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(ORGANIZADORES)
Rio de Janeiro
2011
A CONSTRUÇÃO DA CIDADE PORTUGUESA NA AMÉRICA
Copyright © 2011
Todos os direitos são reservados, no Brasil por:
LUCIENE PESSOTTI E NELSON PÔRTO RIBEIRO
PoD Editora
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L766c
Pessotti, Luciene -
A construção da cidade portuguesa na América / Luciene Pessotti, Nelson
Pôrto Ribeiro - Rio de Janeiro: PoD, 2011.
170p. : il.
Ilustrado
Anexos
Inclui bibliografia
Conteúdo: Arquitetura, urbanismo, história da arte
ISBN 978-85-62331-85-5
1. A construção da cidade portuguesa na América. I. Título. Nelson Pôrto
Ribeiro.
10-4771. CDD: 647
CDU: 647
17.03.11 23.03.11 021130
APRESENTAÇÃO
Os textos da presente obra tiveram sua origem no “II Seminário do Urbanismo Colonial: A
construção da cidade portuguesa na América” acontecido no Auditório do Centro de Artes da Univer-
sidade Federal do Espírito Santo em 09 e 10 de junho de 2009 e organizado pelo Programa de
Pós-Graduação em Artes desta instituição, Linha de Pesquisa ‘Patrimônio e Cultura’.
Trata-se de um evento científico para o qual os palestrantes são convidados e o critério que
tem norteado nossos convites é o de procurar reunir importantes pesquisadores da área do urba-
nismo e da construção urbana luso-brasileira, sejam arquitetos, engenheiros, historiadores, ou
geógrafos, que trabalham em centros universitários de pesquisa dos dois lados do Atlântico, pois
entendemos que a ciência hoje, para alcançar seus objetivos, deve ser feita em parceria com
pesquisadores de outras partes do mundo, procurando-se constituir projetos colaborativos condu-
zidos por equipes multinacionais.
O “II Seminário do Urbanismo Colonial: A construção da cidade portuguesa na América” alcança seu
objetivo ao reunir nesta obra o resultado das pesquisas sobre a relevante temática da formação
urbana do Brasil no período colonial, cujas cidades remanescentes se constituem num rico acervo
do patrimônio luso-brasileiro.
Os organizadores.
SUMÁRIO
Apresentação........................................................................................................................................................ 5
A cor (das cidades portuguesas) antes do moderno. Perplexidades, descobertas recentes e investigações em curso ...... 9
José Aguiar
Inventariar para Valorizar e Proteger ................................................................................................................... 25
Paulo Ormindo de Azevedo
A última década, novos rumos. Balanço da historiografia sobre urbanização no Brasil-Colônia.
A contribuição dos estudos regionais recentes. ...................................................................................................... 31
Beatriz P. Siqueira Bueno
Capela de São João Batista - Carapina Grande, Serra – ES. Reconstrução como Restauração da Imagem ............... 41
Cristina Coelho
Diretrizes arquitetônicas e ordenamentos urbanos nas missões jesuíticas dos Guarani ............................................. 53
Luiz Antônio Bolcato Custódio
Repovoamento e urbanização do Brasil no século XVIII ......................................................................................... 69
Maria Helena Ochi Flexor
A arquitetura e esfera pública. O Palácio Anchieta e o sítio fundador de Vitória/ES1 .............................................. 91
Clara Luiza Miranda
Patrimônio ambiental urbano de Vitória: inventário e reflexões acerca das rupturas e permanências coloniais na
contemporaneidade.......................................................................................................................................... 105
Luciene Pessotti
Atores da construção civil na província do Espírito Santo do século XIX. ................................................................ 125
Nelson Pôrto Ribeiro
Os modelos urbanos brasileiros das cidades portuguesas .................................................................................... 151
Manuel C. Teixeira
7
A COR (DAS CIDADES PORTUGUESAS) ANTES DO MODERNO.
PERPLEXIDADES, DESCOBERTAS RECENTES E INVESTIGAÇÕES EM CURSO*
José Aguiar**
«Inside this house was a whole world, a very particular kind of world,
a very clean, clear and orderly universe. (…) There is a kind of white that is
more than white, and this was that kind of white. There is a kind of white
that repeals everything that is inferior to it, and that is almost everything.
This was that kind of white. There is a kind of white that is not created by
bleach but itself is bleach. This was that kind of white. This white was
aggressively white. It did its work on everything around it, and nothing
escaped. Some would hold the architect responsible. He was a man, it is
said, who put it about that his work was “minimalist”, that is mission was
to strip bare and to make pure, architecturally speaking, that his spaces were
“very direct” and “very clear”, that in them there was “no possibility of
lying” because “they are just what they are.” He was lying, of course, telling
big white lies (…).»
David Batchelor, Chromophobia, Reaktion Books, 2000, p. 10
5. A cor tornou- se um interessante problema de projeto e uma questão fulcral para a conservação
tornou-se
Os problemas de planear ou projetar a cor em cidades e tecidos históricos (ou não) são dos
mais apaixonantes e complexos da urbanística contemporânea. Ava- 7
PILAR DE LUXÁN, M.; DORREGO,
lie-se o desafio de uma ambição que pretende gerir uma miríade de F. Morteros antiguos y la
intervenções difusas, pontuais e não coincidentes no tempo, propos- intervencion en el património. Em
tas por um grande número de diferentes promotores (institucionais Actas do Seminário Intervenção
no Património Práticas de Conser-
ou privados), operando dentro de uma sociedade democrática, cada vação e Reabilitação. Porto: FEUP-
vez mais multicultural e multi-étnica, perante naturais dificuldades DGEMN, 2002.
13
na eficácia dos instrumentos de controle exercido por parte das tutelas e enormes pressões resul-
tantes do funcionamento das leis do mercado de uma economia aberta.
Num tempo dito de pluralidades é quase inevitável a dificuldade de instaurar ou aceitar paradigmas
ordenadores. Isso conduz à procura de mecanismos alternativos de legitimação projetual, que se vão
popularizando em diversos tipos: o privilégio de argumentos artísticos (o primado da “arte” sobre a
construção, típico de um certo pós-moderno mais óbvio, popularesco e falho de argumentos); as
justificativas sociopolíticas (o – agora fora de moda? - apelo à democracia direta e à participação
popular, por exemplo); os argumentos contextuais (o Genius Locci como motor do projeto); as funda-
mentações tecnológicas (propondo o primado racionalista da construção sobre os argumentos artís-
ticos) etc. Compreende-se como, nesse atual e confuso quadro, a ecologia e a história adquiriram
hoje – pela sua óbvia premência -, pouco a pouco, uma nova legitimidade, enquanto argumentos e
primordiais justificativas de sustentação, ou da defesa, das decisões de projeto.
Compreende-se também a pobreza argumentativa de quem hoje continua a propor uma
pretensa liberdade criativa do projeto – que na verdade sempre foi limitada - e de “autores-heróis-
contra-tudo-e-contra-todos”, reduzindo o problema das escolhas a um pretenso combate, ou
antagonismo, entre a pusilânime necessidade da afirmação artística e idiossincrática do «eu-autor»
contra a regra, a ordem colectiva e as suas normas, como as que se fundam na disciplina da
cidade e na incorporação da sua cultura histórica, imediatamente tomadas como “castradoras”.
Dito de forma mais simples, percebem-se os fundamentos ideológicos de quem diz do património
arquitetônico ser um arqui-inimigo impeditivo da “nova arquitetura” e que grita aos sete ventos:
faça-se patrimônio de hoje!
Ao ódio aos pretensos cerceamentos da criatividade criados pela salvaguarda quando esta é
norma pode sempre contrapor-se a não menor violência da casualidade nas decisões sobre
conservação e, claro, sobre a cor.
A nova cultura industrial, depois do tempo de opressivas culturas de massas, evoluiu para um
consumismo individualista permitido pela evolução da tecnologia e das lógicas comerciais, procurando
uma pretensa e ampla liberdade nas expressão das diferenças (a base dos relógios Swatch, símbolo
desta nova fase da cultura industrial e do seu design, é absolutamente igual, mas cada relógio parece
diferente e como tal parece possibilitar a individualidade ). As novas tintas industriais e as máquinas
mágicas que as misturam (já ditos, na gíria, os “colormixes”), se por um lado parecem garantir o
nosso individualismo e a universalização da diferença, acabam também por contribuir para a construção
de uma nova realidade substancialmente artificial que afasta a cultura e a imagem da cidade histórica
da cultura material do seu próprio território, na qual antes se fundava.
É dentro desse processo que as nossas cidades históricas perdem hoje, demasiado rapidamente,
o seu Colore Loci 8, quer dizer, a antiga e intima relação existente entre a imagem e a cor da cidade e
as possibilidades concretas do seu próprio território (materiais, pigmentos, terras, areias, cais etc.).
Tornou-se também já tradicional o argumento de que a cor na cidade histórica é rapidamente
perecível e, portanto, não permanente, arbitrariedade que justificaria novas liberdades (ou novas
arbitrariedades). Este argumento é falso e todas as pesquisas desenvolvidas com algum rigor
científico provam que, apesar das mudanças nos tempo e nos modos,
8
RAIMONDO, C. I piani del colore, existia, sendo possível lê-la e restituí-la, uma cultura local da cor e
Manuale per la regolamentazione
cromatica ambientale. Rimini: dos materiais que dão cor, numa sistemática local, numa linguagem
Maggioli Editore, 1987. específica que tem uma gramática e os correspondentes dicionários
14
expressivos, tal e qual como na arquitetura da cidade existem e podem ser lidas (através da análise
morfo-tipológica) a inteligência condensada que no tempo liga (ou separou em ruptura) as
permanências essenciais.
Na verdade os autismos ou as decisões de renovação de pinturas e revestimentos que resultam
em poluição cromática duram dezenas de anos até serem resolvidos, implicando na maior parte
das vezes a perda definitiva de superfícies com interesse histórico. E quanto às questões da
liberdade, será que podemos considerar como mais livre, enquanto exercício de cultura ou de
cidadania, a escolha de alguém que se orienta por um catálogo comercial de um fabricante de
tintas com 20 ou 30 cores base (ou 200 ou 300), feitas com os pigmentos orgânicos dos mais
baratos - hoje vindos da Alemanha, amanhã, com significativa mudança de tonalidades, provenientes
da China? Será essa escolha mais livre e coerente do que as escolhas de alguém que se oriente por
catálogos e combinatórias de cores (atlas cromáticos) estabelecidos em função de referências
locais ou regionais precisas, técnica e culturalmente fundados na especificidade daquele lugar e
incorporando uma representatividade histórica?
A construção gradual de um lugar da cor nas teorias de projeto para a cidade e arquiteturas
históricas foi lenta e marcada por duas vias significativas, uma de caráter mais metodológico e
culturalista, a outra preocupando-se sobretudo com a praxis e as implicações da disciplina do
restauro.
Foi sobretudo a partir da pós-modernidade dos anos 1980 que começaram a divulgar novas
abordagens ao problema de projetar a cor mais vinculadas aos valores do contexto e do habitat
humano. Afirma-se então uma pioneira geração de coloristas, entre os quais destacaria Jean-Philippe
Lenclos e Antal Nemecsis9 e 10. Os métodos propostos, no entanto, sustentam-se em grande medida
no empirismo, baseando-se em análises e registros eminentemente impressivos, longe ainda das
necessidades de maior rigor no registro, na catalogação e na comunicação entre projeto e obra,
imprescindíveis às intervenções em patrimônio histórico.
Porter e Mikellides, década e meia antes, iniciaram a sustentação 9 LENCLOS, J.-P. Les couleurs de la
do projeto de cor como uma disciplina integrante em parte inteira do France. Paris: Moniteur, 1982. Do
projeto arquitetônico e do planeamento urbano, domínio que se alargou mesmo autor, The Geography of
Color. Tóquio: San´ei Shobo
à arquitetura da paisagem e do território, numa amplitude à qual Publishing Company, 1989.
Michael Lencaster daria a feliz designação de Colourscape11. 10
NEMESICS, A. Budapest: The
Um pouco em contracorrente a essas iniciativas centradas no coloroid system, The colour
problema do método em projeto, iniciaram-se na Itália e na Áustria, scheme of the Buda Castle
District. Em The Colour of the City.
isto em meados da década de 1970, abordagens fundamentadas Haia: V+K Publishing, 1992.
numa estreita articulação entre ciência, filosofia e arte, suportadas 11
LENCASTER, M. Colourscape,
por uma nova historiografia da arte que pela primeira vez se Londres, Academy Editions, 1996.
preocupa com - ou que finalmente começa a conseguir ver e dar a Porter, T. - Colour Outside. Lon-
ver - o estudo das diversas modalidades artísticas e das expressões dres, Architectural Press, 1982.
das superfícies arquitetônicas exteriores, resolvidas com 12 BRANDI, C. Teoria del Restauro.
revestimentos minerais (pinturas murais, stuccos ou rebocos 2ª ed. do original de 1963. Turim:
Picola Biblioteca Einaudi, 1977.
ornamentais, esgrafitos etc.). 1963 A Carta Italiana del Restauro
Esta evolução acontece no quadro da incorporação das teorias encontra-se traduzida para
do restauro propostas pelo mais influente dos teóricos da conservação Castelhano em JUSTÍCIA, M. -
Antología de textos sobre
no século XX, Cesare Brandi, que marcaram o espírito da restauración, Jaén: ed. Universi-
fundamental Carta Italiana del Restauro, de 1972, a qual condenou a dade de Jaén, 1996, pp. 169-194.
15
sistemática renovação arquitetônica e urbana contrapondo-lhe o “restauro urbano” e, portanto
também, a necessidade da salvaguarda das superfícies e revestimentos históricos da cidade, perante
a sua óbvia importância estética e linguística para a leitura da própria cidade histórica, entretanto
também já entendida como uma “obra de arte”, ainda que coletiva12.
Nessas abordagens são de referência obrigatória os trabalhos pioneiros de investigação em
história da arte e da arquitetura de Manfred Koller e de Paolo Marconi13. Também as novas
abordagens científicas aos problemas do restauro e da conservação (importando citar os contributos
de cientistas como Giorgio Torraca e o seu fundamental Porous Building Materials14) assim como a
gradual adaptação das metodologias e das técnicas desenvolvidas para a conservação da pintura
mural (que tinham o seu estado da arte registado no fundamental tratado La Conservation des
Peintures Murales do casal Mora e de Paul Phillipot15), testadas e aperfeiçoadas por novas gerações
de restauradores que deixam gradualmente de se dedicarem só e apenas às mais elevadas formas
do restauro dos objetos artísticos e que pouco a pouco começam a debruçar-se sobre o mais
amplo universo do restauro arquitetônico (como é o caso dos austríacos Ivo Hammer e Heinz
Leitner, apenas para exemplificar).
Seria demasiado fastidioso enunciar aqui o grande número de
13
KOLLER, M. Architektur und intervenções de projeto urbano na Europa em que a discussão da
Farbe, Probleme ihrer Geschichte, cor e a decisão de conservar e/ou restaurar revestimentos e superfícies
Untersuchung und Restaurierung.
Em Maltechink-Restauro, nº4. arquitetônicas afetam decididamente a forma como hoje vemos essas
Viena: 1975. Ver também cidades históricas. Praga, Turim, Roma, Siena, Pienza, Viena,
KOLLER, M.; KOBLER, F. -
Farbigkeit der Architectur. Em
Barcelona, Estocolmo são apenas algumas dessas muitas cidades.
Reallexicon zur deutschen Houve países em que a cal já se tornou a norma no restauro de
Kunstgeschichte, vol VII. Muni- edifícios históricos e os planos de cor, uma obrigatoriedade para os
que: 1975; e ainda KOLLER, M. -
Facciate dipinte in Europa centrale: seus centros históricos.
ricerca e restauro. Em Facciate Portugal, nesse contexto está substancialmente atrasado. Entre
Dipinte, Conservazione e restau-
ro, Atti del convegno di studi. nós permanece uma longa tradição de imposição à arquitetura que
Génova: Sagep Editrice, 1982. se considera histórica (por vezes também a não-histórica) de um
MARCONI, P., et. al. - Il colore
nella edilizia storica. Em Bolletino
monocromatismo branco ou à cor da pedra. Este branco imposto
d´Arte, Supplemento 6. Roma: surgiu de uma argumentação aparentemente positivista e higiênica
1984. (na segunda metade do século XIX, perante o ressurgir de pestes
14
TORRACA, G. Porous building urbanas e consequente obrigatoriedade de caiar), que evoluiu para
materials. Roma: ICCROM, 1982.
Do mesmo autor Processes and pendores fortemente nacionalistas durante o Estado Novo,
Materials used in Conservation, suportando-se no desejo do reflexo de tradições culturais que
Roma, ICCROM, 1980.
relacionam o branco com a afirmação visual, no território, de uma
15
MORA, L. ; MORA, P. ; cultura de Sul e mediterrânea, ressurgindo mais uma vez no seu
PHILIPPOT, P. La Conservation des
peintures murales. Bolonha: 1977. pendor mais funcionalista e higienista no nosso tardio Moderno.
De Paul Philippot veja-se ainda o Hoje a continuidade dessas imposições pode ser fortemente
fundamental: Historic
Preservation: Philosophy, Criteria, negativa se considerarmos a usual não correspondência entre as cores
Guidelines. Em Proceedings of the habitualmente impostas - sem provas históricas e materiais concretas
Northamerican Int. Regional que as justifiquem em conjuntos históricos. Nem sempre também o
Conference. Pennsylvania: 1972.
16
branco é a cor que melhor se integra num determinado contexto ou
AAVV A Cor de Lisboa. 2ª edição
do original de 1949. Lisboa: CML- território, tendo até já sido registrado o lado cromaticamente poluidor
Amigos de Lisboa, 1993. do branco.
16
Na verdade, fora alguns momentos de intenso interesse (como na intensa polêmica sobre a
cor da cidade de Lisboa na década de 194016) a discussão disciplinar da cor na arquitetura e no
urbanismo é muito parca entre nós. Considerado um tema menor pelo racionalismo culturalmente
dominante, sublimado pelo excessivo e idiossincrático exercício cromático das volúveis estrelas
pós-modernas, o assunto tornou-se um “tema a evitar”. Este vazio só foi gradualmente alterado
na década de 1990, no surgimento de discussões públicas sobre o tema da cor e da cidade
histórica, e academicamente alterando-se decididamente o status quo com o pioneiro surgimento
na Universidade Portuguesa de um específico Mestrado (apenas na FAUTL e em 2002-2003).
No país, os estudos cromáticos baseados em métodos mais rigorosos de abordagem ocorrem
no início da década de 1980, com um pioneiro plano: o Plano de Salvaguarda e Recuperação de
Beja, baseando-se na metodologia proposta por Jean-Philippe Lenclos (na, já citada, obra Les
couleurs de la France). Neste registo de mudança é importante realçar ainda a lucidez do discurso
teórico de Eduardo Nery, que em 1988 publicou uma interessante reflexão sobre o tema da cor
e a cidade17. Nesse pioneiro ensaio e partindo duma interpretação negativa da forma como evolui
a nossa paisagem urbana, Nery apresenta pela primeira vez no país uma fundamentação teórica
sólida e coerente para o desenvolvimento de programas orquestrados de investigação, de análise
e de planeamento da cor, nomeadamente para a cidade de Lisboa.
Importa ainda não esquecer os diversos projetos levados a cabo nos centros históricos de
Évora, Guimarães, Porto e Lisboa (primeiro no decorrer da 7ª Colina e mais recentemente pelo
Projecto Integrado do Castelo), no quadro de atuação dos antigos GTL´s, hoje gabinetes ditos do
“centro histórico” e responsáveis pela coordenação das intervenções nos núcleos urbanos dessas
cidades18.
Acompanhando a evolução europeia, foi nas duas últimas décadas do século XX que se
iniciou a gradual construção da disciplina da Conservação enquanto hermenêutica prática, tal
como a fundamentou Cesare Brandi na sua Teoria do Restauro – i.e. uma Filosofia da Arte
aplicada ao Restauro e fundamentando-se na sua verificação prática. Uma teoria (fundamentada
na História e na Crítica da Arte) confrontada com uma praxis, comprovada pela ciência com o
experimentalismo dos laboratórios do Instituto Central de Restauro em Roma (ICR) depois traduzida
numa “Escola”, uma Escola de Restauradores, amplificada internacionalmente por estruturas
como o International Centre for the Study of the Preservation and Restoration of Cultural
Property (ICCROM).
Foi exatamente pelo ICR e pelo ICCROM que se deu o primeiro contato de muitos de nós,
com os novos ensinamentos dessa notável (e muito generosa) geração: Brandi; Philippot; Laura e
Paolo Mora, Torraca, Massari, Tabasso etc. Este contato aconteceu sobretudo na década de
1980, e ainda mais na década de 1990, do século XX, período em que algumas novas gerações de
cientistas, de arquitetos e engenheiros, e a primeira geração do “Restauradores - Conservadores”
portugueses, travaram contato com o célebre ICR de Roma que
Brandi fundou e dirigiu, e, depois, com os cursos de restauro que o 17 NERY, E. A cor de Lisboa. Em
ICCROM concretizava em Roma e por toda a Europa. Povos e Culturas, A Cidade em
Refiro-me aos célebres cursos Conservation de Pinture Mural (depois, Portugal: Onde se Vive, nº2. Lis-
boa: Edição do Centro de estudos
com a avassaladora primazia anglo-saxônica, designados de Mural Painting dos povos e culturas de expres-
Conservation), refiro-me aos estruturais cursos Architectural Conservation são portuguesa - Universidade
e aos mais específicos cursos Architectural Surfaces Conservation (também Católica Portuguesa, 1987.
a outros, orientados para a conservação de materiais específicos como 18 J. Aguiar, op. cit., 1999.
17
19
De forma não exaustiva: 2004-
a pedra, a madeira, ou para os cientistas, como os cursos de análise
2008 Lime renders conservation: não destrutiva dos materiais das obras de arte etc.).
Improving repair techniques and Formações avançadas frequentadas por muitos dos atuais
materials on architectural heritage,
FCT (POCTI/HEC/57723/2004);
protagonistas portugueses do mundo do restauro e da conservação,
2004-2008 Pigmentos e práticas da embrionária investigação científica ao projeto e à praxis, e ocorrem-
históricas da pintura mural: ca- me de memória: T. Cabral, J. Cordovil, J. Caetano, I. Frazão, M.
racterização dos materiais e das
Portela, F. Peralta, F. Henriques, M. Fernandes, F. Marques, F. Pinto,
tecnologias da cor no património
urbano do Alentejo, FCT (POCTI/ J. Cornélio, J. Aguiar, S. Salema, J. Antunes, A. Barreiros, P. Santa
HEC/59555/2004); 2004-2008 Bárbara, E. Murta, T. Gonçalves, E. Paupério, M. Goreti etc.
Bases para o Restauro dos Re- Cursos de conservação baseados no aprender fazendo e na
vestimentos Históricos do Centro
Histórico de Coimbra, Instituto
experimentação das mais contemporâneas teorias do restauro.
Pedro Nunes, FCT (POCTI/HEC/ Rescrevendo as praxis ao mesmo tempo que se permitia a algumas
60371/2004); 2003-2007 Guia das nossas gerações os primeiros contatos com os centros de
técnico para a reabilitação de edi-
fícios habitacionais (LNEC-INH-
excelência, com as intensas discussões pluridisciplinares que desde
SEH); 2000-2005 Projecto Conser- os anos 1970 ferviam pela Europa.
vação do Património Acedemos assim pela primeira vez aos conhecimentos mais
Arquitectónico e Urbano, onde é avançados e ao inexcedível convívio direto com as mais distintas
responsável pelo desenvolvimen-
to do estudo “Conservação e
estrelas desse novo universo da nova disciplina da conservação
requalificação da imagem urbana patrimonial (como o saudoso casal Mora, G. Torraca, H. e G. Massari,
em Centros Históricos”, PIP- M. Koller, E. De Witte, J. Jokilehto, e tantos outros). Cursos onde
LNEC; 1999-2005 Metodologias
para a Mitigação do Risco Asso-
hoje, como feliz indicador do nosso crescimento científico, onde já
ciado à Degradação das Constru- não encontramos apenas alunos mas também professores e
ções (FCT); 1999-2003 Projecto investigadores portugueses, como o investigador do LNEC Delgado
Metodologias para Caracterização, Rodrigues.
Manutenção e Reparação de Re-
bocos para Edifícios Antigos Alguns desses, associados a investigadores de diversas
(OLDRENDERS); 1999-2002 especialidades (Engenharia Civil, Química, Física das Construções,
Laboratories on Science and Geologia, Arquitetura e Urbanismo etc.), fundaram no LNEC o
Technology for the conservation
of the European Cultural Heritage
COSAH - Grupo de Estudos da Conservação das Superfícies
(LABSTECH); 1995-2000 Projecto Históricas! Dentro do próprio LNEC a estreita colaboração com
Estudos Cromáticos nas Interven- um grupo extraordinários de investigadores, tais como António Reis
ções de Conservação em Centros Cabrita, Vasconcelos de Paiva, João Appleton, Delgado Rodrigues,
Históricos, JNICT, PCSH/C/ARQ/
864/95. Rosário Veiga, Teresa Gonçalvez, Santos Silva, Fernando Henriques,
20
Mary Mun, J. Mimoso, M. Baião etc., permitiu o lançamento de
Vejam-se as actas dos últimos
Encontros concretizados sobre o Projectos de Investigação19, e a organização de conferências científicas
tema da conservação de superfí- internacionais, como os célebres ENCORES - Encontro sobre
cies arquitectónicas: HMC2008: conservação e reabilitação de edifícios, o primeiro I Encontro Cor e
Historical Mortars Conference, re-
alizada em LISBOA, no LNEC, de
Conservação de Superfícies Arquitectónicas (LNEC, 1999). Iniciou-se assim,
24 a 26 de Setembro de 2008 em paralelo com algumas universidades que lançavam os primeiros
(http://www.lnec.pt/congressos/ cursos de pós-graduação em conservação, a construção científica
eventos/hmc08/). ISBN: das suas bases.
9789724921563; COLOURS 2008,
bridging science with Art. Évora, Hoje multiplicam-se os encontros como os ainda recentes
10-12 Julho 2008, realizado no Co- HMC2008 e COLORS 200820, as publicações e os projetos de in-
légio do Espírito Santo, University vestigação de fundo e aplicados onde se integram as dissertações e
of Évora, Portugal (http://
w w w. c i u l . u l . p t / ~ c o l o u r /
teses de doutoramento que irão garantir o surgimento de novas ge-
index.htm). rações de investigadores21.
18
6. Para concluir: não é Grafite, é Escrita Vandálica!
Aprendi que é muito difícil ver em arquitetura, e que vemos em função direta do que
sabemos. Num tempo que, na cultura europeia, se assiste a uma revalorização da ideia do
regresso à cidade, i.e. ao viver e habitar a cidade, perante o desafio feito pelos editores desses
Cadernos do DED - para uma reflexão sobre o esquecimento e o abandono a que têm sido
votados os nosso espaços públicos e da necessidade da urgente requalificação -, procurou-se
contribuir focando esta, só aparentemente banal, questão da visualidade, i.e. desses microns ou
centímetros que modelam as faces das cidades e da sua arquitetura, nas formas como esta se vê
(ou não se vê), como se transmite e se dá a ver, questão ainda muito desconsiderada nos
projetos e planos de hoje.
É evidente que o problema da cor nos (mal)ditos “centros históricos” nem de longe nem de
perto é hoje apenas um problema metodológico ou, sequer, tecnológico! Aliás, esses são, muito
provavelmente, os aspectos mais próximos de uma solução. Como em quase tudo que diz respeito
à arquitetura e à cidade, é sobretudo a multiplicidade dos aspectos socioculturais, dos olhares da
antropologia aos da história, dos impactos recentes na alteração dos modos de produção nas
formas e espaços de vida do homens, que verdadeiramente condicionam a forma como hoje a
cidade histórica é vivida e percebida, afetando decididamente os processos de requalificação da
cidade e da sua imagem que temos de pôr em marcha.
Provavelmente vivemos a sorte (ou o azar) de assistirmos aos tempos de uma profunda
mudança civilizacional, no fim de uma cultura e no desenho de uma nova sociedade pós-industri-
al, mudanças perante as quais se rescrevem as morais, as políticas e as vidas. Não sabemos –
tomara que os soubéssemos – os seus novos paradigmas. Mas desconfiamos de alguns dos novos
valores (do primado da ecologia ao valor do conhecimento e, sobre-
tudo, da informação) e, sobretudo, sabemos que as sociedades urba-
21
nas estão em rápida e estrutural mudança, no surgir de novos tipos Realço aqui no domínio da con-
servação das superfícies
de comunidades multiculturais e multi-étnicas, que se reapropriam arquitectónicas algumas das te-
do patrimônio de acordo com novos valores, certamente distintos ses que oriento ou co-oriento: as
dos antigos ênfases históricos e nacionalistas. teses já finalizadas de Milene Gil
Duarte: Pigmentos e práticas his-
Tudo isso perante também um ambiente cultural que faz do tóricas da Pintura Mural: Caracte-
consumismo (transvertido em pseudo transgressão) um dos seus prin- rização dos materiais e das
cipais valores. E aqui importa reparar no apreço de alguns (pseudo?) tecnologias da cor no património
urbano do Alentejo; e de Martha
artistas plásticos e, sobretudo, de tantos jovens pela escrita vandálica (e Tavares, sobre metodologias de
deixemos de ambiguidades: não se chame grafite ao que não o é)22. consolidação de rebocos, de títu-
lo: A Conservação e o Restauro
Por escrita vandálica refiro-me a esta praga dos nossos dias que de Revestimentos Exteriores de
cobre com sprays irreversíveis (a sua remoção implica sempre per- Edifícios Antigos. Uma
da do material constitutivo ou alteração permanente das caracte- metodologia de estudo e de repa-
ração; e ainda a tese em desen-
rísticas físicas e químicas) as superfícies das nossas paredes, ou as volvimento de Sofia Salema: Con-
pedras dos nossos monumentos. servação das superfícies
Na verdade estamos a falar de materiais porosos, quando o spray arquitectónicas e a imagem urba-
na: O estudo dos esgrafitos no
dos grafites atinge essas superfícies o líquido vai ainda em estado Alentejo.
líquido e em gotículas de muito pequena dimensão, penetrando pelos 22
A.A. V.V. Roma imbrattata e
espaços existentes entre alvéolos, cristais ou através de poros aber- imbruttita. Roma: Edizioni Nagard,
tos. Os solventes, que tornam líquida a tinta, ao evaporarem deixam 1999.
19
o resíduo seco em profundidade. A remoção com novos solventes muitas vezes apenas alastra
ainda mais, e mais profundamente, a coloração indesejada, restando a sua extração mecânica ou
a repintura (se esta não for transparente). Mais recentemente surgiu o laser, mas o seu emprego
em obras não excepcionais é ainda raro.
A escrita vandálica produz danos irreversíveis nos nossos monumentos, afeta decididamente
as contas públicas pelo elevado custo da sua remoção, tem clara consequências na percepção da
segurança por parte dos cidadãos e na avaliação que estes fazem da eficácia dos municípios
quanto à sua obrigação e capacidade de manterem belas e limpas as cidades.
A luta contra os indesejados grafites e contra a ainda mais indesejada escrita vandálica é de
décadas e com resultados desiguais. Nos Estados Unidos, depois de décadas de campanhas de
sensibilização, sem grande eficácia, apenas começaram o obter alguns resultados com o endureci-
mento da atuação das autoridades e a clara criminalização do ato, o mesmo se passou em países
do Norte da Europa, como a Dinamarca. Na Holanda e na Grã Bretanha continua tentando-se o
diálogo. Em todos esses países propuseram-se locais alternativos para essas expressões (pouco
eficaz pois esta alternativa é recusada pelos autores dos grafites, considerando-a uma tentativa de
domesticação de uma arte que desejam transgressora), assim como a proteção dos monumentos
e zonas históricas com a aplicação de barreiras anti-grafite (hidro-repelentes de superfície), solu-
ções que permitam tornar mais fácil e provocar menos danos na sua remoção. Entre nós continu-
am a abundar os discursos e as promessas, algumas tentativas de controle através de enquadramento
municipal (disponibilidade de locais alternativos e organização de iniciativas apoiadas
institucionalmente) mas com poucos resultados concretos ou, sequer, animadores.
O drama da arquitetura de hoje é (provavelmente foi-o desde sempre) o de conseguir propor
novas espacialidades que anunciem, ou pelo menos que não impeçam, o futuro, resolvendo neces-
sidades do presente e integrando as permanências essenciais do passado. A novidade está na
necessidade de servir a uma sociedade de extremos: dividida entre os que se batem acerrimamente
pela preservação das antigas pinturas, afirmando a amplitude dos seus valores culturais; e os que
as destroem, admirando e considerando como “arte” as próprias ações de destruição (como as
escritas vandálicas), tomando a “conservação” como algo de reacionário per si e como tal impeditivo
das (assim atávicas) oportunidades do progresso e da mudança.
Eternos paradoxos que me trazem sempre à memória as palavras de Ramalho Ortigão quan-
do dizia (e tantas vezes já que o citei): “Nenhuma restauração se deve empreender, nem se deve
autorizar, sem que previamente se defina, bem precisa e bem nitidamente, qual o fim de utilidade
social a que êsse trabalho se consagra (...)”23.
23
ORTIGÃO, R. Arte Portuguesa.
Reedição do original de 1896. Lis-
boa: Livraria Clássica Editora,
1943, p. 230.
20
Fig. 1 – Évora, uma cidade ainda cheia de esgrafitos. Fig. 4 – Palácio de Sintra, execução de guarnecimentos
(para fingir pedra).
Fig. 9 – Propostas de cor, Plano de Salvaguarda e Fig 12 – Évora, intervenções exemplares de restauro
Recuperação de Beja. (DGEMN).
22
Fig 13 – Évora, Restaurador Nuno Proença intervenção Fig. 15 – Cacilhas: não é graffity ..é escrita vandálica!
exemplar de restauro de fontes urbanas.
Fig. 14 – Évora, vandalismo na Sé de Évora. Fig. 16 – Fronteira, esgrafito à espera de restauro ..ou da
obliteração.
23
INVENTARIAR PARA VALORIZAR E PROTEGER
Esse foi o critério vigente nos tombamento até meados da década de 1970. Mas a partir desse
momento o conceito de patrimônio se amplia influenciado pela visão antropológica de cultura.
Assim, muito do que se tombou a partir da década de 1980 não atende a esse requisito de
excepcionalidade, nem vem sendo tratado como tal, o que não quer dizer que não tenha valor,
senão que não é fiel ao espírito da lei. Para estes bens, que são reiterativos e de uma cultura viva,
poderíamos utilizar um instrumento mais flexível, como a inventariação, mesmo porque tudo que
apresenta vinculação com fatos memoráveis da historia do Brasil e excepcional valor arqueológico,
etnográfico, artístico e estético já foi tombado pelo IPHAN, em seus primeiros 40 anos de existência.
Uma solução semelhante foi adotada pelos franceses, em 1913, quando criaram sua lei básica
de patrimônio cultural consolidando os tombamentos anteriores e criando um Inventário
Suplementar, para abrigar os novos bens culturais3. Uma terceira categoria - os setores
salvaguardados – seria criada em 1962 com a chamada Lei Malraux,
basicamente para proteger a arquitetura contextual. Cada uma dessas 1 Parágrafo 1º do Art. 216
categorias tem uma regulamentação própria, que não revogou as 2 Art.1º do Dec.-Lei 25/37.
anteriores, pondo em risco as conquistas alcançadas. 3
BADY, Jean-Pierre. Les
A nossa legislação patrimonial, de 1937, elaborada quando o país monuments historiques en
ance,, 2 e Édition. Paris:
ainda era rural visando afirmar a nacionalidade, foi muito avançada F r ance
Presses Universitaires de France/
para o seu tempo, mas não evoluiu, não obstante as grandes Édition Actualisée Puf, 1998, p.
transformações por que passou o país e o conceito de patrimônio. 25-51.
27
Continuamos sem dispor de uma legislação capaz de proteger o processo de produção cultural ou
administrar os conjuntos urbanos históricos com sua dinâmica social e econômica. Legislações
complementares em nada prejudicaria a nossa lei básica de 1937.
Na Bahia, o Instituto de Patrimônio Artístico e Cultural tentou criar, em meados da década de
1990, uma legislação patrimonial dentro do espírito de competência concorrente dos três poderes
previstos na Constituição de 1988, incluindo os novos instrumentos de preservação. A minuta
original, corretamente elaborada, foi totalmente descaracterizada pelo Legislativo e transformada
na Lei 8.895, no final de 2003, regulamentada pelo Decreto 10.039, de 2006. Nos dois documen-
tos legais, os capítulos referentes ao inventário são inteiramente inócuos e ignoram o fato de a
Bahia ser o único estado brasileiro a contar com um inventário exaustivo do seu patrimônio
edificado.
O inventário deveria funcionar como uma declaração de interesse público por aquele bem e,
portanto, como uma medida acautelatória, mas dando a seu proprietário vantagens fiscais, de usos
e linhas de financiamento especiais. Se por um lado a inscrição no inventário asseguraria um
tratamento mais flexível que o dado aos bens tombados, ela seria uma espécie de pré-tombamen-
to que induziria o proprietário a negociar a conservação do imóvel temendo a possibilidade de sua
transformação em tombamento.
Na prática, nenhum dos novos instrumentos introduzidos – o inventário e o chamado espaço
preservado – foi aplicado nesses seis anos de vigência da lei estadual. Não obstante esse fato, o
Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia tem funcionado como um legitimador de
valores culturais não reconhecidos oficialmente como tal. Ameaças de demolição de edifícios
inventariados têm provocado campanhas jornalísticas que resultaram em desistências dos grupos
interessados em sua demolição e/ou inicio de processos de tombamento. De outra parte, todos os
tombamentos estaduais e os poucos federais realizados no estado nesse período têm sido de bens
inventariados. Assim, pode-se dizer que o Inventário funciona como uma “lista indicativa” de
tombamentos na Bahia, à semelhança do que exige a UNESCO para inclusão de um sitio na Lista
do Patrimônio Mundial.
5. A questão metodológica
O Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia – IPAC-Ba, iniciado em 1973, partiu
da metodologia do Inventário de Proteção do Patrimônio Europeu – IPCE. Isto se deveu ao
contato que tivemos, como seu aluno no ICCROM, com o Prof. Pietro Gazzola, então Presiden-
te do ICOMOS e um grande entusiasta dos inventários de bens culturais5. Diante de uma pers-
pectiva de globalização preferimos apostar em uma metodologia que estava sento proposta para
todo um continente, que seguir a experiência de um só país, como a França, a Alemanha ou os
Estados Unidos.
A ficha do IPCE de monumento trazia na frente campos muito pequenos referentes à iden-
tificação do monumento, época, descrição, estado de conservação, fotos e possíveis plantas. O
preenchimento do verso era optativo, mas trazia campos referentes à tipologia, cronologia, dados
técnicos, bibliografia básica, situação legal e um campo complementar para fotografias e elemen-
tos gráficos6. Tratava-se de uma ficha experimental, definida em 1970, e ainda não testada. Logo
de inicio nos demos conta que suas dimensões eram muito pequenas, 8"x6", e não cabia muita
informação. Adotamos, então, o formato A3 para redução e publicação no padrão A4. Mesmo
assim, a quantidade de dados que recolhemos mal dava nos campos,
o que exigia que as fichas gigantes fossem minutadas varias vezes 4 Vide MOTTA, Lia; SILVA, Maria
em uma Olivetti de carro grande e tipos pequenos. Apesar de a Beatriz R. (Org.) Inventários de
máquina de estado já estar inteiramente informatizada, nunca dispu- Identificação; um panorama
da experiência brasileira
brasileira. Rio
semos de um computador. de Janeiro: IPHAN, 1998.
O manual do IPCE não explicava, por outro lado, os critérios 5
GAZZOLA, Pietro. L’In
’Invv entario
para avaliação do estado de conservação dos imóveis. Depois de di protezione del patrimônio
uma tentativa mal sucedida de avaliação por créditos cumulativos, culturale. Settore dei bene
que privilegiava os monumentos mais ricos artisticamente, desen- immobile. Scopo e norme di
esecuzione. Verona: EPCE,
volvemos, a partir do segundo volume, um sistema subtrativo de 1970.
pontos relacionados com o estado de conservação de seus princi- 6
Vide fichas reproduzidas em
pais componentes, que funcionou bem melhor. Essa metodologia DAIFUKU, Hiroshi. Monument
avaliava seis itens do edifício: estrutura portante, elementos secun- conservation programmes in
dários (esquadrias, grades, revestimento externo), cobertura, inte- Preserving and restoring
monuments and historic
rior, instalações e serviços e salubridade do imóvel. Tais itens com- buildings
buildings. Paris: Unesco, 1972,
portavam subitens para uma avaliação menos subjetiva. p. 31-42.
29
Cada um desses subitens, se em estado satisfatório, valia 100 pontos. Em seguida eram dadas
notas aos subitens, segundo uma escala de estado bom, medíocre e ruim. Cada uma dessa notas
correspondia a um determinado número de pontos, que eram subtraídos dos 100 pontos originais
do subitem analisado. Impusemo-nos, por outro lado, incluir obrigatoriamente plantas baixas e de
situação, fotos do volume frontal, da fachada posterior, interiores e detalhe relevante, quando
existia.
A ficha do IPCE de sitio era ainda mais simplificada que a de monumento e tivemos que
introduzir uma série de fichas suplementares com fotos e plantas analisando a localização do sítio
na cidade, sua delimitação, época das construções, grau de proteção dos imóveis, numero de
pavimentos e uso do solo. O sitio urbano era descrito obrigatoriamente sob quatro facetas: geo-
gráfica, histórica, socioeconômica e urbanística. Introduzimos também, no verso, um quadro
sinóptico com dados sobre evolução político-administrativa, territorial e demográfica da cidade.
Na mesma planilha estão reunidos dados sobre o sítio inventariado, como superfície e composi-
ção da população, nmero de imóveis e praças, uso do solo e edifícios relevantes. As normas
executivas do IPAC-Ba estão descritas no final do 2º volume da serie7.
O IPAC-Ba, realizado entre 1973 e 2002, sob enormes dificuldades logísticas e administra-
tivas, cobriu todo o estado da Bahia, com uma extensão de 567.700 km2, território maior que
o da Espanha, arrolando 18 centros históricos e 1.065 imóveis de valor cultural reunidos e
publicados em sete volumes8. Além de seu pioneirismo no país, esse inventário foi muito além
das especificações do IPEC contribuindo para a criação de uma nova referência neste campo e
continua a ser o único inventário de patrimônio edificado exaustivo de um estado brasileiro9.
7
Normas de Execução do IPAC in
IPA C-B
IPA A, vvol
C-BA, ol II, RReconca
econca
econcavv o ,
I parte
parte. Salvador: Bahia, Sec. da
Industria e Comercio, 2ª Ed., 1982,
pp. 269-279.
8
Os bens culturais estão assim dis-
tribuídos: Vol. I – Salvador, 135
monumentos, Vol. II – Recôncavo
I, dois centros históricos e 107
monumentos, Vol. III –
Recôncavo II, cinco centros his-
tóricos e 150 monumentos, Vol.
IV – Litoral Sul, sete centros his-
tóricos e 169 monumentos, Vol. V
– Chapada Diamantina, quatro
centros históricos e 165 monu-
mentos, Vol. VI – S. Francisco e
Extremo Oeste, 159 monumen-
tos, Vol. VII – Região Pastoril,
180 monumentos.
9
AZEVEDO, Paulo Ormindo. Inven-
tário como Instrumento de Prote-
ção: a experiência pioneira do
IPAC-Bahia, in MOTTA, Lia e SIL-
VA, Ma. Beatriz Resende (Org.)
Inventários de Identificação
Identificação.
Rio de Janeiro: IPHAN, 1988.
30
A ÚLTIMA DÉCADA, NOVOS RUMOS.
BALANÇO DA HISTORIOGRAFIA SOBRE URBANIZAÇÃO NO BRASIL-COLÔNIA.
A CONTRIBUIÇÃO DOS ESTUDOS REGIONAIS RECENTES.
1. A primeira geração
Os estudos de História da Urbanização e do Urbanismo no Brasil têm início apenas há 50
anos1 (LAP n. 29); são, portanto, muito recentes. Não se trata de uma peculiariedade brasileira.
Como disseram Bernard Lepetit2 e Donatella Calabi3, este campo de investigação na França e na
Itália também se consolidou nos anos 1950, contemporaneamente ao Brasil, momento de
metropolização das cidades e dos primeiros passos do planejamento urbano. Em meados do
século XX, lá e cá, é compreensível a eleição do passado urbano como objeto de estudo em
perspectiva histórica, com vistas a pensar o presente e planejar o futuro.
O hoje clássico Contribuição ao Estudo da Evolução Urbana do Brasil (1500-1720)4, tese de livre-
docência de Nestor Goulart Reis Filho, defendida em 1964 e publicada
em 1968, é nosso texto inaugural, dado que o capítulo “O Semeador *Faculdade de Arquitetura e Urba-
nismo - USP.
e o Ladrilhador”, do livro Raízes do Brasil 5 de Sérgio Buarque de
1
Holanda (1936/1947), tinha mais um caráter ensaístico, não chegan- REIS FILHO, Nestor Goulart. “No-
tas sobre a evolução dos estu-
do a configurar um campo de investigação específico. Ao falar em dos de História da Urbanização e
História da Urbanização - e não em História do Urbanismo ou His- do Urbanismo no Brasil”. Cader-
tória da Cidade -, Nestor Goulart delimitou um campo de investiga- nos de Pesquisa do LAP, n. 29.
ção dotado de uma perspectiva teórico-metodológica muito clara, 2 LEPETIT, Bernard. Por uma nova
para a qual certamente contribuiu sua dupla formação em Arquitetu- história urbana. São Paulo:
EDUSP, 2001. Seleção de textos,
ra e Urbanismo e em Ciências Sociais, bem como seu gosto particu- revisão crítica e apresentação de
lar pela História, com perfil quase de arqueólogo. Partindo de evi- Heliana Angotti Salgueiro.
dências materiais, Nestor propôs estudar a questão em perspectiva 3 CALABI, Donatella. “A história ur-
histórica e sistêmica, enfatizando as lógicas da política de colonização bana na Itália e na Europa” In:
e urbanização e seus produtos no tempo longo, conceituando o cará- PONTUAL, Virgínia e LORETTO,
Rosane. Cidade, território e urba-
ter de cada núcleo em meio à rede urbana, em escalas geográficas nismo: um campo conceitual em
diversas – do regional ao intercontinental. Sistema e rede urbana são, construção. Olinda: CECI, 2009.
aliás, palavras-chaves na teoria de Nestor Goulart. Muito além de pp. 39-53.
meros artefatos, encarados na sua dimensão puramente morfológica, 4 REIS FILHO, Nestor Goulart. Con-
a arquitetura, a cidade e o território são entendidos como configura- tribuição ao Estudo da Evolução
Urbana do Brasil (1500-1720) .
ções espaciais de relações sociais. Como bom sociólogo, Nestor São Paulo: Pioneira, 1968. 2a. ed.
Goulart leva muito a sério os atores, seus desígnios, suas articulações 2001.
conscientes e inconscientes, seus jogos ideológicos, para explicar as 5 HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes
configurações assumidas tanto na escala da rede quanto na escala do do Brasil. São Paulo: Livraria José
espaço intra-urbano. A sociedade, na teoria de Goulart, não é com- Olympio, 1936. É apenas na 2a.
edição, publicada em 1948, que o
preendida como uma categoria inerte, mas rica em “degradés” soci- capítulo “O passado agrário” é
ais (escravos, camadas médias, oligarquia) e contradições. Nesse uni- desmembrado em dois outros –
31
verso, o urbanismo é entendido como configuração das relações sociais no espaço intra-urbano,
bem com o intervenção na cidade existente ou projeto para concepção de novos espaços. Para
tanto, desde o início, tal perspectiva teórica se ampara na estratégia metodológica de reunião e
interpretação de amplas séries documentais primárias, sobretudo cartográficas e iconográficas,
resultando em 1964 no Catálogo de Iconografia das vilas e cidades do Brasil Colonial (1500-1720) e, em
2000, no livro Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial6.
2. A segunda geração
A geração seguinte deu outra enorme contribuição. Menciono aqui os trabalhos de Murillo
Marx, dos anos 1980 e 1990, com foco na Igreja como grande parceiro da Coroa portuguesa na
colonização do Brasil, lançando luz sobre outros agentes modeladores do espaço urbano – Nosso
chão: do sagrado ao profano (1989)7 -, sobre a rede eclesiástica de capelas e freguesias e sobre a
questão fundiária pré e pós Lei de Terras (1850) – Cidade no Brasil, terra de quem? (1991)8 - e, como
bom etimólogo, sobre os conceitos de época, tão negligenciados até Cidade no Brasil, em que termos?
(1999)9. Nesta segunda geração, incluem-se os trabalhos das
6
REIS FILHO, Nestor G. Imagens brasilianistas Roberta Delson – New towns for colonial Brazil. Spacial
de Vilas e Cidades do Brasil Colo-
nial [Colaboradores: Paulo Bruna
and social planning of the eighteenth century (1979)10 - e Elizabeth
e Beatriz P. S. Bueno]. São Paulo: Kuznesof – Household economy and urban development: São Paulo, 1765
FAPESP/ EDUSP, 2000. to 1836 (1986)11 -, com preocupações centradas no processo de
7
MARX, Murillo. Nosso chão: do urbanização do século XVIII. Delson explorou particularidades da
sagrado ao profano. São Paulo: política de colonização nas diversas regiões da América Portuguesa
EDUSP, 1989.
e Kuznesof destacou o papel dos atores sociais urbanos e da econo-
8
MARX, Murillo. Cidade no Brasil, mia urbana na composição das riquezas no Brasil, até então visto
terra de quem? São Paulo: EDUSP/
NOBEL, 1991.
exclusivamente como uma retaguarda rural dos mercados urbanos
9
europeus, sob a égide de uma oligarquia rural. A partir de Kuznesof
MARX, Murillo. Cidade no Brasil
em que termos? São Paulo: foi possível entrever a dinâmica econômica das atividades urbanas,
NOBEL, 1999. inaugurando assim uma nova linha de investigação hoje explorada
10
DELSON, Roberta. New towns for por pesquisadores como João Fragoso – Homens de grossa aventura.
colonial Brazil. Spacial and social Acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1998)12 - e
planning of the eighteenth century. Junia Furtado – Homens de negócio: a interiorização da metrópole e do
Ann Arbor: Syracuse University,
University Microfilms Internacio-
comércio nas Minas setecentistas (1999)13.
nal, 1979. 2a. ed. 1997. Integram esta segunda geração de pesquisadores sintonizados
11
KUZNESOF, Elizabeth. Household
com a questão da História da Urbanização uma série de líderes
economy and urban development: regionais. Desses, destacamos: Benedito Lima de Toledo e Carlos
São Paulo, 1765 to 1836. Boulder, Lemos (SP); Fania Fridman, Maurício de Abreu, Giovana Rosso del
CO: Westview, 1986. Brenna e Margareth da Silva Pereira (RJ); José Luiz Mota Menezes
12
FRAGOSO, João. Homens de gros- (PE); José Liberal de Castro (CE); Paulo Ormindo de Azevedo,
sa aventura. Acumulação e hie-
rarquia na praça mercantil do Rio
Maria Helena Flexor, Mário Mendonça e Pedro Vasconcelos (BA);
de Janeiro. 2a. ed. Rio de Janeiro: e Gunther Weimer (RS). Estes intelectuais iniciaram importantes
Civilização Brasileira, 1998. Tese investigações regionais, com base em levantamentos de campo e
defendida na UFF, em 1990. farta documentação primária, contribuindo para o debate geral, as-
13
FURTADO, Junia. Homens de ne- sim como para a formação de uma nova geração de pesquisadores
gócio: a interiorização da metró-
nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Arquitetura e Ur-
pole e do comércio nas Minas
setecentistas. São Paulo: banismo então recém-criados, sobretudo, nas universidades federais
HUCITEC, 1999. dos seus respectivos estados.
32
Tais perspectivas floresceram e deixaram inúmeros filhotes, cujos trabalhos vêm preenchen-
do lacunas historiográficas e definindo novas possibilidades temáticas e metodológicas, que nos
parece oportuno aqui divulgar. Este será portanto o tema da minha fala: as contribuições da
última década no âmbito da História da Urbanização no Brasil.
14
ARAÚJO, Renata; CARITA, Helder.
3. O “estado da arte” no ano 2000 Colectânea de Estudos Universo
Urbanístico Português -1415-
Em 1999/2000, por ocasião das Comemorações dos Descobri- 1822. Lisboa: CNCDP, 1998.
mentos Portugueses, reiniciou-se, com vigor, o intercâmbio entre Bra- ROSSA, Walter. Revista Oceanos
sil e Portugal, estimulado por uma série de eventos, exposições e publi- [A construção do Brasil urbano],
no. 41. Lisboa: CNCDP, 2000.
cações14 – Colectânea de Estudos Universo Urbanístico Português -1415-1822 ARAÚJO, Renata e ROSSA,
(1998), Revista Oceanos no. 41 – A construção do Brasil urbano (2000), Walter (coords.). Bibliografia
Bibliografia Ibero-Americana da História do Urbanismo e da Urbanística - Ibero-Americana da História do
Urbanismo e da Urbanística -
1415-1822 (2000), Actas do Colóquio Internacional Universo Urbanístico 1415-1822. Lisboa: CNCDP, 2000.
Português -1415-1822 (2001), A praça na cidade portuguesa (2001), A ARAÚJO, Renata, CARITA, Helder
construção da cidade brasileira (2004). e ROSSA, Walter (coords.). Actas
Reuniões científicas preparatórias e o próprio Colóquio Internacional do Colóquio Internacional Univer-
so Urbanístico Português -1415-
Universo Urbanístico Português – 1415-1822 (Coimbra 1999) - capitanea- 1822. Lisboa: CNCDP, 2001.
do por Renata Araújo, Walter Rossa e Helder Carita -, bem como o TEIXEIRA, Manuel. A praça na
Colóquio Portugal-Brasil: A praça na cidade portuguesa (Lisboa 1999), o cidade portuguesa. Lisboa: Livros
Colóquio A representação da cidade de origem portuguesa na cartografia histórica Horizonte, 2001.
TEIXEIRA, Manuel. A construção
(Rio de Janeiro 2000) e o Colóquio A construção do Brasil Urbano ( Ciclo da cidade brasileira. Lisboa: Li-
de Conferências do Convento – Estudos Gerais da Arrábida 2000), vros Horizonte, 2004.
orquestrados por Manuel Teixeira, em 2000, forneceram o “estado da 15
Certamente não eram as únicas
nos seus respectivos estados,
arte” daquele momento. Estimulados por mestres como José Augusto
mas aquelas cujos pesquisado-
França, José Eduardo Horta Correia e Rafael Moreira, entre outros, res foram contatados por Rossa,
àquela altura, Araújo, Rossa e Teixeira – compondo grupos distintos - Araújo, Carita e Teixeira.
16
estavam escrevendo sobre o Brasil e intuíram sobre a necessidade de BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira.
Desenho e Desígnio: o Brasil dos
revitalizar um intercâmbio há muito interrompido. engenheiros militares. Oceanos
Nos anos 2000, foi possível perceber a existência de pesquisas [A constr ução do Br
construção asil ur
Brasil ur--
em andamento15 sobre quase todos os estados brasileiros – Fania bano]. Lisboa: CNCDP, 41: 40-58,
jan.-mar. 2000; BUENO, Beatriz
Fridman e Fernanda Bicalho (RJ); Renata Araújo, Jussara da Silveira Piccolotto Siqueira. Desenho e
Derenji e Luís Alexandre Rodrigues (AM ); Ana Cristina Braga e Desígnio: o Brasil dos enge-
Edilson Nazaré Dias Motta (Ilha de Marajó); Dora Alcântara, Cris- nheiros militares (1500-
1822). Tese de doutorado apre-
tovão Duarte e Ananias Alves Martins (MA); Romeu Duarte Junior sentada à FAUUSP, 2001 (2ª versão
(CE); Maria Helena Flexor (BA); Renata Araújo (MT); Cláudia – 2003); BUENO, Beatriz Piccolotto
Damasceno Fonseca, Til Pestana (Diamantina) e Pedro Alcântara Siqueira. “Desenhar (projetar) em
Portugal e Brasil nos séculos XVI-
(MG); Nestor Goulart (SP); Lisete Assen de Oliveira (SC); e Luís XVIII”. Cadernos de Pesquisa
Fernando Rhoden e Luiz Antônio Bolcato Custódio (RS). José Luiz do Lap, n. 36. São Paulo: LAP/
Mota Menezes, Paulo Ormindo de Azevedo, Murillo Marx, Roberta FAUUSP, pp. 1 – 45, jul.-dez. 2002;
BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira.
Delson e José Pessoa, embora tenham importantes trabalhos sobre “Decifrando mapas: sobre o con-
urbanização, urbanismo e arquitetura, participaram dos eventos tra- ceito de território e suas vinculações
tando de questões mais gerais referentes ao tema, e eu, desde 1993, com a cartografia”. Anais do Mu-
seu Paulista: História e Cul-
inaugurei minha incursão sobre a questão do desenho e dos desígni- tur
turaa Ma terial, v.12. São Paulo:
Material,
os da cartografia dos engenheiros militares16, bem como sobre a Museu Paulista-USP, pp.193 - 234,
formação e a cultura profissional dos mesmos, objetos de estudo da jan.-dez. 2004.
33
minha tese de doutorado, então em andamento, defendida na FAUUSP em 2001, a ser publicada
pela EDUSP em 2010.
Hoje, posso assegurar, que as raras lacunas ali observadas foram cobertas por estudos con-
cretizadas na última década.
5. Urbanização e preservação
Para concluir, gostaria de salientar que esses estudos de urbanização não são mero diletantismo
de historiadores e arquitetos-urbanistas. Em geral, desenvolvem-se em resposta não apenas a
rituais de passagem acadêmicos, mas em função de demandas de inventário emanadas dos orgãos
de preservação do Patrimônio Cultural – federal ou regional -, dos quais muitos pesquisadores
são parte.
Inventários e pesquisas lançam luz nas lacunas, dando a medida da relevância daquilo que
outrora fora desprezado, seja por um viés ideológico restritivo da primeira geração do SPHAN,
seja por carência de documentação (àquela altura pouco acessível), seja pelo desconhecimento
daquelas realidades.
As Cartas, Recomendações e Convenções Internacionais referentes à preservação do
Patrimônio Cultural e Natural, assim como os estudos sobre a urbanização, também são muito
recentes. Datam apenas da década de 1960, recomendações internacionais que extrapolam a
escala do monumento isolado, versando sobre a cidade histórica, as paisagens naturais e culturais
e o patrimônio construído vernáculo.
O conceito de Patrimônio Cultural - em voga a partir dos anos 1972 - e o conceito de Paisagem
Cultural - em voga desde 1995 -, requerem políticas e estratégias de preservação que articulem
áreas em geral maiores que as fronteiras jurídicas dos atuais municípios ou estados, bem como
instituições internacionais, federais, regionais e locais.
Para orquestrar políticas e estratégias de preservação envolvendo “rugosidades”38 (Milton San-
tos) configuradas na longa duração, a perspectiva sistêmica da História da Urbanização, tal como
teorizada por Nestor Goulart, me parece um caminho seguro a trilhar. A análise dos vestígios
materiais, das diversas camadas de tempos ali amalgamadas, em confronto com séries documen-
tais conexas – sobretudo cartográficas e iconográficas -, contribui na reconstituição das paisagens
culturais, envolvendo tempos, usos e significações diferentes das nossas, que requerem uma
resignificação a partir do presente.
Lançando luz a lacunas outrora não percebidas, a urbanização como campo de investigação é
assim, hoje, uma promessa na orientação de políticas e estratégias de preservação de áreas micro
e marco-regionais, envolvendo vários atores sociais e temporalidades. Para além do simples
diletantismo, temos muito a discutir neste seminário, que coloca em destaque estas duas questões
– urbanização e preservação.
Cristina Coelho*
“Portadores de uma mensagem espiritual do passado, as obras monu-
mentais de cada povo são atualmente o testemunho vivo de suas tradições
seculares. A humanidade, que cada dia toma consciência da unidade dos
valores humanos, as considera como patrimônio comum, e passando nas
gerações futuras, se reconhece solidamente responsável de sua conservação.
É seu dever transmiti-las com toda a riqueza de sua autenticidade.”
Carta de Veneza, 1964
A restauração da Capela de São João Batista de Carapina trata-se de uma experiência que
reuniu o Estado, a iniciativa privada e, principalmente, a comunidade local no resgate de impor-
tante referencial da cultura jesuítica no estado do Espírito Santo.
Datada de aproximadamente 1583, a Capela de São João Batista constitui um importante teste-
munho das primeiras levas de missionários jesuíticos no Espírito Santo. Em situação privilegiada de
grande riqueza paisagística no planalto de Carapina, no município da Serra, de onde se vê toda a
cidade de Vitória e o Monte Mestre Álvaro desde seu vale, integra o Sítio Histórico de Carapina,
condição garantida em 1984 pelo Conselho Estadual de Cultura por
meio do ato de tombamento da capela e de área de proteção de entor- * Arquiteta e urbanista graduada pelo
no com raio de 500 metros em torno do bem tombado. DAU/UFES em 1989; especialista
Após a expulsão dos jesuítas, em 1759, a construção passou por em Restauração de Edifícios e
um grande período de abandono. Posteriormente, foi completamen- Conjuntos Históricos pelo CECRE/
UFBa em 1993 e mestre em Ciên-
cias da Arquitetura, na área de
História e Preservação do
Patrimônio Cultural pelo PROARQ/
FAU/UFRJ em 2003. No ES, du-
rante toda a década passada e
início desta, atuou na restauração
de diversos monumentos
jesuíticos e como docente em
cursos de graduação em Arquite-
tura e Urbanismo nas cadeiras de
Projeto de Arquitetura e Patrimônio
Histórico. No RJ, de 2002 a 2008,
atuou junto à Prefeitura da Cidade
do Rio de Janeiro como coordena-
dora do Projeto de Revitalização
da Praça Tiradentes (Programa
Monumenta/MinC). Atualmente é
chefe do Núcleo de Educação
Patrimonial do Departamento de
Patrimônio Histórico da Casa de
Foto 1 – planalto de Carapina visto da Rodovia BR101 – contorno de Vitória. Em Oswaldo Cruz – COC/FIOCRUZ e
destaque a capela / José Antônio Carvalho; 2 – vista aérea da região. Em destaque a membro suplente do Conselho
capela / Google Earth – julho 2009 Municipal de Proteção do
41
Foto 2 – vista aérea da região. Em destaque a capela / Google Earth – julho 2009
te reformada e remodelada para servir de matriz da região, tendo sido definitivamente abandona-
da no início da década de 1980. A partir de então, veio sofrendo degradações e até agressões, que
culminaram com sua quase total demolição, no ano de 1992, quando restaram apenas “duas
paredes e uma torre”, esta resguardando frondosa árvore.
Graças à atuação da comunidade local, que muito lutou pela recuperação do monumento,
promoveu-se sua reconstrução durante o ano de 1995 no contexto da implantação do Terminal
Intermodal da Serra - TIMS, que tem o Planalto de Carapina e a Capela como panos de fundo.
A restauração, por sua vez, buscou devolver àquela comunidade, e ao Espírito Santo, um
referencial de grande importância, a partir de seus remanescentes e de consistente cadastramento
realizado anteriormente à sua demolição, restabelecendo a imagem que ainda se encontrava viva
na memória das pessoas. Utilizou-se, o mais possível, a matéria preexistente que havia permane-
cido no local sob forma de escombros, garantindo ao mesmo tempo autenticidade aos trechos
remanescentes e aos completamentos, a qual pode ser atestada pela identificação das sutis dife-
renças entre o novo e o antigo que marcam a intervenção, as quais não ferem a imagem que
precisamente se pretendia restaurar.
Hoje, a capela é amplamente utilizada pela comunidade local e vem sendo, por ela, mantida.
Ela é aberta todos os dias para visitação e tem celebração todos os domingos às 8h da manhã,
além de celebrações especiais em datas religiosas, como Páscoa e Corpus Christi. Essa programa-
ção é uma responsabilidade dividida entre as comunidades de São João, São Pedro e Santo André.
42
Foto 3 – fachada principal em 1980 / José Antônio Carvalho
1. O tombamento
Em fevereiro de 1981, o Departamento Estadual de Cultura solicitou ao Conselho Estadual
de Cultura o tombamento da Capela, em caráter de urgência, uma vez que havia o interesse, por
parte desse órgão, de inseri-la no Programa de Preservação de Bens Culturais da Fundação Pró-
memória, no biênio 81/82, para captação de recursos visando sua restauração.
No lento decorrer do processo, o antigo SPHAN foi consultado quanto à possibilidade de
tombamento do bem em instância federal. Mas o órgão negou tal solicitação por ele (o bem) já
estar destituído de suas características originais jesuíticas e fez, no entanto, algumas recomendações
quanto à proteção do entorno, entre outras.
Em fins de 1983, a capela teve seu tombamento aprovado no CEC, mas o decreto de
tombamento só foi publicado em Diário Oficial em março de 1984 com a delimitação de uma
área de entorno a ser preservada, conforme orientação do SPHAN, mas sem definição de diretrizes
para utilização dessa área.
Em 1989, O CEC instituiu a Comissão Especial Pró-restauração da Capela São João Batista
de Carapina - formada por membros da comunidade local, da Prefeitura Municipal da Serra,
representantes de empresas locais e membros da Cúria Metropolitana de Vitória, do Departamento
Estadual de Cultura e Do próprio CEC – com o objetivo de viabilizar a restauração do bem.
Em 1857, a capela foi elevada à categoria de freguesia, servindo de matriz até o fim do século
XIX, com o título de São João de Carapina, e passou a ser administrada pela Mitra Diocesana.
Nessa nova condição, sofreu outra grande reforma, supostamente, com:
x a construção da torre sineira. A data de 1870, inscrita na parede lateral da torre, revela
muito provavelmente a data de sua construção. Essa suposição se deve às suas caracterís-
ticas construtivas e estilísticas que correspondem ao estilo barroco, com as quinas chanfradas
e a cúpula em gomos;
x a construção da capela-mor arruinada nos anos 1980. Suas alvenarias de pedra tinham espes-
sura menor que a do arco cruzeiro, com a qual não apresentava amarração.
Em alguma época posterior que não se pode precisar, provavelmente já no século XX, o
edifício foi acrescido de sacristia lateral à capela-mor. O sistema construtivo da sacristia em pau-
a-pique diferia completamente das demais alvenarias, em pedra e cal, presentes no edifício.
Nos levantamentos realizados em 1990, verificou-se, também, a existência de trechos de
alvenarias de tijolos cerâmicos furados, provavelmente resultantes de ações de conservação
conduzidas pelo proprietário da fazenda que a abrigava.
A capela esteve em uso, com missas semanais, até aproximadamente 1980, quando sua loca-
lização, isolada e relativamente afastada, começava a apresentar perigo para os fiéis. A partir dessa
época, o edifício entra em pleno processo de degradação. Um levantamento arquitetônico realiza-
do pelo DEC em 1986 mostra que, nesta data, as paredes da sacristia já haviam ruído, permane-
cendo apenas sua estrutura de madeira e o telhado; a cobertura da nave já iniciava um processo
de arruinamento; o coro já havia caído, assim como os pisos elevados de madeira dos corredores
laterais, e a vegetação já tomava conta da torre sineira.
A degradação foi se agravando, como se verificou quando da realização de levantamentos
arquitetônico e fotográfico, quatro anos mais tarde. Nesta data, a capela-mor já havia ruído, assim
45
como parte do telhado da nave, e a vegetação existente na torre ganhara porte de árvore, cujas
raízes começavam a expulsar os esteios de madeira que compunham as ombreiras de portas e
janelas.
O arruinamento se impõe em 1992, então, com a demolição quase total dos remanescentes da
capela, quando restaram apenas duas paredes e uma torre, fartamente sombreadas pela árvore a
elas incorporada a qual imperava na paisagem.
Aí se encerra o processo de degradação conhecido da capela, pois o crime praticado foi
motivo suficiente para a reação de uma comunidade que se viu extirpada de seu patrimônio. Deu-
se, assim, a restauração que lhe devolveu forma. Hoje, ela (a capela) participa ativamente do
cotidiano das pessoas que moram em Carapina Grande e mantém resgatada e preservada parte
importante da memória do Espírito Santo no tempo da Colônia.
3. O contexto da intervenção
A obra de restauração que devolveu, em 1995, a imagem recém mutilada da Capela de São
João Batista à paisagem, à comunidade de Carapina Grande e ao Espírito Santo, se revela como
uma experiência ímpar de uma ação participativa e, mais que isso, regida pela comunidade local e
de fato mais interessada.
A história dessa obra começa em 1990, quando desenvolvi o primeiro projeto de intervenção
para a capela, época em que atuava no Departamento de Patrimônio Histórico e Cultural –
DPHC do então Departamento Estadual de Cultura – DEC. Nessa época, o monumento já
apresentava um trecho arruinado – correspondente à capela-mor e à sacristia – e já resguardava
uma árvore cravada na cúpula da torre. Restava-lhe a nave, a torre sineira e os corredores laterais
de pé, parcialmente descobertos. No entanto, o monumento ainda mantinha relativa unidade, com
sua fachada principal ainda íntegra.
Nessa época, foi desenvolvido um exaustivo levantamento a partir de medições e fotografias,
além de pesquisa histórica e iconográfica. Vale ressaltar que esse projeto, desde o início, teve a
valiosa colaboração do professor do antigo DFTA/UFES José Antônio Carvalho, autor do livro
O Colégio e as Residências dos Jesuítas no Espírito Santo (Expressão e Cultura:1982), que disponibilizou
riquíssimo acervo de fotos feitas por ele na década de 1980, e auxiliou nas análises.
O projeto desenvolvido nesse momento propunha a consolidação e a restauração dos trechos
remanescentes, sem a reconstrução dos espaços arruinados. Naquele momento, o uso previsto
reunia missas, retiros e reuniões comunitárias. Mas, como é muito comum, a execução da obra
não foi viabilizada de imediato.
Em 1992, fui aprovada para ingressar no Curso de Especialização em Conservação e Restau-
ração de Edifícios e Conjuntos Históricos – CECRE-FAU/UFBa e resolvi levar esse projeto
como objeto de estudo, por acreditar que o mesmo carecia de amadurecimento. Fez-se necessário,
então, atualizar os levantamentos realizados dois anos antes. Ao regressar ao local, para minha
surpresa, me deparei apenas com duas paredes e uma torre, esta com a árvore que havia se
tornado bastante frondosa. Por um momento, tive dificuldade de reconhecer a capela a partir da
primeira imagem. Ao me aproximar, fui conseguindo identificá-la e até consegui vislumbrá-la na
sua totalidade a partir das suas novas ruínas. Nesse momento, não tive dúvidas do motivo que me
levou a elegê-la como objeto de estudo na especialização.
46
A partir do novo levantamento; das teorias e cartas patrimoniais às quais fui apresentada
durante o curso; dos conhecimentos obtidos sobre técnicas e sistemas tradicionais de construção;
das orientações recebidas de especialistas de vários lugares do mundo, ao longo do desenvolvi-
mento da monografia, e depois de muito pensar, desenvolvi novo projeto que contava, em essên-
cia, com a resistência e a teimosia - que eu acreditava que patrimônio devia ter – em não se deixar
abater ao desrespeito e a denúncia sobre o vandalismo que levou a capela à ruína quase total. O
projeto previa, sim, a reconstrução integral de tudo o que havia se perdido desde o abandono da
capela no início da década de 1980, mas o fazia como um manifesto ao abandono e à agressão
sofrida deixando-lhe as cicatrizes aparentes. Os limites da ruína deveriam ficar aparentes e as
novas alvenarias serem reconstruídas com menor espessura que as remanescentes. As
complementações deveriam se revelar atuais em técnica e detalhes, e os materiais reproduzirem
sempre que possível os originais.
Aqui vale lembrar que a capela se situava em terras particulares (fazenda de gado) até o início
dos anos 1990, quando foram desapropriadas para a implantação do Terminal Intermodal da
Serra – TIMS (porto seco). Com isso, a capela passou a um total estado de abandono.
Ressalta-se, também, que o primeiro projeto para o TIMS ocupava grande área junto à Rodo-
via BR 101 (Contorno de Vitória) envolvendo totalmente a capela, de modo que esta ficasse
dentro de área delimitada para o novo empreendimento e por ele controlada.
A demolição e, depois, o projeto de incorporação da capela em área controlada instigaram
a comunidade, que não a usava mais por apresentar riscos à segurança das pessoas. Conduzida
pela vereadora local Lourência Riani e outros líderes comunitários, a comunidade conseguiu
Foto 6 – primeiro projeto do TIMS publicado no jornal local “Acorda Serra”, em 1993
47
junto à SEAMA1 a garantia da restauração da capela como condicionante, entre outras, para a
obtenção da licença ambiental ao futuro empreendimento. Esta foi a primeira grande vitória da
comunidade local. A obra foi custeada pela Andrade Gutierrez Terminais Intermodais – opera-
dora do TIMS.
A segunda grande vitória foi a alteração do projeto do Terminal, por seus empreendedores,
para liberar a capela e garantir a preservação da área de entorno do monumento, estabelecida em
seu decreto de tombamento. A exigência de alteração do projeto partiu da Câmara de Patrimônio
Histórico do Conselho Estadual de Cultura, que definiu, nesta época, diretrizes de ocupação da
área de proteção de entorno de modo a garantir a ambiência característica das edificações jesuíticas
no litoral brasileiro.
E a terceira grande vitória foi a contratação de projeto de valorização do Sítio Histórico de
Carapina, pela Prefeitura Municipal da Serra, cuja execução se encontra em vias de ser contratado.
Todas essas vitórias culminam, por fim, no resgate da história de fundação do bairro, que vai
completar 450 anos em 2012. Representam, também, o fortalecimento da fé para os católicos,
pois muitos pais e mães dos moradores atuais foram ali batizados, ou nela se casaram. O retorno
das celebrações todos os domingos, dos batizados e dos momentos festivos da capela, é muito
importante no contexto social local para o fortalecimento das tradicionais relações de pertencimento
ali verificadas.
O grande desafio foi a remoção da árvore que já fazia parte do monumento com suas raízes
intensamente entranhadas na cúpula e alvenarias da torre. O trabalho foi feito com extremo
cuidado, após a inserção dos cinturões em volta da torre, de modo a evitar qualquer acidente. Na
cúpula, à medida que se tiravam as raízes, iam-se recompondo suas partes evitando, assim, o
desmonte generalizado da mesma.
A obra de restauração foi executada em 1995, a partir do projeto desenvolvido durante o curso
de especialização e alterações posteriores. Internamente, alguns elementos foram reproduzidos a
partir de fotos disponibilizadas pela comunidade como altar, púlpito, cancela etc.
A mão de obra, embora não especializada, foi selecionada cuidadosamente e recebeu, no
início dos trabalhos, orientações sobre como atuar num patrimônio histórico. O acompanhamento
especializado durante toda a execução da obra foi fundamental para o bom resultado alcançado.
Hoje, o monumento é participante ativo da vida de Carapina e passará, a partir da obra de qualificação
da área do Sítio Histórico, a integrar mais significativamente os circuitos turísticos da região.
5. Ficha Técnica
x Patrocinador - ANDRADE GUTIERREZ TERMINAIS INTERMODAIS
x Fiscalização - CONSELHO ESTADUAL DE CULTURA
x Projeto de restauração - CRISTINA COELHO
x Desenhos - LUIZ FURLANI
x Projeto de consolidação estrutural da torre sineira - BETON PROJETOS E
CONSULTORIA LTDA
x Projetos complementares - LE ENGENHARIA LTDA
x Arqueologia - CELSO PEROTA
x Execução das obras - SIGNUS ENGENHARIA LTDA
50
x CONSÓRCIO CEL
x Colaboração - DEPARTAMETNO ESTADUAL DE CULTURA –
DEC INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL
– 6ª Coordenação Regional
x Orientadores (CECRE – UFBa) - LUIZ ANTÔNIO F. CARDOSO (BR),
MÁRIOMENDONÇADE OLIVEIRA (BR), SÍLVIA PUCCIONI (BR), CYRO
CORREA LYRA (BR), LEONARDO BARRETO DE OLIVEIRA (BR), ENGÊNIO
DE ÁVILA LINS (BR), GIORGIO LOMBARDI (IT), DARKO PANDAKOVICH
(IT), BROWN MORTOM (USA)
x Créditos - Texto: CRISTINA COELHO - Fotografia: Cristina Coelho, Décio Coelho
Duarte, José Antônio Carvalho
x Agradecimentos Especiais - Carol de Abreu, Valdir Castiglioni, José Antônio Carvalho,
Cyro Correa Lyra, Silvia Puccioni, Leonardo Barreto de Oliveira, Rosana Najjar
6. Referências Bibliográficas
BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Volumes 1 e 2. Editora Record, Rio de Janeiro:
1983
BRANDI, Cesari. Teoria de la restauración. Alianza Editorial, Madrid: 1988.
CARTA DE VENEZA. Veneza, Itália: 1964.
CARVALHO, José Antônio. O Colégio e as Residências dos Jesuítas no Espírito Santo. Expressão e Cultura, Rio
de Janeiro:1982.
CORONA & LEMOS, Eduardo e Carlos Alberto. Dicionário de Arquitetura Brasileira. Atshow Books, Rio de
Janeiro: 1989.
D’AFONSECA, Silvia Pimenta. Um estudo sobre a constituição das argamassas de cal. Dissertação de Mestrado
em Arquitetura e Urbanismo da FAU/UFBa. Salvador/BA: 1982.
51
DIRETRIZES ARQUITETÔNICAS E ORDENAMENTOS URBANOS NAS MISSÕES JESUÍTICAS DOS GUARANI
1. Apresentação
Um dos pontos relevantes na historiografia arquitetônica originado durante a conquista e
colonização da América Latina é o que se refere às Missões da Província Jesuítica do Paraguai, a
Paraquária. As Missões se constituíram a partir de múltiplos fatores, envolvendo atores com dife-
rentes aportes culturais e políticos. Ocuparam uma ampla e rica região geográfica subtropical
localizando-se, como um escudo, entre as fronteiras móveis das coroas ibéricas, Portugal e Espanha.
Do lado europeu estavam representações da Igreja Católica e dos governos imperiais. No Novo
Mundo, os povos indígenas de tradição amazônica, como os Guarani, além de alguns religiosos
criollos1.
Ao longo de um século e meio, até o estranhamento2 dos jesuítas se consolidou um sistema
articulado e cooperativo de povoados, as Reduções ou Doutrinas, onde a interação dos diferentes
agentes e seus aportes culturais -no tempo e no espaço- contribuíram para a estruturação de uma
configuração urbana, associada a uma organização social peculiar, a tipologia urbana missioneira,
objeto deste estudo.
5. A arquitetura jesuítica
4
Como uma ordem nova, os jesuítas necessitavam consolidar sua Diego de Torres Bollo (1551- 1638).
Filosofia em Ávila, Teologia em
imagem na prática, compondo alternativas arquitetônico-espaciais Salamanca, 1582 Superior da Re-
próprias capazes de atender aos seus princípios operativos, ao cha- sidência de Juli. Reitor dos colégi-
mado modo nostro. No período inicial exerciam, ao mesmo tempo, os de Quito (1592-3), Potosi
(1593-9). Primeiro provincial da
diferentes papéis: para as igrejas, geralmente construídas ex-novo, o Província do Novo Reino (1604-
de contratante ou executor; para os colégios, noviciados ou residências 5) e do Paraguai (1607-15). Em
algumas vezes instalados em edifícios doados, o papel de usuários 1603 publicou Relatione Breve.
55
(Micozzi, P.: 5). Necessitavam então adotar orientações arquitetônicas que expressassem o tom
modesto e severo que caracterizava a concepção do seu fundador, que defendia austeridade e simplici-
dade, sem luxo ou distrações. Estes princípios foram definidos na Ratione Aedificiorum que passou a
regrar a construção dos estabelecimentos da Ordem (Rodriguez, 2002:22), (Vallery-Radot: 6*),
(Custódio, 2008: 1)b.
Inicialmente as questões de arquitetura foram organizadas a partir
5
Casa é o domicilio de jesuítas que de uma clara dialética que correspondia à função dos edifícios: os
terminaram seus estudos e se de-
dicam a trabalhos apostólicos
destinados ao culto de Deus -domus Dei- ou os destinados ao uso dos
(O’Neill et alli, 2001). homens, as casas5, residências6, colégios7 ou casas professas8, onde
6
Nas Constituições residência não os jesuítas moravam ou ensinavam (Micozzi, P.: 5). Com a expansão
é uma casa determinada, mas o da Ordem ao redor do mundo, a solução adotada para orientar, de
fato de residir (O’Neill et alli, 2001).
7
Colégio é a residência comunitária
uma maneira centralizada e homogênea os projetos, foi a criação do
de jesuítas formados e em forma- cargo de conselheiro de construções -consiliarius aedificorum, instalado
ção (Constituições 289) (O’Neill junto ao Superior Geral (1558), e o irmão coadjutor9 Giovanni
et alli, 2001).
8
Tristano10 foi o primeiro conselheiro (Micozzi, P.: 5). Ele trabalhou
Casa professa. Domicílio onde de-
vem habitar os professos (Consti- em inúmeras obras, recomendando sempre a construção de igrejas
tuições 557s). (O’Neill et alli, de nave única -ad aula- em cruz latina, baseada na tradição basilical.
2001). Colaborou com Jacopo Barozzi dito il Vignola11 na utilização desta
9
No grau mais alto da estrutura
jesuítica estavam os professos dos
forma para a Igreja de Gesù, obra considerada como um marco
quatro votos […]. Abaixo deles referencial ou arquétipo para muitas edificações da Ordem. Tristano
os professos dos três votos […], foi substituído por Giuseppe Valeriano12 e posteriormente pelos ma-
como os coadjutores espirituais
[…]. O último nível era dos temáticos do Colégio Romano, Francesco de Rosis13, Christoph
coadjutores temporais, integrado Grienberger14 e Orazio Grassi15 .
pelos leigos que desenvolviam A segunda Congregação jesuítica (1565) estabeleceu orientações
funções de apoio (Custódio,
2008:92)a. mais concretas para as edificações definindo que se remetessem a
10
Giovanni Tristano. Arquiteto. N. Roma, ao Superior, as plantas e desenhos para avaliação, sem cuja
1515, Ferrara, Itália; m. 1575, aprovação não poderiam ser construídas (Rodriguez, 2002:23). As
Roma, Itália (O’Neill et alli, 2001).
11
orientações aprovadas em Trento também contribuíram para a for-
Jacopo Barozzi dito Vignola, ar-
quiteto e teórico italiano. Escre- mulação de programas espaciais para a arquitetura da Companhia
veu Regras das cinco ordens da tendo como responsável o Cardeal Carlo Borromeo 16 que organi-
Arquitetura. N. 1507, perto de
Módena (Italia); m. 1573, Roma
zou um manual denominado Instructiones Fabricae et Supellectilis
(Itália). Ecclesiasticae (1577). As Instructiones apresentavam diretrizes gerais,
12
Giuseppe Valeriano. N. 1542, normas e formas sobre o modo de construir, ornamentar e mobili-
L’Aquila, Itália; m. 1596, Nápoles, ar estruturas eclesiásticas, incorporando idéias de tratadistas, sem
Itália (O’Neill et alli, 2001).
13
De Rosis, Giovanni. Arquiteto. N.
prescindir da necessária orientação de arquitetos. Dentre os tratadistas
1538, Como, Itália; m. 1610, utilizados como referência pelos jesuítas estão, explicitamente,
Roma, Itália (O’Neill et alli, 2001). Vitrúvio, Cataneo, Vignola, Palladio e Serlio (Gallegos: 1).
14
Grienberger, Christoph. Matemáti- O quarto Superior Geral, Everardo Mercuriano (1573-1580)
co. N. 1564, Hall, Áustria; m. 1636,
Roma, Itália (O’Neill et alli, 2001). compilou o Resumo das Constituições dos manuscritos de São Ignácio
15
Grassi, Orazio. Matemático. para elaborar as Regras Comuns da Companhia, incluindo as normas
N.1583, Savona, Itália; m.1654, particulares para a arquitetura. Foi incentivada a utilização de proje-
Roma, Itália (O’Neill et alli, 2001).
16
tos-padrão feitos em Roma, buscando harmonizar e uniformizar as obras
Borromeo, Carlos. Cardeal. N.
1538, Arona, Italia; m. 1584, Mi- na sede da Companhia assim como nas construções das províncias.
lão, Itália (O’Neill et alli, 2001). Eram enviadas às Províncias, pelos Procuradores, conjuntos de plantas-
56
tipo ou plantas-comuns de igrejas de nave única, desenhadas por de Rosis (Benedetti: 75). O Supe-
rior Geral Claudio Acquaviva (1581-1615) com espírito mais flexível, abandonou esta orientação,
restabelecendo a decisão de enviar a Roma, em duas cópias, todos os projetos para aprovação,
proibindo as modificações posteriores (Vallery-Radot:8), (Custódio, 2008: 4)b.
Neste período, as obras jesuíticas a serem construídas nas províncias espanholas também
deveriam ser aprovadas pelo arquiteto real, Juan de Herrera, em Madrid, a quem a Companhia
recorreu em diversas ocasiões. (Rodríguez, 1976: 289). Na prática, pouco a pouco foi sendo formatada
uma tipologia edilícia para os principais programas da Ordem, que era o resultado tanto das
necessidades funcionais quanto expressando referências à obras emblemáticas, aos tratados de
arquitetura e à contribuição de profissionais de diferentes países. Com o tempo, a cúria romana
foi perdendo o controle sobre projetos e obras, não apenas na Europa, mas principalmente nos
territórios das Índias. Na Espanha algumas obras marcantes dos arquitetos Juan de Herrera, Juan
Bautista Villalpando e Bartolomé Bustamante se difundiram, influenciando novos projetos na
Itália e na América.
Basicamente duas tipologias de organização espacial se consolidaram no âmbito da Compa-
nhia: as igrejas, principalmente em planta basilical e os colégios/ casas professas, estruturados ao
redor de pátios fechados, com porticados superpostos, numa visível combinação da tradição
beneditina com as tipologias de casas-palácio do Renascimento (Vallery-Radot: 45), (Benedetti:
92), (Burriera: 90).
Enquanto na Europa se avaliavam questões estilístico-funcionais, os missionários das Índias
Ocidentais -e seguramente os das Orientais- apesar de estarem submetidos às mesmas orientações
da Companhia se encontravam imersos em realidades muito diferentes, onde precisavam criar
outros tipos de espaços para cumprir sua missão. Na ocupação do Novo Mundo se apresentaram
situações imprevistas que impuseram amplos desafios de criatividade e capacidade de adaptação
para congregar e assegurar a sobrevivência dos gentis convertidos. Os jesuítas buscavam obedecer ao
mesmo tempo às diferentes determinações ditadas pelas instâncias a que estavam subordinados -a
Coroa, a Igreja Católica e a própria Companhia- numa sucessão hierárquica triangulada entre Roma,
Madrid e as regiões do interior da América, com representações locais, nem sempre consertadas.
59
A peculiaridade administrativa e funcional do sistema jesuítico
22
A necessidade de construção de
propiciou a geração de estruturas arquitetônicas próprias nas redu-
um cotiguaçú em cada doutrina foi ções, como o cotiguaçú,22 uma casa destinada às mulheres recolhidas,
determinada em 1714 pelo Provin- viúvas ou órfãs e a hospedaria ou tambo. As reduções ou doutrinas
cial Luiz de Roca. (Carbonell, 2003:
133). da Paraquária se constituíram numa variante peculiar -um modelo
23
A coleção mais abrangente refe- alternativo planificado e sistemático- dos povoados de índios previstos
rente à cartografia e iconografia nas disposições de Felipe II, com populações expressivas e progra-
missioneira foi publicada, por
Ernesto Maeder e Ramón Gutierrez mas arquitetônicos específicos (Viñuales: 122). A partir de uma or-
no Atlas historico y urbano del nor- ganização social cotidianamente ritualizada, no espaço reducional se
deste argentino (Resistência, IIGH,
1994).
desenvolveram as principais manifestações artístico-culturais da época,
24
O original encontra-se no ARSI, por meio da arquitetura, escultura e pintura, que constituíam o cená-
Paraguay 14 - 082b, com o se- rio para as sofisticadas celebrações religiosas -festas e procissões
guinte título: “Estos 30 pueblos
estaban de esta forma cuando barrocas- acompanhadas com musica, danças e pelo teatro sacro.
fueron a aquellas partes las Reales
Comisiones de la Línea divisoria 8. As representações iconográficas
año 1754 et ultra.” Na parte late-
ral, uma descrição detalhada da A circulação de desenhos, planos e projetos assim como ocorria
estrutura urbana. com toda a correspondência era formalmente regulamentada pelos
25
As cartas anuas eram correspon- jesuítas, devendo ser encaminhadas duas cópias ao Superior Geral,
dências regulares obrigatórias en-
tre os Provinciais e o Superior.
em Roma (Vallery-Radot: 8). Se por um lado existe uma quantidade
26
O Jesuíta espanhol e missionário significativa de mapas cartográficos, desconhecemos qualquer exem-
do Paraguai, o Pe. Manuel Peramás plar de plano ou projeto que possa ter sido utilizado para orientar a
(1732-1793) publicou La Repúbli-
construção de algum povoado da Paraquária23.
ca de Platón y los Guaraníes .
KÜHNE, Eckart. Las misiones As iconografias urbanas conhecidas sobre as reduções podem
Jesuíticas de Bolivia Martín Schmid ser classificadas em duas categorias: as executadas por jesuítas e as
1694-1772. Pro Helvetia, Zürich, feitas por funcionários imperiais ou por viajantes. Dentre as consideradas
Santa Cruz de la Sierra, Bolivia,
1996. p. 148. Cópia desta de autoria jesuítica, algumas têm caráter descritivo, como a denominada
iconografia se encontra na planta tipo localizada no ARSI24 em Roma, que apresenta generica-
Mapoteca do Arquivo do Itamaraty,
mente uma redução (fig. 3). Outras podem ser comparadas com as
no Rio de Janeiro.
27
Obra da Biblioteca de D. Cándido correspondências edificantes, assim como o são as Cartas Anuas25. Nestas
de Oliva, Biblioteca de podem ser incluídas as versões da redução da Candelária, feitas a
Villarquemado, Teruel, Espanha, partir da obra publicada por Peramás26 em seu exílio (1791). A
publicada por Santiago Sebastián
no Archivo Español de Arte, nº. iconografia apresenta uma estrutura urbana em perspectiva, absolu-
119, Madrid, 1957. tamente regular, como se fosse uma representação idealizada. Den-
28
Doc. BNF GeC2769. “Pueblo de San tre as várias versões, uma se encontra no Arquivo do Itamaraty, Rio
Juan que e uno de los del Uruguay
que se intentan entregar a Portu-
de Janeiro (fig. 4) e uma outra, menos conhecida, na Biblioteca de
gal”- Publication: [SF]: [s.n] 1756. Villarqueimado27. Neste grupo também se incluem as duas variantes
29
Pelo Tratado de Madrid (1750) os do Povo de São João Batista que se encontram no Arquivo de Simancas
Sete Povos das Missões deveri- (fig. 5) e na Biblioteca Nacional da França (fig. 6)28. Estas iconografias,
am ser trocados pela Colônia do
Sacramento. O plano de Simancas provavelmente feitas pelo mesmo autor, foram utilizadas para pro-
foi encaminhado de Córdoba (Ar- mover genericamente os povoados dos Sete Povos29 na tentativa de
gentina), em 1753, por Joseph de impedir sua entrega aos portugueses. A cópia que se encontra em
Barreda ao padre confessor real.
Documentos interceptados pelos Paris, possivelmente integrava o conjunto de planos dos arquivos
espanhóis. Doc. AGS - E7381-71. romanos que foram vendidos para a França (Vallery-Radot: 8).
60
Dentre as produzidas por funcionários ou viajantes, está a coleção do Arquivo do Itamaraty, Rio de
Janeiro, formada por vários planos urbanos efetuados pelos espanhóis quando da demarcação do
Tratado de Limites de Santo Ildefonso (1777). Desenhos feitos com objetivo de descrever os assen-
tamentos encontrados na zona de fronteira, dentre os quais o Plano de São João Batista (fig. 7). A
tipologia urbana era tão marcante que José Maria Cabrer30, utilizou uma estrutura padronizada e a
reproduziu para registrar as várias reduções que inventariou, independentemente das eventuais
diferenças de posição, que foram desconsideradas. Neste conjunto também se incluiria o Risco de
São Miguel (fig. 8), obra sem autoria definida executada por membros do exército português31. O original
encontra-se na BN, Manuscrito AMM 41 76/98. Seção Iconográfica ARC 24-3-6.
9. Epílogo
O tema da arquitetura produzida pelos jesuítas já foi objeto, em meados do século XX, de
longas e polêmicas discussões que buscavam avaliar a existência de um possível estilo jesuítico. A
base desta discussão pode ter sido originada pela distribuição das chamadas plantas tipo para
igrejas. Uma discussão que envolveu aspectos de forma e função. Elucidada documentalmente a
trajetória histórica, a conclusão a que se chegou foi a da existência de uma tipologia arquitetônica
jesuítica, ou seja, da repetição de um conjunto de características repetíveis e reconhecíveis como
integrantes de um mesmo grupo ou conjunto de ocorrências. Estudos posteriores trataram de
descrever e entender o processo de produção de elementos arquitetônicos isolados, buscando
identificar suas filiações formais à determinadas referências tipológicas emblemáticas, como é o
caso da Igreja del Gesù de Roma, um marco neste tema.
Esta discussão, de certa forma, também se ampliou fora da Europa onde outras variáveis
contribuíram na configuração da arquitetura jesuítica, além das referências e diretrizes. Dentre
elas estão o isolamento, os materiais, a mão de obra e as condições disponíveis, os novos progra-
mas. Estas variáveis geraram tipologias próprias, como as igrejas missioneiras, com seus grandes
átrios cobertos, as unidades de habitação das reduções ou mesmo as curiosas casas de viúvas e órfãs.
Por outro lado, no campo dos ordenamentos urbanos pode-se concluir que as diretrizes principais
foram ditadas mais por regramentos do Estado do que pelas diretrizes da Igreja. As minuciosas
disposições previstas nas Ordenações e nas Leis das índias, com descrição e determinações para
cada componente da estrutura urbana, foram, sem dúvida, tomadas como referência, mesmo que
não literalmente.
A Ordem Jesuítica não experimentou na Europa a construção de novos assentamentos urba-
nos uma vez que as fundações urbanas eram atribuições exclusivas das Coroas. Logo, não teve
para os povoados americanos o regramento e o controle utilizados 30José Maria Cabrer, engenheiro,
para as edificações. geógrafo e cartógrafo espanhol. In-
Dentre as discussões ocorridas no campo urbano, colocam-se a tegrante da segunda comissão
mista encarregada de demarcar a
origem, as referências e as influências que geraram esta tipologia linha de limites e as possessões
peculiar. É preciso separar, neste caso, questões de ordem funcional espanholas do Tratado de Santo
das morfológicas. Funcionalmente, além da orientação oficial de reu- Ildefonso. Esteve na região entre
1784 e 1789 e deixou planos de
nir os índios e separá-los dos espanhóis, temos algumas referências reduções, mapas e fortificações.
fundamentais. No lado espanhol, o aprendizado de Juli, no Peru, 31
O original encontra-se na BN, Ma-
onde se estruturou o conceito do sistema reducional trazido para a nuscrito AMM 41 76/98. Seção
Paraquária pelo Padre Torres Bollo. No português, a experiência pre- Iconográfica ARC 24-3-6.
61
cursora de Manuel da Nóbrega e de seu plano de formação de aldeamentos. A experiência
funcional, porém, foi dinâmica, sendo aperfeiçoada e transformada, na prática, pelos jesuítas e
seus conselhos de padres e índios. No campo morfológico, no entanto, as referências primárias
remontam aos conceitos idealizados na antiguidade por Vitrúvio, além de experiências posteriores
européias, com exemplos distintos de estruturas urbanas regulares. Estas referências vieram tanto
nas Leis e Ordenações, como na contribuição ou no repertório dos próprios padres provenientes
de diferentes países. Nesta linha também contribuiu o estruturado sistema de comunicação e
intercâmbio jesuítico, que difundia e promovia, metodicamente, entre seus pares, as experiências
e realizações em curso ao redor do mundo. O sistema reducional da Paraquária motivou grande
interesse, principalmente o europeu, por esta experiência que foi classificada como “utópica”.
10. Abreviaturas
● AGI – Arquivo Geral das Índias (Sevilha).
● AGS – Arquivo Geral de Simancas (Valadolid).
● AGNA – Arquivo Geral Nação Argentina (Buenos Aires).
● ARSI – Arquivo Romano S. I. (Companhia de Jesus - Roma).
● BN – Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro).
● BNF – Biblioteca Nacional da França (Paris).
● IHSI – Instituto Histórico S. I. (Companhia de Jesus - Roma).
● MRE – Ministério Relações Exteriores (Rio de Janeiro).
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63
11. Ilustrações
Fig. 1: Tipologia Urbana Missioneira: 1 – Igreja. 2 – Praça. 3 – Cemitério. 4 – Cotiguaçú. 5 – Casas dos padres e Colégio.
6 – Oficinas e Armazéns; 7 – Casas dos Índios; 8 – Cabildo; 9 – Tambo; 10 – Quinta.
65
Fig. 5: Plano de São João Batista – Arquivo de Simancas - Valadolid.
66
Fig. 7: Plano de São João Batista – Arquivo MRE - Mapoteca do Itamaraty – Rio de Janeiro.
1. Introdução
Neste artigo, o conceito de esfera pública tem como base a concepção empregada no livro “A
Condição Humana” de Hannah Arendt2. Tendo como ponto de partida a Atenas clássica, esfera
pública é definida em antítese a esfera privada, que é a esfera da família (da oikos casa; nomia
regras), onde ocorre a produção e a reprodução. A ação, a liberdade, situam-se na esfera pública
para os gregos: “O ser político, o viver numa ‘polis’, significava que tudo era decidido mediante
palavras e persuasão, e não através de força ou violência.”
Entre os romanos, a urbe é o território de formação cívica – cidades e cidades-Estado – e se
distingue da civitas – reunião de famílias que compartilham os mesmos deuses, a mesma organiza-
ção social e as mesmas formas de produção.
No cristianismo, o temor ao sagrado se expressa especialmente pela arquitetura, onde “uma nítida
linha divisória separa os dirigentes da Igreja dos fiéis”. Com o aumento da influência da religião, o poder
requer um ambiente apropriado para demarcar hierarquia e reverência. Somente em alguns lugares,
construídos com arte, este sentido seria perceptível. Neles, o cristão resgata o valor da pedra3.
Se aplicar a este contexto os termos ação, labor e trabalho, que determinam a condição
humana segundo Hannah Arendt termos que definem a vida ativa em oposição à vida
contemplativa4 -, a ação, que é política por excelência, se restringe ao clero e aos senhores. Porém,
se na Grécia antiga a vida contemplativa se destina aos filósofos, no cristianismo ela é destinada a
todos, embora, talvez não se sejam comparáveis suas experiências
com o “eterno”. *
Professora Doutora do Centro de
Neste contexto, não obstante os violentos contrastes entre o “mi- Artes (Dau-Ppga-Ppgau) Ufes
1
nuto popolo” e o “popolo grasso” que residem nas cidades, é ativa a Este texto faz parte da Pesquisa
Arquitetura e evolução urbana de
contribuição de todos na sua construção. As cidades acumulam e se Vitória desde 1537, financiada pela
convertem em obra (duração). “Sociedades muito opressivas foram Facitec/PMV
2
muito criadoras e muito ricas em obras”5. De acordo com Henri ARENDT, Hannhah. A Condição Hu-
mana. Rio de Janeiro: Forense,
Lefebvre, quando o produto (valor de troca) substitui a produção de 1994
obras, nas relações sociais, a exploração substitui a opressão e a ca- 3 SENNETT, Richard. Carne e Pedra.
pacidade criadora desaparece6. Rio de Janeiro: Record, 2003.
4
ARENDT, Op. Cit. Ver cap. 1. O
Como o objeto do ensaio consiste na abordagem do sítio de uma labor é processo biológico; o tra-
edificação religiosa jesuítica, deve-se sublinhar que esta ordem religi- balho é o resultado de um proces-
osa está empenhada na prática de uma Igreja supranacional. En- so cultural, sua lógica é a durabi-
lidade dos objetos. Vida
quanto o projeto colonial português no Brasil é alargar seu império e contemplativa denomina a expe-
a fé, esta possibilidade cristianizadora é permitida. Contudo, com o riência com o eterno.
5
tempo este projeto é implementado “nas folgas do sistema”. Enfim, LEFEBRVE, Henri. O Direito à Ci-
dade. São Paulo: Centauro, 2001,
em duzentos anos, sucumbe devido à exploração mais sistemática da pp. 12-13.
colônia por parte dos portugueses. 6
Id. Ibid. p.14
91
Na fase açucareira (1570-1650), a capitania está inserida no sistema mercantilista. Grandes
proprietários, alguns cristãos-novos, dirigem seus negócios com “mão de ferro”7. São latifundiári-
os, que nem sempre residem na capitania, que têm interesses vinculados a grupos mercantis
europeus, dentre os quais estão os traficantes de escravos africanos, a força de trabalho.
Para a pequena população pobre, livre ou cativa, que vive entre o trabalho compulsório e a
Igreja, o processo de socialização é centrado na religião. Esta também é “a própria explicação
central da presença europeia” no local8.
Com as atividades religiosas de ensino, e a catequese nos aldeamentos, os jesuítas controlavam
o cotidiano de parte da população. Jesuítas e franciscanos incentivam a criação de confrarias para
combater as “murmurações” e a discórdia entre os moradores da vila. Estas se destinam aos
índios e aos negros para doutrinar a fé cristã. No século XVI, há cerca de dez confrarias e ordens
terceiras; no século seguinte elas são vinte9. Para asseverar o predomínio religioso no imaginário
popular local, observam-se marcas da devoção em todos os lugares, designando igrejas, cais,
fortes, largos10.
No sistema mercantilista, a exploração colonial concilia violência e escravidão. Este sistema
latifundiário pressupõe a vigência da “lei exemplar”, diz Alfredo Bosi: lei, trabalho compulsório e
opressão são correlatos sob o escravismo colonial. A estrutura política “enfeixa” os interesses dos
proprietários rurais sob uma administração local exercida pelas câmaras dos “homens bons do
povo”. “Mas o seu raio de poder é curto”11. Alfredo Bosi adverte que “os historiadores têm
salientado a estreita margem de ação das câmaras sob a onipresença
7
VASCONCELLOS, José Gualberto das Ordenações e Leis do Reino de Portugal”12. Pode-se verificar a
M. (org.). Vitória, trajetórias de
uma cidade. Vitória: FCCA; CDV, referida onipresença na capitania, sobretudo militar, quando se pes-
1993, p. 28. quisa os manuscritos da capitania (entre 1585-1822)13.
8
Id. Ibid. No Brasil-Império, a capitania é mantida à margem economica-
9
mente, assim como na época do ciclo do ouro. Contudo, na Repúbli-
ABREU, Carolina Frota de. o dese-
jo da Conquista. In. ca, as elites da província fazem esforços de modernização infra-
VASCONCELLOS, João Gualberto estrutural e econômica. A vida pública se estabelece paulatinamente
M. (org.). Vitória, trajetórias de na urbe laica. Neste período, a arquitetura ainda desempenha um
uma cidade. Vitória: FCCA; CDV,
1993, pp. 49-51. papel representacional fundamental, como superfície de contato dos
10
processos comunicacionais e base dos veículos de comunicação exis-
Id. Ibid. p. 59.
tentes.
11
BOSI, Alfredo. Dialética da Colo-
No entanto, quando a vida pública poderia ter condições de se
nização. São Paulo: Companhia
das Letras, 1992, pp. 19-20. estabelecer em Vitória, face desdobramentos da modernidade, a “so-
12
Id. Ibid. p. 20.
ciedade local” é atingida pelos efeitos da restrição da esfera pública,
13
da introspecção privatista ao molde burguês. Emerge o predomínio
Documentos manuscritos avul-
sos da antiga Capitania do Espíri-
da administração burocrática, do empresariado, do trabalho anôni-
to Santo que estão sob a guarda mo. Em vez da política e da ação, consolidam-se a dominação da
do Arquivo Histórico Ultramarino elite e os novos meios de manipulação da opinião pública14.
em Lisboa, Portugal. Publicada sob O status da arquitetura se consome pela propagação da esfera
a coordenação acadêmica do prof.
João Eurípedes Franklin Leal. Ver pública através de novas mídias, especialmente as tecnologias da in-
site do Arquivo Público do Espírito formação e da comunicação. A arquitetura, que segundo Paul Virilio
Santo. se desenvolve com o avanço das cidades e a colonização de novas
14
ARENDT. Op. Cit. pp. 68-88 terras, desde que esta conquista se conclui, introverte-se15. Esta sen-
15
VIRILIO, Paul. Espaço Crítico. São tença de Virilio é antagônica com a de Giulio Carlo Argan, segundo
Paulo: Ed. 34, 1934. a qual entre arquitetura e cultura não há relação entre termos distin-
92
tos, devido ao funcionamento da arquitetura dentro da entidade social e política que é a cidade, na
qual é significativa por ser forma representativa16. Este papel (funcionamento) que foi prerroga-
tiva da arquitetura é o que vai ser abordado a seguir.
22
COSTA, Lúcio. A Arquitetura dos Je-
suítas no Brasil. Rio de Janeiro. Re- Figura 1- Carta topográfica da barra e do Rio do Espírito Santo. 1767. Levantamento
vista do Patrimônio Históri- de José Antônio Caldas, Engenheiro Militar e lente da Aula Régia da Bahia. 1- Vila de
co Artístico Nacional . n. 26. Vitória; 2- Vila Velha (Espírito Santo). 3- Convento da Penha. Fonte: Recorte de mapa
1997. pp.105-169. p. 107 do Arquivo Militar do Exército. Rio de Janeiro.
94
Figura 2- Prospecto da Vila Vitória em 1805. L- Cais das Colunas em frente à ladeira de
Padre Inácio e do Colégio e Igreja São Tiago. I – Porto dos Padres. Original do
Engenheiro Militar José Pantaleão. Fonte: 5 DL Exército/ RJ
Figura 3. Legenda que consta na Planta da Vila de Vitória de 1764 do Engenheiro Militar José Antônio Caldas. Praças / 1 -
Da Matriz/ 2 - Da Misericórdia (antigo Largo Afonso Brás), denominado Terreiro pelos Jesuítas / 3 – Grande / 4 - Do
Mercado / 5 - Da Igrejinha / 6 - Do Carmo / 7 – Velha (antigo Pelourinho)/ Igrejas / A - N. S. da Vitoria (Matriz) / B –
Misericórdia / C - S. Tiago (Colégio dos Jesuítas) / D - S. Gonçalo Garcia / E - S. Antonio Convento dos Franciscanos / F
- Ordem 3.ª de S. Francisco / G - N. S. do Carmo (Convento do Carmo) / H - Ordem 3.ª de N. S. do Carmo / I - S. Luzia
/ J - N. S. da Conceição (Igrejinha) / K - N. S. do Rosário / Edifícios Públicos / a – Palácio da Presidência e Tesouro / b
- Câmara Municipal / c - Cadeia / População / 6:000 almas. Fonte: Recorte de mapa do Itamaraty/RJ
95
Figura 4. Antigo Terreiro, depois Largo da Misericórdia, renomeado Praça João
Clímaco, em 1906. Fonte: ELTON, E. Lo Logg radouros Antig
adouros os de Vitória
Antigos itória,
1988. Desenho de André Carloni.
O destaque do edifício em relação ao seu entorno também se dá pela busca de regularidade
geométrica e unidade do corpo do edifício, não obstante o programa de usos diversos que em síntese
comportam: o culto – igreja com coro e sacristia; o trabalho – oficinas e salas de aula; a residência
com seus cubículos e a enfermaria23. Cada um desses usos ocupa um quarto de uma tipologia
denominada quadra, que é um “agregado das diversas dependências à volta de um pátio central”24.
Segundo depoimento de Brás Lourenço, que esteve em Vitória de 1559 a 1564, o templo e
a casa dos meninos inicial foi incendiado em 1562, e a igreja existente era “pobre, a qual nem
ornamentos nem retábulos, nem galetas tinha”. Em 1573, o templo é reconstruído e ampliado,
constando que apresenta nessa época: “mais de cem palmos de comprido, fora a capela, e
quarenta e cinco de largo, passando a ser de pedra e cal ali levados por toda gente principal,
que, com suas próprias mãos, ajudou a trazer pedras grandes para os alicerces” 25. No conjunto
construído de Vitória, constam duas torres, o que é incomum nas tipologias dos jesuítas no
Brasil26. Estas pontuam a paisagem, como índice da presença dos jesuítas.
No edifício construído, separa-se topologicamente a intimidade do monastério dos serviços
públicos. A residência, com sua circulação, ocupa o pavimento supe-
23
COSTA. Op. Cit. rior e as oficinas e a enfermaria situam-se nos pavimentos inferiores.
24
CARVALHO, José Antônio. A Ar- Com esse procedimento respeitam-se aspectos de hierarquia e de
quitetura dos Jesuítas no Espírito
Santo: O Colégio e as Residênci-
posição na ética Jesuítica.
as. Belo Horizonte. Barroco
Barroco. n. “O inferior se submete ao superior, em virtude de uma
12. pp. 127-40. 1983, p. 128
certa harmonia e uma certa ordem. Só assim poderá ficar asse-
25
ELTON. Elmo. Velhos Templos gurada a subordinação atual, e consequentemente também a
de V itória & Outr os Temas
Outros
Capixabas
Capixabas. Vitória: Conselho Es-
unidade e o amor, sem os quais em nossa sociedade, como
tadual de Cultura,1987. em outras corporações morais, torna-se impossível uma ad-
26
Id. Ibid. p. 135 ministração organizada”27.
27
Ignácio de Loyola Apud. OLIVEI- A quadra, abrigando essas dependências variadas, volta-se para
RA. Op. Cit. um pátio central, que constitui um “centro nervoso de trabalhos e
96
atividades”28. O edifício tinha um aspecto fechado para o exterior, inclusive pela solidez de sua
aparência. Desse modo cumpre o papel de uma fortaleza, resguardando os religiosos e a população
em caso de ataques. O pátio se fecha ao término das tarefas cotidianas. Também a Igreja é
rigorosamente controlada pelos padres, aberta apenas para o culto29. Essas práticas permitem a
clausura para exercer a oração metódica e o controle do espaço como todo.
A construção do Colégio e da Igreja prolonga-se por três séculos. Desde a fundação, os
alicerces são “lançados para resistir aos séculos, porque se destinavam ao perpétuo pastoreio das
almas”30. Os jesuítas vencem as “dificuldades do ambiente selvagem”, conjugando trabalho de
penitentes, catecúmenos e nativos convertidos31 para construir o edifício de pedra, cal, óleo de
baleia, madeira para forros, escadas e pisos. O conjunto do Colégio e Igreja é erigido em etapas.
Isso permite o uso da ala concluída enquanto se constrói outra ala, não impedindo o desenvolvi-
mento dos trabalhos dos padres.
Em 1584, o edifício tem sete cubículos. Na cerca observam-se laranjeiras, limeiras, acajás e
cidreiras32. Sobre os mesmos alicerces, no século XVIII, as obras prosseguem, constrói-se um
novo quarto da quadra, uma nova ala e seu corredor, em 1734, a enfermaria em 1742, a ala
contígua à Igreja em 1742.
Não se pode afirmar qual a época exata da elevação da Igreja. A maioria dos historiadores assevera
que todo o conjunto da quadra está concluído em 1747. José Antônio Carvalho observa que:
“Vemos assim, que após ter ficado durante mais de 120 anos apenas
com a fachada, o Colégio em 40 anos foi concluído nas outras duas alas que
faltavam para a quadra e uma terceira, unida à igreja. E, após haver termina-
do a obra, a mais notável que o Espírito Santo teve até princípios deste
século, os Jesuítas só aproveitaram dela pouco mais de 12 anos.”
A unidade das partes funcionais, obtida pela quadra, inclui o tratamento plástico do conjunto,
composição de aspecto maciço, regular, eminentemente prático. Este formalismo projeta-se para
o mundo sensível, direcionando as percepções e as ações humanas. O espaço, ordenado e
essencialista, configura-se num suporte para ações disciplinadas, vigilantes e laboriosas dos ho-
mens. Num paralelo, com a ascese e a obtenção da graça da salvação que exige rigor, vontade e
trabalho.
28
CARVALHO, J. A. Op. Cit. p. 128-
29
29
OLIVEIRA. Op. Cit. p. 66
30
DERENZI, Luis Serafim. Histó-
ria do Palácio Anchieta. Vi-
tória: Secretaria de Educação e
Cultura - ES. 1971, p. 22-3
Figura 5. Palácio do Governo, a construção da escadaria é posterior a expulsão dos 31
Id. Ibid.
jesuítas, foto de 1909. Fonte MONTEIRO, J. Mensa
Mensaggem do Go Govver no de
erno
32
Jerônimo Monteiro
Monteiro. 1908-12. CARVALHO. Op. Cit. p. 131
97
Os jesuítas acreditam que cada coisa no mundo deve se enquadrar ao lugar que lhe cabe33. A
clareza da morfologia do conjunto, o pragmatismo e a implantação são aspectos que conferem
com o programa de ação no mundo dos jesuítas. Os atributos de simplicidade, clareza, pureza
regularidade, solidez e unidade são imediatamente percebidos. O simbolismo requerido de hierar-
quia pela situação e posição no contexto da paisagem decorre dessa percepção imediata.
Representar é o papel dessa arquitetura, “estar em lugar de um outro”34. Enquanto ideia que
representa, o edifício constitui um signo, um argumento35, uma manifestação do Visio dei e do Ad
Majorem Dei Gloriam pela convencionalidade da sua composição, que se situa na ética geral dos
jesuítas. Constituem um “estilo”, caracterizado pelo seu modo próprio de proceder desde a cons-
trução ao modo de habitá-la.
Os jesuítas configuram um estilo para se distinguirem da diversidade de temperamentos e
ocupações, constituindo um mens e modus societatis36. A ética legisladora dos jesuítas está difusa na
sua organização formal arquitetônica, que se torna uma forma re-
33
OLIVEIRA. Op. Cit. p. 61
presentativa: “É preciso uma representação do mundo em que haja
37
34
PEIRCE, Charles S. Os Pensa- vazio, a fim de que o mundo tenha necessidade de Deus” .
dores
dores. São Paulo: Abril Cultural. Na ética dos Jesuítas, o vazio relaciona-se à missão do homem
2ª ed. 1980. p. 61 no uso de sua capacidade criativa: “eliminar tudo o que anula ou
35
A relação do signo com seu
interpretante, se dá em 3 aspec-
impede o desenvolvimento da harmonia” e da solidariedade38. A
tos: o signo aparece em suas qua- unidade do conjunto edificado proporciona “ver a realidade com
lidades; o signo representa a exis- um olhar divino (visio dei) através “do sentido íntimo de cada coisa
tência real do objeto e como argu-
mento, o signo representa seu
captando e atendendo-se ao essencial”39.
objeto em caráter de signo. Para os jesuítas, a ordem e a formalidade constituem-se formas
Semiótica. representativas de sua vontade construtiva do mundo. “Criar, mo-
PEIRCE. Charles S. Semiótica
São Paulo: Perspectiva, p. 53. ver, transformar situações e ambiente, levando-os em direção a
36
OLIVEIRA, B. Op. Cit. p. 57
37
Deus”40. Contudo, a intencionalidade e o espírito são mais importan-
WEIL, Simone. A Gravidade e
a Gr aça. São Paulo: Martins Fon- tes, submetem-se aos problemas de adaptação ou escassez do meio
aça
Graça
tes, 1993, p. 12 ambiente original.
38
FERNANDES, J. O homem no pen- Os aspectos imediatamente percebidos da solidez e da regulari-
samento jesuítico. In PEREIRA.
Margareth C. S. & CARVALHO. Ana
dade são pertinentes ao programa de ação dos jesuítas, porém ce-
Maria F. A ffor
or ma e a Ima
orma Imagg em. dem (em parte) na decoração interna e nos detalhes à “expansividade
Arte e Arquitetura Jesuítica do barroco”, deixando-se contaminar, em certa medida, pela “volúpia
no Rio de Janeiro Colonial. da imagem”41, quando celebravam a “maior glória de Deus”,42 A
pp. 9-14, p. 12
39
Id. Ibid.
Igreja de São Tiago, no seu longo período de construção, exemplifica
40
Id. Ibid. p. 13 rupturas com o modelo essencialista original.
41
PEREIRA, Margareth. A ação dos Pode-se dizer que existe um estilo jesuítico no Brasil, que mani-
Jesuítas no Brasil Colonial e o Ima- festa um espírito ascético e severo43. E o Colégio e a Igreja de São
ginário Europeu sobre o Novo
Mundo. In PEREIRA. Margareth
Tiago, com suas singularidades44, satisfaz a este estilo, conotando sua
C. S. & CARVALHO. Ana Maria F. posição hierárquica social, política e religiosa mediante a ordem
A forma e a Imagem. Arte e edificada e a harmonia do conjunto. Aspectos dos quais é símbolo,
Arquitetura Jesuítica no Rio
de Janeiro Colonial. 1991, pp.
porque nos faz associar a forma significante aos efeitos representa-
15-34. tivos desejados.
42
OLIVEIRA. Op. Cit. p. 56
43
COSTA, Lúcio. Op. Cit. 4. No tempo da cidade-capital
44
Essas singularidades são apon-
tadas no texto de José Antônio de “As cidades latino-americanas renunciaram a si mesmas para
Carvalho. Op Cit. identificarem-se com a metrópole européia”, Roberto Segre
98
A imagem bucólica da vila debruçada sobre o mar vigora da colonização ao início da repúbli-
ca, quando passa a ser vista como ignóbil para expressar a modernidade e o desenvolvimento
econômico. A arquitetura colonial, desgastada pelo tempo e pelo descuido, representava o oposto
da “ordem e progresso”, levando ao desejo da mudança da fisionomia da cidade.
Na Primeira República, nos governos de Muniz Freire e de Jerônimo Monteiro, a cidade de
Vitória é transformada de acordo com as formas representativas de cidade-capital do século
XIX. Cidade-capital significa lugar que acumula capacidade administrativa, recursos, bens e
patrimônio, onde os capitais buscam tirar rentabilidade da concentração urbana45. Na República,
o edifício dos jesuítas, como Palácio do Governo, se converte em um dispositivo de interesses
privados imbricados na instância do Estado.
Jerônimo Monteiro (1908-12) afirma a visão local de cidade-capital. A cidade é modernizada,
mas descaracterizada, beneficiando-se da prosperidade da produção do café, que é investida no
centro fundacional, buscando uma visualidade de estilos europeus de arquitetura. A vila colonial
portuguesa típica, que ignora, até o início do século, “os princípios da arte de construir (...) e de
viver”, enfim, busca o formalismo geométrico46 (frase de um engenheiro).
A arquitetura nesse período é produzida como opção de estilo, nos moldes do Historicismo
Europeu. Esses estilos assimilavam a mimese à comunicação das formas visíveis47, se confrontam
à arquitetura da cidade colonial, considerada sem ordem preestabelecida. “A ordem só chega com
a República”48.
O problema do estilo, nesse período, não diz respeito somente a uma aparência retórica,
envolve transformações estruturais e espaciais. Procurava-se resolver o problema da qualidade da
arquitetura mediante a importação de materiais, técnicas e profissionais. O protótipo histórico
europeu que substitui a fisionomia colonial é trazido concomitantemente com migrantes europeus
para o Estado do Espírito Santo.
A cultura dominante nesse período torna-se exigente de “estilo” 45SOLÁ-MORALES, Ignasi.
Representaciones: De la Cidade-
a fim de obter status. Busca-se a participação numa linguagem uni-
capital a la Metropoli. In ESPUCHE,
versal, obliterando o passado, descaracterizando seus signos. Modifi- Albert Garcia. Ciudades del glo-
cam-se a forma, a espacialidade e os nomes dos lugares. Quando se bo al Satélite . Madri:
substitui o nome e o vocabulário, a coisa ou o referente, tendem a Electa,1994
desparecer do quadro mental coletivo. 46
DERENZI. Biografia de uma
Gilles Deleuze diz: uma sociedade, um campo social não se contra- 47 Ilha
Ilha. Rio de Janeiro: Pongetti, 1965
ARGAN, Giulio Carlo. Clássico e
diz, mas ele foge, e isto vem primeiro; depois é que se estrategiza49. Anti ClássicoClássico. São Paulo:
Concordando com Deleuze a nova opção representativa da arquitetura Martins Fontes, 1999
estabelece o sistema político republicano sobre os escombros da colônia. 48DERENZI. Op. Cit.
O Estado, o ensino laico e a imprensa substituem o sagrado como for- 49A estratégia só poderá vir em se-
mador do imaginário local. Constitui-se um novo sistema produtivo ba- guida das linhas de fuga, às suas
seado no trabalho livre, mas agrícola, cujo excedente sustenta as refor- conjugações, às suas orientações,
suas convergências e divergênci-
mas urbanas do período, ensejando a passagem de um tipo de cidade as. Deleuze aponta também neste
para outro, relacionada a novos circuitos comerciais e territoriais. ponto, o desejo está precisamente
O estilo (Historicismo) como um valor atribuído afirma a lingua- nas linhas de fuga, na conjugação
gem internacional, que vai estabelecer a representação da cidade-capi- e na dissociação de fluxo. O dese-
jo se confunde com elas. DELEUZE,
tal, de modernização do lugar e a conexão internacional da cultura.
Magg azine
Gilles. Désir et plaisir. Ma
Considera-se, com base em Luciano Patetta, o Historicismo e o Littéraire
Littéraire. Paris, n. 325, oct,
Ecletismo como um conjunto de experiências culturais, que possu- 1994, pp. 57-65.
99
em continuidade histórica50 e ideológica. Esses estilos são resultado de um ato de escolha do
projetista (um ato crítico, subjetivo). A escolha envolve uma postura moral, que permite aos
projetistas liberdade de interpretação e de caracterização. Nesse período, estabelece-se no campo
da arquitetura que há uma dialética constante entre as razões da arquitetura e razões éticas, sociais
e políticas, de acordo com Argan.
O quadro cultural do Historicismo na Europa é marcado pelo estabelecimento da burguesia,
que solicita conforto, higiene, funcionalidade e novidades, porém rebaixa “a produção artística e
arquitetônica ao nível da moda e do gosto”51. Para a clientela burguesa, esses “estilos” podem ser
considerados “imagens de desejos”, nos quais se busca sublimar “a imperfeição no produto soci-
al”52. O arquiteto adepto do Historicismo conta com um sistema de regras e preceitos de compo-
sição e de decoro, que dispõe dos mais variados elementos, advindos de diversos períodos histó-
ricos e regiões geográficas53.
5. O Palácio Anchieta
Em 1782, o patrimônio dos jesuítas é leiloado e o edifício do Colégio de Vitória passa a abrigar
a sede da capitania. Além disso, abriga a residência do presidente, o liceu, a tesouraria, a adminis-
tração dos correios, armazéns de material bélico e a biblioteca pública, entre outros54. Os usos
heterogêneos envolvem crianças, soldados, funcionários públicos e autoridades. Não há água
encanada nem esgoto no edifício55.
Jerônimo Monteiro, ao assumir o cargo de presidente do estado em 1908, observa que o
estado do edifício não oferece condições para servir nem como residência nem como instalação
institucional moderna. Visando a conforto, higiene e melhoria no espaço, o presidente contrata o
engenheiro francês Justin Norbert para elaborar o projeto. Jerônimo Monteiro explica-se:
“(...) em face do progresso material que (...) cada vez mais se
acentua na Vitória pela transformação que vai se operando no
aspecto da cidade, que renasce e se embeleza nas novas constru-
ções, que vão surgindo, não podia continuar o Palácio do Gover-
no com sua vetusta feição conventual e em contraste com as linhas
50
de arquitetura dos edifícios novos e em fragrante infração das
PATETTA, Luciano. Considerações
sobre o Ecletismo na Europa. In. posturas municipais”56.
FABRIS, Anateresa. Ec letismo
Ecletismo O projeto inclui a transformação do espaço do Colégio e da
na Arquitetura Brasileira.
São Paulo: Studio Nobel: EDUSP. Igreja, além da escadaria de acesso à cidade alta, “dando à cidade
1987, pp. 10-27 p. 10 uma nova perspectiva, estranha ao colonialismo da colina, onde nas-
51
PATETTA. Op. Cit. ceu verdadeiramente a cidade”57.
52
BENJAMIN, Walter. Paris Capital
do Século XIX. São Paulo. Espa-
Justin Norbert utiliza o estilo Luiz XVI no Palácio. Serafim Derenzi
ço & Debates
Debates. n. 11. 1984. pp. diz que Norbert “projetou a obra dentro de seu espírito racial (...) no
5-13 estilo dos protótipos de Luiz XVI. É tranqüilamente sereno e monu-
53
PATETTA. Op. Cit. p. 14 mental”.
54
Cesar Marques, 1778 apud
DERENZI. História do Palá- A reforma, iniciada em 1909, mantém a estrutura externa das
cio Anchieta
Anchieta. p. 37 paredes do edifício anterior, sua projeção no terreno. Telhado, pisos,
55
DERENZI. Ibid . acessos, dependências e fachadas são modificados, são inseridas ins-
56
MONTEIRO. Jerônimo. Mensa- talações hidráulicas, sanitárias e elétricas. O palácio com a incorpora-
gem do Governo de ção da igreja ganha um terço a mais de espaço onde se alojam os
Jerônimo Monteiro
Monteiro. 1908-12.
p. 132
serviços da burocracia.
100
As instalações são adequadas às exigências do serviço público do período, organizam-se espaços
protocolares para o presidente e o novo regime político. Cria-se uma galeria dos ex-presidentes e
representantes da república. Salões denominados de Rosa e de Azul são destinados às recepções
oficiais e às audiências com autoridades, segundo as categorias sociais que pertenciam. A residência
do governador recebe um tratamento compatível com os requisitos de intimidade e conforto.
A reforma urbana de 1909 reafirma o sítio urbano como referência institucional e monumen-
tal58. Com essa reforma, a relação entre a parte baixa onde se situa o comércio e a parte alta
institucional ganha aspectos socializantes modernos. A vida pública da parte baixa (onde se confi-
gura o Porto de Vitória) se formava na convivência entre conhecidos: lojistas e moradores; e
estranhos - viajantes, marinheiros, imigrantes. A diversidade e a complexidade social ampliam-se,
o lugar de encontro para negócios são as lojas e os bares nas proximidades da escadaria do Palácio,
e em outras praças como as da Rua da Alfândega, onde se discutia “política”.
No entorno do Palácio mantém-se o centro social da cidade, local de festividades cívicas.
Eventos que acontecem no Largo do Colégio, amenizado pelo paisagismo pinturesco, desde o fim
do século XIX: “Quem quiser se divertir por hora e meia na Praça do Colégio, vá, pois temos ceia
(...) ó que pândega”59. As reformas no entorno do Palácio favorecem os passeios ‘descomprometidos’
das famílias e dos jovens. Atividades que assimilam novos hábitos de sociabilidade e de decoro no
espaço público.
O tratamento da escadaria provê uma nova perspectiva para a baía, esta é projetada com
lances curvos, patamares intermediários, ornada com fontes e estátuas em mármore representan-
do alegorias sobre as estações do ano, figuras mitológicas, cascatas e conchas. A nova escadaria
enseja o alargamento da Rua 1º de Março, que desde o século XIX possui as mais importantes
casas comerciais de Vitória. Esse espaço, característico como mercado, adquire higiene e decoro.
O Cais do Imperador, antigo Cais das Colunas, também é renomeado Marechal Hermes.
Enquanto a fachada para a Praça João Clímaco se torna entrada de trabalho, a fachada de frente
para escadaria é monumentalizada. Como uma fachada principal simula uma inexistente simetria,
dividida em três faixas horizontais, coroadas por uma platibanda rematada por um frontão pontua-
do por uma águia. As cornijas marcam a separação entre os pisos e lajes. A nova roupagem da
57
DERENZI. História do Palá-
cio Anchieta
Anchieta. p. 46
58
Id. Ibid. p. 46-7
59
SIQUEIRA, F. A. Memórias do
Passado, a Vitória através
de meio século
século. ACHIAMÉ,
Fernando. (edição e notas). Vitó-
ria: Florecultura, 1999. (original
1885). p. 46. A ceia era oferecida
a convidados pelo presidente da
Figura 6. Escadaria Bárbara Lindemberg e Palácio Anchieta, nos anos 40. Fonte província, após os atos cívicos e
Biblioteca Central da Ufes religiosos.
101
Figura 7. Conjunto comercial na Praça Marechal Hermes, frontal ao Porto de Vitória,
nos anos 40. Fonte Élio Vianna/ DAUUfes, Fotógrafo Mazzei
fachada adquire uma modulação falsa. Pois, a base sólida, manufaturada paulatinamente pelos jesu-
ítas, impede a aplicação do procedimento de simetria e de uma modulação geométrica precisa.
Verifica-se na nova composição o procedimento da sobreposição de ordens para articular os
vários pisos da fachada, atribuindo do piso inferior ao superior uma ordem de crescente valor
simbólico. A solução da fachada de Justin Norbert, sobre um envasamento que simula alvenaria
com junta escavada, sobrepõe a ordem dórica e a ordem coríntia. Mantém o preceito vitruviano
da “aparência de função sustentadora” da base e pilastras, assinaladas pela ordem mais robusta
para mais esbelta60.
O estilo Luis XVI, como o Barroco, busca uma naturalização artificial da arquitetura, com
motivos vegetais e zoomórficos, visando a adquirir festividade ou cerimônia. O coríntio e os seus
motivos vegetais predominam na fisionomia do edifício do Palácio. A ordem é considerada como a
mais elegante, leve, formosa e rica, republicana para os romanos, mas aristocrática para os france-
ses61. As figuras como águias, deuses mitológicos, motivos florais, elementos arquitetônicos acresci-
dos, designadas na Academia como decorum (disposição adequada entre figura e ordem)62 fazem
parte de requerimentos programáticos que visam à mensagem que o edifício deve manifestar. “A
sugestão, o adorno, a metáfora e a analogia são as categorias dentro das quais a poética da arquitetu-
ra se converte num potente instrumento de persuasão e, finalmente, em controle social”63.
60
Sérlio apud. FORSSMAN, Eric.
A escolha do estilo Luis XVI é convencional para órgãos execu-
Dórico, Jónico e Coríntio na tivos do governo, quer expressar esse caráter monumental e
Arquitetura dos Séculos XVI- institucional. Contudo, a designação do estilo Luis XVI não deixa de
XVIII. Lisboa: Presença. 1990.
p. 31 ser uma incoerência com a imagem republicana.
61
FORSSMAN. Op. Cit. p. 82-3 No palácio travestido de Luis XVI desapar777ecem as qualida-
62
id.ibid. 181. des de severidade e simplicidade do edifício jesuítico. Porém, os
63
TSONIS, Alexander, LEFAIVRE Liane novos elementos decorativos são aplicados como uma clara opção
& BILODEAU, Denis. El
Classicismo en Arquitectura.
de léxico estilístico. Isso confere autonomia (eles significam por si
La Poética del Orden. Madri: mesmos). O simbolismo desses elementos decorre do seu sistema
Hermann Blume, 1984 de caracterização.
102
A Praça João Clímaco já havia sido ampliada com a demolição das construções vizinhas antes
de 1909. Nesta reforma, o edifício passa a dominar o espaço urbano reestruturado ao seu redor.
A inversão da entrada para frente da baía acentua a visibilidade para toda cidade e para o porto,
criando um waterfront. A entrada frontal adquire um sentido topológico central para toda região
(caput its).
O valor que o edifício e seu entorno adquirem na cidade, sobretudo, vem de uma nova
graduação topológica e das qualidades formais do espaço. O volume do edifício individualiza-se e
cresce com a desobstrução da vista, a remoção da ladeira frontal e desbaste da Rua Duque de
Caxias. Ou seja, a fruição do sítio pelo movimento dos transeuntes e as novas perspectivas da
cidade alta consolidam o edifício como um objeto destacado na paisagem, a escadaria funciona
como pedestal para ele, que atua como atrator da atenção e atribui valor para o edifício modifica-
do. O novo espaço ornamentado tende ao apelo visual e ao “impulso ornamental”. A nova estru-
tura urbana resultante mostra que essa transformação não foi mera maquiagem.
As reformas da capital nos anos 1910 e 1920 (Governo de Florentino Avidos) expressam
anseio de participar do mundo, após anos de isolamento econômico e político no período colonial
e imperial. As razões dessas escolhas podem ser questionadas, mas o espaço, com seus novos
aparatos, por algum tempo torna-se metáfora da graça, da beleza e do moderno. O procedimento
de superposição do ecletismo sobre a linguagem jesuítica enuncia que se busca um recomeço
sobre novas bases, para estabelecer um novo estado das coisas. No Palácio Anchieta, o historicismo,
criticado pela vanguarda moderna, se torna símbolo da nova ordem republicana e de pompa,
representa o que há de mais moderno para a localidade na época.
Na destruição do espaço do passado colonial mantém-se alguns vestígios: o nome do Palácio
Anchieta, seu túmulo (?). A fundação dos jesuítas é descaracterizada, mas mantida. Afirma-se o
sítio escolhido pelos padres, seu papel na esfera pública, sua importância no contexto urbano.
104
PATRIMÔNIO AMBIENTAL URBANO DE VITÓRIA: INVENTÁRIO E REFLEXÕES ACERCA DAS RUPTURAS E
PERMANÊNCIAS COLONIAIS NA CONTEMPORANEIDADE
Luciene Pessotti*
1. Introdução
O presente artigo objetiva apresentar os primeiros resultados da pesquisa intitulada “Patrimônio
Ambiental Urbano de Vitória: Reflexões acerca das rupturas e permanências coloniais na
contemporaneidade”, que tem o apoio do CNPq.
As principais contribuições desta pesquisa são a identificação das permanências urbanas,
arquitetônicas e paisagísticas do período colonial na contemporaneidade e a reflexão sobre a
preservação desses importantes elementos que constituem o patrimônio ambiental urbano de
Vitória.
A cidade de Vitória foi um dos primeiros núcleos urbanos da América Portuguesa e em seu
espaço urbano e na configuração da sua paisagem é possível observar traços da tradição urbanís-
tica portuguesa, de matriz vernacular.
Apesar das inúmeras transformações pelas quais a cidade passou no século XX, ainda é
possível identificar elementos morfológicos dos séculos anteriores, período em que a Vila da
Vitória teve poucas alterações.
A partir da análise de mapas temáticos de síntese elaborados na ocasião do doutoramento
(SOUZA, 2005), e de outros documentos cartográficos, foi possível conjecturar sobre a evolução
urbana de Vitória, e analisar como seus principais elementos morfológicos configuraram traços
que são particulares na sua estrutura espacial.
O confronto e a sobreposição dos mapas temáticos de síntese, assim, como a inter-relação de
suas informações e dados com a base cartográfica contemporânea permite diferentes análises de
sua configuração espacial e de sua paisagem urbana.
Esses estudos permitem a reflexão sobre os mecanismos de preservação da paisagem urbana
na contemporaneidade, e sua aplicação na cidade de Vitória, notadamente, na área de estudo.
Embora, nos últimos anos, várias normas, diretrizes e leis vêm sendo utilizadas para a preser-
vação da paisagem e dos elementos que constituem o patrimônio ambiental urbano, visando à
preservação, portanto, não só de seus elementos físicos, mas abarcando sua dimensão cultural e a
relação da cidade com o território que a constitui na longa duração, observa-se que, ainda, se
operam transformações no espaço da cidade de Vitória que comprometem a percepção e integri-
dade de seus elementos constituintes.
Logo, a reflexão dessa questão, tendo como subsídios os resulta- * Universidade Federal do Espírito
dos e contribuições das pesquisas e análises históricas, teórica e Santo. Programa de Pós-Gradua-
ção em Artes. Avenida Fernando
morfológica, pode contribuir para a revisão de mecanismos de pre- Ferrari, s/n. Centro de Artes.
servação da paisagem urbana da área de estudo da cidade de Vitória. lupessotti@yahoo.com.br
105
2. Vila da Vitória: desafios da pesquisa
As pesquisas realizadas nas últimas décadas sobre a Vila da Vitória são estudos de história
urbana que consideram as análises de seus aspectos geográficos, da morfologia do território,
econômicos, sociais, político-administrativos, do universo mental, da cultura material e do imaginário
para subsidiar a análise dos elementos morfológicos que definiram a estruturação de seu espaço
urbano nos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX (SOUZA, 2000; SOUZA, 2005).
Logo, a análise da forma urbana da Vila da Vitória, no período supracitado, reflete os diferentes
fenômenos e valores, mudanças, transformações e possíveis e diferentes formas de urbanização.
No âmbito das generalizações, a Vila da Vitória foi considerada durante muitos anos, por
diversos pesquisadores, uma vila em seu aspecto urbano e paisagístico, tal como um burgo medieval,
com suas ruas tortuosas, moldadas no terreno, sem planejamento. Além disso, houve relatos que
a definiram como pobre e suja, com seu casario simples, sua falta de praças, as ruas sem calçamento
e, por, fim, destacaram seus edifícios singulares, os templos religiosos.
A dispersão dos documentos coloniais que versam sobre Vitória e a dificuldade de relacioná-
la no contexto urbano colonial, ou melhor, de problematizar sua formação espacial a partir das
novas perspectivas teóricas do urbanismo lusitano de além-mar, ocasionou a repetição das assertivas
de estudiosos e historiadores que escreveram sobre a vila em meados do século passado.
A capitania do Espírito Santo foi sempre retratada pela historiografia como uma das mais
atrasadas no contexto colonial, sendo sua sede, apontada por vezes, como Vila do Espírito Santo,
ou Vila Nova, bem como Vila da Vitória. Cabe restituir sua posição, não só no contexto geopolítico,
como também dar novo significado às repetidas afirmativas históricas, sob novas interpretações,
corrigindo distorções e colaborando para a redefinição de sua participação no processo de
colonização da América Portuguesa.
O primeiro documento que registra a paisagem urbana da Vila da Vitória data do Século
XVIII e foi elaborado pelo engenheiro militar José Antônio Caldas. O documento (Figura 04),
intitulado Prospecto da Villa da Victória, é datado de 1767 (REIS, 2000).
O levantamento da vila retratou alguns aspectos da relação de sua ocupação urbana com seu
sítio, que merecem ser atestados. Deve-se primeiro considerar que o prospecto foi elaborado
estando o autor, o engenheiro militar José Antônio Caldas, situado no outro lado da baía, tendo
uma visão mais privilegiada de um perfil lateral, e não frontal.
Pode-se constatar este direcionamento no prospecto em virtude da topografia acidentada da
região. Assim, ao enumerar os principais pontos da cidade, o engenheiro militar destacou a posi-
ção da Igreja da Companhia de Jesus, o convento de São Francisco, a Igreja Matriz e a região
íngreme onde se localizou o Fortim São Diogo, respectivamente, identificados com os seguintes
números registrados na Planta da Villa da Victória: 2; 9, 16 e 21, outro levantamento importante
que o engenheiro realizou na ocasião (Figura 03).
A implantação da vila no platô, cuja maior elevação não ultrapassava a cota de 25 metros,
teve como destaque os edifícios religiosos, que através de sua arquitetura são o maior destaque
da iconografia, em especial das duas torres da Igreja de São Tiago, o templo jesuítico, em tama-
nhos diferentes e o frontão triangular, que compunham a fachada. A Igreja Matriz, que é vista em
sua lateral e, de fundos, também teve suas dimensões destacadas na paisagem urbana. O conven-
to de São Francisco, em sua posição privilegiada, a meia encosta, é retratado, ainda neste período,
fora do aglomerado de casarios que compunham a vila, i.e., mantinha-se praticamente fora de
seus limites físicos (Figuras 03 e 04).
A densa ocupação no platô e, das áreas circunvizinhas, é demonstrada pelo grande número de
casarios de dois e até três pavimentos, como aqueles que se localizaram próximo ao mar e são
melhores visualizados na iconografia. A região da praia é formada pelos cais e armazéns, que têm
proporções significativas. Em destaque, as ameias do Forte de Nossa Senhora da Vitória (Figuras
03 e 04).
A vila tinha na área central do platô implantado os três principais templos religiosos, que
foram, desde o século XVI, os elementos irradiadores do crescimento urbano. A partir deste
epicentro as ruas foram estruturadas até se implantarem na parte mais baixa, onde se instala-
ram os cais e a parte comercial, como em outras vilas e cidades da América Portuguesa, numa
clara referência ao urbanismo lusitano: a configuração espacial estruturada em cidade alta e
cidade baixa.
A relação da Vila da Vitória com o sítio é tão peculiar que se estendeu à configuração do
conjunto urbano, que está situado entre os dois braços de mar, poucos perceptíveis na iconografia,
e na meia encosta atrás do platô. Do ponto onde se posicionou a câmara escura, registrou-se este
encastelamento “[...] nas grimpas da montanha a se espelhar nas águas tranquilas de um lago”
(DERENZI,1995, p. 79). As ruas, estruturadas a meia encosta, e as ladeiras, configuraram a
implantação de quarteirões e lotes, de tal forma, que o casario, registrado no levantamento, se
implantou de maneira escalonada no sítio. Os diferentes níveis onde se situa o casario, implantado
113
lado a lado, sem recuo lateral, até o cume do platô, oferece uma percepção da conformação das
ruas, que se relacionavam com o desnível do casario (Figuras 03 e 04).
Este panorama registrado no século XVIII só viria a se modificar no final do século XIX e
início do século XX. No século XIX, a Vila da Vitória passou por diversas transformações impor-
tantes, tanto no aspecto físico-espacial, quanto nos aspectos econômicos sociais e políticos que, de
certa forma, foram as principais causas do início de uma série de mudanças que vieram ocorrer
em sua estrutura física.
No governo de Francisco Alberto Rubim (1812-1819), segundo Martins (1995), ocorreram
as principais intervenções na Vila da Vitória, iniciando-se os aterros das áreas alagadiças e dos
manguezais que delimitavam o platô onde estava implantada a vila. A área da cidade baixa que foi
se formando através dos entulhos jogado junto ao mar no fundo das casas passava então a se
constituir em uma das principais áreas da cidade, dando origem à Rua da Praia, que veio a ser a
artéria mais comercial do local, dando origem à Avenida Capixaba, e posteriormente à Avenida
Jerônimo Monteiro, uma dos principais corredores de passagem de Vitória na contemporaneidade.
A configuração espacial da vila, no entanto, não mudou em relação à sua organização inicial,
i.e., as construções de uso comercial, residencial e institucional e de lazer, se davam próximas
umas das outras, com destaque para as igrejas e construções públicas, sendo que a área central do
platô continuava a ser a mais densa, muito embora, conforme citado, já havia a ocupação junto ao
mar na faixa de terreno de cota mais baixa. Até o início do século XIX, os templos religiosos ainda
dominavam não só a paisagem, mas também a estrutura urbana da mancha matriz de Vitória.
A Perspectiva da Vila da Vitória, 1805, de autoria Joaquim Pantaleão (REIS, 2000) (Figura
05) é outro documento que apresenta o perfil urbano do período, tendo em destaque os templos
religiosos emoldurados pela colina. Ou seja, nos séculos XVIII e XIX temos os mesmos elemen-
tos que estruturam a paisagem urbana da vila.
Na pesquisa de doutoramento concluímos a importância que a Igreja Católica teve como
agente modelador do espaço da Vila da Vitória. A ligação entre os primeiros templos estruturou o
traçado da vila, bem como definiu os espaços onde se consolidou a ocupação do casario, que lado
a lado, por adição, configuraram os quarteirões, conforme já citado. Esta é uma das característi-
cas, segundo Reis Filho (1968), da formação espacial das primeiras vilas do período colonial, e se
não destas, das povoações mais simples. Esta lógica esteve presente na ocupação do sítio onde se
consolidou a Vila da Vitória, e foi influenciando em seu crescimento, até o início do século XX.
A partir do século XX, o desejo de rompimento com o passado colonial deu origem a uma
série de intervenções no espaço urbano de Vitória, elevada à categoria de cidade em 1823. A
cidade foi, então, “ecletizada”, e para tanto, durante o século XIX iniciaram-se diversas obras que
inauguram o que foi denominado posteriormente embelezamento da cidade.
Uma das intervenções mais impactantes para a transformação da paisagem urbana foram os
aterros. Nos relatório de governo do século XIX constata-se que essas obras passam a ter um
investimento maior do poder público: em 1847, 1848, e 1871, registram-se obras para o aterro da
área denominada Campinho; em 1861 e 1862, registram-se obras para o aterro da área denomi-
nada Lapa. Na década de 1870 diversas intervenções urbanas foram feitas para melhoria ou
construção de praças, o que já demonstra uma nova concepção das áreas urbanas: ocorrerem as
114
obras na Praça do Palácio (antigo colégio jesuítico), no Cais do Santíssimo, Praça do Mercado,
Praça da Alfândega.
Os aterros deram origem a um novo solo urbano, que passa a ser ocupado por ruas e edifícios
que deveriam traduzir as inovações urbanas advindas da Europa: traçado regular e arquitetura
com novos conceitos e tecnologia, traduzindo um novo padrão social e estético. O estilo empre-
gado em Vitória no início do século XX foi o Eclético, tendo a administração municipal investido
em normas para que a cidade passasse a ter uma nova imagem. Neste momento, os elementos
arquitetônicos, urbanos e paisagísticos remanescentes da cidade colonial sofrem grandes transfor-
mações. Com a demolição de praticamente todo o casario da cidade alta dá-se o início ao processo
de perda do acervo de bens culturais dos três séculos precedentes. Além do casario, as modifica-
ções no traçado e a ocupação da colina ao fundo do platô também vão transformar a paisagem
urbana de Vitória.
O crescimento econômico ocorrido a partir da década de 1960 traz novas transformações
para a paisagem urbana de Vitória, com a conquista de novos espaços junto ao mar, ampliando as
áreas aterradas. Estas áreas passam a ser ocupadas por edifícios que rompem a escala de dois e
três pavimentos, então, gabaritos predominantes na área de estudo. Surgem os edifícios de até 15
pavimentos, que vão modificar a relação do sítio com o conjunto arquitetônico, urbano e paisagístico
colonial e eclético.
A partir dessas transformações, o centro da cidade de Vitória adquire um novo perfil. A
necessidade de se avaliar as rupturas e permanências do acervo de bens culturais, notadamente o
acervo arquitetônico, urbano e paisagístico, se dá pela sua relevância na história da arquitetura e
urbanismo do Brasil, tendo em vista que a cidade, conforme citado, é uma das mais antigas do
país e teve em sua estruturação elementos da tradição urbana lusitana.
A partir da elaboração de mapas temáticos de síntese, que são documentos cartográficos
resultantes da síntese das pesquisas realizadas a partir de fontes primárias e secundárias, que
fundamentaram a análise histórica da formação urbana de nosso objeto de estudo e integram o
conjunto de reflexões do doutoramento (SOUZA, 2005) e da presente pesquisa, pode-se analisar
as transformações da paisagem urbana de Vitória. Ressaltamos que os mapas temáticos de síntese
são abstrações intelectuais que apresentam o fenômeno urbano de forma simbólica, e que objetivam
conjecturar as diferentes formas que o espaço e a paisagem urbana podem ter assumido.
Dessa forma, através dos mapas temáticos e da cartografia histórica, realizou-se uma síntese
da evolução das transformações da paisagem urbana da Vila da Vitória, buscando demonstrar as
(1) características de seu sítio de implantação, (2) as características da paisagem urbana colonial e
(3) as rupturas destes elementos na paisagem do século XX e na contemporaneidade.
Através da Figura 01 observa-se o sítio de implantação da Vila da Vitória dentro da Baía
homônima, em posição defensável, remetendo às implantações urbanas da tradição lusitana que
foi utilizada na América Portuguesa.
No Detalhe da Figura 01, pode-se observar as características do platô onde foi implantada a
Vila da Vitória no século XVI. Vê-se em destaque que a porção de terra onde se estruturou a
115
Figura 01 – Mapa Temático de Síntese. Planta de Reconstituição da implantação da Vila da Vitória no Século XVI.
Autoria: Luciene Pessotti, 2010.
Fonte: Acervo da autora
trama urbana era ladeada pelas águas da baía e ao fundo o maciço central da ilha. Ressalta-se que
as ocupações junto ao mar foram se dando lentamente até o século XIX, sendo que, a partir deste
momento, iniciam-se os aterros que mudariam o perfil urbano e paisagístico de Vitória.
Detalhe da Figura 01 – Mapa Temático de Síntese. Sítio de implantação (Platô) da Vila da Vitória.
Autoria: Luciene Pessotti, 2010.
Fonte: Acervo da autora.
Na Figura 02, na próxima página, tem-se a modelagem da topografia do sítio onde foi implan-
tada a Vila da Vitória no século XVI. Conforme se atesta, a vila implantada em um platô tinha ao
fundo uma montanha que se sobrepunha à escala da arquitetura colonial. No platô, onde foi
implantada a vila, a maior cota não excedia a 30 metros, e o maciço central possuía altura com
cotas superiores a 200 metros.
116
Figura 02 – Mapa Temático de Síntese. Modelagem do sítio de implantação da Vila da Vitória no Século XVI.
Autoria: Luciene Pessotti, 2010.
Fonte: Acervo do autor.
As Figuras 03 e 04 representam o primeiro levantamento da Vila da Vitória no período colonial,
realizado em 1765, i.e., no século XVIII. A Figura 03 retrata o levantamento do espaço urbano da vila,
com identificação dos principais edifícios e espaços. A Figura 04 registra a paisagem urbana, tendo
como destaque os edifícios religiosos e a cadeia montanhosa ao fundo. Neste perfil pode-se constatar
uma das recorrentes citações da historiografia sobre Vitória: cidade que se estruturou entre o mar e a
montanha. Cabe ressaltar que o engenheiro retratou o perfil da Vila da Vitória no mesmo período em
que foi levantada a sua planta, tendo representado a vila com suas principais características. Esses
levantamentos são um dos principais documentos do período colonial sobre Vitória. Sua análise permi-
te que sejam conhecidos vários aspectos da vida urbana, social, econômica, além de permitir que se
façam conjecturas sobre a forma urbana da vila antes deste levantamento, a partir das informações
levantadas sobre os séculos anteriores coletadas nas fontes primárias e secundárias.
No Prospecto lê-se:
“Prospeto da Vila da Vitoria Capital da Capitania do Espirito Santo, e
distante da foz do Rio do mesmo nome, huma Legoa: na Latitude de 20 g.
e 15 m. ao sul, e 334 g e 45 m. de longitude. Foi tirado com Acamara
obscura por Jozê Antonio Caldas. Capitam de Infantaria com exercicio de
Engr.º Lente da Aula Regia das forteficasoens da Bahia, mandado à dita
Capitania do Real Serviso pelo Ilum.º e Exm.º S.r Conde de Azambuja
Capitam General e Governador desta Capitania B.ª8 de Sbr d 1767”.
Autor: José Antônio Caldas.
Fonte: Original manuscrito do Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro.
118
No Prospecto lê-se também:
“Prospecto da vila da Victoria / Capital da Capitania do Espírito-Santo e
dis- / tante da foz do rio do mesmo nome urna legoa na / latitude meridi-
onal de 20°-15’ e na longitude de 344°-15’. / Explicação: / 1 Trapiche que
foi dos jesuitas / 2 Igreja e collegio dos mesmos / 3 Forte de N. S. do
Carmo / 4 Igreja da Misericordia / 5 Cadêa e Caza da Camara / 6 Igreja
Matriz / 7 Forte de S. Thiago / 8 Igreja e Convento de S. Antonio dos
Cap.os / 9 Pedra redonda / 10 Monte da vigia / 11 Sequito que as embar-
cações trazem pelo rio.”
A Figura 05 retrata a paisagem urbana de Vitória no século XIX, no ano de 1805. O levanta-
mento realizado mostra em destaque a presença dos cais no porto, pois as atividades comerciais
estavam aquecidas e a vila já sentia os sinais das melhorias econômicas do período. Ainda perma-
necem em destaque na paisagem no início do século XIX as torres sineiras da igreja jesuítica, bem
como a montanha ao fundo.
Na Perspectiva lê-se:
“PERSPECTIVA DA VILLA DE VICTORIA/ Capitania do
ESPIRITO SANTO por Joaquim Pantaleão Per.ª da S.ª/ Anno de 1805”.
Autor: Joaquim Pantaleão Pereira da Silva.
Fonte: Original manuscrito do Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro.
É uma vista em perspectiva da Vila de Vitória, tomada a partir do canal. O maior destaque
aparece no antigo Colégio dos Jesuítas, com sua igreja (A) e, na extremidade direita da colina, a
Matriz, já com sua nova fachada com frontão trabalhado (B). Bem mais acima vemos a igreja do
Rosário (D); entre a Matriz e o Colégio dos Jesuítas, a igreja da Misericórdia (C) e a Casa de
119
Câmara e Cadeia (E), com dois corpos de telhado destacados. Ao centro, um grande cais avança
em direção ao canal.
As análises sobre a evolução urbana de Vitória demonstraram alguns resultados que podem
ser verificados através das Figuras 06 e 07.
Através da Figura 06 pode-se observar que até o século XIX a trama urbana de Vitória,
representada pela cor amarelo, pouco rompeu com seu sítio de implantação, mantendo as
características morfológicas do período colonial, conforme já atestado em outras etapas desta
pesquisa (SOUZA, 2005).
A estrutura urbana representada na cor cinza é aquela que foi se consolidando a partir do
século XIX e que se mantém na contemporaneidade. Na cor roxa os edifícios religiosos
remanescentes do período colonial, que eram destaque na trama urbana e na paisagem de Vitória,
hoje numa posição diferente.
As linhas de preamar representadas nas cores verde, do século XIX, e azul, do século XX,
demonstram a quantidade de área que foi conquistada junto ao mar.
Através da Figura 07 podemos constatar algumas permanências no âmbito da arquitetura na
estrutura urbana de Vitória. A partir do levantamento das edificações protegidas nas diferentes
esferas do poder público, ou seja, no âmbito federal, estadual e municipal, tem-se o inventário
preliminar dessas permanências históricas na área que constitui o objeto de estudo.
Ressaltamos que as edificações tombadas em nível federal são remanescentes do período
colonial, sendo em sua maioria templos religiosos. Praticamente todo o casario colonial foi demolido.
As demais edificações são dos séculos XIX e início do XX.
Dessa forma, pode-se concluir que Vitória preserva muito mais os elementos remanescentes
de uma fase em que o poder público quis apagar seu passado colonial, como uma nova linguagem
urbana e estética, notadamente, o ecletismo, conforme já abordado.
As transformações ocorridas a partir da década de 1960 alteraram profundamente a paisagem
urbana de Vitória. Ao compararmos a paisagem urbana colonial com a paisagem contemporânea,
tendo como marco o século XIX, período onde se inicia a ruptura com as estruturas urbanas e
arquitetônicas, contata-se que os bens culturais dos séculos precedentes foram em sua maioria
perdidos.
120
Figura 07 - Mapa Temático de Síntese. Permanências na estrutura urbana de Vitória.
Autoria: Luciene Pessotti, 2010.
Fonte: Acervo da autora.
Através da Figura 08 podemos atestar como a evolução urbana de Vitória até o século XIX
não alterou a lógica de crescimento desde a conformação da mancha matriz, ou seja, de acordo
com o padrão do urbanismo lusitano vernacular.
As transformações ocorridas a partir do século XIX podem ser verificadas através da Figura
09, onde são apresentados juntamente três perfis da paisagem urbana de Vitória, sendo o primeiro
do século XVIII, o segundo do século XIX e o terceiro da contemporaneidade.
Entretanto, o elemento natural, notadamente o maciço central, permanece em destaque. Nota-
se que a baía ainda possui forte impacto na percepção da paisagem, entretanto, a relação da cidade
com o mar foi bastante alterada, e a percepção de cidade estruturada entre o mar e a montanha
também foi perdida.
Ainda que a percepção da paisagem urbana de Vitória não ofereça uma visão de seus bens
culturais remanescentes do período colonial, tendo sido adotado o mesmo ponto de observação
da cartografia histórica, ou seja, o registro se dá pelo mar numa visão mais ampla da área de
estudo, pode-se, entretanto, afirmar que algumas perspectivas internas na estrutura urbana permitem
a percepção de edifícios e áreas históricas.
121
Figura 09 – Perfis da paisagem a urbana de Vitória nos séculos XVIII, XIX e XXI.
Autoria: Luciene Pessotti, 2010.
Fonte: Imagens do acervo da autora.
No entanto, optamos, nesse primeiro momento, por adotar as mesmas visadas obtidas ao
longo dos séculos XVIII, XIX, XX e XXI, objetivando manter o mesmo critério metodológico
para observar as permanências e rupturas da cidade colonial na contemporaneidade.
Embora a pesquisa não esteja concluída podemos constatar que poucos são os elementos
deste período ainda presentes na paisagem urbana de Vitória, sendo a imagem da cidade
contemporânea completamente diversa daquela que apresentamos na cartografia histórica, que
retratava as importantes referências da tradição urbana lusitana.
7. Conclusão
A Vila de Nossa Senhora foi uma das formações urbanas na América que se constituiu como
um dos principais recursos da Coroa Portuguesa para garantir a posse a e a exploração dos
territórios conquistados no período colonial.
Os pressupostos teóricos da história urbana, ressaltando na pesquisa em andamento, o estudo
da paisagem urbana, vêm fundamentando os estudos e as análises da formação e consolidação do
espaço urbano da Vila de Nossa Senhora da Vitória, sede da capitania do Espírito Santo na longa
duração. O papel da Igreja Católica é considerado um dos principais aspectos nesta pesquisa, pois
influenciou diretamente na formação do espaço da vila, tendo em vista que naquela ocasião havia
se constatado a influência que a Companhia de Jesus teve na mudança da sede da capitania para
a ilha onde haviam se implantado.
A Igreja Católica, a partir de suas referências, influenciou na configuração espacial do espaço
urbano da Vila da Vitória. Logo, os edifícios religiosos e seus espaços contíguos tiveram importante
papel na definição da trama urbana, logo em sua paisagem.
122
A Vila da Vitória teve em sua configuração espacial referências da Igreja Católica e da tradição
urbana lusitana. Estes fenômenos demonstraram que ao longo dos séculos XVI ao XIX houve
uma preponderância de alguns fatores a orientar o desenvolvimento urbano da vila, mas, de uma
forma mais atuante, a presença da Igreja Católica, no contexto destas relações, influenciou na
estruturação dos espaços de Vitória.
No entanto, ressaltamos que a paisagem urbana de Vitória constitui-se de elementos culturais
remanescentes de diferentes períodos. Nesse sentido, a paisagem urbana reflete as transformações
pelas quais Vitória passou nos últimos dois séculos.
As conquistas de solo urbano proporcionadas pelos aterros e a verticalização da área central
de Vitória refletem como as alterações econômicas, sociais e culturais transformaram a pequena
vila colonial que manteve seu aspecto paisagístico com as mesmas características até o século XIX
numa cidade cujo aspecto pouco se assemelha à sua origem.
Ainda que esta pesquisa aborde somente o período colonial, cabe um amadurecimento para se
problematizar as permanências dos séculos XIX e XX na estrutura urbana de Vitória.
Entretanto, a importante contribuição das reflexões sobre a paisagem urbana se dá justamente
nesse sentido, ou seja, poder constatar quais são os elementos que persistem ao longo da história
e quais são, portanto, os principais bens culturais que refletem a trajetória da cidade na longa
duração.
Esses bens culturais são, portanto, o resultado das escolhas que foram feitas pela sociedade ao
longo da história, e os novos elementos inseridos no espaço configuram a paisagem da cidade que
esta mesma sociedade moldou e retrata sua memória coletiva.
8. Agradecimentos
Agradecemos o apoio do CNPq e da FAPES pelo financiamento desta pesquisa. Agradecemos
ainda a UFES e, em especial ao PPGA, pelo apoio no desenvolvimento da pesquisa ora em
andamento.
9. Referências Bibliográficas
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p.215-252.
124
ATORES DA CONSTRUÇÃO CIVIL NA PROVÍNCIA DO ESPÍRITO SANTO DO SÉCULO XIX.
1. Introdução
Este artigo pretende tratar dos atores da construção civil no Espírito Santo do século XIX e
o papel que estes desempenharam na constituição da arquitetura e da engenharia edificada no
período. Procuraremos analisar, dentro do contexto técnico-cultural da época, a atuação dos
indivíduos e das instituições que de alguma forma estiveram envolvidas com a construção civil,
desde as corporações de ofício dos mestres de obra, os fabricantes de materiais, os construtores
etc. até o aparecimento da categoria dos engenheiros civis na segunda metade do século e o papel
de destaque que estes passaram a desempenhar não apenas na construção civil da província, mas
também na vida pública e social em geral.
Antes do advento da máquina a vapor – da ferrovia e dos grandes navios que baratearam os
transportes - a arquitetura era, com raras exceções, fruto das possibilidades locais de material de
construção os quais interagiam com as condições culturais. A casa e o espaço urbano eram,
sobretudo, matéria e cultura no que essas duas palavras têm de mais primevo: terra, pedra,
madeira e conhecimentos construtivos vernáculos. Somente a Revolução Industrial - com o incre-
mento da produtividade e da distribuição através do transporte a vapor, com a internacionalização
do saber técnico etc. - conseguiu instituir paulatinamente uma globalização na arquitetura e fez
com que, na segunda metade do século XIX, não apenas uma telha de Marseille, um perfil
metálico belga, uma barrica de cimento inglesa pudessem ser utilizados em pequenas estações
ferroviárias de localidades ermas da província do Espírito Santo como Matilde ou Viana, mas
também instituiu um padrão geral na arte construtiva - até então marcada pelo vernáculo - e que
se concretizou no Brasil a partir do desenvolvimento da engenharia civil.
Contudo, o início deste mesmo século - que viu o advento da máquina a vapor, que viu a
generalização da importação dos materiais de construção e que viu o fortalecimento e a predomi-
nância de uma nova categoria profissional da construção; os engenheiros civis -, ao menos na
América portuguesa, foi ainda profundamente marcado pelos entraves do Antigo Sistema Coloni-
al; uma formação da mão de obra braçal fortemente assentada na instituição medieval das
corporações de ofícios1 e apoiada em trabalho escravo, assim como em uma economia funda-
mentalmente agrária e extrativa.
Essas características, que na província do Espírito Santo viam-se * Universidade Federal do Espírito
potencializadas pelo isolamento do território e pela pobreza dos re- Santo.
1
cursos culturais, faziam com que as vilas e povoações no limiar do Mônica de Souza N. Martins. En-
tre a cruz e o capital: as
século não passassem de arremedos urbanos: “a pretensa vila (de corporações de ofícios no Rio de
Itapemirim) é somente um lugarejo composto, se tanto, de 60 casas, na maior Janeiro após a chegada da Família
parte cobertas de palha e nas mais deploráveis condições. Essas cabanas for- Real (1808-1824). Rio de Janeiro:
mam uma única rua muito curta (com uma) praça inacabada”2 observou 2 Garamond, 2008. p.27.
Auguste de Saint-Hilaire. Viagem
o naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, em 1818. O bispo ao Espírito Santo e Rio Doce. Vi-
Coutinho, nas anotações das suas visitações de 1819 e 1820, obser- tória: Secretaria Municipal de Cul-
vou que Linhares “tem uma grande praça quadrada, quase toda já cheia por tura, 2002. p.25.
125
três lados de casas todas de palha” ou que Viana era constituída de “umas quatro ou cinco moradias de casas
de telha e caiadinhas (...) porque as demais são barracos de barro e palha” ou, ainda, que Nova Almeida era
conformada por uma grande praça “mas com todas as casas térreas feitas de barro, e cobertas de palha”3.
As práticas construtivas empregadas nesses povoados denotam não apenas uma carência de
material artesanal de qualidade para a construção civil, mas em especial a ausência de uma mão de
obra especializada que possibilitasse técnicas mais elaboradas, pois se sabe que a arquitetura de
terra é fundamentalmente vernácula e exige consideravelmente menos mão de obra qualificada
do que a arquitetura de pedra e cal ou de tijolos cerâmicos. Foi esta a técnica por excelência
utilizada nos primeiros tempos da colonização, porque permitia envolver a população em mutirão:
embora em Vitória não faltasse pedra e nem mesmo material para a fabricação de cal, foi em
terra que teria sido construído o primitivo Colégio dos Jesuítas da Vila4.
2. Os materiais de construção
Dentre os fatores preponderantes que determinavam à época a técnica, assim como o aspec-
to da construção civil, encontra-se aquele que diz respeito às possibilidades de materiais de cons-
trução disponíveis no local em que se constrói: estes eram fruto não apenas da matéria-prima
bruta e diretamente beneficiada (terra, pedra e madeira) como também da matéria-prima passível
de ser transformada pelo labor humano em novos materiais; em especial a cal e os materiais
cerâmicos (tijolos e telhas). A falta de diversidade dos materiais era um forte limitador nas possi-
bilidades da edificação, já que o barateamento dos transportes no Espírito Santo parece ter sido
mais efetivo apenas após o implemento da ferrovia.
3
D. José Caetano da Silva Coutinho. A província do Espírito Santo na sua vastidão e riqueza natural era
O Espírito Santo em princípios do
século XIX: apontamentos feito
pródiga em matéria-prima para a construção civil. A madeira era farta e
pelo Bispo do Rio de Janeiro quando de excelente qualidade, Coutinho observou abundância de “perobas, tapinhuãs,
de sua visita à Capitania do Espí- pau-brasil, amarelos, vinháticos, cedros, jacarandás, carapiapunhas, ipês etc”5.
rito Santo nos anos de 1812 e 1819.
Vitória: Estação Capixaba e Cultu- Maximiliano de Wied realçou o fato de que a peroba, por ser excelente
ral, 2002. pp: 69; 87; 131. madeira de lei para a construção naval, era considerada na época propri-
4
Paulo F. Santos. Contribuição ao edade da coroa6. O cônsul suíço Tschudi - que andou pela província em
estudo da arquitectura da Compa-
nhia de Jesus em Portugal e no 1860 - louvou a qualidade das madeiras nativas da região, em especial as
Brasil. Separata do Vol. IV das do sul (Benevente), propícias tanto para a construção naval como para a
Atas do V Colóquio Internacional
de Estudos Luso-Brasileiros.
construção civil, sendo que as do último tipo eram mesmo exportadas
Coimbra, 1966. p.38-39. para a corte7. O Quadro n° 1 mostra localidades da província que na
5
Coutinho. op.cit. p.75. segunda metade do século tinham se constituído em importantes produto-
6
Maximiliano, Príncipe de Wied- ras de madeira: São Pedro de Cachoeira, N. Sra. do Amparo de Itapemirim
Neuwied. Viagem ao Brasil. Belo
Horizonte: Itatiaia: São Paulo: e Alegre, entre outras. Provavelmente centravam-se na extração impor-
EDUSP, 1989. p.160 tando em seguida o material bruto. O Dicionário Marques informa a
7
Johann Jakob von Tschudi. Via- ‘madeira de construção’ como um dos principais produtos que alimenta o
gem à província do Espírito San-
to: imigração e colonização suí- comércio da província, complementando ainda que a receita de exporta-
ça 1860. Vitória: Arquivo Público ção no exercício de 1863-64 foi praticamente toda proveniente da expor-
do Estado do Espírito Santo,
2004. p.95. tação de madeira para a Grã Bretanha8. Paradoxalmente, uma província
8
Cezar Augusto Marques. Diccionario tão rica em florestas nativas importava madeira beneficiada: o italiano
Histórico, Geogra-phico e Estatísti- Carlo Nagar - em missão consular por volta de 1895 - lamentava que a
co da Província do Espírito Santo.
Rio de Janeiro: Typographia Nacio- falta de mão de obra qualificada assim como de estradas de rodagem
nal, 1878. p.89 e 90. impedissem uma adequada exploração das riquezas das imensas florestas
126
locais, obrigando o comércio de Vitória muitas vezes a importar madeiras da América do Norte e do Rio
de Janeiro9. Os relatórios das Estradas de Ferro Sul do Espírito Santo, escritos ao final do século, confir-
mam que Nagar não estava muito distante da realidade, pois esquadrias, pisos e forros em madeira,
utilizados na construção das estações ferroviárias, foram importados do Rio de Janeiro10.
Quanto ao material lapídeo disponível na província, o engenheiro André Rebouças, da Politécnica do
Rio de Janeiro, observou em 1885 que o Espírito Santo tinha como “rocha predominante (..) o gneiss-granito, ou
o gneiss-granitoide, análogo aos da Província do Rio de Janeiro”11. Observe-se que a exploração dos mármores e
granitos ornamentais na região só vai acontecer a partir da descoberta de significativas jazidas já no século
XX, antes toda a arquitetura local utilizava-se apenas do tipo de pedra referida por Rebouças, material
abundante que aflora à superfície de toda a costa capixaba. Embora não seja o tipo de pedra ideal para a
construção civil – pois o gnaisse é pesado, adere mediocremente às argamassas de cal e é duro, sendo
difícil de afeiçoar e lavrar12 - ainda assim produz alvenarias sólidas e de grande durabilidade que foram
muito utilizadas ao longo do período português na América – tal como o Rio de Janeiro colonial que
também foi todo construído com este tipo de pedra: construções robustas, argamassadas e caiadas, que
incorporavam aqui e ali um detalhe de pedra lavrada; um parapeito, uma ombreira, um cunhal. Ao
contrário dos arenitos e calcários encontráveis no Nordeste, o gnaisse não é uma pedra branda e não
permite com facilidade ornatos e esculturas nas fachadas. Pela tabela que 9 Carlo Nagar. Relato do Cavalheiro
organizamos com os dados do Dicionário de Marques observamos que, Carlo Nagar, Cônsul Real em Vitó-
com exceção de Vitória, em 1878 inexistiam na província operários traba- ria: O Estado do Espírito Santo e
a imigração italiana (fevereiro de
lhando como canteiros ou calceteiros, o que é bastante significativo, pois 1895). Vitória: Arquivo Público do
indica que a pedra, quando usada devia receber apenas um beneficiamento Estado do Espirito Santo – Bibli-
primário (fragmentação) para poder ser utilizada como pedra de mão nas 10 oteca Digital, 1995. p.54-55.
Relatórios da Estrada de Ferro
alvenarias de pedra e cal. Havia locais na província, contudo, onde a difi- Sul do Espírito Santo do Thesouro
culdade de obtenção de pedra para a construção civil era sentida, como do Estado e do Commissariado
em Linhares e São Mateus, onde as pedras tinham que ser buscadas no Geral de Medições de Terras Pu-
blicas apresentado a S. Exa. o Sr.
fundo da Lagoa Juparanã13. Mas esse não era o quadro geral, na verdade Dr. Jozé de Mello Carvalho Moniz
verifica-se que a pedra se apresentava com fartura na maior parte da Freire D. D. Presidente do Estado
do Espírito Santo. Rio de Janeiro:
província e só foi usada com parcimônia nas localidades afastadas de Leuzinger, 1896. p.32.
Vitória, não por dificuldade de obtenção, mas por carência de mão de 11 André Rebouças. Guia para os
obra qualificada para trabalhá-la; canteiros e pedreiros. alumnos da 1ª cadeira do 1° anno
de engenharia civil. Rio de Janeiro:
A cal também foi um material que o Espírito Santo parece não ter Typographia Nacional, 1885. p.12.
sentido jamais falta, sempre fabricada por processos rústicos e artesanais 12 Nelson Pôrto Ribeiro. Alvenarias
que não comprometiam sua qualidade, e a partir de fontes biogênicas tal e argamassas: restauração e
como foi predominante na tradição portuguesa na América: a matéria- conservação. Rio de Janeiro: In-
fólio, 2009. p.41 e 52.
prima sendo extraída de sambaquis ou de recifes. Nova Almeida era rica 13 Coutinho. op.cit. p.85.
de madeiras e cal que alimentaram as obras da Matriz de Vitória no final 14 Mário Aristides Freire. A Capita-
do século XVIII14. Saint-Hilaire observou que “do Rio da Aldeia Velha nia do Espírito Santo: Crônicas da
(Santa Cruz) sai um importante artigo de comércio, a cal, feita com ostras que se tiram vida capixaba no tempo dos ca-
pitães-mores (1535-1822). Vitó-
das caieiras vizinhas da Vila de Piriquiaçu”15. Ignacio de Vasconcellos na sua ria : Flor & Cultura, 2006. p.208.
Memória Estatística de 1828 calculou os fabricantes de cal da província 15 Saint-Hilaire. op.cit. p.64.
em cerca de trinta, os quais seriam suficientes não apenas para atender a 16 Ignacio Accioli de Vasconcellos.
demanda interna como também para exportar parte significativa da pro- Memoria statistica da Provincia
do Espírito Santo escrita no anno
dução: 100 moios de cal exportados nos anos de 1826-27, o que de 1828. Vitória : Arquivo Público
corresponderia a aproximadamente 83 mil litros do produto16. Estadual, 1978. p.19 e 22.
127
Apesar da excelente qualidade das argilas da Região para a fabricação de tijolos e telhas,
como constatou o engenheiro Rebouças17, a província ressentia-se de olarias. As fazendas e
reduções jesuíticas, ainda de acordo com Serafim Leite, costumavam ter suas próprias olarias,
com certeza desativadas a partir do final do século XVIII com a expulsão dos inacianos18.
Rubim, na sua Breve Estatística de 1817 relaciona uma olaria para fabricação de telhas em
Viana19. Coutinho, ao longo de todo seu trajeto, da Bahia até Linhares, viu uma única olaria em
181920. Vasconcellos relaciona apenas oito em toda a província, pertencentes a algumas fazen-
das e todas deficitárias de qualidade “e não passam por melhores, atribuindo-se antes a imperícia do
fabrico, do que a má natureza do material”21. Ainda segundo as estatísticas apresentadas por este
último autor - ao contrário da cal, que tinha seu excedente exportado - telhas e tijolos eram
objetos de importação22. Quando de uma reforma executada no antigo prédio dos jesuítas, em
1849, anúncio no Correio da Vitória demandava: “Precisa-se para obra do palácio da presidência dessa
província (...) 10 milheiros de telha que seja do Rio de Janeiro ou de Campos”23: é quase certo que devido
à penúria dos cofres administrativos esta restrição para a origem do material seja vinculada não
apenas a uma falta de qualidade do material, mas sobretudo a uma
17
Rebouças. op. cit. p.12.
inexistência do mesmo em quantidade necessária. Parece que a si-
18
S. I. Serafim Leite. Artes e ofícios
dos jesuítas no Brasil (1549- tuação se altera um pouco na segunda metade do século, pois o
1760). Edições Brotéria : Livros Relatório de 1852 cita a Vila de Serra como sendo local de fabrica-
de Portugal : Lisboa : Rio de
Janeiro, 1953. p.65.
ção de material cerâmico de qualidade devido à excelência do bar-
24
19
Francisco Alber to Rubim. ro . O Relatório de 1859 atribuía ao Município de São Matheus
Memórias para servir a história duas olarias de tijolos e de telhas25.
até o anno de 1817, e breve
noticia statistica da Capitania do
Espírito Santo, porção integrante
3. A mão de obra braçal
do Reino do Brasil. Lisboa: Entre os protagonistas da construção civil de certo se encon-
Imprensa Nevesiana, 1840.
(Vitória: Arquivo Público do Estado tra a mão de obra operária, que, ainda que anônima, sempre foi
do Espírito Santo, 2003). p.21. fator determinante nas possibilidades técnicas e plásticas disponí-
20
Coutinho. op.cit. p.82. veis quando da concepção da edificação por um profissional qua-
21
Vasconcelos. Memória
statística... op.cit.. (19).
lificado; fosse engenheiro ou arquiteto. Sabe-se que nos primórdios
22
Idem. (22). da implantação da cultura portuguesa na América engenheiros
23
Correio da Victória, Vitória,14 set. militares da coroa muitas vezes foram obrigados a se circunscre-
1849, ano I, Nº 71. verem a projetos modestos em virtude da carência de mão de
24
Relatorio que o Exm. Presidente
da Província do Espírito Santo o
obra operária disponível. Como a formação e qualificação desta
Bacharel José Bonifácio mão de obra nas terras do Novo Mundo, nas quantidades neces-
Nascentes d’Azambuja, dirigiu a sárias, desde o princípio da colonização, era praticamente impos-
Assembléa Legislativa da mesma
provincia na sessão ordinaria de sível – a não ser talvez dentro de um esquema como o articulado
24 de maio de 1852. Victoria: pelos jesuítas nas suas reduções – é certo que este constrangi-
Typographia Capitaniense de P.A.
de Azeredo, 1852. p.52. mento ainda perdurou algumas décadas até que a vida urbana em
25
Relatorio do Presidente da solo americano se desenvolvesse. Quando isso acontece, é dentro
Provincia do Espirito Santo o do quadro geral da metrópole que acaba se circunscrevendo a
Bacharel Pedro Leão Velloso na
abertura da Assembléa formação profissional da colônia.
Legislativa Provincial no dia 25 O sistema luso das corporações de ofícios implantado na Améri-
de maio de 1859. Victoria: Typ.
Capitaniense de Pedro Antonio ca tinha sua organização jurídica baseada na estabelecida em Lisboa
d’Azeredo, 1859. Appenso M. desde 1572 e era organizado hierarquicamente em aprendizes, ofici-
128
ais e mestres, impondo período de aprendizado e apresentação de obra prima (uma espécie de
exame final prático)26. Este sistema, com todas as deficiências e individualidades próprias que
foram adquiridas na sua implantação na sociedade americana, só foi oficialmente extinto pela
Constituição brasileira de 1824 embora tenha deixado vestígios ao longo de todo o século XIX,
em especial durante o Império.
Entre as peculiaridades do sistema de corporações implantado na América portuguesa estava
a absorção da mão de obra indígena e escrava. Paradoxalmente os escravos eram submetidos –
exatamente como o homem livre – aos mesmos trâmites burocráticos: exame, petição à Câmara
e juramento27. Os escravos, entretanto, podiam chegar apenas ao posto de oficiais. Esta formação
se dava, sobretudo, dentro da oficina de um mestre e era comum que mestres artífices (entalhadores,
pintores e toreutas) tivessem escravos habilitados trabalhando em suas oficinas, tal como o famo-
so entalhador carioca Mestre Valentim da Fonseca e Silva que, negro livre, teve escravos oficiais
trabalhando em sua oficina de toreuta. A imprensa diária do Rio de
Janeiro do século XIX, até a data da abolição, apresenta farto mate- 26 Ribeiro. op.cit. p.25.
rial propagandístico de proprietários ofertando ‘escravos de ganho’ 27 A. Romeiro & A. Botelho. Dicio-
(diaristas) habilitados como oficiais de pedreiro, de serralheiro etc28. nário histórico das Minas Gerais.
Período colonial. (2° edição) Au-
Se não encontramos casos similares na imprensa capixaba da época têntica. p.15.
sem dúvida deve-se ao baixo número mesmo de propaganda im- 28 Maria Beatriz Nizza da Silva. A
pressa que havia nesses jornais locais. Ao contrário do Rio de Janeiro Gazeta do Rio de Janeiro (1808-
que tinha cerca de 60 mil habitantes no início do século XIX, Vitória 1822): cultura e sociedade. Rio
contava à mesma época por volta de 4 mil, e a propaganda podia ser de Janeiro: EdUERJ, 2007.
29
feita boca a boca sem necessidade de gastos com imprensa. S. B. de Holanda (direção). Histó-
ria Geral da civilização brasileira:
De mais a mais, fugindo ao tipo tradicional de formação dentro administração, economia e soci-
da oficina de um mestre livre, “certas ordens, sobretudo os jesuítas e os edade. Tomo I, Volume 2. Rio de
beneditinos, aplicavam-se em formar e manter seus próprios artesãos”29. Entre Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
p.123.
os jesuítas, muitos padres foram mestres de ofícios30. Daemon relata
30
O padre Nóbrega em 1660 pedia
que no auto de avaliação de 1780 da fazenda jesuítica de Araçatiba,
ao Geral da Ordem em Roma que
no sul da capitania do Espírito Santo, constavam “852 escravos pretos, lhes mandassem “irmãos
pardos e cabras, alguns com ofícios e artes”31. Coadjutores Oficiais, principalmen-
Já a mão de obra indígena, desde o período inicial da colonização, te pintores, alfaiates, sapateiros,
ferreiros, carpinteiros, pedreiros”
teve papel de destaque. Jesuítas cumpriram papel crucial na educação Apud. P.M. Bardi. Mestres, artífi-
dos nativos enquanto trabalhadores livres e as reduções desta ordem ces, oficiais e aprendizes no Bra-
tornaram-se importantes centros de formação de mão de obra quali- sil. Banco Sudameris S.A., 1981.
ficada. Os indígenas, de acordo com Serafim Leite, eram muito hábeis p.48.
31
tanto como oleiros como carpinteiros, artes que exerciam antes da Basílio Carvalho Daemon. Provín-
cia do Espírito Santo: sua desco-
chegada dos portugueses32; é conhecida uma carta do Morgado Mateus, berta, história cronológica, sinop-
governador da capitania de São Paulo no século XVIII, requisitando se e estatística. Vitória: Tipografia
ao Colégio da Vila de Santos índios oleiros para trabalharem na vila de do Espírito-santense, 1879 (Có-
pia redigitada, sem numeração de
São Paulo33. Em 1734, o desbravador Pedro Bueno Cacunda, que páginas).
tinha intenção de descobrir e explorar lavras de ouro na capitania do 32
Serafim Leite. op.cit. p.45.
Espírito Santo, demandava ao rei que se dignasse autoriza-lo a reque-
33
Apud: Silvio de Vasconcellos. Ar-
rer da “Aldea de Reys Magos (...) e da Aldea de Reritiba” vinte índios de quitetura no Brasil: sistemas cons-
cada, destinados “a fortalecer as estalagens” que tem necessitado fazer, trutivos. Belo Horizonte, UFMG,
assim como “abrir caminho para entrar povo, para o que he tambem necessário 1979.
129
serem providos de ferramentas”34. Esta redução de Reis Magos, quando da expulsão dos padres em 1759,
contabilizava cerca de dois mil índios35 sendo que grande parte exercendo ofícios.
É certo que a expulsão dos jesuítas das terras da coroa portuguesa em 1759 abalou o sistema
laboral na América, embora não existam estudos precisos relativos a este tema. O século XIX
capixaba, ao menos na sua primeira metade, se ressentiu bastante da carência desencadeada por
esta expulsão. O Aldeamento Imperial Afonsino que incorporou parte dos indígenas que outrora
viviam nas reduções jesuíticas espírito-santenses procurou desde o início reestruturar a mão de
obra nativa: “tem sido fabricada, por um dos índios, excelente telha, com a qual foi coberta a casa da diretoria
(...). Há alguns índios aplicados a ofícios fabris, um deles já quase perfeito serrador, e dois ou três trabalhando
como carapinas (carpinteiros)”, revela-nos um Relatório Governamental de 184836. Quão pobre era,
contudo, este plantel de trabalhadores qualificados frente à outrora fartura de mão de obra mantida
pelos padres expulsos. Por esses relatórios, ao longo de todo o século XIX, constata-se que o
trabalho indígena foi largamente explorado nas obras de engenharia, tal como, entre outras, quan-
do da construção de uma estrada que conectava o Espírito Santo com a província de Minas
Gerais37, mas fundamentalmente, as atividades relacionadas em geral eram de mão de obra
desqualificada: rocio e abertura de picadas.
Com pequenas exceções, a província durante o século XIX padeceu sempre de mão de obra
qualificada. É expressivo o comentário do bispo Coutinho quanto à precariedade da vida urbana dos
povoados da região quando de passagem por Linhares em 1819: “(...) sente-se [aqui] uma falta geral de
34
Carta de Pedro Bueno Catunda ao
quase tudo quanto é necessário para a vida! (...) há também falta de ofícios
38
Rei (...) em 08.09.1734. CX – 3 – mecânicos, especialmente oleiros, ferreiros etc.” . Trinta anos depois, o Relató-
ES. Arquivo Histórico Ultramarino. rio Governamental de 1849 confirma que esta situação não sofreu
in: Espírito Santo: documentos
coloniais. Vitória: Governo do Es-
alterações: “A capela de Linhares ainda não foi começada por falta de obreiros
tado do ES: Fundação Jones dos (...) Ao cidadão Francisco Alves da Motta, da villa de Santa Cruz, escrevi,
Santos Neves, 1978. p.43. rogando-lhe houvesse de descobrir alguns officiaes que quizessem ir á Linhares, afim
35
Freire. op.cit. p.200. de dar-se principio á obra”39. Nestas povoações, a utilização invariável do
36
Relatório do Presidente da ‘barro e palha’, já citada anteriormente, demonstra que a população
Provincia do Espirito Santo o Dou-
tor Luiz Pedreira do Coutto Ferraz tinha que lidar ela mesma com a edificação das suas habitações.
na abertura da Assembléa A exceção parece ter sido Vitória. Desde as primeiras perspecti-
Lagislativa Provincial no dia 1º de vas executadas pelos engenheiros militares ao final do século XVIII
março de 1848. Rio de Janeiro:
Typ. do Diário, 1848. p.23. até as descrições dos viajantes do XIX observa-se que a Vila era
37
O vice-presidente José Francisco edificada com materiais e técnicas de melhor qualidade e durabilida-
de Andrade de Almeida Monjardim de. Presume-se que na sua quase totalidade se tratavam de sobrados
em 1º de agosto de 1848. Rio de
Janeiro: Typ. do Diario, 1848. p.08.
de pedra e cal, caiados e cobertos por telhas cerâmicas. O aspecto da
38
Coutinho. op.cit. 2002. p.70. Vila era agradável. Por volta de 1815 o naturalista alemão Maximiliano
39
Relatorio com que o Exm. Sr. Dr. de Wied descreveu-a como “um lugar limpo e bonito, com bons edifícios
Antonio Pereira Pinto entregou a construídos no velho estilo português, com balcões e rótulas de madeira, ruas
presidencia da Provincia do calçadas, uma câmara municipal razoavelmente grande, e o convento dos jesuí-
Espirito Santo, ao Exm. Sr. 40
Commendador José Francisco de tas ocupado pelo governador” ; já Saint-Hilaire, por volta de 1818, co-
Andrade e Almeida Monjardim, mentou que os capixabas “cuidam bem de preparar e embelezar suas casas.
segundo vice-presidente da mes- Considerável número delas tem um ou dois andares. Algumas têm janelas com
ma. Victoria: Typ. Capitaniense de
P. A. de Azeredo, 1849. p.16. vidraças e lindas varandas trabalhadas na Europa” 41. Cerca de um ano
40
Wied-Neuwied. op.cit. p.142. após, Coutinho fez coro com os demais escrevendo que a Vila mos-
41
Saint-Hilaire. op.cit. p.45. trava “muitas casas nobres de dois e três andares, igrejas, torres, e sobretudo o
42
Coutinho. op.cit. p.115. magnífico colégio dos jesuítas”42.
130
Fotografias de Vitória tomadas no início do século XX - de uma arquitetura arruinada pelo
tempo e que indiscutivelmente pertence ao século anterior, talvez mesmo a período mais remoto
- mostram-nos evidências consubstancias do que estamos falando: uma arquitetura ‘portuguesa’
de prédios assobradados, algumas vezes com camarinhas na cobertura e balcões em treliça;
construída com sólidas paredes de pedra de mão argamassadas, rebocadas e caiadas de branco;
com ausência de apliques e ornatos tanto em massa quanto em cantaria.
Uma arquitetura simples, mas de boa qualidade. A construção de uma vila com tais características
me parece bastante suficiente como evidência de presença na urbe dos ofícios dedicados à construção
civil. Corroborando esta presunção, a Memória Estatística de Ignacio de Vasconcellos, escrita em
1828, enumera em Vitória;
De ofícios mecânicos cinco Mestres de Carpinteiros, três Oficiais e um
Aprendiz: sete Oficiais de Calafates: dez Carpinteiros da Ribeira: dez Mes-
tres de Marcenaria, vinte e quatro Oficiais, e dezesseis Aprendizes: trinta
Oficiais de Pedreiros: dois Cavouqueiros: (...) treze Ferreiros: (...) um Latoeiro:
(...) de todos estes são cativos quinze43.
Figura 1 - 1920. Casas na rua José Marcelino, sentido Igreja de Santa Luzia –
Catedral (Arquivo Público Municipal de Vitória). 43
Vasconcellos. op.cit. (21).
131
Figura 2 - 1920. Edificação em ruínas na Rua Muniz Freire (Arquivo Público Municipal de Vitória).
Aproximadamente cinquenta anos mais tarde é possível se traçar um quadro mais completo
da mão de obra operária na província - embora menos preciso na distribuição das funções - com
as informações provenientes do Dicionário Histórico e Geográfico de César Augusto Marques
publicado em 187844. (ver quadro na próxima página)
Entre os trabalhadores relacionados nas tabelas de Marques, selecionei não apenas aqueles
indubitavelmente vinculados à construção civil que o autor intitula de ‘operários de edificações’, e
que eu suponho fundamentalmente pedreiros, talvez estucadores, como ainda os ‘operários em
madeiras’, que a rigor podiam estar envolvidos também com a extração madereira, a indústria
naval e a de mobiliário, e por último os ‘canteiros e calceteiros’, rubrica na qual Marques incluiu
também os ‘mineiros e cavouqueiros’. Excluí os ‘operários em metais’ pois à época a metalurgia
participava muito pouco da construção civil, fornecendo no máximo pregos e dobradiças, os
quais, pelos altos custos, eram utilizados com parcimônia.
De imediato os dados parecem confirmar a tendência já verificada na primeira metade do
século de uma atividade profissional da construção civil consolidada apenas na vila da Vitória.
A capital da província é a única que apresenta um número satisfatório de operários envolvidos
diretamente com a ‘edificação’ (57), sendo que vilas com paróquias consideravelmente populo-
sas tais como São Pedro de Itabapoana, Amparo de Itapemirim e Alegre, apresentam totais
‘inchados’ devido à minha inclusão dos ‘operários em madeiras’, o que decerto indica uma
atividade madeireira forte nesses locais, provavelmente com exportação de matéria-prima bru-
ta ou beneficiada, ao mesmo tempo em que os números de trabalhadores estritamente em
‘edificações’ - proporcionalmente à população existente - são pouco significativos: 7; 25 e 12,
respectivamente. Este panorama em relação aos ‘operários de
44
Marques. op.cit. Páginas diver- edificações’ estende-se às demais aglomerações urbanas da provín-
sas. (As tabelas da distribuição cia, todas com contingentes inexpressivos, sendo que em algumas
profissional nas Vilas de São
Mateus e de Guarapari não fo- localidades estes profissionais sequer existiam: Linhares, Nova
ram fornecidas pelo autor). Almeida, Santa Cruz e São Benedito.
132
QUADRO N° 1
A principal conclusão que podemos tirar é que, excetuando Vitória, nos demais locais da província
a construção civil continuava sendo fundamentalmente uma prática vernácula, o que significa a
predominância da arquitetura de terra - barracos de palha no dizer de Coutinho – sobre as construções
mais elaboradas de pedra e cal. É certo que algumas construções nesses locais escapavam à regra
geral, o que é o caso das matrizes e das casas de câmara e cadeia construídas à custa do Governo
provincial e em algumas vezes até mesmo com remanejamento de mão de obra de outros locais,
como indicam os relatórios governamentais. Provavelmente se pode excluir também do quadro de
uma arquitetura mais rudimentar as habitações nessas vilas dos comerciantes abastados, e no campo,
dos grandes proprietários rurais. Sabe-se inclusive que estes últimos costumavam ter, entre seus
escravos, trabalhadores com ‘ofícios’ tendo evidentemente a função não apenas de construir, mas
também a de reformar e manter as grandes residências senhoriais. Da Fazenda do Barão de Itapemirim
o cônsul suíço Tschudi nos presta o seguinte testemunho em 1860:
A residência da fazenda, semelhante a um palácio, construída num
morro causa uma impressão imponente. Raras vezes vi no Brasil fazendas
num estilo tão grandioso e, ao mesmo tempo, com tanto bom gosto (...)
133
O contingente de escravos perfazia 120 negros para a lavoura, um número
considerável para o serviço doméstico e os ofícios manuais, sobretudo
carpinteiros e pedreiros45.
A imigração europeia acontecida na província a partir de 1813 - inicialmente com colonos
açorianos e logo a seguir com alemães e italianos - parece não ter incrementado particularmente
a qualidade dos ofícios mecânicos relacionados à construção civil. Tanto Tschudi quanto Nagar,
enviados diplomáticos de Suíça e Itália respectivamente, dão conta em seus relatórios de uma
imigração composta basicamente por trabalhadores de baixa qualificação profissional e que se
ocupavam principalmente da atividade agrícola, fixando-se, sobretudo, nas regiões do interior da
província. O quadro que elaboramos anteriormente, com dados do Dicionário Marques, mostra
que em Vitória, à época, não havia um único ‘operário de edificação’ de origem estrangeira.
Estrangeiros na construção civil da capital encontramos apenas entre os canteiros, infelizmente a
fonte não registra a nacionalidade destes trabalhadores.
Corroborando as assertivas acima, cônsul Nagar menciona em 1895 que “a imigração italia-
na” no Espírito Santo “é constituída principalmente de agricultores” embora existam “também
famílias da classe operária (...) Estes operários dedicam-se a quase todas as artes e profissões,
alguns estão espalhados nas cidades do interior, mas encontram-se especialmente em Vitória”.
Cabe informar que na estatística de 1878 havia apenas seis italianos na paróquia de Nossa Senho-
ra da Vitória46. Ainda Nagar nos informa da grande dificuldade que tinham estes operários em
obter sucesso profissional, e que os poucos “que conseguem alcançar tal resultado repatriam-se
imediatamente (...) amedrontados pelo número de mortes provocada pela epidemia da febre
amarela”, epidemia que entre os meses de novembro a abril causava uma elevada mortandade
“especialmente entre os estrangeiros”. O cônsul italiano conclui constatando que ainda entre as
famílias de agricultores a repatriação era bastante menor que entre os operários, pois devia se
considerar que a “propriedade já adquirida (...) penosamente, e não tendo mais, devido aos muitos
anos de ausência, os laços de família e uma verdadeira ligação com a
45
Tschudi. op.cit. p.97. pátria, acabam por se fixar definitivamente no Espírito Santo”47.
46
Marques. op. cit. É possível verificar também uma participação desses imigrantes
47
Nagar. op.cit. pp: 54-55. na construção civil capixaba em obras de engenharia de infra-estrutura
134
nas colônias, onde neste caso era necessária uma mão de obra menos qualificada especificamente
para desmatamento e abertura de picadas, e constituindo-se em tarefas que podiam ser alternadas
com a atividade agrícola principal dos imigrantes em seus próprios lotes, constituindo-se em
‘bicos’ para o aumento da renda familiar:
Como não faltavam trabalhos públicos e a diária era significativa – por exemplo: no
levantamento topográfico feito por engenheiros a fim de abrir picadas, 2 ½ a 3 mil réis (1,25 táler
a 2,6 táleres); nas derrubadas de floresta, 2 mil réis; na construção de estradas, 1.600 réis, etc.
Relativamente muito dinheiro acabava circulando na colônia e quem queria ganhar algum sempre
achava muitas oportunidades.48
4. Construtores
Ao longo do século XIX não houve por parte do Estado – tanto do governo central como dos
provinciais - uma política permanente e direcionada a investimentos com obras públicas. José
Murilo de Carvalho chama a atenção para o fato de que a rubrica do orçamento imperial destina-
da às despesas sociais com infra-estrutura era a menor de todas em 184049. Quando esta rubrica
ultrapassou as demais, por volta do final do século, isto se deveu unicamente ao fato do governo
central ter, paulatinamente, a partir de 1860, encampado a construção da malha ferroviária bra-
sileira que por volta de 1889 possuía “cerca de 10 mil km de estradas de ferro”50.
Os relatórios governamentais da província do Espírito Santo ao longo do século demonstram
que não apenas os recursos da província eram escassos como não havia mesmo um entendimento
político claro de que obras de canais, pontes, drenagem etc. fossem obras de responsabilidade
governamental, ou, ao menos, obras prioritárias para uma administração provincial, porque vere-
mos, no parágrafo abaixo, que a província não se furtava frente à responsabilidades de outros
tipos de obras civis. Ainda em 1842, na fala do governo provincial podemos ler: “Nenhuma obra
pública está em andamento na Província, e posto que alguma quantia fosse destinada na Lei de orçamentos para
estradas, e pontes, todavia nada se despendeu no ano financeiro que terminou”51.
Uma ausência significativa do Estado na área de obras de infra-estrutura parece ter sido o panora-
ma predominante nas primeiras décadas do século XIX. Por outro lado, esses mesmos relatórios
mostram a importância que as distintas administrações davam ao acordo do Padroado estabelecido
entre o governo do Brasil e o da Santa Sé, e pelo qual o primeiro tomava para si, delegando aos
governos provinciais, as responsabilidades com a Igreja Católica. No mesmo documento citado anteri-
ormente, informa-se que quanto aos templos, não se duvida “afirmar que
em geral merecem ser favorecidos com alguns socorros pecuniários (...) Tendo sido 48 Tschudi. op.cit, p.64.
nomeada por uma das Administrações transactas uma Comissão para se incumbir 49 José Murilo de Carvalho. A cons-
da obra da Igreja Matriz de Cariacica”52, de forma que podemos mesmo trução da ordem. Teatro de som-
afirmar que obra estatal na província do Espírito Santo ao longo de bras. (4° edição) Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2008. p.280.
parte significativa do século XIX foi quase que um sinônimo de edificação 50
Idem.
religiosa ou de manutenção das igrejas matrizes nas distintas vilas.
51
Sabemos, entretanto, que a província não era desprovida de obras Falla que o Exm. Presidente da Pro-
víncia do Espirito Santo [João Lopes
de engenharia civil de uso público. Por volta de 1815, Maximiliano de da Silva Coito] dirigio a Assembléa
Wied, que percorreu toda a parte habitada da região espírito-santense, Legislativa Provincial no dia 28 de
observou, não sem certa estupefação, da existência de uma estrada agosto de 1842. Nictheroy:
Typographia Nictheroyense do Rego,
que por mais de 22 léguas passava por sertões selvagens e inóspitos 1843. p.08.
ligando as Minas de Castelo à província das Minas Gerais. O mesmo 52 Idem. p.07.
135
viajante, em seu precioso testemunho, relacionou várias picadas assim como uma série de pontes
que cruzou ao longo de seu trajeto e as quais tornavam mais confortável o percurso dos passantes
– entre estas podemos citar Piúna, Perocão, Passagem - sendo uma destas pontes notável por sua
extensão de mais de trezentos passos53 (aproximadamente 250m).
Ora, quem eram os mandatários e executantes dessas obras de engenharia? Quem eram os
financiadores - já que o governo central e menos ainda o provincial não pareciam propensos, ou
não tinham recursos a destinar em seus orçamentos anuais às mesmas?
De acordo com um documento da administração real citado por Mario Freire, a estrada men-
cionada por Wied seria fruto da pertinácia do capitão Inácio Pereira Duarte. O mesmo documento
chega a instigar o governo local a estabelecer, por conta da Real Fazenda da capitania, novas vias de
comunicação com o interior e as Minas Gerais54. Entretanto sabemos que os recursos públicos
durante muito tempo continuaram insuficientes: “temos que lamentar a escassez das finanças e com ela hum
mal que concorre poderosamente para que a província seja pobre em obras, tanto pelo que respeita á quantidade, como
á qualidade”55 queixava-se relatório governamental de 1861.
Algumas vezes subscrições públicas eram organizadas pelo governo entre os cidadãos mais
diretamente interessados na execução de uma determinada obra, tal como nos informa o governante
53
de 1848 em seu relatório, de que “para a conclusão da rampa do Porto
Wied-Neuwied. op.cit. p.133 e
p.135. dos Padres (em Vitória) o cofre provincial foi coadjuvado (...) por uma subscri-
54
Apud. Freire. op.cit. p.28.
ção, que fiz promover entre os proprietários visinhos do lugar”56. Ou ainda no
55
mesmo relatório, de que “sem dispêndio do cofre provincial foi conveniente-
Relatorio apresentado à
Assemblèa Legislativa Provincial mente reparada a estrada, que desta cidade vai ter à Ponte da Passagem. Os
do Espírito Santo no dia da aber- proprietários dos sítios e fazendas, que há na mesma estrada, prestaram-se todos
tura da sessão ordinaria de 1861
pelo Presidente Josè Fernandes da
a concorrer com prontidão para esse serviço”57.
Costa Pereira Junior. Victoria: Typ. Algumas vezes a obra era arcada por grandes proprietários locais
Capitaniense de Pedro Antonio interessados no estabelecimento das vias de comunicação que per-
d’Azeredo, 1861. p.51.
mitissem não apenas mitigar o isolamento em que se encontravam
56
Relatorio do Presidente da seus estabelecimentos rurais, mas também, evidentemente, possibili-
Provincia do Espirito Santo o Dou-
tor Luiz Pedreira do Coutto Ferraz tar o escoamento da produção de suas propriedades. O Barão de
na abertura da Assembléa Itapemirim, importante latifundiário do sul da província é citado no
Lagislativa Provincial no dia 1º de
março de 1848. Rio de Janeiro:
Relatório de 1849 como o responsável pela construção de uma es-
Typ. do Diário, 1848. p.35. trada que liga o Espírito Santo à província de Minas Gerais, feita
57
Idem. toda às suas expensas58.
58
Relatório do Presidente da
É de se supor que em semelhantes condições não havia controle
Provincia do Espirito Santo, o estatal na qualidade da execução da obra pública, afinal, diz o ditado
Desembargador Antonio Joaquim que a ‘cavalo dado não se olham os dentes’. O relatório governa-
de Siqueira, na abertura da
Assembléa Legislativa Provincial mental de 1861 confirma a prática referida como institucionalizada
no dia 11 de março de 1849. e ainda em vigor..
Victoria: Typ. Capitaniense de P.
A. de Azeredo, 1849. p.15. O sistema de obras por meio de comissões gratuitas,
59
Relatorio apresentado à hoje proscrito na província do Rio de Janeiro, mas ainda
Assemblèa Legislativa Provincial sempre observado aqui, tem inconvenientes de fácil per-
do Espírito Santo no dia da aber- cepção. Se o arrematante frequentes vezes não satisfaz, muito
tura da sessão ordinaria de 1861 menos se deve esperar do simples comissionado, que acei-
pelo Presidente Josè Fernandes da
Costa Pereira Junior. Victoria: Typ. ta um ônus sem retribuição nem esperança de lucro de
Capitaniense de Pedro Antonio qualquer espécie, e que graciosamente trabalha para a pro-
d’Azeredo, 1861. p.51. víncia59.
136
Ainda em 1882, no ocaso do século, a prática de se contar com a boa vontade dos cidadãos
mais ilustres socialmente continuava como a mais efetiva:
A insignificancia da verba destinada a obras publicas n’esta provincia
não permitte o emprehenderem-se as obras mais necessarias, de sorte que,
alguns serviços mandados executar, não tem dispensado o auxilio dos
particulares, a excepção porem de um ou outro reparo com pontes ou
estradas. Para que a administração possa levar a effeito algumas obras mais
importantes, que se estão executando, tem nomeado commissões com-
postas de cidadãos prestimosos nas localidades afim de dirigil-as, agencian-
do donativos de particulares, resultando que a provincia tem concorrido
somente com alguma quantia a titulo de auxilio60.
Além das obras possibilitadas pela generosidade de alguns cidadãos mais abastados, o Estado
mostrou-se mais presente ao longo da segunda metade da centúria, seja através da ação nas
colônias ditas imperiais (tuteladas pelo Governo Central) que em geral eram administradas por
zelosos engenheiros, fosse através da estruturação de uma máquina administrativa local conjunta-
mente com o aparecimento de uma tosca classe de empreiteiros que passam a disputar e a
arrematar as obras públicas provinciais em concursos.
Quando da visita do imperador pela província no início do ano de 1860, este anotou em seu
diário quando de passagem pela colônia de Santa Isabel: “Ponte do Jucu, boa com dois [vãos,] e pegões de
pedra; projetada pelo Pedreira e feita na presidência do Evaristo”61. O fotógrafo Victor Frond, de passa-
gem pelo local no mesmo ano, deixou registro desta ponte, que nos parece é o registro fotográfico
mais antigo de uma obra de engenharia civil no Espírito Santo:
Quanto aos empreiteiros, citados nos relatórios governamentais, quase nunca eram engenheiros,
não parecendo ter tido formação apropriada, muito menos deviam ter sido mestres de obras quali-
ficados na esteira da formação do antigo sistema colonial que ainda sobrevivia, em especial por
pertencerem a um estrato social mais elevado. Muito possivelmente tratavam-se de homens de
negócios que começavam a ver a construção civil com perspectivas lucrativas, alguns desses emprei-
60
Relatorio com que o Exm. Sr. Dr.
Herculano Marcos Inglez de Sou-
za entregou no dia 9 de Dezem-
bro de 1882 ao Exm. Sr. Dr.
Martim Francisco Ribeiro de
Andrada Junior a administração da
Provincia do Espirito-Santo.
Victoria: Typographia do —
Horisonte, 1882. p.30.
61
Apud: Levy Rocha. Viagem de
Pedro II ao Espírito Santo. (3°
Figura 4 - 1860. Ponte sobre o Rio Jucú – Colônia Santa Isabel (Victor Frond. Coleção edição). Vitória (Espírito Santo):
Thereza Cristina Maria, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro). APEES, 2008. p.139.
137
teiros pertenciam a famílias importantes da província, como é o caso de Áureo Triphino Monjardim
de Andrade e Almeida, que, pelos relatórios governamentais, parece ter sido o cidadão que mais
contratou obras civis com a administração provincial na segunda metade do século XIX. Observe-
se que Áureo foi parente de vários presidentes e vice-presidentes da província na época de suas
contratações, o que confirma as raízes antigas e oligárquicas do nepotismo no Brasil.
QUADRO N° 2.
140
* O período de atividades relacionado é aquele que corresponde à documentação existente, em muitos casos este período
pode ter sido maior.
7. Conclusões
Observamos que ao longo do século XIX a atividade da engenharia foi se firmando como
condutora na área da construção, sendo que neste cenário os engenheiros paulatinamente foram
assumindo o papel de protagonistas em detrimento dos demais atores. Particularmente no Espíri-
to Santo esse desenvolvimento ficou evidenciado através de uma primeira metade da centúria em
que a presença destes técnicos foi diminuta e restrita a profissionais militares pertencentes aos
quadros do Estado, até uma segunda metade onde não apenas este quantitativo rapidamente
multiplicou-se, mas onde, sobretudo, o predomínio da categoria de profissionais civis rapidamente
igualou e superou em muito a dos profissionais militares.
A engenharia civil no Brasil fez-se na segunda metade do século XIX e fez-se reelaborando a
arte de construir, que a partir de então deixou cada vez mais os seus aspectos regionais e verná-
culos de lado passando a se constituir em um conhecimento técnico globalizado e ‘científico’.
O historiador Milton Vargas acredita que ao final do século XIX e início do XX a “execução
propriamente dita da obra e os conhecimentos para realizá-la não eram tanto da alçada dos
engenheiros, mas, principalmente, dos mestres-de-obras, aos quais cabia a direção e realização de
todas as técnicas construtivas”. Ainda segundo este autor, aos engenheiros caberia a “aplicação de
conhecimentos científicos elementares, (como) nos cálculos e topografias (...) e aos mestres, a
solução de problemas técnicos, não havendo muita conexão entre os dois”109. De nossa parte,
contudo, supomos que as coisas devem ter se passado diferentemente e que não havia motivos
para que um engenheiro civil deixasse o direcionamento técnico da obra ao encargo de um
mestre, profissional muito menos qualificado e dentro de uma concepção técnica inscrita na
‘ultrapassada’ tradição lusa, quando a sua formação de Escola Politécnica - ainda que não tivesse
sido adquirida no exterior - provinha diretamente de uma tradição
tecnologicamente mais ‘desenvolvida’: a francesa. É claro que o 108 Karla Gonçalves Schroeffer. O de-
mestre da tradição lusa continuava predominando em número: na senvolvimento do Espírito Santo
através da construção civil: sé-
época era ainda ele o responsável pela maior parte das construções culo XIX. Vitória: Universidade Fe-
do cotidiano, das pequenas construções do dia a dia, mas as constru- deral do Espírito Santo, 2007 (tra-
ções de maior porte sob a responsabilidade de um engenheiro com balho final de graduação). Anexo
certeza tinham a sua execução debaixo da alçada dos conhecimentos B. (policopiado).
técnicos deste profissional, que por sua vez não devia encontrar 109 Milton Vargas. “Engenharia ci-
pouca resistência para implementar estes conhecimentos através de vil na República Velha” in: His-
tória da técnica e da tecnologia
uma mão de obra formada na tradição portuguesa: fosse na execu- no Brasil. São Paulo: UNESP,
ção de alvenarias de tijolos com seus arcos de descarga travados, 1994. p.191.
147
fosse na aplicação de revestimentos à base de cimento Portland. O já citado César de Rainville,
por exemplo, propugnava no seu Vinhola Brasileiro um sistema de amarração para a edificação de
paredes de tijolos que ele elogia como mais eficiente, realçando o fato de que na maior parte das
vezes o engenheiro tinha que impor esta solução na obra, já que os mestres e pedreiros recusa-
vam-na como dificultosa, incapazes de entender os benefícios advindos do novo sistema110.
Observamos também que as profundas transformações havidas ao longo do século XIX na
área da construção civil, tanto no Brasil como na província do Espírito Santo, deveram-se mais a
uma atuação da engenharia e da nova classe de profissionais atuantes - o engenheiro civil - do que
propriamente a uma contribuição do trabalho livre do imigrante europeu, que é o que até o
momento tem enfatizado a historiografia tradicional. Não estamos tentando minimizar o papel do
imigrante europeu na construção do Brasil moderno, mas a imigração não foi fenômeno que
aconteceu por igual em toda a extensão do país, de forma que nem sempre entre as levas de
imigrantes que aqui chegaram houve artesãos qualificados para a construção civil. No Espírito
Santo, como verificamos, a imigração europeia teve pouca participação nesta atividade ao longo
do século XIX. Algumas vezes mesmo, a administração provincial se via obrigada a enviar mão de
obra qualificada de origem escrava e/ou índia para executar as obras necessárias que os colonos
imigrantes não eram capazes de prover, isso aconteceu em especial nas colônias que eram de
responsabilidade do Governo Central (Santa Isabel e Santa Leopoldina).
É certo que em cidades como São Paulo, ou ainda Pelotas no Rio Grande do Sul, o papel da
imigração italiana com seus clãs de artesãos, muitos deles qualificados nos liceus italianos de artes
e ofícios, foi deveras importante na elevação da qualidade da mão de obra destes locais, mas esta
era ainda uma mão de obra artesanal, ela trouxe apuros e requintes em cidades que estavam em
processo de enriquecimento rápido e que até então desconheciam este modo sofisticado de vida,
mas estas práticas, algumas vezes tidas por ‘novidade’, em termos técnicos não se distanciavam
dos procedimentos dos bons artesãos da tradição lusa que habitavam a corte e que produziram
uma arquitetura com requinte ao longo de todo o século XIX, e mesmo antes. Esses imigrantes
artesãos eram em geral estucadores, canteiros ou marceneiros, dominavam técnicas construtivas
tradicionais em seus países, não foram eles, de certo, os responsáveis pela ‘revolução’ que se deu
na construção civil na segunda metade do século XIX. As inovações técnicas do século XIX - as
estruturas metálicas, as grandes estruturas de alvenaria portante em tijolos maciços e o uso diver-
sificado do cimento Portland - foram trazidas pela engenharia e não pela imigração.
O papel dos engenheiros é fulcral neste desenrolar da construção civil brasileira, as primeiras
grandes experiências ocorridas, paradoxalmente, ocorreram justamente na corte - uma cidade na
qual até o final do século XIX predominava a mão de obra escrava – mas também onde havia
uma forte tradição da engenharia militar e onde inaugurou-se em 1874 a pioneira Politécnica.
Experiências como as que já fazia o engenheiro André Rebouças por volta de 1867 quando nas
obras das Docas da Alfândega utilizou pela primeira vez no país o
110
Rainville. op.cit. p.116. cimento Portland importado especialmente para uma obra de enge-
111
Revista do Instituto nharia hidráulica, e onde se fizeram também os primeiros testes de
Polytechnico Brazileiro. Rio de
Janeiro. 1867.
resistência de materiais da história da engenharia nacional111.
112
Nesta legislatura (15ª) foram elei- No Espírito Santo verificamos que pelo menos desde a legislatura
tos deputados os engenheiros de 1864 os engenheiros participaram da vida política da província
Pedro Cláudio Soído e Manoel
Feliciano Muniz Freira (Daemon.
como deputados na Assembleia Provincial112, isso não significa que
op.cit. ano de 1864). não participassem anteriormente de uma forma não oficial e muitas
148
vezes até mesmo espúria: o Major de Engenheiros José Marcelino de Vasconcelos, segundo
Daemon, em 1822 foi alvo de uma devassa por ter se envolvido em sedição contra o governo da
província113. Ainda segundo o mesmo autor, o já referido engenheiro civil Leopoldo Deocleciano
de Mello e Cunha, que havia sido deputado nas legislaturas de 1866 a 1869, em 1878 chefiou
uma invasão à Assembleia Provincial fazendo-se empossar ilegitimamente como presidente114.
Como pedagogos e preocupados em melhorar a educação de base na província parece que os
engenheiros tiveram papel de destaque também: Deolindo José Vieira Maciel em 1867 e Miguel
Maria de Noronha Feital em 1872, foram fundadores, organizadores e diretores de Liceus115.
Os profissionais em geral participavam ainda engajadamente nos debates amplos em que a
sociedade culta se envolvia e que eram instigados em parte pela imprensa local116, e que diziam
respeito principalmente a questões relativas à salubridade e saúde pública, tais como o aterro do
mangal do Campinho, acusado de provocar ‘miasmas deletérios’ causadores de epidemias; ou a
construção de um novo cemitério para a capital, já que os existentes no interior das vilas, perten-
centes às ordens religiosas, eram vistos como indesejáveis, algumas vezes localizando-se mesmo
próximos às nascentes das fontes de água potável que abasteciam o núcleo urbano117. Em 1881,
por exemplo, uma comissão foi criada pelo governo provincial para os estudos necessários à
criação de um Lazareto na cidade de Vitória - a ser utilizado para acolher enfermos em época de
epidemias: esta comissão era formada por três médicos e pelos engenheiros César de Rainville,
Joaquim de Salles Torres Homem e Maximino Maia118. A participação dos engenheiros era sem-
pre requisitada quando da necessidade de um parecer técnico de alto nível, e o seu papel, sempre
crescente nas questões sociais e políticas confirma a classe – junto com médicos e advogados –
como uma das três categorias profissionais mais importantes do segundo Império.
8. Créditos
O presente trabalho é fruto de pesquisas financiadas com bolsas 113
Daemon. op.cit. ano de 1822.
e auxílios financeiros por distintas agências de fomento: FACITEC 114
Daemon. op.cit. ano de 1878.
(Fundação de Apoio a Ciência e Tecnologia do Município de Vitó- 115
Daemos, op.cit. ver anos de
ria), FAPES (Fundação de Amparo a Pesquisa do Espírito Santo) e, 1867 e 1872.
em especial, CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientí- 116
Relatorio apresentado a
fico e Tecnológico). Assembléa Legislativa da
Provincia do Espirito Santo pelo
Exm. Sr. Dr. Martim Francisco
Ribeiro de Andrada Junior em 3
de Março de 1883. Victoria:
Typographia do Horisonte, 1883.
p.15.
117
Idem, ibidem.
118
Relatorio apresentado a
Assembléa Legislativa da
Provincia do Espirito Santo em
sua sessão ordinária de
08.03.1881 pelo Preseidente da
Provincia Exmo. Sr. Dr.
Marcellino de Assis Tostes.
Victoria: Gazeta da Victoria,
1881. p.33.
149
OS MODELOS URBANOS BRASILEIROS DAS CIDADES PORTUGUESAS
Manuel C. Teixeira*
1. Introdução
A expansão ultramarina portuguesa a partir do século XV teve como um de seus principais
componentes um amplo processo de urbanização dos novos territórios. Nas primeiras fases deste
processo pode observar-se uma influência dos padrões de urbanização da metrópole, que se
aplicavam nos novos territórios com adaptações decorrentes das diferentes condições ambientais,
dos promotores envolvidos e dos recursos, dos materiais e da mão de obra disponíveis.
Rapidamente se começa a observar o fenômeno inverso, e já desde o final do século XV,
novas morfologias urbanas desenvolvidas na Madeira e nos Açores virão influenciar a prática
urbanística em Portugal. É no Brasil que podemos observar, de uma forma muito clara, esta
reciprocidade. Dois períodos históricos são particularmente importantes para observar as influ-
ências dos modelos urbanos brasileiros sobre o urbanismo português.
O primeiro é o século XVI, marcado pela construção de Salvador da Bahia, em cujo traçado
podemos ver as influências do plano de expansão da cidade do Funchal, na ilha da Madeira, de
finais de quatrocentos, e do plano de expansão da cidade de Angra, nos Açores, do início de
quinhentos. No entanto, no plano de Salvador da Bahia, a regularidade e a lógica do traçado, a
articulação dos seus diferentes componentes, as hierarquias urbanas, a relação com o território, o
papel ordenador das praças, a estrutura de quarteirões e de loteamento, surgem-nos muito mais
articulados e coerentes, definindo um padrão urbano que irá a partir daí influenciar o urbanismo
em Portugal e noutras regiões do mundo.
O segundo momento histórico a analisar é o século XVIII e as múltiplas fundações urbanas
brasileiras deste período, que se caracterizam por uma crescente afirmação da regularidade e da
ortogonalidade, pela assunção das praças como elementos geradores das malhas urbanas, e pela
adoção de programas de arquitetura uniformes, que se viriam a refletir na prática e na teoria
urbanística portuguesas setecentistas. Nem o plano da reconstrução da Baixa de Lisboa nem o
plano de Vila Real de Santo António, ambos da segunda metade do século XVIII, seriam possíveis
sem a ampla prática urbanizadora dos engenheiros militares envolvidos no processo de urbaniza-
ção brasileira de setecentos e os modelos urbanos aí desenvolvidos.
A inovação dessas intervenções liga-se a dois aspectos fundamentais. Por um lado, o Terreiro
da Sé era um espaço urbano regular, planeado e construído como parte do novo vocabulário
urbano que D. Manuel procurava instituir. Por outro lado, a estrutura de ruas da nova malha
urbana já não era uma estrutura de raiz medieval, constituída por ruas de frente e de traseiras que
se alternavam, limitando quarteirões em que os lotes urbanos tinham duas frentes. Pelo contrário,
os quarteirões eram menos alongados, tendendo para o quadrado, e os lotes dispunham-se agora
costas com costas, criando uma estrutura de ruas em que as hierarquias eram estabelecidas atra-
vés do perfil das ruas, das suas funções, da arquitetura dos edifícios, bem como através da sua
relação com outros componentes da malha urbana.
Observa-se assim no Funchal, em finais de quatrocentos, a aplicação, pela primeira vez, de
uma estratégia de modernização urbana que D. Manuel I irá aplicar em inúmeras cidades do reino
a partir do início do século XVI. A primeira dessas intervenções ocorre poucos anos depois na
cidade de Angra, onde vemos serem aplicados estes mesmos princípios de uma forma mais
consistente.
Na primeira metade do século XVI, a cidade de Angra vai reestruturar-se com um traçado
urbano regular, que representa uma ruptura clara com os modelos medievais. O plano de Angra
consiste numa malha urbana sensivelmente ortogonal, com as ruas principais orientadas perpen-
dicularmente à linha de costa e as secundárias cruzando-as em ângulo reto. Esta estrutura de ruas
definia um conjunto de quarteirões retangulares orientados na direção do mar. Tal como no
Funchal, cada um dos quarteirões era constituído por duas fiadas de lotes urbanos, dispostos
costas com costas. As frentes desses lotes estavam viradas para as ruas principais, não havendo
lotes urbanos orientados para as ruas transversais. O loteamento era regular, tendo os lotes as
dimensões habituais de 30 palmos (6,60 metros) de frente.
Uma praça retangular que correspondia – pelas suas dimensões e pela sua relação com a
restante malha urbana – a um quarteirão não construído era o elemento central deste plano, em
cujo centro se localizava a igreja da Sé. Tal como a praça da Sé no Funchal, também esta era uma
156
praça nova, regular e geometrizada, que correspondia a um novo conceito de espaço urbano. A
diferença entre as duas é que enquanto a Sé do Funchal se localizava num dos lados da praça, a
Sé de Angra situava-se no meio da praça (fig. 2).
Ao longo do século XVI, essas intervenções vão ter o seu reflexo na metrópole, observando-
se um amplo movimento de renovação urbanística consistindo na reforma ou na expansão de
cidades existentes. Em muitos casos, essas intervenções consistiam na estruturação de Praças
Novas, associadas à construção de novos edifícios institucionais: Casas de Câmara, Misericórdias
e Igrejas Matrizes. A abertura dessas Praças Novas ou era realizada no interior do próprio tecido
urbano, à custa de demolições, ou consistia na reestruturação de antigos terreiros localizados
extramuros. Em outros casos, tratava-se da construção de novas expansões urbanas planeadas,
em que eram adotados princípios urbanísticos de regularidade e de ordenamento e onde se ex-
pressava uma concepção moderna de espaços públicos.
Em todas essas intervenções procurava-se a valorização do espaço público, e nelas encontra-
mos exemplos das estratégias de composição urbana utilizados pelo urbanismo renascentista a
partir do século XVI: as ruas com um traçado retilíneo e ordenado, a localização de edifícios ou
monumentos no enfiamento de ruas tirando partido do efeito de perspectiva, a definição de
Praças Novas fechadas e regulares, o ordenamento e a repetição das fachadas, a construção de
malhas urbanas ortogonais. Por detrás destas operações, estava uma ideia de composição global
da cidade, em que todos os seus elementos deviam estar articulados.
A primeira fase da cidade alta, delineada por Luis Dias, era constituída por dois conjuntos de
quarteirões, ambos de forma retangular mas de diferentes proporções. Um desses conjuntos tinha
uma estrutura idêntica aos quarteirões de cidades medievais planeadas, estreitos e compridos,
com lotes que provavelmente iam de lado a lado dos quarteirões. Os quarteirões do outro conjun-
to tinham uma forma mais quadrada e cada um deles era composto por lotes urbanos que faziam
frente para as quatro faces do quarteirão. No encontro dessas duas malhas estruturava-se o largo
da Ajuda, pontuado pela igreja de Nossa Senhora da Ajuda, que foi a primitiva igreja dos jesuítas.
Associadas às portas da muralha desenvolviam-se duas outras praças: uma junto à porta de Santa
Luzia, no local que corresponde hoje à Praça Casto alves, a outra junto à porta de Santa Catarina,
que corresponde à atual Praça Tomé de Sousa. É nesta parte alta da cidade que se vieram
localizar os principais edifícios institucionais, consolidando esta praça.
Poucos anos depois inicia-se a segunda fase de expansão da cidade. A cidade expande-se para
um segundo planalto adjacente, um pouco maior do que o primeiro, mas com as mesmas carac-
terísticas topográficas. Os jesuítas foram o motor principal dessa fase de desenvolvimento urbano
de Salvador da Bahia. Em 1551 as obras já se haviam iniciado no novo local, estando já nesse ano
construídos alguns edifícios do colégio, sendo em torno do Terreiro de Jesus que se estruturará a
nova malha urbana de Salvador.
159
O traçado desta nova expansão da cidade é mais ortogonal e mais regular do que o núcleo
original, com quarteirões de forma e dimensões idênticas, e uma estrutura de loteamento regular. Os
quarteirões são de forma sensivelmente quadrada, com lotes virados para as suas quatro faces. Um
conjunto de praças de forma retangular, inseridas na lógica da malha urbana, são elementos funda-
mentais da estrutura da cidade, sendo em função delas que toda a malha se organiza. Estamos
perante uma nova concepção de espaço urbano, em que o elemento dominante e gerador da malha
urbana é a praça, e já não como anteriormente os edifícios singulares e as ruas que os articulavam
entre si. Esta concepção moderna de estruturação urbana, que primeiramente se expressa em Salva-
dor da Bahia, irá influenciar toda a teoria e a prática urbanística portuguesa.
Uma das principais características do urbanismo português, que está bem presente em Salva-
dor da Bahia, é a síntese de um plano racionalmente estruturado com uma cuidadosa adaptação
ao sítio. O modo como a cidade de Salvador se relacionou com o território, construindo-se com
ele, observa-se na escolha de localização, na sua estruturação em cidade alta e cidade baixa, no
traçado da muralha, que seguia a topografia do terreno situando-se em todo o perímetro urbano
em torno da cota 50, no construção da principal via estruturante da cidade ao longo da linha de
cumeada, no modo como as praças se desenvolveram nos nós de articulação dos principais
percursos.
Salvador da Bahia foi objeto de um plano, ou de planos sucessivos intimamente articulados.
Uma análise cuidadosa revela-nos as suas principais características. A principal via da parte alta de
Salvador, que percorre toda a cidade longitudinalmente, apoia-se sobre a linha de cumeada, e os
pontos de inflexão desta linha de cumeada são os locais onde se vieram implantar as praças, em
perfeita correspondência com a estrutura física do território.
A cidade tem uma estrutura ortogonal, ordenada e simétrica relativamente a um eixo, perpen-
dicular ao mar, que passa pela praça da Sé. Extramuros, de cada lado da cidade, temos um
convento com o seu terreiro: S. Bento e o Carmo. Junto às principais portas da cidade, num e
noutro extremo, temos um terreiro exterior, e uma praça interior, que mais tarde se irão fundir
em espaços maiores – a praça Castro Alves, de um lado, e o largo do Pelourinho, do outro. No
interior dos muros da cidade, a malha urbana divide-se em cinco partes. As duas partes dos
extremos são malhas sensivelmente triangulares, que constituem os limites da cidade intramuros e
terminam nas principais portas. As três restantes partes da malha urbana são, cada uma delas,
constituídas por três fiadas de quarteirões. Em cada uma dessas partes, na fiada do meio, localiza-
se sempre uma praça retangular: a praça do Palácio, a praça da Sé e o terreiro de Jesus.
Essas três praças, por sua vez, inserem-se numa lógica formal muito definida. As três situa-
vam-se ao longo do eixo principal do plano, que passava tangente a cada uma delas, todas eram
retangulares e orientadas perpendicularmente ao mar na sua maior dimensão, e todas eram atra-
vessadas por uma rua longitudinal que ia dar a meio dos seus lados maiores. É óbvia a existência
de um plano, elaborado com um grande rigor, que foi moldado à realidade física do sítio selecio-
nado para a sua implantação.
A ortogonalidade do plano adaptou-se facilmente à linha de cumeada através das praças, que
se localizam nos pontos de inflexão desta linha estruturante do território. Para além de obedecer
a um esquema global, planeado, que lhe dá unidade e regularidade, Salvador da Bahia tira partido
das particularidades e dos acidentes do sítio, enfatizando essas particularidades e integrando-as
nesse esquema global ordenador.
160
Desta prática urbanística, que em Salvador da Bahia teve uma expressão culminante, e que se
viria a aplicar em muitas outras situações, resultaram cidades que, embora em planta não sejam
rigorosamente geométricas, evidenciam quando as percorremos uma notável regularidade, valori-
zada pela exploração arquitetônica e urbanística das particularidades locais. Se a estruturação dos
percursos fundamentais da cidade sobre as linhas de vale e as linhas de cumeada, ou o pontuar
das colinas por edifícios singulares, era uma prática anterior e resultado do pragmatismo que
presidia à escolha do sítio e à definição do traçado, já as estratégias de desenho que exploravam a
localização dos edifícios e a sua arquitetura como elementos de referência e valorizadores da
paisagem da cidade foram sendo desenvolvidos nesta prática urbanística colonial.
Em Salvador encontramos a expressão de estratégias de desenho desenvolvidas pelo urbanis-
mo renascentista: a exploração da simetria, a utilização da perspectiva e o fechamento de vistas
através da colocação de edifícios, monumentos ou elementos urbanos significativos no enfiamento
de ruas ou de grandes eixos, a utilização destes elementos arquitetônicos como pontos focais de
praças, o aproveitamento de desníveis para valorizar edifícios e monumentos, a integração de
edifícios individuais em conjuntos arquitetônicos harmônicos, através do ordenamento e da repe-
tição das fachadas.
Estas estratégias de desenho viriam a ser aplicadas em diferentes contextos, nomeadamente
em Lisboa, onde é possível observá-las em múltiplas situações construídas em séculos posteriores.
É frequente os edifícios surgirem no enfiamento de ruas, ou em enfiamentos visuais, sofrendo
por vezes torções ou ajustamentos na sua implantação para melhor se oferecerem ao seu usufru-
to estético, contribuindo desta forma para a qualidade da paisagem urbana e melhor participarem
na organização formal da cidade. De fato, existem duas organizações formais da cidade: aquela
que resulta dos percursos e a que resulta dos pontos de vista. Estas são por vezes coincidentes,
outras vezes divergentes, outras vezes ainda constituindo dois sistemas completamente distintos.
Contemporâneo de Salvador da Bahia, é o Bairro Alto em Lisboa, um bairro periférico
construído fora dos limites das antigas muralhas fernandinas, que se desenvolveu ao longo do
século XVI, e no qual encontramos algumas semelhanças com o plano de Salvador da Bahia. No
que se refere à lógica geométrica do traçado, ambos são constituídos por quarteirões retangulares,
a definirem malhas ortogonais que se vão articulando entre si. No que se refere à estrutura desses
quarteirões, enquanto em Salvador da Bahia, os quarteirões rapidamente assumem uma propor-
ção quase quadrada, com lotes orientados para as quatro faces, no Bairro Alto encontramos
quarteirões retangulares de diferentes proporções, com três tipos de loteamento, conforme o seu
período de construção: quarteirões com lotes que iam de lado a lado do quarteirão, quarteirões
com duas fiadas de lotes, costa com costas, e quarteirões com lotes virados para as suas quatro
faces. Tal como em Salvador da Bahia, no Bairro Alto a medida de referência para o loteamento
urbano é em qualquer dos casos a frente de lote de 25 ou 30 palmos (fig. 5) na próxima página.
As diferenças entre os dois planos são, porém, significativas. Elas radicam no fato de Salvador
da Bahia ser uma iniciativa régia e beneficiar de um plano global que lhe dá unidade, enquanto
que o Bairro Alto, tratando-se de uma promoção privada, ou de um conjunto de promoções
privadas, ter sido construído através de um acumular de sucessivas unidades de crescimento, que
se foram ajustando umas às outras sem uma lógica global. Por vezes com soluções de continuida-
de bem resolvidas, outras vezes com ajustamentos menos articulados.
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Fig. 5. Bairro Alto, Lisboa, Portugal. - a) Desenho do autor. - b) Planta da
Freguezia de N. Sª. Da Encarnação, [séc. XVIII], Arquivos Nacionais da Torre
do Tombo.
5. As cidades brasileiras seiscentistas e setecentistas, a Baixa de Lisboa e Vila Real de Santo António
A partir do século XVI verifica-se cada vez mais a adoção de traçados regulares, geometrizados,
no planeamento de novas cidades ou nos planos de reestruturação ou de expansão de cidades já
existentes. A escolha de sítios planos em vez dos sítios acidentados preferidos anteriormente, e a
crescente intervenção dos engenheiros militares no traçado e na urbanização das cidades, foram
fatores importantes para a crescente racionalização e geometrização dos traçados urbanos.
São Luis do Maranhão, de 1615, e Belém do Pará, de 1616, são exemplos de cidades seiscentistas
que adotaram planos regulares, embora remetendo para culturas urbanísticas distintas. São Luis
do Maranhão tem um traçado em quadrícula, concebido como um todo, com uma praça central
de forma quadrada, no centro da qual se localiza a igreja de Nossa Senhora do Carmo. Belém do
Pará era constituída por duas malhas urbanas distintas – a cidade e a campinha – cada uma delas
com uma estrutura sensivelmente ortogonal, respondendo às particularidades do sítio. A separar
uma da outra existiam terrenos pantanosos nos quais, ao longo dos séculos XVII e XVIII, se
construíram as duas grandes praças de Belém.
No século XVIII foram construídas no Brasil muitas vilas e cidades com planos absolutamen-
te regulares e geométricos, a maior parte das vezes ortogonais, onde se expressam os grandes
temas do urbanismo clássico. Estes núcleos urbanos eram planeados racionalmente, com uma
estrutura global, e a praça assumia o papel de elemento central da malha urbana. A beleza da
cidade estava associada à regularidade do traçado e à adoção de modelos arquitetônicos unifor-
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mes, aos quais deviam obedecer todas as construções de uma rua ou de uma praça, ou mesmo de
todo o núcleo urbano.
Dentre as vilas e cidades fundadas no Brasil neste período com traçados regulares, muitas
delas foram fruto da política urbanizadora de Pombal na segunda metade de setecentos. Esta ação
urbanizadora situa-se num contexto político específico, em que eram questões fulcrais a delimita-
ção de fronteiras entre os territórios de Portugal e Espanha e a afirmação do poder do Estado
sobre territórios e populações até aí sob o domínio temporal dos missionários. Este projeto
urbanizador era um componente fundamental da estratégia de ocupação efetiva do território e
traduzia-se na construção de fortificações em pontos estratégicos, na fundação de novas vilas e
cidades, e na refundação de aldeamentos missionários e sua integração na rede urbana.
Nessas novas fundações, existia uma preocupação pelo ordenamento do plano urbano, o
alinhamento de ruas e de fachadas, e a uniformidade da aquitetura. O rigoroso ordenamento
urbano era ao mesmo tempo expressão da cultura racional europeia que se pretendia implantar
no Brasil e marca do bom governo. Nessas novas fundações, uma praça, habitualmente quadrada,
e localizada no centro da povoação constituía o elemento gerador do plano da cidade. Era a partir
dela que se definia o traçado das ruas e se estruturava o conjunto da malha urbana, segundo uma
estrutura ortogonal. Em muitas situações existiam duas praças, destinadas a funções distintas,
continuando a tradição de praças múltiplas nas cidades portuguesas. Numa delas estava localizada
a igreja, com o cruzeiro, enquanto na outra se localizava a Casa da Câmara e o pelourinho. A
formosura e o ordenamento destes núcleos urbanos passava também pela normalização da
arquitectura dos edifícios a construir. Em muitos casos, todos os edifícios de habitação deviam ter
fachadas com o mesmo desenho.
Contrariamente às cidades de períodos anteriores, o processo de crescimento dessas cidades
setecentistas já não era através da construção de sucessivas malhas urbanas, cada uma delas com
as suas próprias características morfológicas, que se iam adicionando, mas sim através da expan-
são da sua estrutura urbana original, segundo regras que nela já estavam implícitas.
A Vila de São José de Macapá, fundada em 1758, é uma das principais fundações deste
período, e representativa desses princípios de organização urbana. O plano de Macapá é centrado
em duas praças retangulares, a partir das quais se estrutura o traçado das ruas e dos quarteirões
dentro de uma lógica ortogonal. Embora as ruas e os lotes urbanos sejam todos da mesma
dimensão, os quarteirões não são todos idênticos: a sua proporção e a sua dimensão variam, bem
como a disposição e a orientação dos lotes em cada um deles. As praças, que constituem o
elemento central do plano, não são simples espaços vazios, correspondendo a quarteirões não
construídos, antes se articulam com as ruas e a malha urbana de forma diferente em cada caso.
Em Macapá, tal como noutras vilas e cidades planeadas neste período, a malha reticulada que
havia servido de base à concepção do conjunto não se traduzia literalmente na estrutura de ruas,
de praças e de quarteirões, as quais se articulam num sistema compositivo mais complexo.
Em Vila Nova de Mazagão, fundada em 1769, pelo contrário, temos uma correspondência
mais literal entre essa malha conceitual e o traçado efetivo da cidade, dando origem a um traçado
urbano facilmente perceptível. Este baseia-se numa malha regular, que define uma estrutura
ortogonal de ruas e de quarteirões quadrados. O plano desenvolve-se a partir de uma praça
central quadrada, que é obtida através da supressão de um dos quarteirões. Apesar do plano de
Mazagão ser, em vários sentidos, um plano mais literal do que o plano de Macapá, existem
características comuns às duas vilas, que podem encontrar-se na sua regularidade geométrica e no
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modo como ambos os planos, apesar de concebidos segundo um traçado ortogonal, desestruturam
as suas malhas para se adaptar às condições físicas do território. Isto significa que mesmo quando
se concebia uma cidade de forma racional e se desenhava o seu plano, era no terreno no processo
de implantação que, em última instância, se definia o seu traçado.
Estas cidades setecentistas eram herdeiras de um saber teórico e de uma grande experiência
urbanizadora desenvolvida na fundação de cidades ao longo de séculos. Esta longa experiência
prática e os conhecimentos teóricos dos arquitetos e engenheiros militares foi condição necessária
para a eficácia dessa campanha urbanizadora e para a regularidade dos planos. Esse mesmo
capital de conhecimentos e de experiência desenvolvidos em contextos coloniais, nomeadamente
no Brasil, virá a ser a base das intervenções urbanas levadas a cabo em Portugal na segunda
metade do século.
Os planos para a reconstrução pombalina da Baixa de Lisboa após o terramoto de 1755 e o
plano para Vila Real de Santo António, de 1775, constituem, de diferentes formas, a síntese da
experiência urbanística portuguesa de séculos anteriores. Nenhum deles teria sido possível sem a
experiência urbanística colonial, onde foram buscar a sua prática, os seus processos de planeamento,
as suas referências e as suas morfologias. Sem eles, nunca os planos para a reconstrução de Lisboa
poderiam ter sido executados tão rapidamente, nem a reconstrução se poderia ter iniciado em tão
breve espaço de tempo.
Cada um dos seis planos elaborados para a reconstrução da Baixa de Lisboa constituía uma
síntese diferente das vertentes vernácula e erudita que, em todas as épocas, eram componentes
fundamentais do urbanismo português, e expressava uma atitude diferente para com as preexistências
e o antigo traçado da cidade. Esses planos iam de uma total aceitação das preexistências e das
particularidades locais, como era o caso do plano de Gualter da Fonseca e de Francisco Pinheiro da
Cunha, que respeitava o traçado anterior e muito particularmente a localização das igrejas e capelas,
até uma quase abstração do seu traçado geométrico, como era o projeto de Eugénio dos Santos.
A proposta elaborada por Eugénio dos Santos, em colaboração com António Carlos Andreas,
é a última expressão do urbanismo português que, embora planeado, onde a racionalidade e a
geometria estão presentes, privilegiava e tinha como referências fundamentais a memória da
cidade de antes do terremoto, os seus elementos estruturantes e as suas hierarquias (fig. 6).
Fig. 6. Lisboa, Portugal. Planta nº 3, Plano da Cidade de Lisboa baixa (...), Eugénio dos
Santos e Carvalho, António Carlos Andreas, [séc. XVIII], Museu da Cidade de Lisboa.
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Este é um plano que de uma forma inteligente e equilibrada faz uma síntese perfeita dos dois
componentes que caracterizam a cidade portuguesa. O novo plano integrava-se sem esforço no
tecido envolvente, reconstruído de acordo com o traçado de antes do terremoto, acomodava-se
com naturalidade à topografia, e tinha a capacidade de integrar preexistências construídas ou a
memória de espaços urbanos de antes do terremoto. Ao mesmo tempo, era um plano ordenado,
simétrico e hierarquizado. A síntese dessas duas concepções de espaço era feita de uma forma
sensível, em que as estratégias de desenho adotadas exploravam com sucesso as relações entre o
plano urbano e a arquitetura. É esta capacidade de integrar a nova ordem geométrica com as
antigas preexistências – construídas ou simplesmente memórias – e simultaneamente de se adomar
ao terreno que fazem este plano o último representante do que consideramos ser a essência do
urbanismo português.
O plano conseguia conciliar de uma forma equilibrada o respeito por linhas estruturantes
fundamentais da cidade, por percursos pré-existentes e o respeito pela localização das igrejas antes
do terremoto, com um traçado inovador e racional, onde é patente a geometria, o ordenamento e
a regularidade que se pretendeu impôr ao plano. A genealogia deste plano, mais do que nos planos
setecentistas, vamos encontrá-la em Salvador da Bahia.
Viria, no entanto, a ser adotado o plano mais racional e o que propunha uma alteração mais
radical relativamente à situação preexistente. Este plano, também de Eugénio dos Santos, era
polarizado pelas praças do Rossio e do Terreiro do Paço, que já existiam antes do terremoto, mas
que foram regularizadas, redefinidas na sua forma e orientação. Estas duas praças eram unidas
por uma malha ortogonal de ruas longitudinais e transversais, hierarquizadas pela sua posição no
plano, pelo modo como se articulavam com o Rossio e com o Terreiro do Paço, pelo seu perfil,
pelas suas cérceas e pelas características arquitetônicas dos edifícios que ao longo delas se constru-
íam, de acordo com os projetos elaborados pela Casa do Risco das Obras Públicas (fig. 7).
Fig. 7. Lisboa, Portugal. Planta Thopographica da Cidade de Lisboa (...), Eugénio dos
Santos e Carvalho, Carlos Mardel, [séc. XVIII], Museu da Cidade de Lisboa.
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Este projeto para a Baixa de Lisboa é herdeiro de uma cultura urbanística erudita, que era
uma parte fundamental do capital de conhecimentos dos engenheiros militares que desde o século
XVI construíam cidades no Brasil e noutras partes do mundo. Mas para além das suas referências
eruditas e apesar da sua aparente abstração, este plano fazia uma deliberada revisitação de algu-
mas das características do urbanismo tradicional português, incorporando-os no plano.
Assim, a rua longitudinal que se desenvolve ao longo da costa, que é um elemento fundamen-
tal na estrutura das cidades marítimas e ribeirinhas, está presente no plano pombalino através das
ruas da Alfândega, do Arsenal e Bernardino Costa. Sensivelmente a meio desta rua longitudinal,
no cruzamento com a principal rua transversal – a rua Augusta – estrutura-se uma praça – o
Terreiro do Paço. Tal como naquelas cidades, esta praça desenvolve-se entre a rua longitudinal
que lhe passa tangente e o rio.
O progressivo distanciamento das sucessivas ruas longitudinais faz com que a um primeiro
conjunto de quarteirões paralelos ao rio se sucedam outros quarteirões que lhes são perpendicu-
lares. Correspondentemente, as ruas perpendiculares ao rio passam a ser as mais importantes e
tornam-se a direção dominante do traçado. Este é um processo de desenvolvimento característico
das cidades litorais ou ribeirinhas, em que ocorre a passagem de quarteirões paralelos à linha de
água a outros de dominância vertical, como é o caso, por exemplo, de Ponta Delgada ou do Rio de
Janeiro, cidades cuja morfologia é uma referência deste plano.
A multiplicidade de praças destinadas a funções diferentes está presente nas duas praças
principais, o Rossio e o Terreiro do Paço, e nos pequenos largos, resultado de simples alargamen-
tos de ruas, que se formam em frente às igrejas inseridas na malha da Baixa. A hierarquia das ruas
é feita através da sucessão de ruas principais e secundárias, com diferentes perfis, que se alter-
nam, numa referência explícita ao traçado das cidades medievais planeadas. Para além do seu
perfil – mais largas as ruas de frente, mais estreitas as ruas de trás – a hierarquia das ruas era
também definida pela relação que estabelecem com as duas grandes praças que polarizam o
plano, e pelas cérceas e a arquitetura dos edifícios que se constróem ao longo delas.
A relação do traçado urbano com a arquitetura está presente na adoção de um padrão
arquitetônico uniforme para toda a área do plano e nas sutis diferenças que distinguem os três
tipos de fachada que, dentro daquela uniformidade, foram elaborados para as ruas de frente, de
traseiras e transversais. A exceção é o Terreiro do Paço, que tem um projeto diferente adequado
à sua escala monumental de praça real.
O processo habitual de crescimento das cidades portuguesas, através da construção de suces-
sivas malhas urbanas, com diferentes características morfológicas, que se vão adicionando, é
também referenciado no plano de Eugénio dos Santos. As malhas da Baixa, do Chiado e do Cais
do Sodré são distintas, correspondendo a diferentes unidades de crescimento. Dentro da própria
Baixa, os dois conjuntos de quarteirões – os primeiros, paralelos ao rio e os segundos, perpendicu-
lares ao rio – parecem querer sugerir diferentes fases de crescimento, como era o caso das cidades
costeiras cuja morfologia é uma das referências deste plano.
Também o processo de planeamento e de construção da cidade portuguesa, em que o plano
desenhado é confrontado com o sítio e adaptado ao sítio no ato da sua implantação, está também
presente no plano de Eugénio dos Santos. Entre a planta desenhada que temos como referência –
que não é contudo a planta original, desaparecida – e a realidade construída são perceptíveis
várias diferenças. Entre outras alterações, o Hospital Real não foi reconstruído, daí resultando
uma solução diferente para o Rossio, a malha do Chiado foi construída com quarteirões de
diferente dimensão, a praça em forma de estrela junto ao convento de S. Francisco não foi
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construída, a igreja de São Paulo foi reorientada, e outras igrejas foram construídas noutros locais.
Algumas destas alterações foram consequência, sem dúvida, do confronto com o local e das
necessidades de adaptação que daí resultaram.
Temos assim que todo o saber, a prática e as formas urbanas desenvolvidas através da experiên-
cia urbanística colonial teve expressão no plano de reconstrução da Baixa. Partindo de formas
tradicionais de estruturação da cidade portuguesa, de diferentes períodos históricos, Eugénio dos
Santos abstraiu, a partir delas, um plano eminentemente racional e erudito. As habituais dualidades
que se estabelecem entre traçados vernaculares e eruditos, planeados e não planeados, esbatem-se.
O plano da Baixa mostra que não há incompatibilidade entre uma e outra destas formas de fazer
cidade. Ambas se baseiam em princípios inteligentes de estruturar uma cidade de forma ordenada,
hierarquizada, e sabendo tirar partido das particularidades físicas do sítio em que se implanta.
O plano de Eugénio dos Santos é herdeiro do espírito de racionalidade e da capacidade de
abstração dos princípios essenciais do urbanismo português, a partir dos quais teve a capacidade
de inovar e de elaborar um plano eminentemente racional. Ao mesmo, tal como nas cidades
coloniais, este plano respondia a um idêntico quadro de escassez de recursos, e do necessário
pragmatismo e rapidez de construção exigidos pelo terremoto. Neste sentido, o plano da Baixa de
Lisboa é um legítimo herdeiro do urbanismo brasileiro setecentista.
No plano de Vila Real de Santo António, de 1775, vemos expressar-se de forma igualmente
nítida os princípios racionais e abstratos que enformavam a urbanística portuguesa setecentista,
herdeira da experiência brasileira. Vila Real de Santo António tem um traçado de ruas rigorosa-
mente ortogonal, definindo dois tipos de quarteirões, de forma quadrada e retangular. No centro
do plano localiza-se uma praça quadrada, correspondendo a um quarteirão não construído; duas
outras praças, também quadradas, mas de menores dimensões, localizam-se simetricamente, de
um e outro lado, em relação à praça central.
Encontramos uma grande identidade formal entre o traçado de Vila Real de Santo António e o
da vila de Portalegre, na comarca de Porto Seguro/Bahia, de 1772. Não só ambos entroncam na
mesma cultura urbanística que permeava a prática do urbanismo português na segunda metade do
século XVIII – e que se traduzia em traçados ortogonais regulares, com uma praça central que
constituía o elemento gerador do plano, e a adoção de programas arquitetônicos uniformes, com
edifícios obedecendo a um mesmo projeto – como a solução formal adotada em ambos os planos
é idêntica (fig. 8).
Fig. 8. - a) Portalegre, Brasil. [Mapa da novas Villa de Portalegre], 1769, Arquivo Histórico Ultramarino. - b) Vila Real de
Santo António, Portugal. Planta Geral da Villa de Santo Antonio de Arenilha, [c. 1775], Biblioteca e Arquivo Histórico do
Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações.
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6. Os modelos urbanos da cidade de origem portuguesa, a reciprocidade de influências
Os traçados urbanos setecentistas das cidades construídas em Portugal e no Brasil são expres-
são de um conhecimento teórico e prático caldeado e sintetizado ao longo de séculos, em múlti-
plas situações, em que se observam os elos de continuidade e as influências cruzadas que lhes
deram origem. Ao longo da história, a componente do urbanismo português que se baseava numa
compreensão do território nunca foi rejeitada, mas antes assimilada pelos profissionais, que foram
capazes de fazer a síntese do saber teórico e da prática urbanística. Desta síntese resultavam
cidades onde sobressaem como características fundamentais a capacidade de desenhar com o
sítio e o pragmatismo das soluções adotadas em cada caso.
A cidade portuguesa procurava responder sempre à realidade material em que se situava, não
se limitando a reproduzir modelos abstratos. Mesmo quando se estruturava a partir de modelos
racionais, traduzida em estruturas geométricas, não obstante esta matriz intelectual procurava
sempre adaptar-se à realidade material e às particularidades do sítio em que se situava. Esta é a
síntese dos componentes vernáculo e erudito que sempre caracterizou o urbanismo português, e
que se concretizava através das sucessivas fases de concepção, desenho, implantação e construção
da cidade. A elaboração do plano para a reconstrução da Baixa de Lisboa, as tranformações
efetuadas ao longo do processo e a sua efetiva construção, mostram precisamente como essa
outra dimensão do urbanismo português subsistiu, articulada com a racionalidade iluminista.
Esta síntese não era apenas o resultado de uma prática, mas era ela próprio objeto de teorização
por parte dos engenheiros militares portugueses. Serrão Pimentel, engenheiro-mor do Reino de
1663 a 1678, no seu tratado O Engenheiro Português reconhecia as virtudes da execução de um
desenho prévio, embora considerasse que a prova final da adequação do plano devesse ser feita
no terreno, no confronto prático com a realidade, através da sua adaptação ao sítio. Da mesma
forma, mais de um século depois, Manuel da Maia, engenheiro-mor do Reino que superintendeu
à reconstrução de Lisboa, na sua dissertação sobre a reconstrução de Lisboa, considerava que o
verdadeiro ato de projetar se realizava no confronto com o terreno. Segundo ele, mesmo quando
existia um projeto desenhado, a avaliação prática da sua viabilidade e a sua adaptação ao sítio
constituíam os passos mais importantes do ato de projetar.
A urbanística portuguesa consistiu sempre na síntese destes dois saberes: por um lado, a teoria,
o plano idealizado e o desenho; por outro lado, a experiência prática, o confronto com a realidade, a
demarcação no terreno. Para tal, muito contribui a sua experiência colonial, e a necessidade de
adaptar os modelos urbanos a várias contextos geográficos e climáticos, não os impondo, antes os
moldando conforme as necessidades e em resultado de uma cuidadosa compreensão da realidade.
O urbanismo de origem portuguesa é o resultado de múltiplas experiências, processos de
troca e influências recíprocas, levados a cabo em Portugal, no Brasil, em África, no Índico e no
Oriente, em que participaram populações e técnicos de várias origens. O Brasil desempenhou um
papel particulamente importante no processo de inovação de formas e de processos que daí
resultaram e que vieram a fazer parte integrante do urbanismo português. Não obstante a
multiplicidade das suas expressões construídas, o urbanismo português soube construir uma iden-
tidade, que se consubstancia num conjunto de invariantes morfológicas e de processos que, ao
longo do tempo e dos espaço, caracterizam indelevelmente essas cidades.
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