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"Não há nada que eu possa dizer aqui que vocês já não saibam". Foi com esta frase que
o professor Evandro Vieira Ouriques, coordenador do Núcleo de Estudos
Transdisciplinares de Comunicação e Consciência (Netccon) da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), recebeu a equipe do Rio Mídia para uma entrevista, na
semana passada, na sede do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (Pacc), do
Fórum de Ciência e Cultura da instituição.
Jornalista, cientista político e terapeuta clínico, o professor Evandro falou sobre o tema
e ainda expôs o seu ponto de vista sobre a atual sociedade midiática, a partir da Teoria
da Comunicação, da Teoria da Cultura, da Filosofia Política e da Psicanálise, que
consolidaram metodologias de transformação de atitude criadas por ele ao longo da
carreira.
Brincando com o nome do nosso site, o professor afirma que é exatamente um rio de
mídia que a sociedade precisa e para o qual o Netccon procura contribuir: "Precisamos
construir, pela força da vontade, um rio de mídia democrático, aberto, plural e que faça
com que os indivíduos voltem a pensar por si mesmos, voltem a sentir por si mesmos e
possam assim ser a diferença que são".
Sua entrevista.
***
O que eu estou dizendo é que o fluxo dos estados mentais dos sujeitos, o fluxo dos
pensamentos e dos afetos que constituem a subjetividade é desenhado, marcado,
impactado pela mídia. Estamos para a mídia como a esponja está para a água. Estamos
embebidos por ela, sendo que somos nós que a fazemos e a passamos a tratar como se
fosse uma outra coisa. Neste sentido, baseada no capitalismo como verdade absoluta, a
organização social se mantém, atualmente, por uma estratégia de dessubjetivação, ou
seja, de desespeciação: de perda do caráter de espécie, como provam os atos crescentes
e sucessivos de horror com os quais convivemos.
Estamos diante, portanto, de sujeitos não instalados, no qual o que nos fala é um
vazamento do inconsciente, a história pessoal e comunitária, racial, de gênero, de classe,
etc., dos traumas, abusos, discriminações. Só para dar um exemplo, pesquisas revelam
que uma mulher, com 40 anos, já assistiu a cerca de 12 a 15 mil horas de telenovela,
resguardados aqui os avanços que encontramos nesta preciosa linguagem.
Hoje, a pessoa sente e pensa por meio da mídia que, em nenhum momento, a ajuda a
parar e refletir. A aceleração, por exemplo, que os apresentadores dos telejornais
utilizam é incompatível com o ritmo respiratório, metabólico. A respiração fica
suspensa. E suspensa, impede que as informações entrem e sejam metabolizadas.
Impedem, inclusive, que a nossa mente (no sentido do conjunto de percepções,
pensamentos e afetos) tenha tempo de excretar o que não serve. O indivíduo fica dopado
pela sobrecarga informacional e pelo choque dissociante e contínuo que ocorre na
gangorra de emoções que vai, sem interrupção, de notícias econômicas, políticas e
sociais a notícias de que conseguiram salvar dois ou três pingüins ou que determinado
time conseguiu derrotar seu adversário.
E.V.O. – Neste ponto podemos recorrer a Charles Melman, por exemplo, autor do livro
O Homem Sem Gravidade e fundador da Association Lacanienne Internationale e um
dos principais dirigentes da École Freudienne de Paris. Em sua obra, Melman identifica,
como decorrência deste cenário, uma nova economia psíquica. Diz ele que a
característica dominante da economia psíquica do mundo pós-moderno é a iminência do
colapso psicótico. Em outras palavras: o sujeito tende intensamente a acreditar que é o
que ele não é; que a vida é o que ela não é; e que ele está fazendo uma determinada
coisa quando, de fato, está fazendo o oposto.
Isto fica muito claro na dissociação entre palavras e atos na/da sociedade
contemporânea. As pessoas dizem quase sempre o contrário do que fazem ou do que
gostariam de dizer. Se Zygmunt Bauman [sociólogo polonês] mostra que estamos na
época do amor líquido, é porque vivemos uma era de relações líquidas. No entanto, o
que garante o vigor da relação, conseqüentemente, o vigor da comunicação, é
exatamente a estabilidade da confiança. Mas o que assistimos é a experiência da traição
e da desconfiança. A grande mídia está, em geral, neste estado.
Os produtos e serviços são tributados com valores que não pertencem a eles:
solidariedade, amor, confiança, perspectiva de vida, garantia de futuro, tranqüilidade. O
que gostaríamos de ter nas relações, em casa e na sociedade, está agregado aos produtos
e serviços aos quais acabo de me referir.
Como ao sujeito só são apresentados os valores que dominam a mídia, com honrosas
exceções, em especial aquelas concretizadas por comunidades que se utilizam das
brechas do discurso, ele apenas, e simplesmente, acredita nas coisas como elas são
mostradas, retratadas, apresentadas. Não questiona. Não reflete.
Prosseguindo com Melman, o sujeito vive na iminência do colapso psicótico, mas dele
se defende por meio da perversão. Não a perversão do senso comum que conhecemos,
mas a do ponto de vista clínico, aquele quadro em que o sujeito está num estado de
adição a um objeto da realidade, dele dependendo para, supostamente, realizar-se como
sujeito de si mesmo. É por isto que temos o consumo de drogas crescendo, a violência
urbana, o consumo desenfreado de recursos naturais, de comunidades, de minorias, de
gênero, de status, de sexo, de objetos, de serviços, de pessoas, de mão-de-obra, de
países, de mercados, de empresas, de crianças, de adolescentes, enfim, uma orgia
devoradora, que caracteriza a desmesura, a falta de medida que retrata, paradoxalmente,
uma sociedade que chegou a este estado em nome da liberdade.
Este estado de perversão leva à fragmentação dos seres humanos, assunto analisado e
debatido pelo pesquisador Néstor Garcia Canclini, no livro Diferentes, desiguais e
desconectados. Num mundo pós-moderno que se recusa a reconhecer a necessidade
imperiosa de seus sujeitos encontrarem um conjunto de valores comuns a todos da
espécie (permitindo assim que os indivíduos se re-vinculem psíquica e socialmente), os
próprios sujeitos estão mergulhados num estado de corrupção, de violência, de
desespero, de horror crescente. E olha que eu não estou sendo pessimista. Estou sendo
realista, matemático.
Hoje quem tem R$ 135 mil de patrimônio está entre os 10% mais ricos do planeta. São
em dados quantitativos que me baseio e que me impulsionam, me entusiasmam para a
necessidade, mais do que urgente, de mudar eu mesmo de atitude, de eu mesmo ser, no
sentido Gandhiano, a mudança que eu gostaria de ver no mundo e, assim, ajudar aqueles
que estão dispostos a remexerem nas entranhas de seus valores e encontrarem onde
escondem, não apenas o seu racismo, mas todas as seqüências mentais que mantêm o
dominador no poder.
E.V.O. – É preciso que os sujeitos decidam remover dos estados mentais, por decisão
deliberada da vontade, o lixo que pensam ser eles mesmos, voltando a pensar e a sentir
o que interessa: o que os mantém vivos, lúcidos, amorosos, alegres, dedicados a
enfrentar os conflitos. Precisamos remover todos os estados mentais que tentam
sustentar a insustentável lógica da dominação, da produção midiática. Por isto, criamos
um programa acadêmico na área de comunicação dedicado justamente ao domínio do
processo de formação da vontade.
Para ajudar a mudar esta tendência é que criei esta disciplina: a Construção de Estados
Mentais Não-violentos na Mídia, que mostra a profundidade do compromisso que o
sujeito tem com o que até então pensava ser o sistema de pensamento vigente na
comunicação e na cultura, e como é possível passar a ser comprometido com valores
sustentáveis, tornando-se, gradativamente, mais e mais, o vigor destes valores em
movimento no mundo.
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