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A cidadania multicultural e os limites do indigenismo brasileiro

Ricardo Verdum1

Não obstante ter passado quase vinte anos desde quando foi aprovado a atual
Constituição da República Federativa do Brasil (1988), que incluiu um capítulo
específico sobre os direitos dos povos indígenas (Capítulo VIII – Dos Índios), nenhum
dos governos que se sucederam desde então aceitou promover as mudanças necessárias
nas estruturas e práticas político-administrativas do aparato do Estado nacional,
adequando-as ao entendimento então alcançado sobre a realidade multicultural
efetivamente existente no Brasil.
A população indígena é estimada pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa),
órgão vinculado ao Ministério da Saúde responsável pela política e os “serviços” de
atenção à saúde indígena, em cerca de 440 mil pessoas, o equivalente a
aproximadamente 0,2% da população total do país. Cerca de 60% desta população vive
na região designada como Amazônia Legal. No censo demográfico de 2000, realizado
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 734.127 pessoas se auto-
identificaram como indígena, elevando esse percentual para 0,4%. Os povos indígenas
no Brasil representam uma diversidade lingüística que ultrapassa o número de 180
línguas classificadas em 35 famílias lingüísticas. Os indígenas estão presentes em todos
os estados da Federação e seus territórios somam aproximadamente 104 milhões de
hectares – o equivalente a aproximadamente 12% do território nacional.
Se partirmos do pressuposto que “cidadania multicultural” significa o
reconhecimento jurídico de direitos políticos e sociais, que se traduzem em direitos
como autonomia de decisão, autogoverno indígena sobre seus territórios e os recursos
naturais neles existentes, direito a representação política nas instâncias de poder
legislativo do Estado e protagonismo na formulação e no controle das chamadas
“políticas públicas” de seu interesse e necessidade, no Brasil ainda estamos muito
distante disto. As mudanças morfológicas e gerenciais desencadeadas a partir do início

1
Assessor Sênior de Políticas Indígena e Socioambiental do Instituto de Estudos Socioeconômicos
(Inesc). Doutor em Antropologia Social pelo Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas
(CEPPAC), da Universidade de Brasília (UnB). verdum@inesc.org.br.

1
dos anos 1990 - se implicaram num maior acesso aos “serviços” prestados pelo Estado
nos distintos “setores” ou “políticas” governamentais (saúde, educação escolar,
assistência social, etc.) - muito pouco contribuíram para a construção de uma cidadania
como a acima descrita. Em relação aos territórios indígenas, quando reconhecidos
formalmente pelo Estado brasileiro, persiste sobre eles a idéias de que são reservas de
recursos naturais a serem incorporados ao circuito econômico nacional, quando
necessário, e, em última instância, uma questão de segurança nacional.
A partir dos anos 1990, num contexto de ressurgir do discurso
desenvolvimentista, renovado pelo debate sobre possibilidades e viabilidade da
ocorrência de “crescimento econômico” associado com “sustentabilidade ambiental”,
renova-se o discurso da necessidade de promoção do chamado “desenvolvimento dos
povos indígenas” como solução para “os seus inúmeros problemas”. Nos anos 2000, e
com mais ênfase no atual governo federal, a “inclusão social” dos indígenas nas
políticas de assistência social, de educação escolar e de apoio à produção e geração de
renda (entre outras) aparece como idéia força no discurso e nas estratégias
governamentais. Nesse contexto, a promoção do chamado “etnodesenvolvimento” é
concebido como capaz de “romper com o ciclo vicioso de dependência de recursos para
novos projetos” e como estratégia de “desenvolvimento sócio-econômico-cultural destas
populações segundo as especificidades próprias”.

É importante ter a clareza de que estamos tratando de expressões-artefatos


culturais e políticos que, em decorrência dessa natureza, estão sujeitas a serem
acionadas na construção de narrativas e projetos de uso dos territórios indígenas e dos
recursos naturais ai existentes (ver Ribeiro 1992, 2005). Esse é o caso, por exemplo, da
polêmica e polissêmica noção de etnodesenvolvimento, que ao longo dos últimos vinte
anos veio adquirindo uma crescente importância na retórica indigenista latino-
americana (e na brasileira também), particularmente como ponta de lança do que Héctor
Díaz-Polanco (1991) e Victor Bretón (2001) denominaram de indigenismo etnofágico.

No Brasil, ao longo dos últimos cinco anos, expressões como


etnodesenvolvimento e desenvolvimento indígena sustentável têm servido como
artefatos de articulação e sentido para a ação de inúmeras pessoas e instituições,
governamentais e não-governamentais, indígenas e não-indígenas, nacionais e
internacionais que, de diferentes perspectivas, têm afirmado estarem interessadas na
transformação da situação de “insegurança alimentar e pobreza” em que várias

2
comunidades encontram-se hoje mergulhadas ou na promoção de “maior autonomia
política e na sustentabilidade econômica e territorial indígena”. O etnodesenvolvimento
passa, nesse contexto, por um processo de fetichização, particularmente entre os setores
governamentais ligados a “gestão de recursos naturais” e ao “desenvolvimento rural”.
Acobertada sob uma retórica de defesa da pluralidade sócio-cultural, de tolerância e de
inclusão, se observa na esfera governamental brasileira uma práxis política – conduzida
com uma linguagem aparentemente técnica - que caminha no sentido inverso, isto é, no
sentido da manutenção das/dos indígenas na condição de tutelados do Estado nacional e
da integração dos seus territórios e os recursos naturais e culturais nos circuitos
econômicos de produção e comercialização regional, nacional e internacional de
mercadorias. Exemplos desta tendência são, por exemplo, a recorrente “dificuldade” do
governo federal de dialogar com o movimento indígena organizado; o desempenho
declinante do governamental federal no processo de reconhecimento e regularização dos
territórios indígenas; e o recente Anteprojeto de Lei de Mineração em Terras Indígenas,
que visa regulamentar o artigo 231 da Constituição Federal, permitindo a atividade de
mineração em terras indígenas.

O “etno” do desenvolvimento

Só recordando, foi em 1981, na cidade de São José da Costa Rica, com


patrocínio da UNESCO e FLACSO, que a idéio do “etnodesenvolvimento”, como
“modalidade alternativa de desenvolvimento”, emergiu formalmente no cenário latino-
americano. Contribuíram para sua conceituação personagens do mundo indigenista e
antropológico como Stefano Varese (Peru), Diego Iturralde (Equador), Enrique
Valencia, Rodolfo Stavenhagen e Salomón Nahmad (México), Darcy Ribeiro e Roberto
Cardoso de Oliveira (Brasil), entre outros. Promover o etnodesenvolvimento implicaria,
além do reconhecimento e garantia de territórios adequados pelo Estado, o
fortalecimento da capacidade de decisão autônoma das sociedades indígenas (qualquer
que seja o entendimento delas sobre o que significa desenvolvimento) e os planejadores
do desenvolvimento aprender a lidar com os fatores étnicos. Não é por acaso, portanto,
que Rodolfo Stavenhagen (1985) vai qualificar o etnodesenvolvimento como “uma
dimensão ignorada no pensamento desenvolvimentista”.
O que nos parece preocupante nessa alternativa, passados mais de vinte e cinco
anos desde quando emergiu na cena pública latino-americana, é o nível pouco

3
desenvolvido do debate, ao menos no Brasil, sobre esta modalidade de indigenismo: o
indigenismo etnodesenvolvimentista. 2
A necessidade das populações, para poder acessar recursos dos Estados e das
agências financeiras internacionais, terem que se adequar às “regras do jogo” do setor
financeiro; a mercantilização da natureza e dos conhecimentos indígenas e sua inserção
subordinada e dependente nos circuitos econômicos de mercado; a objetivação da
cultura na forma de bens e serviços negociáveis em mercados; a imposição de formas
organizativas particulares (tipo sindical ou associativa) como forma de representação e
como requisito básico para viabilizar o acesso ao “apoio financeiro”; a incorporação e
cooptação pelo Estado de expoentes (“lideranças”) indígenas - na condição de
intermediários legitimados pela origem étnica e ou pela rede de apoio que conseguem
estabelecer dentro e fora do meio indígena - nas estruturas constituídas para administrar
o chamado “desenvolvimento com identidade indígena”; e o caráter universal que se
quer dar à idéia de desenvolvimento (e ao sistema de crenças e valores que subjaz a esta
idéia) são, no contexto brasileiro, temas e questões ainda mal tratadas de um ponto de
vista mais crítico e menos funcional.
O que temos visto no Brasil ao longo dos anos é o Estado nacional, com ou sem
a colaboração das chamadas agências internacionais de cooperação técnica e financeira,
de organizações não governamentais (ONGs) ou das Igrejas, esforçar-se por promover
mudanças na forma de organização social e política indígena. Exige-se (e
ocasionalmente são “dados” incentivos financeiros com este fim) que determinados
grupos indígenas se organizem de uma forma particular, criem associações com registro
oficial, desenvolvam capacidades para gestão de recursos financeiros, e desenvolvam
capacidade para o “mobilizar o capital social” necessário aos “projetos de
desenvolvimento sustentável”. Em alguns casos, promove-se a mobilidade social de
“lideranças indígenas”, incorporando elas/eles nas estruturas estatais como empregados
ou consultores, que acabam se vendo enredados em processos e procedimentos
burocráticos e com baixíssimo poder de decisão independente.
Mencionaria também a criação de comissões e conselhos (consultivo,
deliberativo, técnico, de gestão compartilhada, entre outros), onde “representantes” são
convidados a participar e se posicionar sobre temas de alta complexidade ou a tratar de
questões que muito pouco contribuem para a construção de uma efetiva “cidadania

2
Ver: Souza Lima & Barroso-Hofmann (2002); Verdum (2006).

4
indígena”. A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
(Coiab), entidade indígena de representação regional com sede em Manaus (AM),
fundada em 1989, tem hoje “representante” em pelo menos 27 comissões e conselho
governamentais, nos níveis federal e estadual. A faceta “participativa” do indigenismos
etnodesenvolvimentista é outra para a qual ainda não foi dada a atenção devida no
Brasil.

Introdução à história da formação do indigenismo brasileiro

No Brasil, o que hoje chamamos de indigenismo integracionista tem origem e


história um pouco diferente da tradição que se desenvolveu nas primeiras décadas do
século passado no México (ver Lomnitz, 2002). Ele nasceu de uma prática de
conhecimento e de ação político-administrativa chamada de “tradição sertanista”, que se
constitui como tal nesse mesmo período, início do século XX. Nos anos 1950, ambas as
tradições vão se cruzar, num momento quando o indigenismo de origem mexicana está
em avançado processo de internacionalização, de “globalização” regional, em
decorrência da sua adoção como ideologia por agências do sistema Nações Unidas e da
Organização dos Estados Americanos - ver Favre (1998) e Verdum (2006).
No contexto do indigenismo brasileiro, o “sertanista” aparece como um
personagem chave, envolto por uma áurea de romantismo, numa mistura de bondade e
bravura. Ele é o especialista que domina as técnicas e detém os conhecimentos
necessários para “atrair” e “pacificar” os “índios”, em particular os “arredios”,
induzindo-os a caminhar no sentido da “civilização” e, como não poderia deixar de ser,
do “interesse nacional”.
Embora distinto do mexicano, o indigenismo brasileiro nasceu com a mesma
grave e insolúvel contradição interna: ao mesmo tempo em que postulavam o
“relativismo cultural”, os sertanistas brasileiros não abandonaram a meta de “incluir
aos índios” na sociedade nacional. Temos aqui, como no caso mexicanos analisado por
Héctor Díaz-Polanco (1991), um discurso ideológico relativista encobrindo uma prática
integracionista. Separam-se os “aspectos positivos” das culturas indígenas daqueles que
devem desaparecer, ou porque são “contrários” ao bom andar do processo de
“integração nacional” e do “progresso” ou porque são “inúteis” à necessária adaptação
individual e coletiva dos indígenas na economia de mercado.
A abolição jurídica da escravidão em 1888, o início da implementação de um
regime político republicano em 1889 e o fim formal da união entre Igreja e Estado,

5
colocou para os intelectuais e políticos do final do século XIX o problema da gestão de
uma “população mestiça”, composta por numerosas sociedades indígenas, alforriados,
imigrantes de origem européia e redes sociais relativamente autônomas em relação às
esferas de poder do Estado (Souza Lima 2002: 160-161). É nesse contexto que a
antropologia brasileira tem origem, sendo requisitada, como no caso mexicano, a pensar
e a propor caminhos para a formação do povo brasileiro com uma identidade própria,
integradora da diversidade histórica e cultural dos grupos humanos que o integram.
A institucionalização do indigenismo brasileiro laico tem início com a criação
do Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais
(SPILTN), em 20 de junho de 1910, no âmbito do Ministério da Agricultura, Indústria e
Comércio (Decreto 8.072/1910). A criação do SPILTN significou, entre outras coisas, o
início do projeto republicano de substituir a “catequese religiosa” - como forma de
incorporar aos indígenas no “processo civilizatório” e engajá-los nas estratégias de
promoção do “progresso nacional” - pela “proteção leiga do Estado”.
Em janeiro de 1918, em meio à pressão política de setores anti-indígenas e da
Igreja Católica, que perdia espaço e poder na “administração dos índios”, o setor
responsável pela localização (leia-se assentamento) de trabalhadores nacionais foi
deslocado para o Serviço de Povoamento do Solo, ficando constituído o Serviço de
Proteção aos Índios (SPI). 3
Em 1936, com a assinatura do Decreto no 736/36, o projeto de integração dos
indígenas à sociedade nacional ganhou contornos mais claros. Foi estabelecido o novo
Regulamento do Serviço de Proteção aos Índios, que incluía “a nacionalização dos
silvícolas, com o objetivo de sua incorporação à sociedade brasileira”. Durante o
primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945), o SPI passou sucessivamente por três
ministérios e teve sua legislação diversas vezes alterada.
Com a função de assessorar o SPI no exercício da sua função de “assistência e
proteção aos índios”, em novembro de 1939 foi criado o Conselho Nacional de
Proteção aos Índios (CNPI). Além de pensar e elaborar planos e estratégias conjuntas
para “modernizar” a atuação e o aparato político-administrativo do indigenismo oficial
brasileiro, em medos do século os etnólogos e os sertanistas do CNPI vão estabelecer,
por intermédio do Instituto Indigenista Interamericano (III), contatos com o indigenismo
interamericano então dominado pelos mexicanos. É a partir desses contatos, que a

3
Sobre este período, ver Gagliardi (1989).

6
categoria indigenismo efetivamente passaria a fazer sentido no Brasil. É a partir de
então que começam a ser introduzidas e debatidas, no âmbito do órgão tutelar brasileiro,
4
as teorias e as práticas elaboradas pelo indigenismo mexicano. O Instituto (III) atua
nesse momento como agência promotora de articulação e intercâmbio entre as agências
indigenistas nacionais, realizando congressos, cursos de formação e capacitação de
técnicos, apoiando a realização e a publicação de estudos e trabalhos de pesquisa
(especialmente da produção gerada pela antropologia aplicada), organizando reuniões e
oficinas para avaliação de políticas e projetos indigenistas específicos e articulando
outras agências dos sistemas OEA e ONU a essas iniciativas.
No período de existência do SPI (1918-1967) foram também estabelecidos
parcerias e intercâmbios acadêmicos e profissionais com o Museu Nacional/RJ e a
Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo. Foram criados, em 1942, a Seção de
Estudos do órgão e, em 1954, o Museu do Índio/RJ. Para custear as pesquisas de campo,
nos anos 1950 o SPI estabeleceu convênios com a UNESCO. A contradição entre
pacificar e proteger acompanhou praticamente toda a trajetória histórica do SPI,
estendendo-se por pelo menos os primeiros vinte anos de existência da agência que o
substituiu em 1967: a Fundação Nacional do Índio (Funai).
No Brasil, o protecionismo e o assistencialismo foram seguidos de perto pelo
produtivismo, configurando - como reconheceram também Gagliardi (1989) e Souza
Lima (1995) – a marca do sistema tutelar do indigenismo implementado sob a batuta do
Estado brasileiro. Aos postos indígenas – como unidades administrativas em contato
cotidiano com a população – coube o papel de unidade responsável localmente pela
administração da população e pela gestão econômica do chamado “patrimônio
indígena”. Envolver as famílias indígenas em atividades que proporcionassem algum
tipo de “renda” – como a lavoura e a pecuária, entre outros – era visto como uma
atividade “educativa”, bem como um meio para viabilizar a sustentabilidade econômica
das unidades e do sistema político-administrativo de “proteção”. Roberto Cardoso de
Oliveira, que acompanhou de perto e analisou este processo ao longo das décadas de
1950 á 1970, diz em depoimento pessoal que nos anos do SPI havia o que foi chamado
de “dízimo”, que denominava o percentual da produção indígena (e renda gerada) que

4
Ver: Oliveira Filho & Souza Lima (1983); Souza Lima (1995, 2002).

7
ficava com a instituição indigenista. Esta taxa de administração do patrimônio indígena
ainda hoje é cobrada pelo Estado nacional. 5
O Serviço de Proteção aos Índios chegou nos 1960 imerso numa crise derivada
de problemas de má gestão, corrupção, denúncias de envolvimento e acobertamento de
funcionários de ações de genocídio e uso de “mão-de-obra” indígena, etc. Em 05 de
dezembro de 1967, por meio da Lei 5.371, o governo militar, no comando do Estado
brasileiro desde 1964, extinguiu esse órgão e criou, no seu lugar, a Fundação Nacional
do Índio (Funai). A constituição do novo órgão significou também a criação da chamada
“renda anual do patrimônio indígena”, onde se amplia a dimensão econômico-financeira
da ação indigenista e se institucionaliza o pressuposto de que a manutenção do aparato
burocrático de “pacificação” e “proteção” dos indígenas deve ser (parcialmente)
custeada pela exploração e comercialização das terras e dos recursos naturais nos
territórios indígenas.
A partir dos anos 1970, o saber indigenista, antes um objeto de disputa entre o
órgão indigenista oficial (com uma forte presença física e simbólica dos militares) e a
Igreja Católica, passa a ser reivindicado e reinventado também por outros atores e
agências: por instituições de ensino e pesquisa; por organizações não governamentais
(nacionais e internacionais); por agências multilaterais e bilaterais de cooperação e
ajuda internacional (técnica e financeira), entre outras. Nas décadas de 1970 e 1980
também os indígenas passaram a experimentar a posição de protagonistas na
interlocução com o Estado brasileiro, organizando entidades de representação étnica (a
União das Nações Unidas-UNI, em 1980, por exemplo) e pressionando politicamente o
órgão indigenista; promovem manifestações e invasões da Funai em Brasília e nas
administrações regionais (ver Cardoso de Oliveira 1988; Matos 1997).
Neste momento, tanto o indigenismo fundado na tradição mexicana, quanto a
chamada antropologia aplicada a ele associada estão em crise no Brasil e em outros
países da região, como no México, em decorrência do recorrente envolvimento de
antropólogos e das agências indigenistas oficiais em políticas governamentais
caracterizadas como de colonialismo interno ou intracolonialismo. No caso do Brasil,
5
Neste período predomina uma concepção linear evolucionista na maneira de pensar o desenvolvimento.
Essa concepção parte do suposto de que há regiões do mundo “atrasadas”, atribuindo a esse “atraso” a
situação de pobreza, fome, baixa produção nacional e baixa renda per capita da população. E qual o
remédio para o atraso? A resposta é: “desenvolvimento”, isto é, o “crescimento econômico”. Nesse
período a palavra da moda era “modernização”. Identificar os obstáculos à modernização e definir
estratégias claras de introdução de inovações e mudanças culturais estava na ordem do dia. Instituições
sociais tradicionais, economia não monetária, ausência de espírito empreendedor e visão de mundo
particularista e não universalista estariam na origem do “atraso”.

8
as décadas de 1970 e 1980 são as décadas das grandes obras de infra-estrutura dos
setores de transporte e energia na Amazônia brasileira, impactando diretamente
territórios e comunidades indígenas locais. São deste período obras como a Rodovia
Transamazônica (BR-230) e a Rodovia Perimetral Norte (BR-174), o Complexo
Minerário Grande Carajás, a Represa (UHE) de Tucuruí, bem como os projetos de
assentamento rural (colonização) que as acompanharam. 6
A Constituição Federal de 1988 trouxe “novos ares” ao indigenismo brasileiro.
Ao reafirmar os direitos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
atribuem a responsabilidade da União por demarcá-las, protegê-los e fazer respeitar
todos os seus bens. Afirma-se o dever do Estado e o direito dos indígenas de serem
consultados quando da execução de atividades de exploração de recursos naturais com
impacto nas terras e na população e a competência civil dos índios, suas comunidades e
organizações, para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses.
Ao processo constitucional - que envolveu indígenas alçados à cena nacional na
qualidade de representantes da indianidade genérica, as chamadas “entidades de apoio”,
a Funai e a Igreja Católica, além de parlamentares e grupos indígenas específicos, como
os Kayapó -, seguiu-se um período de efervescência organizativa no meio indígena,
apoiado pela ajuda financeira e assessoria da Igreja Católica, da cooperação
internacional oficial (governamentais e multilaterais) e de entidades leigas (ONGs),
tanto nacionais quanto internacionais (Albert 1997, 1998, 2001; Athias 2002; Ricardo
1996).
A hegemonia política, ideológica e administrativa da Fundação Nacional do
Índio sobre a gestão da população e dos territórios e recursos naturais indígenas
estende-se até 1991. Nesse ano, algumas das suas “funções” passam a ser
descentralizadas, compartilhadas ou mesmo repassadas para outros órgãos da
administração pública federal. Com a publicação dos Decretos nos 23, 24, 25 e 26, de 4
de fevereiro de 1991, são repassadas respectivamente para os Ministérios da Saúde, do
Meio Ambiente, da Agricultura e da Educação ações que estavam até então na alçada da
Funai executar ou repassar para terceiros executá-las. Este processo de
“descentralização”, “compartilhamento” e “repasse” teve continuidade ao longo dos

6
Sobre os impactos das políticas de desenvolvimento e dos grandes projetos de infra-estrutura nas
populações indígenas na Amazônia brasileira no período, ver: Funai (1975); Davis (1977); Arnt &
Schwartzman (1992); Leonel (1992); e Almeida (1995).

9
quinze anos seguintes, chagando a termos hoje mais de quinze ministérios e órgãos
vinculados com ações dirigidas aos indígenas. 7
De outro lado, esta mesma reforma política e administrativa - incompleta do meu
pronto de vista - comportou um componente inovador em relação aos modelos
anteriores de gestão pública. Ela possibilitou a criação de comissões e conselhos
consultivos e deliberativos sobre políticas setoriais, onde as comunidades locais e as
entidades indígenas e indigenistas conquistaram assento, voz e, em alguns casos, poder
de decisão sobre políticas. Em vários casos as organizações indígenas de segundo e
terceiro grau e as entidades indigenistas não-governamentais passaram a ser
proponentes e gestoras de ações locais de melhoria ambiental e de saúde, de educação e
capacitação, e de produção e geração de renda. É óbvio que estes “processos
participativos” não se realizam num ambiente isento de conflitos e disputas, seja entre
os atores governamentais seja entre estes e os não-governamentais (indígenas e não-
indígenas).
A década de noventa possibilitou também uma maior visibilidade sobre a
atuação das chamadas "agência de cooperação internacional para o desenvolvimento" -
seja de países como Grã-Bretanha e Alemanha, seja de agências multilaterais como o
Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento e as agências do Sistema
Nações Unidas (UNESCO, OIT, OMS/OPS, PNUD) na política indigenista. Essas
instituições passaram a atuar não somente como agentes financeiros e administrativos,
mas também influindo na definição das políticas setoriais e, em determinadas
circunstâncias, como um aliado importante do movimento indígena no sentido da
flexibilização dos mecanismos da tutela governamental e na efetivação dos direitos
assegurados pela Constituição Federal de 1988 e na denominada Convenção 169 da
8
Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre os Povos Indígenas e Tribais.
Desde sua criação, a Funai foi percebida pelos atores participantes do campo
indigenista brasileiro como o palco privilegiado das disputas sobre a administração dos
assuntos e a resolução dos problemas dos índios; como um espaço de poder a ser
tomado, ocupado e controlado. Essa visão ainda hoje detém um espaço significativo
como orientadora da atuação e do debate político-ideológico de uma parcela dos
indigenistas brasileiros, tanto do oficial quanto do dito alternativo, e mesmo de setores

7
Ver Barroso-Hoffman et al. (2004); Ricardo (1996b, 2000, 2006); Souza Lima & Barroso-Hoffman
(2002); Verdum (2003, 2005a, 2005b).
8
Sobre o papel e as estratégias da cooperação internacional em relação aos povos indígenas na América
Latina, em particular no Brasil e no Equador, ver Verdum (2006).

10
do movimento indígena. Esse embate político-ideológico se manifestou recentemente,
na Conferência Nacional da Saúde Indígena, organizada pela Fundação Nacional de
Saúde (Funasa), e na Conferência Nacional dos Povos Indígenas, organizado pela
Fundação Nacional do Índio, em março e abril passado. Os últimos quinze anos têm nos
revelado o quão complexa é a situação indígena e seus determinantes no Brasil; o quão
inseguros são os resultados e avanços alcançados em momentos e conjunturas
específicas; e que o futuro dos direitos indígenas no Brasil extrapolam de muito a
capacidade de um órgão específico.
Esta é, em linhas bastante gerais, uma “história possível” do indigenismo no
Brasil. Como no México, o indigenismo brasileiro surge ligado ao projeto de
modernização e integração do meio rural. Nasce e se desenvolve como um corpo de
idéias, práticas e instituições voltadas para a incorporação econômica, política e cultural
das sociedades indígenas nos projetos de “desenvolvimento nacional”. A interação e
interdependências entre o indigenismo brasileiro e as “agências multilaterais e bilaterais
de cooperação” ainda é um campo de pesquisa praticamente por desbravar. Esta
carência de estudos se refere tanto ao indigenismo oficial quanto ao indigenismo
formulado e implementado a partir ou por intermédio da chamada sociedade civil. O
mesmo vazio de conhecimento pode ser assinalado em relação à importância e a
influência que teve ou possa ter tido o indigenismo brasileira no cenário internacional. 9
No Brasil, a introdução do “etno” no léxico das políticas públicas tem se dado de
diferentes maneiras e em diferentes momentos. A seguir, vamos nos deter em duas
situações ou contextos onde a expressão-artefato “etnodesenvolvimento”, como
componente da multiculturalidade ao modo brasileiro, foi incorporada na retórica e na
denominação de políticas e programas setoriais do governo federal.

A incorporação do “etno” nas “políticas públicas” do Estado brasileiro

Conforme mencionado acima, na década de 1990 processa-se uma certa


“flexibilização” na forma de gestão da política indigenista governamental. No nível
federal, de um órgão único centralizador do conjunto das ações, responsável pela tutela
“proteção” das comunidades locais e povos indígenas, temos hoje mais de quinze
ministérios (e órgãos vinculados) atuando junto aos povos indígenas. Desencadeada no

9
Os trabalhos de Oliveira Filho (2002); Salviani (2002); Stibich (2005) e Verdum (2006) se dedicam a
esta relação na última década, quando a idéia de etnodesenvolvimento e outros termos semanticamente
aparentados aparecem na retórica indigenista oficial brasileira.

11
ano de 1991, estas mudanças morfológicas e gerenciais - felizes em alguns aspectos -
não foram capazes de superar, até hoje, nem a baixa capacidade de articulação e
integração entre as “políticas setoriais” nem as resistências e conflitos ocorridos no
interior do aparelho do Estado ao longo dos últimos quinze anos. Ao longo dos anos
1990 houve, no interior do aparato administrativo do Estado, uma disputa entre a Funai
e a Funasa em torno dos meios (materiais, humanos e financeiros) e da responsabilidade
pelos “serviços de saúde”, até que em 1999 foi instituído, de fato, dentro do Sistema
Único de Saúde (SUS) um “subsistema” destinado a atender às populações indígenas.
Estruturado em “distritos sanitários especiais indígenas”, hoje em número de 35, sem
autonomia de gestão e subordinados às extensões regionais da Funasa, o que tem
ocasionado críticas e avaliações negativas das principais organizações indígenas,
particularmente as representativas dos indígenas da Amazônia e das regiões Nordeste e
Centro-Oeste do país. Quanto ao efetivo protagonismo indígena na definição e no
controle social das políticas setoriais, ou da reformulação e integração destas, estamos
ainda muito longe de um patamar aceitável.
De parte do governo federal, a primeira tentativa de articular as políticas
setoriais no âmbito do governo federal aconteceu em 1999, com a implantação de uma
metodologia de planejamento plurianual – o chamado Plano Plurianual (PPA) baseada
na noção de “programa”. As ações, até então dispersas em diferentes ministérios sem
uma ligadura formal, foram agrupadas no PPA 2000/2003 em dois grandes programas
orientados por objetivos e metas específicas: o (i) Programa Etnodesenvolvimento das
Sociedades Indígenas e o (ii) Programa Território e Culturas Indígenas. Não obstante
as “boas intenções” que nortearam os planejadores governamentais, a iniciativa não foi
capaz de amenizar e ficou longe de superar na prática a situação de fragmentação e os
conflitos de interesses e de concepções no interior do campo indigenista governamental.
10

Com o Governo Lula, não só o termo “etnodesenvolvimento” foi mantido como


palavra eixo da política indigenista do governo federal, como passaram a ser esboçadas
ações pontuais que apontam no sentido da criação de uma política pública de promoção
do "desenvolvimento etno-sustentável dos povos indígenas". Em 16 de janeiro de 2004,
por intermédio da Lei no 10.837, a Presidência da República sancionou o orçamento
federal para 2004. Como no PPA 2000/2003, as ações do governo federal para os povos

10
Ver Barroso-Hoffmann et (2004).

12
indígenas no PPA 2004/2007 se concentram em dois programas: Identidade Étnica e
Patrimônio Cultural dos Povos Indígenas, com o ambicioso objetivo de “garantir o
pleno exercício dos direitos sociais dos índios e a preservação do patrimônio cultural
das sociedades indígenas”; e Proteção de Terras Indígenas, Gestão Territorial e
Etnodesenvolvimento, com o não menos ambicioso objetivo de “garantir e proteger a
integridade do patrimônio territorial e ambiental das sociedades indígenas”. Além destes
programas, que totalizam 41 ações, existe a ação de “Apoio a ações socioambientais em
Terras Indígenas na Bacia do Alto Paraguai” no programa Desenvolvimento Sustentável
do Pantanal, sob a responsabilidade do Ministério do Meio Ambiente, e a ação de
“Ampliação de ações de saneamento básico em aldeias indígenas” no programa
Saneamento Rural, sob a responsabilidade do Ministério da Saúde.
Comparativamente com o PPA 2000/2003, observa-se que, além da
reformulação dos nomes dos dois programas específicos, houve no PPA 2004/2007 uma
redistribuição de ações e a criação de outras. No programa Identidade Étnica estão
concentradas as ações de educação escolar, de promoção da saúde e segurança alimentar
indígena, de saneamento, de assistência técnica, de capacitação em atividades
produtivas, de defesa de direitos, de pesquisa e conservação de acervo documental, e de
assistência e capacitação em geral - incluso de pessoal técnico da FUNAI e FUNASA.
No programa Proteção de Terras Indígenas estão as ações relacionadas com o
reconhecimento e a garantia das terras indígenas, bem como aquelas destinadas a
"gestão sustentável” destes territórios e dos recursos naturais neles existentes.
Os conceitos de "segurança alimentar" e "etnodesenvolvimento" assumem a
partir de 2003 um lugar de destaque no discurso dos gestores e técnicos que passam a
assumir ou permanecem nos cargos dos órgãos governamentais federais que executam
as políticas setoriais destinadas aos povos e nacionalidades indígenas. Como instituição
que esteve à frente da organização e viabilizou financeiramente a realização de
dezessete oficinas regionais em 2002/2003 sobre o tema, o Ministério do
Desenvolvimento Agrário (MDA) assumiu para si o papel de instância articuladora dos
demais ministérios na discussão sobre possibilidades e condições de elaboração de uma
“política governamental de etnodesenvolvimento” orientada para promover a
“sustentabilidade alimentar” e “combate a pobreza” nos territórios indígenas. 11

11
Ver: Verdum (2005).

13
Na esteira do processo iniciado em 2002 com as oficinas de consulta regionais,
que provocou uma ampla discussão tanto dentro quanto fora do governo federal sobre a
necessidade e as condições para uma política de desenvolvimento que atendesse às
especificidades sócio-culturais dos povos e nacionalidades indígenas, vemos surgir em
2004 no Ministério do Meio Ambiente, a denominada Carteira de Projetos Fome Zero e
Desenvolvimento Sustentável em Comunidades Indígenas, com recursos iniciais de R$ 7
milhões repassados pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
(MDS), para fomento e apoio aos “projetos de segurança alimentar localmente
elaborados e gerenciados”.
Em junho de 2004 foi criado, no âmbito do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Rural Sustentável, órgão colegiado integrante da estrutura do
Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), que tem como objetivo propor
diretrizes para a formulação e a implementação de políticas públicas, um Comitê de
Promoção da Igualdade de Gênero, Raça e Etnia. A esse comitê foi atribuída a
incumbência de propor ações para uma “política pública” de etnodesenvolvimento dos
povos indígenas. No âmbito da Secretaria de Agricultura Familiar do MDA, o
Departamento de Assistência Técnica e Extensão Rural (DATER) lançou no primeiro
semestre de 2004 um edital destinado a apoiar "projetos de capacitação de agricultores
familiares e técnicos no contexto da promoção do desenvolvimento rural local
sustentável". O etnodesenvolvimento é entendido neste contexto como uma das vias de
promoção do "desenvolvimento", sendo definido como uma "política de
desenvolvimento que valoriza experiências históricas e culturais, recursos naturais,
respeitando valores e aspirações para potencializar a capacidade autônoma das
populações etnicamente diferenciadas". O etnodesenvolvimento aparece também como
um dos onze eixos temáticos, o eixo "etnodesenvolvimento em comunidades indígenas
e quilombolas", que tem como objetivo "estimular o desenvolvimento etnosustentável
das populações indígenas e quilombolas, por meio de atividades educativas que visem o
apoio à produção diversificada, seu beneficiamento e comercialização, gestão do
território, fortalecimento das formas de organização e conhecimentos tradicionais". Ou
seja, incluem-se retoricamente praticamente todos os itens do abecedário do
indigenismo etnodesenvolvimentista.

Além de acompanhar os projetos indígenas e indigenistas financiados pela SAF,


que no início de 2006 totalizavam R$ 2,044 milhões, o MDA lançou em fevereiro de

14
2006 um edital para projetos de capacitação, assistência técnica e extensão rural para
organizações indígenas e indigenistas. Embora tenha sido efetivada a inclusão dos
indígenas como beneficiários do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura
Familiar (Pronaf) - Decreto no 3.991, de 30 de outubro de 2001 - persiste o
entendimento de que seria mais adequada e viável a elaboração de um programa
específico para os povos indígenas, por meio do qual eles pudessem acessar as políticas
de capacitação, infra-estrutura e crédito sem terem que se submeter à rigidez do
PRONAF. Passados quatro anos desde quando se começou a falar na criação de um
Pronaf Indígena, isso ainda parece estar muito distante de ser efetivado.

Atualmente, está em análise pelos departamentos jurídicos dos Ministérios do


Desenvolvimento Agrário, do Desenvolvimento Social, da Agricultura, do Meio
Ambiente, da Saúde, da Educação e das Fundações Nacional do Índio (Funai) e
Nacional da Saúde (Funasa) um “acordo de cooperação técnica” que tem por objetivo
formal “estabelecer as bases político-institucionais de cooperação entre os participantes
para promover e apoiar ações de segurança alimentar e nutricional e de
desenvolvimento sustentável como foco em atividades produtivas”. A coordenação das
ações ficaria a cargo da Funai, juntamente com uma comissão formada por um
representante de cada um dos demais órgãos governamentais participantes e quatro
“representantes indígenas escolhidos pelas organizações indígenas de caráter regional e
nacional”.12
De natureza polêmica, especialmente porque se mantém no marco das políticas
“para os índios”, esta iniciativa tenta “preencher” uma das principais críticas e
reivindicações de setores do movimento étno-político indígena no Brasil, representados
por organizações de “segundo grau” localizadas principalmente na Amazônia e pelas
duas únicas organizações indígenas de “terceiro grau” hoje existentes, a COIAB e a
Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito
Santo (APOINME): a falta de articulação entre os órgãos governamentais hoje
responsáveis pelas políticas setoriais do indigenismo de Estado brasileiro. Uma crítica
compartilhada por uma boa parte das ONGs e indigenistas que assessoram comunidades
locais e organizações indígenas, que em alguma medida interagem com estas instâncias

12
A minuta de acordo de cooperação define que os “representantes indígenas” devem ser provenientes
um de cada reunião assim definidas: Amazônia Ocidental, Amazônia Oriental, Região Nordeste/Leste e
Região Centro-Sul.

15
governamentais e com as agências de cooperação internacional para o desenvolvimento
– bilaterais e multilaterais..

A sistematização das informações sobre o desempenho orçamentário do


Governo Federal com programas e ações no período de 2000/2005 (ver tabela 1), que
inclui os três últimos anos do segundo mandato do presidente Fernando Henrique
Cardoso e os três primeiros anos do Governo Lula, nos permitiu verificar também que
houve ao longo desses anos um relativo aumento no gasto da administração pública
estatal com os povos indígenas. Dissemos relativo porque ao lado do crescimento global
das despesas, houve, inversamente, uma diminuição nos recursos financeiros destinados
a áreas estratégicas para a sustentabilidade social e econômica desses povos, como é o
caso das despesas com regularização fundiária e proteção dos territórios indígenas.
Houve ai uma sensível diminuição nos investimentos e no ritmo dos trabalhos, o que
certamente deve estar relacionado com os compromissos do governo federal com os
chamados setores estratégicos para a geração de superávits primários - particularmente
do capital investido no agronegócio – de desacelerar e até paralisar a demarcação das
Terras Indígenas.

No período 2000/2005 o pico mais elevado de investimentos foi em 2001,


quando foram gastos R$ 67,138 milhões. Daí para frente caiu para R$ 53,323 milhões
em 2002, R$ 51,034 milhões em 2003, R$ 47,870 em 2004 e R$ 42,496 em 2005. No
orçamento de 2006 se constata que esta tendência se mantém, pois estão previsto R$
42,081 milhões para o mesmo conjunto de ações. Para tornar comparáveis os números
dos gastos anuais do Governo Federal, realizamos a sua correção multiplicando os
valores nominais anuais pelo respectivo valor do Índice de Preços ao Consumidor
(IPCA/IBGE), tomando por base o mês de fevereiro de 2006. Esta operação nos
permitiu verificar que, por exemplo, se do ponto de vista nominal houve um aumento no
gasto de 2002 para 2003 (passando de R$ 191,805 milhões para R$ 211,218), do ponto
de vista real houve, ao contrário, uma diminuição no gasto indigenista governamental,
isto é: em 2002 o gasto soma R$ 258,569 milhões e em 2003 soma R$ 248,214 milhões,
totalizando uma diminuição real de R$ 10,356 milhões. 13

O esforço de tornar comparável o que foi gasto ano a ano também nos permitiu
verificar que, entre 2000 e 2005, foram gastos nas setenta e três (73) ações indigenistas,

13
Índices de deflação utilizados: 1,562002691 (ano 2000); 1,461996857 (ano 2001); 1,348081735 (ano
2002); 1,175158156 (ano 2003); 1,102428882 (ano 2004); 1,031565131 (ano 2005).

16
distribuídas em seis (6) programas, cerca de R$ 1,556 bilhão. Desse montante, chama a
atenção o predomínio do gasto com ações de prevenção, controle e recuperação da
saúde indígena, de responsabilidade da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), que
totaliza R$ 1,036 bilhão. A seguir, apresentamos uma tabela com as despesas dos oito
ministérios que tiveram entre 2000/2006 ações discriminadas nos Planos Plurianuais
como específicas para indígenas. Considerando as constantes invasões indígenas das
sedes da FUNASA nos estados, das denúncias de uso político da máquina
administrativa e de desvio de recursos, de greves de funcionários, de problemas no
relacionamento envolvendo técnicos contratados e indígenas, e da persistência de
situações graves de saúde, como no caso dos Guarani e dos Xavante, e do agravamento
dos problemas de saúde entre os Yanomami, se faz urgente avaliar o que está gerando
tudo isso, apesar do aumento dos recursos financeiros alocados no orçamento para este
fim.

Tabela 1 – Ministérios e despesas com a política indigenista (valores deflacionados)

Ministério/Ano 2000 2001 2002 2003 2004 2005 Total

Ministério da Saúde 90.600.820 144.593.064 167.468.589 160.866.354 218.265.805 255.043.890 1.036.838.522

Ministério da Justiça 52.324.388 103.112.753 89.234.125 84.448.974 84.414.724 84.152.103 497.687.067

Ministério do Meio Ambiente 437.200 2.941.067 1.463.946 2.522.211 1.702.965 1.008.428 10.075.817

Ministério da Integração 562.321 258.773 - - - - 821.094

Ministério da Educação 624.345 431.393 351.314 377.373 2.103.666 2.932.469 6.820.560

Ministério do Desenvolvimento Agrário - - - - 1.631.594 1.502.794 3.134.388

Ministério da Agricultura e Abastecimento 206.184 326.240 51.378 - - - 583.802

Ministério dos Esportes - - - - - 825.252 825.252

Total 144.755.258 251.663.290 258.569.352 248.214.912 308.118.754 345.464.936 1.556.786.502

Ao longo desses anos, o aparato institucional e a atuação indigenista


governamental avançaram a paços largos para um sistema combinado de
“transversalização” da ação indigenista com acentuada “setorialização”. Além dos
Ministérios discriminados na tabela acima, identificamos dez outros ministérios que, ao
longo do período 2000/2005, foram incluindo os indígenas (individual e coletivamente)
como beneficiários potenciais de suas ações, são eles: Cultura (MinC), Cidades
(MCidades), Integração Nacional (MIN), Defesa (MD), Trabalho e Emprego (MTE),
Ciência & Tecnologia (MCT), Relações Exteriores (MRE), Minas e Energia (MME),
Previdência Social (MPS), Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), além

17
das Secretarias Especiais da Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), dos Direitos
Humanos (SEDH), de Aqüicultura e Pesca (SEAP) e de Políticas para as Mulheres
(SEPM). Ao contrario da esperada democratização e empoderamento indígena na gestão
das políticas e ações, vimos emergir um cenário caracterizado pela fragmentação e falta
de coordenação das ações, por freqüentes conflitos intersetoriais dentro do governo,
com vivíveis impactos negativos sobre os direitos indígenas, e pela ideologia da
participação com baixa efetividade na prática.

Nas ações relacionadas com a gestão ambiental e da biodiversidade nos


territórios indígenas foram gastos entre 2000/2005 cerca de R$ 14,908 milhões, sendo
R$ 6,557 pela FUNAI e R$ 8,350 pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA). Para
2006 foi autorizado um orçamento inicial de R$ 1,050 milhões para a FUNAI e R$
3,706 milhões para o MMA. Na FUNAI os recursos estão concentrados nas ações de
Conservação e recuperação da biodiversidade e de Estudos de Impacto Ambiental, com
abrangência nacional No MMA há uma grande concentração das despesas na Região
Amazônica, em detrimento das Terras Indígenas localizadas nas demais regiões do país,
que é onde estão a maior parte dos casos de degradação ambiental e demandas por
capacitação, assessoramento técnico e apoio para a recuperação ambiental – na região
de Mata Atlântica e Cerrados, por exemplo.

No ano de 2006 segue a tendência de aumento nos recursos financeiro para as


ações indigenistas do governo federal. Fechamos o ano de 2005 com uma despesa total
de R$ 345,464 milhões e iniciamos 2006 com um orçamento total autorizado de R$
378,876 milhões. As ações de atenção à saúde indígena iniciaram o ano com um
orçamento 11% maior que o total de despesas efetivadas em 2005. O mesmo acontece
com saneamento, a quem é destinada um orçamento 50% maior que o total liquidado
em 2005. A mesma “tendência de aumento” se verifica nas ações de educação escolar
indígena ao cargo do Ministério da Educação, cerca de 90%, e nas ações de gestão
ambiental no Ministério do Meio Ambiente (367%). Como denunciamos acima, essa
situação não se repete no caso das ações de proteção das terras indígenas, que vem
decrescendo nos últimos sete anos.

18
O etnodesenvolvimento como estratégia de “segurança alimentar”

A III Conferência Nacional de Saúde para os Povos Indígenas, realizada na


cidade de Luziânia/GO, de 14 a 18 de maio de 2001, concluiu que frente ao incremento
demográfico dos povos indígenas e das transformações decorrentes de um contínuo
processo de redução territorial e degradação ambiental, um dos principais desafios a
serem enfrentados de imediato pelo Governo Brasileiro, em parceria com as
organizações indígenas e indigenistas, seria a formulação e a execução de uma política
que garantisse a segurança alimentar indígena e a implementação de uma política
específica de “desenvolvimento sustentável” e recuperação do meio ambiente nos
territórios indígenas.
Para que tal objetivo fosse alcançado, os participantes da Conferência indicaram
que o órgão gestor da saúde indígena, o Ministério da Saúde, estabelecesse mecanismos
institucionais de articulação com outros órgãos do governo federal, em especial os
Ministérios da Agricultura, do Desenvolvimento Agrário, do Meio Ambiente, entre
outros, e com a Funai. Esta orientação partia da percepção de que os problemas de
saúde entre os povos indígenas – e em especial as doenças sexualmente transmissíveis,
AIDS e alcoolismo – estão relacionados com um conjunto de fatores que estão para
além das atribuições do “setor saúde”. Contribuem para a má qualidade de saúde dos
indígenas fatores tais como: as dificuldades de demarcação, regularização, desintrusão e
vigilância dos territórios indígenas; a degradação ambiental promovida no interior e no
entorno destes territórios; a disponibilidade de alimentos; o tipo de relacionamento
estabelecido com a sociedade envolvente; a localização geográfica, as formas de
produção e auto-sustentação indígena; o acesso aos serviços de saúde e educação
escolar, entre outros fatores.
As experiências dos últimos anos, no Brasil e em outras regiões da América
Latina, revelam que a demarcação das terras indígenas representa apenas o primeiro,
embora decisivo, passo para a auto-sustentação e o desenvolvimento dos povos
indígenas. A demarcação física e sua regularização não implicam automaticamente na
segurança dos territórios indígenas. Conforme pode ser verificado no estudo coordenado
pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) em 1994/1995 sobre a segurança
alimentar nas terras indígenas, de um total de 198 terras com problemas de sustentação
alimentar e fome, 102 estavam regularizadas, 15 estavam homologadas, 30 estavam
delimitadas e 25 estavam identificadas. De um total de 311 mil pessoas, cerca de 106

19
mil estavam em situação de carência alimentar e insegurança alimentar. No contexto
atual de expansão da economia de mercado, a situação pós-demarcatória se torna ainda
mais crítica. Sem a criação de condições que garantam a sustentabilidade das
demarcações e a auto-sustentação - inclusive alimentar – das comunidades indígenas em
seus territórios, seus resultados são rapidamente postos em questão. 14
A partir de 2001, a temática “segurança alimentar e nutricional” passa a ter uma
agenda de trabalho específica nas reuniões da CISI – Comissão Intersetorial de Saúde
do Índio, órgão assessor do Conselho Nacional de Saúde (Ministério da Saúde). Na
reunião dos membros da CISI em 5 de julho de 2002, por exemplo, é solicitado da
Coordenação Geral da Política de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde
(CGPAN) que elabore, juntamente com Departamento de saúde do Índio (DESAI) da
Funasa, uma proposta de adaptação do Programa Bolsa-Alimentação para os povos
indígenas.15 Posteriormente, em 23 e 24 de setembro, chegou-se a conclusão de que era
necessário realizar uma reunião específica com as principais organizações indígenas,
onde as instituições governamentais apresentassem suas disponibilidades de recursos
técnicos, financeiros e logísticos e disposição para apoiá-las na elaboração de uma
proposta de política de auto-sustentação e desenvolvimento indígena.
Esta reunião ocorreu em 29 de outubro, no Ministério da Saúde, quando foi
definido pelos participantes a realização de um seminário, de caráter nacional, intitulado
“Proposta de Política Pública de Auto-Sustentação Alimentar e Etnodesenvolvimento
dos Povos Indígenas”. O seminário foi realizado nos dias 7 e 8 de novembro, em
Brasília, quando foi aprovada a proposta de realização de oficinas regionais de consulta
e levantamento de subsídios para essa “proposta de política”. A responsabilidade
executiva pela organização e realização das oficinas ficou a cargo de um grupo formado
por técnicos dos ministérios envolvidos e representação indígena, cabendo a Secretaria
da Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário (SAF/MDA) o
papel de articulação e financiamento. 16

14
Ver Verdum 1995.
15
Criado por intermédio da Portaria MS No 2.405 de 27 de dezembro de 2002 – publicado no D.O.U. em
30/12/2002.
16
A comissão foi formada inicialmente por representantes da Coordenação das Organizações Indígenas da
Amazônia Brasileira – COIAB, da Pastoral da Criança e técnicos dos seguintes órgãos públicos:
Ministério do Desenvolvimento Agrário, Secretaria de Agricultura Familiar – MDA/SAF; da Fundação
Nacional do Índio - FUNAI/MJ; do Departamento de Saúde Indígena – DESAI/FUNASA; da
Coordenação Geral de Política de Alimentação e Nutrição, do Ministério da Saúde – CGPAN/MS; da
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – EMBRAPA; do Subprograma Projetos Demonstrativos
(PDA) do Ministério do Meio Ambiente; e da Coordenação Geral de Apoio às Escolas Indígenas do
Ministério de Educação – CGAEI/MEC.

20
A primeira oficina foi realizada na cidade de Palmas (TO), entre os dias 3 e 6 de
dezembro de 2002. Situado no marco das discussões mais gerais sobre a necessidade de
políticas de combate à fome e à pobreza rural, essa consulta teve continuidade ao longo
do ano de 2003, totalizando dezessete oficinas regionais entre dezembro de 2002 e
outubro de 2003. Ao total foram mobilizadas cerca de 680 lideranças indígenas,
pertencentes a 175 povos e nacionalidades indígenas de praticamente todas as regiões
do Brasil. Além de promover uma discussão sobre o entendimento local de conceitos
como "desenvolvimento sustentável", "etnodesenvolvimento" e "segurança alimentar",
as oficinas possibilitaram, entre outras coisas, serem identificados e discutidos alguns
dos principais problemas e desafios vivenciados e percebidos pelas comunidades
indígenas, bem como as propostas das comunidades e organizações indígenas
relacionadas com, por exemplo: o reconhecimento e a garantia dos seus territórios; a
proteção, recuperação e uso sustentável dos recursos naturais; as atividades produtivas
(auto-sustentação e renda); o papel da assessoria técnica no fortalecimentos das
capacitação locais; a situação alimentar e nutricional nas terras indígenas e alternativas;
a situação da saúde indígena e dos serviços de atenção à saúde indígena; a política de
educação escolar indígena e sua implementação nos diferentes níveis de formação; a
necessidade de maior participação e controle social indígena sobre as políticas públicas
que os afetam; entre outros.
A proposta de realização das consultas regionais e o grupo interinstitucional
responsável pela sua execução entram o ano de 2003 como sendo a única iniciativa
articulada em nível federal focada no desenvolvimento de uma proposta de política
pública de segurança alimentar associada com o fortalecimento da auto-sustentação e o
etnodesenvolvimento indígena. Foi a partir desta iniciativa, ou em diálogo com ela, que
vão ser pensadas e elaboradas ações específicas no Ministério de Desenvolvimento
Social (MDS), no Ministério do Meio Ambiente (MMA), no Ministério do
Desenvolvimento Agrário (MDA) e em outros ministérios e órgão vinculados.
Ao lado desta mobilização, que envolveu principalmente atores governamentais
que buscam fomentar um debate alternativo no meio indígena e indigenista, bem como
influir no processo de definição da política indigenista do governo federal eleito em
2002, o Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED),
vinculado ao Departamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ, que congrega
um conjunto de pesquisadores que acompanham e assessoram os movimentos indígenas
organizados, particularmente na Amazônia e na Região Nordeste, também se constituiu

21
num pólo importante de fomento ao debate sobre “etnodesenvolvimento” no meio
indígena, indigenista e acadêmico brasileiro. Além de dois seminários voltados para a
definição do que foi chamado de "bases para uma nova política indigenista" (1999 e
2002), que contaram com a participação dos principais atores governamentais e não-
governamentais no campo do indigenismo brasileiro, o LACED promoveu entre 2002 e
2004 dois cursos de "gestão em etnodesenvolvimento" - em nível de especialização
universitária. Realizados em parceria com as Universidades Federais do Amazonas
(UFAM) e de Roraima (UFRR), os cursos tiveram por objetivo capacitar profissionais
com nível superior que trabalhavam ou tinham interesse por trabalhar na promoção do
“etnodesenvolvimento” dos povos indígenas e outras populações tradicionais no Brasil.
17

Da participação limitada na intersetorialidade burocrática

O estabelecimento de uma política indigenista intersetorial é um desafio que


persiste ainda em 2006, não obstante as inúmeras tentativas ensaiadas pelos últimos três
governos federais. Em maio de 1994, por intermédio do decreto no 1.141, e em abril de
2001, com o decreto no 3.799, foram criadas “comissões intersetoriais” sem a
participação de representação indígena, que incluíam “entidades com notório
conhecimento sobre a realidade indígena”, além de representantes de órgão
governamentais.
No governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva, entre dezembro de 2003 e
abril de 2004, foram criados dois grupo de trabalho (GTs) sobre política indigenista:
um no âmbito da Secretaria Geral da Presidência, que inclui representantes indígena e
governamentais, mas que não chegou a efetivamente funcionar; e outro sob a
coordenação do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República
(Portaria 15 CH/GSI, de 11 de maio de 2004), com a finalidade de elaborar uma nova
política indigenista e apresentada-la na Câmara de Relações Exteriores e Defesa
Nacional. A semelhança das comissões criadas em governos anteriores, esse último GT
não contemplou a participação de representantes de organizações e movimentos sociais
indígenas, além de ter transformando as demandas indígenas por direitos e cidadania no
contexto do Estado nacional brasileiro numa questão de segurança nacional.

17
Ver Barroso-Hoffmann e Souza Lima 2002.

22
O mal estar gerado só foi amenizado em novembro de 2004, quando foi
publicada a Portaria Interministerial No. 893, instituindo um Grupo de Trabalho
Interministerial de Política Indigenista (GTI) para "definir, ouvidas as entidades
representativas dos Povos Indígenas, as ações prioritárias para execução da política
governamental na área e monitorar sua implementação". Segundo o texto da Portaria, o
GTI tinha como objetivo geral "promover a articulação das políticas governamentais
destinadas às populações indígenas brasileiras" e "incorporar a participação destas
populações na execução das políticas públicas a elas dirigidas”. Até 22 de agosto de
2005 o GTI, coordenado pela presidência da Fundação Nacional do Índio (Funai),
realizou apenas duas reuniões de trabalho, a primeira centrada em questões relativas a
realização de um diagnóstico das “políticas públicas” e na formulação de diretrizes para
uma "nova política indigenista" e a segunda para debater a forma atual e as mudanças
necessária no gerenciamento e na articulação das ações dos ministérios e órgãos.
Na reunião do dia 22 de agosto, a terceira, depois de mais de um mês de pressão
sobre os representantes governamentais, com a entrega oficial da proposta de criação do
Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), pressão exercida pelas organizações
indígenas (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira,
Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo, Federação
das organizações do Alto Rio Negro e Conselho Indígena de Roraima) e entidades não-
indígenas (Instituto Socioambiental, Instituto de Estudos Socioeconômicos, Conselho
Indigenista Missionário, Centro de Trabalho Indigenista, Comissão Pró-Yanomamia e
Associação Brasileira de Antropologia) que integram o Fórum de Defesa dos Direitos
Indígenas (FDDI), dezesseis representantes de organizações indígenas, mais as
entidades indigenistas que integram o FDDI, foram convidadas a expor a avaliação que
fazem da política indigenista e a proposta de criação do CNPI, como órgão máximo de
deliberação sobre a política indigenista e suas diretrizes, sendo 50% dos membros
indígenas indicados pelas organizações indígenas. Na ocasião foram apresentados aos
convidados os resultados preliminares dos dois subgrupos formados, além de ter sido
debatida a proposta de criação do Conselho Nacional de Política Indigenista,
apresentada pelo FDDI e lideranças indígenas. Em 22 de março de 2006, o Presidente
da República assinou decreto criando uma Comissão Nacional de Política Indigenista,
infelizmente até hoje não instalada.
Em relação ao “etnodesenvolvimento”, o relatório final do GTI indica ser essa a
estratégia adequada para “garantir uma atuação articulada dos órgãos” e uma maior

23
eficiência na formulação e execução do Programa de Etnodesenvolvimento para os
Povos Indígenas, a ser incluído no próximo Plano Plurianual (PPA 2008/2011) do
governo federal.

Considerações finais

Não obstante terem se passado quase duas décadas desde quando foi promulgada
a atual Constituição (1988), que reconheceu uma série de direitos aos povos indígenas,
consta-se na atualidade que noções que pareciam estar enterradas num passado
longínquo ainda estão ativas e estão, subliminarmente, orientando o discurso e a prática
da administração indigenista oficial. Uma demonstração desta sobrevida do indigenismo
integracionista é, por exemplo, o Decreto No. 4.645, de 25 de março de 2003, que
aprova o estatuto da Fundação Nacional do Índio, onde é explicitado que a finalidade
deste órgão é garantir a “aculturação espontânea”, a “evolução sócio-econômica” e a
“progressiva integração” dos indígenas na sociedade nacional.

O risco de continuísmos com o projeto integracionista desenhado e


implementado a partir da primeira metade do século passado é forte. Mais ainda quando
constatamos que noções operacionais do tipo inclusão produtiva e proteção social
básica - como contraponto a outra noção não menos problemática quando aplicada para
interpretar a condição dos povos indígenas no Brasil: a noção de pobreza - vêm
informando e formatando políticas e ações em diferentes “setores” do indigenismo
oficial.

Com isso não queremos dizer que não existam problemas graves e de grande
complexidade no campo da saúde e da sustentabilidade e soberania alimentar, como é o
caso dos Guarani nos estados do Mato Grosso do Sul e noroeste do Paraná, ou entre os
Xavante no Mato Grosso ou entre vários grupos locais e povos indígenas na Região
Nordeste. O fato é que a polissêmica noção de pobreza carrega o potencial de distorcer
a realidade das causas e induzir a ações social e politicamente questionáveis.

Conforme constatamos por ocasião do levantamento que gerou o Mapa da


Fome entre os Povos Indígenas (1994/1995), havia então vários povos indígenas
num processo acelerado de empobrecimento, chegando alguns ao extremo da
mendicância por falta de alternativas de sobrevivência. Na base desse processo
estava o fato de lhes ser negado ou destituído o direito e a garantia de
exclusividade sobre seus territórios tradicionais e os recursos naturais ali

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disponíveis - base material imprescindível para a sua reprodução social e
econômica. Além disto, a maioria destes povos encontra-se encurralado em
territórios de reduzida extensão e impossibilitados de migrarem para outras
regiões, pois as terras já estavam ocupadas por fazendeiros, posseiros, projetos
agrícolas, etc. Havia também a depredação e o manejo predatórios dos recursos
naturais e alimentares (inclusive a água) promovido por não índios no interior e
entorno das terras indígenas; a intolerância para com suas manifestações culturais
(conceitos, valores e práticas sociais) e a imposição de uma auto-imagem negativa
e dependente; a exclusão ao acesso a recursos como a assistência médica e projetos
educacionais específicos; e finalmente, a contingência de, para sobreviverem,
terem que se sujeitar a relações de trabalho degradantes e que beiram a condição de
escravidão

A análise do orçamento federal dos últimos cinco anos deixa a vista o caráter
compensatório e assistencial que a política indigenista governamental vem adquirindo,
com todos os riscos que isso implica, em detrimento dos direitos territoriais originários
e da autonomia indígena na definição do seu projeto de futuro. Infelizmente ainda
convivemos e digladiamos com um regime tutelar e corporativista que periodicamente
renova seus meios de exercer o velho colonialismo interno em relação aos indígenas.

A crise política e administrativa por que passa órgãos como Funai e Funasa, e a
rotatividade de pessoas nesses e noutros órgãos do indigenismo oficial nos últimos anos,
é apenas a ponta de uma crise mais profunda, que não será resolvida com políticas
indigenistas parciais e ações paliativas. É necessária uma transformação integral e
profunda do Estado e sociedade nacional; é necessária uma mudança de prioridades e no
destino dos investimentos e gastos governamentais. Do contrário, grupos étnicos
minoritários como os povos indígenas vão continuar a reboque de políticas econômicas
“mais rentáveis” ao Estado e ao Capital, sendo constrangidos por agentes públicos e
privados interessados na “ocupação produtiva” dos seus territórios e sendo cada vez
mais dependentes de ações de assistência social de urgência.

A criação de um núcleo de monitoramento e avaliação indígena em Brasília


poderia ser o primeiro passo nesse sentido. A isso associaríamos a necessidade deste
núcleo estar articulado com as organizações indígenas regionais e locais, de forma a
estabelecer um fluxo de informações em rede sobre repasses e aplicação dos recursos
financeiros. Além de fortalecer os laços institucionais internos do movimento,

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iniciativas desta natureza pressionariam o governo federal no sentido da promoção de
maior visibilidade e transparência das políticas públicas, além de uma maior capacidade
indígena de intervir de maneira organizada e propositiva nelas. A criação da Articulação
dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) em novembro de 2005 acende uma luz de
esperança em relação à possibilidade disso acontecer. A APIB, juntamente com o
Fórum de Defesa dos Direitos Indígenas (FDDI), tem adquirido um papel de destaque
na organização do denominado “Abril Indígena”, reunião indígena realizada em plena
Esplanada dos Ministérios em Brasília, que na sua terceira edição (2006) reuniu na sua
última edição cerca de um mil indígenas de diferentes povos e regiões do país. Também
no monitoramento da política indigenista governamental e na interlocução com os três
poderes da República. Com a possível instalação da Comissão Nacional de Política
Indigenista (CNPI) ainda em 2006, vai se fazer necessário uma maior capacidade de
formulação e proposição do movimento indígena e seus aliados.

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