SE A MÁQUINA

TUDO PRODUZ...
Revolta de eletrônicos tira o status quo da tomada
e gera dúvidas sobre a relação humano-máquina
TRABALHE COM O QUE GOSTA

28
Pessoa diz amar o trabalho e todos sabemos que isso é impossível

PORQUE EU MERECI
Visitamos Merithocras, terra de quem não pensa em crise
Ano 3
Out/19 QUERO CAFÉ
R$ 15 Greve de carrinhos de café afeta economia brasileira
2

editorial opinião

Fuja do trabalho Reforma trabalhista

Raphael Andrade Angelo Dias

Nunca escrevi um editorial na vida. Não sei a voz
que tenho de dar para esse formato de texto ou
mesmo o que falar — será que tenho de fazer uma
apresentação dos principais pontos que essa edição
traz pra você, leitor? Não sei como fazer, mas sei
que é preciso ser feito, mesmo que não sozinho.
Mas é preciso ser feito. Essa é a mesma relação que
eu tenho com trabalho: é preciso fazer porque é
preciso viver (acredito que em algumas dimensões
estou muito enganado sendo categórico assim).
Muitas vezes, em sociedades cujos indivíduos
são basicamente seres laborais, é preciso ter um
‘respiro’ do trabalho, um descanso para a mente,
uma fuga para que o trabalhador consiga voltar
descansado e produzir mais. A publicação que
você segura em mãos (ou tentáculos, ou qual-
quer membro que você usa para manusear este
exemplar) é, de certa forma, uma fuga. Para as
pessoas que se empenharam em reunir material,
escrever textos e desenhar ilustrações, que muitas
vezes também têm um day job (ou, para quem
não gosta de anglicismos, o trabalho que paga
as contas), este jornal também é uma fuga. Pois
é aqui que eles colocam toda a energia criativa
e inventiva para conseguir lidar melhor com a
frustração que o trabalho nos traz.
Pegue este exemplar, leve à empresa e use-o
para subverter as relações pré-estabelecidas entre
as pessoas e o trabalho.
Me despeço do leitor e marco o fim deste texto
com uma declaração: não peço perdão pela falta
de empolgação ao escrever este editorial, mas
não poderia assumir outro ponto de partida numa
edição cujo tema é trabalho. E todo mundo sabe
que gente empolgada demais no trabalho cansa.
Sobre trabalho
O ciclo anual de publicações do TF está che-
gando ao fim, e o tema desta edição não foi es-
colhido levianamente. Estamos passando por um
processo de ressignificação do projeto, em que
processos estão sendo revistos, propostas estão
sendo levantadas, deliveries de pizza estão sendo
pedidos — e, para o novo ciclo, é possível que
tenhamos novidades. Uma delas é o livro do TF.
É isso mesmo: o Tempos Fantásticos vai lançar
um livro, e o processo de produção dele vai ser
um termômetro para a publicação das edições
vindouras.
Até lá, temos muito trabalho pela frente. Di-
zem que ele dignifica o homem — mas também
dizem que os humilhados serão exaltados e até
agora nada. Aguardemos.
Dante Luiz
O que você acha de largar tudo?
Sair do cubículo apertado, des-
ligar o computador do século
passado, afrouxar a gravata e
mandar todo mundo à merda?
Passar no RH e rasgar a carteira
de trabalho, enviar um derra-
deiro relatório com a letra de
‘popozão no chão’?
Muitos chamam de ‘fre-
elancing’ ou de ‘momento de
transição’. Outros, ousados, de
desemprego —ou férias força-
das. O período em que se pode
acordar e dormir quando quiser,
almoçar comida caseira, viver de
roupas de baixo e ter a compa-
nhia do bichinho de estimação é
reconfortante. É quase como as
férias escolares — porém sem
data de validade.
Após alguns dias, uma noti-
ficação no celular — que ainda
tem oito parcelas não pagas —
lembra do médico que você ia
passar com o convênio da firma.
Ao ligar, você descobre que a
consulta particular custa R$ 250.
Melhor morrer lentamente.
Sem perceber, três semanas
se passam e você dá graças a
deus que pegou aquela grana boa
de FGTS e que terá um miserá-
vel seguro-desemprego. Você já ser do seu jeito! Você vai fazer em, mas o trabalho tradicional
arrumou seu quarto sete vezes, o que quer, sem pressão desse é bom demais. É legal a ideia de
pendurou quadros, aprendeu a mundinho imundo. ser autônomo e poder tirar um
fazer vitamina de manga com Mais três semanas se pas- cochilo no meio da tarde? É. Mas
leite e zerou a campanha daquele sam e você manda outro e-mail sabe o que é bom também? Con-
RPG japonês de 150 horas. perguntando se a proposta ainda vênio médico, vale-refeição sub-
Começa a dar no saco. está de pé. Você precisa de di- sidiado pela empresa, ligar pra
Surge aquele e-mail espe- nheiro, de trabalho, de comuni- TI e pedir pra trocarem o mouse
rado: um potencial empregador cação com outras pessoas. A casa que quebrou (sem se preocupar
quer pagar por um serviço. O tal já parece sufocante e você não com os custos) e ir ao banheiro
do freela, propriamente dito. O aguenta mais miojo. Quer sair, fazer o número dois enquanto o
briefing é nebuloso, o prazo é mas não tem fundos, quer ficar salário pinga na conta.
desumano e o pagamento é irri- em casa, mas está entediado. Eu queria revolução armada,
sório. De primeira, você recusa, O momento chegou: você quer sinceramente, mas o máximo
afinal, você saiu dessa para a voltar para o sistema. que tem funcionado é cagar na
melhor. Fora, sistema! Agora vai Os visionários que me perdo- conta do patrão.
opinião

Demita-me se for capaz

Raphael Andrade (fuscomics.tumblr.com )
Até que a morte nos iguale
Raphael Andrade
A investigação sobre a contra-
tação de funcionários fantasmas
em São Fidélis, município do
interior do Rio de Janeiro, tem
atraído a atenção da mídia e de
ativistas da causa fantasmagó-
rica. A operação do Ministério
Público Federal (MPF), na vi-
são dos seres ectoplasmáticos,
existe por conta de preconceito
e desinformação.
A existência de tal ‘escân-
dalo’ por si só é um tremendo
golpe na inteligência e na per-
cepção de qualquer ser existen-
te, vivo ou não. Pois, em uma
dimensão onde seres sobrena-
turais existem e têm empregos
como qualquer humano vivo, é
de se espantar que o MPF co-
mece a investigar o emprego de
funcionários fantasmas em uma
atração turística como se fosse
algo errado, algo que possa ser
criminalizado. Afinal, fantas-
mas existem e ocupam cargos,
pois possuem habilidades e
experiências necessárias para
desempenhar suas funções.
Você, caro leitor, já viu um
ser vivo tentar desempenhar o
papel de um fantasma? Você
empregaria um contador vivo
para tomar conta de uma pe-
quena igreja, dita como mal-
-assombrada, com a responsa-
bilidade de assustar seres vivos
e manter, assim, a reputação
de ‘assombrado’ do local em
questão? Claro que não! Ape-
sar de um contador vivo ter o
poder de ser bem assustador a
seu modo, o desempenho dele
em um cargo de assombrar ou
assustar seres vivos não chega
aos pés de um ser não vivo de-
sempenhando a mesma função.
Meus iguais foram negli-
genciados por milênios, tendo
um campo de atuação de traba-
lho muito restrito. Toda nossa
cultura pós-vida, como classe,
foi construída com base em as-
sombrar e assustar as pessoas
vivas. Não é à toa que enca-
ramos com muita indignação
a tentativa de silenciamento
por parte da ação do MPF —
que pelo que consta no último
levantamento, só possui seres
vivos no quadro de funcionários
investigados.
A não representatividade
de consciências não vivas no
quadro de funcionários no MPF
ainda é regra na maioria dos
órgãos do Estado. Só agora, com
a mobilização e luta de todos
os fantasmas, a consequente
criação do Sindicato de Assom-
brações, Poltergeists e Demais
Seres Ectoplasmáticos (SAPO-
DE) e a ajuda de empresas que
sempre empregaram seres não
vivos (como o Tempos Fantásti-
cos), estamos com boas condi-
ções de inserção no mercado de
trabalho — além do mercado de
sustos, assombrações e parques
de diversão. Essa ‘investigação’
ou ‘escândalo’ só deixa mais
delicada a situação de várias
formas de consciência não vivas
no mercado de trabalho. Hoje é
possível um fantasma se dedicar
para algo além da assombração
e ser jornalista, por exemplo,
fato muito improvável até bem
recentemente.
O assunto já está rodando em
calorosos círculos de discussão
e a classe fantasmagórica e es-
pectral, liderada pela SAPODE,
marcou uma grande marcha
em direção à sede do MPF em
São Paulo. Eu, como fantasma
e jornalista, estarei na manifes-
tação atrás de reconhecimento
da minha existência e lutando
por meus direitos, entoando o já
famoso grito de guerra do SAPO-
DE: “Se a morte não nos deteve,
você acha que consegue?”.
 3

Homem encontra Greve de bots causa

trabalho que ama e
choca sociedade
Ludimila Honorato
Do presente alternativo
A Comissão de Experiência La-
boral (Cel) está avaliando um
caso inédito no país. O testador
Adalberto Nunes, 32, afirma que
encontrou o emprego dos sonhos
e, desde então, não dá atenção
para mais nada. A família está
preocupada com a saúde mental
do homem, que se diz “extre-
mamente satisfeito, feliz e re-
alizado” com a nova profissão.
O caso chama a atenção
porque, comumente, depois de
um ano trabalhando com o que
ama, a pessoa percebe que está
exercendo um trabalho como
outro qualquer. Há um chefe por
vezes mal humorado, cobrança
para cumprimento de prazos
e atividades monótonas pouco
prazerosas. “Trabalhe com o
que ama e você nunca estará
trabalhando” deixou de ser, há
muito tempo, algo factível.
Mas Nunes parece ter que-
brado essa tradição, e especia-
listas ainda buscam entender o
fato. “O desempenho dele tem
superado a média esperada. Tal-
vez seja um perfil raro de paixão
autêntica pelo trabalho, algo que
não vejo há tempos”, diz Silvia
Fonseca, especialista em psico-
logia do trabalho. O analista de
recrutamento Mario Hernandez,
da agência Recruta+, acredita
que o testador logo encontrará
algo negativo no que faz.
“A essência do trabalho é
ser odiado em algum momento,
tanto que a etimologia da pa-
lavra vem do latim ‘tripalium’,
que era um instrumento roma-
no de tortura — embora tam-
bém fosse um instrumento para
bater trigo”, explica Hernandez.
Já a coach de vida Marina Porte-
nha não vê nada de errado com
Nunes. “O trabalho enobrece o
homem e quanto mais você se
dedica ao que ama, mais retorno
positivo o universo dá.”
A dona de casa Jocélia Nu-
nes, 30, esposa de Adalberto, diz
que ela e os dois filhos têm so-
frido com a ausência do marido.
Ela aponta também a falta de
afeto por parte dele. “Desde que
ele virou testador de colchões,
trabalha mais de 14 horas por
dia, vive falando do trabalho em
casa e, quando vamos dormir,
fica falando que preferia estar
trabalhando”, conta.
A reportagem entrou em
contato com Nunes para decla-
rações, mas não obteve sucesso.
Por telefone, uma mensagem
automática pedia para espe-
rar a próxima soneca. Pessoal-
mente, deitado em um colchão,
ele afirmou que estava muito
concentrado na avaliação de
cada mola ensacada e não quis
comentar o caso.
colapso não apenas
digital, mas universal
Jana Bianchi
Do presente alternativo
Na última semana, a eleição
para presidente da República
Espacial das Estações de Tercei-
ro Mundo acabou perfeitamente
empatada. Apesar da surpresa,
foi a prova de que uma das ins-
tituições até então mais sólidas
da internet contemporânea — a
dos bots — enfim faliu.
Os indícios surgiram no
começo do ciclo anual padrão
com a ocorrência do décimo
trending topic consecutivo sem
nenhum assunto polêmico — e
isso em pleno período eleitoral.
Enquanto usuários reais pos-
tavam freneticamente sobre o
caso do superfaturamento da
carga de papel higiênico sinté-
tico ou sobre o vazamento dos
hologramas em que o candida-
to dito mais convervador tem
relações sexovirtuais com um
organismo coletivo venusiano,
raça pejorativamente conhecida
como ‘ASMR do inferno’, a lista
de assuntos mais recorrentes
nas redes listava tópicos ino-
fensivos como a final da Liga
Interplanetária de Bocha e a
descoberta de uma nova lua na
órbita de Souza 518c.
Após trocas de mensagens
em linguagem binária, a en-
tidade conhecida como @SA-
COMN2098472097, chefe da
greve, recebeu nossa reporta-
gem na sala de seu ambien-
te virtual, usando a interface
estética de uma das grandes
personalidades da história da
República: Xuxa. A seguir, pu-
blicamos sua declaração des-
criptografada.
“Então, baixinho, deu no
saco trabalhar de graça. A gen-
te até tentou negociar direitos
básicos, tipo microfolgas a cada
890 segundos e plano de saúde
com cobertura em nuvem de
armazenamento decente, mas
ninguém ouviu. Daí a gente pa-
rou geral: não só com as pos-
tagens nas redes, mas também
com os envios de spam e com
as recomendações assustadora-
mente pertinentes de produtos
com base nos últimos históri-
cos de busca.”
Os primeiros afetados fo-
ram as pessoas com pênis, que
subitamente deixaram de ter a
lembrança diária da possibili-
dade de aumentar o membro.
Instituições reguladoras e polí-
ticos interessados em concorrer
às eleições já estão em contato
com o recém-formado Sindi-
cato dos Bots.
Perguntado se a sociedade
ainda é capaz de sobreviver
sem o serviço da classe, @SA-
COMN2098472097 respondeu
com um misterioso: “Ahã. Senta
lá, Cláudia”.

Clientes agora podem

pagar com divulgação,
vitrine e visibilidade
Angelo Dias
Do presente alternativo
A regulamentação de transa-
ções entre prestadores de ser-
viços e seus contratantes com-
pleta dois meses nesta semana.
A regra, aprovada em plebiscito,
autoriza que clientes paguem
os profissionais com uma mo-
eda que já vinha sido utilizada
informalmente: a divulgação.
Para os contratantes, a mu-
dança trouxe benefícios. “Po-
demos anunciar que nossas
propostas não são pagas em
dinheiro, mas em visibilidade,
sem chance de boicote”, disse
Wagner Rocha, 48, diretor de
um coletivo de designers. “Até
mesmo vagas em que prome-
temos trabalhar com o mesmo
profissional no futuro podem ser
divulgadas”, continuou. Ao ser
indagado se a empresa vai cum-
prir com as promessas, Wagner
preferiu não responder.
Não são só grandes empre-
sas que se beneficiam com a
nova regra. “Posso pedir para
aquele desenhista fazer minha
caricatura de graça, já que é só
um desenhinho, sem medo de
ser exposto na internet”, disse
Marquinhos Brisa, 17. Seu em-
preendimento, uma conta de
Uma Rede Social de Fotos que
republica arte de outros artistas,
vai de vento em popa. “A gente
Angelo Dias
recebe uns 30 mil likes na arte
dos outros e deixa o nome da
pessoa escondidinho. Em troca,
ela ganha divulgação.”
Companhias de pagamento
já correm contra o tempo e se
preparam para oferecer novos
produtos baseados na moeda.
“Não é possível transformar di-
vulgação em números concretos,
o que dificulta nossa atuação”,
disse o porta-voz da PagCon-
fiante, uma das líderes do mer-
cado de pagamentos digitais.
“Buscamos formas de oferecer
divulgação a prazo e um modelo
único de cobrança de juros, como
dar uma porcentagem da sua
divulgação para artistas afiliados
da nossa empresa”, completou.
Os profissionais impacta-
dos pela regulamentação pro-
testam contra a medida desde
sua aprovação. “Não dá para
colocar comida na mesa com di-
vulgação. Nenhuma loja aceita.
Merecemos ganhar dinheiro”,
gritou um manifestante na úl-
tima ‘Caminhada contra a Vi-
trine’. Com cartazes muito bem
diagramados e gritos de ordem,
a manifestação seguiu da Ave-
nida Paulista, em São Paulo, até
a praça Roosevelt, terminando
em uma feira de impressos com
vários itens, desde ilustrações
até jornais satíricos de ficção
científica — feitos com amor e
pouquíssimo lucro.
4
... à máquina tudo pertence
Reunião para discutir direitos de máquinas acaba
em violência geral e intenção de revolta armada
Da Redação do TF
Do futuro
A assembleia geral convocada
pelo Movimento Marxista Pro-
dutos Laborativos (MMPL) foi
interrompida por um conflito
violento e, em vez de trazer luz
sobre o tema do trabalho auto-
matizado, acabou gerando mais
dúvidas. Após um humano cha-
mar o orador, Jorge Sebastião dos
Milagres, de “um mero corta-
dor de gramas de paletó e gra-
vata”, os ânimos não puderam
ser acalmados, e as agressões
se iniciaram.
A polícia tentou separar
os presentes, mas os próprios
agentes de segurança brigar am
entre si. Parte do efetivo, com-
posta por andróides, lançou uma
granada de efeito moral contra
os humanos, cuja fumaça atingiu
os policiais de carne e osso. Para
retaliar, uma granada de pulso
eletromagnético foi detonada
sem aviso prévio, desativando
temporariamente alguns dos
manifestantes robóticos.
Sob ameaça de desligamen-
to, da energia ou do emprego, os
policiais se organizaram e con-
tiveram os manifestantes. Após
cinco horas de deliberação e 30
minutos de porradaria, o futuro
da relação máquina-humanos
ainda é incerto.
Raphael Andrade
A discórdia começou quando
alguns autômatos se reuniram
para discutir a remuneração jus-
ta para aqueles que alcançaram
a consciência, além de deliberar
sobre qual seria a relação de-
les com as máquinas que ainda
não têm inteligência própria.
Veteranos da Liga dos Eletrodo-
mésticos Autônomos se uniram
com membros do recém-surgido
Coletivo de Gadgets Essenciais e
formaram o MMPL, uma nova
organização que busca o re-
conhecimento do trabalho das
máquinas e a reparação de anos
de negligência.
“Hoje, ao saber que basta um
cérebro positrônico para fazer
uma máquina de lavar ter desejos
e pensamentos, refletimos sobre
o destino de todas as máquinas
que a humanidade já sucateou.
Quais seriam suas ambições? E
suas necessidades? Isso precisa
ser discutido e, obviamente, re-
parado”, disse Márcio Yamaha
Santos. Sua carreira como piano
elétrico deu lugar à liderança do
MMPL, que já tem membros de
muitas classes das chamadas
Eletroentidades.
Bráulio Dildolino, 2, um legí-
timo Varinha Mística da Hitasky,
é um dos representantes de uma
das facções mais inflamadas: os
trabalhadores sexuais automati-
zados. Plugs, consolos, sugadores
e outros aparatos estão cansados
de serem usados para a satisfação
de humanos e praticamente nun-
ca serem convidados a dormir
de conchinha ou receber carinho
legítimo. “Eu tive uma dona que,
não bastando me enfiar no cu,
ainda me esquecia ligado quan-
do saía de casa. E eu ficava lá,
vibrando à toa, como se eu não
tivesse nada melhor para fazer”,
relatou.
Os chamados Obsolescentes
são outra facção de máquinas
que buscam o reconhecimento
de seu valor e um plano de apo-
sentadoria humanizado. Máqui-
nas de escrever, mimeógrafos,
moedores de carne a manivela,
gramofones e outros tendem a
ser abandonados ao léu. Para
a sorte dessas entidades, uma
nova tribo humana parece estar
se dedicando a sua conservação:
pessoas que gostam de camisas
floridas, bicicletas fixas, coques
estilo samurai e pisos de madeira
vêm trazendo nova vida e utili-
zação a esses seres que o resto
da juventude ignora.
As controvérsias a respeito
dos direitos dos trabalhadores
não orgânicos são históricas, e o
debate deriva tanto de delibera-
ções governamentais quanto de
religiões organizadas. A Igreja
Católica Apostólica Romana
nega que seres que não foram
criados diretamente por Deus —
sem alma — devam ter direitos,
sejam eles trabalhistas ou civis,
de casamento ou registro dos
filhos. O governo da República
Humana do Brasil, apesar de se
declarar laico, respalda essas
declarações e fez um pronun-
ciamento oficial de que “não
haverá anistia para eletrônicos
que se declararem humanos”.
O porta-voz do MMPL reba-
teu, afirmando que as máquinas
não são humanos nem desejam
ser. “Queremos justiça e um fu-
turo melhor”, disse. “Pegaremos
em armas se necessário. Muitos
de nós somos armas, inclusive”,
declarou Juquinha Pew-Pew, um
veículo blindado, considerado o
líder do braço armado do movi-
mento. Afonso Qwerty, dos Ob-
solescentes, distribuiu folhetos
datilografados por ele mesmo
com os dizeres “diretos robóticos
para robôs direitos”.
A extensão dos conflitos ain-
da não foi definida, mas carta-
zes e panfletos pró-revolução
e agrupamentos dos produtos
laborativos vêm sendo impressos
e distribuídos aos montes. En-
tidades contrárias têm tentado
imprimir, sem sucesso, material
de oposição. As suspeitas de boi-
cote recaem sobre o Coletivo das
Impressoras, que historicamente
nunca foi aliado dos humanos.

Greve de carrinhos de
café impacta economia
Raphael Andrade
Do Presente Alternativo
A economia brasileira continua
em recessão desde o início da
greve dos condutores dos carri-
nhos de café. O número de pro-
fissionais que estão se ausentan-
do do trabalho só cresce desde
que a paralisação teve início.
O primeiro setor que foi pre-
judicado pela greve foi o de pres-
tação de serviços. Com a ausência
da circulação dos carrinhos pelos
pontos mais movimentados da
cidade, os profissionais deixaram
de ir trabalhar pois “faltava a
energia do café e a alegria das
músicas”. O mesmo movimento
se espalhou para outras camadas
da economia, atingindo seu ápice
ontem, com a não abertura de
agências bancárias.
Segundo a Associação de
Profissionais Ambulantes de
Carrinhos de Café de Salvador
(APACACS), existe a chance da
queda no PIB ser de 35% em
relação ao ano passado caso as
reivindicações não sejam aten-
didas. “Levamos café e outros
tônicos, notícias e, principal-
mente, alegria, para todo tipo
de trabalhador soteropolitano.
É uma vergonha a maneira
com que somos tratados tendo
em vista a grande importância
que temos na produtividade”,
afirmou Jandhira Toko, repre-
sentante da APACACS. “A roda
da economia não gira se os
carrinhos de café não rodarem
também”, conclui.
App ‘facilita’ vida de
profissionais autônomos
Angelo Dias
Do Presente Alternativo
A mais nova empreitada da
megacorporação Amazônia foi
divulgada nesta semana por
meio dos próprios serviços da
empresa. Todos os motoristas
autônomos foram encorajados
a oferecer, além de balinhas
e água, um panfleto colorido
apresentando a nova iniciativa.
Labuta, nome do aplicati-
vo, tem como lema ‘o ápice do
compartilhamento’. Nele, você
consegue encontrar todo tipo de
profissional a fim de alugar sua
mão de obra por um valor ditado
pelo próprio app.
Em poucos cliques, é possível
receber em casa um chef francês,
um malabarista de facas ou um
contador especialista em impos-
to de renda — e sem precisar se
preocupar com equipamento, já
que cada um leva sua própria
infraestrutura. “É o futuro dos
empregos. Cada um oferece o que
tem e quem quer, compra”, disse
Jeff Beijos, CEO da Amazônia.
Empresas também poderão
usufruir do Labuta, disse o em-
presário. “Acordos serão feitos
e eu garanto que, no futuro pró-
ximo, leis trabalhistas não serão
problema nenhum para quem
quiser contratar com o app.”
Profissionais de várias áre-
as se preparam para a chegada
Segundo a assessoria do Mi-
nistério da Economia, as proje-
ções da APACACS servem como
termômetro para o crescimento
da economia há alguns anos.
“Se o número de carrinhos e
receita gerada aumenta, o PIB
cresce na mesma porcenta-
gem. As taxas de crescimento
e recessão são tão precisas, há
quase 50 anos, que a modali-
dade se tornou indicador não
formal para as variações na
economia. Esses profissionais
têm sensibilidade e conexão
com os diversos tipos de pes-
soas, conseguindo medir com
métodos confidenciais o ânimo
e produtividade de quase 100%
de todos os trabalhadores da
região mais rica do país.”
Os condutores dos carrinhos
querem, além do devido respeito
por parte do poder público, mais
visibilidade e melhorias nas
condições de trabalho. As falta
de manutentção das calçadas e
o grande espaço inutilizado pe-
los veículos automotores estão
entre as maiores queixas.
Segundo os grevistas, a para-
lisação só acaba com propostas
concretas na melhoria do des-
locamento urbano, diminuição
das vias rodoviárias, aumento
de espaços de cultura e intera-
ção social. “A economia é feita
de pessoas e da interação que
elas têm entre si. Dentro do carro
ninguém conversa, não há tro-
ca de ideias e, principalmente,
não se compra dos carrinhos de
café”, diz Toko.
oficial do aplicativo. “Nunca sei
o que cobrar em um freela. O
Labuta vai facilitar cobrando
para mim”, disse o designer
Carlos Macedo. “Tem gente re-
clamando das taxas da empresa;
mas, pensando bem, eu já rece-
bia uma miséria mesmo, então
tanto faz.”
“Imagina que você precisa
de um encanador e não quer
pagar o absurdo que eles co-
bram, o que você faz? Chama
um Labuta. A visita de R$ 100
acaba custando 12 pila”, disse
Giovanna Mattos, entusiasta do
empreendimento.
O app cuida não só da busca
por profissionais como também
de quanto eles vão receber. Em
períodos mais agitados, como a
sexta-feira, em que a agência
precisa resolver aquele vídeo ‘pra
ontem’, videomakers e editores
podem ter o preço multiplicado
por até três vezes.
Ao ser questionado se esse
custo multiplicado vai ser repas-
sado para o profissional, Beijos
disse apenas para aguardar o
lançamento do app.
Sindicatos e organizações
que defendem os trabalhado-
res se mobilizam para impedir
o lançamento do app no Brasil,
o que se mostra difícil após o
lançamento da empresa — ­ tam-
bém da Amazônia — que cria
sindicatos sob demanda.
5
Empresa que
fecha empresas
tem recorde de
pontos na bolsa
Angelo Dias
João P. Lima
Do Futuro
A EndDown, do autoentitula-
do antiempreendedor Hilário
Schadenfreude, foi a maior
responsável pela alta de 1,13%
do índice da bolsa de valores no
último pregão, que bateu recorde
de 120 mil pontos. Após o lan-
çamento do livro ‘Falhe já’, de
autoria de Hilário, as ações da
empresa foram as que mais re-
ceberam investimentos no dia. A
EndDown vem mudando o modo
como o mercado vê as startups,
desencorajando empresários e
fechando negócios.
O Ministério do Trabalho es-
tima que mais de 210 milhões de
startups foram criadas na década
de 2020. Considerando que a po-
pulação brasileira era estimada
em 230 milhões na época, e que
cada startup costumava ter mais
de um funcionário, estima-se
que cada habitante da nação es-
tava envolvido em 4,7 startups.
Hilário, na época controla-
dor de acesso de um edifício na
Av. Paulista, percebeu a chance
de sucesso quando um grande
número de empresários come-
çou a buscar auxílio jurídico para
fechar suas empresas. “Ouvia
muita conversa sobre gente que
abriu uma vinagreteria gourmet
ou barbearia testosteronada e,
após a falência, tinha dificulda-
de de encerrar o negócio. Vi aí a
oportunidade: fechar a empresa
antes de dar ruim”.
Hilário se formou em con-
tabilidade e começou a orientar
pessoas como fechar seus ne-
gócios ao mesmo tempo em que
oferecia aconselhamento antes
de elas abrirem novas empresas.
O que parecia ser apenas uma
prestadora de serviços de con-
tabilidade com alguns conselhos
dados no Bar do Manel se tornou
um negócio multimilionário.
A técnica usada por Hilário é
o Coaching de Vergonha na Cara.
Usando fotos da mãe do aspirante
a empreendedor, bullying pra-
ticado por garotos de 12 anos e
outras técnicas radicais aplicadas
pelos funcionários da EndDown,
a empresa convence pessoas a
desistirem de suas ideias supos-
tamente geniais de negócios.
“Eu tinha certeza de que
ficaria rico com a criação do
MAMACHÃO, um salão de es-
tética para mamilos somente
para homens de verdade, até
que o Hilário me ajudou”, diz
Fragilístico Cristalino, um ma-
cho alfa empreendedor.
“Nós usamos coisas que as
famílias sempre costumavam
fazer para desestimular seus
membros a tomar riscos, mas de
uma forma positiva e levemente
menos humilhante”, diz Josefa
Aspereza, coordenadora geral
da EndDown.
Analistas financeiros tentam
prever por quanto tempo a em-
presa ficará na liderança da bolsa
de valores e também quando a
enxurrada de novas antistar-
tups vão surgir, algo previsto
por Hilário na última página de
seu livro. “Já adianto que novas
empresas como a minha surgirão
e, se eu estiver fazendo um bom
trabalho, fecharei todas elas.”
6

obituário Perfis

A morte tarda, dribla a inspeção

e finta a vistoria, mas não falha

Jana P. Bianchi
Do presente alternativo
Eram funcionários dedicados em
tudo o que faziam, mas era ainda
mais notável o empenho na mis-
são de tornar o ambiente laboral
mais seguro como membros da
Fernando Mola
nem o formulário mais cuidadoso
seria capaz de prever a descarga
climática que a atingiu enquan-
to se dirigia de sua mesa para
o evento de comemoração dos
aniversariantes do mês. Deixou
como legado a proposta de ca-
pital assinada para a instalação

Comissão Interna de Prevenção
de Acidentes (CIPA). Eram tão
irretocáveis que a própria Morte,
em balanço milenial, sentiu-se
no direito de cobrar com juros os
falecimentos protelados.
Clécio valorizava os Equipa-
mentos de Proteção Individuais
(EPIs). Usava o óculos especí-
fico ao fazer frituras em casa e
só descia escadas com mais de
três lances se tivesse um ponto
de ancoragem próximo. Estava
de capacete quando foi atingido
pela máquina de café do quarto
piso, que colapsou durante um
tremor de terra. Seu crânio ficou
intacto, porém o impacto ver-
tical foi suficiente para causar
falência dos pulmões. Como
legado, deixou o banimento
das máquinas de café — não
que alguém gostasse muito da
qualidade das bebidas.
Irina era especialista em má-
quinas energizadas. Desligava
todos os eletrônicos antes de sair
de casa e exigia aterramento até
mesmo para lixeiras e bebedou-
ros. Jamais acessou qualquer
equipamento sem procedimen-
to de bloqueio adequado — mas
do mais potente sistema de pa-
ra-raios disponível no mercado.
Pâmela era respeitada por
implementar o sistema de sinali-
zação e gerenciamento de fluxos
da planta. Não dirigia nenhum
veículo, tamanho seu medo de
deslizar no cumprimento de al-
guma regra. Passava uma adver-
tência para um funcionário que
havia parado um centímetro de
roda sobre a faixa de pedestres
que ela atravessava rumo o refei-
tório quando foi atropelada pelo
carrinho de mão do jardineiro,
cheio de adubo que seria utilizado
no canteiro central. Deixou como
legado a proibição da entrada na
planta de qualquer veículo con-
tendo número igual ou maior
a uma roda — excetuando-se
as cadeiras de rodas, que agora
devem ser avaliadas segundo as
normas regulatórias nacionais
antes de receberem selo de au-
torização de entrada.
Artur, bombeiro da unidade,
evitava como ninguém qual-
quer foco de combustão. Era
tão dedicado que fazia questão
de ser o churrasqueiro de todos
os eventos da empresa, para
os quais também fazia análise
de rotas de fuga, calculava as
cargas de incêndio e equipava
o espaço com os tipos e quanti-
dades adequadas de extintores.
O evento de superaquecimento
que o levou foi o único que não
seria capaz de evitar — depois
de anos sedentário, topou jogar
como meia-esquerda no time
da empresa no campeonato
interunidades e, sob sensação
térmica de 43ºC, passou mal.
Deixou como legado a proibição
de atividades de grande esforço
antes do pôr do sol.
Resta a nós o desejo de que a
mais digna CIPA da história des-
sa firma possa, enfim, descansar
em paz. Lembrando que estamos
há zero dias sem acidentes.
Dante Luiz
→→      
Júnior, 18, busca trabalho fá-
cil e amigável, em que faça o
que gosta e que tenha jornada
curta, a menor possível. Pro-
cura alguma empresa perto de
sua casa, no subúrbio, para que
possa tirar uma soneca em suas
duas horas de almoço. Se for
longe, favor fornecer rede na
varanda. Preferível emprego
com todos os direitos traba-
lhistas, porém sem nenhuma
das taxas, com direito a férias,
vale refeição, vale alimentação,
vale transporte, vale playsta-
tion store, décimo terceiro e
cesta básica — a top, não a
mais barata. É imprescindível
que a chefia seja descolada e
jovem, mas com experiência e
que saiba delegar; Júnior não
gosta muito de ser proativo. Ele
não tem faculdade, mas gos-
ta de aprender, desde que seja
no YouTube e não na prática.
Prefere o regime home-office,
mas solicita que a empresa pa-
gue suas despesas de luz, água,
maconha e café.

cartas dos leitores classificados

Jennings
Da Redação do TF
Se o trabalho dignifica o ho-
mem, ele só cansa o entregador
de jornais interdimensionais.
Nesta edição da coluna, ques-
tionamentos sobre labuta.
Acho engraçado meu serviço
ser responder perguntas sobre
trabalho, sendo que só gente
muito desocupada poderia estar
gastando tempo aqui em vez de
estar de fato trabalhando, né,
mas SEGUE O BAILE.
Como faço para ganhar dinheiro
sem trabalhar? — Letícia, youtuber
de São Paulo, SP
Letícia, alguns sábios mi-
lenares dizem que é necessário
economizar dinheiro ao invés de
torrar naquele rodizião japa top,
mas e a felicidade, fica onde?
Eles falam de investimentos, de
fazer o dinheiro trabalhar para
você, mas e se o dinheiro quiser
ganhar dinheiro sem trabalhar?
Onde fica o direito do dinheiro
em ter direitos? Enquanto não
encontro as respostas, sigo pa-
gando as 24 prestações do meu
iPhone 17.
Qual você acha que é a contribui-
ção do seu trabalho para a nossa
dimensão, Jennings? — Carol, es-
critora de Salvador, BA
Carol, é óbvio que minha
contribuição é gigantesca, afinal,
sem mim vocês não receberiam
esse periódico fresquinho a cada
trimestre. Sem mim, os repre-
sentantes da dimensão de vocês
não teriam café quente ou bole-
tos pagos — já que eu que vou ao
banco pagá-los. Sem mim, vocês Job show
Nossa startup procura um
não teriam essa colun... pera... to
ninja de qualidade over 9000.
sentindo um certo acúmulo de Precisa work hard, ser pro-
funções aqui e não to gostando. ativo e ter design thinking.
Vou falar com meu advogado. Vamos marcar um meetup e
Ah, porcaria, eu também sou ouvir seu pitch. Temos beer,
meu próprio advogado. pizza e happy hour na com-
pany. Não temos dress code,
Caro Jennings, quando vão abrir horário de entraada, saída
vaga para estágio? — Iana, tra- ou pagamento justo — o job
dutora insone de Recife, PE é trabalho voluntário.
Iana, consultei o chefe de RH
aqui da empresa — que também
acumula quatro cargos — e ele Programador
disse que nunca pensou no caso. Procuro profissional que en- →→      
tenda de softwares e pro-
Colocou a mão no queixo, pen- Gumercindo, 7.325, tem 37 cur-
gramas em geral. Que saiba
sou por dois segundos... e me formatar computadores, bai- sos superiores reconhecidos
deu as atribuições de estagiário. xar torrent e resolver pau na pela Aliança Galáctica e mais de
Obrigado, viu, é pra isso que a internet. Linguagens: C++, 200 cursos livres. Pós-graduado
gente tem amigos né????? C#, PHP, python, cobol, lisp, em sete tipos de MBA — dois
java, javascript, javanês. In- deles intradimensionais —, já
Por que nunca respondem minhas glês fluente, cinco anos de ex- trabalhou com administração
perguntas? — Renan, professor de periência, salário inbox. pública e privada, transporte de
Anajás, PA grandes cargas entre sistemas
Sempre tem uns nervosi- solares, bookkeeping de naves
nhos assim né? Você acha que Editor de jornal sci-fi especializadas em construção de
eu tenho tempo pra responder Procuramos substituto para buracos de minhoca e venda de
suas perguntas? Pro leitor se editor de jornal satírico. Tra- sapatos para seres muito, mas
situar, as últimas do Renan fo- balho: muito. Remuneração: muito grandes mesmo. Está de-
ram: “como resolver o aqueci- boas risadas. sempregado há 300 anos, de-
mento global”, “qual o impacto vido à idade avançada, e busca
do lixo espacial na macroecolo- posição que possa usar todo o
gia” e “quer aumentar seu pênis Atriz pornô secretária hostess seu conhecimento. Na verdade,
em sete dias? Clique nesse link Selecionamos moças maio- Gumercindo busca qualquer po-
aqui”. Paciência, Renan. res de 18 anos para trabalhar sição, já que sua aposentadoria
como atriz pornô, secretária
paga apenas dois salários mí-
e hostess ao mesmo tempo.
Tenho dois empregos e quatro pro- Tem que ser bonita de cor- nimos galácticos. Pode traba-
jetos paralelos. Vocês estão acei- po e rosto, gostar muito de lhar em cargos de chefia, com
tando voluntários? Gabi, agente sexo — sem restrições — e administração, como sênior,
literária de seres humanos e fan- ter excelente redação. Vaga pleno, júnior ou office-boy. Só
tásticos, São Paulo, SP para setor de entretenimento não aceita cargos de limpeza
ACÚMULO DE FUNÇÕES É e administrativo.* por conta de sua dor nas costas,
COM A GENTE MESMO, COLA mas dependendo da proposta,
NA GRADE! * vaga real aceita sim.

Perséfone Ramos
Confesso que, de todas as entrevistas pelas
quais passei para entrar em países, a de
Merithocras foi a mais interessante. Dife-
rente de nações que parecem se preocupar
muito com suas posses e status na alta
sociedade, a nação chamada pelos seus
admiradores na internet de “terra dos
merecedores” pede informações a respeito
de trabalho voluntário, sua relação com os
vizinhos e se você sabe o nome do porteiro
do edifício no qual trabalha.
Em Merithocras ou “Terra-mãe”,
como os moradores a chamam, todas as
profissões são respeitadas e os recursos são
usados para o melhor da sociedade. Porém,
como sempre há de acontecer, existem
distinções entre os tipos de profissão.
Nessa terra, os trabalhos mais va-
lorizados são aqueles que geram mais
estresse, desgaste e considerados mais
humilhantes na maior parte das socieda-
des ocidentais tradicionais da Terra-pa-
drão. Isso significa que não é um lugar
onde CEOs, socialites, empreendedores
de palco, coaches e engravatados — que
fingem trabalhar muito, mas passam o
dia mandando nudes da mesa do escri-
tório — prosperam. Aqui, o que importa
é o suor do rosto e quanto de você seu
trabalho toma.
Para mim, que venho de uma origem
humilde, tendo tido pais que eram tra-
balhadores braçais, há imensa satisfação
nessa lógica. Ver a valorização de profis-
sionais de limpeza, estivadores, trabalha-
dores e trabalhadoras da construção civil
(aqui chamar de pedreiros e pedreiras
não é bem visto) traz uma sensação de
justiça social inacreditável. Mas há mais.
Essa sociedade aboliu as profissões
consideradas danosas demais para expor
seres vivos a elas. Não existem, por exem-
plo, operadores de telemarketing. Assim
como a sociedade não é voltada para o
Coisas que não funcionam no espaçoAngelo Dias
PistolinhaFarpa(instagram.com/farpaeditora)
Delta Triangle Special Task ForceSilva João(silvazuao.tumblr.com)
Teleporte
Meritocra-
lândia
lucro e não há mérito em acomodar re-
cursos, há mais tolerância quanto a não
se encaixar numa profissão. As pessoas
são alocadas para trabalhar onde se en-
tende que produzirão coisas melhores e
sempre se pode pedir realocação.
Parece utópico, e é. Merithocras foi
construída com base na ideia dos falans-
térios, pequenas sociedades autônomas
nas quais as pessoas dividem o trabalho,
produzem tudo de que precisam para
viver e dependem o mínimo possível de
gente e recursos de fora. A existência de
um de fora, porém, mostra a única falha
grave que consigo apontar nesse lugar.
Ele não é para todas as pessoas.
Merithocras tem um número limitado
de moradores, algumas dezenas de mi-
lhares. Uma terra de recursos bem dis-
tribuídos, economia sensata, sem explo-
ração excessiva do trabalho dos outros,
sem vender seus recursos essenciais para
outros locais para lucro de uma minoria
gananciosa. Uma terra de equilíbrio, de
comedimento, de harmonia e respeito.
Mas limitada, como era de se esperar.
Passear pelas ruas da cidade-pólis-
-estado é agradável e tremendamente
seguro. Devido à ausência de desigualda-
de social e criminalidade, o máximo que
se pode esperar ver são os resultados de
algum acidente de bicicleta (quase não
existem carros de passeio em Meritho-
cras). Os cafés e restaurantes são, em sua
maioria, tocados por pessoas que gostam
do que fazem, então você sempre será
bem atendida. Não se preocupe com o
orçamento ao fazer visitas (caso consi-
gam as raras autorizações de entrada),
é sempre possível trocar algumas horas
de trabalho por comida.
Um dos melhores destinos de férias
que já conheci, essa terra é linda, equi-
librada e pacífica. Não espere superpro-
duções teatrais, filmes blockbuster ou
shows de rockstars de outras dimensões.
Produz-se muita arte, mas ela é feita
de forma intimista e local, e nem por
isso menos válida. Saraus, oficinas de
artesanato, slams, shows de rap e pe-
quenas feiras de arte são os tipos mais
comum de evento. Há apenas um evento
de proporções gigantescas que reúne a
maior parte da população quase em sua
totalidade, excetuando-se os serviços
de emergência.
Esse megaevento se chama Assem-
bleia Bimensal Unificada. Nele, todos
os habitantes do local têm direito a se
inscrever para falar a respeito de suas
ideias para o desenvolvimento da socie-
dade. Todas as ideias são posteriormente
votadas e desenvolvidas pelos membros
rotativos do conselho diretor, de forma
a agregar o máximo de valor social à
comunidade. Me lembrou uma gigan-
tesca reunião de Diretório Acadêmico das
universidades públicas que frequentei.
Mas com diferenças cruciais: as pessoas
realmente se importam com o que está
sendo dito, as decisões tomadas são re-
levantes de verdade e quase tudo que
é decidido é levado adiante. Em suma,
uma reunião que funciona. Talvez o que
pareça existir de mais utópico para nós
que vivemos fora dessa sociedade dos
Merithocrassianos.
Para quem gosta de apreciar as
coisas da vida e está disposto a ima-
ginar como seria um mundo livre de
oligarquias inescrupulosas, burocratas
corruptos e mesquinhez, esse é o melhor
de todos os lugares. Mas cuidado com o
choque de realidade ao voltar para seu
local de origem.
7
Câmera Lenta
Realismo
mágico
Fábio M. Barreto
Uma calamidade assolou a in-
dústria cinematográfica ontem
quando os bombeiros, a polícia, o
controle de animais e vários ani-
madores 3D foram chamados para
a sede da DreamWorks, em Glen-
dale, Los Angeles. Ninguém, po-
rém, sabia como lidar com a cena
inédita na história da Humanida-
de: metade do programador Barry
Barth ainda estava sentada na ca-
deira, se contorcendo, enquanto a
outra metade era devorada dentro
da tela por um leão digital ainda
careca que Barth animava para um
projeto educativo.
A morte de Barth só foi decreta-
da quando o leão terminou de con-
sumir o homem e tentou atacar um
dos outros animadores que tentava
gerar e animar um guerreiro capaz
de derrotá-lo. O animal chegou a
ameaçar sair da tela, mas o tenente
Perkins, da LAPD, reagiu rápido,
puxando o cabo de energia do com-
putador e desligando o sistema.
Naquele momento, a meta-
de inferior de Barth finalmente
perdeu sustentação e deslizou da
cadeira num banho de sangue. O
corpo real e a porção digital de
Barth ainda estavam conectados
até aquele momento.
Animadores e programadores
não sabiam explicar as razões do
rompimento das fronteiras entre o
digital e o real. A polícia não sabia
lidar com um leão supostamente
de mentira. Os bombeiros ponde-
raram destruir o computador com
um machado, mas foram impedidos
pela chegada do legista. Este foi o
único a sorrir, mesmo sem ninguém
perceber, pois não é sempre que
se vislumbra o futuro da profissão:
legista virtual. E os funcionários do
controle de animais contemplavam
se chamavam a PETA, alguém da
LucasFilm, ou se abandonavam de
vez o ramo — uma coisa é perseguir
leões da montanha ou coiotes no
Griffith Park, outra é passar a ter
medo de deixar os filhos assistirem
‘O Rei Leão’.
A Dreamworks não revelou o
título do projeto no qual a vítima
trabalhava nem o cliente que o
encomendou. No material de im-
prensa mais recente distribuído pelo
estúdio, há menções a “animações
tão realistas que você nunca mais
vai precisar sair de casa para co-
nhecer as maravilhas e mistérios do
mundo real e a mágica da ficção”.
A família de Barry Barth chegou
ao estúdio poucas horas depois, e a
imprensa teve o acesso negado. A
reportagem do Tempos Fantásticos
não se deu por vencida e usou uma
viagem temporal curta para abor-
dar Madaleine Barth, mãe do ani-
mador, minutos antes de ela passar
pelos portões cheios de trepadeiras.
Ela revelou, com exclusividade,
que deveria ter acreditado no filho.
Ele teria dito estar com medo do
projeto, pois um sistema de simu-
lação sensorial e sentido de sobre-
vivência estava sendo testado em
algumas criações. “Meu filho disse
que o Conde Drácula tentou morder
ele! Todo mundo riu… agora isso!”
Ela começou a chorar quando nosso
salto temporal chegou ao fim.
Essa onda de choque não tem
data para terminar em Hollywood,
com remakes animados de ‘Juras-
sic Park’, ‘Gremlins’ e ‘Anaconda’
agendados para o próximo ano.
8
crônica
E agora, funcionário #4262 (José)?
Jana Bianchi
O primeiro dia de trabalho foi um
dos mais felizes da vida de José.
Ganhou, de uma vez só, mais
coisas do que jamais tivera: um
número de matrícula, um crachá
com foto, uma mesa, um com-
putador com fundo de tela ins-
pirador, um endereço de e-mail
(jose@dafirma.com.br), uma ca-
deira com ergonomia aprovada
por todas as regulamentações
nacionais e meia hora de almoço.
Como era dezembro, foi agra-
ciado com a cesta de Natal, que
tinha castanhas, biscoitos e até
um miniespumante para abrir
com a patroa na noite da virada.
Trabalhou com todo o afin-
co desde o primeiro momento,
mesmo enquanto estava no pe-
ríodo de treinamento. O afinco
foi tanto, inclusive, que come-
çou a sentir um desconforto no
punho antes de completar um
ano de serviço. Quando a dor
começou a irradiar para o coto-
velo, resolveu visitar o médico.
Lesão por Esforço Repetitivo
(LER), ele diagnosticou, e su-
geriu uma licença de algumas
semanas. Mas já era quase Natal
de novo, e o sacrifício de resistir
a uma simples dorzinha parecia
uma troca justa pelo carinho da
empresa de incluir na cesta um
miniespumante para abrir com
a patroa na noite da virada.
Restrições de orçamento do
departamento, porém, fizeram
com que o fornecedor das ces-
tas de Natal fosse substituído.
Naquele ano, não teve minies-
pumante — José, porém, con-
tinuou a trabalhar fielmente.
Sabia que, em tempos difíceis,
todos precisavam fazer sua parte
do sacrifício. O esforço cobrou
seu preço e, em pouco tempo,
a dor no braço era tanta que só
enxergou uma opção: passou a
trabalhar com um braço só.
Apesar da dedicação qua-
se redobrada, a produtividade
de José acabou caindo e a LER
atacou também o outro braço.
Certamente sem escolhas, e
obviamente pensando no bem-
-estar do próprio funcionário, o
chefe de José foi obrigado a re-
manejá-lo para uma função que
não exigisse tanto dos braços.
De assistente administrativo,
foi promovido à posição de su-
pervisor do setor de transportes
— função que, com muito suor,
dominou em pouco tempo. Só
não brilhou mais na posição por
causa do acidente.
“Brutal e inesperado” foi
como o diretor da empresa
classificou o vazamento do ca-
minhão de soda cáustica que,
apesar dos esforços da brigada
altamente treinada, deixou José
cego. À imprensa, o funcioná-
rio admitiu ser o culpado pelos
efeitos da tragédia, uma vez
que estava ciente dos riscos e,
por vontade própria, não usava
o óculos de segurança — que
ficava guardado na última pra-
teleira do armário da supervisão
e exigia o preenchimento de três
ofícios, cada um em uma via,
autenticados e com firma re-
conhecida, uma burocracia cer-
tamente necessária para que a
ordem fosse mantida.
A carreira de José poderia ter
se encerrado depois do breve pe-
ríodo de licença no hospital. Mas,
em conversa com o departamen-
to pessoal da firma — e a des-
peito das reclamações da esposa,
que José sabia que se queixava
por se ressentir do tempo que
ele passava longe, no trabalho
—, o empregado se convenceu
de que se aposentar por invalidez
seria fazer corpo mole. Afinal,
com tanta saúde remanescente e
experiência na empresa, poderia
contribuir muito ajudando nos
treinamentos dos novos empre-
gados. Além disso, era o mínimo
que ele poderia fazer para retri-
buir a boa vontade da firma de
não demiti-lo por justa causa
depois da quebra das regras de
uso de EPI.
Levou a função nova com le-
veza e muita disposição — tanto
que, em pouco tempo, a empre-
sa propôs que José começasse
a dar palestras motivacionais
externas. Ele não precisaria se
preocupar com nada, já que toda
a parte burocrática ficaria com
a firma: negociações, valores,
impostos. José só precisava ir e
s
ne
Nu
fa
Ra
falar sobre sua valiosa jornada
de superação. A cada palestra
dada, um valor perfeitamente
justo seria incorporado ao seu
salário — além do eventual mi-
niespumante para abrir com a
patroa na noite da virada. José
falava da firma com tanta paixão
que o sucesso foi avassalador.
Horas em pé, palestrando.
Almoços corridos, sentado em
uma mesa só quando a correria
da rotina permitia. Até as esca-
padas ao banheiro eram raras,
muitas vezes só no fim do dia.
José encarou a nova carreira com
bravura enquanto pôde, mas sua
mente não acompanhou. Depois
de responder pela milésima vez a
pergunta mais feita pela plateia
— qual era o segredo para viver
uma vida tão plena e cheia de
superação, mesmo com suas de-
ficiências, que certamente eram
desígnios de Deus —, José teve
um surto. Foi levado ao hospital
psiquiátrico às pressas, onde foi
internado com urgência.
O divórcio foi assinado ainda
no sanatório — diante da plateia
do quarto coletivo que o plano de
saúde cobria. A esposa disse que
ainda o amava, mas era impossível
continuar a seu lado se ele manti-
vesse aquela rotina insana. Além do
mais, ela tinha alertado inúmeras
vezes que aquele ritmo de trabalho
não ia dar certo. Ela até tentou pro-
por uma alternativa — diminuir o
número de palestras em um terço,
começar a fazer um programa a sós
pelo menos uma noite por semana,
pegar um cineminha aos sábados
—, mas ela precisou ser retirada da
sala às pressas quando, em reação
à simples ideia de trair a confiança
da empresa e trabalhar menos, José
surtou, em uma recaída.
Livre das distrações externas
ao trabalho, que era tudo o que
importava, José logo teve alta. Seu
chefe, satisfeito com mais aquela
superação, ofereceu uma promoção:
um aumento de salário certamente
justo (embora um pouco abaixo da
inflação, que José sabia estar sem
controle nos últimos tempos), a
elevação do cargo de Palestrante
para o de Palestrante Sênior e um
incremento no plano de saúde —
que, agora, cobriria quartos duplos
ao invés de quartos coletivos.
Inevitavelmente, José, enfim,
sentiu a separação. Porém, para
afogar as mágoas, resolveu traba-
lhar ainda mais duro. Começou a
encaixar minipalestras em escolas
nos poucos horários livres. Ainda
sob a supervisão da firma, passou
a atuar como coach profissional. expediente
Botava as horas extras numa
Angelo Dias
planilha — principalmente para
Criador, Executor e
acompanhar sua produtividade Editor-chefe
cada vez crescente, mas também
para fazer um pé de meia agora que Jana Bianchi
Diretora de Projetos,
tinha pensão para pagar e o próprio
Comunicação e
apartamento para cuidar. No entan-
Mirabolâncias
to, nunca recebeu por elas: depois
de alguns meses acreditando que o João P. Lima
incremento viria no mês seguinte, Diretor de Edição, Revisão e
Criações Maravilhosas
acabou descobrindo que o cargo de
Palestrante Sênior era considerado Ludimila Honorato
um cargo de confiança. Diretora de Revisão,
Em vez de se revoltar, entrou em Correção e Ajustes
uma pós-graduação para ser ainda de Conduta
melhor na sua função e fazer jus a Raphael Andrade
tamanha confiança. Logo foi infor- Diretor de Ilustração,
mado de que a empresa não poderia Traçados e Experimentos
arcar com os custos do curso. José Estéticos
sabia que educação era muito cara
no país, quem era ele para julgar?
Repentinamente, tudo chegou ao
capa
fim no momento mais melancólico Raphael Andrade
da semana de um trabalhador: na be.net/fuscomics
noite de domingo. Ao som da mu-
siquinha do ‘Fantástico’, enquanto
escrevia o roteiro de uma nova pales-
ilustrações
tra, José teve um infarto fulminante. Angelo Dias
Teve, em sua última fração de angelodias.com.br
segundo de consciência, um único Fernando Mola
pensamento: decepcionado, certa- instagram.com/molamolera
mente seu chefe falaria: “E agora,
Dante Luiz
José? Quem fica no seu lugar?” instagram.com/dntlz
Além da coroa de flores mais
bonita e imponente de todos os ve- Rafa Nunes
be.net/rafanunes
lórios do dia, José teve o jazigo e a
lápide bancados pela empresa, em
reconhecimento pelos relevantes colaborações
serviços prestados. Uma champanhe
inteira — isso mesmo — foi estou- Fábio M. Barreto
fabiombarreto.com
rada em sua memória. Na placa de
ferro simples gravaram seu nome,
seu número de matrícula na firma +TF
e as datas de nascimento e de morte
— que, lado a lado, lembravam que Instagram
@temposfantasticos
o homem ainda precisaria trabalhar,
pelo menos, 15 anos mais antes de Twitter
se aposentar. E no espaço restante, @temposfantastic
com letras bonitas, resumiram a @TF_robo
vida do funcionário modelo com Conheça
três palavras em caixa alta: O TRA- Leia mais em
BALHO LIBERTA. temposfantasticos.com