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A CRISE DO MITO NO DE$IGN


IVAN ALEXANDER MIZANZUK

A CRISE DO MITO NO DE$IGN .

Trabalho de Conclusão de Curso


em Desenho Industrial - Programação Visual
pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná

1o Semestre de 2007
A toda minha família, cujos membros
(sem exceção) sempre me forneceram
modelos, suporte e uma estrela guia.
Nada seria possível sem vocês.
AGRADECIMENTOS

Meus mais sinceros agradecimentos a Emerson Mizanzuk,


Maria Terezinha Galvão e Mariana Galvão Ferrarini, que além de mode-
los, sempre foram portos-seguros para mim.
Agradeço também Dalva Konfidera, cujo sem o apoio eterno,
nada disso seria possível de ter sido realizado.
A Lucimara Ribas Bueno, pela constante atenção e carinho que
oferece sem nunca pedir nada em troca.
A Luciana Segall, que mesmo estando às vezes distante, tem
sempre seu espírito presente.
Aos meus colegas e ao pessoal do Centro Acadêmico de
Design da PUC-PR, que sempre me deram grande auxílio nos pro-
jetos mais incomuns.
Às psicólogas Kátia Voigt e Aracéli Bueno Spannemberg do
Centro de Estudos em Psicologia Analítica Archés pelas incontáveis
horas de atenção e discussões.
Aos professores Carlos Roberto Romaniello e Paulo D`assumpção
Zaniol pelos constantes conselhos e críticas sempre construtivas.
Ao professor Ericson Straub pelas oportunidades que me
ofereceu.
Aos professores Haroldo de Paula e Alex Antônio Ferraresi, cujas
questões levantadas em sala de aula foram fundamentais na minha
formação como “ser humano pensante” (principalmente quando os
pontos de vista discutidos em sala eram divergentes).
E um agradecimento especial ao professor Fernando Bini,
cujas indicações de livros, orientações e principalmente conversas
extra-classe me guiaram às direções que são condizentes com o meu
espírito.
“... nem é preciso dizer que todas as personagens, vivas, mortas
ou mortas-vivas, utilizadas nesta história, são fictícias ou foram
usadas em um contexto fictício.

Só os deuses são reais.”

Neil Gaiman, introdução de “Deuses Americanos”


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 13

I. A NATUREZA DO MITO
1. MITOS E RITUAIS 17
2. UMA CRISE MITOLÓGICA 21
3. O MITO E O DESIGN 27

II. O PENSAMENTO DE CARL G. JUNG


1. HISTÓRICO DE CARL G. JUNG 33
2. INCONSCIENTE COLETIVO, ARQUÉTIPO E SÍMBOLO 35
3. A FUNÇÃO DO SÍMBOLO 39
4. O SÍMBOLO E O DESIGN 47

III. O DESIGN E O CONSUMO


1. O QUE É “DESIGN”? 51
2. HISTÓRICO DO DESIGN 53
3. O CONSUMO COMO NOVA RELIGIÃO 59

IV. UM RETORNO ÀS ARTES


1. UMA REAPROXIMAÇÃO 67
2. O QUE É “ARTE”? 73
3. A ARTE EM SUA FUNÇÃO MÍTICA 83
4. DESIGN: UM EQUILÍBRIO PROPOSTO 91

V. UMA NOVA CONSCIÊNCIA


1. CRIAÇÃO DE IMAGENS RICAS E MODELOS DE
PROPOSTAS PASSÍVEIS DE ALTA-SIGNIFICAÇÃO 95
2. EXEMPLOS DE UMA “NOVA” CONSCIÊNCIA 99

CONCLUSÃO 105

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 107


Introdução

Não é necessário ser um grande sábio detentor dos maio-


res segredos da humanidade para que se perceba que estamos em
tempos de grandes mudanças. Paradigmas vêm sendo quebrados a
todo instante, e sempre em momentos desse porte, em que ocorre
uma drástica transição de pensamentos, são os mitos que nos dão
suporte.
No entanto, além de uma crise de modelos de pensamento,
vivemos também uma crise mitos centrais, fator de tamanha impor-
tância que pode implicar no declínio de toda uma civilização – tanto
de dentro para fora como o contrário também.
Lembramos que Mitos são redes de Símbolos: estes, por sua
vez, não são gerados de maneira consciente, mas se dão a partir da in-
teratividade de aspectos inerentes à psique humana, como no diálogo
entre a consciência e a inconsciência.
Sendo o designer um novo “produtor simbólico” do meio
social, cujos signos produzidos ganham vida própria no ambiente
das massas, é ele que preenche nos dias de hoje a função do artista
de tempos atrás. É ele (também) que traduz em diversas mídias as
tradições, costumes, culturas e pensamentos de um determinado ni-
cho social. Em suma, o designer hoje é o espelho simbólico de uma
psique coletiva.
Há então uma função mítica no design, remanescente da sua
predecessora, a arte. Essa função, por sua vez, não deixou de atuar
ativamente na sociedade: ela continua ali, em contato conosco no
dia-a-dia.
Mas em um ambiente que já não possui mais mitos cen-
trais reguladores, com constantes quebras de verdades pré-postula-
das em tempos passados, e, acima de tudo, frente um incentivo cada
vez maior em moldar um “ser humano ideal” como um “elemento
social consumidor “, como é que o designer pós-moderno tem se
comportado? Qual tem sido a natureza de suas criações? Que tipo de
conseqüências e atitudes devemos esperar frente esse paradoxo, no
qual ao mesmo tempo que vivemos crises de mitos, temos produzido
símbolos coletivos em escala nunca vista antes?
São esses os tipos de reflexões que o trabalho presente se
propõe a fazer: posicionando o designer como um agente extrema-
mente ativo na criação dos mitos modernos e refletir qual seriam as
possibilidades e caminhos mais saudáveis em direção ao bem comum
dentro de tal situação.

I. A Natureza do Mito
1

Mitos e Rituais

O dicionário define “Mito” da seguinte forma:

“1.Fábula que relata a história dos deuses, se-


mideuses e heróis da Antigüidade pagã. 2.
Interpretação primitiva e ingênua do mundo e de
sua origem. 3. Tradição que, sob forma alegórica,
deixa entrever um fato natural, histórico ou filo-
sófico. 4. Exposição simbólica de um fato.”

É notável nos dias atuais a idéia de que o mito realmente


seja apenas uma história ingênua e primitiva. No entanto, o mito é
também um fator cultural transcendente, que possui sua origem no
âmago da alma humana. Quando a razão falha, é o mito que entra
em cena. Logo, ao tomarmos por base as definições apresentadas pelo
Dicionário Brasileiro de Língua Portuguesa, a definição que mais
nos será útil, dentro dos moldes de interesse da presente monografia,
será a definição “4”, que ainda assim, peca pela demasiada restrição
da verdadeira função de um mito.
Em comunidades consideradas primitivas, o mito é lei. Mas
mais do que isso, é o mito a ponte que liga o “todo” ao “indivíduo”,
fazendo com que este sinta-se parte fundamental do funcionamento
e vida do sistema em que está inserido. Citando Junito de Souza
Brandão:

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Dicionário Brasileiro de Língua Portuguesa – Encyclopaedia Britannica do Brasil, 1990.
18 A CRISE DO MITO NO DESIGN A NATUREZA DO MITO 19

“Em outros termos, mito, consoante Mircea so, falecido no século passado, explicou em algumas de suas entre-
Eliade, é o relato de uma história verdadeira, vistas com Bill Moyers sobre essa função transcendente que o mito
ocorrida nos tempos dos princípios, illo tempore, oferece.
quando com a interferência de entes sobrenatu- Para ele, os mitos eram formas que os antigos encontraram
rais, uma realidade passou a existir, seja uma re- de colocar a mente em equilíbrio com o corpo. Isso porque a mente
alidade total, o cosmo, ou tão-somente um frag- pode às vezes funcionar como um componente independente, que-
mento, um monte, uma pedra, uma ilha, uma rendo e exigindo coisas que o corpo não quer. Já com o auxílio do
espécie animal ou vegetal, um comportamento mito, ambos entravam em harmonia, pois assim a mente poderia
humano. Mito é, pois, a narrativa de uma criação: compreender algo que o corpo físico não teria contato ou capacidade
conta-nos de que modo algo, que não era, passou de suportar.
a ser”. Desde a infância somos educados em um “mundo de dis-
ciplina”, e a medida que crescemos, nos é necessária uma série de
O que seriam esses “entes sobrenaturais”? Tal assunto será passagens e rituais que indiquem o desenvolvimento pessoal, o “ca-
abordado nos capítulos a seguir, mas podemos adiantar que o sobre- minhar com as próprias pernas”. Caso tais tarefas não sejam bem
natural é “aquilo que foge da razão humana”. A partir do momento sucedidas, há o grande risco da criança tornar-se neurótica, “travada”
que a razão não encontra respostas, o fenômeno ocorrido com o in- em um determinado comportamento que poderá ser-lhe nocivo nos
divíduo resultará em uma explicação que foge aos padrões racionais anos vindouros. É como possível forma de evitar tais casos que o
coletivos. Nesse momento, o indivíduo possui dois caminhos: acei- mito desempenha fundamental papel.
tá-lo ou ignorá-lo. Sendo a Morte o “desengajamento definitivo”, o mito tam-
Ao aceitá-lo, automaticamente ele participará de um proces- bém nos oferece a aceitação e compreensão dessa fase natural e ine-
so de vivência de um mito vigente. Seja o mito pessoal ou coletivo, o vitável da vida. Nas palavras de Campbell:
indivíduo passará a vivenciar o aspecto de sua existência que mais se
aproxima do divino, do numinoso, e toda vez que o mito tornar-se “E finalmente a morte. É o desengajamento defi-
ativo em sua vida, estaremos presenciando o acontecimento de um nitivo. Assim, o mito precisa servir aos dois pro-
ritual. Afinal, a função principal do ritual é justamente a de dar nova pósitos, induzir o jovem a participar da vida do
vida ao mito, impedindo este de morrer e/ou tornar-se frio, fraco, seu mundo – esta é a função do folclore – e depois
obsoleto. desengajá-lo. A idéia folclórica desencadeia a idéia
As definições sobre o mito em si são diversas, e é difícil uma elementar, que guia você na direção da sua pró-
consenso entre todas as definições. No entanto, para a presente pro- pria vida interior.”
posta desse trabalho, a definição apresentada no início desse capítu-
lo é mais do que satisfatória, e deverá ser melhor elucidada quando O mito então também se demonstra como esse acervo de
abordarmos os conceitos apresentados por Carl G. Jung em suas conhecimento infindável, que remete aos homens mais antigos e o
Obras Completas. seu modo de compreensão do mundo. Além disso, há também um
Mas reflitamos sobre a função de “ligação” que o mito ofere- grande respeito pelo meio em que se está inserido, fazendo o homem
ce ao homem. Joseph Campbell, antropólogo mundialmente famo- ����������������������������������������������������������������������
CAMPBELL, Joseph. “O Poder do Mito”. São Paulo: Palas Athena , 1990.
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Op. Cit.
 BRANDÃO, Junito. “Mitologia Grega - Vol. I”. Petrópolis: Vozes, 1985. ���������
Op. Cit.
20 A CRISE DO MITO NO DESIGN

entender que apesar de ser um indivíduo, é acima de tudo uma pe-


quena parte de um todo muito maior. A sua ação traz resultados, se-
jam eles diretos ou indiretos. Cria-se então um código de conduta e
2
ética, baseado não em leis que precisam estar necessariamente escri-
tas em detalhes (afinal, os mitos, desde suas origens, são transmitido
por via oral), mas sim em um comprometimento do homem consigo
mesmo, de seu microcosmos (o Eu) para com seu macrocosmos (o Uma Crise Mitológica
Universo).
Podemos então afirmar seguramente que é o mito o “regulador re-
flexivo” do homem. Sentindo-se conectado a um todo, o homem
mede suas ações, ponderando sobre seus possíveis efeitos em um
organismo mais complexo do que ele próprio. Um mito vigente per-
mite-o refletir e ponderar sobre suas ações dentro do todo em que
No entanto, a sociedade ocidental desvencilhou-se de seus
está inserido.
próprios mitos. Aqueles que antes foram nossos mitos centrais per-
deram a força, a vitalidade, e já não podemos considerá-los como
fortemente atuantes. Seus significados parecem complexos ou se-
cretos demais, afinal, se mantiveram estáticos, não evoluíram ou se
adaptaram. Por “pararem no tempo”, o homem, que nunca deixa de
crescer, foi se perdendo de suas raízes mitológicas.
Vivemos em uma sociedade que cria mitos a todo instante
(é só notarmos a quantidade de livros de ficção científica e histórias
em quadrinhos para notarmos isso), mas nenhum possui as caracte-
rísticas necessárias para ser um Mito Central. Sendo assim, podemos
dizer que o que vivemos atualmente é uma “Crise de Mitos”.
Não é fácil apontar um culpado específico (talvez sequer
seja possível), mas podemos notar uma decadência simbólica desde a
Grécia antiga.
Nietzsche, por exemplo, acusava Sócrates de ser “um ho-
mem muito doente”, por ter sido filósofo, e como tal, suprir o es-
pírito irracional (Dionisíaco) para a soberania da razão (Apolíneo).
Consoante Nietzsche:

“A mais viva luz do dia, a racionalidade a qualquer


custo, a vida luminosa, fria, prudente, consciente,
sem instinto, em contraposição aos instintos, foi
22 A CRISE DO MITO NO DESIGN A NATUREZA DO MITO 23

ela mesma somente uma doença, uma outra do- mim e a lei moral dentro de mim. (...)
ença, e não absolutamente um retorno à virtude, A primeira começa pelo lugar que ocupo no
à saúde, à felicidade... Ter de combater os instintos, mundo exterior, sensível, e estende a conexão em
essa é a fórmula da décadence: enquanto a vida está que me encontro a grandezas imensuráveis, de
em ascensão, felicidade e instinto são a mesma coi- mundos sobre mundos, e sistemas de sistemas;
sa.”  nos tempos ilimitados do seu movimento perió-
dico, do seu início e de sua duração.
Mas apesar de a razão ter ganho grande espaço desde a Grécia A segunda começa no meu eu invisível, na mi-
Antiga, notamos a principal ruptura do homem com a natureza após nha personalidade; e representa-me em um mun-
Descartes e, mais tarde, fundamentando a “era de ouro” para o nasci- do que tem uma verdadeira infinidade, mas que
mento e desenvolvimento do método científico e das ciências em si, só é perceptível pelo intelecto, e com o qual (mas,
Isaac Newton. por isso, ao mesmo tempo também com todos os
Descartes (1596 – 1650), cujo pensamento ficou conhecido mundos visíveis) me reconheço numa conexão
como “Cartesianismo” propunha uma redução de todos os fenôme- não simplesmente acidental, como no primeiro
nos às suas mínimas partes, de modo a simplificá-los o máximo pos- caso, mas universal e necessária.
sível. Através desse método de redução, dizia ele, seria possível em A primeira visão de um inumerável conjun-
um segundo momento reunir todas as partes separadas, de modo que to de mundos destrói, por assim dizer, a minha
o todo voltasse a funcionar, dessa vez com a compreensão das suas importância como criatura animal, que terá que
partes pelo observador. devolver a matéria de que é feita ao planeta (um
Anos mais tarde, quando Newton postula suas leis e fórmu- simples ponto no universo), depois de ter sido
las sobre o funcionamento do mundo, o cientista passa a ser o “co- dotada por breve tempo (não se sabe como) de
nhecedor do mundo”, e a razão alcança seu status de “único meio força vital.
para a compreensão da verdade”. A segunda, ao contrário, eleva infinitamente
Antes mesmo da crítica de Nietzsche à repressão do instinto o meu valor como inteligência por meio da mi-
humano, temos Immanuel Kant, que trará no séc. XVIII a necessi- nha personalidade, na qual a lei moral me revela
dade de uma nova visão sobre a compreensão do mundo, em que a uma vida independente da animalidade e mesmo
razão é apenas uma forma de se obter o conhecimento, e é necessário de todo o mundo sensível: ao menos, pelo que se
um conflito e uma complementaridade entre “o céu estrelado” e a pode inferir da destinação final da minha existên-
“constatação da lei moral interior”. Citando o próprio: cia em virtude dessa lei, destinação esta que não
se restringe às condições e aos limites desta vida,
“Duas coisas enchem o espírito de admiração mas que vai até o infinito.”
e reverência sempre novas e crescentes, quanto
mais freqüentemente e demoradamente o pensa- O pensamento desses homens, apesar de fundamental para o
mento nelas se detém: o céu estrelado acima de desenrolar do pensamento contemporâneo, não foi capaz de causar
uma total influência em um novo organismo que se tornava cada
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NIETZSCHE, Friedrich. “O Crepúsculo dos Ídolos”. São Paulo: Hemus, 1976.
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KANT, Immanuel. “Crítica da Razão Prática”. Lisboa: Edições 70, 1989. ���������
Op. Cit.
24 A CRISE DO MITO NO DESIGN A NATUREZA DO MITO 25

mais forte nos anos vindouros: a Indústria, e com ela, o Mercado tenção de bens materiais”. Em tal distorção social, temos um homem
atual. que talvez não dê importância à valores pessoais, como sua integri-
Talvez tenha sido na Revolução Industrial, ou talvez após a dade moral, social ou familiar. A “posse” e o “desejo” pela obten-
Primeira Guerra Mundial, mas o que se viu nos últimos séculos foi ção de mais bens materiais é mais importante (em casos mais sérios
uma completa e total alienação do homem aos seus mitos mais anti- ainda, chega a ser uma neurose) e, em tom maquiavélico, qualquer
gos. Apesar de ainda vigentes em diversas religiões (o mito de Cristo, meio necessário é valido para a obtenção de determinado fim. Não
de Buda, toda a mitologia Indiana, etc), muitos deles perderam sua é necessário no momento entrarmos em detalhes de tais tendências,
força: se enrijeceram, a ponto de não acompanhar a necessidade de mas podemos notar claramente tal comportamento individual em
uma manifestação mais presente e moderna (em devidos anos), e uma sociedade como a brasileira, em que políticos recebiam “fundos
hoje em dia, se suportam em grande maioria apenas em dogmas e de origem duvidosa” até recentemente, ou ainda nas recentes atitu-
símbolos mortos, vazios, atraindo uma infinidade de seguidores de des bárbaras (ou seriam “colonizadoras”?) dos Estados Unidos no
finais de semana que não refletem (já há tempos) sobre os símbolos Oriente Médio.
que lhe são mostrados em tais ambientes sagrados. Sobre a crise dos mitos centrais, podemos citar Edward
Com a crise do mito, o homem tornou-se alheio ao próprio Edinger:
meio em que vive. A razão é sua principal arma, o objetivo é o di-
nheiro, que por sua vez é obtido pelo trabalho, e a religião (detentora “A história e a antropologia nos ensinam que a so-
do mito) acaba se tornando uma “garantia” para um medo do que ciedade humana não pode sobreviver por muito
pode existir após a morte. tempo, a menos que seus membros estejam psi-
A realidade atual não comporta mais mitos antigos, e isso é cologicamente contidos num mito central vivo.
natural. A natureza do mito é mutante, e é sempre necessária uma Esse mito proporciona ao indivíduo uma razão
atualização do mesmo, para que o homem que esteja vivendo em de ser. Às questões últimas acerca da existência
determinada época não se sinta alienado e possa vivenciar aquilo que humana, ele fornece respostas que satisfazem aos
o mito vigente lhe proporciona. membros mais desenvolvidos e perspicazes da so-
No entanto, ao invés de buscarmos novos mitos, tendemos ciedade. E quando a minoria criativa e intelectual
a ficar presos nos antigos, que já não possuem mais a mesma lin- está em harmonia com o mito predominante, as
guagem e símbolos de que compreendemos hoje. O templo sagrado outras camadas da sociedade seguem sua lide-
torna-se um lugar incompreensível, e o seu mistério é deixado de rança, chegando mesmo a poupar-se de um con-
lado pela total ignorância da maior parte de seus freqüentadores. Tal fronto direto com a questão fatídica do sentido
cenário cria não apenas uma sociedade alienada de sua própria his- da vida.
tória, mas nos marginaliza de nós mesmos, afastando-nos de nossa
história pessoal e da necessidade de uma construção de discursos so- É evidente para as pessoas reflexivas que a socie-
bre valores ético-morais. Sem um mito vigente, o homem se sente dade ocidental já não possui um mito viável, ope-
deslocado, desconectado, desprovido de família e história pessoal e rante. De fato, todas as principais culturas mun-
coletiva, que são a base da formação da cultura. diais aproximam-se, em maior ou menor grau,
Em um cenário ainda mais agravante, podemos imaginar o de um estado de carência de mitos. O colapso
homem moderno que tem como mito pessoal a “salvação pela ob- de um mito central é como o estilhaçamento de
26 A CRISE DO MITO NO DESIGN

um frasco que contém uma essência preciosa: o


líquido se derrama e se escoa, sugado pela matéria
indiferenciada à sua volta. O sentido se perde. Em
3
seu lugar, reativam-se os conteúdos primitivos e
atávicos. Os valores diferenciados desaparecem e
são substituídos por motivações elementares de
poder e prazer, ou então o indivíduo expõe-se ao O Mito e o Design
vazio e ao desespero. Com a perda da consciência
de uma realidade transpessoal (Deus), as anar-
quias interna e externa dos desejos pessoais rivais
assumem o poder”. 

Sendo a sociedade atual uma sociedade em que a Moda, o


E qual a função do design nesse panorama? Ora, é o designer
Consumo e o Descartável são novos “deuses”, os novos mitos são
o criador das imagens, e é importante lembrarmos que desde tempos
débeis, fracos, depreciadores da história e da cultura. O imediato é o
antigos deuses são adorados através de imagens. Segue abaixo parte
importante, pois o ontem já passou, não importa.
da entrevista realizada por Billy Moyers a Joseph Campbell:

“MOYERS: Você está sugerindo que o meio am-


biente modela a história?

CAMPBELL: As pessoas reagem ao meio am-


biente, você sabe. Mas, no que nos diz respeito,
nós temos uma tradição que não reage ao meio
ambiente – uma tradição que se formou em al-
gum outro lugar, no primeiro milênio antes de
Cristo. Não chegou a assimilar as características
da nossa cultura moderna, os novos caminhos
possíveis e a nova visão do universo. O mito deve
ser mantido vivo. As pessoas capazes de o fazer
são os artistas, de um tipo ou de outro. A função
do artista é a mitologização do meio ambiente e
do mundo.

MOYERS: Você quer dizer que os artistas são os


fazedores de mitos dos nossos dias?
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EDINGER, Edward F. A Criação da Consciência. São Paulo: Cultrix, 1984.
28 A CRISE DO MITO NO DESIGN A NATUREZA DO MITO 29

se tornando comum nos últimos anos), o divino foi substituido pela


CAMPBELL: Os fazedores de mitos dos tempos satisfação instantânea, e os mitos que nos ligavam ao transcendente
primitivos eram a contraparte dos nossos artistas. morreram.
Seria muito arriscado presumir que o designer atual é um
MOYERS: Eles pintam os muros, encenam “criador de ídolos modernos”? Mais especificamente, será que não é
rituais. o designer um grande divulgador de valores e idéias, em uma socie-
dade que foi chamada recentemente por Gilbert Durand como uma
CAMPBELL: Sim. Existe um velho dito român- “civilização da imagem”, que por sua vez perdeu o poder de refle-
tico, em alemão, “Das Volk dichtet” [O povo cria xão devido à facilidade e o comodismo com que a informação lhe é
poesia], segundo o qual as idéias e a poesia nas disponibilizada?
culturas tradicionais vêm do povo. Isso não é ver- Não será então o momento de uma reavaliação dos poderes
dade. Elas provêm de uma experiência de elite, a que possui e dos valores que promove? A resposta é um estrondoso
experiência de pessoas particularmente bem do- sim. Afinal, o Design é um campo poderosíssimo, que não pode ser
tadas, de ouvidos sensíveis à música do universo. definido em simples palavras. É um campo que compreende atuações
Essas pessoas falam ao povo, que se manifesta em nas mais diversas áreas, e por isso mesmo, necessita de uma respon-
resposta, a partir daí tomada como interação. Mas sabilidade ainda maior para com a sociedade e produção cultural.
o primeiro impulso na modelação de uma tradi- Através dos estudos de Carl G. Jung e de sua explicação sobre
ção folclórica vem de cima e não de baixo.” 10 a criação de mitos poderemos obter uma noção de como o designer
(e até mesmo, em uma avaliação mais abrangente, qualquer cidadão)
Pensemos em termos presente: não serão os outdoors de pode e deve auxiliar a sociedade na retomada de valores maiores do
hoje os muros do passado? Até mesmo em muros nas ruas, onde que a satisfação pessoal e o consumo imediato – estamos então em
vemos tantos cartazes colados. Quem é o responsável pela criação busca da nossa própria Função Transcendente.
dessas novas imagens?
Passamos então aqui a entender a imagem como um reflexo
de algo muito maior, do mesmo modo que o Deus de Michelangelo
pintado no teto da capela Sistina, apesar de toda sua perfeição, ja-
mais seria capaz de comportar a total magnitude e poder divino ideal.
Logo, não será grande atrevimento pensar na “Imagem” como a pon-
te para o Símbolo, ou o ideal platônico de “Belo”.
Atualmente vivemos cercados de imagens descartáveis. O
mercado exige uma constante renovação dos produtos de uma em-
presa, fato esse que dificulta a criação de valores e apego por essas
imagens às quais somos cercados. Para aquele homem que citamos
anteriormente, que possuía como mito central uma idéia de salvação
através da aquisição de bens materiais (uma distorção social que vem
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CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena , 1990.
II. O Pensamento de Carl G. Jung
1

Histórico de Carl G. Jung

Carl G. Jung nasceu em 26 de julho de 1875 na Suiça. Foi


desde sua juventude muito interessado em filosofia e literatura.
Tinha interesse especial nos autores que mostravam o homem não
como um ser inteiramente racional, mas sim como uma vivência
conflitante entre Razão e Intuição e a busca pela superação da du-
alidade inerente. Por causa disso, demonstrava grande interesse em
autores como Heráclito, Kant, Goethe, Nietzsche, William Blake,
Schopenhauer, entre outros.
Como estudante de medicina, dedica-se a Psiquiatria, área
até então pouco desenvolvida. Em 1900, Jung torna-se interno na
Clínica Psiquiátrica Burgholzli, em Zurique, que era na época diri-
gida pelo psiquiatra Eugen Bleuler.
Alguns anos mais tarde, conhece Sigmund Freud, e após um
primeiro encontro que durou treze horas, inicia-se uma das parcerias
mais famosas e conturbadas na história da psicologia. Apesar dos dois
possuírem uma grande afinidade inicial, Jung não conseguia aceitar o
fato de Freud relacionar todos os traumas psíquicos a fatores de na-
tureza sexual, assim como Freud não aceitava o fato de Jung possuir
grande interesse em fenômenos de natureza dita espiritual.
Após a inevitável separação dos dois, Jung amplia os estudos
de Freud, dizendo claramente que a psique se amplia para além do
inconsciente individual. Enquanto Freud considerava o inconsciente
como um depósito de memórias e desejos reprimidos, Jung passa a
34 A CRISE DO MITO NO DESIGN

ver o inconsciente como algo muito maior, criando assim a hipótese


do “inconsciente coletivo”.
2

Inconsciente Coletivo,
Arquétipo e Símbolo

Citando Aniela Jaffé, uma das principais seguidoras de


Jung:

“A realidade que transcende a consciência e parece


como o fundo espiritual do mundo é, em termos
psicológicos, o inconsciente....

Jung preocupava-se menos com a esfera relativa-


mente limitada do reprimido e esquecido, que ele
chamava de ‘inconsciente pessoal’, do que com
o pano de fundo psíquico, o mundo do ‘incons-
ciente coletivo’, que havia descoberto, ou melhor
– visto de uma perspectiva histórica – redesco-
berto... Ao contrário do inconsciente pessoal,
ele é uma esfera ilimitada que se mantém oculta,
porque não está ligada à consciência do ego. ‘O
maravilhoso do inconsciente coletivo é que ele é
realmente inconsciente’, disse Jung certa vez, e ‘o
conceito de inconsciente não postula nada,
apenas designa o meu desconhecimento’ (Carta
de fevereiro de 1946).

O inconsciente coletivo não é acessível à observa-


36 A CRISE DO MITO NO DESIGN O PENSAMENTO DE CARL G. JUNG 37

ção direta, mas pode ser investigado de modo in- analogia dos motivos das imagens mentais. Jung
direto através da observação dos conteúdos com- chamava essas disposições de arquétipos, e ca-
preensíveis e conscientes, que oferecem oportu- racteriza os conteúdos e motivos conscientes or-
nidade para inferências quanto à sua natureza e denados por elas de arquetípicos”. 11
estrutura. Esse método também foi adotado por
Freud, que, partindo dos sintomas da histeria, O inconsciente coletivo então se apresenta como essa esfera
dos sonhos, atos falhos, gracejos, etc., penetrou psíquica que não possui forma e não pode ser observada diretamente.
no ‘ocultamento do essencial’ (Verborgenheit É um campo cheio de possibilidades e padrões, mas não há qualquer
des Eigentlichen) e inferiu o inconsciente como determinação pré-concebida.
a esfera psíquica desconhecida, oculta. Da mes- Por ser uma esfera de possibilidades, é possível encontrar pa-
ma forma, para Jung, ‘a existência de uma psique drões da manifestação do inconsciente coletivo em toda a cultura hu-
inconsciente... é tão plausível, poderemos dizer, mana, desde contos de fadas até os mais altos símbolos religiosos. No
quanto a de um planeta até agora não descoberto, entanto, a ligação que o inconsciente coletivo faz com o consciente
cuja presença se deduz pelos desvios de alguma individual é através de um recurso psíquico denominado “Símbolo”.
órbita planetária conhecida. Infelizmente, fal- É através dele que se dá todo o processo de significação, nos permi-
ta-nos o auxílio de um telescópio que nos cer- tindo a considerá-lo como a ponte entre inconsciente e consciente.
tifique da sua existência’. O inconsciente é uma Segundo Jolande Jacobi:
hipótese.
“Quando o Arquétipo aparece no aqui e agora do
O caminho para o estabelecimento da hipótese espaço e do tempo, podendo, de algum modo, ser
foi revelado a Jung através da investigação das percebido pelo consciente, falamos então de um
imagens psíquicas e das idéias. Observou cuida- símbolo. Diz-se, dessa forma, que cada símbo-
dosamente os seus próprios sonhos e os de seus lo é também um arquétipo, que ele precisa es-
pacientes; analisou fantasias e delírios do doente tar determinado por um arquétipo ‘em si’ (que
mental e ocupou-se com o estudo comparativo não é perceptível), o que significa que precisa ter
das religiões com a mitologia. A compreensão um ‘esboço fundamental arquetípico’ a fim de ser
decisiva lhe foi dada pelo fato de que as imagens considerado um símbolo; mas isso não quer dizer
e temas mitológicos podem ser encontrados em que o arquétipo necessita ser idêntico a um sím-
todos os tempos e em toda parte onde os seres bolo. Como estrutura inicialmente indefinível
humanos tenham vivido, pensado e agido. Desse em seu conteúdo, como ‘sistema de prontidão’
‘paralelismo universal’, deduziu ele a presença ou ‘centro energético invisível’, etc., como já ca-
de disposições típicas do inconsciente inatas na racterizamos o ‘arquétipo em si’, ele é, sem dúvi-
constituição do homem. Como operadores in- da alguma, sempre um símbolo em potencial
conscientes, eles ordenam constantemente os e, quando existe uma constelação psíquica geral
conteúdos da consciência, sempre de acordo com ou uma posição adequada do consciente, ele está
a sua própria forma estrutural, da qual resulta a ����������������������������������������������������������������������������������������
JAFFÉ, Aniela. O Mito do Significado na Obra de C. G. Jung. São Paulo: Cultrix, 1995.
38 A CRISE DO MITO NO DESIGN

sempre pronto para se atualizar e aparecer


como símbolo.” 12
3
Assim, o homem quando confrontado com algum aspecto
externo que ele não consegue identificar em primeiro momento,
“abre” um caminho para a projeção do inconsciente coletivo e de
seus respectivos arquétipos. Essa “constelação psíquica” é a abertura A Função do Símbolo
que vai moldar os arquétipos preexistentes para uma forma denomi-
nada “simbólica”.
Citando Jung:

“A alma é para si mesma a experiência única e


imediata e a conditio sine qua non da realida-
de subjetiva do mundo em geral. Ela cria símbo- A idéia de Símbolo dentro da Psicologia Analítica se traduz
los, cuja base é o arquétipo inconsciente e cuja então em uma imagem, que por sua vez remete a um conteúdo psí-
figura visível resulta das imagens adquiridas pelo quico transcendente ao Ego.
consciente. Os arquétipos são elementos estrutu- Segundo a Semiótica, por exemplo, um símbolo é toda aque-
rais numinosos da psique e têm certa autonomia la linguagem que necessita de uma carga cultural para ser compreen-
e energia específicas, graças às quais são capazes dida. Um exemplo clássico é o caso do monge Budista entrando em
de atrair os conteúdos do consciente que lhes são uma Igreja cristã. Ao entrar na Igreja e ver a imagem de um homem
convenientes”. 13 sofrendo e sangrando pregado em uma cruz, o monge Budista (que
neste caso nunca teve contato com religiões ocidentais) não conse-
“O inconsciente fornece, por assim dizer, a ‘forma’ guiu compreender em primeiro momento o que a imagem de Cristo
arquetípica, que é em si mesma vazia, e por isso, na cruz representava. Mas após uma breve conversa com o padre da
inimaginável. No entanto, da parte do consciente, Igreja, este lhe explicou a história de Cristo, e o Monge Budista pôde
essa forma logo está sendo preenchida com mate- compreender o raciocínio por trás daquela imagem. O Monge agora
rial imaginado, aparentado e semelhante, tornado compreende que aquele homem na Cruz é um Símbolo da fé Cristã.
perceptível”. 14 Desta forma, podemos dizer foi realizada uma análise SEMIÓTICA
do símbolo.
Com esses conceitos em mente, entende-se agora que o ar- Já para Freud, de um modo bem aproximado à leitura semió-
quétipo é em si vazio, mas quando se relaciona com os conteúdos do tica, o Símbolo ganha uma função sintomática. Ou seja, um sintoma
consciente individual, cria-se um Símbolo. apresentado por uma enfermidade psíquica nada mais é do que um
símbolo da sua causa. Vem a partir daí o método chamado freudiano
“causalista”, considerado pela psicologia analítica como um método
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JACOBI, Jolande. Complexo Arquétipo e Símbolo. São Paulo : Cultrix, 1995.
reducionista, pois visa chegar apenas à causa do problema, reduzindo
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JUNG, Carl G. OBRAS COMPLETAS. Petrópolis: Vozes, 2000. aquela à um mero motivo desta.
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Op. Cit.
40 A CRISE DO MITO NO DESIGN O PENSAMENTO DE CARL G. JUNG 41

Devido à apresentação da hipótese do inconsciente coletivo,


Jung dá uma nova leitura ao o que é realmente é um Símbolo. Para “O Símbolo evoca a intuição; a linguagem sabe
ele, “símbolos são produzidos espontaneamente pelo inconsciente apenas explicar... O Símbolo estende as suas ra-
(apesar de poderem ser elaborados conscientemente)”15. ízes até o fundo mais recôndito da alma; a lin-
Para Jung, um signo só pode realmente ser chamado de guagem roça, como uma brisa leve, a superfície
Símbolo se ele contiver um conteúdo de correspondência incons- da compreensão... Só o Símbolo consegue unir o
ciente. Ou seja, o Símbolo jamais pode ser explicado em sua total mais diversificado no sentido de uma única im-
complexidade, tornando-se assim impossível a sua criação através de pressão global... As palavras fazem o infinito fi-
um método totalmente consciente. No caso de uma produção total- nito, os símbolos arrebatam o espírito para além
mente consciente, na qual não há participação do inconsciente – a dos limites do finito e mortal até o reino do ser
função transcendente, misteriosa ao próprio Ego e cheia de significa- infinito. Eles estimulam intuições, são signos do
do- o signo é denominado como um “Sinal”. inefável, inesgotáveis como estes...”
Devemos a partir daqui compreender o símbolo como uma (J. J. BACHOFEN – 1927);
representação de uma função psíquica que não possui um significado
definido e estático. Sendo assim, podemos nos utilizar de uma devi- O símbolo “é capaz de, em certo sentido, tornar
da expressão dita por Jung que esclarecerá nosso conceito: o Símbolo visível até o divino... Com irresistível força, ele
é “prenhe de significado” – sua totalidade nunca será conhecida, ta- atrai o homem que o contempla e, imprescindível
manha a sua complexidade. como o próprio espírito do mundo, toca a nossa
Como o inconsciente e os arquétipos não podem ser presen- alma. Ele é uma fonte exuberante de idéias, que
ciados diretamente e é o Símbolo que possui a função de conectar o nele se movem; e o que o bom-senso, unido ao
consciente com o inconsciente, o Símbolo ganha uma função viva, raciocínio, aspira em sucessivas compreensões,
intuitiva. É isso que Jung vai chamar de “Símbolo Vivo”, ou ainda ele ganha aqui, unido ao sentido, de maneira total
em outros momentos, de “Função Transcendente”, que tanto temos e de uma só vez... Essas manifestações da capaci-
explanado aqui. dade formativa chamamos de símbolos... é pró-
Em seu livro “Complexo, Arquétipo e Símbolo”, podemos prio dessa espécie... o momentâneo, o totalitário,
notar a menção que a autora Jolande Jacobi faz em relação a vários o inescrutável da sua origem, o urgente. Com essa
autores que já possuíam essa idéia intuitiva do Símbolo. Segue-se en- única expressão, designa-se nele a visão do divino
tão as citações demonstradas no livro citado, com as devidas menções e a apoteose da imagem terrena”
das datas em que elas se realizaram: (FR. CREUTZER – 1819);

“Os Símbolos são parábolas do imperecível, apre- “O Simbolismo transforma o fenômeno em idéia,
sentadas em manifestações do perecível; ambos a idéia em imagem, de tal modo que a idéia per-
estão ‘jogados juntos’ neles e fundidos numa uni- manece sempre infinitamente ativa e inatingível
dade de sentido” na imagem e, mesmo expressa em todas as lín-
(O. DORING – 1933) ; guas, permaneceria indizível”
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JUNG, Carl G. “O Homem e Seus Símbolos”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
(GOETHE )
42 A CRISE DO MITO NO DESIGN O PENSAMENTO DE CARL G. JUNG 43

Podemos ainda citar o fundador do Centro de Pesquisa do “Em seu ensaio sobre a ‘Árvore Filosófica’, Jung
Imaginário de Grenoble na França : Gilbert Durand. Em seu artigo deu um exemplo particularmente interessante das
entitulado “O Universo do Símbolo”, Durand afirma: “O símbolo diferentes formas do significado do Símbolo.
é um caso limite do conhecimento indireto onde, paradoxalmente, A cruz, a roda, a estrela ou outros mais, podem
este último tende a tonar-se direto – mas num plano diferente do si- ser usados para designar, por exemplo, marcas de
nal biológico ou do discurso lógico -; o seu imediatismo visa o plano firmas, bandeiras, etc., quer dizer, anunciam al-
da gnosis...”16. guma coisa; num caso diferente, dependendo do
Expõe-se aqui esse conceito de símbolo que será absoluta- contexto em que se encontrem e conforme o que
mente necessário para a compreensão do chamado processo de sig- representam para o homem, podem representar
nificação, que é um dos processos referentes à relação do homem e um símbolo. Por isso, a cruz, por exemplo, para
do mito. um homem, pode ser apenas o signo externo do
O “Símbolo Vivo” não pode ser criado, e sequer possui seu cristianismo, enquanto, para outro, ele evoca toda
significado “fechado”. Ele é sempre “algo mais”, que leva o seu intér- a plenitude da história da Paixão. No primeiro
prete a uma experiência nova, uma vivência que não possui um sig- caso, Jung falaria de um ‘símbolo extinto’ e, no
nificado composto em palavras, mas sim a um profundo mergulho segundo, de um ‘símbolo vivo’, e diria: para um
dentro da psique humana – é necessário uma vivência Simbólica para crente, a hóstia, na missa, pode ser ainda um sím-
percebê-lo. Citando Jung: bolo vivo, mas, para outro, pode já ter perdido o
sentido” 17
“Enquanto um símbolo é vivo, ele é expressão de
uma coisa que não tem outra expressão melhor. Entramos aqui agora na questão da diferença entre um
Ele só é vivo, enquanto está prenhe de sentido. Símbolo Vivo e um Símbolo Morto. O Símbolo Vivo é aquele pre-
Mas, após o nascimento do sentido, isto é, depois nhe de significado, enquanto que o Símbolo Morto é aquele cujo
que este tenha encontrado a expressão que for- significado foi encontrado e selado, de modo que perde-se a função
mula ainda melhor a coisa procurada, esperada simbólica da representação. Em Jung, o Símbolo nunca é interessan-
ou intuída, o símbolo está morto e, dessa forma, te se restringir, mas sim se expandir e adquirir sempre uma função
passa a ser um mero signo convencional. Por con- desafiadora para a consciência. Para tal ponto, podemos citar nova-
seguinte, é impossível de todo criar um símbo- mente Gilbert Durand:
lo carregado de sentido a partir de relações co-
nhecidas, porque o que for assim criado jamais “Este afrouxamento da pregnância simbólica, esta
poderá conter mais do que nele havia sido espécie de entropia que faz sempre com que a le-
posto”. tra cubra e oculte o espírito, esboça uma cinemá-
tica do símbolo : o simbolismo apenas ‘funciona’
Citando Jacobi: quando existe distanciação, mas sem ruptura, e
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Artigo publicado pela primeira vez em Le Symbole, atas do colóquio internacional de 1974, quando há plurivocidade, mas sem arbitrariedade.
Revue des Sciences religieuses, nº 1/2 , Estrasbrugo, 1975 – republicado mais tarde em “Campos do
Imaginário” pelo Instituto Piaget, editora Portuguesa, em 1996. ������������������������������������������������������������������������������
JACOBI, Jolande. “Complexo Arquétipo e Símbolo”. São Paulo : Cultrix, 1995.
44 A CRISE DO MITO NO DESIGN O PENSAMENTO DE CARL G. JUNG 45

É que o símbolo tem duas exigências: deve medir são inestimáveis. Mas o problema aparece quando ela se torna a única
a sua incapacidade de ‘dar a ver’ o significado em forma de compreensão simbólica, pois ela não é capaz de trabalhar
si, mas deve empenhar a crença na sua total per- com os processos psíquicos que se envolvem na percepção e com-
tinência. O simbolismo deixa de funcionar, seja preensão intuitiva gerada pela psique humana. Afinal, para se enten-
por ausência ou distanciação, na percepção e nas der um Símbolo na Semiótica, é necessário verificar o conteúdo e
representações ‘diretas’ do psiquismo animal, seja aspecto cultural em que ele se apresenta – a cultura é o princípio e o
por ausência ou plurivocidade dos processos de Símbolo é a conseqüência -, enquanto que na Psicologia Analítica, é
sintematização, seja ainda por ruptura no caso da necessário verificar os padrões de manifestação do símbolo, de for-
‘arbitrariedade do signo’ cara a Saussure”. 18 ma a poder tentar identificar e vivenciar o Arquétipo que ele repre-
senta – o Arquétipo e o Símbolo são os princípios, e a cultura é a
De acordo com Jung: conseqüência.

“Em muitas religiões históricas, as reflexões sobre “O teste do ‘borrão de tinta’, projetado pelo psi-
o caráter simbólico da crença formulada compro- quiatra suíço Hermann Rorschach. O formato
varam ser os primeiros e decisivos sinais de sua da mancha pode servir de estímulo a livres as-
decomposição” 19 sociações. Na verdade, qualquer forma irregular
e acidental é capaz de desencadear um proces-
E concluindo com Jacobi: so associativo. Leonardo da Vinci escreveu em
seu ‘Caderno de Notas’: ‘Não deve ser difícil a
“Quanto mais convencionalmente cunhado for você parar algumas vezes para olhar as manchas
o espírito de um homem e quanto mais crente de uma parede, ou as cinzas de uma fogueira, ou
ao pé da letra ele for, mais fechado será para ele as nuvens, a lama, e outras coisas no gênero nas
o Símbolo, e menos capaz será ele de vivenciar o quais... vai encontrar idéias verdadeiramente ma-
seu sentido; permanecerá forçosamente apegado ravilhosas”. 21
ao mero signo e aumentará ainda mais a confusão
a respeito da definição do Símbolo” 20

Nota-se aqui que a idéia de Símbolo apresentada e do pro-


cesso de significação que o envolve é muito mais profundo, e con-
trasta diretamente com a idéia semiótica de Símbolo.
Sendo a Semiótica (postando como comparação a Semiótica
de Charles Sanders Peirce, que é a mais utilizada no mundo do
Design) um campo de conhecimento muito vasto e útil para a com-
preensão da interação de signos no dia a dia, seu valor e importância
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DURAND, Gilbert. “A Imaginação Simbólica”. São Paulo: Cultrix, 1988.
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JUNG, Carl G. OBRAS COMPLETAS. Petrópolis: Vozes, 2000.
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JACOBI, Jolande. “Complexo Arquétipo e Símbolo”. São Paulo : Cultrix, 1995. ���������������������������������������������������������������������������������
JUNG, Carl G. “O Homem e Seus Símbolos”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
4

O Símbolo e o Design

Símbolos e seus respectivos significados são pessoais, e o


processo de significação no Design pode depender de uma segunda
opinião, mas isso não quer dizer que essa Segunda opinião seja “a
verdade”. Taxar algo então como “muito implícito” ou “elucidativo
demais” talvez não seja o melhor método a ser utilizado para ava-
liação pessoal, pois possui um caráter extremamente reducionista e
causal. Deve-se então “abrir o leque de significações”, trazendo no-
vas idéias e transformando cada imagem e aspecto dela em um novo
mistério a ser desvendado, tornando o caminho livre para a projeção
inconsciente, ou seja, para a formação simbólica.
O consumidor que compra o produto com a marca produzi-
da pelo Designer pode não entender o conceito que ela trouxe quan-
do foi concebida. O conceito, em certos casos, parece ser muito mais
uma regalia, um segredo corporativo, em que apenas os que estão no
ambiente interno do mercado irão compreender. No entanto, apesar
de que o cliente conhecer ou não a história por trás da concepção da
logo seja de certo modo irrelevante na natureza pragmática do mer-
cado, ainda assim existe a função simbólica atuante. O consumidor,
querendo ou não, cria um símbolo pessoal quando em contato com
algo novo. Esse símbolo pode ser mais tarde traduzido como um
vínculo de maior ou menor intensidade, mas que influenciará direta-
mente mais tarde na natureza de eficiência e eficácia de determinada
idéia.
48 A CRISE DO MITO NO DESIGN

Logo, se a marca é forte, mas seu conceito não é claro e/ou


evidente, o vínculo criado com o consumidor deixa de ser “estático”
e “racional”. Torna-se intuitivo, pertencente à sua projeção individu-
al e a identificação de um “eu” muito mais profundo do que a mera
função de consumidor.
Pelo lado contrário, podemos pensar em marcas que são ex-
tremamente claras, pouco desafiantes ao imaginário do consumidor.
Será que esse tipo de trabalho produzirá bons resultados? Ou o ime-
diatismo é prejudicial?
Tal reflexão pode ser um pouco difícil de ser feita quando
se tratando de criação de identidades visuais corporativas – difícil,
mas não impossível. Mas se levarmos tal discussão para o plano de
cartazes, artes de CDs, websites, enfim, meios de comunicação que
exigem um maior número de informação e que ao mesmo tempo
fornecem a possibilidade de uma maior interação entre “empresa
– consumidor”, fica mais fácil de se levantar a questão: será que o
designer atual está criando Símbolos Vivos, que exigem a reflexão
do observador para uma procura infindável de significados, ou será
que o imediatismo exigido pelo cenário da comunicação atual está
matando nossos símbolos?
III. O Design e o Consumo
1

O Que é “Design”?

Definir o que é design é sempre um desafio. As opini-


ões e formulações são as mais diversas possíveis, e como declarou
Alexandre Wollner em uma palestra realizada na PUC-PR em 2006,
“se perguntássemos para cada um aqui presente sobre sua definição
de o que é design, cada um daria uma resposta diferente”.
No entanto, podemos notar certos aspectos gerais do design
que lhe são pertinentes. Em um primeiro momento, citemos dois
deles:

1) no design se utiliza de técnicas que foram em


um certo momento da história ligadas à produção
artística;
2) o design se manifesta quando existe uma de-
manda para a sua existência, dando à produção
humana (que era em certo momento artística)
um aspecto funcional. Atualmente, esse aspecto
funcional é encontrado em grande escala e pode-
mos chamá-la de função de atuação mercadológica.

Logo, para os fins desse presente trabalho, consideraremos


que o design em sua forma atual pode ser representado pela seguinte
fórmula:

DESIGN = ARTE + MERCADO


52 A CRISE DO MITO NO DESIGN

Design é então uma forma de “arte aplicada ao mercado”.


Essa definição é extremamente clara quando tomamos como exem-
2
plo toda a repercussão que a fundamentação de tal área causou du-
rante o período da Revolução Industrial. A industria, que passou a
formar uma idéia de mercado mais complexo, um modelo nunca
antes existente, exige que seus produtos possuam tanto aspecto fun- Histórico do Design
cional quanto estético, sendo esse último passível de realização prin-
cipalmente nas mãos dos artistas.
Mas esse é um modelo de design muito recente, e é impor-
tante retomarmos um pouco da história de produções humanas, que
mais tarde viriam a se tornar o que chamamos de design, de modo
que possamos compreender as implicações de relações das áreas que
Segundo Philip Meggs em seu livro “A History of Graphic
acabamos de expor.
Design” (“Uma História do Design Gráfico” , sem tradução no Brasil),
podemos encontrar a origem de um “design” já primitivo, assinalan-
do desde os tempos pré-históricos, época em que o homem come-
çou a esboçar intenções de registros sobre seu dia a dia, como nas
pinturas rupestres.
A intenção de registro de algum tipo de informação para a
posterioridade é uma função relacionada ao design. Mas devemos
pensar aqui como um “design primitivo”, e não na concepção mer-
cadológica que temos hoje. Podemos até pensar que esse desejo de
registro e a fabricação de ferramentas através da lapidação de pedras
são o embrião para o design em si (vide o artesanato, por exemplo).

“O design surge no mundo quando o homem co-


meça a fazer suas primeiras ferramentas, e o desig-
ner continua a lidar com ferramentas. A diferença
é que sua ferramenta hoje é o próprio ato de gerar
informação.”22

Mais tarde, as pinturas rupestres evoluem para os sistemas de


escrita que abrangem toda uma gama de estilos condizentes com cul-
turas diversas, que por sua vez vão desde sistemas mais simples como
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AZEVEDO, WILTON. “O que é Design? - Coleção Primeiros Passos”. São Paulo: Brasi-
liense, 1988.
54 A CRISE DO MITO NO DESIGN O DESIGN E O CONSUMO 55

a escrita cuneiforme até estilos mais estilizados como os hieróglifos Nos dias de hoje (pós-Revolução Industrial), o designer é
egípcios. aquele que realiza o estudo e a prática de envio de informações à
Com a estilização em si, o senso estético começa a se desen- uma produção em série, se utilizando de meios que foram outrora
volver nos homens, e é através da expressão desse senso estético que artísticos.
o sentido do que viria a ser Arte ganha vida. A reprodução em série é um elemento chave do design. Sem
A Arte se fundamenta então como área de conhecimento e a sua existência, que trouxe com seu desenvolvimento a exigência de
expressão humana, se desenvolvendo nos mais diversos meios, como uma funcionalidade de certo modo universal nas obras de artistas,
a literatura, o teatro, a música, a pintura, a escultura e a arquitetura o design não teria se desenvolvido. Foi uma necessidade de tornar
(vide as pirâmides egípcias e os templos gregos que são considerados aquelas produções que antes eram para as elites em algo acessível ao
verdadeiras obras de arte). povo.
É a partir desse desenvolvimento de um senso estético que Sobre tal pensamento, citamos Wilton Azevedo em seu livro
podemos notar uma clara cisão com aquele “design primitivo” que “O que é Design?”:
apontamos existir em um momento anterior. Por sua vez, aquela
idéia do simplesmente “funcional” começa a ser deixada de lado. O “Diante do mundo que começa a se mecanizar, o
espírito humano passa a demonstrar sua faceta artística, dando vida, homem vai contribuir definitivamente para uma
cor e forma ao mundo. grande revolução estética e social que é a das for-
Mas apesar dessa aparente cisão, o homem sempre precisou mas dos objetos que usamos no dia-a-dia – elas
se comunicar em diferentes meios. Como o conceito de design em si passam a ser diferentes de um dado instante para
ainda estava em formação, essa função acabava sendo designada para outro. A idéia dessa revolução mecânica era poder
outras áreas. Sobre isso, citamos Philip Meggs: atingir o grande crescimento das populações. Para
o futuro já se pensava em produzir artigos bara-
“Desde a pré-história, as pessoas têm procurado tos em menos período de tempo em relação ao
maneiras de representar visualmente idéias e con- produto artesanal, não restringindo mais a arte do
ceitos, guardar conhecimento graficamente, e dar design às elites, mas levando em conta a possibili-
ordem e clareza à informação. Ao longo dos anos dade de reproduzir um objeto em série, para que
essas necessidades têm sido supridas por escribas, a grande população pudesse adquiri-lo. Partindo
impressores e artistas. Não foi até 1922, quan- então da idéia de o design estar ligado a um pro-
do o célebre designer de livros William Addison jeto intencional, é fácil de compreender que a
Dwiggins cunhou o termo “designer gráfico” própria indústria iria criar uma necessidade com
para descrever as atividades de um indivíduo que relação ao conceito de funcionalidade. Ao objeto
traz ordem estrutural e forma à comunicação im- não caberia apenas ser bonito, mas ele tinha que
pressa, que uma profissão emergente recebeu um adequar-se a uma função, designada pelo artesão,
nome apropriado. No entanto, o designer gráfico futuro designer.
contemporâneo é herdeiro de uma ancestralidade
célebre.” 23 Não havia apenas interesse em que a arte fosse do
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MEGGS, Philip. “A History of Graphic Design”. New York: John Wiley ��& ��������������
Sons Inc,1998.
povo, mas que fosse também para o povo. Era ne-
56 A CRISE DO MITO NO DESIGN O DESIGN E O CONSUMO 57

cessário que as fases de construção de um objeto design que se dedica apenas à sua funcionalidade, principalmente no
fossem democratizadas e popularizadas para que atual cenário cultural-econômico em que nos encontramos: a socie-
atingissem uma finalidade social de uso. O dese- dade de consumo.
nho finalmente passou a ser entendido como de-
sign, ou seja, compreendido como desenho indus-
trial. A necessidade de se pesquisar a simplicidade
das formas para que sua popularidade pudesse ser
atingida não estava somente restrita à aquisição do
objeto pela população, mas interessava também
na medida em que facilitasse sua execução pela
máquina.” 24

“Arte para o povo”, “Design para o povo”, “Design para o


mercado”. É nessa linha de pensamento que surgirá a Bauhaus, tra-
zendo sua filosofia de arte aplicada à indústria: um design moderno,
que busca estar em “constante contato com as relações do homem
e seu espaço”25. É nessa escola alemã, uma das pioneiras na idéia de
uma “escola de design”, ou seja, uma escola onde se transformam
artesãos em projetistas industriais, que se criará a idéia de estruturas
modulares, que poderão ser utilizadas no mundo inteiro. Em suma,
um design moderno, com ênfase no aspecto funcional do objeto.
Com o passar dos anos e a estabilização da profissão “desig-
ner”, passou-se a questionar qual o papel social do mesmo. Diversos
foram os movimentos estéticos e escolas que se desenvolveram nos
anos vindouros, e podemos tomar como um exemplo o movimento
pop-art nas décadas de 50 e 60: um movimento de natureza pós-mo-
derna, que por sua vez buscou afastar o design de sua relação funcio-
nal. Busca-se nele uma nova estética, de linguagem própria, em que
o funcional passa a não ser mais o foco.
E hoje? Como será que está o design? Será que ele está ligado
mais à sua parte funcional ou à sua parte estética?
Não faz parte do interesse do presente trabalho discutir em
qual das duas linhas (funcional ou estética) que o design atual tem se
desenvolvido. Contudo, podemos apontar os possível perigos de um
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AZEVEDO, WILTON. “O que é Design? ”. São Paulo: Brasiliense, 1988.
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Op. Cit.
3

O Consumo como Nova Religião

No presente modelo de mercado que temos, baseamos o


sucesso do design através da resposta que o público consumidor
oferece. Essa resposta nos é fornecida em termos monetários e pela
questão da oferta e procura pelos produtos disponíveis no meio.
Tais produtos são levados ao conhecimento do público pelas mídias,
criando dessa forma uma certa veneração aos mesmos. Em seu livro
“O Sistema dos Objetos”, Jean Baudrillard comenta sobre essa rela-
ção entre “consumidor” e “objeto”:

“Será considerado mau todo objeto que não re-


solva esta culpa de não saber o que eu quero, de
não saber o que sou. Se o objeto me ama (e ele me
ama através da publicidade), estou salvo. Assim, a
publicidade (como o conjunto das public relations)
reduz a fragilidade psicológica por meio de uma
imensa solicitude, à qual nós respondemos inte-
riorizando a instância que nos solicita, a imensa
firma produtora não só de bens, mas igualmente
de calor comunicativo, que é a sociedade global
de consumo.” 26

Devemos lembrar que antes da formação da atual sociedade


de consumo, o mais próximo que tínhamos da publicidade e divul-
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BAUDRILLARD, Jean. “O Sistema dos Objetos”. São Paulo: Perspectiva, 1978.
60 A CRISE DO MITO NO DESIGN O DESIGN E O CONSUMO 61

gação em meios de comunicação dizia respeito às figuras sacras, ou preenchida de alguma forma. Este “vazio existencial” foi então pre-
ao menos à ideologias espirituais que buscavam trazer a felicidade enchido pelos ideais de consumo e produção, provenientes da emer-
para o homem. Não através de objetos externos, mas sim do próprio gente sociedade de regime capitalista, transformando o homem em
espírito humano. mero figurante do sistema econômico. Não há mais individualidade,
Mais: as figuras sacras referentes às ideologias espirituais vi- mas sim, existe apenas o poder monetário das classes. Esse poder
gentes, como a cristã na Europa por exemplo – e deixando de lado a monetário por sua vez nasce da produção e se manifesta na aquisição
atuação vergonhosa por certos membros do clero - visavam a salvação de bens. Produz-se para consumir e consome-se para produzir: é o
do homem através do contato com um “Ser superior”, e poderia ser a lema espiritual do homem moderno. E devemos nos lembrar: sem
representação de anjos, santos, Cristo ou do próprio Deus-pai, como consumo, não há mercado. Será isso um deslocamento da função
é o exemplo do teto da Capela Sistina. Tais representações eram sím- religiosa inerente ao homem? Estaremos deslocando nossos valores
bolos, uma “ponte” para o divino. Eram ídolos que conectavam o espirituais de natureza arquetípica aos objetos de consumo que nos
homem à algo maior do que ele, mas não sendo a coisa em si: Deus são oferecidos pelo meio?
não era a imagem – esta era apenas uma representação Dele. Em uma outra passagem, Régis Debray continua seus co-
Régis Debray faz uma série de reflexões sobre tal situação em mentários, dessa vez referentes às similaridades existentes entre a
seu livro “Vida e Morte da Imagem”, e podemos tomar a seguinte mídia televisiva e os cultos e imagens sagradas cristãs:
passagem como melhor explanação:
“Por enquanto, a visão do apresentador cotidia-
“Uma imagem sem autor e auto-referente colo- no não apaga, com certeza, nossos pecados, como
ca-se automaticamente em posição de ídolo, e nós a Presença divina no ritual católico, mas obser-
em posição de idólatras, tentados a adorá-la dire- vemos que, apesar de todas as suas diferenças de
tamente em vez de venerar por ela a realidade que estatuto, os dois suportes humanos da revelação
indica. O ícone cristão reenvia sobrenaturalmente ao têm, antes de tudo, a frontalidade em comum.
Ser de onde emana, a imagem de arte represen- Olhos nos olhos, face a face. Nosso anchorman ou
ta-o artificialmente, a imagem ao vivo se apresenta woman olha para quem olha, como o Salvador de
naturalmente como se fosse o Ser.” 27 Roublev. Ele finge, já que está lendo um promp-
ter, mas o efeito está aí: um olho nos fixa sem nos
Podemos concluir a partir daqui que o homem teve durante ver, interpela-nos diretamente, como um índex
toda sua história contato com representações artísticas e simbólicas apontado para as nossas pessoas segundo o es-
que remetiam ao divino, e que pode ter sido condicionado dessa ma- quema althusseriano de “interpellation en sujet”
neira a conviver nessa relação de “ídolo-idólatra” através da própria própria da convocação ideológica ou catequética
produção artística. (“America wants you”). Jamais se viu o Cristo de
No entanto, quando o divino foi substituído pela “razão costas. Nem Povre d’Arvor ou Dan Rather. São,
pura” e o homem se desconecta dessa “esfera maior” de sua psique por natureza, Seres de face, retos sem verso, cor-
(aquela que Jung chamará de Inconsciente Coletivo), criou-se um pos gloriosos sem barrigas da perna, nádegas ou
vácuo simbólico, uma inexistência de significados que tinha que ser nuca: puras subjetividades não-objetiváveis. Esses
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DEBRAY, Régis. “Vida e Morte da Imagem”. Petrópolis: Vozes, 1994.
62 A CRISE DO MITO NO DESIGN O DESIGN E O CONSUMO 63

homens-tronco não são o Verbo, mas o Real en- mas o uso que se faz dela é que pode ser maléfico ou benéfico para
carnado, isto é, o Acontecimento em sua lumino- a sociedade. Sendo assim, em um cenário que tem proporcionado
sa Verdade. A imagem foto era fixa, e o filme pro- a criação de divindades imagéticas e o deslocamento de certas fun-
jetado, algo de diferido. Marcas, mas resfriadas, ções inerentes ao espírito humano, a criação de novos ídolos acaba
deslocadas. O índice TV mostra o advento da vida por resultar em uma dependência dos espectadores tanto por obje-
palpitante. Com sua iluminação infusa, a telinha tos quanto por ídolos de natureza descartável. Afinal, um ambiente
difunde, sem seu conhecimento e sem o nosso, o de consumo competitivo não permite estagnação ou durabilidade:
novo Evangelho: o mundo sensível é o seu pró- deve-se sempre renovar, o mais rápido possível. E a resposta deve ser
prio conhecimento, realidade e verdade formam imediata, sem dar espaço à reflexão pessoal, pois do contrário corre-
um só todo. Notícia fala, mas gratificante. Ilusão, se o risco de ficar para trás.
mas que tem a força de nosso desejo. Que ver seja A partir do momento que passamos a nos concentrar em pro-
o suficiente para saber, não será esse nosso anseio dutos e porções visuais da realidade (representadas na mídia) como
mais antigo? Onde haverá mais bela promessa de forma de “salvação”, e a idéia de satisfação pessoal é assimilada com a
felicidade, melhor garantia de menor esforço? necessidade de aquisição dos mesmos, criamos uma dependência de
Nosso olhar vê bater o pulso do mundo, coloca-o consumo ao homem moderno, que tomando emprestado a famosa
no coração das coisas (na sociedade cristã, e após frase de Descartes, cria um novo lema: “Consumo, logo existo”.
o Evangelho de São João, a nova função de teste- Será que essa postura mercadológica é saudável para o ho-
munha está ligada ao órgão da vista). A Boa-Nova mem? Deveria o design seguir esse caminho, diminuindo na equa-
anunciava-se sub specie aeternitatis; as notícias, sub ção anteriormente citada o fator “Arte” e focar-se mais no “Mercado”
specie temporis. A nova divindade, porém, é a atu- e no modelo de consumo atual, talvez aumentando mais a falta de
alidade: a Encarnação levada até o seu termo. A significância simbólica que impregna a sociedade moderna? Ou será
telinha não faz vibrar a luz do oitavo dia, a da que um retorno do espírito artístico e sua pregnância simbólica pode
visão apocalíptica que nos permitirá, enfim, ver vir a ser uma solução psicologicamente mais saudável?
Deus em sua plenitude (sob todas as suas faces).
De forma mais modesta, ela ilumina os sete dias
da semana irradiando-nos de realidade. O ícone
cristão dizia: vosso Deus está presente. O ícone
pós-cristão: que o presente seja vosso Deus.” 28

É nesta parte que podemos notar uma confirmação da nossa


suspeita anterior, sobre um possível deslocamento de função religio-
sa. O homem moderno busca a salvação através do produto consu-
mido, e torna-se receptivo ao novo produto em um templo moder-
no: a televisão.
Não que a televisão seja culpada. Ela não é boa nem ruim;
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Op. Cit.
IV. Um Retorno às Artes
1

Uma Reaproximação

Esclarecemos que o Design possui uma relação bem próxi-


ma com a Arte. Alguns podem até considerá-lo como um “filho bas-
tardo” dela. “Bastardo” porque não é totalmente Arte, assim como a
Arte não é Design.
Ainda assim, já foi estabelecido também que, em certas oca-
siões, a separação de um a outro torna-se difícil (se não impossível),
e poderemos notar essa dificuldade no próximo capítulo.
Contudo, caso tomemos o Design como realmente um “fi-
lho bastardo” da Arte, temos ainda aí um “filho”, e ele carrega dentro
de si a essência da mãe.
Neste ponto, podemos pensar nos inúmeros contos de fadas
e mitologias que narram histórias de um herói que sai de casa para
realizar uma grande ação; durante a jornada, aprende lições valiosas,
e retorna para casa mais sábio, melhorando sua relação com amigos
e familiares. Um exemplo clássico desse tipo de narrativa pode ser
esclarecido no conto “Os Três Irmãos” dos Irmãos Grimm, conto
este narrado a seguir:

“Era uma vez um homem que tinha três filhos,


e nada mais neste mundo, além da casa em que
vivia. Ora, cada um dos filhos queria ficar com a
casa, quando seu pai morresse. O pai gostava de
todos igualmente, e não sabia o que fazer. Não
68 A CRISE DO MITO NO DESIGN UM RETORNO ÀS ARTES 69

queria vender a casa, que pertencera aos seus esperou até que a lebre se aproximasse. Saiu então
antepassa­dos, para dividir o dinheiro da venda correndo a seu lado e barbeou-lhe o bigode, sem
entre os filhos. Afinal, concebeu um plano e disse que o animal sofresse um arranhão sequer.
aos filhos:
-Viajai pelo mundo, escolhei cada um uma profis- - Muito bem! - exclamou o pai, entusiasmado.
são, e, quando regressardes, o que executar o me- - Teus irmãos terão de fazer um grande esforço
lhor trabalho dentro de sua profissão, terá a casa. para que a casa não seja tua.

Os filhos ficaram muito satisfeitos com a idéia, e o Pouco depois, apareceu um fidalgo em sua carru-
primeiro resolveu ser ferreiro, o segundo barbeiro agem, que corria a grande velocidade.
e o terceiro professor de esgrima. Combinaram a
data em que deveriam voltar para casa e cada um - Agora vou mostrar, meu pai, o que sou capaz de
seguiu o seu caminho. fazer! – anunciou o segundo filho, o ferreiro.

Todos conseguiram bons mestres, que lhes ensi- Dito e feito: saiu correndo até alcançar a carrua-
naram muito bem os ofícios que haviam escolhi- gem, tirou todas as quatro ferraduras de um cava-
do. O ferreiro teve de ferrar os cavalos do Rei e lo, enquanto ele galopava, e pôs ferraduras novas,
pensou: ‘A casa vai ser minha na certa’. O bar- sem que o animal parasse um só instante.
beiro, por seu lado, fez a barba de muita gente
importante e também estava convencido de que - Formidável! - exclamou o pai. - És tão hábil
a casa seria sua. O esgrimista, por sua vez, sofreu quanto o teu irmão. Continuo sem saber a quem
muitos golpes, mas não fraquejou, pensando: ‘Se devo dar a casa.
eu tiver medo, jamais ficarei com a casa’.
- Vou agora mostrar a minha capacidade, meu pai,
Quando chegou a data marcada, os três irmãos se me é permitido - disse o terceiro filho.
regressaram ao lar, mas não sabiam como encon-
trar a melhor oportunidade de mostrar ao pai as E, como estava começando a chover, ele pegou o
suas habilidades e, assim, se reuniram para discu- florete e começou a girá-lo acima de sua cabeça,
tir o assunto. Quando estavam conversando, de com tal rapidez, que nem uma só gota de água o
repente surgiu uma lebre, correndo em disparada alcançou, embora a chuva fosse se tornando cada
pelo campo. vez mais forte, ele ia aumentando a velocidade
dos movimentos, conseguindo ficar tão abrigado
- Que sorte! - exclamou o barbeiro. - Surgiu a como se estivesse dentro de casa.
minha oportunidade!
Ao presenciar tal prodígio, o pai exclamou:
Pegou a bacia, com sabão, a navalha e o pincel e
70 A CRISE DO MITO NO DESIGN UM RETORNO ÀS ARTES 71

puta por uma casa, passou-se a demonstrar uma união tão profunda
- Não pode haver coisa mais perfeita! A casa é que até na morte se manifestou. Mas o mais importante é a seguinte
sua. conclusão: tal relação entre os familiares da casa jamais poderia ter
Os irmãos de modo algum se opuseram a essa de- acontecido se cada um deles não tivesse viajado mundo afora.
cisão, pois fora assim que se combinara. E como É nessa a analogia que podemos apresentar a relação do
todos os três eram muito amigos, todos continu- Design com a Arte, sendo esta última tanto mãe quanto irmã. O
aram morando juntos na casa, ganhando muito afastamento cria independência, mas ao mesmo tempo fortalece os
dinheiro, graças à sua habilidade nas respectivas laços. É a situação do “diga-me de onde vens”, de nunca esquecer-se
profissões. E assim viveram, durante muitos anos, das origens: o Design sem a Arte é órfão, carente, sem identidade ou
muito felizes, até a velhice. Afinal, quando um passado.
deles adoeceu e morreu, os dois outros sentiram Mas ao mesmo tempo que ele não é nada sem a mãe, ele
tanto a sua morte que acabaram também adoe- necessita também de sua independência, do contrário ficará sem-
cendo e morrendo. E, como eram tão unidos, tão pre preso à imagem Dela. Cria assim sua identidade, diz a todos “eu
amigos, foram todos enterrados no mesmo tú- existo para ISSO”; define seu papel no mundo e acima de tudo, se
mulo.” 29 fortalece.
Contudo, da mesma forma que o afastamento é necessário,
No conto, os 3 irmãos viajam o mundo para desenvolver um assim é também o retorno para casa. É no retorno que o filho se pro-
ofício: aquele que melhor desempenhasse determinada profissão, vará como verdadeiramente legítimo e forte, independente, seguro
seria o novo dono da casa que era antes do pai. Todos tornam-se de si e maduro. Não haverá mais assim o medo de uma confusão
dignos de tal recompensa, mas um dos 3 se destaca, recebendo assim ou comparação com seus pais: haverá apenas a comprovação de uma
o devido prêmio. No entanto, mesmo sendo vencedor, ele continua evolução e desenvolvimento familiar.
vivendo com os irmãos. O retorno para casa não irá tirar sua identidade, mas permi-
Em uma primeira análise, alguém pode pensar que nada mu- tira-lhe apreciar aspectos de seu lar que antes não eram apreciados.
dou, e que as viagens que os irmãos realizaram foram desnecessá- Dessa forma, um retorno do Design ao espírito artístico, o espírito
rias, afinal, os irmãos continuam juntos no final do conto. Mas será de sua Mãe, a sua casa original, pode trazer-lhe um novo sentido de
realmente que esse é o caso? Será que a viagem foi uma “perda de profundidade: aquela função transcendente que apenas a Arte é ca-
tempo”, já que tudo se manteve da mesma forma? paz de produzir na cultura humana – a mesmo que buscamos nesta
De modo algum! As viagens de cada irmão foram importan- dissertação agregar ao Design.
tíssimas, pois permitiu-lhes que cada um desenvolve suas personali-
dades, e consequentemente, seu caráter. Esse caráter foi então funda-
mental para mais tarde, quando após a morte do pai, eles pudessem
continuar vivendo juntos.
E não apenas viveram juntos, mas criaram laços tão fortes
que no momento em que um adoeceu e morreu, os outros adoecem
e falecem logo em seguida. Em um cenário que antes transmitia dis-
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ESTES, Clarissa Pinkola. “Contos dos Irmãos Grimm”. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.
2

O Que é “Arte”?

Uma procura pela definição de “Arte” pode se manifes-


tar de forma tão confusa e diversa quanto a busca pela definição de
“Design” que tentamos realizar no capítulo anterior. Contudo, tal
dificuldade não deve nos refrear. Pelo contrário: deve nos desafiar
a buscar em diversos pensamentos uma definição de Arte que nos
seja pertinente. Desse modo, o nosso personagem principal, filho
bastardo e ao mesmo tempo pródigo, poderá retornar às suas raízes
e desempenhar uma função de pregnância simbólica que tanto nos
interessa em nosso atual ambiente de mitos centrais débeis.
Um dos grandes motivos pela dificuldade que se encontra
em uma definição de “o que é Arte” é expressada na seguinte passa-
gem do livro “Questões da Arte”, de Cristina Costa, no qual nos é
dito que:

“...a arte é o campo da cultura humana que sofreu


o maior impacto resultante do desenvolvimento
dos meios de comunicação de massa e da indús-
tria cultural. Em conseqüência disso, muitos con-
ceitos e idéias que pareciam inquestionáveis há
vinte anos, hoje são revistos e reanalisados”. 30

Talvez por essas mudanças no nosso ambiente informacio-


nal, seja-nos interessante ter uma idéia do início das reflexões sobre
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COSTA, Cristina. “Questões da Arte”. São Paulo: Moderna, 1999.
74 A CRISE DO MITO NO DESIGN UM RETORNO ÀS ARTES 75

a Arte, e nesse momento podemos pensar em Platão e suas refle- pode ser considerado belo se não for verdadeiro;
xões sobre o “Belo”. Para tanto, cita-se Anne Cauquelin em seu livro nenhum bem pode existir fora da verdade.” 31
“Teorias da Arte”:
Então, para Platão, o artista é um enganador, pois se afasta
“É preciso antes de mais nada observar que não cada vez do belo, que deve ser o objetivo de todo ser humano, sendo
há na obra de Platão discurso especificamente de- que só pode ser atingido no mundo das idéias. Aquele que procura
dicado à arte. Não há teoria da arte propriamen- tal aproximação pela técnica, pela matéria, está fadado ao fracasso,
te dita, mas notações dispersas a respeito, ora da pois a matéria é imperfeita e não comporta a magnitude que possui o
prática de certas artes (tekné), ora da idéia de belo. belo.
Em outras palavras, a idéia de arte não é arte, é Séculos depois, Hegel nos introduz um novo discurso sobre
separada dela, deixando a arte, sua prática, o ‘fa- a Arte, no qual
zer’, muito longe de poder realizar o belo, e até de
aspirar a ele. Essa divisão deprecia de modo claro “...a arte é atravessada por uma linha ascendente
tudo o que se refere à produção, pelo homem, de que não visa a sua constituição em objeto autô-
seja qual for a obra. nomo, mas a algo bem diferente. Sua inserção no
processo espiritual vai, por abstrações sucessivas,
(...) conduzi-la à perda: ela é espreitada pela religião
que deseja sua morte, definitivamente consuma-
Assim, a questão da arte é remetida a seu nada, da (na companhia, aliás, de todos os outros mo-
e podemos então nos perguntar como Platão e o mentos) na fase derradeira de fusão com o uni-
platonismo conseguiram ‘fundar’ a atividade ar- versal singular: o saber absoluto. Por um trançado
tística – ao menos no Ocidente, é nisso que se laborioso submetido ao projeto geral da fenome-
acredita piamente – a partir dessas premissas um nologia, a arte se ajusta entre a moralidade sub-
tanto desencorajadoras. jetiva-objetiva (desenvolvida como via pública e
estrutura do Estado) e a religião, em cuja direção
É que esse discurso pejorativo é duplicado – ou ela segue e que a coroa, religião por sua vez rein-
melhor, recoberto – por outro bem diferente, que troduzida na filosofia.
parece contradizê-lo em todos os pontos. O que
diz respeito ao belo. Primeiro degrau da filosofia do espírito – que,
aqui, triunfa da separação entre exterioridade e
(...) interioridade e se coloca como reconciliação en-
tre a natureza finita e a liberdade infinita do pen-
O belo, para Platão, é o rosto do bem e da verda- samento -, a arte é o elo intermediário que apresenta
de. São três princípios intimamente ligados: nada essa conciliação sob um aspecto sensível.” 32

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CAUQUELIN, Anne. “Teorias da Arte”. São Paulo: Martins, 2005.
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Op.Cit.
76 A CRISE DO MITO NO DESIGN UM RETORNO ÀS ARTES 77

de Apolo traz a outra vertente mística: o sonho,


Desse modo, Hegel estabelece dois pontos: existe um ideal que tinge de doçura a paisagem dionisíaca. Ele
e existe o material. A Arte já não pode mais ser analisada como “algo põe em música o que é grito e furor, torna audí-
em si”, mas sim, na sua relação entre os dois pontos, pois é dada à ela veis as palavras proféticas e visível o que não se
a função de ligação entre os dois extremos. pode olhar. A tragédia antiga é a mesma, a fusão
O espírito determina papel essencial, pois é ele que leva o da dupla aparição da embriaguez da vida e da vida
homem a produzir obras e movimentos a nascerem e morrerem. como sonho: a arte. Fusão íntima que não escon-
Sendo Hegel considerado o fundador da fenomenologia, e de um em favor do outro nem reúne, com um
considerando que Jung era também utilizava-se de tal método, po- artifício teórico, o que teria sido separado, pois
demos notar aqui uma grande semelhança entre os dois pensadores, Apolo é também o deus do raio, e Dionísio é o
no quesito de produção de símbolos e produção sígnica nas artes. mestre dos ritos bem orquestrado: a dupla figura
No entanto, o pensamento de Hegel é ainda sistemático, e é única.” 33
produz hierarquias artísticas que não condizem diretamente com o
pensamento junguiano. Isso talvez seja devido ao fato da influência A partir de Nietzsche, o artista recebe então a função de filó-
que outro pensador alemão exerceu em Jung: Nietzsche. sofo, ao mesmo tempo que o filósofo recebe a função de artista. Isso
se dá ao fato que é o artista que dará atenção à constante disputa entre
“Em O Nascimento da tragédia, Nietzsche, como vi- Apolo e Dionísio, e é ele que será capaz de produzir uma reflexão em
mos, destina à filosofia socrática o papel de guina- meio artístico que retratará esse conflito interno inerente à natureza
da teórica. Essa guinada é para ele uma completa humana.
catástrofe, o esquecimento da origem, a relegação Da mesma forma, o tempo também não entra mais em con-
do que é a essência da arte, sua separação da vida, flito entre passado e presente: o tempo torna-se único, e o artista
o desconhecimento de sua originalidade (enten- torna-se capaz de representar um momento de criação, sendo que
dida no sentido claro de originário: o que nasce “a origem está presente em todas as coisas e em qualquer ação, ela é
e não termina de nascer). Mas essa ‘origem’ é a imediata”.34
própria vida em que sua potência de surgimen-
to, pouco preocupada em encontrar uma forma “Esse imediatismo na captura do tempo é exclusi-
de se expressar (como se a potência fosse distinta vo do artista, pois apenas uma ação criadora pode
de sua manifestação e que um tempo de reflexão trazer a origem até o presente, e é devido a essa
devesse se interpor entre fundo e forma), e para captura do mundo em um único momento que o
a qual tudo está ligado à embriaguez de seu de- artista é verdadeiramente filósofo, é devido a ela
senvolvimento. A figura de Dionísio, seu delírio, que ele conhece”.35
sua loucura mística, é a própria irrupção da vida,
o nascimento do mundo como tragédia. A essa Saindo um pouco da filosofia (se é que isso é possível) e
sombria violência, a esse sol negro, cruel, a figura adentrando no campo da sociologia, podemos novamente consi-
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Op.Cit.
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Op.Cit.
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Op.Cit
78 A CRISE DO MITO NO DESIGN UM RETORNO ÀS ARTES 79

derar os escritos de Cristina Costa, quando ela se refere à chamada e outros ainda a tornaram uma necessidade.
“Sociologia da Arte”: Em certos momentos da história, o conceito de belo era ex-
presso pelas regras que ditavam as técnicas. Nesse cenário, o quadro
“Assim, a sociologia da arte procura mostrar a mais “belo” seria aquele que melhor representasse a natureza em si.
relação entre as manifestações artísticas de uma Era considerado artista aquele que dotava de maior conhecimento
sociedade numa determinada época e a maneira em sua área e, por conseqüência, utilizava de tal conhecimento com
como os homens nela vivem e pensam. Na rou- tamanha maestria, a ponto de criar obras dignas de admiração por
pa, nos edifícios, nas literatura, estão inscritos os outros conhecedores da mesma técnica.
valores da sociedade, seus hábitos e sua mentali- No entanto, em nossa era pós-moderna, tal conceito de ar-
dade. Os indígenas brasileiros, por exemplo, as- tista perdeu o sentido. Arte já não é mais necessariamente a repre-
sim como os jovens de hoje, tatuam ou pintam sentação da natureza e uma obra literária, por exemplo, já não precisa
o corpo para identificar seus grupos étnicos, bem condizer diretamente com a realidade (vide a ficção científica ou os
como para destacar a importância social de seus contos fantásticos).
membros. Cada traço desse desenho tem um sig- Frente tal situação, encontramos no livro “Reflexões Sobre a
nificado próprio e uma forma com sentido. Arte” de Alfredo Bosi uma definição que busca não “fechar” o signi-
ficado da Arte. Busca, pelo contrário, trazer uma definição fenome-
(...) nológica, divida em etapas, formando assim uma dimensão tripla da
natureza artística: Construção, Conhecimento e Expressão.
Dessa maneira, quando falamos em questões de Sobre a Arte como Construção:
arte estamos nos referindo a essa preocupação
de entender o papel da arte na sociedade, a fun- “O momento técnico: a arte é um fazer. A arte é
ção social do artista, o sentido de um som ou de um conjunto de atos pelos quais se muda a for-
uma imagem num determinado contexto social, ma, se transforma a matéria oferecida pela natureza
o processo de consagração artística, a dinâmica do e pela cultura. Nesse sentido, qualquer atividade
processo artístico e a relação existente entre a arte humana, desde que conduzida regularmente a
consagrada e a de vanguarda”. 36 um fim, pode chamar-se artística.” 37

Novamente, entramos no ponto da função social do artista. Sobre a Arte como Conhecimento:
E passamos já por conceituações de arte que vão desde a Grécia anti-
ga até o início do século passado. “Uma das mais antigas tradições teóricas filia-o (o
Aonde queremos chegar com isso? conhecimento peculiar à operação artística) à representa-
Ora, é importante notarmos aqui primeiramente que a Arte ção. É o conceito de arte como mímesis. O termo
sempre permitiu e forçou pensadores à sua devida reflexão. Ao mes- comparece em vários textos da filosofia grega. O
mo tempo, a busca pelo “belo” sempre se tornou presente. Para al- seu significado preciso depende, naturalmente,
guns, tal missão era impossível; outros já a consideravam importante; dos contextos. Pode aludir à mera imitação dos tra-
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COSTA, Cristina. “Questões da Arte”. São Paulo: Moderna, 1999. �������������������������������������������������������������������
BOSI, Alfredo. “Reflexões sobre a Arte”. São Paulo: Ática, 1995.
80 A CRISE DO MITO NO DESIGN UM RETORNO ÀS ARTES 81

ços e gestos humanos, tal como ocorria nos mi-


mos e na pantomima, representações de caráter (...)
jocoso e satírico. Pode também significar a repro-
dução seletiva do que parece mais característico em Como falar de expressão artística sem atentar para a
uma pessoa ou coisa, e ser, portanto, uma opera- fenomenologia do corpo? Para a visada do olhar?
ção que revele aspectos típicos da vida social; nes- E para a intencionalidade do gesto?
te sentido, o artista escolheria os perfis relevantes
do “original” antes de figurá-los: assim seriam os ‘Gesto’ nomeava, na língua clássica, o rosto, o
tipos apresentados nas comédias de Aristófanes. semblante da pessoa. ‘Ó tu que tens de humano o
A teoria do “realismo típico”, defendida vinte e gesto e o peio’, diz Inês de Castro ao seu algoz. E
quatro séculos depois por escritores militantes da ‘o gesto do mundo’ simbolizava, na frase barroca
Revolução Russa, não se afasta, epistemologica- do Padre Vieira, a face das coisas. As mesmas cor-
mente, desse alvo”. 38 relações entre a cabeça, as mãos, os pés e o corpo
todo são vividas pela arte do ator.” 39
No entanto, a idéia de “o que é conhecimento” se altera ao
passar dos anos, juntamente com a cultura do local. Dessa forma, Notamos então que a Arte em si pode não possuir uma de-
aquilo que antes era considerado como um conhecimento válido, finição que seja aceita por todos os pensadores. No entanto, o fato
pode no instante seguinte ser considerado frívolo. Logo, não é de de existirem diferentes linhas de pensamento demonstra como o
espanto nosso que Picasso, por exemplo, passou a tratar a natureza espírito da Arte age sobre nós: ela fascina, duvida, desafia, procura
“segundo a esfera, o cone e o cilindro”. fazer o homem refletir e desempenhar um papel além do munda-
Sobre a Arte como Expressão: no. Podemos até dizer que através da dimensão triádica sugerida por
Bosi, a Arte cria mitos e rituais (da maneira como Nietzsche tão bem
“O corpo é animado: ‘Nos olhos! Olha-me nos expressou em sua analogia sobre o conflito Dionisíaco e Apolíneo),
olhos!’ – insiste Antônio, o mestre de dança, ao sempre como forma de busca ao Belo, o Bem, a Verdade.
ensinar a bailarina a fazer com corpo e alma o seu Passaremos agora para a nossa próxima etapa, na qual procu-
papel de Cármen. A cena está no filme de Carlos raremos compreender a Arte em sua função mítica/simbólica, tendo
Saura, que traz o nome da ópera, e é uma lição já em mente as diferentes linhas de definição sobre ela.
inesquecível de balé como expressividade.

E por que voltar os olhos para os olhos do mestre


e parceiro? Porque na dança os gestos não se diri-
gem para o próprio corpo que os executa; proce-
dem de um organismo imantado por forças que o
empurram para o outro, para a alma do outro que
brilha no olhar do outro.
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Op.Cit. ����������
Op.Cit.
3

A Arte em sua Função Mítica

Como mencionamos anteriormente na entrevista de Joseph


Campbell a Bill Moyers, o artista possui a função social de um “fa-
zedor de mitos”. E como é verdadeira essa afirmação! Basta olhar-
mos para uma banca de revistas qualquer: quantas mitologias não
encontramos por lá! As revistas em quadrinhos são um dos grandes
veículos artístico-míticos da atualidade. Diversos artistas de renome
internacional, reconhecido tanto pelos seus talentos plásticos quanto
literários, criam universos a todo momento. Deuses nascem, lutam
pela verdade, pelo bem geral, e morrem.
Podemos notar tal fenômeno ainda mais presente no cinema.
Heróis nascem a todo momento, e o ator dá lugar ao personagem. Os
“deuses hollywodianos” estão em todo lugar, e podemos notar seus
templos em todos os lugares: revistas com suas fotos, documentá-
rios, biografias, e obviamente, nos pôsteres pendurados em paredes
de quartos adolescentes.
O mesmo ocorre com a música e seus artistas. O mundo
precisa de heróis, o mundo precisa de mitologias, e as diversas mí-
dias que hoje temos contato têm criado esses elementos para nós.
Sobre isso, podemos citar Michel Maffesoli, em seu livro “O Ritmo
da Vida”:

“É o que ressalta muito bem o historiador Werner


Jaeger, mostrando em seu livro sobre a ‘forma-
84 A CRISE DO MITO NO DESIGN UM RETORNO ÀS ARTES 85

ção do homem grego’ em que medido é o ‘tipo’ tuído por outro mais pertinente. Assim, aquilo
(tupos) que faz com que eu corresponda a um que chamamos de versatilidade da moda não pas-
conjunto. Devemos entender esta palavra em seu sa de dança sem fim dos modelos de idealização.
sentido forte. O sentido do diálogo com um meio Impermanência dos avatares, permanência das
social e natural no qual cada um está encaixado. formas!” 40
O tipo é um molde, que é causa e efeito de uma
cultura comunitária. É assim que se elaboram os Então, como Maffesoli aponta muito bem, os mitos novos
mitos que relatam as proezas das figuras emble- formados em uma cultura de mídia de consumo e televisiva não são
máticas, ou as epopéias que formam um mundo duráveis. Logo, torna-se difícil (senão impossível) a cristalização de
ideal. Mitos e epopéias que servem de exemplo um novo mito central, alicerce de sociedade contemporânea, que
para a vida de todos os dias. De certa forma, uma possa guiar o ser humano ao bem comum (seja qual for a idéia de
idealização vivenciada. “bem” que se tenha atualmente).
Ainda assim, a Arte desempenha seu papel mítico. Pois, sen-
Não é preciso ser nenhum grão-mestre para en- do o ser humano um produtor de símbolos, e a Arte possuindo como
tender que essas figuras emblemáticas não são parte de sua definição um quesito de “expressão”, essa expressão tor-
apenas o resultado de contos e lendas antigas, na-se simbólica. Uma rede de símbolos cria mitos, e em contato com
mas encontram uma atualização nas sociedades a sociedade, o mito passa a desempenhar seu papel regulador.
contemporâneas. Tornam-se concretas para os Que maravilhosa viagem é essa através dos mitos que nos
grupos de ‘fãs’ que se correspondem e comun- cercam! Infelizmente, os mitos que perdem sua valia em tempos
gam com seus heróis musicais, esportivos ou re- recentes já não produzem mais o fascínio que produzem os mitos
ligiosos, que não são distantes e desencarnados antigos.
e permitem uma verdadeira ‘realização’ tribal. Basta tomarmos como exemplo atores como Clark Gable,
Sendo ‘informados’ por suas maneiras de vestir- músicos como Jimi Hendrix ou ainda esportistas como Garrincha.
se, comportar-se, falar, os membros do grupo são Temos aí ícones da natureza mítica (pós) moderna, que desempe-
‘assegurados’ de sua existência ‘assegunrando-se’ nharam importantíssima influência em suas épocas. Criaram mode-
a eles. los, ideais, culturas e lendas.
No entanto, a nova civilização parece ter esquecido deles, e a
Lembro que é este o sentido etimológico da pala- própria morte de alguns desses heróis míticos exemplifica bem esse
vra concreto: o fato de crescer-com (cum crescere). esquecimento.
Existir, com todo o seu cortejo de experiências, o Há uma espécie de confusão entre “personagem” e “ator”,
que é da ordem da dinâmica a partir de um mode- entre a “profissão” e a “pessoa”. O espectador já não vê mais um
lo que, ele sim, é estável. Será por sinal instrutivo bom ator desempenhando um papel: ele vê um deus, uma deusa,
observar que, quando o modelo (musical, espor- e estes, por sua vez, são adorados como tal. Basta olharmos nos ta-
tivo, político, religioso) não ‘corresponde’ mais blóides para vermos não raramente fotos de celebridades tiradas em
ao que levara à sua escolha, é rejeitado e substi- seus momentos íntimos. Cria-se assim uma cultura de “consumo de
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MAFFESOLI, Michel. “O Ritmo da Vida”. Rio de Janeiro: Record, 2007.
86 A CRISE DO MITO NO DESIGN UM RETORNO ÀS ARTES 87

heróis”, “consumo de mitologias”, que me permite inclusive entrar MOYERS: Nós vemos o que acontece quando
na vida pessoal daqueles que eu admiro. sociedades primitivas são desmanteladas pela civi-
Os mitos se alteram: é importante que se alterem. Isso nada lização do homem branco. Elas se partem em pe-
mais é do que o reflexo do tempo passando. Mudam-se os costumes, daços, se desintegram, se tornam enfermas. Não é
as vestimentas, as idéias, as culturas, e os mitos devem acompanhar. o que vem acontecendo a nós próprios, desde que
Caso não acompanhem, morrem. Caso morram, novos surgem – nossos mitos começaram a desaparecer?
surgem como compensação psíquica, como novas e constantes “pis-
tas para as potencialidades espirituais da vida humana”.41 CAMPBELL: É exatamente isso.
Mas será essa compensação proporcionada pelos mitos mo-
dernos exatamente saudável? Será que as novas tribos formadas estão MOYERS: Não é por esse motivo que as religiões
realmente condizendo com a função reguladora que um mito vigen- conservadoras, hoje, estão apelando para a religião
te produz? Ou será que os valores de uma sociedade de consumo, dos velhos tempos?
que têm levado muitos à marginilização e alienação da própria socie-
dade em que vivem, têm deturpado os valores míticos intrínsecos? CAMPBELL: Sim, e estão cometendo um erro
Citemos Joseph Campbell, novamente em sua entrevista com Bill terrível. Estão voltando a algo atrofiado, algo que
Moyers: não serve à vida.

“MOYERS: Isso quer dizer que há rituais mito- MOYERS: Mas já serviu, não é mesmo?
lógicos atuando em nossa sociedade. A cerimônia
de casamento é um deles. A cerimônia da posse CAMPBELL: Com certeza.
de um presidente ou de um juiz é outro. Fale de
outros rituais importantes para a sociedade, hoje. MOYERS: Eu entendo a atração que isso exerce.
Na juventude, eu tinha estrelas fixas. O fato de
CAMPBELL: Alistar-se no exército, vestir um estarem sempre ali era um conforto para mim.
uniforme, é outro. Você desiste de sua vida pesso- Elas me deram um horizonte conhecido. E me
al e aceita uma forma socialmente determinada de disseram que lá fora havia um Pai bondoso e amá-
vida, a serviço da sociedade de que você é mem- vel olhando por mim, pronto para me receber,
bro. Eis por que me parece obsceno julgar pessoas atento aos meus interesses o tempo todo. Ora,
em termos da lei civil, por atos que elas pratica- Saul Bellow diz que a ciência fez uma faxina nas
ram em tempo de guerra. Elas não estavam agindo crenças. Mas essas coisas eram valiosas para mim.
como indivíduos mas como agentes de algo acima Hoje sou o que sou por causa dessas crenças. Eu
delas, a que se haviam consagrado inteiramente. me pergunto o que acontece às crianças que não
Julgá-las como se fossem seres humanos comuns têm aquelas estrelas fixas, aquele horizonte co-
é totalmente impróprio. nhecido – aqueles mitos.

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CAMPBELL, Joseph. “O Poder do Mito”. São Paulo: Palas Athena , 1990.
88 A CRISE DO MITO NO DESIGN UM RETORNO ÀS ARTES 89

CAMPBELL: Bem, como disse antes, tudo o que os vícios do passado são as necessidades de hoje”.
você tem a fazer é ler o jornal. É uma confusão! Mas como temos fundamentado nesse trabalho, tal carência
No tocante a este nível imediato de vida e estru- simbólica e significativa pode ser preenchida através da Arte, e do
tura, os mitos oferecem modelos de vida. Mas os espírito transcendente que ela comporta.
modelos têm de ser adaptados ao tempo que você No entanto, existe o perigo da própria carência simbólica
está vivendo; acontece que o nosso tempo mudou atingir o campo artístico. Podemos novamente citar Joseph Campbell,
tão depressa que o que era aceitável há cinqüenta dessa vez em seu livro “Para Viver os Mitos”, no momento em que
anos não o é mais, hoje. As virtudes do passado ele diz:
são os vícios de hoje. E muito do que se julgava
serem os vícios do passado são as necessidades de “É no campo das artes que o efeito redutivo, dimi-
hoje. A ordem moral tem de se harmonizar com nuidor de vida, da perda de todo sentido de forma
as necessidades morais da vida real, no tempo, é hoje mais inquietante; pois é nas suas artes que
aqui e agora. Eis aí o que não estamos fazendo. A as energias criativas de um povo são mais bem ex-
religião dos velhos tempos pertence a outra era, postas e podem ser mais bem medidas. Não se
outras pessoas, outro sistema de valores humanos, pode comparar a situação atual com a das artes na
outro universo. Voltando atrás, você abre mão de antiga Roma senil. Por que as obras romanadas de
sua sincronia com a história. Nossos jovens per- arquitetura e de escultura, com todo o seu poder
dem a fé nas religiões que lhes foram ensinadas, e e facilidade, são menos impressionantes, menos
vão para dentro de si. tocantes, formalmente menos significativas que
as gregas? Muitos já pensaram sobre este proble-
MOYERS: Quase sempre com a ajuda de drogas. ma, e certa noite uma resposta me veio em sonho,
e agora eu a ofereceria como um esclarecimento
CAMPBELL: Sim. A experiência mística me- importante. É a seguinte: numa pequena comu-
canicamente induzida é o que temos aí. Tenho nidade como a de Atenas, o relacionamento do
assistido a muitos congressos de psicologia que artista criativo com os líderes sociais seria franco
lidam com a grande questão da diferença entre a e direto, pois ele se conheceriam desde a infân-
experiência mística e o colapso psicológico. A di- cia; enquanto que em comunidades como, por
ferença é que aquele que entra em colapso imerge exemplo, nossa moderna Nova York, Londres ou
nas águas em que o místico nada. Você precisa es- Paris, o artista que queira ser conhecido tem de
tar preparado para essa experiência.” 42 ir a coquetéis para ganhar encomendas, e aqueles
que as conseguem são os que não estão em seus
Mitos sem profundidade; experiências místicas mecani- estúdios, mas nas festas, encontrando as pessoas
camente induzidas; o consumo em torno de toda a idéia mítica. certas e aparecendo nos lugares certos. Eles não
Campbell exprime muito bem toda essa questão nas frases “as virtu- permanecem empenhados o bastante na agonia
des do passado são os vícios de hoje. E muito do que se julgava serem do trabalho criativo solitário para avançar além
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Op.Cit.
90 A CRISE DO MITO NO DESIGN

de suas primeiras aquisições de estilos e de técni-


cas vendáveis. E a conseqüência disso é a ‘instant
art’, onde alguns indivíduos mais espertos, com o
4
mínimo de agonia formal possível, simplesmente
produzem algo imprevisto – que é então criticado
e apregoado ou descartado pelo pessoal do jornal,
que é amigável ou não-amigável, e que tem igual- Design: um Equilíbrio Proposto
mente muito do lado social para cuidar, e tempo
insuficiente para estudar ou para ter experiências
extracurriculares, ficam desconcertados diante de
algo realmente complexo ou significativamente
novo.” 43
Primeiramente, lembremos da nossa fórmula sobre o Design,
Temos agora um ponto de reflexão: o Design vem da Arte.
introduzida no capítulo anterior:
O Design possui uma função mercadológica/consumista em contra-
ponto com a função significadora, simbólica e transcendente da Arte.
DESIGN = ARTE + MERCADO
No entanto, as chamadas “mídias especializadas” ou ainda os “críti-
cos de Arte” podem estar sendo responsáveis por um esvaziamento Tendo a fórmula em mente, devemos sempre lembrar que o
simbólico e mítico social. Que rumo devemos tomar então, se dese- Design não existe sem algum dos elementos da equação.
jamos que a função transcendente artística se manifeste no Design, Também devemos nos lembrar da necessidade de uma cons-
ao mesmo tempo que o próprio campo das Artes têm sido afetado tante mudança de valores inerentes a uma sociedade. Uma mudança
pela função mercadológica e ideologia capitalista de hierarquias e que adapte, que reviva, que religue o indivíduo ao meio em que está
classes? inserido.
Tendo essas premissas bem definidas, podemos concluir que
uma formulação estática do tipo “deve-se fazer sempre assim” não
apenas é sem sentido, mas também estaria fadada a uma rigidez ta-
manha que determinaria o desuso da teoria em muito pouco tempo.
Uma analogia interessante então poderia ser a de uma gan-
gorra: enquanto um lado sobe, outro desce. Ou agregando ainda ou-
tra analogia, podemos pensar em um elástico que se estica e volta ao
seu estado original repetidamente.
Ora, o ser humano sempre sentiu necessidade de se comu-
nicar. Logo, temos um princípio de Design aí. Mas ele ainda era ima-
turo, precisava de uma “mãe”: surge a Arte. Ela desenvolve-se por
milênios, germinando uma necessidade cada vez mais maior que o
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CAMPBELL, Joseph. “Para Viver os Mitos”. São Paulo: Cultrix, 1997.
92 A CRISE DO MITO NO DESIGN

homem possuía de se comunicar, de entrar em contato com outros,


de ser visto e ouvido pelo maior número possível de pessoas.
Surge então o Design, que com a Indústria, pôde finalmente
se manifestar e desempenhar em larga escala sua grande ambição. O
filho pródigo deixou a mãe para criar sua própria independência.
Mas como o elástico que foi esticado, ou a gangorra que su-
biu demais, agora é hora de descer e se comprimir: é hora de voltar
para casa. É necessário mais um momento em que o Design possa
reaprender com a mãe, que, por sua vez, poderá assim ganhar novo
ânimo para continuar produzindo símbolos, encantando e elevando
as sociedades, enquanto o filho poderá auxiliá-la, trazendo uma pers-
pectiva de enriquecimento cultural que não visa apenas o lucro atra-
vés do descartável; mas sim, a sobrevivência do espírito humano.
É necessário a quebra de velhos paradigmas e o desenvolvi-
mento de novos conceitos de atuação no Design - que por sinal, já
existem! Basta prestarmos atenção.

V. Uma “Nova” Consciência


1

A criação de Imagens Ricas e Modelos de


Propostas Passíveis de Alta-Significação

Podemos dizer agora, com toda a segurança, que o que bus-


camos aqui não é tão-somente um sentido estético de Design, mas
sim um sentido social, psicológico, uma função que existe interna-
mente no Design: aquela função de dar significado ao mundo – mas
sem fechar o significado: vamos abrir o leque de interpretações, dar
ao povo a possibilidade de interação, fazê-lo participar na criação de
significados de símbolos no mundo.
Talvez, seria saudável a nós esquecermos um pouco do ven-
dável, de fórmulas pré-concebidas, de fácil assimilação, e apostarmos
realmente em modelos de trabalho que desafiem os consumidores a
pensar. Baudrillard já se referia às massas como não tendo opinião,
como algo sem forma e definição44. Kafka e Sartre também possuem
tais pensamentos, e eles não estão errados.
No entanto, em uma era que é chamada “a era da informa-
ção”, em que na distância de um “click” do mouse nós podemos nos
transportar para outro país em questão de segundos, por que é que
ainda apostamos em modelos de icônicos, que remetem apenas a um
primeiro nível de entendimento?
Maior prova disso se encontra nos filmes de M. Night
Shyamalan. Constantemente seus filmes são mal interpretados, re-
cebendo críticas péssimas, simplesmente pelo fato de serem obras
que exigem uma reflexão simbólica do espectador. Contudo, como
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“À Sombra das Massas Silenciosas”, Jean Baudrillard – 1985. Ed. Brasiliense
96 A CRISE DO MITO NO DESIGN UMA “NOVA” CONSCIÊNCIA 97

vivemos em uma sociedade acostumada ao não-exercício do pensar, arquetípicos de formas extremamente metafóricas: seus filmes são
não é raro ouvirmos críticas depreciadoras a filmes como “A Vila”, contos míticos vivos, criando novos heróis e ídolos. No entanto, é
“Sinais” ou “A Dama na Água”: críticas que sequer levam em consi- interessante notar que seus filmes não fazem apelo aos atores (famo-
deração os níveis de interpretação simbólicos. Mantendo-se no ní- sos ou não) que participam da obra: a história é vista como um todo.
vel icônico de interpretação, os filmes de Shyamalan são geralmente Todos os personagens são importantes e desempenham funções es-
considerados pelos críticos e pela massa: senciais em determinado momento do filme.
Será possível aplicar então tal conduta “simbólica” no
_com enquadramento ruim; Design? Com toda a certeza! No entanto, é bem passível de risco
_com cores estranhas; que devido a dificuldade de interpretação no primeiro instante que
_com histórias sem sentido e irreais (“bobas”); tal atitude gera, os designers que tomem tal postura podem tornar-se
_com desfechos fracos. marginalizados pelo próprio meio mercadológico em que vivem.
Contudo, não acredito que isso seja motivo para desistir.
Tudo isso realmente pode condizer com a realidade. Mas essa Afinal, uma cultura é construída através de idéias e ações. Se a idéia
seria uma análise muito superficial, baseada apenas em um primeiro é forte e pretende trazer conteúdos simbólicos contidos dentro da
plano de interpretação. Seria o mesmo que crucificarmos algum ar- psique humana, trazendo novamente a necessidade do mistério, da
tista pela sua visão e estilo diferenciados. investigação e da reflexão, ela irá criar em alguns indivíduos uma
Agora, quando analisa-se a dimensão simbólica dos filmes ressonância, que após algum tempo, poderá gerar uma reação em
citados, eles ganham outra perspectiva; e não é raro encontrar pesso- cadeia, trazendo novos ideais e princípios de conduta de produção
as (os mesmos membros da massa amorfa) que mesmo após criticar simbólica.
os filmes, após compreenderem a profundidade simbólica das obras,
mudam de opinião, e passam a admirar os filmes do diretor. Somente
para que se tenha uma idéia da gritante diferença de interpretação
que tal reflexão pode permitir, podemos tomar como exemplo o fil-
me “Sinais”, que é considerado por muitos como um filme de ficção
científica, já que a história se trata (pelo menos na primeira análise)
da forma como uma família do interior dos EUA têm que enfrentar
uma invasão alienígena. Porém, quando passamos ao nível simbólico
e começamos a interpretar as funções e papéis arquetípicos na trama,
notamos então que o filme não é uma ficção científica. Ele torna-se
um romance, cuja trama principal envolve a busca de um homem
pela sua própria fé.
Tal complexidade na obra de M. Night Shyamalan, que por
não ser atraente à grande massa não é assimilada facilmente, fez com
que ele perdesse muita credibilidade, tanto por parte dos produto-
res quanto por parte dos que se consideravam fãs. Contudo, ele não
mudou seu estilo, e continua criando obras que traduzem conteúdos
2

Exemplos de Uma “Nova” Consciência

Já é possível notar alguns designers que desempenham tal


trabalho. Trataremos deles a seguir.
É interessante notar que apesar de tal reflexão acerca de mi-
tos e símbolos no design parecer “novidade”, muitos são os designers
que produzem seus trabalhos acerca de tal filosofia. Em alguns de
seus trabalhos, chega a ser difícil definir se a produção é de intenção
artística ou de design. São obras de extrema pregnância simbólica,
que exigem um segundo, um terceiro, enfim, infinitos olhares e re-
avaliações. E ainda assim, cumprindo com suas devidas funções de
“símbolos vivos” (de acordo com o conceito junguiano), jamais se
esvaziam de significado.

David Carson

Na introdução do livro “The End Of Print”45, David Byrne


nos alerta:

“O trabalho de David comunica-se. Mas em um


nível além das palavras. Em um nível que ultra-
passa os centros lógicos e racional do cérebro e vai
direto para a parte que entende sem pensar. Desta
forma ele funciona exatamente como a música
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CARSON, David. “The End of Print”. San Francisco: Chronicle Books, 1995.
100 A CRISE DO MITO NO DESIGN UMA “NOVA” CONSCIÊNCIA 101

funciona – entra por lá antes que qualquer um “designer”.


tenha a chance de pará-la na fronteira e pedir pela Seu estilo basicamente é a colagem. Antigamente ele se de-
documentação.” 46 dicava apenas a colagem manual, e nos últimos anos passou a incor-
porar cada vez mais a computação gráfica. O resultado de tal atitude
Carson é conhecido pelo seu estilo “desconstrutivo”. foi o de colagens cada vez mais complexas, incluindo ilustrações para
Enquanto todos querem ter seus textos lidos, Carson os diagrama livros inteiros feitos com esse recurso (como nos livros “O Dia Em
de forma que só irão compreendê-lo após muito esforço – uma ver- Que Troquei Meu Pai Por Dois Peixinhos Dourados” e “Os Lobos
dadeira obra de arte tipográfica. Não é à toa que ele já foi chamado Dentro das Paredes”, ambos de Neil Gaiman), assim como alguns
de “o Paganini dos tipográficos”. Seus trabalhos são inúmeros, mas curtas e um longa metragem intitulado “Mirrormask” (lançado no
podemos citar com destaque o trabalho que ele realiza até hoje para a Brasil como “Mirrormask – A Máscara da Ilusão), também em par-
banda americana Nine Inch Nails: Carson é o responsável pelas artes ceria com Neil Gaiman.
de todos os CDs lançados até hoje pela banda (totalizando mais de Por sinal, “Mirromask” é o longa metragem do qual McKean
30). produziu inteiramente, desde os concept-art até os jogos de câme-
Tal parceria rende ao fã da banda não apenas um item colecio- ra, utilizando-se de sua equipe e computadores. Os resultados são
nável (que aparentemente perde cada vez mais valor na era do mp3), maravilhosos, e os símbolos vivos estão soltos durante todos os 90
mas proporciona ao consumidor a obtenção de uma verdadeira “obra minutos.
de arte”. O trabalho de Carson nas artes dos CDs são impecáveis, o Seu trabalho com colagem permite-lhe juntar elementos que
que cria um vínculo com o fã muito maior. Ainda mais na atual era da em um primeiro momento poderiam parecer totalmente dispersos
música digital, o fã vê-se com vontade de comprar o CD justamente e incompatíveis. Mas em dado contexto, os elementos ganham vida
pela arte que vem nele. Há agregação de valor incalculável nessa ati- própria, e David Bowie passa então a tornar-se Lúcifer, assim como
tude da banda Nine Inch Nails com o designer David Carson, crian- a lua vira um rosto feminino, e alfinetes em uma foto de um olho
do assim barreiras literalmente invisíveis entre industria “fonográfica causa arrepios em quem a vê. Novamente, é um designer que possui
versus arte musical” e “design versus arte”. Onde muitos consideram uma produção tão simbólica que permite aos seus admiradores uma
haver um conflito, aí existe uma cooperação, e o resultado derruba, constante e infinita revisão dos mesmos trabalhos.
quebra e transcende qualquer fórmula de venda preparada, aquilo
que Campbell se referiu como “instant art”.
Storm Thorgerson

Dave McKean Chegamos finalmente àquele que pode ser considerado


como um dos mais antigos designers “simbólicos” do mundo. Storm
Dave McKean é mundialmente conhecido principalmente Thorgerson tornou-se famoso principalmente pelo seu trabalho com
pelas capas da revista em quadrinhos para adultos Sandman, escrita as capas dos discos da banda inglesa Pink Floyd, tendo talvez como
por Neil Gaiman entre o final da década de 80 até meados da dé- grande expressão de seu trabalho a capa do disco “Dark Side Of The
cada de 90. Mas suas contribuições para o Design são inúmeras, e Moon”, da década de 70.
mais uma vez, não existe uma definição clara entre o “artista” e o Storm sempre fez questão de desenvolver um estilo gráfico
����������
Op.Cit.
que exigia do espectador uma atenção muito grande, assim como
102 A CRISE DO MITO NO DESIGN UMA “NOVA” CONSCIÊNCIA 103

uma constante reflexão. A partir daí, os fãs tiveram a confirmação de que o Enigma
Participante do movimento psicodélico inglês, do qual a era real. No entanto, quando os membros da banda eram questiona-
banda Pink Floyd é proveniente, ele foi capaz de juntar com maestria dos sobre o assunto, eles diziam nada saber.
a arte sonora da banda com a arte visual dos discos. É comum os fãs Em uma entrevista realizada por um fã – mais precisamente, o dono
se referirem ao Pink Floyd como uma “viagem tanto sonora quanto do site “Publius Enigma”47, Sean Heisler, um dos maiores peritos do
visual”. assunto -, Storm apontou “onde há fumaça, há fogo”.
No entanto, apesar de começar seu trabalho com elementos Mas qual a necessidade de um Enigma? E o que Storm tem
psicodélicos, seu estilo desenvolve-se mais para uma espécie de sur- a ver com isso?
realismo, no qual ele combinava elementos que não condiziam em É valido lembrarmos que em 1992, o Pink Floyd passava
uma realidade conjunta. Podemos citar nesse caso a capa do disco por problemas de baixa popularidade. Um dos fundadores da banda,
“Animals”, que apresentava um porco gigante voando perto de uma Roger Waters, havia deixado a formação anos antes, entrando inclu-
fábrica. sive com processos judiciais para com os outros membros, exigin-
O mais interessante do trabalho de Storm é que ele rara- do que o nome “Pink Floyd” nunca mais fosse usado. No entanto,
mente se utiliza de recursos digitais como ferramenta principal: suas Waters perdeu o longo processo, e o restante dos integrantes pude-
capas são, em sua maioria, realmente fotos, no máximo retocadas no ram continuar usufruindo da marca “Pink Floyd”.
computador. Quando toma-se consciência disso, só é possível ima- Apesar dessa vitória, o lançamento do primeiro disco após o
ginarmos o tamanho do trabalho requerido para a produção de uma retorno não foi dos melhores. “A Momentary Lapse of Reason” não
capa como a do disco “A Momentary Lapse of Reason”, na qual mais foi bem recebido pelos fãs, que passaram instantaneamente a dizer
de 700 camas de hospital aparecem ao longo da costa de uma praia. que a fase pós-Waters talvez não tivesse sido uma boa idéia.
Segundo seu website, na seção em que ele nos conta sobre a produ- No entanto, o álbum de estúdio a seguir, “The Division
ção da capa, choveu no primeiro dia, e só foi possível realizar a sessão Bell”, foi recebido muito bem pela crítica. Mas os fãs continuavam
de fotos no dia seguinte (as 700 camas continuaram lá). escondidos. Era necessária uma atitude que os fizesse se interessar
Mas talvez possamos dizer que a maior façanha de Storm novamente pela banda (lembrando que um dos grandes pontos que
tenha sido em 1992, com o lançamento do álbum “The Division Waters trazia à banda era os conceitos dos álbuns, sempre passíveis
Bell”, no qual foi lançado pela internet um chamado “Enigma”. Um de diferentes análises e interpretações), e tudo indica que o Enigma
visitante do fórum do site oficial do Pink Floyd chamado “Publius” Publius (que até hoje não possui uma solução aparente – apesar de
passou a postar mensagens sobre um suposto enigma que existia nas diversas teorias) foi realmente uma tática da banda para atrair os fãs
letras e principalmente na arte gráfica do disco. novamente.
Os fãs, que em um primeiro momento não acreditavam na Obviamente, tal estratégia não poderia ter sido tomada sem
história, passaram a acreditar quando em uma das mensagens de um planejamento que é tipicamente destinado aos designers, princi-
Publius ele pediu a eles para que ficassem atentos à um “show de palmente pela quantidade de “pistas” que existem não apenas no “The
luzes” em uma determinada data e horário. Division Bell”, mas também nos álbuns “PULSE”, “ECHOES” e no
Quando o dia e a hora chegaram, a banda Pink Floyd tocava relançamento do disco “A Momentary Lapse of Reason”.
“coincidentemente”. E no horário que foi avisado por Publius, as Em resumo, Storm foi capaz de criar toda uma nova mito-
luzes inferiores do palco formaram o letreiro “PUBLIUS”. logia, uma quantidade infinita de símbolos secretos, um enigma tão
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http://folk.uio.no/ericsp/floyd.html
104 A CRISE DO MITO NO DESIGN

instigante aos fãs que esses não viam outra saída, senão adquirir o
álbum e buscar por pistas.
Parece ser este o exemplo de um perfeito equilíbrio entre a
função artística e mercadológica do Design.

Conclusão

Pudemos concluir então que o Design possui uma função


mítica, proveniente de sua “mãe”, a Arte. Não apenas isso, foi tam-
bém possível situar o designer atual como o novo produtor de sím-
bolos e mitos, que por sua vez, buscam direcionar a sociedade para
algum objetivo em comum.
No entanto, este “objetivo em comum” parece não estar bem
definido na sociedade atual, fazendo com que os mitos produzidos
não mais perdurem. Consequentemente, os valores produzidos pe-
los mesmos mitos já não possuem uma dimensão suficientemente
abrangente às necessidades inerentes ao espírito humano. É neces-
sária então uma revisão dos conceitos e premissas que buscamos na
sociedade atual.
A informação facilitada conduz a um grave problema: o ócio
mental. Este, por sua vez, proporciona um mundo sem cor, sem
significados mais profundos, em suma, sem vida. O mundo como
“mito Uno” torna-se morto, material, relegado às primeiras impres-
sões e opiniões fundadas em experiências sem sentido simbólico.
Em tal cenário, entra o design, produzindo símbolos cons-
tantemente, mas aparentemente sem uma preocupação sócio-cultu-
ral. O questionamento “que espécie de símbolos estamos produzin-
do” não é realizado por todos, e isso demonstra a falta de perspectiva
de influência que o design possui de si mesmo sob o mundo. Em tal
caminho, o design torna-se fadado a continuar existindo apenas para
106 A CRISE DO MITO NO DESIGN

informar em um primeiro nível. As pessoas tornam-se cascas vazias,


nas quais o conteúdo já não importa.
Mas em uma outra perspectiva, aquela que traz o designer
como ser pensante, produtor constante de símbolos para a massa e,
acima de tudo, responsável pelas conseqüências que seus símbolos
produzidos terão na sociedade, deve assumir uma postura social que
desafie as pessoas a pensarem, buscarem, investigarem e refletir. Do Referências Bibliográficas
contrário, a massa continuará amorfa, facilmente influenciável pelos
tão chamados “poderosos”, sem poder de opinião, reflexão ou voz.
É função do designer buscar a produção de símbolos que
compreendam os mitos vigentes, de tal modo que possamos criar
valores de conduta válidos e saudáveis, não mais visando apenas o
lucro e o bom desempenho mercadológico, mas sim, buscando o de- AZEVEDO, WILTON. O que é Design? - Coleção Primeiros
senvolvimento do espírito humano, a busca pela felicidade não ape- Passos. São Paulo: Brasiliense, 1988.
nas em produtos externos, mas também na vivência interior – aquele
ideal da busca do Bem e a idealização do Belo existente no espírito BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos. São Paulo:
artístico. É essa a função transcendente que o designer deve sem- Perspectiva, 1978.
pre buscar: fazer o possível para tornar a sociedade simbolicamente
saudável. BAUDRILLARD, Jean. À Sombra das Massas Silenciosas. São
Conclui-se aqui que o designer, quando participa de uma Paulo: Ed. Brasiliense, 1985.
produção simbólica, não deseja que seu enigma seja solucionado,
mas sim, que o enigma e o mistério envolventes em seu trabalho se BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a Arte. São Paulo: Ática, 1995.
mantenham vivos por muito tempo. Afinal, o designer produz sinais
que tornam-se símbolos ao serem expostos ao meio social: aqueles, BRANDÃO, Junito. Mitologia Grega - Vol. I. Petrópolis: Vozes,
por sua vez, enchem-se assim de mistério e desenvolvem enigmas 1985.
próprios através de uma autonomia deveras poderosa – um símbolo
que, por ser vivo, possui também vontade própria: ele torna-se cons- CAMPBELL, Joseph. Para Viver os Mitos. São Paulo: Cultrix,
ciente de si mesmo e de seu poder. Já a massa, ao entrar em contato 1997.
com o sinal do designer, cria um símbolo, e é desejo do designer que
ele se mantenha vivo o máximo possível. A pregnância simbólica não CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. São Paulo: Palas Athena ,
cessa e, dessa maneira, a função transcendente passa assim a desem- 1990.
penhar papel fundamental.
“A Arte é uma mentira que nos faz entender uma verdade” CARSON, David. The End of Print. San Francisco: Chronicle
– Picasso. Books, 1995.

CAUQUELIN, Anne. Teorias da Arte. São Paulo: Martins, 2005.


108 A CRISE DO MITO NO DESIGN REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 109

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2007.
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JAFFÉ, Aniela. Ensaios Sobre a Psicologia de C. G. Jung. São


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JUNG, Carl G. O Homem e Seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova


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JUNG, Carl G. OBRAS COMPLETAS. Petrópolis: Vozes, 2000.


_____________________________________
Este livro foi composto nas tipologias
Aldine 401 BT em corpo 11/15,
e Times New Roman em corpo 11/15.
Impresso em papel Polen Bold Natural 90g
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