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Introdução 7
I. CONSTITUIÇÃO DAS CI:f:NCIAS HUMANAS 13
1. O Problema da Cientificidade 15
2. Impacto d a Ciência Moderna 20
3. A Emergência das Ciências Humanas 26
li. A EMERGÊNCIA DA PSICOLOGIA CIENT1FICA 37
1. Especialidade da Psicologia Experimental · 39
2. O Clima Positivista de seu Nascimento 45
3. O Estatuto Científico 54
Editoração
1975
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
IntrodUção à
Epistemologia
da Psicologia .. ·
Série Logoteca
Direção de
JAYME SALOMÃO
·Membro-Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de
Janeiro. Membro da Associação Psiquiátrica do Rio de Janeiro.
Membro da Sociedade de Psicoterapia Analitica de Grupo do Rio
de Janeiro.
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É claro que a _expressão "ciências humanas" não tem uma
significação lógica. Designamos, com ela, o conjunto de todas
as disciplinas comumente agrupadas sob esse nome: economia,
sociologia, psicologia, antropologia, geografia, etnologta, lin
güística, história, pedagogia, etc. A esta enumeração, poderia
ser acrescentada uma definição descritiva, sem atribuir-lhe qual
quer validade epistemológica. Neste caso, as ciências humanas
seriam as disciplinas que têm por objeto de investigação as
diversas atividades humanas, enquanto estas implicam relações
dos.homens entre si e com as coisas, bem como as obras, as
instituições e as relações que daí resultam. Uma definição mais
rigorosa suporia toda uma sistematização, o que nos levaria a
uma teoria idas ciências humanas, semelhante ou distinta das
teorias atualmente elaboradas.
Para boa parte dos trabalhos teóricos sobre essas discipli
nas, a expressão "ciências humanas" significa, não um domínio
qualquer (o homem) apresentando-se à investigação científi
ca, mas algo bastante distinto daquilo que se apresenta sob o
rótulo de "ciência". Através daquilo que tais trabalhos podem
ensinar sobre o inconsciente, sobre a linguagem ou sobre a his
tória, podemos facilmente notar que eles subtraem à ciência
a extraterritorialidade e a intemporalidade nas quais ela viveu
durante séculos. Assim, muito mais do que "o homem", ou
mesmo, do que "o Sujeito", é o próprio conceito de "ciência"
que está em crise. Na verdade, as ciências humanas elaboram
uma crítica da ciência. E elas o fazem, na medida em que não
são propriamente empíricas nem tampouco dogmáticas, mas
históricas. Se elas não correspondem ao que se convencionou
chamar de "ciência", nem por isso podem ser relegadas ao
domínio da literatura ou da poesia. Uma ciência se define,
antes de tudo, por uma problemática própria e por um campo
específico de investigação, sobre os quais se aplica um mé
todo rigoroso. Mas isto não quer dizer que não passe por cri
ses ou que não tenha necessidade de passar por reorganizações
mais ou menos profundas. Aliás, a reflexão epistemológica nas
ce sempre a propósito das crises ou impasses desta ou daquela
ciência. E essas crises resultam de uma lacuna dos métodos
anteriores, que deverão ser ultrapassados graças à· invenção
de novos métodos.
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A epistemologia atual, ao constatar uma pluralidade de
discursos científicos, coloca em questão o ideal de "a ciência".
Por outro lado, constata a falência do arquétipo matemático
como modelo exclusivo. Uma síntese das ciências, do tipo da
síntese newtoniana, não somente é hoje impossível, como não
deve ser lamentada. O objeto que a expressão "a ciência" de
signava, não existe mais. O ideal de "a ciência" (no sentido em
que se fala de um ideal do ego) parece ter-nos levado a um lu
gar de verdade que o nome "Deus" servia para des�gnar: não
havia ciência e verdade senão nele e para ele. Não é por acaso
que, sob diversas capas humanísticas, o irrompimento da ciência
moderna foi o sintoma de uma mutação ideológica que, entre
seus aspectos essenciais, comportou a crítica da religião. Assim,
na anedota do processo de Galileu, podemos constatar que,
por detrás da oposição ciência-religião, é preciso ler o momen
to em que a çiência se desliga deste "Ideal" que a colocava
sop a tutela religiosa.
Uma vez liberado da exclusão de Deus, colocado fora
das referências científicas, o homem, por um dup:o desloca
mento, vai tentar definir-se: . de um lado, enquanto objeto de
ciência (homem se opondo a natureza), do outro, enquanto
sujeito da ciência (homem se substituindo a Deus). Daí uma
oscilação, constitutiva das ciências humanas; entre uma teoria
do sujeito da ciência e uma tentativa de construção do objeto
antropológico. O resultado foi o surgimento de alguns proble
mas de definição: se toda ciência funciona dentro de um se
tor, cuja definição garante a pertinência de suas proposições,
quais as fronteiras das ciências humanas? Três proposições en
tram em jogo: a) a primeira, considerando o progresso técni
co como uma afirmação do homem e uma "humanização" da
natureza, reduz o objeto das ciências humanas à natureza hu
manizada: dissolução do natural no homem; b) a segunda, con
siderando o progresso científico em si mesmo, dissolve o hu
mano no natural; c) a terceira, enfim, considerando menos o
objeto dà ciência do que o fato científico em si mesmo, cons
tata que ele é um produto da história humana.
Tudo parece indicar que, ainda hoje, é a rivalidade des
sas três atitudes que melhor define o campo de investigação
das ciências humanas. Estas, na verdade, agrupam pesquisas
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bastante heterogêneas: o que é que nos permite incluir num
mesmo conjunto disciplinas tão estranhas e distantes quanto
a geografia e a lingüística? Ou, então, disciplinas exclusivas
uma da outra, como a psicologia e a psicanálise? Em contra
partida, pode-se constatar, nessas disciplinas, certas "concor
rências" ou recobrim�ntos indefinidos: há uma geografia das
línguas e uma língua da geografia; há uma psicanálise da psi
cologia e uma psicologia do psicanalista. É por isso que Mi
chel Foucault diz 'que todas as ciências humanas se entrela
çam e podem ser estudadas umas pelas outras; suas fronteiras
desaparecem; disciplinas intermediárias e mistas multiplicam
se todo dia, a ponto de o objeto próprio das ciências humanas
ter-se praticamente dissolvido (Les mots et les choses). De
sorte que poderíamos fazer dessa "confusão", dessa indecisão,
o traço característico das ciências humanas em nossos dias.
É levando em conta esta problemática, e dentro desta
perspectiva, que iremos analisar a Psicologia, enquanto disci
plina "humana" com pretensões científicas. Trata-se de um tra
balho que pode ser incluído no domínio mais vasto da epis
temologia das ciências humanas. Num setor mais estrito, dize
mos que se trata da epistemologia da psicologia. Com efeito,
aquilo pelo que se interessa a epistemologia da psicologia,
aquilo de que ela se ocupa, em conformidade com aquilo a que
ela visa, consiste em procurar saber como se formam, como
se desenvolvem, como se articulam ou funcionam os conheci
mentos: a) tais como eles são elaborados pelos "especialistas"
(psicólogos), enquanto estes são ao mesmo tempo sujeitos e
objetos de conhecimento, inseridos num determinado contex
to sócio-cultural; b) e na medida em que a psicologia deve dis
tinguir-se das ciências naturais por um modo próprio de atin
gir a objetividade científica.
Cabe, aqui, uma pergunta: em nome de que, alguém que
não é psicólogo, pode interrogar-se sobre a psicologia? Em
outras palavras, em nome de que, posso eu interessar-me pela
psicologia, não tendo a competência do psicólogo? Evidente
mente, jamais conseguimos justificar inteiramente o partis pris
de um livro. No entanto, aquele que se dedica à filosofia o u
a esta sua vertente, que é a epistemologia, não pode deixar
de fornecer suas razões. Em primeiro lugar, creio que a epis-
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temologia está estreitamente ligada à história das ciências. E
que ela se confunde em grande parte, no caso da psicologia,
com a história dos conceitos e das teorias dessa disciplina.
E no dizer de G. Canguilhem (fitudes d'histoire et de philo
sophie des sciences, 1970 ) , há três razões para se fazer a his
tória de uma disciplina: a) uma histórica, extrínseca à ciência;
b) outra científica, realizada pelos cientistas enquanto são pes
quisadores; c) a terceira, enfim, propriamente filosófica. Esta
se justifica da seguinte forma: "sem referência a uma episte
mologia, uma teoria do conhecimento seria uma meditação so
bre o vazio".
E ao interrogar-se sobre "o que é a psicologia?", Cangui
lhem reconhece que se trata de uma questão embaraçosa para
a psicologia, pois a "questão de sua essência ou, mais modes
tamente, de seu conceito, coloca em questão a própria existên
cia do psicólogo", na medida em que, não sabendo responder
exatamente quem ele é, torna-se-lhe extremamente difícil jus
tificar aquilo que faz. É por isso que vai buscar, numa "eficá
cia sempre discutível, a justificação de sua importância de es
pecia1ista". E esta "eficácia" continuará sendo "discutível" en
quanto o psicólogo, na busca de um estatuto de cientificidade
para sua disciplina, não ultrapassar certo "empirismo compó
sito, literalmente codificado para fins de ensino". A conclusão
de CanguiJhem é a de que compete ao filósofo colocar à psi
cologia a seguinte questão: "diga-me para onde tendes, para
que eu saiba o que tu és. Mas o filósofo pode ainda dirigir-se
ao psicólogo sob a forma - uma só vez não cria hábito - de
um conselho de orientação: quando deixamos a Sorbonne pela
rua Saint-Jacques, podemos subir ou descer;. se subimos, apro
ximamo-nos do Panthéon, que é o Conservatório de alguns ho
mens iJustres; se descemos, porém, dirigimo-nos seguramente
para o Quartel de Polícia".
É neste sentido que irão siruar-se nossas interrogações so
bre a psicologia, sobre seu processo histórico de ascensão ao
estatuto de cientificidade. Evidentemente, como já frisei, só
posso questionar a psicologia graças a certa incompetência
nessa matéria. Contudo, ao questioná-la, através da epistemo
logia histórica, não o farei na qualidade de especialista que se
interroga sobre sua própria prática. Isto pode comportar certo
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risco de desqualificação de nossa interrogação. Mas estou cons
ciente desse risco. E estou convencido de que preciso corrê-lo,
em nome exatamente daquilo que pretendo compreender e ques
tionar. Em primeiro lugar, tentarei mostrar o processo de cons
tituição das ciências humanas em geral. Em seguida, mostra
rei a emergência da psicologia científica. Numa terceira parte,
tentarei explicitar as condições de autodeterminação científica
por parte da psicologia. O quarto capítulo será dedicado a al
guns questionamentos ao behaviorismo psicológico. Finalmente,
farei alguns questionamentos à psicologia behaviorista ainda
vigente, cujas bases teóri éas me parecem bastante frágeis, mas
que é chamada, pela cultura atual, a desempenhar um papel
relevante e a dar sistematicamente sua contribuição para re
solver tecnicamente muitos dos conflitos gerados pela acelera
ção brutal das mutações sociais. Assistimos hoje a uma espé
cie de "psicologização galopante" de nossa cultura. Sem che
garmos ao extremo de dizer, como L. Althusser, que a psico
logia· atual é uma dessas disciplinas que se constituem em téc
nicas humanas de adaptação, "meras comodidades teóricas para
seus autores, e comodidades práticas para sua cliente!a", não
podemos deixar de reconhecer que ela nasceu, se desenvolveu
e ainda opera sob a influência das transformações científicas,
técnicas, econômicas e políticas da sociedade industrial. Fou
cault diz que ela é "ema prática generalizada da perícia".
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I
''···
1. 0 PROBLEMA DA CIENTIFICIDADE
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ditas, numa percepção epistemológica bastante düerente, pois
está sempre marcada pela intervenção da componente filosó
fica.
Para compreendermos por que as ciências humanas não
são ciências, precisamos entender o que Foucau1t quer dizer
por "existência" ou "inexistência" do homem. Trata-se apenas'
do conceito de homem? Ou da multidão dos homens concretos
que encontramos diariamente vivendo, agindo, criando e exis
tindo? Em sua significação moderna, o "existir" aparece como
uma "palavra". É assim que Rousseau, traduzindo o "penso,
logo existo" de Descartes, afirma que "o mais útil e menos
avançado de todos os conhecimentos humanos" é o conheci
mento do homem. E a razão é que os livros científicos só nos
ensinam a ver os homens tais como eles se fizeram. Ora, tais
como eles se fizeram, pela cultura, não "existem" mais, apenas
aparecem". Assim, o homem estudado pela ciência não passa de
um fenômeno humano, fenômeno este que se tornou presa de
uma linguagem. Como poderia o homem voltar a existir no inte
rior da cultura? Foi de certa desconfiança em relação ao desen
volvimento da cultura que nasceu o problema da "existência"
do homem. Nietzche foi o primeiro filósofo que, ao atacar vio
lentamente a ciência, a moral e a metafísica de seu tempo,
chegou à conclusão de que o homem estava morrendo. E hoje,
é Foucault quem afirma: "O homem é uma invenção cuja data
recente a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente.
E talvez o fim próximo".
No entanto, sempre se falou do homem, muito embora
Foucault ache que uma coisa é certa: "o homem não é o mais
antigo dos problemas nem o mais constante que se colocou ao
saber humano". Nem tampouco pode ser o acesso à objetivi
dade daquilo que, durante muito tempo, esteve entregue ao
domínio das crenças e das filosofias. Talvez fosse mais correto
dizer que o homem é a onipotência do saber, e que compete
à arqueologia determinar suas disposições fundamentais. Este
saber do homem está contido no círculo do saber religioso,
filosófico, científico e arqueológico. É neste sentido que se
pode comprender o êxito de Foucault: Q� homens atuais estão
esmagados pela cultura e por seus resultados. Ea _ciência, de
que tanto nos orgulhamos hoje em dia, mais parece um acervo
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de conhecimentos acumulados nos livros do que çonhecimen
to.s. que, de fato, possuímos em nós e que possamos compreen
der. A lingüística e a etnografia nos ensinam que estamos sub
metidos a leis que nos escapam. A psicanálise, por sua vez,
mostra-nos que somos aquilo que ignoramos ser. Presos entre
a superlinguagem da ciência e a sublinguagem da comunicação
de massas, não sabemos mais o que significa verdadeiramente
falar. Aqueles que pretendem saber utilizam um poder anôni
mo para conduzir-nos, contra nossa vontade, a um lugar que
nos foi como que preestabelecido por um destino inelutável.
Tudo indica que é a civilização técnico-científica que elabora,
sob medida, as condições "ideais" de nossa existência. O es
forço do homem reduz-se a uma tentativa de adaptar-se a essas
condições. Neste sentido, o termo "humanismo'] passa a sig
nificar a instauração de um reino de felicidades anunciado e
programado pelos tecnocratas. Neste reino, o homem estaria
desembaraçado deste enfadonho trabalho de pensar. No dizer
de G. Bachelard, esse reino corresponde a um tipo de socie
dade em que somos livres para fazer tudo, mas onde não há
nada para se fazer; em que somos livres para pensar, mas onde
não há nada sobre o que pensar. Ela saberá em nosso lugar.
Estamos dormindo, em estado de sono antropológico. E este
sono antropológico, de que Foucault pretende libertar-:-nos, são
o psicologismo e o sociologismo atuais.
Entretanto, do ponto de vista em que nos situamos aqui,
toma-se bastante prematuro e difícil querermos instaurar uma
teoria epistemológica das ciências humanas, concluindo que
elas são ou não ciências. Por outro lado, ainda é cedo para
discutirmos outras teorias a esse respeito. Talvez seja mais
interessante dirigirmo-nos a essas disciplinas que se conside
ram a si mesmas como ciências, a fim de lhes perguntar, em
nome de que, ou de que critérios elas podem afirmar-se como
ciências; em que elas se baseiam para se proporem a funciona
rem como disciplinas científicas; o que elas entetlidem por
ciência; como se. aproximam ou se distanciam de um conceito
de ciência. E é neste sentido que iremos perguntar à psicologia
que nos diga seus critérios de cientificidade,· que nos mostre
seu funcionamento e nos revele a maneira como se identifica
com a concepção de ciência ou como dela se afasta.
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A este respeito, podemos começar por coisas simples, mas
que têm a vantagem de serem razoavelmente evidentes. Não
negligençiaremos, no entanto, as idéias provenientes da recon
sideração prévia da relação cultural do conjunto das ciências
humanas� ou daquilo que as anuncia em determinado momento
histórico, com a totalidade mais ou menos comum do saber
de nossa época. :e claro que, na época moderna clássica, fo
ram as matemáticas e a física que forneceram à inteligência os
modelos de cientificidade. Também foram elas que, ao mesmo
tempo, forneceram o solo epistemológico relativamente ao qual
se julgava o caráter mais ou menos científico das diversas prá
ticas do conhecimento.
Por outro lado, podemos facilmente constatar que, pelo
menos no início, todos os estudos chamados a se constituírem
progressivamente em "ciências humanas", foram estudos que
tomaram por objeto, de modo mais ou menos espontâneo ou
"ingênuo", determinada ordem de realidades ou de fatos hu
manos: a percepção das cores ou das intensidades luminosas;
ou, ainda, as taxas de mortalidade em determinada popula
ção. E tentava-se introduzir, de modo mais ou menos eficaz,
nessa ordem de realidades, conforme os casos, "algo de cientí
fico". Ora, neste nível de espontaneidade, os estudos empreen
didos, concernentes ao ser e aos fatos humanos, preocuparam
se muito pouco em estabelecer a diferença que encontramos,
por exemplo, no "triedro dos saberes"· de Foucault: entre as
ciências da Vida, do Trabalho e da Linguagem. (que se encon
tram dispostas no segundo eixo do triedro) e as disciplinas
que seriam as ciências humanas propriamente ditas. Por isso,
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pré-científico a ·um estado de saber propriamente científico,
isto é, como ela acedeu a� estatuto de cientificidade que sem
pre almejou conquistar e que parece defender com certa :vee
mência. Em outros termos, trata-se de esboçarmos uma epis
temologia da "observação" nas ciências humanas em geral,
para em seguida. aplicarnios tal epistemologia ao caso espe
cífico da psicologia. No entanto, convém situarmos, antes, os
temas gerais da cientificidade das ciências humanas. Posterior
mente, veremos quais são as categorias de objetividade da psi
cologia. O primeiro tema consiste na preocupação sempre cons
tante de uma referência empírica na base de toda a elaboração
do conhecimento; o segundo diz respeito ao esforço intelectual
para extrair as formas ordenadoras do conhecimento e de cons
tituição dos objetos do pensamento: esquematismo, formalis
mo, etc.; o terceiro conceme à busca de modelos explicativos,
operatórios e preditivos permitindo ao pensamento não so
mente a leitura inteligente dos dados, mas também uma mani
pulação da realidade que ela aborda; o quarto,. enfim, refere
se ao uso do cálculo e da quantificação.
Bem entendido, não analisaremos ess�s quatro temas ou
critérios de cientificidade, senão a propósito da psicologia. O
que vai nos interessar, no tocante às ciências humanas, é mos
trar o solo epistemológico ou o fundo de saber sobre o qual
elas se constituíram e acederam, por isso mesmo, à era da po
sitividade. Aliás, não podemos negar que a cultura contempo
rânea esteja profundamente marcada pelo fato do estabeleci
mento das ciências humanas num estatuto de cientificidade
mais ou menos próprio. Elas · tentam como podem garantir
este estatuto e 'vigiar para que ele seja reconhecido e respei
tado. Algo já foi conquistado nesse domínio. Algo permanece
ainda apenas reivindicado; Sua originalidade parece consistir
numa ambigüidade: de uni lado, há uma exigência de inteligi
bilidade, de "transcendência" ou de um a priori inconfessá
veis; do· outro, situa-se a exigência de positividade, que nem
sempre consegue atingir o "ideal" de cientificidade estabeleci
do pelos. '!controles intersubjetivos"; Neste processo de cons
tituição das ciências humanas, analisaremos, ein primeiro lugar,
o impacto da emergência da ciência modema sobre a filosofia;
em seguida, as repercussões da constituição das ciências hu-
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manas e seus efeitos próprios; enfim, o acesso das ciências
humanas à era da . positividade.
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acompanhado desta idéia clàrificadora da associação científica
entre o pensamento teórico e a prática experimental em vista
do conhecimento. � por uma volta a esta experiência, e pen
sando em seu valor de analogia histórica e cultural relativa
mente à nossa própria situação, que devemos iniciar.
Não se pode negar que a .emergência da "_ciência moderna"
provocou profundas repercussões sobre o sistema anterior. .. .do
saber filosófico. Na verdade, em seu estado nascente, a física
científica provocou uma dupla sacudidela epistemológica. A
primeira diz respeito aos efeitos da conquista da mecânica cien
tífica. Quanto a esses efeitos, remetemos o leitor à obra de A.
Koyré, sobretudo ao seu Du monde clós à l'univers infini ( 1962).
Por sua vez, a segunda sacudidela se refere aos efeitos da "re
volução copérnica".
Não se pode ignorar que o pensamento do Ocidente tenha
conhecido um longo período no decorrer do qual as ciências da
natureza física e da vida ainda estavam num estado de infân
cia. Eram objetivamente pouco desenvolvidas. Praticamente,
não estavam engajadas nos circuitos da eficácia humana. Este
período só terminou nos meados do século XVII. Foi ainda
necessário século e meio para que a ciência moderna da natu
reza começasse a desenvolver um primeiro conjunto de reper
cussões no seio da massa humana. Um primeiro conjunto de
efeitos, primordialmente sobre a filosofia, foi a "revolução co
pérnica", inaugurada em 1 543 com o De revolutionibus orbium
coelestium de N. Copérnico e que, após longa trajetória, tor
nou-se reconhecida pelos homens cultos, já na época da con
denação de Galileu ( 1 63 3 ) . Do ponto de vista da representa
ção do mundo, é antes de tudo o fim do geocentrismo: des
centração e relativização do lugar terrestre e, ao mesmo tempo,
abandono da imagem de um munido fechado em proveito da _
21
Em toda parte, no seio do universo visível, é o mesmo es
paço indiferente, a mesma materialidade, o mesmo estatuto
de base da existência. Um intermediário quase-empírico, entre
a terra e o Deus "primeiro-motor" do universo, desvanece por
completo. Estamos diante do que podemos chamar de a pri
meira "desconstrução" de toda cosmologia. Ao mesmo tempo,
porém, temos diante de nós esta terrível desilusão quanto a
tudo aquilo que diz respeito ao antigo saber filosófico. A física
deste saber, a filosofia natural, reduz-se a uma física quimé
rica. A analítica escolástica do devir e de seus princípios, bem
como os conceitos aristotélicos de . natureza e de sistema aas
causas, passam doravante. a ser desacreditados pelo novo modo
de apreender a realidade. Ademais, passam a ser considerados
como produtos de uma pura verbalização ingênua e duvidosa
de uma experiência sumária das coisas. Também neste domí
nio, a filosofia natural revela-se menos um saber verdadeiro
do que pretendia ser. Ao mesmo tempo, no plano do saber que
procura extrair dos livros sagrados as fontes do conhecimento,
a autoridade ·da Escritura revela-se invalidada em matéria de
ffi>ica. Deve-se aprender a discernir nela os ensinamentos em
matéria religiosa ou moral das representações mais ou menos
arcaicas do mundo e do� fenômenos naturais. De ambos os
lados, instaura.,.se uma crise bastante.. séria e de grande al
cance.
Portanto, as repercussões da "ciência moderna" sobre a
filosofia foram de duas ordens: a) o fim da cosmologia esco
lástica e a impossibilidade de restabelecer uma filosofia da
Natureza; b) o nascimento da antropologia das "Luzes" (Ilu
minismo).
a) Ao término dessas duas sacudidelas epistemológicas
de que falamos, o resultado mais evidente do advento e da
emergência da "ciência moderna" da natureza foi o de pro
vocar a desintegração daquilo que se acreditava "saber" do
mundo físico. Até então, o saber era a cosmologia ensinada
·
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listas o recurso às formas matemáticas (astronomia descritiva) ,
a física científica vai substituir um jogo de representações "cla
ras e distintas", como dirá o cartesianismo, representações ele
mentares e quantitativas, e que serão manipuladas matematica
mente. A regra fundamental de sua constituição consistia pre
cisamente neste manejo matemático: espaço, figura, movimen
to, tempo. Passa-se a desconfiar da qualidade antiga, dora
vante acusada de ser uma "qualidade oculta", simples determi
nação "subjetiva" do psiquismo. Também os antigos ''princí
pios" são recusados: a matéria é compreendida de forma: intei
ramente diversa, e a idéia de "forma substancial" é simples
mente proscrita. A figuração de conjunto do universo é revo
lucionada, e dilacera-se o pacto de familiaridade do homem com
a natureza. Tudo é suplantado por um novo empirismo intelec
tualmente mais adulto, praticamente mais eficaz e, pelo menos
para começar, mais bárbaro, mais agressivo em relação ao
·
23
que faz G. Gusdorf em La science de l'homme au siecle des
Lumieres ( 1 974) e em Introduction aux sciences humaines·
( 1 974 ) . Quero ressaltar apenas que, com o advento da ciên
cia moderna da natureza, tem início uma nova antropologia.
Sua constituição é complexa, até mesmo quase contraditória,
pois faz a associação de uma visão objetiva do homem como
ser deste mundo terrestre, ser de natureza material e física, e
de uma visão subjetiva da relação do homem com o conjunto
da natureza e consigo mesmo.
Do ponto de vista da visão objetiva do homem, é _ a que
bra da unidade ambígua concreta entre o organismo material
do indivíduo humano e seu psiquismo espiritual : "hilemorfis
mo" do "corpo" humano e da "alma" humana. Enquanto or
ganismo material, o corpo é reduzido � uma máquina, com a
mesma constituição dos sistemas materiais não-vivos e das má
quinas construídas: máquinas que não exigem, para explicar o
funcionamento biológico e vegetativo do corpo, senão aquilo
que serve para fornecer uma explicação do comportamento
físico-mecânico do universo. Assim, o homem é apenas um
fragmento do mecanismo universal. Ele está submetido às ne
cessidades do determinismo universal, conceitualmente fechado
sobre si mesmo e deixando fora desta "fechadura" epistemoló
gica toda a atualidade de seu fato psíquico-mental: sensibili
dade, afetividade, consciência. Por sua vez, enquanto unidade
personalizada de vida mental, a "alma" aparece pura e sim
plesmente como uma atualidade não-física, inexplicavelmente
associada à máquina corporal, em contato com qual ela se de
senvolve, de acordo com os funcionamentos materiais dessa
máquina. Assim, deixando de lado as questões das implica
ções mútuas do corporal e do psíquico, a antropologia vai
oscilar entre um conhecimento organicista e materialista do ser
corporal e biológico do homem, e um saber espiritualista da
vida psíquica, intelectual e moral da "alma" humana, ligando os
dois de modo mais ou menos bastardo no plano da objeti
vidade.
Contudo, do ponto de vista do sentimento subjetivo que
o homem tem de si mesmo e de suas relações com a realidade,
vamos encontrar a grande crise espiritual ocorrida no século
XVI: o ser humano não somente passa a conquistar como tam-
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bém a tomar uma nova consciência de sua própria liberdade.
Surge a consciência libertária moderna. O ser humano se de
sinveste de muitas passividades que, até então, ainda não ha
viam sido postas em questão: passividade diante da autoridad_e
religiosa e da crença bruta num ensinamento exterior; passi
vidade diante do dado da natureza; passividade diante das
próprias situações humanas, "vividas" (ou "sofridas") como
um dos aspectos inevitáveis da força das coisas. Por sua vez,
a conquista científica aparece ao mesmo tempo como o pe
nhor, a justificação e o instrumento dessa consciência libertá
ria. Ela postula a libertação intelectual em relação à p.utorida
de exterior em matéria de conhecimento. Ao mesmo tempo,
liberta o homem de sua sujeição à natureza, permitindo-lhe
colocá-la a seu serviço (dominação da natureza) . Em primeiro
lugar, indiretamente, em seguida, de frente, a ciência torna pos
sível a transformação das situações humanas, fazendo progre
dir a educação do homem, dos indivíduos e da sociedade, à
liberdade do entendimento e à autonomia da razão.
Do · ponto de vista daquilo que constitui o objeto próprio
da ciência física, é a relação teórica e prática do homem com
a Natureza que muda, por assim dizer, de espécie e de regime,
pois situa-se na órbita dessa consciência libertária do homem.
Processa-se também uma transformação da relação teórica. e
ética do homem consigo mesmo. E como conseqüência dessa
transformação, houve ulteriormente uma mudança da relação
tanto social e política quanto cultural do homem com os outros
homens. Uma nova relação começa a surgir e a ganhar o do
mínio prático. Também a relação do homem com o religioso
se altera em profundidade. Um princípio inédito da limitação
da autoridade religiosa em matéria de pensamento e de uso
da razão começa a impor-se. Como diz simbolicamente Gali
leu: "a Escritura nos ensina, não como o céu vai em seu curso,
mas como o homem vai até ele". f: então que se define esta
concepção tornada clássica do Homem, com a antropologia das
Luzes, depois, do Progresso, própria sobretudo ao século XVIII:
essa antropologia hoje considera4a caduca, sobretudo por aque
les que falam da morte do homem, como conseqüência da
morte de Deus.
25
3. A EMERGÊNCIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS
26
liquidou um universo de falsas imaginações que entravavíilll o
fl()rescimento da ciênCia, e conseguiu definir-se uma atitude
livre de preconceitos ou de a prioris injustificáveis; do outro,
abriu de modo decidido e desinteressado os caminhos novos
e seguros do progresso, tanto na vida prática quanto no campo·'
da aquisição dos conhecimentos "puros". Deste ponto de vista,
o Discurso do Método, de Descartes, inscreveu-se no inconsci
ente coletivo da filosofia clássica, pois não visava outra coisa
senão a possibilitar ao homem "conduzir bem sua razão e pro
curar a verdade nas ciências".
Podemos ver sob dois ângulos essa situação de perda da
ingenuidade da filosofia clássica:
27
põe como metafísica idealista e espiritualista, não passa de um
produto de camuflagem de uma evidência que se impunha pela
entrada em cena das ciências humanas: ciência e história das
religiões, ciência e história da civilização, análises sociológicas e
psicológicas (Introdução à crítica da filosofia do Direito de
Hegel, de Marx, e O Futuro de umâ ilusão, de Freud) , sem
falarmos da etnologia e das ciências da linguagem. Nessas con
dições, o espaço intelectual se abre como que natural e irresis
tivelmente marcado pelo ateísmo e pelo senso da "finitude" hu
mana : total dissolução da individualidade pessoal, com a mor
te física, e consciência dessa condição determinada do homem
sem Deus e sem outro futuro pessoal senão o do espaço de
sua vida - morte de Deus e morte da alma. A metafísica só
se impõe como a negação dessas dimensões do sonho metafí
sico e como investimento pensante do mundo nos limites dessa
negação.
28
b) O acesso à era da "positividade"
29
ciências humanas (que ele chama de "ciências do espírito" -
30
A evolução histórica das c1encias do homem, em nossa
cultura, divide-se essencialmente em três fases distintas: a da
concepção clássica do homem (ciência grega) , a da concepção
cristã ( teologia patrística e medieval) e a da concepção mo
derna. Em cada uma dessas fases, a medida do mundo se re
flete na medida do homem. Cada relação com o mundo engaja
certo sentido da verdade, de uma .verdade que freqüentem�!lte
o homem domina, mas que intervém na experiência garantin
do-lhe a comunicação entre ele e o mundo, ou consigo mesmo.
E cada atitude humana em relação ao mundo, tornando-se ob
jeto de reflexão, é geradora de uma filosofia. Como há várias
relações com o mundo, cada uma com sua verdade própria,
resulta o aparecimento de várias filosofias, nenhuma delas pos
suindo a verdade total. O conhecimento do objeto também .é.o
conhecimento do sujeito cognoscente. O homem persegue, atra
vés de seu saber, uma lenta descoberta daquilo que ele é em
relaç�o ao mundo. Assim, só progressivamente ele consegue
tomar posição face ao mundo e, por conseguinte, tomar posse
de si mesmo.
Donde se conclui que, para a concepção clássica, a es
sência do homem se define principalmente como razão. O pro
blema que se coloca é o de determinar as relações do princípio
essencial deste ser dotado de razão com seu próprio corpo e
com o mundo. O centro de interesse do pensamento antigo é,
pois, o cosmo' ( ordem, beleza, harmonia) : a ordem do mundo
que encontra sua mais alta expressão no curso regular dos
astros e em sua harmonia. Nesta época, os homens e os deuses
devem obediência a esta lei suprema do devir em sua totali
dade. O homem, porém, se separa . desta situação global qne
o aprisiona: ele tenta ordenar o devir impondo aos aconteci
mentos um princípio inteligível, dando-lhes uma interpretação
discursiva e racional. Todavia, a inteligência humana não está
ainda segura de si. Ela não pode ainda estar certa da validade
de suas interpretações. Encontra-se ainda numa situação infe•
rior e considera-se como uma instância subordinada que recebe
do "alto" os princípios de sua atividade. A razão se exerce
do "alto" para "baixo", dos deuses aos homens. Eis a con
cepção que vem de Platão até a Idade Média.
31
Quando a concepção cristã vem tomar o lugar do paga
nismo helênico, seu grande esforço vai conduzi-la à harmoni
zação da concepção clássica com as exigências soteriológicas
(salvíficas) que impregnam a antropologia bíblico-cristã (uni
dade do homem e destino pessoal transcendente) : a inspiração
cristã quer reagrupar o saber e a espiritualidade em torno da
exigência do Deus judaico-cristão. O pensamento antigo era
uma cosmovisão ( Weltanschauung ) cosmológica - era a
idéia de cosmo que presidia toda a compreensão que o homem
tinha do mundo e d� si mesmo - e, ao mesmo tempo, cosmo
cêntrica - o cosmo sendo o centro a partir do qual o homem
se compreendia como uma parte cujo papel de conl:lecimento
não ia além de uma atitude de contemplação passiva. Sem dei
xar, porém, de ser uma cosmovisão cosmológica, o pensamento
medieval torna-se teocêntrico, a fonte explicativa de tudo, in
clusive do conhecimento, situando-se fora do homem, não mais
nas leis cósmicas, mas num Deus criador face ao qual o ho
mem se situa como criatura dependente. Ora, esta mudança de
perspectiva - de uma concepção cosmocêntrica a uma con
cepção teocêntrica - modifica profundamente os elementos
tomados de empréstimo aos gregos pelos autores escolásticos.
32
cêntrica. Doravante, a verdade aparece como uma obra huma
na. cujas estruturas devem ser examinadas em sua referência
33
quanto ser que fala e que institui uma civilização, ele introduz
um elemento radicalmente original: a cultura.
É assim que, no início das ciências antropológicas, enfa
tizava-se o elo do homem com a natureza. Elas estavam mar
cadas por uma mentalidade naturalista, pois as pesquisas sobre
o homem centravam-se nas leis que comandavam a transição
entre a natureza e a cultura, as condições materiais da vida
e suas propriedades fisiológiças sendo utilizadas para explicar
esta passagem. Em seguida, a antropologia tornou-se o estudo
das propriedades gerais e das leis da vida social e da cultura,
na medida em que por elas o homem transforma o mundo e se
transforma a si mesmo neste mesmo movimento. Ela tende a
considerar o homem ao mesmo tempo do ponto de vista da na
tureza que o precede, o cerca e o subentende, e do ponto de
vista da ruptura que ele introduz ultrapassallldo-a.
Trabalhos antropológicos recentes constatam que, de um
lado, a antropologia influenciou e modificou profundamente
nossa visão do mundo e do homem, do outro, contribuiu po
derosamente para que a filosofia passasse do estudo da cons
ciência humana ao estudo do intercâmbio entre a consciência e
o mundo. Descartes havia centrado a interrogação filosófica
sobre o homem considerado segundo a ordem da consciência,
sendo esta a medida e a forma do ser. De Descartes a Hegel,
passando por Kant, e apesar de todas as discordâncias de de
talhe entre os autores, o ser da consciência aparece . sempre
como a norma e a verdade do ser, de tal sorte que podemos en
globar todas as visões do homem e do universo sob a denomina
ção comum de "filosofia da consciência". Com a antropologia
contemporânea, nascida com o evolucionismo, o marxismo e a
psic;análise, o sujeito cognoscente foi descentrado de si mes
mo e sua verdade tende a ser procurada na consciência atra
vessada e trabalhada pela natureza, isto . é, na consciência não
tend(J) mais seu centro nela mesma, mas como que aquém dela.
A partir do século XIX, a antropologia filosófica vai en
contrar-se, devido sobretudo à predominância do positivismo,
numa situação análoga à da filosofia da natureza no século ·
XVII : seu objeto é progressivamente anexado pelas ciências
34
experimentais. Por isso, não se pode evitar a seguinte interro
gação : quem é este "homem" que constitui realmente o objeto
de uma filosofia do homem? O "homem" das ciências bioló
gicas, sociológicas, psicológicas, históricas? Não sendo capaz
de compor todas as fisionomias do homem esboçadas por cada
uma dessas disciplinas, a filosofia encontra-se diante do segt!in
te dilema: ou ela deverá falar de um homem ideal, que não é
objeto de ciência, ou deverá desaparecer por falta de um
objeto.
ss
li
A EMERGÊNCIA DA PSICOLOGIA
CIENTíFICA
1. ESPECIFICIDADE DA PSICOLOGIA EXPERIMENTAL
39
}\ssim, será que ainda podemos falar de "a psicologia"?
Ou não seria preferível reconhecermos uma pluralidade de psi
cologias, não somente pela rivalidade de seus representantes
mais eminentes ou pela paixão sentida por cada um relativa
mente à sua doutrina, mas também pela diversidade dos méto
dos utilizados? Num momento de aceleradas mutações, como
o nosso, somos levados a crer que a psicologia parece situar-se
no imenso domínio das ciências exatas, biológicas, naturais e
humanas. Há até mesmo quem pense que ela se situa como
um domínio conexo das ciências biofisiológicas. Contudo, a
psicologia se apresenta numa diversidade por vezes espantosa
de domínios. Esta diversidade, ao que tudo indica, deve-se à
variação das práticas psicológicas, muito embora, por vezes,
e1as venham a entrelaçar-se. Uma pergunta, porém, merece ser
colocada desde o início : será que a diversidade dos métodos uti
lizados pela psicologia não viria comprometer seu rigor cientí
fico? Outra questão, que será parcialmente respondida no final,
parece dever ser colocada desde o início : se a psicologia, não
somente pelas normas de cientificidade que ela aceita, mas
ta!11bém pelas normas de comportamento que ela hoje cada vez
mais procura impor, não seria esta "ciência" extremamente útil
para que a sociedade atual salvaguarde o assim chamado "pen
samento domesticado"?
Uma coisa parece certa: se queremos avaliar a situação
real da psicologia contemporânea, não podemos ignorar a exis
tência de uma fragmentação de seu domínio de investigação.
Isto, porém, não impede que haja várias convergências nos
diversos campos de pesquisa. Entretanto, quer do ponto de vista
de seus métodos, quer do ponto de vista de seu objeto, a psi
cologia não pode ser considerada como uma disciplina una,
nem tampouco unificada. A multiplicidade das psicologias, so
bretudo no domínio prático (psicologia educacional, psicologia
do trabalho, psicologia industrial, etc. ) , coloca em questão sua
própria unidade. Esta unidade parece muito mais uma expres
são cômoda, emanação de um pacifismo enganador e prático,
do que uma realidade que se possa constatar. Como conciliar
p_sicologias naturalistas e psicologias humanistas? Por detrás
dessas duas tendências maiores, j á estão implícitas duas atitu
des psicológicas que correspondem a duas maneiras qe se fazer
40
psicologia: experimental e clínica. A psicologia experimental e
comparativa pretende ser rigorosa e científica: seu método
é ao mesmo tempo teórico-experimental e geral. Embora tenha
a pretensão de unidade, dificilmente essa psicologia pode apli
car-se com êxito às condutas humanas. A psicologia clínica, por
sua vez, está muito mais preQ_cupada com a investigação sistemá
tica, o mais possível completa, dos casos individuais. Sem con
fundir-se com a psicologia patológica, ela procura congregar,
num único objeto de estudo, a conduta e suas desordens. Quan
to à rpsicanálise, trata-se de uma forma de psicologia clínica.
Seu objeto de investigação está restrito à conduta humana con
creta. Não há dúvida de que a psicologia experimental e a psi
cologia clínica se completam. Entre elas há certamente diver
gências. Contudo, ambas pretendem ser a ciência da conduta,
ou seja, das respostas significativas através das quais o ser vivo,
em situação, integra as tensões que ameaçam a unidade e o
equilíbrio do organismo. Mas o que vai nos interessar, aqui,
é uma análise da psicologia experimental, ou seja, da psicolo
gia com pretensões científicas.
41
era considerada como uma ciência menor, deixando escapar a
autenticidade do homem para dedicar-se a uma tarefa de conhe
cimento abstrato e puramente reflexivo.
A segunda perspectiva, tão falaciosa quanto a primeira, foi
fornecida à psicologia pelas ciências da natureza. Querendo li
bertar-se a todo custo da filosofia, ela se viu forçada a aliar-se,
no século XIX, a uma ·perspectiva dita "científica", cujo cam
po epistemológico lhe era fornecido pelas ciências experimen
tais de ondem psicoquímica ou biológica, bem mais sólidas e
com um estatuto de cientificidade reconhecido por todos. O
�m tornou-se, então, um "objeto de experiência". E os fa
tos humanos tornaram-se decompostos, inventariados, descritos
como sendo rigorosamente exatos e experimentais. Foi o perío
do da redução dos fenômenos psíquicos aos fenômenos orgâ
nicos e cerebrais. A psicologia, assim, escudava-se nas certezas
matemáticas e êxperimentais, talvez para melhor defender-se
do "imperialismo" filosófico. O homem passou a ser estudado
em laboratórios. Tratava-se de provar a origem orgânica de
seus comportamentos. E a psicologia enveredou-'se pelos ca
minhos traçados pelo organicismo e pelo mecanicismo clás
sicos.
Portanto, foi de sua vizinhança com a filos.oiia, que de
correu a direção na qual a psicologia concebe sua emancipação
e seu acesso a um estatuto científico independente: uma li
bertação relativamente à filosofia, por conformação ao modelo
das ciências da natureza j á constituídas. Por isso, a psicologia
ainda hoje oscila entre duas grandes correntes : uma, mais filo
sófica, utilizando os modelos explicativos hermenêuticas ou in,
terpretativos; outra, propriamente científica, tomando de em
préstimo às ciências naturais seus modelos explicativos (por
exemplo, o behaviorismo) . Por outro lado, convém lembrar
que, pelo fato de ter nascido do seio da filosofia, a psicologia
parece ter herdado também certo desejo de imperialismo: con
cebe suas relações com as demais disciplinas humanas sob o
modo da absorção, e não da articulação.
Historicamente, em todo o seu esforço para conhecer cien
tificamente o homem, a psicologia parece ter sempre trabalha
do para derrubar o privilégio do "objeto humano", para "des
sacralizá-lo" e deslocá-lo, do plano meramente subjetivo, ao
42
plano decididamente objetivo. Com isso, ela não conseguiu evi
tar que o homem, objeto de conhecimentos das ciências huma
nas, se tornasse um mero objeto entre o s demais objetos de in
vestigação científica. Talvez ela se tenha esquecido do ques
tionamento que j á fizera Heráclito : "Como o homem poderia
ocultar-se daquilo que jamais desaparece"?; ou da admoestação
de Spinoza : "o homem não é um império num império" ; ou
então, dessa invectiva de Nietzsche que, relativamente ao conhe
cimento do humano, tem valor de imperativo metodológico:
"O homem é algo que deve ser superado".
Não é exagero dizer que o conhecimento científico se cons
trói ao preço de uma renúncia a todos os apelos feitos, a pro
pósito do objeto humano, pela idéia que gostaríamos de ter
dele ou de afirmar a seu respeito. Assim, ao escapar à ordem
dos valores, o homem pertenceria por completo à ordem .dos
"fatos". Contudo, como veremos, essa mutação não foi tão
simples assim, nem tampouco linear, como se poderia pensar.
:B o que podemos notar quando a psicologia, estudando os seus
objetos, nunca deixa de fazer apelo a vários métodos distintos.
· Evidentemente, não analisaremos aqui esses métodos. Enume
raremos apenas as quatro direções metodológicas principais da
psicologia: a psicologia experimental, o behaviorismo, o ges
taltismo e a psicologia existencial de inspiração fenomenoló
gica.
No entanto, façamos algumas considerações a respeito
da psicologia experimental, pois ela foi o ponto de partida para
a teoria behaviorista que estudaremos melhor posteriormente.
Com_ efeito, o primeiro método psicológico com pretensões cien
tíficas foi o que utilizou a psicolog!a experimental. Esta se cons
tituiu antes de tudo contra a atitude introspeccioni�ta. Portanto,
seu objeto não é um conteúdo de consciência acessível à in
trospecção (como ainda era a sensação estudada por Fechner
·
43
impossibilidade de comunicar ao pesquisador suas impressões,
condenou o psicólogo a ater-se estritamente à observação dos
comportamentos exteriores. As mesmas razões justificam o pri
-
vilégio conferido ao estudo das reações infantis e aos compor
tamentos pré-verbais do adulto : percepção, aprendizagem, mo
tivações, etc.
44
dem existir entre os fatos que seu olhar reuniu . . Mas
.
45
metade do século XIX, a reação marxista contra o idealismo
hegeliano veio por assim dizer solapar pela base o terreno sobre
o qual se apoiava a realidade social e política de então. De
modo geral, as ciências se apresentavam armadas com toda uma
aparelhagem metodológica segura, rigorosa e poderosa, a ponto
de crerem poder controlar, doravante, todo o domínio do saber,
tanto do saber sobre a natureza quanto do saber a respeito do
próprio homem. Desta forma, elas relegavam a um passado
remoto ou aos museus as filosofias e as metafísicas.
A este respeito, conhecemos a enorme influência exercida
sobre as inteligências da época pelas teorias de Lamarck ( 1 744-
1 829 ) e, sobretudo, as de Darwin ( 1 809- 1 8 82) . Segundo uma
expressão de Nietzsche, "Darwin é o maior benfeitor da huma
nidade contemporânea", pois foi ele quem difundiu a idéia
segundo a qual a diferença entre o homem e o animal é apenas
uma questão de grau. Por sua vez, são célebres essas palavras
de Comte : "Dor avante, o espírito humano renuncia às pesqui
sas absolutas (metafísicas e teológicas) que só convinham à
sua infância; ele circunscreve seus esforços ·ao domínio exclu
sivo da verdadeira observação, a única base possível dos conhe
cimentos verdadeiramente · acessíveis, sabiamente adaptados às
nossas necessidades reais . . . Numa palavra, a revolução fun
damental que caracteriza a virilidade de nossa inteligência con
siste essencialmente em substituir, em todos os domínios, a ina
cessível determinação das causas propriamente ditas, pela sim
ples procura das leis, isto é, das relações constantes que exis
tem entre os fenômenos observados" (Discours sur l'esprit
positif, 1 898 ) .
Assim, através das teorias transformistas e positivistas,
ganharam corpo as refutações científicas às doutrinas tradicio
nais segundo as quais o homem gozava do privilégio de possuir
uma alma-substância. Doravante, é a previsão que deve cons
tituir o verdadeiro objeto das ciências: O verdadeiro espírito
positivo, ainda segundo Comte, consiste sobretudo em "v_t?r
para prever", em estudar aquilo que é para se concluir sobre
aquilo que será; e isto, segundo o dogma geral da invariabili
dade das leis naturais. Por toda a parte, na Europa do século
XIX (segunda metade) , as exigências espiritualistas se expri
miam através de um ecletismo desprovido de consistência. Tan-
46
to o evolucionismo agnóstico de Spencer, quanto o transfor
mismo de Darwin e a sociologia de Comte, impunham-se de
cididamente a todos os domínios da vida intelectual. A cultura
parecia dominada, de ponta a ponta, pela idéia do determinis
mo universal. Os cientistas passam a celebrar entusiasticamente
a matéria e a repudiar as especulações racionais. Seu objetivo
essencial e único é a análise dos "fatos" e de suas regularidades.
O que pretendem é que o saber seja feito através' da experiência
positiva.
Ora, este clima de submissão da inteligência aos "fatos" e
aos imperativos do conhecimento experimental, foi bastante pro
pício à emergência de uma psicologia, reivindicando, em boa
consciência, seus direitos de cidadania no mundo científico, ao
mesmo título que a física, a química e a biologia. Os cientistas
da época estavam muito preocupados com o problema da me
dida, ligado a certas experiências, sobretudo no domínio da
ótica e da astronomia. Seme1hante problema conduziu natural
mente à questão, em psicologia, da percepção. O nascimento
da psicofísica ilustra bem a transferência dessas preocupações
para o plano da psicologia como ciência. As difiéuldades a se
rem superadas eram enormes, pois tratava-se de submeter à
experimentação, não mais somente a matéria ou a vida, mas
o próprio espírito do homem, o espirito deste sujeito criador
de ciências. Por isso, não é de estranhar que, desde as primeiras
tentativas feitas pela psicologia para tornar-se ciência, ela te
nha sofrido as mais veementes críticas por parte dos filósofos,
que opunham, a essa pretensão, uma psicologia sintética, de
ordem racional ou intuitiva;- Quanto àqueles que, pelo contrá
rio, pretendiam preservar-se de toda "contaminação" relativa
mente à especulação filosÓfica, tiveram que correr o risco de
cair pura e simplesmente na fisiologia, pcis, ao eliminarem a
subjetividade, excluíram ao mesmo tempo da psicologia aquilo
que era seu objeto específico. Este risco ainda não existia na
corrente empirista posterior a Hume e anterior a Comte. Se
gundo o empirismo clássico, com efeito, os métodos subjetivos
e objetivos deviam, na prática, acomodar-se. A psicologia em
pirista clássica ainda tinha por pano de fundo uma metafísica
latente e inconfessada: a de Fechner e a de Wundt, por exem
plo. Mas deixemos de lado este positivismo avant la lettre para
47
ver como surgi,u a psicologia experimental, origem do positi
vismo psicológico ulterior.
No século XVIII, época em que a psicologia se constitui
a partir da crítica do conhecimento instituída pelos empiristas
ingleses, a antropologia se propunha ser a ciência do homem
físico e social. A psicologia reservou-se o domínio da existência
individual. Seu postulado inicial era o da inteligibilidade intrín
seca do domínio pessoal. Cada pensamento deveria ser consi
derado como um domínio autônomo. Seus diversos momentos
deveriam encadear-se em virtude de uma necessidade ordena
da por normas racionais. Wolf afirma a possibilidade, em psi
cologia, de uma psicometria utilizando a linguagem da mate
mática. Mas a nova disciplina padece, desde o início, de um
vício, de constituição : de um lado, ela mal se distingue de uma
lógica do entendimento, do outro, os progressos da fisiologia
ressaltam a submissão da consciência às suas condições neuro
lógicas e biológicas. Assim, a especificidade da psicologia se
vê duplamente colocada em questão : l:!c psicologia hesita entre
a alienação de uma filosofia do espírito e a alienação de um
materialismo psicofisioJógic.o. Como poderia ela ser ciência?
Kant não acreditava que isso pudesse ser possível, pois, segun
do ele, só há ciência quando se puder ap1icar a matemática. E a
linguagem cifrada só pode ser aplicada, diz ele, aos fenômenos
espácio-temporais da realidade material. O sentido interno, por
sua estrutura, escapa a este tipo de inteligibilidade. Assim, não
pode haver uma ciência psicológica como há uma ciência físi
ca. Comte, como veremos, retoma esta negação de princípio.
A seus olhos, o indivíduo isolado não pode reivindicar uma
existência independente. Engajado no contexto social, seu pen
samento responde a influências que o ultrapassam. Ademais, a
pretensa observação de si mesmo não pode fornecer nenhum
conhecimento verdadeiro.
Todavia, a psicologia científica e experimental conseguiu
afirmar-se na Alemanha, já na primeira metade do século pas
sado. O pensamento inglês estava ainda preso a uma psicologia
do senso comum fundada sobre a observação empírica da rea
lidade que se oferece à consciência. Os alemães tentaram fazer
algo de novo em matétia de psicologia. Assim, J. F. Herbart
( 1 776-1 841 ) , com sua Psicologia científica, tentou aplicar a
48
matemática ao estudo da vida psíquica. Ele compreende a vida
psíquica em termos de representações num estilo intelectualis
ta. Para ele, · a matéria da psicologia é a percepção interqa, o co
mércio com os outros homeris, as observações do educador e dos
homens de Estado, os relatos dos viajantes, dos historia!Clores,
dos poetas e dos moralistas, as experiências fornecida� pelos lou
cos, pelos doentes e pelos animais. Trata-se de racionalizar e de
quantificar esses dados, a exemplo do que fizetam Galileu e
Newton para a realidade física. Herbart tenta realizar tal pro
jeto tratando cada representação como uma quantidade inten-,
siva, · cujo grau pode ser expresso matematicamente. · Uma vez
matematizados os elementos da vida do espírito, o conjunto .PQ:
derá ser facilmente submetido ao cálculo. Assim como Bichat
havia tentado reconstruir a vida orgânica a partir dos tecidos
isolados, Herbart tenta constituir uma psicologia a partir das
representações. Para tanto, apóia-se na "psicofísica" que, para
ele, deveria· ter por tarefa essencial determinar a relação entre
o fenômeno físico, considerado como simples excitação causal,
.e/ o fenômeno psíquico que dele resultava. Seu objetivo claro
era a obtenção, em psicologia, de leis científicas. Todavia, Her
bart não conseguiu realizar experiências . psicológicas sistemá
ticas em laboratório: teve que contentar-se com experiências
em pensamento.
Foi o fisiólogo e anatomista E. H. Weber ( 1 79 5-1 8 78)
quem, por seus estudos sobre a s sensações táteis e visuais,
conseguiu, pela primeira vez, passar do . domínio da fisiologia
ao da psicologia. Ele estava convencido de que a quantidade
de excitação necessária para discernir uma primeira sensação
de uma segunda, deveria estar em relação constante e deter
minável com a sensação inicial: Se esta quantidade é aumen
tada pouco a pouco, a sensação primeira permanece inaltera
da. Para que o sujeito perceba o crescimento dessa sensação,
ou experimente uma sensação diferente, mostrando a transpo
sição de um limiar de consciência, é necessário que haja um
aumento de certa importância, .proporcional à quantidade da
primeira sensação. Domde a "lei" de Weber: a excitação cresce
ou decresce .de modo contínuo, a sensação de modo descon
tínuo, e a quantidade de excitação, correspondendo a um limiar
Ç
diferenci'al, encontra-se numa re1a_ ão fixa com a excitação ini-
49
cial. Apesar, contudo, da mistura feita por Fechner de realismo
e de irrealismo em psicologia, isso não o impediu de ser o
primeiro "psicólogo" a empreender a exploração metódica do
domínio tátil e do domínio visual. Essas pesquisas positivas
foram sistematicamente desenvolvidas ulteriormente pelos fi
siologistas, que fundaram a neurologia moderna. Assim, a ana
tomia e a histologia, aproveitando-se , das novas possibilidades
abertas pelo microscópio acromático, abriram os caminhos para
o estudo psicológico da percepção. E os pressupostos da aná
lise ideológica são substituídos pelos pressupostos de um co
nhecimento exato do sistema nervoso.
Seguindo as pistas abertas por Weber, Johannes Müller
( 1 801-1 85 8 ) , um dos fundadores da medicina positiva, formu
la, em sua obra fundamental Manual de psicologia humana,
a teoria da energia específica dos nervos. Segundo essa teoria,
os receptores sensoriais impõem seu caráter próprio à percep
ção dos objetos: uma mesma excitação produz, sobre sentidos
diferentes, impressões diferentes, ao passo que excitações . dife
rentes de um mesmo sentido produzem impressões análogas.
Donde uma teoria "nativista" da percepção, conferindo aos re
ceptores sensório-motrizes um valor constitutivo na represen
tação do real.
Todas essas aquisições novas de Weber, Fechner e Müller
tiveram por conseqüência a passagem da psicologia para. o
domínio da fisiologia, sobretudo, tal como ela foi inicialmente
formula.da por Hermann Lotze ( 1 8 1 7-1 8 8 1 ) . A contribuição
essencial de Lotze, em sua Psicologia médica ou fisiologia da
alma ( 1 852 ) , consiste na doutrina dos "sinais locais", oposta
às concepções neurológicas de Müller. Segundo ele, a represen
tação perceptiva é qualitativamente afetada por uma iniciativa
dos centros nervosos que situa cada impressão na totalidade
do percebido. A idéia de uma regulação de conjunto contradiz
o "nativismo" segundo o qual a influência das terminações ner
vosas seria predominante.
Entretanto, coube a W. Wundt' ( 1 832-1920) desempenhar
um papel decisivo para a constituição da psicologia experimen
tal. Podemos dizer que lhe cabe o mérito de ter sido o pri
meiro psic6logo na história da psicologia. Ele é o primeiro em
data a ser considerado propriamente psicólogo. Antes dele.
50
havia muitas psicologias, mas não existiam psicólogps. Os pre
cursores de Wundt são médicos, fisiologistas e físicos, só . se
interessando pela psicologia . secundariamente. Wundt, porém,
fez da psicologia seu centro de interesse principal. Ele a ane
·
51,
trados : crianças, doentes, filologia, história e etnografia. Foi
neste sentido que escreveu volumosas obras sobre a "psicologià
dos povos". O que tinha em mente, era descobrir e determinar
a relação dos fenômenos psíquicos com seu substrato orgânico,
especialmente cerebral, pois acreditava que nada se passava em
nossa consciência que não encontrasse seu fundamento em de
terminados processos físicos. Por isso, tentou demonstrar que
a sensação e a imagem são o produto das passagens do influxo
nervoso nos neurônios cerebrais. Todavia, atribuiu às pesquisas
experimentais apenas um campo bastante limitado, reconhecen
do dois tipos de leis do conhecimento : leis associativas e leis
perceptivas. Estas últimas eram as que exprimiam a atividade
livre do pensamento.
Numa perspectiva semelhante à de Wundt, Théodule Ribot
( 1 839- 1 9 1 6 ) foi, antes de tudo, um teórico da nova disciplina.
Suas duas obras principais, Psicologia inglesa contemportinea
( 1 870) e Psicologia alemã contempordnea ( 1 879 ) , podem ser
consideradas como um mànifesto da nova psicologia experi
mental . �ibot foi sobretudo um professor de "psicologia ex
perimental e comparada". Recomendava insistentemente aos
seus alunos que adquirissem uma sólida formação científica e
uma rigorosa especialização em determinado setor do vasto
domínio psicológico. Atualmente, dizia, o número dos que estão
preparados para tal empreendimento é muito pequeno. A maior
parte dos fisiologistas não tem muito de psicólogos. E a maior
parte dos psicólogos conhece mu�to mal a fisiologia. Seria pre
ciso, para se empreender com êxito as pesquisas em psicologia,
"conhecer as matemáticas, a física, a fisiologia, a patologia, ter
uma matéria a manipular, instrumentos ao alcance da mão e,
sobretudo, o hábito das ciências experimentais". Tudo isso,
constatava Ribot, ainda nos falta.
Evidentemente, Ribot revelava por vezes um entusiasmo de
neófito · em relação à psicologia. Contudo, fez algumas consi
derações bem pertinentes a respeito dessa disciplina. Por exem
plo, considerava que a nova psicologia diferia da antiga: pri:..
meiramente, por seu espírito - não era metafísica -; em se.
gundo lugar, por seu objeto - estudava apenas os fenôme:;.
nos -; enfim,· por seus · procedimentos - ela os tomava de
empréstimo, na medida do possível, às ciências bio16gicas. Isto,
52
porém, não impediu Ribot de cair num certo exclusivismo :
achava que a psicologia, até então, cometera o erro de estar nas
mãos dos metafísicos. Ora, dizia ele, "nenhuma reforma é efi
caz contra aquilo que . é radicalmente falso, e a antiga psicolo
gia é uma concepção bastarda que deve perecer pelas contra
dições que ela encerra".
A evolução de Ribot reflete bem as vicissitudes da nova
psicologia, aspirando a um estatuto de cientificidade ( desco
berta de leis) no domínio científico, especialmente em suas re
lações com seus dois incômodos vizinhos : o filósofo e o fisió
logo. De modo geral, Ribot tenta privilegiar a fisiologia, tal
como pode testemunhar sua tentativa de reduzir a memória a
um hábito fundado ein processos puramente orgânicos. Contu
do, sua sólida formação filosófica mantinha nele a consciência
das dificuldades metodológicas. Até sua morte, dirigiu a céle
bre Revue Philosophique, fundada por ele em 1 876. Assim, foi
obrigado a reconhecer que as experiências de laboratório têm
seus limites, que a certeza das pesquisas objetivas não é abso
luta, e que o método subjetivo condiciona, de fato, todos os
demais métodos.
, Portanto, após vencer vários e sérios obstáculos, a psi
cologia científica consegue, enfim, constituir-se como ciência
do homem concreto, deixando completamente de lado o pensa
mento e as intenções do. sujeito. No entanto, as posições dessa
ciência objetiva se vêem seriamente ameaçadas deside o início.
Em 1 874, Franz Brentano, com sua Psicologia de um ponto de
vista empirista, rompe com a psicologia analítica e o s associa
cionismos existentes, proclamando a prioridade de um estudo
do ato mental e da noção de Intenção. Vários psicólogos pas
saram a estudar as funções da vida mental e a reconhecer a
especificidade da vida do espírito. A psicologia de Brentano
será o ponto de partida dos trabalhos de E. Husserl ( 1 859-
1 9 3 8 ) que, a partir da idéia de intêncionalidade, empreende
uma recuperação da psicologia pela filosofia. As Investigações
lógicas aparecem em 1900, e a primeira parte de suas Idéias
diretrizes para uma fenomenologia surge em 1 9 1 3 . A consciên
cia, desprezada e relegada, retoma seus direitos de cidadania.
E na mesma época surge a psicologia da forma, cujas origens
remontam ao artigo de von Ehrenfels Sobre as qualidades da
53
estrutura ( 1 890 ) . A partir de 1 9 1 0, o grupo constituído por
Wertheimer ( 1 880-1943 ) , Kõhler (nascido em 1 887) e Kof
fka ( 1 886-1941 ) multiplica as investigações em todos os setores
da psicologia, partindo de um reagrupamento dos elementos da
vida �ental, cuja inteligibilidade deve proceder por conjuntos
e , não através dos detalhes. Essas concepções vão se transferir
para os Estados Unidos da América, onde encontrarão grande
desenvolvimento. . ·
· 3. 0 ESTATuro CIENTÍFICO
54
aderir ao Conselho Internacional de Filosofia e de Ciências Hu
manas. Quer dizer: todos esses psicólogos, não somente reco
nhecem a autonomia de sua disciplina, como também não se
consideram ainda bastante seguros para relacionar-se com a
filosofia. Qual a razão dessa recusa? N�o é porque a psicolo
gia se desinteresse pela filosofia, mas porque pretende manter
suas distâncias relativamente a toda especulação de ordem filo
sófica. Esta constitui ainda uma "ameaça" à psicologia cientí
fica em sua busca incessante de cientificidade. Ela ainda se
sente "ameaçada" pelo "perigo" da especulação filosófica. Esta
em nada ameaça a lingüística ou a demografia. Em segundo
lugar, é verdade que houve no passado e ainda há no presente,
muitos autores que tiveram ou têm a pretensão de tratar filo
sofi<;amente a psicologia. Para eles, a psicologia científica seria
insuficiente e impotente para fornecer um conhecimento ade
quado do homem. Por isso, deveria ser completada por uma
"psicologia filosófica", também chamada de "antropologia fi
losófica". Num passado remoto, o Tratado da Alma de Aris
tóteles apresentou-se como ilustração clássica de semelhante ten
tativa filosófica. Mais próximo de nós, no século XVIII, Chris
tian Wolf justapunha pura e simplesmente uma Psychologia
rationalis, considerada por ele como uma das três "metafísicas
especiais", coordenadas pela "metafísica geral" ou ontologia,
a uma Psychologia empírica, muito mais próxima do saber pro
priamente empirico do que a "ciência" puramente especulativa.
Bem mais recentemente, Hegel pretendeu construir toda uma
"filosofia do Espírito", comportando um bom segmento de
"psicologia especulativa". E não se pode dizer com absoluta
certeza que a . posteridade de semelhantes tentativas tenha de
saparecido por completo.
O problema consiste em compreendermos como, mesmo em
nossos dias, pode ocorrer a persistência de tais empreendimen
tos de absorção, pela filosofia, de todos os tipos de psicologia
empirica. Se levarmos em conta o pensamento e a argumenta
ção de Piaget, veremos que ele estabelece, em primeiro lugar,
a seguinte diferença : a psicologia, como qualquer outra ciência,
visa única e exclusivamente a fazer uma análise sobre os "fatos
observáveis", ao passo que a filosofia procura sempre atingir a
natureza das coisas ou suas "essências". Ora, diz Piaget, não
...
55
aio os problemas nem tampouco os domínios de estudo que
deverão separar psicólogos e filósofos, pois ambos se ocupam
legitimamente do comportamento, do desenvolvimento ou das
estroturas. Considerar a diferença entre os dois domínios de
estudo pela natureza dos problemas analisados, seria bastante
simplista. E a razão é a seguinte : entre o conjunto dos pro
blemas considerados filosóficos e aqueles que não o são, há um
gradativo deslocamento de fronteira, de época em época, em
benefício daquilo qu e parece poder ser tratado cientificamente.
A pergunta que Piaget coloca é a seguinte: por que, em
determinado momento da história, certos problemas são consi
derados como dependendo da psicologia científica, e outros, por
exemplo, o da liberdade, como não dependendo dessa disci
plina, devendo ser relegado à filosofia? Sua resposta é clara:
pura e simplesmente porque há questões que podem ser sufi
cientemente delimitadas para darem lugar a uma solução por
meio da experiência e do cálculo; além disso, porque as solu
ções assim obtidas são susceptíveis de estabe1ecer o acordo geral
dos pesquisadores ou, em caso de desacordo momentâneo, de
dar lugar a controles intersubjetivos ou a verificações experi
mentais, até que seja possível um acordo posterior.
Por outro lado, insiste Piaget, se o problema da liberdade
não interessa, pelo menos por enquanto, à ciência, evidente
mente não é por causa de sua natureza (fenômeno ou "essên
cia" ) , mas porque os cientistas ainda não conseguiram desco
brir um meio de colocá-lo em termos de verificação experimen
tal ou algorítmica; ou, então, porque, pelo menos no estado
atual das coisas, as soluções que nos foram propostas ainda de
pendem de juízos de valor, de crenças e de ideologias. Ora,
muito embora devamos respeitar os juízos de valor, as crenças
e as ideologias, não podemos negar que eles são irredutíveis
uns aos outros. Isto pode constituir uma situação aceitável em
filosofia, jamais, porém, nas disciplinas propriamente cientí
ficas. Enfim, prossegue Piaget, ninguém está em condições de di
zer que o prob!ema da liberdade não interessa à ciência. Tudo o
que se pode afirmar é que a ciência, atualmente, não se ocupa
desse problema. Mas já existem certos sintomas que nos mos
tram uma possível mudança de perspectiva. E ele faz alusão
explícita ao famoso teorema de Gõdel, recentemente aplicado
56
às máquinas que simulam o trabalho do pensamento, mostran
do a analogia existente entre os problemas lógico-matemáticos
e os problemas da contingência e do determinismo.
Numa segunda aproximação, poderíamos dizer que a fron
teira entre a psicologia científica e a psicologia filosófica é um
problema puramente de método : de um lado, teríamos métodos
objetivos, do outro, métodos reflexivos, intuitivos ou especula
tivos. Se é assim, chegamos ao cerne da dificuldade própria à
psicologia que pretende atingir o estatuto de cientificidade me
diante a reivindicação do modelo de objetividade característico
do tipo de conhecimento fornecido pelos métodos das ciências
naturais. Piaget formula a dificuldade da seguinte maneira: num
domínio como o do estudo dos fatos mentais, onde deve situar
se o limite entre a objetividade e a subjetividade? Qual a fron
teira entre o método objetivo, científico, e o método intuitivo,
subjetivo e especulativo? E, apesar de reconhecer e de evocar
não somente o alcance mas também a pertinência da questão,
Piaget propõe a seguinte solução : somos freqüentemente ten
tados a crer que esta linha divisória seja devida à introspecção.
De fato, houve uma escola psicológica, o behaviorismo, que se
propôs como objetivo essencial proscrever toda e qualquer re
ferência à consciência, para ater-se única e exclusivamente ao
comportamento exterior observável. Assim, o pomo de discór
dia da psicologia científica, sobretudo no momento de seu aces
so à cientificidade, situava-se no confronto, por vezes confli
tante, entre o introspeccionismo e o behaviorismo. Ora, nem
todos os psicólogos quiseram eliminar de modo absoluto e ra
dical a introspecção. Piaget acredita ser inteiramente falsa a
crença segundo a qual a psicologia científica pretenda negar
absolutamente a consciência. Ele chega até mesmo a admitir,
em psicologia científica, certa prática controlada da introspec- .
ção. Neste sentido, tende a considerar como ultrapassado e,
por conseguinte, como já resolvido, numa espécie de síntese
satisfatória, o célebre debate entre a "psicologia introspeccio
r
nista" e a "psicologia do comportamento". A este respeito, sua
argumentação é clara:
t
57
nem na consideração do sujeito, é preciso, pois, procurá
la num ponto mais restrito, que é ainda uma questão de .
método, mas que diz respeito unicamente ao papel do
"eu" do próprio investigador. A objetividade, tal como a
entende a psicologia científica em suas tendências atuais,
não é, de forma alguma, a negligência ou a abstração da
consciência ou do sujeito, mas, isto sim, a descent�ação
relativà ao "eu" do observador.
58
r temáticas entre o normal e o patológico, entre o adulto e a
criança, bem como entre o homem e o animal, o ponto de vista
que terminou por prevalecer, na psicologia científica, foi aque
le segundo o quâl a consciência só pode realmente ser com
preendida em sua inserção no conjunto da conduta. E isto só
poderá ser levado a efeito com a utilização dos métodos de
observação e de experimentação. Desta forma, os métodos
comparativos (psicologia normal/psicologia patológica; psicolo
gia do adulto/psicologia da criança; psicologia animal/psico
logia humana) constituem um dos agentes fundamentais para
a realização efetiva da passagem de uma psicologia mais ou
menos dogmatizante e pretensamente filosófica, a uma psicolo
gia mais verdadeiramente científica.
Ora, o que podemos notar é que Piaget parece ignorar
·
59
bastante confusa. Por exemplo, na psicologia, devemos empre·
gar os métodos "redutores", inspirados nos métodos das ciên·
cias da natureza, isto é, na constituição de modelos ideais? Ou
devemos utilizar os métodos de tipo puramente matemático? Não
poderiam ser usados os métodos "compreensivos"? Par�nos
que, no caso da psicologia, seu objeto não é de natureza a re
comendar, de modo unívoco, a utilização deste ou daquele mé
todo. Métodos diferentes podem justificar-se. Ela poderá recor
rer ora à construção de "modelos", o que acarreta o emprego
de métodos matemáticos, ora à "compreensão" dos fenômenos,
isto é, a um método hermenêutico.
No entanto, Piaget afirma que a psicologia deve recorrer
apenas aos métodos de observação e de experimentação. E foi
por ter seguido esta linha de conduta, que se pôde encontrar
os três pontos que, juntos, constituem a característica essencial
das grandes tendências da psicologia contemporânea, ao pre
tender im�r-se como uma das ciências do homem:
60
toma consciência de sua existência enquanto estrutu
ras."
61
liI
BEHAVIORISMO E
INTROSPECÇÃO
O que se deve entender por "introspecção" e por método
introspectivo? Nem todos os psicólogos entendem da mesma
forma o que vem a ser a introspecção. Limitemo-nos, por en
quanto, a dizer que a introspecção consiste numa observação
feita pelo psicólogo sobre os fatos de sua própria vida mental,
quer dizer, sobre aquilo que se passa ou se produz no interior
de sua própria consciência. Em contrapartida, vamos caracteri
zar o bchaviorismo estrito, mostrando apenas suas idéias essen
ciais. Começaremos por uma rápida apresentação da teoria in
trospectiva, tal como ela fol sistematizada por Henri Bergson.
Em seguida, daremos algumas indicações sobre a teoria refle
xológica, pois ela está na base do behaviorismo em psicologia.
Finalmente, veremos como a doutrina psicológica de Comte
influenciou o behaviorismo posterior.
1. A PSICOLOGIA INTROSPECTIVA
65
trar que tal experiência mutilava a realidade que se pretendia
estudar.
A reivindicação de Bergson foi logo tachada de reação
sentimental, pois pretendia substituir as pesquisas cujo desen
volvimento só poderia ser assegurado pela "observação" obje
tiva e pela experimentação, por intuições inverificáveis e subje
tivas. Semelhante oposição de princípio confirma o condiciona
mento das pesquisas por pressupostos de ordem filosófica. en
gajandQ uma concepção geral do homem. Sem entrarmos aqui
nos detalhes do debate, observemos que a introspecção, enten
dida como fonte de revelação pela consciência, é capaz de for
necer vários elementos. No entanto, para Bergson, o elemento
fundamental é aquilo que ele chama de duração pura. Esta
duração (durée) se revela ao investigador dos "dados imedia
tos da consciência" como a realidade por excelência.
Em seu Ensaio sobre os dados imediatos da consciência
( 1 889 ) , Bergson visa a denunciar a ilusão que funda, a seus
olhos, o determinismo psicológico : considerar os estados de
consciência como unidades distintas, como espécies de átomos
psíquicos regidos por leis associativas. E aquilo· que revelam
os "dados imediatos da consciência", é a realidade móvel da
"duração pura" ou o tempo vivido, fusão daquilo que se pode
chamar de estados de consciência. Não se trata de elementos
quantitativos, mas de uma continuidade cuja aparente multi
plicidade é inteiramente qualitativa. Trata-se de momentos he
terogêneos que se penetram, se misturam e se organizam, de
tal forma que não se pode dizer se são um ou vários : quando
apreendidos quantitativamente, são desnaturados. Semelhante
descoberta leva Bergson a opor romanticamente ao eu exterior
e social, um eu profundo, cujas manifestações atestariam a
l iberdade humana.
O ponto central do pensamento de Bergson é a radical
distinção que ele estabelece entre duração e espacialidade. O
corolário desta distinção é a que ele estabelece entre a inteli
gência, que só consegue representar o descontínuo, e o instinto.
:e. a oposição entre inteligência e instinto que funda seu intuiti
vismo. O instinto, para ele, apreende o real "de dentro", por
um conhecimento vivido, e não representado. O instinto se tor
na, no homem, fonte de conhecimento. E ao tornar-se cons-
••
66
ciente de si mesmo, ele se transforma em intuição. O instinto,
'
.:
faculdade de utilizar e de construir instrumentos organizados,
'
. •
permanece prisioneiro da pré-adaptação que o constitui. A in
teligencia, por sua vez, faculdade de fabricar e de empregar
instrumentos não organizados, abre o caminho a uma auto
adaptação indefinida. O instinto está em continuidade com a
vida. Ele seria capaz de compreender, caso fosse capaz de co
nhecimento reflexivo. A inteligência é apta a tal conhecimento,
mas é naturalmente orientada para a matéria, para a fabrica
ção técnica, para a análise científica que é como que uma
manipulação mental dos objetos.
Não cabe aqui uma análise mais profunda do introspeccio
nismo de Bergson. Salientemos, contudo, que a "revolução"
metodológica por ele promovida apareceu, há muito, como
um bandeira libertária dentro do clima positivista reinante na
psicologia da época. A influência de Bergson foi grande em
vários domínios: artístico, literário, científico e político. Pierre
Janet, num congresso de psicologia realizado em Paris, em
1937, declarava:
67
2. REFLBXOLOGIA E BEHAVIORISMO
68
não continuam a ser mantidos por uma reintrodução passagei
ra do estímulo natural (a carne ) . Na ausência desse estímulo,
aumenta o tempo de reação, e diminui progressivamente a se
creção salivar. Produz-se, então, aquilo que Pavlov chama de
''inibição interna": tendência do reflexo condicionado a desa
parecer. Entretanto, para que tais experiênéias possam ter bom
resultado, é preciso que se criem condições particulares de iso
lamento. Pavlov constatou que, se ó animal fosse bruscamente
"perturbado" pela chegada repentina de um estranho, uma "ini
bição externa" viria comprometer o bo� andamento da expe
riência. Ademais, surpresas imprevisíveis também podem inter
vir. :S o caso da náusea provocada no cão pelo simples fato de
ele ver o experimentador. Também é o caso do "reflexo de
defesa" que pode produzir-se quando um cão, estimulado por
uma corrente elétrica demasiado violenta, late ou tenta morder.
Por outro lado, da constatação de que a completa ablação do
córtex do cão implicava no desaparecimento dos reflexos con
dicionados, Pavlov conclui que seu mecanismo depende intei
ramente da função cortical. A experimentação era feita unica
mente nos animais. Em matéria de condicionamento, ela é muito
mais limitada nos. seres humanos. No entanto, é possível de ser
feita. E foi o que tentou fazer J. B. Watson, o primeiro repre
sentante americano do behaviorismo propriamente dito.
A doutrina behaviorista consolidou-se sobretudo a partir
do famoso artigo de Watson ( 1849-1936) intitul ado Psycho
logy as the Behaviorist views it ( 191 3 ) . Este artigo apresen
tou-se, antes de tudo, como tomada de posição radical contra
·. . toda e qualquer psicologia que pensasse poder utilizar a in..:
trospecção e pressupusesse a existência da consciência como
sendo o objeto de estudo da psicologia. Segundo Watson, E. B.
Titchener e W. James foram os dois mais ilustres representan
tes da psicoiogia introspeccionista no início do século XX.
Ambos acreditavam ser "a consciincia o domínio da psicolo
gia". O behaviorismo, ao contrário, pretende que o domínio tia
psicologia seja única e exclusivamente o comportamento huma
no. Ademais, estima que a consciência não é um conceito nem
�
definido nem tampouco, inteligível. E é por isso que o beha
viorismo, que se propõe estudar experimentalmente � compor-
69
tamento humano, considera que a crença na existência da cons
ciência nos remete aos velhos tempos da superstição e da ma
gia.
Qual o conteúdo do termo "consciência"? O que ele sig
nifica? Para um psicólogo behaviorista, "comportamento" é
tudo aquilo que um organismo vivo, animal ou humano, faz e
diz em determinada situação; e que se toma, assim, susceptível
de ser observado a partir do exterior. Desta forma, há uma pro
funda semelhança entre a idéia ce observação do comporta
mento e a idéia de observação na ciência física. A observação
do comportamento é objetiva da mesma forma e no mesmo
sentido como é objetiva a observação, na física, daquilo que
se passa num sistema material qualquer.
Foi levando isso em conta que Paul Guillaume achou por
bem instaurar, para a psicologia, um "método objetivo puro"
visando ao estudo behaviorista do comportamento. Para ele,
os métodos objetivos devem estudar o comportamento, mas o
comportamento relacionado com a situação em que ele é pro
duzidv. Os termos dessa definição devem ser tomados em sen
tido puramente objetivo. Trata-se de fatos físicos. O observa
dor se situa, aqui, do ponto de vista do físico. Naturalmente,
o fato psicológico deve ser definido de modo novo. Não é mais
o estado de consciência pessoal, mas a relação do comportamen
to com a situação que o engendra. Esta relação pode ser estu
dada tanto nos ·outros quanto em nós mesmos. P. Guillaume
não se pergunta sobre a possibilidade desse método. Está con
vencido de que não somente podemos, como também devemos
estudar as leis do comportamento humano e animal dá mesma
forma como estudamos as leis do comportamento físico-quími
co de um corpo qualquer (lntroduction à la Psychologie, 1942 ) .
Por conseguinte, conferir à psicologia o comportamento
(animal ou humano) como domínio de investigação próprio, é
o mesmo que tentar "fisicalizar" ao máximo o objeto dessa dis
ciplina. Mas esta fisicalização também pode significar, no caso
da psicologia, a decisão epistemológica de limitar absoluta
mente o observável, autorizado pela ciência do exterior, por
observadores distintos daquele que pratica o ato a ser observa
do. Segundo a regra behaviorista, podemos estudar o compor
tamento de outrem ou o nosso. O estado de consciência, en-
70
quanto tal, permanece um domínio "privado" : somente aquele .
que o vive pode observá-lo; ele só é acessív�l à pessoa singu
lar, cuja observação permanece "subjetiva". O comportamento,
pelo contrário, pertence ao domínio "público": qualquer um
pode, em princípio, observá-lo. E é por isso que ele se torna
objeto de ciência. Não é observado por um sujeito "egocêntri
co" ou "psicológico", mas por um sujeito "epistêmico". A ob
,
servação direta do comportamento é algo comum a vários ob
servadores. Desta forma, podemos chegar diretamente a esta "in
tersubjetividade" ou a este "controle intersubjetivo" que é a
condição natural, fundamental e sine qua non de toda objetivi
dade científica em psicologia. Assim, ao reduzir o objeto da psi
co!ogia ae comportamento humano externo, o behaviorismo
não tem em mira outra coisa senão alcançar esta forma indis
cutida da objetividade científica que já demonstrou sua validez
e sua eficácia no domínio das ciências físicas, biológicas e quí
micas.
Segundo esta perspectiva, podemos perguntar: como é que
a psicologia behaviorista pensa o comportamento? A resposta
a esta questão não parece difícil. Para o behaviorismo, o com
portamento é pura e simplesmente uma reação ou resposta do
"sujeito" observado (homem ou animal) à situação na qual
ele se encontra. Em outros termos, o behaviorismo pensa o
comportamento como uma resposta do sujeito observado a�
estímulo que age sobre ele. Neste sentido, o fato psicológico
pode ser reduzido a este tipo de relação funcional entre o estf
mulo agindo sobre o sujeito, cujo comportamento é observado,
� a resposta dada por este sujeito. :e exatamente o que �xprime
o clássico esquema fundamental S +- R da psicologia beha
viorista. ..t\ caracterização objetiva da situação na qual se en
contra o sujeito observado permite que se defina o estímulo
S; a descrição objetiva do comportamento observado é, por sua
vez, a definição da resposta R. O estudo do comportamento
consistirá, pois, em fazer variar o estímulo S e em observar, a
cada vez, qual a resposta R dadà ao estímulo S. Cai-se, assim,
no clássico méto.do das "variações concomitantes". O sujei•o,
cujo comportamento é observado, constitui, por assim dizer, o
"operador" desta ligação funcional entre o estímulo e a respos
ta. Ele pode :ser considerado como uma espécie de "aparelho",
71
cujo papel é o de transformar um dado de entrada (o estímu
lo) em um dado de saída (a resposta) . Figurativamente, o es
quema é o seguinte:
72
.B bem verdade que o positivismo de Skinner perdeu a in
genuidade do positivismo clássico. Este consistia essencialmen
te em lidar única e exclusivamente com os fatos observáveis, a
fim de estabelecer entre eles relações repetiveis. O positivismo
contemporâneo, em psicologia, não tem mais receio de ultra
passar o nível dos fatos observáveis ou das "leis" através de
uma investigação das explicações ou da elaboração de teorias
interpretativas. Aliás, a psicologia científica contemporânea re
conhece vários tipos de leis e diversas maneiras de enunciá-las,
de tal forma que o trabalho científico, em psicologia, pode ser
considerado como uma passagem contínua da procura das leis
às hipóteses explicativas. Os psicólogos que reivindicam para
sua disciplina um estatuto puramente descritivo, e que excluem
sistematicamente a explicação propriamente dita, são positivis
tas estritos que temem que, sob o pretexto explicativo, seja rein
troduzido em psicologia o "homem interior". .B o caso de
Skinner. Este autor, por exemplo, coloca problemas precisos
d e aprendizagem em psicologia animal e humana. Todavia, ao
pretender enunciar apenas os dados certos, ele limita metodo
logicamente suas análises apenas a dois tipos de fatos obser
váveis : de um lado, aos in puts ou estímulos apresentados ao
sujeito, do outro, aos out puts ou respostas verificáveis e men
suráveis que se lhes seguem. Entre os dois, situa-se o organismo
(ou aparelho) , com to.das as suas variáveis intermediárias psico
lógicas ou mentais. Contudo, Skinner ignora peremptoriamente
essas variáveis. E compara este organismo a uma "caixa negra"
onde é possível apenas o estabelecimento de relações entre os
in puts e os out puts, sem que nada se possa saber quanto àqui
lo que se passa no Ín:terior do organismo.
Bem entendido, uma das primeiras interdições desta ati
tude do psicólogo, faée ao sujeito cujo comportamento ele estu
da, consiste em eliminar do sujeito tudo o que se assemelha à
consciência. Do ponto de vista da psicologia do comportamen
to, a atitudedo psicólogo introspeccionista, de interpretar o
comportamento como uma manipulação exterior da vida psíqui
ca, de uma consciência presente a ele e para ele, não passa
·
73
talistas, pois nada tem a ver com eles. Para se tornar verda
deiramente ciência, a psicologia deve abster-se por completo
de todo e qualquer ato mental. Trata-se, para ela, de operar,
desde o início, esta ascese radical. Mas isto não quer absolu
tamente dizer que a psicologia do comportamento fique pri
vada dos meios de desenvolver-se e de organizar-se. Mais ou
menos no instante em que sua idéia toma corpo e começa a
impor-se como atitude sistemática, a psicologia do comporta
mento vai descobrir na teoria de Pavlov, como j á vimos, um
poderoso auxiliar. Ela passa, então, a apoiar-se no estudo do
reflexo animal, bem como no estudo da possibilidade de pas..:
sar do reflexo espontâneo aos reflexos condicionados no tér
mino daquilo que se apresenta, então, como uma espécie de
educação do comportamento.
Ora, a idéia de reflexo condicionado é bastante geral.
Ela foi elaborada, inicialmente, para se aplicar ao estudo dos
funcionamentos fisiológicos elementares do organismo animal.
Por exemplo, podemos estudar, até mesmo em animais dece
rebralizados ou em músculos convenientemente preparados,
as contrações musculares que constituem respostas do músculo
a diversos estímulos : picadas, contato elétrico, etc., aplicados
ao órgão receptor. Donde o esquema do arco reflexo em psi
cologia nervosa:
óRGÃO
, CENTRAL
óRGÃO óRGÃO
RECEPTOR EFETUADOR :4
ESTIMULO RESPOSTA
74
Este esquema é análogo ao esquema do APARELHO que
transforma um dado de entrada (in put) em um dado de saída
(out put) . Em outros termos, há modelos fisiológicos do com
portamento. E são eles que possibilitam a identificação daqui
lo que chamamos de psicologia do comportamento com um
ramo mais especializado e diferenciado de uma ciência geral
�o comportamento animal. A psicologia intervém especial
mente no momento em que tomamos o organismo como um
todo e sua relação com as situações criadas para ele por um
meio ambiente, e no momento em que estudamos os compor
tamentos que se mostram susceptíveis de aprendizagem (o per
curso de um labirinto efetuado corretamente por um rato, no
momento em que apresenta o comportamento "busca de co
mida") e de substituições do estímulo inicial por outros estí
mulos.
A partir de Watson, que estabeleceu as primeiras bases
conceituais da psicologia do comportamento, esta disciplina
desenvolveu-se considerave'mente. E é verdade que tal desen
volvimento se empenhou bastante para reforçar a convicção
segundo a qual a psicologia era ou poderia ser uma disciplina
verdadeiramente científica. Neste processo de aceder à cienti
ficidade, a psicologia observava, desde o início, os cânones
metodológicos que forneciam seu caráter científico inconteste
às outras ciências, tais como a física, a fisiologia e a biologia
dt' século XIX. Assim, a psicologia nasceu e se desenvolveu
sob a proteção do método experimental adotado pelas ciên
cias naturais. Este método era, para ela, a garantia mais segu
ra da objetividade de seu conhecimento. Todavia, de fato -
e como podem revelar-nos as epistemologias da psicologia que
tentam dar certo lugar à consciência e ao fato psíquico -, o
problema da psicologia está- longe de ter sido inteiramente re
solvido pela decisão behaviorista e, menos ainda, por um sim
ples propósito de estrita observância à sua regra inicial de
método.
Para termos uma idéia mais clara sobre a situação real
da psicologia diante da decisão behaviorista, talvez seja ins
trutivo remontarmos à doutrina de Comte sobre a psicologia.
Este retomo a Comte é importante, pois a psicologia se viu
às voltas, na primeira metade do século passado, com o "veto
75
positivista" a toda tentativa de constituição de uma psicologia
científica. O programa positivista de 1 826-1 830 exclui ra.di·
calmente a psicologia da ordem das ciências. Comte não esbo
ça projeto algum, nem propõe método algum para assegurar
aos "fatos psíquicos" um estatuto positivo comparável ao es
tatuto que pretende atribuir aos fatos sociais, irredutíveis aos
fatos. biológicos.
3. DE COMTE AO BEHAVIORJSMO
76
quer psicologia enquanto disciplina intelectual específica e in
dependente. E não se pode negar que este fato j á constitui
elemento bastante sério para revelar a existência de um pro
blema epistemológico profundo. E este elemento é tanto mais
significativo quanto, relativamente à sociologia, por exemplo,
todo o empenho de Comte foi o de constituí-Ia como verdp.,..
deira ciência, realmente positiva, e coroando todo o edifício
do saber positivo desenvolvido segundo uma série linear de
etapas : os níveis da complexidade crescente do objeto cientí
fico, da idealidade matemática ao fato social humano, passan
do pelas ciências da natureza física e biológica. No entanto, o
que levou Comte a proscrever por completo a psicologia? Não
teria ele eliminado apenas a introspecção, fazendo com que
esta desse lugar às funções mentais, cujo estudo participa ao
mesmo tempo da biologia e da sociologia?
À primeira vista, o problema da proscrição da psicologia
parece simples. Por "psicologia", Comte entende esta discipli
na herdeira, a seu modo, a psychologia rationalis. Em outras
palavras, uma "filosofia do espírito" à maneira de Hegel. :e
esta psicologia, considerada como metafísica, que deve ser
eliminada como vestígio do estado metafísico do pensamento
humano. Ela não tem mais o direito à existência, de uma vez
que o pensamento humano se estabeleceu no estado positivo.
Por outro lado, mais do que a sobrevivência do estado metafí
sico, a psicologia é mantenedora do estado teológico do pensa
mento. Por isso, aos olhos de Comte, ela não passa de uma
teologia que não ousa dizer seu nome. Assim, na primeira
lição do Curso de filosofia positiva, Comte afirma categorica
mente que, de forma alguma, "há lugar para esta psicologia
ilusória, última transformação da teologia - que se tenta de
modo absolutamente vão reanimar hoje em dia - e que, sem
se preocupar com o estudo fisiológico de nossos órgãos intelec
tuais, nem com a observação dos procedimentos racionais que
dirigem efetivamente nossas diversas pesquisas científicas, pre
tende chegar à descoberta das leis fundamentais do espírito hu
mano, contemplando-o em si mesmo".
Por sua vez, a quadragésima quinta lição do Curso é de
dicada a eliminar a pretensão da psico�ogia de constituir-se
como disciplina específica e autônoma. Comte vê nessa pre-
77
tensão uma conseqüência direta da iniciativa cartesiana e de
seu sistema dual!sta, distinguipdo ainda a ordem geral, da
Natureza material, e o universo dos corpos, do fato exclusiva
mente humano da alma, o psiquismo e a faculdade racional sen
do características exclusivas do homem. Ora, segundo Comte,
a solução cartesiana, recusando toda continuidade e assimila
ção do animal ao homem, é insustentável, pois os fisiologistas
e os naturalistas já destruíram a vã separação estabe1ecida por
Descartes entre o estudo do homem e o estudo dos animais. E,
com isto, ficou eliminada toda filosofia teológica ou metafísi
ca, pelo menos entre os homens mais inteligentes e cultos.
Portanto, para Comte, a eliminação da psicologia repre
senta o fim da era teológica e de suas sobrevivências metafí
sicas, sobretudo num momento em que se trata de instaurar o
sistema positivo das ciências. Depois de Descartes, a psicolo
gia tornara-se o principal conhecimento humano, constituindo
objeto de litígio entre o espírito científico e a pretensão teoló
gico-metafísica dos filósofos. Agora, porém, parece que este
grande processo filosófico já foi irrevogavelmente julgado, e
os metafísicos passaram do estado de dominação de que des
frutavam, ao simples estado de protesto, pelo menos no in
terior do mundo científico.
No fundo, ao reduzir a psicologia empírica de seu tempo
a uma simples fisiologia animal, Comte tinha em vista recusar
·a pretensa observação interna ou introspecção. Na verdade, sua
tese fundamental, a esse respeito, consiste: de um lado, em
eliminar radicalmente toda psico!ogia "metafísica"; do outro,
em repatriar a: psico!ogia "empírica" para o seio da psicologia
animal. Mas o que justifica esta posição? A razão parece con
sistir no desconhecimento, por parte de Comte, do substrato
orgânico ;daquilo que a psicologia metafísica pretende conhecer
por seus métodos próprios. Melhor ainda, trata-se de uma crí
tica· impiedosa ao método de observação interna, isto é, ao mé I
·:
todo introspectivo. De há muito, diz Comte, os metafísicos, en
tregues ao estudo de nossa inteligência, só conseguiram suavi
zar a decadência de sua pretensa ciência, tentando apresentar
sua doutrina como sendo fundada sobre a observação dos fa
tos. Para atingirem tal objetivo, imaginaram a distinção entre
dois tipos de observação de igual importância : um exterior,
78
outro interior. A observação interior estudaria os fenômenos
intelectuais. Ora, constata Comte, esta pretensa contemplação
direta do espírito, por ele mesmo, não passa de pura ilusão:
79
tafisicos", quanto pode ser tachada de ambígüa e inconseqüen
te pelos psicólogos "empiristas". O behaviorismo, ao contrá
rio, pelo menos aparentemente, apresenta-se como uma dou
trina clara e conseqüente consigo mesma. Em relação à intros
pecção, toma uma posição bem mais radical do que a do pró
prio Comte, como veremos.
80
compreendiam muito bem a significação do "veto positivista"
interditando categoricamente a constituição de uma psicolo
gia fundada sobre a observação interna. Dois autores ilustram
bem esse período da psicologia pós-comtiana e anterior ao sur
gimento do behaviorismo propriamente dito: Ribot e Binet.
Em 1 870, Ribot publica sua Psicologia inglesa contempo
rdnea, tentando justificar a constituição da psicologia como
ciência independente e categoricamente diferenciada da filoso
fia. Ele distinguia, na psicologia, fatos de natureza especial, di
fíceis de serem observados e clarificados, mas que constituíam
a parte mais sólida e indiscutível da nova ciência. Segundo Ri
bot, uma ciência independente só se constitui quando passa
a estudar esses fatos. E a psicologia se reduz a esse tipo de
estudo. Tudo o mais pertence ao domínio da filosofia, enten
dida como disciplina extracientífica. Assim, a psicologia será
constituída dos fatos psicológicos ou fenômenos psíquicos em
geral.
Quanto ao método a ser empregado pela psicologia, Ri
bot diz que ele consiste na reflexão e na observação interior.
A observação interior é o ponto de partida, pois é a condição
indispensável para todo e qualquer tipo de psicologia. Con
trariamente, pois, a Comte e aos fisiologistas, Ribot acredita
que, em psicologia, nada pode substituir o testemunho da
consciência. Todavia, admitindo que o princípio epistemológi
co da psicologia é a observação interior e o testemunho da cons
ciência, ele reconhece a insuficiência da observação interna,
pois a reflexão, por si só, é absolutamente incapaz de nos fa
zer penetrar no espírito de outrem. Donde a necessidade de
se fazer apelo à observação exterior, à percepção de sinais e
de gestos, à interpretação desses sinais, à indução dos efeitos
às causa�, à inferência e ao raciocínio por analogia. Por isso,
o método da psicologia deverá ser ao mesmo tempo subjetivo
e objetivo. Trata-:>e de dois aspectos complementares de um
mesmo método: o subjetivo procede por análise, o objetivo,
por síntese; o interior é mais necessário, pois, sem ele, não po
demos saber de que estamos falando ; o exterior é mais fecun
do, pois seu campo de investigação é quase ilimitado.
Finalmente, o método concreto da psicologia científica,
tal como Ribot o concebe, é uma psicologia da observação do
81
comportamento exterior do homem ou do animal, mas inter
pretada à luz da observação interna e introspectiva do fato men
tal, que fornece ao psicólogo o princípio e os meios de sua
interpretação. Assim, Ribot se apresenta como o psicólogo por
excelência ;do comportamento interpretado como manifestação
do fato mental e das disposições psíquicas, remontando dos efei
tos materialmente observados às causas propriamente psíqui
cas. O psicólogo elabora um discurso dessas causas, não enquanto
metafísico, mas enquanto naturalista do espírito. Contudo, per
manece ainda não resolvido o problema epistemológico da psi
cologia. Binet tenta resolvê-lo através da mediação da lingua
gem e de seu papel em psicologia.
Binet se situa neste período intermediário entre o pro
grama positivista de Comte e o manifesto behaviorista de Wat
son. Err.. 1 894, ele publica uma Introdução d psicologia t!xpe
rimental. Nesta obra, ele dá grande destaque aos problemas
metodoiógicos da psicologia. Reconhece o quanto é difícil de
marcar a psicologia propriamente dita da fisiologia do siste
ma nervoso. No entanto, ele tenta desfazer essa çonfusão.
Define a introspecção como o ato pelo qual percebemos direta
mente aquilo que se passa em nós: nossos pensamentos, nossas
emoções, etc. A introspecção está na base da psicologia. Esta
se distingue da fisiologia do sistema nervoso pelo uso que faz
da introspecção.
A posição metodológica de Binet coincide com a de Ribot.
O que ele acrescenta é a idéia segundo. a qual o estudo psico
lógico deve ser feito através de questionários metodicamente
elaborados. Trata-se de uma primeira amostragem de estudo
psicológico mais ou menos experimental, através de testes apli
cados a uma determinada população de indivíduos. Ao tratar
dos questionários, Binet faz uma distinção entre a introspecção
pessoal ( introspecção do psicólogo, tomando a si mesmo como
único ponto de referência, no momento de passar à teoria) e a
introspecção comparada, consistindo em esclarecer, uns pelos
outros, os relatórios de introspecção feitos por outros indiví
duos, em resposta a questionários metodicamente elaborados :
pesquisas, por exemplo, sobre a memória visual o u musical.
Em seguida, Binet reconhece três modos de observação em
psicologia :
82
a) a observação enquanto ação pessoal de introspecção,
visando ao vivido mental próprio: introspecção pessoal;
b) a observação exterior dos comportamentos ou con
dutas de técnicas interpretadas por referência aos conhecimen
tos adquiridos em dependência de atos pessoais de auto-obser�
vação : uso interpretativo da introspecção pessoal;
c) a observação consistindo em tomar conhecimento de
relatórios feitos por terceiros de suas observações introspecti
vas espontâneas ou programadas por questionários: introspec
ção comparada.
Segundo Binet, é com esta última introspecção, também cha
mada de coletiva, que intervém, na epistemologia da psicologia,
graças à linguagem, um elemento específico : a expressão huma
na. A linguagem, enquanto expressão dos estados mentais, sem
pre desempenhou um papel importante ao se tratar de fornecer
ao estudo feito pelo psic61ogo um material de informação e de
conhecimentos de base. Na medida em que observa os seres
humanos, o psicólogo observa seres que, não somente executam
gestos ou tomam atitudes, mas seres . que falam e escrevem .
Assim, ao refletir sobre seu método de observação, a psicolo
gia com pretensões científicas precisa explicitar, como uma cir
cunstância importante de seu método, a atenção conferida de
modo metódico aos dizeres do sujeito : palavras ou coisas es
critas.
Foi somente depois de Binet que tal circunstância do mé
todo psicológico conseguiu aceder a um certo estatuto cien
tífico, com a prátiOfl dos relatórios comparados de introspec
ções individuais ou das respostas aos questionários sistemati
camente organizados. Ele tabula, assim, não som�nte aquilo
que o sujeito humano exprime servindo-se de sua linguagem
falada ou escrita, mas também o conjunto das tarefas inteligen
tes que ele executa com maior ou menor êxito. Ao retomar ao
psicólogo inglês Catell a idéia do mental test (provas impostas
a um sujeito para a compreensão desta ou daquela aptidão
mais ou menos elementar) , Binet começa a organizar sistemati
camente a prática desse teste em escolares, a fim de estudar
os conjuntos complexos de suas aptidões mentais : seu grau de
desenvolvimento, sua "idade mental", etc.
83
O sistema de testes, chamado de Binet-Simon, destinado
à avaliação do grau da inteligência e da idade mental dos esco
lares, continua ainda, até hoje, a ser praticado. Binet divulgou
o primeiro conjunto de resultados da prática de seu método
em 1 903, em sua obra intitulada O Estudo experimental da
inteligência. Com este estudo, ele contraria frontalmente as in
terdições comtianas e devolve à psicologia a possibilidade de
observar as funções intelectuais. Recoloca-se, assim, de modo
novo, o problema epistemológico da psicolQgia, pois o que está
em jogo é a aplicação dos métodos experimentais ao estudo das
funções superiores do espírito humano.
Como vimos, Binet não limita seu estudo ao problema da
introspecção. Ele também se interessa pela questão da media
ção expressiva do próprio fato mental, quer dizer, pela questão
da linguagem. Aliás, como veremos, a psicologia do comporta
mento não escapa por completo a essa questão da linguagem
e do papel que ela desempenha no sistema da observação psi
cológica. E isto, mesmo que tal psicologia tente definir-se ex
cluindo todo apelo à introspecção e toda referência à cons
ciência. Porque, ao definir o comportamento (resposta de um
sujeito animal ou humano a um estímulo exterior) , ela inclui
nele tudo o que é objetivamente observável: aquilo que o su
jeito observado faz, mas também aquilo que ele diz numa si
tuação em que a função-estímulo pode comportar a interven
ção de coisas ditas ou o dado de certas "informações" através
de um sistema qualquer de sinais. De sorte que a psicologia
do comportamento também encerra uma ambigüidade episte·
mológica. Ela se deve à intervenção da linguagem na observa·
ção ou na experimentação psico!ógicas. A análise dessa ambi
güidade nos levaria longe demais, e estaria fora de nosso pro
pósito. Limitemo-nos a afirmar que tal ambigüidiide recoloca,
como não resolvida, a questão epistemológica da psicologia.
Neste ponto de nossa análise, retomemos ao behavioris
mo, mas para compreendermos mais profundamente sua inten
ção metodológica central. Aliás, trata-se de uma dupla inten·
ção. Em primeiro lugar, o behaviorismo visa à proscrição ab
soluta, radical, sem ambigüidade nem compromisso, de todo
uso da observação interna e de todo apelo direto ou indireto
84
ao conhecimento fornecido por ela. No nível da psicologia be
haviorista, a observação interna simplesmente não existe : é
puramente uma atitude pré-científica, vinculada aos desvarios
mentais da consciência mágica. Em segundo lugar, o behavio
rismo condena todas as psicologias pseudocientíficas que vão
de Comte a Watson : as de Wundt, Ribot, Binet, etc.
Evidentemente, como já dissemos, o behaviorismo evoluiu
muito depois de Watson. O sociólogo americano Paul Lazan
feld, num artigo publicado em 1966 e intitulado "Observações
históricas sobre a formação e a medida dos conceitos nas ciên
cias do comportamento" (incluído na obra La philosophie des
sciences sociales, tradução francesa, 1970) , mostra que, ao
mesmo tempo que a psicologia behaviorista pretendia ser a
ciência do comportamento individual do animal ou do homem,
a sociologia pretendia ser a ciência do comportamento cole
tivo. "A partir de 1925, diz ele, os bebavioristas puseram-se
a negar que a introspecção ocupasse qualquer lugar em psico
logia. O estudo da natureza humana s6 poderia ser científico
na medida em que eliminasse a noção de subjetividade e ado
tasse os métodos da psicologia animal . . No entanto, o beba
•
85
,
\
86
samento do psicólogo de hoje surge depois da análise episte
mológica que o behaviorismo foi obrigado a aceitar.
Não cabe aqui uma análise de toda a evolução do beha
viorismo, sobretudo de sua passagem de sua atitude meramen
te descritiva dos "fatos observáveis" à admissão das "explica
ções". O que importa ressaltarmos é que a tentativa behavio
rista pretendeu proscrever radicalmente a entidade "consciên
cia". Tudo deveria se passar, epistemologicamente, como se o
psicólogo observador não devesse ter nenhuma consciência de
si, mas somente um conhecimento de objetos exteriores, apre
sentando-se no espaço "público" da observação física. Quanto
ao sujeito observado pelo psicólogo observador, nada poderia
ser afirmado a seu respeito, no nível da observação, por inter
pretação psicológica daquilo que ele fornece materialmente à
observação : nem consciência e vida mental, nem, tampouco,
conhecimento do mundo exterior dos · objetos físicos. Neste sen
tido, o psicólogo, tomado em todo o seu rigor behaviorista,
estaria num ato solipsista e sem consciência de si, de um conhe
cimento inteiramente voltado para o mundo exterior dos objetqs
físicos e das máquinas. Isto implica, de modo mais ou menos
implícito, uma tese sobre a linguagem.
Com efeito, na perspectiva própria ao psicólogo observa
dor, suas ações de linguagem exprimem os conhecimentos que
ele pode ter das diversas determinações de sua atividade cog
nitiva. Todavia, relativamente aos sujeitos que a observam, a
linguagem não passa da materialidade de excitantes físicos ou
de comportamentos materiais. Ela não deve ser tomada como
expressão de uma atualidade psíquica, permitindo a outros in
divíduos representá-la de modo interpretativo. Aplicada ao su
jeito observado, a linguagem é um estímulo material; prove
niente dele, ela é uma resposta material ao estímulo que lhe foi
aplicado. Em outros termos, no nível epistemológico em que
procura estabelecer-se, o behaviorismo recusa radicalmente o
princípio cartesiano do conhecimento, através da palavra hu
mana, de qualquer tipo de "alma racional" no indivíduo hu
mano observado. :e bem verdade que, na prática cotidiana, nem
todos os behavioristas vêem as coisas de modo tão óbvio e sim
ples assim. Em suma, para o behaviorismo, é impossível a
87
existência, tanto de uma psicologia da introspecção, quanto
de uma psicologia da observação exterior imediatamente in
terpretada. O esquema positivo estímulo-resposta (S -+ R) da
observação-experimentação, em que pesem os desacordos de
certos psicólogos de tendência mais explicativa e interpretati
va, deve ser tomado em seu sentido estritamente positivo entre
dados materialmente observáveis: toda interpretação "psicoló
gica" das condutas e dos atos de palavra deve ser excluída de
modo sistemático.
Ora, relativamente à intervenção da linguagem (sistema
de expressão) , a posição behaviorista parece tão radical e tão
paradoxal quanto insustentável. No entanto, ela está de acordo
com aquilo que as ciências da linguagem evidenciam na mes
ma época: a possibilidade geral de se distinguir na palavra, de
um lado, a construção material da entidade material, a coisa
sonora, audível, escrita e visível : o significante com sua cons
tituição material e sua ''sintaxe" bruta; do outro, a determi
nação de vida mental tendo por veículo e como expressão, de
modo mais ou menos regular, o significado, que fornece senti
do à palavra e ao seu princípio, a língua.
Mais ou menos na mesma época em que começa a se afir
mar o behaviorismo, Ferdinand de Saussure já havia ministra
do um curso de lingüística. "Mentalista" em psicologia, Saus
sure procurava na introspecção pelo menos uma parte da jus
tificação de suas concepções em matéria de lingüística. Por
outro lado, também foi ele quem ensinou a necessidade de se
estabelecer, a propósito da linguagem, a seguinte distribuição
epistemológica: de um lado, o significante, sua materialidade
objetiva e sua construção sintática; do outro, o significado,
determinação da atualidade mental percebida como expressa
ou expressando-se na linguagem, e conferindo sentido e valor
semântico à materialidade bruta da expressão. Depois de Saus
sure, a distinção significante-significado, ou sintaxe-semântica,
passou a desempenhar um papel fundamental na teoria da lin
guagem. Ela preparou, assim, o surgimento dessa corrente de
pensamento hoje denominada "estruturalismo". Trata-se de uma
atitude determinada pe!o princípio da observação objetiva do
dado lingüístico material, com uma "colocação entre parênte-
88
ses" de sua dimensão semântica, a fim de só considerar as
estruturas sintáticas deste dado lingüístico e das relações obje
tivamente definíveis entre as estruturas sintáticas presentes aqui
e ali por estes ou aqueles dados lingüísticos materiais.
Torna-se, assim, patente que esta posição se coaduna na�
turalmente com a doutrina behaviorista. O behaviorismo, com
efeito, reduz a própria linguagem a não ser outra coisa, do
ponto de \ista epistemológico, senão um simples comporta
mento entre outros. Ele coloca entre parênteses a referência,
espontaneamente admitida pelo senso comum, do significante
lingüístico ao seu significado mental ; e só conserva dessa re
ferência a materialidade e o modo material de construção. E é
por causa da especificidade própria desse modo material de
construção que as palavras podem ser consideradas como estí
mulos a sujeitos reduzidos ao papel de receptores desses estí
mulos, isto é, capazes de reagir à especificidade da constituição
sintática do estímulo. Quanto à resposta do sujeito, se ela con
siste em palavras emitidas, pode ser considerada como a sim
ples a';ãO de construir a imaterialidade deste objeto lingüístico,
segundo certas regras sintáticas, isto é, de construção material.
Da palavra-estímulo à palavra-resposta, é colocado fora de
circuito epistemológico tudo aquilo que se refere ao significado,
ao sentido, à vida mental constituindo-se como princípio de
significação e de sentido. E é precisamente esta colocação fora
de circuito que o behaviorismo declara como epistemologica
mente necessária para a constituição da psicologia como ciên
cia verdadeira e independente. Sem isto, ela continuaria sendo
essa prática bastarda, como o foi a psicologia pseudocientüica,
des.de Comte até Watson, fazendo apelo à observação interna
e à interpretação das condutas expressivas.
Todavia, apesar de seu caráter aparentemente revolucio
nário e devastador das psicologias anteriores, o behaviorismo
não conseguiu fazer tantos estragos assim à psicologia anterior.
Muitos de seus resultados permaneceram. Também seus mé
todos não foram inteiramente demolidos. O que realmente mu
dou foi o modo de pensá-los e de falar epistemologicamente
sobre eles. Isto pode ser ilustrado por dois casos privilegiados
de estudos psico!ógicos : de um lado, o estudo da sensação; do
89
outro, o dos processos racionais da vida mental humana. Em
suma, nem o trabalho do psicólogo, na perspectiva do labo
ratório de psicologia experimental ( tal como Wundt o conce
bia ) , nem, tampouco, o trabalho do psicólogo, na perspectiva
J
do estudo experimental da inteligência (tal como Binet o pra
ticou) , foram materialmente anulados pelas tomadas de posi
ção behaviorista relativamente à introspecção, ao mentalismo e
à consciência. :e o que tentaremos mostrar agora, apresentan
do, em suas grandes linhas, o questionamento ao behaviorismo
psicológico feito pela fenomenologia, pela Gestalttheorie, e pela
psicanálise de Freud.
90
IV
BEHAVIORISMO EM
QUESTÃO
Gostaríamos de situar o questionamento do behaviorismo
psicológico dentro da perspectiva de uma possível recuperação
da observação interna e de um estudo metódico do imaginário.
Outros questionamentos, mais globais, serão feitos no último
capítulo, a propósito do papel desempenhado hoje em dia, so
bretudo nas sociedades mais avançadas, por esta psicologia dos
psicólogos, fundada numa filosofia positivista-mecanicista-in
dustrial. O que nos parece importante, por enquanto, é mos
trar que há todo um domínio de investigação epistemológica,
em psicologia, que o behaviorismo não tem condições, devido
às suas deficiências teóricas, de estudar a fundo : a imaginação,
o afeto, e tudo o que se liga, na vida mental, a essas funções
do imaginário e do afetivo. Ora, normalmente, a psicologia não
deveria ignorar este domínio de investigação. Contudo, não é
absolutamente evidente que ele possa dar margem a uma epis
temologia semelhante àquela que pode ser construída a propó
sito da sensação e do funcionamento intelectual, de modo a
permitir o acesso a uma verdadeira "positividade" neste cam
po de estudo.
Comecemos nosso questionamento afirmando que, com
Edmund Husserl ( 1 859-1938) e com Sigmund Freud ( 1 856-
1 939 ) , entraram em cena, no domínio da psicologia, tanto o
estudo metódico da "observação interior" quanto a análise sis
temática do "imaginário". Assim, abordaremos a questão da
psicologia na medida em que ela se vê às voltas com os nume
rosos e variados problemas de estudo dessas funções internas
e, por assim dizer, "intermediárias" da vida mental : cenestesia,
,emoções, vida afetiva, sentimentos, imaginação, etc.
93
Façamos, de início, uma observação um tanto exterior,
mas significativa. Trata-se ainda de Comte. A doutrina comtia
na considerou duas coisas : de um lado, o fato psicológico ele
mentar da sensação; do outro, as funções intelectuais e morais
superiores. Mas nada disse sobre a imaginação. Ignorou-a por
completo. Quando a mencionou, foi para denunciar seu papel
perturbador no funcionamento correto do pensamento. Por sua
vez, o behaviorismo estrito nada diz de relevante sobre a imagi
nação . Por uma questão de método e de coerência doutrinária,
a psicologia behaviorista viu-se obrigada a desconsiderar o pa
pel do imaginário na vida dos indivíduos. Tentou ignorar o
quanto pôde as "imagens", procurando reduzir o pensamento
única e exclusivamente aos fenômenos sensório-motrizes ob
serváveis exteriormente. Para a psicologia behaviorista, a "ima
gem" não passa de um dos últimos bastiões da teoria introspec
cionista da consciência. Aliás, os historiadores da psicologia
sempre reconheceram que a psicologia da imaginação jamais
conseguiu direitos de cidadania: ela sempre foi a "prima pobre''
da psicologia, em busca "desesperada" de um estatuto "públi
co" de cientificidade. Isto se deve, sem dúvida, ao fato de que,
no nível do conhecimento pré-científico, o dado da imagem e do
jogo do imaginário é um dado irrecnável. Todavia, é extre
mamente difícil submeter este dado a um estudo que satisfaça
inteiramente à idéia que a psicologia se faz de um estudo cien
tífico.
Assim, as considerações feitas a respeito da imaginação e
das imagens permanecem quase sempre no nível da reflexão
filosófica, no nível da crítica literária ou da análise estética.
Um dos sinais dessa dificuldade parece residir num simples
fato : os próprios psicólogos ainda não conseguiram colocar-se
C:e acordo sobre a natureza e sobre as funções daquilo que
pode ser chamado de "imagem". Em 1936, Sartre, na pers
pectiva de uma primeira assimilação do método fenomenológi
co de Husserl, entregou-se a uma crítica sistemática de toda
psicologia da imaginação, de Descartes a Bergson. Alguns anos
depois, em 1940, propunha seu famoso estudo sobre O Ima
ginário, psicologia fenomenológica da imaginação, onde reto
mava as idéias centrais de seu primeiro livro sobre A Imagi-
94
nação. Nessas obras, Sartre criticava também os psicólogos que
só se punham de acordo quanto à necessidade de partirem dos
fatos. Em sua Teoria das emoções ( 1 948 ) , declara:
95
1. A PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA
96
gia, é o fato de ela fazer apelo, para se fundar, ao postulado
realista do senso comum, que ele achava bastante insatisfató
rio para um pensamento que deveria estar . preocupado com o
essencial. Se é verdade que o sujeito empírico faz parte do
mundo, também é verdade que o mundo não passa de um objeto
"intencional" para o sujeito que o pensa. Assim, não se pode
tratar o homem como se ele fosse uma coisa entre as coisas.
E a razão é simples : porque o homem não é o produto de
influências físicas, fisiológicas ou sociológicas que o determi
nariam de fora. A própria psicologia, qualquer que seja seu
método, deve ser considerada, antes de tudo, como um projeto,
isto é, como uma intenção de compreender melhor o homem
e seus comportamentos.
Muito embora Piaget insista em dizer que a fenomenolo
·
97
pirismo naturalista. Ela visa a descrever o psiquismo human(t
como não podendo deixar de ser, de imediato, uma "relação
com o mundo". E repudia, pelo menos em suas intenções ex
plícitas, toda universalidade abstrata. As démarches da filoso
fia espt:culativa devem ser substituídas pelo "retorno às coisas
mesmas". No entanto, podemos duvidar que a análise intencio
nal possa vir a substituir, sem equívoco, a metafísica especula
tiva. Contudo, Husserl não pretende de forma alguma restaurar
a introspecção no sentido de um conhecimento puramente in
terior. O que ele pretende estabelecer é que a psicologia cien
tífica, para ser verdadeiramente fundada, não pode deixar de
ser intencional e intersubjetiva.
Contrariamente, pois, à interpretação de Piaget, segundo
a qual a fenomenologia visaria, através das "reduções", a liber
tar o sujeito de suas limitações "naturais", devemos dizer que
o objetivo da fenomenologia não é o de transcender o domínio
das experiências, mas o de :t:evelar ou desvelar seu sentido.
A orientação da consciência sobre certos objetos "intencionais"
possibilita o que Husserl chama de "análise eidética". A este
respeito, ele distingue claramente uma consciência explícita do
objeto, própria do eu atual, e uma consciência implícita ou
potencial. Não se deve, pois, confundir a "análise eidética"
com uma dialética de tipo platônico.
Ao insistir sobre o problema do sentido, Husserl se opõe,
não somente ao naturalismo psicológico, que tende a encerrar
o comportamento humano num feixe de causas e de efeitos
exprimíveis em terceira pessoa, mas também ao idealismo, na
medida em que este reduz o homem a um conjunto conceitual
organizado. Ao colocar-se no ponto de intercecção dessas duas
tendências, a fenomenologia dá origem, pelo menos em parte,
ao "existencialismo" moderno. Evidentemente, a existência ( no
sentido de "homem-ser-no-mundo" ) não é um conceito hus
serliano. Mas não se pode negar que ele foi "deduzido" do
conceito de Lebenswelt ou de "mundo vivido" : a presença ao
mundo antes da reflexão, ou seja, o nível do vivido imediato na
origem de toda consciência. Quer dizer : "a coisa em si mesma"
é concebida como um dado, como um intuicionado. Todas as
ciências pressupõem este "mundo da vida" como seu solo ori
ginário, muito embora dele se afastem, em seguida, para cons-
98
truir o mundo "depurado" do conhecimento científico. Ora,
esta vinculação ao mundo, que está na origem de todas as con
dutas humanas e dos sentidos que elas manifestam, não pode
ser expressa em termos tomados de empréstimo às ciências da
natureza, pois também estes derivam de uma ligação com o
mundo; tampouco pode ser expressa pelos termos utilizados
pelo idealismo para exprimir a construção do objeto pelo su
jeito.
Assim, a tarefa da fenomenologia consiste numa investi
gação "científica", não dos fatos, mas das formas da conscren
cia dos objetos, sendo esses objetos definidos por um ato de
consciência. E é por isso que Husserl tenta situar a exploração
intelec�al do fato da consciência no nível da psicologia. Neste
particular, a influência da fenomenologia foi marcante, quer
sobre a psicologia gestaltista, quer sobre a psicologia mais di
retamente psicopatológica. Indiquemos, brevemente, em que
linha essa influência se exerceu.
99
imaginário, bem como a tentativa de Mer�eau-Ponty de elabo
rar uma Fenomenologia da percepção, tentativas bem mais filo
sóficas ("ontologia fenomenológica" ) do que propriamente psi
cológicas E como a fenomenologia utiliza uma técnica do co
. .
1 00
Como todos os empreendimentos humanos, a psicO"
terapia também tem seus perigos próprios. Ao invés de
mostrar o caminho àqueles que estão na desolação, ela
pode tomar-se uma espécie de religião, análoga às seitas
gn6sticas de há quinze séculos. Ela pode oferecer suce
dâneos da metafísica e do amor, da fé e da vontade de
poder, dar livre curso aos seus impulsos sem escrúpulos.
Com a aparência de nobres exigências, ela pode rebaixar
a alma e corrompê-Ia.
2. A PSICOLoGIA PSICANALÍTICA
101
artística e literária, mitologia, história das religiões, das civili
zações, etc.
Freud, antes mesmo de descobrir o inconsciente como tal,
já havia revelado o papel do psiquismo inconsciente. Os filóso
fos que o antecederam, no século XIX (Schopenhauer, por
exemplo ) , já haviam afirmado o primado da vida instintiva
e manifestado, à sua maneira, algumas das ilusões próprias à
concepção intelectualista do comportamento humano. Por outro
lado, na segunda metade do século passado, numerosos fisiolo
g
gistas, neurologistas, psicóló os e médicos já se interessavam
pela histeria, pela hipnose e pelos fenômenos da sugestão, e
mostravam que a vida psíquica ultrapassava de modo singular
o campo da consciência clara e reflexiva. Nesta época, o grande
público era atraído por estranhas manifestações que determina
ram o surgimento do movimento espírita, depois, das socie
dades de estudos psíquicos ( o ocultismo) . Os cientistas come
çaram, então, a estudar os fenômenos considerados como su
perstição e charlatanismo, chamando-os de fenômenos "meta
psíquicos". Também antes de Freud, Pierre Janet já reconhe
cera a existência do psiquismo inconsciente. Janet já havia
demonstrado que "personalidades" segundas, oriundas das re
giões inferiores do ego, podiam surgir no indivíduo consciente,
levá-lo a executar certos atos (escrever, por exemplo) sem ter
consciência de ser ele sua caúsa.
Com sua análise sistemática do "Inconsciente", Freud tor
nou-se um dos maiores protagonistas da "mentira" da "Cons
ciência". Toda a sua obra é ama clara revelação de que o
problema da consciência é tão obscuro quanto o problema do
mconsciente. A certeza imediata da consciência parecia inex
pugnável desde Descartes, que dizia: "por pensamento, entendo
tudo aquilo que se faz em nós, de tal modo que o percebemos
imediatamente por nós mesmos". Freud veio mostrar que a
certeza da consciência é duvidosa enquanto verdade, porque
nossa vida intencional poderá ter outros "sentidos" que não o
imediato. Entre a certeza da consciência e o verdadeiro saber,
instala-se o inconsciente, revelando-nos um saber que não nos
é dado, mas que deve ser procurado para ser encontrado. A
consciência de si, ou esta adequação "de si a si", não se situa
no início, mas no fim. Donde a impossibilidade, segundo Freud.
102
de uma "filosofia da consciência". Também a fenomenologia
criticou ·a consciência reflexiva, introduzindo o tema do irrefle
xivo e do irrefletido: as pesquisas de "constituição" remetem a
um pré-dado ou "pré-constituído". Mas a fenomenologia não
levou até o fim a crítica à consciência, permanecendo no cír
culo das correlações entre noese e noema.
Não se trata, porém, aqui, de fazermos uma análise · da
crise do conceito de consciência. Nosso problema é o da relação
da psicanálise com a psicologia científica. Neste sentido, de
vemos notar que, tanto o fim do século passado quanto o iní
cio de nosso século foram marcados pelo impacto das teorias
evolucionistas, pelo progresso considerável das ciências bioló
gicas e físicas, e pela instauração da chamada psicologia cien-.
tífica : experimental, em seus métodos; comportamentalista, em
seus objetivos. Isto, porém, em nada diminuiu o mérito de
Freud : ele se aproveitou de todos os fatos e fenômenos que
interessavam aos cientistas e apaixonavam a opinião pública,
tentando compreendê-los como um meio extraordinário para
o tratamento das neuroses, e para mostrar que o histérico é
um ser que sofre por estar acometido de reminiscências. Etp
Minha vida e a psicanálise, ele escreve: "Lançando o olhar
para trás, sobre a parte de trabalho que me foi dado empreen
der em minha vida, posso dizer que abri muitos caminhos e dei
muitos impulsos que poderão dar "resultado" no futuro. Eu
mesmo não posso dizer se e.ste "resultado" será grande ou pe
queno". Ora, foi este "resultado", que Freud chama simples
mente de "algo', este indeterminado cujo futuro é difícil de
ser previsto, que se tomou o campo privilegiado da psicanáli
se. Em extensão, a psicanálise ganhou terreno, ultrapassando de
longe os domínios já vastos traçados por seu fundador. E isto,
a tal · ponto que, por uma espécie de verdadeira inflação cultu
ral, e!a corre o risco de perder em compreensão e, inclusive,
de ser incompreendida. Aliás, as incompreensões se manifesta
ram desde o início da psicanálise. Por exemplo, ao regressar
a Viena, depois de trabalhar com Charcot, em Paris, sobre os
fenômenos de histeria, Freud relata suas experiências aos psi
quiatras : "Os médicos dos hospitais, em cujos serviços encon
trei tais casos, recusaram-se a deixar que eu me ocupasse deles
e que os observasse. Um deles, um velho cirurgião, gritou:
103
mas, meu colega, como você pode dizer tais absurdos! Hysteron
(sic) quer dizer útero. Como, então, um homem pode ser
histérico?"
Todavia, como dissemos, o que nos vai interessar na psi
canálise freudiana é sua relação com a psicologia científica,
sobretudo com a psicologia de inspiração behaviorista. Por
que, no nível da psicologia, a psicanálise se apresenta como
uma transgressão aos interditos behavioristas. Com efeito, o
postulado inicial do programa behaviorista consiste na elimina
ção sistemática da con.sçiência : a consciência não é um ser; o
corpo e suas diversas manifestações ou funções são mais do
que suficientes para explicar cientificamente todos os níveis do
comportamento (behavior) de um ser vivo. Trata-se, pois, de
um monismo materialista.. "Dai-me um nervo e um músculo",
exclamava H. Piéron, "e eu vos farei um espírito". Em contra
partida, a psicanálise de Freud vem demonstrar que os proces
sos mentais não são em absoluto redutíveis à vida simples
mente orgânica nem, tampouco, à vida meramente social. Ao
estudar diretamente o conteúdo das representações e dos afe
tos, .a psicanálise visa a explicar o presente do indivíduo hu
mano �or seu passado, bem como explicar o adulto pela crian
ça. Por isso, Freud não podia admitir que se pudesse reduzir
.o mental ao orgânico ou ao social. O que ele fez foi uma redu
ção qás formas psíquicas superiores às suas formas elementa
res, subsistindo no inconsciente dos indivíduos.
Assim, em relação à psicologia behaviorista, podemos di
zer que Freud não fez nenhuma objeção à utilização dos mé
todos da observação íntima, da auto-observação da vida mental
pelo sujeito. Em A Interpretação de Sonhos ele fala aberta
mente dessa prática sem nenhuma idéia pré-concebida e sem
reservas críticas particulares. Isto se toma bastante compreen
sível no caso do sonho, porque não se pode ver como nenhum
estudo específico desta formação da vida mental (que é o so
nho) poderia ser feito sem que se pressupusesse, de início,
certo assumir do sonho pelo próprio sonhador. Aliás, foi ba
seando-se na análise de seus próprios sonhos que Freud escre
veu a Interpretação. A auto-observação, privada e "subjetiva"
(intr6specção no sentido lato) permanece a via de ac,t�sso obri
gatória àquilo que a psicologia deve levar em consideração .
104
O caso do sonho e do método freudiano de seu estudo é um
bom exemplo epistemológico desta relação que a psicologia
pode ter com este dado da vida mental que só pode ser atin
gido através do recurso à observação interna, radicalmente
proscrita pelo behaviorismo estrito.
No que diz respeito ao sonho, o método interpretativo freu
diano é bastante complexo. Antes de tudo, é preciso que se
faça um relato do sonho, de preferência por escrito. Por sua
vez, o relato se deixa decompor em vários segmentos que deve
rão ser tomados um a um. E, ao retomar os diferentes termos
e representações propostos, deve-se pedir ao autor do relato
que diga, uma vez eliminada todas as inibições usuais tanto
do "pensamento" quanto de sua expressão, tudo o que lhe vem
à cabeçà. Freud chama esta etapa fundamental de seu método,
de prática da "associação livre". Todas as produções da vida
mental consciente constituem um material precioso destinado
a guiar a inteligência na interpretação que ela faz do sonho.
No início, tudo isso encontra-se inserido num processo tera
pêutico que coloca em cena o paciente (aquele cujo sonho é
estudado e interpretado) e o analista (que coopera com o pa
ciente para a interpretação do sonho) . Quando bem sucedida,
a interpretação se apresenta ao paciente como o desvelamento
de certa verdade dizendo-lhe respeito, em sua individualidade
mórbida ou neurótica. Este desvelamento tem um valor emi
nentemente emocional. Em certa medida, este efeito curativo
desempenha o papel de uma verificação experimental relativa
mente a toda a '(lémarche do estudo do sonho.
Cabe, aqui, uma pergunta, tanto mais relevante quanto, de
sua resposta, depende a possibilidade de a psicanálise poder
transgredir o conceito de "objetividade" científica a que tanto
se apegam os psicólogos behavioristas : quais seriam os cons
tituintes epistemológicos implicados na prática freudiana da
análise interpretativa do sonho? É claro que, epistemologica
mente falando, não podemos negar que estamos diante de uma
prática extremamente complexa e que, do ponto de vista da
exigência de cientificidade ou de saber propriamente objetivo,
coloca sérios problemas. Por enquanto, ressaltemos apenas
dois:
105
a) Em primeiro lugar, o sonho certamente é vivido pelo
sonhador. Mas ele é vivido numa circunstância que impede o
sonhador de tomar, relativamente a este vivido, uma atitude
de consciência de si, lucidamente presente à sua atualidade
mental, capaz de ter uma atenção discriminadora a seu respei
to. O sonhador relata o sonho, e só depois do sonho pode re
latá-lo, quando dele se lembra em estado de vigília. Neste mo
mento, aquilo que realmente o sujeito relata, é o conteúdo
de sua lembrança do sonho, de forma alguma o conteúdo ime
diato do sonho. Ora, entre a lembrança presente e o próprio
sonho, há uma distância ou um intervalo. Em geral, as pes
soas lembram-se mal de seus sonhos. Muitos detalhes, por
vezes importantes, são esquecidos e se perdem. Por sua vez, o ·
106
suscitar. No caso presente, o relato do sonho não pode ser
corta,do de sua referência à atualidade psíquica do sonho. 2
por isso que, ao invés do termo comportamento de relato, tal
vez fosse preferível e mais correto falarmos de conduta de re
lato, porque o termo conduta tem a vantagem de realçar a co
nexão mais ou menos específica com o fatQ mental.
Neste particular, podemos dizer que, num certo sentido,
chegamos a uma atitude metodológica análoga à atitude da
psicologia pr6-behaviorista. Todavia, convém explicarmos um
ponto epistemológico já presente na metodologia usual da psi
cologia empírica não-behaviorista. Portanto, podemos dizer que
o estudo psicológico de uma conduta de relato faz a conjunção
de duas perspectivas epistemológicas distintas : a) a primeira
perspectiva é a da "objetividade" exterior, em princípio aces
sível a todos (como a objetividade do físico) : o relato, como
porção de linguagem e como texto, está presente; e cada um,
não somente seu autor, pode tomar conhecimento dele; b) a
segunda é a da "intersubjetividade", isto é, a de uma comuni
cação realizada entre sujeitos dotados de vida mental e capa
zes de evocar, no outro, algo de seus conteúdos mentais. O
relato apresenta-se, pois, como o mediador dessa intersubjeti
vidade. E é como í!tl que ele é tomado pelo estudo psicológico.
Aliás, é preciso que se reconheça que a linguagem natural é,
ao mesmo tempo, realidade material e mediadora de intersub
jetividade. A novidade do relato está no fato de ele ser feito
de modo distinto, refletido e aberto à exploração metódica.
Em outros termos, podemos dizer que o relato é ao mesmo
tempo como que o objeto objetivamente estudável e aquilo que,
l
para seu autor e para aquele que o estuda, remete à atualidade
mesma da vida mental. E é neste sentido que ele se toma me
diador de intersubjetividade. Não se pode negar, porém, que a
conduta de relato implica apenas uma intersubjetividade bas
�:�- tante modesta. Trata-se. de fato, de uma intersubjetividade in
terpessoal, somente a dois, entre duas pessoas : o paciente e o
analista. Contudo, levando-se em conta a natureza da relação
bilateral entre o paciente e seu analista, é possível · que esta
intersubjetividade a dois venha a definir, pelo menos para a
prática efetiva da psicanálise, determinado horizonte de vali
dade epistemológica.
107
Neste particular, há um ponto que precisa ser resolvido
para que sejam evitados certos equívocos bastante freqüentes
em psicologias que defendem com ardor a objetividade e o
caráter científico de seus estudos. A objetividade científica con
siste, do ponto de vista dos sujeitos humanos que fazem a ciên
cia, nessa intersubjetividade, em princípio, universal ( admitida
e controlada por todos) . :e justamente a necessidade da inter
subjetividade universal que se faz sentir com o esforço de esta
belecimento e de constituição de um conhecimento científico.
·
108
ordem. Trata-se, no caso presente, de uma intersubjetividade
particular, e não mais universal. E é este tipo de intersubjeti
vidade que a epistemologia leva em conta para estudar psico-
. logicamente as condutas de relato.
Dito isto, cremos poder chegar a uma primeira conclu
são: não se pode mais negar que, com Freud, tenha surgido
um novo tipo de objetividade psicológica. E é preciso que se
acrescente . que esta objetividade não pode mais prescindir do
valor, da significação íntima ou interpretativa. No início de
nosso século, quando a psicologia ainda lutava para fazer-se
reconhecer como disciplina científica, viu-se obrigada a reco
nhecer certas determinações da . vida mental, dadas, como tais,
à observação íntima e "subjetiva" do indivíduo. Freud se dá
conta disso desde que começa a explicar os sonhos. A este
respeito, a parte metodológica de sua Interpretação de Sonhos
é fundamental. No primeiro capítulo, por exemplo, ele faz uma
história dos sonhos. E descobre, para surpresa de muitos, que
o sonho· é uma formação da vida mental, já muitas vezes des
crita e estudada, em sua "materialidade"' pela psicologia empí
rica. Por outro lado, Freud constata que as crenças populares
ligaram espontaneamente a essa formação da vida mental (o
sonho) todo um alcance simbólico e premonitório figurado,
por exemplo, nas "chaves dos sonhos", desprezadas pelo espí
rito que pretende atingir a cientificidade em psicologia. Seu
texto é claro:
109
O que nos parece fundamental, nesse texto, é a convicção
anunciada explicitamente por Freud de ter dado um passo à
frente no processo de conquista da cientificidade em psicologia:
o sonho tem uma significação, e pode ser explicado cientificer
mente. Em certo sentido, não somente é anunciada, mas tam
bém registra-se a certidão de nascimento de outra modalidade
de objeto cientifico: a significação do sonho. Para se ter acesso,
cientificamente, ao sonho, não se pode prescindir da interpre
tação. A interpretação é correlativa a um método a ser segui
do. Aliás. no caso do sonho, é o único método possível, pois
trata-se de "decifrar" os sentidos ocultos que se manifestam
nos sentidos aparentes do sonho. Portanto, não há como negar
a fundação, por Freud, no domínio da vida mental, de uma
nova ordem epistemológica.
Explicitemos um pouco melhor esta questão. Através de
sua atualidade e de sua conduta de relato, o sonho apresenta
certo "objeto" ao saber inteligente. Todavia, este objeto não
pode ser confundido com uma "coisa" da vida mental, incomu
nicável em sua "coisidade" individual, porque, por natureza,
ele é uma significação, um sentido. Evidentemente, longe de
Freud pensar que o sonho (formação do imaginário que o re:
lato do sonho notifica a terceiros) seja portador de uma signi
ficação usual, assim como a representação de uma árvore é o
referente da coisa "árvore em geral". O que ele pretende afir
mar é que, no interior mesmo da vida mental, o sonho remete.
da atualidade que ele é, a outras disposições individuais do
sonhador; disposições essas que encontram, no sonho, uma es
pécie de exteriorização sem revelar aquilo que elas são, de tal
sorte que o sonho permanece um dado a ser decifrado.
A significação do sonho é justamente aquilo que perma
nece no lugar dessas "disposições individuais" do sonhador :
causalidades obscuras, incidentes de uma história pessoal re
mota, traços mnêmicos e hábitos profundamente enraizados
naquilo que o homem consciente esquece, etc. Como diríamos
hoje, a significação do sonho é de ordem existencial, escapando
à ordem objetiva, de uma vez que ela não é diretamente cons
tituída pelas coisas representadas por determinações e conteú
dos psicomentais do sonho. Ora, colocar o prob!ema do sen
tido, é reconhecer explicitamente que nenhuma compreensão
110
psicológica pode ser direta. Porque compreender um compor
tam ento ou uma observação, não consiste simplesmente · em re
gistrar expressões de outrem, mas, sobretudo, em perceber um
sentido, através do qual o outro se revela e existe.
Ora, toda percepção visa a um sentido e tem uma relação
com a subjetividade do sujeito que a exprime. E o sentido é,
antes de tudo, uma expressão que tem valor de posição do su
jeito por ele mesmo na busca de outrem. Só exprimimos um
sentido na medida em que convocamos o outro, não nesta ime
diatidade em que o outro se confundiria com a percepção que
temos dele ( atitude da criança em sua fase pré-objetai) , mas
numa posição do outro como referente de nosso discurso. E é
por isso que o sentido, em psicologia, só poderá ser desvelado
e comunicado num ato de distanciamento e de latência pos
sibilitando a relação intersubjetiva. O psicólogo não entra em
contato direto com a expressão de outrem, pois não pode re
duzir o outro a tornar-se apenas o somatório de suas expres
sões ou de seus sintomas. Enfim, a subjetividade do outro só
poderá ser preservada, no ato psicológico, quando não for re
duzida à soma de seus comportamentos e de suas atitudes.
Assim, a psicologia psicanalítica do sonho pode ser con
siderada como o estudo objetivo e científico - pelo menos
em princípio, porq,uanto seguindo certas normas de objetivi
dade - da significação dos sonhos. No entanto, é preciso que
se diga que, se nesse nível algo de científico pode ser conse
guido, trata-se da emergência epistemológica desse novo tipo
de objetividade de que falamos, inteiramente distinto dessa ob
jetividade científica reivindicada pelos positivistas clássicos e
pelos behavioristas modernos. O problema consiste em · com
preendermos o eventual estatuto desse tipo de objetividade. Como
já dissemos, trata-se de uma objetividade que pressupõe a in
tersubjetividade particular, estabelecida graças à conduta do
relato do sonho, como relato de um episódio da vida mental
do sonhador. Contudo, apesar de permitir a intersubjetividade,
o relato não transfere, de um sujeito para outro, o sonho em
sua materialidade : o destinatário do relato nem vive, nem vi
veu o sonho. Seu papel consiste simplesmente em representá
lo. O máximo que pode conseguir é revivê-lo graças a uma
descrição "viva" fortemente sentida.
111
Por sua vez, o trabalho comum do paciente e de seu ana
lista também não consegue transferir de um sujeito para
outro, a existência mesma ou a fatuidade das disposições pes
soais do sonhador, do autor do relato, daquele que fornece
o material produzido pelas "associações livres". O outro só
poderá perceber tudo isso de modo representativo. Assim, en
tre os dois sujeitos, há uma defasagem notória: de um lado,
situa-se o vivido; do outro, o representado. Mas a significação
do sonho, relação de um vivido com outro vivido (o do so
nhador), poderá ser transferida do espírito do sonhador para o
espírito do analista ou psicólogo. E isto, como relação hom6-
loga entre as representações do vivido. Em si mesmo, o vivido
não se transfere de um sujeito para outro. Não obstante, é
possível que a significação existencial de um vivido psicomen
tal de um sonho seja possuída conjuntamente por dois ou mais
sujeitos, comunicando-se através da linguagem e trabalhando
em comum a partir de uma Gonduta de relato.
Ora, na perspectiva em que aqui nos situamos, não vemos
como a função primordial do psicólogo possa ser outra senão a
de revelar o sentido da palavra do homem. Ele se interroga e
tenta compreender a relação que, através da linguagem, o ho
mem mantém com o mundo. Não se trata, evidentemente, da
linguagem como simples meio técnico a serviço da palavra (a
língua) , mas da linguagem enquanto estrutura essencial da pre
sença do homem ao mundo por seu dizer. E é por isso que a
psicologia, ciência dessa relação, não pode ser pensada fora
dessa linguagem. Por conseguinte, não pode pura e simples
mente ser reduzida a uma ciência da causalidade psíquica,
pois deve colocar-se o problema da compreensão, e da com
preensão que ela pode ter de si mesma. Neste sentido, o psi
cólogo pode ser considerado um "especialista" da linguagem,
na medida em que lhe cabe revelar aquilo que não se mani
festa, aquilo que está oculto ou que se recusa _à consciência.
Em última análise, a tarefa essencial de Freud não tem
outro objetivo senão fazer com que o sujeito redescubra sua
palavra, a palavra que lhe foi alienada e que lhe escapa, a fim
de que possa reestruturar sua objetividade. Em todo ato, o
homem faz intervir, consciente ou inconscientemente, direções
de sentido. :e por isso que o ato psicológico essencial não pode
1 12
consistir tanto em ver ( atitude objetivante ) quanto em ouvir
(atitude compreensiva ) , para que se torne possível a apreen
são do sentido. E é por isso que a psicologia procura colocar
o prob!ema da compreensão dos fenômenos psíquicos a fim de
revelar sua dimensão expressiva e significante. A relação do
paciente com o psicólogo não se reduz, pois, ao estudo de um
caso, de uma objetivação ou de uma classificação dos compor
tamentos : o que importa, nessa relação, é a descoberta da
verdade do paciente. O psicólogo vai a seu encontro através da
linguagem. Esta não é um simples meio de comunicação, pois
engaja o problema da verdade do paciente e de sua história
pessoal. :f: por isso que o sentido não pode ser objetivável, veri
ficável ou simplesmente pondel'ável ( teste de classificação ) .
O campo do psicólogo é o campo do discurso, pois é somente
no discurso que o real se apresenta sob a forma simbólica do
sentido, isto é, do possível.
Sendo assim, chegamos a essa "objetividade" de segundo
nível, por oposição à objetividade exterior, física, sobre a qual
normalmente se pautam as ciências empíricas, inclusive a psi
cologia. Ora, não temos pretensão alguma de provar que a psi
canálise freudiana tenha conseguido conquistar a entidade in
tersubjetiva científica, entidade intelectualmente objetiva, cons
tituída pela significação que um acontecimento ou um episódio
da vida mental podem comportar, do interior mesmo dessa vida
mental, para seu sujeito e para outrem. O importante é que
não se pode mais contestar que a psicologia psicanalítica tenha
tido a idéia, já epistemologicamente distinta, desse novo tipo
de objetividade científica, relacionando-se com um objeto que
não é mais uma coisa, mas um sentido. Este sentido se inscre
ve no interior de uma vida mental, realizando-a quer na norma
lidade, quer na existência patológica.
O que podemos concluir dessas observações é que o es
tabelecimento de outro critério para chegar à objetividade cien
tífica, em psicologia, coloca em questão o behaviorismo. O
"passo à frente" dado por Freud poderá ser reconhecido na
descoberta deste outro objeto psicológico que vai constituir-se
com a significação (conteúdo latente) de um vivido mental en
quanto sintoma interpretável e decifrável pela utilização de um
método seguro e eficaz, e pela introdução de um outro mo-
1 13
mento do ser psicomental : outros vividos anteriores, hábitos,
o inconsciente, complexos, etc. Evidentemente, os fatos exterio
res observáveis : comportamentos, relatos, produtos do trabalho
de associações livres efetuado pelo "sujeito", não são mais,
propriamente falando, constituintes do objeto psicológico "sig
nificação", mas os mediadores indispensáveis de sua constitui
ção. Graças a esses mediadores, o psicólogo pode representar
se o vivido significante de seu "sujeito" ( o sonho, por exemplo )
através de seu relato. Tudo isso pode ser incluído nesta cate
goria epistemológica chamada de sintoma. Todavia, o psicólo
go também pode, com esse "sintoma", representar-se o ser psi
comental : por exemplo, fazendo apelo à produção de "associa
ções livres". E é quando dispõe das duas representações da
quilo que se passa em seu 'sujeito", que ele descobre a "sig
nificação", quer dizer, chega à interpretação do "sintoma".
3. A OBJETMDADE PSICOLÓGICA
l l4
gerado dizer que todo . o empenho do método psicanalítico de
Freud consiste em tornar possível, de um modo que merece a
denominação de científico, a descoberta intelectu.al do inteli-
gível a partir do observável. .
Entre essas modalidades de objetividade em psicologia, si
tuam-se dois outros tipos : o que é resultado de um estudo da
conduta e o que é fruto de uma análise da "intenção". Ambos
associam, na constituição de sua objetividade, um observável
no sentido mencionado acima: comportamento, palavras de re
lato ou de descrição, e um vivido representável, peftencendo
à esfera da observação íntima. Bem entendido, sem um recurso
a esses dois tipos híbridos de objetividade psicológica, seria
praticamente impossível, à inteligência científica do psicólogo.
passar do estado do "observável" à descoberta da "significa
ção". Sistematizando os quatro tipos de objetividade psicológi
ca, temos o seguinte quadro:
O INTELIG1VEL
a "significação"
O EXPRESSIVO
a conduta 3
O IMPRESSIVO
O OBSERVÁVEL
o comportamento
1 15
1 . Aquilo que está mais próximo da atitude da psico
logia "pré-científica" ou simplesmente "filosófico-introspecti
va", mesmo que por vezes e!a tenha rel\·indicado o título de
"científica", parece ser a atitude da psicologia fenomenológica.
Sem dúvida, esta psicologia está voltada para esse tipo de ob
jetividade que, em nosso quadro, chamamos de o "impressivo".
Trata-se de uma objetividade centrada na auto-observação do
"sujeito" e identificando-se com o próprio psicólogo. Por outro
lado, a atitude da psicologia fenomenológica parece suspeita à
psicologia que pretende afirmar-se na cientificidade, por estar
comprometida com tomadas de posição e engajamentos valora
tivos ou de ordem filosófica : as vinculações mais ou menos
genealógicas com a filosofia fenomeno'ógica são uma compro
vação de que trata de uma atitude estranha àquela que tem
a ambição de ser apenas científica. Por sua vez, no plano cien
tífico, parece que a psicologia fenomenológica não correspon
deu às esperanças nela depositadas. Por exemp�o. isso foi clara
mente notado a propósito da psicologia fenomenológica de Sar
tre sobre a imaginação. Sartre não conseguiu mostrar a cienti
ficidade de sua psicologia. Nem tampouco foi demonstrada a
objetividade da fenomenologia husserliana. Evidentemente, Hus
serl entreviu certa idéia de cientificidade para a fenomenologia,
muito embora ela só tenha atingido um nível bastante incom
pleto e confuso de realização. Neste sentido, o estatuto de
objetividade, reconhecido ao estudo psicológico do comporta
mento, é bem superior ao do estudo fenomenológico da "inten
ção" e do "intencional".
116
[ za a expcnencia singularmente vivida. É este saber que leva
os analistas a não admitirem que falem da psicanál ise senão
aqueles que se submeteram ao processo técnico da análise, a
título de pacientes, ou aqueles que são psicanalistas (o que
pressupõe a "análise didática" ) ;
b ) em segundo !ugar, apesar do grande "passo à frente"
dado por Freud, capaz de revolucionar nossa cultura, sobre
tudo pela elucidação da significação profunda da sexualidade
na vida humana - a história da sexualidade no interior de
cada indivíduo, seus ocu:tamentos existenciais e suas ressurgên- �
117
"pura" e mais radical possa vir a estabelecer-se em outros moi
des e segundo novos critérios?
1 18
que leva a efeito, na prática, este rtn aquele tipo de pesquisa;
ou então, quando ensina a "psicologia" ou escreve sobre este
ou aquele assunto psicológico.'
Na prática, podemos dizer que os quatro tipos de objeti
vidade psicológica se imbricam e se combi11 � mas não resol
vem suas associações mais ou menos confusD. deixam em si
lêncio suas diferenças e heterogeneidades. E§sas diferenças se
fundam na "boa consciência" metodológica do psicólogo "qua
lificado" cientificamente. Cabe ao epistemólogo, que poderá
ser o próprio psicólogo, desempenhar o papel, por assim dizer,
de "consciência infeliz" (crítica) da prática epistemológica. :S
ele quem tenta fazer, com dificuldades, uma reflexão crítica
sobre tudo o que precede; numa palavra, sobre a cientificidade
da psicologia, enquanto ela é (ou deveria ser) uma ciência do
homem.
5. Evidentemente; não tivemos a pretensão de analisar
todos os problemas epistemo!ógicos implicados no conceito de"
objetividade psicológica. Estudamos sucintamente apenas aque
les que nos pareceram epistemologicamente mais relevantes e
susceptíveis de levantar os mais diversos e fecundos questiona
mentos à psicologia do comportamento. Assim, o que nos in
teressou de modo especial, na psicologia, foi uma reflexão so
bre seu desejo da referência empírica e positiva, quer dizer,
sobre sua vontade de chegar ao estatuto de cientificidade, se
não como uma ciência do homem, pelo menos à maneira das
ciências naturais. Muitos outros problemas epistemológicos da
psicologia foram conscientemente deixados de lado, não por
serem menos importantes, mas porque decorrentes da tomada
de posição relativamente à análise do problema central : o da
cientificidade ou não da psicologia. Os demais problemas di
zem respeito às outras funções da elaboração do conhecimento
psicológico: explicações, hipóteses, teorias, modelos, apelo aos
recursos da matematização dos observáveis (medida) , etc. Este
vasto domínio mereceria, sem dúvida, um estudo bem mais
aprofundado. Aliás, é sobre ele que já se escreveu a maior parte
dos trabalhos epistemológicos concernentes à psicologia, razão
a mais para não lhe darmos a preferência e para remetermos
o leitor à já extensa bibliografia tentando resolver a questão
·da passagem do dado ao explicado em psicologia.
119
6. No contexto em que nos situamos, cremos ser im
portante ressaltar as relações da objetividade psicológica com
a das demais ciências humanas. Neste sentido, cabe esta per
gunta inicial : qual o sujeito da ciência? Já vimos que a cie!lti
ficidade das ciências do homem não pode ser definida de modo
unívoco. Eis uma constatação já antiga, e que está na origem
da tentativa de Foucault : traçar uma genealogia dos modelos
científicos que engendram a idéia ou o conceito de homem,
quer dizer, desse corpo de conhecimentos que toma o homem
.·orno objeto, naquilo que ele tem de empírico. No interior desse
corpo de conhecimentos, Foucault descobre, para descrevê-lo,
um conjunto de "taxinomias". Mencionemos apenas duas : as
que apresentam o traço comum de não situar a psicanálise
como domínio autônomo, mas como uma espécie de exigência
interna a um sistema de que ela seria o princípio norteador.
Não seria possível associar a psicanálise a um conjunto de
disciplinas já"' constituídas. Todavia, sua presença provoca uma
reformulação total dessas disciplinas. No entanto, Foucault d�s
cobre um esquema comum à psicanálise e à etnologia, permi
tindo-lhe · uma redefinição do campo do homem : "Forma-se,
então, o tema de uma teoria da linguagem que daria à etnologia
e à psicanálise assim concebidas seu modelo formal" (Les mots
et les choses) . A l inguagem e suas múltiplas teorizações cons
tituiriam a "contraciência" capaz de unificar tudo, contestando
a heterogeneidade dos componentes do campo pseudocientífico
das ciências humanas. No entanto, Foucault não pode negar
que a própria linguagem deva ser estudada em função de sua
relação com o "inconsciente", pois é ele que determina suas
formas e sua emergência. Donde a questão : quem fala? seria
o homem? o inconsciente? o sujeito? um "algo" (on) qual
quer?
Segundo Lacan, que só aparentemente se separa de Freud,
neste particular, é preciso que se distinga psicologia, enquanto
uma teoria do indivíduo, e psicanálise, enquanto esta introduz
um.� teoria do sujeito. Por "psicologia", deve ser entendido um
conjunto de técnicas tomando possível reintegrar o indivíduo
( (r'e �e situa numa coletividade graças a um conjunto de nor
ma.· ) , quando ele se desvia da sociedade ; excluí-lo da socie
.;L .c, quando ele se toma "anormal"; selecioná-lo, quando é
r··
\
121
conhecimento, terrenos mais sólidos, sobre os quais a démar
che psicológica pode se construir com segurança mais metódi
ca. Na medida em que se torna científica, a psicologia, como
toda ciência, faz-se científica a partir de um estado bruto e
prévio do conhecimento, que ainda não é científico. · Antes da
psicologia de hoje, houve a de ontem, a de anteontem. Cada
vez que se evoca uma das etapas da psicologia, evoca-se aqui
lo que já é uma tentativa de organização coerente de conheci
mentos que se ligam à experiência que cada um pode ter das '
coisas da vida mental e àquilo que, de uma forma ou de outra,
se encontra expresso culturalmente. Atualmente, por exemplo,
a psicologia só é o que é permanecendo mais ou menos soli
dária dessa massa confusamente pré-científica, de aquisições
empíricas ou, como diz Durkheim, de "pré-noções" por uma
definição científica de seu objeto. Mas este "corte epistemoló
gico" de princípio não impede a persistência das continuidades
reais. Aliás, de vez em quando a psicologia sente a necessidade
de retornar àquilo de que se libertou para constituir-se come
saber objetivo. Assim, ela irá à forma científica o tanto quanto
pode, e naquilo em que realmente consegue. Quando não con
-segue, contenta-se com estados mais modestos de conhecimen
to, talvez aquém do limiar da cientificidade propriamente dita.
Por outro lado, e ao mesmo tempo, a psicologia mantém,
por vezes conscientemente, n·a maioria dos casos contra sua
vontade, conexões mais ou menos estreitas com visões filosófi
.cas do mundo e do homem. A ideologia filosófica que a impreg
na não é simplesmente a ideologia pessoal do pesquisador
<>u do autor de um obra filosófica (uma ideologia "discrimina
·da" daquilo que o cientista sabe ser científico) , mas uma ideo
logia mais ou menos "presidindo" aquilo que se diz ser a pró
pria ciência. E é isto que justifica, pelo menos em alguns casos,
o surgimento das diversas "escolas científicas", em desacordo
entre elas. E não é raro que elas se engagem na discussão não
somente daquilo que pode constituir o objeto de discussões
científicas (relativas a resultados determinados ou a hipóteses
·explicativas propriamente ditas, susceptíveis de verificação) ,
mas das doutrinas e das atitudes que dificilmente se pode dizer
que sejam científicas.
122
Um bom exemplo do que acabamos de falar é o da psico
pedagogia. Esta discip�ina comporta toda uma base de estudo
objetivo, desinteressado, da psicologia da criança, do adoles
cente, etc. Ademais, comporta técnicas de ensino e de forma
ção do indivíduo. Nem por isso ela deixa de combinar-se com di
versas visões do mundo, com variadas concepções do destino
do indivíduo humano, do seu meio social ou dos critérios de
"finalidades" n serem impostos à educação. Assim, quase ine
vitavelmente, 11 doutrina psicopedagógica encontra-se sob múl
tiplos determinantes ou condicionantes da convicção humana
em seu conjunto: ideologias1 filosofias, crenças religiosas, etc.
E isto até parece normal. Deste ponto de vista, não é por acaso
que, diferentemente de organizações que se ocupam com as
outras ciências humanas, a União Internacional de Psicologia
Científica preferiu não aderir ao Conselho Internacional de
Filosofia e das Ciências Humanas. O que se pretendeu, ao que
parece, foi muito mais enfatizar um desejo de guardar suas dis
tâncias. Ora, este simples fato já revela a possibilidade de uma
dependência mais estreita das doutrinas do psicólogo relativa
mente às perspectivas ideológicas próprias ao filósofo.
Dito isto, constatemos também a presença, no seio das
disciplinas e práticas atuais oriundas da psicologia, de um com
ponente epistemológico de natureza crítica e, por assim dizer,
denunciadora da cientificidade que, espontaneamente, a psico
logia procura cultivar. Assim, ao lado desta corrente aparente
mente natural de marcha em direção a um estatuto "científico",
há uma espécie de "contra-corrente" recusando-se a admitir
que a psicologia seja uma "ciência". Já citamos o julgamento
de Foucault sobre as ciências humanas : "não são, em absoluto,
ciências. A configuração que define sua positividade e as enraí
za na episteme moderna, coloca-as ao mesmo tempo fora do
estado de serem ciências. E se nos perguntarmos por que elas
receberam esse título, bastará lembrar que pertence à defini
ção arqueológica de seu enraizamento fazer apelo e acolher a
transferência de modelos tomados de empréstimo às ciências"
( Les mots et les choses) .
Foucault vai mais longe ainda, a propósito da etnologia,
da psicanálise e da ciência da linguagem : ele chega mesmo a
d izer que elas são discip�inas que, relativamente às "ciências
123
humanas" e ao seu projeto, se afirmam como "contra-ciências".
Assim, com o surgimento da psicanálise, a psicologia conteria
em si uma prática que, por método, viria contradizer sua in
tenção, seu esforço e até mesmo seu pretenso estatuto de cien
tificidade. E não são poucos os psicanalistas a pensarem que
a psicanálise se apresenta como uma espécie de condenação
mais ou menos radical da reivindicação "científica" da psico
logia. Lacan, por exemplo, diz isso várias vezes : "estamos de
acordo para dizer que as condições de uma ciência não poderão
ser o empirismo". Em seguida, ele diz que não reconhece a ci
entificidade "daquilo que já se constituiu, com .a etiqueta cien
tífica, sob o nome de psicol ogia". E a razão que e' e apresenta
é a seguinte : "a função do sujeito, tal como a instaura a ex
periência freudiana, desqua�ifica, p�·a raiz, aquilo que se faz
sob o título de psicologia científica : por mais que reabilitemos
,
suas premissas, isto só faz perpetuar um quadro acadêmico .
(Ecrits) .
7. Não se trata, aqui, de aceitar ou de simplesmente re
futar as idéias de Foucault e de Lacan. O que importa é o
reconhecimento de que a psicologia jamais pode ser considera
da como uma ciência acabada, abstrata e fechada. Ao preten
der sempre ancorar-se na certeza de um saber sólido e seguro
( científico ) , ela está constantemente sendo colocada em ques
tão por seu objeto que, aliás, não é um objeto, mas um su
jeito: o homem. Por outro lado, pe�o fato de não ser dogmá
tica nem de estar fundada definitivamente, ela deve colocar
se em questão, porque seu próprio sujeito é fundamentalmente
questionado em sua história e em seu devir. E toda tentativa,
sob pretexto de ctentificidade ou de rigor, que qu�sesse instalar
a psicologia (em seu trabalho de elaboração e de fundamento)
em certezas absolutas e definitivas, colocá-la-ia, ipso facto,
na impossibilidade de encontrar os meios para apreender o
homem como existente, isto é, para desvelá-lo ao mesmo tem
po em seu aparecer e em sua historicidade. Porque a interro
gação própria da psico�ogia se dirige às estruturas, ao sentido
e ao fundamento da presença do homem, tal como ela se ma
nifesta em cada um de seus atos, de suas situações e de seus
comportamentos. O homem não é um ser-substância cujas ati
tudes poderíamos descrever e coisificar. Também não é um
124
ser estático cujo comportamento consistiria em assemelhar-se
mais à sua essência, isto é, a uma definição de seu ser inscrita
na "natureza humana". O homem não é um ente, mas um exis
tente que se toma e!e m e smo fora de si, em sua presença : é
um ser histórico, em devir, de superação. Razão pela qual a
psicologia não pode estabelecer sobre ele um sabet: científico
dogmático.
Nesta perspectiva, devemos observar que, uma verdadeira
psicologia, através da diversidade dos seus pontos de vista so
bre o homem, talvez devesse dar-se por tarefa essencial elu
cidar a relação do homem com o mundo e consigo mesmo.
Porque a presença surge de uma comunicação e de um en
contro homem-mundo. Talvez lhe competisse estudar essa re
lação, sua gênese, seus modos de realização, sua finitude, a fim
de que fosse desvendado, para o homem, aquilo que pode sig
nificar "o seu existir". Talvez fosse nessa interrogação sobre
a existência do homem que devesse fundar-se uma psicologia
fiel a seu "objeto". Ela não pode colocar entre parênteses o
fato de o homem ser um ser-no-mundo, numa relação perma
nente de compreensão do mundo para construí-!o e se recons
truir. Assim, enquanto ciência da compreensão, da comunica
ção e do encontro do homem e do mundo, ela se funda como
ciência do real subjetivo. Não sendo ciência do corpo nem es
peculação sobre a "alma", a psico!ogia deve tomar, por hori
zonte de sua significabilidade, o homem que se compreende no
mundo, compreendendo-se a si mesmo. E é justamente contra
as psicologias que não levam em consideração esses aspectos,
que dedicaremos nosso último capítulo. Para sermos mais pre
cisos, trata-se dessa psicologia que Ludwig von Bertalanffy cha
ma de "filosofia positivista-mecanicista-comportamentalista" re
duzindo o homem a um "automata" infra-humano ( Robots,
men and minds, 1967; utilizaremos de perto a edição espanhola
Robots, hombres y mentes, 1971 ) .
8 . Antes, porém, façamos uma rápida síntese d e a1guns
resultados epistemológicos já obtidos. Até agora, reconhecemos
dois domínios da vida mental em que o estudo empreendido
pela psicologia, conformando-se praticamente com a metodolo
gia da observação exterior a que se submetem as ciências físi
co-biológicas - metodologia que a doutrina behaviorista eri-
125
giu como regra quase absoluta para o estudo da psico1ogia -,
vai descobrir uma positividade objetiva, liberada de toda e
qualquer conexão com a atualidade subjetiva da vida mental .
Esses dois domínios são, de um lado, a sensação produzida pela
ação de excitantes exteriores e físicos ( estímulos ) ; do outro,
o funcionamento racional da inteligência. Em ambos os casos,
a positividade objetiva aparece como aquilo que, em última
análise, pode ser construído a partir de um sistema de identi
dades e de diferenças, cada um i ncorporado a um suporte ma
terial, qualitativo e operatório sui generis. Por exemplo, o sis
tema de identidades e de diferenças incorporado à variedade
dos estímulos sensoriais físicos para cada sentido (luz, som,
etc. ) ; ou, então, o sistema de identidades e de difer�nças in
corporado à variedade de comportamentos a serem observa
dos.
Deste ponto de vista, há uma semelhança com aquilo que
se produz, para a lingüística, com a análise do signo no par
significante-significado. O significante, que é natura'mcntc o
veículo do significado para uma consciência, também é uma
positividade objetiva "liberada" de sua conexão ao significado.
Em ambos os casos, da psico!ogia e da linguística, o que cons
titui a "positividade" da coisa que cai sob as malhas do estudo
positivo, capaz de atingir o resultado positivamente científico,
é o fato de se apresentar como uma entidade construída ou
representável a partir de um sistema de identidade s e de dife
renças incorporado a um substrato material e qualitativo sui
generis: a substância fônica, no caso da linguagem ; a extensão
das ondas sonoras, no caso da excitação visual ; etc.
Assim, relativamente a uma positividade bem formada de
um estímulo, de uma resposta, de um suporte afetivo de infor
mação, a atualidade correspondente, na vida mental, é uma si
tuação epistemológica semelhante à do significado relativamen
te a seu significante. Esta atualidade aí se encontra arbitraria:- .
mente ligada, razão pela qual pode ser . deixada de lado no
momento em que se toma em consideração a posi tividade ob
jetiva a que se acha !atualmente vinculada. Há, portanto, uma
analogia com a separação que se estabelece, no estudo da l fn
guagem, entre o· estudo da constituição e da sintaxe do signi
ficante, e o estudo das funções semânticas: a sintaxe é o estudo
126
da positividade objetiva da linguagem enquanto ela é epistemo
logicamcntc "liberada" da atualidade de sua função semân
tica.
Na medida em que a psicologia atingir esse nível, o estudo
pm>itivo das positividades objetivas torna-se indiferente à in
terpretação psicológica natura! (existência de sensação, de pen
samento, etc., no animal ou no homem ) . A linguagem psico
lógica natural, a propósito das coisas submetidas ao estudo
positivo, nem é indispensável, nem, tampouco, um incômodo
para o estudo positivo, baseado numa metodologia precisa e
bem equi/ada. Mas isto só se torna de todo verdade na medi
da em que a atualidade da vida mental aparecer imediatamente
vinculada à efetividade de uma positividade objetiva. Dois
exemplos: de um lado, a atualidade da vida mental ligada ao
excitante sensorial ; do outro, a atualidade da vida mental liga
da à materialidade de uma linguagem racional.
127
l
feita por Kohler é bastante sintomática de um novo tipo de
crítica: trata-se de "desmaterializar" a introspecção e de "des
coisificar" o que e!a pretende fornecer ao estudo psicológico.
A atualidade da vida mental e os fatos de consciência são algo
completamente distinto de uma espécie particular de "coisa"
oferecida à atenção intuitiva da reflexão consciente. � uma
atualidade ativa onde, de certa forma, tudo está em tudo, cons
tantemente perpassada de perspectivas que a habitam e de
"co1ocações em forma" que a organizam. E é por uma atenção
infinitamente mais livre, mais global, que se deve apreender
essa atualidade ativa, d:scernindo seus traços e especificidades
essenciais, quer dizer, suas estruturas e suas relações de inten
cionalidade interna de momento a momento da vida psico
mental .
A crítica à introspecção será mais contundente na obra de
Politzer, que se exprime em nome da lição psicológica extraí
da dos ensinamentos da psicanálise freudiana. O que ele cri
tica é a atitude intelectualista e o sistema de procedimentos
que fazem do dado mental algo quase imaterial, decomponÍ··
vel em elementos e associável a outros dados mentais, mais ou
menos como fazem os átomos para formar as moléculas. Esta
introspecção materializante e, aliás, can.didamente repressiva
daquilo que o funcionamento vigilante da consciência .tende a
"censurar", deve ser substituída pela apreensão de um fato
mental inteiramente distinto: o fato mental da auto-observa
ção não-crítica, reconstituindo um estado psíquico que apre
sente certa analogia com o estado intermediário entre vigília
e sono. Segundo Politzer, Freud substitui a introspecção pelo
relato, e é isto que o leva a empreender um estudo mais obje
tivo. O relato é estudado pelo psicanalista sem supor que aque
le que faz o relato do sonho, praticando a introspecção me
tódica, seja ele próprio um outro psicólogo. O psicólogo in
trospectivo espera de seu sujeito um estudo já psicológico: ele
sempre supõe, em st:u sujeito, um psicólogo. � isto que torna a
psicologia inteiramente distinta das demais ciências: um mate
mático jamais irá pedir a uma função que se torne "matemá
tica", mas que seja sempre uma "função".
Nessas condições, o método freudiano do estudo da inter
pretação do sonho, graças a seu relato e ao material fornecido
128
pelo trabalho ulterior das "associações livres", não se opõe
apenas ao caráter abstrato e subjetivo da introspecção, mas
representa a antítese do realismo da introspecção. Esta, por for
necer apenas a forma e o conteúdo de um ato psicológico, só
tem sentido na hipótese realista: a psicologia d ássica consi
dera a introspecção como uma forma de percepção. Portanto,
faz corresponder a seus dados uma realidade sui generis: a rea
lidade espiritual ou a vida interi'". E é a introspecção que ii:á
fazer-nos penetrar nesta "segunda natureza" e informar-nos
sobre seus estados. Esses dados da introspecção, que são os
de uma realidade, sugerem, depois, hipóteses sobre a estrutura
dessa realidade. Também essas hipóteses são "realistas". Assim,
através da introspecção, sabemos o que é o mundo espiritual e
I
o que nele se passa.
Politzer acha que a vida psicológica de um indivíduo só ·
129
les que, de ciência, só conhecem . os lugares comuns da meto
dologia. Evidentemente, os psicólogos prestar!m graude serviço
à psicologia ao libertarem-na da velha psychologia rationalis.
No entanto, o que conseguiram fazer, foi construir para ela
um refúgio ao abrigo da crítica. Com o tempo, os psicólogos
como que se sentiram cansados. Sua fé foi logo reanimada pelo
advento do.s "reflexos condicionados". Grande descoberta! Não
tardou muito, e a "psicorreflexologia" também parece ter ador
mecido. Então, as esperanças frustradas renascem com a teo
ria fisiológica das emoções ou das glândulas de secreção inter
na. E após cada período de agitação "objetivista", reaparece
sempre o "monstro vingador" da introspecção. Assim, apresen
tando-se como um novo triunfo do espírito científico, a psico
logia experimental nada mais fez do que humilhá-lo. Porque, ao
in�és de deixar-se fenovar pelo espírito científico e prestar-lhe
serviço, ela simplesmente aproveitou-se de sua vitalidade para
encobrir velhas tradições. E é isto que explica o fato de as
psicologias "científicas" posteriores a Wundt não passarem de
um despistamento da psicologia clássica. A diversidade das ten
dências em psicologia científica representa apenas "renascimen
tos sucessivos desta ilusão que consiste em crer que a ciência
pode salvar a escolástica". E é isto que explica a impotência
do método científico nas mãos dos psicólogos. Aliás, a este
respeito, Bertalanffy lembra que a psicologia é algo muito sério
para ser deixada apenas nas mãos dos psicólogos!
Segundo Politzer, os cientistas formam uma verdadeira
hierarquia. O mundo da quantidade é o mundo próprio dos
matemáticos. Estes nele se movem com relativa facilidade, e
são os únicos a não transformar seu rigor em parada. O em
prego feito pelos físicos da matemática já se ressente do fato
seguinte: ela é, para eles, uma "veste alugada". A envergadu
ra da matemática escapa_ aos físicos. Os fisiologistas, por sua
vez, entregam-se à "magia das cifras", ao entusiasmo pela for
ma quantitativa das leis, como à "adoração de um fetiche".
Quanto aos psicólogos, é de terceira mão que fazem uso da
matemática: eles a recebem dos fisiologistas que, por sua vez,
a recebem dos físicos, os únicos a receberem-na diretamente
dos matemáticos.
130
Ora, a cada etapa, cai o espírito científico. E quando a
matemática chega aos psicólogos, é um pouco de "cobre e de
vidro" que eles tomam por "ouro ou diamante". O mesmo
ocorre com o método experimental. É o físico que tem dele
a visão séria. É entre suas mãos que ele é uma técnica racio
nal que não se degenera em magia. O fisiologista já tem certa
tendência à magia, pois, em suas mãos, o método experimental se
degenera em pompa experimental. O que dizer, então, do psi
cólogo? "Nele tudo é pompa. Apesar de todos os seus protes
tos contra a filosofia, ele só vê a ciência através dos lugares
comuns que a filosofia lhe ensinou a seu respeito. E como lhe
foi dito que a ciência é feita de paciência; que foi sobre pes
quisas de detalhe que se construíram as grandes hipóteses, ele
crê que a paciência seja um método em si mesmo; e que basta
procurar detalhes cegamente para descobrir o Messias sinté
tico. Então, ele chafurda no meio dos aparelhos e se lança, ora
na fisiologia, ora na química ou na biologia; manipula médias
estatísticas, e está convencido de que, para adquirir a ciência,
como para obter a fé, seja necessário imbecilizar-se. É preciso
que se compreenda : os psic6logos são cientistas como os selva
gens evangelizados são cristãos" (Critique des fondements de
la psychologie, 1 967 ) .
A o combater ao mesmo tempo a introspecção e o expe
rimentalismo psicológicos, Poli:.Zer propõe que a psicologia re
tire sua máscara pseudocientífica e retome ao homem concre
to. Para se atingir a objetividade científica desse homem con
creto, a análise de Freud é um elemento importante : "Deve-se
abordar o sonho como um texto a ser decifrado (e não como
uma seqüência incoerente de representação ) . A estrutura da
significação íntima é, na medida em que é significação, exata
mente a mesma que a significação convencional ; e quando que
remos encontrar a primeira, não devemos proceder diferente
mente da maneira como procedemos para estabelecer uma sig
nificação qualquer. Portanto, temos necessidade de elementos
e de pontos de referência; numa palavra, de um contexto.
Por outro lado, se há significações íntimas, é porque o indiví
duo possui, por assim dizer, uma experiência concreta. É pre
ciso, pois, que possamos penetrar nessa experiência concreta,
e só penetramos nela na medida em que o sujeito nos fornece
131
os materiais de que ela é constituída. Donde a necessidade da
démarche fundamental do método de Freud: as associações
livres" ( ibid. ) .
Assim, para Politzer, a psicologia, interessando-se pelo ho
mem concreto, pelo homem vivendo um drama humano, deve
ter por . objeto o comportamento humano. Mas o comporta
mento enquanto ele se relaciona com os acontecimentos no inte
rior dos quais se desenrola a vida humana, e com o indivíduo
enquanto é o sujeito dessa vida. Em suma, o objeto da psico
logia é o comportamento que tem um sentido humano. Sua es
pecificidade é conferida pela existência do p:ano propriamente
humano e da vida dramática do indivíduo que aí se desenro!a.
Esta vida se manifesta nos fatos acessíveis e verificáveis. Tais
são as condições, segundo Politzer, para a psicologia tomar-se
ciência positiva.
Evidentemente, em sua crítica, Politzer utiliza uma lin
guagem bastante inadequada que, por vezes, parece até injusta.
na medida em que é muito severa e radical e na ,medida em
que critica um tipo de psicologia experimental já bastante su
perado. Não é certo que este autor tenha visto exatamente a
natureza dessa "significação íntima" de que fala. Freud vê que
ela vai desta porção da vida mental dita "consciente", desem
t>enhando o papel de significante (no sentido saussuriano) , a
esta porção de vida mental dita "inconsciente" ou "pré-cons
ciente', desempenhando o papel de significado. Contudo, Po
Jitzer percebe claramente a possibilidade de uma nova objeti
vidade científica em psicologia. De certa forma, ela supera
este tipo de psewio-objetividade "subjetiva" a que a introspec
ção tentou dar consistência, bem como a "objetividade" pro
posta pela psicologia experimentalista, pelo menos a de seu
tempo. Politzer ataca não somente os resultados da psicologia,
mas as próprias démarches que os engendram. A mistificação
não se encontra apenas nas respostas, mas já estão presentes
nas questões. E por isso que o behaviorismo, qualquer que tenha
sido a importância das tentativas -.de Watson e de seus seguido
res, representa uma crítica que não desloca os problemas. Para
se obter métodos novos, é preciso que se possa dispor de con
ceitos novos. Donde a importância da crítica à própna psico
logia behaviorista que, por não dispor de conceitos novos para
132
expressar seu objeto, parece ainda estar presa aos velhos mé
todos. Este será o objeto de nossa conc!usão. Evidentemente,
não iremos fazer uma crítica ao behaviorismo psicológico des
de sua origem até nossos dias, mas apenas nos interrogar sobre
a imagem do homem que a psicologia atual, tal ' como ela se
apresenta, cria ou persiste em nos propor. Numa palavra, ten
taremos nos perguntar qual a significação da "psicologia dos
psicólogos", não somente enquanto ela cria uma imagem do
homem, mas enquanto e!a desempenha ao mesmo tempo .fun
ções culturais, ideológicas, terapêuticas, de regulação, de adap-
·
133
v
A "PSICOLOGIA DOS
PSICóLOGOS"
,
1. A "TECNOLOGIA" PSICOLÓGICA
137
tràbalho humano. Todavia, não é à psicotécnica, nem muito
menos à psicologia aplicada, que se refere nosso termo "tec
nologia". Por tecnologia queremos significar a aplicação da
ciência psicológica ao processo social, em resposta à necessi
dade de se "maximalizar" · a exploração e o controle do traba
lho humano, bem como de . "racionalizar" sua produtividade.
Em outras palavras, a "tecnologia" psicológica é um conjunto
de técnicas fornecidas pelo desenvolvimento de estruturas es
pecializadas na elaboração e na utilização de um saber psico
lógico científico. Essas estruturas especializadas dizem respei
to, antes de tudo, aos conhecimentos necessários à descoberta
e ao aperfeiçoamento dos procedimentos materiais da indústria,
dos procedimentos "espirituais" da adaptação social, da adap
tação mental, da aprendizagem escolar, etc.
Portanto, ésta parte de nosso trabalho visa a uma crítica
da "tecnologia" psicológica, tal como ela se apresenta hoje em
dia, como a continuadora e a herdeira legítima do antigo beha
viorismo psicológico, cuja metodologia científica levou a um ol
vidamento progressivo daquilo que há de humano no homem.
Em boa parte, nossa cr.ítica se apoiará nos questionamentos
que L. von Bertalanffy faz da psicologia científica atual, pelo
menos como ela é praticada nos Estados Unidos da América.
Este autor, biólogo de renome, e criador da "teoria geral dos
sistemas", interessa-se muito menos pela crítica especializada
a teorias concretas da psicologia, do que pela crítica a seus
pontos ,de vista fundamentais: os efeitos da ''tecnologia" psico
lógica sobre o homem, os problemas subjacentes à "natureza
humana" e a seus valores modernos que alteram nossa visão do
mundo e nossa imagem do homem.
Com efeito, em sua obra Robots, men and minds, Berta
lanffy chama nossa atenção para o seguinte fato : tudo parece
indicar que o mundo técnico-científico em que vivemos esteja
caminhando e criando, para um futuro não muito distante,
"uma sociedade cibernética do ócio, que não saberá o que fazer
consigo mesma". Assim, torna-se cada vez mais problemática,
em nossos dias, uma ciência do homem e para o homem . . Todas
as pessoas cultas . poderão facilmente dar-se conta desta ilusão
cientificista, produto da mitológia científica do passado : a de
nos proporcionar um "Porto Seguro" social, humano e psico-
138
lógico, mediante o uso da ciência e de seus produtos tecnoló
gicos. Diante de tantas frustrações, · as pessoas intelectualmente
advertidas não podem deixar de exclamar: que desilusão! a ci
ência não é o caminho seguro que nos leva ao paraíso! Ao
apresentar-se como a manifestação da hybris humªna, a ousa
dia científico-tecnológica parece ter desafiado não somente as
leis divinás ou humanas, mas também a própria natureza do
homem. Tudo nos leva a crer que esta "natureza" se nos apre
senta, hoje em dia, como que "esquizofrenizada" em "animal"
e em "algo" que transcende a animalidade. Duas partes dico
tomizadas de uma única e mesma realidade!
Diante disso, quer dizer, dessa "esquizofrenia" do homem
moderno, a psicologia não pode mais permanecer nesta atitude
de "inocência" científica, de crença na "imortalidade científi
ca" de seus fatos descentrados da condição real do homem.
Talvez a psicologia ainda não se tenha dado conta de que
sua desgraça epistemológica reside no fato de tratar de um
objeto (um fato) que fala. Por isso, é de grande importância
a seguinte pergunta : qual o lugar ocupado pela "psicologia no
mundo atual? Não teria ela embarcado nessa grande torrente
técnico-científica que sempre mais conquista e domina o mun
do e o homem, mas também sempre mais esquecendo-se do
fenômeno humano? Ao abandonar o estudo da "natureza hu
mana", para estudar, no homem, apenas seus comportamen
tos exteriores, até parece que a psicologia a recalcou. O filó
sofo Martin Heidegger constata que "nenhuma época acumu
lou, sobre o homem, conhecimentos tão numerosos e tão di
versos quanto a nossa. Nenhuma época conseguiu apresentar
seu saber do homem sob uma forma tão pronta e tão facil
mente acessível. Mas também, nenhuma época soube menos o
que é o homem". E o psiquiatra L. Biswanger reconhece o
mesmo fato, ao ce>nstatar que "nós, os homens, quem somos
e o que somos? Nenhuma época, e muito menos a nossa, pôde
fornecer resposta, e hoje em dia encontramo-nos diante do
primeiro balbuciar de uma nova busca desse Nós" (Le rêve et
l'existence, tradução francesa, 1954 ) .
A o analisar este problema, Bertalanffy chega à conclusão
de que as ciências, sobretudo, bem entendido, as ciências hu
manas, fizeram do homem um verdadeiro autômata. Aliás,
139
também Jacques Monod, tanto em O A caso e a necessidade
quanto numa recente entrevista, chega à conclusão de que a
ciência, hoje, aliena o homem. A ciência é extremamente difí
cil, diz ele; ela se desenvolve com uma força explosiVa; e o
homem moderno encontra-se cotidianamente em face de técni
cas oriundas dela que, fundamentalmente, ele não compreen
de, e que são para ele causa de profunda humilhação. No fun
do, o homem médio nada sabe do que se passa no reino da
ciência. :É por causa dessa humilhação diante do poder. da ciên
cia, que ele se entrega a todo tipo de compensação pseudo
científica ou aos diversos tipos de magia, de feitiçarias mais ou
menos rotuladas de científicas. Por outro lado, a ciência obje
tivrz retira o lugar do homem no universo. Ela faz dele um
,estrangeiro, quase um acidente no universo. Até parece que,
de fato, o homem é um absurdo. As teorias científicas provam
que o homem ocupa apenas um lugar infinitesimal no mundo,
e que este lugar nem mesmo é necessário, que ele é por acaso,
que o homem poderia muito bem não estar aí.
Evidentemente, não podemos responsabilizar a psicologia
científica por este estado de coisas. No entanto, Bertalanffy
não hesita em responsabilizar, por esta situação, pelo menos
em grande parte, aquilo que e!e chama de filosofia "positivista
mecanicista-comportamentalista", predominante, senão em toda
a psicologia, pelo menos em boa parte da psicologia científica
atual, tal como ela é praticada, por exemplo, nos Estados Uni
dos da América. O autor reconhece um fato que não deixa
de ser surpreendente: "grande parte da psicologia moderna é
um escolasticismo estéril e prosopopéico que, provido das vi
seiras de conceitos preconcebidos ou supersticiosos, não . vê aqui
lo que é evidente; é um escolasticismo que encobre a triviali
dade de seus resultados e idéias com uma linguagem absurda
que em nada se assemelha à habitual, nem recorda as teorias
científicas normais, e que facilita à sociedade moderna técnicas
adequadas para ir confundindo a humanidade".
Assim, parece que não há dúvidas de que a psicologia ci
entífico-comportamentalista coloca-nos, de fato, diante do se
guinte dilema: tanto a filosofia quanto a psicologia positivistas
conseguiram esta insólita façanha, reconhece Bertalanffy, de
"serem ao mesmo tempo profundamente frívolas e tediosas,
140
por causa de sua indiferença relativamente às questões huma
nas. Os famosos batalhões de ratos, que se movem dentro das
caixas-problemas de Skinner, têm muito pouco a nos dizer
acerca da condição humana, de nossas atribulações e dos pro
blemas de- nosso tempo". Por isso, a questão fundamental,, para
a psicologia, parece ser a seguinte : poderá ela ser ao mesmo
tempo humana e científica? Aliás, ao elaborar sua epistemolo
gia da psicologia, Pierre Gréco também reconhece que o dra
ma da psicologia atual consiste numa ambigüidade : ao pre
tender tornar-se ciência, ela praticamente deixa de ser uma dis
ciplina humana; e ao fazer-se humana, ela deixa de ser cien
tífica ( em Logique et connaissance scientifique) .
Não resisto, aqui, à tentação de citar uma página de Mi
. chel Bernard (em A Filosofia das ciências sociais, tradução
brasileira, Zahar Editores, 1 9 74 ) , sintetizando a obra de D.
Deleule, La psychologie, mythe scientifique ( 1969 ) . Para De
leule, a verdadeira questão é: "De onde vem a necessidade que
tem a psicologia de pretender-se científica?"
141
um mito, de um "discurso vazio", cujo modelo teórico
é sem dúvida o behaviorismo, mas que se exprime mais
claramente nos trabalhos psicotécnicos sobre as aptidões
e a motivação; ou psicossociológicos sobre a sociometria,
o psicodrama, o sociograma, o training grupo, as técni
cas de entrevista . . . ; ou psicoterapêuticos sobre a rela
ção não-diretiva de Rogers. Em _suma, a psicologia é
uma "ideologia de reserva" que é "reforço sutil da ideo
logia dominante", na medida em que ela contribui . . .
para "uma absorção metódica e estofada do negativo até
sua eliminação sistemática" . . . Em outras palavras, a
psicologia é solidária de um conservadorismo vigoroso·
que, no máximo, tolera um reformismo ingênuo : "Mu
dar o indivíduo para não mudar a ordem social - :mudar
· o indivíduo na esperança de mudar a ordem social : é en
tre esses dois pólos que se de�enrola o trabalho do psi
cólogo". Por mais bem intencionado que pareça ser, o
psicólogo permanece o servidor e o instrumento de um
mito, "atualização presente de certa astúcia da razão".
Por isso, estamos em condições de responder à questão
colocada no início : a necessidade <:la psicologia de pre
tender-se científica resulta da exigência ideológica do sis
tema social que a enquadra e que, por sua vez, ela con
solida. "A psicologia é necessária porque ela é útil ao
sistema".
142.
haviorismo psicológico dos primeiros tempos. Assim, para a
interpretação do comportamento humano ou animal (behavior),
teve um papel decisivo e. fundamental a utilização do esquema
estímulo-resposta (S � R) , também denominado "doutrina da
reação primária do organismo psicofisiológico". É claro que
este · princípio da reação pressupõe o princípio da influência
ambiental ou do ambientalismo. Por não ser conatural ou ins
tintivo, o comportamento humano obedece a influxos que são
exteriores àqueles que determinam o simples organismo vivo.
Esses influxos externos desempenharam um grande papel
no desenvolvimento da psicologia científica. Quem primeiro os
estudou de modo sistemático e metódico foi ' Pavlov, que os
chamou de "condicionamentos". Skinner, por sua vez, chama-os
de "condicionamentos instrumentais". Na terminologia freu
diana, eles recebem o nome de "êxitos vividos" na infância pri
mitiva. Segundo teorias psicológicas mais recentes, os influxos.
externos não passam -de "reforços secundários". E foi basean
do-se nessas concepções que os psicólogos contemporâneos de
inspiração behaviorista chegaram à conclusão de que tanto a
aprendizagem elementar, quanto o ensino e a própria vida hu
mana em geral, podem ser reduzidos a meras reações a con
dicionamentos. Tais psicólogos não encontram dificuldade em
mostrar que tais reações ou resposta<S têm sua origem na in
fância primitiva, com a imposição das normas elementares de
higiene, pelos pais da criança, determinando aquilo que con
vém ao convívio social. Todavia, as reações prosseguem no de
correr do sistema educacional, quer dizer, durante todo o pro
cesso educativo ( ensino ) . Um exemplo típico das reações a
condicionamentos poderá ser encontrado neste método de en
sino calcado no modelo skinneriano de reforço das reações cor
retas e de utilização de máquinas de ensinar ou de programar
o ensiná. Finalmente, numa etapa bem posterior, as reações
a condicionamentos encontram seu termo no homem adulto,
já plenamente incorporado ao sistema sociaL Situa-se, aqui, se
gundo Bertalanffy, o papel fundamental ;desse tipo de psicologia
que ele critica : condicionar o homem. O homem adulto e in
tegrado à sociedade, "é condicionado de forma rigorosamente
científica pelos meios de informação pública de massas, para
fazer dele um consumidor perfeito, ou seja, um autômata que·
143'
responde adequadamente raciocinando de acordo com aquilo
que foi preceituado pelo complexo industrial-militar-político
predominante".
Em termos "intra-específicos" (dentro da mesma espécie) ,
a tendência do "ambientalismo" é reduzir-se a u m igualitaris
mo; em ter-mos "interespecíficos" (entre espécies distintas ) , sua
tendência natural é confundir-se com uni zoomorfismo do com
portamento humano. Ora, o problema crucial que se coloca é o
seguinte : se o comportamento humano é necessariamente "de
terminado" pelos condicionamentos exteriores, não vemos como
os seres humanos possam distinguir-se uns dos outros, nem
muito menos qual a diferença essencial entre o homem e os
animais. Os defensores deste "igualitarismo-zoomórfico" sus
tentam que os mesmos princípios devem ser aplicados a todos
os seres, animais e humanos. O homem não tem nenhum pri.,.
vilégio neste setor. Participa do mesmo "jogo democrático",
como se "democracia", neste sentido, fosse um nivelamento
por baixo. Ademais, segundo ainda os propugnadores desse tipo
de "democracia" que podemos chamar de "zooantropomorfis
mo", o princípio de reação a condicionamentos deve pressupor,
em sua base, toda uma teoria do equilíbrio do comportamento.
Para eles, o estado natural do organismo é o estado de quie
tude. Todo estímulo ou excitação exteriores é um elemento
perturbador do equilíbrio. A reação comportamentalista viria
restabelecer o equilíbrio perdido (homeostasis = satisfação das
necessidades ou re1axamento das tensões ) . As necessidades se
riam puramente biológicas. Por isso, o comportamento, quer
animal quer humano, deveria ser o ponto de apoio para a in
terpretação e para a orientação do ser humano. Aquilo que é
peculiar ao homem, é secundário, e acaba por reduzir-se a
impulsos biológicos e a necessidades primárias.
A nosso ver, os conceitos elaborados por Piaget de assi
milação e de acomodação vêm reforçar essa teoria do equilíbrio
do comportamento. Com efeito, em sua Introduction à l' épisté
mologie génétique ( 1950 ) , ele mostra que toda conduta huma
na é uma adaptação; e que toda adaptação é o restabelecimen
to de um equilíbrio entre o organismo e o meio. Toda ativi
dade implica um desequilíbrio momentâneo, e o retorno ao equi
líbrio se faz por um sentimento provisório de satisfação. Neste
144
esquema, Piaget vê na "assimilação" e na "acomodaÇão" os
dois pólos da adaptação, num sentido ao mesmo tempo bioló
gico e mental. Todo ser vivo tende a "assimilar" o mundo am
biente a seu organismo e a seus esquemas de ação e de pensa
mento. Se a assimilação tende a conservar a forma do organis
mo, a acomodação intervém relativamente às condições exte
riores, em função das quais o organismo se modifica. Do ponto
de vista cognitivo, a assimilação é perceptiva · e sensório-mo
triz, o objeto sendo percebido relativamente aos esquemas an
teriores, isto é, ao conjunto das operações mentais de que o
sujeito dispõe. Haverá "acomodação", quando os esqu;emas
anteriores forem transformados para adaptar-se às proprieda
des de um objeto novo que resiste. Sob seu aspecto afetivo,
porém, a assimilação confunde-se com o interesse, ao passo
que a acomodação se confunde com o interess e pelo objeto
návo. Assim, a adaptação é sempre um equilíbrio. E este é
atingido quando um objeto, sem resistir demais para ser assi>
milável, resiste o suficiente para ser "acomodado". Evidente
mente, esta tendência à assimilação, que se manifesta em dife
rentes níveis (fisiológico, prático, intelectual ) , é ao mesmo
tempo um fenômeno dinâmico (o sujeito tende a estender sua
esfera de ação a uma parte sempre mais vasta do meio ambien
te) e conservador (o sujeito tende a conservar sua estrutura
interior e tenta impô-la às condições exteriores) .
Assim, dentro do esquema dirigido pelo princípio da rea
ção comportamentalista, não vemos como o comportamento
possa deixar de ser governado por princípios utilitários. Por
que, em última instância, a razão de ser de todo comporta
mento não seria outra senão a de conservação do indivíduo
e a de preservação da sociedade. Deste ponto de vista, o com
portamento �eria detf!rminado por um princípio meramente eco
nômico : atingir o alvo preceituado com o mínimo gasto pos
sível, quer dizer, alcançar um optimum equilíbrio psicossocial
capaz de responder às exigências externas com reações refor
çadas. Ademais, neste sentido, é bastante natural que os �o
delas do comportamento humano sejam buscados nas máqui�
nas, nos animais, nos indivíduos enfermos e nas crianças de
tenra idade. Nas máquinas, diz Bertalanffy, "porque a condu
ta acaba por ser explicada em termos da estrutura aparentemen-
145
te mecânica do sistema nervoso"; nos animais, devido "à igual
dade dos princípios do comportamento animal e humano e
porque podem mais facilmente ser 'manipulados"; enfim, nas
crianças de tenra idade, "porque, nelas, como nos casos patoló
gicos, é mais fácil do que nos adultos normais o discernimento
dos fatores. primários".
Não se pode negar, no mundo atual, o prestígio de que
goza a psicologia baseada no princípio das reações reforçadas.
Neste particular, ninguém duvida de que as teorias psicológicas
tenham imensas aplicações na vida social, sobretudo através
das inúmeras "manipulações" possíveis e de fato do comporta
mento humano. Por outro lado, ninguém pode contestar a efi
cácia desse sistema "manipulatório" montado sobre bases da
ciência psicológica. Se não fosse assim, como se explicaria o
interesse crescente, não somente demonstrado pelos anuncian
tes publicitários, mas pelos partidos políticos e pelos gover
nantes, em relação às técnicas psicológicas? O objetivo não
declarado de tais empreendimentos, utilizando-se do esquema
estímulo-reação ou do princípio da reação reforçada, consiste,
de fato, em restringir as possibilidades que o homem possui
de fazer uma opção livre. Na realidade, esses empreendimentos
limitam tudo aquilo que, no comportamento humano, não seja
a expressão de uma atividade "autômata', quer dizer, reflexa,
condicionada e automatizada: o comportamento explorador e
criativo, por exemplo. O que importa, no comportamento hu
mano, é a manutenção do princípio do equilíbrio ou da atenua-:
ção das tensões. Evidentemente, nada disso é capaz de condu
zir a um estado beatífico de nirvana. Pelo contrário, trata-se
de uma atitude capaz de provocar no indivíduo uma série de
perturbações mentais ou, como diz Bertalanffy, capaz de levá
lo "a estados psicopáticos ou a uma abulia de interesse que
acaba, algumas vezes, em neurose existencial e em suicídio.
Os delinqüentes juvenis que cometem crimes para divertir-se,
a nova psicopatologia provocada pelo ócio, os cinqüenta por
cento dos enfermos de nossos manicômios, tudo isso demonstra
que o esquema do homem autômata não é válido".
O que pode ser contestado a esse tipo de interpretação,
é o fato de a maioria esmagadora dos psicólogos atuais ter
abandonado, conío insatisfatório, o esquema behaviorista do
146
estímulo-reação. Vimos, por exemplo, como Paul Fraisse mos
trou a insuficiência, tanto do esquema S � R quanto do
esquema S � O � R, para propor à ciência psicológica
uma démarche intelectual ao mesmo tempo natural e episte
mologicamente mista de aliança entre aquilo que é imediata e
efetivamente observável e aquilo que, conhecido de outra for
ma (fatores de "personalidade" ) , vem situar-se como princípio
intermediário, tanto de explicação quanto de encadeamento da
conexão entre estímulo e resposta. Evidentemente, a psicolo
gia científica atual não aceita mais os dogmas do behavioris
mo nascente. Tampouco admite que Watson, Hull ou mesmo
Skinner tenham descob�rto a grande "fórmula laplaceana da
conduta". Até mesmo o reduto da psicologia científica, a teo
ria da aprendizagem, passa hoje pelo crivo da crítica, pois os
condicionamentos instrumentais de Skinner revelaram sua fra
queza para constituir um ensino verdadeiramente "significati
vo" num homem dotado de funções simbólicas. O grande lin
güista N. Chomsky, por exemplo, demonstrou categoricamente
que a aprendizagem espontânea da linguagem é manifestamente
irredutível aos modelos skinnerianos de ensino programado às
línguas (Language, 35, 1 9 59 ) . ,,
Não obstante, não se pode negar que a psicologia que
predomina atualmente, esta psicologia utilizada pelos psicólo
gos para fins determinados por não-psicólogos, ainda segue em
larga escala o esquema behaviorista do estímu[o reação. Se
..
147
indivíduos, raças e espécies; inclusive, o comportamento no
interior de uma espécie é também distinto. Só não percebe
isso quem está preso a preconceitos injustificáveis, a idéias
preconcebidas baseadas numa teoria ingênua sobre o igualita
rismo dos seres vivos. Ora, esta atitude revela um profundo
falseamento q.a realidade, devido, sobretudo, à carência de
uma teoria consistente em psico!ogia. Não se pode mais argu
mentar que a psicologia seja uma ciência "nova". Tampouco
se pode invocar que os psicólogos behavioristas tenham inven
tado um novo "método científico". Tudo. isso é falso. :E: preci
so que se reconheça que o defeito fundamental dessa psicologia
provém da "penúria de noções e do efeito assustador das idéias
preconcebidas, que não pode ser compensado através da in
vestigação acerca da cadeia de montagem".
Portanto, quaisquer que sejam as alterações "metodológi
cas" ou simplesmente "técnicas" introduzidas no esquema be
haviorista estímulo-reação, o fato é que ele ainda predomina,
em larga escala, pelo menos no ensino da psicologia acadêmi
ca atual. Para nos convencermos disso, basta darmos uma
olhada na bibliografia mais recente. Evidentemente, como já
frisamos, muitos psicólogos dizem que foram intercalados, en
tre o estímulo e a reação, vários mecanismos hipotéticos, va
riantes intermediárias e fatores auxiliares. Todavia, tais meca
nismos não introduziram nenhuma mudança substancial nos
conceitos básicos. Na verdade, o que está faltando à psicologia
acadêmica? No dizer de Bertalanffy, aquilo de que necessita
mos, não somente na psicologia, tal como ela é ainda ensinada
hoje em dia, mas sobretudo na vida moderna, "manipulada
pelos psicólogos propulsores do automatismo nos meios de in
formação, nos anúncios e na política, não são novos mecanis
mos hipotéticos que expliquem melhor as peculiaridades do
comportamento do rato de laboratório; o que precisamos é de
um novo conceito do homem".
Portanto, para a psicologia, muito mais importante do que
suas sutilezas acadêmicas, é o fato de ela constituir hoje uma
força social de primeira ordem. Enquanto tal, a psicologia
modela para o homem sua própria imagem e "governa" a so
ciedade. E a imagem que ela modela é a do homem-autômato,
dQ bom em como máquina que pode ser programada, assim des-
148
crita por Bertalanffy : "todas essas máquinas, idênticas aos au
tomóveis saídos da cadeia de montagem; o equilíbrio ou a co
modidade como desideratum; o comportamento como uma o�
ração comercial de gasto mínimo e lucro máximo : eis a ex
press�o perfeita da filosofia da sociedade comercial. Estímulo
reação, ingressos-saídas, produtor-consumidor, tudo isso cor
responde ao mesmo conceito expresso em termos distintos. As
idéias fundamentais da psicologia convencional são idênticas
às da "filosofia pecuniária" do mercantilismo. Na filosofia do
anunciante existe um "receptáculo cerebral" - a caixa-negra
dos psicólogos - que deve receber fras�s publicitárias com
exclusãó das demais; na "lógica pecuniária", - a realidade e a
verdade são substitujdas pelos desejos sonhados e pelo condi
cionamento conseguido pela arte do anunciante; e as pessoas
são manipuladas como os gigantescos ratos de Skinner".
Nesta lógica pecuniária, vamos deparar-nos com um "ho
mem pav!oviano". Com efeito, a publicidade e a propaganda
apóiam-se nas pulsões mais fundamentais do ser humano, não
para liberá-las, mas para utilizá-las e desviá-las para seus pró
prios fins. Trata-se de tornar o homem vítima de suas próprias
pulsões inconscientes. Assim, pela publicidade e pela propagan
da, o homem é condicionado, como um animal de laboratório,
a reagir a situações con;dicionad:as , cujas condições lhe
são ocultadas. Como para o animal, emprega-se certa "lin
guagem" podendo agir sobre o indivíduo: utilização de um
sistema de signos de tal forma que possam ser imediata
mente compreendidos e desencadeiem a açã() desejada. Em
suma, trata-se de transferir, para a ordem humana, aquilo que
o experimentaçior realiza em . seu laboratório q1Jando _ çondkiQna
um animal.
O desenvolvimento atual oda psicologia deve-se, sobretudo,
'
além de seu aspecto terapêutico, ' às possibilidades práticas qlie
ela coloca à disposição de atividades diversas. A publicidade
e a propaganda são casos privilegiados. Mas não são os únicos.
Sem falarmos de sua importância para a . orientação educacio
nal ou profissional, a psicologia encontra outros terrenos de
aplicação, onde sua eficácia é incontestável : a organização das
empresas, dos Jazeres, de programas de televisão, as comuni
caçpes, o comércio em geral, etc. E esta ampliação de seu cam-
149
po de aplicação deve-se à descoberta da eficácia de seus mé
todos. Evidentemente, este princípio da eficácia, embora não
possa ser contestado, levou à negligência das condições de
rigor científico. Se Freud afirmava a necessidade de um cons
tante "ir e vir" entre a teoria e a prática, parece que a psi
cologia se esqueceu bastante da teoria em proveito da prática.
Os conceitos utilizados, na maioria das vezes tomados de em
préstimo, são geralmente aproximativos e não criticados. A isto
se acrescenta uma ausência de crítica concernente ao sentido
da prática psicológica. Sem falarmos da recusa de considerar
as conseqüências sociais e econômicas dessa prática.
:É certo que a psicologia se equipou dos meios técnicos
necessários para abrir-se a domínios novos e mais amplos. O
abandono da querela entre psicologia e sociologia permitiu
lhes uma colaboração frutuosa. As técnicas de entrevista, de
análise, de depoimento permitiram à psicologia cobrir domí
nios que até então lhe eram vedados. A essas técnicas, deve-se
acrescentar a utilização sistemática de enquetes, das estatísticas
e dos métodos experimentais. Bem entendido, não se pode es
quecer todos os instrumentos de medida ou de observação que
a tecnologia moderna colocou à disposição da psicologia. Todos
esses meios permitiram-lhe dispor de uma enorme massa de
informações. Uma das conseqüências desta abundância de ma
terial informativo é a diversificação cada vez mais acentuada
das pesquisas e das práticas psicológicas e, correlativamente,
de corpos de especialistas. :É claro que este estado de coisas
não apresenta inconvenientes sérios. Contudo, pelo fato de estar
ligado ao imperativo de uma eficácia da prática psicológica,
coloca dois problemas : a) em primeiro lugar, parece parado
xal que uma ciência cujos conceitos são discutíveis, seja, in
contestavelmente, de uma eficácia real : como se explica a in
tervenção eficaz aliando-se a uma fraqueza teórica?; b ) em se
gundo lugar, mesmo supondo-se este problema resolvido, po
demos perguntar se a prática concreta da psicologia, apesar da
incerteza de seus fundamentos científicos, não constitui o fato
mais favorável ao reconhecimento de seu valor e de sua au
tenticidade. Este segundo aspecto, na medida em que ele enga
ja o futuro da psicologia, deve permanecer, pelo menos por
150
enquanto, no nível da problematização. Daremos aqui algumas
indicações, mas apenas sobre o primeiro problema.
Como a psicologia, tendo fundamentos conceituais defi
cientes, pode ser _tão eficaz?. Todo o estudo das atitudes e das
motivações leva-nos a perceber que a psicologia se funda, antes
de tudo, sobre a observação dos comportamentos, das condutas
dos indivíduos. Desta observação dos comportamentos e das
condutas, ela extrai certos elementos, julgados semelhantes em
todos os indivíduos. Somente depois, a pesqui�a das motivações
extrai de •SUa observação que, numa situação dada ( sociológi-
. ca, econômica, cultural), os indivíduos compram ou não este
ou aquele produto. Então, ela falará de um comportamento
de compra ou de um comportamento de recusa do produto por
determinada população. Tal comportamento deve ter uma razão
ou uma causa. É esta causa que se trata de determinar, de
modo a tornar possível uma intervenção capaz de modificar
o fenômeno.
O que se pode notar é que, se esta análise, que deliberada
mente esqueceu o indivíduo enquanto tal, é eficaz, é porque
ela visa a manipular· aquilo que, nos indivíduos, é menos as
sumido. A psicologiá permite uma intervenção real sobre os
indivíduos, porque ela se contenta em procurar saber como uma
coação dissimulada pode agir de modo máximo. É neste sen
tido que podemos dizer que ela não engaja a descoberta e o
encontro de um real: ela é intervencionista. Não se trata de
negar que a pesquisa das motivações, por exemplo, seja capaz
de utilizar dados teóricos coerentes: é o caso da psicologia
psicanalítica. O problema consiste em dizer que tais pesquisas
procedem sempre por generalização, quer dizer, por abstração,
fazendo apelo à sua eficácia. Houve um tempo em que se con
siderava as pauladas e as chicotadas como meios eficazes para
curar os loucos e outros "marginais". Este método só era eficaz,
evidentemente, para aqueles sobre os quais ele era aplicado.
Talvez a. eficácia da psicologia das atitudes e das motivações
�eja da mesma ordem!
··Esta rápida análise de alguns dos efeitos de uma psicolo
gia comandada por uma "lógica pecuniária" já pode indicar a
necessidade que temos de tomar consciência da força e dos
limites da psicologia manipuladora e da "engenharia" comporta-
151
mentalista. Se manipularmos certos animais, segundo os proce
dimentos de Pavlov, de Thorndike ou de Skinner, obteremos
os resultados descritos por esses autores. Quer dizer: se esco
lhe�os, na relação comportamentalista, as reações que podem
ser dominadas com um castigo ou uma recompensa, reduzimos
os animais a máquinas que reagem a estímulos autômatas. O
�
mesmo pode ser dito · do ser humano, sobretudo, so o efeito
de uma campanha publicitária cientificamente bem dirigida. A
psicologia atual dispõe de poderosos recursos para converter os
seres humanos em autômatas infra-humanos. Tudo depende de
uma questão de técnica psicológica! Contudo, ao se fazer isso,
o mínimo que se pode dizer é que se desumaniza o ser huma
no, da mesma forma como se "desratiza" o rato. O rato é inse
rido num "universo surrealista", onde é eliminado tudo o que
lhe possa interessar em seu meio natural. Não se sabe o que se
passa com o rato nas caixas de Skinner. Ele é escolhido para
o laboratório por ser um animal "estupidamente dócil". Quanto
ao ser humano, também levado a um mundo surrealista pela
arte de persuadir, ele é "docilizado" pelos mecanismos e téc
nicas psicológicos que o tornam, por exemplo, um "compra
dor" autômata de quase tudo. O paralelismo entre os consumi
dores condicionados e os cães condicionados de Pavlov é bas
tante conhecido dos homens de negócio.
152
talvez fosse necessário parar : está fixado aí o fim do discurso!
e talyez o reinício do trabalho!" (Les mots et les choses) .
Não se trata, aqui, de negar o valor nem muito menos a
utilidade social da psicologia. Trata-se simplesmente de ques
tioná-la. En_quanto "ciência" do subjetivo, ela nasceu com
Freud. E parece que tenha morrido ao mesmo tempo que ele,
pois visa a dar a seu objeto a função das coisas, esquecendo
se do homem. Enquanto prática social, a significação real da
psicologia dyve ser procurada nas funções que ela exerce. Não
se pode negar sua crescente manipulação econômica e políti
ca, seu sentido repressivo no nível das instituições psiquiátri
cas ou de reeducação, sua absorção pelas ciências médico
biológicas e seu papel de simples "figurante" no nível do en
sino e da aprendizagem. Parece que ela padece de um vício
de origem e de crescimento desordenado. E isto, apesar da abun
dância de publicações, de pesquisas, do "papel" que desempe
nha nas estruturas sociais e do prestígio ambíguo de que goza
no mundo atual. São incontestáveis as realizações dessa disci
plina ainda não centenária. Nascida da marginalidade, isto é,
da pesquisa clínica, a psicologia, enquanto ciência do subjeti
vo, teve um desenvolvimento surpreendente e conquistou novos
meios. Podemos até dizer que nenhum problema concernente ao
homem foi deixado por ela na sombra, mesmo que alguns pro
blemas tenham sido mal explorados. De ciência oculta, a psico
logia passou ao estado de ciência reconhecida, conquistando seu
direito de cidadania. No entanto, ela corre o risco de ser ab
sorvida ou "recuperada" por aqueles que dela se utilizam. Neste
sentido, ela j á revela sinais de "cansaço", pois é utilizada, não
tanto em função de suas exigências próprias, mas a partir das
necessidades que tem a sociedade atual de resolver alguns de
set:Ls conflitos e contradições. Por exemplo, ao restituir a pa
lavra ao indivíduo "alienado", ela corre o risco de perder a
palavra, de tornar-se muda e de receber suas formas e determi
nações de exigências nada psicológicas. É o caso de nos per
guntarmos se ela não se teria esquecido . de que s�a palavra é li
bertadora. Talvez ela corra o risco de deixar-se afogar, em
sua prática atual, pela facilidade de seus resultados.
Se olharmos objetivamente para as realizações da psico
logia atual, talvez possamos constatar facilmente que sua pri-
153
meira preocupação, tal como a determinam a sociedade .e suas
instituições, seja a de adaptar e integrar sempre mais o ho- ,
mem à sociedade : adaptação ao trabalho ( estimulante da pro
dução, da venda e da publicidade) ; a.daptação e integração fí
sica, psicológica, espiritual do homem ao seu meio (do louco
ao hospital, do mutilado em vista da reeducação, da criança ao
programa e à instituição escolares ) , etc. E na medida em que
planifica humanamente o meio, a psicologia está em vias de
tornar-se um anexo ou um apêndice das ciências do meio am
biente, um capítulo da ecologia. Nesta perspectiva ecológica,
seu êxito é inegável, pois dispõe de meios técnicos para seu
trabalho de integração e de adaptação. Se ela tem necessidade
de adaptar o homem ao meio e o meio ao homem, é porque
este está desadaptado relativamente às estruturas tecnológicas,
científicas, econômicas e culturais da sociedade atual. Ela viria
preencher este vazio entre o homem e seu meio, praticamente
desempenhando o papel da moral clássica. Talvez seja por isso
que Canguilhem reconheça que, de fato, "muitos trabalhos de
psicologia nos dão a impressão de que misturam a uma filosofia
sem rigor uma ética sem exigência e uma medicina sem con
trnle. Filosofia sem rigor, porque eclética, sob pretexto de ob
jetividade; ética sem exigência, porque associa experiências eto
lógicas sem crítica : a do educador, a do confessor, a do chefe,
a do juiz, etc.; medicina sem controle, pois dos três tipos de
doenças mais ininteligíveis e menos curáveis ( doenças da pele,
doenças dos nervos e doenças mentais ) o estudo e o tratamento
dessas duas últimas sempre forneceram à psicologia observa
ções e hipóteses" (Études d'histoire et de philosophie des sci
ences) .
Outra função muito importante da psicologia pode· . ser de
nominada de cultural ou ideológica. Trata-se de uma função de
explicação. Seu objetivo é apresentar uma imagem do homem
e do conhecimento que se desenvolve graças às pesquisas reais,
mas, sobretudo, graças à ' vulgarização , dessas pesquisas. Assim
como o indivíduo da Idade Média tinha certa compreensão de
si mesmo, graças ao "modelo" explicativo que lhe propunha
a Igreja, da mesma forma o indivíduo de hoje tem uma imagem
de si mesmo à qual a psicologia não é estranha. E assim como
hoje o homem comum não é cientificamente iniciado na psico-
154
logia, também o homem comum não era, na Idade Média, ini
ciado .nas sutilezas teológicas. Em ambos os casos, a imagem
do homem e das possibilidades de seu conhecimento responde
a uma necessidade de adaptação. do comportamento dos indi
víduos às necessidades de um sistema sócio-cultural determi
nado.
Certamente, a psicologia desempenha outras funções so
ciais no mundo de hoje, tais como a função terapêutica, a
função reguladora e redutora de conflitos, etc. Mas voltemos a
seu papel de substituto da "moral" clássica. Como sabemos,
esta aprisionava o homem. No entanto, apesar de "aliená-lo",
a moral dava-lhe a ilusão de ser espiritualmente livre, pois ele
podia interiorizar sua condição e acreditava piamente na pos
sibilidade de melhorá-Ia. Todavia, o declínio do humanismo
clássico e da moral tradicional não possibilita ao homem de
hoje considerar-se como "pura" liberdade. Tudo indica que as
estruturas sociais, econômicas e técnicas conduziram a liber
dade à condição de uma palavra vazia de sentido. Sobretudo
se levarmos em conta nosso mundo, às voltas com a "modela
gem" e com· a "manipulação" do homem. As estruturas da sub
jetividade humana foram profundamente atingidas. O homem
não pode mais refugiar-se em sua subjetividade, baluarte. de__
155
humanitária", tratando de restituir ao homem os meios de ele
recuperar sua dignidade, seu desabrochamento e sua liberdade.
Sem dúvida, esta intenção seria sumamente louvável se os re
sultados não fossem inversos àqueles que são obtidos na práti
ca. Porque, ao que nos parece, adaptar o homem à sociedade,
não é uma exigência fundamental da psicologia. Enquanto ciên
cia do subjetivo, e não do homem em geral, produto da cultu
ra; enquanto ciência da libertação humana, e não da integração
social do homem; enquanto ciência da palavra redescoberta, e
não adaptada e modelada pelas estruturas sócio-econômicas;
enquanto ciência do inconsciente, e não da racionalidade técni
ca_ e tecnocrática; enfim, enquanto ciência da criatividade, e não
das mentalidades etiquetadas, planificadas e estereotipadas, a
psicologia não pode reduzir-se a um conjunto bem orquestrado
e "cientificizado" de r{!ceitas e de práticas que adaptem o ho
mem, impedindo-o de falar autenticamente nas estruturas sócio
político-econômico-culturais. Ao invés de ser esta "ciência" que
possibilite ao homem redescobrir o sentido de sua palavra, não
raras vezes a psicologia atual contribui para aliená-lo num dis
curso que não emana dele, mas de seu meio ambiente.
Ora, se a psicologia atual, em sua prática, não consegue
libertar a palavra do homem, de uma vez que ela é "recupera
da" pelos imperativos econômicos e sociais, talvez tenhamos
sérias razões para reconhecer, neste simples fato, os limites de
seu campo de investigação. Sem falarmos de seu modo de rea
lização. Todos sabemos quanto a maneira de a psicologia ser
praticada, em nossos dias, perdeu sua autodeterminação : seu
modo de realização é determinado por condições extrapsicoló
gicas, conseqüentemente extracientíficas. Assim, ela recebe seu
estatuto, seus objetivos, sua razão de ser, não mais dos inte
resses internos ao domínio psicológico, mas das necessidades
que tem a sociedade de fazer apelo aos métodos e . técnicas
psicológicos para resolver, pelo menos em parte, alguns de
seus conflitos e de suas contradições. Portantó, a psicologia
cada vez mais recebe de fora suas normas, seus meios, sua efi
cácia e praticamente tudo o que constitui sua realidade de
ciência. Freud j á havia tentado utilizar a psicanálise para a
compreensão dos fenômenos culturais. Posteriormente, os psi
cólogos sociais - (K. Lewin, Moreno) tentaram fornecer à psi-
156
cologia métodos e técnicas para a análise e a compreensão des
ses fenômenos. No entanto, diferentemente da economia ou da
sociologia, a psicologia permanece incapaz de compreender
esses fenômenos. Talvez porque não tenha conseguido encon
trar os meios adequados de· investigar tudo o que se afasta da
subjetividade e da linguagem; ou, então, porque não tenha
conseguido tomar o necessário recuo teórico para fundar sua
démarche como ciência social; ou, ainda, porque o subjetivo
interfere muito pouco no plano das modificações sociais; en
fim, porque seus conceitos fundamentais e seus instrumentos
de análise são por demais "impotentes" para permitir-lhe a
apreensão do real social.
:E: possível que todas essas razões expliquem o fracasso
da psicologia para analisar o homem em sociedade. Muito
mais voltada para as formas de ação típicas do século XIX,
parece que a psicologia se sente incapaz de integrar e de pro
mover, por si mesma, o extraordinário desenvolvimento ex
perimentado por outras ciências (economia, informática, as
diversas formas de tecnologia) que atuam de modo decisivo so
bre o homem em sociedade. Aquilo que se pede à psicologia
párece relevar, quer da utopia, quer de uma prática social lem
brando certos "serviços sociais . e caritativos" para remendar as
falhas do sistema. Dizer que a psicologia presta serviço social,
é reconhecer que ela se situa politicamente, que ela aparece
como o prolongamento direto de uma política social, mesmo
que suas formas de ação se revistam das mais modernas formas
de linguagem e de técnicas psicológicas. Quando um psicólogo,
por exemplo, avalia os quocientes intelectuais ( Q.I. ) , quando
ele testa o pessoal de uma empresa, quando consulta crianças
para descobrir seu "retrato" psicológico, quando se põe a ser
viço de uma agência de publicidade ou de sondagem de opinião,
o que é qm�, de fato, ele está fazendo? Não estaria na depen
dência do :Poder econômico e de seus interesses, para determi
nar o lugar do homem na sociedade?
Ao colaborar eficazmente para integrar e adaptar o indi
víduo à sociedade, não aparece a psicologia como um álibi
ou a boa consciência dos conflitos e contradições sociais? Não
é raro o psicólogo viver numa ambigüidade cheia de conse
qüências. Ele pode refugiar-se por detrás de sua ciência e de
157
seus aparelhos técnicos, ou ancorar-se em seu saber especiali
zado, a fim de recusar-se a perceber o papel real que lhe é
atribuído atualmente pela sociedade. O que esta lhe pede, antes
de . tudo, é que faça seleção profissional, mantenha contatos
clínicos, realize testes, faça sondagens de opinião, faça reci
clagem de pessoal, analise as estruturas de comunicação nas
empresas, etc. Teria ele consciência desse papel? Por ser re
presentante do humano no seio das estruturas, ele pode ser
levado a ter a boa consciência de ser o homem que aprimora
a condição de seus semelhantes. Contudo, não seria o humano
apenas um refúgio? Nem sempre o psicólogo está consciente,
ou finge ignorar o lugar e o papel reais . que desempenha. na
sociedade. Aliás, trata-se de papel e de lugar, pois quase sem·
pre suas reivindicações dizem respeito a salários, a estatutos
profissionais e a melhor integração nas instituições. Esta preq
cupação profissional, evidentemente, é legítima, de uma vez que
as faculdades universitárias "formam" mais psicólogos do que
realmente é necessário em função dos empregos existentes.
Aliás, podemos até duvidar se os psicólogos recém-formados
estejam plenamente conscientes das exigências fundamentais de
sua ciência. E não raro acusam de "idealistas" ou de "inte
lectuais" aqueles que pensam que o exercício do metiê de psi
cólogo está em contradição com a prática atual. Uma vez que
se tornam empíricos ( "cientistas" ) e estão sobrecarregados
com problemas financeiros e com seu estatuto profissional, mui
tos psicólogos pensam que o ideal da profissão é atualmente
realizado nos Estados Unidos da América. E quanto mais ti
verem seu estatuto profissional reconhecido, menos capazes se
rão de questionar sua prática, pois recebem seu estatuto de
uma sociedade que espera deles que adaptem e integrem cada
vez mais os indivíduos a seu meio; que espera deles, ainda, que
reduzam os conflitos existentes. Sobre este particular, façamos
algumas observações.
158
ção", por um sistema social ou determinada cultura, dos ele
mentos que deles se afastam, se desviam ou tentam denunciá
los. Assim, o papel social do psicólogo é, antes de tudo, o de
reduzir toda forma de conflito podendo intervir entre uma es
trutura e os elementos que nela se inserem. E qualquer que
seja a estrutura na qual se insere a prática psicológica ( estru
turas de informação, hospital, escola, etc. ) , podem surgir entre
uma norma social (econômica, cultural ou outra) e o compor
tamento dos indivíduos pertencendo ao sistema que a norma
protege. O exemplo menos favorável é o da publicidade : o
papel do psicólogo é o de reduzir, em proveito da publicidade,
um conflito existente entre um comportamento de compra e
uma norma . de consumo. Até parece que a psicologia, como
redutora de conflitos, tende sempre a se exercer em beneficio
da norma que impõe um comportamento : o desvio da norma
não tem razão de ser, motivo pelo qual a psicologia aparece
para "reajustar" os "desviados". Neste sentido, ela é uma prá
tica humanística, mas no sentido em que oculta aos outros e
a si mesma a função de "amortecedor social" que ela é cha
mada a desempenhar.
159
ato de adaptação a uma realidade securizante para o próprio
psicólogo. Ele tenta afastar toda palavra provocadora e diver
gente da norma. A história da psicanálise pode ilustrar o caso
da psicologia.
Desde sua origem, o movimento psicanalítico esbarrou com
séri·as dificuldades : entre elas, a da formação de seus psicana
listas. Os critérios utilizados para o recrutamento e a seleção
revelam-nos a imagem que os membros das sociedades psica
nalíticas se fazem de sua prática . Com efeito, antes de exerce
rem a psicanálise, devem submeter-se a uma "psicanálise di
dática". Através desta, eles recebem uma certa concepção do
homem e da psicanálise. Trata-se de uma seleção que não exis
tia no tempo de Freud, mas que hoje exige ainda cartas de
recomendação, a realização de alguns testes ou entrevistas. De
fato, a psicanálise não obedece a critérios rigorosamente cien
tíficos para o recrutamento de seus candidatos chamados de
"normais" : não muito neuróticos, apresentando úm "ego for
te", etc. Ainda aqui, há uma adaptação às normas daqueles
que detêm o poder. A psicanálise como procura de um ser
sobre si mesmo, como busca de sua própria verdade, é substi.,.
tuíd� por uma psicanálise que permanece nas camadas super
fiçiais da personalidade : a psicanálise do "ego" como instância
a_daptadora ao real. Neste sentido, pelo menos nos Estados Uni
dos da América, ela é uma etapa necessária para um status so
cial, como constata M. Mannoni (Le psychiatre, son "fo u" et
la psychanalyse) . Em outros termos, ela é recuperada ao nível
do funcionamento do sistema social, pois permite aos indiví
duos adaptarem-se aos diferentes meios de vida: "Nesta situa
ção, a psicanálise autêntica é chamada a desaparecer. Ela só
deverá sobreviver ao preço de uma não-integração ao aparelho
administrativo do Estado. E é vivendo à margem de todo reco
nhecimento, num lugar onde ela será maldita como á peste,
que conseguirá redeséobrir o verdor inicial da era freudiana
e escapar à era da menopausa a que foi arrastada atualmente".
Ao deixar-se metabolizar pelas instituições e administrações, '
não perdeu ela sua inspiração e seu sentido originais? Em
nossos dias, autores como Lacan tentam restituir à "psicanáli
se pervertida" sua inspiração freudiana original. Esta atitude
provoca reações por vezes apaixonadas. Aliás, o próprio Fr,eud
1 60
sofreu muitas resistências : ao propor uma psicanálise capaz de
perrilitir aó sujeito saber quem ele é, em sua verdade pessoal,
independentemente das respostas já dadas pela mentalidade de
determinada sociedade, Freud foi censurado pela maioria dos
médicos, psiquiatras e psicólogos de sua época. Ele foi um
"psicanalista marginal".
161
em condições de ouvir o outro e de possibilitar a libertação de
sua palavra. Assim, o problema não está em adquirir uma prá
tica que se acrescente a uma teoria. A formação do psicólogo
deveria levá-lo a se perguntar pelas razões que o levaram a ser
psicólogo e pelo seu desejo de que o outro venha a aceder à
sua verdade, para não continuar sendo, o que em boa parte
já é, um pequeno tecnocrata, colocando entre parênteses o
fato de o homem ser um indivíduo presente ao mundo, uma
subjetividade em conquista permanente de seu mundo e de sua
personalidade.
162
sigo mesmo. Porque a presença surge de uma comunicação e
de um encontro homem-mundo. Estudar esta relação, sua gê
nese, seus modos de realização e sua finitude, é uma das ta
refas essenciais da psicologia: revelar, para o homem, o que
significa "existir'. Esta tarefa de compreender o homem vai
exigir, ao mesmo tempo, a posse e a destruição de um saber :
eis uma modalidade do discurso psicológico. Ora, só há dis
curso a partir do momento em que aquilo que é dito é negado
para ser ultrapassado, para visar a algo que ainda não foi
di1Q.. Donde a necessidade, para a psicologia, de renunciar
àquilo que ela é ou àquilo que está sendo feito dela, para
criar a possibilidade de renascer e de novamente poder falar
do homem. Talvez pudesse ser dito da psícologia atual o que
Rabelais já dizia da ciência em geral : "Ciência sem consciência
não passa de uma ruína da alma".
163
CONCLUSÃO
Chegamos ao fim de nosso estudo. Mas este "fim" não
significa "conclusão", pois não pretende dar uma resposta clara
e definitiva à questão epistemológica inicial : como a psicologia
pôde aceder ao estatuto de cientificidade? É sempre difícil e
perigoso propor conclusões para um estudo que não quis ser
mais do que uma introdução. Porque toda pretensão de con
cluir, de determinar uma posição ou de prever o futuro, escapa
à competência da interrogação epistemológica. Quisemos ape
nas compreender a situação presente da psicologia através de
uma análise de sua situação passada, isto é, de algumas das
condições que a levaram a afirmar-se na autodeterminação cie�
tífica. Nosso intuito foi o de reunir alguns elementos possibili
tando o acesso da psicologia à era da cientificidade, para indi
car as tarefas que se nos oferecem no momento. É neste sen
tido que precisamos saber parar, ou ter a coragem de confes
sar nossos limites, ou então, perguntar: o que resta ao fim desse
estudo? A que pretendemos introduzir a pesquisa? Se é verdade
que o difícil não é resolver um problema, mas saber colocá
lo bem, nosso estudo terá atingido parte de seu objetivo se
tiver conseguido colocar o problema da "cientificidade" da
psicologia e de suas conseqüências para a interrogação episte
mológica.
Portanto, à questão: o que resta no fim do presente · estu
do?, daremos apenas algumas indicações. Primeiramente, es
peramos ter introduzido um novo estudo sobre a epistemologia
da psicologia. Em segundo lugar, talvez tenhamos colaborado
para desvincular a prática psicológica de certas imagens de
formadoras que tanto filósofos quanto cientistas de formação
empirista fizeram ou ainda fazem dela. Em terceiro lugar, es-
167
peramos ter mostrado que o estatuto epistemológico de cien
·
168
verdade do sujeito que interroga as coisas, seja necessário, antes�
transformá-lo numa coisa que responde. G. Canguilhem critica
a pretensão da psicologia de atribuir a seu objeto a função
das coisas, como se o homem fosse um instrumento ou um
lugar fixo num feixe de relações com o meio biológico e com
seus semelhantes. Com todo o seu equipamento experimental e
técnico, a psicologia está em condições de fornecer um sujeito
a uma "política racional". E esta política se torna "racional"�
ao garantir à psicologia os meios técnicos de seu progresso.
Donde a eficácia de suas práticas. Estas são devidas à apa
relhagem técnica e metodológica capaz de assegurar o caráter
de "utensílio" de seu objeto. Assim, o sujeito da ciência psico
lógica poderá ser manipulado pela própria ciência. Neste par
ticular, o advento da psicanálise freudiana veio marcar um
modo diferente de situar esse sujeito, esse "ego" como função
de desconhecimento e de miragem, parte do imaginário que,
ao voltar-se sobre o seu objeto (subjectum) , não o proscreve
do domínio da ciência. Freud foi o primeiro psicólogo a sentir
claramente a necessidade de se introduzir na psicologia a di
mensão de um silêncio : silêncio da psicologia científico-experi
mental quanto aos enunciados que a fundamentam; silêncio·
também da psicologia social que, ao dissimular uma filosofia,
cala-se sem nada nos dizer sobre os laços que as unem. E é
neste silêncio, ignorado enquanto silêncio, que a psicologia cien
tífica se situa como discurso. Talvez uma das tarefas da psico
logia fosse a de descobrir ou redescobrir, não tanto os con
teúdos manifestos de seu discurso, mas seus conteúdos silen
ciados e as razões que engendraram esse silêncio. E esta tarefa
revela-se tanto mais necessária, quanto mais imperioso se tor
na, para o psicólogo, converter-se ou reconverter-se em alguém
capaz de desvelar o sentido da palavra do homem.
169
BIBLIOGRAFIA SUMARIA
BERTALANFFY, L. von, Robots, hombres y mentes. La psicologia en
el mundo moderno, Guadarrama, Madrid, 1971.
1 73
PIAGET, J., Psychologie et Epistémologie, Gonthier, Paris, 1969.
174
Este livro foi composto e impresso nas ofi
cinas da Empresa Grãfica O CRUZEIRO S.A.•
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