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LUCIENE PESSOTTI E NELSON PÔRTO RIBEIRO

(ORGANIZADORES)

Rio de Janeiro
2011
A CONSTRUÇÃO DA CIDADE PORTUGUESA NA AMÉRICA
Copyright © 2011
Todos os direitos são reservados, no Brasil por:
LUCIENE PESSOTTI E NELSON PÔRTO RIBEIRO

PoD Editora
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L766c
Pessotti, Luciene -
A construção da cidade portuguesa na América / Luciene Pessotti, Nelson
Pôrto Ribeiro - Rio de Janeiro: PoD, 2011.
170p. : il.
Ilustrado
Anexos
Inclui bibliografia
Conteúdo: Arquitetura, urbanismo, história da arte

ISBN 978-85-62331-85-5
1. A construção da cidade portuguesa na América. I. Título. Nelson Pôrto
Ribeiro.
10-4771. CDD: 647
CDU: 647
17.03.11 23.03.11 021130
APRESENTAÇÃO

Os textos da presente obra tiveram sua origem no “II Seminário do Urbanismo Colonial: A
construção da cidade portuguesa na América” acontecido no Auditório do Centro de Artes da Univer-
sidade Federal do Espírito Santo em 09 e 10 de junho de 2009 e organizado pelo Programa de
Pós-Graduação em Artes desta instituição, Linha de Pesquisa ‘Patrimônio e Cultura’.

Trata-se de um evento científico para o qual os palestrantes são convidados e o critério que
tem norteado nossos convites é o de procurar reunir importantes pesquisadores da área do urba-
nismo e da construção urbana luso-brasileira, sejam arquitetos, engenheiros, historiadores, ou
geógrafos, que trabalham em centros universitários de pesquisa dos dois lados do Atlântico, pois
entendemos que a ciência hoje, para alcançar seus objetivos, deve ser feita em parceria com
pesquisadores de outras partes do mundo, procurando-se constituir projetos colaborativos condu-
zidos por equipes multinacionais.

Agradecemos a participação de todos os autores que se dispuseram a vir a Universidade


Federal do Espírito Santo, em Vitória, colaborar para que o nosso evento acontecesse – sendo que
alguns desses autores, é preciso realçar, fizeram longa viagem de ida e volta de Portugal ao Brasil
– e reputamos a eles grande parte do sucesso que o nosso evento teve, não apenas na atração do
expressivo público presente nas sessões, mas, sobretudo no alto nível atingido nas palestras profe-
ridas e nos debates subseqüentes.

O “II Seminário do Urbanismo Colonial: A construção da cidade portuguesa na América” alcança seu
objetivo ao reunir nesta obra o resultado das pesquisas sobre a relevante temática da formação
urbana do Brasil no período colonial, cujas cidades remanescentes se constituem num rico acervo
do patrimônio luso-brasileiro.

Finalizando, gostaríamos de dedicar a presente publicação à memória de nosso querido amigo


e notável pesquisador da história da cidade, notadamente do Rio do Janeiro, Professor Maurício
de Almeida Abreu, que nos deu o prazer de estar conosco quando da primeira realização deste
evento em 2008.

Vitória, julho de 2011.

Os organizadores.
SUMÁRIO

Apresentação........................................................................................................................................................ 5
A cor (das cidades portuguesas) antes do moderno. Perplexidades, descobertas recentes e investigações em curso ...... 9
José Aguiar
Inventariar para Valorizar e Proteger ................................................................................................................... 25
Paulo Ormindo de Azevedo
A última década, novos rumos. Balanço da historiografia sobre urbanização no Brasil-Colônia.
A contribuição dos estudos regionais recentes. ...................................................................................................... 31
Beatriz P. Siqueira Bueno
Capela de São João Batista - Carapina Grande, Serra – ES. Reconstrução como Restauração da Imagem ............... 41
Cristina Coelho
Diretrizes arquitetônicas e ordenamentos urbanos nas missões jesuíticas dos Guarani ............................................. 53
Luiz Antônio Bolcato Custódio
Repovoamento e urbanização do Brasil no século XVIII ......................................................................................... 69
Maria Helena Ochi Flexor
A arquitetura e esfera pública. O Palácio Anchieta e o sítio fundador de Vitória/ES1 .............................................. 91
Clara Luiza Miranda
Patrimônio ambiental urbano de Vitória: inventário e reflexões acerca das rupturas e permanências coloniais na
contemporaneidade.......................................................................................................................................... 105
Luciene Pessotti
Atores da construção civil na província do Espírito Santo do século XIX. ................................................................ 125
Nelson Pôrto Ribeiro
Os modelos urbanos brasileiros das cidades portuguesas .................................................................................... 151
Manuel C. Teixeira

7
A COR (DAS CIDADES PORTUGUESAS) ANTES DO MODERNO.
PERPLEXIDADES, DESCOBERTAS RECENTES E INVESTIGAÇÕES EM CURSO*

José Aguiar**
«Inside this house was a whole world, a very particular kind of world,
a very clean, clear and orderly universe. (…) There is a kind of white that is
more than white, and this was that kind of white. There is a kind of white
that repeals everything that is inferior to it, and that is almost everything.
This was that kind of white. There is a kind of white that is not created by
bleach but itself is bleach. This was that kind of white. This white was
aggressively white. It did its work on everything around it, and nothing
escaped. Some would hold the architect responsible. He was a man, it is
said, who put it about that his work was “minimalist”, that is mission was
to strip bare and to make pure, architecturally speaking, that his spaces were
“very direct” and “very clear”, that in them there was “no possibility of
lying” because “they are just what they are.” He was lying, of course, telling
big white lies (…).»
David Batchelor, Chromophobia, Reaktion Books, 2000, p. 10

1. Padece a arquitetura contemporânea de cromofobia?


É mais que pacífico dizer-se que a cor integra e é elemento fulcral dos que caracterizam,
humanizando, o espaço urbano e arquitetônico, tornando-o reconhecível e identificável. É tam-
bém coerente assumir-se que a manipulação da cor é imprescindível à coerência das intervenções
sobre a cidade existente, enquanto instrumento de (re)conformação e (re)desenho da própria
imagem urbana, tanto no quadro de ações de conservação como da inserção mais (ou menos)
consonante de novas arquiteturas.
Dito isso é verdadeiramente anômala a forma como literalmente hoje desconhecemos esse
poderoso meio expressivo da arquitetura, desprezando os contributos da cor para a conformação
e organização do espaço humanizado e humanizante.
Na arquitetura contemporânea continua perene o primado do minimalismo, do homogêneo,
do monocromático e, mais que todas as cores, a do etéreo branco – ao que se contrapõe o
fauvismo de um pós-moderno quase desesperado (ou exasperado) –, isto quando de há muito se
sabe que as catedrais eram pintadas, tanto quanto os templos do classicismo, de policromáticas
acrópoles (sublimada por Le Corbusier como símbolo de uma inteligência de desenho “puro” em
magnífica monocromia de mármore). *
Desenvolvido a partir de um artigo
O primado do racionalista branco parece recentemente adquirir anterior de título Cor, espaços pú-
reforçada racionalidade perante os excessos cromáticos pós-moder- blicos, o Moderno e a cidade his-
nos, de gostos primários e imediatistas, que parece agora esgotar-se tórica. Publicado na Revista Ca-
dernos Edifícios , nº4. Lisboa:
num exibicionismo sem tino e talento (que hoje atinge e fere com LNEC, 2005
pedaços de reboco soltos os passantes, acidentados pela típica prefe- ** Faculdade de Arquitectura da
rência do choque estético e absurdo desprezo pelo saber construir). Universidade Técnica de Lisboa.
9
Mas de onde proveio essa preferência, ou oposta condenação, ao branco? De onde tanto azar
nas tentativas de regresso à cor? David Batchelor, num recente livro de título Cromofobia, procu-
ra esclarecer a questão1. Para Batchelor, o trauma da relação da arquitetura contemporânea com
a cor tem nome, chama-o de “Cromofobia”, que define como uma permanente patologia da
cultura ocidental, na qual se verifica um longo e orquestrado esforço de purgar a arte e a arquite-
tura da inquietude da cor.
Desde Aristóteles, a nossa cultura parece eleger a linha e o traço como os mais elevados
representantes da qualidade do pensamento em arte. O desenho com o mais nobre nível de
expressão do pensar, sublimando a inteligência do abstrato por comparação com outras formas
de expressividade plástica. Ficou assim estabelecida, nas artes plásticas e na pintura, uma ordem
operativa hierarquizada que nos leva da “invenção”, através do “desenho”, ao “chiaroscuro” e,
apenas no fim, à “cor”.
Como ironicamente enfatiza Batchelor, na nossa cultura parece haver, portanto, uma longa
presunção de um “desenho-ordem” como oposto à mais diletante “cor-caos”, ou “cor-droga”,
que intoxica, que se toma como instável, e como tal podendo confundir ou desfocar. Uma “cor-
ameaça” a ponto de afetar a “clareza” do raciocínio, enfim: a cor tomada como um “submarino-
amarelo” que nos conduz à perda da “graça” (ou ao seu ganho, se partilharmos de perspectivas
transgressoras)2. Todos sabemos da longa e perene continuidade dessa luta.
O discurso moderno e a moral da cor em arquitetura, ou seja, para ser mais preciso, a redução
do problema da cor à pseudo verdade expressiva dos próprios materiais, alicerça-se em grande
medida nas teorias de Ruskin (consulte-se o capítulo a “Lâmpada da Verdade” no “Sete lâmpadas
da arquitetura”3). Ruskin tomou muito dos revestimentos em arquitetura (i.e. rebocos, pinturas e
consequentes técnicas ornamentais) como sinônimo da produção de indesejáveis “fingimentos”
que ocultavam, perturbando, a verdade de relação desejável entre concepção, produção e percep-
ção visual e imediata da materialidade (“verdade”) das formas. Importa realçar que essas qualifi-
cações de Ruskin sucedem no auge de uma campanha contra o espúrio do historicismo e do
ecletismo, em prol do regresso à verdade do gótico em pleno contexto romântico e “ruinista”.
Na verdade, nesta questão particular das relações de “verdade”, na relação construção vs
“forma”, Ruskin revela uma profunda ignorância quanto ao duplo papel de “camada sacrificial”
e de “camada de expressão” estética, que cabem e são inerentes à missão dos revestimentos na
construção e na definição de superfícies arquitetônicas históricas. Ou seja, na cultura da constru-
ção pré-industrial, que se baseava em grande medida na utilização de materiais porosos, aos
revestimentos cabia a missão não só de assegurar a durabilidade dos elementos tetônicos (as
alvenarias), aguentando os embates dos agentes da degradação e do tempo, sacrificando-se sem-
pre que necessário e depois refazendo-os, em consequência e ao gosto da moda do(s) tempo(s),
como também de assegurar soluções de comunicação arquitetural, e portanto fingindo, se neces-
sário, simulando pedra em falsas pilastras ou em quadros de vãos e, claro, recorrendo à cor como
1
sublinhado da permanência de um sentido de ordem, sempre ine-
BATCHELOR, D. Chromophobia .
Londres: Reaktion Books, 2000.
rente à vestimenta da arquitetura, tal como ela se entendia antes da
modernidade.
2
D. Batchelor, op. cit., p. 31
Um entendimento da cor como algo de perigoso ou de trivial,
3
RUSKIN, J. The seven lamps of corruptor da séria cultura. Cor-corpo-estranho e, portanto, tomada
architecture. Fac-simili da segun-
da edição de 1880. Nova Yorque: como algo de oriental, de feminino ou infantil - como diz Batcehelor
Dover Publications, 1989. -, cor situada em arquitetura entre o vulgar e o patológico, como algo
10
de superficial, de suplementar, de não essencial e portanto decorativo - logo de ordem cosmética.
Esta visão espúria da cor parece coerente com a nossa nacionalista preferência pelo tudo branco
(a Sul), ou pela “pedra à vista” (mais a Norte), que se tornou o paradigma visual do restauro no
Estado Novo. Paradigma que, convenhamos, em grande medida se manteve e acentuou quando
o Moderno finalmente chegou e, com ele, os planos e regulamentos monocromáticos e higienistas
típicos das décadas de 1950 a 1970.
Ocorrem-me a este propósito as palavras de Ludovico Quaroni que cito: “É provável que a
carência de cores puras, polidas, brilhantes, na pintura de cavalete ou de parede, nos rebocos, nas
tintas das telas, tenha orientado o gosto para a harmonia das ‘terras’, e esta seja uma das muitas
razões pelas quais a arquitetura do passado na Europa “resistia” ao tempo, quer dizer, era cada
vez mais bela à medida que passavam os anos, enquanto na arquitetura moderna vale a regra
inversa, a do novo, do perfeito, do polido”4.

2. A cor da cidade histórica e das suas mudanças


A constatação do impacto traumático da perda de cidade histórica coincide exatamente com
o início das políticas de salvaguarda centradas sobre a modificação das facies de áreas urbanas
históricas, ou seja com o lançamento das primeiras grandes operações de Ravalement, tais como as
que A. Malroux promoveu em Paris, a partir de 1961, ou como as sistemáticas operações de
renovação desenvolvidas por alemães e austríacos depois da II Grande Guerra. O Ravalement,
como método, baseia-se na promoção de operações massivas de limpeza e de repintura das
fachadas em zonas históricas, recorrendo a técnicas modernas (geralmente novos rebocos de
cimento Portland e pinturas com dispersões acrílicas e vinílicas) procurando alterar, por meio da
renovação do aspecto, a decrepitude visual dos antigos tecidos urbanos.
Com o Ravalement a cidade histórica, lida até aí como abandonada, velha e suja, surge rapidamen-
te nova, realçada, colorida e brilhante, capitalizando novos interesses e afetividades por parte do
grande público (um pouco menos por parte dos mais eruditos), com óbvias repercussões e capitali-
zações políticas. Em grande medida a operação “7ª Colina” com a repintura, festiva e Fauvista, do
eixo que ligava o Cais do Soudré ao Largo do Rato, foi uma das nossas mais divulgadas dessas ações.
No mundo da conservação, as dúvidas metodológicas sobre o resultado do Ravalement surgi-
ram quase imediatamente: o que era único e diverso, o que tinha a diversidade da estratificação
histórica, o pouco que ainda não era Moderno, parecia ressurgir agora igualizado, homogeneizado,
amalgamado por pinturas industriais e soluções interpretativas que pouco tinham que ver com as
diferentes e ricas possibilidades expressivas das superfícies, materiais e cromas originais.
Apesar de todas as suas limitações, importa não esquecer e até realçar que a constância
das artes e das técnicas tradicionais, sobretudo das artes ditas da cal, assegurava algo de
maravilhoso: as águas das chuvas, o vento e o sol, a transparência dessas tintas, a qualidade
dos seus pigmentos minerais, revelavam pouco a pouco os tons anteriormente aplicados,
numa belíssima pátina - feita de expostas sobreposições. Ao mesmo tempo permitiam assegu-
rar uma quase que natural integração da arquitetura, e da própria evolução cromática de
cada arquitetura individual, no contexto envolvente do lugar, com 4 QUARONI, L. Proyectar un edificio.
sutis variações tonais de aquarela e grande heterogeneidade sen- Ocho lecciones de arquitectura.
Tradução em castelhano do origi-
sorial e cromática que nenhuma tinta atual consegue atingir ou nal de 1977. Madrid: Xarait
ainda, sequer, simular. Ediciones, 1980, p. 180.
11
E importa não esquecer que para a emoção do fruir da cidade histórica é fulcral esse primeiro
contato, visual, de apreciação da cor, na sua imediata revelação sensitiva através do olhar, para a
qual é também óbvia a importância das superfícies e texturas.

3. Em Portugal havia cor e o ornamento não era crime!


Na verdade e durante demasiado tempo, pensamos que a qualidade da expressão arquitetônica
dos revestimentos e superfícies mais usuais em Portugal (provenientes das técnicas da cal), com a
evidente exceção dos azulejos e da ornamentação em pedra, era particularmente pobre e de
muito baixo nível artístico, isto por comparação com outras realidades europeias (como a italiana).
Parecia termos de nos contentar com o usual branco da cal aérea rematado pelos amarelos-ocre
ou azuis, ou pela pedra, quando era mais rica a construção.
A sucessão, ainda relativamente recente, de uma série de estudos sobre revestimentos e as
descobertas entretanto ocorridas em diversos monumentos classificados (como, por exemplo, está
ainda acontecendo no Palácio Nacional de Sintra), sobre a imagem urbana de alguns centros
históricos (por exemplo os estudos de cor no âmbito da reconstrução pós-sismo na Ilha Terceira,
os projetos de cor da responsabilidade do Plano Integrado do Castelo em Lisboa, as intervenções
cromáticas em Centros Históricos da responsabilidade de gabinetes técnicos como o CRUARB do
Porto, o GTL de Guimarães e o GCH de Évora etc.), têm vindo a alterar, por vezes de forma
verdadeiramente inesperada, essa restrita visão5.
Hoje sabemos que também em Portugal existiram (mas cada vez menos existem) revestimen-
tos e técnicas ornamentais de grande valor histórico e estético, expressando-se por vezes com
elevado nível artístico e típicas da cultura do mundo mediterrâneo, que integramos. Coimbra teve
(e muitos já desapareceram) e Évora ainda tem extraordinários esgrafitos, que em nada ficam a
dever aos esgrafitos que nos levam de romaria a Segóvia, a Barcelo-
5
AGUIAR, J. Estudos cromáticos
na, ou até a Florença.
nas intervenções de conservação
em centros históricos. Bases para A simulação de materiais nobres como a pedra, feita através de
a sua aplicação à realidade portu- argamassas cuja coloração se obtinha pela cuidadosa seleção dos
guesa, (tese elaborada no LNEC, agregados e pelo controle das sua texturas, ou por técnicas de pintu-
apresentada à Universidade de
Évora para obtenção do grau de ra de fingido, era extraordinariamente corrente nas nossas cidades
Doutor em Conservação do Patri- históricas e ainda hoje muito extensiva no Centro e Sul do país.
mónio Arquitectónico). Évora: UE/ Os guarnecimentos de pasta de cal e pó de pedra em camadas
LNEC, 1999. Também publicado
como Aguiar, J., Cor e cidade his-
finais com a espessura de dois a três milímetros e muito lisas (muito
tórica. Estudos cromáticos e con- similares à aparência do estuque), por vezes pigmentados na massa,
servação do património , Porto, abundavam nas nossas cidades, existindo exemplos, como em Sintra,
Edições FAUP, 2003 (versão
corrigida e parcial da tese de
onde simulavam os aparelhos de tijolo à vista, ou mesmo a pedra e a
doutoramento, prólogo de Nuno madeira (como no semi-destruído Challet da Condessa d´Edla), por
Portas). vezes preenchendo também com policromia as paredes das villas
6
MOREIRA DA SILVA, E. Técnicas românticas espalhadas pela serra.
tradicionais de fingidos e de estu- Os ornamentos exteriores em técnicas de “stucco”, com ornatos
ques no Norte de Portugal.
Contributo para o seu estudo e simulando cantaria e relevos em pedra, por vezes intimamente arti-
conservação . Dissertação de culados com pinturas murais (a seco ou a fresco) eram extremamen-
Mestrado em Recuperação do te comuns do Norte ao Sul do País (visite-se a quase “esquecida”
Património Arquitectónico e
Paisagístico. Évora: Universidade Campo Maior, para se perceber o extraordinário nível artístico que
de Évora, 2002. atingiram entre nós essas artes decorativas, ou leia-se a recente tese
12
de Eduarda Moreira da Silva sobre as técnicas tradicionais de fingidos e de estuques interiores e
exteriores no Norte de Portugal, para descobrir a relevância dessas soluções6).
Temos até originais e muito interessantes simulações por pintura de azulejaria em fachadas
urbanas, já que os azulejos eram geralmente fabricados no litoral e, portanto, muito caros no seu
transporte para o interior, pelo que eram fingidos recorrendo à pintura com estampilhas, simula-
ções das quais persistem hoje muito poucos exemplos (mesmo assim ainda visíveis em algumas
terras do interior como Évora, Reguengos, Castelo Mendo, Crato etc.).
Frequentemente essas diferentes técnicas articulavam-se, misturando-se numa combinatória
de grande qualidade expressiva e estética.
O aumento dos estudos de cor em tecidos históricos (restituindo o conhecimento das sucessi-
vas estratigrafias da cor) prova também que em muitas pequenas vilas históricas, como por
exemplo na “alva” Monsaraz, a cor era muito frequente nas fachadas e que a monótona exclusi-
vidade do branco parece corresponder a um mito demasiado recente, produto de interpretações
estilisticamente seletivas e hiper-nacionalistas da história (a vontade de fazer o Sul corresponder a
um branco moçárabe e tomar o Norte como granítico, tetônico, em suma, Românico), ou prove-
niente de normas higienistas mais ou menos recentes (dos finais do século XIX ao higienismo do
Moderno).

4. Do valor das superfícies e revestimentos para a conservação do patrimônio urbano


Até o explodir da revolução industrial os revestimentos e as cores dependiam e expressavam
o forte enraizamento da cultura da construção no seu contexto geográfico e geológico. Os mate-
riais de cor (como os outros), provinham do próprio lugar, das suas terras, pedras e madeiras,
diferenciando com matizes específicos as arquiteturas (um ocre de Moura não é cromaticamente
igual a um ocre das terras de Évora).
Adicionalmente os revestimentos estratificam a história sedimentada das apresentações visu-
ais da arquitetura ao longo da história, constituindo provas materiais de primeira importância
sobre as modificações e evoluções nas formas de comunicação arquitetural.
São também provas tecnológicas de primeira importância: já que as distintas argamassas, na
análise dos seus constituintes e da sua técnica de execução e de aplicação, se tornam um importan-
te testemunho da história tecnológica e cultural a que deram rosto, esclarecendo (como já esclare-
ceram Pilar de Luxán e F. Borrego) o nível tecnológico do povo que as produziu, informando
sobre o comportamento e durabilidades daquelas construções perante o micro-ambiente específi-
co a que pertencem e ao qual têm de resistir no futuro, dado precioso para a definição de futuros
critérios de intervenção7.

5. A cor tornou- se um interessante problema de projeto e uma questão fulcral para a conservação
tornou-se
Os problemas de planear ou projetar a cor em cidades e tecidos históricos (ou não) são dos
mais apaixonantes e complexos da urbanística contemporânea. Ava- 7
PILAR DE LUXÁN, M.; DORREGO,
lie-se o desafio de uma ambição que pretende gerir uma miríade de F. Morteros antiguos y la
intervenções difusas, pontuais e não coincidentes no tempo, propos- intervencion en el património. Em
tas por um grande número de diferentes promotores (institucionais Actas do Seminário Intervenção
no Património Práticas de Conser-
ou privados), operando dentro de uma sociedade democrática, cada vação e Reabilitação. Porto: FEUP-
vez mais multicultural e multi-étnica, perante naturais dificuldades DGEMN, 2002.
13
na eficácia dos instrumentos de controle exercido por parte das tutelas e enormes pressões resul-
tantes do funcionamento das leis do mercado de uma economia aberta.
Num tempo dito de pluralidades é quase inevitável a dificuldade de instaurar ou aceitar paradigmas
ordenadores. Isso conduz à procura de mecanismos alternativos de legitimação projetual, que se vão
popularizando em diversos tipos: o privilégio de argumentos artísticos (o primado da “arte” sobre a
construção, típico de um certo pós-moderno mais óbvio, popularesco e falho de argumentos); as
justificativas sociopolíticas (o – agora fora de moda? - apelo à democracia direta e à participação
popular, por exemplo); os argumentos contextuais (o Genius Locci como motor do projeto); as funda-
mentações tecnológicas (propondo o primado racionalista da construção sobre os argumentos artís-
ticos) etc. Compreende-se como, nesse atual e confuso quadro, a ecologia e a história adquiriram
hoje – pela sua óbvia premência -, pouco a pouco, uma nova legitimidade, enquanto argumentos e
primordiais justificativas de sustentação, ou da defesa, das decisões de projeto.
Compreende-se também a pobreza argumentativa de quem hoje continua a propor uma
pretensa liberdade criativa do projeto – que na verdade sempre foi limitada - e de “autores-heróis-
contra-tudo-e-contra-todos”, reduzindo o problema das escolhas a um pretenso combate, ou
antagonismo, entre a pusilânime necessidade da afirmação artística e idiossincrática do «eu-autor»
contra a regra, a ordem colectiva e as suas normas, como as que se fundam na disciplina da
cidade e na incorporação da sua cultura histórica, imediatamente tomadas como “castradoras”.
Dito de forma mais simples, percebem-se os fundamentos ideológicos de quem diz do património
arquitetônico ser um arqui-inimigo impeditivo da “nova arquitetura” e que grita aos sete ventos:
faça-se patrimônio de hoje!
Ao ódio aos pretensos cerceamentos da criatividade criados pela salvaguarda quando esta é
norma pode sempre contrapor-se a não menor violência da casualidade nas decisões sobre
conservação e, claro, sobre a cor.
A nova cultura industrial, depois do tempo de opressivas culturas de massas, evoluiu para um
consumismo individualista permitido pela evolução da tecnologia e das lógicas comerciais, procurando
uma pretensa e ampla liberdade nas expressão das diferenças (a base dos relógios Swatch, símbolo
desta nova fase da cultura industrial e do seu design, é absolutamente igual, mas cada relógio parece
diferente e como tal parece possibilitar a individualidade ). As novas tintas industriais e as máquinas
mágicas que as misturam (já ditos, na gíria, os “colormixes”), se por um lado parecem garantir o
nosso individualismo e a universalização da diferença, acabam também por contribuir para a construção
de uma nova realidade substancialmente artificial que afasta a cultura e a imagem da cidade histórica
da cultura material do seu próprio território, na qual antes se fundava.
É dentro desse processo que as nossas cidades históricas perdem hoje, demasiado rapidamente,
o seu Colore Loci 8, quer dizer, a antiga e intima relação existente entre a imagem e a cor da cidade e
as possibilidades concretas do seu próprio território (materiais, pigmentos, terras, areias, cais etc.).
Tornou-se também já tradicional o argumento de que a cor na cidade histórica é rapidamente
perecível e, portanto, não permanente, arbitrariedade que justificaria novas liberdades (ou novas
arbitrariedades). Este argumento é falso e todas as pesquisas desenvolvidas com algum rigor
científico provam que, apesar das mudanças nos tempo e nos modos,
8
RAIMONDO, C. I piani del colore, existia, sendo possível lê-la e restituí-la, uma cultura local da cor e
Manuale per la regolamentazione
cromatica ambientale. Rimini: dos materiais que dão cor, numa sistemática local, numa linguagem
Maggioli Editore, 1987. específica que tem uma gramática e os correspondentes dicionários
14
expressivos, tal e qual como na arquitetura da cidade existem e podem ser lidas (através da análise
morfo-tipológica) a inteligência condensada que no tempo liga (ou separou em ruptura) as
permanências essenciais.
Na verdade os autismos ou as decisões de renovação de pinturas e revestimentos que resultam
em poluição cromática duram dezenas de anos até serem resolvidos, implicando na maior parte
das vezes a perda definitiva de superfícies com interesse histórico. E quanto às questões da
liberdade, será que podemos considerar como mais livre, enquanto exercício de cultura ou de
cidadania, a escolha de alguém que se orienta por um catálogo comercial de um fabricante de
tintas com 20 ou 30 cores base (ou 200 ou 300), feitas com os pigmentos orgânicos dos mais
baratos - hoje vindos da Alemanha, amanhã, com significativa mudança de tonalidades, provenientes
da China? Será essa escolha mais livre e coerente do que as escolhas de alguém que se oriente por
catálogos e combinatórias de cores (atlas cromáticos) estabelecidos em função de referências
locais ou regionais precisas, técnica e culturalmente fundados na especificidade daquele lugar e
incorporando uma representatividade histórica?
A construção gradual de um lugar da cor nas teorias de projeto para a cidade e arquiteturas
históricas foi lenta e marcada por duas vias significativas, uma de caráter mais metodológico e
culturalista, a outra preocupando-se sobretudo com a praxis e as implicações da disciplina do
restauro.
Foi sobretudo a partir da pós-modernidade dos anos 1980 que começaram a divulgar novas
abordagens ao problema de projetar a cor mais vinculadas aos valores do contexto e do habitat
humano. Afirma-se então uma pioneira geração de coloristas, entre os quais destacaria Jean-Philippe
Lenclos e Antal Nemecsis9 e 10. Os métodos propostos, no entanto, sustentam-se em grande medida
no empirismo, baseando-se em análises e registros eminentemente impressivos, longe ainda das
necessidades de maior rigor no registro, na catalogação e na comunicação entre projeto e obra,
imprescindíveis às intervenções em patrimônio histórico.
Porter e Mikellides, década e meia antes, iniciaram a sustentação 9 LENCLOS, J.-P. Les couleurs de la
do projeto de cor como uma disciplina integrante em parte inteira do France. Paris: Moniteur, 1982. Do
projeto arquitetônico e do planeamento urbano, domínio que se alargou mesmo autor, The Geography of
Color. Tóquio: San´ei Shobo
à arquitetura da paisagem e do território, numa amplitude à qual Publishing Company, 1989.
Michael Lencaster daria a feliz designação de Colourscape11. 10
NEMESICS, A. Budapest: The
Um pouco em contracorrente a essas iniciativas centradas no coloroid system, The colour
problema do método em projeto, iniciaram-se na Itália e na Áustria, scheme of the Buda Castle
District. Em The Colour of the City.
isto em meados da década de 1970, abordagens fundamentadas Haia: V+K Publishing, 1992.
numa estreita articulação entre ciência, filosofia e arte, suportadas 11
LENCASTER, M. Colourscape,
por uma nova historiografia da arte que pela primeira vez se Londres, Academy Editions, 1996.
preocupa com - ou que finalmente começa a conseguir ver e dar a Porter, T. - Colour Outside. Lon-
ver - o estudo das diversas modalidades artísticas e das expressões dres, Architectural Press, 1982.
das superfícies arquitetônicas exteriores, resolvidas com 12 BRANDI, C. Teoria del Restauro.
revestimentos minerais (pinturas murais, stuccos ou rebocos 2ª ed. do original de 1963. Turim:
Picola Biblioteca Einaudi, 1977.
ornamentais, esgrafitos etc.). 1963 A Carta Italiana del Restauro
Esta evolução acontece no quadro da incorporação das teorias encontra-se traduzida para
do restauro propostas pelo mais influente dos teóricos da conservação Castelhano em JUSTÍCIA, M. -
Antología de textos sobre
no século XX, Cesare Brandi, que marcaram o espírito da restauración, Jaén: ed. Universi-
fundamental Carta Italiana del Restauro, de 1972, a qual condenou a dade de Jaén, 1996, pp. 169-194.
15
sistemática renovação arquitetônica e urbana contrapondo-lhe o “restauro urbano” e, portanto
também, a necessidade da salvaguarda das superfícies e revestimentos históricos da cidade, perante
a sua óbvia importância estética e linguística para a leitura da própria cidade histórica, entretanto
também já entendida como uma “obra de arte”, ainda que coletiva12.
Nessas abordagens são de referência obrigatória os trabalhos pioneiros de investigação em
história da arte e da arquitetura de Manfred Koller e de Paolo Marconi13. Também as novas
abordagens científicas aos problemas do restauro e da conservação (importando citar os contributos
de cientistas como Giorgio Torraca e o seu fundamental Porous Building Materials14) assim como a
gradual adaptação das metodologias e das técnicas desenvolvidas para a conservação da pintura
mural (que tinham o seu estado da arte registado no fundamental tratado La Conservation des
Peintures Murales do casal Mora e de Paul Phillipot15), testadas e aperfeiçoadas por novas gerações
de restauradores que deixam gradualmente de se dedicarem só e apenas às mais elevadas formas
do restauro dos objetos artísticos e que pouco a pouco começam a debruçar-se sobre o mais
amplo universo do restauro arquitetônico (como é o caso dos austríacos Ivo Hammer e Heinz
Leitner, apenas para exemplificar).
Seria demasiado fastidioso enunciar aqui o grande número de
13
KOLLER, M. Architektur und intervenções de projeto urbano na Europa em que a discussão da
Farbe, Probleme ihrer Geschichte, cor e a decisão de conservar e/ou restaurar revestimentos e superfícies
Untersuchung und Restaurierung.
Em Maltechink-Restauro, nº4. arquitetônicas afetam decididamente a forma como hoje vemos essas
Viena: 1975. Ver também cidades históricas. Praga, Turim, Roma, Siena, Pienza, Viena,
KOLLER, M.; KOBLER, F. -
Farbigkeit der Architectur. Em
Barcelona, Estocolmo são apenas algumas dessas muitas cidades.
Reallexicon zur deutschen Houve países em que a cal já se tornou a norma no restauro de
Kunstgeschichte, vol VII. Muni- edifícios históricos e os planos de cor, uma obrigatoriedade para os
que: 1975; e ainda KOLLER, M. -
Facciate dipinte in Europa centrale: seus centros históricos.
ricerca e restauro. Em Facciate Portugal, nesse contexto está substancialmente atrasado. Entre
Dipinte, Conservazione e restau-
ro, Atti del convegno di studi. nós permanece uma longa tradição de imposição à arquitetura que
Génova: Sagep Editrice, 1982. se considera histórica (por vezes também a não-histórica) de um
MARCONI, P., et. al. - Il colore
nella edilizia storica. Em Bolletino
monocromatismo branco ou à cor da pedra. Este branco imposto
d´Arte, Supplemento 6. Roma: surgiu de uma argumentação aparentemente positivista e higiênica
1984. (na segunda metade do século XIX, perante o ressurgir de pestes
14
TORRACA, G. Porous building urbanas e consequente obrigatoriedade de caiar), que evoluiu para
materials. Roma: ICCROM, 1982.
Do mesmo autor Processes and pendores fortemente nacionalistas durante o Estado Novo,
Materials used in Conservation, suportando-se no desejo do reflexo de tradições culturais que
Roma, ICCROM, 1980.
relacionam o branco com a afirmação visual, no território, de uma
15
MORA, L. ; MORA, P. ; cultura de Sul e mediterrânea, ressurgindo mais uma vez no seu
PHILIPPOT, P. La Conservation des
peintures murales. Bolonha: 1977. pendor mais funcionalista e higienista no nosso tardio Moderno.
De Paul Philippot veja-se ainda o Hoje a continuidade dessas imposições pode ser fortemente
fundamental: Historic
Preservation: Philosophy, Criteria, negativa se considerarmos a usual não correspondência entre as cores
Guidelines. Em Proceedings of the habitualmente impostas - sem provas históricas e materiais concretas
Northamerican Int. Regional que as justifiquem em conjuntos históricos. Nem sempre também o
Conference. Pennsylvania: 1972.
16
branco é a cor que melhor se integra num determinado contexto ou
AAVV A Cor de Lisboa. 2ª edição
do original de 1949. Lisboa: CML- território, tendo até já sido registrado o lado cromaticamente poluidor
Amigos de Lisboa, 1993. do branco.
16
Na verdade, fora alguns momentos de intenso interesse (como na intensa polêmica sobre a
cor da cidade de Lisboa na década de 194016) a discussão disciplinar da cor na arquitetura e no
urbanismo é muito parca entre nós. Considerado um tema menor pelo racionalismo culturalmente
dominante, sublimado pelo excessivo e idiossincrático exercício cromático das volúveis estrelas
pós-modernas, o assunto tornou-se um “tema a evitar”. Este vazio só foi gradualmente alterado
na década de 1990, no surgimento de discussões públicas sobre o tema da cor e da cidade
histórica, e academicamente alterando-se decididamente o status quo com o pioneiro surgimento
na Universidade Portuguesa de um específico Mestrado (apenas na FAUTL e em 2002-2003).
No país, os estudos cromáticos baseados em métodos mais rigorosos de abordagem ocorrem
no início da década de 1980, com um pioneiro plano: o Plano de Salvaguarda e Recuperação de
Beja, baseando-se na metodologia proposta por Jean-Philippe Lenclos (na, já citada, obra Les
couleurs de la France). Neste registo de mudança é importante realçar ainda a lucidez do discurso
teórico de Eduardo Nery, que em 1988 publicou uma interessante reflexão sobre o tema da cor
e a cidade17. Nesse pioneiro ensaio e partindo duma interpretação negativa da forma como evolui
a nossa paisagem urbana, Nery apresenta pela primeira vez no país uma fundamentação teórica
sólida e coerente para o desenvolvimento de programas orquestrados de investigação, de análise
e de planeamento da cor, nomeadamente para a cidade de Lisboa.
Importa ainda não esquecer os diversos projetos levados a cabo nos centros históricos de
Évora, Guimarães, Porto e Lisboa (primeiro no decorrer da 7ª Colina e mais recentemente pelo
Projecto Integrado do Castelo), no quadro de atuação dos antigos GTL´s, hoje gabinetes ditos do
“centro histórico” e responsáveis pela coordenação das intervenções nos núcleos urbanos dessas
cidades18.
Acompanhando a evolução europeia, foi nas duas últimas décadas do século XX que se
iniciou a gradual construção da disciplina da Conservação enquanto hermenêutica prática, tal
como a fundamentou Cesare Brandi na sua Teoria do Restauro – i.e. uma Filosofia da Arte
aplicada ao Restauro e fundamentando-se na sua verificação prática. Uma teoria (fundamentada
na História e na Crítica da Arte) confrontada com uma praxis, comprovada pela ciência com o
experimentalismo dos laboratórios do Instituto Central de Restauro em Roma (ICR) depois traduzida
numa “Escola”, uma Escola de Restauradores, amplificada internacionalmente por estruturas
como o International Centre for the Study of the Preservation and Restoration of Cultural
Property (ICCROM).
Foi exatamente pelo ICR e pelo ICCROM que se deu o primeiro contato de muitos de nós,
com os novos ensinamentos dessa notável (e muito generosa) geração: Brandi; Philippot; Laura e
Paolo Mora, Torraca, Massari, Tabasso etc. Este contato aconteceu sobretudo na década de
1980, e ainda mais na década de 1990, do século XX, período em que algumas novas gerações de
cientistas, de arquitetos e engenheiros, e a primeira geração do “Restauradores - Conservadores”
portugueses, travaram contato com o célebre ICR de Roma que
Brandi fundou e dirigiu, e, depois, com os cursos de restauro que o 17 NERY, E. A cor de Lisboa. Em
ICCROM concretizava em Roma e por toda a Europa. Povos e Culturas, A Cidade em
Refiro-me aos célebres cursos Conservation de Pinture Mural (depois, Portugal: Onde se Vive, nº2. Lis-
boa: Edição do Centro de estudos
com a avassaladora primazia anglo-saxônica, designados de Mural Painting dos povos e culturas de expres-
Conservation), refiro-me aos estruturais cursos Architectural Conservation são portuguesa - Universidade
e aos mais específicos cursos Architectural Surfaces Conservation (também Católica Portuguesa, 1987.
a outros, orientados para a conservação de materiais específicos como 18 J. Aguiar, op. cit., 1999.
17
19
De forma não exaustiva: 2004-
a pedra, a madeira, ou para os cientistas, como os cursos de análise
2008 Lime renders conservation: não destrutiva dos materiais das obras de arte etc.).
Improving repair techniques and Formações avançadas frequentadas por muitos dos atuais
materials on architectural heritage,
FCT (POCTI/HEC/57723/2004);
protagonistas portugueses do mundo do restauro e da conservação,
2004-2008 Pigmentos e práticas da embrionária investigação científica ao projeto e à praxis, e ocorrem-
históricas da pintura mural: ca- me de memória: T. Cabral, J. Cordovil, J. Caetano, I. Frazão, M.
racterização dos materiais e das
Portela, F. Peralta, F. Henriques, M. Fernandes, F. Marques, F. Pinto,
tecnologias da cor no património
urbano do Alentejo, FCT (POCTI/ J. Cornélio, J. Aguiar, S. Salema, J. Antunes, A. Barreiros, P. Santa
HEC/59555/2004); 2004-2008 Bárbara, E. Murta, T. Gonçalves, E. Paupério, M. Goreti etc.
Bases para o Restauro dos Re- Cursos de conservação baseados no aprender fazendo e na
vestimentos Históricos do Centro
Histórico de Coimbra, Instituto
experimentação das mais contemporâneas teorias do restauro.
Pedro Nunes, FCT (POCTI/HEC/ Rescrevendo as praxis ao mesmo tempo que se permitia a algumas
60371/2004); 2003-2007 Guia das nossas gerações os primeiros contatos com os centros de
técnico para a reabilitação de edi-
fícios habitacionais (LNEC-INH-
excelência, com as intensas discussões pluridisciplinares que desde
SEH); 2000-2005 Projecto Conser- os anos 1970 ferviam pela Europa.
vação do Património Acedemos assim pela primeira vez aos conhecimentos mais
Arquitectónico e Urbano, onde é avançados e ao inexcedível convívio direto com as mais distintas
responsável pelo desenvolvimen-
to do estudo “Conservação e
estrelas desse novo universo da nova disciplina da conservação
requalificação da imagem urbana patrimonial (como o saudoso casal Mora, G. Torraca, H. e G. Massari,
em Centros Históricos”, PIP- M. Koller, E. De Witte, J. Jokilehto, e tantos outros). Cursos onde
LNEC; 1999-2005 Metodologias
para a Mitigação do Risco Asso-
hoje, como feliz indicador do nosso crescimento científico, onde já
ciado à Degradação das Constru- não encontramos apenas alunos mas também professores e
ções (FCT); 1999-2003 Projecto investigadores portugueses, como o investigador do LNEC Delgado
Metodologias para Caracterização, Rodrigues.
Manutenção e Reparação de Re-
bocos para Edifícios Antigos Alguns desses, associados a investigadores de diversas
(OLDRENDERS); 1999-2002 especialidades (Engenharia Civil, Química, Física das Construções,
Laboratories on Science and Geologia, Arquitetura e Urbanismo etc.), fundaram no LNEC o
Technology for the conservation
of the European Cultural Heritage
COSAH - Grupo de Estudos da Conservação das Superfícies
(LABSTECH); 1995-2000 Projecto Históricas! Dentro do próprio LNEC a estreita colaboração com
Estudos Cromáticos nas Interven- um grupo extraordinários de investigadores, tais como António Reis
ções de Conservação em Centros Cabrita, Vasconcelos de Paiva, João Appleton, Delgado Rodrigues,
Históricos, JNICT, PCSH/C/ARQ/
864/95. Rosário Veiga, Teresa Gonçalvez, Santos Silva, Fernando Henriques,
20
Mary Mun, J. Mimoso, M. Baião etc., permitiu o lançamento de
Vejam-se as actas dos últimos
Encontros concretizados sobre o Projectos de Investigação19, e a organização de conferências científicas
tema da conservação de superfí- internacionais, como os célebres ENCORES - Encontro sobre
cies arquitectónicas: HMC2008: conservação e reabilitação de edifícios, o primeiro I Encontro Cor e
Historical Mortars Conference, re-
alizada em LISBOA, no LNEC, de
Conservação de Superfícies Arquitectónicas (LNEC, 1999). Iniciou-se assim,
24 a 26 de Setembro de 2008 em paralelo com algumas universidades que lançavam os primeiros
(http://www.lnec.pt/congressos/ cursos de pós-graduação em conservação, a construção científica
eventos/hmc08/). ISBN: das suas bases.
9789724921563; COLOURS 2008,
bridging science with Art. Évora, Hoje multiplicam-se os encontros como os ainda recentes
10-12 Julho 2008, realizado no Co- HMC2008 e COLORS 200820, as publicações e os projetos de in-
légio do Espírito Santo, University vestigação de fundo e aplicados onde se integram as dissertações e
of Évora, Portugal (http://
w w w. c i u l . u l . p t / ~ c o l o u r /
teses de doutoramento que irão garantir o surgimento de novas ge-
index.htm). rações de investigadores21.
18
6. Para concluir: não é Grafite, é Escrita Vandálica!
Aprendi que é muito difícil ver em arquitetura, e que vemos em função direta do que
sabemos. Num tempo que, na cultura europeia, se assiste a uma revalorização da ideia do
regresso à cidade, i.e. ao viver e habitar a cidade, perante o desafio feito pelos editores desses
Cadernos do DED - para uma reflexão sobre o esquecimento e o abandono a que têm sido
votados os nosso espaços públicos e da necessidade da urgente requalificação -, procurou-se
contribuir focando esta, só aparentemente banal, questão da visualidade, i.e. desses microns ou
centímetros que modelam as faces das cidades e da sua arquitetura, nas formas como esta se vê
(ou não se vê), como se transmite e se dá a ver, questão ainda muito desconsiderada nos
projetos e planos de hoje.
É evidente que o problema da cor nos (mal)ditos “centros históricos” nem de longe nem de
perto é hoje apenas um problema metodológico ou, sequer, tecnológico! Aliás, esses são, muito
provavelmente, os aspectos mais próximos de uma solução. Como em quase tudo que diz respeito
à arquitetura e à cidade, é sobretudo a multiplicidade dos aspectos socioculturais, dos olhares da
antropologia aos da história, dos impactos recentes na alteração dos modos de produção nas
formas e espaços de vida do homens, que verdadeiramente condicionam a forma como hoje a
cidade histórica é vivida e percebida, afetando decididamente os processos de requalificação da
cidade e da sua imagem que temos de pôr em marcha.
Provavelmente vivemos a sorte (ou o azar) de assistirmos aos tempos de uma profunda
mudança civilizacional, no fim de uma cultura e no desenho de uma nova sociedade pós-industri-
al, mudanças perante as quais se rescrevem as morais, as políticas e as vidas. Não sabemos –
tomara que os soubéssemos – os seus novos paradigmas. Mas desconfiamos de alguns dos novos
valores (do primado da ecologia ao valor do conhecimento e, sobre-
tudo, da informação) e, sobretudo, sabemos que as sociedades urba-
21
nas estão em rápida e estrutural mudança, no surgir de novos tipos Realço aqui no domínio da con-
servação das superfícies
de comunidades multiculturais e multi-étnicas, que se reapropriam arquitectónicas algumas das te-
do patrimônio de acordo com novos valores, certamente distintos ses que oriento ou co-oriento: as
dos antigos ênfases históricos e nacionalistas. teses já finalizadas de Milene Gil
Duarte: Pigmentos e práticas his-
Tudo isso perante também um ambiente cultural que faz do tóricas da Pintura Mural: Caracte-
consumismo (transvertido em pseudo transgressão) um dos seus prin- rização dos materiais e das
cipais valores. E aqui importa reparar no apreço de alguns (pseudo?) tecnologias da cor no património
urbano do Alentejo; e de Martha
artistas plásticos e, sobretudo, de tantos jovens pela escrita vandálica (e Tavares, sobre metodologias de
deixemos de ambiguidades: não se chame grafite ao que não o é)22. consolidação de rebocos, de títu-
lo: A Conservação e o Restauro
Por escrita vandálica refiro-me a esta praga dos nossos dias que de Revestimentos Exteriores de
cobre com sprays irreversíveis (a sua remoção implica sempre per- Edifícios Antigos. Uma
da do material constitutivo ou alteração permanente das caracte- metodologia de estudo e de repa-
ração; e ainda a tese em desen-
rísticas físicas e químicas) as superfícies das nossas paredes, ou as volvimento de Sofia Salema: Con-
pedras dos nossos monumentos. servação das superfícies
Na verdade estamos a falar de materiais porosos, quando o spray arquitectónicas e a imagem urba-
na: O estudo dos esgrafitos no
dos grafites atinge essas superfícies o líquido vai ainda em estado Alentejo.
líquido e em gotículas de muito pequena dimensão, penetrando pelos 22
A.A. V.V. Roma imbrattata e
espaços existentes entre alvéolos, cristais ou através de poros aber- imbruttita. Roma: Edizioni Nagard,
tos. Os solventes, que tornam líquida a tinta, ao evaporarem deixam 1999.
19
o resíduo seco em profundidade. A remoção com novos solventes muitas vezes apenas alastra
ainda mais, e mais profundamente, a coloração indesejada, restando a sua extração mecânica ou
a repintura (se esta não for transparente). Mais recentemente surgiu o laser, mas o seu emprego
em obras não excepcionais é ainda raro.
A escrita vandálica produz danos irreversíveis nos nossos monumentos, afeta decididamente
as contas públicas pelo elevado custo da sua remoção, tem clara consequências na percepção da
segurança por parte dos cidadãos e na avaliação que estes fazem da eficácia dos municípios
quanto à sua obrigação e capacidade de manterem belas e limpas as cidades.
A luta contra os indesejados grafites e contra a ainda mais indesejada escrita vandálica é de
décadas e com resultados desiguais. Nos Estados Unidos, depois de décadas de campanhas de
sensibilização, sem grande eficácia, apenas começaram o obter alguns resultados com o endureci-
mento da atuação das autoridades e a clara criminalização do ato, o mesmo se passou em países
do Norte da Europa, como a Dinamarca. Na Holanda e na Grã Bretanha continua tentando-se o
diálogo. Em todos esses países propuseram-se locais alternativos para essas expressões (pouco
eficaz pois esta alternativa é recusada pelos autores dos grafites, considerando-a uma tentativa de
domesticação de uma arte que desejam transgressora), assim como a proteção dos monumentos
e zonas históricas com a aplicação de barreiras anti-grafite (hidro-repelentes de superfície), solu-
ções que permitam tornar mais fácil e provocar menos danos na sua remoção. Entre nós continu-
am a abundar os discursos e as promessas, algumas tentativas de controle através de enquadramento
municipal (disponibilidade de locais alternativos e organização de iniciativas apoiadas
institucionalmente) mas com poucos resultados concretos ou, sequer, animadores.
O drama da arquitetura de hoje é (provavelmente foi-o desde sempre) o de conseguir propor
novas espacialidades que anunciem, ou pelo menos que não impeçam, o futuro, resolvendo neces-
sidades do presente e integrando as permanências essenciais do passado. A novidade está na
necessidade de servir a uma sociedade de extremos: dividida entre os que se batem acerrimamente
pela preservação das antigas pinturas, afirmando a amplitude dos seus valores culturais; e os que
as destroem, admirando e considerando como “arte” as próprias ações de destruição (como as
escritas vandálicas), tomando a “conservação” como algo de reacionário per si e como tal impeditivo
das (assim atávicas) oportunidades do progresso e da mudança.
Eternos paradoxos que me trazem sempre à memória as palavras de Ramalho Ortigão quan-
do dizia (e tantas vezes já que o citei): “Nenhuma restauração se deve empreender, nem se deve
autorizar, sem que previamente se defina, bem precisa e bem nitidamente, qual o fim de utilidade
social a que êsse trabalho se consagra (...)”23.

23
ORTIGÃO, R. Arte Portuguesa.
Reedição do original de 1896. Lis-
boa: Livraria Clássica Editora,
1943, p. 230.
20
Fig. 1 – Évora, uma cidade ainda cheia de esgrafitos. Fig. 4 – Palácio de Sintra, execução de guarnecimentos
(para fingir pedra).

Fig. 2 – Moura, simulação alvenarias de pedra com Fig. 5 – Stuccos em Montemor.


argamassas.

Fig. 3 – Fronteira, simulação de alvenarias com Fig. 6 – Stuccos em Monsaraz


argamassas.
21
Fig. 7 - Almendra, fingidos de azulejos e de detalhes Fig.10 - Áustria, Viena,Singerstrabe, intervenções
arquitectónicos. exemplares de restauro urbano com salvaguarda dos
revestimentos originais.

Fig 11 – Évora, Restauradora Sofia Lopes, intervenções


exemplar de restauro urbano na Rua 5 de Outubro.
Fig. 8 – Estudos de cor, J. P. Lenclos.

Fig. 9 – Propostas de cor, Plano de Salvaguarda e Fig 12 – Évora, intervenções exemplares de restauro
Recuperação de Beja. (DGEMN).
22
Fig 13 – Évora, Restaurador Nuno Proença intervenção Fig. 15 – Cacilhas: não é graffity ..é escrita vandálica!
exemplar de restauro de fontes urbanas.

Fig. 14 – Évora, vandalismo na Sé de Évora. Fig. 16 – Fronteira, esgrafito à espera de restauro ..ou da
obliteração.

23
INVENTARIAR PARA VALORIZAR E PROTEGER

Paulo Ormindo de Azevedo*

A institucionalização da preservação dos monumentos no mundo começou em 1790 com a


inventariação dos bens do clero, dos imigrantes e da Coroa na França, depois do vandalismo que
se seguiu à Revolução Francesa de 1789. Este fato por si só dá a medida da importância dessa
atividade. Mas o inventário não pode ser visto apenas como um instrumento subsidiário de
tombamento, ou classificação. Ele cumpre funções muito mais amplas do que se pode imaginar
num primeiro momento. Não pretendemos discutir aqui modelos e fichas de inventários, tema
por demais debatido nos últimos anos no país, sem que se chegasse a um denominador comum,
a um padrão, que permitisse comparar resultados. Pretendemos discutir questões conceituais e
metodológicas, que possam definir os objetivos e a modelagem de futuros inventários. Para orde-
nar tal discussão analisaremos as principais funções de um inventário.

1. Identificação de valores difusos e correntes


Esta talvez seja a principal função de um inventário, não importa se de bens imóveis, móveis
ou imateriais. O verdadeiro monumento, isto é, a obra realizada para perpetuar uma memória,
como uma pirâmide, um obelisco, um arco ou uma mera estela funerária, se impõe por si só. Um
pouco menos evidentes são os chamados monumentos históricos, edificações de função utilitária
que com o tempo passaram a ter uma significação para uma comunidade ou nação, como é o caso
da Torre Eiffel e do Elevador Lacerda, em Salvador. Além desses, existem valores culturais que
de tão difusos e correntes só são percebidos uma vez perdidos.
A principal contribuição dos inventários é identificar esses elementos, tanto aqueles que pas-
saram a ter significado para uma determinada comunidade, quanto aqueles que, por tão integra-
dos na mesma, só são percebidos e valorizados pelo forâneo ou quando perdidos. McLuhan dizia
que o último a descobrir a água foi o peixe. Trazer esses bens culturais para o nível da consciência
coletiva é a grande tarefa dos inventários.
Nesses casos, o patrimônio material e imaterial praticamente se confundem, por serem objetos
que guardam uma relação íntima com os modos de produção, rituais e crenças. Por outro lado,
esse patrimônio não-excepcional forma, no caso da cidade, a arquitetura contextual ou conjuntiva
que cerca os monumentos e que é o seu fundo, sem o qual não
podemos apreciá-los. São eles também que plasmam e qualificam os * Paulo Ormindo de Azevedo é ar-
espaços públicos. quiteto com doutorado em preser-
Tal como ocorreu com os estudos historiográficos, a partir da vação de monumentos e sítios
pela Universidade de Roma, pro-
década de 1930, mas especialmente depois da II Grande Guerra, fessor titular da UFBA e consultor
em que o protagonismo dos grandes vultos históricos cedeu lugar da UNESCO para a America Lati-
aos processos sociais e ao povo, o conceito de patrimônio cultural na, Caribe e África lusófona. Ex-
tem se expandido compreendendo não só objetos e monumentos técnico do IPHAN e membro da
Academia de Letras da Bahia e
excepcionais, representativos da cultura dominante, como os artefatos dos Conselhos: Nacional de Políti-
e a arquitetura modesta de minorias igualmente formadoras da ca Cultural, Consultivo do IPHAN e
nacionalidade. Estadual de Cultura da Bahia.
25
De onde advém o valor dessas obras modestas? Advém menos de seus caracteres artísticos
que de atributos de uso social e características espaço-ambientais típicos de determinadas
comunidades. São objetos de trabalho, instrumentos musicais, casas que mantêm uma relação
com a rua e com o passeio muito diversa da dos apartamentos atuais, ou bairros que ensejam
formas de sociabilidade que já não se verificam em conjuntos habitacionais do BNH, ou em
super-quadras de Brasília.
A função desses dois tipos de arquitetura – monumental e contextual - foi muito bem definida
por Kelvin Lynch em A Imagem da Cidade. Uma coisa são os monumentos, landmarks, pontos
de referência no espaço urbano, outra os bairros homogêneos, districts, que nos envolvem e criam
uma sensação de pertencimento. A preservação desses dois tipos de arquitetura é igualmente
importante para a construção da imagem da cidade. Uma arquitetura completa a outra.
Um inventário extensivo deveria ser a base de um sistema patrimonial verdadeiramente
federativo, com diferentes categorias de bens e graus de proteção. Esse inventário deveria preceder,
ou pelo menos ser contemporâneo, aos tombamentos e não feito a posteriori, simplesmente para
geri-los.

2. Conscientização do valor cultural


A realização do inventário é por si mesmo uma operação de valorização e proteção,
independente de ser ou não amparada por medidas legais. Essa ação implica um duplo
reconhecimento de valores. De um lado pelo estranhamento do que vem de fora, do agente
inventariador, do outro, da comunidade que atribuiu significados a coisas aparentemente triviais e
que passam a ser reconhecidas externamente.
Ao iniciar-se um inventário, a primeira coisa é contatar as lideranças locais, o prefeito, o padre,
a professora e em seguida os proprietários e usuários dos imóveis pré-selecionados por essas
lideranças. Na coleta de dados históricos e legais e no levantamento cadastral ou fotográfico do
objeto inventariado já estamos conscientizando aqueles que são responsáveis imediatos por sua
conservação. O desejável, porem, é que essa sondagem seja a mais aberta possível, de modo que
a lista final seja efetivamente uma eleição da comunidade. Programas interessantes podem ser
feitos junto às escolas e associações de moradores. Mesmo porque, esses inventários devem ser
a base dos programas de educação patrimonial, pois falam de bens culturais mais próximos da
comunidade.
Para que o inventário seja, de fato, um instrumento de conscientização ele deve ser redigido
com linguagem precisa, mas desempolada, publicado e divulgado. No caso baiano, uma vez
publicado, enviamos a cada proprietário uma separata com a capa do inventário e a ficha do seu
imóvel. Mandamos às prefeituras e às bibliotecas públicas locais separatas mais alentadas, com
todas as fichas daquele município. Na totalidade dos casos, a reação dos donos, prefeitos e
bibliotecários foi de orgulho pelo reconhecimento de valor daqueles bens locais. Sua divulgação
junto a órgãos de imprensa e rádio teve como resposta a divulgação por essas mídias dos principais
bens inventariados.
O cadastramento cultural de um determinado território constitui, por outro lado, uma base de
dados importantíssima para o planejamento urbano, territorial e turístico, além de favorecer estudos
acadêmicos sobre determinadas tipologias arquitetônicas, linguagens artísticas e manifestações
culturais. Pode-se imaginar o efeito que isso pode ter sobre a economia da cultura, incentivando o
fluxo turístico e a venda de produtos como guias, slides, DVDs e vídeos. Inventários codificados,
26
de uso interno dos órgãos de preservação podem servir como poderosos instrumentos de gestão,
mas não de conscientização, educação e preservação.

3. Institucionalização dos inventários


A Constituição de 1988 cita o inventário como um dos instrumentos de proteção do patrimônio
cultural brasileiro:
O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e pro-
tegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros,
vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de
acautelamento e preservação (negrito nosso)1.
Nenhum dos novos instrumentos de preservação foi regulamentado, com exceção do Registro
de Bens Culturais de Natureza Imaterial, Decreto 3.551/00. Pela natureza abrangente, corrente
e reiterativa da maioria dos bens arrolados, pode-se imaginar que o inventário poderá ser um
instrumento complementar ao tombamento, capaz de proteger aqueles bens culturais não
excepcionais, mas representativos da diversidade cultural da nação, incluindo a produção das
minorias formadoras de nossa sociedade.
Segundo o Dec.-Lei 25/37, para que um bem seja considerado patrimônio nacional, e portanto
tombado, deve ter caráter excepcional. Isto privilegia a cultura dominante, a produção elitizada e
oficial:
Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto de
bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interes-
se público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil,
quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou
artístico2.

Esse foi o critério vigente nos tombamento até meados da década de 1970. Mas a partir desse
momento o conceito de patrimônio se amplia influenciado pela visão antropológica de cultura.
Assim, muito do que se tombou a partir da década de 1980 não atende a esse requisito de
excepcionalidade, nem vem sendo tratado como tal, o que não quer dizer que não tenha valor,
senão que não é fiel ao espírito da lei. Para estes bens, que são reiterativos e de uma cultura viva,
poderíamos utilizar um instrumento mais flexível, como a inventariação, mesmo porque tudo que
apresenta vinculação com fatos memoráveis da historia do Brasil e excepcional valor arqueológico,
etnográfico, artístico e estético já foi tombado pelo IPHAN, em seus primeiros 40 anos de existência.
Uma solução semelhante foi adotada pelos franceses, em 1913, quando criaram sua lei básica
de patrimônio cultural consolidando os tombamentos anteriores e criando um Inventário
Suplementar, para abrigar os novos bens culturais3. Uma terceira categoria - os setores
salvaguardados – seria criada em 1962 com a chamada Lei Malraux,
basicamente para proteger a arquitetura contextual. Cada uma dessas 1 Parágrafo 1º do Art. 216
categorias tem uma regulamentação própria, que não revogou as 2 Art.1º do Dec.-Lei 25/37.
anteriores, pondo em risco as conquistas alcançadas. 3
BADY, Jean-Pierre. Les
A nossa legislação patrimonial, de 1937, elaborada quando o país monuments historiques en
ance,, 2 e Édition. Paris:
ainda era rural visando afirmar a nacionalidade, foi muito avançada F r ance
Presses Universitaires de France/
para o seu tempo, mas não evoluiu, não obstante as grandes Édition Actualisée Puf, 1998, p.
transformações por que passou o país e o conceito de patrimônio. 25-51.
27
Continuamos sem dispor de uma legislação capaz de proteger o processo de produção cultural ou
administrar os conjuntos urbanos históricos com sua dinâmica social e econômica. Legislações
complementares em nada prejudicaria a nossa lei básica de 1937.
Na Bahia, o Instituto de Patrimônio Artístico e Cultural tentou criar, em meados da década de
1990, uma legislação patrimonial dentro do espírito de competência concorrente dos três poderes
previstos na Constituição de 1988, incluindo os novos instrumentos de preservação. A minuta
original, corretamente elaborada, foi totalmente descaracterizada pelo Legislativo e transformada
na Lei 8.895, no final de 2003, regulamentada pelo Decreto 10.039, de 2006. Nos dois documen-
tos legais, os capítulos referentes ao inventário são inteiramente inócuos e ignoram o fato de a
Bahia ser o único estado brasileiro a contar com um inventário exaustivo do seu patrimônio
edificado.
O inventário deveria funcionar como uma declaração de interesse público por aquele bem e,
portanto, como uma medida acautelatória, mas dando a seu proprietário vantagens fiscais, de usos
e linhas de financiamento especiais. Se por um lado a inscrição no inventário asseguraria um
tratamento mais flexível que o dado aos bens tombados, ela seria uma espécie de pré-tombamen-
to que induziria o proprietário a negociar a conservação do imóvel temendo a possibilidade de sua
transformação em tombamento.
Na prática, nenhum dos novos instrumentos introduzidos – o inventário e o chamado espaço
preservado – foi aplicado nesses seis anos de vigência da lei estadual. Não obstante esse fato, o
Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia tem funcionado como um legitimador de
valores culturais não reconhecidos oficialmente como tal. Ameaças de demolição de edifícios
inventariados têm provocado campanhas jornalísticas que resultaram em desistências dos grupos
interessados em sua demolição e/ou inicio de processos de tombamento. De outra parte, todos os
tombamentos estaduais e os poucos federais realizados no estado nesse período têm sido de bens
inventariados. Assim, pode-se dizer que o Inventário funciona como uma “lista indicativa” de
tombamentos na Bahia, à semelhança do que exige a UNESCO para inclusão de um sitio na Lista
do Patrimônio Mundial.

4. Inventário como instrumento de gestão


Esse é a principal interesse dos órgãos de preservação ao realizarem inventários, a tal ponto
que as demais funções são esquecidas ou postas em um segundo plano. Assim, fazem-se inventá-
rios exclusivamente de bens tombados e de uso exclusivo dos órgãos, renunciando a duas das
mais importantes funções dos inventários, a revelação de novos valores e a conscientização do
público.
Não há duvida sobre a importância de termos um banco de dados para a administração e
monitoramento de grandes acervos. Isso remete a uma discussão sobre qual a extensão e profun-
didade que deve ter o inventário. Em uma reunião promovida pelo Conselho da Europa, órgão
cultural da União Europeia, em 1965 em Barcelona, sobre a realização do inventário dos monu-
mentos e sítios europeus, conhecida como “Confrontação A”, ficou definido que os inventários
poderiam ter três níveis de profundidade:
x Inventários de Identificação destinados a arrolar os valores culturais existentes em um
determinado território;
28
x Inventários de Proteção, que visam reunir as informações indispensáveis à preservação
dos bens culturais identificados;
xInventários Científicos destinados a reunir o maior número possível de informações sobre
os bens arrolados.
No caso da Bahia decidimos por uma combinação dos dois primeiros inventários. Mas em
outros estados o IPHAN, ou os órgãos estaduais, optaram pelo primeiro tipo de inventário4.
Como instrumento de monitoramento e gestão, os Inventários de Proteção devem ser atualizados
a cada cinco anos, no máximo, coisa que infelizmente não aconteceu na Bahia. Com dados confiáveis
do estado de conservação dos bens móveis e imóveis é possível adotar medidas emergenciais de
segurança, priorizar trabalhos de conservação e racionalizar o uso e fruição dos bens culturais. Os
inventários científicos devem ser construídos a partir dos inventários de proteção, da pesquisa
arquivística e das descobertas ocorridas no processo de restauração dos mesmos bens.

5. A questão metodológica
O Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia – IPAC-Ba, iniciado em 1973, partiu
da metodologia do Inventário de Proteção do Patrimônio Europeu – IPCE. Isto se deveu ao
contato que tivemos, como seu aluno no ICCROM, com o Prof. Pietro Gazzola, então Presiden-
te do ICOMOS e um grande entusiasta dos inventários de bens culturais5. Diante de uma pers-
pectiva de globalização preferimos apostar em uma metodologia que estava sento proposta para
todo um continente, que seguir a experiência de um só país, como a França, a Alemanha ou os
Estados Unidos.
A ficha do IPCE de monumento trazia na frente campos muito pequenos referentes à iden-
tificação do monumento, época, descrição, estado de conservação, fotos e possíveis plantas. O
preenchimento do verso era optativo, mas trazia campos referentes à tipologia, cronologia, dados
técnicos, bibliografia básica, situação legal e um campo complementar para fotografias e elemen-
tos gráficos6. Tratava-se de uma ficha experimental, definida em 1970, e ainda não testada. Logo
de inicio nos demos conta que suas dimensões eram muito pequenas, 8"x6", e não cabia muita
informação. Adotamos, então, o formato A3 para redução e publicação no padrão A4. Mesmo
assim, a quantidade de dados que recolhemos mal dava nos campos,
o que exigia que as fichas gigantes fossem minutadas varias vezes 4 Vide MOTTA, Lia; SILVA, Maria
em uma Olivetti de carro grande e tipos pequenos. Apesar de a Beatriz R. (Org.) Inventários de
máquina de estado já estar inteiramente informatizada, nunca dispu- Identificação; um panorama
da experiência brasileira
brasileira. Rio
semos de um computador. de Janeiro: IPHAN, 1998.
O manual do IPCE não explicava, por outro lado, os critérios 5
GAZZOLA, Pietro. L’In
’Invv entario
para avaliação do estado de conservação dos imóveis. Depois de di protezione del patrimônio
uma tentativa mal sucedida de avaliação por créditos cumulativos, culturale. Settore dei bene
que privilegiava os monumentos mais ricos artisticamente, desen- immobile. Scopo e norme di
esecuzione. Verona: EPCE,
volvemos, a partir do segundo volume, um sistema subtrativo de 1970.
pontos relacionados com o estado de conservação de seus princi- 6
Vide fichas reproduzidas em
pais componentes, que funcionou bem melhor. Essa metodologia DAIFUKU, Hiroshi. Monument
avaliava seis itens do edifício: estrutura portante, elementos secun- conservation programmes in
dários (esquadrias, grades, revestimento externo), cobertura, inte- Preserving and restoring
monuments and historic
rior, instalações e serviços e salubridade do imóvel. Tais itens com- buildings
buildings. Paris: Unesco, 1972,
portavam subitens para uma avaliação menos subjetiva. p. 31-42.
29
Cada um desses subitens, se em estado satisfatório, valia 100 pontos. Em seguida eram dadas
notas aos subitens, segundo uma escala de estado bom, medíocre e ruim. Cada uma dessa notas
correspondia a um determinado número de pontos, que eram subtraídos dos 100 pontos originais
do subitem analisado. Impusemo-nos, por outro lado, incluir obrigatoriamente plantas baixas e de
situação, fotos do volume frontal, da fachada posterior, interiores e detalhe relevante, quando
existia.
A ficha do IPCE de sitio era ainda mais simplificada que a de monumento e tivemos que
introduzir uma série de fichas suplementares com fotos e plantas analisando a localização do sítio
na cidade, sua delimitação, época das construções, grau de proteção dos imóveis, numero de
pavimentos e uso do solo. O sitio urbano era descrito obrigatoriamente sob quatro facetas: geo-
gráfica, histórica, socioeconômica e urbanística. Introduzimos também, no verso, um quadro
sinóptico com dados sobre evolução político-administrativa, territorial e demográfica da cidade.
Na mesma planilha estão reunidos dados sobre o sítio inventariado, como superfície e composi-
ção da população, nmero de imóveis e praças, uso do solo e edifícios relevantes. As normas
executivas do IPAC-Ba estão descritas no final do 2º volume da serie7.
O IPAC-Ba, realizado entre 1973 e 2002, sob enormes dificuldades logísticas e administra-
tivas, cobriu todo o estado da Bahia, com uma extensão de 567.700 km2, território maior que
o da Espanha, arrolando 18 centros históricos e 1.065 imóveis de valor cultural reunidos e
publicados em sete volumes8. Além de seu pioneirismo no país, esse inventário foi muito além
das especificações do IPEC contribuindo para a criação de uma nova referência neste campo e
continua a ser o único inventário de patrimônio edificado exaustivo de um estado brasileiro9.

7
Normas de Execução do IPAC in
IPA C-B
IPA A, vvol
C-BA, ol II, RReconca
econca
econcavv o ,
I parte
parte. Salvador: Bahia, Sec. da
Industria e Comercio, 2ª Ed., 1982,
pp. 269-279.
8
Os bens culturais estão assim dis-
tribuídos: Vol. I – Salvador, 135
monumentos, Vol. II – Recôncavo
I, dois centros históricos e 107
monumentos, Vol. III –
Recôncavo II, cinco centros his-
tóricos e 150 monumentos, Vol.
IV – Litoral Sul, sete centros his-
tóricos e 169 monumentos, Vol. V
– Chapada Diamantina, quatro
centros históricos e 165 monu-
mentos, Vol. VI – S. Francisco e
Extremo Oeste, 159 monumen-
tos, Vol. VII – Região Pastoril,
180 monumentos.
9
AZEVEDO, Paulo Ormindo. Inven-
tário como Instrumento de Prote-
ção: a experiência pioneira do
IPAC-Bahia, in MOTTA, Lia e SIL-
VA, Ma. Beatriz Resende (Org.)
Inventários de Identificação
Identificação.
Rio de Janeiro: IPHAN, 1988.
30
A ÚLTIMA DÉCADA, NOVOS RUMOS.
BALANÇO DA HISTORIOGRAFIA SOBRE URBANIZAÇÃO NO BRASIL-COLÔNIA.
A CONTRIBUIÇÃO DOS ESTUDOS REGIONAIS RECENTES.

Beatriz P. Siqueira Bueno*

1. A primeira geração
Os estudos de História da Urbanização e do Urbanismo no Brasil têm início apenas há 50
anos1 (LAP n. 29); são, portanto, muito recentes. Não se trata de uma peculiariedade brasileira.
Como disseram Bernard Lepetit2 e Donatella Calabi3, este campo de investigação na França e na
Itália também se consolidou nos anos 1950, contemporaneamente ao Brasil, momento de
metropolização das cidades e dos primeiros passos do planejamento urbano. Em meados do
século XX, lá e cá, é compreensível a eleição do passado urbano como objeto de estudo em
perspectiva histórica, com vistas a pensar o presente e planejar o futuro.
O hoje clássico Contribuição ao Estudo da Evolução Urbana do Brasil (1500-1720)4, tese de livre-
docência de Nestor Goulart Reis Filho, defendida em 1964 e publicada
em 1968, é nosso texto inaugural, dado que o capítulo “O Semeador *Faculdade de Arquitetura e Urba-
nismo - USP.
e o Ladrilhador”, do livro Raízes do Brasil 5 de Sérgio Buarque de
1
Holanda (1936/1947), tinha mais um caráter ensaístico, não chegan- REIS FILHO, Nestor Goulart. “No-
tas sobre a evolução dos estu-
do a configurar um campo de investigação específico. Ao falar em dos de História da Urbanização e
História da Urbanização - e não em História do Urbanismo ou His- do Urbanismo no Brasil”. Cader-
tória da Cidade -, Nestor Goulart delimitou um campo de investiga- nos de Pesquisa do LAP, n. 29.
ção dotado de uma perspectiva teórico-metodológica muito clara, 2 LEPETIT, Bernard. Por uma nova
para a qual certamente contribuiu sua dupla formação em Arquitetu- história urbana. São Paulo:
EDUSP, 2001. Seleção de textos,
ra e Urbanismo e em Ciências Sociais, bem como seu gosto particu- revisão crítica e apresentação de
lar pela História, com perfil quase de arqueólogo. Partindo de evi- Heliana Angotti Salgueiro.
dências materiais, Nestor propôs estudar a questão em perspectiva 3 CALABI, Donatella. “A história ur-
histórica e sistêmica, enfatizando as lógicas da política de colonização bana na Itália e na Europa” In:
e urbanização e seus produtos no tempo longo, conceituando o cará- PONTUAL, Virgínia e LORETTO,
Rosane. Cidade, território e urba-
ter de cada núcleo em meio à rede urbana, em escalas geográficas nismo: um campo conceitual em
diversas – do regional ao intercontinental. Sistema e rede urbana são, construção. Olinda: CECI, 2009.
aliás, palavras-chaves na teoria de Nestor Goulart. Muito além de pp. 39-53.
meros artefatos, encarados na sua dimensão puramente morfológica, 4 REIS FILHO, Nestor Goulart. Con-
a arquitetura, a cidade e o território são entendidos como configura- tribuição ao Estudo da Evolução
Urbana do Brasil (1500-1720) .
ções espaciais de relações sociais. Como bom sociólogo, Nestor São Paulo: Pioneira, 1968. 2a. ed.
Goulart leva muito a sério os atores, seus desígnios, suas articulações 2001.
conscientes e inconscientes, seus jogos ideológicos, para explicar as 5 HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes
configurações assumidas tanto na escala da rede quanto na escala do do Brasil. São Paulo: Livraria José
espaço intra-urbano. A sociedade, na teoria de Goulart, não é com- Olympio, 1936. É apenas na 2a.
edição, publicada em 1948, que o
preendida como uma categoria inerte, mas rica em “degradés” soci- capítulo “O passado agrário” é
ais (escravos, camadas médias, oligarquia) e contradições. Nesse uni- desmembrado em dois outros –
31
verso, o urbanismo é entendido como configuração das relações sociais no espaço intra-urbano,
bem com o intervenção na cidade existente ou projeto para concepção de novos espaços. Para
tanto, desde o início, tal perspectiva teórica se ampara na estratégia metodológica de reunião e
interpretação de amplas séries documentais primárias, sobretudo cartográficas e iconográficas,
resultando em 1964 no Catálogo de Iconografia das vilas e cidades do Brasil Colonial (1500-1720) e, em
2000, no livro Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial6.

2. A segunda geração
A geração seguinte deu outra enorme contribuição. Menciono aqui os trabalhos de Murillo
Marx, dos anos 1980 e 1990, com foco na Igreja como grande parceiro da Coroa portuguesa na
colonização do Brasil, lançando luz sobre outros agentes modeladores do espaço urbano – Nosso
chão: do sagrado ao profano (1989)7 -, sobre a rede eclesiástica de capelas e freguesias e sobre a
questão fundiária pré e pós Lei de Terras (1850) – Cidade no Brasil, terra de quem? (1991)8 - e, como
bom etimólogo, sobre os conceitos de época, tão negligenciados até Cidade no Brasil, em que termos?
(1999)9. Nesta segunda geração, incluem-se os trabalhos das
6
REIS FILHO, Nestor G. Imagens brasilianistas Roberta Delson – New towns for colonial Brazil. Spacial
de Vilas e Cidades do Brasil Colo-
nial [Colaboradores: Paulo Bruna
and social planning of the eighteenth century (1979)10 - e Elizabeth
e Beatriz P. S. Bueno]. São Paulo: Kuznesof – Household economy and urban development: São Paulo, 1765
FAPESP/ EDUSP, 2000. to 1836 (1986)11 -, com preocupações centradas no processo de
7
MARX, Murillo. Nosso chão: do urbanização do século XVIII. Delson explorou particularidades da
sagrado ao profano. São Paulo: política de colonização nas diversas regiões da América Portuguesa
EDUSP, 1989.
e Kuznesof destacou o papel dos atores sociais urbanos e da econo-
8
MARX, Murillo. Cidade no Brasil, mia urbana na composição das riquezas no Brasil, até então visto
terra de quem? São Paulo: EDUSP/
NOBEL, 1991.
exclusivamente como uma retaguarda rural dos mercados urbanos
9
europeus, sob a égide de uma oligarquia rural. A partir de Kuznesof
MARX, Murillo. Cidade no Brasil
em que termos? São Paulo: foi possível entrever a dinâmica econômica das atividades urbanas,
NOBEL, 1999. inaugurando assim uma nova linha de investigação hoje explorada
10
DELSON, Roberta. New towns for por pesquisadores como João Fragoso – Homens de grossa aventura.
colonial Brazil. Spacial and social Acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1998)12 - e
planning of the eighteenth century. Junia Furtado – Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do
Ann Arbor: Syracuse University,
University Microfilms Internacio-
comércio nas Minas setecentistas (1999)13.
nal, 1979. 2a. ed. 1997. Integram esta segunda geração de pesquisadores sintonizados
11
KUZNESOF, Elizabeth. Household
com a questão da História da Urbanização uma série de líderes
economy and urban development: regionais. Desses, destacamos: Benedito Lima de Toledo e Carlos
São Paulo, 1765 to 1836. Boulder, Lemos (SP); Fania Fridman, Maurício de Abreu, Giovana Rosso del
CO: Westview, 1986. Brenna e Margareth da Silva Pereira (RJ); José Luiz Mota Menezes
12
FRAGOSO, João. Homens de gros- (PE); José Liberal de Castro (CE); Paulo Ormindo de Azevedo,
sa aventura. Acumulação e hie-
rarquia na praça mercantil do Rio
Maria Helena Flexor, Mário Mendonça e Pedro Vasconcelos (BA);
de Janeiro. 2a. ed. Rio de Janeiro: e Gunther Weimer (RS). Estes intelectuais iniciaram importantes
Civilização Brasileira, 1998. Tese investigações regionais, com base em levantamentos de campo e
defendida na UFF, em 1990. farta documentação primária, contribuindo para o debate geral, as-
13
FURTADO, Junia. Homens de ne- sim como para a formação de uma nova geração de pesquisadores
gócio: a interiorização da metró-
nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Arquitetura e Ur-
pole e do comércio nas Minas
setecentistas. São Paulo: banismo então recém-criados, sobretudo, nas universidades federais
HUCITEC, 1999. dos seus respectivos estados.
32
Tais perspectivas floresceram e deixaram inúmeros filhotes, cujos trabalhos vêm preenchen-
do lacunas historiográficas e definindo novas possibilidades temáticas e metodológicas, que nos
parece oportuno aqui divulgar. Este será portanto o tema da minha fala: as contribuições da
última década no âmbito da História da Urbanização no Brasil.
14
ARAÚJO, Renata; CARITA, Helder.
3. O “estado da arte” no ano 2000 Colectânea de Estudos Universo
Urbanístico Português -1415-
Em 1999/2000, por ocasião das Comemorações dos Descobri- 1822. Lisboa: CNCDP, 1998.
mentos Portugueses, reiniciou-se, com vigor, o intercâmbio entre Bra- ROSSA, Walter. Revista Oceanos
sil e Portugal, estimulado por uma série de eventos, exposições e publi- [A construção do Brasil urbano],
no. 41. Lisboa: CNCDP, 2000.
cações14 – Colectânea de Estudos Universo Urbanístico Português -1415-1822 ARAÚJO, Renata e ROSSA,
(1998), Revista Oceanos no. 41 – A construção do Brasil urbano (2000), Walter (coords.). Bibliografia
Bibliografia Ibero-Americana da História do Urbanismo e da Urbanística - Ibero-Americana da História do
Urbanismo e da Urbanística -
1415-1822 (2000), Actas do Colóquio Internacional Universo Urbanístico 1415-1822. Lisboa: CNCDP, 2000.
Português -1415-1822 (2001), A praça na cidade portuguesa (2001), A ARAÚJO, Renata, CARITA, Helder
construção da cidade brasileira (2004). e ROSSA, Walter (coords.). Actas
Reuniões científicas preparatórias e o próprio Colóquio Internacional do Colóquio Internacional Univer-
so Urbanístico Português -1415-
Universo Urbanístico Português – 1415-1822 (Coimbra 1999) - capitanea- 1822. Lisboa: CNCDP, 2001.
do por Renata Araújo, Walter Rossa e Helder Carita -, bem como o TEIXEIRA, Manuel. A praça na
Colóquio Portugal-Brasil: A praça na cidade portuguesa (Lisboa 1999), o cidade portuguesa. Lisboa: Livros
Colóquio A representação da cidade de origem portuguesa na cartografia histórica Horizonte, 2001.
TEIXEIRA, Manuel. A construção
(Rio de Janeiro 2000) e o Colóquio A construção do Brasil Urbano ( Ciclo da cidade brasileira. Lisboa: Li-
de Conferências do Convento – Estudos Gerais da Arrábida 2000), vros Horizonte, 2004.
orquestrados por Manuel Teixeira, em 2000, forneceram o “estado da 15
Certamente não eram as únicas
nos seus respectivos estados,
arte” daquele momento. Estimulados por mestres como José Augusto
mas aquelas cujos pesquisado-
França, José Eduardo Horta Correia e Rafael Moreira, entre outros, res foram contatados por Rossa,
àquela altura, Araújo, Rossa e Teixeira – compondo grupos distintos - Araújo, Carita e Teixeira.
16
estavam escrevendo sobre o Brasil e intuíram sobre a necessidade de BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira.
Desenho e Desígnio: o Brasil dos
revitalizar um intercâmbio há muito interrompido. engenheiros militares. Oceanos
Nos anos 2000, foi possível perceber a existência de pesquisas [A constr ução do Br
construção asil ur
Brasil ur--
em andamento15 sobre quase todos os estados brasileiros – Fania bano]. Lisboa: CNCDP, 41: 40-58,
jan.-mar. 2000; BUENO, Beatriz
Fridman e Fernanda Bicalho (RJ); Renata Araújo, Jussara da Silveira Piccolotto Siqueira. Desenho e
Derenji e Luís Alexandre Rodrigues (AM ); Ana Cristina Braga e Desígnio: o Brasil dos enge-
Edilson Nazaré Dias Motta (Ilha de Marajó); Dora Alcântara, Cris- nheiros militares (1500-
1822). Tese de doutorado apre-
tovão Duarte e Ananias Alves Martins (MA); Romeu Duarte Junior sentada à FAUUSP, 2001 (2ª versão
(CE); Maria Helena Flexor (BA); Renata Araújo (MT); Cláudia – 2003); BUENO, Beatriz Piccolotto
Damasceno Fonseca, Til Pestana (Diamantina) e Pedro Alcântara Siqueira. “Desenhar (projetar) em
Portugal e Brasil nos séculos XVI-
(MG); Nestor Goulart (SP); Lisete Assen de Oliveira (SC); e Luís XVIII”. Cadernos de Pesquisa
Fernando Rhoden e Luiz Antônio Bolcato Custódio (RS). José Luiz do Lap, n. 36. São Paulo: LAP/
Mota Menezes, Paulo Ormindo de Azevedo, Murillo Marx, Roberta FAUUSP, pp. 1 – 45, jul.-dez. 2002;
BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira.
Delson e José Pessoa, embora tenham importantes trabalhos sobre “Decifrando mapas: sobre o con-
urbanização, urbanismo e arquitetura, participaram dos eventos tra- ceito de território e suas vinculações
tando de questões mais gerais referentes ao tema, e eu, desde 1993, com a cartografia”. Anais do Mu-
seu Paulista: História e Cul-
inaugurei minha incursão sobre a questão do desenho e dos desígni- tur
turaa Ma terial, v.12. São Paulo:
Material,
os da cartografia dos engenheiros militares16, bem como sobre a Museu Paulista-USP, pp.193 - 234,
formação e a cultura profissional dos mesmos, objetos de estudo da jan.-dez. 2004.
33
minha tese de doutorado, então em andamento, defendida na FAUUSP em 2001, a ser publicada
pela EDUSP em 2010.
Hoje, posso assegurar, que as raras lacunas ali observadas foram cobertas por estudos con-
cretizadas na última década.

4. O “estado da arte” na última década


De cunho mais teórico, na última década, destacam-se os trabalhos de fôlego de Amilcar Torrão
Filho – Paradigma do caos ou cidade da conversão?: a cidade colonial na América portuguesa e o caso da São Paulo
na administração do Morgado de Mateus (1765-1775) (IFCH-UNICAMP 2004)17 - e de George Alexan-
dre Ferreira Dantas - A formação das representações sobre a cidade colonial no Brasil (EESC - 2009)18 -,
referentes à História da Historiografia sobre Urbanização e Urbanismo no Brasil-Colônia. Ambos
investigam as indagações que motivaram a constituição de uma espécie de “lugar comum” que
persegue nossa historiografia até o presente – a questão do “desleixo” versus “ordem” que insiste em
orientar as comparações das estratégias de colonização dos espanhóis e dos portugueses na América.
Amilcar Torrão, com olhar de historiador e amparado pela orientação teórico-metodológica de
Maria Stella Bresciani, esmiuça as sementes e motivações do ensaio de Sérgio Buarque (1936/1947)
que inaugurou as metáforas do “semeador” e do “ladrilhador”, configurando arquétipos de um
modo de ser, de agir, herdado culturalmente na sociedade. Além disso, percorre e classifica as
numerosas teses que nortearam nossa historiografia mais clássica - “tese da desordem e do desleixo”
liderada por Sérgio Buarque, “tese da ordem pragmática” de Nestor-Delson-Rossa-Ormindo-Teixeira-
Flexor, “tese da cidade construtora da nacionalidade” de Plínio Salgado, “tese da organicidade medi-
eval” de Paulo Santos, “tese da espacialidade barroca” de Giovana Rosso del Brenna, “tese da
cidade como elemento de ordenamento civil e eclesiástico” de Richard Morse-Caio Boschi-Murillo
Marx. Talvez aí resida seu aspecto limitante, dado que a obra desses autores nem sempre se presta
aos enquadramentos realizados. De mesma natureza, sem o afã classificador do primeiro, na linha da
Nova História Cultural destaca-se o trabalho de George Dantas, que busca desvendar um problema
historiográfico, fruto da sobreposição de teses e argumentos de genealogia difusa, que consagram
uma representação negativa da cidade colonial brasileira. Tem como objetivo identificar, discutir e
analisar as bases formativas e as diferentes matrizes do pensamento que informaram e influencia-
ram a construção historiográfica sobre a cidade do período colonial no
17
TORRÃO FILHO, Amilcar. Paradigma Brasil, descortinando lugares e fundos-comuns. George Dantas, como
do caos ou cidade da conversão?
arquiteto, tem foco mais dirigido para a historiografia oriunda desses
São Paulo na administração do
Morgado de Mateus (1765-1775). profissionais. Além disso, à historiografia sobre urbanização e urbanis-
São Paulo: Annablume, 2007. mo, George Dantas acrescenta o papel dos viajantes do século XIX,
TORRÃO FILHO, Amilcar. A arquite- dos médicos e engenheiros sanitaristas da 1a. República (1889-1930) e
tura da alteridade: a cidade luso-
brasileira na literatura de viagem
da historiografia sobre a Arquitetura Moderna dos anos 1950/1960 -
(1783-1845). Tese de Dfoutorado – embebida da ideologia do plano (Bruand, Mindlin, Goodwin) - na cons-
IFCH- UNICAMP, 2008. trução de uma narrativa negativa sobre a cidade colonial no Brasil.
18
George Alexandre Ferreira Dantas. No que diz respeito aos estudos regionais, Renata Araújo, que
A formação das representações so- havia concluído uma belíssima dissertação de mestrado sobre a
bre a cidade colonial no Brasil. Tese
de Doutorado: EESC, 2009.
Amazônia no século XVIII em 1992 (publicada em 1998) – As cida-
des da Amazônia no Século XVIII. Belém, Macapá e Mazagão19 -, finali-
19
ARAÚJO, Renata. As cidades da zou seu doutorado sobre o Mato Grosso em 2000, na Universidade
Amazônia no Século XVIII. Belém,
Macapá e Mazagão. Porto: FAUP, Nova de Lisboa – A urbanização do Mato Grosso no século XVIII. Dis-
1998. curso e método”. Mato Grosso também mereceu contribuição do
34
geógrafo Carlo Eugênio Nogueira - Nos sertões do poente. Conquista e colonização do Brasil Central
(FFLCH-USP 2008) - sob a orientação de Antonio Carlos Robert de Moraes, autor do clássico
Bases da formação territorial do Brasil. O território colonial brasileiro no “longo” século XVI (2000).
Com o mesmo rigor, Cláudia Damasceno Fonseca, sob a orientação inicial de Bernard Lepetit
(in memoriam), concluiu na École des Hautes Études en Sciences Sociales sua tese de doutorado sobre Minas
Gerais, em 2001, publicada em 2003 – Des terres aux villes de l’or. Pouvoirs et territoires urbains au Minas
Gerais (Brésil, XVIIIe siècle)20. Sobre Minas, com foco mais direcionado para a interpretação cartográfica
das dinâmicas e lógicas da rede de caminhos e vilas do ouro, Fernanda Borges de Moraes21, sob a
orientação de Carlos Lemos, defendeu outra preciosa tese – A rede urbana das minas coloniais na
urdidura do tempo e do espaço (FAUUSP, 2005). Por outro lado, na pers-
pectiva da História Cultural, Rodrigo Almeida Bastos investigou a na- 20FONSECA, Cláudia Damasceno.
tureza específica do urbanismo colonial, com base nos conceitos e Des terres aux villes de l’or.
Pouvoirs et territoires urbains au
categorias estéticas coevos ao período. Na sua dissertação de mestrado Minas Gerais (Brésil, XVIIIe
-A arte do urbanismo conveniente: o decoro na implantação de novas povoações em siècle). Lisboa: Fundação Calouste
Minas Gerais na primeira metade do século XVIII (UFMG, 2003)22, sob 21 Gulbenkian, 2003.
profunda influência de João Adolfo Hansen, advogou pela MORAES, Fernanda Borges. A rede
urbana das minas coloniais na
reconstituição histórica dos preceitos e regimes retóricos contemporâ- urdidura do tempo e do espaço.
neos às produções artísticas do período. Segundo ele, o caminho aber- Tese de Doutorado, FAUUSP, 2005.
22
to pelas “belas letras” promete ser bastante proveitoso também às BASTOS, Rodrigo Almeida. A arte
do urbanismo conveniente: o de-
demais artes. Com o foco no conceito de “decoro”, explorou Atas de coro na implantação de novas po-
Câmara e outros documentos de época em busca do discurso que voações em Minas Gerais na pri-
justificava a implantação de novas povoações ou a intervenção na meira metade do século XVIII.
Dissertação de Mestrado, UFMG,
cidade existente, mostrando que núcleos aparentemente sem 2003.
ordenamento, ou sem plano, mereciam cuidados urbanísticos sim, sob 23BOAVENTURA, Deusa Maria
a égide das noções de decoro e conveniência. Evitando anacronismos, a Rodrigues. Urbanização em Goiás
chave de investigação proposta por Rodrigo Bastos me parece das no século XVIII. Tese de Doutora-
do, FAUUSP, 2007.
mais salutares, merecendo estudos afins em outros contextos. Certa- 24JUCÁ NETO, Clóvis Ramiro. A ur-
mente, constitui-se em baliza metodológica para orientação dos estu- banização do Ceará setecen-tista.
As vilas de Nossa Senhora da
dos sobre o urbanismo colonial. Expectação do Icó e de Santa Cruz
Sobre a Capitania de Goiás, destaca-se a tese de doutorado de do Aracati. Tese de Doutorado,
Deusa Maria Rodrigues Boaventura – Urbanização em Goiás no século UFBA, 2007.
25
XVIII -, defendida na FAUUSP, em 200723. MOURA FILHA, Maria Berthilde de
Barros Lima e. De Filipéia à
A região Nordeste também vem merecendo importantes Paraíba. Uma cidade na estraté-
contribuições. gia de colonização do Brasil. Sé-
A Universidade Federal de Alagoas conta com um grupo de culos XVI-XVIII. Tese de Douto-
rado em História da Arte - Facul-
estudos coordenado por Maria Angélica Silva. dade de Letras da Universidade
Nas Universidades Federais da Bahia, do Ceará, da Paraíba e do Rio do Porto, 2004. Orientador: Joa-
quim Jaime Ferreira Alves.
Grande do Norte, destacam-se os trabalhos de Clóvis Ramiro Jucá Neto 26TEIXEIRA, Rubenilson. De la ville
sobre o Ceará – A urbanização do Ceará setecentista. As vilas de Nossa Senhora de Dieu à la ville des hommes. La
da Expectação do Icó e de Santa Cruz do Aracati (2006)24 -, de Maria Berthilde sécularisation de l’espace urbain
dans le Rio Grande do Norte. Tese
Moura Filha25 sobre Filipéia de Nossa Senhora das Neves (Paraíba), de de Doutorado – EHESS, 2002.
Rubenilson Teixeira26 sobre a Capitania do Rio Grande do Norte e de Orientador: Alain Musset.
27
Juliano Loureiro de Carvalho27 sobre a urbanização na Paraíba. CARVALHO, Juliano Loureiro de.
Formação territorial da mata
Com foco na economia do gado e do algodão, em pleno sertão paraibana, 1755-1808. Disserta-
nordestino, inserem-se os trabalhos de Damião Esdras Araújo Arraes ção de Mestrado – UFBA, 2008.
35
(mestrado em estágio inicial na FAUUSP) sobre a rede urbana de Pernambuco, bem como de
Nathália Maria Montenegro Diniz sobre as trilhas e as fazendas de gado - Velhas Fazendas das
ribeiras do Seridó (Mestrado FAUUSP, 2008) e Paisagem Cultural Sertaneja: as fazendas de gado do sertão
nordestino (Doutorado em andamento FAUUSP) - e de Olavo Pereira da Silva Filho – Carnaúba,
pedra e barro na Capitania de São José do Piauhy (2007) – sobre as fazendas de gado do Piauí. A
interiorização da colonização começa, portanto, a ser contada sob um outro prisma, somando-se
o ciclo do gado ao já amplamente explorado ciclo da mineração. Finalmente o sertão nordestino
vem ganhando luz ao merecer a atenção desses pesquisadores.
Espírito Santo conta com a tese de doutorado de Luciene Pessotti28, A geopolítica do sagrado. A
participação da Igreja Católica na conformação urbana da Vila de Nossa Senhora da Vitória – ES (século
XVI ao XIX) (2005).
A Capitania de São Paulo mereceu especial atenção de Amilcar Torrão e, mais recentemente,
de Fernanda Derntl – Método e Arte: a criação urbana na Capitania de São Paulo (1765-1822) (douto-
rado em andamento, FAUUSP), ambos com foco no processo de urbanização no período do
Morgado de Mateus.
Rio de Janeiro conta com as contribuições recentes de Nireu Cavalcanti – O Rio de Janeiro
setecentista. A vida e a construção da cidade da invasão francesa até a chegada da corte (2004) -, Fernanda
Bicalho – A cidade e o Império. O Rio de Janeiro no século XVIII (FFLCH-USP 2003) -, Maurício de
Abreu e Ronald Raminelli – Viagens Ultramarinas. Monarcas, vassalos e governo à distância (2008).
Além disso o Atlas de Centros Históricos do Brasil (2008) de José Pesssoa vem a contribuir, e
muito, na visualização aerofotogramétrica de cidades e centros históricos contemporâneos, desta-
cando aspectos do legado urbanístico e arquitetônico do nosso passado colonial, hoje em vias de
preservação pelos orgãos do Patrimônio.
Rio Grande do Sul também está merecendo estudo de Ana Lúcia Costa de Oliveira, sob a
orientação de Gunther Weimar, na linha dos outrora empreendidos por Luís Fernando Rhoden e
Luiz Antônio Bolcato Custódio.
Além disso, em seu mestrado – Paisagens no tempo: vilas litorâneas paulistas (FAUUSP, 2008) –,
Rubens Gianessella29 procurou lançar luz sobre uma nova seara, o papel da pré-existência, na
configuração da rede urbana colonial, dos indígenas e de seus aldeamentos na escolha da situação
geográfica e do sítio para implantação dos núcleos portugueses e, sobretudo, das alianças dos
portugueses com os nativos para garantir a sua sobrevivência num novo mundo. Este aspecto
vem sendo ignorado pela historiografia, que insiste em realizar os estudos de urbanização partin-
do do Brasil como um território virgem, uma folha em branco, sobre a qual a História só pôde ser
escrita a partir da chegada e sob a ótica dos portugueses. A linha de investigação inaugurada por
28
PESSOTTI, Luciene. A geopolítica Gianessella se vale de contribuições clássicas e recentes, oriundas
do sagrado. A participação da Igre- do universo dos historiadores, arqueólogos, antropólogos e geógrafos,
ja Católica na conformação urba- com destaque para os trabalhos de John Monteiro e Pedro Paulo
na da Vila de Nossa Senhora da
Vitória – ES (século XVI ao XIX). Funari na UNICAMP.
Tese de Doutorado: UFBA, 2005. Sobre os engenheiros militares e sua cartografia, boa parte das
Orientador: Pedro Vasconcelos. dissertações e teses aqui mencionadas vem elucidando particulari-
29
GIANESSELLA, Rubens. Paisa- dades regionais sobre a presença ou ausência desses profissionais e
gens no tempo: vilas litorâneas o significado estratégico deles nas políticas de colonização e urbani-
paulistas. Dissertação de
Mestrado: FAUUSP, 2008. zação. A análise do papel dos engenheiros militares perpassa as dis-
Orientador: Beatriz P. S. Bueno. cussões sobre regiões específicas, mesmo quando eles aparentemente
36
estão ausentes. Sua presença ou ausência sempre foi sinônimo de interesse e projeto colonizador
mais ou menos dirigido. Vale a pena investigar as nuances dessa afirmação recorrente.
Ainda sobre os engenheiros militares, em textos publicados na Revista Desígnio (2004)30 e mais
recentemente nas Atas do I Seminário Urbcolonial (2009)31, venho procurando elucidar sua atuação
para além da arquitetura militar, do urbanismo e da cartografia, bem como a dimensão prática
dos conteúdos ministrados nas lições de teoria das Academias Militares. Enganam-se os que
pensam que estes profissionais apenas construíram fortificações, projetaram vilas e cidades e
foram exímios cartógrafos. Atuaram em campos tão diversos como a administração portuguesa
(como governadores de capitanias), as arquiteturas religiosa e civil, envolvendo-se em todas as
obras de infra-estrutura territorial e urbana patrocinadas pela Coroa. Além disso, mereceram
encomendas de particulares, sobretudo das irmandades laicas e ordens regulares. Nesses estudos,
tenho chamado a atenção para o papel dos outros profissionais da construção – mestres pedreiros
e mestres carpinteiros -, sua formação e universo de atuação. Na mesma linha inserem-se as
pesquisas de Nelson Porto.
Sobre o papel e a formação dos engenheiros militares, destacam-se também as importantes
contribuições de Mário Mendonça de Oliveira32 – As fortificações portuguesas de Salvador quando cabeça
do Brasil (2004) -, de Alfredo Henrique Caldas de Souza – Salvador: cabeça do Brasil. A participação da
engenharia militar na configuração de seu espaço urbano (século XVIII) (2003) - e de Dulcyene Maria Ribeiro
– A formação dos engenheiros militares. Azevedo Fortes, matemática e ensino da
30
engenharia militar no século XVIII em Portugal e no Brasil (Faculdade de BUENO, Beatriz Piccolotto
Siqueira. “O ensino de arquitetura
Educação - USP, 2009)33. Esta última, numa perspectiva da História nas aulas de engenharia militar da
da Matemática, desconstrói o tratado “O Engenheiro Português” (1728/ Bahia no século XVIII”. Desígnio,
1729). Nessa direção, insere-se ainda a tese de Wagner Rodrigues Va- n.1. São Paulo: Anna Blume, pp.93
– 100, mar. 2004.
lente, realizada na França sob a orientação de Bruno Belhoste, intitulada
31
“Uma história da matemática escolar no Brasil (1730-1930)”34, focalizando BUENO, Beatriz Piccolotto
Siqueira. “Engenheiros militares:
as referências matemáticas dos nossos “funcionários do urbanismo” atores na modelação do espaço
(expressão de Renata Araújo) seiscentistas, setecentistas e oitocentistas, urbano”. In: SOUZA, Luciene
Pessotti e PORTO, Nelson. Urba-
desvendando peculiaridades do hermético universo da tratadística dos nismo Colonial. Vilas e cidades de
engenheiros militares e padres jesuítas. matriz portuguesa. Rio de Janei-
Na linha das investigações desenvolvidas por Fania Fridman – ro: POD Editora, 2009.
Donos do Rio em nome do Rei (1999) – e Nireu Cavalcanti - O Rio de 32 OLIVEIRA, Mário Mendonça de.
Janeiro setecentista. A vida e a construção da cidade da invasão francesa até a As fortificações portuguesas de
chegada da corte (2004) – venho realizando estudos sobre o mercado Salvador quando cabeça do Brasil
Salvador: Fundação Gregório de
imobiliário urbano no período colonial – Tecido urbano e mercado imobi- Mattos, 2004.
liário em São Paulo: metodologia de estudo com base na Décima Urbana de 33RIBEIRO, Dulcyene Maria. A for-
1809 (2005) e Aspectos do mercado imobiliário em perspectiva histórica: São mação dos engenheiros militares.
Paulo (1809-1950) (2008). Trata-se de uma vertente pouco explora- Azevedo Fortes, matemática e en-
sino da engenharia militar no sécu-
da pela historiografia e posso assegurar que a interpretação das Dé- lo XVIII em Portugal e no Brasil.
cimas Urbanas – primeiro imposto predial estabelecido para as vilas Tese de Doutorado - Faculdade de
e cidades brasileiras em 1809 – fornecem um retrato inédito da Educação - USP, 2009.
tessitura da cidade colonial, lote a lote, permitindo identificar os pro- 34VALENTE, Wagner Rodrigues.
prietários, os inquilinos, as tipologias, os usos e valores dos imóveis Uma história da matemática es-
colar no Brasil (1730-1930). 2a.
urbanos. Numa perspectiva comparada, para além das Décimas do ed. São Paulo: Anna Blume/
Rio de Janeiro (1809-1812) e São Paulo (1809 e 1829), exploradas FAPESP, 2007.
37
por Nireu Cavalcanti e por mim35, mereceriam estudo as Décimas de outras vilas e cidades do
Brasil com metodologia semelhante. Ainda em andamento, sob minha orientação, Margarida Andrade
está realizando tese de doutorado sobre o caso de Fortaleza, sinal que as Décimas existem por
toda parte e precisam ser exploradas.
Nesse balanço historiográfico da última década, destacam-se também as contribuições
conceituais e temáticas de alguns pesquisadores estrangeiros, dentre eles Laurent Vidal36.
Sem dúvida, esses novos temas, recortes e aprofundamentos realizados não teriam sido pos-
síveis sem a melhoria das condições materiais da pesquisa e o afã de investigadores regionais,
capazes de explorar a documentação local pouco acessível aos estudos mais gerais. Além disso,
importantes arquivos e bibliotecas relacionados ao universo colonial informatizaram suas cole-
ções, facilitando o acesso aos documentos e disponibizando-os em larga escala via internet. A
disponibilização de documentos textuais e das séries cartográficas e iconográficas on line, hoje,
facilita muito o trabalho dos pesquisadores. Neste aspecto, só para citar alguns exemplos, mere-
cem consulta:
Livro e CD – REIS FILHO, N.G. Imagens de vilas e cidades do Brasil Colonial (2000).
x Arquivo virtual de cartografia http://urban.iscte.pt (Manuel Teixeira)
x Coleção de Mapas da Fundação Biblioteca Nacional – RJ.
x Coleção do Arquivo Público Mineiro – BH.
x Projeto Resgate (Arquivo Histórico Ultramarino) (Esther Caldas Bertoletti)
x Projeto Tesouros da Biblioteca Nacional de Lisboa (João Carlos Garcia) – http://purl.pt/369/
1/cartografia.html
35
x Mapas da Biblioteca Nacional de Lisboa (João Carlos Garcia) –
BUENO, Beatriz Piccolotto
Siqueira. “Tecido urbano e merca- http://purl.pt/index/cart/PT/index.html
do imobiliário em São Paulo: x Projeto Nova Lusitânia (João Carlos Garcia) – http://purl.pt/103/1/
metodologia de estudo com base
na Décima Urbana de 1809”.
x Projeto SIDCarta – Sistema de Informação para Documentação Cartográfica:
Anais do Museu Paulista: o Espólio da Engenharia Militar Portuguesa (Centro de Estudos
História e Cultura Material , Geográficos da Universidade de Lisboa/ Direcção dos Serviços de
v.13. São Paulo: Museu Paulista-
USP, pp.59 - 97, jan.jun. 2005.
Engenharia do Exército/ Instituto Geográfico do Exército) (Maria
Helena Dias e João Carlos Garcia) – http://www.exercito.pt/bibliopac/
BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira.
Aspectos do mercado imobiliário x Livros organizados por Antonio Gilberto Costa – Cartografia da
em perspectiva histórica: São conquista do território (2004), Os Caminhos do Ouro e a Estrada Real
Paulo (1809-1950). São Paulo:
FAUUSP, 2008.
(2005) e Roteiro Prático de Cartografia: da América Portuguesa ao Brasil
36
Império (2007).
VIDAL, Laurent. “Sous le masque
du colonial. Naissances et x GARCIA, João Carlos Garcia (coord.). A mais dilatada vista do
‘décadence’ d’une vila dans le mundo. Inventário da colecção cartográfica da Casa da Ínsua. Lisboa:
Brésil moderne: Vila Boa de Goiás
CNCDP, 2002.
au XVIIIe siècle”. Annales –
Histoire, Sciences Sociales, 62e Além disso, reuniões científicas têm se mostrado um fértil lugar
année, no. 3, mai-jun 2007. pp. de trocas intelectuais. Destacam-se:
577-606.
37
x Seminários de História da Cidade e do Urbanismo (1990-2008)37
Consultar DVD organizado por
José Tavares de Lira – SHCU 1990- x ANPUR
2008 -, reunindo as contribuições
dos dez Seminários de História da
x ANPUH
Cidade e do Urbanismo. x II URBColonial (2008 e 2009)
38
x II Encontro Cidades Latino Americanas do século XVI ao XIX (2006 e 2009)
x III Simpósio Luso-Brasileiro de Cartografia Histórica (Rio de Janeiro e Ouro Preto)
x II Seminário Iberoamericano de Cartografia (Buenos Aires e México – 2008)
x Seminários Luso-brasileiros de História da Arte
É pouco o que se tem hoje em termos de sessões ou reuniões científicas exclusivas sobre
urbanização colonial, já que somos tantos pesquisadores e escolas.
Neste cenário, algumas questões mereceriam, a meu ver, aprofundamento em perspectiva
comparada, envolvendo estudos nas diversas regiões brasileiras:
x Através das Décimas Urbanas, investigar questões fundiárias, mercado imobiliário, atores e
usos do espaço urbano.
x Através da cartografia e de dicionários corográficos, reconstituir a rede eclesiástica – capelas
e freguesias – para analisar o papel dessas povoações pré-existentes na orientação da política
de colonização da Coroa portuguesa.
x Reconstituir a rede de tribos indígenas e a rede de aldeamentos e todo tipo de ocupação
preexistente à presença ibérica.
x Reconstituir a rede de missões, aldeias e fazendas dos jesuítas e demais ordens religiosas.
x Reconstituir a rede de caminhos e articulações inter-capitanias.
x Reconstituir as fronteiras das capitanias e redimensionar os recortes dos estudos, envolvendo
por vezes diversos estados atuais.
x Analisar o papel das vilas (termo e rossio) e cidades reais na rede urbana regional, nacional
e intercontinental.
x Analisar a documentação camarária, que permite entrever os embates entre as normas
urbanísticas emanadas do poder central e a população.
x Analisar os “funcionários do urbanismo” para além dos engenheiros militares (governadores
de capitanias, ouvidores, capitães-mor, mestres construtores, almotacés, arruadores).
x Analisar o papel do desenho cartográfico no processo de conhecimento, apossamento,
definição dos territórios e no projeto de vilas e cidades: do borrão às aguadas.
x Na ausência de projetos, analisar os “desenhos por escrito” (feliz expressão cunhada por
Fernanda Derntl) na fundação dos núcleos urbanos no Brasil, mostrando os descaminhos
entre teoria e prática.
x Diferenciar as estratégias, lógicas e quadros técnicos mobilizados pela Coroa portuguesa
em áreas centrais e periféricas.
x Estudar os atores sociais urbanos - degradés sociais, índices de riqueza e seu papel na economia
geral da Colônia.
x Analisar a natureza do Estado Português, do governo e da adminstração civil e eclesiástica
- instituições, organização territorial do antigo regime, centralidade/capitalidade (bispados,
comarcas, capitanias, municípios - circunscrições do conselho), na linha dos trabalhos
realizados sob a ótica do Direito no Antigo Regime, por António Manuel Hespanha e Ana
Cristina Nogueira da Silva.
x Analisar particularidades da sociedade portuguesa no Antigo Regime e da sociedade colonial,
na linha dos estudos de José Mattoso, Nuno Gonçalo Monteiro e Ana Paula Megiani.
x Analisar aspectos da cultura, ciências e homens de estado em Portugal e Brasil no Século
das Luzes, na linha dos estudos de Ronald Raminelli e Iris Kantor.
39
x Em dicionários etimológicos de época, levantar as significações de termos, conceitos e
categorias, na linha dos estudos de Murillo Marx e Rodrigo Bastos.

5. Urbanização e preservação
Para concluir, gostaria de salientar que esses estudos de urbanização não são mero diletantismo
de historiadores e arquitetos-urbanistas. Em geral, desenvolvem-se em resposta não apenas a
rituais de passagem acadêmicos, mas em função de demandas de inventário emanadas dos orgãos
de preservação do Patrimônio Cultural – federal ou regional -, dos quais muitos pesquisadores
são parte.
Inventários e pesquisas lançam luz nas lacunas, dando a medida da relevância daquilo que
outrora fora desprezado, seja por um viés ideológico restritivo da primeira geração do SPHAN,
seja por carência de documentação (àquela altura pouco acessível), seja pelo desconhecimento
daquelas realidades.
As Cartas, Recomendações e Convenções Internacionais referentes à preservação do
Patrimônio Cultural e Natural, assim como os estudos sobre a urbanização, também são muito
recentes. Datam apenas da década de 1960, recomendações internacionais que extrapolam a
escala do monumento isolado, versando sobre a cidade histórica, as paisagens naturais e culturais
e o patrimônio construído vernáculo.
O conceito de Patrimônio Cultural - em voga a partir dos anos 1972 - e o conceito de Paisagem
Cultural - em voga desde 1995 -, requerem políticas e estratégias de preservação que articulem
áreas em geral maiores que as fronteiras jurídicas dos atuais municípios ou estados, bem como
instituições internacionais, federais, regionais e locais.
Para orquestrar políticas e estratégias de preservação envolvendo “rugosidades”38 (Milton San-
tos) configuradas na longa duração, a perspectiva sistêmica da História da Urbanização, tal como
teorizada por Nestor Goulart, me parece um caminho seguro a trilhar. A análise dos vestígios
materiais, das diversas camadas de tempos ali amalgamadas, em confronto com séries documen-
tais conexas – sobretudo cartográficas e iconográficas -, contribui na reconstituição das paisagens
culturais, envolvendo tempos, usos e significações diferentes das nossas, que requerem uma
resignificação a partir do presente.
Lançando luz a lacunas outrora não percebidas, a urbanização como campo de investigação é
assim, hoje, uma promessa na orientação de políticas e estratégias de preservação de áreas micro
e marco-regionais, envolvendo vários atores sociais e temporalidades. Para além do simples
diletantismo, temos muito a discutir neste seminário, que coloca em destaque estas duas questões
– urbanização e preservação.

SANTOS, Milton. A natureza do


38

espaço. Técnica e tempo. Ra-


zão e emoção. 4a. ed. São Pau-
lo: EDUSP, 2008.pp. 139-141.
40
CAPELA DE SÃO JOÃO BATISTA - CARAPINA GRANDE, SERRA – ES
RECONSTRUÇÃO COMO RESTAURAÇÃO DA IMAGEM

Cristina Coelho*
“Portadores de uma mensagem espiritual do passado, as obras monu-
mentais de cada povo são atualmente o testemunho vivo de suas tradições
seculares. A humanidade, que cada dia toma consciência da unidade dos
valores humanos, as considera como patrimônio comum, e passando nas
gerações futuras, se reconhece solidamente responsável de sua conservação.
É seu dever transmiti-las com toda a riqueza de sua autenticidade.”
Carta de Veneza, 1964
A restauração da Capela de São João Batista de Carapina trata-se de uma experiência que
reuniu o Estado, a iniciativa privada e, principalmente, a comunidade local no resgate de impor-
tante referencial da cultura jesuítica no estado do Espírito Santo.
Datada de aproximadamente 1583, a Capela de São João Batista constitui um importante teste-
munho das primeiras levas de missionários jesuíticos no Espírito Santo. Em situação privilegiada de
grande riqueza paisagística no planalto de Carapina, no município da Serra, de onde se vê toda a
cidade de Vitória e o Monte Mestre Álvaro desde seu vale, integra o Sítio Histórico de Carapina,
condição garantida em 1984 pelo Conselho Estadual de Cultura por
meio do ato de tombamento da capela e de área de proteção de entor- * Arquiteta e urbanista graduada pelo
no com raio de 500 metros em torno do bem tombado. DAU/UFES em 1989; especialista
Após a expulsão dos jesuítas, em 1759, a construção passou por em Restauração de Edifícios e
um grande período de abandono. Posteriormente, foi completamen- Conjuntos Históricos pelo CECRE/
UFBa em 1993 e mestre em Ciên-
cias da Arquitetura, na área de
História e Preservação do
Patrimônio Cultural pelo PROARQ/
FAU/UFRJ em 2003. No ES, du-
rante toda a década passada e
início desta, atuou na restauração
de diversos monumentos
jesuíticos e como docente em
cursos de graduação em Arquite-
tura e Urbanismo nas cadeiras de
Projeto de Arquitetura e Patrimônio
Histórico. No RJ, de 2002 a 2008,
atuou junto à Prefeitura da Cidade
do Rio de Janeiro como coordena-
dora do Projeto de Revitalização
da Praça Tiradentes (Programa
Monumenta/MinC). Atualmente é
chefe do Núcleo de Educação
Patrimonial do Departamento de
Patrimônio Histórico da Casa de
Foto 1 – planalto de Carapina visto da Rodovia BR101 – contorno de Vitória. Em Oswaldo Cruz – COC/FIOCRUZ e
destaque a capela / José Antônio Carvalho; 2 – vista aérea da região. Em destaque a membro suplente do Conselho
capela / Google Earth – julho 2009 Municipal de Proteção do
41
Foto 2 – vista aérea da região. Em destaque a capela / Google Earth – julho 2009

te reformada e remodelada para servir de matriz da região, tendo sido definitivamente abandona-
da no início da década de 1980. A partir de então, veio sofrendo degradações e até agressões, que
culminaram com sua quase total demolição, no ano de 1992, quando restaram apenas “duas
paredes e uma torre”, esta resguardando frondosa árvore.
Graças à atuação da comunidade local, que muito lutou pela recuperação do monumento,
promoveu-se sua reconstrução durante o ano de 1995 no contexto da implantação do Terminal
Intermodal da Serra - TIMS, que tem o Planalto de Carapina e a Capela como panos de fundo.
A restauração, por sua vez, buscou devolver àquela comunidade, e ao Espírito Santo, um
referencial de grande importância, a partir de seus remanescentes e de consistente cadastramento
realizado anteriormente à sua demolição, restabelecendo a imagem que ainda se encontrava viva
na memória das pessoas. Utilizou-se, o mais possível, a matéria preexistente que havia permane-
cido no local sob forma de escombros, garantindo ao mesmo tempo autenticidade aos trechos
remanescentes e aos completamentos, a qual pode ser atestada pela identificação das sutis dife-
renças entre o novo e o antigo que marcam a intervenção, as quais não ferem a imagem que
precisamente se pretendia restaurar.
Hoje, a capela é amplamente utilizada pela comunidade local e vem sendo, por ela, mantida.
Ela é aberta todos os dias para visitação e tem celebração todos os domingos às 8h da manhã,
além de celebrações especiais em datas religiosas, como Páscoa e Corpus Christi. Essa programa-
ção é uma responsabilidade dividida entre as comunidades de São João, São Pedro e Santo André.
42
Foto 3 – fachada principal em 1980 / José Antônio Carvalho

Foto 4 – fachada principal em 1990 / Décio Coelho Duarte


43
Foto 5 – inauguração da obra de reconstrução, julho de 1995 / Cristina Coelho

1. O tombamento
Em fevereiro de 1981, o Departamento Estadual de Cultura solicitou ao Conselho Estadual
de Cultura o tombamento da Capela, em caráter de urgência, uma vez que havia o interesse, por
parte desse órgão, de inseri-la no Programa de Preservação de Bens Culturais da Fundação Pró-
memória, no biênio 81/82, para captação de recursos visando sua restauração.
No lento decorrer do processo, o antigo SPHAN foi consultado quanto à possibilidade de
tombamento do bem em instância federal. Mas o órgão negou tal solicitação por ele (o bem) já
estar destituído de suas características originais jesuíticas e fez, no entanto, algumas recomendações
quanto à proteção do entorno, entre outras.
Em fins de 1983, a capela teve seu tombamento aprovado no CEC, mas o decreto de
tombamento só foi publicado em Diário Oficial em março de 1984 com a delimitação de uma
área de entorno a ser preservada, conforme orientação do SPHAN, mas sem definição de diretrizes
para utilização dessa área.
Em 1989, O CEC instituiu a Comissão Especial Pró-restauração da Capela São João Batista
de Carapina - formada por membros da comunidade local, da Prefeitura Municipal da Serra,
representantes de empresas locais e membros da Cúria Metropolitana de Vitória, do Departamento
Estadual de Cultura e Do próprio CEC – com o objetivo de viabilizar a restauração do bem.

2. A capela – uma história


A aldeia de São João surgiu por volta de 1562, para fixação dos índios Maracaiaguaçu ao
norte da Vila de Vitória, e a construção da capela data de aproximadamente 1584. São João, assim
como outras aldeias, era às vezes de visita, às vezes de residência. No início do século XVII
passou a ser definitivamente de visita, devido ao desenvolvimento de Reis Magos, em Nova
Almeida, também no município da Serra. Fato que, em meados do século XVII, resultou no
abandono da aldeia de São João. Não se sabe, pois, qual teria sido a sua configuração original.
Supõe-se que fosse composta de nave e capela-mor construídas em alvenaria de pedra e cal, com
44
cobertura em telhas cerâmicas tipo capa-canal e fachada com frontão triangular reto. Escavações
realizadas na área, durante a restauração realizada em 1995, demonstraram a preexistência de
edificações vizinhas, possivelmente de residência, pelas fundações de pedra evidenciadas.
Não existem registros precisos de sua construção, mas a partir da análise de suas alvenarias,
formas e sistemas construtivos, além da relação das datas gravadas no edifício, foi possível esboçar
uma cronologia para as etapas de sua construção e/ou remodelação, esta muito comum nos
edifícios coloniais que chegam até nós.
Acredita-se que em 1746 (data inscrita na parede sobre o arco cruzeiro, demolida em 1992) a
capela tenha sofrido grande reforma para sua reabilitação, após um século de abandono, com:
x a reconstrução do arco cruzeiro, em tijolos cerâmicos sobre alvenaria de pedra, e possivel-
mente da capela-mor, mas não a que se arruinou nos anos 1980 – a parede do arco
cruzeiro não apresentava amarração nem com as paredes da nave nem com as da capela-
mor, que haviam ruído na década de 1980, estas de menor espessura que as anteriores;
x as modificações do frontão, que originalmente deveria ser triangular reto e recebeu curvas
ao gosto do barroco - estilo em voga na época -, e das vergas das janelas e portas, que
passaram a ser em arco abatido – foi possível observar claramente a emenda efetuada na
verga reta de madeira da porta principal para torná-la curva.

Em 1857, a capela foi elevada à categoria de freguesia, servindo de matriz até o fim do século
XIX, com o título de São João de Carapina, e passou a ser administrada pela Mitra Diocesana.
Nessa nova condição, sofreu outra grande reforma, supostamente, com:
x a construção da torre sineira. A data de 1870, inscrita na parede lateral da torre, revela
muito provavelmente a data de sua construção. Essa suposição se deve às suas caracterís-
ticas construtivas e estilísticas que correspondem ao estilo barroco, com as quinas chanfradas
e a cúpula em gomos;
x a construção da capela-mor arruinada nos anos 1980. Suas alvenarias de pedra tinham espes-
sura menor que a do arco cruzeiro, com a qual não apresentava amarração.

Em alguma época posterior que não se pode precisar, provavelmente já no século XX, o
edifício foi acrescido de sacristia lateral à capela-mor. O sistema construtivo da sacristia em pau-
a-pique diferia completamente das demais alvenarias, em pedra e cal, presentes no edifício.
Nos levantamentos realizados em 1990, verificou-se, também, a existência de trechos de
alvenarias de tijolos cerâmicos furados, provavelmente resultantes de ações de conservação
conduzidas pelo proprietário da fazenda que a abrigava.
A capela esteve em uso, com missas semanais, até aproximadamente 1980, quando sua loca-
lização, isolada e relativamente afastada, começava a apresentar perigo para os fiéis. A partir dessa
época, o edifício entra em pleno processo de degradação. Um levantamento arquitetônico realiza-
do pelo DEC em 1986 mostra que, nesta data, as paredes da sacristia já haviam ruído, permane-
cendo apenas sua estrutura de madeira e o telhado; a cobertura da nave já iniciava um processo
de arruinamento; o coro já havia caído, assim como os pisos elevados de madeira dos corredores
laterais, e a vegetação já tomava conta da torre sineira.
A degradação foi se agravando, como se verificou quando da realização de levantamentos
arquitetônico e fotográfico, quatro anos mais tarde. Nesta data, a capela-mor já havia ruído, assim
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como parte do telhado da nave, e a vegetação existente na torre ganhara porte de árvore, cujas
raízes começavam a expulsar os esteios de madeira que compunham as ombreiras de portas e
janelas.
O arruinamento se impõe em 1992, então, com a demolição quase total dos remanescentes da
capela, quando restaram apenas duas paredes e uma torre, fartamente sombreadas pela árvore a
elas incorporada a qual imperava na paisagem.
Aí se encerra o processo de degradação conhecido da capela, pois o crime praticado foi
motivo suficiente para a reação de uma comunidade que se viu extirpada de seu patrimônio. Deu-
se, assim, a restauração que lhe devolveu forma. Hoje, ela (a capela) participa ativamente do
cotidiano das pessoas que moram em Carapina Grande e mantém resgatada e preservada parte
importante da memória do Espírito Santo no tempo da Colônia.

3. O contexto da intervenção
A obra de restauração que devolveu, em 1995, a imagem recém mutilada da Capela de São
João Batista à paisagem, à comunidade de Carapina Grande e ao Espírito Santo, se revela como
uma experiência ímpar de uma ação participativa e, mais que isso, regida pela comunidade local e
de fato mais interessada.
A história dessa obra começa em 1990, quando desenvolvi o primeiro projeto de intervenção
para a capela, época em que atuava no Departamento de Patrimônio Histórico e Cultural –
DPHC do então Departamento Estadual de Cultura – DEC. Nessa época, o monumento já
apresentava um trecho arruinado – correspondente à capela-mor e à sacristia – e já resguardava
uma árvore cravada na cúpula da torre. Restava-lhe a nave, a torre sineira e os corredores laterais
de pé, parcialmente descobertos. No entanto, o monumento ainda mantinha relativa unidade, com
sua fachada principal ainda íntegra.
Nessa época, foi desenvolvido um exaustivo levantamento a partir de medições e fotografias,
além de pesquisa histórica e iconográfica. Vale ressaltar que esse projeto, desde o início, teve a
valiosa colaboração do professor do antigo DFTA/UFES José Antônio Carvalho, autor do livro
O Colégio e as Residências dos Jesuítas no Espírito Santo (Expressão e Cultura:1982), que disponibilizou
riquíssimo acervo de fotos feitas por ele na década de 1980, e auxiliou nas análises.
O projeto desenvolvido nesse momento propunha a consolidação e a restauração dos trechos
remanescentes, sem a reconstrução dos espaços arruinados. Naquele momento, o uso previsto
reunia missas, retiros e reuniões comunitárias. Mas, como é muito comum, a execução da obra
não foi viabilizada de imediato.
Em 1992, fui aprovada para ingressar no Curso de Especialização em Conservação e Restau-
ração de Edifícios e Conjuntos Históricos – CECRE-FAU/UFBa e resolvi levar esse projeto
como objeto de estudo, por acreditar que o mesmo carecia de amadurecimento. Fez-se necessário,
então, atualizar os levantamentos realizados dois anos antes. Ao regressar ao local, para minha
surpresa, me deparei apenas com duas paredes e uma torre, esta com a árvore que havia se
tornado bastante frondosa. Por um momento, tive dificuldade de reconhecer a capela a partir da
primeira imagem. Ao me aproximar, fui conseguindo identificá-la e até consegui vislumbrá-la na
sua totalidade a partir das suas novas ruínas. Nesse momento, não tive dúvidas do motivo que me
levou a elegê-la como objeto de estudo na especialização.
46
A partir do novo levantamento; das teorias e cartas patrimoniais às quais fui apresentada
durante o curso; dos conhecimentos obtidos sobre técnicas e sistemas tradicionais de construção;
das orientações recebidas de especialistas de vários lugares do mundo, ao longo do desenvolvi-
mento da monografia, e depois de muito pensar, desenvolvi novo projeto que contava, em essên-
cia, com a resistência e a teimosia - que eu acreditava que patrimônio devia ter – em não se deixar
abater ao desrespeito e a denúncia sobre o vandalismo que levou a capela à ruína quase total. O
projeto previa, sim, a reconstrução integral de tudo o que havia se perdido desde o abandono da
capela no início da década de 1980, mas o fazia como um manifesto ao abandono e à agressão
sofrida deixando-lhe as cicatrizes aparentes. Os limites da ruína deveriam ficar aparentes e as
novas alvenarias serem reconstruídas com menor espessura que as remanescentes. As
complementações deveriam se revelar atuais em técnica e detalhes, e os materiais reproduzirem
sempre que possível os originais.
Aqui vale lembrar que a capela se situava em terras particulares (fazenda de gado) até o início
dos anos 1990, quando foram desapropriadas para a implantação do Terminal Intermodal da
Serra – TIMS (porto seco). Com isso, a capela passou a um total estado de abandono.
Ressalta-se, também, que o primeiro projeto para o TIMS ocupava grande área junto à Rodo-
via BR 101 (Contorno de Vitória) envolvendo totalmente a capela, de modo que esta ficasse
dentro de área delimitada para o novo empreendimento e por ele controlada.
A demolição e, depois, o projeto de incorporação da capela em área controlada instigaram
a comunidade, que não a usava mais por apresentar riscos à segurança das pessoas. Conduzida
pela vereadora local Lourência Riani e outros líderes comunitários, a comunidade conseguiu

Foto 6 – primeiro projeto do TIMS publicado no jornal local “Acorda Serra”, em 1993
47
junto à SEAMA1 a garantia da restauração da capela como condicionante, entre outras, para a
obtenção da licença ambiental ao futuro empreendimento. Esta foi a primeira grande vitória da
comunidade local. A obra foi custeada pela Andrade Gutierrez Terminais Intermodais – opera-
dora do TIMS.
A segunda grande vitória foi a alteração do projeto do Terminal, por seus empreendedores,
para liberar a capela e garantir a preservação da área de entorno do monumento, estabelecida em
seu decreto de tombamento. A exigência de alteração do projeto partiu da Câmara de Patrimônio
Histórico do Conselho Estadual de Cultura, que definiu, nesta época, diretrizes de ocupação da
área de proteção de entorno de modo a garantir a ambiência característica das edificações jesuíticas
no litoral brasileiro.
E a terceira grande vitória foi a contratação de projeto de valorização do Sítio Histórico de
Carapina, pela Prefeitura Municipal da Serra, cuja execução se encontra em vias de ser contratado.
Todas essas vitórias culminam, por fim, no resgate da história de fundação do bairro, que vai
completar 450 anos em 2012. Representam, também, o fortalecimento da fé para os católicos,
pois muitos pais e mães dos moradores atuais foram ali batizados, ou nela se casaram. O retorno
das celebrações todos os domingos, dos batizados e dos momentos festivos da capela, é muito
importante no contexto social local para o fortalecimento das tradicionais relações de pertencimento
ali verificadas.

4. A intervenção que devolveu a imagem da capela


A proposta de intervenção teve como diretriz a recomposição volumétrica do monumento,
resgatando sua imagem e seus espaços, originais ou não, precisamente aqueles que tinham ruído
ou sido arruinados em época recente, dos quais se tinha registro e que também faziam parte da
história do bem. Mas ela deixava aparentes as marcas da agressão sofrida, como uma cicatriz (os
limites da ruína). Baseada numa postura crítica diante do momento político, a proposta visava a
inibir a impunidade e devolver à comunidade o que lhe havia sido roubado.
Mas logo no início de sua execução alguns pontos nele previstos foram revistos, especialmen-
te no que dizia respeito à proposta de manter os limites da ruína aparentes. A partir de
questionamentos como o de que a capela deveria carregar as marcas da agressão sofrida para o
resto de sua vida, ou não, e de perceber mais cuidadosamente qual o desejo da comunidade,
consegui perceber que essa marca (cicatriz) não só se revelava como uma lembrança indesejada
como poderia, e de fato iria, interferir demasiado e negativamente na imagem que precisamente
se pretendia recuperar. Esta foi praticamente a única alteração proposta para o projeto durante as
obras. Assim, as novas alvenarias deveriam ter a mesma espessura das remanescentes e as dife-
renças entre elas foram sutilizadas com a diferenciação das texturas de seus revestimentos, o que
já havia sido previsto.
A viabilização da proposta se deu graças aos consistentes levantamentos realizados antes da
demolição de 1992 e à farta documentação fotográfica realizada há aproximadamente dez anos
antes da elaboração do projeto e, portanto, antes da efetiva degradação.
A decisão sobre a reconstrução, ou não, foi bastante difícil e angustiante. Vários pontos foram
levantados e ponderados, dentre eles destaco os mais relevantes:
x a ruína não tinha sido produzida pelo tempo e sim pela mão do
1
Secretaria Estadual de Meio Am- homem, e o monumento se encontrava ainda vivo na memória das
biente. pessoas;
48
x a manutenção do monumento como ruína seria consolidar esse momento indesejável e
premiar o vandalismo;
x a comunidade de Carapina se sentiu extirpada de seu maior bem;
x a possibilidade de atribuir um uso ao edifício se mostrava fundamental para a garantia da
longevidade do bem, só alcançada com a manutenção permanente resultante da necessi-
dade de manter o espaço habitável. A falta de uso é precisamente o maior mal que pode
acometer um monumento;
x havia um movimento consistente da comunidade para a recuperação do monumento que
levou, inclusive, a várias vitórias nesse sentido.
Uma vez decidido pela reconstrução, a pergunta era, como? Mais uma vez, vários pontos
foram levantados:
x promover a reconstrução literal ou a recomposição volumétrica? Referências e registros
existiam, mas era importante datar a intervenção;
x com que sistema e materiais construtivos? Os escombros seriam ou não descartados após
minuciosa verificação, é claro?
x como tratar os novos elementos de modo a diferenciá-los dos antigos sem, no entanto,
perder a essência da obra original?
Enfim, muitos foram os questionamentos e interrogações. O projeto, porém, contemplou a
recomposição volumétrica, sendo as novas alvenarias executadas utilizando a pedra da própria
capela que se encontrava no meio dos escombros, de modo a resgatar a ambiência, o frescor e o
espírito dos edifícios coloniais. No entanto, essas alvenarias deveriam diferir das remanescentes
pela textura do revestimento e pela espessura. As antigas tiveram seus revestimentos irregulares
mantidos e recuperados e as novas receberam rebocos lisos e desempenados.
Os elementos estruturais originalmente em tijolos, como arcos e vergas, foram propostos e
executados em concreto armado, assim como os elementos ornamentais que são pré-moldados.
Ambos receberam revestimento em argamassa.
As esquadrias de madeira seguiram os desenhos das originais, mas diferiram destas pelos
detalhes. As esquadrias das alvenarias remanescentes reproduziram os gonzos de madeira para
giro das portas e janelas; os fechos, sob forma de tramelas e travessas de madeira, e os marcos,
que são de seção quadrada formando as cercaduras dos vãos, estes resguardados por padieiras de
madeira. Já as esquadrias presentes nas novas alvenarias são dotadas de dobradiças e fechos
metálicos, atuais, e resguardadas por cercaduras de argamassa pintada. Além desses, todos os
elementos propostos para o monumento receberam tratamento diferenciado e, ao mesmo tempo,
integrado ao bem.
Foram desenvolvidos os projetos complementares de instalações elétricas e hidráulicas. Para
viabilizar o abastecimento de água na capela, a CESAN levou rede de água até o edifício, até então
inexistente. Um sistema de tratamento de esgoto foi projetado com fossa, filtro anaeróbio e
sumidouro.
O projeto estrutural contemplou a proposta de reforço e consolidação estrutural da torre,
cujas paredes apresentavam rachaduras verticais que ameaçavam sua estabilidade, com cinturões
em treliças metálicas que abraçam a torre em três níveis distintos evitando, assim, que a mesma
abrisse e desabasse. Esses cinturões são protegidos pelo reboco.
49
Foto 7 – a capela em obras. Na torre se pode notar os cinturões metálicos - 1995 / Cristina Coelho

O grande desafio foi a remoção da árvore que já fazia parte do monumento com suas raízes
intensamente entranhadas na cúpula e alvenarias da torre. O trabalho foi feito com extremo
cuidado, após a inserção dos cinturões em volta da torre, de modo a evitar qualquer acidente. Na
cúpula, à medida que se tiravam as raízes, iam-se recompondo suas partes evitando, assim, o
desmonte generalizado da mesma.
A obra de restauração foi executada em 1995, a partir do projeto desenvolvido durante o curso
de especialização e alterações posteriores. Internamente, alguns elementos foram reproduzidos a
partir de fotos disponibilizadas pela comunidade como altar, púlpito, cancela etc.
A mão de obra, embora não especializada, foi selecionada cuidadosamente e recebeu, no
início dos trabalhos, orientações sobre como atuar num patrimônio histórico. O acompanhamento
especializado durante toda a execução da obra foi fundamental para o bom resultado alcançado.
Hoje, o monumento é participante ativo da vida de Carapina e passará, a partir da obra de qualificação
da área do Sítio Histórico, a integrar mais significativamente os circuitos turísticos da região.

5. Ficha Técnica
x Patrocinador - ANDRADE GUTIERREZ TERMINAIS INTERMODAIS
x Fiscalização - CONSELHO ESTADUAL DE CULTURA
x Projeto de restauração - CRISTINA COELHO
x Desenhos - LUIZ FURLANI
x Projeto de consolidação estrutural da torre sineira - BETON PROJETOS E
CONSULTORIA LTDA
x Projetos complementares - LE ENGENHARIA LTDA
x Arqueologia - CELSO PEROTA
x Execução das obras - SIGNUS ENGENHARIA LTDA
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x CONSÓRCIO CEL
x Colaboração - DEPARTAMETNO ESTADUAL DE CULTURA –
DEC INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL
– 6ª Coordenação Regional
x Orientadores (CECRE – UFBa) - LUIZ ANTÔNIO F. CARDOSO (BR),
MÁRIOMENDONÇADE OLIVEIRA (BR), SÍLVIA PUCCIONI (BR), CYRO
CORREA LYRA (BR), LEONARDO BARRETO DE OLIVEIRA (BR), ENGÊNIO
DE ÁVILA LINS (BR), GIORGIO LOMBARDI (IT), DARKO PANDAKOVICH
(IT), BROWN MORTOM (USA)
x Créditos - Texto: CRISTINA COELHO - Fotografia: Cristina Coelho, Décio Coelho
Duarte, José Antônio Carvalho
x Agradecimentos Especiais - Carol de Abreu, Valdir Castiglioni, José Antônio Carvalho,
Cyro Correa Lyra, Silvia Puccioni, Leonardo Barreto de Oliveira, Rosana Najjar

6. Referências Bibliográficas
BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Volumes 1 e 2. Editora Record, Rio de Janeiro:
1983
BRANDI, Cesari. Teoria de la restauración. Alianza Editorial, Madrid: 1988.
CARTA DE VENEZA. Veneza, Itália: 1964.
CARVALHO, José Antônio. O Colégio e as Residências dos Jesuítas no Espírito Santo. Expressão e Cultura, Rio
de Janeiro:1982.
CORONA & LEMOS, Eduardo e Carlos Alberto. Dicionário de Arquitetura Brasileira. Atshow Books, Rio de
Janeiro: 1989.
D’AFONSECA, Silvia Pimenta. Um estudo sobre a constituição das argamassas de cal. Dissertação de Mestrado
em Arquitetura e Urbanismo da FAU/UFBa. Salvador/BA: 1982.

51
DIRETRIZES ARQUITETÔNICAS E ORDENAMENTOS URBANOS NAS MISSÕES JESUÍTICAS DOS GUARANI

Luiz Antônio Bolcato Custódio*


Dedicado à Sandra Jatahy Pesavento.

1. Apresentação
Um dos pontos relevantes na historiografia arquitetônica originado durante a conquista e
colonização da América Latina é o que se refere às Missões da Província Jesuítica do Paraguai, a
Paraquária. As Missões se constituíram a partir de múltiplos fatores, envolvendo atores com dife-
rentes aportes culturais e políticos. Ocuparam uma ampla e rica região geográfica subtropical
localizando-se, como um escudo, entre as fronteiras móveis das coroas ibéricas, Portugal e Espanha.
Do lado europeu estavam representações da Igreja Católica e dos governos imperiais. No Novo
Mundo, os povos indígenas de tradição amazônica, como os Guarani, além de alguns religiosos
criollos1.
Ao longo de um século e meio, até o estranhamento2 dos jesuítas se consolidou um sistema
articulado e cooperativo de povoados, as Reduções ou Doutrinas, onde a interação dos diferentes
agentes e seus aportes culturais -no tempo e no espaço- contribuíram para a estruturação de uma
configuração urbana, associada a uma organização social peculiar, a tipologia urbana missioneira,
objeto deste estudo.

2. Das terras, das gentes, das leis


A descoberta do Novo Mundo e de novos caminhos para as Índias propiciou, além do início
da globalização, o surgimento de amplas polêmicas, com muitas variáveis, que transcenderam o
âmbito das nações diretamente interessadas.
A primeira referiu-se à posse – ao senhorio das terras – donde surgiu o argumento teocrático que
recorria ao papa, como uma autoridade supranacional, para a definição do domínio da terra,
dominus orbis. A homologação do Tratado de Tordesilhas (1494), com a repartição do Mar Oceano,
gerou reações de outras nações européias que se consideraram prejudicadas com tal decisão. A
segunda referiu-se aos povos nativos, à visão ou a representação destas outras culturas, pelos europeus, na
chamada polêmica dos naturais, que debateu os direitos das gentes e as
justificativas das guerras justas –da escravidão e da encomenda- nas re- *Arquiteto, Mestre em Planejamen-
lações entre a república dos espanhóis e a república dos índios. to Urbano e Regional - UFRGS,
Professor Centro Universitário
Outro aspecto estrutural no estudo deste tema refere-se ao Uniritter, Doutorando - Universi-
ordenamento legal utilizado por espanhóis e portugueses para as Índias dade Pablo de Olavide, Sevilha.
Ocidentais e Orientais, resultado de decisões definidas no 1 Denominação dada aos filhos da
enfrentamento de variáveis que se apresentaram para o governo, a terra.
gestão e a administração destas novas possessões. O Direito Indiano foi 2 Documento A.G.I. - Indiferente ge-
baseado numa história vinculada a sucessivas ocupações territoriais neral 3087. Cópia del Real Decre-
to de 27 de Marzo de 1767 refe-
e conquistas por diferentes povos ou nações, e teve como referencial rente al Estranhamento de los re-
o Direito Romano. Além de um corpo legal tradicionalmente referenciado ligiosos de la Companhia de Jesus
foi necessário institucionalizar estruturas estratégico-administrativas de los Reinos de Índias.
53
peculiares para atender às novas questões sociais, econômicas e políticas geradas pelo novo con-
texto, tais, como os Conselhos das Índias e as Casas das Índias ou de Contratação.
Da mesma forma que as monarquias imperiais, também a Igreja Católica passou por amplas
transformações decorrentes da Reforma Protestante, marcadas pelo Concilio de Trento (1545-
1563), onde se reestruturaram fundamentos, princípios e procedimentos eclesiásticos, incluindo a
reorganização dos ritos litúrgicos.
No que se refere às relações entre Igreja e Estado neste contexto, cabe destacar que, tanto por
debilidade dos pontífices da época quanto pela política absolutista real, a Igreja se ligou intrinseca-
mente às duas coroas. Como contrapartida à doação pontifícia de terras e gentes elas tinham o encargo
de apoiar a evangelização e o estabelecimento da Igreja tanto nos territórios efetivamente ocupados ou
conquistados, quanto em qualquer povoação existente nas áreas repartidas, o que gerou o sistema de
Patronato Real na Espanha e em Portugal. Para tanto, também se instalavam nos novos territórios
representações hierarquizadas da Igreja Católica, assim como das diferentes ordens religiosas tradi-
cionais do clero regular, tais como dominicanos, franciscanos, mercedários e capuchinhos ou dos
recém criados jesuítas. A organização secular acompanhava no território as estruturas administrati-
vas imperiais e controlava os recursos do Patronato Real. As ordens religiosas se organizavam em
divisões territoriais próprias, em Províncias, vinculadas às Províncias européias de origem –a espa-
nhola ou a portuguesa, do Superior Geral localizado em Roma, assim como da Igreja secular.
3. Dos ordenamentos urbanos
Dentre o conjunto de normas gerais definidas para as possessões ocidentais e orientais se inse-
rem orientações específicas que evidenciam políticas e estratégias urbanizadoras utilizadas tanto por
espanhóis quanto por portugueses. As duas nações se encontravam em processo de transição
entre um longo período medieval e as novas tecnologias e conceitos surgidos com a Era Moderna.
Nos primeiros momentos, nos territórios espanhóis do Novo Mundo se iniciou um processo de
reestruturação territorial e urbana onde o Estado se concebia como um conglomerado de cidades,
com regularidade e uniformidade, implantando um sistema administrativo semelhante ao da metrópo-
le (Solano: XIX). No lado português, a administração da exploração colonial brasileira foi delega-
da inicialmente a particulares, por meio de contratos ou usando o regime de capitanias donatárias, já
adotados anteriormente, sem investimentos significativos da coroa, que concentrou maiores re-
cursos nas Índias Orientais (Boxer: 110).
Na legislação indiana do lado espanhol destacam-se as Novas Ordenações de Felipe II (1573) e a
Recopilação das Leis das Índias (1681), que organiza e revisa todos os ordenamentos legais expedidos
desde 1501, contemplando, entre outros títulos, diretrizes para processos de colonização e urba-
nização. No lado português, as Ordenações Manuelinas (1514) e as Filipinas, (1603) definindo as
atribuições dos Conselhos e as orientações específicas para criação de cidades, por meio de Cartas
Régias (Almeida: 148). Na prática, a ordenação cotidiana das estruturas urbanas, tinha participa-
ção de mestres de obras e engenheiros-militares (Santos: 22). As Leis das Índias reiteram em suas
diretrizes para criação de cidades e novas povoações alguns dos princípios propostos no Tratado
de Vitrúvio3, principalmente para escolha dos sítios e estruturação dos assentamentos. Nos anos
da união das Coroas Ibéricas (1580-1640) se ampliou consideravelmente a quantidade de enge-
nheiros militares italianos contratados para trabalhar em Portugal,
3
Marcus Vitruvius Pollio (80/70 a.C. assim como o conjunto de traduções em espanhol dos principais
– 23 a.C.) arquiteto, engenheiro e
escritor latino. Seu Tratado De
tratados de arquitetura: Sérlio (1552), Vitrúvio (1582), Alberti (1582),
Architectura foi um texto fundador Vignola (1593), Paládio (1625), obras às quais os jesuítas também
para os autores do Renascimento. tiveram acesso (Bueno: 167), (Gutiérrez: 2001).
54
4. A Paraquária
A Companhia de Jesus, ordem religiosa católica criada em 1540, no contexto da Contra
Reforma, pelo ex-soldado espanhol Inácio de Loyola, se estruturou rapidamente, por meio de
províncias, em regiões da Europa, América, África e Ásia.
Uma das características dos jesuítas era que seus preceitos nasceram a partir da prática, de
experiências maturadas na ação concreta em campo, considerando o princípio de accomodatio como
uma adaptação necessária a pessoas, culturas e tempos. A mobilidade e a universalidade eram consi-
deradas como postulados elementares de uma ordem que moldou o seu modo de proceder numa
identidade múltipla e flexível, de acordo com as complexas e mutantes realidades enfrentadas
(Pavone: 15). A Companhia exercia um sistema estruturado de coordenação, absolutamente regrado
e hierárquico, baseado na obediência cega.
Os jesuítas portugueses vieram para o Brasil em 1549, enquanto que os seus companheiros
espanhóis chegaram à América somente a partir de 1566, descendo ao Peru ainda no tempo de
Felipe II (1527-1598). Em 1585 chegam ao Paraguai, província à qual estavam vinculados, quan-
do a região ainda era território de evangelização franciscana. Devido à União Ibérica, em 1587
três padres convocados na Província do Brasil aportam no Paraguai. Em 1604 foi criada a Província
Jesuítica do Paraguai que compreendia um território que hoje pertence à Argentina, Uruguai, Paraguai,
Chile e Brasil, com sede em Córdoba. O primeiro provincial designado para o Paraguai foi o
Padre Diego de Torres Bollo4(1608 a 1615), que havia sido Superior na Redução de Juli, no Peru
(Furlong: 91).
O trabalho de evangelização se iniciou na região do Guairá (1609), por solicitação de Hernando
Arias de Saavedra, governador do Rio da Prata e do Paraguai, para estancar o avance português.
Posteriormente, chegam às regiões do Itatim (1612), Uruguai (1619) e Tape (1629), em um
processo constante de assentamento e transmigração devido aos ataques dos bandeirantes paulistas.
Nesta região, iniciam com as missões ambulantes e logo se implanta o sistema reducional, adotado
pelos franciscanos e aperfeiçoado pelos jesuítas. O sistema reducional se baseava na estruturação
de povoados onde viviam em caráter permanente padres e índios; em tese, semelhante aos prin-
cípios dos aldeamentos propostos por Manuel da Nóbrega para os jesuítas do Brasil. A freqüência
dos traslados forçados pelos ataques bandeiristas, de certa maneira favoreceu a organização inter-
na das reduções, uma vez que os índios perdiam o contato com seus lugares de origem, seus
hábitos e tendências, adaptando-se mais facilmente às orientações dos jesuítas (Mörner: 57). Ao
longo de cento e cinqüenta anos, quando da expulsão dos jesuítas da América, foi constituída uma
rede de trinta desenvolvidos povoados, caracterizados por uma organização social e uma estrutu-
ra urbano-arquitetônica peculiares.

5. A arquitetura jesuítica
4
Como uma ordem nova, os jesuítas necessitavam consolidar sua Diego de Torres Bollo (1551- 1638).
Filosofia em Ávila, Teologia em
imagem na prática, compondo alternativas arquitetônico-espaciais Salamanca, 1582 Superior da Re-
próprias capazes de atender aos seus princípios operativos, ao cha- sidência de Juli. Reitor dos colégi-
mado modo nostro. No período inicial exerciam, ao mesmo tempo, os de Quito (1592-3), Potosi
(1593-9). Primeiro provincial da
diferentes papéis: para as igrejas, geralmente construídas ex-novo, o Província do Novo Reino (1604-
de contratante ou executor; para os colégios, noviciados ou residências 5) e do Paraguai (1607-15). Em
algumas vezes instalados em edifícios doados, o papel de usuários 1603 publicou Relatione Breve.
55
(Micozzi, P.: 5). Necessitavam então adotar orientações arquitetônicas que expressassem o tom
modesto e severo que caracterizava a concepção do seu fundador, que defendia austeridade e simplici-
dade, sem luxo ou distrações. Estes princípios foram definidos na Ratione Aedificiorum que passou a
regrar a construção dos estabelecimentos da Ordem (Rodriguez, 2002:22), (Vallery-Radot: 6*),
(Custódio, 2008: 1)b.
Inicialmente as questões de arquitetura foram organizadas a partir
5
Casa é o domicilio de jesuítas que de uma clara dialética que correspondia à função dos edifícios: os
terminaram seus estudos e se de-
dicam a trabalhos apostólicos
destinados ao culto de Deus -domus Dei- ou os destinados ao uso dos
(O’Neill et alli, 2001). homens, as casas5, residências6, colégios7 ou casas professas8, onde
6
Nas Constituições residência não os jesuítas moravam ou ensinavam (Micozzi, P.: 5). Com a expansão
é uma casa determinada, mas o da Ordem ao redor do mundo, a solução adotada para orientar, de
fato de residir (O’Neill et alli, 2001).
7
Colégio é a residência comunitária
uma maneira centralizada e homogênea os projetos, foi a criação do
de jesuítas formados e em forma- cargo de conselheiro de construções -consiliarius aedificorum, instalado
ção (Constituições 289) (O’Neill junto ao Superior Geral (1558), e o irmão coadjutor9 Giovanni
et alli, 2001).
8
Tristano10 foi o primeiro conselheiro (Micozzi, P.: 5). Ele trabalhou
Casa professa. Domicílio onde de-
vem habitar os professos (Consti- em inúmeras obras, recomendando sempre a construção de igrejas
tuições 557s). (O’Neill et alli, de nave única -ad aula- em cruz latina, baseada na tradição basilical.
2001). Colaborou com Jacopo Barozzi dito il Vignola11 na utilização desta
9
No grau mais alto da estrutura
jesuítica estavam os professos dos
forma para a Igreja de Gesù, obra considerada como um marco
quatro votos […]. Abaixo deles referencial ou arquétipo para muitas edificações da Ordem. Tristano
os professos dos três votos […], foi substituído por Giuseppe Valeriano12 e posteriormente pelos ma-
como os coadjutores espirituais
[…]. O último nível era dos temáticos do Colégio Romano, Francesco de Rosis13, Christoph
coadjutores temporais, integrado Grienberger14 e Orazio Grassi15 .
pelos leigos que desenvolviam A segunda Congregação jesuítica (1565) estabeleceu orientações
funções de apoio (Custódio,
2008:92)a. mais concretas para as edificações definindo que se remetessem a
10
Giovanni Tristano. Arquiteto. N. Roma, ao Superior, as plantas e desenhos para avaliação, sem cuja
1515, Ferrara, Itália; m. 1575, aprovação não poderiam ser construídas (Rodriguez, 2002:23). As
Roma, Itália (O’Neill et alli, 2001).
11
orientações aprovadas em Trento também contribuíram para a for-
Jacopo Barozzi dito Vignola, ar-
quiteto e teórico italiano. Escre- mulação de programas espaciais para a arquitetura da Companhia
veu Regras das cinco ordens da tendo como responsável o Cardeal Carlo Borromeo 16 que organi-
Arquitetura. N. 1507, perto de
Módena (Italia); m. 1573, Roma
zou um manual denominado Instructiones Fabricae et Supellectilis
(Itália). Ecclesiasticae (1577). As Instructiones apresentavam diretrizes gerais,
12
Giuseppe Valeriano. N. 1542, normas e formas sobre o modo de construir, ornamentar e mobili-
L’Aquila, Itália; m. 1596, Nápoles, ar estruturas eclesiásticas, incorporando idéias de tratadistas, sem
Itália (O’Neill et alli, 2001).
13
De Rosis, Giovanni. Arquiteto. N.
prescindir da necessária orientação de arquitetos. Dentre os tratadistas
1538, Como, Itália; m. 1610, utilizados como referência pelos jesuítas estão, explicitamente,
Roma, Itália (O’Neill et alli, 2001). Vitrúvio, Cataneo, Vignola, Palladio e Serlio (Gallegos: 1).
14
Grienberger, Christoph. Matemáti- O quarto Superior Geral, Everardo Mercuriano (1573-1580)
co. N. 1564, Hall, Áustria; m. 1636,
Roma, Itália (O’Neill et alli, 2001). compilou o Resumo das Constituições dos manuscritos de São Ignácio
15
Grassi, Orazio. Matemático. para elaborar as Regras Comuns da Companhia, incluindo as normas
N.1583, Savona, Itália; m.1654, particulares para a arquitetura. Foi incentivada a utilização de proje-
Roma, Itália (O’Neill et alli, 2001).
16
tos-padrão feitos em Roma, buscando harmonizar e uniformizar as obras
Borromeo, Carlos. Cardeal. N.
1538, Arona, Italia; m. 1584, Mi- na sede da Companhia assim como nas construções das províncias.
lão, Itália (O’Neill et alli, 2001). Eram enviadas às Províncias, pelos Procuradores, conjuntos de plantas-
56
tipo ou plantas-comuns de igrejas de nave única, desenhadas por de Rosis (Benedetti: 75). O Supe-
rior Geral Claudio Acquaviva (1581-1615) com espírito mais flexível, abandonou esta orientação,
restabelecendo a decisão de enviar a Roma, em duas cópias, todos os projetos para aprovação,
proibindo as modificações posteriores (Vallery-Radot:8), (Custódio, 2008: 4)b.
Neste período, as obras jesuíticas a serem construídas nas províncias espanholas também
deveriam ser aprovadas pelo arquiteto real, Juan de Herrera, em Madrid, a quem a Companhia
recorreu em diversas ocasiões. (Rodríguez, 1976: 289). Na prática, pouco a pouco foi sendo formatada
uma tipologia edilícia para os principais programas da Ordem, que era o resultado tanto das
necessidades funcionais quanto expressando referências à obras emblemáticas, aos tratados de
arquitetura e à contribuição de profissionais de diferentes países. Com o tempo, a cúria romana
foi perdendo o controle sobre projetos e obras, não apenas na Europa, mas principalmente nos
territórios das Índias. Na Espanha algumas obras marcantes dos arquitetos Juan de Herrera, Juan
Bautista Villalpando e Bartolomé Bustamante se difundiram, influenciando novos projetos na
Itália e na América.
Basicamente duas tipologias de organização espacial se consolidaram no âmbito da Compa-
nhia: as igrejas, principalmente em planta basilical e os colégios/ casas professas, estruturados ao
redor de pátios fechados, com porticados superpostos, numa visível combinação da tradição
beneditina com as tipologias de casas-palácio do Renascimento (Vallery-Radot: 45), (Benedetti:
92), (Burriera: 90).
Enquanto na Europa se avaliavam questões estilístico-funcionais, os missionários das Índias
Ocidentais -e seguramente os das Orientais- apesar de estarem submetidos às mesmas orientações
da Companhia se encontravam imersos em realidades muito diferentes, onde precisavam criar
outros tipos de espaços para cumprir sua missão. Na ocupação do Novo Mundo se apresentaram
situações imprevistas que impuseram amplos desafios de criatividade e capacidade de adaptação
para congregar e assegurar a sobrevivência dos gentis convertidos. Os jesuítas buscavam obedecer ao
mesmo tempo às diferentes determinações ditadas pelas instâncias a que estavam subordinados -a
Coroa, a Igreja Católica e a própria Companhia- numa sucessão hierárquica triangulada entre Roma,
Madrid e as regiões do interior da América, com representações locais, nem sempre consertadas.

6. A arquitetura nas missões


Na América, as duplas de companheiros de Jesus, além de construir igrejas, colégios e residências,
também coordenaram o assentamento de povoados nativos inteiros -as reduções ou doutrinas- com
estruturas físicas adequadas para abrigar populações relativamente extensas – de até seis mil
índios coordenados por dois missionários - densidades a que ambos não estavam acostumados a
enfrentar. No âmbito eclesiástico, as paróquias de índios denominavam-se doutrinas, entendidas
como estruturas aprovadas e dotadas de Patronato Real17. As reduções eram os povoados de índios
que se encontravam no início do processo de conversão, estágio anterior às doutrinas. Com o
tempo, todos os agrupamentos de índios cristianizados, organizados em povoados, passaram a se
denominar indistintamente como reduções ou doutrinas e os religiosos encarregados de sua conver-
são de padres, missionários ou doutrinadores (Hernández: 280). Além
dos povoados, outros programas arquitetônicos se apresentaram como 17
Documento ARSI, Paraq. 12,
indispensáveis de serem solucionados: as estâncias para criação de 174v. Usos y Costumbres comunes
gado e as oficinas de trabalho ou indústrias de diferentes naturezas, a todas las doctrinas por el
os “obrajes”. Visitador Andrés Rada (1664).
57
De maneira geral todas as estruturas que corresponderam aos diferentes programas criados
regionalmente, utilizaram como referência características tipológicas que se consolidaram na Eu-
ropa, com igrejas ou capelas ocupando sempre local preponderante, ladeadas por estruturas
arquitetônicas lineares, construções em fita, muitas vezes alpendradas, organizadas ao redor de
pátios. A este núcleo básico da igreja-residência, inicialmente com pátio único, tipo claustro, foram
adicionados outros componentes, como pátios de serviços, cemitérios, pomar, etc.
Apesar das plantas dos diferentes programas arquitetônicos utilizarem soluções recorrentes,
se observam nos resultados peculiaridades locais, fruto da contribuição cultural dos autores,
geralmente irmãos coadjutores, alguns dos quais arquitetos, além das diretrizes propostas nos
tratados de arquitetura disponíveis. Da mesma forma, também se observam contribuições dos
executores; no caso, dos Guarani, que tinham amplo conhecimento do meio onde habitavam,
participando de uma experiência edilícia que pode ser considerada resultado de uma interação
cultural ( Levington: 7).
É consenso entre os autores que tratam deste tema que a trajetória arquitetônica na Paraquária
se inicia pela utilização dos métodos construtivos tradicionais dos nativos. Eram estruturas apoia-
das em esteios de madeira com coberturas e vedações de fibras vegetais, reproduzindo, com
pequenas adaptações, as casas-grandes, habitações coletivas das famílias extensas, utilizadas tanto
para as residências -que nas Missões receberam subdivisões internas- quanto para os templos.
Nesta trajetória, pouco a pouco, vão sendo introduzidos outros materiais, como a pedra e os
tijolos, utilizados nas vedações, mantendo estruturas independentes feitas por grandes esteios de
madeira, às vezes aparentes, às vezes inseridos nas paredes. As estruturas das coberturas, de
forros e abóbadas de madeira das igrejas são cobertas por telhados estendidos, com alpendres
porticados. Nesta segunda etapa se introduzem elementos decorativos, integrados ou independen-
tes, por meio de relevos, pinturas e esculturas. Numa terceira etapa se iniciam as grandes constru-
ções estruturadas por paredes portantes em pedra, utilizando repertórios formais da arquitetura
européia. Desta última etapa, temos poucos remanescentes, devido à interrupção do processo
reducional.

7. Os ordenamentos urbanos no sistema reducional


De acordo com as ordenações espanholas, as modalidades de assentamentos urbanos previstas
para a república dos índios eram os povoados ou “pueblos” de índios (Solano: XXVII). Tanto as instru-
ções do Padre Diego de Torres Bollo (1609) para as primeiras povoações do Guairá, quanto as
descrições de Cardiel sobre os atributos que deveria ter um lugar para o estabelecimento de uma
redução reiteram princípios gerais semelhantes aos propostos pelas Leis das Índias (Furlong,
1962: 183) (Busaniche: 26). As reuniões periódicas dos padres com o Provincial também geravam
Ordens para todas as Reduções, documentos que abrangiam aspectos funcionais e práticos, definindo
atribuições e formas de comportamento de padres e índios18.
Como estratégia de conversão, os jesuítas sempre buscaram
18
Documento ARSI, Roma, utilizar referências culturais dos povos a serem cristianizados.
Paraguay 12. 168. Ordenes para Os assentamentos tradicionais Guarani tinham uma organiza-
todas las Reducciones, aprobados
por N. P. Genl, Jua, Paulo Oliva. ção semelhante às descrições históricas dos Tupinambá, com
1690 . aldeamentos formados por algumas casas de parentes localiza-
58
das em clareiras na floresta, nas proximidades de cursos d’água, que eram os principais
meios de conexão19.
No sistema reducional, as terras eram divididas em duas categorias de acordo com suas
finalidades: o tupambaé e o abambaé. O tupambaé, do guaraní Tupã -Deus e mbaé- propriedade. Este
conceito não surgiu com as reduções jesuíticas, uma vez que também foi usado pelos franciscanos
e se baseava num espaço tradicional espanhol, previsto no direito indiano -o ejido- referente às
terras comunitárias (Carbonell, 1992: 166). No tupambaé se produziam bens para intercâmbio entre
reduções e para exportação ou pagamento de tributos. A produção era feita em regime de colabo-
ração denominado potyró ou mutirão. Já o abambaé, conceito composto por aba – índio e mbaé-
propriedade, referia-se às terras para uso particular, geralmente chácaras localizadas ao redor das
reduções (Custódio, 2002: 51).
Entre as diferentes descrições e iconografias sobre povoados de índios ou reduções é coinci-
dente a afirmação sobre a uniformidade das estruturas urbanas, em que a praça central -onde deve
começar a povoação- e a igreja, sempre exerceram o papel preponderante e organizador. As praças
das reduções, de certa maneira fazem referência aos espaços de convivência das aldeias Guarani
e as igrejas, às casas de reza ou de cerimônias.
O sistema reducional do Paraguai estruturou ao longo do tempo em seus povoados a tipologia
urbana missioneira que se consolidou com uma organização espacial padronizada e característica
(fig. 1). Esta tipologia se configura basicamente por dois conjuntos de edificações ordenadas ao
redor de uma praça quadrangular para onde convergiam duas ruas com acessos principais,
ortogonais entre si, que se cruzavam no meio da praça (fig. 2) (Custódio, 2002: 98). O primeiro
conjunto era uma estrutura fechada e murada, que ocupava um dos lados da praça. O segundo era
aberto, ocupando as três outras laterais.
O primeiro conjunto se compunha por edificações alinhadas que ocupavam o ponto proeminente
do sitio, dominadas pela grande igreja com seu pórtico avançado, tendo de um lado o cemitério e do
outro, dois pátios, o da residência dos padres e o dos depósitos e oficinas.20 Atrás deste bloco fechado
por muro de pedra com três varas de altura, ficava a quinta.21 O segundo conjunto se desenvolvia a
partir dos outros três lados da praça, ocupados por pavilhões rodeados por corredores alpendrados,
utilizados para as residências dos índios, com todas as portas voltadas para a praça, para melhor
controlar os índios. Estes blocos, unidades de habitação coletiva se constituíam num elemento desconhe-
cido até então na estrutura urbana colonial, substituindo os quarteirões tradicionais por quarteirões-
ilhas (Gutiérrez, 1987: 132). A praça era o local de todo o tipo de
atividade pública, religiosa, cívica e esportiva. No centro da praça se 19De acordo com depoimento do Dr.
localizava uma coluna de pedra rematada por uma cruz, denominada José Otávio Catafesto de Souza,
antropólogo (07/2009).
tronco (el rollo), onde eram amarrados os nativos que deveriam rece- 20
Documento – BN. Carta de Anto-
ber castigos, que eram públicos (Furlong, 1962: 376). nio Sepp al Padre Gullermo
Numa das casas da praça, sem divisões internas, se instalava o Stingelhaim, Alta Alemanha,
(1701).
conselho municipal de caciques, o cabildo, coordenado por um
21
corregedor indígena (Armani: 103). Os componentes secundários da Documento ARSI, Paraguay 12 -
168. Ordenes para todas las
estrutura urbana podiam variar de posição entre as diferentes redu- Reducciones, aprobados por N. P.
ções, obedecendo sempre ao esquema geral. Genl, Jua, Paulo Oliva. 1690, 2ª.

59
A peculiaridade administrativa e funcional do sistema jesuítico
22
A necessidade de construção de
propiciou a geração de estruturas arquitetônicas próprias nas redu-
um cotiguaçú em cada doutrina foi ções, como o cotiguaçú,22 uma casa destinada às mulheres recolhidas,
determinada em 1714 pelo Provin- viúvas ou órfãs e a hospedaria ou tambo. As reduções ou doutrinas
cial Luiz de Roca. (Carbonell, 2003:
133). da Paraquária se constituíram numa variante peculiar -um modelo
23
A coleção mais abrangente refe- alternativo planificado e sistemático- dos povoados de índios previstos
rente à cartografia e iconografia nas disposições de Felipe II, com populações expressivas e progra-
missioneira foi publicada, por
Ernesto Maeder e Ramón Gutierrez mas arquitetônicos específicos (Viñuales: 122). A partir de uma or-
no Atlas historico y urbano del nor- ganização social cotidianamente ritualizada, no espaço reducional se
deste argentino (Resistência, IIGH,
1994).
desenvolveram as principais manifestações artístico-culturais da época,
24
O original encontra-se no ARSI, por meio da arquitetura, escultura e pintura, que constituíam o cená-
Paraguay 14 - 082b, com o se- rio para as sofisticadas celebrações religiosas -festas e procissões
guinte título: “Estos 30 pueblos
estaban de esta forma cuando barrocas- acompanhadas com musica, danças e pelo teatro sacro.
fueron a aquellas partes las Reales
Comisiones de la Línea divisoria 8. As representações iconográficas
año 1754 et ultra.” Na parte late-
ral, uma descrição detalhada da A circulação de desenhos, planos e projetos assim como ocorria
estrutura urbana. com toda a correspondência era formalmente regulamentada pelos
25
As cartas anuas eram correspon- jesuítas, devendo ser encaminhadas duas cópias ao Superior Geral,
dências regulares obrigatórias en-
tre os Provinciais e o Superior.
em Roma (Vallery-Radot: 8). Se por um lado existe uma quantidade
26
O Jesuíta espanhol e missionário significativa de mapas cartográficos, desconhecemos qualquer exem-
do Paraguai, o Pe. Manuel Peramás plar de plano ou projeto que possa ter sido utilizado para orientar a
(1732-1793) publicou La Repúbli-
construção de algum povoado da Paraquária23.
ca de Platón y los Guaraníes .
KÜHNE, Eckart. Las misiones As iconografias urbanas conhecidas sobre as reduções podem
Jesuíticas de Bolivia Martín Schmid ser classificadas em duas categorias: as executadas por jesuítas e as
1694-1772. Pro Helvetia, Zürich, feitas por funcionários imperiais ou por viajantes. Dentre as consideradas
Santa Cruz de la Sierra, Bolivia,
1996. p. 148. Cópia desta de autoria jesuítica, algumas têm caráter descritivo, como a denominada
iconografia se encontra na planta tipo localizada no ARSI24 em Roma, que apresenta generica-
Mapoteca do Arquivo do Itamaraty,
mente uma redução (fig. 3). Outras podem ser comparadas com as
no Rio de Janeiro.
27
Obra da Biblioteca de D. Cándido correspondências edificantes, assim como o são as Cartas Anuas25. Nestas
de Oliva, Biblioteca de podem ser incluídas as versões da redução da Candelária, feitas a
Villarquemado, Teruel, Espanha, partir da obra publicada por Peramás26 em seu exílio (1791). A
publicada por Santiago Sebastián
no Archivo Español de Arte, nº. iconografia apresenta uma estrutura urbana em perspectiva, absolu-
119, Madrid, 1957. tamente regular, como se fosse uma representação idealizada. Den-
28
Doc. BNF GeC2769. “Pueblo de San tre as várias versões, uma se encontra no Arquivo do Itamaraty, Rio
Juan que e uno de los del Uruguay
que se intentan entregar a Portu-
de Janeiro (fig. 4) e uma outra, menos conhecida, na Biblioteca de
gal”- Publication: [SF]: [s.n] 1756. Villarqueimado27. Neste grupo também se incluem as duas variantes
29
Pelo Tratado de Madrid (1750) os do Povo de São João Batista que se encontram no Arquivo de Simancas
Sete Povos das Missões deveri- (fig. 5) e na Biblioteca Nacional da França (fig. 6)28. Estas iconografias,
am ser trocados pela Colônia do
Sacramento. O plano de Simancas provavelmente feitas pelo mesmo autor, foram utilizadas para pro-
foi encaminhado de Córdoba (Ar- mover genericamente os povoados dos Sete Povos29 na tentativa de
gentina), em 1753, por Joseph de impedir sua entrega aos portugueses. A cópia que se encontra em
Barreda ao padre confessor real.
Documentos interceptados pelos Paris, possivelmente integrava o conjunto de planos dos arquivos
espanhóis. Doc. AGS - E7381-71. romanos que foram vendidos para a França (Vallery-Radot: 8).
60
Dentre as produzidas por funcionários ou viajantes, está a coleção do Arquivo do Itamaraty, Rio de
Janeiro, formada por vários planos urbanos efetuados pelos espanhóis quando da demarcação do
Tratado de Limites de Santo Ildefonso (1777). Desenhos feitos com objetivo de descrever os assen-
tamentos encontrados na zona de fronteira, dentre os quais o Plano de São João Batista (fig. 7). A
tipologia urbana era tão marcante que José Maria Cabrer30, utilizou uma estrutura padronizada e a
reproduziu para registrar as várias reduções que inventariou, independentemente das eventuais
diferenças de posição, que foram desconsideradas. Neste conjunto também se incluiria o Risco de
São Miguel (fig. 8), obra sem autoria definida executada por membros do exército português31. O original
encontra-se na BN, Manuscrito AMM 41 76/98. Seção Iconográfica ARC 24-3-6.

9. Epílogo
O tema da arquitetura produzida pelos jesuítas já foi objeto, em meados do século XX, de
longas e polêmicas discussões que buscavam avaliar a existência de um possível estilo jesuítico. A
base desta discussão pode ter sido originada pela distribuição das chamadas plantas tipo para
igrejas. Uma discussão que envolveu aspectos de forma e função. Elucidada documentalmente a
trajetória histórica, a conclusão a que se chegou foi a da existência de uma tipologia arquitetônica
jesuítica, ou seja, da repetição de um conjunto de características repetíveis e reconhecíveis como
integrantes de um mesmo grupo ou conjunto de ocorrências. Estudos posteriores trataram de
descrever e entender o processo de produção de elementos arquitetônicos isolados, buscando
identificar suas filiações formais à determinadas referências tipológicas emblemáticas, como é o
caso da Igreja del Gesù de Roma, um marco neste tema.
Esta discussão, de certa forma, também se ampliou fora da Europa onde outras variáveis
contribuíram na configuração da arquitetura jesuítica, além das referências e diretrizes. Dentre
elas estão o isolamento, os materiais, a mão de obra e as condições disponíveis, os novos progra-
mas. Estas variáveis geraram tipologias próprias, como as igrejas missioneiras, com seus grandes
átrios cobertos, as unidades de habitação das reduções ou mesmo as curiosas casas de viúvas e órfãs.
Por outro lado, no campo dos ordenamentos urbanos pode-se concluir que as diretrizes principais
foram ditadas mais por regramentos do Estado do que pelas diretrizes da Igreja. As minuciosas
disposições previstas nas Ordenações e nas Leis das índias, com descrição e determinações para
cada componente da estrutura urbana, foram, sem dúvida, tomadas como referência, mesmo que
não literalmente.
A Ordem Jesuítica não experimentou na Europa a construção de novos assentamentos urba-
nos uma vez que as fundações urbanas eram atribuições exclusivas das Coroas. Logo, não teve
para os povoados americanos o regramento e o controle utilizados 30José Maria Cabrer, engenheiro,
para as edificações. geógrafo e cartógrafo espanhol. In-
Dentre as discussões ocorridas no campo urbano, colocam-se a tegrante da segunda comissão
mista encarregada de demarcar a
origem, as referências e as influências que geraram esta tipologia linha de limites e as possessões
peculiar. É preciso separar, neste caso, questões de ordem funcional espanholas do Tratado de Santo
das morfológicas. Funcionalmente, além da orientação oficial de reu- Ildefonso. Esteve na região entre
1784 e 1789 e deixou planos de
nir os índios e separá-los dos espanhóis, temos algumas referências reduções, mapas e fortificações.
fundamentais. No lado espanhol, o aprendizado de Juli, no Peru, 31
O original encontra-se na BN, Ma-
onde se estruturou o conceito do sistema reducional trazido para a nuscrito AMM 41 76/98. Seção
Paraquária pelo Padre Torres Bollo. No português, a experiência pre- Iconográfica ARC 24-3-6.
61
cursora de Manuel da Nóbrega e de seu plano de formação de aldeamentos. A experiência
funcional, porém, foi dinâmica, sendo aperfeiçoada e transformada, na prática, pelos jesuítas e
seus conselhos de padres e índios. No campo morfológico, no entanto, as referências primárias
remontam aos conceitos idealizados na antiguidade por Vitrúvio, além de experiências posteriores
européias, com exemplos distintos de estruturas urbanas regulares. Estas referências vieram tanto
nas Leis e Ordenações, como na contribuição ou no repertório dos próprios padres provenientes
de diferentes países. Nesta linha também contribuiu o estruturado sistema de comunicação e
intercâmbio jesuítico, que difundia e promovia, metodicamente, entre seus pares, as experiências
e realizações em curso ao redor do mundo. O sistema reducional da Paraquária motivou grande
interesse, principalmente o europeu, por esta experiência que foi classificada como “utópica”.

10. Abreviaturas
● AGI – Arquivo Geral das Índias (Sevilha).
● AGS – Arquivo Geral de Simancas (Valadolid).
● AGNA – Arquivo Geral Nação Argentina (Buenos Aires).
● ARSI – Arquivo Romano S. I. (Companhia de Jesus - Roma).
● BN – Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro).
● BNF – Biblioteca Nacional da França (Paris).
● IHSI – Instituto Histórico S. I. (Companhia de Jesus - Roma).
● MRE – Ministério Relações Exteriores (Rio de Janeiro).

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VIÑUALES, Graciela María. Misiones jesuíticas de Guaraníes (Argentina, Paraguay, Brasil). APUNTES vol. 20,
núm. 1. Bogotá: Javeriana, 2008.

63
11. Ilustrações

Fig. 1: Tipologia Urbana Missioneira: 1 – Igreja. 2 – Praça. 3 – Cemitério. 4 – Cotiguaçú. 5 – Casas dos padres e Colégio.
6 – Oficinas e Armazéns; 7 – Casas dos Índios; 8 – Cabildo; 9 – Tambo; 10 – Quinta.

Fig. 2: 1 – Primeiro Conjunto. 2 – Segundo Conjunto. Estrutura viária – Ruas principais.


64
Fig. 3: Plano Tipo – Arquivo Companhia de Jesus - ARSI - Roma.

Fig. 4: Plano de Candelária – Arquivo MRE - Mapoteca do Itamaraty – Rio de Janeiro.

65
Fig. 5: Plano de São João Batista – Arquivo de Simancas - Valadolid.

Fig. 6: Plano de São João Batista – Biblioteca Nacional da França - Paris.

66
Fig. 7: Plano de São João Batista – Arquivo MRE - Mapoteca do Itamaraty – Rio de Janeiro.

Fig. 8: Risco de São Miguel – Biblioteca Nacional - Rio de Janeiro


67
REPOVOAMENTO E URBANIZAÇÃO DO BRASIL NO SÉCULO XVIII

Maria Helena Ochi Flexor*

Entre o Tratado de Limites de Madri, de 1750, e o de Santo Ildefonso, de 1777, foi


desencadeada uma série de ações do governo luso em relação a seu reino e suas conquistas.
Transcorria o período do reinado de D. José I e a ação de seu ministro e secretário de Estado dos
Negócios do Reino, Sebastião José de Carvalho e Melo, o discutidíssimo Conde de Oeiras, depois
Marquês de Pombal. Este ministro procurou desenvolver um programa de reorganização econô-
mica, social, administrativa, judicial, religiosa e, sobretudo, política em todo o reino. Foi Pombal
quem estendeu suas ações, auxiliado de perto por seu irmão, Francisco Xavier de Mendonça
Furtado, para fixar as fronteiras do Brasil e manter a unidade do território na América portugue-
sa. Reputa-se que, só então, a metrópole resolveu tomar o controle total desse território, por meio
da intervenção direta, iniciando um processo de repovoamento e urbanização.
Assim, pode-se citar, entre as muitas ações, o levantamento cartográfico e formação de co-
missões de demarcação de limites em função do Tratado de Madri; criação do Tribunal da Rela-
ção no Rio de Janeiro e organização das capitanias subalternas ao Grão-Pará e Maranhão, sediando
o governo em Belém, mais próxima da região amazônica, ponto nevrálgico ameaçado pelos espa-
nhóis, além dos ingleses, franceses e holandeses, complementada pela criação da capitania de São
José do Rio Negro (Amazônia); construção de fortalezas; introdução de sementes não-nativas e
fomento à indústria extrativa nessa zona; melhoria da técnica agrícola - como uso de estrume e
arado -, importação de pretos para a região Norte e proibição de sua exportação. Continuou-se a
introdução de casais açorianos, madeirenses1 e minhotos no Sul e em várias partes do Norte e
Nordeste; incentivou-se o boicote ao contrabando e desvios dos
quintos com a reforma da arrecadação da Fazenda Real; promoveu- * Professora da Universidade Católi-
se a moralização na venda de ofícios, o incentivo ao comércio com ca do Salvador – UCSal e Profes-
as criações da Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão, Compa- sora Emérita da UFBa.
nhia Geral de Pernambuco e Paraíba e Companhia de Pesca da 1 A criação da Capitania Geral dos
Açores, em 1766, e o poder de D.
Baleia nas costas do Brasil; a instalação de mesas de inspeção nos Antão Almada nas Ilhas
portos, abertura de caminhos e estradas para o comércio e intensifi- (MENEZES, Avelino de Freitas. Os
cação deste entre as capitanias - como entre o Pará e Goiás e Mato Açores nas encruzilhadas do se-
Grosso, através dos rios amazônicos -, introduziram-se as medidas tecentos, 1740-1770; poderes e
instituições. Ponta Delgada: Uni-
padrão de Lisboa e foi dada permissão para o comércio direto com versidade dos Açores, 1993. p.
Portugal. 322), a criação de Nova Goa, na
Por outro lado, houve restrições como a proibição da busca de Índia, de Nova Oeiras, em Ango-
la, de Santo Antônio da Ilha do
ouro, do exercício dos ourives do ouro e da prata e fabricação de Príncipe, e mesmo a ação do pri-
sedas e algodões e, além dessas atitudes, promoveu-se a expulsão mo de Pombal, João de Almada e
dos jesuítas, com o estabelecimento de côngruas para os missionári- Melo, no Porto, ou a Real Vila de
Santo Antônio, às margens do Rio
os e seculares com função de vigários e consequente laicização das Guadiana, nos Algarves, faziam
aldeias, a recriação da aula de Engenharia do Pará, a mudança da parte desse projeto.
69
capital de Salvador para o Rio de Janeiro, em 1763, com a finalidade de administrar a parte Sul e
região Oeste. Fez-se a incorporação de capitanias à Coroa e anexação de capitanias entre si.
Efetuaram-se recenseamentos, visando ao conhecimento real de habitantes e quantidade de ho-
mens válidos para o Serviço Real. Foram criados comarcas, ouvidorias e julgados com juizes
“meio ordinários” somados a Juntas de Justiça anexas às Ouvidorias, bem como tropas regulares,
auxiliares de milícia, com reforço e reorganização das ordenanças2. Extinguiu-se a Companhia de
Privilegiados da Nobreza e criou-se a Escola de Nobres no Pará.
O que importa neste trabalho é dizer que, dentro dessas ações realizadas pelo Projeto Pombalino,
foram criados núcleos urbanos, mais precisamente vilas, para fixar os habitantes ao solo. Portanto,
a criação dessas vilas se deu dentro de um programa político amplo. Não foi um fato isolado e não
se dirigiu unicamente ao Brasil. Estenderam-se para a Índia, a África, bem como às Ilhas Atlânti-
cas e ao próprio território da metrópole. Toda atenção, no entanto, foi voltada para o Brasil.
Dentro do programa foram criadas muitas vilas, que está se procurando pontuar, e apenas uma
cidade. Como complemento da mudança de capital do Vice-Reino, e criação de um centro admi-
nistrativo em Belém do Pará, transformou-se a povoação de Araticu, elevada a vila de Mocha,
instalada em 1718, em cidade e capital da capitania do Piauí, em 1761.
A ideia de que a mudança da capital do Vice-Reino para o Rio de Janeiro teve como causa a
defesa das regiões auríferas fenece quando se percebe que, do grande número de vilas criadas entre
1750 e 1777, Minas Gerais não teve um único arraial elevado a essa condição. Isso somou-se a
2
várias medidas restritivas à exploração do metal, confundida, muitas
Regimento das Ordenanças de 30
de abril de 1758. CARTAS RÉGI-
vezes, com seu declínio da busca do ouro e esgotamento de sua explo-
AS, Lº 60, fl. 484-497v. ração. Em nome da defesa do território, através do povoamento, to-
3
MENDONÇA, Marcos Carneiro de.
das as aldeias – jesuítas, carmelitas ou franciscanas -, com número
A primeira mudança da capital do suficiente de habitantes, foram elevadas a vila. A mudança da capital
Brasil. In: Revista do Instituto His- da Bahia para o Rio de Janeiro foi muito mais de ordem administra-
tórico e Geográfico Brasileiro, Rio
de Janeiro, v. 249, p. 414-423,
tivo-estratégica do que em função do controle dos metais preciosos
out.-dez., 1960. saídos de Minas Gerais, que é a ideia normalmente defendida pela
4
Culturas itinerantes.
historiografia brasileira3. O principal objetivo do Projeto Pombalino
era a defesa e administração de todo o território do Brasil.
5
FLEXOR, Maria Helena Ochi. A oci-
Segundo a maioria dos governantes, então indicados para auxili-
osidade, a vadiagem e a preguiça
no século XVIII. In: Anais da XVII ar na implantação do projeto, os portugueses que haviam chegado
Reunião da Sociedade Brasileira ao Brasil antes do século XVIII, e que não viviam nos núcleos urba-
de Pesquisa Histórica, São Paulo, nos de maior porte, haviam se adaptado à vida dos índios, vivendo
p. 157-164,1997.
errantes entregando-se à vadiagem e à preguiça, ao ponto de, desde
6
Alvará com força de Lei de 6 e 7 de D. João V, se começar a proibir os “sítios volantes”4 e a apontar a
junho de 1755 e Alvará de 8 de
maio de 1758. Este Alvará tenta- necessidade de fazê-los viver em “sociedade civil”5.
va reafirmar outras leis dadas an- Foi dada liberdade aos índios6. Ao libertá-los, a metrópole ordenou
teriormente pelos Reis portugue- a elevação de antigas aldeias, as maiores a vilas e as menores, a lugares
ses e não obedecidas: as de 1587,
1595, 1609, 1619, 1640, com al-
ou povoações, desmembrando-as de outras câmaras e entregando sua
terações. AMARAL, Braz do. Li- administração aos índios. Dependendo da localização, e tipo de popula-
mites do Estado da Bahia. Bahia: ção preeexistente, foram ainda criadas freguesias, aldeias e julgados. O
Imprensa Oficial do Estado, 1917.
v. 2, p. 226. 1917, p. 266; CARTAS
objetivo, na prática, era civilizar, educar e obrigar os índios a falar a
RÉGIAS, 1757-1758, APEB, Lº 60, língua portuguesa e integrá-los na sociedade dos brancos, num núcleo
fl. 471, 474-475. urbano para, assim, povoar e tomar conta do território.
70
Dava-se liberdade aos índios, mas baseada nas teorias de Jean- 7
APEB – Arquivo do Estado da Bahia,
Jacques Rousseau, sobre a origem e fundamento da desigualdade en- Secção Colonial, Antigo Índios,
maço 603, cad. 32, fl. 20v.
tre os homens, de acordo com a dissertação apresentada na Academia 8
ROUSSEAU, Jean-Jacques.
de Dijon, em 17557 e, especialmente, na teoria da inocência dos primi- Discours sur l’origine et les
tivos8. A liberdade dos índios ainda era fictícia, pois deviam estar sujei- fondemens de l’inegalité parmi les
hommes. Amsterdam: chez Mr.
tos ao “Directorio que se deve observar nas povoaçoens dos indios Michel Rey, 1755. Respondia à
do Pará, e Maranhão enquanto Sua Majestade não mandar o contrá- questão proposta pela Academia
rio”, de 1758 9, e que se tornou extensivo a todo o Brasil. Cláusulas de Dijon: qual é a origem da desi-
gualdade entre os homens e se é
desse “Directório” já estavam inclusas no Alvará de 6 e 7 de junho de autorizada pela lei natural. Vide bi-
175510 que aplicava, entre os nativos, a prática corrente em alguns bliografia.
lugares da Europa, e de Portugal, estabelecida pelas Ordenações, pela 9
DIRECTORIO que se deve observar
qual os filhos órfãos de pais mecânicos, ou pais vivos dementes, devi- nas povoaçoens dos índios do Pará,
e Maranhão enquanto Sua Majes-
am aplicar-se aos ofícios mecânicos ou trabalhar a soldada. “O mes- tade não mandar o contrario, 1758.
mo parece justo que se observe com os filhos de índios ainda que In: Boletim de Pesquisas da CEAM,
tenham pays vivos, porque por dementes e pródigos se reputam go- Manaus. v. 3, n. 4, p. 85-126, jan-
dez/84. Confirmado como Lei pelo
vernados por Directores como seus tutores”11. Até que os indígenas Alvará de 17 de agosto de 1758.
fossem capazes de se inserir na sociedade civilizada, deviam ter um Abolido em 1798 depois de muitos
diretor em cada vila, ou aldeia, com funções mais de orientação e abusos. Vide também ALMEIDA,
Rita Heloísa de. O Diretório dos Ín-
instrução do que de administração. Bondade e brandura foram insis- dios; um projeto de “civilização”
tentemente recomendadas. Essas recomendações estavam explicitadas no Brasil do século XVIII. Brasília:
na obra de Juan Solórzano Pereyra, o Direito Indiano, no qual foi Editora Universidade de Brasília,
1997. Apêndice.
baseado o referido “Directorio” 12. 10
CARTA RÉGIA, 1757-1758, APEB,
Com a implantação do projeto, na realidade, a metrópole seguia Lº 60, fl. 474rv; Catálogo Eduardo
as sugestões de Mendonça Furtado que mostrara, através de cartas de Castro e Almeida, AHU – Arqui-
vo Histórico Ultramarino, doc.
desde 1752, vontade de realizá-lo. Uma resposta do Conde de Oeiras 3.633.
a esse seu irmão, de 14 de março de 1755, dizia que Sua Majestade 11
ANNAES - ANNAES DA BIBLIOTHECA
resolvera “reduzir as Aldeyas, e Fazendas a Villas, e Povoações Ci- NACIONAL DO RIO DE JANEIRO, Rio
vis”13 e tomara “a mesma Rezolução a Respeito da liberdade dos de Janeiro, 1914, v. 32, p. 373.
12
Trata-se de Juan Solórzano Pereyra
Índios na conformidade de certa Doutrina de Solórzano”, permane-
que, com base nas Leyes de
cendo ainda “em segredo esse negócio” até que Mendonça Furtado Indias, grandes juristas e experi-
se recolhesse ao Pará depois da viagem pela região amazônica14. ência pessoal, foi o autor da Ðe la
Foi dada a liberdade de comércio, e de bens individuais, aos índios, Recedencia del Consejo de Indias
sobre el de Flandes; politica india-
com vantagens e prêmios àqueles brancos que casassem com índias15, na sacada en lengua castelhana
pois “não ficariam com infâmia”, e foi proibido chamarem seus filhos de los dos tomos del Derecho y
de caboclos, igualando-os em tudo, teoricamente16, aos outros vassalos gobierno municipal de las Indias
Occidentales. Madrid, 1629 (1º t),
brancos17. O mesmo se praticaria com relação às portuguesas que 1639 (2º t), comumente conheci-
casassem com índios. Estavam proibidos, entretanto, de casar com do como Política Indiana, com
pretos e pretas cativos18 ou escolhê-los como padrinhos e madrinhas segunda edição de 1647. Há uma
edição recente SOLÓRZANO
de batismo e confirmação. Ordenava-se, desde o início, a implantação PEREYRA, Juan. Política indiana.
da educação dos índios, com a criação, posteriormente, das Aulas Régias Madrid: Biblioteca Castro, 1996.
e acrescentando a instituição do subsídio literário. 3t. Foi Ouvidor de Audiências no
Peru, por 17 anos (1609), fiscal
O principal interesse centrou-se nas regiões do Norte e do Sul do Conselho da Fazenda, conse-
onde a questão de limites era mais frágil. Para o Norte foi mandado, lheiro do Conselho das Índias, fis-
como Ministro Plenipotenciário, para execução do tratado e demar- cal do Conselho de Castela.
71
13
Esta resolução estava contida no cações de limites, iniciadas a partir de 1754, Francisco Xavier de
Alvará de 6 de junho do mesmo Mendonça Furtado19 que, desde logo, começou a informar a metró-
ano. CARTA RÉGIA, 1757-1758,
Lº 60, APEB, fl. 480v, fl. 482v. pole sobre os pormenores da verdadeira situação em que se encon-
14
PARA O GOVERNADOR, Bibliote- trava a região, duzentos e cinquenta anos depois do descobrimento
ca Nacional da Ajuda, Cota 54-IX- do Brasil20.
27, n. 16, fl. 2; CARTA FAMILIAR,
Cod. 113.930, fl. 31rv.
Um documento (incompleto), de 28 de setembro de 1758, do
15
Entre os prêmios incluíam-se os Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB), trazia a “Instrucção
Hábitos da Ordem de Cristo. para a diligencia de se erigirem em Villas as Aldeyas dos Índios”.
16
Diz-se teoricamente, pois passa- Esse documento mandava que a referida diligência principiasse de-
dos muitos anos, 1803, acusava-
se a presença de 300 índios na vila
pois de publicadas as Leis, de 6 e 7 de junho de 1755, e Alvará de 8
de Santarém, em “que entrão mui- de maio de 1758, que davam liberdade aos índios. Boa parte dessas
tas famílias de espécie degenera- instruções já estava contida no “Diretório”21. As instruções foram
da com brancos portuguezes ”.
BARROS, Francisco Borges de
dadas a partir das descrições minuciosas das diversas regiões, feitas,
(Org.) Diccionario geographico e especialmente, pelos ouvidores e pessoas encarregadas de criar os
histórico da Bahia. Bahia: Impren- núcleos, exploradores e vigários22.
sa Oficial da Bahia, 1923. p. 339.
17
Dentro desse projeto português destaca-se a capitania da Bahia
Lei de 4 de abril de 1755 e Alvará
de 17 de abril de 1755. O mesmo que, se de um lado, perdeu a sede da capital do Vice-Reino, por
foi feito na Índia e China. outro, teve incorporados ao seu território os das antigas capitanias
18
ANNAES, v. 32, p. 376. de Ilhéus e Porto Seguro. Incluía, ainda, parte do Norte da capita-
19
Vide RODRIGUES, Maria Isabel da
Silva Reis Vieira. O governador Fran-
nia do Espírito Santo e toda a de Sergipe. Criaram-se comarcas e
cisco Xavier de Mendonça Furtado, cargos de ouvidores e a Bahia passou a ter, além da comarca do
1751-1759. Lisboa, 1997. v. 1. (Tese Sul, ou de Jacobina, e a do Norte ou de Sergipe, as de Ilhéus,
de Mestrado, Universidade de Lis-
boa).
Porto Seguro e Bahia propriamente dita, algumas das quais foram
20
Para as outras regiões também criadas nessa época.
foram mandados, ou mantidos, A esse tempo, foram enviados os conselheiros José Mascarenhas
homens de pulso e de confiança Pacheco Pereira Coelho de Melo e Manuel Estevão de Almeida de
de Pombal que permaneceram em
seus cargos por tempo superior Vasconcelos Barberino. Sob a presidência do Conde dos Arcos, D.
ao previsto legalmente. O próprio Marcos de Noronha, Vice-Rei do Brasil, e com o Desembargador
Mendonça Furtado trabalhou na do Tribunal da Relação, Antônio de Azevedo Coutinho, deviam for-
região Norte de 1751 a 1759. Go-
mes Freire de Andrade já estava
mar o Tribunal do Conselho de Ultramar, na Bahia, para
no Rio de Janeiro, desde 1733, e superintender a criação das vilas, já ordenadas em 1755 e compre-
ali ficou até falecer em 1763. D. endidas nas Cartas Régias de 8 e 19 de maio de 1758. Esta última
Luís Antônio de Souza Botelho
carta, dirigida ao Arcebispo da Bahia, participava que os
Mourão, o Morgado de Mateus,
nomeado por decreto de 5 de ja- desembargadores vindos de Portugal, Barberino e Pacheco, traziam
neiro de 1765, permaneceu no jurisdição para constituir, também na Bahia, o Tribunal da Mesa da
governo por dez anos (RIHGB, Rio Consciência e Ordens para os negócios relativos ao provimento de
de Janeiro, Esp., v. 5, p. 351,
1957), bem como vários párocos nas novas paróquias nas vilas dos índios. Uma das observa-
ouvidores. Miguel Lobo Aires de ções feitas por este Conselho, a partir disso, era que o novo pároco
Carvalho foi ouvidor da comarca não devia ter a menor ingerência no governo político, caso contrário
de Sergipe de 1754 a 1769. O
Ouvidor José Xavier Machado “seria concorrer para o mesmo abuso dos jesuítas”, devendo-se
Monteiro, nomeado em 1766, fi- manter, para isso, ministros e magistrados civis nas novas vilas. A
cou em Porto Seguro de 10 para Carta Régia, de 8 de maio, enviada ao Conde dos Arcos, também
11 anos (ANNAES, v. 32, p. 370).
Da mesma forma, também, fica- insistia que não se devia permitir “por modo algum que os Religio-
ram no poder de 1766 a 1776 D. sos, que até agora se arrogarão o governo secular das ditas Aldeias,
72
tenhão nelle a menor ingerencia contra as prohibiçoens do Direito Antão de Almada, na Capitania
Canonico, das Constituições Apostólicas e dos seus mesmos Institu- Geral dos Açores (MENEZES, A.
F. Ob. cit., p. 26), e D. Francisco
tos de que sou Protector nos meus Reinos e Dominios”...23. de Souza Coutinho entre 1760 e
Para acelerar os estabelecimentos das vilas24, designaram-se vários 1770, em Angola (ARAÚJO, Re-
ministros. Assim, das aldeias do distrito da Capitania de Ilhéus foi nata Malcher. As cidades da Ama-
zônia no século XVIII: Belém,
encarregado o Ouvidor e Corregedor da Comarca da Bahia, Luís Freire Macapá e Mazagão.Lisboa: FCSH/
Veras, que criou Olivença (1758), Barcelos (1758) e Santarém (1758)25. UNL, 1992, t. 1, p. 102). Vide tam-
O Juiz de Fora da Vila de Cachoeira, José Gomes Ribeiro, com jurisdi- bém COSTA, Nelson. Gomes Freire,
vice-rei. In: Revista do Instituto
ção especial, foi encarregado de erigir Soure na aldeia de Natuba (1759), Geográfico e Histórico Brasileiro,
no distrito da freguesia de Itapicuru, da Comarca da Bahia. O Ouvidor Rio de Janeiro, v. 255, p. 363-365,
e Corregedor da Comarca de Sergipe del Rey, Miguel de Aires Lobo abr.-jun. 1962.
21
DIRECTÓRIO, Loc. cit.
de Carvalho, encarregou-se de Pombal (1758), Mirandela (1760) e 22
Vide AMARAL, Braz do. Ob. cit.,
Távora (1758)26. Ao Capitão-mor da capitania de Porto Seguro, Antô- v. 2, p. 198; Catálogo de Eduardo
nio da Costa Souza27, e ao Manoel da Cruz Freire, coube Trancoso de Castro e Almeida, AHU, Bahia,
(1759) e Vila Verde (1759)28 na mesma freguesia e comarca. A Fran- doc. 2.666 e 2.698, 2.708, 2.710,
2.713, 2.715, 6.429; VIANA, Fran-
cisco de Sales Ribeiro, Ouvidor e Corregedor da Comarca do Espírito cisco e CAMPOS, José de Olivei-
Santo, coube Benavente29 e Nova Almeida nessa mesma Comarca. ra. Estudos sobre a origem histó-
Para o Juiz de Fora do Geral, do Cível e do Crime da Bahia, João rica dos limites entre Sergipe e
Bahia. Bahia, 1892, p. 98, 101-
Ferreira de Bittencourt e Sá ficou Nova Abrantes (1758) que, por 102; ANNAES, v. 32, p. 51-53, 54-
estar mais próxima, foi a primeira vila a ser criada no distrito da cidade 62, etc.
23
da Bahia (Salvador). Ficou faltando indicar ministro para a aldeia dos AHU, Bahia, doc. 3.645, 3.634.
24
A Carta Régia, de 22 de julho de
índios Grens, que seria Vila de Almada, na capitania de Ilhéus, por se
1766, reafirmava as instruções para
esperar informações sobre a mesma. Essas foram as vilas criadas sob o Governador e Capitão-General da
as ordens do Conselho de Ultramar formado na Bahia. Bahia, Conde de Azambuja, criar
vilas na Capitania. ANNAES, v. 32,
Segundo Felisbelo Freire, ainda a Bitencourt e Sá, por resolução
p. 353; v. 36, p. 145. Já em 8 de
do mesmo Conselho, de 28 de setembro de 175830, foi incumbida a outubro de 1758 a Bahia havia re-
fundação da vila de Nazareth, criada em 1761, no termo da vila de cebido a Provisão de 8 de maio de
Jaguaripe, distante três léguas do mar, na aldeia da Pedra Branca. 1758 e o texto das leis de 6 e 7 de
julho de 1755.
Antes disso, para defender os limites a Oeste, tinha sido funda- 25
Respectivamente nas aldeias de
da, por ordem da Carta Régia de 5 de dezembro de 1752, a vila de N. Sra. da Escada, N. Sra. das
São Francisco das Chagas, chamada da Barra do Rio Grande do Candeias do Rio Maraú e Santo
Sul, por solicitação de seus moradores31. Ao contrário das demais André no Rio Serinhaem, freguesia
de Camamu A Carta Régia, de 10
vilas, esta tinha sido uma antiga missão de capuchos italianos, ou de abril de 1763, no entanto, se
alcantarinos, no termo da vila de Pambú. Foi instalada a 23 de referia a cinco vilas na Comarca
agosto do ano seguinte, pelo Ouvidor de Jacobina, Henrique Cor- de Ilhéus, sendo quatro
mandadas criar pelo seu primeiro
reia Lobato. Embora ficasse fora do “giro mineral”, constava, no Ouvidor, Miguel de Aires Lobo de
período, que por ali corria muito ouro em pó, extraviado das minas Carvalho. AHU, Bahia, cx. 157,
de Paracatu e, por isso mesmo, estava infestado de contínuos latro- doc. 26, 1963, avulsos, ms.
26
Nas aldeias de Canabrava/Santa
cínios, homicídios, arrombamentos da cadeia e violências em geral. Tereza, freguesia de Itapicuru,
Isso explica a solicitação dos moradores para que, com a vila, hou- Morcegos/Ascensão, na freguesia
vesse aplicação de justiça. Convém ressaltar que os próprios mora- de Geremoabo, pertencentes à
dores e autoridades podiam, como no caso de Barra, solicitar a Comarca da Bahia e N. Sra. do
Socorro, na freguesia do Rio Real,
elevação de uma povoação ou freguesia à vila, partindo de um pertencente a Comarca de Sergipe
núcleo já povoado. d’El Rey, respectivamente. A
73
Além das comarcas, vilas, povoações, lugares, aldeias, julgados foram criadas paróquias e fre-
guesias32 que, apesar de divisões da administração eclesiástica, funcionavam na prática, também,
como jurisdição civil tendo, inclusive, ordens reais para sua criação. Assim, criaram-se as freguesias
de São José da Barra (1752), N. Sra. de Nazareth (1753), N. Sra. de Nazareth (das Farinhas) (1753),
Santana de Tucano (1754), Santo Antônio de Caetité (1754), Santo Estevão do Jacuípe (1754), S.
última constituía a aldeia de Gerú, João Batista de Sento Sé (1755), Santo Antônio das Caravelas (1755),
corruptela de Algeru-assu, com o Santana do Camisão (1755), N. Sra. da Conceição da Vila de Soure e
nome de Nova Távora. Esse nome, Santa Tereza de Pombal (1758), N. Sra. da Escada de Olivença e N.
por Ordem Régia de 24 de abril de
1759, por causa do atentado a D. Sra. das Candeias de Barcelos (1758), Santo Antônio da Jacobina (1758),
José I, foi mudado para nova Mirandela (1760) e várias outras. Nem sempre os limites da vila coin-
Tomar. ANAIS DO ARQUIVO cidiam com os da freguesia – e nem jurisdições - e vice-versa. Tam-
PÚBLICO DA BAHIA, Bahia, v. 13,
1925, p. l 17.
bém não foram criadas necessariamente ao mesmo tempo33.
27
Foi nomeado adjunto de Manoel Um relatório desse Tribunal do Conselho de Ultramar dava no-
da Cruz Freire por este ser “leigo”, tícias ao Rei, a 22 de dezembro de 1758, sobre seus passos. Nas
isto é, não era formado em direito, primeiras sessões discutiram sobre o “modo de estabelecimento Po-
nem tinha cargo de juiz de fora ou
ouvidor. lítico, e Civil, das Aldeias de Índios, que V. Magestade mandou erigir
28
Nas aldeias de São João e Espírito em Villas”. Assentaram, também, que “deviam preceder informa-
Santo/Patatiba. ções verídicas, e individuaes das situações de cada huã das ditas
29
Nas aldeias de Eriritiba e Reis Aldeias, e da qualidade, e extensão das fazendas, que lhes ficão em
Magos.
circuito declarando-se se estavão possuídas por alguem ou devollutas;
30
FREIRE, Felisbelo. História
territorial do Brasil; Bahia, Sergipe,
da qualidade, e número de cazaes de que se compõem aquelles po-
Espírito Santo . Rio de Janeiro, vos, declarando-se a differença que há entre elles e de civilidade, ou
1906. v, 1. p. 168. cabedaes”..., conforme foi referido acima. Devido às dificuldades
31
O termo dessa vila constituía o que se encontrariam no estabelecimento das vilas, antes de ter as
antigo sertão de Rodelas, onde
habitavam os índios Rodelas,
informações, e por não haver pessoas que pudessem levantá-las e
Acoroases e Mocoases. outras que fossem fazer os estabelecimentos, se estipulou que, de-
32
A Carta Régia, de 8 de maio de pois de instalada a vila de Abrantes, se regularia o estabelecimento
1758, dirigida ao Arcebispo da das outras vilas e que, cada um dos informantes que fosse mandado
Bahia, ordenava se transformas-
se as missões em paróquias e
para outra localidade, pudesse logo levar instruções, munido de ju-
lhes nomeasse párocos com risdição para a criação das vilas, devido às grandes distâncias em que
côngrua. AHU, Bahia, cx. 158, doc. se encontravam. Isso deliberado passou-se, então, provisão a João
12, 1763, ms. avulsos. Foram
mandadas cartas idênticas ao
Ferreira de Bitencourt e Sá, Juiz de Fora da capital da Bahia, para
Vice-Rei, Conde dos Arcos, e de- estabelecer a vila na Aldeia do Espírito Santo da Ipitanga, com o
mais governadores e capitães-ge- nome de Nova Abrantes, desmembrada da Câmara de Salvador34.
nerais para que auxiliassem o Ar- Criada a vila discutiu-se longamente sobre se manter, ou não, os
cebispo. Catálogo de Eduardo de
Castro e Almeida, AHU, Bahia, doc. rendeiros que ocupavam parte das terras de Abrantes. Essa discus-
3.635, 3.637. são decorreu devido à voz corrente na Europa de que as terras na
33
Assim, as freguesias de N. Sra. América eram muito fracas e que o superpovoamento poderia cau-
da Penha de Porto Seguro, S. João
sar falta de alimentos, rebatendo outros que seria a “mayor felicida-
Batista de Trancoso, N. Sra. da
Purificação de Prado, S. Bernardo de de qualquer Republica” ter muitos povoadores, sendo apregoado
de Alcobaça, S. José de no Reino da França, em 1756, por um político anônimo, o discurso
Portalegre, matriz do Espírito Santo
com o título “Amigo dos Homens”, sobre a instalação de estranhos
de Vila Verde foram criadas só em
1795. FREIRE, F. Ob. cit., p. 186; aos territórios em processos de povoamento. Nessa discussão os
BARROS, F. B. de. Ob. cit., p. 16. conselheiros invocaram a civilização dos primeiros gregos, dos ro-
74
manos, dos bárbaros europeus e mesmo dos gregos sujeitos ao czar de “Moscovia”35, alegando
que só pelo contato é que os índios poderiam civilizar-se. Finalmente recorreram às leis reais
“mandando erigir Villas nestas Aldeas para que se governassem com inteira liberdade os seus
habitantes, igualando-os em tudo com os outros Vassallos, e athê promettrendo prêmios aos que
pela aliança do matrimonio se misturassem com os Índios pela Ley de 4 de Abril de 1755” 36.
Ainda achavam convenientíssimo que os índios perdessem seus nomes bárbaros, permitindo
confundirem-se com os outros vassalos em obediência às ordens régias. Determinava-se que
tirassem os nomes bárbaros das aldeias, trocando-os por outras das vilas civilizadas, “sendo con-
tra todas as suas Leys da Política dos estados, que nelles haja Villas a parte, de certas Nações, que
fação hum corpo diverso dos outros Povos, como reconheceo a Monarquia de Hespanha nas
Leys novíssimas porque igualou os Aragoneses, Catalaens, Valencianos com todos os mais Vassallos
de Castella” 37.
Criadas algumas vilas, para Porto Seguro foi provido como Ouvidor o bacharel Tomé Couceiro
de Abreu pelo tempo de três anos. Recebeu a “Instrucção para o Ministro, que vay criar a nova
Ouvidoria da Capitania de Porto Seguro”38, datada de 30 de abril de 1763, com 18 itens, incum-
bindo-o, também, de criar vilas, e demarcar seus termos39, com base no “Directório” do Grão-
Pará e Maranhão. A instrução nº 9 recomendava que o ouvidor “nem pela imaginação”, devia deixar
“passar o objecto de ir fazer o descobrimento de Minas, mas antes
se deve aplicar muito seriamente, depois dos estabelecimentos das 34ANNAES DO ARQUIVO PUBLICO
novas Villas que puder erigir, e da educação dos seus novos Habi- DA BAHIA. De como viviam os
índios de Nova Abrantes do Espí-
tantes; na cultura dos frutos para se sustentarem com abundancia, rito santo. Bahia: Imprensa Oficial
não só os Mercadores das mesmas terras, mas fazerem o commercio do Estado, 1938. v. 26, p. 6, 8-9.
delles para a Bahia e Rio de Janeiro” e, com seu produto, comprar 35Correspondia à Rússia.
negros para aumentar as plantações. Esta recomendação, e a do pa- 36IDEM, p. 25, 27-28, 29, 32.
rágrafo 17, eram insistentemente feitas e, inclusive, registradas junto 37
IDEM, p. 31-32.
com os autos de elevação das vilas. Criou-se Belmonte (1765) ou 38
AHU, Bahia, cx. 157, doc. 40.
Belo Monte, pelo Ouvidor Tomé Couceiro de Abreu, na antiga po- 1763, ms, avulsos.
voação do Rio Grande que também erigiu a vila de Prado (1764) no 39
Esta incumbência não estava in-
sítio da barra do Jacurucu. As melhorias e planta desta última foram cluída nas Ordenações Filipinas que
feitas pelo ouvidor seguinte. regiam a vida no mundo portugu-
José Javier Machado Monteiro, que substituiu Couceiro de Abreu ês. Mas, segundo essas mesmas
na Ouvidoria de Porto Seguro, disse ter erigido três vilas em observân- Ordenações, os ouvidores deviam
mandar fazer as benfeitorias públi-
cia às instruções que recebera da Secretaria de Estado: Vila Viçosa cas e promover povoamento de
(1768), padroeira N. Sra. da Conceição, distante do mar um quarto de núcleos despovoados. ORDENA-
légua à margem do Rio Peroipe, Portalegre (1769), padroeiro S. José, ÇÕES FILIPINAS. Lisboa: Funda-
ção Calouste Gulbenkian, 1985, Lº
no arraial do Mucuri, junto à barra do rio Mecurim, a dezoito léguas 1, p. 109, 114.
da praia, a terceira Vila de Alcobaça (1772)40, padroeira S. Bernardo, 40Criada por Carta Régia de 3 de mar-
no arraial de Itanhem, junto à barra do rio desse nome. Deu início a ço de 1755 só foi instalada em
três aldeias, uma na enseada do rio Camujutiba, outra na barra do rio 1772. IBGE - Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística. Enci-
de S. Mateus e a última junto ao Rio Doce, pois eram lugares de terras clopédia dos municípios brasilei-
férteis e possibilitavam, através da estrada que abriu, comunicação ros. Rio de Janeiro: IBGE, 1958,
com a capitania do Espírito Santo. Pretendia, ainda, elevar uma quarta v. 29. p. 26. Teve seus limites
demarcados a 18 de outubro de
junto ao rio Caim. Não pode levar isso a efeito por falta de povoadores. 1773. BARROS, F. B. de. Ob. cit.,
A povoação de São Mateus pertencia, nesse período, ao território da p. 126.
75
Bahia. Em 13 de janeiro de 1769, uma representação dos Membros do Tribunal da Mesa de
Consciência e Ordens comunicava “que suposto fossem mandadas erigir em Villas com os nomes
de Nova Benavente e Nova Almeida, não consta até o prezente que o Ouvidor da Capitania do
Espirito Santo tenha executado esta diligencia, havendo-se-lhe expedido as ordens necessárias em
janeiro de 1759”41. Houve demora na criação dessas vilas devido, também, ao fato de diferirem as
jurisdições civil e eclesiástica da região. A civil pertencia à Bahia e a religiosa ao Rio de Janeiro.
A elevação de uma aldeia, ou povoação, em vila possuía ritual próprio. Para ilustrar este
trabalho foram tomados exemplos da Comarca de Porto Seguro e de cujas vilas se tem as plantas
originais, raras dentro do conjunto de núcleos criados no período em todo o Brasil. A criação,
medição e demarcação de Vila Viçosa deu-se, a 23 de outubro de 1768, pelo Ouvidor José
Machado Monteiro. Esse ato foi público e a ele concorreram as autoridades e povo e coube ao
ouvidor dirigir o ato da cerimônia. Todos os criadores de vilas seguiam o mesmo cerimonial. Esse
cerimonial de implantação das vilas era bastante simbólico.
O ouvidor convocava, por editais, os habitantes da povoação e de vilas vizinhas para, no dia
exato, das sete para as oito horas da manhã, estar à frente das casas de sua aposentadoria para o
acompanharem no ato. Todos se encaminhavam ao lugar e sítio limpo, medido, demarcado para
terreno da praça, com as ruas já traçadas, e preparado com arcos e enfeites festivos, onde o
ouvidor levantava o pelourinho42 e aclamava a vila, com o chapéu na mão, dizendo, em voz alta
e inteligível: “Real-Real-Real, esta nova Vila Viçosa pelo nosso Augusto e Fidelíssimo Monarcha
D. José o primeiro, Rei de Portugal”, repetindo a frase por três vezes, ao “que immediatamente se
seguirão com grande jubilo, alegria e applauzo de todos muitos e repetidos vivas com outras varias
demonstrações de gosto e ao som de varios instrumentos festivos que para o mesmo applauzo
tinha convocado”43. Seguiam-se um Te Deum Laudamus, com ladainhas e música, e missa. De cada
um dos atos se fazia registro.
A planta das praças, ruas e travessas e suas medidas eram
41
Catálogo de Eduardo de Castro e “bem explicitadas, individuadas com seus nomes”, no livro de
Almeida, AHU, Bahia, doc. 4.791.
42
provimentos da correição. Indicavam-se arruador da agulha e aju-
DOCUMENTOS AVULSOS AD CA-
PITANIA DA BAHIA, 1769-1770, dantes da corda, picadores de mato, todos moradores do local,
AHU, cx. 44, doc. 8555, para as medições. Estes deviam apresentar suas medidas, agulha e
microfilmes, rolo 41, APEB, ms. corda para o ministro verificar se estavam corretos e dentro do
43
Em todas as vilas, o pelourinho, padrão.
por falta de pedra, foi feito de ma-
deira lavrada. Foram colocados O ouvidor delineva uma, duas praças ou três: uma ou duas
“pelourinhos em todas as villas, religiosas e a outra civil. Colocava nesta última o símbolo da
ainda que de páo, bem lavrados 2 fundação, o pelourinho, declarando, como se viu, o nome da
delles, com escada de pedra, pois
os que havia erão toscos indig-
nova vila. A partir desse ponto, ou de marco preexistente, de-
nos”. ANNAES, v. 32, p. 372. Para marcava o aro, ou os limites da vila, estabelecendo o seu termo,
conservá-lo eram pintados com devendo esses limites alcançar a propriedade dos índios, segun-
tinta à óleo. Em 1772 o Ouvidor
notificava que havia feito outros
do os títulos de doações dados pelos monarcas anteriores. Como
pelourinhos em todas as vilas por ele, os ouvidores demarcavam o terreno das Casas de Câmara e
serem “toscos e ridículos os que Cadeia, Igreja - caso não as tivessem - e as ruas, novas ou anti-
tinhão”. ANNAES, Loc. cit., p. 308.
gas44 -, utilizando o plano ortogonal recomendado para essas
44
As ruas antigas, geralmente, ti- novas vilas. Na repartição das terras deixavam baldios para la-
nham 4 braças de largura e as
novas 6. AMARAL, B. do. Ob. cit., vouras, e mais plantações, e quatro léguas em quadro para
p. 281. patrimônio e rendimento do Conselho da Câmara. Em torno
76
das vilas, mandavam reduzir a campo um largo espaço de matos para livrar os habitantes “de
assaltos do gentio, para viverem menos receosos dos seus nacionaes inimigos, para beneficio
dos ares, para afugentar as onças, para diminuir as cobras, para extinguir o mosquito que cá
morde muito e finalmente para creação dos gados no augmento dos pastos”. Os marcos, por
falta de pedra, foram feitos, também, com árvores de maior porte, tidas como sólidas e durá-
veis. Nas árvores esculpiam uma cruz “de forma que só não havia Memoria della tendo consu-
mo a dita árvore”45. Os limites do extremo sertão ficavam, em geral, sem marcação, devido ao
medo dos ataques dos índios, ou por falta de ferramentas para derrubar o mato. A extensão
dessas vilas era bastante grande, admitindo, pela própria configuração de sua forma, o aumento
a qualquer tempo. Para a de Nova Benavente, prevista para ser criada já em 1758, na capitania
do Espírito Santo, foram medidas “doze legoas de terra pela Costa de mar, com hum fundo
indefenido, pois se extremão pelos sertõens athé onde não podem penetrar, ficando o termo
desta Villa mais extenso, que os das maiores Cortes de toda a Europa”46.
Nos Provimentos e Instruções, de 1768, o Ouvidor da Comarca Machado Monteiro dizia
que, em Viçosa, balizou o traçado a partir do edifício da Igreja que já existia, ainda que tosca,
mas que não podia mudá-la de lugar por causa da pobreza da população. Dava, então, as
medidas desses logradouros e os nomes atribuídos às ruas. O adro comportava 360 palmos de
cumprimento por 200 de largura, “dentro de cujo circuito existe a igreja para se poder acres-
centar quanto o tempo o permitir ficando sempre á Roda separada das cazas, que lhe hão de
fazer boa perspectiva”.
A vila, alinhada ao longo do rio, com margem para cais, contava uma outra praça de 200
palmos “em quadro”, muito plana, onde desembocavam quatro ruas principais e duas travessas.
Segundo o ouvidor “para as Ruas lhe fiz em via Recta três alinhamentos, que todos discorrem de
Oeste para Leste, cada hú dividido pelas travessas em tres Ruas principais, que por todas fazem
estas o numero de nove”. Essas ruas foram chamadas do Lira, da Cobiça, do Desembargador, do
Brejo, Formosa, do Prado, do Campo, das Flores, rua Bela. As ruas que desembocavam na praça
mediam 280 palmos e as demais 370, todas, inclusive as travessas, com a largura de 30 braças. As
travessas, em número de onze, foram designadas por travessa do Vigário, do Rio, do Cais, do
Coelho, das Laranjeiras, do Avelar, da Praça, do Cuidado, do Tabaco, do Fogo, da Cacimba. E
completava: “todos os Refferidos nomes lhes assigney, hús Respeitando aos Sitios, e outros a algús
particulares objectos”.
Previa a construção das Casas da Câmara e Cadeia, num dos lados da praça, e a das casas
dos moradores. Estas deviam ser feitas conforme os modelos estabelecidos. Podiam ter de
frente as medidas que pedissem, com os quintais nos fundos. O cumprimento destes seria de 70
palmos para os terrenos que saiam do adro da Igreja e 80 para os outros, “todos em via Recta”,
excetuando os das esquinas que teriam quintais menores, o “que lhes fica remunerado com a
maior e milhor vista das cazas”. E ordenava “e prohibo o dar se Licença para se fazerem fora
dos tais aRuamentos, ou Rossas, porque no cazo de estes todos se encherem dellas, se abrirão
para a parte do campo outros de novo pegados e pella mesma 45 ANNAES, v, 32, p. 309, 366.
Rectidão, e formalidade”47. 46
IDEM, v. 26, p. 30.
Os ouvidores aproveitavam os edifícios existentes, a maior parte
47
deles da propriedade dos missionários e por serem os mais resistentes. DOCUMENTOS AVULSOS DA CA-
PITANIA DA BAHIA, AHU, cx. 42,
Serviam de sede da Casa de Câmara e Cadeia. Não havendo constru- doc. 7975, microfilme, rolo 40,
ções mais sólidas fazia-na construir de taipa. A Casa de Câmara e APEB.
77
Cadeia de Viçosa ainda estava por erigir em 1777, quando o Ouvidor Machado Monteiro noticiava
que “de igual fortaleza e pelo mesmo risco (da de Porto Seguro) se vão apromptando os materiaes
para as de Vila Viçosa”48.
Na mesma ocasião do levantamento do pelourinho elegia-se a invocação de seu orago, da
igreja e da vila. Indicavam e/ou construíam residência do pároco, deixando para este terreno e
espaço para suas lavouras.
A Casa de Câmara e Cadeia, igreja, casa do pároco e dos moradores eram os únicos edifícios
da maior parte das vilas. Segundo os componentes do Conselho de Ultramar, reunido na Bahia,
não havia esperança de poder haver nessas vilas Casa de Misericórdia ou Hospital, tendo notícias
de que se “o missionário”, aqui se referindo a Abrantes, não socorresse os doentes, os índios os
deixavam, em total desamparo, morrer sozinhos.
Após as primeiras instalações, eram indicados diretor, capitão-mor, os oficiais de guerra e
ordenança, armavam os índios de pólvora e balas para se defender contra os inimigos que,
geralmente, assaltavam a aldeia para roubar as roças e ferramentas. Estabeleciam taxas de jornais
dos trabalhadores rurais e dos artífices e davam outras providências.
Toda a instalação das vilas era feita às custas da própria comunidade, a quem cabia, igualmen-
te, subsidiar a construção dos edifícios públicos, igreja e de suas casas. Isso explica por que a
maioria desses edifícios, nas regiões tratadas, só foi construída tardiamente49. O poder real só
pagava o ouvidor, tropa de linha e poucos outros funcionários, incluindo o vigário. Mesmo a
Câmara, depois de instalada, devia se auto-sustentar com as fintas, a que tinha direito, multas,
licenças, arrendamento das terras de seu patrimônio, aluguéis etc. Nos casos tratados na Bahia,
devido à suma pobreza dos índios, a Coroa arcou com as despesas de demarcação das terras e
medições, mesmo porque não havia precedido “requerimento dos Indios para este estabelecimen-
to”50. Isto quer dizer que, quando os moradores solicitavam a elevação de sua povoação à vila,
inevitavelmente deviam arcar com todas as despesas.
Como as demais construções, a maioria das igrejas era feita de materiais frágeis e foi necessá-
rio reedificá-las. Havendo igreja dos antigos missionários, faziam inventário antes de entregá-la ao
novo pároco nomeado. Nas novas povoações, a Igreja, ao contrário de muitos núcleos anteriores,
aparecia depois de tomadas outras iniciativas. Era, no entanto, a primeira providência coletiva ao
se fundar uma vila, depois de se construir a Casa de Câmara e Cadeia. Em 1771, ao se referir à
vila de Porto Alegre, Machado Monteiro dizia ter providenciado para que os habitantes trabalhas-
48
sem em roças alheias para poder comprar ferramentas e, depois,
ANNAES, v. 32, p. 325.
49
usá-las nas suas próprias plantações e, ainda...”com o seu producto
Podiam aceitar doações do Go-
vernador ou de proprietários parti- erigirem a Egreja, que ainda hé coberta de palha, assim como ainda
culares ou ser feitas às custas do o são as cazas delles”...51. Em 1777, o mesmo ouvidor se comprome-
próprio Ouvidor. tia a “dar principio ainda que de tijolo por falta de pedra, as Matrizes
50
ANNAES, v. 26, p. 23. das Villas novas de Bellomonte, Prado, Alcobaça, Portalegre e S.
51
IDEM, v. 32, p. 352. Matheus”, acrescentando ainda, “que me desanima a falta de artifices
52
IDEM, p. 325. e muito mais a nimia pobreza de seus povoadores, e quanto me não
53
O vocábulo “municipal” raramen- tem custado o fazel-os erigir de madeira e provel-os dos
te aparece na documentação do indispensaveis, ainda que tenues, ornamentos para o culto divino,
século XVIII, já que a estrutura sem ajuda alguma do erario regio”52.
municipal, com essa designação,
só foi montada a partir de 1828, Ao erigir Vila Viçosa, o ouvidor dera para a localidade as “leis
depois da Independência do Brasil. municipais, chamadas vulgarmente posturas”53, que estabeleciam os
78
deveres e direitos dos Juizes, Oficiais da Câmara e do povo, conforme os preceitos das Ordena-
ções Filipinas e práticas consensuais do Brasil.
A postura 21 rezava que “ninguém fará cazas alguãs no terrado do Logradouro da villa Sem
Licença da Câmara e ainda dentro do alinhamento das Ruas, sem se lhe hir medir com pena de
tres mil Reis, e de Se lhe demolir achandosse fora das medidas, ainda em piquena parte do
aRuamento, mas nas Rossas cada qual as poderá fazer aonde, e como quizer”. Repetia, em parte
as provisões do ouvidor54. Essas posturas eram válidas para as demais vilas fundadas e mesmo
para a própria sede da Comarca, Porto Seguro.
Criada a vila, de posse das leis, cumpriam as outras formalidades e elegiam juiz ordinário e de
órfãos, vereadores e procurador do Conselho da Câmara para o ano e os três anos seguintes.
Elegiam alcaide e porteiro, este para servir na Câmara e nos auditórios judiciais e, fazer as vezes,
também, de carcereiro. Os índios, segundo as leis e instruções dadas, tinham prioridade no gover-
no das vilas, preferindo os casados aos solteiros para as propriedades e serventias dos ofícios,
porém, os solteiros teriam prioridade a quaisquer outras pessoas, “de qualquer prerogativa e
condiçõens que sejam, ou destes Reynos ou do Brasil, ou de qualquer outra parte”, de sorte que
só os moradores da vila deviam servir esses ofícios55. Havendo índio que soubesse ler e escrever,
ocupava o cargo de escrivão. Em muitos casos foram indicados portugueses, tanto para escrivão
da Câmara, para Diretores, quanto para tabelião de notas, escrivão do judicial, de órfãos, de
alcaide, de acordo com as próprias Ordens Reais. Caberia a este ensinar os índios, com aptidão, a
ler e escrever para, depois, servir o ofício. Se houvesse português casado com índia, este teria
preferência para o cargo. Os brancos deveriam deixar o cargo assim que houvesse índio apto.
Segundo as instruções, caso os índios não possuíssem terras, seriam dadas propriedades na-
quelas partes previstas para a vila e seus confins56, mesmo tendo sesmeiros ou donatários, contanto
que não fosse “propriedade notavel, que se entende ser Engenho, ou alguã caza grande e nobre”.
Essas sesmarias não podiam ficar longe, mas se localizar ao redor da vila, na distância de até seis
léguas e nenhum morador poderia receber “mais do que meia legoa em quadro”57. Com a funda-
ção de novas povoações, as sesmarias que se encontrassem no local escolhido perdiam a validade,
prevalecendo o bem comum, contra os interesses particulares, sendo os moradores, dentro do
terreno marcado que não fossem índios, obrigados a se retirar no prazo de um ano. Os arrenda-
tários, sesmeiros e donatários tinham dois anos para deixar a terra, tempo suficiente para colher
os frutos plantados. Os sesmeiros, no entanto, podiam recorrer à justiça para dar-lhes solução ou
conseguirem outra sesmaria. Fruto das discussões sobre esse assunto, na maior parte das vilas,
ficou estabelecido o convívio entre índios e brancos, mesmo porque, como se viu, obedeciam
ordens régias.
Por mais que se queira apontar o fracasso do projeto pombalino, deve-se notar que houve
mudanças no povoamento e urbanização do território. Em 1764, Couceiro de Abreu notificava
que os índios viviam em Trancoso e Vila Verde da mesma forma 54DOCUMENTOS AVULSOS DA CA-
como antes “debaixo de uma só palhoça 10, 12 e mais com seus PITANIA DA BAHIA, AHU, cx. 42,
filhos e filhas”. Não havia pastos comuns, nem terras para rendi- doc 7974, microfilme, rolo 40,
mento da Câmara. O terreno delimitado era tão pequeno que mui- APEB.
55
tos se queixavam não ter terra para lavrar, pois algumas que tinham ANNAES, v. 32, p. 288.
recebido já estavam cansadas e cheias de formigueiros, e outras eram 56Determinada pelo Alvará de 23 de
capoeiras. Não tinham diretor, mas apenas um escrivão com a obri- novembro de 1700.
gação de ensinar os meninos a ler e escrever. E concluía: “a estes 57ANNAES, v. 32, p. 290-291.
79
incumbi por ora algumas advertências do Directorio do Maranhão, de que vão dando boa conta,
dei plantas para a formalidade das Villas e hum d’estes dias vou dispôr o mais que me parecer
mais conforme as ordens de Sua Magestade e bem d’estas duas povoações”58. Nesse mesmo ano
Couceiro de Abreu notificava que ia fazendo construir as casas e “huma e outra escóla, a que não
hia rapaz alguns, traz agora 90 e tantos divididos por ambas”59. Se não aproveitassem os ensinos
da escola, pelo menos ouviam e praticavam a língua portuguesa, como se viu, obrigatória a partir
de então.
Alguns anos depois, em 1771, dizia Machado Monteiro: “ha eschola em que aprendem ler e
escrever 80 meninos e por acazo não ha mestre ou official de officio mecanico, que deixe de ter
algum aprendiz e dos maiores os mais rusticos á soldada”. O produto desses pagamentos dos
rapazes devia ser aplicado no vestuário e o resto na compra de gado, ou de ferramentas para a
lavoura, telha e feitio de suas casas.
Porém, a conquista do índio era um obstáculo que os ouvidores transpunham com dificulda-
de. O próprio Couceiro de Abreu, em 1764, tentou fixar os índios da nação Menhãa na região do
Rio Doce. Prometeu-lhes um clérigo e os cargos da Câmara, quando a vila fosse instalada, “e para
que logo entrassem a fundar a sua habitação com a formalidade de Villa, mandei ir para aquelle
sitio hum homem de bom proposito e já conhecido d’elles, com huma fórma de planta, para que
por ella fosse regulado as cazas, que os ditos índios deviam de edificar; e que a cada um delles
desse terreno ao menos com seis quartos, hum que lhes servisse de sallinha, outro para os pais
dormirem, outro para os filhos, o 4º para as filhas, o 5º para cozinha e o 6º para terem os seus
effeitos”. Em outro documento continuava:...”lhes assignei a seu contento, sitio para estabelece-
rem huma regular povoação, por haver fallecido o homem, que para esse fim e para os dirigir
havia mandado para o dito Rio, deixando-lhes recomendado que entrassem logo a fazer a casa
para o clerigo, que para lá havia de ir e depois della as suas, em que havião de viver com esta e
aquella formalidade que lhes deixei em um risco”. Executaram a casa do clérigo e mais cinco, mas
fugiram, no dia de São José, rio acima60. A maioria dos diretores, muitos deles escrivães, foi
sempre acusada de incompetentes, abusados, corruptos, defensores de seus próprios interesses e
outras coisas.
A falta de povoadores foi um dos grandes problemas. Em 1773 Monteiro dizia que “impossivel
será o chegar a erigir as 3 que já referi” e já citadas anteriormente, e se lastimava que...”se erigi-
las me he facil, o povoa-las me he muito dificil61. Queixava-se da constante fuga de índios e
degredados para a Comarca de Ilhéus e de suas inúteis “requisitorias para a prizão e retrocesso
delles”62, não contando com a colaboração do Ouvidor daquela Comarca, Miguel Aires Lobo de
Carvalho. Essas povoações deveriam ser elevadas à vila, sendo indispensavelmente precisas para
a estrada, “que nas minhas Instrucções se me adverte faça abrir para comunicação, e comercio
dessa Capitania com a do Espirito Santo”, dizia Machado Monteiro. Aí já tinha sido instalada uma
dúzia ou dúzia e meia de casais, mas a falta de gente impossibilitou a realização de suas implanta-
ções. Essa estrada era recomendada para ligar essas regiões ao Rio de Janeiro.
58
IDEM, p. 39.
Além da falta de gente e de ferramentas, não havia mão de obra
59
especializada. Assim, era o povo, em especial os índios, que constru-
IDEM, p. 52.
íram as vilas. Já o Ouvidor Couceiro de Abreu dava notícias dessa
60
IDEM. atividade: “não me tenho descuidado da melhor forma da creação
61
IDEM, p. 371. das duas vilas novas de Trancoso e Villaverde, cujos Índios vão
62
IDEM, p. 272, 277, 293, 324-325. fabricando as suas cazas com a formalidade que lhes dei”. Só em
80
1772, na Vila de Porto Seguro, e locais mais próximos, se empregava mão de obra especializada e
o ouvidor delegava o “risco” a outrém. As vilas menores, ou recém-criadas, continuavam, no
entanto, a ser construídas pelos próprios habitantes. Ao se referir à edificação das matrizes de
Belmonte e Portalegre, o Ouvidor Monteiro dizia textualmente que os “artifices foram os seus
mesmos povoadores, cada qual conforme a sua habilitação, por não terem pela sua muita pobreza
com que pagar os outros”. E, no ano seguinte, continuava a notificar que “por todas as villas se
augmentão á proporção das possibilidades dos habitantes, e para o que por falta de artífices as vão
fabricando por mãos de curiozos”. E ainda: “não achei em toda a Capitania mais que 2 pedreiros,
que com outros 2, que acariciei de fóra e mais 4 degradados já chegão ao número de 8, mas taes
que eu fui o mestre da obra das cazas da Camara (de Porto Seguro) porque os da Bahia me
pedem por ella exorbitantissimo presso, com que querem compensar o virem para cá de tão
longe”63.
Pelos documentos do período, e por algumas passagens já referidas, verifica-se que, na região
de Porto Seguro, os próprios ouvidores foram os urbanistas, arquitetos e mestres de obra, e o
povo, na ausência de oficiais mecânicos especializados, o construtor. Coube a eles a organização
espacial dos núcleos urbanos programados e a expansão da rede urbana. Sendo essas regiões
extremamente pobres, e sem importância administrativa, dificilmente puderam contar com a
presença de engenheiros militares em suas obras públicas, e particulares. Esses engenheiros só
estiveram nas regiões mais importantes na época, como São José do Rio Negro, Belém, Salvador,
Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, por exemplo.
Segundo o que se ordenava, os edifícios se inseriram num espaço determinado, onde devia
predominar a uniformidade teórica, em nome da “boa perspectiva”. Deve-se ressaltar vários
tipos de plantas: um que aproveitou o traçado jesuítico preexistente, da grande praça ou terreiro
- civil e religiosa - de onde partiam as ruas perpendicularmente e a de plano ortogonal, rascunhada
expressamente para a implantação das vilas, como Prado, Portalegre, 63
Viçosa, Alcobaça, na Capitania de Porto Seguro. Uma terceira possi- IDEM, p. 52, 267, 273, 277.
64
bilidade mostra a reurbanização de um núcleo irregular preexistente, A retificação de ruas foi feita mes-
mo em núcleos antigos, dentro e
a exemplo de Barcelos na região Amazônica64. fora de muros medievais, no mes-
Os núcleos, anteriores a 1735, em sua grande maioria, eram irre- mo período no Reino. FERREIRA-
gulares, pois, como simples povoações, postos avançados na boca ALVES, Joaquim Jaime B. Os
do sertão, pouso de viajantes, passagens de rios etc., nasceram es- Almadas e o urbanismo portuense.
In: Colóquio Lisboa Iluminista e o
pontaneamente, sem alinhamentos, sem ordem. Uma vez transfor- seu tempo, Lisboa,, p. 151-158,
mados em vilas – incluindo os núcleos que já nasceram como tal -, 1998.
passaram a ter a interferência administrativa da Câmara que, neces- 65Esse mesmo plano foi implantado
sariamente, promovia os alinhamentos e vistorias, através de peritos nos Algarves permitindo à Coroa
especialmente designados. Esses planos podiam ser perfeitamente levantar, em cinco meses, a Vila
Real de Santo Antônio, às mar-
regulares ou de regularidade aparente. Desta última forma era a gens do rio Guadiana, em 1775,
grande maioria dos traçados das vilas e cidades barrocas. substituindo a vila provisória catalã
As plantas de regularidade aparente já aparecem no século XVI de Santo Antônio de Arenilha.
CORREIA, José Eduardo Horta.
e Salvador é um exemplo antológico, de traça barroca, determina- Vila Real de Santo António levan-
da pelas diferenças de nível, contornos de níveis de elevação, tada em cinco meses pelo Mar-
assimetria de ruas e travessas etc. O Projeto Pombalino, invariavel- quês de Pombal. In: SANTOS,
Maria Helena Carvalho dos
mente, adotou o plano ortogonal, obedecendo a centralidade da (Coord.). Pombal revisitado. Lis-
praça civil ou religiosa, caracterizado pela racionalidade, regulari- boa: Estampa, 1984, p. 79.
81
dade, simetria, economia, clareza e simplicidade, de figuras geométricas perfeitas e instalado, de
preferência, em lugares planos, junto a rios ou beira do mar. Baseava-se no conhecimento
prático, experimentado65.
A regularidade, mesmo baseada num traçado empírico, foi adotada em toda a rede urbana
que então se estabelecia, especialmente nos dois últimos tipos66. Mesmo empírico, esse traçado
alicerçava-se numa experiência anterior, pelo menos ótica, das autoridades que fizeram os “ris-
cos” dos núcleos que fundaram. Essa experiência anterior era lusa, com traçado regular renascentista
“ponto de partida para o estudo da gênese dos traçados das cidades da América portuguesa e
espanhola”, segundo Paulo Santos67, baseada em Vitrúvio, Alberti, Sérlio e Catâneo ou, ainda, nos
espanhóis André Garcia de Céspedes e frei Lorenzo de San Nicolás. Essas soluções, adotadas
também na baixa de Lisboa, como indicou Nestor Goulart, “não teriam caráter tão circunstancial,
mas seriam fruto de uma consciência urbanística, comum, dos princípios construtivos portugue-
ses dessa época, que se vinham formando nas décadas anteriores” 68. Isso não está longe do
pensamento de Renata Araújo para quem “no conjunto da variedade formal do urbanismo por-
66
tuguês da expansão encontra-se a unidade que lhe advém da ‘escola’
É interessante ver, por exemplo,
que o Quilombo Buraco do Tatu, que o criou, desenvolvida pelos engenheiros militares portugueses,
de 1764, nos arredores de Salva- responsáveis por um método que, cremos, une o pragmatismo à
dor, seguia as mesmas normas. segurança teórica”... e identifica o conhecimento urbano como fru-
67
SANTOS, Paulo. Formação de ci- to de um saber acumulado “identificando o urbanismo com o pro-
dades no Brasil colonial. In: V Co-
lóquio Internacional de Estudos
cesso civilizador”69. E isso se nota nas palavras do Morgado de
Luso-Brasileiros. Coimbra, 1968, Mateus, D. Luís Antônio Botelho Mourão de Souza, Governador e
p. 25. Capitão-General da capitania de São Paulo, no período, sabia que
68
O autor aponta o parentesco des- “uma das coisas que os paises mais adiantados costumam cuidar
se conjunto lisboeta com a Bahia, atualmente é da simetria e harmonia das edificações que estão sur-
Belém, São Luis e Alcântara. Ne-
nhuma delas é obra do acaso. gindo em cidades grandes e pequenas, de modo que, da sua disposi-
REIS FILHO, Nestor Goulart. No- ção resulte não só o conforto publico mas também o prazer, com os
tas sobre o urbanismo barroco no quais as aglomerações se tornam mais atraentes e apropriadas, sa-
Brasil. In: Cadernos de Pesquisa
do LAP, São Paulo, nº 3, p. 17, bendo-se da boa ordem com que essas edificações são dispostas, da
nov.-dez. 1994. policia e cultura de seus habitantes”70.
69
ARAÚJO, Renata Malcher. As ci- É classificado como um traçado moderno das cidades, necessi-
dades da Amazônia no século XVIII; dade ideológica e prática do iluminismo, como utilizaria Manuel da
Belém, Macapá e Mazagão. Por- Maia, em Lisboa, na reconstrução pós-terremoto, os engenheiros
to: FAUP, 1998. p. 37.
Francisco Xavier do Rego, Francisco Pinheiro da Cunha, no Porto,
70
PORTARIA que levou o Dor Juiz de Luís Serrão Pimentel, Manuel de Azevedo Fortes, José de Figueiredo
Fora quando foi para Santos, Biblio-
teca Nacional, Lista 1, São Paulo, Seixas, este último com seu “Tratado da Ruação para emenda das
15 set. 1766, p. 67-68v. ruas das cidades, vilas e lugares deste Reino”..., segundo Rafael
71
Manuscrito de 150 fls. da Bibliote- Moreira, datado da década de 1760, primeiro tratado do urbanismo
ca Nacional de Lisboa. Vide pombalino conhecido71.
MOREIRA, Rafael de Faria Também não se pode ignorar toda a tratadística e manuais es-
Domingues. Uma utopia urbanísti-
ca pombalina: o “Tratado de trangeiros, cujos escritos circulavam em Portugal, e da Academia
Ruação” de José de Figueiredo Portuguesa de Artes, de Roma, ativa até 1760. E basta ver os com-
Seixas. In: In: SANTOS, Maria He- ponentes da expedição da América portuguesa, encarregada das de-
lena Carvalho dos (Coord.). Pom-
bal revisitado. Lisboa: Estampa, marcações, dos quais dez eram portugueses e 24 estrangeiros, al-
1984, p.131-144. guns dos quais intervieram na urbanização da Amazônia, como
82
Sambucetti, Sturm, Landi, Galluzzi, etc. Estes traziam toda uma carga de conhecimentos e que
mostrava as linhas de pensamento português mais moderno.
Vários estudiosos se dedicaram ao estudo desses “riscos”. Paulo Santos, ao se referir ao
desenho de Macapá, qualificou de traçado “monótono, estéril”, datando-o como sendo dos finais
do setecentos, sob influência da engenharia militar, que dava preferência pelos traçados ortogonais
nos projetos das povoações, citando, inclusive Vila Viçosa da Bahia, 72
SANTOS, P. Ob. cit., p. 64, ilustra-
de forma incorreta, como um dos exemplos. Baseou-se no levanta- ção VIII-C.
mento feito pelo 2º Tenente do Imperial Corpo de Engenheiros, em 73
FERRÃO, Bernardo José. Projecto e
1849, membro da Comissão de Exploração do Mucuri e transformação urbana do Porto na
Jequitinhonha, ressaltando, que “os traçados ortogonais chegam ao época dos Almadas, 1758-1813;
ponto de invadir as aldeias de Índios”, vendo-os como de influência uma contribuição para o estudo da
cidade pombalina, 3ed. Porto: FAUP,
hispânica ou, pelo menos, reforçados por essa influência, como 1997. p. 38-69.
consequência dos contatos entre as duas Coroas por ocasião do Tra- 74DELSON, Roberta Marx. Novas vi-
tado de Madrid72. las para o Brasil-Colônia: planeja-
mento espacial e social no século
Muitos buscaram essas origens em épocas mais recuadas. Fer- XVIII. Tradução de Fernando de Vas-
rão fez “uma perspectiva sobre a tradição do desenho urbano concelos Pinto. Brasília: Alva-Ciord,
regular português”73, remontando o período de romanização da 1997. 123p, A tradução de seu livro
Península Ibérica, os primeiros vestígios de geometrização dos não
foi feita com muito cuidado, pre-
judicando, por vezes, os seus con-
aglomerados, passando pela Idade Média, identificando no sécu- ceitos. Por exemplo, confunde di-
lo XV as construções em que esteve subjacente a utilização do reito com reto ou, mais precisa-
“vai endireitando” com reto.
modelo urbano geometrizado. Enfatizou a época do quinhentos mente Loc. cit., p. 29.
como um dos períodos mais significativos da urbanística portu- 75Chama todo o período de urbaniza-
guesa em que se vulgarizou a utilização de modelos urbanos re- ção de que trata como processo de
gulares, já de desenho renascentista. Quase todos os modelos europeização. DELSON, R. M. Ob.
cit., p. 49. Liberal de Castro deno-
apresentados pelo autor constituem o que aqui se chamou planos minou projeto de lusitinização. CAS-
com regularidade aparente, diferentes dos apontados como TRO, José Liberal de. Urbanização
ortogonais, com ruas e travessas absolutamente retas e paralelas pombalina no Ceará: a paisagem da
vila de Monte-mor o Novo d’América.
e com ângulos rigorosamente retos, em retícula, acrescentando a In: SALGUEIRO, Heliana Angotti
regularidade arquitetônica. (Coord.). Paisagem e a Arte; a In-
Roberta Marx Delson74, desde 1979, tratou de estudar o século venção da natureza, a Evolução do
XVIII, tanto para desfazer o mito de falta de planejamento urbano Olhar. São Paulo:CBHA/CNPq/
FAPESP, 2000. Nota 1, p. 310, 311.
no Brasil, quanto para provar a aplicação precoce do modelo retilíneo 76Vide KNOX, Miridan Brito. O Piauí
como programa. Como a maioria dos autores tratou o Brasil como na primeira metade do século XIX.
se não participasse do mundo português, parte integrante do Rei- Rio de Janeiro: Projeto Petrônio
no75. Buscou a origem do plano ortogonal já em 171676, quando a 77 Portella, 1992. p. 16.
Essas são características dos pla-
povoação de Mocha teria sido elevada a vila, afirmando que, a par- nos renascentistas.
tir dessa data, as novas comunidades construídas no sertão estavam 78DELSON, R. M. Ob. cit., p. 4, 14.
subordinadas a um “protótipo de planejamento de vila”, segundo Confunde, com freqüência vila e ci-
um “plano diretor barroco, com ênfase em ruas retilíneas, praças 79 dade, paróquia e vila.
Incluindo a designação de “plano
bem delineadas (amiúde orladas por fileiras de arvores plantadas diretor ” ai empregado
simetricamente) e numa uniformidade de elementos arquitetônicos”77. extemporaneamente. Refere-se
Segundo a autora, este era o modelo adaptável a qualquer região também a “cópias da legislação
de planejamento urbano”, em 1736,
geográfica e que podia empregar a mão de obra indígena, não espe- e “código de planejamento urba-
cializada, que teria no padrão de casa um modelo multiplicável. Ten- no”. IDEM, p. 31, 32, 36.
83
tou mostrar que todos os núcleos – incluindo povoados, aldeias e arraiais – foram precedidos de
“planos diretores”78.
O planejamento era muito mais escrito que desenhado e as normas eram gerais para serem
adaptadas a cada situação. A interferência do engenheiro militar no planejamento dessas vilas não
mudou sua estrutura, apenas a tornou mais sofisticada, como se observou em Vila Bela da
Santíssima Trindade, plano de autoria do engenheiro Francisco Mota, ou Nova Mazagão, no
Pará, de autoria do engenheiro militar Domenico Sambocetti.
A ausência do conceito de plano preestabelecido desfaz as afirmativas de alguns autores79.
Foram poucas as vilas e cidades do Brasil cujos “riscos e traças” vieram de Portugal com antece-
dência, como a de Salvador, dados a Tomé de Souza junto com seu Regimento. Poucos núcleos
tiveram engenheiros militares para planejá-los in loco e com antecipação. Além disso os arraiais,
lugares, povoações, aldeias não tiveram planejamento algum80. Apenas algumas aldeias pombalinas
tiveram essa atenção. Só as vilas e cidades mereciam a intervenção oficial no delineamento de sua
forma. Aquelas podiam ter intervenção quando eram elevados à condição dessas últimas. Essa é
uma discussão que há muito se estabeleceu entre os estudiosos brasileiros e brasilianistas, histori-
adores, geógrafos, arquitetos, sociólogos, sem que se tivesse chegado a conclusões definitivas. De
fato, existiram inúmeros núcleos nascidos – e que cresceram – sem planejamento e de forma
desordenada. A diferença estava justamente naquela existente entre uma povoação, arraial, aldeia
e uma vila ou cidade81, diferenciados por estatutos jurídicos.
A boa perspectiva e a regularidade do traçado, segundo essa nova concepção urbana, já
estavam contidos na Carta Régia, de 3 de março de 1755. Esse documento criava a capitania de
80
Estes núcleos, em grande núme-
São José do Rio Negro, instalada como um terceiro governo no
ro, é que deram a conotação pe- Norte do Brasil, e mandava erigir em vila a aldeia de São Pedro,
jorativa ao Brasil, divulgada des- administrada pelos carmelitas e mandava...”delinear as casas dos
de 1936 por Sérgio Buarque de moradores por linha recta com tanto que fiquem largas e direitas as
Holanda, nas suas Raízes do Bra-
sil, que, ao compará-lo com a ruas”.... Já estabelecia, também a uniformidade arquitetônica ao
América espanhola dizia que nas- mandar que as...”casas sejão sempre fabricadas na mesma figura
ceu e cresceu sem planejamen- uniforme pela parte exterior ainda que não valera na parte interior
to. HOLANDA, Sérgio Buarque de.
Raízes do Brasil, 3ed. Rio de Ja- as faça cada hum como lhe parecer”...82. Era a origem de Barcelos,
neiro: José Olímpio, 1956. reurbanizada em 1762, segundo Delson, por Felipe Sturm, membro
81
Muitos autores confundem esses da Comissão de Demarcação83, mas, só em 1772, o Governador e
tipos de núcleos urbanos com fre- Capitão-General, Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres,
guesia ou paróquia que são divi- incumbia o engenheiro Francisco da Mota de dar novas formas
sões administrativas eclesiásti-
cas. urbanísticas, aplicando as normas estabelecidas anteriormente. Com
82
Cópia da Carta Régia de três de
as mesmas palavras vê-se as instruções dadas ao Ouvidor, Vitorino
março demil esete centos e Soares Barbosa, para instalar, em 1764, a Vila Real de Monte-mor o
cincoenta esinco. In: DOCUMEN- Novo da América, na Capitania do Ceará, atendendo o determina-
TOS AVULSOS DA CAPITANIA DA
do: “fazendo delinear as casas dos moradores por linha reta, de sorte
BAHIA, 1771-1774, AHU, cx. 46,
doc. 8578, microfilme, rolo 43, que fiquem largas e direitas as ruas”...”com a obrigação de que as
APEB. ditas casas sejam sempre fabricadas na mesma figura uniforme, pela
83
DELSON, R. M. Ob. Cit., p. 51- parte exterior, ainda que na outra parte interior faça cada uma con-
52. forme lhe parece, para que desta sorte se conserve na mesma for-
84
Cit. por CASTRO, J. L. de. Ob. mosura nas vilas e nas ruas delas a mesma largura que se lhes assinar
cit., p. 310. nas fundações”84.
84
A Carta Régia de 3 de março de 1755 precedeu aos planos de reforma de Lisboa ou da Real
Vila de Santo Antônio, nos Algarves, e suas linhas mestras foram incluídas no Diretório dos índios
do Grão-Pará e Maranhão, e instruções decorrentes, tanto no que dizia respeito ao desenho da
vila, quanto das construções, e os planos, pré ou pós-estabelecidos, seguiam essas diretrizes. Às
Instruções, ordenando criar as vilas, se anexaram cópias da Carta Régia citada e se reproduziram
os itens que diziam respeito à forma do traçado urbano e das casas. A diferença entre os vários
traçados, que são poucas, foi ditada pela situação geográfica, número e condições econômicas de
seus povoadores. E o Diretório, somado às instruções dadas às diversas autoridades, encarregadas
de criar as vilas, são exemplos típicos de planejamento escrito.
Verifica-se, pois, que havia, como observou Nestor Goulart, uma consciência comum que foi
colocada em efetiva prática no reinado de D. José I. Mas o plano ortogonal, com as mesmas
características já era preconizado desde a década de 1740, mas aplicado sistematicamente no
período pombalino.
Se se recuar no tempo, acham-se as mesmas instruções dadas por D. João V a D. Luis
Mascarenhas, Governador e Capitão General da Capitania de São Paulo, em 1746, para as obras
que foram executadas em 1752, na criação de Vila Bela da Santíssima Trindade, Mato Grosso.
Essas instruções mandavam “delinear por linhas retas, a área para as cazas se edificarem deyxando
ruas largas e direytas” e determinava, também, que os moradores poderiam ter os terrenos, para
casas e quintais, que desejassem “nos lugares delineados e as ditas cazas em todo o tempo serão
feytas todas no mesmo perfil no exterior, ainda que no interior as fará cada morada a sua vonta-
de, de sorte que se conserve a mesmo formosura da terra e a mesma largura das ruas”85. As
instruções já continham os privilégios e isenções que seriam dados aos moradores das vilas criadas
no período de Pombal. Outro exemplo, do mesmo período, a adotar esse padrão – retilinearidade
e igualdade externa da arquitetura -, é encontrado em Aracati, no Ceará, em ordem emitida em
1747. As instruções dirigidas ao Ouvidor, José de Faria, recomendavam que se algum morador
do antigo povoado fosse erigir nova casa, devia reconstruí-la de “forma a dar-lhe um contorno e
aparência equivalente aos das novas casas”. A mesma recomendação foi dada, nominando inclusive
Aracati, a Gomes Freire Andrade para a criação da vila do Rio Grande, no Rio Grande do Sul. A
segunda instalação de Mariana em Minas Gerais, em 174686, tinha iguais recomendações.
Parte dos colonos87 açorianos, destinados a Santa Catarina, foi
85
mandada para povoar o Rio Grande do Sul, do Rio de São Francis- 86SANTOS, P. Ob. cit., p. 58-59.
Cit. por DELSON, R. M. Ob. cit. p.
co do Sul até Cerro de São Miguel. Mandava-se que se fundassem 24, 37.
lugares, com cerca de 60 casais cada um, com um quarto de légua 87Aparecem com essa designação na
em quadro. Devia-se dar, para cada lugar, meia légua em quadro documentação.
para assento e logradouros públicos. À praça destinavam-se 500 pal- 88Ordem de 1747, registrada em
mos de fundo e, em um de seus lados, ficaria a Igreja. A rua, ou ruas, 1750. REGISTO DAS ORDENS DE
SUA MAGESTADE para a situação
se demarcariam ao cordel com largura ao menos de quarenta pal- dos casais neste estabelecimento
mos e “por elas e nos lados se porão as moradas, em boa ordem (Santa Catarina). In: Anais do Ar-
deixando, entre umas e outras e por trás, lugar suficiente e repartido quivo Histórico do Rio Grande. Por-
to Alegre: Arquivo do Rio Grande
para quintais, atendendo, assim, ao cômodo presente, como a pode- do Sul/Instituto Estadual do Livro,
rem ampliar-se as casas para o futuro”88. Este modelo, com casa 1977. p. 269.
89
rodeada por quintal, foi raro no período. DOCUMENTOS AVULSOS DA CA-
PITANIA DA BAHIA, 1768-1769,
Em todos os casos depara-se com um planejamento moderno. E AHU, cx. 43, doc. 7972, microfilme,
o moderno, como se viu, baseava-se na regularidade do traçado que, rolo 40, APEB.
85
como aconteceu com as casas, foi o padrão estabelecido para a
90
Em 1770 Machado Monteiro notifi- implantação de novas vilas, mais fácil de ser imposto e de se ade-
cava: “na nova Villa de Bello Monte quar às localidades tão diversas em que foram eretas. A irregularida-
de que no anno de 1767 remetti tão
bem á Secretaria do Estado a planta de dos riscos se opunha, então, à própria política urbanizadora que
que lhe formei” (DOCUMENTOS trazia embutida no seu âmago o conceito de ordem.
AVULSOS DA CAPITANIA DA BAHIA, Machado Monteiro afirmou categoricamente “a respeito da
1769-1770, cx. 44, doc. 8215,
microfilme, rolo 41, APEB; ANNAES, fundação de villas”:...”erigi huma na Aldeia chamada do
v. 32, p. 300);... “com o nome de Campinho, a que dei o nome de Villa Viçosa e de que remetto
Villa Viçosa e orago de N. S. da Con- planta, em tudo conforme o seu original, ainda que, por falta de
ceição e de que remetti a planta dos
arruamentos que lhe risquei e de- architecto, delineado pela minha rustica ideia e decifrada pela
marquei”, 1770 (IDEM, p. 298-299). minha penna”. Em fevereiro de 1769 dava conta ao Rei dos
“Já dei conta a V.M. daquellas que serviços feitos e notificava que remetia “planta, em tudo confor-
de novo tinha erecto, remettendo os
borrões das plantas dos seus me o seu original, ainda q[ue] por falta de Arquiteto delineado
arruamentos”, 1771 (IDEM, p. 255). pella minha Rústica idéia e decifrada pella minha rústica pena”89.
“Duas villas que de novo erigi”... “e O mesmo plano, com ligeiras modificações, foi válido para as
a que dei os nomes de Villa Viçoza e
de Portalegre”...”já remetti á Secre- demais vilas implantadas na Bahia90.
taria o borrão da planta, assim como Portanto, no caso estudado da Bahia, o ouvidor rascunhou uma
já fiz dos de Villa Viçosa. No prezente planta na qual se baseou para fazer as medições, elevação e aclama-
anno trabalho por erigir outra na barra
do Rio de Itanham (Alcobaça), aon- ção das vilas, com implantação do pelourinho, assento nos livros e
de achei 20 e tantos cazaes, que já determinação dos principais edifícios. As plantas, enviadas ao Rei,
excedem de 90 e della tão bem farei foram feitas posteriormente a todos os atos e seguiram, rigorosa-
e remetterei planta”. “Remetto á Se-
cretaria de estado competente os mente, o determinado pela Carta Régia de 3 de março de 1755 e do
autos da erecção da de Alcobaça e a Diretório dado aos índios do Grão-Pará e Maranhão.
V. Ex. o tosco, se bem coherente As casas, como várias vezes foram referidas, eram erigidas de
mappa do seu terrapleno e
arruamentos, que a minha grosseira acordo com modelos preestabelecidos, sem que os edifícios estabe-
curiosidade não soube melhor lecessem diferenciação social91. A imposição dos modelos devia-se
debuchar”, 1774. Vide Catálogo de ao fato de ser, a maioria dos seus ocupantes índios que, até então,
Eduardo de Castro e Almeida, AHU,
Bahia, doc. 8578, 8.628. viviam em moradias coletivas, de estrutura muito diversa das unida-
91
Isso não quer dizer que não hou- des que se impunham.
vessem sinais de distinção entre Têm-se duas descrições de casas que, no geral, variam muito
os moradores. Na vila de Santarém,
Comarca de Ilhéus, colocavam uma
pouco uma em relação a outra. A primeira foi dada aos índios de
cruz à porta da casa dos Oficiais. toda a Comarca de Porto Seguro, através das Instruções, baseadas
Quanto menor a cruz, menor a pa- no Diretório, que dispunha que todas as casas deviam ser cobertas
tente. A maior era da residência da de telha, feitas por oficiais de carpinteiro e “por não haver pedra, de
Capitão-mór. BARROS, F. B. de. Ob.
cit., p. 338. madeira do melhor uzo do paiz”92. Estabelecia as medidas externas
92
ANNAES, v. 32, p. 376. e internas, determinando como deviam ser as casas. Além da unifor-
93
REIS, Nestor Goulart. Notas sobre midade arquitetônica, pelo menos externa, os documentos citados
o urbanismo no Brasil; primeira par- estabeleciam uma coordenação dimensional, conforme notou Nestor
te: período colonial. In: Cadernos de
Pesquisa do LAP, São Paulo, nº 8, Goulart, incluindo tamanho dos lotes, número e dimensões de jane-
p. 52, jul.-ago. 1995. las e portas, altura dos edifícios e dos pavimentos, por fora e por
94
ANNAES, v. 32, p. 212-213. dentro, relações com as construções vizinhas etc93.
95
DOCUMENTOS AVULSOS DA CA- O outro modelo padrão está inserido no documento que tratava
PITANIA DA BAHIA, 1768-1769,
AHU, cx. 42, doc. 7845, microfilme, da criação da citada Vila Viçosa, datada de 1769. Percebe-se que os
rolo 40, APEB. Ouvidores trataram de destruir o módulo de composição formado
86
por casas coletivas, ainda encontradas na maioria das aldeias jesuíticas, e edificar casas para
abrigar uma única família94.
Nesse período, o Marquês de Lavradio, Governador e Capitão-General, notificava a metró-
pole de que na Bahia só havia um “oficial Enginheyro que não podia fazer todas as tarefas ao
mesmo tempo: ler na aula militar, examinar as fortificações e fazer os mais serviços”95. Isso
explica porque os Ouvidores Couceiro de Abreu e Machado Monteiro, casos raros entre as
autoridades de sua posição na época, foram os autores dos riscos das plantas e promoveram o
povoamento das vilas em torno de Porto Seguro, cabeça de sua Comarca.
Nem todos os Ouvidores tiveram a iniciativa de Machado Monteiro, mas as recomendações
da Carta, de 3 de março de 1755, estavam no programa de todos os administradores do período.
Tem-se o exemplo de Tomé Couceiro de Abreu, que criou as vilas de Belmonte e Prado e se
refere aos planos que forneceu. Desta última foi Machado Monteiro, seu sucessor, que fez a
planta e promoveu o povoamento. O Ouvidor Feliciano Ramos Nobre Mourão, ao contrário, em
correição de 1764, só visitou as povoações de Monforte, Soure, Salvaterra, Colares, Vila Nova
Del Rey, Sintra, Monçarás, Ourém e Bragança, na região amazônica, entre janeiro e março, dando
apenas conta de casos relativos à justiça e, em especial, sobre a situação de cada vila e seus
habitantes.
Assim, dava notícias que as 53 moradas de casas de Monçarás estavam cobertas de palha e
não se achavam “em boa ordem por estarem disformes as ruas”. Em Salvaterra acusava 42
moradas de casas que formavam uma praça “de que se compõem a dita villa sem mais ruas”,
dizendo que “preciza mais que se fação cazas de novo dos moradores com seus quintaes cercados
para plantarem arvores de frutas, e se utilizarem dellas as famílias” e reclamava ser conveniente
“que hum engenheyro delineace as ruas e formalidade das cazas para ser perfeito o prospecto
publico e formuzura da villa”. Mesmo Soure, considerada das melhores e bem situadas, dizia que
tinha os mesmos problemas que as demais. Sobre todas elas deu notícias que os índios eram
pobres e precisavam trabalhar para si, a fim de poder construir suas casas e apontava a falta de
olarias em boa parte delas96.
É preciso lembrar que todas as povoações, mesmo as menores, estavam, desde 1756, contri-
buindo com os três milhões de cruzados, o chamado Donativo Real, empregado na reconstrução
de Lisboa97, adiando as providências para construção de seus próprios núcleos.
Isso e as condições locais modificaram planos e plantas. “Mas a respeito da factura das
cazas”, dizia o Ouvidor Monteiro, em 1771, “ainda a metade ou mais dos seus moradores
vivem em cabanas, porque nem todos poderão pela sua pobreza entrar logo a trabalhar nellas
e as que se tem feito e vão fazendo são das melhores do paiz pelo
96
uniforme da planta e risco que lhes dei”, referindo-se a Vila Viço- CASTRO, Aluísio Fonseca de. Au-
tos de devassa. In: Anais do Ar-
sa98. Antes de construir suas casas, da mesma forma como notifi- quivo Público do Pará, Belém, v.
cou o Ouvidor Nobre Mourão, em relação à Amazônia, os mora- 3, nº 11, p. 9-211, 1997. Os do-
dores precisavam cuidar da lavoura para o alimento de suas fa- cumentos publicados nesses
Anais constituem Autos de
mílias, ficando para depois, com os lucros dessa lavoura, a fatura Correição e não de Devassa.
das casas. 97
DOCUMENTOS AVULSOS DA CA-
As descrições das vilas, feitas em 1803, mostram que boa parte PITANIA DA BAHIA, 1768-1769,
das casas ainda era de palha e muitos terrenos estavam devolutos. Mas AHU, cx. 42, doc. 777-7813,
os traçados permaneciam. E é interessante notar que, mesmo as aldei- Microfilme, rolo 40, APEB.
as e lugares que foram instalados depois de 1750, embora não tives- 98ANNAES, v. 32, p. 256.
87
sem o estatuto de vila, seguiam o mesmo traçado. Veja-se a aldeia de São Miguel (1765) e o lugar de
Balsemão (1768), na Amazônia.
Quase no fim do período estudado, os Ouvidores em ato de correição, naturalistas ou
pessoas especialmente indicadas, davam notícias sobre a situação de cada lugar. Esses relató-
rios permitem avaliar o programa pombalino, como aconteceu em Porto Seguro, com o
Ouvidor José Xavier Machado Monteiro, entre os anos de 1772 e 1776. Depois de muitos
anos de permanência na região, apesar da idade avançada (63 anos), como dizia, Machado
Monteiro continuava seu trabalho, mas queixando-se sempre da falta de bons oficiais mecâ-
nicos e do pouco avanço na cobertura de telha das casas das diversas vilas por não contar
com olarias e por causa da pobreza dos moradores. Apesar disso, aumentou e melhorou as
vilas com construções novas e reedificações, além de executar pontes e pontões, caminhos e
fontes, barcas para os grandes rios e canoas, e com isso notificava que “ja por terra se vadeia
toda a Capitania, quando anteriormente só se podia fazer por mar” 99.
Esse projeto fazia parte dos primeiros passos que caracterizavam o liberalismo oitocentista e
procurava fortificar o governo das câmaras e enfraquecer o poder eclesiástico, criando freguesias,
estabelecendo côngruas para os vigários, abrindo as companhias de comércio e abolindo a servi-
dão dos índios. No fim da década de 70 o projeto começava a encerrar-se devido, sobretudo, às
dificuldades financeiras e políticas, mas muitas vilas tinham sido criadas e sobreviveram. Já se
tinha implantado não só o projeto de repovoamento, mas também o de reurbanização que consa-
grou o plano ortogonal como modelo.
Se, de um lado, esse plano teve influências de urbanistas europeus, de outro, foi fruto
da assimilação das novas ideologias relativas às relações humanas, defendidas pelos france-
ses e absorvidas pelo iluminismo luso-espanhol. E, ainda, é resultado de um maior conhe-
cimento do direito dos indígenas, com base no direito natural dessa raça, trabalhado por
Juan Solórzano Pereyra, Ouvidor das Audiências do Peru e legislador do século XVII, que
atingiu a percepção lusa no século seguinte. Isso mostra que os portugueses não desconhe-
ciam a política indigenista espanhola e, com isso, também, não desconheciam seu urbanis-
mo na América.
A urbanização, com base em planos ortogonais, tão comuns na América de domínio espanhol,
já era encontrada no Brasil a partir de D. João V, mas com intensificação de uso, como regra
preestabelecida, na segunda metade do século XVIII. O motivo principal estava fundado especi-
almente na nova política portuguesa de voltar seus olhos para o Brasil, até então ocupados na
Índia, e consequente promoção de seu repovoamento, reurbanização e defesa. Não só Mendonça
Furtado, como Alexandre de Gusmão, um ao Norte e outro ao Sul, viam no povoamento uma das
grandes armas de defesa do território. Essa ideia estava no imaginá-
99
IDEM, p. 325, 372. rio de todos os governantes escolhidos por Pombal nesse período.
100
GUTIERREZ, Ramón. Arquitectura Portugal e Espanha100 adotaram, no século XVIII, o conceito
y urbanismo em Iberoamerica, 2ed. original de defender povoando (ut possedetis), estabelecendo alterna-
Espanha: Cátedra, 1992. p. 221.
101
tivas para o desenvolvimento socioeconômico americano. Pelo lado
Santa Tecla, 1752, no Sul;
Macapá, fortaleza de São José,
espanhol também se promoveu um plano de ocupação do solo,
1764; Nossa Senhora dos Praze- tentando avançar as fronteiras com povoações de crioulos ou es-
res do Rio Iguatemi, 1774, forte panhóis, especialmente galegos e canários. E a estrutura urbana
Coimbra, Rio Paraguai, 1775, forte
do Príncipe da Beira, do rio dos inúmeros povoados teve a praça quadrada como núcleo cen-
Guaporé, 1776. tral e as ruas regulares com lotes retangulares.
88
De maneira geral desfez-se a relação cidade-fortaleza, em especial em todo o circuito das
aldeias transformadas em vilas. Essa relação permaneceu nas fronteiras com as conquistas espa-
nholas ou lugares estratégicos na região amazônica101.
No caso da Bahia, por esse projeto, grande parte das vilas fundadas no litoral permitia a
comunicação entre essa capitania e o Rio de Janeiro, além de servir de defesa contra os índios
bravios - aimorés, tamoios e pataxós -, que atacavam constantemente as povoações, partidos do
continente para o mar102. Ao mesmo tempo serviam de defesa do território contra os invasores
estrangeiros, bem como eram postos avançados para as entradas do sertão, em busca de índios
para povoamento das fundações, de salitre e, em ultimo caso, do ouro.
De qualquer forma, mostra-se que o que foi dito por Sergio Buarque de Holanda, e
repetido por outros autores103, não correspondia à verdade. Descobrir a genealogia do dese-
nho dessas vilas demanda tempo, mas, a partir delas pode-se perfeitamente descobrir analo-
gias, partidas dos mesmos princípios que tinham como base a liberdade dos nativos, funda-
mentados nos escritos de Solórzano Pereyra e filósofos franceses, especialmente J. J. Rousseau,
que resultou na expulsão dos jesuítas, e outros religiosos, e a transformação das aldeias
missioneiras em vilas.
Não se pode conhecer por completo as razões da criação desses núcleos urbanos, localiza-
ção, tipologia, sem conhecer o seu ideário e tipo de habitantes, pois podem explicar, inclusive, o
seu desenho. Solórzano mostrava a mentalidade e ideologia do seu tempo e que era, também, a
dos portugueses. Era indiscutível, para Solórzano, e para seus contemporâneos, a validade das
Sagradas Escrituras, projetada no mundo das Índias Ocidentais, bem como os textos e livros da
cultura jurídica. Era obra de Deus e prolongamento de um Reino cristão, no caso Castela, cujos
fundamentos políticos e jurídicos se estendiam e aplicavam à realidade descoberta da América.
Com esse conceito, dual e permanente, constituído por uma mesma teologia e uma mesma
cultura jurídica, se justificou o descobrimento, a conquista para Castela e seus Reis, de umas
gentes e terras até então desconhecidas, e se assentaram as bases
para o governo de uma “república dos índios”, diferenciada, mas 102O plano era criar uma vila a cada
seis léguas, pelo litoral, para per-
não independente dos cristãos que ali viviam104. Solórzano, a partir mitir o trânsito entre as capitanias.
de sua experiência vivida, propunha as adaptações cabíveis do di- 103Por exemplo, SMITH, Robert. The
reito espanhol, do romano e do comum, ou consuetudinário, aos seventeenth and eighteenth-
índios, tendo em vista as inevitáveis desigualdades entre o velho e century architecture of Brazil. In:
o novo, utilizando o causuísmo como método ou técnica. Actas do Colóquio Internacional de
estudos Luso-Brasileiros .
Os encarregados da criação das vilas no Brasil estavam em Nashville: Vanderbit University
contato direto com a ideologia e as leis relativas a América espa- Press, 1953. p. 109-110; IDEM.
nhola. Ocorrendo problemas quanto à posse da terra, ou direito de Arquitetura colonial. Salvador: Pro-
gresso, 1955, p. 11; IDEM. Colo-
prescrição, dos índios da Vila de Abrantes, os membros do Tribu- nial towns of spanish and
nal de Ultramar, reunidos na Bahia, invocaram os “Doutores” e as portuguese América. In: Journal
“encomiendas da América de Hespanha”, reputadas mais qualifi- of the Society of Architectural
Historians, v. 14, nº 4, p. 1-12,
cadas que as sesmarias da América portuguesa, por envolverem 1956. Este autor considera a “de-
jurisdição territorial. Ou, ainda, diziam que “todos os contractos sordem” dentro de modelos me-
feitos sem intervensão do ouvidor geral dos índios” deviam ser dievais.
“nullos como referem os Authores que se pratica na América de 104 SOLÓRZANO PEREIRA, J. Ob.
Hespanha”105. Percebe-se, pois, que a base do ideário luso, nesse Cit., t. 1, p. XXXVI, 164.
projeto, era comum ao do mundo espanhol. 105
IDEM, p. XLI.
89
Todo o processo português baseava-se numa ideologia que o discurso do período deixa bas-
tante claro. Todas as referências são encontradas em Solórzano Pereyra, e que explica uma ligação
bastante aproximada com a América espanhola, que vai além da adoção de formas de desenho
urbano. Provavelmente a edição da “Política Indiana”, de Solórzano, que chegou aos portugueses,
foi a de 1736, acrescida de anotações de Ramirez de Valenzuela. O original é de 1629.
Faziam parte do seu ideário a brandura, no trato com os indígenas106. Criticava, sem piedade,
os excessos dos religiosos, a cobiça insaciável dos prelados, curas e religiosos regulares107. Tratou
da obrigação ao trabalho e abandono da ociosidade108, obrigação do uso da língua espanhola e
casamento com brancos109; educação e ensino dos filhos (dos caciques)110; liberdade e privilégios
dos índios111 e tratou dos mestiços112. Usou as definições de cidade de Aristóteles e Cícero e, com
base no Concílio Limense II, estabeleceu as diferenças entre aldeia, metrópole, município, “pueblos”,
falando na redução dos índios a povoados copiosos e bem consertados, destacando as reduções,
povoações ou agregações, como mandava Sua Majestade Católica. Grande parte desse ideário
encontra-se no discurso do Diretório, dado aos índios do Grão-Pará e Maranhão e passado,
através de instruções, ao resto do Brasil por Sua Majestade Fidelíssima.
As grandes dimensões dos lotes, das praças, das zonas de lavoura tentaram reproduzir um
espaço mais largo para os indígenas, mas não foram suficientes. Os índios só obedeciam os limites
naturais. A maioria foi atrás da liberdade. No ver de Spix e Martius, viajantes do oitocentos, a lei
que assegurava a liberdade dos índios, porém sob a guarda dos portugueses, foi desastrosa, pois
aqueles fugiam, sempre em maior número, para o interior das matas113. Mas uma das principais
causas explica-se devido às visões de mundo e culturas que diferiam radicalmente. Além disso,
deve-se contar com o terremoto de Lisboa, de 1755, que obrigou o Brasil remeter grandes quan-
tias para sua reconstrução, inclusive os pobres índios, segundo testemunho de Machado Monteiro,
que argumentava que eles não podiam fazer suas casas nas novas vilas, pois tinham que
impreterivelmente contribuir com a referida construção. Além disso, faltava mão de obra qualifi-
cada, sem contar que a maioria dos índios, por vontade própria ou
106
IDEM, t. I, livro II, cap. XXV, p.
incentivados por outros, fugia das vilas. Massarandupió e a Ilha de
528-543.
107
Quiep foram refúgio dos índios de Nova Abrantes, quanto de todas
IDEM, t. I, livro II, cap. XXVI, p.
544-557.
as aldeias que estavam em Porto Seguro e Ilhéus.
108
Em função desse e de vários outros fatores, alguns dos quais foram
IDEM, t. I, livro II. Cap. XXVII, p.
558-573. apontados, grande parte desses núcleos não se desenvolveu a contento e
109
IDEM, t. l, Livro II, cap. I, p.
foi alvo de nova política de fixação de habitantes, promovida, entre
173-187 e cap. II, p. 188-194, 1794 e 1799 quando um novo projeto de criação de vilas e povoamento
cap. XXIX, p. 594-606. teve lugar.
110
IDEM, t. l, Livro II, cap. XXX, p.
607-620.
111
IDEM, t. l, Livro II, cap. XXIV, p.
511-527.
112
SOLÓRZANO PEREIRA, J. Loc.
cit., t. 1, p. XXIV.
113
VON SPIX, J.B. e VON MARTIUS,
C.F.P. Viagem pelo brasil. Tradu-
ção Lúcia Furquim Lahmeyes. Rio
de Janeiro: Imprensa Nacional,
1938. V. 1, p. 196.
90
A ARQUITETURA E ESFERA PÚBLICA.
O PALÁCIO ANCHIETA E O SÍTIO FUNDADOR DE VITÓRIA/ES1

Clara Luiza Miranda*

1. Introdução
Neste artigo, o conceito de esfera pública tem como base a concepção empregada no livro “A
Condição Humana” de Hannah Arendt2. Tendo como ponto de partida a Atenas clássica, esfera
pública é definida em antítese a esfera privada, que é a esfera da família (da oikos casa; nomia
regras), onde ocorre a produção e a reprodução. A ação, a liberdade, situam-se na esfera pública
para os gregos: “O ser político, o viver numa ‘polis’, significava que tudo era decidido mediante
palavras e persuasão, e não através de força ou violência.”
Entre os romanos, a urbe é o território de formação cívica – cidades e cidades-Estado – e se
distingue da civitas – reunião de famílias que compartilham os mesmos deuses, a mesma organiza-
ção social e as mesmas formas de produção.
No cristianismo, o temor ao sagrado se expressa especialmente pela arquitetura, onde “uma nítida
linha divisória separa os dirigentes da Igreja dos fiéis”. Com o aumento da influência da religião, o poder
requer um ambiente apropriado para demarcar hierarquia e reverência. Somente em alguns lugares,
construídos com arte, este sentido seria perceptível. Neles, o cristão resgata o valor da pedra3.
Se aplicar a este contexto os termos ação, labor e trabalho, que determinam a condição
humana segundo Hannah Arendt termos que definem a vida ativa em oposição à vida
contemplativa4 -, a ação, que é política por excelência, se restringe ao clero e aos senhores. Porém,
se na Grécia antiga a vida contemplativa se destina aos filósofos, no cristianismo ela é destinada a
todos, embora, talvez não se sejam comparáveis suas experiências
com o “eterno”. *
Professora Doutora do Centro de
Neste contexto, não obstante os violentos contrastes entre o “mi- Artes (Dau-Ppga-Ppgau) Ufes
1
nuto popolo” e o “popolo grasso” que residem nas cidades, é ativa a Este texto faz parte da Pesquisa
Arquitetura e evolução urbana de
contribuição de todos na sua construção. As cidades acumulam e se Vitória desde 1537, financiada pela
convertem em obra (duração). “Sociedades muito opressivas foram Facitec/PMV
2
muito criadoras e muito ricas em obras”5. De acordo com Henri ARENDT, Hannhah. A Condição Hu-
mana. Rio de Janeiro: Forense,
Lefebvre, quando o produto (valor de troca) substitui a produção de 1994
obras, nas relações sociais, a exploração substitui a opressão e a ca- 3 SENNETT, Richard. Carne e Pedra.
pacidade criadora desaparece6. Rio de Janeiro: Record, 2003.
4
ARENDT, Op. Cit. Ver cap. 1. O
Como o objeto do ensaio consiste na abordagem do sítio de uma labor é processo biológico; o tra-
edificação religiosa jesuítica, deve-se sublinhar que esta ordem religi- balho é o resultado de um proces-
osa está empenhada na prática de uma Igreja supranacional. En- so cultural, sua lógica é a durabi-
lidade dos objetos. Vida
quanto o projeto colonial português no Brasil é alargar seu império e contemplativa denomina a expe-
a fé, esta possibilidade cristianizadora é permitida. Contudo, com o riência com o eterno.
5
tempo este projeto é implementado “nas folgas do sistema”. Enfim, LEFEBRVE, Henri. O Direito à Ci-
dade. São Paulo: Centauro, 2001,
em duzentos anos, sucumbe devido à exploração mais sistemática da pp. 12-13.
colônia por parte dos portugueses. 6
Id. Ibid. p.14
91
Na fase açucareira (1570-1650), a capitania está inserida no sistema mercantilista. Grandes
proprietários, alguns cristãos-novos, dirigem seus negócios com “mão de ferro”7. São latifundiári-
os, que nem sempre residem na capitania, que têm interesses vinculados a grupos mercantis
europeus, dentre os quais estão os traficantes de escravos africanos, a força de trabalho.
Para a pequena população pobre, livre ou cativa, que vive entre o trabalho compulsório e a
Igreja, o processo de socialização é centrado na religião. Esta também é “a própria explicação
central da presença europeia” no local8.
Com as atividades religiosas de ensino, e a catequese nos aldeamentos, os jesuítas controlavam
o cotidiano de parte da população. Jesuítas e franciscanos incentivam a criação de confrarias para
combater as “murmurações” e a discórdia entre os moradores da vila. Estas se destinam aos
índios e aos negros para doutrinar a fé cristã. No século XVI, há cerca de dez confrarias e ordens
terceiras; no século seguinte elas são vinte9. Para asseverar o predomínio religioso no imaginário
popular local, observam-se marcas da devoção em todos os lugares, designando igrejas, cais,
fortes, largos10.
No sistema mercantilista, a exploração colonial concilia violência e escravidão. Este sistema
latifundiário pressupõe a vigência da “lei exemplar”, diz Alfredo Bosi: lei, trabalho compulsório e
opressão são correlatos sob o escravismo colonial. A estrutura política “enfeixa” os interesses dos
proprietários rurais sob uma administração local exercida pelas câmaras dos “homens bons do
povo”. “Mas o seu raio de poder é curto”11. Alfredo Bosi adverte que “os historiadores têm
salientado a estreita margem de ação das câmaras sob a onipresença
7
VASCONCELLOS, José Gualberto das Ordenações e Leis do Reino de Portugal”12. Pode-se verificar a
M. (org.). Vitória, trajetórias de
uma cidade. Vitória: FCCA; CDV, referida onipresença na capitania, sobretudo militar, quando se pes-
1993, p. 28. quisa os manuscritos da capitania (entre 1585-1822)13.
8
Id. Ibid. No Brasil-Império, a capitania é mantida à margem economica-
9
mente, assim como na época do ciclo do ouro. Contudo, na Repúbli-
ABREU, Carolina Frota de. o dese-
jo da Conquista. In. ca, as elites da província fazem esforços de modernização infra-
VASCONCELLOS, João Gualberto estrutural e econômica. A vida pública se estabelece paulatinamente
M. (org.). Vitória, trajetórias de na urbe laica. Neste período, a arquitetura ainda desempenha um
uma cidade. Vitória: FCCA; CDV,
1993, pp. 49-51. papel representacional fundamental, como superfície de contato dos
10
processos comunicacionais e base dos veículos de comunicação exis-
Id. Ibid. p. 59.
tentes.
11
BOSI, Alfredo. Dialética da Colo-
No entanto, quando a vida pública poderia ter condições de se
nização. São Paulo: Companhia
das Letras, 1992, pp. 19-20. estabelecer em Vitória, face desdobramentos da modernidade, a “so-
12
Id. Ibid. p. 20.
ciedade local” é atingida pelos efeitos da restrição da esfera pública,
13
da introspecção privatista ao molde burguês. Emerge o predomínio
Documentos manuscritos avul-
sos da antiga Capitania do Espíri-
da administração burocrática, do empresariado, do trabalho anôni-
to Santo que estão sob a guarda mo. Em vez da política e da ação, consolidam-se a dominação da
do Arquivo Histórico Ultramarino elite e os novos meios de manipulação da opinião pública14.
em Lisboa, Portugal. Publicada sob O status da arquitetura se consome pela propagação da esfera
a coordenação acadêmica do prof.
João Eurípedes Franklin Leal. Ver pública através de novas mídias, especialmente as tecnologias da in-
site do Arquivo Público do Espírito formação e da comunicação. A arquitetura, que segundo Paul Virilio
Santo. se desenvolve com o avanço das cidades e a colonização de novas
14
ARENDT. Op. Cit. pp. 68-88 terras, desde que esta conquista se conclui, introverte-se15. Esta sen-
15
VIRILIO, Paul. Espaço Crítico. São tença de Virilio é antagônica com a de Giulio Carlo Argan, segundo
Paulo: Ed. 34, 1934. a qual entre arquitetura e cultura não há relação entre termos distin-
92
tos, devido ao funcionamento da arquitetura dentro da entidade social e política que é a cidade, na
qual é significativa por ser forma representativa16. Este papel (funcionamento) que foi prerroga-
tiva da arquitetura é o que vai ser abordado a seguir.

2. No tempo dos jesuítas


“Essa terra é nossa empresa, e o mais gentio do mundo”.
Pe. Manuel da Nóbrega
O edifício do Colégio e Igreja de São Tiago construído pelos jesuítas constitui o lugar como
espaço fundador de Vitória, é uma obra feita para a perenidade. O “primeiro símbolo civilizador”
da vila demarca a paisagem, tornando-se a essência visível, visio dei.
Para Ignácio de Loyola, fundador da ordem dos jesuítas, a ascese, o esforço dos cristãos para
alcançarem a perfeição, tem como instrumentos a imaginação e os sentidos do corpo, desde que
regulados pelo aprendizado e pela disciplina. A salvação seria obtida através do esforço e da força
de vontade, não por meio de uma dádiva sobrenatural17.
A finalidade do homem era servir a Deus, salvando a sua alma. Os passos para atingir esses
fins relacionam-se ao “conhecimento do pecado”, a evangelização e o missionarismo. Isso estabe-
lece, no quadro da ética dos jesuítas, o domínio dos valores sensíveis e voluntários, reunindo a
prática religiosa e a obrigação de “viver no mundo”18. A vida reclusa entremeia-se com a vida
extra-muros.
A evangelização para os jesuítas é um imperativo. Então, partem para o novo mundo, conju-
gando colonização religiosa e comercial, interesses religiosos e seculares, servindo também aos
reis à sua maneira. Os sentidos do corpo são convocados para a prática ascética. De modo que o
corpo e o espaço circundante relacionam-se:
“a composição do lugar (...), consistirá em representar, com auxílio da
imaginação, o lugar material onde se encontra o objeto que quero contemplar,
lugar material digo, como templo ou o monte onde se encontram Jesus
Cristo e Nossa Senhora conforme o mistério que escolhi para contemplação”19
Como “o mundo é produto do seu desígnio”, o espaço é concebido e construído submetido ao
“projeto de mundo” dos jesuítas, com aspecto cenográfico e estratégico desde “a escolha do sítio
adequado, a importância do pátio, o esmero decorativo do interior de sua igrejas, a valorização
dos objetos rituais”20.
16
A localização dos núcleos religiosos dos jesuítas é decidida cuida- ARGAN, Giulio Carlo. História da
Arte como História da Cidade. São
dosamente. Um dos objetivos é atender o tráfego marítimo e fluvial Paulo: Martins Fontes, 1992.
para o transporte de mercadorias entre as suas reduções: aldeias, ca- 17 OLIVEIRA, Beatriz S. Espaço e
sas, colégios e fazendas. Portanto, as edificações deveriam situar-se na Estratégia. Considerações sobre
proximidade de leitos de rios ou de portos marítimos; em elevações a arquitetura dos Jesuítas no Bra-
sil. Rio de Janeiro: José Olympio
que permitissem ao mesmo tempo a defesa e a percepção de sua ed. 1988, p 44.
posição. Implicava situar “de longe a Igreja e o colégio como agentes 18 SEBE, José C. Os Jesuítas. São
do núcleo urbano”21. Paulo: Brasiliense. 1982, p 34.
19
Ignácio de Loyola Apud. OLIVEI-
3. Colégio e Igreja de São Tiago RA. Op. Cit. p. 47.
20
A localização da Igreja e Colégio de Vitória segue a risca essas OLIVEIRA. op. cit. p. 47-8.
determinações. Localizado num penhasco a sudoeste da ilha de Vitó- 21
Idem. Ibidem. 34-8.
93
ria de frente para baía, estrategicamente posicionado em relação aos rios Marinho e Santa Maria,
canais de navegação para as entradas, aldeias e fazendas do sul e oeste da capitania.
Escolhido pelo Pe. Afonso Brás, o sítio físico foi considerado um lugar muito bem dotado,
pois constitui uma ponta de morro com vista para o mar, com espaço plano a frente, dominando
três quartas partes da região. Na parte plana e baixa posterior (oeste) os padres fizeram um pomar
(cerca), um porto particular e um fortim. A proximidade com o porto proporcionava o entrosamento
com a vida social e um controle estrito da vida urbana.
O terreno abre-se a para leste, numa praça denominada terreiro, é um lugar que proporciona
a livre movimentação do povo do lugar. Não se prevê a urbanização ordenada do entorno. Esta
não era da alçada das ordens religiosas, além disso, terrenos importantes da vila são repartidos
entre diversas congregações religiosas22, entre estas: franciscanos, carmelitas.
O terreiro dos jesuítas dá lugar aos acontecimentos e festejos sociais, políticos e religiosos, que
exigiam espaço em seu entorno: procissões e encenações. O terreiro de Vitória, em seguida deno-
minado Largo Afonso Brás, é um importante local de encontro dos moradores naquele período.
Ele possibilita a visão frontal da Igreja anexa ao colégio, quando esta é concluída. A unidade
isolada do edifício destaca-se no tecido urbano por sua regularidade e sua escala distinta da
vizinhança.
O assentamento urbano configura um tipo de ocupação tipicamente portuguesa, com seus
quarteirões em mosaico irregular. As ruas, estreitas e irregulares, se adaptavam à topografia aci-
dentada e tendem a se organizar a partir de ligações entre os pontos mais importantes, tais como:
o colégio e a Matriz, a Casa de Câmara e Cadeia.
A incorporação da vida pública no espaço dos jesuítas se iniciava pelo exterior do Colégio,
constituindo parte fundamental da esfera pública da vila, que se forja topologicamente em rela-
ções entre a parte baixa e alta da cidade. Pode-se presumir que a praça da parte alta é uma praça
para vida civil e religiosa enquanto a frente ao Porto dos Padres da parte baixa algo próximo a um
mercado.

22
COSTA, Lúcio. A Arquitetura dos Je-
suítas no Brasil. Rio de Janeiro. Re- Figura 1- Carta topográfica da barra e do Rio do Espírito Santo. 1767. Levantamento
vista do Patrimônio Históri- de José Antônio Caldas, Engenheiro Militar e lente da Aula Régia da Bahia. 1- Vila de
co Artístico Nacional . n. 26. Vitória; 2- Vila Velha (Espírito Santo). 3- Convento da Penha. Fonte: Recorte de mapa
1997. pp.105-169. p. 107 do Arquivo Militar do Exército. Rio de Janeiro.
94
Figura 2- Prospecto da Vila Vitória em 1805. L- Cais das Colunas em frente à ladeira de
Padre Inácio e do Colégio e Igreja São Tiago. I – Porto dos Padres. Original do
Engenheiro Militar José Pantaleão. Fonte: 5 DL Exército/ RJ

Figura 3. Legenda que consta na Planta da Vila de Vitória de 1764 do Engenheiro Militar José Antônio Caldas. Praças / 1 -
Da Matriz/ 2 - Da Misericórdia (antigo Largo Afonso Brás), denominado Terreiro pelos Jesuítas / 3 – Grande / 4 - Do
Mercado / 5 - Da Igrejinha / 6 - Do Carmo / 7 – Velha (antigo Pelourinho)/ Igrejas / A - N. S. da Vitoria (Matriz) / B –
Misericórdia / C - S. Tiago (Colégio dos Jesuítas) / D - S. Gonçalo Garcia / E - S. Antonio Convento dos Franciscanos / F
- Ordem 3.ª de S. Francisco / G - N. S. do Carmo (Convento do Carmo) / H - Ordem 3.ª de N. S. do Carmo / I - S. Luzia
/ J - N. S. da Conceição (Igrejinha) / K - N. S. do Rosário / Edifícios Públicos / a – Palácio da Presidência e Tesouro / b
- Câmara Municipal / c - Cadeia / População / 6:000 almas. Fonte: Recorte de mapa do Itamaraty/RJ
95
Figura 4. Antigo Terreiro, depois Largo da Misericórdia, renomeado Praça João
Clímaco, em 1906. Fonte: ELTON, E. Lo Logg radouros Antig
adouros os de Vitória
Antigos itória,
1988. Desenho de André Carloni.
O destaque do edifício em relação ao seu entorno também se dá pela busca de regularidade
geométrica e unidade do corpo do edifício, não obstante o programa de usos diversos que em síntese
comportam: o culto – igreja com coro e sacristia; o trabalho – oficinas e salas de aula; a residência
com seus cubículos e a enfermaria23. Cada um desses usos ocupa um quarto de uma tipologia
denominada quadra, que é um “agregado das diversas dependências à volta de um pátio central”24.
Segundo depoimento de Brás Lourenço, que esteve em Vitória de 1559 a 1564, o templo e
a casa dos meninos inicial foi incendiado em 1562, e a igreja existente era “pobre, a qual nem
ornamentos nem retábulos, nem galetas tinha”. Em 1573, o templo é reconstruído e ampliado,
constando que apresenta nessa época: “mais de cem palmos de comprido, fora a capela, e
quarenta e cinco de largo, passando a ser de pedra e cal ali levados por toda gente principal,
que, com suas próprias mãos, ajudou a trazer pedras grandes para os alicerces” 25. No conjunto
construído de Vitória, constam duas torres, o que é incomum nas tipologias dos jesuítas no
Brasil26. Estas pontuam a paisagem, como índice da presença dos jesuítas.
No edifício construído, separa-se topologicamente a intimidade do monastério dos serviços
públicos. A residência, com sua circulação, ocupa o pavimento supe-
23
COSTA. Op. Cit. rior e as oficinas e a enfermaria situam-se nos pavimentos inferiores.
24
CARVALHO, José Antônio. A Ar- Com esse procedimento respeitam-se aspectos de hierarquia e de
quitetura dos Jesuítas no Espírito
Santo: O Colégio e as Residênci-
posição na ética Jesuítica.
as. Belo Horizonte. Barroco
Barroco. n. “O inferior se submete ao superior, em virtude de uma
12. pp. 127-40. 1983, p. 128
certa harmonia e uma certa ordem. Só assim poderá ficar asse-
25
ELTON. Elmo. Velhos Templos gurada a subordinação atual, e consequentemente também a
de V itória & Outr os Temas
Outros
Capixabas
Capixabas. Vitória: Conselho Es-
unidade e o amor, sem os quais em nossa sociedade, como
tadual de Cultura,1987. em outras corporações morais, torna-se impossível uma ad-
26
Id. Ibid. p. 135 ministração organizada”27.
27
Ignácio de Loyola Apud. OLIVEI- A quadra, abrigando essas dependências variadas, volta-se para
RA. Op. Cit. um pátio central, que constitui um “centro nervoso de trabalhos e
96
atividades”28. O edifício tinha um aspecto fechado para o exterior, inclusive pela solidez de sua
aparência. Desse modo cumpre o papel de uma fortaleza, resguardando os religiosos e a população
em caso de ataques. O pátio se fecha ao término das tarefas cotidianas. Também a Igreja é
rigorosamente controlada pelos padres, aberta apenas para o culto29. Essas práticas permitem a
clausura para exercer a oração metódica e o controle do espaço como todo.
A construção do Colégio e da Igreja prolonga-se por três séculos. Desde a fundação, os
alicerces são “lançados para resistir aos séculos, porque se destinavam ao perpétuo pastoreio das
almas”30. Os jesuítas vencem as “dificuldades do ambiente selvagem”, conjugando trabalho de
penitentes, catecúmenos e nativos convertidos31 para construir o edifício de pedra, cal, óleo de
baleia, madeira para forros, escadas e pisos. O conjunto do Colégio e Igreja é erigido em etapas.
Isso permite o uso da ala concluída enquanto se constrói outra ala, não impedindo o desenvolvi-
mento dos trabalhos dos padres.
Em 1584, o edifício tem sete cubículos. Na cerca observam-se laranjeiras, limeiras, acajás e
cidreiras32. Sobre os mesmos alicerces, no século XVIII, as obras prosseguem, constrói-se um
novo quarto da quadra, uma nova ala e seu corredor, em 1734, a enfermaria em 1742, a ala
contígua à Igreja em 1742.
Não se pode afirmar qual a época exata da elevação da Igreja. A maioria dos historiadores assevera
que todo o conjunto da quadra está concluído em 1747. José Antônio Carvalho observa que:
“Vemos assim, que após ter ficado durante mais de 120 anos apenas
com a fachada, o Colégio em 40 anos foi concluído nas outras duas alas que
faltavam para a quadra e uma terceira, unida à igreja. E, após haver termina-
do a obra, a mais notável que o Espírito Santo teve até princípios deste
século, os Jesuítas só aproveitaram dela pouco mais de 12 anos.”
A unidade das partes funcionais, obtida pela quadra, inclui o tratamento plástico do conjunto,
composição de aspecto maciço, regular, eminentemente prático. Este formalismo projeta-se para
o mundo sensível, direcionando as percepções e as ações humanas. O espaço, ordenado e
essencialista, configura-se num suporte para ações disciplinadas, vigilantes e laboriosas dos ho-
mens. Num paralelo, com a ascese e a obtenção da graça da salvação que exige rigor, vontade e
trabalho.

28
CARVALHO, J. A. Op. Cit. p. 128-
29
29
OLIVEIRA. Op. Cit. p. 66
30
DERENZI, Luis Serafim. Histó-
ria do Palácio Anchieta. Vi-
tória: Secretaria de Educação e
Cultura - ES. 1971, p. 22-3
Figura 5. Palácio do Governo, a construção da escadaria é posterior a expulsão dos 31
Id. Ibid.
jesuítas, foto de 1909. Fonte MONTEIRO, J. Mensa
Mensaggem do Go Govver no de
erno
32
Jerônimo Monteiro
Monteiro. 1908-12. CARVALHO. Op. Cit. p. 131
97
Os jesuítas acreditam que cada coisa no mundo deve se enquadrar ao lugar que lhe cabe33. A
clareza da morfologia do conjunto, o pragmatismo e a implantação são aspectos que conferem
com o programa de ação no mundo dos jesuítas. Os atributos de simplicidade, clareza, pureza
regularidade, solidez e unidade são imediatamente percebidos. O simbolismo requerido de hierar-
quia pela situação e posição no contexto da paisagem decorre dessa percepção imediata.
Representar é o papel dessa arquitetura, “estar em lugar de um outro”34. Enquanto ideia que
representa, o edifício constitui um signo, um argumento35, uma manifestação do Visio dei e do Ad
Majorem Dei Gloriam pela convencionalidade da sua composição, que se situa na ética geral dos
jesuítas. Constituem um “estilo”, caracterizado pelo seu modo próprio de proceder desde a cons-
trução ao modo de habitá-la.
Os jesuítas configuram um estilo para se distinguirem da diversidade de temperamentos e
ocupações, constituindo um mens e modus societatis36. A ética legisladora dos jesuítas está difusa na
sua organização formal arquitetônica, que se torna uma forma re-
33
OLIVEIRA. Op. Cit. p. 61
presentativa: “É preciso uma representação do mundo em que haja
37
34
PEIRCE, Charles S. Os Pensa- vazio, a fim de que o mundo tenha necessidade de Deus” .
dores
dores. São Paulo: Abril Cultural. Na ética dos Jesuítas, o vazio relaciona-se à missão do homem
2ª ed. 1980. p. 61 no uso de sua capacidade criativa: “eliminar tudo o que anula ou
35
A relação do signo com seu
interpretante, se dá em 3 aspec-
impede o desenvolvimento da harmonia” e da solidariedade38. A
tos: o signo aparece em suas qua- unidade do conjunto edificado proporciona “ver a realidade com
lidades; o signo representa a exis- um olhar divino (visio dei) através “do sentido íntimo de cada coisa
tência real do objeto e como argu-
mento, o signo representa seu
captando e atendendo-se ao essencial”39.
objeto em caráter de signo. Para os jesuítas, a ordem e a formalidade constituem-se formas
Semiótica. representativas de sua vontade construtiva do mundo. “Criar, mo-
PEIRCE. Charles S. Semiótica
São Paulo: Perspectiva, p. 53. ver, transformar situações e ambiente, levando-os em direção a
36
OLIVEIRA, B. Op. Cit. p. 57
37
Deus”40. Contudo, a intencionalidade e o espírito são mais importan-
WEIL, Simone. A Gravidade e
a Gr aça. São Paulo: Martins Fon- tes, submetem-se aos problemas de adaptação ou escassez do meio
aça
Graça
tes, 1993, p. 12 ambiente original.
38
FERNANDES, J. O homem no pen- Os aspectos imediatamente percebidos da solidez e da regulari-
samento jesuítico. In PEREIRA.
Margareth C. S. & CARVALHO. Ana
dade são pertinentes ao programa de ação dos jesuítas, porém ce-
Maria F. A ffor
or ma e a Ima
orma Imagg em. dem (em parte) na decoração interna e nos detalhes à “expansividade
Arte e Arquitetura Jesuítica do barroco”, deixando-se contaminar, em certa medida, pela “volúpia
no Rio de Janeiro Colonial. da imagem”41, quando celebravam a “maior glória de Deus”,42 A
pp. 9-14, p. 12
39
Id. Ibid.
Igreja de São Tiago, no seu longo período de construção, exemplifica
40
Id. Ibid. p. 13 rupturas com o modelo essencialista original.
41
PEREIRA, Margareth. A ação dos Pode-se dizer que existe um estilo jesuítico no Brasil, que mani-
Jesuítas no Brasil Colonial e o Ima- festa um espírito ascético e severo43. E o Colégio e a Igreja de São
ginário Europeu sobre o Novo
Mundo. In PEREIRA. Margareth
Tiago, com suas singularidades44, satisfaz a este estilo, conotando sua
C. S. & CARVALHO. Ana Maria F. posição hierárquica social, política e religiosa mediante a ordem
A forma e a Imagem. Arte e edificada e a harmonia do conjunto. Aspectos dos quais é símbolo,
Arquitetura Jesuítica no Rio
de Janeiro Colonial. 1991, pp.
porque nos faz associar a forma significante aos efeitos representa-
15-34. tivos desejados.
42
OLIVEIRA. Op. Cit. p. 56
43
COSTA, Lúcio. Op. Cit. 4. No tempo da cidade-capital
44
Essas singularidades são apon-
tadas no texto de José Antônio de “As cidades latino-americanas renunciaram a si mesmas para
Carvalho. Op Cit. identificarem-se com a metrópole européia”, Roberto Segre
98
A imagem bucólica da vila debruçada sobre o mar vigora da colonização ao início da repúbli-
ca, quando passa a ser vista como ignóbil para expressar a modernidade e o desenvolvimento
econômico. A arquitetura colonial, desgastada pelo tempo e pelo descuido, representava o oposto
da “ordem e progresso”, levando ao desejo da mudança da fisionomia da cidade.
Na Primeira República, nos governos de Muniz Freire e de Jerônimo Monteiro, a cidade de
Vitória é transformada de acordo com as formas representativas de cidade-capital do século
XIX. Cidade-capital significa lugar que acumula capacidade administrativa, recursos, bens e
patrimônio, onde os capitais buscam tirar rentabilidade da concentração urbana45. Na República,
o edifício dos jesuítas, como Palácio do Governo, se converte em um dispositivo de interesses
privados imbricados na instância do Estado.
Jerônimo Monteiro (1908-12) afirma a visão local de cidade-capital. A cidade é modernizada,
mas descaracterizada, beneficiando-se da prosperidade da produção do café, que é investida no
centro fundacional, buscando uma visualidade de estilos europeus de arquitetura. A vila colonial
portuguesa típica, que ignora, até o início do século, “os princípios da arte de construir (...) e de
viver”, enfim, busca o formalismo geométrico46 (frase de um engenheiro).
A arquitetura nesse período é produzida como opção de estilo, nos moldes do Historicismo
Europeu. Esses estilos assimilavam a mimese à comunicação das formas visíveis47, se confrontam
à arquitetura da cidade colonial, considerada sem ordem preestabelecida. “A ordem só chega com
a República”48.
O problema do estilo, nesse período, não diz respeito somente a uma aparência retórica,
envolve transformações estruturais e espaciais. Procurava-se resolver o problema da qualidade da
arquitetura mediante a importação de materiais, técnicas e profissionais. O protótipo histórico
europeu que substitui a fisionomia colonial é trazido concomitantemente com migrantes europeus
para o Estado do Espírito Santo.
A cultura dominante nesse período torna-se exigente de “estilo” 45SOLÁ-MORALES, Ignasi.
Representaciones: De la Cidade-
a fim de obter status. Busca-se a participação numa linguagem uni-
capital a la Metropoli. In ESPUCHE,
versal, obliterando o passado, descaracterizando seus signos. Modifi- Albert Garcia. Ciudades del glo-
cam-se a forma, a espacialidade e os nomes dos lugares. Quando se bo al Satélite . Madri:
substitui o nome e o vocabulário, a coisa ou o referente, tendem a Electa,1994
desparecer do quadro mental coletivo. 46
DERENZI. Biografia de uma
Gilles Deleuze diz: uma sociedade, um campo social não se contra- 47 Ilha
Ilha. Rio de Janeiro: Pongetti, 1965
ARGAN, Giulio Carlo. Clássico e
diz, mas ele foge, e isto vem primeiro; depois é que se estrategiza49. Anti ClássicoClássico. São Paulo:
Concordando com Deleuze a nova opção representativa da arquitetura Martins Fontes, 1999
estabelece o sistema político republicano sobre os escombros da colônia. 48DERENZI. Op. Cit.
O Estado, o ensino laico e a imprensa substituem o sagrado como for- 49A estratégia só poderá vir em se-
mador do imaginário local. Constitui-se um novo sistema produtivo ba- guida das linhas de fuga, às suas
seado no trabalho livre, mas agrícola, cujo excedente sustenta as refor- conjugações, às suas orientações,
suas convergências e divergênci-
mas urbanas do período, ensejando a passagem de um tipo de cidade as. Deleuze aponta também neste
para outro, relacionada a novos circuitos comerciais e territoriais. ponto, o desejo está precisamente
O estilo (Historicismo) como um valor atribuído afirma a lingua- nas linhas de fuga, na conjugação
gem internacional, que vai estabelecer a representação da cidade-capi- e na dissociação de fluxo. O dese-
jo se confunde com elas. DELEUZE,
tal, de modernização do lugar e a conexão internacional da cultura.
Magg azine
Gilles. Désir et plaisir. Ma
Considera-se, com base em Luciano Patetta, o Historicismo e o Littéraire
Littéraire. Paris, n. 325, oct,
Ecletismo como um conjunto de experiências culturais, que possu- 1994, pp. 57-65.
99
em continuidade histórica50 e ideológica. Esses estilos são resultado de um ato de escolha do
projetista (um ato crítico, subjetivo). A escolha envolve uma postura moral, que permite aos
projetistas liberdade de interpretação e de caracterização. Nesse período, estabelece-se no campo
da arquitetura que há uma dialética constante entre as razões da arquitetura e razões éticas, sociais
e políticas, de acordo com Argan.
O quadro cultural do Historicismo na Europa é marcado pelo estabelecimento da burguesia,
que solicita conforto, higiene, funcionalidade e novidades, porém rebaixa “a produção artística e
arquitetônica ao nível da moda e do gosto”51. Para a clientela burguesa, esses “estilos” podem ser
considerados “imagens de desejos”, nos quais se busca sublimar “a imperfeição no produto soci-
al”52. O arquiteto adepto do Historicismo conta com um sistema de regras e preceitos de compo-
sição e de decoro, que dispõe dos mais variados elementos, advindos de diversos períodos histó-
ricos e regiões geográficas53.

5. O Palácio Anchieta
Em 1782, o patrimônio dos jesuítas é leiloado e o edifício do Colégio de Vitória passa a abrigar
a sede da capitania. Além disso, abriga a residência do presidente, o liceu, a tesouraria, a adminis-
tração dos correios, armazéns de material bélico e a biblioteca pública, entre outros54. Os usos
heterogêneos envolvem crianças, soldados, funcionários públicos e autoridades. Não há água
encanada nem esgoto no edifício55.
Jerônimo Monteiro, ao assumir o cargo de presidente do estado em 1908, observa que o
estado do edifício não oferece condições para servir nem como residência nem como instalação
institucional moderna. Visando a conforto, higiene e melhoria no espaço, o presidente contrata o
engenheiro francês Justin Norbert para elaborar o projeto. Jerônimo Monteiro explica-se:
“(...) em face do progresso material que (...) cada vez mais se
acentua na Vitória pela transformação que vai se operando no
aspecto da cidade, que renasce e se embeleza nas novas constru-
ções, que vão surgindo, não podia continuar o Palácio do Gover-
no com sua vetusta feição conventual e em contraste com as linhas
50
de arquitetura dos edifícios novos e em fragrante infração das
PATETTA, Luciano. Considerações
sobre o Ecletismo na Europa. In. posturas municipais”56.
FABRIS, Anateresa. Ec letismo
Ecletismo O projeto inclui a transformação do espaço do Colégio e da
na Arquitetura Brasileira.
São Paulo: Studio Nobel: EDUSP. Igreja, além da escadaria de acesso à cidade alta, “dando à cidade
1987, pp. 10-27 p. 10 uma nova perspectiva, estranha ao colonialismo da colina, onde nas-
51
PATETTA. Op. Cit. ceu verdadeiramente a cidade”57.
52
BENJAMIN, Walter. Paris Capital
do Século XIX. São Paulo. Espa-
Justin Norbert utiliza o estilo Luiz XVI no Palácio. Serafim Derenzi
ço & Debates
Debates. n. 11. 1984. pp. diz que Norbert “projetou a obra dentro de seu espírito racial (...) no
5-13 estilo dos protótipos de Luiz XVI. É tranqüilamente sereno e monu-
53
PATETTA. Op. Cit. p. 14 mental”.
54
Cesar Marques, 1778 apud
DERENZI. História do Palá- A reforma, iniciada em 1909, mantém a estrutura externa das
cio Anchieta
Anchieta. p. 37 paredes do edifício anterior, sua projeção no terreno. Telhado, pisos,
55
DERENZI. Ibid . acessos, dependências e fachadas são modificados, são inseridas ins-
56
MONTEIRO. Jerônimo. Mensa- talações hidráulicas, sanitárias e elétricas. O palácio com a incorpora-
gem do Governo de ção da igreja ganha um terço a mais de espaço onde se alojam os
Jerônimo Monteiro
Monteiro. 1908-12.
p. 132
serviços da burocracia.
100
As instalações são adequadas às exigências do serviço público do período, organizam-se espaços
protocolares para o presidente e o novo regime político. Cria-se uma galeria dos ex-presidentes e
representantes da república. Salões denominados de Rosa e de Azul são destinados às recepções
oficiais e às audiências com autoridades, segundo as categorias sociais que pertenciam. A residência
do governador recebe um tratamento compatível com os requisitos de intimidade e conforto.
A reforma urbana de 1909 reafirma o sítio urbano como referência institucional e monumen-
tal58. Com essa reforma, a relação entre a parte baixa onde se situa o comércio e a parte alta
institucional ganha aspectos socializantes modernos. A vida pública da parte baixa (onde se confi-
gura o Porto de Vitória) se formava na convivência entre conhecidos: lojistas e moradores; e
estranhos - viajantes, marinheiros, imigrantes. A diversidade e a complexidade social ampliam-se,
o lugar de encontro para negócios são as lojas e os bares nas proximidades da escadaria do Palácio,
e em outras praças como as da Rua da Alfândega, onde se discutia “política”.
No entorno do Palácio mantém-se o centro social da cidade, local de festividades cívicas.
Eventos que acontecem no Largo do Colégio, amenizado pelo paisagismo pinturesco, desde o fim
do século XIX: “Quem quiser se divertir por hora e meia na Praça do Colégio, vá, pois temos ceia
(...) ó que pândega”59. As reformas no entorno do Palácio favorecem os passeios ‘descomprometidos’
das famílias e dos jovens. Atividades que assimilam novos hábitos de sociabilidade e de decoro no
espaço público.
O tratamento da escadaria provê uma nova perspectiva para a baía, esta é projetada com
lances curvos, patamares intermediários, ornada com fontes e estátuas em mármore representan-
do alegorias sobre as estações do ano, figuras mitológicas, cascatas e conchas. A nova escadaria
enseja o alargamento da Rua 1º de Março, que desde o século XIX possui as mais importantes
casas comerciais de Vitória. Esse espaço, característico como mercado, adquire higiene e decoro.
O Cais do Imperador, antigo Cais das Colunas, também é renomeado Marechal Hermes.
Enquanto a fachada para a Praça João Clímaco se torna entrada de trabalho, a fachada de frente
para escadaria é monumentalizada. Como uma fachada principal simula uma inexistente simetria,
dividida em três faixas horizontais, coroadas por uma platibanda rematada por um frontão pontua-
do por uma águia. As cornijas marcam a separação entre os pisos e lajes. A nova roupagem da

57
DERENZI. História do Palá-
cio Anchieta
Anchieta. p. 46
58
Id. Ibid. p. 46-7
59
SIQUEIRA, F. A. Memórias do
Passado, a Vitória através
de meio século
século. ACHIAMÉ,
Fernando. (edição e notas). Vitó-
ria: Florecultura, 1999. (original
1885). p. 46. A ceia era oferecida
a convidados pelo presidente da
Figura 6. Escadaria Bárbara Lindemberg e Palácio Anchieta, nos anos 40. Fonte província, após os atos cívicos e
Biblioteca Central da Ufes religiosos.
101
Figura 7. Conjunto comercial na Praça Marechal Hermes, frontal ao Porto de Vitória,
nos anos 40. Fonte Élio Vianna/ DAUUfes, Fotógrafo Mazzei

fachada adquire uma modulação falsa. Pois, a base sólida, manufaturada paulatinamente pelos jesu-
ítas, impede a aplicação do procedimento de simetria e de uma modulação geométrica precisa.
Verifica-se na nova composição o procedimento da sobreposição de ordens para articular os
vários pisos da fachada, atribuindo do piso inferior ao superior uma ordem de crescente valor
simbólico. A solução da fachada de Justin Norbert, sobre um envasamento que simula alvenaria
com junta escavada, sobrepõe a ordem dórica e a ordem coríntia. Mantém o preceito vitruviano
da “aparência de função sustentadora” da base e pilastras, assinaladas pela ordem mais robusta
para mais esbelta60.
O estilo Luis XVI, como o Barroco, busca uma naturalização artificial da arquitetura, com
motivos vegetais e zoomórficos, visando a adquirir festividade ou cerimônia. O coríntio e os seus
motivos vegetais predominam na fisionomia do edifício do Palácio. A ordem é considerada como a
mais elegante, leve, formosa e rica, republicana para os romanos, mas aristocrática para os france-
ses61. As figuras como águias, deuses mitológicos, motivos florais, elementos arquitetônicos acresci-
dos, designadas na Academia como decorum (disposição adequada entre figura e ordem)62 fazem
parte de requerimentos programáticos que visam à mensagem que o edifício deve manifestar. “A
sugestão, o adorno, a metáfora e a analogia são as categorias dentro das quais a poética da arquitetu-
ra se converte num potente instrumento de persuasão e, finalmente, em controle social”63.
60
Sérlio apud. FORSSMAN, Eric.
A escolha do estilo Luis XVI é convencional para órgãos execu-
Dórico, Jónico e Coríntio na tivos do governo, quer expressar esse caráter monumental e
Arquitetura dos Séculos XVI- institucional. Contudo, a designação do estilo Luis XVI não deixa de
XVIII. Lisboa: Presença. 1990.
p. 31 ser uma incoerência com a imagem republicana.
61
FORSSMAN. Op. Cit. p. 82-3 No palácio travestido de Luis XVI desapar777ecem as qualida-
62
id.ibid. 181. des de severidade e simplicidade do edifício jesuítico. Porém, os
63
TSONIS, Alexander, LEFAIVRE Liane novos elementos decorativos são aplicados como uma clara opção
& BILODEAU, Denis. El
Classicismo en Arquitectura.
de léxico estilístico. Isso confere autonomia (eles significam por si
La Poética del Orden. Madri: mesmos). O simbolismo desses elementos decorre do seu sistema
Hermann Blume, 1984 de caracterização.
102
A Praça João Clímaco já havia sido ampliada com a demolição das construções vizinhas antes
de 1909. Nesta reforma, o edifício passa a dominar o espaço urbano reestruturado ao seu redor.
A inversão da entrada para frente da baía acentua a visibilidade para toda cidade e para o porto,
criando um waterfront. A entrada frontal adquire um sentido topológico central para toda região
(caput its).
O valor que o edifício e seu entorno adquirem na cidade, sobretudo, vem de uma nova
graduação topológica e das qualidades formais do espaço. O volume do edifício individualiza-se e
cresce com a desobstrução da vista, a remoção da ladeira frontal e desbaste da Rua Duque de
Caxias. Ou seja, a fruição do sítio pelo movimento dos transeuntes e as novas perspectivas da
cidade alta consolidam o edifício como um objeto destacado na paisagem, a escadaria funciona
como pedestal para ele, que atua como atrator da atenção e atribui valor para o edifício modifica-
do. O novo espaço ornamentado tende ao apelo visual e ao “impulso ornamental”. A nova estru-
tura urbana resultante mostra que essa transformação não foi mera maquiagem.
As reformas da capital nos anos 1910 e 1920 (Governo de Florentino Avidos) expressam
anseio de participar do mundo, após anos de isolamento econômico e político no período colonial
e imperial. As razões dessas escolhas podem ser questionadas, mas o espaço, com seus novos
aparatos, por algum tempo torna-se metáfora da graça, da beleza e do moderno. O procedimento
de superposição do ecletismo sobre a linguagem jesuítica enuncia que se busca um recomeço
sobre novas bases, para estabelecer um novo estado das coisas. No Palácio Anchieta, o historicismo,
criticado pela vanguarda moderna, se torna símbolo da nova ordem republicana e de pompa,
representa o que há de mais moderno para a localidade na época.
Na destruição do espaço do passado colonial mantém-se alguns vestígios: o nome do Palácio
Anchieta, seu túmulo (?). A fundação dos jesuítas é descaracterizada, mas mantida. Afirma-se o
sítio escolhido pelos padres, seu papel na esfera pública, sua importância no contexto urbano.

Figura 8. Vista aérea do sitio do Palácio Anchieta cerca de 1960. As construções do


lado esquerdo da escadaria foram demolidas nos anos 1970. Foto Paulo Bonino.
Arquivo: SEDEC/PMV
103
Figura 9. Palácio do Governo nos anos 1940, Praça João Clímaco vista da Rua Duque
de Caxias. Foto Fábio Tancredi

6. Espaço público e esfera pública


Os projetos dessas gerações consolidam o espaço fundador da cidade, sobrepondo uma cultu-
ra sobre outra. Duas culturas que não são apegadas em manter o preexistente, mas estão preocu-
padas em construir ou renovar, e em deixar sua marca no espaço.
A vontade dos jesuítas de viverem no mundo manifestava-se na esfera pública, os cidadãos
tinham acesso diário ao interior de sua edificação o pátio e suas dependências eram pra cuidar,
educar e proteger. O terreiro e o porto, espaços públicos, eram para celebrar, viver, trabalhar,
circular, efetuar trocas.
O espaço do novo Palácio (1909-11) delimita a vida pública ao exterior, os espaços para
receber o público ganham protocolos de cerimônia (Salão Rosa e Azul), o executivo, a burocracia
e a residência separam-se em departamentos isolados entre si.
A exteriorização do estilo (Historicista) valoriza o meio urbano e celebra publicamente a
recíproca exposição das pessoas e do monumento, assim como as novas conexões entre os ho-
mens e a cidade (com esperança de menos subserviência do povo).
Embora o Palácio esteja incorporado à vida política e cultural nos anos 2000 (mantém a
função de sede do governo estadual e tornou-se museu), não há a reciprocidade entre público e
edifício relatada nos tempos dos jesuítas e na Primeira República.
A situação sociocultural encontra-se bastante alterada, o simbolismo e a importância que o
centro e seus principais edifícios encarnam na Primeira República perdem-se numa espécie de
descompromisso com a vida social ampla, que se manifesta na alienação espacial dos novos
espaços criados (shoppings, clubes exclusivos, condomínios fechados, espaços de controle e vigi-
lância), levando a experiência da complexidade se retirar do meio ambiente coletivo, público.
Assinala-se um processo de crescente esvaziamento simbólico do espaço urbano, que perde valor
como forma representativa em relação ao seu protagonismo no passado relatado.

104
PATRIMÔNIO AMBIENTAL URBANO DE VITÓRIA: INVENTÁRIO E REFLEXÕES ACERCA DAS RUPTURAS E
PERMANÊNCIAS COLONIAIS NA CONTEMPORANEIDADE

Luciene Pessotti*

1. Introdução
O presente artigo objetiva apresentar os primeiros resultados da pesquisa intitulada “Patrimônio
Ambiental Urbano de Vitória: Reflexões acerca das rupturas e permanências coloniais na
contemporaneidade”, que tem o apoio do CNPq.
As principais contribuições desta pesquisa são a identificação das permanências urbanas,
arquitetônicas e paisagísticas do período colonial na contemporaneidade e a reflexão sobre a
preservação desses importantes elementos que constituem o patrimônio ambiental urbano de
Vitória.
A cidade de Vitória foi um dos primeiros núcleos urbanos da América Portuguesa e em seu
espaço urbano e na configuração da sua paisagem é possível observar traços da tradição urbanís-
tica portuguesa, de matriz vernacular.
Apesar das inúmeras transformações pelas quais a cidade passou no século XX, ainda é
possível identificar elementos morfológicos dos séculos anteriores, período em que a Vila da
Vitória teve poucas alterações.
A partir da análise de mapas temáticos de síntese elaborados na ocasião do doutoramento
(SOUZA, 2005), e de outros documentos cartográficos, foi possível conjecturar sobre a evolução
urbana de Vitória, e analisar como seus principais elementos morfológicos configuraram traços
que são particulares na sua estrutura espacial.
O confronto e a sobreposição dos mapas temáticos de síntese, assim, como a inter-relação de
suas informações e dados com a base cartográfica contemporânea permite diferentes análises de
sua configuração espacial e de sua paisagem urbana.
Esses estudos permitem a reflexão sobre os mecanismos de preservação da paisagem urbana
na contemporaneidade, e sua aplicação na cidade de Vitória, notadamente, na área de estudo.
Embora, nos últimos anos, várias normas, diretrizes e leis vêm sendo utilizadas para a preser-
vação da paisagem e dos elementos que constituem o patrimônio ambiental urbano, visando à
preservação, portanto, não só de seus elementos físicos, mas abarcando sua dimensão cultural e a
relação da cidade com o território que a constitui na longa duração, observa-se que, ainda, se
operam transformações no espaço da cidade de Vitória que comprometem a percepção e integri-
dade de seus elementos constituintes.
Logo, a reflexão dessa questão, tendo como subsídios os resulta- * Universidade Federal do Espírito
dos e contribuições das pesquisas e análises históricas, teórica e Santo. Programa de Pós-Gradua-
ção em Artes. Avenida Fernando
morfológica, pode contribuir para a revisão de mecanismos de pre- Ferrari, s/n. Centro de Artes.
servação da paisagem urbana da área de estudo da cidade de Vitória. lupessotti@yahoo.com.br
105
2. Vila da Vitória: desafios da pesquisa
As pesquisas realizadas nas últimas décadas sobre a Vila da Vitória são estudos de história
urbana que consideram as análises de seus aspectos geográficos, da morfologia do território,
econômicos, sociais, político-administrativos, do universo mental, da cultura material e do imaginário
para subsidiar a análise dos elementos morfológicos que definiram a estruturação de seu espaço
urbano nos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX (SOUZA, 2000; SOUZA, 2005).
Logo, a análise da forma urbana da Vila da Vitória, no período supracitado, reflete os diferentes
fenômenos e valores, mudanças, transformações e possíveis e diferentes formas de urbanização.
No âmbito das generalizações, a Vila da Vitória foi considerada durante muitos anos, por
diversos pesquisadores, uma vila em seu aspecto urbano e paisagístico, tal como um burgo medieval,
com suas ruas tortuosas, moldadas no terreno, sem planejamento. Além disso, houve relatos que
a definiram como pobre e suja, com seu casario simples, sua falta de praças, as ruas sem calçamento
e, por, fim, destacaram seus edifícios singulares, os templos religiosos.
A dispersão dos documentos coloniais que versam sobre Vitória e a dificuldade de relacioná-
la no contexto urbano colonial, ou melhor, de problematizar sua formação espacial a partir das
novas perspectivas teóricas do urbanismo lusitano de além-mar, ocasionou a repetição das assertivas
de estudiosos e historiadores que escreveram sobre a vila em meados do século passado.
A capitania do Espírito Santo foi sempre retratada pela historiografia como uma das mais
atrasadas no contexto colonial, sendo sua sede, apontada por vezes, como Vila do Espírito Santo,
ou Vila Nova, bem como Vila da Vitória. Cabe restituir sua posição, não só no contexto geopolítico,
como também dar novo significado às repetidas afirmativas históricas, sob novas interpretações,
corrigindo distorções e colaborando para a redefinição de sua participação no processo de
colonização da América Portuguesa.

3. Localização da área de estudo


A cidade de Vitória é a capital do estado do Espírito Santo, com área territorial de 93, 381
km², uma das menores do Brasil, sendo que 40% de sua área é montanhosa, e não possui área
rural. Possui uma população de 314.042 habitantes.
O municipio é cercado pela Baía de Vitória, formada por várias ilhas, sendo que, originalmente,
eram cinquenta, muitas das quais foram agregadas por meio de aterro à ilha maior, anteriormente
denominada de Santo Antônio. Algumas dessas ilhas estão a mais de 1.100km da costa, formadas
pelo arquipélago de Trindade e Martin Vaz, sendo as principais ilhas a de Trindade e a de Martin
Vaz, que somam uma área total de 10,4 km².
A cidade de Vitória, antiga Vila de Nossa Senhora da Vitória, é um dos núcleos urbanos mais
antigos do Brasil, tendo sido fundada, segundo a historiografia oficial, em 8 de setembro de 1551
(DERENZI, 1995).
A localização da Vila de Nossa Senhora da Vitória está associada aos esforços empreendidos
pela Coroa Portuguesa para implementar o projeto colonial na capitania do Espírito Santo, tendo
como principal aliada a Igreja Católica.
Fracassadas as tentativas de implantar a Vila do Espírito Santo, primeira sede da capitania, no
sítio escolhido pelo donatário em 1535, os jesuítas iniciaram, por volta de 1550, a organização da
sede da Companhia em outro local, num sítio próximo à sede da fazenda na sesmaria de Duarte
Lemos, localizada numa ilha dentro da baía de Vitória.
106
A Vila da Vitória, situada dentro da barra, à cerca de uma légua de distância da primeira vila,
era mais defensável em virtude da existência de alguns obstáculos naturais desconhecidos pelos
estrangeiros. A morfologia do sítio de implantação das duas povoações
dos portugueses caracterizava-se por uma série de pequenas áreas 1Conforme atesta a historiografia,
com acidentes geográficos (Figura 01). Vasco Fernandes Coutinho enfren-
A topografia do terreno escolhido possuía características singulares. tou na primeira sede da capitania,
O local escolhido por Duarte Lemos foi um platô de adesVilapara do Espírito Santo, dificulda-
implementar as ativida-
aproximadamente 20 metros de altitude, junto ao canal, com cerca des econômicas que fariam pros-
de 300 metros de comprimento, no eixo leste–oeste, por perar seu vilão farto , conside-
aproximadamente 100 a 140 metros de largura, no eixo norte-sul, rando-se a feroz resistência dos
índios, a ameaça dos invasores
sendo a maior cota a de 25 metros, que formava uma pequena europeus, além, de uma popula-
elevação quase central, com uma área de três a quatro hectares. O ção branca escassa que não em-
maior eixo era paralelo à baía e nos seus extremos existiam duas penhou-se na defesa do território,
nem tampouco em seu desenvol-
áreas baixias alagadiças, em consequência das elevações da maré, vimento (SANTOS, 1968).
que foram, posteriormente, chamadas de Campinho e Campo dos 2
A ilha era parcela da donataria de
Pelames, o primeiro a oeste, e o segundo a leste do platô, Vasco Fernandes Coutinho. Logo
respectivamente. no início da exploração do territó-
Neste platô se consolidou a Vila da Vitória, hoje cidade de Vitória. rio o donatário faz a doação da
ilha como sesmaria a Duarte Le-
A área de estudo compreende ao bairro denominado Centro de mos, que veio a ser confirmada
Vitória, notadamente as regiões chamadas Cidade Alta e Cidade Baixa, em 1540, em Lisboa, com a assi-
e seu entorno. natura da escritura (OLIVEIRA,
1951). Em 1550, Duarte Lemos
doa uma parcela de chão de sua
4. Aspectos históricos e teóricos da consolidação urbana da Vila da sesmaria a Companhia de Jesus
Vitória que inicia a edificação de um tem-
plo e colégio. As atividades agrí-
Sobre a origem da cidade de Vitória podemos destacar alguns colas iniciadas por Lemos, e as
aspectos importantes, a saber, (1) sua contextualização político- atividades de cunho religioso de-
sempenhada pelos jesuítas influ-
administrativa; (2) as motivações fundacionais; e, (3) as características enciaram decididamente na fixa-
morfológicas. ção dos colonos na ilha, que sofri-
Sobre o primeiro aspecto, a contextualização político- am com os ataques dos índios e
dos piratas. Com as constantes
administrativa, ressalta-se que a Vila de Nossa Senhora da Vitória ausências de Fernandes Coutinho
foi a segunda vila organizada na Capitania do Espírito Santo, conforme a população passa a se organizar,
citado, tendo em vista que a primeira, a Vila do Espírito Santo, foi consolidando uma pequena povo-
ação. No entanto, as prerrogati-
fundada em 1535, pelo donatário Vasco Fernandes Coutinho, na vas legais da administração colo-
ocasião em que chega e toma posse de seu território, conforme carta nial impediam a criação de vilas
de doação assinada em 1534, em Évora, por D. João III. A segunda em sesmarias. Este impedimen-
to, entretanto, não inviabilizou a
vila surge como alternativa aos problemas de consolidação da consolidação da vida urbana na
primitiva, tendo sido sua consolidação fruto da ação dos jesuítas que ilha. No final do Século XVI, a Vila
se implantaram no local, organizando a vida social através das da Vitória tinha parte de suas fun-
ções na ilha, pois, a documenta-
atividades religiosas1. Assim, no século XVI foram organizados na ção da época demonstra que al-
Capitania do Espírito Santo dois núcleos urbanos, e a partir deste gumas providências eram resol-
século a Vila da Vitória se consolidou como a principal no contexto vidas ora na ilha ora no continen-
te, onde foi fundada em 1535 a
regional capixaba2. primeira vila, que recebera o mes-
Sobre as motivações fundacionais da Vila de Nossa Senhora mo nome da capitania, Vila do
da Vitória, destaca-se sua posição privilegiada de defesa, pois, foi Espírito Santo (SOUZA, 2005).
107
implantada dentro do Rio Espírito Santo3, e possibilitava a defesa dos ataques que vinham por
mar. A nova vila foi implantada numa posição bem mais estratégica do que a Vila do Espírito
Santo e oferecia, portanto, melhores condições de defesa, abrigada e protegida pelos acidentes
geográficos da baía. Além dos condicionantes de defesa, o sítio da Vila da Vitória apresentou
outras características que atendiam melhor os objetivos da missão colonizadora, conforme mode-
los urbanísticos utilizados pela Coroa Portuguesa (CARITA, 1998): presença de fontes para água
potável para a população e embarcações; e, terrenos próprios ao cultivo na vizinhança das vilas a
serem fundadas.
As características morfológicas da Vila da Vitória merecem especial atenção, pois, a maior
parte das análises realizadas sobre seu espaço urbano apóia-se na lógica conceitual e teórica do
desleixo versus ordem, afirmando, portanto, que a vila foi estruturada e cresceu sem nenhum tipo
de planejamento. Tal perspectiva, na verdade, era aplicada à análise de toda a rede urbana colonial
no século passado e foi defendida por vários autores. Destaca-se a abordagem de Sérgio Buarque
de Hollanda, sobre as formas urbanas das cidades fundadas pelos portugueses, em sua clássica
obra Raízes do Brasil, publicada em 1936, ao afirmar que “[...] as cidades que os portugueses construí-
ram na América não é produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza e sua silhueta se enlaça na
linha da paisagem” (1995, p.76). Ou seja, o autor defende que não eram realizados projetos para a
fundação e expansão de vilas e cidades na América portuguesa: “Nenhum rigor, nenhum método,
sempre esse significativo abandono que exprime a palavra ‘desleixo’” (1995, p.76).
Desta forma, as descrições da Vila da Vitória ressaltam a peculiaridade de seu aspecto urbano
e paisagístico, apresentando-a tal como um burgo medieval, com suas ruas tortuosas, moldadas no
terreno, sem planejamento. Além disto, houve relatos que a definiram como pobre e suja, com seu
casario simples, sua falta de praças, as ruas sem calçamento e, por fim, destacavam seus principais
edifícios, os templos religiosos (MARTINS, 1995; SEPULCRI, 1993).
O aspecto urbano e paisagístico da Vila da Vitória é sempre comparado também as cidades
medievais portuguesas. Entretanto, conforme ressaltam Ribeiro (1994) e Rossa (2002), a seme-
lhança que se atribui entre as cidades coloniais brasileiras e as cidades medievais muçulmanas,
situadas no sul do território lusitano, devem considerar o processo histórico que lhe atribuiu uma
configuração espacial particular com diferentes influências.
As pesquisas que se tem realizado desde a década de 1990 (SOUZA, 2005) demonstram que
as características morfológicas da Vila de Nossa Senhora da Vitória
3
Até meados do século passado, a estão associadas à tradição urbanística portuguesa, de matriz
baía de Vitória era tida como rio, vernacular, e ainda a algumas características dos modelos urbanos
denominado Rio Espírito Santo, utilizados no projeto colonial da Expansão. Estas referências foram
como se atesta em várias carto-
grafias e documentos. utilizadas em diferentes territórios, baseados numa cultura urbana,
4
cujas origens estão na ocupação grega, romana e mulçumana do
Esta influência teria se dado não
só na organização de cidades,
território de Portugal (ROSSA, 2002). As influências da cultura ur-
mas, também por via erudita erudita, bana romana, segundo Teixeira (1999), influenciaram na inserção
pois, em diversos momentos his- de princípios urbanísticos da regularidade utilizados pela Coroa Por-
tóricos o estado português inter-
veio na criação de cidades e ado-
tuguesa, tais como, os de racionalidade e ordem, que se fizeram
tou este partido, tais como, nas sentir em Évora, Beja e Braga, que possuem registros de uma estru-
cidades medievais planejadas dos tura regular ortogonal4.
séculos XIII e XIV; nas cidades
do século XVI e XVII com influên-
Logo, podemos afirmar que a configuração espacial da Vila de
cia renascentista e, nas iluministas Nossa Senhora da Vitória seguiu uma das principais características
do século XVIII (TEIXEIRA, 1999). do urbanismo lusitano, ou seja, a excepcional flexibilidade com que a
108
Coroa Portuguesa atuou nas fundações de além mar, permitindo sempre que se adaptassem as
característica e possibilidades locais as referências do modelo quinhentista de urbanização (CARITA,
1998).
Mas, é importante considerar que se os sítios fundacionais deveriam ter as mesmas
características, os condicionantes topográficos e a realidade que se moldava frente às dificuldades
encontradas, geraram na América Portuguesa um quadro urbano típico, e as fundações, neste
cenário, eram “[...] em tudo semelhante, em nada parecido” (PESSÔA, 2000, p.69).
Desta forma, a Vila da Vitória, teve características morfológicas semelhantes a outros núcleos
fundacionais da América Portuguesa, e, singularidades dadas pela adaptação de seus elementos
morfológicos, de matriz vernacular portuguesa, ao território onde se consolidou, expressas em
sua paisagem urbana (SOUZA, 2005).

5. Aspectos teóricos e metodológicos da pesquisa


Os estudos e pesquisas sobre a paisagem cultural avançaram muito nos últimos anos. As
contribuições de diferentes campos de conhecimento, notadamente da Geografia, da Arquitetura
e do Urbanismo trouxeram novos recursos teórico-metodológicos que permitem uma nova com-
preensão dos processos de formação da paisagem na longa duração e de sua preservação na
contemporaneidade.
Sendo assim, um aspecto relevante no estudo da paisagem é a noção de história e de sua
relação com o sujeito na construção desta paisagem. Ou seja, as pesquisas abordam a percepção
da paisagem sob nova perspectiva: a noção de paisagem humanizada. A compreensão da paisa-
gem considera a sua modelagem ao longo da história, o estudo do homem com o meio que o
cerca, e como o próprio homem intervém no meio a partir da paisagem que o circunda.
Milton Santos (1982) descreve, então, paisagem em sua dimensão social: “[...] tudo isto são
paisagens”, ou seja, os objetos naturais, as cidades, as plantações etc. Para Santos (1982) o traço
comum da paisagem “[...] é ser a combinação de objetos naturais e de objetos fabricados, isto é, objetos sociais
e ser o resultado da acumulação da atividade de muitas gerações”.
A contribuição da noção de história e da interação do homem com a paisagem ao longo da
história permitiu que aos estudos de percepção da paisagem avançassem com novas dimensões
de análise. Assim, os aspectos econômicos, sociais, culturais passam a ser abordados para uma
melhor compreensão das transformações da paisagem. A paisagem não se constitui como um
objeto imóvel de estudo: “A paisagem não tem nada de fixo, de imóvel, cada vez que a sociedade passa por
um processo de mudança... a paisagem se transforma para se adaptar às novas necessidades da sociedade”
(SANTOS, 1988).
Outro aspecto importante no estudo da paisagem cultural, conforme citado, é a sua dimensão
social, notadamente quando abordamos o estudo das paisagens urbanas na longa duração. Sendo
a paisagem artificial aquela transformada pelo homem, pode-se afirmar que a paisagem “[...] é um
conjunto heterogêneo de formas naturais e artificiais; é formada por frações de ambas, seja quanto ao tamanho,
volume, cor, utilidade, ou por qualquer outro critério. A paisagem é sempre heterogênea” (SANTOS, 1988).
Neste sentido, a contribuição do campo de conhecimento da Arquitetura e do Urbanismo,
amplia e relaciona o estudo da paisagem ao do espaço urbano estruturado na longa duração. O
conceito de patrimônio ambiental urbano, que relaciona o ambiente urbano ao meio natural
onde ele foi estruturado, pressupõe o estudo da paisagem e suas transformações.
109
A noção de patrimônio ambiental está relacionada ao processo de construção cultural, cons-
tantemente transformada pela interação do homem com seu habitat. Este processo de acumula-
ção sucessiva é denominado de construção cultural (DURHAM, 1984).
Desta forma, a paisagem urbana pode ser entendida como uma construção cultural, resultado
da produção do espaço a partir da intervenção humana. Sua construção está relacionada a adi-
ções e subtrações de objetos artificiais e naturais no espaço, estes suscetíveis as transformações
tecnológicas que podem alterar suas formas, perfis e a maneira de intervenção no próprio espaço,
pois, há um grande avanço nas soluções de engenharia que substituem as longas estradas que
circundam as montanhas por túneis que transpõem estes obstáculos naturais.
Desta forma, a cidade pode conter diferentes elementos artificiais construídos em diferentes
momentos da história, e sua paisagem pode conter estes diferentes elementos, numa composição
heterogênea como testemunhos de épocas distintas. Conforme afirma Santos (1988, p.24) “[...]
suscetível a mudanças irregulares ao longo do tempo, a paisagem é um conjunto de formas heterogêneas, de idades
diferentes, pedaços de tempos históricos representativos das diversas maneiras de produzir as coisas, de construir o
espaço”.
Entretanto, nem todos os objetos construídos ao longo da história permanecem no espaço e
na paisagem. Alguns destes objetos são suprimidos e a paisagem, pode, então, revelar as perma-
nências e rupturas históricas de uma cidade. A paisagem pode revelar ainda a construção social
e cultural de uma sociedade, as técnicas empregadas para a estruturação de uma cidade e suas
transformações.
Sendo assim, um dos aspectos metodológicos importantes no estudo da paisagem urbana, é a
compreensão de sua construção cultural, dos aspectos sociais, econômicos, da tecnologia de cons-
trução dos objetos artificiais.
O aspecto metodológico no estudo da paisagem de uma cidade abre caminho para a identifi-
cação dos seus elementos constituintes, notadamente, aqueles que revelam sua história. Sendo
assim, o estudo da paisagem na longa duração permite identificar e datar seus elementos
estruturantes, significativos, além, de possibilitar o entendimento de suas transformações pela
adição de novos objetos e supressão de outros conforme citado.
Esta identificação, ou inventário, permite a compreensão da permanência destes elementos,
i.e., permite identificar os processos sociais e culturais que permitiram que alguns objetos persis-
tissem na paisagem e outros não. Esta decisão, que se trata também de uma construção cultural,
permite avaliar a importância destes elementos para a memória deste espaço.
As decisões de preservação devem considerar, portanto, o processo histórico e cultural de
construção da paisagem na longa duração. Estas decisões vêm norteando diferentes medidas
preservacionistas, tais como, aquelas adotadas na Europa e no Brasil.
No preâmbulo da Convenção Européia de Paisagem, aprovada em 2000, estão as seguintes
justificativas para a preservação das paisagens culturais:
“[...] a paisagem desempenha um importante papel de interesse pú-
blico nas áreas social, cultural e ambiental, constituindo-se em recurso
favorável à atividade econômica cuja proteção, gestão e planejamento con-
tribuem para um trabalho criativo [...]; a paisagem contribui para a forma-
ção de uma cultura local que constituía um componente fundamental de
um patrimônio cultural, contribuindo para o bem estar da população e
consolidando uma identidade européia [...]; a paisagem é um componen-
110
te importante da qualidade de vida da população em qualquer lugar; em
áreas urbanizadas ou em naturais; em áreas degradadas como também
em áreas qualificadas com qualidade de vida; em áreas consolidadas e
saudáveis sob todos os aspectos”.
Nesta abordagem percebe-se que é atribuída a paisagem valores sociais, econômicos entre
outros. A paisagem é considerada um bem cultural que possui identidade com valores intrínse-
cos relacionados aos processos naturais e culturais que lhe deram origem, sendo passíveis de
preservação.
Além disso, conforme a definição apresentada na Convenção (2000), paisagem “[...] designa
uma parte do território, tal como é apreendida pelas populações, cujo caráter resulta da ação e da
interação dos fatores naturais e ou humanos”. Percebe-se, assim, que a dicotomia entre natural e
cultural nesta definição não limita à percepção da paisagem, abrindo caminho para a proteção não
só de paisagens naturais mas, também, de paisagens urbanas.
No que tange à proteção da paisagem, a Convenção (2000) estabelece “[...] Política da paisa-
gem designa a formulação pelas autoridades públicas competentes de princípios gerais, estratégias
e linhas orientadoras que permitam a adoção de medidas específicas, tendo em vista a gestão e o
ordenamento da paisagem”. Sendo assim, a Convenção Europeia de Paisagem estabelece diretri-
zes para uma política de preservação da paisagem que deve ser formulada pelo poder público.
A proteção da paisagem, pelos valores a ela atribuídos, desempenha importante papel em
diferentes dimensões da sociedade contemporânea, sendo uma das atribuições da política pública
estabelecer critérios para que sejam adotadas estratégias para sua preservação e gestão.
No Brasil, no que tange à preservação da paisagem cultural, podemos ressaltar a Lei Federal
n° 6.938/81, a Carta de Bagé ou Carta da Paisagem Cultural, de 2007, a Portaria n° 127, de 30
de abril de 2009 do IPHAN.
A Lei Federal n° 6.938/81, que “[...] dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente,
seus fins e mecanismos de formulação e aplicação” define meio ambiente como “[...] o conjunto
de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e 5Carta de Bagé ou Carta da Paisagem
biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas for- Cultural: Artigo 1 - A definição de
mas” (art. 3°, inc. I) e poluição como “[...] a degradação da qualidade paisagem cultural brasileira funda-
menta-se na Constituição da Repú-
ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente afe- blica Federativa do Brasil de 1980,
tem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente” (art. 3°, segundo a qual o patrimônio cultural
inc. III, letra d, grifamos). é formado por bens de natureza ma-
terial e imaterial, tomados individu-
Podemos assim destacar que a legislação ambiental aborda a pai- almente ou em conjunto, portadores
sagem, em seu aspecto natural, como valor ao meio ambiente e, de referência à identidade, à ação, à
particularmente, a paisagem urbana. A preservação da paisagem é memória dos diferentes grupos for-
madores da sociedade brasileira, nos
considerada um tema urbanístico e ambiental, que considera a ma- quais se incluem as formas de ex-
nutenção de padrões estéticos no cenário urbano. pressão, os modos de criar, fazer e
A Carta de Bagé ou Carta da Paisagem Cultural apresenta viver, as criações científicas, artísti-
importantes considerações sobre a definição de paisagem cultural no cas e tecnológicas, as obras, obje-
tos, documentos, edificações e de-
Brasil e estabelece diretrizes para sua proteção, preservação e ges- mais espaços destinados às mani-
tão, na qual destacamos (1) o Artigo 1 - que apresenta a definição de festações artistico-culturais, os con-
paisagem cultural brasileira fundamentada na Constituição da Repú- juntos urbanos e sítios de valor his-
tórico, paisagístico, artístico, arque-
blica Federativa do Brasil de 1980, ou seja, a partir da definição de ológico, paleontológico, ecológico e
patrimônio cultural5; (2) o Artigo 2 – que amplia o conceito de pai- científico.
111
sagem cultural, definindo-a como “[...] o meio natural ao qual o ser humano imprimiu as marcas de
suas ações e formas de expressão, resultando em uma soma de todos os testemunhos resultantes da interação do
homem com a natureza e, reciprocamente, da natureza com o homem, passíveis de leituras espaciais e
temporais” (grifo nosso); (3) o Artigo 3 – que estabelece diretrizes para a proteção e preservação
da paisagem cultural, definindo-a enquanto “[...] objeto das mesmas operações de intervenção e preservação
que recaem sobre todos os bens culturais.” Cabe, então, para a adoção de medidas de salvaguarda da
paisagem cultural brasileira “[...] operações como as de identificação, proteção, inventário, registro, documenta-
ção, manutenção, conservação, restauração, recuperação, renovação, revitalização, restituição, valorização, divulga-
ção, administração, uso, planejamento e outros”.
A Portaria n° 127, de 30 de abril de 2009 do IPHAN, cujo objetivo é definir os critérios para
a concessão da chancela de Paisagem Cultural Brasileira, apresenta para tanto a seguinte definição
no seu Artigo 1º: “Paisagem Cultural Brasileira é uma porção peculiar do território nacional, representativa do
processo de interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou
atribuíram valores”.
Considerando os pressupostos teóricos expostos, podemos constatar que, no Brasil, a noção
de paisagem integra a noção do meio natural e a relação que o homem tem com este meio ao
longo da história. Além disto, a paisagem, pela abordagem do IPHAN, é considerada um bem
cultural, passível de inventário, intervenções de proteção e preservação, tais como a Chancela de
Paisagem Cultural, que estabelece a partir deste reconhecimento as diretrizes de gestão.
Logo, no contexto nacional, a paisagem é um dos elementos que constituem o patrimônio
ambiental urbano, podendo a ela ser atribuído um significado cultural.
No que tange à abordagem teórico-metodológica sobre o estudo da paisagem, Santos (1982)
orienta sobre o seu significado cultural:
“Paisagem é considerada em um triplo significado cultural, por-
quanto, é definida e caracterizada da maneira pela qual determinado territó-
rio é percebido por um indivíduo ou por uma comunidade; dá testemu-
nho ao passado e ao presente do relacionamento existente entre os indiví-
duos e seu meio ambiente; ajuda a especificar culturas e locais, sensibilida-
des, práticas, crenças e tradições” (grifo nosso).
Sendo assim, para o estudo das paisagens culturais no Brasil, notadamente as paisagens urba-
nas, devem-se investigar os seus significados culturais, conforme abordado por Milton Santos
(1982), em especial a forma de percepção dos indivíduos e pela sociedade, os seus testemunhos
do passado, e a relação destas permanências com as culturas, tradições, práticas e crenças locais.
Devem-se considerar, também, as diretrizes de proteção e preservação estabelecidas nos
documentos de referência, de abrangência internacional e nacional.

6. Rupturas e permanências na paisagem de Vitória/ES


“Por que teriam apelidado a nossa capital de Cidade-Presépio? Pelo seu
tamanho? Pela sua apresentação completa, em que há pedaços de oceano
maravilhosos, montanhas encantadoras e casas pequeninas trepando pelas
encostas? Ou porque, na sua forma tudo se aglomera, acotovela,
espremidamente, entre um braço de mar e contrafortes altivos, dando de
fato, a idéia de um presépio armado por mãos caprichosas? Na pequena ilha
112
de Vitória há trecho de todos os tipos. Há trechos […] evocando o nosso
passado de terra colonizada por gente lusa, vinda do velho Portugal.”
Aerobaldo Léllis, c.1920

O primeiro documento que registra a paisagem urbana da Vila da Vitória data do Século
XVIII e foi elaborado pelo engenheiro militar José Antônio Caldas. O documento (Figura 04),
intitulado Prospecto da Villa da Victória, é datado de 1767 (REIS, 2000).
O levantamento da vila retratou alguns aspectos da relação de sua ocupação urbana com seu
sítio, que merecem ser atestados. Deve-se primeiro considerar que o prospecto foi elaborado
estando o autor, o engenheiro militar José Antônio Caldas, situado no outro lado da baía, tendo
uma visão mais privilegiada de um perfil lateral, e não frontal.
Pode-se constatar este direcionamento no prospecto em virtude da topografia acidentada da
região. Assim, ao enumerar os principais pontos da cidade, o engenheiro militar destacou a posi-
ção da Igreja da Companhia de Jesus, o convento de São Francisco, a Igreja Matriz e a região
íngreme onde se localizou o Fortim São Diogo, respectivamente, identificados com os seguintes
números registrados na Planta da Villa da Victória: 2; 9, 16 e 21, outro levantamento importante
que o engenheiro realizou na ocasião (Figura 03).
A implantação da vila no platô, cuja maior elevação não ultrapassava a cota de 25 metros,
teve como destaque os edifícios religiosos, que através de sua arquitetura são o maior destaque
da iconografia, em especial das duas torres da Igreja de São Tiago, o templo jesuítico, em tama-
nhos diferentes e o frontão triangular, que compunham a fachada. A Igreja Matriz, que é vista em
sua lateral e, de fundos, também teve suas dimensões destacadas na paisagem urbana. O conven-
to de São Francisco, em sua posição privilegiada, a meia encosta, é retratado, ainda neste período,
fora do aglomerado de casarios que compunham a vila, i.e., mantinha-se praticamente fora de
seus limites físicos (Figuras 03 e 04).
A densa ocupação no platô e, das áreas circunvizinhas, é demonstrada pelo grande número de
casarios de dois e até três pavimentos, como aqueles que se localizaram próximo ao mar e são
melhores visualizados na iconografia. A região da praia é formada pelos cais e armazéns, que têm
proporções significativas. Em destaque, as ameias do Forte de Nossa Senhora da Vitória (Figuras
03 e 04).
A vila tinha na área central do platô implantado os três principais templos religiosos, que
foram, desde o século XVI, os elementos irradiadores do crescimento urbano. A partir deste
epicentro as ruas foram estruturadas até se implantarem na parte mais baixa, onde se instala-
ram os cais e a parte comercial, como em outras vilas e cidades da América Portuguesa, numa
clara referência ao urbanismo lusitano: a configuração espacial estruturada em cidade alta e
cidade baixa.
A relação da Vila da Vitória com o sítio é tão peculiar que se estendeu à configuração do
conjunto urbano, que está situado entre os dois braços de mar, poucos perceptíveis na iconografia,
e na meia encosta atrás do platô. Do ponto onde se posicionou a câmara escura, registrou-se este
encastelamento “[...] nas grimpas da montanha a se espelhar nas águas tranquilas de um lago”
(DERENZI,1995, p. 79). As ruas, estruturadas a meia encosta, e as ladeiras, configuraram a
implantação de quarteirões e lotes, de tal forma, que o casario, registrado no levantamento, se
implantou de maneira escalonada no sítio. Os diferentes níveis onde se situa o casario, implantado
113
lado a lado, sem recuo lateral, até o cume do platô, oferece uma percepção da conformação das
ruas, que se relacionavam com o desnível do casario (Figuras 03 e 04).
Este panorama registrado no século XVIII só viria a se modificar no final do século XIX e
início do século XX. No século XIX, a Vila da Vitória passou por diversas transformações impor-
tantes, tanto no aspecto físico-espacial, quanto nos aspectos econômicos sociais e políticos que, de
certa forma, foram as principais causas do início de uma série de mudanças que vieram ocorrer
em sua estrutura física.
No governo de Francisco Alberto Rubim (1812-1819), segundo Martins (1995), ocorreram
as principais intervenções na Vila da Vitória, iniciando-se os aterros das áreas alagadiças e dos
manguezais que delimitavam o platô onde estava implantada a vila. A área da cidade baixa que foi
se formando através dos entulhos jogado junto ao mar no fundo das casas passava então a se
constituir em uma das principais áreas da cidade, dando origem à Rua da Praia, que veio a ser a
artéria mais comercial do local, dando origem à Avenida Capixaba, e posteriormente à Avenida
Jerônimo Monteiro, uma dos principais corredores de passagem de Vitória na contemporaneidade.
A configuração espacial da vila, no entanto, não mudou em relação à sua organização inicial,
i.e., as construções de uso comercial, residencial e institucional e de lazer, se davam próximas
umas das outras, com destaque para as igrejas e construções públicas, sendo que a área central do
platô continuava a ser a mais densa, muito embora, conforme citado, já havia a ocupação junto ao
mar na faixa de terreno de cota mais baixa. Até o início do século XIX, os templos religiosos ainda
dominavam não só a paisagem, mas também a estrutura urbana da mancha matriz de Vitória.
A Perspectiva da Vila da Vitória, 1805, de autoria Joaquim Pantaleão (REIS, 2000) (Figura
05) é outro documento que apresenta o perfil urbano do período, tendo em destaque os templos
religiosos emoldurados pela colina. Ou seja, nos séculos XVIII e XIX temos os mesmos elemen-
tos que estruturam a paisagem urbana da vila.
Na pesquisa de doutoramento concluímos a importância que a Igreja Católica teve como
agente modelador do espaço da Vila da Vitória. A ligação entre os primeiros templos estruturou o
traçado da vila, bem como definiu os espaços onde se consolidou a ocupação do casario, que lado
a lado, por adição, configuraram os quarteirões, conforme já citado. Esta é uma das característi-
cas, segundo Reis Filho (1968), da formação espacial das primeiras vilas do período colonial, e se
não destas, das povoações mais simples. Esta lógica esteve presente na ocupação do sítio onde se
consolidou a Vila da Vitória, e foi influenciando em seu crescimento, até o início do século XX.
A partir do século XX, o desejo de rompimento com o passado colonial deu origem a uma
série de intervenções no espaço urbano de Vitória, elevada à categoria de cidade em 1823. A
cidade foi, então, “ecletizada”, e para tanto, durante o século XIX iniciaram-se diversas obras que
inauguram o que foi denominado posteriormente embelezamento da cidade.
Uma das intervenções mais impactantes para a transformação da paisagem urbana foram os
aterros. Nos relatório de governo do século XIX constata-se que essas obras passam a ter um
investimento maior do poder público: em 1847, 1848, e 1871, registram-se obras para o aterro da
área denominada Campinho; em 1861 e 1862, registram-se obras para o aterro da área denomi-
nada Lapa. Na década de 1870 diversas intervenções urbanas foram feitas para melhoria ou
construção de praças, o que já demonstra uma nova concepção das áreas urbanas: ocorrerem as
114
obras na Praça do Palácio (antigo colégio jesuítico), no Cais do Santíssimo, Praça do Mercado,
Praça da Alfândega.
Os aterros deram origem a um novo solo urbano, que passa a ser ocupado por ruas e edifícios
que deveriam traduzir as inovações urbanas advindas da Europa: traçado regular e arquitetura
com novos conceitos e tecnologia, traduzindo um novo padrão social e estético. O estilo empre-
gado em Vitória no início do século XX foi o Eclético, tendo a administração municipal investido
em normas para que a cidade passasse a ter uma nova imagem. Neste momento, os elementos
arquitetônicos, urbanos e paisagísticos remanescentes da cidade colonial sofrem grandes transfor-
mações. Com a demolição de praticamente todo o casario da cidade alta dá-se o início ao processo
de perda do acervo de bens culturais dos três séculos precedentes. Além do casario, as modifica-
ções no traçado e a ocupação da colina ao fundo do platô também vão transformar a paisagem
urbana de Vitória.
O crescimento econômico ocorrido a partir da década de 1960 traz novas transformações
para a paisagem urbana de Vitória, com a conquista de novos espaços junto ao mar, ampliando as
áreas aterradas. Estas áreas passam a ser ocupadas por edifícios que rompem a escala de dois e
três pavimentos, então, gabaritos predominantes na área de estudo. Surgem os edifícios de até 15
pavimentos, que vão modificar a relação do sítio com o conjunto arquitetônico, urbano e paisagístico
colonial e eclético.
A partir dessas transformações, o centro da cidade de Vitória adquire um novo perfil. A
necessidade de se avaliar as rupturas e permanências do acervo de bens culturais, notadamente o
acervo arquitetônico, urbano e paisagístico, se dá pela sua relevância na história da arquitetura e
urbanismo do Brasil, tendo em vista que a cidade, conforme citado, é uma das mais antigas do
país e teve em sua estruturação elementos da tradição urbana lusitana.
A partir da elaboração de mapas temáticos de síntese, que são documentos cartográficos
resultantes da síntese das pesquisas realizadas a partir de fontes primárias e secundárias, que
fundamentaram a análise histórica da formação urbana de nosso objeto de estudo e integram o
conjunto de reflexões do doutoramento (SOUZA, 2005) e da presente pesquisa, pode-se analisar
as transformações da paisagem urbana de Vitória. Ressaltamos que os mapas temáticos de síntese
são abstrações intelectuais que apresentam o fenômeno urbano de forma simbólica, e que objetivam
conjecturar as diferentes formas que o espaço e a paisagem urbana podem ter assumido.
Dessa forma, através dos mapas temáticos e da cartografia histórica, realizou-se uma síntese
da evolução das transformações da paisagem urbana da Vila da Vitória, buscando demonstrar as
(1) características de seu sítio de implantação, (2) as características da paisagem urbana colonial e
(3) as rupturas destes elementos na paisagem do século XX e na contemporaneidade.
Através da Figura 01 observa-se o sítio de implantação da Vila da Vitória dentro da Baía
homônima, em posição defensável, remetendo às implantações urbanas da tradição lusitana que
foi utilizada na América Portuguesa.
No Detalhe da Figura 01, pode-se observar as características do platô onde foi implantada a
Vila da Vitória no século XVI. Vê-se em destaque que a porção de terra onde se estruturou a
115
Figura 01 – Mapa Temático de Síntese. Planta de Reconstituição da implantação da Vila da Vitória no Século XVI.
Autoria: Luciene Pessotti, 2010.
Fonte: Acervo da autora

trama urbana era ladeada pelas águas da baía e ao fundo o maciço central da ilha. Ressalta-se que
as ocupações junto ao mar foram se dando lentamente até o século XIX, sendo que, a partir deste
momento, iniciam-se os aterros que mudariam o perfil urbano e paisagístico de Vitória.

Detalhe da Figura 01 – Mapa Temático de Síntese. Sítio de implantação (Platô) da Vila da Vitória.
Autoria: Luciene Pessotti, 2010.
Fonte: Acervo da autora.

Na Figura 02, na próxima página, tem-se a modelagem da topografia do sítio onde foi implan-
tada a Vila da Vitória no século XVI. Conforme se atesta, a vila implantada em um platô tinha ao
fundo uma montanha que se sobrepunha à escala da arquitetura colonial. No platô, onde foi
implantada a vila, a maior cota não excedia a 30 metros, e o maciço central possuía altura com
cotas superiores a 200 metros.
116
Figura 02 – Mapa Temático de Síntese. Modelagem do sítio de implantação da Vila da Vitória no Século XVI.
Autoria: Luciene Pessotti, 2010.
Fonte: Acervo do autor.
As Figuras 03 e 04 representam o primeiro levantamento da Vila da Vitória no período colonial,
realizado em 1765, i.e., no século XVIII. A Figura 03 retrata o levantamento do espaço urbano da vila,
com identificação dos principais edifícios e espaços. A Figura 04 registra a paisagem urbana, tendo
como destaque os edifícios religiosos e a cadeia montanhosa ao fundo. Neste perfil pode-se constatar
uma das recorrentes citações da historiografia sobre Vitória: cidade que se estruturou entre o mar e a
montanha. Cabe ressaltar que o engenheiro retratou o perfil da Vila da Vitória no mesmo período em
que foi levantada a sua planta, tendo representado a vila com suas principais características. Esses
levantamentos são um dos principais documentos do período colonial sobre Vitória. Sua análise permi-
te que sejam conhecidos vários aspectos da vida urbana, social, econômica, além de permitir que se
façam conjecturas sobre a forma urbana da vila antes deste levantamento, a partir das informações
levantadas sobre os séculos anteriores coletadas nas fontes primárias e secundárias.

Figura 03 – Planta da villa da Victoria e Planta da Barra.


Autoria: José Antônio Caldas. - Fonte: OLIVEIRA, 1951
117
Na Planta lê-se:
“Planta da mesma villa da Victoria na America Meridional. / 1 Forte do
Ignacio na cerca que foi dos jesuitas / 2 Igreja de S. Thiago dos mesmos /
3 Seo collegio / 4 Mizericordia / 5 Igreja de S. Gonçalo Garcia / 6 Cadêa e
Caza da Camara / 7 Pelourinho / 8 Sto Antonio / 9 Convento dos Capuchos
/ 10 Ordem 3ª de S. Francisco / 11 Capela de St. Luzia / 12 Armazem da
polvora e caza d’armas / 13 Igreja de N. S. do Carmo / 14 Convento dos
religiosos Carmelitas / 15 Ordem 3ª do Carmo / 16 Matriz com o orago de
N. S. da Victoria / 17 Capela de N. S. da Conceição / 18 Pequenas pontes de
comunicação / 19 Trapiche que foi dos jesuitas / 20 Forte de N. S. do
Monte do Carmo / 21 Fortinho de S. Thiago / 22 Cazas e caes, que a bem
da fortificação se embargaram quando se levantou esta planta / Petipé.”

Figura 04 - Prospecto da Vila da Vitória.


Autoria: José Antônio Caldas.
Fonte: REIS, 2000.

No Prospecto lê-se:
“Prospeto da Vila da Vitoria Capital da Capitania do Espirito Santo, e
distante da foz do Rio do mesmo nome, huma Legoa: na Latitude de 20 g.
e 15 m. ao sul, e 334 g e 45 m. de longitude. Foi tirado com Acamara
obscura por Jozê Antonio Caldas. Capitam de Infantaria com exercicio de
Engr.º Lente da Aula Regia das forteficasoens da Bahia, mandado à dita
Capitania do Real Serviso pelo Ilum.º e Exm.º S.r Conde de Azambuja
Capitam General e Governador desta Capitania B.ª8 de Sbr d 1767”.
Autor: José Antônio Caldas.
Fonte: Original manuscrito do Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro.
118
No Prospecto lê-se também:
“Prospecto da vila da Victoria / Capital da Capitania do Espírito-Santo e
dis- / tante da foz do rio do mesmo nome urna legoa na / latitude meridi-
onal de 20°-15’ e na longitude de 344°-15’. / Explicação: / 1 Trapiche que
foi dos jesuitas / 2 Igreja e collegio dos mesmos / 3 Forte de N. S. do
Carmo / 4 Igreja da Misericordia / 5 Cadêa e Caza da Camara / 6 Igreja
Matriz / 7 Forte de S. Thiago / 8 Igreja e Convento de S. Antonio dos
Cap.os / 9 Pedra redonda / 10 Monte da vigia / 11 Sequito que as embar-
cações trazem pelo rio.”
A Figura 05 retrata a paisagem urbana de Vitória no século XIX, no ano de 1805. O levanta-
mento realizado mostra em destaque a presença dos cais no porto, pois as atividades comerciais
estavam aquecidas e a vila já sentia os sinais das melhorias econômicas do período. Ainda perma-
necem em destaque na paisagem no início do século XIX as torres sineiras da igreja jesuítica, bem
como a montanha ao fundo.

Figura 05 - Perspectiva da Villa da Victoria, em 1805.


Autoria: Joaquim Pantaleão.
Fonte: REIS, 2000

Na Perspectiva lê-se:
“PERSPECTIVA DA VILLA DE VICTORIA/ Capitania do
ESPIRITO SANTO por Joaquim Pantaleão Per.ª da S.ª/ Anno de 1805”.
Autor: Joaquim Pantaleão Pereira da Silva.
Fonte: Original manuscrito do Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro.

É uma vista em perspectiva da Vila de Vitória, tomada a partir do canal. O maior destaque
aparece no antigo Colégio dos Jesuítas, com sua igreja (A) e, na extremidade direita da colina, a
Matriz, já com sua nova fachada com frontão trabalhado (B). Bem mais acima vemos a igreja do
Rosário (D); entre a Matriz e o Colégio dos Jesuítas, a igreja da Misericórdia (C) e a Casa de
119
Câmara e Cadeia (E), com dois corpos de telhado destacados. Ao centro, um grande cais avança
em direção ao canal.
As análises sobre a evolução urbana de Vitória demonstraram alguns resultados que podem
ser verificados através das Figuras 06 e 07.

Figura 06 - Mapa Temático de Síntese. Permanências e rupturas na estrutura urbana de Vitória.


Autoria: Luciene Pessotti, 2010.
Fonte: Acervo da autora.

Através da Figura 06 pode-se observar que até o século XIX a trama urbana de Vitória,
representada pela cor amarelo, pouco rompeu com seu sítio de implantação, mantendo as
características morfológicas do período colonial, conforme já atestado em outras etapas desta
pesquisa (SOUZA, 2005).
A estrutura urbana representada na cor cinza é aquela que foi se consolidando a partir do
século XIX e que se mantém na contemporaneidade. Na cor roxa os edifícios religiosos
remanescentes do período colonial, que eram destaque na trama urbana e na paisagem de Vitória,
hoje numa posição diferente.
As linhas de preamar representadas nas cores verde, do século XIX, e azul, do século XX,
demonstram a quantidade de área que foi conquistada junto ao mar.
Através da Figura 07 podemos constatar algumas permanências no âmbito da arquitetura na
estrutura urbana de Vitória. A partir do levantamento das edificações protegidas nas diferentes
esferas do poder público, ou seja, no âmbito federal, estadual e municipal, tem-se o inventário
preliminar dessas permanências históricas na área que constitui o objeto de estudo.
Ressaltamos que as edificações tombadas em nível federal são remanescentes do período
colonial, sendo em sua maioria templos religiosos. Praticamente todo o casario colonial foi demolido.
As demais edificações são dos séculos XIX e início do XX.
Dessa forma, pode-se concluir que Vitória preserva muito mais os elementos remanescentes
de uma fase em que o poder público quis apagar seu passado colonial, como uma nova linguagem
urbana e estética, notadamente, o ecletismo, conforme já abordado.
As transformações ocorridas a partir da década de 1960 alteraram profundamente a paisagem
urbana de Vitória. Ao compararmos a paisagem urbana colonial com a paisagem contemporânea,
tendo como marco o século XIX, período onde se inicia a ruptura com as estruturas urbanas e
arquitetônicas, contata-se que os bens culturais dos séculos precedentes foram em sua maioria
perdidos.
120
Figura 07 - Mapa Temático de Síntese. Permanências na estrutura urbana de Vitória.
Autoria: Luciene Pessotti, 2010.
Fonte: Acervo da autora.

Através da Figura 08 podemos atestar como a evolução urbana de Vitória até o século XIX
não alterou a lógica de crescimento desde a conformação da mancha matriz, ou seja, de acordo
com o padrão do urbanismo lusitano vernacular.

Figura 08 - Estrutura urbana de Vitória no Século XIX.


Autoria: Luciene Pessotti, 2010.
Fonte: Acervo da autora.

As transformações ocorridas a partir do século XIX podem ser verificadas através da Figura
09, onde são apresentados juntamente três perfis da paisagem urbana de Vitória, sendo o primeiro
do século XVIII, o segundo do século XIX e o terceiro da contemporaneidade.
Entretanto, o elemento natural, notadamente o maciço central, permanece em destaque. Nota-
se que a baía ainda possui forte impacto na percepção da paisagem, entretanto, a relação da cidade
com o mar foi bastante alterada, e a percepção de cidade estruturada entre o mar e a montanha
também foi perdida.
Ainda que a percepção da paisagem urbana de Vitória não ofereça uma visão de seus bens
culturais remanescentes do período colonial, tendo sido adotado o mesmo ponto de observação
da cartografia histórica, ou seja, o registro se dá pelo mar numa visão mais ampla da área de
estudo, pode-se, entretanto, afirmar que algumas perspectivas internas na estrutura urbana permitem
a percepção de edifícios e áreas históricas.
121
Figura 09 – Perfis da paisagem a urbana de Vitória nos séculos XVIII, XIX e XXI.
Autoria: Luciene Pessotti, 2010.
Fonte: Imagens do acervo da autora.

No entanto, optamos, nesse primeiro momento, por adotar as mesmas visadas obtidas ao
longo dos séculos XVIII, XIX, XX e XXI, objetivando manter o mesmo critério metodológico
para observar as permanências e rupturas da cidade colonial na contemporaneidade.
Embora a pesquisa não esteja concluída podemos constatar que poucos são os elementos
deste período ainda presentes na paisagem urbana de Vitória, sendo a imagem da cidade
contemporânea completamente diversa daquela que apresentamos na cartografia histórica, que
retratava as importantes referências da tradição urbana lusitana.

7. Conclusão
A Vila de Nossa Senhora foi uma das formações urbanas na América que se constituiu como
um dos principais recursos da Coroa Portuguesa para garantir a posse a e a exploração dos
territórios conquistados no período colonial.
Os pressupostos teóricos da história urbana, ressaltando na pesquisa em andamento, o estudo
da paisagem urbana, vêm fundamentando os estudos e as análises da formação e consolidação do
espaço urbano da Vila de Nossa Senhora da Vitória, sede da capitania do Espírito Santo na longa
duração. O papel da Igreja Católica é considerado um dos principais aspectos nesta pesquisa, pois
influenciou diretamente na formação do espaço da vila, tendo em vista que naquela ocasião havia
se constatado a influência que a Companhia de Jesus teve na mudança da sede da capitania para
a ilha onde haviam se implantado.
A Igreja Católica, a partir de suas referências, influenciou na configuração espacial do espaço
urbano da Vila da Vitória. Logo, os edifícios religiosos e seus espaços contíguos tiveram importante
papel na definição da trama urbana, logo em sua paisagem.
122
A Vila da Vitória teve em sua configuração espacial referências da Igreja Católica e da tradição
urbana lusitana. Estes fenômenos demonstraram que ao longo dos séculos XVI ao XIX houve
uma preponderância de alguns fatores a orientar o desenvolvimento urbano da vila, mas, de uma
forma mais atuante, a presença da Igreja Católica, no contexto destas relações, influenciou na
estruturação dos espaços de Vitória.
No entanto, ressaltamos que a paisagem urbana de Vitória constitui-se de elementos culturais
remanescentes de diferentes períodos. Nesse sentido, a paisagem urbana reflete as transformações
pelas quais Vitória passou nos últimos dois séculos.
As conquistas de solo urbano proporcionadas pelos aterros e a verticalização da área central
de Vitória refletem como as alterações econômicas, sociais e culturais transformaram a pequena
vila colonial que manteve seu aspecto paisagístico com as mesmas características até o século XIX
numa cidade cujo aspecto pouco se assemelha à sua origem.
Ainda que esta pesquisa aborde somente o período colonial, cabe um amadurecimento para se
problematizar as permanências dos séculos XIX e XX na estrutura urbana de Vitória.
Entretanto, a importante contribuição das reflexões sobre a paisagem urbana se dá justamente
nesse sentido, ou seja, poder constatar quais são os elementos que persistem ao longo da história
e quais são, portanto, os principais bens culturais que refletem a trajetória da cidade na longa
duração.
Esses bens culturais são, portanto, o resultado das escolhas que foram feitas pela sociedade ao
longo da história, e os novos elementos inseridos no espaço configuram a paisagem da cidade que
esta mesma sociedade moldou e retrata sua memória coletiva.

8. Agradecimentos
Agradecemos o apoio do CNPq e da FAPES pelo financiamento desta pesquisa. Agradecemos
ainda a UFES e, em especial ao PPGA, pelo apoio no desenvolvimento da pesquisa ora em
andamento.

9. Referências Bibliográficas
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p.215-252.

124
ATORES DA CONSTRUÇÃO CIVIL NA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO SANTO DO SÉCULO XIX.

Nelson Pôrto Ribeiro*

1. Introdução
Este artigo pretende tratar dos atores da construção civil no Espírito Santo do século XIX e
o papel que estes desempenharam na constituição da arquitetura e da engenharia edificada no
período. Procuraremos analisar, dentro do contexto técnico-cultural da época, a atuação dos
indivíduos e das instituições que de alguma forma estiveram envolvidas com a construção civil,
desde as corporações de ofício dos mestres de obra, os fabricantes de materiais, os construtores
etc. até o aparecimento da categoria dos engenheiros civis na segunda metade do século e o papel
de destaque que estes passaram a desempenhar não apenas na construção civil da província, mas
também na vida pública e social em geral.
Antes do advento da máquina a vapor – da ferrovia e dos grandes navios que baratearam os
transportes - a arquitetura era, com raras exceções, fruto das possibilidades locais de material de
construção os quais interagiam com as condições culturais. A casa e o espaço urbano eram,
sobretudo, matéria e cultura no que essas duas palavras têm de mais primevo: terra, pedra,
madeira e conhecimentos construtivos vernáculos. Somente a Revolução Industrial - com o incre-
mento da produtividade e da distribuição através do transporte a vapor, com a internacionalização
do saber técnico etc. - conseguiu instituir paulatinamente uma globalização na arquitetura e fez
com que, na segunda metade do século XIX, não apenas uma telha de Marseille, um perfil
metálico belga, uma barrica de cimento inglesa pudessem ser utilizados em pequenas estações
ferroviárias de localidades ermas da província do Espírito Santo como Matilde ou Viana, mas
também instituiu um padrão geral na arte construtiva - até então marcada pelo vernáculo - e que
se concretizou no Brasil a partir do desenvolvimento da engenharia civil.
Contudo, o início deste mesmo século - que viu o advento da máquina a vapor, que viu a
generalização da importação dos materiais de construção e que viu o fortalecimento e a predomi-
nância de uma nova categoria profissional da construção; os engenheiros civis -, ao menos na
América portuguesa, foi ainda profundamente marcado pelos entraves do Antigo Sistema Coloni-
al; uma formação da mão de obra braçal fortemente assentada na instituição medieval das
corporações de ofícios1 e apoiada em trabalho escravo, assim como em uma economia funda-
mentalmente agrária e extrativa.
Essas características, que na província do Espírito Santo viam-se * Universidade Federal do Espírito
potencializadas pelo isolamento do território e pela pobreza dos re- Santo.
1
cursos culturais, faziam com que as vilas e povoações no limiar do Mônica de Souza N. Martins. En-
tre a cruz e o capital: as
século não passassem de arremedos urbanos: “a pretensa vila (de corporações de ofícios no Rio de
Itapemirim) é somente um lugarejo composto, se tanto, de 60 casas, na maior Janeiro após a chegada da Família
parte cobertas de palha e nas mais deploráveis condições. Essas cabanas for- Real (1808-1824). Rio de Janeiro:
mam uma única rua muito curta (com uma) praça inacabada”2 observou 2 Garamond, 2008. p.27.
Auguste de Saint-Hilaire. Viagem
o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, em 1818. O bispo ao Espírito Santo e Rio Doce. Vi-
Coutinho, nas anotações das suas visitações de 1819 e 1820, obser- tória: Secretaria Municipal de Cul-
vou que Linhares “tem uma grande praça quadrada, quase toda já cheia por tura, 2002. p.25.
125
três lados de casas todas de palha” ou que Viana era constituída de “umas quatro ou cinco moradias de casas
de telha e caiadinhas (...) porque as demais são barracos de barro e palha” ou, ainda, que Nova Almeida era
conformada por uma grande praça “mas com todas as casas térreas feitas de barro, e cobertas de palha”3.
As práticas construtivas empregadas nesses povoados denotam não apenas uma carência de
material artesanal de qualidade para a construção civil, mas em especial a ausência de uma mão de
obra especializada que possibilitasse técnicas mais elaboradas, pois se sabe que a arquitetura de
terra é fundamentalmente vernácula e exige consideravelmente menos mão de obra qualificada
do que a arquitetura de pedra e cal ou de tijolos cerâmicos. Foi esta a técnica por excelência
utilizada nos primeiros tempos da colonização, porque permitia envolver a população em mutirão:
embora em Vitória não faltasse pedra e nem mesmo material para a fabricação de cal, foi em
terra que teria sido construído o primitivo Colégio dos Jesuítas da Vila4.

2. Os materiais de construção
Dentre os fatores preponderantes que determinavam à época a técnica, assim como o aspec-
to da construção civil, encontra-se aquele que diz respeito às possibilidades de materiais de cons-
trução disponíveis no local em que se constrói: estes eram fruto não apenas da matéria-prima
bruta e diretamente beneficiada (terra, pedra e madeira) como também da matéria-prima passível
de ser transformada pelo labor humano em novos materiais; em especial a cal e os materiais
cerâmicos (tijolos e telhas). A falta de diversidade dos materiais era um forte limitador nas possi-
bilidades da edificação, já que o barateamento dos transportes no Espírito Santo parece ter sido
mais efetivo apenas após o implemento da ferrovia.
3
D. José Caetano da Silva Coutinho. A província do Espírito Santo na sua vastidão e riqueza natural era
O Espírito Santo em princípios do
século XIX: apontamentos feito
pródiga em matéria-prima para a construção civil. A madeira era farta e
pelo Bispo do Rio de Janeiro quando de excelente qualidade, Coutinho observou abundância de “perobas, tapinhuãs,
de sua visita à Capitania do Espí- pau-brasil, amarelos, vinháticos, cedros, jacarandás, carapiapunhas, ipês etc”5.
rito Santo nos anos de 1812 e 1819.
Vitória: Estação Capixaba e Cultu- Maximiliano de Wied realçou o fato de que a peroba, por ser excelente
ral, 2002. pp: 69; 87; 131. madeira de lei para a construção naval, era considerada na época propri-
4
Paulo F. Santos. Contribuição ao edade da coroa6. O cônsul suíço Tschudi - que andou pela província em
estudo da arquitectura da Compa-
nhia de Jesus em Portugal e no 1860 - louvou a qualidade das madeiras nativas da região, em especial as
Brasil. Separata do Vol. IV das do sul (Benevente), propícias tanto para a construção naval como para a
Atas do V Colóquio Internacional
de Estudos Luso-Brasileiros.
construção civil, sendo que as do último tipo eram mesmo exportadas
Coimbra, 1966. p.38-39. para a corte7. O Quadro n° 1 mostra localidades da província que na
5
Coutinho. op.cit. p.75. segunda metade do século tinham se constituído em importantes produto-
6
Maximiliano, Príncipe de Wied- ras de madeira: São Pedro de Cachoeira, N. Sra. do Amparo de Itapemirim
Neuwied. Viagem ao Brasil. Belo
Horizonte: Itatiaia: São Paulo: e Alegre, entre outras. Provavelmente centravam-se na extração impor-
EDUSP, 1989. p.160 tando em seguida o material bruto. O Dicionário Marques informa a
7
Johann Jakob von Tschudi. Via- ‘madeira de construção’ como um dos principais produtos que alimenta o
gem à província do Espírito San-
to: imigração e colonização suí- comércio da província, complementando ainda que a receita de exporta-
ça 1860. Vitória: Arquivo Público ção no exercício de 1863-64 foi praticamente toda proveniente da expor-
do Estado do Espírito Santo,
2004. p.95. tação de madeira para a Grã Bretanha8. Paradoxalmente, uma província
8
Cezar Augusto Marques. Diccionario tão rica em florestas nativas importava madeira beneficiada: o italiano
Histórico, Geogra-phico e Estatísti- Carlo Nagar - em missão consular por volta de 1895 - lamentava que a
co da Província do Espírito Santo.
Rio de Janeiro: Typographia Nacio- falta de mão de obra qualificada assim como de estradas de rodagem
nal, 1878. p.89 e 90. impedissem uma adequada exploração das riquezas das imensas florestas
126
locais, obrigando o comércio de Vitória muitas vezes a importar madeiras da América do Norte e do Rio
de Janeiro9. Os relatórios das Estradas de Ferro Sul do Espírito Santo, escritos ao final do século, confir-
mam que Nagar não estava muito distante da realidade, pois esquadrias, pisos e forros em madeira,
utilizados na construção das estações ferroviárias, foram importados do Rio de Janeiro10.
Quanto ao material lapídeo disponível na província, o engenheiro André Rebouças, da Politécnica do
Rio de Janeiro, observou em 1885 que o Espírito Santo tinha como “rocha predominante (..) o gneiss-granito, ou
o gneiss-granitoide, análogo aos da Província do Rio de Janeiro”11. Observe-se que a exploração dos mármores e
granitos ornamentais na região só vai acontecer a partir da descoberta de significativas jazidas já no século
XX, antes toda a arquitetura local utilizava-se apenas do tipo de pedra referida por Rebouças, material
abundante que aflora à superfície de toda a costa capixaba. Embora não seja o tipo de pedra ideal para a
construção civil – pois o gnaisse é pesado, adere mediocremente às argamassas de cal e é duro, sendo
difícil de afeiçoar e lavrar12 - ainda assim produz alvenarias sólidas e de grande durabilidade que foram
muito utilizadas ao longo do período português na América – tal como o Rio de Janeiro colonial que
também foi todo construído com este tipo de pedra: construções robustas, argamassadas e caiadas, que
incorporavam aqui e ali um detalhe de pedra lavrada; um parapeito, uma ombreira, um cunhal. Ao
contrário dos arenitos e calcários encontráveis no Nordeste, o gnaisse não é uma pedra branda e não
permite com facilidade ornatos e esculturas nas fachadas. Pela tabela que 9 Carlo Nagar. Relato do Cavalheiro
organizamos com os dados do Dicionário de Marques observamos que, Carlo Nagar, Cônsul Real em Vitó-
com exceção de Vitória, em 1878 inexistiam na província operários traba- ria: O Estado do Espírito Santo e
a imigração italiana (fevereiro de
lhando como canteiros ou calceteiros, o que é bastante significativo, pois 1895). Vitória: Arquivo Público do
indica que a pedra, quando usada devia receber apenas um beneficiamento Estado do Espirito Santo – Bibli-
primário (fragmentação) para poder ser utilizada como pedra de mão nas 10 oteca Digital, 1995. p.54-55.
Relatórios da Estrada de Ferro
alvenarias de pedra e cal. Havia locais na província, contudo, onde a difi- Sul do Espírito Santo do Thesouro
culdade de obtenção de pedra para a construção civil era sentida, como do Estado e do Commissariado
em Linhares e São Mateus, onde as pedras tinham que ser buscadas no Geral de Medições de Terras Pu-
blicas apresentado a S. Exa. o Sr.
fundo da Lagoa Juparanã13. Mas esse não era o quadro geral, na verdade Dr. Jozé de Mello Carvalho Moniz
verifica-se que a pedra se apresentava com fartura na maior parte da Freire D. D. Presidente do Estado
do Espírito Santo. Rio de Janeiro:
província e só foi usada com parcimônia nas localidades afastadas de Leuzinger, 1896. p.32.
Vitória, não por dificuldade de obtenção, mas por carência de mão de 11 André Rebouças. Guia para os
obra qualificada para trabalhá-la; canteiros e pedreiros. alumnos da 1ª cadeira do 1° anno
de engenharia civil. Rio de Janeiro:
A cal também foi um material que o Espírito Santo parece não ter Typographia Nacional, 1885. p.12.
sentido jamais falta, sempre fabricada por processos rústicos e artesanais 12 Nelson Pôrto Ribeiro. Alvenarias
que não comprometiam sua qualidade, e a partir de fontes biogênicas tal e argamassas: restauração e
como foi predominante na tradição portuguesa na América: a matéria- conservação. Rio de Janeiro: In-
fólio, 2009. p.41 e 52.
prima sendo extraída de sambaquis ou de recifes. Nova Almeida era rica 13 Coutinho. op.cit. p.85.
de madeiras e cal que alimentaram as obras da Matriz de Vitória no final 14 Mário Aristides Freire. A Capita-
do século XVIII14. Saint-Hilaire observou que “do Rio da Aldeia Velha nia do Espírito Santo: Crônicas da
(Santa Cruz) sai um importante artigo de comércio, a cal, feita com ostras que se tiram vida capixaba no tempo dos ca-
pitães-mores (1535-1822). Vitó-
das caieiras vizinhas da Vila de Piriquiaçu”15. Ignacio de Vasconcellos na sua ria : Flor & Cultura, 2006. p.208.
Memória Estatística de 1828 calculou os fabricantes de cal da província 15 Saint-Hilaire. op.cit. p.64.
em cerca de trinta, os quais seriam suficientes não apenas para atender a 16 Ignacio Accioli de Vasconcellos.
demanda interna como também para exportar parte significativa da pro- Memoria statistica da Provincia
do Espírito Santo escrita no anno
dução: 100 moios de cal exportados nos anos de 1826-27, o que de 1828. Vitória : Arquivo Público
corresponderia a aproximadamente 83 mil litros do produto16. Estadual, 1978. p.19 e 22.
127
Apesar da excelente qualidade das argilas da Região para a fabricação de tijolos e telhas,
como constatou o engenheiro Rebouças17, a província ressentia-se de olarias. As fazendas e
reduções jesuíticas, ainda de acordo com Serafim Leite, costumavam ter suas próprias olarias,
com certeza desativadas a partir do final do século XVIII com a expulsão dos inacianos18.
Rubim, na sua Breve Estatística de 1817 relaciona uma olaria para fabricação de telhas em
Viana19. Coutinho, ao longo de todo seu trajeto, da Bahia até Linhares, viu uma única olaria em
181920. Vasconcellos relaciona apenas oito em toda a província, pertencentes a algumas fazen-
das e todas deficitárias de qualidade “e não passam por melhores, atribuindo-se antes a imperícia do
fabrico, do que a má natureza do material”21. Ainda segundo as estatísticas apresentadas por este
último autor - ao contrário da cal, que tinha seu excedente exportado - telhas e tijolos eram
objetos de importação22. Quando de uma reforma executada no antigo prédio dos jesuítas, em
1849, anúncio no Correio da Vitória demandava: “Precisa-se para obra do palácio da presidência dessa
província (...) 10 milheiros de telha que seja do Rio de Janeiro ou de Campos”23: é quase certo que devido
à penúria dos cofres administrativos esta restrição para a origem do material seja vinculada não
apenas a uma falta de qualidade do material, mas sobretudo a uma
17
Rebouças. op. cit. p.12.
inexistência do mesmo em quantidade necessária. Parece que a si-
18
S. I. Serafim Leite. Artes e ofícios
dos jesuítas no Brasil (1549- tuação se altera um pouco na segunda metade do século, pois o
1760). Edições Brotéria : Livros Relatório de 1852 cita a Vila de Serra como sendo local de fabrica-
de Portugal : Lisboa : Rio de
Janeiro, 1953. p.65.
ção de material cerâmico de qualidade devido à excelência do bar-
24
19
Francisco Alber to Rubim. ro . O Relatório de 1859 atribuía ao Município de São Matheus
Memórias para servir a história duas olarias de tijolos e de telhas25.
até o anno de 1817, e breve
noticia statistica da Capitania do
Espírito Santo, porção integrante
3. A mão de obra braçal
do Reino do Brasil. Lisboa: Entre os protagonistas da construção civil de certo se encon-
Imprensa Nevesiana, 1840.
(Vitória: Arquivo Público do Estado tra a mão de obra operária, que, ainda que anônima, sempre foi
do Espírito Santo, 2003). p.21. fator determinante nas possibilidades técnicas e plásticas disponí-
20
Coutinho. op.cit. p.82. veis quando da concepção da edificação por um profissional qua-
21
Vasconcelos. Memória
statística... op.cit.. (19).
lificado; fosse engenheiro ou arquiteto. Sabe-se que nos primórdios
22
Idem. (22). da implantação da cultura portuguesa na América engenheiros
23
Correio da Victória, Vitória,14 set. militares da coroa muitas vezes foram obrigados a se circunscre-
1849, ano I, Nº 71. verem a projetos modestos em virtude da carência de mão de
24
Relatorio que o Exm. Presidente
da Província do Espírito Santo o
obra operária disponível. Como a formação e qualificação desta
Bacharel José Bonifácio mão de obra nas terras do Novo Mundo, nas quantidades neces-
Nascentes d’Azambuja, dirigiu a sárias, desde o princípio da colonização, era praticamente impos-
Assembléa Legislativa da mesma
provincia na sessão ordinaria de sível – a não ser talvez dentro de um esquema como o articulado
24 de maio de 1852. Victoria: pelos jesuítas nas suas reduções – é certo que este constrangi-
Typographia Capitaniense de P.A.
de Azeredo, 1852. p.52. mento ainda perdurou algumas décadas até que a vida urbana em
25
Relatorio do Presidente da solo americano se desenvolvesse. Quando isso acontece, é dentro
Provincia do Espirito Santo o do quadro geral da metrópole que acaba se circunscrevendo a
Bacharel Pedro Leão Velloso na
abertura da Assembléa formação profissional da colônia.
Legislativa Provincial no dia 25 O sistema luso das corporações de ofícios implantado na Améri-
de maio de 1859. Victoria: Typ.
Capitaniense de Pedro Antonio ca tinha sua organização jurídica baseada na estabelecida em Lisboa
d’Azeredo, 1859. Appenso M. desde 1572 e era organizado hierarquicamente em aprendizes, ofici-
128
ais e mestres, impondo período de aprendizado e apresentação de obra prima (uma espécie de
exame final prático)26. Este sistema, com todas as deficiências e individualidades próprias que
foram adquiridas na sua implantação na sociedade americana, só foi oficialmente extinto pela
Constituição brasileira de 1824 embora tenha deixado vestígios ao longo de todo o século XIX,
em especial durante o Império.
Entre as peculiaridades do sistema de corporações implantado na América portuguesa estava
a absorção da mão de obra indígena e escrava. Paradoxalmente os escravos eram submetidos –
exatamente como o homem livre – aos mesmos trâmites burocráticos: exame, petição à Câmara
e juramento27. Os escravos, entretanto, podiam chegar apenas ao posto de oficiais. Esta formação
se dava, sobretudo, dentro da oficina de um mestre e era comum que mestres artífices (entalhadores,
pintores e toreutas) tivessem escravos habilitados trabalhando em suas oficinas, tal como o famo-
so entalhador carioca Mestre Valentim da Fonseca e Silva que, negro livre, teve escravos oficiais
trabalhando em sua oficina de toreuta. A imprensa diária do Rio de
Janeiro do século XIX, até a data da abolição, apresenta farto mate- 26 Ribeiro. op.cit. p.25.
rial propagandístico de proprietários ofertando ‘escravos de ganho’ 27 A. Romeiro & A. Botelho. Dicio-
(diaristas) habilitados como oficiais de pedreiro, de serralheiro etc28. nário histórico das Minas Gerais.
Período colonial. (2° edição) Au-
Se não encontramos casos similares na imprensa capixaba da época têntica. p.15.
sem dúvida deve-se ao baixo número mesmo de propaganda im- 28 Maria Beatriz Nizza da Silva. A
pressa que havia nesses jornais locais. Ao contrário do Rio de Janeiro Gazeta do Rio de Janeiro (1808-
que tinha cerca de 60 mil habitantes no início do século XIX, Vitória 1822): cultura e sociedade. Rio
contava à mesma época por volta de 4 mil, e a propaganda podia ser de Janeiro: EdUERJ, 2007.
29
feita boca a boca sem necessidade de gastos com imprensa. S. B. de Holanda (direção). Histó-
ria Geral da civilização brasileira:
De mais a mais, fugindo ao tipo tradicional de formação dentro administração, economia e soci-
da oficina de um mestre livre, “certas ordens, sobretudo os jesuítas e os edade. Tomo I, Volume 2. Rio de
beneditinos, aplicavam-se em formar e manter seus próprios artesãos”29. Entre Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
p.123.
os jesuítas, muitos padres foram mestres de ofícios30. Daemon relata
30
O padre Nóbrega em 1660 pedia
que no auto de avaliação de 1780 da fazenda jesuítica de Araçatiba,
ao Geral da Ordem em Roma que
no sul da capitania do Espírito Santo, constavam “852 escravos pretos, lhes mandassem “irmãos
pardos e cabras, alguns com ofícios e artes”31. Coadjutores Oficiais, principalmen-
Já a mão de obra indígena, desde o período inicial da colonização, te pintores, alfaiates, sapateiros,
ferreiros, carpinteiros, pedreiros”
teve papel de destaque. Jesuítas cumpriram papel crucial na educação Apud. P.M. Bardi. Mestres, artífi-
dos nativos enquanto trabalhadores livres e as reduções desta ordem ces, oficiais e aprendizes no Bra-
tornaram-se importantes centros de formação de mão de obra quali- sil. Banco Sudameris S.A., 1981.
ficada. Os indígenas, de acordo com Serafim Leite, eram muito hábeis p.48.
31
tanto como oleiros como carpinteiros, artes que exerciam antes da Basílio Carvalho Daemon. Provín-
cia do Espírito Santo: sua desco-
chegada dos portugueses32; é conhecida uma carta do Morgado Mateus, berta, história cronológica, sinop-
governador da capitania de São Paulo no século XVIII, requisitando se e estatística. Vitória: Tipografia
ao Colégio da Vila de Santos índios oleiros para trabalharem na vila de do Espírito-santense, 1879 (Có-
pia redigitada, sem numeração de
São Paulo33. Em 1734, o desbravador Pedro Bueno Cacunda, que páginas).
tinha intenção de descobrir e explorar lavras de ouro na capitania do 32
Serafim Leite. op.cit. p.45.
Espírito Santo, demandava ao rei que se dignasse autoriza-lo a reque-
33
Apud: Silvio de Vasconcellos. Ar-
rer da “Aldea de Reys Magos (...) e da Aldea de Reritiba” vinte índios de quitetura no Brasil: sistemas cons-
cada, destinados “a fortalecer as estalagens” que tem necessitado fazer, trutivos. Belo Horizonte, UFMG,
assim como “abrir caminho para entrar povo, para o que he tambem necessário 1979.
129
serem providos de ferramentas”34. Esta redução de Reis Magos, quando da expulsão dos padres em 1759,
contabilizava cerca de dois mil índios35 sendo que grande parte exercendo ofícios.
É certo que a expulsão dos jesuítas das terras da coroa portuguesa em 1759 abalou o sistema
laboral na América, embora não existam estudos precisos relativos a este tema. O século XIX
capixaba, ao menos na sua primeira metade, se ressentiu bastante da carência desencadeada por
esta expulsão. O Aldeamento Imperial Afonsino que incorporou parte dos indígenas que outrora
viviam nas reduções jesuíticas espírito-santenses procurou desde o início reestruturar a mão de
obra nativa: “tem sido fabricada, por um dos índios, excelente telha, com a qual foi coberta a casa da diretoria
(...). Há alguns índios aplicados a ofícios fabris, um deles já quase perfeito serrador, e dois ou três trabalhando
como carapinas (carpinteiros)”, revela-nos um Relatório Governamental de 184836. Quão pobre era,
contudo, este plantel de trabalhadores qualificados frente à outrora fartura de mão de obra mantida
pelos padres expulsos. Por esses relatórios, ao longo de todo o século XIX, constata-se que o
trabalho indígena foi largamente explorado nas obras de engenharia, tal como, entre outras, quan-
do da construção de uma estrada que conectava o Espírito Santo com a província de Minas
Gerais37, mas fundamentalmente, as atividades relacionadas em geral eram de mão de obra
desqualificada: rocio e abertura de picadas.
Com pequenas exceções, a província durante o século XIX padeceu sempre de mão de obra
qualificada. É expressivo o comentário do bispo Coutinho quanto à precariedade da vida urbana dos
povoados da região quando de passagem por Linhares em 1819: “(...) sente-se [aqui] uma falta geral de
34
Carta de Pedro Bueno Catunda ao
quase tudo quanto é necessário para a vida! (...) há também falta de ofícios
38
Rei (...) em 08.09.1734. CX – 3 – mecânicos, especialmente oleiros, ferreiros etc.” . Trinta anos depois, o Relató-
ES. Arquivo Histórico Ultramarino. rio Governamental de 1849 confirma que esta situação não sofreu
in: Espírito Santo: documentos
coloniais. Vitória: Governo do Es-
alterações: “A capela de Linhares ainda não foi começada por falta de obreiros
tado do ES: Fundação Jones dos (...) Ao cidadão Francisco Alves da Motta, da villa de Santa Cruz, escrevi,
Santos Neves, 1978. p.43. rogando-lhe houvesse de descobrir alguns officiaes que quizessem ir á Linhares, afim
35
Freire. op.cit. p.200. de dar-se principio á obra”39. Nestas povoações, a utilização invariável do
36
Relatório do Presidente da ‘barro e palha’, já citada anteriormente, demonstra que a população
Provincia do Espirito Santo o Dou-
tor Luiz Pedreira do Coutto Ferraz tinha que lidar ela mesma com a edificação das suas habitações.
na abertura da Assembléa A exceção parece ter sido Vitória. Desde as primeiras perspecti-
Lagislativa Provincial no dia 1º de vas executadas pelos engenheiros militares ao final do século XVIII
março de 1848. Rio de Janeiro:
Typ. do Diário, 1848. p.23. até as descrições dos viajantes do XIX observa-se que a Vila era
37
O vice-presidente José Francisco edificada com materiais e técnicas de melhor qualidade e durabilida-
de Andrade de Almeida Monjardim de. Presume-se que na sua quase totalidade se tratavam de sobrados
em 1º de agosto de 1848. Rio de
Janeiro: Typ. do Diario, 1848. p.08.
de pedra e cal, caiados e cobertos por telhas cerâmicas. O aspecto da
38
Coutinho. op.cit. 2002. p.70. Vila era agradável. Por volta de 1815 o naturalista alemão Maximiliano
39
Relatorio com que o Exm. Sr. Dr. de Wied descreveu-a como “um lugar limpo e bonito, com bons edifícios
Antonio Pereira Pinto entregou a construídos no velho estilo português, com balcões e rótulas de madeira, ruas
presidencia da Provincia do calçadas, uma câmara municipal razoavelmente grande, e o convento dos jesuí-
Espirito Santo, ao Exm. Sr. 40
Commendador José Francisco de tas ocupado pelo governador” ; já Saint-Hilaire, por volta de 1818, co-
Andrade e Almeida Monjardim, mentou que os capixabas “cuidam bem de preparar e embelezar suas casas.
segundo vice-presidente da mes- Considerável número delas tem um ou dois andares. Algumas têm janelas com
ma. Victoria: Typ. Capitaniense de
P. A. de Azeredo, 1849. p.16. vidraças e lindas varandas trabalhadas na Europa” 41. Cerca de um ano
40
Wied-Neuwied. op.cit. p.142. após, Coutinho fez coro com os demais escrevendo que a Vila mos-
41
Saint-Hilaire. op.cit. p.45. trava “muitas casas nobres de dois e três andares, igrejas, torres, e sobretudo o
42
Coutinho. op.cit. p.115. magnífico colégio dos jesuítas”42.
130
Fotografias de Vitória tomadas no início do século XX - de uma arquitetura arruinada pelo
tempo e que indiscutivelmente pertence ao século anterior, talvez mesmo a período mais remoto
- mostram-nos evidências consubstancias do que estamos falando: uma arquitetura ‘portuguesa’
de prédios assobradados, algumas vezes com camarinhas na cobertura e balcões em treliça;
construída com sólidas paredes de pedra de mão argamassadas, rebocadas e caiadas de branco;
com ausência de apliques e ornatos tanto em massa quanto em cantaria.
Uma arquitetura simples, mas de boa qualidade. A construção de uma vila com tais características
me parece bastante suficiente como evidência de presença na urbe dos ofícios dedicados à construção
civil. Corroborando esta presunção, a Memória Estatística de Ignacio de Vasconcellos, escrita em
1828, enumera em Vitória;
De ofícios mecânicos cinco Mestres de Carpinteiros, três Oficiais e um
Aprendiz: sete Oficiais de Calafates: dez Carpinteiros da Ribeira: dez Mes-
tres de Marcenaria, vinte e quatro Oficiais, e dezesseis Aprendizes: trinta
Oficiais de Pedreiros: dois Cavouqueiros: (...) treze Ferreiros: (...) um Latoeiro:
(...) de todos estes são cativos quinze43.

Figura 1 - 1920. Casas na rua José Marcelino, sentido Igreja de Santa Luzia –
Catedral (Arquivo Público Municipal de Vitória). 43
Vasconcellos. op.cit. (21).
131
Figura 2 - 1920. Edificação em ruínas na Rua Muniz Freire (Arquivo Público Municipal de Vitória).

Aproximadamente cinquenta anos mais tarde é possível se traçar um quadro mais completo
da mão de obra operária na província - embora menos preciso na distribuição das funções - com
as informações provenientes do Dicionário Histórico e Geográfico de César Augusto Marques
publicado em 187844. (ver quadro na próxima página)
Entre os trabalhadores relacionados nas tabelas de Marques, selecionei não apenas aqueles
indubitavelmente vinculados à construção civil que o autor intitula de ‘operários de edificações’, e
que eu suponho fundamentalmente pedreiros, talvez estucadores, como ainda os ‘operários em
madeiras’, que a rigor podiam estar envolvidos também com a extração madereira, a indústria
naval e a de mobiliário, e por último os ‘canteiros e calceteiros’, rubrica na qual Marques incluiu
também os ‘mineiros e cavouqueiros’. Excluí os ‘operários em metais’ pois à época a metalurgia
participava muito pouco da construção civil, fornecendo no máximo pregos e dobradiças, os
quais, pelos altos custos, eram utilizados com parcimônia.
De imediato os dados parecem confirmar a tendência já verificada na primeira metade do
século de uma atividade profissional da construção civil consolidada apenas na vila da Vitória.
A capital da província é a única que apresenta um número satisfatório de operários envolvidos
diretamente com a ‘edificação’ (57), sendo que vilas com paróquias consideravelmente populo-
sas tais como São Pedro de Itabapoana, Amparo de Itapemirim e Alegre, apresentam totais
‘inchados’ devido à minha inclusão dos ‘operários em madeiras’, o que decerto indica uma
atividade madeireira forte nesses locais, provavelmente com exportação de matéria-prima bru-
ta ou beneficiada, ao mesmo tempo em que os números de trabalhadores estritamente em
‘edificações’ - proporcionalmente à população existente - são pouco significativos: 7; 25 e 12,
respectivamente. Este panorama em relação aos ‘operários de
44
Marques. op.cit. Páginas diver- edificações’ estende-se às demais aglomerações urbanas da provín-
sas. (As tabelas da distribuição cia, todas com contingentes inexpressivos, sendo que em algumas
profissional nas Vilas de São
Mateus e de Guarapari não fo- localidades estes profissionais sequer existiam: Linhares, Nova
ram fornecidas pelo autor). Almeida, Santa Cruz e São Benedito.
132
QUADRO N° 1

B = Brasileiros; E = Estrangeiros; Esc = Escravos.


* População total da Paróquia, incluindo escravos.
** Total dos trabalhadores relacionados à construção civil.

A principal conclusão que podemos tirar é que, excetuando Vitória, nos demais locais da província
a construção civil continuava sendo fundamentalmente uma prática vernácula, o que significa a
predominância da arquitetura de terra - barracos de palha no dizer de Coutinho – sobre as construções
mais elaboradas de pedra e cal. É certo que algumas construções nesses locais escapavam à regra
geral, o que é o caso das matrizes e das casas de câmara e cadeia construídas à custa do Governo
provincial e em algumas vezes até mesmo com remanejamento de mão de obra de outros locais,
como indicam os relatórios governamentais. Provavelmente se pode excluir também do quadro de
uma arquitetura mais rudimentar as habitações nessas vilas dos comerciantes abastados, e no campo,
dos grandes proprietários rurais. Sabe-se inclusive que estes últimos costumavam ter, entre seus
escravos, trabalhadores com ‘ofícios’ tendo evidentemente a função não apenas de construir, mas
também a de reformar e manter as grandes residências senhoriais. Da Fazenda do Barão de Itapemirim
o cônsul suíço Tschudi nos presta o seguinte testemunho em 1860:
A residência da fazenda, semelhante a um palácio, construída num
morro causa uma impressão imponente. Raras vezes vi no Brasil fazendas
num estilo tão grandioso e, ao mesmo tempo, com tanto bom gosto (...)
133
O contingente de escravos perfazia 120 negros para a lavoura, um número
considerável para o serviço doméstico e os ofícios manuais, sobretudo
carpinteiros e pedreiros45.
A imigração europeia acontecida na província a partir de 1813 - inicialmente com colonos
açorianos e logo a seguir com alemães e italianos - parece não ter incrementado particularmente
a qualidade dos ofícios mecânicos relacionados à construção civil. Tanto Tschudi quanto Nagar,
enviados diplomáticos de Suíça e Itália respectivamente, dão conta em seus relatórios de uma
imigração composta basicamente por trabalhadores de baixa qualificação profissional e que se
ocupavam principalmente da atividade agrícola, fixando-se, sobretudo, nas regiões do interior da
província. O quadro que elaboramos anteriormente, com dados do Dicionário Marques, mostra
que em Vitória, à época, não havia um único ‘operário de edificação’ de origem estrangeira.
Estrangeiros na construção civil da capital encontramos apenas entre os canteiros, infelizmente a
fonte não registra a nacionalidade destes trabalhadores.

Figura 3 - 1860. Fazenda do Barão de Itapemirim (Victor Frond. Coleção Thereza


Cristina Maria, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro).

Corroborando as assertivas acima, cônsul Nagar menciona em 1895 que “a imigração italia-
na” no Espírito Santo “é constituída principalmente de agricultores” embora existam “também
famílias da classe operária (...) Estes operários dedicam-se a quase todas as artes e profissões,
alguns estão espalhados nas cidades do interior, mas encontram-se especialmente em Vitória”.
Cabe informar que na estatística de 1878 havia apenas seis italianos na paróquia de Nossa Senho-
ra da Vitória46. Ainda Nagar nos informa da grande dificuldade que tinham estes operários em
obter sucesso profissional, e que os poucos “que conseguem alcançar tal resultado repatriam-se
imediatamente (...) amedrontados pelo número de mortes provocada pela epidemia da febre
amarela”, epidemia que entre os meses de novembro a abril causava uma elevada mortandade
“especialmente entre os estrangeiros”. O cônsul italiano conclui constatando que ainda entre as
famílias de agricultores a repatriação era bastante menor que entre os operários, pois devia se
considerar que a “propriedade já adquirida (...) penosamente, e não tendo mais, devido aos muitos
anos de ausência, os laços de família e uma verdadeira ligação com a
45
Tschudi. op.cit. p.97. pátria, acabam por se fixar definitivamente no Espírito Santo”47.
46
Marques. op. cit. É possível verificar também uma participação desses imigrantes
47
Nagar. op.cit. pp: 54-55. na construção civil capixaba em obras de engenharia de infra-estrutura
134
nas colônias, onde neste caso era necessária uma mão de obra menos qualificada especificamente
para desmatamento e abertura de picadas, e constituindo-se em tarefas que podiam ser alternadas
com a atividade agrícola principal dos imigrantes em seus próprios lotes, constituindo-se em
‘bicos’ para o aumento da renda familiar:
Como não faltavam trabalhos públicos e a diária era significativa – por exemplo: no
levantamento topográfico feito por engenheiros a fim de abrir picadas, 2 ½ a 3 mil réis (1,25 táler
a 2,6 táleres); nas derrubadas de floresta, 2 mil réis; na construção de estradas, 1.600 réis, etc.
Relativamente muito dinheiro acabava circulando na colônia e quem queria ganhar algum sempre
achava muitas oportunidades.48

4. Construtores
Ao longo do século XIX não houve por parte do Estado – tanto do governo central como dos
provinciais - uma política permanente e direcionada a investimentos com obras públicas. José
Murilo de Carvalho chama a atenção para o fato de que a rubrica do orçamento imperial destina-
da às despesas sociais com infra-estrutura era a menor de todas em 184049. Quando esta rubrica
ultrapassou as demais, por volta do final do século, isto se deveu unicamente ao fato do governo
central ter, paulatinamente, a partir de 1860, encampado a construção da malha ferroviária bra-
sileira que por volta de 1889 possuía “cerca de 10 mil km de estradas de ferro”50.
Os relatórios governamentais da província do Espírito Santo ao longo do século demonstram
que não apenas os recursos da província eram escassos como não havia mesmo um entendimento
político claro de que obras de canais, pontes, drenagem etc. fossem obras de responsabilidade
governamental, ou, ao menos, obras prioritárias para uma administração provincial, porque vere-
mos, no parágrafo abaixo, que a província não se furtava frente à responsabilidades de outros
tipos de obras civis. Ainda em 1842, na fala do governo provincial podemos ler: “Nenhuma obra
pública está em andamento na Província, e posto que alguma quantia fosse destinada na Lei de orçamentos para
estradas, e pontes, todavia nada se despendeu no ano financeiro que terminou”51.
Uma ausência significativa do Estado na área de obras de infra-estrutura parece ter sido o panora-
ma predominante nas primeiras décadas do século XIX. Por outro lado, esses mesmos relatórios
mostram a importância que as distintas administrações davam ao acordo do Padroado estabelecido
entre o governo do Brasil e o da Santa Sé, e pelo qual o primeiro tomava para si, delegando aos
governos provinciais, as responsabilidades com a Igreja Católica. No mesmo documento citado anteri-
ormente, informa-se que quanto aos templos, não se duvida “afirmar que
em geral merecem ser favorecidos com alguns socorros pecuniários (...) Tendo sido 48 Tschudi. op.cit, p.64.
nomeada por uma das Administrações transactas uma Comissão para se incumbir 49 José Murilo de Carvalho. A cons-
da obra da Igreja Matriz de Cariacica”52, de forma que podemos mesmo trução da ordem. Teatro de som-
afirmar que obra estatal na província do Espírito Santo ao longo de bras. (4° edição) Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2008. p.280.
parte significativa do século XIX foi quase que um sinônimo de edificação 50
Idem.
religiosa ou de manutenção das igrejas matrizes nas distintas vilas.
51
Sabemos, entretanto, que a província não era desprovida de obras Falla que o Exm. Presidente da Pro-
víncia do Espirito Santo [João Lopes
de engenharia civil de uso público. Por volta de 1815, Maximiliano de da Silva Coito] dirigio a Assembléa
Wied, que percorreu toda a parte habitada da região espírito-santense, Legislativa Provincial no dia 28 de
observou, não sem certa estupefação, da existência de uma estrada agosto de 1842. Nictheroy:
Typographia Nictheroyense do Rego,
que por mais de 22 léguas passava por sertões selvagens e inóspitos 1843. p.08.
ligando as Minas de Castelo à província das Minas Gerais. O mesmo 52 Idem. p.07.
135
viajante, em seu precioso testemunho, relacionou várias picadas assim como uma série de pontes
que cruzou ao longo de seu trajeto e as quais tornavam mais confortável o percurso dos passantes
– entre estas podemos citar Piúna, Perocão, Passagem - sendo uma destas pontes notável por sua
extensão de mais de trezentos passos53 (aproximadamente 250m).
Ora, quem eram os mandatários e executantes dessas obras de engenharia? Quem eram os
financiadores - já que o governo central e menos ainda o provincial não pareciam propensos, ou
não tinham recursos a destinar em seus orçamentos anuais às mesmas?
De acordo com um documento da administração real citado por Mario Freire, a estrada men-
cionada por Wied seria fruto da pertinácia do capitão Inácio Pereira Duarte. O mesmo documento
chega a instigar o governo local a estabelecer, por conta da Real Fazenda da capitania, novas vias de
comunicação com o interior e as Minas Gerais54. Entretanto sabemos que os recursos públicos
durante muito tempo continuaram insuficientes: “temos que lamentar a escassez das finanças e com ela hum
mal que concorre poderosamente para que a província seja pobre em obras, tanto pelo que respeita á quantidade, como
á qualidade”55 queixava-se relatório governamental de 1861.
Algumas vezes subscrições públicas eram organizadas pelo governo entre os cidadãos mais
diretamente interessados na execução de uma determinada obra, tal como nos informa o governante
53
de 1848 em seu relatório, de que “para a conclusão da rampa do Porto
Wied-Neuwied. op.cit. p.133 e
p.135. dos Padres (em Vitória) o cofre provincial foi coadjuvado (...) por uma subscri-
54
Apud. Freire. op.cit. p.28.
ção, que fiz promover entre os proprietários visinhos do lugar”56. Ou ainda no
55
mesmo relatório, de que “sem dispêndio do cofre provincial foi conveniente-
Relatorio apresentado à
Assemblèa Legislativa Provincial mente reparada a estrada, que desta cidade vai ter à Ponte da Passagem. Os
do Espírito Santo no dia da aber- proprietários dos sítios e fazendas, que há na mesma estrada, prestaram-se todos
tura da sessão ordinaria de 1861
pelo Presidente Josè Fernandes da
a concorrer com prontidão para esse serviço”57.
Costa Pereira Junior. Victoria: Typ. Algumas vezes a obra era arcada por grandes proprietários locais
Capitaniense de Pedro Antonio interessados no estabelecimento das vias de comunicação que per-
d’Azeredo, 1861. p.51.
mitissem não apenas mitigar o isolamento em que se encontravam
56
Relatorio do Presidente da seus estabelecimentos rurais, mas também, evidentemente, possibili-
Provincia do Espirito Santo o Dou-
tor Luiz Pedreira do Coutto Ferraz tar o escoamento da produção de suas propriedades. O Barão de
na abertura da Assembléa Itapemirim, importante latifundiário do sul da província é citado no
Lagislativa Provincial no dia 1º de
março de 1848. Rio de Janeiro:
Relatório de 1849 como o responsável pela construção de uma es-
Typ. do Diário, 1848. p.35. trada que liga o Espírito Santo à província de Minas Gerais, feita
57
Idem. toda às suas expensas58.
58
Relatório do Presidente da
É de se supor que em semelhantes condições não havia controle
Provincia do Espirito Santo, o estatal na qualidade da execução da obra pública, afinal, diz o ditado
Desembargador Antonio Joaquim que a ‘cavalo dado não se olham os dentes’. O relatório governa-
de Siqueira, na abertura da
Assembléa Legislativa Provincial mental de 1861 confirma a prática referida como institucionalizada
no dia 11 de março de 1849. e ainda em vigor..
Victoria: Typ. Capitaniense de P.
A. de Azeredo, 1849. p.15. O sistema de obras por meio de comissões gratuitas,
59
Relatorio apresentado à hoje proscrito na província do Rio de Janeiro, mas ainda
Assemblèa Legislativa Provincial sempre observado aqui, tem inconvenientes de fácil per-
do Espírito Santo no dia da aber- cepção. Se o arrematante frequentes vezes não satisfaz, muito
tura da sessão ordinaria de 1861 menos se deve esperar do simples comissionado, que acei-
pelo Presidente Josè Fernandes da
Costa Pereira Junior. Victoria: Typ. ta um ônus sem retribuição nem esperança de lucro de
Capitaniense de Pedro Antonio qualquer espécie, e que graciosamente trabalha para a pro-
d’Azeredo, 1861. p.51. víncia59.
136
Ainda em 1882, no ocaso do século, a prática de se contar com a boa vontade dos cidadãos
mais ilustres socialmente continuava como a mais efetiva:
A insignificancia da verba destinada a obras publicas n’esta provincia
não permitte o emprehenderem-se as obras mais necessarias, de sorte que,
alguns serviços mandados executar, não tem dispensado o auxilio dos
particulares, a excepção porem de um ou outro reparo com pontes ou
estradas. Para que a administração possa levar a effeito algumas obras mais
importantes, que se estão executando, tem nomeado commissões com-
postas de cidadãos prestimosos nas localidades afim de dirigil-as, agencian-
do donativos de particulares, resultando que a provincia tem concorrido
somente com alguma quantia a titulo de auxilio60.
Além das obras possibilitadas pela generosidade de alguns cidadãos mais abastados, o Estado
mostrou-se mais presente ao longo da segunda metade da centúria, seja através da ação nas
colônias ditas imperiais (tuteladas pelo Governo Central) que em geral eram administradas por
zelosos engenheiros, fosse através da estruturação de uma máquina administrativa local conjunta-
mente com o aparecimento de uma tosca classe de empreiteiros que passam a disputar e a
arrematar as obras públicas provinciais em concursos.
Quando da visita do imperador pela província no início do ano de 1860, este anotou em seu
diário quando de passagem pela colônia de Santa Isabel: “Ponte do Jucu, boa com dois [vãos,] e pegões de
pedra; projetada pelo Pedreira e feita na presidência do Evaristo”61. O fotógrafo Victor Frond, de passa-
gem pelo local no mesmo ano, deixou registro desta ponte, que nos parece é o registro fotográfico
mais antigo de uma obra de engenharia civil no Espírito Santo:
Quanto aos empreiteiros, citados nos relatórios governamentais, quase nunca eram engenheiros,
não parecendo ter tido formação apropriada, muito menos deviam ter sido mestres de obras quali-
ficados na esteira da formação do antigo sistema colonial que ainda sobrevivia, em especial por
pertencerem a um estrato social mais elevado. Muito possivelmente tratavam-se de homens de
negócios que começavam a ver a construção civil com perspectivas lucrativas, alguns desses emprei-

60
Relatorio com que o Exm. Sr. Dr.
Herculano Marcos Inglez de Sou-
za entregou no dia 9 de Dezem-
bro de 1882 ao Exm. Sr. Dr.
Martim Francisco Ribeiro de
Andrada Junior a administração da
Provincia do Espirito-Santo.
Victoria: Typographia do —
Horisonte, 1882. p.30.
61
Apud: Levy Rocha. Viagem de
Pedro II ao Espírito Santo. (3°
Figura 4 - 1860. Ponte sobre o Rio Jucú – Colônia Santa Isabel (Victor Frond. Coleção edição). Vitória (Espírito Santo):
Thereza Cristina Maria, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). APEES, 2008. p.139.
137
teiros pertenciam a famílias importantes da província, como é o caso de Áureo Triphino Monjardim
de Andrade e Almeida, que, pelos relatórios governamentais, parece ter sido o cidadão que mais
contratou obras civis com a administração provincial na segunda metade do século XIX. Observe-
se que Áureo foi parente de vários presidentes e vice-presidentes da província na época de suas
contratações, o que confirma as raízes antigas e oligárquicas do nepotismo no Brasil.

5. Engenheiros militares e civis


O século XIX foi o século da engenharia: não apenas porque a Revolução Industrial e todo o
desenvolvimento que ela trouxe consigo necessitou crucialmente desta categoria profissional, mas
também porque, junto com o destaque que estes obtiveram no exercício da profissão, rapidamen-
te alçaram-se como personalidades de liderança na sociedade civil da época. O engenheiro no
século XIX foi primo inter pares entre os homens de ciência: profissionais como Aarão Reis, André
Rebouças ou Epifânio Candido de Souza Pitanga foram não apenas engenheiros civis - como
entendemos estes profissionais nos dias de hoje - mas também urbanistas, sanitaristas, topógrafos,
matemáticos, físicos, químicos e, sobretudo, pedagogos: pois imbuídos de uma missão de moder-
nização da nação através da educação. Em geral adeptos do positivismo e algumas vezes da
maçonaria, estes profissionais propugnavam uma concepção da ciência e da educação como
propulsoras do desenvolvimento econômico e social, e foram chamados para ocupar altos cargos
na administração pública do governo imperial.
Embora o incremento da engenharia civil seja tardio no Brasil, a partir da segunda metade do
século XIX ele foi bastante rápido, de forma que, ao final do século, até mesmo no Espírito Santo,
algumas das personalidades sociais mais em evidência tinham a sua formação obtida nas Escolas
Politécnicas, como foi o caso de Ceciliano Abel de Almeida que chegou a prefeito de Vitória em 1909.
Já desde o período colonial que a conveniência de profissionais qualificados coadjuvando as
obras públicas das capitanias e ficando sediados junto às administrações locais era sentida como
uma necessidade estratégica: “Pretendera D. Rodrigo de Souza Coutinho, em resolução de 21 de outubro de
1798, houvesse, em cada capitania, ao menos dois engenheiros topógrafos”62.
Contudo, no Espírito Santo, ressentiram-se todas as administrações, desde o tempo das capi-
tanias até o final da primeira metade do século XIX, destes profissionais habilitados. O relatório
governamental de 1843 atribuía como certo a precariedade das obras provinciais à falta de um
engenheiro público: “Atentas as dificuldades, que tem aparecido para se conseguir um Oficial Engenheiro para
ser empregado na direção das obras desta Província, (...) entendo que o único meio de levar a efeito os melhoramen-
tos, de que ela necessita, é o engajamento de um Engenheiro Civil Nacional, ou Estrangeiro”63.
A essa época, a própria engenharia nacional ressentia-se de certa autonomia, pois a única forma-
ção existente era via Academia Real Militar. Mesmo a Escola Central, criada em 1858, ainda conti-
nuou subordinada ao Ministério do Exército e apenas em 1874 a completa desmilitarização do
ensino da engenharia aconteceria64, com a criação da Politécnica do Rio de Janeiro.
Os profissionais que atuaram no Espírito Santo, principalmente na segunda metade do século
XIX, tinham origens e formações distintas: brasileiros, portugueses,
62
Freire. op.cit. p.216. franceses e alemães, principalmente. Formados na Academia Real
63
Falla que o Exm. Presidente da Pro- Militar do Rio de Janeiro ou na Escola Central e no caso dos estran-
víncia do Espirito Santo dirigio a geiros nas Politécnicas europeias, quase todos vieram de fora da
Assembléa Legislativa Provincial no
província. Pedro Cláudio Soído – ativo no Espírito Santo entre 1858
dia 28 de agosto de 1842. Nictheroy,
Typographia Nictheroyense do Rego, e 1865 – parece ter sido dos poucos a pertencer a uma conhecida
1843. p.08. família capixaba.
138
Após uma atuação pontual de dois profissionais, entre eles o engenheiro militar Joaquim
Pantaleão Pereira da Silva, que fez levantamento cadastral da cidade de Vitória em planta e
elevação no início do século XIX, considera-se que o primeiro profissional mais efetivo na pro-
víncia, e que teve inclusive destaque no cenário da engenharia nacional do século, foi Luiz
D’Alincourt. De acordo com o Dicionário Bibliográfico de Victorino Blake, Alincourt, de ascendência
francesa, nasceu em 1787 em Oeiras, Portugal, vindo para o Brasil em 1809 onde se formou na
antiga Academia militar do Rio de Janeiro. Faleceu no Espírito Santo em 1841 onde estava
servindo “havia dez anos, como major do corpo de engenheiros”65. Daemon nos dá notícia dele atuando
no Espírito Santo desde o ano de 183266. Alincourt deixou escrito uma Memória sobre o reconhecimen-
to da foz e porto do Rio-Doce, publicada postumamente na Revista do IHGB em 1886 (tomo 29,
parte 1ª, pp. 115 a 158), que no Relatório provincial de 1859 foi citada como importante docu-
mento para o conhecimento da região67. Segundo a Wikipedia68, a exemplo de outros naturalistas
e engenheiros notáveis, Alincourt “prestou valiosos serviços através de suas viagens de pesquisa ao interior do
Brasil, em especial às Províncias de Mato Grosso e de Goiás (...) A “memória” de sua viagem a Cuiabá em
1811, foi publicada pela Universidade de São Paulo em 1975".
Após a morte de Alincourt, a incapacidade da administração provincial de dispor de recursos
para encontrar e contratar um profissional disponível no mercado fez com que em 1849 ela
apelasse ao Governo Central para que designasse novo profissional do Imperial Corpo de Enge-
nheiros. A partir desta data, sabemos pelos Almanaques Laemmert, publicados anualmente na
corte do Rio de Janeiro, da presença contínua de um profissional engenheiro militar alocado na
região. Este oficial vinha por um período curto de tempo, em geral por dois anos, o que dificultava
a desejável continuidade nos trabalhos gerando insatisfação na admi-
nistração da província. Além do mais, eles vinham responsáveis pe- 64 Alberto Souza. O ensino da arqui-
las obras militares e não como funcionários da Repartição das Obras tetura no Brasil imperial. João
Públicas provinciais, apenas coadjuvando a presidência da província Pessoa: UFPB, 2001. p.67.
65
nas suas necessidades por mera gentileza e quando dispunham de Augusto Victorino Alves Sacra-
mento Blake. Diccionario biblio-
tempo. Foram, durante algumas décadas, os únicos profissionais qua- gráfico brazileiro. Rio de Janeiro,
lificados da engenharia em toda a região. Ainda em 1861 o relatório Typographia Nacional, 1883. Vo-
lume V, p.341.
provincial queixava-se:
66
Daemon. op.cit.
Como consequência da falta de população e do atraso 67
da agricultura, temos que lamentar a escassez das finanças Relatorio do Presidente da
Provincia do Espirito Santo o Ba-
e com ela um mal que concorre poderosamente para que charel Pedro Leão Velloso na aber-
a província seja pobre em obras, tanto pelo que respeita á tura da Assembléa Legislativa Pro-
quantidade, como á qualidade. Esse mal é a falta de vincial no dia 25 de maio de 1859.
pessoas habilitadas para execução de trabalhos que a Victoria: Typ. Capitaniense de
Pedro Antonio d’Azeredo, 1859.
assembléia provincial decrete. A mesquinhez da renda Appenso M. p.7.
não permite que a província tenha ao seu serviço mais do 68
http://pt.wikipedia.org. Acessada
que um engenheiro e já vedes que hum só engenheiro,
em 19.12.2009.
não pode dirigir trabalhos que tenham de ser executado,
69
Relatorio apresentado à
ao mesmo tempo em pontos ás vezes longínquos69.
Assembléa Legislativa Provincial
do Espirito Santo no dia da aber-
O documento citado acima, contudo, tem a sua tônica centrada tura da sessão ordinaria de 1861
na falta de recursos da administração provincial para contratar um pelo Presidente Josè Fernandes da
Costa Pereira Junior. Victoria: Typ.
profissional qualificado, mais do que propriamente na inexistência Capitaniense de Pedro Antonio
deste profissional no mercado - o que foi a tônica dos documentos d’Azeredo, 1861. p.51.
139
da primeira metade do século - e isso por um motivo muito simples, no transcorrer da segunda
metade constatamos na província o acorrer contínuo de profissionais habilitados na área, fossem
militares ou civis.
Para a formação do quadro abaixo foram utilizados os Relatórios Governamentais da provín-
cia, edições diversas do Almanaque Laemmert e a obra de Daemon. Apesar de extenso, ele nos
revela alguns aspectos interessantes:

QUADRO N° 2.

140
* O período de atividades relacionado é aquele que corresponde à documentação existente, em muitos casos este período
pode ter sido maior.

Se acrescentarmos aos 75 nomes relacionados acima cerca de 50 profissionais que trabalha-


ram para a Estrada de Ferro Sul do Espírito Santo entre 1892 e 189670 - e que não foram incluídos
para não tornar a lista mais extensa ainda – alcançamos um total de 125 engenheiros dos quais
apenas seis (4%) atuaram na primeira metade do século, e mesmo assim majoritariamente no final
do segundo quartel. Também podemos observar que praticamente até 1858 só atuaram na provín-
cia profissionais militares, já que Humphrens, Dumont e Bernard foram engenheiros estrangeiros
que estiveram de passagem pela região. A maior concentração de profissionais acontece nos últi-
mos trinta anos do século: 78% dos engenheiros relacionados atua- 70 Ver: Relatórios da Estrada de Fer-
ram neste período, na sua maior parte engenheiros civis. ro Sul do Espírito Santo... op.cit.
141
Esses engenheiros atuaram tendo como tarefas a fiscalização das obras públicas; a demarca-
ção das terras provinciais; a direção das colônias de imigrantes tuteladas pelo Governo Central; os
inquéritos estatísticos e demográficos; o estudo e demarcação de estradas e pontes e a construção
71
César de Rainville. O Vinhola bra- de vias férreas e seus equipamentos. Não vemos durante esse perío-
sileiro: novo manual practico do do engenheiros na iniciativa privada como autônomos ou como em-
engenheiro, architecto, pedreiro, preiteiros, a não ser ao final do século quando associados a próspe-
carpinteiro, marceneiro e serra-
lheiro. Rio de Janeiro: Eduardo & ros cidadãos candidatam-se ao arrendamento das Estradas de Ferro
Henrique Laemmert, 1880. por serem construídas. De forma geral observa-se que a situação da
72
Blake. op.cit. Volume II p.104. engenharia na província se solidificou na segunda metade da centúria,
73
José Antonio Carvalho. O colégio
acompanhando a conjuntura nacional, em especial após o boom de
e as residências dos jesuítas no engenheiros civis propiciado pela fundação das Politécnicas a partir
Espírito Santo. Rio de Janeiro: de 1874.
Expressão e Cultura, 1982. p.103.
Entre os engenheiros mais ativos e importantes do período, citare-
74
RELATORIO lido no paço mos dois; emblemáticos por seus papéis de destaque no desenvolvi-
d’Assembléa Legislativa da
Provincia do Espirito Santo pelo mento da construção civil e das obras públicas da província, além de
Prezidente o Exm. Snr. Doutor Fran- personalidades de destaque da sociedade capixaba, algumas vezes de
cisco Ferreira Correa na sessão forma controversa, como foi o caso de Mello e Cunha. Ambos atua-
ordinaria do anno de 1871. Victoria:
Typ. do — Correio da Victoria,
ram na mesma época embora por períodos distintos; foram eles Cézar
1872. p.79. de Rainville e Leopoldo Augusto Deocleciano de Mello e Cunha.
75
RELATORIO apresentado a’ Rainville tornou-se o mais famoso dos dois em função de uma
71
Assembléa Legislativa Provincial obra que escreveu intitulada O vinhola brasileiro e a qual se tornou
do Espirito-Santo pelo Presidente um popular manual de construção civil no final do século XIX. De
da Provincia o Exm. Sr. Dr. Anto-
nio Gabriel de Paula Fonseca no
acordo com Blake, Rainville “era natural da Alemanha e brasileiro por
dia 2 de Outubro de 1872. Victoria: naturalização” tendo sido “formado em matemáticas pela Escola Politécnica
Typographia do Espirito-Santense, de Hannover e Karlsruhe”72. Por cerca de vinte anos Rainville atuou na
1872. p.20.
província do Espírito Santo: já em 1862 ele estava trabalhando nas
76
RELATORIO apresentado á obras de manutenção do complexo dos jesuítas, então palácio da
Assembléa Legislativa Provincial 73
do Espírito-Santo pelo Exm.º Sr. presidência da província . Foi citado em Relatório de 1871 como
1º Vice-presidente Coronel Manoel tendo feito, à época em que fora inspetor das obras públicas da
Ribeiro Coitinho Mascarenhas na província, um orçamento e planta para um canal que ligasse o Rio
1ª Sessão da 21ª Legislatura.
Victoria: Typographia do Espírito-
Novo com o Rio Itapemirim74. Em relatório de 1872 encontra-se
Santense, 1874. p.20. encarregado da construção do Telégrafo Elétrico que pretendia ligar
77
RELATORIO apresentado pelo a Corte às Províncias do norte do Império, naquele momento já
Exm. Sr. Dr. Manoel José de estava concluído o assentamento da linha entre Itabapoana e
Menezes Prado, na installação da Itapemirim75. O relatório de 1874 comunica a inauguração do telé-
Assembléa Provincial do Espirito-
Santo na sessã de 15 de outubro grafo entre o Rio de Janeiro e Vitória dando por concluída as esta-
de 1876. Victoria: Typographia do ções telegráficas do sul da província: Itapemirim, Benevente e Vito-
Espirito-Santense, 1876. p.31. ria, constando também que Rainville atuava, naquele momento, na
78
RELATORIO apresentado pelo execução da linha entre a capital e São Mateus76. Em 1876 dirigiu
Exm. Sr. Dr. Manoel José de
Meneses Prado por occasião de
interinamente a Repartição das Obras Públicas77. No relatório de
passar a administração desta 1877, tendo sido extinta a Repartição de Obras Públicas no final do
Provincia ao 1º Vice-presidente ano anterior, Rainville aparece como o seu último Inspetor78. Conti-
Coronel Manoel Ferreira de Paiva.
Victoria: Typographia do Espirito-
nua Engenheiro Chefe do Distrito Telegráfico da província em 1878
Santense, 1877. p.7 e 10. e foi empossado por aviso do Ministério dos Negócios da Agricultu-
142
ra, Comercio e Obras Públicas nas funções de Juiz Comissário para 79
RELATORIO apresentado pelo
proceder a divisão de lotes de terra para o estabelecimento dos emi- Exm. Sr. Dr. Manoel da Silva Mafra
a Assembléa Legislativa Provincial
grantes guarenses nas terras devolutas, ao longo da linha telegráfica do Espirito-Santo no dia 29 de ou-
na estrada de Vitória a São Mateus pelo vale do Rio Doce79. No tubro de 1878. Victoria: Typographia
relatório de 1879 apareceu ainda como Diretor do Telégrafo e da Actualidade, 1878. p.28.
80
RELATORIO apresentado pelo
coadjuvando gentilmente a presidência da província na reconstrução Exm. Sr. Te Cel Alpheu Adelpho
da ponte sobre o rio Itaquary, na estrada de Viana80. Em 1881 foi Monjardim d’Andrade e Almeida
1º Vice-Presidente da Provincia a
nomeado para uma comissão mista (com a participação de médicos) Assembléa Legislativa do Espirito-
para proceder aos estudos referentes à construção de um lazareto Santo no dia 6 de Março de 1879.
Victoria: Typographia da Gazeta
para a capital81. Em 1882 pede licença do cargo de chefia do Distrito da Vctoria,1879. p.15.
Telegráfico da província por seis meses, para tratamento de saúde 81
RELATORIO apresentado á
no exterior, sendo substituído interinamente por Delecarliense Assembléa Legislativa da
Provincia do Espirito Santo em sua
Araripe82. A partir desta data não temos mais informações sobre sessão ordinaria de 8 de Março
Rainville nos relatórios governamentais, fazendo-nos supor que não de 1881 pelo Presidente da
Provincia Exm. Sr. Dr. Marcellino
tenha voltado ao Espírito Santo. de Assis Tostes. Victoria: Typ. da
Mello e Cunha foi natural de Itaboraí, Rio de Janeiro, onde nas- — Gazeta da Victoria, 1881. p.33.
82
RELATORIO com que o Exm. Sr.
ceu a 28 de outubro de 1833. Bacharel em Matemáticas, foi deputa- Dr. Herculano Marcos Inglez de
do pela província do Espírito Santo à décima oitava legislatura da Souza entregou no dia 9 de De-
zembro de 1882 ao Exm. Sr. Dr.
monarquia83. Nos relatórios governamentais conseguimos identifi- Martim Francisco Ribeiro de
car pelo menos dez anos de serviços prestados à província enquanto Andrada Junior a administração da
engenheiro, muitos desses exercidos gratuitamente, pois a adminis- Provincia do Espirito-Santo.
Victoria: Typographia do —
tração provincial em geral não tinha recursos para uma remunera- Horisonte, 1882. p.47.
83
ção adequada. Por volta de 1862 esteve como juiz comissário no Blake. op.cit. Volume V, p.303.
84
RELATORIO apresentado a
município de Benevente com a função de demarcar as terras Assembléa Legislativa Provincial
devolutas84. O relatório de 1864 nos informa que não tendo a pro- do Espirito Santo no dia da aber-
víncia um Engenheiro como empregado, lança mão quando é neces- tura da sessão ordinária de 1862
pelo Presidente Jose Fernandes da
sário do engenheiro civil Mello e Cunha, juiz comissário do distrito Costa Pereira Junior. Victoria: Typ.
de São Mateus85. No relatório de 1865 continua ativo a subsidiar a Capitaniense de Pedro Antonio
d’Azeredo, 1862. p. 57.
presidência da província86. Em 1866 orçou obras na nova Matriz de 85
RELATORIO apresentado á
São Matheus e na Matriz do Espírito Santo, assim como atuou como Assembléa Legislativa Provincial
do Espirito Santo no dia da aber-
juiz comissário na demarcação de terras do distrito que envolvia os tura da sessão ordinária de 1864
municípios de Itapemirim, Benevente e Guarapari87. O mesmo rela- pelo 1º Vice-Presidente Dr. Eduar-
tório informa que reside em Itapemirim não podendo ajudar direta- do Pindahiba Mattos. Victoria: Typ.
Liberal do — Jornal da Victoria,
mente o Inspetor de Obras públicas, mas que tem sempre se mos- 1864. p. 33.
86
trado da melhor boa vontade em adjudicar a presidência da provín- RELATORIO apresentado a
Assembléa Legislativa Provincial
cia nas suas necessidades88. Ainda a essa época orçou concertos de do Espirito Santo no dia da aber-
pontes e estradas e recebeu valores orçados, dando a entender que tura da sessão ordinária de 1865.
Pelo Presidente Dr. Jose Joaquim
também se responsabilizava pela execução das obras89. Em 1867 Carmo. Victoria: Typ. Liberal do
estava orçando melhoramentos para a estrada que unia a Vila de — Jornal da Victoria, 1865. p.23.
87
Itapemirim à Vila de Cachoeiro90. Em 1871, apesar dos baixos ven- RELATORIO apresentado a
Assembléa Legislativa Provincial
cimentos, aparece nomeado como Inspetor das Obras Públicas e no dia da abertura da sessão ordi-
levantando planta e orçamento de uma nova Matriz no porto de nária de 1866. Pelo Presidente Dr.
Allexandre Rodrigues da Silva Cha-
Cariacica91. Também a essa época elaborou orçamento e plano de ves. Victoria: Typ.— do Jornal da
obras para o aterro do mangal do Campinho92 e para uma vala de Victoria, 1866. p.12.
143
livre navegação de canoas entre o Lamarão e o Una93. Em 1872 o cargo de Inspetor das Obras
Públicas está vago novamente94 mas Mello e Cunha continua adjudicando graciosamente a presi-
dência da província na fiscalização da obra do Telheiro da Fonte Grande95.
Cabe realçar ainda alguns nomes que tiveram passagem pela província tendo posteriormente
repercussão no Brasil que se modernizava. Apenas citando os mais notáveis: em 1874, Epifânio
Candido de Souza Pitanga, que por volta de 1883 tornou-se diretor da Escola Politécnica do Rio
de Janeiro; entre 1875 e 1880, Hermillo Candido da Costa Alves, que foi posteriormente o
principal assessor técnico de Aarão Reis quando do projeto e fundação da cidade de Belo Hori-
zonte; em 1882, Augusto Carlos da Silva Telles, que no início do século XX tornar-se-ia importan-
te vereador da cidade de São Paulo, responsável por alguns de seus projetos de modernização.

6. A ferrovia e o desenvolvimento da construção civil


A ferrovia parece ter sido a grande estimuladora das ciências construtivas do século XIX: por
exemplo, as grandes estruturas metálicas da arquitetura parecem ter encontrado maior repercus-
são econômica e prática nas gares das grandes capitais europeias do que propriamente na arquite-
tura efêmera dos pavilhões das feiras internacionais do início do século, assim como na engenha-
ria civil as primeiras grandes pontes e viadutos de ferro foram construídas para possibilitar o
assentamento do leito das estradas de ferro. Embora a moderniza-
88
Ibidem. p.20. ção dos portos europeus – principal responsável pelo desenvolvi-
89
Tribidem. p.21.
90
RELATORIO com que foi aberta a mento que as argamassas hidráulicas tiveram no século XIX – tenha
sessão ordinaria da Assembléa contribuído também para o incremento deste cenário tecnológico, a
Legislativa Provincial pelo Exm.
Sr. Dr. Carlos de Cerqueira Pinto 1º
ferrovia teve a particularidade de alterar todo um modo de vida
Vice-presidente da Provincia, no urbano, sem ela não haveria a cidade moderna do século XIX e XX.
anno de 1867. Victoria: Typ.— do A implantação da estrada de ferro acelerou o desenvolvimento
Jornal da Victoria, 1867. p.20.
91
RELATORIO lido no paço da engenharia e o da construção civil no Brasil. Tanto a moderniza-
d’Assembléa Legislativa da ção dos portos do Império ensaiada ao final do século e não levada
Provincia do Espirito Santo pelo
Prezidente o Exm. Snr. Doutor Fran- inteiramente a cabo nesta época, como as construções das vias férre-
cisco Ferreira Correa na sessão as, demandavam um novo perfil de profissional para a construção
ordinaria do anno de 1871. Victoria:
Typ. do — Correio da Victoria, civil que já não podia mais ser preenchido pelo mestre de obras com
1872. p.32. formação similar a do período colonial, sequer pelo engenheiro mili-
92
Idem. p.76.
93
Ibidem. p.78.
tar da tradição luso-brasileira. Houve a necessidade de alteração do
94
RELATORIO apresentado a’ padrão de referência e a tradição lusa foi deixada de lado, substituída
Assembléa Legislativa Provincial fundamentalmente pela francesa96. Esses novos profissionais seriam
do Espirito-Santo pelo Presidente
da Provincia o Exm. Sr. Dr. Anto- os formados pelas Escolas Politécnicas brasileiras que adotavam o
nio Gabriel de Paula Fonseca no padrão de excelência das politécnicas europeias, em particular as fran-
dia 2 de Outubro de 1872. Victoria:
Typographia do Espirito-Santense, cesas, inglesas e alemãs.
1872 p.13. O processo que se instaurou desde o Império, de acumulação de
95
Idem. p.14. capital através de uma economia agrícola eminentemente cafeeira e
96
A este respeito é suficiente verifi-
car a bibliografia adotada nos dis- voltada para a exportação, permitiu a implantação não apenas do
tintos cursos e anos da Politécni- sistema ferroviário, como também possibilitou a implantação de um
ca do Rio de Janeiro in: Rebouças.
Guia para os alumnos.. op.cit. projeto de modernização do Estado brasileiro eminentemente ideo-
97
José Murilo de Carvalho. A Esco- lógico, nas palavras do historiador José Murilo de Carvalho97, proje-
la de Minas de Ouro Preto: o peso
da glória. 2ª edição revista. Belo to este que contava - como principal vetor das suas transformações
Horizonte: UFMG, 2002. p.16. - com a criação das Escolas de Engenharia nos moldes das europeias:
144
à Politécnica do Rio de Janeiro de 1874 sucedeu-se a a Escola de Minas de Ouro Prêto em 1876,
e cerca de vinte anos depois a de São Paulo (1894) e a da Bahia (1897) – estas últimas já no
período republicano.
Com a formação dessas escolas viemos a conquistar nossa independência no campo da forma-
ção acadêmica das artes construtivas, por volta do final do século. Escolas que se preocuparam em
trazer não apenas um novo saber, mas também em o adequar às necessidades do país em cresci-
mento, criando disciplinas especificamente voltadas para a engenharia ferroviária, para a engenharia
de portos e para a engenharia de minas98 de forma a suprir a crescente demanda nacional por
profissionais especializados nessas áreas, de modo que, se inicialmente no processo de construção da
malha ferroviária brasileira participavam apenas engenheiros estrangeiros, poucas décadas após já
podia se observar que entre os profissionais atuantes a predominância esmagadora era de brasileiros
com formação nacional99.
A história da estrada de ferro no Espírito Santo parece começar nas três últimas décadas do
século, pois por volta de 1872 o engenheiro Miguel Maria de Noronha Feital solicitava, para si e
dois sócios, a concessão por sessenta anos dos direitos de uma estrada a ser construída entre
Vitória e o porto de Piúma, passando por Cachoeiro de Itapemirim e as colônias de Santa Isabel
e Leopoldina100. Em datas imediatamente posteriores existem solicitações similares de outros
empreendedores, todos visando à construção de estradas de ferro
localizadas no sul da província ou ligando o sul à capital. Em 1876 o 98 A este respeito ver: Rebouças.
engenheiro Hermillo Candido da Costa Alves, contratado pelo go- op. cit.
99
verno imperial, finalizou estudo para a construção de uma estrada Pedro Carlos da Silva Telles. His-
tória da engenharia no Brasil. Rio
de ferro partindo da Capital e chegando ao Município de Serro, na de Janeiro: Clavero, 1984. p.473.
província de Minas-Gerais101. A iniciativa governamental diferencia- 100 Relatório apresentado a
se das iniciativas privadas que priorizavam o sul cafeeiro e agrário Assembléa Legislativa Provincial
em detrimento da conexão que possibilitaria o escoamento das ri- do Espirito-Santo pelo Presidente
da Provincia o Exm. Sr. Dr. Anto-
quezas minerais. nio Gabriel de Paula Fonseca no
Contudo, essas primeiras iniciativas ou fracassaram ou foram dia 2 de Outubro de 1872. Victoria:
assumidas posteriormente por outros empreiteiros e pelo próprio Typographia do Espirito-Santense,
1872. p.15.
Governo provincial. Em 1887 verifica-se que setenta e um quilôme- 101
RELATORIO apresentado a S. Ex.
tros de ferrovias já podiam ser computados no sul da província o Sr. Dr. Domingos Monteiro Pei-
conectando as vilas do interior com o litoral e atuando, a princípio, xoto pelo Exm. Sr. Coronel Manoel
apenas como vias isoladas de penetração, conduzindo ao porto a Ribeiro Coitinho Mascarenhas por
occasião de passar a
produção agrária, em especial o café, que desde 1860 já contabilizava adiministração da Provincia do
na região uma produção significativa102. Foi necessário, contudo, es- Espírito-Santo no dia 4 de Maio
perar que a Leopoldina Railway incorporasse a Estrada de Ferro Sul de 1875. Victoria: Typographia do
Espirito-Santense, 1875. p.26.
do Espírito Santo – o que só aconteceu no início do século XX – 102 Neida Lúcia Moraes. Espírito
para que em 1910 a cidade de Vitória estivesse conectada à cidade Santo: história de suas lutas e
de Niterói no Rio de Janeiro através de 598 quilômetros de estrada conquistas. Vitória: Artgraf, 2002.
de ferro103. p.234.
103
Relatório apresentado ao Exmo.
Evidencia-se já a partir dos primeiros estudos para as estradas de
Sr. Dr. Jeronymo de Souza
ferro uma participação mais intensa dos engenheiros no cotidiano da Monteiro Presidente do Estado
província. Estes profissionais eram bastante requisitados e acaba- pelo Director de Agricultura, Ter-
vam por participar de outras atividades ligadas à construção civil, tal ras e Obras Dr. Antonio Francisco
de Athayde em 30 de Julho de
como quando em 1886 o engenheiro José Lins, funcionário da Es- 1910. p.57.
145
trada de Ferro Carangola, graciosamente executou para a província “planta e orçamento”104 para
a ponte de Itabapoana, no Município de Cachoeiro de Itapemirim.
Parece-nos que a oferta no país de profissionais qualificados é o principal fator que possibilita
esse incremento; se os relatórios governamentais da primeira metade da centúria são todos unâni-
mes em realçar a inexistência de profissionais dispostos a arcar com responsabilidades no Espírito
Santo, ainda que o principal motivo arguido seja a falta de uma remuneração adequada, nada nos
impede de supor que uma concorrência mais acirrada entre os profissionais da engenharia nacio-
nal à época teria de certo preenchida as vagas disponíveis, como de fato ocorreu mais ao final do
século.
O relatório de Inácio Francisco de Oliveira, engenheiro-chefe da Estrada de Ferro Sul do Espí-
rito Santo em 1896, não indica nenhuma dificuldade em se obter mão de obra qualificada para a
formação de uma equipe que contou, de início, com vinte e nove profissionais divididos em enge-
nheiros de primeira e de segunda classe105. De fato, o mesmo relatório indica, sim, uma falta de mão
de obra, mas da mão de obra menos qualificada. Oliveira não apenas relata a dificuldade de se
encontrar trabalhadores braçais como sugere que o governo auxilie os empreiteiros contratados para
a construção da estrada de ferro agenciando trabalhadores na Europa. De fato, por outro documen-
to, ficamos sabendo que Carlos Bloome Reeves, um dos engenheiros empreiteiros da referida estra-
da, contratou com a administração provincial a tarefa de trazer dois mil trabalhadores imigrantes do
Rio Grande do Sul e também da Europa para trabalharem no Espírito Santo nas seções 2ª e 3ª
(Benevente) da Sul do Espírito Santo das quais era o responsável106.
Essa participação mais intensa dos profissionais qualificados significou um incremento na
qualidade das técnicas e dos materiais, os quais, até então, apesar do adiantado do século, no
Brasil, de uma forma geral, situavam-se ainda em um cenário onde a permanência das antigas
práticas construtivas coloniais, tal como havíamos constatado para a Vitória da primeira meta-
de do século XIX, era a tônica.
104
Essa transformação de imediato aparece apenas na Ferrovia e
Relatório apresentado à
Assembléa Legislativa Provincial nas suas instalações; materiais tiveram que ser importados para a
do Espírito Santo pelo Presidente execução da malha ferroviária propriamente dita: não apenas loco-
da Provincia Desembargador An- motivas e maquinário em geral mas também material de construção:
tonio Joaquim Rodrigues em
05.10.1886. Victoria: Typographia em 1896, toda a madeira aparelhada para pisos e assoalhos assim
do Espírito-Santense, 1886. p.47. como as esquadrias das edificações (estações, casas dos chefes e dos
105
Relatórios da Estrada de Ferro agentes etc.) vieram do Rio de Janeiro107. A estação de Mathilde,
Sul do Espírito Santo... (Relatório
apresentado ao Ilmo. Sr. Enge- construída em 1910, em Alfredo Chaves, exibe farto material cons-
nheiro Chefe Dr. Ignácio Francisco trutivo importado, entre eles tijolos cerâmicos e telhas provenientes
de Oliveira, pelo secretário de Marseilhe (Guichard & Carvin), assim como um rebuscado
Raymundo Lucas em janeiro de
1896). Rio de Janeiro: Leuzinger, embasamento em pedra (forro) que com certeza foi executado no
1896. s/p. Anexo n° 3. Rio de Janeiro. Isso foi possibilitado, no caso de Mathilde, pela para-
106
Contracto celebrado com o En-
genheiro Carlos Bloomer Reeves
da ferroviária já estar funcionando cerca de oito anos antes da
para a introdução de dous mil tra- edificação da estação (desde 1902), o que de certo possibilitou o
balhadores. Rio de Janeiro: Tipo- transporte do material.
grafia de Soares & Niemeyer,
1895.
A partir da engenharia ferroviária vemos a participação dos en-
107
genheiros civis intensificar-se na província. O trabalho final de gra-
Relatórios da Estrada de Ferro
Sul do Espírito Santo... op.cit. Rio duação de Karla Schroeffer sobre a construção civil no Espírito
de Janeiro: Leuzinger, 1896. p.32. Santo no século XIX traz uma extensa relação de projetos aprova-
146
dos a partir de 1884, quando este procedimento passou a ser norma na cidade de Vitória108, sendo
que a autoria de alguns desses projetos é de engenheiros civis. Vemos também, através desta
mesma relação, que os projetos aprovados do final do século XIX em grande parte eram de
autoria de ‘construtores’, pessoas que provavelmente obtiveram a sua qualificação na prática.
A engenharia da época ainda girava em torno das tarefas mais importantes: projetos para as
grandes construções públicas e fiscalização das obras governamentais. A participação de um escri-
tório paulista famoso - como foi o projeto da Santa Casa de Misericórdia de Vitória, de autoria de
Ramos de Azevedo – parece ter sido exceção, contudo, a Santa Casa foi uma obra do inicio do
século XX. O século XIX foi um período que se caracterizou na construção civil do Espírito
Santo pela predominância de obras paroquiais e de infra-estrutura (estradas e pontes).

7. Conclusões
Observamos que ao longo do século XIX a atividade da engenharia foi se firmando como
condutora na área da construção, sendo que neste cenário os engenheiros paulatinamente foram
assumindo o papel de protagonistas em detrimento dos demais atores. Particularmente no Espíri-
to Santo esse desenvolvimento ficou evidenciado através de uma primeira metade da centúria em
que a presença destes técnicos foi diminuta e restrita a profissionais militares pertencentes aos
quadros do Estado, até uma segunda metade onde não apenas este quantitativo rapidamente
multiplicou-se, mas onde, sobretudo, o predomínio da categoria de profissionais civis rapidamente
igualou e superou em muito a dos profissionais militares.
A engenharia civil no Brasil fez-se na segunda metade do século XIX e fez-se reelaborando a
arte de construir, que a partir de então deixou cada vez mais os seus aspectos regionais e verná-
culos de lado passando a se constituir em um conhecimento técnico globalizado e ‘científico’.
O historiador Milton Vargas acredita que ao final do século XIX e início do XX a “execução
propriamente dita da obra e os conhecimentos para realizá-la não eram tanto da alçada dos
engenheiros, mas, principalmente, dos mestres-de-obras, aos quais cabia a direção e realização de
todas as técnicas construtivas”. Ainda segundo este autor, aos engenheiros caberia a “aplicação de
conhecimentos científicos elementares, (como) nos cálculos e topografias (...) e aos mestres, a
solução de problemas técnicos, não havendo muita conexão entre os dois”109. De nossa parte,
contudo, supomos que as coisas devem ter se passado diferentemente e que não havia motivos
para que um engenheiro civil deixasse o direcionamento técnico da obra ao encargo de um
mestre, profissional muito menos qualificado e dentro de uma concepção técnica inscrita na
‘ultrapassada’ tradição lusa, quando a sua formação de Escola Politécnica - ainda que não tivesse
sido adquirida no exterior - provinha diretamente de uma tradição
tecnologicamente mais ‘desenvolvida’: a francesa. É claro que o 108 Karla Gonçalves Schroeffer. O de-
mestre da tradição lusa continuava predominando em número: na senvolvimento do Espírito Santo
através da construção civil: sé-
época era ainda ele o responsável pela maior parte das construções culo XIX. Vitória: Universidade Fe-
do cotidiano, das pequenas construções do dia a dia, mas as constru- deral do Espírito Santo, 2007 (tra-
ções de maior porte sob a responsabilidade de um engenheiro com balho final de graduação). Anexo
certeza tinham a sua execução debaixo da alçada dos conhecimentos B. (policopiado).
técnicos deste profissional, que por sua vez não devia encontrar 109 Milton Vargas. “Engenharia ci-
pouca resistência para implementar estes conhecimentos através de vil na República Velha” in: His-
tória da técnica e da tecnologia
uma mão de obra formada na tradição portuguesa: fosse na execu- no Brasil. São Paulo: UNESP,
ção de alvenarias de tijolos com seus arcos de descarga travados, 1994. p.191.
147
fosse na aplicação de revestimentos à base de cimento Portland. O já citado César de Rainville,
por exemplo, propugnava no seu Vinhola Brasileiro um sistema de amarração para a edificação de
paredes de tijolos que ele elogia como mais eficiente, realçando o fato de que na maior parte das
vezes o engenheiro tinha que impor esta solução na obra, já que os mestres e pedreiros recusa-
vam-na como dificultosa, incapazes de entender os benefícios advindos do novo sistema110.
Observamos também que as profundas transformações havidas ao longo do século XIX na
área da construção civil, tanto no Brasil como na província do Espírito Santo, deveram-se mais a
uma atuação da engenharia e da nova classe de profissionais atuantes - o engenheiro civil - do que
propriamente a uma contribuição do trabalho livre do imigrante europeu, que é o que até o
momento tem enfatizado a historiografia tradicional. Não estamos tentando minimizar o papel do
imigrante europeu na construção do Brasil moderno, mas a imigração não foi fenômeno que
aconteceu por igual em toda a extensão do país, de forma que nem sempre entre as levas de
imigrantes que aqui chegaram houve artesãos qualificados para a construção civil. No Espírito
Santo, como verificamos, a imigração europeia teve pouca participação nesta atividade ao longo
do século XIX. Algumas vezes mesmo, a administração provincial se via obrigada a enviar mão de
obra qualificada de origem escrava e/ou índia para executar as obras necessárias que os colonos
imigrantes não eram capazes de prover, isso aconteceu em especial nas colônias que eram de
responsabilidade do Governo Central (Santa Isabel e Santa Leopoldina).
É certo que em cidades como São Paulo, ou ainda Pelotas no Rio Grande do Sul, o papel da
imigração italiana com seus clãs de artesãos, muitos deles qualificados nos liceus italianos de artes
e ofícios, foi deveras importante na elevação da qualidade da mão de obra destes locais, mas esta
era ainda uma mão de obra artesanal, ela trouxe apuros e requintes em cidades que estavam em
processo de enriquecimento rápido e que até então desconheciam este modo sofisticado de vida,
mas estas práticas, algumas vezes tidas por ‘novidade’, em termos técnicos não se distanciavam
dos procedimentos dos bons artesãos da tradição lusa que habitavam a corte e que produziram
uma arquitetura com requinte ao longo de todo o século XIX, e mesmo antes. Esses imigrantes
artesãos eram em geral estucadores, canteiros ou marceneiros, dominavam técnicas construtivas
tradicionais em seus países, não foram eles, de certo, os responsáveis pela ‘revolução’ que se deu
na construção civil na segunda metade do século XIX. As inovações técnicas do século XIX - as
estruturas metálicas, as grandes estruturas de alvenaria portante em tijolos maciços e o uso diver-
sificado do cimento Portland - foram trazidas pela engenharia e não pela imigração.
O papel dos engenheiros é fulcral neste desenrolar da construção civil brasileira, as primeiras
grandes experiências ocorridas, paradoxalmente, ocorreram justamente na corte - uma cidade na
qual até o final do século XIX predominava a mão de obra escrava – mas também onde havia
uma forte tradição da engenharia militar e onde inaugurou-se em 1874 a pioneira Politécnica.
Experiências como as que já fazia o engenheiro André Rebouças por volta de 1867 quando nas
obras das Docas da Alfândega utilizou pela primeira vez no país o
110
Rainville. op.cit. p.116. cimento Portland importado especialmente para uma obra de enge-
111
Revista do Instituto nharia hidráulica, e onde se fizeram também os primeiros testes de
Polytechnico Brazileiro. Rio de
Janeiro. 1867.
resistência de materiais da história da engenharia nacional111.
112
Nesta legislatura (15ª) foram elei- No Espírito Santo verificamos que pelo menos desde a legislatura
tos deputados os engenheiros de 1864 os engenheiros participaram da vida política da província
Pedro Cláudio Soído e Manoel
Feliciano Muniz Freira (Daemon.
como deputados na Assembleia Provincial112, isso não significa que
op.cit. ano de 1864). não participassem anteriormente de uma forma não oficial e muitas
148
vezes até mesmo espúria: o Major de Engenheiros José Marcelino de Vasconcelos, segundo
Daemon, em 1822 foi alvo de uma devassa por ter se envolvido em sedição contra o governo da
província113. Ainda segundo o mesmo autor, o já referido engenheiro civil Leopoldo Deocleciano
de Mello e Cunha, que havia sido deputado nas legislaturas de 1866 a 1869, em 1878 chefiou
uma invasão à Assembleia Provincial fazendo-se empossar ilegitimamente como presidente114.
Como pedagogos e preocupados em melhorar a educação de base na província parece que os
engenheiros tiveram papel de destaque também: Deolindo José Vieira Maciel em 1867 e Miguel
Maria de Noronha Feital em 1872, foram fundadores, organizadores e diretores de Liceus115.
Os profissionais em geral participavam ainda engajadamente nos debates amplos em que a
sociedade culta se envolvia e que eram instigados em parte pela imprensa local116, e que diziam
respeito principalmente a questões relativas à salubridade e saúde pública, tais como o aterro do
mangal do Campinho, acusado de provocar ‘miasmas deletérios’ causadores de epidemias; ou a
construção de um novo cemitério para a capital, já que os existentes no interior das vilas, perten-
centes às ordens religiosas, eram vistos como indesejáveis, algumas vezes localizando-se mesmo
próximos às nascentes das fontes de água potável que abasteciam o núcleo urbano117. Em 1881,
por exemplo, uma comissão foi criada pelo governo provincial para os estudos necessários à
criação de um Lazareto na cidade de Vitória - a ser utilizado para acolher enfermos em época de
epidemias: esta comissão era formada por três médicos e pelos engenheiros César de Rainville,
Joaquim de Salles Torres Homem e Maximino Maia118. A participação dos engenheiros era sem-
pre requisitada quando da necessidade de um parecer técnico de alto nível, e o seu papel, sempre
crescente nas questões sociais e políticas confirma a classe – junto com médicos e advogados –
como uma das três categorias profissionais mais importantes do segundo Império.

8. Créditos
O presente trabalho é fruto de pesquisas financiadas com bolsas 113
Daemon. op.cit. ano de 1822.
e auxílios financeiros por distintas agências de fomento: FACITEC 114
Daemon. op.cit. ano de 1878.
(Fundação de Apoio a Ciência e Tecnologia do Município de Vitó- 115
Daemos, op.cit. ver anos de
ria), FAPES (Fundação de Amparo a Pesquisa do Espírito Santo) e, 1867 e 1872.
em especial, CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientí- 116
Relatorio apresentado a
fico e Tecnológico). Assembléa Legislativa da
Provincia do Espirito Santo pelo
Exm. Sr. Dr. Martim Francisco
Ribeiro de Andrada Junior em 3
de Março de 1883. Victoria:
Typographia do Horisonte, 1883.
p.15.
117
Idem, ibidem.
118
Relatorio apresentado a
Assembléa Legislativa da
Provincia do Espirito Santo em
sua sessão ordinária de
08.03.1881 pelo Preseidente da
Provincia Exmo. Sr. Dr.
Marcellino de Assis Tostes.
Victoria: Gazeta da Victoria,
1881. p.33.
149
OS MODELOS URBANOS BRASILEIROS DAS CIDADES PORTUGUESAS

Manuel C. Teixeira*

1. Introdução
A expansão ultramarina portuguesa a partir do século XV teve como um de seus principais
componentes um amplo processo de urbanização dos novos territórios. Nas primeiras fases deste
processo pode observar-se uma influência dos padrões de urbanização da metrópole, que se
aplicavam nos novos territórios com adaptações decorrentes das diferentes condições ambientais,
dos promotores envolvidos e dos recursos, dos materiais e da mão de obra disponíveis.
Rapidamente se começa a observar o fenômeno inverso, e já desde o final do século XV,
novas morfologias urbanas desenvolvidas na Madeira e nos Açores virão influenciar a prática
urbanística em Portugal. É no Brasil que podemos observar, de uma forma muito clara, esta
reciprocidade. Dois períodos históricos são particularmente importantes para observar as influ-
ências dos modelos urbanos brasileiros sobre o urbanismo português.
O primeiro é o século XVI, marcado pela construção de Salvador da Bahia, em cujo traçado
podemos ver as influências do plano de expansão da cidade do Funchal, na ilha da Madeira, de
finais de quatrocentos, e do plano de expansão da cidade de Angra, nos Açores, do início de
quinhentos. No entanto, no plano de Salvador da Bahia, a regularidade e a lógica do traçado, a
articulação dos seus diferentes componentes, as hierarquias urbanas, a relação com o território, o
papel ordenador das praças, a estrutura de quarteirões e de loteamento, surgem-nos muito mais
articulados e coerentes, definindo um padrão urbano que irá a partir daí influenciar o urbanismo
em Portugal e noutras regiões do mundo.
O segundo momento histórico a analisar é o século XVIII e as múltiplas fundações urbanas
brasileiras deste período, que se caracterizam por uma crescente afirmação da regularidade e da
ortogonalidade, pela assunção das praças como elementos geradores das malhas urbanas, e pela
adoção de programas de arquitetura uniformes, que se viriam a refletir na prática e na teoria
urbanística portuguesas setecentistas. Nem o plano da reconstrução da Baixa de Lisboa nem o
plano de Vila Real de Santo António, ambos da segunda metade do século XVIII, seriam possíveis
sem a ampla prática urbanizadora dos engenheiros militares envolvidos no processo de urbaniza-
ção brasileira de setecentos e os modelos urbanos aí desenvolvidos.

2. A singularidade do urbanismo português


As cidades portuguesas apresentam características morfológicas que as distinguem das cida-
des de outras culturas. Muitas dessas características foram desenvolvidas em contextos coloniais,
vindo a ser posteriormente aplicadas na metrópole e incorporadas na cultura urbana portuguesa.
A cidade portuguesa é morfologicamente diferente em cada momento histórico. Apesar disso,
são perceptíveis elos de continuidade que articulam diferentes formas e concepções de cidade, e
em que é possível reconhecer um fundo de permanência ao longo do tempo.
Dentre os fatores determinantes para a estruturação das cidades
portuguesas, ocupam um papel fundamental a geografia e a topogra- * Faculdade de Arquitectura da Uni-
fia do terreno, o clima, a natureza do solo e os materiais disponíveis versidade Técnica de Lisboa.
151
para a construção. Fatores de ordem cultural, em que se incluem os valores sociais, políticos,
morais e religiosos que estruturam uma sociedade, vêm articular-se com aqueles fatores físicos,
expressando-se também nas formas de organização urbana.
É na articulação desses diferentes fatores que qualquer cidade deve ser entendida. A civiliza-
ção material – que respeita o conjunto de práticas e de comportamentos que se desenvolvem a
partir das características físicas e ambientais de um determinado território – traduz-se naquilo que
é habitualmente designado como as características vernáculas do urbanismo. A cultura – que é
expressão da concepção do mundo e dos valores sociais, políticos e religiosos das sociedades –
corresponderá àquilo que é habitualmente designado como o seu componente erudita.
O componente vernáculo tem a ver com o tipo de relações que o núcleo urbano estabelece
com o território e com o desenvolvimento de soluções urbanísticas que respondem às condições
físicas e ambientais. O componente erudito diz respeito às referências intelectuais e às concepções
teóricas, urbanísticas e arquitetônicas, dos seus construtores, traduzindo-se habitualmente em
esquemas geometrizados.
O componente vernáculo e o componente erudito correspondem a diferentes concepções e
formas de organização do espaço urbano. Na primeira, os principais elementos estruturantes da
cidade são as ruas que se implantam sobre as linhas naturais do território e os edifícios singulares
localizados em pontos dominantes, que são referências para a organização dos espaços envolventes
e para a organização da cidade no seu todo. Na segunda, é o próprio espaço urbano, definido por
um traçado regular de base geométrica, que é o elemento estruturante fundamental, no qual se
vêm inserir os diferentes elementos da cidade.
Nas cidades portuguesas encontramos sempre articuladas esses dois componentes. O compo-
nente vernáculo é preponderante nos períodos iniciais de desenvolvimento do núcleo urbano, que
decorrem a maior parte das vezes sem o recurso a técnicos especializados. A adaptação ao sítio
traduz-se na definição do perímetro das muralhas, que se adaptava à topografia do território, na
construção dos principais percursos urbanos sobre as linhas naturais do território, na escolha dos
sítios mais elevados para a implantação de edifícios singulares, no desenvolvimento de praças e de
largos nos pontos de articulação ou de inflexão das vias estruturantes da malha urbana.
O componente erudito caracteriza-se pela adoção de princípios geométricos como elementos
geradores dos traçados urbanos. Ele é mais evidente nas situações de desenvolvimento urbano em
que há a participação de técnicos no desenho da cidade. Nestes incluimos os arquitetos e enge-
nheiros militares, mas também os povoadores medievais, os arruadores, os “homem da agulha”
ou “habilidosos no uso da prancheta” Este modelo de cidade tende a ser mais regular e construído
de acordo com um esquema racional: existe uma ordem geométrica pré-definida que estrutura o
traçado urbano, onde se vêm inserir os diferentes tipos de edifícios e de funções.
Não é correto fazer-se a dicotomia entre traçados urbanos planeados e não planeados. Embora se
tenda a assumir que um traçado geométrico corresponde à existência de um plano e à participação de
técnicos no seu desenho, isso não é necessariamente o caso. A presença desses técnicos não é suficiente
para caracterizar um traçado urbano como planeado, nem o conceito de planeado significa a existência
de um plano desenhado a priori. Não podemos confundir os agentes e os processos envolvidos na
promoção urbana com os resultados construídos. A promoção do espaço urbano pode ser privada ou
pública, de iniciativa municipal ou do poder central, civil ou religiosa, desenvolvida gradual ou rapida-
mente, realizada pelos próprios habitantes ou através de técnicos urbanistas. Em qualquer desses casos,
os resultados construídos podem denotar maior ou menor regularidade geométrica.
Por um lado, o trabalho de sucessivas gerações a construir gradualmente os seus próprios
espaços urbanos podia resultar em traçados surpreendentemente regulares; por outro lado, o
152
urbanismo português de carácter erudito soube integrar o entendimento do território nas suas
propostas, e arquitetos e engenheiros procuravam adaptar os seus planos ao sítio, tornando-os
menos rigorosos, sempre que necessário,
Em todos os tempos, a cidade portuguesa é planeada e construída com o sítio, atendendo às
suas características físicas e ambientais. Mesmo nos casos em que os planos tinham por base
princípios geométricos, e em que as características físicas do território se poderiam considerar
menos relevantes, houve sempre a preocupação de adaptar o plano, e a sua geometria, às
preexistências, fossem elas naturais ou construídas pelo homem. A cidade portuguesa caracteriza-
se pela síntese destas duas componentes, harmonizando inteligentemente essas duas formas de
construir a cidade, constituindo esta a principal característica do urbanismo português.
A consequência disto é que os traçados urbanos portugueses raramente eram geometricamen-
te rigorosos. Subentendia-se a sua lógica, e a sua regularidade, mas sempre dispostas a serem
subvertidas para uma melhor adequação ao terreno, seja do ponto de vista funcional, formal ou
simbólico. Esta plasticidade dos traçados urbanos portugueses não se traduzia numa estrutura
amorfa. Pelo contrário, as cidades portuguesas eram eminentemente estruturadas e hierarquizadas.
Contrariamente aos traçados rigorosamente planeados, definitivos na sua lógica formal, e que
dificilmente se acomodam a transformações de escala, de uso, ou de significado, o urbanismo
português nunca se caracterizou por esquemas rígidos e abstratos, antes se moldando ao território
e a todas as alterações que sobrevinham ao longo do tempo. A sua não rigidez, a sua plasticidade,
permitia-lhe acomodar-se e responder a todas as mudanças.

3. A cultura urbana portuguesa no início da expansão marítima


Muitas cidades portuguesas tinham o seu núcleo primitivo localizado no topo de uma colina
proeminente, a partir do qual o núcleo urbano se desenvolvia, numa continuidade de tradição que
remontava aos Castros pré-romanos. A localização desses núcleos urbanos em pontos dominantes
do território, em locais facilmente defensáveis, era justificada por razões de defesa. A mesma
razão iria estar por detrás da escolha de locais acidentados para a implantação das cidades portu-
guesas em sucessivas épocas históricas e em diferentes contextos geográficos. São essas caracterís-
ticas que observamos em cidades como Lisboa, Porto ou Coimbra, mas também em muitas
cidades coloniais como Luanda, Salvador da Bahia ou Rio de Janeiro.
A localização costeira ou ribeirinha de muitas cidades portuguesas, associada à escolha de
sítios elevados para a implantação do núcleo urbano original, levou a que muitas dessas cidades se
estruturasse em cidade alta e cidade baixa, com funções e características distintas. A cidade alta
era a sede do poder, político e religioso, enquanto a cidade baixa era o local onde se desenvolviam
as atividades marítimas e comerciais.
Muitas dessas características radicam na tradição urbana mediterânica, de que a cidade portu-
guesa é também herdeira. A cidade portuguesa partilha dessa rica tradição urbana, que encarava
a estrutura do território como uma condicionante e uma componente do traçado urbano.
A ocupação pelos romanos do território que hoje corresponde a Portugal decorreu a partir do
século II a.C. até ao século IV d.C. A partir desse século, suevos e visigodos vieram ocupar a
maior parte desse território. A cultura e a civilização romanas eram territoriais, baseadas no
estabelecimento de uma rede de implantações urbanas para a ocupação efectiva do território. Os
princípios urbanísticos da cidade romana de colonização, baseados na regularidade, na racionalidade
e na ordem, foram impostos quer às cidades fundadas de novo, quer a aglomerados já existentes,
e que foram reestruturados durante o período de ocupação romana.
153
A cidade colonial romana era uma cidade regular, com uma estrutura ortogonal de ruas e de
quarteirões. Duas ruas perpendiculares entre si - o cardus e o decumanus - constituíam os dois
eixos viários principais e as diretrizes fundamentais da cidade. Adjacente à interseção desses dois
eixos, no centro da cidade, localizava-se o fórum. Este modelo tinha um desenvolvimento pleno
quando a cidade se construía de raiz, mas mesmo quando se tratava da remodelação de aglome-
rados urbanos já existentes, a estrutura regular continuava a ser a referência, ainda que condicio-
nada pelos traçados anteriores ou pelas condições topográficas locais. Subsistem vestígios de
traçados romanos em cidades portuguesas, nomeadamente em Évora, Beja, Braga, onde se obser-
vam as marcas de uma estrutura regular ortogonal.
A regularidade da cidade romana vai ser também um componente importante da cultura
urbana portuguesa. A adoção de modelos racionais é uma constante ao longo dos séculos, sempre
associadas a ações de planeamento promovidas pelo poder.
Os traçados urbanos de origem muçulmana e os princípios que lhes deram forma constituem
outra importante componente da tradição urbana portuguesa. Na sua permanência em Portugal,
do século VIII ao século XIII, os muçulmanos deixaram as marcas da sua cultura urbana em
cidades do centro e do sul de Portugal, que fundaram ou que ocuparam e adaptaram às suas
necessidades. Na cidade muçulmana confluem dois tipos de fatores determinantes da sua forma:
aqueles que derivavam das condições materiais e ambientais do espaço em que se implantam, e
aqueles que derivavam de fatores culturais e religiosos.
Relativamente aos primeiros, as cidades muçulmanas ibéricas eram também herdeiras da
civilização mediterrânica, partilhando das suas características morfológicas. Relativamente aos
segundos, as influências culturais e religiosas na estruturação dos espaços urbanos só lentamente
se fariam sentir nas cidades ocupadas.
É deste caldear de influências, mais ou menos evidentes conforme as condições históricas e
locais, que se vai estruturar a cidade portuguesa, após a conclusão da reconquista do território aos
muçulmanos, no século XIII.
Os séculos XIII e XIV correspondem a um período de fundação de cidades por toda a
Europa, incluindo Portugal. D. Afonso III e D. Diniz fundaram muitas dessas povoações, em
zonas de fronteira ou em áreas que necessitavam de ser colonizadas. Nelas se incluem, entre
muitas outras, Viana do Castelo, Monção, Caminha, Monsaraz, Niza. Os traçados dessas cidades
tinham uma base regular, com uma organização sensivelmente ortogonal de ruas e de quarteirões.
As ruas alternavam entre ruas de frente e de trás, cortadas por transversais. Os quarteirões
tinham uma forma retangular alongada, cada um deles composto pelo mesmo número de lotes.
Os lotes iam de lado a lado do quarteirão, com uma face para uma rua de frente e outra face para
uma rua de trás. As suas dimensões variavam, conforme os casos, entre os 25 e os 30 palmos
(5.50 ou 6.60 metros) de frente. É esta dimensão que vamos encontrar a partir daí, ao longo dos
séculos, em muitas cidades de origem portuguesa, e que está na origem da tipologia arquitetônica
característica dessas cidades, com frentes de casa com três vãos.
Este era o panorama da cultura urbana portuguesa no início da expansão marítima, que
ocorre a partir das primeiras décadas do século XV, e que é simbolicamente marcado pela
conquista de Ceuta em 1415. Espaços urbanos com as suas raízes simultaneamente na civiliza-
ção mediterrânea, na cultura romana, e na cidade muçulmana constituiam a realidade das cida-
des portuguesas do século XV, e eram a principal referência para os construtores de cidades
além-mar.
154
4. Funchal, Angra e as intervenções urbanas quinhentistas na metrópole
A descoberta e a ocupação dos arquipélagos da Madeira e dos Açores ocorre ainda na primei-
ra metade do século XV. Inicialmente, os núcleos populacionais que se desenvolveram nessas ilhas
eram simples estruturas de ocupação do território, adaptadas às condições geográficas e construídas
pelos próprios colonos. Em fases posteriores de desenvolvimento, nos casos em que contariam já
com o apoio de arruadores, observa-se a adoção dos modelos das cidades medievais planeadas
em Portugal nos séculos XIII e XIV. Entre a construção de Niza ou Viana do Castelo – cidades do
século XIV, com traçados urbanos regulares – e o início da construção do Funchal, na ilha da
Madeira, decorrem pouco mais de cem anos.
Inevitavelmente, as referências para a sua construção eram as da metrópole. Os sítios escolhi-
dos para a implantação inicial destes núcleos urbanos insulares apresentavam características idên-
ticas: baías abrigadas, com boas condições de ancoradouro natural, viradas a sul, protegidas nos
extremos por acidentes naturais que protegiam o porto e a cidade. Uma estrutura defensiva ou a
casa do capitão, acompanhadas de algum casario e de estruturas religiosas, localizavam-se numa
zona sobrelevada. Na parte baixa, junto ao mar, a ocupação do território era feita através de um
caminho que se desenvolvia ao longo da costa, habitualmente ligando capelas localizadas nos
extremos da baía. Este caminho virá a transformar-se na principal rua do aglomerado, papel que
continua a assegurar até hoje em muitos casos.
Em fases subsequentes, desenvolviam-se outras ruas paralelas à primeira e algumas transver-
sais, estruturando um pequeno número de quarteirões, de forma sensivelmente retangular, com a
maior dimensão paralela à linha de costa. É esta primeira malha urbana que, nas cidades do
Funchal e de Ponta Delgada, apresenta características morfológicas de traçado, da estrutura de
quarteirões e de loteamento idênticas às das cidades medievais planeadas dos séculos XIII e XIV.
Dada a distância cada vez maior a que cada uma das ruas longitudinais era traçada relativa-
mente às anteriores, os quarteirões passavam a dispor-se, na sua maior dimensão, perpendicular-
mente ao mar. Se bem que os grandes eixos estruturantes da cidade continuassem a ser as ruas
paralelas à linha de costa, as ruas que se dispunham perpendicularmente tendiam a adquirir uma
importância crescente, tornando-se progressivamente a direção dominante do traçado.
Vamos encontrar idênticas características morfológicas em núcleos urbanos brasileiras do
século XVI, nomeadamente no Rio de Janeiro, no que se refere quer à escolha dos sítios de
implantação inicial, quer à forma como se estruturaram nas suas primeiras fases de desenvolvi-
mento. No entanto, no Rio de Janeiro já não se observa a estrutura de quarteirões de origem
medieval ainda presentes naquelas fundações do século XV.
Se de início as referências para a construção dos núcleos urbanos ultramarinos eram as refe-
rências vernáculas e eruditas da metrópole, rapidamente se começa a observar o processo inver-
so. A inovação nos traçados urbanos das cidades insulares ocorre a partir de finais de Quatrocen-
tos, através da reestruturação das malhas urbanas ou da construção de novas zonas de expansão.
É no Funchal, na ilha da Madeira, e em Angra, na ilha Terceira nos Açores, que se inicia esta
inovação urbanística.
O donatário da ilha da Madeira, e futuro rei D. Manuel I, teve um papel determinante na
modernização da cidade do Funchal nos finais do século XV. As intervenções urbanas então
realizadas consistiram na construção de uma nova expansão urbana, planeada e construída segun-
do uma estrutura ortogonal, na construção de novos edifícios institucionais – a Casa da Câmara,
o Paço de Tabeliães, a Alfândega e a Sé – e na construção de uma nova praça, o Terreiro da Sé,
associada a este edifício religioso (fig.1) na próxima página.
155
Fig. 1. Funchal, Portugal. - a) Desenho do autor. - b) Cidade do funchal,
[Mateus Fernandes], [c. 1570], Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

A inovação dessas intervenções liga-se a dois aspectos fundamentais. Por um lado, o Terreiro
da Sé era um espaço urbano regular, planeado e construído como parte do novo vocabulário
urbano que D. Manuel procurava instituir. Por outro lado, a estrutura de ruas da nova malha
urbana já não era uma estrutura de raiz medieval, constituída por ruas de frente e de traseiras que
se alternavam, limitando quarteirões em que os lotes urbanos tinham duas frentes. Pelo contrário,
os quarteirões eram menos alongados, tendendo para o quadrado, e os lotes dispunham-se agora
costas com costas, criando uma estrutura de ruas em que as hierarquias eram estabelecidas atra-
vés do perfil das ruas, das suas funções, da arquitetura dos edifícios, bem como através da sua
relação com outros componentes da malha urbana.
Observa-se assim no Funchal, em finais de quatrocentos, a aplicação, pela primeira vez, de
uma estratégia de modernização urbana que D. Manuel I irá aplicar em inúmeras cidades do reino
a partir do início do século XVI. A primeira dessas intervenções ocorre poucos anos depois na
cidade de Angra, onde vemos serem aplicados estes mesmos princípios de uma forma mais
consistente.
Na primeira metade do século XVI, a cidade de Angra vai reestruturar-se com um traçado
urbano regular, que representa uma ruptura clara com os modelos medievais. O plano de Angra
consiste numa malha urbana sensivelmente ortogonal, com as ruas principais orientadas perpen-
dicularmente à linha de costa e as secundárias cruzando-as em ângulo reto. Esta estrutura de ruas
definia um conjunto de quarteirões retangulares orientados na direção do mar. Tal como no
Funchal, cada um dos quarteirões era constituído por duas fiadas de lotes urbanos, dispostos
costas com costas. As frentes desses lotes estavam viradas para as ruas principais, não havendo
lotes urbanos orientados para as ruas transversais. O loteamento era regular, tendo os lotes as
dimensões habituais de 30 palmos (6,60 metros) de frente.
Uma praça retangular que correspondia – pelas suas dimensões e pela sua relação com a
restante malha urbana – a um quarteirão não construído era o elemento central deste plano, em
cujo centro se localizava a igreja da Sé. Tal como a praça da Sé no Funchal, também esta era uma
156
praça nova, regular e geometrizada, que correspondia a um novo conceito de espaço urbano. A
diferença entre as duas é que enquanto a Sé do Funchal se localizava num dos lados da praça, a
Sé de Angra situava-se no meio da praça (fig. 2).

Fig. 2. Angra do Heroísmo, Portugal. - a) Desenho do autor. - b) Cidade de


Angra, [s.d], Museu da Horta.

Ao longo do século XVI, essas intervenções vão ter o seu reflexo na metrópole, observando-
se um amplo movimento de renovação urbanística consistindo na reforma ou na expansão de
cidades existentes. Em muitos casos, essas intervenções consistiam na estruturação de Praças
Novas, associadas à construção de novos edifícios institucionais: Casas de Câmara, Misericórdias
e Igrejas Matrizes. A abertura dessas Praças Novas ou era realizada no interior do próprio tecido
urbano, à custa de demolições, ou consistia na reestruturação de antigos terreiros localizados
extramuros. Em outros casos, tratava-se da construção de novas expansões urbanas planeadas,
em que eram adotados princípios urbanísticos de regularidade e de ordenamento e onde se ex-
pressava uma concepção moderna de espaços públicos.
Em todas essas intervenções procurava-se a valorização do espaço público, e nelas encontra-
mos exemplos das estratégias de composição urbana utilizados pelo urbanismo renascentista a
partir do século XVI: as ruas com um traçado retilíneo e ordenado, a localização de edifícios ou
monumentos no enfiamento de ruas tirando partido do efeito de perspectiva, a definição de
Praças Novas fechadas e regulares, o ordenamento e a repetição das fachadas, a construção de
malhas urbanas ortogonais. Por detrás destas operações, estava uma ideia de composição global
da cidade, em que todos os seus elementos deviam estar articulados.

4. Salvador da Bahia e o Bairro Alto de Lisboa


A experiência colonial brasileira foi a mais importante para o desenvolvimento do urbanismo
português, pela própria dimensão do território e por ser um território anteriormente não urbanizado.
A expansão ultramarina portuguesa teve como uma das suas principais componentes o processo
de urbanização dos novos territórios. Mas esse processo de urbanização teve várias expressões,
conforme se tratava de territórios virgens, sem ocupação humana anterior, como era o caso das
ilhas da Madeira, Açores, Cabo Verde ou S. Tomé; territórios já com ocupação humana, mas não
urbanizados, como o Brasil; ou territórios já urbanizados, na África continental, no Índico e no
157
Extremo Oriente. É no Brasil que podemos observar, de uma forma muito clara, as múltiplas
influências recíprocas que percorriam todo o espaço colonial português, e o desenvolvimento de
modelos que vieram a influenciar determinantemente o urbanismo na metrópole.
Em cada época, o planos urbanos construídos em contextos coloniais partiam sempre de uma
simplificação, ou de uma abstração, das principais características do urbanismo de épocas anteri-
ores. Isso era tanto resultado do pragmatismo e da rapidez de construção necessários em contex-
tos coloniais, que exigiam uma simplificação de procedimentos, de traçados, de arquitetura e de
construção, como era resultado da habitual escassez de recursos materiais e humanos. Mas esta
abstração dos princípios essenciais era também a condição necessária para a inovação, que efeti-
vamente se verificava nesses planos.
Os traçados das primeiras cidades do Brasil, construídas no século XVI sem intervenção
direta do poder real, tinham as suas raízes na tradição vernácula, porventura mais adequada a
uma política de ocupação do território feita pelos donatários. Quando as cidades eram construídas
sob os auspícios da Coroa, pelo contrário, eram adotados modelos de cidades regulares, já desen-
volvidos e experimentados noutros contextos coloniais portugueses.
A cidade do Rio de Janeiro, apesar de não ter sido objeto de um planeamento urbanístico nas
suas primeiras fases de desenvolvimento, antes evoluindo a partir da ocupação inicial do morro
do Castelo e de um povoamento linear ao longo da costa, acabou por se estruturar segundo um
plano de base ortogonal. Para tal, contribuíram os engenheiros militares que, quando a crescente
importância estratégica e econômica do Rio de Janeiro o justificou, planearam a expansão ordena-
da da cidade. Entre eles, Batista Antonelli, que esteve na cidade de 1582 a 1604, Miguel de
l’Escol, de 1643 a 1653, e Jean de Massé, no início do século XVIII. A ocupação da várzea, entre
os morros do Castelo e de São Bento, a partir do início do século XVII fez-se segundo uma malha
sensivelmente ortogonal. Tal como noutras cidades, a regularidade do traçado moldava-se sem
esforço às particularidades do terreno, às preexistências naturais ou construídas pelo homem, e à
lógica dos percursos de ligação entre pontos fulcrais do território ou da malha urbana (fig. 3).

Fig. 3. Rio de Janeiro, Brasil. - a) Desenho do autor. - b) Planta da Cidade de


São Sebastiaõ do Rio de Janeiro (...), João Massé, 1713, Arquivo Histórico
Ultramarino.
158
É no entanto na cidade de Salvador da Bahia que encontramos uma expressão bastante nítida
da síntese das experiências práticas anteriores e de algumas das características fundamentais do
urbanismo de origem portuguesa. A cidade alta de Salvador da Bahia, construída num planalto
sobranceiro à Baía de Todos os Santos, foi uma cidade planeada com um traçado que, por um
lado, tinha por base uma estrutura regular de quarteirões retangulares e, por outro lado, se adap-
tava às características topográficas do terreno (fig. 4).

Fig. 4. Salvador da Bahia, Brasil. - a) Desenho do autor. - b) Planta da


Restituição da Bahia, João Teixeira Albernaz, 1631, Mapoteca do Ministérico
das Relações Exteriores – Palácio do Itamaraty.

A primeira fase da cidade alta, delineada por Luis Dias, era constituída por dois conjuntos de
quarteirões, ambos de forma retangular mas de diferentes proporções. Um desses conjuntos tinha
uma estrutura idêntica aos quarteirões de cidades medievais planeadas, estreitos e compridos,
com lotes que provavelmente iam de lado a lado dos quarteirões. Os quarteirões do outro conjun-
to tinham uma forma mais quadrada e cada um deles era composto por lotes urbanos que faziam
frente para as quatro faces do quarteirão. No encontro dessas duas malhas estruturava-se o largo
da Ajuda, pontuado pela igreja de Nossa Senhora da Ajuda, que foi a primitiva igreja dos jesuítas.
Associadas às portas da muralha desenvolviam-se duas outras praças: uma junto à porta de Santa
Luzia, no local que corresponde hoje à Praça Casto alves, a outra junto à porta de Santa Catarina,
que corresponde à atual Praça Tomé de Sousa. É nesta parte alta da cidade que se vieram
localizar os principais edifícios institucionais, consolidando esta praça.
Poucos anos depois inicia-se a segunda fase de expansão da cidade. A cidade expande-se para
um segundo planalto adjacente, um pouco maior do que o primeiro, mas com as mesmas carac-
terísticas topográficas. Os jesuítas foram o motor principal dessa fase de desenvolvimento urbano
de Salvador da Bahia. Em 1551 as obras já se haviam iniciado no novo local, estando já nesse ano
construídos alguns edifícios do colégio, sendo em torno do Terreiro de Jesus que se estruturará a
nova malha urbana de Salvador.
159
O traçado desta nova expansão da cidade é mais ortogonal e mais regular do que o núcleo
original, com quarteirões de forma e dimensões idênticas, e uma estrutura de loteamento regular. Os
quarteirões são de forma sensivelmente quadrada, com lotes virados para as suas quatro faces. Um
conjunto de praças de forma retangular, inseridas na lógica da malha urbana, são elementos funda-
mentais da estrutura da cidade, sendo em função delas que toda a malha se organiza. Estamos
perante uma nova concepção de espaço urbano, em que o elemento dominante e gerador da malha
urbana é a praça, e já não como anteriormente os edifícios singulares e as ruas que os articulavam
entre si. Esta concepção moderna de estruturação urbana, que primeiramente se expressa em Salva-
dor da Bahia, irá influenciar toda a teoria e a prática urbanística portuguesa.
Uma das principais características do urbanismo português, que está bem presente em Salva-
dor da Bahia, é a síntese de um plano racionalmente estruturado com uma cuidadosa adaptação
ao sítio. O modo como a cidade de Salvador se relacionou com o território, construindo-se com
ele, observa-se na escolha de localização, na sua estruturação em cidade alta e cidade baixa, no
traçado da muralha, que seguia a topografia do terreno situando-se em todo o perímetro urbano
em torno da cota 50, no construção da principal via estruturante da cidade ao longo da linha de
cumeada, no modo como as praças se desenvolveram nos nós de articulação dos principais
percursos.
Salvador da Bahia foi objeto de um plano, ou de planos sucessivos intimamente articulados.
Uma análise cuidadosa revela-nos as suas principais características. A principal via da parte alta de
Salvador, que percorre toda a cidade longitudinalmente, apoia-se sobre a linha de cumeada, e os
pontos de inflexão desta linha de cumeada são os locais onde se vieram implantar as praças, em
perfeita correspondência com a estrutura física do território.
A cidade tem uma estrutura ortogonal, ordenada e simétrica relativamente a um eixo, perpen-
dicular ao mar, que passa pela praça da Sé. Extramuros, de cada lado da cidade, temos um
convento com o seu terreiro: S. Bento e o Carmo. Junto às principais portas da cidade, num e
noutro extremo, temos um terreiro exterior, e uma praça interior, que mais tarde se irão fundir
em espaços maiores – a praça Castro Alves, de um lado, e o largo do Pelourinho, do outro. No
interior dos muros da cidade, a malha urbana divide-se em cinco partes. As duas partes dos
extremos são malhas sensivelmente triangulares, que constituem os limites da cidade intramuros e
terminam nas principais portas. As três restantes partes da malha urbana são, cada uma delas,
constituídas por três fiadas de quarteirões. Em cada uma dessas partes, na fiada do meio, localiza-
se sempre uma praça retangular: a praça do Palácio, a praça da Sé e o terreiro de Jesus.
Essas três praças, por sua vez, inserem-se numa lógica formal muito definida. As três situa-
vam-se ao longo do eixo principal do plano, que passava tangente a cada uma delas, todas eram
retangulares e orientadas perpendicularmente ao mar na sua maior dimensão, e todas eram atra-
vessadas por uma rua longitudinal que ia dar a meio dos seus lados maiores. É óbvia a existência
de um plano, elaborado com um grande rigor, que foi moldado à realidade física do sítio selecio-
nado para a sua implantação.
A ortogonalidade do plano adaptou-se facilmente à linha de cumeada através das praças, que
se localizam nos pontos de inflexão desta linha estruturante do território. Para além de obedecer
a um esquema global, planeado, que lhe dá unidade e regularidade, Salvador da Bahia tira partido
das particularidades e dos acidentes do sítio, enfatizando essas particularidades e integrando-as
nesse esquema global ordenador.
160
Desta prática urbanística, que em Salvador da Bahia teve uma expressão culminante, e que se
viria a aplicar em muitas outras situações, resultaram cidades que, embora em planta não sejam
rigorosamente geométricas, evidenciam quando as percorremos uma notável regularidade, valori-
zada pela exploração arquitetônica e urbanística das particularidades locais. Se a estruturação dos
percursos fundamentais da cidade sobre as linhas de vale e as linhas de cumeada, ou o pontuar
das colinas por edifícios singulares, era uma prática anterior e resultado do pragmatismo que
presidia à escolha do sítio e à definição do traçado, já as estratégias de desenho que exploravam a
localização dos edifícios e a sua arquitetura como elementos de referência e valorizadores da
paisagem da cidade foram sendo desenvolvidos nesta prática urbanística colonial.
Em Salvador encontramos a expressão de estratégias de desenho desenvolvidas pelo urbanis-
mo renascentista: a exploração da simetria, a utilização da perspectiva e o fechamento de vistas
através da colocação de edifícios, monumentos ou elementos urbanos significativos no enfiamento
de ruas ou de grandes eixos, a utilização destes elementos arquitetônicos como pontos focais de
praças, o aproveitamento de desníveis para valorizar edifícios e monumentos, a integração de
edifícios individuais em conjuntos arquitetônicos harmônicos, através do ordenamento e da repe-
tição das fachadas.
Estas estratégias de desenho viriam a ser aplicadas em diferentes contextos, nomeadamente
em Lisboa, onde é possível observá-las em múltiplas situações construídas em séculos posteriores.
É frequente os edifícios surgirem no enfiamento de ruas, ou em enfiamentos visuais, sofrendo
por vezes torções ou ajustamentos na sua implantação para melhor se oferecerem ao seu usufru-
to estético, contribuindo desta forma para a qualidade da paisagem urbana e melhor participarem
na organização formal da cidade. De fato, existem duas organizações formais da cidade: aquela
que resulta dos percursos e a que resulta dos pontos de vista. Estas são por vezes coincidentes,
outras vezes divergentes, outras vezes ainda constituindo dois sistemas completamente distintos.
Contemporâneo de Salvador da Bahia, é o Bairro Alto em Lisboa, um bairro periférico
construído fora dos limites das antigas muralhas fernandinas, que se desenvolveu ao longo do
século XVI, e no qual encontramos algumas semelhanças com o plano de Salvador da Bahia. No
que se refere à lógica geométrica do traçado, ambos são constituídos por quarteirões retangulares,
a definirem malhas ortogonais que se vão articulando entre si. No que se refere à estrutura desses
quarteirões, enquanto em Salvador da Bahia, os quarteirões rapidamente assumem uma propor-
ção quase quadrada, com lotes orientados para as quatro faces, no Bairro Alto encontramos
quarteirões retangulares de diferentes proporções, com três tipos de loteamento, conforme o seu
período de construção: quarteirões com lotes que iam de lado a lado do quarteirão, quarteirões
com duas fiadas de lotes, costa com costas, e quarteirões com lotes virados para as suas quatro
faces. Tal como em Salvador da Bahia, no Bairro Alto a medida de referência para o loteamento
urbano é em qualquer dos casos a frente de lote de 25 ou 30 palmos (fig. 5) na próxima página.
As diferenças entre os dois planos são, porém, significativas. Elas radicam no fato de Salvador
da Bahia ser uma iniciativa régia e beneficiar de um plano global que lhe dá unidade, enquanto
que o Bairro Alto, tratando-se de uma promoção privada, ou de um conjunto de promoções
privadas, ter sido construído através de um acumular de sucessivas unidades de crescimento, que
se foram ajustando umas às outras sem uma lógica global. Por vezes com soluções de continuida-
de bem resolvidas, outras vezes com ajustamentos menos articulados.
161
Fig. 5. Bairro Alto, Lisboa, Portugal. - a) Desenho do autor. - b) Planta da
Freguezia de N. Sª. Da Encarnação, [séc. XVIII], Arquivos Nacionais da Torre
do Tombo.

Salvador da Bahia beneficiava-se de uma lógica de valorização do espaço público, que se


traduzia na existência de praças, que assumiam um papel importante na organização urbana,
enquanto que o caráter especulativo do Bairro Alto se traduzia na inexistência de praças no
interior da malha. Da mesma forma, o terreno disponível era aproveitado intensamente, de que
resultavam ruas mais estreitas, uma estrutura de quarteirões menos regular e de menor dimensão,
com interiores mais reduzidos.

5. As cidades brasileiras seiscentistas e setecentistas, a Baixa de Lisboa e Vila Real de Santo António
A partir do século XVI verifica-se cada vez mais a adoção de traçados regulares, geometrizados,
no planeamento de novas cidades ou nos planos de reestruturação ou de expansão de cidades já
existentes. A escolha de sítios planos em vez dos sítios acidentados preferidos anteriormente, e a
crescente intervenção dos engenheiros militares no traçado e na urbanização das cidades, foram
fatores importantes para a crescente racionalização e geometrização dos traçados urbanos.
São Luis do Maranhão, de 1615, e Belém do Pará, de 1616, são exemplos de cidades seiscentistas
que adotaram planos regulares, embora remetendo para culturas urbanísticas distintas. São Luis
do Maranhão tem um traçado em quadrícula, concebido como um todo, com uma praça central
de forma quadrada, no centro da qual se localiza a igreja de Nossa Senhora do Carmo. Belém do
Pará era constituída por duas malhas urbanas distintas – a cidade e a campinha – cada uma delas
com uma estrutura sensivelmente ortogonal, respondendo às particularidades do sítio. A separar
uma da outra existiam terrenos pantanosos nos quais, ao longo dos séculos XVII e XVIII, se
construíram as duas grandes praças de Belém.
No século XVIII foram construídas no Brasil muitas vilas e cidades com planos absolutamen-
te regulares e geométricos, a maior parte das vezes ortogonais, onde se expressam os grandes
temas do urbanismo clássico. Estes núcleos urbanos eram planeados racionalmente, com uma
estrutura global, e a praça assumia o papel de elemento central da malha urbana. A beleza da
cidade estava associada à regularidade do traçado e à adoção de modelos arquitetônicos unifor-
162
mes, aos quais deviam obedecer todas as construções de uma rua ou de uma praça, ou mesmo de
todo o núcleo urbano.
Dentre as vilas e cidades fundadas no Brasil neste período com traçados regulares, muitas
delas foram fruto da política urbanizadora de Pombal na segunda metade de setecentos. Esta ação
urbanizadora situa-se num contexto político específico, em que eram questões fulcrais a delimita-
ção de fronteiras entre os territórios de Portugal e Espanha e a afirmação do poder do Estado
sobre territórios e populações até aí sob o domínio temporal dos missionários. Este projeto
urbanizador era um componente fundamental da estratégia de ocupação efetiva do território e
traduzia-se na construção de fortificações em pontos estratégicos, na fundação de novas vilas e
cidades, e na refundação de aldeamentos missionários e sua integração na rede urbana.
Nessas novas fundações, existia uma preocupação pelo ordenamento do plano urbano, o
alinhamento de ruas e de fachadas, e a uniformidade da aquitetura. O rigoroso ordenamento
urbano era ao mesmo tempo expressão da cultura racional europeia que se pretendia implantar
no Brasil e marca do bom governo. Nessas novas fundações, uma praça, habitualmente quadrada,
e localizada no centro da povoação constituía o elemento gerador do plano da cidade. Era a partir
dela que se definia o traçado das ruas e se estruturava o conjunto da malha urbana, segundo uma
estrutura ortogonal. Em muitas situações existiam duas praças, destinadas a funções distintas,
continuando a tradição de praças múltiplas nas cidades portuguesas. Numa delas estava localizada
a igreja, com o cruzeiro, enquanto na outra se localizava a Casa da Câmara e o pelourinho. A
formosura e o ordenamento destes núcleos urbanos passava também pela normalização da
arquitectura dos edifícios a construir. Em muitos casos, todos os edifícios de habitação deviam ter
fachadas com o mesmo desenho.
Contrariamente às cidades de períodos anteriores, o processo de crescimento dessas cidades
setecentistas já não era através da construção de sucessivas malhas urbanas, cada uma delas com
as suas próprias características morfológicas, que se iam adicionando, mas sim através da expan-
são da sua estrutura urbana original, segundo regras que nela já estavam implícitas.
A Vila de São José de Macapá, fundada em 1758, é uma das principais fundações deste
período, e representativa desses princípios de organização urbana. O plano de Macapá é centrado
em duas praças retangulares, a partir das quais se estrutura o traçado das ruas e dos quarteirões
dentro de uma lógica ortogonal. Embora as ruas e os lotes urbanos sejam todos da mesma
dimensão, os quarteirões não são todos idênticos: a sua proporção e a sua dimensão variam, bem
como a disposição e a orientação dos lotes em cada um deles. As praças, que constituem o
elemento central do plano, não são simples espaços vazios, correspondendo a quarteirões não
construídos, antes se articulam com as ruas e a malha urbana de forma diferente em cada caso.
Em Macapá, tal como noutras vilas e cidades planeadas neste período, a malha reticulada que
havia servido de base à concepção do conjunto não se traduzia literalmente na estrutura de ruas,
de praças e de quarteirões, as quais se articulam num sistema compositivo mais complexo.
Em Vila Nova de Mazagão, fundada em 1769, pelo contrário, temos uma correspondência
mais literal entre essa malha conceitual e o traçado efetivo da cidade, dando origem a um traçado
urbano facilmente perceptível. Este baseia-se numa malha regular, que define uma estrutura
ortogonal de ruas e de quarteirões quadrados. O plano desenvolve-se a partir de uma praça
central quadrada, que é obtida através da supressão de um dos quarteirões. Apesar do plano de
Mazagão ser, em vários sentidos, um plano mais literal do que o plano de Macapá, existem
características comuns às duas vilas, que podem encontrar-se na sua regularidade geométrica e no
163
modo como ambos os planos, apesar de concebidos segundo um traçado ortogonal, desestruturam
as suas malhas para se adaptar às condições físicas do território. Isto significa que mesmo quando
se concebia uma cidade de forma racional e se desenhava o seu plano, era no terreno no processo
de implantação que, em última instância, se definia o seu traçado.
Estas cidades setecentistas eram herdeiras de um saber teórico e de uma grande experiência
urbanizadora desenvolvida na fundação de cidades ao longo de séculos. Esta longa experiência
prática e os conhecimentos teóricos dos arquitetos e engenheiros militares foi condição necessária
para a eficácia dessa campanha urbanizadora e para a regularidade dos planos. Esse mesmo
capital de conhecimentos e de experiência desenvolvidos em contextos coloniais, nomeadamente
no Brasil, virá a ser a base das intervenções urbanas levadas a cabo em Portugal na segunda
metade do século.
Os planos para a reconstrução pombalina da Baixa de Lisboa após o terramoto de 1755 e o
plano para Vila Real de Santo António, de 1775, constituem, de diferentes formas, a síntese da
experiência urbanística portuguesa de séculos anteriores. Nenhum deles teria sido possível sem a
experiência urbanística colonial, onde foram buscar a sua prática, os seus processos de planeamento,
as suas referências e as suas morfologias. Sem eles, nunca os planos para a reconstrução de Lisboa
poderiam ter sido executados tão rapidamente, nem a reconstrução se poderia ter iniciado em tão
breve espaço de tempo.
Cada um dos seis planos elaborados para a reconstrução da Baixa de Lisboa constituía uma
síntese diferente das vertentes vernácula e erudita que, em todas as épocas, eram componentes
fundamentais do urbanismo português, e expressava uma atitude diferente para com as preexistências
e o antigo traçado da cidade. Esses planos iam de uma total aceitação das preexistências e das
particularidades locais, como era o caso do plano de Gualter da Fonseca e de Francisco Pinheiro da
Cunha, que respeitava o traçado anterior e muito particularmente a localização das igrejas e capelas,
até uma quase abstração do seu traçado geométrico, como era o projeto de Eugénio dos Santos.
A proposta elaborada por Eugénio dos Santos, em colaboração com António Carlos Andreas,
é a última expressão do urbanismo português que, embora planeado, onde a racionalidade e a
geometria estão presentes, privilegiava e tinha como referências fundamentais a memória da
cidade de antes do terremoto, os seus elementos estruturantes e as suas hierarquias (fig. 6).

Fig. 6. Lisboa, Portugal. Planta nº 3, Plano da Cidade de Lisboa baixa (...), Eugénio dos
Santos e Carvalho, António Carlos Andreas, [séc. XVIII], Museu da Cidade de Lisboa.
164
Este é um plano que de uma forma inteligente e equilibrada faz uma síntese perfeita dos dois
componentes que caracterizam a cidade portuguesa. O novo plano integrava-se sem esforço no
tecido envolvente, reconstruído de acordo com o traçado de antes do terremoto, acomodava-se
com naturalidade à topografia, e tinha a capacidade de integrar preexistências construídas ou a
memória de espaços urbanos de antes do terremoto. Ao mesmo tempo, era um plano ordenado,
simétrico e hierarquizado. A síntese dessas duas concepções de espaço era feita de uma forma
sensível, em que as estratégias de desenho adotadas exploravam com sucesso as relações entre o
plano urbano e a arquitetura. É esta capacidade de integrar a nova ordem geométrica com as
antigas preexistências – construídas ou simplesmente memórias – e simultaneamente de se adomar
ao terreno que fazem este plano o último representante do que consideramos ser a essência do
urbanismo português.
O plano conseguia conciliar de uma forma equilibrada o respeito por linhas estruturantes
fundamentais da cidade, por percursos pré-existentes e o respeito pela localização das igrejas antes
do terremoto, com um traçado inovador e racional, onde é patente a geometria, o ordenamento e
a regularidade que se pretendeu impôr ao plano. A genealogia deste plano, mais do que nos planos
setecentistas, vamos encontrá-la em Salvador da Bahia.
Viria, no entanto, a ser adotado o plano mais racional e o que propunha uma alteração mais
radical relativamente à situação preexistente. Este plano, também de Eugénio dos Santos, era
polarizado pelas praças do Rossio e do Terreiro do Paço, que já existiam antes do terremoto, mas
que foram regularizadas, redefinidas na sua forma e orientação. Estas duas praças eram unidas
por uma malha ortogonal de ruas longitudinais e transversais, hierarquizadas pela sua posição no
plano, pelo modo como se articulavam com o Rossio e com o Terreiro do Paço, pelo seu perfil,
pelas suas cérceas e pelas características arquitetônicas dos edifícios que ao longo delas se constru-
íam, de acordo com os projetos elaborados pela Casa do Risco das Obras Públicas (fig. 7).

Fig. 7. Lisboa, Portugal. Planta Thopographica da Cidade de Lisboa (...), Eugénio dos
Santos e Carvalho, Carlos Mardel, [séc. XVIII], Museu da Cidade de Lisboa.
165
Este projeto para a Baixa de Lisboa é herdeiro de uma cultura urbanística erudita, que era
uma parte fundamental do capital de conhecimentos dos engenheiros militares que desde o século
XVI construíam cidades no Brasil e noutras partes do mundo. Mas para além das suas referências
eruditas e apesar da sua aparente abstração, este plano fazia uma deliberada revisitação de algu-
mas das características do urbanismo tradicional português, incorporando-os no plano.
Assim, a rua longitudinal que se desenvolve ao longo da costa, que é um elemento fundamen-
tal na estrutura das cidades marítimas e ribeirinhas, está presente no plano pombalino através das
ruas da Alfândega, do Arsenal e Bernardino Costa. Sensivelmente a meio desta rua longitudinal,
no cruzamento com a principal rua transversal – a rua Augusta – estrutura-se uma praça – o
Terreiro do Paço. Tal como naquelas cidades, esta praça desenvolve-se entre a rua longitudinal
que lhe passa tangente e o rio.
O progressivo distanciamento das sucessivas ruas longitudinais faz com que a um primeiro
conjunto de quarteirões paralelos ao rio se sucedam outros quarteirões que lhes são perpendicu-
lares. Correspondentemente, as ruas perpendiculares ao rio passam a ser as mais importantes e
tornam-se a direção dominante do traçado. Este é um processo de desenvolvimento característico
das cidades litorais ou ribeirinhas, em que ocorre a passagem de quarteirões paralelos à linha de
água a outros de dominância vertical, como é o caso, por exemplo, de Ponta Delgada ou do Rio de
Janeiro, cidades cuja morfologia é uma referência deste plano.
A multiplicidade de praças destinadas a funções diferentes está presente nas duas praças
principais, o Rossio e o Terreiro do Paço, e nos pequenos largos, resultado de simples alargamen-
tos de ruas, que se formam em frente às igrejas inseridas na malha da Baixa. A hierarquia das ruas
é feita através da sucessão de ruas principais e secundárias, com diferentes perfis, que se alter-
nam, numa referência explícita ao traçado das cidades medievais planeadas. Para além do seu
perfil – mais largas as ruas de frente, mais estreitas as ruas de trás – a hierarquia das ruas era
também definida pela relação que estabelecem com as duas grandes praças que polarizam o
plano, e pelas cérceas e a arquitetura dos edifícios que se constróem ao longo delas.
A relação do traçado urbano com a arquitetura está presente na adoção de um padrão
arquitetônico uniforme para toda a área do plano e nas sutis diferenças que distinguem os três
tipos de fachada que, dentro daquela uniformidade, foram elaborados para as ruas de frente, de
traseiras e transversais. A exceção é o Terreiro do Paço, que tem um projeto diferente adequado
à sua escala monumental de praça real.
O processo habitual de crescimento das cidades portuguesas, através da construção de suces-
sivas malhas urbanas, com diferentes características morfológicas, que se vão adicionando, é
também referenciado no plano de Eugénio dos Santos. As malhas da Baixa, do Chiado e do Cais
do Sodré são distintas, correspondendo a diferentes unidades de crescimento. Dentro da própria
Baixa, os dois conjuntos de quarteirões – os primeiros, paralelos ao rio e os segundos, perpendicu-
lares ao rio – parecem querer sugerir diferentes fases de crescimento, como era o caso das cidades
costeiras cuja morfologia é uma das referências deste plano.
Também o processo de planeamento e de construção da cidade portuguesa, em que o plano
desenhado é confrontado com o sítio e adaptado ao sítio no ato da sua implantação, está também
presente no plano de Eugénio dos Santos. Entre a planta desenhada que temos como referência –
que não é contudo a planta original, desaparecida – e a realidade construída são perceptíveis
várias diferenças. Entre outras alterações, o Hospital Real não foi reconstruído, daí resultando
uma solução diferente para o Rossio, a malha do Chiado foi construída com quarteirões de
diferente dimensão, a praça em forma de estrela junto ao convento de S. Francisco não foi
166
construída, a igreja de São Paulo foi reorientada, e outras igrejas foram construídas noutros locais.
Algumas destas alterações foram consequência, sem dúvida, do confronto com o local e das
necessidades de adaptação que daí resultaram.
Temos assim que todo o saber, a prática e as formas urbanas desenvolvidas através da experiên-
cia urbanística colonial teve expressão no plano de reconstrução da Baixa. Partindo de formas
tradicionais de estruturação da cidade portuguesa, de diferentes períodos históricos, Eugénio dos
Santos abstraiu, a partir delas, um plano eminentemente racional e erudito. As habituais dualidades
que se estabelecem entre traçados vernaculares e eruditos, planeados e não planeados, esbatem-se.
O plano da Baixa mostra que não há incompatibilidade entre uma e outra destas formas de fazer
cidade. Ambas se baseiam em princípios inteligentes de estruturar uma cidade de forma ordenada,
hierarquizada, e sabendo tirar partido das particularidades físicas do sítio em que se implanta.
O plano de Eugénio dos Santos é herdeiro do espírito de racionalidade e da capacidade de
abstração dos princípios essenciais do urbanismo português, a partir dos quais teve a capacidade
de inovar e de elaborar um plano eminentemente racional. Ao mesmo, tal como nas cidades
coloniais, este plano respondia a um idêntico quadro de escassez de recursos, e do necessário
pragmatismo e rapidez de construção exigidos pelo terremoto. Neste sentido, o plano da Baixa de
Lisboa é um legítimo herdeiro do urbanismo brasileiro setecentista.
No plano de Vila Real de Santo António, de 1775, vemos expressar-se de forma igualmente
nítida os princípios racionais e abstratos que enformavam a urbanística portuguesa setecentista,
herdeira da experiência brasileira. Vila Real de Santo António tem um traçado de ruas rigorosa-
mente ortogonal, definindo dois tipos de quarteirões, de forma quadrada e retangular. No centro
do plano localiza-se uma praça quadrada, correspondendo a um quarteirão não construído; duas
outras praças, também quadradas, mas de menores dimensões, localizam-se simetricamente, de
um e outro lado, em relação à praça central.
Encontramos uma grande identidade formal entre o traçado de Vila Real de Santo António e o
da vila de Portalegre, na comarca de Porto Seguro/Bahia, de 1772. Não só ambos entroncam na
mesma cultura urbanística que permeava a prática do urbanismo português na segunda metade do
século XVIII – e que se traduzia em traçados ortogonais regulares, com uma praça central que
constituía o elemento gerador do plano, e a adoção de programas arquitetônicos uniformes, com
edifícios obedecendo a um mesmo projeto – como a solução formal adotada em ambos os planos
é idêntica (fig. 8).

Fig. 8. - a) Portalegre, Brasil. [Mapa da novas Villa de Portalegre], 1769, Arquivo Histórico Ultramarino. - b) Vila Real de
Santo António, Portugal. Planta Geral da Villa de Santo Antonio de Arenilha, [c. 1775], Biblioteca e Arquivo Histórico do
Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações.
167
6. Os modelos urbanos da cidade de origem portuguesa, a reciprocidade de influências
Os traçados urbanos setecentistas das cidades construídas em Portugal e no Brasil são expres-
são de um conhecimento teórico e prático caldeado e sintetizado ao longo de séculos, em múlti-
plas situações, em que se observam os elos de continuidade e as influências cruzadas que lhes
deram origem. Ao longo da história, a componente do urbanismo português que se baseava numa
compreensão do território nunca foi rejeitada, mas antes assimilada pelos profissionais, que foram
capazes de fazer a síntese do saber teórico e da prática urbanística. Desta síntese resultavam
cidades onde sobressaem como características fundamentais a capacidade de desenhar com o
sítio e o pragmatismo das soluções adotadas em cada caso.
A cidade portuguesa procurava responder sempre à realidade material em que se situava, não
se limitando a reproduzir modelos abstratos. Mesmo quando se estruturava a partir de modelos
racionais, traduzida em estruturas geométricas, não obstante esta matriz intelectual procurava
sempre adaptar-se à realidade material e às particularidades do sítio em que se situava. Esta é a
síntese dos componentes vernáculo e erudito que sempre caracterizou o urbanismo português, e
que se concretizava através das sucessivas fases de concepção, desenho, implantação e construção
da cidade. A elaboração do plano para a reconstrução da Baixa de Lisboa, as tranformações
efetuadas ao longo do processo e a sua efetiva construção, mostram precisamente como essa
outra dimensão do urbanismo português subsistiu, articulada com a racionalidade iluminista.
Esta síntese não era apenas o resultado de uma prática, mas era ela próprio objeto de teorização
por parte dos engenheiros militares portugueses. Serrão Pimentel, engenheiro-mor do Reino de
1663 a 1678, no seu tratado O Engenheiro Português reconhecia as virtudes da execução de um
desenho prévio, embora considerasse que a prova final da adequação do plano devesse ser feita
no terreno, no confronto prático com a realidade, através da sua adaptação ao sítio. Da mesma
forma, mais de um século depois, Manuel da Maia, engenheiro-mor do Reino que superintendeu
à reconstrução de Lisboa, na sua dissertação sobre a reconstrução de Lisboa, considerava que o
verdadeiro ato de projetar se realizava no confronto com o terreno. Segundo ele, mesmo quando
existia um projeto desenhado, a avaliação prática da sua viabilidade e a sua adaptação ao sítio
constituíam os passos mais importantes do ato de projetar.
A urbanística portuguesa consistiu sempre na síntese destes dois saberes: por um lado, a teoria,
o plano idealizado e o desenho; por outro lado, a experiência prática, o confronto com a realidade, a
demarcação no terreno. Para tal, muito contribui a sua experiência colonial, e a necessidade de
adaptar os modelos urbanos a várias contextos geográficos e climáticos, não os impondo, antes os
moldando conforme as necessidades e em resultado de uma cuidadosa compreensão da realidade.
O urbanismo de origem portuguesa é o resultado de múltiplas experiências, processos de
troca e influências recíprocas, levados a cabo em Portugal, no Brasil, em África, no Índico e no
Oriente, em que participaram populações e técnicos de várias origens. O Brasil desempenhou um
papel particulamente importante no processo de inovação de formas e de processos que daí
resultaram e que vieram a fazer parte integrante do urbanismo português. Não obstante a
multiplicidade das suas expressões construídas, o urbanismo português soube construir uma iden-
tidade, que se consubstancia num conjunto de invariantes morfológicas e de processos que, ao
longo do tempo e dos espaço, caracterizam indelevelmente essas cidades.

168
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