Sunteți pe pagina 1din 77

Responsabilidade fiscal ou social?

Há recursos: Tesouro Nacional poderia financiar os R$ 600 —


e para além de dezembro. Mas, na contramão mundial, elite
brasileira defende com ardor Teto de Gastos, enquanto
desemprego explode, população agoniza e país beira o colapso
OUTRASPALAVRAS
CRISE BRASILEIRA
por Paulo Kliass
Publicado 06/10/2020 às 17:27 - Atualizado 06/10/2020 às 17:29

O debate sério e comprometido a respeito de alternativas de política


macroeconômica para superar a atual crise social e econômica continua sendo
interditado em amplos espaços de formação de opinião. A julgar pelas reiteradas
manifestações do superministro da Economia e pelas avaliações dos chamados
“especialistas” nas páginas e telas dos grandes meios de comunicação, não
restaria alternativa que não seja a continuidade da aplicação das receitas do
ajuste fiscal da perversidade.

Ao que tudo indica, para esse pessoal afinado com os interesses do financismo,
ainda não foram suficientes os impressionantes estragos provocados pela
obediência cega e burra aos ditames da assim chamada “responsabilidade
fiscal”. Desde a aprovação da EC 95 em dezembro de 2016, nosso País passou a
sofrer as consequências de ter sido incluída no texto constitucional a proibição
de aumento das despesas não financeiras pelo longo período de 20 anos. O
congelamento das despesas orçamentárias em todas as rubricas – com a nada
honrosa exceção do pagamento de despesas dos juros da dívida pública –
provocou um engessamento na condução da política fiscal desde então e se
apresenta como uma bomba de efeito retardado.

Os gastos com saúde, previdência social, educação, assistência social e outros


tendem a crescer de forma autônoma. Tal fenômeno é perfeitamente
compreensível e previsível, uma vez que a população envelhece, se aposenta e
passa a recorrer mais aos serviços de saúde. Por outro lado, a própria ampliação
da universalização de tais serviços passa a incluir grupos antes marginalizados.
A chegada da pandemia em 2020 joga essas contas ainda mais para cima, em
razão da elevação imediata dos gastos com saúde e com as necessárias medidas
de atenuação do desastre social provocado pela crise da covid-19.

Contra a crise, governo deve gastar mais


Ora, face a tais circunstâncias, seria mais do que razoável imaginarmos a
aceitação pelo próprio establishment de medidas de flexibilização do teto de
gastos. Esse foi, aliás, o caminho adotado pelos governos dos Estados Unidos,
da União Europeia e outras nações do dito mundo desenvolvido. Em momentos
de recessão, a política econômica deve ser orientada pelas medidas que o
economês qualifica como “anticíclicas”. Isso significa que, ao contrário do que
pode sugerir a análise mais simplista do senso comum, nos momentos
recessivos e de dificuldade fiscal, o governo deve promover ainda mais a
elevação de determinados tipos de despesas públicas. Ou seja, deve realizar
gastos para reduzir os efeitos da recessão e estimular a retomada da atividade
econômica logo mais à frente.

Mas por aqui o debate segue o mesmismo da austeridade. Parte da elite


econômica vinculada aos sistema financeiro permanece com sua estratégia de
chantagem criminosa contra qualquer tentativa de mudança nas regras que eles
mesmos impuseram ao país. Alardeiam a inevitabilidade da quebradeira
generalizada do Brasil caso o teto de gastos seja revisto. Com isso impedem que
medidas urgentes, como a continuidade do Auxílio Emergencial de R$ 600,
passem a receber a atenção das autoridades e mesmo do Congresso Nacional.

Com tal atitude, agarram-se como podem ao conceito estrito e reduzido da


“responsabilidade fiscal”. E aí clamam de forma ameaçadora pelo respeito
absoluto às regras do “Novo Regime Fiscal”, tal como introduzido no texto
constitucional pela EC 95. É verdade que a forma draconiana ali presente
impede o governo de promover aumentos necessários, uma vez que tal atitude
do Chefe do Executivo pode até ser enquadrada como crime de
responsabilidade. Portanto, passível de impeachment. A solução passa pela
revogação da referida emenda, em um movimento que certamente contaria com
amplo apoio no interior do parlamento.

Contra o desemprego: revogar o teto de gastos

Mas os defensores do status quo não estão nem um pouco preocupados com o


que deveria ser a sua verdadeira responsabilidade perante o conjunto da
sociedade. Não faz sentido fechar os olhos à realidade dramática da crise social e
econômica, focando apenas em atender aos interesses dos grandes
conglomerados financeiros, do grande capital e das elites do topo de nossa
pirâmide da desigualdade tupiniquim. Quais são as respostas que esse seleto
grupo da nata dos privilegiados apresenta para a questão do desemprego?

Como se pode perceber pelo gráfico da Taxa de Desocupação do IBGE, aqui


abaixo, o início da alta mais acentuada do desemprego ocorre justamente
quando o governo Temer, em 2016, promove a primeira fase da chamada
Reforma Trabalhista. Na verdade, um nome enganador para um conjunto de
medidas autorizando a redução de salários e a eliminação de direitos dos
trabalhadores. A existência de mais de 13 milhões de assalariados sem
condições de encontrar um posto de trabalho e sem renda assegurada para sua
sobrevivência não importa para os economistas de planilha e para os
tecnocratas de plantão. O fundamental é seguir à risca as regras da
responsabilidade fiscal e jamais titubear no controle e no corte de gastos.

A intenção alegada para promover as alterações na Consolidação das Leis do


Trabalho (CLT) em 2016 – e agora também sob Bolsonaro – era a geração de
mais empregos, objetivo que seria atingido com as reduções de direitos. Pois o
gráfico mostra que a realidade caminhou no sentido oposto. Os retrocessos
foram implementados e o desemprego só fez aumentar.

A realidade do mercado de trabalho em seu conjunto também piorou no mesmo


período analisado – 2012 a 2020. O gráfico abaixo nos permite verificar a
evolução da Taxa de Subutilização da Força de Trabalho, também coletada pelo
IBGE. Com a elevação da precariedade e da intermitência, os aspectos negativos
da informalidade do mercado de trabalho foram internalizados na nova relação
de “normalidade”. Com isso, além do desemprego, a subutilização passa por um
crescimento vertiginoso, chegando em 2020 a quase 30%, o dobro do que
apresentava em 2014.

Brasil – Taxa de Subutilização da Força de Trabalho – 2012-2020

Ora, frente a tal quadro de deterioração das condições de vida da maioria da


população, nada mais razoável do que aguardar um gesto de flexibilização oficial
desse apego irracional ao rigor da austeridade fiscal a qualquer preço. O debate
atual a respeito dos destinos do Auxílio Emergencial e da fonte de
financiamento do Renda Brasil é um retrato bastante simbólico de tal
abordagem do dogma conservador do financismo. O argumento recorrente é de
que o governo “não tem recursos” e que não cabe nenhuma estratégia que
implique em furar o teto de gastos.

Responsabilidade social é prioridade

Os recursos para a continuidade do Auxílio Emergencial existem e estão à


disposição do Tesouro Nacional em sua Conta Única junto ao Banco Central.
Basta a vontade política de promover programas de renda que atenuem as
condições de vida da grande maioria da população, tal como ocorreu com o
pagamento de R$ 600 mensais durante o período de abril a agosto recente. Mas
a área econômica do governo acenou com o risco fiscal, convencendo Bolsonaro
a reduzir o valor para metade e com vigência apenas até dezembro próximo.

A proposta foi envelopada na Medida Provisória nº 1.000, que permanece fora


de pauta de votação organizada pelo Presidente da Câmara dos Deputados,
Rodrigo Maia. O movimento sindical e amplos setores do campo democrático e
progressista já se posicionaram a favor do retorno ao valor anterior de R$ 600 e
que a validade do benefício seja estendido até o fim da pandemia.

Às vésperas das eleições municipais pelo Brasil afora, seria um bom momento
para os nossos parlamentares mostrarem que a responsabilidade social deve ter
prioridade sobre a obediência cega à regra da austeridade fiscal

Plano de ação para a Internacional


Progressista
Yanis Varoufakis provoca: crise abre espaço para projeto pós-
capitalista. Mas esquerda precisa assumir o combate ao
sistema, que os fascistas fingem fazer. Há um leque de
alternativas para tanto, desde que se retome a imaginação
política
OUTRASPALAVRAS
PÓS-CAPITALISMO
por Yanis Varoufakis
Publicado 09/10/2020 às 20:21 - Atualizado 09/10/2020 às 20:51

Por Yanis Varoufakis, em seu blog | Tradução de Simone Paz

Nossa era será lembrada pela marcha triunfante do autoritarismo e seu rastro,
em que a vasta maioria da humanidade passou por dificuldades desnecessárias e
os ecossistemas do planeta sofreram uma destruição climática que podia ter
sido evitada. Por um breve período — que o historiador britânico Eric
Hobsbawm descreveu como “o curto século 20” — as forças do establishment se
uniram para lidar com os desafios à sua autoridade. Foi uma fase rara, em que
as elites tiveram que enfrentar um leque de movimentos progressistas, todos
buscando mudar o mundo: social-democratas, comunistas, experimentos de
autogestão, movimentos de libertação nacional na África e na Ásia, os primeiros
ecologistas, radicais, etc.

Cresci na Grécia de meados da década de 1960, governada por uma ditadura de


direita estimulada pelos Estados Unidos, sob o comando de Lyndon Johnson
(cujo governo foi um dos mais progressistas internamente, mas que não hesitou
em apoiar fascistas na Grécia ou em bombardear o Vietnam). O medo e a
aversão ao populismo de direita que encontramos hoje estampado nas páginas
do New York Times, simplesmente não existiam naquela época.

As coisas mudaram depois de 2008, o ano em que o sistema financeiro


ocidental implodiu. Após 25 anos de financeirização sob o manto ideológico do
neoliberalismo (entenda mais no artigo de Ann Pettifor sobre o sistema
financeiro global), o capitalismo global teve um espasmo semelhante ao de
1929, que quase o deixou de joelhos. A reação imediata dos governos a esta
crise, para apoiar as instituições financeiras e os mercados, foi ligar as
impressoras dos bancos centrais e transferir as perdas bancárias para as classes
trabalhadoras e médias, por meio dos chamados “resgates”.

Essa combinação de um socialismo para poucos e uma rígida austeridade para


as massas, desencadeou duas coisas. Em primeiro lugar, deprimiu o
investimento real global, pois as empresas sabiam que as massas tinham pouco
para gastar em novos bens e serviços. Isso gerou descontentamento entre
muitos, enquanto poucos recebiam grandes doses de “liquidez”.

Em segundo lugar, eclodiram inicialmente levantes progressistas —


dos Indignados na Espanha e os Aganaktismeni na Grécia, ao Occupy Wall
Street e a várias forças de esquerda na América Latina. Esses movimentos, no
entanto, tiveram vida relativamente curta e foram tratados de modo eficiente
pelo establishment, tanto de forma direta, com o esmagamento da primavera
grega em 2015, por exemplo; como indireta, como no enfraquecimento de
governos esquerdistas latino-americanos quando caiu a demanda chinesa por
suas exportações.

À medida em que as causas progressistas foram sendo eliminadas uma a uma, o


descontentamento das massas teve que encontrar uma expressão política.
Imitando a ascensão de Mussolini na Itália, que prometeu cuidar dos mais
fracos e fazer com que eles se sentissem orgulhosos de serem italianos
novamente, testemunhamos a ascensão do que podemos chamar de
Internacional Nacionalista, mais claramente expressa nos argumentos de direita
alimentando a saída da Grã-Bretanha da União Europeia e nas vitórias eleitorais
de nacionalistas de direita: Donald Trump nos Estados Unidos; Jair Bolsonaro
no Brasil; Narendra Modi na Índia; Marine Le Pen na França; Matteo Salvini na
Itália e Viktor Orban na Hungria.

E assim, pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, o grande confronto
político deixou de ser entre o establishment e os diversos progressismos, para se
tornar um conflito entre diferentes partes do establishment. Uma parte aparece
como os baluartes da democracia liberal; a outra, como os representantes do
movimento anti-liberal.

Evidentemente, esse choque entre o establishment liberal e a Internacional


Nacionalista é totalmente ilusório. Na França, o centrista Macron precisou da
ameaça do nacionalismo de extrema-direita de Le Pen, sem o qual ele nunca
seria presidente. E Le Pen precisou de Macron e das políticas de austeridade
do establishment liberal, que geraram o descontentamento que alimentou suas
campanhas. Da mesma forma nos Estados Unidos, onde as políticas dos Clinton
e dos Obama, que resgataram Wall Street, alimentaram o descontentamento
que criou Donald Trump — cuja ascensão reforça, em um círculo sem fim, as
defesas de Clinton e Biden contra alguém como Bernie Sanders. Foi um
mecanismo de reforço entre o establishment e os chamados populistas,
replicado em todo o mundo.

No entanto, o fato do establishment liberal e a Internacional Nacionalista serem


co-dependentes, não significa que o choque cultural e pessoal entre eles não seja
autêntico. A autenticidade de seu confronto, apesar da falta de qualquer
diferença política real entre eles, tornou quase impossível para os progressistas
serem ouvidos, devido à cacofonia causada pelas muitas variantes conflitantes
do autoritarismo.

É exatamente por isso que precisamos de uma Internacional Progressista — um


movimento internacional de progressistas para conter a falsa oposição entre
duas variedades do autoritarismo globalizado (o establishment liberal e a
Internacional Nacionalista) que nos prendem em uma típica agenda de negócios
que destrói as perspectivas de vida e desperdiça as oportunidades de frear a
catástrofe climática.

A questão, então, é: o que uma Internacional Progressista faria? Com que


propósito? E por quais meios?

Se a nossa Internacional Progressista simplesmente criar espaço para a


discussão aberta nas praças das cidades (como fez o Occupy Wall Street há uma
década) ou apenas buscar emular esforços como o Fórum Social Mundial, ela
acabará novamente fracassando. Para ter sucesso, precisaremos de um plano de
ação comum e de uma estratégia de campanha incomum, que incentivem os
progressistas ao redor do mundo a implementar esse plano. Por último, mas
não menos importante, precisaremos da vontade compartilhada para visualizar
uma realidade pós-capitalista.

Permitam-me destrinchar esses três pré-requisitos, um a um:

Pré-requisito 1: Um plano de ação progressista comum

Os fascistas e os banqueiros têm um programa comum. Se você conversar com


um banqueiro no Chile ou na Suíça, com um apoiador de Trump nos Estados
Unidos ou com um eleitor de Le Pen na França, você ouvirá a mesma narrativa.
Os banqueiros dirão que a regulamentação e os controles de capital são
prejudiciais ao progresso; que a engenharia financeira aumenta a eficiência com
que o capital flui para a economia; que o setor privado é sempre melhor na
prestação de serviços do que o setor público; que salários mínimos e sindicatos
impedem o crescimento ou que as mudanças climáticas só podem ser
enfrentadas pelo setor privado.

Por sua vez, a narrativa Internacional Nacionalista é a seguinte: cercas elétricas


nas fronteiras são essenciais para preservar a soberania nacional; os imigrantes
ameaçam os empregos locais e a coesão social; os muçulmanos, em particular,
não podem ser integrados e precisam ser mantidos pra fora; os estrangeiros
conspiram com as elites liberais locais para enfraquecer a nação; as mulheres
devem ser incentivadas a criar seus filhos em casa; os direitos LGBTQI+ vêm em
detrimento da moralidade básica e, por último, mas não menos importante:
“Dê-nos o poder de agir de forma autoritária, que nós faremos com que o país
volte a ser grandioso e você orgulhoso”.

Os progressistas também precisam de narrativas compartilhadas. Felizmente,


sabemos o que deve ser feito: a geração de energia deve transitar maciçamente
de combustíveis fósseis para fontes renováveis, principalmente eólica e solar; o
transporte terrestre deve ser eletrificado, enquanto o transporte aéreo e o
transporte marítimo devem recorrer a novos combustíveis com zero emissão de
carbono (como o hidrogênio); a produção de carne deve diminuir
substancialmente, com maior ênfase nas culturas orgânicas; e limites estritos ao
crescimento físico desde toxinas até cimento são essenciais.

Também sabemos que tudo isso custará pelo menos 10% da receita global, ou
quase 10 trilhões de dólares, anualmente – uma soma que pode ser facilmente
mobilizada, desde que estejamos prontos para criar instituições para coordenar
as várias ações e redistribuir as receitas entre o Norte e o Sul globais. Para
conseguir isso, precisamos invocar o espírito do New Deal original de Franklin
Roosevelt — uma política que teve sucesso porque inspirou pessoas que haviam
perdido a esperança de que existissem maneiras de direcionar os recursos
ociosos ao serviço público.

Nosso Green New Deal Internacional terá de utilizar instrumentos de crédito


transnacionais e impostos sobre carbono — de modo que o dinheiro arrecadado
com a taxação do petróleo possa ser devolvido aos cidadãos mais pobres que
dependem de carros a gasolina, a fim de fortalecê-los de modo geral,
permitindo, também, que possam comprar carros elétricos. Para aplicar esses
recursos em investimentos ecológicos, é necessária uma nova Organização para
a Cooperação Ambiental de Emergência, com o fim de reunir a inteligência da
comunidade científica internacional em algo como um Projeto Manhattan verde
— que vise, em vez do assassinato em massa, o fim da extinção.

Sendo ainda mais ambiciosos, nosso plano comum deveria incluir uma União de
Compensação Monetária Internacional, do tipo sugerido por John Maynard
Keynes durante a conferência de Bretton Woods em 1944, apresentando
restrições bem elaboradas aos movimentos de capitais. Ao reequilibrar salários,
comércio e finanças em escala global, tanto a migração involuntária quanto o
desemprego involuntário diminuirão, encerrando assim o pânico moral sobre o
direito humano de circular livremente pelo planeta.
Pré-requisito 2: Uma campanha incomum

Sem isso, nosso plano comum, o Green New Deal Internacional, permanecerá


só no rascunho. E aqui vai uma ideia de campanha: precisamos identificar as
empresas multinacionais que abusam dos trabalhadores localmente e atacá-las
globalmente, utilizando a grande disparidade de custos para os participantes de,
por exemplo, boicotar a Amazon por um dia e os custos dos mesmos boicotes
para as empresas-alvo. Boicotes de consumidores globais não são novos, mas
agora, usando o poder de megaempresas de plataforma, como a Amazon, contra
elas próprias, podem ser muito mais eficazes. Especialmente, em uma segunda
fase, eles seriam combinados com ações de greve local envolvendo os sindicatos
mais importantes. Essa ação global em apoio aos trabalhadores ou comunidades
locais tem um alcance imenso. Com comunicação e planejamento inteligentes,
eles podem se tornar uma forma popular de as pessoas no mundo todo
compartilharem o sentimento de estar ajudando a tornar o planeta um lugar
mais livre e justo.

Claro, para que isso aconteça, nossa Internacional Progressista requer uma
organização internacional ágil. O problema das organizações que são capazes de
uma coordenação global é que elas, sorrateiramente, reproduzem em si
burocracias, exclusão e jogos de poder. Como podemos evitar que o
neoliberalismo e o nacionalismo autoritário destruam o mundo sem criar nossa
própria variedade de autoritarismo? Reconheço que é mais difícil encontrar a
resposta certa para essa pergunta sendo progressistas que rejeitamos as
hierarquias, as burocracias e as invasões do paternalismo. Mas temos o dever de
encontrá-la.

Pré-requisito 3: Uma visão compartilhada do pós-capitalismo

Consideremos o que aconteceu no dia 12 de agosto de 2020, quando foi


divulgada a notícia de que a economia britânica havia sofrido a maior queda de
sua história. A Bolsa de Valores de Londres deu um salto de mais de 2%! Nunca
tinha acontecido nada comparável a isso. Fatos semelhantes ocorreram em Wall
Street, nos Estados Unidos.

Efetivamente, quando a Covid-19 se deparou com a bolha gigantesca na qual


governos e bancos centrais têm mantido corporações e instituições financeiras
vivas como zumbis, desde 2008, os mercados financeiros finalmente se
desvincularam da economia capitalista em seu redor.

O resultado destes desenvolvimentos notáveis é que o capitalismo já começou a


evoluir para um tipo de feudalismo tecnologicamente avançado. O
neoliberalismo é hoje o que o marxismo-leninismo costumava ser durante os
anos 80 soviéticos: uma ideologia totalmente em desacordo mesmo com o
regime que a invocou. Após o colapso do bloco soviético em 1991, e do
capitalismo financeirizado em 2008, estamos numa nova fase, em que o
capitalismo está morrendo e o socialismo se recusa a nascer.

Caso eu esteja certo, mesmo aqueles progressistas que ainda nutrem esperanças
de reformar ou civilizar o capitalismo devem considerar a possibilidade de
olharmos para além do capitalismo — ou, na verdade, de planejar uma
civilização pós-capitalista. O problema é que, como meu grande amigo Slavoj
Zizek apontou, a maioria das pessoas acha mais fácil imaginar o fim do mundo
do que o fim do capitalismo.

Para combater essa falha de nossa imaginação coletiva, em meu livro mais
recente, intitulado Another Now: Dispatches from an alternative
present (“Outro Agora: despachos de um presente alternativo”), tento imaginar
o que ocorreria se minha geração não tivesse perdido todos os momentos
cruciais que a história nos apresentou. E se tivéssemos aproveitado o momento
de 2008 para uma revolução pacífica de alta tecnologia, que tivesse nos levado a
uma democracia de economia pós-capitalista? Como seria?

Haveria mercados para bens e serviços, já que a alternativa — um sistema de


racionamento do tipo soviético, que confere poder arbitrário ao pior dos
burocratas — é deprimente demais. Mas, para que um novo sistema seja à prova
de crises, há um mercado que não podemos nos dar ao luxo de preservar: o
mercado de trabalho. Por que? Porque, se que o tempo de trabalho é reduzido a
um bem de aluguel, os mecanismos de mercado inexoravelmente empurram seu
preço para baixo, enquanto mercantilizam todos os aspectos do trabalho (e, na
era do Facebook, até do lazer). Quanto maior a capacidade do sistema para fazê-
lo, menor o valor de troca de cada unidade de produção que ele gera, menor a
taxa média de lucro e, em última análise, mais nos aproximamos de uma nova
crise sistêmica.

Uma economia avançada pode funcionar sem mercados de trabalho? Claro que
sim! Considere o princípio de a cada um funcionário, uma ação e um voto.
Alterar a legislação societária de modo a transformar cada funcionário em um
sócio igual (ainda que não igualmente remunerado), através da concessão de um
voto não negociável de uma pessoa-uma ação-um voto, é tão inimaginável e
radical hoje quanto o sufrágio universal parecia ser no século 19. Se, além dessa
transformação fundamental da propriedade da empresa, os bancos centrais
proporcionassem a todos os adultos uma conta bancária gratuita, passaríamos a
ter uma economia de mercado pós-capitalista.

Com o fim dos mercados de ações, a alavancagem da dívida associada a fusões e


aquisições também se tornaria uma coisa do passado. A Goldman Sachs e os
mercados financeiros que oprimem a humanidade, subitamente deixariam de
existir — sem nem ser preciso bani-los. Livres do poder corporativo, livres da
indignidade imposta aos necessitados pelo estado de bem-estar social, da tirania
dos lucros e do cabo de guerra entre lucros e salários, as pessoas e comunidades
podem começar a imaginar novas maneiras de empregar seus talentos e
criatividade.

Chegamos a uma bifurcação. O capitalismo está em crise profunda, embora


sigamos a caminho da distopia. Somente uma Internacional Progressista poderá
ajudar a humanidade a alterar o seu caminho.
O Futuro segundo David Graeber
O século XX derrubou ideais iluministas, sem construir nada
no lugar. É 2020, e a tecnologia parou de causar fascínio,
para exercer controle. A pandemia enviou um alerta histórico
de que é preciso mudar de caminho. Atenderemos a ele?
OUTRASPALAVRAS
PÓS-CAPITALISMO
por David Graeber
Publicado 08/10/2020 às 19:43 - Atualizado 08/10/2020 às 19:44

David Graeber em entrevista a Lenart J. Kučić, no Dissenz |


Tradução: Victoria Moawad

Essa é a última parte (de três) de uma das últimas entrevistas concedidas pelo
pensador anarquista britânico David Graeber, morto aos 59 anos no último dia
2 de setembro. O trecho abaixo pode ser lido separadamente sem grandes
perdas, mas recomendamos a leitura das outras duas partes:
I – Graeber: por que os Estados rejeitam o Público
II – Dos pilares do capitalismo, sobrou apenas a Moral

Profissionais da saúde, trabalhadores de fábricas e prestadores de


serviços essenciais foram aclamados durante a pandemia. São tidos
como heróis do nosso tempo. Mas seus salários não aumentaram e
são os mais propensos a perderem seus empregos quando a crise
acabar. Como pode? 

Porque a essência do trabalho deles não é fazer o mal. Considere os


trabalhadores de emergência que estão lá, arriscando suas vidas, para que o
sistema de saúde não entre em colapso. Na teoria, um movimento sindical é
mais forte quando seu trabalho é essencial, e traz muito poder de barganha aos
trabalhadores. Sendo assim. se os profissionais da saúde decidissem fazer greve
por melhores condições e salários, sem dúvidas esse seria o melhor momento.
Mas isso não acontece na realidade.

Por quê?

Em um certo sentido, eles têm muito poder. É um paradoxo. Parecido com


aquela piada que diz que se você deve um milhão ao banco, você pertence ao
banco; mas se você deve cem milhões, o banco pertence a você. Se uma pessoa
tem tal poder que possa fazer muito mal aos outros, de modo muito imediato,
ela se torna prisioneira da sua própria capacidade. Não pode usar esse poder —
pois seria muito devastador. 

Um mafioso, ou o CEO de uma empresa privada, só o que sabem fazer é o mal,


mesmo fingindo o contrário. Então podem exercer seu poder impiedosamente.
Já, como apontado pelas feministas, uma greve da saúde e dos trabalhadores do
cuidado seria absolutamente devastadora, tão devastadora que eles não a
fariam, pois se importam demais com as pessoas que começariam a sofrer e
morrer imediatamente. 

Mas ao menos a crise poderá abrir nossos olhos para esse fato: em última
instância, uma economia é simplesmente o jeito que tomamos conta um do
outro, que todo trabalho real é, no final das contas, um trabalho de cuidado.

Durante a pandemia, começamos a usar ferramentas de


comunicação em larga escala — para a escola, trabalho e eventos
sociais. Vemos agora que podemos viver sem a maioria das nossas
viagens de trabalho e reuniões. Essas mudanças serão
permanentes? 

Nossos hábitos de viagem terão definitivamente que mudar, e isso vai afetar
outras partes da economia. 

David Harvey mostrou que, desde 2008, a retomada econômica — partindo do


pressuposto que de fato houve uma retomada, o que é contestado por algumas
pessoas — foi amplamente construída em volta de experiências consumidoras
em vez de bens de consumo. Durante décadas, o crescimento econômico foi
fomentado pela produção e venda de algo tangível. Automóveis. Smartphones.
Em seguida, o fenômeno se acelerou com a venda de carros que vão quebrar
dentro de alguns anos, ou celulares que vão ficar obsoletos. Mas agora a área de
expansão é ainda menos tangível: é baseada na experiência, em ir para as
Bermudas, comer fora, ou, se for um dos consumidores mais iluminados, viajar
para a Floresta Amazônica, visitar um xamã e provar alguma droga psicodélica.

Harvey acrescenta que as classes trabalhadoras também se beneficiaram dessa


tendência, pois vários novos aeroportos, hotéis, alojamentos para turistas e
outras infra-estruturas foram construídas para sustentar as voltas ao mundo da
classe média. Isso sem mencionar todas as plataformas digitais como Uber e
Airbnb que ajudaram na financeirização dos setores turístico e de moradia. 

Isso ele não disse, mas eu acrescentaria que é uma ironia que a construção civil,
junto às indústrias extrativas, tornaram-se simultaneamente a principal base de
apoio da direita populista, aquela que alega se opor a essa mesma elite
cosmopolita, em nome da identidade nacional. E é claro que é essa classe
cosmopolita, os ricos e seus aliados profissionais-gerenciais, que através desse
modo de consumo propagaram o vírus pelo mundo afora. 

Na Eslovênia e em alguns outros países europeus, o vírus foi


disseminado por turistas de esqui, que retornavam das férias na
Itália e na Áustria. Muitos deles médicos e outros profissionais de
classe média ou classe média-alta. No entanto, o governo queria
acionar o exército para evitar a entrada dos imigrantes no país para
conter a pandemia. 

Sim, eles vão culpar os migrantes ou os Viajantes — como os ciganos são


chamados no Reino Unido — mas não os que viajam a negócios, claro. 

Falando nisso, você conheceu o Mark Fisher quando vocês


lecionavam na Goldsmiths? Meus colegas editoriais insistiram que
eu perguntasse sobre Mark, porque o trabalho dele ressoa com
muitos jovens intelectuais na Eslovênia, assim como alguns de
nossos autores. 

Esbarrei com ele algumas vezes e nos cumprimentamos, mas nunca cheguei a
conhecê-lo. O que eu lamento muito, hoje em dia. Durante muito tempo,
costumava pensar nele como uma pessoa irritante que conseguia plagiar minhas
melhores ideias antes mesmo que eu as tivesse (risos).

De fato, vocês tem algumas ideias em comum…

E é surpreendente como tivemos ideias tão parecidas, pois nós nunca as


discutimos. […]

Ambos eram fascinados pela ideia de carros voadores. Ou melhor…


por que ainda não há carros voadores. 

Me irritava muito! Eu era uma criança nos anos 60, e éramos fascinados pelo
programa espacial. Tinha sete anos quando pousamos na Lua. Todos sabíamos
de que maneira o futuro deveria ser. Fiquei muito decepcionado que o 2001 da
vida real não tinha nada a ver com o 2001 que todos vimos no filme. E o que me
incomodava era… não apenas o fato de não acontecer, mas que ninguém se
importava com o fato de não ter acontecido. Todo mundo agiu como se
estivessemos mesmo vivendo essa era incrível de maravilhas tecnológicas. Mas
não é verdade! 

Claro, tínhamos portas que abriam sozinhas e os comunicadores do Star Trek.


Mas claramente não tínhamos os tricorders ou qualquer uma das coisas
realmente engenhosas. Onde estavam as drogas da longevidade, os feixes de
teletransporte, os dispositivos antigravidade? 

A indústria automobilística está tentando nos convencer que os


novos carros elétricos são fascinantes. Mas foram apresentados pela
primeira vez há mais de cinquenta anos atrás.

Exatamente! A essa altura, deveríamos estar explorando as luas de Saturno. É


tão frustrante! Queria escrever um artigo parecido em 1999, mas todas as
revistas ignoraram minhas propostas. Em vez disso, estavam celebrando o
começo de um novo milênio com matérias previsíveis sobre estarmos vivendo
em um mundo com maravilhas tecnológicas nunca vistas antes. 
Então você esperou por mais de 10 anos para finalmente conseguir
publicar o artigo? 

Bem, infelizmente ele se manteve atual, e eventualmente cheguei ao ponto de


poder publicar qualquer coisa que quisesse. Então criei algumas teorias sobre as
razões para a grande estagnação tecnológica. 

O engraçado foi que depois de escrever esse artigo, vieram dois tipos de
resposta. Primeiro dos fanáticos por ciência, que frequentemente apareciam
para me repreender dizendo que eu não sabia nada, ou então não ignoraria
todas as coisas incríveis que estão acontecendo, ou que estavam prestes a surgir.
Carros voadores estão prestes a surgir há quase 60 anos. O outro grupo eram os
verdadeiros cientistas, que quase invariavelmente disseram: sim, verdade! É
impossível receber verbas para pesquisas de base hoje em dia. O sistema está
configurado para garantir que não haja mais nenhuma grande inovação.

Isso tudo é bem triste. Ensinamos nossos filhos a acreditarem que as coisas
podem e vão ficar melhores. Mas depois… Nos disseram que os ideais
iluministas de progresso e avanço tecnológico foram destruídos na Primeira
Guerra Mundial. Mas depois disseram que foram desintegrados pela ascensão
do fascismo. Ou Auschwitz. Ou a bomba de Hiroshima. 

Depois veio Chernobyl…

Isso mesmo, e todo os outros grandes desastres tecnológicos do século XX. Mas
perceba o padrão. Se os ideais tivessem mesmo sido apagados pela Primeira
Guerra, não estariam lá para serem apagados novamente pelo fascismo. Ou pelo
ataque a Hiroshima. Ou Chernobyl. Quer dizer então que nunca foram
efetivamente apagados. Na verdade, isso sempre volta porque ainda não
encontramos outra história para ensinar aos nossos filhos.

Assim como as mentiras inofensivas sobre o Papai Noel? 

O que vamos dizer? “Desculpa, filho. A história é uma merda, as pessoas são
horríveis, e tudo vai só piorar.” Então, quase que por culpa, ainda fingimos
acreditar em um futuro melhor.

Isso vira um círculo vicioso. As crianças crescem aprendendo essa versão


utópica da realidade, que é completamente falsa. Pouco a pouco, descobrem
como o mundo funciona e, obviamente, ficam muito furiosos. Tornam-se
adolescentes amargos. Alguns mais tarde viram jovens adultos idealistas e
tentam mudar as coisas. Mas quando têm seus próprios filhos, desistem e
redirecionam seu idealismo a eles, fazendo a mesma coisa: tentam construir
uma pequena bolha onde podem fingir que as coisas vão mesmo melhorar. É o
único jeito de justificar os compromissos morais. 

Em Utopia of Rules você argumenta que há todo um sistema a cargo


de tornar impossível qualquer tipo de pensamento ambicioso.

Sim, a máquina da desesperança.


A totalidade da burocracia?

Burocracias não são lugares em que a promoção é baseada no mérito. Nelas, a


ascensão está baseada na disposição do indivíduo em entrar no jogo e fingir que
o que importa é o mérito. É muito similar no meio acadêmico. Não é muito
importante o quão inteligente você é. É mais importante fingir que as pessoas
no topo têm alguma razão para estar lá, mesmo que você — e todo mundo —
saiba que não é o caso. O maior pecado é acreditar que você tem alguma posição
acadêmica por ser efetivamente bom em ensinar ou pesquisar. 

Principalmente se você vem do contexto social errado, irá aprender que sim, é
possível ser aceito como membro da elite, mas apenas se estiver disposto a agir
como se sua maior aspiração na vida fosse ser aceito por eles — eles tendo ou
não alguma razão efetiva para estarem lá. 

O que nos traz de volta a Mark Fisher. Ele dedicou muito de sua
escrita à síndrome do impostor. Vindo da classe trabalhadora,
sempre sentiu que não pertencia à academia ou a qualquer outro
grupo social. Sempre se sentiu uma fraude. 

Eu também venho da classe trabalhadora, mas minha experiência é diferente de


algum modo. Fui educado de uma maneira que meus pais diziam que eu era a
pessoa mais inteligente que já existiu. Olhando para trás, era um pouco ridículo.
Ninguém podia ser tão talentoso! Então nunca tive a síndrome do impostor, já
que não sentia que não tinha o mérito intelectual para trabalhar na academia.
Mas eu tenho constantemente a síndrome do impostor por não ser um adulto
social. Eu continuo a ser tratado tipo: tudo bem, você é inteligente mas você não
é de fato um adulto. Você não é uma pessoa real. Só está fingindo. Nesse
sentido, estou constantemente sujeito a me sentir como uma fraude e isso afeta
sutilmente seu senso de identidade. 

Essa foi também uma das razões pelas quais você quase inventou sua
própria disciplina acadêmica? 

Você se refere à antropologia anarquista? 

Sim. 

Eu não fiz isso. Meu antigo mentor, Marshall Sahlins, estava começando uma
série em panfletos, e sabia que eu estava envolvido na rede de ação direta. Se
interessou pela minha visão, em pensar o anarquismo sob uma perspectiva
antropológica. Então escrevi o ensaio como um exercício hipotético, como seria
uma “antropologia anarquista”, e porque ela não existe. O problema é que
ninguém lê o livro. Só leem o título. 

Então, não, eu não sou um antropólogo anarquista no mesmo sentido que


alguém poderia ser um antropólogo marxista. O marxismo é uma teoria que
existe dentro da antropologia. O anarquismo é prática e existe dentro dos
movimentos sociais. Nesse sentido, não há antropologia anarquista. Quer dizer,
claro, você pode fazer antropologia de um jeito que seja útil para os movimentos
sociais libertários, mas isso não é a mesma coisa. 
Sua assistente me disse que você está trabalhando em seu próximo
livro. E que certamente não se trata do coronavírus. 

Sim, é algo em que tenho trabalhado por um longo tempo com o meu amigo
David Wengrow, arqueólogo na University College de Londres. Ficamos
trocando de título mas por enquanto é esse: O futuro: um prefácio de 50.000
anos. 

Você parece gostar de prefácios longos. 

Você quer dizer assim como Dívida: os primeiros 5.000 anos? Bom, acho que
sim. Na verdade esse prefácio é ainda maior, já que estamos tentando mostrar
que a história humana como costuma ser apresentada é apenas uma versão
secularizada da bíblia. Havia o Éden e em seguida a Queda. No começo,
estávamos todos vivendo em grupos felizes de caçadores-coletores. Era o Éden.
Depois inventamos a agricultura e tudo foi por água abaixo. Tivemos a
propriedade privada e pela primeira vez nos assentamos. E assim que criamos
cidades, temos também Estados e impérios e burocracias e extração de mais-
valia. Pelo caminho também tivemos a escrita e cultura elevada e tudo veio em
um pacote, pegar ou largar.

E essa narrativa está errada?

Essa narrativa é factualmente errada e nem sequer se aproxima do que


realmente aconteceu historicamente. Caçadores-coletores não viviam
exclusivamente ou até mesmo predominantemente em pequenos grupos
igualitários de vinte ou trinta pessoas. Ao longo da história, parecem ter
alternado entre pequenos grupos e micro-cidades. Podem ter formado
estruturas sociais muito elaboradas, às vezes com polícia ou reis, mas apenas
por alguns meses no ano. Eles então se dissipavam e passavam a viver em
pequenos grupos. A agricultura mal afetou isso e as primeiras cidades eram na
verdade muito igualitárias.

Isso parece muito com o historiador Yuval Noah Harari. Ele


popularizou a ideia de que passar de caçadores-coletores a uma
sociedade agrária foi a raiz de todo o mal.

Sim, é bem irritante. Não é só ele, mas ele está fazendo uma versão atualizada e
moderna do que é essencialmente um Jean-Jacques Rousseau dos tempos
atuais. Ele foi provavelmente um dos maiores advogados do ideal romântico do
bom selvagem. Um ser humano puro e livre que ainda não foi estragado pela
civilização européia. 

É por isso que Rousseau apelou aos seus compatriotas para voltarem
à natureza?

De fato. Eu acho essa parte da história bem fascinante. Na verdade, Rousseau


escreveu seu famoso texto sobre a origem e os fundamentos da desigualdade
entre os homens em resposta a um concurso. 

Concurso?
Sim, a Academia de Dijon convidou os autores para escreverem sobre
desigualdade.

A propósito, Rousseau não ganhou. Mas eu realmente gostaria de saber por que
intelectuais franceses do século XVIII assumiram que a desigualdade social
sequer tinha uma origem. Naquela época, a França era uma das sociedades mais
hierárquicas possíveis. Por que presumiram que as coisas nem sempre foram
assim?

Alguma ideia?

Eu não quero entregar o ouro, mas tem muito a ver com a crítica indígena
americana da sociedade europeia, que foi surpreendente levada a sério na
Europa. Talvez seja melhor esperar pelo livro.

Qual é a coisa mais assustadora que pode se tornar normal depois da


pandemia? 

Eu prefiro falar das coisas boas. Como assim? De repente, entramos em uma
zona onde a agência histórica ressurgiu. A humanidade acaba de receber o que
pode ser considerado como o maior alerta da História. Nunca aconteceu antes
nessa escala uma parcela tão grande da humanidade parar e dizer: o que
estamos fazendo?

Essas são ótimas notícias potencialmente, já que estávamos praticamente a


caminho do suicídio em massa.

E as más? 

Bom, o outro lado disso é o próprio suicídio em massa. Nós estávamos beirando
o apocalipse, convencidos de que nada que está a nosso alcance podia ser feito.
O que me assusta é que possamos simplesmente dizer: ufa, graças a deus isso
acabou, agora vamos voltar para nossas vidas antigas. 

Nós vimos que o mundo não vai acabar se viajarmos menos, consumirmos
menos, produzirmos menos. O mundo vai mesmo acabar, bem, da forma como
o conhecemos agora, se nós não pararmos de fazer essas coisas. Como podemos
convencer uma população moralista que a coisa mais importante a fazer agora é
trabalhar menos? Se não pararmos, em breve estaremos encarando uma escolha
entre desastres que fazem a pandemia parecer com um passeio no parque, e
algum tipo de solução sci-fi que poderia dar terrivelmente errado. 

Quão errado? 

Bem, digamos que há apenas uma coisa mais assustadora do que um fascista
que nega o aquecimento global: um fascista que não nega o aquecimento global.
Só deus sabe quais tipos de solução uma pessoa como essa pode inventar.

De certo modo, dá para enxergar a pandemia como um experimento para a


solução fascista à emergência climática que prevemos em cinco ou dez anos, se
não pararmos com toda essa produção estúpida de carbono: fechar as fronteiras,
culpar os estrangeiros, triar a população entre merecedores e não merecedores,
normalizar o autoritarismo. Em seguida, vão tentar algum conserto tecnológico:
semear cristais no oceano, eco-engenharia…

Alguns anos atrás, estava falando com Bruno Latour e ele me disse que estava
muito preocupado que chegássemos a esse ponto, pois as únicas instituições
grandes o suficiente para reagir na escala que o problema requer são os
exércitos americano e o chinês. Com sorte, estarão operando juntos e não um
contra o outro. Outro dia, estava falando com Steve Keen e ele acha que
provavelmente vai ser a última opção, porque se as coisas esquentarem muito,
grandes partes do extremo oriente se tornarão inabitáveis. Esperamos mesmo
que a China vai apenas sentar e observar? Irão evacuar em silêncio suas
províncias no Sul porque os americanos não querem recuar no carvão? No
entanto, se começarem a mudar a composição da atmosfera, podem acabar
colocando a Europa e a América do Norte de volta à era glacial. Quem sabe?

Mas apesar disso… Você ainda tem esperanças de que a humanidade


possa ouvir esse maior alerta da História? 

Acho que a coisa mais sábia que li a respeito foi de um físico que aponta para o
fato que nosso verdadeiro problema é não reconhecermos que nós mesmos
somos parte da natureza. Sim, claro, as mudanças climáticas são causadas pela
idiotice humana. Aqueles que dizem que é um fenômeno natural estão apenas
negando a realidade. Tudo isso é verdade. Mas já aconteceu no passado
distante, antes dos humanos sugerirem, de a temperatura da terra flutuar para
cima e para baixo em muitos graus. Se sobrevivermos por tempo o suficiente,
talvez por cem mil anos, e isso começar a acontecer, bem, teremos que fazer algo
a respeito, não é mesmo? 

Mas se quisermos ser a “autoconsciência da natureza” como costumavam dizer


no século XIX, talvez seja hoje o dia de tirarmos os políticos do caminho, pois
são seres extremamente não-autoconscientes. Decisões como essa só podem ser
tomadas por algum tipo de deliberação coletiva. 

A boa notícia é que os experimentos com assembleias de cidadãos mostram que


até mesmo pessoas aleatoriamente selecionadas, apresentadas aos fatos
científicos, são, quase que invariavelmente, muito mais sábios em suas tomadas
de decisão do que seus representantes eleitos. É possível tornar o povo como um
todo mais esperto que qualquer indivíduo desse todo, em vez de mais estúpido.
De certa maneira, é isso que é o anarquismo, encontrar meios para fazer isso.
Isso pode acontecer. Mas vamos ter que começar a botar a mão na massa.

A próxima crise vai começar pelo Sul


Abafada pela mídia, arma-se uma tempestade financeira
global com epicentro na periferia — e bem mais caótica que as
dos anos 1980. Qual sua relação com a pandemia e as
desigualdades. Por que exige saídas que o sistema tenta
proibir
OUTRASPALAVRAS
MERCADO X DEMOCRACIA
por Karina Patricio Ferreira Lima
Publicado 07/10/2020 às 20:57 - Atualizado 08/10/2020 às 08:06

Por Karina Patricio Ferreira Lima, no Phenomenal World | Tradução


de Simone Paz

Contrariando o senso comum que existe sobre fundamentos fiscais, a atual crise
da dívida na periferia global demonstra que a solvência dos Estados soberanos é
determinada por seu poder monetário. De forma crucial, a liquidez tem um
caráter cíclico na periferia do capitalismo global e um caráter anticíclico no
centro.

Quando a economia cresce e os contratos parecem seguros, os aplicadores


internacionais são mais proponsos a investir em economias periféricas — e que,
normalmente, remuneram com taxas de juros mais altas. Mas, em épocas de
estagnação, as percepções de segurança de ativos podem mudar rapidamente.
Estados de moeda periférica são, portanto, vulneráveis a retiradas rápidas de
contratos denominados em sua moeda. Percebendo o risco, os investidores
privados buscam os ativos mais seguros da economia global, que, apesar das
taxas de juros mais baixas, garantem baixos riscos de crédito e de mercado, alta
liquidez de mercado, e uma inflação, taxa de câmbio e riscos idiossincráticos
limitados.

A esmagadora maioria de ativos seguros é denominada na principal moeda do


mundo, o dólar americano, e em outras moedas centrais do sistema monetário
internacional. Mais da metade deles é composta por dívida pública emitida por
esses Estados centrais, garantida por seus governos ou bancos centrais. Os
Estados de moeda periférica não se beneficiam dessa estabilidade. Os Estados
menos poderosos — monetariamente — são, portanto, mais vulneráveis às altas
e baixas de modedas, causadas por flutuações na liquidez internacional, que
provocam riscos de iliquidez estrutural e, portanto, crises de insolvência dos
Estados

A solvência na pandemia global


A covid-19 desencadeou o que o Fundo Monetário Internacional chamou de “a
pior desaceleração econômica desde a Grande Depressão”. Os países no centro
do capitalismo global lançaram um conjunto de estímulos monetários e fiscais
nunca antes visto, permitindo-lhes manter suas economias à tona a taxas de
juros muito baixas. Em contraposição, a periferia sofreu grandes choques
econômicos e financeiros, o que fez com que muitos países tivessem que lutar
para conseguir pagar as importações, pagar o serviço de suas dívidas externas e
financiar programas emergenciais de saúde, segurança alimentar e recuperação
econômica.

Desde janeiro até abril deste ano, o capital privado parou de fluir para as
economias em desenvolvimento e emergentes (EDEs). Enquanto isso, as saídas
de recursos alcançaram 96 bilhões de dólares, os níveis mais altos da história, à
medida em que os investidores estrangeiros procuravam livrar-se do risco
retirando seu dinheiro desses mercados. Ao mesmo tempo, a eclosão da
pandemia levou a uma queda no comércio global, no investimento estrangeiro
direto, nos preços das commodities e no turismo. A queda acentuada, que se
espera para este ano, nas receitas de exportação significa que uma parte
crescente das receitas na periferia global será gasta no serviço da dívida
denominada em moeda das economias centrais.

De acordo com a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e


Desenvolvimento, as necessidades de financiamento das EDEs (excluindo a
China) chegarão a 2,5 trilhões de dólares este ano e podem chegar a 3 trilhões
de dólares nos próximos dois anos. Mesmo que o financiamento oficial
permaneça constante, o déficit esperado do setor público nesses países,
incluindo dívidas de longo e curto prazo, deve chegar a 735 bilhões de dólares.
Embora uma pequena parte dessas necessidades de financiamento tenha sido
coberta pelo banco central dos EUA [Federal Reserve] — por meio da extensão
de linhas de swap para bancos centrais de mercados emergentes, como Brasil,
México e Coreia do Sul — esses arranjos excluíram a grande maioria das EDEs,
que ficam desprotegidas em meio a uma dramática corrida para a liquidez em
dólares americanos. Isso demonstra a hierarquia global do dinheiro, na qual o
núcleo — e, às vezes, um seleto grupo da periferia — do sistema é capaz de
acessar barreiras de liquidez não condicionais (e, no caso de Estados centrais,
ilimitadas), enquanto a liquidez de emergência para a periferia geralmente
assume a forma de empréstimos condicionais do FMI ou de doações de
assistência oficial ao desenvolvimento (ODA).

A situação atual da periferia global pode ser descrita como uma crise de liquidez
sistêmica que, rapidamente, está se transformando em uma crise de solvência.
Neste contexto, as opções de política são limitadas. Os países podem fazer um
sacrifício suplementar, desviando recursos para o serviço da dívida, apesar de
suas economias exigirem maiores gastos fiscais para lidar com a emergência de
saúde e a queda econômica. Alternativamente, aqueles que mantêm o seu acesso
ao mercado podem perder o controle no caminho, ao recorrerem a empréstimos
adicionais. Isso pode parecer mais fácil devido às taxas de juros próximas de
zero nas economias desenvolvidas (que estão levando alguns investidores a
acumular ativos de risco na periferia em busca de rendimento); porém, mais
cedo ou mais tarde isso pode resultar em uma crise de dívida ainda mais severa.
Em último caso, os Estados podem recorrer ao credor de última instância da
periferia global: o FMI. Não é surpresa, portanto, que 100 dos 189 membros do
Fundo, metade dos quais são países de baixa renda, já o tenham procurado para
obter auxílio de liquidez de emergência. Previsivelmente, dezenas deles estão
em risco ou já anunciaram inadimplências e reestruturações soberanas. Nos
próximos meses, é provável que mais países enfrentem dificuldades financeiras.

Para resolver as assimetrias de base que determinam a capacidade de acesso à


liquidez dos Estados, precisamos redefinir o sistema monetário internacional.
Mas, na ausência de reformas estruturais, uma alternativa imediata para lidar
com a crise está disponível por meio dos Direitos Especiais de Saque do FMI. Os
DES são ativos monetários internacionais emitidos pelo FMI contra as garantias
de cada país membro em moeda local. Eles fazem parte das reservas cambiais de
um país e podem ser vendidos ou usados para pagamentos a outros bancos
centrais.

Em 2009, o FMI emitiu 204 bilhões de DES, no valor de 318 bilhões de dólares,
para mitigar os efeitos da crise financeira global. De acordo com a maioria das
estimativas, a crise atual exige pelo menos 500 bilhões de dólares em novos
DES, o que daria alguma flexibilidade aos Estados que já solicitaram
empréstimos e doações do FMI, bem como àqueles que atualmente não se
qualificam para empréstimos, como o caso da Argentina. A criação de DES
introduziria rapidamente liquidez internacional indiscriminada no mercado
global, permitindo às economias em desenvolvimento e emergentes
implementar políticas fiscais anticíclicas e lutar contra a pandemia e a recessão
econômica que se aproxima.

Mas as circunstâncias políticas impedem qualquer movimento nessas frentes. A


reunião de primavera do FMI, ocorrida em abril de 2020, resultou em medidas
extremamente fracas para mitigar os graves desafios enfrentados pela periferia
global. O acordo sobre a expansão dos DES foi bloqueado por um governo
Trump que buscava impedir que seus rivais geopolíticos tivessem acesso a
recursos incondicionais. Supostamente, autoridades do governo teriam sugerido
que um aumento de liquidez global não é necessário no momento, mas
nenhuma solução prática foi proposta para a maioria dos Estados do mundo que
precisam. Representando quase 17% dos poderes de voto no FMI, os EUA têm
poder de veto efetivo sobre qualquer acordo. É pouco provável que o impasse na
alocação de DES seja resolvido.

Iniciativas para o alívio da dívida

Diante desses enormes obstáculos políticos — até para modestas reformas do


sistema monetário internacional — duas iniciativas bastante significativas
buscam aliviar o peso da dívida dos países mais pobres do mundo. Em primeiro
lugar, o FMI aprovou uma redução do serviço da dívida a 27 dos seus países
membros sob o amparo de um reformulado Fundo para Contenção e Mitigação
das Catástrofes [Catastrophe Containment and Relief Trust]. Em segundo
lugar, o G20 lançou a Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida (DSSI, no
acrônimo em inglês), que permite que 76 países da Associação Internacional de
Desenvolvimento (IDAs) e países menos desenvolvidos (LDCs) solicitem uma
suspensão do pagamento do principal e dos juros de suas dívidas bilaterais
oficiais com os membros do Clube de Paris durante oito meses, do dia 1° de
maio até o final de 2020.

Essas iniciativas buscam permitir que, neste ano, os países de baixa renda
realoquem os recursos que, de outra forma, gastariam no serviço oficial ou
multilateral da dívida, para combater a pandemia. No entanto, ambas
alternativas têm limitações consideráveis. Em primeiro lugar, ao focar no
serviço da dívida, excluem o estoque da dívida. Em segundo lugar, eles contam
com a vontade política dos contribuintes para financiar os subsídios dos
orçamentos de ajuda existentes, reduzindo assim a disponibilidade de recursos
concessionais para outras necessidades. Em terceiro lugar, não conseguem
fornecer alívio da dívida suficiente aos países elegíveis, excluindo a dívida
privada.

Embora o G20 “estimule” os credores privados a fornecerem uma tolerância


comparável à oferecida pelos credores oficiais do Clube de Paris, o setor privado
recusou-se a aderir voluntariamente a qualquer suspensão. Todas as três
principais agências de crédito enfatizaram que solicitar a participação do credor
privado em termos comparáveis ao G20 poderia levar a um rebaixamento do
Estado devedor requerente. E elas já começaram a fazer isso.

Outro elemento que adiciona complexidade à Iniciativa de Suspensão do Serviço


da Dívida (DSSI) é a participação da China no acordo. A China, maior credor
oficial do mundo e não-membro do Clube de Paris, concordou em ingressar à
DSSI em junho, embora não tenha tornado públicos os termos, os beneficiários
nem a quantia de dinheiro envolvida. Mas Pequim não parece preparada para
incluir os empréstimos do Banco de Desenvolvimento da China no DSSI,
possivelmente porque não se sente obrigada a subsidiar indiretamente os
fundos de hedge de Nova York e Londres, liberando recursos que os países
pobres provavelmente usarão para pagar os credores privados. Na ausência de
iniciativas políticas ou legislativas por parte dos principais Estados para fazer
cumprir a DSSI em suas próprias jurisdições, parece improvável que os bancos
chineses se unam nessa iniciativa.

De todo modo, é provável que a DSSI só adie a crise de insolvência soberana dos
Estados elegíveis, em vez de resolvê-la. Todos os pagamentos a credores oficiais
congelados pelo G20 vencem entre 2022 e 2024, juntamente com os juros
acumulados. Nesse ínterim, sem o envolvimento do setor privado, a paralisação
do G20 e o financiamento multilateral podem desviar recursos necessários à
recuperação para o pagamento da dívida privada.

Finalmente, a crise da dívida da periferia global não se limita aos países


incluídos na DSSI. A iniciativa envolve apenas os países elegíveis da Associação
Internacional de Desenvolvimento e Angola, que as Nações Unidas designam
como um dos países menos desenvolvidos. Assim, deixa de fora um grupo de 50
economias emergentes de baixa e média renda que têm significativamente mais
dívida externa — cerca de 95% de toda a dívida soberana da periferia global — e
muitas das quais estão passando por forte pressão econômica. De acordo com o
Instituto Internacional de Finanças (IIF), esses países podem ter dificuldade
para tomar empréstimos grandes em mercados de capital internacionais este
ano. Além disso, eles provavelmente terão de lidar com o aumento da carga
fiscal à medida que a recessão se desenrola.

Portanto, não é uma questão de saber se, mas quando ocorrerão mais


inadimplências e reestruturações de dívidas. Sem a redução da dívida, a
perspectiva de recuperação socioeconômica global no rescaldo da crise em curso
fica seriamente comprometida.

Lições da crise da dívida dos anos 80

A magnitude dos desafios postos pela covid-19 são reminiscências da crise da


dívida da periferia global de 1982. A partir da década de 1960, os bancos
comerciais internacionais, principalmente aqueles com sede nos EUA,
expandiram significativamente sua carteira de empréstimos para Estados
soberanos na América Latina e na África, que dependiam de petrodólares para
financiar seus empreendimentos de desenvolvimento. Quando o presidente do
Federal Reserve, Paul Volcker, aumentou as taxas de juros de cerca de 11% em
1979 para 20% em 1981, os países foram repentinamente empurrados para uma
crise de dívida soberana, e o sistema bancário dos Estados Unidos foi colocado
em risco.

O FMI atuou como coordenador dos credores durante a crise, liderando comitês
junto com o governo dos Estados Unidos e com os maiores credores comerciais
de cada país. O Fundo liderou uma variedade de programas em Estados
devedores, os quais consistiam, principalmente, em severas medidas de
“austeridade” e programas de ajuste estrutural, incluindo a privatização de
ativos públicos nacionais para empresas estrangeiras. O alívio da dívida só viria
anos mais tarde com o Plano Brady, por meio do qual os países podiam trocar
seus empréstimos de bancos comerciais por um valor de face menor em títulos
lastreados do Tesouro dos EUA. No entanto, o impacto das políticas adotadas
no enfrentamento à crise foi tão forte sobre a capacidade produtiva, o emprego e
as condições sociais dos países em questão, que a Comissão Econômica das
Nações Unidas para a América Latina e o Caribe (CEPAL) caracterizou os anos
seguintes como uma “década perdida” no desenvolvimento econômico e social
dos mesmos.

Apesar das possíveis analogias, existem diferenças significativas entre as crises


da dívida de 1982 e de 2020. Desta vez, a base de credores da dívida soberana é
a mais diversificada da história. Junto com os credores oficiais do Clube de Paris
e dívidas de bancos comerciais, os credores atuais consistem principalmente em
credores oficiais não pertencentes ao Clube de Paris (como a China) e uma
infinidade de fundos.

Essa base diversificada de credores da dívida soberana envolve muitos


interesses conflitantes e poucos códigos de conduta compartilhados. Hoje, é
muito mais complicado coordenar decisões a portas fechadas, por meio de
“acordos de cavalheiros”, que permitiam a reestruturação no passado. Além
disso, o nível de exposição dos fundos de hedge a títulos de mercados
emergentes indica que as estratégias de holdout podem tornar-se mais
difundidas do que em crises anteriores e incluir não apenas fundos de hedge de
alto risco (também conhecidos como “fundos abutre”), mas também os
tradicionais. Nesse contexto, o consenso é muito mais difícil de ser alcançado do
que no passado.

A governança legal da dívida soberana

À medida que uma nova era de crises de dívida surge na comunidade


internacional, a governança legal da dívida soberana novamente assume o
centro do palco. Apesar da quantidade e da frequência das crises de dívida
soberana e de suas implicações prejudiciais, o direito internacional tem falhado
historicamente em abordar esses problemas de forma sistemática. Desde
Bretton Woods — e apesar das transformações no sistema monetário e
financeiro internacional nos últimos 70 anos — a dívida soberana permaneceu
uma das áreas menos regulamentadas das finanças globais.

Atualmente, a reestruturação da dívida soberana é baseada em acordos ad


hoc entre o Estado devedor e seus credores, que podem ser oficiais,
multilaterais, comerciais ou compostos por detentores de títulos. Os contratos
de dívida privada são regidos principalmente por duas jurisdições centrais sobre
dívida soberana: a Inglaterra e o Estado de Nova York. As renegociações
ocorrem por meio de acordos de transação em que a participação só é
obrigatória quando as maiorias contratuais vinculantes são reunidas para
emissões específicas de títulos. Não existe um órgão internacional de falências
soberano como os comumente encontrados em Estados nacionais sobre
falências corporativas ou pessoais.

Essa estrutura legal impede a resolução eficaz, oportuna e justa de crises de


insolvência. Está repleta de problemas de ação coletiva que muitas vezes
resultam em uma diminuição insuficiente da dívida, atrasos e assimetrias entre
as partes interessadas no processo de reestruturação — incluindo os vários tipos
de credores e a população do Estado devedor. Essas complexidades geralmente
fazem da reestruturação da dívida soberana — baseada em contratos — uma
atividade demorada. É difícil ter uma coordenação do credor e, muitas vezes, o
processo não é capaz de facilitar a recuperação da insolvência para o Estado
devedor.

Quando os termos da reestruturação não são bem-sucedidos no enfrentamento


dos encargos insustentáveis da dívida, novas crises de dívida soberana podem
estar na virada da esquina. Desde 1970, mais da metade dos episódios de
reestruturação com credores privados foram seguidos por outra reestruturação
ou inadimplência, num período de 5 anos. Os obstáculos intransponíveis
colocados por acordos jurídicos transacionais em cenários de insolvência
mostram por que todas as jurisdições do mundo dependem de regras de falência
para lidar com a insolvência privada.

Durante a pandemia, proliferaram, entre agências da ONU, acadêmicos e ONGs,


muitos pedidos de moratórias estatutárias ou baseadas em contratos e redução
da dívida para os estados em desenvolvimento. No entanto, os problemas de
ação coletiva normalmente colocados por qualquer processo de reestruturação
estão exacerbados, hoje em dia, pela dimensão da crise (na qual muitos países
estão enfrentando ou provavelmente entrarão em insolvência), bem como a
variedade de interesses envolvidos. O consenso político sobre qualquer um
desses termos é particularmente difícil de alcançar se o objetivo for garantir os
níveis de redução da dívida necessários para uma recuperação eficaz da crise de
insolvência.

A governança jurídica da reestruturação da dívida soberana existente representa


uma carga de risco desproporcional para o Estado devedor. A crise da Covid-19
está, portanto, exacerbando os problemas já colocados pelas tecnologias de
reestruturação contratual em tempos de normalidade: os termos da
reestruturação provavelmente serão pouco expressivos e virão muito tarde; e a
coordenação entre credores tornou-se impossível, apesar da urgência da
situação atual.

A pluralidade de credores e a diversidade de interesses entre eles geram um


conflito distributivo sobre a apropriação dos fundos públicos que, por definição,
são limitados durante uma crise de dívida soberana. Nesse contexto, os credores
mais alavancados buscarão transferir o risco para terceiros na tentativa de obter
o reembolso total e oportuno. Assim, moratórias oficiais por si só podem acabar
simplesmente salvando os detentores de títulos privados.

Além disso, após iniciadas as reestruturações da dívida, os detentores de títulos


minoritários podem tentar bloquear os acordos de reestruturação a qualquer
momento, perante os tribunais das jurisdições centrais de dívida soberana.
Atualmente, não está claro se esses tribunais estão preparados para lidar com o
grande número de casos de dívida soberana que se avizinham. Não é exagerado
esperar que estejam sobrecarregados ou que os custos do litígio aumentem.

A necessidade de regras internacionais de falência soberana

A crise econômica desencadeada pela Covid-19 intensifica-se nos territórios


mais despossuídos do mundo, à medida que os Estados lutam para atender às
necessidades básicas de saúde e nutricionais de sua população. Uma perda
econômica e humana extrema será causada pelo atraso no enfrentamento da
crise da dívida da periferia mundial. Um acordo global é urgentemente
necessário para fornecer às EDEs os níveis de atenuação da dívida de que
precisam — o que, provavelmente, arrastará a vasta maioria do planeta para
outra década de estagnação econômica.

Mas também é fundamental nos engajarmos numa discussão estrutural sobre a


necessidade de adotar mecanismos internacionais de falências soberanas a fim
de evitar que crises caóticas como a que estamos enfrentando voltem a
acontecer no futuro.

Enquanto o sistema monetário internacional estiver estruturado com base em


uma hierarquia global de moedas, as crises da dívida soberana não
desaparecerão. Mais do que simples consequência das características
individuais dos estados periféricos, elas são inerentes ao caráter assimétrico da
liquidez global. Nesse sentido, a onda de crises de dívida soberana
desencadeada pela Covid-19 é apenas um reflexo de como o sistema monetário
internacional está estruturado.
Um mecanismo internacional de falência soberana é uma questão de justiça
global. São necessárias regras de falência que possam distribuir os custos das
perdas de maneira responsável, transparente e (com sorte) mais justa, criando
hierarquias jurídicas justificáveis entre todas as partes interessadas, envolvidas
na insolvência soberana. Isso inclui todos os tipos de credores soberanos, mas
também as populações de Estados devedores.

Contra o ultracapitalismo, as velhas


armas não servem
Corporações tornaram-se muito mais poderosas que Estados,
e blindaram-se contra a democracia. A riqueza social é
capturada na esfera financeira, um limite à luta sindical.
Superar o sistema é mais urgente que nunca — mas por novos
caminhos…
OUTRASPALAVRAS
MERCADO X DEMOCRACIA
por Ladislau Dowbor
Publicado 07/10/2020 às 17:39 - Atualizado 07/10/2020 às 17:48

MAIS:
Este texto é a primeira parte do terceiro capítulo de:
> O Capitalismo se desloca, livro mais recente do autor
(Edições SESC).
> A obra está sendo publicada em partes, por Outras Palavras. Acesse o
Capítulo 1 e o 2 [primeira parte |segunda parte]
> Uma breve apresentação e uma entrevista com Ladislau Dowbor a respeito da
obra podem ser acessados aqui.

III. AS SUPERESTRUTURAS DO SISTEMA


A grande realidade é que o mundo apresentado como definitivo por Margaret
Thatcher na década de 1980 – na linha do slogan “Thereisnoalternative” [Não
há alternativa] –, com democracias nacionais, eleições, mercados locais e
comércio exterior, está saindo de cena com grande rapidez. Mudam as
infraestruturas, as bases produtivas do planeta, e com isso se tornam profunda-
mente desajustadas as superestruturas, o conjunto de regras do jogo herdadas
da era da economia das nações. O planeta encolheu, temos todos de buscar
objetivos de desenvolvimento sustentável, as nações têm de se conformar com
um papel reduzido, os povos têm de aprender a conviver em ambiente
multicultural. E, muito além do Estado de bem-estar social, temos de evoluir, na
formulação da Unctad, para um global new deal, um novo pacto global, pois a
desarticulação presente está afundando o mundo em dramas ambientais, sociais
e econômicos.

No conjunto, os mecanismos formais de regulação e de dominação na


sociedade, no nível das superestruturas, ainda se encontram em grande parte
enraizados na era do capitalismo industrial e concorrencial, mas as práticas
corporativas desenham rapidamente uma outra arquitetura organizacional. O
novo mix de organização do poder na sociedade gera espaços de governança
planetária que escapam aos sistemas formais das nações. O poder político das
corporações abre espaços para uma erosão profunda das dimensões públicas do
Estado. A apropriação do conhecimento se dá como se se tratasse de uma
criação individual, ou de bens físicos pessoais. Um poderoso discurso ideológico
bus- ca generalizar uma narrativa do merecimento e da legitimidade das novas
formas de poder. A vigilância capilarizada sobre as populações, por meio do
controle da privacidade individual, abre espaço para uma perda radical da
liberdade, em particular dos que por acaso não acreditarem na “narrativa”.

A GOVERNANÇA PLANETÁRIA

O capitalismo herdado do século passado é o capitalismo das nações. Claro, já


somos um capitalismo mundial desde a revolução comercial do século XVI – ou
pelo menos desde a fase imperialista dos séculos XIX e XX – e temos sucessivos
estudos dessa progressiva globalização com Rudolf Hilferding, com Vladímir
Lênin e, no pós-guerra, com a ampla visão de Samir Amin na sua magistral
obra L’Accumulationàl’échellemondiale[A acumulação em escala mundial],
além dos inúmeros estudos setoriais sobre as dimensões financeira,
de commodities, cultural e assim por diante. Mas hoje podemos dizer que o
capitalismo das nações está desaparecendo do mapa porque o processo
decisório se deslocou para essa rede monstruosa e cheia de tentáculos que são
os gigantes corporativos instalados dentro dos próprios governos nacionais – e
pouco vinculados ao interesse das nações onde se instalam.

Na ausência de governo global, no sentido político de governo legítimo e


representativo, o que temos é o poder do único sistema que funciona de forma
organizada no espaço global, que são as corporações e, em particular, os
gigantes financeiros acima das corporações produtivas. Nada disso é
radicalmente novo, mas podemos dizer que, a partir dos anos 1980, e de forma
mais acelerada ainda depois da crise de 2008, enfrentamos uma mudança
qualitativa. Não se trata mais de corporações de um país controlando a política
desse mesmo país, mas de grupos mundiais exercendo seu controle, de maneira
articulada, sobre um conjunto de países simultaneamente, com capacidade de
mudar as leis nacionais em função de interesses transnacionais.

Todas as grandes corporações têm conexões solidamente implantadas em


paraísos fiscais, podendo movimentar os seus recursos sem nenhum controle da
área pública, de governos eleitos. Mais ainda, com o descontrole dos fluxos
financeiros internacionais, é a própria capacidade de cobrança de impostos e de
canalização produtiva dos recursos pelos governos eleitos que se vê prejudicada.
É muito característico a Apple ter pagado 0,05% em impostos sobre os seus
imensos lucros na Europa em 2016. O especialista colombiano em relações
internacionais José Antonio Ocampo resume de maneira clara:

A globalização tornou obsoleto o regime internacional de tributação das


empresas. O esquema atual foi elaborado pelos países desenvolvidos no início
do século XX, quando suas empresas, que dominavam o comércio mundial –
então fundamentalmente de bens –, eram sociedades integradas que
comercializavam com empresas radicadas em outros países ou colônias. Mas,
hoje,quase a metade do comércio mundial ocorre entre matrizes e filiais de
empresas transnacionais, o setor de serviçosrepresenta três quintos do PIB
mundial, e os países em desenvolvimento produzem dois quintos desse
produto, sendo suas grandes empresas também transnacionais . 1

O que aparece na mídia econômica é a briga entre a União Europeia e os


Estados Unidos, em torno dos impostos devidos pelas empresas, mas o que
realmente importa é que isso reduz drasticamente a capacidade dos governos de
promoverem o desenvolvimento por meio de investimentos em infraestrutura e
em políticas sociais. Se não governamos os recursos que permitem financiar as
políticas, que política estamos governando? O capitalismo em que a economia é
planetária e a regulação é nacional simplesmente trava a capacidade dos
governos de exercerem a sua principal função, que é a de equilibrar o
desenvolvimento por meio de políticas econômicas. Políticas nacionais
keynesianas no contexto de fluxos financeiras globais deixam, em grande parte,
de funcionar. O longo prazo previsto por Keynes chegou.

De 2012 para 2013, o governo Dilma tentou reduzir os juros usurários que
estavam estrangulando a economia em proveito do rentismo financeiro. O seu
governo não durou. A partir de meados de 2013, teve início uma guerra política,
midiática e jurídica. A classe média alta, com suas aplicações e seu rentismo
fácil, não perdoou. O governo que resultou do golpe colocou dois bancos
privados no controle dos recursos públicos; a desorganização econômica e
política abriu caminho para oportunismos de extrema direita. Essa não é uma
particularidade nossa. O governo estadunidense desembolsou trilhões de
dólares para seus grandes bancos, a União Europeia desembolsou trilhões de
euros. Ambos continuaram alimentando rentistas com a chamada flexibilização
quantitativa (quantitative easing). Quem tentou escapar da armadilha
financeira, como a Grécia, viu-se alvo de uma concentrada ofensiva. Em
fevereiro de 2018, Trump deu um gigantesco presente ao mundo das
corporações, ao reduzir os impostos de 35% para 20%. E isso enquanto os
Estados Unidos estão afundando na desigualdade. São imagens recentes que
apenas ilustram a transformação profunda que vivemos.

A APROPRIAÇÃO DA ESFERA PÚBLICA PELO SISTEMA


CORPORATIVO

Não é novidade, no sistema capitalista, o Estado servir aos interesses dos


capitalistas. Mas, quando um executivo da Exxon assumiu a chefia do
Departamento de Estado dos Estados Unidos (ele precisou se
desincompatibilizar, o que foi compensado com 125 milhões de dólares, e não
durou muito, porque estamos na era Trump, e poucos aguentam) e executivos
do Goldman Sachs passaram a chefiar a equipe econômica do governo
estadunidense, sem falar do perfil de grande especulador imobiliário do próprio
presidente, foi possível perceber que as mudanças eram qualitativas. No Brasil,
além de provocar a crise a partir de 2013, os grandes grupos financeiros
passaram a dirigir o extinto Ministério da Fazenda e o Banco Central. Com o
governo eleito em 2018, foi criado um superministério da Economia, que ficou
nas mãos de um banqueiro. A grande visão desenhada e ensinada nas
universidades, que consistia na divisão de poderes e no equilíbrio por meio de
contrapesos, foi simplesmente ultrapassada. As empresas estão no poder; e no
controle das empresas estão os gigantes financeiros. O poder corporativo não é
um poder empresarial paralelo ao poder político, ele hoje é o poder político. E os
CEOs dos grandes grupos fazem política da manhã à noite.

Examinei com mais detalhe o processo de captura do poder político pelas


corporações no já mencionado Aeradocapitalimprodutivo; aqui apresento
alguns pontos mais relevantes, de maneira a mostrar uma visão de conjunto do
que sugiro constituir um novo modo de produção, sem que o leitor precise
consultar o texto anterior. O dado básico é que temos uma finança global
estruturada ante um poder político fragmentado em quase duzentas nações;
além disso, o poder dentro das próprias nações, nas suas diversas dimensões,
está sendo fraturado por dissensões e facilmente capturado. Tornamo-nos
sistemicamente disfuncionais.

Wolfgang Streeck traz uma interessante sistematização dessa captura do poder


público, no nível dos próprios governos, pelas corporações. Por meio do
endividamento do Estado e dos outros mecanismos vistos anteriormente, gera-
se um processo em que, cada vez mais, o governo tem de prestar contas ao
“mercado”, virando as costas para a cidadania. Com isso, para a sobrevivência
de um governo, passa a ser fundamental não quanto ele responde aos interesses
da população que o elegeu, e sim se o mercado – ou seja, essencialmente, os
interesses financeiros – sente-se suficientemente satisfeito para declará-lo
“confiável”. De certa forma, em vez de república, ou seja, respublica, coisa
pública, passamos a ter uma resmercatori, coisa do mercado. O quadro-resumo
da Figura 6 ajuda a entender o deslocamento radical da política.

Naturalmente, um se financia através dos impostos, o outro se financia através


do crédito. Um governo passa, assim, a ser “destinatário e mandatário de dois
coletivos constituídos de forma diferente e como um sistema intermediário
entre dois mundos em conflito. Estes funcionam segundo lógicas
tendencialmente incompatíveis” . Entre a opinião pública sobrea qualidade do
2

governo e a “avaliação de risco” de esse mesmo governo deixar, por exemplo, de


pagar elevados juros sobre a sua dívida, a opção de sobrevivência política pende
cada vez mais para o lado do que qualificamos misteriosamente de “os
mercados”. Onde havia Estado de bem-estar e políticas sociais, teremos
austeridade e lucros financeiros. O essencial é manter “a confiança do mercado”.

A visão geral de Streeck é que não se trata do fim do capitalismo, e sim do fim
do capitalismo democrático. Podemos naturalmente resolver o nosso problema
de caracterização do animal que surge acrescentando qualificativos, como
capitalismo global, capitalismo autoritário ou capitalismo financeiro. Podemos
ainda qualificá-lo pela etapa, referindo-nos à Terceira ou à Quarta Revolução
Industrial. Também é possível pensar na mudança que significa a expansão dos
fatores informacionais de produção. Igualmente essencial é a mudança da forma
de apropriação do excedente social – no caso, com o rentismo financeiro
adquirindo mais peso do que o lucro sobre a produção. Mas o essencial do que
buscamos é a lógica sistêmica que resulta das várias mudanças. A questão que se
coloca é se a categoria capitalismoainda é a mais adequada para o conjunto. O
capitalismo sempre foi explorador, mas tinha a conotação positiva de vetor de
acumulação produtiva. Hoje, essas dimensões estão dissociadas.

A APROPRIAÇÃO DO CONHECIMENTO

A apropriação privada de um produto social deve ser justificada. O aporte


principal de Alperovitz e de Daly, no pequeno livro Apropriaçãoindébita, é de
deixar claro o mecanismo de apropriação, por parte de minorias, do esforço
coletivo de construção do conhecimento. Ao tornar transparentes esses
mecanismos, os autores elaboram uma teoria do valor da economia do
conhecimento. A força explicativa do que acontece na sociedade moderna, com
isso, torna-se poderosa. A análise constitui, de certa maneira, um antídoto
contra o novo conto de fadas de que a economia só irá bem se “os mercados” –
entenda-se os grandes grupos financeiros – estiverem satisfeitos.

Para dar um exemplo trazido pelos autores, quando a Monsanto adquire


controle exclusivo sobre determinada semente, como se a inovação tecnológica
fosse um aporte apenas dela, esquece o processo que sustentou esses avanços.

O que eles nunca levam em consideração é o imenso investimento coletivo que


carregou a ciência genética dos seus primeiros passos até o momento em que a
empresa toma a sua decisão. Todo o conhecimento biológico, estatístico e de
outras áreas, sem o qual nenhuma das sementes altamente produtivas e
resistentes a doenças poderia ter sido desenvolvida,–todas as publicações,
pesquisas,educação, treinamento e ferramentas técnicas relacionadas sem os
quais a aprendizagem e o conhecimento não poderiam ter sido comunicados e
fomentados em cada estágio particular de desenvolvimento, e então passados
adiante e incorporados, também, por uma força de trabalho de técnicos e
cientistas – tudo isso chega à empresa sem custo, um presente do passado . 3

Ao apropriar-se do direito sobre o produto final e ao travar desenvolvimentos


paralelos, a empresa canaliza para si gigantescos lucros da totalidade do esforço
social, que ela não teve de financiar. Trata-se de um pedágio sobre o esforço dos
outros.

Se não é legítimo, pelo menos funciona? A compreensão do caráter particular do


conhecimento como fator de produção já é antiga. Uma joia a esse respeito é um
texto de 1813 de Thomas Jefferson:

Se há uma coisa que a natureza fez que é menos suscetível à propriedade


exclusiva do que todas as outras, essa coisa é a ação do poder de pensamento
que chamamos de ideia […]. Que as ideias devam se expandir livremente de
uma pessoa a outra, por todo o globo, para a instrução moral e mútua do
homem e para o avanço de sua condição, parece ter sido particular e
benevolamente desenhado pela natureza quando ela as tornou, como o fogo,
passíveis de se expandir por todo o espaço, sem perder a densidade em
nenhum momento, e, como o ar no qual respiramos, nos movemos e existimos
fisicamente, impossíveis de ser confinadas ou exclusivamente apropriadas.
Invenções não podem, por natureza, ser objeto de propriedade . 4

O conhecimento não constitui uma propriedade no mesmo sentido que um bem


físico. A caneta é minha, faço dela o que quiser. O conhecimento, na medida em
que resulta de um esforço social muito amplo, obedece a outra lógica, e por isso
a propriedade não é assegurada em permanência, e sim por vinte anos, por
exemplo, no caso das patentes, ou por setenta anos no caso dos copyrights, mas
sempre por tempo limitado. A propriedade aqui é assegurada por sua função
social – estimular as pessoas a inventarem ou a escreverem –, e não por ser um
direito natural.

O merecimento é para todos nós um argumento central, a roupagem principal


do frágil conto que nos servem. Segundo as palavras de Alperovitz e Daly, “nada
é mais profundamente ancorado em pessoas comuns do que a ideia de que uma
pessoa tem direito ao que criou ou ao que os seus esforços produziram” . Mas,
5
na realidade, não são propriamente os criadores que são remunerados, e sim os
intermediários jurídicos, financeiros e de comunicação comercial que se
apropriam do resultado da criatividade, trancando-o em contratos de
exclusividade, fazendo fortunas com merecimento duvidoso. Não é a
criatividade que é remunerada, e sim a apropriação dos resultados: “Se muito
do que temos nos chegou como um presente gratuito de muitas gerações de
contribuições históricas, há uma questão profunda relativamente a quanto uma
pessoa possa dizer que ‘ganhou merecidamente’ no processo, agora ou no
futuro” .
6

As pessoas em geral não se dão conta das limitações. Hoje, 95% do milho
plantado nos Estados Unidos é de uma única variedade, com desaparecimento
da diversidade genética, e as ameaças para o futuro são imensas. Teremos livre
acesso aos livros de Paulo Freire apenas a partir de 2067, setenta anos depois da
morte do autor . O livre acesso às composições de Heitor Villa-Lobos será
7

assegurado a partir de 2029. Isso está ajudando a criatividade de quem?


Patentes de vinte anos podiam parecer razoáveis há meio século, mas, com o
ritmo de inovação atual, que sentido fazem? Já são 32 milhões de pessoas que
morreram de doenças relacionadas à aids, e as empresas farmacêuticas
(o bigpharma) proíbem os países afetados de produzir os medicamentos que
compõem o coquetel antiaids, são donas de intermináveis patentes. Ou seja, há
um imenso enriquecimento no topo da pirâmide, baseado não no aporte dessas
pessoas, mas no fato de se apropriarem de um acúmulo historicamente
construído durante sucessivas gerações, por múltiplas instituições, com
contribuições do sistema educacional, de centros públicos e privados de
pesquisa, universidades e assim por diante. Nesta era em que a concentração
planetária da riqueza social em poucas mãos está se tornando insustentável,
entender o mecanismo de geração e de apropriação dessa riqueza é
fundamental.

Alperovitz e Daly não são nada extremistas, mas defendem que o acesso aos
resultados dos esforços produtivos deva ser minimamente proporcional aos
aportes. “A fonte de longe mais importante da prosperidade moderna é a
riqueza social sob forma de conhecimento acumulado e de tecnologia herdada”,
o que significa que “uma porção substantiva da presente riqueza e renda deveria
ser realocada para todos os membros da sociedade de forma igualitária, ou, no
mínimo, no sentido de promover maior igualdade” . Um Bill Gates, se não fosse
8

a invenção dos transístores e dos semicondutores, além dos sistemas lógicos


desenvolvidos durante a Segunda Guerra Mundial, ainda estaria brincando com
tubos de raios catódicos na sua garagem. A produção é mais social do que
nunca, e a apropriação dos resultados, mais privada do que nunca. Soa familiar?

1 Jose Ocampo, “A reforma da tributação corporativa internacional: a


perspectiva da
ICRICT”,  trad. Luiz Barucke, Nueva Sociedade, Julho 2018, p.36

2Wolfgang Streeck, Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo


democrático, trad. Marian Toldy e Teresa
Toldy, São Paulo: Boitempo, 2018, pp. 124-5
3 J Gar Alperovitz e Lew Daly, Apropriação indébita: como os ricos estão
tomando a nossa herança comum, trad. Renata Lucia Bottini, São Paulo:
Editora Senac, 2010, p. 55.

4“Thomas Jefferson to Isaac McPherson”, 13 ago. 1813, em: The Founders’


Constitution, v. 3, em Philip B. Kurland e Ralph Lerner (org.), Indianapolis:
Liberty Fund, 2001, disponível em: <http:// press-
pubs.uchicago.edu/founders/documents/a1_8_8s12.html>, acesso em: 17
abr.2020.

5 GarAlperovitzeLewDaly,Apropriação indébita,op. cit.,p.96

6Ibidem, p.97.

7As obras de Paulo Freire de acesso aberto estão disponíveis online no


repositório do Centro de Referência Paulo Freire.

8Ibidem, p. 153

Yuk Hui e a potência de uma tecnologia


decolonial
No canal Transe, o pensamento de um instigante filósofo da
tecnologia. Ele lembra: eurocentrismo recalcou diversas
cosmovisões, impondo sua técnica como universal e
dissociando-a do coletivo. Na cultura chinesa, há elementos
para contrapô-lo
BLOGDAREDAÇÃO
DESCOLONIZAÇÕES
por Redação
Publicado 07/10/2020 às 12:34 - Atualizado 07/10/2020 às 12:37

O canal Transe, parceiro de Outras Palavras, apresenta o quadro Por que


ler…?, em que discutirá pensadores e pensadoras relevantes para compreensão
do mundo em que vivemos. Na estreia, uma breve exposição do pensamento do
filósofo Yuk Hui, que desenvolve o conceito de cosmotécnica como uma forma
de pensar a técnica fora do universo de referências prometeísta e eurocêntrico,
amplificando-a a partir da experiência da filosofia chinesa.

A exposição é introdutória e não pretende esgotar o pensamento do autor,


funcionando mais como um convite para futuros leitores e leitoras.
Sujeito empreendedor, alienado e servil
Propaga-se a exaltação liberal do empresário de si mesmo,
que enxerga o mundo com interesses comerciais e cultiva o
ódio ao Estado. Procura-se, assim, apagar luta de classes.
Terreno fértil para a ultradireita e o todos-contra-todos…
OUTRASPALAVRAS
TRABALHO E PRECARIADO
por Otávio Augusto Cunha
Publicado 06/10/2020 às 19:50 - Atualizado 06/10/2020 às 19:53

Por Otávio Augusto Cunha, publicado originalmente em A Terra é Redonda

A pandemia da covid-19 veio à tona no início do ano de 2020 e, desde então,


tem intensificado os graves problemas econômicos do capitalismo
contemporâneo, principalmente nos países periféricos e dependentes, como o
Brasil. A intensa desigualdade social, seguida do aumento exponencial do
número de desempregados, demonstra que a dimensão da crise em que estamos
inseridos é de caráter trágico para a classe trabalhadora. Segundo o IBGE, 12,4
milhões de brasileiros estavam desempregados na quarta semana de junho; 2,6
milhões a mais que o registrado na primeira semana de maio. Já no início do
mês de setembro, o número de trabalhadores sem ocupação foi estimado em
12,8 milhões de brasileiros[i].

Contudo, mesmo no momento mais crítico desse início de século, o discurso


capitalista e empresarial tenta negar sua responsabilidade pela tragédia social e
busca impor sua agenda mercadológica como a solução dos problemas mais
urgentes, principalmente da população mais pobre e mais atingida pelo caos
social.  Dessa forma, temos presenciado a propagação em massa da palavra
empreendedorismo como sinônimo de solução, modernidade e progresso,
principalmente no que diz respeito aos rumos da educação pública [ii] e da
formação de jovens.  Mas, afinal, o que é o tal empreendedorismo?

Em primeiro lugar, vale afirmar que o que se propaga hoje como


empreendedorismo não tem relação com o conceito schumpeteriano de
“destruição criadora” [iii] e nem no ato da inovação, pelo contrário, se encontra
em uma posição muito mais simplista e contraditória do que o debate proposto
entre o autor austríaco como materialismo histórico de Marx e Engels. Para
compreendermos o que a ideologia capitalista e neoliberal propaga hoje como
empreendedorismo, é necessário observar como a colaboração da chamada
corrente austro-americana[iv] (nas figuras de autores como von Mises e Hayek) é
utilizada como base das concepções de ódio ao Estado e crença cega no
funcionamento do mercado como sinônimo de liberdade e bem-estar. Como
afirmam Dardot & Laval (2016), essa noção tem origem no esforço –
principalmente – de von Mises em querer fazer “a ciência econômica repousar
sobre uma teoria geral da ação humana, uma praxeologia”. De certa forma, é
essa perspectiva que cria figuras como Murray Newton Rothbard [v] e sua ideia de
um “anarcocapitalismo”, adorados pela extrema-direita defensora de uma
verdadeira guerra contra o Estado e guiados por uma agenda ultraliberal e
violenta, de características nitidamente neofascistas.

A diferença em relação ao liberalismo clássico dado por autores como von Mises
e Hayek consiste em ver a concorrência no mercado como um verdadeiro
processo de descoberta da informação, trata-se de uma certa atitude do sujeito
que supera os outros na busca por novidades e lucros o tempo todo. O mercado
é concebido, portanto, como necessário para a formação do sujeito econômico,
essa é a novidade subjetiva presente nesses autores e o que vai moldar o
conceito de empreendedorismo disseminado atualmente. Um dos principais
divulgadores desse conceito que faz sucesso atualmente (contra o conceito
schumpeteriano) e discípulo direto de von Mises é Israel Kirzner, que,
entendendo o mercado não como lugar de troca, mas sim como espaço de
formação dos sujeitos, afirma: “todo ator social é sempre empreendedor”. Dessa
forma, o empreendedorismo se configura uma ética, forma de pensar e agir, de
ser, uma forma de colocar-se no mundo.

Seguindo a linha de raciocínio, é possível notar que o empreendedor é o único


ser social possível dentro da perspectiva mercadológica proposta. Segundo
Kirzner, seguindo a aversão que von Mises demonstrava contra tudo que
pudesse exercer algum controle à ação do mercado, trata-se de uma questão da
escolha certa, feita pelo sujeito econômico que se formou dentro desse tipo de
sociedade e aprendeu a melhor forma de extrair seus benefícios baseados nas
suas ações práticas. É o que se chamou, dentro dessa tradição, de “democracia
do consumidor” contra a “ditadura da presença do Estado”. Ou seja, o
empreendedor na sociedade atual – imaginando o mercado como um processo
de formação em si – não é mais o capitalista nem mesmo o inovador do conceito
clássico de Schumpeter,  que muda incessantemente o processo de produção
através da sua “destruição criadora”, é um sujeito alienado dos problemas
sociais e munido de um espírito estritamente comercial que está sempre atento
às oportunidades de lucro graças às informações que eles têm e os outros não
(Dardot & Laval,2016).

Não é à toa que essa ideologia do empreendedorismo aparece em comunhão


direta com o avanço conservador em todo o mundo, acompanhado da retórica
do perigo comunista (através do marxismo cultural) do Estado e pela adesão
irrestrita a uma agenda ultraliberal, mercadológica, que tem como objetivo a
privatização total da vida e a transformação de todos os sujeitos em empresas de
si mesmos, educados pelas leis do mercado e atentos a qualquer oportunidade
de lucro. O sujeito, em uma jornada solitária e sem apoio de ninguém, a não ser
a sua própria perspicácia mercadológica, deve ser, necessariamente, adepto da
ordem e totalmente alienado quanto às contradições estruturais do capitalismo.

O interesse pelos escritos de von Mises, Hayek e seus discípulos (como Kirzner)
se justifica atualmente pela estratégia de desinformação e fake news
disseminada por uma extrema direita com valores cada mais medievais, que
consiste basicamente na ideia de que tudo que é estatal seria sinônimo de
comunismo, ditadura, corrupção e desvios éticos que não “existiriam” na
completa – e irrestrita – liberdade de mercado na desejada “democracia do
consumidor”. Essa dimensão do discurso neoliberal tem os grandes veículos de
comunicação como agentes que desempenham papel fundamental de
convencimento das consciências[vi] de que esse é o único horizonte possível, não
há alternativas. Essa ação está presente, também, nos programas desenvolvidos
por APHE’s (aparelhos privados de hegemonia empresariais) [vii] e suas propostas
de políticas ao se relacionar diretamente com o Estado visando sua
reestruturação empresarial.

A exaltação da lógica do empreendedorismo na sociedade atual busca afirmar


que, ao exercer essa função, o sujeito está acima das relações das classes sociais.
É um discurso perigoso, que se apoia no caráter funcional que esse tipo de
exaltação tem para a manutenção da sociedade capitalista e de suas
contradições estruturais e irreparáveis. Para os adeptos da solução através do
“empreendedorismo”, não importa que se trate de um trabalhador assalariado
ou de um capitalista, todos têm que ser educados para exercer a função
empreendedora. Para isso, basta ter “força de vontade”, “determinação”,
“flexibilidade”, “resiliência”, “proatividade”, “persistência”, “iniciativa” etc. Pois
é o sujeito em sua singularidade o único responsável pelo seu sucesso ou o seu
fracasso econômico. A ideologia de mercado, como sinônimo de eficiência em
contrapartida à ineficiência da intervenção estatal, é vista como a “formadora”
do sujeito econômico e empreendedor e, por isso, é a melhor forma de
sociabilidade educadora e disciplinadora das ações individuais. Como afirmam
Dardot & Laval (2016): “o processo de mercado constrói seu próprio sujeito. Ele
é auto construtivo”.

Entretanto, o que percebemos dentro do contexto atual, e da propagação da


lógica do empreendedorismo, é uma teoria completamente deslocada da
realidade concreta dos sujeitos, da história e a da consequente luta de classes
cotidiana. Do ponto de vista de uma análise realista e comprometida com a
transformação da sociedade, não podemos identificar os “novos”
empreendedores como sujeitos isolados e deslocados da realidade política em
que estão inseridos, pelo contrário, esse conjunto de trabalhadores
pauperizados são jogados à própria sorte[viii] pelo discurso mercadológico do
empreendedorismo quando passam a ser os únicos responsáveis por resolver os
problemas sociais que os cercam. A flexibilização das relações de trabalho e a
falsa sensação de liberdade precisam ser analisadas levando em conta sua
articulação direta com os direcionamentos propostos por entidades
internacionais, como o Banco Mundial[ix], BID, FMI, uma vez que o ataque aos
direitos trabalhistas e a retirada da proteção social aos trabalhadores (como
seguro desemprego, seguro acidente, auxílio doença e a aposentadoria) é uma
característica desse discurso neoliberal que dissemina a lógica empreendedora
como solução.
Todavia, a ideologia empreendedora está presente em programas dos mais
variados aparelhos privados de hegemonia de caráter empresarial (APHE’s) e
tem ganhado cada vez mais espaço em políticas públicas e, dessa forma,
redefinindo o papel do Estado, principalmente no que diz respeito ao acesso à
educação e cultura em países dependentes como o Brasil. Com o falso discurso
da “responsabilidade social empresarial”, o sujeito é convidado a se alienar dos
problemas estruturais da sociedade para focar no desenvolvimento das suas
competências mercadológicas para que possam, eles mesmos, criar suas
oportunidades em um mercado de trabalhadores cada vez mais sem direitos
sociais.

A centralidade dos problemas, como a desigualdade de renda e o desemprego,


se desloca da esfera das questões econômicas para a esfera da vida privada de
cada um. Com isso, é possível notar que a função prática da ideologia
empreendedora na sociedade atual é de apagar os conflitos inerentes à
contradição entre capital e trabalho e sua consequente luta de classes, e se
mostrar como a solução dos problemas sociais de forma enganosa. Essa noção
privatista e mercadológica, que tem o empreendedorismo como seu carro-chefe
de atuação, está sendo disseminada pela narrativa empresarial diariamente,
como é o caso do jornal “O Globo” em editorial recente [x], reafirmando a
necessidade de impulsionar a lógica do empreendedorismo, inclusive por dentro
do Estado,  como solução para o Brasil enfrentar a atual crise econômica e
social. A perspectiva de transformar todo e qualquer cidadão em um homem
empresarial (DARDOT, P; LAVAL, C, 2016), ou seja, uma empresa de si mesmo,
entende consequentemente o conhecimento e a educação como algo puramente
técnico, ligado à gestão e ao controle de riscos que, portanto, seria o único
conhecimento necessário para que se resolvam problemas graves da sociedade.

A tal solução empreendedora é, portanto, aquela que ensina, desde cedo, o


sujeito a se virar sozinho, não depender de ninguém, se alienar politicamente e
construir sua própria história de fracasso ou de sucesso. O empreendedor é o
modelo a ser seguido. O homem de negócios seria o exemplo de sujeito high-
tech, ou seja, antenado às novas tendências mundiais. Ignora-se completamente
a brutal desigualdade social em que estamos inseridos. Ao reafirmar equívocos
como a ideia de meritocracia, a face real do empreendedorismo é muito mais
problema do que solução para os tempos futuros.

Por fim, vale reafirmar os objetivos da ideologia do empreendedorismo


atualmente: o desejo de convencer a todos que estamos em uma sociedade sem
contradições estruturais, na qual o Estado é a raiz de todos os problemas, o
trabalhador precisa se transformar na sua própria empresa e é cruelmente
responsabilizado pelo seu futuro. Essa ideologia cumpre a função social de
intensificar as desigualdades, reafirmar o existente e consolidar a hegemonia
empresarial e mercadológica sobre o conjunto da sociedade.

Referências

BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar, 2001.
CALAZANS, Roberto Balau. A lógica de um discurso: o empresário
schumpeteriano. Porto Alegre: Ensaios FEE, 1992.

DARDOT, P.; LAVAL, C.. A nova razão do mundo: ensaio sobre a


sociedade neoliberal. São Paulo: Editora Boitempo, 2016.

FONTES, Virgínia. In: Notas para o estudo do imperialismo


contemporâneo – Marx, capital monetário e capital funcionante.

FONTES, Virgínia. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história.


Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010.

GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere, Vol (s), 1, 2 e 3. Carlos Nelson


Coutinho et al. (Eds.) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

LIMA, Jacob Carlos Lima. Participação, empreendedorismo e


autogestão: uma nova cultura do trabalho? Sociologias, Porto Alegre, v.
12, n. 25, set./ dez. 2010.

LUKÁCS, G. O ideal e a ideologia. In: Para uma ontologia do ser social II. São
Paulo: Boitempo, 2012.

SCHUMPETER, Joseph Alois. Teoria do desenvolvimento econômico:


uma investigação sobre lucros, capital, crédito, juro e o ciclo econômico. São
Paulo: Nova Cultural, 1997.

SCHUMPETER, Joseph Alois. Capitalismo, Socialismoe Democracia. Rio


de Janeiro: Fundo de Cultura,1961.

MARX, Karl. O capital: Crítica da Economia Política. Livro I. SãoPaulo: Nova


Cultural,1996.

MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Porto


Alegre:L& PM, 2010

MISES, Ludwig von. [ed. bras.: A ação humana: um tratado de economia,


2. ed., Rio de Janeiro, Instituto Liberal, 1995].

NEVES, Lúcia (org.), A nova pedagogia da hegemonia. Estratégias do capital


para educar o consenso, São Paulo, Xamã, 2005.

KIRZNER, Israel. The Meaning os Market Process: Essays in the


Development of Modern Austrian Economics, Londres, Routledge,
1992. 

VALENTIM, Erika. PERUZZO, Juliane. A ideologia empreendedora:


ocultamento da questão de classe e sua funcionalidade ao capital. In:
Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez. 2017.
Notas

[i]Fonte: IBGE

[ii]Stauffer, Anakeila de Barros (Org.) Hegemonia burguesa na educação


pública: problematizações no curso TEMS (EPSJV/PRONERA) / Organização
de Anakeila de Barros Stauffer, Caroline Bahniuk, Maria Cristina Vargas e
Virgínia Fontes. – Rio de Janeiro: EPSJV, 2018.

[iii]É necessário observar ainda que, apesar da ideia de empreendedorismo


aparecer em obras anteriores ao século XX[iii],  foi com Joseph Schumpeter
(1934) que o conceito ganha uma categorização contundente com o objetivo de
reafirmar os preceitos do liberalismo e do modo de produção capitalista como
um todo.

[iv]O adjetivo “austro-americano” designa aqui os economistas que imigraram


para os Estados Unidos ou os norte-
americanosquesealinharamàescolaaustríacamoderna,cujasduasfigurasteóricasei
deológicasmaisimportantes são Ludwig von Mises e Friedrich Hayek. Além das
teorias destes últimos, também é importante a colaboração dada por Israel
Kirzner, discípulo direto de vonMises.

[v]Murray Newton Rothbard foi um economista heterodoxo norte-americano da


Escola Austríaca e discípulo de von Mises. Historiador e filósofo político que
ajudou a definir o conceito moderno de libertarianismo.

[vi] https://www1.folha.uol.com.br/mpme/2020/08/brasil-ganha-600-mil-
microempreendedores-durante-aquarentena

[vii] Lúcia Neves (org.), A nova pedagogia da hegemonia. Estratégias do capital


para educar o consenso, São Paulo, Xamã, 2005.

[viii]O caso mais grave atualmente, sem dúvida, é o dos entregadores de


aplicativos como Rappi ou Ifood. Totalmente precarizados não tem nenhum
direito e nenhum tipo de vínculo empregatício.

[ix]o Banco Mundial, além de volumosos empréstimos, também fornece


aconselhamento e assistência técnica a Estados e municípios, bem como
pesquisa econômica sobre o desenvolvimento capitalista.

[x]“A chance de reerguer o país e evitar uma repetição de erros”, editorial.


Jornal O Globo, 13/04/2020.
Breno Altman: partidos de esquerda se institucionalizaram e perderam contato

com o povo
“As agências da direita hoje estão mais coladas no território do que a
esquerda”, explicou o jornalista à TV 247, utilizando como exemplo
as igrejas evangélicas, “agências do voto da direita”, com forte
presença no cotidiano do povo. “Existe um diretório do PT, do PSOL,
do PCdoB em cada bairro ao lado de cada igreja?”, questionou
9 de outubro de 2020, 17:12 h Atualizado em 9 de outubro de 2020, 17:48

 ...

Breno Altman (Foto: Felipe L. Gonçalves/Brasil247 |


Amanda Perobelli/Reuters)
 

247 - O jornalista Breno Altman disse à TV 247 que os partidos de


esquerda no Brasil tomaram proporções muito grandes e se
institucionalizaram de tal maneira que perderam espaço e presença
entre o povo em geral.

Altman diz que o distanciamento destas legendas causa, por exemplo,


uma baixa taxa de votação em eleições municipais. No sentido
contrário está a direita, segundo o jornalista, que tem uma rede
capilarizada por todo o País em contato direto com as massas por
meio, por exemplo, da direita evangélica. “A esquerda perdeu
território, a esquerda se institucionalizou demais. Os instrumentos, as
agências da direita hoje estão mais coladas no território do que a
esquerda. Eu me refiro, por exemplo, à direita evangélica. Ela hoje
tem uma rede capilarizada por todo o território nacional. Você vai em
qualquer bairro, qualquer comunidade e você vai encontrar igrejas
evangélicas”. 

“Parte dessas igrejas evangélicas são agências do voto da direita e


estão ali no cotidiano do povo, acompanhando questões de
desemprego, dependência química, de crises familiares, de falta de
políticas públicas, vão estabelecendo relações. Onde é que o povo vai
no domingo? Vai a um diretório partidário do PT, do PSOL, do
PCdoB ou vai à igreja? Existe um diretório do PT, do PSOL, do
PCdoB em cada bairro ao lado de cada igreja para o povo poder fazer
uma opção: ‘eu vou no partido ou eu vou na igreja?’. Não existe.
Esses partidos se transformaram em partidos superestruturais que
ganham vida mais dinâmica em período eleitoral. Aí se repete aquela
velha história tradicional dos políticos que aparecem na comunidade
apenas para pedir voto às vésperas de eleições”, completou.

17 April 2020

 

 
Reading time 9 - 12 minutes

 

 
Remind me later

The health of our domestic economies and the planet is tied to market forces
that are largely invisible and little understood. As Covid-19 shakes the
foundations of the world economy, rather than hope to restore it, let’s work to
replace it.
The global financial system is collapsing.
Here’s a three-step plan to take back
control
Political economist

ANN PETTIFOR

Neil M Smith, financial secretary of the British Virgin Islands, photographed in his office in
Road Town, Tortola. BVI is one of the world’s most important offshore financial service
centres and the world leader for incorporating companies. There are more than 800,000
companies based in BVI but only 28,000 inhabitants. All photographs in this article are
from the series The Heavens by Paolo Woods and Gabriele Galimberti, and were taken
between 2012 and 2015.

Iwas born and grew up in a dusty, sparsely populated gold mining town on the
bare and vast "veld" of the Orange Free State, South Africa.  As a child, my
town’s dependence on the extraction of gold at a price fixed in Washington
opened my eyes to the existence of an international financial system. 
Most puzzling to me was why the price of gold, set at $35 an ounce by
President Roosevelt in 1934, had not changed at all by the early 1970s. Why,
when prices for everything else in our town had moved since then, had the
price of a precious, scarce asset remained so low – especially since its
extraction from some of the deepest mine shafts in the world proved so
dangerous to the low-paid black and white miners who dynamited it out of
rock? 
My father, who had left school early to go to war, struggled to explain these
concepts to me but that interest – in what I would later learn was the global
financial system within which domestic economies are embedded – never left
me. Especially since the stability of the Bretton Woods  era of my childhood
was long ago dismantled by Wall Street bankers and their friends in the White
House. 
Read this story in one minute 

The Cayman Islands are the fifth-largest financial centre in the world, with
twice as many companies as there are citizens. Many of these companies have
a post office box but no physical premises.

The world is governed by market forces


In place of stability, what we have today is a ramshackle, largely deregulated
system, widely known as “globalisation”. 

Effectively lobbied for by economic cowboys with no interest in economic


justice or environmental sustainability, the result of this system where “the
world is governed by market forces”  is that since 1971 and the Nixon
Shock,  economies in the global north and south have staggered from one
crisis to the next.
The coronavirus is shaking the pillars which underpin the
temple of globalisation, causing the system to slide off its
foundations
Now the coronavirus is shaking the pillars which underpin the temple of
globalisation, causing the system to slide off its foundations. While such a
collapse will in many ways be ruinous, it is also an opportunity to once again
redesign and rebuild the international financial architecture so that it is more
resilient to economic shocks – and works to counter climate breakdown and
species extinction. 

What was previously economically unthinkable, now becomes possible. The


Overton Window  has been opened up to enable a wider discourse. 

A trader at the Hong Kong Stock Exchange – the sixth-largest in the world
and the second in Asia in terms of value of shares traded.

2012: The mailbox at Herengracht 566 in Amsterdam is called U2 Limited


because it’s where Bono and his band have moved a big part of their multi-
million dollar business ($195 million in 2011) to avoid paying taxes in
Ireland. The tax rate on royalty earnings in the Netherlands is close to zero. A
report by the tax campaign group Publish What You Pay Norway singled out
the Netherlands as the second-favourite home for extractive industry
companies that operate in Africa.
Living in an era of globalised interests but
nationalistic rhetoric
Just as this opening for economic transformation has arisen, the defenders of
the status quo have raised the alarm. One of the first to rise to globalisation’s
defence is Branko Milanović, once lead economist of the World Bank’s
research department. 

In a recent article  he warns that “globalisation could unravel” under pressure


from the pandemic, and if it were to do so, societies could unravel too. To
Milanović, this is the biggest danger posed by the coronavirus: that “the
longer the crisis lasts, and the longer obstacles to the free flow of people,
goods, and capital are in place, the more that state of affairs will come to seem
normal”. In an apocalyptic analogy, he compares this “unraveling” of
globalisation to “the disintegration of the Western Roman Empire”.  
This fear of “globalisation unraveling” is shared by Boris Johnson, the British
prime minister, who, while pursuing Brexit as an overtly nationalist agenda,
thinks a Superman needs to come to globalisation’s defence.  In a
speech  given in February of this year, he said: “When there is a risk that new
diseases such as coronavirus will trigger a panic and a desire for market
segregation that go beyond what is medically rational to the point of doing
real and unnecessary economic damage, then at that moment humanity needs
some government somewhere that is willing … to take off its Clark Kent
spectacles and leap into the phone booth and emerge with its cloak flowing as
the supercharged champion of the right of the populations of the earth to buy
and sell freely among each other.” 
As citizens we would not feel powerless if we understood that
the private, globalised financial system depends utterly on
public, taxpayer-backed resources
Across the proverbial pond, Donald Trump, for all his nationalist rhetoric,
profits from hotels, golf course and fashion chains based in foreign
jurisdictions – and from an international banking system that turns a blind eye
to his serial and sometimes fraudulent bankruptcies. Read more about the pattern of
bankruptcies in this New Yorker article.
The US leader presides over a United States Federal Reserve that continues to
enjoy the imperial privilege of issuing the world’s reserve currency,  and
exercises historically unprecedented dominion over the global economy.
Trump has used this privilege to unilaterally impose economic blockades on
foreign powers and to violate international law. Jeffrey Sachs writes about this here.
But back on his home turf, Trump presents a different persona: as an anti-
globalist. In a speech to the UN in 2019,  he spelled out his new-found
nationalism. “Each nation,” he said, “has a cherished history, culture and
heritage that is worth defending and celebrating, and which gives us our
singular potential and strength. The future doesn’t belong to globalists. The
future belongs to patriots.” 
Fake as it may be, this anti-globalisation stance has won Trump public
support, and granted him extraordinary political power over the United
States’s most powerful institutions.

Under Jersey’s “high value residency scheme” individuals who earn at least
$1million a year are actively encouraged to relocate to the island. They are
automatically given residential status so that they can immediately benefit
from the Island’s very low tax regime.
Where do progressives stand on globalisation? Are Green and Social
Democrat politicians as stunned and confused by this crisis as they were
after the collapse of Lehman Brothers in 2008? Read more about the causes and
impacts of the collapse of one of the world’s biggest investment banks here. Are they once
again willing to restore, bailout and preserve the globalised financial system –
or do they agree with the economist Dani Rodrik   that nation-states,
democratic politics and deep international economic integration are mutually
incompatible? If the latter, do those loosely defined as "the left" and as
"greens" have a vision for a new global order that is radically different?  
The evidence from recent left-wing election campaigns in Britain and the US
is disappointing. Both the Jeremy Corbyn-led general election campaign and
the Bernie Sanders-led presidential campaign appeared blind to the impact of
the international financial system on their own policies and on the lives of
their voters. Odd, given that their anti-globalisation electorates loathe the
current system.  

Both Corbyn and Sanders offered sound analysis, deep compassion and
sincere solidarity to the victims of globalisation and climate breakdown. But
they focused on domestic issues – health systems, affordable housing,
nationalisation of the railways, kindness to the poor and homeless – and
ignored the globalised financial infrastructure that makes reform of these
sectors virtually impossible. 

Anti-globalisation voters who backed Brexit or “America First” were clearly


not impressed as neither man is today in a position to effect change, either as
British prime minister or as the president of the United States.

John E Chapoton (standing) addresses the monthly luncheon of the


Wilmington Tax Group in Delaware, where professionals gather to hear
speakers on topics of policy, administration and tax law. In this speech
Chapoton advocates for a tax reform in line with the Tax Reform Act of 1986,
which he helped formulate for the Reagan administration. Under that reform,
the top tax rate for individuals was lowered from 50% to 28%.

The argument for local self-sufficiency but


global cooperation
While we may deplore Donald Trump’s double standards, the Covid-19
pandemic has restored “national foundations”.  In the absence of an
international system of cooperation and coordination based on multilateral
institutions such as  the World Health Organization, countries have been
forced to fall back on their own strengths, resources and institutions. Each
country has responded differently to the disease – in line with their own
distinct health systems, cultures, political institutions and financial
capabilities. 
Milanović acknowledges this development and warns against it: “The world
faces the prospect of a profound shift,” he writes, “a return to natural – which
is to say, self-sufficient – economy. That shift is the very opposite of
globalisation. While globalisation entails a division of labour among disparate
economies, a return to natural economy means that nations would move
toward self-sufficiency.” 

It is this very idea of self-sufficiency in steady state economies that I argue for
in my book, The Case for the Green New Deal,  coupled with greater
international coordination and cooperation which remain necessary to prevent
the breakdown of the earth’s and humanity’s life support systems. 

A man floats in the swimming pool on the 57th floor of the Marina Bay Sands
Hotel. The skyline of “Central,” the Singapore financial district, is behind
him.
In broad terms the Green New Deal (GND) demands that we address first the
global; second the differential impact of both historic and current climate
change on different nations; and third, that we recognise the vital role of the
state. It means wealth transfers to poor countries suffering the consequences
of centuries of industrialisation in rich countries, and self-sufficiency in the
provision of human needs, goods and services for their citizens. 

At an individual level, private sufficiency (learning to grow our own food,


sew our own clothes and derive energy from renewable sources within our
own finite boundaries) will be complemented by public luxury. As the writer
George Monbiot argues,  the expansion of public wealth creates more space
for everyone; the expansion of private wealth reduces it, eventually damaging
most people’s quality of life.
The Covid-19 pandemic and climate breakdown have much in common. Both
crises affect different nations, and different communities with varying degrees
of severity; as the former chief financial officer of the World Bank, Joaquim
Vieira Ferreira Levy, points out  both the coronavirus and climate change
“[show] the importance of government”. As such, both should prompt us to
reimagine our economic and financial systems before it is too late. 

Andreas Ugland and family are depicted in a large oil painting that hangs in
the Cayman Motor Museum. The billionaire Ugland was born in Norway and
acquired Caymanian citizenship in the 1990s. He is chairman of Ugland
International Holdings. At the centre of the painting is Ugland House, a
building where more than 19,000 companies are registered. It has become
such a symbol of tax avoidance that President Obama has stated that “either
this is the largest building in the world or the biggest tax scam on record”.

Three keys to reforming the global financial


system
This, I hear you say, is all very well. But what can we, as citizens, do to
prevent the restoration of a global financial system governed by volatile
markets (the largest of which is the foreign exchange market), dominated by
the US dollar and built on government debt? And what might it take to ensure
that that system is governed by public, not private interests? 

I propose a transformation that happens in three ways.

We need greater understanding of the centrality of the international


financial architecture to domestic policymaking
Right now, the international system is scarcely a matter of public discourse. It
is discussed in elite, niche, academic circles, but not sufficiently in trades
unions, student groups, religious or community spaces. Instead, our collective
focus has been relentlessly on domestic issues. That must change. 
Knowledge is indeed power. People cannot transform that which they do not
know of or understand. And the international financial and monetary system is
both hard to know of and understand, as it is so intangible and detached
from regulatory democracy.  But understand it we must. Awareness of the
power that globalised finance plays in determining impacts in the real world
economy, close to home, is vital. 
At the very least our political leaders should have an understanding of both
the system and its importance, and should use this knowledge to inform
domestic audiences. Their message would be straightforward: We cannot
restore our health systems, for example, if we cannot raise affordable finance
to do so. And we cannot do that unless we (not markets) manage the
international financial system, to ensure that money is made available for
society’s most urgent needs, and that the cost of financing is sustainable. 

“Tomorrow’s Finance”, a fundraising dinner hosted by the Lord Mayor of The


City of London, UK. ‘The City’ is a territory just over one square mile in size
at the geographical centre of London. It is the world’s largest exporter of
financial services.

Our states cannot afford to borrow to stabilise the economy if they do not
simultaneously generate sufficient revenues through taxation to repay what was
borrowed
To be clear, I am not arguing that we need tax revenues to pay for the
necessary investment. Simply that to keep a nation’s monetary system in
balance, we need ultimately to raise tax revenues to repay the initial finance –
and not remain locked into a trillion-dollar government debt market.  
While this may seem self-evident, we cannot generate sufficient tax revenues
in a world where money crosses borders more easily than people fleeing
conflict. A world which enables Big Pharma and Silicon Valley companies to
dodge taxes and lodge profits in tax havens. And we cannot fix health systems
– or prevent climate collapse –  if globalised corporations outcompete local
producers and manufacturers because the latter enjoy the massive tax breaks. 

Alain Vandenborre stands looking at a diamond from his collection worth


US$300,000, in one of his high-security vaults in the basement of the
Singapore Freeport. Vandenborre is one of the co-founders of the Singapore
Freeport where many major companies are based, including Malca-Amit,
Christie’s, Deutsche Bank and Brink’s.

We must use our power as taxpayers


As citizens we would not feel so powerless if we understood that the private,
globalised financial system depends utterly on public, taxpayer-backed
resources. Just look at the current crisis unfolding. Global markets, which we
are often told are best left to their own devices, we discover with every crisis,
are slavishly dependent on the largesse of publicly backed central banks,
and in particular on the Federal Reserve.  The Federal Reserve is increasingly
essentially nationalising, not just bailing out, the private finance sector. 
Central banks are only able to undertake these bailouts, because they derive
their power to create new money from a nation’s taxpayers. The United States
has a well-developed system of collecting taxes from about 60 million law-
abiding US Americans. Those regular tax collections make up the collateral
that backs up the central bank’s actions, guarantees future government
income, and determines effectively the value of a currency. Countries that
lack a well-developed tax collection system lack the collateral needed for a
strong central bank and sound currency. 

So what we need is to form a new taxpayers’ alliance, an alliance that spreads


understanding of how dependent the global financial system is on public
resources – resources made available by regular taxpayers. And as taxpayers,
we should set the conditions: that public resources should only be made
available on terms that ensure the finance system is transformed into the role
of servant, not master of the economy. 
The coronavirus pandemic is a moment of reckoning for globalisation and our
international financial system. But it is vital that we first condemn the current
system – rather than wish to save it. Then we need to expand both our
understanding and discussion of alternatives in a way that makes it easy for
people like my father – not just economists – to grasp the centrality of the
system to everyday life. As taxpayers, the power is all of ours. Now we must
use it.

The lobby of Ernst & Young’s headquarters in London. EY is the third-largest


professional services firm in the world by aggregated revenue, and one of the
"Big Four” audit firms. The Big Four (PwC, Deloitte, KPMG and EY) are
often accused of being the backbone of offshore finance and aggressive
taavoidance strategies. They collectively audit 99% of FTSE 100 companies.

Gar Alperovitz and Lew Daly – Apropriação Indébita: como os ricos estão
tomando a nossa herança comum – Editora Senac, São Paulo 2010, 242p.
Ladislau Dowbor > Dicas de Leitura > Gar Alperovitz and Lew Daly – Apropriação Indébita: como
os ricos estão tomando a nossa herança comum – Editora Senac, São Paulo 2010, 242p.

NOV 2010
 comente | Postado em Dicas de Leitura
A concentração de renda e a destruição ambiental constinuam sendo os nosso
grandes desafios. São facetas diferentes da mesma dinâmica: na prática,
estamos destruindo o planeta para a satisfação consumista de uma minoria, e
deixando de atender os problemas realmente centrais. Como explicar que, com
tantas tecnologias, produtividade e modernidade, estejamos reproduzindo o
atraso? Em particular, como a sociedade do conhecimento pode se transformar
em vetor de desigualdade?
O prêmio Nobel Kenneth Arrow considera que os autores de “Apropriação
indébita: como os ricos etão tomando a nossa herança comum”, Gar Alperovitz
e Lew Daly, “se baseiam em fontes impecáveis e as usam com maestria. Todo
mundo irá aprender ao ler este livro”. Eu, que não sou nenhum prêmio Nobel,
venho aqui contribuir com a minha modesta recomendação, transformando o
meu prefácio em instrumento de divulgação. Mania de professor, querer
comunicar o entusiasmo de boas leituras. E recomendação a não economistas:
os autores deste livro têm suficiente inteligência para não precisar se esconder
atrás de equações. A leitura flui.
A quem vai o fruto do nosso trabalho, e em que proporções? É a eterna
questão do controle dos nossos processos produtivos. Na era da economia
rural, os ricos se apropriavam do fruto do trabalho social, por serem donos da
terra. Na era industrial, por serem donos da fábrica. E na era da economia do
conhecimento, a propriedade intelectual se apresenta como a grande avenida
de acesso a uma posição privilegiada na sociedade. Mas para isso, é preciso
restringir o acesso generalizado ao conhecimento, pois se todos tiverem
acesso, como se cobrará o pedágio, como se assegurará a vantagem de
minorias?
Um argumento chave desta discussão, é naturalmente a legitimidade da posse.
De quem é a terra, que permitia as fortunas e o lazer agradável dos senhores
feudais? Apropriação na base da força, sem dúvida, legitimada em seguida por
uma estrutura de heranças familiares. Uma vez aceito, o sistema funciona, pois
na parte de cima da sociedade forma-se uma aliança natural ditada por
interesses comuns.
Na fase industrial, um empresário pega um empréstimo no banco – e para isso
ele já deve pertencer a um grupo social privilegiado – e monta uma empresa.
Da venda dos produtos, e pagando baixos salários, tanto auferirá lucros
pessoal como restituirá o empréstimo ao banco. De onde o banco tirou o
dinheiro? Da poupança social, sob forma de depósitos, poupança esta que será
transformada na fábrica do empresário. Aqui também, vale a solidariedade dos
proprietários de meios de produção, e o resultado de um esforço que é social
será em boa parte apropriado por uma minoria.
Mudam os sistemas, evoluem as tecnologias, mas não muda o esquema. Na
fase atual, da economia do conhecimento, coloca-se o espinhoso problema da
legitimidade da posse do conhecimento. A mudança é radical, relativamente
aos sistemas anteriores: a terra pertence a um ou a outro, as máquinas têm
proprietário, são bens “rivais”. No caso do conhecimento, trata-se de um bem
cujo consumo não reduz o estoque. Se transmitimos o conhecimento a alguém,
continuamos com ele, não perdemos nada, e como o conhecimento transmitido
gera novos conhecimentos, todos ganham. A tendência para a livre circulação
do conhecimento para o bem de todos torna-se portanto poderosa.
A apropriação privada de um produto social deve ser justificada. O aporte
principal de Alperovitz e de Daly, neste pequeno estudo, é de deixar claro o
mecanismo de uma apropriação injusta – Unjust Deserts – que poderíamos
explicitar com a expressão mais corrente de apropriação indébita. Ao tornar
transparentes estes mecanismos, os autores na realidade estão elaborando
uma teoria do valor da economia do conhecimento. A força explicativa do que
acontece na sociedade moderna, com isto, torna-se poderosa.
Para dar um exemplo trazido pelo autor, quando a Monsanto adquire controle
exclusivo sobre determinada semente, como se a inovação tecnológica fosse
um aporte apenas dela, esquece o processo que sustentou estes avanços. “O
que eles nunca levam em consideração, é o imenso investimento coletivo que
carregou a ciência genética dos seus primeiros passos até o momento em que
a empresa toma a sua decisão. Todo o conhecimento biológico, estatístico e de
outras áreas sem o qual nenhuma das sementes altamente produtivas e
resistentes a denças poderia ter sido desenvolvida – todas as publicações,
pesquisas, educação, treinamento e ferramentas técnicas relacionadas sem os
quais a aprendizagem e o conhecimento não poderiam ter sido comunicados e
fomentados em cada estágio particular de desenvolvimento, e então passados
adiante e incorporados, também, por uma força de trabalho de técnicos e
cientistas – tudo isto chega à empresa sem custo, um presente do passado”
(55) Ao apropriar-se do direito sobre o produto final, e ao travar
desenvolvimentos paralelos, a empresa canaliza para si gigantescos lucros da
totalidade do esforço social, que ela não teve de financiar. Trata-se de um
pedágio sobre o esforço dos outros. Unjust Deserts.
Se não é legítimo, pelo menos funciona? A compreensão do caráter particular
do conhecimento como fator de produção já é antiga. Uma jóia a este respeito
é um texto 1813 de Thomas Jefferson: “Se há uma coisa que a natureza fez
que é menos suscetível que todas as outras de propriedade exclusiva, esta
coisa é a ação do poder de pensamento que chamamos de idéia….Que as
idéias devam se expandir livremente de uma pessoa para outra, por todo o
globo, para a instrução moral e mútua do homem, e o avanço de sua condição,
parece ter sido particularmente e benevolmente desenhado pela natureza,
quando ela as tornou, como o fogo, passíveis de expansão por todo o espaço,
sem reduzir a sua densidade em nenhum ponto, e como o ar no qual
respiramos, nos movemos e existimos fisicamente, incapazes de confinamento,
ou de apropriação exclusiva. Invenções não podem, por natureza, ser objeto de
propriedade.”
O conhecimento não constitui uma propriedad no mesmo sentido que a de um
bem físico. A caneta é minha, faço dela o que quiser. O conhecimento, na
medida em que resulta de um esforço social muito amplo, e constitui um bem
não rival, obedece a outra lógica, e por isto não é assegurado em permanência,
e sim por vinte anos, por exemplo, no caso das patentes, ou quase um século
no caso dos copyrights, mas sempre por tempo limitado: a propriedade é
assegurada por sua função social – estimular as pessoas a inventarem ou a
escreverem – e não por ser um direito natural.
O merecimento é para todos nós um argumento central. Segundo as palavras
dos autores, “nada é mais profunamente ancorado em pessoas comuns do que
a idéia de que uma pessoa tem direito ao que criou ou ao que os seus esforços
produziram”.(96) Mas na realidade, não são propriamente os criadores que são
remunerados, e sim os intermediários jurídicos, financeiros e de comunicação
comercial que se apropriam do resultado da criatividade, trancando-o em
contratos de exclusividade, e fazem fortunas de merecimento duvidoso. Não é
a criatividade que é remunerada, e sim a apropriação dos resultados: “Se muito
do que temos nos chegou como um presente gratuito de muitas gerações de
contribuiçoes históricas, há uma questão profunda relativamente a quanto uma
pessoa possa dizer que “ganhou merecidamente” no processo, agora ou no
futuro.”(97)
As pessoas em geral não se dão conta das limitações. Hoje 95% do milho
plantado nos EUA é de uma única variedade, com desaparecimento da
diversidade genética, e as ameaças para o futuro são imensas. Teremos livre
acesso às obras de Paulo Freire apenas a partir de 2050, 90 anos depois da
morte do autor. O livre acesso às composições de Heitor Villalobos será a partir
de 2034. Isto está ajudando a criatividade de quem? Patentes de 20 anos há
meio século atrás podiam parecer razoáveis, mas com o ritmo de inovação
atual, que sentido fazem? Já são 25 milhões de pessoas que morreram de
Aids, e as empresas farmacêuticas (o Big Pharma) proibem os países afetados
de produzir o coquetel, são donas de intermináveis patentes. Ou seja, há um
imenso enriquecimento no topo da pirâmide, baseado não no que estas
pessoas aportaram, mas no fato de se apropriarem de um acúmulo
historicamente construído durante sucessivas gerações.
Nesta era em que a concentração planetária da riqueza social em poucas mãos
está se tornando nsustentável, entender o mecanismo de geração e de
apropriação desta riqueza é fundamental. Os autores não são nada
extermistas, mas defendem que o acesso aos resultados dos esforços
produtivos devam ser minimamente proporcionais aos aportes. “A fonte de
longe a mais importante da prosperidade moderna é a riqueza social sob forma
de conhecimento acumulado e de tecnologia herdada”, o que significa que
“uma porção substatntiva da presente riqueza e renda deveria ser realocada
para todos os membros da sociedade de forma igualitária, ou no mínimo, no
sentido de promover maior igualdade”.(153)
Um livro curto, muito bem escrito, e sobretudo uma preciosidade teórica,
explicitando de maneira clara a deformação generalizada do mecanismo de
remuneração, ou de recompensas, que o nosso sistema econômico gerou.
Trata-se aqui de um dos melhores livros de economia que já passaram por
minhas mãos. Bem documentado mas sempre claro na exposição, fortemente
apoiado em termos teóricos, na realidade o livro abre a porta para o que
podemos qualificar de teoria do valor, mas não da produção industrial, e sim da
economia do conhecimento, o que Daniel Bell qualificou de “knowledge theory
of value”. A Editora Senac tomou uma excelente iniciativa ao traduzir e publicar
este livro. Vale a pena. (www.editorasenacsp.com.br )
Ladislau Dowbor, professor de economia e administração da PUC-SP, é autor
de Democracia Econômica e de Da propriedade Intelectual à Sociedade do
Conhecimento, disponíveis em https://dowbor.org
Leia mais

 Robert Skidelsky – What’s wrong with economics? A primer for the


perplexed – Yale University Press, New Haven, 2020
 L.Dowbor – Capital e ideologia, de Thomas Piketty: uma visão de conjunto
dos nossos desafios – 4p. – abril 2020
 Ann Pettifor – The case for the Green New Deal – Verso, London, New
York, 2019, 185 p.
 Felicia Wong – The emerging worldview: how new progressivism is moving
beyond neoliberalism – A landscape analysis – Roosevelt Institute, January 2020 –
56p.
 Joseph Stiglitz – People, Power and Profits: Progressive capitalism for an
age of discontent – W.W. Norton, New York, London, 2019, 371 p.

Unjust Deserts: An Interview with


Gar Alperovitz and Lew Daly
G. Alperovitz and L. Daly: Spread the Wealth
James Lardner ▪ November 21, 2008

IF THE conservative era now collapsing around us had a reigning idea, it was
best expressed by Margaret Thatcher when she declared with Bourbonesque
flair that “there is no such thing as society.” In their new book Unjust Deserts:
How the Rich are Taking our Common Inheritance and Why We Should Take it
Back, Gar Alperovitz and Lew Daly turn Thatcher’s premise on its head and with
it the whole individualistic worldview that ruled our politics for the last three
decades. They focus on the role of knowledge in economic growth, arguing that
expanding knowledge is a collective source of wealth and, as such, demands a
significant social return in the direction of greater equality.

James Lardner: After all the twists and turns of an amazing presidential


campaign, the key point of contention in the end was “the redistribution of
wealth”—not Barack the Reverend Wright-trained “America-hater” or the San
Francisco-style “limousine liberal,” but “Barack the redistributor.” What do you
make of this charge?

Lew Daly: Obama used the phrase “spread the wealth around” when Joe the
Plumber asked about his tax plan late in the 2008 presidential campaign, and,
of course, the McCain team seized on this “socialist” idea and made it their
central critical theme in the final days before the election. As in Father
Coughlin’s time and Barry Goldwater’s, Joe the Plumber’s charges of
“socialism” didn’t carry much weight at the polls. But I actually think this
particular plot twist at the end was the most interesting political moment of the
entire presidential campaign, because it foreshadows what the Obama years
will be about. For the last two decades, the Republican Party ignored
distribution while the Democrats changed the subject from distribution to
growth, from “dividing the pie” to “enlarging the pie.”

It was arguably the Democrats who worked the hardest to sell middle America
on this “win-win” idea of putting growth before equality, and both parties hooked
us in by loosening credit and creating “wealthy feelings” with two major asset
bubbles. Well, that’s over now, and the politicians no longer have the luxury of
avoiding the real problems of declining household earning power and growing
inequality. But what Obama should have done more clearly on the campaign
trail, to start this debate off on the right foot, was fire back a very simple point,
easily illustrated: he’s not trying to “spread the wealth around” so much as put a
stop to the massive redistribution that’s already going on in America from the
middle to the top.

JL: What is this “upward redistribution?”

Gar Alperovitz: The economic facts plainly show this. In the decades after the
Second World War, productivity and wages rose together, almost on a one-to-
one basis. Beginning in the 1980s, productivity and wages began to diverge, a
divergence that sharpened to record levels under George W. Bush. Since 2000,
productivity has increased about 20 percent, but the median hourly wage went
up only 3 percent. So the question is: Where is the wealth that used to go to
wage-earners going today? Scott Lilly of the Center for American Progress
gives us a snapshot of where it’s going by looking at the Bush “recovery” of
2002-2006. Although this was a particularly extreme period, the relative
magnitudes are roughly in line with trends emerging over the last thirty years.
Household income increased a total of $863 billion over the period. $626 billion
of the total gain went to the top 1 percent of households. The bottom 90 percent
got only $41 billion, less than 5 percent of the total gain. Unless Joe the
Plumber thinks 90 percent of the people create only 5 percent of the output—
this can only be described as upward redistribution. Or as Theodore Roosevelt
put it, taking from those “who earn more than they possess” and giving to those
“who possess more than they earn.”

LD: From this kind of evidence on distribution, we probe deeper to look at the


societal and historical contributions that make all of us “social debtors” by Teddy
Roosevelt’s moral standard (or immoral standard, as it were) of possessing
more than we individually earned. The rich are simply more indebted because
they necessarily received more from society, and so, logically, they owe more
back. Or put another way, the problem with Joe the Plumber’s critique of
“spreading the wealth around” is that it doesn’t take into account the fact that
wealth is already highly socialized before we even start talking about taxation. It
has already been “spread around” by many kinds of social contributions that
add far more value to our labor and investments than what anyone pays in
taxes.

JL: You quote Warren Buffett posing this question: “How much money would I
have if I were born in Bangladesh, or born here in 1700”? What’s his point? Isn’t
it obvious?
LD: Yes, it is obvious. The problem is we don’t take it seriously. He’s saying—in
fact, these are also his words—that “society is responsible for a very significant
percentage of what I’ve earned.”

JR: Wait a minute…society? But Margaret Thatcher didn’t believe there was


such a thing.

LD: Yes, it became an unfashionable concept for a while in a few other


countries besides our own. By “society” Buffett means everything that
individuals depend on and benefit from which they themselves did not create
and do not maintain. From good roads, to public schooling, to national defense,
to food and drug regulation, to social insurance programs like Social Security
and Medicare—there are many institutions and systems that all or most of us
commonly use in our daily lives. These are often funded by taxes, of course, but
for pennies on the dollar compared to the value they add to our lives

GA: But Buffett’s deeper point is that his wealth is not strictly a product of his
unique talents or effort. For all his gifts, he’s telling us that his billions are largely
an accident of when and where he was born—that if he were the same person
he is today (with the same amount of effort and intelligence) but was born in a
poor country or transported back to early America, he would not have the
wealth he has today or even a tiny fraction of it. So why then should we think of
the wealth he “owns” as entirely, or even largely, his and, therefore, as being
immune from other kinds of claims such as social need?

JL: So you’re making a new argument for the old idea of sharing the wealth?

LD: In the first place, we’re talking about where wealth comes from, and who
really “owns” it in the first place. But the time horizon has to be larger. We’re
also talking about what the living owe the dead, about how society has
preserved the advances created by previous generations, and what this
cumulative “inheritance” of human learning, if you will, contributes to our current
economic activities and well-being. Now, to understand the impact of this
inheritance, we need to grasp some basic facts about economic growth and
how we accumulated our wealth. We need to know what the growth record has
been and how our growth has changed in the modern era.

JL: And how has growth changed?

GA: Basically the story is that we have moved from a labor-intensive, small-


scale farming economy to a knowledge-based information economy. In the
process, the sources of growth have changed, but it’s important to understand
that individuals have not really changed. We work no harder today than our
ancestors did in 1800 or in the ancient past, and just the same, we are no more
intelligent, in terms of basic brain capacity and reasoning ability. The cave
paintings of earliest human culture are works of roughly the same basic
intelligence as the theory of relativity. Let’s hold that thought: Essentially, we
work no harder and are no more intelligent than our ancestors from the near or
even the ancient past.
And yet our economy is more than 1,000 times larger than it was in 1800, and
the best measure of prosperity, per capita Gross Domestic Product (GDP)—the
amount of output the economy generates for every person—is twenty times
higher today than it was in the early nineteenth century (it was $42,000 in 2006,
the equivalent of almost $170,000 for a family of four). The key to this growth,
experts agree, is rising productivity, usually measured in terms of the amount of
output per hour of work, which rose more than fifteen-fold since 1870.

JL: Wasn’t economic growth always based on some combination of knowledge,


capital, and labor?

GA: Yes, but the recipe—the balance of ingredients—is very different from what
it used to be. After the Second World War, economists began to formally study
economic growth, and a method known as growth accounting was developed to
measure the sources of growth—the idea being that if we understand the “how”
of economic growth, where it’s coming from, then we can develop better policies
to improve the economy and raise living standards. The pioneer in this work
was MIT economist Robert Solow, who, in a brief but now-famous paper
published in 1957, made a startling discovery (he later won a Nobel Prize for
this work). In contrast with the then-dominant assumption that increases in the
supply of capital (factories, machines, etc.) were the main engine of economic
growth, Solow found that less than 13 percent of growth in the first half of the
twentieth century could be attributed to capital accumulation or increases in
labor supply (in fact, labor supply per person had been diminishing as the forty-
hour week became the norm).

Most of the growth, that is, was not coming from the conventional inputs of labor
and capital, what workers and employers supply. The nearly 88 percent of
growth that remained unaccounted for—which became known as the Solow
Residual—could only be attributed, Solow concluded, to something broader and
deeper than the everyday economic activity embodied in labor effort and capital
accumulation. Solow defined this as “technical progress in the broadest sense,”
or, in other words, the cumulative knowledge and technological capacity of our
society. This did not make any sense in terms of our traditional individualistic
way of thinking about economic activity or economic rewards.

JL: But in a technological society, isn’t individual brainpower more important


than ever?

GA: Maybe not. An engineer working today might have the same human capital
as an engineer working 100 years ago. Yet, as the Stanford economist Paul
Romer points out, the contemporary engineer is typically far more productive.
The reason is self-evident: “He or she can take advantage of all the additional
knowledge accumulated as design problems were solved during the last 100
years.” The value is in the knowledge, not the individual.

JL: What does it mean to say that the value is in the knowledge?

LD: Romer’s example suggests something deeper about the cumulative impact


of expanding knowledge: As knowledge grows and improves against a relatively
fixed baseline of human effort and intelligence, the importance of individual
contributions shrinks proportionally. In other words, the locus of value or value-
generation is shifting from the individual to society. And this, in turn, means that
our conventional individualistic basis for judging economic differences no longer
holds. How do we measure “who deserves what” in an era of knowledge-based
growth, where the cumulative knowledge of society is increasingly more
important than individual effort or intelligence? Clearly, the way we talk and
think about inequality doesn’t account for the enormous “free lunch” of inherited
knowledge at the heart of both our annual GDP and our total wealth.

JL: The people who figure out the Forbes 400 Richest say we shouldn’t be


especially troubled by the degree of inequality in modern America because,
compared to their nineteenth and twentieth century forbears, so many more of
today’s millionaires and billionaires are “self-made.”

GA: They’ve got it backwards. But, in fairness to Forbes, so do a lot of other


people. Popular culture and much of our education promotes a “heroic” view of
progress that obscures how most technologies really develop. The heroic view
sees progress simply as a sequence of great achievements by extraordinary
individuals. It is the view that Albert Einstein rejected when he famously said
“many times a day I realize how much my inner and outer life is built upon the
labors of my fellow men, both living and dead.” The reality is much closer to
Einstein’s view of building on others’ labor over a long duration. From
transportation, to medicine, to computers, technological progress is much less
about isolated “eureka” moments than about recombining existing knowledge in
new ways. An individual may hit upon something new that adds to existing
knowledge and makes it more effective, but really the key is how the existing
knowledge predisposes the individual to look for certain things within a narrow
range of possibilities—a condition that makes discovery almost an automatic
process over time.

This is plainly illustrated in the very common phenomenon of “simultaneous


invention,” where two or more people working independently invent or discover
the same thing at roughly the same time. So, Charles Darwin and Alfred Russel
Wallace both discovered the theory of evolution by natural selection at the same
time. Or take the telephone. The very day Alexander Graham Bell’s lawyer filed
for his patent on the telephone in 1876, so did Elisha Gray, and it’s possible that
the only reason another inventor, Antonio Meucci, didn’t beat them both is that
he didn’t have enough money to file for the patent several years earlier. None of
these individuals “invented” the telephone in any strict individualistic sense.
Bell’s “heroic” contribution was simply that he won the race to obtain legal title
to an invention that was about to happen anyway.

JL: OK, but just because single individuals aren’t the engines of progress that
doesn’t mean everyone plays an equal part. Isn’t innovation still limited to fairly
small circles of people who have a certain kind of special claim on the rewards?

LD: No, because, even if the number of people applying themselves to a


problem is frequently very small, none of them are essential to the process.
What is essential is the knowledge they all have at their disposal. Take Bill
Gates: If Bill Gates had to learn for himself all the knowledge he had at his
disposal in the late 1970s when he started Microsoft, he wouldn’t have gotten
very far, probably not much further than his stone-age ancestor who may have
invented a new kind of weapon for hunting animals or something like that.
That’s how you have to judge what Bill Gates morally deserves: How far would
he have gotten without the knowledge he inherited for free from previous
generations? Whatever your answer to that question is—that’s the extent of his
personal contribution and his deserving-ness. And if Bill Gates hadn’t been born
at all, by the way, we still would have had the kind of software he built his
fortune on, as his many outmaneuvered competitors would happily have
proved.

So, take away Gates, and we still have the personal computing revolution, but
take away the knowledge Gates and others built upon in developing effective
computer software, from earlier computer languages such as Fortran and Basic
(most of which were developed with government support, by the way) all the
way back to basic arithmetic, and not only would we have no computers of any
kind, we’d still be counting on our fingers or moving pebbles around just to have
any grasp at all of the important data in our lives, like too many days without
rain. When the very wealthy, like Gates, are reflexively defended in the press
and in public life generally, it’s often on the assumption that they made a unique
contribution and in doing so greatly helped society in a way that no one else
could have. But the facts demonstrate that this isn’t true.

JL: We haven’t used the word “incentive.” Justice aside, don’t we need a high
degree of inequality to keep our inventors and entrepreneurs properly
motivated?

GA: Yes, of course, a monetary reward helps; we do not oppose reasonable


incentives. But in today’s economy, many people get rewarded far out of
proportion to what they actually contribute. At the same time, many also get far
more than they need to “incentivize” their effort.

But our main focus is on the broader problem of inequality, not on undeserved
fortunes per se. The problem we see is a society whose wealth is commonly
created, by and large, but very unequally distributed and enjoyed. The largely
collective way we produce our wealth is morally out of sync with the
individualistic way we distribute the wealth and also justify the resulting vast
inequalities. So we’re not saying to the Bill Gateses of the world: you don’t
deserve anything and we’re going to tax it all away. What we’re saying is that
our society should be more equal than it is if we truly believe, first, that people
should be rewarded according to what they contribute, and second, that society
should be repaid for the large contributions it makes, which enable everything
else. These are common beliefs or, at least, reasonable ideas, so that is not the
problem. The problem is a mistaken view of wealth-creation, which distorts how
these common ideas are applied.

JL: You often use the term “inheritance” in the book. How should we view the
concept of “inheritance” as a moral proposition? How is inherited knowledge like
and unlike inherited wealth or property?

LD: Most people do not consider inherited wealth or property to be something


people really and fully “deserve” to enjoy, even if they are legally entitled to it.
We never think the rich heir really “deserves” to be rich. At the same time, we
tend see the wealth and income people get from the market as something that’s
“deserved”—because the market, we assume, usually rewards people in rough
proportion to their contributions. The problem with this is that a significant
portion of what people get from the market has nothing to do with what they
individually contribute. Take away the inherited knowledge we use in our work
and daily life, and productivity will go way down along with income. So in
accounting for the knowledge we inherit we have to ask ourselves if we are so
much more deserving than the rich heir lolling about on daddy’s estate.
Obviously what we add is important and has something to do with the differing
economic benefits people enjoy, yet the difference between what the high-tech
CEO contributes and what the janitor who cleans out his waste basket
contributes is ultimately very small compared to the share of everyone’s gains
that comes from inherited knowledge.

JL: There used to be a pretty clear distinction between “earned” and “unearned


income.” What happened to those terms?

LD: A famous American president named Roosevelt once suggested that the
survival of civilization depended on eliminating unearned wealth. Progressive
taxation was the remedy he proposed, and he was the first American president
to truly advance that cause. Poor John McCain might be surprised to learn that
the Roosevelt in question was his Republican hero Teddy, not Barack the
Distributor’s oft-slandered “communist” role model, Franklin. The truth is,
progressive taxation is a conservative idea; it’s based on reciprocity. People
who have more income and wealth, T. R. assumed, necessarily got more help
from society to begin with, and therefore they owe more back to society, as a
share of their income, than those who get less from the market. Or, in other
words, the rich “earn” less of their income than the poor earn because they
benefit so much more from the contributions of society. Such unearned income
is the natural moral target for taxation, because no one deserves it.

JL: High taxes vs. high growth—don’t we have to choose?

GA: No. In fact, when our productivity growth rates were the highest, in the
1950s and early 1960s, the top marginal income tax rate stood at about 90
percent across that period. Today the top marginal rate is 35 percent. Ironically,
in the more recent era of dramatic tax-cutting for the rich, productivity often
stagnated. So, in fact, by historical standards, higher taxes have often been
correlated with strong growth, while cutting taxes has been correlated with
stagnation and decline.

JL: Do people in fact work harder when they know they’ll get to keep more of
what they earn? Don’t higher taxes at some point reduce effort?

GA: Perhaps “at some point.” But there’s little evidence that it works this way at
the top, which is the target of our argument. As I suggested earlier on the issue
of incentives, very, very large fortunes simply aren’t needed to generate
productive contributions. If Bill Gates was told by the government in 1980 that
he’d only end up with $25 billion in his bank account when his company peaked
(instead of the $50-something billion he actually held), do you think he would
have stopped trying to build Microsoft? What if the limit was only $1 billion, or a
generous executive salary? Even then he would have continued, no doubt.
Clearly, there is a huge gap between what the richest earn and what it takes to
“incentivize” their contributions. These economic “rents,” as they’re technically
termed, are pervasive in our economy, especially at the top.

JL: Are you simply arguing for a higher tax rate on the very wealthy? Or for a
whole different way of viewing – and using – the taxes they pay?

GA: Both. A higher tax is appropriate because the very top groups have been
able to capture such high percentages of society’s core wealth—which in turn
derives so overwhelmingly from inherited knowledge. One approach might
include enacting an annual wealth tax of 2 percent on the richest 5 percent of
households in America. This money could be used to finance federal education
grants, with the goal of replacing the student loan system with a pure grant
system. This could require national service in return, in a flexible way, with
forgiveness after perhaps two years of service. The principle here is giving more
people access to our technological and knowledge inheritance through higher
education. It’s a way of equalizing (or somewhat equalizing) the benefits of
something—knowledge—we all inherit in common. Much more progressive
taxation on inheritance, on income at the top, and on windfall profits like those
recently “earned” in the oil industry, would also be important steps forward.

JL: So you’re in favor of redistribution? Is that where it all leads?

LD: We’d like to retire that word from the political vocabulary because you can’t
redistribute something that is already highly socialized, and wealth and income
in the “era of knowledge-based growth” (whoever ends up “owning” it) is indeed
highly socialized. Most importantly (and more to the point), individual
productivity is increasingly dependent on what can only be described as a
collective good, a common inheritance of knowledge. No one deserves to
benefit from this common inheritance more than anyone else, by moral
definition, because it’s not created by any individual. So, to the extent that
inherited knowledge (“technical progress in the broadest sense,” as Solow
termed it) is increasingly driving economic growth, the fruits of knowledge—the
wealth being generated by knowledge—should be more equally shared. Wealth
that is commonly created should be equally, or at least more equally, shared.
James Lardner is co-author of Up to Our Eyeballs: How Shady Lenders and
Failed Economic Policies are Drowning Americans in Debt, editor of
Inequality.org, and a senior fellow at Dēmos. Gar Alperovitz is the Lionel R.
Bauman Professor of Political Economy at the University of Maryland and Lew
Daly is Senior Fellow and Director of the Fellows Program at Dēmos. Their new
book, Unjust Deserts, came out this November from The New Press

FacebookTwitterEmail
Carmen Huertas-Noble
Updated: 2 days ago

Inducted: 2020

A visionary leader in the worker cooperative movement, Carmen Huertas-


Noble has spent her professional career laying the tracks for a sustainable
worker cooperative sector in New York City and beyond. Known for her
conviction, fortitude, and determination, the Fordham University Law School
graduate and tenured Professor at CUNY School of Law, advocates for
worker cooperatives as tools to fight income inequality and to alter traditional
power and wealth dynamics. Her impact on worker cooperatives can be
measured as a lawyer, a scholar and thought leader, an educator, and a policy
developer and consultant.

With over 15 years of experience in law, public service has been a cornerstone
in Carmen’s career. Having served as a Senior Staff Attorney in the
Community Development Project of the Urban Justice Center, Carmen
counseled cooperatives in navigating legal entity formation options and on
creating democratic governance structures. She partnered with the Restaurant
Opportunities Center (ROC-NY) in creating COLORS, a worker-owned
restaurant in Manhattan and with Green Worker Cooperatives to develop
ReBuilders Source, a cooperative that collected and sold recycled construction
materials and equipment.

As the Founding Director of the Community & Economic Development Clinic


(CEDC) at CUNY Law School, Carmen has educated and trained over 200
students in cooperative law. In a field where there are few co-op attorney
experts, Carmen’s supervision of her students and the law graduate fellowship
program that she developed is creating a cadre of professionals needed for
cooperative development and expansion. Her fellows develop a skill set that
help the cooperative movement grow in areas like labor law, financing,
intellectual property and LGBTQ-related issues. In addition, she co-developed
a national worker cooperative certificate program curriculum for community
colleges aimed to familiarize more people with the cooperative model and to
prepare the next generation of worker-owners and cooperative technical
assistance providers for ownership and/or careers in the growing cooperative
economy.

She played a leading role in providing support to organizations that create and
support worker-owned co-ops such as the Coalition to Transform Interfaith
and the New York City Network of Worker Cooperatives. Carmen is also a
co-founder of 1worker 1vote, her clinic incorporated this NY-based non-profit
inspired by over sixty-five years of the Mondragon cooperative ecosystem
experience and focused on hybrid shared ownership models starting with the
union-coop template. She has developed legal expertise in the model and has
educated union leaders, government officials, academics, worker co-op
incubators and worker cooperators on this model. When drafting cooperative
project proposals, Carmen has been an invaluable resource to the NYC
Deputy Mayor of Strategic Initiatives.

An original member of the Worker Cooperative Business Development


Initiative (WCBDI), a group that has received $12 million to date from the
New York City government to develop a city-wide ecosystem to grow and
support the worker co-op movement, Carmen played an instrumental role in
securing that funding. Carmen is also a trusted scholar, law professor and
cooperative lawyer whose work is referenced by local, national and
international public officials and lawmakers. In New York, her work has
played a key role in the passage of numerous local and state legislation in
New York, including S6794 in New York State which expands New York’s
Education Law to provide employer skill-training grants to cooperatives and
S6855 that amends New York’s Urban Development Corporation Act and the
Economic Development Law to allow small, converted worker co-ops to
apply for assistance from the Economic Development Fund, Carmen’s reach
has been far and wide.

“Worker cooperatives can create jobs, but more importantly, they can correct
and prevent some of the oppressive economic conditions marginalized
communities are too often subject to under our current political and economic
system,” said Carmen. An important ally for worker cooperatives, Carmen’s
insight, experience, and tireless efforts are creating the eco-system worker
cooperatives need to flourish.

The emerging worldview: how


new progressivism is moving
beyond neoliberalism - A
landscape analysis
Uma nova visão de mundo, com o resgate da
economia na sua dimensão de economia política,
está emergindo...
Por Ladislau Dowbor

23/01/2020 11:39

DICAS DE LEITURA

Felicia Wong – The emerging worldview: how new


progressivism is moving beyond neoliberalism – A landscape
analysis – Roosevelt Institute, January 2020 – 56p.
Leia a íntegra aqui (em inglês, 56p.)

O que está surgindo com muita força no mundo das ciências


sociais, e em particular da economia, é a busca de novos rumos.
As quatro décadas, dos anos 1980 até 2020, trouxeram uma
visão simplificada e a narrativa correspondente de redução do
papel do Estado, liberalização do comportamento corporativo e
globalização dos fluxos econômicos. Em consequência, nós
perdemos o pouco que havia de governança e de racionalidade
durante os “30 gloriosos anos” do pós-guerra, em que se havia
conseguido razoável equilíbrio entre o Estado, as empresas e as
organizações da sociedade civil.

A visão de que o mundo econômico solto encontrará


magicamente equilíbrios, por meio de “mecanismos” naturais,
nos levou aos dilemas presentes. O vale-tudo corporativo está
gerando um desastre ambiental planetário. O desencontro entre
economia global e políticas nacionais leva a contradições
absurdas. A financeirização está gerando desigualdade a níveis
aberrantes. O conjunto jogou o planeta no caos político que hoje
observamos em todos os continentes. Onde há pouco se dizia
“There Is No Alternative” ou “É o Fim da História”; agora se
busca recuperar o controle. Neste mundo desgovernado,
correndo para o desastre, estamos todos procurando as rédeas.

Não faz muito tempo, ainda imperava a simplificação que


vimos acima, com o discurso único dos chamados “ortodoxos”.
Isso está mudando. Há uma verdadeira explosão hoje de
análises que voltam ao bom senso. O imenso sucesso
de Thomas Piketty é parte dessa reviravolta planetária, e o
livro surgiu quando o mundo estava já à procura de novas
visões. Com Michael Hudson passamos a entender a dinâmica
financeira que está gerando a desigualdade aberrante que hoje
enfrentamos. Ha Joon Chang nos apontou uma outra visão da
economia, em particular relativa ao mundo centrado em novas
tecnologias. Mariana Mazzucato nos trouxe uma visão muito
mais realista do papel do “Estado empreendedor”. Kate
Raworth apresenta um sistema de contabilização dos
resultados econômicos que faz sentido, bem além do PIB. E, de
repente, pesquisadores marginalizados na “heterodoxia”,
visionários como Kenneth Galbraith, François Chesnais ou
David Harvey aparecem como precursores que acordaram
antes dos outros.

A economia não está despertando das simplificações


ideológicas e das narrativas absurdas apenas de dentro da sua
área. É a partir da área da psicologia social que Jonathan
Haidt nos tira da patética simplificação do homo
economicus e mostra como construímos racionalizações para o
absurdo político. Frans de Waal, da antropologia, mostra
como somos presas fáceis de uma irracionalidade que tem
profundas raízes genéticas, não à toa estamos nos
massacrando uns aos outros, em violências e guerras
intermináveis desde sempre: ainda pertencemos em boa parte
aos nossos antepassados primatas. Wolfgang Streeck nos traz
com muita força a compreensão da interação entre a economia,
a cultura e a política, concluindo que não é o fim do
capitalismo, mas sim o fim do capitalismo democrático. Ou
seja, as diversas áreas das ciências sociais terminam por
recolocar a economia no seu devido lugar: um coadjuvante
necessário mas insuficiente da análise integrada das
transformações sociais.
Com isso, o que chamamos pretensiosamente de ciência
econômica, o economics em inglês, está reencontrando os seus
rumos, e a sua utilidade. The emerging worldview: how new
progressivism is moving beyond neoliberalism, organizado
por Felicia Wong, traz um leque de análises emergentes –
abrangendo os conhecimentos que temos sobre os desastres em
curso; e reaproximando a economia, a sociologia, a cultura e a
política –, para construir uma visão muito mais realista, e para
desenhar novos rumos para a própria economia. No quadro do
Roosevelt Institute, que vem se revelando uma mina de reflexão
inovadora, Wong apresenta, em relatório curto, de 56 páginas,
uma sistematização das análises de cerca de 150 pesquisadores
que buscam o desenhar novos caminhos, rejeitando o
neoliberalismo que avaliam como aberração momentânea. O
relatório conta com 8 páginas de bibliografia, o que nos
permite visualizar, indiretamente, a amplitude que está
tomando esse movimento. Constitui uma excelente ferramenta
para todos nós que buscamos abranger essa nova visão que
está se desenhando no horizonte, e dessa vez com bom senso,
ou seja, tendo no centro o bem-estar das populações e a
sustentabilidade do processo.

O ponto de partida é que se trata de nos reapropriarmos das


regras do jogo. A economia funciona segundo pactos que a
sociedade estabelece para si mesma. Quando a Finlândia
decide que a educação funciona melhor como sistema público
de acesso universal, e que um professor de escola primária
precisa ganhar um salário equivalente ao que ganha um
advogado ou um engenheiro, não existe “lei” econômica para
isso; mas sim o bom senso pactuado no sentido de fazer a
sociedade funcionar. A economia deixa de ser vista como
ringue de luta-livre, onde o Estado apenas assegura as cordas
e um apito. É uma nova visão: economia não é algo que temos
de “entender” para nos adaptarmos o melhor possível, não se
trata de “forças da natureza”. Economia é o conjunto das
“regras do jogo” que podemos transformar e organizar em
função da sociedade que queremos ser.

Não à toa temos ultimamente relatórios como New Rules for


the 21st Century, do próprio Instituto Roosevelt, o Change the
Rules: new rules for the economy da New Economics
Foundation de Londres, o Alternatives Economiques de Paris,
ou o próprio The Emerging Worldview que aqui
apresentamos. Já apresentei em outro documento, A Economia
Desgovernada: novos paradigmas, os posicionamentos em
torno da Economia de Francisco, e tomadas importantes de
posição de diversos grupos corporativos. Aqui, com Felícia
Wong, temos uma tentativa de síntese disso tudo que está
emergindo.

Como todo posicionamento hoje exige um “ismo”, aqui não se


escapa: a análise propõe New Progressivism, ou seja, somos
progressistas, mas não como os de antigamente. Busca-se algo
novo. A que corresponde isso em termos políticos? Eu
chamaria de capitalismo civilizado. Mas se trata,
explicitamente, de uma visão de novas estruturas a
desenvolver, não de uma volta a algum tipo de capitalismo
mais democrático. “O novo progressivismo entende que os
mercados são regidos por escolhas humanas. Isso significa que
a política, as ideias e a ideologia importam. A quem os
mercados deveriam servir, e a quem priorizar? Com que fins?
Essas são decisões que o público deveria tomar de maneira
afirmativa.” (p.37). Ou seja, a economia volta a se chamar
economia política.

Neste mapeamento da nova “paisagem” científica que surge, o


documento identifica quatro grupos, cujas análises convergem
para uma nova visão de mundo (worldview). Um grupo
compreende os “novos estruturalistas”, que focam o sistema
existente e sugerem regras do jogo para o mercado, com
reforma tributária, transparência dos fluxos, controle dos
paraísos fiscais e semelhantes, como por exemplo as propostas
do Piketty. Um segundo grupo, “provedores públicos”, com
Mariana Mazzucato por exemplo, que foca o potencial do
Estado como provedor direto de bens e serviços, em particular
nas áreas sociais, pesquisa tecnológica, infraestruturas: aqui o
Estado pode concorrer diretamente com o mercado. Um
terceiro grupo é qualificado de “transformadores
econômicos”: é um Estado que define estratégias de longo
prazo, políticas estruturantes de grande escala, políticas de
industrialização e semelhantes. O quarto grupo concentra-se
na “democracia econômica”, na dimensão institucional,
envolvendo o processo decisório da sociedade, buscando
resgatar a dimensão democrática das transformações
econômicas, inclusive a importância do poder local.

São quatro grupos que apresentam identidades diferenciadas,


mas que notadamente convergem no sentido de uma visão
estruturalmente diferente. Felicia Wong considera que os
pontos comuns mais importantes são: 1) Os mercados não
constituem sistemas que vão se estruturando livremente, mas
são estruturados por políticas, escolhas e poder; 2) Essas
escolhas podem guiar inclusive as maiores forças, e as mais
disruptivas, como a mudança tecnológica ou uma maior
integração global, no sentido de melhores resultados para a
população; 3) Os valores importam. O progressivismo pós-
neoliberal precisa definir como queremos que a nova economia
funcione e como definimos sucesso, baseado no rol de valores
que respondam às questões de ‘uma economia com que fins, e
uma economia para quem? 4) Arrumar as bordas da reforma
das políticas é insuficiente. Um novo paradigma político é
necessário, e deve ser construído sobre a base de uma
mudança transformadora, estrutural. (p.9)

A imagem geral é de que o vale-tudo que chamamos de


mercado, e que adquiriu temporariamente uma certa
respeitabilidade acadêmica com Milton Friedman, e adquiriu
dentes políticos com o Consenso de Washington, está saindo
rapidamente de cena. Com quase 8 bilhões de habitantes,
tecnologias extremamente poderosas e agressivas, e gigantes
corporativos totalmente descolados das realidades que vivem
as populações, nós estamos frente a um desafio de civilização,
muito além de estreitas teorias econômicas. Uma nova visão de
mundo, com o resgate da economia na sua dimensão de
economia política, está emergindo. O texto de Felicia Wong é
muito bom, simples (nada de economês) e muito bem
sistematizado. E a bibliografia, como mencionei, constitui uma
excelente ferramenta, em particular para os que como eu
ensinam economia.

Resenha de Thomas Piketty – Capital et Idéologie – Seuil, Paris, 2019, 1200 p. –


ISBN 978.2.02.133804.1
Confira a introdução, o último capítulo e a conclusão da obra (no
original, em francês) no
link: http://piketty.pse.ens.fr/files/ideologie/Piketty2019Extraits.pdf

O novo livro de Thomas Piketty é essencialmente sobre desigualdade, o mal


estrutural maior do nosso planeta. Essa polarização mundial está se tornando
explosiva, na medida em que alguns grupos sociais se apropriam de maneira
radicalmente desproporcional dos resultados do que a sociedade produz,
inclusive fora de qualquer relação de merecimento. Trata-se de mecanismos
econômicos de apropriação, mas também de poder político, de monopólio do
exercício da violência, do controle das leis, e em particular de construções
ideológicas que geram uma aparência de legitimidade. Daí o título da
obra, Capital e Ideologia, ou seja, a riqueza das sociedades por um lado, e as
justificativas de sua apropriação desequilibrada por outro.
No trabalho anterior, O Capital no Século XXI, Piketty centrou a análise no que
hoje chamamos de Ocidente, ou seja, basicamente a Europa Ocidental e a
América do Norte. O mecanismo central analisado era o deslocamento
moderno do capitalismo produtivo para o capitalismo financeiro, partindo de
uma evidência: hoje rende muito mais fazer aplicações financeiras, ou seja,
especular com papéis, do que efetivamente investir na produção. Os
rendimentos financeiros nas últimas décadas são da ordem de 7% a 9% ao
ano, enquanto os avanços da produção de bens e serviços, resumida na cifra
do PIB, cresce apenas entre 2% e 2,5%. Isso significa que há uma apropriação
muito maior do produto do conjunto da sociedade por quem faz apenas
aplicações financeiras.
Capital e Ideologia  vai além das dinâmicas econômicas, buscando os
mecanismos que nos fazem manter esse absurdo. “A desigualdade não é
econômica ou tecnológica: ela é ideológica e política. Essa é sem dúvida a
conclusão a mais evidente da pesquisa histórica apresentada neste livro. Em
outros termos, o mercado e a concorrência, o lucro e o salário, o capital e a
dívida, os trabalhadores qualificados e não qualificados, os nacionais e os
estrangeiros, os paraísos fiscais e a competitividade, não existem como tais.
São construções sociais e históricas que dependem inteiramente do sistema
legal, fiscal, educacional e político que escolhemos instituir e adotar” (20, 633).
Despido do manto protetor das “leis da economia”, o sistema é recolocado no
seu devido lugar: depende dos pactos que adotamos. Cabe a nós construir
novos equilíbrios.
No conjunto, o estudo nos permite entender a dinâmica diferenciada de
reprodução das desigualdades. Ele se apoia nos trabalhos de mais de 100
pesquisadores de mais de 70 países que participam da iniciativa World
Inequality Database (WID), (https://wid.world ), o que permite a utilização de
uma imensa riqueza de dados cientificamente organizados, segundo diversas
regiões, épocas e dimensões da desigualdade. (765) Cada visão, por exemplo,
a de que políticas distributivas geraram historicamente economias mais
dinâmicas, e não o inverso, é acompanhada de fontes, dados e eventualmente
de gráficos que traduzem os fenômenos em imagens. A solidez científica é
fundamental.
A abordagem geral é histórica, como foi o caso também do livro anterior. Isso
permite que aflorem as cadeias de causalidade dos diversos fenômenos
analisados, em vez de aparecerem como acontecimentos isolados. Todas as
regiões do planeta fazem parte desta luta permanente entre nos livrarmos das
peias do passado, mas temermos as inseguranças futuras. Tanto a visão de
que a história não se repete, como a visão de que repetimos sempre os
mesmos dramas têm, cada uma delas, sua dimensão de verdade. E contar ‘o
caso como o caso foi’, explicitando as interações, ajuda muito. As referências e
as notas também contribuem muito, tornando o livro uma ótima fonte de
inspiração para leituras complementares.  
Todo sistema cria suas ideologias. E o sistema capitalista criou a sua, com as
correspondentes narrativas, para que pareçam legítimos os ganhos não
merecidos, como tão bem o descreve Gar Alperovitz no livro Apropriação
Indébita (Senac, 2010). Na ideologia que hoje persiste, os ricos seriam ricos
porque trabalham mais e são engenhosos, enquanto os pobres sseriam pobres
porque preguiçosos e pouco criativos. “Os indivíduos que são os mais ricos,
escreve Piketty, encontram aqui argumentos para justificar a sua posição
relativamente aos que são mais pobres, em nome do seu esforço e do seu
mérito, mas também em nome da necessária estabilidade que beneficiará toda
a sociedade. Os países ricos podem igualmente encontrar aqui razões para
justificar a sua dominação sobre os mais pobres, em nome da suposta
superioridade das suas regras e instituições. ” (156)
Neste sentido, Capital e Ideologia é relativamente complementar a Capital no
Século XXI. Piketty investiga como, em diversas épocas e em particular nas
últimas décadas, foram se organizando as ideologias que procuram justificar o
injustificável, aquilo que de justo não tem nada. Nessa mesma linha,
encontramos o livro The Triumph of Injustice, de Emmanuel Saez e Gabriel
Zucman, que pertencem ao mesmo núcleo de pesquisa. A impressão que vem
com força é de que vários economistas compreenderam que, por mais
absurdas que sejam, as ideologias são muito poderosas e desempenham um
papel central na perpetuação das injustiças. E além das injustiças, na
perpetuação de sistemas que são profundamente nocivos para a própria
economia.
Há limites para a desigualdade? Ainda que haja desigualdade, e remuneração
desproporcional, é possível termos razoável estabilidade se no conjunto a
sociedade está avançando. Saez e Zucman se apoiam no clássico A Theory of
Justice de John Rawls sobre justiça social: “É aceitável, de acordo com Rawls,
que haja desigualdades econômicas e sociais se essas desigualdades
aumentam o nível de vida dos membros mais vulneráveis da sociedade” (Saez,
130). Mas o que vemos hoje é um espantoso enriquecimento no topo da
pirâmide, fragilização no meio, e relativa estagnação da metade mais pobre da
população. É uma desigualdade que, com seus diversos impactos econômicos,
políticos, culturais e ambientais, tornou-se contraproducente. Em particular,
gerou fortunas pessoais superiores ao PIB de muitos países, transformando-se
em fator de rupturas políticas que hoje se espalham pelo planeta.
Não é o caso aqui de fazer uma resenha no sentido clássico, pois o trabalho é
muito denso e abrangente. De modo geral, esse livro do Piketty traz uma
revisão, em profundidade, de várias épocas e sociedades, incluindo China,
Índia e outros países (uma breve referência ao Brasil), tendo como fio condutor
a explicitação dos diversos mecanismos que geraram a desigualdade, e de
como foram construídas as ideologias destinadas a justificar a riqueza de uns e
a miséria da maioria. No conjunto, o livro resgata a imensa importância das
narrativas. Parece que o ser humano adora um belo conto, ainda que seja a
vítima da história.  Mas é preciso também ressaltar a solidez da estrutura do
trabalho, que resulta da metodologia explícita e muito coerentemente seguida
ao longo do texto.
O primeiro ponto é a interdisciplinariedade. Em nenhum momento temos as
absurdas simplificações sobre o homo economicus, modelinhos pretenciosos, ou
economicismos: a economia é aqui vista como uma dimensão das ciências
sociais, compreensível apenas no contexto de influências culturais, sociais,
geográficas. Trata-se de explicitar a evolução da sociedade de forma integrada.
A economia reencontra sua utilidade analítica, o que é de extrema importância
porque ela mesma tem sido utilizada como narrativa para justificar absurdos.
“Essa autonomização excessiva do saber econômico é também a
consequência do fato que historiadores, sociólogos, politicólogos e outros
filósofos abandonaram com excessiva frequência aos economistas o estudo
das questões econômicas. Ora, a economia política e histórica, tal como tentei
praticá-la nesta pesquisa, refere-se a todas as ciências sociais.” (1197)
Outro eixo metodológico é o uso da análise comparativa. É muito enriquecedor
ver os fenômenos apresentados, com facetas diferenciadas, conforme se
produziram nos Estados Unidos, na França ou na China. É muito útil, por
exemplo, a descrição do sistema chinês que “desenvolveu uma economia mista
fundada no equilíbrio duradouro e inédito entre propriedade pública e
propriedade privada… Deter quase um terço de tudo o que se pode possuir
nesse país confere ao poder público chinês, sob a orientação do PCC,
possibilidades de intervenção consideráveis para decidir sobre a localização
dos investimentos e a criação de empregos, e para levar a cabo políticas de
desenvolvimento regional” (705). Visualizar no mesmo gráfico a evolução
histórica das dimensões do setor público em diversos países ajuda muito. (706)
Nas mais diversas épocas, nações se defrontaram com desafios semelhantes e
diferentes ao mesmo tempo, e a compreensão de como se deram as
respostas, e de como podemos traçar paralelos, amplia os horizontes. A
análise comparativa nos ajuda a identificar os principais eixos estruturantes da
mudança social, e a tomar um pouco de recuo para ver os problemas de
maneira mais ampla.
Piketty sempre trabalhou com o longo prazo, o que o permite ressaltar as
dinâmicas estruturantes que moldam o conjunto. Compreender a luta em torno
do papel do Estado e, em particular, dos mais diversos sistemas de impostos,
nas mais variadas civilizações, também ajuda muito. É instrutivo, por exemplo,
entender como os romanos se organizavam para extrair o excedente social dos
produtores rurais, como a igreja medieval organizava o seu acesso às riquezas
(na época entre 25% e 30% da riqueza das atuais nações), como se deram as
primeiras tentativas de aprovar impostos sobre a renda no início do século
passado, como os grupos mais ricos conseguiram quebrar o sistema mais
recentemente. Tudo isso permite ver a continuidade nos processos, e as
diversas formas de enfrentar desafios frequentemente muito semelhantes aos
que vivemos. Hoje estamos afogados no imediato, no presente, perdemos a
dimensão evolutiva: o texto resgata a perspectiva.
Em particular, tornar-se claro que o aprofundamento da desigualdade trava o
crescimento econômico, invertendo o argumento dos mais ricos sobre a sua
contribuição econômica. Com os dados sobre a evolução da desigualdade na
Europa entre 1870 e 2020, por exemplo, evidencia-se que a fase menos
desigual é a que permitiu maior crescimento. “Na europa constata-se
igualmente que os anos de maior crescimento correspondem ao período 1950-
1990, quando as desigualdades eram as mais fracas e a progressividade fiscal
a mais forte.”(634) Na fase mais recente, a partir dos anos 1980-1990, “a
elevação da desigualdade foi acompanhada de uma queda do crescimento.”
(760)
E achei particularmente rica e inovadora a forma abrangente de analisar a
desigualdade. Nas últimas décadas, conhecemos muitos avanços no mundo,
com os Indicadores de Desenvolvimento Humano da ONU, com os dados
sobre riqueza acumulada e não apenas da renda auferida, com os indicadores
da pobreza multidimensional, e particularmente com os dados não só sobre os
10% ou 1% mais ricos, mas a identificação das gigantescas fortunas no topo da
pirâmide, o 0,001% que acumula poder econômico e poder político. Piketty
trabalha com essas diversas dimensões de maneira articulada, ao mesmo
tempo que busca novas dinâmicas. Particularmente rico é o fato dele incluir
como dimensão fundamental da desigualdade o acesso à educação,
abordando-a não como gasto, mas como “investimento educacional” (ver p.
633, Justice Educative).  
Uma contribuição metodológica muito importante é a forma de quantificação da
desigualdade. Piketty afirma com toda razão que é essencial apresentar os
números de maneira compreensível, para que as pessoas possam se dar conta
do drama, assegurando uma “apropriação cidadã” da situação. (765) O
coeficiente Gini é o mais utilizado internacionalmente, e inclusive no Brasil, mas
saber que o Brasil tem um Gini de desigualdade de renda de 0,52, enquanto na
África do Sul é 0,60 e nos Estados Unidos 0,45 é compreensível apenas para
quem trabalha com esses índices. Piketty se apoia na base de dados do WID
mencionado, para comparar quanto da renda nacional, por exemplo, cabe aos
50% mais pobres, aos 40% médios, aos 10% mais ricos e ao 1% mais rico. Por
exemplo, constatamos que em 2018  os 10% mais ricos tinham na Europa uma
renda média 8 vezes maior do que os 50% mais pobres, enquanto no Brasil era
20 vezes maior. (766) Na Europa o 1% mais rico tinha 25 vezes mais renda, no
Brasil 85 vezes mais. As cifras relativas ao patrimônio são ainda mais
escandalosas, mas o importante aqui é apresentar os numeros de uma forma
que as pessoas possam “sentir” e acompanhar.
O amplo leque de análise converge em propostas, tornando-as claras, capazes
de resgatar uma sociedade menos desigual, e que possam funcionar. Cerca de
noventa páginas finais desenham o que Piketty chama de “socialismo
participativo no século XXI”, com propostas tanto em nível das nações, quanto
em nível internacional. De maneira muito pormenorizada, ele apresenta as
medidas concretas que podemos tomar, os diversos impostos, as formas de
organização e controle, enfim, as alternativas que temos para que o mundo
volte a ser razoavelmente funcional. Não é a “luta final”, é o resgate de um
mínimo de bom-senso.
Gostaria muito de estimular vocês a adquirirem o livro, já está em inglês,
porque é uma ferramenta de trabalho fundamental, e de modo algum restrito a
economistas: é para quem quer realmente entender os mecanismos e
contribuir para uma sociedade melhor. Não é todo dia que lemos um livro de
1200 páginas. Sugiro ler a ampla introdução, que dá uma visão de conjunto, e
a parte propositiva final, que mostra para onde tende o conjunto da obra. Isso
permite, aproveitando o índice extremamente detalhado, ir pegando temas,
dimensões ou épocas específicas segundo o interesse de cada um, e em
suaves prestações. A arquitetura da obra é muito transparente, e cada um vai
mobiliando sua cabeça segundo os vazios a preencher e as curiosidades a
satisfazer. Vale muito a pena.  Boa leitura.
Ladislau Dowbor é professor de economia da PUC-SP, autor de mais de 40 livros e
consultor de várias agências nacionais e internacionais. Os seus trabalhos estão
disponíveis, inclusive esta resenha, no blog dowbor.org, gratuitamente, no regime
Open Access.
* Para quem queira se familiarizar com o livro anterior, O Capital no Século
XXI, recomendo cinco curtos artigos sobre os principais aportes, com o
título de Pikettismos (https://dowbor.org/?s=pikettismos) 
** CLIQUE AQUI e confira a Introdução, Capítulo final e conclusão da nova
obra de Piketty (no original, em francês).

Leia mais

 Robert Skidelsky – What’s wrong with economics? A primer for the


perplexed – Yale University Press, New Haven, 2020
 Ann Pettifor – The case for the Green New Deal – Verso, London, New
York, 2019, 185 p.
 Felicia Wong – The emerging worldview: how new progressivism is moving
beyond neoliberalism – A landscape analysis – Roosevelt Institute, January 2020 –
56p.
 Joseph Stiglitz – People, Power and Profits: Progressive capitalism for an
age of discontent – W.W. Norton, New York, London, 2019, 371 p.
 Mariana Mazzucato – The Entrepreneurial Sate: debunking public vs.
private sector myths – Anthem Press, New York, 2015

Voltar para o índice

 Postado em Dicas de Leitura


2 Comentários para “L.Dowbor – Capital e ideologia,
de Thomas Piketty: uma visão de conjunto dos nossos
desafios – 4p. – abril 2020”
 Carlos Alberto Suffredini says:
Professor, estou terminando a leitura do seu livro A Era do Capital
Improdutivo. Escrita elegante e didática, permitindo uma compressão muito
clara das causas reais do desastre da nossa economia. Deveria ser material
de leitura e discussão obrigatório a partir do nível médio nas escolas.
Parabéns pelo trabalho e obrigado pela imensa contribuição para o nosso
esclarecimento.

 sergei schafer says:
muito delicioso seu resumo do livro. Em verdade adoro seu modo de
escrever professor. O resumo da nova obra do francês Piketi, já bem
demonstra seu estilo. O livro deve ser uma obra de folego. 1200 paginas.
ufa. Gostaria que o Piketi, copia-se o meu ídolo que é o senhor, e fizesse
videos didáticos como os seus. No entanto pela obra anterior do francês
que estudei. o c. XXI, por sua recomendação, vou ler no original que é mais
fácil que o inglês. Como sempre professor parabéns.O brasil tento um
intelectual como o senhor deveria ter vergonha e ser uma nação mais
igualitária. Mas as elites daqui não tem muito jeito. o vírus não vai mudá-la,
lembro do livro a peste, onde o médico ao final da obra diz. “uma peste não
muda o coração humano”. cito tudo de memoria professor. abraços.

S-ar putea să vă placă și