Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
Decisão
1. Ação direta de inconstitucionalidade com pedido de medida cautelar ajuizado pelo Governador do
Distrito Federal contra a Lei Distrital nº 6.684 de 28/9/2020, publicada em 19/10/2020, que dispõe sobre a
gratuidade de refeições nos restaurantes comunitários do Distrito Federal aos beneficiários do auxílio
emergencial:
Dispõe sobre a gratuidade de refeição nos restaurantes comunitários do Distrito Federal aos beneficiários
do auxílio emergencial previsto na Lei Federal nº 13.982, de 2 de abril de 2020.
O Presidente da Câmara Legislativa do Distrito Federal promulga, nos termos do § 6° do art. 74 da Lei
Orgânica do Distrito Federal, a seguinte Lei, oriunda de Projeto vetado pelo Governador do Distrito
Federal e mantido pela Câmara Legislativa do Distrito Federal:
Art. 1º Aos beneficiários do auxílio emergencial previsto na Lei federal nº 13.982, de 2 de abril de 2020, é
garantida a gratuidade de refeições nos restaurantes comunitários do Distrito Federal.
Parágrafo único. O direito do beneficiário definido no caput pode ser comprovado por meio do Cadastro
Único – Cad Único ou de auto declaração, conforme disposto na Lei Federal nº 13.982, de 2020.
Art. 2º As despesas decorrentes da aplicação desta Lei são suportadas por dotações orçamentárias
próprias, sendo suplementadas se necessário.
2. O autor aponta vício formal de iniciativa, pois a competência privativa para iniciar processo legislativo
sobre as atribuições de órgãos da administração é do Chefe do Poder Executivo e o projeto é de autoria de
Parlamentar. Em relação ao aspecto material, afirma que a lei viola a separação de Poderes e a reserva da
Administração.
3. Esclarece que essa medida gerará aumento de 58,6% no valor mensal dos contratos firmados com os
prestadores de serviços e que essa política pública possui elevado grau de concretude, razão pela qual
somente o Poder Executivo tem condição de avaliá-la, principalmente neste momento de crise sanitária.
Alega que não foi indicada a fonte de custeio desse benefício assistencial específico. Cita jurisprudência.
4. Aponta violação aos arts. 53; 71, §1º, IV; 100, IV e X e 203, §3º da Lei Orgânica do Distrito Federal
(LODF).
5. Defende a presença dos requisitos da tutela de urgência. Acredita que a plausibilidade do direito é
justamente a inconstitucionalidade formal e material e o perigo de dano é a eficácia imediata da lei, que
irá impactar, diretamente, no funcionamento dos restaurantes, com o aumento significativo de recursos
financeiros.
6. Pede a concessão da medida cautelar para suspender a eficácia da lei distrital impugnada até o
julgamento definitivo da ação.
9. Há excepcional urgência para a apreciação da medida cautelar, tendo em vista a vigência da lei
impugnada na data da sua publicação (19/10/2020) e o impacto social, organizacional e financeiro
noticiado pelo autor.
“Despacho - SEDES/SEADS/SUBSAN
À SEDES/SEADS
À Secretária Executiva,
Venho informar sobre a demanda que chegou a SUBSAN por meio da ASCOM/SEDES referente à
apuração de reportagem sobre a derrubada de veto do governador ao projeto de lei que garante refeições
gratuitas nos restaurantes comunitários do DF para beneficiários do auxílio emergencial durante a
pandemia, no dia 17/09/2020.
Diante da necessidade de avaliar o impacto da implementação dessa futura lei, encaminho uma análise de
viabilidade do Projeto de Lei de autoria do deputado Delegado Fernando Fernandes que prevê a
Ratificamos a preocupação quanto ao acesso à alimentação adequada e saudável para esse público, em
especial e, ainda, quanto aos dados publicados que remetem às outras condições de vulnerabilidade que
envolvem políticas públicas como emprego, saneamento básico, educação, habitação que influenciam
diretamente no acesso a aquisição de alimentos. Desta forma, pontuamos cenários e estratégias
necessárias para viabilizar o objeto do projeto de lei, porém com a ressalva de tempo hábil para execução
com responsabilidade administrativa:
1- O impacto financeiro mensal para atendimento do objeto está calculado sob o quantitativo estimado de
450 mil beneficiários sendo necessário um acréscimo no orçamento de aproximadamente R$ 2.160.000,00
considerando a média do valor da refeição de R$ 4,80. O valor acrescido por restaurante comunitário fica
em aproximadamente R$ 154.285,71. Cabe ressaltar que essa análise de custo considerada tem finalidade
de previsão de custo apenas como beneficiário o responsável familiar cadastrado no programa Auxílio
Emergencial, pois é de conhecimento que na lista dos beneficiários disponibilizada pelo governo federal
não há o registro a composição familiar. Sendo assim, essa análise pode ainda estar subestimada se
tivermos que considerar o acesso à gratuidade para as famílias dos beneficiários;
2- Para fazer o cálculo real do impacto financeiro será imprescindível o acesso à lista atualizada dos
beneficiários constante no banco de dados do Auxílio Emergencial do Governo Federal junto a o
Ministério da Cidadania e consequentemente para o controle do número de refeições gratuitas
disponibilizadas por restaurante;
3- Apenas como intuito de fornecer mais informações, o valor médio mensal pago por restaurante é de R$
263.355,57. Com a implantação do PL, acarretaria um aumento de 58,6% no valor mensal de cada
contrato. Considere que o art. 65, § 1º:
O contratado fica obrigado a aceitar, nas mesmas condições contratuais, os acréscimos ou supressões
que se fizerem nas obras, serviços ou compras, até 25% (vinte e cinco por cento) do valor inicial
atualizado do contrato, e, no caso particular de reforma de edifício ou de equipamento, até o limite de
50% (cinquenta por cento) para os seus acréscimos.
4- Acrescente-se, ainda, que a demanda atual de refeições servidas nos restaurantes comunitários de
março de 2020 a agosto de 2020 foi de 548.069 refeições/mensal;
5- Considerando a atual situação contratual dos restaurantes comunitários, temos cinco restaurantes com
contratos já aditivados em 25% e os 10 restantes estão com contratos vigentes dentro de sua capacidade
contratual firmado em 2019. Diante desse cenário que nos impede que imediatamente possamos oferecer
as refeições sem cobertura contratual, a solução seria uma nova licitação em todos os 14 restaurantes
comunitários, contemplando todos os impactos para a implementação como tempo médio de realização da
licitação em tempo estimado de no mínimo 03 meses;
Diante dessas ponderações informo que há necessidade de verificar o tempo de implementação dessa
futura lei considerando ainda a temporalidade do programa Auxílio Emergencial do Governo Federal
previsto para findar em dezembro deste ano.
Atenciosamente,
Cumpre decidir.
11. O art. 10 da Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, dispõe que a medida cautelar, na ação
direita de inconstitucionalidade (ADI), deve ser concedida pela maioria absoluta dos membros do
Tribunal, após a audiência dos órgãos ou autoridades dos quais emanou a lei ou ato normativo
impugnado.
12. Excepcionalmente, o § 3º do artigo referido registra que em caso de urgência o Tribunal poderá
deferir a medida cautelar sem a audiência dos órgãos ou autoridades das quais emanou a lei ou ato
normativo impugnado. Nesse caso, a oitiva será feita após a concessão da medida cautelar. O
Regimento Interno deste Tribunal repete essas disposições legais.
13. Por outro lado, o art. 5º, § 1º da Lei nº 9.882, de 3 de dezembro de 1999, que disciplina a arguição de
descumprimento de preceito fundamental, permite a concessão da medida liminar pelo relator, ad
referendum do Tribunal, em caso de extrema urgência,
14. A interpretação sistemática desses dispositivos conduz à conclusão de que, em caso de excepcional
urgência, poderá o relator conceder a medida cautelar na ADI, ad referendum do Tribunal. Nesse sentido,
leio os seguintes precedentes do Supremo Tribunal Federal: ADI 4.307-MC, Rel. Min. Cármen Lúcia,
decisão monocrática de 2 de outubro de 2009; ADI-MC 4.451, Rel. Min. Carlos Britto, decisão
monocrática de 26 de agosto de 2010; ADI-MC 4.232, Rel. Min. Menezes Direito, decisão monocrática
de 18 de maio de 2009; ADI 4.705, Rel. Min. Joaquim Barbosa, decisão monocrática de 19 de dezembro
de 2011.
15. Esta ação exige intervenção imediata sob o fundamento do poder geral de cautela
do Relator, não havendo como julgar a liminar na próxima sessão do Conselho
Especial, agendada para 27 de outubro de 2020. Os prazos legais, mesmo reduzidos,
não permitiriam ouvir todos os intervenientes obrigatórios.
16. Confiro, a propósito, lição de André Rufino do Vale:
Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2015-jan-31/observatorio-constitucional-cautelares-adi-decididas-monocraticamente-vio
Acesso em: 19/10/2020.
17. A lei questionada não trata de um teorema abstrato, que pode esperar prazos processuais para ser
submetida ao Plenário do Conselho Especial. Trata-se de lei que criou um direito concreto que se cumpre
todos os dias, mais de uma vez por dia, e que, hoje mesmo, segundo algumas veiculações na imprensa, já
foi demandado. Amanhã, com o aumento da divulgação, haverá mais pessoas buscando os restaurantes
comunitários. E não haverá comida para todos, havendo risco de que um provérbio popular se torne
realidade: “Em que casa onde falta pão, todos brigam e ninguém tem razão”.
18. Se todas as pessoas que foram alcançadas pela lei buscarem as refeições, estima-se que serão 450 mil
por mês só de titulares do auxílio emergencial, sem os agregados familiares. Isso quer dizer que, nas
primeiras horas desta terça-feira, 20 de outubro, 15 mil pessoas e seus agregados irão aos restaurantes
comunitários buscar, gratuitamente, as refeições concedidas pelo texto promulgado pela Câmara
Legislativa, posto que o projeto foi vetado pelo Governador.
19. O Juiz, na sistemática do Código de Processo Civil e da Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro deve demonstrar as consequências práticas da sua decisão. Deve, ainda, motivadamente,
demonstrar as demais alternativas existentes e justificar porque não acatou outra delas. É a essência do
Discurso do Método, de René Descartes. Neste caso, há duas alternativas: suspender ou não suspender a
eficácia da lei.
20. Não bastam a ciência jurídica e as decisões ideologicamente bem construídas; vivemos mais do que
uma Era dos Direitos (Norberto Bobbio); vivemos, também, a Era dos Direitos Efetivos, uma Era de
resultados realísticos. Por isso, o “Penso, logo existo” de Descartes, deve ser compreendido, no contexto
processual, com a necessidade de se dar ao Direito um sentido existencial, de realidade empírica e não de
teoria academicamente bem estruturada, mas pouco efetiva ou sem qualquer efetividade.
21. A lei questionada é uma lei bem intencionada, mas é uma lei sem condições de existência, de eficácia,
não só pelos aspectos formais invocados na inicial, mas, também, pelos aspectos práticos na sua
execução. Há uma distância insuperável entre o texto e a sua concretude.
22. Roscoe Pound, há mais de um século (1910), encaminhou a compreensão dessa dicotomia do Direito
em um artigo jurídico intitulado Law in Books and Law in Action. Jean-Louis Halperin tem um artigo
sobre esse artigo, publicado na Maine Law Review, intitulado “Law in Books and Law in Action: The
Problem of Legal Change [(Me. L. Rev. 45 (2011)], onde aborda os desdobramentos do pensamento de
Roscoe Pound no desenvolvimento do sistema jurídico americano e as influências recebidas de
pensadores europeus como Kelsen, Hart e Ross.
23. Sem deixar a objetividade que deve conduzir esta decisão, a dicotomia de Roscoe Pound pode ser
resumida na necessidade de se dar à “lei no papel” um sentido de “lei na prática”, na vida das pessoas.
25. Não se faz comida com “Law in Books” e não há como tratarmos da matéria na perspectiva de
desfazimento dos atos praticados. Não há como custear nem como recuperar os recursos empenhados no
custeio após a execução de cada prato de comida a ser distribuído gratuitamente às pessoas mencionadas
na lei, incluindo, também obviamente, os seus familiares. Os beneficiários do auxílio emergencial
previsto na Lei Federal nº 13.982, de 2 de abril de 2020, recebem o auxíli0 no singular mas comem no
plural. E não há nenhum estudo conhecido, até o momento, que permita estimar, exatamente, quantos são
os agregados dos que recebem o auxílio emergencial que passarão a comer nos restaurantes comunitários.
26. Para se ter uma pequena ideia do volume de mantimentos e condimentos para se elaborar comida para
15 mil pessoas e seus agregados, o cardápio de amanhã, 20/10/2020, dos restaurantes comunitários,
divulgado pela SEDES, prevê uma refeição como 1061,7 calorias, distribuídas em bobó de frango,
beterraba cozida, tabule, arroz branco, feijão preto ou carioca, manjar de coco e suco, nas unidades de
Brazlândia, Ceilândia, Cidade Estrutural, Gama, Itapoã, Paranoá, Planaltina, Recando das Emas, Riacho
Fundo II, Samambaia, Santa Maria, São Sebastião, Sobradinho e Sol Nascente. Para exercício mental
realístico, pensemos em, no mínimo, 15 mil pratos com esse conteúdo.
27. A criação de direitos sociais de grande impacto, à custa do orçamento do Poder Executivo, sem
ponderar as consequências para a implementação concreta desses direitos no imediatismo da vigência da
lei na data da sua publicação, atenta contra os princípios invocados na inicial, com destaque para a
separação dos Poderes e os vícios de iniciativa, sem prejuízo dos aspectos orçamentários e funcionais
invocados nesta decisão.
28. Os fundamentos definitivos serão apresentados no voto perante o Plenário do Conselho Especial. A
urgência e o adiantado da hora recomendam que a fundamentação cautelar termine aqui.
DISPOSITIVO
29. Em face da urgência e dos riscos de comprometimento da ordem pública e dos riscos objetivamente
comprovados de efeitos de desfazimento inviável, defiro a antecipação de tutela com efeitos ex nunc, ad
referendum do Plenário do Conselho Especial deste Tribunal de Justiça, para suspender a eficácia da
Lei Distrital nº 6.684 de 28/9/2020, publicada em 19/10/2020.
30. Intime-se o Distrito Federal para juntar aos autos o informe da Secretaria de Estado de
Desenvolvimento Social do Distrito Federal - SEDES (Secretaria Adjunta de Desenvolvimento
Social/Subsecretaria de Segurança Alimentar e Nutricional) transcrito nesta decisão.
31. Oficie-se à Câmara Legislativa do Distrito Federal para que se manifeste sobre o pedido liminar, no
prazo de 5 dias (RITJDFT, art. 146).
33. Em face da urgência para que a antecipação de tutela e seus efeitos sejam apreciados pelo Plenário do
Conselho Especial deste Tribunal Justiça, peço pauta prioritária para exame da providência pelo
Colegiado, assim que as diligências estiverem cumpridas.
34. Publique-se.
Relator