transfigura-se. Parece esfumar-se na mais profunda sensação
realizar aquela expansão, que é a sua própria vida. Se está madu- da Lei, como um eco de mundos inferiores que aí em cima, na
ro pelo sofrimento e pelo conhecimento, ao defrontar a barreira glória da alma, não pode chegar.
inexorável que o destino opõe ao seu fácil crescimento externo, Através da evolução, realizou-se o milagre da superação da
com um supremo esforço se rebela contra tudo o que é do mun- dor. O eu e a Lei uniram-se em harmonia perfeita, sem possibi-
do exterior, buscando outro caminho em si mesmo. O impulso lidades de violações, de reações e de dor. Esta já não existe
da vida toma assim outra direção, para o interior. A expansão aqui como mal ou expiação, mas somente como trabalho livre
encontra a maneira de igualmente realizar-se, mas para uma rea- e consciente, transbordante de prazer de criar valor maior: o
lidade de outra ordem, saltando por cima das várias lisonjas e homem e sua felicidade.
gozos. Deste modo, o sofrimento da dor se modifica em um mal É neste ponto que a dor se torna renúncia, a fase mais ele-
benfeitor, porquanto, sem o seu aguilhão, não teríamos buscado vada da superação. Agora poderemos compreender o signifi-
o novo caminho. Uma vez orientada neste rumo, a personalidade cado deste conceito, do qual está cheia a vida dos ―santos‖.
traça, então, novo itinerário. Avançando gradualmente, descobre Aqui está como a renúncia deve ser incluída no número dos
que a vida humana não é a vida integral e vislumbra, mais além caminhos da libertação, porquanto significa isolamento da vida
da mesma, um mundo imenso. Ocorre um fato estranho: a cada inferior, sendo desta maneira uma condição para ascender até
golpe que parece acarretar a ruína, algo ferve e emerge do mais um mundo melhor.
fundo do eu. Cada vez que a dor aperta e parece reduzir a vida, Como tudo se transforma subindo a escala da vida! Como
algo se reconquista numa forma diferente que, em compensação, sofrem diferentemente os seres nos mais variados graus de evo-
a engrandece. Percebemos que a dor nos separa e nos livra de lução, cada um à sua maneira: este, maldizendo; aquele, expi-
um invólucro denso de apetites e sensações; que a alma se le- ando; esse outro, bendizendo e criando!
vanta para um mundo maior à medida que nos vamos despojan- Depende de nós o saber ascender para vencer a dor, o saber
do da animalidade e que se dilata numa potência mais vasta de sofrer reagindo na forma mais elevada, extraindo do tormento
percepção, numa forma de vida mais intensa, numa realidade da vida o proveito máximo do espírito. Saber reagir, aí está o
cada vez mais profunda. Do mistério do ser afloram novas fa- segredo. Certamente é mais fácil afirmar-se e vencer no mundo
culdades na consciência. Eis porque uma vida de provas pode mediante uma reação de força e de ódio, mas só a justiça e o
conter grandes compensações no mundo do espírito e, como re- amor são as reações dos grandes. Se o ser inferior não sabe rea-
compensa, estimular essas grandes criações interiores que, na ar- gir senão manifestando a sua baixeza, quem possui uma alma
te, na fé, na ciência, nascem sempre de uma grande dor. Seu va- responde com uma reação que é um impulso para levá-lo mais
lor como instrumento de evolução provém deste seu poder de além dos confins da vida Só, contra todos, mas grande.
penetrar e revolucionar, de provocar uma reação. A dor é, desta É uma experiência – que é a eterna filosofia da vida – que
maneira, um grande estimulador e excitador de reações nas nos ensina a vencer a dor seguindo a evolução, superando as
quais a vida espiritual se revela. formas inferiores, afastando-nos daquele centro de atração de
No mundo subumano, ali onde a dor é derrota sem piedade, todos os nossos desejos e paixões, que é o mundo exterior, ao
o ser sofre na sombra, cheio de ira, em estado de absoluta misé- qual o inexorável transformismo evolutivo se opõe como um
ria de consolo, de luz e de vida. É a dor do condenado sem es- furacão, convertendo-o em abdicação de formas transitórias e
perança. O homem é sempre livre para usar, com responsabili- efêmeras para enriquecer o próprio eu de realidade mais pro-
dade própria, as forças naturais, podendo retroceder até ao funda, mais concreta, mais estável. A criação dos valores será
abismo, se não quiser esforçar-se pessoalmente para realizar definitiva, o resultado intangível e invulnerável. Conquista-se
sua libertação. Somente no mundo humano, o eu se reconcentra uma fortaleza dentro do próprio ser, refúgio supremo para as
em si mesmo e pondera. dores da vida, onde tudo, finalmente, se encontra na paz. Tudo
As experiências se acumulam, o instinto registra, assimilam- isto é uma atrevida exploração no mundo ignoto das forças
se melhores hábitos, criam-se aptidões e capacidades espirituais, mais profundas do ser humano. Não é fácil aventura espiritual,
a alma começa a sua expansão. No mundo humano, o espírito mas transformação de consciência, transportada com medo
pressente uma recompensa e uma liberação e leva consigo um mais além da vida, no supranormal. Pode parecer fuga e des-
raio de esperança. É a dor tranquila de quem expia e sabe. Mes- truição, e o é, com efeito, mas fuga para subir mais acima, des-
mo quando a alma conserva uma aspereza exterior, encontrou truição para reconstruir melhor. Pode parecer uma espécie de
uma rocha aonde aquela não chega, outro mundo onde se refu- mutilação de aspirações e de vontade, uma supressão de sadias
giar. Arte de saber sofrer conscientemente, vencendo a vida. energias ativas num estado de passividade vazia do fecundo
Deste modo, a dor recebe um valor totalmente novo, porque a fermento da paixão, tal como o é na atormentada degeneração
mente a analisou, descobriu as suas causas e estudou as suas neurótica de algumas religiões do Oriente. Mas é sublimação
leis. Consciente de sua função evolutiva, achou-a justa; num ato da vida numa forma de ação mais enérgica e mais viril do que
livre e voluntário, em vez de evitá-la, aceita-a. Conhece a sua fi- o desgaste inútil da comum agressividade desorganizadora,
nalidade e utiliza-a. Sabe que não é senão um trabalho mais in- numa forma de ação mais ativa, porque consciente das forças
tenso e fecundo, convertendo-a em instrumento de redenção. Es- naturais no meio das quais opera.
tamos num mundo novo, onde as leis biológicas se transforma- Meu ideal humano não é o super-homem de Nietzsche, figu-
ram e a dor, o terrível inimigo, perdeu muito da sua virulência. ra primitiva do herói da força, mas o super-homem em que a
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 97
vontade do dominador, a inteligência do gênio, a hipersensibili- do, ingresso impedido pelas paixões e instintos do passado,
dade do artista e, sobretudo, a bondade do santo se tocam e se que, erigidos em vontade autônoma, funcionam como seres vi-
fundem. O lutador sobre-humano que se digna lutar tão-somente vos, como guardiões; e, o segundo, um descenso do sobrenatu-
com as forças biológicas, e as vence. Um ser que é quase de uma ral no humano para levá-lo, num abraço fecundo, para o alto.
raça nova. É o lutador da justiça, o senhor de todas as forças de Os estados psicológicos característicos deste momento que
sua própria personalidade, com o auxílio das quais sabe lutar preludia o renascimento da superconsciência parecem estra-
conscientemente para o bem individual e coletivo. nhos. Depois da grande luta, toda a vontade parece ter-se aca-
Existe no mundo um ideal: sacrifício, dor voluntária e ju- bado no ser. Então, extraviada a razão, destruída a consciência
cunda, aceitos como instrumento de grandes criações espiritu- e esgotada toda energia vital, preso a um total decaimento, num
ais, ideal formidável que relampeja no budismo e no cristianis- estado de passividade que parece inércia, mas que é apenas o
mo, acima do árido conglomerado de dogmas e catalogação de grau hipersensível alcançado pela receptividade, o eu mais pro-
atos que, se, para o vulgo, são uma necessidade, para quem se fundo da superconsciência desperta e se manifesta.
eleva, são cárcere da consciência. Este ideal me diz: sofre para É surpreendente a mudança (tal como uma criança que se
criar, morre na matéria para renascer em espírito, sozinho e converte em homem) verificada nesse tipo de consciência, que,
grande, age preso de uma sagrada paixão de evoluir, divino entre as sensações de morte, renasce tão diferente. Surpreen-
dom, raro entre os homens. É o conceito da felicidade perfeita dente porque contraria todos os cânones da ciência médica; um
exposto em I Fioretti de São Francisco, repetido como máxima organismo que parece finar-se, justamente durante o seu des-
das mais profundas filosofias, desde Cristo para cá, em todas as censo vital revigora-se e sensibiliza-se, aguça-se e dinamiza-se
formas, e que, incompreensível para a mentalidade moderna, perceptivamente, engrandece-se espiritualmente, tal como se
intentei repeti-la, usando os termos do positivismo materialista. nutrisse a si mesmo em mananciais de energia de natureza ex-
Tenho a confirmação daquele fato indiscutível que é a expe- traorgânica. Todo o mundo das sensações reaparece, mas tão
riência vivida, com poderosa fé, por esses homens de vanguar- fora do habitual e tão incontrolável a princípio, que assume as
da, os santos, que seguiram este método para realizar sua as- aparências incertas de sonho. Então, a percepção, antes insegu-
censão, glorificada pelo assentimento dos povos e a veneração ra, incompleta e, às vezes, errônea como no recém-nascido, se
dos séculos. Se tudo isto não é uma utopia, se a santidade não é vai precisando, fazendo-se mais luminosa e consciente. Período
uma aberração, se a humanidade não está louca e se desejamos, de controle, como uma regulagem destes novos meios de per-
para venerar, antes de tudo compreender, esta concepção sinté- cepção à realidade externa. Período em que a consciência, ao
tica é indispensável. A santidade pode existir também no mun- mesmo tempo que se alegra por sua acrescentada potencialida-
do moderno. Se esta chama de vida espiritual assumiu nos sécu- de, por outra lado se assombra com estranhos extravios, provo-
los passados a forma religiosa monástica, à base de isolamento cados por deslocamentos de sensibilidade, que constituem o seu
e contemplação, nas ferozes condições da época, que faziam maior tormento, pois sente que perde neles tudo quanto havia
necessárias essas fugas; se hoje, para a nossa mente, aquela conquistado. Vislumbrar por um instante um mundo novo e, em
santidade se nos afigura uma utopia por estar cristalizada em seguida, como cego, não ver mais nada; sentir que possui novas
formas que já não se usam, ela, entretanto, não morreu. Como faculdades perceptivas e, de chofre, não saber mais usá-las; ter
fenômeno eterno, indestrutível, terá que subsistir, invariável em provado o êxtase e senti-lo desvanecer; tudo isto é característi-
sua substância, mesmo quando mude de formas, de acordo com co desse período de transição, que possui toda a incerteza da
o progresso e a mentalidade moderna. Uma santidade nova, cul- tentativa e toda a voluptuosidade do desenvolvimento.
ta, consciente, direi quase científica, uma santidade que, liberta Todavia, gradualmente, a percepção anímica se vai estabili-
das estreitas fórmulas medievais, surja à luz do dia no meio de zando, e o eu se orienta. A mudança de consciência se afirma, e
nossa turbulenta sociedade. Um santo novo é necessário no o novo eu, dono de novos meios, retorna à direção da vida em
mundo moderno, o super-homem, síntese viva dos mais eleva- forma diferente, já sem forçar a vontade, num estado de since-
dos conceitos, surgido do budismo, do cristianismo e da ciên- ridade absoluta, como um eu diferente, que já não diz mais eu,
cia, consciente de todos os valores morais que compendia, de porque se integrou no todo; que não possui órgãos sensoriais e,
sua força biológica, de sua função evolutiva; um santo que, su- entretanto, tudo sente; carece de organismo material, entretanto
perando a forma e liberto do passado, dono do futuro, volte a vive e age; não possui voz, entretanto fala; não raciocina com a
lutar em nossa vida, com nossa psicologia, ―dominador‖ em lógica humana retardada e analítica, mas conclui instantanea-
perfeito equilíbrio entre tantas forças diferentes, e suporte he- mente com esta faculdade mais rápida, profunda e sintética que
roicamente o choque das almas rebeldes e jovens. Se hoje o é a intuição. Já não se desdobra em um comando de vontade,
emblema é ―força‖, que seja a força superior do espírito, seja a nem se consome num esforço de energias, mas que ―é‖ imedia-
beleza espiritual que se anima a manifestar-se viva no mundo, tamente tudo o que quer. A percepção, então, se realiza total-
como um desafio, para que o mundo, se não as compreender, se mente em forma de vozes e visões, por sensações que, ao invés
dilacere e, dilacerando-se, aprenda. do exterior, vêm do interior e, seja impressionando o nível sen-
Vimos o processo genético da santidade, o vasto processo sório dos centros nervosos, seja elevando-os a uma ordem supe-
de transformação que conduz o homem até aos umbrais do rei- rior e própria jamais alcançada por aqueles meios, dominam a
no do super-homem. Existe, na realidade, este momento crítico consciência sempre com tal força, que as sensações transmiti-
em que, depois de uma larga maturação de um novo psiquismo, das pela via fisiológica-nervosa-cerebral do mundo exterior,
o ritmo fenomênico se precipita na fase típica da crise espiritu- como que ofuscadas, passam para segundo plano. Daí a dimi-
al: a conversão. Um ―quid‖ novo, nascido do trabalho profundo nuição da sensibilidade e, algumas vezes, a invulnerabilidade à
do espírito, está pronto. O transformismo evolutivo, com a sua dor que muitos acreditam milagrosa; daí o sentido profético, te-
marcha inviolável, medida pelo compasso do tempo, chegou. lepático, as visões, os êxtases, que sem dúvida encerram um
Instante decisivo do deslocamento de equilíbrios, quando a in- mistério que as hipóteses patológicas não explicam suficiente-
decisão entre os dois mundos, o humano e o sobre-humano, já mente. Estes estados escapam por certo à analise objetiva, pois
não é mais possível. Este momento psicológico, que é o ponto somente se chega a eles pela introspecção. Não se trata de um
crítico em que se resolve o fenômeno espiritual, não é, por cer- fato exterior a ser analisado, que se possa submeter à observa-
to, um conceito novo. As escolas de pensamento chamaram-no ção, mas de uma mudança de consciência, ou seja, do próprio
―umbral‖; as religiões ocidentais, ―a graça‖. Termos imaginati- instrumento de investigação. Depara-se-nos a falência da psico-
vos para descrever, o primeiro, um ingresso em um novo mun- logia analítica, racional, exterior, que é considerada a arma de
98 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
compreensão universal. Dir-se-ia que a superconsciência repele perconsciência é sempre consequência da dor criativa da re-
a razão para o seu mundo exterior, porquanto já não lhe é mais núncia, é sempre o último termo de uma evolução dos instin-
necessária. Estamos diante de uma forma de consciência, uma tos, dos desejos e das paixões.
faculdade de juízo, que dirige sabiamente a vida, se bem que Há uma classe de temperamentos – os sensitivos ou psíqui-
com meios e sensações diferentes. Sabemos somente que é algo cos – a que pertence o místico e na qual se pode incluir o poe-
que brota do íntimo mistério da personalidade, uma consciência ta, o artista, o músico, o homem de ciência, o gênio e o santo.
que é independente do mundo exterior e possui a sensação de Aí, onde as qualidades espirituais humanas tenham se desen-
sobreviver-lhe como consciência da vida eterna. Vive-se então volvido em alguma forma e a natureza humana haja alcançado
diante da revelação de realidades insuspeitas, mais profundas, as suas faculdades mais elevadas, existe sempre um super-
além da forma, em contato com a essência das coisas. É a visão homem. A humanidade compreende e exalta esta condição, que
apocalíptica da palingênese. se encontra mais evoluída e posta em maior evidência pela
Superado este momento crítico – crise interna que existe na oportunidade ou pelo ambiente, mas todas elas possuem pon-
vida do gênio e do místico e que a moderna psicologia recons- tos de contato entre si e coexistem mais ou menos latentes no
truirá para compreender, o que não pôde fazê-lo a mentalidade mesmo ser. As qualidades de raciocínio, se bem que não seja
de outros tempos – a consciência se estabiliza em novo estado, mais do que luz fria, pois, mesmo quando clareia o atalho, na-
numa atmosfera de grandeza e de mistério, que nos enche de da sabe realizar por si só, movem-se amiúde paralelamente e
espanto. Realizando um último esforço, façamos uma mirada prontas para excitar as do coração, a paixão que obra e cria. Se
audaz na alma do gênio e do santo, para penetrar o enigma de os intelectuais agem num campo com as forças analíticas da
sua vida interior, sentir com eles a potência das forças motrizes mente, os emotivos e os apaixonados constroem em outro
de atividades não comuns, observar não mais o lado humano, campo, com a força intuitiva do sentimento e do amor. Fecun-
lânguido e moribundo, mas o lado divino da vida. Veremos a didades distintas, porém necessárias e todas grandes, porque a
glória dos triunfos interiores, o júbilo das novas expansões, vida precisa igualmente de luz e de calor.
grandezas de conquistas e labaredas de paixões novas. Não Frequentemente, o intelecto abre a rota para, em seguida, ar-
mais veremos o aspecto negativo, de destruição e morte, mas rastar atrás de si o coração. Há quem chegue através do largo
sim o positivo, de ressurreição e afirmação da personalidade. caminho da análise; há quem o faça pelo atalho da intuição,
Olharemos com a coragem que nos confere a necessidade de mas sempre se alcança a criação de um tipo de super-homem.
venerar e a mesma fé dos grandes, ainda quando o haver ousa- Tratemos de delinear as características mais salientes da psi-
do compreender e desejado imitar não nos tenha servido mais cologia do super-homem, entidade de raciocínio e de paixão, qua-
do que para tornar a cair, numa vã tentativa de voo, mais dolo- lidades fundamentais da natureza humana, que não se destroem,
rosamente ao solo, para quedar aí, mudos e assombrados, mas se aperfeiçoam e se equilibram em forma mais seleta.
olhando ao longe, com a nostalgia no coração, o cume inacessí- Antes de tudo, uma racionalidade mais perfeita. A conquista
vel do reino do super-homem. da verdade se completou. A consciência move-se em plena luz.
Como descrever os estados de superconsciência, a psicolo- Não mais uma verdade subdividida, fracionada em tantas pe-
gia do supranormal? Aí, a normalidade retrocede com uma quenas verdades particulares, incompletas e em luta, buscando
sensação de vertigem e de sagrado terror. Como descrever es- a unificação, mas uma verdade universal que, superando-as,
tes estados de contemplação interior, em que o mistério do admite todos os pontos de vista dos indivíduos, dos tempos, das
universo e o mistério da alma se olham e se compreendem? O crenças e das religiões. Eliminada essa nulidade lógica, a cons-
olhar aprofunda-se na íntima causalidade fenomênica. O fraci- ciência já não nega mais nada, porque conhece tudo. Não mais
onamento da realidade entre os obstáculos de espaço e de tem- essas zonas obscuras, inexploradas, dentro e fora de si, essas
po é superado durante o supremo estado do espírito que des- grandes zonas de trevas que são os mistérios. O mistério, ne-
cansa na visão global do todo, êxtase com que o santo é re- cessidade da mente inferior e involuída, desaparece. Faz-se luz
compensado amplamente da perda de todas as coisas humanas, até nas coisas íntimas. A Lei evidencia-se integralmente, tanto
de todas as dores e renúncias que se impôs a si mesmo para al- nas grandes linhas como nos pormenores.
cançá-lo; arroubo sublime, aonde o tormentoso torvelinho das Paralelamente, uma sensibilidade mais profunda. Um feixe
ilusões humanas não chega, onde o descanso é absoluto, o po- de sentimentos novos, que poderíamos chamar ―percepção
der é imenso e a vida, que se multiplica em nova percepção anímica‖, permite o gozo de sutis belezas, frequentemente des-
anímica, corre caudalosamente ao encontro do infinito. É com- percebidas. Junto às harmonias da arte, do homem e da nature-
pleto o gozo do espírito que aceita o beijo divino, que se incli- za revelam-se as harmonias mais profundas da estética moral,
na para ele em labareda de amor. Amores incompreensíveis, arte divina que não possui a beleza grega superficial da forma,
que abalam e quebram a débil tessitura humana, demasiado mas a íntima e mais alta beleza do espírito. Mais do que a con-
frágil para suster seu ímpeto. O centro da vida se desloca, seu templação de uma ideia, é a realização em si da perfeição supe-
trono se eleva na hipersensibilidade própria do supranormal e rior e da harmonia universal. É a conquista de valores impere-
parece nutrir-se em mananciais exclusivamente espirituais, cíveis; é a criação de um organismo espiritual de eterna beleza,
mediante um intercâmbio que se efetua em meio a forças de ao qual a vida tudo sacrifica – juventude, força, saúde, poder e
uma ordem especial, desconhecidas por nós. tudo quanto de transitório a Terra ostenta. A consciência possui
A alma possui a visão da Lei, a sensação de seus atos, sub- a sensação desta beleza interior, síntese de arte superior, e esta
merge-se na sua corrente, respira a música que emana das har- sensação constitui um prazer. Uma nova capacidade de pene-
monias da criação e se alimenta deste respiro. Que vibrações do tração psíquica, que poderíamos chamar de intuição, revela sem
Cosmos encontrou, como as absorve, de que modo sintoniza sombras o mistério da alma. O organismo espiritual de todos os
com essas vibrações do infinito? seres mostra-se desnudo; espontaneamente se manifesta a causa
Os estados supranormais foram descritos diferentemente daquelas misteriosas atrações e repulsões chamadas simpatias
pelos místicos justamente porque essas sublimações de perso- ou antipatias, que são afinidades ou antagonismos, extrato de
nalidade, assim como as filosofias, são distintas segundo o tipo toda a história da personalidade humana. É bem certo que a al-
de temperamento de cada um. Resultam, por evolução, de um ma sempre se reflete no corpo, através do qual se torna transpa-
longo passado. Possuem, no entanto, um fundo comum, e suas rente, esforçando-se, todavia, para sair dele, a fim de se expres-
linhas gerais convergem sempre, de qualquer tempo e lugar sar livremente. Mas o homem, com demasiada frequência, pre-
que elas derivem, não deixando motivos para dúvidas. A su- tende construir no corpo uma falsa imagem da alma. A intuição
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 99
penetra sem esforço através de toda a aparência, demole toda a monia contínua, um canto de gratidão que é a música mais pro-
astúcia. A superconsciência, que não admite mentiras para si, funda do espírito. As dores humanas não desaparecem, mas di-
não as tolera nos demais. Se as faculdades anímicas conferem verso é o choque quando ferem a mente encouraçada, e despre-
superioridade na luta cotidiana, combatem, deste modo, da zível a sua força de penetração no espírito defendido pelo co-
forma mais aristocrática. A vida perderá por certo muitas das nhecimento profundo, possuidor da virtude de se refugiar no
doces ilusões, mas, com elas, todos os seus erros e desenganos. paraíso distante, aonde não chega a dor. É felicidade difícil e
A sociedade humana, vista claramente no que é, e não no que árdua, mas sem dúvida muito grande, a única que resiste à in-
pretende ser, aparecerá como espetáculo muito triste, mas nem vestida das duras provas da vida, surgindo delas ainda mais be-
por isso resplandecerá nela, com menos potência, a justiça divi- la! A harmonia interior, essa paz que provém de sentir-se sem-
na, nem sua harmonia será menos suave e perfeita. pre em relação e de acordo com o funcionamento orgânico do
A consequência de tudo isto é um conceito diferente da vi- universo, de achar-se sempre na melhor posição, qualquer que
da, um estado de ânimo novo para com as coisas humanas. O seja ela, o hino do coração da harmoniosa voz da consciência,
conhecimento das grandes verdades, a solução das últimas in- de viver nessa fé, na lógica e na bondade do todo, nessa luz do
terrogações, confere uma grande calma interior, a paz de quem espírito, como na própria atmosfera vivificadora, é saciedade de
viu a meta, o último termo a que a alma aspira. Deste conheci- alma contente, equilíbrio de compensação psíquica, do qual
mento das verdades universais deriva o da própria verdade espi- nasce a ventura superior e invulnerável.
ritual, do próprio destino. O super-homem é consciente de toda A libertação realiza tudo isso. A personalidade que se
a sua personalidade, da origem de cada um dos seus instintos, formou na vida interior já não é mais arrastada pelo torvelinho
que descobre no seu passado eterno, na história daquele germe de todas as correntes do mundo e, tendo conquistado a inde-
espiritual que, vivendo e tornando a viver, vestido de diferentes pendência das condições exteriores, converte-se em centro de
organismos, adaptando-se, absorvendo, assimilando, sempre uma realidade própria e autônoma. O super-homem emerge do
adquire uma nova qualidade em cada prova vencida, conser- mar, e a tempestade já não o envolve. Venceu o mundo, que já
vando eternamente dentro de si os frutos espirituais da vida. O não pode mais violar sua liberdade, deter seu trabalho nem al-
super-homem conhece a sua história, larga história tecida de terar a realização da sua vontade. Com isso, ele não se ausenta
férrea logicidade, na qual nada se cria e nada se destrói, mas de nossa vida, mas nela irradia luz nova, demonstrando que
tudo se transforma e nenhum valor se perde. Sobre estas bases, existe para todos o meio de remissão e também a possibilida-
na mesma férrea logicidade do passado e na indestrutibilidade de de ascender. Apesar de todas as desigualdades humanas, há
das faculdades morais, antecipa o seu futuro, prepara-o e dese- uma igualdade absoluta emanante da eterna justiça, da qual
ja-o. Daí o domínio de todas as forças do próprio eu, o saber somos todos obreiros no campo da própria diferenciação, sob
comportar-se em meio aos grandes choques da vida, com uma as mais diversas formas.
visão muito ampla e segura das grandes extensões das coisas Tudo quanto temos dito não basta para circunscrever total-
cotidianas. Se a superconsciência é, sobretudo, um fato espiri- mente o ciclo da personalidade humana, que, junto às exigên-
tual, como tal repercute e se impõe também na realidade exteri- cias viris da mente, contém as exigências de ordem feminina,
or, dominando-a. Encontramos, assim, junto a uma sublime da paixão e do sentimento. A evolução, que comete e transfigu-
calma interior, a consciência de um poder dominador. ra a personalidade humana em todas as suas qualidades, trans-
Nem por isso o furacão das coisas humanas deixa de açoitá- forma, acrisola e enaltece também as paixões, sem destruí-las.
lo, mas fica limitado à superfície. A consciência não sofre, por- Existe uma evolução do desejo, uma evolução dos instintos,
que se reconhece autônoma, muito diferente, não mais identifi- uma evolução das paixões. Seria insensato condenar aprioristi-
cada com o mundo vencido, podendo refugiar-se naquela parte camente e em absoluto a sede de existir, a ânsia da vida, que é o
do ser pertencente à vida eterna, fortaleza inexpugnável que desejo. Ele é a mola de todo progresso, o estímulo necessário
guarda com segurança o tesouro de maior valor. Não sofre por- para toda conquista, o antecedente daquela exteriorização na
que sabe que a tormenta existe somente na aparência, que o ca- qual a alma, experimentando, se engrandece. É a chama da ação,
os é contraste transitório e a grande realidade é o equilíbrio, que da luta e da prova indispensável à evolução. É mister conduzir o
porá fim a toda desordem. Desaparece, com ele, aquela estri- desejo para uma contínua elevação, de modo que todo o orga-
dente dissonância lógica, o tormento maior do espírito, que é nismo dos instintos e a fortaleza das ideias inatas se transfor-
não compreender o ambiente e pedir sem obter, pois se pede o mem, conduzindo o homem para as modalidades superiores de
absurdo. No mar de dissonâncias, isola-se num oásis de harmo- vida e de perfeição moral, que são as virtudes, as quais, ao longo
nia, onde a vida é mais linda. A profunda visão das coisas, mos- do incessante trabalho das civilizações, são concebidas e assimi-
trando também os lados mais vastos e mais distantes do pro- ladas. A vida social, as religiões e as leis possuem a função de
blema humano, oferece em cada caso a sensação da mais exata educar o homem, ainda selvagem interiormente, penetrando em
justiça, a grande fé e o otimismo absoluto, mesmo em frente da sua consciência, impondo-lhe a evolução dos instintos e das pai-
dor. Toda posição social, por injusta e penosa que seja, aparece xões, que são forças diretrizes da vida.
sempre como a melhor. Via de regra, antes de inquirir que fal- Observemos uma única paixão, a maior – o amor – que,
tas individuais ou coletivas se está expiando (todos possuímos presidindo à conservação, encerra mais profundamente o mi-
uma culpa por expiar, como indivíduos, como classe social, soneísmo de raça e parece mais renitente à evolução, para ver
como nação e como humanidade) e antes de compreender a dor, como esta paixão se sublima na personalidade humana que es-
remontando-se às fontes do mal, reage-se com atos de rebelião, tamos delineando.
de ira, de inveja e de inútil ferocidade. O homem superior, ao Se o amor no mundo animal é função quase exclusivamen-
contrário, somente tem uma reação de benéfica atividade em te orgânica, adquire no homem, enriquecido pela evolução de
reparar o mal, de reconstrução silenciosa e consciente, realizan- novas faculdades, qualidades de ordem nervosa e psíquica. O
do sozinho, sem transferir a responsabilidade a outrem, o tre- fenômeno do amor complica-se; à função animal, que biologi-
mendo dever que lhe compete, porque sabe que o sofrimento é camente foi a principal, se sobrepõe, como um crescimento ou
trabalho fecundo de conquistas espirituais e, assim, muda cada uma incrustação, um feixe de funções novas, que transformam
pena em trabalho cotidiano, nobre e compensador, para o êxito. todo o fenômeno, tornando a sua estrutura mais completa, e,
Então, o espírito, vivendo em relação com os mais distantes como sempre acontece na evolução, ampliam seu campo de
momentos do grande esquema de seu próprio progresso, se so- ação. Para maiores poderes, porém, maiores perigos, o que os
brepõe às misérias imediatas; a vida se transforma numa har- seres menos evoluídos ignoram. Observando, neste campo, as
100 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
correntes que a evolução abre dentro da massa humana, vemos se achar em todos os níveis da vida. O progresso é assinalado
hoje a tendência no amor para aperfeiçoar-se e sensibilizar-se, por uma revelação de amor mais ampla. Suas funções, desde as
tendência que, aspirando a outra forma de superamor espiritu- mais simples – nos seres inferiores, a multiplicação da espécie
al, oferece simultaneamente o perigo de perder-se em degrada- – desenvolvem-se com a infinita potencialidade do germe,
ção neurótica, em erotismo sexual. A humanidade encontra-se complicam-se com novas atribuições que se subseguem por
defronte do dilema: ou bem materializar, mais do que elevar, o evolução, aumentando sempre o seu reino. A fêmea transfor-
amor, caindo em formas de prazer nervoso mais intenso, po- ma-se em mulher; o macho, em homem. A simples atração se-
rém de baixo erotismo antivital, ou bem dominar a sua paixão xual cresce no amor maternal, filial, familiar, nacional, huma-
e guiá-la, orientando a evolução para as formas de amor espiri- nitário, para chegar à beneficência e ao altruísmo, culminando
tual do super-homem. na abnegação suprema do martírio. A mulher transforma-se em
Esta característica tendência atual do amor para sublimar-se, anjo e o homem em santo.
revela-se de forma evidente na atitude da psicologia corrente e Nesta progressão das formas evolutivas do amor, vemos ex-
da literatura em voga. Sem dúvida, em matéria de amor, sabe teriorizarem-se, cada vez mais energicamente, todas as defesas
ser, às vezes, de um psiquismo refinado, como nunca o fora em da vida, pois é função do amor criar, conservar e proteger. As
épocas passadas. Predomina nela o elemento nervoso e sutil, forças destruidoras do egoísmo são absorvidas e anuladas gra-
tudo o que é fascinação, simpatia, graça, arte, música, vibração dualmente, num crescimento de altruísmo e de sacrifício, pelas
e estados de alma, tudo o que é poesia e perfume do amor. En- forças criadoras do amor. O altruísmo universal, que abraça to-
contramo-nos indubitavelmente nos mais altos graus do amor dos os semelhantes, nasce, não obstante isto possa parecer hoje
humano, onde se acentua a parte espiritual. A voluptuosidade uma utopia, do altruísmo familiar, que lhe é um esboço. Ele é a
não é mais a turva orgia dos sentidos e aspira transformar-se em força em evolução que, em tempos melhores, será o cimento
límpido êxtase de alma. Um passo mais, e o amor humano será indispensável dos organismos sociais progressivamente homo-
superado. A humanidade está às portas do novo reino e entrará gêneos, pois, quanto maiores são as concessões que na vida de
nele, se souber perseverar na tensão do progresso para a nova cada um se outorguem à vida dos demais, ou seja, o altruísmo,
fase espiritual e realizar um esforço supremo e decisivo de con- tanto mais forte é a sociedade e mais individualizada e consci-
centração de energias para subir o último degrau, além do qual ente a alma coletiva. A absorção do egoísmo no amor, esta in-
está o amor místico e divino. Este, na forma como os santos o versão de forças contrárias, uma na outra, não é senão um mo-
conceberam, viveram-no e gozaram-no em êxtase supremo, não mento do processo de conversão do mal em bem, da dor em fe-
é a agradável digressão de romântico sentimentalismo, porém a licidade, que já vimos efetuar-se por evolução, e possui assim
mais tempestuosa das conquistas, na qual há que se empenhar outras funções além da defesa da vida. O raio de ação do ego-
todas as forças da vida. É duvidoso que hoje se realize este tra- ísmo, constituído de separatismo, é estreito, tende ao isolamen-
balho, pois toda criação demanda mui áspera luta, na qual o es- to, possui um campo limitado de penetração e de gozo e, não
pírito se tempera e se exercita, sem prazer e sem descanso. Dis- obstante parecer o caminho mais rápido para o prazer, contém,
persam-se as energias. A nova sensibilidade, ao invés de ascen- ao invés, uma força de inibição do próprio gozo. Se, em com-
der, retrocede; ao invés de espiritualizar-se, torna-se neurótica e pensação, o amor, espiritualizando-se, transforma-se numa de-
decai. De sorte que o amor, na sociedade atual, mesmo quando dicação cada vez mais completa e gratuita, que parece a nega-
alcança os mais elevados graus da finura, a ponto de parecer ção do prazer, tudo o que perde, por não ser egoísta, ganha-o
quase chegar à espiritualidade do misticismo, recolhe-se sobre em profundidade de sensação, em potência de penetração, em
si mesmo e, antes de elevar-se do nível, torna a baixar, envene- pureza de percepção e de ação e, por último, em realização de
nado pela sua própria potencialidade. As novas faculdades psí- felicidade, porquanto a evolução do amor não é senão a revela-
quico-nervosas, ao invés de serem utilizadas para progredir, são ção gradual de ilimitada capacidade de prazer. Este aumenta e
exploradas para um maior gozo, última consequência da ruino- torna-se estável. Ao invés de satisfação precária, ligada a fun-
sa concepção materialista da vida. O cérebro e o espírito são ções orgânicas, sujeitas a cansar-se demasiado rápido, devido
postos a serviço do prazer. Chega-se, com tais critérios, a fazer ao desgaste, equilibra-se numa satisfação nervosa e psíquica cu-
misticismo sensualizado e falsificado, enervante e enfermiço, ja nascente mais imaterial dificilmente se esgota e não se altera.
mediante artificiosas complicações e refinadas exteriorizações, Nos fenômenos da matéria existe algo que se cansa mais rapi-
enquanto impera no espírito o vazio e a desolação. Uma evolu- damente. A imaterialidade elimina os desgostos que desmorali-
ção às avessas, a mais completa prostituição da alma. zam, confere estabilidade a tudo, tornando tudo mais real. Vi-
Observemos, entretanto, na evolução do amor, as sucessi- bra nela não a limitada sensibilidade do corpo, mas a sensibili-
vas aproximações do superamento realizado pelo explorador dade mais ampla e mais profunda da mente e do coração, ór-
do supranormal. Esta concepção do amor divino como senti- gãos capazes de sensações mais firmes e intensas, independen-
mento limítrofe, derivado por evolução do amor humano, dá- tes das condições físicas do ambiente.
nos a explicação lógica da sua origem. O fenômeno psicológi- Nesta ampliada capacidade de desfrutar, satisfazem-se tam-
co então, que existiu e pode existir, adquire uma base racional, bém desejos e afirmam-se paixões de outra natureza. O desejo
de outro modo inexistente. O amor divino proveio por conti- de posse e de domínio, tão humanamente insaciável, será satis-
nuidade (como em todo fenômeno) do amor humano e é seme- feito quando, por ter renunciado ao egoísmo que nos separa de
lhante a este, tendo conseguido, através de sucessivas provas e tudo o que nos rodeia, pudermos possuir e dominar o todo,
elevações, que somente demoliram a sua parte mais involuída, aproximando-nos das coisas sem vontade de tomá-las, e con-
aperfeiçoar-se e purificar-se. Ascensão de paixão, que faz parte servá-las com o desprendimento do mais completo altruísmo.
da evolução da personalidade, na qual todas as qualidades se Deste modo se explica a renúncia e a pobreza daquele grande
transfiguram numa psicologia de ordem superior. Poderemos rico e enamorado que foi São Francisco. Possui-se, então, tudo,
desta maneira delinear uma gradação das formas de amor. Ca- riquezas sem limites, quando se sabe amar desta maneira a to-
da ser, desde o animal até às raças humanas inferiores, desde o dos, com aquele amor perfeito que nada pede.
homem inculto das classes sociais mais baixas até ao intelectu- Estas são as maiores paixões que tanto dilatam a existência,
al, ao santo, ama de maneira diferente, segundo sua qualidade vividas pelo super-homem e, a seu turno, pelas humanidades
ou perfeição alcançada. O amor sofre transformações profun- futuras. Para o homem do futuro, certamente, as grandes satis-
das paralelamente ao desenvolvimento desta cadeia de tipos fações serão de ordem espiritual. Ele sentirá por nós, talvez, um
humanos. Sendo a maior força do universo, não pode deixar de asco, tal como o sentimos por um animal mergulhado nos gros-
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 101
seiros prazeres dos sentidos, semelhante ao que nós experimen- dade atormentada. É ele, por acaso, um enfermo ou um degene-
tamos pelas distantes orgias romanas. Rir-se-á das nossas ânsias rado? Como julgá-lo? A própria ciência, desorientada pelo fato
de riquezas e das nossas paixões, próprias de homens primiti- de que os clássicos elementos de juízo não oferecem a explica-
vos, pois valorizará, ao contrário, as satisfações que proporcio- ção deste moderníssimo fenômeno, vislumbrou nele uma en-
nam o pensamento, a arte, e outras mais refinadas que a criação fermidade tão atípica, de uma ordem clínica tão indefinível, que
infundiu nas belezas da vida. Entretanto é a nossa época, e não se viu obrigada a considerá-la apenas como uma forma de per-
as passadas, que sente o afã dos superamentos e está elaborando sonalidade. Observemos as suas características. Inteligência e
a sua nova alma. Uma expressão manifesta do multiplicar-se do atividade, uma nota predominante de intenso psiquismo; ágil
espírito moderno vemo-la na evolução da música, índice dos mobilidade do espírito, na ânsia de criação incessante; inquietu-
sentimentos humanos, música que deseja expressar atitudes in- de e fuga de todas as formas de inércia, ou melhor, um desequi-
teriores cada vez mais complexas e, fugindo ao cediço argu- líbrio de concepção da vida. Moralmente, uma delicada percep-
mento do ódio e do amor, elevar-se à descrição de todos os es- ção do verdadeiro, do belo, do bom; uma retidão que demonstra
tados da alma humana e da natureza, buscando novos rumos. possuir realmente os altos ideais de virtude, honestidade, altru-
Não mais a simples melodia que acaricia o ouvido, porém a ísmo, que são a base da vida social e indicativo de elevado grau
harmoniosa arquitetura do canto na orquestração majestosa, tal de evolução, conceitos cuja elaboração é o custoso e último
como na forte concepção wagneriana. Música espiritual que se produto de toda civilização, o que a mediocridade normal está
dirige não só aos sentidos, mas à alma, com voz que expressa longe de ter alcançado. Quanto à sensibilidade, o sistema ner-
sensações de ordem superior. voso é levado ao máximo da agudeza e da potência. Organica-
Com esta evolução de sentimentos e paixões, transita-se, mente, o tipo é em geral resistente e de longa vida. O aspecto
assim, do amor humano ao amor divino. Para os que não são patológico revela-se no esgotamento de energia nervosa, debili-
sensitivos, parece que a paixão que se espiritualiza oculta-se tamento da vontade, inconstância no esforço, emotividade por
além de toda percepção, no nada, contudo ela apenas se des- demais acentuada, estados afetivos inexplicáveis e incuráveis.
materializa. O superamor do santo é para ele uma satisfação Este é o quadro de muitos casos de neurastenia; enfermidade
real e elevadíssima, a ponto de recompensar-lhe toda a heroica nova e estranha que, se às vezes é obscura e sem as característi-
renúncia. É alegria totalmente interior, e tão diferente das ale- cas comuns, compõe-se, nos aristocratas da neurose, da mistura
grias humanas, que, mais do que uma atitude do espírito, é pa- de sofrimento e inteligência, associação compensadora e inex-
ra todo o ser uma transfiguração na qual o super-homem, atra- plicável num organismo que apresenta sintomas de decadência.
vés da negação de todo o seu eu inferior, reafirma-se e ressur- Que mistério se encerra nestes caprichos do patológico?
ge num mundo superior. Dir-se-á que, na natureza, onde tudo tem a sua razão de ser,
Este amor tão diferente é estranho ao nosso sexualismo, esta sensibilização dolorosa e espiritual não é mais do que o es-
aparta-se deste não por ser assexual, mas porque é supersexual, forço de novas adaptações; a rebelião e o tormento de um orga-
porque não pode encontrar no mundo o termo de complemento, nismo ainda não preparado para satisfazer as exigências da al-
devendo buscá-lo mais além da vida, no seio das grandes forças ma nova, que geme sob o peso de violenta criação biológica.
cósmicas, no isolamento relativo e aparente, prelúdio do regres- Como seria possível explicar num sentido de enfermidade as-
so ao mundo em forma de amor universal. Na solidão dos si- pectos que comparticipam de superioridade? Como explicar, a
lêncios sem fim, o santo ama; sua alma hipersensível abre-se a não ser com a hipótese de uma pseudoneurose, sob a qual se es-
todas as vibrações do infinito, num arranco impetuoso e frené- conde um labor incessante de criação, essa intensificação de
tico para a vida de todas as criaturas irmãs. Embora se nos afi- capacidades nervosas, mentais e morais? Então, como interpre-
gure só, ele está com o invisível, a quem estende os braços no tar esta inopinada dilatação de potencialidade anímica senão
êxtase de um supremo e vastíssimo abraço. Algo lhe responde com a teoria da evolução espiritual?
do inconcebível, algo o inflama e o nutre, num incêndio que re- Sem pretender aprofundar a questão, demasiado vasta para
duziria a cinzas qualquer outro ser humano. Crepita o amor que este estudo sumário, das relações entre neurastenia e evolução
abrasa todo o universo. Num mistério de sobre-humana paixão, psíquica, a fim de colocar esta como elemento precursor daquela
Cristo, sofrendo, abre de par em par os braços na cruz, e São – um sintoma – na realidade nos encontramos ante um tipo de
Francisco, no Alverne, abre seus braços a Cristo. personalidade que representa, por refinamento moral e superior
Estas são as grandes possibilidades da psicologia do super- intelectualidade, a assimilação já efetuada dos mais altos valores
homem como ser de raciocínio e paixão. Uma observação mais, espirituais, a formação completa do tipo para o qual a humani-
antes de terminar. O super-homem, que é um tipo psíquico ex- dade tende em seu desenvolvimento. Encontramos nele todos os
cepcional e, julgado segundo o critério do nosso mundo, trans- sinais de nobreza racial, de aristocracia que encerra o acme da
borda as unidades de medida comum, foi sumariamente degre- perfeição que a humanidade jamais tenha aspirado conquistar.
dado para o anormal. Devido à sua aparente neurose, foi gros- Em sua própria lassidão e emotividade demasiado intensa, na
seiramente confundido com o patológico. Absolutismo e sim- exaltação de sua inteligência e sensibilidade dolorosa, existe al-
plismo de sabor lombrosiano, demasiado primitivo para identi- go ultrarrefinado como de uma raça que, por estar excessiva-
ficar e distinguir estas formas de pseudoneurose, nas quais o mente madura, agoniza e morre. Não mais um organismo físico
patológico, se existe, existe transitoriamente, não como uma predominante que impõe necessidades e sensações ao seu siste-
nota desafinada, mas como aparência exterior de uma íntima ma nervoso, instrumento de sua vida, mas um organismo nervo-
febre de ascensão, como sistema do esforço de superamentos so preponderante, que absorve tudo para si, condiciona o funci-
biológicos. Pretende-se incluir no anormal todo aquele que se onamento orgânico e acaba por dominá-lo, transcendendo-o
excetua à maioria dos casos e à mediocridade geral do tipo hu- numa tentativa de quase criar para si uma forma própria de vida.
mano mais comum, de valores duvidosos. Este julgamento A pesquisa no supranormal, o ensaio de novos estados de cons-
apressado conduz ao erro de equiparar e confundir, colocando- ciência e a delicada espiritualidade deste tipo humano signifi-
os por igual fora da lei, o subnormal e o supranormal, ou seja, cam uma antecipação do futuro. Socialmente pode representar,
fenômenos que são sensivelmente opostos. se orientadas suas energias e utilizadas as suas qualidades raras,
De acordo com o que fizemos notar, quando delineamos o um precioso fermento de sensibilidade e atividade, um raio de
fenômeno da evolução espiritual, hoje se torna cada vez mais luz no meio da massa trevosa dos medíocres, dos sãos e dos
frequente o desdém por um tipo humano que tende ao supra- normais, nos quais predominam a inércia e as funções animais,
normal, extremamente nervoso e genial, ainda que de geniali- pois o seu mais alto ideal é a reprodução e a nutrição.
102 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
Existe, indubitavelmente, uma neurose patológica, mas, demolir, e sim a revalorização mais consciente e mais com-
com abundante frequência, pretendeu-se atribuir-lhe uma série pleta das velhas virtudes intuitivas, uma síntese e uma nova fé
de fenômenos que pertencem ao supranormal, desvalorizando- para a nossa alma. Sentimos a vida em desacordo com os nos-
se desta maneira o tipo humano, que pode ter uma função na sos pais, e o eixo do mundo se desloca do antigo centro ao re-
economia da vida social e cuja multiplicação seria um indício dor do qual girou durante milênios, completamente modifica-
de profunda transformação evolutiva da humanidade em nossa do nestes últimos vinte anos 15.
época. Concebendo muitos casos de neurose como um desequi- Definimos como racional, passional e pseudoneurótico este
líbrio transitório, inerente à fase de conquistas biológicas, evita- tipo complexo de personalidade que é o super-homem. Não obs-
remos a incompreensão que impede a ciência de cumprir o seu tante tudo quanto temos dito, ele poderá ainda parecer um tipo
dever, que é estudar e valorizar todas as forças da vida. Uma estranho, submetido a uma inútil exaltação. Parece incompreen-
das conclusões do presente estudo é que a ciência se proponha a sível, mas, se é certo que treme sozinho, no umbral da neurose,
alcançar dois objetivos: nos casos de neurose patológica, se não de abismos e de terrores, pode por sua vez, ultrapassando os li-
se encontra a verdadeira terapia, que se realize então a preven- mites da sensibilidade comum, aventurar-se por esse maravilho-
ção profilática mediante a concretização de uma consciência so mundo que encerra todos os êxtases, ignorado pela maioria.
eugenética; nos casos de pseudoneurose, auxiliar o transfor- Esta, por certo, se encontra a salvo de alguns terríveis sofrimen-
mismo biológico, aliviar as dores que o acompanham, esten- tos interiores, entretanto não pode gozar das satisfações do su-
dendo a mão piedosa e benévola aos seres que lutam sozinhos, pranormal, mistério longínquo e fascinante, a que a animalidade
talvez para criar uma raça nova, da maior importância para a humana aspira, sem sabê-lo, cheia de desejo e de ansiedade.
progressiva domesticação da besta humana. A ciência deveria Parece estranho que tal tipo não ponha o dinamismo de sua
compreender que esta tendência à neurose, num mundo de leis própria direção psicológica a serviço do bem-estar material e
que, sem dúvida alguma, obram com inteligência e suprema tangível; que não empregue as suas próprias capacidades ner-
previsão, pode possuir uma função no equilíbrio da vida. Deve- voso-cerebrais na defesa da vida, da qual e para a qual nasceu,
ria, portanto, penetrando nas profundidades do subconsciente, utilizando-as para uma vantagem imediata, mas converta-se em
anatomizando o supranormal, ajudar a nascer e crescer este no- instrumento antivital, quase de ofensa e de destruição de si
vo organismo psíquico que é a alma humana. mesmo, pois olha por demais longe, vislumbra e deseja uma vi-
Esta teoria da evolução espiritual pode ser uma ótima hipó- da mais vasta. Esta inversão de todos os valores, este desloca-
tese de trabalho. A ciência deveria investigar nesse campo, que mento de aspirações, este sacrifício do real ao irreal, do presen-
contém os mais inacessíveis e misteriosos segredos da vida e te ao futuro, do corpo ao espírito, esta imolação ao hipotético e
promete os mais memoráveis descobrimentos. A ciência deverá ao invisível é ato aloucado para quem não possui o sentido de
um dia, quando houver compreendido todas as leis da vida, as- certas realidades profundas.
sumir sua mais alta missão, que é dirigir a seleção humana, fa- É certo que, também para aquele que vive no mundo supe-
zer-se guia deste imenso fenômeno da evolução. O homem, até rior do espírito e compreende tudo isto, é muito grave sentir,
hoje, neste campo, está sujeito cegamente, como um bruto, a em seu próprio centro, não um cérebro aliado e amigo, que o
leis naturais que ignora. Existem na sociedade humana indiví- ajude na luta árdua contra tudo e todos, mas um cérebro que lhe
duos indesejáveis pelas suas qualidades antissociais. Toda a co- faz guerra, que, longe de secundar, ataca a vida, transforma-lhe
letividade sadia deveria cuidar de sua higiene moral, impedindo todo o trabalho, complica os obstáculos, aumenta as penas,
o nascimento desses seres em seu seio. Considerando a vida agrega o peso enorme do drama interior às dificuldades do
como imigração espiritual do além, não se deveria permitir à mundo exterior, já por si suficientes para esmagar um homem.
debilidade mental sua vinda, atraída por personalidades afins, Que terrível problema se tornará uma vida assim, suspensa en-
ao nosso ambiente pelo mecanismo da reprodução, negando-se- tre a luta exterior e a interior, ambas sem trégua?
lhe um lugar entre nós. Há existências construídas de tal forma, Contudo a ordem do espírito é irresistível. Se representa
que não constituem mais um prazer, e sim um tormento; vidas um peso, confere, por sua vez, um sagrado orgulho de si mes-
que, longe de serem um dom, são uma condenação, e renová- mo, uma consciência suprema que outros não possuem. O or-
las é um crime. Somente uma nova sensibilidade moral e cons- ganismo se gasta e se desfaz, mas não importa. De todos os
ciência, que ainda não existem, baseadas na visão de remotíssi- modos, o fim, para ele, mais ou menos prolongado, é sempre o
mas vantagens raciais e compensações individuais de uma vida mesmo, e o valor da vida se estriba somente em dar-lhe um
mais vasta do que a atual, podem realizar, nestes dolorosos ca- conteúdo eterno. O super-homem ressurge em uma nova for-
sos excepcionais, o necessário ato de abnegação, que não conta ma, que é sua, e somente ele, que a adquiriu, poderá gozá-la.
com nenhum apoio da opinião pública. Importa que o homem Sabe que há uma continuação da vida na eternidade, onde to-
adquira uma consciência eugenética e, finalmente, assuma a di- dos os males e todos os delitos se justificam e se compensam.
reção das forças naturais, que contêm os fundamentos da felici- Sente possuir, acima de tudo, uma personalidade e um destino
dade do indivíduo e da raça. Seleção principalmente psíquica, próprios, independente da raça familiar, nacional e humana. O
seleção de personalidade. Se os remotos antecedentes, obras ou super-homem parecerá um absurdo, mas não o é menos a he-
crimes, estão no segredo do carma individual, as causas próxi- rança comum de ilusórios e fugazes prazeres, a realidade de
mas e manifestas se acham na herança fisiológica e amadure- trabalhos e dores tenazes, somente para chegar à morte. Todo
cem naquele primeiro templo de educação que é o seio mater- progresso foi utopia também; a utopia de hoje poderá ser a
no, onde a alma que está para nascer, em estado de passividade verdade de amanhã. É um temperamento de vanguarda que
e de máxima receptividade, recebe impressões que logo são de- prepara, com risco próprio, as verdades futuras. Se hoje traba-
senvolvidas com a intensidade de sugestões pós-hipnóticas, lha e sofre sem ser compreendido, acumula dentro de si facul-
como premissas indiscutíveis da vida. dades e forças espirituais que um dia o admitirão entre os futu-
Por último, pedimos à ciência que nos dê o conceito cientí- ros dominadores do mundo. Aos satisfeitos do presente, desta
fico da virtude e nos diga o que devemos elevar ou rebaixar nossa vida tão horrivelmente mesquinha e imperfeita, aos
na escala dos valores morais, apontando-nos o que é detestá- normais equilibrados no ciclo das funções animais, que gozam
vel e punível, pois estão extintas ou em vias de extinção nos- e descansam, muito afastados das tormentosas lutas espirituais,
sas inadequadas virtudes tradicionais e convencionais, que caberá, por seleção natural, a função de servos.
correspondem a posições espirituais já demasiado afastadas
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das nossas. Pedimos não mais a demolição, pois é muito fácil Considerar que este trabalho foi escrito em 1932. (N. da E.)
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 103
Entretanto, não terá sido inútil, queremos esperá-lo, esta ex- Aos 43 anos de idade16, eu compilava por fim, como último
cursão pelas terras inexploradas do espírito, para descobrir ne- termo e fecho de um largo período de árdua investigação, a
las tantas esperanças, esta tentativa de reestruturação, por meio ―minha‖ síntese da vida, a ―minha‖ visão universal, que me
da psique e dentro da psique moderna, dos mais altos conceitos brindava com a solução dos grandes problemas filosóficos e
éticos, na procura de uma fé mais franca e mais sentida. Tenta- com a paz. Tinha de buscar e encontrar a minha verdade, con-
tiva talvez malograda, mas que se justifica por sua sadia inten- quistar a minha fé. Sintetizei-a, rapidamente, num artigo. Era a
ção. Malograda, talvez, mas que importa? Nenhum mal deriva- minha premissa inicial, inaceitável para mim sem um conceito,
rá para quem não persegue finalidades humanas e sente-se re- sem um ideal, apoiada apenas em instintos, interesses, prazeres
compensado e satisfeito somente por preferir uma verdade já e ilusões, como o é para muita gente. Para concluir com conhe-
intuída, para quem conseguiu perceber as forças do eterno, para cimento, devia primeiramente investigar e saber tudo e assim o
quem vive de uma chama interna que nenhum sopro humano fiz. Foram vinte anos de estudo e de lutas, especialmente de lu-
poderá jamais apagar. Mesmo quando este grito de uma alma se ta e de dor, pois tão-somente a luta e a dor nos proporcionam
perde no vazio, sem encontrar nenhuma ressonância nos espíri- uma síntese completa. Fruto da vida, nela me reintegrava para
tos, não desistirão a evolução e a Lei, que continuarão o seu viver. Não era uma abstrata construção ideológica. Eu nada ha-
trabalho, sem se precipitar e sem jamais se deter. via perdido do juvenil ―instante fugidio‖ em vão ansiado por
todos os humanos. Nunca tive que me afligir, porquanto aí, on-
IV - Experiências Espirituais de muitos encontram, na sua madureza, na culminação das rea-
lizações sonhadas, no fundo das coisas, a sensação de transito-
Assim como se experimenta no laboratório científico, pode-se riedade do resultado e a presunção do esforço, eu, em troca, ha-
experimentar no campo espiritual e moral. Os elementos de que via descoberto uma vida que não teme a morte e acumulado va-
dispomos aqui para a investigação fenomênica, os fatores que se
lores imperecíveis, que nenhum ato de vontade humana e ad-
combinam, são fornecidos pela personalidade humana e pelas
versidade alguma, jamais, me poderiam arrebatar.
condições de ambiente. Entre aquela e estes, produzem-se conta-
Dos princípios por mim identificados, uma das conclusões
tos, choques, reações e combinações não mais de caráter molecu-
deduzidas que mais imediatamente correspondia à realidade da
lar, e sim moral, com as características de resistência, consumo
vida era que o homem, se desejasse viver segundo a justiça,
dinâmico e, sobretudo, de desenvolvimento lógico, que obedece
não podia viver senão do seu próprio trabalho. Este era o meu
a uma lei suprema de equilíbrio, própria do mundo químico.
Aqui, o fenômeno se eleva a um grau altíssimo e desenvolve-se dever. Na fase de atuação prática, sucessiva à da investigação,
como se fora um drama guiado por suprema lei de justiça. surgia bem nítida a impossibilidade de usufruir os bens heredi-
Aquele que não vive tão-somente a sua própria existência tários para as necessidades da vida, mesmo quando reduzidas
vegetativa, mas também esta segunda e maior vida, que é a vida às mais indispensáveis, a fim de deixar o maior lugar possível
do espírito, realiza dentro de si, continuamente, tais experiências às necessidades do espírito. Aos trabalhos de ordem espiritual,
espirituais. Seu material de observação é o próprio eu, que se ignorados pela maioria, que justificavam em mim esta atitude,
agita nas infinitas circunstâncias da vida. É difícil observar e ex- tinha que acrescentar aqueles demandados pela necessidade de
perimentar sobre os demais, seja porque quase todos vegetam na ganhar a vida e buscar os meios. Não era loucura. São Francis-
superfície e não perquirem a vida no seu verdadeiro significado, co tinha ido muito mais além, levando as coisas ao extremo de
seja porque, raras vezes, é possível penetrar no íntimo da alma reduzir-se à mais completa pobreza.
alheia. É mister, portanto, a auto-observação. Isto não basta, Eu queria demonstrar a mim mesmo que esta concepção,
pois são casos de caráter particular ou relativos a uma pessoa, a considerada pelo nosso mundo moderno como absolutamente
determinado tipo de personalidade humana em restrito momento utópica e irrealizável, era possível pô-la em prática, pelo me-
de sua vida e no desenvolvimento de seu destino. A realidade nos em parte.
não é nunca uma abstração de caráter geral. Em compensação, o Como Zaratustra, eu baixava do Olimpo dos meus estudos.
fenômeno é ―verdadeiro‖, ou melhor, existiu e foi vivido. É um Seria possível enxertar, na férrea engrenagem econômica da vi-
fato concreto. Mesmo quando se apresente como um fato ―pes- da moderna, um ser absolutamente ―self-made‖17, ausente da vi-
soal‖, pode interessar, como acontecimento susceptível de inves- da concebida pelo mundo, dotado de muitas preciosas qualida-
tigação, a uma determinada ordem de pessoas, podendo-se de- des, mas praticamente inúteis por não serem comerciais nem lu-
duzir do mesmo consequências e conclusões de ordem geral. crativas? O problema pode ser exposto em termos mais vastos.
Do relativo ao particular, podemos alcançar a melhor com- Que possibilidades sociais oferece hoje a humanidade civil a um
preensão das leis universais, que tudo regem, pois sempre as intelectual puro, conhecedor tão-somente dos problemas espiri-
veremos resplandecer, ainda que sejam nas menores experiên- tuais, armado para a tremenda luta pela vida somente de bonda-
cias espirituais do mais obscuro entre os homens. de e de justiça, ou seja, completamente desarmado por estas?
Este prólogo era necessário para explicar que, ao desejar re- Nenhuma possibilidade. Eis a resposta.
latar aqui experiências de ordem espiritual, não posso falar com Suas concepções projetam-se séculos à frente, estando mui-
a certeza de quem viu e provou a não ser as minhas experiên- to além da psicologia atual para poder estar em contato com
cias pessoais. Trata-se de um caso ―vivido‖, que pode tornar-se ela. A sua hipersensibilidade redunda toda em prejuízo. A soci-
extensivo a casos parecidos e afins. O leitor tratará de encontrar edade moderna somente admite quem saiba ser uma roda da
nele algo de sua personalidade e compará-lo com as suas pró- máquina coletiva. Expulsa do seu seio, colocando-o à margem,
prias realizações espirituais. Poder-se-á, por último, inferir do junto com os enfermos, os idiotas e os anormais, todo aquele
mesmo uma dedução importante, ou seja, que as coisas mais que não dê um rendimento concreto e imediato. A sociedade
simples da vida podem assumir um aspecto distinto e um signi- exige a normalidade; equipara a exceção destoante à insuficiên-
ficado muito maior quando observadas em profundidade, rela- cia evolutiva. Vive do presente, e os valores de rendimento dis-
cionando-as com os infinitos elementos de que se compõe a vi- tante escapam à sua orientação psicológica.
da do espírito, imensamente mais vasta.
Vejamos o fato, nada importante, por certo, se considerado 16
Em 1929
superficial e exteriormente, como em geral se observam as coi- 17
―self-made man‖ - expressão inglesa que designa aquele que se fez
sas, mas de grande valor se analisado interiormente, tal como por si mesmo, pessoa que alcançou determinada posição pelo próprio
eu o vi e como, agora, passo a expô-lo. esforço. (N. do T.)
104 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
Há indivíduos cujo ambiente espiritual é o supranormal, cu- me foi constantemente assinalada sob a forma de inspiração e me
ja atividade se dirige para o inexplorado e que sentem estar no orientou no caminho a seguir. A lei que, na ação, se converte em
mundo somente de passagem, para realizar ideais que quase força (aquilo que comumente se chama Deus, Divina Providên-
não interessam a ninguém. Percebendo uma vida muito mais cia, etc.), assumia no meu caso a forma de personalidade, ou seja,
vasta, não podem absolutamente tomar a sério os instintos, os de consciência inteligente e volitiva, da qual eu percebia a apro-
interesses e as paixões que hoje agitam o mundo. Hipersensiti- ximação, graças a uma espécie de tato psíquico ou espiritual. E
vos que não vivem de cálculos e de raciocínios, mas de intui- sentia a sua presença não mais ao lado, mas sim dentro da minha
ção, contendo em si todos os extremos de luz e de trevas, nos consciência. Nascia em mim a ideia que devia desenvolver – a
quais sofrem e ardem de uma febre de criação contínua, não fa- inspiração. Essa personalidade me fazia companhia, dava-me va-
zem cálculos e nem tiram proveito de seu próprio trabalho. Es- lor, muito mais do que qualquer amigo ou pessoa querida deste
tes desafortunados pioneiros de um mundo futuro estão verga- mundo, com a qual a união espiritual nunca é completa, enquanto
dos sob o peso de um ideal, sustentam sozinhos, sem que nin- que a nossa fusão era íntima e perfeita. Nos momentos decisivos,
guém lhes enxugue uma lágrima, todo o trabalho da semeadura quando urgiam a ação e a decisão, essa personalidade agia e fala-
e passam incompreendidos, presos à visão interna que os espi- va por mim que, abatido e desalentado, comportava-me como um
caça inexoravelmente e lhes absorve todas as suas energias, ti- autômato. Manifestou-se-me, por último, em forma de uma voz
rando-lhes toda recompensa material. Estes desterrados, aos interior que eu escutava incessantemente e com a qual sustentava
quais cabe na vida missão muito diferente daquela de ser ho- colóquios e discussões, uma vez que sempre desejei discutir raci-
mem-máquina, a sociedade os põe à margem! onalmente todo ato, sem jamais me abandonar ao fanatismo. E eu
Não são admitidos, como pretenderia a atual sociedade hu- discutia. Mas, quando me recusava a obedecer, porque a razão e o
mana, mas ela não é tudo. bom-senso assim me aconselhavam, então a voz se tornava mais
O que é esta pequena psicologia humana diante das forças límpida e forte. O conselho se convertia em ordem, a ponto de
imensas do universo? Sem que o saiba, é a estas forças que obe- não me deixar em paz até obedecê-la. Em seguida, acontecimen-
dece a psique coletiva. O empuxo mais ativo, o que determina os tos imprevisíveis davam-lhe razão. Como sensação, não era uma
acontecimentos humanos, deriva sempre dos imponderáveis. Es- voz sonora que impressionasse o ouvido por meio de ondas acús-
tes nascem e desaparecem, não se sabe como. É um erro grave ticas, mas uma voz de pensamento, que chega ao espírito por
dos assim chamados homens de ação o desconhecimento das meio de ondas psíquicas. Estas sensações da alma não se perce-
forças invisíveis e imponderáveis da vida, das quais são depen- bem segundo nossos sentidos corporais, mas se manifestam nu-
dentes. Nosso mundo percebe somente as causas próximas, mas ma só palavra: sentir. Com firme convicção, dizia-me: ―Atenção.
as crises e os revezes nascem de causas remotíssimas, que cor- Dentro de um ano ocorrerá isto; nesta data te encontrarás em tal
respondem a um maravilhoso mecanismo de leis, ainda ignora- situação‖. Para aquele que, como eu, viu logo realizar-se tudo
das e não levadas em conta pelo homem. É pueril acreditar na aquilo que, algumas vezes, parecia impossível como um sonho,
possibilidade de sucesso, seja ele coletivo ou individual, através este pressentimento do futuro não deixa de ser impressionante.
de uma preparação imediata e próxima. Tudo responde a uma Para os demais, não posso oferecer outra prova além da sinceri-
lei, a um equilíbrio, a uma justiça. O destino de todas as coisas dade de minhas palavras, a ausência em mim de qualquer outro
segue um caminho lógico, que não é possível improvisar. fim exceto a investigação desinteressada, com o objetivo de fa-
Eis aí, então, como este tipo de homem também pode entrar zer, possivelmente, o bem. A minha própria convicção transluz
em combinação com o mundo humano, não porque este o admi- na franqueza com que redijo este escrito. Ofereço a todos o que
ta, mas pela imposição de uma força superior. Aqui intervém prometi: observar a fenômeno refletido na minha consciência.
um fator novo. O homem verdadeiramente justo e realmente Examinemos juntos, mais intimamente, as características
espiritual, qualquer que seja a sua fé, dispõe para a sua ajuda de destas manifestações.
forças muito poderosas, pertencentes ao mundo invisível, que Aquela força, concretizada sob a forma de uma personalida-
penetram e governam tudo. Estas forças podem realizar o mila- de, exteriorizava-se e interferia tão-somente quando urgia uma
gre de fazer vitoriosa uma vida que também é baseada sobre a necessidade suprema e uma finalidade de bem. Portanto, nada de
luta, mas luta que não utiliza as energias do indivíduo para agir supérfluo ou superficial, nem simples curiosidade de experimen-
de forma humana, pois tais energias possuem outro endereço. tação. Manifestava-se e intervinha em circunstâncias graves, na
Tal é o homem justo. Para ele, não existem margens, nem ata- urgência imperiosa, na extrema necessidade. Somente então in-
lhos. Estaria destinado frequentemente ao fracasso, se aquelas tervinha, deixando-me, no restante, livre com as minhas abun-
forças não interviessem em seu auxílio. dantes forças humanas. Devia encontrar-me em perigosa encru-
Não há de interessar ao leitor conhecer qual tenha sido a for- zilhada do meu destino, na qual teriam que se decidir, através
ma exterior da luta sustentada por mim através dessa mecânica das minhas pequenas vicissitudes humanas, acontecimentos im-
atividade do corpo e da mente, que hoje se chama ―trabalho‖. portantes, concernentes à minha vida maior (como a temos to-
Preferirá conhecer minha visão interna, a observação do fenôme- dos) na eternidade. Era preciso o perigo que, por minha ignorân-
no realizada por mim sob ponto de vista bastante insólito, situado cia e debilidade, pudesse comprometer meu futuro nos séculos.
nas profundidades do meu eu, penetrando as profundidades das Então, na luta titânica entre o bem e o mal, aquela força intervi-
coisas. Interessa-lhe o testemunho, que aqui lhe outorgo, da con- nha para restabelecer o equilíbrio. Nestes momentos de perigo,
tínua sensação por mim experimentada acerca da presença dessa em que a luta, por ser superior às minhas forças, ameaça esma-
força e da maneira como ela, incessantemente, me guiou; a visão gar-me, sou libertado delas e, como todos, devo carrear a minha
claramente percebida da ação desta grande lei de equilíbrio e de carga de deveres com a mais completa responsabilidade.
justiça, que nunca se me havia manifestado mais patente, que Essa força somente se me manifestou com finalidade de
nunca se me afigurara de tamanha missão interventora. O resul- bem. A sua intervenção tendeu sempre à prática do bem. Fazem-
tado tangível foi, para mim, uma posição econômica conquistada me o bem e impõem-me, por sua vez, o mesmo procedimento.
num breve período de tempo, depois de vencer grandes dificul- Onde existe o mal, ela jamais se encontrará; e quem obra o
dades com meios absolutamente inadequados para a luta. Mas a mal nunca a conhecerá, nem a possuirá.
imprevisível e de todo inesperada sucessão de acontecimentos, Por estas características, que a convertem em algo inerente
tendentes em massa para o resultado obtido, poderia ser um sim- à vida e suas contingências, vemos que esta força desaparece,
ples caso fortuito. O que me surpreendeu, e isso não se pode ser tornando-se impossível observá-la, quando nos aproximamos
considerado acaso, foram as previsões realizadas, a estrada que dela com a mentalidade imbuída de puro cientificismo ou, pi-
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 105
or ainda, com a curiosidade do ―diletantismo‖. Estes fenôme- investindo terrivelmente, como um furacão, mas que desapare-
nos são novos, e é necessária uma nova ciência, que inclua en- cem espontaneamente, tão logo as tenhamos vencido. O segre-
tre os elementos que geram a observação do fenômeno, um fa- do está todo em não recusá-las, mas aceitá-las, tratando de
tor que hoje é incrível: nada menos do que a pureza de inten- aproveitá-las para o nosso progresso espiritual.
ções e a elevação moral do investigador. Se essa força se nega Que concepção nova da vida nos proporcionam estas ob-
a manifestar-se com o objetivo único de experimentação, a servações, e como se modificam radicalmente as nossas mais
não ser nos grandes momentos críticos de algumas vidas, infe- costumeiras apreciações das coisas! A própria luta, encontrada
re-se que resulta ser quase impossível observá-la à vontade. em todos os setores, nota dominante da vida humana, sofre
Não se pode prefixar artificialmente o fenômeno nas investi- uma revolução. Frequentemente, ela nos torna malvados, ar-
gações científicas. Trata-se, portanto, de fenômenos susceptí- mando-nos uns contra os outros, como lobos famintos, e nos
veis de observação, quando se produzem espontaneamente, oprime como maldição. Quando concebermos a vida fora dos
mas não sujeitáveis à experimentação. estreitos limites do mundo humano e de suas realizações pueris
A manifestação dessa força responde, pois, a um princípio e ferozes, então as nossas perspectivas, como criações que de-
de necessidade e, portanto, a um princípio de bem. Observemos safiam o tempo, serão mais vastas e, para alcançá-las, não será
agora a sua maneira de se conduzir. necessário que apelemos para todos os mesquinhos meios da
A sensação de sua presença nem sempre era nítida em mim. agressividade e da traição, dos quais o homem lança mão para
O atordoamento do organismo, a percepção mais viva das coi- assegurar o prazer de um dia. Poderemos viver e vencer sem
sas mais próximas e imediatas, a preocupação do meu espírito, lutar de modo tão baixo, agindo de comum acordo com a gran-
que tomava parte ativa no esforço da luta, tirando-me a tranqui- de lei de justiça no caminho do triunfo.
lidade, perturbavam as faculdades receptivas do meu ser, impe- Sei bem que é difícil aceitar uma luta tão áspera. A Lei pode
dindo-me frequentemente de sentir. Então, aos períodos de luz, parecer, no princípio, um peso oneroso, mas logo se torna uma
de uma alegria extraordinária, da sensação de força e expansão força imensa à nossa disposição. A lei de justiça nos ata as
que me infundia essa nova faculdade sensorial do meu espírito, mãos, impondo-nos o comedimento na vitória e a manutenção
seguiam-se períodos de ofuscamento, de solidão desconsolada e constante do equilíbrio, que nós, fazendo sempre o melhor uso
de abandono às minhas paupérrimas forças humanas, das quais possível das nossas forças, não devemos alterar, animados pela
sempre duvidei muito. Naquela ocasião, tudo parecia destruir- vantagem imediata. É uma amarra que nos coloca em passivi-
se, como se meu espírito não resistisse ou não pudesse manter- dade. Por isso o homem justo, que jamais agride ou atraiçoa,
se longamente naquele estado de sensibilidade especial, mas aparece em nosso mundo como um ingênuo, um inerme, desti-
apenas por alguns momentos. A força, entretanto, não se afas- nado a ser rapidamente vencido. O justo é um desarmado, en-
tava de mim, pois antes que voltasse a senti-la diretamente, eu quanto que o forte sem escrúpulos, aguerrido e agressivo, chega
percebia a sua presença nos efeitos da sua obra, num aconteci- mais rapidamente à meta. Porém este, abusando da sua liberda-
mento predisposto, num problema inesperadamente resolvido, de, tende continuamente a ultrapassar os limites da grande lei
numa dificuldade repentinamente vencida, num fato que advo- de equilíbrio e, mesmo quando goza das vantagens imediatas,
gava a meu favor. Em seguida, a voz retornava, às vezes con- está usurpando, porque lança mão antecipadamente de seu futu-
fundida com outras parecidas, que fingiam aconselhar-me, mas ro. Os adiantamentos somam-se no débito, que vai aumentando
que eram frívolas, falsas e malvadas. Desmascaradas por isto, a cada dia e terá que inexoravelmente ser saldado. Ante a lei de
fugiam logo. Somente o bem atrai a voz verdadeira. O bem é justiça, o mal é um peso moral que gravita sobre a personalida-
necessário à minha consciência, para que esta não perca a sua de, dificultando a ascensão do espírito para o Alto, onde se en-
limpidez, como um estado habitual, uma capacidade de sutis contram a libertação e a paz. Por sua vez, o justo sustenta, tole-
vibrações, indispensáveis para perceber estas coisas. Essa força ra, sofre e, praticando o bem todos os dias, vai acumulando em
me deixava sozinho por momentos, não por minha culpa ou in- seu crédito, atraindo para si as forças do bem, que, irresistivel-
capacidade, mas porque a sua intervenção devia limitar-se às mente, o elevarão, assim como farão descer aquele que é domi-
ocasiões necessárias. Nunca representou para mim uma ajuda nado pelo mal. Por uma lei inviolável e fatal, o bem retorna
supérflua ou um convite à indolência, e sempre cuidou de nada sempre, como chuva de bênçãos, sobre aquele que o praticou, e
fazer por mim, se eu podia fazê-lo com minhas próprias forças. o mal volta sobre o seu autor, como chuva de maldições. São
Algumas vezes, permaneci como que perdido, sujeito às créditos e débitos que a grande lei de justiça, que é Deus, não
forças inimigas, que pareciam satisfeitas em destruir. Por que pode deixar de conferir. E deve fazê-lo para não se contradizer
essa força, que queria salvar-me, conforme me havia assegura- a si mesma, não violar o equilíbrio, que é a sua essência, nem
do, me abandonava? E por que a sentia então dentro de meu ser desviar a corrente segundo a qual todo o universo se move.
dizendo-me: ―Oh homem de pouca fé!‖? E por que, durante to- ―Humilha-te e serás exaltado‖, ―Os primeiros serão os últimos‖.
da a minha vida, assim que o perigo se tornava realmente grave Cristo mesmo enunciou a lei de equilíbrio. Praticai o bem! Este
e minha barca parecia a ponto de se afundar, aquela força vol- será o único seguro, o melhor investimento, dos nossos capitais
tava e, como por encanto, a tempestade se acalmava? humanos. A força tremenda do justo inofensivo será somente
Que são, pois, estes tremendos dramas interiores, turbi- esta, a sua justiça. Sutil na sua elevadíssima potencialidade, que
lhões de sensações extremamente invisíveis, estas angústias e esmagará um Napoleão e fará de Cristo um deus nos séculos.
estes triunfos no mundo do suprassensível? E o que desejava Esta é a força que pode realizar o inacreditável, o absurdo soci-
de mim essa força? al da vitória, em nosso mundo de violências e abusos, daquele
Desejava não somente o êxito daquele determinado aconte- que não luta no sentido humano. Esta é a força que nos pode
cimento, mas, e principalmente, meu esforço, todo o meu esfor- auxiliar a realizar o milagre da supressão da luta brutal, ou seja,
ço. Desejava que me acostumasse a dar todo o meu quinhão, o milagre do superamento da animalidade, o milagre da reden-
tão necessário para temperar meu espírito, plasmá-lo em quali- ção. Se o homem pudesse compreender que peso tremendo
dades mais elevadas, indispensáveis à minha ascensão. Impu- exercem sobre a realização dos acontecimentos humanos estes
nha-me luta contínua, sem possibilidades de descanso ou triun- impulsos que vêm do invisível, geralmente não levados em
fos não merecidos. Eis aqui a vida concebida como uma série conta, por certo tremeria. Impulsos invisíveis, mas tão podero-
de provas, irreais no mundo exterior, reduzido a um cenário em sos, que irresistivelmente dobram indivíduos e forçam aconte-
contínua mutação, mas reais no espírito, onde se gravam eter- cimentos. Podem penetrar, porque são invisíveis, e fazem cur-
namente, em formas de novas qualidades. Provas que sucedem, var, como se fossem palhas, os chamados ―fortes‖ da vida.
106 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
De tudo isto, podemos obter esta importante conclusão: a futuro? Somente quando tenhamos sob as nossas vistas uma parte
luta pela vida, na forma brutal usada pela sociedade civil mo- considerável da nossa vida maior e pretérita, que se perde na
derna, não é de nenhum modo uma lei inflexível da natureza. eternidade, tomaremos posse dos elementos que predeterminarão
As guerras, as rivalidades comerciais, a competição individual o futuro. Eu o digo a todos, impulsionado pela voz interior da
e coletiva de todas as espécies não são mais do que a conse- qual vos falei, que estes são os únicos e os verdadeiros problemas
quência da baixa lei animal, preferida sempre pelo homem, do futuro, aqueles aos quais se dirigirá a mente humana nos pró-
dada a sua psicologia. ximos séculos, e cuja solução redundará no real e no mais autên-
Não é certo seja necessário que toda a coletividade compre- tico progresso. Muitas outras coisas, que parecem mais importan-
enda e siga uma lei mais elevada para que resulte possível a ca- tes, não o são na realidade. Todos gozamos ou sofremos, felizes
da indivíduo realizá-la. A Lei sempre existirá, e mesmo quando ou desgraçados, sem saber por quê. Opomos à dor reações in-
apenas um a siga, ela está sempre pronta a se lhe manifestar, conscientes. Somos uns pobres míopes, já que nada vemos de-
ainda que toda a humanidade a ignore. pois da morte, e semeamos a esmo o bem e o mal. No passado
A observação destas minhas experiências espirituais pro- eterno, que ignoramos, moram as causas do presente. Nossos
porciona-me outra consideração. Quando penso de que intrin- próprios atos semearam as dores que sofremos. Pelo bem que
cadas séries de fatos, contingências e fatores – entre estes os praticamos seremos recompensados. Construímos no passado, li-
psíquicos, imponderáveis e mais imprevisíveis – surge um vres e responsáveis, a nossa personalidade atual, com seus instin-
acontecimento humano, não posso crer que a nossa vontade, tos, tendências e aspirações, boas ou más. Assim como o caracol
por mais forte que seja, ou a nossa inteligência, mesmo quando constrói a sua carapaça, nós nos construímos um determinado ti-
agudíssima, possam ter uma participação preponderante e deci- po de destino, que se nos adere como vestimenta. Este é o ―far-
siva em sua preparação. Não! Nos sucessos humanos, em todas do‖, nosso fardo particular, invencível, tirânico. No lento trans-
as contingências da vida, existe um imenso ―imponderável‖ que curso dos séculos, repetimos os nossos atos, assimilamo-lhes as
cobre três quartas partes do problema e nos escapa quase por consequências, até que se tornam irresistíveis e fatais. Foram
completo. E este ―imponderável‖ não é o acaso, nem o caos, obra nossa e, com justiça, hoje gravitam em torno de nós mes-
nem a desordem, mas um novo e mais profundo equilíbrio que mos. Nossa obra hoje é lei de divina justiça e não pode ser modi-
eu percebo e que possui suas nascentes distantes, na estrutura ficada. Contrastando com o campo de determinismo absoluto,
do nosso próprio destino, tal como nós o forjamos com as nos- criado pela trajetória percorrida e por todos os atos do passado,
sas obras. É este o maior drama que vi através desta minha úl- estão o nosso presente e o nosso futuro – um campo de livre arbí-
tima experiência espiritual. Esta a visão que se me revelou du- trio absoluto – onde a vontade age, tornando possível a correção
rante a minha luta. Minha vida – um momento do meu destino contínua e o endireitamento de rota no sentido que livremente
– é consciente de sua relação com a eternidade em que estou desejarmos. Da ação combinada de todos os nossos atos do pas-
vivendo, dando-me conta de todo o seu significado. Das minhas sado, já fixados em nós, e desta contínua retificação que nos é
observações não se deduz a importância do meu destino, mas a possível fazer, resulta o futuro, o nosso futuro, que é deste modo
possibilidade, por mim entrevista, de contemplar a estrutura de constituído por dois elementos: um fixo, já cristalizado, e outro
qualquer destino no tempo, ou seja, de prever o futuro. móvel, devido à nossa vontade, que continuamente se sobrepõe
Quando digo ―prever o futuro‖, refiro-me não a um futuro àquele, modificando-o. Da influência recíproca destas duas for-
genérico ou universal, mas a um caso determinado, uma vida ou ças, uma passiva e outra ativa, resulta a trajetória do futuro, que,
destino particular. Estou convencido de que num universo onde desta maneira, pode ser conhecido, devido também ao fato de
tudo é lei, equilíbrio e ordem, onde cada fenômeno se desenvolve que, em parte, poderemos querê-lo e criá-lo.
de acordo com uma proporção exata de causas e efeitos e onde Hoje, porém, quem se rege por esta ordem de ideias? Para
nada acontece por acaso, também o destino humano não pode es- poder efetuar investigações introspectivas tão profundas, é neces-
tar sujeito à sorte, mas sim a uma férrea e matemática concatena- sário uma grande limpidez de espírito e um poder muito forte de
ção de ações e reações, em equilíbrios constantes. O fenômeno visão interior. É mister mover-se numa atmosfera espiritual ele-
da vida, com todas as suas alternativas materiais ou espirituais, se vada, ser iluminado por uma luz interior, que não se pode impro-
desloca e avança continuamente, mas sempre mantendo-se em visar, nem explicar ou ensinar, porquanto somente a compreende
equilíbrio. Nestas condições, se ele não ocorre por uma casuali- quem a possui. É preciso uma contínua retidão na prática e pure-
dade, mas de acordo com uma lei, então pode ser previsto quan- za de consciência, já que, somente neste estado, os órgãos da
do se conhece essa lei. O destino, tal como o é no presente, está percepção anímica se refinam até alcançar a sutileza e a sensibi-
todo contido no passado e, tal como será no futuro, está embrio- lidade necessárias para perceber certas delicadas sensações inte-
nariamente contido no presente, no estado de causa. Se soubés- riores. Tesouros imensos, revelações inauditas, faculdades gran-
semos observá-lo bem, poderíamos ler nele, rapidamente, todos diosas encontram-se em nosso espírito. Nada, entretanto, é tão
os elementos de seu próximo desenvolvimento. É aqui, aliás, on- pouco apropriado para no-los mostrar como os sistemas turbulen-
de reside a dificuldade. Quem se conhece a si mesmo? Para um tos, prepotentes e materiais da nossa moderna civilização. Certos
estranho, resultará muito mais difícil penetrar, de fora, nas pro- fenômenos não se dominam mediante hipóteses engenhosas, ha-
fundezas desse ―si mesmo‖. Quem conhece a lei do próprio des- bilidades cerebrais, força da mente. Frequentemente, o mistério
tino, ou seja, a sua natureza, a sua tendência dominante, o seu ti- não abre as suas portas a não ser àquele que, humilde e profun-
po? Cada homem traz consigo, com determinado modelo de per- damente, ama, mas ama no sentido mais alto e espiritual.
sonalidade e uma dada espécie de destino, a tendência para certas Conclusão. Com este escrito deixo o meu testemunho. Tive
provas, perigos, triunfos, alegrias e dores. Mas ignora facilmente que obedecer à minha voz interior, sob cujo ditado escrevi, ra-
tudo quanto para o seu próximo vai resultar em torturantes pro- pidamente, sem refletir, a ponto de não saber se me compete re-
blemas. Para conhecer tudo isto, seria necessário tomar em con- ferendar este artigo com a minha assinatura.
sideração outras causas, que hoje o homem, a sua ciência e as re- Torno a afirmar a objetividade das minhas observações, a
ligiões ignoram. Como seria possível conhecer tudo isso num sinceridade das minhas palavras. Sempre concebi a vida como
mundo onde os problemas da personalidade humana apenas co- uma experiência espiritual que tende a uma conquista moral.
meçam a ser estudados, onde muitos creem que a vida termina Este conceito, levado agora ao mundo prático da luta pela vi-
com a morte física, onde muitíssimos ignoram que, antes de seu da, proporciona-me ótimos resultados. Estas experiências es-
nascimento físico, tiveram um passado, que é justamente o que pirituais, que acabo de expor, reafirmaram a minha fé. Sinto
devem recordar e meditar, pois encerra a chave do presente e do que somente as almas puras e justas, onde quer que se encon-
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 107
trem no mundo, poderão compreender-me. A elas, o convite portas, obedecendo. Obedeces e amas. A nossa vida é uma só.
para ensaiar estas maravilhosas experiências espirituais, que Sentimo-nos e amamo-nos.
comprovam o triunfo do bem. Para elas, a esperança que o seu A visão não é da Terra e proporciona ao coração um êxtase
destino, pelas ações do passado, contenha as mesmas forças, que não é da Terra. Toda a criação, plantinhas e árvores, inclu-
que devem elevá-las cada vez mais. Para elas, o meu cumpri- sive os escolhos nus e severos, cantam-me na sua voz a grandi-
mento fraternal e o voto de que a aquiescência que nelas possa osa sinfonia da vida.
suscitar a palavra de fé que me anima, resulte-lhes em consolo Escuto e não sei mais onde me encontro, tão mudada está a
e ajuda no terrível momento da luta e da dor, que a todos, Terra vista assim na sua essência interior.
igualmente, nos espera. Todos os seres me olham, cercam-me e falam-me: ―Quem
és tu que finalmente vês? Tu, que não és cego entre os homens?
TERCEIRA PARTE  VISÕES Vem, olha, escuta, que nós te falamos‖.
E cada um levanta a sua voz distinta conforme a sua natureza.
O CANTO DAS CRIATURAS (1932) A rocha é severa e brame; a grande voz da terra é um troar
do enorme bramido distante. As velhas árvores em meditação
Caminhava só, em uma hora de folga, pela campina extensa. repousam cansadas; as plantas mais jovens cantam nas flores,
Não sabia como fazer-me companhia e, por isso, atentava nos rebentos, nas folhas; as plantinhas sorriem delicadamente,
nas coisas que me cercavam. como as crianças, na alegria de viver. E ri a pequenina vida
Olhava-as com sentimento de amor, e elas me respondiam animal, escondida e esparsa em redor, num trinado de felicida-
com sentimento de amor. Lentamente, o meu olhar se transfor- de. Também o céu imenso e o mar na sua vastidão distante
mava em olhar de sonho, e a minha alma, que no silêncio aflo- possuem as suas vozes e sorriem, ou murmuram, ou cantam,
rava, reencontrava e sentia a alma das coisas. Além da maravi- ou choram, ou rugem; também o deserto é pleno de vida, onde
lhosa harmonia da forma, eu percebia na vegetação a vida. tudo pulsa, vibra e freme. E, com todos, o meu ser sintoniza,
Oh! A minha alma vê. Cada pequenina planta possui a sua porque toda vitalidade é a mesma vida.
expressão de ser, e eu a sinto viver, vejo-a olhar-me. Maiores, Vejo agora abrir-se o abismo dos céus, faiscante de vidas.
as árvores são fortes e severas, mas todos são seres simples e Quantas, ao infinito, no espaço infinito; e cada uma possuindo
bons, que desconhecem a ferocidade dos animais. Por isto, a uma voz, uma luta, uma esperança, uma meta, um destino, uma
sua companhia irradia tão grande sentimento de paz... Mas eu dor, uma alegria. E todas me falam: ―Oh! tu que me vês, olha e
amo os pequeninos vegetais, as plantinhas tenras e jovens, que escuta‖.
oferecem a sua frescura, desabrochadas do mistério à luz do A sinfonia é imensa, vasta como o tempo e o espaço; é mú-
sol, com uma dedicação tão completa, com uma tão feliz igno- sica composta de toda a harmonia do universo.
rância de todos os horrores da vida, que eu desejaria abraçá-las, É isto Deus? É Deus isto que eu vejo? Porventura está Ele na-
tal como se deseja abraçar a criança ingênua que vem à vida quela harmoniosa lei que rege toda esta ordem, o grande EU, cen-
cheia de alegria; desejaria beijá-las como almas irmãs. tro do grande organismo, lampejante de ideia, vontade e ação?
Também elas me amam e confiam-me o segredo de suas vi- E este EU és TU, SER SUPREMO, que não sou digno de
das: ―Não pedimos senão morrer para que a tua mais alta vida mencionar?
animal floresça. Nós somos as humildes servas da tua superior Então me ponho de joelhos e oro. Então todas as criaturas
vida orgânica, tão completa e tão complexa para nós. Nossa irmãs se calam, inclinam-se e rezam. Então, de todo o universo,
ambição é nos sacrificarmos por ti, a fim de possibilitar-te esta sobe o canto do amor, e tudo é luz e alegria, contentamento e
vida orgânica da qual sabes criar uma atividade ainda mais ele- triunfo. E, ao canto de amor do universo, outro canto supremo
vada, tão elevada para nós, a vida do espírito. Apanha-nos e responde: ―Volve para mim, oh! Criatura que conquistei, para
mata-nos. Não lutamos e não nos vingamos. Também nós te- mim que te criei‖.
mos grande missão no equilíbrio da vida. Mesmo o sacrifício e
a morte possuem uma grandeza e representam uma vitória‖. TRÍPTICO (1928)
A ternura invade-me ao olhar esta humilde vida vegetal,
plena de tão abundante e alta finalidade, que desejaria quase A Noite
adorá-la.
Sem este traço intermediário que une a vida do mineral Condensam-se sobre a terra vapores estranhos, subindo le-
(também essa vida mais abaixo eu a sinto) à vida do homem, vemente como uma maré. A Lua branca resplandece no céu,
como poderia completar-se o ciclo de permutas na superfície criando-nos fantasias.
terrestre? Quem transformaria o solo, o ar, os minerais em Do alto de Assis, observo a noite, olho com os olhos pro-
substâncias orgânicas assimiláveis? fundos da alma, olho as estrelas vivas, e o seu frêmito puro
Sem toda esta maravilhosa cadeia de transformações e de proporciona-me grande nostalgia.
contatos que do mineral atinge o homem, como seria possível o Vejo a terra adormecida embaixo; parece também cheia de
mais alto fenômeno da vida, que é aquele da criação dos eter- pureza na noite longa. Está inteiramente envolta em diáfanos
nos valores do espírito? véus e parece que repousa inocente, como na aurora da vida.
Pequenina e humilde planta, também tu trabalhas no funci- Parece que aguarda ainda a sua criação; parece que, no afluxo
onamento do grande organismo! ascendente dos vapores estranhos, dormem ainda as formas dos
Não o sabes na forma de consciência reflexa que o homem seres, e tudo se recolhe, quase tremendo, num silêncio sacro,
possui, mas o mesmo instinto que pulsa em ti eu o encontro para venerar o grande mistério da vida nascitura.
no meu ser, numa idêntica linguagem fundamental, a expres- Distante, na névoa, perdem-se os perfis das coisas, que on-
são do pensamento da vida. Como eu, nasces, cresces e mor- dulam como formas que lentamente saem do nada.
res; como o meu corpo, sentes calor ou frio, umidade ou secu- Parece que vagueia no ar uma até então indecisa forma de
ra, a vigília ou o sono; e permutamos um respiro inverso. O existir e, na incerteza do ser ou não ser, afigura-se-nos que as
calor do perfume das tuas flores, que na primavera me invade, coisas tentam exteriorizar-se.
conta-me que amas e que amas ardentemente. As tristezas ou- Sob a luz suave da Lua, estranhos fantasmas endireitam a
tonais dizem-me que também envelheces e morres. Quantos fronte nas névoas e, depois, se dissolvem aflitos. Formas que
padecimentos, oh! Pequeno e humilde ser, humildemente su- se vão.
108 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
Formas que se vão em longa fila, procurando a vida. Nasce- Homem, ergue-te e vive; segue as pegadas dos grandes na
ram, e a evolução, num relance, lhes pôs o dilema e a morte; a grande estrada da libertação; levanta-te e edifica a ti mesmo,
evolução acossa sem dar trégua, sempre para mais alto. plasma em ti o super-homem. Vi o teu futuro reino durante as
Em paz, as estrelas do céu observam o grande apocalipse e vigílias, miragem bela como uma visão. Por que não o conhe-
sorriem tranquilas, sem se admirarem, porque, para elas, o es- ces? Por que demoras na estrada do teu progresso? Tu que, en-
petáculo é velho, tantas vezes visto e revisto. tre tantos seres, venceste na Terra a grande luta da evolução e,
A eternidade não se perturba mais. agora, chegado ao ápice da vida animal, dominas o planeta,
por que ainda tardas tanto em prosseguir? A evolução biológi-
A Aurora ca está completa. Aguarda-te a evolução espiritual. Supera o
animal do qual ainda és feito; torna-te grande na alma!
Aproxima-se o amanhecer. Tênues luzes tremem no oriente Observa quanto a natureza percorreu para produzir em ti a
enquanto, no horizonte oposto, desce lentamente a Lua, vencida sua obra máxima. Parece que tentou todas as formas para uma
pelo dia nascente. As estrelas puríssimas ainda observam do al- única mais excelsa: o homem. Quanto esforço nas tentativas,
to e possuem a cor do céu. Das trevas emergem os coloridos, e quanto imenso trabalho de formas abandona para trás, a fim de
outra vez o arco-íris se tingiu na aurora da luz. deixar sobreviver uma única maravilha para o futuro: o homem!
Desperta a vida lá embaixo na planície extensa, e invade-me Observa, nos tipos vegetais e animais, as imagens deixadas no
imensa ternura pelo homem e por seus padecimentos. meio da estrada desta nunca saciada vontade de te criar. Elas se
Saio de uma noite insone, e o amanhecer surpreende-me inclinam para ti e parece que te apoiam, para te manter no alto.
ainda desperto e decidido a perseguir a ideia. Por que vacilas ainda em superar a vida? Não sentes fer-
A meditação profunda não tem a noção de tempo e é intensa mentar na alma a história dos séculos vividos, não sentes subir
como uma dor. a maré das lutas e das provas superadas, não sentes, vinda do
Oh! A vigília do pensamento. Benditas sois vós, desejaria túmulo, a voz dos mártires e dos grandes que te chamam para
gritar, almas rudes, mudas ao misterioso encanto da terra e do uma espiritualidade mais elevada?
céu, benditas porque podeis viver sem saber e sem perguntar. Homem! Também em ti a evolução pôs o dilema do ser ou
O mistério me persegue e não me dá trégua. não ser, avançar ou findar. Não sabes que não se pode jamais
O que é, no infinito, este meu espírito que não tem paz? Para parar? Se é da própria natureza do universo o movimento e o
onde me impele o turbilhão dos séculos? Para onde me leva, para progredir, pretendes tu mesmo, oh! pequenino homem, barrar a
onde nos conduz, esta nunca saciada vontade de viver? Em noite grande corrente? Acima da tua vontade, seguem decisivas as
de insônia, num turbilhão, vi cheio de espanto a esfinge revelada, grandes leis e surge a dor: a sua própria sanção. Qual novo ca-
olhando-me suavemente no rosto para apontar o cume distante. taclismo esperas, que novo sofrimento te obrigará a evolver,
Destruir-me-á o corpo, não importa, mas morrerei contente, até que sintas o fulgor do raio da estrada de Damasco e tu,
porque conquistei uma vida ainda maior. constrangido, transponhas a soleira do reino do super-homem?
Por que deverão ser extintas as grandes forças biológicas A minha sede de ascender vertiginosamente, a anelante
que, em milhões de anos, plasmaram a forma da vida material? ânsia de construir minha alma, a luta para vencer e superar a
Não. A evolução sempre surge de baixo e sempre avança fase das paixões e repousar depois na consciência liberta, tu
em direção às mais altas formas, em movimento incessante; não não a sentes!
pode parar e então prossegue em nível mais elevado, o nível Não, tu não desejas o entendimento. Amas viver na brutali-
humano da psique. dade, amas a terra e satisfazes as tuas paixões para viver. Dei-
Também em mim, a evolução pôs o dilema do ser ou não xas-te guiar pelo instinto, satisfeito com isto, não tentando
ser, prosseguir ou findar. compreender aquilo que fazes.
Procurei compreendê-lo, e o misterioso turbilhonar dos sé- A revelação divina e a ciência humana, dando-se as mãos,
culos começou a fermentar dentro do meu espírito. entenderam-se e se harmonizaram para os que as quiseram acei-
O meu passado elevava-se como ondas, e surgiam rápidas tar. Os mártires de todas as religiões deram o exemplo para os
as lutas e as provas superadas; por fim, eu estava mudado e menos inclinados ao entendimento. O homem ainda não enten-
maduro para a grande revelação. de. Pobre homem!
Vi a minha eternidade; um amadurecimento lento, culmi- Falará a dor, último recurso da Lei, justa e boa, para con-
nando num estrondo como o raio na estrada de Damasco. duzir o cego para sua estrada fatal, do seu bem e do seu pro-
Cheguei. Assim, transpus o limiar e vivi uma nova forma gresso; a dor abalará a inércia. Pobre homem! Vejo-te desani-
de vida. mado e deprimido.
O universo tremeu dentro de mim, no entanto tudo seguia O meu corpo choca-se contra uma enorme muralha de tan-
igualmente calmo e sem perturbação. tas e tantas mentes iguais, inertes, satisfeitas em viver a sua vi-
Quando a evolução criou a primeira asa ou guiou o primeiro da miserável. Eu, só e esgotado. Tu não me escutas.
olhar à luz, a eternidade não se alterou.
A vida opera, sem se encher de admiração, grandes milagres Fecho
de maneira completamente natural, com a paz eterna de quem
sabe e, sem pressa, alcança. A aurora transformou-se em dia. A planície, adormecida lá
embaixo, está fumegante sob a aurora. Do lento vaguear da né-
O Dia voa, parece que se desperta a voragem do tempo. A manhã está
feliz, alegre e cheia de juventude; no ar leve e calmo, vibra a
O que é que, lá embaixo, emerge da névoa matutina, estra- promessa de vida.
nho monumento voltado para o céu? Ruínas de Tebas antiga Mas dissipa-se com o dia a pureza das horas matutinas; não
ou muros de castelos indianos no vale do Ganges, ou a glória mais olham para baixo as estrelas sorridentes e calmas. E, en-
de Paris pelas planícies do Sena? Não! É a linda cúpula de Vi- quanto morre a última claridade da aurora, dentro de mim um
gnola, que surge ao sol. Desejaria também que a ideia que a eco me repete: ser ou não ser, evolver ou findar.
criou resplandecesse ao sol. E vejo na dor a estrada da evolução.
São Francisco, a tua bela imagem está tão distante, não mais Somente na dor, livremente amada, vejo a estrada do ser, a
te compreendemos! única força que torna a alma grande.
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 109
E, no desejo intenso de prosseguir sem repouso, grande sede A festa do verão, os divinos colóquios com a alma misterio-
me assalta de querer sofrer. Eu apelo para a dor com os braços sa da natureza, os êxtases dos silenciosos arcanos e a solene
abertos, e o eco repete-me ainda: ―ou sofrer ou morrer‖. quietude na qual repousa o turbilhão do tempo. Na voz das coi-
sas mais humildes, ouvia tremer o mistério do infinito.
CÂNTICO DA DOR E DO PERDÃO (1933) E tu me olhavas, doce criatura de que o bosque é feito, escu-
tando comigo a longa sinfonia dos ocasos. E a sinfonia se de-
No silêncio da noite imensa, eu escuto o cântico de minha senvolvia suave, de luz em luz, até desaparecer o último es-
alma, um cântico que vem de muito longe e traz consigo o sa- plendor nas trevas, qual uma voz que morre no silêncio.
bor do infinito. A terra em paz contava-me calmamente, à luz da tarde que
As coisas dormem, e a voz canta. se esvai, da suspensão da luta, do repouso da vida exausta, di-
Estou desperto e escuto; parece que a noite escuta comigo. zendo-me como o dia, já velho ao anoitecer, era mais sábio por
O mistério que está em mim é o mistério das coisas: dois in- tê-la vivido.
finitos olham-se, sentem-se e compreendem-se. Adeus bosque solitário, pensativo como eu; adeus caminho
Lá embaixo, pelas margens distantes, além da vida, o canto que vai para o ocaso; adeus árvores amigas que tanto amei.
responde, despertam-se as sombras, e, das profundezas, todos Agora, o entardecer é frio e lívido; o teu perfume, oh! Terra,
os seres estendem-me os braços: ―Não temas a dor, não temas a tem um sabor de pranto.
morte, a vida é um hino que jamais tem fim‖. O teu respirar esgotado, que eu sinto nas mãos, parece que
Observo-os e perdoo à sarça a inocente ferocidade de seus me responde tristemente: adeus!
espinhos, à fera sua garra, à dor sua investida, ao destino seu O inverno já te abala com um arrepio de frio. O uivo do
assédio, ao homem sua ofensa inconsciente. vento sumirá em teu meio, em longas ululações, sibilando na
―Perdoa e ama‖, diz o meu cântico. tenebrosa tempestade da noite.
E eis que ele apresenta uma estranha magia: todos os seres Pobre árvore amiga, adeus! Sofrendo irei para outras plagas,
me olham fascinados, e cai o espinho, a garra, a ofensa. levando a tua lembrança querida; do vento receberei as tuas no-
E devagar, devagar, ignaros e cheios de espanto, a magia os tícias e a ele confiarei, para ti, as minhas.
vence, e comigo, lentamente, recomeçam o cântico; a harmonia O vento me trará da primavera distante o afago de tuas no-
se dilata, difunde-se e ressoa em todo o Criado. vas frondes; desfolha-las-ei com o meu sopro para que minha
Sobre cada espinho nasceu uma rosa; sobre cada dor, uma carícia te enlace lá de longe.
alegria; sobre cada ofensa, uma carícia de perdão. Adeus!
Abro meus braços ao infinito, e falanges de seres me esten- O bosque responde-me: Paz!
dem seus braços.
―Canta, canta‖, falam-me, ―cantor do infinito; nós te escu- O Sino dos Mortos
tamos. O teu cântico é a grande lei, é a grande festa da vida. O
teu cântico é luz da qual o ódio e a dor fogem. Canta, canta, Soa melancolicamente um sino ao entardecer. É a voz dos
cantor do infinito‖. ciprestes e dos túmulos, um som triste de pranto, um lamento
E eu canto. que se perde ao longe pelas campinas e, entre as folhagens mor-
Meu corpo está cansado, e eu canto; meu corpo sofre, e eu tas, plangentemente morre.
canto; meu corpo morre... e eu canto. O ar repousa. A neve inerte se condensa em gotas de ra-
mo em ramo. Existe neste entardecer uma sensação de gran-
TRÍPTICO (1934) de abatimento na vida, e a terra está estranhamente absorta.
Parece que se recolhe para meditar sob o manto da neve
Novembro sempre igual.
No silêncio imenso, não escuto senão o pulsar do meu pen-
Adeus bosque solitário, que tanto amei. samento, que desce profundamente, de região em região, para
Como é amargo teu hálito nesta tarde, enquanto te olho di- despertar não sei onde, sobre o limiar do mistério.
zendo adeus. Olho dentro da terra, e ela me parece desejosa de oferecer-
O inverno te cinge no seu sono, a voz queixosa da chuva me o amplexo que tantas vezes lhe pedi com os braços estendi-
lenta docemente te adormece. dos, chamando-me para repousar entre os seus torrões.
Repousa entre as névoas o vento; repousa no silêncio a Amei tanto as suas belezas, penetrei tanto em seus segredos,
grande voz da vida; no abandono lento das folhas mortas, re- vivi tanto no misterioso palpitar da sua vida, trocando amores,
pousa a expressão de ser das árvores. como almas amigas.
Triste e doce mês de novembro, em que tudo morre lenta- Uma tristeza comum nos domina e nos aproxima neste en-
mente por cansaço, dá-me o teu repouso. tardecer.
Caminha, caminha minha alma sem parar. Donde vens, para E como tu, oh! terra, te demoras nesta tepidez outonal, qua-
onde vais na eternidade, oh! Alma filha do mistério? Anda, an- se retrocedendo para recordar o verão, e tão afável e melancóli-
da! Quão longe está a meta no infinito! ca és nesta tua recordação, assim também eu me demoro no
Quanta paz, oh! Bosque, neste teu recolhimento em silên- meu outono e, melancólico e afável, volto-me sem mágoa a re-
cio, nesta tua obediência às leis da vida, nesta tua tranquila ex- cordar a vida.
pectativa da ressurreição da primavera. Dá-me o abraço, oh! terra, que tantas vezes pedi para ter
Como este sentido de morte tranquila se harmoniza suave- repouso.
mente em ti, nas cores esmaecidas, nos mínimos sons, nas cal- E parece que a terra me olhou e me escutou, abrindo-me o
mas profundas! seu seio. Entrego-te o meu corpo. O drama da vida está findo.
Qualquer coisa se apagou no sol, no céu, no ar; o frêmito da O que aconteceu ao convulso turbilhão das paixões, às tormen-
vida acalma-se em vagarosa sonolência. Algo se extingue em tosas tempestades do pensamento? Será tudo disperso como fo-
mim com um longuíssimo lamento, uma dor se desalenta, por- lhas ao vento, o tremendo trabalho de uma vida?
que é a dor do mundo, um pranto que é o pranto da vida. Tudo está acabado. Em lenta paz, o corpo se dissolve.
Observo e relembro. Repousa a sua vida, adormecida em longa sonolência.
110 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
E as estações passarão, e a vida se transformará em corpos, QUARTA PARTE – O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO
docemente golpeada através dos torrões, ora de um calafrio de
gelo, ora de igual umidade de chuva, ora de uma tepidez das O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO (1939)
tardes ensolaradas.
Não morrerá, todavia; sentindo-se mudar, cantará nela as A educação é o ato no qual a geração madura se volta sobre
grandes notas de cada sensação. Apertado no amplexo tenaz a geração jovem, que a sucede, para transmitir-lhe todo o fruto
da terra, nela mergulhará vibrando, fundindo-se na sua alma do seu conhecimento e experiência. É através deste ato que se
potente. forma aquela continuidade de pensamento que se prolonga na
Daquela minha vida, que se dá, os seus braços subterrâ- história, num desenvolvimento cujos termos se unem, suceden-
neos sustentarão as grandes árvores amigas, tateando no escu- do-se por contato e derivação. Esta cessão de experiência da ge-
ro para sorver vida; o seu grande espírito pensativo exigirá ração que vai à geração que vem, esta semeadura de uma se-
sob a terra aquilo que da terra o corpo tomou e deve restituir mente espiritual que, ao lado da semente orgânica, revive e pro-
ao ciclo das coisas. lifera, parece natural na unidade imposta pela lei da vida. Os
E surgirá lenta, pelos braços subterrâneos, a força da minha jovens são de fato um espelho em que tudo reflete, pois são
vida, retomada às árvores amigas, para levá-la ao sol, onde re- construídos para serem, nesse período de vida, acima de tudo,
viva lá em cima. intuitivos e receptivos, como esponjas destinadas a absorver.
A morte ressuscita. Eles absorvem e assimilam tudo, prontos a traduzir em termos
Toma. Os meus despojos dou-te sem mágoa. Retoma, ser de vida aquilo que os maduros dão como produto de sua exis-
irmão, tu que não conheces outra vida a não ser esta, aquilo que tência. A educação é, pois, um fenômeno instintivo, universal e
me deste por um dia, para a minha missão. A minha é outra vi- automático de captação, por parte da psique sempre renascente,
da. A minha alma, renascida na dor, desejosa de fugir da crisá- dos produtos da psique que, cansada, se retira da vida. É um fe-
lida, sonha com os espaços imensos de uma vida mais vasta. nômeno que abrange toda a produção espiritual de um povo,
Distante, em outras plagas que tu não conheces, eu aporto. portanto não pode morrer e transmite-se por lei natural. A edu-
O túmulo é a minha ressurreição. cação desejada, sistemática, digamos também artificial, não é
Soa sempre lá em baixo o sino dos mortos, não mais como senão um momento particular e reflexo deste tão vasto fenôme-
lamento que morre entre as folhas mortas. É o hosana da vida no de educação natural, que está na lei da vida e do qual todos,
que ressurge. quer queiram quer não, consciente ou inconscientemente, do-
Já sorriem no alto, para mim, as estrelas na doce e suave centes ou discípulos, tomam parte.
luz matutina. Vejo outro mundo, não mais de formas que vão Sobre o problema da educação, neste sentido restrito e par-
lançadas no turbilhão. Elas seguem como um canto imenso, ticular, ponho em foco hoje o meu pensamento. Um problema
equilibrando-se em ciclos alternados de vida e morte, avan- imenso. Seria necessário que a geração madura fizesse um se-
çando para o bem e para a felicidade; seguem criando, mesmo vero exame de consciência antes de se decidir a transmitir o seu
na dor, uma alegria maior, contida e construída numa única pensamento, que prestasse conta daquilo que sabe e, sobretudo,
força: amor. daquilo que não sabe, antes de voltar-se para as novas vergôn-
teas da vida para soprar-lhes o hálito da própria alma. A luta
Ressurreição universal, que tudo invade, muitas vezes pode se transformar,
antes do que em ato de amor e de dedicação, num ato de impo-
Ressuscita alma, a tua dor está vencida. sição daqueles já instalados na vida sobre os jovens inexperien-
Sorriem distantes as árvores na doce primavera, sorri na sua tes. Querendo primeiro viver toda a sua vida, os maduros não se
liberdade o meu espírito, que ressurge, como a vida ressuscita decidem facilmente a fazer o seu testamento e, mesmo devendo
dos despojos mortos do inverno. fazê-lo, não veem senão um prolongamento da própria vontade,
Morta entre as coisas mortas está a tua dor, lá embaixo, inú- que continua a agir por si própria. A educação se transforma,
til utensílio atirado ao longe, nas plagas desertas de uma triste desta maneira, numa luta na qual a velha geração tenta impri-
vida. Mas o seu fruto está aqui, e a alma o vê: trabalho, criação mir-se sobre as jovens, mesmo nos seus erros e fraquezas, por
e glória. um instinto de conservação própria, reproduzido e continuado,
No infinito, o universo canta: ressuscita, a tua dor está de quem, no fundo, não ama senão a si mesmo. Na educação,
vencida. pode reaparecer o antagonismo entre os que se vão indo e os
Numa nuvem de espíritos em hosanas, eu vejo resplandecer que vêm vindo na disputa pelo espaço na vida, porquanto os ve-
Cristo. lhos não deixam facilmente a presa aos jovens, ávidos de subs-
A sua cruz é luz, a dor é redenção. Pelo calvário, elevamo- tituí-los, expulsando-os. Estes possuem uma personalidade já
nos ao Céu; pela cruz, a Deus. feita de instintos, vontades e desejos, um tipo preexistente à
Ressuscita. Aquela dor inimiga é agora a tua força e a tua educação, um eu independente, que o educador também possui.
grandeza. O espírito a amava como suave amiga, sentindo a Então o ato da educação não é uma pacífica transmissão de ex-
sua libertação. A mesma lei que te oprimia, agora te salva e te periências, mas, sobretudo, uma contenda pela conquista de um
eleva. A meta está atingida, e o mal cai, instrumento do bem; lugar na vida, que os jovens disputam aos velhos.
a pequena desordem temporária é reabsorvida na imensa or- Esta íntima forma do ato educativo é atingida naturalmente
dem suprema. com uma atitude materialista, isto é, quando o homem se reduz
Triste e longo é o caminho de lágrima e sangue; mas, supe- somente aos seus primordiais elementos biológicos, ao seu puro
rada a prova, o destino atinge a meta. substrato animal. Para que aquele ato se eleve, é necessário in-
A dor que tanto amaste com teu olhar voltado ao Cristo não fundir-lhe um hálito novo, de espiritualidade, o elemento ideal,
é negação e treva, mas criação e luz. A cruz não é uma conde- que desloca o baricentro dos interesses e do egoísmo animal pa-
nação da vida, mas é sua maior força; não é punição ou vingan- ra a superior finalidade coletiva, na qual se esquece a vantagem
ça, mas é uma festa da alma e uma bênção de Deus. imediata do eu e prevalecem o elemento amor supersexual e o
Vejo no alto o resplandecer do CRISTO. elemento consciência, que abraçam mais amplos horizontes no
Um raio me atinge, uma beatitude me domina, e em êxtase tempo. O fenômeno educativo, entendido no sentido restrito de
eu grito: ―Senhor, agradeço-te por isto que é a maior maravilha que temos falado, sofre então uma transformação evolutiva, na
da vida; que a minha dor seja a tua bênção‖. qual se espiritualiza e se aprofunda, gradativamente perdendo
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 111
em coação, em imposição egoísta, em antagonismo de rivalida- tram, em termos instintivos da subconsciência, já saber muito.
de aquilo que conquista em altruísmo, em consciência, em pe- Se neles a palavra é difícil, o olhar é, ao contrário, rico, o gesto
netração psicológica. O ato educativo se transforma assim, e é fervoroso, o eu salta a todo o momento de dentro para absor-
sempre mais, em amplexo da alma, em função coletiva de con- ver tudo pelas vias rápidas e vastas da intuição. Noto a eferves-
servação e construção, em ato de solidariedade entre aqueles cência interior destes espíritos vivacíssimos, ainda presos à cu-
que nascem e aqueles que morrem. O grau de evolução de um riosidade pela vida, para eles nova, e às maravilhas de suas sen-
povo pode, deste modo, revelar-se neste índice educativo, que é sações. Que sínteses imediatas, que rapidez de conclusões,
a forma pela qual se exprime o contato entre varias gerações. A mesmo sendo muito pouco além do curto campo de suas cons-
educação, assim, vai continuamente perdendo em crueldade, ciências, mesmo sendo provisórias, para serem logo depois
em imposição, em rivalidade e contraste, para conquistar com- completadas e corrigidas. Que peso para eles a lenta psicologia
preensão, comunicação, colaboração e unificação. Chegamos analítica adulta, que nada resolve!
assim ao extremo oposto, ou seja, à forma suprema do ato edu- Observo aquele pequeno mar de cabeças e pergunto-me:
cativo, que é a mais completa e espontânea comunhão de espíri- quem são eles? Todos iguais e, no entanto, tão diferentes! Exis-
tos numa unidade de sentimento e de pensamento. tirá, no meio de tão monótono grupo de indivíduos insignifican-
Percorrendo assim a estrada da evolução, o procedimento tes, algum valor de exceção destinado a revelar-se? Muitos não
do educador se espiritualiza, depositando as suas escórias ao se revelam imediatamente, pois algumas sementes desenvol-
longo do caminho do seu progresso. Desse modo, ele conquista vem-se tarde e são, algumas vezes, as mais complexas e as mais
sempre mais amplo direito de educar, o qual lhes está verdadei- repletas de frutos. Frequentemente, os mais brilhantes são su-
ramente reservado somente nas últimas fases. perficiais, os precoces se esgotam. Quais são as leis que presi-
Depois de haver, desta forma, orientado biologicamente o dem ao desenvolvimento da inteligência? Ou nos encontramos
problema dentro da fenomenologia universal, e tê-lo bem ama- diante de um fenômeno tão específico, que cada caso se realiza
durecido na minha mente, quis aplicá-lo, neste sentido, na minha como tipo próprio, com lei particular? É preciso saber penetrar
experiência cotidiana de educador, que, pondo-me em contato também na exceção, intuí-la, farejá-la e achá-la, favorecendo o
com extenso número de jovens, me permite controlar experi- desenvolvimento com todos os meios. Os educadores precisam
mentalmente as teorias e aprofundar este importante lado do saber fazer exceção às regras tradicionais em relação à incom-
problema psicológico que é o ato educativo. O meu precedente preensão da sagacidade do menino.
comportamento sintético se desloca aqui ao extremo oposto, que Observo o problema pedagógico, tão rico de aspectos, colo-
é essencialmente analítico. A visão restringe-se, mas, em com- cando-o diante de mim. Estamos imersos no imenso fenômeno,
pensação, aproxima-se de uma realidade sempre mais concreta. em tal grau, que, mesmo para a ciência, apresenta-se denso de
Na minha atividade pedagógica cotidiana, quis realizar esta mistérios, ou seja, como fenômeno da vida e da vida do espíri-
transformação evolutiva do ato educativo, para conquistar ple- to, que é o lado mais complexo. É aqui que se pode fazer o
namente e substancialmente, na minha consciência, o direito de mais profundo e mais novo, o mais inexplorado e original estu-
educar, elevando o ensino ao nível de missão. Desejei sempre do da personalidade humana. De preciso sabemos muito pouco
esquecer o meu eu, para observar melhor o eu dos jovens, que neste campo. Somente um senso místico individual do espírito,
devemos desenvolver. O meu trabalho, com esta atitude, perdeu digamos assim, pode nos guiar na profundidade misteriosa da
progressivamente qualidades coativas e disciplinares, para con- personalidade. Todavia a unicidade do fenômeno vida e a cen-
quistar qualidade de penetração psicológica. Lutei extenuante- tralidade do seu princípio nos une numa solidariedade de traba-
mente para ser sempre mais o professor e menos o domador. lho que é também a manifestação da compreensão, quer seja-
Posição difícil, trabalho árduo, transformação complexa que, mos dirigentes ou dirigidos.
para mim, não é senão um momento da minha evolução indivi- Observo aquele pequeno mar de cabeças e sinto as vibra-
dual, que é o significado da minha vida. ções íntimas daquelas personalidades, que apenas transparecem
Não importa o que um homem ensina. O professor, entre os da construção física. Viver, viver! Os jovens ainda possuem em
jovens, é sempre um centro de irradiação espiritual. Qualquer si o dinamismo concentrado do germe, do explosivo que deverá
coisa que ele diga é sempre um discurso íntimo e substancial se descarregar lentamente para alimentar todos os esforços da
entre docente e discípulos e atinge a profundeza do eu, que é vida, a fim de transformar a energia em experiência, a força em
um fato anterior à educação, a qual surge como um ato poste- conceito, a quantidade em qualidade. O dinamismo inicial da
rior, que se sobrepõe, quando não se contrapõe, à sua persona- nebulosa cósmica é neles muito mais rico do que em nós adul-
lidade. Esta protege instintivamente a própria integridade, re- tos, mas deverão transformá-lo lentamente em consciência, co-
belando-se a toda imposição. A força e a disciplina não são se- mo nós o fazemos. Este é o significado da trajetória evolutiva
não atos de superfície, de valor prático, um meio de relativo da vida. Vive-se para experimentar em todos os campos. No
valor pedagógico, mas nunca a substância de um ato educati- fim, nada se perde, porque o resultado do nosso trabalho estará
vo. Este é dado pela profundidade de penetração psicológica, o em nós mesmos, porque a essência destilada dos valores, ex-
que é uma coisa difícil. É necessário ter uma grande alma, pos- pressa em nosso modo de ser, não morre.
suir a coragem e a força de abri-la de par a par, ser dotado de O educador deve conhecer estes sutis fenômenos psicológi-
uma potência de irradiação que penetre e, ao mesmo tempo, de cos, deve tê-los já enquadrados numa síntese universal, deve
uma fineza psicológica que saiba guiar aquela potência. Co- ter resolvido os grandes problemas, porque compreendeu o
nheço bem esta dificuldade. O nível evolutivo da personalida- problema da alma, deve perceber toda a teleologia da vida, ca-
de da maioria dos jovens, que não são senão homens em for- so contrário, não saberá o que fazer. Deve saber distinguir na
mação, em geral não é muito alto. O professor deve possuir a massa o timbre de cada personalidade e adaptar-se a ela, por-
força de saber exigir tudo de si mesmo. que, se não souber modular a própria onda psíquica em sinto-
Eis uma classe. São quarenta meninos e meninas dos 13 aos nia com os diversos tipos, não encontrará jamais o meio de pe-
16 anos. Um pequeno mar de cabeças, um pequeno mundo de netração. Trabalho de artista, pois representa uma grande arte
instintos, cargas nervosas, rivalidades, pensamentos e sentimen- esta de modelador de almas. Ele lança a semente. O jovem não
tos. Eles representam a vida. Em suas fisionomias estão impres- dá demonstração, parece não se aperceber, mas guarda em si
sos o cansaço, a fadiga, a força, a fraqueza, a grandeza da estir- todas as impressões, que se desenvolvem depois e são o impul-
pe e tudo que foi anteriormente gravado naquelas almas, que, se so das suas ações. Gravar no espírito é colaborar com a obra
pouco sabem falar em termos reflexos da consciência, demons- divina da criação. O homem não se convence pelo raciocínio.
112 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
A lógica, justamente porque é ato reflexo, pode bem pouco di- perior. Educador e classe, como chefe e povo, representam os
ante das profundas vozes da vida, hereditárias e instintivas, dois extremos dos valores sociais, o máximo e o mínimo. O
que reagem contra os contágios psíquicos bons ou maus. ato educativo consiste em aproximar e fundir estes dois ex-
São forças flexíveis, ávidas por receber e assimilar novos tremos, estes dois polos da vida moral, que são complementa-
impulsos por sugestão, preferindo primeiramente as vozes afins. res, feitos para se unirem.
É esta a íntima técnica psicológica daquele ato que se sinteti- Cada aglomeração de seres humanos se comporta, por fe-
za na frase: ―ir ao encontro do povo‖. Isto significa: ―exemplo‖. nômeno de psicologia coletiva, como um ser único, possuindo
Onde existir uma classe dirigente, superior por qualidades uma personalidade diferente daquela dos seres componentes,
intrínsecas, e não só por atributos exteriores, mesmo sendo uma personalidade própria, com muitos olhos observadores,
formada por homens obscuros, que trabalham substancialmen- que sente as consequências daquilo que acontece em cada pon-
te, sem rumores de formas, aquela classe tem o dever heroico to seu. Ela tende a nivelar-se no plano dos menos evoluídos,
de caminhar em direção ao povo. Digo heroico porque é ár- que, mais prepotentes, tentam tomar as diretrizes, porque exis-
duo, principalmente se apenas acabaram de emergir da lama, te na coletividade como que uma tendência ao relaxamento de
pois nos obriga a colocar as mãos naquilo que mais nos enoja, controle e um abandono de responsabilidade. Contudo aquela
e isto para elevar também os outros. Estes são geralmente psicologia coletiva tende também a se fazer arrastar pelo edu-
desprovidos de qualquer senso de compreensão e de gratidão, cador ou pelo chefe, se ele é o mais forte, o melhor e sabe se
acreditando somente no seu arrivismo pessoal. Não é lícito fazer sentir substancialmente como tal. A verdadeira luta ini-
que se faça disso um pretexto de demolição do melhor. Cabe o cia-se então entre ele e os piores. A maioria flutua incerta para
cargo de direção, baseado em normas rígidas de disciplina, a aderir ao vencedor. Estamos ainda numa fase biológica tão
quem sabe mais. A vida é trabalhosa para quem verdadeira- atrasada, que a justiça não se pode fazer valer senão pela força.
mente se dirige ao povo; quem possui o comando tem o dever Culpa dos homens, e não dos chefes. Uma classe, como um
bastante árduo de manter a ordem. Não basta então dizer que povo, compreende primeiramente a força e, somente depois,
a vida é missão. Não basta. É preciso possuir uma fé evidente, em segunda plano, a justiça. O progresso da civilização é dado
lógica, vivida na luz da mente e na paixão do coração, que nos pela mudança das relações entre força e justiça, isto é, por uma
faça lembrar a todo instante que a vida é missão. Somente en- progressiva extinção do primeiro valor e por um proporcional
tão, o trabalho será estável, pois estará equilibrado, o que sig- fortalecimento do segundo.
nifica que a nossa dedicação aqui na Terra será compensada Aquelas unidades psicológicas são sensíveis e podem ser
pelo céu, que sempre irradiará bênçãos, se estivermos aptos a educadas. Se o seu instinto é este, assim é porque foi construído
pedir e formos dignos de receber. desta maneira na longa experiência do passado. Compete ao
Desta maneira, a obra de educação é verdadeiramente um educador enxertar novos estímulos naqueles instintos, para
ato de fraternidade. O educador representa a força do bem, fa- transformá-los em qualidades superiores, que serão os instintos
zendo-se canal para a sua descida desde o divino, mesmo quan- do futuro. É maravilhoso observar com quanta rapidez se
do a involução humana o constringe a adotar formas de coação. transmite a todo o organismo a sensação de um golpe produzi-
A educação é bondade, mas não deve jamais permitir que a ig- do em qualquer ponto. É desta forma que um exemplo dado por
norância dos involutos satisfaça o seu mais forte instinto, que é um único indivíduo atinge os demais.
transformar bondade em fraqueza, a fim de poder subjugar. Cada indivíduo encontra a si mesmo em cada membro da
Nestas condições, a bondade tem o dever de armar-se com as coletividade, sentindo imediatamente, como própria, a sensação
garras afiadas à mostra para a sagrada proteção do bem. A cul- do prêmio ou da punição direta em qualquer dos seus compo-
pa é somente da involução humana, que impõe à educação, para nentes. No entanto, com a transferência da evolução humana de
que esta afirme, os métodos fortes da disciplina, desenvolven- sua fase orgânica para a fase psíquica, chega-se, enfim, a um
do-se, desta maneira, a imensa luta do bem contra o mal. Esta é primeiro grau de aperfeiçoamento nervoso coletivo, que, no
a áspera e dura realidade do esforço pedagógico. Existe para campo pedagógico, indica adoçamento de métodos e aprofun-
cada alma um peso específico inviolável, sempre pronto a ma- damento de penetração psicológica. Então, o ato educativo se
nifestar-se, que escava abismos inacessíveis e distâncias terrí- aperfeiçoa no cuidado dispensado ao indivíduo, a cuja natureza
veis. Quem está por baixo agarra-se desesperadamente, como específica encontra maneira de adaptar-se. Nestas condições,
quem se está afogando, àquilo que está no alto, para arrastá-lo à quando a penetração psicológica se faz mais aguda, a separação
própria baixeza e fazê-lo afogar-se consigo. entre o lastro social e os melhores se torna mais rápida, e a es-
Naquele pequeno mar de cabeças que é uma classe, sinto o tes, então, podemos dedicar um cuidado mais especial, porque a
problema da educação do povo e encontro o mundo nas suas missão do ato educativo não é obstaculizar, favorecendo as zo-
notas fundamentais. Aqueles jovens estão todos ali a pedir for- nas parasitárias, mas secundar os estímulos naturais da seleção,
ça e bondade, sabedoria e paciência e, a todo instante, valor e que agora é, sobretudo, psíquica. O significado e o objetivo da
exemplo. Estão todos curvos, trabalhando como homens, para educação não é nivelar, mas selecionar. É descobrir o melhor e
fazerem-se ao largo na vida. encorajá-lo para utilizá-lo, e não mutilá-lo, reduzindo-o às pro-
Domina uma espécie de instinto para marchar contra a cá- porções do medíocre. O materialismo do último século criou e
tedra, num ímpeto de atingi-la, pisá-la e destruí-la, a fim de elevou como modelo o tipo do homem normal, adaptado a uma
permitir ao eu maior gritar lá de cima. É a eterna história do pequena vida burguesa, calculada, utilitária, sem fé e sem aspi-
homem. Sobre aquele pequeno mar de almas se destacam es- rações. As resistências são grandes, porque este tipo tende a es-
tas notas dominantes da psicologia coletiva como ―leitmo- tabilizar-se pela lei do menor esforço. É biologicamente conve-
tiv‖, que emergem da confusão dos menores motivos indivi- niente. Entretanto, outras leis biológicas estão de atalaia e pron-
duais. Naquela idade, o instinto de subir é dominante, como é tas para varrer estes acomodamentos parasitários que desejam
também o crescimento físico. A natureza estabelece logo uma parar no caminho da vida, paralisando a seleção. Elas arremes-
graduação de valores entre os jovens, mesmo utilizando crité- sam a força da evolução contra a indolência dos estacionários.
rios elementares, que, segundo as leis primordiais da seleção, Estas forças evolutivas abalam tais equilíbrios cômodos, utilitá-
dão a supremacia ao mais forte por qualquer meio. Se os es- rios, de conveniência, sem amanhã; resolve-os porque objetiva
colares, como um povo, podem representar a explosão das criações sempre mais altas. Devemos voltar-nos ao povo para
forças elementares da natureza, compete ao educador, como elevá-lo em massa, procurando, sobretudo, desentranhar os me-
ao chefe, enxertar naquele campo os estímulos de ordem su- lhores, somente aos quais pode ser confiado o futuro.
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 113
A PSICOLOGIA DA ESCOLA – IMPRESSÕES (1933) turma dos escolares é toda concorde e sempre unida. Mostra-
nos que, olhando do outro lado, o nosso conceito pode parecer
Um artigo de Camilo Viglino na ―Revista Rosminiana‖ es- uma utopia. O ponto de partida do rapaz, como toda a sua psi-
timulou-me a expor estas minhas impressões. Elas poderão in- cologia, é completamente diverso. Todos os alunos estão ali
teressar, talvez, porque partem de um homem que ingressou no com um único instinto, o instinto de suas idades: brincar, diver-
magistério no período de sua vida madura e julga com a experi- tir-se sem preocupações, alcançar com o menor esforço possí-
ência das coisas humanas; vê e sente o problema da escola atra- vel os resultados e as notas necessárias às promoções, para dar
vés da psicologia com que está habituado a enfrentar e resolver o assalto à vida. É a lei do menor esforço. Não tendo sofrido,
os mais diversos problemas do pensamento e da vida. ainda não compreenderam, pois só a dor gera a reflexão. A vi-
Por escola entendo aqui a escola média, compreendida não da, como ingenuamente pensam, está no seu irrefreável impulso
como um problema teórico e orgânico, mas como um problema para a alegria. Que lhes importa Cícero ou Shakespeare, gramá-
prático. Trata-se da luta do mestre no diuturno contato com a tica ou álgebra? Abstrações difíceis, belezas e conceitos para os
crua matéria cerebral dos jovens. Ele, fatigosamente, ara os quais as suas almas ainda não estão e talvez nunca estejam
campos virgens da inteligência obstinada para atirar no sulco amadurecidas. Que tristeza, que aborrecimento, que coisas indi-
traçado a semente do saber. gestas e fastidiosas para serem engolidas forçosamente! Enquan-
Os dois termos da equação pedagógica são: professores e to o professor se arrebata por Goethe ou por Ésquilo, o rapaz se
estudantes. Distintos e opostos, com o desígnio de ensino mú- entusiasma pela sua gaiatice, procurando avidamente um mo-
tuo, porque também os jovens podem ensinar muito ao profes- mento de refrigério, no que é tão compreendido pelos colegas de
sor que souber observar, a fim de acumular depois uma preci- sua intimidade! E que peso para o professor dever impor a aten-
osa experiência psicológica e conduzir o resultado na prática ção, falar a quem não o acompanha e que sabe e faz aparentar,
do seu apostolado. por instinto, todos os mais inverossímeis cansaços, a fim de fu-
Entre os dois extremos deveria, sem dúvida, estabelecer-se gir à aula. Que sentimento de rebelião, que energia os jovens
uma reaproximação psicológica, para que vibre a centelha da apresentam para afirmar e impor o seu próprio eu, belo ou bruto,
comunhão espiritual, sem a qual a transferência do saber não é nobre ou baixo, qualquer que o seja! Para nos tornarmos interes-
possível. Eis, porém, como cada um me surgiu na sua diferente santes, necessitamos descer continuamente aos seus níveis, re-
psicologia. duzir o estudo a um jogo, agitado e rumoroso como uma partida
De um lado, o professor. A classe é a sua orquestra, que de futebol, com explosões de sentimentos muitas vezes não ele-
ele dirige e à qual não só transmite o impulso cultural que a vados, suprimindo toda a ideia abstrata. Desta forma, a nobre
faz avançar intelectualmente, mas também infunde, com o curiosidade do saber é uma exceção, a ponto de vir a ser consi-
contato contínuo, com exemplo, com método, a própria per- derada quase patológica naquela idade.
sonalidade, aquela personalidade humana que transparece de Para a compreensão perfeita, seria necessário abaixar to-
tudo e proporciona o seu cunho no ambiente. Na irradiação de das as pontes, encher definitivamente o valado. Deste lado,
sua personalidade às personalidades menores dos alunos, me- porém, não existe apenas a irreflexão juvenil, mas toda uma
nores porque ainda não estão desenvolvidas, porém prontas psicologia diferente da vida, imposta pelo instinto; existe a lu-
para receber, está o mais alto sentido da escola, está de contí- ta pelos pontos, para a promoção, há todo um esgrimir ―ad
nuo, com o exemplo, com método, a própria alma, acima de hoc‖, toda uma realidade diversa, tão férrea, que submerge
todas as necessidades formais, como esplendem todas as altas todas as outras. O escolar ali se encontra a nos lembrar a cada
coisas que estão acima das aparências do tempo e da vida. momento a sua maneira de agir. É um implacável ―do ut
Aquela irradiação tende a qualquer coisa de maior, além da des‖18, e este é o melhor caso do jovem dito inteligente. Ele
elevação das inteligências a um mais alto grau de erudição. está ali a nos ensinar que tempo é dinheiro, que a energia psí-
Tende a dar aos espíritos o sentido de uma vida mais completa quica é preciosa, que o melhor é quem chega, de qualquer
e mais profunda, na qual lampeja um ideal, mesmo que seja maneira, primeiro. São as leis da vida, que todo o mundo res-
expresso na sua mais simples forma de exata observância de pira, às quais ninguém sabe se esquivar, nem mesmo, de todo,
dever. Aos olhos do professor, o problema do ensino não pode o idealista. Tudo é luta na vida. Com tal psicologia, o jovem
ser tão-somente a mecânica transmissão do saber, como o de- afronta a escola com os critérios da vida, mostrando-nos elo-
seja nosso século de eruditos e de especialistas, ainda à procu- quentemente que não se trata, na verdade, de uma conversa.
ra da última síntese, mas deve dilatar-se naquele problema Através de quão angustiosas dificuldades devemos exausti-
muito mais vasto da compreensão da vida, compreensão que a vamente preparar a estrada para a luz do pensamento!
síntese cultural não pode dar, que nenhum curso ensina e ne- Concluindo, a minha impressão é que, posto o problema
nhum concurso controla, que não é tanto uma ideia abstrata, nestes termos, conforme se me apresenta, a habilidade do pro-
uma concepção, quanto um sentido de vida vivida, uma ema- fessor – uma verdadeira arte – consiste em saber abaixar sobre
nação que somente um espírito maduro e profundo pode irra- o fosso o maior número possível de pontes, todas em definitivo,
diar, entregando-se totalmente. Abre-se, então, aos olhos do abolindo-o, se possível. Não é, porém, uma arte fácil. Certos es-
professor, a visão de uma tarefa superescolástica: a construção tados de calma e de ordem nas salas de aulas são produtos do
de intelectos e, na transformação da pedra rude em escultura temor, não da compreensão, mantendo as pontes levantadas. O
conceptual e bela, quase a infusão de um hálito da própria al- certo é que, no encontro entre duas tendências opostas, o cho-
ma; a construção de homens, plasmando a personalidade, cri- que é inevitável e a solução é imposta pela disciplina. É a reali-
ando no espírito, com ato superior ao do artista que se expri- dade da vida, que não se pode e não se consegue deixar total-
me na matéria e nela imprime o seu alento humano. mente fora do limiar sagrado do templo das formações espiritu-
Desçamos agora da cátedra e atravessemos o fosso profundo ais, e que nos acompanha e entra conosco mesmo onde não de-
que a separa dos escolares. Fosso profundo sobre o qual se pro- sejamos. Está ali, entretanto, a nossa arte. Saber circunscrever a
jetam pontes, como nas antigas fortalezas. Transponhamo-las e coação, para afastá-la gradativamente, tendendo para a sua eli-
observemos o outro extremo da realidade escolástica: os estu- minação, de modo a não restar senão a ideia, a imagem do
dantes na sua psicologia oposta. constrangimento ao estudo e ao dever. Tornada habitual, depois
Enquanto nós, idealistas do ensino, vagamos no céu da reli- coisa natural e subentendida, que esvoace, todavia, no ar, inva-
gião do espírito, que faz da vida um ato de fé, no campo das be-
18
las construções, filhas da nossa maturidade, a maior ou menor Do ut des – expressão latina: ―dou, para que dês‖. (N. do T.)
114 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
da a atmosfera local, como um pressuposto que não possui mais mático preposto a uma atividade, às vezes, quase mecânica. En-
a necessidade de concretizar-se em fatos. Então, se não a con- tretanto são os grandes e tremendos problemas da vida e da per-
vicção, ao menos a sugestão de ordem e dever descerá ao espí- sonalidade, imensos na sua substância, exorbitantes do saber
rito do jovem; um novo hálito lhe será fixado para formar o humano, insolúveis pela ciência moderna. Naquelas pequenas
germe de um mais nobre instinto no adulto. E a nossa arte resi- cabeças travessas pulsam as milenárias leis biológicas, exatas,
de em habituar os jovens, simultaneamente, à compreensão e à fatais, absolutas na sua tão vasta elasticidade, entrelaçando-se
comunicação; está em abrir as suas almas à confiança, desper- aos mais árduos problemas de psicologia. A alma das crianças,
tando-lhes o interesse pelo estudo. Nesta arte está a evolução da livre ainda, pela graça de Deus, da consciência reflexa que a
educação, que tende das formas antigas de punições materiais educação proporciona, esconde sob o belo manto da mentira, a
às formas de orientação baseadas na comunhão espiritual. À sua inocência, os seus movimentos e ímpetos; todas as flexões
medida que a sensibilidade se aperfeiçoa, o constrangimento se de seus raros repousos ocultam a efervescência de sua primeira
sutiliza e desaparece, transformando-se no elemento convicção, explosão. Revelam-se-nos, com a rapidez da intuição, todos
que suprime o desperdício de energia. É menos oprimente para aqueles problemas psicológicos, tão evidentes e tangíveis para
o aluno, é mais lucrativo para o ensino. O constrangimento não os olhos que sabem ver profundamente para alcançá-los!
se compatibiliza com o uso do pensamento, que, com sua natu- Como é feita, então, esta alma humana a ser educada? Por
reza livre e espontânea, somente se nutre do contato com outro qual caminho o pensamento a penetra? Quais as reações que a
pensamento livre e espontâneo. despertam, como funciona aquele complexo organismo psíqui-
A revolução no mundo é hoje revolução moral. O conceito co? Surge diante de mim, mesmo nas simples e pequenas coi-
biológico de vida-luta será substituído por este imensamente sas da escola, além de todas as tarefas e dos trabalhos pedagó-
mais alto e potente de vida-missão; o conceito de trabalho- gicos, este formidável problema da personalidade humana, o
vantagem individual será substituído pelo trabalho-função co- problema da sociedade porvindoura, na nova e mais elevada
letiva. O ideal não será mais a palavra abusiva e vazia de ou- ciência do futuro.
trora, mas a suprema verdade e centelha de ação. Será a potên- Psicologia individual e psicologia coletiva, afeto e discipli-
cia que fará do mundo vacilante uma nova civilização. Esta na, diferenças de temperamento e de adaptação, ensino em
ideia introduz na vida dos povos elementos novos e pode ser massa e contato individual, misoneísmo escolástico, sobrevi-
considerada a base de uma nova fase de evolução biológica. vência de critérios superados que, todavia, não podem morrer
Para quem vê com a grandeza da alma as grandes coisas, as no meio de tantos duelos e tantas formas! Tudo se agita neste
coisas imensas do destino e da eternidade, não é exagero ob- conjunto de forças e de correntes, que parecem quase irreais,
servar nisto a explosão de uma força moral de ordem cósmica. porque não são perceptíveis, mas regem tudo e ressurgem em
E, se o ideal deverá entrar na vida, com o ímpeto de uma ava- toda parte, em cada momento, com a potência animadora que
lanche, isto se realizará primeiramente na escola, porque ela é, somente as causas invisíveis parecem poder ter.
por sua natureza e tradição, o núcleo e o canal de irrigação, o Não desejo dizer nada de preciso, não quero conclusões.
templo das mais altas missões espirituais. Desejo nesta conversa agitar somente um pouco estes concei-
tos, na expectativa de que do seu movimento nasça um choque,
A ARTE DE ENSINAR E DE APRENDER (1934) uma reação, qualquer ideia, talvez útil e nova, que conduza a
outras ideias.
Uma boa e despretensiosa conversa. Um retrospecto repou- A psicologia coletiva da classe é sempre muito inferior, co-
sante, numa rara tarde tranquila, sobre coisas observadas por mo acontece em todos os fenômenos dessa espécie, à psicologia
experiência direta, sobre conceitos emanantes desta nossa vida individual. Cai nela, de súbito, o nível de educação de cada um:
de missionários do ensino, conceitos que ressurgem aqui, por um jovem na massa ousa aquilo que jamais faria sozinho, isola-
um momento, naquele aspecto particular em que se apresentam do diante de sua consciência. Esta se abandona na coletividade a
e como eu os sinto. Conversa rápida, feita laconicamente e uma inconsciência ou consciência mais elementar e mais baixa.
com franqueza, toda pessoal, como é do meu feitio, em todas É isto o que o professor tem diante de si na sua cátedra, impon-
as sensações e interpretações da vida. Isto é devido ao meu ins- do-se-lhe sistemas de domador. Vencida e domada, porém, esta
tinto irrequieto, que deseja caminhar a todo custo fora dos ca- menos evoluída alma coletiva, com os meios menos refinados
minhos batidos, numa procura anelante de uma realidade mais que ela exige, o professor poderá, depois, fazer ressaltar, pouco
profunda do que a aparente e, todavia, sempre concreta e ima- a pouco, as superiores personalidades individuais. Aqui se inicia
nente dos fatos vividos. o trabalho de distinção, e sobressaem de súbito os diferentes ti-
Não é verdade que não é tanto em si mesmas que as coisas pos, antes confundidos no conjunto: o tímido, o sensível, o fran-
interessam, mas sim pelas vibrações que despertam em nós? co, o inteligente, o obtuso, o improvisador, o mentiroso. Quan-
Não tanto pelas suas pulsações intrínsecas, mas sim pelas sensa- tos matizes! Encontramos aí a sociedade inteira, porque nestes
ções que fazem brotar em nossas almas? As coisas do mundo, pequenos existe a alma humana, que se arroja na vida com todas
inertes e iguais para todos, estão em seu lugar. Parece que so- as suas ilusões, fraquezas e belezas. O espetáculo merece ser
mente o nosso olhar as anima e que belo seja apenas vê-las, não visto. Quantas diferenças de estilo e de atitudes apresentam os
na sua nua realidade objetiva, mas refletidas no tormento de jovens quando interrogados um a um! Começa, então, nesta se-
nossa alma viva. Neste espelho, parece que se revestem de uma gunda e mais íntima fase do contato psíquico, um trabalho de
beleza nova. A interpretação de quem as sentiu profundamente penetração mais profundo, que conduz o olhar do professor à
nos guia, em face das coisas mais simples e comuns, a uma nova alma de cada jovem. Da soma e fusão destes olhares individuais
interpretação, inesperada, que possui a magia de dar de si uma surgirá depois um olhar mais profundo de conjunto, que abran-
nota que reconhecemos, mas que, todavia, não sabíamos achar. gerá toda a classe. Então, e somente então, o professor conhece
Quantas vezes nas breves pausas – e quem ensina sabe muito e possui de fato, em suas mãos, toda a classe. Somente agora
bem como são breves – transigindo com a áspera tensão nervosa nasce aquela comunhão de espírito a que se pode verdadeira-
de quem se senta à cátedra, ao perpassar os olhos na pequena mente chamar de obra educativa. Esta posse da alma individual
multidão de cabeças irrequietas, parei para pensar, o olhar perdi- do aluno pode ter uma influência sobre a sua vida, iniciando
do ao longe, em tantos problemas com que nos defrontamos e aquele trabalho de compreensão, aquela obra de ascensão, que
agitamos na escola! Eles parecem pequenos, reduzidos como es- deixa vestígios mais profundos do que a pura erudição. Então, à
tão nas fórmulas de um regulamento ou de um conceito esque- fase da luta, que implica no duelo pelo ponto, fazendo o jovem
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 115
mentir e afastar-se do professor, que lhe parece um inimigo, se- complexo entrelaçamento de vibrações são eles a síntese? Seja
gue-se a fase mais alta, na qual a fadiga inútil e o atrito do cho- no colóquio ou na conferência, nos quais a ideia sobe da pala-
que recíproco e contínuo desaparecem, e o aluno se torna um fi- vra à psique, seja no estudo silencioso e solitário, no qual a
lho que trabalha de acordo e com a mesma fé do pai. ideia emerge da leitura, capacitamo-nos, de quais interferências
Agora, o nosso olhar se desvia dos escolares para aquela fi- de onda, de quais captações subconscientes e, em alguns casos,
gura que se move na cátedra, sobre a qual vemos as grandes de quais imersões em correntes psíquicas a nossa mente é sus-
imagens e os símbolos mais venerandos. O que se move naque- ceptível? Será que, seja ensinando ou estudando, atiramos à
la figura: alma, corpo, paixão? Se todos os trabalhos humanos mente um alimento que ela assimila por si, quem o sabe como?
pudessem ser reduzidos ao conceito de puro utilitarismo, é cer- E se o pensamento não é como se suspeita e for, como tenho
to que o trabalho de ensinar e de educar é o mais inadaptado a razões paro crer, uma vibração elétrica em ondas ultracurtas, de
esta redução. Se esta redução, qualquer que seja, puder ser comprimento da ordem de um mícron? A que revoluções, apli-
transformada, por um espírito nobre, em missão, sabendo ver e cações, métodos psíquicos, didáticos e escolásticos, poderia tu-
exaltar o lado moral, nenhuma obra excede em grandeza a esta do isto nos levar! E, se a ciência abrir as portas deste mistério
do educador. Obra superior a toda classificação humana e reco- que é a psique humana, que coisa será o estudo e a escola no
nhecimento exterior. Fixa o peso específico da pessoa moral e ano 2.000 ou 3.000? Fantasias pueris e distantes? Não creio.
coloca-a no seu plano, em sua altura, na qual se equilibra, per- É um fato verificado, para quem possua o hábito da criação
manece, vive e vence espontaneamente. intelectual, que esta não resulta absolutamente das vias da cons-
Eis o verdadeiro espírito da escola, o conceito vivificador ciência normal cotidiana, que nos é tão útil nas necessidades e
que, no meio das áridas noções, faz nascer um ímpeto de co- correlações da vida. Parece que o progresso da racionalidade
nhecimento e de superamento. Eis a vibração profunda que tu- consciente e reflexa esteja como que suspenso, porque, para as
do mantém e vitaliza, sem a qual tudo se torna morto, árido, construções superiores, um mecanismo mais íntimo e complexo
frio, mecânico, insuportável e inútil. Então, a aula, antes fria, se deve ser posto em movimento, confiado a uma parte mais pro-
aquece. Daquela atmosfera feita de muralhas, de cátedra, de funda do nosso eu, onde a consciência e a vontade chegam com
bancos, tão árida e pesada para os jovens, floresce uma espécie luta, ou absolutamente não chegam. Estas coisas não são novís-
de milagre de emoções, que são talvez as únicas de todo o tra- simas e estranhas, mas velhas como o homem. Somente ainda
balho de escola que recordamos com alegria e que restam. Infe- não foram analisadas cientificamente. Há muito que os poetas
liz de quem fizer da cátedra um instrumento mecânico sem al- possuem as suas musas, e os músicos a inspiração. Wagner, no
ma, mesmo sendo perfeita a execução dos regulamentos e das seu diário de vida veneziana, falava de um louco – o seu Tristão:
formas burocráticas. Máquina que funciona somente objetivan- ―Aquele louco me surgiu claramente; eu o transcrevi rapidamen-
do manter em pé uma posição e um estipêndio! O ideal, se bem te, como se o conhecesse há muito, de memória‖. Perosi diz que
que invisível, imponderável, é uma força tão substancial na vi- o compor é para ele uma necessidade impulsiva de temperamen-
da, que, sem ele, como acontece a todo corpo sem alma, tudo se to. Chopin compunha numa espécie de êxtase. Não são, talvez,
acabrunha e morre. O princípio hedonista do ―do ut des‖, base os artistas antenas sensibilíssimas, estendidas no infinito, aptas a
do mundo econômico, não pode, em alguns casos, sobretudo registrar vibrações misteriosas? E não são todos assim? Penso
neste, bastar. Em torno desta base da vida social que é a escola, em Mussorgsky, em Rimski-Korsakov, Stravinsky, Ibsen, Dos-
não é suficiente mover-se com a psicologia, ainda que honesta, toievski etc., e não sei por que me vêm à mente justamente nesta
de trabalho, é necessário também uma paixão pelo bem. De ou- hora. É um fato que todas as mentes, sejam de artistas, cientistas
tra maneira, traímos e matamos a alma humana. ou mesmo santos, cada uma em seu campo, todas as vezes que
Esta paixão de superamentos espirituais pode ter outra mani- se projetaram ao alto para arrebatar uma nesga do grande misté-
festação irradiante, além do âmbito educativo da escola, num rio das coisas, verdadeiros tentáculos que a evolução, em anteci-
campo ainda mais vasto, aquele no qual o professor se julgue pação, atira de encontro ao desconhecido, adotaram um meio
parte integrante e construtiva das forças culturais e espirituais da que foge à racionalidade comum, racionalidade que parece coisa
nação. Não é esta missão ainda mais alta? A quem será, portan- pedestre, de uma dimensão inferior, condenada por sua natureza
to, confiado o trabalho das criações do pensamento e das fun- a nunca se elevar acima do plano em que se move, de infinito
ções intelectuais de um povo, senão a esta elite que justamente trabalho de análise, sem esperança de síntese.
se aparta do furor da luta econômica, do comercio e dos negó- A minha audácia reside em considerar que este método, até
cios? Que coisa mais bela do que a figura de um professor mo- agora de exceção, deverá se tornar ―normal‖ por evolução. Não
desto que, terminado o trabalho de educador de jovens, retempe- nos provaram e ensinaram cinquenta anos de materialismo a
ra o seu espírito em missão mais grave de educador de homens? evolução orgânica darwiniana, e milênios de vida das religiões
Repousa nesta atmosfera de conceitos e passa as noites insones, não nos ensinaram a ascensão espiritual? Unamos estes dois
pela alegria de se sentir vivendo, ainda que seja como uma gota, conceitos e teremos uma evolução única, psíquica, como criação
no oceano vivo e construtivo do pensamento da nação em mar- biológica. A linha da evolução se delineia, no começo, por tenta-
cha. Não é talvez a mais nobre alegria humana e a mais evoluída tivas, em casos esporádicos, por acenos embrionários, a princí-
das fases da vida terrestre, esta em que o mais alto centro das pio supernormais, com uma tendência lenta, gradual e tenaz nas
sensações emotivas e vitais é transportado do nível vegetativo e suas exceções às normas. Tratar-se-ia, ao mesmo tempo, de um
passional para o de pensamento e criações conceituais? método de indagação radicalmente novo e diferente daquele que
Desta maneira, a nossa conversa nos leva longe, a outro o precedeu – dedutivo e indutivo – que tanto criou em toda a ci-
problema, o de estudar, de aprender, para depois criar no pen- ência moderna; passar-se-ia ao método intuitivo, que revolucio-
samento. Qual é a técnica misteriosa disto? Aqui, a turba esco- naria o pensamento humano. Fantasias, dir-se-á. Se a ciência de-
lar já desapareceu; o problema é mais íntimo e mais elevado, e seja decisivamente penetrar no íntimo mistério das coisas, é ne-
a mente adulta o observa em si mesma para, depois, tirar dedu- cessário um veículo mais rápido, um instrumento mais agudo,
ções que iluminem também a comunicação do saber, que é o que não seja a razão. Por que deveremos crer que a ciência não
problema escolástico. saiba dar senão produções mecânicas e nada mais? E por que a
No estudo e na aprendizagem, nós nos apegamos às formas inspiração deve limitar-se unicamente às formas artísticas e poé-
mais empíricas. Acreditamos que esta arte consiste em ler, re- ticas? Por que não poderá ela ser uma nova inspiração filosófica,
petir e reter, aplicando este sistema de ensino aos jovens. Mas, matemática, social, moral, científica, não excepcional como até
se consideramos a essência dos fenômenos psíquicos, de que agora, mas normal? Por que esta arte de sentir por via imediata
116 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
não poderá se tornar por evolução o método normal de investi- bastam os meios de registro mecânico, a começar pelas biblio-
gação em todos os campos do saber? Neste psiquismo superior, tecas? Sendo assim, por que perturbar a psique? Isto é tanto
o pensamento é mais potente e nasce espontâneo, sem trabalho e mais verdadeiro, quando parece que, muitas vezes, da ciência
sem fadiga! Que poderá, então, aflorar do mistério das coisas? É que se aprende na escola nada é levado para a vida, depois que
audaciosíssimo, mas não é absurdo, pensar na generalização fu- foi toda despejada pelo estômago cheio do aluno. O estudo de-
tura do método intuitivo, hoje excepcional. veria ser, sobretudo, a arte de orientação no saber, trabalho de
E quem sabe se, dentro de alguns séculos, não estudaremos formação da mente e da consciência, maturação substancial de
e aprenderemos utilizando métodos de sintonização? Ou se a capacidade cultural, e não colagem de noções. Em outros ter-
fadiga dos livros será substituída pela harmonização vibratória mos, deveria ser um exercício destinado à formação do automa-
do ambiente? Já possuímos os receptores de radio e televisão. tismo do pensar; à transformação do ato de pensar, tão exausti-
Sabe-se que a matéria, no fundo, é energia, e que o pensamento vo, incerto e imperfeito nos menos evoluídos como é a maioria
também é energia e se transmite por ondas. Não é absurdo que dos homens-crianças, em ato automático, espontâneo, instinti-
se possa, sondando o mistério do subconsciente, alcançar a vo. Tornar-se-ia ato sem fadiga, cheio de alegria e irresistível
transmissão do pensamento por sintonia. necessidade, como são na sua satisfação todos os instintos, uma
A sua assimilação dar-se-á não com a fadiga do estudo, mas vez verdadeiramente fixados na consciência. Explicam-se assim
por recepção de um transmissor, funcionando como distribuidor certas paixões raras, mas que existiram e existem, da curiosida-
e recompositor do pensamento por via conceptual direta, sem de no saber. Casos em que o pensamento representa uma fun-
forma de língua ou palavra. ção normal, instintiva, uma necessidade vital, não uma exaus-
Este método da intuição, pelo testemunho dos que não podi- tão. Parece, então, que o centro da vida se desloca do nível ve-
am criar senão pela inspiração, teria a enorme vantagem de su- getativo orgânico das paixões para o nível da concepção e do
primir a fadiga. Alguns automatismos do pensamento já são de pensamento. Aí, a personalidade vive espontaneamente, sem
experiência comum e utilizáveis também como método didático. aquele esforço do qual tentam fugir, como diante de um sofri-
Quem não observou que aquilo que se leu e estudou à noite res- mento, todos os dias, com tanta tenacidade, os nossos alunos.
surge facilmente diante da mente pela manhã? Existe, pois, ao A minha palestra me levou longe, ao mundo para onde
que parece, a possibilidade de confiar ao subconsciente uma ta- convergem os campos mais complexos e novos da ciência e
refa a cumprir, independente da vontade, da consciência e, por- que os audazes mais elevados aguardam para investigar, des-
tanto, sem esforço algum. O subconsciente parece ser uma má- cobrir e concluir. São coisas distantes, talvez menos do que se
quina obediente, à qual se pode confiar a execução de uma tare- crê, mas coisas do amanhã. Lá se encontra o futuro do pensa-
fa quando, por um processo auto-sugestivo, lhe tenha sido dada mento humano e também da escola. Entretanto a humanidade
a ordem. Poder-se-ia desta maneira pensar uma ideia e, depois, caminha. A psicotécnica, digo-o sem ironia, talvez não seja
abandoná-la, porque aquela parte do eu que independe da cons- apenas uma palavra nova, como frequentemente se usa na ci-
ciência continua a desenvolvê-la sem fadiga, amadurece-a sem ência, para denominar velhas noções. São estas expressões ne-
atenção, desenvolve-a e, mais tarde, a leva completa e amadure- cessárias e naturais, pois que os movimentos psíquicos, em to-
cida à consciência. Isto não é absurdo, porque, sem dúvida, o eu dos os campos, são transformações biológicas. Estes são os fa-
é muito mais vasto do que a consciência, e grande parte dele tos. E é uma realidade que este movimento mundial tomou
existe e age além dela. Há, fora do poder desta, um grande re- pulso e arrasta o pensamento do mundo com uma força e uma
servatório de saber, que não aflora senão em casos especiais; um velocidade sem precedente na história.
armazém onde as impressões se elaboram, quem sabe por que
processo! Não são todas as nossas funções orgânicas como a QUINTA PARTE – PROBLEMAS ATUAIS
respiração, pulsações cardíacas, movimentos peristálticos e ou-
tros, confiados ao subconsciente, isto é, a uma consciência que A HORA DE NAPOLEAO (1939)
não chamarei inferior, mas pré-formada, na qual estes funcio-
namentos já estão definitivamente fixados por automatismos? Um recente volume, Vida de Napoleão, escrita por ele
Poderíamos levar isto ainda mais adiante. Admitamos que a mesmo, tradução italiana da edição inglesa de Murray, de 1817,
consciência, enquanto for vontade e fadiga para formação de convida-me a colocar mais exatamente em foco o meu pensa-
automatismo, não seja consciência e que a tendência da sua mento sobre este grande homem e seu destino, que é também o
evolução, assim como o resultado do seu funcionamento, con- destino de um povo e de uma revolução. Isto encerra, em sínte-
sistam num estado de estabilização em que todos os produtos se, os acontecimentos de um continente, de um período históri-
conquistados no trabalho concluído se fixam por automatismo, co, de uma ideia social nova e tão vasta, que ainda caminha.
transformando-se de tarefa a executar, de obstáculo a superar e Deixo aos historiadores os pormenores dos fatos, que não
de meta a conquistar, em qualidade adquirida, ideia inata e ins- valeriam a pena repetir. Agrada-me, entretanto, investigar por
tinto inerente à personalidade e nela indestrutível. A que dedu- trás deles, a fim de descobrir o fio sutil com o qual o destino
ções, seja no campo do estudo individual, seja no do ensino, entretece a vida dos homens e dos povos. Napoleão foi um ho-
pode conduzir o conceito desta fixação, por assimilação no mem de exceção, por isso, nele, o destino foi constrangido a fa-
subconsciente, de todas as experiências, noções e impressões da lar com mais evidência. Cada vida possui uma lei, mas em tais
vida; o conceito deste processo de estratificação da personali- vidas, especialíssimas, fala a história.
dade, em contínuo desenvolvimento e crescimento por dilata- Não me interessa a pesquisa de estudiosos de coisas napo-
ção da consciência; desta absorção na própria psique, como leônicas, se o livro é de seu punho ou obra de intérpretes. O
parte de si mesma e de forma indelével, de tudo o que a alcan- sabor napoleônico, naquele estilo robusto, nervoso, concreto,
ça! Se a ciência soubesse encontrar a via para lançar as impres- existe, e isto me basta para sentir-lhe, através da palavra, a fi-
sões no subconsciente, assim como encontrou os meios para gura e o pensamento. Naquele estilo, vibra a vontade e a deci-
penetrar na estrutura atômica, não poderia também, da mesma são, palpita a potência do homem habituado à ação e à vitória.
forma como, na desintegração do átomo, alcançou a energia em Por este motivo, li o volume de um fôlego, e, apenas concluí-
abundância, realizar o aprendizado sem fadiga? do, eis que nasce em mim este escrito. Poucos livros sabem
Poder-se-ia deduzir outra observação: que o estudo não de- excitar em mim tais reações, e poucos tenho encontrado assim
veria ser somente um processo todo exterior de aquisição de densos de vida e de conceitos.
noções. Para acumular noções de fatos, a pura erudição, não ◘◘◘
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 117
Li nas profundezas da vida grande e trágica deste homem Delineiam-se aqui os dois momentos da vida de Napo-
os ensinamentos da história! A moleza do reinado enfraqueci- leão: aquele em que executa a sua missão e está de pleno
do de Luís XV, filho degenerado do Rei Sol, perde até a sua acordo com as exigências da história, e aquele no qual ocorre
última justificação de graça na bondade débil e míope do pobre o reverso. Há lógica na troca de posição da vida de um ho-
Luís XVI, vítima da força. A tempestade de sangue se desen- mem e no desenvolvimento de um fenômeno social. Não se
cadeia, e, do terreno ainda vermelho, nasce uma epopeia heroi- pode discordar de que, enquanto Napoleão sintetizou o esfor-
ca e trágica, para a qual é chamado como protagonista um des- ço de um povo para fixar uma ideia no mundo, as forças da
conhecido e humilde corso. vida não o abandonaram. A ideia revolucionária voava com
Ele é feito para a guerra, e o destino, que parece sabê-lo, as águias contra os velhos sistemas decadentes da Idade Mé-
constrange-o a fazê-la e vencê-la. Com a revolução às costas, é dia. Napoleão resume em si o duelo imenso que se travava
colocado em situação de não mais poder retroceder. Desta ma- entre a França e o mundo civil de então. Não havia na reali-
neira, envolve-se de forças que se somam às forças dos aconte- dade senão uma luta universal de ideias, uma tentativa de ex-
cimentos, cujo desejo é valorizar a sua indiscutível autoridade pansão, como verificamos ainda hoje, em proporções maio-
no meio de uma sociedade que renova a sua construção, as suas res. A coligação da Europa e a França representavam dois
condições e os seus quadros. O corpo social que nasce da revo- princípios em luta. ―Napoleão devia completar a revolução,
lução muda a sua estrutura; abaladas as velhas organizações, há dando-lhe característica legal, a fim de torná-la reconhecida e
um esforço de reestruturação em procura de novas e estáveis legitimada pelo direito público da Europa‖. Enquanto bata-
posições num terreno livre, exigindo homens novos. Sobre o lhou pela aceitação de princípios novos e elevados, o destino
vazio gerado pela revolução quanto a cabeças coroadas, a histó- lhe foi favorável. É que os chefes, conforme acredito, não são
ria podia escrever: procura-se um chefe. Aguardava-se, todavia, apenas servidores e artífices da evolução, o que já seria gran-
que um chefe se revelasse. Em oportunidades mais naturais do dioso, mas, sobretudo, instrumentos momentâneos e ativos
dinamismo social, se as posições fossem bem protegidas, e não do pensamento de Deus. De acordo com o mesmo princípio,
desmanteladas por revoluções, a história não teria a iniciativa a história afasta os seus grandes homens quando não servem
de chamar à valorização efetiva as qualidades desse homem, mais aos seus fins. Inutiliza-os quando eles não querem ou
fossem elas as mais extraordinárias. Se o terreno não estivesse não podem mais servi-la. Ai, portanto, daquele que atraiçoa a
livre e a história não se encontrasse em expectativa, as leis da sua própria missão, pois se verá abandonado pelas mesmas
vida não concederiam excelsas valorizações ao indivíduo, nem forças que o elevaram à posição de comando.
aos puros objetivos de afirmação pessoal. ◘◘◘
Sem exagerar em sentido algum, creio que, no duelo entre o Aqui se inicia a segunda fase da vida de Napoleão. A força
homem e a história, reina, mais do que a guerra, uma suprema e na qual ele havia acreditado, por motivos muito profundos, o
divina harmonia que os coloca tempestivamente lado a lado pa- abandonou. A sua vontade movimentara outros impulsos em seu
ra maior rendimento de ambos. A lei universal do menor esfor- destino, que, como qualquer outro, não era fatal e inelutável,
ço está presente também no campo social. mas consequência de um feixe de forças sensível ao nosso dese-
No fundo da ferocidade que havia manchado de sangue o jo. Ele havia confundido a sua própria pessoa com a sua missão
e a ideia da revolução. O triunfo aparente da força pareceu-lhe a
primeiro surto de uma ideia nova, havia alguma coisa de verda-
substância, a finalidade do poder, quando era apenas um recurso
deiro, de justo e de potente. Havia o sentimento de renovação, a
precário. Cansada pelo esforço da revolução, a França desejava
explosão primaveril dos renascentes impulsos biológicos, que
refazer-se sob a proteção da sua espada, no entanto, após tanta
investiam com decisão e diretamente contra a decrépita forma
guerra, demasiada guerra – a guerra pela guerra – acabou por se
do velho regime, agora vazio de sua potência substancial e so-
esgotar. Exaurida a sua função de expandir a ideia, o instinto dos
brecarregado de incômodas superestruturas seculares.
povos negou-lhe cooperação. A semente atirada não exigia, para
Evidentemente, a revolução francesa continha princípios. Se
germinar, tão abundante sacrifício de sangue.
estes, no início, se manifestaram sob a forma mais baixa, isto
Cristo, que venceu e vence sem a força, em maiores propor-
era porque o objetivo da destruição estava confiado àquele pe-
ções, deve ter sido, com certeza, um enigma para Napoleão.
ríodo primordial. Superada a fase necessária da limpeza do ter-
Existe, portanto, uma lei mais geral, segundo a qual um princí-
reno, pôde Napoleão começar a construir. pio de vida sabe encontrar todos os meios para afirmar-se, quan-
No fundo, não se trata senão de uma longa e lenta revolu- do deve fazê-lo, porque se encontra na estrada da evolução.
ção secular, pela qual a organização social se aperfeiçoa conti- Em dado momento, apresentou-se-lhe ao destino uma em-
nuamente, ascendendo à justiça, levando, com princípios de presa temerária. Ele, todavia, escolhera a lei da força, que não
igualdade sempre mais amplos, para um número sempre maior admite acomodações com os planos da Lei. A força, com a
de cidadãos, o direito à vida coletiva. Os incidentes de então, mesma natureza inexorável e desapiedada, agiu contra o pró-
as violências e as incompreensões passam, mas o princípio prio Napoleão. Por isto, revivendo o seu caso com maior expe-
permanece. Resta aquele movimento ascensional lento e cons- riência, nos tempos modernos, sente-se, por instinto, que o espí-
tante, embora acidentado, das camadas inferiores sociais, que rito, tanto quanto a força, é elemento necessário de afirmação e
sobem, demonstrando conter a mais fecunda reserva de vida, e de solidez, em todos os empreendimentos humanos.
esta, assim, aflora à superfície da história, sempre renovada
nestas obscuras sementeiras. O PROBLEMA AGRÁRIO (1939)
◘◘◘
A história, impregnada das criações graciosas do século Ao iniciar esta série de artigos, eu me propus abordar pon-
XVIII, experimentava um período de guerra e de poderio, exi- tos mais vitais do problema social de hoje. Portanto não se es-
gindo de um Napoleão a força e a vontade para disciplinar a tranhe que me ocupe também da agricultura, pelo menos em
nova ordem, que ameaçava naufragar na rivalidade entre as na- linhas gerais, uma vez que ela coopera na intensificação do
ções, primeira e natural consequência do sistema representativo nosso amor à terra.
em um povo não antecipadamente preparado. A vida produz em Para quem chegou, por caminhos próprios, àquela unidade
Napoleão a sua nota de força necessária para a sinfonia dos de concepção sintética, que falta à ciência moderna, é fácil a
seus desenvolvimentos, utilizando-a no momento oportuno, a passagem do problema médico-sanitário, de que falei em arti-
fim de completar o seu concerto com as demais. gos precedentes, ao problema agrário, uma vez que ambos se
118 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
apoiam na mesma base biológica e derivam da mesma raiz, que organismos, que é o húmus, até às plantas, que vegetam, aos
penetra nas camadas profundas da vida. animais, que se nutrem, e ao homem que vive da terra. Hoje se
O problema técnico agrário é, antes de tudo, um problema busca transformar em problema aritmético terrenos, plantas,
de orientação geral, sem o que, a experimentação não possui animais e homens. Hoje, desejamos considerar a terra como uma
princípio nem guia. Também neste campo, surpreendemos o equação química de elementos nutritivos, isto é, terreno subnu-
materialismo, que chamarei de doença psicológica do século, trido mais adubos é igual a terreno mais produtivo. Concepção
nas suas últimas consequências e prosseguimos na mesma simplista, unilateralidade de visão econômica, negligência de
campanha em prol da obra de ressurreição, desejada sempre no muitos fatores para que a equação corresponda à realidade. Da
campo especifico de cada problema particular. Por este motivo, mesma forma para a pecuária. Uma vaca não é mecanismo para
cada um destes artigos soa como um toque de alarme, para que transformação de forragem em leite e carne. Com esse critério,
eles sejam escutados e compreendidos. Sabemos que a orienta- os organismos animais são forçados à produção intensiva, sob a
ção materialista do último século, cujas últimas consequências pressão de um regime alimentar intensivo. A natureza suporta
práticas em todos os campos ainda vivemos, pode constituir, pouco o trabalho excessivo. Sobrecarregada, qual máquina, de-
conforme se observa, um perigo para a saúde humana e repre- sorganiza-se, e o animal ―inexplicavelmente‖ se enfraquece e se
sentar também um atentado para a fecundidade da terra. torna estéril. A terra perde a sua capacidade produtiva; os ani-
Quando a concepção unilateral do materialismo chegou ao mais nascem mal e doentes, organicamente tarados: partos difí-
terreno das realizações (a passagem é fatal e rápida) e, com o ceis, tuberculose, aborto epizoótico19, esterilidade. O critério
seu simplismo mecânico experimental, ignorante dos aspectos econômico nos fez esquecer o supremo equilíbrio da natureza,
mais profundos dos problemas, invadiu o campo biológico, não as leis profundas que fixam os limites de cada existência. A ex-
podia, na sua pretensão de impor-se às leis da vida, senão pro- ploração indevida de uma função somente se pode obter com o
vocar uma reação, porque elas são invioláveis. preço da depressão de outra função. O animal não é máquina de
Assim como, nas construções, é necessário conhecer a resis- produção e de renda. Por mais agnóstico que se queira ser, não
tência dos materiais, a fim de não os submeter a um esforço su- se pode violar as imprescritíveis finalidades da vida.
perior às suas resistências especificas, também no terreno bio- Se o erro econômico grava todo o negócio agrário, o erro
lógico, o material vivo possui um campo de flexibilidade e re- mecânico e o erro químico gravam, sobretudo, a terra. A má-
sistência, o qual permite suportar apenas momentaneamente um quina, usada para a superprodução e para a obtenção de um
determinado trabalho, estabelecendo um valor-limite além do custo menor, proporcionou, como veremos, uma vantagem
qual a elasticidade biológica não se mantém. Ultrapassados es- momentânea pela adubação química. Nada se rouba da nature-
tes limites naturais, o ser, seja homem, animal, ou vegetal, ado- za, apenas se antecipa o usufruto mais rápido das reservas natu-
ece e a terra, que é viva também, torna-se estéril e depauperada, rais. Os resultados da industrialização e da mecanização da
como um verdadeiro doente. agricultura levaram a uma ilusão de lucros, altos a princípio,
Este é o resultado do choque de uma diretiva errada com as depois estáticos e, finalmente, decrescentes, a ponto de impor o
leis da vida. Trata-se de uma psicologia de violências, que pre- uso progressivamente maior de adubos químicos e um trabalho
tende impor-se e forçar os princípios do funcionamento orgâni- sempre mais intenso. Delineia-se, assim, uma nova fase negati-
co do nosso mundo. Se estes sistemas forem mantidos por lon- va da lei que regula os lucros, exigindo um esforço e uma des-
go tempo, perguntamos à ciência, quais serão os resultados em pesa cada vez maiores, para vencer a tendência da terra a pro-
todos os terrenos onde o homem encontra a vida? Os problemas duzir cada vez menos. Aumentam as doenças das plantas, dimi-
da saúde, como da fertilidade, são problemas lentos, vastos, he- nuindo, como nos animais superprotegidos, as resistências or-
reditários, que abraçam várias gerações. gânicas. Repete-se aqui a mesma consequência da excessiva
Entremos particularmente no âmbito agrário. Neste campo, proteção bacteriológica usada pelo homem.
aquelas premissas psicológicas instauraram um regime de pre- Encontramo-nos diante dos últimos resultados das premis-
potência por parte do homem e de esforço por parte do subju- sas materialistas, unilaterais e ignorantes dos sábios equilíbrios
gado mundo orgânico. Este regime, que deu lugar, a princípio, da vida. O método da agricultura científica, técnica e mecânica,
a uma superprodução, não deixa agora, como resíduo do seu depois de ter oferecido um resultado imediato e efêmero, alcan-
supertrabalho, senão uma subprodução, filha do depaupera- çou um limite além do qual o rendimento se detém, e a nature-
mento. Expliquemo-nos. za, mais providencial do que o homem, nega-se a trabalhos for-
A orientação científica da agricultura incorreu em três er- çados. Este fenômeno se revelou, com evidência, na adubação
ros, que são três perigos; o erro econômico, o erro mecânico e química destruidora das bactérias necessárias à vitalidade do
o erro químico. terreno. Não propomos que ela deva ser abolida, mas usada
A industrialização agrária trabalha fazendo prevalecer os cri- com o necessário bom senso, para que se evitem graves danos.
térios econômicos. O proprietário rural já é um contador que Cedo a palavra às vozes autorizadas. Que não me acusem tam-
calcula a sua renda e deve fazê-lo, instigado por várias causas bém de visão unilateral. Ehrenfried Pfeiffer escreve no seu livro
estranhas à agricultura, tais como o risco na colocação da produ- A Fertilidade da Terra: ―É notável o efeito imediato da aduba-
ção, a concorrência dos mercados mundiais, as oscilações de ção química sobre o crescimento das plantas, aumento de pro-
cambio, a dependência em relação aos países estrangeiros para dutos, arbustos túrgidos, particularmente quando se empregam
obter as matérias primas necessárias à indústria de adubos, etc. adubos artificiais azotados. Tais resultados tornam os adubos
Estas pressões vêm violar o equilíbrio dos fenômenos naturais. químicos preferidos pelos agricultores. Abarrotando os merca-
Esquece-se de que, nestes negócios, o processo econômico não dos consumidores, a ciência afirma que, com tal prática, se ba-
se pode isolar, porque se intromete no processo vital, que é fun- lanceiam os elementos deficientes. Entretanto duas conclusões
damental. Se o ignorarmos, se o violentarmos, destruiremos vão se impondo com frequência aos práticos que vivem e traba-
também o resultado econômico. O material é vivo, impondo por lham em contato com a terra: uma é que, para manter a produ-
este motivo exigências que a industrialização agrária tende a ig- ção no mesmo nível, é necessário aumentar de ano para ano a
norar e a descuidar, arcando com as consequências. Trata-se de quantidade de adubos químicos, e a outra é que a estrutura do
fenômenos vitais, trabalha-se com organismos, e todo o solo é terreno se transforma no sentido já mencionado do endure-
um organismo que possui vida. Nesta existe alguma coisa de cimento e da incrustação. Por que motivo as nossas escolas de
imponderável, que foge a toda orientação materialista, alguma
coisa que é de origem espiritual. Um trabalho agrícola depende 19
Epizootia: Doença, contagiosa ou não, que ataca numerosos animais
de fenômenos biológicos que vão da unidade coletiva de micro- ao mesmo tempo e no mesmo lugar.
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 119
agricultura e as nossas estações experimentais se calam diante dendo recusar ofertas. Não se lhe aplique um sistema mecânico
deste fenômeno, observado pela maior parte dos práticos? Fala- de química orgânica. Quando fornecemos o adubo artificial, a
se tanto do incremento da produção, mas muito pouco da alte- planta o prova e percebe que ele pertence a um ciclo de vida di-
ração do terreno. Não possuirão as estações experimentais, para verso do seu; sente a distância que o separa de si e a falta de afi-
as pesquisas comparativas, áreas de terras em condições que nidade; recusa-o porque se acha impossibilitada de admitir sem
permitam o estudo de tais transformações?‖. prejuízo, no círculo do seu recâmbio, aquilo que, por atávica ex-
Para quem só admite uma verdade quando sabe que ela é periência, lhe é estranho. Somente o adubo natural, por ser vivo,
sustentada por nomes autorizados, citarei Tallarico, Suessen- bacteriológica e quimicamente afim, e por estar no mesmo plano
guth, Niklewsky, Ienny Hans, Fippin, Elmer O, Dreidax, Berle- orgânico, pode ajudar e ser assimilado. Em outros termos, poucos
se, Bartsch etc. Com eles, esboça-se uma visão mais exata do são os pontos de contato entre o mundo orgânico e o inorgânico
uso dos meios químicos no campo da agricultura. para que o primeiro possa sempre abrir as portas ao segundo, a
Os seus perigos são mais três: 1) Aumento não proporcional fim de aceitá-lo no seu metabolismo. A terra, desta maneira, as-
de renda em relação ao custo do adubo. 2) Esterilização do ter- simila e digere bem somente os produtos orgânicos; e, se nós não
reno. 3) Perigo para a saúde dos animais e dos homens que se a nutrimos com um alimento sadio e apropriado, ela adoecerá, e,
nutrem daqueles produtos. com ela, tudo quanto nasce dela ou dela dependa.
Eis o que diz Chimelli a este respeito: ―As regiões de nova Chega às minhas mãos, quando estou para terminar, um
conquista compreendem geralmente os terrenos ricos de húmus opúsculo de Gnecco, de Gênova: Exposição de um sistema ra-
acumulados há séculos pela vegetação espontânea. Se o húmus cional, prático e econômico para aumentar a fertilidade do so-
não for reintegrado com suficientes adubos orgânicos e com pro- lo, onde se comentam os resultados já experimentalmente obti-
cessos de formação natural, ele será destruído em período mais dos com o sistema da ―Vegetina‖, com uma orientação muito
ou menos longo, e então sucedem, inevitavelmente, os fenôme- semelhante à nossa.
nos observados por todos os agricultores que tenham trabalhado Problemas delicados, problemas novos. O estudo profundo
com adubos químicos, isto é, a mudança da estrutura normal para destas questões devia levar-nos a uma visão global da vida, sem
o excessivo endurecimento do terreno, a formação de crostas na deixarmos de parte o limitado campo técnico. A visão sintética e
superfície, o aparecimento de manchas estéreis nos campos, a de- unitária não podia deixar de nos guiar a este renovamento de vi-
ficiência de capilaridade e, por consequência, a diminuição de são e de conceitos diretivos, que não permitem mais a insistên-
disponibilidade hídrica e a regressão da fertilidade etc.‖. cia numa técnica agrária exclusivamente química, mas impõe-se
―Com os nossos métodos de cultivo intensivo‖, acrescenta acrescentar àquela técnica processos biológicos e dinâmicos,
Pfeiffer, ―particularmente com o uso abundante de exclusiva próprios da terra. É necessário, também neste campo, superar a
adubação química, criamos condições tais, que as propriedades matéria e recordar que a agricultura se apoia no fenômeno vida,
físico-químicas do terreno predominam e as atividades orgâni- contendo em si algo de espiritual, justamente como parte res-
co-biológicas caem em depressão. A mineralização da terra, ponsável e diretora. A agricultura implica também o senso de
além de ocasionar o desaparecimento das minhocas, acarreta a amor e de intuição clínica que se exige do médico. Torna-se in-
formação de uma crosta na superfície durante o período de se- dispensável aquele espírito de colaboração, que é fundamental
ca. Este fenômeno deveria ser considerado pelo agricultor como na natureza, perfeita em sua maravilhosa harmonia. Pode pare-
sinal de ―tempestade‖, denunciada pelo barômetro do seu terre- cer estranho, mas o fator espiritual é tão vasto e íntimo em todas
no. Uma vez arruinada, a reconstrução da saúde de um terreno é as coisas, que não se pode menosprezá-lo sem prejuízo, nem
um trabalho lento e laborioso‖. mesmo no que se refere ao problema da produção, tido e havido
Referindo-se à saúde dos animais e dos homens, assim se como fenômeno exclusivamente econômico, industrial e mecâ-
exprime o célebre fisiologista Abderhalden: ―Com muita fre- nico. Em que pese aos utilitaristas, outra orientação deve agir
quência e em lugares diversos, determinadas doenças dos ani- qual novo impulso, até nos pormenores dos problemas técnicos.
mais e dos homens foram atribuídas ao método de adubação Este princípio concebe a sociedade humana como totalidade or-
das plantas alimentícias. Não se pode ainda afirmar com segu- gânica e não pode deixar de encarar a natureza senão como tota-
rança, mas é admissível que importantes substâncias sejam ela- lidade harmônica. Alcançamos deste modo uma interpretação
boradas pelas bactérias do terreno; devemos refletir bastante se social mais exata da solidariedade de todas as formas da vida.
é certo destruir a vida e a atividade sutil dos micro-organismos, Amemos a terra conjuntamente com a nossa pátria e a nossa
introduzindo azoto sob a forma de nitrato de potássio, cálcio, família; amemos a terra, viva como nós e como nós criatura que
ácido fosfórico, que perturbam e impedem o desenvolvimento adoece e se cansa. Saibamos conservar-lhe a saúde física para
dos organismos vivos e provocam dificuldades futuras‖. as futuras gerações. Ela é mãe de todas as coisas, sobre ela se
Assim diz, enfim, o Dr. V. Ratto, em Saneamento Médico: reveza o ciclo da vida e da morte. No seu ventre prolífico, no
―Os casos sempre mais frequentes de trombose, câncer, arteri- seu húmus, que é campo da morte, renasce a vida vegetal, ani-
osclerose e diabetes, fazem suspeitar (aos médicos dotados de mal, e renasce também a nossa vida. Esta terra não é somente
respeito à biologia em geral – vegetal, animal e humana) que a um composto químico, mas um organismo vivo, rejuvenescido
causa desta série não totalmente nova, mas de peso crescente de pelas irradiações cósmicas que a atingem, pelos micro-
doenças humanas, esteja ligada aos métodos de cultivo adota- organismos que a purificam, pelos vermes que a fecundam, por
dos, isto é, depende da íntima qualidade minimamente e imper- todo o trabalho vegetal e animal que lhe povoa as entranhas e a
ceptivelmente venenosa dos alimentos dos animais e do homem superfície. A terra é útero que recebe, protege, fecunda e resti-
e dos remédios usados contra os parasitos‖. tui. Depositária da vida, conservadora dos germes, princípio fe-
Problemas delicados, problemas novos. É necessário, para minil de defesa, de espera e de reprodução, eletricamente nega-
compreender a agricultura, um senso religioso da natureza, da tiva, armazenadora de vibrações cósmicas, expande-se ao ritmo
qual ela faz parte; senti-la na sua realidade palpitante em relação das irradiações solares, passiva somente para melhor agir no si-
a todo o cosmo. Como coisa viva que é, torna-se absurdo reduzi- lencioso trabalho interior; a terra contém toda a potência recons-
la, nas abstrações de gabinete, ao artifício da experimentação ab- trutiva do amor, que perenemente regenera, preenchendo os va-
surda, divorciando-a da harmonia universal. A planta possui vida, zios da morte. Sobre o dorso desta criatura irmã, que não é má-
sensibilidade, vontade individual, instintos que não se podem quina, soerguem-se todos os fenômenos sociais. Retribuirá o
contrariar. A terra é uma unidade vital coletiva com estas mes- nosso amor dando-nos o fruto do seu seio. Porém, se a maltra-
mas qualidades e, como tudo, age, reage, escolhe, defende-se e tarmos, violentando-a, ela se fechará em si mesma, tristemente,
possui uma consciência íntima das coisas que lhe pertencem, po- e negar-nos-á os seus favores, porque, sem amor, não há criação.
120 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
O PROBLEMA RELIGIOSO (1939) organização humana. A necessidade de se impor aos homens pe-
la coação da lógica, de normas e de sanções, partindo do exteri-
or, foi certamente uma dura necessidade histórica. Não se culpa
No equilíbrio da vida existem dois aspectos que, por serem a ninguém se a vida ainda rudimentar do homem exige seme-
complementares, se integram reciprocamente; originam-se de lhantes processos. Com certeza, hoje, se lamenta muito o indife-
dois extremos, que delimitam o âmbito dentro do qual oscila o rentismo que é, na realidade, a ausência do fator espiritual.
movimento da vida: espírito e matéria. Eles apresentam-se como A experiência interior de muitos e a minha própria experi-
poder espiritual e poder temporal, como Igreja e Estado. Obser- ência mística ensinam que não se pode – perdoem-me a frase –
vamos, em todos os agrupamentos humanos, a existência da ca- encontrar Deus somente porque o procuramos; o trabalho e a
sa de Deus e da casa do chefe, a catedral e o paço municipal. responsabilidade da pesquisa da verdade estão no tormento
Numa civilização equilibrada, a dissonância da luta entre os próprio, na maturação própria, na luz que se deve buscar com a
dois princípios deve ser evitada, alcançando-se a harmonia. O alma inteira, e não se realizam senão através da luta e da dor,
Estado é o princípio viril, volitivo, que afirma; possui a função que nos elevam além do plano das ilusões dos sentidos. Materi-
concreta da ação, da organização e da guerra. A Igreja é o prin- alizamos, antropomorficamente, a Divindade quando procura-
cípio materno, afetivo, de conservação, de sacrifício; possui a mos alcançá-la pelas vias da razão e fora de nós mesmos, no
função intuitiva da fé, do esforço espiritual, de lutas e conquis- plano sensório, ao invés de buscá-la pelas vias da intuição, den-
tas interiores. Assim como a Igreja, numa civilização completa, tro de nós, no plano intuitivo. Caminho por certo mais cômodo
não pode viver na Terra sem o consentimento do Estado, este
é aquele, porque foge ao burilamento da alma, mas somente es-
não deve viver sem a direção espiritual de uma Igreja.
te pode guiar o espírito para Deus.
A religião que rege a civilização europeia, há dois milênios,
Vemos, com frequência, que se dá maior importância à dis-
é o cristianismo. E, como a civilização europeia pode ser consi-
cussão do que à fé, aos conceitos que devem habitar a nossa
derada a alma do mundo, seria absurdo não reconhecer a força
mente do que aos ímpetos que devem explodir em nosso cora-
daquela instituição.
ção. Preferimos a via da erudição, mais cômoda, mais esplêndi-
Entretanto o cristianismo se dividiu, por sua vez, em dois
da e mais vã, à via do sacrifício, mais áspera, silenciosa, porém
aspectos, embora complementares. Aparentemente, é uma divi-
mais produtiva. Desta maneira obtemos uma luz esplendente e
são de almas; mas, substancialmente, apenas uma divisão de
fria; ora, sem calor, não se constroem almas. O momento atual
trabalho, uma especialização por atitudes diversas, uma separa-
tem mais necessidade de homens de paixão, que saibam sofrer,
ção tendente a reconstruir a unidade.
do que de intelectuais que saibam pensar, porque nos falta não o
A Igreja latina, talvez mesmo pela função pedagógica que
esforço cerebral, mas o esforço moral. Acima do pensamento es-
lhe foi atribuída, assumiu prevalentemente a forma de orga-
tá o espírito, acima da razão está a fé. Se, no último século, a
nismo concreto de homens e normas, teologicamente raciona-
onda materialista, que a igreja também experimentou, conduziu-
lizante e mundanamente legisladora. A anglo-germânica, ao
nos a uma racionalização da religião, a onda atual, incipiente,
contrário, aprofundou preponderantemente o lado interior, pes-
levar-nos-á à espiritualização. É preciso saber viver ambos os
soal, intuitivo.
momentos, que são complementares. A simples racionalização
É inútil discutir a realidade. Os povos possuem hábitos di-
versos e, de acordo com estes, preenchem as suas funções, es- disseca todos os sentimentos e promove a discussão, que é sestro
colhendo cada um as mais adaptadas ao próprio temperamento. de antagonismo e de afirmação, não ideal de amor e de abnega-
A Europa subdividiu assim a sua tarefa religiosa, lançando-a ção. Por este motivo, alguns espíritos verdadeiramente angélicos
desta forma ao mundo. Os latinos aprenderam da verdade o as- esquivaram-se a priori da via do saber, mesmo teológico.
pecto transcendente, o conceito, a racionalidade, a objetividade, O espírito completa assim o seu contínuo trabalho, varian-
colocando-se, deste modo, em condições de continuar e desen- do as suas atitudes. ―Et multum laboravi quaerens Te extra me,
volver o pensamento dos grandes filósofos gregos, assimilando et Tu habitas in me‖20 (Santo Agostinho). Não é este talvez o
os produtos do pensamento individual e coletivo. Os anglo- aspecto mais sublime e mais intenso que teve o cristianismo
saxões extraíram da verdade o aspecto imanente, o senso íntimo nas suas origens? E por que não desejar que o cristianismo la-
da Divindade, a intuição, o subjetivismo. É evidentemente uni- tino se aproveite da cisão anglo-saxônica, nascida precisamen-
lateral o insulamento na atitude exclusiva da transcendência ou te de um excesso de transcendentalismo, completando-se com
da imanência. As leis da vida nos mostram contínuos exemplos o retorno ao imanentismo inicial? Reentrar em si para Deus;
desta complementariedade. Atravessam fases de contrastes para intuição, ―intus itio‖21. ―Est Deus superior summo, interior in-
alcançar a unidade, uma unidade múltipla, complexa, mas com- timo meo‖22 (Santo Agostinho).
pleta. Estes dois princípios são de fato necessários: tanto o ab- Isto não é acusação, mas voto de nova ascensão – da letra
soluto, do conceito, como o infinito, da inspiração. É necessário que mata ao espírito que vivifica – para que o cristianismo
que se compensem, pois, isoladamente, ou chegarão a um ex- possa cumprir plenamente a sua divina missão. Existe uma
tremo no materialismo religioso ou ao extremo oposto, no livre- multidão de almas honestas, ardentes e sinceras, que sentem o
exame anarquizante. Dois perigos igualmente graves. peso e a ameaça do polvo materialista e de sua filosofia apa-
Ameaças sutis, mas certamente não atingem a grande mas- rente, simulada através da ciência destruidora de princípios e
sa, que não gosta de pensar, que cede a própria responsabilida- com os tentáculos do ateísmo. Tais almas estão prontas a so-
de e tudo executa mecanicamente, com o menor esforço. No frer, numa unidade de fé, para que o espírito ressurja, uma vez
entanto, problemas graves para os espíritos profundos, que pen- que ele, em todos os sentidos, é a única força que rege e que
sam. Se o imanentismo encerra o perigo da dispersão, o trans- pode salvar a nossa civilização.
cendentalismo conserva o perigo da cristalização. A racionali-
20
zação da verdade pode matar a vitalidade espiritual interior. A ―Muito me esforcei procurando-Te fora de mim, e, no entanto, é den-
definição de normas concretas se arrisca a expulsar a atividade tro de mim que Tu vives‖. (N. do T.)
21
Intuição, ―intus itio‖. Do latim ―intuitio‖ (Caldas Aulete). De ―intus‖
religiosa e a perder o senso íntimo e profundo da Divindade;
(adv.): interiormente, no interior. (Saraiva Dicionário); e ―itio‖ (itio,
acarreta a diminuição do esforço moral, que é o único itinerário onis, de ―ire‖): ação de ir, passos (Idem; ibidem). Assim, pois, intui-
do espírito que deseja chegar a Deus. ção: ação de ir para o interior, para dentro de si mesmo. (N. do T.)
Este é o grave perigo que pesa sobre o cristianismo latino: 22
―Exteriormente, Deus está nas supremas alturas, mas, interiormente,
ausência de espiritualidade, como consequência da solidez da está também no meu coração‖. (N. do T.)
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 121
Trata-se de salvar e de criar a verdadeira civilização. Há ne- tributários. Desconhece, por conseguinte, a desolação desses
cessidade de homens novos, decididos e convictos, que operem estados contra a natureza, as misérias que se verificam nas me-
com métodos espirituais, pois é necessário viver na substância trópoles europeias, asiáticas e americanas. Na América do
do cristianismo. Isto não se pode realizar acusando os outros, Norte, de todas as cidades da Itália se faria uma imensa e
mas ofertando-nos. Portanto menos trabalho para adaptar o monstruosa metrópole, de sete ou oito milhões de habitantes,
Evangelho às nossas comodidades cotidianas, refugiando-nos perfeita em todos os seus serviços centrípetos e centrífugos,
atrás das justificações artificiosas e das argumentações de inte- com monstruosidades de todos os gêneros – do arranha-céu ao
lectualidade raciocinante, brilhantes e eruditas escapatórias à lei subterrâneo – isto é, perfeitamente infernal para a vida, dei-
simples e sublime. Oferta real de renúncia e dedicação, por xando o resto do país desabitado.
amor ao próximo; tensão interior, luta sem trégua, de conceito e A questão, devido à intervenção de eventuais acidentes his-
de obra, para a preparação na Terra do Reino dos Céus. Isto es- tóricos, é menos grave entre nós. O problema demográfico pôde
tá longe do método retórico e das exterioridades, que não pene- topograficamente resolver-se segundo a natureza, não deixan-
tram nas almas. Não se trata de discursar ou de aparentar. Le- do, todavia, de existir. Nos estados novíssimos de além Atlânti-
vemos, diariamente estampado em nossa alma, o ideal cristão, co, a máquina agiu mais profunda e rapidamente, violentando a
sem transigências. Releva personificar e testemunhar o sacrifí- natureza e armando amplas ciladas à vida do homem da civili-
cio como cristão, mesmo na presença das incompreensões e das zação precedente, ainda não preparado para resistir.
condenações. Cumpre saber trabalhar sem ajuda, sem reconhe- Nestes ambientes de produção intensíssima, onde a vida e a
cimento e sem apoio. Urge sofrer pelo bem e servir, mesmo a máquina assumiram um ritmo de febre, sem silêncio e sem des-
quem nos condene. Substitua-se a palavra e a forma pela pró- canso, a saúde da raça se sujeita aos mais graves atentados, não
pria alma e a própria dor. Oferte-se, diante do espetáculo vazio obstante os melhoramentos higiênicos. Verificado que a ten-
da piedade exterior, a sinceridade e a piedade da alma. À religi- dência da concentração demográfica parece uma característica
osidade rumorosa é preciso contrapor o sacrifício, o Evangelho de nossos tempos, pergunto-me a que dimensões atingirão tais
vivido, que edifica e penetra, sem rumor, sublimando cada ato hipertrofias e qual a entidade ameaçadora para a saúde da raça.
da vida. Vamos começar por nós mesmos, a fim de barrar real- Se é fácil, por simples ato de multiplicação, fantasiar a respeito
mente as injunções humanas, cômodas, burguesas e utilitárias. das maravilhas mecânicas das grandes cidades do futuro, é
Estamos excessivamente habituados às convenções de um também fácil, pelo mesmo processo, imaginar quanto poderão
Evangelho transigente, a uma forma de fé segundo a qual nos elas tornarem infernais as condições de vida de seus habitantes.
iludimos de poder alcançar o Céu sem demasiado sacrifício. A Cabe, em nosso país, à sensibilidade da política dirigente, pres-
religião deve consistir numa realização completa, incidindo sentir e afastar todos os perigos.
nos costumes, e não numa série de práticas exteriores que em Observemos com olhos ainda desacostumados de tais espe-
nada modificam os atos e a vida. Não acuso, choro, porque é táculos. Pode acontecer que o bom senso, a voz da natureza,
triste, porque se vai contra Cristo quando se faz da cruz uma voz da saúde moral e física, contrariem a opinião da vantagem
espada para agredir o próximo e da virtude um pretexto de imediata e do aparente bem-estar.
economia de amor fraterno. Dirijo-me, sobretudo, aos homens De fato, a grande cidade, parecendo reunir todos os aper-
de boa vontade e com a finalidade do bem. O inimigo é aguer- feiçoamentos (geralmente não é senão imundície, pelo menos
rido e trabalha com armas de ferro. Não se pode responder em algumas zonas), atrai hoje irresistivelmente a massa aluci-
com armas de papelão. A Idade Média era feroz na Terra, mas nada, que se precipita atrás da miragem, em busca do melhor.
julgava conhecer o Céu, buscando-o em lances frenéticos de É muito discutível que a perda da intimidade com a natureza
paixão. Hoje, nós dormimos; somos utilitários porque o mate- seja compensada pelos artifícios criados pelo homem. A gran-
rialismo nos penetrou. Não nos restou senão um Céu pintado de cidade parece feita para se ver, não para se habitar. Inúme-
com esplendores dourados e voos retóricos de anjos. Enfim, é ras coisas, íntegras e gratuitas no estado natural, são, entretan-
preciso superar esta fé sorridente, cômoda, dourada do século to, mais ou menos adulteradas e custosas nos grandes centros,
XVIII. Precisamos do desprendimento, se queremos sobrevi- onde tudo se monopoliza e se industrializa. Mesmo o que foi
ver amanhã. A hora é dura e intensa. Sigamos o exemplo de dado com fartura e generosidade pela natureza não chega na
Cristo, no caminho da cruz.
cidade senão como artefato adulterado, distribuído com o fim
de lucro e de negócio. Não se sabe se o provinciano que vai à
URBANISMO E RAÇA (1939) cidade para tornar-se menos rude, fazendo holocausto do pa-
trimônio de sua alma virgem e da sua saúde intacta, seja com-
Regressando à minha pátria de eleição, a pequena Gubbio – pensado pela economia conquistada e pela indiferença de espí-
cidade do silêncio – depois de visitar cidades rumorosas, pro- rito adquirida no turbilhão citadino.
pus-me analisar a sensação viva e contrastante de duas tão di- ―Nas grandes cidades das infinitas gaiolas de concreto ar-
versas formas de existência. O homem do século XX escolheu mado de muitos andares‖, diz o Dr. Enrico Gilardoni numa ex-
um modo de viver artificial e distante das leis sadias da nature- posição sobre o problema demográfico, publicada na revista A
za, como o é o caso das megalópoles. Força, de dezembro de 1935, ―o ar é corrompido pelos mias-
O urbanismo é problema de saúde ou doença, de sanidade mas dos carburantes, pelo pó dos veículos e das fábricas, pelos
de espírito e de raça. É, portanto, um problema fundamental; vapores dos termossifões e das máquinas, donde uma ameaça
um dos aspectos do problema da raça e da sua defesa. Falar so- contínua para as vias respiratórias, sobretudo para os seus deli-
bre ele significa versar o problema da educação das massas. cadíssimos cílios vibráteis, que, conquanto deveriam constituir
O urbanismo possui a virtude de nos mostrar, como num a nossa maior defesa pulmonar contra a tuberculose, acham-se
campo de cultura intensiva entre tantas pragas modernas, os já enfraquecidos nas suas preciosas funções da acidose ou da
males que o homem criou com a civilização. hiperalcalose de origem saprofitária e alimentar. Nas grandes
Vive-se ali contra a natureza, em mastodônticos reagrupa- metrópoles, o barulho aturde incessantemente, os perigos sur-
mentos de massas humanas. Afortunadamente a nossa Itália, gem em toda a parte; por isso não são mais possíveis a medita-
devido a complexos equilíbrios históricos, não produziu e não ção e o recolhimento do espírito. Trabalha-se e vive-se quase
sofre de tais tumores sociais, destas hipertrofias demográficas, mais com a luz elétrica do que com a luz solar. Trabalha-se e
monopólios que vivem à custa das áreas restantes, reduzidos e vive-se em completo isolamento do magnetismo terrestre. Não
122 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
falo, por brevidade, dos problemas alimentares, todos por resol- da força. Não basta a máquina do dinheiro, que é procurado por
ver, tanto a alimentação moderna se deformou na oficina indus- todos e utilizado somente para se comprar a mesma mentira que
trial e, depois, na cozinha particular, tudo à base de caixas, de se quis vender. O dinheiro circula; que percentagem de polui-
empacotamentos, de fermentos, de açúcares, de condimentos, de ção circula com ele? Será tal quantia a medida da civilização e
excitantes, de pasteurizações, de esterilizantes, de frigoríficos, da felicidade de um povo?
agravada, enfim, pelo alcoolismo do vinho, da cerveja e dos li- A produção e o consumo direto nos meios menores elimi-
cores, além do alcaloidismo do café, do chá, do cacau, dos aperi- nam os intermediários, os desfrutadores, as adulterações co-
tivos, do fumo e das infalíveis gotas reconstituintes. Alcoolismo merciais dos alimentos, protegendo e simplificando a vida com
e alcaloidismo a que nem mesmo as mulheres fogem... Não me um saneamento automático de todas estas pragas.
refiro aos cosméticos idiotas; aos perfumes asfixiantes, às apa- Além da reconstituição da saúde moral, o contato com as
rências hipócritas, aos disfarces piedosos de tudo quanto é simu- forças e as leis da natureza opera a reconstituição da saúde físi-
lação nas pessoas e às roupas absurdas. Devo, todavia, mostrar ca. A nossa vida, não mais cercada pelas feras e pela espada, é
os enormes danos da difusão entre o povo dos remédios sensibi- hoje cercada pelas substâncias tóxicas da indústria alimentar e
lizantes como as fenacetinas, os calmantes, as aspirinas e simila- por todos os outros artifícios da civilização.
res, já ao alcance de todos, a fim de fugir vilmente à dor, ou seja, Parece que a civilização do urbanismo deseja realizar uma
ao santo grito de advertência e de revolta da natureza, menos- seleção às avessas, destruindo com os seus sistemas protetores
prezada, e ao necessário meio de expiação e de purificação que a os poderes defensivos, com os quais a natureza arma o orga-
natureza exige para nos curar. Devo, outrossim, acentuar os de- nismo para lutar e vencer sozinho. Desta maneira, o homem se
letérios efeitos daquelas antinaturais terapias à base de produtos enfraquecerá e acabará por ter que viver numa campânula de
opoterápicos23, de soros e de vacinas, que presunçosamente a vidro. ―Os débeis‖, diz Carrel no seu livro O Homem, Esse
Escola de Medicina Oficial vai sempre incrementando por via Desconhecido: ―são conservados, assim como os fortes, e a se-
oral, hipodérmica, endovenosa e, até, endorraquidiano‖. leção natural não serve mais. Ninguém poderá prever qual será
Somente quem está ainda imune do contagio psíquico e o futuro de uma raça assim protegida pelas defesas médicas‖.
continua a viver, por convicção, afastado dos grandes centros, Prefiro, como treinamento físico, o frio natural, suportado com
ao chegar a uma metrópole, qualquer que seja, sente o absurdo resistência e com paciência, o frio que Deus nos manda em
do seu sistema de vida. O novato precisa de forte trabalho de harmonia com as leis da vida. Prefiro a fadiga física, que nos
adaptação para poder suportar e depois avaliar esta substitui- ensina a lição da necessidade.
ção do natural pelo artificial, do substancial pelo fictício, do Com o tempo, as reservas válidas da raça encontrar-se-ão
necessário pelo supérfluo. É indispensável certa dose de adap- somente nos campos, onde a pobreza adestra-se na resistência,
tação para renunciar às grandes riquezas da vida, como o sol, o tempera-se nas dificuldades, onde o organismo não está viciado
espaço, a paz, gratuitamente distribuídos a todos como elemen- e inutilizado para a defesa por proteção artificial e complica-
tos de vida, a fim de ir disputá-los depois, numa luta em que o ções antivitais. Nas grandes cidades, tudo coopera para a perda
homem quase se destrói. da grande riqueza: a vida simples, aquela riqueza superior e
Os elementos fundamentais de saúde física são também inalienável que consiste em saber viver desde pequeno por nos-
bons desinfetantes morais; o sol e o espaço afastam o contágio sa própria conta. A grande cidade exalta os valores fictícios,
psíquico e reforçam o ambiente familiar, harmonizando todas especialmente os prejudiciais, raramente os úteis. Surge assim
as expressões da natureza. Ao entrar num destes pátios, para os grande miséria nas altas classes sociais, as mais atingidas pelos
quais se abrem inúmeras janelas de residências populares mo- males do bem-estar. Miséria orgânica e miséria moral.
dernas, não pude deixar de sentir uma sensação de opressão. A ciência moderna praticou o crime de destruir, na doença e
Graças a esta moderníssima caixa, apertam-se como sardinhas na dor, a esplendida compensação moral em que a natureza se
em lata inúmeras famílias, de modo que a forma física e moral reequilibra, pagando-se dos danos na contabilidade divina, que
de cada uma é modelada por contato e por pressão sobre a for- tudo salva quando tudo parece perdido. O materialismo fez da
ma física e moral da outra, o que me lembra os amontoados saúde uma conquista mecânica, observando-lhe somente o lado
cristalinos nos quais o eu de cada indivíduo, cristal, se perde no físico. As consequências de tal rumo agnóstico, que mutila o fe-
amalgama coletivo da rocha. Humanidade em filões, estratifi- nômeno nas suas interdependências, são pagas com as nossas
cada por peso especifico de valor econômico. Estratificação de tribulações. A saúde é um equilíbrio entre forças antagônicas as-
carne e de coisas, de dores e de alegrias, misturados e estra- sistidas pelo fator moral, do qual o materialismo prescinde. É
nhos, amontoados amorfos, organismos sem alma. piedoso o contraste desta realidade com a medicina, que deseja
O dinamismo físico das multidões vibra pelas ruas. Ordem se impor à natureza, forçando o organismo, esquecendo que não
exterior, canalização de rodas e de passos. Interiormente, o ca- se pode vencer senão respeitando as leis da vida. Estas fazem da
os. A grande máquina e a sua carga – o homem – vivem em re- saúde um fenômeno hereditário, preparado diariamente, de gera-
gime de recíproca necessidade, vinculados entre si como dois ção em geração, com a nossa ética alimentar e o regime costu-
calcetas24. Em certas multidões, dominam a cor e o odor psíqui- meiro, onde o fator espiritual e moral possui peso decisivo.
co das fossas. A miséria moral é imensa, triste e piedosa. Sub- Pode compreender tudo isto a nossa humanidade embriaga-
merso e sufocado nesta atmosfera, eu me perguntava com sen- da de velocidade e toda presa à mania aerodinâmica? O urba-
timento de angústia, o que se poderá fazer com esses restos de nismo é cópia febril desta psicologia.
civilização para reabilitar o homem, proporcionando-lhe espa- Desarticulemos a grande cidade que é a praga do nosso sé-
ço, luz, saúde do corpo e do espírito. culo. Salvemo-nos de todas as suas aberrações. A sociedade
Somente a posse de tais riquezas pode extinguir a obcecante atual não possui sequer o senso dos seus perigos. Existe uma
alucinação pelo ouro. Uma fé nos renovará e nos salvará. Mas a única crise verdadeira: a crise da consciência. Existe apenas um
quem podemos pedi-la? Uma fé sem a grandeza do amor não é peso imenso que grava o mundo: a nossa ignorância. Temos
senão respeito fingido pelo temor do dano e pela inferioridade apenas uma coisa a fazer: libertarmo-nos urgentemente, porque
os povos também morrem por falta de consciência.
23
Opoterapia: Tratamento de doença mediante o uso de extratos de Se olho para o alto, buscando uma força auxiliar que já te-
órgãos animais. nha iniciado esta obra e possa dar garantias de continuá-la no
24
Calceta: argola de ferro fixada no tornozelo do prisioneiro, ligada à campo da ideia e da ação, não vejo senão a sabedoria providen-
cintura dele, ou ao pé de outro prisioneiro, por uma corrente de ferro. cial e salvadora de uma lei: a lei divina da vida.
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 123
A EVOLUÇÃO E A DELINQUÊNCIA (1939) ses e impede a expansão das leis naturais. A mesma insaciabili-
dade humana que faz com que o homem aspire latentemente a
Os mesmos atos que, para o homem civilizado, entram no ser o dono do mundo e a mulher a ser a rainha de todos os amo-
campo da delinquência, eram, na fase de vida do homem primi- res, impele a planta e o animal que desejariam, se não fosse a
tivo, atos normais, lícitos, segundo as leis da natureza. Roubar e limitação dos obstáculos, cobrir com a sua espécie toda a super-
matar ainda são para os selvagens a espontânea expressão das fície da Terra. As mulheres e os homens são os próprios vigias
leis fundamentais da luta pela vida e da seleção do mais forte. das expansões das outras mulheres e dos outros homens; daí
O valor do indivíduo, naquele plano da evolução, somava-se no nasce a virtude, que, no fundo, não é senão o ciúme da própria
teor de capacidade para o mal. O inepto – o menos mau – era expansão. As funções de ordem pública são confiadas ao ins-
inexoravelmente repudiado. A natureza, que procura alcançar, tinto e nascem deste primeiro controle de polícia natural. A re-
contínua e impiedosamente, as posições ocupadas pelos valores ação do interesse de todos sobre o indivíduo completa os seus
intrínsecos, não sabia se exprimir, naquela fase involuída, numa instintos. Se, primeiramente, ele compreendeu que o dinheiro é
forma de justiça mais completa. útil e em seguida procurou obtê-lo de qualquer modo, apren-
Numa sociedade primitiva, o indivíduo não existe senão pa- deu, depois, através das sanções sociais, que o dinheiro não é
ra si mesmo. A unidade, a consciência, a função coletiva são verdadeiramente útil, se for roubado. Semelhantemente se dis-
elementos que ainda não apareceram e não se desenvolveram ciplina o instinto do amor, que aprende, sujeito à fiscalização
no germe da vida. As correlações sociais encontram-se no esta- coletiva, a não se satisfazer senão para proliferar. Assim, o
do caótico; as sementes da convivência se chocam sem piedade campo social contém em si mesmo os elementos da sua vida,
na sua fase primordial, antes de encontrar a via da coordenação. da degeneração, da correção e da evolução.
As células individuais não sabem ainda organizar os seus mo- É vão tentar a compreensão e a solução de tais problemas
vimentos e funções em relação à finalidade superindividual, por simples construções ideológicas e por sistematizações filo-
que encerra vantagens e realizações mais altas. sóficas. A expressão exata das questões sociais e, sobretudo, do
Existe, todavia, um grande impulso interior na vida, uma es- fenômeno da delinquência não se pode obter senão cavando até
pécie de vontade e de sabedoria latente que fazem pressão de às raízes biológicas, colocando-nos em relação com a fenome-
dentro para fora, a fim de atingir com mais evidência o campo nologia universal, para a qual é necessário orientar o próprio
das manifestações. Deste mistério, em cujas profundezas reside pensamento. É naquela profundidade biológica que encontra-
Deus, emerge a evolução, incessantemente acossadora e eterna- mos a realidade do conceito diretivo dos fenômenos; não nas
mente construtora de formas de vida sempre mais altas. Deste destilações cerebrais dos eruditos distantes da vida. Somente
modo, a primeira e mais feroz expressão da lei de justiça, regida poderemos compreender a substância dos fatos se os observar-
por equilíbrios rudes e violentos, se adelgaça e se aperfeiçoa. A mos em função desta força evolutiva íntima, que transforma
natureza retoca e completa o impulso primordial da seleção e continuamente a natureza. A evolução animal, antes exclusiva-
eleva a sua lei a um plano mais elevado, pois que a tendência ob- mente orgânica, propensa a construção de formas físicas, en-
jetivamente verificada, no fenômeno da evolução, é a da passa- contra-se no homem atualmente na fase complementar, afeita à
gem de um estado de desordem para um estado de ordem. O pro- construção de formas psíquicas. Neste campo, estamos ainda no
cesso da civilização, que se encontra no âmbito daquele fenôme- período paleontológico, de explosões passionais violentas de
no, consiste na harmonização e na organização; tende à transfor- construções ideológicas monstruosas. Ao defrontar-se com a
mação do caos originário num organismo coletivo. O homem al- disciplina deste novo mundo do espírito, nos seus atuais esbo-
cança a percepção do fenômeno da delinquência somente quando ços iniciais de civilização, o homem se encontra oscilando entre
se congrega em sociedade e concebe o interesse coletivo; nasce duas leis, a da animalidade e a da super-humanidade, duas fa-
então a função social da circunscrição dos atos lesivos à ordem ses, numa posição de transição em que aquelas duas formas de
pública. Não é mais lícita ao indivíduo a ignorância do interesse vida disputam o campo. A delinquência pertence à primeira fa-
de seu semelhante. A ordem pública regula-se por uma consciên- se, involuída, da incompreensão e da ferocidade, que atavica-
cia nova, antes ignorada, porque ainda não nascida; na consciên- mente retorna e sobrevive em desacordo estridente com o am-
cia coletiva, todos os indivíduos se encontram a si mesmos, fisca- biente atual, que luta pela sua destruição.
lizando-se mutuamente. A medida de civilização é dada pelo Unicamente este conceito de transição e de oscilação entre
grau de transformação dos impulsos caóticos primordiais, que in- as duas fases diversas nos explica o contraste, a luta e o fenô-
tegra o indivíduo e suas funções no organismo social, aperfeiço- meno da delinquência. Somente este conceito nos esclarece a
ando-se a forma de luta como elemento da seleção. evolução de formas que tendem a um aperfeiçoamento até que
As suas raízes são de ordem biológica. A natureza quer al- se extinguem. Explica-nos como o mesmo ato homicida, que é
cançar os seus fins supremos: a conservação do indivíduo e da punido como supremamente antissocial quando explode no âm-
raça. Se encontrar obstáculos no seu caminho, procurará de- bito interno de uma sociedade, é, ao invés, considerado heroico
sembaraçar-se deles com violência. Se lhe faltar o necessário e merecedor de prêmio quando surge na defesa de uma socie-
para atingir estes fins, ela procurará obtê-lo com qualquer meio. dade contra outro grupo social. Isto demonstra o quanto é ab-
O trabalho é dividido entre o macho e a fêmea, em duas formas surdo invocar neste campo os princípios abstratos de justiça e
inversas e complementares. O primeiro é feito para a luta, en- como a punição penal corresponde, sobretudo, a um princípio
carrega-se do mister da reprodução e da conservação, pelos de defesa e de interesse coletivo.
quais se arrisca e morre, se necessário; a segunda é feita para a Esta é a primeira base jurídica, isto é, a primeira legitima-
maternidade, soma em si as finalidades da reprodução e da con- ção da ação do direito penal, pois que a natureza impõe, para
servação, por estas também arrisca a vida e morre. Ambos pos- realizar os seus objetivos superiores, certos deveres à vida: a
suem o seu heroísmo inverso e complementar. defesa desta e de tudo quanto lhe pertence. As ideologias são
Estes dois sustentáculos da vida, quando degeneram, tor- neste campo superconstruções a posteriori. Não se discute a
nam-se fatores da delinquência. Quem passa por cima da lei e necessidade de defesa. Unicamente esta base possui a solidez
deseja alcançar a satisfação pela fraude e pelos atalhos mais concreta das razões biológicas. Isto legitima a defesa e trans-
cômodos, é criminoso na sociedade hodierna. Viola-se a lei da forma-a gradativamente em direito.
justiça quando o macho se esquiva ao trabalho e quando a fê- O código penal do indivíduo isolado, no estado primitivo,
mea se furta ao dever da maternidade. Algumas vezes, tal cri- está nos seus braços. Ele se defende como pode, o melhor que
minalidade nasce da injustiça social que oprime algumas clas- pode contra todos. O código penal de uma sociedade evoluída é
124 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
um sistema de normas em que aquela defesa é disciplinada em ficação ética. A evolução comum realiza a obra da pacificação
virtude da finalidade que promove o interesse individual a uma e da civilização interna. Somente dentro desse conceito, a mis-
necessidade mais vasta e mais complexa. são ética e primordial do direito encontra a sua plena justifica-
O conceito da evolução da criminalidade se complica e se ção. O jus25 que não assume as funções de um ascensor para as
completa com o conceito da evolução do direito penal. Falo mais altas formas de vida individual e coletiva e permanece no
sempre em evolução, porque é de das raízes biológicas que os campo utilitário, mesmo sendo socialmente útil, não pode cha-
fenômenos sociais recebem a seiva de que se nutrem; é preciso mar-se legítimo diante das leis da vida. Perante estas a justifi-
vê-los como são, isto é, não como conceitos estáticos, imóveis, cação nasce das necessidades da evolução. Deste modo, o direi-
de categorias fixas, mas como um dinamismo, um transfor- to penal ascende da reação individual vingativa à função coleti-
mismo perene, dinâmico, como um contínuo turbilhonar. Por- va de proteção preventiva, até atingir a função universal ética e
tanto não mais podemos dissociar a evolução da criminalidade educativa. Torna-se menos reivindicatório, mais eficiente prote-
da evolução do seu antídoto social. Ataque e defesa, em técni- tor de ordem e legítimo impulso evolutivo. É sempre menos
ca bélica, relacionam-se mutuamente e evoluem juntos. A cri- força, arbítrio, violência; mais justiça, ordem, pacificação. De-
minalidade varia no tempo e no espaço, como todos os fenô- para-se-nos, assim, a progressiva elevação do direito penal ao
menos sociais; varia com a evolução da psique humana que campo ético, a posse sempre mais ampla de valores morais e a
participa da evolução biológica. Um impulso primordial e co- ascensional harmonização do mundo social.
mum, que faz tudo avançar, até a ciência e as religiões, modi- A primitiva justiça, grosseira no seu direito de defesa, evol-
fica continuamente a forma de ação criminal e, paralelamente, ve para a justiça que permite a justificação do direito de punir.
a forma de seu corretivo: o direito penal. Quanto mais a balança da justiça substitui a espada da vingan-
A delinquência tende a aperfeiçoar-se psiquicamente e ça, tanto mais pesa a responsabilidade moral do culpado e tanto
passar da zona da violência e da ferocidade para a zona da as- menos vale a própria tutela egoística. Na sua evolução, o jus de
túcia; a apoiar-se, paralelamente ao fenômeno guerra, nos re- punir penetra mais a substância das motivações, e o legislador
cursos sempre mais complexos, inteligentes e orgânicos. As inclina-se para o culpado em ato de compreensão, a fim de en-
condições mais refinadas da vida moderna, criadas pela ciên- riquecer a função social da defesa com funções preventivas e
cia e pela máquina, tornam mais sutil a forma de expressão do educativas, porquanto o dever dos dirigentes é o de auxiliar o
homem involuído na sua ascensão.
mesmo instinto fundamental. A forma reagirá, todavia, sobre
As duas ferocidades – da culpa e da punição – abrandam-se,
a substância, modificando as características do instinto. Esta
aproximando-se os extremos e harmonizando-se no seu choque.
mudança de forma é então o primeiro passo para a evolução
Antes de invectivar o involuído, devemos ajudá-lo a evolver,
da psicologia criminal.
antecipando desta maneira a demolição dos focos de infecção,
O direito penal prevê e segue esta transformação. Os códi-
agindo sobre as causas antes de tiranizar sobre os efeitos, pre-
gos envelhecem se não acompanham a evolução da forma de
venindo antes de reprimir. Há no balanço social um tributo
expressão dos delitos, se não se modificam em relação a estes.
anual de condenados, segundo uma lei que as estatísticas ex-
Os códigos modificam-se à medida que a reação social evolui e
primem. É preciso compreender esta lei e depois extirpá-la até
melhora; operam mais lógica e substancialmente e agem em
as raízes. Existem os deserdados cujo crime foi o terem sido
profundidade, dirigindo-se sempre para as raízes psíquicas do marcados, no nascimento, pelas taras hereditárias. Outros são os
fenômeno da delinquência. falidos na luta pela vida, frequentemente com a mesma psico-
Destarte, ação e reação tendem ambas a se deslocarem no logia e valor moral dos vencedores. A delinquência é um fenô-
campo psíquico. O encontro de dois antagonistas em luta se dá meno de involução. É necessário demolir todos os fatores coad-
em zonas sempre mais profundas. O choque tende a perder a juvantes dela. A sociedade possui um dever bem mais alto do
sua nota de brutalidade à proporção que a vida se torne menos que apenas defender-se e isolar-se em segurança: o dever de fa-
física e mais psíquica. O criminoso torna-se astuto para se eva- zer progredir consigo, de arrastar na sua marcha ascensional, as
dir; a norma punitiva toca uma sensibilidade mais excitada, que suas células mais jovens e atrasadas. A alma coletiva tem tam-
exige tratamento diverso. Compreende-se, então, a inutilidade bém as suas tarefas e a sua missão. A posição primitiva satisfa-
das penas cruéis; aprende-se que a ferocidade dos sistemas pu- zia ao materialismo de outros tempos, mas não pode jamais
nitivos é mais efeito dos tempos do que meio apropriado ao ob- contentar e bastar à mais alta civilização do futuro.
jetivo de suprimir a criminalidade. As formas mais violentas
como as torturas, pena de morte, supressões cruéis, caem por SEXTA PARTE – PROBLEMAS ESPIRITUAIS
terra, em desuso ao longo da via do progresso, como folhas
mortas, escórias abandonadas no passado. As normas do direito AUTO-OBSERVAÇÃO DA MEDIUNIDADE (1933)
tornam-se então fatores ativos na construção dos instintos hu- Desenvolvimento espiritual e elevação moral
manos, os quais se adaptam a novos hábitos. E o hábito é como fatores de uma alta mediunidade
transmissão ao subconsciente, reação de automatismo, de novas
qualidades da natureza humana. Donde se conclui que a verda- Sou de parecer que, em certos momentos críticos, o progres-
deira e a mais substancial função de um direito penal inteligen- so da ciência alcança a maturação, enfrentando e resolvendo
te é educar o homem, função mais importante e elevada do que problemas que podem facilmente ser enfrentados pelos métodos
o mal – mal necessário – contido na legítima defesa da coletivi- experimentais ou pela observação, mas carece de diferentes
dade. Função preventiva e criativa que não é senão uma fase do processos para a solução de outros.
mais vasto processo em que se desenvolvem todas as institui- Fatos se nos deparam que não se pode explicar quando so-
ções de um povo, a transformação da força em justiça no pro- mente a sua aparência superficial é analisada.
cesso evolutivo da harmonização geral. Trata-se, em resumo, de Para atingirmos a profundeza das coisas, devemos empregar
um sistema de domesticação da fera humana, de um imenso a alma como instrumento de pesquisa, ou melhor, substituir o
trabalho educativo que se opera por coação pedagógica, inteli- pensamento e a razão – meio analítico – pela intuição.
gentemente aplicada, do pensamento das células sociais mais Uma das formas substanciais desse método é caracterizada
evoluídas às camadas mais baixas da sociedade. pela mediunidade.
O contraste entre ataque e defesa tende progressivamente a
25
esmorecer, e o direito penal encontra nisto a sua mais alta justi- Jus (do latim jus, juris - ou ius, iuris:) direito. (N. do T.)
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 125
Acredito que a mediunidade é fruto de um desenvolvimen- pojar-me das alegrias da minha vida anterior. Ao término desse
to natural, alcançado pelo cérebro humano na sua evolução. A desenvolvimento autoimposto, descortinei, no Natal de 1931, o
vida, sem dúvida, atinge paulatinamente formas mais grandio- primeiro degrau de acesso a um objetivo cujo fim é uma me-
sas, visando cada vez mais a perfeição. O homem do futuro diunidade experimental maravilhosa.
tornar-se-á extremamente sensível e será normalmente um mé- Minha mediunidade é dupla, visual e auditiva. Ouvia uma
dium com outros e mais apurados sentidos, que lhe traçarão voz em mim, inicialmente de mensagens natalinas, e, posteri-
nova e poderosa diretriz de pesquisa, com a qual, sozinho, po- ormente, de mensagens de Páscoa, as quais eram elevadas e re-
derá fazer grandiosas descobertas, utilizando-se de uma direta pletas de bons ensinamentos e pensamentos.
aptidão investigadora do espírito, afastada e independente dos Tentarei a seguir descrever-lhes os meus descobrimentos.
órgãos dos sentidos. Ao contrário daqueles que só gostam de fazer observações su-
As pessoas que alcançaram este alto nível de desenvolvi- perficiais e nos outros, possuo a vantagem da minha própria
mento veem, ouvem, sentem, enfim atingem o seu ser interior experiência e da observação interior de mim mesmo.
verdadeiro, o que não é possível aos portadores de sentidos Não sou sujeito a aparições físico-mediúnicas. Senti que
normais. A recepção de altas revelações independe completa- não as poderia suportar, pois eram violentas demais para mim.
mente dos sentidos. Não caio totalmente em transe. Vejo claramente os pensamen-
Alguns acontecimentos desta espécie foram considerados tos (geralmente abstratos) que escrevo, conforme vão sendo
neurose ou neurastenia e tidos como casos patológicos; na registrados. Eu os vejo como se fora numa despreocupada lei-
maioria das vezes, somente se apresentaram como revelações tura, sem coação.
individuais e definiram a constituição de um novo tipo de ser Enquanto os vejo, não reconheço neles a beleza, a ordem e
humano. o sentido, nem o significado ou o objetivo da mensagem visual.
A mediunidade é, no meu parecer, uma assimilação da ver- Todavia não me preocupo com isso, e aguardo o desenrolar até
dade, claramente recebida e altamente desenvolvida, por seres o fim. Sou somente um assistente passivo e inconsciente.
psíquicos dotados de novas características sensitivas. Logo que volto perfeitamente a mim mesmo, vejo ainda es-
Sou de parecer que isto abrange um desenvolvimento natu- tes pensamentos como se fossem vistos por olhos internos e
ral e que, com o correr dos tempos, os demais seres lá chegarão, profundos. No entanto, isto não é algo visual ou propriamente
porque este fenômeno se realiza de um modo geral. A humani- uma visão. É uma voz que eu vejo, é uma imagem que eu pos-
dade deve alcançar a alta maturação, transpondo um por um os so ouvir. É um sentido do pensamento dentro do meu ser; não
degraus da preparação através das provas, que são absoluta-
são ideias relembradas ou assuntos já discutidos. E isto inde-
mente necessárias para tal fim.
pende do idioma.
Concebi esta teoria através do estudo e da auto-observação,
Sinto intimamente que isto não é do conhecimento diário da
durante um penoso trabalho de mais de vinte anos.
vida. Fico completamente ausente, sem qualquer impressão do
Estou, presentemente, com 46 anos. Aos vinte e dois anos
ambiente humano em que vivo, podendo, porém, retornar a
recebi meu diploma de advogado na Universidade de Roma e,
qualquer momento ao estado anterior. Apesar de estar desacor-
com insaciável sede de instrução, comecei a aprofundar-me de-
dado, não me acho precisamente inconsciente do mundo exter-
sorganizadamente em todos os ramos do conhecimento huma-
no, o qual distingo, embaçadamente, à distância.
no. Quando concentrei meus esforços no sentido de produzir
Obedeço a uma espécie de comando íntimo, que me obriga
uma grande síntese, enfeixamento dos conhecimentos adquiri-
dos, senti que tudo isto nada representava se eu não vivesse a escrever, sem nenhum preparo prévio, acompanhando-o numa
numa nova criação, que me elevasse à positividade. espécie de estado febril, sem fazer alterações ou interrupções.
Esta nova criação deveria ser caracterizada por um desen- Quando a comunicação termina, repouso e leio mais tarde
volvimento espiritual. Senti ao mesmo tempo a falta deste no- aquilo que escrevi. Só então compreendo o inteiro significado
vo tipo humano, que já previra e no qual eu devia me transfor- da comunicação e acho tudo fácil, agradável, e sem necessidade
mar, para provar a minha teoria no campo da prática. Observei de correção alguma, entendo os pensamentos que me são com-
que este desenvolvimento se realizava em todo o lugar, na ci- pletamente novos e que nunca foram do meu conhecimento.
ência, na religião, na filosofia, na medicina etc., e que a evolu- Toda a operação se efetua por si, sem a minha interferência e
ção é a grande lei da vida. sem o meu controle, como se trocasse a minha personalidade.
Eu havia escrito bastante e queria, agora, realizar experi- Meus sentidos, ao iniciar o estado mediúnico, ficam como se o
mentações e provas, para verificar a veracidade da teoria. Ob- centro da sensibilidade se tivesse voltado completamente para
servei, então, que a mediunidade se encontra no fim de uma esse meio de pesquisa. Esse novo centro situa-se nas profunde-
contínua purificação da alma e no desenvolvimento do meu ser zas do meu íntimo, e os seus sentidos são incomensuravelmente
intrínseco, como natural e necessário produto desta conduta. grandes e sinteticamente reunidos. Esta minha personalidade
Precisei admiti-lo, como todo ser humano tem que admitir interna é independente do espaço e do tempo. Experimentei
o seu destino. Neste caminho, transformei-me num homem to- perscrutar campos mais longínquos e descortinei os aconteci-
talmente novo. O meu procedimento evolutivo era para a ci- mentos que viriam depois. Ouço essa voz como se fora outra
ência um enigma, e eu não poderia encontrar nela nenhum au- personalidade, que me é agradavelmente familiar, que me pro-
xílio. Infortunadamente, isto representa um dos erros da ciên- porciona conselhos úteis e protege-me inúmeras vezes do peri-
cia moderna, porquanto não reconhece a grande significação go como se fora um amigo vivo e inseparável.
da moral como fator predominante. Trabalho, agora, numa au- Apesar dessa espécie de amizade, concordamos em nos se-
topurificação progressiva e faço as experiências geralmente parar de vez em quando.
no laboratório das percepções humanas. Os meus instrumen- Vejo, também, ao meu redor, outros seres, que não são no-
tos foram o mal e o bem, a alegria e o sofrimento, e, no decor- tados pelos meus semelhantes. A minha mediunidade cresce
rer dos acontecimentos do meu destino, que também possui a continuamente em estreita ligação com os conhecimentos ad-
sua lei, descobri, ao invés de uma lei insignificante, as gran- quiridos e com a moral da minha personalidade. Isto é notável,
des leis da existência. e a ciência nunca levou em consideração o valor moral como
Comecei a aprofundar-me sempre mais e surpreendi-me ao fator decisivo para qualquer revelação espiritual. Esta correla-
descortinar esse novo mundo de vida intensa, forte, estranha e ção é de tal forma forte, que um lapso moral me traria a perda
de infinitas possibilidades. Para evoluir nesta vida, precisei des- irremediável da mediunidade.
126 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
A minha condição de médium é, no meu parecer, o último do. Foram sempre as classes moralmente menos evoluídas as
degrau de um aspirado descobrimento espiritual e moral, por- mais ansiosas pelos nivelamentos sociais, pelo rebaixamento de
quanto encontrei um entrelaçamento entre esta nova sensibili- todos os vértices e pela supressão de todas as distâncias. Se
dade e a prática de uma vida limpa e virtuosa, mostrando-me olham com desprezo para o alto, na realidade a maior aspiração
a exigência absoluta da reciprocidade entre o ser espiritual é imitar, é fazer-se por elevar-se. A eterna lei do progresso inci-
que fala e o médium que registra as vibrações psíquicas que ta o homem com seu impulso irresistível. A insuprimível neces-
lhe são enviadas. Quanto mais eticamente alto for o transmi- sidade de elevação espiritual, que arrasta mesmo os mais retar-
tente, tanto mais pura deve ser a vida do médium. As ondas dados, arrebanha ainda os mais inertes, porque, um dia, toda
transmitidas devem ser da mesma espécie daquelas ondas re- paralisação e toda satisfação chegam à fase de saciedade e en-
cebidas pelo receptor. joo. Esta universal aspiração de multiplicar necessidades, de re-
Eu, como ser humano, me preocupo, com grande paixão, finar hábitos, de complicar a vida, lutando às vezes mais pelo
em acompanhar os altos seres espirituais nos seus ideais. A mi- supérfluo do que pelo necessário, para tudo realizar e experi-
nha personalidade humana compreende a entidade por intermé- mentar, a que coisa tende senão à conquista de formas de vida
dio da inteligência. Na abstração dos sentidos, geralmente, uma mais complexas, nas quais alcança maior desenvolvimento da
personalidade mais alta se apossa de mim, e assim vejo e reco- consciência? Nada parece interessar tanto à vida quanto este
nheço diretamente o ser noutro ponto de vista. processo de crescimento da personalidade. Parece que não se
Possuo, na maioria das vezes, dois pensamentos em mim: sabe dar outro conteúdo, outro objetivo, à existência do que es-
um inferior, comum, humano; e outro elevado, que transporta ta expansão do eu, que deseja conquistar o universo, esta fadiga
para nova vida de surpreendentes experiências. A alta persona- de criação, necessidade tormentosa da alma, que anseia pelo
lidade vê geralmente o íntimo do ser. supranormal. As grandes necessidades da vida humana não são
As minhas melhores manifestações não foram realizadas nas mais exclusivamente a conservação e a reprodução (conserva-
salas de visitas, onde se reúnem pessoas fúteis para palestrar, ção da raça) senão também o aumento da consciência.
mas sim nos hospitais, onde o sofrimento purifica a alma huma- Quando dizemos consciência, personalidade, alma, espírito,
na e a torna capaz de receber o auxílio moral e material da parte psique, não conhecemos exatamente qual seja a estrutura deste
dos altos seres espirituais que operam por meu intermédio. organismo; sem dúvida alguma coisa muito complexa, que não
Relatarei oportunamente mais fatos referentes à evolução da podemos definir a não ser de modo vago e genérico. Há, na
minha mediunidade26, deixando aqui apenas estas ligeiras ob- personalidade, dois organismos concêntricos, diversamente de-
servações. senvolvidos e amoldados segundo os vários indivíduos, ou seja,
duas consciências: a consciência e a subconsciência.
CONSCIÊNCIA E SUBCONSCIÊNCIA (1930) A primeira é exterior, direi quase de superfície, aquela que
comumente todos adotam no estado de vigília, na vida cotidia-
Em campo algum a desigualdade humana é tão profunda na, nas correlações com o ambiente sobre o qual é plasmada, do
como naquele dos valores espirituais íntimos, que distinguem qual e para o qual é feita. Nada nos autoriza a tomá-la como
a personalidade. Se olharmos a alma, despojada dos ouropéis unidade de medida das coisas. Muitos fatos nos deixam crer
da educação e das convenções sociais; se isolarmos, obser- que ela não esgota toda a realidade e que deixa ainda inexplo-
vando em profundidade, o tipo individual de todos os acessó- rada uma região ainda mais vasta, uma vez que não possui ou-
rios que habitualmente o escondem, encontramos homens da tros órgãos senão os sentidos; tudo o que esta consciência abra-
mais irredutível disparidade psíquica, ainda que a pátria, as ça, apanha e possui, ela o faz por via sensória. Se é precisa e
condições e a família sejam as mesmas. Eles vivem sob seme- concreta, é, entretanto, limitada. Se é positiva e ativa, projeta-se
lhantes aparências exteriores, sob as mesmas leis sociais, pas- para o exterior, que é seu todo e único campo de ação. É a
sam pelos mesmos lugares e nas mesmas circunstâncias. So- consciência da vida e morre com ela.
mente ocultam, na profundidade invisível, um modo diverso A subconsciência é outro modo de ser e de sentir, é uma
de ser, de sentir, de reagir, e uma estrutura espiritual diferente: projeção diferente do eu, em direção oposta, para o interior, on-
a personalidade. Um eu com suas características turbilhona de se encontra uma realidade muito mais extensa. É como uma
sob a máscara igual, niveladora da forma, não da substância. vastíssima consciência de sonho, incerta, evanescente, vizinha
Ao lado de quem vegeta na sua beatitude orgânica, esquivo a do mistério. É outra consciência, situada no polo oposto do ser.
qualquer fadiga de conhecimento e a qualquer risco de ação, O eu oscila entre os dois extremos, entre as duas consciências
outros se agitam por um incessante tormento de criação e não contíguas, em dois mundos limítrofes, um externo e outro in-
podem viver sem a consciência do todo, nem sabem mover-se terno. Duas consciências que, como o dia e a noite, a vida e a
sem que cada ato seu seja uma nota na grande sinfonia da vi- morte, são inversas e complementares e, assim, se equilibram
da. Há os que se saciam de pequenas coisas imediatas, os que como duas metades de um todo. A subconsciência é consciên-
tremem sob o peso das concepções poderosas. Aqui, um espí- cia profunda, um organismo mais íntimo, o ser interior, a ver-
rito embrionário, quase inconsciente, que não sabe viver se- dadeira personalidade, não herdeira nem filha do ambiente. É o
não externamente. Lá, uma alma hipertrófica sente o universo eu com toda a sua capacidade, instintos, aspirações e a trajetó-
se agitar dentro de si e é esmagada num vórtice de sensações. ria do seu destino, o eu que se oculta nas profundezas do ser,
Sob a aparência de igualdade existem distâncias incalculáveis, bem pouco visível e que raramente se revela no tipo comum.
uma substancial diversidade de vida e de destino, que tornam Ela contém e resume todo o passado vivido, a experiência coti-
impossível qualquer nivelamento. diana de inumeráveis vidas. Das inúmeras provas experimenta-
Entretanto o desejo de nivelamento nasce. E nasce num das através do organismo sensório da consciência cerebral,
mundo que, por ser uma corrida para a evolução, não admite qualquer coisa, como a essência destilada, desceu em profundi-
igualdade. Este desejo não representa senão o esforço dos infe- dade ao íntimo e se transmitiu por automatismo ao subconsci-
riores para alcançarem, a qualquer custo, os superiores. A teoria ente sob a forma de hábitos, qualidades, atitudes, instintos, idei-
da igualdade foi sempre a teoria da equiparação do maior ao as inatas. A descida das experiências da vida exterior para a
menor, a teoria do rebaixamento do primeiro a favor do segun- consciência mais profunda, que as absorve, as assimila e as
conserva eternamente, resistindo assim à transitoriedade das
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No livro As Noúres, escrito quatro anos mais tarde, o autor desen- coisas mortais, é um fenômeno maravilhoso, porque valoriza no
volve amplamente este tema. (N. da E.) eterno cada ato da vida, dando a tudo um significado profundo.
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 127
No subconsciente reside o nosso eu verdadeiro e indestrutível, primir todas as sensações exteriores, transferir-se para a outra
aquilo que de nós não perece com a morte. parte do nosso ser e saber descobrir este eu mais profundo que,
Se a função da consciência cerebral e mortal é a de ser ór- em silêncio, vive em nós outra vida. Aquele, porém, que muito
gão externo da subconsciência imortal, um meio para esta to- progrediu, sabendo captar o subconsciente, não viverá mais a
mar contato com o mundo da matéria, um instrumento neces- limitada vida terrestre, mas a vida maior da eternidade e des-
sário à produção e à assimilação de experiências nele adquiri- conhecerá a morte. Este é o grande prêmio, a grande conquista
das, primeira condição para o acréscimo de aquisições, a reali- a que conduz o desenvolvimento espiritual.
dade mais profunda de nosso ser encontra-se no subconsciente. A morte não é igual para todos. Igual pode ser somente o
Aquele crescimento que observamos ser uma das grandes ne- processo de decomposição orgânica. Diante, porém, da sobre-
cessidades da vida é o enriquecimento do subconsciente. O eu vivência, somente um subconsciente desenvolvido não perde a
eterno se veste de milhares de consciências relativas, diferen- consciência, isto é, não se anula como sensação no após-morte.
tes e transitórias, que morrem em milhares de existências. O Muitos dos homens atuais, demasiado próximos da besta per-
que permanece indestrutível, o que recolhe os resultados da vi- dem realmente, na morte, a sua consciência. Outros morrem
da e, assim, avulta e se dilata é o subconsciente, somente o sem perder a limpidez e a potência de vida, porque nem todos
subconsciente. Tudo o mais é transitório, sujeito à lei do trans- sobrevivem igualmente.
formismo fenomênico, que tudo arrasta; deve mudar de forma O progressivo desenvolvimento da sensibilidade, a que nos
tanto mais rapidamente quanto mais nos debruçamos para o conduz a evolução humana, não sendo senão uma contínua re-
exterior, do espírito para a matéria. Das células dos órgãos fí- velação do subconsciente ao consciente, um conhecimento cada
sicos, do sistema sensório nervoso cerebral, até à consciência e vez maior das misteriosas potências íntimas da alma, equivale a
à subconsciência, há uma progressão seriada de veículos ou uma contínua conquista da imortalidade, até que um dia o eu
corpos que se entrosam uns nos outros. tudo saiba. A consciência, hoje tão limitada, dominará inteira-
O subconsciente não morre. Aquele que pode encontrar, mente o subconsciente, coincidirá com ele, e aquele mundo,
através da meditação e da introspecção, o próprio subconscien- ainda tão incerto, das percepções anímicas será claro e eviden-
te, reconstruindo-lhe as sensações, descobre o seu eu eterno e, te. Nesse dia, o homem terá vencido a morte.
quem sabe, as impressões de sua vida no além. Todas as vezes
que, das profundezas daquele mistério que se esconde em nos- POR UMA VIDA MAIOR (1930)
so íntimo, aflora qualquer coisa à superfície da consciência,
temos indício de um mundo distante e inexplorado, de outra É possível, mesmo em condições de ambiente mais simples
vida oculta que vivemos. Mas nem todos somos iguais. Em al- e vulgar, viver além dos terrenos restritos das pequeninas coisas
guns, o subconsciente é tão desenvolvido, as sensações do es- que nos cercam, num mundo imensamente mais vasto. Não im-
pírito são tão potentes, que a vida interior é evidente, e já vi- porta tanto a grandiosidade exterior dos acontecimentos que vi-
vem na Terra a vida que está além da morte, na eternidade. vemos, quanto a profundidade com que os sentimos. Não nos
Outros, cujo subconsciente é apenas esboço embrionário, não detenhamos à superfície; é necessário penetrar a substancia das
encontrando dentro de si nenhuma sensação, nem traços de vi- nossas vicissitudes. Então, os fatos mais comuns da vida cotidi-
da interior, negam naturalmente tudo o que não podem com- ana, as infinitas particularidades, imperceptíveis para muitos,
preender, porque toda a atividade consciente se desenvolve no revelar-nos-ão a ação das grandes forças do universo, o desen-
mundo exterior. A sua alma rudimentar não sabe reger-se sozi- volver do nosso destino e a grande meta distante que vai além
nha e morre, como consciência, na morte do corpo. Outros, em da vida, numa férrea logicidade e justiça. Poderemos, desta
posição intermediária, que é de criação e de conquista, tentam maneira, não só transcender livremente à vida comum, mas va-
sondagens neste arcano íntimo, onde cintilam clarões de luzes, guear no mundo vasto e rico de novas sensações e emoções,
revelações parciais, que alvoroçam o ser com profundas emo- expandindo-nos em vida maior. Existe, além das aparências,
ções. Os contatos fugazes com o invisível, reveladores do sub- uma realidade mais profunda nos máximos como nos mínimos
consciente são, às vezes, estados de sonho, ou movimentos ins- fatos. Há na interpretação comum das coisas um sentido que se
tintivos, ou inspiração. Aquele aparece, então, com meios e expande através das causas e se esconde no mistério. Nos basti-
funções próprias, na consciência cotidiana, exorbitando os li- dores da vida está uma realidade mais sutil, mais verdadeira,
mites da percepção anímica, tipicamente superior à normal. No que encerra o porquê de todas as coisas. É a realidade do espíri-
subconsciente, se o sabemos sentir, gravou-se o segredo da to, a verdadeira e eterna realidade da vida. Lá se movem os fios
nossa vida, traçou-se a trajetória do nosso destino, oculta-se o que condicionam os grandes e os pequenos acontecimentos dos
porquê dos nossos acontecimentos, vibra a lembrança do nosso povos e dos indivíduos. Lá está o porquê das nossas alegrias,
eterno passado, permanece a sensação daquilo que fomos antes triunfos, dores e derrotas. Pode-se desta maneira dar aos fatos
de nascer e daquilo que seremos depois da morte. No subcons- mais simples horizontes infinitos. Na simplicidade interior vi-
ciente, se o soubermos encontrar, reside o segredo da identifi- ve-se no eterno e em contato com o divino.
cação de nossa individualidade eterna, a bagagem de sensações Como encontrar esta realidade mais profunda e esta vida
com que sobreviveremos. ―Conhece-te a ti mesmo‖. Fato estri- maior? Nas regiões do espírito. Ela é um produto espontâneo,
tamente pessoal, colóquio íntimo do ser que se interroga a si oriunda do subconsciente; é o clarão da revelação interior que
mesmo – ―vedado aos estranhos‖, experiências que não se po- ilumina tudo de uma luz nova. Traduz-se em dulcíssima revela-
dem ensinar nem demonstrar a quem não saiba alcançá-las por ção de paz, em majestosa sensação de infinito, na contemplação
si mesmo. Não é fácil ser lúcido no subconsciente, saber fazer de um panorama imenso. Entramos em colóquio com a alma do
funcionar esta consciência profunda, explorar por meio de uma criado, privilégio dos artistas; surgem percepções novas de todas
sensibilidade tão diferente um mundo tão móvel e tão vasto, as forças infinitas da vida, fortalecendo a alma para a luta; sur-
que parece fugir ao controle de qualquer indagação, relatar a preendem-nos confortos e alegrias espontâneas. Os silêncios po-
lembrança de tudo isto à consciência exterior. É por isto que se voam-se de vozes; as solidões, de movimentos. As dissonâncias
evita a utilização do subconsciente na vida prática. Não sabe- se desfazem em harmonias; o sofrimento, em alegria. Então, as
mos confiar-lhe um trabalho intelectual, que resultaria sem fa- portas do mistério se abrem; a nossa pequena vida se dilata na
diga e sem consumo de energia nervosa. As duas consciências, vida maior, e olhamos o seu interior estupefatos e inebriados.
sendo inversas, eliminam-se; a subconsciência não aparece en- Vemos agora até aonde iremos, a última etapa da nossa meta. A
quanto a consciência está em funcionamento. Não é fácil su- alma nos responde e adverte-nos com aquela sua voz de seguran-
128 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
ça que jamais mente. Esta voz possui um timbre todo particular vida é a preparação de um mundo maior para os nossos filhos.
que a identifica. Então, o espírito articula uma prece na qual não Preparação que é fadiga e luta. Trabalho demorado, que absorve
se invoca um Deus externo, para acudir a um interesse próprio e energias e exige sacrifícios, mas que dá os resultados mais segu-
mais ou menos imediato; sente um Deus interior, que se ama ros. Somos filhos das nossas ações. Para colher, é necessário
sem reservas e se compreende, numa fusão completa. semear. O problema da felicidade torna-se sempre mais comple-
Eis alguns aspectos individuais da vida maior. O fator psí- xo, e é urgente prever. Se a nossa sociedade se sente cheia de
quico e espiritual é conduzido aos primeiros planos para que preocupações e tão insegura nos seus prazeres, é porque a maior
nos seja proporcionada a entonação de toda a existência. Quan- parte das nossas alegrias é de origem precária, filha do egoísmo,
tos caminhos, porém, para alcançar a compreensão destes esta- e lesa as leis do equilíbrio universal. Aquilo que começamos a
dos de ânimo; que profunda educação psicológica, moral e ar- fazer livremente, depois nos circunda, nos liga e nos escraviza,
tística é necessária! Posições inadmissíveis para muitos. Entre- seja para o alto ou seja para baixo, até às últimas consequências.
tanto, o futuro da vida é este, estas são as formas buscadas pelo A vida é um caminho; cada volta é uma prova. Cada ato possui
progresso coletivo e pela evolução individual. O progresso do seu valor moral, cada acontecimento seu significado recôndito,
mundo não é somente mecânico, nem colima somente a perfei- como parte de um esquema maior, que se projeta na eternidade.
ção mecânica. Atrás deste se encontra um progresso muito mais Ninguém, neste mundo, se encontra sempre no posto exato de
substancial, que é o progresso espiritual e moral. As conquistas maior rendimento em relação às suas qualidades. A maior parte
materiais não podem deixar de reagir sobre o espírito. Quanto das energias se desperdiça nos atritos da luta, razão pela qual o
mais a civilização progride, mais o homem se apercebe de que, que interessa não é a utilização imediata da capacidade adquiri-
além, existem outros problemas; quanto mais se apura, mais da, mas a criação e a aquisição de novas qualidades através de
sente a urgência da solução. Quando um dia a humanidade tiver novas experiências. Se olharmos mais profundamente, encon-
resolvido, de forma universal, o problema econômico, com o trar-nos-emos no melhor posto, no de melhor rendimento diante
domínio das forças naturais, então se disporá a lutar seriamente do futuro. A verdadeira construção não está mais no efêmero
e em escala mais ampla pelo problema intelectual e moral, que triunfo dos resultados exteriores, mas sim em nossa alma, como
hoje é apenas um pressentimento. O futuro do mundo não é qualidade adquirida e como produto eterno. Esta é a vida maior.
como o concebeu Wells – hipertrofia do progresso mecânico – Ela não significa obtenção de vantagens, de prazeres; possui li-
mas a afirmação dos valores do espírito na coletividade. mites e fins mais vastos. Contém um programa de criação espiri-
Hoje se luta; lutamos todos, mais do que os nossos avós. tual, estende-se na eternidade, conquista, além do átimo evanes-
Amamo-nos. Odiamo-nos. Em qualquer circunstância, por cente e fugidio, a realidade imperecível. Luta e agita-se por uma
qualquer objetivo, porém nos abraçamos. A alma coletiva quer única finalidade: a realização de um ideal.
nascer; sempre nos sentimos incompletos diante da necessidade
de elaborar esta alma. Quanto mais evoluímos, mais nos senti-
A RECONSTRUÇAO DO TÚMULO DE
mos sintonizados e mais procuramos no próximo o nosso com-
SÃO FRANCISCO
pletamento. Somos compelidos a incluir em nossa vida uma do-
Um grande erro psicológico (1930)
se sempre maior de altruísmo, pois temos necessidade uns dos
outros, se bem que o egoísmo atávico nos divida. Todos senti-
mos falta de alguma coisa, que pedimos. Todos possuímos al- Revi hoje a nova cripta do túmulo de São Francisco. O olhar
guma coisa, que devemos dar. Esta compreensão de almas é espiritual, habituado a localizá-lo naquele ambiente onde o
necessária ao futuro da humanidade; do caos hodierno nascerá mundo o viu durante cem anos, ficou surpreso e desorientado.
um verdadeiro organismo. Somente da compreensão pode nas- Não se trata de discutir aqui as linhas arquitetônicas, as propor-
cer a coordenação, e desta, um funcionamento orgânico. Não se ções, o estilo, as cores ou coisas semelhantes. Sob o ponto de
trata somente de questão de psiquismo, de intelectualidade, de vista artístico e segundo os conceitos atualmente em voga, não
saber. O que tem importância na evolução do mundo são os fa- se teria, talvez, podido desejar nada de melhor. Harmonizou-se
tos interiores, dos quais depende todo o funcionamento social. o estilo da cripta sagrada com o de todo o imenso edifício das
Bastam poucas ideias simples, mas sentidas e vividas em larga duas igrejas. A sinfonia arquitetônica dos três templos, sobre-
escala. O que importa são os sentimentos de bondade e retidão postos como três vozes presas no hino da rocha emergente para
que cimentam e consolidam as relações sociais. As formas ex- o céu, é magnífica. O simplismo oitocentista, com a sua inge-
teriores das convenções coletivas não se equiparam aos impera- nuidade artística de querer inserir o estilo clássico no coração
tivos morais. Tudo converge para o mesmo ideal: o progresso de uma basílica trecentista, é uma dissonância que fere a nossa
mecânico nos liberta do trabalho material e embrutecedor; a mais refinada sensibilidade estética.
cultura nos torna mais espirituais; a finura das hodiernas condi- Tudo isto é indubitavelmente verdadeiro. Embora eu me
ções de vida sensibiliza o nosso sistema nervoso, que é a base sentisse otimamente predisposto – não obstante a recordação
da alma. Uma sensibilidade nova, talvez hipertrófica e mórbida do traçado da igreja, já observado com satisfação outras vezes
na impetuosidade do seu nascimento, assenhoreia-se do mundo – provei uma desilusão diante da realidade da cripta refeita.
e revolucioná-lo-á. Assim como nenhum ser humano, hoje, su- Por quê?
portaria os sistemas penais fundados na tortura, um dia também Uma primeira sensação, digamos de óptica, exterior de vas-
não haverá mais interesse ou vantagem, por mais forte que seja, tidão e de solidão nasce das razões seguintes.
que obrigue a humanidade a fazer uso das guerras. Estas não A cripta é maior, o que diminui a importância da coluna
desaparecerão graças a acordos internacionais, que não modifi- central onde está o túmulo, reduzindo-lhe a imponência. As pa-
cam a mentalidade humana, mas somente em virtude da nova redes, diferentes das antigas, agora se aproximam pela cor escu-
sensibilidade que dará ao homem civil o terror por qualquer ato ra e pelo material de construção (pedra) da cor e do material da
de violência. A ciência, por seu lado, aumentará a tal ponto o coluna central, de que resulta menor realce ao túmulo.
poderio de destruição, que o homem será constrangido a desis- Mas estas impressões de óptica podem ser colocadas em se-
tir da violência, que redundará sempre em dano coletivo e total. gundo plano diante da sensação principal, a mais forte, de cará-
A luta subirá, então, para o plano de problemas mais elevados, ter espiritual, a sensação de frio, de vazio, de desolação.
ainda não pressentidos hoje. Uma riqueza preciosa demolimos e perdemos irremedia-
Eis alguns aspectos coletivos da vida maior. Individual e co- velmente com a interposição desse estilo anacrônico – a aura
letivamente, todos somos construtores; o verdadeiro trabalho da psíquica do santuário. Lá onde o espírito sentia calor, agora sen-
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 129
te frio. Lá onde havia a enchente de sensações, agora é a vazan- O estilo trecentista é lindo, mas no seu século. Agora é um
te, ainda mais sensível devido ao atual maior espaço material. anacronismo, construções de estilo trecentista, feitas quando os
Lá, onde nos sentíamos irresistivelmente arrebatados por um materiais e as necessidades eram tão diferentes, executadas em
ímpeto de fé, agora é palidez e desolação. pleno século vinte. Não sei o que dirão os pósteros desta imita-
Eu sei que tudo isto é sutil, evanescente, impalpável para ção, que demonstra a incapacidade de criar um estilo próprio,
alguns, e que deveria parecer desprezível em nossos tempos como todos os séculos o possuíram.
práticos e concretos. Disto não cuidam comissões de arte ou de Respeitemos, veneremos o estilo antigo, restaurando, reto-
arquitetos, naturalmente porque assim pensa o nosso século. cando e, sobretudo, conservando. Abandonemos a ideia de po-
A culpa, portanto, não é de ninguém em particular. Mas não der fabricá-lo hoje como qualquer produto industrial. Se certas
justifica o maior erro psicológico na reconstrução do túmulo de pinturas e arquiteturas nos atraem hoje é devido à maravilha do
São Francisco. A fé é fenômeno psicológico. Todas as vezes tempo que as dignifica, um período histórico denso de paixões,
que desejamos retocar um lugar desta natureza, é necessário e nelas andamos à procura de uma fé perdida.
tomar em consideração, sapientemente, as complexas e delica- Agradam-nos, por certo, linhas que pareceriam ingênuas e
das leis deste fenômeno, a fim de evitar danos irreparáveis, tal primitivas se executadas hoje. Se isto, no geral, é verdade, de ca-
como ocorreria caso alterássemos, sem atentarmos para as fi- pital importância será então para os lugares sagrados, onde a exi-
níssimas delicadezas acústicas, a forma do Scala de Milão ou o gência artística é subordinada a um fator muito mais importante:
feitio de um precioso estradivário. A fé, como todos os fenô- o fator psicológico. Repito: o que torna grande os santuários não
menos, possui as suas leis, e estas devem ser respeitadas. é tanto o vulto, a beleza das construções, a perfeição da arte, mas
sim a presença deste imponderável acumulado, alimentado pela
Tirou-se ao túmulo de São Francisco a sua característica
crença dos povos, reservatório de onde lhes emana a fé.
mais preciosa e mais bela, ou seja, a alma do lugar, aquele im-
Este imponderável será inconsciente e irremediavelmente
ponderável e invisível que atraía o mundo. O ruído de demoli-
prejudicado nestes casos, ainda quando obedeçamos às melho-
ção e reconstrução em torno do túmulo do Santo já foi uma
res intenções e aos critérios artísticos mais perfeitos.
profanação.
Duas considerações importantíssimas foram menospreza-
OS IDEAIS FRANCISCANOS DIANTE DA
das: 1) Um lugar sagrado é mais do que um recinto de arte;
PSICOLOGIA MODERNA (1927)
qualquer dissonância artística pode ser largamente compensada
por uma harmonia de fé; 2) A grandeza de um recinto de fé é
absolutamente independente da arquitetura ou da suntuosidade Seja-nos permitido falar de São Francisco, não como fenô-
e, muitas vezes, está na razão inversa destas. Frequentemente, meno histórico ou religioso, mas unicamente do Santo de Assis
como fenômeno espiritual, como fato psicológico daquilo que
alcançamos efeitos indesejáveis com muitas reconstruções, am-
não é lenda, erudição, culto, mas drama da alma, a tremenda re-
pliações e embelezamentos de recintos sagrados. Conforme
alidade interior, realidade que transcende os limites do ambien-
demonstrou Cristo, e depois São Francisco, a fé reside na inti-
te histórico no qual se manifestou. Realidade sempre presente,
midade do templo do coração e das obras. Somente, por último,
atual e vital, o fenômeno que supera o tempo e situa-se na eter-
nos majestosos edifícios.
nidade. Pode-se chegar a São Francisco utilizando-se, além dos
Na reconstrução do túmulo de São Francisco, tudo foi sabi-
meios usuais da análise histórica e do sentimento coletivo da
amente executado no que se refere à arte, ao trabalho, ao que,
religião, a via inusitada da intuição pessoal.
enfim, o dinheiro pode realizar, tendo sido, porém, destruído
São Francisco não é, de fato, filho exclusivo de seu século,
aquilo que era o sentimento do santuário, o que nos convida a mas de todos os tempos; vive também hoje, entre nós, sem ana-
orar e abrir a alma a Deus. cronismo. Se o desejamos entender não como pessoa, mas como
É certo que modificar alguns lugares santos, onde a alma conceito, sentiremos que Ele é permanente, atua em nosso meio
humana se refugia para se encontrar a si mesma e, no milagre como força social, cuja função histórica não se exaure jamais.
da fé, penetrar o mistério com o tato do artista ou do gênio, é Existem, na intercadência das perecíveis formas relativas, postu-
assunto para arrepiar os cabelos de qualquer homem conscien- lados eternos e absolutos, que superam a morte e nunca se esgo-
cioso, pois se trata de um problema que sobre-excede em im- tam completamente. Há movimentos psicológicos, individuais
portância qualquer questão de arte. ou coletivos, que volvem em ciclos, como se fossem fases da vi-
Num santuário, há algo mais do que as linhas arquitetôni- da coletiva, como se possuíssem um significado biológico, como
cas, os preciosos afrescos ou quaisquer tesouros de ouro e ge- se fizessem parte integrante do movimento harmonioso e equili-
mas. Alguma coisa o torna diferente de um recinto de arte, mui- brado das leis evolutivas da grande vida da humanidade. São
to maior do que o possamos encontrar alhures, valendo mais do Francisco, assim considerado, é um fenômeno atual, que se acha
que tudo e bastando por si só para fazer dele o lugar para onde sob as nossas vistas e que podemos observar diretamente. À se-
convergem as gerações. melhança de Cristo, é um conceito que jamais morre. Não morre
Este ―quid‖ imponderável forma-se lentamente com os sé- nunca porque o ideal faz parte integrante da vida humana, que
culos e é mais complexo do que a chamada pátina do tempo, tende, através dos séculos, a fazer-se cada vez mais espiritual.
que se deposita igualmente sobre os edifícios profanos. Para Se o materialismo floriu e a civilização mecânica frutificou,
formá-lo, é necessária a visitação das multidões genuflexas, não saciaram a nossa alma, que, cheia de fome e de nostalgia,
transmitindo e acumulando numa dada ordem as vibrações, as esmola entre as velhas muralhas o perfume de uma fé que parece
quais se manifestam na ação sugestiva do lugar. perdida para sempre. A humanidade tem fome de ideais e está
Ao transpor a nova cripta, senti que todo aquele perfume es- presa pela preocupação econômica e mecânica. Não é lícito,
piritual se desvanecera. A bela pedra esquadrejada e sabiamente nem mesmo por inconsciência, esquecer que as leis da vida pro-
disposta podemos colocá-la em qualquer subterrâneo; é uma pe- curam um equilíbrio e que qualquer abuso é logo corrigido com
dra ainda muda e assim permanecerá até que gerações e gerações uma reação. O premente mistério da vida ensinou também que a
a consagrem, dando-lhe uma voz que por enquanto lhe falta. alma individual e coletiva, para viver, têm necessidade destas
Perguntei a mim mesmo se os afrescos poderiam modificar inelutáveis aspirações, sem as quais elas não se governam, não
a impressão. Imitar ricamente vale tanto quanto imitar pobre- caminham e não podem enfrentar confiantes o problema do fu-
mente. No hodierno retorno ao estilo trecentista predominam turo. A riqueza e a vertiginosa atividade dos nossos tempos dis-
as imitações, que, quando exageradas, fazem o olhar do obser- simulam uma dolorosa miséria interior, uma espécie de impo-
vador desejar outros estilos. tência espiritual para a elevação moral. Afogam-se todos num
130 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
imenso pântano de materialismo, onde jazem mortas as grandes Quando São Francisco, reeditando o Cristo, aconselhava a
alegrias da alma. O nosso progresso é aleijado; é hipertrofia pobreza, a castidade e a obediência, punha neste ideal a nega-
econômica e mecânica, que não compensa a atrofia espiritual, o ção absoluta dos instintos fundamentais da vida, dos instintos
grande mal dos nossos tempos. Diante desse mal agudo, volta- que o homem não inventou para si livremente, mas que lhe são
mos as nossas vistas para a fé dos tempos distantes e tenebrosos herança da longa evolução biológica. Instintos naturais, isto é,
da Idade Média, para as austeras e antigas catedrais, que pare- dados por uma lei da natureza – culpas e baixezas de que o ho-
cem, somente elas, depositárias de algum segredo. Triste e bela mem se deve despojar para ascender. São Francisco substituiu
a humilde e nostálgica procura da fé em séculos mais bárbaros por três renúncias, por três votos e por três negações o progra-
que o nosso. Tornamos a exumar avidamente, para interrogá-las, ma da vida secular, universalmente pregado em todos os tem-
as desajeitadas figuras trecentistas, formas toscas, filhas de uma pos, em nosso mundo. Por que tão radical e sistemática destrui-
técnica primitiva, de cujo estilo talvez nos ríssemos se não hou- ção da natureza humana? Podemos revogar as leis da vida,
vesse tanta fome de fé. Interrogamos a história e os documentos quaisquer que sejam, em nosso planeta? Aonde se deseja che-
para reconstruir e reviver aquilo que perdemos. À misteriosa gar com isto, e que se poderá colocar no lugar daquilo que se
alma distante do Santo de Assis pedimos, sobretudo, o segredo renegou? Quem é o Santo, e que pretende ele das grandes mas-
da sua paz, que há muito não possuímos. sas humanas, inertes como montanhas? O que representa na
A figura de São Francisco, assim concebida, não no limita- história da humanidade a figura deste pioneiro do ideal, que
do fundo histórico do seu século, mas no fundo apocalíptico da caminha na vanguarda do futuro?
história da humanidade, é de uma grandiosidade imponente. Estas são perguntas que o homem de outros tempos não sen-
Na intimidade desse fenômeno psicológico, sente-se o dra- tiu necessidade de responder, mas que nós nos fazemos angus-
ma do espírito individualmente vivido, sobretudo pelo Santo de tiosamente. Certamente, é necessário um esforço para sair do
Assis, que, num paroxismo de paixão, sozinho, elevou à onipo- dilema da interpretação dos séculos. A figura do Santo forra-se
tência a alma humana, fortalecendo a mente e o coração. Seja- da nebulosidade do misticismo e das concepções tradicionais da
nos permitido observá-lo como fato individual, no seu primeiro fé, distante da vida no mundo objetivo e positivo das leis bioló-
e excelso representante, assim como nas tentativas e reprodu- gicas. Para expor um conceito novo, é sempre necessário cons-
ções individuais dos sectários e imitadores. Permita-se-nos per- truir desde os alicerces. Vias desconhecidas, vias perigosas, é
guntar, com aquela franqueza que os nossos tempos exigem, evidente, mas vias novas, audazes e mais profundas, que termi-
sem os ornamentos da retórica e o peso da erudição, que signi- nam na eterna apoteose do Santo.
ficado teria, na alma do Santo, a sua psicologia de exceção e Firmemo-nos em critérios e conceitos cientificamente obje-
como o entenderá aquele que intente imitá-lo. tivos, a fim de que a nossa fé não seja uma sentimentalidade
A figura de São Francisco representa, por outro lado, um pessoal e evanescente, mas possua, ao contrário, as bases sóli-
fenômeno psicológico coletivo; transforma-se em conceito que das da razão e da indagação positiva.
supera o tempo e é sempre atual; torna-se símbolo de ideias e O século dezenove criou, com Darwin, a teoria da evolução,
tendências da sociedade humana, fazendo parte das leis do demonstrando-a no campo biológico. O cristianismo já o havia
progresso. Em suma, é uma força biológica evolutiva na histó- afirmado no mundo espiritual, falando-nos da escola da dor e fa-
ria da humanidade. zendo objetivo da vida o aperfeiçoamento moral. Os dois concei-
Este exame será conduzido por meio de conceitos absolu- tos que, no último meio século, foram considerados opostos e
tamente modernos e científicos, tratando-o como fenômeno inimigos, constituindo pomo de discórdia entre duas escolas de
eterno e permanentemente verdadeiro, embora ―traduzido‖ na pensamento que se guerreavam, o materialismo e o espiritualis-
linguagem diferente da psicologia moderna. Somente assim po- mo, não são senão o mesmo conceito de progresso, tão espontâ-
deremos atingir o alvo que colimamos: reviver na atualidade a neo e instintivo, que se nos imprimiram no corpo e na alma. Bio-
palpitação de um fato distante, misturando o fenômeno psicoló- logicamente, o homem é o resultado de longa evolução animal.
gico da vida interior de um santo com a nossa vida interior, in- Espiritualmente se afastou do mundo animal, do qual emergiu
dividual e coletiva. graças ao sistema nervoso, à psique, ao espírito, à alma. Compôs
Para isto, é necessário um trabalho de apuração. É preciso o quarto reino – depois do mineral, vegetal e animal – o reino es-
abolir, por um momento, os sete séculos que nos distanciam do piritual, uma raça que possui em si o divino; um divino ainda não
drama real; séculos que o observaram, interpretaram e senti- emancipado da animalidade, mas que, por esta emancipação, e
ram diversamente. A nossa interpretação será mais rude, mais somente por ela, luta desesperadamente, todos os dias.
franca; sem dúvida, mais profunda. O clarão rápido do gênio Basta isto para integrar em nossa mentalidade cientifica a
foi assimilado durante longos séculos pela alma coletiva. A concepção do fenômeno da santidade. Em que pese a Lombroso
tradição, a literatura, a religião, partindo de pontos de vista di- ou à medicina moderna, o santo é um ser superior, e não um
ferentes, construíram um edifício cujo peso a força de um só anormal ou um doente às voltas com a neurose, não um expulso
homem não pode suportar jamais. Façamos abstração, por um da vida, um pária diante da normalidade medíocre, vil e inepta,
momento, de tudo isto, porque o monumento grandioso e de que se julga com o direito de decretar as leis da conduta humana.
imenso valor nos impede de ver a nudez do conceito originá- Tal conceito é antivital, é monumento da imbecilidade humana.
rio, impede-nos de ver com os nossos olhos, de sentir com a O santo é o supremo ideal, o pioneiro do futuro, uma antecipação
nossa alma, de julgar com a nossa mente, por inadaptação às no tempo, uma perfeição ainda não alcançada pela mediocridade
necessidades dos nossos tempos. Examinemos a psicologia do humana, mas somente pelos maravilhosos e singulares seres de
Santo de Assis com olhar mais penetrante do que o dos séculos exceção, já no ápice da escala evolutiva. O santo é um herói e um
passados, e talvez sintamos em nossa própria alma o arrepio de mártir, porque sacrifica todas as suas alegrias e toda a sua vida
um drama que, posto a nu, será mil vezes mais verdadeiro e para realizar de forma concreta as instintivas antecipações do fu-
maior. São Francisco não será o fenômeno histórico ultrapas- turo, que são os ideais; arrasta, não com palavras vãs, mas com o
sado, mas um ser que vive conosco, que palpita com os tor- exemplo de um caso vivido, as grandes massas humanas ignoran-
mentosos problemas da nossa alma e os resolve. Observemos a tes, vis e inertes, pela via dolorosa e luminosa do aperfeiçoamen-
paradoxal negação dos instintos humanos, o radical trasborda- to e do progresso. O santo é um gênio. Há os especializados no
mento de valores que, seguindo as pegadas do Cristo, foi São campo do pensamento abstrato, da arte, da ciência; grandes, mas
Francisco. Aquilataremos, então, sua influência revolucionaria unilaterais, incompletos. O santo é grande no campo ético, lá on-
nas almas individuais e na alma coletiva. de se alcança a última síntese de todas as aspirações humanas in-
◘◘◘ dividuais e coletivas, o ideal que mais interessa à humanidade e
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 131
comove os séculos, porque é o resumo de todas as conquistas humana. Dor sapiente, que transpõe todos os umbrais, penetra
humanas na peregrinação para o Alto. todos os corações, sem que a sabedoria, a riqueza ou o poder
O santo se nos apresenta na ribalta da vida, levando consigo possam resistir-lhe. Onde quer que surja, abala e destrói; a sua
uma concepção própria. Vimos o que é o santo em si. Observe- escola consegue amadurecer todos sem distinção, ponderada-
mo-lo agora em relação àqueles que se chamam, individualmen- mente e segundo as forças de cada um! A dor, força providen-
te, os seus semelhantes; em relação aos homens que estudam a cial, impõe a todos um mínimo obrigatório de aperfeiçoamento.
nova e estranha psicologia. Admirando-se por não encontrarem É a primeira prática da virtude, direi quase forçada, um mínimo
igual ressonância da lei dentro de si, chamam-lhe louco, escar- de renúncia às alegrias materiais, que nos encaminham à grande
necem dele primeiro, para depois ficarem atônitos e maravilha- renúncia e ao grande superamento do ideal franciscano.
dos, terminando sempre na veneração. O santo combate todos os Daquele mínimo obrigatório a este máximo voluntário, exis-
instintos e tudo renega para reafirmar-se no mundo superior, te uma série de lutas e de esforços em todos os níveis, com infi-
obediente à nova natureza e segundo nova lei maior e mais livre. nitas gradações de velocidade e acelerações sobre o caminho da
O santo ousa, sozinho, rebelar-se contra as forças tremendas que evolução. Há o que vai lentamente e o que tem pressa. Há o que
são as leis da natureza, as leis da animalidade ainda não supera- desejaria voltar atrás para revolver-se na lama e o que segue em
das e vencidas. Ele, neste sentido, é o maior lutador e triunfador, marcha forçada, ardente e consumindo-se na avidez espiritual.
porque não escolhe para inimigo os homens, como o fazem os Tanto aspira ao Alto, que tenta quase forçar as leis da vida para
lutadores da Terra, mas as forças cósmicas. Não conquista os chegar logo. Cada um executa o seu trabalho segundo as suas
povos, mas muito mais, as leis biológicas. É reformador e revo- próprias aspirações e recursos.
lucionário porque revolve, destrói e reedifica a própria natureza Observemos um instante a fatigante ascensão do homem
humana. É o libertador, no sentido biológico, o único verdadei- curvado sob o peso da própria evolução. O espetáculo desta po-
ro; é o redentor da humanidade. O Evangelho do Cristo e a vida bre raça humana, assediada por milhares de necessidades,
de São Francisco não são senão o código e a experiência deste atormentada pelos próprios instintos inferiores, sujeita a uma
superamento biológico da redenção. implacável lei de feroz vigilância e que deve, portanto, purifi-
A virtude representa a norma desta redenção, o artigo do car-se, inspira, algumas vezes, sincera piedade. Constrangida
novo testamento e da lei nova que conduz à vida superior. O pela dor, deve separar-se de tantas alegrias que, em suas mãos,
santo realizou-se, enquanto a humanidade, indolentemente, pre- se tornam ilusões. Deve elevar-se, percorrendo de novo a via de
fere vencer distâncias incalculáveis por caminhos errados. Nele, glória, perdida num átimo de rebelião, tal qual o anjo soberbo
a lei atroz e feroz do egoísmo e da luta pela vida é substituída no longo caminho dos milênios. Que atroz condenação ter na
pela lei da bondade e da justiça. pupila o sonho de uma felicidade completa e senti-la sempre
Não mais a força, mas a justiça como irresistível necessida- imensamente distante. São Francisco, como o Cristo, deseja au-
de da alma humana. Não nos damos conta da negação cotidiana xiliar a humanidade, a fim de elevá-la à redenção. E o faz por-
que tem conhecimento da distância que separa o ideal da reali-
que a realidade opõe ao ideal. O ideal existe e vive na forma de
dade, e também consciência do imenso esforço requerido ao
espírito, potente e indestrutível. Não nos preocupamos se a prá-
homem, tal como ele é. Este contraste entre o ardor da própria
tica desvirtua o significado da virtude. Onde domina a amarga
paixão e a resistência passiva da humanidade inferior e atrasa-
lei do mais forte e as aspirações são muito vãs, cada um exige
da; este frenético e inútil embate da própria alma veemente con-
virtude no próximo, porque a negação e a renúncia constituem
tra a apática alma cega das grandes massas humanas; esta hu-
nele um estado de debilidade, o que, para o mal, é um estado
milhação do próprio espírito, humanamente cansado, no limiar
útil à sua expansão. No triste mundo da realidade humana o
da grande redenção, deve ter sido o verdadeiro drama da alma
bem é útil; faz-se da virtude do próximo um alvo para agredi-lo do Santo de Assis, quando na plenitude da luta e no fervor do
e obter melhor proveito, e não um meio de ascensão espiritual. maior sacrifício. Somente quem viveu tais conceitos e bradou
Conforta-nos a esperança do transformismo do bruto presente. ao vento, inutilmente, o grito de uma grande paixão incompre-
A divina justiça, mesmo no mundo inferior, reina em perfeito endida, pode conhecer a razão e sentir a impressão causada pelo
equilíbrio; a despeito de tudo, o esforço individual para evolver drama espiritual há sete séculos distante de nós.
é sempre possível, e isto basta. Existe, efetivamente, tão enorme distância entre a psicologia
As virtudes franciscanas são três: pobreza, castidade e obe- franciscana, que ensina ao homem a conquista de si mesmo, e a
diência. São um trasbordamento de todos os valores humanos, a psicologia corrente, que a primeira parece utopia, tal o contraste
renúncia completa, que antes de ser redenção e reconstrução do que a separa. Podemos, todavia, perguntar o que representa a
super-homem, é a negação absoluta do homem. Fazem um vá- psicologia comum para arrogar-se o direito de infalibilidade,
cuo pavoroso lá onde se move toda a psicologia humana e se somente por ser produto da maioria. Podemos perguntar ainda se
agitam os mais profundos instintos. O santo pode não sentir a os seus conceitos não são, ao invés, muito relativos e discutíveis,
vertigem desse vácuo, mas o que sentirá o homem comum? Es- ou pior, se não são, deveras, a codificação de instintos atrasados,
te se utiliza, como a raça animal, dos instintos da fome e do se- a norma de vida pouco nobre que somente o baixo nível de vida
xo e, como animal, luta pela nutrição (continuação da vida in- do homem pode considerar conveniente. No entanto duvidamos
dividual) e pelo amor (continuação da espécie). A sua escola é de tudo isto e entregamo-nos ao ceticismo, hoje em moda, des-
a psicologia do egoísmo; a sua lei, a feroz e desapiedada luta truindo a fé íntima para cair no nada. Invade-nos, então, o terror
pela seleção do mais forte, em nível de vida baixo, que não do vazio e a necessidade de nos modificarmos. Permanecemos
imagina sequer poder superar. O homem, neste estado, é extre- inertes e vencidos, a olhar de longe, desanimados, a rocha ina-
mamente lento na evolução. O pendor pelas coisas baixas e a cessível da santidade. Somente poucos espíritos gigantes com-
ignorância das altas o tornam indiferente diante dos problemas pletaram a rebelião total e souberam reconstruir, realizando,
mais substanciais. Eis que aparece o santo e sulca o céu como num salto milagroso, o esforço titânico de superar as leis huma-
um meteoro luminoso, deixando atrás de si um rasto de luz. nas e viver uma lei de ordem superior. Para nós, pobres mortais,
Mas quem observa, quem compreende, quem jamais pode ima- o ideal é belo, fascinante miragem distante que olhamos enleva-
ginar uma fuga da Terra? O homem observa indiferentemente e dos, emudecendo e suspirando. As férreas leis da natureza estão
volve a olhar para baixo, a fim de acariciar a matéria. O prato prontas a nos arrastar em seu ciclo e a nos disputar à angelitude.
que a pastagem oferece é, para a ovelha, todo o universo. O homem vacila nesta bifurcação entre humanidade e divindade;
Então, entra em cena a dor, porque, no equilíbrio da vida, tenta o voo e cai dolorosamente na terra. Eis o grande drama
necessitávamos de uma força capaz de impulsionar a elevação psicológico do santo e o drama humano, triste e piedoso.
132 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
Os dois dramas se olham e se fundem na tremenda luta apo- franciscanos é grande até mesmo no campo social. As verdadei-
calíptica entre o bem e o mal, sintetizando o momento biológi- ras revoluções são as que partem do coração de cada um; as que
co do nascimento do anjo no homem. atingem a substância e deslocam a posição da alma individual;
As três virtudes franciscanas representam o ciclo da reden- as que representam a soma da mudança íntima, individual. Para
ção, isto é, a destruição completa do homem e a reconstrução reedificar a coletividade, é preciso antes reedificar o homem.
total do super-homem. Elas desejam, antes de tudo, destruir Que sociedade maravilhosa aquela em que o indivíduo fosse
profundamente a animalidade humana, desferindo-lhe um golpe moralmente bem mais forte.
mortal, a fim de eliminá-la. Pobreza, castidade e obediência são Participamos de uma grei que não pode oferecer nenhuma
para o homem comum uma espécie de morte, pois são a nega- segurança à alegria e nenhuma confiança à felicidade. Uma le-
ção absoluta dos instintos básicos da personalidade humana. galidade forçada, mais repressiva do que preventiva, não pode,
Sobre as cinzas desta destruição se inicia o longo trabalho de senão relativamente, dominar a alma humana, onde está a fonte
reconstrução. A abjuração é apenas transitória, um meio para do bem e do mal. O indivíduo não possui, como defesa contra
alcançar a mais potente afirmação do eu. A renúncia não é se- todos, senão o emprego das próprias energias para guerrear.
não a primeira fase, que preludia a perfeição. Deve ser, com Um instante de fraqueza pode fazê-lo perder, tornando tudo su-
certeza, bem triste o vazio deixado por esta negação tão com- jeito às contingências da vida. Onde não há segurança, que bem
pleta de si mesmo em quem não possui no próprio temperamen- pode ter valor? Eis a revolta do santo. Sabendo que unicamente
to os recursos espirituais para preenchê-lo e substituir por algo o amor ao próximo valoriza todas as lindas e infinitas maravi-
melhor a destruição da própria natureza inferior. Destruir sem lhas da Terra, ele nos move para a conquista deste amor, base
saber reconstruir é criar dentro de si um vácuo triste como a principal da estrutura social e condição imprescindível para
morte, que será ainda mais pavoroso se tentarmos preenchê-lo existir um verdadeiro organismo coletivo.
com os mesmos instintos sobreviventes, adaptados pela hipo- Temos, então, no Santo de Assis, o primeiro cavaleiro ar-
crisia. O significado da renúncia está todo na reconstrução. Re- mado pelo amor, encabeçando nova cruzada, tendo como lema
construção é a chave do enigma; sem ela o ideal franciscano é a fraternidade, a fim de lutar contra o interesse, o egoísmo, a
uma loucura. A grande dificuldade e o grande triunfo residem traição humana e tudo aquilo que constitui força desagregante
no reconstruir mais alto. da sociedade. Ao lado do santo, o quadro de uma sociedade
São Francisco, grande senhor de recursos espirituais, foi um fundada sobre princípios diferentes – o sonho realizado. O pri-
mestre na reconstrução. Completa é a concepção que ele viveu; meiro clarão interior é a necessidade de ser pobre, a necessida-
antes de ser crítica ou demolidora, é reedificadora. Não tanto a de de morrer também de fome para não ser preso como escravo
negação do humano, mas sim a afirmação do divino, um verda- na engrenagem das atrações humanas. O trabalhador do ideal,
deiro domínio da natureza. Ele teve a coragem heroica de viver livre, afasta-se dos profanos, dos interesseiros, dos negocistas,
a sua reconstrução de homem no meio de uma humanidade es- dos produtores de dinheiro, que atropelam porque não veem as
piritualmente bárbara como a nossa; de viver a lei de ordem delicadíssimas flores do pensamento e do sentimento. A neces-
mais elevada, que os seus semelhantes não podiam compreen- sidade de afastar de si a triste população agressiva e sem escrú-
der e julgavam loucura. Onde nós, pobres mortais, devemos pulos impõe-se ao homem idealista para que possa dar o fruto
contentar-nos com insignificantes aproximações, ele obtém a da sua vida. É um fruto amadurecido pelos tormentos, que a
plenitude da realização. Não desejou destruir no homem senão humanidade colheu sem pagar, ou pagou somente com glória
o que havia nele de baixeza e de animalesco; não combateu a póstuma. A grande batalha tem início contra a própria natureza
atividade dos sadios instintos humanos, mas os seus abusos; humana e contra a psicologia coletiva, por meio de um exemplo
não perdeu jamais de vista o objetivo principal, que é a recons- concreto, uma realização vivida pelo ideal. O mundo, a princí-
trução de um homem melhor. Combateu o amor, mas apenas na pio, olha, depois despreza e, em seguida, devagar, compreende,
sua mais baixa forma de sensualidade, deixando-o sobreviver, liberta-se e, afinal, se prepara para seguir o exemplo. Esta assi-
até mesmo fomentando-o como ímpeto de altruísmo em relação milação do ideal por parte da alma coletiva é uma prolongada
ao próximo, como ímpeto de alma para Deus. Combateu do luta secular, porque se traduz numa cadeia de grandes homens
mesmo modo a riqueza e a propriedade no seu sentido de cobi- que se dão as mãos e sucedem-se, traçando a estrada. Há uma
ça, de avidez, como fontes de tantos ódios e de tantas dores, série de tentativas e de esforços que a humanidade faz para
mas jamais no sentido de trabalho. Desejou, antes de tudo, a concretizar o pensamento, lenta e arduamente, até à realização
atividade fecunda e depois a distribuição dos bens com probi- completa. A vitória pertencerá à humanidade futura. São Fran-
dade e altruísmo. Contrariou desta maneira a expansão da per- cisco é ainda hoje o símbolo da sociedade em formação, repre-
sonalidade humana somente no seu aspecto inferior de orgulho, sentando uma tendência, uma esperança, uma expectativa, um
violência, avidez de domínio, deixando-lhe em compensação trabalho a cumprir. Neste sentido, está vivo ainda hoje, como
uma afirmação muito maior e mais completa no campo do espí- estará sempre, entre os homens.
rito. Desejou, em suma, a transfiguração do homem. Pobreza é a virtude que tende a eliminar da alma humana,
Eis a importância individual e o significado de cada uma onde se encontram as suas raízes, a rivalidade entre ricos e po-
das virtudes franciscanas. Individualmente, elas significam bres, estimuladoras de tantos estudos, de tantas tentativas de re-
progresso espiritual; o superamento da matéria; a libertação das formas econômicas, de tantas lutas políticas ineficazes e esté-
formas de vida inferior; a emancipação do homem da animali- reis. A pobreza franciscana é, antes de tudo, um ensinamento de
dade e das suas leis cruéis e ferozes de luta pela seleção do renúncia aos ricos, para o uso parcimonioso dos próprios bens,
mais forte; a atividade num campo mais alto; a conquista de e não abusivo. Aos pobres, que não são nada mais do que ricos
uma forma superior de vida mais completa, mais livre e mais sem dinheiro, aconselha igual renúncia. Nenhuma inveja e pa-
intensa. Os ideais franciscanos auxiliam a alma humana a sair ciência nas privações. Ensina a ambos a vitória sobre a avidez,
da sua crisálida de animalidade, onde se encontra presa, deba- que os separa, armando uns contra os outros, com tanto dano
tendo-se dolorosamente, e guiam-na para o único e real pro- comum; pede a abdicação dos baixos apetites e a formação de
gresso, que tende para aquela felicidade superior, alcançada valores mais altos, que saciam, alimentam e são gratuitos. Ad-
somente após dominar-se as forças inferiores, para uso e gozo voga a destruição de uma fome vulgar e a geração de um desejo
de uma consciência vasta e de uma paz mais profunda. mais nobre, passível de ser saciado.
Tudo o que age no indivíduo não deixa também de produ- Castidade é a virtude que tende a suprimir da alma humana
zir suas repercussões no caráter coletivo. O benefício dos ideais os mais degradantes instintos, a explosão cega das forças natu-
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 133
rais, tudo o que nivela o homem à besta. A castidade francisca- Acabamos de analisar os ideais franciscanos de aperfeiçoa-
na é, antes de tudo castidade no espírito, que confere ao indiví- mento moral sob o ponto de vista individual e social, interpre-
duo a posse de si mesmo, o domínio sobre as leis da natureza, o tando, através da nossa mentalidade moderna, sua grande psico-
uso inteligente das forças biológicas. Esta virtude não propende logia de exceção, na qual encontramos uma afirmação lógica,
à destruição do amor, desta grande força de coesão que domina racional e profunda. Repousemos a nossa mente na contempla-
o universo. Não impõe a morte do amor, mas a purificação de ção da sua grande beleza moral, uma criação estética inteira-
suas formas inferiores. Torna-se mais consciente, mais elevado mente do Cristo, ignorada pelo requinte grego. São Francisco é
e mais profundo. Perde a significação de função animal com uma figura maravilhosamente complexa, figura que resume em
objetivo de reprodução, como ato individual de expansão egoís- si todo o homem, feita de pensamento e sentimento, de cérebro
tica, para ser um ato consciente das finalidades da raça, consci- e coração. Observemo-la com aquela paixão e aquela pureza
ente das exigências da coletividade, um amor disciplinado, mo- próprias das almas simples.
ral e subordinado a ideais superiores. Sublimá-lo significa ainda São Francisco é mente, São Francisco é coração. É profun-
mais: significa consciência das necessidades e das exigências deza de conceito, é intensidade de paixão. Ele é a grandeza
alheias, respeito pela liberdade do vizinho, altruísmo, amor ao completa. Não é, como muitos gênios, unilateral e hipertrófico
próximo, fraternidade, coordenação da atividade individual. Eis no intelecto ou no sentimento. O pensamento é luz fria que po-
o milagre da evolução do amor, força imensa de coesão social. de iluminar esplendidamente a estrada, mas opera sem o calor
Mas isto não basta. Elevado ao máximo de altruísmo, de uni- do sentimento, que reconforta, aquece e consola.
versalidade, de dedicação e de sacrifício, elevado aos mais altos São Francisco é intelecto. O seu idílio, o seu sonho, a sua
vértices da perfeição, o amor é o amplexo da alma a todas as paixão são baseados numa concepção profunda, potente, auda-
criaturas. Deixa de ser a negação separatista representada pelo ciosamente projetada no tempo. Ele foi, acima de tudo, um
egoísmo e torna-se a expansão completa do eu em tudo o que grande pensador, precisamente porque não se estendeu pelas
existe, a fusão da alma com Deus. vias da análise, alcançando tudo rapidamente, pela intuição. Foi
Obediência, no mais amplo sentido, é humildade; é a virtude um prodígio do pensamento, justamente porque apanhou as
que suprime a expansão exagerada do eu, a qual leva inevita- conclusões num átimo. Das mesmas conclusões que a ciência
velmente à luta contra a expansão da personalidade do próximo. moderna tarda muito para alcançar deu-nos ele a síntese no iní-
Neste mundo em que ninguém olha o próprio semelhante como cio de sua vida. Os santos, que são os trabalhadores do ideal, no
a um irmão, em que a infelicidade alheia possui em si a medida exercício de suas elevadas missões, devem possuir, ao contrário
da própria expansão, em que a agressividade inconsciente e mú- da nossa ciência, a segurança e a rapidez das conclusões. A sa-
tua tende a expandir-se ao infinito, a virtude da humildade fran- bedoria da intuição é a sabedoria simples e profunda das gran-
ciscana é o mais enérgico e salutar corretivo. Antídoto de toda a des almas, que resolve, inocentemente e com a simplicidade de
desordem, de toda a insubordinação, de todo arrivismo, canaliza uma criança, os maiores problemas da vida, diante dos quais a
o indivíduo nos moldes da reciprocidade social. Exercício para ciência se cala e o homem abaixa a cabeça, desanimado. É
eliminar em cada um os instintos atávicos de agressividade, en- grandioso agir desta maneira, sem ostentação e sem erudição,
fraquecendo-os cada vez mais, torna o indivíduo mais coordena- humildemente e quase sem aparecer, com os problemas mais
do com o organismo coletivo e mais adequado para viver na so- altos e mais profundos. São Francisco, humildemente, apode-
ciedade. As células tornam-se mais aptas a viver no organismo rou-se dos problemas dos povos e dos séculos; viveu conceitos
coletivo, conquistando maior coesão, a qual não seria possível universais; solucionou questões de psicologia coletiva, de or-
sem aquele cimento psicológico dado pela consciência que o in- dem moral, econômica e social, questões que os grandes ho-
divíduo tem da coletividade. Apenas a superior virtude francis- mens, na prática, ainda não resolveram definitivamente. Tudo
cana nos pode dar a subordinação do eu ao todo, a extinção do isto São Francisco viu e sentiu; brindou-nos com as suas con-
fermento desagregante do egoísmo e a realização de uma cons- clusões; viveu-as, sobretudo.
ciência coletiva. Não mais um sistema de agressão, mas de co- São Francisco é coração. É muito mais do que um grande
ordenação, tão indispensável ao progresso social. conceito: é uma grande paixão. O trabalho do cérebro precedeu
Eis o grande mérito das virtudes franciscanas na coletivida- claramente ao do coração, especialmente no período juvenil da
de. Todas elas tendem ao mesmo fim: a formação de mais har- crise psicológica. Foi um trabalho intuitivo, rápido e conclusi-
moniosa e elevada estrutura social. Elas, antes de tudo, agem vo, uma breve síntese posta à frente de uma vida de realiza-
sobre o homem, melhorando-o, transformando-o em cidadão de ções. Quando, tempos depois, numa triste tarde de inverno,
crescente dignidade para uma sociedade mais digna. Agem cheio de júbilo, entendia-se com aquela flor, e assim, em toda a
também desta maneira sobre a coletividade, transformando-se sua simplicidade, quase sem dar conta, lançava a concepção
em força de progresso social. O indivíduo, por sua vez, encon- mais ousada que a humanidade conhece, esboçava e explicava
trará sempre mais facilmente a posição que corresponda às pró- também, numa forma sublime, a natureza da sua grande paixão
prias necessidades e ao valor intrínseco que ele representa, isto de elevar-se e de amar, exaltada na sua veemência e capaz de
é, uma porção sempre maior de felicidade. As virtudes francis- consumir as forças insuficientes do organismo humano. Esta
canas, como tudo o que é progresso, conduzem à realização paixão lhe proporcionou a força tremenda para impor-se às leis
deste grande sonho humano: a felicidade. inferiores da natureza, para subordinar-se às necessidades de
É consolador, diante da dolorosa realidade da vida, conside- uma lei superior, mostrando-nos realizada a altíssima concep-
rar esta concepção de uma humanidade superior, bem mais ci- ção do ideal. Esta paixão o fez viver e morrer, proporcionou-
vilizada e bem mais consciente, dona de si mesma e das forças lhe o frenesi de elevar-se, tornou-o santo no sofrimento, fê-lo
que contém. Jamais devemos ser pessimistas, pois a vida é um triunfar do grande terror dos homens – a dor – e, depois, con-
organismo que funciona de modo sabiamente complexo; ali- sumiu e destruiu o débil arcabouço humano. Andou sempre
menta-nos a esperança de ver realizada aquela concepção. A cantando o seu sofrimento interior na forma mais doce e mais
humanidade pode e deseja subir. As leis biológicas o exigem. gentil de sua primorosa sensibilidade, perfez a sua vida doloro-
Havemos de subir, com ou sem São Francisco, em obediência a sa, em nossa Terra, cantando sempre. A sua paixão era amor.
leis inflexíveis da vida. Em qualquer estado social, em qualquer Quando o amor é muito grande, as formas humanas não lhe
momento histórico, agora e sempre, somente nos elevaremos bastam mais, o ponto de vista comum não mais satisfaz e é re-
através da experiência das virtudes franciscanas a nós legadas. jeitado com repugnância pela alma. Procura abraçar todas as
◘◘◘ criaturas, mesmo o bruto, mesmo o inimigo. Esforça-se por
134 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
achar alegrias mais profundas e uma união que somente pode forma de conquista dinamicamente titânica, no contraste apo-
ser completa se existir o amplexo supremo da alma com Deus. calíptico entre o bem e o mal, do que na sua forma pacífica de
Ele levou sempre consigo este amor tão vasto e tão novo, pa- conclusão agradável, como o fez Manzoni, de modo tão cris-
decendo e esmolando, de porta em porta, um pedaço de pão. tãmente tranquilo. Não se trata somente desta particularidade;
Não sentia, todavia, fome de pão, mas do amor puro e verda- a prova é concebida segundo a psicanálise, com indagações
deiro da alma, que, para ele, existia em pequena dose sobre a sobre o subconsciente e sobre o desenvolvimento da consciên-
Terra! Viveu com a sua paixão num mundo repleto de ódios e cia, em contato transitório com o ambiente. Desde que se repi-
cobiças, tão diferente das necessidades da sua alma que, num tam, certas posições do espírito, aprofundando-se do conscien-
dia de sua juventude, se lhe deve ter afigurado venenoso ou te ao subconsciente, geram, por assimilação contínua do exte-
envenenado. Viveu num mundo frio e hostil, que não oferecia rior, novas capacidades, atitudes, qualidades e potência do eu.
nenhuma oportunidade aos seus desejos mais ardentes. Mundo Um processo que é desenvolvimento de consciência, formação
incompreensivo e divorciado dele, onde todos facilmente ape- e dilatação da personalidade, meta última de todas as ascen-
nas se encontram a si próprios. Neste mundo, não se lhe depa- sões, a única que pode, na vida, justificar o erro e a dor.
rou outro trabalho a não ser o heroísmo do sacrifício. Faminto ◘◘◘
de amor, com o qual revestia cada ato de sua vida, implorava-o Goethe pinta sobre a tela desta profunda tese filosófica os
humildemente por esmola. Vestiu-se de pobreza, nutriu-se de sonhos ousados de vasta fantasia, usando consumada arte de
renúncia, até à apoteose do Alverne e ao sacrifício da vida, até poeta. O espírito viaja de visões em visões, perseguindo as fi-
à extrema abnegação e ao máximo de doação de si mesmo, até guras de uma esplêndida fantasmagoria de quadros. Todo o
ao êxtase sublime, no amplexo sobre-humano no qual a alma mágico poder de Mefistófeles não é, no fundo, senão uma ex-
se funde com Deus. traordinária capacidade criativa de representações interiores,
que nos conduz desta maneira a pleno mundo astral. Faz-nos
O PROBLEMA DA VIDA E DO ALÉM viver na parte mais profunda do eu, no subconsciente, onde a
NO “FAUSTO” DE GOETHE (1931) imagem é realidade, realidade dinâmica e ágil, como o é toda a
visão profunda do espírito, realidade liberta de todos os férreos
O encontro inesperado, em plena maturidade espiritual, com liames das leis da matéria, mais livre e móvel, como a lei do
a gigantesca visão goethiana, sentindo-a, com a alma vibrante imaterial. Os contatos com o além, que emerge da sombra, fa-
da luta cotidiana, no seu aspecto mais profundo de ascensão es- zem-se aqui mais vivos e imediatos. No drama goethiano, nós
piritual, revivendo-a em seguida, ao alcançar, por outras vias, lhe transpomos o limiar. Não há, contudo, partida sem regres-
como Fausto, todos os quadros da vida até à última síntese – eis so. Todo o drama flutua além do mundo humano, no grande
uma experiência tremenda que não mais desaparece da alma, à mistério do além, sem, todavia, abandonar a Terra. Regressa, a
maneira de todas as impressões que são eternas e infinitas. cada passo, à nossa vida e ilumina-a toda com a luz do eterno.
Eu que havia admirado, sem paixão, Shakespeare e Milton; Não é um abandono, um ausentar-se, mas um interpelá-la, um
que em Vítor Hugo quase me cansava do estilo muito frondoso explicá-la, para agigantá-la no infinito. O além se nos penetra
de retórica superabundante, reencontrei em Goethe a emoção para elevar o sentido das nossas vicissitudes até um significado
que somente Dante já me havia dado, a vertigem das grandes altíssimo. O eterno desce e concentra-se no átimo fugidio, e es-
alturas, porque a alma treme somente diante de uma arte que te expressa e abraça todo o eterno; os dois grandes aspectos
nos transporta às origens da vida. complementares, como as duas metades de um todo, dois ex-
A peregrina beleza do Fausto reside em que a realidade pro- tremos da vida, se fundem no amplexo de uma única visão. No
funda da vida, aquela que raros espíritos veem e vivem, é ele- drama goethiano a comunicação entre os dois mundos se efe-
vada aos primeiros planos, como substância do drama. Goethe tua a todo instante; o além, não mais velado e distante, apare-
sentiu, instantaneamente, por intuição, a concepção filosófica ce-nos próximo e palpitante. É esta tragicidade no supranormal
da qual participaram Buda e Cristo, que se completará em for- o que mais perturba e arrebata.
ma dedutiva e analítica na síntese científica dos séculos futuros. Se bem que o mundo, na época da lenda do Fausto, palpi-
A tragédia de Fausto é a maior tragédia humana, a ascensão tasse ainda com os diabólicos terrores medievais (o Fausto de
do ser, não mais aos níveis da evolução orgânica, mas na sua Goethe descende diretamente do Doutor Faustus, de Cristopher
manifestação mais alta, na evolução espiritual. Em Fausto, a Marlowe, cuja comédia foi levada da Inglaterra para a Alema-
vida se dilata na eternidade e completa-se, além dos limites nha no século XVII, por artistas ambulantes), estando Caglios-
humanos do nascimento e da morte, no absoluto, onde encon- tro próximo da ciência espiritualista, como no Geiterseher, de
tra a valorização do nosso mundo relativo e transitório; a vida Schiller; se bem que tal lenda confinasse com o charlatanismo
aí é a vida do espírito no infinito. Do infinito, seu elemento, e fosse amálgama de neurose e de fanatismo religioso; se bem
desce ao finito, numa encarnação variável, em que a fantasia que desconhecida fosse ainda a função da mediunidade, Go-
como que se realiza na forma e a irrealidade parece enquadrar- ethe, entretanto, com o seu gênio, intuiu com clareza o aspecto
se no conceito; em que as ilusões de todas as nossas vicissitu- de alguns fenômenos como a desmaterialização, que é continu-
des humanas são reduzidas ao seu verdadeiro valor, represen- amente trazida à cena, recordando o dissolver-se de Katie
tando uma série de provas, logicamente ligadas, segundo um King, de William Crookes. Assim Euphorion e Helena se dis-
desenvolvimento que se chama destino, tendentes a um objeti- solvem, o Pudel torna-se um ―fahrender Scholastikus‖. Os ato-
vo que se coloca além da vida, para o qual ela ascende. Os res, em cena, parecem escolher o movimento vertical com a
quadros de Fausto são as experiências da nossa existência; a mesma desenvoltura com que os mortais se movem horizon-
eternidade os atravessa, objetivando o nosso aperfeiçoamento, talmente, dando-nos a impressão de uma quarta dimensão.
por isso é que Goethe concebeu as provas em forma de grada- Movendo-se os atores somente no espírito, a viagem de Fausto
ções e de progressões. Desta maneira, no Fausto, esta forma da não se realizou no espaço.
ascensão humana, que é a prova, decorre mutável e progressi- ―Afunda pois! Poderei também dizer-te: sobe! É o mesmo‖,
va, numa série de esplêndidas visões, para expressar-se tão diz Mefistófeles a Fausto, ao indicar-lhe a estrada do além,
humanamente como de fato acontece na vida, isto é, no seu aonde eles vão à procura da bela Helena e de Páris. O mundo
termo final, na tarde da velhice. É mais linda, mais profunda- mitológico da Grécia clássica, estranhamente sonoro para nós,
mente verdadeira a concepção da vida na sua forma de luta, in- latinos harmoniosos, é todo revivido na sobrevivência no além,
certa e susceptível de quedas, mas capaz de vitória; na sua em áspero verso germânico. Multidões de espíritos invisíveis,
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 135
sem outra manifestação a não ser um pensamento e uma voz, ―Der Herr. – So lang er auf der Erde lebt,
tomam parte a todo instante no drama, que está repleto de per- So lange sei Dir's nicht verboten.
sonagens incorpóreos. E, para aqueles que possuem um corpo, Es irrt der Mensch, so lang'er strebt.
é um aparecer e desaparecer, um concretizar-se e um dissolver- Und steh beschamt, wenn du bekennen musst
se contínuo, um fazer-se e um desfazer-se sucessivo da forma Ein guter Mensch in seinem dunkeln Dranges
exterior. Os personagens, à guisa de materializações espíritas, Ist sich des rechten Weges wohl bewusst.‖
talvez em virtude do imenso poder mediúnico de Mefistófeles, (―Senhor. Durante a tua vida na Terra,
despem com toda a desenvoltura as suas vestes corpóreas, com Isto não te era proibido.
a facilidade com que se muda de roupa, e continuam decla- O homem erra enquanto luta pelo progresso,
mando no além. Goethe mostra-nos um tipo estranho de ator, Envergonhando-se quando é obrigado a confessar.
um ator sem corpo ou que, se o possui, não se preocupa em Um homem bom está ciente do caminho certo,
perdê-lo, porque nada perde com este da sua parte mais verda- Mesmo quando os impulsos contrários o açoitam.‖)
deira e mais profunda, a sua personalidade. Sublime ingenui- É o bem que abandona o Fausto ao mal, porque ele o aco-
dade cênica, que esconde um profundo conceito filosófico! A lheu; e Mefisto, cônscio da sua posição subordinada, pede-lhe
identidade imutável do espírito através de qualquer que seja a permissão: ―Wenn Ilhr mir die Erlaubnis gebt‖ (―Quantas vezes
mudança de forma, o eu que permanece inconfundível e inalte- me dão permissão‖). Somente depois desafia, e o desafio é tre-
rável através de todas as aparências humanas. Margarida mor- mendo. A voz do bem, pressentindo, todavia, a derrota final do
re, mas o seu espírito e a sua voz continuam. E chama, num mal, adverte-o e o confunde.
doce apelo: Henrique! Henrique! Estamos em pleno mundo Surpreendente conceito, soberano, dominante, se não no
mediúnico, sensível na veste palpitante do drama, fundido com pormenor, indubitavelmente nas grandes linhas do funciona-
a mais profunda concepção filosófica. mento orgânico do universo, conceito de um equilíbrio admi-
◘◘◘ rável, tão anti-schopenhaueriano, otimista e completo, que so-
O conteúdo dramático do Fausto não é entretido com cho- bressai com evidência em Goethe. Esta devia ser a concepção
ques de paixões humanas, como o é, por exemplo, prevalente- filosófica da sua vida, que Fausto interpreta e resume. Revela a
mente, em Maria Stuart, de Schiller, iluminadas por um concei- ideia de Deus-Lei, organismo de leis absolutas e invioláveis,
to ascensional de redenção; é um contraste imensamente mais segundo as quais todas as forças do universo se movem inces-
vasto, dado pela luta apocalíptica entre as duas maiores forças santemente no transformismo fenomênico, no seio de um equi-
da vida, o bem e o mal. Fausto é o símbolo do homem que se líbrio espontâneo e supremamente justo. Como em nosso Dan-
agita entre estas duas forças. Ascende em Dante, redime-se em te imortal, o drama goethiano é o drama do universo. Que con-
Vítor Hugo e santifica-se em Cristo, o símbolo do homem que traste com o: ―To be, or not to be, that is the question‖ 27, que
luta e, lutando, evolve até à última síntese. Mefisto é o espírito pôs o problema, sem resolvê-lo: ―puzzles the will, and makes
que nega: ―Ich bin der Geiút, der stets verneint! Ein Teil von us rather bear those ills we have than fly to others that we
jener Kraft, die stets das Böse will stets das Gute schaft‖ (―Eu know not of.‖ (―confunde o desejo, e faz-nos antes suportar os
sou o espírito que sempre nega! Uma parte dessa face que males que possuímos do que voar para outros que desconhe-
sempre quer o mal, mas de que resulta o bem‖). Ele é a nega- cemos‖). Que impotência filosófica nesta incerteza que não
ção de tudo o que possa ser bem, verdadeiro, belo, sublime, pu- conclui! Que distância da alma carducciana!28 É o eterno que
ro. É a antítese, a sombra do bem, é a contradição que condici- transparece e lampeja a cada passo em Goethe, mostrando-nos
ona o triunfo do verdadeiro. Esplêndido contraste de treva da uma beleza substancial que, sozinha, pode valorizar o esplen-
qual nasce a luz. Em Goethe, os personagens são símbolos, são dor das formas e nos dar a profunda poesia do conceito, so-
a representação de uma força cósmica. Mefistófeles sintetiza a mente no qual reside a verdadeira arte.
mentira, a traição, a destruição. Externamente, é todo luzidio e O Céu e a Terra assistem, no Fausto de Goethe, ao grande
refinado, cortês e atraente; internamente, é o egoísmo a malda- drama do bem e do mal e intervém nas agitações das ascensões
de, a baixeza, um tipo que a sociedade humana conhece bem. humanas. Os coros dos anjos, contrastando com as falsas insi-
Mefistófeles é uma força que, para demolir tudo, demole, antes nuações de Mefisto, acompanham todo o conflito espiritual que
de tudo, a si mesma. É um gigante que contradiz logo a sua turbilhona na alma de Fausto. E surge a hora pavorosa e turva
grandeza e torna-se falso e ridículo. É um herói, o mais fraco e do mal, não um mal como o da agonia do Getsêmane, mas um
o mais miserável dos heróis, que inspiraria piedade se não pro- mal na plenitude do seu efêmero triunfo. Nada se podia imagi-
vocasse aversão. Mefistófeles não é a dor que laboriosamente nar de mais tremendamente macabro do que o vertiginoso pan-
edifica no eterno, condição transitória de uma felicidade impe- demônio da Walpurgisnacht29 sobre o fundo do Brocken30. Tal-
recível, mas é a alegria fácil, usurpada, imerecida, que logo de- vez somente a áspera lenda germânica, referta de bruxas e de
saparece para conduzir ao sofrimento. É um falso prazer, pronto diabos, de terrores e de trevas, poderia fornecer-lhe motivos.
a desagregar-se a cada instante e a transformar-se em dor. Es- Nem Goethe, que conhecia perfeitamente a Harzgebing e as re-
tamos nas estradas da descida, da involução para a animalidade, giões de Schierke e Elend, poderia encontrar um fundo mais té-
em antítese à via ascensional, onde o espírito triunfa. trico e desolado para a sua representação, que depois o nosso
Do outro lado as forças do bem (ainda que não sejam no Boito31 devia reproduzir tão magnificamente em forma musical.
Fausto tão estritamente caracterizadas como se apresentam em
Mefistófeles as forças do mal) não são, todavia, menos pode- 27
―Ser ou não ser, eis a questão‖ (N. da E.)
28
rosas. Se são concebidas de maneira mais impessoal, é para Referência ao poeta italiano Carducci, Giosuè (1835-1907)
29
exprimir a sua universalidade, é para dizer que o bem é a re- Walpurgisnacht – ―A Noite de Valburga‖ era na Alemanha medie-
gra, o mal a exceção. O que condiciona e limita o mal é o val, segundo as crendices populares em voga, aquela em que se reuni-
bem, lei universal. O bem não se localiza, não se personifica, am os espíritos malignos e as feiticeiras, no alto do Brocken.
30
porque é o hálito de todo o universo, abraça no seu âmbito to- Brocken (ou Brock) – elevada e granítica montanha, na Alemanha,
onde, conforme as superstições medievais, imperava o chefe das forças
do o mundo do mal. Mefisto encontra os seus obstáculos e não do mal, ―o Senhor Uriano‖ (Herr Urian) na versão do Fausto de Goethe.
pode transpô-los. Como princípio, é tolerado; mas, como con- 31
Boito – Referência ao grande poeta e compositor italiano Arrigo
dição e como explicação, possui o seu campo limitado. No Boito (1842 -1918). Escreveu libretos para ―La Gioconda‖, ―Otelo‖ e
prólogo, no Céu, as duas grandes forças olham-se face a face, ―Falstaff‖ (estes dois últimos musicados por Verdi) A ópera mais
por uns instantes, sem véus: famosa de Boito é justamente ―Mefistófeles‖. (N. do T.)
136 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
A festa agita-se nas danças sapateadas; é toda pompa e alegria, traição era Mefisto! A sua habilidade reside na minúcia, a sua
culminantes num triunfo que revela grandiosidade. É sem dúvi- finíssima lógica é a mísera lógica da astúcia, que edifica sobre
da uma festa, um triunfo, mas, como tudo, é alterado e falso, o terreno inseguro da falsidade. A orientação do seu sistema é
pervertido e ridículo! O brilho é treva; a música é fluxo de es- errada, porque o egoísmo e a mentira são forças essencialmente
tridores; a multidão é estranha, sórdida e vil; o triunfo é insulto desagregantes, desprovidas de capacidade coesiva e construti-
e ludíbrio. Que escumalha infernal de espíritos imundos e cari- va, enquanto o amor e o sacrifício, tão inermes e débeis na apa-
caturais! Que áspera e tétrica sinfonia aquela espantosa fila de rência, possuem a potencialidade dinâmica das grandes obras.
bruxas nórdicas em fuga, todas nuas, cobertas de unguento, ca- Não é o amor, mas o prazer que trai Gretchen; não é o trabalho,
valgando vassouras pela pavorosa charneca de Brocken, en- mas a especulação simbolizada na invenção de Papiergeld e
quanto a música louca do sabá, digna de Berlioz, bate o ritmo semelhantes convenções financeiras que conduzem à ruína.
de uma satisfação feroz! O espírito que nega, nega, antes de tu- Fausto, entretanto, oscilando de prova em prova e de ilusão em
do, a si mesmo. Na festa de Walpurgisnacht existe a manifesta- ilusão, continuamente ascende. A sua longa viagem foi no
ção de uma força que se anula na impotência, um aparato de mundo espiritual. No último momento, quando, rejeitadas as
glória que é todo um escárnio, um tripúdio que é triste como propostas corruptas, pede um trabalho honesto e fecundo, Me-
uma condenação, um grito de satisfação que é um ulular de de- fisto consente, sem suspeitar o início da reabilitação de Fausto:
sespero. A Walpurgisnacht é a personificação das forças do mal o diabo acaba sendo enganado. Pouco a pouco, o deserto e a
no seu efêmero triunfo; é o mais desconjuntado canto da vida desolação, simbolizados na Walpurgisnacht, se transformam,
que submerge num desprezo louco de destruição. É a involu- por obra do trabalho e do amor, em estado de fecundidade e de
ção, a descensão efetivada, o regresso rumo à animalidade, é o bem-estar. Fausto encontrou finalmente a estrada das ascensões
triunfo da besta feroz, é o inferno, onde o espírito está morto. É humanas e a libertação da dor e do mal. A estrada não estava
uma humanidade que delira, louca e embriagada, ávida e falsa, nas alegrias fáceis da Averbach Keller, em Leipzig, nem na ri-
como a nossa. Desejaria rir com Goethe pela sátira esplêndida. queza, nem no poder, nem na glória (vaidade napoleônica), mas
As forças da vida estão vivas em Fausto; agitam-se galo- além de tudo isto, além de todas as ilusões humanas, onde exis-
pantes como no mar tempestuoso; condensam-se num vórtice te uma fonte de pureza capaz de dessedentar todas as bocas:
para arrastar o homem e, depois, arremessá-lo ao alto, para o ―Das ist der Weisheit letzter Schluss:
Céu. O turbilhão desencadeado do mal tem a sua hora e deve Nur der verdient sich Freiheit wie das Leben,
resolver-se numa função do bem. A doce e ingênua Margarida, Der täglich sie erobern muss.‖
uma das mais belas criaturas goethianas, encontra-se, enquanto (―Isto é a última conclusão da sabedoria:
ora no grande templo gótico, em pleno poder do triste espírito Somente aquele que conquista diariamente
que lembra traição: A sua vida merece a liberdade.‖)
―Böser Geist. Wie anders, Gretchen, war dir‘s, Enfim, o equilíbrio, temporariamente perturbado, restabele-
Als du noch voll Unschuld ce-se. O mal volta à sua prisão, Mefisto precipita-se no seu rei-
Hier zum Altar tratst.‖ no, e Fausto ascende na sua apoteose:
(“Espírito mau: como te sentiste meiga Margarida, ―Gerettet ist das edle Glied
Quando ainda completamente inocente Der Geisterwelt vom Bösen:
Te aproximaste deste altar.”) Wer immer strebend sich bemúht,
Na alma desolada da aflita ressoa: Den können wir erlösen.‖
―Dies irae, dies illa (“O nobre companheiro está salvo
Solvet saeclum in favilla.‖32 Do mundo dos espíritos do mal:
Mas a crente, que havia rezado tanto: ―Ach neige, Du Sch- Aquele que sempre se esforça incansavelmente,
merzenreiche, Dein Antlitz gnädig melner Not!‖ (―Oh! vinde a Podemos libertá-lo para a sua ascensão.”)
mim, vós que sofrestes tanto, tende piedade do meu padecer!‖),
volta-se moribunda para o supremo tribunal, e uma voz do alto GÊNIO E DOR (1935)
anuncia: ―Ist gerettet!‖ (―Está salva!‖). A presa escapa, então,
das garras de Mefisto, que, desesperado, volta a reafirmar a Os êxtases musicais, como a visão do místico e a contempla-
Fausto o seu poder. Mas também ele se libertará. É sobre a sua ção do pensador, são portas abertas ao infinito. Quando o gênio
cabeça que mais tremendamente se desencadeia a tempestade. cria, a existência revela-se então inegável, porque, naquele mo-
Já ia levar aos lábios o cálice fatal para libertar-se do peso da mento, ela se acha visivelmente em ação. Escutamos estupefatos
vida, envenenando-se, quando ressoa o canto salvador da res- aquela voz, que não possui timbre humano, surgindo do mundo
surreição, no alegre repique prolongado da Páscoa: do eterno. Nos arrebatamentos, o pensador sente a verdade; o
―Christ ist erstanden! Selig der Liebende, der die be- místico, a bondade e o amor; o artista, a beleza. O arrebatamen-
trübende, heilsam und übende Prüfung bestanden‖ (―Cristo to, porém, é sempre o mesmo e constitui a nota fundamental do
ressuscitou! Salve o Amado que foi submetido a tão triste e mesmo fenômeno, ausentar-se da Terra e atingir outras esferas,
santa provação‖). manifestações que, por serem super-reais, parecem sonhos irre-
Fausto está salvo. Mas logo é cercado e preso nos enredos ais, mas são verdadeiras, pois a alma humana as tem admirado
do mal, que concentra nele todas as suas forças. O pacto é fir- em todos os tempos, prendendo-se-lhes irresistivelmente.
mado com sangue. Mefisto entra logo em ação numa fantasma- Todas as altas revelações do espírito, por enquanto tidas pe-
goria de criações e de vitórias que enfim se desfazem no erro. la ciência como anormais, somente porque são supranormais, e
Qual é, todavia, o ponto fraco, a pilastra que faz ruir todo o edi- não produto da cinzenta mediocridade, indiscutivelmente exer-
fício? Quanta astúcia no negociar, quanta finura psicológica no cem fascinação mesmo no ser mais involuído. São centelhas
enlaçar sem ser notado, no fingir-se de santo e de homem hon- descidas diretamente do céu, sem o uso da razão. A alma as re-
rado (como o fez junto de Marta) e que artista da mentira e da conhece e as absorve na sua avidez: servem-lhe de alimento.
A alma humana tem de ser analisada não no tipo medíocre,
32
―O dia da ira, aquele dia em que (o Senhor) dissolverá o mundo em onde permanece adormecida, em estado embrionário, mas no
cinzas‖. – Referência à Justiça Divina, conforme várias profecias, em gênio, que prepara a sua maturidade e a excede, ultrapassando
versos de um hino religioso atribuído ao primeiro biógrafo de São muitas vezes os limites do concebível. Somente neste, ela se
Francisco, o frade Tomás de Gelano. (N. do T.) manifesta em toda a sua plenitude, conseguindo superar a vida
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 137
orgânica, separar-se do corpo e enfrentar o além. É assim que o Por que a vida dos gênios é frequentemente argamassada na
gênio, seja artista, místico, pensador, seja musicista, santo, he- dor? Por que o destino se lhes apresenta como inexorável con-
rói ou condutor, encontra-se, no momento em que age como tal, catenação de provas convergentes muitas vezes sobre o ponto
num estado de ativa e consciente mediunidade. mais vital do seu próprio gênio? Talvez porque este é também o
Quando Chopin compunha ao piano maiorquino os famo- ponto de maior força, de provas maiores do que as médias, para
sos prelúdios na Cartuxa de Valdemosa, com certeza via fan- que a alma possa encontrar uma resistência adequada à sua
tasmas vagando de cela em cela, talvez os monges do velho grandeza, um testemunho proporcional à sua elevação. Provas
convento. George Sand escreve: ―Ao regressar às dez horas da específicas para que a alma se exercite pelo lado de sua maior
noite, encontro-o pálido, os olhos cerrados e os cabelos sobre a potência. Certamente, não se alcança esta compreensão através
testa, diante de seu piano. Era necessário algum momento para dos conceitos comuns de uma vida exterior que visa apenas o
se reconhecer a si próprio. Fazia esforço para sorrir e tocava prazer. Mas somente assim podemos explicar a surdez de
coisas sublimes que havia composto durante nossa ausência... Beethoven, a tuberculose de Chopin, a cegueira de Milton, um
Executava o seu prelúdio, chorando. Quando nos viu entrar, Leopardi disforme e sofredor, um Schubert e um Mussorgsky
soltou um grito estranho e disse, depois, com ar confuso e tom atormentados, um Nietzsche e um Poe loucos. Convido a ciên-
misterioso: – Ah! Eu sabia perfeitamente que vocês estavam cia a explicar-me por que a moléstia, a deficiência orgânica,
mortos!... Não distinguindo mais o sonho da realidade, acal- pode dar tanta força ao espírito, tanta fecundidade ao pensa-
mou-se e quase adormeceu ao piano, persuadido de que tam- mento, tanta saúde e potência à personalidade. Ou, em outros
bém ele estava morto‖. O eco da tempestade dos elementos se termos, por que razão o patológico pode conter o supranormal.
transformava na sua alma em tempestade de ideias e de senti- O conceito de uma crueldade do destino, portanto blasfêmia
mentos. Naquele estado de transe, a sua alma alcançava as raí- contra a Divindade, ou de uma insuficiência diretiva ou de uma
zes da vida e a profundidade dos fenômenos, onde se encontra casualidade caótica é simplesmente pueril num organismo uni-
a essência, onde o todo é UNO. versal tão preciso. No entanto, com este conceito muito mais
Quando Chopin improvisava, sempre em presença de um amplo, tudo se explica. A dor é a estrada mestra de toda a ascen-
restrito público de amigos, mandava reduzir as luzes, recolhia- são espiritual, que não pode ser conquistada sem fadiga. A dor
se e procurava a nota azul, que se pode chamar a nota de sinto- prepara o caminho às profundas introspeções; revela o que se
nização entre a sua e a alma alheia. encontra além da superfície; desperta o espírito, que poderia, fa-
Notamos a paralisação do fenômeno inspirativo diante de talmente, adormecer no bem-estar; submete-o a contínua ginás-
um público heterogêneo e de estranhos não sintonizados, dos tica, que lhe desenvolve as melhores qualidades. Embora a natu-
quais Chopin sempre fugia, fenômeno esse semelhante ao do reza humana inferior sofra e se revolte, a dor é salutar e fecunda
círculo mediúnico. Daí deveria resultar a música. maceração, que purifica e multiplica todas as forças do espírito.
A mediunidade física é um estado de passividade diante das Somente a dor sabe desnudar a alma e arrancar-lhe aquele grito
forças do além, que interferem quando e como desejam, domi- que não admite mentira. A reação à dor é certamente diferente
nando o fenômeno; a mediunidade inspirativa é, ao invés, um em cada indivíduo, revelando-lhe sempre a natureza íntima.
estado de máxima atividade e consciência perante tais forças, Das três cruzes iguais sobre o Gólgota partiram três gritos
que ela penetra e domina. São os dois extremos. O médium ati- diferentes. No bruto, o grito é brutal; no grande, o grito é su-
vo, consciente do próprio trabalho, dono das forças que governa blime. Então a dor é santa e abençoada, porque revelou a bele-
ativamente, ousa bater às portas do mistério para interrogá-lo. za de uma alma.
Elas não se abrem frequentemente, a não ser diante de um apelo Desta maneira, a dor martela os espíritos gigantes com for-
desesperado ou de uma paixão violenta, capaz de romper os se- ça gigantesca, para levá-los à ascensão gigantescamente pura.
gredos zelosamente defendidos pela Lei. Ressonâncias profundas devem produzir nestes hipertróficos
É necessário, muitas vezes, a coragem insensata, a vontade do pensamento e do sentimento os golpes duríssimos do desti-
desesperada, o impulso frenético de uma dor imensa, o ímpeto no. Evidentemente, suas obras foram criadas entre os espasmos
da fé que não mede a profundidade do abismo. Apenas, então, de uma grande dor. Por isso puderam dizer: ―eu espero que a
as portas se abrem, as fronteiras do concebível apresentam dila- minha dor venha, porque somente ela me poderá arrancar o
tações repentinas, quase tímidas; o gênio, num gesto supremo, grito da alma‖.
levanta-se sobre as muletas da dor, sofrendo, vacilando na figu- Sentimos em tudo isso a força da criação, que tem na dor
ra gigantesca, fixa o olhar no inconcebível e vê. Ele mesmo ig- um açoite: flagela o espírito, impede qualquer repouso, excita-
nora a sua grandeza no átimo da concepção, porque se unificou lhe as mais profundas reações, valoriza-lhe o poder de ação.
com o todo. O seu gesto potente assaltou de improviso o cora- Assim se compreende a transumanização que a dor, e somente
ção do mistério, que estremeceu e respondeu à voz da dor e do ela, possui. Para o gênio, a vida humana não é senão preparação
amor. Então, um rasgo do infinito lampejou sobre a Terra. para uma vida mais alta; os mesmos clarões que o cegam, tam-
Desejaria passar em revista a vida de muitos gênios, para bém nos atingem a nós; a realização de sua vida não está aqui
demonstrar que, neles, este tipo de mediunidade consciente e em baixo; para ele, a morte não é o fim, mas libertação.
ativa, a mais alta e a mais verdadeira, é normal. A maturidade Os gênios podem inverter os nossos conceitos humanos,
avançada desses seres, revelada desde a mais tenra idade, ex- porque pertencem a raças super-humanas, que não aparecem
plosiva no seu aspecto típico, sem qualquer experiência ou na Terra senão como exceção. ―Pobre Beethoven‖, conforme
exercício de preparação humana antecedente, mostra-nos a sua escrevia ele sobre si mesmo, ―este mundo não te proporciona
preexistência em outras formas de vida. Períodos de formação felicidade e somente nas regiões do ideal podes encontrar a
sem os quais nada se cria, por uma lei de proporcionalidade en- paz‖. Que diferença entre o homem abençoado e o de senti-
tre o efeito e a causa. O atavismo é absolutamente insuficiente mentos saciados.
para demonstrar tais florescências de exceção num campo de Nós, homens comuns, possuímos e sentimos mais forte-
mediocridades. Tudo isso reforça o conceito e oferece a prova mente no plano inferior do mundo animal, feito de lutas cruéis
de que a vida não é senão a passagem da alma proveniente de e violentas. Carregamos a verdade atávica do corpo, a tão co-
algum plano, em direção a outro plano. Os medíocres não con- nhecida lei da natureza; somente secundariamente e com es-
seguem encontrar estas provas, em si tão evidentes, porque são forço, alcançamos a mais alta verdade do espírito, que é para
os verdadeiros cidadãos da Terra, suficientemente selvagens e os gênios a verdadeira e a espontânea lei da natureza. O tipo
insensíveis para viver nela, comodamente. médio, debatendo-se nas formas inferiores de atividade, poderá
138 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
criar, qualquer que seja sua condição humana ou sua riqueza, Provavelmente acharão estúpida uma história que não propor-
poderá também, por um momento, saciar-se de toda a vaidade ciona o arrepio do delito. Aqui, entretanto, conforme veremos,
que a sua inexperiência deseja, porém permanecerá sempre li- desejamos focalizar outros fatores psicológicos, de muito maior
gado e condenado a essa vaidade, fechando-se-lhe assim o valor, não pertinentes à parte menos evoluída da sociedade hu-
acesso à alta esfera do pensamento, da qual o gênio, por mais mana. Esta, para satisfazer ao seu orgulho de parecer civilizada,
trespassado e crucificado que se encontre, olhá-lo-á sempre enverniza os instintos bestiais com a psicanálise, os complexos
com piedade. Quanto mais merecemos o céu, tanto mais inca- freudianos, o subconsciente e vários ―elmos‖ científicos, diabo-
pazes e infelizes somos sobre a Terra. licamente faminta de destruição. A isso é obrigada até ao fun-
A dor, nos grandes, assume também a forma de renúncia, do, até à alma, pela chamada civilização, em busca de psicopa-
que é o superamento das formas inferiores. O destino a impõe tias e de todas as perversões. A sã moral não é criação artificial
com inúmeros dissabores, para que se acelere a evolução espiri- de uma religião, mas está escrita para todos nas leis da vida.
tual e se opere a transformação do amor humano em amor divi- Uma imprensa traidora, com finalidade de lucro, desfruta e ali-
no. O calvário é a base natural do fenômeno da sublimação dos menta tais aberrações, oferecendo aos instintos bestiais uma sa-
grandes. A renúncia dos prazeres humanos não é senão a ex- tisfação psicológica ideal. Desta forma, tudo vai sendo louca-
pansão dos horizontes espirituais. O destino não é cruel quando mente abalado. Prossigamos, contudo, a nossa história.
inflige a morte para dar vida maior e luminosidade à alma. Aquele homem não somente conhecia a casa, onde penetra-
―Durch Sturm empor‖, (―arrastado para o alto pelo venda- ra com a ajuda do criado, mas também os hábitos do seu pro-
val‖) dizia Beethoven no meio do furacão, sempre senhor do prietário, que era um homem estranho. Vivia solitário naquela
seu destino, mesmo no mais profundo do sofrimento. O ho- rica mansão, desfrutando uma renda que possuía por direito de
mem somente é verdadeiramente grande e viril nas lutas contra herança.
as forças titânicas do seu carma, nunca porém nas lutas contra Revelava costumes exóticos este homem, que, em ótimas
os seus semelhantes. O destino da grei humana é frequente- condições de saúde e de riqueza, poderia gozar a vida. Pela ma-
mente incolor, há no alto, porém, destinos titânicos, que nos nhã, passeava pensativo pelo jardim. Fazia as refeições sozinho.
proporcionam o arrepio do infinito, destinos que sobrepairam Consumia a tarde e a noite escrevendo. Parecia procurar em seu
abismos, nos quais se alternam regiões de terror, de paixões e mundo, imensamente distante, qualquer coisa inatingível. O seu
de angústias, nos quais ribomba a tempestade de Deus. Desti- olhar mergulhava nos outros olhares, buscando a alma, e se re-
nos que os gigantes souberam agarrar pela goela para travar traía com tristeza. Existia entre ele e os seus semelhantes uma
uma luta digna da sua grandeza. espécie de barreira de incompreensão. No seu meio, era julgado
Eles podem dizer: ―Venha, oh! luta, para que eu possa bater- como maníaco e tolerado porque inofensivo.
me e vencer‖. O ladrão, ali presente, considerava as coisas sob um ponto
de vista inteiramente utilitário. Aquela casa e aquele homem
SÉTIMA PARTE – NOVELAS se prestavam a um furto – meio rápido para ganhar sem traba-
lhar. Verdadeiro tipo de involuído, agradava-lhe o risco, a
EM BUSCA DA JUSTIÇA aventura audaz, o golpe do aventureiro, não o trabalho orde-
nado do homem acostumado a integrar-se no organismo soci-
TRÍPTICO (1953) al. Era um retardatário, mais adaptado a viver com os selva-
gens, em guerra, entre as feras. Nada sabia fazer senão roubar.
I. A justiça Econômica Ninguém o educara ou lhe ensinara a realizar algo melhor. A
civilização não lhe dera a bondade evangélica do ama ao teu
Era uma noite de chuva e de tempestade. A cidade imensa próximo, princípio para ele situado no inconcebível, no entan-
repousava, no sono, do seu febril trabalho diurno. A hora to lhe proporcionara ao menos alguma coisa. Havia ao menos
avançava; os quarteirões aristocráticos, mais demorados para polido os seus instintos, refinando-os, como as feras apuram
adormecer, porque menos sedentos de repouso, descansavam os sentidos para melhor atacar e vencer na luta pela vida. Era
em silêncio. artista do crime. Amava saquear sem causar danos físicos à
Ao longo de uma avenida arborizada, separando duas filas vítima, alcançando o útil com o menor aborrecimento e o me-
de residências de luxo, um homem esgueirava-se como sombra, nor perigo possível. Esta era a única modalidade de civiliza-
revelando na desenvoltura do andar o hábito de saber esconder ção que a sua natureza atrasada soubera captar. Na guerra que
intenções suspeitas. Vemo-lo agora junto ao ponto desejado. as nações civis fazem entre si, ele se encontraria bem a vonta-
Não é a porta principal do jardim, mas uma outra, para serviço, de e seria talvez glorificado como herói. Mas a guerra não
junto à parede lateral, que se encontra aberta. Ele a transpõe e existia para que pudesse explorá-la. Numa revolução, seria al-
entra com desembaraço, como se estivesse regressando à sua guém e faria boa carreira. Contudo não havia revolução. Da-
casa. Fecha-a e atravessa o jardim. das as circunstâncias muito pacificas que o ambiente lhe ofe-
Outra pequena entrada de serviço, no lado posterior da casa, recia, fazia aquilo que podia.
está aberta, e ele passa por ela. Conhece a habitação, onde já es- Estes dois homens encontravam-se agora debaixo do mesmo
tivera trabalhando para os antigos proprietários, há muitos anos teto, estavam prestes a encontrar-se com suas psicologias, seus
atrás. Com a cumplicidade de um dos empregados atuais, que julgamentos e seus métodos de vida. O ladrão subia as escadas
viera a conhecer posteriormente, organizara um golpe. cautelosamente. Conhecia todos os recantos. Sabia que, no dor-
Como se vê, não existe aqui nenhum mistério policial, ne- mitório à direita, no patamar superior, o patrão dormia e que, à
nhum delito macabro, nem caçada para apanhar um criminoso. esquerda, estava o quarto onde encontraria o dinheiro. O criado
Fugimos da tão difundida psicologia de criminosos malogrados deixara as portas abertas, saindo para o seu dia de folga. Sabia,
e, por isso, apresentamos o fato como simples e banalíssima também, por ter verificado da rua, que a luz do dormitório onde
tentativa de furto, arquitetado com as costumeiras astúcias, mui- o dono frequentemente ficava acordado até ao amanhecer, esta-
to conhecidas através dos cinemas e dos jornais. Ao viciado lei- va acesa. Sabia, ainda, que aquele homem era sereno e, por con-
tor moderno, amante das emoções fortes e intoxicantes dos ro- seguinte, não o intimidava. Agia com segurança absoluta.
mances amarelos, isto parecerá qualquer coisa de insignificante Uma vez no patamar superior, entrou no quarto visado, sen-
e cansativo pelo seu trivial, que não excita a curiosidade malsã do os seus passos abafados pelos tapetes macios. Silêncio. Viu-
com psicopáticas complicações e cerebralismos criminalóides. se num escritório e reconheceu a escrivaninha iluminada pela
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 139
luz débil da rua, suficiente para o seu trabalho. Aproximou-se e O ladrão começava a compreender e não conseguia se refa-
observou. Possuía as chaves das gavetas. A promissora devia zer da surpresa. No seu primitivismo, encerrado na estreita
ser a terceira ou a quarta à esquerda. Experimentou uma e de- psicologia do egoísmo, suspeitou, a princípio, que tais incrí-
pois a outra, revolvendo o conteúdo. Não encontrava nada. Re- veis palavras poderiam esconder uma trama e aguardava o apa-
vistou ainda. Começou a sentir-se nervoso, porque ambicionava recimento de uma arma ou um movimento de assalto. Mas na-
a fuga sem ser observado. Mas não encontrava nada. Tentou as da disso surgia. Como não se sentia ameaçado, foi esporeado
do lado direito, abrindo a segunda gaveta, revistando-a. Num pela curiosidade e pela esperança de poder receber dinheiro
gesto precipitado, derrubou qualquer coisa, que caiu no tapete daquele louco, não obstante a sua triste posição; continuou es-
com um baque surdo. O ladrão imobilizou-se, espantado. Esta- cutando, divertindo-se com a cena, mas sempre atento ao seu
ria realmente dormindo o patrão? Teria ouvido? desenvolvimento.
No aposento à direita, outro homem estava em outras lidas. Sentaram-se. O dono da casa prosseguiu: ―Amigo! Suponho
Apagara, havia pouco, as luzes e procurava em vão adormecer, que sejas comunista ou pelo menos simpatizante. Não imaginas
enquanto, num estado de meio sono, o seu espírito continuava a que eu também o sou, mas, como vês, de modo diferente da tua,
desenvolver a ordem dos conceitos sobre os quais escrevera até uma forma que não entendes. Quero dizer-te que a justiça social
àquela hora da noite. Preso aos seus pensamentos, não prestou é a grande ideia para a qual o mundo caminha. Quem usa a es-
atenção ao ruído que viera do quarto vizinho. Tinha em mente pada morrerá pela espada, e quem usa a violência será destruí-
outras preocupações. De improviso, surgira a solução lógica de do. Os nossos dois comunismos são antípodas. O teu parte dos
um problema que o angustiava havia dias – contraste de concei- direitos; o meu, dos deveres, de que não cogitas. Usas a violên-
tos que parecia sem saída. E, agora, repentinamente, da profun- cia e, por isto, estás aqui; eu uso a bondade. É verdade que nem
deza de si mesmo, quando se ia abandonando ao sono e já não a todos os homens da minha classe social são como eu. Nisto
buscava mais, eis a solução imprevista, como se outro houvera crês, e isto te autoriza a violência. Verdade é que tens também
respondido. Sentia-se pasmo e ao mesmo tempo entusiasmado deveres, mas não pensas senão nos direitos. Como é possível
pela beleza e logicidade da solução. Acabou despertando, acen- uma sociedade que só alegue os seus direitos? Não seria um or-
deu a luz e levantou-se para ir logo registrar no seu escritório a ganismo, seria um bando de lobos que se entredevorariam. Por
concepção maravilhosa antes que ela se dissipasse, materiali- que não pensaste no dever de trabalhar, de dar qualquer coisa à
zando-a, agora que estava bem clara em sua mente, nas suas sociedade da qual exiges o necessário? Por que, antes de roubar
particularidades. Sabia que se não a fixasse logo, ela se desva- ou exigir com a violência, não pensaste em ganhar com o traba-
neceria, reaparecendo depois deformada e estranha. Entrou no lho? Eu mesmo trabalho, no campo do pensamento, mas traba-
aposento contíguo e acendeu a luz. O ladrão ficou em pé, gela- lho. A minha vida dá fruto à sociedade. Tu és um parasita. Por
do, em plena luz. Os dois homens se defrontaram. que não aprendeste a respeitar o fruto do trabalho e da inteli-
Olharam-se, mas com que olhar diferente! Cada um proje- gência dos outros? Quem possui nem sempre é parasita; às ve-
tou no outro a sua alma. O ladrão, aterrorizado pelo perigo imi- zes é um centro de atividade fecunda para muitos. É tão bestial
nente e o golpe fracassado, pensava agredir ou ser agredido. Es- este ódio de classe, indiscriminado, agressivo, buscando con-
ta era e lei do seu plano e do seu espírito. O dono, perplexo pela quistar a riqueza não com o trabalho e a inteligência, mas pelas
presença de um estranho, e aborrecido com o fato imprevisto, vias da violência! Não sabendo respeitar o fruto das atividades
pensava no tesouro dos seus conceitos já em fuga, agora perdi- alheias, como poderá esperar que, em idênticas condições, seja
dos com o incidente. Habituado ao autodomínio, rapidamente respeitado o fruto do teu trabalho?‖.
se refez para enfrentar a nova situação. Olhou para o ladrão O larápio, sem se interessar em absoluto por tudo que estava
com piedade, e este, que esperava uma agressão, desarmado por ouvindo, aguardava a conclusão do discurso. O dono da casa
aquele olhar, não agrediu. compreendeu que havia ido muito longe nas suas explicações
Os dois homens permaneceram frente a frente, olhando-se. teóricas e regressou aos limites psicológicos do seu interlocu-
Dois homens, duas classes sociais, dois extremos opostos, eco- tor, isto é, ao problema próximo e pessoal, e disse-lhe: ―Con-
nômica e espiritualmente, dois mundos. Aquele cruzamento de cluindo, amigo, a ti não interessa se eu trabalho e se neste mo-
olhares já havia estabelecido uma ponte entre os dois. O propri- mento me libertarei das riquezas para mim supérfluas, ou se as
etário foi o primeiro a dirigir a palavra: conservarei para que frutifiquem, sobretudo para o bem dos ou-
―Amigo, não te atemorizes, compreendi tudo. Afirmo, não tros. Este é um assunto meu. Interessa-te somente resolver o
temas. Serás hóspede em meu lar, porque és meu semelhante e problema da tua vida. Quem possui mais meios, mais inteligên-
meu irmão. Não tenho outro desejo senão o de te fazer o bem. cia e cultura, tem mais deveres. Sou eu, portanto, quem deve ir
Não penses, portanto, em lutas e agressões. Poderás sair quando ao teu encontro. Desejavas apoderar-te do dinheiro que era
desejares, livre, protegido por mim‖. guardado nesta gaveta. Não o encontraste porque estava sobre a
―Uma outra coisa, porém, me impele para te ajudar. Tu te escrivaninha, onde eu o deixara depois de ter dado uma parte a
arriscaste muito para vir buscar este dinheiro. É um trabalho er- outrem. Este já se destinava aos pobres. Portanto é teu. Estava
rado, mas é também um trabalho. Quanto a mim, não arrisquei diante dos teus olhos e procuravas em outro lugar. Ei-lo, e que
nada, não lutei para ganhar dinheiro, porque o herdei. Perante te ajude a viver. Emprega-o bem, para que possas subir. Podes
Deus estamos, talvez, nas mesmas condições, se bem que eu es- ir, és livre. Ninguém saberá que estiveste aqui‖.
teja protegido pelas leis e tu não. Dá-me a tua mão e dize-me Enquanto assim falava, colocou o pacote de dinheiro em su-
no que te posso auxiliar‖. as mãos, o mesmo que o ladrão queria roubar. Desta maneira, o
E estendeu a mão ao visitante que a aperta automaticamente, furto que poderia perder um homem, transformou-se em auxilio
procurando compreender enquanto escutava. O dono da casa capaz de redimi-lo. Foi assim que o padre Myriel salvou o for-
continuou: ―Dize-me no que posso auxiliar-te, porque me escra- çado Jean Valjean em Os Miseráveis, de Vitor Hugo. O ladrão
vizo a deveres que não possuís. Junto de Deus estamos exata- apanhou o dinheiro, obtido por uma via tão estranha e imprevis-
mente nas mesmas condições. Diante de ti tenho uma agravante, ta. De qualquer modo, tinha alcançado o seu objetivo. E isto era
pois não me encontro em necessidade. Talvez seja por isso que para ele a coisa principal. Se o outro era louco, não lhe impor-
nunca fui tentado a roubar, enquanto que a ti muitas coisas te tava: o dinheiro estava em seu bolso.
faltavam, a ponto de te arriscares desta maneira. Todos nós te- O dono da casa o examinou por um instante, pôs uma das
mos não só o direito, mas também o dever de viver. Sou eu, por- mãos sobre o seu ombro e assim concluiu suavemente: ―Agora
tanto, que estou em débito contigo e desejo saldá-lo agora‖. vai, amigo. Quem sabe quantas más lições recebestes? Utiliza
140 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
esta advertência; que ela te acompanhe e te auxilie a redimir-te. instrumento de prazer, para elevá-la e enobrecê-la, e não para
Vai, mas lembra-te de que estou aqui para continuar a auxiliar- afligi-la. O verdadeiro macho fecunda, sobretudo, o espírito.
te e assim completar a obra. Não esqueças o teu novo amigo. A Decidiu-se. Devia fazer o bem. Devia salvar aquela mulher.
minha casa está aberta. Volta quando desejares. Este dinheiro Dirige-lhe a palavra. Palavras simples para iniciar um co-
não durará sempre. Entretanto procura lembrar tudo que te fa- nhecimento: ―Menina, a primeira coisa de que tens necessidade
lei, mudando de vida. Se desejas fazê-lo, volta e ensinar-te-ei é de restaurar-te. Vamos cear‖. A mulher aceitou, porque isto
como viver honestamente do seu trabalho. Somente quem não fazia parte do ritual, e assim mataria a fome. Entraram num sa-
pode trabalhar tem direito à esmola. O teu direito de homem lão resplandecente. Ela escolheu um canto mais afastado, enver-
sadio está somente no trabalho. Vai, amigo. Estarei sempre às gonhada de si e do seu vestido simples, sua única riqueza. Não
tuas ordens quando desejares vir espontaneamente‖. conhecia aquele mundo que lhe pareceu maravilhoso. Admirava
O ladrão compreendeu que desta vez passara sem castigo e os espelhos, as mesas bem arrumadas, as vestiduras finas das
que, embolsado o dinheiro, não tinha nada mais a fazer naquela senhoras. Sentiu-se invadida por uma onda de bem-estar e fe-
casa. Balbuciou confuso qualquer coisa. Vendo o caminho li- chou os olhos como se sonhasse grande sonho de felicidade. De-
vre, ganhou rápido as escadas e, pelas mesmas portas abertas, sejava saboreá-lo, prolongá-lo, prendendo-se nele. Tudo isto
alcançou a rua num átimo. Ali, a passos rápidos, deslizou, co- contrastava com a triste realidade cotidiana do seu casebre, situ-
mo uma sombra, na noite. ado nos arredores da cidade, onde não ouvia senão as vozes ás-
Passaram-se meses e anos. Aquele senhor esperou. Mas o peras de seus familiares. Uma música leve a embalava no sonho.
ladrão jamais voltou. Viver, gozar! Pobre criatura! Parecia-lhe que ali todos eram feli-
zes, porque ignorava a realidade; ainda não conhecia os sutis
II. Verdadeiro Amor venenos da vida, escondidos sob os esplendores mundanos.
Como pareciam satisfeitas aquelas senhoras! Possuíam ves-
Era uma tépida e encantadora noite de luar. Nos jardins de tidos, joias, eram respeitadas, servidas. Dentro em pouco, volta-
um parque da grande cidade, se bem que em hora avançada, ria à rua. Não tinha direito a nada, nem mesmo ao amor. Devia
ainda se demoravam muitas pessoas. Pares de namorados vaga- vendê-lo para comer. Aquelas dispunham também do amor, de
vam pelas alamedas. A hora, a estação, o local, tudo parecia tudo. Damas ricas, talvez piores do que ela perante Deus, podi-
convidar ao amor. As estrelas olhavam do céu a sorrir. am andar com a cabeça alta, porque possuíam recursos, armadas
Um homem atravessava o parque pensativo e absorto. Tal- de legítimas posições formais que as defendem diante da socie-
vez fosse o mesmo que conhecêramos na história precedente. dade, juridicamente colocadas sob as instituições da propriedade
Resolvido, diante de Deus, o seu problema econômico, pondo a e do matrimônio, tendo o direito ao luxo, à liberdade no amor. E
sua riqueza a proveito do próximo e dando à sociedade o seu sabem como fazê-lo, amparadas por defesas oportunas.
justo tributo de trabalho, preparava-se agora para enfrentar ou- Ela despertou do sonho. Intuía vagamente, sem poder preci-
tros graves problemas. sar a situação. Nada daquilo que via era para ela, pobre verme
Enquanto andava por um caminho solitário, vê uma mulher indefeso no meio da estrada onde todos pisam. Fumegava à sua
sair da sombra onde se escondera da luz do luar e dos lampiões frente um prato suculento, de apetitoso perfume, que lhe avivou
do parque. Observou-a vindo ao seu encontro, com acenos sus- a fome. Começou a refeição. Comia lentamente, procurando
peitos. Ele a olha. É jovem, com um ar embaraçado, como de multiplicar o sabor com todos os acessórios ao alcance de suas
menina inexperiente que não sabe ainda oferecer-se a todos e mãos, condimentos, legumes, para que a ceia se desdobrasse.
não consegue fazê-lo senão com pudor. Ele a observa ainda. Saciava o estômago habituado ao jejum. O amanhã era incerto,
Parece que ela tem medo e fome ao mesmo tempo, e que a fo- seu companheiro não a perturbava, evitando conversar; parecia
me a induz a vencer o medo. Ele, habituado a olhar na alma, imerso não nas sensações elementares da jovem, mas num so-
compreendeu e sentiu que o seu coração era invadido por infi- nho diverso. Também ele observava aquele mundo elegante,
nito sentimento de piedade. mas sem inveja e com piedade. Sabia qual triste realidade se
Assim, andaram juntos, sem falar. Ela, vendo-se aceita, se- ocultava atrás daqueles esplendores. Verificava que reina na
guia tímida, obediente, em expectativa, enquanto ele pensava: Terra a lei do mais forte e que não existe piedade para os fra-
―Há realmente injustiças sociais, além das injustiças econômi- cos. Entre aquelas damas respeitáveis e a jovem que ele havia
cas. Não existem somente as vítimas das pobrezas. Quantas ou- recolhido na rua existia uma única diferença: as damas perten-
tras misérias que somente o amor ao próximo pode fazer desa- ciam à classe dos vencedores; a jovem, à dos vencidos. Somen-
parecer! Eis aqui uma vítima da prostituição, talvez já sacrifi- te por este motivo ela não era respeitada: vendia-se porque ti-
cada no altar do egoísmo humano. Sou um homem que decidiu nha fome. As outras eram respeitáveis; não se vendiam porque
seguir as leis de Cristo. Darei o meu óbolo pessoal para atenuar não tinham fome. Permitiam-se o luxo até de pregar a virtude
a injustiça da miséria moral que é a prostituição da mulher. As- Como é fácil proclamá-la, exigindo-a aos outros! Mas como é
sim como, diante do pobre, é o mais rico quem tem mais deve- dura a virtude exigida de nós mesmos! Pregadores fáceis pulu-
res e, diante do inepto, é o mais inteligente, assim diante da mu- lam pelo mundo. Em nome da virtude, podem satisfazer aos
lher, a parte mais fraca, é o homem que tem mais obrigações. A seus instintos de agressividade contra o próximo; da condena-
culpa da prostituição reside no egoísmo do homem que desfruta ção deste fazem o pedestal para o próprio orgulho. Desta forma
da fraqueza da mulher, que deve ser sagrada‖. se conduz sobre o terreno da moral a luta cotidiana pela vida,
Diante daquela infeliz, sentiu vergonha de seu sexo forte, procurando colocar-se em posição de superioridade, como juí-
que usa a força para desfrutar o ser débil que se lhe entrega. Su- zes, diante do pecador, para esmagar o rival. Uma mulher pode-
ga-lhe o fruto, para depois jogar fora a casca. Nesta casca per- rá esperar bem pouco de outra mulher.
manece uma alma desprezada e despedaçada, que o homem ti- Do homem vil é que se espera o dever da redenção. Para
nha o dever de elevar ao alto, através do amor. Ao invés, prosti- ele, o amor é um incidente. Para a mulher, a vida. É ele que
tuiu-a com o seu egoísmo. Rugiu no coração daquele homem o educa a mulher, adaptando-a a si mesmo. É a mulher que, por
sentimento de revolta contra um mundo tão vil, despertando nele sua natureza, obedece e adapta-se ao homem. As leis, antes de
outra virilidade bem diferente da que apenas fecunda a fêmea e perseguir a prostituta, que é o efeito, deveriam atingir o homem,
depois a abandona. Olhou para o céu, dilatou o peito, sentiu-se que é a causa. É a procura que cria a oferta. Todavia nenhum
homem forte, potente no espírito, macho integral, aquele que se legislador fará jamais uma lei contra a vileza do seu sexo. Pelo
aproxima da mulher para protegê-la, e não para desfrutá-la como fato de estar junto do homem, se este é um delinquente, a mu-
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 141
lher tentará descer até à sua delinquência. Se é um santo, ela tua casa deve ser muito longe, se é que tens casa. Dormirás so-
procurará subir até à sua santidade. A mulher é sempre a com- zinha, com outro amor que eu te ensinarei e que te fará mais
panheira menor do homem, fazendo tudo por ele, para que se feliz. Amanhã me verás; ensinar-te-ei outra vida, sem humi-
sinta satisfeito. É capaz do sacrifício de uma vida de desprezo e lhação, feita de alegrias verdadeiras‖. Deixou-lhe o seu ende-
de abjeção. O grande egoísta esquece os seus deveres; o mais reço. Saíram. Ele a conduziu para a casa de uma senhora amiga
forte deve ajudar o mais fraco, e não roubá-lo. Desta forma, o que a hospedou.
homem educa para si a mulher, feita de astúcia e traição, armas No dia seguinte, acompanhada daquela senhora, a jovem
necessárias para a sua defesa. O verdadeiro amor, do verdadeiro voltou a procurá-lo. Conseguiu-lhe trabalho honesto na resi-
macho, não explora a mulher para o seu gozo, mas protege-a, dência de boa família, a cuja amizade soube corresponder.
educa-a, fazendo-a sua colaboradora no mais viril e potente tra- Nesse novo lar, continuou a falar-lhe sobre o verdadeiro amor,
balho da vida, que é o da ascensão no bem para Deus. o amor fiel, o amor que existe somente na alma, o único que
Assim pensava o nosso protagonista, enquanto lambiscava, resiste à desventura, à morte. Ela compreendeu tudo, comovi-
tomado de imensa piedade pela triste companheira. Deixou que da e grata. Mais tarde se casou, teve a sua família, o seu mari-
ela se satisfizesse à vontade, que aproveitasse a hora de ilusão. do, os seus filhos. O nosso homem desapareceu, porque a sua
Diminuía o número de pessoas no restaurante, parecendo agora obra estava terminada.
tudo mais calmo. A jovem, atenta ao ambiente que a cercava, Não mais a viu. Perdeu-a de vista. Todos os anos, porém,
não aparentava surpresa diante de um interlocutor tão tacitur- pelo Natal, o carteiro lhe trazia uma carta em que se liam estas
no. Parecia até evitar este desperdício de tempo na conversa- poucas palavras: ―Não o esquecerei jamais. O senhor me ensi-
ção. Comia tranquilamente, enquanto vagamente intuía qual- nou o verdadeiro amor e salvou-me. Sou feliz com a minha fa-
quer coisa que lhe dava um sentimento de confiança. Em pou- mília e esta é a sua obra. Não o esquecerei jamais‖.
cos instantes, sentiu esvair-se a sensação de desconfiança que Ele, em cada Natal, lia esta pequena carta, chorando de ale-
lhe havia dado, a princípio, aquele vulto desconhecido. Sentiu- gria. Desta vez o ser, a quem ele havia feito o bem, compreen-
se protegida e fitou-o surpreendida. Ele tomara uma decisão. dera e, por meio de uma carta, voltava todos os anos.
Seus olhares encontraram-se.
Todavia, ele continua ainda calado. Diante dos seus olhos, III. O Encontro Consigo Mesmo
uma visão. Via a louca Herodíade que, odiando João, o Batista,
por condená-la pela imoralidade, instigava a filha Salomé a pe- O protagonista das duas histórias precedentes, ao pôr-se em
dir a Herodes a morte daquele que resistira à sua beleza. Viu-a contato com aqueles dois indivíduos tão diferentes, havia de-
recebendo da dançarina Salomé a bandeja com a cabeça de Jo- frontado os problemas fundamentais do ser humano: o da fome
ão. E quem diria que Herodíade havia de morrer pouco depois, e o do amor. Um dia encontrou-se com outro ser e com outros
vítima de um cancro na boca blasfema. Nessa época, o encontro problemas. Encontrou-se consigo mesmo. Nada de excepcional.
do homem com a mulher era brutal. O drama precipita-se num É coisa que acontece a todos os homens inteligentes, assim que
epílogo de destruição para ambas as partes. A adúltera era ape- atingem certo grau de maturidade. Não é, portanto, um caso ex-
drejada. A Lei era então uma espada que simplesmente cortava traordinário, e deve ser interessante falar a seu respeito.
e matava. Tempos violentos e ferozes, nos quais os princípios Este seu outro eu havia observado, calmamente, das pro-
da Lei se proporcionavam à dureza dos homens. fundezas do seu ser, o pensamento e a ação nos dois casos pre-
A visão continuava. Cristo fala aos perseguidores da adúl- cedentes, julgando tudo sem falar. E agora, em hora de paz e
tera: ―Aquele que entre vós esteja isento de pecado, atire a de silêncio, tomava a palavra: ―Amigo, sou o mais profundo de
primeira pedra‖. E depois, voltando-se para a mulher: ―Nin- ti mesmo; surjo na tua consciência, vindo daquela infinita pro-
guém te condenou? Pois bem, nem eu te condeno. Vai e não fundidade onde, distanciado imensamente da tua consciência
peques mais‖. normal de homem, Deus está. Apresento-me porque, da super-
Eis uma nova cena: mulher famosa e pecadora, prostra-se fície de tal consciência, apta à vida cotidiana de relação, dese-
aos pés do Cristo, banha-os com as suas lágrimas, enxuga-os jaste sondar o mundo das causas. Impondo-te perguntas, dese-
com os seus cabelos, beija-os e unge-os com perfumes. Cristo jaste olhar de frente e pesquisar com coragem o pavoroso
lhe diz que as suas faltas eram perdoadas porque muito amou. E abismo que está na profundeza de todos e de que muitos desvi-
acrescentou: ―Aquele que menos perdoa, menos ama. Vai, per- am o olhar, espavoridos. Foi assim que me despertaste e sem-
doados são os teus pecados‖. pre mais me despertarás. Isto te custou muito trabalho, traba-
Neste encontro do homem com a mulher, aparece uma luz lho considerado inútil pelo mundo, absorto em utilidades ime-
nova, uma espiritualidade antes ignorada, uma amplidão de vis- diatas. Realizaste grande feito e te julgavas sozinho porque in-
ta e uma liberdade que antes não se podiam conceber. A reação compreendido e condenado pelos homens. Mas não estás a sós.
à culpa é um perdão. Por uma lei mais elevada – o amor, acima Das profundezas fala a voz de Deus, tanto mais clara e mais
da justiça mecânica – pode-se fazer de uma pecadora uma san- forte quanto mais souberes despertar conscientemente nesta
ta: Maria Madalena. A bondade desponta como função salvado- profundidade. Escuta-a. É a tua grande amiga que te auxilia a
ra e criadora, sem a punição que lembra a vingança e prende a maturação. Tem pena dos teus semelhantes que te desprezam,
alma, para conduzi-la a Deus. Diante deste novo apelo lançado porque eles vivem de ilusões‖.
pelo Cristo em direção positiva, a velha atitude do Batista pare- O homem escutava, confortado. Conforto agradável em hora
ce qualquer coisa de estéril e negativa. de esgotamento. Estava cansado. A sua natureza humana nor-
O nosso homem acorda de seu sonho. Durante o devaneio, mal, porém, sofria e revoltava-se. Por que não gozar a vida? Por
firmara a decisão de não odiar o pecado, porque assim acaba- que lutar tanto e sofrer? Ninguém o prezava por este motivo; era
ria por odiar o pecador. Jamais fazer da virtude um direito pa- considerado um néscio. Por que andar assim contra a corrente
ra condenar ou instrumento para perseguir. Ter sobretudo pie- geral? Por que renúncias? Quem lhe pagaria por tudo isto? Não
dade do pecado, para se apiedar do pecador. Com a força da era loucura desperdiçar as suas economias? Não são loucuras a
bondade, do exemplo, da virtude, com o próprio sacrifício, santidade, os ideais, os heroísmos? Não é tudo isso, para a vida,
salvar aquele que pecou. um salto perigoso que o homem de bom-senso deve evitar? De
O nosso homem volta-se para a jovem e fala-lhe: ―Não é fato, o homem normal admira estas coisas, mas somente como
possível amar sem amor, como um animal. Continuarás o teu fábula e lenda, sem jamais suspeitar que todos podem e devem
romance numa bela residência onde eu te deixarei, porque a realmente realizá-las. Por que continuava ele, ao contrário, fas-
142 FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO Pietro Ubaldi
cinado e desejava vivê-las? Não podia ter sido isto simplesmente ventude para gozar, mas se desprendera de tudo isto pelo seu
a sugestão de exemplos que eram postos em destaque e utiliza- sonho de louco – fazer o bem ao próximo. Isolara-se, porque se
dos por grupos, como bandeira? Onde jamais o homem faz al- colocara fora do normal. Para que lhe servia tudo isto? Insensa-
guma coisa sem esperar retribuição e exalta o seu semelhante tez sua acreditar poder convencer os homens. Estes se riam dele
sem um interesse próprio? Cansado e triste, depois dos maiores e voltavam-lhe as costas. Quando, com a sua simples e muda
impulsos e sacrifícios, era às vezes atormentado pela dúvida. presença, mostrava reprovação com o seu exemplo, o mundo o
Sacrificar-se pelos outros é duro; todos abusam e desfrutam condenava, respondendo-lhe com rude exprobração. Qual dos
da bondade, correndo para onde existe o que tomar e somente dois tinha razão: o seu altruísmo ou o egoísmo dos outros, os
para tomar. Por fazer o bem se tornou pobre e, como tal, foi homens cheios de direitos ou ele, todo cheio de deveres?
desprezado. Precisava ganhar a vida na luta cotidiana, pois se O nosso protagonista sentou-se. Estava cansado. Apoiou a
colocara entre os necessitados. O mundo lhe mostrava tacita- fronte sobre as mãos e chorou. A luta o consumia. Entretanto,
mente a sua desaprovação, abandonando-o sozinho; o mundo ele a amava; sentia brilhar nela centelhas de luz. Apenas volta-
não o amava, ele representava uma exprobração e uma conde- da a calma, o seu eu profundo falou-lhe de novo: ―Amigo, a
nação com apenas a sua presença, a sua conduta e o seu silên- tua fadiga é a mais proveitosa na vida, a única que produz fru-
cio. Se todos, desde que o mundo é mundo, tivessem agido do tos eternos. Nesta maceração que te atormenta, tu te maturas e
mesmo modo, que revolução não se teria realizado! Por que evolves. Tudo, menos isto, acaba sendo destruído pelo tempo e
continuar sacrificando-se pelo bem desta gente que não o sabia pela morte. Não te agites, repousa. Fizeste o esforço tremendo
interpretar? Sabia que, em casos semelhantes, o reconhecimen- para sair da baixa corrente do mundo, a fim de atirar-te numa
to não vem senão depois da morte, isto é, quando o homem su- outra, entre os braços de uma lei mais alta. Esta te prendeu en-
perior não pode mais falar nem agir; somente então ele passa a tre as suas espirais, arrebatando-te. Abandona-te nela e deixa-
servir aos objetivos de grupos, transformado em bandeira, atrás te levar. Deus deixa ao homem a semeadura, no entanto cabe a
da qual é mais fácil a defesa na luta pela vida. Se, na Terra, não Ele, como obra Sua, fazer crescer a semente. O bem que fizes-
conseguia nada, conquistaria ele verdadeiramente valores abso- tes, tanto rodará nos circuitos das forças cósmicas, que voltará
lutos? E onde estavam eles? Sim! O seu eu profundo falava a ti. O mal que o mundo faz, tanto rodará, que voltará a ele,
bem. A sua voz vinha de longe, como se fora um sonho, en- porque quem faz o bem ou o mal o faz a si próprio. A Lei rea-
quanto a voz hostil do mundo e a dura realidade estavam bem ge conforme nós agimos, e o mal retorna sobre nós mesmos.
próximas e claramente visíveis. Coragem! Escolheste a vida mais dura, porém a mais elevada,
Tal é o contraste entre a natureza humana e a divina, contras- a mais verdadeira. Deixa gritar o mundo dos inconscientes,
te que nasce em cada homem quando esta última floresce nele e que apenas creem nas vantagens imediatas, esperando a vitó-
se faz progressivamente mais forte, até o dia em que o domine e ria, quando na realidade, estão sendo derrotados. Deixa que os
tome a direção suprema. Vejamos em nosso protagonista como mortos sepultem os seus mortos. Os utopistas que vivem de
as duas naturezas falaram, cada uma por sua vez. Ele havia saído ilusões são os homens que creem somente nos poderes huma-
de casa entristecido com uma prova de ingratidão e incompreen- nos e na riqueza, coisas que os atraiçoam continuamente. Pros-
são. Sozinho, subira até ao alto de uma colina de onde se domi- segue, porque estás no caminho. Não voltes atrás. Não pares.
nava a cidade, e deste sítio contemplava o horizonte, a paisa- O teu sonho jamais te atraiçoará. O teu sacrifício não propor-
gem, aquelas vidas cheias de vozes mil. E perguntava-se: ―Por ciona o rendimento imediato e transitório que dão as coisas do
quê? Por que corre toda aquela gente, que miragens segue, que mundo. Os teus lucros, profundamente amadurecidos no tem-
realiza e conclui? Cada um possui uma finalidade particular, po, serão sólidos e estáveis. Esta é a verdade para ti e para
mas para onde vão? Cada um possui o seu objetivo próximo, quantos escolheram a tua mesma estrada.
imediato, mas conhece os grandes objetivos distantes da vida? ―Entre todas as batalhas, tu escolheste a maior da vida, a
Cada gota ignora a grande corrente na qual vão ter todas as go- que exige mais audácia: a escalada para o céu. Escolheste a via
tas. Todos fazem tantas coisas, acreditando alcançar outras de- íngreme e direta. É natural que seja a mais cansativa. Tu te
pois. Mas que significa tudo isto, qual o fim de tudo isto?‖. abrasas na jornada porque vives a evolução em síntese. Os ou-
A sua natureza humana voltava a falar nele. Valia a pena tros a vivem diluída em longas experiências, avançam e retro-
sacrificar-se por este mundo indigno? O seu sacrifício não se cedem a cada passo, vítimas da ilusão em que desejam acredi-
tornava inútil como uma gota de água no oceano? Como podia tar. Deixa-os na sua lenta experimentação de análise, num labi-
a sua revolta abalar o mundo? Não era inútil o seu esforço? Não rinto de particularidades. Arrastas a tua rede e recolhes o pes-
era isto uma ilusão? Ou antes, não estaria o mundo iludido ao cado, enquanto outros ainda estão começando a tecer a sua.
seguir atrás de uma quimera somente para atrair mais dores? Eles, um dia, após árduas refregas, que atenuarão as duras an-
Ao invés de condená-lo, não poderiam os outros imitá-lo no gulosidades do egoísmo, também aí chegarão lentamente, des-
dever de salvar a humanidade? Não era o seu sacrifício um de- cobrindo o roteiro. Tu és um arauto com a função biológica não
ver, não havia outro mundo de justiça, onde ele receberia o de conservar o passado, mas de explorar o futuro, de vivê-lo
prêmio independentemente dos juízos humanos? Mas quantos como outros precursores, para fixar na Terra a nova lei do
amigos possuía que sabiam aproveitar e gozar este mundo! E Evangelho, que, na prática, ainda é desconhecida no mundo.
ele nunca soubera se aproveitar de nada! Gozar, gozar, eis a ―Vai. Cada um não pode viver senão segundo a sua nature-
grande miragem. E ele a destruiu com as suas próprias mãos. za. No teu longo passado, tu te construíste assim. Fizeste o teu
Nascera rico e renunciara aos bens de herança, porque achava destino com as tuas mãos e agora não podes desertar. É fatal
que o seu dever era viver apenas do próprio trabalho, com o que sofras ajudando o próximo, porque é da Lei que quem
qual pagaria o seu tributo à sociedade. Por este motivo foi jul- mais possui mais deve dar. Tu mesmo não podes parar. A tua
gado imbecil. Utilizara a força econômica que a riqueza lhe sede de subir te queima. É fatal esta tua posição. É fatal que os
proporcionava, não para a sua satisfação própria, mas pelo bem outros se revoltem e te condenem, que se sintam abalados com
dos outros. Foi considerado um imbecil. Jamais se aproveitara o teu exemplo, para que assimilem algo e elevem-se um pouco.
da fraqueza da mulher. Recusara dinheiro ganho num jogo en- A condenação que te dão é o preço que tu, mais avançado, tens
tre amigos, porque não era fruto de trabalho, jogo este imposto o dever de pagar para a evolução deles. Esta é a tua prova. O
pelos próprios companheiros. Classificaram-no como imbecil. trabalho é, contudo, útil para os outros e para ti. Não se pode
Jamais se utilizara da sua inteligência para aparecer em desta- semear sem sacrifício, mas cada semente germinará numa no-
que no mundo, da sua posição social para dominar, da sua ju- va. Que tenhas a certeza disso. Cada criatura que beneficiaste,
Pietro Ubaldi FRAGMENTOS DE PENSAMENTO E DE PAIXÃO 143
mesmo que não volte mais a ti ou te cubra de ingratidão, retor- estava junto dele na pessoa do próximo, que ele queria auxiliar.
nará um dia, porque cada pensamento ou cada ato, após per- Não sabia, contudo, explicar por que tanta alegria tinha, de im-
correr o circuito das forças cósmicas, tornará à sua causa. Cada proviso, invadido a sua alma, tanta paz, tanta força, tanta certe-
exemplo teu foi visto por muitos e permanece escrito no livro za. É árduo, a princípio, aplicar a máxima: ―Ama ao teu próxi-
da vida; se foi condenado e afogado na incompreensão, não mo como a ti mesmo‖, mas, depois, o amor retorna de todos os
importa, ele representa um impulso indestrutível que tornará a lados, realizando o paraíso. E agora, o amor que ele, incompre-
ti na mesma forma de bem com que o geraste. Exulta na dor; endido e condenado, havia dado a todos, voltava-lhe como feli-
ajudando os outros a redimirem-se, estás redimindo a ti mes- cidade, porque é a lei de Deus. Sentiu-se, então, unido ao todo,
mo, criando o teu paraíso‖. operário na obra divina.
O nosso homem agitou-se como se acordasse de um sonho. Levantou a cabeça e sacudiu-a. Confirmou-se na sua deci-
Levantou-se. O lampejo vivo das profundezas da alma o havia são. Jamais duvidaria. A potência do espírito vencera para
iluminado. Nova luz brilhava nos seus olhos. Que potência, en- sempre.
tão, existia na profundidade do espírito para emergir deste mo-
do e transformar o homem? As suas dúvidas desvaneceram-se
como névoas; reencontrara a sua própria consciência. Não se FIM
sentiu mais sozinho, nem cansado, nem pobre, nem triste. Deus
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 145

A NOVA CIVILIZAÇÃO lógica e conceitualmente divididas pelo maior acontecimento de


DO TERCEIRO MILÊNIO todos os tempos, a guerra mundial de nossos dias; a primeira tri-
logia, de espera e preparação; a segunda, de atividade e recons-
trução. Por esta diferente posição do pensamento é que A Gran-
PREFÁCIO de Síntese se distingue deste volume. Enquanto em História de
um Homem, na luta pela vida terrena, se dramatiza essa verdade
Embora o presente volume também possa ter significado au- e em Fragmentos de Pensamento e de Paixão se exemplifica es-
tônomo e ser lido como tal, vem aqui apresentado como comen- sa luta, o ciclo da atuação avança ainda mais neste livro, che-
tário sobre A Grande Síntese. Este não é livro cujo texto se pos- gando à sua fase de concretização. Aqui se trata, pois, de ilumi-
sa retocar, corrigir ou ampliar, enxertando-lhe digressões e con- nar, de clarear A Grande Síntese, de demonstrá-la melhor, espe-
ceitos novos. Nasceu de um jato, em dado momento histórico, cialmente descendo a pormenores, isto é, à parte humana, indi-
com determinada função social e espiritual, através de particular vidual, social e moral, que nos está mais próxima, com preferên-
estado psicológico de intuição. Condicionado por esses elemen- cia à parte científica e cósmica, mais afastada e já amplamente
tos especiais e irreproduzíveis, conservou-se inalterável, como desenvolvida. De fato, o objetivo principal neste trabalho não é
se vazado em bronze, inviolável e firme, qual rochedo que desa- só expor e convencer, mas, acima de tudo, aplicar na prática.
fia as tempestades dos séculos. A primeira, por ele prevista e es- Deste modo fecha-se este segundo ciclo da obra, a que se-
perada, desencadeou-se de súbito, quase como resposta da histó- guirá outro, isto é, a terceira trilogia, que começa com o volume
ria ao grito de alerta lançado ao mundo, confirmando a previsão já elaborado: Problemas do Futuro, seguido por outros ainda
de seu renovamento. Só hoje, ao fim desta guerra mundial, po- em preparo. Tudo isso formará uma só obra, um único edifício
de-se começar a entender o verdadeiro significado de A Grande orgânico, que, através da solução dos problemas do ser, se pro-
Síntese: ser o livro da nova ordem do mundo, isto é, o código da põe a contribuir para que se construa a nova civilização do Ter-
nova civilização do Terceiro Milênio. Livro de essência inspira- ceiro Milênio, preparando a nova era do espírito.
da, racional apenas quanto à forma, não podendo, portanto, ser
refeito ou modificado, pois é de substância completa, arquitetura I. A VERDADEIRA CIVILIZAÇÃO
equilibrada e estrutura definitiva. Isto posto, torna-se impossível
voltar de novo a ele, que é pura intuição e síntese, senão com O conceito fundamental de A Grande Síntese pode resumir-
outra psicologia e de outro ponto de vista, preponderantemente se nestas palavras: ordem em Deus. Esse trabalho apareceu,
analítico e racional, embora muitas vezes a inspiração volte a com profética vidência, justamente na véspera do clímax da ho-
guiar e iluminar o texto, que é assim analisado, desenvolvido, ra histórica, no limiar da maturidade dos tempos, a cavaleiro da
completado e aprofundado naqueles pontos em que, naquela maior revolução social do mundo, no momento em que devia
obra, não era possível nem lógico demorar-se. (Foi dito no Capí- produzir-se grande choque de dor, a fim de preparar os ânimos
tulo LXXXVI de A Grande Síntese: ―A natureza deste livro sin- para receber a boa-nova da concepção regeneradora, estranha a
tético não me permite descer a particularidades‖). este mundo tão distante ainda do evangelho. Hoje, que a des-
O momento histórico está adequado a este comentário. truição material e espiritual de tantos valores antigos preparou o
Quem escreve deve saber que alguns conceitos só em determi- terreno para a reconstrução, podemos entender muito mais esse
nados momentos podem ser compreendidos pela psicologia co- livro, filho e precursor dos tempos, paralelo aos acontecimen-
letiva; é inútil enunciá-los antes do tempo, pois não podem ser tos, expressão viva de seu dinamismo, indissoluvelmente fun-
entendidos, ao menos pelos leitores contemporâneos. Porém já dido neles e na renovação social e moral que representam.
chegou grande parte da destruição prevista; a dor atingiu os Os fundamentos desse tratado são profundos, ligam-se com
ânimos; a pobreza, conseqüência da guerra, privando-nos de tan- a gênese do cosmo. Encontramo-los até mesmo no pensamento
tas coisas humanas, convida-nos e leva-nos a compreender a ri- criador de Deus. Essa síntese, abrangendo e unificando o co-
queza das coisas do espírito, tornadas mais necessárias pela ruí- nhecimento científico e filosófico do século, enuncia conceito
na do mundo de nossos tesouros terrestres; a tempestade nos tão sólido, que é possível pô-lo como base de nova civilização,
conduz à razão, através do exame dos pontos fracos do sistema e e tão dinâmico, que pode amparar-lhe o desenvolvimento. Tra-
do reconhecimento dos erros cometidos. Aí está! A Grande Sín- ta-se de um sistema orgânico e compacto, em que todos os fe-
tese, o livro da construção, preparado antes do aniquilamento, nômenos, do campo cientifico ao moral e social, se prendem
quando ninguém o acreditava possível, já está pronto. Este é o em lógica de ferro, de modo a impor-se à forma mental racional
momento de relê-lo e meditá-lo, para melhor entendimento. Esse do homem moderno. Trata-se de um sistema que dá a chave pa-
livro é legado ao atual momento histórico, foi escrito para nele ra a solução, ao mesmo tempo, de todos os problemas, desde os
funcionar como força viva criadora. Evangelho da renovação teóricos e abstratos da filosofia até aos práticos e concretos de
espiritual, livro da juventude, chantado na soleira do futuro mi- nossa vida como indivíduos e como sociedade.
lênio, para além do qual já desponta o dia das novas constru- Esta visão orgânica e completa apareceu pouco antes da ho-
ções, essa obra é legada à vida e à sua ressurreição. Universal e ra em que o mundo, saindo da gigantesca experiência, deve
imparcial é a sua filosofia, divina filosofia que, como expressão caminhar para a reconstrução. Pode-se, pois, definir tal visão
do pensamento divino, a vida e os fenômenos nos expõem; sim- como o plano regulador da sociedade futura. E, além disso, apa-
ples e lógica filosofia dos fatos, que nos espera para dar nova di- receu em grande curva do caminho evolutivo do homem, no
reção à atividade humana, mais de acordo com o moderno pro- ponto crítico de nova maturação biológica, cujo grande signifi-
gresso, isto é, capaz de dar sentido às conquistas mecânicas e ci- cado se compreenderá mais tarde; maturação elaborada em si-
entíficas realizadas. Estas já de tal modo são notáveis, que, para lenciosa e subterrânea incubação milenar e que explode justa-
conservarem a importância, é-lhe necessário conquistar esta no- mente agora, em mortificante e necessário banho de dor, que
va sabedoria. Este volume é o terceiro da segunda trilogia do purifica e renova. Nesse momento apocalíptico e de ebulição,
mesmo autor. A primeira compõe-se de: 1) Grandes Mensagens tal pensamento é exposto como orientação e ajuda, porque ori-
e A Grande Síntese; 2) As Noúres; 3) Ascese Mística. A segun- entação é o que nos falta e, acima de tudo, se torna necessário,
da, de: 1) História de Um Homem; 2) Fragmentos de Pensamen- pois talvez nunca, como hoje em dia, a vontade de Deus esteve,
to e de Paixão; 3) A Nova Civilização do Terceiro Milênio, com na Terra, tão luminosamente presente e tão ativamente criadora.
o qual completa seu terceiro termo. O texto deste escrito (Capí- Enquanto, pois, a natural maturação biológica, presente nas
tulo XVIII) explicará melhor o sentido das duas trilogias, crono- leis da vida, possibilita ao homem, na atual plenitude dos tem-
146 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
pos, a capacidade de compreender e fazer atuar novos critérios conjunto, mas se enquadra harmonicamente no funcionamento
de vida e novas formas de relações sociais, sucedem-se grandes orgânico do universo. Enquadramento gigantesco, em que a
acontecimentos históricos, com a função precisa de elaborar vida se torna imensa. Pode-se objetar que o indivíduo é o que
novos conceitos e acompanhá-los até a sua aplicação. O mundo é, indiferente a tudo isto, completamente aprisionado na visão
agita-se em guerras destruidoras e cruentas para aprender a as- estreita de interesse egoísta, estando a léguas e léguas afastado
similar esses conceitos, que, se não assumissem corpo tangível de semelhante orientação. Mas pode-se também responder que
sob a forma de destruição e de dor, não seriam percebidos pelo essa é ignorância da mais profunda realidade da vida, ignorân-
homem surdo e indiferente dos nossos dias, vivo só na carne, cia de que ele sofre os danos, até mesmo nos próprios cálculos
mais ainda adormecido no que diz respeito ao espírito. Chegou utilitários e egoístas; danos que deve sofrer, porque a sua in-
a hora de compreender essa profunda sabedoria da história, esse consciência não pode impedir o funcionamento das leis da vida
sentido criador que possuem os acontecimentos que elaboramos e as reações das suas forças. Pode-se também responder que o
e seguimos, esse significado divino presente em todos os fenô- progresso biológico é fatal, porque a evolução constitui ten-
menos. O homem, em milenar ascensão, vai despertando for- dência fundamental do ser, e o homem, embora involuído,
mas mais sutis de sensibilidade e de consciência mais perfeita. inerte e rebelde, deve, mais cedo ou mais tarde, ser impelido
Já se percebem no horizonte os clarões da vida nova do espíri- para o alto e transformar-se, cedendo ao irresistível e divino
to. Lá, no futuro, há verdadeiro incêndio de esplêndidas afirma- impulso contido na essência das coisas. Em A Grande Síntese,
ções e criações novas; e a divina lei de evolução quer que o o desusado atrevimento da utopia foi valorizado e enfrentado
homem, embora lhe resista e se atrase, fatalmente ali chegue. com conhecimento. Isso não é loucura, mas resulta do confron-
Chegou a hora de dizer ao homem: Levante-se, filho de Deus, to da vontade e da força de que o homem dispõe, com a potên-
sob forma de consciência mais esclarecida, em estado social cia volitiva e dinâmica das divinas leis da vida, possuidoras
mais orgânico e completo, supere a ferocidade atual e civilize- dos meios necessários para atingir seu escopo e que sabem
se finalmente, mas a sério. Chegou a hora de compreender que muito bem consegui-lo. Há, de certo, luta entre o anjo e a bes-
a nossa assim chamada civilização atual não é civilização, mas ta, mas é da Lei a vitória do anjo.
sim barbárie; de compreender que, no fundo, o homem moder- Muito embora o homem resista, não se lhe pode interrom-
no é primitivo e inconsciente, pobre fantoche, completamente per a ascensão. A vida, através de mecanismo de instintos, de
ignorante, quase sempre presunçoso e prepotente, cego e rebel- reações e de fatalidade, obedece à Lei, e o homem a cumpre de
de, mas, mesmo assim, sem o saber nem querer, obedece à Lei, fato, apesar de não compreender ou não querer. O mecanismo
que o guia, tudo sabe, tudo faz por ele e, manobrando-o como que a executa, o sistema de forças motor desse mecanismo, es-
autômato, sem que ele o saiba, lhe traça a história, prepara os tá justamente dentro do homem, implantado em sua própria es-
acontecimentos, entrosa os choques, apresenta as soluções e trutura, pertencendo ao ser. Mas a este cumprimento da lei se
impõe as conclusões, elevando os lideres, edificando e destru- chega através de erros e de consequentes retificações expiató-
indo, exaltando e abatendo, de acordo com uma sabedoria des- rias; é, pois, fatigante e doloroso. Em A Grande Síntese, ensi-
conhecida pelo homem. Chegou a hora de compreender o signi- na-se, pelo contrário, a respeitar essa lei inexorável, para obter
ficado das ações que indivíduos e povos realizam todos os dias, o menor dano e a maior vantagem possível; ensina-se como,
sem que lhes conheçam o verdadeiro significado e as conse- nesse complexo sistema de forças que é o universo, há de al-
qüências. Chegou a hora de nos tornarmos conscientes colabo- guém movimentar-se sem doloroso choque a cada passo. O
radores de Deus no plano construtivo criado por Ele em nosso que torna atual essa síntese, em correspondência estreita com o
campo terreno, ao invés de estúpidos servidores de Satanás, em momento histórico e com a moderna fase de evolução humana,
absurda obra de rebelião. Chegou a hora de compreender, sendo é a maturidade do tempo, é o desenvolvimento nervoso e inte-
mais inteligentes; de confraternizar, sendo mais honestos e jus- lectual que, hoje, torna o homem apto a receber e aplicar na
tos; de colaborar, sendo mais conscientes. vida estes princípios, que, se tivessem sido enunciados há anos
A vida não pára, é movimento que não se pode fazer parar; atrás, não teriam sido aprofundados, analisados cientificamente
deve, pois, inexoravelmente, amadurecer alguma coisa. Esse e racionalmente demonstrados. Por isso aquele escrito apare-
caminhar da história aproxima-se hoje de uma grande curva, ceu em nosso momento histórico como novo ensinamento, pa-
onde, com o nosso século, se completa um novo ciclo de civili- ralelo à nova capacidade de compreendê-lo.
zação e se prepara outro. Sintomas sutis advertem desse fato os Hoje, essa compreensão é necessária, e não apenas possí-
intuitivos, que sabem percebê-los; isto nos vem indicado pela vel. O homem vive e move-se em campo de forças inteligen-
concatenação dos ciclos históricos, pela lei do equilíbrio nos tes, em que se emaranha; forças que, em face de sua agitação
desenvolvimentos e pela lei do equilíbrio entre ação e reação. inconsciente e desordenada, reagem e lhe fazem pagar caro o
Esta é nossa fase, tal como está inscrita na lógica da evolução erro. Ora, se por causa de menor conhecimento e disponibili-
orgânica do universo; esta é nossa posição no tempo, na série dade de meios, esse erro era até agora mais limitado e, portan-
das maturações milenares; este é o elo que hoje devemos sol- to, de conseqüências mais suportáveis, hoje, que o progresso
dar. Aí estão os germes, mas os germes foram feitos para de- técnico e científico dilatou imensamente o raio de ação do ho-
senvolver-se; aí estão as causas, que tendem a atingir o efeito. A mem e aumentou o poder humano de incidir no dinamismo fe-
Grande Síntese é alarma estridente, antecipação reveladora, nomênico do planeta, não se tolera mais a própria ignorância,
chamamento da atenção para profundas realidades ainda não porque conduz a conseqüências práticas que, agigantadas pelo
vistas, advertência desesperada, apelo que acontecimentos aumentado domínio de meios e possibilidades, podem tornar-
mundiais logo sublinharam e justificaram. Aquele brado de se catastróficas. Vimo-lo na potência destrutiva da presente
alerta já foi lançado, e ninguém pode extingui-lo, do mesmo guerra. Estamos em período de desequilíbrio, porque o poder
modo que não há incompreensão humana à qual Deus tenha de agir é hipertrófico, desproporcionado ao poder de entender
concedido o poder de parar a história ou a vida. e iluminadamente dirigir a ação. O desequilíbrio está presente,
Trata-se de uma concepção que, se nos princípios adere ao hoje, em todas as nossas coisas e em toda nossa vida. Mas o
evangelho, tem agora meios próprios de demonstração, com o próprio desequilíbrio é criador, luta, esforço genético. Procura
escopo de, pela força da razão, atuar na vida individual e soci- desesperadamente reequilibrar-se, hoje, em plano mais alto,
al, onde é praticamente nova. Nova forma mental, orgânica e em ordem mais ampla, onde o homem inclua e assimile novos
harmônica, substitui aqui a antiga, inorgânica e caótica, e as- elementos. É necessário, então, que o pensamento seja dado
sim, neste sentido, não mais o indivíduo permanece isolado do como orientador desse esforço biológico; é necessário que o
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 147
homem, esse menor de idade, aprenda ainda, não destruindo o de hoje, cético, há de sorrir. Mas o certo é que todo o plano
preciosíssimo progresso científico já alcançado, mas comple- dessa construção espiritual obedece à lógica, que não é a lógi-
tando-o com paralelo progresso moral, de modo a equilibrar-se ca míope do momento que passa; visa a objetivos elevados e
a ascensão da matéria com proporcionada ascensão do espírito. longínquos, que não se identificam com o de salvar-se e fruir a
A vida é regida, como já dissemos, por leis inteligentes, que vida; corresponde a pressentimento, a visão profética, a fé an-
têm, buscam e sabem atingir fins próprios; querem a perpetui- tecipadora, a sentido de missão, razão por que o autor deste li-
dade, e não a catástrofe; permitem o perigo, mas como elemen- vro não espera ser logo compreendido e sabe que em vida ne-
to do esforço concluído com a salvação. É, pois, fatal a elimi- nhum fruto verá e colherá, mas semeia para que outros, nou-
nação da desproporção entre o desenvolvimento material a o tros tempos, vejam e colham. Estamos agora na fase negativa.
espiritual e o restabelecimento do equilíbrio. A vida quer. Por Todavia, quem conhece o necessário equilíbrio da vida sabe
isso, certamente, o espírito retomará amanhã a dianteira. que, por causa de paralelismo antitético, o não vem antes do
Aos detentores do poder e aos lideres das finanças e da in- sim, do mesmo modo que a noite vem antes do dia. O cálculo
dústria pode o problema do mundo parecer simples problema das probabilidades nos faz crer que os fatos, porque se repeti-
técnico. Não é, porém, somente problema técnico. E isso por- ram muitas vezes, devam continuar repetindo-se sempre. Mas
que, se as grandes agitações sociais se desencadeiam para con- os equilíbrios da vida reclamam exatamente o contrário. Exa-
quista de objetivos concretos, utilitários, de interesse econômi- tamente porque determinado fato se repetiu tantas vezes, deve
co, a verdade é que a vida, além de vasta e complexa, é una e ceder o passo à posição contrária. Por isso, em lugar de conti-
unitária. Se é esse, pois, seu aspecto, sua fase construtiva de nuação do passado, como vulgarmente se pensa, as situações
momento, ainda existem sempre, embora momentaneamente futuras são, quase sempre, resultado de retorno ao passado.
adormecidos, em estado de latência, os outros aspectos da vi- Confiamos muito nas aparências, mas, especialmente na histó-
da, principalmente o moral, hoje estacionário. É justamente es- ria, como vimos, as aparências enganam.
se o lado oposto, mas complementar, do hipertrófico progresso A natureza é de profunda sabedoria, no entanto vivemos
material de nossos dias. Ora, uma vez que as leis da vida im- muito na superfície. Se perscrutarmos o íntimo e descobrirmos
põem, em todos os pontos, desenvolvimento harmônico e pro- o mistério das coisas, aparece algo bem diferente daquilo que
gresso equilibrado, é lógico esperar-se, agora, correspondente habitualmente se diz, se crê, se faz. Há, no fundo, divina lei, in-
desenvolvimento espiritual, para compensar o contemporâneo teligente, boa e sábia, que a tudo rege e nos guia, como crian-
excesso de progresso material. Quem conhece a organicidade ças, em direção ao bem. Ela exprime o pensamento de Deus. O
funcional do universo deve admitir que o esforço genético das homem não pode, sem grave dano para si mesmo, substituí-la
formas biológicas não pode criar o novo e gigantesco indiví- na direção da vida. Tem, todavia, a presunção de fazê-lo e não
duo coletivo, filho dos nossos tempos, assim desproporciona- se orienta senão por sua ignorância e prepotência. E, como hoje
do, sem equilibradas correspondências simétricas, só membros em dia essa substituição se torna cada vez mais extensa e pro-
e forças, sem paralela sabedoria diretora desses membros e funda por causa do aumento da capacidade intelectiva e da dis-
dessa força. Esta sabedoria é justamente aquela que A Grande ponibilidade técnica, o perigo correspondente vai ficando mais
Síntese antecipa e prepara. e mais grave e ameaçador. Por isso A Grande Síntese é deses-
O progresso material de nossos dias representa, assim, des- perado brado de alarma solto no exato limiar da catástrofe em
proporcionado desenvolvimento unilateral. O ponto crítico que a humanidade poderá encontrar a própria destruição.
tangível, resultante desse desequilíbrio e revelador dessa des- Se tudo isso é estranho à moderna forma mental, alheio à
proporção, é a moderna guerra de destruição. Trata-se de fase corrente que a maioria segue, e se, ao contrário, em geral se
transitória, formadora de excesso, que as leis da vida devem concebe a vida limitada e caótica, isso não impede que a or-
corrigir e reequilibrar, reagindo em sentido oposto. Desse mo- dem e a reação obrigatória existentes no mundo astronômico e
do, demonstra atrofia espiritual a crença de que o problema do químico existam também no universo moral, justamente aquele
mundo seja problema técnico, utilitário, de recursos e maté- em que, por ignorância das leis que o regulam, os homens gos-
rias-primas. Mas, por isso mesmo, surge a complementação do tam de agitar-se o mais loucamente possível. Essa pobre for-
organismo com o desenvolvimento do lado atrofiado. A guerra miguinha, a mexer-se tanto na superfície desse grãozinho de
de destruição nasceu do fato de que o novo poder da técnica, poeira cósmica chamado Terra, sabe por acaso o que efetiva-
sendo mecanicamente acessível a todos e, assim, à maioria in- mente faz e quais as conseqüências do que faz? A ilusão não é
voluída, foi empregado sem discernimento. Os resultados prá- sua herança? Não é mesmo absurdo que, por ignorância do
ticos do progresso acabaram indo às mãos do homem ainda modo como funciona a máquina universal, indivíduos e povos
não moralmente desperto, sem preparo, insuficientemente sá- vivam eternamente dando cabeçadas na parede, sem esperança
bio para fazer bom uso do novo poder. Foi o mesmo que pôr de libertação, oscilando continuamente entre o erro e a dor? E,
faca em mão de criança. Por isso, antigamente, a sabedoria era quando algum esforço é feito para sair desse aperto, por que
mistério para o povo. O progresso mecânico acabou sendo en- deve ser tachado de utopia?
trega de arma perigosa a mãos inconscientes. O homem de ho- Não. Seja qual for a incompreensão, a resistência, a dificul-
je em dia, moralmente deficiente, foi tomado de surpresa dian- dade, a fadiga, não é loucura ensinar que se deve superar a ilu-
te das novas possibilidades que a ciência lhe oferecia. Corpo são e a dor e conquistar valores mais sólidos que os valores do
de gigante com cérebro de criança de peito. Resultado: entre- mundo. Se pode parecer utopia, é utopia do evangelho, utopia
chocar-se o homem com dolorosa experiência, para que apren- decorrente do sublime paradoxo do Sermão da Montanha, que
da na dor e ela o obrigue a completar-se do lado do espírito. menospreza a tudo quanto o mundo estima, utopia de aceitação
Assim, através do sofrimento, as leis da vida hão de reequili- necessária, a menos que se saiba viver como besta ou como in-
brar o homem, que, a par do progresso material, conseguirá consciente ou, então, se volte as costas para a vida tal como a
correspondente e proporcionado progresso espiritual. A Gran- vida é, quer dizer, a menos que se renuncie à reprodução e se vá
de Síntese não é pensamento isolado, mas força viva que, cola- em busca da morte. A existência oferecida por nosso civiliza-
borando com os impulsos biológicos, busca a reposição do díssimo mundo moderno não é aceitável senão para os incons-
equilíbrio e contribui para esse progresso espiritual. cientes, os involuídos, os desonestos, salvo se, no futuro, com-
Aquele livro e estes comentários, por isso, dirigem-se mais plementar-se em melhor estado, estado que lhe justifique as do-
aos homens do futuro que aos de nossos dias, isto é, a homens res e compense a bestialidade. Disso segue-se que, para o ho-
para quem estas afirmações não serão anacrônicas. O homem mem consciente, evoluído, honesto, a vida é apenas missão do-
148 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
lorosa, peregrinação de exilado que, passando por um mundo tivelmente, a lei de Deus quer agora. As forças do mal tiveram
que não lhe pertence, se dirige à sua verdadeira e longínqua pá- o seu dia. Mas Deus disse: Basta. Em todo lugar, ato ou fenô-
tria. Isso tudo pode parecer utopia; todavia, sem ela, nem ao meno do universo, estão presentes Seu pensamento e Sua von-
menos a esperança de futura civilização permanece na palidez tade. A história está pronta; os tempos, maduros. Quer dizer:
mortal do mundo moderno. Animada por essa esperança, a ca- no ritmo da sinfonia dos acontecimentos humanos, no conca-
minhada do exilado se transforma na fadiga do construtor. Os tenamento de causas e efeitos, no desenvolvimento da fatal
céticos poderão sorrir, desviando para a miséria terrena o olhar evolução do mundo, o caminho do tempo está próximo dessa
posto nas nuvens. E haverá até mesmo quem goze com essa mi- maturidade, e a vida não pode recusar-se a percorrer e concluir
séria e se sacie. Cada qual julga como quer, mas, no modo co- essa etapa da evolução.
mo julga, revela a própria personalidade. Aqui, como em A Grande Síntese, se afirma para construir,
Não. O evangelho e as teorias que o seguem são utopias não se polemiza nem se ataca para destruir. Afirmando as eter-
apenas aos olhos do involuído; o céu só é paradoxo se olhado nas leis biológicas, iguais para todos, aderindo à divina verdade
aqui do chão. Para quem não é capaz de sentir pela fé ou enten- no Alto, inviolável, à qual ninguém escapa e é forçoso obede-
der racionalmente que a vida continua no imponderável, para cer, estamos acima das divisões humanas. Não falamos de filo-
esses é absurda, por natureza, a doutrina evangélica da caduci- sofia pessoal e arbitrária, mas objetiva e impessoal, ditada não
dade dos valores humanos. Para o involuído, a vida não conti- por um simples homem, mas pela voz dos fenômenos. Essa voz
nua, é finita, limitada ao breve período terreno. Questão de sen- é verdadeira para todos, quer creiam nela quer não, quer a con-
sibilidade, inteligência, evolução. Mas esta dor dos nossos dias, fessem ou a neguem, quer a sigam ou contra ela se rebelem.
dor que acabará por atingir o mundo todo, é dom de Deus para Deriva de principio diretor, guia de todas as coisas; exprime o
abrir as mentes e levá-las a compreender a aparente utopia. Es- pensamento de Deus. Inútil negá-lo. Esse pensamento existe.
tamos numa curva de nossa maturação biológica, e a dor a ace- Se, às vezes, alguém nega a Deus, é porque Deus existe, e de
lera. Por isso podemos reafirmar estar próximo o reino do espí- Sua existência não existe prova maior do que essa negação.
rito. O mundo o repele porque, involuído, ainda não lhe com- Não se pode conceber e negar o que não existe. A negação se
preende a beleza e a vantagem. Mas sente-lhe a falta, tem fome relaciona apenas com a posição de nosso pensamento, que, seja
de algo que lhe falta e não sabe o que é. O mundo está insatis- qual for a verdade, pode oscilar do extremo positivo, a afirma-
feito. Procura e não acha. Por isso se agita. Só está tranqüilo ção, até ao extremo oposto, a negação. A Grande Síntese anali-
quem achou. A procura da felicidade preocupa o mundo e sou esse pensamento divino, isto é, o plano construtivo do uni-
atormenta-o; mas o mundo não a encontra porque se agita deso- verso; a ela remetemos o leitor desejoso de conhecer essa análi-
rientado, fora do caminho certo. Entre ilusões e mentiras perde se. Ali se derivam conclusões de caráter moral e social de pre-
tempo. Ao invés disso, precisa conquistar conhecimento e, co- missas tão fortes, que se torna impossível removê-las. Aquele
mo consequência, a sabedoria de entrosar-se e colaborar com a livro é, de fato, demonstração que impõe essas conclusões co-
Lei. O novo princípio é ordem. Ordem em Deus, e não desor- mo obrigatórias para todos os seres racionais. Porém, com res-
dem com Satanás. Em A Grande Síntese, não se faz ouvir a voz peito ao ―quadro geral‖, não nos permitiu demorar em particu-
deste ou daquele partido, religião ou escola filosófica, mas a laridades, exemplificando e materializando o conceito na reali-
voz imparcial dos fenômenos, que canta as harmonias não só da dade da vida prática. Vamos agora transportar para o plano hu-
matéria ínfima, mas também das regiões mais elevadas do espí- mano da ação essa massa de conceitos, transformar em impulso
rito. Não se trata aqui de questões puramente teóricas, de remo- concreto construtivo a luminosidade desse imponderável, isto é,
tos e abstratos problemas filosóficos que não nos dizem respei- vamos transformar o princípio em ação, mas ação que as pre-
to. Trata-se da superação de nossa dor; trata-se da ciência que missas cósmicas iluminem, sustentem e justifiquem. Trata-se de
se propõe superá-la e vencê-la; trata-se de enormes vantagens dar forma bem mais próxima e tangível, mais particular, porém
utilitárias, compensadoras do esforço e do tormento da mortifi- mais real (porque mais aderente à hora histórica), mais humana,
cação a que o homem está submetido; trata-se de finalmente atual e prática, aos princípios universais de um tratado univer-
aprender a viver não mais como crianças loucas, e sim como sal. Trata-se de, entre as mil e uma verdades humanas relativas,
adultos cheios de sabedoria; trata-se de ver com clareza tudo em meio às forças que operam nossa ascensão individual e co-
quanto se relaciona com nosso destino humano, de obter res- letiva, aplicar e trazer até aos homens, cá na Terra, para atuar
posta que esgote todos os porquês e todos os problemas que nos sobre ela, a eterna verdade de Deus. Trata-se de mostrar nos fa-
dizem respeito e, desse modo, de nos comportarmos com pleno tos o funcionamento ainda ignorado daquelas forças, revelando
conhecimento da conseqüência das nossas ações. Loucura con- a ignorância humana ao movê-las e os choques dolorosos resul-
tinuar a atirar assim ao acaso e a embater-se continuamente tantes. Trata-se de educar para melhores formas de conduta in-
contra reações que estupidamente desejamos e nos açoitam até dividual e de convivência social, fazendo o homem compreen-
sair sangue. Chegou a hora de compreender o delicado meca- der as enormes tolices que vem fazendo até agora, com dano
nismo dos fenômenos e civilizarmo-nos; não de brincadeira para si mesmo, e mostrando-lhe como, com um pouco de inte-
como até agora se fez; não mais na superfície apenas, mas em ligência e de boa vontade, poderia poupar-se a tantas dores.
profundidade também; não só na forma, mas na substância; tan- Trata-se de aplicar injeções de bom senso em nossa sociedade,
to nos meios como no fim; na matéria e no espírito. para que ela compreenda a grande vantagem que advirá, para
Completou-se o ciclo de destruição anunciado por Grandes cada um e para todos, de comportamento mais civilizado, inde-
Mensagens e A Grande Síntese. A divina Lei deixou atuarem pendentemente de todo credo e de todo partido. Civilizar-se é o
livremente as forças negativas do mal, que desempenharam a ―slogan‖ do momento. Isso significa que o homem deve olhar
tarefa. Entramos na fase construtiva, a vida colhe seus valores seu próximo com compreensão, superar a ferocidade e o ego-
positivos, e, nos ânimos batidos pela dor, os reconstrutores en- ísmo, isto é, a maioria dos inúteis atritos sociais, tão graves pa-
contram o terreno preparado para o trabalho. O espírito, que ra o funcionamento de toda a máquina, que assim move-se com
através de tanta destruição se libertou de muitas das incrusta- dificuldade, devendo cada indivíduo suportar a sua parte. A so-
ções e escórias da matéria, pode finalmente dizer, depois de ciedade humana é organismo cheio de infinitas inércias, debili-
superado o profundo desmoronamento da onda descendente do tado por inúteis resistências, sempre em luta interna entre uma
materialismo: Eu sou, esta é minha vez, posso criar. E a vida, parte e outra. Isto, sem dúvida, exprime a fadiga construtiva do
que parecia prostrada e morta, torna a soltar, mais forte e mais involuído. No entanto, para que alturas se poderia transferir es-
para o alto, seu eterno grito de juventude. Isso é o que, irresis- sa luta, como seria mais belo e excelente, mais próprio de seres
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 149
evoluídos, lutar por objetivos mais sublimes! Como seria mais fenômeno social. O homem comum, de vistas curtas, pode a
inteligente e conveniente compreender e admitir as necessida- seu talante crer em todas as miragens que quiser, pois a vida
des do próximo e, dada a necessidade e utilidade da convivên- não se preocupa em desiludi-lo a não ser diante do fato con-
cia, torná-la possível com maior senso de concórdia! Que inte- sumado a que elas conduzem, nunca antes. Esse homem pode
ressam as diferenças entre os vários planos políticos do mundo, imaginar que a criação seja caos, a que só a sua vontade sabe e
se os imperialismos são todos iguais e tudo se reduz à substân- pode levar ordem, ordem a seu modo e a seu serviço. As forças
cia biológica de vencer para dominar? Não se pode destruir em da vida deixam-no livre para acreditar no que quiser, nisto ou
ninguém o direito à vida concedido por Deus, não se pode des- naquilo, porém, quando se trata de concluir na realidade dos
truir as forças biológicas, que, se golpeadas, ressurgem amanhã fatos e somente aí, tiram-lhe tudo das mãos e fazem as coisas a
em outra parte, retorcidas pelo golpe, prontas para reagir. Não seu modo. O fato é que existe uma diretriz em todos os fenô-
se pode postergar os equilíbrios e destruir as leis do universo. menos da vida, nos sociais também, independente do homem,
O homem de hoje pode ser ateu, anarquista, delinqüente, muitas vezes em antítese com a sua vontade, muitas vezes pa-
pode crer-se cidadão do caos, árbitro de liberdades impossíveis. ra corrigir e dominar sua intervenção. Na melhor das hipóte-
É próprio de cretinos permanecer assim à mercê da desordem e ses, o homem é intérprete, instrumento, cujo trabalho valerá
da ilusão, quando as leis de todos os fenômenos nos falam de tanto mais quanto mais fiel executor houver sido dessas dire-
ordem, de divina lei inviolável e onipresente, de ações e rea- trizes, quanto mais tiver sabido conformar com elas a própria
ções, de liberdade mas de responsabilidade também; falam-nos atividade, isto é, quanto mais houver sabido agir como função
do enquadramento coercitivo das rebeldes desordens do mal delas, em concordância, e não em choque com o funciona-
nos limites da lei do bem; dizem-nos que a dor castiga o louco mento universal. A presença de uma lei de inteligência supe-
que se atreve a violar a lei de Deus. Quão mais útil e sábio é pa- rior aos meios de compreensão do homem normal, mais forte,
ra todos a harmonização com essas forças, que jamais poderão em poder de vontade e de ação, do que os meios postos à dis-
ser dominadas por nossa revolta e nos esmagam se contra elas posição dele, é fato que resulta de toda a demonstração de A
nos rebelamos! Não é insensata essa brincadeira de desobede- Grande Síntese e não se precisa neste livro demonstrar desde
cer e pagar pela desobediência, sem nunca sentir vontade de o começo. Naquele volume, assim como neste, essa lei é lem-
aprender? A estrutura do universo é o que é, não pode ser alte- brada, ilustrada e tem seu funcionamento explicado em quase
rada. O homem deve compreender que a dor lhe nasce da sua todas as páginas. Tudo quanto, a todo momento, se maneja e
desordenada conduta; que a dor não está na criação, que é bem se aplica deve necessariamente seguir esta lei.
ordenada, nem está em Deus, que é perfeito, mas apenas nele, A verdade que, a cada passo, não muda no espaço e no tem-
homem; que o plano regulador do grande organismo total tende po, o plano firme, o verdadeiro plano orgânico regulador da
irresistivelmente para a felicidade, embora pelos caminhos da história e dos acontecimentos sociais, o real sistema diretor dos
dor. Isso não é ilusão, mas a verdadeira meta da vida. Mas a fenômenos coletivos humanos, que de fato age contra as apa-
buscamos onde não está nem deve estar, é natural, portanto, que rências e através delas, nem sempre reside no que o homem diz,
não a achemos. Assim, por meio da dor, a lógica do universo afirma e proclama em voz alta, mas é estabelecido por essa lei,
nos responde à absurda pretensão de subvertê-la. Quanto nos que, independentemente do homem, conhece e tem nas mãos as
cansamos tomando o caminho errado, no entanto nosso bem já diretrizes da vida. Em outras palavras, se queremos entrar a
está escrito na lei natural das coisas; para atingi-lo bastaria fundo no problema e resolvê-lo seriamente, não se entenda en-
cumprir essa lei expressa na assim chamada vontade de Deus! tão o fenômeno social como fenômeno histórico desejado,
Desse modo, a felicidade continua sendo meta quimérica, ina- compreendido e dirigido pelo homem, mas sim como fenômeno
tingível miragem. Até mesmo a experiência materialista do sé- biológico dependente de leis sábias e poderosas, diante das
culo passado a procurou, mas procurou mal, onde ela não está, quais o melhor que se faz é procurar compreendê-las e obedecê-
e não a encontrou, naturalmente. Estamos, ainda, no começo da las, impondo-as a si mesmo. Os fenômenos sociais e essa série
estrada e precisamos recomeçar tudo. Enganamo-nos. Mas a es- de acontecimentos que compõem a história, aí relatados sem
trada existe, e aqui o demonstramos. conexões, apenas colocados cronologicamente, são na verdade
ligados por íntima lógica e somente poderão ser compreendidos
II. O INVOLUÍDO E A PROPRIEDADE se os reduzirmos ao que efetivamente são em sua substância bi-
ológica, isto é, momentos do funcionamento orgânico do uni-
Começaremos das bases concretas da vida, de seus alicer- verso e a ele ligados. Plano orgânico diretor da sociedade hu-
ces no mundo da matéria, de seus aspectos mais realistas, mais mana, se não quisermos andar às cegas na tentativa e cair na
acessíveis e de maior compreensibilidade, mas, ao mesmo ilusão, só no-lo poderá dar o conhecimento dessa lei e nossa
tempo, menos adiantados. Conseguiremos desse modo, ascen- adesão a ela; as normas diretoras da vida coletiva não podem
dendo pouco a pouco na escala da evolução, atingir no topo os ser artificiosa criação humana, conseqüência de premissas abs-
aspectos mais refinados e espirituais da vida, aqueles a que só tratas, fora da realidade, mas devem ser as próprias normas de
os eleitos conseguem chegar. Em geral, os planos orgânicos toda a vida aplicada ao caso especial da sociedade humana.
segundo os quais se traçam as diretrizes humanas do funcio- Quem, no próprio caso, separa-se do todo, concebendo os fe-
namento coletivo são elaborados à luz de concepções filosófi- nômenos isolados, permanece alheio à organicidade do todo,
cas, políticas, sociais, todas relativas e artificiosas. Quando que é conjunto conexo e compacto, unitário e impecável. Era
não se trata de castelos no ar, de formas fictícias, de produtos necessária tal premissa, que nos garantisse base de absoluta so-
de cerebralismo ou de criações mentirosas do mundo, que es- lidez, premissa indispensável para quem quer construir seria-
condem realidade totalmente diferente, trata-se então de erigir mente, construir sem espírito de partido, não para uma classe
em sistema o caso particular e relativo do indivíduo que con- social apenas, de acordo com interesse particular, para vanta-
seguiu sobressair-se a ponto de tornar-se expoente. Explica-se gem de um só grupo ou povo, mas construir universalmente,
dessa maneira como tais sistemas muitas vezes não se realizam com estabilidade, acima da luta e das divisões humanas. As
e, historicamente, terminem em ilusão, levando à contradição e afirmações e conclusões que derivarem dessas premissas, mais
à luta, ao invés de atingir a meta proposta. É lícito nos pergun- do que opinião, teoria ou produto pessoal, serão o resultado da
tarmos agora o que de fato acontece sob as aparências da histó- simples verificação objetiva do funcionamento das leis da vida,
ria, que outro plano, diferente daquele visto na superfície, atua serão a própria expressão delas, serão proclamadas pela própria
na profundidade e quais as verdadeiras e efetivas diretrizes do voz dos fenômenos. Procuramos com isso alcançar imparciali-
150 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
dade e solidez. Da verdade partidária e interessada não saberí- evolução atingido. Essa classificação diz respeito à íntima e re-
amos o que fazer. Nada se cria com isso. A solução do proble- al natureza do indivíduo e é a única a levar em consideração a
ma já existe; trata-se apenas de saber vê-la e, com simplicidade, substância. Não é o caso de demonstrar aqui a realidade da evo-
expô-la. Ligamos, portanto, o fenômeno social, pelo qual fica- lução, ainda que no plano das ascensões humanas. A verdade
mos marcados, ao conceito fundamental de A Grande Síntese, desse fenômeno fica demonstrada em cada página de A Grande
resumido no princípio: ordem e Deus. Síntese. Da observação resulta que, segundo o próprio grau de
Os fenômenos humanos, políticos e sociais, encontram, evolução, mudam a estrutura orgânica, nervosa e psíquica, bem
pois, sua expressão mais simples na vida animal e nessa, que os como o estilo de vida do indivíduo. As classificações sociais,
encerra em embrião, têm suas raízes; são os mesmos fenôme- face a essas fundamentais diferenças de peso específico indivi-
nos, porém levados a mais alto grau evolutivo. Os problemas dual, são simples estruturas de todo fictícias, instrumentos de
sociais, no fundo, são os mesmos fundamentais problemas da luta, meios para esconder a realidade, que permanece debaixo,
vida, isto é fames e libido, conservação do indivíduo e multipli- inviolável, a verdade pronta a revelar-se a qualquer momento.
cação da espécie, comida e sexo. Crescimento demográfico, A nossa assim chamada civilização é em grande parte questão
imigração, guerras, expansão, dominação, vitórias e derrotas, de forma, simples verniz. A fase de legalidade jurídica atingida
capital e trabalho, propriedade, coordenação de funções, disci- por nós é manto que cobre bem ou mal essa substância biológi-
plina das relações impostas pela convivência, aí estão proble- ca; o homem, se graças a ele pode parecer diferente, permanece
mas que a vida conheceu e resolveu antes do homem tê-lo feito substancialmente o que é na realidade biológica. Caso se trate
e, mesmo sem ele, em outros agregados sociais animais, resol- de ladrão ou delinqüente, o ordenamento jurídico poderá impe-
veu-os segundo os princípios eternos, participantes do sistema dir que continue a prejudicar, mas ele permanece o que é. Isso,
orgânico que, em toda parte, rege todos os fenômenos. Não po- e não o que aparenta, é o que interessa conhecer. Posição soci-
deremos resolver esses problemas, como hoje se nos apresen- al, poder econômico, valor aparente não têm importância. E até
tam, na fase evolutiva do nível humano atual, senão de acordo as classificações sociais, enquanto não corresponderem à classi-
com os mesmos princípios utilizados pelas leis da vida para re- ficação biológica, carecem de importância.
solvê-los em graus evolutivos mais elementares, seguindo a ló- Isso nos permite levantar o véu das aparências e penetrar na
gica íntima segundo a qual foram construídos, penetrando-os realidade da substância. Tudo fica mais verdadeiro, mais sim-
em profundidade, reduzindo-os à sua essência. Veremos quanto ples, mais compreensível. Assim, por exemplo, explica-se o
tudo isto os torna mais claros e simples, lógicos e harmônicos. materialismo como fenômeno de involução, fase de descensão
Sob as mais desvairadas teorias sociais, sob as mais complexas evolutiva, antecedente de novo surto evolutivo, e se compreen-
superestruturas ideológicas, o homem aplica simples leis bioló- de a psicologia negadora do materialista e do ateu como a de
gicas, luta e progride biologicamente, segundo os métodos da primitivo incapaz de sentir as forças do espírito. Assim, embora
vida, para atingir-lhe os objetivos, seguindo as estradas já prati- mais inferiores, o delinqüente, o anarquista, o gatuno são ape-
cadas na vida animal, pois a vida é uma só para todos, guiada nas tipos biologicamente baixos, ainda não civilizados na subs-
por lei única, embora diversamente adaptada aos diversos pla- tância, não importa se o sejam na forma. Em nossa sociedade
nos evolutivos. Essa unidade de diretrizes é a base da fraterni- podem prosperar até mesmo sob as normas da legalidade, po-
dade de todos os seres, que não é utopia e que os mais adianta- rém, numa civilização verdadeira, que não considerasse apenas
dos sentem; fraternidade não apenas entre todos os seres, mas a superfície, mas também a substância, isso não deveria ser
entre todos os fenômenos. E o homem está inserido no âmbito possível. É evidente que não se pode levar a sério senão uma ci-
da divina lei, que, com apenas um princípio unitário, rege todos vilização em que isto não é possível. Todavia quantos e quantos
os seres e todos os fenômenos. indivíduos hoje folheiam o código e aprendem a não infringi-lo.
Os especiosos apelativos modernos, os inumeráveis ―ismos‖ Esses aprenderam somente a afiar as armas, a conquistar em as-
com os quais se definem os vários sistemas humanos podem ser túcia o que perderam em brutalidade, e, ao invés de transformar-
entendidos apenas se assim reduzidos a seu denominador co- se evoluindo, firmam-se na estrada da involução. Permanecem
mum biológico. Essa substância os liga, reconduzindo-os à úni- inadaptados à verdadeira vida coletiva orgânica consciente. Que
ca verdade mãe de todas as coisas, que permanece constante importa a forma, se na substância continuam agressivos egoís-
acima de todas as formas, em todos os climas, tempos e povos, tas, ignaros da sociedade como o homem das cavernas?
a verdade aplicada por todos, embora calada, combatida, nega- Face à propriedade, primeira disciplina na aquisição dos
da. Assim, os problemas sociais se reduzem, na base, à luta pa- bens, esse tipo biológico revela-se o involuído que é. Está sem-
ra obter meios de vida, garantir sua posse e proteger a si mes- pre pronto a roubar, apenas a reação protetora e defensiva da lei
mo, à família e aos filhos. Desse modo nascem os problemas do possa ser evitada, de modo a não produzir-lhe dano. Tal tipo
capital e do trabalho, da propriedade, da família e dos institutos deve ser muito comum, pois a lei e o costume humano foram
jurídicos fundamentais. Se a substância do direito não muda constrangidos a partir da presunção de má-fé, até prova em con-
através dos séculos, isto se deve ao fato de ela exprimir leis bio- trário. Não tem senso de propriedade senão da própria, e só o
lógicas eternas. O progresso aperfeiçoa as relações, completa-as temor de uma punição o induz ao respeito alheio. E a ameaça
nas particularidades, melhora-as na substância, fazendo-as pro- defensiva pode tornar-se até mesmo educativa, enquanto este,
gredir, cada vez mais, em direção à justiça, mas a raiz não mu- pouco a pouco, aprende, através dos séculos, mais elevadas
da. O direito só pode ser entendido se o referirmos à sua subs- formas de vida. E, paralelamente, a defesa da propriedade pode
tância biológica; apenas tem sentido como ato de coordenação assim tornar-se cada vez menos férrea, brutal, material e cada
que, cada vez mais harmonicamente, exprime essa substância. vez mais pacífica, simbólica e imaterial. Essa defesa será cada
No entanto, em vez disso, muitas vezes coloca-se na base do di- vez menos feita por muros, por grades, por armas, por sanções
reito público e privado abstrações metafísicas, axiomas arbitrá- materiais, e cada vez mais reduzida a simples sinal indicador, a
rios, premissas não enquadradas na fenomenologia universal e reações menos violentas, a sanções puramente morais. Porém,
não justificadas pela realidade dos fatos. As verdadeiras pre- embora a defesa se desmaterialize, isto é, tenda à própria anula-
missas dos fenômenos sociais, enquanto fenômeno da vida, são ção no entendimento pacífico, é sempre o temor da pena que
biológicas, e não filosóficas, metafísicas, políticas. inibe esse tipo biológico, e isso o revela como involuído. Invo-
Isso posto e esclarecido, classifica-se então os homens não luído, porém, que talvez já tenha o pressentimento de formas
teoricamente, com base em premissas artificiais e sistemas arbi- sociais mais elevadas, nas quais já não domina a usurpação e a
trários, mas conforme seu real valor biológico, isto é, o grau de força, mas o direito e a justiça. Tem o senso da superioridade
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 151
do sistema bem diverso do evoluído e nesse sistema procura ta para vantagem exclusiva destes, lhe justificam a revolta. E,
mimetizar-se para melhor esconder-se, justificando-se. Por isso então, a vida social reduz-se a luta de igual para igual, entre
eles gostam tanto de recobrir-se com o manto da justiça e eter- igualmente injustos, entre igualmente involuídos.
nizar-se no poder, para fazerem da autoridade, que é dever e A rebelião do oprimido, por sua vez, justifica a posição
missão, base de direitos e arma de ataque e defesa. Como o as- defensiva e opressiva dos ricos dirigentes. Decaídas as apa-
salta a preocupação de justificar-se com encenação de legalida- rentes distinções humanas, restam a qualidade comum de in-
de! Com que cuidado procurava o Sinédrio dar forma legal de voluídos, única distinção interessante, e a característica de in-
juízo à supressão de Cristo; com que trabalho procuravam os justiça, inerente a seu sistema, que os iguala na mesma culpa e
assassinos de Luiz XVI aparecer como juízes, e não como as- nas mesmas conseqüências. A vida social é assim, na realida-
sassinos comuns! E que satisfação para os homens poder, em de, corrente de injustiças, de afrontas e reações; todos têm e,
todas as revoltas, roubar e matar legalmente, isto é, seguramen- ao mesmo tempo, não têm razão; todos são credores e devedo-
te, sem temor de sanções punitivas, único obstáculo para eles, e res, com a resultante estável, em que todos se reencontram, de
fazê-lo como autoridade alta e tranqüila, e não mais com a in- invariável regime de incerteza e de ódio. O tipo biológico
certeza e o perigo de ladrões! E, se a coisa dá certo, o resultado evoluído compreendeu, ele somente, a utilidade de diferente
da força e do furto assim se estabiliza e se regulariza depois sob sistema de agir, de justiça ordenada; compreendeu, acima de
o manto de legalidade humana, que, como se crê, basta para tudo, que isso não se pode inaugurar com a injustiça do lado
tornar justo o injusto. Pobre autoridade e pobre propriedade! exatamente da parte que reclama justiça apenas para si mes-
Que triste gênese, que posição ao nível do involuído e que ma, mas tão-só com a justiça praticada, antes de tudo, por si
grande caminho para purgar e resgatar aquele pecado original! próprio em relação aos demais, sem nada pedir-lhes à injusti-
Mas, assim que, em qualquer convulsão social, o exercício da ça. Só com tal sistema pode resolver-se o problema. Mas o in-
sanção jurídica diminui de intensidade, vemos o involuído, tão voluído compreende apenas o primeiro sistema, e este não
logo possa fazê-lo sem perigo, tirar a máscara e revelar-se o que basta para resolver o problema. Contudo é de lógica elementar
é, dando-se abertamente ao furto, a forma primitiva de aquisi- a compreensão de que a estabilidade só se obtém com o equi-
ção da posse, forma própria do involuído. Esse é caminho mais líbrio. Ao invés, o involuído prefere acreditar que se possa ob-
breve do que o trabalho, forma própria do evoluído, que o reve- tê-lo com o esmagamento e o engano. Absurdo. Mas, se com-
la e presume estado orgânico coletivo, ignorado na fase inferior preendesse, não seria involuído; apenas chega a compreender,
do outro. Todavia, embora seguro da impunidade, o involuído, muda de sistema e se torna evoluído. No entanto, hoje, de in-
em defesa, para justificar-se perante a própria consciência e a voluídos se formam as massas humanas, que não imaginam
consciência alheia e dar a si mesmo ao menos a ilusão de ter as serem assim. O poder obtido pela violência e a propriedade
mãos limpas, gosta sempre de assumir posição de justiceiro, obtida pelo furto são apenas ilusão e traição e, por isso, ao in-
como agressor do rico e protetor do pobre, camuflando-se de vés de ajudar, prejudicam a quem lhes adquiriu a posse; não
evoluído para fazer mais bela figura e não passar, coisa que se imagina que isso, por inviolável lei da natureza, é verdade
mais o desagrada, pelo ladrão que ele percebe ser, a fim de me- igual para todos, como é de justiça. O homem comum, cren-
lhor servir-se, mais cômoda e seguramente, no banquete – seu do-se árbitro de tudo, nem suspeita mover-se em meio a orga-
supremo objetivo – assim vestido de juiz. Por mais astuto, po- nismo complexo e perfeito, de forças muito mais inteligentes
rém, que o involuído possa revelar-se diante de tudo isso, to- e poderosas que ele; se soubesse mover-se sabiamente, de
dos compreendem que realidade se esconde debaixo da menti- acordo com elas, obteria a felicidade; movendo-se, ao invés,
ra, reveladora de toda a miséria moral do primitivo. Inútil ca- loucamente, em choque, obtém apenas perdas e dores.
muflar-se. Roubando, não se pratica o bem; não tem valor a Subiremos neste volume, pouco a pouco, até às mais altas
esmola que se faz com as coisas alheias. Embora se disfarce, o formas de vida do evoluído. Mas, na base da humanidade, o in-
ladrão bem sabe que, enquanto ladrão, não está e não pode es- voluído, em número predominante, se acha presente e a obser-
tar do lado da justiça. Mesmo que o rico tenha sido ladrão, não vação do fenômeno social nada nos oferece de importante se-
é lícito roubar, nem mesmo aos ladrões. É inútil que o ladrão não o espetáculo da sua psicologia. Nossa humanidade é primi-
procure tornar justo seu furto, acusando de furto quem roubou tiva, riquíssima de energia, mas pobre de sabedoria; extrema-
antes dele. É vã sua desesperada tentativa; belo e bom pretexto mente dinâmica e extremamente ignorante. Isto é fato conheci-
para enriquecer comodamente; simples astúcia que pretende do. O homem é o que é e está bem onde está. As dores que o
dar a entender se possa roubar honestamente. O involuído che- gravam lhe são proporcionais à sensibilidade e à ignorância. As
ga até à astúcia, mas não pode subir mais, até à honestidade. O provas que encontra e deve superar são as da sua classe, do seu
método que ele escolheu, embora camuflado, o revela em fla- nível evolutivo, adaptadas às suas capacidades. Para sermos
grante, tal qual é: involuído, primitivo, ignorante. Não conhece práticos e compreensíveis, devemos permanecer ainda nessa
as consequências e ilude-se. Esses justiceiros fingidos, que pu- atmosfera, com o objetivo preciso, porém, de levar-lhe a luz
lulam tão logo a ordem social enfraqueça a reação defensiva, que lhe falta. Insistamos, pois, no fenômeno basilar da proprie-
não sabem que, embora tenham conseguido, por meio da astú- dade, iluminando-lhe, porém, o conceito. O conceito jurídico e
cia, fraudar a lei humana e apareçam cobertos pelo belo manto moral não basta. Nesse campo, estamos cheios de ilusões. O la-
da justiça, deverão, todavia, por lei biológica, mais cedo ou do imponderável, que afinal pesa tanto a ponto de revelar-se e
mais tarde, pagar com os próprios bens. impressionar o ponderável, nos foge quase completamente,
Poder-se-ia, porém, virar a medalha e ver a injustiça oposta, também nesse caso. Os princípios jurídicos fazem crer ao invo-
vinda desta vez da parte da classe dominante, que se revela dis- luído que, para tornar estável e segura a propriedade, bastam as
posta apenas a defender-se a si mesma. É verdade: quem rouba garantias sociais e jurídicas. Eis, contudo, o que de fato aconte-
é sempre ladrão, mas também, muitas vezes, é o pobre a quem a ce muitas vezes. Procura-se adquirir a propriedade através de
lei biológica grita: você tem direito à vida. Esse direito de to- qualquer meio, aí compreendido, se necessário, o furto. Será
dos, até mesmo dos deserdados, é uma espécie de justiça, seja descarado e as claras em períodos de desordem; velado, astuto,
embora na forma primitiva do involuído. O evoluído não recor- nos períodos de ordem, legalizado na forma, para poder evitar a
re a ela nunca, por nenhuma razão, mesmo à custa da própria relativa sanção jurídico-social. Debaixo das aparências da lega-
morte. Mas o involuído, que, falto de outros recursos, deve, to- lidade trabalhará, imperturbável, o instinto de ladrão, caracte-
davia, viver, pode ser constrangido a recorrer. O esmagamento rístico do involuído. Embora atingida a posse, que é o objeto,
do pobre, sua expulsão da ordem dos vencedores, ordem impos- através de furto mais ou menos evidente (não é fácil acumular
152 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
riqueza rapidamente apenas com o trabalho honesto), o primei- priedade constituída de forças equilibradas, ou seja, a proprie-
ro instinto do ladrão é consolidar a posição, procurando segu- dade adquirida pelo trabalho, e não pelo furto. Face a essa rea-
rança na legalidade que o proteja. Ninguém, mais do que ele, lidade biológica mais profunda, desvanece-se a importância da
tem necessidade, para esse fim, do instituto da propriedade, defesa jurídica do Estado, substituída pela defesa das leis da vi-
porque ninguém, mais do que ele, está em posição tão precária da, defesa muito mais segura e profunda. O conceito de prote-
e tem tanta urgência de garanti-la e estabilizá-la. Justamente o ção por meio de individual e livre cumprimento da lei de Deus
filho da desordem tem maior necessidade da ordem, necessária substitui o de proteção por meio de convenções humanas.
para gozar em paz os frutos da desordem. Assim, ninguém mais Qualquer pessoa, então, adaptando-se a ela, pode pôr-se em po-
do que o revolucionário sente a necessidade de, enquadrando-se sição de equilíbrio e, pois, de segurança; qualquer pessoa, rebe-
na legalidade, justificar essa posição e de, transformando-a em lando-se, pode pôr-se em posição de desequilíbrio e, portanto,
autoridade, garantir a atitude de violência. Atingido o objetivo, de insegurança. Essa a substância, a vida íntima do fenômeno,
o involuído procura tirar vantagem das formas de vida mais sua vontade, esse o jogo de forças que o animam e o levam à
evoluídas, das conquistas superiores feitas no ordenamento so- conclusão. A legalidade é forma, roupagem qualquer, que nada
cial, não por tipos do próprio plano, mas por mais adiantados. tira ou acrescenta à substancia do fenômeno.
O ladrão e o violento apressam-se, então, a limpar de novo as O ditado popular ―O crime não compensa‖ já observou que
mãos e assumir a atitude de pessoas de bem, naturalmente me- o ganho por mal não frutifica, não nos causa gozo, acaba em ru-
recedoras do respeito de que necessitam para gozá-la em paz. ína, traz mais dano que vantagem. Há, pois, além do elemento
Com que ânsia procuram, então, esconder as origens obscuras e jurídico, algum outro, decisivo, invisível, mas de força capaz de
o passado desonesto, cobrindo-se de títulos, benemerência, re- desconjuntar os resultados a que a estrutura jurídica se esforça
lações conspícuas, envernizando-se de incorruptibilidade e se- por chegar. Pode existir, pois, propriedade que, embora jurídica
nhorilidade! É a sua evolução. Serão, daí por diante, os mais e formalmente justa, não o seja, de fato, em substância. Então,
encarniçados conservadores, os homens da ordem, porque só essa diversa estrutura íntima anula a forma, e a imperfeição da
agora dela fazem parte. Mas, enquanto se civilizam e debilitam primeira anula a perfeição da segunda. É necessário, para per-
no bem-estar, esquecem de quem ficou para trás e, na miséria, durar, que a propriedade seja sã, íntegra, justa e inteiramente
espera a oportunidade de fazer nas suas costas o mesmo jogo honesta, da cabeça aos pés, em todos os momentos, até mesmo
por eles feito contra os que chegaram antes deles. O resultado nas origens, nas raízes. De outra forma, por mais que se cubra
final é interminável subir e descer de indivíduos em constante de justiça formal, é edifício construído na areia. Existe impon-
regime de engano e de furto, todos em luta entre si; todos derável lei interior, que tão pouco se leva em conta; lei de fun-
igualmente ladrões e violentos, à caça de conquistas efêmeras, cionamento automático; lei a que, por ser interior, ninguém es-
ladrões de miragens. Levando-se em consideração a psicologia capa, sempre presente, inerente às próprias coisas. O tipo invo-
e ignorância das leis da vida, é natural esse modo de agir. Mas, luído dominante não compreende esse fato elementar, isto é,
através de tantas fadigas e astúcias, conseguem eles o objetivo a que o furto, embora nobilitado na forma, não pode, de fato,
que se propuseram? A propriedade significa tentativa de estabi- apoderar-se de nada e, se o faz, não mantém, o que, para ele
lização de fase desse ciclo, mas a tentativa falha. O instituto da mesmo, é o mais importante. Ora, se quisermos subir para for-
propriedade se reduz, desse modo, por parte da sociedade, ao mas de vida que, a sério, se possam chamar civilização, é ne-
reconhecimento oficial do furto consumado, à homenagem que cessário que o tipo comum compreenda que a propriedade não
a vida presta ao vencedor só porque é vencedor. A Revolução somente é fenômeno biológico natural e indestrutível, comum
Francesa, camuflada de justiceira, não acabou em nova aristo- até mesmo para os animais, que bem o conhecem, mas fenôme-
cracia napoleônica? Vale a pena fazer esse jogo de riqueza a no determinado também por outros elementos além dos comu-
turno? É certo que, com essas alternâncias, a vida atinge uma mente levados em conta, e que, entre todos eles, tem a primazia
espécie de justiça distributiva, mas também é fato reduzir-se a o mais insuspeitado e descurado: o mérito. É da Lei: se existe
propriedade, entendida como instituto jurídico protetor e coor- mérito, a propriedade perdura e rende; se não existe, dura pou-
denador, a tentativa falha, porque, na realidade, não atinge seu co e não rende. A Lei é justa e impõe que cada ato nosso nos
objetivo, não constituindo sólida garantia. A construção huma- renda de acordo com o que de salutar nele introduzimos de bem
na falha, pois. Vistas assim as coisas, além da aparência, na ou de mal, proporcionalmente, isto é, tanto gozo quanto a por-
substância, podemos concluir que apenas a lei biológica não fa- centagem de honestidade e de nosso valor intrínseco contido
lha e atinge seu objetivo, a justiça, seja embora apenas a torna- em nosso ato; e tanto veneno quanto de mentira e de traição lhe
da possível pela ignorância humana. O escopo da vida não é o injetamos. Chegou a hora de o homem compreender: é perigoso
enriquecimento de ninguém, mas a existência garantida para manipular as forças do mal, porque, embora dirigidas contra os
todos, como meio para atingir fins mais elevados. Ela nos deixa outros, recaem sobre quem as maneja; a mentira é perigosa
a fadiga da luta, como prova para aprender e evoluir. porque gera o erro em quem a diz. A astúcia, a força, conside-
Depois dessas reflexões, nos damos conta de quão falso e radas como armas úteis, tornam-se prejudiciais, porque automa-
incompleto é nosso conceito de propriedade. Na realidade, não ticamente se voltam contra quem as emprega.
é apenas instituto jurídico que as convenções sociais bastem pa- Poder-se-ia, contudo, objetar: não faltam exemplos de la-
ra regular, mas jogo de forças vivas e inteligentes em movimen- drões que conservam e gozam as suas riquezas. Para responder,
to no campo da vida, de acordo com leis próprias. Daí segue é preciso dar o significado correto da palavra mérito. Sem dú-
que a estabilidade não pode ser qualidade exterior, com a virtu- vida, o furto é a forma original de aquisição de bens. Em socie-
de de modificar-lhe a essência íntima e corrigir-lhe os erros dade ainda não civilizada, o problema é tirar do mundo externo
congênitos, mas é qualidade interior, posição só resultante de tudo o que nos serve, seja qual for o meio. Não se fazem, pois,
estado de equilíbrio. Daí, ainda, novo modo de entender as distinções nos métodos de aquisição; é indiferente atingir o ob-
formas de aquisição, modo contrário ao em voga. Em outras pa- jetivo com o furto ou com o trabalho. Estes, em fase caótica de
lavras, a tão procurada estabilidade não é, absolutamente, dada formação, então, se confundem. Todo meio é bom desde que
pelas exteriores garantias jurídicas, mas por íntimo e substanci- atinja o objetivo: viver. Em mundo assim não surgiu ainda a
al estado de equilíbrio dos impulsos constitutivos do fenômeno, idéia do respeito à propriedade alheia, idéia que é produto de
em que então, por muito tempo, poderá reger-se estavelmente longa elaboração social na convivência. Se, com o progresso, a
não só a propriedade juridicamente protegida, condição que se coexistência dos impulsos leva, pouco a pouco, à sua coordena-
torna de importância secundária e fictícia, mas também a pro- ção, o homem, todavia, aprende a executar o esforço de aquisi-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 153
ção e, aplicando nele múltiplas atividades, forma os instintos equilíbrio estável. Assim, é o mérito – filho da honestidade, da
que a convivência disciplinará em formas mais evoluídas e pa- operosidade e do valor individual – que vale, pois estabelece o
cíficas, transformando-os em atitudes de produção, em qualida- grau de equilíbrio do sistema, o grau de pureza do organismo e,
des técnicas, em hábito de trabalho. A fase primitiva de forma- portanto, o seu grau de resistência. Se há mérito, a propriedade,
ção é, em seu tempo e lugar, necessária, embora, em sociedade embora roubada, renasce; se não, automaticamente atrai o furto
civilizada, revele o involuído. De fato, é através do furto que se e, por natureza, tende a fugir das mãos do possuidor. Assim é a
formam as capacidades, porque estimula a inteligência e a ati- força protetora dos bens, e quem compreendeu tal mecanismo
vidade. Se, em fase primitiva, as leis da vida premiam o ladrão não busca proteção na tutela jurídica e nas astúcias administra-
com a posse, isso mostra que, ao nível dos selvagens, o sistema tivas, mas no intrínseco direito representado pelo mérito. Esta é
pode ser justo e servir a determinada função. Começa-se, assim, a semente criadora da verdadeira riqueza, a única que a man-
por este modo, a formar no indivíduo essas qualidades que mais tém. Só nessa força existe aquela segurança que em vão pedi-
tarde constituirão o mérito, isto é, o trabalho, a habilidade, pri- mos às defesas legais. Eis tudo quanto encontramos nas raízes
meiros dos elementos constitutivos do direito de posse e, de fa- da vida social. Todo o nosso mundo é falso, baseia-se na ilusão
to, adaptados a manter os bens nas mãos do possuidor, prote- e, por isso, naturalmente, colhe o que vimos. Mas isso é tudo
gendo-lhe e mantendo-lhe a posse. O processo evolutivo parte quanto de fato merece. Infelizmente, o involuído domina, cons-
do furto e vai em direção ao instinto e à capacidade de produzir, tituindo a ilusão sua natural herança. Um dia compreender-se-á
representativos do método de aquisição em plano mais evoluí- que vale o que somos, queremos e sabemos fazer e, portanto,
do. A propriedade não deriva de momento único, mas é forma- merecemos, e não o que possuímos. O objetivo, hoje, é possuir,
ção contínua; é economia de caminho. Não basta conquistá-la, é e o homem é o meio, no entanto possuir é meio, e o homem, o
preciso saber mantê-la. Pode acontecer, então, ter o desonesto, fim. Pode-se perder o que se possui, mas não o valor e o mérito,
que conquista a propriedade através do furto, adquirido aquelas que estão naquilo que somos. Quem merece e sabe, tem em si o
qualidades de operosidade e de habilidade que lhe formam a germe que o fará recuperar, multiplicado por cem, tudo quanto
base e lhe permitem a conservação em sociedade civilizada. perdeu. Quem não merece é usurpador em posição de equilíbrio
Sendo sadio e equilibrado, isto é, correspondente ao mérito, es- instável, continuamente ameaçado pela tendência da Lei à justi-
te segundo momento do processo pode, segundo o seu valor, ça, isto é, ao equilíbrio pelo qual as forças biológicas continu-
sanar e equilibrar o primeiro. Assim, produtos da injustiça po- amente o assediam, não se acalmando enquanto não lhe houve-
dem transformar-se gradativamente em produtos de justiça, e rem retomado o que foi mal ganho. O efeito é dado pela causa;
desse modo se explica por que se mantêm eles de pé, quer di- toda forma de vida tem as características derivadas das de seu
zer, como alguns ladrões possam gozar em paz riquezas rouba- germe. Assim, todo fenômeno se plasma e se desenvolve diver-
das. Nestes casos, o pecado original da aquisição ilícita vai samente, segundo a natureza das suas forças determinantes. Só
pouco a pouco sendo absorvido e neutralizado por aquela dose quando o homem começar a compreender esses princípios tão
de trabalho e habilidade que o sujeito possui e desenvolve. Es- elementares, poderá começar a chamar-se civilizado. Neste ca-
sas qualidades ele as conquistou com suas canseiras; constitu- pítulo desenvolvemos, do ponto de vista prático e concreto,
em-lhe, pois, o mérito, o direito; representam a porcentagem de começando pelo fundamento da vida em sociedade, os concei-
justiça com que pode compensar a injustiça. Não podemos pa- tos de A Grande Síntese sobre a propriedade (cfr. Cap. XCIII –
rar apenas no momento da aquisição da propriedade, pois, nas ―A Distribuição da Riqueza‖).
trocas e na administração, ela se reconstitui a cada momento.
Pode até acontecer o caso oposto, em que a honestidade, na III. TIPOS BIOLÓGICOS E MÉTODOS DE AQUISIÇÃO
aquisição, seja depois corrompida por dose tão grande de pre-
guiça e de inaptidão, isto é, de demérito, que fique neutralizada As considerações do capítulo precedente nos levaram ao in-
em sentido oposto, e se chegue à perda da propriedade hones- terior e à substância do instituto jurídico-social da propriedade,
tamente adquirida; isso também é justo. Assim, a posição do com o qual o homem disciplinou o fenômeno biológico, co-
justo pode passar a ser a do injusto; e a do injusto, a do justo. mum até aos animais, da aquisição dos bens, fato que interessa
Como, na fase mais baixa, o objetivo era roubar para viver, ho- sumamente à vida, porque representa o meio necessário à sua
je o objetivo é produzir, e a lei do mérito tende a atribuir a pro- continuação. Mas vimos que essa disciplina pára na superfície
priedade a quem melhor saiba trabalhá-la e fazê-la dar frutos e que, sozinha, não é suficiente para regular estavelmente as
para o bem de todos. Esta higienização retificadora pode funci- forças do fenômeno. Não se nega com isso a importância dos
onar mais ou menos, mas a propriedade permanece sempre na ordenamentos jurídicos, mas observa-se que eles não sabem
dependência da lei do mérito, isto é, em estrita relação com a ordenar senão até certo ponto e devem ser, por isso, completa-
porcentagem de mérito contida no fenômeno, porque é essa dos com princípios mais perfeitos, que nos permitam penetrar
porcentagem que lhe estabelece o grau de justiça e de equilí- mais a fundo na substância do fenômeno. Trata-se de progre-
brio. Simples caso de relação. Pode-se assim prolongar a vida dir, e sabemos que a evolução é processo de progressiva har-
de posse viciosa até ao caso-limite do resgate, que se verifica monização. Não se trata, por isso, de demolir nenhuma das
quando todo o débito originário esteja pago com trabalho e ren- preciosas conquistas já realizadas, frutos de fadigas e obra de
dimento sociais, como também se pode, de outro lado, perder gênio, mas tão-somente de continuar o caminho, de ajuntar
posse justamente conquistada, usando-a injustamente. Todo ca- coisa nova ao que já está feito e aperfeiçoar-se mais. Chegado
so depende dos elementos constitutivos particulares e, por isso, ao mais alto grau de maturação espiritual, o homem, esponta-
se desenvolve diversamente. Mas o princípio segundo o qual se neamente, se apercebe da insuficiência da disciplina jurídica
desenvolve é único e imutável: o da justiça e do mérito. para atingir a justiça, meta instintiva da vida, e conseguir a es-
Muda assim o conceito da vida, a partir da mais elementar tabilidade, condição necessária à fruição. Nasce então a neces-
base da sociedade: a propriedade. Se toda aquisição de bens sidade de completamento, o que implica em mudança de posi-
pode conter dada porcentagem de furto, é em proporção a essa ção e renovamento de método. Assim como na superfície das
porcentagem que a propriedade será corrompida e, portanto, le- coisas há imperfeição, caducidade, agitação e desordem, mas,
vada à destruição. A propriedade gerada pelo furto nasce en- na profundidade, há perfeição, estabilidade, calma e harmonia,
ferma de íntimo desequilíbrio e não pode tornar-se sadia e re- também há justiça no fundo das coisas, embora a injustiça apa-
sistente senão gradativamente livrando-se dessa moléstia, isto reça no exterior. A evolução, levando o centro da vida para o
significa ela tornar-se constituída por sistema de forças em interior, torna atuais e vivos, fazendo-os emergir do fundo, es-
154 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
ses estratos mais internos. Assim, afirmando-se, vem à tona a procura usurpar esta justa posição, posição que não corresponde
justiça, e a ela, também nos eventos humanos, é reservada a ul- ao seu mérito, torna-se, com seus métodos de usurpação, o
tima palavra, não importa depois de quão longas vicissitudes. construtor da injustiça social. Bastaria seguir a natural lei de
Com a evolução aflorará mais evidente a substância das coisas, Deus para que espontaneamente reinasse a justiça econômica e
mais facilmente esta se revelará, reduzindo ao mínimo o obstá- houvesse o necessário para todos, efetuando-se naturalmente o
culo da ignorância humana. Então, o método atual da força ou equilíbrio entre capacidade, mérito, direito e gozo, equilíbrio
da astúcia será considerado como método de primitivos, igno- que a Lei quer e o homem, com tanta fadiga, procura violar.
rantes das leis da vida; método de natureza falsa, desequilibra- Tudo quanto dissemos em relação à disciplina jurídica da
do, destinado por isso à ruína; método inútil, pelo menos em propriedade e à posse dos bens não é senão um aspecto do di-
face do objetivo que se prefixou. Chegado ao mais alto grau namismo fenomênico e dos equilíbrios de que ele se compõe e
evolutivo, o homem compreenderá que, de fato, no fundo, na se sustenta. Pode dar-se a tudo isso sentido mais universal. Po-
realidade das coisas, existe balança de justiça, representada pe- deremos então dizer que a cada plano de evolução corresponde
lo equilíbrio querido pela Lei, e que nela é inútil pretender co- um respectivo grau de realização da justiça e nada mais. Quem
locar pesos falsos para obter de Deus uma falsa medida em age no nível das leis animais e lhe segue os métodos poderá ob-
vantagem própria, inútil porque essa força representa invisível ter posse, poder, domínio, vitória, como prêmio da sua fadiga,
peso verdadeiro, que, cedo ou tarde, faz tudo voltar à medida mas o prêmio será efêmero, porque a estabilidade é característi-
certa, segundo a justiça e a verdade. Dar-se-á então o valor ca somente de planos de vida mais evoluídos e harmônicos. Po-
merecido a este íntimo imponderável, que tanta força possui, derá servir-se da força e da astúcia, mas espere também ilusão e
mas de que hoje geralmente fugimos; compreender-se-á então engano. O sistema da vida não contém, naquele nível, maior
como os valores reais, interiores, possuem, comparativamente, grau de justiça que esse. O homem não peça nem espere mais.
maior poder que os valores fictícios, exteriores. Não fale mais de justiça verdadeira quem vive no reino da for-
Dado que a posse dos bens é necessária à vida e é desejada ça, e não a espere também. A verdadeira justiça, que ele procu-
e imposta pela Lei como necessidade inderrogável, ela também ra em vão, pertence a plano de vida mais alto, e dele fica exclu-
representa direito. Mas, para este poder realizar-se, é indispen- ído quem venceu à custa dos métodos do mundo animal. Que
sável que se verifiquem as condições supra mencionadas. Em ele se contente em dominar, vingar-se, esmagar. Isto lhe exaure
tal caso, atua espontaneamente; em caso contrário, embaraçado o direito, pois já recebeu mercê. Tão logo se enfraqueça, não
pelo próprio homem, não pode obter seu cumprimento. Se o invoque a bondade e a justiça, mas considere-se inexoravel-
homem seguisse a Lei, esta, naturalmente, proveria todas as su- mente vencido. Só o evoluído, seguidor do evangelho, ri-se
as necessidades. Essa é a base do fenômeno da Divina Provi- desse alternado jogo de desequilíbrios entre vencedor e venci-
dência, sempre pronta a intervir espontaneamente, apenas nossa do, rico e pobre, patrão e servo. Mas só ele tem o direito de li-
conduta lhe permita, pondo-nos nas condições necessárias para bertar-se, porque só ele desfez a miragem necessária para indu-
que ela possa verificar-se. A garantia dos bens não nos pode ser zir o involuído egoísta a afrontar fadigas e provas que, doutro
dada por simples enquadramento exterior, que de modo algum modo, jamais seria levado a suportar.
é decisivo, mas somente pelas íntimas qualidades conferidas Os homens são desiguais; não pertencem ao mesmo grau
por nossa conduta ao próprio fenômeno e pela força com que o evolutivo. Se os bens para manutenção da vida são-lhe indistin-
tivermos construído. É verdade que a posse dos bens constitui tamente necessários, o modo pelo qual os homens os procuram
direito, e o mundo está farto de bens a serem gozados pelo ho- lhes exprimem a evolução, isto é, assume o papel de índice re-
mem. Eles estão prontos à espera disso, debaixo das nossas velador da natureza humana. Aprofundemos a classificação dos
próprias mãos, mas à posse se antepõe o obstáculo criado pela tipos humanos com base no real valor biológico, de acordo com
ignorância humana, que não sabe apreendê-lo ou o apreende a real natureza do indivíduo, em face da qual, como já disse-
mal, violando a justiça substancial jacente no fundo do fenô- mos, as distinções sociais têm valor todo fictício. Escalonemos,
meno da posse, que se desfaz sem ela, pois esta é necessária pa- assim, os vários tipos humanos conforme os métodos de aquisi-
ra que o direito de posse, inerente à vida, possa exercitar-se. ção dos bens. Três podem ser esses métodos: furto, trabalho,
Torna-se necessário compreender o erro e superar a ilusão. O justiça, próprios de três tipos biológicos, que sobem do involuí-
que mais vale não é possuir na forma exterior, mas na interior; do ao evoluído, isto é, o selvagem, o administrador, o espiritua-
não nos efeitos materiais, mas nas causas espirituais; não nas lista. Constituem três raças de homens, correspondentes às três
garantias legais, mas nas nossas capacidades e qualidades. Essa leis da vida: fome, amor, evolução (cf. História de um Homem
é a única riqueza verdadeiramente segura e inalienável, que não – Cap. XXIII, e A Grande Síntese – Cap. LXXVIII).
pode ser roubada porque é inseparável da personalidade, dada O primitivo escolhe como meio de aquisição dos bens o fur-
pelas nossas próprias qualidades. É segura e duradoura porque to, ainda freqüente neste mundo, que chamam civilizado. O ra-
é a única verdadeira, honesta, justa, em equilíbrio com as forças ciocínio é este: ―Por que hei de cansar-me, procurando, com o
da vida. Derivada das próprias qualidades, é filha do mérito, suor do trabalho, ganhar o necessário, se posso facilmente con-
porque as qualidades que nos tornam capacitados só são con- seguir tudo, roubando meu vizinho?‖. Nesse nível, a ignorância
quistadas com nosso próprio trabalho, pois é a nossa atividade e das reações das forças da Lei é completa e o princípio de coor-
fadiga que as gera e fixa. Se as possuímos, é porque as conquis- denação coletiva é inconcebível; a inconsciência do indivíduo e
tamos. Só então os bens são verdadeiramente nossos, porque sua falta de preparação para formas de vida superiores à anima-
temos, fixadas em nós como instintos, as capacidades para sa- lidade atingem o máximo. Psicologia desagregadora, caótica,
bê-los manter e, se os perdermos, para saber reconquistá-los. anárquica. Manifesta-se desregrado e sem controle o instinto de
Doutro lado, quando não se possuí as capacidades, não existe subtrair para si mesmo tudo quanto satisfaça necessidades e de-
mérito, portanto não há direito, assim o dinamismo do fenôme- sejos. É o progresso que, cada vez mais, ordena as coisas, visto
no é cheio de desequilíbrio e, cedo ou tarde, se esgota. Então os que a evolução significa subida ao encontro de Deus e aplica-
bens tendem a nos fugir das mãos; perdemo-los porque não os ção sempre maior de Sua Lei. De fato, tão logo a humanidade
sabemos administrar e, perdendo-os, não sabemos reconquistá- retrocede em crises de revoluções ou guerras e a superestrutura
los. Eis como finalmente, não obstante todas as protetoras bar- jurídica desaba, a vida involui e esse método do primitivo é en-
reiras humanas da injustiça, a interior justiça da Lei emerge. tão reativado. A disciplina jurídica, representada pelo instituto
Esta, através das mais profundas forças da vida, tende a estabe- da propriedade, vacila e retorna ao furto, fase precedente mais
lecer essa justiça, com todos os seus meios. E o homem que involuída, da qual a sociedade conseguiu emergir. No trabalho
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 155
de construir e manter-se no alto, as coletividades humanas pas- grande parte insegura, funcionando aos arrancos, em crises,
sam por esses períodos de cansaço, descensão e aniquilamento, quedas e novos surtos; tentativa de justiça, não porém justiça.
em que retornam às primitivas formas de aquisição. Então, Civilização de nome e forma, não de fato e substância.
prosperam os involuídos, oprimidos pelo enquadramento da or- A nova conquista de nosso século, sua grande realização
dem social. Esta opressão é sentida pelos involuídos, porque histórica, é o advento da justiça social. Por isso tantos sistemas,
imaturos, no entanto, para os mais adiantados, essa ordem cons- tantas lutas e destruições. A fase puramente jurídica e de eco-
titui a forma de vida espontânea e normal. Admitem-se os invo- nomia hedonística – fase de disciplina, e não de justiça – não
luídos a conviver nessa ordem, com os mais evoluídos, justa- basta para o homem novo do Terceiro Milênio nem para as no-
mente para que aprendam, e quando, de algum modo, conse- vas consciências coletivas, dirigidas para justiça mais substan-
guem enriquecer, começam a participar dela, transformando-se, cial. A afirmação do conceito de Estado, a nova concepção or-
então, de inimigos em seus mais tenazes defensores. Agora lhes gânica da vida social, a necessidade de sabedoria espiritual para
interessa, ao máximo, defender a ordem e as instituições que guiar a nova potência conquistada pelo homem através da ciên-
antes combatiam e são produto de tipo biológico mais evoluído. cia e da técnica, o mais alto senso crítico de vida que a matura-
Para maior fruição dos resultados do furto e da conquista vio- ção dos ânimos dá – eis outros tantos impulsos que se dirigem
lenta, procuram discipliná-los no direito e estabilizá-los na le- para uma ordem mundial mais justa e abrem caminho para uma
galidade. Assim, lentamente, pelo menos na forma, aproprian- nova fase biológica, em que a distribuição mais eqüitativa dos
do-se dos métodos de vida dos mais evoluídos, os menos adian- bens garanta a vida de todos, e finalmente atue o princípio de
tados procuram evoluir. Isso, porém, é apenas forma, e sabemos justiça anunciado pelo evangelho. Trata-se de inaugurar o sis-
que, na realidade da vida, vale a substância, e não a forma. Os tema da estabilidade fornecido pelos equilíbrios espontâneos e
retardatários, os excluídos do banquete, os estratos sociais pro- substanciais, correspondentes às necessidades e aos valores in-
fundos aguardam a passagem dos vencedores da vida, que cres- trínsecos, às qualidades e ao mérito; ele substituirá o sistema
ceram na forma e não melhoraram na substância, para fazer- precedente, instável e involuído, das violações contínuas e da
lhes exatamente o mesmo que eles fizeram aos outros. E assim justiça trabalhosamente atingida apenas através do exacerba-
por diante. Neste plano, formado em grande parte pelo plano mento de reações corretivas. Atuação difícil e demorada, por-
humano, só pode dominar um regime de luta perpétua, baseado que o novo sistema presume o tipo, que falta, de homem mais
na força e no aniquilamento, em estado de instabilidade com- evoluído. Na prática, ao invés, domina o imaturo, que, com a
pleta. Esse método de aquisição não atinge, assim, o objetivo psicologia de involuído, sabe empregar apenas o velho sistema
aparente de possuir, mas alcança o objetivo recôndito e real de e, desse modo, engana, desfruta e destrói. Todavia o progresso
induzir o involuído a adquirir experiência e, portanto, evoluir. não pode parar, e essa é a sua direção. Trata-se de leis biológi-
Essa desordem, porém, só pertence a este plano evolutivo. cas fatais, de objetivos que a evolução deve atingir e aos quais
O próprio sistema de forças constitutivas do fenômeno contém encaminha todas as forças, fazendo pressão para superar os
os impulsos tendentes à própria auto-reordenação. Do que ace- obstáculos; trata-se dessa ordem divina presente na substância
namos se vê como esse caos tende a harmonizar-se em mais das coisas, ordem cuja realização é o objetivo da vida e deve,
evoluídas formas de vida. A fase da força tende a evoluir para a pois, cedo ou tarde, inexoravelmente, realizar-se. Assim é que à
do direito, o furto procura estabilizar seus resultados na fase de primeira fase, caótica, baseada na força, em regime de violên-
propriedade, e desponta novo método de aquisição de bens: o cia, no qual a propriedade se conquista com o furto, se seguiu a
trabalho. Gradativamente se disciplina, desse modo, o desenca- atual fase de disciplina da força pelo direito, em que o método
deamento caótico da agressividade conquistadora. O método do de aquisição passa a ser o do trabalho; e a esta segunda fase su-
furto, inorgânico e violento, reordena-se em forma de trabalho, cederá a terceira, orgânica, coletiva, de mais estreita disciplina
orgânico e pacifico. O egoísmo sobrevive, mas, suprimida a do direito pela justiça, e nessa os títulos de posse serão as qua-
força, fica disciplinado no hedonismo econômico do ―do ut lidades, o mérito, o valor, as capacidades pessoais.
des‖33, primeiro rudimento de justiça expresso no balanço entre Temos, pois, três tipos humanos, que se revelam no método
o ―deve‖ e o ―haver‖. A defesa não é mais a força, os músculos de aquisição dos bens, a saber: 1) o involuído ou selvagem, que
ou as armas, mas o direito, o cérebro, a legalidade, a astúcia. concebe apenas a defesa de si mesmo e o sistema do furto; 2) o
Aqui, o dinheiro é arma, e o capital é poder; a violenta luta bio- civilizado, que vive em sociedade, administra, organiza, conce-
lógica para conquista dos bens torna-se a luta econômica de be a defesa da família e do Estado e emprega o sistema do tra-
classe, do capital contra o trabalho e ao contrário. A indústria balho; 3) o evoluído, que superou o egoísmo individual do pri-
organiza-se; o Estado e o direito regulador intervêm para garan- meiro tipo e o egoísmo coletivo do segundo; espiritualista,
tir, ressarcir, prever. Estamos em fase orgânica de coordenação completamente desprendido dos bens materiais, que ele admi-
e estabilização. Essa a grande criação iniciada pelo direito ro- nistra apenas porque percebe ser essa sua missão, empregando-
mano. Mas, ai de nós! Trata-se de disciplina, e não justiça. os somente como instrumento de trabalho, para obtenção de ob-
Construiu-se a balança; ninguém, todavia, nos garante ser o pe- jetivos morais; tipo biológico que vive conforme a justiça e não
so justo. Cristo, solapando os fundamentos do império, já pre- aceita bens senão de acordo com a necessidade, as qualidades,
gava, muito mais que a disciplina, a justiça. Mas também é ver- o mérito. Neste último caso, o limite e a medida das aquisições
dade que, para chegar a esta, necessário se tornava passar por não se encontram, como nos dois primeiros, no código nem se
aquela. Não se poderia passar do plano da força ao da justiça impõem por meio de sanções punitivas, mas estão na consciên-
sem percorrer o trajeto representado pelo equilibrado método cia, espontaneamente inscritos. Infelizmente, os sistemas cole-
do ―jus romanum‖34. As fases biológicas são contínuas e suces- tivos, chamados de justiça social, necessitam, para serem diri-
sivas. Hoje o mundo vive na segunda fase, a do direito, isto é, gidos seriamente, desse tipo raro de homem e dificilmente po-
da disciplina da força e do furto, da organização da conquista, derão construir-se, estavelmente, com o tipo de homem hoje
da legalização e estabilização mais ou menos completa de seus dominante, que, em última análise, pensa, de si para si, em coi-
resultados. Mais adiantada e complexa que a precedente, é fase sa bem diferente da justiça social. Para compreender e exercitar
ainda instável, porém menos do que a anterior; tentativa de essa justiça, princípio evangélico, é preciso ter alcançado o grau
equilíbrio, e não ainda o equilíbrio; por isso tudo é fase em evolutivo do homem evangélico, isto é, do terceiro tipo. Mas os
sistemas, embora inadequados aos homens, podem, por outro
33
Dou para que dês. lado, servir para educá-los, amadurecê-los e, assim, prepará-los
34
Direito romano. para a futura realização. Para chegar a essa realização, torna-se
156 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
necessária dupla e paralela maturação, individual e coletiva; so- O homem atual crê estar sozinho no caos, no entanto parti-
zinha, nenhuma delas basta. A primeira conduz o indivíduo a cipa de imenso organismo. Involuído e, pois, insensível, in-
nova concepção da vida, do trabalho, da propriedade; a novo consciente e ignorante, vê a desordem da superfície em que vi-
modo, consciente, orgânico e harmônico, de sentir e comportar- ve e nem suspeita a ordem presente nas causas, no interior das
se no seio da coletividade humana e do funcionamento do uni- coisas. Enquanto evolui, deve o homem aprender a tornar-se ci-
verso. A segunda leva ao enquadramento do indivíduo em sis- dadão dessa pátria maior, o universo, e colaborador consciente
temas sociais orgânicos e passa não por vias interiores, de per- desse grande organismo, harmonizando-se com todos os fenô-
suasão, mas por vias exteriores, mais ou menos coativas; con- menos irmãos e criaturas irmãs, com seus semelhantes, com as
segue, por isso, resultados formais, e não substanciais, porque, forças da Lei. A felicidade e o paraíso consistem, exatamente,
se os sistemas não são sentidos, sua atuação não é integral. nessa harmonização. Semeando, como fazemos, em ignorância
Para obter essa atuação, que deve ser estado espontâneo e e rebelião, só se pode colher reação e dor. Semeando em sabe-
de convicção, seria necessário aplicar o sistema ao tipo evoluí- doria e harmonia, colheremos felicidade e paz. Isso significa
do, ainda inexistente em grande massa, cuja existência é ilusão civilizar-se a sério, e não ter aprendido a construir máquinas
presumir-se; para a formação desse tipo, todavia, esses siste- sem depois saber fazê-las trabalharem. Em todo campo, políti-
mas podem contribuir, através da prática educativa e formado- co, social, científico, filosófico, moral, torna-se necessário pas-
ra de novos hábitos e instintos. sar do sistema caótico ao sistema orgânico. O sistema do uni-
verso é perfeito. Nós, que não sabemos mover-nos nele, é que
IV. ERROS E ASCENSÕES HUMANAS somos imperfeitos. Esse sistema contém a possibilidade de toda
a nossa felicidade. Todavia, em nossa inconsciência, apenas dor
Começamos a subir os primeiros degraus das ascensões sabemos extrair. Culpa do homem, não de Deus. Pode-se elimi-
humanas. A atual maioria da humanidade vive e age inconsci- nar a dor, que, aliás, conforme a sabedoria divina, foi feita para
entemente, como fantoche manobrado por instintos, sem saber ser destruída. Mas, para chegar a esse ponto, torna-se necessá-
nada a respeito do porquê das coisas, sem compreender o que e rio compreender. O universo funciona como instrumento musi-
por que faz, as reações a que dá nascimento, as conseqüências cal, de que se pode tirar música divina, alegria infinita. Torna-
dos próprios atos. Por esse conhecimento fundamental, que, se- se preciso, contudo, sabê-lo tocar. Arrebentamos as cordas e
gundo a lógica mais elementar, deveria anteceder qualquer vamos às cegas. Que podem tocar semelhantes músicos? Então,
ação, o homem de nossos dias raramente se interessa, preferin- culpamos o instrumento por tocar mal, e não a nossa animali-
do agir primeiro, para depois compreender. Parece que os pro- dade, que não sabe tocá-lo. Quem insiste o faz contra si mesmo,
blemas do animal bastam para encher-lhe a vida e saciá-lo. Tal- pois toca cada vez pior e, assim, cada vez mais se enganando e
vez o homem comum se perdesse em meio a essas questões, se divorciando da ordem, colhe sempre maior quantidade de
que devem parecer-lhe de complexidade espantosa, a ele que dor. A Lei faz o quanto pode para salvar-nos e, de fato, salva,
vive na periferia, na superfície, e não no centro, na profundida- apesar de todos os nossos erros e dores. No entanto somos li-
de. O pensamento das filosofias apresenta-se-lhe contraditório; vres; enganando-nos e sofrendo, devemos aprender e, assim,
o das religiões, insuficiente; o da história, desconexo; o da polí- compreender, pois somos destinados a empunhar algum dia as
tica, faccioso e interessado. Em face dos mais importantes, con- rédeas do comando e, após trabalhosamente conquistar a sabe-
tudo mais simples e necessários, problemas da vida, como por doria, algum dia poderemos e deveremos empunhá-las.
exemplo: ―Quem sou? De onde vim? Para onde vou? Por que Ao sábio, que se harmoniza, que sabe conformar-se, como
vivo? Por que sofro?‖, o homem se percebe desnorteado e se diz, com a vontade de Deus, a Lei se manifesta como ajuda
abandonado, porque o pensamento humano ainda não soube amorosa e espontânea, música plena de bondade, proteção e
encontrar a síntese completa que lhe responda a tudo e, se ti- previdência; ao contrário, ao inconsciente, que se rebela e, se-
vesse sabido, conseguiria interpretá-la apenas de acordo com guindo Lúcifer, substitui pela própria a vontade de Deus, mani-
sua relativa maturidade. O homem de nossos dias vive, assim, festa-se como prisão de ferro em que, prisioneiro, se agita.
em uma espécie de resignação à ignorância, de adaptação à in- Quanto mais recalcitra e se debate, mais a corrente magoa e os
consciência, contentando-se em vegetar. Se isso pode ser dura nós se estreitam. Pode até bater com a cabeça nas grades invisí-
contingência de sua evolução, é também triste aceitação e hu- veis, mas irá quebrá-la e estas continuarão imóveis e intactas.
milhante declaração de incompetência. Podemos continuar a Para resolver os problemas, o caminho não é a violência e a
viver nesse estado? Só o involuído pode contentar-se com ele. imposição, mas a harmonia e a obediência. Basta haver com-
Podemos continuar a agir sem entendimento, porém somente à preendido isto para se porem de lado todas as concepções de
custa de suportar as dolorosas conseqüências dos inevitáveis er- que habitualmente se vive. O homem, com muita facilidade, crê
ros e desastres de que está cheia a vida individual e coletiva. poder, impunemente, praticar o mal. Não! A impunidade é ilu-
Mas nem por isso, certamente, aos acontecimentos humanos, são, filha da ignorância humana; a mentira é feitiço que se volta
individuais e coletivos faltará diretiva. Esta, porém, não é confi- contra o feiticeiro. O mal não traz vantagem, e a mentira acaba
ada ao homem, nem pode ser revelada a inconscientes, mas será por enganar o próprio mentiroso que a diz. Quem rouba será
atribuída a ele qualquer dia, quando houver conquistado conhe- roubado; quem mata será morto; quem engana será enganado;
cimento e sabedoria. A formação da nova civilização do espírito, quem odeia será odiado. A Lei o quer; essa é a estrutura do sis-
do novo tipo humano do Terceiro Milênio, significa a conquista tema regulador do universo. Trata-se de organismo de forças
de novo e imenso domínio, com o controle exato das diretivas inteligentes, poderosas, invisíveis, onipresentes, indestrutíveis.
da vida em nosso planeta. Não se trata de revolução social, exte- Por mais que se agite, o homem nada pode contra elas, e toda
rior e formal, mas de maturação biológica, profunda e íntima. Os revolta se transforma em dor. O homem deve compreender que
enquadramentos políticos, nacionais e internacionais poderão não pode conseguir a expansão que o espera à custa do dano
ajudar, porém o que decide, acima deles, é a formação do novo alheio, aliás, do próprio dano. Crê na usurpação, na estabilidade
tipo de homem, cuja sabedoria e maturação evolutiva possam fi- dos desequilíbrios, e a Lei o deixa à vontade, porém depois, pa-
nalmente permitir que as forças da Lei não mais tenham que ra que ele aprenda, o faz pagar com o sofrimento e, assim, o re-
dominá-lo, como se torna necessário fazer com os inconscientes, conduz inexoravelmente à justiça e ao equilíbrio. O involuído,
por meio dos fios de seus instintos e das respectivas reações, na sua ignorância, presume dominar, no entanto, ao contrário,
mas lhe revelem o segredo da própria estrutura e lhe confiem a obedece sempre. A Lei, bem mais sábia que ele, não lhe permi-
função de dirigir a vida no ambiente terrestre. te senão a prática de violações e erros úteis para sua dolorosa
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 157
experiência. O espírito de rebelião, filho de Lúcifer, está no la- chaga de nossa humanidade. Levam-se em conta as qualidades.
do baixo e involuído da vida, enquanto o de obediência e har- O que importa é ser, e não possuir ou aparentar. Só o que é pos-
monia encontra-se no lado alto e evoluído. A evolução é justa- sui a causa, tem o germe das coisas, ou seja, a potência e o mo-
mente o processo de reordenamento e harmonização, que atua delo para reconstruí-las ad infinitum35. Não há outro caminho
através da fadiga e da dor, substância da redenção. para a posse no mutável transformismo universal, senão o do-
As massas humanas, vastas como o oceano, vão à deriva, na mínio sobre as forças genéticas do fenômeno. Na posse das ca-
ignorância dessas verdades elementares, e caem vítimas das pacidades intrínsecas, em meio a tanta avidez de furto e à pre-
próprias ilusões. A realidade é bem diferente daquilo que ge- cariedade de qualquer posição social, o involuído afinal encon-
ralmente se imagina. Quem rouba crê enriquecer, mas empo- tra o indestrutível. O homem do futuro, mais adiantado, saberá
brece; quem mata não prolonga sua vida, morre; quem engana dar mais valor ao que não se rouba nem se destrói e muito me-
se engana; quem odeia se odeia. Quem foi injustamente rouba- nos importância ao que se pode perder; prender-se-á mais à po-
do receberá compensação; quem foi morto injustamente ressus- tência intrínseca, geratriz e reguladora de tudo, do que às suas
citará em alegria; quem é honesto e de boa fé verá a verdade, efêmeras manifestações exteriores. O evoluído não se amedron-
embora tenha sido enganado; quem ama será amado, apesar de ta nas horas escuras da desordem; está prevenido e preparado
hoje ser odiado. A chave da felicidade não está na força ou na quando os acomodatícios são atingidos por golpe vindo de bai-
astúcia, mas na justiça e no mérito. No mundo reina a dor por- xas camadas sociais; aceita-o como enérgica varredura na casa
que o homem, em vez de seguir a ordem divina, é rebelde se- suja da vida e continua imperturbável, porque já encontrou e
guidor de Satanás. A causa não está em Deus, e sim no homem. possui o indestrutível. Os nós humanos, assim como se fazem,
Bem diferente, a falada seleção do mais forte! Se isto aparece se desfazem; a riqueza e todo poder podem perder-se exatamen-
na superfície, na profundidade existe lei biológica muito dife- te como foram conquistados. O que tem princípio, só por isso,
rente, que diz: quem transgride paga. E a humanidade paga, há de ter fim. Tudo o que nasce deve morrer. Apenas o eterno
porque é filha de seus erros milenares. Se olharmos, porém, a não tem fim, o que não nasce vive para sempre. Só o involuído
outra face da dor, revelar-se-nos-á seu poder criador e curativo, pode acreditar no contrário. De eterno não temos senão o espíri-
seu outro aspecto escondido, onde está escrito: alegria. A Lei é to, com as qualidades que, vivendo, lhe imprimimos, com o
boa e nos ajuda a pagar e sanar tudo, se o merecermos; auxilia- feixe de forças de seu destino, postas em movimento por nós.
nos, tornando possível para nós transformar o mal em bem, a Os fatos de nosso tempo demonstram quanto é involuída a
perda em ganho, a dor em felicidade. A bondade de Deus nos humanidade atual e quanta sabedoria diretiva lhe falta. Resol-
permite a redenção, quer dizer, subir de novo, através de pro- veu-se em destruição medonha todo o progresso mecânico, fru-
vas, a escada da evolução, que havíamos descido. Mas se trans- to da ciência do nosso século e vitória de nossa civilização. A
formam, ainda, outras concepções de que habitualmente se vi- soberba técnica, conquista e louvor de nossos dias, foi entendi-
ve. A posse dos bens, a propriedade referida acima, pela qual da como fim, e não como meio; a sabedoria do espírito não lhe
tanto se luta, já não é meio de gozo, mas instrumento de traba- serviu de guia. Sem direção, a máquina não construiu, mas des-
lho. O princípio de função e missão substitui o de egoísmo. truiu. Faltou-lhe sabedoria, predomínio dos valores morais hie-
Nascemos e morremos nus. Durante a viagem da vida, os bens rarquicamente superiores. O homem subverteu a ordem natural
vão e vêm, a riqueza circula de mão em mão, pertence a todos; e paga por isso. O materialismo moralmente destruidor atingiu,
as trocas servem para que ela não diminua. Não há posse ou es- desse modo, a última fase de realização concreta. A negação,
tabilidade garantida. Tudo não passa de usufruto, empréstimo partida do espírito, atingiu a matéria; o ateísmo nietzscheano
temporário, que uma crise, um furto ou a morte podem a qual- deu fruto. A superprodução industrial, ao invés de trazer abun-
quer momento tirar; empréstimo concedido a título de instru- dância, chegou à miséria. Espantosa Nêmesis36, conseqüência
mento de experimentação e trabalho na Terra, de aquisição de lógica das forças incluídas no sistema. A orientação espiritual
qualidades na arena da vida, administrado pelo homem como negativa da moderna civilização mecânica a entrega à destrui-
meio de construir-se a si mesmo, e não para seu gozo. De fato, ção total. Os imponderáveis que ela negou e, negando, moveu
como estabilidade, do ponto de vista hedonístico, a riqueza é em sentido negativo, amarram-na agora, prendem-na e seguem-
mal e, do ponto de vista jurídico, impotência. É, pois, erro bio- na; não poderá parar antes de esgotado o próprio impulso. Só
lógico conceber egoisticamente a riqueza, como faz o homem mais tarde, como homens mais evoluídos, a reconstrução, me-
moderno, não obstante todos os coletivismos em moda. Não lhor e posta bem no alto, surgirá das cinzas do mundo atual. Os
somente a propriedade mas a própria autoridade e toda ativida- destruidores modernos serão excluídos do futuro, pertencente
de social não devem ser egoisticamente concebidas como meios aos reconstrutores. Está passando a hora dos destruidores, que
individuais, mas sim coletivamente entendidas como função serão expulsos da vida do mundo. Nossa miséria será como de-
social; todo exercício, atividade, posse e domínio deve encarar- serto, mas também como terreno limpo, para reconstrução mai-
se como missão. Por mais que procuremos isolar-nos para frui- or e melhor. Esse deserto atrai as potências inexauríveis da vi-
ção dos bens, a vida é unitária; não podemos impedir que seja- da. Jamais, qual na profundeza da destruição, a vida tanto se
mos irmãos, pois nela tudo é intercomunicante e comum, apesar renova; jamais, como no abismo da necessidade, tanto se mani-
de todas as nossas barreiras protetoras e divisórias. Os bens não festa o poder criador de Deus. Na necessidade, dolorosa e re-
passam de ferramenta, e nada mais. Aprendido o ofício, são en- dentora, aparece para Seus filhos a providência do Pai.
tregues a outros aprendizes. Não se encontra no caminho certo Assim, a vida caminha sem cessar. Por mais que o homem
quem procura enriquecer só para si e seu gozo. Tornar-se-á in- procure cristalizar suas posições através de laços jurídicos, es-
cansável escravo do tesouro e condenado ao terror de perdê-lo. tabilizar suas conquistas por meio de convenções sociais, públi-
A verdadeira conquista não se dirige às coisas, mas às forças cas e privadas, fixar seu estado em instituições e formas defini-
que as geram e movem. Pobres ladrões, arrivistas, pobres inve- tivas, a evolução não pode parar, e, a cada nova maturação, a
jados por fácil e rápido sucesso! Como vocês empobreceram, ao velha construção, tendo crescido, não se encontra à vontade na
invés de ficarem ricos; como foram derrotados, vocês que assim velha casca e rompe-a para formar casca mais ampla. Há cons-
triunfaram; como perderam, os que desse modo venceram! tantes necessidades da forma para se definirem as posições; es-
Sem esse inusitado conceito da vida, sem essa subversão
completa das ilusões do mundo, não se pode imaginar civiliza- 35
Infinitamente.
ção nova. Tão lógico, tão simples, tão natural. Nela deverá de- 36
Deusa grega da Vingança e da Justiça Distributiva, que reprovava
saparecer a distinção entre valores aparentes e valores reais, todo excesso. (N da E.)
158 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
sa forma, porém, a princípio cômoda habitação, torna-se prisão cos. Desse modo, da potência íntima do sêmen desabrocham
mais tarde. É necessária também a contínua destruição e re- novas formas de vida. O novo já vibra no ar, no estado fluido e
construção da forma, único meio de poder conciliar o imperati- incorpóreo de vibração, de dinamismo, que é causa das formas,
vo imposto pela evolução, de progresso e crescimento, com a prestes a encontrar o corpo em que se fixe e se defina. Tipo bio-
necessidade de abrigá-la em nova forma, que exprima exata- lógico mais evoluído, dotado de consciência nova, deverá for-
mente as características atingidas em cada nova maturação evo- mar a classe dirigente. Depois do desenvolvimento mecânico,
lutiva. Não só nesse caso, mas em toda a vida, verifica-se a luta que termina pela obra de destruição, deve acontecer proporcio-
entre forma e substância: a primeira, imóvel, com o objetivo de nal desenvolvimento espiritual que torne seus resultados utili-
definir-se; a segunda, fluida, tendo em vista a evolução – a pri- záveis em obras construtivas. Os equilíbrios da vida e a lógica
meira, porque constitui invólucro, é continuamente despedaça- do progresso impõem que, fabricado o instrumento para o do-
da pela pressão interna da segunda. Exatamente desse contraste mínio material do mundo, se produza também a consciência di-
de funções opostas e necessárias nasce a instabilidade de todas retora, capaz de empregar utilmente esse instrumento. Isso por-
as formas da substância, a caducidade dos corpos da vida. As que, na vida, nenhum passo é inútil, nada se desperdiça e tudo
formas constituem apenas etapas no caminho da evolução, pa- tende organicamente para determinado objetivo. Só assim o
radas em que cada fase se define e exprime. Mais tarde, essa progresso técnico não terá sido inútil e o homem poderá alcan-
roupa não serve mais, pois o corpo cresceu; torna-se então ne- çar, como espera, o domínio não só mecânico e material, mas
cessário rasgá-la e fazer outra mais ampla, mais na medida. As- inteligente e completo do planeta. Para dominar a sério, é ne-
sim, as revoluções destroem as instituições e as leis, revolucio- cessário princípio de ordem, central e diretivo, que não pode es-
nam as construções jurídicas e as estruturas sociais, tal como a tar senão no espírito. Só ele pode conferir caráter de organici-
morte destrói os corpos, para que a vida possa fazer outros me- dade ao conhecimento científico e à potência técnica. A carac-
lhores, mais de acordo com o novo grau de evolução atingido. terística fundamental da nova civilização será a afirmação de or-
O caminho evolutivo é fatal. Hoje, o mundo é o campo da bata- dem. Partindo do conhecimento da Lei e da consciência da or-
lha entre o princípio da força, disciplinado e estabilizado em dem divina em todas as coisas, chegar-se-á a nova e mais com-
formas jurídicas, e o superior princípio da justiça. O homem do pleta harmonização entre os atos da vida e seus princípios, e daí
segundo tipo cresceu; está para tornar-se homem do terceiro ti- a novo superamento da dor e maior aproximação da felicidade.
po. As velhas instituições, tão adaptadas antes à sua natureza, Assim, renovadas e disciplinadas interiormente, as formas de
estão para se tornar a prisão em que ele, oprimido, se agita e vida individuais e sociais se transformarão e a existência assu-
procura arrebentar, a fim de fazer casa mais vasta e proporcio- mirá novo significado. Carecerão de sentido amanhã as atuais
nada. Nossa fase não é de estase, mas de progresso e criação. A distinções. O verdadeiro chefe de todas as revoluções e de todos
destruição precede a reconstrução, momentos sucessivos e am- os poderes é a lei de Deus, que manobra os líderes, permitindo
bos necessários do processo evolutivo. Os destruidores, tal co- que mandem apenas enquanto obedientes às leis do progresso e
mo os reconstrutores, exercem função biológica, mas cada qual à vontade de Deus. Tendo em vista os objetivos da evolução
em seu posto. Os primeiros fazem seu trabalho e então, julgan- humana, a Lei estabelece as posições e distribui as funções; hu-
do-se donos da situação, iludem-se, supondo que podem fazer milha os grandes e exalta os humildes aos postos de comando;
a evolução parar de progredir em seu plano. Superada a fase, depois, liquida todos com justiça, ou seja, com honras, se cum-
porém, eis que eles, simples instrumentos da Lei, após esgota- priram a missão, ou como refugo da vida, em caso contrário. In-
rem sua função, de acordo com sua capacidade, são postos de teressa é a ascensão de todos; dela somos, ao mesmo tempo, es-
lado. Antes, sua qualidade era ignorância, e a ilusão, sua natu- cravos e senhores. Embora quase todos queiram, com egoístico
ral herança. A evolução, que não compreendem, vai-lhes no isolacionismo, que as coisas girem em torno de si mesmos,
encalço e os agarra. E, por mais que se agarrem às posições, qualquer ação nossa é função coletiva e toda vida, missão.
não podem mantê-las. Assim, as revoluções devoram os pró- A luta moderna se trava, como sempre, entre o velho e o
prios homens. Depois a vida, fatalmente, impõe a reconstrução novo. O primeiro se aconchega entre as gigantescas construções
e, para isto, escolhe diferente tipo biológico, adequado a esta do passado, mas tem contra si as leis da vida. Não nos ensina-
função, do mesmo modo como fizera para o trabalho de des- ram elas todo o dia o superamento do passado? Todo dia não
truição. E, assim, na essência, os inimigos que se digladiam e vemos, apenas em homenagem ao progresso da vida, os moços
os rivais que se odeiam, são companheiros de trabalho; confra- substituírem os velhos em suas posições? Isso acontece entre as
ternizam-se, sem o saberem, na mesma obra de progresso, em plantas e os animais, como entre os homens. Não se pode resis-
que, ignorando uns ao outros, trabalham nas sucessivas fases. tir a essa vontade de renovação. A vida não pode existir senão
Mesmo o próprio antagonismo entre eles existente cifra-se na forma de ascensão ou como meio para caminhar, cada vez
apenas na instintiva e inconsciente necessidade de exercer ao mais, em direção ao divino centro do universo. Trata-se de im-
máximo a própria função, necessidade impelida até à rivalida- ponderáveis; poderemos negá-los e até mesmo nos rirmos de-
de e ao ciúme do trabalho. Somos todos, cada qual em seu pos- les, mas nos arrastam e os seguimos. A vida pertence a quem
to, executores da Lei e servos de Deus. sobe, e não a quem pára ou desce; o futuro está sempre mais em
A ascensão evolutiva não pode parar. As massas não sentem cima. A vida faz-se de construção, embora deva atravessar a
a proximidade dos tempos futuros. Assistimos hoje, de fato, ao destruição. O universo é função imensa e perfeita, dirigida pelo
desnorteamento da história, como nos tempos de Cristo. Pode- pensamento de Deus, movida por forças titânicas e imponderá-
mos repetir com Virgílio: Magnus ab integro sacculorum nas- veis, sempre e em toda a parte presentes e ativas. Tudo está re-
citur ordo37. O futuro pertence à nova geração de homens de ti- gulado, previsto, tudo nele se resolve em ascensão.
po biológico mais elevado. É inútil em meio aos progressos re-
tardarmos os passos no mundo velho. A ignorância, o egoísmo V. AS GRANDES UNIDADES COLETIVAS
e a preguiça não podem fazer a vida parar. A lei de progresso
esmagará todas as resistências, porque é também poder de ex- Nos capítulos precedentes, desenvolvemos e comentamos
pansão divino, que é centro e princípio do universo. A história alguns pontos de A Grande Síntese, especialmente os de cará-
caminhou sempre assim, ascendendo passo a passo; nela é ter social, tratados quase no fim do volume. Foram ampliados,
normal a realização progressiva de ideais, inicialmente utópi- em especial, os capítulos: ―Força e justiça – A gênese do direi-
to‖, ―O problema econômico‖, ―A distribuição da riqueza‖,
37
A maior ordem nasce da integridade dos séculos. ―Da fase hedonística à de colaboração‖. Os conceitos, ali ra-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 159
pidamente expostos no quadro de conjunto, foram considera- ve, pois, como primeira conseqüência, o rebaixamento involu-
dos de novo, mais minuciosamente e sob aspecto mais prático tivo do tipo de vida até ao plano dos primitivos. Não se pode
e atual, tendo em vista mais a sua aplicação do que a posição evitar, e assim se paga, o progresso em extensão. Nasceu, to-
por eles ocupada no organismo universal. São diferentes a davia, novo ser coletivo, que, mesmo a principio involuído e
perspectiva de A Grande Síntese e a destas páginas. Partindo primitivo e hoje apenas embrião em crescimento, exprime a
de premissas cósmicas, ali os problemas do homem e da socie- possibilidade de imensos desenvolvimentos futuros. O povo
dade apenas aparecem por último, à guisa de conclusão; aqui, desperta, sem dúvida, como se voltasse à vida. Nessa nova
pelo contrário, esses problemas representam a base e o ponto formação coletiva, o escasso valor individual do involuído
de partida do trabalho; daí a conclusão se eleva pouco a pouco, cresce e se multiplica em rede de contatos e trocas; não mais
desde a grande massa coletiva até ao caso individual mais sele- aparece sozinho, reduzido a seu valor intrínseco, mas vive em
to e muito menos numeroso, mas, em compensação, mais evo- função do novo organismo em que, participando como célula,
luído. O caminho fatal de ascensão, entrevisto no fim do capí- se multiplica. Nas unidades coletivas, o indivíduo vem a co-
tulo anterior, não se manifesta somente com a formação de ti- nhecer novas formas de vida e de relação e sente-se transpor-
po biológico mais elevado, com funções de direção, natural- tado para novo plano orgânico, antes desconhecido.
mente colocado como guia da sociedade, mas se apresenta A nova criação biológica de nossos dias é, pois, exatamente
também de maneira diversa. Esse impulso evolutivo tende não esse novo indivíduo coletivo, com milhões de cérebros, procu-
só ao aperfeiçoamento do indivíduo, mas à investidura das rando coordenar o seu pensamento segundo correntes de cons-
grandes massas sociais, de maneira cada vez mais extensa. ciência, indivíduo que, nessas correntes, busca formar persona-
Creia-se ou não no Estado, aceite-se ou não a estatolatria mo- lidade própria e unitária, diferente da dos indivíduos compo-
derna, basta considerar o fenômeno biológico universal e im- nentes. A psique individual pode assim agir segundo dois dife-
parcial para verificar, em nossos tempos, a tendência à organi- rentes pontos de vista: o do indivíduo como indivíduo, e o do
cidade social. Considerado mais ou menos sem valor nos sécu- indivíduo como célula social – no primeiro caso, tem funções e
los passados, o povo, com a Revolução Francesa, surge no pal- objetivos individuais; no segundo, coletivos. Trata-se de duas
co da vida política. Antes valiam só os indivíduos e as classes posições diversas, entre as quais podem nascer contradições, e
dominantes; a aristocracia selecionada estabelecia os valores o indivíduo, como célula social, fará, com finalidade social, o
coletivos e imprimia seu cunho nas massas populares, que con- que jamais faria como indivíduo apenas. Pode, desse modo,
tinuavam obedientes e, exceto nos momentos excepcionais, sob a forma de delinquência, exercer funções de justiceiro.
mudas e sem pensamento próprio. Os estratos inferiores da so- Mas, se, no seu conjunto, o indivíduo coletivo tende a adquirir
ciedade jaziam abandonados. O conceito de povo organizado, consciência unitária, própria e distinta da dos indivíduos com-
que exprime seu pensamento e toma parte na vida política, e o ponentes, nas peculiaridades e na estrutura interior tende à es-
princípio de massa organizada em grandes unidades coletivas pecialização das funções. As grandes unidades coletivas são
são muito modernos. Ocupar-nos-emos, agora, desse aspecto gigantescos organismos sociais, colossais, monstruosos indiví-
diferente, coletivista, e não individualista, da evolução huma- duos biológicos de que o homem é célula; as classes sociais,
na, isto é, da formação desse novo e múltiplo indivíduo coleti- tecidos; as classes dirigentes, cérebro; as massas, corpo. Estas
vo, característica de nossos dias, e não, como antes, do sazo- unidades possuem sistema nervoso, órgãos de sensibilidade e
namento de novo tipo biológico. coordenadores de funções. Nelas, o indivíduo exerce as ativi-
O novo e múltiplo indivíduo humano, organizado em soci- dades mais de acordo com suas capacidades peculiares. O in-
edades nacionais e estatais, com cérebro dirigente, nervos, ór- voluído se encarrega de desempenhar as funções mais baixas:
gãos, membros, coordenação de funções, semelhante ao orga- agressão, guerra, destruição; o evoluído desempenha funções
nismo individual, embora com dimensões muito maiores e intelectuais e de direção. Eis como o tipo biológico mais ele-
formas muito mais vastas; esse novo ser físico (massas) e psí- vado se enquadra no novo organismo coletivo. Entre os dois
quico (consciência coletiva) representa nova criação biológica, extremos, os administradores se distribuem segundo suas qua-
produto da evolução. Enquanto, porém, a maturação do tipo lidades específicas. Assim, os três tipos humanos, vistos no
biológico mais elevado significa desenvolvimento em altura, a Capítulo III, encontram lugar e fazem sua tarefa. O indivíduo
formação desse novo e gigantesco indivíduo representa desen- coletivo, no entanto, ainda está sendo formado; não se definiu
volvimento em superfície. No primeiro caso exalta-se a quali- bem, até agora, o critério distintivo das funções; há, por isso,
dade; no segundo, conquista-se a quantidade. Completam-se, entre as partes, a luta e a incerteza próprias do período de for-
embora crescendo em direções diferentes e com importância mação. Existe, sem dúvida, semelhança com o organismo bio-
própria. Ambos necessários, os dois impulsos se fundem na es- lógico, mas organismo embrionário e experimental, como no
trada das ascensões humanas. O individualismo do tipo bioló- período paleontológico. Percebe-se, como no corpo humano, o
gico dominante não desaparece nessa nova organicidade; ao princípio de especialização, a coordenação das qualidades in-
contrário, nesta, suas funções se coordenam. Como indivíduo, dividuais, mas no estado de tentativa. Do ponto de vista bioló-
geralmente primitivo, involuído, pode evoluir, seguindo sem- gico, torna-se muito importante a observação do esforço feito
pre caminhos individualistas. Mas isto é raro, então o enqua- hoje pela vida para coordenar suas conquistas individualistas e,
dramento coletivo o educa e faz progredir. Por isso o individu- no plano humano, disciplinar as suas forças. Neste período his-
alismo não fica mutilado; seus caminhos continuam abertos tórico, chega a parecer que o esforço seletivo, de natureza
aos que têm força para emergir. Nos séculos passados, a vida também separatista, cede o passo ao esforço orgânico e social,
pertencia apenas ao selecionado que se distinguira da massa, de natureza coordenadora. A primeira tendência se movia em
porém hoje é de qualquer elemento da sociedade humana, que direção individualista, para produzir poucos exemplares do ti-
agora, em vez de constituir um obstáculo, pertence a ela como po eleito, no entanto a segunda caminha em direção coletivista,
membro. A extensão da participação nas atividades a todo in- a fim de que produza muitos exemplares do tipo medíocre e os
divíduo representa uma primeira tentativa de nova e gigantesca valorize pelo número, e não individualmente, transformando-
construção, porém significa rebaixamento do nível social ao do os em grande organismo coletivo. Levamos em consideração
tipo corrente, do homem da rua, que pode ser tudo menos tipo neste livro ambas as formas de expansão vital evolutiva; ne-
eleito. O nível social rebaixou-se até ao do tipo comum, que, cessitamos das duas para completar o fenômeno da ascensão e
em compensação, ligou-se a um círculo de vida por ele antes da construção. Veremos, enfim, como os altos níveis evoluti-
desconhecido. A formação das grandes unidades coletivas te- vos não podem ser atingidos pelas massas, numerosas porém
160 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
medíocres, e como os poucos eleitos que os conquistaram ten- Não podemos considerá-lo isolado, fora do complexo da vida,
dem, uma vez cumprida sua função e alcançado o rendimento dos métodos e da finalidade da natureza. Assim, encontramos o
das qualidades por eles adquiridas, a separar-se da humanidade fenômeno social, histórico e político orientados e em sintonia
terrestre. Tornava-se necessário, porém, completar o exame do com o mesmo ritmo da lei reguladora de todos os fenômenos.
fenômeno evolutivo, observando-se também o aspecto coleti- Em toda parte, ambos têm o mesmo esquema fundamental, re-
vo, mas completá-lo começando da base – baixa, mas extensa dutível a princípio único. Torna-se evidente que a natureza age
– da pirâmide social, onde se encontra a grande maioria, que, de acordo com esquemas simples e constantes; suas formações
embora de modo diferente do evoluído, procura ativamente a se fazem com modelos em série, embora não mecanicamente;
própria construção biológica. seus desenvolvimentos obedecem a um plano, e isso os prende
Existem, pois, duas correntes de atividade evolutiva, dois sempre a um princípio diretor central. Retomaremos em melho-
trabalhos intensos: a primeira conclui na formação do super- res condições, mais adiante, tal conceito. A criação tende para a
homem, que se separa e afasta da humanidade, cujas formas de uniformidade e a repetição dos modelos. Todas as formas, as-
vida, para ele baixas e insuportáveis, seu grau evolutivo não to- sim, possuem base comum a irmaná-las em parentela, que mos-
lera mais; a segunda não considera a exceção, porque mais rara, tra derivarem do mesmo e único princípio. Não se copiam, mas
e sim a regra geral, embora medíocre, e opera sobre primitivos se ligam mutuamente de todos os pontos do universo e de todos
e deserdados, para realizar com eles conquista tão importante os planos evolutivos. Por isso, na formação e funcionamento
como a outra. A vida não abandona ninguém e a cada qual, de das grandes unidades sociais, vemos a reprodução dos fenôme-
acordo com sua natureza, oferece atividade adequada e confia nos e o retorno das leis por nós observados nas unidades mine-
tarefa. Um prefere subir sozinho até aos mais elevados cimos; rais, vegetais, animais, desde o átomo até às estrelas.
outro sabe viver e trabalhar apenas no meio da massa e em fun- Isso posto, de modo algum podemos crer que o fenômeno
ção dela. Ambos os trabalhos, porém, merecem respeito e im- histórico se desenvolva sem lei, abandonado ao arbítrio indi-
portam para o progresso; ambos contêm a incerteza da tentativa vidual ou ao capricho dos acontecimentos. A história nos con-
e o risco do inexplorado; representam esforço criador, o traba- ta como se sucedem no tempo os vários momentos do funcio-
lho da gênese biológica. Estes dois pontos resumem a dupla namento dos organismos coletivos. Estas palavras poderiam
fórmula vital do futuro, no duplo aspecto individual e social. constituir-lhe a definição. O funcionamento do corpo social,
Observemos o novo indivíduo biológico coletivo. Como expresso pela história, não obedece ao acaso, mas segue o
todas as primeiras formações embrionárias da vida, agita-se mesmo ritmo por nós encontrado noutros fenômenos. Em ou-
desordenadamente, procurando configurar-se mais estavelmen- tras palavras: o transformismo fenomênico do complexo vivo
te; sente confusamente e move-se desarticulado e incerto, co- do grande corpo coletivo obedece às mesmas leis do dina-
mo todas as construções biológicas recentes. Trata-se, na ver- mismo universal. Ou mais exatamente: é dirigido enquanto
dade, de novo e imenso corpo vivo, de corpo social com as ca- pertencente ao binário da onda histórica. A vida das grandes
racterísticas, as leis, os instintos, as moléstias e as defesas da unidades coletivas se desenvolve de acordo com movimento
vida orgânica e psíquica. O paralelo entre organismo individu- de amplas oscilações ascensionais e descendentes, de altos e
al e organismo social não só confirma nossa concepção bioló- baixos periódicos, movimento que repete o princípio das on-
gica do fenômeno social mas também o esclarece, visto que das do mundo dinâmico de que a vida participa. Isso natural-
reencontramos nele as leis reguladoras do organismo do indi- mente acontece sempre que se trata de dinamismo como neste
víduo. Essa relação nos permite compreender o funcionamento caso. Observemos os períodos e as características desse ritmo
da unidade coletiva e adivinhar-lhe o futuro, utilizando-nos histórico. A história se desenvolve de acordo com respiração
dos mesmos princípios já encontrados no caso individual. Po- rítmica por nós reencontrada na física e, especialmente, no
deremos, assim, compreender melhor a lei reguladora dos eletromagnetismo. A existência dos retornos históricos, já ob-
acontecimentos históricos; considerando-os como fenômenos servados por Vico, é fenômeno de fácil observação. A trajetó-
de biologia social, poder-se-á fazer, à luz da patologia social, a ria típica dos movimentos fenomênicos de que falávamos
diagnose das crises coletivas e estudar, de acordo com a fisio- acima segue o princípio desses retornos ou repetições, repro-
logia coletiva (ou dos corpos múltiplos), o funcionamento do duzindo-os, todavia, em cada vez mais elevada posição; desse
novo grande organismo. Dos conceitos próprios da anatomia fato deriva a evolução. Desse modo, funciona também a histó-
poderão ser aplicados na análise os de: atrofia, hipertrofia, cir- ria. Os acontecimentos humanos, sucedendo-se, tendem a re-
culação e metabolismo, centros cerebrais e nervosos e corren- petir-se, ligando-se à lei dos retornos históricos, que os obriga
tes de consciência, gênese, crescimento, maturidade, senilida- a percorrer de novo o velho caminho. Não nos surpreenda-
de, morte e hereditariedade, ciclos vitais, transformismo evolu- mos, por isso, se a história parece não ensinar coisa alguma e
tivo. E, assim como a propósito do indivíduo, poderemos tam- se, muitas vezes, os mesmos erros são cometidos de novo pe-
bém, a respeito da unidade social, falar em personalidade, des- los próprios dirigentes, que, mais do que ninguém, devem tê-
tino, responsabilidade, missão. la presente. Essa é a lei do fenômeno, que só não se repetiria
Essas comparações são lícitas e lógicas, pois o universo é se progredisse sempre em direção evolutiva; e isso é exata-
dirigido por uma só lei, quer dizer, por legislação única, sempre mente a coisa mais árdua na vida. Todavia, tal como na traje-
onipresente. O fenômeno social, tal como o fisiológico, segue a tória dos movimentos fenomênicos, a repetição não se trans-
mesma lei universal expressa pela trajetória típica dos movi- forma em cópia autêntica; quem observá-la bem lhe notará al-
mentos fenomênicos e pela lei da unidade coletiva (cf. A Gran- guma diferença, embora pequena. Esta representa todo o valor
de Síntese – Cap. XXVI e XXVII). Na matéria, na vida e no es- da conquista, o resultado da experimentação. Aconteceu em
pírito, as formas, desde as atômicas até às siderais, tendem para direção ao alto, em direção evolutiva. E, se atuou na realida-
a unidade, ou seja, para o reagrupamento e a reorganização em de, é construção acabada e real, embora sob a forma de força
sistemas, em associações cada vez mais vastas e complexas. imaterial. Representa novo e indelével traçado, tipo mais
Toda unidade já representa em si mesma a resultante da organi- aperfeiçoado de ritmo, fixador do binário em que, pela mesma
zação de unidades menores. O próprio universo é, por excelên- lei de repetição, devem desenvolver-se mais tarde os novos
cia, unitário e orgânico; é de alto a baixo edifício único. Desse acontecimentos históricos. Estes, como sempre, retornarão ao
modo, o fenômeno social não é somente biológico, mas tam- passado, mas a passado que já fixou determinada diferencia-
bém conexo e logicamente entrosado no fenômeno cósmico; ção evolutiva, patrimônio já conquistado e ponto de partida
representa momento da Lei, processo da mecânica universal. para novas diferenciações e conquistas.
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 161
Observemos, pois, as características dos dois períodos do fa e descarrega o dinamismo, o período complementar, presente
ritmo histórico. Trata-se de duas posições inversas e comple- em todas as coisas, espera a vez em silêncio, repousa e recarre-
mentares, rivais e, contudo, irmãs na tarefa de construir. Trata- ga o dinamismo. O leitor olhe em torno, na vida vegetal e ani-
se de caso a que se aplica a lei universal da dualidade, já de- mal, no descanso hibernal e nas florescência primaveris, no
senvolvida em A Grande Síntese (Cap. XXXIX) e que neste li- sossego da morte e nos trabalhos da vida, e veja se o fenômeno
vro desenvolveremos ainda mais. No ritmo histórico, continu- constitui exceção da regra geral.
amente se alternam os períodos clássico e romântico. O pri- No caso humano, os dirigentes – jamais criadores do mo-
meiro, masculino, explosivo, guerreiro, materialmente con- mento histórico, e sim apenas intérpretes; jamais árbitros de-
quistador, destruidor, fecundante e semeador, violento, involu- sordenados, e sim servos obedientes à Lei, sem a qual não há
ído, materialista. O segundo, feminino, tranqüilo, conservador vida – põem em funcionamento esta ou aquela fase, de acordo
e espiritualmente conquistador, construtor, preparador e ama- com os tempos, sucessivamente, uma em consequência da ou-
durecedor, pacífico, evoluído, espiritualista. Na trajetória dos tra; e as massas caminham, dando corpo ao impulso. A alter-
movimentos fenomênicos, o primeiro período representa a fase nância das duas tendências permite que, depois do período de
de queda involutiva, de retorno e de recuo; o segundo, a fase trabalho, ambas as partes descansem. Os componentes do
de ascensão evolutiva, de progresso, de ímpeto. Ambos os pe- imenso indivíduo coletivo são levados assim, alternadamente, a
ríodos, porém, são necessários, porque têm funções diferentes turnos de trabalho e de repouso, exatamente como as equilibra-
e ao mesmo tempo complementares. O progresso caminha am- das leis da vida querem. Enquanto uns repousam, outros, que já
parado nessas duas forças contrárias, impelido pelos seus cho- repousaram, agora trabalham, e assim, embora passando de
ques e contradições. No fundo, os dois períodos criam, porém mão em mão, a função progride sem interrupções. Divisão de
sob forma diferente, emborcando-se um no outro; e, embora trabalho necessária, porque executada por muito diferentes ti-
pareçam inimigos em luta, cooperam, colaboram em lados pos biológicos, de funções especializadas; necessária para evi-
opostos, na mesma construção. Se o primeiro, em plena tem- tar cansaços e esgotamentos étnicos; necessária para corrigir
pestade, não evidenciasse e, no meio da morte, não lançasse qualquer direção individual tendente à hipertrofia unilateral e,
princípios mais elevados de vida e se, em ambiente de destrui- desse modo, compensá-la. Só assim podemos conseguir desen-
ção, não limpasse o terreno, tirando-lhe as velhas construções, volvimento homogêneo e harmônico. Portanto o grande indiví-
o segundo não teria, na paz, novos motivos para desenvolver duo coletivo, como simples homem equilibrado, divide sua ati-
nem novas construções a levantar. Reencontramos aqui o con- vidade entre o trabalho físico e o espiritual.
ceito acima lembrado, segundo o qual, para poder conciliar a Como em todas as formas da vida, os dois sexos se comple-
fluidez necessária ao transformismo evolutivo e a rigidez im- tam. Há povos masculinos, conquistadores e fecundantes, e po-
posta pela necessidade de assumir formas bem definidas, a vi- vos femininos, conquistados e fecundáveis. Ambos têm todas as
da deve renovar-se, alternando continuamente a vida e a morte, características, como acima dissemos, dos dois períodos opos-
a construção e a destruição. Tudo isso exprime, nesse caso, a tos, clássico e romântico. As duas extremidades se atraem, em-
íntima bipolaridade encontrada em toda individuação, repre- parelham e compensam no tempo e no espaço. A unidade com-
sentada nos dois extremos opostos entre os quais, oscilando, pleta resulta da fusão dos dois contrários, e cada qual nada pode
funciona e evolui o fenômeno social, o que corresponde à ca- fazer sozinho. Se a parte masculina não fecundar, a feminina
racterística de harmonia e equilíbrio fundamental da Lei, se- nada gera. O fenômeno da civilização pode parecer processo de
gundo a qual os dois extremos componentes de cada unidade efeminação, porque significa paz, conservação, bem-estar, luxo,
devem ser proporcionados e se contrabalançar. A fenomenolo- refinamento, arte, cultura. Veremos mais tarde como a matura-
gia universal reclama e nos faz encontrar presente em toda par- ção, quando muito impelida nesse rumo, se resolve em podridão,
te o organismo, inseparável de seus princípios. assim como a oposta atividade viril termina em cataclismo, se
Mas o equilíbrio não aparece só na intimidade de cada uni- muito forte. A Lei, nos seus equilíbrios, sabe corrigir os exces-
dade social, no seu desenvolvimento temporal, mas também na sos, intervindo a tempo com movimentos contrários e compen-
sua estrutura espacial. Noutros termos: o fenômeno não é equi- sadores. Existe proporção entre os impulsos de uma fase e os da
librado apenas no futuro histórico, mas também na distribuição sucessiva, como entre ação e reação. Isto nos faz pensar em
das várias unidades sociais pela superfície da Terra. Ou seja, quão grande deverá ser a nova civilização do espírito, se a com-
cada povo vive uma determinada fase, diferente para cada um, pararmos com a atual destruição conseguida pela civilização da
de modo que o dinamismo da humanidade não se concentra to- matéria. Os preparativos são, de fato, gigantescos.
do em uma única direção, mas se realiza levando em conta a Torna-se necessário que, efetivamente, a onda, por sua pró-
compensação tanto no tempo como no espaço. Evitam-se assim pria estrutura, em dados períodos, eleve das raízes da vida a
excessos e lacunas perigosas, atrofias e hipertrofias danosas, e, forma masculina, para salvar a humanidade da civilização acele-
em meio a tanto movimento e tal emaranhado de contrastes, a rada demais, isto é, da efeminação, ou melhor, da maturação le-
harmonia permanece soberana no espaço e no tempo. No espa- vada à putrefação. Então, o homem domina, tudo se viriliza, in-
ço, a civilização ocidental, mecânica e materialista, equilibra a clusive a mulher (como hoje acontece), enquanto no período
civilização oriental, mais madura e espiritualista. No tempo, o oposto, a mulher domina e tudo se efemina, o homem inclusive
fato de estarmos hoje em pleno materialismo significa que se (como aconteceu no século XVIII). Quando chega a hora, ele in-
deve fatalmente esperar a fase de espiritualismo. Não se pode tervém para verificar, à luz da realidade concreta, as supercons-
saber exatamente o ano e o dia, mas diz a lógica das leis da vida truções do período romântico; arrancar o que nele existe de falso
que o atual ciclo histórico deve encerrar-se; as forças que o e supérfluo, quer dizer, de não realmente verdadeiro na vida; re-
movimentam e já atuam há tempo devem esgotar-se e parar, e ativar a circulação; dinamizar com novos impulsos. Nessa rela-
deve começar precisamente o ciclo oposto. Poder-se-á dizer: ção se encontrou a antiga Roma perante a Grécia, bem como a
―não vejo, não creio‖, mas o leitor, se capaz de raciocinar e Revolução Francesa e o império frente ao período monárquico
compreender a mecânica do universo, que estamos procurando imediatamente anterior, e também se encontra a atual fase do
pôr-lhe sob os olhos, em pleno funcionamento, deverá concluir mundo em relação ao século XIX. E tudo isso para depois civili-
que as aparências estão na superfície e enganam; deve nascer- zar-se de novo com os produtos das civilizações vencidas, ela-
lhe no espírito ao menos a suspeita de que debaixo delas, onde borados na luta e introduzidos em novo ciclo. Assim, nada se
tantos vivem, exista outro mundo, imenso e muito mais perfei- perde ou destrói; se o acessório supérfluo desaparece, a substân-
to. Enquanto o ciclo atual percorre a trajetória, completa a tare- cia permanece e revive sem cessar. Melindramo-nos com a des-
162 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
truição feita por essas tempestades, porque só vemos as formas e seguida, levados até mais longe. Terminada a recapitulação, o
vivemos na superfície. Se, ao invés, olhássemos o germe das que no passado foi ponto de chegada será agora ponto de parti-
coisas, veríamos que ele não morre jamais e esse perecimento da. Os mesmos princípios, posto haver continuidade na evolu-
nos perturbaria menos com essa explicação lógica. ção, serão desenvolvidos sob a forma de construções que, antes,
Assim, onde há o perigo de excessiva efeminação, onde a não haviam encontrado meios que lhes tornassem possível a
civilização muito requintada enerva e debilita as raças, aí a vida atuação. Já sob bases orgânicas coletivas, a nova fase poderá ir
coloca reforços para, com injeções de virilidade, dinamizarem a muito além da antecessora de mesmo tipo, depois de ter sido
maturidade por demais cansada. Essa a função dos povos jo- obtida da mistura de povos, raças e civilizações a recíproca ces-
vens, involuídos e primitivos mas também mais próximos das são e aquisição, isto é, a troca em que atua a técnica regenera-
origens da vida, transbordantes de energia, embora pobres de dora da vida ou, noutras palavras, depois de dinamizados os
experiência e sabedoria, possuidores de dinamismo, potencial exaustos e tornados maduros os involuídos. Desta vez, o impul-
que, por enquanto, não transformaram em qualidade, evoluindo. so espiritual encontra preparados meios bem diferentes de ação
Naturalmente oposta é a função dos povos maduros, cujas ri- e, principalmente, esse movimento de massas característico de
quezas espirituais os primeiros avidamente querem possuir, nossos tempos, em que poderá multiplicar-se, enxertando-se ne-
como se fossem alimento de que carecem para, assimilando, le. Os meios de divulgação e de contacto e o mais elevado nível
evoluir. Os primeiros oferecem dinamismo rude e decomposto; médio de cultura permitirão enorme alargamento de bases e de
os segundos, sabedoria, produto de longas experiências. Estabe- comparticipação. Doutro lado, a concepção espiritual da vida
lece-se entre os dois o mesmo equilíbrio existente entre jovens não ressurgirá como tentativa, tendência ou forma, que para
e velhos, uns e outros necessários à vida, embora com funções tantos é apenas crença vã, mas ressurgirá como conhecimento e
opostas. Com isso se obtém, de uma só vez, dois grandes resul- consciência das leis da vida, acessíveis por via racional e expe-
tados: 1) O progresso do involuído por obra e graça do evoluí- rimental, no modo evidente da objetividade cientifica. Desta
do, que assim dá rendimento coletivo à sua posição, vindo esta vez, o homem, servido pela técnica, será dono de muitas forças
a constituir função biológica; 2) O recarregamento dinâmico da natureza, de muitos instrumentos e capacidades novas que
das coletividades civilizadas e cansadas, trabalho do involuído, antes ignorava. Assim, a sua nova espiritualidade não se con-
que preenche, ele também, função biológica. Desse modo, cada cretizará unicamente nos casos de individualismo elevado ou,
qual se compensa, dando o que tem e adquirindo o que não tem; então, como elementar e prévio fermento de massas, mas se de-
todo tipo humano tem função e missão, e os extremos da vida senvolverá na reconstrução orgânica da civilização, impregnan-
se ajudam alternadamente. A técnica regeneradora da vida, des- do-lhe todos os estratos e enquadrando-lhe todos os movimen-
de o caso sexual até ao da mistura das raças, funciona exata- tos. A nova espiritualidade do Terceiro Milênio deverá realizar-
mente de acordo com o sistema das cessões e aquisições recí- se em plano coletivo muito mais amplo, mais profundo e orgâ-
procas, isto é, com as trocas entre elementos contrários. nico do que qualquer dos precedentes.
Se do exame dos princípios passamos ao nosso atual caso A construção é grandiosa, mas nova em grande parte, e o
particular, evidencia-se como se encontra hoje o mundo na fa- novo não está isento de perigos. Vamos assinalar dois. Eis o
se masculina, em que tudo, inclusive a mulher, tende para a vi- primeiro: a formação do organismo coletivo representa moder-
rilização. Explica-se desse modo o assim chamado despertar na conquista que nossa fase apronta para a seguinte. Ora, toda
político-social da mulher, sua participação em atividade para a construção tende à hipertrofia e à caducidade. Logo o princípio
qual, em outros tempos, a consideravam incompetente. Encon- de organicidade social ameaça tornar-se o túmulo do individua-
tramo-nos, evidentemente, em pleno período clássico, oposto lismo. Este, excelente produto da velha civilização, hoje deve
ao romântico, quer dizer, em período de exaltação das qualida- lutar para não se deixar absorver pelas novas afirmações do co-
des do tipo guerreiro, materialmente conquistador, destrutivo, letivismo. Causa dano perturbar os equilíbrios. O processo de
fecundante e semeador, violento, involuído, materialista. Estão unificação social não deve reduzir-se a processo antibiológico,
momentaneamente deprimidas as qualidades do tipo oposto, destruidor de valores adquiridos, que, ao contrário, se devem
cujo dinamismo agora se recarrega em silêncio, à espera da conservar e empregar. Assim, caminhando demais em direção
vez de entrar em ação. Quando isso acontecer, exaltar-se-ão as da vida, arriscamo-nos a seguir caminho diametralmente opos-
qualidades do tipo romântico e serão deprimidas as do tipo to. A unificação orgânica coletiva não deve resolver-se no es-
atual, e assim por diante. As verdades sustentadas pelo ho- magamento e morte do individualismo, que contínua a ser a
mem, muitas vezes, não exprimem senão a tarefa particular a ―via regia‖ da evolução; deve, porém, significar-lhe a coorde-
realizar-se. Assim se explica a alternância da moda, não só nos nação em unidades maiores, em que ele, ao invés de mutilado e
vestidos mas em todas as coisas – forma mental essencialmen- asfixiado, se torne expoente da vida social de relação. Produto
te mutável, que se manifesta em tudo. No novo período não se biológico não se destrói sem dano. O novo trabalho consiste em
dará valor ao que hoje se admira; ao contrário, valorizar-se-á o coordenar os valores resultantes das conquistas realizadas, he-
tipo conservador, espiritualmente conquistador, construtor, rança das fadigas humanas no transcurso dos séculos, e aumen-
preparador e maturador, pacífico, evoluído, espiritualista. A tar-lhe o rendimento na coordenação. A Lei quer o equilíbrio,
Lei nos obriga, instintivamente, a prezar o tipo que, no mo- isto é, não quer Estado onipotente de corpo social, em que o in-
mento, está exercendo função de valor, porquanto corresponde divíduo desapareça, mas a afirmação equilibrada dos dois prin-
a determinado objetivo biológico, e tende a alcançá-lo, apli- cípios: o individual e o coletivo, opostos e complementares, e,
cando como missão suas qualidades particulares. por isso, feitos para se compensarem mutuamente. Opostos,
Chegará, pois, o período de refinamento espiritual. A onto- tendem a se prejudicar um ao outro, todavia são reciprocamente
gênese, diz-se, resume com rapidez a filogênese. Do embrião à indispensáveis. O primeiro vale como material construtivo: sem
juventude, a história da vida se repete no organismo. Assim, to- ele, nenhum sistema é atuante; o segundo, como força discipli-
da civilização, ao surgir, recapitula o seu passado de acordo nadora e coordenadora: sem ela, os valores do individualismo
com seu tipo. A nova fase, porém, como vemos na trajetória se anulam na luta e na destruição. O primeiro se move em dire-
dos movimentos fenomênicos, não se esgota nessa repetição ções e tende a conquistas ambas diferentes das do outro. Um
sumária, mas continua o caminho para subir mais, conquistando caminha para especialização cada vez mais avançada, profunda
novo trecho. Isso representa a conquista evolutiva da fase. Em e perfeita, ou seja, é separatista; o outro, anti-separatista, dirige-
princípio, pois, os motivos espirituais do precedente período do se à unificação mais íntima e completa. Os dois princípios pre-
mesmo tipo serão retomados, rapidamente recapitulados e, em enchem função: o primeiro forma um por um os indivíduos, o
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 163
segundo coordena-os em unidades cada vez mais vastas. Pri- aprenda a resolvê-los por si mesmo. Torna-se necessário que a
meiro o princípio coletivo organiza os indivíduos em organis- evolução, como coletividade, não signifique supressão do es-
mo familiar, depois em classe social, em seguida em Estado e forço, tão de boa-vontade abandonado, para evoluir individu-
Nação, mais adiante em raça, finalmente em humanidade e, almente, porque, nesse caso, a evolução trairia seu objetivo: a
além de nosso ambiente terrestre, em organismos de humanida- ascensão. De fato, entravando o progresso individual, perturba
des. O indivíduo, segundo o grau evolutivo, deve sucessiva- até mesmo o princípio dele resultante.
mente tomar parte nessas unidades múltiplas cada vez mais vas- Eis o segundo perigo, capaz de causar o naufrágio da nova
tas e complexas, sem destruir a organicidade já atingida, mas civilização do espírito, impedindo-lhe atingir as suas metas: o
encaminhando a menor para a maior. bem-estar, a segurança, o refinamento, que, se significam civi-
Um dos erros do princípio coletivo será a redução do ho- lização, constituem o primeiro passo do enfraquecimento e da
mem a máquina e a número, à irresponsabilidade, à servidão, à decadência. Para não apodrecer, a vida deve exercitar-se conti-
situação de indivíduo mantido pelo Estado onipotente, em posi- nuamente na luta, porque é da Lei que a vida não seja fim de si
ção crepuscular de segurança e passividade. Isso é antivital. Os mesma, mas instrumento de conquista. Ai do homem se, atingi-
desníveis de todo gênero, o estímulo do interesse, a liberdade do o bem-estar material, se contenta e pára em plena estrada da
de iniciativa individual, as competições em todos os campos in- conquista, sem avançar mais, em direção ao altiplano do espíri-
citam a atividade necessária para os experimentos de que nasce to. A ascensão material, para não degenerar, deve ser apenas o
a evolução. A propriedade, tão bem conhecida até dos animais, meio para apresentar-se em novos horizontes intelectuais e es-
constitui fenômeno biológico inviolável, porque necessária para pirituais, conseguir realizações mais elevadas, sob novas for-
proteger e conservar a vida. Se o enquadramento chega à absor- mas de luta, a fim de que a evolução continue. Só assim se po-
ção; se paralisa a liberdade de movimento necessária aos obje- derá dar futuro à vida. A história já nos mostra como se mani-
tivos da vida do indivíduo; se a disciplina chega à destruição da festa a decadência tão logo o homem se detém no progresso ob-
fisionomia individual e à sufocação, o princípio coletivo torna- tido, como nas comodidades diminui a intensidade do trabalho
se antivital. Seria antibiológico que a estatolatria atuasse opri- evolutivo, e como a todo período de sofrimento segue período
mindo a célula constitutiva, pois o Estado existe justamente pa- de ascensão. O alto padrão de vida pode adormecer as limitadas
ra desenvolvê-la. Deve existir proporção entre cérebro e mem- potências criadoras do espírito, que deve ser malhado e polido
bros, equilíbrio entre centro e periferia, harmonia em tudo. To- como os metais, para manter-se brilhante. Para os indignos, a
da hipertrofia é monstruosa. O novo corpo social tem necessi- vida pára, e quem pára morre. Não se entenda o novo período
dade de ser plástico, adaptável, multíplice, de partes compensa- como resultado de que se deva tirar gozo, mas como novo tor-
das, de elementos substituíveis, e não deve ser emperrado pela mento de criação. Só se a lei de luta e seleção for levada para
excessiva complexidade da organização, tanto mais vulnerável plano mais alto, a vida não será traída e essa civilização terá
quanto mais complexa, reduzindo-se assim a fator de perigo pa- conseguido seu objetivo. Só assim não será inútil e não tomba-
ra a vida. Não deve resolver-se em centralização absorvente, rá, desperdiçando os frutos de passado tão longo. As civiliza-
mas compensá-la com descentralização adequada. A ameaça do ções deste tipo tendem a desagregar-se na efeminação, no refi-
novo sistema orgânico está na preguiça do indivíduo, que se namento, na inércia, como as do tipo oposto tendem a naufragar
adapta e abastarda, servindo-se dele apenas para deixar-se ar- na violência e na destruição. Tão logo a civilização do espírito
rastar, abdicando à própria autonomia espiritual e ao dever de perde a substância e se torna forma brilhante, sem nenhum con-
evoluir, porque, guiado pelo Estado e pela técnica, acredita po- teúdo mais, desperta ameaçador o fermento viril e masculini-
der, enfim, furtar-se ao trabalho. A ameaça está em que a igual- zante; desperta e sobe dos planos inferiores para jogar fora a es-
dade chegue à podre indolência dos servos e à criação de reba- trutura que se tornou inútil. E isso lhe assinala o fim.
nhos passíveis de serem dominados. Infelizmente, o senso de
responsabilidade tende a decair na razão direta do número. O VI. A LEI DA HONESTIDADE E DO MÉRITO
apoio recíproco encoraja a inconsciência e, por motivo de con-
fiança recíproca, enfraquece o autocontrole; é convite à ação Nos primeiros capítulos deste livro, pela verificação de fa-
cega, que, quando isolada, é mais ponderada. O número, prin- tos, partimos do que o homem é hoje, e isso deixando apenas
cipalmente aos fracos, dá ilusão de poder, de segurança e tam- entrever o que deveria e poderia ser. Começamos agora a per-
bém de impunidade. O número constitui a grande defesa e a correr a longa estrada da ascensão. Levar-nos-á a vertiginosas
única força das nulidades; estas sabem disso e nele se refugiam. alturas. E a grande massa humana, de que, até mesmo no aspec-
O coletivismo pode ser desfrutado por elas e significar-lhes a to coletivo, apreendemos os movimentos, irá diminuindo de
exaltação. Na massa, em que vale a quantidade, e não a quali- tamanho até ficarem somente poucos casos excelsos, florescên-
dade, o inferior se valoriza e o superior se desvaloriza. O núme- cia de excepcional beleza e supremo esforço da raça. O pro-
ro nivela, tira dos melhores e dá aos piores. Como os primeiros blema coletivo só se concebe na base da evolução humana. A
constituem a minoria, todo agrupamento implica em piora mais vida não sabe atingir os pontos culminantes senão sob forma
ou menos pronunciada. Os primeiros descem até aos segundos; individualista. Além disso, as próprias construções sociais não
estes não sobem até aqueles. Assim, toda coletividade vale podem elevar-se sem adequado material humano, cuja forma-
sempre muito menos que a soma dos indivíduos componentes. ção constitui problema individual. Sem novo homem, mais sá-
―Senatores boni viri, senatus autem mala bestia‖38. E isso tam- bio e consciente do que o involuído, hoje em maioria, os siste-
bém porque o apoio recíproco diminui o esforço individual e, mas coletivos que, nos dias de hoje, tentamos tornar atuantes
portanto, o rendimento coletivo. Desse modo, por causa dessa não podem atingir os objetivos que prefixam para si mesmos.
instintiva confiança de ovelha e da cessão de controle, as forças Mesmo para resolver a questão social, torna-se necessário, pois,
individuais de qualquer agrupamento humano se anulam ao in- começar pelo caso individual, visto como os dois fenômenos,
vés de se somarem. Basta isolar o indivíduo para dar-lhe de no- individual e coletivo, se entrosam e amadurecem paralelamente.
vo o senso de responsabilidade. Desfeita a miragem, cai logo O engenheiro poderá fazer projetos maravilhosos, mas, se não
em si. Nesses casos, o homem se revela animal gregário. Mas, dispuser de bom material, os edifícios por ele construídos desa-
se deve ser enquadrado e disciplinado, deve também ser deixa- barão. Tal entrosamento de fatos nos impele do aspecto coleti-
do sozinho e livre diante dos problemas da vida, para que vo ao individualista, da visão de conjunto à de suas particulari-
dades. Se os cimos constituem exceção e não interessam às
38
Os senadores são boas pessoas; o senado, entretanto, é uma besta. massas, os primeiros passos das ascensões humanas são pro-
164 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
blema vital também para elas e outras construções coletivas caótico e destruidor. Seu egoísmo, que acredita ser-lhe necessá-
com elas relacionadas. Para, também sob esse aspecto, construir rio, é o princípio de sua desagregação; seu hábito de impor-se,
o progresso, torna-se necessário começar pela construção do para ele meio de poder, é apenas gerador de reações dolorosas
indivíduo, com o renovamento da forma mental dominante, que da Lei; o imediatismo da vantagem obtida nos resultados pró-
é a do involuído. Sem o estabelecimento dessa premissa, os ximos não passa de imprevisão do dano que, inevitavelmente,
atuais sistemas de enquadramento coletivo ou se reduzem a os resultados longínquos lhe trarão. Observado à luz da mais
mentira ou não passam de utopia. profunda realidade das coisas, o involuído não nos aparece co-
Comecemos, então, a observar o que o homem deve e pode mo apanhador de conquistas e de alegria, mas semeador de er-
ser, precisando cada vez mais o como e o porquê. Comecemos ros e dores, míope enredado nas particularidades das coisas
a demolir racionalmente a psicologia do involuído, para substi- próximas e ignorante das que, embora afastadas, também lhe
tuí-la pela de tipo biológico mais evoluído; a demonstrar co- dizem respeito, louco que, em organismo harmônico, equilibra-
mo, de fato, a vida é bem diferente daquilo que geralmente se do e perfeito, se debate na falta de compreensão, chocando-se
pensa; a destrinçar a meada das falsas aparências, a fim de com forças que, para ele invisíveis, o ferem de morte. O mundo
chegarmos a compreender o engano das ilusões psíquicas que dirigido pela bondade e pelo amor estaria pronto para acolhê-lo
tantas vezes vitimam o homem. Só se a observação incidir- em atmosfera de felicidade, se o involuído soubesse comportar-
lhes, além das aparências dos fenômenos, na íntima estrutura se como Deus quer, em harmonia e cooperação. Pelo contrário,
de organismo de forças em ação, poderemos atingir seriamente não compreende coisa alguma de tamanha bondade e beleza e
e sem desilusão o objetivo instintivo e justo da vida: a felici- agita-se em atmosfera de revolta e destruição, para acabar en-
dade. Como todos os jogos têm regras próprias, cada dinamis- carcerando-se na gaiola de ferro das dolorosas sanções. Então,
mo, suas técnicas e cada fenômeno, suas leis, então, neste caso ainda se debate e debate-se cada vez mais, e os nós vão-se aper-
também, compreende-se a necessidade de disciplina reguladora tando; aí, rebela-se mais ainda, maldiz, vai de vingança em vin-
e diretriz da atividade humana, se quisermos vê-la atingir o fim gança e, assim, agrava sempre mais sua autocondenação.
a que tende. Para que seja possível o melhoramento e a reno- Inútil estar sempre cogitando novos sistemas sociais en-
vação social, todos compreendem que é necessário tornar co- quanto não se puder dispor de outro tipo humano como material
mum o tipo humano excepcional em nossos dias, no qual pre- construtivo. Com esse homem anti-social e caótico não se pode
dominam as características de honestidade. Trata-se de revolu- pretender sólida construção coletiva. Para tanto, esse material
ção biológica, pois significa a substituição do princípio separa- deve ser cimentado pela fé e manter-se no espírito de coopera-
tista do egoísmo agressivo para seleção do mais forte pelo ele- ção, na disciplina material e moral e, acima de tudo, na retidão
vado princípio coordenador e harmônico do enquadramento do interior. Em face desse princípio fundamental de ordem, torna-
indivíduo no funcionamento orgânico da humanidade. O invo- se secundária, quase sem importância, a forma do sistema soci-
luído não sabe decidir-se a essa transformação, que implica o al segundo o qual os homens tanto se separam e tanto se batem.
abandono das armas de ataque e defesa, pois teme ficar desar- Não é a estrutura do sistema o que importa e decide, mas sim
mado, sem proteção, e pensa ele que isso significa seu fim ine- haver entendido a lógica e a vantagem, até mesmo individual,
vitável. Se olharmos bem o íntimo das coisas, veremos não só da honestidade, esse novo e mais orgânico utilitarismo, e ter
que apenas o desconhecedor das leis da vida pode crer nisso compreendido, ao contrário do que (assim dizíamos) possa pa-
mas também que, pelo contrário, quem pratica o evangelho não recer ao involuído, como a retidão é força, ajuda na luta, posi-
é pessoa iludida, enganando-se ao seguir utopias, mas homem ção de superioridade, forma vital de consciência, equilíbrio, sa-
que descobriu outras leis mais profundas, mais sólidas e perfei- úde do espírito. Algum sábio, sem dúvida, já o disse e redisse.
tas, e utiliza na própria defesa princípio protetor completamen- Mas na vida dos povos valem os atos de muitos, e não as pala-
te diverso. Como se vê, o indivíduo, assim, não renuncia ne- vras de poucos. A verdadeira enfermidade do espírito é, pelo
cessariamente às próprias defesas nem se abandona, como po- contrário, a decadência do senso de retidão causada pelo mate-
de parecer, à mercê de todos os assaltos. Ao contrário, obtém rialismo, de que tantos se orgulham, como se tratasse de supe-
outra segurança bem diferente, pois movimenta mecanismo de ração. Significa decadência do senso orgânico da vida, quer di-
forças muito mais perfeito e resistente que a violência ou a as- zer, debilidade biológica, perigo social, perturbação que se paga
túcia do involuído, mecanismo não compreendido por este na caro. E, com efeito, a vida hoje se tornou campo de competi-
ignorância inerente a seu grau. ções tão torturantes e impiedosas, que qualquer alegria se torna
Atualmente, a honestidade é considerada pelo involuído, impossível, desaparecem a fé e a segurança, todas as coisas
muitas vezes, como debilidade, peso moral que embaraça a lu- humanas se envenenam; por todos os atalhos do injusto corre-
ta, posição de inferioridade, forma antivital de inconsciência, mos para o arrivismo, mas fazemo-lo de respiração opressa,
desequilíbrio, moléstia do espírito. Essa a perspectiva das coi- porque esse sistema embaraça e pesa; corremos, supondo-nos
sas, do ponto de vista em que o involuído se coloca. Mas o pon- dinâmicos, mas é dinamismo fictício e traidor, que culmina na
to de vista pode mudar, e obtemos então perspectiva completa- destruição universal. Neste mundo falso, o honesto é conside-
mente diversa. Isso parece impossível até o momento da efetiva rado estúpido e ingênuo. No entanto é o único que, agindo de
mudança do ponto de vista. Mas, quando tal acontece, a pers- acordo com as verdadeiras leis da vida, pára e constrói parapei-
pectiva muda automaticamente. Como a retidão, a inocência e a to protetor à beira do abismo. A honestidade constitui sempre o
obediência à Lei podem constituir instrumento de defesa me- melhor negócio. É questão de compreender. E a desonestidade,
lhor que a força, o egoísmo e a astúcia? Simplesmente absurdo, diga-se o que se disser, é sempre o pior negócio, representa, em
dirá o involuído. Não. É absurdo apenas para quem não possui outras palavras, forma de estupidez.
o sentido orgânico da vida. E esta organicidade da vida é quali- Para solução de todos os problemas, repetiremos sempre,
dade essencial dela, estado universal e acessível a todos em necessitamos de compreender a Lei. Não vivemos no vácuo, em
qualquer tempo e lugar, porque depende da própria maturidade, meio ao nada, no caos; estamos, pelo contrário, mergulhados
e não da compreensão alheia e do grau de organização social. em oceano de forças e, entre elas, somos força também; não
Essa organicidade acha-se pronta a receber no seio todo indiví- podemos isolar-nos, fugir do regime de interdependência que
duo que saiba pensar e agir organicamente, não como arbítrio liga tudo a tudo. Todo fenômeno tem vida e se move segundo
individual, mas como função coordenada no funcionamento trajetória determinada; representa impulso, vontade de existir
universal. O indivíduo, ao contrário, pensa e age desorganiza- em dada forma, de progredir em direção a determinada meta;
damente. Crê ser forte e dominador, no entanto não passa de representa dinamismo inteligente. Forma, vontade ativa e prin-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 165
cípio diretor acham-se presentes em qualquer época e lugar. O siste em acumular obstáculos protetores, mas em não merecer o
conjunto imenso de todas as formas coordena-se em hierarquia; golpe. A luta seletiva, então, é substituída pela consciência da
a rede de todos os impulsos, em sistemas dinâmicos; e o feixe Lei, pelo princípio de ordem e de harmonia, em que não se trata
de todos os princípios, na Lei. Tudo é ligado, sensível, corres- de aprender a defender-se, como fortes, mas a merecer, como
pondente. Não se pode evitar as proporcionadas e precisas rea- justos. O involuído nada sabe disso tudo, não sente esses equi-
ções a todos os movimentos. Tudo ecoa e repercute em cadeias líbrios, não vê esses jogos de forças, é material e materialista,
de ações e reações. Qualquer ato nosso deve avançar fatalmente tem no sangue instintos de revolta e, com esse modo de ser e de
para o binário do determinismo causal e é, assim, guiado auto- sentir, constrói seu próprio mundo inferior. Crê só no corpo e
maticamente em seus deslocamentos e enquadrado por limites e não concebe a vida fora dele, acreditando que, com a morte, tu-
relações. As forças boas ou más por nós movimentadas como do acaba, uma vez que neste estado, sem meios físicos sensó-
causa correrão ao longo dos canais do dinamismo universal e, rios, não é capaz de conservar-se consciente como o evoluído,
depois, hão de voltar para nós sob a forma de efeito. De modo para quem a morte não significa interrupção da vida. Em última
que, pensando com os nossos atos projetar impulso contra os análise, quanta fraqueza na posição assumida pelo homem que
outros, o que fazemos é lançá-lo, bom ou mau, contra nós aplica a lei de seleção do mais forte! Julga-se merecedor da vi-
mesmos. As repercussões são infinitas, e as conseqüências tan- da e não passa de retardatário no caminho da evolução!
to se prolongam, que parecem inexauríveis. O impulso do bem Quando recebe golpes, o involuído, ao invés de absorvê-
se multiplica tanto como o do mal. O violento, que acredita los e diluí-los para eliminar de sua vida essa força, ingenua-
dominar, impondo-se pela força, constrange milhares de pesso- mente devolve-os e, assim, liga-se sempre mais aos impulsos
as a viverem amontoadas para dar-lhe lugar e, assim, ensina- da reação, que, conforme a lei de equilíbrio, o golpearão tanto
lhes a se defenderem, pois lhes impõe substituírem, pelo traba- mais quanto mais energicamente ele houver golpeado. O se-
lho ingente da própria defesa, o trabalho benéfico e profícuo da gredo da defesa hábil está, pelo contrário, na libertação, e só é
produção e conservação dos bens. O dano recai sobre todos, livre quem conseguiu não merecer a reação. A esse ponto
principalmente sobre ele. A psicologia do involuído impôs à chegaremos se não nos revoltarmos, mas conseguirmos assi-
sociedade humana os agrupamentos de classe, obrigando-a milar os impulsos contrários, absorvendo-lhes o valor correti-
muitas vezes, para servir à defesa, a tornar-se instrumento de vo. O involuído, de método desequilibrado, transforma tudo
opressão. Assim nasce a norma jurídica primitiva, a sociedade em coisas prejudiciais para si mesmo. O homem evoluído
torna-se agressiva e o ser inferior acaba por suportar, com dano, converte em vantagem pessoal o próprio mal; sabe que todo
a última das reações em cadeia por ele mesmo postas em jogo. erro deve ser pago e, por isso, aceita a reação como meio de
Toda forma de vida implica em outra; educa e é educada. Só a reconquista do equilíbrio, não se revoltando para não aumen-
ignorância do involuído pode acreditar na utilidade do egoísmo. tar sua dívida. A diferença consiste em ver as causas remotas,
O que o ilude é o imediatismo das vantagens obtidas. Não e não apenas as imediatas, do golpe que nos atinge. Assim,
compreende, porém, que são momentâneas, reduzindo-se a adi- para o evoluído, toda adversidade se converte em campo de
antamento a ser compensado depois, a débito a ser pago; não treino, em escola de progresso ascensional. O sistema de re-
compreende que são obtidas como imposição aos equilíbrios a volta do involuído, que pretende sobrepor-se à Lei, violentan-
que sempre voltamos e a que nenhuma força ou astúcia humana do-lhe os equilíbrios, aumenta a sua dívida em vez de solvê-
pode com o tempo impedir que devamos voltar. Por essas ra- la, aumentando o desequilíbrio e a desordem, ou seja, a dor.
zões, o evoluído, sabedor de como a vida funciona, prefere se- Ao contrário, o evoluído paga, liquida o débito, melhora de si-
guir caminho mais estável e seguro, substituindo o princípio da tuação, readquire o equilíbrio e se harmoniza, alivia e elimina
força pelo do merecimento. Não apelamos aqui para a bondade a dor. O erro consiste no modo de equacionar o problema. O
e para idealismos superiores. Seria pedir muito. Trata-se apenas evoluído compreendeu a lógica da vida e o significado dos
de sermos raciocinadores inteligentes, para compreender o que acontecimentos, percebe a justiça existente na vontade que a
é verdadeiramente útil. Um pouco de inteligência e reflexão dirige e, por isso, a conveniência de segui-la, ao invés de so-
bastariam para mudar não só os fundamentos da vida individual brepor-se a ela; de fato, a paciência esclarecida pode criar
e social, mas também tanta dor em bem-estar. mais do que a cega violência. Compreender a Lei e seguir a
Como funciona, pois, essa lei do merecimento? Como po- vontade de Deus constituem o caminho mais acertado.
demos ter-lhe tão profunda fé, a ponto de, até mesmo na defesa O homem é livre, mas a Lei é inalterável. É livre para atrair
e na luta pela vida, fazê-la substituir a lei da força? Se tudo isso sobre si todas as dores que quiser, não pode, porém, impedir o
é incrível para o involuído, torna-se verdade e real tão logo es- funcionamento da Lei. Livre para confundir liberdade e arbí-
cape à rede de reações que ele pôs em jogo e agora o envolve. trio, nele acreditar e julgar-se senhor absoluto, mas nem por is-
O involuído julga absurdo e inoperante tudo quanto simples- so capaz de impedir que liberdade, nesse regime de ordem, im-
mente está fora de seu campo de compreensão e de atividade. plique responsabilidade, quer dizer, sanção punitiva do erro. O
Basta mudar-lhe a posição evolutiva para que também se lhe involuído, assim como luta contra todas as pessoas e coisas,
mude a técnica da vida. Quando, por evolução, se passa do pla- também luta contra a Lei, quase considerando-a obstáculo à
no da força, lei do involuído, ao da justiça, lei do evoluído, o própria expansão. Nela, ao invés, o evoluído, coordenado, não
sistema do merecimento substitui automaticamente o da violên- encontra inimigo, mas amigo, auxiliar, protetor. Sua força não
cia e astúcia. Já agora não precisamos mais de armas, mas de reside em seu egoísmo, mas em Deus. Tudo depende da posi-
qualidade; não encontramos mais extorsões e constrangimentos, ção em que o homem prefere colocar-se. Chegamos assim a es-
mas equilíbrios. Então, a melhor defesa consiste na consciência te ponto: o inerme que segue o evangelho e perdoa pode ven-
tranqüila. Isso é lógico no regime harmônico da Lei, feita de cer, materialmente desarmado, em melhores condições que o
ordem. O problema todo se resume em sermos adiantados o su- involuído, forte e armado até os dentes. Parece utopia, subver-
ficiente para ver e compreender, em possuirmos a inteligência e são, milagre o que não passa de lógica entranhada no desenvol-
a sensibilidade necessárias para manipular forças tão sutis. Eis vimento das forças da Lei, imponderáveis e, no entanto, mais
porque fogem à psique grosseira do involuído. Trata-se de prin- potentes do que o pesado armamento das defesas humanas. Tu-
cípio protetor de qualidade, grau e potência diferentes do nor- do isso confere outro valor e significado à conhecida lei bioló-
mal e cujo funcionamento não se pode verificar senão como gica da luta para seleção do mais forte, reduzindo sua impor-
forma de vida própria de plano biológico mais elevado. Para o tância a limites bem estreitos. Outra lei se lhe contrapõe e anu-
evoluído, que aí vive, o verdadeiro sistema defensivo não con- la. Ei-la: ―Quem com ferro fere com ferro será ferido‖.
166 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
Quando se compreende o universo como construção orgâni- propagar-se na personalidade a repercussão do golpe, proporci-
ca, compreende-se também ser mais lógico o equilíbrio do justo onalmente às diversas qualidades individuais. Eis realizada a lei
manter-se nele mais estavelmente que o esforço do rebelde. do merecimento. O estado moral interior não pode modificar o
Tratando-se de organismo, aí prevalece logicamente a posição exterior determinismo da matéria. Essa verificação engana o
espontânea e harmônica, em detrimento da irregular e contrafei- involuído. O plano físico subordina-se a diferente espécie de
ta. No conjunto, o universo apresenta-se como perfeito e com- leis, e os fenômenos da matéria seguem caminhos diferentes
pleto mecanismo, ordenado e harmônico. As perturbações resi- daqueles do mundo moral. Observa-se que o merecimento não
dem nas exceções e casos particulares, porém são previstas, nos distingue na fuga ao perigo. Justos e malvados, os justos às
compensadas e enquadradas na ordem. Para homens inconsci- vezes muito mais, todos sem exceção recebem golpes. Isso
entes e, todavia, livres, o ambiente humano representa um des- mesmo. Não deixa, todavia, de também ser verdade que a posi-
ses campos de desordem a título experimental. A Terra consti- ção moral muda o estado espiritual e as condições de nosso eu
tui, por isso, o inferno para os evoluídos e, talvez, o paraíso dos e, por isso, as repercussões, a receptividade e, enfim, a sensação
involuídos, adequados a esse ambiente. A opinião emitida a dolorosa. Assim, se o fato exterior não varia, mudam as posi-
respeito deste mundo nos revela o tipo biológico a que pertence ções internas de defesa, as qualidades de resistência, o estado
o opinante. Só a raça vale e justifica distinções. O homem, de equilíbrio, de juízo, de orientação, de continuidade. Se o
quando quer alcançar determinado objetivo, compreende a ne- mundo exterior, o único que o involuído vê, não se altera, o
cessidade de coordenar as fases da ação necessária e, assim, re- mundo interior – a outra metade do fenômeno – mostra-se
conhece a ordem presente em todas as coisas; percebe, até igualmente poderoso e, ainda que nada possa deslocar ao inici-
mesmo no furto, no delito e na guerra, o rendimento utilitário ar-se, tudo pode fazer ao concluir-se. O involuído não compre-
da disciplina, do método e da estratégia, pois tudo isso pertence ende como o estado moral, invisível para ele, possa mudar as
a seu plano. O que dissemos nos parágrafos imediatamente an- condições do fenômeno na segunda fase conclusiva, interior.
teriores explica por que o homem, por imaturidade, não chega Desse modo, divergem muitíssimo as íntimas realidades pesso-
jamais, também no campo moral e nas diretrizes da própria vi- ais, os campos das sensações finais. A dor é estado interior so-
da, a sentir a falta e a utilidade dessa ordem. A ignorância e a bre o qual muitos elementos influem; entre eles, porém, não
inconsciência de plano mais alto explica sua ação desordenada, ocupa o primeiro lugar o choque proveniente do mundo físico,
baseada em violações e, por isso, em reações contínuas; mostra dado pelo determinismo físico. Tudo seria tão diferente se vís-
como o involuído pode crer na obtenção de resultado no campo semos as coisas por dentro, ao invés de vê-las por fora! Ver-se-
do imponderável, sem coordenação de ações, sem subordinação ia a possibilidade de gozarmos em plena miséria e sofrermos no
funcional, sem necessidade de seguir a Lei, sem harmonizar-se fastígio da riqueza. O mártir na cruz pode sentir-se mais feliz
na organicidade universal. Exatamente a natureza de involuído do que o rei no trono! Tamanho poder tem esse mundo interior,
é que estabelece o funcionamento de lei de força em lugar de lei na dependência tão-somente do merecimento. O estado de pra-
de justiça. A baixeza do ambiente terrestre resulta precisamente zer ou dor não se mostra como fato objetivo igual para todos,
das qualidades do tipo biológico que o habita, que, cada vez mas relativo e dependente das condições interiores individuais.
mais satisfeito consigo mesmo, se julga ente superior e, até Prazer e dor, imponderável resultante do embate de forças, e
mesmo, culto e erudito, mas o entendimento não depende de es- não do determinismo do mundo físico, fundem-se na intimidade
tudo e erudição. Trata-se de maturação biológica natural e ina- do eu. O invisível escapa às vistas do involuído, pois ele acredi-
plicável ao exterior, como acontece com tantos produtos de ta que tudo se desenvolva no plano concreto em que vive e na-
nossa civilização. O que induz o homem de hoje a engano é a da mais possa existir além deste. O evoluído, que em parte su-
miopia psíquica, o imediatismo do resultado, a psicologia do perou o mundo material, também em parte lhe superou o de-
jogo amarrado, a ignorância dos fenômenos de longa duração, a terminismo (cf. A Grande Síntese – Cap. LXVI) e recebe muito
suposição de que nada se pode obter com segurança de tudo do próprio mundo interior, independente desse determinismo.
quanto fica distante, a própria mentalidade caótica, que apenas Por isso sua vida não fica tão sujeita às sanções das leis do pla-
desorienta e desarticula a fé por nós depositada no que já nos no físico como às sanções das leis do plano espiritual e moral,
caiu sob as mãos. Sobra-lhe apenas uma vida defeituosa e trun- bem diversas. Eis como este principio mais elevado, de mere-
cada, resumida ao dia de hoje e indiferente ao longínquo ama- cimento, pode entrar em atividade e tornar-se distribuidor e re-
nhã. Contudo não sabe que a justiça de Deus, ainda que às ve- gulador. Valorações e juízos dependem das diversas perspecti-
zes tarde, não falha, pois Ele, para julgar, não dispõe apenas vas, mutáveis com as diversas posições. Daí nascem os desa-
dos poucos elementos de uma só vida, mas também daqueles cordos, as valorações opostas. O mesmo fato pode assumir sig-
fornecidos por vida muito mais extensa, que, através de longa nificado e valor oposto, ser compreendido como dano ou van-
estrada de vidas e de mortes, se estende pela eternidade afora. tagem. A posição do materialista ou do espiritualista pode sub-
Outro fato capaz de induzi-lo a engano é a valoração, ape- verter o senso das coisas. Para o primeiro, a morte significa o
nas sob o aspecto formal, do prazer e da dor, estados relativos e fim – para o segundo, o princípio de outra vida; para um, a vida
interiores. Sua posição sujeita-o naturalmente a muitas ilusões terrena é tudo: a meta que deve conter todas as alegrias e reali-
psíquicas, que ele toma por verdade. Supondo-os, erradamente, zações – para outro, mero episódio: meio de expiação, exílio,
iguais a si próprio, para avaliar os outros aplica-lhes as mesmas missão. Uns ganham com a dor, outros perdem; estes morrem
medidas com que mede a si mesmo. Ao contrário, as reações na morte, aqueles na morte ressuscitam.
dolorosas impostas pela Lei variam justamente conforme a di- Os dois estados, de prazer e dor, não dependem apenas das
ferente posição moral de cada indivíduo face aos equilíbrios da leis do ambiente físico, mas também de leis próprias, que se
justiça, quer dizer, segundo o mérito ou demérito. As próprias deixam influir muito pouco pelas primeiras. Se o fenômeno
dores podem, de acordo com a natureza dos ânimos, impressio- nasce no mundo externo, continua e conclui no mundo interi-
ná-los deste ou daquele modo e causar-lhes as sensações mais or. O tangível estado de fato exterior não tem tanta importân-
diferentes. O evoluído, em grande parte liberto, já não possuí cia quanto a sensação que consegue produzir. Vejamos, então,
tesouros no mundo e torna-se intimamente muito menos vulne- de que realmente depende essa sensação. Prazer e dor consti-
rável que o involuído que se atreve a julgá-lo. O justo sempre tuem ritmo que lhes regula o aparecimento alternado, a forma
se sente mais tranqüilo do que o culpado. A realidade não cons- de relação, a intensidade relativa. Os dois extremos são inver-
titui o golpe em si mesmo, como vemos por fora, mas reside na sos e complementares, ligados por lei de compensação e equi-
sensação interior com que o recebemos, no modo diverso de líbrio; para verificar-se cada um dos dois estados não basta o
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 167
choque exterior, mas torna-se necessário que a lei interior do liberdade de ordenar o campo de forças do próprio destino e, na
fenômeno – a lei do merecimento – de acordo com a justiça, própria vida, obedecer à justiça, embora em meio à injustiça do
permita ao choque produzir efeito e transformar-se na devida mundo; tem a liberdade, enfim, de, em pleno inferno, construir
sensação de prazer ou dor. Caso contrário, esse choque, seja dentro de si mesmo o paraíso. Ainda neste caso, a lei do mere-
qual for sua natureza, amortece à entrada da alma e não pene- cimento muda o conceito da vida. As causas encontram-se den-
tra. O fenômeno, olhado em profundidade e entendido como tro de nós mesmos, e não fora. Quando chegamos a compreen-
desenvolvimento de forças, liga-se assim à ordem universal, dê-lo, aí nos tornamos livres. Enquanto aceitamos as coisas
que não se pode romper, e deve equilibrar-se na justiça regu- como provenientes de fora, seremos seus escravos e tremere-
ladora de todas as coisas. O aparecimento ou o desapareci- mos diante da vontade alheia ao invés de tremermos perante
mento dos referidos estados de prazer e de dor é determinado nossa própria consciência. Para quem compreendeu, os valores
principalmente por essa lei, e não pelo arbítrio humano ou cir- normais se subvertem. O que nos golpeia não provém do arbí-
cunstâncias exteriores. O arbítrio e as circunstâncias podem trio alheio, mas do que somos, fazemos ou merecemos. No sis-
ser injustos, mas a Lei é justa, boa, protetora. tema orgânico do universo, é absurdo e impossível que o de-
Assim, o fenômeno se torna rítmico, equilibrado, compen- senvolvimento de forças nos destinos, os momentos decisivos,
sado. Os dois estados se condicionam e compensam, não po- as provas importantes, o prazer e a dor, a vida e a morte fiquem
dem existir senão um em função do outro, o prazer em relação à mercê do acaso ou da vontade de outro homem completamen-
à dor e a dor em relação ao prazer. Desse modo se influenciam, te ignaro. A lógica e a justiça impõe que tudo quanto nos diga
se entrosam, se dosam reciprocamente. Segue-se daí que, respeito dependa somente de nossa vontade e seja decidido por
quanto mais sofremos, mais somos capazes de gozar, porquan- nós apenas. Doutro modo, não poderia haver responsabilidade e
to a privação nos permite saborear a menor alegria, que assim a reação da Lei golpearia inocentes. É absurdo que o arbítrio
se torna imensa; e, quanto mais gozarmos, tanto mais seremos alheio possa exercer tanto poder sobre nós, que a liberdade hu-
vulneráveis à dor, porque, tendo perdido o contato com ela e a mana possa impor injustiças à Lei e implantar a desordem no
capacidade de suportá-la, impressionamo-nos demais e, por is- universo. Então, o patrão não seria Deus, mas o homem. Não!
so, o menor golpe se torna gigantesco. Quanto mais sofremos, Tudo não passa de instrumento, o mal é contido e guiado, tor-
menos o hábito nos faz sentir a dor e mais nos encouraça para na-se meio de atingir as finalidades do bem. Tão grave como
suportá-la, nos conferindo certa imunidade; quanto mais go- pesos de chumbo, tão importante como experimentação instru-
zamos, menos o hábito nos deixa saborear o gozo, que se dilui tiva e prova redentora, a dor não é coisa livre para aplicar-se ao
na repetição e se esfuma no fastio. Nem a nossa, nem a vonta- acaso, mas força enquadrada no organismo universal. Essa dor
de alheia, nem as condições do ambiente podem mudar esses só nos pode atingir se a merecemos. Poderá produzir-se desor-
íntimos equilíbrios do fenômeno, sempre reconduzido em cada dem particular e momentânea, mas em linhas gerais reina a lei
caso à posição de justiça. Em resumo: a continuação do sofri- de justiça. Diz o provérbio: ―Quem não deve não teme‖. Mere-
mento, automaticamente, diminui a reação dolorosa e aumenta cemos tudo quanto nos acontece por ―acaso‖.
a capacidade de reagir em sentido oposto; a continuação do Ao invés, o involuído acredita na lei do mais forte e na sele-
prazer, automaticamente, diminui a reação de prazer e aumenta ção à base de força. O evoluído, por sua parte, ouve a justa lei
a sensibilidade e, portanto, a vulnerabilidade em direção con- da honestidade e do merecimento. O sistema do primeiro, de
trária. Assim, não há natural correspondência entre a soma de conquista através de imposição, reduz-se ao contraímento de
bens acumulados e a quantidade de prazer obtida. As duas dividas e à miséria. Face aos equilíbrios da Lei, isso constitui
progressões não caminham paralelamente; a primeira é geomé- erro que se deve pagar e, se domina o mundo, o transforma em
trica; a segunda, aritmética. Para os pobres e deserdados, há lugar de sofrimento. Aqui em baixo, todos procuram fora as
justiça maior do que essa? A satisfação diminui na razão direta causas que residem em si mesmos e lhes pertencem. O proble-
do aumento dos bens; desse modo, a própria unidade de medi- ma consiste em saber fazê-las funcionar, e não em saber evitar-
da frutifica cada vez menos. O homem pode dirigir o fato exte- lhes os efeitos. A causa é livre; o efeito, fatal. Posta em movi-
rior da acumulação de bens, mas não pode comandar o fato in- mento a causa, a Lei se apodera dela, o impulso deixa de ser li-
terior do rendimento. O homem egoísta gostaria de desequilí- vre e não nos pertence mais. Nem força nem astúcia podem li-
brio, eis, porém, a Lei, reconduzindo-o ao equilíbrio e impon- vrar-nos da obrigação de suportar os efeitos. Se semeamos o
do-lhe limitação, além da qual torna-se inútil acumular, porque mal, colhemos o mal; se semeamos o bem, colhemos o bem.
a unidade de medida terá exaurido todo o potencial e não po- Mais adiante, desenvolveremos esses conceitos (Cap. XXIV e
derá mais proporcionar prazer algum. O homem egoísta dese- XXV). É justo que, em última análise, apenas a nós mesmos
jaria satisfação ilimitada, mas a Lei o reconduz ao equilíbrio e, possamos fazer bem ou mal. Terminado, nosso ato torna-se
agindo com critério diferente, impõe determinada medida de inexorável desenvolvimento de forças. O destino é livre na fase
justiça, permitindo apenas o prazer e a dor necessários e úteis inicial da formação, da determinação das correntes e do início
aos fins da vida. Assim, observamos agora como a Lei inter- da trajetória; fatal, porém, na fase de desenvolvimento das cor-
vém para correção do abuso no sentido da qualidade da per- rentes e, especialmente, na fase final de efeito e conclusão da
cepção. No fim do Cap. II e no princípio do Cap. III deste li- trajetória. Eis a justiça histórica. Geralmente, consideramos o
vro, vimos como a Lei, por outro lado, influi para corrigir o destino apenas nesse segundo aspecto, determinista, ignorando
abuso no sentido da qualidade dos bens, isto é, como permite o seu momento mais importante, de formação.
que apenas a propriedade justa se mantenha. O primeiro e o O conceito comum da vida desloca-se ainda. Não devemos
segundo casos constituem aplicação da lei do merecimento. temer se somos desprovidos de força, mas sim se estamos con-
Vimos, pois, como a Lei tende ao triunfo dos valores reais e tra a justiça. Devemos entender que, no fim, a justiça vence a
à derrota dos valores fictícios que o homem desejaria impor. O força. Às vezes demora, pois encontra muitas resistências no
involuído, por ignorância, prefere pôr-se em luta contra a Lei; o ambiente terrestre. Essas resistências conseguem embaraçar e
evoluído, porque possui conhecimento, prefere pôr-se em har- retardar a Lei, porém jamais chegam a fazê-la parar. Pode o
monia com ela. Vimos como, não obstante a resistência do pri- involuído iludir-se, acreditando no contrário, mas o evoluído
meiro, em última análise, impera a lei do merecimento, embora sabe que a Lei acaba dominando. Se dominasse o acaso, o ar-
não a compreendam e não a sigam. O involuído, rebelando-se, bítrio, o abuso, a desordem, a vida se reduziria a cacos. Quem
não torce a Lei, mas inflige dano a si mesmo. Aprenderá à custa vai salvá-la? Quem vai garanti-la? Não poderemos, certamen-
do sofrimento. Não há outro caminho. Cada qual, porém, tem a te, crer na suficiência dos pobres expedientes humanos! A vida
168 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
deve ser protegida de modo absoluto, e o homem não possui fra em enganar e dominar, mas em civilizar-se. Isso tudo pode
nenhum meio seguro de proteção. A incerteza reina na Terra. parecer utopia, mas, guardando a devida proporção, a evolução
Torna-se necessária uma segurança não possuída pelo homem, soube, no passado, transformar em realidade utopias maiores,
defesa superior às ilusórias defesas humanas. A segurança nos por isso essa utopia nos fascina e atrai. De tudo isso, que tem
é dada pelo império da Lei, pela onipresença de Deus. Não nos significado vital, possibilidade de realização e representa im-
protege a força, mas a inocência; a única posição de segurança pulso biológico, emana radiação mágica, que nos prende com
consiste em não merecer o golpe. Assim, nossas armas se des- exato senso de vibração reverencial. O instinto da vida se mani-
materializam no imponderável. Mas, se o inocente é protegido, festa em nós antes da razão calculista.
a Lei exige a responsabilização dos culpados. Os meios huma- A luta moderna se trava entre o tipo biológico hoje em mai-
nos poderão protelar, mas jamais conseguirão eliminar a ne- oria e a lei de evolução. O primeiro parece que pretende fazer
cessidade de pagamento. Todavia, se a Lei é justa, ferreamente tudo quanto possa para impedir a realização desse novo mundo;
justa, exige a responsabilização, mas respeita a vida, protegida a segunda tudo põe em condições de torná-lo realidade. Trata-
porque necessária ao aperfeiçoamento. Eis que a Lei corrige o se de dois sistemas opostos; um, ilusório e falaz; o outro, lógico
impulso instantâneo e brutal de suas forças, para que não ter- e seguro. Com o método atualmente em voga, somos obrigados
mine em catástrofe; modera-o e amacia com novo impulso: a a reconhecer que o homem, apesar das conquistas e vitórias,
misericórdia divina. Podemos defini-la como ―a elasticidade da não alcançou a felicidade e se agita como presa de insatisfação
justiça divina‖. Neste caso, elasticidade significa esperar, do- contínua. E, tal como acima dissemos em relação ao indivíduo,
sar, proporcionar a reação de modo a que eduque, e não des- também a coletividade não procura dentro de si mesma, mas fo-
trua. Assim, a férrea lei do equilíbrio age com muito tato, ra, as causas de seus males. Elas, porém, residem no método. É
adaptando-se às circunstâncias do caso. No maravilhoso orga- fácil entrar no mundo novo; as portas acham-se abertas de par
nismo universal dirigido pela Lei, tudo é elástico, provido de em par. Mas o homem não quer entrar. A posição em que se
válvulas de segurança e meios de proteção. Conciliam-se desse encontra o impede. A Lei, sábia e boa, desejaria exatamente o
modo, até se coordenarem em um só impulso de sabedoria, os contrário, quer dizer, o bem; mas a Lei tem de respeitar a von-
dois opostos: misericórdia e justiça. No principio absoluto de tade humana. O homem prefere viver em estado de tensão, de
equilíbrio se incorpora o princípio da bondade, ambos necessá- recíproca desconfiança e, por isso, de contração, a viver em es-
rios. Parecem contraditórios, no entanto não passam das duas tado de calma, de confiança e, portanto, de expansão. Os bens
metades inversas e complementares do mesmo princípio. A da Terra bastam demais para todos. A psicologia da insaciabili-
unidade é sempre par. Tal como feminino e masculino, assim dade, generalizando-se, nos torna miseráveis em plena abun-
se coordenam o amor e a força, o primeiro para gerar e conser- dância. A avidez de lucro subtrai dos bens a função de instru-
var, o segundo para vencer e construir. Dessa maneira se com- mento útil à vida, transformando-os em instrumento de especu-
pensam as duas extremidades, postas por nós face a face: cole- lação, acumulando-os apenas para que apodreçam, sacrificando
tivismo e individualismo; o primeiro oferece o desenvolvimen- a vida à potência econômica. Assim se determinam as despro-
to em largura, a formação da massa numérica, a quantidade; o porções que justificam a revolta das classes pobres contra as
segundo, o desenvolvimento em altura, a formação do indiví- dos capitalistas, impedindo-as de gozar dos bens acumulados.
duo, a qualidade. Mesmo essas duas extremidades tendem a O efeito atinge de novo a causa; não podemos gozar o que não
equilibrar-se através de qualidades e funções opostas. Esse é fruto da justiça, mas do abuso; toda posição de desequilíbrio
contraste não se chama cisão, mas harmonia. se destina à queda. Para que serve empregar meios ilícitos e
usurpar, se mais tarde a Lei nos constrange ao pagamento? E,
VII. RUMO A NOVO MUNDO de fato, não faz o homem outra coisa senão pagar. O método
atual de busca da felicidade representa verdadeira falência. Não
Tudo quanto foi exposto pode ser incrível, no entanto é na- se deve culpar a Lei, mas o sistema escolhido pelo homem. A
tural, lógico e simples. Logo depois de curta reflexão desapai- Lei paga na mesma moeda, devolve-nos o que lhe oferecemos.
xonada, surge novo mundo, até ali aparentemente impossível, A causa de nossas misérias reside em nós mesmos. O egoísmo
mas que é apenas fora do comum, afastado dos caminhos habi- conduz a dispersões imensas, como, aliás, todo separatismo.
tuais, para lá da fase atual de evolução humana. Quando o atin- Não considerar o próximo como irmão, mas rival, e não ter-lhe
gimos, o mundo atual nos fica parecendo tão espantosamente os bens na conta de capital comum a conservar-se, e sim na de
cretino que não sabemos se rimos ou se choramos; neste mundo objeto de conquista, leva à destruição, nociva a todos. O ho-
cremos poder eliminar o inimigo, matando-o; criar, com propa- mem, empregando-a mal, reduz a riqueza, em principio benéfi-
ganda, correntes de pensamento ou eliminá-las, sufocando-as ca para a vida e tão útil ao progresso, a instrumento criminoso e
no silêncio; não pagar o mal que fazemos. Mas o inimigo cons- manchado, em que o evoluído, com desprezo, se recusa a tocar.
titui vida indestrutível, pois os mortos continuam vivos, ressur- Que sensação de bem-estar compensaria a fadiga até mesmo da
gem e podem tornar-se instrumento de justiça contra o assassi- primeira aproximação evangélica!
no; as correntes de pensamento são livres, a opressão as refor- Não. O homem não compreendeu. Na lógica dos equilíbrios
ça, e o engano ensina-lhes novas astúcias; podemos praticar o da Lei, o método do exclusivismo não passa de método de em-
mal, porém somos depois obrigados a repará-lo pessoalmente. pobrecimento. Esses equilíbrios implicam a formação de cor-
Este livro é o roteiro desse novo mundo, o hino dedicado ao respondente atrofia ao lado de cada hipertrofia, vácuo econômi-
novo tipo biológico nele reinante, e inicia o culto de novo ideal co a interessar não só o vizinho, cuja miséria talvez não nos
de vida. Esse tipo pode ao mundo de hoje parecer super-homem impressione, mas a nós mesmos, quando chegar nossa vez na
e até mesmo poderíamos assim chamá-lo, mas super-homem corrente dos efeitos. A vida é de natureza colaboradora, forma-
bem diferente do de Nietzsche, cuja concepção materialista, que se de forças cíclicas, comuns e comunicantes. Os equilíbrios da
lhe serviu de ponto de partida, apenas poderia dar-nos a exalta- Lei nos dizem: tudo quanto se rouba se perde e tudo quanto se
ção do primitivo, a glorificação da violência, ou seja, da igno- dá se ganha; a riqueza proveniente do furto constitui débito a
rância, pois quem só acredita na força demonstra nada haver ser pago; o ato de dar pode enriquecer-nos mais do que o ato de
entendido do funcionamento universal. Super-homem desse ti- tomar. No mundo novo, o problema econômico se transfere in-
po não passa de involuído posto no vértice de hierarquia de in- teiramente para outro plano. Perdeu a razão de ser e está supe-
voluídos, rei selvagem de mundo selvagem, prepotente em rada a moderna luta entre o capital e o trabalho, representativa
meio a outros tantos prepotentes. O novo imperativo não se ci- de nossa atual fase econômica. No mundo novo, o evoluído
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 169
possui dentro de si mesmo, espontaneamente, a medida da pos- mente o modo mais adequado para despertar a consciência dos
se das coisas, fornecida pelas próprias necessidades, capacida- inconscientes e impor aos preguiçosos o esforço necessário à
des individuais e funções sociais, e não, como acontece agora, aquisição da própria felicidade. Por isso esse esforço não apare-
pelo próprio poder de conquista com emprego de força ou de ce, em primeiro momento, na forma positiva de conquista de ale-
astúcia. O evoluído pede à vida apenas os bens necessários à gria, e sim na forma negativa de libertação da dor. O segundo
consecução das finalidades dela mesma, individuais ou coleti- momento revela-se cada vez mais evidente à medida que subi-
vas, e abandona aos outros o resto. O problema do mundo não mos, e o evoluído trabalha, em sentido positivo, para conquistar o
passa verdadeiramente de problema de caridade cristã. Bastaria bem que já conhece; no caso comum, porém, o involuído traba-
compreender e aplicar o evangelho para conseguir a igualdade lha em sentido negativo, de revolta e fuga em presença da dor, de
social e garantir a todos o pão de cada dia. No fundo, os nume- luta para fugir-lhe. Normalmente, a evolução assume, pois, o as-
rosos problemas que nos afligem, econômico, político, religio- pecto de esforço para superar a dor. Através desse esforço, a Lei
so, social, reduzem-se a um só: o problema da educação moral. obriga o homem a entrar no seu novo reino.
Desse modo, o Sermão da Montanha e a pobreza franciscana A concepção humana da dor resulta naturalmente de uma
(cujo escopo é, através da esmola, substituir no pobre a violên- das muitas ilusões psíquicas próprias da fase biológica do invo-
cia pela humildade e, no rico, trocar pelo amor o egoísmo des- luído. Concebe-a ele como resultante da falta de força para
prezível) assumem significado biológico na lei de evolução. Em vencer ou de astúcia para fraudar, como fracasso dos fracos de
verdade, para possuir a própria vida, necessário se torna perdê- corpo ou de mentalidade, como herança natural dos que não sa-
la. Apenas quando nos anulamos e não possuímos mais nada, bem revoltar-se nem impor-se. Concebe a dor como inimigo a
nos tornamos senhores das maiores forças da vida, porque de ser vencido e, por isso, acredita que tudo se resume em sermos
isolacionistas nos transformamos em colaboradores do grande bastante fortes e hábeis para vencê-la. Concepção derivada do
organismo universal, entramos no mundo novo em que a Lei fato de o involuído julgar-se colocado no caos, como centro de
triunfa; passando a ser operários do Senhor, a Lei deve cuidar todas as coisas e árbitro da Lei. Se essa é sua perspectiva psico-
de nos defender e garantir-nos a vida. Se, nas mãos de Deus, lógica, própria da sua fase evolutiva, temos visto quanto ela se
nos reduzimos a nada, parece que, com isso, perdemos nosso afasta da realidade. A dor não é inimiga; não devemos, pois,
pequenino eu e, no entanto, em Deus nos tornamos tudo, pois, olhá-la com hostilidade. Quanto mais a odiarmos mais nos afli-
entrosando-nos no funcionamento geral, nos tornamos indestru- girá; se a quisermos bem, tornar-se-á mais suave. A dor consti-
tível parte orgânica dele, com direito ao necessário na Terra e à tui sistema reativo-educativo de forças cujo objetivo se resume
futura felicidade no céu. Que vale e de que é capaz, em face em guiar-nos para a felicidade. Tende, como reação, a recons-
dessa dilatação de personalidade e aumento extraordinário de truir o perturbado equilíbrio do homem, isto é, a harmonia, base
meios, o involuído rei da força, prepotente e rebelde, escravo da de toda alegria verdadeira, e, como educação, a eliminar a repe-
ilusão e da matéria, jamais satisfeito, sempre inseguro, sempre tição do erro, causa da dor. Por dois caminhos diferentes, é
abandonado às incertezas de suas pobres forças? No entanto es- sempre disciplina e correção que, através das experiências da
se tipo biológico foi proclamado animal-modelo, posto pela ci- vida, impele o homem a rearticular-se no todo, a pôr-se em
ência no degrau mais alto da evolução e considerado o produto acordo com as forças da Lei ou, noutros termos, com a vontade
mais apurado da raça. E, ainda mais, sua lei de seleção passou a de Deus, fato em que consiste o triunfo do bem sobre o mal, da
ser considerada como lei da vida, de toda a vida! Mas esse sis- harmonia sobre a desarmonia, da felicidade sobre a dor. O ho-
tema é o sistema seletivo do animal! Aplicaram-no ao homem, mem deve compreender, e todas essas coisas sabem fazer-se
que desse modo é equiparado ao animal. compreender muito bem por todos. Progredir, sem dúvida, quer
O involuído não quer entrar no novo reino, onde poderia ser dizer trabalho; mas também representa conquista. A ordem, na
feliz. Contudo a Lei vê-se obrigada a arrastá-lo; mas o involuí- involução, se desagrega no caos. Ora, a evolução procura re-
do se rebela, se recusa a sair do inferno, não quer despender o construir a ordem a partir do caos. Em nossa experiência quoti-
menor esforço para deixá-lo. A Lei deseja-lhe o bem, todavia diana, percebemos que o prazer produz o nada e a dor cria. As-
não pode impô-lo, porque a liberdade humana é sagrada, além sim como a nota fundamental de toda fase involutiva consiste
disso, através da imposição, a Lei criaria autômato inconscien- na dispersão no gozo, a de toda fase evolutiva é a redenção pelo
te, quando o cidadão do novo mundo deve ser consciente e li- sacrifício, ou seja, a difícil ascensão depois de tão fácil descida.
vre. A Lei quer felicidade desejada e compreendida, e não feli- Verificamo-lo pela nossa vida como indivíduos, como no nas-
cidade imposta e incompreendida. Trata-se de dom bem mais cimento e morte das civilizações.
difícil de obter, mas de valor imensamente maior. Trata-se de Libertarmo-nos da dor assume o aspecto de problema dos
dom que não pode ser gratuito sem representar injustiça. Deve, mais angustiosos de nossa existência. Depois de tanto progres-
então, ser ganho, condição necessária para que seja merecido, so, estamos sempre a recomeçar. Prova de que a concepção e os
visto que, nos equilíbrios da Lei, nada pode existir de desarmô- métodos defensivos em voga estão errados. Contudo podemos
nico nem vantagem alguma ser obtida se não for ganha e mere- resolver o problema. Torna-se necessário, no entanto, enunciá-
cida, condição necessária para ser apreciada e fruída. Mas como lo de modo diferente. É lógico que podemos resolvê-lo em uni-
pode a boa Lei atingir o próprio objetivo, no caso do rebelde, verso regido por Deus justo e bom. Aí, onde tudo se mostra ló-
que deve, no entanto, permanecer livre? Como obrigá-lo e, ao gico e harmônico, e parece-nos tê-lo demonstrado bem, seria
mesmo tempo, permanecer fiel à justiça? Como conseguir im- absurda a existência de dor impossível de ser eliminada. Em
por a felicidade a inconscientes, tornando-os conscientes? Co- universo em que tudo tem objetivo útil a ser atingido mais cedo
mo conseguir, de acordo com a bondade e a justiça, impor-lhes ou mais tarde, onde tudo acontece em função da chegada à me-
o esforço necessário para ganhá-la? ta, não passa de loucura acreditar que fato nuclear, como a dor,
A própria estrutura do sistema diretor do universo encerra, possa existir sem objetivo, e assim, onde tudo serve para algu-
em sábios equilíbrios, o impulso que tende fatalmente a esse fim. ma coisa, exatamente aquilo que mais nos caustica e acabrunha
Na forma correspondente aos supracitados requisitos necessários, não sirva para coisa alguma. Mas o homem de nossos dias não
a Lei põe em jogo o sistema de reações adequado. O homem con- concebe o universo organicamente, como lei e ordem, mas cao-
tinua livre, mas responsável; livre para escolher a revolta e a de- ticamente, como arbitrariedade e desordem. Se não se compre-
sobediência, mas obrigado a responder por elas. É justo que ao endem em primeiro lugar as finalidades da vida e a lógica de
erro siga adequada sanção. Assim, ação e reação equilibram-se e todas as suas funções, é natural que, desse modo, não possamos
se põe a salvo a harmonia do sistema. E a dor constitui precisa- resolver o problema da dor. O próprio homem, pondo-se na po-
170 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
sição de quem nada compreende de tudo quanto lhe acontece pel de retorno à ordem e método aquisitivo de qualidade, isto é,
em torno, nada pode resolver e, tudo ignorando, só pode come- meio de auto-elaboração, ou melhor ainda, fator de evolução.
ter erros. Para conseguirmos atingir certo objetivo, vivendo em Assim, a dor se transforma; não é mais, como na conceituação
determinado sistema, torna-se preciso primeiro conhecê-lo e, vulgar, obstáculo à felicidade; não é mais maldição ou vingança
assim, conduzirmo-nos de acordo com as normas que o regem, de Deus, mas bênção e ajuda; não é mais vergonhosa posição
sem pensar em violentá-las e torcê-las. É natural, então, que o de inferioridade, mas nobre instrumento de redenção. Apenas
sistema reaja e não se atinja o objetivo. se compreende a lógica do sistema diretor do universo, logo
Embora mudemos continuamente a perspectiva, percorren- aparecem a absoluta justiça e a imensa bondade de Deus.
do os vários pontos da periferia, a própria estrutura do universo Todas as vezes que, neste livro, qualificamos o involuído
nos orienta e sempre faz retornar ao mesmo conceito funda- como ignaro e primitivo, não o fizemos em sinal de desprezo
mental, ou seja, ao pensamento central ao redor de que tudo gi- ou de condenação, nem para imputar-lhe culpa. O que quere-
ra e pode chamar-se: Deus, Lei, Ordem. Não podemos impedir mos é apenas expor o mecanismo do universo e as conseqüên-
que todos os conceitos desta obra gravitem em redor desse pon- cias advindas, para cada qual, de sua conduta. Biologicamente,
to, pois essa é a estrutura do universo e nosso pensamento deve o involuído está exatamente onde devia, sendo a dureza de suas
amoldar-se a essa estrutura e constituir-lhe a expressão exata. provas, como selvagem em planeta selvagem, adequadas à sua
Desse modo, pode parecer que estamos a repetir sempre a sensibilidade. Todavia os que compreendem como realmente a
mesma coisa, mas é o universo que é sempre o mesmo. Pode-se vida funciona não podem deixar de adverti-lo, somente no inte-
alterar o ponto de vista da periferia e a forma do relativo, porém resse dele, para fazê-lo compreender como executa mal suas ta-
a realidade do centro e a substância do absoluto não podem refas; de indicar-lhe, como lhe convém, melhor modo de fazê-
mudar. No mesmo modo em que se construiu o universo através las, mostrando-lhe que é estupidez alguém pretender construir
de caminhos infinitos, de qualquer ponto de que partamos ter- com as próprias mãos a sua infelicidade e ensinando-o como é
minamos por atingir sempre o mesmo centro. A criação apresen- possível corrigir a própria dor e transformá-la em prazer. O
ta-se variada e, quanto à forma, é mesmo; contudo, em substân- bom e sábio sistema do universo contém a solução do proble-
cia, permanece invariável. De modo que não fazemos nada mais ma. O sistema é feito de ordem; a dor é conseqüência de desor-
senão fotografar a realidade, quando somos obrigados a repetir dem. A dor, logicamente, cessa com a desordem de que deriva,
do princípio ao fim, sob infinitos aspectos, o mesmo conceito de e o método para eliminá-la consiste na harmonização, quer di-
sempre: Deus, Lei, Ordem. Esse é o estado das coisas, e não po- zer, no retorno ao seio de Deus através da evolução. A estrutura
demos mudá-lo. O princípio permanece sempre o mesmo; não do sistema implica a cessação da dor, à medida que caminha-
podemos fazer outra coisa senão retornar sempre a ele. mos para a ordem. Reconstruamos, então, a ordem destruída e
O problema da dor também nos reconduz ao mesmo princí- teremos eliminado a dor, eliminando-lhe as causas. A evolução
pio, nosso ponto de partida e de chegada, em redor de que de- consiste exatamente em dispor mais harmonicamente as forças
vemos girar sempre, isto é, o universo constitui sistema, orga- que somos e as que manejamos, isto é, da desordem passar para
nismo, funcionamento lógico. Se não respeitarmos as normas e ordem relativamente mais completa. Relação entre dor e felici-
não percorrermos os caminhos desse sistema, não poderemos dade significa relação entre dissonância e harmonia. O inferno é
resolver o problema da dor. O ateu pode descrer da existência estado caótico de revolta (desordem satânica); o paraíso, estado
de qualquer regra; o pessimista, julgar que domina o mal e a orgânico de paz (ordem divina). A sabedoria do sistema consiste
desordem; o epicurista, acreditar possível rirmo-nos de tudo; e exatamente em que a dor é força auto-contida por natureza, isto
o violento, pensar ser possível impor-se a todos. Mas a Lei con- é, quando se manifesta tende a gastar-se e inverter-se. Como
tinua a cada momento a exprimir sua natureza, que é ordem, forma de dor, essa força caminha para o próprio aniquilamento e
sua vontade de continuar sendo ordem, sua necessidade de autodestruição; mas, como força, não se destrói e quer renascer
sempre maior atuação da ordem em todo ser e em todos os em posição invertida, ou seja, como felicidade. Noutros termos,
momentos. Quando não se respeita a absoluta e fundamental evoluímos por meio da fadiga do reordenamento e passamos do
exigência de ordem, a dor aparece, fato cuja gravidade indica inferno ao paraíso através da própria dor.
como, proporcionalmente, se mostra importante o princípio a Assim a dor nos aparece em toda a sua importância de re-
que se propõe defender. No sistema, a dor tem o papel de cam- construtora da vida; na sua verdadeira função de reequilibrado-
painha que nos adverte do erro, corrige o desvio e impõe a cor- ra, como compensação expiatória; de educadora, como assimi-
reção, exatamente como acontece no sistema nervoso do orga- lação de experiência e formação de consciência; de reordena-
nismo humano, feito à semelhança do organismo universal. O dora da desordem, como reabsorção do mal; enfim, como fator
homem pode pensar e fazer o que quiser, mas o sistema não to- de evolução e instrumento de felicidade. A dor, devido à natu-
lera em absoluto alteração dos seus equilíbrios e, se os violam, reza equilibrada do sistema, é força que, manifestando-se, se
defende-se, volta-se contra o violador e o obriga a reconstituí- consome, se esgota e se transforma em força contrária. Consti-
los à própria custa. A dor corre por conta do violador; quem er- tui-se ao mesmo tempo em estimulante de atividade, em ades-
rou paga com o que lhe pertence, pessoalmente. Trata-se de tradora e instrutora, isto é, em criadora de qualidade que len-
equilíbrio de forças cujos impulsos poderiam ser calculados tamente melhora, se fortifica e enriquece. Enfim, é grande
exatamente, em qualidade e quantidade, no modo como se rela- harmonizadora, que leva o ser rebelde e caótico a funcionar
cionam em causa e efeito, ação e reação. Essa reação reequili- organicamente, de acordo com o pensamento e a vontade de
bradora é fatal, a Lei não admite perturbações; se acontece vio- Deus. Também nesse campo, o mundo não está, em absoluto,
lação, pois o homem é livre, o efeito não pode recair sobre a no caminho certo. Não eliminamos a dor por meio de sistemas
Lei, mas sobre o homem. A este se permite fazer experiências à exteriores, sobrepostos, coatores, distributivos, mas apenas
própria custa e aprender por tentativas; não se lhe permite, po- através da compreensão e prática da Lei. O homem se irrita
rém, alterar o funcionamento do universo. Essa reação recons- contra os efeitos, mas continua a semear as causas. Torna-se
trutora de equilíbrios por parte das forças da Lei pode parecer inútil querer suprimir as últimas conseqüências sensíveis, elas
para alguns ato de justiça por parte de Deus ou então punição ressurgirão sempre enquanto não suprimirmos os precedentes
da culpa, no entanto aos primitivos pode parecer vingança. A de que derivam, não lhes determinando a formação e assimi-
dor não é, então, fracasso ou derrota, mas o meio providencial lando-lhes os impulsos resultantes. Enquanto agimos só exter-
de reparação e prova na arena das experimentações humanas. na e mecanicamente, com emprego da força ou da astúcia, per-
Constituindo-se compensação expiatória e escola, assume o pa- deremos o tempo. As causas que permaneceram intactas conti-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 171
nuarão a repetir-se e a produzir os seus efeitos. Curam-se do- namos a medida do justo. Todo pecado, por falta ou por exces-
enças não pela eliminação coativa dos sintomas reveladores, so, significa erro a ser pago. De fato, tanto os povos como os
mas cuidando das causas e condições do fenômeno e, por con- homens mais ricos são os mais infelizes. Dadas a estrutura do
seguinte, não lhes forçando as leis, mas compreendendo-as. sistema universal e a conduta humana hoje em voga, que felici-
Por isso apenas de dois modos podemos libertar-nos da dor. dade podemos encontrar na Terra?
Se já se trata de causas em atividade, só nos resta sofrer-lhes os Quando violamos a ordem das coisas, perturbamos a har-
efeitos. Então, as forças por nós postas em movimento continu- monia das forças e damos nascimento a estado vibratório de-
am inexoravelmente a mover-se no sentido que lhes assinala- sarmônico e discordante, constituímos centro de irradiação ar-
mos, até se exaurirem. Nada podemos fazer senão suportá-las rítmica, cujas repercussões se farão sentir sob a forma de dor.
até que se esgotem, mas tentando sempre corrigi-las pela intro- Sofremos porque somos desarmônicos. As causas de nossa dor
dução de novos impulsos que lhes modifiquem lentamente a moram em nossa desordem interior. Quando inocentes, o golpe
trajetória. Se escolhemos causas erradas, não podemos libertar- não nos atinge, resvala, não encontra ponto vulnerável no orga-
nos das conseqüências dolorosas senão através da dor. É neces- nismo de forças de nosso destino, pois em nós mesmos nada
sário, então, expiar, reconstruirmo-nos com tenacidade, traba- oferece resistência. A desordem exterior não pode entrar em
lhosamente, na miséria, onde jazem os que, neste caso, não fo- nós senão na medida em que, como queremos, já se encontra
ram vencidos pela força, mas pela justiça. Não há, pois, outro dentro de nós. Os impulsos desarmônicos da dor podem atingir-
caminho para o paraíso senão o do purgatório. Isto em relação nos apenas em proporção à nossa desordem interna. Único re-
ao que passou. Existe ainda outro caminho para nos libertar da médio: harmonia. E justamente aquilo que o mundo de hoje
dor, mas esse se refere às coisas futuras. Consiste em não errar menos cuida evitar é essa desordem, causa de todos os nossos
mais, em não movimentar novas forças desarmônicas, causa de males. Ao contrário, parece que só procura produzi-las. Expli-
novas dores. Quanto ao passado, se erramos, não nos cabe se- ca-se desse modo como o adiantado homem moderno jamais
não pagar; quanto ao futuro, apenas devemos, sem novos erros, tenha sido, como hoje, tão vulnerável à dor. Não! A dor não se
construir-lhe os fundamentos. Neste ou naquele caso tudo se vence, como se crê, dominando o determinismo físico das cau-
reduz à harmonização, isto é, a cumprir a Lei, a vontade de sas exteriores. É inútil submetermos as forças da natureza. É
Deus. De fato, hoje não se cuida dessa condição fundamental um passo, porém não basta. Pagamos caro acreditar que baste.
da felicidade. Julga-se que não haja conseqüências para a viola- Assim, imaginamos civilizar-nos e progredir e, no entanto,
ção dos equilíbrios da vida, praticando-se isto com indiferença isso nos torna preguiçosos e degenerados. É lógico que a nature-
de inconscientes. Além de não se respeitar de modo algum a za seja forçada a abolir as defesas por nós artificialmente torna-
ordem universal, pretende-se ainda criar artificialíssima ordem das inoperantes. Desse modo, enfraquecemo-nos, quando pen-
humana, como antítese e em lugar da ordem divina já existente. samos proteger-nos. Isso é verdadeiro tanto para o corpo como
O involuído mergulha assim em tremenda ilusão; pensa cami- para o espírito. A multiplicação das defesas e a segurança nos
nhar em direção à felicidade e, no entanto, corre ao encontro da desabituam de ser assaltados e nos aumentam a vulnerabilidade
dor. Crê na vitória da técnica, no poder econômico, no bem- à dor. Se suprimimos o trabalho da luta, suprimimos também a
estar material, na vitória das armas ou da astúcia. Tudo isto, po- resistência. A proteção debilita. Assim perdemos a defesa natu-
rém, não passa de condição secundária para a realização da fe- ral e nos tornamos escravos da defesa artificial. A elevação do
licidade, podendo até mesmo representar condição negativa e teor de vida é faca de dois gumes, vantagem e perigo. Há maior
obstáculo para essa realização, quando essas forças se movem segurança na pobreza do que na riqueza, mais força no preparo
desequilibradamente contra a harmonia da Lei. Quando não para a luta do que em sua supressão. O sistema de nosso mundo
significam ordem, mas desordem, torna-se inútil supor que contraria toda ordem natural. Eis que, também deste outro lado,
vencemos, pois fomos vencidos; inútil crer que andamos em di- as causas da dor se acumulam e não se eliminam. Procura-se por
reção à felicidade, pois, de fato, andamos em direção à dor. E toda parte receber adiantamentos, endividar-se nos equilíbrios
hão de trair-nos todas as conquistas humanas pelas quais tanto da vida, ao invés de procurar reconstruí-los e não perturbá-los
lutamos. As coisas terrestres não enganam; os traidores somos mais. Toda nossa alegria é novo empréstimo de pobre, enterrado
nós, que acreditamos no abuso e não sabemos empregá-las. É de dívidas até o pescoço. Que poder, no entanto, se poderia con-
justo a Lei da justiça tratar desse modo os que a violentam. quistar firmando-nos interiormente no espírito! Assim é que as
A harmonização constitui o método de construção da felici- raças mais refinadas decaem e as civilizações se esgotam. Daí se
dade; a revolta, o de construção da dor. O problema, para que vê como, para civilizar-se a sério, torna-se necessário exatamen-
possamos resolvê-lo, deve ser proposto de modo oposto ao se- te começar de novo, desde o princípio.
guido até agora. Não se trata de abundância de bens, mas de sa-
bedoria na conduta; não se trata de possuir mais ou menos, mas VIII. ENTENDIMENTO, RECONSTRUÇÃO,
de possuir bens conforme à justiça. Vitória injusta é inutilizá- PROGRESSO.
vel; riqueza de origens poluídas nos dá apenas aborrecimentos.
Tudo quanto dissemos em relação à propriedade vale para toda Com as indicações precedentes, desenvolvemos os concei-
aquisição, tanto para os indivíduos como para as classes sociais tos de A Grande Síntese (Cap. LXXXI – A função da dor).
e as nações. Tudo quanto não é eqüitativo sofre do mal da de- Agora podemos compreender mais o significado de diversas
sarmonia, se consumirá no próprio veneno, se queimará em fo- afirmações, como esta: ―A anulação da dor opera-se corajosa-
go violento e morrerá, reduzindo-se a cinzas. De fato, o pro- mente por meio da dor‖. Naquele capítulo se traçou o processo
blema do verdadeiro bem-estar não é, como se acredita, exclu- de desaparecimento da dor através da evolução, pela qual, do
sivamente econômico, mas moral, de compreensão e de com- mundo subumano para o humano e sobre-humano, com a trans-
portamento. Na Terra não faltam bens. Falta é homem que sai- formação do eu, a íntima catarse na personalidade muda tam-
ba usá-los. A grande conquista a se fazer não é tanto a conquis- bém o significado, o valor e a sensação da dor. Mudando a tal
ta material das forças do planeta, mas da sabedoria humana. ponto que, no mundo sobre-humano, ―perde o caráter negativo
Sem a segunda, a primeira não constitui vantagem, mas dano. e maléfico e se transforma em afirmação criadora, em poder de
Toda aquisição realizada na desordem representa de fato perda; regeneração, em corrida em direção à vida. Canta-se então o hi-
toda vitória injusta não passa de derrota. A felicidade é equilí- no à redenção: bem-aventurados os que choram‖ (A Grande
brio. A dor aparece tão logo saímos da harmonia. O sistema de Síntese – Cap. LXXXI). Somente agora podemos, como Santa
forças se distorce e o fenômeno se degrada assim que abando- Catarina de Siena, exclamar: ―Sofrer ou morrer‖.
172 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
Assim, enfrentamos e resolvemos o mais controvertido e restre, pretende ser afirmação de ordem; em meio às dores
importante problema da vida, sem condenar quem está em bai- humanas, foco irradiador de alegria verdadeira, porque pura;
xo ou protestar contra a Lei, reconduzindo a dor às causas que corrente de vibrações reconstrutoras de bem-estar no sentido
são suas, mas estão em nós. Embora verificando o caráter in- mais resolutivo; impulso que, embora mínimo, como dique
fernal que o ambiente terrestre pode assumir para o evoluído, protetor se contraponha aos rios de dor que o homem, de sen-
sempre reconhecemos na dor a justiça e a infinita sabedoria de timentos caóticos, estupidamente despeja sobre si mesmo. Dá-
Deus e os equilíbrios da Lei, que deixam cada qual no posto se pressa em condená-lo, pensando que se distingue dos inferi-
merecido, adequando a violência das provas à sensibilidade do ores e os liquida, classificando-os como involuídos, contudo
indivíduo. O natural terror que o reino humano do involuído para que, senão para civilizar-se, estariam na Terra os mais
pode inspirar aos seres refinados não tira coisa alguma à per- adiantados? A fase de involução é de cegueira e sofrimento,
feição do plano divino do universo, à liberdade individual de representa estado inferior que causa e merece imensa piedade.
redimir-se e progredir, ao otimismo do justo, à fé em Deus, aos Este livro constitui convite, dirigido a quem não o tenha con-
auxílios por Ele concedidos a quem os merece. Deus continua seguido ainda, a passar do estado de involuído ao de evoluído;
presente e ativo mesmo em plena desordem do inferno terres- explica a dificuldade e o método dessa passagem; se, por este
tre. Tanto basta ao evoluído para sofrer com alegria. Sua dor lado, resolve racionalmente tantos problemas e diz o que é a
torna-se ato de reordenamento do caos, de aniquilamento do vida, doutro lado, é convite à felicidade. Explicação e convite.
mal. O evoluído é condenado e expia, mas pode com as pró- Nada mais. A justiça da Lei exige que toda alegria seja mere-
prias mãos criar as condições para libertar-se e construir a pró- cida e, por isso, conseguida à custa do esforço de cada um.
pria felicidade. A ordem sempre está presente na desordem; Baseando-nos nos conceitos até aqui expostos, olhemos em
Deus e Sua Lei não se separam jamais. Isso basta para o evolu- redor do mundo de nossos tempos, para observar este conhe-
ído possuir, no mais profundo da alma, aquela harmonia cha- cimento aplicado ao que acontece. Essa observação não é mo-
mada felicidade. Desse modo, a dor vai sendo cada vez mais vida por interesse algum, não deseja atingir nenhum objetivo
empurrada para o exterior, para a superfície. terrestre e parte de ponto de vista situado acima do plano hu-
Assim, embora descrevendo o infernal mundo terrestre e so- mano. É, pois, imparcial. Apenas se propõe a expor o funcio-
frendo em meio ao seu estridor e à sua violência, podemos agora namento da Lei, igual para todos; mostrar as consequências ló-
esquecer tudo isso ao contemplar placidamente o plano da cria- gicas que dos erros decorrem para quem os pratica. Isso tudo,
ção, divino e de suprema beleza. Apenas o entrevimos e já fica- aliás, sem partidarismo e sem censura também. Trata-se de
mos atônitos em face de tamanha sabedoria, poder, harmonia e simples verificação dos estados de fato livremente determina-
bondade. Nossa alma estende as asas e sustenta-se nos céus. dos pelo homem e pelas conseqüências impostas pela férrea
Prossigamos, vibrantes de fé, ardendo na mais nobre paixão, te- logicidade da Lei. Seria presunção julgar. Apenas Deus conhe-
merosos da nossa própria audácia. Com efeito, neste livro, em ce as capacidades, as medidas e as responsabilidades de cada
verdade, perscrutamos o pensamento de Deus e tentamos entrar consciência. Para julgar, tornar-se-ia necessário ser inocente e
em comunhão com ele. Por isso não basta raciocinar, única coisa superior. Quem o é na Terra? Julgamento pode emanar apenas
que, segundo parece, se faz neste livro. Para estarmos em comu- de quem está acima de todos e é isento de culpa; isso faz pre-
nhão com Deus, também se torna necessário arder de entusias- sumir superioridade existente apenas em Deus e na Sua lei,
mo e pregar, sofrer e intuir, desprender-se e amar. Tanta força se sempre justa, seja qual for o nível evolutivo. Todo ser está
emprega para não nos perdermos no infinito e sermos arrastados sempre no lugar certo e tem sempre o que merece, conforme o
no turbilhão, para elevarmo-nos ao mais alto dos céus. Essa con- que é e faz. A qualificação de involuído não significa conde-
templação, supremo repouso para as dores desta vida, tira-nos nação. Ele também está no lugar certo, no ambiente apropria-
do campo fechado de nosso eu e, sintonizando-nos com as har- do, sujeito a golpes adequados, e tem o que merece.
monias do universo, faz que elas nos absorvam, neutralizando- Observemos, pois. O homem, com sua conduta, demonstra
nos o separatismo. Que dilatação imensa, que suprema expansão não conhecer os princípios que regem e regulam o funciona-
esse dissolver-se no infinito hino da criação! mento orgânico do universo; comporta-se como se a Lei não
Estão no mesmo campo de trabalhos, que não se pagam, existisse, transgride-a e, sem compreendê-la, sofre-lhe as rea-
tanto quem escreve como quem lê, ambos arrastados na esteira ções. Nossa humanidade é jovem, ou seja, primitiva, riquíssima
do mesmo pensamento, que se encontra nas próprias coisas e de energia e muito pobre de sabedoria. Essa humanidade preci-
fala por si mesmo. Desses trabalhos há muitos na vida, e são os sa caminhar muito ainda e sofrer, antes que aprenda a conhecer
mais importantes, apenas compensados por íntima satisfação. a Lei e a portar-se de acordo com ela. De vez em quando, al-
Quando quer atingir os seus fins, a Lei põe no instinto humano gum evoluído aparece na Terra, como expiação ou para dar
essa íntima sensação de contentamento. Este trabalho de redu- cumprimento a missão; cumprida, porém, a tarefa, apressa-se a
zir o pensamento diretor do universo a forma racional é daque- retomar para o convívio da gente de sua raça. Todos os seres se
les que não se pagam nem se podem pagar neste mundo, visto colocam no lugar certo. Geralmente, ao homem não basta ape-
não existir valor terrestre capaz de compensar semelhante es- nas desconhecer a Lei e fugir-lhe; ele vai além e faz até o im-
forço. Nisso estamos bem longe dos cálculos da economia hu- possível para revoltar-se contra ela e mudá-la, aproveitando-se
mana; estamos nas próprias raízes da vida, absortos em mara- para isso da inviolável liberdade de todo ser. Mas o resultado
vilhosos contatos com a eternidade, em vibrações intensas, da partida acaba sendo desfavorável para ele, porque a Lei rea-
bem longe da Terra; somos convivas do banquete das harmo- ge. A Terra, naturalmente, não passa de lugar de dor, não per-
nias divinas, elevados à condição de servos de Deus, isto é, de cebida apenas pela insensibilidade dos que há pouco tempo
colaboradores de Sua lei, protegidos pelas forças de Sua justi- chegaram de mundos mais baixos. Então, naturalmente, tam-
ça. Em alguns momentos, o inferno terrestre parece bem longe; bém é lugar de desordem, violência, rebelião e ferocidade. Só o
a dor, desfeita; a redenção, realizada e a libertação, completa. evoluído percebe o inferno que este mundo é. Mas ele também
Por momentos parece haver-se tornado real o sonho de felici- está colocado no lugar certo, pois, se cá embaixo se encontra, é
dade que o mundo persegue em vão. Quem souber ler nas en- porque merece tal pena. Resta-lhe apenas isso: a expiação e a
trelinhas terá neste livro, por trás da lógica dos argumentos, a fuga. Se veio ao mundo para cumprir missão, deve fazê-lo. Os
sensação de sublimidade e de êxtase, isto é, a sensação das di- homens deste mundo são de raças muito diferentes. A grande
vinas harmonias do universo inteiro a que estamos, a cada pas- maioria encontra-se no ambiente adequado a seu grau de evolu-
so, tentando levar o leitor. Este livro, em meio à desordem ter- ção, e é justo e lógico que a maioria esteja em ambiente ade-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 173
quado e apenas a minoria se ache em lugar que não lhe convém. nascimento da dor. Se providencial ignorância não a limitasse,
A minoria, embora notável e mais evoluída, aqui se encontra a ação humana chegaria a desintegrar o sistema solar.
em caráter de expiação; raríssimos exemplares de raças superio- Esbocemos mais minuciosamente a substância do atual ci-
res vêm para cumprir missão. Os destinos, as provas, as alegri- clo histórico. Podemos resumi-lo em quatro períodos trifásicos,
as, as dores, os gostos e os modos de apreciar as coisas são, nos quais se exprime o ritmo de seu desenvolvimento. Cada
pois, muito diferentes, de acordo com a natureza de cada qual. uma das três fases de cada período se expressa por um verbo,
Todos nós exercemos função. Prova duríssima coloca os supe- pois todo verbo quer dizer ação e, na vida, o pensamento se ex-
riores ao lado de inferiores ferozes como demônios, para que prime concretizado nos fatos. Cada termo deriva de outro e, as-
estes, postos ao lado dos superiores, aprendam a compreender a sim, ligam-se ritmicamente em cadeia, por força da relação
vida. Embora diferentes, todos colaboram e mutuamente se universal de causa e efeito; o efeito, por sua vez, se transforma
aperfeiçoam. Porque todos são desiguais, as opiniões variam em causa, e o termo final se torna o termo inicial. Desse modo,
muito, contudo a harmonia se estabelece mais pela compensa- toda fase é mãe e filha, uma gravitando em redor da outra, cada
ção dos contrários do que pela semelhança. A realidade da vida qual amadurecendo a sua parte e ambas amadurecendo o de-
é completamente diferente da que aparece exteriormente ao senvolvimento do fenômeno. Eis os quatro períodos trifásicos
homem comum, e seus verdadeiros problemas são bem diferen- do atual ciclo histórico:
tes daqueles de que habitualmente falamos. “Crescer, conquistar, combater.
Nesse ambiente, naturalmente, o que domina é a exaltação Roubar, matar, destruir.
da força ou exaltação da involução, isto é, do tipo biológico Empobrecer, sofrer, refletir.
humano ainda próximo da animalidade. O que revela o evoluí- Compreender, reconstruir, progredir”.
do é o método de vida completamente diferente, fundado, ao Esses períodos representam a última fase de nossa pseudo-
invés, no equilíbrio da justiça; mas o evoluído hoje constitui civilização materialista e sua passagem a outra civilização. O
minoria que, em silêncio e mergulhada na dor, espera sua opor- domínio das forças do planeta por meio da ciência e a conquis-
tunidade de vida ativa no mundo. O estudo dos grandes ciclos ta do bem-estar material, características de nossos dias, leva-
históricos nos indica como a fase da animalidade, depois que ram-nos à primeira fase do primeiro período. O restante não
atingiu o apogeu, esteja agora se encerrando na autodestruição, passa de desenvolvimento em série, lógico e fatal, até que se
seu termo final, inserida no desenvolvimento lógico do sistema atinja o termo final. Crescer não é crime nem erro. É a subs-
da revolta, do materialismo científico. Desse modo se esgotará tância da vida e a vontade da Lei. O crime e o erro residem na
o ciclo da atual pseudocivilização do involuído e começará o ci- direção que demos a esse crescimento. Se tivesse sido sábia e
clo da nova civilização do evoluído. Quem olha em torno de si e consciente, dirigir-se-ia imediatamente ao termo final. Da in-
tem capacidade de entender, observa o desmoronamento deste consciência do involuído é que derivou o longo desvio dos
mundo e admira a perfeição da Lei, que, no tempo certo, executa quatro fatigantes e dolorosos períodos. Caso se tratasse de
o que é útil e necessário. A vida, feita de renovamento, necessita mundo consciente, o primeiro termo, ―crescer‖, poderia coin-
dessas destruições. A pseudocivilização da matéria, fechada no cidir com o último, ―progredir‖ ou, em outras palavras, consti-
ritmo do tempo, que se prepara para encerrar-lhe o ciclo, apres- tuir-se na efetiva conquista de conhecimento e felicidade, pre-
sa-se novamente a lançar seus últimos impulsos. Seu dinamismo cisamente como a Lei deseja ao homem. Esse caminho, toda-
persegue-a, seu desequilíbrio íntimo atormenta-a; toda a estrutu- via, pressupõe aquela sabedoria que é precisamente o resultado
ra do sistema de princípios que a regem, a natureza das forças do longo percurso em que aquele se transforma para conquistá-
que a põem em movimento, representam concatenação lógica la. Em face da liberdade e da inconsciência humanas, não há
que não pode desenvolver-se senão à custa de aceleramento pro- outro caminho. Esse caminho é gerado por aqueles fatos. A Lei
gressivo e contínuo, para terminar em total aniquilamento. O bó- se lhe adapta e permite a experimentação humana, a fim de que
lido foi posto em movimento e agora deve percorrer a trajetória o homem aprenda. Mas, lentamente, através do erro como dis-
que lhe foi determinada desde a abertura do ciclo. semos, corrige o erro e reconduz as forças à devida e desejada
Se olharmos em redor de nós, vemos em todas as coisas posição, reordenando-as e reconquistando-lhes a concessão.
dominar o desequilíbrio. As vitórias são cada vez mais instá- Assim, a Lei, através da dor, repreende e corrige o homem, le-
veis; as afirmações, levianas; tudo está confundido num turbi- va-o de novo ao caminho certo da verdadeira conquista da feli-
lhão de loucura; a riqueza e o poder têm algo de raiva e deses- cidade. Desse modo se atinge o verdadeiro objetivo da vida:
pero; todo bem é inseguro e dá-nos, mais do que alegria, o ter- evoluir; assim, a ação atinge sua finalidade principal: compre-
ror de nos vermos despojados dele. Perdeu-se o senso da har- ender e progredir. O processo evolutivo deveria desenrolar-se
monia, da calma, da segurança e, por isso, da felicidade. A em direção reta e sem desvios. Bastaria crescer lógica, discipli-
técnica, mais do que para criar e proteger, serve à morte e à nada, consciente e harmonicamente, tudo de acordo com a Lei.
destruição. As manifestações espirituais agonizam. A arte Mas vimos como o involuído sabe crescer apenas desordena-
apresenta apenas expressões de bestialidade. Os cantares das damente, em oposição à Lei. O que necessitaríamos possuir no
mulheres são uivos de fêmea e estão a serviço da atração sexu- momento da partida só conseguimos ao chegar. Mas consegui-
al. Os cânticos dos homens são gritos de revolta e servem ao mos, e isso basta. O objetivo do trajeto consiste precisamente
roubo e à destruição. As maravilhosas descobertas modernas, em conquistar novas posições. O homem aí chegará cansado e
quando não se constituem instrumento mortífero, concorrem ofegante, mas bom entendedor, e a Lei não terá sido fraudada.
muitas vezes para a multiplicação dessas expressões bestiais. Todas as coisas estão logicamente no lugar certo. A bondade da
As descobertas químicas reduzem-se quase sempre a, na agri- Lei há de triunfar, e o homem aproveitará a experiência adqui-
cultura, violentar os ciclos naturais; na medicina, a forçar as rida para não repetir o mesmo ciclo e, assim, ir além.
defesas orgânicas e impor-lhes efeito imediato, que, ao invés Que tortuoso e cansativo caminho deve o homem percorrer
de ser salutar como se pensa, não passa de exploração mais rá- antes de atingir o objetivo colocado no último período! Tanta
pida do organismo. Envenenamo-nos constantemente com su- dor e destruição para conseguirmos compreender e, em conse-
cedâneos e produtos sintéticos, maravilhas da ciência moderna. qüência, podermos reconstruir e progredir. Apenas no caso de
O que há em toda parte é revolta e substituição da Lei pelo já termos compreendido é que o objetivo seria logo atingido e
homem, logo deve haver em toda parte a respectiva penitência. não deveríamos percorrer tão longo e doloroso caminho. O
Imposição e violência em lugar de harmonia e obediência. Pa- grande problema resume-se em compreender. Compreender pa-
rece que a mais angustiosa preocupação da Terra é provocar o ra em seguida aplicar a Lei, desse modo evitar a dor e, evoluin-
174 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
do, conquistar a felicidade. Ciência, filosofia, religião, literatu- e ativa gera, de fato, qualidades protetoras, isto é, capacidade de
ra, arte, sociologia, tudo isso deveria facilitar o entendimento e defesa. Hoje temos pressa e tentamos impor à natureza o resul-
a aplicação dessa Lei e a substituição do espírito de rebelião e tado por nós desejado. Desse modo, apenas conseguimos van-
desordem pelo de obediência e ordem. A atitude de revolta tagem imediata, perturbando os lentos equilíbrios naturais; vi-
constitui nosso pecado capital. Constrange-nos a viver debaixo vemos de empréstimos e adiantamentos, hipotecando o futuro.
do açoite da reação. Quanto mais nos rebelamos mais açoites re- Aplica-se, pois, ao campo orgânico o perigoso sistema crediário
cebemos. A revolta, que nos parece o caminho da fuga, é o ca- que já observamos no campo moral e econômico. Pensando em
minho da condenação. Seguimos a Lei às avessas, por isso con- melhorar, praticamos, no entanto, seleção às avessas, que tende
seguimos o avesso de sua harmonia e felicidade; praticamos a à produção de tipo fraco, abastardado pelas defesas artificiais.
seleção às avessas, involutivamente, ao invés de evolutivamente. Queremos suprimir a luta, mas sem ela as qualidades se perdem
Mas a inteligência humana há de substituir a lei animal de sele- e a vida se atrofia. Sabemos, por acaso, que reações se produzi-
ção do mais forte por sistema de luta mais nobre, destinada, ao rão amanhã em conseqüência desses métodos de violação e de
contrário, à formação do mais consciente e do mais justo. Torna- violência? A medicina oficial aplica-se há muito pouco tempo
se necessário mudar o tipo-modelo, não aquele oficialmente elo- para que possamos sabê-lo ainda. Voltamos sempre ao mesmo
giado, mas o que intimamente e de fato admiramos. Necessita- ponto: ignoramos a Lei e somos violentadores e destruidores.
mos seguir outros métodos de conquistar vitória, propor-nos ou- Quantas vantagens, no entanto, poderíamos obter se, ao invés
tros objetivos e lutar em plano mais elevado. Ao contrário, o es- de nos revoltarmos, nos puséssemos de acordo com ela! A força
forço humano parece hoje dirigido à canseira de trocar o bem não prevalece contra a Lei, que resiste e reage. E, da luta entre
pelo mal, a ordem pela desordem, a felicidade pela dor. ela e o homem, é este que sai com os ossos quebrados. O ho-
Bastaria compreender algumas verdades elementares como mem não sabe que o sistema do universo é inviolável e que to-
estas: ―Quem mais pode ou possui não tem maior porção de da revolta resulta em golpes contra si mesmo.
direitos, mas de obrigações‖; ―Toda autoridade não representa Hoje, está estabelecido o método humano com que tratamos
vantagem, mas encargo e missão‖; ―A dor cessará apenas todos os problemas, isto é, aplica-se em todos os casos a psico-
quando houvermos superado o ódio e a vingança, transfor- logia de inconsciência e violência própria de nossa época. Em
mando-os em amor e perdão‖; ―Seja qual for o golpe vindo de nossos dias, exaltamos e adoramos o sistema do sucesso rápido,
fora, a dor só atinge quem a merece‖. O verdadeiro bem-estar a qualquer preço. Quantas ruínas, porém, não semeia ele no
apenas poderá resultar de nova ordem interior, em que a fór- caminho, tanto para quem perde como para quem ganha! Hoje,
mula ―a infelicidade alheia é alegria para mim porque me é o método da luta e da vitória do mais forte já atingiu o campo
vantajosa‖ seja substituída pela fórmula mais evoluída ―a in- da arte e do pensamento, transformando-os desse modo em ga-
felicidade alheia transforma-se em dor para mim, porque é nha-pão, mercado, campo de competições. O espírito morreu. A
também minha própria infelicidade‖. Lei fechou-se em rigoroso silêncio e recusa beneficiar os indig-
Infelizmente é muito extensa a lista dos erros humanos. Na- nos. Deus nos concedeu a provação que desejamos, as formas
da mais lógico que também muito longa seja a lista das dores. superiores da vida retiram-se da Terra, e o homem, querendo
Que outro rendimento poderiam dar as forças da vida, se dis- tudo conquistar, abandonou os maiores valores, perdeu as mai-
postas de modo diferente, obedecendo a critérios de harmonia, ores alegrias e destruiu a beleza. A psicologia do mais forte
e não de desordem! Que seria do mundo se, apesar de todos os transforma a Terra em infernal campo de luta, onde apenas du-
erros humanos, não o dirigisse lei justa e sábia! E deve mesmo as posições podem existir: ou de opressor ou de oprimido, em
ser muito sábia, visto como, não obstante as tentativas de de- que tudo se concede ao primeiro e nada ao segundo. Os melho-
sordem, atinge inexoravelmente seus objetivos. Sua sabedoria res acabam sendo eliminados, com dano geral. O espírito de
substitui a ignorância humana, estabelecendo desse modo limi- revolta acaba na autodestruição. Coisa alguma nasce nas ruí-
tes para ela e guiando-a em direção ao bem. nas, e, se a força obriga à obediência, os homens, oprimidos, e
Ao homem traem a pressa, a psicologia do resultado imedia- não convencidos, nada produzem. O vencedor não cria no ven-
to, conseguido a todo custo, através de quaisquer meios, inclu- cido senão a indiferença passiva da resignação. A vida negati-
sive da violência. A vida, no entanto, é fenômeno extenso e va se retrai. Só a força não basta para alimentá-la. Sem dúvida,
equilibrado. Nela, o futuro é eterno, produzem-se efeitos devi- tornam-se também necessárias as tempestades das guerras e
dos a causas remotas e preparam-se objetivos longínquos. O das revoluções para o trabalho de renovação. Mundo tempes-
homem vê apenas o passado e o futuro próximos, nada mais. E tuoso, porém, se convulsiona e desagrega. A vida também ne-
agora? Que coisa a química introduz em nossa terra? A ciência cessita de bondade e ordem, de amor e fé; se não tivermos se-
médica, no protoplasma do homem? A máquina, em nossa vida meado tudo isso, quando os homens pedirem trabalho, segu-
individual e social? A orientação moderna, em nossas almas? rança e bem-estar, a terra, saturada de ódio, de revolta e desor-
Não sabemos. No entanto a vida futura se construirá apenas do dem, apenas poderá dar-nos o fruto resultante da semente nela
que estamos continuamente a semear para nós e nossos filhos! atirada; o ar, por sua vez, estará saturado de ódio, revolta e de-
Pondo de lado o problema agrário, já particularmente desenvol- sordem, e toda a construção desabará fatalmente.
vido em outros escritos, observemos, por exemplo, como a ci- Eis os grandes empreendimentos do involuído, que, feliz-
ência médica trata o corpo humano. Cremos que a imunidade se mente, não representa toda a massa. A minoria, composta de
possa obter artificialmente pela introdução no corpo humano de mais adiantados, embora não seja dirigente, tem a função de
pus ou de vírus e proteínas desconhecidos. No entanto a resis- reequilibrar a desordem e salvar a humanidade. Porém, nos pe-
tência orgânica não passa de equilíbrio entre contaminação e ríodos de transição como o atual, em que as civilizações en-
defesa, renovando-se continuamente, equilíbrio que se conse- tram em liquidação, o tipo involuído, encarregado de exercer a
gue apenas por meio de características intrínsecas, adquiridas função destrutiva correspondente às suas capacidades especifi-
através de prolongadíssimos períodos de luta. A profilaxia acer- cas, adquire especial violência. Representa o órgão da destrui-
tada reside nas qualidades protetoras e defensivas que o orga- ção. Adormecerá, ficando em estado de vida latente, quando o
nismo, por si mesmo, adquiriu em prolongada e necessária luta tipo evoluído, órgão da construção, estiver funcionando. As-
entre o campo orgânico e o micróbio. A outra profilaxia é pro- sim, cada tipo, por sua vez, vive e triunfa, contribuindo para a
teção ilusória e fugaz, vitória fictícia obtida à custa da resistên- vida, e tem razão ou está errado, conforme a função que de-
cia orgânica, preguiçosamente, sem luta, através de meios que, sempenha. Estamos em fase de declínio evolutivo para liquidar
ao invés de fortalecerem, enfraquecem. Apenas a luta esforçada esta civilização, e, em período assim de destruição renovadora,
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 175
exalta-se o modelo humano que amanhã será com repugnância ção construtiva à civilização em nossa hora decisiva, tornava-se
considerado ínfimo. Amanhã, em fase de ascensão evolutiva necessário mostrar o funcionamento da Lei. A palavra, na ver-
para construir nova civilização, será exaltado modelo oposto, dade, está morta, tanto nos habituamos a fazê-la e ouvi-la soar
agora incompreendido e perseguido, e será liquidado o tipo bi- falso e a considerar como inúteis os ideais. Porém a leitura do
ológico hoje em voga e em plena atividade. pensamento da Lei, aqui feita, não é apenas palavras. Nesta ex-
Até o involuído desempenha, pois, função social e, no que planação se garante a ação da Lei, maturadora no íntimo dos
diz respeito aos equilíbrios da vida, está colocado no lugar que fenômenos que estamos descrevendo. Na realidade da vida,
lhe compete, devendo também ter sua oportunidade. Ele, natu- atrás do pensamento que estamos lendo, situa-se a força opera-
ralmente, defende, como todos o fazem, os princípios do pró- triz e o meio de comando. Essa palavra está, pois, carregada de
prio plano, onde se sente forte e, por isso, está sempre com a fatos, adere ao dinamismo atuante por ela expresso; não é hipó-
razão. Tal como acontece aos demais, irrita-o a afirmação das tese ou criação pessoal de um homem, mas derivada da realida-
verdades de outros planos, porque aí se sente fraco e, em con- de que vivemos e está amadurecendo. Aqui se fala, pois, de
seqüência, nunca tem razão. Por instinto vital e porque a com- conceitos vivos, de conceitos-força, impelidos em direção à sua
preende melhor, todos sustentam a verdade do próprio nível e realização. Não se trata de exposição de luxo, de vitrina de con-
do próprio tipo biológico. Afirmamos o que somos, o que me- ceitos com idéias em exposição, mas de cadeia de pensamento
lhor compreendemos, o lugar onde melhor vivemos e vence- cósmico expressa em modo de desenvolvimento racional.
mos. O próprio involuído quer afirmar-se e escolhe sua arma: a Embora muito triste, a visão dos erros e dores humanos não
força. Sente-se fraco no plano da justiça, arma escolhida pelo pode diminuir a alegria imensa da leitura do livro da Lei, que,
evoluído, que apenas aí se sente forte. O primeiro, portanto, na- apesar de tamanha imperfeição humana, é o livro das perfeições.
turalmente repele essa defesa que não o defende, essa arma que Enquanto penetramos, pouco a pouco, na profunda realidade das
não lhe dá razão, e a ela antepõe a força, que ele defende por- coisas, cada vez mais clara aparece a ordem divina e a alma se
que a compreende mais, porque é o método de seu nível evolu- extasia ao contemplar as harmonias da criação. Enquanto subi-
tivo e o único meio a oferecer-lhe possibilidade de estar com a mos, invade-nos o senso de libertação, confiança, repouso em
razão, embora momentaneamente. Foge, por isso, dos caminho Deus, adesão à Sua vontade, sintonia com o todo, fusão em or-
da ordem e da Lei e prefere os da revolta, mais trabalhosos e ganismo imenso, de poder e beleza supremos. Quanto mais a
inseguros. Perante a justiça, compreende muito bem que está observamos, tanto mais perfeita nos aparece a Lei.
enterrado em dívidas e não pode valer-se da Lei, que apenas lhe Começamos a nos afastar lentamente do mundo do involuí-
aplica sanções dolorosas. Onde o evoluído goza de crédito, o do e a subir cada vez mais em direção ao do evoluído. Na atual
involuído está endividado até o pescoço; onde o primeiro en- fase de transição defrontam-se o tipo biológico do passado e o
contra ajuda, o segundo acha apenas desvantagem e condena- do futuro. Classificamos desse modo os dois extremos típicos
ção. Então, renega Deus e a Sua lei. E renega-os exatamente do indivíduo humano, para tornar mais clara a demonstração.
porque percebe que existem e lhe dirigem exprobrações. Rebe- Na realidade, porém, entre os dois extremos situam-se infinitas
la-se, portanto, e como defesa lhe resta apenas a força. Este é o gradações intermediárias, conforme o desenvolvimento evolu-
seu ponto de vista. O evoluído ama a Deus e à Sua lei, que lhe tivo de cada um. O extremo inferior exprime a quantidade; o
garantem alegria e proteção. Sua economia não se baseia, como superior, a qualidade. A evolução consiste em transformar a
para o involuído, na força e no furto, mas na Divina Providên- primeira na segunda (como na desintegração da matéria e de-
cia, que, se não funciona em favor do outro, realiza-se plena- gradação da energia). Transformando-se a massa em energia,
mente em relação a ele, que preenche as condições necessárias muda a forma, mas a substância permanece indestrutível. Se o
à verificação do fenômeno. Todos confirmam e exaltam o que compararmos com a energia elétrica, vamos entender melhor
são e possuem, e negam o que não são e não têm. esse fenômeno. O involuído representa o estado elétrico com
A época atual representa a vitória do involuído, isto é, da muita amperagem e pouca voltagem, e o evoluído, a posição
força, da rebelião, da desordem. Mas ele também, embora re- inversa, em que, diminuída a amperagem, aumenta proporcio-
belde, não passa, em última análise, de servo da Lei. Em face nalmente a voltagem, ou seja, a quantidade de corrente, embora
de seu método negativo de revolta, seu desenvolvimento e suas diminuindo, se transforma em alta tensão. Mas, apesar da trans-
vitórias acabaram em destruição, quer dizer, em sofrimento e formação, nada se criou ou destruiu, pois a substância, expressa
humilhação, de que nascem o entendimento e a ascensão. O pela potência em Watt, permaneceu igual a si mesma. Entre os
destruidor é, pois, instrumento da reconstrução; suas negativas, dois estados se estabelece a mesma relação existente entre vo-
esgotada sua função e aniquilado seu autor, se transformam em lumes de água (em metros cúbicos), considerados fonte de
afirmações; a desordem do rebelde acaba em ordem mais ele- energia, e a pressão por eles exercida (desnível). Noutras pala-
vada; o resultado da dor é a evolução. O ciclo traz em si mes- vras, a energia se refina, sutiliza, mas ao mesmo tempo se di-
mo a sua lei, as forças dentro dele canalizadas são todas reuni- namiza. Assim, a transformação se compensa.
das em corrente, de acordo com ritmo fatal, que obriga o de- Confrontemos os dois tipos. O involuído é forte, mas insen-
senvolvimento da fase a terminar na dor, que ilumina, purifica sível e obtuso; verdadeiro rio de energias, mas de má qualidade,
e redime. De tanto caminhar, nossa época progrediu até atingir indisciplinada e grosseira. O involuído as desperdiça de manei-
a fase útil e construtiva: a dor. Ela fará refletir muitíssimo. É a ra ilógica, pois lhe falta a consciência diretriz, que, para ser
única estrada para a compreensão. E somente após haver com- conquistada, requer exatamente, através da experimentação, es-
preendido, nos será possível construir a sério, com solidez, pa- se dispêndio de energia. O mundo de nossos dias é assim. Ao
ra ascendermos cada vez mais. evoluído aparece como caos infernal, estúpido e doloroso. O
evoluído vive em plano físico menos forte, porém mais sensí-
IX. DAS TREVAS À LUZ vel, de inteligência aguda e penetrante. Representa corrente di-
nâmica mais limitada como quantidade, porém de qualidade
Observamos os erros do nosso velho mundo para superá-los imensamente superior, refinada, disciplinada. Com a elevação
no mundo mais adiantado que devemos construir. O ciclo não é de potencial, essa forma de energia tornou-se mais poderosa,
novidade e recorda aquele com que se encerrou a existência do mais apta a vencer resistências, como acontece na eletricidade
império romano. Aqui não dizemos coisa alguma que não tenha (lei de Ohm), quando aumentamos a voltagem. Se a corrente
sido escrita pela Lei na história e na vida. Acontece apenas que dinâmica é de quantidade mais limitada, suas qualidades de
nem sempre a liam, mas nós lemos. Só isso. Para dar contribui- maior potência, a ordem e a disciplina com que são manipula-
176 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
das e o modo mais consciente como são empregadas dão-lhe neles. Exagera-se, ao invés, o progresso mecânico, colocado em
muito maior rendimento. A transformação da quantidade em primeiro plano; quanto à ciência da matéria, prossegue-se até à
qualidade, embora a massa se torne mais sutil, traduz-se em hipertrofia, sem suspeitar-se que os equilíbrios da Lei devem,
maior poder de penetração; a sabedoria de consciência diretriz pelo contrário, agir em direção oposta e compensadora, pro-
já conquistada significa a poupança de imensos desperdícios de vendo o mais necessário: a sabedoria diretriz que reordene, guie
energia impostos, na experimentação, pela tentativa e pela in- e, portanto, valorize as conquistas já realizadas. Não compreen-
certeza. Por isso, não apenas a natureza mais sutil do novo di- demos, ainda, que os princípios atualmente em vigor, para não
namismo permite transpor mais facilmente os obstáculos, como acabarem no aniquilamento, são corrigidos e não persistem; se
também o conhecimento que o dirige elimina as dispersões inú- não lhes adicionamos princípios complementares, não represen-
teis, os erros e, em conseqüência, as dores e lhes permite maior tam vantagem, mas dano. Essas previsões estão, pois, no cami-
aproveitamento em sentido evolutivo, de harmonia e felicidade, nho errado. Caímos no erro de acreditar que a evolução seja
e não involutivo, de erro e dor. Nesse plano atingiu-se o objeti- unilateral e retilínea e que o futuro não deva passar de multipli-
vo da luta do involuído: a conquista de consciência; os atritos e cação, de continuação ampliada, do presente. Por força da lei de
os choques de seu modo de lutar foram superados e eliminados, equilíbrio, o caminho percorrido por determinado século não
sendo agora inúteis; tudo se tornou orgânico, harmônico, lógi- pode ser exatamente o prosseguimento puro e simples do se-
co, consciente, sábio. Não apenas a massa se tornou potência, guido pelo século precedente. Cada época tem objetivo próprio,
como também a utilização dessa potência é cada vez maior, com o qual, a fim de equilibrar de todos os lados o desenvolvi-
quer dizer, consegue-se, em termos de felicidade, cada vez mento, tende exatamente a compensar o da época anterior. Por
maior rendimento. Não só a matéria se tornou energia vibrante, isso, toda atividade é levada a transformar-se, ou invertendo-se
mas o dinamismo, conquistando mais forte capacidade de pene- na sua complementar oposta ou completando-se em formas
tração, transformou-se em força mais ativa e, por isso, mais po- ainda não desenvolvidas. Continuar a conceber o progresso
tente, firmando a arte, antes ignorada, de saber usar tudo isso apenas como exterior e mecânico significa incompreensão do
com inteligência, o que dá a todos os atos, inclusive aos míni- progresso, pois ele seria apenas o prosseguimento de trabalho
mos, valor e resultado muito maiores. unilateral, a continuidade de civilização que esgotou sua tarefa
No desenvolvimento do universal fenômeno evolutivo de e não tem mais razão de existir, devendo, portanto, ceder o pas-
uma a outra das três formas sucessivas, matéria, energia, espíri- so a nova civilização de tipo completamente diferente. As no-
to, a transformação biológica que o homem experimenta corres- vas ascensões, fixadas e superadas as vitórias da técnica, deve-
ponde à transição da fase-energia à fase-espírito. Isso caracteriza rão apossar-se do campo das qualidades humanas. Há muitos
o novo tipo biológico e a nova civilização. Se, coletivamente, outros germes à espera, hoje invisíveis, que se conservam laten-
com a organicidade, caminhamos para a atuação da ordem da tes, escondidos nos intervalos dos grandes ritmos da história.
Lei, individualmente marchamos em direção à espiritualidade. Nossos atuais problemas constituem fase de transição e prepa-
Se a força caracteriza o involuído, a inteligência revela o evoluí- ração de muitos outros problemas, completamente diferentes.
do. Isso os distingue e constitui a pedra-de-toque para determi- Superar-se-ão a luta de classe e a competição entre o capital e o
nar o grau evolutivo do homem. Basta observar como este, indi- trabalho; resolver-se-ão tantas incompreensões e tanta ignorân-
vidual e coletivamente, se conduz, faz a guerra e vive durante a cia; a organicidade exterior e forçada deverá transformar-se em
paz, desencadeia as revoluções e supera as crises, como traba- organicidade íntima e estabelecida por livre convencimento. A
lha, pensa, comanda, obedece, para ficarmos em condições de evolução, que hoje plasma a forma, deverá penetrar sempre
classificá-lo criteriosamente. Não interessa a posição social, mas mais na substância e renová-la cada vez mais intimamente. Há
a qualidade íntima; não importa o bom êxito, mas o método e o na vida muitos outros germes que esperam em silêncio, nela co-
comportamento; não tem valor a boa ou má fortuna, mas a raça. locados muito a propósito, para germinarem e crescerem, visto
Muitas vezes, os ciclos históricos têm ritmo fatal. O que interes- ser essa a finalidade de todos eles. Após compreender-se a lógi-
sa é o valor do passo com que marchamos no tempo; o que de- ca do processo, tudo isso se torna evidente.
cide é o modo especial de cada homem ou nação escrever a pró- A fé por nós depositada no ressurgimento espiritual do
pria história, determinado tão-somente pelo valor intrínseco da mundo se baseia em profunda visão das coisas, que estende os
personalidade, através da qual esse modo especial transparece. braços até aos confins do espaço e do tempo. É impossível que
O diferente modo de agir revela e distingue. o homem de hoje, dominando sempre mais as forças da nature-
No evoluído, a força trabalhou tanto, que se transformou em za, não chegue a aprender algo, embora através de hecatombes,
inteligência, sua primeira qualidade. Trata-se de sensibilização e, manipulando cientificamente a vida, não se lhe revele a
geral, de que também derivam sabedoria, bondade, equilíbrio, imensa realidade subjacente. A estrutura evolutiva do universo
harmonia e, por isso, poder. O homem funciona em universo e o ritmo progressivo da Lei evidenciam a impossibilidade dis-
maravilhosamente organizado e não o nota, move-se em oceano so. Como negar a solene afirmação da vida, que, apesar de to-
de forças inteligentes e não o percebe, vive em meio de belezas dos os obstáculos, anuncia eterno triunfo? Os desenvolvimen-
imensas e não as vê. O homem moderno não passa de cego e tos são fatais; viver é progredir; toda trajetória é lógica. As
bárbaro. A sensibilização lhe rasgará horizontes insuspeitados, verdades das maiorias modernas não passam de momentâneas
torná-lo-á senhor de muitas forças sutis que hoje lhe fogem. O correntes psíquicas e nada provam. O mundo se guia pelo rit-
imponderável, agora apenas intuído, é ao mesmo tempo mina e mo dos ciclos históricos, pelo peso dos imponderáveis. O ho-
abismo; amanhã se tornará ponderável. São inesgotáveis os re- mem não dirige a história, segue-a. A Lei a todos arrasta, con-
cursos da criação. A força constitui a potência mais fraca da vi- fiando a cada um função especial. Na organicidade do sistema
da. Quem dela se socorre não sabe quão explosivo é o pensa- diretor existe sabedoria que deseja o progresso e nos salva
mento, que poder tem a disciplina na organicidade. Apenas um mesmo a nosso malgrado. Os grandes homens detentores do
olhar lançado no futuro, para que o pressintamos, nos enche de poder, expoentes da história, desaparecem; mudam os nomes
estupor. Geralmente, essas espiadelas no futuro reduzem-se a das coisas e as atitudes populares; e a sabedoria prossegue em
previsões fantásticas à Wells, limitando-se o escritor ao desen- direção aos objetivos propostos pela vida, independente e im-
volvimento dos motivos já em nossos dias atuantes, com uma perturbável no seu caminho, sob muitas formas diferentes. A
perspectiva ampliada do atual estado de coisas. Ninguém fala mesma verdade continua a desenvolver-se, atuando sob as apa-
de novos motivos, aqueles que, de acordo com a lógica da evo- rências mais opostas da verdade, mas superficiais e momentâ-
lução, serão introduzidos na vida. E o futuro reside exatamente neas. A visão das grandes coisas de Deus escapa a quem olha
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 177
de muito perto as pequenas coisas humanas. Como se fosse Não é só isso, porém. No decurso da evolução, todas essas po-
cântico ansioso e aflito, nosso pensamento vagou pelo univer- sições mudam continuamente, e está em nossas mãos fazê-las
so, percorreu-o, buscando sem cessar, e, saciado, deteve-se na mudarem. Para todos nós, o estado de involução representa o
fé por ele depositada na ascensão, em que percebe haver en- passado; para todos os homens de boa vontade, o estado de
contrado o verdadeiro sentido e o fim supremo da vida. evolução significa o futuro. Desse modo, o evoluído de hoje foi
Qual o sistema de vida do novo tipo biológico evoluído? ontem o inferior involuído, que amanhã poderá ser o superior
Que posição toma na Terra, especialmente em face das neces- evoluído. Essa é a hierarquia dos seres, que ao longo dela se
sidades materiais, eixo da vida dos demais? Sua regra pode re- movem de acordo com o merecimento e a boa vontade.
sumir-se no preceito evangélico: ―Buscai o reino do espírito, e A luta entre involuído e evoluído é fatal. Todo ser personifi-
tudo o mais vos será dado por acréscimo‖. Conquistado o po- ca determinada força e representa determinado elemento da luta;
der maior, consistente no domínio do espírito, torna-se lógica a ninguém pode, na posição de neutro, fugir da luta, pois a vida
conquista do poder menor, que é o domínio da matéria. Não consiste na ascensão através da luta. Vida é movimento, é vir-a-
estamos tratando de admirável utopia, mas de fato suscetível ser; a estase a mata. E esse vir-a-ser tem de significar ascensão.
de verificação. Quem já aplicou essa norma sabe que é verda- Esse movimento não pode deixar de se dirigir para cima. Resol-
deira. Encontrado o reino do espírito, o resto nos é dado espon- ve-se na morte a vida que não progride para o alto. Construir ou
taneamente, por acréscimo. Como quem pode o mais pode o morrer, avançar ou extinguir-se. Quem pára perde a vida: se não
menos, possuir o plano do espírito significa dominar os planos evolui, morre; o retardatário morre na proporção do próprio re-
inferiores e as forças que o regem, significa tornar-se esponta- tardamento; quem chega tarde se arruína; quem se recusa se des-
neamente, sem necessidade do emprego de força, senhor de tu- trói. Progredir cansa muito; todo aquele, porém, que retrocede
do quanto aí exista. Quem o conseguiu possui naturalmente, caminha em direção ao inferno; enquanto isso, quem progride
dentro de si mesmo, o senso da medida justa e não abusa. Tudo caminha rumo ao paraíso. A Lei nos comprime de todos os lados
isso mostra que conseguimos maior vitória obedecendo à Lei para que nos decidamos ao trabalho fatigante de avançar em di-
do que nos revoltando. Os atuais assim chamados donos da ri- reção do paraíso e tudo retorne ao seio de Deus, de que se afas-
queza, na realidade não passam de seus escravos. O evoluído tara. A vida não tem e não pode ter outro significado.
não aprendeu a servi-la, mas a servir-se dela, a considerá-la
meio, e não o objetivo da vida; aprendeu a construir seus te- X. O PROBLEMA DO MAL
souros com valores superiores aos econômicos e materiais, a
amar coisas muito mais belas do que as da Terra. Não prostitui A luta entre o involuído e o evoluído não passa de momento
o espírito em presença do mundo e se mantém senhor das for- da luta universal entre o baixo e o alto, o passado e o futuro, o
ças da vida. Seu domínio atinge a raiz dos acontecimentos e a mal e o bem, e ao contrário. O problema se espraia, desse mo-
essência das coisas; é mais potente porque mais profundo. O do, no problema muito mais vasto do bem e do mal, os dois
encontro do reino do espírito transformou-lhe a vida em es- termos contrários em que se divide e se funde a grande unidade
plêndido e imenso acontecimento, isto é, no funcionamento de do universo. O mal representa o baixo, o passado, a desordem,
força indestrutível na organicidade universal. Como, por causa o inferno, a revolta contra a Lei, o nosso afastamento de Deus.
do equilíbrio interior, é, antes de mais nada, dono de si mesmo, O bem representa o alto, o futuro, a ordem, o paraíso, a obedi-
constitui-se senhor, e não escravo das coisas, que para ele as- ência à Lei, a aproximação a Deus. Como a evolução é apenas a
sumem outro valor e diferente significado, por serem vistas de ascensão do primeiro para o segundo posto, o involuído não
ponto de vista mais elevado. passa de retardatário, e, do mesmo modo, o evoluído é tão-
Maneira tão nova de conceber a vida representa verdadeira somente certo involuído que progrediu. Tal como se digladiam
revolução biológica no mundo moderno. Os dois tipos, involuí- os dois termos contrários, mal e bem, assim também o fazem o
do e evoluído, personificam a velha forma e a nova, que devem involuído e o evoluído, que pertencem respectivamente ao pri-
respectivamente morrer e nascer. Trava-se luta entre esses dois meiro e ao segundo termo. Para compreensão de qual deverá
tipos de vida. Cada um deles tem suas próprias armas. O invo- ser o resultado da luta, analisemos a natureza e a estrutura dos
luído usa força ou astúcia; o evoluído, bondade e perdão. O dois sistemas de forças, do mal e do bem, confrontando-os. A
primeiro é violento, mas cego; o segundo, pacífico, mas de óti- análise nos indicará também, implicitamente, o resultado fatal
ma visão. O primeiro suporta, o segundo domina o imponderá- da luta entre involuído e evoluído.
vel. Estão frente a frente, em posição de recíproca e relativa in- Analisemos o fenômeno do mal. É evidente tratar-se de sis-
ferioridade e superioridade. Mas tudo se reequilibra, porque o tema de forças por natureza negativo, quer dizer, cuja caracte-
evoluído, se possui mais poderes, tem também mais deveres. rística fundamental reside na negação. Satanás é representado
Eis a grande guerra em que vencerá o homem desarmado e de como o espírito que nega, como o principio em que a revolta se
que nascerá a nova civilização. O evoluído sabe, porém, que as funda. O Fausto de Goethe desenvolve essa psicologia a fundo.
recíprocas posições de inferioridade e superioridade não são Aí, onde o bem afirma ―sim‖, isto é, construir, harmonizar,
absolutas, mas relativas; que à maior quantidade de meios cor- progredir, o mal diz ―não‖, ou seja, destruir, desarmonizar, re-
respondem maiores obrigações; que essas posições não são de- gredir. Isso significa possuir natureza inadequada, desenvolver
finitivas, mas transitórias. Todo tipo biológico, se não passa de atividade em direção errada, constituir sistema de forças que
involuído quando comparado ao evoluído que o supera, é por apenas pode atingir resultado falso. Tudo isso esta implícito no
sua vez tipo evoluído se confrontado com outro mais involuído sistema, por força de seu próprio princípio e estrutura. Desse ti-
que ele; e todo evoluído, se supera o involuído, não passa, a seu po são a natureza e a atividade do involuído, vandálico por
turno, de involuído se observado em relação a tipo mais evoluí- princípio, enquanto o evoluído é por natureza construtor e anti-
do. Cada um, seja qual for o nível em que se encontre, sempre destruidor. A psicologia diferente e o método de ação constitu-
tem superior e inferior. Por isso nenhuma posição nos dá direito em exatamente a nota fundamental que os distingue. Essa natu-
de nos ensoberbecermos por superioridade absoluta, e nenhuma reza do involuído, como acontece ao mal, importa em atividade
nos dá motivo de humilhação por inferioridade absoluta. Todos na direção errada, isto é, permanecer fatalmente ligado à mes-
temos um superior, com quem aprendemos e a quem prestamos ma estrutura do próprio sistema de forças, de modo a atingir
conta, e também um inferior, a quem devemos estender frater- apenas resultado falso. Assim, quem por princípio destrói, aca-
nalmente as mãos. E o evoluído sabe que não dispõe de maior ba, como destruidor, agindo contra si mesmo; quem constrói
conhecimento e poder senão para execução de maior trabalho. acaba construindo para si mesmo.
178 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
Da natureza negativa das forças do mal resultam três conse- as qualidades necessárias à evolução, mas também no desem-
qüências importantes: 1) Absoluta impotência por parte do mal penho da função de elemento secundário e indispensável para
de construir para si mesmo, com capacidade de desenvolver contrabalançar as forças dos dois termos opostos do binômio,
apenas atividade negativa, isto é, de embaraçar o trabalho cons- necessários para a luta, de que nasce a evolução. Dessa manei-
trutivo alheio. Portanto o mal subordina-se ao bem, existe ape- ra, a função do mal se transforma e serve para estimular e ace-
nas como forma de negação do bem, quer dizer, é função dele, lerar a atividade das forças do bem, tornando-se, embora em
como da luz depende a sombra. O mal, desse modo, nasceu es- sua posição negativa, necessário e útil fator de progresso. Por-
cravo, e seu domínio não passa de domínio negativo, de desa- tanto o mal, sem querê-lo, torna-se útil ao bem. Assim Judas,
gregação. 2) Sua irresistível tendência para autodestruição. 3) A contra a própria vontade, trabalha para o triunfo de Cristo, e
subversão de todo o rendimento de sua atividade, que, assim, na não para destruí-lo, como desejava. No plano da criação, o mal
realidade, oposta às mentirosas aparências, não se resolve a seu se submete ao bem e, como seu servo, deve, sem sabê-lo, coo-
favor, mas a favor do termo oposto – o bem. A destruição leva- perar na consecução de suas finalidades. A mentira engana a si
da a cabo pelo mal se transforma, assim, em construção no mesma; o impulso egoísta nada pode fazer sozinho e, sem com-
campo de forças inverso e contrário. preendê-lo, presta serviço a seu rival.
Observemos os três pontos. Trata-se de três momentos do No segundo momento do mesmo processo, verificamos o
mesmo processo, de três funções tendentes ao mesmo resulta- agravamento do aspecto negativo da função do mal, agrava-
do: a vitória do bem. Conclusão: o mal parece, no entanto não mento que prejudica o próprio mal. Além de não poder constru-
é inimigo. Representa apenas a negação que condiciona a ir para si mesmo, porque é escravo do bem, o mal, em face de
afirmação. Sua posição é de divergência, mas subordinada; o sua própria natureza negativa, arrasta-se inexoravelmente para a
sistema destrutivo está combinado de modo tão sábio, que de- autodestruição. Tal é a triste posição de todos os destruidores,
ve acabar transformando-se em construção. Particularidades de quantos trabalham no campo de forças do mal. Por mais que
momentâneas poderão causar-nos impressão contrária, mas a a negação do mal pareça projetar-se contra o bem (não o atin-
ação do mal, em conjunto, representa apenas contribuição para gindo, porém, senão sob forma positiva retificada), a verdade é
a vitória do bem. Quem considera o mal como inimigo não que, na sua forma negativa, ela se projeta contra o próprio mal,
compreendeu a perfeição da Lei. No capítulo anterior, vimos que, desse modo e paralelamente à função positiva em prol do
os empreendimentos do involuído, considerado como órgão da bem, submete-se a processo de auto-eliminação. A natureza ne-
destruição. Examinando mais intimamente agora, podemos gativa das forças do sistema importa em que seu desenvolvi-
compreender de que maneira, em última análise, eles não pas- mento se traduza em demorado autodesgaste e progressivo es-
sam de colaboradores do evoluído, de órgãos de construção. gotamento. A negação do mal não pode desenvolver-se e agir
Tudo na Lei deve ser construtivo, mesmo lá onde assume as- senão em duas direções, num dúplice processo: com resultado
pectos negativos, até mesmo sob as aparências de forma opos- positivo para o bem e negativo para si mesmo, isto é, constru-
ta. O estudo do problema do mal nos faz compreender melhor indo o bem e destruindo-se. Segundo parece, em relação a si
a verdadeira função do involuído no quadro da vida; como sua mesmo, o mal não sabe fazer outra coisa senão gerar o micró-
atitude de revolta se transforma em obediência; como, apesar bio que o mata. As próprias bases e a lógica do sistema impli-
de tudo, ele é apenas escravo da Lei. Tão sabiamente se acham cam em que a vida do mal possa apenas consistir num suicídio,
combinados a natureza e o desenvolvimento das forças, que o suicídio de Judas, sua fatal autopunição. Não obstante, Judas
tudo termina se pondo a favor da evolução. A revolta, ofen- foi utilizado em favor das finalidades do bem.
dendo a Lei, excita-lhe a reação, que, para o homem, significa O terceiro momento do mesmo processo nos mostra, ao lado
dor, isto é, experiência, entendimento, redenção. Os que afir- do aspecto negativo da função do mal, seu aspecto positivo, ou
mam e os que negam, todos trabalham em prol da Lei. Através seja, mostra-nos que, além de ser apenas escravo e absoluta-
da dor, esgotando-lhe as causas, se anula a própria dor e se cria mente nada poder fazer para si mesmo, estando condenado à
a felicidade; o mal fracassa ao manifestar-se, tendendo para a autodestruição, o mal também pode, por inversão ocasionada
autodestruição, no entanto trabalha pela vitória do bem. Assim, pela natureza de seu próprio princípio animador, tornar-se cons-
aos poucos, a evolução absorve a involução, e o involuído, trutor até mesmo no oposto campo do bem. Chegado ao terceiro
transformando-se, desaparece. momento, o processo de desenvolvimento das forças do mal
O primeiro dos três momentos do processo de desenvolvi- nos mostra, paralelamente ao aniquilamento dele (segundo
mento das forças do mal nos mostra o aspecto negativo da sua momento), sua ressurreição, embora em posição invertida. Eis
função. Por si mesmo, considerando-se a sua natureza negativa, que, ao lado da função do mal, sempre exercida contra ele, apa-
representa força esgotada, equilíbrio instável e provisório, posi- rece outra, mais verdadeira, função inversa, ou seja, afirmativa
ção falsa e insegura, apenas capaz de triunfos efêmeros. O tem- e construtiva, que atua sempre em favor do bem. Tais são as
po, de fato, constitui o grande inimigo do mal, sempre apressa- conseqüências da estrutura negativa do sistema: danos para si
do porque reconhece a instabilidade de suas posições. Sozinho, mesmo e vantagens para o inimigo. Terrível condenação. A
pois, nada pode concluir de duradouro. Embora sabiamente mentira do mal não pode, logicamente, terminar senão por en-
executadas, as construções do mal parecem tender irresistivel- ganar a si mesma, dissolvendo-se em favor da vitória do bem.
mente ao desmoronamento. Por mais perfeitas que sejam, falta- O próprio método do mal, de travestir-se em mil e uma ilusões,
lhes o equilíbrio completo, única base estável e resistente. O leva-o a transformar em positivo seu próprio impulso negativo.
que é resultado de negações e destruições não pode afirmar-se e Mas, embora querendo mentir aos outros, o mal, se quiser con-
construir, mesmo no mal. Se a função do mal é para si mesma tinuar sincero para consigo mesmo, não pode ser senão auto-
negativa, torna-se positiva em favor dos outros, embora contra destruidor. Como nenhuma afirmação pode existir em campo
estes também se dirija em sentido negativo. Desde que o prin- negativo e como, nesse campo, nenhum desenvolvimento pode
cípio da subversão esteja na base do sistema, é claro que, de- verificar-se senão em sentido destrutivo, então o mal não pode,
sencadeada tal força em si mesma negativa, esta, ao chegar, de- em última análise, afirmar-se e desenvolver-se, com o caráter
ve apresentar-se invertida, isto é, positiva. O trabalho maligno de força, senão contra si mesmo e em favor de seu contrário, is-
de embaraçar a atividade construtiva alheia transforma-se, des- to é, em campo positivo e a favor do bem. Eis que o princípio
se modo, não só no exercício da útil função de resistência, ne- anticriador, o anti-Deus, por si mesmo se destrói, se trai e se
cessária à aplicação do esforço humano, para fim de controle e torna servo de Deus, princípio-criador. O mal não funciona
verificação do experimento com que se conquistam exatamente apenas como obstáculo que serve para adestramento no campo
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 179
das provas, como catalisador nas reações, desse modo ajudando da sabedoria divina, os dois inimigos colaboram para obtenção
a evolução, mas é também a principal fonte dessa dor que é do objetivo comum; ambos criam: o primeiro, destruindo, e o
exatamente causa de reequilíbrio, instrumento de redenção para segundo, construindo. Satanás acaba sendo (suprema ironia) es-
o mal e de evolução a caminho do bem, isto é, a força devora- cravo do bem e operário de Deus. Portanto qualquer pessoa de-
dora do mal e construtora do bem. Então o escravo torna-se útil molidora ou construtora, involuída ou evoluída, tem de, queira
colaborador; o que parecia elemento destrutivo é, na realidade, ou não, dar contribuição construtiva.
instrumento que serve para construir, condição de progresso Através dessas considerações, apareceu-nos o verdadeiro
vertical e de realização do bem; é amigo, ao invés de inimigo. rosto do mal. Conseguimos avaliação mais aproximada e com-
Assim se explica a necessidade desse agente determinador de preensão mais harmônica do fenômeno, de modo que o mal não
provas, a utilidade das perseguições, a significação do atentado constitui, como muitos pensam, mistério, censura à bondade de
destrutivo por parte do involuído. Assim se explica como o Deus ou inexplicável imperfeição de Sua perfeição. O fenôme-
progresso se nutre dessas resistências, ao invés de permanecer no se torna mais compreensível se o concebermos como siste-
bloqueado por elas, pois se transformam, enfim, em impulsos ma de forças em ação. Há de chegar o dia em que essas forças
favoráveis. Assim se compreende porque o evangelho nos poderão ser percebidas e calculadas por tipo humano a isso sen-
aconselha a que não façamos frente ao mal. Em universo perfei- sível, em razão de ser mais evoluído. Então, ao invés de de-
to, onde tudo possui significação própria; se o mal existe, deve monstração racional, ele poderá provar experimentalmente tudo
ter objetivo, rendimento certo, exercer função. Nos equilíbrios quanto havemos afirmado. A quem vê as coisas só pelo lado de
da Lei, até o mal se torna útil. Já vimos que a Criação é cons- fora, tudo isso pode parecer absurdo, mas a verdade é que o mal
trução orgânica. Qualquer coisa posta fora de lugar, ou sem ra- nasce para o bem. Se o mal nos faz mal é porque lhe pertence-
zão de ser, ou sem função, constitui enorme absurdo. Quem não mos; faz-nos mal na medida e nos pontos em que lhe pertence-
compreende pode clamar contra os erros e os defeitos; porém mos, ou seja, na proporção em que já se encontra dentro de nós
quem compreende vê, por isso, como tudo está em seu lugar mesmos, segundo a nossa desordem, tal como livremente a de-
certo, admira a perfeição com que todas as coisas, o mal e o sejamos e incorporamos em nós mesmos. Nossa qualidade e
bem, operam em harmonia com a Lei, a favor do bem. posição é que nos torna vulneráveis à sua capacidade destruti-
O bem possuí, pois, grande aliado, o mal, cujas forças traba- va. Retornamos por outros caminhos aos princípios, já conside-
lham contra si mesmas e a favor do bem. De modo que, em re- rados, da lei da honestidade e do merecimento. Se formos cul-
sumo, os impulsos do mal se adicionam aos do bem; portanto, pados, o mal desempenhará em relação a nós o papel de justi-
sob as aparências de desordem e rebelião, tudo é ordem e obe- ceiro, mas, se formos inocentes, nos transformará em mártires e
diência a Deus. Quando penetramos além da superfície das coi- promoverá nossa apoteose. Só para os malvados o mal é apenas
sas e observamos mais profundamente, surge uma realidade di- mal. Para os bons constitui bem. O mal poderá semear a ruína
ferente e maravilhosamente perfeita. Ficamos atônitos, então, dentro de nós apenas se lhe houvermos invadido o campo e
em face da inesperada sabedoria da Lei. As resistências se descido em seu terreno. Doutro modo, nada poderá contra nós.
transformam em impulsos construtivos, as dificuldades estimu- Noutras palavras, o mal retifica posições, é mestre que só inter-
lam e os ignaros impulsos do mal gentilmente se prestam, à vém para corrigir onde há erro. Lá onde a ordem já se estabele-
custa do próprio dano, a trabalhar pela vitória do princípio con- ceu, o mal fica sem ação, porque não encontra ponto de apoio
trário. O mal é enquadrado a serviço do bem. Satanás goza de algum. Se em nós não existe falha alguma, o mal não sabe por
liberdade até ao ponto que Deus quer e está prostrado e amarra- onde entrar. Portanto, apenas proporcionalmente à nossa imper-
do a Seus pés. Escolha o homem a posição destrutiva ou cons- feição estamos sujeitos ao mal e sofremos; porém, abrindo as
trutiva, funções da resistência ou do impulso na ascensão, tudo portas para a dor e permitindo que o mal ataque, a imperfeição
se resolve em aplainar a estrada da evolução e se resume em acaba sendo automaticamente corrigida e saneada pela dor e pe-
obediência à Lei. O estridor infernal da desordem é indiscipli- lo mal, cuja ação deste modo, seja ela qual for, tende sempre a
nado apenas no seu campo e interiormente, mas, para além dos preencher automaticamente a falha através da qual entrou e a
limites estabelecidos, tudo se enquadra no concerto das harmo- transformar-se em bem. O universo, portanto, contém em si
nias divinas. Assim, nas mãos de Deus, o próprio Satanás des- mesmo o princípio de ressaneamento de todo erro.
trutivo se transforma em construtor, embora sem sabê-lo nem Esses conceitos podem, enfim, mostrar-nos racionalmente o
querê-lo; de tanto negar e mentir, acaba por fazer o contrário significado lógico desse tão raramente aplicado método evangé-
daquilo que pensa estar fazendo; de tanto enganar, acaba sendo lico de não-reação: ―Ouvistes que foi dito: Olho por olho e dente
enganado. Judas desejava ganhar e matou-se; pensava trair e por dente. Eu vos digo, porém, que não resistais ao mal (ao ma-
tornou-se instrumento da Paixão de Cristo, colaborador da re- ligno); mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe tam-
denção, negativo, mas útil. Todos os ataques do mal, também bém a outra‖ (Mateus, 5:38–39). Assim falou Cristo no Sermão
nesse caso, permanecem subordinados ao bem, tudo coopera na da Montanha. Não se trata apenas de ato de amor, mas de méto-
vitória de Cristo. Isso nos mostra que podemos ser derrotados do de vida logicamente colocado no sistema universal, em que a
mil vezes, mas o que decide a vitória final é estarmos do lado defesa do justo é fato automático. Para quem não conhece a Lei,
da verdade. Nisso se resume a história do mundo. Em última isso é absurdo. Não obstante, nossa miopia nos torna vítimas de
análise, Satanás não existe senão para involuntária e inconsci- ilusão, quando nos faz acreditar que reação significa defesa.
ente missão benéfica, fora da qual lhe resta apenas autodestruir- Agora, estamos em condições de compreender que reação não
se. Cumprida a missão, aniquila-se. A essência da destruição do quer dizer isso, pois, ao invés de fechar, abre as portas ao mal,
mal conserva-se latente dentro dele e é imposta inexoravelmen- introduzindo-o no seu próprio campo de forças, quando recebe e
te pela própria natureza do organismo de forças de que ele se devolve a violência. O sistema da Lei já é de si mesmo justo;
constitui. O mal carrega consigo o germe da própria destruição, não precisa de intervenções humanas para tornar-se tal. Só a
posto nele para que tal aconteça. Representa o impulso central Deus compete julgar e distribuir justiça. O justo é automatica-
do sistema, que o levará fatalmente à pulverização final. No mente protegido pela Lei. Quando somos injustos e merecemos
universo, tal como está construído, é absurdo que o mal final- ser prejudicados, de nada valerá nos defendermos sem a defesa
mente vença e o bem seja derrotado. Vemos, ao invés, que tudo de Deus. O evoluído, que compreendeu a Lei, segue o método
se move em direção evolutiva, isto é, rumo à perfeição. A única de não-reação preconizado por Cristo. O involuído segue o mé-
razão que mantém vivo o mal é exatamente sua função benéfica. todo do mundo animal: olho por olho e dente por dente. O pri-
Assim, ambos se encaminham para o mesmo objetivo; por força meiro, confiando-se à justiça de Deus, defende-se com o mere-
180 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
cimento. O segundo tem a seu favor apenas a força, por isso é rito e não se preocupa com os problemas imediatos e angustio-
mais débil e inseguro. Para este, contudo, o método consciente sos da vida real, implicitamente os resolve, sabe-se lá por que
do evoluído parece forma de debilidade desprezível. Há, porém, meios ignorados dos demais. E não é só, mesmo parecendo des-
uma grande diferença entre os dois métodos para sua atuação: o tinado a cair, além de não cair, ainda recebe por acréscimo, es-
primeiro importa a necessidade de sermos honestos. pontaneamente, coisas que os outros, muitas vezes inutilmente,
gastam a vida para conseguir. Como poderia o evoluído fugir à
XI. A ECONOMIA DO EVOLUÍDO dura lei, conhecida tão bem por todos nós, segundo a qual nada
se obtém sem esforço?
Continuemos a subir, devagar, do mundo do involuído para Essa posição privilegiada é apenas momento da libertação a
o do evoluído. O próprio Sermão da Montanha, há pouco cita- que a evolução nos conduzirá. Eis uma das principais vanta-
do, continua a mostrar ao evoluído o caminho, seu método, até gens da ascensão. O evoluído superou nossas lutas e fadigas,
mesmo no campo econômico: ―... e, ao que te houver tirado a destinando-as para a execução de tarefas mais nobres. Por sua
capa, nem a túnica recuses; e dá a qualquer que te pedir; e, ao própria natureza, ele não trabalha mais em nosso plano materi-
que tomar o que é teu, não o tornes a pedir-lhe‖ (Lucas, 6:29- al, mas sim no plano espiritual, mais elevado. Os problemas
30). Economia vã e aparentemente desastrosa. O mundo mo- materiais estão para ele, isto é, no sistema de forças de sua per-
derno toma o cuidado de não levar a sério semelhantes precei- sonalidade e seu destino, automática e definitivamente resolvi-
tos, profundamente convencido do sublime absurdo que eles dos, embora não o estejam para nós. O centro de seu ser colo-
constituem. No entanto quão lógicos e naturais são para quem ca-se mais no alto; sua experiência, diferente e dirigida a ou-
compreendeu a Lei,! Trata-se do mesmo princípio de não- tras conquistas, está completa em nosso plano material e atin-
reação, aplicado não mais à defesa da própria pessoa, mas a de giu seu objetivo; as qualidades em cuja conquista nos cansa-
seus haveres. Aí reencontraremos, por isso, igual método de de- mos tanto já foram conseguidas por ele; no plano em que para
fesa: a justiça confiada a Deus, segundo a honestidade e o me- nós ainda há trabalho em prol de reequilíbrio e reordenamento,
recimento. Assim, tanto na defesa dos bens como da pessoa, a para ele há equilíbrio e ordem agindo espontaneamente. De
conclusão é a mesma: o justo é automaticamente protegido pela acordo com o principio do merecimento, a Lei dá gratuitamen-
Lei. Se somos injustos e merecemos ser prejudicados, de nada te ao evoluído o que ele merece e obriga o involuído a con-
nos vale a defesa que promovemos, sem a proteção de Deus. quistar com muito esforço o que ele ainda não merece. Tudo
Voltamos desse modo ao conceito já explicado, isto é, de que a isso é lógico justo e corresponde aos equilíbrios da Lei. A inte-
propriedade só resiste aos ataques se for honesta. Também nesse ligência e a atividade primam entre as qualidades que o evolu-
caso, observamos como a honestidade, à semelhança da não- ído procura conquistar à custa dos esforços já despendidos
reação, é considerada pelo mundo como forma de debilidade ou (merecimento), e chega por isso a possuí-las na forma espon-
imbecilidade, quando a honestidade significa, isso sim, ser cons- tânea de necessidade e instinto; é naturalmente dinâmico, irre-
ciente. Tal o método do evoluído no campo econômico. O estu- sistivelmente inteligente e laborioso. Portanto a luminosidade e
do dos princípios e das forças da Lei nos permite, ao contrário o dinamismo próprios do espírito se projetam, como conse-
do mundo, levar muito a sério esse método, que, aliás, é o mes- quência, até mesmo no plano da vida material. Sua inteligência
mo indicado por Cristo. Os raciocínios por nós desenvolvidos lhe permite dar ainda maior rendimento à sua necessidade es-
provam cada vez mais que esse não é o método dos débeis e im- pontânea de atividade e torná-la, por isso, ainda mais produti-
becis, mas sim dos sábios. Por isso quisemos ver para além das va, em qualquer direção, seja moral ou até mesmo, implicita-
aparências enganosas em que, todavia, tanta gente acredita. mente, econômica. Quem pode o mais pode o menos; o espíri-
Não é agora que desejamos insistir no estudo do sistema de to, embora o involuído não veja nem compreenda tal coisa, é
forças que rege o fenômeno. Devemos, ao invés, observá-lo sob dominador de tudo, para além da matéria. O trabalho, para o
outro aspecto, correspondente a esta espontânea pergunta de involuído, é tão ingrato e cansativo, que ele só decide enfrentá-
ordem prática: como é que pode viver neste mundo quem se en- lo com relutância e apenas na esperança de compensação (eco-
trega a regime econômico tão desastroso? Embora teoricamente nomia moderna do do ut des39), com os olhos postos em apro-
se justifique, se é essa a economia do evoluído, como pode ele veitá-lo o máximo possível, até ao ponto de transformá-lo em
resolver o problema, tão angustioso para todos nós, das neces- mentira somente para justificar o furto (sua forma ideal de
sidades materiais? Se é mesmo verdade que levamos a sério o aquisição), no entanto, para o evoluído, é necessidade vital
evangelho e se Cristo não pode ser considerado louco, devemos como a exuberância física da juventude, constituindo instinto
então dar resposta completa a essas perguntas. Já nos propuse- que, dirigido pela inteligência, dá resultados dobrados.
mos a mesma pergunta nas páginas anteriores, mas em termos Não basta, porém. Para o evoluído, o trabalho não signifi-
mais gerais, isto é, indagando em que consiste o código de vida ca condenação; muito pelo contrário, caracteriza-se como fun-
do evoluído. E respondemos que sua regra está na norma evan- ção que se entrosa no grande concerto das atividades de todos
gélica: ―Mas buscai primeiro o reino de Deus e a sua justiça, e os seres do universo, constituindo missão valorizadora da vi-
todas estas coisas vos serão acrescentadas‖. Observemos, ago- da, porque, até mesmo nos casos mais dolorosos, transforma-a
ra, o caso mais particular desse código de vida, isto é, em que em precioso dom, em campo de luta para conquistar novas
consiste a economia do evoluído, ou melhor, seu modo de agir qualidades, que, uma vez adquiridas, enriquecerão para sem-
em face aos bens da Terra. Essa conduta não passa de aplicação pre a própria personalidade, constituindo-lhe o poder e a sa-
da norma acima citada. Assim o evoluído ocupa-se primeiro bedoria. Iluminado assim por significação tão profunda e va-
das coisas espirituais, pois o necessário para prover-lhe as ne- lorizado por finalidades tão elevadas, ligado não ao rendimen-
cessidades materiais ele o recebe por acréscimo. Eis o problema to momentâneo, mas a resultados indestrutíveis, o trabalho
que nos propomos: como procede ele para receber de graça o não é mais suportado como desgraça de deserdados, segundo
necessário, como se tratasse de benefício concedido além da nos ensinou o materialismo moderno, invejando-se os que de-
mercê devida? Do ponto de vista humano, sua posição é bem le estão isentos; ao contrário, é abraçado com interesse e amor
precária, dir-se-ia mesmo desesperada. Trata-se de indivíduo e considerado como dom de Deus, que nos permite assim fa-
que, segundo o Sermão da Montanha, dá a quem pede e, se aca- zer experiências, aprender e progredir, concebido não mais
so é roubado, não só se abstém de protestar como até mesmo como posição de inferioridade, mas sim grande honra, em que
não impede que o roubem ainda mais. Pois bem. O indivíduo
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que, ao invés de cuidar de si, cuida das remotas coisas do espí- Dou para que dês. (N. da E)
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 181
nos tornamos colaboradores no funcionamento orgânico do rança. No Cap. III deste livro, classificamos os tipos humanos,
universo: operários de Deus. É natural que a concepção do desde o involuído até ao evoluído, em selvagem, administrador
evoluído renove completamente, em cada caso, e neste tam- e espiritual, de acordo com o método de aquisição por eles se-
bém, o sentido da vida. Assim, o trabalho se nobilita, é ani- guido: furto, trabalho ou justiça. Se o mundo fosse de evoluí-
mado por alegre impulso, enriquece-se com resultados e fina- dos, já se teria alcançado a justiça social e, em consequência, a
lidades inesperados e, de posição de revolta e escravidão, se garantia de provisões materiais. A solução que agora devemos
transforma em posição de domínio e amor. Trata-se de traba- propor-nos não deve ser essa de realização que depende do fu-
lho bem diferente do trabalho arrogante, rixento, que hoje se turo. O caso agora é bem diferente. O evoluído constitui exce-
faz e que luta contra o capital apenas por inveja. Quanto a ção, o homem evangélico vive desarmado, em meio a indiví-
psicologia moderna se afasta da verdadeira concepção do tra- duos armados até aos dentes, e deve desinteressar-se da própria
balho! Ora, é natural que quem conseguiu alcançar essa con- pessoa, embora em meio da mais feroz avidez. Então, que for-
cepção, seguindo o método de vida correspondente, veja tam- ças vitais o defendem e impedem a destruição de seu produto
bém como os frutos desse método lhe afluem às mãos com a mais perfeito? Respondemos: a Divina Providência. Trata-se,
mesma espontaneidade do trabalho realizado. E isso tudo por na verdade, de imponderável, que, por isso, escapa à sensibili-
acréscimo, porque o objetivo e o prêmio desse trabalho são dade grosseira do involuído. Por esse motivo é muito raro o
bem outros, de valor eterno, imensamente mais importantes. E mundo notá-la, mesmo porque se trata de força real, inteligente,
tudo isso se obtém abençoando a vida, e não amaldiçoando-a! que funciona segundo lei própria, como fenômeno sempre
Assim se explica de que maneira o homem, antes de mais na- pronto a verificar-se, desde que se apresentem reunidos os ele-
da preocupado com as coisas espirituais longínquas, resolve mentos determinantes. E também isso é lógico.
implicitamente até mesmo os problemas imediatos e angustio- Observemos então o funcionamento desse estranho fenôme-
sos da vida real, superando-os, embora não se interesse por no que resolve o problema aparentemente insolúvel de dar ao
eles. Recebe como consequência secundária, e não mais como homem desarmado a palma da vitória, garantindo a ele, na apa-
prêmio e único resultado, tudo quanto para os outros constitui rência mais desprovido de segurança, aquela segurança de que
o único objetivo, que, quando não atingido, é como se tudo ti- todas as coisas humanas carecem. Tudo isso pode parecer ex-
vesse fracassado. Assim é que se pode aplicar o Sermão da cepcional e milagroso; no entanto, para a Lei, é lógico e espon-
Montanha, dando a quem pede, sem reclamar o que nos é tira- tâneo. Constitui, sem dúvida, total subversão dos métodos hu-
do, entregando a túnica a quem nos tira o manto. O universo é manos em voga, inconcebível para a psicologia dominante. Mas
exuberante de poder e de riqueza! O que nos empobrece é essa psicologia está encerrada num círculo de ilusões, que exa-
nossa involução; por causa dela e proporcionalmente a ela tamente a sabedoria do evoluído tem a incumbência de desfa-
somos excluídos do grande banquete! Dele tanto mais partici- zer, e a evolução, de transformar. Este argumento já foi aflora-
pamos e nos enriquecemos quanto mais progredimos. Nossa do muito de leve em A Grande Síntese, Cap. LXXXVII – ―A
involução constitui verdadeira prisão. Progredindo, o evoluído Divina Providência‖. Mais tarde, o desenvolvi em História de
se libertou e, por lei da natureza, é muito mais rico. um Homem, no Cap. XIII, sob o mesmo título. Para lembrá-lo
A honestidade é uma das formas com que a inteligência dá ao leitor, vamos resumi-lo agora.
maior rendimento ao trabalho do evoluído. A honestidade, ali- O fenômeno, sem dúvida alguma, existe e é susceptível de
ás, não passa de consequência da inteligência. Somente o sis- experimentação, influindo até mesmo no campo dos efeitos uti-
tema da justiça se mostra equilibrado e produz resultados con- litários, se o mecanismo das forças resultantes é posto em ação
sistentes. Esse sistema consegue economizar os naturalíssimos no momento exato. Torna-se necessário, pois, antes de mais
atritos da luta, que absorvem tão grande parte da atividade hu- nada, compreender a lei do fenômeno e expor as condições ne-
mana, sobrecarregando-a de fadiga inútil. Desse modo poupam- cessárias para que ele se verifique. É lógico que tal não pode
se as numerosas e naturais desilusões de todos os sistemas de- suceder com o método humano desordenado e rebelde, ou seja,
sequilibrados. Quanta fadiga inútil se poupa e como rende mais se não se verificarem os requisitos indispensáveis. O universo é
o próprio trabalho! Quanto as atividades interiormente pacíficas organismo de forças que obedecem apenas a mãos habilidosas e
e ordenadas não produzem mais que as litigiosas e desordena- sábias, e, cobrindo-se de trevas, se recusam a obedecer a mãos
das! O evoluído, posto, como poderia parecer, na posição de inábeis e rebeldes. Necessário se torna, pois, haver compreen-
maior desvantagem porque, até mesmo no campo econômico, dido a Lei e ter-se conformado com sua vontade, quer dizer, é
aceitou o princípio de não-reação, acaba por não possuir inimi- preciso haver neste caso compreendido a lei do fenômeno, para
gos e, desse modo, fica aliviado do trabalho de ataque e defesa estar seguro de que, se for aplicada, fatalmente se verifica.
que tanto acabrunha o mundo. Além disso, é natural que o evo- Quais são essas condições? Ei-las:
luído, tendo conquistado a sabedoria, evite as falhas a que a ig- 1)Merecer a ajuda;
norância leva e não trabalhe para a conquista de resultados 2)Haver, antes de mais nada, esgotado as possibilidades das
efêmeros, mas apenas das posições que, por serem justas, isto é, suas próprias forças;
equilibradas, são as únicas verdadeiramente resistentes e sedi- 3)Estar, de acordo com suas condições, em estado de neces-
mentadas. Tudo isso mostra a grande influência do espírito até sidade absoluta;
mesmo na vida prática; mostra não ser o fator moral, no campo 4)Pedir o necessário e nada mais;
da economia, precisamente o elemento insignificante que pare- 5)Pedir humildemente, com submissão e fé.
ce ser; mostra, finalmente, de que maneira muitos dos defeitos Quando essas condições se realizam, a Divina Providência
e insucessos de nossa economia são devidos exatamente ao fato está em condições de funcionar a favor de todos. Do contrário,
de desprezarmos esse fator imponderável. o fenômeno não pode verificar-se. Desse modo, não se pode fa-
Mas tudo isso não esgota o assunto. O dinamismo espontâ- lar em Providência com relação aos malvados, preguiçosos, ri-
neo, ou instinto de operosidade, e o maior rendimento, forçados cos, cobiçosos, incrédulos, soberbos. Ela se manifesta e traba-
pela inteligência e a honestidade, não bastam para assegurar, lha em favor dos bons, trabalhadores, necessitados, morigera-
em todos casos, estarmos providos quanto às necessidades ma- dos, crentes humildes e de boa fé. Esta é, pois, a primeira con-
teriais. Quem, para servir o espírito, é constrangido a menos- dição: merecer. Em alguns momentos da vida, é necessário
prezar as coisas terrenas, sente não apenas a necessidade de sermos deixados sozinhos diante do obstáculo, para que apren-
consegui-las mais facilmente, com menor fadiga e por acrésci- damos a superar as dificuldades com o emprego apenas de nos-
mo, mas também de consegui-las sempre com absoluta segu- sos meios. Quando não merecemos ajuda ou ela nos seria pre-
182 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
judicial, a providência que nos furtasse à prova necessária a a culpa da injustiça. Primeiro, fechamos as portas para a Pro-
nosso próprio bem não seria ajuda, mas apenas traição. Nesse vidência, impedindo-lhe a ação, e, em seguida, lhe negamos a
caso, a ajuda, que não falha, consiste em dosar a prova e diluir existência. Mas onde existe maior perfeição e bondade do que
o esforço necessário, na proporção de nossas possibilidades. Na no método que nos garante o necessário, que nos é destinado, e
prática, o que se pretende é transformar a Providência em ins- nega apenas o que nos pode ser prejudicial? Somos acalenta-
trumento de nossas comodidades e desejos, ajuda desnecessária dos por ordem justa que nos quer bem e protege a vida. Dessa
que nos poupasse a fadiga de progredir. ordem benéfica e protetora participa a Divina Providência.
Vamos ao segundo ponto. Quando quisermos pôr a Provi- Trata-se de forças inteligentes e amorosas, prontas a nos socor-
dência a serviço de nossa preguiça, é justo que a Lei, nesse ca- rer, sempre à nossa disposição; basta apenas que saibamos ma-
so, se recuse a nos atender ao apelo. Deus, sem dúvida alguma nejar seu mecanismo. É lógico que esse antecedente se torna
pai amoroso, não é, porém, nosso escravo. Sua Providência necessário em sistema orgânico. Trata-se de forças exatas, en-
jamais nos ajudará se, antes, não houvermos feito tudo quanto quadradas, automáticas como as leis físicas, onipresentes, in-
estava em nossas forças para aprendermos a lição. A Lei ja- corporadas nas leis da vida e, por isso, sempre prontas, neces-
mais sacrificará nossa felicidade final em favor da efêmera sária e automaticamente, a funcionar, tão logo se verifiquem as
vantagem do momento. condições de seu funcionamento. Propiciar essas condições é
A necessidade absoluta constitui a terceira condição. Não se espontânea ação nossa, independente da conduta dos nossos
pode avaliá-la de modo absoluto, igual para todos, porque de- semelhantes, das condições sociais dos tempos e dos sistemas
pende do caso, do momento, da pessoa, porque as necessidades de justiça distributiva em voga. A lei de Deus não esperou, pa-
individuais são diferentes e relativas, exatamente como as fon- ra proteger a vida, o advento da justiça social nem as modernas
tes de que dispomos para satisfazê-las. Se, porém, a avaliação e formas de previdência individual e coletiva, mas, apesar disso
a natureza da ajuda são relativas, é certo que a Providência não tudo, deu ao homem liberdade de escolher a forma de se garan-
nos provê do supérfluo, mas apenas do necessário, e isso para tir contra a necessidade, forma que além de independente de
nos fazer viver, e não para cairmos na pândega. A lei do míni- toda autoridade humana, é justa e absolutamente segura.
mo esforço, a parcimônia, a proporção entre o esforço e o ren- Poder-se-á objetar que muitas e difíceis condições devem
dimento, tudo participa da sábia economia da natureza, toda fei- concorrer para tão magro resultado. Respondemos: a Divina
ta de equilíbrio e justiça. E ela, nem avarenta nem pródiga, mas Providência não é seguro compulsório; qualquer pessoa pode re-
apenas parcimoniosa, concede criteriosa e moderadamente cusá-la sempre. Mas, então, é necessário colocar-se no plano da
quanto seja necessário para proteção e garantia da vida, da con- incerteza, para sonhar mil e uma coisas, arriscar-se a nada con-
tinuação necessária à evolução, que é o seu objetivo. Se a Pro- seguir e a sofrer as desilusões normais da vida. Não vivemos pa-
vidência prodigalizasse o supérfluo, ao invés de encorajar a vi- ra gozar, mas para lutar e progredir. Os desequilíbrios custam
da, levá-la-ia ao ócio, que conduz ao aniquilamento. caro. Mas, dir-se-á, queremos riqueza. Pois bem. Torna-se ne-
É preciso, pois, pedir com moderação e esperar apenas o cessário, então, sentir o terror de vir a perdê-la, que é o tormento
que for justo. Nisso consiste a quarta condição. Pedir o neces- dos ricos, e sofrer as respectivas ânsias e preocupações. Isso faz
sário para viver com simplicidade, a fim de que o instrumento parte do sistema. É natural que, quanto mais se sobe, mais instá-
do corpo possa fazer o trabalho pedido pelo espírito, indispen- veis se tornem os equilíbrios e menos seguras as posições, isto é,
sável para as finalidades da vida. Se, subvertendo a Lei, a co- que a segurança seja inversamente proporcional à riqueza. Mas
locarmos na matéria e nos prazeres baixos, é natural que ela se o involuído sente necessidade de experiências e, por isso, tenta a
afaste de nós e não nos ajude. Para obtermos a ajuda, torna-se sorte até mesmo no campo econômico; não precisa, pois, de se-
necessário não pretendermos mais do que temos direito de pe- gurança, mas de miragens que o induzam a lutar e a sofrer nesse
dir e havermos, antes de mais nada, aprendido a regra da tem- campo. Se a Divina Providência funciona como método quase
perança. Não nos esqueçamos que a Providência não passa de exclusivo do evoluído, é, no entanto, método com que a Lei
manifestação da justiça e da bondade da Lei e que, nesse fe- provê apenas o necessário, e com absoluta segurança, ao homem
nômeno, tem plena vigência o princípio da justiça e da bonda- espiritual, que não pode mais preocupar-se dos problemas mate-
de, e não o da força, que, nesse caso, é inútil e nada consegue riais, já esgotados e superados por ele.
senão sufocar o fenômeno. Eis a economia do evoluído, o modo com que resolve o
É preciso, finalmente, pedir com submissão e fé. Estamos problema das necessidades materiais; eis como lhe é possível
tocando no quinto ponto. Devemos adquirir consciência da or- aplicar o método evangélico de não-reação e aquela economia
dem divina e, ao invés de procurar torcê-la conforme nossas de pura perda, aparentemente desastrosa. Eis como aqueles que
conveniências do momento, devemos procurar pormo-nos de se ocupam das coisas espirituais podem receber tudo o mais
acordo com ela. Em lugar de pretender mostrar a Deus o que ne- por acréscimo. Estamos naturalmente num mundo diferente do
cessitamos e como podemos ser providos, devemos colocar-nos, mundo humano, em face doutra psicologia, doutros métodos e
face às Suas diretrizes, na posição de dependentes, de cegos ig- princípios. Há outra objeção, porém. Do ponto de vista huma-
norantes que esperam orientação, de filhos obedientes de quem no, o evoluído, que se preocupa com as coisas espirituais, pa-
mais pode e mais ama. Devemos, pois, também crer e confiar, rece indivíduo inútil, improdutivo, parasita que vive à custa
isto é, ter através da prece a sensação dessa realidade estupenda, dos outros, que trabalham para ele. Onde está a justiça? A es-
ou seja, de que não estamos abandonados e sós, mas existe nos mola é injusta apenas quando extorquida por ociosos. Temos
céus o Pai, velando por nós e provendo-nos do necessário. visto, porém, como o dinamismo e a operosidade são as quali-
Podemos perguntar-nos, agora, quando é que, na prática, se dades mais notáveis do evoluído. Em geral, ele trabalha de-
perfazem essas cinco condições? E por que nos surpreender- mais, pois soma as fadigas do espírito às necessárias para satis-
mos de não se verificar o fenômeno? Natural é que todo fenô- fação das necessidades materiais, ao invés de substituir uma
meno possua regras especiais, e absurda é a pretensão de jogar por outra. Logo, o próprio funcionamento da Divina Providên-
sem conhecer as regras do jogo. Explica-se desse modo como, cia nos mostra como são limitadas as necessidades do evoluído
em muitos casos, a Providência falha e não se manifesta. Não e quão modestos, os pedidos que faz. O que significam seus
obstante, funcionava muito bem nas mãos dos santos, que nela gestos, se os compararmos com os desperdícios imensos im-
confiavam cegamente. Muitas vezes, queremos colocar-nos no postos pela justiça, pelas guerras, pela cobiça e pelo espírito de
lugar da Lei. Então, se não logramos êxito, retorcemos o erro, destruição do involuído? Finalmente, mesmo se o evoluído
que é nosso apenas, e o atribuímos ao sistema, pondo em Deus permanecesse ocioso, no que diz respeito à matéria, e se ocu-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 183
passe apenas de trabalhos espirituais, não daria, só por isso, Trata-se de dois mundos diferentes, cujas leis já analisamos,
contribuição à vida? Para progredir, a vida não requer apenas de dois métodos de vida, dois sistemas, que, uma vez escolhi-
atividades economicamente lucrativas. O evoluído, desse mo- dos, nos arrastam fatalmente, na lógica de sua estrutura, até às
do, não é parasita, mas exerce função e cumpre missão, o que, suas últimas consequências. O sistema em vigor, da riqueza ob-
na maioria das vezes, significa dar muito mais do que receber. tida pelo método da força, tem como consequência imediata a
Não seria mais natural falar-se em desfrutamento do gênio e do incerteza dos resultados. De fato, no mundo econômico as cri-
santo por parte da sociedade? A Lei não pode, utilizando-se da ses são contínuas e, segundo parece, irremediáveis. A conclu-
Providência, praticar injustiça. Serve-se, então, dos dominado- são deste sistema é absolutamente negativa, de modo que, neste
res da Terra como instrumentos seus, obrigando-os a fornecer mundo, podemos dizer que a pobreza é a única forma de rique-
ao evoluído o mínimo indispensável, de que ele se vale apenas za segura. Em tal sistema, a instabilidade e o risco são inerentes
para cumprir sua função social, necessária sem dúvida. Mas, e não podem ser eliminados senão destruindo o próprio sistema.
quando se exerce determinada função, adquire-se, perante a Outra consequência é a conexão entre a riqueza e o emprego
justiça divina, direito aos meios para poder continuar a cumpri- da força. A instabilidade requer defesa contínua, isto é, luta,
la. Assim, todos são chamados a contribuir e a trabalhar para guerra. Mesmo sob este outro aspecto, a conclusão do sistema
os objetivos da vida. Nos dias de hoje, o evoluído constitui ex- é negativa, quer dizer, não pode existir paz na riqueza, mas
ceção e não há, por certo, de pesar na economia social. Quan- apenas na pobreza. Todo desenvolvimento econômico importa
do, porém, tornar-se maioria, então o advento da justiça social aumento de bem-estar, exuberância vital, que desemboca nos
será fato consumado, o homem terá adquirido consciência da expansionismos imperialistas; em outras palavras, toda aquisi-
Lei, e nova concepção da ordem dará a todo ser humano, natu- ção de riqueza apenas serve para alimentar novas cobiças, para
ralmente, a garantia do necessário. despertar a insaciabilidade humana. O sistema de forças termi-
na sempre em guerra e destruição, que reequilibra o processo
XII. POBREZA E RIQUEZA desequilibrado. Essa é a Nêmeses 40 das conquistas terrenas:
crescer para devorar-se. É a mesma nêmese que vimos no mal,
A economia do evoluído deriva diretamente da sua própria de que elas se mancham: a autodestruição. Ai de quem cons-
psicologia. Assim como o evangelho revoluciona o mundo, a trói sem equilíbrio e com injustiça. Cava diante de si mesmo o
forma mental do evoluído é uma revolução da psicologia do abismo em que se precipitará. Tal é a fase, cheia de erros e de
involuído, porque se trata precisamente de passagem da in- dores, de quem na Terra ainda deve aprender.
consciência para a consciência, da ignorância à sabedoria. As Se essa fase, porém, se torna necessária para os primitivos
duas formas mentais representam os dois extremos da fase de hoje em dia, o evoluído não pode adotar esse sistema. Ele,
humana de evolução, que lutam. Nelas baseiam-se duas esca- que superou essa espécie de prova e, tendo-lhe assimilado os
las de valores opostas. Acima de todos eles, o involuído colo- resultados, desfez a ilusão, não pode mais acreditar na riqueza,
ca os bens materiais, e o evoluído, os espirituais. Destes, por- que pode ser perdida e é pretexto de lutas contínuas, onde se
tanto, o primeiro não faz caso, e àqueles o segundo atribui encontra sempre a traição, além de envilecer e tudo sacrificar só
bem pouca importância. Um sacrifica tudo à riqueza, até o para si, roubando as melhores energias vitais ao mundo espiri-
próprio espírito; outro sacrifica tudo ao espírito, até mesmo a tual. Toda a atenção da alma do evoluído prende-se a coisas
riqueza. Este adora a matéria e, por causa dela, prostitui o es- bem diferentes; sua luta e sua atividade criadora se desenvol-
pírito; aquele adora o espírito e a ele submete a matéria. O vem em plano mais elevado, acima do campo das competições
evoluído, que conquistou o conhecimento, sacrifica o valor humanas. Não pode mais cansar-se em competição para ele já
menor ao maior; o involuído, que ainda não adquiriu compre- improfícua; não pode mais gastar-se para proteger riqueza que
ensão e vive de ilusões, sacrifica o valor maior ao menor. já não lhe interessa; seu instinto o leva, então, a abandoná-la.
Dessa psicologia se infere que o primeiro dá toda a importân- Não é só, porém. O evoluído é impelido a detestar essa forma
cia aos valores morais, geralmente menoscabados, e quase ne- de atividade humana porque nela se podem sacrificar, e se sa-
nhuma aos valores econômicos, em geral elevados às nuvens. crificam, os mais altos valores espirituais. Nasce-lhe, desse
A economia do evoluído, que referimos acima, é consequên- modo, não só o senso de indiferença, mas também o de repug-
cia também dessa psicologia, em razão da qual ele, esponta- nância pela causa de tantos males. Nas mãos do homem moder-
neamente, dá à riqueza valor relativo e subordinado, em vez no, o poder da riqueza logo se torna guerra e, por isso, destrui-
de valor principal; se deve administrá-la, então o faz, não por ção; torna-se ódio e delito e se funde com as forças do mal. En-
apegar-se a ela avidamente, mas porque é seu dever, e dela se tão, o evoluído se rebela e, ao invés de participar na luta contra
livra quando e se puder, antepondo-lhe o estado de pobreza, o homem para conquista da riqueza, faz guerra à riqueza, a fim
protegido apenas pelas forças da Divina Providência. É lógico de conquistar mais altos valores humanos. Os bens da Terra
que, no mesmo campo em que o involuído, diametralmente são, no entanto, dádivas de Deus. A riqueza é grande força, mas
oposto, representa a máxima afirmação, o evoluído deva re- o homem a conspurca, e isso a inutiliza. O mau uso que muitas
presentar a negação máxima, e ao contrário. Por causa do na- vezes dela se faz, o modo com que a empregam, os fins para
tural antagonismo das duas posições, uma exclui a outra e que se dirige, o mal, o ódio e, portanto, as dores que se lhe li-
tende a tudo absorver. Ninguém pode servir a dois senhores gam, tornam-na um dano que o evoluído deve evitar, e não uma
ao mesmo tempo. A Lei diz que, naturalmente, quem cuida vantagem de que possa utilizar-se. Ele toca, por isso, o menos
das coisas espirituais não pode mais ocupar-se das coisas ma- que pode nos bens da Terra. Retira-se, pois, com repugnância,
teriais, porque não as quer mais e até mesmo lhes tem repug- dessa afirmação de ferocidade para conquista da riqueza e re-
nância; e quem trata das coisas da matéria se absorve de tal fugia-se na pobreza. Isso não significa desprezo dos bens de
modo nelas, que fica surdo às do espírito. Daí se deduz que, Deus nem desconhecimento do valor dos meios materiais e do
assim como o homem do mundo tende a desinteressar-se das rendimento que poderiam dar, se fossem manipulados com
coisas do espírito, isto é, tende para a amoralidade, o homem maior sabedoria. É, isso sim, terror do involuído, da baixa psi-
do espírito tende a desinteressar-se das coisas da matéria, ou cologia com que ele dirige a própria atividade e contamina tu-
seja, tende para a pobreza. Porque os dois extremos são inver- do aquilo em que põe as mãos. A riqueza pertence ao involuí-
sos e rivais, parece impossível, sem a correspondente pobreza
espiritual, atingir-se a riqueza material e, sem a corresponden- 40
Deusa grega da Vingança e da Justiça distributiva, que reprovava
te pobreza material, atingir-se a riqueza espiritual. todo excesso. (N. da E.)
184 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
do, diz-lhe respeito, é sua. Isso basta para torná-la inaceitável. houver miséria. Quem não compreendeu e escolheu essa po-
O homem a relaciona com as forças mais baixas da vida, e ela, breza não pode ser verdadeiro sacerdote do espírito.
assim, satura-se de mal. Tanto basta para torná-la detestável. Disso tudo se pode concluir também que o problema da ri-
Trata-se de sensibilidade espiritual, isto é, depende do Deus queza não é apenas, como hoje se crê, distributivo, pois, ainda
que adoramos no degrau mais alto da própria escala de valores. que o entendamos desse modo, deixa intactas todas as cobiças
Quem venera as coisas do espírito não pode suportar mais nada humanas, que são as verdadeiras raízes do dano, que não se re-
que, por qualquer motivo, as ofenda. solve no plano econômico, em que hoje se coloca, e sim no
Por esses motivos, o evoluído prefere a sua economia à do plano psicológico e moral. Não basta o advento da justiça social
involuído, mais em voga. Levamos em consideração neste li- pela qual tanto lutamos em nossos dias. Torna-se necessário
vro os dois casos extremos, entre os quais se coloca o caso in- construir também o homem. A solução consiste em conquistar a
termediário do administrador e organizador honesto, que da ri- consciência que nos leve a fazer bom uso da riqueza, transfor-
queza usa, e não abusa, transformando-a não em mal, mas em mando-a de mal, a que se reduziu, em bem. Enquanto não che-
bem. Esse tipo, porém, ainda não é tão numeroso que possa di- gar esse dia, o evoluído poderá dizer: não aceito, não me inte-
tar lei e tomar as rédeas da economia humana, que, no conjun- ressa, recuso o bem que vocês envenenaram, repilo a forma de
to, é aquela acima descrita. Essa é a revolta pacífica do evoluí- luta que vocês adotaram e nos degrada. Para o evoluído, a po-
do, de acordo com o método evangélico da não-reação. Des- breza franciscana, ao invés de utópica, representa dura conse-
preza quanto pode a riqueza, embora compreenda e admire quência da conduta humana, não é atitude negativa, mas atitude
aqueles que, imbuídos do espírito de pobreza e de honestidade, de vigilante espera; não é definitiva, mas transitória, e será su-
a empregam para o bem, possuindo-a para cumprimento de perada quando, como todas as fases, sua função estiver esgota-
função social ou missão, e não para vantagem e desfrutamento da e a evolução torná-la desnecessária. Então, a riqueza, restitu-
egoísticos. O evoluído, muitas vezes, até mesmo se mistura ída à sua pureza, se tornará aceitável exatamente como aquilo
com eles, mas toca na riqueza apenas por sentimento de dever, que é, ou seja, como dádiva de Deus.
como peso que se carrega por amor de objetivos mais altos e Tudo isso pode causar espanto ao homem do nosso mundo,
com absoluto desprendimento e desinteresse. Essa atitude é tu- que não percebe o valor das coisas do espírito com a mesma in-
do quanto precisamente o distingue dos demais. Enquanto es- tensidade com que a sente o evoluído. Para este último, porém, a
tes, geralmente, procuram avidamente a riqueza, como fim em vida assume significado bem diferente. Sente, sem sombra de
si mesma, o evoluído não a busca e, se acontece possuí-la, a dúvida, o perfume da pobreza a impregnar todas as coisas em
transforma em meio e a emprega para finalidades mais altas. A que toca. Percebe a beleza moral dessa pobreza, simples, hones-
Terra e seus bens não se lhe apresentam sob a forma positiva ta, laboriosa, confiante e tranquila, não dessa pobreza colérica e
de atração, mas sob a forma negativa de repulsão; para ele, o envenenada do mau, mas dessa agradecida pobreza do justo. Em
mundo não é mais lugar de conquista e de alegria, mas de dor e suas mãos, ela se espiritualiza e se aureola de bondade e fé, que
trabalho missionário. Tudo quanto não se refere ao espírito não a transformam em instrumento de ascensão. Desse modo, a po-
lhe interessa, porque vive em função do espírito, e não em fun- breza quase se santifica e chama para junto de si a presença de
ção da matéria. Para o evoluído, representa vitória aquela Deus. Então, quem perdeu tudo percebe que, de fato, ganhou tu-
mesma pobreza que causa medo ao involuído e se lhe apresen- do, e o paraíso desce até si. Uma vez que tanto mais se recebe
ta como derrota. A seus olhos, essa pobreza assume significa- quanto mais se dá, a pobreza torna-se, então, meio de enrique-
do afirmativo e criador, sensação triunfal de alforria e poder; cimento; do mesmo modo, nas mãos do involuído, a riqueza po-
torna-se escola de dominação, campo de exercícios heroicos. O de tornar-se meio de empobrecimento. E, assim, aquilo que para
espírito nutre-se dessas anulações na matéria; isso é lógico o mundo significa miséria, pode tornar-se beatitude, como o foi
quando se trata de processo de aniquilamento. Por isso pode- para São Francisco, cuja psicologia, de outro modo, não poderí-
mos assim balizar a sucessão desses momentos: ―empobrecer, amos explicar. Poder-se-ia, no entanto, objetar que é censurável
sofrer, refletir; compreender, reconstruir, progredir‖. Assim, os deixar de lado a administração da riqueza, pois, como produtora
equilíbrios da Lei corrigem os excessos humanos na vitória da de bens, muito poderia frutificar. Não. Cada um em seu lugar. A
matéria, invertendo as posições com a derrota material, de que esse trabalho já se destinam os honestos administradores da Ter-
nasce a vitória no espírito. Este, na pobreza dos meios terre- ra (o homem do 2o tipo), e esse trabalho lhes toca. Têm a função
nos, enriquece. O evoluído percebe esse fenômeno, adquire es- de reordenar o ambiente terrestre e é exatamente por isso que
se senso de enriquecimento e não liga mais a imagem da po- são organizadores de coisas humanas. O paraíso na Terra consti-
breza à sensação de derrota, mas de conquista, nem à de mal- tui-lhes a meta, e procuram laboriosamente prepará-lo. Mas o
estar, mas a de bem-estar. O evangelho baseia-se na lógica evoluído (o homem do 3o tipo) deve desempenhar função mais
dessas inversões, que parece desapiedada e terrível, mas que é, alta: dar a esse trabalho a orientação necessária. É precursor que
na verdade, simples e natural. Se, considerando-se o que o intui, dá as grandes diretrizes do espírito e indica-lhes objetivos
homem tem sido até hoje, toda posse, mais ou menos, impõe a sobre-humanos. Os olhos dos primeiros são analíticos e míopes,
necessidade da guerra, torna-se evidente que não pode possuir aptos a verem as coisas próximas da Terra; os dos últimos são
coisa alguma quem, de acordo com o evangelho, proclama o sintéticos, enxergam longe e podem ver as longínquas coisas ce-
amor ao próximo. Essa é a lógica do sistema, que de modo al- lestes. O objetivo final dos primeiros está na Terra e, aqui, al-
gum podemos negar. E o próprio evangelho nos mostra, na po- cançá-lo-ão, transformando-a de inferno em paraíso. O objetivo
breza, as conclusões derivadas dessas suas premissas. Entre final dos últimos está co1ocado no céu e conquistá-lo-ão, afas-
Cristo e o mundo não há possibilidade de acordos. Os dois sis- tando-se da Terra, para caminhar em direção a humanidades
temas são opostos e reciprocamente incompatíveis. Ou um ou mais evoluídas, a pessoas de sua raça.
outro. O espírito (o evoluído) está colocado num extremo da Tudo isso pode causar estranheza ao homem de nosso mun-
vida humana; o mundo (involuído), no outro. O primeiro quer do, mas o evoluído é o termo derradeiro, o caso máximo. Trata-
vencer o segundo, e recusa qualquer coisa em comum; quer e se de homem que compreendeu e vê o funcionamento da eco-
deve ser pobre, nada aceitando em comum. Mas essa pobreza nomia da natureza; sabe que a vida é protegida, e a lei de Deus
não é miséria, e sim rebelião dos ricos de espírito contra a mi- o segue passo a passo para salvá-lo; sabe que a defesa não é
séria moral dos outros, pelo menos enquanto e até onde a ri- confiada a ele, mas àquela Lei todo-poderosa. Sabe que ela é
queza não for guiada pela sabedoria. O verdadeiro amor evan- boa e perfeita. Adquirida a consciência de estado de fato tão
gélico não pode permanecer egoisticamente rico enquanto maravilhoso, desaparece de sua vida toda sensação de temor,
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 185
que envenena as efêmeras vitórias humanas da força. Ele sabe ataque e defesa: ter Deus consigo. Então nos tornamos imensos,
que será provido, pois a Divina Providência é apenas um mo- e nossa respiração reproduz a do universo, com a qual se con-
mento de todo o sistema de economia do universo, em que toda funde. Que importa, pois, que por fora sejamos pobres, se por
vida, em razão do que ela custa, não pode ser desperdiçada, dentro somos ricos? Quão mais pobres são esses que, ricos por
mas deve ser utilizada em favor de finalidade adequada. Sabe fora, por dentro nada possuem! Quando somos vazios, permane-
que lhe basta enquadrar-se no grande organismo, obedecer à cemos insatisfeitos em meio a seja qual for a riqueza; quando,
Lei, desempenhar dentro dele a própria função e fazer sua a porém, estamos plenos da graça divina, em meio à miséria mais
vontade de Deus, para viver em paz e em segurança. Quem o completa, nos sentimos abastados e satisfeitos. Eis a perfeita
observa só por fora, julga-o pobre e se engana, porque, se o vis- alegria franciscana, concedida apenas aos ricos de espírito.
se por dentro, haveria de compreender que é imensamente rico; Esse conceito e essa posição da vida finalmente nos apare-
rico porque não possui mais os bens na periferia tempestuosa, ce sob o aspecto utilitário. Desse modo, a vida adquire alcance
sob forma caduca, mal protegidos pelas garantias humanas, mas imenso, que toca as fronteiras da eternidade, torna-se intermi-
os possui no centro, em substância, seguros, lá onde eles, com nável sucessão de conquistas, de felicidade crescente, de con-
justiça, emanam do poder de Deus. tínua ascensão em resposta ao chamamento divino. Mas, limi-
Quando chegamos a esse plano, divina beleza ilumina e tando a vantagem às necessidades materiais, eis a Divina Pro-
aquece interiormente até o ato mais humilde da vida. Tudo se vidência pronta a ajudar, desde que haja merecimento e neces-
torna, então, meio para comunicação com Deus; tudo quanto sidade. São essas as duas condições fundamentais de seu fun-
obtemos nos vem de Suas mãos, até a esmola mais insignifi- cionamento. O evoluído, que compreendeu a lei do fenômeno,
cante assume as proporções de presente principesco feito pelo não lhe deposita confiança inutilmente, porque tudo obtém
Senhor, presente que nos fala d'Ele; qualquer ação nossa não com segurança. Sabe que, em face do merecimento e da neces-
se motiva em nossa vontade, e sim na de Deus. O homem, des- sidade, o homem faz jus ao auxílio, ato da justiça divina com
se modo, se sente circundado de luz e ouve o universo respon- que o justo pode e deve contar. Por isso obtém por direito e por
der aos próprios anseios. Grandíssima experiência. Tudo quan- justiça, e não a título de esmola imerecida. Por isso não é a po-
to lhe chega às mãos vem por meio de caminhos tão elevados, breza, mas apenas a baixeza, que arranca do homem a dignida-
que se transforma completamente, assumindo o valor de pre- de de filho do Pai. A generosidade da Providência, mesmo as-
sente divino. Então, até um pedacinho de pão assume o aspecto sumindo a forma de esmola, sempre constitui comunhão da
de prodígio, adquire o sabor das grandes coisas da eternidade e alma com Deus, e, por meio dela, o benfeitor humano eleva-se
do espírito, torna-se excelente porque o amor de Deus o tem- ao papel honroso de instrumento de Deus.
pera com paz espiritual paradisíaca. Todas as coisas parecem Em nossos dias, torna-se muito difícil fazer com que se
desmaterializar-se em significados profundos, e o mundo compreenda o sentido sutil dessas vantagens imateriais. No en-
transformar-se em paraíso. Poder-se-á sorrir amargamente, le- tanto, até mesmo em relação aos efeitos da estabilidade e dura-
vando tudo isso à conta de poesia e sonho. Não. Esse é o espí- ção, da segurança e gozo pacífico, não é indiferente que as nos-
rito do evangelho; não poderemos compreender esse espírito, sas aquisições sejam ou não dádiva de Deus, ou que os nossos
se não houvermos também entendido tudo isso. É milagrosa bens se elevem na força ou na justiça e estejam saturados de
essa transformação, à qual ninguém poderá chegar sem que ódio ou de amor. Se impregnarmos a riqueza com as forças do
primeiro a si mesmo se transforme, no entanto trata-se de feli- mal, ela estará, como vimos, relativamente ao mal, fatalmente
cidade que muitos seres superiores conseguiram. condenada. A grande revolução consiste em substituir a revolta
Tudo isso, porém, não é apenas supremamente belo, vitória pela obediência à Lei, a desordem pela ordem, o desequilíbrio
da estética moral, mas também afirmação de poder espiritual. pelo equilíbrio, os choques estúpidos e dolorosos pela harmonia
Atrás de toda aquisição, conseguida pelo sistema em voga, está e pela lógica. Essas afirmações espirituais são comuns à vida
a força ou a astúcia, muitas vezes a própria avidez e o dano do prática, em que repercutem. A solução dos males que atormen-
que foi vencido e, por isso, a destruição e o ódio. Assim tam- tam nosso mundo não vamos, é lógico, encontrá-la no retorno
bém, por trás de toda aquisição conseguida por esse outro sis- aos esquemas do passado, impotentes para solucioná-los, con-
tema, está a honestidade, a bondade, a justiça e, por isso, paz e forme bastantes vezes verificamos experimentalmente. Torna-
amor. Atrás de qualquer aquisição, aparece a figura de Deus e se necessário basearmo-nos em princípios diferentes, que se en-
palpita a Lei protetora, que amorosamente aumenta as dádivas contram nos antípodas dos precedentes e fazê-los atuar com
da vida. Das alturas celestes, Deus desce até nós e torna-se nos- métodos totalmente diferentes dos atuais. Nisso consiste a nova
so companheiro e nos ajuda em nossas necessidades. Manifes- civilização do espírito. Trata-se de adquirir consciência da Lei,
ta-se, então, presente e ativo em tudo quanto está dentro e fora para, em seguida, enquadrar-se nela e agir de acordo com ela.
de nós. Sua Lei nos fala e trabalha por nós. O infinito desce à Trata-se de incorporar em nós mesmos o senso da Lei. Não bas-
nossa relatividade, que adquire, desse modo, sentido de eterni- ta explicá-la; é necessário que nos coloquemos em condições de
dade e de absoluto. Toda a nossa vida, como consequência, se senti-la. A razão é formação primária, exterior, de superfície e
eleva e aumenta de poder. Torna-se ação humilde, em que res- não satisfaz. A consciência é formação mais profunda, interior,
soa o pensamento de Deus e se cumpre a Sua vontade. Essa vi- que não faz cálculos, mas intui e sente. Essa consciência adqui-
da humilde, transformando rebeldia em função, se harmoniza re-se com a dor. De outro modo não se pode construir em sis-
no funcionamento orgânico do universo; não é mais a ação iso- tema de liberdade e experimentação, isto é, de possibilidade de
lada de rebelde, pois esgotou seu dinamismo, mas fato relacio- erro e, por isso, de dor. Não basta explicar e compreender raci-
nado com o organismo universal, com o qual se comunica, onalmente. A custa de muito trabalho é que conseguimos nossa
dando e recebendo. Nossa vida pode atingir, então, as imensas própria maturação, porque nada se obtém senão através do so-
fontes de energia e de sabedoria, que outra coisa não querem frimento. Só assim o homem pode passar da fase de involuído à
senão entregar-se. Apenas nos tornemos dignos delas, Deus nos de evoluído, da posição de inconsciente à de consciente. Então,
aumenta de súbito o poder, de cuja conquista o verdadeiro ca- compreende que a vida tem elevadíssimos objetivos e ele, exa-
minho é o merecimento. Isso de acordo com a lei de justiça e tamente pelo fato de que existe para atingi-los, tem direito à vi-
como parte da economia da natureza, cuja vontade é que todo da. Compreende, então, aquilo que, hoje, confiando em si
valor renda, quando tiver sido verdadeiramente conquistado. mesmo, demonstra nem sequer imaginar, isto é, que, por força
Não há poder humano que iguale essa potência. Eis a grande de- da própria estrutura teleológica de todo o sistema do universo,
fesa do evoluído que se reduz à pobreza e abandona as armas de sua vida deve ser necessariamente protegida.
186 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
XIII. PROBLEMAS ÚLTIMOS voltado contra Ele significa autodestruir-se e criar a própria
dor. De acordo com a Lei de dualidade, cujo estudo aprofunda-
Temos verificado quanto a economia do evoluído é mais ló- remos no fim deste volume, o universo é bipolar, dividido e
gica, segura e perfeita que a do involuído. A sabedoria do reunido nessas duas partes opostas, inversas e complementares.
evangelho nos confirma plenamente a tese. Diz-nos ele: ―Não As correntes de força que o constituem são de dois tipos, de na-
acumuleis tesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os con- tureza contrária. Trata-se de dois dinamismos opostos, que, se
somem e os ladrões os desenterram e roubam; acumulai, ao in- aparentemente se excluem, na verdade se somam e, mesmo pa-
vés, tesouros no céu, onde nem a ferrugem nem a traça os con- recendo entrechocar-se, na realidade colaboram. O homem po-
somem e os ladrões não os desenterram nem roubam. Porque de escolher a corrente positiva, ascensional, que progride em
onde está teu tesouro, aí está também teu coração‖ (Mateus, 6: direção ao bem e à alegria, ou a corrente negativa, descendente,
19-21). Os dois mundos, o material do involuído e o espiritual que retrocede para o mal e a dor. Por mais que o homem se pro-
do evoluído, ficam nitidamente contrapostos, e a oposição se jete para fora de si mesmo, o resultado de seu trabalho é, de fa-
estabelece, colocando-os exatamente no plano utilitário, que to, sempre para si próprio. Se ele desencadear as forças do mal,
mostra a incerteza das coisas humanas e a segurança existente embora crendo fazê-lo contra outros, desencadeá-las-á em sua
nas do espírito. E tudo isso para mostrar, com finalidades edu- própria direção, contra si mesmo. Então, com as próprias mãos,
cativas, as consequências da escolha humana, por força das construirá triste destino para si, maculará o próprio ser e enve-
quais cada um de nós tem exatamente a mesma sorte do mundo nenará cada vez mais a própria vida, então, perseguido por seu
a que se ligou, ao acumular o seu tesouro. Quem se baseia em passado, ser-lhe-á cada vez mais difícil parar, e ele, finalmente,
coisas que caducam cairá com elas, e apenas quem construiu precipitar-se-á no abismo da autodestruição. Assim, o malvado,
em cima da rocha resistirá. O trabalho da evolução consiste na que preferiu regredir, por si mesmo se liquida no tormento do
substituição do pior pelo melhor, na conquista de valores mais inferno. Neste caso, não estamos mais falando, como fizemos,
seguros e preciosos. Assim, quando São Francisco combate a do involuído como primitivo ainda não desenvolvido, inferior
riqueza com a pobreza e, em seu testamento, aconselha, quando apenas no que diz respeito à sua natural posição na escala evo-
o pagamento do próprio trabalho for negado, a recorrer à mesa lutiva, e não porque a maldade o tivesse degradado; estamos fa-
do Senhor, pedindo esmola de porta em porta, São Francisco lando, isto sim, de quem se tornou involuído porque espontane-
não vê o lado negativo do esmolar, mas o lado positivo e cria- amente regrediu e, por isso, é muito mais culpado; estamos fa-
dor, isto é, não vê o aspecto miséria, mas apenas o aspecto ri- lando do homem que não é mais besta, mas deseja continuar
queza. Trata-se de abandonar valores menores para conseguir sendo besta. Trata-se, portanto, do malvado típico, caso muito
valores maiores, de mudança total de princípios, de substituição mais raro. Este se separou e cada vez mais se afasta das fontes
de mundos. Trata-se, aí onde todos exigem compensação, de da vida, de Deus, e, como não pode sobreviver sem Deus, defi-
pedir como pagamento apenas um ato de bondade. Se, de um nha e morre. Morte verdadeira, morte desesperada. Contudo is-
lado, se transforma riqueza em pobreza, ao mesmo tempo, tam- so é lógico. Se o homem é livre o suficiente para construir o
bém, o ódio se transforma em amor, a guerra em paz, e, na pro- próprio destino, todavia não pode nem é livre a ponto de tornar-
cura dos bens, o método humano da força se transforma no mé- se capaz de destruir a Lei e tornar-se árbitro da vontade de
todo da bondade e da fraternidade, isto é, manifestações de avi- Deus. Se pode escolher, e até mesmo escolhe, o caminho do
dez e fastio acabam em atos de humildade de quem recebe e mal, isso é assunto particular seu e não pode impedir a atuação
bondade a quem dá. Assim, a esmola filha da generosidade da Lei, que ele não pode dominar. As consequências de seu
substitui a riqueza filha do furto. Como será possível, doutro modo de agir somente recairão sobre si mesmo, enquanto ele,
modo, implantar o senso de amor fraterno no campo econômi- no fundo, continuará sempre a obedecer aos princípios vitais e a
co, que é o das competições mais ferozes? De que maneira, se- servir o bem. Apenas para si mesmo pode semear desordem e
não essa, há de se corrigir todo o mal que se faz para conseguir alimentar o mal; apenas para a Lei pode trabalhar em sentido
riqueza e reabsorver o veneno com que o homem a satura? De destrutivo. O mal não possui poder para destruir o bem, mas
que modo contrabalançar tão desenfreado egoísmo senão com sim apenas para destruir a si mesmo. É absurdo que a negação
altruísmo igualmente desenfreado? Se esse caráter da esmola se afirme, vencendo, portanto também é absurdo que se permita
pode ser desfigurado e reduzi-la a preguiça e desfrutamento, isso ao malvado afirmar-se vencendo o bem, e não apenas demolir-
nos ensina que, neste mundo, tudo se pode falsificar e transfor- se a si mesmo. Quando no harmônico dinamismo universal se
mar em abuso. O princípio franciscano quer, ao invés, introduzir forma esse turbilhão de impulsos desordenados, então as forças
o amor evangélico até mesmo nos atos da vida econômica, apa- vitais, disciplinadas e compactas, cercam e isolam o campo de
rentemente os mais afastados dele, aí onde parece menos aplicá- forças que lhes é contrário e não descansam enquanto não o eli-
vel. Trata-se de luta feita contra as leis econômicas, para refrea- minam, enquanto o campo rebelde não é por elas pacificado ou
mento do instinto de ataque em favor da conquista de riquezas aniquilado. Para quem está em seu interior, o sistema é protetor,
espirituais. Por essas razões, a fatigante e ansiosa fórmula mo- porém assume caráter ofensivo para quem dele foi expulso. Co-
derna: ―tempo é dinheiro‖, princípio que prende e se escraviza à mo acontece no organismo físico, as forças defensivas, antes de
matéria, é substituída pelo princípio que libera o espírito com a mais nada, tendem a eliminar a falha por meio da reação e curar
fórmula: ―Si vis perfectus esse, vade vende universa‖41. o mal com o remédio da dor. Se isso não for possível, encerram
Quando chega a esse ponto, o homem finalmente descobre o a ajuda e ausentam-se dessa forma de vida, indiferentes ou ini-
segredo da felicidade, segredo este que consiste em, como fazia migas, abandonando o ser ao aniquilamento. No que diz respeito
São Francisco, substituir a imperfeita economia humana pela ao rebelde, a reação da Lei é negativa e consiste em afastá-lo das
perfeita economia da natureza, o que significa saber manejar as fontes da vida. A transgressão produz a contração automática
forças vitais de acordo com a vontade de Deus, e não conforme das forças do sistema e dele expulsa o rebelde. Assim, repudiado
a do homem, isto é, em não agir contra a Lei, mas em confor- pela vida, torna-se ele abandonado fora-da-lei, a quem nada
midade com ela. Isso significa trabalhar do lado do bem, afir- mais resta senão desagregar-se e morrer. Deus se nega aos mal-
mativo e construtivo, e não do lado do mal, negativo e destrui- vados, que negam e, crendo negar a Deus, negam a si mesmos.
dor. Viver em harmonia com Deus significa construir a si mes- Pelo contrário, quem se lançou e fundiu na corrente oposta
mo e à própria felicidade. Viver em desarmonia com Deus e re- será temporariamente atormentado pelo mal, mas o caminho
por ele escolhido o leva natural e fatalmente em direção à feli-
41
Se queres ser perfeito, vai e vende todas as coisas. (N. da E.) cidade; enquanto isso, o malvado poderá ser feliz por algum
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 187
tempo, mas seu caminho desemboca natural e fatalmente na Verificamos repetir-se aqui, em relação à liberdade, o mes-
dor. As duas posições são inversas. Para o bom, a dor constitui mo processo de anulamento que vimos anteriormente com res-
a exceção transitória, e a alegria é a meta e a regra geral. Para o peito ao indivíduo. No primeiro caso, o exclusivismo egoísta do
malvado, a alegria significa exceção transitória, e a dor repre- ser o isola das forças da vida; estas, percebendo esse princípio
senta a meta e a regra geral. O justo, embora à custa de fadigas, que lhes é contrário, insurgem-se contra ele e, a fim de se livra-
constrói para si feliz destino; embora sofrendo, eleva-se rumo rem dele e expulsá-lo do sistema, rodeiam-no e o cercam, en-
ao bem, constrói no seio de Deus. Está ligado às fontes da vida volvendo-o em cada vez mais densos e apertados envoltórios,
e, quanto mais progride, mais delas se avizinha, nelas se nutre onde o comprimem até esmagá-lo, de modo que o ser caminha
e, assim, vive de modo cada vez mais intenso. Assim como as rumo ao próprio aniquilamento por compressão; da mesma
forças do sistema expulsam o rebelde e fecham as portas, forma, a liberdade se restringe cada vez mais, até perder-se no
abrem-nas para quem colabora com elas, admitem-no em seu determinismo da matéria. No segundo caso, estando ligado al-
seio, confiam-lhe funções e poderes, colocando seus próprios truisticamente com todas as coisas, o ser funde-se também com
tesouros à sua disposição e acumulando-o de bens. O primeiro é as forças da vida; estas, percebendo a manifestação do princípio
abandonado; o segundo, nutrido. O primeiro é expulso; o se- que lhes é próprio, deixam-se atrair por ele, juntam-se em seu
gundo, admitido naquela comunhão, chamada Divina Provi- entorno e o circundam, procurando livrá-lo dos invólucros da
dência, em que se encontram as fontes da vida e a economia da forma, a fim de permitir-lhe expansão cada vez maior, de modo
natureza. Tudo isso até que ele vença o mal, a dor, a morte. As- que o ser caminha para o próprio aniquilamento, mas por ex-
sim, enquanto o malvado se precipita na autodestruição, o bom pansão; da mesma forma, a liberdade se dilata cada vez mais
ascende para a imortalidade. Então, o homem se anula, mas em em razão da consciência, até perder-se na vontade da Lei. Para
outro abismo; o anulamento se verifica da mesma forma, porém os conscientes, só existe verdadeiramente uma liberdade: aderir
em sentido inverso, isto é, não mais como morte, mas como vi- consciente e espontaneamente à perfeição da Lei. Quem com-
da, não por autodestruição, mas por fusão na divindade. Os dois preende isso, naturalmente nada melhor pode pedir exceto que-
anulamentos se verificam nos dois extremos opostos do ser, nos rer em uníssono com a vontade de Deus, nela fundindo e per-
antípodas do binômio do universo. Assim, todas as forças do dendo a própria vontade. A vontade de Deus, aliás, será a sua,
mal serão autodestruídas e todas as forças do bem retornarão a porque a Lei representa o melhor, a maior felicidade. A irresis-
Deus. Todos terão atingido a meta que desejaram, e os impul- tível tendência dos seres à perfeição participa da estrutura do
sos, livremente desencadeados pelos seres, terão concluído a sistema; o ser fatalmente segue essa tendência, e a Lei irresisti-
sua trajetória. E, uma vez que os princípios estabelecidos por velmente o atrai, porque ela representa a perfeição. Ao conceito
Deus produziram efeito, o imenso oceano do dinamismo uni- dessa perfeição não pode relacionar-se a incerteza na escolha,
versal repousará tranquilo, até que, com novo desequilíbrio ge- mas apenas o absoluto determinismo. Percebe-se que a oscila-
rador (como a luta entre o bem e o mal), depois da fase de re- ção da vontade entre soluções diversas só se torna possível na
pouso e paz, isto é, de dinamismo em repouso ou latente (o mal fase de formação da perfeição, e não no estado final, onde ela
absorvido pelo bem), o motor-não-movido inicie nova fase de foi alcançada. Ao mesmo tempo em que o ser ascende para a
atividade e luta, quer dizer, de dinamismo atual. plenitude da Lei, é natural que também vá perdendo sua liber-
Todo o universo gravita em redor de Deus, e, aos poucos, se dade, livremente reabsorvida no determinismo da perfeição.
escolhemos o caminho da ascensão, acabamos por nos fundir Logicamente, quem compreendeu e encontrou o melhor procu-
n'Ele. Por outro lado, se escolhemos o caminho da descida, ape- ra fazer atuar apenas este; é lógico que prefira a solução retilí-
nas podemos acabar na destruição, porque nos afastamos de nea, a resultante imediata do máximo rendimento obtido com o
Deus, única fonte de vida. O homem que involui despedaça os mínimo emprego de meios, em vez da oscilação de vontade in-
vínculos vitais que o ligam ao divino; o homem que evolui os certa, que não sabe e perde-se na ignorância e na imperfeição,
estreita e reforça. Este caminha em direção da luz, aquele se condição que a torna descrente de si mesma, fazendo-a entrever
precipita nas trevas; o primeiro aproxima-se do centro do siste- múltiplas soluções possíveis, quando sabemos que, na perfei-
ma de forças, que é também o centro do poder e da vida; o se- ção, não pode nem deve existir senão uma: a melhor. Percebe-
gundo afasta-se do centro para a periferia, onde há exaustão e se que o livre arbítrio é algo que procura encontrar a perfeição;
morte. Um se dirige para o conhecimento; o outro, para a igno- falta algo ao sistema da incerteza, que só no sistema da certeza
rância. A ascensão significa construção de consciência; a queda, encontrará a sua perfeição. O livre arbítrio não passa de vaci-
destruição de consciência. A consciência conduz à ordem, à ade- lante filho da cisão entre o homem e Deus, cisão que a evolução
são à Lei; a inconsciência conduz à desordem, isto é, à rebelião. faz desaparecer. A experimentação, de que nasce o erro, por sua
O livre arbítrio representa a fase da formação da consciência e, vez origem da dor, deriva necessariamente dessa cisão e consti-
portanto, fase de transição, que existe para ser superada tão logo tui o caminho da cura. A cisão nos tornou cegos. Precisamos
se atinja o objetivo. Ou o mal se transforma em bem, ou se des- de, submetendo-nos às provas e sofrendo, refazer a consciência
trói. Assim, ou o rebelde finalmente adere e obedece à Lei, ou perdida. Trevas, punição tremenda. Mas a dor, situação natural
acaba sendo eliminado por autodestruição, tão logo termina a de quem evolui e se redime, nos recoloca na consciência e na
experiência que motivou a concessão de liberdade, necessária à luz. Na vida existem apenas dois caminhos: o involutivo e o
livre formação de consciência. Em suma: há unicamente um se- evolutivo. A unidade do universo é bipolar, sem exceção.
nhor: Deus – o bem; e, não obstante a liberdade, só se torna pos- Quem evolui na dor cria a si mesmo; quem involui no prazer a
sível seguir o caminho que leva a Ele, caminho que é também o si mesmo destrói. O caminho da redenção é áspero, estreito e
da felicidade. A liberdade humana, relativa e limitada, não pode, semeado de espinhos; o da perdição, suave, largo e parece jun-
pois, ultrapassar os limites impostos ao homem para seu próprio cado de flores. A dor constrói a consciência, forma conquistada
bem; instrumento formador de consciência, a liberdade deve agir pelo ser quando palmilha o caminho de retorno a Deus. O pra-
nesse sentido ao invés de desmandar-se em atitudes de inconsci- zer destrói a consciência e determina a inconsciência, forma as-
entes e desordenar a ordem das coisas. Essa liberdade é enqua- sumida pelo ser no caminho que se afasta de Deus.
drada e canalizada, de modo que ou caminha em direção a seu Assim, sob duas formas opostas, a liberdade se extingue
objetivo, ou se destrói. Quem regride para a inconsciência perde num e noutro extremo da vida. O universo constitui sistema
a faculdade de compreender e, ao mesmo tempo, perde a liber- perfeito, e na perfeição não pode existir arbítrio; e muito me-
dade. Quem progride em direção à consciência também a perde, nos o sistema pode ser abandonado ao arbítrio do homem, fe-
porém como fusão na vontade da Lei. nômeno representativo de função transitória, dirigida a objeti-
188 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
vo certo, limitado e relativo a ele. O homem, que tanta liberda- regride é levado cada vez mais a substituir a divina vontade
de proclama, muitas vezes se atira pelo caminho fácil da queda universal por sua vontade isolacionista. O primeiro cresce
na desordem, no entanto o áspero caminho da ascensão se situa sempre mais e se agiganta; o segundo se comprime em si
na disciplina, na ordem. No dinamismo universal, verificamos mesmo, diminui e se asfixia. Mas, em ambos os casos, o esta-
hoje a dissensão de duas vontades diretivas rivais, que dispu- do de livre arbítrio tende a anular-se, seja no determinismo do
tam o terreno: a vontade de Deus, situada no íntimo e desejosa sistema do espírito, pela fusão consciente na vontade de Deus,
de instaurar o reino da justiça e do espírito, e a vontade do ho- seja no determinismo do sistema da matéria, pela obediência
mem, posta na superfície e tendente a estabelecer o reino da inconsciente do cego à vontade da Lei.
força e da matéria. Deus e Satanás, Cristo e Anticristo se de- Antes de passar a outros argumentos, vejamos alguns coro-
frontam. Trata-se de dois sistemas de forças, de antagonismo lários do capítulo precedente. A civilização materialista atual
contínuo e presente em todo ponto e em todo momento, em to- entra de novo no sistema de forças da matéria. Seu termo final,
do ato e em todo fenômeno, antagonismo de que tudo está im- implícito no sistema, é a autodestruição. Tamanho progresso
pregnado. Já vimos o diferente poder dos dois sistemas e a econômico e material deverá, pois, acabar fatalmente na auto-
conclusão a que os levará a estrutura particular de cada um de- destruição, como, aliás, está acabando. As verdades que a ciên-
les. O ser que ascende deve eliminar a dissensão entre as duas cia descobre são certas, pois não passam de verdades da Lei.
vontades e desfazer a diferença nascida da rebelião; deve, à Errada é, isto sim, a direção seguida pela ciência nas pesquisas;
custa de muita obediência, reequilibrar tanta desobediência; errado é o método utilitário com que a ciência as aplica. O pe-
deve agora executar, por sua conta, o trabalho da reabsorção da cado capital dessa ciência consiste em dirigir-se à matéria ao
desordem pela ordem, da liberdade pela disciplina; há de exe- invés de ao espírito, em querer substituir Deus pelo eu, em pôr-
cutar o trabalho de renunciar à sua vontade egoísta, a fim de se na posição de presumida independência da Lei e de revolta
perdê-la, fundindo-a na vontade da Lei. A princípio, isso cons- contra ela. Trata-se, pois, de progresso às avessas, progresso
titui esforço, mas depois é poder; parecerá limitação e derrota, que nega e, por isso, negativo. Depois de tudo quanto dissemos,
porém mais tarde significará expansão e vitória; inicialmente, as consequências tornam-se evidentes. Esses sistemas de forças
não passará de fatigante aceitação, mas finalmente há de ser nos tolhem completamente. O homem acredita realizar grandes
espontânea fusão na vontade de Deus. Então, o ser saboreará a conquistas porque desvenda segredos da natureza e, em segui-
alegria suprema da harmonização, nessa vontade perceberá a da, sabe desfrutá-los, mas a posição da ordem fica nesse caso
perfeição suprema e, com alegria, nessa perfeição submergirá a subvertida. O homem acredita que, desse modo, acumula pode-
liberdade pessoal; nessa vontade viverá satisfeito e feliz, como res e se torna senhor da vida, porém trata-se de poderes de re-
quem atingiu seu objetivo supremo; aí há de viver por adesão belde e apenas podem levar à autodestruição. O homem, hoje
espontânea, porque, conquistada a consciência, terá compreen- tão orgulhoso de si mesmo, com essa ciência sem sabedoria,
dido ser ela seu bem e se sentirá cada vez mais livre nessa não passa realmente de elemento expulso do sistema de forças
obediência, para ele vantajosa. Além da incerteza dos que, em- da Lei, de isolado, de abandonado por Deus, de indivíduo posto
bora não o conheçam ainda, procuram o que lhes é verdadei- fora das fontes vitais. Seu grande edifício lhe cairá em cima,
ramente útil, que significado tem a oscilação do livre arbítrio? não porque deixe de ser grande e belo, mas apenas por causa da
E, quando o ser houver adquirido consciência do que lhe é útil, direção errada em que o construíram. A Lei destruirá a ciência
como poderá continuar escolhendo, oscilando, quer dizer, vi- rebelde que a negou e a civilização criada por essa ciência. Esse
vendo na incerteza? O melhor pode ser apenas uma coisa só e, é o termo fatal do mundo de hoje. Por isso nova e verdadeira
quando o tivermos encontrado, nos impede a escolha. Aí, a civilização somente poderá nascer das ruínas dele, depois de ser
grande cisão entre o homem e Deus desaparece e a luta, filha destruído, não podendo ter por fundamento senão princípios
da ignorância, se acalma. Então, o ser sabe querer apenas o que completamente diferentes. Assim, a nova civilização do Tercei-
Deus quer, e isso lhe constitui a maior alegria; conquistando ro Milênio poderá apenas ser a civilização do espírito.
consciência, torna-se instrumento voluntário da Lei e se funde Ainda podemos compreender algo mais. A Lei reage contra
no seio de Deus, em harmonia e felicidade. quem a transgride, expulsando-o de seu sistema de forças (aliás,
onde se encontra grandemente protegido quem nele se refugia)
XIV. CONSEQÜÊNCIAS E APLICAÇÕES e abandonando-o. Nesta condição, o homem permanece fora do
sistema, isolado, à mercê das forças opostas, ou seja, do mal.
No capítulo precedente, destacamos o fenômeno das ascen- Eis por que o erro e a culpa, que significam desordem contra
sões humanas do fundo da dinâmica universal. Enquadrar os Lei e, por isso, expulsão e abandono, causam dor, ou seja, re-
fenômenos, reordenar o pensamento, disciplinar a ação consti- gressão. Nas páginas precedentes, pudemos observar como e
tuem a nossa tarefa, que significa construir. Caminhemos, pois, por que a Lei reage, isto é, a forma e o motivo dessa reação, de
em direção da ordem, rumo a Deus; das duas estradas da vida, que antes não se podia explicar a relação com a dor. A Lei,
a involutiva e a evolutiva, sigamos a que sobe. O sistema de quando alguém a transgride, expulsa da sua ordem e da sua
forças do universo é, pois, bipolar, quer dizer, resultado do ajuda o transgressor; nega-lhe tudo, o conhecimento e o poder,
contraste entre dois sistemas inversos: o sistema do espírito e o a proteção e o alimento. Essa a razão por que todo golpe contra
da matéria. Ambos são deterministas, ou seja, o universo, sen- a Lei constitui golpe que o rebelde inflige a si mesmo, autopu-
do inteiramente perfeito, apresenta completo determinismo nos nição, dor por ele sofrida. Eis por que encontramos a dor no
seus dois termos componentes. Se, no sistema de Deus, apenas caminho da involução, caminho de rebeldes. Eis por que desor-
pode existir perfeição, então necessariamente só pode haver dem, rebelião, inconsciência, erro, culpa, dor e queda se relaci-
determinismo. A liberdade existente no homem consiste so- onam. O universo é criação contínua e se mantém apenas em
mente na possibilidade de escolha entre os dois sistemas. Es- virtude dessa criação. Ela deriva de dinamismo central, inserto
tes, porém, se constituem de tal modo que, escolhidos, envol- na intimidade das coisas, profundamente ligado ao universo e a
vem o ser em suas espirais, o incluem em seu sistema de for- Deus, onde estão situadas as fontes da vida. Tudo isso dá nas-
ças, o prendem à sua lógica e tudo isso de modo a arrastá-lo cimento a sistema de forças continuamente tendentes a recons-
até às últimas consequências, até à plena realização do sistema, truir. Quem é posto fora desse sistema porque se rebelou contra
isto é, à plenitude de vida em Deus, de um lado, e à autodes- ele, não é mais alimentado por essas forças criadoras, ou então
truição, de outro. Quem ascende tende sempre mais a substituir recebe apenas pequena quantidade de alimento, isto quando não
sua vontade isolacionista pela divina vontade universal; quem se rebelou completamente e somente em proporção à sua obe-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 189
diência residual. A verdade, porém, é que, por esse caminho, o autodestruição, as forças do sistema continuam presentes, mas
rebelde caminha para a morte. Eis por que ele está automatica- sob forma negativa, e procuram, exatamente como dissemos,
mente condenado à autodestruição, pois, com suas próprias com a reação sanar a falha e curar o mal pelo emprego do re-
mãos, colocou-se fora da vida. Deus, a Lei, a Ordem significam médio da dor. Assim, aquilo que, à luz da psicologia corrente,
vida; Satanás, a rebelião, a desordem significam morte. Desse parece derrota e falência constitui o mais útil trabalho realiza-
modo, esgotamos a análise do problema do bem e do mal, le- do neste ciclo histórico, pois representa a obra de arrependi-
vando-o até à sua conclusão. Assim, observamos racionalmen- mento, de retificação, de nascimento de consciência e sabedo-
te, de um lado, as terríveis e automáticas consequências a cujo ria, obra saneadora dos erros cometidos. Dor acabrunhadora,
encontro vai quem escolhe o caminho que se afasta de Deus e, mas salutar, que nos tira do caminho da autodestruição e nos
de outro lado, como a verdadeira felicidade se torna possível e impele ao caminho da construção. Estamos, pois, vivendo um
nossa herança natural e por que essa felicidade apenas pode re- momento decisivo das teorias supra expostas. Poderíamos di-
sidir na consciente e ativa obediência à Lei. Tudo se reduz a zer que, hoje, estamos vivendo o período corretivo, de retifica-
adquirir a consciência dessa Lei e a superar a ignorância; tudo ção das posições subvertidas pelo homem. Não podemos fazê-
se reduz a compreender coisa tão simples e lógica, ou seja, que lo atuar senão através da subversão total dos atuais valores do-
Deus apenas pode querer, e quer mesmo, nosso bem. Se o ho- minantes. Tivemos hipertrofia de meios materiais e, no bem-
mem não fizer tão simples descoberta, todas as maravilhosas estar, atrofia do espírito; eis-nos, pois, nas posições inversas,
descobertas científicas hão de submergir na destruição. O gran- quer dizer, com pobreza de meios materiais e a dor que nutre e
de mal que nos engana e trai, consiste nessa ignorância, que nos enriquece. Assim, através da privação de tudo quanto anterior-
ilude com miragens, mostrando-nos a felicidade na revolta, mente abundou, com poucos frutos no sentido evolutivo, che-
exatamente onde não está nem pode estar. Em que se cifra o gamos ao desenvolvimento de tudo quanto anteriormente fal-
maior desejo do homem, senão na sua felicidade? Qual o maior tou, e isso com frutos para o progresso espiritual. Se quisésse-
desejo de Deus, senão a felicidade do homem? Só a ignorância mos definir o tipo da nova civilização e o comparássemos com
humana a respeito do pensamento de Deus pode tornar diver- o atual, poderíamos chamá-la civilização retificada. Tanto bas-
gentes duas vontades que tendem ao mesmo objetivo. Se lutam, taria para que a imaginássemos. Essa retificação a descreve em
é exatamente porque desejam ansiosamente abraçar-se e unir- continuação a tudo quanto vimos dizendo nestas páginas.
se. Por isso vivemos na experimentação e na dor. De fato, atra- Daí se vê não ser o homem, mas a Lei, quem dirige a histó-
vés de provas e mais provas, adquire-se essa consciência, que ria e a vida. O homem, agindo loucamente, chegou à desordem,
constitui a única solução do problema. mas a Lei, sabiamente, o reconduz à ordem. Hoje, a realidade
Apliquemos ao atual momento histórico tudo quanto dis- da vida grita aos ouvidos do indivíduo e dos povos esta neces-
semos. Nossa civilização materialista, se considerarmos os sidade inelutável e suprema: maceração na dor. A distinção
princípios que lhe deram origem e lhe dirigem o desenvolvi- humana entre vencedores e vencidos não tem, quanto a isso,
mento, sofre agora o inexorável processo final de autodestrui- importância alguma. A ciência encarou o problema do mundo
ção. Significa tentativa de instaurar o reinado humano da maté- material, mas ignora o do mundo espiritual; escapa-lhe o cálcu-
ria, sem e contra o reinado do espírito; de substituir Deus pelo lo dessas poderosas forças do imponderável, que hoje golpeiam
eu; de estabelecer, em lugar da ordem divina – em que, não o o homem. A erudição contemporânea não basta para compre-
homem, mas apenas a Lei dirige – ordem humana, em que só o ender o que está acontecendo ao mundo de nossos dias. Desco-
homem dá ordens. Foi ato de revolta, e agora vão-lhe sendo brimos leis da natureza e dominamos algumas de suas forças,
eliminados os resultados. Nessa fase, a nota dominante é a des- mas o fizemos egoisticamente, estupidamente, contra a Lei, isto
truição causada pela guerra, com que a técnica, primeira con- é, contra nós mesmos. Quanto bem obteríamos, se houvéssemos
quista da civilização, destrói a própria civilização. Isso é lógi- sabido dirigi-las com inteligência! Acima da loucura humana se
co e fatal. Hoje, Deus abandonou o homem ao destino que ele coloca a sabedoria divina, que agora nos impõe a reconstrução
quis preparar para si mesmo. Deus lhe diz: ―Você pensou que do equilíbrio perturbado, imergindo-nos em banho de penitên-
sabia agir e quis agir sozinho. Agora você vai fazer isso até o cia. Na passagem se encontra a dor amiga para salvar-nos. Mas
fim. Você é livre, mas responsável. Faça experiência. Você há o homem não lhe compreende a função e ainda se revolta cada
de compreender à sua custa‖. Hoje, o homem está perdido e vez mais. Com essa ilusória forma mental, sem preparo algum
abandonado no meio de cataclismos mundiais, em pleno ocea- para a vida áspera das horas apocalípticas, o homem está abso-
no de forças incompreensíveis para ele, sem a capacidade de lutamente fora do caminho. Colocou-se fora das fontes espiritu-
conduzir-se deste ou daquele modo. O poder que possui serve- ais do ser, e falta-lhe o poder que sustenta os que sabem atingi-
lhe apenas para feri-lo. Parte da negação e da dúvida e chega à las. Em última análise, estamos no ponto mais baixo da onda
inconsciência e à destruição. A dor constitui a primeira conse- histórica e precisamos percorrê-lo antes de podermos ascender
quência do sistema que se move em sentido involutivo, afas- novamente. Para o homem, a verdade e a sabedoria estão além
tando-se das fontes vitais. Essa dor, que acreditávamos saber desse trajeto. É duro, mas devemos percorrê-lo; chorando e
dominar, acabou sendo o verdadeiro resultado atingido; e a fe- sangrando, necessitamos chegar. O mundo acreditava que, com
licidade (que tão seguros estávamos de consegui-la) transfor- seus métodos conceituais e materiais, podia organizar a felici-
mou-se em miragem. A subversão do sistema produz resulta- dade em série, em máquinas, e estava a ponto de atingi-la, no
dos contrários. Hoje, as forças da Lei devolvem ao homem os entanto encontra-se em face de realidade cruel e bem diferente,
golpes que dele receberam. A dor, porém, não significa vin- constituída pelo poder criativo que a dor tem. Alguns, todavia,
gança de Deus, mas apenas reação salvadora, dirigida pelo in- compreendem, aceitam e ascendem. Constituem minoria sábia e
tento de reconduzir o homem à estrada que há de levá-lo à feli- silenciosa, abafada pelas vozes dominantes. Muitos, porém, não
cidade. Como não compreendeu nem seguiu espontaneamente compreendem e continuam a rebelar-se, maldizendo; reagem à
o caminho certo, gozou da liberdade de experimentar o cami- dor por meio de novo mal e, assim, ao invés de se afastarem do
nho errado, mas agora está preso e é obrigado a palmilhá-lo à redemoinho da regressão, cada vez mais afundam e lhe aumen-
viva força. A dor constitui espécie de violência indireta contra tam o poder. Assim, os bons tornam-se melhores e os maus, pi-
sua liberdade; é o determinismo da Lei, absolutamente desejo- ores; a distância entre os dois aumenta, até se separarem com-
sa do bem, que, pelo bem do homem, executa essa violência. É pletamente. Formarão dois turbilhões de forças, um voltado pa-
tentativa honesta de salvamento com que, estamos vendo, an- ra cima e outro para baixo. Este último agarra o outro, procura
tes de ausentar-se completamente, abandonando o rebelde à prender-se a ele para arrastá-lo ao fundo consigo, busca despe-
190 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
daçá-lo, a fim de aniquilá-lo; mas todo sistema contém em sua profícua. Que consciência, organicidade e poder espiritual de-
própria natureza o termo final de sua trajetória. Pelo princípio verá ele possuir para saber vencer sem ódio e sem armas, per-
da ascensão, a Lei levará os justos, aderentes à vontade dela, doando e dando! Espiritualmente falando, nossa sociedade as-
cada vez mais para cima, até à salvação, mesmo através de obs- semelha-se a campo agreste, a floresta emaranhada e selvagem.
táculos e provações, porém fará os rebeldes se precipitarem ca- Torna-se necessário transformá-la em plantação racional de
da vez mais para baixo, até à autodestruição. O atual espírito de rendimento intensivo, e a dor atual constitui grande escola de
destruição parece universal e poderá atingir a todos nós; mas, maturidade para todos nós. Precisamos, em todo campo em que
finalmente, terminará prejudicando apenas quem o pôs em existe o caos, introduzir a ordem e fazê-la substituir a desor-
ação, acredita nele e o merece. Hoje, os homens podem esco- dem; isso, porém, com métodos diferentes da dominação, em
lher: sobrevivência ou destruição. A dor impõe a solução da que todas as diferentes tendências humanas se igualam. É pre-
crise e o superamento da fase. Os sábios transformam-na em ciso fazer que todos compreendam e sintam por livre conven-
instrumento de vida para si mesmos, os estultos rebeldes trans- cimento e paixão, gerando sistemas substanciais, e não formais.
formam-na em instrumento de morte. Agimos mais por vias internas e espontâneas do que por vias
Este livro foi escrito em meio dessa tempestade, nessa at- coativas e externamente enquadradas. Não adianta mudar no-
mosfera apocalíptica, nessa hora trágica em que o mundo des- mes e programas. Importa, isso sim, o senso da vida e a moti-
morona e se recompõe. Não poderia nascer senão nesse terreno vação diretora; importa operar na substância e fazer o homem.
e nesse momento. Enquanto o pensamento se inflama, a alma A consciência coletiva não passa de frase sonora, mas sob ela
geme; os próximos bombardeios põem vibrações no ar, as cida- se esconde quase sempre apenas a inconsciência coletiva. O tu-
des se reduzem a escombros, a civilização vacila, a propriedade fão limpou o terreno. Vamos, agora, ará-lo, semear, tratar, fazê-
torna-se insegura, vivem somente na saudade a segurança do lar lo produzir. O ódio destrói. O amor deve reconstruir. Essa é a
e a vida civilizada. A morte passa e torna a passar por perto, linha de desenvolvimento de nossa época. Primeiro, a paixão;
sem deter-se ainda. Deus desce até perto de nós e nos fala. É o depois, a ressurreição. O involuído esgotou sua missão. Agora
momento sublime e terrível das grandes maturações. Cada vez chegou a vez do evoluído. Os amadurecidos são chamados para
mais o mal se encarniça e se torna cego em orgia de ferocidade, o trabalho, e, mais do que nunca, agora sua vida se transforma
e cada vez menos sabe o que faz. O bem, tranquilo e tenaz, en- em missão. Esgotaram-se as vãs tentativas dos experimentos
quadra a desordem e, como sabe o que faz, espera e modifica os materiais e verificou-se que os expedientes atuais não resolvem
resultados. As destruições da guerra são a força que o mal mo- o problema. Nada mais lógico, pois, que agora, a título de rea-
mentaneamente aplica a serviço do bem. A Lei conclama os in- ção e compensação e por meio de expedientes de tipo oposto,
feriores a funcionarem como instrumento de dor. Mas a dor tem se inicie outra qualidade de experimento, de natureza espiritual.
capacidade criadora, e a sua atual presença entre nós, e em pro- Apenas começamos a caminhar rumo ao bem e à sua reali-
porção assim tão grande, prova a iminência e a amplitude da zação na Terra, e já nos assalta o pensamento de que talvez se
transformação do mundo e constitui o precedente necessário trate de utopia. Isso, naturalmente, acontece porque nos afas-
para gerar nova civilização. Nas mãos da Lei, tudo isso se reduz tamos da dura realidade da Terra. Mas sabemos que o objetivo
a severa verificação e, em seguida, a extraordinária progressão da evolução consiste justamente nesse afastamento. Vimos que
da vida rumo a futuro melhor. Contra todos os negadores, o es- o mal pode constituir grande obstáculo, terrível resistência, no
pírito, para explodir, faz pressão de dentro para fora. O mal po- entanto o bem é o verdadeiro e definitivo senhor. A realidade
de suicidar-se; não pode, porém, destruir o eterno e divino im- quotidiana do mal contradiz o bem e o torna aparente utopia;
pulso criador. Nossa hora exige renúncia, liberação e desenvol- encobre como véu a verdade mais profunda, esconde-a dos vi-
vimento. Ascensão através da dor. olentos e até mesmo dos astutos; não a esconde, porém, dos
Deus tira os bens das mãos de quem os conquistou e não justos. A estrada é longa; mas a ascensão, fatal; e o mal não
sabe usá-los, tanto assim que de seu emprego só lhe resultam prevalecerá. Nem a insipiência, nem a traição, nem o erro, nem
danos e nenhuma vantagem. E concede-os novamente apenas o abuso, nada pode deter a maré montante do progresso. No
quando houver aprendido a utilizá-los. O homem, então, deve sistema está previsto que toda queda e todo mal tem remédio.
reconquistá-los com ânimo novo, de modo a transformar o da- As multidões são certamente ignorantes e cegas, sujeitas àqui-
no em vantagem. Assim, a pobreza sucede à riqueza. É lógico lo a que pode reduzir-se qualquer governo inepto, isto é, a se-
e até mesmo constitui benefício a quem faz mau uso de deter- rem esmagadas pela força e exploradas pela astúcia. Mas os
minado meio, adorando-o como se fosse um fim, perdê-lo e ser povos se iludem quando creem que, pela direção dos chefes,
reconduzido à ascensão, único e verdadeiro objetivo da posse. possam obter a orientação necessária, pois esta só pode provir
É também lógico e justo que apenas os dignos possam dispor de consciência coletiva, condição que os povos podem con-
dos bens e só os amadurecidos possam mandar e dirigir. Quem quistar apenas à custa do próprio esforço e através de duras
a Deus antepõe os ídolos acaba sendo expulso da vida. Toda- provações. Assim como os indivíduos, também os povos de-
via quem está com a Lei está com a vida. Pois bem. Aproxima- vem aprender por si mesmos, através de seus erros e dores.
se a hora da transformação do mundo. O super-homem pode Toda nova experiência política apenas serve para passarmos,
nascer apenas de lutas e dores assim titânicas. Será a transfor- progressivamente, de estado de inconsciência a estado de
mação do herói da matéria, do super-homem nietzscheano. consciência coletiva. Todavia, no fundo da atual inconsciência,
Mostrar-se-á valoroso na prática do bem, na capacidade de dar, o sentido da vida se manifesta em obscuro instinto que, embo-
de amar, ao invés de mostrar-se endurecido no mal, na agres- ra confusamente, indica às massas o caminho certo e lhes con-
são, no ódio. A bestial virilidade do homem no plano físico as- fere a capacidade de responder às vozes da verdade; mas isto
fixiante da guerra, se refinará e aumentará de poder na virili- somente se forem verdadeiras e sinceras e o evoluído, que vive
dade mais apurada do homem no plano espiritual. A luta não para cumprir missão na Terra, mesmo à custa do próprio sacri-
se travará mais por causa da seleção animal do mais forte, se- fício, souber gritar bem alto essa verdade. Somente dele pode
leção em que ainda alguém crê, mas em favor da seleção do ser a iniciativa da ascensão. Todos os valores humanos vão
mais justo e consciente; as guerras e as vitórias serão diferen- sendo continuamente explorados e subvertidos em favor de
tes, baseadas em princípios diferentes e conduzidas também vantagens pessoais. À custa do próprio sacrifício, o evoluído
com métodos diferentes. As batalhas do homem futuro serão deve repô-los no lugar certo, restituir ao homem tudo quanto
bem diversas. Esse homem será o soldado da paz, que substi- lhe roubaram, opor-se com o poder do vidente à força bruta e,
tuirá a guerra do ódio pela guerra do amor, muito mais difícil e com a honestidade, lutar contra a exploração.
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 191
Mas o futuro não depende apenas dos homens de boa von- observando-lhes o íntimo. Por isso nada de agressividade contra
tade. Preparam-no as leis da vida. A história é escrita por elas, e formas indignas de nos causarem a fadiga de combatê-las, mas
não pelos líderes que aparecem em cena e constituem meros apenas respeito e paz relativamente àquilo que para os demais
instrumentos de quem mais sabe, muitas vezes mais obedecen- assume tanto valor e, no entanto, para nada presta. De outra
do do que comandando. Tão logo desobedeçam ou se tornem forma, aviva-se mais o contraste, pois não se eliminam tais coi-
inúteis, a Lei os liquida, retirando-lhes a função a eles confiada. sas valorizando-as pelo combate que lhes movemos, mas ne-
Os homens tão-somente exprimem forças da vida, que se diri- gando-lhes importância e incentivo. Jamais o evoluído é nega-
gem a objetivos muitas vezes incompreensíveis para eles. tivo e destruidor, mas sempre positivo e construtor. Assim, tudo
Quando soar a hora da plenitude dos tempos, os amadurecidos quanto se torna inútil por si mesmo se destrói. Toda a energia
ouvirão dentro de si os apelos da vida, sentir-se-ão galvaniza- do evoluído se aplica em favor do bem. Tanto basta para em to-
dos e fortalecidos e hão de ver que o imponderável os impele à das as formas infundir calor, espírito e valor novo.
ação. Assim, a Lei, apelando para o íntimo de cada um deles, Essa nova classe de homens se distinguirá por meio de ca-
chama um por um os instrumentos da ascensão, os desperta e os racterísticas biológicas, e poderemos chamá-la classe dos sa-
põe em função. Passada a vez dos involuídos destruidores, con- cerdotes do espírito. O fato de nos desmaterializarmos na fun-
vocados nas horas negras da violência, chega a vez dos evoluí- ção espiritual aumenta-nos a capacidade de penetração e a po-
dos construtores, chamados nas horas luminosas do sacrifício. tência. Quanto mais a forma é imaterial tanto mais invulnerá-
Estes e aqueles, imperceptivelmente, se atraem e, quando sopra vel e resistente é aos esmagadores ataques exteriores e às frau-
o vento que os maneja, se confundem, cada qual com seus dulentas explorações interiores, ambos verdadeiras traças que
iguais, para somar esforços. Vimos e continuamos a ver a hora roem o ideal. Aqui, o sistema de forças protetoras se apoia no
dos primeiros, que deverá, contudo, esgotar-se. Para refazer o imponderável, e o princípio fundamental difere do comum.
equilíbrio da vida, vai chegar a oportunidade dos evoluídos. Não se trata de falar e parecer, mas de ser e dar o exemplo, de
Também estes vão atrair-se e juntar-se. Ao primeiro olhar, hão não pretender pregar moral antes de poder dizer: eu também
de reconhecer-se como colaboradores do mesmo ideal, sentir- faço assim. Não se trata de proselitismo superficial, que come-
se-ão homens da mesma estirpe e compreenderão mais. A revo- ça nos outros, mas de conquista profunda, começando em si
lução, desta vez, não é formal, mas substancial. Não se trata da mesmo. Mais do que de certa espécie de ordenamento religio-
costumeira luta para, com os mesmos métodos, substituir os ve- so, trata-se de certa espécie de ordenamento biológico, onde
lhos ocupantes das posições privilegiadas. A luta do evoluído automaticamente se enquadra o indivíduo amadurecido, que aí
não se destina ao predomínio deste ou daquele interesse, mas é permanece enquanto, por causa dessa maturidade, consegue re-
luta de deveres em favor da evolução. sistir; desse ordenamento está automaticamente excluído quem
Para refazer o mundo, tudo deve fazer-se contra a vontade mente, explora ou furta. A regra pertence à Lei; aceita-a e se-
do mundo. Por isso, antes de mais nada, método de vida des- gue-a apenas quem lhe apreende o sentido e compreende a vi-
pretensioso, sincero, honesto; novo estilo, acima de tudo inte- da. Do mesmo modo que a gratidão, os prêmios e o progresso,
rior, constituído de fatos, e não de palavras. Os fatos não são as sanções e as exclusões são automáticas. A polícia de contro-
necessariamente como aqueles hoje em dia observados, onde le está confiada às forças da Lei, que usam peso justo; quem
se vê grande número de adeptos e muito barulho. O número e o vale mais e mais possui deve dar mais e ter mais responsabili-
barulho estão naturalmente na razão inversa da profundidade, e dade. Trata-se de leis biológicas a que não podemos fugir; não
naquele caso a ação se processa em profundidade. O primeiro falham e, inexoravelmente, atingem o indivíduo, onde quer
trabalho se desenvolve no íntimo das pessoas, onde penetra- que esteja. A polícia de Deus se compõe de imponderáveis
mos persuasivamente, e não no exterior delas, onde domina- contra os quais não adianta rebelarmo-nos, pois são invisíveis
mos à custa de coação. Por isso não necessitamos da costumei- e poderosos; funciona com exatidão e segurança, não esquece
ra força dos dominadores, mas de convicção e de exemplo. Os e a todos, com suprema justiça, castiga ou premia.
novos homens não exibirão sinais exteriores, que o vestuário
possa mudar, mas sinais interiores, impressos no coração e na XV. TIPO BIOLÓGICO DO FUTURO
mente. Nem as funções, nem as condições sociais, nem a hie-
rarquia, nem qualquer outro motivo capaz de atrair o espírito O fenômeno de renovação já mencionado neste livro não
humano, ávido de poder e repleto de ambição, servirá mais do deve ser entendido isoladamente sob um só de seus numerosos
que uma vida corretamente vivida, para estabelecer distinções aspectos, seja social, político, religioso, econômico, intelectual,
entre os homens. O posto mais alto pertencerá a quem mais dá, moral, artístico etc. Devemos entendê-lo, isso sim, no vastíssi-
embora menos possua, a quem se sobrecarrega com mais tra- mo sentido de fenômeno biológico. Quer dizer, trata-se de ma-
balhos e obrigações. Principalmente, saibamos viver o mais turação evolutiva do tipo humano, a qual lhe permitirá a exata
possível desprovidos de riqueza, para nos tornarmos invulne- apreciação do imponderável, que agora lhe escapa e produz a
ráveis aos ataques do involuído, que a deseja sobre todas as falência do espírito no trato das coisas humanas. Não se torna
coisas, e para o mantermos afastado de nós, pois não sabe vi- necessário criar mais coisíssima alguma. Os elementos já exis-
ver em atmosfera de pobreza e sacrifício. As potências espiri- tem entre nós. Trata-se apenas de orientá-los, de saber dirigi-los
tuais devem estar em condições de substituir qualquer bem da com a lógica hoje inexistente, isto é, de reordenar a desordem.
Terra. Não é verdade que a riqueza e o poder se tornem abso- Sabe-se que o método e a organicidade permitem muito maior
lutamente indispensáveis para a execução de qualquer tarefa. rendimento a qualquer trabalho, poupando-o de tantas disper-
Os grandes meios utilizados pelo mundo são quase sempre sões e atritos. Atualmente, estes custam dinheiro, fadigas, dores
meios fornecidos pelo mal. O bem pode prescindir deles, mas, imensas. A compreensão mútua, estabelecendo um desarma-
em compensação, necessita entusiasmar-se, fazer primeiro e só mento mental que nos permita olhar sinceramente uns nos olhos
depois mandar que façam, sentir e viver integralmente a paixão dos outros, não para nos enganarmos reciprocamente, mas sim
do bem. O que se leva em conta é o ânimo, o valor intrínseco para nos compreendermos, significaria a maior libertação ja-
do indivíduo, e não o poder econômico, a posição social, a con- mais conhecida pela humanidade. Quando o ser superou deter-
dição externa. Grandes meios podem reduzir-se a bagatelas, e minada fase evolutiva, a lei relativa a essa fase torna-se para ele
títulos pomposos, camuflar nulidades. Não mudamos nada do uma prisão, da qual necessita fugir para libertar-se. Essa prisão
que está do lado de fora e carece de importância. O evoluído, é justamente no que vai-se transformando cada vez mais a mo-
extremamente sensível, reconhece e classifica os homens, mas derna concepção social do homem, que está fazendo esforços
192 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
titânicos para escapar. A lei de seleção do mais forte não lhe foi quica, cada dia mais necessária no novo mundo futuro. Se, so-
inútil no passado e, de fato, permitiu à raça humana o domínio cialmente, o novo tipo biológico será o homem orgânico, indi-
material do planeta, através do método bestial da subjugação vidualmente será o homem do espírito. A vida e o progresso
violenta. A Lei permitiu que o homem adotasse esse método. que a intensifica residem no espírito. Na intimidade imponde-
Esse fato demonstra como, em certo período, tal método se tor- rável do ser, aí onde ele atinge as divinas origens da vida, exis-
nou útil e necessário. Hoje, porém, a posição do homem mu- tem inexauríveis capacidades de desenvolvimento. O universo é
dou. Tornou-se senhor do planeta e agora luta mais contra os semente desejosa de desenvolver-se em direção a Deus, incapaz
semelhantes do que contra os elementos e as feras. Atingiram- de resistir e não ceder à pressão interna do espírito, que tem
se os objetivos da seleção animal, por isso esse método não cor- pressa de manifestar-se, e da divindade interior, desejosa de ex-
responde mais às finalidades da vida, agora diferentes e mais primir-se sob formas de perfeição crescente. Há novos conti-
nobres. A evolução elevou-os bem mais alto, diz respeito a ou- nentes a desvendar, novas minas a explorar, novas fontes de
tros objetivos, empreende outras construções e não pode retar- energia a descobrir e empregar. Nossa involução é que traça li-
dar-se no caminho já superado. Hoje, caminhamos para a orga- mite para nosso domínio. O universo, junto de nós, inexauri-
nicidade; este é o fim que a Lei pretende fazer-nos atingir. Ora, velmente rico, dispõe-se a ceder-nos as suas riquezas, mas, co-
o método de luta para seleção do mais forte é antiorgânico por mo é lógico, nega-as ao primitivos, incapazes de fazer bom uso
excelência e, realmente, não corresponde mais ao objetivo; re- do poder. O universo não responde aos inconscientes, que não
presenta regime de desordem justamente aí onde se deve com sabem tocar-lhe nas cordas mais sensíveis. Não o compreende-
toda a urgência impor ordem. Trata-se de fenômeno natural de mos, não lhe conhecemos as leis; ferimos sua ordem ao nos re-
retificação e ordenamento que, conforme verificamos, se pro- belarmos, movidos pela pretensão de substituí-la por nossa von-
cessou até mesmo no mundo astronômico e geológico, depois tade; e como resposta, em vez de amizade e doçura, obtemos
do período caótico da formação. O mesmo fenômeno deverá repulsa e hostilidade. Colocamos de lado e maltratamos as for-
processar-se também no mundo social. A lei da luta para sele- ças espirituais, exatamente as mais importantes. Porém nada
ção do mais forte serviu até agora para o animal e para o ho- podemos ignorar em organismo onde tudo se relaciona. O po-
mem-animal; não servirá para o novo tipo biológico em prepa- der e o futuro residem na sensibilização e na desmaterialização,
ro. Neste novo plano em que está entrando esse novo tipo, tal ou melhor, no domínio de forças cada vez mais sutis, aliás, as
seleção, ao invés de beneficiar, prejudica, pois não representa mais poderosas. O poder está sediado na profundeza, na imate-
progresso, mas regressão a tipo superado ou em vias de supe- rialidade, e nós o conquistamos caminhando rumo às raízes do
ramento, que hoje não significa ascensão, mas queda. Torna-se, ser e às origens da vida, isto é, em direção a Deus.
pois, necessário novo princípio e novo método seletivo, ade- Observemos, para compreender melhor, este caso de sutili-
quado aos novos objetivos a atingir, isto é, diferente forma de zação da forma por meio de elaboração evolutiva, quer dizer, es-
luta para novo modo de seleção, não dos melhores unicamente te caso de sensibilização e espiritualização. A princípio, e do
sob o ponto de vista da força, mas dos melhores em inteligên- ponto de vista biológico, a mão do homem foi um dos membros
cia, sensibilidade, consciência, bondade e sabedoria. Se esses que o tronco produziu para facilitar a marcha, e isso já era a
elementos não se faziam necessários para o tipo vencedor- primeira manifestação de vontade interior dirigida para objetivo
destrutivo, imperador de escravos, são indispensáveis ao novo elementar. Depois, esse membro se destacou da terra e se trans-
tipo biológico, de homem orgânico e, por isso, consciente. Os formou em órgão apreensor e instrumento de ação e de trabalho,
princípios que orientam a luta e a seleção pertencem à lei de como manifestação de vontade mais complexa e mais inteligen-
evolução, e não podemos destruí-los. Mas, se o homem quiser te, embora presa ainda à forma material da estrutura ósseo-
libertar-se da animalidade, deve assumir agora conteúdo dife- muscular, de que estava em estreita dependência. Hoje, a mão se
rente, quer dizer, formas e objetivos diferentes. vai sempre transformando de instrumento físico em instrumento
Observemos mais de perto esse fenômeno de transformação psíquico, vai tornando-se tentáculo nervoso cada dia mais ágil e
biológica evolutiva. A vida é criação contínua, obra de forças sensível e passando de agente físico a órgão dirigente de outras
invisíveis que trabalham internamente, dentro de formas exteri- energias, inclusive da muscular. Assistimos a um processo de
ormente caducas e sujeitas a incessante metabolismo renova- desmaterialização, sensibilização e espiritualização, ao qual cor-
dor. Todas as coisas se movem e se mantêm permanentemente responde progressivo aumento de poder em extensão e profun-
vivas por causa dessa inexaurível fonte interior, que se chama didade. Continuando no mesmo caminho, a mão, gradativamen-
Deus, centro dinâmico e conceitual do universo. Tudo se ali- te transformada de instrumento de marcha em órgão apreensor e,
menta, se mantém e se origina do espírito imortal, alheio às vi- depois, em órgão diretor de forças, transformar-se-á em meio de
cissitudes da forma. Através da evolução, a forma se sutiliza, recepção e transmissão de vibrações dinâmicas e psíquicas, an-
torna-se transparente, de modo que a divina essência das coisas tena para comunicar e receber energia e pensamento. Então, o
pode, assim, tornar-se cada vez mais evidente. Assim, essa cri- poder interior do espírito poderá aflorar de tal maneira da pro-
ação contínua constitui renovação evolutiva, que, agindo atra- fundidade do ser, que há de permitir ao homem comunicar-se e
vés da maceração, elabora incessantemente a forma e, assim, viver em comunhão com as infinitas energias do espaço.
tornando-a cada vez mais adequada a exprimir a íntima subs- O mesmo processo se repete relativamente à visão, à audi-
tância animadora, lhe dá sempre maior sensibilidade e atualida- ção, a todas as vias sensoriais, ao sistema nervoso que as dirige,
de à manifestação da Lei. Desse modo, evolução significa espi- ao cérebro que as centraliza, enfim a todas vias através das
ritualização e percorre a estrada que sobe até Deus. De seme- quais o espírito se comunica, recebe e se manifesta. O espírito
lhante progresso nascerá o novo tipo biológico, base das huma- exerce pressão de dentro para fora com o fito de tornar menos
nidades futuras. A mesma natureza do fenômeno nos indica densa e romper a casca material da forma humana, para ampliar
quais as suas características, que são, aliás, redutíveis a uma só as vias sensórias já conhecidas e descobrir outras, a fim de, em
palavra: espiritualização. Isso significa tornar-se mais dinâmi- melhores condições, mais abundante e profundamente servir à
co, percuciente, sensível, ou seja, menos rude e obtuso. O novo circulação das ideias. Assim, os sentidos que o espírito produ-
tipo representará forma cada vez mais nervosamente seleciona- ziu, cada vez mais, por força dele, se ampliam e se abrem às in-
da e eleita, na progressiva exaltação das características elétricas finitas vibrações do universo; assim também, pouco a pouco, o
da vida, em detrimento das características puramente físicas. A ser se espiritualiza, isto é, evolui do estado físico ao estado vi-
pesada musculatura animal, sempre mais inútil nas novas con- bratório, sai da forma material definida e assume forma etérea
dições de vida, há de ser substituída por poderosa estrutura psí- radiante. A evolução consiste realmente na maceração da forma
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 193
material, que, a princípio vestimenta e veículo, se transforma A inquieta agitação de nosso tempo, embora desordenada e
depois em obstáculo e prisão e, por isso, é continuamente supe- confusa, apresenta-se sempre como manifestação de dinamis-
rada e renovada pela evolução. Este princípio, válido no passa- mo, que pode derivar tão-somente da pressão interna do espíri-
do humano, deve continuar com o mesmo valor no futuro. O to. Individual e coletivamente, o divino principio quer plas-
desgaste da forma não constitui debilidade do sistema, mas mar-se em novo homem e novo mundo, numa forma que mais
apenas dura necessidade evolutiva, simples processo de liberta- se adapte a outra manifestação sua, mais elevada. Estamos
ção que ao espírito aí preso permite manifestar-se. Por isso a ainda na fase caótica da tentativa, dos resultados provisórios e
maceração física e moral é criadora, embora em nossa vida nos incompletos, da experimentação enganosa, mas tal dinamismo
pareça tão destrutiva, e a caducidade das coisas humanas, que provém sempre deste impulso interior e dele é sintoma revela-
tantas lágrimas nos causa, manifesta-se apenas na forma e cons- dor. Na desordem das organizações apressadas sente-se hoje o
titui a condição necessária para que a vida perene surja de den- organismo precursor. O involuído começa a acordar estremu-
tro da forma. Por isso os golpes dolorosos nos conduzem à vi- nhado. É ação inicial de composição, mas de massas, pouco
da, ao invés de, como parece, levar-nos à morte. profunda, porém muito extensa. Por isso damos hoje tanta im-
O espírito quer fugir da prisão; apenas nisto pode consistir o portância à quantidade expressa pelo número. Certamente, o
progresso, e contrariá-lo significa contrariar o impulso funda- mundo hoje não está dormindo, e na vida nenhuma agitação é
mental do universo: libertação da forma e manifestação de vã. Quando está saciada, vemo-la em repouso, e, quando tudo
Deus. Quando a centelha interior ainda não está preparada para está calmo, nada se cria. Quando, de acordo com seu grau evo-
desenvolver-se, a evolução se manifesta através do único meio lutivo, o ser se aproximou o mais possível da divindade, não se
utilizável, a via dos sentidos; eis como surgem os gozadores, agita mais e seu dinamismo fica em suspenso, pois seu funcio-
epicuristas e sensuais. Todo ser possui as vias que merecida- namento não tem mais razão de ser. Mas, em conformidade
mente ganhou. Nesse caso são escassas, e o espírito, insatisfei- com o ritmo da Lei, tão logo se retome o ciclo ascensional e
to, reclama. Mas o involuído não dispõe de outras saídas e agar- nova maturação o acompanhe, o espírito, mais desenvolvido
ra-se desesperadamente às disponíveis; quando chega a morte, então, exerce pressão de dentro para fora e começa a chocar-se
desespera-se de, perdendo-as, perder tudo, pois, desprovido de contra os antiquados limites, para superá-los. Assim, a evolu-
órgãos físicos, é incapaz de receber e transmitir, acostumado ção, embora contínua, se manifesta por transformações perió-
como está a vibrar apenas sob as formas mais grosseiras da ma- dicas, em que se concentra a expressão de longas e lentas ma-
téria. Sua vida prende-se estreitamente ao corpo e, para não turações subterrâneas. A vida deve e quer obedecer e, se não
permanecer morto sem ele, busca-o de novo por ocasião de no- pode ou falha, chora na dor de não poder ou na desilusão de
vo nascimento físico, como única forma de vida. Ao contrário, não ter sabido ascender, chora a traição que praticou contra a
o espírito esclarecido pela evolução superou os meios sensori- Lei e paga com a própria ruína. A música de Mozart exprime a
ais e lhes despreza a pobreza; mais do que meios para sua ma- harmonia e o equilíbrio que seu plano atingiu em seu século;
nifestação, considera-os como forma de aprisionamento, pois fala, por isso, de paz tranquila e saciada. A música de Beetho-
são agora insuficientes para saciá-lo; quando morre, perde-os ven nos fala das tempestades e dos titânicos esforços criadores
sem amargura e não os procura de novo por ocasião de novo daqueles tempos. A música de nossos dias, desarmônica e de-
nascimento físico em nosso mundo. Quem se tornou mais sen- sequilibrada, exprime o desmoronamento deste mundo e um
sível, espiritualmente falando, dá naturalmente muito menor va- dinamismo levado à máxima exasperação, em busca de novo
lor ao mundo sensorial. O evoluído difere do involuído não mundo, que estamos esperando e ainda não sabemos encontrar.
apenas do ponto de vista moral e social, mas também como es- Todo estado de plenitude é calmo e todo estado de vácuo, insa-
trutura biológica. O involuído representa centelha espiritual tisfeito e agitado. O evoluído tem estases em que as forças se
ainda mal acesa, envolta por densos véus, encerrada em envol- equilibram e repousam. Trata-se de fase de maturidade da
tórios de trevas e, por isso, centelha ainda fraca e rudimentar, combinação dessas forças em sistema. Mas, apenas a alcança,
perdida na enorme casa do corpo. O evoluído, ao contrário, re- o impulso interior da vida continua a movimentar essas forças,
presenta centelha de incêndio, que queima os véus e funde os tentando combinações mais elevadas e complexas. Daí resulta
envoltórios da forma; por isso é poderosa e complexa unidade novo desequilíbrio a ser reequilibrado, nova lacuna a preen-
espiritual angustiada na casa do corpo. Assim, da vida físico- cher e assim por diante. Os períodos de saciedade satisfeita re-
sensorial o primeiro receberá sensação de alegre expansão, e o presentam objetivo atingido, e os de desequilíbrio insatisfeito
segundo, de dolorosa compressão; e onde este há de sentir-se significam objetivo a ser atingido. Os primeiros já chegaram e
vivo e flamante, o outro olhará emudecido e sem capacidade de agora repousam, os demais acabam de partir e estão correndo
compreender. A vida é totalmente diversa, embora a forma ex- ainda. Estes constituem-se de espíritos demolidores, críticos,
ternamente visível seja a mesma e nela, muitas vezes, se basei- inovadores. Aqueles representam a felicidade em que se resu-
em os juízos humanos e as leis sociais. A vida pode ser para me e beatifica a ignorância de sermos felizes. Porém, tão logo
quem vale menos muito mais cômoda e bela do que para quem começam o desequilíbrio e o desacordo, a luta e a dor apare-
vale mais. Hipertrofia espiritual e excessivo desenvolvimento cem; então, analisa-se a felicidade, que, analisada, desaparece.
interior podem significar incompatibilidade com o ambiente e Ela, porém, torna-se consciência e base construtiva de felici-
impossibilidade de adaptar-se-lhe. Então, o criador ultradinâ- dade mais completa. Assim como esta nasce da dor e como a
mico parece maluco aos olhos dos estúpidos dorminhocos, as- ciência se originou do sofrimento, também a grandeza e a for-
sim como quem fica dormindo se mostra muito mais equilibra- ça nascem da fragilidade e da fraqueza. Nossa época mostra-se
do do que quem caminha ou voa. Para os que jazem tranquilos inquieta, analista, dolorosa; possui, sob forma destrutiva e em
na inércia, o evoluído talvez pareça explosivo e perigoso; quem sentido negativo tudo quanto, sob forma construtiva e em sen-
enxerga longe perturba os pequeninos cálculos aproximados e tido positivo, deverá conquistar mais tarde.
seguros, é aventureiro e revolucionário, incomoda e ameaça. O Com esses poucos traços, esboçamos vários aspectos do fu-
involuído condena-o e combate-o, mas sem ele, sem essa cente- turo tipo biológico e enquadramos, no fenômeno evolutivo
lha animadora, permaneceria pobre e débil; sua segurança, se universal, nossa época e sua criação biológica. Desse modo,
de um lado é tranquila, de outro lado é anticriadora, é o sono desenvolvemos alguns conceitos de A Grande Síntese. A titulo
dos mortos. A evolução, que espiritualiza, também dinamiza e, de referência, reportamo-nos aos principais – Cap. XLIII: ―A
assim como caminha em direção à vida, conquistando-a cada maturação dessa super-humanidade constituirá a maior criação
vez mais, também caminha rumo à potência. biológica de vossa evolução, pois representa passagem para lei
194 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
de vida superior...‖; Cap. LII: ―Tudo que nasce deve renascer preendem a Lei, não perde mais tempo e trabalho correndo
cada vez mais profundamente‖; Cap. LXXV: ―Eu lhes disse atrás de paraísos irrealizáveis.
que vocês estão em grande curva da vida do mundo; a Lei, que Neste capítulo, ao delinear o perfil do futuro tipo biológico,
a maturou durante dois milênios, hoje vos impõe essa revolu- falamos principalmente a respeito de sensibilização nervosa,
ção biológica. Os fatos, que sabem fazer-se ouvir por todos, exatamente porque foi em especial sob o aspecto biológico que
hão de obrigar vocês também. Trata-se de movimentos mundi- estudamos esse fenômeno evolutivo. Sabemos, porém, que essa
ais de massas e de espíritos, de povos e de conceitos, movi- via biológica de ascensão se relaciona com a via moral, é até
mentos profundos a que ninguém escapará. Mas, antes dos fa- mesmo condição desta e meio de atingi-la. Trata-se, na evolu-
tos falarem e de se desencadearem as forças mais baixas da vi- ção biológica, de elaboração orgânica que caminha rumo ao
da, deveria falar o pensamento, dever-se-ia avisar a fim de que imponderável. A sutilização e a desmaterialização do invólucro
quem pudesse entender entendesse‖; Cap. LXVI: ―A lei do físico torna-o cada vez mais transparente e, por isso, evidencia
progresso impõe a continua dilatação do espírito. A evolução mais a manifestação do espírito. E é no plano espiritual que o
se dirige irresistivelmente ao superconsciente, ao supersensí- dinamismo da vida consegue esse refinamento, capaz de permi-
vel‖; idem: ―Desde que cresce cada vez mais o campo que do- tir-lhe o aparecimento em sua forma moral. Tudo isso que é
minamos no âmbito do consciente, desloca-se progressivamen- evolução e sensibilização orgânica, portanto, somente pode
te o limite sensorial, o sobre-humano torna-se humano; o su- conduzir à evolução e sensibilização moral. A bondade e a sa-
perconsciente, consciente; e concebível o inconcebível... o bedoria do futuro tipo biológico, por isso, podem também ser
meio material se aperfeiçoa e se torna tão sutil que atinge as atingidas através do metabolismo orgânico, capaz de permitir
raias da desmaterialização... ‖; idem: ―O homem, desse modo, transformação lenta da estrutura celular. Todos os aspectos da
cada vez mais se afasta da forma animal, através de contínua vida se relacionam reciprocamente, e todas as suas maturações
desmaterialização de funções, que leva a progressiva desmate- caminham lado a lado. A transformação evolutiva é orgânica,
rialização de órgãos. A vida humana se concentra cada vez nervosa, psicológica, conceitual e, ao mesmo tempo, moral –
mais na função psíquica diretora...‖; Cap. LXII: ―Evolução bi- refinamento de estrutura celular, sensibilização, bondade, com-
ológica, para nós, significa evolução psíquica...‖, ―... absurdo preensão. Essa passagem da fase involuída para a evoluída
conceber as formas como fim de si mesmas, evoluindo sem ob- constitui, assim, profundo processo que se apossa de todas as
jetivo, sem continuidade, justamente onde as precede eterno qualidades humanas, da extremidade física à extremidade espi-
transformismo...‖; Cap. LI: ―Observem como nossa entrada no ritual da vida, elabora completamente o ser e, por expansão in-
mundo biológico se processa justamente por via das formas terna, plasma de novo a forma, tornando-a cada vez mais apta a
dinâmicas. Com a eletricidade, situada no vértice dessas for- exprimir o espírito. Nisso se revela a organicidade da natureza e
ças, não chegamos apenas à forma, mas ao próprio princípio da o princípio unitário, monístico, do universo. Parece que, duran-
vida, ao motor genético das formas... Tocamos... não a evolu- te essa passagem, vibram todas as fibras da vida, que responde
ção dos órgãos, mas a própria evolução do Eu, que os adiciona em todos os graus evolutivos ao novo apelo dos tempos e se
e plasma para si, como instrumento da própria ascensão‖; Cap. move, sintonizando seu ritmo com a harmonia do universo. As-
LXIII: ―Vejam como tudo quanto existe se origina de princípio sim, a ordem biológica ascende ainda mais para Deus, que aí se
que age sempre de dentro para fora, e não de fora para dentro, revela ainda mais; assim, a vida exulta ao aproximar-se nova-
princípio encerrado no íntimo misterioso do ser...‖; idem ―Esse mente do objetivo, e as consciências ouvem cada vez mais claro
o princípio que se desenvolve internamente, exteriorizando-se o canto perene da fonte. Nova revelação de Deus as atinge pro-
a partir desse centro profundo em que vocês devem verificar a fundamente e as desperta, para criar, criar mais, formas cada
existência da essência das coisas e o porquê dos fenômenos. vez mais próximas da perfeição. Ascender é ser feliz. Treme o
Deus é a grande força, o conceito que opera na intimidade das grande ritmo do tempo, suspenso em solene espera. O homem
coisas e daí se expande...‖. novo vai nascer. A vida quer falar-nos de Deus cada dia mais
Concluindo com este argumento, poderíamos dizer que o claramente, pois ela é Sua glorificação.
homem atual está para o futuro tipo biológico assim como o
pré-histórico pitecantropo está para o homem atual. Tal como XVI. VISÃO (1o TEMPO)
sucedeu para o pitecantropo, o homem atual também se encon-
tra no ambiente adequado. A diferença nasce quando, dentro da Todo capítulo deste livro, como todo capítulo da vida, é
própria fase, nos retardamos. A marcha da evolução é harmo- quadro diante do qual paramos contemplativos. Esses qua-
nia, desenvolvimento sinfônico de infinitas forças, maturação dros, que estamos desenvolvendo, se poderiam também cha-
orgânica. Já observamos o evoluído, como antecipação hoje mar contemplações. No último deles, o universo nos apareceu
ainda excepcional. Mas a evolução caminha para a generaliza- como floração de vidas. Seu transformismo evolutivo é de-
ção desse tipo mais adiantado. Quem se atrasar, quem não senvolvimento contínuo, em que parece reproduzir-se em di-
abandonar sua fase, retardado na maturação de todo o concerto mensões gigantescas a técnica expansionista da semente, a lei
de forças, em verdade será inferior a todo o resto. O futuro tipo de desenvolvimento do indivíduo, o mecanismo da maturação
biológico é, pois, o evoluído. O estudo que a cada passo, sob da vida, como se no ciclo vital de toda criatura se repetisse em
tantos aspectos, dele fazemos neste volume, serve para dar-nos ponto pequeno o mesmo esquema do ciclo vital do universo,
dele o retrato de corpo inteiro; neste capítulo apenas o descre- máximo organismo coletivo. De fato, até mesmo os universos
vemos sumariamente. O atual involuído poderá negar, rir, rebe- nascem, crescem, envelhecem e morrem, para, como todo ser
lar-se; tem essa liberdade. Apenas verificamos, objetivamente, vivo, renascer e morrer de novo. Também eles passam por
como funcionam as leis da vida. Contudo hoje, com certeza, o alegre juventude e cansada velhice, nascem de um germe e, ao
mais pisado pela dor é ele, e não o evoluído, que já se despren- morrer, deixam seus despojos mortos. Todos os fenômenos
deu da Terra; os mais golpeados e destruídos são os tesouros parecem desenvolver-se de acordo com um só esquema, cuja
terrenos do primeiro, e não os espirituais do segundo; àquele aplicação gasta todas as coisas, consome toda força, encerra
competirá, pois, encontrar solução e saída que lhe convenham, todo ciclo, exaure e extingue toda vida.
porque este já as encontrou. O evoluído nada mais tem a perder Mas voltemos agora as vistas para outra contemplação, de
ou temer na Terra, pois suas riquezas são invulneráveis. Por índole diferente. Para que, depois da tensão conceitual prolon-
meio da sabedoria e da comunhão com Deus, já conseguiu o gada até agora, o leitor descanse alguns momentos; para satis-
único paraíso possível na Terra e, tal como aqueles que com- fazer outras exigências espirituais, diferentes das intelectivas e
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 195
racionais, e também outras da fantasia e da paixão; para, final- rios significados, superficiais ou profundos, conforme a capaci-
mente, expor os mesmos problemas, não mais sob forma racio- dade de compreensão do leitor. Nela existe, afora o sentido su-
nal e abstrata como até agora, mas dramatizados em cena bem perficial, de mera narração, o sentido espiritual, mais potente,
sintética, relatemos a visão que, em meio de emoções turbilho- simbólico, que à índole mais ou menos madura do leitor cabe
nantes e na profundidade de ensurdecedor silêncio, tivemos em saber discernir. Mais especificamente, o relato da visão pode
luminosa manhã de maio. Aqui a reproduzimos com objetivi- ser interpretado conforme três níveis, três planos, correspon-
dade cinematográfica, tal qual, emergindo das profundidades da dentes aos três planos evolutivos de nosso universo, quer dizer:
consciência, se nos revelou, na roupagem teatral com que o matéria, energia e espírito. Em outras palavras: podemos ―vê-
pensamento abstrato se concretizou no sonho, se é que, ao me- la‖ como forma, na aparência exterior com que surge em cena,
nos em substância, não lhe podemos chamar intuição ou pres- na periferia, como fato material enfim; ou, então, ―senti-la‖
sentimento profético. Os fenômenos de visão interior exami- como dinamismo motor dessa forma e dessa sucessão de cenas,
namo-los no Cap. XXVI deste volume, a respeito da vida dupla. mais internamente, como vibração animadora do fato material;
Vamos por algum tempo mudar a forma mental, a fim de po- e, finalmente, ―intuí-la‖ como princípio espiritual que, do cen-
dermos falar à inteligência e ao coração, para alimentar também tro, dirige os movimentos desse dinamismo e, reunindo-os na
essa outra qualidade da alma humana. Todo tipo de leitor en- mesma trajetória, os guia de acordo com pensamento e finali-
contrará neste livro a linguagem que se lhe adapte. O tipo raci- dade bem determinados. Essa penetração progressiva, cami-
onal, mais capaz de pensar do que de chorar e amar, poderá es- nhando da superfície à parte mais profunda, da periferia ao cen-
colher os capítulos racionais. Todavia, no vasto complexo hu- tro, exemplifica o modo como podemos compreender o univer-
mano, além das ressonâncias do intelecto, há outras pelas quais so, de conformidade com sua estrutura. Eis a visão que eu tive.
podemos comunicar-nos. E todo leitor reage, segundo persona- Na basílica de São Pedro, em Roma, templo máximo da
líssima capacidade de vibração, quando sente tocarem na sua cristandade, imensa multidão se reunira junto ao túmulo de seu
corda sensível, e isso mais por mera sintonia do que por ativi- fundador, o primeiro entre os apóstolos. Ninguém saberia dizer
dade do raciocínio. Do contrário, não sendo tangido, mostra-se que pressentimento levara tanta gente a assistir a ritual por si
surdo, permanece imóvel, não sabe responder, e toda demons- mesmo tão comum. O instinto das massas, reconheçamo-lo,
tração se mostra inútil. Que coisa é a convicção, além de espon- percebe a aproximação das horas apocalípticas da vida; fazia
tânea e uníssona vibração? Essa vibração pode nascer mais fa- alguns dias que havia qualquer coisa no ar, angustiando as al-
cilmente da persuasão e da paixão pessoal do que do frio racio- mas. Seria, talvez, a sensação confusa da extraordinária gravi-
cínio. A convicção não é processo lógico, mas estado vibrató- dade da hora; ou, quem sabe, a espera de novos acontecimen-
rio; não nasce, por isso, do raciocínio, mas da radiação psíqui- tos, de algo decisivo naquela conjuntura histórica; ou, então,
ca; não resulta de argumentação cerrada, mas de acordo vibra- maus pressentimentos, que nenhum fato concreto poderia justi-
tório por sintonia do pensamento. O processo não deve ser coa- ficar racionalmente. Disso tudo nascera em tantas pessoas a ne-
gido, mas espontâneo. Pelo contrário, nada, como a presença da cessidade de se aproximarem, de se encontrarem de novo, de se
vontade que tenda a impô-las, afasta tanto assim a compreensão reunirem e novamente travarem conhecimento; e isso precisa-
e a convicção; e nada nos persuade e arrasta com tanta força mente naquele templo, cujo poder de atração parecia dever-se à
como a existência, naquele que fala, de sentida e sincera con- sua ligação com o estado apocalíptico das coisas. Naquele mo-
vicção. Daí se depreende quanto o velho sistema da coação ló- mento, a basílica assumia particular significado, talvez mesmo
gica se revela absurdo e ilusório, se com ele pretendermos re- único, quanto ao sentido finalístico – significação sobre-
solver o problema da convicção das consciências. Esse método humana, capaz de permitir o restabelecimento dos contatos, há
coativo mais ou menos se origina da luta e consiste em transfe- tanto tempo perdidos, entre o homem e Deus. Assim, em plena
rir para o plano psicológico o sistema do involuído, no qual a noite espiritual dos séculos, o tempo surgia como luminosíssi-
força significa vitória. Mas o pensamento está bem mais acima, mo farol. Por isso, se era ordinária a forma ritual, aquele mo-
e seu valor escapa-lhe. Assim, o desejo de proselitismo, ao in- mento se revelava extraordinário para a vida do mundo. A guer-
vés de atrair, costuma repelir, pois provoca desconfiança; o de- ra acabara, deixando-nos, após longos anos de tormento, com-
sejo de conquista excita resistência. Por isso, quando argumen- prida esteira de dores maiores ainda. Tantos sofrimentos havi-
tarmos, convém nos limitarmos sempre a expor, sem jamais am amadurecido os espíritos para novas atitudes, tornando-os
pretender forçar a persuasão, que é simples ato de adesão es- dispostos a novos superamentos. E, instintivamente, a alma do
pontânea; sendo assim, toda atitude que lembre a força e a im- mundo esperava, para renovar-se, que de Deus viesse a primei-
posição tende a resultados absolutamente negativos. Não é a as- ra centelha, como prova, exemplo e estímulo; esperava o sinal
túcia raciocinadora, nem a chicana sutil, nem o desejo de fazer que indicasse e abrisse o novo caminho.
prosélitos que me fornece substância ao pensamento e me ani- O templo estava repleto. Jamais se vira tanta afluência de
ma a palavra, mas a flama da fé e a profundeza, a evidência, a povo. Irresistível impulso levara tanta gente a acorrer de todas
intensidade da própria visão. À guisa de disco fonográfico, as as partes do mundo, que poderíamos seguramente dizer que o
palavras registram-lhe escrupulosamente a radiação e, assim, a templo máximo da cristandade, naquele momento, abrigava os
reproduzem ao leitor. A palavra falada ou escrita não passa de maiores e melhores expoentes de toda humanidade. Segundo
vibração fonética ou graficamente expressa, vibração dirigida à parecia, a cristandade, mais do que ao apelo formal, obedecera
formação de outras vibrações. Se ela, embora brilhantemente ao apelo apocalíptico da hora, à irresistível necessidade de, na-
vestida, é substancialmente falsa, apenas poderá gerar vibrações quele momento, dar solene testemunho de fé, reunindo-se una-
falsas. Por isso o silogismo e a retórica constituem elementos nimemente em torno do Pontífice, aos pés de Cristo. A dor ca-
negativos para o pensamento e traição contra o espírito. vara tão fundos sulcos nos espíritos, e a alma do mundo marti-
Relatemos a visão, mas, antes, aqui ficam duas observações: rizado descera a desespero tão negro, que se percebia em todos
1) Este volume, como está mais bem especificado no Cap. os espíritos a reação contra o absurdo, o insuportável, o impos-
XXII ―Tempestade‖, foi iniciado e continuado até este ponto na sível que era ter de empregar ainda o antiquado binômio, a pon-
primavera de 1944. Essa visão eu a tive na manhã de 12 de to de sentir-se a necessidade, a fatalidade e a iminência de total
maio de 1944, sexta-feira, isto é, 33 dias após a manhã de Pás- modificação do mundo atual. Mas como? Aquela massa huma-
coa, coincidência percebida só mais tarde. Essa visão registrei-a na ignorava. Havia na multidão a confusa vontade de continuar
imediatamente por escrito e vou reproduzi-la agora, sem modi- a viver, mas de modo melhor, com mais elevação e mais lógica,
ficação alguma. É a pura verdade. 2) A visão pode assumir vá- mais bondade e mais rendimento, de reconstruir-se, de sair do
196 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
abismo em que o mundo caíra, de reformar-se inteiramente, do a aproximação de imenso perigo, de terrível ameaça, que,
remontando às origens. Havia em toda aquela gente o instinto embora invisível, advertia de sua presença.
vital, que abrange todos campos e, associando em última análi- Aonde vão as massas buscar intuições? Talvez na interpre-
se o erro aos desastres do erro, retorna às grandes ideias-mães, tação lógica de algum sintoma, embora exagerado pela imagi-
com que durante séculos e séculos se alimentam, para nelas nação, como, por exemplo, um atraso, um gesto, um passo ner-
haurir nova força e nova luz e encontrar salvação. O espírito voso, um diz-que-diz. O senso do perigo e do medo é o mais
adormentado pelo bem-estar e pela ilusória filosofia do bem- antigo e profundo do organismo humano e corresponde a instin-
estar agora despertara; o imponderável, antes repelido e nega- to dos mais ativos e arraigados por dura experiência. A maior
do, voltava de novo ao mundo, atendendo ao apelo do homem atenção das defesas físicas dirige-se para a conservação. Nas
provado pela dor. Essa própria multidão já constituía manifes- multidões, talvez algum sensitivo funcione como antena recep-
tação desse imponderável. A voz de Cristo ecoara de novo nos tora em relação à massa, que desempenha o papel de caixa de
corações, e muitos, tendo-a ouvido, acudiram, para salvar-se e ressonância, de amplificador, aumentando desse modo o volu-
salvar os capazes de salvar-se. O povo reunido no templo repre- me do dinamismo e reforçando, com a quantidade de energia
sentava e simbolizava o homem cansado da vaidade de suas representada por ela, a qualidade fornecida pelo sensitivo-
construções, conquistas e experiências filosóficas, sociais, polí- antena. De fato, em dado momento da maturação do fenômeno,
ticas, econômicas e científicas, o homem que, depois de tantas isto é, quando se atinge determinado potencial, a faísca incen-
tentativas, finalmente se afogara na imensa dor de guerra de ex- diária explode e alguém, desempenhando o papel de faísca, e
termínio total, traído pela força e pela riqueza em que acreditara mais intérprete do que criador, encaminha os movimentos da
(Cf. A Grande Síntese, Cap. LXXV: ―... vós confiais apenas na massa; assim se desencadeiam correntes incontroláveis. Al-
riqueza e na força, elas, porém, acabarão vos traindo‖). As ilu- guém percebe antecipadamente aquilo que, mais tarde, todos
sões fáceis, a simplicidade pueril, as loucas esperanças, tudo se perceberão, demonstra-o sob forma sensível, e os demais, en-
desvanecera diante da realidade. Agora a humanidade se encon- tão, o reconhecem. Se o pioneiro do movimento não ouviu e
trava em posição diferente daquela antes da guerra; posição de compreendeu, de fato, a voz do imponderável, a multidão, por
quem, percorrida a fase de prova, percebe haver cometido erro sua vez, nada ouve e, por isso, ninguém o acompanha; se o pio-
e, amargamente, se volta para dentro de si mesmo, a fim de re- neiro não revela o que todos já sabem existir, se a sua voz não é
fletir e, em seguida, compreender, reconstruir, ascender. Aquela coletiva, mas individual, a multidão não o entende e o abando-
multidão, mesmo sem o saber, exprimia tudo isso e tinha vindo na. Trata-se de registro e ampliação, de fenômeno de ressonân-
testemunhá-lo. Nova e desconhecida ânsia a constrangia a rea- cia. Primeiro alguém vibra e, em seguida, sensibiliza a íntima e
proximar-se das eternas fontes da vida, a retomar o perdido vaga intuição geral, revela-a e comunica-a; os demais recolhem
contato com o divino centro de todas as coisas, que, eternamen- essa voz; controlam-na, caso corresponda à sua íntima intuição,
te criando, nutre. A nota dominante na psicologia daquela mas- e, só nesse caso, a aceitam e perfilham, aderindo a ela e dando-
sa de povo se constituía da invocação apaixonada e retumbante lhe contribuição de forças. Numa cadeia de intuições, os indiví-
dirigida ao céu. Sob esse impulso maior e mais significativo, duos, inconsciente e instintivamente, se auscultam e controlam
ondeavam na massa variegados impulsos menores, vórtices de mutuamente; desse íntimo contato intuitivo nasce o consenso
terror, chamas de esperança, de fé e amor, zonas crepusculares coletivo. ―Espontaneamente‖, dizem. Produzido por todos em
de dúvida e desencorajamento, manchas lívidas de ódio ou de geral, e não por alguém em particular, esse consenso resulta da
treva. Mas o dinamismo dominador representava-se por abrasa- lei do fenômeno que nesse momento revivemos e da vontade
dora sede de bem e de justiça e se elevava como purpurino cáli- das forças que o dirigem. Na multidão, como no povo, e em
ce de ofertório, projetado para o alto como resplendente cone, qualquer fenômeno de psicologia coletiva, toda célula compo-
para dar e receber, arremessado contra as fechadas portas do nente contribui com sua ressonância, recebe e transmite, ali-
céu, à procura da potência que as reabrisse voltadas para o in- menta-se da vibração coletiva e nutre-a por sua vez, restituindo-
ferno terrestre e prometesse luz salvadora em meio das trevas a multiplicada por si mesma e reforçada pela própria energia.
acumuladas pelo mal. O grande número, a violência do desejo, Desse modo serpenteiam, formam-se, oscilam, definem-se,
a intensidade da aparição, a substituição do indivíduo pela mas- acentuam-se e se impõem correntes de pensamento, e isso obe-
sa, em que todo impulso individual se reforçava, combinando- decendo inconscientemente à lei do fenômeno, nascendo de ba-
se e somando-se com outros, tudo isso formava irresistível cor- gatela aparentemente sem importância, quando, no íntimo, to-
rente de pensamento, de alta tensão, retilínea e ascensional, vi- das as coisas estão maduras e saturadas, e finalmente crescendo
bração harmônica e penetrante, imensa e poderosa oração, que como avalancha que tudo altera e destrói com terrível potência.
crescia e transbordava como se fosse maré montante, avançava Nisso se passou mais uma hora sem que o Pontífice apare-
tempestuosamente e, em meio de relâmpagos, subia, turbilho- cesse. A ansiedade e o desentendimento iam tornando-se cada
nando, em direção ao céu. vez mais profundos e começavam a manifestar-se por intenso
Nossa narração começa quando, nesse dinamismo central e murmúrio, por agitação confusa, pelo crescimento daquele
dominante, inesperadamente se enxerta outro e ambos se com- bramido de oceano com que se parece a voz das massas, pelo
binam, excitando reações e encaminhando soluções. Esse novo crescimento daquelas ondas encapeladas que são os movimen-
dinamismo é o dinamismo particular do drama que agora co- tos populares. Viam-se na superfície assim como que rodamoi-
meça. O momento, já de si grave, tornava-se cada vez mais nhos e, em seguida, vácuos, correntes, ângulos remansosos e,
grave. O Pontífice já devia ter descido há duas horas, a fim de nas passagens estreitas, corredeiras. Aquela multidão palpitan-
celebrar o rito na basílica. A multidão dava mostras de cansaço, te interrogava a si mesma. Queria sair, libertar-se, dilatar-se no
depois de espera tão prolongada, e de apreensão devido ao espaço. Queria dispersar-se, visto como vinha a faltar-lhe o ob-
inexplicável acontecimento. A tensão crescia sempre mais; a jetivo representativo da força de coesão que a mantinha unida.
preocupação continuamente se agravava. No seio daquela mas- Assim, criara nojo de si mesma, de ser multidão, de ser unida-
sa enorme se propagava ligeiro murmúrio, que, apesar do res- de que não tinha mais razão de existir como tal; e, como acon-
peito devido ao local, ia tornando-se mais extenso e profundo. tece em organismo desfeito, todo elemento componente queria
Na psicologia coletiva começava a caracterizar-se e a fixar-se o separar-se dos demais. Diminuía o impulso unificador, e a
pressentimento confuso, mas crescente, de perigo desconhecido multidão tendia a dispersar-se. Algo, porém, a impedia; algum
(quem sabe que perigo!), mas grave e pendente sobre a cabeça obstáculo contra o dinamismo dominante se erguia cada vez
de todos. A intuição popular percebia o imponderável, indican- mais ameaçador. Ninguém abria as portas. Não se abriam nem
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 197
podiam ser abertas. O tardio da hora tornava lógica e desejável ção. Quem está do lado do Cristo, não importa qual seja a for-
a volta para casa. Por que as portas não se abriam? O desen- ma humana, desde que verdadeiramente cristão, quer dizer, pa-
tendimento aumentava; a agitação das ondas fazia-se ameaça- ra a vida e para a morte, que dê agora testemunho. Saia da mul-
dora; o pânico alastrava-se; o ímpeto inconsciente da alma ir- tidão, entre em fila no corredor central, que está livre, e prepa-
racional da multidão convergia irrefreavelmente em direção re-se para seguir Cristo, nosso guia‖.
das portas, erguia-se terrível contra aquela inexplicável clausu- O homem respirou fundo; depois, continuou:
ra, aumentava, subia, chocava-se contra os muros, embolava- ―Não sabeis. Mas, em duas palavras, vos direi o que está
se, agigantava-se, concentrava-se na clausura e potenciava-se, acontecendo. Estamos presos neste templo. Suas portas estão fe-
preparada para o que desse e viesse, para subverter fosse lá o chadas por fora. Não podemos sair. Os que nos sitiam nos creem
que fosse, desencadeando-se como furacão. ignorantes do sitio e colhidos de surpresa. No entanto percebo as
Em meio dessa tempestade, sozinho no meio de tanta gente, forças que nos cercam. Executando hábil e rápido plano, queri-
um homem. Guiado até aquele lugar pelas sábias combinações am apanhar hoje aqui reunidos o Pontífice e os maiores repre-
de forças da Divina Providência, aparentemente fortuitas, às sentantes da cristandade, dentro de seu maior templo, para, de
quais nossa ignorância dá o nome de acaso, esse homem, indi- um só golpe, destruírem o primeiro, o segundo e o terceiro. Des-
ferente e com a aparência de quem estava muito longe dali, mas truição física, símbolo da destruição moral da Igreja, lábaro da
de fato presente e ativo, em plena tempestade escutava. Resso- revolta a ser entregue ao mundo, primeira fagulha da nova bar-
ava nele o rugido psicológico da multidão; mais de perto, po- bárie do Terceiro Milênio. As forças do mal uivam às portas do
rém, o impressionava a voz interior que, acima do turbilhão e templo, querendo entrar e destruir o germe, aqui presente, da
vencendo-o, lhe falava. Parecia-lhe estar no centro do turbilhão, nova civilização do Terceiro Milênio. Lá fora, a praça está cer-
que era superado pela voz. Debatia-se arrastado pelo poder des- cada de carros-blindados, de canhões e de metralhadoras; os
sa voz, a que sua razão, lutando desesperadamente, debalde ten- primeiros, prontos a avançar e adentrar pelas portas, esmagando-
tava resistir. Eis o colóquio íntimo em meio da tempestade: vos e ceifando-vos no próprio interior da basílica; os segundos,
A voz: ―Vamos. Chegou a hora. Está na hora de cumprires em condições de derrubar a cúpula e os muros; as últimas, pron-
tua missão. Vamos. Agora ou nunca‖. tas para metralhar na praça qualquer sobrevivente‖.
O homem: ―Senhor, não vão compreender. Já te disse vá- Gritos de terror explodiram na turba. Calmo, o homem
rias vezes. Não me seguirão. É tolice tentar de novo. Seria o continuou:
mesmo que semear nova desordem. É imprudente excitar mul- ―Não temais. Cristo aqui está para defender Sua Igreja.
tidão agitada, não quero ser o causador de males. Além disso, Percebo o ânimo dos agressores entranhado nas máquinas de
sinto-me cansado, incapaz, ignorado e só. Não posso dominar guerra, sua única força. Percebo em vosso ânimo o turbilhão
forças tão gigantescas‖. do terror e o incêndio que minhas palavras provocam em vós.
A voz: ―Está na hora de cumprires tua missão. Agora ou Percebo o ânimo do Pontífice, que conhece esse perigo e gos-
nunca. Deixa-me ir na tua frente. Segue-me ou então vou sozi- taria de descer à praça e afrontá-lo antes de mais ninguém,
nho ao encontro do inimigo‖. gostaria de vir para junto de nós a fim de morrer conosco; mas
Na multidão, preocupada consigo mesma, ninguém prestava foi impedido pelo seu séquito que, por natural e acertada me-
atenção àquele homem; ninguém o notara ainda, ninguém o co- dida de prudência, deseja pôr-lhe a salvo a augusta pessoa.
nhecia. O furor da luta íntima causava-lhe ansiedade. O deslo- Percebo, enfim, o vórtice de potência que desce do céu e exer-
camento das pessoas o tinha levado até quase ao centro do tem- ce pressão sobre mim e sobre vós. É verdadeiro exército de
plo, perto do altar-mor. De repente, achou-se ele diante de es- forças inteligentes chamadas anjos. Precedem-vos, circundam-
paço livre, voltado para o centro da balaustrada. Impulso pro- vos, defendem-vos. Eis que o imponderável se manifesta. Per-
veniente da multidão o atirou aturdido naquele espaço, e como cebo o milagre iminente de nossa vitória nesta nova guerra tra-
que um relâmpago o cegou. À luz do relâmpago, lhe apareceu a vada sem armas. É o resultado lógico, natural e fatal da nature-
figura de Cristo. Estava à sua direita e na sua frente. O homem za e poder dos elementos em choque. Venceremos.
então exclamou: ―Domine, quo vadis?‖42. E, dirigindo-se ao ―O Espírito está agora conosco, no templo, e a matéria está
povo, gritou ainda: ―Cristo, Cristo! Eu vi o Senhor!‖. às suas portas, para destruí-lo. A dor despertou o espírito. Nós,
A multidão voltou-se estupefata, ouvindo o grito inespera- que sofremos, sabemos disso muito bem. A batalha vai começar.
do, e ficou suspensa. Então, em pé, diante do cancelo da balaus- A matéria assalta o espírito por meio da força e da morte. O es-
trada, com a mão direita bem levantada, o homem falou. A pírito afronta a matéria através da justiça e do amor. Este é o
multidão voltou-se para ele, ouviu, entendeu, escutou. Pouco a momento da suprema decisão. Aqui dentro está o Cristo; lá fora,
pouco, a calma se transmitiu até aos mais distantes. E ele lhes o Anticristo. Estão frente a frente, cada qual com suas armas.
disse com voz retumbante: Vencer ou morrer. Civilização ou barbárie, durante milênios. Es-
―Irmãos! O caráter excepcional da hora exige métodos ex- tamos em cima da hora, e este momento vai decidir. Chegamos
cepcionais e nos impõe segui-los. Nos tempos normais, a forma ao momento supremo em que a história vai iniciar nova época, e
domina a substância; nos momentos supremos, a substância a vida, nova fase evolutiva; estamos no instante exato da passa-
domina a forma. De fato, este momento é excepcional. Falo-vos gem de uma civilização a outra. Nossa adesão, o impulso de
em nome do Cristo. Ele me trouxe até aqui e vive em mim, nossa vontade livre constituirão a gota que fará transbordar o cá-
mais forte que eu. Não consigo resistir-lhe. No instante em que lice e estabelecerá novo equilíbrio no mundo. Podemos escolher.
eu saía do meio da turba, os meus olhos viram o Senhor e Lhe Podemos aderir-lhe ou repeli-lo. Mas o nosso destino grita-nos:
perguntaram, como Pedro quando fugia de Roma: ―Domine, agora ou nunca. Se negarmo-nos a decidir, choraremos sobre
quo vadis?‖. E o Senhor me disse: ―Segue-me ou eu então irei nossas vidas fracassadas, durante milhares e milhares de anos. O
sozinho ao encontro do inimigo. Hoje é o dia de minha batalha momento, supremo, nos exige essa oferta; o mundo espera esse
e hei de vencê-la desarmado. Em verdade, só desarmados é que impulso, a fim de passar dos caminhos da matéria aos novos
vencemos os inimigos, sejam quais forem‖. Cristo, aqui presen- caminhos do espírito. Ai daqueles que agora desertarem, ai de
te, é nosso guia. Esta hora não é a da forma, mas da substância; nós e de nossos filhos, se recuarmos covardemente.
é a hora de distinguir entre a fé criadora dos mártires e a fé can- ―Avante! Sigamos Cristo. Demos o primeiro passo no ca-
sada e aparente dos adormecidos. O momento exige essa distin- minho da ascensão, demos o primeiro lance rumo à nova civi-
lização. Este primeiro passo, porém, pode começar apenas
42
Aonde vais Senhor? (N. da E.) aqui, no túmulo de Pedro, em Roma, na ideia de Cristo, da
198 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
universalidade e unicidade dessa ideia central no mundo. A cristãos. Não se tratava de enquadramento sob coação, mas de
primeira centelha não é civil, mas religiosa, nasce da maturi- adesão livre e espontânea de homens convictos. Todos iam
dade, e não do enquadramento; não se origina do homem, cu- acompanhando o homem que carregava a cruz e, caminhando
jos caminhos são exteriores e coativos, mas de Deus, cujos lentamente, já chegara ao fundo da igreja, de modo a ficar em
caminhos são interiores e espontâneos. No primeiro momento, frente da porta principal, fechada por fora. No momento, as
o impulso inicial só pode ser místico: é contato direto com o forças do bem eram prisioneiras das forças do mal. Aí, o ho-
Alto. Assim, recebido o impulso, a ideia universal, que ema- mem parou, voltou-se para o mais próximo dele e disse-lhe:
nou do Cristo, irá depois materializando-se pelos caminhos do ―Ajuda-me, irmão, a carregar a cruz, pois me faltam forças fí-
mundo, diferenciando-se segundo formas particulares, adapta- sicas e vou acabar caindo ao longo do caminho. Vou na frente.
das aos diversos povos; será confiada aos cuidados de adminis- Minha cruz não é de matéria, é a cruz invisível do espírito‖. O
tradores cuja tarefa consiste em, segundo o espírito, acompa- irmão compreendeu e apertou a cruz de madeira. Então o ho-
nhar, organizar, plasmar a matéria. Mas, sem esse elevado mem caminhou até encostar a mão na grande porta principal,
princípio regulador e sem essa força moral, os Estados serão virou-se e encostou-se nela, abriu os braços e ficou como se
organismos sem alma; os povos, arcabouços de ossos e múscu- crucificado. Fitou a multidão, fitou o templo, elevou os olhos
los, mas desprovidos de cérebro; e a organicidade moderna não até à cúpula, orando e invocando, à espera. Nada. A multidão
permanecerá íntima e vital, mas exterior e opressora. esperava a ordem de abrir a porta do lado de dentro. Nada.
―O velho mundo da força bruta encontra-se lá fora, com po- Suspensos, todos esperavam um sinal, uma ajuda, a realização
derosas armas homicidas; aqui dentro está o novo mundo, com do impossível. Nada. Inopinadamente, porém, dos olhos do
a dinamite do pensamento, o poder do exemplo, a superioridade homem saiu um relâmpago que se transmitiu à multidão como
do espírito. O bem e o mal, o espírito e a matéria, hoje vão tra- se fosse descarga elétrica. Seus olhos fixaram-se em determi-
var batalha decisiva. Deus é o bem. Satanás é o mal, porém não nado ponto, em frente e à sua direita; pareciam estar vendo al-
prevalecerá. Não passa de instrumento de Deus e, esgotada sua guém; e começou a falar-lhe lenta e submissamente. Disse,
função, destruir-se-á nas mãos d'Ele. Eu grito: ‗Venceremos‘. chorando, três frases, mas nem mesmo os mais próximos o es-
Deus está conosco. Eis que o espírito sai dos recintos fechados cutaram. Em seguida, afastou-se da porta, ajoelhou-se, beijou o
das igrejas do mundo, impregna todas as coisas, invade e con- chão, levantou-se e, com voz retumbante, dirigindo-se à multi-
quista todas as expressões da vida. Finalmente, o ciclo da maté- dão, gritou: ―Cristo está conosco. Guia-nos. Sigamo-lo‖. Em
ria encerrou-se. A matéria cansou-se de tanta destruição. De seguida, voltou-se de frente para a porta, abriu de novo os bra-
acordo com sua própria lógica, percebe que os desastrosos re- ços, levantando-os bem, e olhou para cima. E a multidão, em
sultados obtidos a colocam do lado do erro. Já percebe, embora resposta, vibrava, acentuava e, como caixa de ressonância,
confusamente, a própria debilidade e sente a reação iminente. ampliava tudo quanto sentia, multiplicando-o e difundindo-o
Percebe o desejo que a vida manifesta de reequilibrar-se, atin- pelo imenso templo. Assim, a invocação, que o homem dirigira
gindo de novo as fontes do espírito, e agarra-se às suas máqui- ao céu, se tornou potente e se agigantou até ao ponto de trans-
nas de guerra, ao ouro, aos mais baixos sentimentos humanos. formar-se em irresistível turbilhão de forças. A terra parecia
Tudo isso, porém, trairá completamente, sem compaixão, aque- tremer. Não mais, porém, por causa de impulso destrutivo, mas
les que impiedosamente não creem senão no direito do mais pelo ímpeto do mundo a caminho da ressurreição.
forte. Quem semeou loucura colherá loucura. Esta é a hora apo-
calíptica de sua destruição. A alma do mundo está despertando. XVII. VISÃO (2o TEMPO)
A lei de Deus hoje diz: Basta! E prende de novo a besta em seu
inferno. Vamos. Com o espírito venceremos‖. A espera não se prolongou muito. As altas tensões ou se
Assim falou o homem. Havendo escutado, sucessivamente transformam ou se rompem. Golpeada violentamente pelo lado
atônita, comovida, conturbada e extática, a multidão calava. de fora, a porta abriu-se. Escancarou-se. Fortíssima ventania
Por fora, calma absoluta, mas o fragor do tumulto das almas entrou pela basílica a dentro, raivando, como se a mão do ódio
ensurdecia. A multidão hesitou apenas um instante e, em se- percorresse aquele oceano de cabeças à procura de vítimas; al-
guida, com muita ordem, calma e segurança, começou a entrar go explodiu do lado de fora e foi quebrar-se contra o arco de
em fila ao longo do corredor central. Os voluntários do sacri- círculo que circunda a praça. Depois, opressivo silêncio.
fício eram homens, mulheres, jovens e velhos, de todas as O homem, de braços abertos em cruz, avançou lentamente e
classes, de cultura, educação, posição social, nacionalidade e, transpôs a porta. Os demais seguiram-no. Colocado à esquerda
até mesmo, de religião diferentes. O apelo fora feito a todos, da cruz carregada pelo irmão, ele abria o cortejo. Exatamente as
sem outra exigência senão a de ser simplesmente discípulo de forças do mal, escravas das forças do bem, tinham escancarado
Cristo, e muitos o atenderam: doutos e ignorantes, homens de as portas para o cortejo sair a céu aberto. Assim, o cortejo atra-
ciência e homens de fé, patrões e operários, humildes e pode- vessou o átrio e desembocou na praça. Enquanto isso, vários
rosos. Muitos. Até mesmo religiosos e religiosas, de várias homens de armas em pé de guerra recuavam, às tontas, para os
ordens, militares de todos os postos hierárquicos, campeões lados do átrio. As portas tinham sido abertas por eles a fim de
de todas as modalidades. Mesmo das fileiras do clero oficial, que se começasse a matança; para isso, fizeram avançar vários
agrupado na abside do templo, alguns haviam entusiastica- carros blindados, com a intenção de fazê-los penetrar no interi-
mente acorrido. Enquanto o multiforme cortejo se ia forman- or da basílica; pensavam que a multidão ignorasse o cerco da
do, o homem que havia falado olhava-o, rezando. basílica e, assim, essa inesperada surtida de gente ordeira e de-
Antes de mover-se do lugar, ajoelhou-se diante do altar, em sarmada os colhera de surpresa. Não compreendiam essa nova e
seguida pediu uma cruz ao clero do templo, não metálica, mas estranha coragem de homens desarmados, que calmamente
de madeira, como a de Cristo, e assim o mais pobre possível. afrontavam indiscutível perigo. O medo de alguma oculta insí-
Não encontraram e, por isso, com duas tábuas, improvisaram dia os mantinha suspensos. O inimigo não esperava essa mu-
uma. Abraçou-a, beijou-a e começou a andar. Enquanto ia dança tão imprevista de situação. Na grosseira máquina psico-
atravessando as fileiras dos que haviam respondido ao apelo, lógica que estava dirigindo os homens da matéria, tardou muito
estes se iam colocando atrás dele, em silêncio e em ordem. As- a acender-se o relâmpago do pensamento, que, ao contrário,
sim se formou o cortejo dos voluntários, dispostos a enfrentar profunda e velozmente, iluminava a mente do homem que esta-
o perigo desarmados, em nome de Cristo e em defesa do espí- va perto da cruz. Houve um momento de hesitação. Bastou esse
rito, com o ânimo heroico e pacífico dos primeiros mártires pequeno atraso da ação, essa momentânea incerteza de diretri-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 199
zes, para reforçar e firmar a corrente de pensamento oposta, re- multidões. O homem compreendia as consequências e o imen-
presentada pelos homens do cortejo; na praça espalhou-se no so alcance de sua atitude. Julgava-se tudo e, ao mesmo tempo,
meio dos inimigos sensação de místico terror. Algo, a que obe- nada; bem no centro do turbilhão e do drama, no entanto só;
deciam, embora desconhecessem, os imobilizou; e os petrechos sentia-se perdido, mas vitorioso; exausto e, apesar de tudo, for-
de guerra, potentes, tecnicamente perfeitos e prontos para a tíssimo. A debilidade residia em sua pobre condição humana; e
ação, ficaram paralisados a partir da primeira mola: o espírito. a força, na visão de Cristo, que, invisível, o guiava.
Avolumando-se à medida que saía do templo, o cortejo, Assim, o cortejo chegou ao fim da praça e desfilou diante
progredindo pela direita de quem sai, ia-se escoando ao longo do grosso dos carros blindados e dos canhões. Então, o homem
do pórtico. Na frente caminhava o homem, ao lado da cruz e de que lhe estava à frente escutou mais atentamente e pôs em ação
braços bem levantados. Da multidão, muitos lhe imitavam o sua receptividade no sentido de melhor compreender a psicolo-
gesto, como invocação suprema. Ele havia entoado em voz alta gia do inimigo. Percebia que até mesmo os homens da guarni-
um ritmo grave e solene, repetindo a palavra-síntese daquela ção dos carros blindados e dos canhões pertenciam à vida, eram
cena e daquele momento, da espera e da defesa: ―Cristo‖. Esse vida e sofriam o império de suas leis. Percebeu que a natureza
brado ecoava na multidão, que, repetindo-o em todos os tons e desses homens de tal modo se saturara de vibrações maléficas,
através de milhares e milhares de vozes, o transformava em po- que eles mesmos lhe sentiam a perturbação, como peso contra o
deroso clamor, que investia contra as colunas da praça e os mu- qual, por força da lei de equilíbrio, a vida reagia; como negação
ros da basílica, se derramava pela cidade eterna a fora e, final- contra a qual, instintivamente, se rebelava o ser desejoso do
mente, parecia explodir bem lá em cima. Milhares de mãos se próprio progresso, e não de autodestruição. Percebia, no sub-
erguiam, suplicando. Algo, como risonha bênção de Deus, pa- consciente daqueles homens, ferverem vibrações antagônicas,
recia relampejar nos céus, brotada do hino de intermináveis le- de onde subiam para a consciência ideias contraditórias. Naque-
giões de anjos. E as armas calavam. les ânimos, duas correntes de pensamento se digladiavam. Que-
Nesse meio tempo, os homens de armas, na lógica de sua riam vencer, mas odiavam aquela vida de bestas-feras. Não
psicologia simplista, já haviam decidido sustar momentanea- aguentavam mais. Nem a insensibilidade nem o hábito os de-
mente a ação, para melhor divertir-se à custa de inimigo iner- fendia mais. As forças maléficas empregadas por eles satura-
me, sem necessidade de pressa, porque a presa estava garanti- vam-nos a ponto de envenená-los; e a vida, até mesmo neles,
da ou, numa palavra, por grosseira curiosidade de saber qual queria viver. Tantos males e tantas dores haviam eles semeado,
seria o fim de tudo aquilo. O homem perto da cruz percebia lançando-os contra tanta gente, que agora se voltavam contra
tudo e mantinha completo controle sobre si mesmo, pois co- eles mesmos, agredindo-os e sufocando-os. Por isso, naqueles
nhecia muito bem e dirigia o fenômeno espiritual de que era o ânimos, a reação se estava elaborando. Ao mesmo tempo, o im-
centro. De cabeça alta, cabelos ao vento, braços abertos e le- ponderável exercia pressão no sentido dessa mudança. O ho-
vantados para cima, como antenas receptoras, auscultava as mem do cortejo ouvia esse tempestuoso choque de forças, essa
correntes de pensamento. Primeiro, registrava as ondas longas, trágica maturação de almas. Tinha a impressão nítida de que o
extensas e lentas, das radiações diurnas da luz solar, da terra, fenômeno estava quase atingindo seu ponto crítico e, dentro de
dos tijolos dos edifícios, da exuberância puramente animal dos uma fração de segundo, esse sistema de forças estaria decom-
homens de armas, da vida vegetativa da multidão, tudo isso posto; percebia que, para lá desse ponto crítico, o fenômeno as-
nas entonações mais variadas. Não era, porém, essa a voz que sumiria nova forma, isto é, o dinamismo se inverteria e as for-
ele procurava cuidadosamente sintonizar; de fato, concentrava ças componentes se aplicariam em direção oposta. Essa precipi-
toda a sua atenção nas ondas curtas e rápidas do pensamento, tação de equilíbrios era iminente. Num átimo, desencadear-se-
com elas sintonizando-se em alta frequência. Abria-se para iam as consequências exteriores e materiais.
elas com grande receptividade, e elas lhe chegavam com voz O fenômeno já estava maturado. E eis que, de repente, o
sutil e clara, que se elevava, como luz nas trevas, acima dos imponderável pareceu explodir, e a luz se fez nas almas dos
tons baixos e profundos, escuros e densos das outras vibrações inimigos. A corrente construtiva da vida e do bem reconquis-
mais materiais. Podia, desse modo, ouvir a voz, não percebida tara a superioridade sobre a corrente destrutiva da morte e do
pelos outros, da alma dos homens de guerra, e, como não era mal. Aqueles homens não puderam resistir por mais tempo e
ouvido por ela, podia controlar o perigo, logo à sua primeira renderam-se ao cansaço de seu mau modo de agir, sentiram
manifestação, o pensamento, sem o qual nada se põe em mo- nojo de si mesmos, compreenderam a inutilidade do homicí-
vimento. Assim, percebera também a decisão do Pontífice, que dio, a estupidez em que o ódio se transforma, se considerar-
impusera a seu séquito a sua firme vontade de descer para jun- mos os objetivos da vida e a alegria de existir e amar. Com-
to do povo. E percebera, além disso, que outro cortejo, o do preenderam, então, havê-los iludido e traído o mal em que ha-
papa, se pusera em movimento, convergindo em direção da viam acreditado; terem sido vítimas de miragem; e que o mal
porta do templo, onde os dois cortejos se encontrariam. Por is- muito mais depressa envenena quem o pratica do que a pessoa
so o homem se sentia profundamente comovido por aquele que o recebe; aí, perceberam como a vida por eles escolhida
brado da multidão, que repetia em coro a sua invocação: ―Cris- era a vida de demônios e só seria muito mais bela na propor-
to, Cristo, Cristo!‖, só uma palavra, nada mais, uma palavra ção em que a paz substituísse a guerra, o ódio se transformas-
clara e abrasadora, repetida em ritmo forte e tenaz; uma pala- se em amor e o mal em bem. Aquele singular cortejo, a desfi-
vra em que a vida parecia gritar sua vontade de progredir para lar-lhes diante dos olhos, lhes falava desse outro mundo mais
o alto. Em plena tempestade, acima dos séculos, ele perscruta- belo, em que agora até eles mesmos se esforçavam por entrar,
va através do tempo para, finalmente, exultar com a futura vi- e também do tipo de conduta mais civilizado, de que se senti-
tória de Cristo, aquela vitória pela qual, dando-se a si mesmo, am expulsos. Comparavam-se com os fiéis, que, desarmados,
também lutava. Haviam afrontado a morte, e, agora, Deus os mas possuídos de coragem inaudita, afrontavam a morte em
salvava. Esse exemplo constituía apenas o primeiro passo da paz, rezando; comparavam sua férrea disciplina militar com a
grande e pacífica revolução espiritual. Esse exemplo, mais tar- disciplina livre e consciente daqueles homens convictos e
de, se multiplicaria, e a fé sairia do interior dos templos, da procuravam saber qual a força capaz de, sem armas, mantê-los
prisão dos claustros, do cárcere das formas. A conquista de ca- assim unidos. Teriam podido exterminá-los. Então por que
da nova fase evolutiva significa expansão de Deus nos cora- não faziam funcionar as máquinas de guerra? Por que a inusi-
ções, é primaveril desabrochar de flores. Diante do exemplo de tada estratégia daqueles homens inermes triunfava e a força
Roma, outras igrejas abririam as portas e deixariam sair outras armada se tornava inoperante? Alguma coisa os paralisava.
200 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
Que era? Onde estava e em que consistia esse imponderável a 1) Minha missão está cumprida. Deixai-me desaparecer na
bloqueá-los assim? Sentiam-se enojados de si mesmos e das sombra. Da sombra saí e para a sombra retorno. Não penseis
máquinas; indefinível descontentamento os impelia a odiá-las; em mim, que não passei de miserável instrumento. O importan-
a odiar não os homens inermes e pacíficos que confessavam te é apenas que a semente atirada ao solo germine e frutifique.
aquele Deus de todos, tanto de vítimas como de agressores, 2) Respeitai a autoridade, como superior principio orgânico
mas os petrechos de guerra e os inventores dessa maldita téc- e, por isso, elemento de vida e de evolução; dai exemplo dessa
nica de destruição e de morte. Não mais se sentiam convenci- ordem em que consiste o futuro do mundo. Respeitai, também,
dos da força, que não vence pelo livre convencimento, mas por isso, a autoridade da Igreja. Não julgueis. Deixai a Deus o
oprimindo e sujeitando, ao observarem o espetáculo de seres encargo de julgar os homens. Não penseis neles, meros instru-
livres, mantidos espontaneamente em estreita união por força mentos, mas em Deus, que tudo dirige, nem naquilo que dizem
totalmente diferente. Os homens de armas e os homens do es- ou fazem, mas naquilo que Deus diz ou faz por meio deles, co-
pírito representavam duas experiências humanas opostas; e os mo por meio de toda a humanidade.
primeiros percebiam, face a face com os últimos, que iriam 3) Ide pelo mundo, ó voluntários do sacrifício, homens da
precipitar-se no mais trágico e absurdo fracasso. No entanto, primeira hora, fundadores da nova civilização do Terceiro Mi-
mesmo sem armas, que coisas grandiosas não se poderiam fazer lênio. Fostes escolhidos porque enfrentastes a prova e a vences-
apenas com o poder da fé e do amor! Aquela mesma praça onde tes. Sede sacerdotes do espírito. Não busqueis a força. O poder
se encontravam servia de exemplo. Os dois sistemas opostos de da justiça é poder que a supera; não há fraqueza maior do que a
conduta humana ali estavam em plena ação e se defrontavam injustiça. Se fordes justos, a força irá ao vosso encontro; caso
desafiadoramente. Esse não passava de simples episódio da contrário, trair-vos-á. Vossas armas de conquista devem ser: re-
grande luta entre o bem e o mal. Este sentia, em presença do tidão, bondade, sacrifício, amor. Os imponderáveis do espírito
bem, a íntima contradição que o inferiorizava. tornar-se-ão verdadeira potência dentro de vós, se, ao invés de
―Por que atirar contra homens inermes? Com que fim?‖. Os pregá-las apenas com palavras, viverem em vosso exemplo, se
homens de armas diziam de si para consigo: ―Não são mais co- seguirdes Cristo, vibrando apaixonadamente na vida ativa. Se-
rajosos do que nós? Não seríamos covardes, se os matássemos? meai com entusiasmo, e não com incerteza e desânimo; antes
Não temos a mesma coragem que eles, nem somos capazes de de dar, torna-se necessário possuir, e, para possuir, é preciso já
fazer o que fazem, são, pois, mais fortes. Contudo, que força é, ter conquistado vitórias dentro de si mesmo, através de esforço
pois, essa sua que lhes permite não dar atenção à nossa, a ponto pessoal. Vivei no mundo, mas seguindo a Cristo. Falai como
de enfrentar-nos completamente desarmados? Procuremos, Ele, isto é, pelo exemplo. Hoje vencestes a matéria, pois de-
pois, contato com eles e, se for possível, conquistemos essa no- sarmados enfrentastes a morte. Começastes pelo exemplo; con-
va força cujo segredo não sabemos. Esses homens não nos od- tinuai dando o exemplo. Não adianta parecer; é preciso ser. Se a
eiam, não querem ser e nem mesmo são nossos inimigos. Mas, consciência nos condena, de nada nos vale haver conquistado
então, por que esse absurdo de odiar quem não nos odeia e os aplausos do mundo. Não sejais ricos por fora e pobres por
agredir quem, sem arma alguma, se expõe a nossos golpes? dentro; sede, isso sim, ricos por dentro e pobres por fora. O ob-
Não! Basta. De agora em diante, não matemos mais, não odie- jetivo da vida é ascender. Conquistai qualidades, que constitu-
mos mais. Como eles, também nós temos alma. Daqui por dian- em tesouros inalienáveis, e não bens materiais, que se perdem.
te, não seremos mais apenas número, instrumento, máquina, es- Ascendei e ajudai a ascensão alheia. Sede sempre construtores,
cravos do terror!‖. Assaltou-os, então, irresistível necessidade afirmando, e jamais destruidores, negando. Não é com máqui-
de encontrar algo mais inteligente, mais vital e consciente, mais nas de guerra nem com as armas da lógica e da polêmica que
elevado, mais livre e adequado, irresistível necessidade de au- vencemos o inimigo, mas compreendendo-o e abraçando-o. An-
tonomia, de ouvir novamente a voz das grandes ideias que tes de exigi-los dos demais, exigi de vós mesmos a fadiga, o
constituem a base da vida e o apelo de Deus. Novo desejo gal- dever e a prática das virtudes. Primeiro, reformai-vos; depois,
vanizou-os; as forças do mal, que se derramavam na hora histó- aí sim, podeis pensar na reforma de vossos semelhantes. Seja
rica, naquela multidão, no mundo, derramavam-se também so- esse o segredo de vosso poder. Mantende-vos ágeis, ligeiros,
bre eles. O imponderável, que tudo movia, também a eles en- vivos no espírito, bem próximos das fontes; temei as incrusta-
volveu e arrastou. O instinto vital movimentou-os, impeliu-os. ções, as cristalizações, as deformações, os acomodamentos, o
Saíram dos carros, abandonaram canhões e metralhadoras, farisaísmo, que é moléstia psicológica de todos os tempos, a
aproximaram-se, incorporaram-se ao cortejo, acompanhando a fossilização senil de todas as religiões. A forma não deixa de
cruz sob a universal invocação de Cristo. ser necessária, mas acomoda e adormece. Primeiro, buscai a
Agora, o fenômeno tendia lógica e espontaneamente para a substância, que é a alma de todas as coisas. Do contrário, sereis
conclusão. Engrossado cada vez mais por novos adeptos e de- apenas cadáver, foco de infecção, que propagará a morte. Só o
pois de haver feito a volta completa do pórtico, o cortejo já se espírito é vida. Lembrai-vos disto: manter-se vigilante; jamais
aproximava do átrio e da porta principal, a fim de reentrar na mentir, jamais pactuar com o mal; jamais acomodar-se. Quem
basílica. Aquele homem, que estava à testa do cortejo, chegou mais possui mais sabe e mais autoridade tem, portanto tem mais
primeiro. O Pontífice, tendo descido ao templo, esperava-o de deveres que os outros, e não mais direitos. O mundo tem fome
pé, sozinho, destacado de seu séquito, na porta da basílica. da verdade: deveis nutri-lo, vivendo a verdade. Sede instrumen-
Quando o homem, acompanhando a cruz, chegou bem perto, o tos da criação, operários de Deus, seus colaboradores na cons-
Pontífice, estendendo-lhe os braços, disse-lhe: trução e no progresso. Semeai, e a semente germinará, produzi-
―Meu filho, você salvou a Igreja‖. rá novas sementes e, através delas, nascerá o novo. Ide pelo
Pai, respondeu: ―Cristo fundou hoje a nova e universal civi- mundo e semeai no tempo a nova civilização do espírito‖.
lização do espírito. Trago-vos a legião dos que primeiro o afir- O homem calou-se e mostrou o Pontífice aos fiéis, a fim de
mam, os voluntários do sacrifício, a fim de os conduzirdes ao que estes o seguissem. Em seguida, afastou-se e desapareceu no
túmulo de Pedro, ao altar de Cristo‖. meio da multidão. O Pontífice recusou-se a sentar de novo na se-
Disse e ajoelhou-se diante da soleira da porta, beijou-a perto de gestatória, em que chegara até à porta do templo; fê-la afastar-
dos pés do Pontífice, que o abençoou. Depois, pondo-se de la- se juntamente com o seu séquito e, a pé, mas triunfante ao lado
do, perto do estípite direito, assim falou: da cruz de madeira, colocou-se à frente do cortejo, que voltou vi-
―Irmãos! Antes de separar-me de vós, quero deixar-vos es- torioso à nave central. E, assim, até ao altar-mor. Aí, o Pontífice
tas três ideias: mandou tirar a cruz de ouro e prata que brilhava no centro do al-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 201
tar e pôs no seu lugar a pobre cruz de madeira, vencedora da dade do espírito, escapa aos sentidos, sempre constituiu função
grande batalha. Depois, devagar, porém com entusiasmo, execu- da arte. Portanto tudo isso, para ela, não passa de consequência
tou até ao fim o ritual sagrado, como estava previsto. natural de seu desenvolvimento lógico. Compete-lhe dar ex-
O cortejo dos voluntários vitoriosos havia-se enfileirado ao pressão ao inexprimível, tangibilidade ao imponderável, tornar
redor. Todos que o compunham tinham entrado no templo: perceptível o evanescente mundo das forças e das ideias. A arte
homens, mulheres, jovens e velhos, de todas as classes, de será tanto mais legítima quanto mais fielmente cumprir essa
educação, cultura e posição social diferentes: doutores e igno- função de transportar o céu para a terra, de criar contatos com o
rantes, homens de ciência e de fé, patrões e empregados, hu- divino. A isso se reduz todo o seu valor educativo no sentido
mildes e poderosos. Havia também religiosos e religiosas de mais elevado do termo, isto é, evolutivo, instrumento de espiri-
todas as Ordens, militares de todos os postos, expoentes de to- tualização. Depois do atual período de iconoclastia artística, a
das as castas. Aí estavam os voluntários do clero oficial, saídos nova arte do imponderável será a arte da nova civilização do
das fileiras grupadas na abside da basílica. Estavam represen- espírito. O homem sensível poderá assim roubar aos céus novas
tadas as nacionalidades e as religiões mais diferentes. Havia belezas e trazê-las para o mundo, tornando mais compreensí-
também os adesistas da última hora, que aumentaram as filei- veis as sutilezas das coisas espirituais. A gênese de tudo está na
ras e, finalmente, os homens de armas, saídos das máquinas de parte interna, no espírito, em Deus; as coisas excelentes e pode-
guerra e, pelo exemplo, convertidos ao amor de Cristo. O ape- rosas brotam das profundas nascentes da vida. A técnica está na
lo fora universal e, assim, todos reentraram no templo, seguin- periferia, na superfície, na forma. A inspiração vem do centro,
do a Cristo, agora unidos sob a Sua cruz. da profundidade, da substância. A análise destrói, a síntese
Essa concórdia do mundo, que, após dois milênios de luta e constrói; a forma causa a morte, o espírito vivifica.
quase no limiar do terceiro, mais uma vez reencontra a Cristo; o Mas essa visão podemos entendê-la ainda sob outro aspec-
espetáculo dessa multidão, a princípio massa confusa, agora re- to, ou seja, como plano de combate. O espírito não vence por
constituída de acordo com nova ordem e unidade mais vasta; acaso. O milagre de sua vitória aqui, após o estudo das forças
esse triunfo final do anjo sobre a besta e do espírito sobre as em que essa vitória se baseia, a estrutura de seu sistema e a lei
armas embotadas da matéria; tudo isso constitui o último lam- de seu desenvolvimento, fica logicamente explicado. Esse
pejo da luz em que, em gloriosa apoteose, esplende esta visão. drama representa apenas um momento do imenso drama hu-
No esplendor desse último brilho, a visão deteve-se, imóvel, mano da luta entre o bem e o mal. Vemos o passado e o futuro,
pequena fração de segundo. Depois, como cometa que riscou o o involuído e o evoluído, se defrontarem em batalha decisiva,
firmamento, a luz se apagou lentamente e desapareceu, deixan- que o evoluído ganha por força dos próprios princípios da Lei
do atrás de si luminosa esteira. e da vida, tais como os expusemos nos capítulos precedentes.
Isso constitui a nota dominante deste trabalho, de que essa vi-
XVIII. COMENTÁRIOS E PREVISÕES são pode considerar-se o ponto culminante. Também aqui se
vê o mal posto a serviço do bem, isto é, funcionando como re-
Essa visão também podemos entendê-la como expressão do sistência excitadora de reações, que faz o triunfo nascer no
drama do imponderável. Mais do que pessoas, falam-nos for- campo oposto. Assim, a Lei, sem constranger-nos, nos induz a
ças ativas, mais sábias e capazes que as pessoas. Essas forças, conquistar o nosso próprio bem à custa de nosso próprio esfor-
de acordo com o pensamento da Lei, enquadram-se e movem- ço; assim, o mal, reabsorvido e anulado, se transforma final-
se disciplinadamente como soldados; influindo e, por sua vez, mente em bem. Notemos por último, que a nova civilização do
recebendo influência, como binômio de ações e reações, funci- espírito não nasce sem defesa, mas armada com novas armas,
onam organicamente e dirigem-se ao objetivo determinado. pois a luta, elemento vital, subsiste, embora se tenha transfor-
Conforme a sua natureza e poder, coordenam-se como se fos- mado ao transferir-se para plano mais elevado. Todos necessi-
sem sinfonia orquestrada para numeroso conjunto musical. tam de armas e defesas, porém quão diferente da atual é a nova
Também na luta guardam proporção; seus desequilíbrios desa- técnica! Esta, que vimos vencer no momento crítico da primei-
parecem em novos equilíbrios, sua dissensão se resolve em ra manifestação da nova civilização, será a mesma a defendê-la
harmonia. Essa circunstância dá sensação de musicalidade ao mais tarde, no decurso de seu desenvolvimento e execução.
desenvolvimento do sistema. Toda força tem personalidade in- Trata-se de novo princípio defensivo, de método e estratégia
confundível; é fenômeno distinto, embora combinado com ou- diferentes dos que hoje seguimos; trata-se de novo modo de
tros; entrelaça-se sem misturar-se; reage de acordo com traje- conceber a vida e guiar-lhe as energias. Assim, centuplicamo-
tória e lei de desenvolvimento próprios e obedientes à lógica lhes o rendimento. A conversão dos homens de armas não sig-
fornecida por sua natureza, potência e objetivo. Aí estão a ma- nifica uma reação destrutiva por parte das forças protetoras da
téria e o espírito, a Igreja e o homem, Cristo e a multidão, o vida, nem a exaustão de uma fase a que se deve retornar depois
bem e o mal, as forças biológicas e o destino do mundo. E esse de percorrido o período oposto; representa, isto sim, revolução
drama emerge do fundo da evolução humana e dos destinos da biológica, degrau mais alto da conquista evolutiva; não é con-
vida em hora histórica apocalíptica. versão momentânea de alguns homens, mas a conversão da
Dai se vê como o imponderável pode oferecer-nos novos força à justiça, da matéria ao espírito.
motivos a explorar, desde que a arte queira apossar-se do imate- Observemos agora a posição e o significado dessa visão no
rial, onde o espírito pode em qualquer terreno fornecer modelos desenvolvimento conceitual deste volume e em relação aos
de primeira plana, segundo o conceito de elevada estética. Po- demais com que se relaciona. Aliás, já no prefácio foram todos
der-se-iam assim expressar os dramas do abstrato, em que as reunidos em duas séries, ou trilogias. A primeira compreende:
forças imponderáveis agiriam como seres vivos e funcionariam 1) Grandes Mensagens e A Grande Síntese; 2) As Noúres; 3)
como realidade objetiva. Todo progresso, inclusive o artístico, Ascese Mística. A segunda: 1) História de um Homem; 2) Fra-
apenas pode consistir em aproximarmo-nos cada vez mais das gmentos de Pensamento e de Paixão; 3) A Nova Civilização do
fontes da vida e, como o objetivo da arte consiste na expressão, Terceiro Milênio. A primeira trilogia encerra-se, nas últimas
em exprimir cada vez mais claramente o pensamento divino páginas de Ascese Mística, com a previsão da guerra atual. Es-
existente na intimidade das coisas. Nova arte, a do imponderá- se ciclo é, pois, de preparação e representa o prenúncio do ca-
vel, poderia desse modo penetrar cada vez mais profundamente taclismo e o esquema da nova civilização. O segundo podemos
na realidade e revelar-lhe cada vez mais os íntimos mistérios. chamá-lo executivo e reconstrutivo e aprofunda esse esquema
Exprimir, revelar, tornar perceptível tudo o que, na imateriali- no que diz respeito ao seu aspecto humano. Trata-se de dois
202 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
pensamentos diversos, de duas perspectivas diferentes, a do zes...‘; idem: ―...Ousai, abandonando velhos atalhos, porém não
―antes‖ e a do ―depois‖, a de quem se prepara para a prova e a ouseis às doidas e exatamente nos pontos em que não tendes
de quem já vai saindo dela. A guerra mundial de nossos dias motivo para ousar; ousai em direção dos céus e nunca tereis ou-
situa-se no meio das duas trilogias. Desse modo, para nós, essa sado demais. De vossa crise, crise dolorosa e profunda, nascerá
guerra tem valor mais profundo que o de simples acontecimen- o novo homem do Terceiro Milênio... Neste resto de século se
to político, pois, vista em sua substância biológica, nos mostra decide o Terceiro Milênio. Ou vencer ou morrer‖. Mensagem
seu verdadeiro significado e objetivo. É mais fácil intuir o atu- aos Cristãos, por ocasião do XIX centenário da morte de Cristo:
al conflito em suas causas íntimas do que compreendê-lo raci- ―...vossa união forme barreira contra o mal, que está na iminên-
onalmente em seus aspectos exteriores, isto é, concebendo-o cia de desfechar tremendo assalto. Grandes lutas exigem gran-
no seu sentido moral e evolutivo, bem mais elevado do que os des unidades...‖; idem: ―A humanidade caminha inexoravel-
demais dizem e sabem. A guerra nos aparece, assim, como um mente para as grandes unidades políticas e espirituais‖.
assalto do mal a serviço do bem, desejada pela ignorância hu- Reportemo-nos agora ao volume A Grande Síntese, primei-
mana e permitida por Deus como útil prova; deve, assim, en- ramente publicada em capítulos, na coleção de revistas de ja-
tender-se como destruição reconstrutiva, condição de renasci- neiro de 1933 a setembro de 1937. Cap. V: ―A mente humana
mento e preparação da nova civilização do Terceiro Milênio. O procura um conceito que a impressione vivamente, conceito
conflito permanece, pois, ambientado no desenvolvimento his- elevado e mais profundamente sentido, capaz de orientá-la ru-
tórico da época, de que se torna o acontecimento culminante e mo à iminente nova civilização do Terceiro Milênio...‖; Cap. X:
decisivo. O próprio conceito de ―vitória‖ assume aqui signifi- ―Conseguireis produzir a energia necessária para a desintegra-
cação muito mais vasta do que o comum, devendo ser compre- ção atômica, isto é, para transformar a matéria em energia.
endido como vitória no espírito. Eis o significado da visão: a Vossa vontade conseguirá penetrar na individualidade atômica,
vitória final não dos homens, mas de Deus. Nos equilíbrios da alterando-lhe o sistema‖; Cap. XLII: ―A nova civilização do
vida, apenas o resultado político não basta para justificar tantas Terceiro Milênio está iminente; urge, por isso, lançar-lhe as ba-
dores dos povos, tantas perdas de bens para todos e tão violen- ses conceituais...‖, idem: ―Há um superamento imposto pela
to esforço da humanidade. A vida nada faz sem finalidade, e o evolução da humanidade neste momento histórico de que está
objetivo que deve atingir deve ser proporcional ao trabalho por para nascer a nova civilização do Terceiro Milênio...‖; Cap.
ela desenvolvido. Isso é consequência evidente na lógica da XCVII: ―As leis da vida, adormecida em ritmo igual durante
Lei. Esta nos diz que a vida não fracassa, não perde tempo e, milênios, receberam repentino choque e estão hoje despertas
de acordo com sua economia, proporciona os resultados ao es- para lançar-vos rumo à nova civilização do Terceiro Milê-
forço necessário para atingi-los. O homem é ignaro e se guia nio...‖; Despedida: ―Este é desesperado apelo à sabedoria do
pela eterna sabedoria de Deus. Já o demonstramos à saciedade. mundo... A civilização moderna lança a semente com vertigino-
Todas as dissensões e lutas do homem são apenas fadigas evo- sa velocidade e espera a fabricação intensiva de sua futura dor.
lutivas; suas dores, provas; suas vitórias e derrotas, provações Será a dor de todos. Poderá tornar-se maré montante que des-
para conquista de consciência. Vencedores e vencidos não pas- truirá a civilização. Os meios estão prontos para que hoje um
sam de colaboradores do progresso humano e lutam entre si incêndio se torne mundial... Se um princípio coordenador não
apenas para criar na luta a atividade formadora; de uma forma organizar a sociedade humana, esta se desagregará no choque
ou de outra, todos são, para felicidade geral, servos de Deus. de egoísmos. Falei em momento crítico, numa curva da histó-
Para o bem geral porque, no caso-limite do malvado incorrigí- ria, na aurora de nova civilização... Enquanto na Terra existir
vel e, por isso, condenado à dor eterna, a Lei, movida por pie- um só bárbaro, ele tentará rebaixar a civilização até ao seu pró-
dade suprema, inseriu a autodestruição na própria estrutura do prio nível, invadir e destruir para aprender. As raças inferiores
sistema; assim, o rebelde empedernido acaba, como tal, sendo logo não se impressionarão mais com a superioridade técnica
reabsorvido por aniquilamento. europeia e se apossarão dela para, em seguida, agarrar o velho
Dois conceitos predominam na primeira trilogia; ei-los: 1) patrão pelo pescoço... Que os justos não temam...‖.
A iminência de tremendo cataclismo mundial e de período de Estes conceitos se desenvolvem e afirmam no volume As
grande dor e destruição; 2) A preparação de nova civilização do Noúres. Cap. IV: ―...O momento histórico é grave, solene, rico
espírito, à qual tanta ruína material dará nascimento. O primeiro de valores em putrefação e de germes em febril desenvolvi-
acontecimento (anunciado quando ameaça alguma pendia sobre mento, como nos tempos messiânicos... percebo as correntes
o mundo e as comodidades da vida serviam de fundamento à espirituais do mundo e tenho a nítida sensação de próximas e
concepção materialista) verificou-se plenamente, com todas as novas diretrizes do pensamento humano, que levarão de venci-
tintas carregadas com que foi descrito. O segundo acontecimen- da as resistências de todos os misoneísmos...‖, idem: ―...Toda a
to, que parecia anacrônico quando anunciado como problema Europa se arma e, todavia, treme diante do espectro de uma
de vida e de morte e colocado como fundamento de A Grande guerra que poderia, percebe-se, marcar-lhe o fim da civiliza-
Síntese, está hoje tornando-se atual, pois, convulsionadas as ve- ção... Uma fronteira dividirá de ponta a ponta a Europa em du-
lhas diretrizes, o mundo procura outras. Hoje, que o ciclo da as partes, a da ordem e a da desordem, em cuja defesa lutarão
espera foi superado por experiência viva, convém, porque es- de maneira concreta as forças cósmicas do bem e do mal. Se as
tamos no limiar de nova civilização, reler o pensamento dos vo- forças desagregadoras do mal vencerem as forças construtivas
lumes da primeira trilogia, extraindo os trechos mais convin- do bem, então as portas da Europa desorganizada ficarão es-
centes desse argumento. Ei-los. Foram extraídos de publicações cancaradas diante da ameaça imensa da Ásia, dragão gigantes-
impressas, com data conhecida e são documentados por elas. co e terrível que já levanta a cabeça, espreitando a presa sucu-
Grandes Mensagens. Mensagem do Natal, 1931: ―Grande lenta. Cega-o, porém, a luz que vem de Roma, centro espiritual
revolução se aproxima na história do mundo... Vosso progresso do mundo...‖, idem: ―Percebo a iminência de grandes e tre-
científico... acumula energias, riqueza, meios para nova e terrí- mendos acontecimentos mundiais, ouço longínquo fragor de
vel explosão...‖; idem: ―Observo lento mas constante, aumento tempestade, imensos vagalhões que ameaçam a grande civili-
de tensão, como prelúdio da inevitável queda do raio... Já se foi zação, embora pouquíssimas pessoas o vejam e saibam. Implo-
o tempo em que, como os povos viviam isolados uns dos ou- rei que soubessem e vissem. Nesse ar pesado de ameaças em
tros, os cataclismos da história podiam ficar circunscritos; hoje que o mundo se debate às tontas, meu espírito acabrunhado
não‖. Mensagem da Páscoa da Ressurreição, 1932: ―A psicolo- não encontra repouso...‖; Cap. VI: ―...o momento histórico é
gia coletiva pressente confusamente grande mudança de diretri- grave. Tempo algum jamais viu preparativos de maturações tão
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 203
solenes como os dos dias atuais. Estamos numa curva da histó- aprender e avançar... fora da dor não há salvação. Ninguém es-
ria do mundo. A humanidade está lançando as bases do novo capa desta lei fundamental. Mas, depois da paixão e da cruz,
milênio, está pondo na mesa a carta de sua salvação ou de sua vêm a ressurreição e a vitória do espírito. Deixo-vos o aviso de
ruína... É necessário dar de novo à Europa a consciência da que a aurora da nova civilização do espírito está na indispensá-
unidade de civilização e de destino...‖. vel paixão do mundo‖. E assim conclui o prefácio acima referi-
Volume Ascese Mística. Cap. XIV (Primeira Parte): ―...vejo do: ―Este volume (História de um Homem), escrito em meio à
as ameaças que pendem sobre esta hora; eles, porém, as igno- tempestade prevista, se encerra, pois, com o prenúncio da auro-
ram...‖, idem: ―...Porque nova civilização deverá nascer, e é ne- ra de novo dia. Depois da destruição, a reconstrução; depois da
cessário sacrifício para prepará-la; será novo ciclo histórico que dor, a alegria de vida mais sublime; depois da indispensável
formará nova raça...‖; Cap. XIII (Segunda Parte): ―Antigamente, paixão da guerra, desponta a nova era do espírito. Este livro é,
em épocas de calma, de inércia espiritual, podíamos silenciar e pois, o da ressurreição. Se é o livro da provação e do sofrimen-
viver de acomodamentos; mas não hoje, com o inimigo às por- to, é também o da esperança, da vitória do espírito e do bem. O
tas. Estamos em armas. A história prepara tremenda descarga de fatigante labor da ascensão neste livro toma grande impulso;
dor. Não é destruição, mas renovação. Não temamos...‖, idem: transforma-se, para o indivíduo, na história do protagonista e,
―Espiritualmente o mundo já está em chamas. Nestes momentos para o mundo, na consciência da atual situação apocalíptica. Ao
não é licito cruzar os braços e permanecer como espectador, pois contrário, na cena de terror e de paixão que encerra o livro As-
a tempestade atinge a todos. Os neutros acabarão sendo envolvi- cese Mística, este volume conclui invocando e chamando, das
dos e terminarão como escravos...‖; Cap. XVII (Segunda Parte): entranhas das maturações biológicas, o homem novo, de espíri-
―Ouço a perseguição da hora, o iminente precipitar dos equilí- to consciente, e anunciando e saudando a aurora da nova civili-
brios, a tempestade raivando às portas, ouço a voz de Deus, que zação do Terceiro Milênio. (Natal de 1941)‖. ―Porque é fatal‖,
anuncia a maturidade do tempo. Gritam os sinais interiores... No conclui o volume, ―que a ascensão se realize, não obstante toda
céu da história aparecem as procelárias prenunciadoras, as senti- a inconsciência e resistência do mundo; é da lei de Deus que o
nelas da vida acordam e dão o brado de alarma‖, idem: ―Ouço espírito vença a matéria, a luz vença as trevas, a alegria vença a
profundo rufar, cadenciado, incessante; ouço o passo do tempo, dor, o bem vença o mal, Deus triunfe sobre Satanás‖.
que marcha com cadência fatal... Estamos atravessando momen- Aqui terminam as citações. Agora, poderíamos observar que
tos muito graves... Já passou o tempo de explicar e demonstrar. os acontecimentos históricos, desenvolvendo-se, se transfor-
Esse trabalho já acabou. Chegou a hora do embate físico e tan- mam de tal maneira, que seus próprios artífices devem aos pou-
gível, que a todos atinge e a todos envolve... Torna-se necessário cos afastar-se da orientação primitiva e acabam muitas vezes
que o mundo aprenda novamente a pregar; se confraternize na por chegar onde não imaginavam. Cada ato do drama suscita
humilhação e na desventura e reencontre seu Deus já esqueci- novos e inesperados fatos e aspectos, que desfazem os planos
do... Aqueles que têm Cristo no coração não devem temer. A humanos, revelando-nos novos misteriosos fios da história, im-
tempestade purificará‖, idem: ―É indispensável, pois, o infortú- possíveis de total entendimento senão quando o ciclo se com-
nio para que o espírito tire até o último véu e apareça nu diante pleta. Podemos, então, perguntar-nos: o homem dirige a histó-
de Deus?... Então, o destino bate às portas da história... Desfeita ria? Muito bem. Como pode fazê-lo, porém, se ignora os futu-
a ordem ética, chegar-se-á à ruína...‖, idem: ―... não posso ficar ros desenvolvimentos e seus planos, muitas vezes, não têm va-
quieto, porque minha alma ouviu as notas do clarim, o grito de lor algum? Não. O homem não dirige, apenas tenta dirigir a his-
guerra!... Nas grandes curvas da história, a terra deve ser doloro- tória. Outras forças inteligentes dirigem-na; são os seus planos
sa e profundamente revolvida, a fim de ficar preparada para no- que atuam. Existem, naturalmente, diretriz e planos próprios;
va sementeira...‖, idem: ―...Hoje, já esvoaça nos espíritos vago tanto assim que os vemos tão logo um acontecimento se pro-
pressentimento da nova civilização do Terceiro Milênio, em que cessa. Acreditamos caminhar rumo a determinado objetivo, no
a Igreja se tornará de fato poderosa e invencível, pois nessa oca- entanto vamos em direção de outro, de cuja existência nem sus-
sião será formada apenas de espírito‖. peitamos. Mas há quem o saiba por nós. Em consequência, a
A parte final daquele volume, Cap. XXVI (Segunda Parte), história se desenrola e tem lógica; não pertence aos homens que
citado no prefácio do volume seguinte, História de um Homem, acreditam elaborá-la. Então, se ignoram quais os objetivos que
nos afirma cada vez com mais certeza: ―Esta hora é de intensa de fato buscam, não passam de simples instrumentos. Aconte-
atividade para todos. Não pode parar. Preparada há tempos, cimentos aparentemente contraditórios não têm esse caráter no
precipita-se agora. Tenho medo de olhar... Agora se desenrola plano divino, tão cheio de finalidades, que nos escapam à per-
diante de mim a visão da terra e do céu... a terra treme convulsa cepção. Ao lado da história aparente há outra, mais profunda,
no pressentimento de indescritível tufão... Vejo um turbilhão de história substancial, que só muito tarde conseguimos ver, quan-
forças que se projeta em direção da terra e vejo, também, a terra do não acontece de não a vermos jamais. No caso de nossos di-
dilacerada, descomposta, submersa em mar de sangue. É escura as, certo é haver a guerra provocado, através da dor, um proces-
a hora da paixão do mundo... As forças estão prontas para de- so de sofrimento espiritual condicionador de grandes renova-
sencadear-se no choque fatal. Aproxima-se a hora das trevas do ções. Não é nesse sentido, porém, que estamos falando. É licito
mal triunfante, da provação suprema... O drama aproxima-se, perguntar se, na complexidade de maturações que derivam de
percebo-o... Nesse momento, senti a terra tremer. Dentro de fenômeno tão profundo como o atual conflito, os homens, atra-
mim está a visão do real. Senti, mesmo, a terra tremer‖. vés do que acreditam estar fazendo, sabem o que de fato estão
Essa sucessão de visões e previsões cada vez mais angustio- fazendo e aonde vão acabar chegando? Além do plano humano
sas, inclusive esta última, escrita em fins de 1938, conclui com por eles dirigido, conhecem o plano divino que os dirige?
o testamento espiritual do protagonista de História de um Ho-
mem, concluída em começos de 1942. É a primeira parte da se- XIX. O SERMÃO DA MONTANHA
gunda trilogia, isto é, do ciclo da reconstrução. Naquele mo-
mento, tendo-se já desencadeado a tempestade prevista, a visão Antes de enfrentar novos argumentos e novas ampliações,
do autor sobe acima dela para, ao invés, contemplar a nova au- ainda algumas observações a respeito de questões já tratadas. A
rora, explicando seus primeiros sinais e dando-nos do drama a precedente visão parece comentário e reforço das palavras de A
solução que hoje se prepara. Esse testamento espiritual diz Grande Síntese, no Cap. XLII (―Nosso Objetivo - A Nova Lei‖):
(Cap. XXX): ―Estudai no grande livro da dor; sabei sofrer se ―Aí onde o mundo, com perspectivas cada vez mais desastrosas,
quiserdes progredir... É bom que o mundo sofra, assim poderá se arma contra si mesmo, com instrumentos tão terríveis, em fa-
204 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
ce dos modernos progressos científicos, que nova conflagração São estas as descobertas que mais nos interessam fazer, as
extinguirá na Terra o homem e a civilização; aí onde o homem mais importantes, porque disciplinam organicamente a ativi-
age desse modo, existe apenas esta possibilidade de defesa: o dade humana e nos permitem extrair-lhes rendimento imensa-
abandono de todas as armas. Mais tarde veremos como‖. mente maior. Representam a conquista de novos valores, mais
Neste livro, vimos como. Em qualquer campo de atividade preciosos para o homem do que novas descobertas científicas;
humana, raciocinando objetivamente e, principalmente, obser- estas, nas mãos de inconscientes, podem significar destruição,
vando os acontecimentos e descrevendo-os no que têm de es- enquanto as descobertas morais significam construção de
sencial, sem apriorismo e sem outra referência senão a realida- consciência. O espírito é o verdadeiro sal das coisas e repre-
de íntima das coisas, acabamos por chegar ao evangelho. senta princípio diretivo capaz de centuplicar o rendimento dos
Quando atingimos a intimidade das coisas, a voz dos fenôme- atuais meios humanos. Antes de, por meio da ciência, conquis-
nos coincide com a voz de Deus e surge a ordem universal tar novos meios, importa é conquistar a sabedoria que nos en-
que, num só sistema, os reúne a todos, desde a matéria até ao sine a empregar os já existentes. A ciência pode transformar a
espírito. Vamos agora focar nossa atenção especialmente nesse Terra em inferno. Só a sabedoria pode transformá-la em paraí-
sublime pensamento do evangelho, de sabor sobre-humano e so. Quando o homem houver compreendido a economia da na-
que, embora provindo de fontes completamente diferentes e tureza e conquistado o senso da Divina Providência, então
sendo produto resultante de outras elaborações, todavia coinci- substituirá o terror da necessidade, a violência da conquista, a
de de maneira tão surpreendente com a ciência e a sociologia incerteza do dia de amanhã e o aniquilamento de nosso próxi-
sadias atingidas por quem saiba ler no grande livro da vida. mo por um sistema de fé, paz, segurança e ajuda fraterna. A
Essa coincidência constitui confirmação e prova. Essa resso- ciência não é capaz de consegui-lo. Quando o homem chegar a
nância mostra como o pensamento aqui desenvolvido se sinto- compreender que o sofrimento significa conquista e a morte,
niza com ritmo espiritual dos mais profundos da vida, para o ressurreição, então se tornará invulnerável. São estas as desco-
qual converge o consenso da maior e mais adiantada parte da bertas mais úteis, aí está o verdadeiro utilitarismo. A compre-
humanidade. Assim, a ciência e a fé coincidem, significando ensão destas verdades, embora parcialmente, permite ao indi-
em substância a mesma coisa: a ciência interpreta a fé, e a fé víduo evoluído refugiar-se, mesmo nos dias de hoje, na invio-
interpreta a ciência, demonstrando então, mesmo ao homem lável autarquia do espírito.
prático, o valor utilitário do evangelho. Em nosso século mecânico, acredita-se que número signifi-
Nos capítulos anteriores, ao analisarmos o fenômeno eco- que verdade e a maioria possa e saiba elaborar a lei. Cremos ho-
nômico, vimos como uma pequena riqueza, sadia e robusta je que na vida se torne possível o agnosticismo, isto é, uma es-
porque honesta e justa, pode, por força da duração e do rendi- pécie de neutralidade espiritual, absenteísmo nas diretrizes. As-
mento, valer muito mais do que uma enorme riqueza, doente e sim, creram resolver o que não sabiam, acreditaram na possibili-
fraca porque desonesta e injusta. Assim, a análise das forças dade de fugir dos grandes problemas do ser. Desse modo, a im-
motoras do fenômeno nos permitiu introduzir na economia esse parcialidade se tornou ambiguidade e a amoralidade se trans-
fator moral, que normalmente é expulso dela, isto é, estender a formou em imoralidade. Mas o agnosticismo significa não en-
economia política até à economia moral do evangelho. Trata-se tender e não resolver nada, significa mentir a si mesmo. Não po-
de economia muito mais vasta, de que passam a participar nu- demos viver sem ação e não podemos agir sem determinada ori-
merosos elementos vitais, aos quais, doutro modo, não se daria entação pessoal. Apenas em teoria, agnosticismo pode significar
importância. Só assim podemos atingir a essência do fenômeno imparcialidade. Na prática, significa obediência aos próprios
econômico, que é também psicológico, biológico e moral; ana- instintos. A vida está toda inteira em suas posições. É impossí-
lisando-lhe o dinamismo, podemos atingir o novo conceito de vel permanecer neutro na luta entre o bem e o mal, não podemos
higiene econômica, de patologia e profilaxia econômicas. Estu- deixar de atingir determinado grau de evolução, de existir sob
dando o sistema de forças do fenômeno, podemos determinar- forma definida. Em todo ato, em todo campo, o espírito penetra,
lhe a anatomia e, reduzindo-o à substância de seu íntimo dina- e torna-se impossível não assumir uma posição moral qualquer.
mismo, podemos descobrir-lhe defeitos estruturais, de modo a A transformação biológica que conduz à nova civilização
mostrar-se, na realidade, péssimo o que nos parecia ótimo, por- encontra sua lei no evangelho; o evoluído é apenas o sábio que
que nos revela a devastação interior que o sistema clássico de o aplica. Procuremos observar, ainda, de novos pontos de vista
economia não sabe revelar-nos. Assim, também neste campo, e sob diversos aspectos, essa revolução biológica que leva do
chegamos ao evangelho e descobrimos novo utilitarismo, mais atual mundo humano a futuro mundo super-humano. A este po-
sólido e menos ilusório, mais evoluído, socialmente mais har- demos chamar nova civilização, nova ordem ou, então, reino de
mônico e profícuo. Então, o homem se torna verdadeiramente Deus, aquele de que há dois mil anos o evangelho nos fez a
senhor do dinamismo do fenômeno, pois adquire consciência de profecia e nos assinalou o inicio. O fenômeno enxertou-se na
seu funcionamento. Chegamos desse modo a muito mais com- história e foi percebido pelo pensamento das sumidades. É nu-
pleta e substancial disciplina das relações em que reside a ciên- clear em nossa vida. Assim, A Grande Síntese não é somente,
cia do futuro, disciplina necessária porquanto a convivência como dissemos, o plano regulador de nova civilização, mas
constitui fato insubstituível e cada vez mais ponderável e neces- também comentário ao evangelho, que há muito tempo lhe lan-
sário. Assim, a ordem social se fortifica, penetrando até mesmo çou as bases. De resto, a verdade é uma só. Compreende-se, por
nos motivos, transformando-se de edifício exterior formal em isso, que, quanto mais profundas são as verdades humanas, tan-
edifício interior substancial. Chegará o dia em que o furto, a de- to mais se afastam da periferia do relativo, mais se aproximam
sonestidade, o arrivismo serão tidos na conta de ingenuidade de do centro, do absoluto, e mais tendem a coincidir. Compreende-
involuídos obtusos, que não compreenderam ainda a impossibi- se que, quanto mais nos avizinhamos de Deus, tanto menos po-
lidade de algo verdadeiramente honesto nascer de fontes assim deremos, logicamente, esperar novidades. A Grande Síntese,
turvadas pelo mal, força destruidora por excelência. exatamente porque exprime a substância das coisas, não podia
O dia em que se compreender o evangelho, compreender- oferecer novidade, própria do mutável, do relativo e da forma,
se-á também que o amor ao próximo não constitui utopia ou mas apenas podia repetir a verdade eterna, que jamais muda.
sentimentalismo, mas é sólida e prática lei de vida, o modo Esse livro, portanto, poderia apenas constituir o desenvolvi-
mais lógico e utilitário de relações humanas. É natural que, se- mento e a demonstração de tudo quanto já se disse e revelou, de
meando desordem, apenas se possa colher desordem e que, para tudo quanto já pertence às religiões, à moral, à vida. As verda-
obtermos justiça, tenhamos necessidade de ser justos. des eternas voltam e tornam a voltar perante nossos olhos, ves-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 205
tidas de acordo com as formas mentais do tempo; descendo, as- mas aperfeiçoadora, da lei mosaica‖. Efetivamente, Cristo não
sim, até à psicologia do momento e acomodando-se com ele, viera ―abolir, mas cumprir‖. Essa continuação do passado,
tornam-se-nos cada vez mais acessíveis. Só as pessoas superfi- prossigamos, confirma tudo quanto dissemos antes, isto é, que a
ciais podem esperar continua novidade, uma das características verdade é una e, por isso, não podemos renová-la, mas apenas
de seu mundo relativo e efêmero. Ora, para nós, o primeiro ini- aperfeiçoar e completar-lhe a expressão. Mas acrescentávamos
ciador da grande revolução foi Cristo, que, por sua vez, era, ter sido Cristo o primeiro iniciador da grande revolução, no
também Ele, continuador. Seja o que for que se descubra ou se sentido de que quem aperfeiçoa e realiza, se é um continuador
invente, Cristo não muda. Suas palavras não passarão, e nada em relação ao passado em que se apoia e se eleva, é sempre um
podemos fazer senão segui-Lo. Ou o homem O compreende e iniciador quanto ao novo trajeto evolutivo que nele se inicia.
segue ou deverá renunciar a seu progresso. Cristo é um centro. Cristo é marco miliário do eterno progresso da vida, pedra-de-
Só nos resta gravitar em torno d‘Ele. Por mais que, através dos toque do pensamento humano; é, na história da civilização, o
milênios, pensadores e líderes procurem lei que resolva e regule ―pomo de discórdia‖ em torno do qual, sob a forma de ódio ou
os problemas da vida humana, ninguém encontrou nem jamais de amor, para exaltar ou destruir, se concentram os esforços an-
encontrará outra igual à lei selada com sangue na cruz. Por isso tagônicos do gênero humano. Para explicar esses fenômenos,
devemos examinar de perto o pensamento social de Cristo, por- não basta a distinção simplista em ―tipos‖ que a ciência estabe-
que esse pensamento constitui o fundamento da ―Construção‖. lece segundo as três psicopatias dominantes: sadismo, maso-
Certo dia Cristo sentiu a necessidade de expor com exatidão quismo e fetichismo. Os dois primeiros, isto é, os sádicos e os
seu pensamento aos apóstolos e às turbas, mostrando-lhes com- masoquistas, são os violentos e as vítimas, os heróis da prepo-
pletamente a sua doutrina, que, até aquele momento, apenas tência ou do sacrifício, em redor de quem se reagrupam os feti-
vagamente poderia penetrar-lhes na mente. Então, Cristo expôs chistas, quer dizer, os neutros que, em face do dinamismo, fun-
a síntese de seu programa no Sermão da Montanha. Não pode- cionam como massa, vivem de motivos alheios e representa-
mos fazer outra coisa senão citar aqui, a propósito, a bela pági- ções ideológicas, adorando ora uns ora outros. Não podemos
na da ―Vida de Jesus Cristo‖ de Ricciotti (seguimento 318): compreender Cristo se não houvermos entendido todo o meca-
―Empregando terminologia musical, o Sermão da Montanha nismo fenomênico, toda a trama do funcionamento universal,
pode comparar-se a majestosa sinfonia que, desde o primeiro todo o plano evolutivo, através de que o pensamento de Deus se
compasso e com o ataque simultâneo de todos os instrumentos, exprime, progressivamente, na realidade. O progresso do mun-
expõe com rigorosa clareza os temas fundamentais; e são os do liga-se ao progresso da ideia cristã, e todos contribuem para
temas mais inesperados, mais inauditos deste mundo, totalmen- ele; como estímulo ativo, os que a afirmam e, como desencora-
te diferentes de qualquer outro tema jamais executado por ou- jamento negativo, os que a negam; de fato, a evolução, já o dis-
tras orquestras; no entanto apresentam-se como se fossem os semos, se processa por força desse contraste e avança apoian-
temas mais espontâneos e mais naturais para ouvido bem edu- do-se nas ações e reações produzidas entre esses dois extremos,
cado. E, realmente, até à época do Sermão da Montanha, todas resultando da íntima colaboração nascida dessa luta. A fase ma-
as orquestras dos filhos do homem, embora com variações de terialista não passou de simples impulso negativo, que, ao invés
outro gênero, haviam anunciado em uníssono que, para o ho- de repelir, aspira dirigir-se para a fase espiritualista. A negação
mem, a beatitude consiste na felicidade, a saciedade depende da constitui apenas o contrário da afirmação; liga-se-lhe, não pode
saturação, o prazer é efeito da satisfação, a honra é produto da viver sem ela, dela se nutre. E, esgotado seu impulso e exaurida
estima; enquanto o Sermão, pelo contrário e desde o primeiro sua função de resistência estimulante de reação criadora, por
compasso, demonstra que, para o homem, a beatitude consiste força da lei de equilíbrio, se transforma em afirmação.
na infelicidade; a saciedade, na fome; o prazer, na insatisfação; Cristo não é apenas fenômeno religioso, moral ou social. É
a honra, na desestima, mas tudo isso tendo em vista o prêmio fenômeno biológico. Entrosa-se com a vida, sua ação penetra-a
futuro. Quem houve a sinfonia fica sem cor à exposição desses profundamente. Inclui-se em seu dinamismo como força cen-
temas, mas a orquestra, prosseguindo imperturbável, volta aos tral, funde-se na expressão fundamental da Lei, quer dizer, do
temas fundamentais, separa-os, decompõe-nos, tece variações pensamento de Deus, que nos manda evoluir e civilizar-nos.
em torno deles; em seguida, repete no clangor dos instrumentos Quanto o Sermão da Montanha, através dos séculos, caminhou
metálicos outros temas timidamente expostos pelos instrumen- ao lado do homem! Embora ainda não se tenha transformado
tos de corda, corrige-os, modifica-os, torna-os sublimes, levan- em realidade, todas as suas frases se tornaram proverbiais, to-
do-os a alturas vertiginosas; ao mesmo tempo, faz desaparece- das as suas palavras constituem pedras angulares. Na Idade
rem num fragor de sons algumas velhas ressonâncias, ecos de Média, encontrou eco no sermão de São Francisco a respeito da
longínquas orquestras, excluindo-as da sinfonia; depois, funde verdadeira alegria. Agora, a humanidade, ao findar-se o segun-
tudo numa onda de sons, que, subindo muito acima da humani- do milênio, atingiu um ponto em que o motivo de Cristo se
dade real, atinge uma humanidade não-humana e se derrama apresenta de novo para novamente ser meditado. Estamos vi-
sobre ela e sobre um mundo imaterial e divino‖. vendo novo episódio da grande batalha do espírito para con-
―Os antigos estoicos chamavam paradoxo o enunciado con- quista do progresso. O atual momento histórico, apocalíptico e
trário à opinião corrente; nesse sentido, o Sermão da Montanha doloroso, não tem outro significado. Guardadas as proporções,
é o mais amplo e mais radical paradoxo jamais dito. Nenhum o problema é substancialmente o mesmo, quer no tempo de
discurso proferido na Terra foi mais perturbador, ou melhor, Cristo, como hoje em dia: civilizar-se. Trata-se de dar ainda
mais revolucionário do que este; o que antes todos chamavam mais um passo no sentido do superamento da ferocidade e no
branco já nem recebe o nome de pardo ou escuro, mas exata- abrandamento dos costumes. O progresso caminha em direção a
mente o de preto, enquanto o preto agora se chama branco; o Deus, cujas manifestações mais elevadas são a bondade e a jus-
antigo bem passa para a categoria de mal, e o antigo mal, para a tiça. Esse é o caminho do cristianismo e o de toda a civilização.
de bem; onde antigamente o vértice se erguia altaneiro, agora A lei dos homens deve aderir cada vez mais à lei de Deus, deve
está colocada a base; onde a base se alicerçava coloca-se agora deixar transparecer sempre mais essa íntima substância. Ao
o vértice. Em face da revolução implícita no Sermão da Monta- mesmo tempo em que, evoluindo, se torna mais fino e sensível
nha, as maiores revoluções operadas pelo homem na Terra pa- e, desse modo, passa para fase mais adiantada, o homem perce-
recem infantis guerras de brinquedo...‖. be quão bárbara e feroz era a fase anterior, na qual vivia satis-
Como o mesmo autor diz mais adiante, ―o Sermão da Mon- feito no começo, e nota dissonâncias irritantes e imperfeições
tanha não quer apresentar-se como contraposição destrutiva, inaceitáveis justamente onde tudo lhe parecia perfeito e aceitá-
206 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
vel. Quando nova compreensão desponta no homem, por força senvolvida o permitir, porque justamente essa consciência é que
do processo evolutivo, nele também nasce nova insatisfação, lhes traça o limite e estabelece a proporção.
que o constrange a procurar formas mais civilizadas e harmôni- Quando Cristo viveu e morreu há dois mil anos, o mundo,
cas de vida. Dizer quais são essas formas constituiu a tarefa do preso a problemas imediatos e escravo de espetáculos de gran-
evangelho. E é exatamente a isso que também A Grande Síntese deza, de vício e de sangue, nem de leve imaginou a revolução
se propõe. O quadro da velha estrutura biológica está tornando- apocalíptica que, em longínqua e obscura província romana, se
se muito estreito para os espíritos renovadores; nele, o homem iniciava em silêncio. Ninguém imaginou que na ocasião, de fa-
se sente angustiado e se agita em meio de numerosas indaga- to, novo reino nascia na Terra e novo princípio começava a
ções, ao mesmo tempo que o passado transborda de seus velhos firmar-se. Isso mostra como os caminhos de Deus gostam de
limites. Começaremos a compreender a utilidade e a alegria que esconder-se nas formas de desenvolvimento normal (nas pará-
podem advir-nos de maior liberdade, impossível de obter senão bolas, a palavra de Deus cai e se desenvolve de modo natural,
à custa de maior sinceridade, resultante por sua vez de consci- como uma semente); como esses caminhos evitam a todo custo
ência mais profunda. O impulso dos acontecimentos de nossa o caráter maravilhoso e excepcional, que, em tais casos, deseja-
época consiste exatamente em conduzir o homem à compreen- do por nossa fantasia, constituiriam a violação mais gritante dos
são da conveniência de executar esse esforço de bondade, sem equilíbrios e harmonias de que se compõe a Lei. Os contempo-
o qual não se concebe o melhoramento da convivência social. râneos, deixando-se como sempre estar à superfície, natural-
Trata-se de tornar mais completa e espontânea a inclusão da lei mente nada perceberam do movimento profundo, percebido
de Deus na luta pela vida, isto é, da bondade na bestialidade, do apenas pelos videntes. Parece existir aí conexão, habitual na
livre convencimento na coação. Na prática, inclusive a lei do história, entre poder humano e embotamento espiritual. Os ex-
bem tinha de, no passado, revestir-se de sanções e utilizar a poentes intelectuais daquela época manifestam a incompreen-
vingança (o Deus dos exércitos e das vinganças), pois o hábito são mais completa. Coisa, de resto muito natural, pois viviam
da violência lhe era necessário para impor-se e ter eficácia. O do lado oposto da vida, no polo-matéria, enquanto o fenômeno
progresso obriga essas duras necessidades a se civilizarem, e a se processava no polo-espírito. Para o mundo daquela época, a
isso chegamos tão logo a maturidade, uma vez atingida, possa vida e os atos de Cristo se desenvolvem nas trevas e na indife-
permiti-lo sem prejuízo para o homem, isto é, quando este se rença e, quando acontece serem vistos, são mal compreendidos.
civilizou ao ponto de não ser mais preciso a força para obrigá- Até mesmo o povo de Israel, destinado a receber o Messias, es-
lo ao cumprimento da própria Lei. Só então pode a Lei abrir- pera a vinda de rei poderoso e conquistador e se considera lo-
nos os braços e o Deus da vingança tornar-se o Deus do amor. grado quando, ao contrário, se encontra em face de um reino
Isso aconteceu primeiro com Cristo e se repete agora. A Lei, nascido na humildade e no silêncio, em meio de mil obstáculos,
achando-se praticamente na necessidade de enfrentar a luta, te- com a morte ignominiosa de seu fundador. O povo ansiava por
ve de tomar necessariamente formas adaptadas a esse grau de um líder de reivindicações nacionais e de expansão material e
desenvolvimento, formas que, todavia, depois, foram tornando- não conseguia acostumar-se à ideia de que, ao contrário, se tra-
se cada vez menos adequadas aos graus mais elevados atingidos tava de renovamento mundial e de expansão espiritual. Nem
pela consciência humana. Em face desse desenvolvimento, es- um pouco dessa exterioridade clamorosa que golpeia os senti-
sas formas da Lei, para seres psiquicamente mais adiantados, dos. Nada! Na parábola se fala, isso sim, do grão de mostarda,
acabava transformando-se em escola de astúcia para evitar-lhes exatamente como exemplo de pequenez material. Aqui também
as insídias, em velado ensino da arte de fugir-lhes. A Lei, deste parece haver íntima ligação entre pequenez material e grandeza
modo, deixava de constituir, portanto, auxílio para a vida e se espiritual, e ao contrário! A incompreensão judaica atinge o
tornava uma prisão a evitar, mais um inimigo contra quem de- máximo no dia da entrada triunfal de Cristo em Jerusalém. Nes-
víamos aprender a lutar. Essa lei, quando posta em prática, era se dia, o povo, que clamava ―Hosana! Hosana!‖, pensava estar
absorvida na luta humana, reduzida a instrumento desta; assim, aclamando o fundador de um reino messiânico, mas terreno, e
acabava sendo modificada. Isso significava inverter-se-lhe a não o de um reino espiritual. Cristo permitiu e aceitou essa
função lógica, reduzindo-a a recrudescimento da luta pela vida, exaltação, que o subestimava, como testemunho de quão diver-
já de si dura. Porém, atingida determinada fase de maturação, sa era sua missão; naquele momento, os dois diferentes messia-
compreende-se que nos tornamos cruéis em nome de Deus, que nismos, o de Cristo e o da plebe, como que por acaso, se sobre-
muitos males se cometeram por causa do bem e muitos crimes puseram e coincidiram. Cristo aceitou o mal-entendido como
se praticaram em nome da verdade. Compreende-se, então, que, único testemunho possível de sua verdadeira realeza messiâni-
no passado, sob o pretexto de aplicação da justiça, o povo assis- ca, de que Ele tão pouco falava, por saber que ela não poderia
tia a exemplos de vingança e, assim, iludido pelo exemplo, se ser compreendida e admitida por parte de pessoas desejosas de
familiarizava com o espetáculo do ato sanguinário e educava- não fazê-lo. E, exatamente no ponto em que o povo acreditava
se. Compreende-se como a lei de seleção do mais forte diz res- começar o caminho do triunfo, aí Cristo já o havia percorrido e
peito a um plano biológico inferior, de que nos é lícito sair, e começava a palmilhar o da Paixão. Que exemplo de pobreza
como não constitui a única nem a última expressão das leis da aquela exaltação de Cristo, montado em pobre jumentinho,
vida. Vê-se também que estas, quando sabem manifestar-se quando a comparamos com as esplêndidas entradas triunfais
apenas sob a forma do primitivo equilíbrio-justiça da lei de tali- dos líderes vitoriosos através de todas as épocas! Ainda aqui se
ão e da força, então fazem desabrochar no indivíduo débil o as- nota a ligação entre riqueza formal e material e pobreza subs-
tuto, o traidor, o cínico, isto é, o maligno em que a força se sub- tancial e espiritual, e ao contrário! Instrutivos e invioláveis
roga. Está soando a hora de a Lei vir ao nosso encontro, dotada equilíbrios da vida, consequência da harmonia e justiça da Lei.
de maior bondade; de fato, a vida pertence a todos, e o princí- No meio de tanta incompreensão, ninguém poderia imaginar
pio da seleção do mais forte refere-se a fases evolutivas inferio- que, sob aparências tão singelas, se estivesse iniciando tão ca-
res, estando destinado a ser superado. Cada um de nós repre- tastrófica reviravolta no mundo daquela época, sob a forma de
senta uma força e, em ordenamento social mais consciente, até pacifismo, e que tão inesperado ataque se desencadeasse, diri-
mesmo uma utilidade. Ninguém, pois, deve ser esmagado, su- gindo-se de maneira imprevista contra ―fronts‖ novos e, por is-
primido, eliminado, mas compreendido e valorizado. Eis-nos so, indefesos, onde aquele mundo encontrava-se desprevenido
em pleno conceito cristão. Eis o conteúdo da Boa-Nova de e, portanto, podia ser facilmente vencido. Assim, por falta de
Cristo. Porém essa nova distribuição de bondade, liberdade e compreensão, cai a sociedade israelita, que, prisioneira da for-
felicidade só será feita na Terra se uma consciência mais de- ma, acreditou, com a condenação de Cristo, assegurar sua mais
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 207
enérgica defesa e decisiva vitória. E pensar que, para chegar a faz, pois, naturalmente, parte do sistema. O homem pode esco-
esse ponto, sua própria classe dirigente, os sumos-sacerdotes, lher, mas, escolhido este ou aquele caminho, a lógica de seu
embora sabedores que Jeová permanecia o único e inconteste percurso domina-o inteiramente.
rei de Israel – tanto que, apenas a contragosto, toleravam em Assim se compreende como, na prática, todas as vitórias
Saul o primeiro rei humano – foram os primeiros a declarar não humanas da força são instáveis e transitórias, terminando em
existir outro rei senão César, isto é, um estrangeiro pagão. As- ilusão, enquanto na realidade, por força da lei de equilíbrio, pa-
sim, enquanto caiam no chão as depenadas águias romanas, o ra descer é antes necessário subir, e quem vence prepara a pró-
princípio da cruz conquistava o próprio coração do império. pria derrota. O Sermão da Montanha expõe esses equilíbrios.
Hoje, depois de dois mil anos de luta, compreendemos a impos- Por isso Cristo aconselhou a não resistir ao maligno, mas ofere-
sibilidade de enfrentar o problema social sem levar em conside- cer-lhe a outra face, contrapondo a bondade à ofensa. Seme-
ração o humilde e simples evangelho. Sempre vivo e atual, tor- lhante concepção pareceu modificação e total reviravolta, no
na-se fundamental para quem, como nós, se proponha o pro- entanto não passa de reordenamento e retificação de ideias, fa-
blema de construir. Embora não contenha em particular tudo zendo-as finalmente coincidir não com a ilusão, mas com a rea-
quanto em A Grande Síntese se expôs através de análise cientí- lidade. Os vencedores, pois, não passam de causadores de de-
fica e demonstração racional, o evangelho nos dá sempre os re- sequilíbrio, naturalmente destinados a sucumbir, mais cedo ou
sultados finais dessa operação lógica, naquele livro decompos- mais tarde, sob os escombros do edifício por eles construído. A
tos em seus elementos. A concordância entre princípios e de- moral a que chegamos está, desse modo, nos antípodas da mo-
monstração é prova que confirma e revalida. ral do mundo. Não é, pois, com a força que podemos construir.
O evangelho pode chamar-se o livro das harmonias e dos Esse é o princípio novo. O sistema humano, uma vez que atinge
equilíbrios. A novidade e a originalidade de seus princípios re- outros objetivos, não vistos pelo homem, é falso com relação à
side exatamente na justiça e no amor, em oposição aos princí- finalidade que a si mesmo propõe, e a história o demonstra.
pios do mundo, que são, ainda hoje, força e egoísmo. A pouco Construção estável só se torna possível com o sistema evangé-
empregada mas poderosa arma do evangelho, a mesma destes lico e equilibrado da justiça. Assim, com lógica mais simples e
escritos, é a verdade simples e espontânea, que se impõe por si realista, no evangelho se resolveu o problema da guerra, do de-
mesma porque persuade, e persuade porque satisfaz. Trata-se, sequilíbrio econômico, da luta de classe, da justiça social. Não
em relação ao mundo, de substancial modificação de seus ca- pode, pois, manter-se nada do que se constitui de íntimo dese-
minhos, da conquista de novas posições biológicas, da introdu- quilíbrio, exatamente por ser desequilíbrio de forças e lhe falta-
ção de novo principio na vida. A verdadeira força não consiste, rem elementos de estabilidade. Tudo quanto nasceu de abuso
de fato, em saber subjugar para vencer, mas sim na espontânea representa desequilíbrio, isto é, sistema de forças desequilibra-
posição de equilíbrio. O evangelho, colocando-nos em face aos do e incapaz de manter-se senão à custa de desequilíbrio pro-
dois princípios, ensina-nos a vencer com as armas deste último. gressivamente maior; representa, pois, sistema que, no seu pró-
Hoje, como naquela época, estamos diante do mesmo proble- prio princípio, carrega o germe de sua ruína. Por isso o homem
ma: a força não convence, a força não resolve, a força não ven- é tão ávido de energias, único meio capaz de sustentá-lo; mas,
ce. Dada a estrutura de nosso universo, fato objetivo que somos por mais esforços que faça, a lei de equilíbrio o assedia e se lhe
obrigados a admitir e não podemos alterar, o emprego da força contrapõe, para reconduzi-lo à posição exata, em correspondên-
significa o inicio de uma série de violências, impossível de con- cia com sua real função biológica. Já falamos disso tudo à pro-
trolar senão por meio de violências maiores, que não se acal- pósito da lei do merecimento, a que retornaremos mais tarde,
mam senão destruindo o inimigo. A premissa desse sistema é o examinando-a de ângulo individualista, relacionado com o pró-
egoísmo; o método é a expansão desordenada e semeadora de prio destino. Essas considerações escaparam a muitos líderes e
desequilíbrios no ambiente; a conclusão é o estado de ruína. fundadores de impérios. Na realidade, desempenharam eles
Ora, na realidade, pensar que a expansão ilimitada de egoísmo função bem diferente da imaginada grandeza. Muitas vezes, a
seja prejudicial apenas aos demais não passa de ilusão, pois a história atinge objetivos bem diferentes dos objetivos aparentes
vida tende, imparcialmente, a equilibrar todos os egoísmos. A que o homem se propõe e que constituem simples meio de in-
realidade é, pois, intimamente regida por uma Lei, isto é, feita duzi-lo à ação. Esgotada a função e atingido o objetivo, grandes
de ordem e, por isso, reage conforme a intensidade do estímulo, e pequenos atores são rapidamente liquidados.
isto é, à desordem responde com a desordem, ao choque violen- Nesses simples princípios evangélicos reside a única solu-
to com a dor, ao egoísmo com o aniquilamento. Enfim, a des- ção honesta para os problemas sociais. A vida humana em soci-
truição do inimigo, com a qual se esperava concluir, constitui edade é campo de forças em ebulição, em contínua rivalidade e
um absurdo; em primeiro lugar porque, em um mundo onde to- luta. A inconciliabilidade de tantas posições nos induz a obser-
dos os seres coexistem e tudo é comunicante, nenhum estado de var atentamente essas diretrizes tão disparatadas. Nas relações
ruína pode isolar-se sem repercutir em tudo ao redor; em se- sociais, as forças individuais mutuamente se reconhecem, se
gundo lugar porque quem acredita que a vitória seja a solução odeiam, se amam, ligadas pela interdependência dos vasos co-
ignora que o inimigo não é apenas destrutível forma exterior, municantes, pela relação entre o ―dar‖ e o ―haver‖. Assim se
mas também vida, impulso, dinamismo, portanto indestrutível formam equilíbrios provisórios em contínua evolução. Eles se
como todas as coisas em substância. Apenas o obtuso involuído desenvolvem de acordo com determinada medida (passo), que
pode acreditar que a destruição aparente, apenas da forma, tam- permite se alojarem, nos interstícios do tempo, os aproveitado-
bém represente a destruição dessas forças imponderáveis. Elas res, os parasitas do equilíbrio, os ladrões de felicidade usurpa-
não morrem de modo nenhum e são invencíveis; acontece, po- da, pois não foi nem merecida nem ganha. Os míopes egoístas
rém, que, por força da reação, acabam sendo impelidas, para re- apressam-se a gozar, e morrem. Mas as forças por eles postas
equilibrar-se, a se moverem em sentido contrário, isto é, contra em jogo não morrem. E as gerações que morrem as deixam às
o próprio ofensor, restituindo-lhe o equivalente de sua ação, gerações que nascem, e estas devem aceitar, com o nascimento,
mas em posição inversa. O impulso, que parece caminhar em uma série de desequilíbrios ao longo dos séculos e dos milê-
direção da vitória, constitui, no entanto, verdadeira fábrica de nios. No destino coletivo, acontece com os povos o mesmo que,
inimigos, cavando um abismo diante de si mesmo; e as adesões no destino individual, sucede aos indivíduos, isto é, nossas
recebidas pelo dominador não significam convicções espontâ- obras nos acompanham a toda parte. São desequilíbrios econô-
neas e duradouras, e sim mentira, sob a qual se escondem o cál- micos, sociais, morais, políticos, psíquicos, orgânicos. As novas
culo e o interesse. A traição, logo ao primeiro sinal de fraqueza, gerações ou se reequilibram pagando; ou apenas os mantém,
208 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
suportando-os; ou aumentam-nos, arruinando ou deixando ruí- tástrofe de desproporção insuportável e permitido apenas na
na. São ódios, desajustamentos, dores; por toda parte vácuos a forma e na medida úteis às finalidades evolutivas da vida e do
preencher, equilíbrios a recompor. Nossos amados filhos paga- bem. A lei do dualismo, explicada em A Grande Síntese e por
rão por aquilo que desnecessariamente gozamos, ou gozarão nós mais adiante esmiuçada (cf. Cap. XXV: ―O dualismo fe-
das forças por nós acumuladas. Quem aceita determinada posi- nomênico universal‖), se em todas as coisas vê binômios, uni-
ção deve suportar-lhe a responsabilidade. Os recém-nascidos dades compostas de duas metades inversas e complementares,
são continuadores. Ai de nós, se já fomos impelidos no cami- mostra-nos também como todas as coisas têm o seu contrário.
nho da regressão. Então, o caminho fácil por natureza nos exi- Tal como o contraste condiciona a percepção, assim a contradi-
ge, para a volta, esforço tanto maior quanto mais nele já tiver- ção temida pelos lógicos constitui, pelo contrário, a base da vi-
mos avançado; e, quanto mais o declive aumenta e se torna pe- da e até mesmo do pensamento. O termo oposto representa o
rigoso, mais difícil é sabermos voltar atrás e nos recompormos. controle necessário, o freio inibitório, o contraimpulso proban-
Não há, então, solução possível, e o homem, na realidade, não te. A reação reforça a resistência, a oposição garante a verdade.
soube resolver essas posições senão à custa de sua ruína final. Quem conquista autoridade cria inimigos, é certo, mas apenas
Tal é, de fato, o sistema funcional da vida, e não podemos no campo em que a exerce e na medida em que a possui. Trata-
mudá-lo. Nenhuma força ou astúcia humana pode impedir que, se de compensações automáticas verificáveis em qualquer cam-
apenas determinada força se forme, lhe nasça ao lado uma força po, apenas uma força se manifesta, exatamente porque toda
contrária e inversamente proporcional. Assim que determinada unidade se constitui de uma dupla de contrários. O forte é forte;
autoridade se cria, ao mesmo tempo surge seu inimigo, do mas, quanto mais forte, mais inimigo atrai. O fraco é fraco; po-
mesmo modo que, tão logo se forma um organismo, lhe nasce o rém não cria inimigos, o inerme é benquisto. O homem desar-
parasita, seu micróbio patogênico específico. Do mesmo modo, mado atrai, o homem armado causa repulsa.
o oprimido, por força de natural lei de compensação, de gera- Muitas vezes, esses contraimpulsos se conservam em estado
ção em geração, espera através dos séculos o momento de debi- potencial, latente, à espera de condições adequadas à sua mani-
lidade do opressor. Todo indivíduo é mais ou menos uma mola festação. A vida social está repleta dessas forças, às vezes com-
comprimida e à espera de soltar-se, é um ódio em potencial ou primidas e concentradas como explosivo. E é nos momentos de
uma vítima já destinada ao sacrifício. A força atrai a revolta; o mudança de fase, de novas combinações, durante os quais, tran-
império, a revolução. Os vencidos tanto esperarão, que o desti- sitoriamente, a estabilidade dos equilíbrios precedentes se des-
no do próprio vencedor lhes trará consolo. É sua a culpa de ha- loca à procura de novos, é nesses momentos que as forças la-
ver pretendido vencer. Na história não se dá o mesmo? Todo tentes e comprimidas explodem. A evolução subentende e im-
poder atrai resistências que lhe constituem não só verificação e põe esses deslocamentos. Então, esses impulsos, que, em épo-
prova, mas também ameaça e o próprio fim. Só o amor desar- cas normais (porque equilibradas), repousavam em equilíbrio,
mado atrai e cria amigos. Di-lo o evangelho. Isto é, somos se- ao primeiro sinal de enfraquecimento de uma parte, despertam
nhores de constituir uma força e agir de acordo com ela; não e se enfurecem; de fato, com o deslocamento daquela parte e
podemos, porém, impedir o nascimento simultâneo de uma for- tendo-se presente, como em toda balança, que essas forças têm
ça contrária que a contrabalance e nos agrida. Por isso, se qui- posição relativa, elas conquistam nesse momento proporciona-
sermos resolver o problema da guerra, o único caminho é o do aumento e valor. A calma, a paz, é apenas o equilíbrio de
perdão, para resolver o problema do ódio, só há este caminho: o forças opostas que se guerreiam. Em face dessa mecânica da
amor. Eis o significado das palavras de A Grande Síntese (Cap. vida, se não a levarmos em consideração, não podemos con-
XLLI): ―Existe apenas esta defesa extrema: o desarmamento quistar nenhuma posição estável. Se apenas como fenômeno
geral‖. Afirmações simplíssimas, de lógica elementar, no entan- biológico podemos compreender o fenômeno social, o fenôme-
to difíceis de entender, e com que desastrosas consequências! no biológico, por sua vez, só pode ser entendido como fenôme-
O que não se pode perdoar ao nosso mundo racional é essa no dinâmico, isto é, como relação de forças. Para ter verdadeiro
irracionalidade de sua conduta, é esse erro basilar em seu cálcu- direito, torna-se necessário não haver pecado e abusado nesse
lo utilitário que, todavia, lhe constitui o núcleo de todos os pen- campo durante séculos. Só então, a bandeira, a roupagem, a
samentos. Contudo verifica-se que, realmente, a construção le- classe que o representa poderá dizer: esse direito me pertence.
vantada por Cristo, usando como força a simples verdade de- Do contrário, assistiremos a interminável sucessão de bandei-
sarmada, supera em tamanho e duração muitas construções. ras, de classes dominantes e dominadas, pois todos pecaram por
Como assim? Sabedoria do engenheiro que traçou o plano bem excesso. O segredo da estabilidade de uma posição é não ali-
equilibrado da construção. Sozinha, a força não pode fazer o mentar, ao seu lado, o contraimpulso compensador e destrutivo;
mesmo, pois não possui essas qualidades. Apenas o que se edi- é cercarmo-nos não de força, nem de ódio, mas de benevolência
fica sobre a verdade consegue crescer em extensão e profundi- e fé. Não há, pois, outro caminho: ou, de acordo com o sistema
dade, pois está solidamente plantado no campo de forças da vi- evangélico, abandonar a força, ou saber mantê-la sempre em
da. Mas observemos o fenômeno mais um pouco. Assim que, condições de defender-nos. Como, porém, não representa o
no dinamismo universal, uma corrente se caracteriza, isto é, tão equilíbrio espontâneo da Lei e deve lutar para manter-se, essa
logo uma força, isolando-se e individuando-se, manifesta-se, força, com o tempo, se gasta e esgota e não pode resistir por
logo se determina no próprio dinamismo universal, por força da muito tempo. Não nos resta senão nos prepararmos para passar
lei de equilíbrio, uma corrente contrária; esta, então, isolando- da parte dos vencedores para a dos vencidos. Defrontamos,
se e individuando-se, torna-se evidente como força oposta a pois, este dilema: perdoar ou, se queremos dominar, irmos
contrabalançar a primeira (eis o atrativo especial das coisas pro- acostumando-nos à ideia de que, mais tarde, pagaremos por is-
ibidas, exatamente porque proibidas). De acordo com esse prin- so. Eis o dinamismo íntimo que explica, com todo o rigor da
cípio, nenhum fenômeno foge aos limites preestabelecidos e, lógica, as afirmações do Sermão da Montanha.
embora sendo contínuo movimento de evolução, não se desen- A vida tudo registra e conserva, para mais tarde reagir. Cui-
volve senão de acordo com plano traçado pela Lei. Proíbe-se dado com a semente que plantamos. Em qualquer ato, educa-
desse modo todo desenvolvimento hipertrófico e unilateral, to- mos os outros e os outros nos educam. Uma posição social im-
do excesso de desarmonia e desproporção no conjunto. Assim, portante não pode manter-se pela força, mas apenas pelo exer-
toda manifestação pode processar-se apenas se enquadrada nos cício da função; a autoridade permanecerá de pé enquanto mis-
limites assinalados pelos princípios diretores. O desenvolvi- são; a riqueza será tanto mais segura quanto mais amplas forem
mento é, pois, dirigido harmonicamente, protegido contra a ca- suas bases, isto é, quanto mais estender-se dos estreitos limites
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 209
da utilidade individual para o campo da utilidade pública. ―O problema econômico‖ e XCIII ―A distribuição da riqueza‖).
Qualquer posição, para resistir, mais do que na força deve fun- Este último já o comentamos em parte, no que diz respeito à
dar-se no merecimento, no valor intrínseco, na superioridade propriedade, no Cap. II deste volume: ―O homem involuído e a
intrínseca de tipo, nas qualidades inscritas nos instintos, apenas propriedade‖. Vejamos como o evangelho está de acordo com
lentamente formados por automatismo, por meio do método de tantas aspirações modernas e antecipa os novos ordenamentos
educação das raças animais. Tão-somente o que resiste, por ha- de nossos tempos. O advento da justiça social, grande realiza-
ver se fixado na personalidade, constitui força verdadeira, coisa ção a que o século XX aspira, o evangelho anunciou-o e prepa-
própria e, por isso, direito pessoal. Ai dos que querem vitória rou-o do modo mais substancial. Comecemos pela distribuição
esmagadora; cavam a própria sepultura. Ai dos improvisados da riqueza, o mais atual e angustioso problema, o problema prá-
distribuidores de justiça que vão além do necessário e invadem tico e básico da vida coletiva de todos os tempos. Como Cristo
o lado oposto da linha mediana do equilíbrio. Pagarão por isso. reequilibra os desajustamentos econômicos tão debatidos? A
A reação que preparam os atingirá também. A história nos mos- solução do problema da distribuição equitativa Cristo no-la dá
tra quanto é fácil e humano passar, embora com prejuízo, da sob forma substancial, completa e definitiva, porque equilibra-
parte dos revolucionários da justiça para a parte dos revolucio- da, e não sob a moderna forma de luta de classe, que não resol-
nários da injustiça. Todo excesso semeia ódio, que é contraim- ve, pois é desequilibrada. O método da luta não representa nada
pulso reprimido, conta a ser paga. Em relação a quem não pra- de novo e de resolutivo; não passa do comum e velho método
tica excessos, permanece-se espontaneamente indiferente. As- de enriquecimento por substituição. Esse método não chega a
sim, a vingança nada resolve, mas agrava o mal e, obtida a sa- solução alguma como sistema, pois se limita a substituir pesso-
tisfação, o credor passa à condição de devedor. A única solução as e classes sociais nas mesmas posições antigas. Por isso des-
verdadeira consiste na anulação do contraste, na neutralização perta profundamente o interesse de pessoas que o aproveitam,
da força, isto é, consiste no perdão. dando-lhes vantagens pessoais; não interessa, porém, ao pro-
O dinamismo da vida é corrente que capta todas as influên- gresso social, ao qual importa a estrutura orgânica da socieda-
cias, em todas as coisas vai buscar elementos formadores, assi- de, e não a utilidade pessoal, a renovação do ordenamento das
milando tudo quanto lhe age no ambiente em torno. Cada ato posições, e não as pessoas que as ocupam, a eliminação dos ve-
nosso dá e recebe, influencia e deixa-se influenciar, e tudo volta lhos erros e explorações ao invés da sua continuada repetição
às origens. Assim se explicam certos ódios instintivos, como o em proveito alheio. A moderna luta de classe não passa da ve-
votado pelo homem à cobra, ao escorpião e outros animais ve- lhíssima luta biológica, que, legitimando-se e assumindo fun-
nenosos, como o sente o empregado pelo empregador e ao con- ções de distribuidora de justiça, procura adquirir prestígio. Ve-
trário; se explicam também certos ódios de classe e de raça, cer- lho mimetismo que não subsiste em face das verdadeiras forças
tos tipos biológicos feitos de traição e de mentira. Em verdade, da vida. Isso não é equidade. A equidade, nesse caso, é apenas
para dominar, não basta vencer. Torna-se necessário, outrossim, um pretexto. O método empregado pela violência e pela prepo-
verificar que tipo biológico a ação do dominador cria. Para nós tência, no fundo, revela o mesmo abuso, fonte das costumeiras
todos, a vida constitui experiência, formação de qualidade. e infindáveis reações. E o homem, fascinado pela miragem do
Quem acredita que pode triunfar impunemente ou que o domí- bem-estar, continua acreditando na possibilidade do absurdo,
nio pela força represente ilimitado poder, não sabe que, ao con- isto é, que a usurpação possa produzir frutos estáveis e que bas-
trário, aquece no próprio peito uma raça de víboras prontas para te disfarçar a força com as vestes da justiça para obter aqueles
picá-lo e envenená-lo. Em última análise, nos ódios sociais há resultados definitivos que ela, por natureza, não pode dar. As-
sempre razão determinada, erro a ser reparado, equilíbrio a re- sim, os homens mudam, mas os erros continuam.
compor. Inútil disfarçar. A forma nada significa. Qualquer ato Apenas a equidade pode oferecer solução estável e conclu-
nosso é semente e, por isso, substancialmente se repete. Convi- siva, com a adoção de um sistema de equilíbrios, e não por
vência significa reação e educação recíprocas. O mundo hoje é meio de novas usurpações com que, em nosso proveito, acredi-
certamente um turbilhão de forças descontroladas, uma tempes- tamos corrigir as anteriores. Isso não é justiça, mas egoísmo. E
tade que a todos nos arrasta. Porém, se o reequilíbrio é difícil, quando a verdadeira justiça não se faz presente, as mesmas ra-
fatigante e remoto, isso não pode impedir que ele continue lógi- zões que hoje nos autorizam a, no domínio e bem-estar, substi-
co e necessário, como única via de salvação. tuir os seus detentores, vão amanhã autorizar que outros nos
substituam, e assim por diante. Forma-se então a muito conhe-
XX. O PENSAMENTO SOCIAL DE CRISTO cida e resistente cadeia de ações e reações intermináveis. Se
queremos chegar a alguma conclusão, essa equidade não deve
O exame crítico do fenômeno social, a observação de seus ser apenas aparente, mas substancial, nem estar somente nas
impulsos e efeitos consequentes, explica-nos e demonstra-nos formas, mas também nas almas. Noutras palavras, torna-se ne-
logicamente as afirmações do evangelho e alguns limites que cessário introduzir também no mundo econômico o conceito do
novas concepções modernas, aplicando-o sem querer, impõem equilíbrio, da ordem e da harmonia, fundamental em qualquer
ao direito, antigamente ilimitado e sem disciplina, de uso e abu- campo de forças e, por isso, inclusive na riqueza, que não passa
so, das pessoas e das coisas. A evolução social consiste exata- de caso particular. De acordo com ele, do mesmo modo que o
mente nesse contínuo e progressivo enquadramento das forças ódio só termina se lhe contrapusermos o amor, a ofensa se lhe
da vida, para, na ordem coletiva, transformá-las cada vez mais opusermos o perdão, e a violência se lhe antepusermos a paci-
em concerto de harmonias, em vez de desencadeamento de vi- ência, assim também o desajustamento e a luta não findam se-
tórias e violências. Nesse campo, o pensamento social de Cristo não contrapondo-lhes a verdadeira equidade e justiça.
antecipou de dois mil anos as tendências atuais e indicou tudo Cristo não diz aos pobres: rebelai-vos. O sistema é radical-
quanto, socialmente falando, apenas hoje começamos a com- mente diferente do sistema do mundo. Todavia, a este, que não
preender. Tais concordâncias corroboram estas nossas explica- compreende coisa alguma senão à luz crepuscular da vitória-
ções, concordâncias, aliás, bem naturais, porque o princípio da derrota, ele dá a entender que não vê no pobre um derrotado. Se
vida é um só e, na verdade, não pode mudar, embora expresso, não diz: ―rebelai-vos‖, muito menos diz: ―sofrei passivamente‖.
ontem, hoje e amanhã, sob forma científica, religiosa ou social. Diz, pelo contrário: ―Vós, vítimas da injustiça, tolerai, tende
Nas páginas precedentes, desenvolvemos o Cap. XCI de A paciência‖. Por que isso? É o que nos perguntamos. Como
Grande Síntese (―A lei social do evangelho‖). Acrescentemos sempre, a filosofia de Cristo se completa num mundo ultrater-
agora algumas observações aos dois capítulos seguintes (XCII – reno, na íntima realidade das coisas, em que se completa e justi-
210 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
fica toda aparência percebida por nós. A razão, diz-nos Ele, re- afortunados e, com relação a eles, mudando completamente o
side em que a injustiça que vos oprime é apenas humana e, por tom do Sermão, mostra-lhes sua própria miséria, não lhes con-
isso, temporária, presa tão-somente a esta vida na Terra, não cede nem salvação nem trégua, indicando-lhes as graves obri-
passa de pequena injustiça secundária, incapaz de violar, como gações inerentes à sua posição e ameaçando-os com as conse-
de fato não viola, a bem maior justiça divina, que transforma o quências de seu inadimplemento. Desse modo, lógica e natu-
oprimido em credor. Ficai, pois, tranquilos, se ainda hoje so- ralmente, sem novos excessos e novas desordens, o mundo
freis injustamente, como pode parecer-vos. Deus é justo, e a in- econômico se reequilibra completamente, confiando a solução
justiça do momento será compensada, reequilibrada; vosso di- do problema não a sistemas sociais exteriores e coativos, mas
reito é verdadeiramente justo, vossa consciência não se engana ao simples, real e espontâneo funcionamento das forças íntimas
e será ouvida. O sistema do universo é perfeito, lógico, equili- da vida. E, logicamente, o reordenamento começa no indivíduo
brado, absolutamente estável. Mas o tipo normal, isto é, o invo- e em sua íntima convicção, ao invés de na coletividade e na co-
luído não sabe enxergar tão longe e leva essas promessas em ação; começa no ato generoso de dar, e não no de tomar, que é
brincadeira. Culpa de sua miopia. furto e violência. Só o ―dar‖ livre e convicto reequilibra e sane-
A nova afirmação irrompe gritante no início do Sermão da ia, o ―tirar‖ não; só mudando, antes de nada mais, as diretrizes
Montanha, enunciando-lhe de um só golpe os temas fundamen- psicológicas do caso particular, conseguimos estável transfor-
tais. Em suas antíteses percebe-se a inversão das posições, o jo- mação coletiva. Os sistemas do mundo de hoje são muito varia-
go das forças opostas, o dualismo do binômio de que esses ar- dos e, se correspondem a forte necessidade de justiça e expri-
gumentos constituem os extremos e servem ao equilíbrio das mem a tendência da evolução social na fase presente, estão
forças. Eis o texto (Lucas, Cap. 6): muito longe de possuir os requisitos necessários para poder ins-
―...Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o rei- taurar a sério a justiça social. Partindo da injustiça, da violên-
no de Deus. cia, não podemos chegar à justiça, mas apenas a nova injustiça.
―...Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, porque Existe, pois, outra economia política, não baseada no ―do ut
sereis fartos. des‖ das trocas do ―homo economicus‖ ou no princípio hedo-
―...Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque ha- nístico, mas assentada nos equilíbrios das forças em ação no
veis de rir. funcionamento da vida. Essa é a economia do evangelho. Se, de
―...Mas ai de vós, ricos! porque já tendes a vossa conso- simples relação de egoísmos humanos, a base da economia pas-
lação. sar a relação muito mais vasta, de impulsos biológicos, conse-
―...Ai de vós, que estais fartos! porque tereis fome. Ai de guem-se resultados imensamente maiores, tanto na profundida-
vós que agora rides! porque lamentareis e chorareis‖. de quanto na excelência e estabilidade.
O problema resolve-se através das beatitudes. Quer dizer, os Observemos agora o pensamento de Cristo em relação à
pobres, os famintos, os atribulados, além de fraternalmente las- propriedade. Ele não enfrenta e resolve os problemas sociais
timados e reconfortados com o reconhecimento ao seu direito isoladamente, como muitas vezes fazemos, mas enquadrando-
de serem compensados, são considerados incontestavelmente os em soluções mais vastas e profundas e, por isso mesmo,
bem-aventurados, isto é, vencedores, afortunados; por outro la- mais completas. O preceito ―ama o teu próximo como a ti
do, os que o mundo inveja como vencedores são tidos na conta mesmo‖ contém e resolve implicitamente todos os problemas
de vencidos, de desgraçados. Esse é o juízo de Deus, que se co- sociais. Esse enquadramento, se copia a amplitude dos direitos
loca no lugar do juízo humano. É assim que Deus julga. Por is- da jurisprudência romana, coordena-os no plano social e freia o
so, ó pobres, não vos arrogueis o direito, que só a Ele pertence, individualismo em beneficio do coletivismo, traçando precisa-
de fazer justiça. E justiça já vos foi feita. Querendo alcançá-la mente a tendência dos tempos modernos. Já existe, estabelecido
por vós mesmos, violentamente, perturbais o equilíbrio já exis- no evangelho, um princípio que se manifestará mais tarde, com
tente. Tendes razão, mas ides colocar-vos ao lado do erro; das um lento movimento na forma de cerco do arbítrio, da liberdade
culminâncias dos vencedores vos precipitais na miséria dos incontrolada, do abuso, movimento que, iniciando-se com o
vencidos; da harmonia dos planos divinos ides mergulhar no Cristo, continuou e continuará até à sua completa realização.
marasmo das baixas competições humanas. Perante Deus, já Assim, o absolutismo do poder público e da propriedade priva-
tendes razão. Bem-aventurados sois. Que mais podeis desejar? da se substituem por formas mais suaves e equilibradas. O ―jus
Se não esperardes que a justiça venha de Deus, mas de vossa utendi et abutendi‘43 dos pagãos, egoisticamente ilimitado, raci-
violência e de vossa revolta, então passareis da parte dos credo- onalmente sofre cada dia maiores restrições em favor ao reco-
res para o lado dos devedores. Não tenteis legitimar vosso rou- nhecimento da utilidade pública, conceito que é conquista mo-
bo, dizendo que a propriedade é um roubo. De acordo com es- derna na concepção orgânica do Estado. Mas o evangelho, com
ses argumentos, que coisa seria vossa propriedade atual? Não dois mil anos de adiantamento, avançara muitíssimo, fazendo,
vedes, porém, que exatamente o vosso furto presente legitima o por motivos de utilidade pública, pesar como limitação sobre a
furto passado e estais no mesmo plano e imitais exatamente propriedade até mesmo a pobreza do próximo, de que não é lí-
aqueles a quem acusais? Por que razão apenas o vosso furto se cito desinteressarmo-nos. O conceito de utilidade pública es-
justificaria, mas o dos outros não? E vós, improvisados distri- tende-se assim até abranger, além dos interesses do Estado e da
buidores da justiça, é essa a justiça que distribuís? Não. À filo- coletividade, também os interesses do indivíduo infeliz; chega,
sofia do interesse falta lógica; quando pretendeis passar por jus- assim, a conquistar conteúdo biológico protetor, assume o cará-
tos, mentis. Não. Jamais é lícito roubar, nem mesmo dos la- ter de função conservadora da vida, torna-se expressão de leis e
drões, como facilmente acreditamos. Então, ao invés de justi- forças universais. Que sentido e alcance diferentes agora tem o
ceiros, também sois ladrões e pagareis por isso. A culpa é mal programa de igualdade econômica, isto é, o que visa à defesa
infinitamente maior do que a pobreza. Antes de mais nada, me- do direito fundamental de todos à vida!
recei, pois, sem merecerdes, nada podereis possuir com segu- Desse modo, o interesse coletivo não se detém e, com utili-
rança e, por isso, gozar (cf. Cap. VI deste volume: ―A lei da dade geral, se avantaja sobre o interesse egoístico do indiví-
honestidade e do merecimento‖). duo. A propriedade privada subsiste, cada vez menos como
Assim, esclarecidos e confortados os pobres, depois de, co- império arbitrário e cada vez mais como função social disci-
locando-os num pedestal de grandeza, havê-los protegido con- plinada, como serviço público. Mas exatamente o fato de as
tra os juízos humanos, depois de exortá-los a conservar a van-
43
tagem dessa preciosa posição, Cristo dirige-se aos ricos, aos Direito de usar e abusar. (N. da E.)
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 211
bases da propriedade privada se espraiarem na coletividade é a tado moderno; porém, neste livro, também se afirma que, sem a
sua completamente nova garantia de solidez, que antes, com a concomitante maturação íntima do indivíduo, esses sistemas
alternância de abusos e reações, ela não podia possuir. Quem exteriores e coativos, por isso desequilibrados, podem, abando-
jamais pensaria em atacar riqueza e propriedade de que todos nados a si mesmo, reduzir-se a asfixia, mentira, reação, instabi-
tiram vantagem? O peso dessas limitações se compensa, em lidade. Nada consegue durar, se não conseguirmos também per-
face dos equilíbrios da vida, com a estabilidade e o sossego; o suadir e educar. O indivíduo, se não for persuadido, embora so-
não esquecer o próximo, para o rico, se transforma em força fra e obedeça, poderá refugiar-se na inviolável liberdade do es-
protetora; o sacrifício aparente fica bem pago com nova garan- pírito. Todos os sistemas humanos fundados na coação natu-
tia de gozo. Assim, essa cessão à utilidade coletiva reduz-se à ralmente produzem, ao contrário, as reações já descritas. Torna-
vantagem que recai também sobre o particular. O pensamento se necessário, quando nos dispomos a construir, levar em conta,
evangélico caminha muito à frente das incompletas reformas não só no campo moral como também no social e utilitário,
modernas, fazendo do rico não mais simples proprietário, que aqueles equilíbrios de forças que o evangelho demonstra co-
trabalha em proveito próprio, mas administrador em proveito nhecer profundamente. Se não for assim, o método humano fi-
alheio. E o evangelho não chega a soluções tão radicais através cará na situação de retardatário relativamente ao de Cristo e
de sistemas distributivos artificiais e coativos, mas através do quem praticar este último, representativo de superamento da
individualismo mais completo e livre. Cristo não apela para as força, se tornará independente de tudo quanto dela se origina. A
coações estatais, mas se dirige tão-somente à convicção da ín- estratégia cristã, baseada na verdade e na justiça, pertence a um
tima maturação pessoal e ao irresistível funcionamento das leis plano superior ao plano humano da força e do império, por isso
vitais. No evangelho a palavra ―verdade‖ suprime e substitui a é mais poderosa e vence o combate travado entre os dois pla-
palavra ―sanção‖. O grande abismo entre os dois sistemas, o nos, como acontece na luta entre involuído e evoluído. Assim,
evangélico e o coletivista moderno, é o mesmo que vai de os exércitos mostraram-se impotentes para defender Roma, en-
substância a forma. O primeiro emprega a paz, é equilibrado e quanto a cristandade, desarmada, se colocou a postos e venceu.
resiste; o segundo utiliza a guerra, é desequilibrado e não resis-
te. Em todo o sistema de Cristo não se fala em guerra e, por is- XXI. CRISTO PERANTE ROMA
so, sendo equilibrado, é solidíssimo. O princípio dissolvente,
que prega a desordem e a luta, foi dele completamente excluí- Não podemos compreender bem a revolução social iniciada
do, como terrível força desagregadora, que, antes de tudo, deve por Cristo e em seguida continuada lentamente através dos sé-
ser a qualquer custo mantida bem longe, se quisermos constru- culos, até ao decisivo e atual momento histórico, senão compa-
ir com solidez. Por essa razão toda agressão, toda violência, rando rigorosamente a psicologia da romanidade imperial com
todo ódio e todo choque, seja qual for a finalidade, deve sem- a do programa evangélico. O problema continua atual, porque o
pre ser considerado como absolutamente negativo, destruidor choque das forças contrárias é idêntico hoje em dia e o mundo
e, por isso, antissocial. O verdadeiro inimigo, que impede a so- se encontra nas mesmas condições; as duas concepções estão
lução de todo problema coletivo, está dentro de nós mesmos, nitidamente em luta. Observemos a estrutura da concepção so-
em nossos sistemas, nascidos de nossos instintos, em nossa po- cial romana, para em seguida verificar como o cristianismo, de-
sição de desequilibrados, no caminho que seguimos para re- sarmado, desfecharia o assalto exatamente às bases dos princí-
solvê-lo. As leis da vida são o que são. Não há outro caminho: pios que regiam toda a estrutura do império e, justamente por
ou as cumprimos e gozamos de suas vantagens ou nos descu- ser fase biológica mais evoluída, o poderia pacificamente supe-
ramos delas e sofremos as consequências. rar e vencer. O choque se dá, essencialmente, entre força e jus-
Daí se vê como a luta de classe constitui o meio menos ade- tiça, entre duas diferentes estratégias, que não combatem no
quado a esse objetivo. Menos danoso é o sistema de coação es- mesmo plano nem com as mesmas armas e falam línguas mutu-
tatal. O único sistema perfeito é o socialismo convicto e espon- amente incompreensíveis. Cristo e Roma estão face a face.
tâneo de Cristo, que não agrava a situação, pondo em choque os Simbolizam dois sistemas, vivos ainda hoje, ainda hoje face a
interesses egoístas, mas começa pela afirmação e tomada de face, e o problema continua atual. O estudo do dinamismo ín-
consciência da unidade espiritual; que não parte, como o socia- timo, já explicado, dos dois mundos, representados respectiva-
lismo humano, dos direitos e da luta, mas dos deveres e da paz. mente por Cristo e Roma, nos demonstrará sob forma racional o
Não se nega, por isso, a dura necessidade dos sistemas huma- significado íntimo desse choque.
nos, pois parece que, sem coação, nada se possa conseguir de O império romano representava a máxima realização da
involuídos; verifica-se tão-somente constituírem eles péssimo força, plenamente triunfante. O direito romano é, sem dúvida,
sucedâneo, de que nada de bom e conclusivo se pode esperar poderosa criação de gênio coordenador, admirável monumento
senão na percentagem do produto genuíno nele contida. O obje- de disciplina e organização, porém permanece sempre ao nível
tivo é sempre a justiça social; os métodos para consegui-lo é da força. Na violência mergulham as raízes do direito, que, ao
que diferem. Porém, aí onde predomina a intervenção do Esta- invés de quebrá-la, condenando-a, intervém para discipliná-la.
do, e ninguém pode desconhecer-lhe a necessidade e a utilida- É sem dúvida um passo à frente, indispensável primeira tenta-
de, torna-se necessário não esquecer o individualismo cristão, tiva no sentido de domesticá-la e reabsorvê-la; mas o princípio,
de raízes profundamente mergulhadas nas leis da vida e apto a tão distante do evangélico, é baixo, biologicamente adequado
suavizar, contrabalançar e completar o trabalho do outro siste- apenas ao tipo involuído, cuja inferioridade já examinamos. O
ma. De fato, individualismo e coletivismo são apenas os dois direito romano não se rebela contra esse princípio, mas o acei-
extremos do mesmo problema social e dois modos de resolvê- ta e, contentando-se com dignificá-lo, intervém para aprovar,
lo, que não se podem reciprocamente ignorar; são, como ho- tornar válido e legalizar o fato consumado. Da maturação evo-
mem e mulher, dois termos inversos e complementares, e a so- lutiva daqueles tempos não se poderia exigir mais. O Império
ciedade pode desenvolver-se apenas à custa do concurso e da nada mais era senão o método mais aguerrido, orgânico e legí-
colaboração harmônica de ambos. De fato, ninguém é mais co- timo de dominação. Mas fez-se tudo quanto a evolução bioló-
letivista que o individualista cristão; em nenhum programa há gica do tipo majoritário permitia. Por isso permanece de pé,
tanto coletivismo como no programa social de Cristo. Por isso é embora em sentido relativo ao momento histórico, a indiscutí-
mais fácil chegar ao coletivismo verdadeiro através do indivi- vel grandeza do Império e a função social de suas criações ju-
dualismo que do próprio coletivismo. Ninguém discute a im- rídicas. Os romanos, sem dúvida, introduziram ordem na força,
portância construtiva do senso orgânico representado pelo Es- que, assim, de impulso desagregador, se viu constrangida a
212 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
tornar-se instrumento de construção social. Comparado com a nível de Roma, não compete com o poder, não o trata de igual
indisciplinada violência do selvagem, esse fato constituiu sem para igual; obedece-lhe por dever, mais como homenagem ao
dúvida grande progresso. As províncias anexadas foram, de- próprio dever, isto é, ao valor dessa figura moral, do que ao
certo, exploradas, esmagadas, submetidas a servidão e a paga- poder considerado em si mesmo, quer dizer, à superioridade do
mento de tributos com que se alimentava o tesouro de Roma, domínio alheio. Seu respeito é mais pelo princípio do que pelo
mas foram também incorporadas ao grande organismo, gover- homem, que vale o que vale. Dá, pois, ao poder tudo quanto
nadas e, por isso, impregnadas do conceito, para elas superior, lhe diz respeito, como se tratasse de criança a quem não se ti-
de organicidade central que Roma lhes transmitia. A grandeza ram os brinquedos, tão pequeno valor se atribui ao que ele de
imperial se impôs, fora de dúvida, como mão de ferro sobre o fato é e reclama. Em substância, a atitude de Cristo perante a
mundo daqueles dias; não havia, porém, outro modo de civili- autoridade do mundo é a de respeitoso e dignificante desprezo,
zá-lo. Por isso, tudo estava biologicamente proporcionado, cor- porque, em relação ao céu, são desprezíveis o mundo e tudo
respondendo às necessidades da época. quanto lhe pertence. Realmente, Ele despreza a realeza terrena
Contudo o vício originário de que resultava toda a estrutura oferecida pelas turbas, sentindo-se rei, mas de reino bem dife-
do sistema, embora justificado e até mesmo enobrecido, cons- rente. Sua atitude em relação às autoridades constituídas não
tituía permanente acusação movida à romanidade, comparado poderia consistir na costumeira atitude humana, que, filha da
com os métodos mais evoluídos enunciados pelo evangelho. O força, não passa de servilismo ou, então, de rebelde tentativa
fato de Roma, máxima potência jurídica, ter sido a mãe do di- de subverter as posições, para, em seguida, ocupá-las; sua ati-
reito, jamais pôde impedir que suas raízes se embebessem no tude, muito ao contrário, porque deriva de princípio mais ele-
espírito de dominação e nas violentas conquistas da guerra. A vado, é naturalmente superior e quase de indiferença. Os gran-
mancha era considerar-se, mais tarde, plena e legítima a pro- des valores não residem lá onde o homem pensa, e os valores
priedade filha do furto, obtida apenas com o emprego da força. humanos não merecem tanta atenção. Considerados em si
Esse reconhecimento oficial do direito do mais forte, essa ade- mesmos, causam-nos mais piedade que inveja, se não contive-
são incondicional a esse principio moralmente inferior, revela rem mais elevado conteúdo moral de função e missão. Assim,
o baixo nível espiritual daquele povo e constitui acusação con- a posição de Cristo em relação a tudo quanto é tido no maior
tra ele. Acusação de egoísmo que, num mundo de civilização apreço como afirmação do homem da força, é negativa, de res-
mais adiantada, não lhe daria o direito de tornar-se nação se- peitosa abstenção, tão longe deste mundo estão os maiores te-
nhora das gentes. A força transformada em justiça, eis as bases souros da vida, tão diferente da posição em que se crê é a rea-
do Império Romano. O estudo que fizemos do valor da força lidade íntima das coisas, tão repleto de poder e riqueza está o
do dinamismo dos fenômenos sociais nos mostra as razões da outro reino, o do céu. Eis como o espiritual e o temporal se to-
queda daquele Império e de sua substituição pelo cristianismo; cam, sem que, porém, um invada o campo do outro. Tudo
mostra-nos que a violência gera contra seu autor reações ini- quanto Cristo tem em grande apreço é desprezado pelo mundo;
migas e destrutivas. Assim o cristianismo, representando prin- Cristo despreza tudo quanto pelo mundo é tido em grande con-
cípio mais elevado, tinha o direito de viver no lugar do antigo sideração. Que pôde o império de Roma contra Ele? A lei filha
princípio, que, encontrando-se com suas funções já esgotadas, da força não possuí outra arma senão a força; poderá constran-
ficou sepultado nas próprias ruínas por ele buscadas. Conceitos gê-Lo, Ele, porém continua livre no espírito. E, ameaçado por
esses ainda incompreensíveis para os romanos. O evangelho Pilatos, autoridade humana, responde-lhe que o poder vem do
estava acima de sua compreensão. alto, e não somente de baixo, quer dizer, é bem diferente do
A antiga Roma é grande, mas apenas no plano humano. Seu simples resultado de uma conquista, do exercício do império
gênio conquistador é grande. Para criar e aumentar sua riqueza, pelo vencedor, do arbítrio ou de simples vantagem. É, pelo
Roma guerreou contra o mundo durante sete séculos. Acumula, contrário, função social enquadrada em uma hierarquia de for-
depois se entrega aos prazeres e cai vítima de seu poder, é traí- ças e funções em direção a Deus; é comando em favor da obe-
da pela mesma riqueza em que acreditou. Erros no sistema, des- diência; consiste em dominar para servir, em impor-se, mas
truídos com poucas palavras de Cristo no Sermão da Montanha. sob a orientação de princípio e apenas enquanto em relação
Mas os positivistas da Antiguidade não O entenderam e foram com ele; constitui, pois, missão, dever, cumprimento da lei de
vítimas disso; para eles, tal filosofia era superestrutura refinada, Deus, a quem todos nós devemos prestar contas. Todo o siste-
vã e fictícia, sem ligação com a vida; não passava de discussão ma da força, sobre o qual Roma se ergue, acaba sendo tragado,
acadêmica, não interessada em modificar-lhe as bases, que naufragando aos pés desse sistema derivado de princípios tão
permaneciam firmes e significavam dominar. Meio a empregar: diferentes. Ao afastar a pedra do sepulcro, o Ressurrecto aba-
a conquista guerreira. Resultado: o solo provincial, propriedade lou até os alicerces o mundo que o circundava.
de Roma, os tributos pagos por aquelas terras ao proprietário. A força constituía a base do império. Cristo a substituiu pela
Os povos dominados são constituídos principalmente de venci- justiça. O egoísmo e o interesse dominavam em Roma; Cristo
dos, sujeitos a contribuição, escorchados pelo fisco, ajoelhados os substituiu pelo amor fraterno. Há vinte séculos já se anunci-
aos pés da ―Urbs‖ administradora da justiça. O resto, o menos ou e teve início a atuação desses novos ordenamentos sociais,
importante, não interessa e, por isso, é magnanimamente dado de que hoje o mundo tenta aproximar-se de novo. E, enquanto
como presente, mas o poder judiciário supremo permanece em Roma fazia funcionar o plano da organicidade social, Cristo
mãos do magistrado vindo de Roma. iniciava o da justiça social, que ainda hoje provoca tanta luta.
Essa a situação com a qual Cristo se defrontou, esse o sis- Perante exército fundado na força, Ele vence com exército de
tema enfrentado por Ele, sistema de função histórica já esgota- pacíficos mártires. O sistema desarmado, porém mais elevado,
da e próximo do aniquilamento. Ele compreendeu Roma; Ro- vence ao sistema armado, porém menos evoluído. A estupefa-
ma, porém, não O entendeu. Ninguém, ou quase ninguém, no- ciente e incrível subversão dos valores torna-se realidade. A lei
tou Sua presença, que, no entanto, representava o futuro, o de Deus substitui a dos homens, e os vencedores deixam de ser
único futuro possível. Cristo se ergue diante de Roma e inau- os mais fortes, juridicamente organizados, para serem os justos,
gura diferente sistema fundamental, que, sendo de outra natu- os oprimidos, os vencidos, isto é, os credores, segundo o enten-
reza e pertencente a nova fase biológica, ataca o outro nas pró- dimento da Lei. Cristo proclama outras vitórias e exalta outro
prias origens e o vence. Cristo coloca-se em plano mais eleva- tipo de vencedor. O cidadão romano não podia entender nada
do e é dele que olha todas as coisas. Ele, embora impregnado disso. A solidariedade social não mais é garantida nem pelo di-
de dignificante respeito pela autoridade, não desce jamais ao reito, com a disciplina da força, nem pelos institutos jurídicos
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 213
coordenadores, e sim pela reciprocidade do dever e do amor, a da substituição de pessoas, mantendo-se as mesmas posições;
que livremente aderimos. Para o cidadão romano, essa nova e mas revolução à base de equilíbrios, de substância, de sanea-
convicta liberdade era anarquia; o superamento, absenteísmo; a mento, lenta, mas de posição estável, colocada organicamente
paciência, vileza; a obediência, debilidade; o sofrimento, derro- no dinamismo da Lei e da evolução, feita para durar, como
ta. Tão grande diferença impossibilitava a compreensão. A vem durando através dos séculos. E, assim, o império que ven-
conceituação do direito é atingida em cheio e abalada em seus cera as batalhas da força perde a batalha sem armas.
próprios fundamentos. O direito não é mais filho da força, o re- Observemos ainda mais de perto o encontro entre os dois
sultado de conquista, concessão ou pacto. O novo direito pres- princípios, na pessoa de seus representantes: Cristo e Pilatos.
cinde da força e, por constituir-se essencialmente de justiça, é Este, homem interesseiro, vil e insignificante, passou à história
até mesmo contrário à própria força. Baseia-se em princípio apenas porque se encontrou com Cristo, de quem não entendeu
completamente diverso do jurídico romano, participa de outro coisa alguma. O representante oficial do império de Roma, o
sistema e de outro mundo. Não se trata mais do direito humano intérprete da lei, a autoridade que deve dar o exemplo, embora
da força, mas do superdireito do merecimento. Não é mais o tente assumir atitude formal, é vazio por dentro e, por isso, tem
homem quem, tal como nos mercados, toma da balança e pesa o comportamento hesitante e equívoco, que deixa transparecer
―deve‖ e o ―haver‖ dos direitos e obrigações, mas são as forças esse vazio interior e a insuficiência do sistema da força e da
íntimas da vida, de acordo com o critério da lei de Deus, que forma, isoladamente considerado. É inútil querermos esconder-
distribuem ou não os bens, premiam ou castigam. Perante esse nos na vida dessa maneira e justificar-nos, como se as aparên-
superdireito substancial, o velho conceito romano torna-se va- cias tivessem força de realidade e a forma valesse como subs-
lor formal, relativo, de referência, coisa miserável, mais digno tância. A verdade interior acaba, cedo ou tarde, revelando-se
de piedade que de ser combatido. Os líderes e os imperadores também no exterior, pois as reações dependem das convicções,
são derrubados do trono e, se nele permanecem, isso acontece que, ao mesmo tempo, lhes dão nascimento e lhes servem de
apenas enquanto são instrumentos de Deus. guia. Esse homem típico de sua época e do seu mundo, não
Desse modo, toda a diretriz humana varia, o mundo não possui nenhum senso interior que o guie, e a letra da lei não
mais se conserva fechado em si mesmo nem apenas em si basta para socorrê-lo no encontro supremo. Cristo lhe fala de
mesmo vê os seus objetivos, mas se abre para o céu e nele se verdades eternas, e ele pensa no imperador Tibério e na própria
completa. Entre a ideia romana e a de Cristo vai um abismo, o carreira; é um verme que rasteja no pó, algemado aos interesses
mesmo que vai do homem ao super-homem. Para o homem pessoais, e nem de leve suspeita do significado das palavras que
que atingiu o segundo, o primeiro perde naturalmente todo va- ouve; sua alma é surda, e Cristo, percebendo-o, não lhe respon-
lor. O reino da força, habituado a enfrentar o inimigo tangível de. Apenas um argumento a comove: ser ou não ser amigo de
e concreto, não estava preparado para resistir a esse assalto ne- César. ―Se soltas este, não és amigo de César...‖ (João, 19:12).
gativo e foi vencido. Tudo isso constitui novo modo de conce- Confunde Cristo e seus acusadores na mesma raça inferior, pois
ber o mundo, nova corrente de pensamento. Ao mesmo tempo, um só direito e uma só grandeza podiam existir na sua mente:
a indiferença, grau mais baixo da desvalorização, é a roedora os do vencedor. Com a cabeça quadrada de romano e modelo
traça, íntima e invisível, que decompõe o velho mundo. As de todos os homens práticos e positivos, Pilatos não entende
coisas humanas, a vida do império, tornam-se consequências nada. Do alto de sua grandeza moral, armado de poder mais
secundárias; as bases da ação não se acham mais na Terra, o elevado e de autoridade bem diferente da autoridade moral do
centro de gravidade do universo deslocou-se, tudo gira em tor- representante da lei, Cristo perscruta-o íntima e demoradamen-
no de outro eixo e, mesmo quando é necessário ocupar-se das te, e cala. À grave, mas desprezível e distraída pergunta, atirada
coisas terrenas, tudo assume significado e função diversos. O sem o desejo de receber resposta: ―Que é a verdade?‖ (João,
mundo transforma-se por dentro, e não por fora. A grande re- 18:38), quando proposta, como o foi, por indigno cético, Cristo
volução se processa em silêncio, na intimidade das almas. Tu- responde com o silêncio. Cristo despreza até mesmo a própria
do quanto era principal e preponderante acabou subordinando- defesa, pois prefere abandonar-se à Lei e à vontade do Pai a
se a algo novo, recém-nato, que, há pouco desconhecido, se render-se às razões humanas, que constituem a arma inaceitável
tornou agora o mais importante. O velho mundo não mais en- do sistema humano de Pilatos. Cristo não desce até esse plano.
contra rebeldes a serem submetidos, e sim mártires que, perdo- Pilatos pergunta-lhe: ―Nada respondes? Vê quantas coisas testi-
ando, se deixam matar. E desnorteou-se. Como combater esse ficam contra ti‖. Mas Jesus nada mais respondeu, de maneira
inimigo? A força, desprovida de inteligência, apressa-se a fa- que Pilatos se maravilhava (Marcos 15: 4-5). Não podia conce-
zer a única coisa que sabe: destruir. Mas engana-se, porque, na ber o método de Cristo e seus objetivos sobre-humanos. Para
realidade, não destrói. Pelo contrário, reforça o inimigo, pois, ele, era absurda a psicologia do martírio. Cristo respondeu-lhe
sem dúvida, as perseguições exaltam. Mata, porém cria heróis; apenas para dizer-lhe que em verdade era rei e para colocar no
causa morticínios, mas torna-se instrumento de propagação. devido lugar a autoridade deste mundo, traçando-lhe os limites
Então, a força revela-se o desencadeamento cego que verdadei- exatos. Pilatos diz-lhe: ―Não me falas a mim? Não sabes tu que
ramente é, ignorante do jogo delicado de reações por Ele co- tenho poder para te crucificar e tenho poder para te soltar?‖.
meçado, sem de modo algum compreendê-lo e, por isso, inca- Respondeu Jesus: ―Nenhum poder terias contra mim, se de ci-
paz de furtar-se às suas consequências. O pensamento romano ma não te fosse dado‖ (João, 19:10-11). Assim, outro poder se
é apanhado por novo mecanismo, sob a forma de pensamento manifesta por detrás e acima do poder humano, transformando
inexplorado, cuja direção não pode assumir, por incompetência o árbitro vencedor em simples instrumento nas mãos de Deus.
e falta de preparação. O povo, principalmente, sem responsabi- Poderão objetar que Pilatos não era, certamente, tipo
lidade nos crimes do poder e bem próximo das fontes da vida, exemplar de magistrado romano e, por isso, não representava a
é o primeiro a receber a semente e a intuir, em sua simplicida- romanidade toda. Porém não se trata aqui apenas do caso de
de nativa, despida dos preconceitos e artifícios do saber. O po- um homem que, por baixeza, traia um sistema perfeito; trata-
vo, por instinto vital, percebe a verdade nova; o povo que sofre se, isso sim, de sistema que põe a nu os seus pontos fracos,
tem, por isso mesmo, os olhos abertos e os ouvidos atentos, pois não corresponde aos objetivos da vida e do progresso,
pois não dorme nas comodidades. Verdadeira campanha de re- quando o confiam a um homem qualquer e o fazem defrontar
absorção do ódio pelo amor, da violência pelo perdão. Não problemas mais elevados, fundamentais para a sociedade hu-
mais uma das costumeiras revoltas à base de desequilíbrios, mana. Quantas vezes, quem sabe, Pilatos não teria ouvido em
revoluções aparentes e fora de época, nem o habitual vaivém Roma as vazias e tediosas discussões de gregos filosofantes,
214 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
estabelecidas com propósito exclusivamente pecuniário, habi- dão, dizendo: Estou inocente do sangue deste justo: considerai-
tuando-se desse modo à ideia de que não se chegava a conclu- o vós. E, respondendo, todo o povo disse: O seu sangue seja
são alguma discutindo-se a respeito da verdade, conceito que, sobre nós e sobre nossos filhos‖ (Mateus, 27:24-25). Eis a figu-
em seu espírito, deveria ter adquirido o sentido negativo de va- ra ―daquele que, por vileza, foi o autor da grande recusa‖. A re-
cuidade e de mentira. Mas esse ceticismo, incapaz de levar a cusa foi grande e vil. Pilatos se convencera da inocência de
sério qualquer filosofia ou teoria, não era a forma mental de Cristo, pois o chama justo. Pergunta: ―Pois que mal fez?‖, por-
Pilatos apenas. Em sua psicologia aflora a do século, de que que percebeu a falsidade da acusação, movida apenas pelo ódio.
ele não era senão um expoente. Pela boca de Pilatos falam os ―Porque ele bem sabia que, por inveja, os principais dos sacer-
tempos, já incapazes de acreditar seja lá no que for; fala o ma- dotes o tinham entregado‖ (Marcos, 15: 10, 14). Repete: ―Não
terialismo de Roma, que os alimentava e representava. E assim acho culpa alguma neste homem‖ (Lucas, 23: 4, 22), e procura
como a Roma imperial não dispunha dos elementos necessá- libertá-lo, no entanto deixa-o caminhar para a morte. Poderia e
rios para saber compreender e levar Cristo a sério, também Pi- mesmo deveria ser juiz e administrar justiça, porém não soube
latos não o compreendeu nem o levou a sério, isto é, não se nem mesmo resistir à injustiça e transformou-se-lhe em instru-
mostrou capaz de fazer nem mais nem menos do que seu mun- mento e escravo. Todavia percebeu a injustiça e tentou evitá-la,
do sabia fazer. De um lado, Cristo; de outro, um mundo repleto mas só enquanto pôde fazê-lo sem muito trabalho e sem dano.
de incompetentes. Em Pilatos encontravam eco Roma e o seu No vão esforço de fugir à responsabilidade, Pilatos experi-
tempo. Ele era filho e produto de ambos, como o efeito que, li- mentou quatro expedientes. O primeiro foi mandá-lo de novo à
gado à causa, não pode deixar de exprimi-lo e representá-lo. presença de Herodes. O segundo, a flagelação, como simples
Não apenas substancial, mas até mesmo oficialmente, Pilatos castigo para, em seguida, pô-lo em liberdade. O terceiro, permi-
era, como magistrado, o representante do povo e do pensamen- tir ao povo escolher a libertação de Cristo ou a de Barrabás, o
to de Roma, da autoridade imperial, que de fato não o desa- ladrão e assassino. O quarto expediente, a tentativa de mover a
provou e, assim, lhe subscreveu o ato. Concordou com ele, lo- multidão à piedade, apresentando-lhe Cristo: ―Ecce homo44!‖.
go tornou-se coautora. A desonra do Gólgota não constituiu, Miseráveis contemporizações, subterfúgios vãos, imperdoável
pois, apenas erro e culpa do homem, mas também erro e culpa incerteza! O destino impunha a Pilatos que, em tão grande mo-
do sistema que fizera o homem assim e o obrigava a compor- mento, tomasse posição clara, porém este não soube fazê-lo e
tar-se desse modo. O erro continuou, de fato, por séculos e sé- calou-se para todo o sempre entre os vis e os irresolutos, ―desa-
culos e sempre com novos mártires, exatamente porque esse gradável a Deus e a seus inimigos‖.
sistema não era capaz de entender senão a autodefesa; encerra- Na realidade, Pilatos tem medo da multidão, cede às suas
do no próprio egoísmo, não sabia elevar-se a visões de conjun- intimações; a sentença que proferiu não resulta de julgamento
to tão vastas ao ponto de abrangerem a evolução do mundo. regular, é uma farsa. Entre tantos julgamentos, não houve um
Para lutar, é necessário ter afinidade e compreensão, ter al- só verdadeiro; no entanto Cristo foi reconhecido réu de morte.
go em comum que una e divida. Cristo e Pilatos representam Nesse momento, a justiça competente por direito humano não
dois mundos diferentes. Estranhos um ao outro, senhores de funciona e cala. Pilatos abdica do poder, pactua com a turba,
dois campos diversos, encontram-se por acaso, sem se haverem procura voltar as costas a essa responsabilidade que não tem a
procurado; cada qual raciocina com todo rigor lógico, mas o ra- coragem de assumir, no entanto sua obrigação era afirmar a
ciocínio de um e de outro são reciprocamente absurdos. Cristo inocência de que já se convencera, ao invés de deixar-se arras-
compreende perfeitamente ao outro e, por isso, cala. Mas, ao tar à condenação de Cristo. Serve de joguete para os juízes
contrário, a forma não compreende a substância, a força não que, conhecendo-lhe o lado fraco, o fazem decidir-se, amea-
compreende a justiça, mostra-se cega, apenas capaz de golpear çando-o da maneira mais eficaz: ―Se soltas este, não és amigo
e, assim mesmo, de golpear às cegas, sem compreensão, dando- de César‖ (João, 19:12).
se a espetáculo tão escandaloso, que demolirá sutilmente, du- Assim, a história julga os juízes e processa a autoridade
rante séculos e séculos, o principio de autoridade baseado na processante. Esse foi o exemplo do representante do poder ci-
força. O poder humano condena e, assim, em virtude de poder vil, do procurador Pilatos, modelo da justiça humana baseada
mais alto, atrai sobre si a condenação do mundo. A força, no sistema da força, símbolo do involuído amoral, expressão do
quando não guiada pelo espírito, comete enganos e fracassa; e a espírito daqueles tempos, do homem que cede às pressões hu-
justiça mais perfeita do espírito triunfará apesar da injustiça manas e permanece indiferente às superiores realidades do espí-
humana. A batalha, sintetizada naquele primeiro encontro de rito. Permaneceu ainda por vários anos no seu ofício e não pa-
Cristo e Pilatos, continuará a travar-se durante milênios, se- gou por seu crime. Mas a justiça humana ficou manchada e, há
guindo o desenvolvimento dos impulsos que ela representa. Se, vinte séculos, não sai da berlinda. Sua posição em fato histórico
no drama, Cristo e o Sinédrio estão frontalmente opostos, como de tamanha importância será como um ferrete que ainda a se-
verdadeiros antagonistas, no campo moral do bem e do mal, guirá através dos tempos. A justiça humana desonrou-se. A in-
que lutam, porém não se entendem; ao poder civil nem mesmo justiça do Gólgota constituiu injustiça da justiça e descrédito
essa honra se concede. Judas e o Sinédrio vão direto aos seus permanente do resultado dos julgamentos humanos. Esse caso
objetivos. Pilatos é uma série de contradições, incertezas, mal- tornou-se o símbolo de todas as condenações do justo, tornou-
entendidos. A própria inscrição indicativa do titulo da condena- se exemplo clássico que começou a tradição, o hábito quase, de
ção, ―Jesus Nazareno, rei dos judeus‖, não passa de mal- erros judiciários providencialmente destinados a glorificar as
entendido. A mente de Pilatos girava em redor de centro total- vítimas e transformar-se em instrumento de seu triunfo. Propa-
mente diverso. Assim, para se esquivar, procura ridicularizar. gou-se desse modo o conceito de uma justiça superior, seguida
Para livrar-se de Cristo, manda-o a Herodes. Declara duas ve- por mártires e heróis, que devem pagar tributo à formal justiça
zes: ―...não acho nele crime algum‖ (João, 19:4), e: ―...nenhum humana, simples e honesta aplicação da lei do tempo. E, assim,
crime acho nele‖ (João, 19:6). E pergunta: ―Pois que mal fez começou a ser notado na história a presença desse fenômeno
este?‖ (Lucas, 23:22). Portanto nenhuma culpa acha no acusa- necessário de contínuo superamento das ideias e das leis, com-
do, reconhece-lhe a inocência e deixa executar-se uma conde- preendendo-se sua função e dando-se o devido valor aos revol-
nação que podia e devia anular. Torna-se, desse modo, cúmpli- tados contra o antigo estado de coisas, revolta manifestada na
ce do Sinédrio, que, ao invés de promover um julgamento, tra- luta em prol de novo e mais elevado ordenamento. Em face
mava a morte já preconcebida e preordenada com propósito de-
liberado. ―Então, Pilatos, (...), lavou as mãos diante da multi- 44
Eis o homem. (N. da E.)
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 215
dessa inexorável necessidade de evoluir, o respeito pela ordem derosa do que a balança e prevalece contra ela. A espada pesa e
existente caía do plano dos valores absolutos no dos relativos. E faz a balança pender do lado de quem a maneja, conquistou pa-
os habituais rebelados contra qualquer ordem, os habituais e in- ra si e a conserva para si. Não há outra solução: evoluir, evolu-
teresseiros homens de partido, tomaram da nobre auréola dos ir, evoluir, para tornar cada vez mais leve o peso da espada, que
mártires inovadores para com ela fingirem-se mártires também sobre nossos ombros a involução atual coloca. Evoluir ao longo
e, assim protegidos, satisfazerem-se com mais facilidade. Na do caminho traçado por Cristo. A espada é a desordem perten-
Terra tudo se utiliza. Porém, no coração humano, permanece cente ao passado, a balança constitui a ordem pertencente ao fu-
sempre inapagável o vestígio da iniquidade sofrida pelo grande turo. Trata-se de reequilibrar as forças desequilibradas durante
afirmador da verdade e do fundador de novo reino na Terra, a luta. A evolução caminha da espada para a balança. Do dile-
que é promessa ainda viva e vital, mesmo depois de vinte sécu- ma não saímos: ou melhoramos nesse sentido e, por meio da
los, e constitui a única esperança no futuro. bondade e da lógica, alcançamos a verdadeira justiça, superan-
Falamos de erro judiciário. O caso de Pilatos, porém, é do a força e pacificando-nos com a não-reação ou, então, conti-
muito mais grave do que quaisquer dos erros habituais imputá- nuamos a sofrer, quem sabe quanto, as consequências do siste-
veis à imperfeição humana. Compreendeu exatamente a ino- ma em vigor. No primeiro momento, sem dúvida, todos se
cência de Cristo e, por isso, o defende, mas apenas enquanto aproveitaram do justo e pacífico seguidor do evangelho. Se, po-
pode fazê-lo sem prejudicar-se. Quando não pode, o interesse rém, a força dá vantagem imediata, a lei de justiça está inscrita
julga mais conveniente mudar de rumo. Então, Pilatos, homem no coração do homem, que, por instinto, condena a força e se
da lei, aparentemente o homem talhado para o cargo, mas no sente obrigado a eliminá-la. Inaugurar novo método no mundo
íntimo reles aproveitador, revelando o espírito egoísta de seu feroz de nossos dias é, por certo, trabalho de mártires; mas a
tempo, entrega à morte a vítima inocente. Todavia, mesmo a verdade é que, sem martírio, não se inicia civilização nova.
limitada e apenas esboçada defesa que Pilatos faz da inocência Esse o significado daquele primeiro encontro da romanida-
de Cristo funda-se em razões bem diferentes daquelas capazes de com o cristianismo, primeiro impulso de renovação biológi-
de conduzi-la valorosamente até o fim. Se Pilatos compreen- ca. Problema relativo ao passado, ao presente e ao futuro. Hoje,
deu a inocência de Cristo, considera-o simples inocente, por dois mil anos depois, a humanidade aí retorna, um pouco mais
ele defendido em vista de relações jurídicas e por motivo de madura apenas, com ânimo e estilo diversos, sem a intuição e a
direito, e não por causa de razão situada acima do direito. paixão dos mártires, mas com atitude racional, armada de ciên-
Comporta-se, desse modo, como qualquer materialista míope, cia e técnica, de planos orgânicos sociais, de vastos recursos de
que não enxerga, através da forma, a profunda realidade das enquadramento, secundada por grandes massas, mais ágeis e
coisas. Da superioridade de Cristo em relação a todo o seu unificadas. O esforço é tremendo; a tentativa, enérgica; o mo-
mundo, da transformação social, da Sua missão e do Seu pen- mento, decisivo. De duas uma: ou sobre essas bases criar nova
samento, Pilatos não entende coisa alguma. civilização e melhorar a vida ou, então, suportar durante sécu-
Não podemos, sem dúvida, dizer que Pilatos seja Roma, isto los as tristes consequências do bárbaro e atual sistema da força.
é, toda a romanidade. Mas podemos afirmar que naquele mo- Sem dúvida, o pensamento social de Cristo é elevado, mas mui-
mento e por causa de sua conduta, outro tribunal se ergueu di- to elevado mesmo. Mas, exatamente por isso, pertence ao futu-
ante do tribunal humano e lhe aplicou a indelével marca da in- ro. A vida impõe o progresso e necessita ascender. O evangelho
fâmia; tudo isso se passou por obra e com os recursos da paz e é o cume, o objetivo máximo. Quem quer que suba, porém,
da mansidão. Por isso este é também um encontro de sistemas, tende a atingir o ponto mais alto. De tempestade em tempesta-
em que o da força leva a pior e permanece condenado através de, de revolução em revolução, a humanidade não pode ir a ou-
dos séculos. A força, embora juridicamente organizada, de- tro lugar. De guerra em guerra, não pode encontrar senão a paz.
monstrou ser instrumento capaz de, abandonado a si mesmo e O pensamento de Cristo representa o ciclo biológico da huma-
sem o concurso e a orientação do espírito, constituir não auxí- nidade. Ninguém lhe escapa. É o objetivo da vida e aguarda-
lio, mas obstáculo ao progresso; um meio para estabelecimento nos. Isso constitui verdade sempre nova; o tempo passa, e ela se
não de ordem, mas de desordem. Naquele dia se fez ao mundo torna cada vez mais verdadeira e atual, porque se aproxima ca-
esta advertência: Cuidado, essa concepção é insuficiente, falta- da vez mais da realização. O evangelho é um programa. A hu-
lhe algo de essencial. Completai-a. Ela tem sua razão de ser, manidade futura será fruto de sua execução.
mas deve progredir ainda. A legalidade não basta quando repre-
senta traição nem quando, como em alguns casos, ao invés de XXII. TEMPESTADE
função que impulsiona para a frente a evolução, pode transfor-
mar-se no freio que a detém. Ao homem não satisfaz mais tal Essa rápida sucessão de conceitos, até agora expostos por
justiça, que torna possível, embora nem sempre aconteça, con- alto, aconteceu em hora trágica para o mundo e move-se sobre
denar inocente e benfeitor e libertar malfeitor. Algo protesta no o fundo apocalíptico da maior tempestade jamais conhecida
fundo da alma humana, aí onde a Lei clama por justiça. A pela história. Este livro, que é sofrimento, não poderia nascer
consciência sabe distinguir, por isso condena o poder e a auto- senão em meio à grande dor de que suporta o peso e sintetiza o
ridade capazes de trabalhar pelo que não deveriam e de causar esforço. Iniciei o escrito em fins de março de 1944 e continuei-
dano ao bem e à vida, ao invés de defendê-los. Pilatos não é o ininterruptamente até o capítulo precedente, terminado no
Roma toda, mas, sem dúvida, significa um sistema jurídico que começo de junho, quando a guerra, progredindo na Itália, em
lhe revela as insuficiências, um estado humano involuído que direção ao norte, atingiu e ultrapassou Roma. Logo depois,
lhe demonstra a cegueira. Quando o ponto de partida é a força, aconteceu na França o desembarque do Atlântico. A primeira
então a dura necessidade de defesa individual e social pesa parte do volume escrevi-a, pois, nos fins daquele inverno pleno
sempre sobre a função judicante, que pode até tornar-se seu ins- de expectativa, em que o ―front‖ italiano permaneceu estacio-
trumento, transformando-se em injustiça. Apenas Cristo atingiu nário em Cassino, e, não tendo o desembarque das Nações
a essência do problema, dizendo: ―Não julgueis‖. Quem, como Unidas em Anzio atingido proporções decisivas, em toda parte
o homem, está empenhado na luta, não pode conservar-se im- se esperava algum grande acontecimento resolutivo. No início
parcial e, por isso, não pode julgar. Onde pode encontrar-se um deste capítulo, o grande incêndio europeu reacende-se furioso
juiz sem mácula? Só em Deus, e é em Deus que o homem, insa- e o terrível rolo compressor da guerra põe-se em movimento
tisfeito com todos os demais, procura o verdadeiro juiz. Nas também na Itália, para avançar em direção ao Norte, através
mãos da justiça humana, baseada na força, a espada é mais po- das províncias do Centro, semeando também nestas o extermí-
216 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
nio. Este manuscrito, bem como a sua continuação, nele implí- caminho da vida apresentar curvas tão imprevistas e imprevisí-
cita, foram salvos graças apenas a milagre insistente e prolon- veis, que a razão fique inibida e se inutilize toda a nossa orien-
gado, isto é, por uma combinação de impulsos e movimentos tação? Não. O sábio deve conhecer todos os ataques possíveis,
de tal modo inteligentes e dotados de previsão, tão decidida- deve ter atingido filosofia completa, que encare todas as possi-
mente guiados e com tal tenacidade mantidos na mesma dire- bilidades da vida, deve ter achado uma verdade universal e sa-
ção, que justificava a presunção de estarem presentes por de- tisfatória, que lhe dê a razão de todo fato e o encaminhe à solu-
trás deles um conceito e uma vontade diretivos, excluindo a ção de todo problema. Queria e devia entender, possuir respos-
hipótese do acaso. A continuação do pensamento deste volu- tas que bem sabia não podiam ser obtidas senão por si mesmo.
me, neste ponto, é retomada nos fins de 1944, na devastada re- Há responsáveis? Quem são e onde encontrá-los nesse oceano
gião umbro-toscana, depois de passado o ciclone da guerra, is- de forças e de homens que é a sociedade? Podem os dirigentes
to é, depois de período de esforço físico e tensão nervosa ver- impor sofrimento a povos inteiros, ou será que eles não man-
dadeiramente excepcionais. Mas o espírito, sempre vigilante, dam senão na aparência e, realmente, obedecem, eles e também
tudo observara, julgara, registrara. todos os seus súditos, a leis e forças de que são apenas os expo-
Narremos agora alguns episódios da guerra, não por motivo entes? As causas, agora, são diferentes das visíveis; outra é a
de sua gravidade e importância exterior, que muitos terão expe- hierarquia dos responsáveis; todos são golpeados por outras ra-
rimentado de modo bem diferente, mas por causa do sentido in- zões internas, totalmente diversas das que se mostram externa-
terior com que foram vividos e pelo significado universal que mente. Os poderosos constituem o instrumento de outra inteli-
podem assumir, vistos assim em profundidade. Analisando, as- gência e executam planos diferentes dos seus; os verdadeiros
sim, esses casos humildes, até no seu sentido mais oculto, colo- responsáveis (quem os conhece!) apenas podem ser atingidos
camo-nos diante dos grandes problemas da vida; aprofundando pela justiça de Deus. Só Ele sabe avaliar, nós não sabemos; só
o olhar até às próprias raízes da realidade, damo-nos conta da Ele conhece a trama secreta da vida de cada um, por nós desco-
gênese dos acontecimentos. O pequeno fato individual, de su- nhecida; só Ele tem o poder, que não temos, de alcançar e gol-
perfície, adquire assim ressonâncias universais. Veremos, en- pear. A lógica do espírito nos faz procurar justiça perfeita, que
tão, aflorar no fato exterior aquela misteriosa realidade do im- não existe na Terra; onde encontrá-la? Até que ponto, caso por
ponderável, que se esconde profundamente; esse fato, mais do caso, o homem é livre e até que ponto chegam o poder e a ex-
que em sua aparência concreta, mostrar-nos-á o funcionamento tensão da fatalidade no destino? Qual o limite entre as duas zo-
dos princípios que o regem, das forças que o movimentam, isto nas e o equilíbrio entre as duas forças? São as grandes massas
é, a sua mais verdadeira realidade interior, aquela que, em todo responsáveis como massas, independentemente dos lideres, que
acontecimento, quase sempre nos escapa à observação. Assim, são responsáveis perante a Lei? São inexoravelmente arrastadas
observando profundamente, o longínquo e fugitivo imponderá- pelo determinismo histórico?
vel é trazido aos primeiros planos como figura central e, arreba- O homem pensava. Tais problemas, tão remotos para os
tado de suas misteriosas profundidades, é obrigado a revelar-se, demais, estavam-lhe muito próximos. Encontrava-se em pleno
mostrando o mecanismo da orientação interior impressa nos fa- turbilhão, a seu redor girava o ―maelstrom‖ do mundo, e o vór-
tos exteriores. Veremos, desse modo, o Deus recôndito, que se tice tentava agarrá-lo também, a fim de arrastá-lo até ao fundo,
esconde de nós no superconcebível, aproximar-se em plena luz, em suas espirais. Tinha de defender-se. Mas, para defender-se,
vivo, presente na ação. Os episódios reduzem-se aqui à sua es- necessitava compreender. Um tipo normal não teria feito es-
sência de desenvolvimento de forças cósmicas dominadas pela forço maior que o necessário à defesa superficial, contentando-
vontade da Lei e pela inteligência de seus princípios. Deus res- se com tentativa de defesa. Ele, porém, exigia de si mesmo
plandece no fundo desses contrastes violentos. O bem e o mal uma defesa profunda, seguríssima, colocada muito além da ilu-
se defrontam, eterna substância das coisas. são costumeira. Esta sua reflexão, mesmo nesse momento, não
Era de madrugada, esplêndida madrugada de junho. Por um era inútil. Sob a tensão nervosa e o esforço, em pleno desen-
atalho que subia ao longo de uma riacho apertado entre os mon- volvimento da reação ao choque recebido, seu espírito ferido
tes, um homem fugia do homem, da cidade, da civilização des- expedia centelhas e seu cérebro clarões de relâmpagos. Como
truidora. Já no limite do esforço que suas forças de pobre sexa- sua vida, assim toda a sua reação era preponderantemente psí-
genário lhe permitiam, carregava o indispensável, apanhado às quica, isto é, se dava no campo em que aquele homem mais se
pressas, ao deixar a casa. Seguia-o a mulher, também carregada desenvolvera. Restringindo o problema aos elementos mais
de coisas, e a filha com a criança no colo. No encanto da pura pessoais e urgentes, procurava saber o que teria acontecido
madrugada estival, a fuga era triste, plena de terror. Tinham si- consigo. Para sabê-lo, interrogava a própria consciência, per-
do violentamente arrancados do ninho. Sobre as casas vizinhas, guntava a si mesmo se era ou não culpado e se, por isso, devia
na cidade, aviões haviam lançado bombas, semeando a morte e ou não ser responsabilizado. A ele, conhecedor do funciona-
a ruína. Ribombos terríveis e abalo de terremoto, estilhaçar de mento das forças da vida, parecia-lhe mais útil perscrutar a ló-
vidraças e chuva de pedras; depois, por toda parte, fumaça es- gica interior dos fatos, de preferência à sua aparência exterior.
cura e densa. A morte por esmagamento e, vizinho, seu hálito Apreender os acontecimentos nas fontes, nas causas, tal era o
ardente: o terror. Desse modo fugiam, sem saber para onde, por seu método. Que queriam as forças do destino nesse momento
instinto de animal perseguido, daqueles golpes terríveis que po- crucial? Esse era o problema e não podia ser outro em universo
deriam cair-lhes sobre a cabeça. Não havia abrigos antiaéreos. não sujeito ao acaso, mas dirigido por lei justa, lógica e inteli-
Fugiam desesperadamente, no paroxismo de esforço nervoso. gente. No passado, dera por acaso nascimento a algum impulso
Tudo em redor, no campo, em todas as criaturas, na erva, na e, por isso, a reação da Lei o ameaçava agora? A verdadeira
água, no ar, o eterno sorriso de Deus esplendia imutável. ameaça residia nisso, e não na materialidade da guerra. Será
Esgotada a reação ao primeiro choque, conjurado por mo- que essas forças, por ele mesmo colocadas em seu destino, o
mentos o perigo iminente, o fugitivo sentiu despertar dentro de culpavam agora, se erguiam ameaçadoras no seu caminho e
si, ainda mais potente, o eu interior e voltou a observar e a pen- iam pedir-lhe conta do que fizera até então? Ou, quem sabe,
sar. Como a beleza da ordem divina era suave e permanecia in- era inocente, e tudo quanto lhe acontecia em torno não passava
tacta nas coisas! Apenas o homem, rebelde, tentava impor a de mero incidente de superfície, não lhe dizendo respeito? Se
destruição. Por que a guerra? Por que esses momentos trágicos? não pendia sobre sua cabeça nenhuma sanção da parte de
Que pretendia, assim de surpresa, a lógica do destino? Fora, Deus, que coisa podia temer por parte dos homens? Rebuscan-
talvez, colhido de surpresa, sem preparação alguma? Pode o do na sua consciência, procurava saber qual dentre as forças do
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 217
passado estava tentando reaparecer e que natureza e potência glória, como não acreditara no poder e na riqueza, a imensa
possuía; queria descobrir que impulso queria agora manifestar- vantagem de haver-se acostumado a sofrer e a renunciar e estar
se exteriormente, dando vazão a seu dinamismo, completando moralmente preparado. Em sua vida não houvera senão traba-
sua oscilação desde a causa até ao efeito. Não havia, porém, lho, obrigações, dor. Esta a sua bandeira, seu repto, sua força,
tempo para detidas análises. Nos momentos decisivos e terrí- sua vitória. Apegara-se a valores indestrutíveis, tornara-se indi-
veis desaba o edifício das realizações humanas, a razão se em- ferente aos golpes do mundo. Sua pobreza era a sua riqueza;
baralha, uma síntese da verdade aparece completamente nua sua nulidade, a sua grandeza; sua inocência constituía-lhe o po-
perante a consciência e a voz de Deus logo soa clara. Dali a der e a salvação. Apenas a vida séria e dura e as pesadas fadigas
pouco parou; com a rapidez do relâmpago, seu espírito intuiu da vida ascensional não lhe haviam mentido nem traído. No en-
e, nisso, ouviu uma voz interior que lhe dizia: ―Fuja; mas, vá tanto, em que situação talvez se encontrassem agora todos
para onde for, você não correrá perigo algum‖. quantos, epicuristas e materialistas, se haviam rido à sua custa,
A pobre família, já bastante afastada da cidade e do perigo, como se tratasse de um louco? O apego deles às coisas materi-
diminuiu o passo, em silêncio. O homem, que ia na frente, sem ais constituía-lhes agora a causa de grande dor. Na hora da des-
voltar-se para trás, percebia a dor e o medo dos dois seres que- truição, porém, ele já se encontrava ligado ao indestrutível. Sua
ridos que o acompanhavam. Pareceu-lhe, então, estar supor- filosofia, e não a deles, é que resistia no momento da provação.
tando nos ombros o peso de imensa cruz, o peso da dor do Que triste espetáculo de avidez, de ferocidade, de loucura, de
mundo, que quase o esmagava. Irresistível impulso levava-lhe desespero, lhe apresentava esse mundo, que só acreditara nos
o espírito a gritar ao universo: ―Sou inocente‖. Depois se sur- valores terrestres! Não. O cataclismo não o apanhava de surpre-
preendeu a pensar: ―Estranho, esse colóquio com Deus, logo sa, como a tantos. Acima de todos os sonhos de grandeza e de
nesse momento e nessas condições!‖. Depois, percebeu como vitória, ele, que já vira como a dor constitui a realidade da vida,
estava cansado e as forças o abandonavam. Então, pensou: agora verificava como a dor é também a realidade da guerra. E
―Quem defende a vida? Quem me defende? Quem está ao meu via que o mais desmoralizado de todos os mundos, sem prepa-
lado agora, no momento do perigo? O Estado, talvez?‖. Recor- ração moral para a dor, agora se encontrava diante de avalancha
dou as belas teorias que lhe foram ensinadas na escola, segui- de sofrimentos como a humanidade jamais conhecera igual.
das e acreditadas, e sorriu amargamente. Onde estava agora o Agora, podia finalmente comprovar, não desmentida mas cor-
Estado, esse ente gigantesco dos tempos presentes, todo- roborada pelos fatos, quanto era profunda a sabedoria do supe-
poderoso, que tudo exige, tudo recebe e, por outro lado, tudo ramento, através do desprezo das coisas humanas. Naquele
deveria dar? Ausente. Agora, o Estado tinha de pensar em si momento, diante de seus semelhantes, gozava da grande vanta-
mesmo e abandonava os indivíduos a seu próprio destino. As gem de haver compreendido a vida; de não haver caído no en-
construções sociais do homem estavam em ruínas; apenas não gano de suas miragens, que agora se desfaziam; de não haver
ruíam as construções divinas da vida. Esta, por suas reservas construído na areia; de não haver empregado seu esforço e in-
inesgotáveis, capacidade de adaptação e milenares experiên- vestido seu capital espiritual na obtenção de coisas efêmeras. A
cias da raça, soube estar sempre preparada para tudo, especi- quantos iludidos, pensava, não lhes vai cair a venda dos olhos,
almente nos povos que muito viveram e sofreram, pois nin- quando assistirem ao desmoronamento de todas as suas cons-
guém vive sem aprender e pessoa alguma sofre inutilmente. A truções! Ele tinha tido necessidade de desenvolver grande tra-
vida sabe muito bem passar sem a interferência do Estado. En- balho de concentração e sofrer muito para poder alcançar mun-
tão, as aquisições recentes evaporam-se e apenas permanecem do superior, e isso, aliás, sozinho, abandonado e escarnecido. O
as aquisições profundas e seculares. O homem pode fracassar, áspero caminho de sua maturação evolutiva estava juncado de
a vida não. Quando o homem se engana, a Lei, através de pro- lágrimas e sangue. Mas, agora, esse homem, tido na conta de
videncial lição de dor, o reconduz ao caminho reto da ordem, imbecil porque inimigo do desonesto arrivismo que leva ao rá-
e, assim, a vida se refaz e continua. Por ela continuamente vela pido sucesso, se achava na situação excepcional de quem con-
e a protege a Divina Providência, que constitui efetiva prote- seguira atingir mundo superior e nele encontrar a salvação pes-
ção biológica, defesa automática e poder saneador, íntima pro- soal, a mesma salvação negada aos outros, e por a salvo os seus
vidência manifestada pela sabedoria do sistema. Se, naquele tesouros, inatingíveis aí, onde a guerra não pode chegar.
momento, o Estado, providência humana, desabava, a provi- Há muito tempo ele aprendera a descrer do mundo e a viver
dência de Deus permaneceu firme. isolado. Mas, embora assim pudesse parecer, não estava só,
A riqueza, potência do mundo, teria talvez defendido esse como bem o sabia. Ninguém pode estar sozinho em nosso uni-
homem? Embora oferecesse milhões, na hora do perigo nin- verso. Jamais! A ignorância do ateu, o poder negativo do mal,
guém o ajudaria. Exatamente em momento de necessidade, o a revolta de Satanás contra a ordem reguladora de tudo não
dinheiro se tornava inútil. Se esse homem fosse um potentado, podem destruir Deus, que, não obstante a sua negação, conti-
cercado de servos e dependentes, seriam eles agora seus ini- nua a existir e a operar acima de seus assaltos. Trata-se, sem
migos mais ferozes, ocupados apenas em salvar a própria pe- dúvida, de imponderável que escapa aos grosseiros sentidos do
le. No momento decisivo, a riqueza e o poder, se ele os hou- involuído, mas nem por isso se torna menos real. Em torno da-
vesse possuído, tê-lo-iam traído; não caíra, porém, na inge- quele homem turbilhonava solene e imenso o ritmo das leis da
nuidade de acreditar no contrário. Vitor Hugo, nos primeiros vida, inteligentes, poderosas, ativas. Aquele homem solitário
capítulos de Os Miseráveis, fala, a propósito da decadência de estava imerso nessa divina atmosfera; aquele homem, aparen-
Napoleão, de marechais traidores, do senado que, depois de temente abandonado, estava próximo de Deus e, portanto, me-
havê-lo endeusado, o insultava e escarrava no antigo ídolo. E nos solitário e menos abandonado que tantos poderosos ídolos
tratava-se de Napoleão. Mas a lei, para fracos e poderosos, das multidões. O imponderável não lhe voltava as costas como
foi, é, e será sempre uma só. aos outros, mas lhe abria os braços. Ao lado daquele homem
Quem, pois, estendia a mão a esse homem, atirado à desgra- estavam o seu passado, suas obras, pois nossas obras nos se-
ça? Quem o acompanhava na fuga, ajudando-o a suportar o pe- guem, e a substância da lei de Deus, ao invés de força, é antes
so da desventura? Os amigos, os admiradores, quem o adulava de mais nada justiça, e não o contrário, como acontece no bai-
nos bons tempos? Não, ninguém. As perfumadas nuvens de in- xo mundo humano. Na hora fatal em que ruía o edifício social
censo, como fumaça inconsistente, haviam desaparecido no ar. e seus valores se subvertiam, sua defesa residia agora exata-
Vaidades humanas. Agora estava sozinho. No momento da mente em sua nulidade humana, por ele tão prezada. Em pri-
provação, verificava a imensa vantagem dele não acreditar na meiro lugar, porque a nulidade escapa mais facilmente às tem-
218 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
pestades, não lhes oferecendo superfície de resistência; em se- ximos. Em geral, as verdades humanas condicionam-se ao tem-
gundo, porque, como toda pobreza, significa principio de ino- po e ao espaço, são verdades de interesse e de partido. Trata-se
cência, crédito perante a lei de equilíbrio, direito em relação à de verdades que apenas interessam ao indivíduo ou ao grupo e,
justiça divina. Ele procurara defender-se por meio da própria por isso, mutáveis e passageiras. Estamos procurando a verdade
inocência, que encontrara em si mesmo, e não com o poder de verdadeira, que, longe de ser relativa e facciosa, tem de ser uni-
astúcia, de meios materiais ou de ajuda humana. Esta lhe pare- versal, interessar a todos os homens, estar acima do caso indivi-
cera ajuda mais poderosa que todos os auxílios humanos. Pro- dual e do interesse particular. Acima da verdade superficial,
curara a força em Deus e na consciência a resposta. Em silên- procuramos a verdade profunda, superior à simples opinião, in-
cio, gritara a sua inocência ao universo. Grito vindo do fundo dependente do espaço e do tempo, permanente, capaz de interes-
da alma, trágico e profundo, que não pode mentir. E o universo, sar a todos os homens indistintamente e válida para todos, fortes
dirigido por Deus, isto é, pela justiça, não pudera deixar de res- e fracos, poderosos e humildes, vencedores e vencidos, pois, nos
ponder, porque, do contrário, negaria a si mesmo. Invocara a maravilhosos equilíbrios da lei de Deus e no funcionamento or-
ajuda das forças ativas no seu plano espiritual, geralmente para- gânico do universo, todo ser tem lugar certo e razão de ser.
lisadas e afastadas, no plano material terreno, pela mal empre- Para quem compreendeu essa verdade, a concepção das
gada liberdade humana. Sentiu-se, então, fortalecido, levantou a coisas muda inteiramente. Quem compreendeu que a força
cabeça e, de olhar tranquilo, encarou o futuro. Ele estava no lu- humana não pode impedir a ação das forças cósmicas senão
gar que o dever lhe apontava. Isso bastava. Essa verificação in- momentaneamente e assumindo a responsabilidade pelos da-
fundiu-lhe na consciência sensação de paz e o inundou inter- nos, não diz mais: ―Ai dos fracos e dos vencidos‖, mas afirma:
namente de nova energia. O horizonte escuro tornou-se límpido ―Ai dos culpados, embora vencedores‖. O que tem valor per-
e permitiu-lhe enxergar claramente. A guerra, furacão humano, manente não é a posição material, e sim a posição moral. Exi-
não o atingia. Essa dor participava do destino dos outros, não me-nos da responsabilidade a inocência, e não a força, que, na
do seu. Aquelas armas não podiam matá-lo. Compreendeu, en- melhor das hipóteses, poderá retardar, mas nunca impedir a
tão, o sentido das palavras da voz: ―Fuja; mas, para onde quer imprescindível reação da lei de justiça. De acordo com a lei de
que você vá, estará sempre em segurança‖. A lei de Deus quer evolução, o futuro caminha em direção ao reino de Deus, que
que nossas penas sejam filhas de nossos crimes, e não da má pertence somente aos justos. O poder militar, a superioridade
vontade e prepotência alheias; quer que nosso destino apenas técnica, o dinheiro e a astúcia não podem destruir a lei de
possa ser construído por nós e só por nós. A grandeza e a justi- Deus, que participa essencialmente das coisas. Quem acredita
ça dessa Lei, naquele trágico momento, atingiram o homem que para vencer baste a força, representada por grande exérci-
com evidência tão viva, que seu terror se transformou em con- to, grandes recursos e organização dotada de férrea tenacidade,
fiança e em oração; em meio à dura provação, caiu de joelhos e não compreendeu que, no funcionamento das leis da vida, exa-
agradeceu ao Pai que está nos céus, tão pronto a amar-nos e tamente nesse apelo à força e à conquista violenta, como na
ajudar-nos, se nossa vontade espontaneamente lho permitir. guerra, reside o ponto fraco deste sistema, o qual, precisamente
Colocando-nos em face à realidade mais crua da vida, pu- por isso, traz em si mesmo o germe da própria destruição. En-
demos observar, em momento crítico, a transformação evangé- tão, o gigante de pés de barro desaba, seja qual for; o fato é
lica dos valores da terra em valores do céu e atingimos o resul- verdadeiro para quem quer que se encontre na situação de apli-
tado prático ou, mais precisamente, utilitário da invulnerabili- car essas leis, para quem quer que se encontre nessas condi-
dade e salvação, através do superamento da dor. Esse modo de ções. Não estamos expondo mera opinião, mas simplesmente
proceder pode ser incompreensível para o tipo humano normal verificando a existência de algumas leis da vida. O preceito
de nossos dias, que, quase sempre espiritualmente involuído, evangélico ―Quem com ferro fere com ferro será ferido‖ ex-
põe em jogo outras leis e outras forças e não sabe compreender prime racional e inviolável lei biológica. Não fizemos outra
aquelas que vemos aqui em plena ação. Torna-se necessária, coisa senão estender a bem mais vasto campo o princípio da
pois, esta condição: a inocência; apenas ela permite visão cla- inocência acima exposto, mas tendo sempre em vista a guerra.
ra, apenas quem a possui pode invocá-la perante Deus. Não se Em face da agitação da atividade humana, é a sabedoria dessas
trata, por certo, de inocência universal e absoluta, que nenhum leis íntimas, colocadas nas raízes dos acontecimentos, que rege
homem, enquanto homem, pode possuir. Se a houvesse alcan- todas as coisas, por isso a força mais poderosa, que vence fi-
çado, já estaria bem longe deste lugar de sofrimento. Trata-se, nalmente, é a justiça. As exceções não passam de momentâ-
isso sim, de inocência particular, relativa a determinadas cul- neos desvios, concessões mínimas à liberdade humana, que,
pas e às provações correspondentes. Mais do que isso, as ino- para aprender, deve experimentar o erro; porém, cedo ou tarde,
cências humanas não podem ser, embora mais ou menos ex- são retificadas e reconquistadas através do áspero caminho da
tensas. Um é inocente em relação a um fato; outro é inocente dor. Para que o homem aprenda, a Lei deixa-se fraudar, mas,
em relação a outro fato; a mesma coisa se diga relativamente à depois, os iludidos devedores caem em si e reconhecem nela o
culpa. Por isso, são os destinos tão diferentes e todos se cum- único árbitro da vida. Explicam-se desse modo as oscilações
prem inexoravelmente. O destino daquele homem não continha da história. Com isso, neste capítulo, demos novos desenvol-
reações de violência e de sangue; estava, pois, imune desse la- vimentos e aplicações aos conceitos por nós já considerados
do em que os outros eram vulneráveis; não precisava, por isso, quando estudamos a lei do merecimento.
sofrer as provações a que os outros seriam submetidos. Estava, Continuemos seguindo as vicissitudes de nosso persona-
ao contrário, exposto a provas espirituais que os demais nem gem. Ei-lo numa casa de colono, atopetada de outros fugitivos.
sequer podiam imaginar, de lenta maceração e desmaterializa- A guerra, vindo do Sul, aproximava-se raivando, com rumor si-
ção, sujeito a prolongadíssimas agonias, à violência das tem- nistro e cada vez mais intenso, mordendo a terra com feroz en-
pestades psíquicas, ao choque contra as forças do imponderá- carniçamento. Tudo, como se estivesse carregado de ódio, ex-
vel, completamente desconhecidas pela generalidade das pes- plodia à traição. As casas, as pontes, os aquedutos, as instala-
soas. Ele, cônscio de seu destino, de seu passado e de seu futu- ções elétricas, as oficinas, as estradas e as ferrovias voavam. A
ro, compreendeu que a guerra não lhe dizia respeito e nenhum terra, sem exagero, tremia. Em plena noite, clarões sinistros
homem ou projétil poderia atingi-lo, se não o permitissem as iluminavam o céu escuro sobre a cidade em chamas. Contínuo
leis da vida, aplicadas a seu caso particular. ribombo de explosões e perigosos abalos sacudiam o ar. Nos
Em geral, na defesa da vida e na luta pela vitória, a inteli- campos, cada vez que apareciam aparelhos isolados ou em gru-
gência humana não vai além das causas e acontecimentos pró- pos, começava, em cadência acelerada, o canhoneio das bateri-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 219
as antiaéreas vizinhas e sobre as cabeças caia chuva sibilante clusive à própria, então personifica o princípio destrutivo. O
dos estilhaços. Os grandes pássaros de prata, maravilha da téc- bem afirma e cria, e quem a ele se liga é obrigado à construção,
nica, tão belos no límpido azul do céu, desciam rápidos como inclusive à própria. Hoje, os construtores não podem senão es-
falcões, semeando morte, ou, então, chegavam de surpresa, em perar que a tempestade do mal se acalme e se canse. Isso é bru-
voo rasante, metralhando. Todos os flagelos da guerra se suce- tal, egoísta, desapiedado; mas, acima de tudo, é estúpido. Trata-
diam em crescente terror. Nas casas, não havia nem água nem se de força agitada e frenética, porque desequilibrada, de força
luz; faltavam as pontes e, por isso, nem se pensava em reabas- cega e absurda, cujo desenvolvimento termina na loucura, no
tecimento. Em compensação, a terra estava inteiramente mina- desespero, inclusive na própria loucura e no próprio desespero.
da, pronta a explodir sob o passo mais leve. Então, como se não Eis o clímax do método da força. Quão longe estamos das ca-
bastasse esse inferno, os soldados começaram a entregar-se ao racterísticas do bem, que é equilibrado, calmo, confiante, escla-
saque e à orgia. Embriagados com o vinho tirado às pobres me- recido! Ninguém pode destruir essas leis e impedir que sua ma-
sas, roubavam as últimas provisões. A propriedade estava prati- nifestação lhes revele a substância
camente abolida. Tornava-se necessário expor-se a novos peri- Assim, a guerra avançava como gigantesco rolo compressor,
gos para proteger, embora ameaçados de revólver, miseráveis trazendo morte e ruína, às cegas, ao acaso, até para civis iner-
sobras de tantos anos de privações. E, finalmente, o canhoneio. mes, crianças inocentes, mulheres inofensivas, doentes, velhos.
Baterias colocadas bem próximo atraíam chuva de granadas. A E a loucura destruía com exatidão científica, método racional,
todo momento podia dar-se o inesperado impacto; e ouvia-se lógica fria e sistemática, para obter o maior rendimento em mor-
todo tiro, às vezes isolado, às vezes em longas rajadas, mas te e ruína, à custa de esforço mínimo, como acontece na fabrica-
sempre perfeitamente decomposto em três tempos bem distin- ção das máquinas em série, na matança de reses. Mas essa ci-
tos: a explosão da partida do projétil, o sibilo do trajeto e o ruí- randa é um vórtice que não se mantém senão à custa de massa e
do do impacto. Prestava-se atenção ao sibilo, pois trazia a mor- de velocidade, isto é, acelerando continuamente sua fúria maca-
te consigo. Onde? Podia chegar a qualquer momento, pelo pró- bra, escancarando cada vez mais as fauces e envolvendo em suas
prio teto. A morte rondava permanentemente no ar. Ouviam-na espirais número sempre crescente de vítimas. Tem avidez delas,
sair dai; daí se esperava que ela chegasse. As vezes a morte atrai-as, prende-as e assim se alimenta e se robustece. Ai de
passava ao longe, às vezes caía a poucos metros de distância. quem pôs em movimento o ―maelstrom‖ e se lhe confiou. Quem
Nosso personagem observava. Que força estava movimen- foi apanhado por ele não lhe escapa mais. No fundo, o que há é
tando esse inferno? Sentia no rosto a respiração do mal, ator- desespero para todos, vencedores e vencidos. Estamos vivendo a
mentada e cheia de cansaço. Era de certo a voz de Satanás. última consequência da filosofia nietzschiana. Seu super-homem
Quem a ouviu uma vez, não a esquece mais. É áspera, traidora, ideal arranca a máscara e mostra seu verdadeiro rosto de fera.
egoísta, homicida, destruidora. A explosão exprime essa voz, Nietzsche morreu louco. Loucura, naufrágio final do espírito, sa-
resume essa alma. É terrível ânsia de tudo despedaçar, esface- tânica ruína de rebeldes à Lei, conclusão fatal inserida no siste-
lar, aniquilar completamente. Tudo tem de ser reduzido a peda- ma e que diz respeito a quem quer que o siga. Eis os resultados
ços, emporcalhado, dilacerado, retorcido, queimado, cortado. É de ciência utilitária, amoral, de ciência sem consciência; as in-
o estilo lançado pela guerra, estilo Kaput, estilo moderno, estilo venções do gênio prostituídas ao interesse e envenenadas ao
destruição. Esse é o aspecto atual da Europa. É o estilo do mal. ponto de se tornarem instrumento de morte. A primeira aplica-
É psicologia, filosofia, método científico, loucura ajudada pela ção notável da conquista do ar foi o massacre da Europa. Não
lógica, pela técnica, pela inteligência. É o destrucionismo, últi- seria ótimo que os cientistas não comunicassem mais a seme-
ma fase do materialismo. É o último produto lógico da ânsia lhante mundo os resultados de suas descobertas?
desesperada que a civilização moderna acreditou ser dinamismo De tarde, enquanto a infernal voz de Satanás dominava a
criador, é o paroxismo da ação levado a grau de loucura, dese- planície, na miserável casa de colono, rezavam. É sublime falar
quilíbrio não admitido pela natureza, precipitação fatal de um com Deus, é reconfortante senti-lo bem perto, principalmente
ciclo e prelúdio de fatal mudança de rumo, que está presente nas horas terríveis. Rezavam com simplicidade e fé, na velha
em toda regressão. O mal está encerrado no tempo e, por isso, cozinha do colono, enfumaçada, pequena, pobre. Rezavam, ir-
tem pressa. Aí reside seu ponto fraco; ele não o ignora e, por- manados na mesma miséria, o camponês e o intelectual, o po-
tanto, corre. O culpado foge. É desesperado, incerto, desorde- bre e o rico; o rústico, morto de fadiga, e o homem fino, abatido
nado. O sábio trabalha com segurança e calma; assim trabalha e mal vestido. As grandes ideias da vida e da morte, do ódio e
melhor e com muito menos dificuldade. O erro representa do amor da família e dos filhos, do dever do sacrifício, estavam
grande diminuição de rendimento. Essa ansiedade do mundo ao alcance da compreensão de todos, formavam essa estrutura
não se poderia controlar e, por meio de aceleração contínua, da vida, instintiva e essencial, comum a todos. A prece sabia fa-
constituía instabilidade que deveria necessariamente terminar lar ao coração de todos. Em sua fé milenária, a raça, já longa-
na autodestruição. Isso revela o mal, cuja essência é a negação. mente experimentada nas desventuras, reencontrava sua força.
É raiva que quer ver tudo subvertido, despedaçado. Tudo deve A visão das excelsas coisas do céu, de um mundo melhor no
explodir, tudo se destina a matar. É o reinado da fera. Seu sis- além, confortava a miséria do momento. Nas asas da prece,
tema é a força; a vitória, mero pretexto, ilusão; a realidade, seu aqueles desventurados se sentiam transportados da dor à paz do
verdadeiro desejo é constituído pelo massacre. Eis aí o ponto a coração e à confiança na ajuda de Deus, e não ao brilhante e ci-
que chega e como termina o método da força. entífico desespero do mundo. Em meio daquela pobreza frater-
Por isso Cristo ensinou no Sermão da Montanha 45: ―Ouvis- na, sentia-se vagar suave esplendor; era a figura de Cristo, que
tes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu vos digo, estendia sobre todos as mãos protetoras, inclinava-se sobre toda
porém, que não resistais ao mal; mas, se qualquer te bater na dor para aliviá-la e, na soleira da porta da pobre cabana, se er-
face direita, oferece-lhe também a outra; e ao que quiser pleite- guia poderoso, desafiando a tempestade.
ar contigo e tirar-te a túnica, entregue-lhe também a capa...‖. O Assim ia o tempo correndo, entre forçados ócios emprega-
mal sabe iludir-nos com suas miragens de grandeza e, assim, dos em meditação, perigos e aborrecimentos, terrores e espe-
desafoga a sua raiva. E quem acredita na força e a emprega tor- ranças. Por último, nova ameaça se juntou às demais: a caça ao
na-se instrumento da Lei e se liga inteiramente à destruição, in- homem. Militares armados entravam nas casas e requisitavam à
força a última mercadoria que restara: o homem. Certa tarde,
45
Trecho da Vida de Jesus Cristo, de G. Ricciotti, seguimento 327. (N. chegaram de surpresa à referida casa de colono. Muitos, alerta-
do A.) dos, se esconderam ou fugiram, alguns foram presos. Nosso
220 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
personagem estava na cama, cansado, e não fugiu nem se es- pondeu tranquilamente: ―Não posso, estou muito cansado, vou
condeu. Não tinha força para defender-se. Gastara todas as cair ao cabo de poucos quilômetros, não tenho mais força físi-
energias no cumprimento do dever, isto é, protegendo, preven- ca. Sofro há muitos anos. Não posso suportar novas fadigas,
do, provando, encorajando. Não lhe restaram forças para pensar novos incômodos. Estou falando a verdade. Se não acredita-
em si mesmo. Aquela hora era, pois, a da Providência, seu der- rem, podem matar-me agora mesmo. Estou preparado‖. O mili-
radeiro auxílio. Além disso, causava-lhe invencível repugnân- tar, que lhe falara, olhou-o com seus olhos metálicos e acres-
cia ter de defender-se sozinho, não confiar em Deus para confi- centou: ―Você vir conosco, logo, ou eu disparar‖. Nosso per-
ar em si mesmo e nos métodos de defesa humanos. Não podia sonagem repetiu: ―Matai-me. Estou preparado. Sempre estive.
mudar seu sistema, que era o de chamar sobre si o cumprimento Peço apenas um minuto para falar com Deus. Ide até ao fim
do dever, ajudar os outros e confiar na Providência. Sua defesa nessa destruição. Estais armados até aos dentes e podeis fazê-
não era a do tipo comum, isto é, improvisada na última hora e lo impunemente. Quem pode deter-vos? Apenas o vosso dano;
superficial. Fugia da força como fugia da astúcia. Preferia a de- não o vedes, porém. Minhas armas são outras. Não o enten-
fesa longamente preparada na procura da invulnerabilidade que deis. Quem, pois, vos detém?‖.
deriva do estado de inculpabilidade moral perante Deus, estado Em seguida, caminhou tranquilamente em direção a um es-
em que ele, há muito tempo, tinha procurado colocar-se. Mes- paço vazio da parede, nele apoiou as costas, estendeu os braços
mo na luta defensiva comum, empregava as forças de plano em cruz, fechou os olhos para o mundo exterior, reabriu-os para
evolutivo mais elevado, submetendo-as mais uma vez à expe- o outro lado da vida, esperou, rezando deste modo: ―Senhor, em
rimentação, mas sempre confiante nelas, por havê-las visto fun- tuas mãos encomendo o meu espírito. Não permita se manche
cionar tantas vezes. Ele percebia que compete a Deus defender este homem com um homicídio, pois é da Lei que ele mais tar-
a quem, tendo empregado tudo no cumprimento do próprio de- de o pagará com sua morte. Forças cósmicas do bem, acorrei
ver, não possuía mais meios e forças para prover-se do necessá- contra as forças do mal que agora estão envolvendo este pobre
rio. Assim, quis, até nesse momento crucial, manter-se coerente cego para ligá-lo a nova dor e incorporá-la a seu destino; assim,
com os princípios que jamais o haviam traído. Pôs em prática, não será ele perseguido incansavelmente até que a reação do
portanto, seu método; antes de mais nada, permanecer, com ho- delito se esgote com sua morte violenta. Senhor, aqui está mi-
nestidade e plena consciência, tranquilamente no seu posto de nha vida, para que o bem, e não o mal, triunfe‖. Daí, como su-
combate e de dever, até ao último limite; depois, nada mais lhe premo e concludente gesto, fez o sinal da cruz, isto é, o sinal da
restando, desinteressar-se por si mesmo, abandonando-se às dor, o sinal do amor e das maiores forças colocadas nas pró-
mãos de Deus com a fé mais completa. Percebia o profundo prias raízes da vida, o sinal do Senhor, símbolo e síntese da gê-
funcionamento das leis da vida e que estas não podiam mentir- nese e da criação principalmente em relação ao espírito. De-
lhe nem traí-lo; sentia-se participe da imensa organicidade do pois, pensou: ―vem, ó morte, querida irmã, aceito-te alegremen-
todo e sabia que a mente diretora não podia permitir a dispersão te das mãos de Deus, pois assim me livras deste inferno‖.
de parte alguma, por menor que fosse; tinha a nítida impressão Não tendo ouvido mais nada abriu os olhos. Seu olhar cru-
da indestrutibilidade fundamental do próprio ser. Posição, por zou o do oficial que o fitava; o olhar metálico e o olhar ardente
certo, estranha e incomum. Mas é inegável que as forças da vi- se defrontaram. O primeiro tentava compreender, e não o con-
da a percebiam, pois se adequavam a essa sua posição especial. seguia. Extenso abismo abria-se entre os dois. Ele sentia atra-
Ele via, então, a Providência tomar corpo na realidade e mani- ção e repulsão, fascínio e raiva, absoluto desejo de matar o re-
festar-se-lhe aos sentidos, de modo a tornar-se auxílio concreto; belde, como, aliás, havia ameaçado, e total incapacidade para
via Deus avizinhar-se-lhe e a justiça de Sua lei tirá-lo do peri- fazê-lo. Invisível potência o detinha. Ficou ali parado, perplexo
go. Sua experiência não era impregnada de dúvida, desconfia- com essa hesitação incomum, para decifrar-lhe o sentido, pro-
da, analítica, mas confiante, embriagadora e cheia de alegria, a curando descobrir que coisa o paralisara, que coisa se interpu-
que não era capaz de subtrair-se. Assim, de alma perfeitamente nha entre si e o homem, ao ponto de impedir-lhe o passo. Por
calma e visão absolutamente límpida, esperou o perigo. que essa inércia? O homem de ação e de ciência, habituado a
Observemos o encontro entre as duas forças contrárias. Tra- tomar conhecimento dos fatos, queria saber o porquê e a razão,
ta-se de dois princípios diversos, de dois métodos de luta, de por isso escrutava, olhando aquele homem enigmático que
dois mundos opostos. Espírito e matéria, bem e mal, se defron- tranquilamente esperava a morte. O homem de fé olhava o ofi-
tam e desafiam, cada qual com suas armas. Quem vencerá? O cial e lia-lhe no coração, muito embora ele não estivesse perce-
homem isolado, inerme, mas justo e, por isso, ajudado por bendo nada do que se passava consigo.
Deus? Ou o militar armado, sustentado pelo número, mas assis- Defrontavam-se os modelos de duas civilizações diferentes.
tido apenas por um organismo defensivo humano? Os mesmos O oficial era o produto de pseudocivilização científico-
conceitos e as mesmas posições, aqui considerados em seu as- mecânica, chegada às suas últimas consequências, civilização
pecto individualista, vimo-los na ―Visão‖ (aspecto coletivo) re- rica, armada, astuciosa e potente, no entanto pronta a desabar.
ferida neste volume (Cap. XVI e XVII) e no encontro entre Do outro lado estava o representante de nova civilização, no
Cristo e Pilatos (Cap. XXI). Também vemos em Quo Vadis, de momento apenas embrionária, a única possível civilização ver-
Sienkievicz, São Pedro e Nero olharem-se por um instante fren- dadeira; um indivíduo desacompanhado, pobre, desarmado,
te a frente. Em Os Miseráveis, de Vítor Hugo, Mons. Myriel sincero, justo. O oficial não podia, com os olhos da carne, ver
permanece calmo diante da ameaça de Jean Valjean, deixando através da matéria e penetrar no segredo, que o perturbava, da-
que apenas sua inocência o defenda e, na noite do furto, vemo- quele homem enigmático e, mesmo armado, não tinha coragem
lo permanecer ileso, invulnerável, nas mãos do assassino, que de matá-lo. Este homem representava principio diferente, mais
se torna impotente para feri-lo. A veracidade dessa lei do mere- sublime e poderoso: o espírito. E o militar a si mesmo pergun-
cimento e o poder dessa força da justiça e da inocência foram, tava por que essa invencível resistência que, embora ele não
embora não demonstradas, percebidas pelos outros. conseguisse compreender, lhe chegava do imponderável, e
Nosso personagem, que estava na cama, vestiu-se e espe- qual o mecanismo dessa energia desconcertante, capaz de ini-
rou. Avisaram-no: ―fuja, senão eles o prendem‖. Sentou-se bi-lo desse modo. Nosso personagem fechou de novo os olhos,
calmo, escutando os passos dos militares que vasculhavam a esperando o estampido do tiro: a morte. Silêncio. Quando os
casa. Ouviu-os aproximarem-se. Um oficial escancarou a porta reabriu, o oficial desaparecera.
de seu quarto e, apontando-lhe o revólver, avançou até ao meio O homem esperou, mas ninguém se preocupou mais com
do cômodo. ―Você vir conosco‖, disse-lhe. Levantou-se e res- ele. A morte passara bem perto de si e não o quisera. Deus
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 221
passara bem junto dele. Atirou-se sobre o enxergão e adorme- lidade e, por isso, lhe fogem, temem a introspecção e, como
ceu como o fazia toda noite, tranquilo, agradecendo humilde- percebem estarem nus, procuram avidamente cobrir-se com
mente ao Pai que está nos céus, que desejara continuasse ele seus ouropéis. Mas os valores e as defesas estão dentro, e não
toda a trabalheira de sua vida. fora. Tudo quanto é externo se despedaça ao primeiro sopro da
tempestade. Assim é a vida.
XXIII. VINGANÇA OU PERDÃO Por isso podemos dizer com o evangelho: ―Ai dos ricos, ai
dos vencedores, ai dos que gozam. Amanhã chorarão‖. São
A moral da narrativa feita no capítulo anterior tem alcance coisas ditas e reditas pelos sábios; todavia, nesta vida turbilho-
universal e representa modificação completa da psicologia cor- nante, não passa pela cabeça de ninguém que devam ser leva-
rente, quando afirma serem todas as situações de nossa vida, das a sério. No entanto constituem a realidade mais profunda
boas ou más, consequência de nossa conduta. Pode ser que não da vida. O encontradiço tipo involuído não sabe compreender
nos recordemos de quando e onde semeamos na plantação de como, para quem evolui, a ilusão, em dado momento, desapa-
nosso destino, mas, sem dúvida alguma, semeamos. Sempre reça sem causar mágoa e como, sob o nome de ilusão, deva-
procuramos nos outros as causas de nosso infortúnio; elas, po- mos entender exatamente as coisas que a maioria das pessoas
rém, residem em nós, dentro de nós. Procuramos sempre incul- considera mais preciosas. De fato, o caminho evolutivo do sá-
par os demais, pois queremos encontrar um Cirineu que nos bio é juncado de descobertas muito mais maravilhosas do que
carregue a cruz. No entanto nós é que devemos carregá-la nos as científicas, proclamadas aos quatro ventos. Trata-se de des-
ombros. Isso tudo satisfaz a lógica, a lei de causalidade, a justi- cobertas verdadeiramente utilitárias e substanciais, completas e
ça e a liberdade humana. Os acontecimentos não nascem fora decisivas. Eis o verdadeiro sentido da vida, sentido que escapa
de nós, mas dentro; se algo nos golpeia, não é por motivo de al- ao entendimento das massas estúpidas e escravas, abandonadas
guém no-lo ter querido infligir, e sim porque nosso modo de à deriva, desejosas apenas de vegetar. Contudo, a realidade
vida, esse feixe de forças, o atrai ou, pelo menos, por ser vulne- material e exterior, que todos alimenta, tem as raízes mergu-
rável desse lado, lhe garante livre acesso, verdadeira porta aber- lhadas nessa realidade interior e dela não pode separar-se. E
ta. Nas infecções microbianas, não é a esterilização do ambien- pretendemos dominar os efeitos, combatendo-os quando já
te, impossível de conseguir, que decide a nossa saúde, mas, plenamente desenvolvidos, ao invés de extirpá-los no nasce-
acima de tudo, a resistência orgânica do indivíduo. Assim tam- douro. Todavia o sucesso material, tão ansiosamente desejado
bém, quanto às adversidades morais e materiais, não nos é pos- por nós, não podemos obtê-lo sem o concurso da força moral,
sível viver em um mundo inócuo nem se pode, também, esperar que não levamos em conta e, no entanto, a ele se liga estreita-
continuamente sua não-agressão; devemos, ao contrário, confi- mente. O imponderável, embora incompreendido e maltratado,
ar apenas nas qualidades individuais de resistência, de reação permanece indestrutível entre nós; não se deixa dominar e rea-
defensiva, de recuperação, isto é, naquelas forças por todos nós ge maleficamente, pois o nosso mau tratamento para isso quis
possuídas, porque as conquistamos e as incorporamos ao dina- pô-lo em ação. Se as forças da Lei, agindo sabiamente, não nos
mismo de nosso próprio destino. A moral da precedente narra- reeducassem por meio da dor, nossa civilização não saberia fa-
tiva é que nós mesmos devemos construir-nos, cada qual por si zer outra coisa senão conduzir-nos, por meio do bem-estar e do
e para si, e toda alegria ou dor, vitória e derrota constituem ex- abuso, à decadência física e moral.
perimento que se registra indelevelmente no livro de nossa vida Procuramos neste livro observar essas verdades sob todos es
e representam prova da qual nos interessa sabermos sair mais pontos de vista, conforme as várias formas mentais, servindo-
esclarecidos. Ou nos construímos e robustecemos, ou nos de- nos da lógica, narrando os resultados da experiência, apoiando-
molimos e enfraquecemos. Se, como tantos fazem, procurarmos nos na analogia e em relações com fenômenos de outro tipo. O
a vida apenas fora de nós, nas outras pessoas e nas coisas, se- problema que estamos enfrentando é o do melhoramento hu-
remos escravos, seus escravos. Só seremos livres se procurar- mano, e este coincide com o aperfeiçoamento do indivíduo. Po-
mos a vida dentro de nós. A moral é que podemos ser senhores demos, para isso, utilizar as grandes vias das reformas sociais e
de nosso destino, mas se torna necessário querê-lo e sabê-lo. É dos sistemas orgânicos de massa. Se aqui, porém, a ação é mui-
preciso, porém, viver em profundidade, viver vida consciente. to extensa, é necessariamente pouco profunda. De modo que, se
Não é a riqueza ou o poder, mas a vida interior, que nos dá a quisermos fazer a evolução humana avançar muito, temos de
independência e o domínio. Podemos viver no meio da guerra encaminhá-la pelo estreito caminho individual. Trata-se de mu-
e, no entanto, ter a paz no coração. A maior conquista consiste dar o sentido da vida. É preferível, pois, trabalhar no lado de
em chegarmos a ser e conservarmo-nos donos de nossa casa in- dentro a trabalhar no lado de fora do indivíduo, mais por livre
terior. Essa é a única direção útil do expansionismo para o novo convencimento do que por imposição, mais por maturidade do
homem, expansionismo que não acaba em carnificina. Em rela- que por organização. São múltiplas as estradas do progresso.
ção à nossa alegria e à nossa força, vale nossa casa interior mui- Essa maturação deve ter o caráter de espontaneidade. Por isso,
to mais que a exterior; podemos fazê-la ampla e sólida e con- apela-se para mais perfeito entrosamento da vida humana com
servá-la a nosso modo, em completa independência, em plena as leis biológicas. Da conquista de novo modo de conceber a
autarquia do espírito. Essa casa, porém, não a recebemos por vida, mais lógico e mais elevado, derivaria mudança no com-
herança; cada um de nós tem de construí-la com as próprias portamento individual e nas relações das pessoas entre si e com
mãos, pois é nossa de fato. Mas essa posse deve ser plenamente as coisas, o que traria grande vantagem para todos. Procuramos,
justa, isto é, constituir fruto de nosso trabalho. Essa casa é o aqui, fazer com que o homem moderno compreenda a enorme
verdadeiro refúgio na adversidade, o ninho de nossas alegrias, o vantagem de ser honesto. A humanidade de hoje crê ter-se de
cofre de nossos tesouros; mas é construção feita de forças, edi- súbito civilizado apenas porque descobriu alguma lei exterior
fício entretecido de invisíveis fios que se movimentam e neces- da vida, que lhe permite mais cômodo desfrutamento dos recur-
sitam nutrir-se diariamente de nosso trabalho, porque marcham sos naturais. Trata-se de domínio alcançado sobre algumas for-
para o futuro, são vivos e, se não forem alimentados, se desfa- ças tornadas em parte obedientes, para atingir bem-estar de que
zem. Há homens que, por fora, vivem em palácios luxuosos e, nos pomos a gozar, ignorando-lhe as consequências. Esse do-
por dentro, definham em casebres miseráveis, desleixados, tris- mínio também poderá servir para nos causar a morte cientifi-
tes, em ruínas. Nos momentos de desventura, seu mesquinho eu camente, em larga escala, porém não nos torna mais adiantados.
não encontra refúgio, pois as grandezas terrestres não podem Isso não pode chamar-se civilização. De mudanças profundas
oferecê-lo. Percebem a miséria da casa interior de sua persona- de orientação, que interessem à motivação da atividade huma-
222 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
na, nem se fala. Hoje em dia, a vida se apresenta feroz e desapi- das posições exprime outra ainda mais profunda, isto é, a ten-
edada como nos tempos pré-históricos. Não estar armado de dência que busca o restabelecimento do equilíbrio rompido. Ela
pedras lascadas, mas de metralhadoras; não estrangular o seu se deve à presença de uma terceira vontade, que nada tem de
semelhante com as mãos, e sim com os bancos, representa ape- comum com as verdades particularistas e relativas dos dois con-
nas progresso formal, substancialmente fictício. Civilização que tendores, isto é, a vontade imparcial e justa da Lei, cuja tendên-
deixa intactos os instintos bestiais do homem e, além disso, lhe cia constante consiste em corrigir e reabsorver o erro humano.
oferece meios mais poderosos de satisfazê-los, não merece o Perguntamo-nos agora: como se torna possível reequilibrar
nome da civilização. Hoje, ao invés de havermos progredido, esse binário que, tendo perdido o equilíbrio, não sabe recom-
descemos a tal ponto, que perdemos o sentido do que seja civili- pô-lo? O maior sonho do lutador consiste na vitória e conse-
zação e mudamos o significado dessa e de outras palavras su- quente aniquilamento do inimigo. Na verdade, porém, não pas-
blimes. A verdadeira civilização está mais dentro do que fora de sa de ilusão, pois o inimigo que representa uma força, é subs-
nós; é mais um poder das qualidades da personalidade que um tancialmente um imponderável, e participa de um organismo
poder originado nos meios exteriores e no domínio material; é universal em que, como já dissemos, nada se pode destruir e
progresso no espírito; implica em mudança do comportamento onde se torna impossível abrir-se o vácuo de sua aniquilação,
humano em profundidade, e não apenas em superfície. Em meio que representa, pelo contrário, tendência a preenchê-lo, irresis-
dessa nossa barbárie, os raríssimos sábios caminham em silên- tível vontade de compensação. O homem não pode de modo
cio, beneficiando e perdoando. O mundo ri-se deles. Mas neles nenhum neutralizar essa tendência, paralisar essa vontade su-
apenas reside o futuro do mundo, o único futuro sem sangue. perior. Como recurso, possui apenas a sua força e, para vencer,
As ações e as relações humanas podem ser estudadas como a ela se agarra com unhas e dentes. Mas a manutenção de arti-
jogo de forças e, assim, descobriremos suas leis. Aí esta o âma- ficial estado de equilíbrio, como o de seu domínio sobre o pró-
go da questão. Acreditamos que a lei do perdão significa pôr-se ximo, requer esforço contínuo, que se resolve, já o dissemos,
em situação de fraqueza e que o sistema de vingança e aniqui- em desgaste e, mais tarde, em inevitável cansaço. Desse modo,
lamento significa posição de força. Não compreendemos como não só pelas razões já precedentemente expostas, mas também
na realidade se dá o contrário, isto é, como o perdão nos liberta por esta, o sistema tende a inverter-se. A lei fundamental de
da reação e a vingança nos liga ao inimigo. Quando dois indi- justiça tende incansável e tenazmente à compensação, exer-
víduos estão em paz entre si, representam sistema de forças em cendo insistente pressão nesse sentido, e apenas encontrará paz
equilíbrio. Mas, apenas um dos dois tenta superar o outro, pro- quando completamente corrigido o precedente desequilíbrio.
curando invadir e dominar, não só o legítimo campo de sua li- Impossível, pois, resistir indefinidamente; de fato, para con-
berdade mas também o campo dos demais, esse sistema de for- servar de pé um sistema desequilibrado, seria necessário ampa-
ças não se mantém mais na posição natural e estável de justiça rá-lo continuamente por meio de incessante dispêndio de ener-
e se transforma em sistema desequilibrado, que tende esponta- gia. De um lado, temos o princípio-lei, que é vontade inteli-
neamente a voltar à primitiva posição de equilíbrio. Temos, gente armada de energia, calma, paciente, mas constante e ine-
agora, de um lado, rarefação e vácuo e, de outro, concentração xaurível. De outro lado, o homem armado de energia violenta,
e pressão; de um lado, derrota e danos e, de outro, vitória e van- mas inconstante e pouco duradoura, colocado perante lei de
tagens. Tudo poderia processar-se de acordo com a vontade do vontade diferente da sua e que não se deixa violar senão tem-
homem, que gostaria estivessem a seu favor essas mudanças, se porária e excepcionalmente, à custa de esforço persistente e
não existisse uma vontade superior a dirigir e equilibrar, a von- cansativo. O indivíduo poderá resistir, até mesmo vencendo
tade da Lei, que guia todos os fenômenos de acordo com equâ- por algum tempo, porém inevitavelmente chegará o momento
nime princípio de justiça. O fato é que essa lei existe, e um de se inverterem as posições. Portanto é fatal, como de fato se
princípio impõe o equilíbrio. Acontece então, automática e irre- verifica, que, cedo ou tarde, o sistema se decomponha e o ven-
sistivelmente, que, de um lado, a atração exercida pelo vácuo e, cedor passe à condição de vencido, e vice-versa. No reino da
de outro, a força de pressão tendem a estabelecer esse movi- força, vitória significa vitória. Mas, perante lei equânime, im-
mento de reação chamado vingança; esse movimento, se possui parcial, desejosa de que todos vivam, vitória significa débito
um fundo de justiça, pois tende a reequilibrar o sistema, lança-o do vencedor para com o vencido, débito a ser pago de qualquer
em novo desequilíbrio, constituído pela posição inversa, de que modo um dia. Então, que adianta vencer? Se não nos conten-
nasce nova reação, a contravingança, e assim por diante. Esta- tamos com resultados efêmeros nem damos crédito à ilusão,
belece-se, desse modo, cadeia de vinganças interminável, por- não é verdade que vitória e derrota representam o mesmo fe-
que através delas o desequilíbrio se mantém, permanece sempre nômeno? Trata-se de posições instáveis, solapadas pelo tempo,
a provocação originária, que não tem remédio. Assim, acontece de vantagens momentâneas, trabalhosas e arrancadas violen-
que, quando dois indivíduos, pela prática de algum abuso, se li- tamente aos naturais e inexoráveis equilíbrios da Lei. E assim,
gam a tal sistema de forças, este não sabe mais como resolver- em última análise, a vitória não passa de prelúdio da derrota, e
se, e os indivíduos permanecem, mesmo através de seus des- a derrota significa o prelúdio da vitória.
cendentes, indefinidamente emaranhados. Assim, até à consu- Se, pois, a vitória não resolve definitivamente o problema,
mação dos séculos, o fratricida Caim revive no homem. visto como de fato não reequilibra o sistema das duas forças, e
Continuemos a observar. Por um lado, a concentração cons- se a posição de estabilidade apenas pode ser garantida por es-
titui riqueza, superabundância de bem-estar, euforia biológica pontâneo equilíbrio dos dois impulsos opostos, a que devemos
causadora de engorda enervante, que desabitua da luta, diminui recorrer então? Sem dúvida, o sistema humano da vingança não
as capacidades, aniquila as defesas. De outro lado, a rarefação é atinge o objetivo previsto. Não se trata aqui de agravar, mas de
pobreza, incômodo, tormento originador de excitamento, que reabsorver o desequilíbrio originário, e isso apenas pode ser
anima ao combate, apura as capacidades, prepara e apresta o conseguido pelo perdão. Vimos que a primeira usurpação cau-
ataque. De um lado, pois, a pressão tende naturalmente a dimi- sara um primeiro desajustamento, que o sistema ativo-reativo
nuir; de outro, a tensão tende a aumentar. Assim, as duas forças em cadeia das vinganças não consegue eliminar. Para consegui-
do sistema, já ligadas, tendem a combinar-se de novo, mas em lo, torna-se necessário um ato igual e contrário, porque só um
posição inversa. E assim por diante. Tais são as vicissitudes de ato assim pode neutralizar o primeiro. É preciso, portanto, mo-
toda luta, de dois homens, famílias, facções ou povos. Existe, vimentar-se em sentido contrário; e só o perdão pode fazê-lo.
pois, enxertada no próprio sistema, uma tendência a compensar, Dirão, agora: Para que serve essa luta e porque as leis da
corrigir e eliminar os abusos iniciais. Essa tendência à inversão vida a permitem, se constitui erro? Serve para aprendermos o
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 223
modo de não cometer mais erros, pois, ao percorrermos o ca- a divina lei de justiça. Com o meu perdão, tu continuas nessa
minho da vingança, aprendemos a lei do perdão. O homem ne- triste posição; tu, pobre iludido, que te ris de mim porque pen-
cessita aprender, por isso Deus deixou-o livre. Não se trata, sas ter-me vencido. Muitos preferem comprometer-se cada vez
pois, de liberdade desenfreada e louca, mas de liberdade limi- mais, disputam corrida em direção ao aumento da dívida. Quan-
tada e protegida. A Lei cede no limite do necessário ao apren- to a mim, prefiro libertar-me por meio do perdão. Liga-te, isso
dizado do homem; deixa-o errar para que, depois, sofra as do- sim, com quem responder aos teus ataques. Eu, por meio do
lorosas consequências do erro. Age, porém, paternalmente, perdão, me liberto. Nada podes contra mim, sem que eu o quei-
pois, ao mesmo tempo que parece abandoná-lo, a Lei se mostra ra. Não tens o poder de infligir-me a dor que quiseres. Isso de-
sabiamente previdente, próvida e protetora, comprometendo-se pende apenas de mim e de minhas culpas. E, se eu tiver de so-
antecipadamente, por meio de lenta mas constante e tenaz frê-la, não a aceito de ti, que ignoras o porquê das coisas e ages
pressão, a recolocar tudo em seu devido lugar. E, de fato, ve- como cego; aceito-a apenas das mãos de Deus, a titulo de expi-
mos que, apesar de todas as desordens humanas, a Lei alcança ação merecida, de salutar purificação e, por isso, de benefício
esse objetivo. Desse modo, todo erro contém em si o germe de para minha redenção. Não és mais do que instrumento incons-
sua correção, a imperfeição se reduz a motivo de perfectibili- ciente guiado pela Lei, ser ignorante do que faz, merecedor de
dade contínua. O mundo constitui, assim, perene injustiça, que piedade, por quem devo orar. És pobre irmão ainda ignaro, que
representa poderosíssima aspiração à justiça. A vida é desequi- devo esclarecer e ajudar, irmão que está ferindo a sua própria
líbrio constantemente à procura de equilíbrio; é vingança avi- vida e ligando-se, sem sabê-lo, a nova dor, porque, acreditando
damente desejosa de alcançar a fase superior de perdão; é ânsia golpear-me, está golpeando a si mesmo. Irmão! Devo socorrer-
de ódio que não sossegará enquanto não reencontrar o amor. A te do perigo pelo qual estás passando. Mais tarde, depois de es-
Lei existe, sem dúvida, porque nossa consciência sabe exata- pontaneamente teres querido ligar-te, por mais que eu sofra e te
mente como as coisas deveriam ser perfeitas, embora ainda perdoe, nada poderei fazer por ti contra as consequências fatais
não o sejam e um abismo de dificuldades as impeçam de o se- de tua conduta; assim, deverás pagar inexoravelmente e na pro-
rem. De fato, o mundo apresenta-se como oceano de desequilí- porção de teu erro. Tu, não eu, rompeste o equilíbrio. Tu, não
brios e, por essa razão, sofre, exatamente porque não consegue eu, deverás, penando, reconstruí-lo. A redenção é demorada,
atingir o estado de equilíbrio, único, conforme o mundo mes- complexa e se processa átomo por átomo. Meu perdão me inte-
mo percebe, em que encontraria a paz. Torna-se evidente que ressa mais do que a ti. Cairás debaixo da força que tu mesmo
apenas o reequilíbrio poderá dar-nos a felicidade, mas esse re- libertaste. Ai de ti, se venceres. Tanto mais pagarás quanto mais
equilíbrio está bem longe de nós. O sofrimento do mundo não injustamente houveres vencido. Acreditas trabalhar fora de ti,
se deve a erros recentes, e sim milenários, a pavoroso amonto- em mim, no entanto trabalhas dentro de ti, em ti mesmo. Tudo
ado de erros, acumulados através dos séculos, difícil de elimi- quanto fizeres recairá sobre ti, porque tu o fizeste; não recairá
nar e impossível de reabsorver assim de um golpe. Hoje, tudo sobre mim, senão na proporção em que eu o houver merecido‖.
está impregnado de erros e o ar encontra-se saturado de menti- A Terra é morada infernal, local de débito e de expiação,
ra; o mal que semeamos se transformou em nossa atmosfera. É lugar em que os homens gostam de endividar-se até ao pescoço,
preciso pôr-se a caminhar, lenta e tenazmente, pelo áspero ca- vivendo debaixo de chuva de fogo, aceso por suas próprias
minho da regeneração. Os resultados do abuso não podem ser mãos. Todavia, como a lei de Deus se mantém justa e boa! So-
corrigidos senão movendo-nos em direção contrária, subindo mos livres, mas responsáveis. E, quando lhe compreendemos o
de novo pelo caminho que havíamos descido. Na prática, o significado, que poder regenerador o sofrimento adquire! Todos
simples caso de duas forças contrárias, há pouco examinado, nós temos de responder apenas por nossas ações e não também
complica-se num interminável entrelaçamento de desequilí- pelas ações alheias; cabe-nos responsabilidade pelo esforço fei-
brios, que nos submete ao jugo de nosso destino de indivíduos to, não pelos resultados obtidos. A força máxima consiste em
e de povos, pobres autocondenados, exatamente como por ig- ser inocente. O ponto vulnerável à dor é apontado pela própria
norância ou má vontade queremos. Quanto mais perseverar- culpabilidade, quer dizer, não é a dor em si mesma que o de-
mos no caminho da força e da vingança tanto mais pioraremos termina, mas a própria debilidade que oferece o peito aos gol-
nossas condições, agravando o desequilíbrio. A única saída é pes da lei de justiça. Tudo quanto fazemos perdura, e quem de-
esta: o caminho do perdão, o caminho do amor, o caminho do ve não encontra salvação. Logo nós mesmos criamos nossa
evangelho. Quando encontrarmos um homem que emprega a vulnerabilidade, espontaneamente, por meio de nossas próprias
violência e se vinga, diremos: este é um involuído que está ações, de acordo com nossa própria vontade. A casa interior do
começando o longo aprendizado da vida. Quando virmos um culpado é indefesa, tem as portas escancaradas. Por qualquer
homem que repele a violência e perdoa, diremos: este é um lado, a dor pode entrar nela. Cabe culpa às portas abertas e a
evoluído que já viveu bastante e aprendeu a lição da vida. A quem as abriu. Então, as forças do nosso destino atraem as in-
tendência da evolução consiste em substituir a vontade ignara, vestidas dos malvados, que, nas mãos de Deus, se transforma-
egoísta, desagregante e usurpadora do indivíduo pela vontade ram em instrumentos de justiça, embora, considerados em si
consciente, altruísta, orgânica e pacífica do homem da Lei. mesmos, sejam injustos e incapazes de compreendê-lo. Os mei-
Eis em que consiste e para que serve civilizar-se. Não se tra- os punitivos estão à solta, o mal conseguiu libertar-se das alge-
ta apenas de idealismo ou de sentimento ou de bondade. Trata- mas e pode, porque Deus o permite, agir com plena liberdade.
se de atingir a fase do homem que já compreendeu. Este diz: Na Lei, o mal é escravo do bem, tem limites que não pode ul-
―Perdoo-te, ó inimigo, porque só assim me livro do mal que trapassar senão a serviço do bem. Esses instrumentos não são
quiseste lançar sobre mim. Não; conheço a Lei e não faço como constrangidos, mas utilizados. São, por isso, responsáveis na
muitos iludidos que caem na armadilha. Sei que sou livre. Não medida de sua compreensão e liberdade de agir e nessa medida,
aceito ligar-me a ti por laços de ódio ou de vingança; não acei- quando lhes couber a vez, hão de pagar pelo que fizerem. Mas,
to, porque sou livre, o mal que quiseste infligir-me. Perdoo-te. se sou inocente, que podem eles perante mim senão oferecer-
Esse mal te pertence; tu o geraste, não eu. Perdoando-te, deixo- me novas oportunidades de expiação e ascese? Meu inimigo
o recair sobre ti, não sobre mim. Se eu caísse na corriqueira ilu- pode atirar-me às costas todo mal que quiser; apenas o que eu
são do mais forte e reagisse, ofendendo-te também, e te causas- merecer me atingirá. Não responderei por ele, mas por mim. E,
se um mal que em mim se gerara contra ti, tornar-me-ia deve- se não respondo às ofensas, toda a culpa recairá apenas sobre o
dor, e não mais credor teu, e terias o direito de reter-me como ofensor. A medida de nossa dor no-la dá nossa culpabilidade.
escravo enquanto eu não te pagasse meu débito, de acordo com Fato importante como o desenvolvimento de nosso destino e fa-
224 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
to grave como o peso de nossa dor não podem ficar à mercê da e os problemas, inclusive os sociais e morais, são indistinta-
vontade de um estranho, que muitas vezes nada sabe a nosso mente propostos e resolvidos como cálculo de forças. Além
respeito. Sem nosso consentimento, não obstante os permanen- disso, a repetição, muitas vezes, é útil, porque um prego não se
tes contatos humanos, não se podem efetuar trocas de valores prega com uma martelada só. Nem sempre é fácil fazer um
ou de forças entre destinos. Nós é que fazemos nosso destino; conceito penetrar no cérebro humano, duro como pau.
este não passa de campo de forças cerrado e protegido, em cujo Enorme abismo separa as referidas raças. Os dois tipos se
centro está o eu, dirigindo e controlando tudo. Um estranho po- distinguem por dois diferentes modos de conceber a vida, duas
derá introduzir nesse campo apenas as forças que quisermos. diferentes formas de luta, dois diferente métodos de compor-
As responsabilidades são graves; as sanções, inexoráveis. Nada tamento, pelos quais eles se revelam claramente. Cada qual es-
mais justo do que liberdade completa e responsabilidades bem colhe o que mais se adapta a sua natureza, e basta essa escolha
definidas. Nada mais justo do que cada um responsabilizar-se para mostrar quem ele é. O involuído prefere a força, o evoluí-
apenas por aquilo que livremente fez. do a justiça; duas armas diferentes, adaptadas exatamente às
Já vimos alhures, a propósito da lei do merecimento e da mãos de que devem empunhá-las. Mas o primeiro ignora os
Divina Providência, quem, na luta pela vida, defenderá ao ho- complexos jogos do dinamismo da vida, é desarmônico em fa-
mem que confiou sua defesa à Lei, às mãos de Deus. Não ce da Lei, por isso fica isolado, não pode apoiar-se senão na
acreditem vá esse homem, segundo muita gente pensa, deixar própria força. O segundo tem consciência dos inúmeros recur-
de ser vingado. Renunciando a fazer justiça pelas próprias sos e da energia que escapam à percepção do primeiro; seu po-
mãos, ele a confia a juiz muito mais poderoso; quem perdoa tencial nervoso é mais elevado e, por isso, mais poderoso e pe-
entrega o culpado à lei de Deus, que, invisível e paciente, é netrante, mais apto a vencer as resistências; dessa superiorida-
também inflexível e inviolável, muito mais temível do que as de nem faz ideia quem se acredita composto apenas de corpo, e
sanções humanas. Os resultados do jogo da força, embora efê- não também, e principalmente, de espírito. Mas, ao lado dessas
meros, iludem porque são imediatos. Esse jogo não se realiza a suas capacidades intrínsecas, existe o fato de que o evoluído se
longo prazo. Com o passar do tempo, o justo se revela o mais harmoniza com a Lei, não está, pois, sozinho, sem outro apoio
forte e é quem vence por último. Há, sem dúvida, conveniência senão o de suas pobres forças, mas tem atrás de si a Lei a sus-
momentânea na exploração imediata das posições de honesti- tentá-lo; não sendo rebelde, em vez de nadar contra a corrente
dade que conquistam confiança. Quanto mais a retidão de uma da vida, abandona-se nela inteiramente e tem à sua disposição
verdade ou de uma instituição houver conquistado a estima as forças da vida, que o ajudam e o impulsionam. Temos, as-
pública, tanto maior atração exerce sobre homens inescrupulo- sim, de um lado a astúcia, oblíqua, complicada, torva, enove-
sos que procuram apropriar-se dela em busca de vantagens lada e, por isso, de movimentos embaraçados; do outro lado, a
pessoais. Quem mais fama tem de honesto esse é o ladrão. Mas inocência retilínea, simples, cristalina e, portanto, ágil e rápida.
a posição é instável e não se mantém. Cedo ou tarde, tudo de- A astúcia e a inocência digladiam-se. De acordo com a lógica
saba. Para civilizar-se a sério, o homem do futuro terá apenas dos homens, o evoluído deveria perder. Não obstante, muitas
de fazer um pequeno esforço de inteligência, para compreender vezes vence. Na realidade dos fatos, verificamos que vence.
a vantagem utilitária de ser honesto, vantagem considerada Vemos que, na prática, a força e a astúcia, métodos do involuí-
apenas do ponto de vista egoísta (nem pretendemos mais do do, não oferecem garantia segura de vitória. Procuramos, neste
que isso); compreender que tudo quanto podemos obter em- livro, compreender a razão disto. Há nas armas do evoluído al-
pregando a astúcia ou a violência, não passa de adiantamento go que não admitimos, pois, exatamente por ser muito sutil,
que, mais tarde, devemos devolver, e pagando muito caro; nos escapa à primeira vista; e precisamente esse imponderável
compreender que pretender fraudar lei invisível e onipresente é as torna mais poderosas; existe nelas previsão, logicidade, or-
ilusão própria de ignorantes; compreender que o mais forte não ganicidade e sabedoria íntima, que não incidem nos erros gros-
é o prepotente, mas sim o mais justo, e que o caminho do su- seiros da força bruta, há também equilíbrio espontâneo, que
cesso verdadeiro, permanente e durável, não é o dos arrivis- não se perde nos artifícios nem se enreda nas malhas da astú-
mos, tão admirados e seguidos, mas o do próprio dever. Evolu- cia. Na espada imaterial do arcanjo, lampeja, todavia, desco-
indo, o homem atravessou, na arte de conquistar os bens ne- nhecido poder que lhe permite vencer a revolta bestial de Lúci-
cessários à vida, a fase representada pelo método da força e, fer. Em presença do homem do dever, do homem evangélico
em seguida, a fase do método da astúcia. Agora, se não quiser, da paciência e do perdão, o homem da força ri-se sem dúvida e
com grande desvantagem para si, continuar na situação de in- o considera débil e maluco. Mas, envaidecido de sua força,
voluído, deverá entrar na fase representada pelo método da ho- iludido com sua astúcia, não compreende a estratégia do outro,
nestidade. Sem essa premissa, todos os sistemas coletivos que estratégia muito mais completa e profunda. A força do evoluí-
buscam justiça social mais completa contêm apenas ilusão, do reside na compreensão. A ameaça que pesa sobre o involuí-
mentira e pretexto para injustiças cada vez maiores. Sem esse do consiste na sua incompreensão.
fundamental progresso individual, é inútil acreditar em qual- No capítulo ―Tempestade‖, descrevendo a dolorosa fuga de
quer tentativa de progresso coletivo. um homem, dissemos que na hora do abandono, quando a ri-
queza e o poder falharam, o homem não estava sozinho como
XXIV. NOSSO LIVRE DESTINO pensava, mas a seu lado estavam seu passado e suas obras, pois
nossas obras nos acompanham. Estas, uma vez acabadas, repre-
A humanidade compreende exatamente duas raças bem dis- sentam impulso fatal que testemunha, fala e age por nós. Somos
tintas: a dos evoluídos e a dos involuídos. Insistamos mais um nós mesmos que, depois de havermos estado na posição de cau-
pouco nesse conceito, que, aliás, já desenvolvemos neste livro. sa, reaparecemos agora na de efeito. Suas fases de desenvolvi-
Não vá o leitor surpreender-se com o que pode parecer-lhe re- mento no tempo entrosam-se perfeitamente, pois representam o
petição. Nestes casos, o pensamento retorna, mas diversamente desenvolvimento de uma força e de um movimento. Dentro da
orientado, enriquecido de novas considerações, associado a no- fatalidade dessa lei, é-nos concedida a liberdade de escolher, re-
vas ideias, visto sob perspectivas mais amplas. Muitas vezes, a tificar e até mesmo de corrigir a trajetória. Mas esta, uma vez
repetição é apenas aparente, e a volta ao mesmo conceito se de- estabilizada, arrasta-nos. O involuído não o compreendeu ainda
ve ao fato de que todos os fenômenos obedecem ao mesmo e acredita-se senhor de ilimitado arbítrio, com capacidade para,
princípio. Especialmente nestes últimos capítulos, o pensamen- a seu talante, fazer e desfazer os acontecimentos de sua vida.
to gravita em torno do mesmo centro (a Lei e seus equilíbrios), Míope, vive apenas do efêmero presente. A estratégia do evolu-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 225
ído adere à realidade muito mais profunda das coisas, equilibra- haver completado o ciclo experimental. A liberdade é interior,
se com as forças da vida e, no passado e no futuro, abrange está no íntimo da personalidade, no reino das motivações, e daí
muito mais vastos períodos de tempo. Dessa estratégia mais a atividade se dirige para a periferia, expandindo-se no mundo
ampla participa a consciência pura, fator sem dúvida estranho à exterior da manifestação, que constitui o reino do determinis-
luta (se a tomarmos na acepção vulgar), em que a honestidade mo. Assim, vincular-se ao determinismo, ou extinguir-se nele,
não serve de ajuda, mas de estorvo. O mundo de hoje confunde corresponde às características dos dois mundos, interior e exte-
arbítrio com liberdade e, quando clama pela liberdade, intima- rior, que as forças motoras dos nossos atos percorrem, nascendo
mente deseja o arbítrio, o abuso, a licenciosidade; não compre- no primeiro, bem no íntimo da personalidade, e exaurindo-se no
ende que, exista ou não autoridade humana, estamos, isso sim, segundo, na periferia, no mundo exterior.
permanentemente enquadrados nas invisíveis leis da vida; não Com a constante germinação de novas ações, continuamente
sabe que a autoridade, o poder e a hierarquia dessas leis jamais nos aguarda liberdade intacta e permanentemente nova, porém,
diminuem. O mundo de hoje, infelizmente involuído ainda, não na fase de sua maturação, um fardo de fatalidade sempre nos
compreende como essa desordenada agitação chamada liberda- acompanha. Envolve-nos como a atmosfera, formando uma es-
de não atinja o objetivo previsto por quem a ela se entrega, isto pécie de casca dinâmica que nos aprisiona a personalidade. É a
é, libertar-se de encargos e sanções; não compreende como, nêmese da vida. Pode aniquilar-nos ou exaltar-nos, exatamente
através dessas sanções, a Lei cada vez mais fortemente o repele, como, ontem, queríamos que acontecesse hoje. Essas criaturas,
fazendo-o mais tarde sofrer tanto mais amargamente quanto tal como os filhos refletem as qualidades dos pais, testemu-
mais loucamente tentou rebelar-se. A história é essa. Quem nham o passado, querem viver, mostrar-se e agir tais quais são;
compreendeu as leis da vida sabe que a retidão constitui ele- e não podemos destruí-las nem fazê-las calar. Gritam e querem
mento fundamental do sucesso verdadeiro e duradouro e que a como as queremos. Podem afirmar: este é inocente, ou então:
desordem e o arbítrio podem conquistar-nos apenas escravidão este é culpado. Podem bendizer e maldizer, premiar ou exigir
e dor, porque, dada a estrutura de nosso universo, só uma liber- punição. Se foram acionadas pelo bem, tenderão a salvar-nos;
dade se torna possível: a liberdade segundo a Lei. A liberdade se foram acionadas pelo mal, não se deterão enquanto não hou-
em desacordo com a Lei é impossível. verem conseguido nossa desgraça. Isso acontece porque repre-
Observemo-lhe o mecanismo. As forças que no passado fo- sentam causa que exige o correspondente efeito, impulso dese-
ram postas em movimento por nossas ações, uma vez em jogo, joso de esgotar-se na direção em que o lançaram. Seja qual for
representam vontade autônoma, impulso que, por inércia, tende a sua natureza, boa ou má, tenderão sempre a seguir seu cami-
automaticamente a continuar movendo-se e a nos levar para a nho até o fim e apenas sossegarão quando houverem consumido
frente, segundo a direção inicial. Se, a princípio, movimenta- todo o impulso recebido. Na realidade, o bem e o mal existem
mos nossas obras, agora elas é que nos movimentam, arrastam- personificados nessas forças. As do mal nos perseguirão como
nos para onde ontem queríamos, e não para onde queremos ho- as Fúrias coléricas, gritando aos quatro ventos as nossas culpas,
je. O passado não morre, mas revive sempre no presente. As e, pedindo vingança, se atirarão contra nós, mordendo e dilace-
nossas obras nos acompanham por toda parte. Em face dessa rando. A tragédia humana está repleta de exemplos disso. Co-
estrutura orgânica da vida (relação de causa e efeito a longo mo poderemos defender-nos de inimigo que está dentro de nós
prazo), por força da qual o presente se preparou no passado e o mesmos? Impossível fugir-lhe, impossível fazê-lo calar-se. Não
futuro se prepara no presente, a filosofia do ―carpe diem‖ é ma- há barreira de força ou de astúcia capaz de detê-lo. Eis que o
nifestação de inconsciência. A liberdade, que imaginamos sem- armadíssimo involuído agora está desarmado, o lutador não sa-
pre virgem e completa, assim o é apenas na fase inicial de nos- be mais lutar, o forte está intimamente minado e gasto; eis que,
sas ações. Não pode ela permanecer indefinidamente no terreno através das vias sutis do imponderável, o involuído é vencido
neutro da escolha, então fixa-se, condensando-se no determi- pelo fato. Amedrontado pelo impalpável inimigo que ele não
nismo representativo do encadeamento, por continuação, ao consegue entender, sofre e, examinando-se, procura entender.
impulso realizado, que, uma vez iniciado, constitui uma força Essas forças são inexoráveis, são o destino, representam a lei de
em nosso destino; dessa forma, a liberdade é ligada às conse- Deus, a inviolável justiça que tentamos violar e fatalmente põe
quências do impulso, cuja continuação já se torna impossível as coisas de novo em seu lugar. Os recursos humanos clamam
impedir, a não ser com novo impulso corretivo contrário. As- contra esses poderes silenciosos do fato, que aniquilam toda de-
sim, as obras que fizemos espontaneamente tornam-se vivas e, fesa, transpõem qualquer porta, seja do rico, seja do pobre, do
como se fossem animadas de vontade própria, são ativas e, na poderoso ou do humilde. Apenas uma coisa detêm esses pode-
qualidade de criaturas nossas, agem por nós. Nossa personali- res, uma coisa inofensiva como o dedo de uma criança, leve
dade é fenômeno contínuo, em que os momentos sucessivos de como a asa de um anjo, imponderável e suave como uma prece:
seu futuro se ligam estreitamente e cujas forças, por nós susci- a inocência. Ser inocente! Essa coisa tão pequena se ergue dian-
tadas, uma vez determinadas e colocadas em ação, não podem te do esmagador poder da força e o detém, porque isto é o que a
ser anuladas depois, enquanto não se desenvolverem e se esgo- Lei quer: que o honesto encontre defesa e a justiça triunfe.
tarem completamente. Essas forças constituem nossa força, tan- Se, ao contrário, em nosso passado não pusermos o mal,
to em qualidade como em quantidade; desse modo, o passado e mas o bem, as criaturas por nós geradas serão de natureza to-
o presente participam de nós. Representam a definição de nós talmente diversa. Com o passar do tempo, elas também cres-
mesmos, a coisa consumada, difícil de mudar, e vivem em nos- cerão, tornar-se-ão maduras para produzirem seu efeito no
so destino sob a forma de fato, mas não como realidade absolu- mundo exterior das manifestações causais e, em lugar de cer-
ta, pois, pelo contrário, é sempre susceptível de retoques e mo- car nossa vida de inimigos que vomitam dor sobre nós, esta-
dificações no incessante movimento da vida. No entanto vamos rão ao nosso lado, cariciando-nos, protegendo-nos, encorajan-
vivendo, e todo fato novo que nos acontece a cada dia, se já não do-nos, como bons amigos nossos. O involuído ignora que o
o vinculamos, é livre, mas vivendo-o, a ele nos ligamos por presente não se improvisa nem se constrói à custa apenas do
meio de nossas ações. Assim vivemos com a nossa liberdade presente, mas se compõe em grande parte do passado, e que a
vinculada a isto ou àquilo, enquanto o impulso não se esgotar e vida, no seio de organismo complexo e perfeito como o uni-
a trajetória não desaparecer. Mas o fio da vida, desenovelando- verso, não é louca aventura, mas desenvolvimento lógico e
se, sempre traz consigo nova liberdade virgem, que sucessiva- orgânico. Nada se tira do nada, mas todas as coisas vão e vol-
mente vamos vinculando e cristalizando no determinismo, até tam nas ondas do tempo, se ligam aos grandes ritmos da Lei,
que a abandonemos assim cristalizada no passado, depois de se entrosam em suas causas – de que, aliás, não podemos
226 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
prescindir – e não podem progredir senão por graus e por fa- mental do indivíduo é a tal ponto respeitada, sem lesar o princí-
ses: germe, desenvolvimento, manifestação, exaustão. No pio de responsabilidade, que ele pode sempre separar seu desti-
universo tudo se entrosa, e isso por força da lei de causalida- no do destino alheio, conservando completa autonomia de traje-
de, que a tudo liga no decorrer do tempo. Nada vem à luz do tória em meio do mais complexo entrelaçamento de forças, e
sol senão através de filiação, isto é, através dessa derivação atingir os objetivos que quiser, gozando da liberdade de perder-
causal, por força da qual tudo revive sempre, indestrutível nas se em meio à salvação geral ou de salvar-se em meio da perdi-
consequências em que necessariamente se continua. Como no ção universal. O resultado é garantido, quer o do bem, quer o
filho se desenvolve o pai, na árvore a semente e na ação o mo- do mal. O justo pode, portanto, avançar com seu binário, mes-
tivo, assim também, por entrosamento individual, toda causa mo se for colocado num mundo de demônios. Perante Deus, o
continua no seu efeito. Em seu movimento evolutivo através que vale é o seu passado, suas obras, seu merecimento. A Lei
do tempo, todo fenômeno oscila entre estes dois extremos de responde no mesmo tom em que a chamarmos e é rica a ponto
um dualismo que não se isola numa forma impenetrável (prin- de possuir qualquer tom. Ao justo torna-se possível, assim, ape-
cípio-fim), mas se articula continuamente, no termo final, com lar não mais para a força ou a astúcia, sistemas de luta por ele
novo termo inicial e assim se prolonga até o infinito. superados, mas para a justiça divina e dela receber a resposta
Portanto, se, por lei de causalidade, tudo é filho do passado, adequada, isolada em meio a vasto oceano de respostas diferen-
a vida nos aparece então como jogo amplo e complexo, de pro- tes, sendo-lhe possível receber tratamento de bondade e de sal-
longada preparação, no qual a vitória é determinada por dina- vação em meio de cataclismo universal. Assim, o evoluído po-
mismos acumulados que afloram de um depósito interior, reple- de caminhar de acordo com destino todo seu, independente do
to ou vazio, rico de provisões boas ou más, úteis ou venenosas, destino de seus semelhantes e, até mesmo, de sua própria hu-
o misterioso depósito da alma, que passa despercebido ao invo- manidade. Enquanto os demais, devido aos seus métodos de lu-
luído. As posições terrenas são aparentes e enganam. Assim, ta, destroem-se mutuamente, arrastados pelo turbilhão da força
quanto à substância, pode o pigmeu ser um gigante, e o gigante e ligados à própria destruição pelo ódio recíproco, o evoluído,
ser um pigmeu. Eis a força invisível de tantos inermes, a gran- isento das culpas do mundo, poderá seguir um destino todo seu,
deza recôndita de tantos humildes. A posição humana exterior é de alegria e de paz. As forças do imponderável terão formado
fictícia. A casa interior pode ser habitada por amigos ou inimi- em torno dele uma camada protetora, uma defesa salvadora,
gos, pelo bem ou pelo mal, por anjos ou demônios. Eis a arma que o tornará invulnerável, porque inocente, em meio dos mais
moral do evoluído: as boas obras, o cumprimento do dever. Isso graves perigos que arrastam os outros.
o isentará das sanções e o inocentará das culpas. Nosso passado Deixemos aos juristas o estudo das vias da justiça humana.
já está feito. Ele traçou a trajetória de nossa vida. Do mesmo Preferimos aqui nos ocupar do estudo da justiça divina, onde
modo que, após longa evolução biológica, foi construído nosso reside a gênese das adversidades que nos golpeiam. Que im-
atual tipo biológico tal como ele é, resistente a toda deformação porta o instrumento que no-las inflige, se ele mesmo muitas
rápida e a toda mudança, assim também, depois de longa cami- vezes lhes ignora as causas? O importante é possuir a chave do
nhada, formou-se e definiu-se nossa constituição moral, reser- mistério e resolver o problema de saber evitar o dano. O siste-
vatório de instintos alojados no subconsciente e radicados em ma da justiça divina é sumamente respeitador da liberdade in-
passado remoto. A forma é definida, mas não definitiva, pois o dividual, porém absolutamente inflexível no campo das res-
transformismo continua em processo, e nada pode jamais con- ponsabilidades. Contudo a liberdade inicial é inviolável. De
siderar-se imutável. Permanece sempre aberta a porta da expia- acordo com a Lei, a base do fenômeno social é o individualis-
ção e da correção, porque a liberdade, embora presa às conse- mo, sendo que o fenômeno coletivo representa, pelo contrário,
quências do passado, mantém-se inviolada e inviolável, sempre um agregado, um organismo de individualismos que, embora
capaz de dar novos impulsos ao destino e, através de novos es- se combinem tendo em vista destino global mais vasto, perma-
forços, corrigir-lhes, a seu bel-prazer, a trajetória. O futuro é necem separados e inconfundíveis. A necessidade de o indiví-
sempre livre, se lhe tiramos o peso do passado que nos inibe. duo assumir determinada atitude em relação à sociedade não
A característica principal desse mecanismo de forças con- lhe tolhe, de fato, a autonomia mais completa. Por essa razão
siste na possibilidade de isolarmos nosso destino do destino cada um de nós pode revelar-se e afirmar-se de acordo com a
alheio. Ao lado de cada um de nós falam e agem nossas pró- sua própria natureza. O rebanho tem plena liberdade de andar
prias obras, e não as obras alheias. Cada qual pode semear no cegamente à deriva, à mercê dos seus elementares impulsos
seu terreno o que quiser, e ninguém pode semear por nós. A animais, e o sábio pode, se quiser, estabelecer-se no deserto e
semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória. Portanto livres, aí realizar sua vida independente. Trata-se de independência
mas responsáveis. Completa liberdade para semear o bem ou o interior, e nela as construções humanas exteriores exercem in-
mal; absoluta obrigatoriedade de colher o fruto da semente que fluência relativa. Desse modo, entre indivíduo e massa podem
se lançou ao solo. Por isso o sábio procura, em causas profun- abrir-se hiatos abissais, que não se preenchem, e a evolução
das e remotas, as raízes de sua situação atual e prepara, com pode impelir o solitário hiperevoluído e vidente para fora da
grande antecedência, o seu futuro. Não tem importância que os órbita dos destinos normais, ao ponto de fazê-lo transpor as
outros ignorem essas leis. Quem erra paga na mesma moeda e, fronteiras da raça humana e entrar no domínio de humanidades
pagando, aprende. Mas a maravilhosa justiça da lei divina con- evolutivamente superiores à nossa. Esse tipo de ascensão é
siste em cada um de nós permanecer livre e, seja qual for o am- biologicamente possível. Que faz então esse indivíduo? Tendo
biente em que viva, poder, à sua vontade, perder-se ou salvar- percorrido o ciclo das provas terrestres que os demais estão
se. A beleza de tudo isso consiste no fato de que essa liberdade apenas iniciando, já conquistou a sabedoria pela qual os outros
é sempre garantida e o indivíduo permanece independente, ainda vivem, lutam, sofrem. A Terra naturalmente não é mais
sempre absoluto senhor do próprio destino, para construí-lo a o seu reino. Acabado o seu trabalho de expiação ou missão e
seu modo, em qualquer tempo e lugar. Assim, num mundo em cumpridos todos os seus deveres para com os seus irmãos me-
que o ignorante involuído, através de seus sistemas, impera e nores, nada mais lhe resta senão partir. A Terra não lhe inte-
triunfa, ninguém pode impedir ao evoluído, que não é ignoran- ressa mais, porém aos outros interessa. Na Terra, ele se sente
te, de escolher seu caminho, segui-lo e colher frutos copiosos. estrangeiro e o é mesmo, sendo tratado como tal. A vida hu-
Conforme a ação praticada, assim a Lei dá a cada um a resposta mana, para ele agora inaceitável, expulsa-o de seu seio.
adequada e funciona ao mesmo tempo, mas de modo diferente, Já noutros trabalhos insistimos e jamais cansaremos de in-
em planos e formas diversos. Desse modo, a liberdade funda- sistir nos deveres do irmão mais velho para com os irmãos
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 227
mais novos; a toda superioridade são inerentes pesadas obriga- isso, não podem mudá-los. Nem a vida nem a ascensão podem
ções, fadigas que não assoberbam os inferiores, deveres que se ser detidas. Poder-se-á rechaçá-lo e até mesmo matá-lo, porém
cifram em obras, renúncia e exemplo. Tarefas pesadas pesam não se poderá destruí-lo. Nenhuma força pode mudar-lhe a na-
na vida do evoluído; ele o sabe e afronta o sacrifício. Por força tureza nem impedi-lo de continuar sendo o melhor. Em deter-
da lei de fraternidade, é permitido que o involuído usufrua dele minado ponto, as amarras do mundo, dolorosas amarras, se
gratuitamente, desfrutando de graça o sacrifício do mártir, que rompem. Ele não tem mais o que dizer, dar ou fazer. O céu o
ele mesmo, muitas vezes, é o primeiro a agredir e a sacrificar. espera. Embora devesse servir e sofrer preso ao mundo, ele há
Isso não deixa de ser justo. Essa lei de fraternidade participa da muito tempo, pelo peso específico, se distinguia da massa, in-
estrutura do universo, como consequência de sua organicidade capaz de compactuar com a maioria e de integrar-se no reba-
e hierarquia na unidade do todo. É, pois, fundamental e inex- nho. Finalmente, tudo chega ao fim, toda obrigação se esgota, o
tinguível. Mas a própria lei de justiça limita essa doação fra- sacrifício se consuma: ―consumatum est‖. Com essa apoteose
terna, que ameaça transformar-se na destruição das mais im- no terreno do super-humano, fecharemos este livro.
portantes conquistas da vida, representadas pelo tipo biológico Ao lado de seu modo especial de conceber a vida, exata-
do evoluído. A natureza protege os seus valores, e este, mais mente a dor constitui uma das notas características do evoluído.
do que todos, deve ser protegido, por ser o mais custoso e pre- Por que razão o super-homem é condenado a sofrer mais do que
cioso. As vias do evoluído são diferentes das vias da maioria, a o homem comum? Exatamente por motivos inerentes à sua po-
trajetória de seu destino projeta-se francamente para fora da sição. Se as verificações precedentes tendem a reafirmar os di-
órbita das experiências terrestres normais, as distâncias se reitos do individualismo em face da moderna tendência coleti-
acentuam, as formas mentais não se compreendem mais. O vista, que tenta reabsorvê-lo, devemos reconhecer o esforço e a
evoluído torna-se um bólido que, lançado no espaço, emigra fadiga que isso representa. Os coletivismos oferecem à preguiça
do plano humano. O evoluído iniciou espontaneamente essa do homem normal a comodidade de confundir-se e esconder-se
ascensão, que agora o envolve e arrasta. A estrutura desse jogo nas massas, de deixar-se guiar e arrastar pelos líderes, de en-
de forças o leva agora ao ponto crítico, que consiste nessa cé- contrar proteção no número; tudo isso constitui o instinto su-
lula já madura destacar-se da massa imatura da humanidade. premo e a defesa da nulidade. Nada nos causa mais piedade do
Considerados a constituição e o funcionamento desse dina- que ver essas almas pensando em série, vivendo de imitação;
mismo, em dado momento ninguém pode impedir a inexorá- essas consciências nutrindo-se de produtos já confeccionados e
vel, fatal, separação dos destinos e dos trabalhos. Então, tendo anulando-se no número. Kant dizia: ―É apenas máscara de ho-
cumprido a tarefa, o evoluído vira as costas para o mundo e vai mem pensando com o sistema alheio‖. A sociedade constitui-se
embora, abandonando-o às suas próprias forças, para que ele, à em grande parte de máscaras, isto é, de rostos fictícios; por de-
custa do próprio esforço, como é justo, e não do alheio, conti- trás deles não existe personalidade alguma. Os coletivismos
nue o caminho da própria evolução. O individualismo, que protegem e encorajam essa nulidade. Podem tornar-se até mes-
constitui o substrato da organização social e a dirige, recobra a mo via de acesso para a irresponsabilidade. E o indivíduo, con-
supremacia. A justiça divina exige e impõe a reafirmação dos fortavelmente, abandona parte da liberdade, com o fito de exi-
direitos do solitário, incompreendido e espezinhado. Então, o mir-se à correspondente porção de responsabilidade. Chega-se,
material biológico elaborado e complexo se destaca do materi- desse modo, à exploração do progresso, ao parasitismo indivi-
al primitivo e rústico. Tendo-se tornado diferente nos instintos dual do coletivismo, em que o indivíduo inepto se enquadra de
e na raça, deseja ardentemente reencontrar indivíduos de seu bom grado, a fim de abandonar-se à indolência. No entanto, de
tipo, inencontráveis na Terra; suspira por mais elevadas e ade- quanta liberdade goza o indivíduo individualista! Por outro la-
quadas formas de vida. Deixa de lado todas as questões do do, quantas iniciativas e responsabilidade não lhe pesam nos
mundo; não o interessam mais. Não se incomoda mais com os ombros! Essa posição oposta constitui o antídoto apto a aniqui-
tipos de problemas das pessoas que o habitam, não lhe dizem lar os parasitas de todo sistema, sempre prontos a tirar proveito
mais respeito. Os problemas mais torturantes, pelos quais a dele, escondendo-se em seus ângulos mortos. O individualismo,
humanidade tanto sofre e luta, os sistemas sociais, econômicos, pelo contrário, ressalta, expõe às vistas, porque isola e, isolan-
políticos, não mais lhe atingem em seu frágil invólucro corpó- do, define os responsáveis, quer dizer, os conscientes. Se, de
reo, prestes a ser por ele abandonado. Então, se ainda quiser- um lado, o enquadramento orgânico das massas consegue edu-
mos seguir o indivíduo selecionado nessas ascensões biológi- cá-las, oferece também o perigo de transformá-las em rebanhos
cas, absolutamente excepcionais, fora-de-série e extramassa, de indivíduos mantidos pelo Estado, de escravos que obedecem
deveremos virar as costas para o mundo e aventurar-nos em ter- para poder viver como vagabundos; oferece, outrossim, o peri-
reno que o leitor comum achará irreal e desinteressante, em ter- go de suprimir ou abrandar a luta mestra da vida. No momento,
reno que penetra no imponderável e no inconcebível. Chega-se, o super-homem é o indivíduo menos enquadrado e mais isola-
desse modo, fora da órbita humana, a uma atmosfera rarefeita, do que pode existir e, por isso, o mais exposto, embora seja o
de natureza diferente, em que se tornam atuais as atitudes remo- mais livre e o mais consciente. Sua vida é tipicamente antipa-
tas. Tudo quanto nos preocupou até agora permanece lá embai- rasitária completamente descoberta, bem afastada de agrupa-
xo, nos pântanos da Terra. À força de lutar, sofrer e ascender, o mentos protetores, de concessões cômodas e de cambalachos.
evoluído penetrou em nova forma de vida, que aos olhos dos É a vida mais nobre e gloriosa, mais seletiva e criadora, mas
demais surge como remoto e inatingível sonho. Para que pudés- também a que mais fatiga. Sua vida significa alta tensão levada
semos continuar, depois de esgotado o exame dos problemas ao espasmo, bem-estar material sacrificado à ideia; significa
terrestres, precisaríamos levar o leitor muito além do que lhe é aborrecimento, luta, paixão, intensíssimo trabalho de constru-
possível conceber em relação aos problemas do céu. ção biológica. Não lhe é lícito abastardar-se no rebanho. Tudo
O evoluído está sozinho. Gênio, herói ou santo, o super- isso, se enriquece a vida, também a torna difícil e dolorosa. O
homem, por mais humilde e humilhado que seja, tem consciên- evoluído não pode furtar-se ao trabalho, vivendo de imitação,
cia de sua verdadeira natureza de indivíduo maduro e do natural nem resolver os problemas sem esforço, sem pensamento, sem
desequilíbrio que o leva a destacar-se da Terra. Os inferiores risco e sem iniciativa, à custa de atos coletivos em série, aban-
ignaros gostariam de rebaixar-lhe o nível até eles, por força dos donando-se à direção alheia, deixando-se ir à deriva. Não faz
mal compreendidos princípios de igualdade. Poder-se-á humi- parte do número, e o número protege.
lhá-lo, porém jamais fazê-lo retroceder. As classificações e os Consideremos agora outro fato. Seu utilitarismo é a longo
enquadramentos humanos não criam valores intrínsecos e, por prazo, enquanto o involuído, pelo contrário, quer compensações
228 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
próximas, imediatas. Por exemplo, observemo-lo em relação ao va-nos o poder espiritual. A dor pode piorar os maus, mas, sem
problema da autoridade, já tratado alhures. O evoluído, orien- dúvida, melhora os bons. Em algumas vidas, a dor é episódica,
tando sua atividade segundo o plano orgânico do universo, con- fenômeno incidental. Trata-se de primitivos. Noutras, a dor
cebe a autoridade como dever e como missão. O involuído, apresenta-se como plano fundamental que lhes dá sentido e va-
inorgânico, rebelde e egoísta, concebe-a tão-somente como lor, é estável, é fenômeno em profundidade. Trata-se, então, de
prêmio concedido ao mais forte, ao vencedor na luta pela vida. indivíduos maduros. A alegria constitui a experimentação dos
Parece-lhe natural o desfrutamento de toda posição de coman- inexperientes na vida, primeira experimentação elementar e
do, como também natural lhe parece o esmagamento do venci- juvenil. É ingênua, cheia de simplicidade, espontânea. Quando,
do. Na luta pela vida no plano do involuído, a autoridade cons- porém, a taça da alegria está cheia até às bordas, agora a lei de
titui atributo do vencedor, como a submissão é atributo do ven- evolução nos proporciona experimentação bem mais profunda,
cido. Ainda desconhece o conceito de justiça. Para ele, o de- a fim de nos fazer descobrir verdades mais recônditas e remo-
pendente é inferior, escravo que deve ser calcado aos pés e ex- tas, que ainda não podem ser reveladas aos primitivos. Quando
plorado, sendo absurdo considerá-lo irmanado no mesmo orga- o destino do evoluído se destaca da Terra e dos destinos dos
nismo, como indivíduo que, por isso, deve receber educação e demais homens, então a dor aparece como experiência dos
auxílio. Assim é que, através de compensação de equilíbrios, a maduros, dos fortes e dos justos, amadurecida, complexa e
autoridade raramente se apoia no amor de pai, mas se regula profunda, como verdadeiro campo de ação do evoluído. A ale-
pelo temor, e o dependente a tem, por isso, como inimiga natu- gria é atmosfera natural dos que há pouco começaram a viver,
ral. De fato, autoridade e subordinado, governo e súdito, são dos recém-chegados de graus inferiores de evolução. A dor é,
duas forças contrárias e complementares que reciprocamente se por sua vez, o ambiente normal dos velhos que exauriram toda
influenciam, se educam, se plasmam. Sem direitos, como o as experiências desta terra e, por isso, partem para mundos me-
consideram, ao vencido não lhe resta senão sofrer e esperar a lhores. Aqueles são inexpertos; estes são sábios, que aprendem
ocasião propícia para rebelar-se, rechaçar a autoridade e pôr-se a lição e terminam o aprendizado. As posições se invertem: pa-
em seu lugar, não para cumprir-lhe as obrigações, mas apenas ra aqueles, significa sujeição; para estes, desprendimento.
desfrutar-lhe as vantagens. E assim por diante, cada um por sua Quem parte e quem chega, quem deve viver nesta fase e quem
vez. O evoluído não pensa desse modo. À sua psicologia tanto já viveu nela, o involuído e o evoluído, dois estilos de vida.
esses métodos como o desfrutamento dessas posições repugnam Cada qual tem sua tarefa a cumprir.
extremamente. Seu utilitarismo é bem mais amplo e consciente; Estamos agora em condições de compreender que a diferen-
paira sobre esses efêmeros resultados, imediatos mas imorais. ça de raça entre involuído e evoluído não passa, em última aná-
Para ele, todo encargo social não constitui afirmação e amplia- lise, de diferença de idade. E também se nos torna fácil com-
ção do eu, mas função e serviço. Manzoni demonstrou havê-lo preender a razão de o involuído preferir o método de luta e o
entendido muito bem quando escreveu: ―Não é justa a autorida- evoluído inclinar-se para o da justiça. O método da força revela
de de um homem sobre os demais, senão quando se exercita no o primitivo, que, se a ele recorre, é porque é exuberante e inex-
interesse deles‖. Quando o evoluído respeita a autoridade sem perto, ou melhor, rico de energia e pobre de sabedoria. O evolu-
considerar-lhe o mérito, é porque a abrange em sua concepção ído, por sua vez, já chegou ao fim da estrada que o primitivo
de autoridade, embora ela não corresponda à realidade dos fatos mal começa a percorrer. Já está cansado, gasto; esgotou sua
e isso signifique, da parte dele, apreciação moral superior a que carga dinâmica, agora transformada em experiência. Pobre de
essa autoridade merece. O evoluído não julga, respeita; não dis- energia, rico de sabedoria. Permanece conscientemente sintoni-
cute, obedece. Em face de autoridade exercida com espírito in- zado com os princípios da Lei. Noutros termos, no físio-
voluído, o máximo que o evoluído faz é manter-se em respeito- dínamo-psiquismo, isto é, na evolução trifásica do universo, o
so absenteísmo, pois a isso o constrangem. Ao contrário, o in- involuído representa a fase dinâmica, e o evoluído a fase psí-
voluído subestima a autoridade, discute-a, julga-a, tenta conde- quica ou espiritual. A vida da humanidade percorre o trajeto
ná-la e, ao primeiro sinal de fraqueza, agride-a, a fim de apos- necessário à passagem de uma posição à outra, quer dizer, à
sar-se de suas vantagens. Estamos bem longe ainda do plano transformação da força em consciência. O evoluído já transpôs
superior de estima e fé, de compreensão e justiça, do plano em a passagem. O involuído ainda não, pois não sabe pensar senão
que os dois termos (autoridade e súdito) não se encontram na agindo, não concebe a ideia senão como fato, isto é, formal-
posição de rivais, mas na de colaboradores. Essa atitude de obe- mente concreta. Trata-se de elaborar matéria prima rude, forne-
diência e respeito (aí onde seria necessário, isso sim, defender-se cida pela força, que possui a carga dinâmica necessária para le-
por causa da existência palpável de agressão e defesa) constitui var a efeito a experimentação, em que essas forças paulatina-
no plano social um dos gravames da vida do evoluído. O poder mente se esgotam. O evoluído, por sua vez, apresenta-se com
humano possui recursos; o evoluído não. Todos aspiram ao co- material já elaborado; quanto a ele, esse impulso já atingiu o
mando; o evoluído obedece. Os outros se julgam cheios de direi- objetivo desejado, superando a sua fase de transformismo. Na-
tos; o evoluído só tem obrigações. Os demais homens trabalham da se perde, nada se destrói. Os jovens valem tanto como os ve-
em grandes grupos, compensando-se com riquezas e honrarias, o lhos, e os velhos tanto como os jovens. Trata-se apenas de posi-
evoluído trabalha em silêncio ignorado e pobre. Num mundo as- ções diferentes, com valores e qualidades diversos. A quantida-
sim, o evoluído não pode ser senão mártir. de transformou-se em qualidade; a obtusa e rude exuberância
Na sua vida, porém, há bem mais profunda e substancial tornou-se sabedoria consciente e refinada. Se o dinamismo bio-
causa de sofrimento que não esses desacordos de relações e es- lógico se degrada e esgota, vai mais tarde ressurgir, sob forma
sas incompreensões. E essa causa também é inerente à sua po- diversa, como poder espiritual. Apesar da equivalência substan-
sição. Pelo menos neste mundo, a dor constitui, sem dúvida, a cial, os dois extremos são diferentes e não conseguem harmoni-
nota fundamental da gênese. No pomar da vida, os frutos mais zar-se. Cada um dos dois condena aquilo que não possui, exalta
nutrientes ficam ao lado da sombra, mas entendamos: sombra aquilo que possui, dá valor a tudo de que necessita e despreza
segundo a matéria, luz segundo o espírito. A alegria não ali- tudo quanto não lhe serve. O sábio percorreu o ciclo, pois é
menta; a dor, sim. Só ela corta, escava, plasma e torna maduro, exatamente para isso que a força existe, serve e lhe foi dada. O
transforma e renova. Em resumo: revela e cria. A alegria dura sábio elaborou dentro de si um sucedâneo que, para quem como
muito pouco, nos rouba as energias e nos deixa completamente ele está desse modo transformado, a substitui com vantagem.
vazios e adormentados. A alegria é dissipadora; a dor nos leva Para o primitivo, forte mas ignorante, reservam-se os duros
de novo às fontes vitais, nos concentra e refaz as energias, ele- golpes consequentes aos erros praticados durante a experimen-
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tação, golpes não mais temidos pelo sábio, porque já aprendeu em abstrações filosóficas, e sim tornar a vida mais clara. Por
a evitar a prática desses erros. Que imenso dispêndio de energia essa razão, aos raciocínios complicados, preferimos simples-
para assimilar apenas algumas ideias! Isso nos mostra a impor- mente a linguagem do bom senso e dos fatos; aliás, Newman
tância e o poder da ideia. Não tivemos, para conquistá-la, de convenceu-nos de que ―a conclusão de um silogismo, sozinha,
empregar e consumir tanto dinamismo, de que a ideia é o equi- jamais convenceu alguém; jamais!‖.
valente? Isso nos demonstra a necessidade da compreensão so- Até agora, estivemos desenvolvendo argumentos que, de
bre que tanto insistimos. No plano do universo, portanto, a força preferência, se relacionam com a Terra e a vida coletiva (ou de
reduz-se a instrumento de experimentações, a reserva de energi- relação) no nível biológico dominante, ou seja, no plano do in-
as de cujo consumo depende a compreensão, isto é, a construção voluído. São, portanto, argumentos referentes a tentativas, a lu-
da consciência. De um lado, a força dos jovens; doutro, a expe- tas, a incertezas, em que se entremeiam o incessante e penoso
riência dos velhos. No organismo universal, cada coisa tem fun- trabalho de construir e de promover a demolição que possibilite
ção bem determinada e está no lugar exato. Os jovens valem pe- reconstruir, na cansativa tarefa de plasmar mil e uma vezes a
la posição que ocupam, e os velhos também. A vida obriga-os a matéria, a fim de, através de experimentos sucessivos, chegar à
trabalho alternado, que mutuamente se compense; durante o pe- compreensão. Estamos em pleno reino da força e da ignorância
ríodo em que suas qualidades encontram campo para manifestar- humana, dos violentos desequilíbrios da injustiça, no reino da
se, eles trabalham ativamente de modo a imprimir um cunho es- traição e da mentira. O evoluído penetrou no espírito da Lei,
pecial à história e a impulsionar de algum modo o progresso. aderiu a ele, repousa na paz de seus equilíbrios e na suave mu-
Todo ser pode sempre dar algo de útil. E o jovem audaz e bata- sicalidade de seu ordenamento; volta-se para trás horrorizado e
lhador, mas inexperto e inconsciente, vive para tornar-se o velho apenas suporta tal mundo porque a isso é obrigado, mas deseja
cansado e pacífico, mas sábio, às vezes por ele desprezado. ardentemente fugir. Procuremos acompanhar-lhe a fuga para
Dá-se com a força e a sabedoria o que se dá com a alegria e outros mundos, para outras realidades superiores que, embora
a dor. Estão ligadas estreitamente. A alegria juvenil, que nos para o mundo se afigurem sonhos, tão longe estão de nossa vi-
vem de sermos fortes, leva-nos, através da ilusão da vitória, à da, no entanto a iluminam, mostrando-nos a ordem perfeita rei-
realidade dolorosa de que nasce a sabedoria. Para o involuído, nante aqui embaixo também, porém não na superfície, onde, em
espontaneamente desejoso de alegria e senhor natural da Terra, caótica desordem, tudo nos parece fora do lugar exato. Ao lado
que é o seu mundo, a dor terrena é sufocação, asfixia, mutilação da vida exterior que tantos vivem, existe outra, interior, mas
da vida material, que constitui para ele todo o bem desejável. E, igualmente real e poderosa. Se a primeira se mostra mesquinha,
para o evoluído, que já se considera um desterrado na Terra, es- podemos, ajudados pela segunda, torná-la intimamente grande.
sa dor constitui a última experiência amarga num mundo supe- Embora não possamos mudar as condições de nossa existência,
rado, experiência que lhe abre as portas para a expansão da vida nossa conduta será capaz de enobrecê-la e nos possibilitará,
em outros mundos mais adiantados, únicos em que doravante com nossa flama interior, tornar luminoso até mesmo o ato
lhe é possível viver. Essa dor representa o meio de romper gri- mais simples e comum. O maravilhoso e o sublime podem a
lhões já por demais pesados e preparar futuro melhor. No céu, o cada passo nascer dentro de nós, nas circunstâncias mais hu-
evoluído encontra a alegria que o involuído procura e encontra mildes. A própria vida de Cristo entreteceu-se exteriormente de
na Terra. A festa da vida está sempre no amanhã, nesse futuro pequenos episódios, comuns e vazios de sentido, se considera-
melhor que, pelo menos relativamente, está na posição por nós dos em si mesmos, e determinados pela miséria espiritual de
ocupada. A dor, que o involuído amaldiçoa e teme, é amada e todos quantos o circundavam. E, todavia, sua vida continuou
abençoada pelo evoluído. O involuído tem a dor na conta de sendo sublime. Nossa vida é exatamente igual ao que somos. O
destrutiva; o evoluído a considera construtiva. Tudo depende do ambiente e as circunstâncias influem apenas na vida dos débeis,
sujeito. O sábio, que viveu e, portanto, sabe, não incide mais nas que não as dominam e, além disso, se deixam dominar por elas.
ilusões humanas e recebe a dor, utilizando-a na função criadora; Daí, em face da miséria espiritual, tantas coisas mais importan-
ri-se dos primitivos e de suas alegrias, que não lhes deixam na tes na vida passam despercebidas. Aí onde os indivíduos madu-
consciência senão saciedade, cinzas do cansaço e náusea. ros veem e fremem de entusiasmo, os outros passam desperce-
Eis aí várias causas da dor do evoluído. Se, muitas vezes, bidos de tudo, correndo no encalço de futilidades. Apenas
sua vida é trágica, a dor a transforma em altar de oferendas quando possuímos grande alma e nos anima grande paixão, nos
em que se consuma o holocausto supremo. E, enquanto os colocamos no mesmo nível dos grandes acontecimentos da vi-
primitivos se debatem entre a morte e a dor, o evoluído repre- da; aí, compreendemo-lhe o valor, respondemos às vozes su-
senta ardente chama de sacrifício a Deus. No incêndio, ele se blimes que vêm das profundezas do universo ilimitado, onde
consome feliz, pois sabe que, depois desta vida, vida muito cada qual vê e apreende conforme a própria acuidade visual.
mais sublime o espera. Assim, as verdades correspondem às vistas, às capacidades, à
evolução, e variam desde as mais grosseiras e materiais até às
XXV. O DUALISMO FENOMÊNICO UNIVERSAL mais refinadas e espirituais. Onde um sussurra e chora porque
percebe a mão de Deus, aí mesmo outro sorri e despreza, por-
No capítulo anterior resolvemos o debatidíssimo e contro- que não percebe e não compreende coisa alguma. Todos se aba-
vertido conflito entre determinismo e livre-arbítrio, descendo às lançam a julgar; quem, no entanto, acredita estar julgando as
raízes de problema filosófico e prático, do qual em A Grande coisas, acusa e julga a si mesmo. O caos de opiniões é ordena-
Síntese apenas pudemos tratar por alto. Agora descemos às par- mento, equilíbrio, desordem que se harmoniza de novo num
ticularidades, cuidamos dos pormenores, entregamo-nos à ex- plano mais elevado, onde encontra possibilidade de acordo. Há
posição completa desse problema, impossível de fazer naquele quem ouça e há os surdos também. Todos nós apenas podemos
livro, destinado principalmente, como dissemos, a dar o rumo viver em nosso nível, de acordo com o que somos. A alma, a
geral e o quadro orgânico de nossa problemática. O leitor ali vida interior, é que dá ao homem a medida das coisas. O eu as-
poderá encontrar-lhe apenas a exposição sistemática. Vamos, semelha-se a um vaso que não pode conter nada além de sua
mas sempre de acordo com o esquema de A Grande Síntese, de- capacidade. Fiquemos tranquilos. O sublime não contagia. Os
ter-nos no exame de alguns pontos mais controvertidos, enri- grandes pensamentos, as grandes paixões, as grandes ações
quecendo-os cada vez mais e aproximando-os da realidade da permanecem solitários. O mundo está sempre pronto a compre-
nossa vida. Desenvolvemo-los e aprofundamo-los, mas também ender e aplaudir o que se encontra no seu nível. O melhor não
lhes damos aplicação prática, pois não objetivamos perder-nos pode afirmar-se senão lentamente e à custa de martírio, que não
230 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
chega a interessar o mundo. Diz Schuré em Sonho de Minha sar qual ritmo caracteriza e distingue as duas formas de vida. O
Vida: ―É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agu- mundo exterior, da matéria, da vida física e sensória, podería-
lha do que uma ideia nova penetrar no cérebro dos homens‖. E mos imaginá-lo caracterizado por ondas longas; e o mundo in-
Máximo Gorki acrescenta: ―Quem nasceu para andar de rastros terior, do espírito, da vida psíquica e intuitiva, caracterizado por
não pode conhecer a alegria do voo‖. Pior ainda nos faria pen- ondas curtas. Essas duas ondas existem nos fatos, sem dúvida;
sar em face dos heroicos pregoeiros da verdade, o rifão popular: mas é lógica a existência de onda típica individual, distintiva da
―Vulgus vult decipi, ergo decipiatur‖. personalidade, reveladora das notas fundamentais do caráter.
Em geral, o mundo interior fica entregue aos poetas, artis- Mais tarde, esses ritmos pessoais se entrosam e se fundem em
tas, místicos, isto é, à classe considerada mais ou menos inútil outros ritmos mais amplos: familiares, nacionais, mundiais etc.
pelos homens práticos. Desse mundo, no entanto, emana a Neles, a observação nos revela correspondências e oposições.
força propulsora do progresso, a única luz que nos ilumina e Nos países meridionais, por exemplo, ricos de calor e luz solar,
atenua a miséria da vida quotidiana, embora materialmente as forças vitais preferem revelar-se exteriormente, através de
muito rica. O evoluído foge para esse mundo mais adiantado e manifestações sensórias. Essa espécie de expansão forma tipo
aí se reencontra. Mundo espiritual, onde existe a única liber- humano fisicamente exuberante, expansivo, de inteligência vi-
dade que não se chama abuso e torna-se possível distender-se vaz e realista. Há, sem dúvida, entre raça e ambiente certa rela-
a tensão das férreas necessidades da vida material. Nesta, o ção de ritmo, que, neste caso, poder-se-ia chamar ritmo de on-
elemento moral é menosprezado e apenas palidamente aparece das longas. Nos países nórdicos, onde, pelo contrário, domina o
nos últimos planos; nesse novo mundo, ao contrário, guinda- frio e a umidade e a luminosidade são menores, as forças vitais
se aos primeiros planos, como fator fundamental. Trata-se de se expandem, de preferência, intimamente, sob formas reflexas.
dois mundos inversos e complementares, em que nossa exis- Isso determina a preponderância de tipo humano de inteligência
tência se divide e se completa, de acordo com a grande lei de dobrada sobre si mesma, introspectiva, menos viva, profunda,
dualidade. Até agora, os contrapusemos como duas posições nebulosa. Mesmo o desenvolvimento físico é mais lento. Esse
antagônicas, que mutuamente se excluem na conquista do diferente ritmo vital poderíamos chamá-lo ritmo de ondas cur-
campo da vida. Mais atento exame desses mundos em relação tas. É claro que, com o passar do tempo, os ritmos entre ambi-
a essa lei nos permitirá, até mesmo nesse dualismo, reencon- ente e indivíduos acabam por sintonizar-se, por viver simbioti-
trar a unidade, considerando os dois termos opostos como se camente; a coexistência (diríamos, mesmo, a coabitação) entro-
fossem os dois aspectos do mesmo princípio. Veremos tratar- sa-os e harmoniza-os; a personalidade absorve e incorpora, fa-
se de existência dúplice, de duas formas de vida, entre as zendo-o seu, o tipo de vibração dominante, conserva-o e, de-
quais o ser oscila em seu caminho evolutivo, de acordo com pois, torna a irradiá-lo, como se ela mesma o tivesse produzido.
as possibilidades da fase alcançada. O exame confirmará a lei, A vida é sensível e tudo registra, assimila, devolve. Assim, as
revelando-nos dela aspectos novos. manifestações raciais são típicas e diferentes, de Verdi a Wag-
Devemos reportar-nos ao Cap. XXXIX de A Grande Sínte- ner, do catolicismo ao protestantismo, de Dante a Goethe. O
se, ―Principio de trindade e de dualidade‖, cujo conhecimento ambiente concorre para dar seu tom característico à psique co-
presumimos. Aí, o leitor encontrará o mesmo problema agora letiva e aos líderes que a representam, de modo que as próprias
exposto, mas intimamente relacionado com a cosmogonia uni- atividades e funções se plasmam de maneira diferente. Mas, em
versal. Ao invés, destas páginas poderão derivar algumas apli- toda parte, mesmo nos campos mais disparatados, esse dualis-
cações e desenvolvimentos particulares, como, por exemplo, mo perdura. O pensamento da própria Igreja equilibrou-se entre
essas duas vidas, exterior e interior, de que estamos falando a tese e a antítese, entre Pedro e Paulo, isto é, entre a corrente
agora. Na ordem universal, todo fenômeno se apresenta como judaico-cristã de tipo particularista e a corrente greco-cristã de
campo de forças fechado, fato que lhe caracteriza a individua- tipo universalista, como se equilibrou, mais tarde, entre Agosti-
lidade e lhe limita a ação. O eu fenomênico está encerrado em nho e Tomás, quer dizer, entre a corrente platônico-intuitiva e a
seu ritmo interior, equilibrado em duplo e inverso movimento corrente aristotélico-racional. O próprio mundo está dividido e,
respiratório, em oscilação que constitui a base da íntima elabo- no entanto, unido entre os seus dois extremos, ou seja, entre a
ração chamada evolução. Essa bipolaridade é universal. Toda civilização ocidental, materialista, e a civilização oriental, pre-
unidade se nos apresenta como formada de duas partes iguais ponderantemente espiritualista. Toda unidade factual se deve ao
em que, contradizendo-se, ela se inverte e se compensa, mas equilíbrio de duas metades opostas e contrastantes. Por isso não
também encontra sua estrutura simétrica e equilibrada. Esse se pode falar que, dos dois elementos postos em presença um
vaivém de forças antitéticas em campo fechado, essa corres- do outro, este seja superior ou inferior àquele, e ao contrário.
pondência de antíteses e simetria, de inversão e complementa- Como já dissemos, relativamente a jovens e a velhos, um tipo
riedade, esse íntimo ritmo dualístico compõe a fisionomia que vale tanto quanto o outro. O dinamismo, que é o mesmo em úl-
o pensamento e a vontade da Lei imprimiram às individuações tima análise, assume formas diversas, mas substancialmente
fenomênicas, quer dizer, significam estrutura orgânica e funci- equivalentes. Enquanto num caso (ondas longas) se desenvolve
onal. É do que vamos tratar profundamente agora. O princípio como quantidade, noutro (ondas curtas) se desenvolve como
de ordem, fundamental na Lei, transforma o universo, desde o qualidade, isto é, encontra-se sob a forma de potencial ou pres-
fenômeno máximo ao fenômeno mínimo, em sistema equili- são. Já nos referimos neste volume (Cap. IX – ―Das Trevas à
brado, orientado, ritmado e periódico. Faz-nos, por isso, com- Luz‖) à relação dos efeitos dinâmicos entre amperagem e vol-
preender e sentir a criação como fato fundamentalmente har- tagem no campo da eletricidade, e entre volume e pressão na
mônico, rítmico, musical. mecânica dos líquidos. Reencontramos a inversão dos dois ex-
Embora tenhamos posto frente a frente as duas vidas, a ex- tremos no dualismo entre outras posições, como, por exemplo,
terior e a interior, a da matéria e a do espírito, a vida é una e os- luz e sombra, dia e noite, primavera e outono, equador e polos,
cila entre estes seus dois extremos inversos e complementares. verdade e erro etc., pois não existe ser algum que não contenha
Trata-se de duas formas comunicantes, de bipolaridade da vida. essa oposição de ritmos contrários.
É perfeitamente possível e verifica-se continuamente a passa- Continuando a observar, verificamos correspondências ain-
gem do mundo da matéria ao do espírito e ao contrário, que se da mais remotas e relações novas. O tipo espiritual, de expan-
completam através de funções compensadoras, atraindo-se por são interior, aparece-nos também como de sintonização notur-
força da lei de simpatia estabelecida entre os contrários. O con- na (cf. o volume As Noúres), azul, lunar, hipersensual e super-
ceito da musicalidade existente na ordem universal nos faz pen- sensória, inimigo da ação, da matéria, da vida física animal.
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 231
Esse tipo é esquivo, solitário, silencioso, sofredor, sensitivo, dade e decadência, não coincide com a trajetória da atividade
pacífico e, em relação ao mundo, negativo. É um ―não-ser‖, re- psíquica, que, quando o indivíduo evoluir ao ponto de possuí-
lativamente a este último. Ao contrário, é um ―ser‖ em face do la, se atrasa, isto é, floresce e definha muito depois da ativida-
imponderável, que é um ―não-ser‖ para os outros. Estes são de corporal, como se necessitasse, para melhor desenvolver-se,
constituídos pelo tipo material, de expansão exterior, de sinto- da atenuação dos processos da vida vegetativa. A maioria das
nização diurna, vermelha, solar, sensual e sensória, amiga da obras-primas surgiram quando os autores tinham de quarenta a
ação, da matéria, da vida física animal. Tipo audaz, sociável, sessenta anos. A morte seria, então, o caso-limite de máxima
bulhento, gozador, voluntarioso e agressivo, mostra-se positivo decadência física e de afirmação espiritual, a passagem com-
perante o mundo. Trata-se de atitudes relativas e opostas. Cada pleta de uma forma vital em ondas longas a outra em ondas
uma delas significa ou afirmação ou negação, que se invertem curtas. As duas vidas são inversas e opostas. Durante a perma-
relativamente à negação ou à afirmação do outro termo. Trata- nência na Terra verifica-se a oscilação entre uma e outra, con-
se de alta ou de baixa frequência. Em meio dos jejuns, das re- forme o poder adquirido pelo indivíduo em qualquer campo e
núncias e dos sofrimentos, os santos estavam sempre absortos de acordo, também, com o ritmo e o tipo de onda dominante
em contemplação, que é apenas visão interior. A espiritualida- em sua personalidade. Quanto ao involuído, em que preponde-
de, vida sutil de alta frequência e notas agudas, substitui a ra o desenvolvimento físico, não pode haver, sem dúvida, en-
animalidade, vida vegetativa de baixa frequência e notas gra- fraquecimento orgânico capaz de nos revelar uma espirituali-
ves; o baixo potencial transformou-se em alto potencial, ampe- dade nele inexistente. Mas, se a evolução a houver suscitado,
ragem em voltagem, o volume em pressão, a vida grosseira dos não podemos pôr em dúvida que o enfraquecimento físico pro-
sentidos na hipersensibilidade refinada, o mundo físico desma- gressivo, o desgaste da vida de ondas longas, favoreça a vida
terializa-se no imponderável. Os dois lados da vida continuam de ondas curtas. A vitória de uma se torna possível somente
sempre opostos e complementares. Reencontramos aqui a com o enfraquecimento correspondente da outra. Noutras pa-
mesma razão inversa observada entre força e sabedoria, entre lavras, o enfraquecimento orgânico pode funcionar como reve-
alegria e dor, entre jovens e velhos. A exuberância vital daque- lador da personalidade rica e profunda, mas preexistente.
les reside na força e na alegria, na expansão física; a destes es- Quando, porém, nada existe, como lhe é possível revelá-lo?
tá na sabedoria, na dor, na expansão espiritual. As lutas, as fa- Quanto à dor, acontece o mesmo. Se, na sua forma mais ime-
digas, as conquistas, tudo é diferente. Os sentidos das proje- diata e evidente, ela nos revela sua função preponderantemente
ções dinâmicas são diametralmente opostos. A vida oferece criadora, no entanto constitui prisão, asfixia e mutilação para o
dois lados opostos, em cuja complementariedade se completa; eu, que tende à expansão. Mas essa opressão que se exerce
desse equilíbrio lhe advém a unidade perfeita. num plano pode resolver-se em compressão capaz de elevar o
Todas as manifestações humanas adquirem essa colabora- potencial, a pressão, de transformar a frequência da onda, e is-
ção diferente e passam de um para outro tipo. Uma pessoa gos- so tudo ao ponto de obrigar a personalidade, quando lhe pos-
ta do que outra detesta; para uns é vida o que para outros re- sua os elementos, a expansão diferente, em plano de vida mais
presenta morte. O próprio Sermão da Montanha exemplifica a elevado, isto é, de fazer a vida do ser, desde que maduro, as-
mudança dos valores terrenos, considerados de ponto de vista cender da forma vegetativa animal à forma espiritual. A dor
material, em valores celestes, considerados de ponto de vista pode assim constituir instrumento de progresso, como quando,
espiritual. A própria morte, para o homem material, é morte barrando a passagem às fáceis ressonâncias inferiores dos jo-
apenas; para o espiritual, vida. É evidente o contraste. A vida gos materiais, abre as portas às sintonizações superiores dos
oscila do extremo do sadismo (onde a vitória consiste na afir- gozos espirituais. Trabalho mais difícil, esforço para atingir
mação egoísta, no esmagamento do próximo) ao extremo opos- tensões mais altas, porém elemento de progresso, pois o ritmo
to, do masoquismo (onde a vitória consiste na altruísta negação vibratório do espírito, em alta frequência, se reforça, se com-
do eu, no amor ao próximo, na tolerância, no sacrifício, na der- pleta, se estabiliza na personalidade. A personalidade sofre,
rota). A evolução caminha amparada por ambos os impulsos. debate-se, mas acaba sendo controlada e, assim, não consegue
Perguntamo-nos, então: relativamente a esse dualismo, em que explodir; é até mesmo constrangida a fazer uma conquista que,
sentido caminha a evolução da vida? Para os indivíduos, assim mais tarde, será sua e a levará a bendizer a dor, transformada
como para as famílias e os povos e, portanto, para a humani- em instrumento de progresso.
dade também, a vida caminha da juventude até à velhice, com Um esclarecimento se torna necessário agora. No leitor
todas as alterações de qualidade decorrentes dessa passagem. atento, que se lembra do Cap. XLVIII – ―Série evolutiva das
Essa passagem, aliás, significa inversão de características, exa- espécies dinâmicas‖ e o Cap. LXXXV – ―Psiquismo e degra-
tamente porque é mudança de posição de um extremo a outro. dação biológica‖, ambos de A Grande Síntese, pode surgir cer-
Por isso, a evolução da vida oscila entre o ritmo de ondas lon- ta dúvida se confrontar esses capítulos com frases como estas
gas e o de ondas curtas, o baixo e o alto potencial, a quantida- deste livro: ―O mundo da matéria podemos imaginá-lo caracte-
de e a qualidade, a baixa e a alta frequência. A evolução, por- rizado por ondas longas; o do espírito, por ondas curta... Trata-
tanto, nada muda à substância, mas somente à forma, e o que a se de alta e baixa frequência... Animalidade, vida vegetativa,
torna possível é um ritmo interior de frequência vibratória. A notas graves: baixa frequência; espiritualidade, vida sutil, no-
vida dos velhos não significa destruição, mas apenas inversão tas agudas: alta frequência. A evolução da vida caminha, por-
formal da vida dos jovens. As duas vidas, a espiritual e a mate- tanto, do ritmo em ondas longas ao ritmo em ondas curtas, do
rial, são inversas e, portanto, antagônicas; o enfraquecimento baixo ao alto potencial, da baixa à alta frequência. Na evolução
ou atrofia de uma condiciona o desenvolvimento da outra. No da vida é a onda longa que se funde na curta‖. Nos referidos
sistema compensado e equilibrado da natureza não pode haver capítulos de A Grande Síntese afirma-se, ao contrário, que, ao
hipertrofia sem a correspondente atrofia. Assim, verificamos longo da série das espécies dinâmicas, a frequência vibratória
constantemente existir relação inversa entre saúde física e vida diminui, enquanto a amplitude aumenta. Aí parece, portanto,
espiritual, tanto assim que, quando a vida tende a enfraquecer- que a evolução caminha para a diminuição de potencial, repre-
se na forma orgânica, também tende a sensibilizar-se e a mani- sentada pelo decréscimo da frequência vibratória e pelo au-
festar-se sob formas mais refinadas, em planos mais elevados; mento de amplitude de onda. Neste capítulo dizemos, pelo
por outro lado, em organismo fisicamente desenvolvido e exu- contrário, que a vida caminha das ondas longas para as curtas,
berante, geralmente não cabe vida interior sutil e sublime. A da baixa para a alta frequência, com elevação de potencial. Há
trajetória da atividade física, em seu desenvolvimento, maturi- contradição nisso? Não. Expliquemo-nos.
232 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
Cada uma das três fases evolutivas do nosso universo se re- sultado final de toda degradação não é a morte, mas a ressur-
solve, finalmente, em decomposição final, que, relativamente à reição em plano mais elevado. A entropia constitui apenas a
matéria, se chama desintegração atômica; para a energia, toma revelação do desgaste resultante do trabalho da elaboração
o nome de degradação dinâmica; e, quando se refere à vida, evolutiva, desgaste que desempenha também a necessária fun-
diz-se degradação biológica. E, de fato, a vida, considerada ção de destruir uma forma, que, por força da lei de evolução,
como dinamismo biológico, caminha para a baixa frequência e sempre progride e se aperfeiçoa. Não é verdade que por toda
o aumento do comprimento de onda, e isso até ao esgotamento parte, até mesmo em nós, em nossa vida como em cada um de
e à morte em seu caráter de vida vegetativa animal. Este é ape- nossos atos, encontramos sempre essa lei de morte e ressurrei-
nas um caso do fenômeno de entropia, isto é, da tendência dos ção? De outro modo não poderia haver renovamento e evolu-
fenômenos ao nivelamento dinâmico e à extinção na quietude. ção. A forma necessita de desfazer-se e refazer-se continua-
Essa entropia, se existe nos fenômenos, não é constante e per- mente para prosseguir no caminho ascensional do ser, que vai
pétua; se fosse, já teria feito sentir sua ação, e o universo já es- assumindo-as sucessivamente, de acordo com suas necessida-
taria morto, no entanto vemo-lo em contínuo progresso. Deve des. A morte condiciona a vida.
existir nele, e é lógico que exista em sistema equilibrado como Agora compreender-se-á mais facilmente o que neste capí-
nosso universo, a parte inversa e compensadora do fenômeno tulo estamos dizendo, isto é, como a destruição biológica con-
da entropia, isto é, tendência paralela e complementar à cons- duz à construção espiritual. Agora, podemos verificar como,
trução, reconstrução de potencial e de frequência, que equilibre apesar de toda forma tender a degradar-se na baixa frequência
e anule a tendência à destruição e à degradação de potencial e à e em ondas longas, ela se reconstitui mais tarde em uma forma
diminuição de frequência representada pela entropia. A forma superior, de alta frequência e ondas curtas. Eis por que, embo-
de toda fase evolutiva também se sujeita, sem dúvida, a desgas- ra a vida do indivíduo e a da humanidade se desgastem no cur-
te que termina em desagregação. Esta, porém, é apenas aparente so da juventude à velhice, em progressiva diminuição de po-
e não se verifica se tomarmos em sentido absoluto o termo. A tencial biológico, que caminha para a baixa frequência e as
destruição não incide na substância, mas apenas na forma, e re- ondas longas, desse desgaste nascem o espírito, a consciência,
duz-se a renovamento, condicionador da evolução. Na realida- a sabedoria, resultado de experiências da vida, cujo fruto é o
de, se os fenômenos diminuem de intensidade, se esgotam em espírito, em elevado potencial, alta frequência e ondas curtas.
sua forma atual, se desgastam, envelhecem e morrem, nem por A vida, enquanto vida apenas, caminha para a baixa frequência
isso se aniquilam e anulam. A substância de coisa alguma pode e as ondas longas; como espírito, porém, se reconstitui em on-
ser destruída; ressurge de outra maneira, e isso acontece exata- das curtas, rápidas e poderosas. No plano da vida, o processo
mente como resultado da elaboração da fase precedente, em que de enfraquecimento de frequência, alongamento de onda e de-
a forma se degrada, mas a substância evolui, impregnando essa gradação de potencial continua exatamente como dizem os re-
forma situada em plano mais elevado e igualmente real, embora feridos capítulos de A Grande Síntese, e isso até à exaustão e à
ela escape aos nossos sentidos. Esta ressurreição, sob forma di- morte. Desse processo, porém, surge o espírito, como produto
versa, da substância imortal é que se encarrega da reconstitui- sintético dessa elaboração biológica. É o que se afirma neste
ção do potencial, da alta frequência em ondas curtas. Assim, na capítulo. Parece que no fim de cada período evolutivo, do per-
desintegração atômica, a matéria não desaparece senão como curso de cada fase, desgastada a forma que lhe é própria, as
matéria, mas renasce na qualidade de energia de alto potencial e forças do universo se contraem e concentram-se em uma forma
frequência em ondas curtas (gravitação); do mesmo modo, no sintética, de potencial mais elevado e filha da forma preceden-
caso da degradação dinâmica, essa energia vai-se degradando, te, que morre. Assim, apesar de tudo, o ser se fortalece, se
de gravitação passa a eletricidade. Aniquila-se como potencial, aperfeiçoa, cada vez mais se reaproxima de Deus. Isso porque
frequência e comprimento de onda, mas finalmente morre como a degradação não passa de processo negativo de anulação da
energia e renasce sob a forma de vida. Se considerarmos a de- forma, anulação aparente, de que nada subsiste senão a forma
gradação biológica, veremos que por sua vez a vida se desgasta, renovada e outro trecho percorrido no caminho da evolução. A
enfraquecendo-se como potencial, frequência e comprimento de degradação é, na realidade, apenas íntima elaboração constru-
onda, mas por fim não se extingue senão na qualidade de vida tiva, e seu resultado não é a extinção, mas a evolução. O de-
vegetativa animal e renasce, como espírito em fase mais adian- senvolvimento de determinada fase evolutiva é um percurso
tada, em nova e mais evoluída forma de existência, de alto po- expansionista, caminhando do centro para a periferia; mas é
tencial, alta frequência e ondas curtas. E assim por diante. também um caminho que, no fim de cada um desses períodos,
O fenômeno da entropia não representa, pois, toda a evolu- implica ter sido percorrido intimamente um caminho inverso,
ção, mas apenas o período destrutivo da forma de uma fase com que o fenômeno evolutivo se compensa, completa e ree-
evolutiva, período que constitui a aparência e o efeito de ínti- quilibra, porque, contemporaneamente, percorreu no seu outro
ma elaboração a ele correspondente na intimidade do fenôme- polo um caminho da periferia ao centro. Assim, a manifestação
no e representa correlato período reconstrutivo, cujo resultado jamais termina em dispersão por afastar-se de sua fonte; pelo
é o nascimento da nova forma, mas em fase mais adiantada. contrário, é novamente atraída pelo poder divino, que tudo re-
Assim, a evolução recomeça a marcha e, em meio da destrui- ge, e reconduzida ao contato com as forças diretivas de que o
ção da forma, a substância progride desse aparentemente mis- outro lado do processo tendia a afastá-la. Sem esses equilíbrios
terioso meio de recuperação de energia, que outra coisa não é compensatórios, o universo se esgotaria por degradação. A
senão a resultante dos equilíbrios das forças do sistema. A en- própria lei de dualidade nos mostra a estrutura desse fenômeno
tropia, portanto, é apenas aparente, a aparência assumida pela de compensação. Se de um lado há degradação, do lado oposto
realidade do transformismo evolutivo. De fato, não se trata de deve necessariamente existir reconstrução. Assim acontece na
dispersão nem de nivelamento, mas de elaboração. O processo verdade, e os resultados, que não significam morte, mas vida,
de reconstrução se desenvolve subterraneamente e nada tem de põem-no em evidência. Trata-se apenas de dois momentos de
científico, mas o resultado aparece-nos como nova forma que, processo evolutivo único. Por necessidade de equilíbrio, de-
mais poderosa, renasce em plano mais adiantado. Chamamos vem ser inversamente proporcionais. O nascimento implica na
entropia à destruição apenas da forma, condição de renova- morte; a morte, na vida. A degradação biológica constitui con-
mento evolutivo. A parte inversa e complementar do fenômeno dição do processo genético do psiquismo, como a degradação
se encarrega de reconstruir, equilibrando-o em seus dois mo- dinâmica se revela condição do processo genético da vida e a
mentos inversos e complementares. Prova-o o fato de que o re- desintegração atômica condiciona o processo genético da
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 233
energia. Os dois momentos são pressupostos um do outro e re- no da noite, enquanto que, para os tipos em ondas longas, ela
ciprocamente se impõem. Cada fase acaba degradando-se. está no mundo, no reinado do dia. Há, pois, temperamentos
Nasce jovem, de elevado potencial, ondas curtas e alta fre- adequados a viver na vida e temperamentos adequados a viver
quência, e morre velha, de potencial baixo, ondas longas e bai- na morte. Nossa própria vida cotidiana se divide em dois turnos
xa frequência. E, ao morrer, gera fase de ascensão mais adian- diferentes: o dia, vida física, prática, concreta, sensória, à luz
tada e mais próxima de Deus. Essa lei se estende a todas as solar, em ondas longas; e a noite, vida espiritual, de sonho, in-
coisas. Esclarecido esse ponto, continuemos. corpórea, no imponderável, à luz azul, lunar, em ondas curtas.
Quem a experimentou sabe muito bem que a vida espiritu- A vida é contínua; de dia vivemos a vida dos vivos, de noite a
al, em que reside o futuro biológico, se caracteriza pela alta vida dos mortos. As duas faces inversas do mesmo fenômeno se
tensão; sabe também a fadiga que representa ser constrangido alternam. E, enquanto uma forma prepondera, a outra se atenua
a elevar o próprio potencial, a habituar-se a vibrar em ondas e espera o seu despertar. De noite, a vida física adormece e se
curtas e em alta frequência. Exprimindo-se assim, procuramos afirma a vida interior, intuitiva, vidente. De dia, a vida interior
dar a entender mais facilmente aquilo em que consiste a evolu- permanece entorpecida, deixando o campo livre àquela. Trata-
ção, traduzindo em termos científicos o fenômeno de espiritua- se como de duas linhas de visada diferentes, mas tomadas pelos
lização, que, em geral, não é entendido lato sensu 46 como fe- olhos da mesma pessoa: uma durante o dia, míope, capaz de
nômeno biológico, mas apenas no caráter de fenômeno religio- perceber todas as minúcias dos objetos próximos, precisa, con-
so. O ritmo vegetativo da animalidade mostra-se mais lento, creta; outra durante a noite, presbita, boa para distinguir os ob-
menos fatigante, menos potente, é de ondas longas e baixa fre- jetos afastados, as visões panorâmicas, mas vaga, sonambúlica,
quência. O sofrimento, que amadurece e desmaterializa, ex- onírica. As horas da madrugada são as mais profundas, as me-
prime o esforço de habituar-se a viver em ritmo mais rápido e lhores para a atividade espiritual e, por outro lado, as piores pa-
intenso, mais laborioso e fatigante, porém mais potente. A evo- ra o enfermo que sofre no plano físico, são aquelas em que ge-
lução constitui, em substância, aceleramento de frequência de ralmente o homem morre, pois compreendem o período de
vibração; a dor aí funciona como excitante, espécie de trans- maior depressão do dia todo, de ritmo vibratório mais curto, o
formador de potencial. Através da evolução, a substância per- mais afastado do ritmo longo, lento, vegetativo, diurno.
manece idêntica; a quantidade transforma-se em qualidade; a Todo o nosso ser está saturado desse dualismo inverso. A
força, como vimos, torna-se conhecimento; a ignorância do in- própria luta pela vida, fato fundamental, assume duas formas
voluído passa a ser a sabedoria do evoluído; a violência torna- extremas: a positiva, de agressividade (conquista); e a negativa,
se justiça; e o caótico desequilíbrio da desordem e do abuso de resistência (conservação), ambas válidas. Sobre esse dualis-
transforma-se nos harmônicos equilíbrios da ordem divina. Por mo também se apoia o fenômeno biológico básico da sexuali-
força da evolução, o concreto caminha para o abstrato; a ação, dade, tanto assim que a encontramos, como oposição de termos
através da experimentação, transforma-se em conceitos e qua- em nossa própria carne. De fato, os tecidos todos se compõem
lidade; a atividade material, em atividade espiritual; o trabalho, de células; e a célula, de dois elementos contrários e comple-
em contemplação. No homem primário, o pensamento é con- mentares: o núcleo e o protoplasma. Até mesmo a unidade celu-
creto, não se concebe a ideia senão revelada por fatos concre- lar, que está na base de nossa estrutura orgânica, é bipolar, con-
tos; a palavra mostra-se mais como gesto (isto é, síntese inspi- forme a lei de dualidade. O núcleo, originário do espermatozoi-
rada na ação) do que como conceito; o pensamento é mais ex- de masculino, vibra em ondas curtas; é de radiações azuis, vo-
pressão por meio de palavras e gestos do que meditação; toda luntarioso, dinâmico, como o próprio espírito. O protoplasma,
manifestação espiritual permanece sepultada num invólucro oriundo da célula-ovo feminina, vibra em ondas longas; é de
material. Apenas o evoluído atinge a concepção abstrata, ima- radiações vermelhas, sensual, pacífico, acumulador, como a vi-
terial, que se mantém por força própria, sem ligações ou apoios da vegetativa. O núcleo é eletricamente positivo; o protoplas-
físicos. Nele, os membros de simples instrumentos de ação se ma, negativo; eis os dois termos antitéticos que, da intimidade
transformam em antenas transmissoras e receptoras de radia- de nossa própria carne, do indivíduo ao desenvolvimento bioló-
ções. O evoluído parece inerte, mas sua ação, que aparenta um gico e social, representam cisão e compensação de qualidade e
―não-fazer‖, pois foge às formas e percepções comuns, desen- divisão de trabalho, por força do qual o princípio masculino as-
volve-se no imponderável. Ela desmaterializa-se em ritmo sume tarefa inversa e complementar da atribuída ao princípio
mais sutil, poderoso e penetrante. O futuro abrange a passagem feminino. Ao primeiro desses princípios, a virilidade, em ondas
da vida animal à espiritual; para que esta se desenvolva, aquela curtas, incumbe o dinamismo criador, a função de, por meio de
tem de morrer, pois se torna impossível a coexistência de dois estímulos revolucionários periódicos, reanimar, reativar a onda
ritmos diversos. São antagônicos, mas reciprocamente se ligam longa da feminilidade que, se tende a conservar, a proteger,
e continuam. Na evolução da vida, a onda longa é que acaba acumular, tende também ao enfraquecimento e à estagnação.
terminando em onda curta. Progredir significa conquistar onda Essa atividade genética e conservadora equilibra-se na atividade
curta. É a forma do futuro. Mas, superada a fadiga do acelera- oposta do princípio masculino, diretora e distributiva. A este se
mento e a dor da asfixia em plano inferior, a vida, transforma- confia a iniciativa da evolução; ao feminino, a elaboração da
da, e não destruída, continua mais intensa e alegre, num plano matéria-prima; o princípio masculino plasma, o feminino recebe.
mais elevado. Trata-se de ressurreição. Assim, a morte não é Mas o primeiro também é eminentemente destrutivo, enquanto o
igual para todos. A noite não é trevas para os notívagos. A segundo domestica e civiliza. O fato de suas naturezas serem in-
morte só é morte para os tipos involuídos, animais e vegetati- versas torna-os incompletos e leva-os a se atraírem reciproca-
vos, isto é, em ondas longas; para os tipos evoluídos, espiritu- mente. Assim, os dois princípios, na luta para se destruírem, se
ais, ou seja, em ondas curtas, a morte significa vida. Todos nós apertam no mesmo abraço. Ai de nós se, compensando-se e
somos relativos, limitados e estamos fechados numa das meta- combinando-se, as duas funções não se equilibrassem. Então,
des da vida. Mas sempre a experiência oposta, a outra metade, reciprocamente expurgadas do excesso individual, a destruição
está pronta a compensar-nos e completar-nos. Tudo pode do dinamismo positivo se transforma em construção, e a passi-
transformar-se. A vida em ondas curtas representa a morte da vidade do dinamismo negativo se torna civilização. Da combi-
vida em ondas longas, mas constitui a vida dos tipos em ondas nação dos dois princípios nasce a evolução; o masculino e o fe-
curtas. A vida deles não reside na Terra, e sim no além, no rei- minino são o pai e a mãe daquele filho chamado progresso.
Esse dualismo imprime-se em todo o nosso ser. Das alturas
46
Sentido elevado. (N. da E.) da personalidade desce até à intimidade de nossa carne, até à
234 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
célula, onde, aliás, está insculpido e donde sobe de novo até à gastou nisso imensos períodos de tempo. Não é demais imagi-
síntese máxima do ego, tornando-se antagonismo entre espírito nar que a evolução consiste em lenta aceleração do ritmo vi-
e matéria. Esse contraste, que se verifica sem cessar e constitui bratório, em transformação do potencial elétrico no sentido de
a base da evolução, reencontramo-lo até mesmo no mais íntimo frequências mais altas, de ondas cada vez mais curtas; nem é
de nossa estrutura orgânica, na divisão e união dos dois sexos. fora do comum pensarmos que isso aconteça no processo cha-
Pode acontecer que as correntes de consciência, que se manifes- mado desmaterialização e espiritualização. A matéria viva de
tam em nossa personalidade e a caracterizam, se relacionem nosso organismo, sensível a todos os choques externos, de que
com essa bipolaridade das células e nesta se encontre a chave registra os recentes e lembra os antigos, palpitante ao impulso
do mistério do subconsciente, dos instintos, das ideias inatas, da de forças internas e externas, sofre continuamente a ação das
hereditariedade; pode acontecer que a recordação atávica se vicissitudes da vida social, as asperezas da luta, a hostilidade
acumule e transmita através dessas células eternamente repro- ambiente. Deve, por isso, elaborar-se e mudar por força. O
duzidas por filiação direta, das células destacadas dos progeni- homem, os povos, a humanidade significam vida, e a vida é
tores, isto é, o espermatozoide e a célula-ovo. Não podemos, como um projétil que percorresse trajetória pré-determinada.
agora, perder-nos em divagações a respeito da gênese e da es- Tudo se transforma, nada pode deter-se. A carga elétrica, im-
trutura da personalidade de que mais adiante falaremos. Mas, pulso inicial que acompanha o nascimento do ser e anima o
sem dúvida, o problema espiritual não pode isolar-se do fisio- percurso do projétil, tende ao esgotamento, e então começa o
lógico; os dois se ligam estreitamente. É verdade que as corren- ramo descendente da trajetória. O dinamismo acaba cedendo,
tes espirituais nos penetram o organismo até ao interior da célu- primeiro no campo orgânico e em seguida no campo psíquico,
la, cuja estrutura é bipolar, quer dizer, contém o germe das duas exatamente porque neste campo se desenvolveu tardiamente. O
vidas, das duas vibrações e radiações, dos dois ritmos funda- último destes dinamismos parece filho do dinamismo orgânico,
mentais da existência. Também é verdade que a vida é um fe- de que representa a resultante e o objetivo, o efeito residual
nômeno elétrico, não da eletricidade por nós usada em vários mais bem elaborado da causa. Isso faz pensar que, assim como
aparelhos. Trata-se de quantidades enormes de energia, de po- se verifica em relação ao indivíduo, as funções espirituais re-
sicionamento alveolar e de baixo potencial; trata-se de um presentam o futuro da raça, sua futura fase de evolução, e, tam-
grande número de elementos (vários milhões de células), cada bém na humanidade, se desenvolvem mais tarde. Tanto assim
um com capacidade energética mínima; poderíamos mesmo di- que esse psiquismo corresponde a complexidade orgânica cada
zer um número infinito de causas infinitesimais. Num extremo vez maior, necessidades de defesa cada vez mais difíceis, pois o
da vida há como que uma pulverização dinâmica; noutro, uma drama se torna sempre mais inçado de problemas e requer, por
espécie de concentração sintética e unitária em torno do ego. isso, estratégia cada vez mais sábia e rica de mil e uma qualida-
Também neste sentido se verifica uma oscilação entre os dois des. Do contrário, o indivíduo não triunfa. E tudo nos faz pen-
extremos opostos e complementares. As raízes do psiquismo sar que, analogamente, a evolução deve alcançar, também nos
mergulham profundamente nos misteriosos meandros da estru- seus mais altos graus, a coordenação atingida nos mais baixos,
tura orgânica. Considera-se que o material dessa construção é, como, por exemplo, na estabilização atômica e celular. Tal co-
como primeiro elemento, o átomo, e as moléculas as primeiras mo o passado criou formas hoje estáveis, assim também o futu-
construções atômicas em que os átomos se ordenam sistemati- ro estabilizará formas bem mais complexas. Por que razão o
camente. Para chegarmos até à célula, precisamos antes consi- princípio protetor da vida não deveria presidir também à defesa
derar a formação dos corpúsculos chamados micelas, compos- das construções biológicas do futuro, mais sublimes e delica-
tos de um grânulo recoberto por uma espécie de casca (substân- das? A criação é fatigante, laboriosa, lenta, mas contínua.
cia peri-granular). Água circula entre o grânulo e essa espécie Baseados nessas considerações, agora podemos definir mais
de casca. A micela é dotada de movimento contínuo, chamado precisamente a lei de dualidade, até mesmo relativamente à
movimento Browniano. A micela é, pois, constituída de molé- evolução. Assim:
culas que, por sua vez, se constituem de átomos, em dois gru- ―Todo indivíduo constitui unidade dupla, isto é, equilibrado
pos de matéria, um positivo e outro negativo, como, por exem- paralelismo de forças emparelhadas, mas antitéticas. Ou me-
plo, a célula. Essa bipolaridade corresponde, desde o átomo à lhor, toda unidade compõem-se de metades inversas e comple-
célula e aos organismos extremamente complexos, a um es- mentares, em contraste e em equilíbrio. Desse contraste nasce a
quema geral da criação, estabelecido de acordo com a lei de du- elaboração íntima que se chama evolução‖.
alidade. O esquema fundamental dos fenômenos universais é A evolução, portanto, resulta de processo bipolar, destruti-
simples e válido para quaisquer grandezas e planos evolutivos. vo-construtivo. Já vimos de que modo o mal se torna necessá-
O próprio átomo compõe-se de um núcleo central positivo e de rio às finalidades do bem. Dessa lei se infere que, se toda uni-
elétrons (ou cargas elétricas negativas) que gravitam em torno dade é um binômio, tudo é necessariamente luta e guerra, mas
dele, à semelhança do sistema solar e seus satélites. O princípio também paz; tudo é ódio, mas amor também. Poderemos até
dualístico manifesta-se em toda parte. Encontramo-lo impresso mesmo dizer que, por força da íntima estrutura dualística dos
no desenvolvimento da trajetória típica dos movimentos feno- fenômenos, portanto do fenômeno biológico também, e em vir-
mênicos examinada na 1a parte de A Grande Síntese, desenvol- tude do dinamismo de duas forças opostas, a positiva e a nega-
vimento resultante da alternância de períodos inversos, evoluti- tiva, a masculina e a feminina, produz-se uma autoelaboração
vos e involutivos, de progresso e retrocesso. interior, também chamada evolução, que faz a vida humana
É natural que esse dualismo permaneça até mesmo na sín- progredir do tipo animal, vegetativo, espiritualmente involuí-
tese máxima da personalidade. E assistimos não somente à do, sensual, sensório, físico, em ondas longas, para o tipo su-
pulverização de seu dinamismo causal como também à de sua per-humano, psíquico, evoluído, sensitivo, espiritual, em ondas
estrutura material que, se de um lado, o máximo, se desfaz na curtas, ou seja, transformar-se de besta em super-homem. Se
espiritualidade da alma, de outro desaparece na imaterialidade essa elaboração íntima conduz a vida humana a um ritmo que
dos últimos de seus elementos constitutivos. Não deve, pois, vai das ondas longas às curtas, leva-a também a caminhar do
causar estranheza imaginarmos que essa imaterialidade se re- dia para a noite, afasta-a da luz e do calor qual sol poente, des-
solva no dinamismo de uma polaridade elétrica e de um ritmo materializa-a por força de maturação íntima; do mesmo modo
vibratório radiante, em maravilhosa orquestração de harmonias que, na desintegração atômica, a matéria se transforma em
equilibradas e compensadas com as dissonâncias relativas. A energia, a vida humana extingue-se como forma física, a fim
vida, portanto, se elaborou através de atividades mínimas, mas de, em outros ambientes, ressuscitar sob nova forma espiritual.
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 235
Estamos discutindo estes problemas e, ao mesmo tempo, poucas portas abertas penetra vasto mar de ondas, mas o restan-
aplicando a lei acima exposta. De fato, também a ideia consti- te nos escapa à percepção. Quem sabe quantas irradiações mais
tui um binômio de forças (isto é, forças inversas e complemen- estão vibrando no ar, chamando-nos, e não sabemos captá-las!
tares) e, por isso, como todo debate representa uma oscilação O resto nos parece silêncio e trevas! Quanta vida e quanta bele-
entre os dois extremos opostos do mesmo conceito e conduz za nos passa despercebida! A ciência, descobrindo novos méto-
àquela íntima autoelaboração que é a maturação do pensamen- dos de registrar vibrações, oferece-nos uma espécie de sentidos
to, isto é, sua evolução. O leitor pode encontrar por si mesmo artificiais que nos abrem novas vias sensórias; rasgam-se novas
muitas outras aplicações dos princípios aqui expostos. Mesmo clareiras iluminadas. Depois, trevas como antes, o interminável
a radiestesia se baseia em dois tipos de movimentos pendulares inexplorado. A matéria se evapora; diríamos mesmo, espiritua-
inversos e correspondentes ao bem e ao mal, isto é, capazes de, liza-se em nossas mãos. Sua composição química não basta pa-
seja qual for o objeto, revelar-lhe as radiações favoráveis ou ra esgotar o conhecimento de sua natureza. No universo tudo
nocivas. Se o movimento é circular, pode ser no sentido horá- está animado de vida, de inteligência, de relações e de trocas.
rio (sentido do movimento dos ponteiros do relógio) e no sen- Toda individuação tende a ser sintonizada pelo ambiente e a re-
tido anti-horário; se é retilíneo, falamos em sentido longitudi- agir, buscando impor ao ambiente sua sintonia. Neste mútuo
nal e sentido transversal. processo de modificação, tende-se à concordância, à recíproca
A tudo isso se poderia objetar que o princípio de causalida- mimetização rítmica. Pôr-se de acordo com a ordem é o cami-
de não basta para explicar a fase superior de evolução que, re- nho que oferece menor resistência e dá maior rendimento, é a
presentando estado mais complexo, significaria ―mais‖ obtido tendência constante e a resultante final que a estrutura do sis-
de ―menos‖, isto é, efeito superior à causa. A objeção se justifi- tema de forças necessariamente impõe. Por maiores que sejam
caria se o funcionamento do universo dependesse apenas de re- os antagonismos, tudo não passa de coexistência, de sensações
lação causal. Não se concebe, aliás, desproporção entre causa e recíprocas, de vibrações em comum. A coexistência no mesmo
efeito nem desenvolvimento maior do que o conteúdo do germe ambiente implica a inevitabilidade das trocas e, por isso, a re-
poderia dar. Na realidade, porém, o fenômeno não se desenvol- ciprocidade das influências exercidas. A relatividade de cada
ve como as aparências nos fazem supor. O funcionamento do qual implica a necessidade de procurar nos outros, para com-
universo não para, e, além de orgânico e contínuo, é evolutivo, pensá-la, o próprio complemento. Assim, antes ou depois, tudo
quer dizer, é intérmina florada de vida; a mecânica representada se adapta por força de concordância recíproca; por maior que
pelo princípio de causalidade constitui apenas o processo de seja o desacordo, acaba sempre por dissolver-se, harmonizan-
elaboração dessa florescência. Em resumo, na evolução, mais do-se no consenso. De fato, embora dividido pelo individua-
do que simples relação entre antecedente e consequente, verifi- lismo, tudo está ligado por essa complementariedade; embora
ca-se o desenvolvimento de algo latente na intimidade do ser e afastado e separado pela antipatia e repulsão existente entre
a sua manifestação no mundo exterior. Os dois momentos, cau- semelhantes, tudo é reaproximado e reunificado pela simpatia
sa e efeito, não surgem, portanto, ligados por uma relação de e atração que se estabelece entre contrários.
igualdade, porque no centro, na causa, no germe das coisas, se A estes contatos cada qual responde conforme sua sensibili-
concentra o invisível poder do pensamento de Deus, poder que dade; e evolução é sensibilização, isto é, dilatação contínua das
se expande e se desenvolve na manifestação exterior, por nós vias da percepção bem como do poder e da alegria de perceber.
mais claramente perceptível. Todavia, se observarmos mais Cada um reage conforme suas particulares capacidades seletivas
atentamente, verificamos a existência dessa relação de igualda- de sintonização; assim, o musicista para as ondas sonoras; o pin-
de entre causa e efeito, não na forma, mas apenas na substância. tor para as ondas luminosas, o pensador para as ondas psíquicas,
Os nossos sentidos, porém, só percebem a relação formal. A o romântico poeta para as ondas vitais do amor. Quanto mais a
igualdade foge, pois, à apreciação dos sentidos. Se existe na vida é espiritualmente profunda, mais nos dá o senso do ritmo e
substância, onde o equilíbrio tem de ser perfeito, não existe na nos transforma o ser em concerto de harmonias. No gênio triun-
forma, que é tudo quanto o homem percebe e, efetivamente, dá fa exuberante riqueza de percepção, a hipersensibilidade abre
a sensação de disparidade entre causa e efeito. inúmeras portas à ressonância, as irradiações penetram e os seus
registros se amontoam febrilmente. Onde o homem comum per-
XXVI. A MÚSICA - A VIDA DUPLA cebe poucas sensações e duas ou três ideias com que enfeita o
simplíssimo esquema de sua vida, o gênio deve saber movimen-
O capítulo anterior nos deu apenas ligeira ideia da maravi- tar-se, orientar-se, cair e levantar-se, em meio da vertiginosa
lhosa simetria de impulsos e da correspondência de ritmos ori- complexidade de sua imensa orquestração perceptiva.
entadores da ordem de que se compõe o funcionamento orgâni- Todo esse movimento origina-se de desequilíbrio que pro-
co do universo. Nossa vida é força que navega em oceano de cura, e enquanto procura, o seu reequilíbrio. Se aquele constitui
forças; toda força é vontade que a anima, pensamento que inte- o impulso motor, significa também transitória mudança de fase,
ligentemente a dirige, é tipo de vibração, é radiação. Tudo se instrumento de evolução, e acaba sendo, naturalmente, reabsor-
move, ouve, registra, recorda e responde. Apesar de algumas vida no equilíbrio. Embora haja desordem na superfície, na ca-
cacofonias, tudo se harmoniza em maravilhosa sinfonia, tudo se mada mais profunda reina a harmonia, a que todas as coisas
articula em grandiosa arquitetura de ritmos. A ciência apenas tendem, e o ser, quanto mais evolui, mais se lhe aproxima e
nos deixa entrevê-la. O homem, para percebê-la, dispõe somen- mais a sente. A sintonização rítmica é o estágio final de todas
te de sentidos embotados e dela tem ideia muito vaga. O tato, as alterações dinâmicas. Encontrado o equilíbrio, o objetivo foi
sentido fundamental geral, nos dá sensação ampla, mas genéri- atingido, o problema está resolvido, o ser fica saciado e o mo-
ca e elementar. Os outros sentidos, particulares derivações e es- vimento cessa, mas para recomeçar em plano mais elevado e
pecializações do tato, permitem contatos mais íntimos e perfei- em desequilíbrio mais complexo, iniciando novo movimento. E
tos com o ambiente. Assim, o gosto constitui aperfeiçoamento assim por diante. Se o dinamismo é consequência do desequilí-
do tato, o olfato é especialização do gosto, o ouvido deriva do brio, este, por sua vez, deriva do dualismo existente em cada
olfato, a percepção da luz origina-se da percepção do som. Na ser e implica unilateralidade, isto é, carência que o torna in-
ascensão há ordem, progressão evolutiva. Ao progressivo aper- completo e, por isso, o incita ao movimento em busca de com-
feiçoamento do sentido corresponde, quanto ao dinamismo, a plemento. Mas, se a natureza nos onera com a necessidade, para
transformação da quantidade em qualidade; o comprimento da que ela nos constranja ao movimento e, assim, façamos expe-
onda diminui à proporção que a frequência aumenta. Por essas rimentos e evoluamos, propicia-nos também os meios de satis-
236 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
fazê-la. Há sempre outro termo apto a dar-nos riqueza necessá- vão-se diferenciando e multiplicando ao infinito. Por isso todas
ria para realizarmos troca e conseguirmos satisfação, apenas te- as coisas guardam estreita analogia entre si; não é por mero
nhamos tido o trabalho de encontrá-la. Assim, os seres estão acaso que, para descobrimento do desconhecido, tanto se recor-
fraternalmente unidos, e o universo pode organizar suas cons- re em A Grande Síntese, como também fazemos aqui, ao prin-
truções de relações, seus edifícios de forças. Assim, tudo se cípio da analogia. O espírito adere instintivamente à alegria do
move e se renova, fugindo à cristalização, e, no movimento, ritmo, em que percebe terminadas as asperezas da luta e as do-
torna-se possível a evolução. lorosas dissecações do caos. Toda harmonia é uma festa, pois
Todas as coisas são movidas por essa combinação de altos nos eleva, nos aproxima de Deus, centro irradiador de todas as
e baixos, de qualidades inversas e complementares. Cada ter- harmonias. O paraíso deve consistir em no sintonizarmos com
mo vai procurando reequilibrar-se no seu contrário e, assim, ritmos sublimes do universo. O problema da felicidade talvez
encontrar repouso. Desse modo, todo elemento se liga a seu seja apenas questão de sintonia, ou seja, de colocar-se em fase
oposto e, por isso, até mesmo no árduo trabalho de autoelabo- com radiações superiormente harmônicas.
ração, é arrastado rumo à evolução. O progresso está implícito Esses conceitos podem lançar nova luz sobre o problemas
no sistema, como resultante, e o estado de equilíbrio representa da evolução da arte e, especialmente, da música. Podemos, as-
evolução acabada, estado de paz, que é a fase final de todas as sim, tecer agora considerações mais profundas a respeito de al-
guerras da luta pela vida. Na natureza, os objetivos existem pa- guns de seus aspectos, de que, aliás, já falamos no último capí-
ra serem atingidos. O universo atual está em fase de desequilí- tulo de A Grande Síntese, ―A Arte‖. Nele dissemos o seguinte
brio, base do dinamismo criador, e isso significa que está em em relação à música: ―Nossa atual fase artística consiste no
fase criadora e evolutiva. Para as forças e os fenômenos que o aniquilamento, no abandono da forma. Estais na última fase de
conseguem, o equilíbrio representa a fase de chegada, de satis- queda... O progresso artístico não passa, em substância, de pro-
fação, de repouso final em terreno que jamais permanece ino- cesso de harmonização... Como todas as coisas, a música mo-
perante e sossegado, por isso é também fase de morte e, em derna evolui em profundidade... em sua 3 a dimensão de sinfo-
seguida, de superamento. O equilíbrio entre os dois contrários nia... O futuro consiste em continuar tornando cada vez mais
pode, com efeito, ser perturbado pelo menor choque, porque as ampla a estrutura sinfônica...‖.
forças do universo estão perfeitamente entrosadas. Então, os Aprofundemo-nos. Se observarmos a música de nossos dias,
equilíbrios se rompem para se porem de novo em movimento, principalmente se a relacionarmos com a que a precedeu, veri-
como desequilíbrios, até recuperarem novos equilíbrios de paz. ficamos separação, diversidade e desacordo fundamentais. A
Mas, a cada união e a cada troca, também corresponde nova música de ontem nos aparece como música resolutiva, estágio
prova e nova experimentação; a volta ao trabalho, após o re- final de pacificação; a de hoje, no entanto, surge como música
pouso, significa superamento do passado e trabalho mais pro- revolucionária, estágio inicial de luta. Hoje, na música, predo-
dutivo, mais sábio, mais profundo. Assim, toda necessidade, mina a dissonância, o desequilíbrio dos ritmos e dos tons. No
desequilíbrio, esforço e criação se relacionam estreitamente; campo artístico, isso tudo exprime o atual ciclo biológico, em
desse modo, a luta e a dor constituem instrumentos de evolu- que, na manifestação viva de destrucionismo, de decadência
ção, isto é, de construção de equilíbrio, de ordem, de harmo- moral, de queda evolutiva no materialismo e de espiritual estri-
nia. Trata-se de cadeia de momentos necessariamente ligados dor humano, nos afastamos dos superiores ritmos divinos. É re-
em série, até que atinjam seu objetivo. O estado de determi- volução, ruína, destruição, o que, não obstante, também pode
nismo é, portanto, apenas a parte conclusiva, o ponto de che- transformar-se em reconstrução, com elementos novos e, por
gada em que o livre arbítrio, cristalizando-se nas qualidades isso, de bases mais largas e objetivas, dirigida para fins mais
adquiridas, deixa de oscilar e, em consequência, perde, em da- elevados. É, sem dúvida, luta, esforço, desordem; mas represen-
do campo, a sua função e razão de existir. Então, as qualidades ta no caos abundância de novas relações, de que surgem novas
estão bem caracterizadas e fixadas e já funcionam por simples possibilidades. Essa a característica de nossa época, ao mesmo
automatismo, como se fossem instintos. tempo infernal, perigosa e notável.
Concebido dessa maneira, o funcionamento do universo ad- Até há poucos anos a música constituía processo harmôni-
quire significado musical. Quanto mais profundamente obser- co, em que o choque sonoro tendia a composição amigável, a
vamos, mais evidente nos parece a sinfonia dos ritmos. Pode- solução pacífica. A música moderna, expressionista, tende, pelo
mos exprimi-la de muitas formas: geométrica, matemática, ar- contrário, a estado em que predominam a inimizade e a luta.
tística, poética, musical, filosófica, heroica, moral. Mas é sem- Modernamente, a fadiga de nos colocarmos acima do acordo
pre a mesma ordem que, no tempo, se revela como ritmo e, no fundamental, resolutivo, pacífico, calmo, não é mais descontí-
espaço, como simetria; ordem que, dinamicamente, é equilí- nua, entremeada de seguidas pausas para descanso; é, isso sim,
brio; moralmente, justiça; artisticamente, beleza; humanamente, desesperado impulso que não consegue mais resolver-se e
bondade. Arquitetura, poesia, música, a própria bondade, tudo acalmar-se num acordo. A dissonância se transforma de exce-
são ritmos. Há pensamentos musicais; sistemas morais que, ção em regra. Os choques continuam, acumulam-se, perse-
como o evangelho, sintonizam com os mais sublimes ritmos do guem-se numa luta sem tréguas. Daí nasce um estado de tensão
universo, isto é, estão mais próximos da ordem divina. A pala- permanente, de irredutível hostilidade, que, se de um lado de-
vra de Cristo está saturada de vibrações construtivas e vitais. O senvolve ao máximo o dinamismo das correntes sonoras, por
gênio, porque sabe encontrar relações novas entre as coisas, re- outro lado reduz-se a simples paroxismo de instabilidade tonal,
vela-nos novas harmonias e nos aproxima do pensamento de que dá o sentido revolucionário da desordem caótica. Isso está
Deus. A música nos dá alegria, porque nos patenteia a ordem agravado pela instabilidade rítmica (mudança de ritmo), hoje
que constitui a própria essência da divindade e condiciona a fe- muito em moda. Existe aí, sem dúvida, abundância de elemen-
licidade suprema. Tudo quanto é harmônico nos eleva, melhora, tos novos, mas ainda no informe eruptivo, no estado caótico de
dá-nos a paz, que consiste no equilíbrio. Há tanto ritmo num te- desequilíbrio, isto é, na posição mais afastada daquela harmo-
orema de geometria como no cálculo matemático, nos proces- nização que constitui elemento evolutivo e representa o grau de
sos dinâmicos e nos químicos, nas leis físicas e nas leis morais, evolução artística. Verificamos, pois, a existência de duas ten-
em astronomia como em estética e em filosofia, tanto num raci- dências contrárias (outra manifestação da lei do dualismo), luta
ocínio como num destino. No universo, um tipo fundamental de acerada e mais viva; e a luta, sem dúvida, serve de base à cria-
vibração ressoa e multiplica-se em mil tonalidades, alturas e ção. Verificamos inegável introdução de fatores novos na mo-
dimensões; os esquemas basilares são simples e, repetindo-se, derna arte musical, em que surgem novos recursos e se mani-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 237
festa ampliação de bases construtivas, e isso constitui benefício, pode negar que, assim como o mundo exterior, o mundo interi-
germe de progresso. Mas, aí, verificamos também existência de or seja imenso, infinito abismo. Os dois impulsos se chocam e
estado de desequilíbrio, que, se pode ser dinamizante e, por is- se combinam, e daí nasce a vida. Luta criadora. O universo ir-
so, genético, é desordem também, e desordem significa involu- radia e exerce pressão para, através dos sentidos, penetrar no
ção, ao passo que ordem quer dizer evolução. Eis a grande eu. O eu recebe, experimenta, adapta-se, assimila; irradia, reage
questão: saberemos dominar essa desordem, transformando-a para, por sua vez, penetrar e, assim, dominar e plasmar o ambi-
em ordem? Esse dinamismo terminará em construção ou em ente à sua imagem e semelhança. Dupla irradiação, portanto, do
destruição? O gênio humano terá o poder de torná-lo genético, mundo exterior para o interior e ao contrário. A lei de dualida-
disciplinando-o em construções superiores? Saberá reequilibrar de, a coexistência dos dois mundos e suas atividades, esse du-
esse ameaçador desequilíbrio no plano de harmonias mais su- plo sentido de irradiação, nos faz pensar na existência de partes
blimes e complexas? Ou será que a corrente modernista nos inversas e complementares nas vias sensoriais já referidas, de
prenderá os pulsos e arruinará completamente a arte? canais de saída que correspondam e fiquem em sentido contrá-
Hoje, sem dúvida, vivemos como se fôssemos vulcão ativo, rio aos dos canais de entrada; faz-nos pensar, ainda, na possibi-
e a música atual constitui apenas um momento da psicologia lidade de inversão das vias sensórias, em que estas passam a
de nossa época, que, em qualquer ramo de atividade, se apre- percorrer o caminho sensorial também do interior para o exteri-
senta como desesperada tentativa para encontrar valores novos. or. Até agora, vimos o movimento dessas irradiações apenas em
Atualmente, ao invés de próximos, estamos muito afastados da uma direção: do exterior para o interior. É lógico que, por ne-
sistematização e da alegria da harmonização; estamos, hoje, cessidade de equilíbrio, deva também existir o movimento em
em pleno período de retrocesso e destruição, que nos lembra o sentido contrário. Paralelamente, a natureza dos canais, se é
descrito no Cap. XXII – ―Tempestade‖, deste volume. Esse es- material na entrada, deve assumir forma espiritual na saída. A
tilo musical pode ser tolerado apenas como fase preparatória e sinfonia dos ritmos complica-se. Examinemos o problema ago-
de transição. O futuro da música não reside na desarmonia, ra. Veremos, então, novos aspectos do funcionamento da lei de
mas, ao contrário, na complexidade e profundeza. Se não vol- dualidade. Isso diz respeito inclusive à arte, que, através da ins-
tarmos a percorrer esse caminho, o único aberto à evolução piração, vai até às fontes íntimas para vivificar-se.
musical, também do ponto de vista musical afundaremos na Beethoven era completamente surdo quando escreveu a
barbárie. Essa liberdade exagerada de ritmos significa ruína da Nona Sinfonia. Morreu com 57 anos (1827) e, com 29, come-
ordem, decadência e destruição. Depois dos grandes clássicos çou a ficar surdo. No entanto a impossibilidade de ouvir não
não houve mais boa música. Não temos, frequentemente, senão interrompeu a produção genial; parece mesmo haver coopera-
cerebralismo, elucubração, artifício intelectual sem inspiração do para sublimá-la, tanto assim que seus trabalhos vão mos-
alguma, virtuosismo técnico, isto é, paródias, sucedâneos, de- trando-se mais inspirados à proporção que a surdez aumenta.
generação. Talvez estejamos agora na parte mais baixa da on- Contudo, tinha ele de ouvi-las. Se não, como poderia concebê-
da, na noite escura que precede a aurora. Assim cremos e espe- las, avaliá-las, trabalhá-las? Beethoven as ouvia, embora sim-
ramos. Ouvido acostumado às velhas arquiteturas musicais, ples sensações, com a mesma nitidez e exatidão que a percep-
que, embora mais simples, alcançaram alto grau de equilíbrio, ção exterior permite. Sua percepção era, pois, diferente, mas
suporta com dificuldade, sem dúvida, essa espasmódica e caó- de igual poder, canalizada por outras vias, as vias interiores. A
tica mudança de fase dos ritmos e o choque dessa dolorosa ru- atividade do musicista, que era a maior possível exatamente no
ína estética. E o espírito, para aderir e aceitar, espera que tudo campo de ação do órgão deficiente, mostra-se independente
se reordene nos novos equilíbrios. Não somente a música, mas dele. A concepção, é claro, vinha inspirada de dentro de sua
a arte em geral, corre perigo. E, infelizmente, isso não aconte- personalidade. Mas como que essa concepção se transformava
ce apenas com a arte. Esses desequilíbrios significam a interfe- em percepção e, através da sensação, era conseguido o contro-
rência de novas forças; mas, se não soubermos dominá-las, ar- le? Esta condição nos faz pensar no caso de um homem que,
riscamo-nos ao esfacelamento completo. Saberemos, sob o para degustar qualquer prato, apenas se limitava a ler um trata-
fardo dessa nova riqueza, subir em direção ao objetivo final da do de culinária. Podem as vibrações que excitam os órgãos dos
vida e da arte, que é a harmonização? As revoluções devem sentidos provirem de dentro, e não de fora? Parece não só que
saber resolver-se em novos ordenamentos; e exatamente para os próprios sentidos podem ser impressionados por dois lados
conquistá-los é que elas surgem. Apenas isso pode justificá- (dualismo), isto é, por vibrações vindas de fora e por vibrações
las. Tudo quanto hoje fazemos está condicionado, depende da oriundas de dentro, mas também que o fato do órgão externo
ordem conquistar esse domínio sobre a desordem e a violência deixar de funcionar não isola a consciência do indivíduo, e
revolucionária se enquadrar, da tentativa obter resultado, da sim, pelo contrário, o estimula a compensar-se, buscando ou-
inspiração retornar e o espírito nos sintonizar de novo com os tros meios de comunicação. Além disso, parece que, nessa tro-
grandes ritmos da vida. Nossos antepassados, mais simples do ca, o sentido ganha em refinamento tudo quanto perde em ob-
que nós, haviam-no alcançado; somos mais ricos e complexos, jetivismo e materialidade, fazendo-nos pensar que as vibrações
mas devemos saber ganhar a luta e realizar o imenso trabalho podem usar vias imateriais de comunicação. Embora continu-
de progredir e consegui-lo também. em sendo do tipo correspondente aos vários sentidos, elas as-
Até mesmo o problema da arte se nos apresentou sob a for- sumem forma bem mais sutil, espiritualizando-se, ao mesmo
ma de antagonismo de forças em que atua o universal dualismo tempo em que a produção do gênio se sublima e espiritualiza.
da Lei. Equilíbrio e desequilíbrio, luta, harmonização, presu- Parece também que a compressão ocasionada pelo fechamento
mem sempre esse dualismo, binômio de forças, princípio que das janelas dos sentidos, abertas do lado físico para fora, au-
está sempre nas raízes da gênese e da evolução. Para onde quer menta correspondente capacidade receptiva, em razão da aber-
que nos voltemos, sempre os dois termos opostos, que se atra- tura de janelas sensórias do lado psíquico para dentro. Já ob-
em e se repelem, que se amam e se odeiam. Duas vidas, a inte- servamos esse fenômeno de compensação na dor como instru-
rior e a exterior; dois tipos humanos, o involuído e o evoluído; mento de evolução, no enfraquecimento físico agindo como
dois ritmos, um longo e lento, outro curto e rápido. No começo elemento de sensibilização, compensação, aliás, que facilmente
deste capítulo, falamos ligeiramente das diferentes vias sensori- se observa no desenvolvimento orgânico e psíquico (o braço ou
ais por onde os ritmos do ambiente penetram na personalidade a perna remanescentes são sempre mais fortes, e os infelizes
humana. Mais uma vez, dois termos, dois mundos: o interior e quase sempre mais inteligentes). A natureza, de estrutura bipo-
o exterior, o eu e o universo. Qual dos dois o maior? Ninguém lar equilibrada, consegue desse modo compensar-se, remedian-
238 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
do as suas imperfeições com o reforço obtido no lado corres- fragma que está suspenso entre os dois mundos, dá-se nas vi-
pondente ao de sua debilidade. A vida, quando se lhe fecham as brações a transformação própria da passagem de um mundo
portas da expansão, retrai-se, volta-se sobre si mesma e, ao in- material para um mundo imaterial. Depois que o cérebro é ul-
vés de crescer horizontalmente, cresce em profundidade, em trapassado, a telegrafia-com-fio se transforma em telegrafia-
outra direção e segundo outra dimensão. Realiza, desse modo, sem-fio; a vibração, como acontece na transmissão radiofônica,
outros experimentos, adquire qualidades diferentes; a duplici- liberta-se do suporte de seu condutor e, apoiando-se apenas no
dade de sua estrutura lhe permite afirmar-se igualmente, reali- éter, torna-se livre, radiante. Assim o cérebro se relaciona com
zando-se de acordo com desenvolvimento diferente. duas formas de vida, a material e a espiritual; a primeira o atin-
Nosso corpo, isto é, nossa parte visível, é apenas a metade ge através de vibrações canalizadas pela rede do sistema nervo-
do organismo humano. Como decorrência da aplicação da lei so; com a segunda ele se comunica por meio de radiações livres
de dualidade e dos princípios acima expostos, concluímos que a no espaço. O cérebro não é, portanto, apenas a central nervosa
outra metade deve possuir características inversas e comple- em que se coletam, em síntese, as correntes elétricas do orga-
mentares. Uma das metades é matéria; a outra, espírito. Este nismo físico, mas é também estação transmissora, parecida com
organismo se comunica com dois mundos e pode perceber suas estação de rádio ou de televisão. Eis como o cérebro se liga ao
vibrações opostas, recebendo dos dois lados e por duas vias de termo final de todo o percurso: o espírito. Só agora está com-
percepção: a fisiológica direta e a espiritual inversa. Trata-se de pleto o caminho que vai do objeto exterior ao eu cognoscente.
duas vidas que disputam entre si o predomínio sobre a persona- Estes são os vários pontos do trajeto completo: objeto exterior,
lidade. Porque são complementares, se completam; mas, sendo cristalino, retina, nervo óptico, cérebro, espírito. À proporção
contrárias, reciprocamente se excluem. Assim, quando a vida que progride, a corrente dinâmica sofre várias transformações
física sensória adormece no sono, no transe, ou se debilita em até atingir o cérebro e, para poder continuar progredindo, já
razão de moléstia ou velhice, como já observamos, então a vida agora no reino espiritual, desmaterializa-se e adquire forma ra-
psíquica pode revelar-se e surgir com mais nitidez na tela da diante, isto é, a forma característica do espírito, pois, para que
consciência. Observemos o duplo funcionamento dos sentidos. possamos comunicar-nos com os outros, temos de falar a mes-
Os dois mundos vibram e irradiam nas duas direções opostas ma linguagem. Qualquer um pode facilmente imaginar e fazer o
em que a vida se desenrola. Examinemos em particular a per- gráfico representativo desse percurso.
cepção visual, que é análoga à acústica, olfativa, táctil e assim Assim é que, por esse caminho e através dessas transfor-
por diante. É bem conhecido o processo óptico por meio do mações, a percepção sensória pode chegar ao espírito. A ver-
qual a imagem se reproduz na retina, mas invertida, e depois é dadeira visão não se realiza, portanto, no cérebro, mero dia-
transmitida ao cérebro pelo nervo óptico e, finalmente, percebi- fragma intermediário e transformador de energia, mas acima
da na posição normal. Onde o mundo físico termina, o mundo dele, do outro lado do binômio vital. De fato, a síntese óptica
psíquico principia. O órgão central é o cérebro, suspenso entre final é muito mais do que simples registro cerebral. Enquanto
dois mundos, como diafragma sensível capaz de registrar as vi- no particular existe a forma receptiva da vida, no outro lado,
brações provenientes de um e de outro. Esse órgão, porém, não além da matéria, do organismo físico e dos seus vários órgãos,
basta para realizar a síntese visual. Mas, afinal, com que é que inclusive o cérebro, o estágio final é processo sintético, unitá-
vemos? Não vemos com os olhos, pois percebemos já na posi- rio, é juízo, confronto, coordenação e reação. O cérebro apenas
ção normal a imagem que se forma invertida na retina. Não registra e, desempenhando o papel de secretário ou escrivão, se
vemos apenas com o cérebro, porque, se causarmos alteração encarrega da conservação mnemônica. Somente no espírito, a
no nervo óptico, não percebemos coisa alguma, embora a ima- que o cérebro é órgão subordinado, realiza-se esse trabalho
gem continue a formar-se na retina do olho intacto. E, se os ór- complexíssimo e laborioso, onde se movem as forças imateri-
gãos permanecerem intactos e o caminho estiver livre até ao cé- ais, inteligentes e conscientes, que tudo sabem, querem e diri-
rebro, isso basta para que o fenômeno da visão se realize? Mas, gem. O cérebro está para o espírito assim como o olho está pa-
se o espírito está distraído ou preocupado, com a atenção volta- ra o cérebro. Só o espírito diz: Eu. O cérebro não pode dizê-lo,
da para outro objeto, e é colhido de surpresa, ou se não se inte- porque não passa de um órgão. A confluência e a combinação
ressa em ver ou não quer ver, ou então se a vibração, por ser de suas correntes dinâmicas se dá, certamente, através dos
habitual, não lhe atrai mais a atenção, nesses casos a visão não condutores elétricos do organismo, concentrando-se na perife-
se verifica. No entanto o fenômeno óptico é mecânico, consis- ria capilar, em contato com as células. Mas a síntese completa
tindo na transmissão de vibrações que chegam automaticamente depende do ego, e não do órgão. Há muitos órgãos e funções,
ao cérebro, quando encontram caminho livre. Portanto, naque- porém o eu é único; não é instrumento guiado, mas centro que
las condições, a vibração atingiu o cérebro e foi registrada, mas guia. Apenas ele é consciente; todo o trajeto precedente não
a visão não se realizou. Desse modo, quantos atos automáticos, passa de inconscientes movimentos automáticos. No espírito, a
secundários, continuamente escapam à nossa consciência! A vi- vibração, que se tornou radiante, atingiu o termo final, depois
são que o eu percebe e sente não se dá, então, no cérebro, mas de haver passado, para atingi-lo, por vários graus de transfor-
além do diafragma, bem mais longe, do outro lado da vida, no mação, através de vários órgãos especializados, de capacidades
lado imaterial, isto é, no espírito. É durante esse trajeto que de- e funções diferentes, tendo percorrido um caminho com dois
ve dar-se alguma transformação nas vibrações; dessa transfor- trechos, onde o primeiro situa-se num mundo e o segundo em
mação derivaria o fato, doutro modo inexplicável, de que a outro, ainda que os órgãos se relacionem estreitamente e as fa-
imagem readquire a posição normal. A ciência não vai além das ses, sendo contíguas e sucessivas, formem um caminho de-
células nervosas cerebrais; mas, além do órgão de recepção sembaraçado e contínuo de um extremo a outro. Com isso, a
(olho), de transmissão (nervo óptico) e registro (cérebro), o ca- primeira metade do trajeto foi percorrida, e o período de ida
minho deve continuar até seu objetivo final: a sensação. Só o está completo e acabado. Nada mais nos resta senão examinar
espírito sente. Através de todos esses transformadores interme- a segunda metade do circuito, isto é, o trecho de volta, a parte
diários, a vibração é filtrada, destilada, cada vez mais desmate- inversa e complementar em que a primeira se completa e cuja
rializada, porém não para. Quem a apreende e a faz sua, no es- existência é indicada e imposta pela universal lei de dualidade.
pírito, é a consciência. Porém, quando se chega ao cérebro, o Portanto observemos agora como a corrente se move em senti-
organismo físico termina; de que modo então se pode, partindo do contrário, desse modo completando o ciclo.
daí, prosseguir a caminhada até ao espírito? Como e através de As vibrações não são geradas somente pelo mundo exteri-
que vias pode estabelecer-se comunicação? Chegadas ao dia- or, mas também pelo mundo interior. O mundo imponderável
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 239
da personalidade é muito mais vasto e rico que o dos fenôme- concreta, enquadrada nas dimensões do espaço e do tempo, ca-
nos tangíveis. Não o vemos, muito embora saibamos da sua nalizada e dirigida para vias cada vez mais centrais. De outro
existência. Representamo-lo através de imagens, pelas quais lado, o espírito sintetiza e unifica no eu todas as sensações; os
ele nos é revelado no campo das sensações, mantendo-nos uni- canais cedem lugar às radiações livres, sem condutores; a cap-
dos em torno do mesmo modo de sentir. Se essas imagens fos- tação torna-se sintética, geral, imaterial, em dimensões supe-
sem vazias de significado, não subsistiriam; se subsistem, é respaciais e supertemporais, partindo daquilo que, para a re-
porque são animadas por uma realidade interior per se stante47, cepção sensória analítica do plano material, é o resultado final
que de algum modo percebemos e instintivamente aceitamos. da elaboração e destilação ao longo do trajeto. A vibração po-
Ouvimos dentro de nós a voz do imponderável e a exprimimos de percorrer a estrada nos dois sentidos, com resultados diame-
por meio de símbolos; através deles, manifestamos nossa sen- tralmente opostos. Naturalmente, percorre a via fisiológica
sação e, assim, entendemo-nos uns aos outros. Esses símbolos comum, que transmite ao espírito os estímulos do ambiente. A
continuam vivendo entre nós e evoluem conosco. Conhecemo- outra via é menos conhecida, menos comum, mas existe.
los e somos capazes de reconhecê-los. Por detrás deles palpita Quando a vibração percorre o caminho em sentido inverso,
a realidade que sentimos e eles nos manifestam. Não importa transmite ao ambiente os estímulos do espírito, que nascem de
que essa realidade se situe no imponderável. Continua sendo movimentos da alma, muito bem conhecidos por todos nós,
realidade assim mesmo. Os símbolos desempenham precisa- pois, embora não possamos vê-los, sentimo-los profundamen-
mente a função de materializá-la no campo do sensível, isto é, te. Mesmo sendo excepcional a inversão do circuito sensório,
de torná-la capaz de nos impressionar os sentidos através da não serão as nossas manifestações vitais todas provenientes do
via normal de percepção sensória de que já falamos. As ima- interior? E em que consiste nossa vida senão na contínua mani-
gens não constituem, portanto, simples fantasia e forma inútil, festação de nosso espírito? Ao lado de cada uma de nossas ati-
mas têm alma, e é ela que nos fala; são projeções tiradas do vidades exteriores existe a correspondente atividade interior,
mundo espiritual que há sobre o nosso, formas materiais que que a dirige e guia, condicionando-lhe de modo absoluto a ati-
revestem as figuras imateriais. Trata-se de percepções que se- vidade. Assim, a cada ação fora corresponde um efeito dentro;
guem caminho inverso da normal e são opostas a ela, derivan- o movimento exterior penetra no interior, imprimindo-lhe e
do daquele mundo interior que ninguém pode ver com os olhos gravando nele as suas características. Da mesma forma, o mo-
da carne, mas que é visto perfeitamente pelos do espírito. vimento interno se transmite para o lado externo, manifestan-
Como é que podem, no entanto, a vibração e a sensação do-se em infinidade de expressões.
descer do mundo espiritual até este mundo material? Que cami- Voltemos, porém, ao caso particular do fenômeno óptico e
nhos percorrem para atingir nossos órgãos sensórios? A posição observemos como ele funciona em sentido inverso. Agora, a
inversa que os dois mundos guardam entre si contém implici- vibração originária constitui um estado do espírito, um fenô-
tamente e nos mostra que, ao lado de um caminho, existe outro meno imponderável. O primeiro trecho do percurso não se faz
na direção contrária. Trata-se da estrada de volta, que constitui através de condutores, mas sim por via radiante. E é desse mo-
a indispensável segunda metade do circuito completo. Tivemos do que são atingidas as células cerebrais, que nada mais nada
a ocasião de examinar o percurso que vai do exterior para o in- menos são do que aparelhos receptores de radiação. Ao primei-
terior. Consideremos agora o percurso contrário, isto é, o que ro contato com a realidade concreta, após serem captadas, es-
caminha de dentro para fora. Neste caso, o trajeto por nós já tas radiações transformam-se e, revestindo-se de imagens, as-
considerado em sua posição normal se inverte e passa a percor- sumem o aspecto de representação no mundo material. O abs-
rer em sentido contrário, nesta ordem, os seguintes pontos: es- trato concretiza-se, o genérico especifica-se, reduzindo-se a
pírito, cérebro, nervo óptico, retina. Aí, a fonte da corrente di- um de seus casos particulares, pois, enquanto o período inver-
nâmica não se situa mais no ambiente material externo, mas so representa processo de espiritualização, este representa pro-
sim no ambiente espiritual interno; não emana do objeto, mas cesso de materialização. Prosseguindo do cérebro para a retina,
do sujeito. O processo se inverte totalmente, e as transforma- a vibração define-se e concretiza-se ainda mais, até atingir a
ções não se realizam no sentido da desmaterialização, e sim da sua forma óptica, que corresponde à forma física. Chega-se as-
materialização. A corrente que provém do espírito é, em princí- sim à formação de uma imagem verdadeira na retina. O olho
pio, radiante, e o cérebro não é mais aparelho transmissor, mas realmente registra a projeção, que não provém do exterior, mas
apenas receptor, exatamente como se fosse um aparelho de rá- sim do interior, embora com idênticos resultados visuais. Ten-
dio ou de televisão, que capta essa energia radiante para que, do a corrente percorrido todo o percurso, de um polo ao outro,
em seguida, percorrendo a rede nervosa, possa, através do ner- o processo está completo, independente da direção que tenha
vo óptico, atingir a retina. Desse modo, a imagem, passando se desenvolvido, e o sujeito sente sensação semelhante à nor-
através de vários órgãos transformadores, pode chegar ao mun- mal, de modo que ele acredita estar vendo no espaço, sob for-
do material e assumir-lhe as características. Portanto os dois ma concreta e vinda do ambiente exterior, aquilo que não pas-
mundos, o espiritual e o material, o imponderável e o tangível, sa da projeção materializada de uma forma imaterial, impossí-
se comunicam. Ao primeiro chega, como representação imate- vel de encontrar naquele ambiente. Tudo isso é tido como fruto
rial, o equivalente da forma material; ao segundo chega, como de alucinação, algo de irreal, produto de estados patológicos;
representação material, o equivalente da forma imaterial. As- no entanto isto em nada reduz a normalidade do fenômeno, em
sim, através de uma série de trocas, o conteúdo de cada um dos sua qualidade de fato natural, nem diminui a veracidade da
mundos se derrama no outro, e em cada um, embora transfor- sensação, que, em lugar de constituir expressão do mundo ex-
mado, encontramos sempre o outro. terior, como acontece nos casos mais comuns, é tão-somente
A estrutura desses dois mundos contíguos e comunicantes expressão do mundo interior. Assim, nas visões, a imagem efe-
não é idêntica. De um lado, temos um meio sensório-analítico; tivamente se forma na retina (como no caso de Bernadette de
de outro, uma forma sintético-unitária. De um lado, o cérebro Lourdes), do mesmo modo que, em relação às vozes (caso, por
se ramifica por todo o corpo, através da rede nervosa, como se exemplo, de Joana D'Arc), a vibração acústica se forma no ou-
o quisesse polvilhar de células nervosas sensitivas para captar vido, dando-se a mesma coisa quanto aos outros sentidos. A
todas as vibrações do ambiente; os canais das vias sensoriais única diferença consiste em que não vem de fora a excitação,
são especializados; a captação é analítica, particular, definida, mas de dentro, o que, aliás, pode-se compreender facilmente,
porque ambos os mundos estão repletos de energias em plena
47
Sustenta-se por si mesma. (N. da E.) atividade. Uma vez que o mundo interior não é, como o mundo
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exterior, igual para todos, pois são muitas as capacidades espi- mas sim duas: a normal vida concreta da matéria e a inversa vi-
rituais e diferentes os graus evolutivos, explica-se desse modo da imponderável do espírito. Esse é outro mundo, imenso como
por que a sensação, seja ela visual, auditiva etc., é absoluta- o mundo físico, no entanto muita gente não o vê, não o com-
mente pessoal e incomunicável nesses casos, só podendo ser preende, não lhe admite a existência. É realidade negada por
captada apenas pelo sujeito que se encontre em condições ade- muitos. Por aí se vê o abismo de incompreensão que divide os
quadas. Desse fato deriva a desconfiança que ele provoca e a seres diversamente desenvolvidos. Muitas das coisas aqui nar-
pecha de patológico que gratuitamente lhe atiram. radas se referem exatamente a essa vida, inacessível para tan-
Tudo isso pode completar as observações do volume As tos; dos conceitos aqui registrados, muitos baixaram, nas asas
Noúres, estudo crítico da técnica receptiva com que se escre- da inspiração, do mundo íntimo do espírito, isto é, graças à in-
veu A Grande Síntese. Agora podemos explicar melhor o fe- versão do sentido normal da corrente vibratória. A ―Visão‖,
nômeno da inspiração. Trata-se da captação de noúres ou cor- narrada em dois dos capítulos precedentes deste volume, for-
rentes de pensamento que emanam de centros espirituais e fi- mou-se opticamente na retina, mas de olhos fechados, graças à
cam vibrando no espaço. Ainda neste caso, o fenômeno se dá projeção interior, com a mesma sensação causada pela visão
por via radiante, porém o receptor não é mais o cérebro, e sim óptica normal. Estas páginas constituem viva aplicação dos
o espírito do indivíduo, que, exatamente para pôr-se em condi- princípios já expostos; são estas afirmações nada mais nada
ções de captar essas correntes, deve antes de mais nada colo- menos que resultado experimental.
car-se em estado de vibração harmônica ou sintonização. O Cada uma das duas vidas, consideradas de per si, representa
mesmo fenômeno pode dar-se entre os espíritos de dois ou a metade da dupla vida total. A verdadeira vida completa é bi-
mais homens quando, ao invés de se comunicarem pelo meio nômio bipolar e bifronte. Eis nova aplicação da universal lei de
mais demorado, projetando o pensamento através do cérebro, dualidade. E, até mesmo neste caso, o binômio se equilibra em
nervos, órgãos vocais, até à palavra, preferem transmitir e re- dois termos inversos e complementares. Observemos mais ain-
ceber diretamente por via radiante, muito mais rápida (telepa- da. Temos espírito e corpo, o imponderável e a matéria, consci-
tia). Portanto o impulso psíquico também pode partir de outro ência e fenômeno, o eu e o ambiente, a vida interior e a exteri-
eu, não importa se encarnado ou desencarnado. Nessa primeira or, contemplativa e ativa, a percepção espiritual e a percepção
fase, o pensamento está em estado radiante puro. Assim de- fisiológica, a impressão subjetiva proveniente do mundo interi-
terminada, por causas próprias ou alheias, a vibração que se or e a impressão objetiva proveniente do mundo exterior. O
faz sentir no espírito é transmitida, da maneira já explicada, primeiro termo é eletricamente positivo, o segundo, negativo; o
deste centro ao cérebro e aos outros órgãos sensitivos. Nem primeiro é em ondas curtas, o segundo, em ondas longas; um é
todas as percepções, sobretudo as de ordem superior, precisam de alta, o outro, de baixa frequência. Na passagem de um a ou-
percorrer, para serem sentidas, todo o período de retorno até tro extremo e ao contrário, deve dar-se mudança de sinal, de
chegar ao órgão sensório, pois, caso se mostrem suficientes, comprimento de onda e de frequência (muito mais notável que
podem deter-se nos primeiros estágios da transformação. a simples normalização das imagens ópticas). Ao nascer, en-
Quando se trata de conceitos, basta, para serem percebidos, tramos no segundo tipo de vida e dele saímos ao morrer. Ao
que o cérebro os capte, tornando-se desnecessário, especial- morrer, entramos no primeiro tipo de vida e dele saímos ao
mente quanto aos intelectuais, em absoluto, que entrem em jo- nascer. A própria lógica da arquitetura do universo impõe todos
go as vias sensoriais. Assim, na captação noúrica, o pensamen- esses equilíbrios. A verdadeira vida, completa e íntegra, oscila
to desce do mundo espiritual, onde se encontram tanto a fonte continuamente de um a outro de seus polos. Só assim, percor-
transmissora como o eu receptor, que primeiro funciona como rendo alternativamente uma e outra metade, o ser incompleto
antena e, depois, como transformador, isto é, canal em que se pode viver a vida integral. O tipo comum está na Terra, do lado
realiza o processo de materialização da ideia, processo diame- que parece vida, mas é morte, se visto do lado oposto. Para os
tralmente oposto ao normal, que consiste na espiritualização da do além, ele parece indivíduo entorpecido, à mercê da ilusão
percepção sensitiva. O primeiro desses fenômenos encontra- dos sentidos. O evoluído sabe viver não apenas a vida dos vi-
mo-lo na fé, na arte, na intuição, na inspiração, nas revelações. vos, mas também a vida dos mortos. De um lado é dia, do ou-
O cérebro, portanto, é órgão bipolar e diafragma central tro, noite; de um é lado, luz, do outro, trevas. Tudo, logicamen-
que, suspenso entre duas vidas, pode ser percutido pelas duas te, conforme a posição em que nos encontramos. Na Terra, para
opostas aparências da realidade. Observemos mais um pouco. os vivos, a via direta e normal da percepção é a fisiológica; a
De acordo com a capacidade do ser, as correntes podem mover- inversa e excepcional é a via espiritual. Para os mortos, ou me-
se numa ou noutra direção. Geralmente, por serem os indiví- lhor, para os vivos de além-túmulo, a via direta e normal da
duos mais desenvolvidos física do que espiritualmente, a vibra- percepção é a espiritual; a via inversa e excepcional é a via fisi-
ção vai da matéria ao espírito. Excepcionalmente, porém, as ológica. Entre as duas formas de sensibilidade existe a mesma
correntes podem movimentar-se ao ponto de provocar a proje- relação que entre vigília e sono; a primeira caracteriza-se por
ção sensorial em sentido inverso, quando o indivíduo é espiri- percepção límpida e exata; a segunda nos oferece percepção va-
tualmente forte e, em compensação, fisicamente fraco. Esse fa- ga e sonambúlica. Quando o estado ativo se manifesta num lado
to, aliás, já foi por nós devidamente frisado. Para inverter a di- da vida, as qualidades do lado oposto permanecem latentes, em
reção da corrente, torna-se necessário que também seja inversa estado de espera e repouso. Assim, o desenvolvimento se dá
a potência dos dois termos extremos. O gênio, o artista, o santo, graças a essa atividade alternada, em que cada uma funciona por
na qualidade de seres inspirados, são espiritualmente fortes e sua vez, enquanto a outra parte, a antítese do binômio, permane-
nisso superiores à média; pertencem ao tipo evoluído. Na vida ce à espera. Essa oscilação entre atividade e repouso, entre au-
vegetativa do involuído não é possível nem concebível essa re- sência e presença, entre vida e morte, constitui o ritmo do fenô-
versão de sensibilidade. O indivíduo normal geralmente conhe- meno vida, em relação a cujos ritmos se fazem as harmonias
ce e vive apenas a primeira metade do fenômeno, pois é limita- universais. O fenômeno vida não pode constituir exceção dessa
do, atrófico e, por isso, funciona muito mal no que diz respeito lei de simetria, de justiça compensadora. Em nosso universo, tal
ao espírito. Os tipos desenvolvidos, porém, conseguem perce- como está construído, não passa de absurda qualquer posição de
ber em ambas as direções e tomar consciência não só da vida desequilíbrio não compensada pelo correspondente impulso con-
material projetada no espírito, mas também da íntima vida espi- trário. Uma única exceção faria desabar todo o edifício.
ritual, percebida como projeção sensorial. Podem, desse modo, A percepção inversa, espiritual, pode dar-nos ideia do tipo
viver não apenas uma vida – aquela mais comum, vegetativa – de sensações dominantes no além-túmulo. Além disso, se apa-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 241
recem também neste mundo e, portanto, existem como fato ob- descem na Terra e fator da fecundação espiritual da matéria. A
jetivo e experimental (clarividência, inspiração, visões, profe- tarefa do artista consiste em plasmar a forma que nos revele o
cia), é-nos lícito perguntar para que servem as qualidades su- imponderável, representando-o a nossos olhos; deve, pois, ins-
pernormais, tendo em vista as finalidades biológicas. E não nos pirar-se em valores eternos; se, no entanto, vai buscar inspira-
esqueçamos de que, na natureza, todas as coisas existentes, pelo ção em coisas rasteiras, representando os valores terrenos, o ar-
simples fato de existirem, devem ter objetivo determinado. Tra- tista trai e deixa de cumprir a própria missão. Dos equilíbrios
ta-se de qualidades que esperam sua vez de entrar em atividade; da vida participam também as atividades supranormais, que ou-
estão adormecidas agora, mas viverão na outra vida, que cha- tra coisa não representam senão legítima função biológica. Por
mamos morte. Por isso, enquanto a sensação terrena resulta da aí se vê que a sociedade humana precisa também do artista, do
vibração específica de uma série de células enfileiradas à ma- inspirado, do gênio, do santo; tipos que, embora quase sempre
neira de canais condutores, a sensação, no além-túmulo, é cau- incompreendidos e maltratados, são indispensáveis, a quem ca-
sada por um estado vibratório sutil (de ondas curtas e alta fre- be a tarefa de, enfrentando sozinho todo risco e canseira, mer-
quência), que, todavia, abrange todo ser imaterial. Teremos gulhar nos abismos do mistério, apoderar-se-lhe dos valores e
sensações de grande extensão e alcance, se comparadas com as trazê-los até ao plano humano, a fim de dinamizá-lo, orientá-lo
sensações limitadas mas precisas da vida terrena; no entanto, e dirigi-lo. A matéria não é autossuficiente, sabe viver e pro-
para nós que estamos chumbados às vias limitadas dos sentidos, gredir apenas se animada pela divina centelha do espírito.
pareceriam evanescentes, imateriais, indefinidas, flutuantes e Aqueles seres, ainda raros, representam na sociedade as células
sonambúlicas. A sensibilidade do desencarnado é difusa, não especializadas na função evolutiva. O involuído mostra-se in-
possui órgãos específicos aptos a captar vibrações particulares e capaz de progredir sozinho e fortalecer-se, por isso necessita
definidas; sensibilidade, para nós, estranha e fantástica, como dessas antenas reveladoras e desses canais dinâmicos. Os sábios
que adormecida, em transe; sensibilidade não de minúcias co- equilíbrios da Lei suprem-lhe essa incapacidade, fornecendo-
mo a nossa, mas de conjunto, mais sintética que analítica. As- lhe esses apoios. Ele, então, crê. Quem se revela incapaz de ver
sistimos neste caso a uma espécie de vaporização da sensibili- por si mesmo é constrangido a acreditar piamente em quem vê
dade (entendida de acordo com o sentido terreno), que, em por ele. Quem não sabe, à custa dos próprios meios, subir o ás-
compensação, aumenta de potência relativamente às qualidades pero caminho espiritual se vê obrigado a apoiar-se em quem o
de generalização e abstração, opostas àquelas qualidades mate- sabe e a depositar confiança em quem, tendo visto, dá testemu-
riais, junto às quais suas intensidades se debilitam. Assim, a nho de tudo quanto viu. Por isso quem sabe assume o compro-
verdadeira solução dos problemas reside mais na intuição do misso de testemunhar a verdade; quando se cala, trai sua função
que na razão; a centelha reveladora brilha no espírito intuitivo, biológica de célula evolutiva, mesmo que proclamar a verdade
e não no cérebro raciocinante, que não cria, mas apenas explica possa às vezes levar ao martírio. Na divisão do trabalho da vi-
e aplica. Da parte do corpo, temos o espaço e o tempo, ou seja, da, a parte que lhe toca é essa. Se não puder oferecer a todos a
o limite. Da parte do espírito, o infinito e a eternidade. A extin- prova direta do que, por transcender as capacidades e experiên-
ção dos limites implica presciência do futuro e ubiquidade. O cia comuns, se mostra inconcebível, sua vida de evoluído, ori-
eu espiritual vê longe, vê o conjunto, é bem orientado, sábio, entada de modo bem diverso, deve ser tão sublime, que consti-
olimpicamente calmo. O eu vegetativo está encerrado no espa- tua prova bastante. Desce, desse modo, até nós a evanescente
ço e no tempo, isto é, na prisão do limite, está sujeito a fatigan- realidade do espírito, que, embora constitua a própria alma de
te corrida para superá-lo, anseia pela evasão, é analítico e deso- nossa vida concreta, é por ela sempre negado; alcança-nos as-
rientado, vive e percebe apenas as particularidades, entre coisas sim esta estranha e longínqua realidade que gostaríamos de es-
insignificantes e transitórias. O mundo de além-túmulo é o dos quecer e, no entanto, estamos continuamente seguindo, invo-
valores morais; o mundo de aquém-túmulo é o dos valores ma- cando-a nas preces, representando-a nos ritos, materializando-a
teriais, da luta, do trabalho, da riqueza. Tudo isso, naturalmen- nas criações artísticas. A humanidade concorda de tal modo
te, presume adequado desenvolvimento até mesmo em relação com a existência do invisível, que, com fundamento nesse
ao lado espiritual da vida. Mas o senso moral emana do espíri- acordo, tornou-se possível o aparecimento das religiões. Se es-
to. Sem ele, não podemos alimentar a esperança de encontrar as tas existem e possuem tanta importância histórica e social,
qualidades que lhe são inerentes. Do lado de lá, atividade espe- exercendo poderosa influência na vida dos povos, conclui-se
culativa e abstrata; deste, atividade utilitária e concreta. Duas daí que elas satisfazem uma necessidade, um instinto e, por is-
formas de vida, duas linguagens completamente diferentes: so, desempenham uma função. De fato, na natureza, todo apelo
contemplação e ação. Todo mundo tem virtudes e qualidades que exige resposta possui significado bem determinado. Nor-
próprias e uma escala de valores exclusiva. No topo da escala malmente, somos incapazes de, sozinhos, chegar até ao espírito;
de valores terrestres coloca-se o interesse egoísta; no cume da não o vemos, embora nos chame e nos atraia. Ele nos foge e, no
escala de valores espirituais estão a bondade e a justiça. O entanto, está entre nós; comove-nos e nutre-nos. A realidade
evangelho e o reino dos céus pertencem ao mundo do lado de quotidiana, colocada bem no outro extremo da vida, nega-o,
lá; são luzes que dali promanam, revelando-os para nós. Cada embora lhe presuma a existência. Assim, através dessa via sen-
um de nós imagina o paraíso a seu modo e luta para conquistá- sorial inversa por nós examinada, o espírito desce até nós e se
lo, ou do lado de cá ou do lado de lá. Quem hoje goza na Terra comunica conosco. Eis o que aconteceu quando São Francisco
amanhã sofrerá na outra vida; quem hoje sofre no mundo, ama- escutou o crucifixo de São Damiano falar, Joana D'Arc ouviu as
nhã gozará no céu. O Sermão da Montanha, quando diz ―Bem- vozes de Donremy, Teresa Neumann viu a paixão de Cristo, a
aventurados os que sofrem; amanhã gozarão‖, exprime a lei de beata Ângela de Foligno escreveu movida por inspiração, São
dualismo e equilíbrio, mostrando uma das aplicações de sua ló- João viu na Ilha de Patmos o drama do Apocalipse. Tanto na
gica e justiça supremas. Quem executa bem suas tarefas neste visão como na audição supernormais, a percepção vem do
mundo, executa mal suas tarefas do lado de lá, e ao contrário. mundo interior, e não do mundo externo. Isso levou muita gen-
Os valores se invertem. Assim, a sublime loucura da pobreza se te a acreditar que se tratasse de tipos de alucinações: patológi-
explica como condição necessária de grande riqueza espiritual. cas apenas porque anormais, irreais simplesmente porque origi-
A qualidade do espírito é a sensibilidade, e todo espiritual é nadas de projeções subjetivas. No entanto a subjetividade cons-
um sensitivo. O evoluído é o tipo biológico que conhece tam- titui-lhe exatamente a característica lógica e natural. A sensação
bém essa outra vida e os seus valores. Tudo isso o involuído ig- se origina de vibração que não provém do mundo exterior, mas
nora. Aquele tipo biológico é o canal por onde estes valores sim do mundo interno; não deriva de fonte objetiva dotada de
242 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
existência própria, independente do sujeito, per se stante, em si ra não pode dar. A sensibilidade do evoluído fica na fronteira
mesma igual para todos, embora esta, mesmo neste caso, não de dois mundos, e sua psique se enriquece com as experiências
seja percebida do mesmo modo por todos. Assim se explica e nascidas de duas realidades diversas. Muitas vezes, o mundo in-
justifica a subjetividade da percepção, isto é, por que a luz e o terior lhe oferece muito mais do que o mundo externo. Mas, se-
som apenas possam ser percebidos pelo sujeito. Os homens ja quem for o indivíduo, por mais rudimentar e inerte que se
normais não percebem coisíssima alguma. Embora presentes, mostre seu espírito, a percepção interior sempre dá sinal de si,
não veem nem ouvem. Para que tivessem idêntica sensação, embora fraco; não existe quem, em algum momento da vida,
igual capacidade de ver e ouvir, deveriam encontrar-se nas não a tenha experimentado, mesmo embrionariamente. Quem
mesmas condições particulares e excepcionais do sujeito. Como viveu o fenômeno inspiração sabe como é lábil e pronto a eva-
isso se torna muito difícil, não lhes resta senão tentar reconstru- nescer-se qualquer conceito espiritual cuja radiação ainda não
ir, deduzindo-a do estado do sujeito, essa fugacíssima realidade haja alcançado o cérebro, e como, só então, o sujeito adquire
íntima. Quando a ciência estuda esses fenômenos, o germe da consciência desse conceito e se torna senhor dele. Sabe que a
incompreensão já se encontra nas suas premissas, isto é, na dú- solução dos problemas percorre vias absolutamente indepen-
vida, no seu método de investigação, que utiliza a experimenta- dentes dos processos lógicos e racionais, surgindo como um re-
ção objetiva, e na sua atitude sensória, cerebral e racional. Tan- lâmpago que, ao iluminar uma zona de pensamento, traz com-
to no êxtase como na prece, não nos armamos de instrumentos preensão instantânea. Poincaré, no seu livro Invention
de análise, de aparelhos de laboratório, para aumentar nossa ca- Mathématique, registra nestes termos o fato: ―O que nos fere a
pacidade de observação, mas sim nos abandonamos inteiramen- atenção desde logo são as aparências de súbita iluminação, re-
te à visão introspectiva, fechando os olhos e concentrando-nos, veladoras de longo e prévio trabalho anterior‖. O autor observa,
olhando para dentro de nós mesmos, do lado do espírito, isto é, à custa de experiência própria, que, nesses casos, o pensamento
exatamente na direção contrária à seguida pela ciência. O anta- se caracteriza pela rapidez, subtaneidade e certeza imediata.
gonismo entre ciência e fé (embora não se apoie em razão subs- Quando menos se espera, apresenta-se à nossa mente a solução
tancial, visto que ambos constituem apenas os dois extremos de problemas já de há muito propostos. Poderíamos citar inú-
opostos da verdade, dois aspectos da realidade) nasceu preci- meros trabalhadores intelectuais, como, por exemplo, Goethe,
samente do fato de que a fé diz respeito ao mundo interior, ao para quem a criação artística não passava de revelação. Isso nos
espírito, e a ciência se refere ao mundo exterior, à matéria. To- mostra como grande parte de nós mesmos opera fora do campo
das essas nossas afirmações parecem fantasia aos olhos da ci- da consciência lúcida, onde se manifestam apenas os resultados
ência justamente porque não resultam da observação, e sim da de numerosos processos de elaboração e maturação. Nesses ca-
introspecção, exames orientados para direções diametralmente sos, quão pouco influem nossa vontade e nosso esforço! Nossos
opostas. O positivismo científico constitui uma das metades da conceitos podem ficar adormecidos dentro de nós, bem recalca-
realidade completa. A outra metade é a realidade dos artistas, dos e invisíveis nos planos mais profundos da consciência. Não
poetas, santos, pensadores, místicos, inspirados e de todos os obstante, desenvolvem-se e se aperfeiçoam, como se, aí nessas
homens do espírito. profundidades, reencontrassem a ordem divina e se fortaleces-
sem graças à retomada de contato com a essência e as origens
XXVII. A PERSONALIDADE HUMANA (1a PARTE) das coisas. Mais cedo ou mais tarde, porém, uma vibração afim
os desperta e, por sintonia (as outras vibrações não o conse-
Agora que percorremos caminho tão comprido, podemos fi- guem), os faz reaparecerem, como um relâmpago, no campo da
nalmente enfrentar o problema da personalidade humana. Po- consciência. Percebe-se facilmente que se trata de criação pura
rém, antes de mais nada, observemos mais uma vez os proble- e simples; constitui conquista de espírito, que exulta por desse
mas precedentes. O estudo da lei de dualidade nos conduziu à modo aproximar-se de Deus. A meditação prepara o fenômeno,
visão da vida total e completa, unidade mais ampla que a unila- coloca a matéria-prima no abismo do espírito, propõe o pro-
teral vida física. Nada mais lógico que, como todas as individu- blema e lança a interrogação. Silêncio. A mente debate-se no
alidades, também essa unidade se divida em metades justapos- redemoinho do pensamento, não consegue escapar-lhe e logo se
tas. A vida completa, como um pêndulo a oscilar continuamen- cansa e esquece. Mas pôs em liberdade uma força que continua-
te, vai de um a outro de seus extremos e, percorrendo esse ca- rá agindo. Onde? Como? Esquecemo-la, chegamos quase a ig-
minho oscilante, evolui, não como vulgarmente se pensa, isto é, norá-la. E eis que de repente ressurge, transformada, fortaleci-
através de simples evolução biológica terrestre, mas sim através da, luminosa. E antes se nos mostrava obscura e cansada! A
de evolução dupla, inversa e complementar: a material terrena e alma, então, grita, como Arquimedes pelas ruas de Siracusa:
a espiritual ultraterrena, a do corpo e a do espírito. Uma vez ―Eureka, eureka‖. Quem viveu o fenômeno inspiração sabe que
que tudo é bipolar, é lógico que também o homem deva passar a concepção mais profunda corresponde a uma posição psiqui-
por duas experiências opostas: a da vida ativa e a da vida con- camente inerte, de desatenção passiva, de distração relativa ao
templativa. Para conceber a existência no além-túmulo, basta- assunto ou, mais exatamente, a um estado de inexistência do
nos imaginá-la como o inverso da existência terrena. Diz-se que pensamento ativo normal; sabe que, quanto mais rápido e per-
a psique contém apenas os resultados consequentes das experi- cuciente for do ponto de vista sensorial e quanto mais, em rela-
ências possíveis no ambiente que a cerca, isto é, não pode ser ção à vontade, tender para a pesquisa e a observação, tanto mais
impressionada senão por elementos oriundos do mundo exteri- esse pensamento serve de obstáculo à intuição. Sabe também,
or. Essa crença, se podemos explicá-la como resultante da con- por experiência, que toda atividade reflexa de atenção e contro-
cepção comum que se faz da vida, ou seja, da meia-vida, e não le, toda tentativa consciente no sentido de passar do estado pas-
da vida completa, todavia não corresponde à realidade. Quem sivo de contemplação ao estado ativo de apreensão (recordação,
possui a vida terrena e a vida espiritual sabe muito bem que a controle, raciocínio, escrita etc.), destrói a miragem e faz as
psique contém, em quantidade e variedade, muito mais do que ideias se desvanecerem.
o ambiente externo pode oferecer e que grande parte de nossos Isso tudo nos mostra uma grande verdade: a criação inspira-
conhecimentos pode, por vias interiores, provir de outras reali- da constitui fenômeno de colaboração entre o homem e Deus,
dades. Os sonhos, a intuição e a inspiração nos proporcionam portanto não resulta, como se poderia crer, apenas da vontade e
sensações e resultados diferentes dos sensoriais, filhos da expe- da ação, mas também do cumprimento da Lei, na obediência a
riência terrena, oferecem-nos concepções diversas das comuns Deus, a quem devemos entregar-nos sem reservas. Mostra-nos
concepções racionais, demonstrando conhecimentos que a Ter- também que a finalidade criadora se atinge ativa e passivamen-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 243
te, não só se impondo às sábias forças vitais, mas também dei- ção da consciência. Membros não nos faltam; o que nos falta é
xando-se arrastar por elas. A sabedoria egípcia resumiu num cabeça. Os fatos acumularam-se demais; falta-lhes o senso uni-
aforisma esse conceito: ―o arqueiro atira ao alvo esticando e tário da coordenação. Há cento e poucos anos, Augusto Comte
soltando o arco; o nadador chega à praia nadando e, ao mesmo escrevia em seu curso de Filosofia Positiva, anunciando o ad-
tempo, deixando-se levar pelas ondas‖. Em consequência da lei vento do período atual: ―O presente período é a idade da espe-
universal de dualidade, também esse fenômeno resulta do equi- cialização, graças à universal preponderância do particular so-
líbrio de duas partes inversas e complementares. Portanto, bre o espírito de conjunto‖. A observação muito minuciosa nos
quando queremos, fazemos tudo quanto é necessário; somos, tornou míopes. G. B. Shaw chega a dizer: ―Ninguém pode ser
porém, tão ignorantes, limitados e imperfeitos, que necessita- puro especialista sem ser perfeito idiota, no mais rigoroso sen-
mos de ser guiados por uma sabedoria que nos supra de nossa tido do termo‖. Leonardi na introdução de seu livro A Unidade
ignorância e por uma força capaz de trabalhar onde a nossa não da Natureza (1933), acrescenta: ―Seria necessária uma classe
o consiga mais. E além de nossas possibilidades está a Lei, ple- de cientistas que, sem entregar-se inteiramente à cultura especi-
na de natural sabedoria, saturando a corrente de tudo com o alizada, se ocupasse unicamente da determinação do espírito
pensamento de Deus. Portanto parte de nossa melhor atividade das diversas ciências, descobrindo-lhes o nexo, a fim de deter-
pode consistir em obedecer à vontade de Deus. Assim, depois minar-lhes os princípios comuns‖. Henri Poincaré, no seu livro
de fazermos nossa parte do trabalho, nossa obrigação cessa e A Hipótese e A Ciência, afirma que ―também as ciências, inclu-
convém abandonarmo-nos à Providência. Por isso o mundo sive as mais exatas, necessitam de certa inspiração e devem
consegue, em caótico estado de inconsciência, falar sobre as- seus progressos ao fatigante trabalho das faculdades subconsci-
suntos dos quais não entende absolutamente nada. Do ponto de entes‖. Em seguida acrescenta: ―É quase infinito o número de
vista racional, isso se chama inconsciência, pois o homem não fenômenos, por isso não podemos submetê-los todos a experi-
prepara e, além disso, ignora o seu futuro. Mas, do ponto de ências... A menos que se queira conseguir simples acumulação
vista da intuição, no instinto em que a Lei se faz ouvir, essa ati- de fatos... pois a experimentação nos dá apenas certo número de
tude representa, em essência, maravilhosa fé na sabedoria e na pontos isolados; torna-se necessário ligá-los‖. Não basta, por-
proteção divina. E a vida, sabedora desta proteção, vai progre- tanto, que a observação registre e a experiência controle; não
dindo. Apenas desse modo se justifica o fato de querermos con- caminhamos de modo algum senão à luz da intuição. Esta, na-
tinuar a viver e a nos reproduzir para irmos ao encontro de futu- turalmente, deve submeter-se ao controle da experimentação,
ro pleno de espantosas incógnitas, embora saibamos que a vida que, sozinha, jamais abandona os atalhos experimentais para
nos oferece apenas canseira e dor. percorrer a estrada real do conhecimento. Ao lado das pequeni-
A intuição constitui fenômeno espiritual e, por isso, revela e nas experiências particulares, espalhadas pelo infinito mundo
cria. A razão, ao contrário, é função cerebral e portanto, mais fenomênico, é necessária também a experiência unitária do ego,
do que à concepção de grandes ideias reveladoras, orientadoras único a quem se torna possível aproximar-se do pensamento di-
e sintéticas, se destina às pequenas ideias da vida terrestre, al- vino. Para subirmos pelos caminhos do espírito, necessitamos
gumas aplicações práticas e analíticas. A ciência atual sofre de uma atitude de fé e de prece. Os caminhos da dúvida e do
desvantagem ao ignorar a vida do espírito e não dispensar-lhe controle sensório nos levam para o lado da matéria, para a peri-
cuidado algum. Esta ciência, porém, é filha da fase materialista feria, afastando-nos cada vez mais do centro. Os primitivos,
do pensamento humano – fase racional, em antítese com a fase que em lugar de senso de análise, como nós, possuíam senso de
intuitiva – e limita-se, em consequência, ao lado terrestre, práti- síntese, enfrentavam de modo diferente o mesmo enigma que
co, utilitário e material da vida. Pelo menos enquanto não for nos assoberba. Enquanto enfrentamos o mistério como a um
superada essa fase, somente o conhecimento correspondente a verdadeiro inimigo, armados de todos os recursos e todas as as-
esta condição será possível para a ciência moderna. Enquanto túcias, para derrotá-lo, dominá-lo e submetê-lo a nós, os antigos
isso, permanece na zona de experimentos e análises, afastada se aproximavam dele com palavras sagradas e solenes, que sus-
do campo de intuições e sínteses. Isso a torna incompleta, muti- citavam no coração dos homens o silêncio e a veneração. Hoje
lada pela falta de orientação e visão de conjunto necessárias pa- em dia, porém, não mais queremos tanto contemplar, compre-
ra dirigir as pesquisas e chegar a uma conclusão. De fato, a ci- ender e harmonizar-nos, e sim intervir na natureza, operar, in-
ência moderna tem finalidades utilitárias e não sabe pô-las de fluindo nos ritmos da vida para submetê-los ao nosso desejo, o
lado. Essa unilateralidade representa lacuna e defeito graves. É que mais parece um assalto à Divindade. E é isto que nossa
necessário também a síntese. Mas a síntese não se consegue se- época intenta. Semelhante experimentação se conduz por tenta-
não através da intuição, isto é, trabalhando no polo oposto ao tivas, com movimentos completamente desorientados, na com-
que a ciência trabalha: o polo espiritual. Ativa do lado material, pleta ignorância das consequências e reações que possam de-
a ciência acumula conhecimentos, porém não fecunda. Falta-lhe sencadear. Isso é extremamente perigoso em universo tão orgâ-
a centelha do espírito. É necessário, sem dúvida, acumular co- nico e interdependente, num campo de forças tão sensíveis e
nhecimentos materiais, mas é necessário também que, assim equilibradas. Ninguém desconhece a importância da contribui-
como acontece no binômio sexual, mais tarde o outro termo in- ção do método positivo experimental. Afirmamos, isso sim, a
tervenha e os fecunde. Se isso não se der, coisa alguma pode necessidade de completá-la com a contribuição oferecida pelo
nascer. Quem afirma ser verdadeiro apenas o que pode ser de- método intuitivo. Do mesmo modo que a vida, a ciência é bipo-
monstrado experimentalmente exprime apenas um lado da ver- lar; e, assim como estivemos à procura da vida total e completa,
dade; ignora a outra metade, que afirma serem fruto de inspira- procuramos agora a ciência completa nos seus dois ramos: ra-
ção, resultado mais do espírito do que da experiência e do labo- zão-análise e intuição-síntese. A intuição não é considerada
ratório, todas aquelas verdades fautoras do progresso científico. como caso excepcional e pouco apreciável, mas elevada a ver-
Como consequência das observações até aqui feitas, assinala- dadeiro sistema de pesquisa. Os resultados do objetivismo, que
mos, para o bem da ciência, o perigo que para ela constituí a vêm de baixo, deveriam fundir-se com os resultados do subjeti-
exasperação analítica de nossos dias, limitando-a a acumular vismo, vindos do alto. Deveriam dividir entre si as duas fases
experiências ao invés de se estender à descoberta de relações do trabalho: uma consistindo em encontrar, a outra em analisar
remotas; o perigo da especialização divergente devida ao pre- e demonstrar. Por que motivo, então, nos é tão difícil encontrar
domínio desse método analítico. Se não ocorrer mudança de di- na prática conceitos assim fáceis de compreender, tão lógicos e
reção, que inteligentemente nos impulsione para direção con- persuasivos? A razão é que a intuição apenas pode ser exercida
vergente e conclusiva, esse caminho nos conduzirá à pulveriza- por tipo biologicamente selecionado, isto é, pelo evoluído, mas
244 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
dele há poucos exemplares, e mesmo esses, cedo ou tarde, aca- plicam as comparações, a que tantas vezes recorremos, entre os
bam sendo eliminados pela sociedade na luta pela vida. fenômenos morais e físicos e a relação unitária dos campos
A sede dessas fontes particulares, a que agora voltamos a mais díspares. Tal como a personalidade humana, também o
atenção, se encontra na personalidade humana, imenso pro- universo é bipolar e construído segundo o mesmo princípio. A
blema cujo resumo procuraremos fazer nestas últimas páginas, unidade máxima, ao invés de constituir-se exceção, confirma a
a título de coroamento desta obra. Não poderíamos enfrentá-lo lei de dualidade. Essa bipolaridade é a estrutura interna do mo-
antes de propormos a solução de tantos outros problemas até nismo, que é dualístico. As observações que até agora fizemos
agora tratados, que lhe servem de orientação e dos quais o pro- e culminaram no estudo da personalidade humana, corroboram
blema da personalidade serve de fecho. Começamos a falar da esse conceito e resultam nesta conclusão. Os dois termos do bi-
personalidade nos fins do Capítulo XXVI. Mas era necessário nômio, embora extremos opostos e distintos do fenômeno, es-
percorrer outro caminho e antepor outras demonstrações para tão indissoluvelmente unidos, funcionam conjugados, condici-
que agora pudéssemos continuar elaborando a conclusão. Na onam-se reciprocamente, podem ser considerados como luz e
parte final daquele capítulo, definimos a lei de dualidade. Não sombra um do outro. São, portanto, distintos e distinguíveis:
pode fugir à lei universal o problema que agora nos preocupa. Criador e criação, alma e corpo. Princípios diferentes, porém,
Até mesmo essa individuação constitui, por isso, unidade du- pelo fato de serem complementares, são de funcionamento úni-
pla, isto é, formada de metades inversas e complementares, em co, indivisível, reciprocamente condicionado e, portanto, equi-
choque e em equilíbrio. Também nesse caso nasce desse cho- librado, de modo que a queda de um termo importa na do outro.
que aquela elaboração íntima que lhe constitui a evolução. No esquema de nosso universo, pelo menos tal qual se nos re-
Vimos as características dos dois termos da unidade e agora re- vela hoje, não tem sentido a sobrevivência de um termo só; o
tomamos o contato com eles. Portanto a personalidade humana equilíbrio de impulsos que o rege impõe não se possam os dois
é bipolar: espírito e matéria, alma e corpo – equilíbrio e dese- termos separar sem ruína total. Isso não é simples hipótese ou
quilíbrio. Do movimento das duas partes, que se entrechocam, teoria filosófica, mas verificação objetiva do estado atual das
nasce a elaboração evolutiva. As duas partes são amigas e ri- coisas. Portanto o eu central, no universo e na personalidade
vais, atraem-se e repelem-se, procuram-se e evitam-se; estão humana, está presente na intimidade até mesmo do último áto-
ligadas uma a outra para que assim possam viver, mas, tão lo- mo de seu organismo físico; é ao mesmo tempo, como já dis-
go uma delas se enfraqueça, a mais forte predomina e invade o semos, centro e periferia. Deus encontra-se no centro e em toda
campo da outra. Dissemos que as raízes do psiquismo mergu- parte. Como poderia, doutro modo, estar em toda parte? A cau-
lham profundamente nos meandros misteriosos da estrutura sa está no efeito e o efeito na causa. Transcendência e imanên-
orgânica. Acrescentamos agora que as causas e as razões da cia constituem os dois polos do mesmo binômio. O hipersensí-
estrutura orgânica estão sediadas na parte mais elevada do vel evoluído, que, como São Francisco, sente e, por isso, não
campo do psiquismo. O mistério do espírito estende-se até à pode negar essa presença de Deus em todas as coisas, não é
intimidade da célula, cuja complexa estrutura já estudamos. A panteísta. E não constitui panteísmo afirmar que o binômio
vida palpita num e noutro polo, desde a inconfundível indivi- Deus-universo, espírito-matéria, é inseparável e igualmente re-
dualidade sintética e unitária à extrema ramificação sensorial, lacionado em recíproco funcionamento; não o constitui, tam-
à infinita multiplicação celular, à analítica pulverização feno- bém, dizer que os dois termos, embora opostos, se acham tão
mênica ambiental. O eu é duplo, não fica no centro apenas, impregnados um do outro, que qualquer um deles, presente e
mas também na periferia; ora analítico, para captar e absorver ativo, penetra profundamente no campo do outro. Tal o signifi-
experiências, ora sintético, para resumi-las e destilar-lhes as cado em A Grande Síntese: ―Monismo, ou seja, o conceito de
qualidades; no centro, permanece idêntico a si mesmo, como um Deus que, ao mesmo tempo, é a criação‖ (Cap. VI); ―Em
eu inconfundível; na periferia, flutua em meio a experiências todas as suas manifestações, Deus é onipresente‖ (Cap. XI);
mutáveis. A corrente move-se em duplo sentido: o mundo inte- ―Tudo deve reentrar na Divindade‖ (Cap. LXIII); ―Não temais
rior nutre-se das vibrações provenientes do mundo exterior, diminuir-lhe a grandeza dizendo que Deus é também o universo
mas acaba dominando-o e plasmando-o à sua vontade. A ativi- físico‖ (idem). Esses conceitos vamos aprofundá-los e esclare-
dade celular repercute na atividade psíquica, e ao contrário. O cê-los mais no próximo volume Problemas do Futuro.
eu pode ser concebido como centro apenas enquanto pudermos Voltemos ao problema da personalidade humana. Já disse-
relacionar-lhe a ideia complementar de periferia. Assim, a per- mos que a evolução biológica resulta de evolução dupla e in-
sonalidade espiritual pode significar a síntese de inteligência versa: a material, terrena, e a espiritual, ultraterrena, realizando-
celulares, e o oceano de micro-organismos celulares, inclusive se através de duas experiências opostas, isto é, de vida ativa e
o átomo e seus elétrons, representará o veículo dessa persona- de vida contemplativa. Quem realiza esse trabalho? E como se
lidade, como corpo, roupagem da alma. O espírito, uma vez divide ele? O espírito, de sinal positivo, masculino, dinamiza e
que é o centro, pertence a todos os pontos da periferia; é o cen- dirige a evolução. Preside às experiências da vida. Emprega-as
tro e, ao mesmo tempo, a periferia. para elaborar-se e, por conseguinte, elaborar também o seu cor-
No homem se repete em pequena escala o plano construtivo po, aperfeiçoá-lo, desmaterializá-lo. O espírito evolui em dire-
do universo. O microcosmo é feito à imagem e semelhança do ção a planos cada vez mais elevados, arrastando atrás de si o
macrocosmo. A natureza obedece a esquemas únicos e simples, veículo material, quer dizer, utiliza corpos cada vez mais sutis,
repetidos em todos os estágios evolutivos e em todas as dimen- adaptados à sua fase evolutiva e às formas relativas de vida.
sões, presentes em todas as complexidades, de maneira que, pa- Compreende-se que, para poder fazer experiências, o espírito
ra dirigir e animar tudo, basta um único princípio, método e di- sempre necessita de um corpo na função de outro extremo do
namismo. As infinitas manifestações fenomênicas obedecem a binômio; para isso, não importa esteja o corpo desmaterializado
um só motor e a um só tipo diretivos. E isso de um extremo a ao ponto de parecer incorpóreo. Ele sempre constitui veículo
outro, dos mais complexos agregados às unidades mais elemen- adequado à finura e à sensibilidade do espírito, dadas pelo grau
tares (por exemplo: do sistema solar ao átomo). Assim todo fe- de evolução atingido pelo indivíduo, que, graças ao seu peso
nômeno não passa, em substância, de uma espécie do mesmo especifico, se equilibra, escolhendo um ambiente onde as pro-
modelo; todas as formas se calcam no esquema originário de vas sejam proporcionadas às qualidades adquiridas por ele. Por-
que derivam os demais. Torna-se fácil, portanto, compreender a tanto o organismo corpóreo, de ondas longas e baixa frequên-
analogia entre todos os fenômenos e justificar-lhes o parentes- cia, segue o caminho da evolução do espírito, isto é, aproxima-
co. Daí a possibilidade de reduzi-los a tipo único; assim se ex- se dele, morrendo e ao mesmo tempo renascendo no extremo
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 245
oposto, de ondas curtas e alta frequência, transformando sua vi- damentais que constituem a personalidade, o segredo da vida
bração em vibrações deste último tipo – em uma palavra: espi- consiste em saber encontrar a harmonia.
ritualiza-se. A corrente de vibrações que sobem das múltiplas As correntes vibratórias que nos percorrem a personalidade
experiências sensoriais e convergem para a síntese espiritual fluem, portanto, de quatro fontes, representantes de quatro
fornece as forças a elaborar; ao mesmo tempo, porém, uma cor- mundos, quatro sínteses, fruto de longo passado. São: 1) O
rente paralela desce do espírito ao organismo, invade-o com ti- eterno eu espiritual; 2) O ambiente terrestre; 3) O elemento pa-
pos de energia cada vez mais bem elaborada, quer dizer, de on- terno; 4) O elemento materno. Se grafarmos a reta da bipolari-
das cada vez mais curtas e frequência cada vez mais alta; desse dade vertical sobre a reta da bipolaridade horizontal, obteremos
modo, lentamente, o potencial de toda a personalidade se eleva o desenho de uma cruz, em que os quatro termos correspondem
de um extremo a outro, inclusive na parte física. Dessa oscila- aos quatro braços. Na cabeça da cruz teremos o espírito; nos
ção de atividade, conexão e repercussão de forças, deriva a evo- pés, o ambiente-matéria; no braço esquerdo, o elemento paterno
lução. Embora a evolução se opere graças ao princípio ativo, o e, no direito, o materno. As experiências ambientais, se quise-
negativo também colabora; não fora ele, e faltaria ao primeiro a rem atingir o espírito, devem atravessar o organismo físico. As
matéria a ser plasmada, a substância com que construir. Obser- correntes vibratórias oscilam de cima para baixo e de baixo pa-
vamos nesse caso a mesma divisão de trabalho existente entre ra cima, da direita para a esquerda e da esquerda para a direita;
homem e mulher. O organismo físico coleta e acumula; o espí- em todas as direções se trava luta. A personalidade representa o
rito dinâmico elabora e progride. O primeiro engorda, pregui- resultado dessa luta, a síntese desses elementos, por isso pode
çoso e vegetativo, saciando-se assim que satisfaça os instintos ser múltipla, como se oscilasse entre os diferentes polos extre-
de conservação e de reprodução; o segundo gasta a vida vegeta- mos. No plano orgânico-psíquico (já vimos que o espírito não
tiva na consecução de fins mais elevados, bate-se e atormenta- reside no cérebro), a luta se trava entre a personalidade paterna
se na ânsia de evoluir. Esse é o duplo aspecto da vida. e a materna e explode na puberdade. Uma das duas personali-
No entanto esse dualismo espírito-matéria não basta para dades vence, firma-se e constitui a dominante, em que prevale-
esgotar o problema da personalidade. Não é a única bipolarida- ce o tipo de um dos dois progenitores. Como acontece na coe-
de da vida essa antítese entre periferia e centro, entre as corren- xistência, o mais fraco cede o passo no ponto em que o mais
tes ascendentes e descendentes, pelas quais se distribui entre os forte conquista e, desse modo, se estabelece a harmonia. Ven-
dois termos, o positivo e o negativo, a atividade evolutiva. A cida, nem por isso a personalidade morre; continua, modesta-
esta bipolaridade, que poderíamos figurar como bipolaridade mente, como força subordinada, a gravitar em torno da princi-
vertical, na qual, do ponto de vista evolutivo, a matéria está em pal, como os planetas em torno do sol do sistema a que perten-
baixo e o espírito em cima, imaginaríamos superposta uma bi- cem. A natureza não a abandona nem a despreza; utiliza-a, con-
polaridade horizontal, na qual o princípio biológico positivo, fiando-lhe funções mais modestas, porém necessárias, como,
derivado do núcleo do espermatozoide paterno, e o princípio por exemplo, o controle representado pela oposição e pelas mi-
biológico negativo, derivado da célula-ovo materna, se situam à norias, para equilibrar, refreando-o, o domínio exclusivo e a
direita e à esquerda da bipolaridade vertical. A consciência hu- manifestação repentina e irrefletida da personalidade dominan-
mana, portanto, é o ponto de convergência da orquestra de vi- te. Reflexão significa controle recíproco entre duas tendências;
brações provenientes dessas quatro grandes vias, determinado quando elas entram em conflito, a hesitação aparece. Daí as di-
pelo cruzamento dos dois binômios. É disso que somos consti- ferenças de vontade, a tragédia dos impulsos opostos da consci-
tuídos, é disso que somos filhos e parentes, desse conjunto or- ência. Quando uma das forças vence, a vencida se retira para a
gânico de forças e correntes, algo muito mais complexo e ex- sombra, contentando-se em viver vida apagada, à espera da des-
tenso que a carne dos nossos pais, por mais que essa carne te- forra, assumindo, enquanto isso não acontece, a direção de fun-
nha vivido e traga inscrita em si mesma a sua história. A perso- ções modestas, mas sempre pronta para assumir a direção geral,
nalidade humana abrange os dois binômios, isto é, encerra em tão logo a força vencedora se canse e baqueie.
si quatro elementos que necessitam fundir-se, embora lutem pa- Entre os dois elementos há vários graus de fusão. Há indi-
ra se destruírem, dois desequilíbrios de forças à procura de ree- víduos, os chamados impulsivos, em que uma das personalida-
quilíbrio, isto é, duas fontes de movimento, de contraste, de des venceu tão nitidamente, que domina pacificamente, sem
sensação. Conforme concordem, forte ou fracamente, deles de- resistência, todo o campo da ação, pois a parte oposta o aban-
rivará estado de maior ou menor entrosamento ou de maior ou donou inteiramente e nenhum controle exerce mais sobre ele.
menor contraste e poder criador, gerando, desde as notas graves A decisão, assim, torna-se fácil, simples, automática, retilínea,
até às mais agudas, mais ou menos profunda e extensa gama de sem lutas, oscilações e dúvidas. São poucas as forças empe-
ressonâncias e riqueza de sentimentos. A personalidade serve nhadas na luta, por isso encontra-se rapidamente a solução. Pa-
de campo de batalha a essas forças, que se encontram dentro rece até rapidez o que, no entanto, não passa de simplicidade e
dela e podem ser calmas e concordantes ou impetuosas e dis- pobreza de meios. Outros, ao contrário, tardam a definir-se e,
cordantes ao ponto de transformá-la em violento explosivo. A apesar disso, são ricos e complexos; neles, o desequilíbrio não
personalidade pode, assim, manifestar-se sob tantos aspectos se resolveu pela pacificação estática e continua alimentando a
quantas são as posições por ela assumidas, variando de um ex- contradição. Neles, as duas personalidades, ambas prepotentes,
tremo a outro, isto é, de um estado de passividade inerte a outro concorrem contemporaneamente em todos os atos, levando-
de intenso dinamismo criador, derivado de desequilíbrio que, lhes tal riqueza de forças propulsoras e contraditórias, que as
caso não se saiba dominar, pode precipitar-se na loucura. Pro- divisões se tornam muito mais laboriosas. Daí deriva completa
curou-se identificar o gênio com a loucura, não porque ambos gradação de manifestações volitivas e de capacidade decisória,
possuam algo de comum, como estado e resultados, pois a dife- gradação que varia desde a ação imediata até à irresolução; da
rença entre os dois termos em nenhum outro caso é tão profun- ausência de controle observável no impulsivo até um controle
da, mas porque o desequilíbrio originário do dinamismo criador tão rigoroso, que paralisa a ação (Hamlet); da ação desorienta-
do gênio fica a um passo apenas da anarquia espiritual da lou- da até à orientação inativa, isto é, a reflexão paralisante. Tudo
cura. A superioridade do gênio, porém, reside exatamente na isso depende das características dos dois elementos: paterno e
capacidade de domínio e de coordenação das próprias forças, de materno. Estes, quando são muito dissemelhantes do ponto de
que jamais perde o controle. Domínio e coordenação muito vista biológico, não se fundem, ou se fundem mal. Desse fato
mais fáceis para o homem normal, dotado de recursos bem mais resultam todas as anormalidades descritas na fenomenologia
escassos. Em todo caso, porém, em face desses elementos fun- psiquiátrica; as conformações mentais em que predominam a
246 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
dissonância e a instabilidade; o desequilíbrio dinamizante mas deve, à custa do próprio esforço, fazer novas aquisições e au-
perigoso, que, controlado e reconduzido a ordem superior, po- mentar aquele capital, investindo-o em novas combinações,
de constituir o gênio, mas, se abandonado a si mesmo, desfar- empregando-o na atividade que lhe é própria, completando-o
se-á na loucura. Geralmente, porém, os dois estímulos, paterno com novas aquisições, obtidas experimentalmente no meio am-
e materno, acabam por harmonizar-se. Se a diferença for de- biente. Este patrimônio, assim aumentado, a personalidade deve
masiado grande, nascerá um caráter mais ou menos estável e por sua vez devolvê-lo à circulação, gratuitamente como o re-
equilibrado, verdadeiro mosaico de tendências. Se pensarmos cebeu. Se, porém, são estas as fadigas comuns da vida, podem
nas infinitas combinações em que estes elementos determinan- existir outras bem diferentes, das quais o homem normal esca-
tes podem agrupar-se na reprodução, compreenderemos que a pa. Nelas, a existência torna-se muito mais complexa, a luta fi-
natureza pode produzir uma inexaurível quantidade de tipos. ca áspera e a harmonização é mais difícil; porém, em compen-
Na realidade, não existe o tipo normal, isto é, o tipo médio per- sação, a vida torna-se mais rica de desequilíbrios dinamizantes
feito e absolutamente equilibrado. Portanto também não existe e criadores, quando surge e atua com forças preponderantes o
o tipo completamente anormal, absolutamente patológico. A elemento espiritual, servido por uma bagagem de experiências
vida, a cada passo, nos oferece exemplos de compensação! pessoais extensamente desenvolvida e, por isso, tão desejoso de
Quem não vence hoje, amanhã talvez vença! Desses desequilí- viver vida própria e de afirmar-se perante os outros elementos
brios podem nascer novidades, coisas originais, personalidade da personalidade, que chega a desafiá-los e a combater contra
brilhante, se soubermos dominá-los, coordená-los e discipliná- eles. Então, a personalidade, mais extensa e mais rica, represen-
los, transformando-os, assim, em qualidade preciosa, a única ta concerto de ressonâncias mais complexo, transforma-se tam-
que pode oferecer contribuição inédita ao pensamento e ao bém em campo de batalha bem mais vasto; neste, a harmoniza-
progresso. A natureza, embora pareça proceder por tentativas, ção é muito difícil de obter, pois a síntese unitária do ego não
sabe corrigir o erro; sempre, de algum modo, nos compensa se verifica somente no plano orgânico-psíquico, mas também
daquilo a que nos expõe; deixa-nos cair para nos ensinar a nos no plano espiritual, mais elevado. É o caso do tipo evoluído.
levantarmos; expõe-nos aos assaltos, mas nos guia à vitória e, Neste caso, portanto, todo o extenuante trabalho que deriva do
com esta, à aquisição de novas qualidades, ao enriquecimento conflito entre as forças da personalidade, da concordância ou
do nosso patrimônio de capacidade e defesa. Todos os golpes discordância dos ritmos, não se limita apenas ao binômio hori-
recebidos são registrados no livro da vida, onde tudo fica es- zontal pai-mãe e ao ambiente, mas se estende para as zonas ele-
crito, de modo a poder ser lido em qualquer tempo. A moléstia vadas do espírito; é aí, e não no plano biológico, que este tipo
tende a imunizar-nos, o erro a instruir-nos, a queda a reequili- vai procurar a sua solução. As correntes dinâmicas, então, na-
brar-nos, a fraqueza a fortalecer-nos. Tudo acaba sendo utili- vegam e se cruzam em todos os sentidos. A luta biológica, do
zado e transmitido, e a vida imortal, desse modo, enriquece e homem contra a mulher (pai-mãe) e da mulher contra o homem
acumula grande acervo de complexas heranças através de pro- (mãe-pai), se cruza com a luta moral, do espírito contra a maté-
longadíssimas experiências milenares, que o nosso organismo ria (espírito-ambiente), e com a luta material, da matéria contra
incorpora e possui como riqueza oriunda da imensa sabedoria o espírito (ambiente-espírito). Assim, os antagonismos do bi-
biológica, que, aliás, cada um de nós carrega consigo sem se- nômio vertical martelam o corpo físico e dão nascimento ao
quer imaginá-lo. Desse modo, na batalha entre as duas forças processo de maceração, que amadurece e evolui. Já observamos
contrárias, a natureza surge como grande harmonizadora, de- essa elaboração evolutiva, a qual estamos continuando a exa-
monstra ser potência benfazeja, sábia, previdente e protetora, minar. Desse trabalho intenso nascem indivíduos cada vez mais
que transforma os desequilíbrios em elementos dinâmicos e especializados. Mas, se por um lado parece que a natureza ca-
criadores, as dissonâncias em harmonias, o dinamismo contra- minha para o individualismo, isto é, para o separatismo que iso-
ditório em personalidade original e potente. la e afasta do corpo social o indivíduo, doutro lado vemo-la,
Essas observações são válidas apenas no campo estritamen- mais tarde, procurar o reequilíbrio dessa tendência, apoderan-
te biológico; não bastam para resolver o problema da responsa- do-se do indivíduo e engendrando-o nas múltiplas unidades so-
bilidade moral e esgotar o da hereditariedade. A personalidade ciais constitutivas dos coletivismos modernos. Isto porque a cé-
humana também resulta de outras forças e de outras posições. lula-indivíduo não se diferencia para isolar-se da ordem da na-
Já analisamos a luta no interior do binômio horizontal, porém tureza em proveito próprio, mas sim para ser empregada numa
não observamos ainda a que se trava na intimidade do binômio ordem social muito mais vasta, com funções adequadas às qua-
vertical, com a qual a primeira se harmoniza. Acima dessas in- lidades características adquiridas.
compatibilidades biológicas situa-se o mundo moral do espírito; Já dissemos que a visão estritamente biológica não basta pa-
abaixo está o mundo exterior, com todos os seus golpes e resis- ra esgotar o problema da hereditariedade. A ciência limita-se a
tências. A personalidade resultante dos dois elementos (pai e levar em conta os dois elementos do binômio horizontal e o
mãe) cruza-se e combina-se com a constituída pelo binômio es- elemento inferior do binômio vertical, porém não leva em con-
pírito-matéria, eu interno e ambiente externo. A personalidade sideração o elemento superior deste último. Assim, para ela, os
completa resulta de todos esses elementos e movimentos. Que instintos e ideias inatas, qualidades adquiridas mediante a expe-
riqueza! Porém, como nos desgasta essa luta! A natureza, tão riência ambiental e, graças a infinitas repetições, transformadas
amiga ao definir as suas construções sob forma concreta e pre- em automatismos, não seriam conquistados pela eterna perso-
cisa, não tolera ócio e preguiça, mas exige permanente colabo- nalidade espiritual, capaz de conservá-las e restituí-las em
ração mútua dos valores e correspondência rigorosa entre a qualquer momento em que forem úteis, através de prolongada
forma e a substância. Se chega a completar-se, a harmonia de- série evolutiva de vidas corpóreas, menos significativas e en-
rivada da fusão dos elementos herdados da linha paterna e ma- cerradas na oscilação nascimento-morte, mas sim adquiridos
terna, deve por sua vez lutar contra o ambiente para, também em virtude de uma espécie de memória biológica celular, onde
nessa outra dimensão, conseguir harmonizar-se. É a isso que, seriam depositados e conservados.
nos casos mais comuns, se limitam as fadigas da vida no seio Em A Grande Síntese, Cap. LXIX – ―A Sabedoria do Psi-
da natureza, que também se revela economizadora de energias. quismo‖, entre os coleópteros citamos o ceramyx miles, como
No entanto, mesmo limitada a esses elementos e embora utili- exemplo de sabedoria imensamente superior à organização e
zando-se do patrimônio hereditário constituído das numerosís- aos meios que possui. Acrescentemos, agora, o caso, ali apenas
simas experiências adquiridas, alcançado nos dois reservatórios esboçado, de um himenóptero, o sphex, cuja fêmea, ao lado
continuamente cruzados, paterno e materno, a personalidade dos ovos, que põe na areia, coloca um inseto por ela previa-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 247
mente paralisado com um golpe de ferrão, para que sirva de de um lado a referida atividade cinética e, de outro, a impres-
alimento à futura larva. Ora, o sphex atinge a vítima exatamen- sionabilidade cinética. Trata-se, talvez, de atividade eletro-
te no ponto onde, no dorso, se encontra o gânglio nervoso que magnética. Daí derivaria a memória celular. Se os vários ele-
preside ao movimento. Desse modo, obtém a provisão repre- mentos componentes forem reagrupados de conformidade com
sentada pelo inseto, que, por estar paralisado, não pode sair do a lei das unidades coletivas (cf. A Grande Síntese, Cap.
lugar e se conserva em boas condições porque continua viven- XXVII) e os movimentos atômicos fundamentais estiverem
do. Como é que o sphex conhece anatomia e anestesia? Quem presentes em todos os organismos mais complexos, existirá a
lhe ensinou esse fato anátomo-fisiológico? Dirão: a experiên- possibilidade de se conseguir sínteses progressivas, até chegar-
cia. Mas os insetos vivem poucos meses e as larvas, quando se à síntese máxima, que se nos revela sob a forma de consci-
nascem, já os pais e toda a geração precedente desapareceram. ência. Os resultados cinéticos da experiência, desse modo, se
Onde, pois, o ensino e a imitação? Ou esse inseto possui, tal- imprimiriam em todas as células do corpo e, graças à heredita-
vez, sensibilidade bastante para perceber as radiações transmi- riedade, se transmitiria e receberia essa sabedoria adquirida pe-
tidas pelo gânglio nervoso e poder desse modo encontrá-lo? Se la raça, comum a todos, de que cada indivíduo seria depositá-
fosse assim, quem o mandou atacá-lo e o informou das conse- rio, para usá-la em benefício próprio, conservá-la, enriquecê-la
quências? Quem responde pelo raciocínio que relaciona todas e, enfim, transmiti-la aos descendentes, em benefício deles, e
as fases do processo lógico? Ninguém pode negar a existência assim por diante. Essa sabedoria, percorrendo os órgãos nervo-
de princípio inteligente nesse inseto e, se não é possível que sos e cerebrais, se concentraria, de acordo com o princípio das
ele o tenha criado, então lhe foi transmitido. Por que caminho, unidades coletivas, na síntese máxima do psiquismo, derradei-
porém? Porventura, as células é que conservam a memória ra resultante das experiências da vida.
atávica? Mas basta esse caminho? São as células capazes de Já o dissemos, porém, que é sabedoria a ser aumentada e
semelhante síntese racional? Isso quer dizer psiquismo. Depo- transmitida. O trabalho, portanto, é duplo: de nova experimen-
sita-se ele nas células? Existe outro psiquismo? Este conserva tação, tendo em vista o aumento, e de conservação do velho e
a memória de todas as experiências vividas durante milênios e, do novo, tendo em vista a transmissão. Temos, pois, dois tipos
no presente caso, até mesmo as inerentes ao estado de simples de registro cinético: o recente e o atávico, o novo e o velho, o
inseto. Será a conservação desse tão precioso patrimônio here- que nós fazemos e o que foi feito pelos nossos antepassados.
ditário, acrescido do novo patrimônio que a experiência conti- O primeiro conduz à captação e fixação dos movimentos de
nuamente lhe acrescente, confiada à memória celular ou a um variação da espécie; o segundo representa, na raça, as quali-
organismo imaterial em que se registram e fixam definitiva- dades mais íntimas e mais estáveis, fixadas em todas as célu-
mente, sob a forma de qualidades adquiridas, as correntes vi- las, não por via de aquisição, mas de hereditariedade. As duas
bratórias oriundas do ambiente? diferentes funções, isto é, o desvio e a conservação das traje-
De acordo com a ciência, a memória biológica residiria na tórias, seriam confiadas a dois sistemas celulares: de um lado
célula, que traz inscrita em si mesma sua prolongadíssima his- os conjuntivos, ou seja, os tecidos de nova formação embrio-
tória, cujo conteúdo lhe foi transmitido através da filiação e nária, e de outro o sistema de todas as demais células. Dois
da derivação dirigida pela célula germinativa hereditária. A sistemas, portanto, que culminariam em duas sínteses psíqui-
essa história do passado cada vida acrescenta a própria expe- cas: a primeira, temporária, individual, representando a por-
riência, soma-a à precedente e, com esta, assim completada e ção de vida pessoal do indivíduo; a segunda, coletiva, eterna,
corrigida, a transmite. Tratar-se-ia de uma espécie de reencar- representando a espécie e a continuidade da vida. Dois psi-
nação celular; a continuidade das vidas sucessivas não seria quismos, pois: o psiquismo ativo, trabalhando para armazenar
confiada à sobrevivência de um princípio espiritual supercor- novas qualidades e construir o ego através das experimenta-
póreo, mas à persistência das impressões celulares. É verdade ções, registrador, receptor, assimilador e fixador de novas ex-
que o ambiente atua e continuamente nos impressiona o ser, a periências biológicas a serem transmitidas ao outro sistema; e
repetição fixa nele hábitos ou automatismos, tendentes a radi- o psiquismo atávico, conservador, que, sob a forma de quali-
car-se sob a forma de instintos (cf. A Grande Síntese, Cap. dades hereditárias e de instintos, de ideias inatas e capacida-
LXV – ―Instinto e Consciência Técnica dos Automatismos‖). des adquiridas, faz ressurgir e restitui tais experiências. Os
Também é verdade que todas as nossas experiências se regis- dois sistemas giram em torno um do outro, de acordo com o
tram e transmitem por hereditariedade. Mas o problema con- costumeiro esquema do binômio de forças contrárias e com-
siste em saber como, por que via e por que mecanismo a célu- plementares, de que resulta a composição do binômio de toda
la se impressiona e conserva as impressões. unidade, de conformidade com a lei universal de dualidade.
Para compreender, torna-se necessário reduzir o fenômeno Tudo isso não deixa de ser persuasivo, mas permanece in-
à pura substância cinética. Trata-se, agora, de várias correntes solúvel o problema da conservação das impressões, isto é, das
de vibrações, de ritmos, de movimentos ondulatórios que se novas características cinéticas que se vão continuamente for-
transmitem e se imprimem. Já os examinamos nos capítulos mando nos movimentos atômicos. Como conciliar a permanen-
precedentes. Os movimentos vibratórios do ambiente externo te identidade do ego, não obstante a mudança de suas qualida-
penetram no organismo através das vias nervosas e sensoriais. des e a renovação completa e contínua do material constitutivo
Essa penetração contínua constitui fato indiscutível, e essas vi- do organismo? E, então, não será possível que, ao invés de à
as são portas escancaradas. Nosso organismo é também uma memória celular, a conservação das impressões seja confiada à
orquestração de ritmos. Os movimentos vibratórios entram, memória espiritual sediada no organismo imaterial que cha-
avançam, invadem a estrutura orgânica cada vez mais intima- mamos alma? Se a vida é metabolismo, é uma corrente, então
mente, percorrem-lhe e saturam-lhe as vias, penetram-na sem- o que lhe impede a dispersão e mantém a unidade? Ao nascer,
pre mais. Têm de parar no último termo que nossa decomposi- já trazemos conosco, sem dúvida, os resultados de um passado.
ção analítica nos dá a conhecer, isto é, imprimir-se-ão sob a Mas onde foi esse passado inscrito: na intimidade da célula ou
forma de desvios nas trajetórias já existentes dos movimentos do espírito? É difícil, sem sombra de dúvida, imaginar uma
atômicos (cf. A Grande Síntese, Cap. LV – ―Teoria dos Movi- transmissão hereditária fundada na reflexão de vibrações pro-
mentos‖), movimentos atômicos dos quais resulta, em grau de duzidas por um organismo espiritual que, introduzindo-se no
complexidade progressiva, o sistema cinético-dinâmico mole- organismo físico, através das vias imateriais invisíveis da per-
cular, micelar, celular, orgânico, psíquico. O fato de a repeti- cepção interior, lhe guie o desenvolvimento (ideoplastia). Po-
ção funcionar como determinante de automatismos, confirma rém não mais difícil do que conceber uma transmissão heredi-
248 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
tária através apenas da célula genital, com capacidade de con- tro, também está em qualquer ponto da periferia, sendo ao
ter-lhe todos os desenvolvimentos futuros e, depois, guiá-los mesmo tempo o centro e a periferia. Dissemos também que a
na reconstrução do ser completo. Tanto mais porque este sis- memória atávica, a sabedoria adquirida pela raça, está confiada
tema não pode ser suficiente para transmitir todas as impres- a todas as células do corpo e nelas se difunde. Mas, então, falar
sões registradas pela espécie, pois as melhores experiências, as desse sistema é, em última análise, o mesmo que falar do espí-
da maturidade, adquiridas depois da idade da reprodução, que rito, pois sua substância pode traduzir-se cientificamente numa
é fenômeno juvenil, não seriam transmitidas, permanecendo orientação de cinética atômica e, dessa maneira, manifestar-se
incomunicáveis. Perder-se-iam, então, as melhores aquisições, como psiquismo até mesmo na intimidade da célula. Surge en-
e a vida dos solteiros, por não haver sido utilizada, não teria tão esta pergunta: O espírito constitui a causa ou o efeito do
utilidade alguma para a raça. Ora, como é que a natureza, em sistema? Ou, melhor, o espírito representa o motor determinan-
ponto dessa importância vital, pode deixar que lhe roubem os te das correntes de consciência que dirigem o funcionamento
resultados mais preciosos e custosos? Como é que ela, previ- do organismo, ou é a síntese das correntes de consciência deri-
dente e econômica, poderia abandonar as experiências mais vadas dos sistemas celulares?
importantes da vida, de natureza espiritual, que se adquirem Para Renan ―a alma resulta das forças do corpo‖. Podemos,
até mesmo em plena senilidade? Como é possível tão flagrante no entanto, colocar que, se é natural que a síntese de correntes
contradição com a habitual economia da natureza? As melho- de consciência derivadas dos sistemas celulares atinja o plano
res conquistas se dispersariam, tantas fadigas se tornariam vãs biológico, como poderá ele, então, elevar-se até ao mundo mo-
e seu resultado ficaria destruído; isso tudo constituiria uma gri- ral, tão absolutamente diverso, do ponto de vista qualitativo?
tante contradição num universo em que nada pode ser destruí- Harmonizemos o antagonismo. Geralmente, o homem, por mo-
do e, portanto, também essas forças, como tudo aliás, devem tivo da luta que sua natureza bipolar lhe impõe, apesar de divi-
ressurgir. E como poderia progredir uma raça incapaz de acu- dido, se conserva unido. O materialismo e o espiritualismo,
mular senão experiências elementares e juvenis? De que se ambos unilaterais, manifestam apenas a parte que possuem da
alimentaria o progresso, fato espiritual e de realidade inegável? verdade. Se nos perguntarem se o espírito constitui causa ou
Não. Não é possível que a vida seja mutilada desse modo, exa- efeito do sistema, respondemos com as mesmas palavras por
tamente no centro do seu tão perfeito sistema, que se tornaria nós já empregadas: a causa está no efeito e o efeito na causa.
imperfeito precisamente no seu ponto mais substancial, pois, Trata-se apenas de dois termos da mesma unidade bipolar, de
com o desaparecimento das experiências mais sublimes da ra- um caso particular da lei universal de dualidade. Atingimos o
ça, fechar-se-ia o caminho do progresso. limite em que se supera o binômio e se resolve a contradição.
A herança fisiológica, portanto, não basta. Se os filhos se Tocamos, agora, o limiar do mundo superior em que desaparece
parecem com os pais, muitas vezes não se parecem e, até mes- a grande ilusão da forma e tudo se unifica na mesma verdade.
mo, os superam. O gênio não é hereditário. O fenômeno, sem
dúvida, deve ser bipolar; não pode constituir exceção da lei XXVIII. A PERSONALIDADE HUMANA (2a PARTE)
universal de dualidade. Na realidade, se tudo é dúplice, a here-
ditariedade também deve sê-lo, quer dizer, deve processar-se O desenvolvimento dos últimos capítulos nos permite ima-
pelos dois caminhos possíveis, em posições e com funções ginar o jogo de forças e o entrelaçamento de ritmos que consti-
complementares. Dois são os eixos constitutivos da personali- tuem o íntimo dinamismo de nossa vida. Só penetrando assim
dade (pai-mãe e eu-ambiente), duas as suas formas de luta, dois na intimidade do imponderável, poderemos compreender tudo
os sistemas de forças e duas as evoluções (material e espiritual), quanto escapa ao homem que vive na superfície. Este ignora o
portanto é lógico não só que as formas de hereditariedade tam- maravilhoso mundo circundante de que, aliás, ele mesmo se
bém sejam duas, correspondendo aos dois eixos, mas também compõe. Esse mundo escapa em grande parte à própria ciência,
que cada forma de luta tenha objetivo determinado e cada tipo que, por seguir orientação positivista e utilizar o método obje-
de evolução, como todo sistema de forças, possua canal de tivo-experimental, em vez do intuitivo, não pode atingi-lo.
transmissão privativo. As forças não param, e as experiências Desse modo, a opinião científica em voga a respeito do pro-
acumuladas devem dar algum resultado. Quem se limita exclu- blema da personalidade é incompleta, apesar de haver estabe-
sivamente à hereditariedade fisiológica, esquece o imenso lecido diversas verdades no campo biológico e psicológico.
mundo do espírito, dos valores morais, onde, em atmosfera de Para compreensão geral do fenômeno, torna-se necessário se-
plena responsabilidade, nosso destino se cumpre. guir-lhe a oscilação completa, de um a outro extremo do ser,
Percorremos os caminhos da ciência, para permanecermos de conformidade com o mesmo esquema da construção e fun-
positivos, e chegamos aos movimentos atômicos, a desvios de cionamento do universo. O homem, de fato, encontra projeta-
trajetória, a ações e reações cinéticas, à absorção de ritmos, a das, na sua estrutura e na sua vida, as linhas essenciais do fe-
movimentos de correntes vibratórias. E eis que tudo se desma- nômeno cósmico. A oscilação vai do espírito à matéria e volta,
terializa em nossas mãos e se traduz no imponderável, caracte- com sinal contrário, da matéria ao espírito, reproduzindo a ca-
rístico do espírito. Quando chegamos ao fim do caminho, per- da momento os dois grandes períodos da criação: involução e
cebemos que o fenômeno como que se desfez, e dele não resta evolução. No homem e na criação, o pensamento se materiali-
senão o jogo de forças, a estrutura de vibrações, o dinamismo za na ação até encontrar a forma concreta que o revista e o ex-
imaterial, que possui muitas das características do espírito e prima, e isso através da fase intermediária do dinamismo voli-
das suas invisíveis atividades. Mas, então, o contraste, na apa- tivo; e, ao contrário, a ação se desmaterializa no pensamento,
rência verdadeiro, entre materialismo e espiritualismo, não destilando-se sob a forma de experimentação realizada, a fim
passa de simples questão de palavras, pois, afinal, tudo termina de, na consciência, fixar-se como qualidade adquirida ou ins-
no mesmo ponto, descobrindo a mesma verdade e dizendo, em tinto. A cada oscilação, o eu aumenta e se dilata, para retomá-
substância, a mesma coisa. Quando acabamos de percorrer os la e continuá-la cada vez com mais intensidade; o físio-
caminhos da ciência e da matéria, exclamamos: Mas isso é o dínamo-psiquismo, íntima trindade do monismo universal, no
espírito! E, de fato, é o espírito mesmo. Já vimos que, no bi- cosmo e no homem, não é apenas estrutura orgânica, mas tam-
nômio espírito-matéria, ele se encontra até mesmo no polo bém funcionamento. Na oscilação, um dos extremos, embora
oposto e que o mistério do psiquismo se estende até à intimi- transformando-se, transporta-se inteiramente para a posição do
dade da célula. Dissemos que o eu é dúplice, não estando ape- outro extremo e ao contrário; assim, o ser vai e vem, vem e
nas no centro, mas também na periferia; que o espírito, no cen- vai, sem cessar, de um a outro de seus dois polos. O princípio
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 249
trinitário, em sua fórmula estrutural, não passa de consequên- são ativa, em concentração reflexiva, é que o resultado trará
cia do principio de dualidade. Tão logo o binômio é animado vantagem (como premissa de nova expansão evolutiva). Eis o
pelo dinamismo vital e a contradição, não mais estática, se põe que acontece. O primeiro impulso da ciência nasce no espírito,
em movimento, formam-se, na oscilação de um termo a outro, amadurecido por precedentes experiências, resultando daí mai-
as correntes de ida e de retorno; então do antagonismo e da fu- or conhecimento. A este trabalho do último século, sucede o
são nasce terceiro termo, que constitui fase intermediária, traço atual trabalho de atuação experimental. O espírito, achando-se
de união e resultado das trocas. É novo ser, terceiro elemento, ainda em fase primitiva, encontra-se em face de experiência
filho do binômio pai-mãe e da íntima oscilação dessa unidade desconhecida, que, feita por inexperientes (como acontece com
dualística, que descarrega uma na outra as suas metades inver- as crianças), produz, como já dissemos, dor e erro. Chegamos
sas. Estando completo o desenvolvimento das forças do siste- então ao fim da terceira fase, que conclui o ciclo da jornada. A
ma, essa nova individualidade se destaca do binômio e perma- dor abre o ciclo de retorno, marca a nova direção a seguir, o
nece autônoma e independente, mas incompleta e à procura de início da subida, a nova gênese. Não mais agindo ou desenvol-
sua metade complementar, para, juntas, formarem novo binô- vendo-se, mas meditando em dolorosa reflexão sob os golpes
mio e, através da troca de correntes, novo ser intermediário, e recebidos pela reação das forças da Lei, dados em consequência
assim por diante. Desta forma, da estrutura dualista do univer- de esforços improfícuos. Completa-se, portanto, lentamente o
so, do principio fundamental de dualidade, deriva o principio ciclo inverso da assimilação, resultado doloroso mas benéfico
trinitário, que representa o esquema da técnica genética. da experiência humana neste período. A meta final é compre-
O movimento dessa troca é dinamismo interior da unidade ender. O ponto de chegada está no espírito, na conquista de
formada de duas partes iguais e, por isso, apenas influi na estru- maior sabedoria, que representa maior base para início de novas
tura íntima dessa unidade. Mudança só acontece em sentido re- experiências. Com o ciclo experimental, feito de dinamismo
lativo; a substância permanece invariável e o monismo intacto. centrífugo de descentralização, e com o ciclo inverso de assimi-
O movimento volta sempre sobre si mesmo; cada uma das duas lação, constituído por um dinamismo centrípeto de centraliza-
formas extremas do ser constitui apenas posição diferente no ção, o ar de que se nutre a evolução biológica completou sua
seio da mesma unidade, não representa senão a metade do oscilação e se prepara, firmando-se em tal base, para nova e
mesmo ciclo. O ponto de chegada é ao mesmo tempo ponto de mais vasta oscilação, e, assim, até ao infinito. As verdades rela-
partida; do mesmo modo, o ponto de partida é ponto de chega- tivas do homem, por ele expressas, uma a uma, de forma abso-
da. Os extremos se tocam. luta, serão as etapas deste caminho, o mesmo caminho da única
Todos esses conceitos já foram expostos no Cap. VIII – ―A verdade progressiva. A história dos acontecimentos sociais na-
Lei‖, de A Grande Síntese. Mas, enquanto nesse livro os apli- da mais é que a história do desenvolvimento da personalidade
camos ao fenômeno universal, aqui os consideramos especial- humana, cujos movimentos observamos.
mente em relação ao fenômeno da personalidade humana. En- Movamos o prisma de observação. No ciclo de assimilação
tre as duas fases extremas ou posições limites da oscilação en- que finaliza o dinamismo centrípeto da concentração, onde e
tre espírito e matéria, pensamento e ação, princípio e forma, há como os frutos da experiência se depositam na personalidade?
uma fase intermediária de passagem: energia, vontade ou mo- Confrontemos as teses acima acenadas com a teoria do sub-
vimento. No homem, assim como no universo, do qual ele é consciente. Fala-se tanto disso nos nossos tempos! Trata-se,
imagem, a transição do primeiro momento para o terceiro, dá- porém, de um conceito que, se verdadeiro, não está completo.
se através do segundo, que, na ida (subindo), tem sinal positivo A natureza unilateral dos métodos de pesquisa hoje adotados,
e, na volta (descendo), se inverte em sinal negativo. Em outras só podia revelar a metade racional e material do fenômeno,
palavras, o espírito ou pensamento (1 o momento) como inicia- deixando de lado a parte intuitiva e espiritual. Esta é represen-
dor ativo da transformação do princípio na forma material (3 o tada pelo superconsciente. Desenvolvamos aqui tudo o que,
momento), para chegar à sua ação plasmadora, se ativa como completando o pensamento de A Grande Síntese no Cap. XX –
vontade, vestindo-se de energia (2o momento). Portanto, cada ―O Subconsciente‖, já dissemos no volume Ascese Mística (ci-
ato nosso é uma exteriorização do espírito: um conceito (1 o) tado no prefácio). A personalidade humana não é um ponto,
que se manifesta em dinamismo (2 o) e conclui numa realidade mas uma zona onde se distinguem três partes: o subconsciente,
exterior (3o). No caminho de volta, porém, a atividade do mo- o consciente e o superconsciente. Portanto os resultados da ex-
mento intermediário muda-se em passividade, a vontade em periência não se transmitem a um único ponto, mas se deposi-
receptividade, o homem de ação em homem contemplativo, tam e registram diversamente pelas várias partes da zona. En-
justamente porque não estamos mais em fase de emanação, quanto o subconsciente representa a assimilação completa de
mas de reabsorção; as portas do ego estão abertas para o inte- velhas experiências em estratificações antigas, de onde elas
rior, não para o exterior, e a direção do dinamismo fenomênico emergem como instintos, ou seja, constitui o núcleo conquista-
invertida. Por isso as funções afirmativas e positivas da vonta- do pela consciência biológica confirmada pela vida prática, o
de, tão úteis à ação, são um estorvo, representando impulsos superconsciente, no extremo oposto, representa a zona de espe-
negativos no caminho da volta, onde atua por sua vez o sensi- ra, onde se registram as experiências de vanguarda, pela qual
tivo, o espiritual, o místico. se antecipa o futuro, zona que não está, como a outra, no fim,
No período atual, descobrindo algumas leis da natureza, o mas na frente da evolução. Estes são os dois termos da perso-
homem conquistou maior domínio sobre a energia, meios de nalidade humana. Em baixo, na escala da evolução, está a zona
maior manifestação de si mesmo, através da ação no mundo da da animalidade, o que é próprio da besta; no alto está a zona do
matéria. Tais meios deram força ao dinamismo positivo de ida, espírito, o que é próprio do super-homem. Num extremo, a só-
fase por que atravessa atualmente a humanidade. O espírito, po- lida, estável, mas primitiva e elementar experiência do passa-
rém, motor e diretor destes meios, permaneceu o mesmo; a sa- do, firmada como patrimônio adquirido, representando um ma-
bedoria não recebeu um impulso proporcional. Com a mentali- terial de uso continuamente aprovado pelas condições ambien-
dade de um primitivo, o homem atualmente se encontra em po- tes; no outro extremo, as experiências em formação, novas, in-
der de meios poderosos como nunca esteve. Por isso o terceiro certas, instáveis, mas audazes, elevadas, complexas, desenvol-
termo do ciclo, do qual se está avizinhando, nada mais é que er- vidas, representando não o patrimônio adquirido, mas o novo
ro (resultado de tentativas inexperientes) e, portanto, sofrimento patrimônio em vias de aquisição, não a evolução que se conse-
(compressão involutiva). Somente no segundo tempo, quando o guiu alcançar, mas sua continuação, não a personalidade já
movimento de vida se inverte em movimento de volta, a expan- constituída, mas o seu complemento. A primeira experiência
250 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
está escrita na carne; a segunda, no espírito. A personalidade é, se, no primeiro caso, de um instinto que se elevará à altura evo-
portanto, não um ponto, mas uma zona em movimento, alcan- lutiva da razão e, no segundo, de uma razão que chegará à altu-
çando assim o dinamismo íntimo que a amadurece, fazendo-o ra evolutiva da intuição. Enfim, entre instinto, razão e intuição
subir na escala da evolução. Neste sentido, a personalidade não a diferença está no grau de trabalho para a captação e assimila-
é imóvel, mas se desloca da terra para o alto, caminhando com ção das experiências. A intuição atua no superconsciente, que é
os pés (subconsciente) no passado e com os braços esticados uma antena estendida como antecipação em direção aos mais
(superconsciente) no futuro. altos e inexplorados graus de evolução, para captar o novo, o
Entre tais extremos, porém, há um terceiro termo, uma zona inédito, o futuro. A razão atua no consciente. Não funciona por
intermediária: o consciente. Qual a sua função? Que acontece raios, como a intuição, é menos rápida, porém mais contínua,
ao centro do sistema? Nas partes inferiores, onde está finda a mais ordenada, mais segura. Precisamente porque se projeta pa-
assimilação, dispensa-se novo trabalho de registro, estando tu- ra menos alto, é mais equilibrada, porém mais curta e limitada.
do, salvo adaptações e modificações, confiado ao automatismo O instinto é obra terminada, cujos resultados perdem-se no sub-
de instintos já conquistados. Esta parte acha-se sepultada no in- consciente, depositando-se nesse magazin de reservas, como
consciente, sem participação da consciência, não sendo mais patrimônio da personalidade, que aí pode reabastecer-se segun-
zona de desequilíbrios, de formações, de trabalho, mas sim de do suas necessidades. À medida que se avança, a fase evolutiva,
equilíbrio e êxtase. A parte superior, não sendo manifestação inicialmente conseguida somente pelos raios da intuição, torna-
nem contínua nem ativa para o tipo normal, constitui apenas es- se domínio normal e controlado da razão, cumprindo a função
forço excepcional. Este trecho, onde ainda não se formaram de- de assimilação, que encontramos terminada no instinto.
sequilíbrios e atividades com o impulso das forças do ambiente, Portanto, três fases: captação pela intuição, assimilação pela
geralmente fica sepultado no inconsciente. Se a personalidade razão, depósito pelo instinto. Conquistam-se assim, aos poucos,
estende suas raízes às profundezas do subconsciente e eleva su- os graus de evolução, parecendo que descem para o homem,
as ramificações às alturas do superconsciente, a vida ferve no quando é o homem que sobe a eles. Assim, a experimentação
tronco; a zona do trabalho intenso de novas formações está avança pela escala evolutiva, eleva-se em complexidade e difi-
normalmente no centro. Sendo esta uma zona de trabalho, de- culdade para o alto. O inédito, o superior, antes compreendido
sequilíbrio, contrastes e, portanto, ativa e criativa, ela é lúcida e pela intuição, atividade do superconsciente, é fixado pela razão,
consciente. A personalidade, em sua zona central, brilha na luz atividade do consciente, no instinto, produto do subconsciente.
máxima da consciência, luz que se dilui gradativamente nas du- Trata-se de experiência progressiva que se lança para o alto,
as zonas limítrofes, a inferior e a superior, até se extinguir dominando-o. É este o trabalho da personalidade humana, o
completamente além dos dois extremos, onde se encontram tra- conteúdo, o escopo da existência. A vida é conquista e adição
ços das evoluções situadas fora do campo da personalidade. É contínuas. O ego lança-se ao inexplorado, agarra-o, assimila-o e
uma luz entre dois riscos de trevas, onde o que está latente, seja não descansa enquanto não o transforma em qualidade própria,
memória ou pressentimento, dorme e desperta aos poucos; de- carne de sua carne. Assimilação espiritual paralela à orgânica.
pois disso, o nada em relação à personalidade, pois está além de Tudo é adição e desenvolvimento evolutivo, seja do corpo ou
qualquer capacidade de sintonização, por ressonância, das vi- seja da alma, quer se trate de conquista individual ou espiritual,
brações do ambiente. E tudo em posição relativa à evolução do quer seja material e econômica ou moral. Na frente está o su-
indivíduo, caminhando da besta ao super-homem, do subcons- per-homem, ameaçado por todos os perigos; depois vem o ho-
ciente ao superconsciente, da carne ao espírito. mem, que controla e confirma com sua análise na prática da vi-
O que para o consciente é trabalho atual, para o subconsci- da; enfim a besta, feita de instintos e imitação, pronta a se apo-
ente constituirá passado vivido, mas não morto, pois sua síntese derar dos úteis resultados do esforço total. Assim, a conquista
sobrevive sepultada em seu íntimo como resultado da operação se adianta, o homem se eleva e o patrimônio dos instintos se
que é atualmente desenvolvida pelo consciente. A síntese resul- avoluma. O subconsciente nada mais é que um consciente deca-
tante chama-se instinto e, enquanto no plano do consciente, en- ído, um raciocínio escrito em sangue, um resultado selado pela
contra-se na fase de formação e análise. Ai, o equilíbrio ainda experiência e fixado a fogo no instinto. O consciente não é nada
não estabilizado e as resultantes dos contrastes ainda indefini- mais que o superconsciente coordenado, disciplinado, equili-
das permitem o trabalho de criação, que, no subconsciente, já brado; a intuição trazida à razão e submetida ao seu controle;
terá terminado suas aquisições. O instinto é superior como ma- elemento incerto e transitório, embora sublime, enquadrado
turidade formativa, mas inferior como nível evolutivo. A razão transitoriamente à realidade da vida. Do mesmo modo, o sub-
pertence a um plano superior, é a forma mais complexa e mais consciente foi ontem consciente, isto é, campo ativo das forma-
nova do instinto. Este, síntese da análise feita pelo subconscien- ções atualmente cristalizadas no instinto, e o raciocínio, a seu
te, é mais velho e, em seu nível, mais perfeito que a razão. Esta tempo, foi outrora intuição. E, ao contrário, o atual consciente
é um processo em formação, de análise, de experiência incom- será amanhã subconsciente; a luta atual de formação individual
pleta, mas em vias de sê-lo; é fase inicial de assimilação de e social, que é raciocínio com a vida, fixar-se-á em seu produto
qualidades novas, mas em grau mais elevado de evolução. Os feito de qualidades assimiladas (instintos). O atual superconsci-
resultados da análise serão síntese amanhã; a razão que procura ente, amanhã, será consciente, isto é, a intuição incompreendida
e escolhe tornar-se-á mais tarde instinto que já sabe e conhece. será normalmente sotoposta aos processos racionais. O involuí-
A intuição pertence a um plano ainda mais alto; é a forma ainda do e o normal tornar-se-ão, portanto, conscientes na zona atu-
mais complexa e mais nova da razão. Elevando-se pela evolu- almente coberta pelo superconsciente, no campo onde hoje é
ção, o que se ganha em agudeza e perfeição perde-se em estabi- consciente a única exceção biológica representada pelo evoluí-
lidade de equilíbrio e solidez. No alto voa-se; em baixo, anda- do. Completa-se, assim, por sucessivas estratificações o proces-
se. No alto, o domínio dos espaços, mas os riscos e incertezas so de aperfeiçoamento da personalidade.
das tentativas; em baixo, o passo lento e pesado, mas o contro- Ainda uma observação. A personalidade, como dissemos,
le, a segurança, a certeza. Por isso o raio intuitivo do gênio é não é ponto, mas zona em que se distinguem três partes: sub-
controlado pela razão. Assim, tal como os resultados desta se- consciente, consciente e superconsciente. A elas correspon-
rão o instinto de amanhã, também as funções excepcionais da dem, segundo o próprio grau de desenvolvimento e plano de
intuição se regularão em funções normais, como as atuais fun- atividades, três tipos biológicos: a besta, o homem e o super-
ções da razão. E, igualmente, assim como esta é um instinto em homem, e três formas de ação: o instinto, a razão e a intuição,
formação, também a intuição é uma razão em formação; trata- funções diretivas alcançadas pelo indivíduo segundo seu grau
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 251
de evolução. E a estas correlacionam-se três formas de traba- do extremo do subconsciente ao extremo do superconsciente,
lho (em sucessão inversa): captação, assimilação e armazena- gerando, na oscilação entre estes dois termos, o terceiro com-
mento. Como o universo, a personalidade humana é uma trin- ponente da trindade: o consciente. Dissemos que esta é a zona
dade em caminho pela escada da evolução. No homem, encon- do trabalho. Isto significa que representa a zona de vibração,
tramos o físio-dínamo-psiquismo do cosmos. O pensamento, enquanto as outras duas representam, relativamente à posição
na forma humana, se materializa passando do superconsciente do indivíduo, as zonas de descanso. Portanto, dizer que o cons-
ao subconsciente, através do dinamismo do consciente. Temos ciente, com a evolução, tende a passar do nível inferior a um
também aqui, portanto, não uma simples estrutura, mas um superior, é o mesmo que dizer que o estado cinético se desloca
funcionamento. No ciclo experimental que acabamos de ver, o para estados evolutivos mais elevados, isto é, que o movimento
dinamismo vem do subconsciente em direção ao superconsci- toma ritmo vibratório cada vez em mais alta frequência e ondas
ente, tentando a experiência e conquista do alto; no ciclo de as- cada vez mais curtas. O mesmo fenômeno aqui observado com
similação, o dinamismo desce do superconsciente ao subcons- terminologia e de um ponto de vista psicológico, pode ser ob-
ciente, operando o armazenamento, a fixação dos resultados da servado, como nos últimos capítulos antecedentes, como vibra-
experiência. À descentralização segue-se a concentração no ção e fenômeno dinâmico, de um ponto de vista cinético. A
ego. Este dinamismo dúplice e inverso é o passo segundo o mesma verdade pode ser traduzida em várias formas, segundo a
qual a personalidade progride. posição e perspectiva escolhida pelo observador. Se, para co-
Antes de notar novos paralelos e correspondências e antes modidade de estudo, é necessário isolar os vários aspectos, na
de observar o reencontro das correntes ascendentes e descen- realidade eles coexistem unidos.
dentes na zona lúcida da consciência, reassumamos e comple- Encontramos, portanto, os vários tipos humanos, do extre-
temos os dois conceitos fundamentais desenvolvidos até agora mo involuído ao extremo hiperevoluído, distribuídos por todas
neste capítulo: 1) a natureza trifásica, e não puntiforme, da per- as alturas na escala da evolução, em diferentes posições, onde a
sonalidade humana; 2) o movimento ascensional desta zona tri- altura, a profundidade e os vários estados psicológicos e vibra-
fásica. Temos, portanto, três zonas na personalidade: de ações tórios que lhes correspondem são relativos a cada personalida-
consumadas, de ações atuais e de tentativas e explorações. Re- de. O que para alguns é superconsciente, personalidade futura,
presentam o trabalho feito, o que se faz e o que se fará, isto é, a embrional, ainda a ser acabada, para outros é consciente em
atividade passada, presente e futura, ou ainda, a lembrança, a formação ou mesmo subconsciente, isto é, personalidade instin-
ação e o pressentimento. Somente a zona do trabalho é consci- tiva já construída. O que para o involuído é futuro, para o evo-
ente. Para o alto e para baixo este clarão nítido se perde grada- luído é passado. Todo indivíduo caminha, seja qual for sua po-
tivamente nas trevas e o dinamismo desaparece na inércia. sição, para um plano relativamente superior ao que ocupa. As
Acima e abaixo, imersas na inconsciência, estão as zonas cre- zonas de subconsciente, consciente e superconsciente são, por-
pusculares, onde a consciência sente as sombras vagarem incer- tanto, relativas ao desenvolvimento do indivíduo e podem ocu-
tas, embrião de futuros motivos ainda sonolentos no marasmo, par diferentes graus na escala da evolução. Todo o sistema tri-
ou restos de motivos destruídos na indiferença do esquecimen- fásico da personalidade se movimenta e avança pelo condutor
to. O passado sobrevive no consciente como síntese, o futuro aí de suas várias zonas, tendo à frente o superconsciente, no cen-
nasce como antecipação. A consciência está repleta e se nutre tro o consciente e no fim o subconsciente. O sistema é único,
do presente em construção. No subconsciente está escrita nossa igual para todos, mas a sua posição é, para todos, relativa, isto
história; no consciente, o esforço da subida; no superconscien- é, em graus evolutivos diversos, de tal modo que não possa dar
te, o futuro. O primeiro representa o patrimônio acumulado; o a estes termos senão valor relativo. Este é genericamente dado
segundo, a atividade com que se fazem as provisões; o terceiro, por nós aqui em relação a um tipo médio, situado com o cons-
a zona das expectativas e possibilidades, das tentativas e for- ciente no plano da razão, com o subconsciente no plano dos
mações futuras. As três zonas estão ante a experimentação nes- instintos e com o superconsciente no plano da intuição e do es-
tas posições: de quem já recebeu o depósito, de quem o está re- pírito. Expomos aqui o sistema, a estrutura da personalidade, e
cebendo e de quem o espera. O eu sente no campo onde está não sua posição evolutiva, que muda para cada caso em particu-
ativo, e não onde está latente. O sistema está em movimento lar. Neste sistema, o ego consciente é dado por uma zona lúci-
evolutivo, e a zona ativa do registro, o consciente, não é a da, de operações, situada no centro de duas zonas obscuras, e o
mesmo para todos. Os três tipos biológicos: a besta, o homem e todo não fica estático, mas em movimento ascensional. O ego
o super-homem, têm seu centro consciente em três alturas di- percebe a própria existência unicamente na zona consciente do
versas: a besta, no subconsciente (instinto); o homem, no cons- sistema, que, segundo o desenvolvimento individual, tem altu-
ciente (razão); o super-homem, no superconsciente (intuição). ras evolutivas diversas. Conforme estas, cada um explora, to-
Com a evolução, o centro consciente tende a passar do nível in- ma, elabora, assimila e, assim, de acordo com sua posição e na-
ferior ao superior. Na escala da evolução, uns são conscientes, tureza, agindo através do esquema geral do fenômeno, constrói
poder-se-ia dizer, à altura da cabeça; outros, à altura do ventre; a própria individualidade segundo particularidades especiais. A
e outros, à altura dos pés. Uns têm a cabeça abaixo do nível dos captação, o registro e o armazenamento das experiências pode
pés de outros, e alguns têm os pés acima do nível da cabeça de ser feito em alturas diversas, segundo a escala evolutiva, mas o
outros. Do involuído ao evoluído, os tipos se escalonam em to- processo e o método são idênticos para todos, e o resultado é
dos os níveis, mas a compreensão só é possível entre os que se sempre ascensão, autoconstrução, progresso da fase evolutiva
acham à mesma altura, tendo, portanto, partes comuns de res- subconsciente à fase consciente e superconsciente.
sonância, isto é, que vibram, como já dissemos em capítulos Terminado este conceito da relatividade das posições e do
precedentes, com o mesmo comprimento de onda, velocidade e movimento do sistema, completemos agora o exame de seu as-
frequência vibratória, que é o que justamente diferencia o grau pecto estático com outras comparações. Terminado o problema
de evolução. A evolução caminha do subconsciente ao super- da conquista, voltemos à questão da estrutura da personalidade.
consciente, da besta ao super-homem, como das ondas longas e Até aqui, estabelecemos relações do subconsciente, consciente
baixa frequência às ondas curtas e alta frequência. Há, portanto, e superconsciente com a besta, o homem e o super-homem;
correspondência entre subconsciente, instinto, animalidade, on- com o instinto, a razão e a intuição; com o armazenamento, a
das longas e baixa frequência, tal como há correspondência en- assimilação e a captação; com o ato terminado, o atual e o futu-
tre superconsciente, intuição, espiritualidade, ondas curtas e al- ro; com a recordação, a ação e o pressentimento; com o passa-
ta frequência. Também a personalidade é um binômio que vai do, o presente e o porvir; com a cauda, o centro e a cabeça, no
252 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
caminho da evolução. Mas tudo isto ainda não é suficiente. humana. A célula, na orientação a que obedecem seus íntimos
Como e onde se localizam as sedes destas diversas funções? movimentos atômicos, traz inscrita a sua longa experiência e,
Onde são depositados, elaborados e captados os respectivos re- por inércia, não deixa esgotarem-se os impulsos recebidos do
gistros? Ligamo-nos aqui aos conceitos dos últimos capítulos. ambiente, agora transformados em conhecimento por si mesma
A sede do subconsciente, seus paralelos e atividades, está na es- adquirido. E, desse modo, continua a emitir correntes de or-
trutura celular, nos tecidos, na carne da raça, zona de animali- dem, aviso, consentimento, proibição. A razão apreende, pro-
dades, de instintos, de memória biológica. As experiências pri- cura tomar consciência e, quase sempre, embora não compre-
mordiais e fundamentais da vida fixaram-se em automatismos enda, obedece a essa sabedoria mais profunda porque a reco-
nestas profundas e antigas estratificações biológicas, comuns ao nhece verdadeira, pois, embora sepultada nas profundezas da
homem e ao animal. Frequentemente, para o homem, este é o célula e nas trevas do subconsciente, essa memória biológica
seu passado, a zona situada no extremo mais profundo da evo- continua participando do seu ego. O subconsciente, que tudo
lução. A sede do consciente está no sistema celular escolhido, registra e de tudo se recorda, está sempre por detrás de nós, pa-
selecionado, no ápice da evolução animal, aperfeiçoada até às ra nos guiar; executa por nós, automaticamente, inúmeras ati-
portas do espírito, com funções psíquicas: o sistema nervo- vidades e resolve, em nosso lugar, grande quantidade de pro-
cerebral, zona humana da razão, zona dos mais recentes feitos blemas, sem perturbar nem agravar o consciente. Simples divi-
biológicos, ainda não fixados em automatismos, ainda em pro- são de trabalho. Representando o patrimônio comum e a sabe-
cesso de formação, fase central da evolução do ego, fase de doria da vida, o subconsciente diz respeito à hereditariedade fi-
elaboração e livre escolha. Obedece-se a instintos inconscientes siológica, pela qual se transmite. A célula constitui-lhe, de fa-
da carne, mas raciocina-se com o cérebro. Frequentemente, as- to, a sede e o canal de transmissão. O subconsciente contém o
sim é o homem atual. A sede do superconsciente está situada capital hereditário que, mais do que ao indivíduo enquanto in-
além da parte material sensitiva e do organismo físico, no im- divíduo, pertence à vida. É riqueza que recebemos ao nascer,
ponderável, no espírito. No Cap. XXVI – ―A Música – A Vida como bagagem necessária para percorrermos o pedaço de ca-
Dupla‖ deste volume, vimos suas relações com o sistema cere- minho representado por uma existência. O patrimônio indivi-
bral, onde a vibração, separando-se de seu nervo transmissor, dual, diferenciado, que não se transmite por hereditariedade fi-
torna-se radiante, livre, de ondas curtas e alta frequência. Estas siológica celular, mas sim, como vimos, por hereditariedade
qualidades, ainda não conseguidas no plano inferior, permitem espiritual, está situado no espírito. Vivendo como corpo, acu-
ao superconsciente a transmissão telepática, a captação noúrica, mulamos o primeiro desses patrimônios e, vivendo como espí-
a visão sintética da verdade, isto é, o uso natural e normal do rito, o segundo. Bem poucos, porém, possuem esse patrimônio
método intuitivo, próprio do superconsciente. Tudo isto repre- individual; a humanidade, em sua maior parte, encontra-se
senta a zona super-humana, o mundo do evoluído, o reino do ainda nos alicerces de sua construção espiritual, que, no atual
espírito, a fase mais elevada da vida humana, que o homem la- estado evolutivo, não pode ser o resultado de esforço coletivo,
boriosamente vai conquistando, formando sua estrutura espiri- e sim individual. O superconsciente é produto pessoal diferen-
tual, fase situada acima de nossa evolução humana. Para a mai- ciado e, por isso, não obedece à hereditariedade comum, que
oria, isto é futuro, exceção. Raciocina-se com o cérebro, mas se processa através dos caminhos da carne.
unicamente o espírito é capaz de intuição. Podemos, agora, concluir a exposição do problema da here-
Para o homem comum, a zona lúcida, a fase atual, é a cere- ditariedade, de que já cuidamos no final do capítulo anterior. A
bral. Normalmente, esta é a sede consciente do ego. Este se es- vida é bipolar e, por isso, uma hereditariedade adequada garan-
tende pelas duas outras zonas, porém inconscientemente. O te a continuidade de cada um de seus dois extremos: a fisiológi-
ego cerebral e consciente acha-se no centro da personalidade, ca responsabiliza-se pela transmissão do subconsciente; a espi-
entre seus dois extremos contíguos, o subconsciente e o super- ritual pela transmissão do patrimônio do superconsciente. Por-
consciente, em contato e comunicação recíproca com ambos, tanto, duas vias, dois canais abertos, um material e outro imate-
beneficiando-se pelo instinto e intuição relativamente ao seu rial, ambos adaptados à transmissão dos resultados das experi-
desenvolvimento e potência. Todas as correntes da personali- ências de dois organismos diversos: o corpo e o espírito (Cf. as
dade trifásica, de qualquer plano em que estejam, reencontram- palavras de Cristo a Nicodemos: ―O que se gerou da carne é
se no ego cerebral, central, consciente, unindo-se no campo da carne; o que nasce do espírito é espírito‖: João, 3:6). Do sub-
consciência às duas zonas laterais extremas, fazendo convergir consciente e do superconsciente, os dois diferentes patrimônios
para aí as próprias aquisições, com as quais são representadas. acumulados no passado, vividos por nós em ambas as formas e
Conhecemos suas vozes, distinguimos três fontes e três corren- por nós mesmos, nos dois campos, herdados, emergem no
tes: a voz do instinto, a voz da razão e a voz da consciência. A consciente, oferecendo-lhe suas úteis produções. A carne adqui-
primeira e a última vêm de longe, são produtos-sínteses; a se- riu a própria experiência e a repete; o espírito adquiriu a sua e a
gunda é presente, atual, analítica. oferece. A criança desenvolve-se plasmada por ambas as forças,
A razão apreende, controla, discute. Constitui às vezes cujo desencadeamento ela mesma preparou; cresce debaixo
campo de batalha entre as diversas correntes, quando estas di- dessa dupla orientação e influência, útil e necessária em ambas
vergem entre si ou da razão e a harmonização se torna difícil. as formas. Trata-se de simples restituição, é propriedade nossa
Nasce então a interferência das vibrações, e a luta se estabelece que nos volta às mãos e nos diz respeito, porque esses dois pa-
entre os vários impulsos. São por demais conhecidas essas tem- trimônios, na medida em que existem, nós os conseguimos com
pestades íntimas. Porém, especialmente no evoluído, de super- nosso trabalho. Cada um dos dois transmite a si mesmo e, em
consciente mais desenvolvido, se desencadeia com mais vio- seguida, age como força, mas operando cada qual no seu pró-
lência a guerra entre o superconsciente e o subconsciente, entre prio campo; cada um constitui impulso que, por força da lei de
o passado e o futuro, e ao contrário; entre espírito e matéria; en- causalidade, se liga ao próprio passado, de que constitui conse-
tre os dois extremos da evolução, que se batem pela posse da quência e continuação, e se imprime no eu atual, plasmando-lhe
consciência, como campo de realizações. o corpo e o espírito. Esse impulso representa a incorporação já
O subconsciente contém o patrimônio coletivo adquirido, acabada, a zona já formada e, por isso, fatal de nosso livre des-
as reservas da raça, o decálogo da vida animal, inscrito na car- tino (cf. Cap. XXIV – ―Nosso Livre Destino‖, deste volume).
ne e no sangue. A célula o conhece muito bem, graças à repeti- Tal como a memória biológica reconstitui o organismo físico,
ção milenar que ratificou as experiências originárias. Esse é o repetindo a história celular, continuada agora através da heredi-
alicerce do edifício biológico, o ponto de partida da evolução tariedade biológica, assim também o espírito reconstrói a per-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 253
sonalidade moral, repetindo-lhe a história, agora continuada ra avaliá-las e controlá-las por meio da lógica, da observação e
através da hereditariedade espiritual. O espírito, amparando-se da experiência, e relacioná-las com os conhecimentos atuais.
nos instintos do subconsciente delegados à vida animal, plasma Isso não significa, porém, que não tenhamos já feito aqui um
a criança, compondo-lhe a personalidade e, quase inpercepti- trabalho de coordenação. Esses conceitos, aos quais, como
velmente, atingindo-lhe o cérebro (o consciente) pelas vias ima- sempre acontece com o método intuitivo, chegamos tempestuo-
teriais (que sabemos serem conscientes no evoluído) de percep- samente, intermitentemente, rebeldes a todo registro metódico,
ção interior inversa (cf. Cap. XXVI – ―A música – A Vida Du- obedecendo a leis diferentes das leis da concatenação lógica e
pla‖, deste volume). da conexão de ideias, que se atraem por afinidade vibratória
O corpo, o cérebro e o espírito constituem, pois, as sedes da (fenômeno da ressonância), conceitos sintéticos, mas racional-
personalidade trifásica (subconsciente, consciente e supercons- mente indisciplinados, aqui já foram, tão logo retirados ao su-
ciente), nas suas três funções: instinto, razão e intuição. A per- perconsciente, reprimidos, coordenados e enquadrados sistema-
sonalidade humana, una e trina como o universo, possui, por- ticamente no consciente. Eliminadas a irregularidade e a inter-
tanto, o organismo instintivo da besta, o cérebro raciocinante do mitência, o relâmpago torna-se luz regulada e contínua, permi-
homem, o espírito intuitivo do super-homem. Três zonas, três tindo que se veja o caminho. Este domínio da intuição dinâmica
funções, três sedes. À proporção que evoluímos, o domínio da e rebelde num concatenamento racional é um dos maiores es-
intuição torna-se, como vimos, o domínio da razão e, em segui- forços necessários à exploração do supernormal, sendo, toda-
da, o domínio do instinto. As três zonas representam, também, via, disciplina imprescindível, sem a qual tornar-se-ia inútil o
três fases de acréscimo. Quanto mais progredimos, porém, tanto método intuitivo. De outro lado, tal método permite a compre-
mais a função é precária e a forma imatura. Se no alto vemos o ensão contínua e progressiva dos problemas por captações su-
mais evoluído, vemos também o mais novo e menos completo. cessivas, como o estão demonstrando estes ―comentários‖ à
A elevação e a estabilidade são inversamente proporcionais. A Grande Síntese, pelos quais pode-se provar que tal livro não
intuição, mais elevada e mais ampla, vive em equilíbrio mais tem propriamente um fim, podendo ser desenvolvido ad infini-
instável que qualquer outro. A razão, mais restrita e chão a tum48. Se os esquemas fundamentais então expostos são sim-
chão, fica bem mais embaixo, mas se mostra muito mais sólida ples e unitários, torna-se agora ilimitado o número de combina-
e segura e, exatamente por isso, é muito mais adequada ao con- ções possíveis entre as posições da forma. Realmente são esses
trole da intuição. O instinto, por ser o de conteúdo mais ele- os caminhos da natureza, também seguidos por nós: chegar por
mentar e limitado, fica no ponto mais baixo possível, no entan- meios extremamente simples ao infinitamente complexo, par-
to revela-se o mais garantido pela estabilidade de equilíbrios e tindo de princípios elementares ou temas fundamentais, repe-
segurança de experiências. Três graus de elevação e, em razão tindo-os em alturas, dimensões e combinações diversas. Dua-
inversa, três graus de solidez. Assim, o animal, servido pelo lismo universal. A criação – num polo, simples e, noutro, com-
instinto, é, no seu plano, o mais seguro e perfeito, embora me- plexa; centralmente unitária e de incomensurável multiplicida-
nos adiantado do ponto de vista da evolução e mais limitado de na periferia; imutável no absoluto e instável no relativo – é,
quanto ao domínio; seu instinto é mais seguro e perfeito do que ao mesmo tempo, perfeita e imperfeita; se, por um lado, incli-
a discussão racional, em relação a ele insegura e oscilante; esta, na-se para formas e existências efêmeras, por outro lado é assi-
por sua vez, comparada com os arriscados voos da intuição, naladamente eterna em seus princípios vitais. Os dois polos se
mostra-se muito mais positiva e garantida. É natural, porém, a pressupõem e se subentendem. Pelo princípio universal da opo-
instabilidade e o perigo aumentarem à medida que deixamos de sição dos contrários, segundo a lei do dualismo, a forma transi-
rastejar como vermes e começamos a andar e a voar. Toda for- tória do lado matéria presume e impõe, do lado espírito, a pre-
ma de atividade tem lugar apropriado e função determinada. A sença de uma vida eterna correspondente.
vida não se arrisca, senão em excepcionais emersões, às gran- Pelo lado forma ou matéria, uma das características do ser é
des altitudes. Quer ficar tranquila, e fica mesmo, em plena mas- a caducidade, portanto a necessidade de contínua troca para so-
sa, nas suas próprias bases. breviver, de ininterrupto renovamento para suprir, com as en-
Ainda uma observação. Não vá o leitor surpreender-se, por- tradas, as perdas e saídas, tornando-se a vida uma corrente onde
que, nestas páginas, não estamos mais formulando hipóteses, é necessária e implícita a presença de um dinamismo animador
mas fazendo contínuas afirmações. Isso decorre do fato de, por e dirigente, em que tudo na forma se reencontra, sem o qual es-
brevidade, estarmos dando aqui apenas as conclusões, pois que- ta não se pode suster. O limite desse complemento, que contra-
remos que este livro seja construtivo e, portanto, deixamos de balança o binômio e o equilibra com um elemento e impulso
lado toda discussão, como elemento negativo. Vemos então que inverso, é o espírito. Ele realiza precisamente a reparação con-
tudo isso resulta do método intuitivo adotado neste trabalho. A tínua, sem a qual a caducidade não seria renovamento vital,
dúvida, a hipótese, a espera da confirmação espiritual e o horror mas morte. Sem tal presença ativa do espírito, encarregado da
às conclusões pertencem ao método racional. O método intuiti- contínua manutenção, isto é, de tudo alimentar, sustentar e re-
vo, que nos leva à obtenção desses conceitos, tem característi- parar interiormente, aí onde é seu lugar, nada se manteria, nada
cas completamente diferentes. A intuição, por sua própria natu- haveria de sobreviver. Tal caducidade da vida é a sua fraqueza,
reza, vê, não discute, aceita as conclusões como estado de fato, o seu perigo, a sua lida. O mal, a dor, a morte estão continua-
não analisa para atingi-las, não duvida, não experimenta; ape- mente fustigando. Tudo se decompõe, e é sempre necessário re-
nas sente. Por isso naturalmente diz ―é‖, e não ―poderia ser‖ ou construir. O ritmo do fenômeno vital acha-se ligado ao ritmo
―suponhamos que seja‖. A verdade lhe surge já completa, e não fatal do tempo, dentro do qual, se abandonado a si mesmo, ex-
em estado de elaboração. Chegamos a esses conceitos graças a tingue-se e morre. As contínuas relações que o sustêm não po-
visões interiores, não dirigidas do cérebro para fora como as dem sofrer intermitências. Se para, vem a morte. A caducidade,
observações sensoriais, mas do cérebro para dentro, por meio fraqueza congênita da vida, subentende e impõe o movimento
de audição espiritual. Aqui, a personalidade humana se nos ininterrupto. Esta é sua condenação: fragmentar-se no relativo,
apresenta funcionando como acima dissemos, e aquelas afirma- de única tornar-se múltipla; cair do eterno no findável, do infi-
ções encontram aplicação direta. Eis um primeiro controle ex- nito na prisão do limite; ter a necessidade de reconstruir, com o
perimental das teorias acima expostas, por sua correspondência cansaço de um condenado e o sofrimento de um decaído, tudo o
à realidade, pelo menos neste caso. Reconhecemos ser justo que desmoronou, mas permanece como um sonho, um lamento,
que, a seguir, em um segundo estágio, a razão analítica, graças
48
a seu método positivo, se apodere dessas sínteses intuitivas, pa- Sem limites (N. da E.)
254 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
um ideal. Esta reconstrução chama-se evolução, e todo este levando fatalmente às portas do progresso e do resgate. Todo
complexo trabalho ligado à estrutura da personalidade represen- este sofrimento se chama vida.
ta o necessário e constante esforço para cumpri-la. A divisão da unidade em duas partes, tornando o homem in-
O mesmo princípio universal do dualismo estabelece que, completo, faz dele um partidário. Não sabendo ser senão uma
estando num polo do sistema a divergência, no outro esteja, parte da verdade, sente necessidade, para alcançar o seu com-
por compensação, a concórdia. A vida, portanto, fica conde- plemento na parte oposta, de discutir e lutar. Ele possui a ver-
nada a romper-se e recompor-se constantemente; a isolar-se dade fragmentada, não a verdade na sua unidade e totalidade.
no egoísmo e dedicar-se à união; a separar-se no individua- Seu poder de concepção não sabe ir além; acha-se imerso no
lismo e a reajustar-se na vida social. A própria personalidade, particular, no relativo, na contradição. De qualquer lado que es-
em seus extremos, subconsciente e superconsciente, está divi- teja na discussão, sente-se ausente da outra parte e, por isso, so-
dida, mas todas as correntes convergem para o centro, o cons- fre e procura indenizar-se. Sob as aparências do antagonismo,
ciente, reunificando-se no ego. A própria personalidade se di- expressão da oposição dos termos, deseja e procura aquilo que
vide em dois polos: pai e mãe, espírito e matéria; estes, po- é o próprio objeto de seu combate, aparentemente para destruí-
rém, se reencontram nela, fundindo-se numa única individua- lo, mas, na verdade, tentando apoderar-se dele, devorá-lo, assi-
lidade. Para cada ser, a existência consiste no mesmo processo milá-lo, tornando-o parte de si mesmo. Por esta única razão,
de reconstrução da antiga síntese. O múltiplo deve retornar à combate não só para que seu adversário, igualmente incompleto
unidade. Eis a constante labuta da vida, a essência da evolu- e desejoso de completar-se, não o devore, não o assimile, mas
ção: sofrimento, porém tendo como meta a felicidade. Segun- também porque ele próprio, sendo imperfeito, é sequioso de
do a lei de dualidade é imprescindível que, se, num extremo, o aperfeiçoar-se no outro. Eis o que é a vida: o estrugir de uma
limite da involução é a dor, no extremo oposto, o limite da batalha que é unicamente desejo de amor.
evolução seja, pelo contrário, a felicidade. Assim a dor é, a A luta pela vida nasce do dualismo, unilateralidade e pri-
um tempo, redenção, reerguimento, reconquista, possuindo a vação, havendo sempre atrás do amor o ódio, e atrás do ódio,
função de reconduzir ao progresso, que culmina em triunfo. E, o amor. Embora cada ser egoisticamente se incline a isolar-se
deste modo, nos ensina a lei do sistema. do todo, continua fazendo parte do todo e, por mais que deseje
O homem nasce incompleto. É por todos os lados molesta- dominar para impor-se aos outros, na verdade não passa de
do por privações, sempre vulnerável e sensível, num ambiente um pobre que procura completar-se. Reaparece então uma bi-
indiferente ao seu dano e à sua dor. O sistema supõe a vida polaridade inversa: conquanto o egoísmo seja indispensável à
como um campo de provas. As investidas são ininterruptas, vida do indivíduo, sem altruísmo não pode haver nem fecun-
mas a sensibilidade é proporcionada às provas, e as provas à didade, nem geração. O primeiro, que parece conservar e
sensibilidade. Da interação recíproca nasceu a mútua educa- acumular, torna-se um fator de separação e destruição; o se-
ção, uma simbiose de forças que, nas contínuas relações e tro- gundo, que parece dissipar, constrói e une. Todas as possíveis
cas, se contrabalançam. O ego e seu ambiente se conhecem, atitudes da vida humana acham-se compreendidas no binômio
um está disposto a se encontrar com o outro, demonstrando egoísmo-altruísmo, composto de dois termos contrários que se
profunda presciência de suas mútuas qualidades. São as har- completam. E todo esforço está compreendido num sistema de
monias da vida. Até a luta tem suas harmonias, sem as quais equilíbrios que o torna possível somente dentro dos limites
seria absolutamente impossível qualquer aproximação ou equi- impostos pela Lei, sem possibilidade de causar desordens ao
líbrio. Luta e harmonia se subentendem; se a primeira está funcionamento universal. Assim, a luta se transforma em ele-
num extremo do binômio, a segunda deve necessariamente ser mento de fecundidade e construção; não é, como pode pare-
de natureza oposta e situar-se no extremo oposto. Se há luta e cer, caos e destruição, mas fator de evolução regulado, onde
sofrimento, há também proporção entre resistência e ataque, há compensação e equilíbrio; o eu luta para se assegurar con-
entre ação e reação. A Lei, portanto, manifesta automatica- tra tudo e contra todos, mas, por lei, tem necessidade de ou-
mente a sua ação, de acordo com a sensibilidade do indivíduo, tros para unificar-se com a totalidade. Todo elemento está, por
e, proporcionando o tom de voz à sensibilidade, consegue fa- lei, unido ao seu oposto, de modo que altruísmo e egoísmo,
zer-se ouvida por todos. Quanto mais insensível e surdo o ho- atração e repulsão, impulsos contraditórios, contrabalançando-
mem, tanto mais forte a Lei grita, tanto mais violentos são seus se, equilibram-se perfeitamente.
golpes, tanto mais difíceis suas provações. Tudo nasce corroído interiormente por essa autocontradição
O homem é um binômio, dividido entre os dois extremos de que cada ser traz em seu íntimo e em seu exterior. Porém, ao
sua personalidade, dividido no sexo, na contradição contida pe- mesmo tempo, tem em si o remédio necessário. A própria con-
lo antagonismo de todo pensamento ou ato, na luta que, em seu tradição, que supõe extermínio, subentende a construção, tor-
consciente, trava-se entre subconsciente e superconsciente, na nando-se princípio evolutivo de rejuvenescimento. Portanto não
divergência entre seu mundo interno e seu mundo externo. Em se pode dizer imperfeita uma natureza que traz no íntimo de sua
contínuo movimento a fim de preencher suas falhas, aflige-se imperfeição tanta beleza: a Lei, que, apesar das aparências de
com os desejos de suas qualidades contrárias. Satisfazendo-os, desordens e desalinho, é a própria substância da ordem e disci-
vê restabelecerem-se a desproporção e o descontentamento, que plina. É verdade que a natureza é falha, insegura em suas tenta-
o tornam desiludido pela impossibilidade de alcançar a paz que tivas, sempre cega em frente ao desconhecido, porém, ainda
proviria da sua completa satisfação. As duas partes em que se que tenda a cair e pecar, que enorme poder de restauração, que
fragmentou a antiga unidade parecem condenadas a perseguir- riqueza de possibilidades! Que variedade de doenças, mas que
se mutuamente, sem jamais se alcançarem. A meta de chegada abundância de remédios! Continuamente perseguida, furtiva-
se distancia mais e mais ou, se alcançada, reaparece sempre mente ameaçada a cada passo, a vida prossegue ininterrupta,
mais longe. O desequilíbrio acelera a corrida, mas, conseguida triunfando de todas as negações. Também aqui, a realidade é
a felicidade do repouso, restabelece-se a desproporção e a ne- bipolar: exteriormente imperfeita, porém, em seu íntimo, real-
cessidade de novo movimento para tranquilizá-lo. A alegria da mente perfeita; corruptível e transitória na forma, mas substan-
tarefa cumprida foge sempre. A imperfeição congênita muda-se cialmente incorruptível e eterna. Enquanto tudo ao seu redor se
em contínua necessidade de perfeição. Sublime e terrível con- deteriora e acaba, seu interior é uma fonte inexaurível de fe-
dição de sofrimento e felicidade, de escravidão e liberdade, de cundidade e rejuvenescimento. Em meio à instabilidade de
miséria e triunfo. Negação originária que em si contêm implíci- transformação nas formas-efeito, permanece intacta a estabili-
tos todos os elementos da afirmação. Condenação de origem, dade do imutável no princípio-causa. Daí nasce a beleza e a ne-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 255
cessidade do movimento. Tudo roda em contínua erosão, sem Fragmentou-se a personalidade, porém não se quebrou por
que nada se destrua; tudo é tomado de assalto, mas a vida con- completo. Foi lançada na discórdia, mas pode se reconstituir
tinua ilesa. Do movimento, nasce a grande ilusão, a periferia na harmonia. Perdeu sua plenitude, está condenada a viver à
complexa, mutável, fugidia; porém só na periferia. Descendo custa de ininterruptas substituições, ligada às vicissitudes da
um pouco abaixo da superfície revolta do oceano, encontrare- vida e da morte, que a impelem além ou aquém do limite, con-
mos a calma. A verdade simples, inalterável, divinamente tran- tudo sua ascensão é lei fatal, fatalidade de culpa, fatalidade de
quila está no centro. Embaraço, instabilidade, incerteza, baru- evolução, inevitável e necessária conquista de felicidade. Se a
lho, desordem, luta, sofrimento, tudo aumenta à proporção que dor e o esforço são impostos, do mesmo modo o são seus pre-
nos distanciamos do centro. Quanto mais perto dele, tanto mai- ciosos frutos. Olhando-se o exterior, fica-se pessimista; procu-
or estabilidade, segurança, harmonia, ordem, paz, contentamen- rando o íntimo das coisas, a única conclusão possível é o oti-
to. Na periferia, a complexidade e multiplicidade desorientam, mismo. A injustiça é aparente, a justiça real. A vida é penosa,
mas no centro se dissolvem em princípio simples e unitário, mas a lei de Deus se esforça continuamente para eliminar as
onde a direção é evidente. As almas que, afastando-se da vida más inclinações e libertar das sombras a luz, do mal o bem, da
exterior da matéria e dos sentidos, sabem interiormente apro- dor a alegria, procurando transformar o Getsêmane em glorifi-
ximar-se de Deus, conhecem por experiência a verdade destas cação. Através de infinitas oscilações entre um e outro polo de
afirmações. O primitivo, que vive superficialmente, não vê se- sua existência, o eu renasce, cicatrizando a grande ferida da
não desordens, mas quem vai ao fundo da substância encontra a separação. Elevando-nos sempre mais para o Alto, um dia
ordem perfeita. Portanto, sendo diverso o poder de visão, quem compreenderemos que era necessária a prisão do espírito no
só vê desordem e caos é negativo e materialista, e quem encon- corpo, neste irmão menor, instrumento de aperfeiçoamento;
tra ordem e harmonia é positivo e espiritualista. Para quem olha veremos que era inevitável o impacto da matéria inimiga, para
de fora, com a análise racional e experimental, o universo é dé- que se fortificasse nossa resistência e nos instruíssemos com a
dalo inextricável de contradições, sabedoria incerta e falha; experiência, permitindo-nos reconstruir tudo através de provas
precipitação cega para a autodestruição, dissipação incontida; é e dificuldades. Compreenderemos então quanta sabedoria se
construção desconexa, onde as partes não se adaptam, incom- originou da prisão no tormento da contradição íntima, algema-
pleta, corroída pela maldade, pelo cansaço, pela dor e pela mor- dos a um inimigo, rodeados por um ambiente de assaltos e ne-
te. Porém tanta imperfeição e corruptibilidade é apenas externa, gações. Compreenderemos a utilidade de estarmos ligados ao
aparente. Um olhar mais profundo, com a síntese intuitiva, des- inimigo, completamente imersos na luta incessante, universal e
cobre um universo que funciona perfeitamente, como desen- inevitável, destruidora mas reconstrutiva.
volvimento lógico, potência construtiva, sabedoria e segurança
de ação, conexão de partes, capacidade de compensação e repa- XXIX. SÃO FRANCISCO NO MONTE ALVERNE
ração, isto é, um organismo completo, incorruptível, inexaurí- (1a PARTE)
vel. Isto somente pode tornar-se evidente se soubermos chegar
ao centro. Somente agora pode ser compreendida a oração de A Chegamos, finalmente, a estes últimos capítulos, em que o
Grande Síntese (Cap. LXVII – ―A Prece do Viandante‖): ―Na- caminho, após o trecho percorrido neste livro, fecha-se numa
da posso pedir-te, Senhor, porque na tua Criação tudo é perfeito pausa, para depois, talvez, continuar mais para adiante. Este
e justo, até meu sofrimento e minha momentânea imperfei- novo episódio para no ponto culminante de sua manifestação,
ção...‖. Portanto o que se procura é a própria adesão à vontade retira-se para o outro extremo da eterna oscilação do ser, mu-
de Deus. A fórmula ―pulsate et aperietur vobis‖49 pertence ao dando para dentro o sentido de seu deslocamento, a fim de,
plano humano; o ―fiat voluntas tua‖50, ao super-humano. De fa- após haver narrado e demonstrado, poder atingi-la de novo. De
to, Cristo, no Getsêmane, usou esta última. É esta a diferença fato, a vida processa por meio desse deslocamento alternado, de
da oração do involuído e do evoluído. dentro para fora e de fora para dentro, as duas fases inversas de
O involuído sofre sua dor sem compreender-lhe a função, o todos os atos. A oscilação pendular entre tese e antítese, segun-
evoluído, de superconsciente culto, compreende-a perfeitamen- do a qual tudo se move e se equilibra, impõe que a introspecção
te. Exalta-se na luta entre consciente e superconsciente, como e a manifestação se sucedam no tempo.
na elaboração criadora. Sente-se dividido entre dois extremos, Ao longo de nossa caminhada neste volume, a vastidão dos
perseguido pelo desejo insaciável de se completar. Os dois ex- problemas sociais foi gradativamente diminuindo à proporção
tremos de seu ser estão em mundos opostos, o espírito de um que se aprofundava na complexidade do problema individual; o
lado, o corpo de outro, querendo cada qual dominar tudo sozi- campo apequenou-se, mas o potencial se elevou. Até mesmo na
nho, desencontrando-se no consciente. Que brilho intenso pro- forma, portanto, este livro reproduz o fenômeno evolutivo, que
voca esta batalha! A pátria terrena impõe-se por suas necessi- lhe constitui o problema central. Partimos do problema dos
dades práticas, mas do íntimo chama com voz possante a lon- grupos, da questão social coletiva, que, por causa da extensão e
gínqua voz do céu. Há olhos insensíveis, mudos, vazios, sem involução, se coloca na base da pirâmide humana, e subimos
alma, inertes e silenciosos. Há olhos cheios de tempestades, que até ao problema dos pouquíssimos evoluídos, à questão indivi-
vê lutarem as forças do espírito e percebe a atmosfera vibrante dual, que se coloca no vértice dessa pirâmide. Alcançamos,
dos grandes esforços construtivos; olhos abertos também para desse modo, alturas a que a massa não pode aspirar, a formas
outro lado da vida, revelando-nos sua complexidade, falando de de vida que apenas podem ser atingidas pela excepcional emer-
coisas misteriosas e longínquas, ultrapassando os limites, en- são biológica. Completamos, assim, uma oscilação entre os dois
xergando até no abismo do universo interior de onde emergem, extremos da vida humana: o coletivismo e o individualismo. De
resplandecendo da luz que dele emana. Falam-nos de outros fato, ao progredir, a história oscila entre o sistema social iguali-
mundos que viram, trazendo-nos recordações em seus olhares, tário e disciplinador de multidões e a exaltação do indivíduo
esses olhos que choraram e pediram, deixando transparecer nes- excepcional, autônomo e rebelde, e, graças aos dois extremos
te mundo a imagem neles impressa da divindade. Se soubermos contrários, se compensa e se completa. O sistema social, coor-
entendê-los, teremos o testemunho da outra realidade distante denando os elementos necessários, disciplina-os, constrói o in-
que foge aos sentidos e não se manifesta neste mundo. divíduo; da emersão do indivíduo resulta o sistema. Ambos es-
tes termos são necessários e colaboram no mesmo processo bio-
49
Batei e abrir-se-vos-á. (N. da E.) lógico de evolução. Agem alternadamente na história e, assim,
50
Seja feita a tua vontade. (N. da E.) equilibram suas funções no que têm de contraditórias. O pro-
256 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
gresso alimenta-se nas duas fontes. Agora, depois de havermos sim, o evoluído recusa uma fingida extensão de domínio, que
tratado dos numerosos problemas das multidões e chegado às para ele se resolve em mentira, pois trata-se em substância de
bordas do abismo da personalidade, o último passo tem de ne- aumento de escravidão; ele repele as miragens que o ligam aos
cessariamente nos colocar exatamente no ponto culminante da grilhões da posse e, tornando-se o mais possível independente
evolução humana, além do qual o espírito se desembaraça da de tudo e de todos, volta as costas a todas as conhecidas lison-
forma corpórea para assumir formas superiores, que, por en- jas da vida. Não faz questão de superioridade, mas de maturi-
quanto, nem mesmo podem ser concebidas pelo homem co- dade. Cada um de nós exerce a função exata no seu plano e está
mum. Para chegar, porém, a esse ponto, devemos refazer de no lugar certo. Mas também está na lei de justiça e equilíbrio
novo todo o caminho, subindo aos poucos, através de vários que todos os que aprenderam a desempenhar funções mais ele-
problemas, esgotando antes de mais nada o da própria persona- vadas devem ir exercê-las onde isso se torne possível, quer di-
lidade humana, do qual iremos tratar agora, observando um de zer, em outros mundos, mais adiantados e mais adequados. A
seus casos particulares mais evoluídos e complexos. Trata-se de natureza, econômica como é, conhece muito bem e, por isso,
emersão escolhida entre as mais conspícuas e espirituais, embo- não desperdiça os seus valores; o funcionamento orgânico do
ra não seja a única nem tenha apenas esta forma. universo e a grande marcha evolutiva não podem parar; a asce-
Todos obedecem aos impulsos expansionistas do eu. A ex- se, depois de realizada intimamente, impõe inexoráveis mudan-
pansão constitui a primeira e mais evidente expressão vital. Es- ças, inclusive à forma. O ciclo deve continuar na fase seguinte,
te é o esquema do ser: manifestar-se por meio de individuações o fruto maduro deve destacar-se da árvore, o homem evoluído
sintéticas, resultantes de concentração de forças no eu, mas su- deve destacar-se da humanidade. Por mais que, por bondade,
bordinadas a inverso período de descentralização, por meio do humildade ou amor, se dedique a seus semelhantes, o evoluído
qual a personalidade humana se manifesta como sistema ex- é irresistivelmente impelido cada vez mais para cima, no afliti-
pansionista. Desse modo, o binômio se completa e os impulsos vo turbilhão da vida.
se equilibram. Para a maioria, contudo, essa expansão se dá Fechemos o pedaço de caminho percorrido neste livro, con-
horizontalmente, em superfície, e somente ocorre verticalmen- templando esse momento sublime através de um caso excelso,
te, em altura, quando se trata de emersão biológica. A expan- em que um tipo de personalidade madura foge, como se fora
são do tipo normal dirige-se à posse, o que, por reciprocidade, um projétil, do campo das atrações terrestres e se atira no es-
significa sujeição; a expansão do supernormal se dirige para a paço infinito. O fruto, elaborado e amadurecido no ponto mais
libertação, que significa domínio. O normal, inexperto, vítima alto das ascensões biológicas, o produto mais bem acabado da
da ilusão, tenta dominar, mas acaba sendo dominado, procura vida humana, destaca-se da árvore que o produziu. Bem pró-
libertar-se e acaba agrilhoando-se. Conhece apenas a expansão ximo da morte, em que ele ressurge no limiar de vida muito
terrena e, por isso, mostra-se avidíssimo, como hoje acontece, mais ampla, veremos um ente não mais humano, embora pare-
de munir-se de energia, necessária para aumentar seu raio de ça, nascer para a realidade iminente de um mundo superior,
ação em superfície e sua capacidade de agir em profundidade, que se abre diante dele, revelando-se a ele num supremo lam-
a fim de que a afirmação de si mesmo atinja a matéria o mais pejo espiritual como prelúdio de paradisíacas sensações interi-
extensa e profundamente possível. Mas, desse modo, não toma ores. Esse mundo constitui o céu de Cristo. Este ser que, em-
conhecimento da expansão vertical, que lhe escapa à percepção bora pareça, já não é mais humano foi Francisco de Assis; o
e com ela a conquista do volume, quer dizer, de uma dimensão momento sublime, da derradeira ruptura das órbitas terrenas e
superior. As duas atitudes em face da vida correspondem a du- do lançamento no infinito, se passou num incêndio de luz e
as posições e concepções totalmente diversas. O primeiro tipo amor, nos cimos do Monte Alverne.
revela-se muito pequeno, espiritualmente falando, para que Relatemos a singela história dos Fioretti, acrescentando à
não possa alojar-se comodamente na pequenina casa do corpo. parte já citada no volume Ascese Mística (Cap. XV – Segunda
Sua única ambição consiste em ampliá-la, de modo a construir Parte) os precedentes do maravilhoso acontecimento:
para si mesmo prisão cada vez mais bela e vasta, anexando-lhe ―...aproximava-se a Festa da Cruz de setembro. Certa noite, na
todas aquelas dependências do corpo, chamadas posses, rique- hora em que se costuma rezar as matinas, frei Leão foi ter com
zas, honras, poder. O evoluído revela-se muito desenvolvido São Francisco e, tendo dito da cabeceira da ponte, como se cos-
espiritualmente para que não se sinta sufocar no ambiente ter- tumava: ‗Domine, labia mea aperies‘51, São Francisco não lhe
restre. Prova a sensação que sentiria um animal transformado respondeu. Frei Leão não voltou para trás, como São Francisco
em planta. Com efeito, a vida física, se a compararmos com a lhe ordenara, mas, com boa e santa intenção, atravessou a pon-
ilimitada liberdade de movimentos do espírito, poderá parecer, te, entrou-lhe devagar na cela e, não o encontrando, supôs esti-
a quem já a experimentou, como a imobilidade da árvore com- vesse ele na floresta ou, então, entregue à oração em algum lu-
parada com a agilidade dos animais. O evoluído prestes a sair gar. Saiu e, à luz do luar, foi procurando-o cuidadosamente na
da crisálida terrena, já tendo saboreado a vida em dimensões floresta. Finalmente, ouviu a voz de São Francisco e, aproxi-
superespaciais e supertemporais, sente de fato, nas dimensões mando-se, viu-o de joelhos, com o rosto e as mãos voltados pa-
exatas, os grilhões do corpo e dos limites impostos pelo plano ra o céu, a perguntar com grande fervor: ‗Quem sois, ó Deus,
evolutivo da matéria. Sente a angústia da vida terrena, tolera-a dulcíssimo senhor meu? E quem sou eu, vosso vilíssimo ser-
como expiação ou missão; não espontaneamente, mas por de- vo?‘. E repetia sempre as mesmas palavras, sem dizer mais na-
ver; seu íntimo impulso expansionista segue rumo vertical, não da. Por isso frei Leão ficou muito admirado, levantou os olhos e
tem em vista ampliar e enriquecer a prisão, mas sim libertar-se fitou o céu e viu vir descendo belíssimo e esplêndido facho de
dela. Não há outro sistema sério para resolver as dores da vida. fogo, que pousou sobre o corpo de São Francisco; da chama
Descobriu os truques da ilusão e não se deixa mais iludir. Já ouvia sair uma voz que falava com São Francisco, mas frei
sabe que os domínios humanos, na realidade, não passam de Leão não distinguia as palavras. Quando viu isso, julgando-se
servidão e, por isso, não se dispõe a consegui-los mais; reco- indigno de estar assim tão perto daquele santo lugar, onde se
nhece serem eles necessários para os primitivos, como meio de dava aquela admirável aparição, e temendo, além disso, ofender
experimentação, e compreende-lhes a função nesse plano; não a São Francisco e perturbar-lhe a consolação caso São Francis-
pode, porém, aceitá-los, pois executa trabalho completamente co lhe percebesse a presença, afastou-se silenciosamente e, fi-
diferente. É justo que, de acordo com sua capacidade, cada um cando de longe, esperava ver o fim de tudo aquilo. Olhando
maneje na vida os instrumentos a que mais se adapte. Aquele
51
que sabe, porém, dá a cada um deles o valor que merece. As- Senhor, abrirás meus lábios. (N. da E.)
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 257
atentamente, viu São Francisco estender três vezes as mãos na Depois de grande espaço de tempo e de colóquio particular, a
direção da flama; finalmente, depois de grande espaço de tem- admirável visão desfez-se, deixando o coração de São Francis-
po, viu a chama voltar para o céu. Então mexeu-se, e São Fran- co abrasado em vivo fogo de amor divino e imprimido-lhe na
cisco percebeu-lhe a presença por causa do barulho de seus pés carne maravilhosa imagem dos estigmas da Paixão de Cristo.
esmagando folhas, e disse-lhe que o esperasse e não se movesse Nos pés e nas mãos de São Francisco começaram a surgir os
do lugar. Então, frei Leão, obediente, ficou parado e esperou- horrendos sinais dos pregos, exatamente como a visão lhe mos-
o... São Francisco, aproximando-se, perguntou-lhe: ‗Quem és?‘. trara no corpo de Jesus crucificado, que lhe aparecera sob a
Frei Leão, tremendo, respondeu: ‗Sou frei Leão, meu pai!‘. E forma de serafim; e, assim como as mãos e os pés do serafim
São Francisco lhe disse: ‗Por que vieste até aqui, frei carneiri- apareciam com as marcas dos cravos, também as de São Fran-
nho? Não te disse eu que não me andasses espionando? Diz-me, cisco tinha impressa, nas mãos, nos pés e no lado, a imagem e
em nome da santa obediência, se viste ou ouviste alguma coi- semelhança de Cristo crucificado. Embora se empenhasse em
sa‘. Frei Leão respondeu: ‗Pai, ouvi-te falar e dizer muitas ve- esconder os gloriosos estigmas, tão nitidamente impressos em
zes: Quem sois, ó dulcíssimo Deus meu? E quem sou eu, verme sua carne, a necessidade obrigou-o a escolher frei Leão, o mais
vilíssimo e inútil servo vosso?‘, e em seguida lhe pediu devo- simples e puro dos frades, ao qual tudo revelou, deixando-o ver
tamente para explicar tais palavras, que não havia compreendi- e tocar aquelas santas chagas e enfaixá-las em trapos, para mi-
do. Então, vendo São Francisco que Deus concedera ao humil- tigar-lhes a dor e receber o sangue que delas saía. Finalmente,
de frei Leão, por sua simplicidade e pureza, a graça de contem- tendo São Francisco terminado a quaresma de São Miguel Ar-
plar algumas coisas, concordou em revelar-lhe e expor-lhe o canjo, dispôs-se por divina revelação a voltar para Santa Maria
que ele pedira, e falou assim: ‗Naquela flama que viste estava dos Anjos, como, juntamente com frei Leão, lhe era convenien-
Deus, falando-me sob aquela mesma aparência com que outrora te voltar. Assim, partiu e desceu o santo monte‖.
falara a Moisés... Mas toma cuidado, não andes espionando-me Isto nos contam as Fioretti, deixando os acontecimentos
por aí. Volta para a tua cela com a bênção de Deus e toma bem envoltos numa atmosfera de lenda e sonho. Que há de objetivo
conta de mim, pois, dentro de poucos dias, Deus fará tão gran- e real nesta narração? O fenômeno aqui é visto de longe, do
des e maravilhosas obras neste mesmo monte, que todos ficarão plano comum da vida humana; do supernormal não se veem
maravilhados; e fará, também, algumas coisas novas, que Ele senão efeitos físicos, aquilo que pode ser percebido pelo nor-
nunca fez em proveito de criatura alguma deste mundo...‘. Da- mal. Não chega até nós senão uma projeção dos fatos nos sen-
quele momento e daquele ponto em diante, São Francisco co- tidos. A história, depois, passou de boca em boca, e quem a
meçou a libar e a sentir mais abundantemente o dulçor da divi- narra não assistiu os acontecimentos, nem viu de perto qual-
na contemplação e das visitas divinas. Entre elas, logo depois, quer testemunho; somente frei Leão sabe alguma coisa. Não
uma preparatória da impressão dos estigmas. Foi assim. Na recebemos senão um pouco de luz vista de longe, através do
véspera da Festa da Cruz de setembro, estava São Francisco em espaço e do tempo, um reflexo filtrado pela psicologia dos nar-
oração na sua cela, quando o anjo do Senhor lhe apareceu e lhe radores. Para nos aproximarmos do fenômeno é necessário pe-
disse da parte de Deus: ‗Vim confortar-te e recomendar-te que netrá-lo, reencontrá-lo dentro de nós mesmos. Da redução por
te prepares e te disponhas, humildemente e com toda a paciên- nós percebida, devemos tentar alcançar o seu esplendor primi-
cia, para receber o que Deus quer fazer em ti‘. São Francisco tivo, revê-lo em sua realidade; devemos não somente observá-
respondeu: ‗Estou preparado para suportar com paciência tudo lo, mas procurar senti-lo e revivê-lo como realmente aconte-
quanto meu senhor queira fazer em mim‘, e, dito isto, o anjo ceu. Isto é possível pelos caminhos do espírito. O olho normal,
partiu. No dia seguinte, isto é, no dia da Cruz, São Francisco, que vê o exterior e não sabe penetrar até às realidades espiritu-
por ocasião das matinas, de madrugada, se pôs a orar diante da ais, não percebe senão indícios. Não temos aqui a história do
porta da cela, com o rosto voltado para o nascente; orou e, per- que realmente aconteceu, mas de uma parte desse fenômeno
manecendo por muito tempo em oração, começou a contemplar grandioso, que pôde se refletir na pequenez do olho comum.
devotamente a Paixão de Cristo e sua infinita caridade. Tanto Este não poderia perceber com clareza o supernormal, que,
cresciam nele o fervor e a devoção, que, por amor e compaixão, portanto, lhe aparece envolto em névoas de mistério, como al-
todo ele se transformava em Jesus. Estando assim inflamado go velado, perdido nas alturas do milagre. Para a comum per-
nessa contemplação, nessa manhã mesmo viu descer do céu um cepção concreta, o mundo espiritual desaparece no irreal.
serafim com seis resplendentes e flamejantes asas, que, voando Mesmo as vidas do Santo narram genericamente, sumariamen-
velozmente, aproximou-se de São Francisco ao ponto de este te, este momento, que não só é o ápice de sua perfeição como
poder discernir e ver perfeitamente haver nele a imagem dum o de toda a humanidade, em sua subida à procura de Deus e do
homem crucificado. (...) Estando imerso nessa admiração, foi- espírito. Momento crucial e decisivo da evolução, libertando o
lhe revelado pela aparição que a Divina Providência lhe pro- ser da animalidade humana, fuga ao mundo, às suas restrições,
porcionava aquela visão a fim de que compreendesse dever ao nosso modo de viver e sentir, para entrar numa fase de vida
transformar-se, não por martírio corporal, mas incendendo-se mais elevada, exaltação do amor até à divindade. O olho nor-
mentalmente, em imagem perfeita de Cristo crucificado. Duran- mal do historiador não vai além dos efeitos físicos, não penetra
te essa aparição admirável, todo o Monte Alverne parecia arder a substância, não pode, portanto, dar-nos a realidade destas ex-
em chamas esplêndidas, que, como o sol, iluminava os montes ceções. A história para no exterior, sendo-nos de pouca valia.
e os vales dos arredores; os pastores, que velavam por ali, ven- Por isso mesmo não pode dar-nos detalhes de coisas profun-
do o monte em chamas e tantas luzes em torno, ficaram com das, esfumando-se em lendas. No campo místico, milagroso,
muito medo, isso de acordo com o que mais tarde eles mesmos fora de nossa realidade, rodeado de luz, mas muito distante e
contaram aos frades, dizendo-lhes até que as chamas permane- irreal, o fenômeno foge à nossa percepção, tornando-se inaces-
ceram sobre o Monte Alverne pelo espaço de uma hora. Assim sível à nossa experiência, à nossa observação objetiva.
também, diante da claridade dessa luz, que resplendia nas jane- Realmente, não é nada fácil avizinhar-se de semelhantes fa-
las das estalagens da região, alguns muladeiros se levantaram tos. Por momentos, parece que o mesmo fenômeno, pudicamen-
na Romagna, crendo haver surgido o sol material, e carregaram te, mostra-se envolto em mistério, porque lhe repugna tomar
seus animais e, tendo-se posto a caminho, viram a referida luz forma material; parece que lhe seja impossível ou não lhe seja
apagar-se e aparecer o sol material. Na aparição serafínica, permitido apresentar-se claramente ao olho humano, sob a luz
Cristo manifestou-se e disse a São Francisco algo secreto e su- crua dos sentidos, e que, para ser encontrado, é preciso utilizar-
blime, que São Francisco jamais quis revelar a pessoa alguma... se mais a fé, do que a crítica histórica e científica. Sente-se que
258 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
o profano é justamente desprezado. A própria natureza do fe- aplicação lógica e fornecem explicação. O Cap. XXV deste vo-
nômeno o exige. Não é permitido ao olho vulgar, além da ho- lume, sobre o dualismo universal fenomênico, distingue duas
menagem que deve prestar à santidade, o direito de penetrar no vidas: a exterior e a interior, a material e a espiritual. Trata-se
sagrado retiro de mistério, onde se ouve a voz de Deus. Trata-se de dois mundos diversamente constituídos. O fenômeno do Al-
de coisas altas e sublimes, que se desfazem neste mundo de ma- verne pertence ao segundo. Vimos que este mundo é individua-
téria e de armas; existem e não existem, e, se nos aparecem, lizado e caracterizado por ritmo próprio, por uma forma de vi-
procuram e devem se esconder para a própria defesa, prestes a da. Vida que é expansão para o íntimo, introspectiva, intuitiva,
desaparecer no imponderável, horrorizadas pelo contato brutal ativa, espiritual, incorpórea, desenvolvida como qualidade, evo-
com a matéria terrena. Estes fenômenos, portanto, não podem, luída; ritmo de ondas curtas, alta frequência e potencial, de sin-
neste mundo, aparecer em plena luz. À maioria só é possível tonização noturna, azul, lunar, supersexual e supersensória; vi-
crer e venerar. Segue-se daí que as mentalidades racionais e ci- vida por tipo biológico solitário, silencioso, sofredor, sensitivo
entificas voltam-se para outras coisas, sentindo-se, por tudo is- e pacífico, negação do mundo. Tais as características dos fenô-
so, autorizadas a classificar o fenômeno entre os fatos da arte, menos espirituais, entre os quais, embora em nível infinitamen-
da lenda, do sonho e nada mais, chegando ao extremo de duvi- te superior, se inclui o fenômeno de Alverne. Segundo a lei do
dar de sua realidade objetiva, negando tudo materialistamente. dualismo, estamos no polo oposto ao ritmo e forma de vida ma-
Os fatos são bem diferentes. O fenômeno realmente existiu. terial da animalidade humana, cujas características são opostas.
É racional e cientificamente possível. Para afirmá-lo e demons- O não-ser no mundo da matéria estabelece no espírito o ser do
trá-lo, como o faremos, é necessário primeiramente tê-lo re- mundo imponderável. Eis então o que se nos apresenta de fato.
construído e sentido por meio da intuição e da fé, tê-lo vivido A visão não é sensória, exterior, mas interior: é contemplação.
interiormente, no espírito, para reduzi-lo aqui em forma racio- A vida vegetativa é mortificada por jejuns, renúncia, sofrimen-
nal e compreensível, porque o fenômeno, em sua profunda rea- tos. O ser vive de vida sutil, de notas agudas, penetrante, inten-
lidade, não pode fazer-se sentir ou ser narrado; como percepção sa; poder-se-ia dizer de alta voltagem, quase imaterializando-se
direta é incomunicável a espíritos comuns. Isto não significa em forma de energia radiante, constituída de ritmo vibratório. A
destruí-lo, mas reforçá-lo, já que sua realidade, de outro modo, exaltação vital está toda na expansão espiritual. A projeção di-
fugiria, sendo, portanto, facilmente negada. Achegar-se a ele nâmica do ser dirige-se para a substância, o absoluto, Deus. A
para melhor compreendê-lo não é irreverência. Assim, podere- forma, o relativo, as coisas terrenas estão superadas. O tipo bio-
mos analisá-lo e, analisando-o, explicá-lo, defini-lo, mostrando lógico já superou a fase da evolução humana, separando-se de
sua realidade objetiva, elevando-o assim a mais elevado signifi- nossa forma de existência e alcançando outra mais elevada. O
cado. Estudando sua estrutura íntima, não negamos nem diminu- ritmo da vida animal se transformou, através do longo caminho
ímos sua supernormalidade, antes a confirmamos. O prodígio da evolução, em ritmo de vida espiritual. O transformismo evo-
compreendido continua sendo prodígio, mesmo tornando-se-nos lutivo superou a fase humana, alcançando outra superior, mais
mais acessível e capaz de imitação. A intuição é compreensão e aproximada à divindade. Eis as características do fenômeno de
amor, não destruição; em vez de nos afastar, avizinha-nos desse Alverne e do seu protagonista.
modo espiritual onde se dão tais fenômenos. Trata-se de fazer Nossa pesquisa não o destrói; exalta-o. Tudo o que disse-
sentir o irreal como real, fazendo-o descer das alturas onde se mos neste volume nos mostra como ele verdadeiramente alcan-
encontra até este nosso mundo racional. E, se também esta pro- çou o limite supremo da evolução humana, estando aqui em seu
cura não tiver, por imperfeição de seu instrumento humano, a verdadeiro lugar, na conclusão deste tratado, no vértice da pi-
capacidade de conseguir o escopo desejado, ficará, contudo, râmide humana, no ponto supremo da evolução. Possui em sua
como tentativa honesta, feita com fé e em boa-fé, inspirada não mais legítima forma, embora em relação a seu tipo, as caracte-
por desejos de destruição, mas de construção espiritual. rísticas do evoluído que indicamos como meta dos esforços
Entramos no mundo da realidade supersensória, imponderá- humanos, como modelo do futuro tipo biológico. Esta conclu-
vel, situada no polo oposto da realidade sensória e material de são nos mostra São Francisco, neste momento, entrando triun-
nosso mundo terreno. Já falamos de São Francisco em diferen- fante nos umbrais de um mundo super-humano. O Alverne re-
tes fins e sentidos nos volumes As Noúres (Cap. IV – Os Gran- presenta precisamente um caso típico do fenômeno final da
des Inspirados) e Ascese Mística (Segunda Parte, Cap. XV – evolução humana, por isso foi estudado no fim destas conside-
Irmão Francisco). Para podermos nos avizinhar ainda mais de- rações. Vemos aqui o esgotamento da vida no plano físico (o
le, é necessário nova caminhada de fadiga e dor, de onde nas- organismo consumido pelas penitências) e a sua ressurreição no
ceu o pensamento destas páginas de conclusão. Somente após plano espiritual; a extinção do dinamismo animal pela deterio-
esta nova maturação, depois de estabelecidos e resolvidos no- ração e a sua ressurreição em forma radiante. Vemos São Fran-
vos quesitos, é possível encarar racionalmente tão complexo cisco alcançar um estado espiritual que representa o mais alto
problema, para o qual convergem tantos outros, presumindo ou- potencial suportável na fase da evolução humana, seu limite
tras tantas soluções menores. Podemos pormenorizar mais ain- supremo, além do qual a forma material se extingue. Chega-se
da, aplicando tudo isto a um caso real. Neste trabalho de caráter a este estado por etapas, pois a frequência de vibrações, o au-
sobretudo racional e de pesquisa, falamos presentemente ao mento de ondas e a obtenção de potencial elevado progridem
homem racional em particular, ao homem que não crê e não paralelamente, desde o pensamento concreto, que não sabe
sente, para fazer que também ele compreenda este raro e incrí- existir senão materializando-se em ação, às ondas cerebrais do
vel fenômeno vivido por São Francisco no Alverne, seu signifi- pensamento simples e comum, ao pensamento abstrato, à intui-
cado científico, evolutivo e biológico; e ainda para dar a nós ção do gênio, à oração sempre mais elevada até ao êxtase e uni-
mesmos base lógica aos arroubos de fé e afirmações místicas e ão espiritual com Deus. Trata-se de ondas cada vez mais rápi-
intuitivas desenvolvidas sobre este argumento em outros volu- das, portanto, mais penetrantes, mais poderosas, mais imateri-
mes. Ante tais fenômenos, poderemos não só crer e venerar, ais. Por fim, o espírito consegue a forma radiante, imaterializa-
chorar e amar, mas também pensar e compreender. O fenômeno da, independente da forma corporal.
do Alverne tem seu lugar e naturalmente se enquadra, também O enfraquecimento do organismo age, no presente caso,
ele, na filosofia dos fenômenos que vimos desenvolvendo em A como revelador da personalidade espiritual. As leis da fome e
Grande Síntese e nesta explanação. do amor (cf. História de um Homem, Cap. XXIII: ―O Evange-
É nestes capítulos conclusivos que se confirmam as teorias lho e o Mundo‖) já estão superadas. O amor, por fim, se desma-
precedentes, convergentes para este ponto, onde encontram terializou com funções puramente espirituais (cf. A Grande Sín-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 259
tese, Cap. LXXXII – ―A Evolução do Amor‖). Para aqui con- ser geradores de vibrações. O mundo do espírito, que se abre
vergem e aqui se aplicam as teorias expostas anteriormente. A para as alturas da evolução, isto é, em direção à divindade,
dor, transformada em perfeita alegria, cumpriu toda sua função acha-se deste lado do ser, e não do lado sensório exterior. Está
criadora e é parte integrante do fenômeno de transumanização dentro de nós, no íntimo, dirigido ao cerne das coisas e dos se-
do Santo. Acham-se fechadas as portas do vício, abrem-se as res, onde está a substância, o absoluto, o imutável, e não na pe-
portas da virtude, e o ser, impelido e guiado pela renúncia, cor- riferia, onde se encontra a forma, o relativo, o transitório. A
re para elas a expandir-se. O fruto do martírio já está maduro; o evolução é elaboração que, levada sempre mais para a profun-
espírito, afinal, depois de tantas lutas com a carne, triunfa; a vi- didade do ser, o faz despertar e viver sempre mais perto de
da, outrora mortificada, ressurge mais intensa. O processo cons- Deus. As percepções e manifestações espirituais vêm daí; a al-
trutivo-destruidor da evolução chega ao ápice de sua fase hu- ma as consegue segundo o grau de sutileza e transparência con-
mana. O fenômeno do Alverne confirma completamente todas seguido por seu invólucro material; a realidade excitante, neste
as nossas afirmações precedentes. O fato de havermos concebi- caso, está situada não no exterior, mas no interior, e a sensação
do o fenômeno espiritual como fenômeno igualmente biológico é o último produto de um esforço inverso ao precedente normal,
deu-lhe mais força, ao mesmo tempo que encontrou para ele isto é, como dissemos, de uma inversa percepção espiritual su-
uma explicação científica e racional. A maceração dos santos pernormal. Os termos deste caminho inverso percorrido são:
não é mais utopia ou crença, mas processo evolutivo, método espírito, cérebro, nervo ótico, retina. A fonte da corrente dinâ-
de imaterialização e espiritualização, isto é, impulso à degrada- mica excitadora da percepção não está mais no ambiente mate-
ção biológica, que é condição para a ressurreição espiritual no rial externo, mas no ambiente espiritual interno. Tratando-se de
imponderável, elemento indispensável ao aceleramento da fre- radiações espirituais, não podia estar em outro lugar. A sede na-
quência no ritmo da vibração e transformação do potencial im- tural dos fenômenos espirituais e de sua origem é precisamente
pulsionador da evolução. Sua meta é a harmonização na ordem o mundo interior, do espírito, mundo que se abre para a divin-
divina, e que harmonização maior com a criação e Deus que a dade, que está em nosso interior, no centro do universo, e não
realizada no Alverne? Cessou todo o barulho, a alma fundiu-se na periferia do ser. Somente o involuído, incapaz de sentir uma
em paz na vontade divina, e a criação, naquela noite sublime, realidade diferente de seu mundo físico, pode crer que estas
fez eco, em sua ordem material, à ordem espiritual, sintonizan- realidades sejam inconscientes e inexistentes unicamente por-
do-se e fundindo-se numa única harmonia. Para confirmar que escapam à sua percepção. No entanto, para quem consegue
quanto dissemos no Cap. X deste volume, ―O Problema do sentir profundamente, nada há de extraordinário. Não sabem
Mal‖, vejamos neste caso como o ser, quando chega a um vérti- todos que a mesma e solidíssima matéria, em sua essência, é
ce da evolução, alcança relativamente sua autodestruição, de- imponderável? A ciência já não nos mostrou que, tão logo pe-
pois de cumprir seu dever a serviço e para triunfo do bem. netramos na íntima essência das coisas, tudo se imaterializa?
Enquanto o Cap. XXV nos dá elementos para definir e clas- Imaterializar-se significa espiritualizar-se, passar da forma tran-
sificar o fenômeno do Alverne e as características biológicas do sitória à eterna substância, da ilusão à realidade, do relativo ao
ser que o vive, o Cap. XXVI, sobre o dualismo da vida, dá-nos absoluto, o que é o mesmo que caminhar para Deus.
a estrutura interior e funcional do mesmo fenômeno. Somente Eis, portanto, como aconteceu o fenômeno do Alverne. O
confrontando-o em relação à função orgânica do universo é que dinamismo originário é radiante, movido por estados vibrató-
poderemos compreendê-lo. Trata-se de um fenômeno de sinto- rios de substância imaterial adequada ao mundo espiritual. O
nização entre o humano, levado pela evolução até às portas do cérebro capta e registra, como se fora receptor radiofônico, esse
super-humano, e o divino. Para chegar a isto, o ser deve conse- dinamismo transmitido sem fio. Assim, a realidade espiritual se
guir uma forma de vida de ritmo vibratório tão sutil e poderoso, concretiza em imagem que, através do nervo ótico, é conduzida
que possa penetrar no âmago das coisas e, aí, harmonizar-se à retina e gera a percepção ótica. Obtém-se, portanto, sob forma
com a ordem interna da criação. Só o evoluído é capaz de cap- sensória, a equivalente expressão do imponderável, de outro
tar e perceber as radiações da realidade interior do espírito. Por- modo impossível de traduzir em termos de sensação. Obser-
tanto as vias de comunicação não são as normais, exteriores, vando os olhos do indivíduo inspirado (os de T. Neumann, por
sensórias, mas sim interiores e imateriais. Precisamente no já exemplo), sentimos que, apagados para o mundo, não veem
citado Cap. XXVI, sobre o dualismo vital, observamos o meca- coisa alguma da realidade exterior, mas contemplam, como
nismo destas comunicações por via interior com o mundo ima- verdadeiro vidente, vaga e profunda realidade. Já expusemos os
terial do espírito e mostramos sua realidade, tão objetiva quanto princípios do fenômeno e, até mesmo, já os aplicamos. O olho,
a realidade deste nosso mundo material. A percepção, nestes de fato, registra uma projeção, com resultados visuais, não ori-
casos, segue os canais de volta correspondentes, em sentido undos, porém, de realidade externa, mas de realidade interna; é
contrário aos canais normais de ida, percorrendo um caminho natural que os fenômenos espirituais, evolutivamente mais ele-
sensório que vai do interior para o exterior. Neste caso, os ór- vados, não possam ter sede e origem na periferia, no exterior,
gãos sensoriais são sujeitos a vibrações provenientes do interi- na forma, que é menos evoluída, mas apenas no centro, na parte
or, nada tirando à existência objetiva da realidade excitante das de dentro, na substância; é também natural que, por força do
percepções, de que resulta o fenômeno. E é natural que, quanto principio de dualidade, esses fenômenos se transmitam de ma-
mais a vida se muda de sua forma material em espiritual, tanto neira inversa à dos fenômenos materiais. Não se trata de aluci-
mais nela se normaliza esta nova forma de sensibilidade, pela nação nem de ilusão ótica. Nossos olhos, quando olham para
qual se substitui a percepção fisiológica direta e normal por dentro de nós, veem tão realmente como quando olham para fo-
uma percepção supernormal, inversa e espiritual. O processo é ra. Tudo se resume em saber olhar, em saber sentir as vibrações
facilitado, como já dissemos, pela deterioração física (degrada- do mundo espiritual e, principalmente, em possuir um mundo
ção biológica) e depende do grau de imaterialização (momento espiritual dentro de si mesmo. O próprio vácuo interior é que
destrutivo) e espiritualização (momento reconstrutivo) alcança- nos leva a acreditar na irrealidade desse mundo, supranormal
do pela evolução. Vimos como, no caso normal, as várias partes apenas à percepção do normal, que por isso lhe nega a existên-
do caminho, para a percepção visual, são: objeto externo, lente cia. Trata-se de um problema de potencial interior, de desen-
ocular, retina, nervo óptico, cérebro e espírito. Na última etapa, volvimento espiritual, de refinamento orgânico, de sensibiliza-
a corrente dinâmica deixa qualquer base física, imaterializando- ção conseguida por evolução. Se o fenômeno ocorrido no Mon-
se em forma radiante. Mas vimos que não só o mundo externo te Alverne constitui caso sublime e excepcional, é, no entanto,
mas também o interno e imponderável da personalidade, podem para alguns temperamentos evoluídos, suscetível de experimen-
260 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
tação, embora em grau e sob forma diversos. Para tanto, torna- to. Quando, porém, produz modificações no estado da matéria,
se necessário que sejam evoluídos, porém já vimos que, no o fenômeno torna-se domínio comum, principalmente se a alte-
mundo, domina o tipo oposto, além do que, na Terra, as opini- ração se revela permanente. Para os demais, não resta senão o
ões são em grande parte elaboradas pelo tipo involuído, para caminho da fé ou da prova, representado por esse último resul-
seu uso e consumo. Em face dessa psicologia, ninguém pode tado atingido no seu plano material. Relativamente a isso, ob-
sentir, compreender, nem admitir nada disso. É questão de adi- servemos que não se trata de materializações ectoplasmáticas,
antamento evolutivo. Torna-se necessário seguir e amar essa isto é, de novas formações em sentido mediúnico, mas de per-
realidade interior, buscá-la como um alimento e com ela viver cepções e projeções do imaterial por vias internas e de trans-
em estreito contato. É indispensável nos sintonizarmos com ela, formações operadas na matéria já existente. Os fenômenos
através das preces, aproximarmo-nos dela por desmaterializa- sempre se aproveitam da via de menor resistência, que, no caso
ção, à custa de sofrimento, destruindo em nós a animalidade do evoluído, é exatamente a via interior.
humana. O fenômeno que estamos analisando, nos oferece tudo A simpatia nos levou a escolher São Francisco, entre tantos
isso em grau elevado. Quando todas essas condições se verifi- outros, como tipo de evoluído, para nos determos apenas nesse
cam nesse grau de intensidade e elevação, o fenômeno pode setor particular das formas evolutivas. Mas sempre se trata, sem
adquirir tal potência, que o dinamismo radiante originário não dúvida, de ponto culminante, de homem que atinge a fase su-
chega apenas a transformar-se em visão, mas em fato objetivo, per-humana e, no momento crítico, faz chegar ao nosso mundo,
até mesmo no que diz respeito à realidade externa, como o ca- por seu intermédio, reflexos do mundo superior a que ele per-
so, por exemplo, da lesão muscular dos estigmas. Então, a ima- tence e que, embora sob tantas formas diversas, representa o fu-
gem espiritual interior não só se materializa sob a forma de turo da humanidade.
imagem ótica, mas consegue até mesmo impor-se às leis físicas
e orgânicas comuns e causar na carne alterações permanentes XXX. SÃO FRANCISCO NO MONTE ALVERNE
das células e tecidos. Já vimos como, relativamente à sua estru- (2a PARTE)52
tura íntima, a própria célula não passa de movimentos atômicos
e cargas elétricas. As formas exteriores constituem apenas a Depois de havermos racionalmente individualizado, em su-
ilusória roupagem, resultado desse dinamismo imaterial. Quan- as características, o fenômeno do Monte Alverne, segundo o
do reduzimos os fenômenos materiais e espirituais ao seu de- esquema por nós aqui traçado de sua estrutura, agora procure-
nominador comum, quer dizer, à sua estrutura cinética, então mos compreender e reviver, espiritualmente, esse grande acon-
compreendemos facilmente essas concomitâncias e correspon- tecimento, na moldura em que a história o enquadrou.
dências. Os efeitos verificados no fenômeno do Monte Alverne Quem já subiu até ao alto do Monte Alverne, em Casenti-
mostram o elevado grau de potência radiante da fonte transmis- no, e visitou a Capela dos Estigmas terá lido a inscrição cen-
sora e a enorme capacidade sensitiva do organismo receptor. tral: ―Signati, Domini, hic servum Tuum Franciscum, Signis
O fenômeno é, pois, perfeitamente possível e se verifica de Redemptionis nostrae‖53. Esse é o lugar em que Cristo apare-
acordo com as qualidades do indivíduo receptor. Quem não as ceu a Francisco e este recebeu os estigmas. Para baixo, a rocha
possui não percebe coisíssima alguma. As radiações mais po- abre-se num abismo; subindo em direção do pico e da floresta,
derosas podem estar-lhe ao lado e até mesmo envolvê-lo com- encontra-se logo a gruta de frei Leão, o único companheiro do
pletamente: ele continua cego e surdo. A visão permanece na Santo, o único ser humano que, embora contrariando proibição
estreita dependência do estado e das qualidades individuais. O expressa, se aproximou dele e o observou naquele instante su-
indivíduo imaturo fica do lado de fora, não é admitido a parti- premo. Por isso, entre tantos frades, é escolhido para curar as
cipar do fenômeno; sua visão exclusivamente exterior, não pe- chagas dos estigmas. O grande acontecimento deu-se em 1224,
netra na intimidade das coisas. Para ver no íntimo das coisas, na madrugada de 14 de setembro, festa da exaltação da Cruz.
torna-se necessário, sem dúvida, olhar de dentro de si mesmo Em 30 de setembro, Francisco deixou o Alverne para sempre.
para o interior delas. Assim, a historieta se limita à verificação Acompanhado de frei Leão, ―carneirinho de Deus‖, desceu
dos efeitos, cujas causas, refugiando-se no miraculoso, lhe es- montado num burro até Santo Sepulcro, onde parou num le-
capam inteiramente. Frei Leão é o único que percebe alguma prosário e, por esse caminho, voltou para Porciúncula, onde
coisa. Vimos, pois, o fenômeno verificar-se no grau permitido morreu dois anos depois, em 4 de outubro de 1226 (―De Cristo
pela potência espiritual, pelo desenvolvimento, pela maturida- recebeu o último selo, que seus membros dois anos carrega-
de evolutiva e pela íntima sensibilização do sujeito. Tudo de- ram‖). Frei Leão, que celebrou missa, foi amigo e confessor de
pendeu apenas dos seus poderes de percepção nesse campo. Francisco, confidente e testemunha de numerosos aconteci-
Desse modo, a visão só é percebida pelos indivíduos maduros mentos espirituais íntimos, viu e tocou os estigmas e ―costu-
e, portanto, é fato estritamente pessoal. Para que outros a per- mava tirar os pensos de pano tintos de sangue para colocar no-
cebam, torna-se necessário que estejam nas mesmas condições vos‖. Em 1224, na época destes acontecimentos, ele e o Santo
de sintonização e recepção. Apenas proporcionalmente às suas ainda eram moços. Frei Leão teve mais tarde tempo de recor-
capacidades espirituais é que podem parte do fenômeno, como dar e meditar, pois morreu Beato em Assis, em 14 de novem-
frei Leão, ou então coisíssima alguma, como acontece na mai- bro de 1271, isto é, 45 anos mais tarde. Foi em Alverne que o
oria dos casos. Isso é muito natural, tratando-se, como se trata, Santo escreveu para ele a Bênção, na segunda quinzena de se-
de registrar, por meio das vias interiores, formas imateriais que tembro de 1224, logo depois de recebidos os estigmas. Escre-
não encontram símile nas formas materiais do mundo exterior. veu-a com a mão trespassada e sangrenta:
Para perceber as formas materiais, faz-se necessário possuir, e ―Benedicat tibi Dominus et custodiat te,
em bom estado de funcionamento, os correspondentes órgãos Ostendat faciem suam tibi et misereatur tui,
sensoriais; nada mais natural, portanto, que, para perceber a Convertat vultum suum ad te et det tibi pacem,
realidade espiritual, devamos possuir, e absolutamente livres, Dominus benedicat te, Frater Leo.‖54
as vias interiores que nos põem em comunicação com o lado
oposto, com o imponderável. O que pertence ao espírito não 52
Escrevi este capítulo em Santo Sepulcro (Arezzo), em frente do
podemos percebê-lo senão com recursos espirituais, isto é, Monte Alverne. (N. do A.)
com processos diametralmente opostos aos nossos processos 53
Assinalai, Senhor, este teu servo Francisco, com os sinais da nossa
sensoriais comuns. A projeção da realidade interior (projeção redenção.
54
ótica, acústica, tátil etc.) fica limitada exclusivamente ao sujei- Deus te abençoe e te guarde,
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 261
―Que o Senhor te abençoe, frei Leão‖. No autógrafo, o ajuda e proteção. A cela de Leão estava um pouco mais acima
nome de Leão está dividido pelo Tau ou cruz, sigla de Fran- da Rocha onde Francisco orava. Mergulhado no profundo si-
cisco, e essa palavra está dividida bem no meio para indicar, lêncio do céu e da terra, imerso na infinita paz da noite, Leão
na fusão dos dois nomes, a estreita união das duas almas. esperava. Não se ouvia o menor ruído. As tempestades do espí-
Mais tarde, frei Leão de próprio punho acrescentou, em letras rito não encontram eco na matéria. Porém fervorosa prece
vermelhas bem pequenas: ―Beatus Franciscus scripsit manu abrasava-lhe a alma. Que insuportável desejo de aproximar-se,
sua istam benedictionem mihi frati Leoni‖. 55 A Bênção está de compreender, de imitar! Que atração e que temor! A espiri-
escrita numa folha de papel pequena. Frei Leão, enquanto vi- tualidade de Francisco causava-lhe medo; naquele momento e
vo, sempre a trouxe consigo. naquele lugar, causavam-lhe vertigem a misteriosa proximida-
Relativamente à manifestação exterior e sensorial, nada se de de Deus, o contato com o infinito, a sensação do sublime. E
pode acrescentar à belíssima história dos Fioretti. Que aconte- o amigo estava quase a precipitar-se naquele abismo de potên-
ce, porém, no interior dela, na intimidade do fenômeno? Frei cia e de mistério, que o fazia tremer. Estava de espírito suspen-
Leão tenta acostumar-se a essa outra realidade, penetrando-a so, jungido a afetuosa angústia pela sorte do Santo, temia pela
por meio dos sentidos e da fé. E volta a ver a flama e a ouvir a vida do querido ―pai‖, que, refugiando-se no desconhecido e
voz que vem de dentro dela; não consegue, porém, entender desaparecendo na vertigem dos céus, para ele se tornava ina-
nem uma palavra. Sua percepção interior não consegue mais do tingível. Tinha medo do sublime e também temia pelo Santo,
que isso. Mas intui o resto e fica de lado, reverentemente. En- que poderia queimar-se inteiramente no divino incêndio. Exa-
tão, o amigo Francisco, que entendeu tudo, conta mais tarde tu- minando-se interiormente, fica triste por não poder segui-lo e,
do quanto Leão não pôde ouvir. Só o amor e a fé podiam indu- incapaz de progredir para o alto, ser obrigado a permanecer no
zi-lo a isso. Porque, de repente, Francisco se torna reservado e sopé da montanha da santidade, ficando sozinho na Terra, em
procura disfarçar, por humildade, reverência, temor e por causa meio à própria miséria. E chora com pena de si mesmo. Mas,
do pudor de que sempre se reveste o sublime. Nesses momen- logo em seguida, se esquece de si e pensa no amigo, pensa na
tos, sentimos necessidade de estar sozinhos com Deus. Então, sua grande missão daquele instante e quer continuar vivendo
ordena de novo a frei Leão que não ande espionando e pede-lhe apenas para executá-la. E transborda de alegria por seu triunfo
que tome cuidado com ele, pois sabe o incêndio espiritual que no mundo divino. Mas esse mundo divino, de que o amigo se
vai lavrar-lhe no corpo. Francisco percebe a aproximação do apodera, com seu peso, magnitude e poder, volta mais uma vez
incêndio. Já o envolvem línguas de fogo que saem do incêndio, a esmagá-lo, a esmagar o pobre frei Leão, que se amedronta
antecipando-o e preparando-o. E Francisco ouve dentro de si ainda mais. E se amedronta principalmente por causa de seu
um anjo de Deus, advertindo-o do que está para acontecer. No amado amigo, sobre quem recai todo o peso do infinito, daque-
dia seguinte é a Festa da Cruz de setembro. E agora, a história la imensidade esmagadora em que a alma se perde. Por isso,
dos Fioretti não é mais tão minuciosa e se torna vertiginosa, le- escuta, reza, alegra-se, extravia-se, crê e espera. Pequena tem-
vando-nos de um golpe ao momento em que, naquela madruga- pestade, reflexo da terrível tempestade que se apodera do San-
da, o fenômeno se processou, de modo a ser percebido até to. Além disso, Leão ignora. Tomado de medo, admira de lon-
mesmo pelo homem normal. E nada mais nos diz. Que aconte- ge a para ele inatingível santidade do amigo; intui, porém não
ceu durante aquela noite, no extremo oposto do fenômeno, no compreende tão incomuns colóquios com Deus. Não podemos,
seu lado espiritual? Quais os derradeiros estágios que o torna- portanto, ver a substância do fenômeno através dos olhos de
ram possível? O fenômeno já vinha amadurecendo lentamente, frei Leão, ainda fechados naquele momento. Apenas mais tar-
durante toda a vida do Santo, desde que começou a ouvir ―vo- de, depois da morte do Santo, é que vão abrir-se, contemplan-
zes‖ em São Damiano; a maturação se acelera intensamente no do os divinos crepúsculos de Assis, através da saudade que
Monte Alverne, durante os dias precedentes, e, embora atingis- sentia por Francisco, defendendo-lhe as ideias, amando-o e
se o clímax pouco antes da alvorada, o fenômeno tinha-se pro- chorando-o. Aí então é que, meditando sobre o que ouvira da
cessado com intensidade durante a noite, nos seus claros- boca do amigo, se maturará até ao ponto de compreendê-lo
escuros e contrastes de forças. Acompanhemos até ao ponto perfeitamente. Para nós, porém, a compreensão do fenômeno
maior da curva o ciclo de sua maturação. ainda permanece na sombra.
Observemos. Francisco está na rocha dos estigmas. Frei Francisco contemplara demoradamente, na véspera, o suave
Leão está um pouco afastado, mais para cima, em sua cela. crepúsculo. E, sem dúvida, verdadeira véspera de batalha havia
Embora não possa ver muito bem no meio daquelas pedras e sido a jornada anterior, pois, na vida, tudo é luta, sobretudo a
galhos de árvore, tão perto está, que pode ouvir tudo. Perma- conquista espiritual. A noite precedente fora consumida no fogo
nece acordado, procurando ver, mas, por obediência, não ousa devorador da oração, porque o paroxismo do amor realmente é
aproximar-se. Procura estar atento ao menor ruído, porque, se voraz. Francisco sentia que estava para chegar ao zênite de sua
não deve andar observando, tem de, no entanto, proteger o vida, ao momento crítico da última separação da Terra. Quem
Santo. ―Tome bem conta de mim, porque dentro de poucos di- sempre foi a aplicação viva do evangelho, está maduro para se
as Deus fará grandes maravilhas neste monte...‖. Tinha-lhe si- desligar de qualquer forma terrena de vida. Mas, para aí chegar,
do, pois, confiada a guarda do amigo. Discreto, afastado, como quanto caminho! Antes de ousar lançar olhares a um futuro ma-
demonstração de respeito, e ao mesmo tempo próximo, por ravilhoso, ele hesitava, recordando o passado. Nas primeiras
força do amor, estava pronto para, se necessário, acudir em seu horas da noite, antes de afrontar sua ressurreição na divindade,
socorro. Ambos estavam esperando que, a qualquer momento, apresentava-se diante dele seu passado humano, cheio de fadi-
acontecesse algo de extraordinário. Francisco estava mais em- gas e sofrimentos. Quanto caminho de São Damiano ao Monte
baixo, mais afastado do Monte e mais isolado da terra, em ci- Alverne! Revivendo todas estas coisas, enorme cansaço pare-
ma da rocha vertical dos estigmas, guardado de perto pelo afe- cia esmagá-lo; sua vida física agonizava e, agonizando, chora-
to do amigo, que, até nesse momento supremo, lhe servia de va sua destruição, oprimindo-o com seu pranto. Seu corpo ain-
da jovem, embora subjugado, sofria derradeira tentação: a tris-
Mostre a ti sua face e compadeça-se de ti,
teza de não ter vivido para si, de não poder mais viver. Esvazi-
Incline para ti seu rosto e te dê paz, ado do espírito, tornava-se mais sutil a inutilidade do sacrifí-
O Senhor te abençoe Frei Leão. cio. ―Senhor, não me compreenderão! Não me compreenderão,
55
O Beato Francisco escreveu com sua própria mão esta benção para como não nos compreenderam!‖. As forças do mal assaltaram-
mim, Frei Leão. no então no ponto mais alto e precioso de sua vida: sua missão
262 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
de santo. Talvez um assobio sinistro tenha soado a seus ouvi- les adjacentes como se fora o próprio sol. A chama continuou
dos: ―é inútil teu amor, tua paixão. Cumular-te-ão de louvores, visível (portanto era ainda noite) por mais de uma hora (antes
mas a traição não tardará‖. E Francisco, como Jesus no Ge- do dia); tanto que muladeiros que se dirigiam para a Romanha
tsêmane, certamente chorou pela incompreensão, reformas, foram despertados pela luz nos albergues, levantaram-se, car-
traições e adaptações que haveriam de submeter a sua obra, pa- regaram seus animais e puseram-se a caminho. Só então viram
ra reduzi-la a nada. Seu ânimo foi tomado de profunda tristeza que a luz se extinguia e se levantava o verdadeiro sol. Por sua
e mortal abatimento, como se lhe pusessem uma mordaça, su- própria lei e pelas condições das radiações ambientes, o fenô-
cumbindo momentaneamente. Junto à agonia física, a agonia meno só podia acontecer neste momento, antes da aurora.
espiritual. Nas primeiras horas da noite, deve ter travado tre- Trata-se de fenômeno de harmonização com a divindade,
menda luta contra as trevas e o mal. onde a sintonização do sujeito receptor com a fonte transmisso-
Em tais fenômenos há ritmo de períodos característicos e ra deve ser acompanhada e fortalecida de radiações circunstan-
fases opostas em equilíbrio. Assim como para Cristo, antes de tes, cuja contribuição é igualmente indispensável. Para isso
seu martírio físico no Gólgota, houve, na noite precedente, o concorrem não só fatores espirituais, como também condições
martírio moral do Getsêmane; também com Francisco, antes de especiais de dinamismo ambiente, porque se trata de universal
sua crucificação pelos estigmas, houve certamente uma crucifi- orquestração de forças, e forças de todo tipo. É inadmissível
cação de dor no espírito. Sintonia lógica entre fenômenos seme- qualquer dissonância, seja nas alturas, seja nas profundezas.
lhantes. A tentação noturna é a contraparte, a primeira metade Deus é harmonia, ordem suprema, e sua manifestação não age
do fenômeno, negativa, em oposição a seu segundo momento, senão em atmosfera de harmonia e ordem perfeitas. É necessá-
positivo, o triunfo do espírito. O mal, a negação, teve seu turno rio, além da hora apropriada, a atmosfera pura das altas monta-
como condição e preparação do bem, a afirmação. Francisco, nhas, a paz dos bosques, a vastidão dos espaços, o céu límpido
portanto, para chegar à união com Cristo, devia naturalmente e estrelado, o silêncio, a solidão. Para se dar a harmonização
reviver-lhe as dores morais do Getsêmane antes de reviver-lhe que constitui o fenômeno, é preciso não só a sintonização do
o sofrimento físico da crucificação. Foi permitido ao mal que sujeito humano com Deus, mas de todas as criaturas que o ro-
vencesse por momentos. O contraste entre as forças involuídas deiam, e as forças da matéria e da vida são, também elas, cria-
da matéria e as outras forças do espírito tornava-se cada vez turas de Deus. Recordemos que tudo vibra, que todo ser, toda
mais violento na fase final da luta. Antes de definitivamente forma, mesmo material, desprende de seu íntimo radiações que
triunfar na luz, foi desferido o assalto mais forte das trevas. An- são vida, expressão do pensamento, da potência e da presença
tes de conseguir sua perfeita sintonização com as supremas de Deus. Deus está em todas as coisas. As vozes da natureza
harmonias do divino, antes de poder unir-se a Deus na harmo- nos falam d‘Ele. Atrás da aparência, toda forma é efeito de uma
nia de um íntimo acordo de todas as criaturas e forças irmãs, sua íntima substância imaterial, que a mantém em vida pela
Francisco certamente teve que atravessar, na escuridão da noite, continua reconstituição e pertence ao mundo espiritual, trazen-
a tempestade de ruídos e dissonâncias desencadeada pelo cho- do um traço, embora mínimo, da face de Deus. Só assim, con-
que caótico de forças involuídas, desarmônicas, ainda não dis- templando essa face interior da natureza, é que poderemos nos
ciplinadas na ordem superior. No Alverne, não seria novidade aproximar dele. Aqui se revelou esta forma interior, só percebi-
para o Santo se as forças do mal destruíssem o Monte, fazendo da por espíritos amadurecidos. Por isso Francisco era capaz de
precipitar suas pedras. As primeiras horas da noite, as mais tris- ouvir em todas as coisas, forças e criaturas, a voz de Deus pre-
tes e profundas, eram as mais próprias para semelhantes assal- sente. E, no alto do Monte Alverne, naquela hora, cada ser, ca-
tos; mas, às primeiras horas da manhã, a vitória já era certa. da coisa, árvores, rochas, pássaros e estrelas, ofereceu reverente
O ritmo da vida é duplo e inverso, diurno e noturno, material a homenagem de sua contribuição. A criação assistiu, vibrou,
e espiritual. Já vimos suas características. As primeiras horas da ofertou-se, acompanhou com sua íntima presença e perfeita
noite trazem consigo os últimos e mais profundos ecos das horas harmonia as núpcias da criatura com o Criador. Não foi unica-
do dia, ressentindo-se de sua proximidade e retardando-se, en- mente uma oferta cega, insensível, mas verdadeira resposta à
quanto, à meia noite, o ritmo se inverte até à manhã, cuja espiri- participação, donde podia nascer unicamente verdadeira sinto-
tualidade, por sua vez, se retarda até às primeiras horas do dia. nia, acordes livres e perfeitos. Deus está em todas as coisas,
Tal ritmo acha-se deslocado em relação ao ritmo da luz. As pri- como ordem, e como tal se manifesta. Não pode, portanto, fa-
meiras horas da tarde parecem carregar o peso de toda a escória lar-nos, nem poderemos subir até Ele, se a harmonia não for
da vida física diurna, dos encontros e asperezas da luta material. perfeita. Para que Francisco pudesse sentir a presença de Deus,
O mundo diurno é de expansão exterior, de sintonização solar, era preciso estar em harmonia com a natureza, e ao contrário.
vermelha, sensual e sensória, material e animal, de ondas longas, Pois qualquer dissonância nos afasta do íntimo das coisas, ao
baixa frequência, notas profundas, e baixo potencial em face do qual só poderemos chegar com a perfeita harmonia.
espírito. É o mundo do involuído: forte na carne, débil no espíri- O fenômeno só podia acontecer naquele lugar, naquela hora,
to. Também aqui, este momento do ritmo vital presume e espera com aquele homem. Isto está no íntimo da criação. São estas as
seu momento oposto, dado pelo poder do espírito. regras musicais da orquestração que origina tais acontecimen-
Gradativamente, porém, a tempestade do mal se acalma, tos. Era necessária a transparência matutina de sutil atmosfera
para e passa. É na segunda metade da noite que, superada sua que não obstaculizasse ou absorvesse as radiações provenientes
fase negativa, se inicia a fase positiva do fenômeno. Esgota-se tanto da terra como do céu, radiações telúricas e estelares. Era
e cala-se a vida material, revivendo no imponderável. Entra- necessária também a doce estação de setembro, quando o sol é
mos no período de reconstrução da frequência de onda, do po- oblíquo, o calor do estio calmo em suas primeiras quenturas ou-
tencial, em seu período espiritual. Vimos suas características. tonais, quando se aquietou o fervor estivo da vida; estação em
É uma vida sutil, imaterializada, interior, vigorosa, penetrante, que a exaltação da parte física, ao contrário da espiritual, dimi-
de ondas curtas, alta frequência e grande potencial, de notas nui de ritmo e se esvai. O princípio de harmonia e sintonia exi-
agudas e radiações noturnas, violetas, lunares. As condições gia manhã tranquila, límpida, diáfana. O perfeito equilíbrio das
ambientes, que lhe são relativas e harmônicas, acentuam-se pe- forças primordiais permitiria à natureza entoar a nota funda-
la aurora, depois do que tendem novamente a inverter-se na fa- mental da sinfonia, elevando ao redor do fenômeno, em perfeita
se diurna. Vemos nos Fioretti que o fenômeno aconteceu mais consonância, um fundo musical harmonioso, que a faria vibrar
ou menos uma hora antes do nascer do sol, e que o Monte Al- qual caixa de ressonância, a fim de nela apoiar e elevar a har-
verne resplandecia pela chama que iluminava os montes e va- monia muito mais sutil do fenômeno místico.
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 263
Do mesmo modo, eram indispensáveis as condições particu- voz não chegava ao pico, nem perturbava aquela paz divina.
lares em que se encontrava o sujeito, isto é, seu estado de com- Mais longe ainda se perdia o ribombar seco da voz cavernosa do
pleto esgotamento físico, de maceração orgânica, que eleva o mal. Ele, como toda criatura, de acordo com sua natureza no
potencial de vida do espírito, estado de degradação do dina- equilíbrio entre as forças do universo, também estava em seu lu-
mismo vegetativo, que ajuda sua transformação em dinamismo gar, para confirmar, e não para violar a ordem divina. O mal, lá
espiritual. Enfim, era preciso o elemento fundamental: o ho- em baixo, revolvia-se num mar de trevas. Do alto, do ilimitado
mem; um homem que tivesse conseguido, por longa prepara- resplandecer das estrelas, chovia sobre a terra uma luz indecisa.
ção, a maturidade; capaz de suportar e superar, diante de Deus, Era uma radiação difusa e penetrante, tremor agudíssimo do
a hora critica da revolução biológica, lançando-se como um bó- éter, acariciando os seres, por toda parte transmitindo seu ritmo
lido no mundo do espírito e saindo para sempre da órbita das a toda criatura; vibrando de alta frequência, quase espiritual, tri-
trajetórias terrestres. Era preciso que este homem, no extremo nado agudíssimo, constante, sutil. Paz: cantavam as estrelas,
do sacrifício, no vértice do amor, abrisse os braços para Deus e obedecendo à ordem divina. Esta a orquestração do universo que
a ele se atirasse ardente de fé e louco de paixão. acompanhava o desenrolar-se do fenômeno; viva em cada nota,
Era noite alta, e parecia que se tornara imóvel antes de se feita de conceitos, de forças, de formas, feita do pensamento e
destruir no dia. Nos dois horizontes opostos, o crepúsculo e a poder de Deus, que tudo movimenta e vivifica. Sobre esse fundo
aurora calavam-se. A luz solar que, neste hemisfério, é quente, de tão imensa sinfonia vibrava a alma do Santo, respondendo às
rósea, viva, direta, estava agora envolta em sombras. Difundi- notas graves das criaturas irmãs que com ele cantavam em coro.
do pelo céu, somente um pálido reflexo de miríades de estre- Por sua vez, elas respondiam numa única música que, em sínte-
las, luz tão diferente, fria, argêntea, sutil, imaterial. A mais se, dizia: Deus. Assim, bem de longe, através da criação, teve
humilde e calma sinfonia noturna sucedeu à grande sinfonia do começo o colóquio entre Francisco e o Criador.
dia. Harmonia inversa, em tom menor, solitária e melancólica, Era o último dia da lunação; ia surgir a lua nova, que, por-
de expectativa e meditação. Eis que a vida não mais se lança tanto, nesse momento não aparecia no firmamento 56. A noite
ao exterior para se expandir e crescer, mas se recolhe em si pa- navegava triunfante para o momento de sua mais intensa espiri-
ra se compreender. Durante a noite, a vida renasce inversa, en- tualidade. A música universal seguia em diversas alturas a espi-
volta em sonhos; toda nota de luz, de som, de forma, revive ritualização da hora e a tensão cada vez mais crescente da alma
aveludada em vozes delicadas, que refletem o dia, suavizadas de Francisco, num crescendo de harmonia e perfeição. Vibra-
por transparências irreais, espiritualizadas em contornos inde- ções e acordes sucediam-se em planos sempre mais elevados,
finidos, vagas, submissas, sutis como um eco de acordes dis- cada vez mais claros e puros. Ele, o mais perfeito dos seres, o
tantes. É a hora em que o universo cessa de falar materialmen- mais nobre, o mais vizinho a Deus, confortado pelo amor que
te, do exterior, e passa a falar espiritualmente, de suas profun- espalhava e que agora lhe era restituído, rodeado pela natureza
dezas. Olha-nos então com seu olhar interior, que não vê a ajoelhada em veneração, entoava, seguido por toda a orquestra,
forma, mas o mistério de suas causas, observa nosso interior e seu mais sublime canto. Parecia guiar a marcha ascensional da
nos convida à introspecção. Foi em meio a esta imprecisão de vida. E tudo, em perfeita harmonia, progredia, em ritmo cada
formas, neste supremo silêncio da ilusão humana, que o espíri- vez mais vivo e poderoso, para a aurora, o incêndio. Ao mesmo
to preparado de Francisco podia, cantando as criaturas, recon- tempo que o ritmo aumentava de potencial, a respiração torna-
quistar a corrente de manifestação divina até chegar à sensação va-se ofegante, suspensa de enorme tensão, temendo um cho-
de Deus. Sua alma ouvia as infinitas vozes da criação, abria-se que. Parecia que a terra se inflava e se erguia para seguir o San-
como flor ao sol da manhã, ao mesmo tempo que ao redor co- to em seu arrojo divino, que parecia querer arrastar consigo to-
meçava, mais límpida e sutil, a sinfonia do universo, abriam-se dos os seres para Deus e abraçar em seus braços abertos todas
os céus e do alto chovia luz espiritual. Na diáfana imensidão as criaturas irmãs, incendiando-as em sua divina paixão de su-
da noite desapareceram os horizontes. A terra não era mais ter- bir. Estas pareciam querer unir-se ao arauto da vida, seu men-
ra. Do alto do Alverne parecia infinda vastidão, sem limites sageiro perante Deus, e impeli-lo a subir ainda mais alto, até ao
como o céu, e com ele tão idêntico, que era uma única e indi- trono do Eterno, para levar até lá suas vozes e para que, lá, o
visível imensidade. O céu e a terra eram então a imagem do in- Santo recebesse o último selo de sua missão. A vida parecia ati-
finito. No alto, na vertigem do azul, abriam-se os misteriosos rar-se alegremente à subida, para matar sua sede de sublime. O
abismos das estrelas, espaços sem limites, onde os olhos e a fenômeno já havia começado e devia cumprir-se até o fim. Ca-
mente se perdem. Deus é ainda mais profundo e distante, da minuto acelerava-lhe o ritmo. Francisco tem atrás de si o
mesmo estando tão perto; a alma o encontra quando está para acordo universal das forças que o estimulam e, diante de si,
se perder. A visão dos céus se mostra a nossos olhos como a Deus, que o atrai. Não pode mais voltar. Não é mais dono da si-
visão de Deus: parece cair no nada, e aí encontramos tudo. tuação. Deve aceitá-la humildemente de Deus. Cairá inevita-
Francisco, de pé sobre a rocha, de braços abertos, contem- velmente no incêndio, que se alastrará pelo monte.
plava. Deixava-se acompanhar e guiar pela voz de todas as cria- A história dos Fioretti, como o evangelho, não podia ser in-
turas irmãs para o Criador comum. A maré imensa das radiações ventada. Os dois livros pressupõe e fazem sentir, na simplicida-
de todas as coisas parecia elevar-se com ele para Deus, harmo- de de sua história, um profundo conhecimento dos fatos espiri-
nizando-se em uma orquestração cada vez mais doce e espiritu- tuais, que não podem ser improvisados nem inventados pela al-
al. Cada ser era uma nota falando-lhe de Deus. Tudo falava à ma do povo. O narrador dos Fioretti fica, na ingênua simplici-
sua alma sensível, e ele tudo ouvia e compreendia. A vibração dade, fora do fenômeno, limitando-se a contar os fatos exterio-
mais profunda vinha da terra e subia como um trovão pelas ro- res. No entanto este modo de ver, tão material, coincide com sua
chas ásperas do monte. A relva emitia uma nota mais cheia, substância espiritual, com a profunda realidade do fenômeno.
mais vizinha da vida, majestosa, severa. Os pássaros, os insetos, Ora, a experiência comum das coisas terrestres não é suficiente
os outros animais adormecidos, as ervas, ressonavam ao redor, para fornecer-lhe elementos de semelhante história, que não pa-
numa respiração tranquila. Mais ao longe, na interminável des- rece, mas deixa transparecer tanta sabedoria. O modo como é es-
cida, nos montes, nos vales e planuras, as forças da vida repou- tabelecido e se desenvolve o fenômeno, a moldura que tão bem
savam em paz. Em paz, as criaturas abandonavam-se confiantes o cerca, a hora, o lugar, o homem, o comum, o prodigioso, o ma-
nos braços da sabedoria e providência da lei de Deus. A tempes-
tade do mundo, onde o homem se amedronta e se consome, es- 56
Tal fato foi depois confirmado por resposta do Observatório Astro-
tava longe, lá em baixo, nas cidades agitadas e cansadas. Sua nômico de Capodimonte (Nápoles). (N. do A.)
264 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
terial e o espiritual, tudo está perfeitamente equilibrado e, com clusão deste trabalho, que lhe serve de base, procuramos dele
os meios mais simples, com a espontaneidade das almas virgens, demonstrar, por meios científicos e racionais, a possibilidade e a
nos dá imediatamente o sentido da verdade. Francisco está sus- realidade, que a mesma ciência e razão às vezes negam. Procu-
penso no vértice de uma rocha, entre a terra e o céu, ao mesmo ramos reconstruí-lo pelo método da inspiração, isto é, por intui-
tempo só e acompanhado por todos os seres, com a alma aberta ção e sintonização noúricas. Procuramos restituí-lo à vida, para
a todas as vibrações do universo, diante de Deus, que, em alta que nos alimente, nos guie, nos arrebate, como fenômeno bioló-
voz, através de todas as criaturas, lhe diz: presente. Deus lhe fala gico que interessa à nossa evolução humana. Apresentamos São
por tudo que existe, pela organização funcional do universo, pe- Francisco no vértice da evolução humana, como um dos muitos
las harmonias da vida, pela alegria e pela dor, fala-lhe no fundo modelos de nosso futuro, para que alguém tente imitá-lo na me-
da alma, por toda a parte e sempre presente. Temos necessidade dida do possível. Temos necessidade de São Francisco, especi-
não só de um Deus que é causa transcendental e longínqua, mas almente hoje. Onde a ciência materialista nos iludiu prometen-
sobretudo deste Deus atual, imanente e presente. Doutra forma, do-nos uma riqueza traiçoeira, que nos empobreceu o espírito,
ficaremos órfãos e sós, sem esperança de ver algum dia o que São Francisco nos oferece a riqueza espiritual e a alegria, mes-
seja do rosto de Deus. Ele existe, e é preciso senti-lo no meio de mo numa vida pobre e simples. A ciência ainda não soube fazer
nós. Não é nem pode ser um pai inatingível, por si mesmo triun- tão grande descoberta: fazer os homens contentes com meios
fante nos céus, colocado numa distância insuperável. Assim é simplíssimos. Podem dizer: ―enganando-os com ilusões‖. Mas a
apenas para quem raciocina friamente, o que nos aproximaria civilização, o que fez para o tão esperado paraíso na Terra, que
muito pouco de Deus. Francisco o alcançou porque começou por está sempre para se realizar, senão traições? São Francisco nos
olhar na terra seus reflexos, servindo-se deles para subir até ensinou a libertarmo-nos de tantas das necessidades que nos es-
Deus pelos caminhos íntimos da fé; porque, para chegar ao Cri- cravizam, criadas pelo progresso para exploração; ensinou-nos
ador, passou por todas as suas manifestações nas criaturas. Al- (e em que condições!) a alegria perfeita que o mundo desconhe-
cançou-O porque seguiu mais os caminhos do coração que os da ce. Como se sentia rico com tão pouco; como nos sentimos po-
inteligência, e preferiu a imolação e o amor ao raciocínio. bres com tanta riqueza! A moderna ciência materialista jamais
Eis que se aproxima o momento supremo. Francisco come- conseguirá invenção semelhante: dar sensação de riqueza a
ça a rezar, voltado para o oriente. Sua querida Assis também es- quem vive pobremente. Quem destrói as aparentes utopias da fé
tá desse lado, onde logo o primeiro pressentimento vago da au- pode destruir valores morais inestimáveis, que são imenso poder
rora começaria a delinear o horizonte. A noite atingia sua hora de resistência. No céu e na terra existem muitas coisas que so-
mais espiritual, hora de sonhos alados, de luzes diáfanas e irre- mente são impossíveis aos ignorantes. Intuições supremas, que
ais, hora profunda de mistério e silêncio. Eis Francisco diante ultrapassam os limites de nossa miserável vida cotidiana, são in-
do fim supremo: Deus. Quantas etapas para aí chegar, quantas dispensáveis à vida de indivíduos e de povos, cumprindo há sé-
pequenas tentativas de sintonização em sua vida! Aproxima- culos sua função, apesar de todas as negações.
ções parciais foram concedidas em São Damião, em Greccio,
na ilha de Trasimeno, na Porciúncula, na lagoa de Veneza e em CONCLUSÃO
tantos outros lugares de solidão e beleza. Tinha sido preparado
por investida e contatos progressivos, até à perfeita sintoniza- O fecho deste livro representa novo trecho de caminho per-
ção com Deus. O invólucro físico de sua alma se sutilizava gra- corrido, mais uma pedra do edifício espiritual. Esta obra desen-
dativamente pela penitência, seu ser tornou-se mais sensível e, volveu também, como continuação e comentário de A Grande
por sua vez, preparado pelo jejum, pela oração, pela solidão e Síntese, a grande luta humana entre a luz e a sombra, o presente
pelo sacrifício. Eis que as forças do universo rodam diante de e o passado. Cada passo nosso, no estudo do contraste entre a te-
Francisco. Subiu a tal ponto, que as vê convergir para um único se e a antítese, foi caracterizando a síntese. Este trabalho consti-
centro e é capaz de ouvir a música paradisíaca de sua harmonia. tui novo desafio lançado ao mundo, não a esta ou àquela de suas
É a ordem das coisas que canta os louvores de Deus. Francisco pequenas divisões feitas à base de interesses, mas ao mundo to-
é arrebatado em êxtase, está fora de si de tanta alegria e tensão. do e à sua psicologia, aos seus valores, como antítese do reino
A grande orquestração do mundo vibra anunciando a chegada dos céus, da imponderável realidade do espírito. É desafio que o
da glória do Rei, que vem ao encontro de seu servo. Abrem-se mundo da justiça lança a todo o mundo da força. Longínqua e
os céus, o monte se incendeia, inundando a terra de luz. As humilde ressonância do evangelho, rebela-se, como ele, contra o
criaturas, imóveis, olham reverentes, prostradas mais abaixo, ao mundo e emprega na guerra as armas da paz. O evangelho, a que
redor, distantes, temendo tocar tão alta tensão, diante da qual nada podemos acrescentar ou tirar, constitui de fato o nosso fa-
sentem que suas formas se desfazem. No alto ficam dois únicos rol; e Cristo, que, com as armas do amor, desafiou a força bruta,
seres: Deus e Francisco. O universo é um grão de areia que se Cristo é para nós o modelo supremo. Roma não o entendeu, na-
funde e some. Não mais se vê o sol em seus reflexos infindos, turalmente; não o entenderam também as multidões apaixonadas
mas em seu real esplendor. À extrema alegria e tensão de espí- que o seguiam e talvez preferissem aclamá-lo como rei de um
rito, deve ter seguido na matéria terrível choque e sofrimento reino terrestre; nem mesmo o compreenderam os apóstolos, que
imenso. Mas, para o espírito, é felicidade naufragar e perder-se apenas esperavam vitórias materiais; não o compreende, final-
na infinita divindade. Tocamos o inexprimível, e as palavras mente, nossa época, divorciada do espírito. Desse modo, Cristo
faltam. Estamos no limite extremo do sublime. O próprio Santo viveu no meio da incompreensão dos que mais próximos esta-
contou tudo isto da melhor maneira: calando-se. vam d'Ele e do silêncio de seus contemporâneos, como ainda
Só nos é possível olhar de longe, como os muladeiros que hoje vive em meio da incompreensão e do silêncio dos nossos
iam à Romanha; olhar através da história, da lenda, da arte, da tempos. Ninguém Lhe ligou importância enquanto vivo. Roma
fé, porque nossas tentativas de reconstrução por intuições não estava plenamente satisfeita do próprio esplendor. O cérebro que
vão além. Aquele incêndio projetou na visão interior de Fran- dirigia o mundo todo nem de longe poderia suspeitar que um
cisco uma forma luminosa: Cristo. Mas o incêndio envolveu bárbaro obscuro, perdido lá nos confins de uma terra de escra-
também o corpo do Santo, que ficou marcado em sua carne pe- vos, estivesse lançando a semente, viva até hoje, da renovação
los sinais da Paixão. Pois é lei que a união não se pode alcançar do mundo. Quando Ele morreu, pensaram que Sua figura tinha
senão com a semelhança e a subida só é possível pela dor. desaparecido completamente e Sua instituição havia entrado em
Tudo isto será por alguns relegado como lenda ou fantasia. agonia. Mais tarde, porém, de um só golpe, inesperadamente,
Não podem admitir o fato. Colocando este fenômeno como con- Seu pensamento se propagou e conquistou o mundo todo, até
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 265
transformar-se em sinal de contradição na história da civilização ência. Neste livro, a questão religiosa do progresso espiritual
humana. Hoje, como ontem, e como amanhã, o mundo ou é a é também considerada como fase de evolução biológica, por
favor de Cristo ou contra Cristo. Indiferente é que ninguém pode isso o fenômeno moral continua verdadeiro, mesmo se enqua-
ficar. Ninguém pode ignorar-lhe ou destruir-lhe o pensamento. drado na ciência, que, assim, não fica destacada nem diferente
Está nas próprias raízes da vida, tem valor fundamental na reali- do evangelho, mas enquadrada nele. Por isso este livro faz o
dade biológica. Quem se espelha nesse pensamento, quem a ele que a ciência não pode, isto é, conforta moralmente a dor, até
adere, por uma questão de simples reflexo se engaja na luta apo- mesmo em termos racionais.
calíptica das ascensões humanas. Se a Grécia criou a beleza e a Apesar das várias tentativas de nivelamento a que hoje nos
sabedoria e Roma o direito, Cristo elevou o amor ao papel de inclinamos na busca da justiça social, os homens não são, não
força de coesão social, introduzindo no mundo conceito novo, podem ser e jamais serão iguais. A justiça é necessária, mas,
inédito e original, que se tornará a unidade de medida do pro- em razão da estrutura biológica do planeta, não nos pode ser
gresso humano. Quem, como nós, se ocupa principalmente dis- dada pela igualdade, pois, na Terra, a igualdade não correspon-
so, não pode deixar de tomar conhecimento d'Ele e seguir o ras- de à realidade e, por isso, é absurda e impõe-se coativamente. A
tro luminoso de Seu exemplo. humanidade, no entanto, compõe-se de seres de diversíssimo
Nossos tempos lembram aqueles em que Ele viveu. Enquan- grau evolutivo, que vão da besta ao anjo. Para o primeiro tipo, o
to o mundo romano, em pleno fastígio da força, se desfazia no ambiente terrestre representa o máximo de evolução e de aper-
ceticismo, o suave e humilde mundo cristão, amparado no po- feiçoamento biológico, de bem-estar e de felicidade; para o se-
der da fé, construía em silêncio. A história parece divertir-se gundo, o mínimo de tudo isso, apenas provações, verdadeiro in-
com seus personagens, destruindo os mais poderosos, exaltando ferno. Entre os dois extremos oscilam mil e um estados inter-
os mais humildes, demonstrando-nos obedecer a desígnios que mediários. Vivem, materialmente, lado a lado, confundidos,
não se identificam com os dos homens. Muitas vezes, até mes- ajudando-se e alternando-se no labor evolutivo, mas inconfun-
mo os mais espertos e astutos denotam grande cegueira em face díveis quanto à natureza, que permanece diferente, de modo a
dos acontecimentos futuros, e a história conduz governantes e permitir, mais tarde, a volta de cada um a seu lugar exato. Os
governados a situações inesperadas. Acontece que os fortes indivíduos adiantados, embora poucos, não estão nesta ou na-
tombam e os humildes triunfam, o mínimo se torna máximo e quela raça, nesta ou naquela nação, mas distribuem-se por toda
ao contrário, as mais sólidas construções desabam e as mais dé- parte, e seus objetivos são, acima de tudo, superterrenos. Os in-
beis continuam de pé. Enquanto o homem arquiteta planos, a divíduos evoluídos não constituem casta com o objetivo de do-
história, instável e repleta de surpresas, faz os acontecimentos minar neste mundo, nem raça nacional de finalidades imperia-
se desenvolverem de acordo com o plano diretivo por ela elabo- listas; pelo contrário, reconhecem-se à primeira vista e confra-
rado, bem diferente do formulado pela razão humana. Não po- ternizam-se onde quer que se encontrem e sua vida, finalmente,
deremos compreender esse plano interior sem antes entender o já se dirige para fora deste mundo, que eles superaram. Na Ter-
funcionamento orgânico do universo. Nenhuma orientação polí- ra, o tipo besta goza, o tipo anjo sofre; o primeiro destrói, o se-
tica, nenhuma filosofia e nenhuma interpretação da história atu- gundo cria; um ignora, o outro sabe; um pede, toma, prende-se,
am senão apenas em função desse conhecimento mais amplo. o outro dá e se desliga. São essas as verdadeiras diferenças de
Como existem dois planos históricos, um exterior e aparen- substância, que distinguem e separam, as únicas que têm valor.
te, outro interior e real, a história se desenvolve através de duas Neste livro, partimos do involuído e chegamos ao evoluído. O
espécies de acontecimentos: os exteriores, visíveis e ruidosos, problema coletivo ficou embaixo, nos primeiros degraus, por-
que todos acompanham e a história registra, e os interiores, in- que, desenvolvendo-se em extensão, não pode desenvolver-se
visíveis, silenciosos e subterrâneos, que as pessoas e a história em altura. Já vimos que, como é justo, quando o evoluído aca-
não veem senão quando finalmente se manifestam em frutos bou de sofrer no calvário do dever, de altruísmo e de dor, vai
concretos e maduros. Assim, os períodos de incubação e de para sempre embora deste mundo. Este fim constitui o objetivo
germinação, tão importantes quanto os de desenvolvimento e dos que têm longo caminho a percorrer e representa conforto
plenitude, passam despercebidos e permanecem secretos. A his- para quem está ansioso por atingi-lo.
tória é uma florescência de acontecimentos, dos quais não per- ―Coragem!‖, dizemos a quem sofre. Não superestimeis as
cebemos nem o intenso e íntimo trabalho preparatório, onde re- liberdades e os programas humanos; libertai-vos individual e
side seu significado, nem a calma subterrânea em que continu- definitivamente. O caminho da libertação existe sim. A conde-
amente se elaboram. E, desse modo, muitos fatos continuam nação não é eterna. Vós mesmos podeis empregar, em vosso
sem explicação lógica. Existe a conquista bélica, material, das próprio benefício, as leis da vida e transformar-vos, evoluindo.
terras, dos corpos e dos haveres, mas também existe a conquista O caminho livre, a única fuga possível do inferno terrestre,
pacífica, espiritual, das almas e dos valores morais. São estes os consiste precisamente na evolução. Não há outro. Na verdade,
dois extremos da história, seu aspecto visível e seu aspecto in- esse caminho subentende sofrimento e esforço, mortificação,
visível. Não apenas as multidões, mas até mesmo os próprios purificação e imaterialização; é árduo e difícil, mas o único se-
apóstolos, ao invés da expansão interior, no plano do espírito, guro e positivo. A evolução coletiva, em massa, é demasiado
conceberam a expansão exterior, no plano material. Cristo, po- lenta para os de mais boa vontade e muito simples para os mais
rém, esclareceu e retificou mais tarde, mostrando através de fa- adiantados. Quem quer concluí-la depressa deve abandonar a
tos que sabia vencer interiormente, apesar das aparências exte- corrente e agir sozinho. Esse caminho é a redenção ensinada
riores da derrota. Mostra-nos a história como podemos chegar à por Cristo. Por isso Ele disse:
afirmação sem as manifestações exteriores que a assinalam; cri- ―Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados.
ar e vencer em silêncio; conquistar também por meio de expan- ―Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, por-
são interior; e ir muito mais longe pelos caminhos pacíficos da que serão saciados.
convicção, que satisfaz, do que pelos caminhos bélicos da ação, ―Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, por-
que constrange. E, também nisso, obedecemos ao evangelho. que deles é o reino dos céus.
Mas o presente volume, que estamos concluindo, não tem ―Alegrai-vos e exultai, porque a vossa recompensa é grande
apenas significado espiritual, moral e social, mas também bio- no reino dos céus...‖ (Mateus, 5).
lógico. É, acima de tudo, construtivo; consegue explicar tudo, O evoluído, que entende e sofre, compreende o valor destas
sem negar coisa alguma; cria e relaciona, mas nada destrói; palavras. Sabe que a ressurreição só é possível depois da paixão
eis sua contribuição. Assim como respeitou a fé, respeita a ci- e que Cristo pôs em prática leis biológicas, demonstrando-lhes
266 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
a inexorabilidade. Não há outra porta para escapar à dor senão souros humanos, isto é, os excrementos da vida. O involuído,
essa estreita e difícil. O evoluído tem os olhos fixos no Ge- que crê tê-lo subjugado, roubou-lhe apenas as pedras do cárce-
tsêmane, fase de evolução biológica para todos. re, para com elas construir sua prisão; é um ludibriado, vítima
O problema final deste livro, depois de todos os outros, é a de sua própria ignorância. Tanto esforço para roubar de uma
salvação do evoluído. Há três tipos humanos predominantes (cf. vida apenas os despojos, a ele deixados pelo evoluído, que vai
A Grande Síntese, Cap. LXXVIII – ―Os Caminhos da Evolução para mundos melhores, carregado de riquezas bem diferentes.
Humana‖): A distância percorrida já é enorme, e o abismo que divide os
1) O tipo sensorial, que vive exteriormente nos sentidos; é o dois tipos não pode mais ser eliminado. A justiça divina existe,
selvagem, que forma grande parte até mesmo de povos civili- portanto, se há gozo para o pecador, haverá felicidade para o
zados. Sua fé e sua vida baseiam-se na força. justo. Lázaro e o rico avarento estarão eternamente distantes:
2) O tipo racional, que vive mais internamente, no cérebro; ―Abraão disse: (...) há entre nós e vós um grande abismo, de
é o cerebral, tipo que, embora muitas vezes constitua a classe maneira que os que querem passar daqui para vós não podem,
culta e dirigente, ainda continua egoísta, isto é, isolado e, em nem os daí passar para cá.‖ (Lucas, 16:26).
geral, desorientado. Sua fé e sua vida baseiam-se na astúcia. Dirigimos ao evoluído, ápice biológico, estas palavras de
3) O tipo intuitivo-espiritual, que vive ainda mais interna- conforto. A maior parte da humanidade ainda se encontra fora
mente, no espírito; é o evoluído, exceção biológica, sábio, al- de seu campo e destas derradeiras conclusões. É fatal, por jus-
truísta, irmanado a todos os outros seres do universo, enqua- tiça divina, que cada ser volte a seu lugar, segundo o próprio
drado no seu funcionamento orgânico, em que representa uma merecimento e valor.
parte e tem uma missão. Sua fé e sua vida baseiam-se na ho- Fechamos assim este volume. Este novo trabalho, salvo da
nestidade (cf. Cap. VI, deste volume – ―A Lei da Honestidade destruição da guerra, dos sofrimentos, das contrariedades, do
e do Merecimento‖). Esse tipo constitui o ponto nevrálgico abatimento físico e moral, está terminado. Se aprouver a Deus,
deste nosso livro. amanhã recomeçaremos. Tudo está nas mãos de Deus, tudo a
Cada tipo supera o outro pelo grau de evolução, bem como Ele pertence. Fazer de sua vontade nosso perfeito guia é a feli-
no progresso da vida interior, o que significa aumento gradual cidade máxima, porque nos leva pela alegria ou pelo sofrimen-
de potencial, vida cada vez mais intensa, criação de novas to, pela vida ou pela morte, ao nosso maior bem possível. Basta
formas, maior enquadramento e fusão nas forças biológicas e segui-la, satisfeitos e felizes.
cósmicas. O evoluído representa o super-homem, o tipo ideal, Amanhã, o esforço continuará ainda a traçar os aspectos in-
o resultado de experimentações terrestres, a meta biológica do finitos do mutável e multíplice no relativo; continuará a narrar
planeta. A ele, e não mais às massas de que falamos no início, outros acontecimentos misteriosos, para cavar novos sulcos
dirigimos esta conclusão. Em favor dele, reafirmamos de novo nas almas, em diferente clima histórico, com nova maturação
os seus meios de defesa, frente à agressividade dominante no de ambiente interior e exterior, de destino individual e univer-
meio em que, no entanto, tem de viver. Toda sua defesa reside sal. Estamos presos aos limites, algemados pelas dimensões
na evolução, ou seja: desse nosso mundo; só nos resta caminhar no tempo, para o
1) Em sua sensibilidade, que lhe tornou mais aguda a capa- amanhã! Este novo trabalho é concedido a todos, como semen-
cidade de percepção, permitindo-lhe sentir mesmo à distância, te jogada nos campos, para que esse futuro seja mais completo,
no tempo e no espaço, prevenindo-o contra os perigos. mais elevado e mais feliz para todos.
2) Em seu conhecimento e sabedoria, em seu enquadramen- Gubbio, Sexta-feira Santa, 1945.
to universal, que o defendem das ilusões comuns, erros e sofri-
mentos correspondentes. CONCLUSÃO (DA II TRILOGIA)
3) Em sua comunhão com as forças cósmicas, a que está
unido e que intervêm, defendendo-o e socorrendo-o segundo Com este volume, A Nova Civilização do Terceiro Milênio,
for justo, isto é, de acordo com o merecimento, e não por direi- encerra-se a segunda trilogia, isto é, o segundo ciclo, que é
to de conquista. calmo, de assimilação, sequência do primeiro, que é explosivo,
4) Na certeza de sua libertação da Terra por meio da mor- fruto da inspiração. O primeiro ecoa e ressurge no segundo.
te, uma vez que, para isso, estabeleceu o centro de sua vida e Através dos seis momentos e dos dois ciclos, assisti à revela-
de seus tesouros fora da concepção normal, ou seja, fora do ção progressiva de minha personalidade. Estas páginas, no
campo dos instintos e atrações comuns e, portanto, da zona fundo, nada mais são que a história do apocalíptico drama por
das agressões. mim vivido. Que peregrinação longa e tempestuosa! Sem pre-
Sem dúvida alguma, a luta do futuro se travará entre o in- tensões sistemáticas, narrei, com verdade psicológica, como se
voluído e o evoluído, porque é esta a mais substancial diferen- desenvolveu minha personalidade. Não se diga porém: este só
ça entre os homens: o tipo biológico. Não esperemos, porém, sabe falar de si próprio. Porque o meu drama é o drama de to-
que o evoluído empunhe armas. Sua estratégia consiste preci- dos; a vida é uma só, e o meu caminho é também o vosso ca-
samente na mudança radical dos métodos humanos. Seu cam- minho, o mesmo de todos. Falando de mim, falo de vós, que,
peão é Cristo, que vence com a bondade, a justiça, o sacrifício, como eu, estais na mesma evolução do mundo. Creio haver vi-
e se impõe por merecimento intrínseco, e não pela força das vido a suprema aventura, a aventura mais trágica e tremenda
armas. A economia do evoluído não é a economia da posse ou que o homem possa conhecer. Tive a força de dominá-la e con-
do domínio, mas da renúncia, da providência divina. Se seu tá-la a vós. Mas isso não é tudo. Estou num remoinho imenso,
sistema não fosse completamente diverso dos sistemas terre- na imensa voragem da moderna vida humana. O meu drama
nos, não representaria nenhuma vitória sobre eles. O evoluído, fundiu-se no drama universal. Senti-lhe a imensa paixão, em
quando é agredido por um inferior, não responde humanamen- meio de profundo sofrimento.
te, com violência, mas angelicamente, com bondade. Distin- Meu espírito triunfa, mas o corpo está cansado. Tentei su-
gue-se do involuído precisamente por não usar arma alguma. perar a vida animal, mas a vida se vinga no mesmo plano ani-
Sua força é a Lei, isto é, Deus. Esta se encarregará de fazê-lo mal que eu quis negar. Talvez se aproxime a boa irmã morte,
triunfar e protegê-lo. A evolução é fatal. Está no plano da cria- morte para o corpo, vida para o espírito. Talvez esta seja a
ção e é vontade expressa de Deus. condição para que eu possa agora ouvir e entoar um canto mais
Portanto o evoluído não deixa a seu irmão primitivo, que sublime. Levo apenas esta mágoa: eu poderia ter feito mais e
quer prejudicá-lo e espoliá-lo, senão seu invólucro vazio, os te- não fiz; e não pude porque tive de despender as maiores ener-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 267
gias de minha vida na luta pela vida, luta imposta a todos neste Com este volume, fecha-se o segundo ciclo de uma tragédia
inferno terrestre, luta impiedosa ao lado do involuído. Os auxí- individual na tragédia universal. Enquanto o mundo emprega
lios foram raros; agradeço-os imensamente. Mas, em geral, sua atividade em acumular meios materiais para ruína e destrui-
devo bem pouco a meus semelhantes, que só me deram des- ção e a atividade teorética nada cria, mas sim apenas varia con-
gostos e sofrimentos. Agora, não está falando a Sua Voz, que tinuamente a estéril disposição de meios já mortos, resíduos da
tantas vezes guiou minha mão nestes trabalhos, mas sim a mi- criação dos gênios, este livro é uma ponte lançada para o infini-
nha pobre humanidade abalada. to. Substitui a atual cultura exterior, que, em vez de condenar,
O motivo dominante nas duas trilogias é um único, o que serve aos instintos inferiores e é utilizada como meio para revi-
para o leitor superficial parecerá repetição. O tema é uma alma gorá-los, por uma cultura de substância, de reerguimento bioló-
que se aperfeiçoa, é a humanidade que se redime pela dor. Ten- gico, que tem valor, porquanto apta para formar um homem
tei-o porque assim me estava determinado. Os tempos moder- melhor. Ao diabólico esforço das polêmicas corrosivas de pala-
nos têm forma própria de martírio incruento. Só Deus sabe se a vras contra palavras, à tendência separatista de Satanás, repre-
vitória me sorriu ou se fui vencido; se minha tentativa foi útil sentada pelo espírito de antítese de nossos tempos, pusemos em
ou vã. Em Sua imensa piedade, me julgará mais pelo que tentei contraposição um contato mais íntimo com a essência da vida,
ou esperei fazer que pelo que realmente fiz. Há somente três um espírito construtivo de colaboração e amor. O mundo cientí-
lustros, minha pobre pena escrevia sua primeira mensagem fico, politicamente fragmentado e dividido, dissecado até às ra-
(Natal de 1931): ―No silêncio da noite sagrada, ouve-me... Le- ízes pelo separatismo, desorientado em face das grandes finali-
vanta-te e fala...‖57. Falei, e aquela voz se espalhou pelo mundo. dades do ser, tentamos reunificá-lo, levá-lo às fontes da vida,
Começou então a longa viagem de exploração no abismo dando-lhe novamente seu verdadeiro significado. Que não haja
interior, o abismo de todos, da vida, de Deus. E não retratei mundos separados, unidades demográficas ou circuitos econô-
com minhas pobres palavras senão a sombra da vertigem ex- micos, disciplinas científicas ou afirmações várias de Deus da-
perimentada. Em alguns momentos, o esforço titânico me ar- das pelas religiões, mundos rivais em que explode o ódio, mas
rebatou da órbita terrestre, para que depois eu aí tombasse de unidade biológica de todos os seres, avançando pelo mesmo
novo e sofresse mais. Assim sou: apocalíptico contraste de caminho da evolução, irmanados pelo esforço de redenção, se-
aspirações e misérias. Disse tudo sinceramente, diante de res amigos, intimamente unidos pelo amor; uma vida menos
Deus e da morte. Não tenho culpa de que tudo isso possa pa- hostil, mais ampla, mais franca, mais comunicativa, entre seres
recer à mentalidade moderna megalomania ou forma patológi- que se compreendem. Isto quer dizer abolição de fronteiras, vi-
ca de elefantíase espiritual. Neste caso, a vida é assim mesmo. tória, libertação, progresso, pois é a unificação que nos faz su-
E eu, além de ator, também fui, como quem lê, espectador e, bir até Deus. Na atual época dos separatistas, isto é, dos filhos
mais do que a causa, fui envolto pelo turbilhão do infinito. de Satanás, esta é a voz dos unificadores, isto é, dos filhos de
Vivi a agonia proveniente do tormento de necessitar do im- Deus. Só assim a realidade fragmentada poderá reencontrar em
possível e não saber alcançá-lo. Senti em mim o desespero nós sua unidade, e os horizontes de nossa vida poderão dilatar-
cósmico do ser que quer subir e não sabe. Meu lamento é tão se e descobrir novas praias longínquas e desconhecidas. A vida
grande como a Terra, lamento do homem que procura na dor a de hoje adquiriu a trágica sabedoria das grandes horas em que
sua redenção. É o lamento de Prometeu acorrentado, o lamen- reina a dor. O intelectualismo que hoje domina o pensamento é,
to de quem traz no coração sublimes sonhos e verifica que a diante desta realidade patente, vão e inútil. Crentes ou não, es-
dura realidade cotidiana o desmente sempre. Por isso tudo, o tamos todos pregados à cruz de Cristo. Na caminhada sem fim,
conjunto da presente obra valerá mais pela tentativa do que quisemos indicar o único caminho de salvação.
pelo que realmente foi feito. Isso, de meu lado humano. Mas é Para aqueles que ainda não veem, concluamos com as pala-
certo que tal obra foi inspirada e querida pelo céu. Deus, por- vras de São Paulo: ―Ninguém se iluda: se algum dentre vós ima-
tanto, conhece-lhe os fins e aplicações futuras. gina possuir a sabedoria deste mundo, torne-se louco para se
Algumas almas têm uma espécie única de ambição nostálgi- tornar sábio; porque a sabedoria deste mundo é loucura diante
ca da eternidade e não sabem viver senão em um contínuo esfor- de Deus.‖ Certamente muitos não entendem. Mas, antes de sor-
ço para fazer descer dos céus um raio de sua luz que ilumine a rir como céticos, é bom refletir que os fundamentos da socieda-
tenebrosa noite da Terra. É a Divindade que clama neste inferno de geralmente foram estabelecidos por homens de fé, e não por
terrestre. Embora toda a vida física a desminta, aquela voz con- homens apenas de ação. Estes vivem da vida alheia; fecundam,
tinua a clamar; e, mesmo que o ser caia, ela ainda clama. Embo- mas não criam; ajudam, mas não despertam a vida. Aqueles, pe-
ra pareça loucura, ela nos convida a lançarmo-nos na voragem lo contrário, parecem utopistas e loucos, mas a fazem surgir, es-
do mistério, irresistivelmente. É sempre Deus que clama. O ab- palhando centelhas de luz; são os sábios sonhadores que dão os
soluto lá está e nos atrai; a ânsia de alcançá-lo nos devora, e o maiores impulsos à humanidade, e não os práticos. É bom lem-
sentimos inatingível. O contingente, porém, nos acabrunha, nos brar que o homem mais dinâmico e revolucionário não é o que
cerca, nos estorva, asfixia-nos. Eis o grande drama! A matéria é grita e assalta, mas o que pensa, penetra a verdade e a anuncia
inerte, e o espírito, que quer vivificá-la, desce luminoso a seus sem agredir; que o homem mais demolidor no presente é o que
escuros antros, tão escuros que aí agoniza e parece extinguir-se. pacificamente cria no futuro, limitando-se, diante do mal, a su-
Aqui do mundo, a alma ainda ouve o apelo divino e percebe de- portá-lo com paciência, a denunciá-lo cândida e, se preciso, he-
sesperadamente a impossibilidade de responder. Daí nasce o roicamente a todos. É bom recordar que o ataque mais poderoso,
drama da discórdia, mas também o contraste criador. o ataque extremo, é desfechado, sob forma mansa e persuasiva,
Hoje, meu corpo cansado, ferido pela tempestade, chora sua pelos verdadeiros demolidores, que atingem as raízes, e não pe-
catástrofe humana, contingente; o espírito a oferece a Deus em los que seguem os caminhos da força, que agem externamente e
holocausto e, como senhor, espera com alegria o futuro. Em que apenas excitam reações; o verdadeiro assalto é aquele que, atra-
forma de vida ressurgirá das espirais dessa morte já aceita? A vés do amor e da verdade, leva à convicção.
que extremos chegará a grande batalha? Bem o sei, já o disse, Pietro Ubaldi
mas pergunto a mim mesmo, para repeti-lo ainda, e o direi, se GUBBIO, Páscoa de 1945
continuar a viver. Poder ver finalmente o mal aprofundar-se no
abismo da autodestruição e o bem vencer: eis a grande paixão. FIM
57
―Mensagem do Natal‖ do livro Grandes Mensagens. (N. da R.)
O MISSIONÁRIO
Vida e Obra de Na primeira semana de setembro de 1931, depois da grande decisão fran-
ciscana, Cristo novamente lhe apareceu e, desta vez, acompanhado de São

Pietro Ubaldi Francisco de Assis. Um à direita e outro à esquerda, fizeram companhia a Pie-
tro Ubaldi durante vinte minutos, em sua caminhada matinal, na estrada de
Colle Umberto. Estava, portanto, confirmada sua posição.
Em 25 de dezembro de 1931, chegou-lhe de improviso a primeira mensa-
(Sinopse) gem, a Mensagem de Natal. Por intuição ele sentiu: estava aí o início de sua
missão. Outras Mensagens surgiram em novas oportunidades. Todas com a
mesma linguagem e conteúdo divino.
O HOMEM No verão de 1932, começou a escrever A Grande Síntese, a qual só termi-
nou em 23 de agosto de 1935, às 23h00min horas (local). Esse livro, com cem
Pietro Ubaldi, filho de Sante Ubaldi e Lavínia Alleori Ubaldi, nasceu em capítulos, escrito em quatro verões sucessivos, foi traduzido para vários idio-
18 de agosto de 1886, às 20:30 horas (local). Ele escolheu os pais e a cidade mas. Somente no Brasil, já alcançou quinze edições. Grandes escritores do
onde iria nascer, Foligno, Província de Perúgia (capital da Úmbria). Foligno fi- mundo inteiro opinaram favoravelmente sobre A Grande Síntese. Ainda outros
ca situada a 18 km de Assis, cidade natal de São Francisco de Assis. Até hoje, compêndios, verdadeiros mananciais de sabedoria cristã, surgiram nos anos se-
as cidades franciscanas guardam o mesmo misticismo legado à Terra pelo guintes, completando os dez volumes escritos na Itália:
grande poverelo de Assis, que viveu para Cristo, renunciando os bens materiais 01) Grandes Mensagens
e os prazeres deste mundo. 02) A Grande Síntese - Síntese e Solução dos Problemas da Ciência e do Espírito
Pietro Ubaldi sentiu desde a sua infância uma poderosa inclinação pelo
03) As Noúres - Técnica e Recepção das Correntes de Pensamento
franciscanismo e pela Boa Nova de Cristo. Não foi compreendido, nem poderia
sê-lo, porque seus pais viviam felizes com a riqueza e com o conforto proporci- 04) Ascese Mística
onado por ela. A Sra. Lavínia era descendente da nobreza italiana, única herdei- 05) História de Um Homem
ra do título e de uma enorme fortuna, inclusive do Palácio Alleori Ubaldi. As- 06) Fragmentos de Pensamento e de Paixão
sim, Pietro Alleori Ubaldi foi educado com os rigores de uma vida palaciana. 07) A Nova Civilização do Terceiro Milênio
Não pode ser fácil a um legítimo franciscano viver num palácio. Naturalmen- 08) Problemas do Futuro
te, ele sentiu-se deslocado naquele ambiente, expatriado de seu mundo espiritual. 09) Ascensões Humanas
A disciplina no palácio, ele aceitou-a facilmente. Todos deveriam seguir a orien- 10) Deus e Universo
tação dos pais e obedecer-lhes em tudo, até na religião. Tinham de ser católicos
Com este último livro, Pietro Ubaldi completou sua visão teológica, além
praticantes dos atos religiosos, realizados na capela da Imaculada Conceição, no
de profundos ensinamentos no campo da ciência e da filosofia. A Grande Sínte-
interior do palácio. Pietro Ubaldi foi sempre obediente aos pais, aos professores, à
se e Deus e Universo formam um tratado teológico completo, que se encontra
família e, em sua vida missionária, a Cristo. Nem todas as obrigações palacianas
ampliado, esclarecido mais pormenorizadamente, em outros volumes escritos
lhe agradavam, mas ele as cumpriu até à sua total libertação. A primeira liberdade
na Itália e no Brasil, a segunda pátria de Ubaldi.
se deu aos cinco anos, quando solicitou de sua mãe que o mandasse à escola, e
O Brasil é a terra escolhida para ser o berço espiritual da nova civiliza-
aquela bondosa senhora atendeu o pedido do filho. A segunda liberdade, verdadei-
ção do Terceiro Milênio. Aqui vivem diferentes povos, irmanados, indepen-
ro desabrochamento espiritual, aconteceu no ginásio, ao ouvir do professor de ci-
dentes de raças ou religiões que professem. Ora, Pietro Ubaldi exerceu um
ência a palavra ―evolução‖. Outra grande liberdade para o seu espírito foi com a
ministério imparcial e universal, e nenhum país seria tão adaptado à sua mis-
leitura de livros sobre a imortalidade da alma e reencarnação, tornando-se reen-
são quanto a nossa pátria. Por isso o destino quis trazê-lo para cá e aqui com-
carnacionista aos vinte e seis anos. Daí por diante, os dois mundos, material e es-
pletar sua tarefa missionária.
piritual, começaram a fundir-se num só. A vida na Terra não poderia ter outra fi-
Nesta terra do Cruzeiro do Sul, ele esteve em 1951 e realizou dezenas de
nalidade, além daquelas de servir a Cristo e ser útil aos homens.
conferências de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Em oito de dezembro do ano se-
Pietro Ubaldi formou-se em Direito (profissão escolhida pelos pais, mas ja-
guinte, desembarcaram, no porto de Santos, Pietro Ubaldi acompanhado da es-
mais exercida por ele) e Música (oferecimento, também, de seus genitores), fez-se
posa, filha e duas netas (Maria Antonieta e Maria Adelaide), atendendo a um
poliglota, autodidata, falando fluentemente inglês, francês, alemão, espanhol, por-
convite de amigos de São Paulo para vir morar neste imenso país. É oportuno
tuguês e conhecendo bem o latim; mergulhou nas diferentes correntes filosóficas e
lembrar que Ubaldi renunciou aos bens materiais, mas não aos deveres para
religiosas, destacando-se como um grande pensador cristão em pleno Século XX.
com a família, que se tornou pobre porque o administrador, primo de sua espo-
Ele era um homem de uma cultura invejável, o que muito lhe facilitou o cumpri-
sa, dilapidou toda a riqueza entregue a ele para gerencia-la.
mento da missão. A sua tese de formatura na Universidade de Roma foi sobre A
Em 1953, Pietro Ubaldi retornou à sua missão apostolar, continuou a re-
Emigração Transatlântica, Especialmente para o Brasil, muito elogiada pela ban-
cepção dos livros e recebeu a última Mensagem, Mensagem da Nova Era, em
ca examinadora e publicada num volume de 266 páginas pela Editora Ermano
São Vicente, no edifício ―Iguaçu‖, na Av. Manoel de Nóbrega, 686 – apto. 92.
Loescher Cia. Logo após a defesa dessa tese, o Sr. Sante Ubaldi lhe deu como
Dois anos depois, transferiu-se com a família para o Edifício ―Nova Era‖ (coin-
prêmio uma viagem aos Estados Unidos, durante seis meses.
cidência, nada tem haver com a Mensagem escrita no edifício anterior), Praça
Pietro Ubaldi casou-se com vinte e cinco anos, a conselho dos pais, que es-
22 de janeiro, 531 – apto. 90. Em seu quarto, naquele apartamento, ele comple-
colheram para ele uma jovem rica e bonita, possuidora de muitas virtudes e fina
tou a sua missão. Escreveu em São Vicente a segunda parte da Obra, chamada
educação. Como recompensa pela aceitação da escolha, seu pai transferiu para
brasileira, porque escrita no Brasil, composta por:
o casal um patrimônio igual àquele trazido pela Senhora Maria Antonieta Sol-
11 ) Profecias
fanelli Ubaldi. Este era, agora, o nome da jovem esposa. O casamento não esta-
va nos planos de Ubaldi, somente justificável porque fazia parte de seu destino. 12 ) Comentários
Ele girava em torno de outros objetivos: o Evangelho e os ideais franciscanos. 13 ) Problemas Atuais
Mesmo assim, do casal Maria Antonieta e Pietro Ubaldi nasceram três filhos: 14) O Sistema - Gênese e Estrutura do Universo
Vicenzina (desencarnada aos dois anos de idade, em 1919), Franco (morto em 15) A Grande Batalha
1942, na Segunda Guerra Mundial) e Agnese (falecida em S. Paulo - 1975). 16 ) Evolução e Evangelho
Aos poucos, Pietro Ubaldi foi abandonando a riqueza, deixando-a por con- 17) A Lei de Deus
ta do administrador de confiança da família. Após dezesseis anos de enlace ma- 18) A Técnica Funcional da Lei de Deus
trimonial, em 1927, por ocasião da desencarnação de seu pai, ele fez o voto de
19 ) Queda e Salvação
pobreza, transferindo à família a parte dos bens que lhe pertencia. Aprovando
aquele gesto de amor ao Evangelho, Cristo lhe apareceu. Isso para ele foi a 20 ) Princípios de Uma Nova Ética
maior confirmação à atitude tão acertada. Em 1931, com 45 anos, Pietro Ubaldi 21) A Descida dos Ideais
assumiu uma nova postura, estarrecedora para seus familiares: a renúncia fran- 22 ) Um Destino Seguindo Cristo
ciscana. Daquele ano em diante, iria viver com o suor do seu rosto e renunciava 23 ) Pensamentos
todo o conforto proporcionado pela família e pela riqueza material existente. 24) Cristo
Fez concurso para professor de inglês, foi aprovado e nomeado para o Liceu São Vicente (SP), célula mater. do Brasil, foi a terceira cidade natal de Pie-
Tomaso Campailla, em Módica, Sicilia – região situada no extremo sul da Itália tro Ubaldi. Aquela cidade praiana tem um longo passado na história de nossa
– onde trabalhou somente um ano letivo. Em 1932 fez outro concurso e foi pátria, desde José de Anchieta e Manoel da Nóbrega até o autor de A Grande
transferido para a Escola Média Estadual Otaviano Nelli, em Gúbio, ao norte da Síntese, que viveu ali o seu último período de vinte anos. Pietro Ubaldi, o Men-
Itália, mais próximo da família. Nessa urbe, também franciscana, ele trabalhou sageiro de Cristo, previu o dia e o ano do término de sua Obra, Natal de 1971,
durante vinte anos e fez dela a sua segunda cidade natal, vivendo num quarto com dezesseis anos de antecedência. Ainda profetizou que sua morte acontece-
humilde de uma casa pequena e pobre (pensão do casal Norina-Alfredo Pagani ria logo depois dessa data. Tudo confirmado. Ele desencarnou no hospital São
– Rua del Flurne, 4), situada na encosta da montanha. José, quarto No 5, às 00h30min horas, em 29 de fevereiro de 1972. Saber quan-
A vida de Pietro teve quatro períodos distintos (v. livro Profecias – ―Gêne- do vai morrer e esperar com alegria a chegada da irmã morte, é privilégio de
se da II Obra‖): dos 5 aos 25 anos  formação; 25 aos 45 anos  maturação in- poucos... O arauto da nova civilização do espírito foi um homem privilegiado.
terior, espiritual, na dor; dos 45 aos 65 anos  Obra Italiana (produção concep- A leitura das obras de Pietro Ubaldi descortina outros horizontes para uma
tual); dos 65 aos 85 anos  Obra Brasileira (realização concreta da missão). nova concepção de vida.

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