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por instinct provocou. Tal resposta, continua o autor, passou a ser adotada
também “nas outras línguas latinas em que se traduziu (ou retraduziu) a obra de
Freud”, para concluir que “é significativo o fato de ‘pulsão’ ter vindo a
predominar na psicanálise francesa, sob a égide de Jacques Lacan”. As
traduções, seja a inglesa de James Strachey, sob o comando de Ernest Jones,
seja a francesa, coordenada por Jean Laplanche, estariam, assim, dependentes
das perspectivas teóricas e do ambiente cultural de onde surgiram. Sabemos que
o próprio Freud, em uma célebre carta, legitimou a tradução inglesa. O
interessante é que, em geral, se lê essa carta inteiramente descontextualizada: se
aceita, sem mais, a “sinceridade” de Freud, ignorando as circunstâncias,
fartamente documentadas na história da psicanálise, que quase sempre o
levavam a “agradar” os britânicos. Deixa-se inteiramente de lado o modo
pessoal com que Freud conduziu a “política” no interior da associação
psicanalítica por ele criada. Uma aliança que, não podemos deixar de
reconhecer, o salvou num momento extremamente delicado, pois desde a
anexação da Áustria pela Alemanha em 1938, as leis antijudaicas vigentes na
Alemanha passaram a valer automaticamente na Áustria.
Esse texto de Benjamin possui quatro versões, escritas entre 1935 e 1939: três
delas em alemão e mais uma, a versão francesa, traduzida por Pierre
Klossowski. Com um detalhe importantíssimo: essa versão francesa foi a única
publicada enquanto Benjamin ainda vivia, no número de 1936 da Revista de
Pesquisa Social, órgão de divulgação das pesquisas realizadas pelo famoso
Instituto de Pesquisa Social, cujo diretor, à época já no exílio americano, era
Max Horkheimer. Na ocasião – detalhe importante – Benjamin vivia em Paris
como exilado sem pátria, pois já havia perdido a cidadania alemã por ser judeu e
de “esquerda”.
“Inconsciente ótico”
Essa ideia é retomada por Benjamin no ensaio sobre a obra de arte, em todas as
suas versões. A questão é a mesma, só que agora a comparação se dá entre o
olho humano e a câmera cinematográfica e não mais com a fotográfica.
Benjamin repete praticamente as mesmas palavras de “Pequena história da
fotografia”.
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Trieb freudiano
“A obra de arte…” foi o primeiro texto de Benjamin publicado no Brasil. Mas foi
apenas em 1985, na tradução de Sérgio Paulo Rouanet da primeira versão do
ensaio para o volume inicial das Obras escolhidas, publicadas pela Brasiliense,
que ficamos diante da tradução do Triebhaft como “pulsional”. O leitor
apressado é levado a atribuir a escolha do tradutor às mudanças ocorridas na
recepção brasileira da psicanálise, em dois aspectos bem precisos: a ampla
divulgação entre nós do Vocabulário da psicanálise (1970), de Laplanche e
Pontalis, que consagrava o termo “pulsão”, assim como a expansão das escolas
lacanianas no Brasil e sua presença cada vez maior nos meios acadêmicos. Neste
sentido, Paulo César de Souza tem razão ao relacionar tradução, perspectivas
teóricas e contextos culturais. Mas não será este o princípio e o problema de
toda e qualquer tradução? De minha parte, prefiro atribuir a posição de Rouanet
a um fato bem simples: profundo conhecedor da obra de Benjamin, ele optou
pela tradução pela qual o próprio Benjamin já havia optado.
Freud e a partir de 1928 seu interesse pela psicanálise não só aumentou, como
também começou a se cristalizar em alguns ensaios importantes, seja nas suas
reflexões sobre Proust (Além do princípio do prazer, dizia ele, era um
comentário indispensável à Recherche… proustiana) ou ainda naquelas sobre os
brinquedos e jogos infantis. Em outras palavras, Benjamin tinha plenas
condições de avaliar o sentido que o Trieb freudiano poderia ter numa língua, a
francesa, que ele conhecia muito bem.
Todos sabem que Benjamin formulou uma complexa teoria da tradução. O que o
seu assentimento à tradução dessa passagem de seu texto destaca
explicitamente nessa complexidade é, me parece, a relação entre tradução, ética
e política. Do ponto de vista ético, isso significa não apenas que não se pode
traduzir de qualquer jeito, mas que o famoso “traduzir é trair” supõe, antes de
tudo, renunciar a qualquer pretensão de reproduzir fielmente uma língua em
outra, renúncia a uma espécie de identificação primária, que revelaria, entre
outras coisas, uma relação da ordem do ideal, sagrada, com o texto a ser
traduzido. Mas essa posição ética se complementa necessariamente com outra,
que é política, ao supor que uma tradução não pode ser indiferente ou neutra
em relação aos contextos, dos quais ela não é apenas dependente, reprodutora,
mas também contra os quais ela pode resistir e se posicionar.
E qual é o “nosso” contexto, o que nos assola e bate diariamente à nossa porta,
invade nossas casas e se instaura no nosso cotidiano? É um contexto cada vez
mais neuronal, cognitivo, biologizante, normativo na medida em que, explícita
ou implicitamente, se refere a uma ordem que é da “natureza”, contexto de
esvaziamento de qualquer subjetividade. Um contexto em que uma teoria do
psiquismo passa a ser vista como uma espécie de estágio pré-científico a ser
definitivamente superado pelas conquistas da ciência, a única verdadeira, a que
comprova, trata e cura. Nessa perspectiva, Trieb por “pulsão” não é apenas uma
tradução válida e legítima em relação ao contexto teórico, mas continua
cumprindo muito bem sua função de resistência em um contexto político que
procura sempre desqualificar a psicanálise. Não apenas o texto freudiano, a
teoria, mas igualmente sua prática, sua intervenção institucional, sua inserção
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nas lutas no interior das discussões sobre as políticas públicas para a saúde ou,
ainda, nos fóruns importantes de discussão da violência urbana, sexual, sem
contar, evidentemente, as relativas à saúde mental e ao uso de drogas. O
objetivo último desse combate é, sem dúvida, eliminar o que insiste em resistir,
ou seja, a “pulsão”.