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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO POLÍTICO E ECONÔMICO

LUIZ ISMAEL PEREIRA

FORMA POLÍTICA E CIDADANIA NA PERIFERIA DO CAPITALISMO:


A AMÉRICA LATINA POR UMA TEORIA MATERIALISTA DO ESTADO

São Paulo

2017
LUIZ ISMAEL PEREIRA

FORMA POLÍTICA E CIDADANIA NA PERIFERIA DO CAPITALISMO:

A AMÉRICA LATINA POR UMA TEORIA MATERIALISTA DO ESTADO

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Direito Político e Econômico da Universidade
Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial à
obtenção do grau de Doutor em Direito Político e
Econômico.

ORIENTADOR: Professor Dr. José Francisco Siqueira Neto.

São Paulo

2017
P436f Pereira, Luiz Ismael.

Forma política e cidadania na periferia do capitalismo : a América Latina por uma


teoria materialista do Estado / Luiz Ismael Pereira. – 2017.

128 f. ; 30 cm.

Tese (Doutorado em Direito Político e Econômico) - Universidade Presbiteriana


Mackenzie, São Paulo, 2017.

Orientador: José Francisco Siqueira Neto.

Referências bibliográficas: f. 114-128.

1. América Latina. 2. Forma política. 3. Marxismo. 4. Sistema de Estados. 5.


Teoria materialista do Estado. I. Título.
A Alysson Leandro Mascaro, por tudo.
AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos que contribuíram para o resultado deste trabalho:

À CAPES, pela bolsa concedida durante o desenvolvimento da pesquisa.

Aos amigos que facilitaram o caminho burocrático e que o tornaram menos


desgastante, algo impossível de se fazer sozinho. Por todos, lembro de forma especial de
Cristiane Alves, Renato Santiago, Kaian, Douglas, Gabriel e Daniela.

Aos professores que foram suporte e apoio durante o curso de doutorado: Clarice
Seixas Duarte, Gianpaolo Poggio Smanio e especial lembrança a Gilberto Bercovici,
verdadeiros amigos e companheiros. Parte desse trabalho se deve à formação que
proporcionaram.

Aos amigos que de alguma forma contribuíram por meio de debates, indicações
bibliográficas, alertas e conversas que, à primeira vista, pareciam meramente informais, mas
foram muito proveitosos: Jonathan Erkert, Alessandra Devulsky, Taylisi Leite, Edvaldo
Santos, Letícia Garducci, Beatriz Prates, Melissa Cambuhy, Dandara Lima, Calebe Paranhos,
Henrique Entratice, Susana Barbosa, Luiz Felipe e Victor Barau.

Aos examinadores da qualificação, cujas arguições e fornecimento amistoso de


material foram fundamentais para o resultado final do trabalho. Sem eles seria impossível
organizar ideias e planejar o tempo: Profs. Camilo Onoda Caldas e Silvio Luiz de Almeida.

À minha mãe, Maria Aparecida Pereira Justino, que entendeu toda a ausência e deu o
suporte emocional necessário. Pessoa sem a qual nada disso poderia se realizar. Que confiou
em mim nessa carreira acadêmica desde a graduação. A ela agradeço com todo meu amor.

Ao meu orientador que assumiu após a qualificação, Prof. José Francisco Siqueira
Neto, íntegro e respeitoso com seus amigos. Um exemplo de lealdade e intelectualidade
engajada com as questões mais importantes. Um amigo que levo para sempre.

Por fim, a Alysson Leandro Mascaro, o primeiro responsável por tudo isso e
formalmente responsável pela orientação até a qualificação. Agradeço pelas ideias centrais e
pela confiança. Um amigo que tenho desde a graduação e com quem caminharei com lealdade
contra as adversidades reacionárias, na vida política ou acadêmica.

Obrigado, muitíssimo obrigado.


Por ocasião das circunstâncias:
Todos para a Central do meu rancor inebriante
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!
Fora! Fu! Fora o bom burguês!...
Mario de Andrade

Por ocasião dos 150 anos d’O capital:


Tem-se aqui, portanto, uma antinomia, um direito contra
outro direito, ambos igualmente apoiados na lei da troca
de mercadorias. Entre direitos iguais, quem decide é a
força.
Karl Marx

Por ocasião dos 100 anos da Revolução Russa:


Para não ter protestos vãos,
Para sair desse antro estreito,
Façamos nós por nossas mãos
Tudo o que a nós diz respeito!

A Internacional

Por ocasião dos 25 anos do massacre do Carandiru:

Na muralha, em pé, mais um cidadão José.


Servindo o Estado, um PM bom.
Passa fome, metido a Charles Bronson.
Ele sabe o que eu desejo.
Sabe o que eu penso.

Racionais MC’s
RESUMO

Esta pesquisa tem como objetivo investigar a constituição e a atuação da forma política na
América Latina, tendo como dado que sua formação se dá no sistema capitalista de Estados.
Parte-se da ideia de que há especificidades em tal formação política regional que impede a
automática transferência de dados colhidos na Teoria do Estado clássica, necessitando pensar
uma teoria que as compreenda (José Luís Fiori; Tilman Evers; Joachim Hirsch). Para tanto,
serão avaliadas tanto as construções políticas, quanto as econômicas, a partir de três
momentos: 1) a invasão do território dos povos originários que já possuíam formas sociais
específicas consolidadas, bem como a consequente pilhagem do continente - acumulação
primitiva do capital; 2) a exploração de riquezas para o centro europeu, onde o Estado já se
formava; 3) a exploração econômica da região com os grandes ciclos econômicos que
influenciaram na formação política. Com a análise de estudos originais, dados e diplomas
jurídicos históricos, identifica-se a hipótese de que a derivação do Estado (forma política) e do
Direito (forma jurídica) na América Latina se dá a partir de dois meios principais: 1) a
subordinação das formas sociais não-capitalistas; e, 2) a integração ao mercado mundial. Para
compreender o desenvolvimento da forma política na periferia latino-americana, bem como a
cidadania como meio imediato e necessário aos países da região, o referencial teórico partirá
da Teoria Materialista do Estado que remonta desde os anos 1970. Por fim, será possível
compreender a atuação prática do Estado Latino-Americano para um processo de transição
socialista, em especial, a partir do esforço teórico original da região, isto é, que toma a
América Latina como objeto.

Palavras-chave: América Latina; forma política; marxismo; sistema de Estados; teoria


materialista do Estado.
ABSTRACT

This research aims to investigate the formation and activities of political form in Latin
America, taking for granted that their formation takes place in the capitalist system of states.
We starts from the idea that there are specificities in such regional polity formation that
prevents the automatic transfer of data collected in the classical theory of state, needing to
think a theory to understand them (José Luis Fiori; Tilman Evers; Joachim Hirsch). For this,
we evaluated the political and economic constructs, from three moments: 1) the invasion of
the territory of the native peoples who had already consolidated specific social forms, and the
consequent looting of the continent - primitive accumulation of capital; 2) the exploitation of
wealth for the European center, where the state was already forming; 3) economic
exploitation of the region with great economic cycles that influenced politics formation. With
the analysis of original studies, historical data and legal texts, identifies the hypothesis that the
derivation of the state (political form) and Law (legal form) in Latin America occurs from two
main ways: 1) subordination of non-capitalist social forms; and, 2) the integration into the
world market. To understand the development of political order in Latin American periphery,
as well as citizenship and immediate need for the countries of the region through the
theoretical framework depart Materialist Theory of the State which dates from the 1970s.
Finally, it will be possible to understand the practical action of the Latin American State for a
process of socialist transition, especially from the original theoretical effort of the region, that
is, that takes Latin America as its object.

Key words: Latin American; Marxism; political form; System of States; Materialist Theory
of the State.
RESUMEN

Esta investigación tiene como objetivo investigar la formación y el papel de la forma política
en América Latina, dando por sentado que su formación se produce en el sistema capitalista
de los Estados. Se inicia con la idea de que existen especificidades en tal formación política
regional que impide la transferencia automática de datos, recolectados en la teoría clásica del
Estado, tienen que pensar en una teoría que entiende (José Luis Fiori; Tilman Evers; Joachim
Hirsch). Por lo tanto, ambos se evaluarán las construcciones políticas, como la económica, a
partir de tres etapas: 1) la invasión del territorio de los pueblos originarios que ya tenían
formas consolidadas específicas sociales, y el consiguiente saqueo del continente - la
acumulación primitiva de capital; 2) la exploración de la riqueza para el centro de Europa,
donde ya se ha formado el estado; 3) la explotación económica de la región con grandes ciclos
económicos que influyen en la formación política. Con el análisis de los estudios originales,
datos y textos jurídicos históricos, identifica la hipótesis de que la derivación de la (forma
política) Estado y Derecho (forma jurídica) en América Latina toma de dos maneras
principales: 1) la subordinación de las formas sociales no capitalistas; y, 2) la integración al
mercado mundial. Para entender el desarrollo de la forma política en la periferia
latinoamericana y la ciudadanía como un medio inmediato y necesario a los países de la
región, el marco teórico se iniciará desde la teoría materialista del Estado que data de la
década de 1970. Finalmente, será posible comprender la acción práctica del Estado
latinoamericano para un proceso de transición socialista, especialmente desde el esfuerzo
teórico original de la región, es decir, que toma como objeto a América Latina.

Palabras clave: Latin American; Marxism; political form; System of States; Materialist
Theory of the State.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12
§ 1º A América Latina: uma breve colocação sobre o objeto ............................................................................ 12
§ 2º Sobre a metodologia de investigação. ....................................................................................................... 14

1. ESTADO E DIREITO: DERIVAÇÃO DAS FORMAS ................................................. 18


1.1 Insuficiências do modelo clássico ................................................................................................................ 23
1.2 Questões do debate da derivação. .............................................................................................................. 33
1.3 Estado e capitalismo “desaparecem imediatamente, tão logo, nos refugiemos em outras formas de
produção” (K. Marx): a especificidade da forma. .............................................................................................. 56

2. A DERIVAÇÃO DO ESTADO E DO DIREITO NA DIALÉTICA DA PERIFERIA 59


2.1 A dicotomia centro-periferia. ...................................................................................................................... 61
2.2 Os Dependentismos. ................................................................................................................................... 63
2.3 Questão 1 – Forma política e formas sociais: a derivação do Estado e do direito na periferia. .................. 66
2.4 Questão 2 – A integração ao mercado mundial. ......................................................................................... 71
2.5 Questão 3 – Conformação na solução da subjetividade jurídica. ................................................................ 73

3. DOS DEBATES DO SÉCULO XX AOS DEBATES DO SÉCULO XXI ..................... 76


3.1. John Holloway e a mudança para além do Estado. .................................................................................... 76
3.2. O debate do populismo: por que importa à América Latina pensar o populismo. .................................... 80
3.3. A cidadania e os povos explorados: a forma-comunidade em Álvaro Garcia Linera.................................. 99
3.4 Um processo de transição urbi et orbi....................................................................................................... 108

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 111


REFERÊNCIAS. .................................................................................................................. 114
12

INTRODUÇÃO

Quando se estuda cada uma dessas evoluções à


parte, comparando-as em seguida, pode-se
encontrar facilmente a chave desse fenômeno.
Contudo, jamais se chegará a isso tendo como
chave-mestra uma teoria histórico-filosófica geral,
cuja virtude suprema consiste em ser supra-
histórica.

Karl Marx.1

§ 1º A América Latina: uma breve colocação sobre o objeto

A história do Estado na América Latina, em regra, é inserida no contexto da


expansão dos Estados-nação antes da completa formação do capitalismo, mas só pode ser
plenamente compreendida após a consolidação da forma política estatal europeia. Assim, no
momento de ampliação da acumulação primitiva do capital, a experiência de dominação e
controle das novas terras invadidas a partir do século XV permite aos povos europeus a
tomada de terras e riquezas para a expansão na primeira fase do imperialismo.

Essa expansão se dá de maneira violenta. O choque com os povos pré-colombianos


redundou no extermínio físico e cultural. Físico, por meio do massacre de povos
conquistados, seja pela morte nas incursões armadas, seja pela escravidão e servidão
exaustiva. Cultural, pois também significou a destruição da religião, das crenças, da forma de
sociabilidade e produção comunal, da imposição do sincretismo. Somados ao fato de que os
processos de independência política na América Latina se dão no começo do século XIX,
diferentemente das demais regiões periféricas, são fatores cuja forma de realização distingue a
região.2

A história do Estado na América Latina e, consequente, o desenvolvimento da forma


política até a consolidação dos Estados-nação é considerada a partir de certas fases do
pensamento político latino-americano, conforme apontado por Charles Hale, para quem o

1
MARX, Karl. Carta à redação da Otechestvenye Zapiski, 1877. In: ______. Lutas de classe na Rússia.
Organização de Michael Löwy. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 69.
2
HALE, Charles. As ideias políticas e sociais na América Latina, 1870-1930. In: BETHELL, Leslie (Org.).
História da América Latina – Vol. IV. De 1870 a 1930. São Paulo: EDUSP, 2009, p. 331.
13

liberalismo afetou e foi afetado sobremaneira pelas experiências das nações latino-
americanas, significando uma transformação: “uma ideologia em conflito com a ordem
colonial herdada de instituições e padrões sociais converteu-se num mito unificador”.3

Esse espírito constituído pela abertura dos Estados latino-americanos, recém libertos
politicamente, leva a outra característica bem distinta e importante na região: o
republicanismo. Com exceção da monarquia brasileira que se estende até a última quadra do
século XIX, bem como os atrapalhados episódios do Império Mexicano (oito meses na década
de 1820 e três anos na década de 1860), toda as demais nações se estruturaram solidamente
como Repúblicas.

Um fator importante para a estruturação do Estado-nação, para a constituição da


forma política estatal, capitalista por natureza, como vermos, foi o romantismo como
movimento cultural e político fundador da ideia de nação. A tese é de Bernardo Ricupero,
para quem “o Estado não estará consolidado enquanto não existir nação, já que não poderá
contar com a lealdade de seus cidadãos”.4 Até mesmo essa função dada ao romantismo é
totalmente adaptada à realidade de nações que iniciavam sua constituição. Como sabemos, o
romantismo na realidade europeia significou uma reação ao capitalismo que se apresentava
como sociabilidade hegemônica. Basta lembrar a figura do flaneur, de Baudelaire, que viveria
como um insistente opositor do trabalho produtivo; ou mesmo as figuras de Goethe, míticas –
relembrando a própria Idade Media (Fausto) ou aristocratas (Os sofrimentos do jovem
Werther, As afinadades eletivas e Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister). No caso
latino-americo, de forma geral, o romantismo significou o encontro com o ideal civilizatório e
a criação de uma unificação nacional; o encontro do nosso povo.5

Nesse momento de formação cultural totalmente nova, o pensamento social e político


da periferia latino-americana surgia como reflexo dos ideais iluministas que apareciam na
Europa. O constitucionalismo e os direitos naturais como ideia individual e universalmente
apreendida por todos passam a influir também na região: na Argentina, Sarmiento, Echeverría
e Alberdi; no Chile, Lastarria e Bilbao; no México, Mariano Otero, para termos alguns
exemplos de locais afetados pelas preocupações que mais pululavam no ideário dos povos

3
HALE, Charles. As ideias políticas e sociais na América Latina, 1870-1930. In: BETHELL, Leslie (Org.).
História da América Latina – Vol. IV. De 1870 a 1930. São Paulo: EDUSP, 2009, p. 333.
4
RICUPERO, Bernardo. O romantismo e a ideia de Nação no Brasil (1830-1870). São Paulo: Martins Fontes,
2004, p. XXIII.
5
Idem Ibidem, p. XXXIV.
14

nesse momento: a construção e a organização territorial, bem como a forma de materialização


das nações, se federalistas ou unitárias.6

São claros os movimentos que a produção social e cultural latino-americana vai


tomando esse sentido, caminhando para a abertura de ideias liberais, ainda muito presos ao
próprio histórico europeu. Sarmiento (El Facundo) deixa clara sua predileção por uma Buenos
Aires reflexo de Paris, na aculturação e no processo civilizatório; Carlos Bunge e todo o
racismo determinista le-boniano (Nuestra America); José Rodó (Ariel), na procura da
retomada do orgulho latino-americano em oposição aos estadunidenses que já se
posicionavam como potências na América; a força do movimento indigenista como único
possível para descrever o povo explorado da região, conforme os fortes textos políticos de
Manuel González Prada e do próprio Mariátegui.7

Esse objeto de pesquisa é vivo, complexo, de diferentes matizes. À primeira vista,


objeções de cunho prático – sociológico e político – são lançadas para desestimular pensar a
grandiosidade da região. A questão é muito mais complexa do que essa. A América Latina
pode ser apreendida como objeto do pensamento, como objeto da filosofia e, como propomos
nesse trabalho, no grau de abstração adequado nos permitirá pensar uma teoria do Estado
própria para a região, o que ficará para o futuro.

§ 2º Sobre a metodologia de investigação.

São sobre essas falsas objeções de cunho prática que devemos nos preocupar de
início, demonstrando a capacidade metodológica desta tese. Tomar a América Latina como
objeto de estudo em direito enfrenta a seguinte questão: como pensar como um todo os países
latino-americanos, sendo que a complexidade histórica da região geraria experiências
nacionais diversas? Em outras palavras, guerras, idiomas, povos em diferentes momentos
históricos, a experiência de independência, regimes políticos diversos e extensão territorial
desproporcional seriam várias que atrapalhariam a análise jurídica conjunta da América
Latina. A essa objeção, é possível adiantar, ainda, a única possibilidade teórica: a leitura

6
HALE, Charles. As ideias políticas e sociais na América Latina, 1870-1930. In: BETHELL, Leslie (Org.).
História da América Latina – Vol. IV. De 1870 a 1930. São Paulo: EDUSP, 2009, pp. 337-339.
7
Idem Ibidem, pp. 342-414.
15

dessas diferenças por uma teoria geral pasteurizadora, que apagasse, no contrates, tais
diferenças.

Diante disso, ao analisar o contexto da crise do século XXI, Alysson Leandro


Mascaro comenta que os “engendramentos particulares de cada país não torna possível, por
enquanto, alinhar as experiências nacionais específicas e suas correspondentes crises em
modelos mais amplos”.8 Conforme se depreende das palavras de Mascaro, pensar uma teoria
que ultrapasse esse momento do “por enquanto” envolve encontrar o ponto teórico ótimo de
análise da região envolvida com a própria análise do capitalismo. Para tanto, é necessário
compreender os conceitos intermediários de análise entre (i) uma teoria do Estado ampla e
construída a partir de uma realidade europeia e (ii) uma análise casuística das relações de
política interna dos países.

A proposta metodológica de utilização de conceitos intermediários a partir do


encontro com o Real na sociabilidade capitalista, é retirada do método regulacionista francês
iniciado por Michel Aglietta, Robert Boyer e Alain Lipietz. Com o intuito de compreender os
meandros das crises do capitalismo no século XX, o grupo que inaugurou um debate marxista
da regulação propôs o abandono dos campos da macro e microeconomia, de um lado, bem
como dos conceitos mais imediatos e casuísticos da economia interna. Desse método deriva a
concentração em termos médios de análise, como o modo de regulação e o regime de
acumulação. Dessa técnica parte-se uma análise a partir das categorias capitalistas, permitindo
o reconhecimento de um padrão histórico na mudança do próprio capitalismo no século XX.9

8
MASCARO, Alysson Leandro. Crise brasileira e direito. Margem Esquerda. São Paulo: Boitempo, 2015, n.
25, p. 69.
9
Por todos os comentadores: “Trabalhando com categorias intermediárias, as teorias da regulação buscam
escapar de um aprisionamento à análise de questões pontuais – que levaria a uma perspectiva tecnicista da
economia, cega porque ocupada apenas de modelos parciais – e tornam concreta a grande análise da economia
política marxista, aplicando-a às mudanças das articulações que se dão no seio das variadas fases do capitalismo”
(MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 112). Sobre o método
dos integrantes do debate francês da regulação, ver ainda: HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado:
processo de transformação do sistema capitalista de Estado. Tradução de Luciano Cavini Martorano. Rio de
Janeiro: Revan, 2010, pp. 104-105; JESSOP, Bob. Regulation theory, post Fordism and the state: more than a
reply to Werner Bonefeld. Capital & Class. V. 12, n. 1, Spring 1988, pp. 162-163; ______; SUM, Ngai-Ling.
Beyond the regulation approach: putting capitalists economies in their places. Cheltenham: Edward Elgar,
2006, pp. 53 e 302; BERTRAND, Hugues. Rapport salarial et systéme d’emploi. In: BOYER, Robert;
SAILLARD, Yves. Théorie de la regulatión: l’etat des savoirs. 2.ed. Paris: La Découverte, 2002, p. 126;
BOYER, Robert. Teoria da regulação: os fundamentos. Tradução de Paulo Cohen. São Paulo: Estação
Liberdade, 2009, p. 64; ______. A teoria da regulação: uma análise crítica. Tradução de Renée Barata Zicman.
São Paulo: Nobel, 1990, p. 56; TALHA, Larbi. Théorie de la regulatión et Développement. In: BOYER, Robert;
SAILLARD, Yves. Théorie de la regulatión: l’etat des savoirs. 2.ed. Paris: La Découverte, 2002, p. 453.
16

Esse é exatamente o método proposto nesta tese. O abandono dos campos da teoria
geral do Estado clássica, bem como da historicidade intrínseca de cada país nos permitirá
centrar em termos mais abstratos, mas na medida correta. Olhar com o olhar de condor na
reprodução de padrões mais gerais na formação e desenvolvimento da forma política latino-
americana. Assim, trata-se de vasculhar os pontos de convergência na história latino-
americana capazes de indicar um padrão no desenvolvimento da forma política e da cidadania
na região.

O objetivo geral da presente tese apresentada na Área de Concentração em Direito


Político e Econômico é compreender os meios pelos quais se deu o desenvolvimento da forma
política e da cidadania na América Latina e pensar os caminhos para os quais elas caminham,
em especial no que diz respeito à superação das formas de opressão e dominação claramente
ligadas e legitimadas pelo Estado e o direito. Esses tomam papel importante na constituição
da subjetividade e, portanto, o papel preponderante que possuem na região não pode ser
desconsiderado. Para tanto, será necessário atingir certos objetivos específicos, sem os quais
não será possível atingir o fim dessa empreitada.

Inicialmente, estabelecer-se-á os pontos teóricos necessários para a compreensão da


América Latina por uma teoria materialista do Estado. Adianta-se que há necessidade de
avançar em pressupostos teóricos que permitam (re)construir a teoria do Estado a partir das
características de desenvolvimento histórico da região. Isso é importante, em especial, devido
ao estado da arte, quando a teoria clássica já não dá cabo às formas de relações internacionais,
a mundialização do capital, a degeneração do espaço público pela intervenção do privado etc.

Em seguida, tendo em vista as diversas teorias do Estado criadas a partir da


experiência latino-americana, pretende-se compreender os elementos de distanciamento e
contribuição a partir dos seguintes pensamentos: (i) dependentismos, (ii) John Holloway, (iii)
o debate do populismo inaugurado por Ernesto Laclau e, por fim, (iv) Álvaro Garcia Linera.
A medida do impacto de tais teorias é sentida, (i) pelo grau de originalidade diante das formas
institucionais da ação política, envolvendo as formas de organização social, política e jurídica
características dos povos latino-americanos; (ii) pelo grau de fortificação dos povos e grupos
oprimidos na região, bem como da classe trabalhadora; e, por fim, (iii) pelo grau de referência
no debate internacional sobre a ação do Estado e dos governos.

Por fim, na terceira, será reconstruído o debate teórico sobre as potencialidades de


transição de organizações sociais a partir da experiência Latino Americana. Tendo como
17

ponto de partida o referencial teórico construído, o que possibilitará reconhecer o grau do


desenvolvimento da forma política.

Reconhece-se que é necessário pensar a América Latina a partir de uma teoria que
permita tais respostas sem necessariamente se tornar uma imposição de modelos. Não há um
molde para o conteúdo que delineie de forma supra-histórica, como advertiu Marx no texto de
epígrafe a essa Introdução.

E esse problema vai nos acompanhar por todas as páginas da investigação: pensar a
materialidade da formação social periférica, na América Latina, não apenas como objeto
descritivo. Pretende-se pensar como podem as teorias a partir da América Latina contribuir
para a superação da opressão vista dia a dia, sentida por todos os que, como latino-
americanos, devem tomar consciência do seu papel de explorados e oprimidos.
18

1. ESTADO E DIREITO: DERIVAÇÃO DAS FORMAS

The particular existence of the state is, therefore,


not an obvious matter – not even in a class society.

Wolfgang Müller; Christel Neusüss.10

Para compreender fenômenos jurídicos e políticos que atingem a América Latina,


tais como a transnacionalização do capital, a mundialização dos interesses privados, as
relações internacionais, bem como o sistema de Estados capitalistas, também conhecido como
“globalização”, é necessário estabelecer os pressupostos de uma Teoria do Estado e de sua
correlação com o direito. Se muitas teorias são oferecidas para, a partir delas, pensar seus
elementos constitutivos (soberania, povo, território e finalidade, para alguns),11 partimos do
pressuposto de que o modelo da teoria clássica já não dá respostas para pensar o Estado,
muito menos o latino-americano.12

Um referencial teórico materialista envolveria a consideração da totalidade social na


construção da forma política latino-americana. Assim, é importante a retomada do debate da
derivação do Estado (Staatsableitungsdebatte) com base no materialismo histórico. Na

10
MÜLLER, Wolfgand; NEUSÜSS, Christel. The ‘Welfare-State Illusion’ and the contradiction between wage
labour and capital. In: HOLLOWAY, John; PICCIOTTO, Sol (Eds.). State and capital: a marxist debate.
Londres: Edward Arnold, 1978, p. 37.
11
Camilo Caldas trata dos elementos constitutivos, apresentando uma leitura materialista de cada um deles,
destacando que não é uníssona a forma quadrangular de constituição (CALDAS, Camilo Onoda. O Estado. São
Paulo: Estúdio Editores, 2014, pp. 31-43). A importância de tais elementos para se pensar a América Latina vai
muito além de questões acadêmicas. A correlação entre Estados-nação tem implicado em repensar tais elementos
ligando-os, por exemplo, à autonomia da decisão sobre os sistemas energéticos, em especial o petróleo. A partir
de 2006, o Brasil teve tal porta aberta com a descoberta da zona do pré-sal, reascendendo o debate sobre a
soberania sobre os recursos minerais em seu território, levando o país a solicitar à ONU o aumento de sua
plataforma continental para sua exploração (BERCOVICI, Gilberto. Direito Econômico do petróleo e dos
recursos minerais. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 207-295; BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado
de exceção permanente: atualidade de Weimer. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004) Ainda, sobre o povo,
pensar os elementos constitutivos do Estado nos permitiriam compreender as decisões de apoio popular a
demandas prejudiciais à classe trabalhadora, mas apoiada por esta, em diversos países da região, como no caso
do plebiscito colombiano que negou acordo com as FARC’s para solucionar décadas de guerra no país, ou
mesmo o apoio popular a golpes de Estado contra as chamadas “esquerdas”, como é o caso do impeachment de
Dilma Roussef em 2016 (MASCARO, Alysson Leandro. Crise brasileira e direito. Margem Esquerda. São
Paulo: Boitempo, 2015, n. 25, p. 66-91; MASCARO, Alysson Leandro. Políticas e geopolíticas do direito.
Megafón. Buenos Aires: CLACSO, nº 6, mai. 2016). Não nos deteremos nesse momento neste ponto, o que
poderá ser tratado no futuro próximo.
12
Sobre o pressuposto de insuficiência do modelo da teoria do Estado clássica para pensar a América Latina:
PEREIRA, Luiz Ismael. Teoria Latino-americana do Estado: a insuficiência do modelo democrático e críticas.
Revista Eletrônica Direito e Política. Itajaí: UNIVALI, 2013, v. 8, n. 1, pp. 566-567.
19

atualidade, pensar o Estado – e especificamente o latino-americano – envolve duas questões


básicas: a primeira, pela especificidade das formas sociais que constituem diferentes espaços
geográficos; e, a segunda, pelas fortes mudanças introduzidas com a mundialização dos
interesses do capital.13

De modo geral, a construção da teoria política a partir do método materialista


compreende a derivação da forma política e jurídica a partir da forma mercantil. Para alguns,
essa derivação será imediatamente lógica, isto é, a forma mercantil se utiliza dos aparelhos
políticos e jurídicos de maneira imediata para a circulação do capital, segundo as vontades
deste. Para outros, a derivação será uma relação de fatos sociais que são construídos
historicamente a partir da separação entre Estado e Política.

Os pressupostos de compreensão do Estado, em especial na América Latina, já não


possuem sentido quando afastados do materialismo histórico e dialético. Essa falta de sentido
decorre dos ganhos metodológicos e de conteúdo que surgem a partir da tradição filosófica
marxista e das obras marxianas. Portanto a teoria materialista do Estado, desenvolvida a partir
da compreensão da derivação das formas mercadoria, política e jurídica tende a dar conta da
complexidade das relações político-estatais e não-estatais.

Como ganho metodológico, em superação da epistemologia idealista, o materialismo


histórico compreende a dinâmica da alteração dos aparelhos de Estado em suas expressões
ideológicas ou repressivas. Pensar o Estado pelo materialismo histórico permitiu a uma
mudança de visão do próprio Marx sobre as potencialidades de revolucionarização do Estado
e dos meios de produção, não mais pelo centro do capitalismo, mas a partir da periferia.
Aprimorando-se gradativamente, o método marxiano foi fundamental para esse ganho de
conteúdo na compreensão do Estado a partir do século XX.

O debate da derivação do Estado, com base nos textos marxianos de maturidade14 e


na teoria jurídica de Evgeni Pachukanis,15 encontra-se neste caminho. Cabe, então, a

13
BERCOVICI, Gilberto. Teoria do Estado e Teoria da Constituição na Periferia do Capitalismo: Breves
Indagações Críticas. In: NUNES, António José Avelãs; COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. (Orgs.).
Diálogos Constitucionais: Brasil/Portugal. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 265; PEREIRA, Luiz Ismael.
Teoria Latino-americana do Estado: a insuficiência do modelo democrático e críticas. Revista Eletrônica
Direito e Política. Itajaí: UNIVALI, 2013, v. 8, n. 1, pp. 566-567; ERKERT, Jonathan Erik von; PEREIRA,
Luiz Ismael. Teoria do Estado no pensamento clássico e na teoria materialista: aspectos históricos. Revista
Direito Mackenzie. São PAULO: UPM, v. 7, n. 1, 2013, pp. 142-147; EVERS, Tilman. El Estado em la
periferia capitalista. 5.ed. Cidade do México: Siglo Veintiuno, 1989, p. 9.
14
Sobre o corte epistemológico na produção marxiana, por todos: NAVES, Márcio Bilharinho. Marx: ciência e
revolução. São Paulo: Quartier Latin, 2008.
20

compreensão das críticas ao modelo dos filósofos clássicos da teoria do Estado, para utilizar
uma expressão de Martin Carnoy, bem como à derivação simplesmente derivação lógica do
capital para lançar caminho para a compreensão de uma teoria materialista do Estado com
base em uma ciência histórica.16

Num rápido contexto histórico,17 o debate da derivação que surge na Alemanha do


Pós-45 contou com aspectos políticos, sociais e teóricos para seu surgimento. É possível
dividir tais aspectos em dois grupos: um primeiro, envolvendo um entorno teórico que
motivará uma crítica à esquerda do próprio movimento marxista que caminhava para a ilusão
do Estado intervencionista; e, um segundo, envolvendo as circunstâncias históricas.

No entorno teórico, é preciso destacar que tais “pré-condições históricas”18 estão


relacionadas com a efervescência europeia do início do século XX. Primeiro, as experiências
de totalitarismo (nazismo e fascismo) impactaram na produção do marxismo que se
desenvolvia nas décadas de 1920 e 1930 na Alemanha em torno do Instituto de Pesquisa
Social. Com tais experiências, a chamada Escola de Frankfurt transfere-se para os Estados
Unidos da América, dando continuidade à teoria crítica da sociedade, inicialmente marxista,
mas que aos poucos vai abandonando conceitos como luta de classes, revolução etc.,
caminhando para uma crescente confiança na democracia. Essa modificação é anotada por
Leonardo Avritzer como uma mudança no diagnóstico que fazem da sociedade:

15
PACHUKANIS, Evgeni. Teoria geral do direito e marxismo. Trad. de Silvio Donizete Chagas. São Paulo:
Acadêmica, 1988.
16
ALTVATER, Elmar; HOFFMAN, Jürgen. The West german State derivation debate: the relation between
Economy and Politics as a problem of marxist State theory. Social Text. Duke University. Nº 24, 1990, pp. 151-
152; CALDAS, Camilo Onoda. Teoria da derivação do estado e do direito. São Paulo: Outras
Expressões/Dobra Universitária, 2015, pp. 150-157; HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado:
processos de transformação do sistema capitalista de Estados. Tradução de Luciano Cavini Martorano. Rio de
Janeiro: Revan, 2010, pp. 20-22; MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo,
2013, pp. 28-30.
17
Para um contexto mais detalhado e que leva em consideração todos os aspectos, é imprescindível a leitura de
dois textos acima citados: um artigo de autoria de Elmar Altvater e Jürgen Hoffman (1990) e, no Brasil, a obra
de Camilo Onoda Caldas (2015), fruto de seu doutoramento. Ambos os textos dão conta do contexto histórico,
cronologia de trabalhos e as correntes teóricas em oposição àquelas tidas como marxistas. Cf: ALTVATER,
Elmar; HOFFMAN, Jürgen. Op. cit., pp. 135-141; CALDAS, Camilo Onoda. Op. cit., pp. 39-82. Destaca-se,
ainda, os apontamentos do texto que dará início ao debate da derivação e que já pontuava os equívocos teóricos
contra os quais o marxismo deveria se voltar: Cf. MÜLLER, Wolfgand; NEUSÜSS, Christel. The ‘Welfare-State
Illusion’ and the contradiction between wage labour and capital. In: HOLLOWAY, John; PICCIOTTO, Sol
(Eds.). State and capital: a marxist debate. Londres: Edward Arnold, 1978, p. 35.
18
ALTVATER, Elmar; HOFFMAN, Jürgen. Op. cit., p. 134.
21

A relação entre a teoria crítica e a teoria democrática é permeada por um


paradoxo que pode ser enunciado nos seguintes termos: por um lado, a teoria
crítica, especialmente a teoria habermasiana, é cada vez mais compreendida
como uma teoria da democracia; por outro, o momento de constituição da
teoria crítica nos anos 30 foi um momento de assalto à democracia e de
profunda revisão da prática democrática, tal como ela havia sido proposta
durante o século XIX. A teoria crítica não teve no momento da sua
constituição qualquer pretensão de se constituir em uma teoria da
democracia. Ao contrário, em suas duas fases principais nesse período ela irá
se auto-entender ou como uma teoria da emancipação ou como uma teoria
acerca da impossibilidade da emancipação.19

O Instituto de Pesquisa Social, inicialmente sediado em Frankfurt, não pode


propriamente ser chamado de Escola, porque não há uma coesão e construção teórica que
unifique os mais diversos pensamentos. Muito menos chamada de Teoria Crítica, como se
apenas houvesse apenas uma ideia construída no passar dos anos. Como lembra Leonardo
Avritzer, a primeira fase da chamada teoria crítica era simpática aos ganhos democráticos, e
assim permaneceu até a década de 1970, quando as ideias de Habermas passam a ganhar
espaço. Será exatamente essa fase de confiança nas instituições e da introdução do objeto do
espaço público que impactará em uma reação dos derivacionistas.

Segundo, a ideia construída pelo stalinismo de Estado como instrumento da classe


dominante, retirando a questão central da especificidade do Estado no capitalismo, o que de
certa forma serviu para as teorias marxistas revisionistas; terceiro, a teoria do capitalismo
monopolista de Estado (Staatsmonopolistischer Kapitalismus – Stamocap), onde o
capitalismo teria entrado numa nova fase, em que os monopólios passariam a dominar os
aparatos estatais, o que levaria a uma aliança com certa parcela da burguesia, gerando os
ideias a socialdemocracia.

Terceiro, a obra de Poulantzas no marxismo ocidental,20 em especial as propostas de


visão sobre a autonomia relativa do Estado em relação à economia, gerou forte impacto e
polêmica na época, em especial com Ralph Miliband. Embora Poulantzas tenha razão ao

19
AVRITZER, Leonardo. Teoria crítica e teoria democrática: do diagnóstico da impossibilidade da democracia
ao conceito de esfera pública. Novos Estudos. São Paulo: CEBRAP, nº 53, mar. de 1999, p. 167.
20
É possível perceber uma forte alteração na concepção do Estado no Poulantzas de 1968, quando publica Poder
político e classes sociais, em relação ao de 1978, em O Estado, o poder e o socialismo. Adriano Codato chega a
falar na existência de três Poulantzas (CODATO, Adriano. Poulantzas 1, 2, 3. In: ______; PERISSINOTO,
Renato. Marxismo como ciência social. Curitiba: UFPR, 2011, p. 99).
22

compreender o Estado como “estrutura responsável pela coesão social”,21 focará unicamente
nas classes, “na ‘anatomia’ da sociedade civil”,22 sem adentrar na análise do próprio capital,
sua autorreprodução, a mais-valia etc. O politicismo de Poulantzas marcará uma análise que
compreende o Estado como separado da compreensão dos fatores econômicos específicos do
capitalismo.

Nas questões históricas, deve-se destacar três fatores em especial: primeiro, o


chamado “milagre” alemão, pelo qual a socialdemocracia conseguiu ascender ao poder
político e reorganizar a economia alemã, juntamente com o iluminado keynesianismo. Com o
apoio dos Estados Unidos da América, o PIB alemão passa a crescer, reabertura para o
mercado internacional e a atração de “cérebros” para a retomada tecnológica do país.

Segundo, em decorrência desses avanços no campo econômico, financiados pela


ideologia estadunidense, a esquerda passou a ser perseguida, gerando um amplo consenso de
“marginalização, de fato criminalização, da esquerda”.23

Terceiro, o movimento estudantil de 1968 provocou uma nova forma de luta e visão
sobre a atuação do Estado. Seja pela constituição formal da Assembleia como assalto aos
céus, seja pelos discursos heterogêneos que lutavam pela hegemonia da política, o movimento
estudantil significou uma rebelião estudantil; uma greve geral, pois diversos setores
organizados de trabalhadores passaram a apoiar os estudantes; liberdades dos costumes; e, por
fim, a busca de uma outra concepção da política. Essa nova forma de prática social passa
também a influir na compreensão das formas sociais e na forma política.24

21
CALDAS, Camilo Onoda. Teoria da derivação do estado e do direito. São Paulo: Outras Expressões/Dobra
Universitária, 2015, p. 61.
22
Na obra que marca a entrada do debate da derivação entre os intelectuais britânicos, John Holloway e Sol
Picciotto marcam esse erro de Poulantzas: “Poulantzas fails, however, to focus on the relation between political
forms and the ‘anatomy’ of civil society. His view, stated at the beginning of his first major book (1973, p. 29),
that capitalist society is characterized by a relative autonomy of the economic and political ‘instances’ which
allows one to make each instance a separate and specific object of study leads him to neglect the all-important
question of the nature of the separation of and relation between these instances. Naturally he accepts that the
separation of the two instances is not total, but he relegates their unity to a problematic ‘in the last instance’,
never dealing with the relation between them in more than an allusory and cursory fashion” (HOLLOWAY,
John; PICCIOTTO, Sol. Introduction: Towards a materialist theory of the state. In: ______; ______. (Eds.).
State and capital: a marxist debate. Londres: Edward Arnold, 1978, pp. 5-6).
23
ALTVATER, Elmar; HOFFMAN, Jürgen. The West german State derivation debate: the relation between
Economy and Politics as a problem of marxista State theory. Social Text. Duke University. Nº 24, 1990, p. 134.
24
Sobre os impactos do maio de 1968 sobre o pensamento da esquerda mundial: BADIOU, Alan. A hipótese
comunista. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2012.
23

Todos esses fatores teóricos e históricos levaram ao questionamento de intelectuais


marxistas que não viam os reais instrumentos para a compreensão da estruturação e atuação
do Estado no capitalismo, nem nas teorias clássicas, nem mesmo no marxismo revisionista.
Como veremos adiante, eles proporão elementos teóricos que constituirão a própria teoria
materialista do Estado, a partir das especificidades histórico-culturais próprias do capitalismo.

Assim será pensada a teoria materialista do Estado. Nas palavras de Joachim Hirsch,
“[ela] não é uma construção teórica fechada. Ao contrário, ela compreende análises bem
diferenciadas. O que elas tem em comum é a referência, sempre específica, ao materialismo
histórico desenvolvido por Marx e à sua crítica da economia política”. Mais adiante afirma:
“A ‘derivação do Estado’ não constitui, assim, nenhuma teoria do Estado pronta, porém
apresenta o seu ponto de partida fundamental”.25 Seu desenvolvimento somente fora possível
a partir do debate da derivação dos quais participaram nomes como o próprio Joachim Hirsch,
Elmar Altvater, Wolgang Müller, Christel Neusüss, Heide Gerstenberger, John Holloway e
Sol Picciotto, para citar alguns.

Agora, veremos como a insuficiência do modelo clássico de Estado, então, motivará


também a busca de uma teoria que dê os contornos metodológicos necessário para a leitura da
América Latina. Como já adiantamos, metodologia essa que se baseará em voltar os olhos
para a derivação proveniente das categorias econômicas lançadas por Marx, em especial, n’O
capital.

1.1 Insuficiências do modelo clássico

O Renascimento europeu, com toda significação revolucionária que trouxe para o


conhecimento político e filosófico, encarregou-se de espalhar pelo mundo as ideias de um
Estado centralizado e organizado segundo um contrato social, num primeiro momento
hegemônico, e depois por um Estado centralizador e forte, auto-constituinte. Nas palavras de
Hegel, o responsável por pensar o Estado nos traços positivistas, “o racional em si e para si”.26
Tratou-se de uma verdadeira profissão de fé na desestabilização das nações conquistadas. A

25
HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado: processos de transformação do sistema capitalista de
Estados. Tradução de Luciano Cavini Martorano. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 19 e 31.
26
HEGEL, G. W. F. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 177. Sobre o
significado e extensão do conceito de Hegel para o Estado, a mudança de paradigma em relação ao
Contratualismo, bem como sua influência sobre o positivismo que viria: MASCARO, Alysson Leandro.
Filosofia do direito. São Paulo: Atlas, 2010, pp. 237-266.
24

partir de então, “o Estado como forma de dominação”, com todo o “aparato de poder
autônomo e centralizado, separado da ‘sociedade’ e da ‘economia’” passa a popular a
produção intelectual.27

O estudo da formação dos Estados latino-americanos é um capítulo específico nas


disciplinas que os tomam como objeto de estudo como a História, Ciência Política, a
Sociologia, a Economia e o Direito Político e Econômico. Isso decorre por razões simples: a
colonização da América Latina forjou-se por ações do centro europeu de decisão política a
partir do século XV. A formação do Estado europeu está entrelaçada por séculos de relações
históricas entre classes que, na América, só desembarcou com a invasão que insere a região
aos seus olhos.

Esse talvez seja o principal ponto de passagem da ideia tradicional de Modernidade


para uma nova concepção, nessa já incluída a América: o start over para a nova cosmovisão
está ligado às Revoluções que alteram drasticamente os meios de produção, as formas de
interação da sociedade e do trabalho, bem como cria o conceito de indivíduo. Será a invasão
do Continente que criará as condições para formação dos valores políticos na Europa: a
totalização colonialista, genocídio, exploração, evangelização e dominação darão os arcanos
do ego conquiro e, ainda, o ego extermino.

O ego cogito moderno foi antecedido em mais de um século pelo ego


conquiro (eu conquisto) prático do luso-hispano que impôs sua vontade (a
primeira “Vontade-de-poder” moderna) sobre o índio americano. A
conquista do México foi o primeiro âmbito do ego moderno.28

Enrique Dussel defende a existência de um impacto na construção da teoria do


conhecimento europeia a partir das experiências de conquistas e genocídios iniciados no séc.
XV. A separação entre sujeito e objeto, somente surgirá nos sistemas filosóficos (positivistas)
27
HIRSCH, Joachim. ¿Qué significa Estado? Reflexiones acerca de la teoria del Estado Capitalista. Revista
Sociologia e Política. Curitiba: UFPR, nº. 24, jun. 2005, p. 165. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-44782005000100011. Acesso em: 16 fev. 2017.
28
DUSSEL, Enrique. Europa, modernidade e eurocentrismo. In: LANDER, Edgardo (Org.) A colonialidade do
saber: Eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. São Paulo: CLACSO, 2005, p. 28. Ver,
ainda, sobre a importância das conquistas na teoria do conhecimento do século XVI: GROSFOGUEL, Ramón.
Racismo/sexismo epistémico, Universidades occidentalizadas y los cuatro genocídios/epistemicidos del largo
siglo XVI. Tabula Rasa. Bogotá, Universidad Colegio Mayor de Cundinamarca, nº19, jul./dez. 2013, pp. 32-58,
em destaque pp. 41-50; PEREIRA, Luiz Ismael. Teoria Latino-americana do Estado: a insuficiência do modelo
democrático e críticas. Revista Eletrônica Direito e Política. Itajaí: UNIVALI, 2013, v. 8, n. 1, pp. 563, nota 2.
25

com René Descartes, em 1637 (o cogito, pelo qual “penso, logo existo”). A nova filosofia da
subjetividade passa a reconhecer um mundo corpóreo separado do sujeito. A consciência, a
partir desse ponto, passa a dar atenção, tanto para si, como para o objeto e, ainda, para a
consciência do objeto. O mundo passa a ser reconhecido e existe a partir do olhar do sujeito.

Por isso, para Dussel haveria uma antecipação em cerca de um século do cogito
cartesiano. Como observado por Edgardo Lander, o racionalismo surge como “perspectiva de
conhecimento sustentada sobre o dualismo radical cartesiano, que se converte em uma total
separação entre ‘razão/sujeito’ e ‘corpo’, a partir da qual o ‘corpo’ foi naturalizado, fixado
como ‘objeto’ de conhecimento, por parte da ‘razão/sujeito’”.29

E o que foram as invasões da América, senão um reconhecimento da Europa de


terras que, por sua “inferioridade” civilizatória deveria ser dominada, explorada, dividida e
colonizada? É o reconhecimento de sua posição histórica, de sua diferença com o ameríndio,
bem como da existência daquele e de suas riquezas que caracterizam a exploração da
América. O sujeito que reconhece a existência de um Outro. A distância entre o mesmo e o
diferente surge, para Dussel, a partir da realidade já observada com as invasões da América.

Aqui vale lembrar o Feuerbach de Engels, texto no qual ele demonstrará o


distanciamento da dialética marxiana em relação à de Hegel. Engels apontará que a alteração
de uma filosofia, não é propriamente filosófica, como comenta Althusser.30 A filosofia – e
também a filosofia idealista de Descartes, Fichte, Leibniz e Hegel – se modifica devido à
materialidade histórica, a partir do surgimento de novos paradigmas científicos, ou, nas
palavras de Engels, “o progresso poderoso e sempre mais rapidamente impetuoso da ciência
da Natureza e da indústria”.31 A técnica e a contingência dão ao mundo o conhecimento de

29
LANDER Edgardo. Marxismo, eurocentrismo e colonialismo. In: BORON, Atílio A.; AMADEO, Javier;
GONZÁLEZ, Sabrina. A teoria marxista hoje: problemas e perspectivas. São Paulo: CLACSO/Expressão
Popular, 2006, p. 206.
30
“O desenvolvimento da filosofia não é filosófico; foram as “necessidades práticas de sua luta” religiosa e
política que forçaram os neo-hegelianos a se opor ao “sistema” de Hegel (p. 12); é o progresso das ciências e da
indústria que perturba as filosofias (p. 17)” (ALTHUSSER, Louis. Por Marx. Tradução de Maria Leonor F. R.
Loureiro. Campinas: Unicamp, 2015, p. 103, nota 5).
31
“Os filósofos, porém, neste longo período de Descartes até Hegel e de Hobbes até Feuerbach, de modo
nenhum foram impelidos para diante apenas, como acreditavam, pela força do puro pensamento. Pelo contrário.
O que, na verdade, os impeliu para diante foi, nomeadamente, o progresso poderoso e sempre mais rapidamente
impetuoso da ciência da Natureza e da indústria. Nos materialistas, isto mostrava-se logo à superfície, mas
também os sistemas idealistas se encheram cada vez mais com um conteúdo materialista e procuraram conciliar
a oposição de espírito e matéria panteisticamente; de tal modo que, finalmente, o sistema de Hegel representou
apenas um materialismo, segundo método e conteúdo idealistamente posto de cabeça para baixo [auf den Kopf]”
(ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. In: MARX, Karl; ENGELS,
Friedrich. Obras Escolhidas. Tomo III. Tradução de José Barata-Moura. Lisboa: Edições Progresso, 1982, pp.
26

novas questões incorporadas pelo filósofo. A partir de novas considerações ou de novos


objetivos considerados, há mudanças impactantes no que e como pensar. Isso vem ao
encontro da tese aqui apresentada: a experiência de dominação sobre povos e terras latino-
americanos causará um motivo para se pensar na dominação do objeto pelo sujeito.

Destaca-se que essa conquista iniciada pela invasão demonstrou a diferença


qualitativa entre a civilização pré-colombiana residente no que se chamaria América, diante
do atraso dos Estados Europeus: seja nas ciências, na filosofia, ou mesmo nos meios de
comunicação para a sustentação de um verdadeiro Império, os povos daqui superaram, mas,
em sua maioria, foram exterminados pela única cultura possível na Europa Medieval: a da
guerra.32

O direito e a política se encarregaram de espalhar as ideias renascentistas e pós-


renascentistas para o mundo. Em regra, ideias estas que se concentraram num Estado
centralizado e organizado segundo um contrato social, racionalizado pela atuação técnica do
governante, focado na realização das liberdades individuais, conforme pensado por
Maquiavel, Jean Bodin, Hobbes, Althusius, Locke, dentre outros. A partir de então, “o Estado
como forma de dominação”, com todo o “aparato de poder autônomo e centralizado, separado
da ‘sociedade’ e da ‘economia’” passa a popular a produção intelectual.33

Cabe destacar que não há uma relação lógica no aparecimento histórico sequencial
do Estado a partir do capitalismo. Como destaca Hirsch, houve situações históricas que se
desenvolveram a partir da Idade Média, as quais culminaram no aparecimento simultâneo do
Estado e do capitalismo: na sociedade medieval, “não havia qualquer sistema jurídico próprio,
nem um domínio separado da esfera econômica”.34 A característica de relações abertas de
violência bélica que povoava a Europa gerou a necessidade da especialização das esferas de
proteção por parte dos principados. Para fortalecer os mecanismos de “coerção armada”35
houve necessidade de maior extração de recursos e, para seu controle e administração, a

378-421. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1886/mes/fim.htm#tr3. Acesso em: 20 mai.


2016).
32
MUÑOZ, Augusto Trujillo. ¡El Estado ha muerto. Viva el Estado!. Universitas. Bogotá: Pontificia
Universidad Javeriana, 2010, nº 120, pp. 87-88.
33
HIRSCH, Joachim. ¿Qué significa Estado? Reflexiones acerca de la teoria del Estado Capitalista. Revista
Sociologia e Política. Curitiba: UFPR, nº. 24, jun. 2005, p. 165.
34
HIRSCH, Joachim. Teoria Materialista do Estado: processos de transformação do sistema capitalista de
Estados. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 62.
35
Idem Ibidem, p. 64.
27

criação de um corpo de funcionários sob as ordens dos príncipes. O crescimento do


“conhecimento jurídico especializado” e a irreversível “profissionalização jurídico-
administrativa”36 levaram à busca de uma carreira (efeito psicológico sobre o corpo de
funcionários), bem como a funcionalidade do Direito para a proteção do capital que se
formava, bem como do Estado que o criara.

Embora não se possa dizer propriamente na existência de um Estado Medieval,


foram essas confluências históricas do período que levaram ao surgimento do Estado lado a
lado com o sistema capitalista. Isso não entra em contradição com o momento de
aparecimento da burguesia como classe influente a partir das revoluções burguesas. A
implantação do Estado como espaço de interesse comum separado da sociedade teve sua
implantação final no momento das revoluções, embora alguns indiquem a existência de “uma
sociedade burguesa nesse período, ainda que apenas em forma germinal”.37-38

Como produto típico da modernidade, o Estado-nação foi projetado primeiro


e logo exportado pela Europa ao resto do mundo, em um processo que
quebrou o ritmo social dos povos da América e feriu suas potencialidades
culturais e políticas. Marcou-os com a marca de uma dependência espiritual
e econômica que os obrigou a crescer com o centro de gravidade situado
lado de fora. Talvez ninguém, exceto Bolívar, foi consciente do alcance
desses acontecimentos.39

A Teoria do Estado Latino-americano sofreu grande influência dessa Modernidade


inserida no imaginário regional. O fetichismo eurocentrista afetou o pensamento dos que
pretendiam produzir uma teoria de acordo como a visão periférica. Essa colonização inserida,
também, nos intelectuais do direito e da ciência política chega a tornar nossa produção uma

36
Idem Ibidem, p. 65.
37
Idem Ibidem, pp. 55-67.
38
Ainda sobre o tema, e avançando nas origens históricas da formação do ideal burguês: “Seria impossível e, por
isso, ingenuidade falar na formação da burguesia durante a Antiguidade Clássica. A classe mercantil, que nasceu
nas feiras da Europa Medieval, nos chamados burgos, não existia durante o sistema escravagista da Grécia
Antiga. Mas esse fato não nos desautoriza a entender que o ideal burguês – ou aristocrático, para Jaeger – já
nascerá lá [...] é possível pensar na formação de um embrião na Antiguidade Clássica que formaria, futuramente,
a burguesia: seus medos, suas buscas, suas preocupações e seus padrões morais” (PEREIRA, Luiz Ismael. Os
valores político-jurídicos na epopéia homérica: uma leitura jusfilosófica da Ilíada e da Odisséia. Anais do XX
Congresso do CONPEDI. Victória: CONPEDI, 2011, p. 7339).
39
MUÑOZ, Augusto Trujillo. ¡El Estado ha muerto. Viva el Estado!. Universitas. Bogotá: Pontificia
Universidad Javeriana, 2010, nº 120, p. 93.
28

caricatura de trabalhos europeus sobre as relações do Estado com o povo, a soberania, a


separação de poderes, os movimentos sociais, a democracia e a cidadania.

O centro de produção capitalista, a Europa, implementou uma eficiente forma de


dominação com a colonização: entrelaçou a [com]formação dos novos Estados de acordo com
sua economia. Assim, os países da América “deveriam assegurar o monopólio da força sobre
a totalidade do território, terminando com aborígenes e forças irregulares que provinham de
expressões locais derrotadas”.40 As metrópoles “desenvolviam-se economicamente à custa da
periferia colonizada”.41

Edgardo Lander destaca a dialética existente nas produções do que chama de


“sociedades do Norte” em oposição à realidade latino-americana rica em situações que não se
adéquam às imposições hegemônicas de doutrinas. Ainda assim, desde o histórico das
invasões, não cessam de forçar a adequação da realidade à doutrina. Essa é a tática de guerra
imposta contra a cultura ameríndia, criando uma nova população que serviu enquanto
dominados político e ideologicamente:

Além da diversidade de suas orientações e de seus variados contextos


históricos, é possível identificar nestas correntes hegemônicas um substrato
colonial que se expressa na leitura destas sociedades a partir da cosmovisão
européia e seu propósito de transformá-la à imagem e semelhança das
sociedades do Norte, que em sucessivos momentos históricos serviram de
modelo a ser imitado.

No entanto, produziram-se igualmente outras correntes de pensamento e


outras opções de conhecimento sobre a realidade do continente, a partir das
margens, na defesa de formas ancestrais, alternativas, de conhecimento,
expressão da resistência cultural, ou associadas às lutas políticas e/ou de
mobilização popular. [...] A descolonização do imaginário e a
desunizersalização das formas coloniais do saber aparecem assim como
condições de toda transformação democrática radical destas sociedades.42

40
THWAITES REY, Mabel; CASTILLO, José. Desarrollo, dependência y Estado en el debate latinoamericano.
Araucaria. Sevilla: Universidad de Sevilla, primer semestre 2008, año/vol. 10, nº 019, p. 28.
41
HIRSCH, Joachim. Teoria Materialista do Estado: processos de transformação do sistema capitalista de
Estados. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 93.
42
LANDER Edgardo. Marxismo, eurocentrismo e colonialismo. In: BORON, Atílio A.; AMADEO, Javier;
GONZÁLEZ, Sabrina (Org.). A teoria marxista hoje: problemas e perspectivas, pp. 202-203.
29

Um dos problemas para o desenvolvimento de uma nova Teoria do Estado Periférico,


e aqui se destaca a deficiência brasileira, reside na dificuldade de libertação do fetichismo
constitucional, neoconstitucional ou pós-constitucional, o que se insere no juspositivismo
ético, para utilizar uma expressão já consagrada de Alysson Leandro Mascaro. A propósito,
como destaca José Luís Fiori, fica clara essa demora na libertação, pois “pelo menos até os
anos 60, a reflexão sobre o Estado na América Latina teve uma conotação predominantemente
ideológica ou estratégica, sendo pequeno o espaço dedica aos estudos descritivos, às análises
histórico-comparativas ou à sua conceituação teórica”.43

Apegamos sobremaneira à dicotomia Constituição-realidade, depositando no Poder


Judiciário, tanto a guarda da Constituição – seja por meio do modelo de controle de
constitucionalidade das normas estadunidense, seja o austríaco kelseniano –, quanto das
realidades sociais que devem, segundo a tradição, adequar-se ao ideal constitucional. A teoria
do Estado está, assim, invertida: do ideal para o real, segundo o sistema idealista.

A Teoria da Constituição no Brasil ainda está presa a visões tradicionais e


insuficientes. A maior parte da doutrina brasileira continua a entender o
nosso dilema constitucional dentro dos tradicionais parâmetros da dicotomia
Constituição e realidade mantendo uma visão extremamente otimista, para
não dizer ingênua, do Poder Judiciário como a grande esperança da
Constituição de 1988.44

Conforme Bercovici propõe, “a Teoria da Constituição deve ser entendida na lógica


das situações concretas históricas de cada país”,45 sob pena de entrar no equívoco da
colonização do imaginário do Estado. Vale dizer, não cabe, apenas, o estudo de temas ligado à
realidade constitucional alemã, estadunidense, francesa ou de qualquer país do “Norte”, mas o
estudo da realidade do Estado em que foram desenvolvidas. Sendo que “a existência histórica
e concreta do Estado soberano é pressuposto, é condição de existência da Constituição”,46

43
FIORI, José Luís. Para uma crítica da Teoria Latino-Americana do Estado. In: ______. Em busca do dissenso
perdido: Ensaios críticos sobre a festejada crise do Estado. Rio de Janeiro, Insight, 1995, p. 1.
44
BERCOVICI, Gilberto. Teoria do Estado e Teoria da Constituição na periferia do capitalismo: Breves
indagações críticas. In: NUNES, António José Avelãs; COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Orgs.).
Diálogos Constitucionais: Brasil/Portugual. Rio de Janeiro, São Paulo, Recife: Renovar, 2004, p. 264.
45
BERCOVICI, Gilberto. Teoria do Estado e Teoria da Constituição na periferia do capitalismo: Breves
indagações críticas. In: NUNES, António José Avelãs; COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Orgs.).
Diálogos Constitucionais: Brasil/Portugual. Rio de Janeiro, São Paulo, Recife: Renovar, 2004, p. 265.
46
Idem Ibidem, p. 267.
30

somente uma teoria materialista será legítima para a configuração dos institutos ligados às
Funções do Estado, a participação na produção normativa entre tais Funções, a participação
da própria população no andamento da democracia plena, o papel de movimentos sociais, o
fomento da atividade produtiva, a Economia e, por último, mas nunca menos importante, a
produção de justiça social – que, por definição, só existe segundo a própria sociedade.

Essa teoria materialista do Estado enxerga criticamente a formação do Estado como


um complexo de relações sociais, bem como os meios necessários para superá-lo. Como visto,
compreende e parte do pressuposto da separação entre “Estado” e “sociedade”, “público” e
“privado”, “economia” e “política” para entender suas formas de dominação que se diferem
das anteriormente observadas na história. Como diz, “deve ser entendido, até certo ponto,
como resultado da luta de classes que operam sobre os agentes, ou seja, da luta pelo
sobreproduto”.47

Claro que seria ingênuo demais desacreditar todo o valor histórico das conquistas
teóricas produzidas no Iluminismo europeu. Deixá-las de lado seria demasiado preocupante,
pois, olhar para elas é o que nos permitirá evitar problemas já vencidos. O passado é
necessário. Tudo o que no presente é contingente, que pode gerar uma consequência política
desastrosa ou progressista, uma vez acontecido, torna-se necessário. O que devemos e
podemos fazer é mudar nosso modo de encarar tais acontecimentos: e relê-los.

Assim, não à toa, a teoria materialista do Estado, produzida segundo os estudos


marxistas, tem ganhado espaço na produção latino-americana. Embora o marxismo e toda
teorização socialista também sejam europeus, apenas nos dão a forma para dar o primeiro
passo na construção da realidade política, nunca o conteúdo: a crítica, a dialética e o
materialismo histórico, com o fim de entender as especificidades sociais e delas partir.48

Sobre sua atualidade, Terry Eagleton afirma que o socialismo não morreu e que não
há motivos para apatia quanto a seus pressupostos teóricos: primeiro, as experiências
vulgarmente conhecidas como socialistas no século XX foram mais um capitalismo de Estado
que outra coisa; segundo, a apatia política da população é um mito, pois o que ocorre é que as
pessoas somente se mostram indiferentes às políticas que são displicentes com elas; terceiro, a
escalada sócio-econômica das classes pobres não significa que são menos explorados, ou, em

47
HIRSCH, Joachim. Teoria Materialista do Estado: processos de transformação do sistema capitalista de
Estados. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 24.
48
EVERS, Tilman. El Estado en la periferia capitalista. 5.ed. Cidade do México: Siglo Veintiuno, 1989, p. 10.
31

outras palavras, não precisam ser empobrecidos e desgraçados para se considerarem classe
necessária à infraestrutura das relações econômicas; quarto, o descrédito da teoria materialista
do Estado – claramente marxista – é falso, não por experiência, mas porque não está posta na
mesa, não se lhe dá voz, não são buscados seus limites; e, por fim, sexto, “o socialismo
tampouco sofre uma bancarrota no sentido de estar carente de ideias”.49

O parágrafo anterior poderia ficar totalmente desacreditado diante do contexto de


produção de uma Teoria (propriamente) Latino-americana do Estado, afinal, um inglês não
falaria para os latinos. Mas diante da história de colonização, exploração, neoliberalismo e
“exceção econômica permanente na periferia do capitalismo”, ações coletivas de cunho
político e, com atenção ao último motivo acima exposto, a produção de pesquisa que é
desenvolvida na periferia do capitalismo, temos tudo para dar crédito ao autor.

Para a conceituação de “exceção econômica permanente da periferia do capitalismo”,


Gilberto Bercovici recorre à teoria de Carl Schmitt, para quem será soberano aquele que
decidir sobre o estado de exceção. Para Schimitt, o Estado torna-se um mero aparelho
burocrático quando “perde o monopólio do poder político e, consequentemente, o poder de se
fazer valer como instância superior”. Conforme Bercovici, na atual supremacia das ideias de
mercado ligadas à autorregulação e sua soberania, “volta à atualidade o pensamento de
Schmitt, que define como soberano quem decide sobre o estado de exceção”. 50 No caso
brasileiro, Bercovici ainda aponta que da atuação do poder constituinte:

O problema central, ignorado pela maior parte de nossos


doutrinadores, é o fato de que a soberania brasileira, como soberania
de um Estado periférico, é uma soberania bloqueada, ou seja, enfrenta
sérias restrições externas e internas que a impedem de se manifestar
em toda sua plenitude... A grande questão, hoje, é a da possibilidade
de concretização do projeto constitucional e da conclusão da

49
EAGLETON, Terry. Um futuro para o socialismo? In: BORON, Atílio A.; AMADEO, Javier; GONZÁLEZ,
Sabrina (Orgs.). A teoria marxista hoje: problemas e perspectivas. São Paulo: CLACSO/Expressão Popular,
2006, pp. 152-156.
50
BERCOVICI, Gilberto. Entre o Estado Total e o Estado Social. São Paulo: Tese (Livre-Docência em Direito
Econômico e Financeiro). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2003, pp. 133 e 145. Ainda, Tilman Evers
sobre a realidade periférica: “Así que la soberania que ostenta el estado hacia fuera y hacia dentro es sólo uma
soberania restringida” (EVERS, Tilman. El Estado en la periferia capitalista. 5.ed. Cidade do Méxco: Siglo
Veintiuno, 1989, p. 9).
32

construção da nação, em um contexto de estado de exceção


econômico permanente a que estamos submetidos.51

No mesmo sentido que Schmitt, Benjamin comenta que o Soberano, ou “quem reina
já está desde o início destinado a exercer poderes ditatoriais, num estado de exceção”.52 Como
destaca Olgária Matos, “se Benjamin considera o capitalismo moderno como estado de
emergência, é justamente por constituir uma zona de delimitação incerta entre democracia e
absolutismo, entre estado de direito e estado de exceção”.53

Esses impasses colocam a necessidade de um giro para a redescoberta de uma teoria


de acordo com nossa realidade de colonização e, por consequência, de exploração. Uma das
formas alternativas para tal é a desenvolvida por Hermann Heller que, segundo Bercovici,
embora seja, ainda, europeu, “o desafio que Heller colocou foi: ou o poder político se liberta
do poder econômico privado, ou as forças econômicas conseguirão o fim da democratização
do poder político”. 54

Essa situação de dependência do poder público em relação ao mercado, o já citado


estado de exceção econômica, intensificou-se com a abertura econômica dos países latino-
americanos no final dos anos 80. O Estado tendo um papel importante na estrutura da
subjetividade dos povos latino-americanos, por esse turno, deve ser pensado a partir de tal
realidade, pois para essa realidade “as instâncias estatais que condensam estes processos
constituem aparelhos poderosos que dia a dia influem em suas vidas e determinam seu
futuro”.55

As políticas neoliberais, que corroeram as bases econômicas, sociais,


políticas e culturais das débeis democracias latino-americanas, tiveram como

51
BERCOVICI, Gliberto. O poder constituinte do povo no Brasil: um roteiro de pesquisa sobre a crise
constituinte. Lua Nova. São Paulo, v. 88, 2013, p. 316 e 319.
52
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo:
Brasiliense, 1984, p. 89.
53
MATOS, Olgária Chain Féres. Democracia e visibilidade: princípio de realidade e estado de exceção. In:
______. Benjaminianas: cultura capitalista e fetichismo contemporâneo. São Paulo: Unesp, 2010, p. 77.
54
BERCOVICI, Gilberto. Entre o Estado Total e o Estado Social. São Paulo: Tese (Livre-Docência em Direito
Econômico e Financeiro). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2003, p. 141.
55
EVERS, Tilman. El Estado en la periferia capitalista. 5.ed. Cidade do Méxco: Siglo Veintiuno, 1989, p. 7.
33

eixo a subordinação cada vez mais profunda à lógica de circulação e


acumulação do capital em escala mundial.56

É essa libertação intelectual, ou autonomia do Estado Latino-americano que temos de


ter em mente frente à necessidade do desenvolvimento. Autonomia que é perdida tanto por
forças externas ao Estado, ainda mais na época da globalização de mercados e de sua
autorregulação (vide o espasmo da crise econômica mundial de 2008), bem como das próprias
pressões internas de movimentos sociais e ações coletivas que sejam liderados,
ideologicamente, pelo mercado, sem contar, por óbvio, com os desvios criminosos próprios da
democracia.

1.2 Questões do debate da derivação.

Camilo Onoda Caldas levanta nove pontos principais levantados com o debate da
derivação. São eles: (i) a especificidade e particularização do Estado no capitalismo; (ii) a
competição entre os capitais individuais (o Estado como capitalista coletivo ideal); (iii) a
análise da forma jurídica, em especial a partir da obra do soviético Pachukanis; (iv) a Escola
Lógica do Capital, inclusive com a distinção de fases de pensamento de parte dos integrantes
do debate; (v) constituição formal e histórica do Estado; (vi) legalidade, ilegalidade e
manutenção do capitalismo; (vii) luta de classes, Estado e direito; (viii) o mercado mundial e
sua relação com um necessário sistema de Estados; e, por fim, (ix) regulação e crise.57

Dividimos tais fatores teóricos em três grandes blocos, que serão nossa preocupação
por compreendermos sua influência na construção de uma teoria do Estado latino-americana,
conforme o Cap. 2. Tais fatores teóricos servirão, ainda, de prumo para compreender as
teorias marxistas do Estado, do direito e do político surgidas com olhos diretos na experiência
latino-americana, conforme a Parte II da presente tese.

A divisão que propomos é a seguinte: Primeiro bloco – a teoria do Estado no


capitalismo (especificidade histórica e particularização) – pontos (i), (ii), e (v); Segundo bloco
– relações entre Estado e direito, forma política e forma jurídica – pontos (iii), (vi) e (vii);

56
THWAITES REY, Mabel. La autonomía como búsqueda, El Estado como contradicción. Buenos Aires:
Prometeo libros, 2004, p. 264.
57
CALDAS, Camilo Onoda. Teoria da derivação do estado e do direito, op. cit., em especial o último capítulo
intitulado “A teoria derivacionista do Estado”.
34

terceiro bloco, o Estado e a mundialização do capital – pontos (viii) e (ix). O ponto iv


omitiremos por entender que a crítica à Escola Lógica do capital já está absorvida na teoria
materialista ao tratar sobre a materialidade histórica do Estado no capitalismo, não sendo fruto
de uma derivação lógica, mas sim histórica.

Primeiro bloco – a teoria do Estado no capitalismo (especificidade histórica e


particularização):

A preocupação com a retomada de Marx para pensar a especificidade histórica do


Estado no capitalismo surge a partir da repercussão, no marxismo e na teoria do Estado, de
autores como Poulantzas (estruturalismo) e Miliband (instrumentalista). Para o conceito que
surge no debate entre os autores, o Estado é enxergado, inicialmente, como instrumento da
classe dominante. Ou seja, havia esvaziamento do papel capitalista do Estado, pois sempre
teria o conteúdo dado pela classe que se posicionasse como hegemônica no cenário político.
Para Holloway e Piccioto, participantes do momento inglês do debate da derivação, tal análise
é “inadequada” caso pretendamos construir “um entendimento do desenvolvimento político e
as possibilidades da ação política”.58

Como apontam os autores, um dos grandes deslizes teóricos de Poulantzas e Miliband


– aproximando as duas concepções – é o fato de negarem O capital como obra fundamental
para a compreensão do Estado. Para ambos, “O capital é principalmente (embora não
exclusivamente) uma análise do ‘nível econômico’ e os conceitos desenvolvidos lá (valor,
mais valor, acumulação, etc.) são conceitos específicos para análise daquele nível”. Vale
lembrar, como apontam, que o debate da derivação, indo adiante, passa a compreender que a
análise d’O capital é fundamental para a compreensão de toda a sociabilidade capitalista, não
apenas o nível econômico, isso porque se trata de uma crítica da economia política. Os
conceitos lá desenvolvidos e listados acima, serviriam para “iluminar a estrutura do conflito
de classes na sociedade capitalista e as formas e concepções (econômicas ou não) geradas por
aquela estrutura”.59

58
HOLLOWAY, John; PICCIOTTO. Introduction: Towards a materialist theory of the state. In: ______;
______. (Eds.). State and capital: a marxist debate. Londres: Edward Arnold, 1978, p. 1.
59
HOLLOWAY, John; PICCIOTTO. Introduction: Towards a materialist theory of the state. In: ______;
______. (Eds.). State and capital: a marxist debate. Londres: Edward Arnold, 1978, p. 4.
35

Ao retomar para O capital, os autores do debate alemão retomam a concepção do


Estado como derivado da própria dinâmica de acumulação que surge a partir do modo de
produção capitalista atravessado pela dinâmica histórica da luta de classes. Aqui delimitamos
a impossibilidade de transferência imediata, ou lógica, das questões econômicas que
envolvem o desenvolvimento do capitalismo, enquanto modo de produção, para a formação
do Estado. Sobre os ganhos teóricos do debate alemão, Alfredo Saad Filho aponta que aquele
“demonstrou que é impossível conceitualizar o Estado capitalista de forma puramente lógica,
partindo das contradições da mercadoria, pelo menos se se busca evitar o funcionalismo e o
reducionismo”.60

Dentre tais ganhos, pensar o Estado capitalista significou pensar sua forma política, o
que efetivamente o diferenciaria, não seu conteúdo de classe. Nesse momento vale lembrar
que forma política, forma mercadoria e forma jurídica, ou seja, formas sociais, são condições
concretas de sociabilidade construídas historicamente e que pressupões uma sociabilidade,
pois a condicionam dentro de determinados objetivos que tomam a sociedade nas mãos,
independentemente de sua vontade, tomando consciência disso ou não. Sobre o conceito de
formas sociais, explica Joachim Hirsch:

Quando Marx designa o modo de socialização capitalista como “relações de


produção”, não pensa apenas nas relações do processo imediato de trabalho,
mas, ao contrário, nas relações que caracterizam o conjunto da sociedade. O
conceito de “relações de produção” repousa sob uma totalidade social, que
tem os seus fundamentos nas condições materiais de produção e de
reprodução, sem se desprender daí. A própria separação entre “economia” e
“política” é uma forma básica de determinação da relação de causalidade da
socialização capitalista. Formas sociais são configurações coisificadas e
fetichizadas, apenas reveladas através da crítica teórica, que assume a
relação recíproca entre os indivíduos na sociedade, e se manifestam como
independentes de sua vontade e de sua ação consciente, impregnando suas
percepções imediatas e suas orientações de conduta: mercadoria, dinheiro,
capital, direito, Estado. Na medida em que elas orientam a ação de
indivíduos e classes de modo não transparente para eles, tornam os
antagonismos sociais fundamentais passíveis de serem processados, quer
dizer, elas garantem que a sociedade, apesar e por causa de suas
contradições, mantenha-se e reproduza-se, porém sem com isso superá-las.
Uma teoria social da análise das formas se coloca, assim, em clara oposição
a uma teoria ‘funcionalista’ (grifo nosso).61

60
SAAD FILHO, Alfredo. O valor de Marx. Trad. de Alfredo Saad Filho. Campinas: Unicamp, 2011, p. 31.
61
HIRSCH, Joachim. Forma política, instituições políticas e Estado – I. Crítica marxista. Campinas: Unicamp,
n. 24, 2007, p. 14.
36

O argumento retoma uma famosa passagem d’O capital onde Marx deixa claro a
marca do modo de produção para a reprodução dos meios de vida, “um processo social que
ocorre pelas costas dos produtores e lhes parecem, assim, ter sido legadas pela tradição”.62
Também: “Mostrou-se que o mais valor não pode ter origem na circulação, sendo necessário,
portanto, que pelas suas costas ocorra algo que nela mesma é invisível”. 63 Por isso, Hirsch
aponta para o papel da forma como um meio de conformação da sociabilidade capitalista
“independente de sua vontade e de sua ação consciente”.64

O objetivo da existência de tais formas sociais, das quais faz parte a forma política
específica do capitalismo, está relacionado com o segredo maior do próprio sistema: a
reprodução dos meios de produção. Por mais que o capital enfrente as vontades individuais
em certos momentos de perturbação políticas, ele precisa garantir que a sociabilidade se
mantenha caminhando para adiante, reproduzindo os meios necessários para sua
autovalorização. Isso cria um legado da “tradição” que permite a invisibilidade da forma.

Como Hirsch nos lembra “‘Estado’ e ‘forma política’ não são idênticos”. Esse só
poderá ser entendido no “contexto da totalidade de suas determinações sociais, ou seja, como
expressão da forma valor e da forma política”, onde também incluímos a forma jurídica.65
Retomando, o Estado, portanto, tem suas condições de surgimento quando é garantida uma
sociabilidade que reproduza seus próprios meios necessários de subsistência, o que somente
será possível no capitalismo.

E de que Estado estamos falando? O Estado moderno é diferenciado por ser o único
capaz de tomar essa função de expressão das formas sociais capitalistas.
62
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Trad. de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo,
2013, p.122.
63
Idem Ibidem, p. 240.
64
No mesmo sentido, Hirsch dirá em outro momento: “The production process, governed by the law of the value
operating behind the backs of producers, simultaneously reproduces as a process of valorization its own social
preconditions without intially requiring any additional external, conscious, i.e. ‘political’ intervention”
(HIRSCH, Joachim. The State apparatus and social reproduction: elements of a Theory of Bourgeois State. In:
HOLLOWAY, John; PICCIOTTO. (Eds.). State and capital: a marxist debate. Londres: Edward Arnold, 1978,
pp. 60-61). Ainda: “Sua forma específica de socialização [i.e. do Estado] é determinada pelos trabalhos privados,
realizados independentemente uns dos outros e pelo todo social, que se produz necessariamente ás constas dos
produtores e sem o seu controle consciente” (HIRSCH, Joachim. O problema da dedução da forma e da função
do Estado burguês. In: REICHELT, Helmut et alli. Teoria do Estado: materiais para a reconstrução da teoria
marxista do Estado. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1990, p. 146).
65
HIRSCH, Joachim. Forma política, instituições políticas e Estado – I. Crítica marxista. Campinas: Unicamp,
n. 24, 2007, p. 17.
37

Os primeiros autores do debate da derivação identificam esse Estado moderno,


posterior à formação política do Absolutismo, como fruto da separação entre o político e o
econômico, o resultado da necessidade de superação dialética entre as vontades individual e
coletiva. O Estado surgiria, então, como o meio mais eficaz para garantir que os capitalistas
individuais não destruíssem os meios de reprodução. O erro nesse argumento está no seu
hegelianismo proveniente das fontes de onde bebe o jovem Marx, ou, ainda, de uma leitura
acrítica do Marx que ainda está amadurecendo nos primeiros escritos após corte
epistemológico. Na Ideologia Alemã, Marx e Engels passam a compreender a importância da
separação das instâncias para a reprodução do que somente compreenderão com sua crítica à
economia política.

É precisamente dessa contradição do interesse particular com o interesse


coletivo que o interesse coletivo assume, como Estado, uma forma
autônoma, separada dos reais interesses singulares e gerais e, ao mesmo
tempo, como comunidade ilusória, mas sempre fundada sobre a base real
[realen] dos laços existentes em cada conglomerado família e tribal, tais
como os laços de sangue, a linguagem, a divisão do trabalho em escala
ampliada e demais interesses – e em especial, como desenvolveremos mais
adiante, fundada sobre as classes já condicionadas pela divisão do trabalho
que se isolam em cada um desses aglomerados humanos e em meio aos quais
há uma classe que domina todas as outras.66

Sobre esse erro teórico, Camilo Caldas aponta para a celeuma no debate da derivação,
em especial para a existente entre Müller, Neusüss, Flatow e Huisken, de um lado; e Blanke,
Jürgens, Kastendiek, Altvater e Helmut, de outro.67

66
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Trad. Rubens Enderle et alii. São Paulo: Boitempo,
2007, p. 37.
67
CALDAS, Camilo Onoda. Teoria da derivação do estado e do direito. São Paulo: Outras Expressões/Dobra
Universitária, 2015, pp. 120-121. A título de exemplificação, na primeira concepção idealista: “According to
these conceptions, the state is independente from and opposed to society, it is the true subject whose object is
‘society’ (as a whole) …It is obvious that the political constitution as such is brought into being only where the
private spheres [property, contract, marriage, civil society] have won a independent existence” (MÜLLER,
Wolfgand; NEUSÜSS, Christel. The ‘Welfare-State Illusion’ and the contradiction between wage labour and
capital. In: HOLLOWAY, John; PICCIOTTO, Sol (Eds.). State and capital: a marxist debate. Londres: Edward
Arnold, 1978, pp. 36-37); na segunda posição, em oposição a tal idealismo: “In this sense the state is therefore
never a real material total capitalis, but always only a ideal or fictitious total capitalist. This is the content of the
category of ‘particularization of the state’ of the ‘doubling’ of bourgeois society into society and state”
(ALTVATER, Elmar. Some problems of State Interventionism: The ‘Particularization’ of the State in Bourgeois
Society. In: HOLLOWAY, John; PICCIOTTO, Sol (Eds.). State and capital: a marxist debate. Londres:
Edward Arnold, 1978, p. 42).
38

O que Hirsch pensará como a figura “Estado”, está ligada a uma figura específica: “o
aparelho centralizado de força”.68 Essa figura não existiu desde sempre e nem seria
necessária. Nas Idades Antiga e Medieval, diversas formas de governo foram estabelecidas:
impérios, principados, ditaduras, até mesmo sociedade comunais sem governo centralizado se
estabeleceram. O que Hirsch aponta é que a figura que tomamos como o Estado moderno só
pode ser pensado a partir da sociabilidade capitalista, pois “representa uma de suas
características fundamentais”.69

Na Antiguidade, prevalecia uma relação de trabalhos forçados por meio da força, de


maneira direta. Sem dúvidas uma parcela da população era livre e trabalha por meio de um
valor, o que não os caracterizava como trabalhadores assalariados.70 Em tais sistemas
econômicos escravistas, “a própria força de trabalho é vendida franca e livremente, sem
rodeios”, levando o próprio Marx a chamar de absurda a afirmação de que “no mundo antigo,
o capital estava plenamente desenvolvido, ‘carecendo apenas do trabalho livre e de um
sistema de créditos’”, pois, como se sabe, o capital necessita da mercantilização da força de
trabalho e, para tanto, “seu possuidor tem de poder dispor dela, portanto, ser o livre
proprietário de sua capacidade de trabalho, de sua pessoa”.71

No feudalismo, em regra, o trabalhador detinha a posse dos meios de produção, a


própria terra que habitava e plantava, mas ainda assim tinham uma relação de dominação com
o senhor feudal. Como lembra Ellen Wood, a apropriação do excedente desse trabalho
realizado pelo servo, no feudalismo, era realizada “pelo que Marx chamou de meios ‘extra-

68
HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado: processos de transformação do sistema capitalista de
Estados. Trad. de Luciano Cavini Martorano. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 22.
69
Idem. ¿Qué significa Estado? Reflexiones acerca de la teoria del Estado Capitalista. Revista Sociologia e
Política. Curitiba: UFPR, nº. 24, jun. 2005, p. 165. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-
44782005000100011. Acesso em: 16 fev. 2017.
70
Alfon Bürge constatou que os mercenários mantinham tal condição como meio de pagar pela liberdade
alcançada, concedida. Não eram livres no sentido moderno, de ir e vir, ou mesmo de comercializar. Destacamos
a seguinte conclusão: “Portanto, acreditamos que as hipóteses sobre o trabalho livre das minas romanas,
inspiradas por esta passagem da lex metalli Vipascensis, necessitam pelo menos de uma revisão crítica, e
certamente o fato de que mercennarius é muitas vezes auto-evidente para o escravo dependente escravo, não
deve ser ignorado... O objetivo desta ampla revisão das fontes literárias foi apresentar os textos onde
mercennarius deve ser interpretado sensatamente como um escravo... Ela evoca um ambiente que, pelo menos,
sugere a ideia de escravo” (BÜRGE, Alfon. Der mercenarius un die Loohnarbeit. Zeitschrift der Savigny-
Stiftung für Rechtsgeschichte: Romanistische Abteilung. Freiburg: Universidade de Freiburg, v. 107, Issue 1,
Aug. 1990, pp. 107-116. Disponível em: https://doi.org/10.7767/zrgra.1990.107.1.80. Acesso em: 21 fev. 2017).
Também sobre a leitura de Marx e Engels no Manifesto Comunista acerca das relações sociais na Antiguidade:
FUNARI, Pedro Paulo A. O Manifesto e o estudo da antigüidade: a atualidade da crítica marxista. Crítica
Marxista. São Paulo, Xamã, v.1, n.6, 1998, p. 106-114.
71
KARL, Marx. O capital: crítica da economia política. Livro I. Trad. de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo,
2013, pp. 242 e 612.
39

econômicos’ – quer dizer, por meio de coerção direta, exercida pelos senhores rurais e/ou
Estado (sic), pelo emprego de força superior, acesso privilegiado aos poderes militares,
judiciais e políticos”.72 Como finaliza, a marca fundamental de diferença entre as sociedades
pré-capitalistas e capitalistas: não uma origem ou predominância rural ou urbana, mas a forma
de dominação direta que determinará a forma de apropriação do ganho.

É verdade que diversos “tributos” eram pagos durante o feudalismo, o que poderia
pressupor uma sociabilidade centra na figura do Estado, mas suas finalidades e formas eram
distintas das atuais. Obviamente, a experiência europeia feudal, como a capitalista até os dias
atuais, não se desenvolve da mesma forma, sob um mesmo modelo importado. É necessário
compreender que a forma como se dará a economia de servidão na França, por exemplo, se dá
de forma diversa dos territórios italianos ou da Polônia, para falar da História Ocidental. O
alerta é compartilhado por Chris Wickham, para quem

“Clássica” ou não, a experiência do norte da França [i.e. feudal, baseada na


relação contratual privada chamada seigneuries] estava longe de ser
universal. Os italianos, que viram seu estado "nacional" desaparecer ainda
mais rapidamente do que os franceses em um mundo de lealdades privadas,
mantiveram sua ideologia pública em suas cidades até seu florescimento no
período comunal. E, embora seja muito provável que, como observou Jan
Dhondt, o modo feudal não pudesse apoiar uma unidade política
geograficamente tão extensa como o Império Carolíngio, certamente não
exigia a extinção de todo o poder político; a Normandia e a Inglaterra
normanda, como "feudo-vassalares" como qualquer sociedade, mostram um
poder político intacto que certamente tinha raízes carolíngias (e anglo-
saxãs), embora os modos de expressão tivessem mudado. O ponto que eu
gostaria de enfatizar é, no entanto, diferente. Cada uma das numerosas
pequenas unidades políticas do período pós-carolíngio tinha um equilíbrio
diferente de ideologia e poder – público ou privado, romano-carolíngio ou
contratual, centralizado ou seigneurialized – e cada um tem de ser explicado;
mas, em última análise, as diferenças entre eles e, de fato, entre eles e
quaisquer outros sistemas da Europa ocidental cristã medieval, são uma
questão de superestrutura. Pelas definições usadas neste artigo, todas eram

72
WOOD, Ellen Meilsins. As origens agrárias do capitalismo. Crítica Marxista. São Paulo: Boitempo, v. 1, n.
10, 2000, p. 13. Também sobre o assunto, Jacques le Goff: “Havia novos laços entre o senhor, os camponeses e
as terras dominiais, por outro lado. Um número crescente de homens e de terras tornava-se diretamente submisso
ao senhor. No lugar dos escravos apareciam servos e terras servis das quais os camponeses não podiam dispor
para trocá-las ou vende-las” (LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da Europa. Trad. Jaima A. Clasen.
Petrópolis: Vozes, 2007, p. 57). Esse será o cenário que dará nascimento a uma estrutura tríade na modernidade
(capitalismo-Estado-direito) a partir das modificações estruturais na centralização do poder político, primeiro no
Absolutismo, depois no Liberalismo.
40

feudais, pois todas eram baseadas na política e na economia da propriedade,


expressa em suas diferentes formas.73 – tradução do autor.

Essa relação tensa entre servos – ou inquilinos das terras senhoriais – e senhores
feudais crescerá com o tamanho da necessidade da classe burguesa de garantir os ganhos do
capital que detinham. Não era por meio da dominação direta (escravagismo ou servidão) que
se produziria um sobrevalor ao capital aplicado, mas por certas garantias que se formavam
para instituir um direito de alienação, por vontade própria, de sua atividade produtiva.

Quando Polanyi apresenta o cenário de surgimento do capitalismo, o “moinho


satânico” que mói os ossos e sangue do trabalhador, relembra que para essa passagem houve a
necessidade de “um princípio organizador de uma sociedade engajada na criação de um
sistema liberal”.74 Como já dito em outro momento, “com os cercamentos ingleses, durante os
séculos XVI e XVII, redundando no fim dos chamados open fields e commom lands, a força
de trabalho dos pobres se tornou sua única propriedade”.75 Marx já apontara com precisão
para tais meios jurídico-políticos de atenuar a exploração do trabalhador ao que chama de
“limites morais”, delimitando a diferença entre os tratamentos nas formações pré-capitalistas
e capitalista:

73
WICKHAM, Chris. The Other Transition: From the Ancient World to Feudalism. Past & Present. Oxford:
Oxford University Press, nº 103, mai. 1984, pp. 29-30. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/650723.
Acesso em: 15 fev. 2017. Ainda sobre essa relação de classe, tensa por definição, dirá o autor: “And indeed it is
not the case that peasants always ‘felt’ conflictual when they dealt with lords. They did not always pay huge
rents; they often treated lords as patrons and protectors, and occasionally they did receive some measure of
protection; open revolt was rare (peasants are too risk-averse for it to be common); they fell out with their
neighbours, in faction-fighting, as often as or more often than they opposed their lords. Each of these points has
been raised in the past as a challenge to Marxist interpretations, but all can in reality be incorporated directly
into the Marxist paradigm. Of course real social relations are complicated, and very varied, and do not always
passively reflect an overarching model. Marx knew it perfectly well too, as his Eighteenth Brumaire shows. The
key point is that peasants and lords were structurally opposed, in that they both lived off the same surplus, but
only one group did the work to gain it; and they were both fully aware of that. That sometimes peasants did not
object to it, or that they had other immediate concerns as well, does not take away from that structural
opposition. Peasants knew they were different; they had a basic class consciousness. Lords also knew it, and
their contempt for peasants was shot through with fear, of what the peasant majority might do if they organized,
as Paul Freedman has shown” (Idem. Memories of Underdevelopment: What Has Marxism Done for Medieval
History, and What Can It Still Do? In: ______. Marxist History-writing for the Twenty-first Century.
Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 41. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.5871/bacad/9780197264034.003.0003. Acesso em: 15 fev. 2017).
74
POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. 2. Ed. Trad. Fanny Wrobel. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2012, p. 35 e 151. Sobre a jornada de trabalho extenuante nas origens do capitalismo
industrial, ver: KARL, Marx. O capital: crítica da economia política. Livro I. Trad. de Rubens Enderle. São
Paulo: Boitempo, 2013, pp. 305-374. Cap. 8: “A jornada de trabalho”.
75
PEREIRA, Luiz Ismael. A estrutura jurídica do moinho satânico: a luta de classes que Polanyi não encarou.
Revista Fórum de Direito Financeiro e Econômico. Belo Horizonte: Fórum, v. 3, n. 5, mar./ago. 2014, p. 193.
41

Assim que os povos, cuja produção ainda se move nas formas inferiores do
trabalho escravo, da corveia etc., são arrastados pela produção capitalista e
pelo mercado mundial, que faz da venda de seus produtos no exterior o seu
principal interesse, os horrores bárbaros da escravidão, da servidão etc. são
coroados com o horror civilizado do sobretrabalho... Essas leis refreiam o
impulso do capital por uma sucção ilimitada da força de trabalho, mediante
uma limitação compulsória da jornada de trabalho pelo Estado e, mais
precisamente, por um Estado dominado pelo capitalista e pelo landlord.76

A partir de então, com o crescimento de uma massa de população economicamente


ativa, isto é, com capacidade de produção, mas despossuída dos meios para tanto, não
demorou muito para que a mesma riqueza das nações construísse um cenário de pauperismo
sem medida. Foi a partir de então que certas medidas, ora políticas, ora religiosas, passaram a
intervir. “As Poor Laws e os sistemas de abonos (Speenhamland systems), inicialmente
pensados para controlar o nascimento do pauperismo”,77 embora não tenha atingido os
objetivos iniciais. Havia necessidade de um poder centralizador maior, que garantisse a
exploração dos despossuídos, mas de maneira neutra, indireta.

Pela teoria materialista que toma o caráter histórico de surgimento do Estado, eeria
anacrônico, “impreciso, se não confuso”, nas palavras de Hirsch, falarmos em “Estado antigo”
ou “Estado medieval”. O “Estado”, e consequentemente os aparelhos que o acompanham,
“como forma de dominação”, só é possível falar em data recente, quano esses mesmos
aparelhos se separaram formalmente do poder econômico. O Estado moderno surge como
“poder autônomo e centralizado, separado da sociedade e da economia e, com isto,
diferenciam ‘política’ e ‘economia’ como esferas funcionais da sociedade”.78

Essa marca de separação relativa entre política e economia, ou, nas palavras de Hirsch,
“a separação e vinculação simultânea da política e da economia”79 marcará o surgimento do
Estado. Pachukanis, reconhecidamente pelo debate da derivação como o teórico que

76
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Trad. de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo,
2013, pp. 306-313.
77
PEREIRA, Luiz Ismael. Op. cit., pp. 193-194.
78
HIRSCJ, Joaquim. ¿Qué significa Estado? Reflexiones acerca de la teoria del Estado Capitalista. Revista
Sociologia e Política. Curitiba: UFPR, nº. 24, jun. 2005, p. 165. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-44782005000100011. Acesso em: 16 fev. 2017.
79
HIRSCJ, Joaquim. ¿Qué significa Estado? Reflexiones acerca de la teoria del Estado Capitalista. Revista
Sociologia e Política. Curitiba: UFPR, nº. 24, jun. 2005, p. 168. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-44782005000100011. Acesso em: 16 fev. 2017.
42

conseguiu perceber, em primeira mão, a especificidade histórica do Estado e do direito a


partir dos escritos de maturidade de Marx, destaca que a relação entre público e privado na
Antiguidade e na Idade Média, em regra, não era bem delimitada. A paz obtida pelos
comerciantes para atividades econômicas em determinado território era concedida pelo senhor
feudal com objetivos de aumentar sua própria riqueza. Esse senhor, “fiador da paz” assume
um papel público concedido pela força física que exerce.80

Obviamente, não é possível fechar os olhos para o fato de que o capitalismo e a forma
mercantil tomam, nos meios de produção, a forma necessária para que a reprodução da
sociabilidade aconteça, mesmo que a primeira vista não pareça propriamente capitalismo. A
existência de formas de dominação que se apresentem de maneira direta possam confundir
quanto a formação social dominante, isso não descaracterizará o capitalismo. Essa foi ia
conclusão tirada por Pachukanis a partir de Marx. O último diz:

A autoridade que o capitalista enquanto personificação do capital assume no


processo imediato de produção, a função social de que ele se reveste como
condutor e dominador da produção é essencialmente diferente da autoridade
na base da produção com escravos, servos etc. Enquanto, na base da
produção capitalista, à massa dos produtores imediatos se contrapõe o
caráter social de sua produção na forma de uma autoridade rigorosamente
reguladora e de um mecanismo social do processo de trabalho articulado
como hierarquia completa — autoridade que, contudo, só recai em seus
portadores como personificação das condições de trabalho diante do
trabalho e não, como em formas anteriores de produção, como dominadores
políticos ou teocráticos —, entre os portadores dessa autoridade, os próprios
capitalistas, que só se defrontam como possuidores de mercadorias,
predomina a mais completa anarquia, dentro da qual o nexo interno da
produção social só se impõe como lei natural de poder superior à
arbitrariedade individual.81 – grifo nosso.

Isso significará que é possível a existência de relações escravagistas e servis mesmo


no modo de produção dominante capitalista. Isso não deixa de caracterizar o capitalismo
como um modo de produção marcado pela exploração indireta, a mediação do Estado e da
forma política e desapropriação dos meios de produção por uma classe. Inclusive na América
Latina houve um modo de produção baseado fortemente no trabalho escravo, sem deixar de

80
PACHUKANIS, Evgeni. Teoria geral do direito e marxismo. Trad. de Silvio Donizete Chagas. São Paulo:
Acadêmica, 1988, p. 91.
81
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro III. Livro III. Tomo 2. 2.ed. Trad. Regis Barbosa
e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1986, pp. 313-314.
43

ser dependente do capitalismo como modo predominante. Jonathan Erik von Erkert o
identifica como modo de produção escravista colonial.82

Com o desenvolvimento do capitalismo, o Estado surge como um resultado da luta de


classes impregnado desse objetivo de reprodução. Ele é particularizado porque a própria
sociabilidade capitalista é particularizada. Disso podemos entender que a sociedade e o Estado
estão numa relação de dupla mediação, como o indivíduo e a sociedade. Esses movimentos
ocorrem a todo momento e possuem uma natureza de separação relativa. A sociabilidade que
depende e é pressuposto para a formação da subjetividade (também a jurídica), é ela mesmo
dependente de uma constituição política que permita sua reprodução. Quando o Estado se
burocratiza, cria um corpo de funcionários burocratizado, baseia-se no poder de império para
a cobrança de impostos, bem como regula a vida social, ele se torna tal garante da
sociabilidade.

Eis, nas palavras de Hirsch o quadro teórico-histórico que servirá como núcleo duro de
uma teoria do Estado que se pretenda materialista: “Esta sequência argumentativa constitui
algo assim como o núcleo da “derivação” materialista do Estado”. 83

Segundo bloco – relações entre Estado e direito, forma política e forma jurídica:

Ao pensar o desenvolvimento da forma jurídica, o jurista soviético Evgeny Pachukanis


deixou clara sua relação com a forma política capitalista. A relação entre direito, Estado e

82
“Mas, neste sentido, então qual modo de produção estaria presente na colônia? As incongruências em relação à
tentativa de assinalar o feudalismo no Brasil são demasiadamente intransponíveis. Capitalismo, portanto? O
capitalismo, de seu lado, requer uma relação de produção que envolve indivíduos iguais juridicamente,
estabelecida entre o salariado e o próprio capitalista. A própria impossibilidade da assunção de tal arranjo na
colônia traz consigo o contrassenso da afirmação do sujeito de direito na figura do escravo. Deste modo,
entendemos que a melhor abordagem sobre nossa formação pertence à teoria do modo de produção escravista
colonial, e à afirmação da relação de produção escravista constrangendo o cativo à vontade de seu proprietário”
(ERKET, Jonathan Erik von. O debate sobre a forma jurídica: na dinâmica histórica e econômica do Brasil.
Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico). São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie,
2013, p. 134). Também: ERKERT, Jonathan Erik von. O modo de produção escravista colonial no Brasil e a
questão do escravo como sujeito de direito. Revista da Faculdade de Direito. São Paulo, n. 3, 1º sem. 2015, pp.
223-231. Disponível em: https://www.usjt.br/revistadireito/numero-3/14-jonathan-erik-von-erkert.pdf. Acesso
em: 02 mar. 2017.
83
HIRSCJ, Joaquim. ¿Qué significa Estado? Reflexiones acerca de la teoria del Estado Capitalista. Revista
Sociologia e Política. Curitiba: UFPR, nº. 24, jun. 2005, p. 167. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-44782005000100011. Acesso em: 16 fev. 2017.
44

capitalismo a partir do trabalho mais acabado de Pachukanis se torna fundamental para os


autores do debate da derivação.84

O marxismo foi colonizado pelos ideais do chamado socialismo jurídico, segundo o


qual haveria uma possibilidade de construção socialismo a partir da forma jurídica burguesa,
ou capitalista. Essa teoria teve como finalidade dar à classe trabalhadora, no século XIX,
ferramentas para enfrentar a luta de classes. Tais ferramentas se instrumentalizariam no ganho
de direitos, conquistas adquiridas dentro do campo jurídico, uma ideia que, para Nicole e
André-Jean Arnaud, pode classificar essa expressão como equívoca, pois está longe do que se
propõe com o socialismo. Trata-se, apenas, de um método de interpretação do direito, uma
verdadeira “aberração”.85

Engels e Kautsky se preocuparam com o crescimento do socialismo jurídico dentro do


movimento operário, o qual focava sua luta política no campo das conquistas jurídicas. Contra
essa tendência e os ataques que Marx vinha sofrendo, eles se manifestaram contra a
concepção de que os ganhos jurídico-democráticos seriam a solução para, dentro do sistema
capitalista, conduzir a uma revolução socialista:

A classe trabalhadora – despojada da propriedade dos meios de produção no


curso da transformação do modo de produção feudal em modo de produção
capitalista e continuamente produzida pelo mecanismo deste último na
situação hereditária de privação de propriedade – não pode exprimir

84
Sobre a importância de Pachukanis no debate da derivação e para uma teoria materialista do Estado, ver
HIRSCH, Joachim. The State apparatus and social reproduction: elements of a Theory of Bourgeois State. In:
HOLLOWAY, John; PICCIOTTO. (Eds.). State and capital: a marxist debate. Londres: Edward Arnold, 1978,
p. 58; HIRSCJ, Joaquim. ¿Qué significa Estado? Reflexiones acerca de la teoria del Estado Capitalista. Revista
Sociologia e Política. Curitiba: UFPR, nº. 24, jun. 2005, p. 167. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-44782005000100011. Acesso em: 16 fev. 2017; HIRSCH, Joachim. Teoria
materialista do Estado: processos de transformação do sistema capitalista de Estados. Trad. de Luciano Cavini
Martorano. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 28; CALDAS, Camilo Onoda. Teoria da derivação do estado e do
direito. São Paulo: Outras Expressões/Dobra Universitária, 2015, pp. 150-157; HIRSCH, Joachim. Teoria
materialista do Estado: processos de transformação do sistema capitalista de Estados. Tradução de Luciano
Cavini Martorano. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 107; HOLLOWAY, John; PICCIOTTO, Sol. Introduction:
Towards a materialist theory of the state. In: ______; ______. (Eds.). State and capital: a marxist debate.
Londres: Edward Arnold, 1978, p. 18; BLANKE, Bernhard; JÜRGENS, Ulrich; KASTENDIEK, Hans. On the
current Marxist discussion on the analysis of form and function of the bourgeois State. In: HOLLOWAY, John;
PICCIOTTO. (Eds.). State and capital: a marxist debate. Londres: Edward Arnold, 1978, p. 197, nota 32;
SUMNER, Colin. Law and Civil Rights in Marxist Theory. Kapitalistate: working papers on the capitalist state.
São Francisco-CA (Estados Unidos), n. 9, p. 77, 1981. Disponível em:
https://www.ssc.wisc.edu/~wright/Kapitalistate/Kapitalistate_9.pdf. Acesso em: 26 fev. 2017.
85
ARNAUD, Nicole; ARNAUD, André-Jean. Le socialismo juridique à la ‘Belle Epoque’: visages d’une
aberration. Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno. Millão. V. 3-4, Tomo I,
1974/1975. “Il socialismo giuridico”: ipotesi e letture., pp. 25 e 54. Ver ainda: NAVES, Márcio Bilharinho. A
questão do direito em Marx. São Paulo: Outras Expressões/Dobra Universitário, 2014, pp. 27-32.
45

plenamente a própria condição de vida na ilusão jurídica da burguesia. Só


pode conhecer plenamente essa condição se enxergar a realidade das coisas,
sem as coloridas lentes jurídicas. A concepção materialista da história de
Marx ajuda a classe trabalhadora a compreender essa condição de vida,
demonstrando que todas as representações dos homens – jurídicas, políticas,
filosóficas, religiosas etc. – derivam [abgeleitet], em última instância, de
suas condições econômicas de vida, de seu modo de produzir e trocar os
produtos [...] Naturalmente isso não significa que os socialistas renunciem a
propor determinadas reivindicações jurídicas... Toda classe em luta precisa,
pois, formular suas reivindicações em um programa, sob a forma de
reivindicações jurídicas. Mas as reivindicações da cada classe mudam no
decorrer das transformações sociais e políticas e são diferentes em cada país,
de acordo com as particularidades e o nível de desenvolvimento social. 86

Os autores da defesa do comunismo contra a ideologia jurídica defenderam, não o total


e absoluto afastamento do direito como meio de organização social, mas sim o direito
burguês. Não seria um contrassenso? Não, pois deixam claro que as reivindicações jurídicas
que levem em consideração os interesses de classe só podem ser construídas quando essa
classe está no poder. Assim, como explica Márcio Bilharinho Naves, o que quiseram deixar
claro é que a luta não pode ser construída com base, apenas, nos ganhos jurídicos que uma
classe possa ter, como o direito de greve. O poder político necessita ter sido alcançado para,
então, ganhos serem acrescidos à condição do proletariado até que se ultrapasse os malefícios
da forma valor e extingua-se a forma jurídica. “Portanto, não autorizam um projeto reformista
fundado no atendimento de demandas jurídicas no quadro da sociedade burguesa”. 87

Vale lembra que A ideologia alemã, ainda que limitada pelo campo ideológico,
marcará um corte epistemológico no pensamento de Marx, já representando uma mudança
importante, pois passa a “conduzir o direito ao seu solo originário, quando Marx e Engels
afirmam que o direito não tem história”. 88

Quando, mais tarde, a burguesia conquistou poder suficiente para que os


príncipes acolhessem seus interesses a fim de, por meio da burguesia,
derrubar a nobreza feudal, começou em todos os países – na França, no
século XVI – o desenvolvimento propriamente dito do direito, que com
exceção da Inglaterra, teve como base o Código Romano [...]. (Não se pode
esquecer que o direito, tal como a religião, não tem uma história própria.)

86
ENGELS, Friedrich; KAUTSKY, Karl. O socialismo jurídico. Trad. Lívia Cotrim e Márcio Bilharinho
Naves. São Paulo: Boitempo, 2012, pp. 21 e 47.
87
NAVES, Márcio Bilharinho. Prefácio. In: ENGELS, Friedrich; KAUTSKY, Karl. O socialismo jurídico.
Trad. Lívia Cotrim e Márcio Bilharinho Naves. São Paulo: Boitempo, 2012, pp. 15-16.
88
Idem. As figuras do Direito em Marx. Margem Esquerda. São Paulo: Boitempo, nº 6, 2005, p. 100.
46

[...] Sempre que por meio do desenvolvimento da indústria e do comércio,


surgiram novas formas de intercâmbio, por exemplo companhias de seguros
etc., o direito foi, a cada vez, obrigado a admiti-las entre os modos de
adquirir a propriedade.89

A história do direito acompanha, necessariamente, a história das relações de produção


capitalistas. Isso nos mostra que o lugar próprio do direito independe da realização de um
discurso retórico sobre a justiça: o homem, para o direito, somente pode se apresentar
enquanto mercadoria; é transformado em cifra:

Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, seja ela legalmente


desenvolvida ou não, é uma relação volitiva, na qual se reflete a relação
econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou volitiva é dado pela própria
relação econômica. Aqui, as pessoas existem umas para as outras apenas
como representantes da mercadoria e, por conseguinte, como possuidoras de
mercadorias. Na sequência de nosso desenvolvimento, veremos que as
máscaras econômicas das pessoas não passam de personificações das
relações econômicas, como suporte [Träger] das quais elas se defrontam
umas com as outras.90

Cabe destacar que não há uma verdadeira relação em um aparecimento histórico


sequencial entre Estado e capitalismo. Como destaca Joachim Hirsch,91 houve situações
históricas já existentes desde a Idade Média que culminaram no aparecimento simultâneo do
Estado e do capitalismo: na sociedade medieval, “não havia qualquer sistema jurídico próprio,
nem um domínio separado da esfera econômica” (p. 62). A característica de relações abertas
de violência bélica que povoava a Europa gerou a necessidade da especialização das esferas
de proteção por parte dos principados. Para fortalecer os mecanismos de “coerção armada” (p.
64) houve necessidade de maior extração de recursos e, para seu controle e administração, a
criação de um corpo de funcionários sob as ordens dos príncipes. O crescimento do
“conhecimento jurídico especializado” e a irreversível “profissionalização jurídico-
administrativa” (p. 65) levaram à busca de uma carreira (efeito psicológico sobre o corpo de

89
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Trad. Rubens Enderle et alii. São Paulo: Boitempo,
2007, pp. 76-77.
90
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Trad. Rubens Enderle et alii. São Paulo:
Boitempo, 2007, pp. 159-160.
91
HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado: processo de transformação do sistema capitalista de
Estado. Tradução de Luciano Cavini Martorano. Rio de Janeiro: Revan, 2010.
47

funcionários), bem como a funcionalidade do Direito para a proteção do capital que se


formava, bem como do Estado, inicialmente Absolutista, que o criara.

Embora não se possa falar propriamente na existência de um Estado moderno na Idade


Media, como já destacamos acima, foram essas confluências históricas do período que
levaram ao surgimento do Estado lado a lado com o sistema capitalista. Isso não entra em
contradição com o momento de aparecimento da burguesia como classe influente a partir das
revoluções burguesas. A figura do Estado como espaço de interesse comum separado da
sociedade teve sua implantação final no momento das revoluções burguesas, mas já havia
“uma sociedade burguesa nesse período, ainda que apenas em forma germinal”92. A partir de
então, o desenvolvimento da forma jurídica atingirá o seu apogeu teórico e prático na
sociedade burguesa capitalista.93

Outra não pode ser a interpretação feita a partir de um Marx maduro que deixa de lado
a ilusão ideológica de identificação do direito com um valor de justiça, o que desconsideraria
a real determinação das relações econômicas sobre a superestrutura social. Como reafirma
Marx, “cada forma de produção cria suas próprias relações de direito, formas de governo,
etc.”94 Disso decorrerá que a forma jurídica será criada pela forma de produção com objetivos
específicos de perpetuar a exploração que a funda. Essa mesma exploração é a resultante de
uma luta de classes fundada pela burguesia da modernidade. Essa “união orgânica” citada por
Marx em sua Introdução à crítica da economia política é a do direito e dos direitos com essa
força motriz: a luta de classes.

Essa relação estrutural entre Direito e relações de produção capitalistas, tese


inaugurada em 1845, não foi abandonada por Engels após o falecimento de Marx. Em
correspondência datada de 14 de julho de 1893 a Franz Mehring, deixou claro: “E esta ilusão
[Schein] de uma história autônoma das constituições do Estado, dos sistemas do Direito, das
representações ideológicas em cada domínio particular, que, antes de tudo, cega a maioria das
pessoas”.

92
HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado: processo de transformação do sistema capitalista de
Estado. Tradução de Luciano Cavini Martorano. Rio de Janeiro: Revan, 2010, pp. 55-67.
93
PACHUKANIS, Evgeni. Teoria geral do direito e marxismo. Trad. de Silvio Donizete Chagas. São Paulo:
Acadêmica, 1988, p. 11.
94
MARX, Karl. Introdução à Crítica da Economia Política. In: ______. Os Pensadores. Tradução de José
Arthur Giannotti e Edgar Malagodi. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 112.
48

O direito em momentos de crise financeira vem em socorro do capital e do núcleo


duro do pensamento capitalista: o sujeito de direito. Tanto o é que no desenvolvimento
histórico do pensamento jurídico do século XX, os momentos de grande regulação econômica
que se seguiram às grandes crises vieram acompanhados de pacotes de direitos para proteger
o idêntico. O sujeito de direito teve a abertura ao acesso à justiça, com a promoção de
reformas legislativas que tem como objetivo a proteção coletiva por órgãos determinados,
enfraquecendo a autonomia do indivíduo; direitos trabalhistas são garantidos para, além de
melhoras nas condições de vida do trabalhador, acalmarem animosas reivindicações por
igualdade social no chão de fábrica; o Estado de bem-estar social varreu o mundo com
políticas de proteção ao cidadão, etc.

Tais políticas de constituição de direitos acompanharam o momento histórico ditado


pela relação de produção capitalista. O capital, necessitando circular, determina a concessão
de direitos, ao mesmo tempo em que também permite a sua retirada. Fato é que o
neoliberalismo acompanhou uma política de mitigação do bem-estar social, culminando no
alargamento da crise dos anos 1970 que persiste em não acabar. A filosofia conservadora do
direito limitou-se, nesse ínterim, a focar-se no sujeito de direito sem levar em consideração
outros fatores materiais da luta de classes. Ela foi cúmplice com o neoliberalismo,
exatamente, porque o direito acompanha o momento histórico que convém ao
desenvolvimento do capital.

O que se deve deixar claro é que uma filosofia burguesa do direito que coloque a
autodeterminação do sujeito no centro de suas investigações possui um papel bem definido: a
interpelação do inconsciente, reafirmando a necessidade de depósito de confiança na
emancipação pelo aparato legal e jurídico construído para proteger, em última instância,
unicamente, o capital.

Afirmar que o direito não possui história implica dois aspectos. O primeiro nos leva à
inegável conceituação do direito enquanto ideologia, nos caminhos traçados por Althusser.
Mas, ao mesmo tempo, a simples identificação do Direito somente enquanto ideologia não dá
respostas mais profundas a respeito, por exemplo, da sua relação com as relações sociais,
conforme aponta Pachukanis. Assim, breves considerações serão feiras a partir de ambos.

Inicialmente, sobre a identificação do direito enquanto ideologia parte-se da própria


formulação na Ideologia alemã, já citada acima. O que identifica uma ideologia? Afinal de
contas, não é crível que o Direito dissesse abertamente sua função ideológica, pois ninguém
49

mais depositaria nele suas esperanças de emancipação. Comentando Marx, Althusser afirma
que “a ideologia é concebida como pura ilusão, puro sonho, ou seja, nada. Toda sua realidade
está fora dela”. Nesse plano, Althusser identificará a ideologia ao inconsciente freudiano,
redundando na declaração de que “a ideologia não tem história, o que não quer dizer que ela
não tenha uma histórica [...] mas que ela não tem uma história sua [...] a ideologia é eterna,
como o inconsciente”.95

Sua função? A ideologia burguesa, e por excelência a ideologia jurídica, “interpela os


indivíduos enquanto sujeitos”. A ideia sujeito se difere do indivíduo concreto, este com suas
vicissitudes, vivências sociais, enquanto aquele uma abstração pela qual passamos a nos
reconhecer. A ideologia terá, ainda, o papel de impedir que percebamos esse mecanismo de
funcionamento que gera toda a ideologia burguesa. “O homem é naturalmente um sujeito”,
podemos pensar.96

Mas o direito funcionaria enquanto ideologia sem um aparato próprio para impedir o
conhecimento do mecanismo sob o qual se encontra firmado? A resposta de Althusser é
negativa. “Não existe aparelho puramente ideológico”. O Estado se utiliza de uma parte
prática para a atuação da ideologia jurídica no campo material. “Agir por leis e decretos no
Aparelho (repressivo) do Estado é outra coisa que agir através da ideologia dominante nos
Aparelhos Ideológicos do Estado”.97 O sistema processual que se encarrega de proteger o
acesso à justiça aos cidadãos (e aqui “justiça” demonstra a identificação necessária entre o
Estado e o justo), o aparato policial para contenção de manifestações que são declaradas
ilegais pelo direito, as greves “legais”, encarceramento via panoptismo, o sufrágio universal
para a escolha de representantes do povo, etc. Essas são exemplos de formas de violência real
ou simbólica pelas quais o direito – ideologia jurídica, num primeiro momento – se utiliza
para a repressão – aqui como aparelho repressivo do Estado. “A ideologia não é nada,
portanto, sem a sua prática (coercitiva) que exige todo um aparelho de repressão”.98

95
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado: notas sobre aparelhos ideológicos de Estado.
12.reimp. Tradução de Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Edições Graal,
2012, pp. 83-85.
96
Idem Ibidem, p. 93.
97
Idem Ibidem, pp. 70-71.
98
THÉVENIN, Nicole-Édith. Ideologia Jurídica e Ideologia Burguesa (ideologia e práticas artísticas). Tradução
de Márcio Bilharinho Naves. In: NAVES, Márcio Bilharinho (Org). Presença de Althusser. Campinas:
UNICAMP/IFCH, 2010, p. 55.
50

Pachukanis, adiantando o pensamento de Althusser, também traça comentários a


respeito do conceito do direito enquanto ideologia burguesa, mas não fica limitado,
unicamente, a esse campo de análise. “O problema não está de modo algum em admitir ou
contestar a existência da ideologia jurídica”, o que é necessário, prossegue, é demonstrar “que
a realidade social, em certa medida encoberta por um véu místico, não pode ser descoberta
através destes conceitos”.99 Como dissemos, com Althusser, a natureza ideológica do direito
impede o conhecimento do mecanismo sob a qual foi criada. Assim, devemos olhar para o
mundo exterior, de realidades, para questões concretas, colocando a discussão em outro nível.

Que o direito é uma relação social, assim como o capital o é, parece inegável. O será,
por óbvio, sem excluir seu caráter ideológico. Ele é reflexo de outra relação social, essa que se
pretende esconder por debaixo da forma jurídica: “essa relação é a relação dos proprietários
das mercadorias entre si”,100 diferentemente da filosofia jurídica burguesa, para a qual o
direito é um ideal, ou forma ideal, eterna, perene e apreendida universalmente. Será essa
filosofia que ignorará tal relação social que funda e justifica o direito, criando teorias da
justiça que não leem a realidade material, mas teoriza a partir da consciência.

Como já dito, o indivíduo é interpelado enquanto sujeito, sendo que o homem é


reconhecido como se fosse, naturalmente, sujeito de direito. Pachukanis, quando caracteriza a
sociedade capitalista como sendo, essencialmente, uma sociedade de proprietários de
mercadorias, deixa clara a função da ideia de sujeito de direito: “Assim o vínculo social,
enraizado na produção, apresenta-se simultaneamente sob duas formas absurdas; por um lado,
como valor de mercadoria e, por outro, como capacidade do homem de ser sujeito de
direito”.101 A mercadoria que serve ao capitalismo como leitmotiv, para que circule, necessita
do padrão de equivalência. Sem ele, não há a igualdade na troca.

A equivalência se dará pelo valor de troca. “É a ideia de equivalência decorrente do


processo de trocas mercantis que funda a ideia de equivalência jurídica”.102 O espanto não é
legítimo quando se tem em mente a íntima relação entre Direito, Estado e Capitalismo.

99
PACHUKANIS, Evgeni. Teoria geral do direito e marxismo. Trad. de Silvio Donizete Chagas. São Paulo:
Acadêmica, 1988, pp. 37-38.
100
Idem Ibidem, p. 45.
101
Idem Ibidem, p. 72.
102
NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e Direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2008,
p. 20.
51

Essa igualdade garante ao capital sua circulação. Isso que Celso Naoto Kashiura Jr.
chamará de “imperativo da forma mercadoria” é o que força a adoção da igualdade jurídica. O
pior de tudo é que tal meio de equiparação, além de ser formal, impede qualquer
questionamento. É um “dado”, um dogma, e, como tal, não comporta discussões.103

Para compreender a afirmação de que o imperativo da forma mercadoria força a


adoção da igualdade jurídica, temos que remontar ao que se entende por mercadoria. Essa
preocupação metodológica nos auxiliará a compreender como o sujeito de direito se equipara
à mercadoria.

Que a mercadoria é a forma elementar do modo de produção capitalista, Marx já


comentou na abertura de O capital. Pachukanis, no mesmo sentido, percebe que “a sociedade
capitalista é, antes de tudo, uma sociedade de proprietários de mercadorias”.104 Por ambos não
apenas descobrimos o ponto nevrálgico da sociedade capitalista, a saber, a mercadoria, mas
que sem os sujeitos que são reconhecidos como seus proprietários não haveria momento e
local para a circulação da própria mercadoria. “As mercadorias não podem ir por si mesmas
ao mercado e trocar-se umas pelas outras. Temos, portanto, de nos voltar para seus guardiões,
os possuidores de mercadorias”.105 Mas, qual seria então, a forma elementar da análise
jurídica desta mesma sociedade capitalista?

“Assim, o vínculo social, enraizado na produção, apresenta-se simultaneamente sob


duas formas absurdas: por um lado, como valor de mercadoria e, por outro, como capacidade
do homem de ser sujeito de direito”.106 Dessa forma, identifica-se que o sujeito de direito está
para a forma jurídica abstrata, assim como a mercadoria está para a forma mercantil
capitalista. A determinação do sujeito jurídico enquanto categoria própria, elementar e
necessária ao direito burguês só pode ocorrer na sociedade capitalista. “O sujeito é o átomo da
teoria jurídica, o seu elemento mais simples, que não se pode decompor”. 107 Sem a necessária
identificação estabelecida entre os indivíduos como sujeitos, a mercadoria como objeto não
poderia ser submetida àqueles.

103
KASHIURA JR., Celso Naoto. Crítica da igualdade jurídica: contribuição para o pensamento jurídico
marxista. São Paulo, QUartier Latin, 2009, pp. 208-210.
104
PACHUKANIS, Evgeni. Teoria geral do direito e marxismo. Trad. de Silvio Donizete Chagas. São Paulo:
Acadêmica, 1988, p. 70.
105
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Trad. Rubens Enderle et alii. São Paulo:
Boitempo, 2007, pp. 159.
106
PACHUKANIS, Evgeni. Op. cit., pp. 71-72.
107
Idem Ibidem, p. 68.
52

O fetichismo da mercadoria se completa com o fetichismo jurídico. [...] É


somente na economia mercantil que nasce a forma jurídica abstrata, em
outros termos, que a capacidade geral de ser titular de direitos se separa das
pretensões jurídicas concretas. Somente a contínua mutação dos direito que
acontece no mercado estabelece a ideia de um portador imutável destes
direitos.108

Assim, mais uma vez, para que a mercadoria circule há a necessidade da equivalência
do preço. Do mesmo modo, como dissemos, o imperativo da forma mercadoria força a adoção
da igualdade jurídica, pois é necessário que os diferentes sujeitos de direito reconheçam-se
como iguais, ainda que juridicamente, com as mesmas oportunidades, para que possam
adentrar ao mercado com o intuito de se tornarem donos de mercadorias. Esse “portador
imutável de direitos” possui a capacidade jurídica para contratar, adquirir bens, alienar sua
força de trabalho por mais direitos, sempre baseado na fórmula burguesa de igualdade e
liberdade.

Não há exagero em afirmar que, para sustentar a forma jurídica de modo equivalente à
forma mercantil, o sujeito de direito é a categoria central. O sujeito, como já dito, é fruto da
época moderna com o nascimento da consciência de classe burguesa em oposição ao sistema
de privilégios existente na Idade Média. À nobreza não importava pensar o sujeito além da
visão teológica que colocava todos como criados à imagem e semelhança de deus e, ao
mesmo tempo, uns acima de outros numa formação social piramidal. Que não existia a figura
de sujeito de direito nessas formações sociais pré-capitalistas explica a afirmação de não
existir propriamente um direito antes da era moderna.

Assim, como dirá Márcio Bilharinho Naves, a forma jurídica que funda o direito
“nasce somente em uma sociedade na qual impera o princípio da divisão do trabalho, ou seja,
em uma sociedade na qual os trabalhos privados só se tornam trabalho social mediante a
intervenção de um equivalente geral”.109 Sem a ideia de equivalente da troca mercantil, não
haveria, portanto, a igualdade jurídica como mediadora do processo de transformação do
trabalho em trabalho social, como meio de permitir a circulação da mercadoria e a reprodução
dos meios de produção. Nesse sentido, a forma jurídica equivale à forma mercantil.

108
PACHUKANIS, Evgeni. Teoria geral do direito e marxismo. Trad. de Silvio Donizete Chagas. São Paulo:
Acadêmica, 1988, pp. 75-76.
109
NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e Direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2008,
p. 72.
53

Terceiro bloco, o Estado e a mundialização do capital:

Por fim, o terceiro bloco de temas no debate da derivação, segundo nossa divisão
dentro da proposta de Camilo Onoda Caldas, é o papel do Estado na mundialização do capital.
O capital que não se ateve aos limites territoriais do Estado, mas que pressupões a existência
de um sistema internacional de Estados. John Holloway, nos anos 1990, aponta para o papel
crucial do Estado na mundialização do capital e, por consequência, daquele garantidor das
relações sociais como se apresentam: meio de reprodução do próprio capital:

In this sense it is closely related to the tradition of international relations:


although the emphasis is on the primacy of the world system over particular
states, the world system is understood basically as an international state
system, with the central states as the dominant actors, and with the only
possible path out of dependence lying through the action of peripheral
states. As in the mainstream tradition, the state defines a distinction between
internal and external, the difference being that in dependency theory, the
emphasis (in relation to the dependent states) is very much on the external,
rather than the internal determinants of state action. Developments such as
the state reforms being carried out in the peripheral states can, in this
perspective, be understood only in terms of the external constraints arising
from the centre-periphery relationship, but there is no concept which allows
us to understand the dynamic of that relationship.110

Como Holloway destaca, para a ponta fraca da relação centro-periferia – ponta em que
a América-Latina está contida – a questão da mundialização das relações estatais, o sistema de
Estados, é ainda mais importante para sua correta compreensão, como veremos mais adiante.
Como indica, a reforma nos Estados periféricos somente pode ser compreendida nos termos
da política externa e de sua expressão nas relações internacionais.

Esse nível de preocupação atinge as classes ao ponto de ser crucial para sua própria
organização estratégica. Para a burguesia internacional, a visão holística do sistema de
Estados tem como função enxergar os meios para a destruição de barreiras nacionais nos
países periféricos para investir com “maior segurança”, isto é, com a destruição de garantias
sociais promovida por Estado mais presentes; para as Organizações Internacionais, a
cooperação internacional significa também a diminuição das barreiras alfandegárias para

110
HOLLOWAY, John. Global Capital and National State. Capital & Class. New York, v. 18, n. 52, p. 26.
Disponível em: http://dx.doi.org/10.1177/030981689405200103. Acesso em: 06 mar. 2017.
54

melhor circulação do capital, não necessariamente seguindo as premissas de direito


internacional, como a cláusula da nação mais privilegiada; para os Estado centrais altamente
militarizados, contudo dependentes do petróleo produzido na periferia, como é o caso dos
EUA, significará criar estratégias de democratização para além de idiossincrasias
governamentais; por fim, o elo mais fraco: para o trabalhador significará encarar o
desmantelamento das garantias conquistadas frente à nova divisão internacional do trabalho e
a reorganização estatal interna diante de todos os interesses anteriormente citados.

Este, portanto, será um dos pontos fundamentais para o debate da derivação e também
para uma teoria materialista do Estado que tende a dar cabo da materialidade específica da
periferia capitalista.

Segundo Jessop, a constituição histórica dos Estados deve ser pensada


necessariamente em termos do mercado mundial, o que implica entender: (i)
a articulação do modo capitalista de produção com outros modos de
produção e/ou formas de trabalho privado e social; e (ii) o desenvolvimento
em termos de internacionalização da mercadoria, do dinheiro e do capital
111
produtivo.

Pensar isso significará pensar a interação dos Estados nacionais no momento de


expansão e de acumulação primitiva do capital. Mais precisamente, a expressão interna dos
Estados está diretamente ligada à forma de interação internacional destes. A competitividade,
a exploração, a dependência política e econômica etc., são elementos que demonstram a
ligação necessária entre o Estado, como expressão internacional com o Estado enquanto
garante das relações internas de exploração.112 Também Hirsch já apontara esse papel do
Estado como mediador-mediado das relações internacionais e imperialistas do capital:

111
CALDAS, Camilo Onoda. Teoria da derivação do estado e do direito. São Paulo: Outras Expressões/Dobra
Universitária, 2015, p. 226.
112
Assim comenta Claudia von Braunmül, suficientemente comentada por Camilo Caldas como a que mais vai a
fundo nesse primeiro momento nas relações de imperialismo dos Estados: “The imperialist system, particularly
in its metropolitan regions, is characterized to an increasing extent by the contradiction between
internationalization and nationalization of the process of accumulation,1 a contradiction which manifests itself
today in the appearance of internationally operating capitals, such as multinational corporations, and in the
constant intervention of the state apparatus in the reproduction of the national capital” (BRAUNMÜL, Claudia
von. On the Analysis of the Bourgeois Nation State within the World Market Context. An Attempt to Develop a
Methodological and Theoretical Approach. In: HOLLOWAY, John; PICCIOTTO. (Eds.). State and capital: a
marxist debate. Londres: Edward Arnold, 1978, p. 160). Também sobre o acerto das questões postas por
Braunmühl, embora discordando das respostas apresentadas: FAY, Margaret A.; STUCKEY, Barbara. A friendly
critique of Claudia Von Braunmühl’s “On The Analysis of The Bourgeois Nation State within the World
Context: An Attempt to Develop a Methodological and Theoretical Approach”. Kapitalistate: working papers
55

Under the conditions of an intensifying monopolistic and imperialist


competition on the world market, a change is undergone by those state
functions which relate to guaranteeing the interests of the bourgeoisie
‘against the outside world\ The external protection of a network of
reproduction taking place within ‘national’ bounds is no longer limited to
the classical alternative (depending on relative economic development) of
free trade or protection and the military conquest and domination of
colonial spheres of influence. Rather, with the growing universalization of
the capital relation, the resulting imperialist structure of the world market
and increasing international'centralization of capital, the state becomes the
direct instrument and object of the monopolistic competitive struggle (cf.
Hilferding 1968;-Lenin, Imperialism). There results not only a
heterogeneous collection of activities of the state apparatus in foreign policy
and commerce, but at the same time the development of competition on the
world market proves to be the decisive determinant of economic regulatory
measures altogether.113

Essa tendência de expansão do capital que já fora observada por Marx n’O capital
marcará de forma bem distinta o desenvolvimento das relações interestatais no século XX.
Para além do debate raso da globalização, pelo qual haveria uma diminuição da força dos
Estados nacionais, uma crise de tal instituição, o que a teoria materialista do Estado
demonstra é que os Estados nacionais são papel fundamental para a reprodução do capital no
nível internacional. Como vimos acima, a centralidade do papel do Estado atravessa questões
como sua representatividade no cenário internacional e sua participação nas estruturas de
comando (FMI, sistema Banco Mundial, G-8 etc.), bem como a construção de uma oposição
também no nível internacional (Fórum Social Mundial).

Como o próprio Camilo Onoda Caldas aponta, a relação entre Estado e sistema de
Estado por meio do mercado mundial deve ser pensado de forma imediata com as questões da
crise do capital. Sendo a crise estrutural do capitalismo, o Estado possui mecanismos para
salvaguardá-lo. A reorganização das relações de trabalho, o estabelecimento de
transnacionalização do trabalho – exemplo bem típico é os EUA que importam cérebros e
exportam trabalho terceirizado para a Índia –, imposição de regras internacionais por meio de
acordos construídos por meio de consensos – como no caso dos Acordos de Basileia, etc.

on the capitalist state. São Francisco, n. 8, p. 139-140, 1980. Disponível em:


https://www.ssc.wisc.edu/~wright/Kapitalistate/Kapitalistate_8.pdf. Acesso em: 06 mar. 2017.
113
HIRSCH, Joachim. The State apparatus and social reproduction: elements of a Theory of Bourgeois State. In:
HOLLOWAY, John; PICCIOTTO. (Eds.). State and capital: a marxist debate. Londres: Edward Arnold, 1978,
p. 85.
56

A questão principal a destacar aqui é que o mercado mundial que se intensifica a partir
do final do século XIX e início do século XX caminha no sentido de dar ao Estado os
mecanismos necessários para a reprodução das relações sociais. Para tanto, muitas vezes
utilizará as próprias especificidades históricas das regiões onde atua, como é o caso do
racismo estrutural e o patriarcalismo na América Latina.

1.3 Estado e capitalismo “desaparecem imediatamente, tão logo, nos refugiemos em


outras formas de produção” (K. Marx): a especificidade da forma.

Compreendida as questões que dizem respeito à especificidade e necessidade histórica


do Estado e do direito no capitalismo, podemos compreender melhor o que Marx nos diz n’O
capital. Ao tratar da mercadoria e de sua especificidade, não como tendo surgido e no
capitalismo, mas por ter se generalizado e se tornado peça única de medida nessa
sociabilidade, o que também chamará de misticismo ou fetiche da mercadoria, ele comenta:

Ora, são justamente essas formas que constituem as categorias da economia


burguesa. Trata-se de formas de pensamento socialmente válidas e, portanto,
dotadas de objetividade para as relações de produção desse modo social de
produção historicamente determinado, a produção de mercadorias. Por isso,
todo o misticismo do mundo das mercadorias, toda a mágica e a
assombração que anuviam os produtos do trabalho na base da produção de
mercadorias desaparecem imediatamente, tão logo nos refugiemos em
outras formas de produção (grifo nosso).114

Em recurso retórico, que não retira seu caráter científico, Marx apresenta uma tese
importante: a especificidade do fetiche da mercadoria na forma de produção capitalista. Vale
dizer que a mercadoria só possui condições de penetrar em todos os conteúdos, e o fará
também na força de trabalho de quem só possui isso para comercializar, quando encontrar as
condições ótimas que permitirão essa façanha. Somente nessa sociabilidade teremos meios
para realizar a forma mercadoria.

Uma advertência deve ser feita: como pode soar estranho ao leitor d’O capital a
utilização de termos como “caráter místico” (p. 146), “caráter enigmático” (p. 147), “forma

114
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Trad. de Rubens Enderle. São Paulo:
Boitempo, 2013, p. 151.
57

fantasmagórica” (p. 147), ou seja, “o caráter fetichista do mundo das mercadorias” (p. 148),
cabe lembrar os apontamentos de Althusser para uma leitura que tenha como objetivo
atravessar o idealismo hegeliano – ou propriamente feuerbachiano – que ainda ecoa na
primeira parte da obra: “Quando é lançado o Livro I d’O capital (1867), ele ainda apresenta
vestígios da influência hegeliana”, 115 dentre outros momentos, no conceito de fetichismo aqui
utilizado:

Último vestígio da influência hegeliana, e dessa vez flagrante e


extremamente prejudicial (já que todos os teóricos da “reificação” e da
“alienação” e encontraram nele como o que “fundar” suas interpretações
idealistas do pensamento de Marx): a teoria do fetichismo (“O caráter
fetichista da mercadoria e seu segredo”, quarto item do capítulo 1 da seção
I).116

A leitura que se faz do trecho independe dos conceitos idealistas do trecho. Embora
não se esqueça que a teoria marxista mais impactante do século XX foi baseada nas ideias de
fetichismo, alienação e reificação, conforme proposto por Luckás, 117 neste momento, foca-se
na especificidade da forma mercadoria dentro da formação histórica capitalista, essa sim
responsável pela universalização do valor a todos os objetivos, inclusive o próprio sujeito que,
tendo apenas seu corpo, transforma sua força de trabalho em mercadoria.

Esse trecho, lido em conjunto com a obra do Marx maduro, permite-nos entender que
a criação de uma forma política pós-capitalista depende, em grande medida, da superação
também da forma-mercadoria como denominador comum da sociabilidade capitalista. A

115
ALTHUSSER, Louis. Advertência aos leitores do Livro I d’O capital. In: MARX, Karl. O capital: crítica da
economia política. Livro I. Trad. de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 53.
116
Idem Ibidem, p. 55.
117
LUCKÁS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins
Fontes, 2003. Ainda sobre o fetichismo da mercadoria, Silvio Luiz de Almeida, ao analisar o texto de Luckás,
reconhece que “o conceito de fetichismo é o ápice da concretização histórico-social das análises desenvolvidas
por Marx acerca da alienação específica a que se sujeito o trabalho humano na sociedade capitalista”
(ALMEIDA, Silvio Luiz de. O direito no jovem Luckás: a filosofia do direito em História e consciência de
classe. São Paulo: Alfa-Omega, 2006, p. 61-62). Balibar também reconhecerá o crédito do conceito trabalhado
por Luckás, embora entenda ser uma “interpretação genial e uma extrapolação do texto de Marx”. Sua crítica
apresenta os créditos da teoria de Luckás, com as devidas correções que entende cabíveis. (BALIBAR, Étienne.
La filosofia de Marx. Buenos Aires: Nueva Visión, 2000, p. 76). Por fim, David Harvey, em posição que coloca
como central o conceito do fetichismo, diz que “Considero, portanto, o conceito de fetichismo tão fundamental
para a economia política quanto para o argumento mais amplo de Marx. Com efeito, conjuga os dois no quadril
[i.e. equilibra ambos]” (HARVEY, David. A companion to Marx’s Capital. London/NYC: Verso, 2010, p. 38).
58

tendência anti-idealista do Marx maduro nos faz mediar essa passagem por toda a dificuldade
que está contida nesse abandono da sociabilidade capitalista.

Como Marx dirá em Crítica ao Programa de Gotha, não se trata de uma passagem
sem muitas dificuldades, mas sim de um parto com todas as dores nela existentes. Como
veremos mais adiante, os meios de construção dessa passagem, ou transição como é
comumente conhecida na literatura marxista, será teorizada e atuada na prática de forma
conflitante. Para alguns, por meio do racha intersticial do capitalismo; para outros, por uma
passagem pacífica, revolucionarizando por meio de reformas; e, ainda, para outros, de forma
radical.

De toda forma, pensar nessas “outras formas de produção” – e completaríamos, de


reprodução, passa imediatamente por pensar criticamente as estruturas que o Estado e o
direito tomam na sociabilidade ainda existente. Essa sociabilidade é viva e contém uma
história própria que pode carregar em si os elementos necessários para essa transição.
Portanto, tenho nosso foco na periferia latino-americana, é importante, agora, pensar tais
elementos da teoria materialista do Estado aplicados a essa própria realidade.
59

2. A DERIVAÇÃO DO ESTADO E DO DIREITO NA DIALÉTICA DA PERIFERIA

O que se conheceu como alternativa de esquerda,


na América Latina do início do século XXI, paira
sobre a sombra de um capitalismo inclusivo.

Alysson Leandro Mascaro.118

Na época das independências dos países latino-americanos, no século XIX, os


ordenamentos jurídicos dos Estados recém libertos demonstraram uma preocupação muito
clara: a absorção da doutrina econômica liberal, garantindo constitucionalmente a abertura
para os mercados internacionais, em especial o britânico. Não que isso fosse algo novo: as
metrópoles garantiam a impossibilidade de instalação de manufaturas nas colônias com o
intuito de manter o monopólio sobre os produtos industrializados.119

Os projetos liberais, de forma geral, foram vencedores na construção do pensamento


político latino-americano. “Interesses econômicos e sociais diversos num quadro de fortes
mudanças institucionais formavam o pano de fundo da construção dos Estados nacionais”.120
Obviamente, a inspiração iluminista tenderia à adoção, como já apontamos no Capítulo 1, do
modelo europeu de Estado.

De Estebán Echeverría, inspirado nos ideias políticos e econômicos iluministas, na


Argentina; a Lorenzo Zavala, liberal radical, no México, os ideais liberais passaram a
impregnar as lutas populares desde a época das Independências até a formação dos Estados-
nação latino-americanos: a separação do Estado em relação à Igreja; democracia construída
pela razão, para alguns pelo povo, para outros por uma elite esclarecida; destruição das
118
MASCARO, Alysson Leandro. Crise brasileira e direito. Margem Esquerda. São Paulo: Boitempo, 2015, n.
25, p. 71.
119
Exemplos disso: (i) “o decreto real [espanhol] de 28 de novembro de 1800 proibiu a instalação de
manufaturas nas colônias, seguido de um outro, de 30 de outubro de 1801, que se referia ‘à instalação excessiva
de fábricas e maquinaria, em conflito com as que já prosperam na Espanha, cuja finalidade é suprir
prioritariamente as nossas Américas” (LYNCH, John. As origens da independência na América Espanhola. In:
BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina – Volume III: da Independência a 1870. São Paulo:
EDUSP, p. 37); (ii) o Alvará de 5 de janeiro de 1785, assinado pela Rainha Maria I de Portugal, ordenando a
extinção e abolindo as manufaturas sobre os domínios de Portugal no Brasil (ARQUIVO NACIONAL (Brasil).
Alvará de 05 de janeiro de 1875. Disponível em:
http://www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br/Media/Junt%20da%20fazend%20COD439%20f27f27vf28.p
df. Acesso em: 10 abr. 2016).
120
PRADO, Maria Ligia; PELLEGRINO, Gabriela. História da América Latina. 1.reimp. São Paulo:
Contexto, 2014, p. 45.
60

formas de organização social próprias dos colonas, onde se incluía as comunidades indígenas;
nacionalização dos bens da Igreja; declaração e direitos como igualdade jurídica, liberdade
negocial e propriedade privada; bem como fim dos privilégios jurídicos, em especial de
eclesiásticos.121

De um Estado liberal, construído unicamente em cima de liberdades individuais,


redundando no livre-comércio, a América Latina também passou por um período de maior
atuação do Estado na economia e nas relações sociais, cuja intervenção tendeu à busca do
desenvolvimento nacional. Tal atitude sofrerá mudanças no final do século XX, quando a
ampliação do neoliberalismo, capitaneado pelos ideais do Consenso de Washington, de 1989,
promoverá fortes mudanças na forma de atuação/retirada do Estado em relação à iniciativa
privada. Nesse ponto vale lembrar, com as palavras de Alysson Mascaro apontadas na
epígrafe desde capítulo, os projetos apresentados, tanto pela direita, quanto pela esquerda
social-democrata, estão acobertados pelos ideais capitalistas.122

Assim, (i) num contexto de forte atuação da ilusão intervencionista baseada no


desenvolvimentismo, na América Latina, (ii) combinado com fatores que fizeram certos
países a abrir dos projetos históricos de superação das desigualdades sociais e, mais uma vez,
(iii) criminalizar a esquerda que aponta projetos fora do modelo capitalista, o cenário latino-
americano se assemelha ao encarado pelos membros do debate da derivação.

Mais uma vez, retomar a compreensão do Estado a partir de sua especificidade


histórica, bem como das categorias econômicas nesse processo de integração com o sistema
de Estados, torna-se necessário. Esse projeto já foi retomado por certos autores latino-
americanos, os quais retornam às duras categorias desenvolvidas a partir do debate para
repensar a América Latina.

121
PRADO, Maria Ligia; PELLEGRINO, Gabriela. História da América Latina. 1.reimp. São Paulo:
Contexto, 2014, pp. 43-70.
122
Como lembram Resnick e Wolff, o Estado mais presente ou menos presente representam duas faces da
mesma moeda. Trata-se da monopolização do debate, retirando o importante de cena: a crítica ao capitalismo
como modo de produção: “Ambos os lados (i.e. neoliberal e desenvolvimentista, que focam a crise na atuação do
Estado e na liberação do mercado respectivamente), portanto, compartilham um profundo conservadorismo em
face do capitalismo, apesar de defenderem pontos de vista radicalmente diferentes a respeito da necessidade de
intervenção do Estado. A oscilação entre eles serve ao seu conservadorismo compartilhado. Isso impede que as
crises no capitalismo se transformem em crises do capitalismo, quando o próprio sistema é colocado em questão.
[...] Isso efetivamente mantém o debate público afastado de qualquer consideração séria a respeito de uma
solução alternativa para as crises recorrentes do capitalismo: qual seja, a transição para outro sistema econômico
diferente do capitalismo” (RESNICK, Stephen; WOLFF, Richard. The economic crisis: a marxian interpretation.
Rethinkin Marxism. V. 22, n. 2, abr. 2010, pp. 172-173).
61

A partir dos pontos apresentados no capítulo anterior, é importante a compreensão


das questões identificadas na literatura marxista latino-americana a partir do debate da
derivação. A correta compreensão de tais questões nos possibilitará entender os aspectos de
especificidade da forma na América Latina como periferia do sistema capitalista
mundializado.

2.1 A dicotomia centro-periferia.

Primeiramente, vale resgatar a origem o termo periferia, importante para esse


trabalho. Para tanto, resgatamos a construção histórica realizada por Vinícius Pereira
Vieira,123 cujo doutoramento se focou na relação entre a produção centro-periferia e, em
especial, nas teses marxistas que dão cabo a essa relação, em especial a tese do imperialismo,
de Lenin, bem como os dependentismos. Mais próximos a nós, Jaime Osório lembra que os
autores marxistas que exumam a utilizam desses termos são basicamente Braudel, Wallerstein
e Samir Amin.124

Segundo o autor, a origem histórica, ou pré-histórica, da expressão centro-periferia


está nos teóricos marxistas do imperialismo, dentre os quais podemos citar Lenin e Nikolai
Bukharin. Outros teóricos marxistas ligados às teorias da dependência de matizes marxistas
“”tratarão de dar-lhe os contornos e acabamentos finais, os quais ainda perduram”. 125

Ainda segundo Vinicius Pereira, haveria quatro grandes abordagens teóricas,


caracterizando verdadeiras escolas de pensamento cujas diferenças construíram o conceito e a
extensão do termo centro-periferia. As Escolas seriam:

[1] as contribuições vindas dos autores marxistas do imperialismo


capitalista; [2] o enfoque estruturalista característico do pensamento
“cepalino”, assim denominado em virtude da conexão entre esses escritos e o
envolvimento intelectual e profissional de seus autores com o organismo
internacional das Nações Unidas, a Comissão Econômica para América

123
PEREIRA, Vinícius Vieira. A produção da relação centro e periferia no pensamento econômico: das
teses marxistas do imperialismo capitalista às teorias da dependência. Tese (Doutorado em Economia). Belo
Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2015.
124
OSÓRIO, Jaime. O Estado no centro da mundialização: a sociedade civil e o tema do poder. Trad.
Fernando Correa Prado. São Paulo: Outras Expressões, 2014, p. 183, nota 7.
125
PEREIRA, Vinícius Vieira. Op. cit., p. 11 e 76, nota 55.
62

Latina e Caribe – Cepal; [3] o debate de cunho marxista que alimentou as


análises sobre a existência de uma troca desigual na base das relações
comerciais entre países ricos e pobres; e, por último, [4] as duas vertentes,
marxista e sociológica, da chamada teoria da dependência, cujo esforço
representou um importante momento no questionamento da condição latino-
126
americana frente ao sistema capitalista mundial.

Mas será com Raul Prebisch que a polarização do capitalismo mundial em centro
desenvolvido e periferia subdesenvolvida tomará proporções teóricas mais acabadas, ‘nos
trabalhos anteriores à data de surgimento da CEPAL, período que vai, aproximadamente, de
1932 a 1949’, conforme a pesquisa de Vinicius Vieira Pereira. Assim, “Prebisch lança “uma
nova ‘visão’ do subdesenvolvimento na qual recusa-se a tratar como anomalia algo que, na
verdade, devia ser percebido como um modo de ser”,127 sendo que “a concepção do sistema
centro-periferia é o que dá, segundo Octavio Rodríguez, a unidade do pensamento da
CEPAL”.128

Vinicius Vieira Pereira vai à fundo, comentando que Prebisch, embora tenha dado
ênfase ao progresso técnico e a necessidade de se romper com a divisão internacional do
trabalho por meio de um processo de industrialização mais intenso, o que marcará as teses
cepalinas em seu início, nunca teria associado “ a indústria à riqueza e agricultura à pobreza, e
jamais foi tomado por uma aversão ao campo”. Isso teria relevo no fato de ter recebido
acusações para as quais Pebrish não veria interesse na industrialização dos países
subdesenvolvidos, o que acentuaria ainda mais a divisão internacional do trabalho. 129 O
próprio Prebisch alertara em 1949 sobre a construção da dependência ou acentuação da
divisão internacional do trabalho de modo prejudicial: “A solução não está em crescer ás
custas do comércio exterior, mas em saber extrair, de um comércio exterior cada vez maior,
os elementos propulsores do desenvolvimento econômico”.130

126
PEREIRA, Vinícius Vieira. A produção da relação centro e periferia no pensamento econômico: das
teses marxistas do imperialismo capitalista às teorias da dependência. Tese (Doutorado em Economia). Belo
Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2015, p. 112.
127
Idem Ibidem, pp. 116-117.
128
BERCOVICI, Gilberto. O estado desenvolvimentista e seus impasses: uma análise do caso brasileiro.
Boletim de Ciências Económicas. Coimbra, v. XLVII, 2004, p. 155.
129
PEREIRA, Vinícius Vieira. Op. Cit., p. 137.
130
PREBISCH, Raul. O desenvolvimento econômico da América Latina e alguns de seus problemas principais.
In: BIELSCHOWSKY, Ricardo. Cinquenta anos de pensamento na CEPAL. Vol 1. Trad. Vera Ribeiro. Rio
de Janeiro: Record, 2000, p. 73. As conclusões de Pebrish levarão a uma apologia do investimento estrangeiro,
produção de produtos industrializados, aumento de produtividade e sua exportação (pp. 135-136), como bem
63

Assim estabelecido, o termo periferia está ligado à origem de exploração realizada


por países que estão no centro do capitalismo. Isso não apaga a existência, dentro dos próprios
países de economia periférica, de uma exploração entre capital e trabalho livre assalariado.131

2.2 Os Dependentismos.

Estado e economia vivem uma relação e autonomia relativa, mas é impossível pensar
uma teoria do Estado sem conceber as bases econômicas de estruturação. A autonomia é
relativa, o que não apaga a necessidade de encarar as implicações de uma economia política
porque está mergulhada nos fatores históricos que dá respostas para a compreensão das
relações de desigualdade social. Assim, Tilman Evers, conforme apontado acima, alerta para
pensar a América Latina com olhos na história econômica em que está inserida.

Seja pelos movimentos dos valores no mercado mundial que tiveram, em regra, o
sentido metrópole-periferia, seja pela tentativa de compreensão do modo de produção
existente nas regiões colonizadas, economistas marxistas trouxeram contribuições para a
compreensão de aspectos importantes das economias subdesenvolvidas. Para Evers, ambas as
visões são complementares, seja por focar o processo existente na dinâmica imperialista
internacional, necessária ao mercado mundial, seja por lançar olhos para a formação social
específica e seus desdobramentos políticos – e a nosso ver, também jurídicos.132

aponta Vinicius Pereira: “A periferia do sistema torna-se, então, refém do próprio crescimento, pois, toda vez
que a atividade econômica aquece, os níveis de emprego sobem e, assim, eleva-se a renda interna, o que puxa
para cima as importações, exigindo um esforço exportador ainda maior para fazer frente aos débitos em dólares o
que, geralmente, transforma-se numa tarefa de Sísifo. Como o crescimento das exportações não depende das
próprias economias periféricas, mas sim, das centrais, e estas não importam em velocidade e intensidade
suficientes à demanda de importação da periferia, o desenvolvimento dos países periféricos torna-se um
processo, no mínimo, contraditório, com tendência constante ao desequilíbrio cuja única saída, para Prebisch, era
a redução das importações substituindo-as pela industrialização” (op. cit., p. 140).
131
Vinicius Pereira resgata a crítica de Bettelheim a Arrighi Emmanuel, para quem haveria uma troca desigual
que marcaria a divisão internacional de trabalho (op. cit., p. 204 e seguintes). Bettelheim vai alertar, a partir do
conceito de classes, que o termo “troca desigual” poderia levar a crer numa possível troca igual, dentro do
mundo da mercadoria: “É a natureza da combinação específica das forças produtivas e das relações de produção
dos países pobres, sob a égide das relações mundiais capitalistas, que constituem a base objetiva da “pobreza” de
certos países, os países dominados, e que explicam os salários baixos e a “troca desigual”. Para escapar de forma
durável à “troca desigual”, não existe outro meio a não ser transformar essa base objetiva e, portanto, eliminar as
relações de produção que “entravam o desenvolvimento das forças produtivas” (BETTELHEIM, Charles.
Comentários Teóricos. In: EMMANUEL, Arghiri. Troca desigual.v.2. Lisboa: Editorial Estampa, 1973, p. 46).
132
EVERS, Tilman. El Estado en la periferia capitalista. 5.ed. Cidade do Méxco: Siglo Veintiuno, 1989, pp.
16-17.
64

“O termo ‘dependência’, aplicado à periferia, é uma contrapartida ao termo


‘imperialismo’, aplicado ao centro”, lembra Bresser-Pereira.133 Isso nos lembra que a crítica
ao imperialismo, iniciada com vigor por Lenin, irá repercutir tanto na concepção política de
separação do mundo em dois grandes blocos – o centro e a periferia – quanto na concepção
econômica de um modo de produção hegemônico e outros que lhe são dependentes (uma
bipolarização que escapa ao esquematismo bipolar da trilogia do Império, de Hardt e Negri,
pois está centrada em diversos mecanismos de poder, dentro ou fora do Estado-nação).

Ao intitularmos a seção como “Dependentismos”, destacamos que houve diferentes


abordagens sobre o mesmo signo da relação desigual – não apenas de troca desigual –
existente entre o centro e a periferia do capitalismo. Em especial destaque, é preciso marcar a
posição de duas grandes correntes que, para Joseph L. Love, o marxismo irá traçar, embora
seja necessário demarcar que a esquerda reformista lato sensu não se confunde com a crítica
da economia política fundada por Marx:

This is perhaps because dependency per se is so widely perceived as having


begun with two books for which Marxist antecedents were claimed.
Dependencia j desarrollo em America Latina (1969), by Fernando Henrique
Cardoso and Enzo Faletto, and Capitalism and Underdevelopment in Latin
America (1967), by Andre Gunder Frank, 'stood out as the leading
theoretical and systematic efforts to construct a dependency perspective for
Latin America', and remain 'the landmarks to which assessment of
dependency perspectives inevitably return'.134

Ao grupo marxista de André Gunder Frank, outros nomes seriam somados com o
tempo, como os dos brasileiros Theotonio dos Santos e Ruy Mauro Marini. Para eles, o
capitalismo, como formação econômica predominante, produz de forma imanente o
desenvolvimento e o subdesenvolvimento em determinadas áreas. Também seria impossível,
em especial para Gunder Frank, pensar na existência de fases no capitalismo brasileiro,
especificamente. Falar em revolução capitalista a partir da década de 1930 – o que para

133
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. As três interpretações da dependência. Perspectivas, São Paulo, v. 38,
jul./dez. 2010, p. 32. Disponível em:
http://www.bresserpereira.org.br/papers/2009/09.11.tres_interpretacoes_dependencia.perspectivas_26.pdf.
Acesso em: 13 mar. 2017.
134
LOVE, Joseph L.. The origins of dependency analysis. Journal of Latin American Studies, Cambridge, v.
22, nº 1-2, mar. 1990, p. 143. Disponível em: http://dx..doi.org/10.1017/S0022216X00015145. Acesso em: 13
mar. 2017.
65

muitos é consequência de um modo de produção atrasado chamado colonial – seria


impossível.

O grupo de Cardoso e Faletto (em especial os intelectuais ligados à Escola de


Sociologia de São Paulo) corporificam um dependentíssimo associado que abandona o
marxismo, encaixando-se numa esquerda progressista, exceto intelectuais como Florestan
Fernandes, Octavio Ianni e Roberto Schwarz. Como aponta Bresser-Pereira, as ideias centrais
são essas: “já que os países latino-americanos não contam com uma burguesia nacional, não
lhes resta alternativa senão se associarem ao sistema dominante e aproveitarem as frestas que
ele oferece em proveito de seu desenvolvimento”.135 De marxismo apenas a origem mesmo.

Para Bresser-Pereira, haveria uma terceira corrente do dependentíssimo, uma chamada


teoria nacional-dependente, a qual enxerga a existência de uma oposição entre duas classes de
elite, a internacional e a nacional. Essas últimas manteriam seu caráter dependente em toda
América Latina, contudo em certos aspectos tal dependência seria “relativa e contraditória”.
Prossegue Bresser-Pereira: “Ela reconhece que as elites locais tendem a ser alienadas e
cosmopolitas, mas enfatiza a contradição entre os interesses objetivos dos países ricos e os
interesses dos países de renda média como o Brasil”.136

Daí o porquê de a visão marxista ser a que mais nos interessa, pois tende a
compreender a formação econômica sem deixar de lado o fato de que a conciliação de classes
não é uma questão propícia e vantajosa para o povo explorado, bem como que não é possível
uma racionalização do conteúdo das estruturas políticas. Vale dizer, da formação dependente
da periferia em relação ao centro, bem como a formação heterogênea que impacta na
especificidade de relações sociais, são marcas indeléveis na história dos povos latino-
americanos, o que permite – mais uma vez destacamos – o processo material de derivação das
formas, mas com um conteúdo captado na periferia. A abstração é possível (mais uma vez, De
te fabula narratur, diz Marx nos prefácios a’O capital).

135
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. As três interpretações da dependência. Perspectivas, São Paulo, v. 38,
jul./dez. 2010, p. 37. Disponível em:
http://www.bresserpereira.org.br/papers/2009/09.11.tres_interpretacoes_dependencia.perspectivas_26.pdf.
Acesso em: 13 mar. 2017.
136
Idem Ibidem, p. 38.
66

2.3 Questão 1 – Forma política e formas sociais: a derivação do Estado e do direito na


periferia.

Uma questão é importante para compreender o processo de derivação do Estado e do


direito na periferia do capitalismo: como se dá o processo de surgimento dos Estados e como
se dá sua relação no sistema de Estados? Essas questões, talvez, sejam as mais primordiais,
permitindo, no futuro, pensar o processo de subjetivação na América Latina, as formas sociais
apropriadas pelo capitalismo como sociabilidade dominante, bem como os processos de crise
do capital que, em regra, afetam primeiramente a periferia, mas que nos últimos anos inverteu
sua atenção para atingir o centro.

Como lembra Alysson Mascaro, “o processo de constituição das formas, no entanto,


é necessariamente social, histórico e relacional”.137 Isso quer dizer que as trocas concretas
ocorridas a partir de relações sociais constituem e cristalizam as formas sociais. Estas, não
sendo uma categoria idealista, isto é, não sobrevivendo apenas na consciência e apreendida
pela razão, deve ser observada no desenvolvimento histórico.

Como Alysson Mascaro já deixou claro, as formas sociais capitalistas – a forma


valor, a forma mercadoria, a forma política, a forma jurídica, a moeda, dentre outras –
recebem uma interação, uma unificação de atuação a partir da sociabilidade capitalista. 138 Isso
explica o processo de derivação observada pelo debate alemão a partir da forma mercadoria.

Joachim Hirsch reconhece que não são apenas os antagonismos capitalistas de classe
que preenchem o significante vazio da sociabilidade capitalista. Todas as formas sociais que
constituem a história latino-americana, de uma forma ou de outra, podem ser essenciais,
independente do meio de desenvolvimento ou da especificidade de cada povo.

Até agora, partimos da suposição simplificada de que na sociedade


capitalista haveria apenas um conflito social básico, ou seja, entre “trabalho
assalariado” e “capital”. Na realidade existe uma inteira série de outros
antagonismos sociais, de relações de domínio, de exploração e de
subordinação: sexuais, religiosas, culturais, regionais. Essas não resultam
meramente das relações capitalistas de classe, e não desapareceriam de modo
algum com elas. De fato, elas são frequentemente mais antigas do que a
própria sociedade capitalista. Isso vale também para a relação social com a
natureza, que, enquanto relação de domínio e de exploração, remonta ao

137
MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 21.
138
Loc. cit.
67

período anterior ao surgimento da sociedade burguesa, sendo uma base para


o seu aparecimento. Colocar a forma de socialização capitalista como ponto
de partida de uma análise do Estado não quer dizer que tais antagonismos
não sejam essenciais, ou que apresentem “contradições secundárias”
subordinadas. Ao contrário, a relação com a natureza, de gênero, a opressão
sexual e a racista estão inseparavelmente unidas com a relação de capital, e
não poderiam existir sem ela. No entanto, o decisivo é que o modo de
socialização capitalista, enquanto relação de reprodução material, é
determinante, na medida em que impregna as estruturas e as instituições
sociais – as formas sociais determinadas por ele -, nas quais todos esses
antagonismos sociais ganham expressão e ligam-se uns aos outros. Isso vale,
como será mostrado, para o caso da formação concreta do racismo, assim
como pelo modo de opressão sexual. Nacionalismo e racismo não podem ser
compreendidos sem o Estado capitalista. A situação das mulheres sob as
relações capitalistas burguesas. Mesmo que a sua discriminação tenha-se
mantido historicamente, ela assume outra configuração sob as condições da
139
sociedade burguesa.

Pelo visto, o desenvolvimento das formas sociais capitalistas, e por consequência a


própria forma política, reconfigura as opressões já existentes na sociedade absorvida. Disso
percebe-se porque determinados Estados podem ser mais institucionalmente racistas, exigindo
a atuação de movimento negro mais organizado e, às vezes, violento; outros podem ser menos
tolerantes com a posição da mulher ou verdadeiramente mais misóginos; ou mesmo
perseguirem as expressões sexuais que não sejam heteronormativas. Independentemente da
história individual dos povos, o ponto é que o Estado capitalista se forma sob a base de
relações sociais muitas vezes já consolidadas, existindo uma mediação dinâmica entre os
elementos formadores da sociedade latino-americana.

Há diversas formas sociais pré-capitalistas que são fundidas à determinação em


última instância por parte da forma mercadoria e que devem ser lidas a partir da totalidade.
Elas recebem um tratamento pelo qual ainda são importantes para a formatação do
pensamento social latino-americano, mas conquanto tenham sentido dentro da lógica do
capital. É o caso da escravidão indígena e negra na América, ou mesmo a forma de
organização comunal dos povos pré-colombianos. É o caso, por exemplo do racismo
estrutural, nas instituições jurídico-políticas brasileiras. Sobre o racismo institucional e sua
penetração na própria política, lembra Dennis de Oliveira:

139
HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado: processo de transformação do sistema capitalista de
Estado. Tradução de Luciano Cavini Martorano. Rio de Janeiro: Revan, 2010, pp. 39-40.
68

Essa situação [i.e. o reconhecimento oficial de existência do racismo no


governo do Presidente Lula, do Brasil] possibilitou que o movimento negro
avançasse para a conceituação do racismo institucional, isto é, a reflexão
sobre os problemas de natureza institucional, da máquina responsável pela
implantação das políticas públicas, como um dos principais entraves para
que as medidas institucionais sejam efetivamente aplicadas. [...] O
despreparo e mesmo o pensamento racista presente nos agentes públicos, ou
a forma como a máquina administrativa é montada, entre outras coisas, são
expressões desse racismo institucional.140

O racismo no Brasil tomou proporções semelhantes às dos Estados Unidos da


América, onde a segregação tomou a legalidade ainda em tempos republicanos. No caso
brasileiro a perversidade está mergulhada no mito da democracia racial e da miscigenação
como marca profunda da sociedade. Adilson José Moreira,141 ao comentar sobre a instituição
de privilégios e sua possível diluição por meio de ações afirmativa, aponta que os críticos das
ações afirmativas de corte racial tendem a se apoiar em fatores genéticos e morais para tentar
deslegitimar as políticas públicas já escassas no campo racial. Além disso, tende-se a crer que
o racismo não é institucional, ou seja, não impede a ascensão social das pessoas negras que
são a maioria em situação de pobreza; não diferencia seus salários que ainda estão abaixo da
média; não tributa mais a mulher negra que, sendo consumidora de produtos básicos e
possuindo menor crédito, está ainda afetada pelos tributos indiretos, etc.

Também a forma de exclusão no tratamento dos povos pré-colombianos originários é


tomada como razão de Estado, ainda que haja uma forte influência das próprias instituições
políticas atuais por parte de suas antigas organizações sociais. É o caso do sistema eleitoral
mexicano que leva influência do método de escolha dos líderes huey tlatoani, do império
asteca. Sobre tal forma de eleição, Miguel León-Portilla comenta:

Na verdade, não votavam, pois seu propósito era chegar a uma decisão
unânime; assim, passavam vários dias a consultar pessoas diferentes e a
deliberar entre si. Finalmente chegavam a uma aceitação unânime de alguém
que, embora pudesse ser superado por outros em alguns aspectos, por outro
lado satisfizesse os vários interesses na maioria dos aspectos e fosse
considerado suficientemente capaz para ser o líder de toda a nação. Desde
Moteuczoma I até a invasão espanhola, todos os huey tlanoani foram
escolhidos por esse método, cujos vestígios, na opinião de alguns

140
OLIVEIRA, Dennis. Dilemas da luta contra o racismo no Brasil. Margem Esquerda. São Paulo, v. 27, 2º
sem. 2016, p. 32.
141
MOREIRA, Adilson José. Privilégio e opressão. Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 21, nov.
2016/mai. 2017, pp. 30-45.
69

pesquisadores, ainda hoje sobrevivem nas eleições presidenciais do México


atual.142

Sendo civilizações que se encontravam num grau de desenvolvimento avançado, os


povos conquistados no que viria a ser América espanhola possuíam tradições e estruturas
econômico-sociais que necessitavam ser absorvidas pelos Estados que se formariam nos
séculos seguintes. Isso para a correta reprodução do capital, ou mesmo para a manutenção do
grau de exploração dos povos. O primeiro aspecto disso era o fornecimento de mão-de-obra,
em sua maioria escrava ou servil, para a pilhagem dos territórios invadidos.

Os espanhóis, aproveitando-se do conhecimento e da relação do pré-colombiano com


as terras e a natureza locais, promoveu a exploração do capital excedente extraído daquela
sociedade. Os meios mais eficazes encontrados foram uma protoforma de instituições
jurídicas: a encomienda e o tributo. No primeiro caso, tratava-se de um contrato de trabalho
firmado entre indígenas e espanhóis para a exploração e comercialização do ganho extraído,
mas um contrato formal, pois se tratava de uma forma de exploração servil.143

A existência de tal “contrato” – que só pode ser entendido entre aspas – não deixava
de lado a natureza política de vassalagem entre indígenas e encomenderos. A comunidade do
qual provinha o trabalhador era obrigada a sustenta-lo na encomienda. Essa situação tenderia
a agravar ainda mais a situação de pobreza dos povos já conquistados, “porque as aldeias
precisavam produzir um excedente que era transferido aos encomenderos, e não recebiam em
troca qualquer benefício”.144 Mas essa situação não perdurou para dentro do século XVII, pois
os ganhos com essa estrutura de exploração eram diminutos frente a atividades de outras
colônias, em especial a agricultura, a pecuária e a mineração. Para tais atividades, porém,
embora já explorando e escravizando negros africanos, Espanha manteve com maior
intensidade a mão-de-obra indígena local.

Importante destacar que havia diversos outros institutos para aquisição de mão-de-
obra que, nas palavras de Murdo MacLeod importou na Espanha “adotar as instituições

142
LEÓN-PORTILLA, Miguel. A Mesoamérica antes de 1519. In: BETHELL, Leslie (Org.). História da
América Latina – Vol. I. América Latina colonial. 2.ed. São Paulo: EDUSP, 2012, p. 44.
143
MACLEOD, Mudo J. A Espanha e a América: o comércio atlântico de 1492-1720. In: BETHELL, Leslie
(Org.). História da América Latina – Vol. I. América Latina colonial. 2.ed. São Paulo: EDUSP, 2012, p. 361.
144
FLORESCANO, Henrique. A formação e a estrutura econômica da hacienda na Nova Espanha. In:
BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina – Vol. II. América Latina colonial. 2.ed. São Paulo:
EDUSP, 2012, p. 162.
70

funcionais existentes e a alterá-las gradativamente à medida que as circunstâncias o


exigissem”.145 É o caso da encomienda e do repartimiento, instituições espanholas, sendo que
a última se utilizou das formas de recrutamento de trabalhos já exitentes, como o coatequitl
(México), a mita (Peru) e os alquileres ou concertajes, traduzindo-se em aquisição de “um
corpo de trabalhadores que, na prática, não tinham virtualmente nenhuma liberdade de
movimento”.146

Uma nota é importante: como se sabe, os indígenas brasileiros foram forçados a


trabalhos por portugueses, em especial, através das Bandeiras, ou mesmo antes disso, para
trabalho na extração de pau-brasil, minérios e caça de animais. Em certa medida, a
impossibilidade de utilização do indígena na agricultura e pecuárias em larga escala se dá a
partir da própria materialidade da região. Sua vida era em aldeias de curta duração, pois o
ambiente em que viviam impediam, ou ao menos dificultavam, o fortalecimento de técnicas
agrícolas, seja por inundações periódicas, por florestas fechadas, ou mesmo pela inexistência
de animais nativos que pudessem ser domesticados por eles. Até mesmo a forma de
crescimento da cultura nas civilizações do oeste e norte do continente não foi a mesma para os
indígenas na região do que viria a ser o Brasil: “os índios brasileiros não deixaram
monumento porque seus únicos materiais de construção eram a madeira, o cipó e o capim, que
são encontrados em grande abundância, mas se deterioram com muita rapidez”.147

De sorte que, sendo essas formas sociais apropriadas e reconfiguradas pelas


civilizações invasoras, são ainda mais pelo capital com intuitos muito claros de exploração e
exclusão, o complexo do ego conquiro. Deixá-las de lado para a compreensão da própria
forma política e da forma jurídica da cidadania é um erro crucial para quem se preocupa em

145
MACLEOD, Mudo J. Aspectos da economia interna da América espanhola colonial: mão-de-obra, tributação,
distribuição e troca. In: BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina – Vol. II. América Latina
colonial. 2.ed. São Paulo: EDUSP, 2012, p. 225.
146
FLORESCANO, Henrique. Op. cit., p. 165. Uma advertência deve ser feita. Embora institutos ligados à
servidão e escravidão já existissem na América pré-colombiana, a dinâmica era bem diferente. Isso prova como a
apropriação era reconfigurada, ainda que não possamos falar na existência de um capitalismo acabado, mas sim
de puro mercantilismo. É o caso da Mesoamérica, onde a dinâmica era bem diversa da escravidão que já se
observava no Mundo Antigo europeu e a promovida pelas navegações dos séculos XV e XVI. “Na Mesoamérica
a escravidão era muito diferente da que predominava no mundo europeu. Na época dos mexicas, um escravo era
vendido por tempo limitado: o próprio escravo, ou seus parentes, podiam resgatá-lo. Os filhos de escravos não
eram considerados escravos. Por outro lado, tornar-se um escravo incluía o risco de ser escolhido para o
sacrifício humano, pois o senhor tinha o direito de ofereceu seus escravos para esses rituais” (LEÓN-
PORTILLA, Miguel. A Mesoamérica antes de 1519. In: BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina
– Vol. I. América Latina colonial. 2.ed. São Paulo: EDUSP, 2012, p. 51).
147
HEMMING, John. Os índios do Brasil em 1500. In: BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina
– Vol. I. América Latina colonial. 2.ed. São Paulo: EDUSP, 2012, p. 104.
71

pensar a partir do marxismo. No mesmo sentido de Silvio Luiz de Almeida, “compreender o


direito e o Estado em suas relações mais íntimas com o capitalismo faz da análise do racismo
uma exigência teórica primordial”.148

Dito isso, conseguimos compreender com maior facilidade a forma em que se dá o


processo de derivação da forma política estatal e da forma jurídica. Não se trata de um
processo lógico, pelo qual poderíamos transpor todas as categorias econômicas para a
compreensão do Estado, mas sim histórica, material. Nesse aspecto, cada civilização, povo ou
nação teve seu desenvolvimento, mas isso não invalida o argumento geral de que há uma
ligação em nível abstrato da história e, por consequência, da derivação das formas sociais na
América Latina. Como já disse Tilman Evers, a questão é tratar de demonstrar “que o que há
de comum entre essas sociedades são precisamente aqueles elementos que fundamentam a
possibilidade de uma multiplicação de formas na superfície”.149

2.4 Questão 2 – A integração ao mercado mundial.

Como aponta Jaime Osório, o papel da integração ao mercado mundial é fundamental


para pensar a força de atuação do Estado na América Latina. Essa força de atuação é dinâmica
e consiste na “expansão do capitalismo como sistema mundial, que ao longo de sua história
gera regiões e nações diferenciadas do ponto de vista da capacidade de se apropriar de valor
(o centro) e outras de ser despojadas de valor (a periferia).150

148
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Estado, direito e análise materialista do racismo. In: KASHIURA JUNIOR, Celso
Naoto; AKAMINE JUNIOR, Oswaldo; MELO, Tarso de. Para a crítica do direito: reflexões sobre teorias e
práticas jurídicas. São Paulo: Outras Expressões; Dobra universitário, 2015, p. 749.
149
EVERS, Tilman. El Estado en la periferia capitalista. 5.ed. Cidade do Méxco: Siglo Veintiuno, 1989, p. 13.
150
OSÓRIO, Jaime. O Estado no centro da mundialização: a sociedade civil e o tema do poder. Trad.
Fernando Correa Prado. São Paulo: Outras Expressões, 2014, pp. 182-183. Márcio Pochmann utiliza, ainda, a
categoria intermediária de semi-periferia: “Mais recentemente, foi introduzido o conceito de semi-periferia para
identificar melhor o surgimento de uma diferenciação significativa no interior dos países fora do centro
capitalista. De um lado, para distinguir as experiências das economias centralmente planejadas (socialistas)
desde 1917 (Revolução Russa), que apesar de não serem tão dependentes na geração de tecnologia, nem
subordinados na apropriação do excedente econômico e nem tampouco dominados pelo poder de comando
central, apresentaram em um determinado período histórico condições socioeconômicas intermediárias em
relação ao centro capitalista mundial. De outro lado, para destacar a constituição de um pequeno bloco de
economias de mercado que, apesar de ser dependente de tecnologia, subordinado na apropriação do excedente e
dominado pela estrutura do poder de comando decorrente do centro capitalista mundial, conseguiu alcançar uma
posição socieconômica intermediária. Foi o caso dos novos países que conseguiram internalizar algum grau de
industrialização tardiamente (New Industrializing Countries) no segundo pós-guerra” (POCHMANN, Márcio.
Economia global e nova divisão internacional do trabalho. S/d, pp. 4-5. Disponível em:
http://decon.edu.uy/network/panama/POCHMANN.PDF. Acesso em: 06 mar. 2017.
72

Essa diferença é significativa ao observar a orientação da produção, a gestão do


trabalho e as significativas alterações que o Estado tem sofrido na periferia. É conhecida a
tese de Michael Hardt e Antonio Negri,151 para quem o Estado, na verdade, está cada vez mais
enfraquecido, pois a construção do Império exige a dissolução das barreiras nacionais em
velocidade altíssima. Esse posicionamento é enfrentado pelo debate da derivação e pelos
teóricos que, na América Latina, observam que o movimento do Estado é o contrário: uma
fortificação no campo da política, embora no campo econômico tenha como função garantir
os meios de circulação do grande capital estrangeiro.

O fato de existir uma multiplicidade de Estados conglomerados em blocos de


integração (a União Europeia é o exemplo mais acabado disso, embora o Brexit demonstre a
limitação das intenções do Tratado de Maastricht), não vulgariza o poder do Estado. O que
observamos é uma reorganização política no cenário internacional para facilitar a
concorrência em bloco, para facilitar as relações de exploração no cenário do imperialismo.

Somente com a multiplicidade de Estados se estabelecem e se cimentam


plenamente os mecanismos da reprodução do capital, porque a concorrência
entre Estados dá unidade estrutural e ideológica ao acoplamento entre a
exploração da força de trabalho e o interesse do capital nacional.152

Disso tiramos que o desenvolvimento desigual do capitalismo gera, também, um


exercício desigual da força no cenário internacional. A política e a economia política
internacional são baseadas na competição, o meio mais vantajoso de reprodução para o
capital. As condições dessa concorrência valorizam duplamente: as elites internacionais, bem
como a segregação e opressão no interior dos Estados nacionais.

As primeiras questões a serem apontar tem que ver com a autonomia do Estado
Latino-americano frente (i) aos mercados globalizados e suas pressões para abertura e
autorregulação, e (ii) frente às pressões de interesses pessoais que, muitas vezes travestidos de
coletivos, podem gerar ainda mais desigualdades e subdesenvolvimento. Tais temas não estão
presentes na teoria conservadora do Estado, mas depende de uma visão marxista do fenômeno
social.

151
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. 3.ed. Trad. de Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record, 2001.
152
MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 97.
73

2.5 Questão 3 – Conformação na solução da subjetividade jurídica.

A subjetividade jurídica é o resultado de uma interpelação, nas palavras de Althusser:


o indivíduo é tomado, antes mesmo de nascer, como detentor ou merecedor de direitos, como
homem, já lhe é atribuída uma profissão, já lhe depositam sonhos e anseios. A ideologia
trabalhará mais plenamente a partir de então para construir a ideia que temos de sujeito de
direito. Faz parte, propriamente, de um humanismo teórico que é construído com o objetivo
de manutenção da ordem das coisas.

Nos textos “A favor de Marx” (1965), “Ideologia e aparelhos Ideológicos do


Estado” (1970) e “Resposta a John Lewis” (1973), Althusser abre uma nova
perspectiva na relação entre indivíduo e sociedade. Mas ao contrário de
Lukács e Sartre que para dar conta desta interação continuam com o conceito
de subjetividade organizando de alguma maneira seus esquemas filosóficos,
Althusser vê na permanência desta categoria o índice de que as formas
sociais geradas nas relações capitalistas permanecem mais presentes do que
nunca. Portanto, a subjetividade jurídica, como de resto todo o
“humanismo”, é o resultado do que Althusser denomina de interpelação, ou
seja, de uma operação ideológica que transforma os “indivíduos em
sujeitos”. Segundo Althusser, “foi com finalidades ideológicas precisas que a
filosofia burguesa apoderou-se da noção jurídicoideológica de sujeito para
dela fazer uma categoria filosófica número um” e, assim, propõe uma
reflexão política sobre as bases de um “processo sem sujeito”.153

E será esse processo que acompanha o assujeitamento dos indivíduos, e que só pode
ser construído a partir da ideologia enquanto materialidade, que Althusser, como bem aponta
Silvio Almeida, irá se focar. É necessário pensar o papel do assujeitamento a partir das
funções do capital, do Estado e do direito. E assim se dará também na formação do Estado
latino-americano a partir de suas bases específicas de exploração que não são, apenas,
capitalistas. Como apontamos, anteriormente, o próprio nascimento da ideia de nação – que
faz parte do romantismo como mito unificador, constrói o ideal de Estado e do sujeito na
América Latina.

É exatamente essa noção de assujeitamento que leva Alysson Mascaro a uma crítica
contundente ao capitalismo. “A subjetividade jurídica esconde a exploração do trabalhador

153
ALMEIDA, Silvio Luiz. Crítica da subjetividade jurídica em Lukács, Sartre e Althusser. Direito e Práxis.
Rio de Janeiro, v. 7, nº 4, 2016, p. 353. Disponível em: http://dx.doi.org/10.12957/dep.2016.19269. Acesso em
06 mar. 2017.
74

pelo capitalista”.154 O elogio à democracia e à forma republicana são categorias que


atravessam o discurso político na região, de uma direita que tenta esconder os interesses
econômicos e perpetuam a exploração sobre o trabalhador; ou de uma esquerda que aparelha
o Estado sem tomar as medidas de superação da própria forma política estatal, acreditando no
socialismo por decreto.

Mabel Thwaites Rey elenca diversos conceitos para a autonomia em relação à vida
política na periferia do capitalismo, demonstrando essa correlação entre subordinação interna
e externa da expressão do Estado:155 (i) “autonomia do trabalho frente ao capital”, ligada à
autogestão do trabalho pelos próprios trabalhadores em independência em relação ao poder
capitalista sobre os meios de produção; (ii) “autonomia das em relação às instâncias de
organização que possam representar interesses coletivos (partidos políticos, sindicatos”,
devido aos movimentos de ação coletiva, organizados e auto-geridos sem a necessidade de
filiações político-partidárias, ou sindicalistas; (iii) “autonomia das classes dominadas em
relação às classes dominantes”, o que envolve uma luta engajada e autoconsciente por um
sistema social diferente, sabendo-se por quem e porque é explorada, isso tudo “pela
construção de uma nova subjetividade não subordinada”; e (iv) “autonomia social e
individual”, com a tomada de consciência, passa-se à crítica de sua lei de existência, de sua
própria instituição, bem como a participação igualitária de todos no poder.156

Observa-se uma insatisfação como modelo político imposto de democracia


representativa que não mais atinge o objetivo de falar em nome do titular do poder. Não a toa,
na década de 1990, no Brasil, houve a saída do poder do Presidente da República escolhido
por voto popular (o quadro é o exemplo, a moldura ideológica é tema para muitas e muitas
laudas e não caberiam neste artigo); o Movimento Sem Terra tem se tornado exemplo em
diversos trabalhos e mesas por toda a América Latina; a colonização do espaço público gerou
uma ação coletiva desorganizada, mas com voz única, formando pressão popular por
mudanças na gestão do Metrô de São Paulo (o movimento dos “diferenciados”); a marcha da
maconha, que precisou chegar ao fetichismo da judicialização para ser aberta a todos. São

154
MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 86.
155
Para a autora, a própria ideia de autonomia ligada ao Estado é contradição, pois este será sempre o que “’é-
não é-e pode ser’ proteção para os mais débeis” (THWAITES REY, Mabel. La autonomía como búsqueda, El
Estado como contradicción. Buenos Aires: Prometeo libros, 2004, pp. 79-80).
156
THWAITES REY, Mabel. La autonomía como búsqueda, El Estado como contradicción. Buenos Aires:
Prometeo libros, 2004, pp. 17-22.
75

apenas alguns exemplos, os quais demonstram a importância da autonomia política aos


movimentos sociais.
76

3. DOS DEBATES DO SÉCULO XX AOS DEBATES DO SÉCULO XXI

Tenho uma atitude enérgica e declarada: a de


contribuir para a criação do socialismo peruano.

José Carlos Mariátegui.157

Diversas são as tentativas de dar cabo ao Estado na América Latina. Para alguns,
falta propriamente uma teoria do Estado e do direito. Para outros, pensar tais elementos
significa necessariamente pensar a institucionalização das demandas criadas por movimentos
sociais e populares. Para outros, ainda, essas demandas não podem ser institucionalizadas,
pois contém em si o elemento negativo necessário para a rachadura da sociabilidade
capitalista.

Assim, tendo observado a especificidade da história latino-americana, nesse


momento cabe passar por algumas das teorias do Estado – e da transição pós-capitalista, que
mais se destacam, bem como os elementos que essas teorias nos dão para, juntamente à forma
construída na teoria materialista do Estado, pensarmos o conteúdo a partir do Estado na
periferia do capitalismo.

3.1. John Holloway e a mudança para além do Estado.

NÃO! Essa é a palavra de ordem e desordem para John Holloway, em especial nos
últimos trabalhos que produz a partir da realidade dos movimentos sociais em pululam o
mundo, dentro os quais o movimento zapatista acaba influindo com maior impacto nessa
obra. NÃO significa palavra de ordem para ele, pois será essa carga de negatividade que
deverá unificar as diversas demandas vistas na sociabilidade capitalista. Não contra o quê? Ou
a favor de quê? É um não pela desordem, uma recusa a continuar a partir da sociabilidade
capitalista falida e baseada na dominação. Esse NÃO! surge como um experimento, “uma

157
MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. 2.ed. Tradução de Felipe
José Lindoso. São Paulo: Expressão Popular/Clacsio, 2010, p. 32.
77

revolta contra a injustiça, exploração, violência, guerra”. Uma negatividade urgente, chave de
um poder para mudanças.158

A origem dessa negatividade é uma recusa a continuar a fazer o capitalismo. Como


sabemos, capitalismo é sociabilidade, é reprodução do capital por meio do trabalho. A
proposta de Holloway é a que mais pode chocar: negar o capitalismo significa parar, cruzar os
braços, abandonar os meios de reprodução do mais-valor. O que fazer é um dado já construído
desde Marx, a questão fundamental, então, seria como fazer. A questão do método é a
preocupação de Holloway.

Para ele a resposta já está dada. Todos os dias, em todos os cantos do planeta, pessoas
atuam contra o capitalismo por meio da recusa: abandonar o trabalho, a vivência nas ruas, a
greve dos piqueteros, a luta armada dos zapatistas, a ocupação de casas e terras improdutivas
pelo MST, os jovens em idade produtiva que se sentam nas avenidas de Atenas e se recusam a
procurar um emprego inexistente, etc. São diversos os meios de recusa.159

Esta procura (e criação) de fissuras é uma atividade prático-teórica, um


lançamento de nós mesmos contra as paredes, mas também um afastamento
para tentar enxergar fissuras ou falhas na superfície. As duas atividades são
complementares: a teoria faz pouco sentido se não for entendida como parte
do esforço desesperado para encontrar uma saída, para criar fissurar que
desafiem o avanço aparentemente inexorável do capital, das paredes que nos
empurram para a nossa destruição.160

A tese mais importante aqui esboçada, a da necessidade de pensar a materialidade


histórica da América Latina para pensar a forma política e a cidadania na região, independente
de modelos, também serve para pensar a superação das duas. Como Holloway apresenta,
pensar o mundo radicalmente significa pensar a partir do particular, não a partir ideia
universalizada. Disso surge o pressuposto de que todas e todos tem a responsabilidade de
tomar para si a mudança da sociabilidade que funda a política na região, política essa
necessariamente excludente e opressora.

158
HOLLOWAY, John. No. Historical Materialism. Leiden, v. 13, n. 4, 2005, pp. 266-267.
159
Para outros exemplos: HOLLOWAY, John. Fissurar o capitalismo. Trad. Daniel Cunha. São Paulo:
Publisher Brasil, 2013, pp. 8-9.
160
HOLLOWAY, John. Fissurar o capitalismo. Trad. Daniel Cunha. São Paulo: Publisher Brasil, 2013, p. 12.
78

Mas essa negatividade em servir a reprodução do capital não pode surgir apenas como
negativa geral, o que seria claramente infantil. A proposta de Holloway é criar uma
possibilidade que é impedida pelo capitalismo: tomar o processo de construção social como
sujeitos, não como objetos. Trata-se de um não-fazer, mas uma responsabilidade que caminha
a partir de nossa dignidade. Essa qualidade é o impulso para que tomemos o caminho aberto
com a fissura no NÃO! e desenvolvamos nossas próprias capacidades, como seres autônomos.
O que essa dignidade que retorna para a consciência dos sujeitos permite é a retomada de um
caminho antes perdido e que não pode ser utilizado como um caminho contra o do capital.
Lutar contra o capital, contra a sociabilidade heterônoma do capitalismo significaria ser
pautado, estar sob a sombra do que o capital quer. “Dignidade é recusar-e-criar: recusar-se a
produzir o capitalismo e criar um novo mundo”.161

O ponto mais tentador na busca do caminho de uma ruptura no capitalismo é: utilizar


os aparelhos de Estado, ou não? Essa questão é muito importante para as experiências que se
reivindicam socialistas. Cuba, Venezuela, Bolívia, para nos atermos à América Latina são
lembradas como tentativas de gestão do Estado para um objetivo que atinja a realização do
bem comum, social. A questão envolve o aparelhamento de várias categorias práticas: o
Estado e o direito; a burocracia estatal e os direitos de cidadania; a lei que autoriza a repressão
policial e a lei que protege contra a mesma repressão policial; investigações policiais contra a
corrupção, mas que correm como jato em busca de inimigos.

O que Holloway nos lembra, e já dissertava desde o Capital and class, livro
organizado para dar visibilidade ao próprio debate da derivação, é que a utilização do Estado
não pode esquecer que ele atua unicamente com o objetivo de proteção da reprodução do
capital. “A lei, devido à sua forma, qualquer que seja o seu conteúdo, é uma imposição
alienada”. O Estado mantém o monopólio da violência física e da legal; ele permite
determinadas atuações e impõe restrições. Ocorre que essa mesma legalidade do Estado não é
uma garantia contra sua própria repressão.162

Nesse ponto é preciso destacar que, para o próprio Holloway, quando falamos de
Estado, sistema de Estados, relações internacionais, ou mesmo o Estado de bem-estar social,
precisamos saber de que Estado estamos falando. E isso não significa tomar um Estado como

161
Idem Ibidem, pp. 21, 42 e 50.
162
HOLLOWAY, John. Fissurar o capitalismo. Trad. Daniel Cunha. São Paulo: Publisher Brasil, 2013, pp. 54-
55.
79

exemplo de investigações, mas sim compreender em abstrato os elementos que os ligam e em


que se distanciam.

To reach a satisfactory understanding of the changes taking place at the


moment we need to go beyond the category of ‘the state’, or rather we need
to go beyond the assumption of the separateness of the different states to find
a way of discussing their unity.163

Dentre os exemplos utilizados para lembrar que tomar o Estado significa, também, a
manutenção da heteronomia do sujeito, Holloway relembra os processos ditos revolucionários
na Venezuela, Bolívia e Cuba, que resultam na captura do Estado e da sociabilidade pelos
partidos. Claro que, como dissemos, se não há um modelo para a teoria do Estado, também
não há para a forma de fissurá-los. É inegável os ganhos que Evo Morales, Fidel Castro, Hugo
Chaves e Luiz Inácio Lula da Silva fizeram para a população pobre e oprimida em seus
países.

Se o Estado é pressuposto para o capitalismo, e só pode ser porque ele representa uma
forma social já dada socialmente, dessa forma seria um erro de estratégia utilizá-lo.164 Então
como nos proteger de tal violência? Holloway não é inocente ou utópico. Ele dá o tom: “não
somos muito bons na violência... O nosso chão é o da dignidade, e a violência é a negação da
dignidade, de onde quer que venha”.165 Embora o autor apresente uma teoria de atuação fora
da pauta do Estado, o que exige um enfrentamento e uma forma de autodefesa, não se apega à
violência como resposta.

163
Idem. Global Capital and National State. Capital & Class. New York, v. 18, n. 52, p. 25. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.1177/030981689405200103. Acesso em: 06 mar. 2017.
164
“To dissolve the state as a category means to understand the state not as a thing in itself, but as a social form,
a form of social relations. Just as in physics we have come to accept that, despite appearances, there are no
absolute separations, that energy can be transformed into mass and mass into energy, so, in society too there are
no absolute separations, no hard categories… The state, then, is a rigidified (or ‘fetishised’, to use Marx’s term)
form of social relations. It is a relation between people which does not appear to be a relation between people, a
social relation which exists in the form of something external to social relations. This is the starting point for
understanding the unity between states: all are rigidified, apparently autonomous forms of social relations”.
(HOLLOWAY, John. Global Capital and National State. Capital & Class. New York, v. 18, n. 52, pp. 26-27.
Disponível em: http://dx.doi.org/10.1177/030981689405200103. Acesso em: 06 mar. 2017).
165
HOLLOWAY, John. Fissurar o capitalismo. Trad. Daniel Cunha. São Paulo: Publisher Brasil, 2013, p. 55.
80

3.2. O debate do populismo: por que importa à América Latina pensar o populismo.

It is clear now why Laclau prefers populism to


class struggle…

Slavoj Žižek.166

Não é possível falar propriamente em uma teoria do populismo. Há diversas formas


de encarar a relação política construída a partir da vontade popular. Mas Ernesto Laclau foi o
que melhor sistematizou e deu corpo a um pensamento consistente sobre o populismo.

Laclau não manteve uma obra sem rupturas. Há autores que identificam três fases na
obra de Laclau: (i) o marxismo e a teoria da ideologia como ponto central; (ii) o
desenvolvimento de um pós-marxismo focado na teoria gramsciana da hegemonia; e (iii)
ainda um Laclau pós-marxista, mas aproximando-se de Derrida e sua descontrução da
filosofia e da psicanálise lacaniana).167 Outros, identificam quatro fases: (i) o marxismo
althusseriano, onde conceitos como interpelação, sobredeterminação e ideologia estão
presentes; (ii) a lógica do significante e a constituição do sujeito ganha espaço, já em parceria
com Chantall Mouffe; (iii) marcado pela presença lacaniana do Real, onde marcam, ainda, o
papel do sujeito e do espaço público; e, (iv) o investimento afetivo, lógica da diferença e
identificação na constituição dos sujeitos políticos.168

166
ZIZEK, Slavoj. Against the populist temptation. Critical Inquiry, University of Chicago, v. 32, Spring 2006,
p. 554.
167
David Howarth é do mesmo departamento onde Laclau trabalhou radicado na Inglaterra. "His work can be
divided into three basic phases: first, an attempt to develop a Marxist theory of ideology and politics by drawing
upon the work of Antonio Gramsci and Louis Althusser; second, the development of a post-Marxist theory of
hegemony that incorporates poststructuralist philosophy and breaks decisively with the residual determinism and
essentialism of the Marxist paradigm; third, the further development of this postMarxist approach through a
deeper engagement with Derrida’s deconstructionist philosophy and Lacan’s interpretation of Freudian
psychoanalysis. His work is central to understanding and explaining the emergence and dissolution of political
ideologies and, at the normative level, in advocating what he, with Chantal Mouffe, calls a project for a radical
and plural democracy" (HOWARTH, David. Ernesto Laclau: Post-Marxism, Populism and Critique. In:
SCOTT, John (Ed.). 50 Key Sociologists: The Contemporary Theorists. London: Routledge, 2007, p. 156).
168
Luiz Eduardo Motta e Carlos Henrique Aguiar acompanham a divisão proposta por Maria Martina Sosa em
quatro fases: “A obra de Laclau pode ser dividida em quatro fases, como aponta Maria Martina Sosa: (i) uma
primeira aproximação profundamente marcada pela influência althusseriana e, sobretudo, pelos conceitos de
sobredeterminação e interpelação apresentados no livro Política e ideologia na teoria marxista, de 1977; (ii) a
ênfase na lógica do significante e as posições do sujeito em Hegemonia e estratégia socialista, de 1985; (iii) a
importância do Real e a vinculação entre a categoria de sujeito e o espaço político nos artigos escritos nos anos
1990, e reunidos nos livros como Emancipação e diferença,de 1996, e Misticismo, retórica e política, de 2002;
(iii) a preocupação pelo investimento afetivo na constituição dos sujeitos políticos e sua relação tanto com a
noção de identificação como a lógica do objeto em A razão populista, de 2005” (MOTTA, Luiz Eduardo;
81

O que se percebe é que, de modo geral, Laclau caminha da concepção marxista


althusseriana marcante nos escritos dos anos 1970, atravessa os anos 1980/1990, a chamada
crise do marxismo e da esquerda mundial, afastando-se cada vez mais daquele referencial
teórico, centralizando a preocupação com o a hegemonia como prática revolucionária para a
conquista de uma democracia que ele e Chantall Mouffe chamavam de radical; por fim, diante
de diversos referenciais teóricos, quando estabelece sua teoria do populismo, nos anos 2000,
focará seus esforços teóricos na análise do discurso, muito menos habermasiana, e muito mais
a partir das categorias que busca na psicanálise freudiana e, em alguma medida mais fraca,
lacaniana. Nesse momento fará uma aproximação tensa de Slavoj Zizek, com que travará uma
forte disputa teórica sobre o alcance do populismo como expressão da política.

Como foi adiantado, não se fala em uma teoria populista ou teoria do populismo por
entender que o tema continua aberto a contribuições. Em resposta à Razão populista de
Laclau, outros autores partirão, ora em defesa, ora em ataque às ideias do argentino, o que
caracteriza propriamente um debate aberto e, como propomos no presente trabalho, de
importância para a teoria jurídica das políticas, não justificando o silêncio nas teses mais
aprofundados sobre o tema.169

As respostas de maior tensão serão dadas por outros dois teóricos políticos
importantes com os quais Laclau polemiza diretamente em sua proposta de teoria do
populismo: Antonio Negri e Slavoj Zizek. A tensão surge pelas críticas endereçadas
diretamente por Laclau.

O primeiro se centrará na tese de reconhecimento das forças populares contra o


Estado e as instituições, particularmente na tese sobre o Império globalizado e sua tensão
dialética com a Multidão, formação política a partir do conceito de povo, para quem a

AGUIAR, Carlos Henrique. A ideologia em Althusser e Laclau: diálogos (im)pertinentes. Revista de Sociologia
e Política. Curitiba: UFPR, v. 22, n. 50, jun. 2014, pp. 125-147, em destaque, p. 137.
169
Dentro desse debate, são dignos de nota os seguintes: POPOVITCH, Anna. In the shadow of Althusser:
Culture and Politics in late Twentieth-Century Argentina. Tese (Doutorado em Filosofia). Columbia University,
New York, 2009; ARDITI, Benjamin. Laclau and Zizek on Democracy and Populist Reason. International
Journal of Zizek Studies, 2011, v. 5, n. 1 pp. 1-18; ARDITI, Benjamin. Review Essay: Populism is Hegemony in
Politics? On Ernesto Laclau’s On Populist Reason, Constellations. Hoboken, 2010, v. 17, n. 3, pp. 488-497;
ARDITI, Benjamin. La política em los bordes del liberalismo. Diferencia, populismo, revolución, emancipación.
Barcelona: Gedisa, 2011; HOWARTH, David (Ed.). Ernesto Laclau: Post-Marxism, Populism and Critique.
Taylor & Francis: Oxford, 2014; HOWARTH, David. Ernesto Laclau. In: SCOTT, John (Ed.). 50 Key
Sociologists: The Contemporary Theorists. London: Routledge, 2007, pp. 156-159; KRANIAUSKAS, John.
Rhetorics of populismo. Radical Philosophy. London, 2014. N. 186, jul./ago.; BERLANGA, José Luis
Villacañas. The liberal roots of populismo: a critique of Laclau. CR: The new Centennial Review, Michigang
State, University Press, 2010, v. 10, n. 2, Fall, pp. 151-182; REKRET, Paul. Generalised antagonism and
Political Ontology in the Debate between Laclau and Negri. 2010.
82

hegemonia será uma das teses centrais (NEGRI, Antonio; CASARINO, Cesare. In praise of
the commom: a convertation on philosophy and politics. Minneapolis: University of
Minnesota, 2008; NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Commonwealth. Cambridge, Mass:
Belknap Press of Harvard University, 2009).

Já Zizek contribuirá com os seguintes pontos: (i) a crítica sobre o papel perigoso do
populismo na formação de uma massa de direita e que pode prejudicar os ganhos
democráticos que na prática podem surgir. Inclusive houve intenso debate teórico entre Zizek
e Laclau sobre o populismo, instituições e a democracia nas páginas da Revista Critical
Inquiry (ZIZEK, Slavoj. Against the populist temptation. Critical Inquiry, University of
Chicago, v. 32, Spring 2006, pp. 551-574; LACLAU, Ernesto. Why constructing a People is
the main of Radical Politics. Critical Inquiry. University of Chicago, v. 32, n. 4, Summer
2006, pp. 646-680; ZIZEK, Slavoj. Schlagend, aber nicht Treffend! Critical Inquiry,
University of Chicago, v. 33, n. 1, Autumn 2006, p. 185-211; ZIZEK, Slavoj. Em defesa das
causas perdidas. São Paulo: Boitempo, 2011); (ii) a inexistência, ou mais propriamente, o
abandono de uma teoria da ideologia por parte de Laclau; e, por fim, (iii) a dura teoria
marxista de determinação em última instância pelo econômico, tão afastada por Laclau que
Zizek identificará como característica marcante de sua proposta de teoria populista, conforme
apontamos na epígrafe a este capítulo: o abandono da luta de classes.

Instituições, como propõe Maria Paula Dallari Bucci, expressa dois fenômenos: (i)
“como perspectiva de aproximação para visão dos três planos de análise do fenômeno
governamental”, isto é, a tensão entre policies e politics na atuação do Estado em movimento
(macroinstitucional), a ação governamental no âmbito processual de mecanismos político-
jurídicos de ação (microinstitucional) e os arranjos institucionais na interlocução com campos
multidisciplinares como o direito (mesoinstitucional); e (ii) “a expressão exterior da política
pública: arranjo institucional”, a sistematização dos elementos do programa envolvido na ação
governamental.170

Será nesse segundo aspecto que as formulações de Santi Romano e Hauriou serão de
fundamental importância para a construção da ideia de instituições jurídicas, ou “arranjos
reconhecidos em geral, independentemente de formas diversas no direito positivo”, sendo um

170
BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públicas. São Paulo:
Saraiva, 2013, p. 205.
83

sistema de princípios e regras que se materializam como escolas, hospitais, universidades,


Parlamentos etc.171

Focada nas ideias centrais de Santi Romano, Maria Paula vai desenvolver a ideia que
aquele expressou sobre a objetividade ontológica do direito, o que impediria a própria
personalização da atuação do Estado. “A objetivação do direito é a propriedade que faz com
que o ente criado seja distinto das pessoas que o criaram”.172 O ordenamento jurídico, e,
portanto, as instituições, estariam livres de toda vontade pessoal e subjetiva do criador e do
administrador das leis. Tal característica implicaria não apenas numa moralização da ação
estatal, mas também numa maior organização só possível por meio do direito.

Não muito distante de Santi Romano, mas com certa variação, Hariou vai apontar as
instituições como fonte do direito, mas no mesmo caminho as enxergará como elemento de
organização das relações sociais. No mesmo sentido de Maria Paula, para quem há pontos de
encontro entre as teorias, Stefano Pietropaoli aponta o papel da organização como
fundamental no institucionalismo:

Innanzi tutto, ocorre chiarire che con il termine istituzionalismo viene in


generale quelle dottrine giuridiche elaborate in Europa tra fine Ottocento e
inizio Novecento — e in particolare quelle formulate da Maurice Hauriou e
da Santi Romano — che condividono la definizione del diritto in termini di
“organizzazione”. Tra gli elementi comuni a queste elaborazioni teoriche si
possono individuare la critica al normativismo e la sovrapposizione o
coincidenza tra l’organizzazione sociale e l’ordinamento giuridico’.173

O elemento normativista de Kelsen perderá seu impacto, isto é, Hariou dará maior
preocupação com a construção social do direito. “A instituição jurídica leva em conta o
fenômeno social que está ‘por trás’ do direito, aquilo que leva à sua produção”. 174 Esse foi
propriamente o pensamento institucionalista que influenciou Carl Schimitt nos anos 1930,

171
Idem Ibidem., p. 208.
172
Idem Ibidem., p. 211.
173
PIETROPAOLI, Stefano. Ordinamento jurídico e Konkrete Ordnung: per um confronto tra la teorie
istituzionalistiche di Santi Romano e Carl Schmitt. Jura Gentium. Vol. IX, n. 2, anno 2012, p. 51.
174
BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas públicas. São Paulo:
Saraiva, 2013, p. 234.
84

dando nova fase às suas ideias decisionistas. Alysson Mascaro aponta essa fase, não como a
mais importante, mas dando continuidade à sua produção:175

Em um segundo momento de sua trajetória intelectual, perfilhou-se ao lado


da perspectiva jurídica do institucionalismo, chamando a si o pensamento de
Santi Romano, dentre outros. Esse momento é, já, uma espécie de
acomodação do decisionismo de Schmitt aos lastros institucionais-sociais do
fenômeno jurídico. Não é a fase mais importante de Schmitt, na medida em
que seu ecletismo nesse período fez amainar o ímpeto e a virulência de suas
ideias originais.176

Em tal visão das instituições como produtoras do direito, a preocupação com a


formulação histórico social seria de maior importância para a compreensão dos mecanismos
que implementariam as políticas públicas. Vale dizer, não há falta de normatividade na
formulação e aplicação de políticas públicas, pois estas seriam a própria expressão
institucional dos objetivos socialmente relevantes.

As instituições ganharão força também no debate do populismo proposto por Ernesto


Laclau, em especial a partir de obra A Razão Populista (2005, em inglês; e 2013, em
português). Muito embora não seja a primeira vez que Laclau tenha escrito sobre o tema, sua
teoria do populismo se demonstra acabada e completa nesse ponto. Se é verdade que em
Política e Ideologia na teoria marxista (1978) Laclau ainda mantinha um referencial teórico
marxista, em especial ligado à teoria da hegemonia de Antonio Gramsci, a partir dos anos
1980 se volta ao pós-marxismo juntamente com Chantal Mouffe e, aos poucos, vai migrando
para o abandono da teoria da luta de classes que se torna evidente no debate do populismo,
conforme veremos adiante.

Não falamos em uma teoria populista ou teoria do populismo por entender que o
tema continua aberto a contribuições. Em resposta à Razão populista de Laclau, outros

175
Gilberto Bercovici discorda de uma ruptura no decisionismo de Carl Schimitt com o chamado “decisionismo
institucional” ou a ideia de “ordenamento completo”. Para ele, há uma continuidade, pois, a ‘decisão’ tomada da
instauração da tripartição Estado, povo e partido nazista só foi possível com o florescimento das instituições
tradicionais e reacionárias (exército, família e Igreja): “O "institucionalismo" de Carl Schmitt foi uma tentativa
de achar lugar para as instituições tradicionais alemãs (família, exército, Igreja, propriedade) dentro da ‘nova
ordem’ [nazista], conduzindo assim o Movimento por formas jurídicas, constituindo o "ordenamento concreto"
(BERCOVICI, Gilberto. Entre institucionalismo e decisionismo. Novos Estudos. São Paulo: CEBRAP, nº 62,
mar. 2002, p. 192). Ver ainda: SCHMITT, Carl. Sobre los tres modos de pensar la ciencia jurídica. Tradução de
Montserrat Herrero. Madrid: Tecnos, 1996, pp. 64 e seguintes.
176
MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2010, p. 410.
85

autores partirão, ora em defesa, ora em ataque às ideias do argentino, o que caracteriza
propriamente um debate aberto e, como propomos no presente trabalho, de importância para a
teoria jurídica das políticas, não justificando o silêncio nas teses mais aprofundados sobre o
tema.177

As respostas de maior tensão serão dadas por outros dois teóricos políticos
importantes com os quais Laclau polemiza diretamente em sua proposta de teoria do
populismo: Antonio Negri e Slavoj Zizek.

O primeiro se centrará na tese de reconhecimento das forças populares contra o


Estado e as instituições, particularmente na tese sobre o Império globalizado e sua tensão
dialética com a Multidão, formação política a partir do conceito de povo, para quem a
hegemonia será uma das teses centrais (NEGRI, Antonio; CASARINO, Cesare. In praise of
the commom: a convertation on philosophy and politics. Minneapolis: University of
Minnesota, 2008; NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Commonwealth. Cambridge, Mass:
Belknap Press of Harvard University, 2009).

Já Zizek contribuirá com a crítica sobre o papel perigoso do populismo na formação


de uma massa de direita e que pode prejudicar os ganhos democráticos que na prática podem
surgir. Inclusive houve intenso debate teórico entre Zizek e Laclau sobre o populismo,
instituições e a democracia nas páginas da Revista Critical Inquiry (ZIZEK, Slavoj. Against
the populist temptation. Critical Inquiry, University of Chicago, v. 32, Spring 2006, pp. 551-
574; LACLAU, Ernesto. Why constructing a People is the main of Radical Politics. Critical
Inquiry. University of Chicago, v. 32, n. 4, Summer 2006, pp. 646-680; ZIZEK, Slavoj.
Schlagend, aber nicht Treffend! Critical Inquiry, University of Chicago, v. 33, n. 1, Autumn

177
Embora não referenciaremos todos os trabalhos existentes neste debate no decorrer do artigo, dignos de nota,
bem como para exemplificar seu impacto, citamos os seguintes trabalhos: POPOVITCH, Anna. In the shadow of
Althusser: Culture and Politics in late Twentieth-Century Argentina. Tese (Doutorado em Filosofia). Columbia
University, New York, 2009; ARDITI, Benjamin. Laclau and Zizek on Democracy and Populist Reason.
International Journal of Zizek Studies, 2011, v. 5, n. 1 pp. 1-18; ARDITI, Benjamin. Review Essay: Populism is
Hegemony in Politics? On Ernesto Laclau’s On Populist Reason, Constellations. Hoboken, 2010, v. 17, n. 3, pp.
488-497; ARDITI, Benjamin. La política em los bordes del liberalismo. Diferencia, populismo, revolución,
emancipación. Barcelona: Gedisa, 2011; HOWARTH, David (Ed.). Ernesto Laclau: Post-Marxism, Populism
and Critique. Taylor & Francis: Oxford, 2014; HOWARTH, David. Ernesto Laclau. In: SCOTT, John (Ed.). 50
Key Sociologists: The Contemporary Theorists. London: Routledge, 2007, pp. 156-159; KRANIAUSKAS, John.
Rhetorics of populismo. Radical Philosophy. London, 2014. N. 186, jul./ago.; BERLANGA, José Luis
Villacañas. The liberal roots of populismo: a critique of Laclau. CR: The new Centennial Review, Michigang
State, University Press, 2010, v. 10, n. 2, Fall, pp. 151-182; REKRET, Paul. Generalised antagonism and
Political Ontology in the Debate between Laclau and Negri. 2010.
86

2006, p. 185-211; ZIZEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas. São Paulo: Boitempo,
2011).

Dentre as teses jurídicas que não comentam o populismo, por todas, salta aos olhos o
fato de que Maria Paula Dallari Bucci não cita em nenhum momento o populismo, seja no
conceito mais corriqueiro e vulgar, seja nas teorias mais profundas. 178 Em sentido oposto,
Laclau e Zizek em diversos momentos apontam a tensão entre populismo e institucionalismo.
Na verdade, essa não é uma especificidade do campo jurídico. No campo da Ciência Política,
“existe una incapacidad crónica en los estudios políticos para aproximarse en forma no
normativa a la compleja relación entre el populismo y las instituciones”.179

Laclau aponta, de início, que a complexidade social é dividida antagonicamente na


tensão entre demandas populares e a institucionalidade. Nas suas palavras, “institucionalismo
versus populismo”.180 Para o autor, “populismo não é uma ideologia, mas uma forma de
construção do político [...] uma possibilidade distintiva e sempre presente de estruturação da
vida política”.181 Já as instituições “representam uma cristalização de relações de força entre
os grupos, uma situação de equilíbrio temporário entre eles. [...] E isso abrange a totalidade da
ordem institucional, começando pelas instituições”.182

De fato, o conceito utilizado por Laclau reforça nosso argumento, pois se trata do
mesmo sentido dado por Santi Romano: “não subsistem dúvidas quanto ao fato da instituição
ser uma organização social... não temos dúvida de que essa seja um ordenamento”. 183 Mais
adiante afirmará: “o conceito de instituição que encontramos, ou melhor com o qual
identificamos o ordenamento jurídico, é um conceito mais positivo que uma doutrina jurídica
pode assumir no seu fundamento: a instituição não é uma exigência da razão, um princípio

178
Exceção de uma singela menção do conceito de povo em Aristóteles que realmente não invalida o argumento
de lacuna teórico-política (BUCCI, Maria Paula Dallari. Fundamentos para uma teoria jurídica das políticas
públicas. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 85-86).
179
CARLÉS, Geraldo Aboy. Las dos caras de Jano: acerca de la compleja relación entre populismo e
intituciones políticas. Pensamento Plural. Pelotas: Universidade Federal de Pelotas, n. 7, jul./dez. 2010, p. 22.
180
LACLAU, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três Estrelas, 2013, p. 19.
181
Idem Ibidem., pp. 21 e 48.
182
Idem Ibidem., 2013, p. 20.
183
SANTI ROMANO. O ordenamento jurídico. Tradução de Arno Dal Ri Júnior. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2011, pp. 87-89.
87

abstrato, um quid ideal, é, ao contrário, um ente real, efetivo... é um sistema de direito


objetivo”.184

Ainda, para Hauriou, como já comentado, no movimento antipositivista kelseniano, o


problema inicial e central: “trata-se de saber onde se encontra, na sociedade, o poder criador;
se são as regras de direito que criam as instituições ou se não são antes as instituições que
engendram as regras de direito, graças ao poder de governo que elas contém [...] As
instituições nascem, vivem e morrem juridicamente”.185

Sendo o mesmo conceito, ou assemelhado em suas consequências, fica comprovado


que o populismo que Laclau tenta identificar terá impactos sobre as instituições que dão
forma e força às políticas públicas. Essa tensão dialética populismo e institucionalismo passa
a ser compreendida como uma impossibilidade de existências de suas formas ideais puras:

O institucionalismo extremo (e, como tal, impossível) seria a pura e simples


substituição da política pela administração. É o ideal a que tendem todas as
formas de tecnocracia. [...] Mas também um populismo extremos, baseado
na pura mobilização e sem objetivos de transformação institucional, constitui
uma opção impossível. [...] Nunca houve um despotismo ilustrado que tenha
vivido à altura das expectativas que suscita. Por outro lado, o ideal libertário
de uma pura mobilização que persiga seus objetivos totalmente fora dos
domínios do Estado também é uma receita para o fracasso.186

Como lembra Carlés, “la fragilidad del argumento de uma mutua exclusión entre
populismo e institucionalismo... refutar la mutua exclusión entre populismo e instituciones a
partir de una vasta evidencia histórica puede resultar una actividad pueril”.187 De onde
surgiria, então, a exteriorização do conflito que identificará como necessário ao pensamento
político populista, ou como chamamos, a dialética populista?

Laclau retomará Freud e sua psicologia das massas para pensar como haverá a
diferenciação e homogeneização de demandas tão diversas no tecido social. Mais ainda do

184
Idem Ibidem, p. 128.
185
HAURIOU, Maurice. A teoria da instituição e da fundação: ensaio de vitalismo social. Tradução de José
Ignácio Coelho Mendes Neto. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2009, pp. 16 e 20.
186
LACLAU, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três Estrelas, 2013, pp. 21-22.
187
CARLÉS, Geraldo Aboy. Las dos caras de Jano: acerca de la compleja relación entre populismo e
intituciones políticas. Pensamento Plural. Pelotas: Universidade Federal de Pelotas, n. 7, jul./dez. 2010, pp. 26-
27.
88

que isso, como se daria a escolha que levaria um líder a tomar a demanda hegemônica.
Primeiro, um grau positivo de ligação entre líder e liderados, segundo, uma identificação entre
líder e liderados; terceiro, fazendo parte de um grupo, o líder parte dentre estes. Isso levará a
pensar os mecanismos pelos quais a organização transmitirá as funções dos indivíduos às
mãos do Um.188 Como explica Hard e Negri sobre o pensamento de Laclau, “um povo, é
claro, como Ernesto Laclau explica de forma brilhante, não é uma formação natural ou
espontânea, mas é formada por mecanismos de representação que traduzem a diversidade e a
pluralidade de subjetividades existentes em uma unidade através da identificação com um
líder, um grupo governante, ou em alguns casos, uma ideia central”.189

Se, como dito acima, o populismo é uma forma de construção do político, ou mais
fortemente, “o caminho para se compreender algo sobre a constituição ontológica do
político”,190 e essa forma necessita de um povo que articule demandas nas mãos de um líder,
ou as apresente diante de um auxiliador por dentro das instituições políticas, teríamos que
pensar no que significa “povo”. Isso porque uma das precondições para a existência do
populismo – e, portanto, da própria política – seria a separação, ou demarcação entre povo e
Estado.

Sobre a importância do papel da participação popular nesse tema, lembramos a


conclusão de Clarice Seixas Duarte para quem “uma coisa é certa: para compreender o
conceito de políticas públicas, não basta apenas estudar as instituições jurídicas”. 191 Embora
cite instituições políticas, também recorda sobre a importância da legitimidade de tais
decisões que é aferida a partir a partir de anseios populares. Percebemos que isso deve ser
visto no momento da formulação das políticas públicas, pois é nesse momento de seu ciclo
que o povo será tomado como elemento importante para a verificação das metas e objetivos
socialmente relevantes:

188
Provavelmente essa poderá ser uma possível resposta à pergunta formulada por La Boetie no século XVI: por
que as pessoas servem a Um? Não pode ser por ser o mais forte, o mais amoroso ou o mais esperto. Rousseau
tendo respondido os motivos políticos de tal decisão, Laclau – não sabemos se inteirado das questões de La
Boetie – apresenta as questões do mecanismo psíquico para tanto. No momento adequado essa resposta poderá
ser estudada.
189
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Commonwealth. Cambridge: Harvard University, 2009, p. 305.
190
LACLAU, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três Estrelas, 2013, p. 115.
191
DUARTE, Clarice Seixas. O Ciclo das Políticas Públicas. In: SMANIO, Gianpaolo Poggio e BERTOLIN,
Patricia Tuma Martins (orgs.). O Direito e as Políticas Públicas no Brasil. São Paulo, Atlas, 2013, p. 18.
89

Para tanto, é necessário, em primeiro lugar, por meio da realização de


estudos multidisciplinares, verificar os setores ou regiões que apresentam
maiores carências, ou os grupos que apresentam maior grau de
vulnerabilidade a justificar um tratamento diferenciado ou uma intervenção
imediata.192

Conforme lembra Clarice Seixas Duarte, esse mecanismo de aferimento dos anseios,
permitiria ao Estado, no momento do início da institucionalização, a racionalidade requerida
para a utilização dos bens públicos disponíveis. Ou, como diz em outro momento, “será que a
sociedade civil tem um papel decisivo na definição da agenda governamental? [...] Este é um
elemento essencial das políticas públicas: a abertura à participação dos interessados”.193 Sem
compreender o processo de preenchimento hegemônico da relevância social, seria impossível
pular diretamente para o processo de racionalização.

Retornando ao povo. Para Laclau, o “povo” não pode ser lido como a unidade
política básica de construção de uma solicitação, ou promotor das tensões institucionais. Seria
preciso, então, compreender como se dá a unidade de ação ou petição a partir de demandas
sociais tão heterogenias (um grupo solicita maior policiamento; outro grupo necessita de
proteção contra a polícia racista; um grupo compreende que as questões de saúde devem ser
lidas coletivamente a partir do conceito de saúde pública; já outro peticiona requerendo
individualmente tratamentos de saúde que são ainda experimentais, mas que no campo
individual pode trazer soluções práticas etc.).

Em outras palavras, o problema da ascensão do populismo se dará em reconhecer o


que leva uma demanda (ao mesmo tempo solicitação e exigência) a se tornar, em termos
gramscianos, hegemônica. Ou, ainda, como um significante vazio é preenchido por uma
demanda e, ao redor dela, o povo se expressa e exerce tensão sobre as instituições políticas.

Esse aspecto de hegemonia de uma demanda será uma das querelas entre Laclau e
Negri. Laclau apresentará uma crítica à tese do Império de Hardt e Negri segundo a qual a
união da multidão diante do Império global – o que insistem em chamar de uma organização
descentralizada supressora do Estado-nação – seria a unidade pela oposição. Ou seja, a união

192
Idem Ibidem, 2013, p. 27.
193
Idem Ibidem, p. 17.
90

se dará pelo objeto contra o qual o povo lutaria em favor de uma cidadania global.194 Será
exatamente na lógica de preenchimento de significantes vazios – hegemonicamente
construída – e de equivalência que está localizada a diferença das teorias. Assim exprimem
Hardt e Negri essa tensão:

Essa impossibilidade [i.e. de regulamentação pelo Império] é mais bem


explicada pela natureza revolucionária da multidão, cujas lutas produziram o
Império como uma inversão de sua própria imagem e que agora representa
nesta nova cena uma força irreprimível e um excesso de valor com respeito a
todas as formas de direito e de lei.195

Para Hardt e Negri, a luta nesse campo heterogêneo é necessariamente uma luta pela
hegemonia contra o Império que se estabelece mundialmente. Isso seria um aspecto criador e
ao mesmo tempo destruidor nessa dialética. Concordando com Laclau, em certo sentido, dirão
que “os campos sociais da multidão são radicalmente heterogêneos”. A hegemonia, 196 para
eles, “a pluralidade de singularidades como uma unidade e assim transforma a multidão em
um povo, que por causa de sua unidade é considerado capaz de ação política e tomada de
decisão”.197

Todo esse aspecto de diferenciação entre populismo e institucionalismo, hegemonia


dentro das demandas sociais que devem ser levadas em consideração, tanto no aspecto
processual quanto na produção de legitimação (atuação dos setores sociais), leva Laclau à
clara identificação, pelo menos nestes termos propostos, entre o político e o populismo.198

194
Para a crítica de Laclau, ver: LACLAU, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três Estrelas, 2013, pp. 339-
345.
195
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. 3.ed. Tradução de Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record,
2001, p. 305.
196
Negri não concorda em todos os termos com Laclau, em especial pela forma como define a própria
hegemonia em Gramsci, como se nota em conversa com Cesare Casarino: “Laclau and Mouffe turn Gramsci into
a hero of juridical realism by transforming the concept of hegemony into a concepto f expanded social consensus
on reformista projects, into a concept that designates the ability to participate actively in reforms: their version
of hegemony, in the end, lacks any understanding of radical class division and ends up being no more than a
saccharine-swwet concepto f interclãs colaboration” (CASARINO, Cesare; NEGRI, Antonio. In praise of the
Commom: a conversation on Philosophy and Politics. Minneapolis: University of Minnesota, 2008, p. 163).
197
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Commonwealth. Cambridge: Harvad University, 2009, p. 167.
198
LACLAU, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três Estrelas, 2013., pp. 228-229
91

Na crítica de Zizek, a visão elaborada por Laclau sobre o populismo, este tomaria um
caráter mais neutro dentro do jogo político, podendo ser utilizado a partir dos campos práticos
aos quais fosse empurrado: “uma espécie de transcendental-formal dispositif político que pode
ser incorporado em diferentes compromissos políticos. Esta opção foi elaborada em detalhes
por Ernesto Laclau”, o objeto lacaniano essencial para a compreensão do próprio caminho da
política.199 Nesse aspecto, Zizek não perdoará o esvaziamento do próprio conceito de classes
– e luta de classes – que desaparece com a escolha de Laclau pelo populismo.200

O conceito de populismo proposto por Laclau seria, ainda, problemático por se focar
em requisitos formais-instrumentais que não são suficientes para a compreensão do fenômeno
populista, em especial a forma como seu discurso constrói a ideia de amigo/inimigo.201 Em
por fim, o claro abandono da luta de classes.202

Nesse ponto residirá, portanto, a crítica mais contundente de Zizek referente à


validade prática do populismo, mas não seus aspectos teóricos que podem ser preocupantes:
todo populismo é protofascista:

[...]embora aceitemos a tese de Laclau de que o populismo é uma certa


lógica política formal, desvinculada de qualquer conteúdo, simplesmente a
completamos com a característica (menos “transcendental”) de “reificação”
do antagonismo numa entidade positiva. Como tal, o populismo, por
definição, contém um mínimo, uma forma elementar de mistificação

199
ZIZEK, Slavoj. Against the populist temptantion. Critical Inquiry, University of Chicago, v. 32, Spring
2006, p. 553.
200
Idem Ibidem, p. 555; ZIZEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas. Tradução de Maria Beatriz de
Medina. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 280.
201
Idem. Against the populist temptantion. Critical Inquiry, op. cit., p. 555; ______. Em defesa das causas
perdidas. Op. cit., p. 281.
202
Em apoio a nosso argumento, Barret Weber, ciente do debate surgido antes mesmo da publicação da Razão
populista, mas com ela acirrado, aponta os mesmos elementos da crítica de Zizek a Laclau: “Žižek’s central
point is that Laclau avoids the old problem of the Marxist class struggle and the critique of reification via Lukács
in his elaboration of the contingency of the postmodern social movements. Laclau’s notion of populism, or social
collectives, is therefore also deficient because it remains at the formal level of analysis of empty signifiers
(signifiers without any necessary content) and which basically leaves the capitalist system or “background”
unaccounted for57. Secondly, the argument is that populism by its “true” definition, at least according to Žižek,
seeks nothing less than the allout destruction of the enemy in the search of Justice. In this way, he draws
attention to the potential violent outcomes of populist politics, a form of politics that Laclau would otherwise
wish to celebrate as the “royal road to understanding something about the ontological constitution of the political
as such” in his later writings. This is heterogeneity or vagueness” (WEBER, Barret. Laclau and Žižek On
Democracy and Populist Reason. International Journal of Zizek Studies. Vol. 5, nº 1, 2011, p. 11).
92

ideológica; [...] abriga “em última instância” uma tendência protofascista a


longo prazo.203

O povo, como massa despolitizada, transforma-se no populismo como mecanismo de


ameaça a avanços políticos. Torna-se, assim, um caminho reacionário de legitimação de ideais
como xenofobia (no caso dos Le Pen), ataques terroristas estatais com apoio militar de órgãos
internacionais (no caso dos Bush), ou mesmo a limpeza étnico-racial (no caso do fascismo
alemão). Para Zizek, esse povo hegemonicamente construído tenderia a apoios os golpes
autoritários:

De um lado, a classe média é contra a politização, quer apenas manter seu


modo de vida, ser deixada em paz para viver e trabalhar, e é por isso que
tende a apoiar os golpes autoritários que prometem por fim na louca
mobilização política da sociedade, de modo que todos possam voltar ao
trabalho; de outro, os integrantes da classe média, disfarçados de maioria
moral, trabalhadora, patriótica e ameaçada, são os maiores instigadores da
mobilização comunitária de base, disfarçada de populismo de direita.204

No mesmo sentido de Zizek, Jonathan Hartlyn e Arturo Valenzuela comentam sobre


o contexto latino americano de golpes militares, comum no século XX, bem como o impacto
sobre o imaginário popular:

Os regimes militares “burocrático-autoritários” (como os denomina


Guilhermo O’Donnel) do Brasil, Argentina, Chile e Uruguai tiveram como
justificativa política a necessidade de responder à “ameaça” do comunismo
ou do populismo demagógico no contexto da mobilização esquerdista a
partir de baixo, ao mesmo tempo em que impunham a estabilização e a
eficiência econômica a fim de infundir confiança em investidores e um
crescimento renovado e mais vigoroso. Esses regimes procuravam
desmobilizar e, se possível, despolitizar a população.205

203
ZIZEK, Slavoj. Against the populist temptantion. Critical Inquiry, op. cit., p. 557; ______. Em defesa das
causas perdidas. Op. cit., p. 283.
204
Idem. Em defesa das causas perdidas. Op. cit., pp. 284-285.
205
HARTLYN, Jonathan; VALENZUELA, Arturo. A democracia na América Latina após 1930. In: BETHELL,
Leslie (Org.). História da América Latina – Vol. VII: A América Latina após 1930. Estado e Política.
Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Edusp, 2009, p. 174.
93

E o que seria essa desmobilização e despolitização, eficiência e reformas a partir de


cima para o atingimento de um virtual interesse de massas senão um populismo de direita?
Comentam Alain Rouquié e Stephen Suffern: “Finamente, na década de 1970, tentaram-se
revoluções militares (sic) que abrangiam uma ampla série de atitudes reformistas e
nacionalistas, sem participação das massas, porém não sem conotações populistas”.206

O que salta aos olhos é que, para o Laclau d´A razão populista, é possível a
existência de um populismo de direita. O fato não foi descartado como impossível. Em
diversos momentos ele demonstrará com exemplos essa possibilidade. O mais destacado é a
Frente Nacional francesa de Le Pen: “É por isso que entre o populismo de esquerda e o
populismo de direita existe uma nebulosa terra de ninguém, que pode ser atravessada – e tem
sido atravessada – em muitas direções”. Assim, a ordem e o progresso seriam o caminho
perfeito para o estabelecimento de temas por parte do Estado que se utilizaria do próprio povo
para legitimar atos de direita. “Devido ao fato de que a sociedade se encontra diante de uma
situação de total desordem (o estado da natureza), qualquer coisa que o Leviatã fizer será
legítima, independente de seu conteúdo, contanto que o resultado seja a ordem”.207

Por fim, um dos conceitos mais críticos para se pensar o populismo, e, portanto, o
aspecto do “povo”, como legitimador e criador dos objetivos socialmente relevantes na
atuação do Estado, é a rejeição que tal procedimento político daria à existência de uma luta de
classes que preencha o político. Vale dizer, a compreensão prática da luta de classes – não
teórica, essa mesmo nunca pode ser abalada – vem sendo substituída pelo revisionismo
populista e a absorção da autolegitimação dos Estados pelo institucionalismo.

Esse aspecto, como dito, é possível na prática, não na teoria. Se Zizek acertou na
crítica, isso se deve em grande parte à compreensão da sobredeterminação do econômico que
entrecorta as questões culturais.

A vantagem da teoria do populismo proposta por Laclau é o fato de voltar-se para o


conceito de povo e preenche-lo com um conceito, à primeira, vista materialista. Como já
apontamos, Laclau não manteve a mesma referência crítica que iniciou nos anos 1970.
Quando abandona o marxismo e se aproxima do chamado pós-marxismo, a partir dos anos

206
ROUQUIÉ, Alain; SUFFERN, Stephen. Os militares na política latino-americana após 1930. In: BETHELL,
Leslie (Org.). História da América Latina – Vol. VII: A América Latina após 1930. Estado e Política.
Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Edusp, 2009, p. 213.
207
LACLAU, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três Estrelas, 2013., pp. 142-144.
94

1980, construirá elementos políticos a partir da linguística, culminando na revisão de sua


teoria sobre o populismo a partir de 2005.

Nos anos 1970, Laclau já apontava sobre as dificuldades conceituais para a definição
de populismo, o que o acompanhará até os anos 2000. O uso intuitivo ou alusivo do
populismo a práticas políticas já era comum, em especial ao se tratar dos regimes do então
chamado “Terceiro Mundo”. Naquele momento, já tentava “adiantar propostas que possam
contribuir para a superação dessa imprecisão”, seja considerando-o um movimento de
determinada classe social, ou seja, uma ideologia; um conceito destituído de conteúdo; a
caracterização de uma ideologia, não seu movimento; ou mesmo uma aberração do ambiente
político equilibrado.208

Naquele momento, um posicionamento abandonado com o passar das décadas,


Laclau identificará a análise do populismo com a análise estrutural dos modos de produção
em que engendrado: “o significado dos elementos ideológicos identificados com o populismo
deve ser procurado na estrutura da qual são um simples momento, e não em paradigmas
ideais. Essas estruturas parecem referir-se [...] à natureza de classe dos movimentos
populistas, a suas raízes nos modos de produção e a suas articulações”.209

A análise da luta de classes surge como elemento importante para Laclau, ou seja,
nessa primeira fase, diferente do que Zizek apontará como abandonado nos anos 2000, o
pertencimento de classe do populismo é um elemento preponderante para se compreender sua
interação com o político. As consequências disso ficam evidentes na tese proposta no presente
trabalho: se as instituições representam a solidificação de relações sociais que criarão
(Hariou) ou se identificarão com o ordenamento jurídico (Santi Romano), sua tensão com o
populismo representaria uma das formas de expressão da luta de classes. Dentro ou fora do
Estado, para aquém ou além dos aparelhos ideológicos que constituem e interpelam o sujeito,
a luta de classes se expressaria de forma preponderante para entender a política, seja a de
direita, seja a de esquerda.

Obviamente, nesse ponto precisamos ponderar que, pensar o populismo como


expressão e pertencimento a uma relação de classes, há necessidade de pensar uma teoria da
ideologia. Essa teoria da ideologia que serviria como “princípio articulatório específico”, para

208
LACLAU, Ernesto. Política e ideologia na teoria marxista: capitalismo, fascismo e populismo. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1978, pp. 149-150.
209
Idem Ibidem, p. 164.
95

utilizar uma expressão de Laclau,210 permitiria pensar o modo com que os sujeitos que fazem
parte do povo, carregados de interesses de classes, acabam deletando-os em favor de
interesses de grupos. Essa é exatamente a função, também de uma teoria dos movimentos
sociais populares, como veremos adiante.

As expressões da ideologia no discurso democrático também servirão de estudo para


compreender a relação povo/classe e Estado/instituições. “A democracia só existe, a nível
ideológico, sob a forma de elementos de um discurso”. Continua: “Neste sentido, somente o
socialismo representa a possibilidade de pleno desenvolvimento e superação da contradição
‘povo’/bloco de poder”.211

Obviamente, conforme Laclau apresentará, o populismo que se baseia na expressão


cultural de um povo e preenche essas intenções políticas a partir de um ponto de vista de
classes, poderá ser utilizado por quaisquer uma delas:

O populismo começa no ponto em que os elementos popular-democráticos


se apresentam como opção antagônica face à ideologia do bloco dominante.
Observe-se que isto não significa que o populismo seja sempre
revolucionário. Basta que, para assegurar sua hegemonia, uma classe ou
fração de classe requeira uma transformação substancial do bloco de poder
para que uma experiência populista se torne possível. Podemos indicar, neste
sentido, a existência de um populismo das classes dominantes e de um
populismo das classes dominadas.212

Com o abandono que Laclau fez da utilização do próprio conceito de classes, como
vimos anteriormente, ele transformará essa ideia para a existência de um “populismo de
esquerda” e “um populismo de direita”. Isso não é totalmente desprovido de significado, pois
o próprio elemento das classes no conteúdo de qualquer teoria (do político, do direito, da
estética) é o que marca o caráter materialista dessa teoria.

210
LACLAU, Ernesto. Política e ideologia na teoria marxista: capitalismo, fascismo e populismo. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 166.
211
Idem Ibidem, p. 177.
212
Idem Ibidem, pp. 179-180.
96

No populismo de classe dominante, teremos, segundo Laclau, “um conjunto de


distorções ideológicas – como o racismo”,213 sendo sempre repressivo, mantendo os ganhos
dentro de limites que possam controlar. Nesse aspecto, o direito se apresenta como um
verdadeiro ganho no campo ideológico e prático, pois não se trata, no campo de uma teoria
materialista, nem de identificação com norma, nem com relações sociais cristalizadas. Trata-
se, exatamente, de um elemento de manutenção da ordem de exploração em favor de quem
mantém a dominação do poder na luta de classes capital versus trabalho livre assalariado.

Note-se que não apontamos a luta de classes como expressão de um antagonismo


entre classe burguesa e trabalhador. Isso porque a própria classe burguesa pode ter interesses
individuais que podem prejudicar a própria circulação do capital. Quando o populismo das
classes dominantes tenta manter o status quo com a propagação de um discurso meritocrático
e neoliberal, por exemplo, ignora as novas formas de atuação do Estado socialdemocrata em
favor da própria circulação do capital. Os ganhos sociais deste refletem sobremaneira no
controle das crises sistêmicas do capitalismo. Assim, por mais que uma classe burguesa não
queira a ampliação da cobrança de impostos, a diminuição dos subsídios estatais para projetos
sociais, ou o financiamento da economia por bancos públicos, essas são formas de expressão
que – a primeiro momento seriam de populismo da classe dominada – mas que favorecem o
próprio capital.

O contrário também é verdadeiro: as expressões de populismo das classes


dominantes, seja racista, xenofóbica, machista, homofóbica etc podem ser um meio de tentar
controlar as crises do capital. O século XX apresenta, na prática, um número expressivo de
exemplos sobre como regimes fascistas foram utilizados na tentativa de controlar crises
políticas, econômicas e sociais:

Porém, também é certo que sempre que o sistema capitalista sofreu uma
crise grave, na Europa Ocidental, diversas formas de populismo floresceram.
Lembremo-nos apenas que a crise após a Segunda Guerra Mundial que
provocou o triunfo do fascismo, que a crise econômica mundial que
conduziu à ascensão do nazismo, e que a recessão mundial de hoje, que se
faz acompanhar do surgimento de fenômenos diversos – como o

213
LACLAU, Ernesto. Política e ideologia na teoria marxista: capitalismo, fascismo e populismo. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1978., p. 180.
97

florescimento dos regionalismos – tendem a se expressar em ideologias que


fazem do populismo um momento central.214

O argumento de Laclau ainda é válido: as crises sociais, econômicas e políticas da


América Latina, no primeiro quadro do século XXI tendem a levar ao poder governos
populistas que, nem sempre, representam uma expressão da classe dominada. As massas
enfurecidas e despolitizadas são utilizadas como meio de legitimar o aparelhamento dos
velhos setores reacionários nos Governos e nos Parlamentos, podendo traduzir um retrocesso
maior nos ganhos sociais pela institucionalização dessa expressão de classes.

Já nesse período, o elemento hegemônico na constituição do populismo é importante


para Laclau. Por isso não é possível descartar o estudo do populismo na teoria jurídica das
políticas públicas pensando que este é um atraso ideológico na expressão do político:

O populismo não é, em consequência, expressão do atraso ideológico de uma


classe dominada mas, ao contrário, uma expressão do momento em que o
poder articulatório desta classe se impõe hegemonicamente sobre o resto da
sociedade. Este é o primeiro movimento da dialética entre povo e classes: As
classes não podem afirmar sua hegemonia sem articular o povo a seu
discurso; e a forma específica desta articulação, no caso de uma classe que,
para afirmar sua hegemonia, tem que entrar em confronto com o bloco de
poder em seu conjunto, será o populismo.215

Sendo o populismo uma forma de articulação de ideias no campo social, um elemento


que formará a dialética entre povo e classe, esse devem ser compreendido dentro da própria
forma das instituições como relações sociais. Sem esse elemento, a própria compreensão dos
movimentos sociais ficará prejudicada.

Como visto, é necessário pensar a tensão existente entre instituições e populismo,


isto é, entre relações sociais previamente consolidas que constroem a ideia do político e do
jurídico frente às demandas necessárias, servirão não apenas para a legitimação do poder
político, quanto para a própria verificação do atingimento dos objetivos socialmente
relevantes.

214
LACLAU, Ernesto. Política e ideologia na teoria marxista: capitalismo, fascismo e populismo. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 182.
215
Idem Ibidem, p. 201.
98

Nesse aspecto, o papel dos movimentos sociais, e propriamente pensar uma teoria
dos movimentos sociais populares será importante. Mas de que movimentos sociais populares
falamos? Como sabemos, durante a reconfiguração dos novos direitos no século XX, diversas
demandas construídas a partir de interesses de grupo foram criadas. Em alguns casos,
impostas como irredutíveis para a coesão social.

Para citar alguns exemplos: os Panteras Negras, na luta contra o racismo e o


extermínio da população negra que leva ao debate de ampliação dos direitos civis; o povo
quéchua pela valorização das comunidades que estruturam a Colômbia, culminando com a
eleição de um Presidente saído dentre eles; o Movimento dos Sem Terra com a pauta da
reforma agrária e a reconfiguração fundiária rural; as demandas populares por diminuição de
tarifas de ônibus em todo o Brasil, no ano de 2013; a recente ocupação de escolas públicas
estaduais no Estado de São Paulo para impedir a reorganização escolar construída de cima
para baixo; a retaliação da população negra contra as chacinas em Baltimore; apenas para
citar alguns, sem contudo dar ponto final às demandas que tem chamado a atenção do Estado.

Uma das características importantes que vem tomando os novos movimentos sociais
é a preocupação não apenas com o interesse de grupo. Cada vez mais se tem olhado para a
questão de classes como preponderante para atravessar e costurar as questões de interesse
mais concentrado, como raça, gênero, sexualidade e habitação. Esse elemento pode ser
importante para identificar a dialética povo/classes, o que nos permitiria lembrar a
sobredeterminação do econômico nas expressões de grupo.

Essa nova cara que deve ser creditada à desconfiança do político deve nos fazer
retomar a atenção para o debate do populismo muito mais pelo aspecto revolucionário, com as
devidas correções teóricas muito bem apontadas por Zizek e Laclau no debate apontado: o
populismo de direita – ou da classe dominante – é possível e espreita qualquer sociedade em
crise econômica, social ou política.

Assim, como já dissemos em outra oportunidade, os direitos humanos devem servir


como balizador mínimo para a atuação das instituições. Não como um fim em si mesmo, pois
a crítica ao direito redunda necessariamente no pensamento conservador de manutenção do
status quo, mas sim como uma estratégia no campo de luta política.
99

3.3. A cidadania e os povos explorados: a forma-comunidade em Álvaro Garcia Linera.

Como conduzir um processo de transição socialista a partir da materialidade histórica


dos povos oprimidos na América? Isso quer dizer, como pensar a partir de povos concretos, a
partir de suas materialidades, sem transposição de modelos gerais, ou mesmo de uma
construção de subjetividade universal próprias do capitalismo? Essa questão parece
primordial para Álvaro Garcia Linera, cientista político e vice-presidente da Bolívia que
acompanha Evo Morales no processo de construção do que chama de governo dos
movimentos sociais:

¿cómo construir la autodeterminación general de la sociedad de hombres y


mujeres concretos siendo que, por un lado, está visto que los ámbitos de
acción autónoma de los indivíduos hasta ahora sólo alcanzan una dimensión
local, grupal, restringida, sin llegar a conformar una estructura de orden
realmente social, mientras que, por otro lado, el espacio social de la no-
autodeterminación no sólo es monstruosamente poderoso por los recursos
que posee, sino que ante todo porque él sí se halla definido (y por tanto es el
único que en el fondo nos define a unos en relación con los demás) como
social, como social-universal, que es la forma contemporánea de la
existencia de lo social? ¿Cómo superar esa frustrante impotencia que devora
a diario la actividad vital y creativa transformadora de cientos de miles de
hombres y mujeres que conquistan espacios locales de autonomía pero que
con el tiempo ven como su obra es devorada por el apabullante poderío de la
totalidad maquinal no autodeterminativa del poder del capital, suplantando
lo más exquisito y noble de la pasión humana? ¿Es que realmente hay
posibilidades de emanciparse de la generalidad (o totalidad social) no
autodeterminativa a partir del avance de los pequeños espacios locales de
autonomía a que está condenada hoy día la acción vital humana, sabiendo
que nunca se forma um todo sumando linealmente las partes?216

Como hipótese primordial para a soltura de amarras políticas de um bloco de poder


privatista e – por consequência – excludente, Linera propõe o abando da estratégia de tomada
do poder, e a construção de uma conquista potíca para e a partir dos movimentos sociais. Tais
movimentos sociais, na América Latina deve ser identificado com os povos oprimidos que,
não coincidentemente, constituem a massa de indígenas e/ou trabalhadores desprovidos de
todo e qualquer tipo de apropriação dos frutos de seu trabalho.

216
LINERA, Álvaro Garcia. Forma valor y forma comunidade. Quito/Madrid: Instituto de Altos Estudios
Nacionales del Ecuador/Traficantes de Sueños, 2015, p. 43.
100

Obviamente, pela constituição material de uma teoria que leve em consideração a


história de exploração para a futura emancipação, não há aqui um modelo. Linera não
comenta isso, mas podemos compreender que cada país, aproveitando-se do nível de
abstração mediano de uma teoria do Estado latino-americano, precisa fazer o encontro com
sua própria história. Esse encontro possibilitaria o reencontro da política com os anseios dos
explorados. De imediato, apontamos que tal processo na Bolívia, chamado de revolucionário,
ressoou na literatura e na política da esquerda internacional como bem-sucedido para alguns;
e, para outros, um início de luta “popular-comunitária” promissora que fora “engolida pela
luta ‘nacional-popular’ e pelo governo de Evo Morales”.217

Ainda próximo do processo revolucionário que se inicia com movimentos populares


em Chiapas, no ano de 2000, e se estende até a conquista do governo por meio do processo
burguês-democrático, em 2005, importante marco para a região e visto por alguns como
síntese das conquistas socialistas e espelho do início século XXI, Linera o descreve como
resultado de uma crise estatal geral, o que pode ser visto tanto particularmente, quanto teoria
revolucionária, o que parece ser o intuito de Linera (como diria Marx, “Mutato nomine de te
fabula narratur!”).218 Para tanto, identifica cinco elementos essenciais, a seu ver, de tal crise,

217
Para exemplificar o impacto positivo, revolucionário, de respeito ao comum: LUGO, Carlos Rivera. ¡Ni una
vida más para el derecho! Reflexiones sobre la crisis actual de la forma-jurídica. Aguascaliente/San Luis
Potosí: Centro de Estudios Jurídicos y Sociales Mispat/Universidad Autónoma de San Luis Potosí, 2014, p. 116.;
MOREIRAS, Alberto. Democracy in Latin America: Álvaro Garcia Linera, an Introduction. Culture, Theory
and Critique. V. 56, nº 3, 2015, pp. 267-268. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.1080/14735784.2015.1070976. Acesso em: 02 mar. 2017; WEBBER, Jeffery R. Duas
Powers, class compositions, and the Venezuelan people. Historical Materialism. V. 23, nº 2, 2015, p. 200.
Disponível em: http://dx.doi.org/10.1163/1569206X-12341413. Acesso em: 02 mar. 2017. Além disso, com suas
críticas à forma de chegada ao poder, mas concordando com as mudanças estruturadas pela revolução boliviana:
ZIZEK, Slavoj. ¡Bienvenidos a tiempos interesantes! La Paz: Vice del Estado Plurinacional de Bolívia, 2011,
p. 31. Disponível em: https://www.vicepresidencia.gob.bo/IMG/pdf/zizek-1-2.pdf. Acesso em 02 mar. 2017;
ZIZEK, Slavoj. A permanent Economic Emergency. New Left Review. V. 64, jul./ago. 2010, pp. 94-95.
Disponível em: https://newleftreview.org/II/64/slavoj-zizek-a-permanent-economic-emergency. Acesso em: 02
mar. 2017; ZIZEK, Slavoj, Primeiro como tragédia, depois como farça. São Paulo: Boitempo, 2011, pp. 87 e
129. Por fim, entendo o papel de Evo Morales como um processo de absorção das lutas realmente
revolucionárias: HOLLOWAY, John. Fissurar o capitalismo. Trad. Daniel Cunha. São Paulo: Publisher Brasil,
2013, p. 51.
218
Para se ter uma ideia diminuta da situação do povo indígena na Bolívia nos anos próximos ao processo
revolucionário de Evo, transcrevemos alguns apontamentos que já escrevemos sobre o estado do acesso à
educação formal superior no país: “É de destaque que Álvaro Garcia Linera, cientista político e atual vice-
Presidente boliviano, destacou em 2005 que o grande analfabetismo existente na Bolívia, o que impedia qualquer
acesso ao ensino superior, se concentrou historicamente na população indígena. A explicação disso está na
estrutura de dominação espanhola: a língua oficial castelhana não era dada a conhecer ao indígena que tinha o
quéchua e o aimará, o que impacta em uma diversidade cultural e simbólica. Continuando, Linera faz o seguinte
diagnóstico da Universidade boliviana de então: ‘Entretanto, e apesar disso, o Estado é monoético e
monocultural; nele predomina a identidade cultural boliviana de fala castelhana. Isso pressupõe que a população
obtém prerrogativas e possibilidades de ascensão nas diferentes estruturas de poder – tanto econômico, político,
judicial e militar como cultural – apenas por meio do idioma espanhol’ (LINERA, 2010, p. 303). A via única do
exercício da cidadania no idioma adquirido, o castelhano, impactou na exclusão histórica de cerca de 60% a 65%
101

identificada como problemas na correlação de forças dentro do Estado, vale dizer, “en la
estructura de fuerzas con capacidad de decisión, en el conjunto de ideas dominantes
ordenadoras de la vida política de la sociedad, que permiten una correspondencia moral
entre dominantes y dominados, y en el ámbito de las instituciones”.219

Primeiro, a inauguração, ou o desvelamento da crise; nesse momento, i) a passividade


do povo, que até então está inerte e aceita todos os desmandos do bloco no poder, passa a
diluir-se; ii) os dissidentes começam a irradiar territorialmente seu descontentamento, unindo-
se a outros grupos e constroem uma mobilização nacional que antes era apenas pontual, com
uma demanda muito limitada; iii) os protestos passam a adquirir legitimidade social, o que
pode ocorrer, até certo ponto, pelos mecanismos de repressão utilizados pelo governo; e, por
fim, (iv) essa primeira fase é coroada com a construção de um projeto político que cria
expectativas sociais e coletivas, um projeto que não pode ser absorvido pelas instituições
estatais formais.

Segundo, quando ocorre o que Gramsci chamada de “equilíbrio catastrófico”: nessa


fase, vimos a o embate de dois projetos nacionais para o Estado, o das instituições e do bloco
no poder, de um lado, e dos grupos insatisfeitos e explorados, de outro; dois horizontes
políticos para o país, ambos com capacidade de mobilizar e atrair apoiadores dentre a
população; a partir de então, ambos se colocam como blocos de oposição políticos, seja no
âmbito das instituições legislativas, seja na organização de ações comunitárias ou executivas;
por fim, a paralisia, ou engessamento das instituições estatais, a partir do qual apenas uma
posição poderá sair vitoriosa, seja para um movimento revolucionário, seja para um retorno a
posições contrarrevolucionárias. Como parece claro, o que há nesse momento é uma
verdadeira dualidade de poderes – por isso empate ou equilíbrio catastrófico – que poderá se

da população indígena do ensino básico, quanto mais do ensino superior” (PEREIRA, Luiz Ismael. O fim da
plena educação superior: questões teóricas a partir da comparação dos quadros de políticas públicas no Brasil e
Bolívia. Revista da Faculdade de Direito. São Paulo, n. 3, 1º sem. 2015, p. 148. Disponível em:
https://www.usjt.br/revistadireito/numero-3/9-luiz-ismael-pereira.pdf. Acesso em: 03 mar. 2017).
219
LINERA, Álvaro Garcia. Empate catastrófico y punto de bifurcación. Crítica y emancipación: Revista
latinoamericana de Ciencias Sociales. Buenos Aires. Ano 1, nº 1, jun. 2008, p. 25. Os cinco elementos são
cabalmente desenvolvidos em: LINERA, Álvaro Garcia. La construcción del Estado. In: ______; LACLAU,
Ernesto; O’DONNEL, Guilhermo. Tres pensamientos políticos: conferencias organizadas por las Facultades de
Ciencias Sociales y Filosofía y Letras de la UBA. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires, 2010, pp. 21 e
seguintes.
102

prolongar por anos a fio, mas que se resolverá como toda forma de poder: pela violência,
institucionalizada ou mesmo revolucionária.220

Terceiro, a substituição das elites, momento em que os movimentos sociais,


desgastando o bloco no poder, obtém o poder político institucional. A articulação dos blocos
que antes estavam passivamente adeptos à política formal e quebram a estabilidade do regime
para construírem ascenderem ao controle dos aparelhos repressivos e ideológicos, na
expressão de Louis Althusser. Digno de nota é que no caso boliviano essa ascensão se dará
por meio do sistema eleitoral formal, por meio das instituições democráticas: Evo Morales foi
eleito com 54% dos votos. Posteriormente, questionado por golpistas da direita nacional,
reafirmou tal eleição com 67% dos votos.

Quarto, o ponto de bifurcação que determinará o final ou a continuidade do processo


revolucionário: ou as forças unidas dos movimentos populares se mantém e tocam o projeto
organizadamente, ou as antigas elites, por vezes conservadoras, por vezes reacionárias,
retomam o poder. Sobre a bifurcação, explica Carlos Rivera:

El concepto de “punto de bifurcación” ha sido aplicado también por García


Linera a la crisis actual de ciertas estructuras estatales, como expresiones
de sistemas alejados del equilibrio. Son coyunturas de lucha por la
reestructuración de las relaciones de poder sostenedoras del orden en crisis.
Dado que una sociedad no puede andar sumida permanentemente en este
tipo de lucha frontal, dichas coyunturas deben desembocar, en algún
momento, en la estabilización del orden existente o transitar hacia la
construcción de un nuevo orden.221

Trata-se, portanto, do momento mais decisivo do processo revolucionário, para Linera,


e, portanto, nem um pouco fácil, ainda mais para um complexo heterogêneo e composto por
diversas demandas e desejos. Após esse momento, que não tem uma previsão fora de seu hic
et nunc, sobrevem a estabilização das relações político-sociais e, também, jurídicas.

220
Sobre a extensão da atuação do direito como violência/poder – em alemão Gewalt: PEREIRA, Luiz Ismael.
Theodor W. Adorno: cidadania e direito. Para uma crítica do capitalismo e do sujeito de direito. Dissertação
(Mestrado em Direito Político e Econômico). São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2013, p. 59.
221
LUGO, Carlos Rivera. ¡Ni una vida más para el derecho! Reflexiones sobre la crisis actual de la forma-
jurídica. Aguascaliente/San Luis Potosí: Centro de Estudios Jurídicos y Sociales Mispat/Universidad Autónoma
de San Luis Potosí, 2014, p. 116. Também: LUGO, Carlos Rivera. El derecho de lp común. Revista Crítica
Jurídica. Cidade do México, nº 29, jan./jun. 2010, p. 133.
103

Quinto, por fim, com a consolidação de um novo Estado. Linera, em dado momento,
ainda próximo ao processo de 2000-2005, parece não colocar no processo revolucionário o
condão necessário de modificação das estruturas sociais. Para ele, nem todo processo levará a
um fim de revolucionarização do Estado:

Una crisis de Estado no necesariamente conduce a un nuevo Estado, puede


haber ajustes internos, en las fuerzas, en las alianzas, en las políticas, y
puede haber una reconstitución del viejo Estado. Por ejemplo, el Estado
nacional revolucionario de 1952 tuvo etapas de mutación interna y de
reconfiguración que le permitieron sobrevivir un poco más, a través de la
vertiente autoritaria militar del Estado nacionalista. Era el mismo Estado
nacionalista, solamente que con ajustes, acoplamientos internos y
mutaciones parciales de contenido.222

No caso boliviano, como paradigma mais recente e mais atento aos movimentos
sociais explorados da América Latina, Linera parece se filiar à ideia hegeliana da Aufhebung
para pensar a conquista do poder por parte dos movimentos sociais como meio de reorganizar
o Estado. Ele fala propriamente em uma necessidade “de umas ‘retificações’ do aparato
crítico prático em que nos apoiamos como revolucionários”.223 Isso fica claro em dois pontos
específicos: seu conceito de Estado e o modo em que encara o direito e as instituições
jurídicas, como a democracia e a cidadania.

O conceito de Estado para Linera se aproxima muito do que fora teorizado por
Poulantzas, inclusive referenciado textualmente pelo boliviano, mas em certos momentos
parece caminhar para um positivismo eclético. Esse ponto é de grande relevância para pensar
a América Latina por uma teoria materialista, pois essa se desenvolve, como vimos no
Capítulo 1, dentre outros motivos, como reação à teoria de Poulantzas. Naquele momento,
vimos que as questões que o colocaram na mira da crítica do debate alemão eram suas
propostas de visão sobre a autonomia relativa do Estado em relação à economia, um
politicismo que compartilhava com Miliband, enxergando o Estado como a estrutura
responsável pela coesão social, sem adentrar na análise do próprio capital, sua

222
LINERA, Álvaro Garcia. Empate catastrófico y punto de bifurcación. Crítica y emancipación: Revista
latinoamericana de Ciencias Sociales. Buenos Aires. Ano 1, nº 1, jun. 2008, p. 26. Disponível em:
http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20100830012019/2S1a.pdf. Acesso em: 03 mar. 2017.
223
Idem. Forma valor y forma comunidade. Quito/Madrid: Instituto de Altos Estudios Nacionales del
Ecuador/Traficantes de Sueños, 2015, pp. 44-45.
104

autorreprodução, a mais-valia etc. Essa visão abriu caminho para problemas teóricos e
práticos, em especial a incorreta compreensão da autonomização do Estado frente ao capital, o
que não se confunde com a derivação histórica na sua formação que só pode se dar no
capitalismo.

Linera, em mais de uma ocasião, apresenta quatro fatores que determinariam as


características do Estado como ente político: 1) sua materialidade; 2) sua idealidade, ou
dimensão ideal; 3) seu papel de correlação de forças; e, por fim, 4) o monopólio de decisões,
saberes e funções políticas, administrativas e jurídicas.

A materialidade, para Linera, está na dimensão das instituições, “as Forças Armadas e
o sistema de educação; e também etéreos, mas com efeito igualmente material como são à
crenças às obediências, as obediências, as submissões e os símbolos ... Não há Estado sem
instituições”.224 O Estado se apresenta perante os cidadãos como órgão de declaração de
nascimento e morte – e detentor do procedimento que certifica as pessoas vivas e mortas;
também se apresenta como transmissor das leis que se apresentam como cogentes em todo
território, sem as quais os cidadãos não podem obter propriedade, estudos formais,
autorização para trabalho formal, o recesso da aposentadoria; o Estado também é identificado
com suas funções, com as instituições parlamentares, jurídicas e administrativas, como os
tribunais, as cortes legislativas, o sistema carcerário, os ministérios a quem se dirigem as
demandas da sociedade civil, os órgãos promotores da efetivação de direitos sociais. Por fim,
o Estado seria a cristalização de uma correlação de forças sociais, ou “fluxo de lutas
coisificadas”, num sentido muito semelhante ao que Hariou dá às instituições, como já
vimos.225

A idealidade, ou dimensão ideal do Estado, está presente nas concepções, no ensino –


do formal ao não formal, sentido semelhando ao papel de sindicatos, clubes e escolas dados
por Althusser como aparelhos ideológicos do Estado – saberes, expectativas, conhecimentos
adquiridos ou induzidos pelo fomento estatal. Há, para Linera, um regime de crenças,
percepções, sentidos comuns fornecidos pelos órgãos estatais que são, muitas vezes,
forjadores da subjetividade jurídica. Através dessas instituições materializadas, há processos

224
LINERA, Álvaro Garcia. La construcción del Estado. In: ______; LACLAU, Ernesto; O’DONNEL,
Guilhermo. Tres pensamientos políticos: conferencias organizadas por las Facultades de Ciencias Sociales y
Filosofía y Letras de la UBA. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires, 2010, p. 17.
225
Idem. Forma valor y forma comunidade. Quito/Madrid: Instituto de Altos Estudios Nacionales del
Ecuador/Traficantes de Sueños, 2015, pp. 12-13.
105

de passagem de hierarquias e respeito às próprias instituições e os bens durante o uso,


condução e usufrutos essenciais aos cidadãos.226 Em certa medida, seria por meio da
dimensão ideal do Estado que construiríamos nossas vidas por meio dos medos – reais ou não,
vistos ou cridos – as proibições legais e o socialmente proibido; a aculturação, ou civilidade
construída por meio de horizontes de mundo; a tolerância à autoridades policiais – e também a
intolerância comedida; as resignações a partir do monopólio de construção do que é
considerado legal, jurídico e antijurídico, ainda que não o seja percebido de imediato; as
autorizações de utilização do solo, da propriedade produtiva e do sistema financeiro; por fim,
os rituais cívicos que persistem, numa ditatura ou na democracia.227

Como correlação de forças, Linera aponta que, tanto a dimensão material quanto a
ideal, as instituições e as crenças, não surgem do nada, como um raio caído do céu, para usar
uma expressão de Marx, mas seriam fruto de uma lutas e enfrentamentos sociais. Para se ter
um exemplo, aqueles estudam os meios de construção da cidadania divergem sobre a forma
em que se deu a construção dos direitos sociais, se por meio de luta ou por concessão dos
governos. Tanto no centro, quanto na periferia, houve fortes choques entre movimentos
populares e instituições dos governos estabelecidos para a construção de garantias, seja no
âmbito de direitos políticos (as sufragistas na Inglaterra), direitos sociais (os zapatistas no
México, ou o movimento operário paulista do início do século XX) e direitos civis (os
movimentos black power e black lives matter, nos EUA). Em todos os casos,
independentemente da posição que se tenham, a luta entre dois polos está presente e é sobre
isso que Linera comenta: “As instituições não surgem do nada, são frutos de lutas, muitas
vezes de guerras, de levantes, revoluções, de movimentos de exigências e petições”.228

Por fim, o Estado também é monopólio no sentido mais amplo, “um constante
processo de concentração e monopolização de decisões, e, ao mesmo tempo, um processo de
universalização de funções, conhecimentos, direitos e possibilidades”, o que pode ser
observado na forma como se dará a concentração da coerção-violência e a tributação. Esse

226
LINERA, Álvaro Garcia. La construcción del Estado. In: ______; LACLAU, Ernesto; O’DONNEL,
Guilhermo. Tres pensamientos políticos: conferencias organizadas por las Facultades de Ciencias Sociales y
Filosofía y Letras de la UBA. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires, 2010, p. 17.
227
Idem. Forma valor y forma comunidade. Quito/Madrid: Instituto de Altos Estudios Nacionales del
Ecuador/Traficantes de Sueños, 2015, p. 13.
228
Idem. La construcción del Estado. Op. cit., pp. 17-18.
106

monopólio impediria, assim, qualquer tipo de narrativa não-oficial, isto é, fora da construção
política a partir do Estado e por ele permitida.229

A limitação do conceito de Estado para Linera está, exatamente, no ganho que a teoria
materialista tem sob o referencial teórico de Poulantzas, como apontando no primeiro
capítulo. A visão de Linera permite compreender o Estado como ente político a-histórico, isto
é, sem a delimitação dada por Pachukanis e o debate da derivação: a derivação necessária da
forma política a partir da forma mercantil. Por outro lado, o ganho de Linera está na extensão
que dá ao Estado, para além do mero aparelho positivista criado a partir de uma Constituição
jurídica. Os horizontes estão bem claros: pensar o Estado só faz sentido a partir da
materialidade em que ele está inserido. Assim, não é possível a transposição de modelos para
a realidade da periferia, mas sim a criação de uma forma própria de encarar as instituições
políticas.

Já o conteúdo que Linera dará para a ideia de cidadania e democracia se afasta, e


muito, do campo mais duro do marxismo. Percorrendo o caminho da cidadania na Bolívia,
Linera aponta para uma posição já bem ultrapassada: insiste que a cidadania é a participação
política do sujeito, um “ estado autoconsciência de certas faculdades políticas”, como se
bastassem agir politicamente para caracterizar a cidadania. Ou seja, atuar politicamente
poderia muito bem ser um fim do povo explorado quando retirada sua voz pelo Estado.230

É fácil compreender os objetivos de Linera. A situação do povo quechua na Bolívia


sempre fora lastimável, fora de padrões de sobrevivência, a não ser por sua própria força de
vontade. A estrutura política republicana manteve durante muito tempo a colonial, como bem
descreve:

El régimen tributario del Estado colonial quedará así desdoblado en


registro cultural y moral, que debe ser ofrendado diariamente en el altar de
una burocracia escolar, militar, legislativa e informativa que patrulla la
conciencia del flamante ciudadano. De México a Argentina, de Brasil a
Colombia, de Cuba a Bolivia, el llamado Estado Nacional ha representado
la producción en serie de este anónimo espécimen social llamado ciudadano

229
LINERA, Álvaro Garcia. Forma valor y forma comunidade. Quito/Madrid: Instituto de Altos Estudios
Nacionales del Ecuador/Traficantes de Sueños, 2015, pp. 14-15.
230
Em outro texto, Linera parece abraçar o conceito mais amplo de direitos de cidadania, como aqueles
necessários para a construção de uma vida digna, ou sobrevivência digna: LINERA, Álvaro Garcia. Socialismo
comunitário: um horizonte de época. La Paz: Vicepresidencia del Estado, Presidencia de la Asamblea
Legislativa Plurinacional, 2015, pp. 14 e 44.
107

civilizado, poseedor de ambiciones similares y penurias comunes. Su


auténtica personalidad es el Estado, peor aún, el nombre del Estado que lo
distingue en los mapas o el volumen de escurridizos beneficios que la
membresía estatal permite ostentar ante las repúblicas vecinas más
desdichadas.231

Assim, nesse sentido, a figura do “índio” na República surge como resultado da figura
colonial, a qual tinha como objetivo servir de exclusão, separação, como categoria de
distinção tributária e que atuava, simbolicamente, como sujeito negativo.232 “O conceito de
cidadão”, comenta Linera, “nada tem a ver com o anônimo personagem com iguais
prerrogativas e obrigações diante dos poderes públicos”, isto é, o sujeito de direito. Continua:
“só é um álibi que se utiliza o Estado familiar para esquivar sem descanso de uma população
cuja urbanidade apenas se verifica com uma pilha comum a dez quadras de onde vive”.233

As críticas surgem quando Linera parece desconsiderar o papel que a forma jurídica,
assim como a forma política tem na construção da sociabilidade capitalista. Dissemos ignorar
porque seu maior referencial teórico Poulantzas é um dos grandes alvos do próprio debate da
derivação pelos mesmos motivos. Linera parece insistir na autonomia do bom direito a partir
de seu conteúdo.

En todos los casos, la ciudadanía es el proceso de producción del contenido


y de la forma de los derechos políticos de una estrutura social. A través de
ella, la sociedad se desnuda en sus capacidades e ineptitudes para gestionar
los asuntos comunes; pero también el Estado se exhibe, en su consistencia
material, para cooptar las iniciativas que se agitan en la “sociedad civil”.
234

231
LINERA, Álvaro Garcia. La potencia plebeya: acción colectiva e identidades indígenas, obreras y populares
em Bolívia. Bogotá: Siglo del Hombre, 2009, p. 253.
232
“Nos parece que la crítica adorniana al positivismo, a la dialéctica hegeliana, y, en general, a todo el
pensamiento identitario es punto de partida fundamental para pensar en clave no identitaria la lucha de classes.
En ese sentido la ideia adorniana, de sujeto negativo, enendido como lucha que no culmina en um aspecto
central de esse proceso teórico. [...] el sujeto negatio, no-identitario, es una crítica a la forma sintética de
producción de las categorías del cambio social, centralmente a la noción de sujeto revolucioario como figura de
totalidad y síntesis” (VISQUERA, Sergio Tschler. Adorno: la cárcel conceptual del sujeto. El fetichismo político
y la lucha de clases. In: HOLLOWAY, John; MATAMOROS, Fernando; TISCHLER, Sergio (Org.).
Negatividad y revolution: Theodor W. Adorno y la política. Buenos Aires: Herramienta; Puebla: Universidad
de Puebla, 2007. p. 111).
233
Idem. 3 retos al marxismo para encarar el nuevo mundo. Las virtudes de um siglo infame? El reencuentro
com la incredulidade activa. In: AGUILAR, Raquem Gutiérrez; SALMÓN, Jaime Iturri (Eds.). Las armas de la
utopia. Marxismo provocaciones hereticas. La Paz: Punto Cero, 1996, p. 102.
234
Idem. La potencia plebeya: acción colectiva e identidades indígenas, obreras y populares em Bolívia.
Bogotá: Siglo del Hombre, 2009, p. 253.
108

Essa concepção parece bem distante da já apontada por Pachukanis, para quem o
conteúdo do direito é irrelevante para salvá-los como possibilidade de emancipação. Também
Holloway já tomara consciência disso. Mas na sua caminhada pela história da cidadania na
Bolívia, Linera reconhece os atrasos políticos na exclusão do povo quéchua das decisões da
comunidade, mas confia todas as suas fichas na necessidade de uma refundação da
democracia por meio do socialismo indigenista: uma democracia ampliada para atingir todas
as instituições que utilizam os bens comuns, como os direitos e a riqueza.235

3.4 Um processo de transição urbi et orbi.

Urbi et orbi é a benção papal que consagra a eleição após o conclave. Para a cidade
(de Roma) e para o mundo. Esse é seu significado, mas pretendemos tornar profano seu
significado. Não são de bênçãos que falamos, mas sim de utopias concretas, de sonhos, de
conquistas e, mais precisamente, de um projeto: a superação da sociabilidade capitalista; do
Estado monopolizador e responsável pela reprodução do capital e da exploração; do direito
que funciona como esse artifício de ideologia do capital, por meio de mecanismos
excludentes, que mantém à margem da propriedade dos meios de produção.

Não nos referimos à Roma. Nem mesmo a um pontífice, que por coincidência é
argentino no momento de produção dessa pesquisa, mas sim do povo que constrói a saída por
si mesmo. Esse povo – o latino-americano – que por meio da prática revolucionária vai
criando, em seus caminhos e descaminhos, um meio de enxergar o encontro com a sociedade
pós-capitalista.

Os processos de tentativa de construção do socialismo na América Latina são


numerosos: Chile, Bolívia, Cuba, Venezuela, além dos menos vitoriosos em sentido amplo,
mas muito profundos na reconstrução de uma nova forma de enxergar a política, como a
experiência zapatista. Todos apresentam características semelhantes: são focados na
construção a partir de uma experiência nacional; mantém uma teleologia de superação de uma
sociedade baseada na exploração interna e internacional. Mas também se diferem porque
foram realizados em momentos históricos diferentes. É o caso de Cuba que recebeu o apoio

235
______. Socialismo comunitário: um horizonte de época. La Paz: Vicepresidencia del Estado, Presidencia
de la Asamblea Legislativa Plurinacional, 2015, p. 23.
109

da URSS. Outras, porém, tem que sobreviver diante da sombra da hipótese comunista que
saiu de cena para dar lugar a um pretenso consenso ideológico, um desejado “fim da história”
de Fukuyama. Mais desejado que realizado.

Como é sabido, Marx construí sua crítica da economia política tendo olhos para a
Inglaterra, mas não olhos ciumentos: ele observava o mundo, era de toda uma sociabilidade
que ele falava. Superara o capitalismo também pode ser enxergado dessa forma: não se trata,
apenas, da construção de uma experiência, ou mesmo de uma tentativa única, irreproduzível.
Mas tão importante quanto o capital, demonstrando sua atenção à causa da periferia, Marx
também se atentou para a Rússia, Irlanda, Índia, EUA e América Latina. Ainda que
caminhando aos poucos numa reflexão que encontrasse tais Estados e nações por fora de um
determinismo histórico, podemos retirar conclusões muito importantes. Linera auxilia:

Marx, en sus notas, al rechazar frontalmente los intentos de caracterización


feudal de la historia socioeconómica de India y Argelia, explícitamente está
rechazando, a la vez, no sólo la concepción evolucionista de Kovalevsky —
heredada de Sir Henry Maine—, sino también todo tipo de visión mecánica y
lineal de la Historia, según la cual todos los pueblos del mundo tendrían que
recorrer caminos similares a los de Europa. Marx, al no aceptar esta
concepción, al burlarse de ella y rechazar el uso de categorías propias del
conocimiento de Europa, pero erróneas para el entendimiento de otras
sociedades cuyo curso histórico es distinto, nos está indicando la
imposibilidad del pensamiento revolucionario de encajar o rellenar a la
fuerza la realidad en esquemas abstractos. Y nos muestra, en cambio, que
todo conocimiento científico de la realidad debe hacer emerger del estudio
de sus propias condiciones reales, las posibilidades de similitud con otras
realidades o sus diferencias.236

Assim, as condições reais da região são o meio de compreensão da superação da


sociabilidade capitalista para tais países que mantém uma similitude histórica que atravessa o
caminho do sul ao norte, dos meios de produção comunal pré-colombianos, à construção de
um povo oprimido por questões de étnico-raciais. E a partir deles, para toda a população de
explorados.

Por fim, cabe lembrar mais uma vez as palavras de Marx em carta enviada a Vera
Zasulitch, revolucionária russa, em que reconhece a inexistência de uma inevitabilidade
histórica do capitalismo para os russos. Do que tiramos a possibilidade de retomada de um

236
LINERA, Álvaro Garcia. La potencia plebeya: acción colectiva e identidades indígenas, obreras y populares
em Bolívia. Bogotá: Siglo del Hombre, 2009, p. 35.
110

projeto a partir do que se quer, independentemente do estado do desenvolvimento da América


Latina. Não podemos perder o momento de puxar nossa alavanca. Diz Marx:

Desse modo, a análise apresentada n’O capital não oferece razões nem a
favor nem contra a vitalidade da comuna rural, mas o estudo especial que fiz
dessa questão, para o qual busquei os materiais em suas fontes originais,
convenceu-me de que essa comuna é a alavanca [point d’appui] da
regeneração social da Rússia; mas, para que ela possa funcionar como tal,
seria necessário, primeiramente, eliminar as influências deletérias que a
assaltam de todos os lados e então assegurar-lhe as condições normais de um
desenvolvimento espontâneo”.237

237
MARX, Karl. Carta Vera Ivanovna Zasulitch, 8 mar. 1881. In: ______. Lutas de classe na Rússia.
Organização de Michael Löwy. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 115.
111

CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Optamos por apresentar considerações finais sobre a tese central deste trabalho em
detrimento de conclusões fechadas. Isso porque o elemento vivo do debate do Estado na
América Latina impede qualquer categorização finalística. Impede os pontos finais e as
conclusões. Ao contrário, como a teoria materialista do Estado é uma teoria aberta, também a
leitura da América Latina o deve ser.

Como apresentado na Introdução, o objeto de análise – a América Latina e a formação


estatal na região – é um objeto vivo, complexo, de diferentes matizes, em constante alteração
e com claras especificidades. As objeções de cunho prático – sociológico e político – que são
lançadas para desestimular o pensar sobre a grandiosidade da região são, na realidade, leituras
ideológicas bem enviesadas.

A questão é muito mais complexa do que essa. A América Latina pode ser apreendida
como objeto do pensamento, como objeto da filosofia e, como propomos nesse trabalho, no
grau de abstração adequado nos permitirá pensar uma teoria do Estado própria para a região, o
que pretendemos aprofundar num futuro próximo.

A proposta metodológica de utilização de conceitos intermediários a partir do


encontro com o Real na sociabilidade capitalista, apenas inspirada do método regulacionista
francês propôs o abandono dos campos da especificidade histórica de cada Estado, de um
lado, bem como da transposição de conceitos de uma teoria geral, ou de elementos de uma
teoria do Estado. O método se mostrou adequado ao objeto e muito compartilhado pela
literatura crítica utilizada: é o caso de Holloway, Linera, Mascaro, dentre outros.

O objetivo geral proposto inicialmente foi compreender os meios pelos quais se deu
o desenvolvimento da forma política e da cidadania na América Latina e pensar os caminhos
para os quais elas caminham, em especial no que diz respeito à superação das formas de
opressão e dominação claramente ligadas e legitimadas pelo Estado e o direito. Das diversas
teorias pensadas a partir da especificidade latino-americana, a maioria delas – em especial as
ligadas às raízes do debate alemão da derivação, foram condizentes com o objetivo.

Na atualidade, pensar o Estado – e especificamente o latino-americano – envolve


duas questões básicas: a primeira, pela especificidade das formas sociais que constituem
diferentes espaços geográficos; e, a segunda, pelas fortes mudanças introduzidas com a
112

mundialização dos interesses do capital. Em ambos, há uma relação de proximidade entre os


Estados periféricos da região, como demonstrado, o que nos permite afirmar que a estrutura
estatal de poder – a correlação de forças entre Executivo, Legislativo, Judiciário; o papel da
Universidade na constituição da subjetividade; os elementos de absorção das camadas sociais
historicamente oprimidas como questão do dia; combate à precarização do trabalho;
descentralização dos centros de decisão etc. – precisa ser pensada a partir de tal realidade.

O desenvolvimento pensado a partir das teorias com olhos voltados para os


movimentos sociais na América Latina nos permitiu pensar posicionamentos a evitar, bem
como estratégias a serem traçadas. É o caso, por exemplo, do risco da institucionalização das
demandas sociais como um risco de cooptação do poder transformador do trabalho vivo pela
estrutura burocrática. Nesse ponto, o debate do populismo se mostrou muito vivo e, não
coincidentemente, apaga o conceito de classes da centralidade do tema. Volta seus olhos para
a ideia de povo, como se povo fosse único, como se povo não tivesse um preenchimento que
envolve as classes sociais em luta.

A negatividade e necessidade de construção do caminho a ser traçado,


independentemente de purismos, foi um ponto importante que Holloway contribui nos últimos
anos. Seus olhos estão no movimento zapatista mexicano, mas se preocupa em pensar a região
como um todo, pois o que une – e desune as classes é transnacional: o capital. Essa
negatividade não é pacifista, embora não-violenta, mas foge da pauta dada pelo Estado que
em si mesmo já é violento. Insiste na construção de uma sociabilidade intersticial, construída
fora da legalidade, ou melhor, para além dos estreitos horizontes do direito burguês, numa
expressão de Marx.

Por fim, Linera foi preponderante para compreender o papel das comunidades mais
exploradas na construção do ideal de Estado e de direito. Embora sua ideia seja a contensão
das massas por meio da representatividade do partido – crítica essa que Holloway, Zizek e
outros direcionam para o movimento de Evo Morales, trata-se de uma das mais vivas
estratégias de atuação na região. Pensar a partir do que é comum, pensar a partir do coletivo –
um coletivo oprimido e que deve tomar os meios de produção de sua própria riqueza e de sua
própria liberdade frente ao capital.

***
113

Embora escape da investigação na presente tese, é bem característico o argumento


pelo qual os conservadores e reacionários – não incomuns no campo do direito, chamam
quem pensa a América Latina: chavistas, bolivarianistas! Gastam tempo e papel para
argumentar o não-argumentável, apenas marcar uma posição muito rasa. Não possuem
conhecimento sobre a história latino-americana. Isso é muito comum no campo do direito.
Talvez, por isso, o ineditismo de se preocupar em pensar uma teoria do Estado materialista
para explicar a América Latina. Muitos já se preocuparam com essa questão, poucos no
campo direito. Com esses esperamos lançar algum tijolo na construção do ideário latino
americano de superação do maior dos fracassos: o capitalismo.
114

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