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1o Semestre de 2007
A toda minha família, cujos membros
(sem exceção) sempre me forneceram
modelos, suporte e uma estrela guia.
Nada seria possível sem vocês.
AGRADECIMENTOS
INTRODUÇÃO 13
I. A NATUREZA DO MITO
1. MITOS E RITUAIS 17
2. UMA CRISE MITOLÓGICA 21
3. O MITO E O DESIGN 27
CONCLUSÃO 105
I. A Natureza do Mito
1
Mitos e Rituais
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Dicionário Brasileiro de Língua Portuguesa – Encyclopaedia Britannica do Brasil, 1990.
18 A CRISE DO MITO NO DESIGN A NATUREZA DO MITO 19
“Em outros termos, mito, consoante Mircea so, falecido no século passado, explicou em algumas de suas entre-
Eliade, é o relato de uma história verdadeira, vistas com Bill Moyers sobre essa função transcendente que o mito
ocorrida nos tempos dos princípios, illo tempore, oferece.
quando com a interferência de entes sobrenatu- Para ele, os mitos eram formas que os antigos encontraram
rais, uma realidade passou a existir, seja uma re- de colocar a mente em equilíbrio com o corpo. Isso porque a mente
alidade total, o cosmo, ou tão-somente um frag- pode às vezes funcionar como um componente independente, que-
mento, um monte, uma pedra, uma ilha, uma rendo e exigindo coisas que o corpo não quer. Já com o auxílio do
espécie animal ou vegetal, um comportamento mito, ambos entravam em harmonia, pois assim a mente poderia
humano. Mito é, pois, a narrativa de uma criação: compreender algo que o corpo físico não teria contato ou capacidade
conta-nos de que modo algo, que não era, passou de suportar.
a ser”. Desde a infância somos educados em um “mundo de dis-
ciplina”, e a medida que crescemos, nos é necessária uma série de
O que seriam esses “entes sobrenaturais”? Tal assunto será passagens e rituais que indiquem o desenvolvimento pessoal, o “ca-
abordado nos capítulos a seguir, mas podemos adiantar que o sobre- minhar com as próprias pernas”. Caso tais tarefas não sejam bem
natural é “aquilo que foge da razão humana”. A partir do momento sucedidas, há o grande risco da criança tornar-se neurótica, “travada”
que a razão não encontra respostas, o fenômeno ocorrido com o in- em um determinado comportamento que poderá ser-lhe nocivo nos
divíduo resultará em uma explicação que foge aos padrões racionais anos vindouros. É como possível forma de evitar tais casos que o
coletivos. Nesse momento, o indivíduo possui dois caminhos: acei- mito desempenha fundamental papel.
tá-lo ou ignorá-lo. Sendo a Morte o “desengajamento definitivo”, o mito tam-
Ao aceitá-lo, automaticamente ele participará de um proces- bém nos oferece a aceitação e compreensão dessa fase natural e ine-
so de vivência de um mito vigente. Seja o mito pessoal ou coletivo, o vitável da vida. Nas palavras de Campbell:
indivíduo passará a vivenciar o aspecto de sua existência que mais se
aproxima do divino, do numinoso, e toda vez que o mito tornar-se “E finalmente a morte. É o desengajamento defi-
ativo em sua vida, estaremos presenciando o acontecimento de um nitivo. Assim, o mito precisa servir aos dois pro-
ritual. Afinal, a função principal do ritual é justamente a de dar nova pósitos, induzir o jovem a participar da vida do
vida ao mito, impedindo este de morrer e/ou tornar-se frio, fraco, seu mundo – esta é a função do folclore – e depois
obsoleto. desengajá-lo. A idéia folclórica desencadeia a idéia
As definições sobre o mito em si são diversas, e é difícil uma elementar, que guia você na direção da sua pró-
consenso entre todas as definições. No entanto, para a presente pro- pria vida interior.”
posta desse trabalho, a definição apresentada no início desse capítu-
lo é mais do que satisfatória, e deverá ser melhor elucidada quando O mito então também se demonstra como esse acervo de
abordarmos os conceitos apresentados por Carl G. Jung em suas conhecimento infindável, que remete aos homens mais antigos e o
Obras Completas. seu modo de compreensão do mundo. Além disso, há também um
Mas reflitamos sobre a função de “ligação” que o mito ofere- grande respeito pelo meio em que se está inserido, fazendo o homem
ce ao homem. Joseph Campbell, antropólogo mundialmente famo- ����������������������������������������������������������������������
CAMPBELL, Joseph. “O Poder do Mito”. São Paulo: Palas Athena , 1990.
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Op. Cit.
BRANDÃO, Junito. “Mitologia Grega - Vol. I”. Petrópolis: Vozes, 1985. ���������
Op. Cit.
20 A CRISE DO MITO NO DESIGN
ela mesma somente uma doença, uma outra do- mim e a lei moral dentro de mim. (...)
ença, e não absolutamente um retorno à virtude, A primeira começa pelo lugar que ocupo no
à saúde, à felicidade... Ter de combater os instintos, mundo exterior, sensível, e estende a conexão em
essa é a fórmula da décadence: enquanto a vida está que me encontro a grandezas imensuráveis, de
em ascensão, felicidade e instinto são a mesma coi- mundos sobre mundos, e sistemas de sistemas;
sa.” nos tempos ilimitados do seu movimento perió-
dico, do seu início e de sua duração.
Mas apesar de a razão ter ganho grande espaço desde a Grécia A segunda começa no meu eu invisível, na mi-
Antiga, notamos a principal ruptura do homem com a natureza após nha personalidade; e representa-me em um mun-
Descartes e, mais tarde, fundamentando a “era de ouro” para o nasci- do que tem uma verdadeira infinidade, mas que
mento e desenvolvimento do método científico e das ciências em si, só é perceptível pelo intelecto, e com o qual (mas,
Isaac Newton. por isso, ao mesmo tempo também com todos os
Descartes (1596 – 1650), cujo pensamento ficou conhecido mundos visíveis) me reconheço numa conexão
como “Cartesianismo” propunha uma redução de todos os fenôme- não simplesmente acidental, como no primeiro
nos às suas mínimas partes, de modo a simplificá-los o máximo pos- caso, mas universal e necessária.
sível. Através desse método de redução, dizia ele, seria possível em A primeira visão de um inumerável conjun-
um segundo momento reunir todas as partes separadas, de modo que to de mundos destrói, por assim dizer, a minha
o todo voltasse a funcionar, dessa vez com a compreensão das suas importância como criatura animal, que terá que
partes pelo observador. devolver a matéria de que é feita ao planeta (um
Anos mais tarde, quando Newton postula suas leis e fórmu- simples ponto no universo), depois de ter sido
las sobre o funcionamento do mundo, o cientista passa a ser o “co- dotada por breve tempo (não se sabe como) de
nhecedor do mundo”, e a razão alcança seu status de “único meio força vital.
para a compreensão da verdade”. A segunda, ao contrário, eleva infinitamente
Antes mesmo da crítica de Nietzsche à repressão do instinto o meu valor como inteligência por meio da mi-
humano, temos Immanuel Kant, que trará no séc. XVIII a necessi- nha personalidade, na qual a lei moral me revela
dade de uma nova visão sobre a compreensão do mundo, em que a uma vida independente da animalidade e mesmo
razão é apenas uma forma de se obter o conhecimento, e é necessário de todo o mundo sensível: ao menos, pelo que se
um conflito e uma complementaridade entre “o céu estrelado” e a pode inferir da destinação final da minha existên-
“constatação da lei moral interior”. Citando o próprio: cia em virtude dessa lei, destinação esta que não
se restringe às condições e aos limites desta vida,
“Duas coisas enchem o espírito de admiração mas que vai até o infinito.”
e reverência sempre novas e crescentes, quanto
mais freqüentemente e demoradamente o pensa- O pensamento desses homens, apesar de fundamental para o
mento nelas se detém: o céu estrelado acima de desenrolar do pensamento contemporâneo, não foi capaz de causar
uma total influência em um novo organismo que se tornava cada
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NIETZSCHE, Friedrich. “O Crepúsculo dos Ídolos”. São Paulo: Hemus, 1976.
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KANT, Immanuel. “Crítica da Razão Prática”. Lisboa: Edições 70, 1989. ���������
Op. Cit.
24 A CRISE DO MITO NO DESIGN A NATUREZA DO MITO 25
mais forte nos anos vindouros: a Indústria, e com ela, o Mercado tenção de bens materiais”. Em tal distorção social, temos um homem
atual. que talvez não dê importância à valores pessoais, como sua integri-
Talvez tenha sido na Revolução Industrial, ou talvez após a dade moral, social ou familiar. A “posse” e o “desejo” pela obten-
Primeira Guerra Mundial, mas o que se viu nos últimos séculos foi ção de mais bens materiais é mais importante (em casos mais sérios
uma completa e total alienação do homem aos seus mitos mais anti- ainda, chega a ser uma neurose) e, em tom maquiavélico, qualquer
gos. Apesar de ainda vigentes em diversas religiões (o mito de Cristo, meio necessário é valido para a obtenção de determinado fim. Não
de Buda, toda a mitologia Indiana, etc), muitos deles perderam sua é necessário no momento entrarmos em detalhes de tais tendências,
força: se enrijeceram, a ponto de não acompanhar a necessidade de mas podemos notar claramente tal comportamento individual em
uma manifestação mais presente e moderna (em devidos anos), e uma sociedade como a brasileira, em que políticos recebiam “fundos
hoje em dia, se suportam em grande maioria apenas em dogmas e de origem duvidosa” até recentemente, ou ainda nas recentes atitu-
símbolos mortos, vazios, atraindo uma infinidade de seguidores de des bárbaras (ou seriam “colonizadoras”?) dos Estados Unidos no
finais de semana que não refletem (já há tempos) sobre os símbolos Oriente Médio.
que lhe são mostrados em tais ambientes sagrados. Sobre a crise dos mitos centrais, podemos citar Edward
Com a crise do mito, o homem tornou-se alheio ao próprio Edinger:
meio em que vive. A razão é sua principal arma, o objetivo é o di-
nheiro, que por sua vez é obtido pelo trabalho, e a religião (detentora “A história e a antropologia nos ensinam que a so-
do mito) acaba se tornando uma “garantia” para um medo do que ciedade humana não pode sobreviver por muito
pode existir após a morte. tempo, a menos que seus membros estejam psi-
A realidade atual não comporta mais mitos antigos, e isso é cologicamente contidos num mito central vivo.
natural. A natureza do mito é mutante, e é sempre necessária uma Esse mito proporciona ao indivíduo uma razão
atualização do mesmo, para que o homem que esteja vivendo em de ser. Às questões últimas acerca da existência
determinada época não se sinta alienado e possa vivenciar aquilo que humana, ele fornece respostas que satisfazem aos
o mito vigente lhe proporciona. membros mais desenvolvidos e perspicazes da so-
No entanto, ao invés de buscarmos novos mitos, tendemos ciedade. E quando a minoria criativa e intelectual
a ficar presos nos antigos, que já não possuem mais a mesma lin- está em harmonia com o mito predominante, as
guagem e símbolos de que compreendemos hoje. O templo sagrado outras camadas da sociedade seguem sua lide-
torna-se um lugar incompreensível, e o seu mistério é deixado de rança, chegando mesmo a poupar-se de um con-
lado pela total ignorância da maior parte de seus freqüentadores. Tal fronto direto com a questão fatídica do sentido
cenário cria não apenas uma sociedade alienada de sua própria his- da vida.
tória, mas nos marginaliza de nós mesmos, afastando-nos de nossa
história pessoal e da necessidade de uma construção de discursos so- É evidente para as pessoas reflexivas que a socie-
bre valores ético-morais. Sem um mito vigente, o homem se sente dade ocidental já não possui um mito viável, ope-
deslocado, desconectado, desprovido de família e história pessoal e rante. De fato, todas as principais culturas mun-
coletiva, que são a base da formação da cultura. diais aproximam-se, em maior ou menor grau,
Em um cenário ainda mais agravante, podemos imaginar o de um estado de carência de mitos. O colapso
homem moderno que tem como mito pessoal a “salvação pela ob- de um mito central é como o estilhaçamento de
26 A CRISE DO MITO NO DESIGN
Inconsciente Coletivo,
Arquétipo e Símbolo
ção direta, mas pode ser investigado de modo in- analogia dos motivos das imagens mentais. Jung
direto através da observação dos conteúdos com- chamava essas disposições de arquétipos, e ca-
preensíveis e conscientes, que oferecem oportu- racteriza os conteúdos e motivos conscientes or-
nidade para inferências quanto à sua natureza e denados por elas de arquetípicos”. 11
estrutura. Esse método também foi adotado por
Freud, que, partindo dos sintomas da histeria, O inconsciente coletivo então se apresenta como essa esfera
dos sonhos, atos falhos, gracejos, etc., penetrou psíquica que não possui forma e não pode ser observada diretamente.
no ‘ocultamento do essencial’ (Verborgenheit É um campo cheio de possibilidades e padrões, mas não há qualquer
des Eigentlichen) e inferiu o inconsciente como determinação pré-concebida.
a esfera psíquica desconhecida, oculta. Da mes- Por ser uma esfera de possibilidades, é possível encontrar pa-
ma forma, para Jung, ‘a existência de uma psique drões da manifestação do inconsciente coletivo em toda a cultura hu-
inconsciente... é tão plausível, poderemos dizer, mana, desde contos de fadas até os mais altos símbolos religiosos. No
quanto a de um planeta até agora não descoberto, entanto, a ligação que o inconsciente coletivo faz com o consciente
cuja presença se deduz pelos desvios de alguma individual é através de um recurso psíquico denominado “Símbolo”.
órbita planetária conhecida. Infelizmente, fal- É através dele que se dá todo o processo de significação, nos permi-
ta-nos o auxílio de um telescópio que nos cer- tindo a considerá-lo como a ponte entre inconsciente e consciente.
tifique da sua existência’. O inconsciente é uma Segundo Jolande Jacobi:
hipótese.
“Quando o Arquétipo aparece no aqui e agora do
O caminho para o estabelecimento da hipótese espaço e do tempo, podendo, de algum modo, ser
foi revelado a Jung através da investigação das percebido pelo consciente, falamos então de um
imagens psíquicas e das idéias. Observou cuida- símbolo. Diz-se, dessa forma, que cada símbo-
dosamente os seus próprios sonhos e os de seus lo é também um arquétipo, que ele precisa es-
pacientes; analisou fantasias e delírios do doente tar determinado por um arquétipo ‘em si’ (que
mental e ocupou-se com o estudo comparativo não é perceptível), o que significa que precisa ter
das religiões com a mitologia. A compreensão um ‘esboço fundamental arquetípico’ a fim de ser
decisiva lhe foi dada pelo fato de que as imagens considerado um símbolo; mas isso não quer dizer
e temas mitológicos podem ser encontrados em que o arquétipo necessita ser idêntico a um sím-
todos os tempos e em toda parte onde os seres bolo. Como estrutura inicialmente indefinível
humanos tenham vivido, pensado e agido. Desse em seu conteúdo, como ‘sistema de prontidão’
‘paralelismo universal’, deduziu ele a presença ou ‘centro energético invisível’, etc., como já ca-
de disposições típicas do inconsciente inatas na racterizamos o ‘arquétipo em si’, ele é, sem dúvi-
constituição do homem. Como operadores in- da alguma, sempre um símbolo em potencial
conscientes, eles ordenam constantemente os e, quando existe uma constelação psíquica geral
conteúdos da consciência, sempre de acordo com ou uma posição adequada do consciente, ele está
a sua própria forma estrutural, da qual resulta a ����������������������������������������������������������������������������������������
JAFFÉ, Aniela. O Mito do Significado na Obra de C. G. Jung. São Paulo: Cultrix, 1995.
38 A CRISE DO MITO NO DESIGN
“Os Símbolos são parábolas do imperecível, apre- “O Simbolismo transforma o fenômeno em idéia,
sentadas em manifestações do perecível; ambos a idéia em imagem, de tal modo que a idéia per-
estão ‘jogados juntos’ neles e fundidos numa uni- manece sempre infinitamente ativa e inatingível
dade de sentido” na imagem e, mesmo expressa em todas as lín-
(O. DORING – 1933) ; guas, permaneceria indizível”
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JUNG, Carl G. “O Homem e Seus Símbolos”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
(GOETHE )
42 A CRISE DO MITO NO DESIGN O PENSAMENTO DE CARL G. JUNG 43
Podemos ainda citar o fundador do Centro de Pesquisa do “Em seu ensaio sobre a ‘Árvore Filosófica’, Jung
Imaginário de Grenoble na França : Gilbert Durand. Em seu artigo deu um exemplo particularmente interessante das
entitulado “O Universo do Símbolo”, Durand afirma: “O símbolo diferentes formas do significado do Símbolo.
é um caso limite do conhecimento indireto onde, paradoxalmente, A cruz, a roda, a estrela ou outros mais, podem
este último tende a tonar-se direto – mas num plano diferente do si- ser usados para designar, por exemplo, marcas de
nal biológico ou do discurso lógico -; o seu imediatismo visa o plano firmas, bandeiras, etc., quer dizer, anunciam al-
da gnosis...”16. guma coisa; num caso diferente, dependendo do
Expõe-se aqui esse conceito de símbolo que será absoluta- contexto em que se encontrem e conforme o que
mente necessário para a compreensão do chamado processo de sig- representam para o homem, podem representar
nificação, que é um dos processos referentes à relação do homem e um símbolo. Por isso, a cruz, por exemplo, para
do mito. um homem, pode ser apenas o signo externo do
O “Símbolo Vivo” não pode ser criado, e sequer possui seu cristianismo, enquanto, para outro, ele evoca toda
significado “fechado”. Ele é sempre “algo mais”, que leva o seu intér- a plenitude da história da Paixão. No primeiro
prete a uma experiência nova, uma vivência que não possui um sig- caso, Jung falaria de um ‘símbolo extinto’ e, no
nificado composto em palavras, mas sim a um profundo mergulho segundo, de um ‘símbolo vivo’, e diria: para um
dentro da psique humana – é necessário uma vivência Simbólica para crente, a hóstia, na missa, pode ser ainda um sím-
percebê-lo. Citando Jung: bolo vivo, mas, para outro, pode já ter perdido o
sentido” 17
“Enquanto um símbolo é vivo, ele é expressão de
uma coisa que não tem outra expressão melhor. Entramos aqui agora na questão da diferença entre um
Ele só é vivo, enquanto está prenhe de sentido. Símbolo Vivo e um Símbolo Morto. O Símbolo Vivo é aquele pre-
Mas, após o nascimento do sentido, isto é, depois nhe de significado, enquanto que o Símbolo Morto é aquele cujo
que este tenha encontrado a expressão que for- significado foi encontrado e selado, de modo que perde-se a função
mula ainda melhor a coisa procurada, esperada simbólica da representação. Em Jung, o Símbolo nunca é interessan-
ou intuída, o símbolo está morto e, dessa forma, te se restringir, mas sim se expandir e adquirir sempre uma função
passa a ser um mero signo convencional. Por con- desafiadora para a consciência. Para tal ponto, podemos citar nova-
seguinte, é impossível de todo criar um símbo- mente Gilbert Durand:
lo carregado de sentido a partir de relações co-
nhecidas, porque o que for assim criado jamais “Este afrouxamento da pregnância simbólica, esta
poderá conter mais do que nele havia sido espécie de entropia que faz sempre com que a le-
posto”. tra cubra e oculte o espírito, esboça uma cinemá-
tica do símbolo : o simbolismo apenas ‘funciona’
Citando Jacobi: quando existe distanciação, mas sem ruptura, e
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Artigo publicado pela primeira vez em Le Symbole, atas do colóquio internacional de 1974, quando há plurivocidade, mas sem arbitrariedade.
Revue des Sciences religieuses, nº 1/2 , Estrasbrugo, 1975 – republicado mais tarde em “Campos do
Imaginário” pelo Instituto Piaget, editora Portuguesa, em 1996. ������������������������������������������������������������������������������
JACOBI, Jolande. “Complexo Arquétipo e Símbolo”. São Paulo : Cultrix, 1995.
44 A CRISE DO MITO NO DESIGN O PENSAMENTO DE CARL G. JUNG 45
É que o símbolo tem duas exigências: deve medir são inestimáveis. Mas o problema aparece quando ela se torna a única
a sua incapacidade de ‘dar a ver’ o significado em forma de compreensão simbólica, pois ela não é capaz de trabalhar
si, mas deve empenhar a crença na sua total per- com os processos psíquicos que se envolvem na percepção e com-
tinência. O simbolismo deixa de funcionar, seja preensão intuitiva gerada pela psique humana. Afinal, para se enten-
por ausência ou distanciação, na percepção e nas der um Símbolo na Semiótica, é necessário verificar o conteúdo e
representações ‘diretas’ do psiquismo animal, seja aspecto cultural em que ele se apresenta – a cultura é o princípio e o
por ausência ou plurivocidade dos processos de Símbolo é a conseqüência -, enquanto que na Psicologia Analítica, é
sintematização, seja ainda por ruptura no caso da necessário verificar os padrões de manifestação do símbolo, de for-
‘arbitrariedade do signo’ cara a Saussure”. 18 ma a poder tentar identificar e vivenciar o Arquétipo que ele repre-
senta – o Arquétipo e o Símbolo são os princípios, e a cultura é a
De acordo com Jung: conseqüência.
“Em muitas religiões históricas, as reflexões sobre “O teste do ‘borrão de tinta’, projetado pelo psi-
o caráter simbólico da crença formulada compro- quiatra suíço Hermann Rorschach. O formato
varam ser os primeiros e decisivos sinais de sua da mancha pode servir de estímulo a livres as-
decomposição” 19 sociações. Na verdade, qualquer forma irregular
e acidental é capaz de desencadear um proces-
E concluindo com Jacobi: so associativo. Leonardo da Vinci escreveu em
seu ‘Caderno de Notas’: ‘Não deve ser difícil a
“Quanto mais convencionalmente cunhado for você parar algumas vezes para olhar as manchas
o espírito de um homem e quanto mais crente de uma parede, ou as cinzas de uma fogueira, ou
ao pé da letra ele for, mais fechado será para ele as nuvens, a lama, e outras coisas no gênero nas
o Símbolo, e menos capaz será ele de vivenciar o quais... vai encontrar idéias verdadeiramente ma-
seu sentido; permanecerá forçosamente apegado ravilhosas”. 21
ao mero signo e aumentará ainda mais a confusão
a respeito da definição do Símbolo” 20
O Símbolo e o Design
O Que é “Design”?
a escrita cuneiforme até estilos mais estilizados como os hieróglifos Nos dias de hoje (pós-Revolução Industrial), o designer é
egípcios. aquele que realiza o estudo e a prática de envio de informações à
Com a estilização em si, o senso estético começa a se desen- uma produção em série, se utilizando de meios que foram outrora
volver nos homens, e é através da expressão desse senso estético que artísticos.
o sentido do que viria a ser Arte ganha vida. A reprodução em série é um elemento chave do design. Sem
A Arte se fundamenta então como área de conhecimento e a sua existência, que trouxe com seu desenvolvimento a exigência de
expressão humana, se desenvolvendo nos mais diversos meios, como uma funcionalidade de certo modo universal nas obras de artistas,
a literatura, o teatro, a música, a pintura, a escultura e a arquitetura o design não teria se desenvolvido. Foi uma necessidade de tornar
(vide as pirâmides egípcias e os templos gregos que são considerados aquelas produções que antes eram para as elites em algo acessível ao
verdadeiras obras de arte). povo.
É a partir desse desenvolvimento de um senso estético que Sobre tal pensamento, citamos Wilton Azevedo em seu livro
podemos notar uma clara cisão com aquele “design primitivo” que “O que é Design?”:
apontamos existir em um momento anterior. Por sua vez, aquela
idéia do simplesmente “funcional” começa a ser deixada de lado. O “Diante do mundo que começa a se mecanizar, o
espírito humano passa a demonstrar sua faceta artística, dando vida, homem vai contribuir definitivamente para uma
cor e forma ao mundo. grande revolução estética e social que é a das for-
Mas apesar dessa aparente cisão, o homem sempre precisou mas dos objetos que usamos no dia-a-dia – elas
se comunicar em diferentes meios. Como o conceito de design em si passam a ser diferentes de um dado instante para
ainda estava em formação, essa função acabava sendo designada para outro. A idéia dessa revolução mecânica era poder
outras áreas. Sobre isso, citamos Philip Meggs: atingir o grande crescimento das populações. Para
o futuro já se pensava em produzir artigos bara-
“Desde a pré-história, as pessoas têm procurado tos em menos período de tempo em relação ao
maneiras de representar visualmente idéias e con- produto artesanal, não restringindo mais a arte do
ceitos, guardar conhecimento graficamente, e dar design às elites, mas levando em conta a possibili-
ordem e clareza à informação. Ao longo dos anos dade de reproduzir um objeto em série, para que
essas necessidades têm sido supridas por escribas, a grande população pudesse adquiri-lo. Partindo
impressores e artistas. Não foi até 1922, quan- então da idéia de o design estar ligado a um pro-
do o célebre designer de livros William Addison jeto intencional, é fácil de compreender que a
Dwiggins cunhou o termo “designer gráfico” própria indústria iria criar uma necessidade com
para descrever as atividades de um indivíduo que relação ao conceito de funcionalidade. Ao objeto
traz ordem estrutural e forma à comunicação im- não caberia apenas ser bonito, mas ele tinha que
pressa, que uma profissão emergente recebeu um adequar-se a uma função, designada pelo artesão,
nome apropriado. No entanto, o designer gráfico futuro designer.
contemporâneo é herdeiro de uma ancestralidade
célebre.” 23 Não havia apenas interesse em que a arte fosse do
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MEGGS, Philip. “A History of Graphic Design”. New York: John Wiley ��& ��������������
Sons Inc,1998.
povo, mas que fosse também para o povo. Era ne-
56 A CRISE DO MITO NO DESIGN O DESIGN E O CONSUMO 57
cessário que as fases de construção de um objeto design que se dedica apenas à sua funcionalidade, principalmente no
fossem democratizadas e popularizadas para que atual cenário cultural-econômico em que nos encontramos: a socie-
atingissem uma finalidade social de uso. O dese- dade de consumo.
nho finalmente passou a ser entendido como de-
sign, ou seja, compreendido como desenho indus-
trial. A necessidade de se pesquisar a simplicidade
das formas para que sua popularidade pudesse ser
atingida não estava somente restrita à aquisição do
objeto pela população, mas interessava também
na medida em que facilitasse sua execução pela
máquina.” 24
gação em meios de comunicação dizia respeito às figuras sacras, ou preenchida de alguma forma. Este “vazio existencial” foi então pre-
ao menos à ideologias espirituais que buscavam trazer a felicidade enchido pelos ideais de consumo e produção, provenientes da emer-
para o homem. Não através de objetos externos, mas sim do próprio gente sociedade de regime capitalista, transformando o homem em
espírito humano. mero figurante do sistema econômico. Não há mais individualidade,
Mais: as figuras sacras referentes às ideologias espirituais vi- mas sim, existe apenas o poder monetário das classes. Esse poder
gentes, como a cristã na Europa por exemplo – e deixando de lado a monetário por sua vez nasce da produção e se manifesta na aquisição
atuação vergonhosa por certos membros do clero - visavam a salvação de bens. Produz-se para consumir e consome-se para produzir: é o
do homem através do contato com um “Ser superior”, e poderia ser a lema espiritual do homem moderno. E devemos nos lembrar: sem
representação de anjos, santos, Cristo ou do próprio Deus-pai, como consumo, não há mercado. Será isso um deslocamento da função
é o exemplo do teto da Capela Sistina. Tais representações eram sím- religiosa inerente ao homem? Estaremos deslocando nossos valores
bolos, uma “ponte” para o divino. Eram ídolos que conectavam o espirituais de natureza arquetípica aos objetos de consumo que nos
homem à algo maior do que ele, mas não sendo a coisa em si: Deus são oferecidos pelo meio?
não era a imagem – esta era apenas uma representação Dele. Em uma outra passagem, Régis Debray continua seus co-
Régis Debray faz uma série de reflexões sobre tal situação em mentários, dessa vez referentes às similaridades existentes entre a
seu livro “Vida e Morte da Imagem”, e podemos tomar a seguinte mídia televisiva e os cultos e imagens sagradas cristãs:
passagem como melhor explanação:
“Por enquanto, a visão do apresentador cotidia-
“Uma imagem sem autor e auto-referente colo- no não apaga, com certeza, nossos pecados, como
ca-se automaticamente em posição de ídolo, e nós a Presença divina no ritual católico, mas obser-
em posição de idólatras, tentados a adorá-la dire- vemos que, apesar de todas as suas diferenças de
tamente em vez de venerar por ela a realidade que estatuto, os dois suportes humanos da revelação
indica. O ícone cristão reenvia sobrenaturalmente ao têm, antes de tudo, a frontalidade em comum.
Ser de onde emana, a imagem de arte represen- Olhos nos olhos, face a face. Nosso anchorman ou
ta-o artificialmente, a imagem ao vivo se apresenta woman olha para quem olha, como o Salvador de
naturalmente como se fosse o Ser.” 27 Roublev. Ele finge, já que está lendo um promp-
ter, mas o efeito está aí: um olho nos fixa sem nos
Podemos concluir a partir daqui que o homem teve durante ver, interpela-nos diretamente, como um índex
toda sua história contato com representações artísticas e simbólicas apontado para as nossas pessoas segundo o es-
que remetiam ao divino, e que pode ter sido condicionado dessa ma- quema althusseriano de “interpellation en sujet”
neira a conviver nessa relação de “ídolo-idólatra” através da própria própria da convocação ideológica ou catequética
produção artística. (“America wants you”). Jamais se viu o Cristo de
No entanto, quando o divino foi substituído pela “razão costas. Nem Povre d’Arvor ou Dan Rather. São,
pura” e o homem se desconecta dessa “esfera maior” de sua psique por natureza, Seres de face, retos sem verso, cor-
(aquela que Jung chamará de Inconsciente Coletivo), criou-se um pos gloriosos sem barrigas da perna, nádegas ou
vácuo simbólico, uma inexistência de significados que tinha que ser nuca: puras subjetividades não-objetiváveis. Esses
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DEBRAY, Régis. “Vida e Morte da Imagem”. Petrópolis: Vozes, 1994.
62 A CRISE DO MITO NO DESIGN O DESIGN E O CONSUMO 63
homens-tronco não são o Verbo, mas o Real en- mas o uso que se faz dela é que pode ser maléfico ou benéfico para
carnado, isto é, o Acontecimento em sua lumino- a sociedade. Sendo assim, em um cenário que tem proporcionado
sa Verdade. A imagem foto era fixa, e o filme pro- a criação de divindades imagéticas e o deslocamento de certas fun-
jetado, algo de diferido. Marcas, mas resfriadas, ções inerentes ao espírito humano, a criação de novos ídolos acaba
deslocadas. O índice TV mostra o advento da vida por resultar em uma dependência dos espectadores tanto por obje-
palpitante. Com sua iluminação infusa, a telinha tos quanto por ídolos de natureza descartável. Afinal, um ambiente
difunde, sem seu conhecimento e sem o nosso, o de consumo competitivo não permite estagnação ou durabilidade:
novo Evangelho: o mundo sensível é o seu pró- deve-se sempre renovar, o mais rápido possível. E a resposta deve ser
prio conhecimento, realidade e verdade formam imediata, sem dar espaço à reflexão pessoal, pois do contrário corre-
um só todo. Notícia fala, mas gratificante. Ilusão, se o risco de ficar para trás.
mas que tem a força de nosso desejo. Que ver seja A partir do momento que passamos a nos concentrar em pro-
o suficiente para saber, não será esse nosso anseio dutos e porções visuais da realidade (representadas na mídia) como
mais antigo? Onde haverá mais bela promessa de forma de “salvação”, e a idéia de satisfação pessoal é assimilada com a
felicidade, melhor garantia de menor esforço? necessidade de aquisição dos mesmos, criamos uma dependência de
Nosso olhar vê bater o pulso do mundo, coloca-o consumo ao homem moderno, que tomando emprestado a famosa
no coração das coisas (na sociedade cristã, e após frase de Descartes, cria um novo lema: “Consumo, logo existo”.
o Evangelho de São João, a nova função de teste- Será que essa postura mercadológica é saudável para o ho-
munha está ligada ao órgão da vista). A Boa-Nova mem? Deveria o design seguir esse caminho, diminuindo na equa-
anunciava-se sub specie aeternitatis; as notícias, sub ção anteriormente citada o fator “Arte” e focar-se mais no “Mercado”
specie temporis. A nova divindade, porém, é a atu- e no modelo de consumo atual, talvez aumentando mais a falta de
alidade: a Encarnação levada até o seu termo. A significância simbólica que impregna a sociedade moderna? Ou será
telinha não faz vibrar a luz do oitavo dia, a da que um retorno do espírito artístico e sua pregnância simbólica pode
visão apocalíptica que nos permitirá, enfim, ver vir a ser uma solução psicologicamente mais saudável?
Deus em sua plenitude (sob todas as suas faces).
De forma mais modesta, ela ilumina os sete dias
da semana irradiando-nos de realidade. O ícone
cristão dizia: vosso Deus está presente. O ícone
pós-cristão: que o presente seja vosso Deus.” 28
Uma Reaproximação
queria vender a casa, que pertencera aos seus esperou até que a lebre se aproximasse. Saiu então
antepassados, para dividir o dinheiro da venda correndo a seu lado e barbeou-lhe o bigode, sem
entre os filhos. Afinal, concebeu um plano e disse que o animal sofresse um arranhão sequer.
aos filhos:
-Viajai pelo mundo, escolhei cada um uma profis- - Muito bem! - exclamou o pai, entusiasmado.
são, e, quando regressardes, o que executar o me- - Teus irmãos terão de fazer um grande esforço
lhor trabalho dentro de sua profissão, terá a casa. para que a casa não seja tua.
Os filhos ficaram muito satisfeitos com a idéia, e o Pouco depois, apareceu um fidalgo em sua carru-
primeiro resolveu ser ferreiro, o segundo barbeiro agem, que corria a grande velocidade.
e o terceiro professor de esgrima. Combinaram a
data em que deveriam voltar para casa e cada um - Agora vou mostrar, meu pai, o que sou capaz de
seguiu o seu caminho. fazer! – anunciou o segundo filho, o ferreiro.
Todos conseguiram bons mestres, que lhes ensi- Dito e feito: saiu correndo até alcançar a carrua-
naram muito bem os ofícios que haviam escolhi- gem, tirou todas as quatro ferraduras de um cava-
do. O ferreiro teve de ferrar os cavalos do Rei e lo, enquanto ele galopava, e pôs ferraduras novas,
pensou: ‘A casa vai ser minha na certa’. O bar- sem que o animal parasse um só instante.
beiro, por seu lado, fez a barba de muita gente
importante e também estava convencido de que - Formidável! - exclamou o pai. - És tão hábil
a casa seria sua. O esgrimista, por sua vez, sofreu quanto o teu irmão. Continuo sem saber a quem
muitos golpes, mas não fraquejou, pensando: ‘Se devo dar a casa.
eu tiver medo, jamais ficarei com a casa’.
- Vou agora mostrar a minha capacidade, meu pai,
Quando chegou a data marcada, os três irmãos se me é permitido - disse o terceiro filho.
regressaram ao lar, mas não sabiam como encon-
trar a melhor oportunidade de mostrar ao pai as E, como estava começando a chover, ele pegou o
suas habilidades e, assim, se reuniram para discu- florete e começou a girá-lo acima de sua cabeça,
tir o assunto. Quando estavam conversando, de com tal rapidez, que nem uma só gota de água o
repente surgiu uma lebre, correndo em disparada alcançou, embora a chuva fosse se tornando cada
pelo campo. vez mais forte, ele ia aumentando a velocidade
dos movimentos, conseguindo ficar tão abrigado
- Que sorte! - exclamou o barbeiro. - Surgiu a como se estivesse dentro de casa.
minha oportunidade!
Ao presenciar tal prodígio, o pai exclamou:
Pegou a bacia, com sabão, a navalha e o pincel e
70 A CRISE DO MITO NO DESIGN UM RETORNO ÀS ARTES 71
puta por uma casa, passou-se a demonstrar uma união tão profunda
- Não pode haver coisa mais perfeita! A casa é que até na morte se manifestou. Mas o mais importante é a seguinte
sua. conclusão: tal relação entre os familiares da casa jamais poderia ter
Os irmãos de modo algum se opuseram a essa de- acontecido se cada um deles não tivesse viajado mundo afora.
cisão, pois fora assim que se combinara. E como É nessa a analogia que podemos apresentar a relação do
todos os três eram muito amigos, todos continu- Design com a Arte, sendo esta última tanto mãe quanto irmã. O
aram morando juntos na casa, ganhando muito afastamento cria independência, mas ao mesmo tempo fortalece os
dinheiro, graças à sua habilidade nas respectivas laços. É a situação do “diga-me de onde vens”, de nunca esquecer-se
profissões. E assim viveram, durante muitos anos, das origens: o Design sem a Arte é órfão, carente, sem identidade ou
muito felizes, até a velhice. Afinal, quando um passado.
deles adoeceu e morreu, os dois outros sentiram Mas ao mesmo tempo que ele não é nada sem a mãe, ele
tanto a sua morte que acabaram também adoe- necessita também de sua independência, do contrário ficará sem-
cendo e morrendo. E, como eram tão unidos, tão pre preso à imagem Dela. Cria assim sua identidade, diz a todos “eu
amigos, foram todos enterrados no mesmo tú- existo para ISSO”; define seu papel no mundo e acima de tudo, se
mulo.” 29 fortalece.
Contudo, da mesma forma que o afastamento é necessário,
No conto, os 3 irmãos viajam o mundo para desenvolver um assim é também o retorno para casa. É no retorno que o filho se pro-
ofício: aquele que melhor desempenhasse determinada profissão, vará como verdadeiramente legítimo e forte, independente, seguro
seria o novo dono da casa que era antes do pai. Todos tornam-se de si e maduro. Não haverá mais assim o medo de uma confusão
dignos de tal recompensa, mas um dos 3 se destaca, recebendo assim ou comparação com seus pais: haverá apenas a comprovação de uma
o devido prêmio. No entanto, mesmo sendo vencedor, ele continua evolução e desenvolvimento familiar.
vivendo com os irmãos. O retorno para casa não irá tirar sua identidade, mas permi-
Em uma primeira análise, alguém pode pensar que nada mu- tira-lhe apreciar aspectos de seu lar que antes não eram apreciados.
dou, e que as viagens que os irmãos realizaram foram desnecessá- Dessa forma, um retorno do Design ao espírito artístico, o espírito
rias, afinal, os irmãos continuam juntos no final do conto. Mas será de sua Mãe, a sua casa original, pode trazer-lhe um novo sentido de
realmente que esse é o caso? Será que a viagem foi uma “perda de profundidade: aquela função transcendente que apenas a Arte é ca-
tempo”, já que tudo se manteve da mesma forma? paz de produzir na cultura humana – a mesmo que buscamos nesta
De modo algum! As viagens de cada irmão foram importan- dissertação agregar ao Design.
tíssimas, pois permitiu-lhes que cada um desenvolve suas personali-
dades, e consequentemente, seu caráter. Esse caráter foi então funda-
mental para mais tarde, quando após a morte do pai, eles pudessem
continuar vivendo juntos.
E não apenas viveram juntos, mas criaram laços tão fortes
que no momento em que um adoeceu e morreu, os outros adoecem
e falecem logo em seguida. Em um cenário que antes transmitia dis-
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ESTES, Clarissa Pinkola. “Contos dos Irmãos Grimm”. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.
2
O Que é “Arte”?
a Arte, e nesse momento podemos pensar em Platão e suas refle- pode ser considerado belo se não for verdadeiro;
xões sobre o “Belo”. Para tanto, cita-se Anne Cauquelin em seu livro nenhum bem pode existir fora da verdade.” 31
“Teorias da Arte”:
Então, para Platão, o artista é um enganador, pois se afasta
“É preciso antes de mais nada observar que não cada vez do belo, que deve ser o objetivo de todo ser humano, sendo
há na obra de Platão discurso especificamente de- que só pode ser atingido no mundo das idéias. Aquele que procura
dicado à arte. Não há teoria da arte propriamen- tal aproximação pela técnica, pela matéria, está fadado ao fracasso,
te dita, mas notações dispersas a respeito, ora da pois a matéria é imperfeita e não comporta a magnitude que possui o
prática de certas artes (tekné), ora da idéia de belo. belo.
Em outras palavras, a idéia de arte não é arte, é Séculos depois, Hegel nos introduz um novo discurso sobre
separada dela, deixando a arte, sua prática, o ‘fa- a Arte, no qual
zer’, muito longe de poder realizar o belo, e até de
aspirar a ele. Essa divisão deprecia de modo claro “...a arte é atravessada por uma linha ascendente
tudo o que se refere à produção, pelo homem, de que não visa a sua constituição em objeto autô-
seja qual for a obra. nomo, mas a algo bem diferente. Sua inserção no
processo espiritual vai, por abstrações sucessivas,
(...) conduzi-la à perda: ela é espreitada pela religião
que deseja sua morte, definitivamente consuma-
Assim, a questão da arte é remetida a seu nada, da (na companhia, aliás, de todos os outros mo-
e podemos então nos perguntar como Platão e o mentos) na fase derradeira de fusão com o uni-
platonismo conseguiram ‘fundar’ a atividade ar- versal singular: o saber absoluto. Por um trançado
tística – ao menos no Ocidente, é nisso que se laborioso submetido ao projeto geral da fenome-
acredita piamente – a partir dessas premissas um nologia, a arte se ajusta entre a moralidade sub-
tanto desencorajadoras. jetiva-objetiva (desenvolvida como via pública e
estrutura do Estado) e a religião, em cuja direção
É que esse discurso pejorativo é duplicado – ou ela segue e que a coroa, religião por sua vez rein-
melhor, recoberto – por outro bem diferente, que troduzida na filosofia.
parece contradizê-lo em todos os pontos. O que
diz respeito ao belo. Primeiro degrau da filosofia do espírito – que,
aqui, triunfa da separação entre exterioridade e
(...) interioridade e se coloca como reconciliação en-
tre a natureza finita e a liberdade infinita do pen-
O belo, para Platão, é o rosto do bem e da verda- samento -, a arte é o elo intermediário que apresenta
de. São três princípios intimamente ligados: nada essa conciliação sob um aspecto sensível.” 32
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CAUQUELIN, Anne. “Teorias da Arte”. São Paulo: Martins, 2005.
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Op.Cit.
76 A CRISE DO MITO NO DESIGN UM RETORNO ÀS ARTES 77
derar os escritos de Cristina Costa, quando ela se refere à chamada e outros ainda a tornaram uma necessidade.
“Sociologia da Arte”: Em certos momentos da história, o conceito de belo era ex-
presso pelas regras que ditavam as técnicas. Nesse cenário, o quadro
“Assim, a sociologia da arte procura mostrar a mais “belo” seria aquele que melhor representasse a natureza em si.
relação entre as manifestações artísticas de uma Era considerado artista aquele que dotava de maior conhecimento
sociedade numa determinada época e a maneira em sua área e, por conseqüência, utilizava de tal conhecimento com
como os homens nela vivem e pensam. Na rou- tamanha maestria, a ponto de criar obras dignas de admiração por
pa, nos edifícios, nas literatura, estão inscritos os outros conhecedores da mesma técnica.
valores da sociedade, seus hábitos e sua mentali- No entanto, em nossa era pós-moderna, tal conceito de ar-
dade. Os indígenas brasileiros, por exemplo, as- tista perdeu o sentido. Arte já não é mais necessariamente a repre-
sim como os jovens de hoje, tatuam ou pintam sentação da natureza e uma obra literária, por exemplo, já não precisa
o corpo para identificar seus grupos étnicos, bem condizer diretamente com a realidade (vide a ficção científica ou os
como para destacar a importância social de seus contos fantásticos).
membros. Cada traço desse desenho tem um sig- Frente tal situação, encontramos no livro “Reflexões Sobre a
nificado próprio e uma forma com sentido. Arte” de Alfredo Bosi uma definição que busca não “fechar” o signi-
ficado da Arte. Busca, pelo contrário, trazer uma definição fenome-
(...) nológica, divida em etapas, formando assim uma dimensão tripla da
natureza artística: Construção, Conhecimento e Expressão.
Dessa maneira, quando falamos em questões de Sobre a Arte como Construção:
arte estamos nos referindo a essa preocupação
de entender o papel da arte na sociedade, a fun- “O momento técnico: a arte é um fazer. A arte é
ção social do artista, o sentido de um som ou de um conjunto de atos pelos quais se muda a for-
uma imagem num determinado contexto social, ma, se transforma a matéria oferecida pela natureza
o processo de consagração artística, a dinâmica do e pela cultura. Nesse sentido, qualquer atividade
processo artístico e a relação existente entre a arte humana, desde que conduzida regularmente a
consagrada e a de vanguarda”. 36 um fim, pode chamar-se artística.” 37
Novamente, entramos no ponto da função social do artista. Sobre a Arte como Conhecimento:
E passamos já por conceituações de arte que vão desde a Grécia anti-
ga até o início do século passado. “Uma das mais antigas tradições teóricas filia-o (o
Aonde queremos chegar com isso? conhecimento peculiar à operação artística) à representa-
Ora, é importante notarmos aqui primeiramente que a Arte ção. É o conceito de arte como mímesis. O termo
sempre permitiu e forçou pensadores à sua devida reflexão. Ao mes- comparece em vários textos da filosofia grega. O
mo tempo, a busca pelo “belo” sempre se tornou presente. Para al- seu significado preciso depende, naturalmente,
guns, tal missão era impossível; outros já a consideravam importante; dos contextos. Pode aludir à mera imitação dos tra-
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COSTA, Cristina. “Questões da Arte”. São Paulo: Moderna, 1999. �������������������������������������������������������������������
BOSI, Alfredo. “Reflexões sobre a Arte”. São Paulo: Ática, 1995.
80 A CRISE DO MITO NO DESIGN UM RETORNO ÀS ARTES 81
ção do homem grego’ em que medido é o ‘tipo’ tuído por outro mais pertinente. Assim, aquilo
(tupos) que faz com que eu corresponda a um que chamamos de versatilidade da moda não pas-
conjunto. Devemos entender esta palavra em seu sa de dança sem fim dos modelos de idealização.
sentido forte. O sentido do diálogo com um meio Impermanência dos avatares, permanência das
social e natural no qual cada um está encaixado. formas!” 40
O tipo é um molde, que é causa e efeito de uma
cultura comunitária. É assim que se elaboram os Então, como Maffesoli aponta muito bem, os mitos novos
mitos que relatam as proezas das figuras emble- formados em uma cultura de mídia de consumo e televisiva não são
máticas, ou as epopéias que formam um mundo duráveis. Logo, torna-se difícil (senão impossível) a cristalização de
ideal. Mitos e epopéias que servem de exemplo um novo mito central, alicerce de sociedade contemporânea, que
para a vida de todos os dias. De certa forma, uma possa guiar o ser humano ao bem comum (seja qual for a idéia de
idealização vivenciada. “bem” que se tenha atualmente).
Ainda assim, a Arte desempenha seu papel mítico. Pois, sen-
Não é preciso ser nenhum grão-mestre para en- do o ser humano um produtor de símbolos, e a Arte possuindo como
tender que essas figuras emblemáticas não são parte de sua definição um quesito de “expressão”, essa expressão tor-
apenas o resultado de contos e lendas antigas, na-se simbólica. Uma rede de símbolos cria mitos, e em contato com
mas encontram uma atualização nas sociedades a sociedade, o mito passa a desempenhar seu papel regulador.
contemporâneas. Tornam-se concretas para os Que maravilhosa viagem é essa através dos mitos que nos
grupos de ‘fãs’ que se correspondem e comun- cercam! Infelizmente, os mitos que perdem sua valia em tempos
gam com seus heróis musicais, esportivos ou re- recentes já não produzem mais o fascínio que produzem os mitos
ligiosos, que não são distantes e desencarnados antigos.
e permitem uma verdadeira ‘realização’ tribal. Basta tomarmos como exemplo atores como Clark Gable,
Sendo ‘informados’ por suas maneiras de vestir- músicos como Jimi Hendrix ou ainda esportistas como Garrincha.
se, comportar-se, falar, os membros do grupo são Temos aí ícones da natureza mítica (pós) moderna, que desempe-
‘assegurados’ de sua existência ‘assegunrando-se’ nharam importantíssima influência em suas épocas. Criaram mode-
a eles. los, ideais, culturas e lendas.
No entanto, a nova civilização parece ter esquecido deles, e a
Lembro que é este o sentido etimológico da pala- própria morte de alguns desses heróis míticos exemplifica bem esse
vra concreto: o fato de crescer-com (cum crescere). esquecimento.
Existir, com todo o seu cortejo de experiências, o Há uma espécie de confusão entre “personagem” e “ator”,
que é da ordem da dinâmica a partir de um mode- entre a “profissão” e a “pessoa”. O espectador já não vê mais um
lo que, ele sim, é estável. Será por sinal instrutivo bom ator desempenhando um papel: ele vê um deus, uma deusa,
observar que, quando o modelo (musical, espor- e estes, por sua vez, são adorados como tal. Basta olharmos nos ta-
tivo, político, religioso) não ‘corresponde’ mais blóides para vermos não raramente fotos de celebridades tiradas em
ao que levara à sua escolha, é rejeitado e substi- seus momentos íntimos. Cria-se assim uma cultura de “consumo de
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MAFFESOLI, Michel. “O Ritmo da Vida”. Rio de Janeiro: Record, 2007.
86 A CRISE DO MITO NO DESIGN UM RETORNO ÀS ARTES 87
heróis”, “consumo de mitologias”, que me permite inclusive entrar MOYERS: Nós vemos o que acontece quando
na vida pessoal daqueles que eu admiro. sociedades primitivas são desmanteladas pela civi-
Os mitos se alteram: é importante que se alterem. Isso nada lização do homem branco. Elas se partem em pe-
mais é do que o reflexo do tempo passando. Mudam-se os costumes, daços, se desintegram, se tornam enfermas. Não é
as vestimentas, as idéias, as culturas, e os mitos devem acompanhar. o que vem acontecendo a nós próprios, desde que
Caso não acompanhem, morrem. Caso morram, novos surgem – nossos mitos começaram a desaparecer?
surgem como compensação psíquica, como novas e constantes “pis-
tas para as potencialidades espirituais da vida humana”.41 CAMPBELL: É exatamente isso.
Mas será essa compensação proporcionada pelos mitos mo-
dernos exatamente saudável? Será que as novas tribos formadas estão MOYERS: Não é por esse motivo que as religiões
realmente condizendo com a função reguladora que um mito vigen- conservadoras, hoje, estão apelando para a religião
te produz? Ou será que os valores de uma sociedade de consumo, dos velhos tempos?
que têm levado muitos à marginilização e alienação da própria socie-
dade em que vivem, têm deturpado os valores míticos intrínsecos? CAMPBELL: Sim, e estão cometendo um erro
Citemos Joseph Campbell, novamente em sua entrevista com Bill terrível. Estão voltando a algo atrofiado, algo que
Moyers: não serve à vida.
“MOYERS: Isso quer dizer que há rituais mito- MOYERS: Mas já serviu, não é mesmo?
lógicos atuando em nossa sociedade. A cerimônia
de casamento é um deles. A cerimônia da posse CAMPBELL: Com certeza.
de um presidente ou de um juiz é outro. Fale de
outros rituais importantes para a sociedade, hoje. MOYERS: Eu entendo a atração que isso exerce.
Na juventude, eu tinha estrelas fixas. O fato de
CAMPBELL: Alistar-se no exército, vestir um estarem sempre ali era um conforto para mim.
uniforme, é outro. Você desiste de sua vida pesso- Elas me deram um horizonte conhecido. E me
al e aceita uma forma socialmente determinada de disseram que lá fora havia um Pai bondoso e amá-
vida, a serviço da sociedade de que você é mem- vel olhando por mim, pronto para me receber,
bro. Eis por que me parece obsceno julgar pessoas atento aos meus interesses o tempo todo. Ora,
em termos da lei civil, por atos que elas pratica- Saul Bellow diz que a ciência fez uma faxina nas
ram em tempo de guerra. Elas não estavam agindo crenças. Mas essas coisas eram valiosas para mim.
como indivíduos mas como agentes de algo acima Hoje sou o que sou por causa dessas crenças. Eu
delas, a que se haviam consagrado inteiramente. me pergunto o que acontece às crianças que não
Julgá-las como se fossem seres humanos comuns têm aquelas estrelas fixas, aquele horizonte co-
é totalmente impróprio. nhecido – aqueles mitos.
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CAMPBELL, Joseph. “O Poder do Mito”. São Paulo: Palas Athena , 1990.
88 A CRISE DO MITO NO DESIGN UM RETORNO ÀS ARTES 89
CAMPBELL: Bem, como disse antes, tudo o que os vícios do passado são as necessidades de hoje”.
você tem a fazer é ler o jornal. É uma confusão! Mas como temos fundamentado nesse trabalho, tal carência
No tocante a este nível imediato de vida e estru- simbólica e significativa pode ser preenchida através da Arte, e do
tura, os mitos oferecem modelos de vida. Mas os espírito transcendente que ela comporta.
modelos têm de ser adaptados ao tempo que você No entanto, existe o perigo da própria carência simbólica
está vivendo; acontece que o nosso tempo mudou atingir o campo artístico. Podemos novamente citar Joseph Campbell,
tão depressa que o que era aceitável há cinqüenta dessa vez em seu livro “Para Viver os Mitos”, no momento em que
anos não o é mais, hoje. As virtudes do passado ele diz:
são os vícios de hoje. E muito do que se julgava
serem os vícios do passado são as necessidades de “É no campo das artes que o efeito redutivo, dimi-
hoje. A ordem moral tem de se harmonizar com nuidor de vida, da perda de todo sentido de forma
as necessidades morais da vida real, no tempo, é hoje mais inquietante; pois é nas suas artes que
aqui e agora. Eis aí o que não estamos fazendo. A as energias criativas de um povo são mais bem ex-
religião dos velhos tempos pertence a outra era, postas e podem ser mais bem medidas. Não se
outras pessoas, outro sistema de valores humanos, pode comparar a situação atual com a das artes na
outro universo. Voltando atrás, você abre mão de antiga Roma senil. Por que as obras romanadas de
sua sincronia com a história. Nossos jovens per- arquitetura e de escultura, com todo o seu poder
dem a fé nas religiões que lhes foram ensinadas, e e facilidade, são menos impressionantes, menos
vão para dentro de si. tocantes, formalmente menos significativas que
as gregas? Muitos já pensaram sobre este proble-
MOYERS: Quase sempre com a ajuda de drogas. ma, e certa noite uma resposta me veio em sonho,
e agora eu a ofereceria como um esclarecimento
CAMPBELL: Sim. A experiência mística me- importante. É a seguinte: numa pequena comu-
canicamente induzida é o que temos aí. Tenho nidade como a de Atenas, o relacionamento do
assistido a muitos congressos de psicologia que artista criativo com os líderes sociais seria franco
lidam com a grande questão da diferença entre a e direto, pois ele se conheceriam desde a infân-
experiência mística e o colapso psicológico. A di- cia; enquanto que em comunidades como, por
ferença é que aquele que entra em colapso imerge exemplo, nossa moderna Nova York, Londres ou
nas águas em que o místico nada. Você precisa es- Paris, o artista que queira ser conhecido tem de
tar preparado para essa experiência.” 42 ir a coquetéis para ganhar encomendas, e aqueles
que as conseguem são os que não estão em seus
Mitos sem profundidade; experiências místicas mecani- estúdios, mas nas festas, encontrando as pessoas
camente induzidas; o consumo em torno de toda a idéia mítica. certas e aparecendo nos lugares certos. Eles não
Campbell exprime muito bem toda essa questão nas frases “as virtu- permanecem empenhados o bastante na agonia
des do passado são os vícios de hoje. E muito do que se julgava serem do trabalho criativo solitário para avançar além
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Op.Cit.
90 A CRISE DO MITO NO DESIGN
vivemos em uma sociedade acostumada ao não-exercício do pensar, arquetípicos de formas extremamente metafóricas: seus filmes são
não é raro ouvirmos críticas depreciadoras a filmes como “A Vila”, contos míticos vivos, criando novos heróis e ídolos. No entanto, é
“Sinais” ou “A Dama na Água”: críticas que sequer levam em consi- interessante notar que seus filmes não fazem apelo aos atores (famo-
deração os níveis de interpretação simbólicos. Mantendo-se no ní- sos ou não) que participam da obra: a história é vista como um todo.
vel icônico de interpretação, os filmes de Shyamalan são geralmente Todos os personagens são importantes e desempenham funções es-
considerados pelos críticos e pela massa: senciais em determinado momento do filme.
Será possível aplicar então tal conduta “simbólica” no
_com enquadramento ruim; Design? Com toda a certeza! No entanto, é bem passível de risco
_com cores estranhas; que devido a dificuldade de interpretação no primeiro instante que
_com histórias sem sentido e irreais (“bobas”); tal atitude gera, os designers que tomem tal postura podem tornar-se
_com desfechos fracos. marginalizados pelo próprio meio mercadológico em que vivem.
Contudo, não acredito que isso seja motivo para desistir.
Tudo isso realmente pode condizer com a realidade. Mas essa Afinal, uma cultura é construída através de idéias e ações. Se a idéia
seria uma análise muito superficial, baseada apenas em um primeiro é forte e pretende trazer conteúdos simbólicos contidos dentro da
plano de interpretação. Seria o mesmo que crucificarmos algum ar- psique humana, trazendo novamente a necessidade do mistério, da
tista pela sua visão e estilo diferenciados. investigação e da reflexão, ela irá criar em alguns indivíduos uma
Agora, quando analisa-se a dimensão simbólica dos filmes ressonância, que após algum tempo, poderá gerar uma reação em
citados, eles ganham outra perspectiva; e não é raro encontrar pesso- cadeia, trazendo novos ideais e princípios de conduta de produção
as (os mesmos membros da massa amorfa) que mesmo após criticar simbólica.
os filmes, após compreenderem a profundidade simbólica das obras,
mudam de opinião, e passam a admirar os filmes do diretor. Somente
para que se tenha uma idéia da gritante diferença de interpretação
que tal reflexão pode permitir, podemos tomar como exemplo o fil-
me “Sinais”, que é considerado por muitos como um filme de ficção
científica, já que a história se trata (pelo menos na primeira análise)
da forma como uma família do interior dos EUA têm que enfrentar
uma invasão alienígena. Porém, quando passamos ao nível simbólico
e começamos a interpretar as funções e papéis arquetípicos na trama,
notamos então que o filme não é uma ficção científica. Ele torna-se
um romance, cuja trama principal envolve a busca de um homem
pela sua própria fé.
Tal complexidade na obra de M. Night Shyamalan, que por
não ser atraente à grande massa não é assimilada facilmente, fez com
que ele perdesse muita credibilidade, tanto por parte dos produto-
res quanto por parte dos que se consideravam fãs. Contudo, ele não
mudou seu estilo, e continua criando obras que traduzem conteúdos
2
David Carson
uma constante reflexão. A partir daí, os fãs tiveram a confirmação de que o Enigma
Participante do movimento psicodélico inglês, do qual a era real. No entanto, quando os membros da banda eram questiona-
banda Pink Floyd é proveniente, ele foi capaz de juntar com maestria dos sobre o assunto, eles diziam nada saber.
a arte sonora da banda com a arte visual dos discos. É comum os fãs Em uma entrevista realizada por um fã – mais precisamente, o dono
se referirem ao Pink Floyd como uma “viagem tanto sonora quanto do site “Publius Enigma”47, Sean Heisler, um dos maiores peritos do
visual”. assunto -, Storm apontou “onde há fumaça, há fogo”.
No entanto, apesar de começar seu trabalho com elementos Mas qual a necessidade de um Enigma? E o que Storm tem
psicodélicos, seu estilo desenvolve-se mais para uma espécie de sur- a ver com isso?
realismo, no qual ele combinava elementos que não condiziam em É valido lembrarmos que em 1992, o Pink Floyd passava
uma realidade conjunta. Podemos citar nesse caso a capa do disco por problemas de baixa popularidade. Um dos fundadores da banda,
“Animals”, que apresentava um porco gigante voando perto de uma Roger Waters, havia deixado a formação anos antes, entrando inclu-
fábrica. sive com processos judiciais para com os outros membros, exigin-
O mais interessante do trabalho de Storm é que ele rara- do que o nome “Pink Floyd” nunca mais fosse usado. No entanto,
mente se utiliza de recursos digitais como ferramenta principal: suas Waters perdeu o longo processo, e o restante dos integrantes pude-
capas são, em sua maioria, realmente fotos, no máximo retocadas no ram continuar usufruindo da marca “Pink Floyd”.
computador. Quando toma-se consciência disso, só é possível ima- Apesar dessa vitória, o lançamento do primeiro disco após o
ginarmos o tamanho do trabalho requerido para a produção de uma retorno não foi dos melhores. “A Momentary Lapse of Reason” não
capa como a do disco “A Momentary Lapse of Reason”, na qual mais foi bem recebido pelos fãs, que passaram instantaneamente a dizer
de 700 camas de hospital aparecem ao longo da costa de uma praia. que a fase pós-Waters talvez não tivesse sido uma boa idéia.
Segundo seu website, na seção em que ele nos conta sobre a produ- No entanto, o álbum de estúdio a seguir, “The Division
ção da capa, choveu no primeiro dia, e só foi possível realizar a sessão Bell”, foi recebido muito bem pela crítica. Mas os fãs continuavam
de fotos no dia seguinte (as 700 camas continuaram lá). escondidos. Era necessária uma atitude que os fizesse se interessar
Mas talvez possamos dizer que a maior façanha de Storm novamente pela banda (lembrando que um dos grandes pontos que
tenha sido em 1992, com o lançamento do álbum “The Division Waters trazia à banda era os conceitos dos álbuns, sempre passíveis
Bell”, no qual foi lançado pela internet um chamado “Enigma”. Um de diferentes análises e interpretações), e tudo indica que o Enigma
visitante do fórum do site oficial do Pink Floyd chamado “Publius” Publius (que até hoje não possui uma solução aparente – apesar de
passou a postar mensagens sobre um suposto enigma que existia nas diversas teorias) foi realmente uma tática da banda para atrair os fãs
letras e principalmente na arte gráfica do disco. novamente.
Os fãs, que em um primeiro momento não acreditavam na Obviamente, tal estratégia não poderia ter sido tomada sem
história, passaram a acreditar quando em uma das mensagens de um planejamento que é tipicamente destinado aos designers, princi-
Publius ele pediu a eles para que ficassem atentos à um “show de palmente pela quantidade de “pistas” que existem não apenas no “The
luzes” em uma determinada data e horário. Division Bell”, mas também nos álbuns “PULSE”, “ECHOES” e no
Quando o dia e a hora chegaram, a banda Pink Floyd tocava relançamento do disco “A Momentary Lapse of Reason”.
“coincidentemente”. E no horário que foi avisado por Publius, as Em resumo, Storm foi capaz de criar toda uma nova mito-
luzes inferiores do palco formaram o letreiro “PUBLIUS”. logia, uma quantidade infinita de símbolos secretos, um enigma tão
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http://folk.uio.no/ericsp/floyd.html
104 A CRISE DO MITO NO DESIGN
instigante aos fãs que esses não viam outra saída, senão adquirir o
álbum e buscar por pistas.
Parece ser este o exemplo de um perfeito equilíbrio entre a
função artística e mercadológica do Design.
Conclusão
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