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Caderno de Texto

Seminário de Educação Médica NE – Barbalha, agosto de 2008

Sumário

Apresentação...........................................................................................2

A Ideologia nos Cursos Médicos (Marco Aurélio Da Ros).............................3

Medicina, Saúde e Sociedade (José Carlos de Medeiros Pereira)....................13

Riqueza, Poder e Doença (José Carlos de Medeiros Pereira)...........................21

Sociedade e Educação Médica (José Carlos de Medeiros Pereira)...................23

Neoliberalismo e a Formação do Profissional de Saúde (Júlio César França


Lima).......................................................................................................25

Educação Médica, Hospitais Universitários e o Sistema Único de Saúde


(Gastão Wagner).......................................................................................37

Análise crítica sobre especialidades médicas e estratégias para integrá-las


ao Sistema Único de Saúde (SUS) (Gastão Wagner).................................... 43

Histórico dos Projetos e Propostas sobre um Exame de Habilitação para os


Médicos do Brasil e o Posicionamento da DENEM...............................48

Poética Política e o Movimento Estudantil de Medicina: Algumas


Reflexões Sobre o Protagonismo Estudantil (Alexandre Amorim)..............50

Papel da Rede de Atenção Básica em Saúde na Formação Médica –


Diretrizes (Gastão Wagner)............................................................................61

Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES)............67

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APRESENTAÇÃO
É com grande prazer que a Coordenação Regional NE 2 da Direção Executiva
Nacional do Estudantes de Medicina, organiza o I Seminário sobre Educação Médica.
Esse encontro foi idealizado no planejamento regional realizado nos dias 22,23 e 24 de
fevereiro de 2008, e foi formatado no Grupo de Discussão e Trabalho e na Plenária
Final do XIV EREM.
As diretrizes construídas para o Seminário são:
• É diretriz para o seminário situar o MEM no contexto sócio-histórico
em que ocorreram as transformações da formação dos recursos
humanos para a saúde O seminário deve abordar as questões
referentes à formação pedagógica e de perfil médico dos docentes.
• Fazer também o debate da concepção de Universidade a partir do
currículo.
• Fazer o debate do protagonismo estudantil na construção e na
transformação do currículo. ( aprovado)
• Privilegiar espaços de roda de conversa em detrimento de mesas
• Incluir no debate as políticas do MEC e MS da transformação
• É diretriz do seminário a construção de um “produto” sobre
educação médica e currículo. (aprovado)
• É diretriz do seminário ser aberto para professores
• Construir no seminário um espaço especifico para socialização
dos êxitos dos projetos curriculares de cada escola Eixos para o
seminário: abordagem histórica, diagnóstico da situação das escolas e
protagonismo dos estudantes nesses processos.

E para facilitar o comprimento das diretrizes do seminário, disponibilizamos


esse caderno de textos, construído com textos de variados autores e que
fundamentalmente trata do processo de formação médica e de sua contextualização com
a dinâmica da sociedade capitalista.
Então vamos lá, vamos colocar a educação médica á prova, vamos nos perguntar
o por que do por que, vamos ao fundo do debate da educação médica, para que
possamos encontrar boas respostas para os problemas dos nosso currículos e para o
distanciamento da formação médica das reais necessidades da população brasileira.
Bom seminário para tod@s,

Saudações Estudantis,

Coordenação Regional NE 2 DENEM, Centro Acadêmico Leão Sampaio e


Diretoria Acadêmico de Medicina Umberto Câmara Neto.

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A IDEOLOGIA NOS CURSOS DE MEDICINA


Marco Aurélio Da Ros

Da Ros MA. A ideologia nos cursos de medicina. In: Marins JJN, Rego S, Lampert JB, Araújo
JGC (Orgs.). Educação médica em transformação: instrumentos para a construção de novas
realidades. São Paulo: Hucitec, 2004. p. 224-244.
A proposta de redigir um trabalho com esse título pode apontar diversos caminhos. O
entendimento que tive foi o de que o grande objetivo deveria ser colaborar para entender os
porquês das dificuldades de introduzir (de fato) uma mudança na formação dos médicos.
Temos, hoje, o discurso e prática da Ministério da Saúde, dos municípios, e o consenso
dos dirigentes do ensino de medicina sobre as necessidades de mudança. Redes de apoio do
porte da Abrasco (Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva) ou da Rede
Unida também participam ativamente, e mesmo assim as modificações são mais lentas que o
desejado.
Como pano de fundo para justificar essa lentidão, surge a pergunta: seria a questão da
ideologia na medicina um determinante? A proposta que me pareceu mais apropriada foi a de
começar a dissecar isso.
Partindo do princípio de que a ideologia, se não é a única, representa uma causalidade
muito importante, a abordagem do tema se ateve à tentativa de: entender um pouco do que
significa ideologia, especialmente numa relação hegemonia/contra-hegemonia; a história dos
movimentos que caracterizam essa relação, como determinante do pensar médico; uma pequena
reflexão sobre a forma como se produz o conhecimento (epistemologia); uma tipificação
caricatural sobre o médico “não mudancista”; e como podemos pensar em transformação com
esse espectro desenhado. Tento usar uma linguagem que beira o coloquial, a fim de facilitar a
compreensão do tema, e me parece apropriado iniciar por ideologia.

Alguns entendimentos sobre ideologia

Da profusão de autores que tratam o tema, Marilena Chauí1 me pareceua a mais


adequada, por estudar diversos autores e apontar alternativas para quem quer se
aprofundar mais no assunto.
O termo, segundo a autora, surge em 1801 na França, na tentativa de justificar a
gênese das idéias no período napoleônico. A partir daí, foram surgindo outros usos e
significados para o termo. Marx, por exemplo, afirma que o ideólogo é o que inverte as
relações entre as idéias e o real; Comte assume novos entendimentos para embasar o
positivismo; Durkheim o retoma para descrever as regras do método sociológico. Chauí
afirma que:1

Ideologia não é sinônimo de subjetividade oposta à objetividade (...) não é um


pré-conceito nem pré-noção, mas um “fato” social, justamente porque é produzida
pelas relações sociais (...) possui razão muito determinada para surgir e se conservar
(...) é uma produção de idéias por formas históricas determinadas das relações sociais.

Adota e aprofunda a concepção marxista de ideologia, afirmando, para explicá-


la, que a consciência está indissoluvelmente ligada às condições materiais de existência
e que as idéias nascem, em última instância, das atividades materiais. Como cada um
dificilmente pode escapar da atividade que lhe é imposta socialmente, todo o conjunto
de relações sociais aparece nas idéias como se tivesse origem por si mesmo, e não fosse

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conseqüência das ações humanas. Nasce, assim, a ideologia, propriamente dita, que é
sempre a da classe dominante:1

(...) o sistema ordenado de idéias ou representações, e das normas e regras como


algo separado e independente das condições materiais, visto que seus produtos - os
teóricos, os ideólogos e os intelectuais - não são diretamente vinculados à produção
material das condições de existência (...) As idéias aparecem como produzidas
somente pela pensamento (...).

Para relacionar o tema ideologia com a prática médica e com a sua resistência às
mudanças, ainda tomo as idéias de Chauí, a partir de Marx & Engels.2 Ela afirma que a
ideologia (entenda-se como dominante ou hegemônica) é possível em função da
alienação:

(...) enquanto não houver um conhecimento da história real, enquanto a teoria não mostrar a
prática imediata dos homens. Enquanto a experiência com a vida for mantida sem crítica e sem
pensamento, a ideologia dominante se manterá.

Ora, é justamente o que penso que ocorre com a categoria médica


hegemonicamente. Ela conhece a história da prática de sua profissão (a não ser para
alguns contra-hegemônicos) apenas como mera sucessão de datas, personagens e
inventos, descontextualizada e sem o entendimento das condições materiais da
existência dos homens e duas relações naquelas épocas. Pios ainda: está convencida de
que não tem de entender isso. Que já chegou à verdade científica. A alienação gerada
pela ideologia dominante a faz pensar que sua vida e sua prática são dirigidas pela ação
de entidades como a natureza, os deuses ou a razão (como se esta não fosse histórica
também).
Marx & Engels2 dizem que “as idéias da classe dominante são em cada época as
idéias dominantes (...) e aos trabalhadores é dada a alienação”. Buss3 confirma a mesma
lógica e o papel do Estado nessas circunstâncias, aplicando-a aos profissionais de saúde.
Ou seja, lhes é dado a imaginar que é natural e verdadeiro que as coisas sejam pensadas
da forma como são.
É claro que se torna muito determinista e mecânico imaginar que o pensamento
atual do senso comum, e dos médicos por extensão, seja dado somente porque é assim
que o capitalismo ou neoliberalismo preconizam (já que é neste modo de produção que
vivemos). Isto seria reducionismo.
Para entender melhor, Gramsci4 nos apresenta o conceito de hegemonia: a forma
como o poder dominante se mantém. Mas isso não significa homogeneidade.
Dialeticamente, há que pensar na construção de um contrapoder: noutra forma de
pensar, que luta contra aquela e que desnuda a vida real dos homens. No neoliberalismo,
a contra-hegemonia. 5,6,7
Como não pretendo um tratado sobre a questão ideologia-hegemonia-contra-
hegemonia, e sim um entendimento com base na prática médica historicamente
localizada, acredito que, se desvendarmos um pouco da história, do século XIX para cá,
a compreensão do pensamento tanto hegemônico como contra-hegemônico ficará mais
clara. A construção do pensamento na lógica interna será exposta no item “Um pouco
de epistemologia”, após o entendimento do que ocorria na história nessa época (contada
com óculos contra-hegemônicos, é claro).

O início desta história - século XIX

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(...) a prática médica está ligada à transformação histórica do processo de


produção econômica. A estrutura econômica determina, como acontece com
todos os componentes da sociedade, a importância, o lugar e a forma da
medicina na estrutura social.

Esta afirmação de Almeida8 confirma o que tentava discutir na questão


ideológica. Há que se reportar á história.
No início do século XIX, o capitalismo já uma forma hegemônica da
organização da produção no mundo desenvolvido da época - o europeu. E este
capitalismo funcionava com uma superexploração da força de trabalho. Filmes como
Germinal ou Daens mostram a vida do trabalhador da época. Também Engels9 descreve
jornadas de trabalho de dezesseis horas/dia, grávidas tendo filhos na fábrica, crianças
com menos de sete anos impulsionando teares em troca de comida (se chegavam a
oferecer tanto). O exército industrial de reserva era abundante, e a mortalidade,
inimaginável para os padrões de hoje. Nas fábricas não havia janelas, nem vasos
sanitários. Os trabalhadores comiam no chão. A idéia era aproveitar até a morte a força
de trabalho, depois... o exército industrial de reserva os substituiria. Nesse contexto, a
teoria prevalecente da origem das doenças ainda era algo semelhante a miasmática, que
eludia as questões sociais. Nessas condições, a contra-hegemonia gesta movimentos de
transformação social, de caráter socialista. No seio desses movimentos sociais é que os
médicos desenvolvem um novo conceito do processo saúde-doença. Esse movimento,
chamado de medicina social, acompanha as tentativas de transformação social entre
1830 e 1870, tornando-se a explicação hegemônica para a ciência médica da época.
Em 1848, Virchow - considerado o pai da medicina social - afirmava que as
doenças eram causadas pelas más condições de vida e, com Neumann, propõe mudanças
nas leis prussianas, objetivando superar a exploração da força de trabalho e garantir
melhores condições de sua reprodução, colocando no Estado a obrigação de suprir estas
necessidades. 10 leubuscher e Villermé, na França, Chadwick, na Inglaterra, e Grotjahn,
na Bélgica, trabalham simultaneamente com concepções semelhantes.
Entre 1870 e 1900, com o desenvolvimento de diversos campos do
conhecimento, aparentemente díspares, como patologia, histologia, química, fisiologia
e, principalmente, microbiologia, eclode verdadeira revolução no conhecimento médico.
A partir daí, seja por interesse do capital e/ou do complexo médico industrial, ou porque
o conhecimento na área inicia sua fragmentação de fato, ou porque as tentativas de
transformação social fossem derrotadas, ou mesmo por todos esses motivos, perde
força, na Europa, o entendimento da saúde como questão determinada socialmente. 11
Behring, em 1898, segundo Rosen10, sintetiza a ruptura com o modelo de
medicina social, dizendo que, graças à descoberta das bactérias, a medicina não
precisaria mais perder tempo problemas sociais. A partir desse discurso de Behring e
simultaneamente à teoria dos germes de Pasteur, a unicausalidade fica assentada.
A hegemonia, definitivamente, não gostava das pesquisas e investigações da
medicina social, que apontavam invariavelmente para mudanças sócias, quer dos
capitalistas ou do Estado que os representava. Teriam que aumentar salários, conceder
direitos sociais aos menores e às grávidas, diminuir a carga horária de trabalho, garantir
alimento e moradia decente, saneamento, lazer, etc. Já a unicausalidade descarregava a
culpabilidade do poder e abria a possibilidade de culpar a vítima - “não usou
equipamentos, não usou sapatos, não lavou as mãos, etc.” -, abrindo a porta ao

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higienismo na saúde pública e ao desenvolvimento de tecnologia de investigação para


“unicausas” e para os medicamentos que erradicassem aquela “causa”.
Esta forma parece ser um exemplo típico de como a hegemonia instala
ideologicamente um jeito de pensar (não se pensa mais na questão da sociedade). Na
Europa, o pensamento bacteriano convive com o da medicina social em declínio, mas
nos Estados Unidos, por condições particulares quer da formação social, quer do
modelo médico preexistente, o terreno da unicausalidade rapidamente se torna
hegemônico. Os médicos norte-americanos, enfim, faziam as pazes com a ciência.11 E
esta ciência se pautava na possibilidade de o capital amealhar grandes dividendos.12
Instalavam-se as bases para o chamado complexo médico industrial:13 de aparelhos de
investigação, com microscópios cada vez mais poderosos, a exames hematológicos cada
vez mais sofisticados; de medicamentos sintomáticos a antibióticos; hospitais
especializados cada vez maiores e mais equipados.
Sua base científica era a das ciências exatas. Abandona definitivamente a
possibilidade de ser também uma arte.11 A medicina sempre tentou-se valorizar-se como
ciência exata.14 Portanto, o biológico era o único pensamento aceitável enquanto
pudesse ser convertido em dado matemático.11 Nestas condições de desenvolvimento do
capitalismo norte-americano, de possibilidades de lucro no setor saúde/doença, com
uma teoria que justificava esta lógica, o terreno era fértil para que ocorresse uma
“revolução científica”, na linguagem de Kuhn.15

O modelo norte-americano

Em 1910, Flexner, professor da Johns Hopkins University, financiada pela


Rockefeller Foundation,11 é contratado para realizar uma investigação sobre o ensino
médico nos Estados Unidos. No início do século XX, havia cerca de 150 faculdades de
medicina nos E.U.A., com toda espécie de ensino e qualidade, mais de vinte delas
ensinando homeopatia, por exemplo. Flexner produz com sua equipe um relatório sobre
essas faculdades, que aponta um modelo padrão, o da Johns Hopkins University.
Embora aparentemente fosse um avanço para a época, mais tarde esse modelo seria
caracterizado como negador de uma forma ampla dos aspectos psicológicos e sociais.16
Cutulo,17 em sua tese sobre educação médica, disseca profundamente o conteúdo desse
relatório. Vejamos o que pode ser um resumo das principais idéias ali contidas:

(...) A ênfase do ensino deve ser dividida entre básico (dentro do laboratório) e
profissionalizante (dentro de hospitais) (...) denuncia as chamadas seitas
médicas como a homeopatia (...) discrimina negros e mulheres (...)
hipervaloriza o ensino de anatomia (...) não há menção ao ensino de saúde
mental, saúde pública ou ciências sociais. A base diagnóstica deverá ser física e
biológica (...), e o melhor ensino é por especialidades. Sua concepção de ciência
é manifestadamente positivista.

O chamado modelo flexneriano - e chamar dessa forma é mais um mecanismo


ideológico para alienar - poderia ser chamado de medicina positivista ou modelo
unicausal, ou modelo da Johns Hopkins, ou modelo da Rockefeller Foundation, ou
modelo norte-americano, ou modelo da medicina do capital. Consolida-se nos E.U.A., e
culpa-se hoje um homem, escondendo de novo, dessa forma, as relações sociais e
econômicas embutidas na proposta.

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Esse modelo rapidamente torna-se hegemônico nos E.U.A., possibilitando o


desenvolvimento das bases para o capitalismo auferir lucros com a doença - o chamado
complexo médico industrial. Em poucos anos, expande-se para as Américas do Norte e
Central, mas encontra dificuldades de hegemonia na América Latina.11

O complexo médico-industrial no Brasil e o Movimento Sanitário

O modelo flexneriano aporta com toda a força no Brasil em função do golpe


militar de 1964. Já andava entre nós desde 1950, mas não era hegemônico. Nosso país
baseava sua formação no modelo europeu-eclético.
Com o golpe a algumas de suas conseqüências - como a reforma universitária de
1968, a criação do Inamps, a expansão das faculdades de medicina (de 26 em 1963, para
56 em 1973) -, com o conteúdo curricular determinado pelo governo militar, atendendo
aos interesses do capital, com a supressão do ensino da terapêutica, com a
obrigatoriedade do ensino centrado no hospital, entrávamos, enfim, na “modernidade”.
Era, então, criado o modelo que formou quase todos os professores de nossos atuais
cursos de medicina - o modelo flexneriano.
O modelo de saúde imposto pelo governo militar restringia em muito as verbas
para prevenção (de 8% do orçamento em 1963, apara 0,8% em 1973), e sua ênfase era
posta na atenção à doença, privilegiando o uso de tecnologia. Financiava-se com
dinheiro público a construção de hospitais privados. Pagava-se por ações realizadas, e,
quanto mais utilizassem equipamentos, melhor pagamento recebiam. Isso destacava as
especialidades de tal modo que a formação das universidades se voltava para esse novo
mercado.18 O local de trabalho dos sonhos passava a ser o hospital, bem equipado,
com muitos laboratórios e abundância de medicamentos.
A intervenção era curativa, e o Inamps privilegiava cada vez mais a compra de
serviços em detrimento dos antigos serviços próprios dos IAPs (Institutos de
Aposentadoria e Pensões).11 Os setores que se devolvem são a Federação Brasileira de
Hospitais, a Abifarma (Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica), a medicina de
grupo (Abrange - Associação Brasileira de Medicina de Grupo) e os produtores de
equipamentos. Hipertrofiam-se as faculdades de medicina, onde não se ensina mais
terapêutica. Fragmenta-se o curso em múltiplas disciplinas/especialidades, as aulas são
ministradas pelo especialista mais atualizado (e não por quem entende de educação). O
estereótipo do profissional subproduto desse modelo será visto no item “Um pouco de
epistemologia”. Os antigos trabalhadores dos IAPs e do Ministério da Saúde
reivindicam a volta de melhores condições de trabalho, exigindo mais verbas para
prevenir doenças e serviços próprios, gerando movimentos denominados,
respectivamente preventivistas e publicistas. A estes se somam o renascimento do
movimento estudantil na área da saúde (os ECEM - Encontro Científico dos Estudantes
de Medicina) e os intelectuais das universidades, que pleiteiam a democratização do
país e desenham modelos alternativos de saúde, organizando-se em grupos como o
Cebes (Centro Brasileiro de Estudos de Saúde), de caráter nacional. A eles se juntam o
movimento popular de saúde, capitaneado pela Igreja, e o nascente movimento de
medicina comunitária (Murialdo, no RS, as experiências de Londrina) e a organização
da categoria médica no Reme (movimento de Renovação Médica).19,13
O que os irmanava era a luta contra a ditadura, contra a forma de atenção do
complexo médico-industrial e a necessidade de associar prevenção com cura em um só
ministério.

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Na segunda metade da década de 1970, esses movimentos isolados se unem e


constituem um grande ator social coletivo, chamado Movimento Sanitário ou
Movimento pela Reforma Sanitária.
As políticas de saúde, a partir daí, são resultantes do confronto entre essas duas
forças (complexo vs. Reforma), com evidente vantagem para a política dominante até o
fim da ditadura militar.
Quanto a macrotendências ideológicas na medicina, o final dos anos 1980
mostra esses dois blocos: complexo médico-industrial vs. movimento sanitário.
No governo Tancredo/Sarney, realiza-se a 8ª Conferência Nacional de Saúde -
grande palco para a demonstração de força do Movimento Sanitário em Brasília. Dela se
desenha a necessidade de construir o SUS e resgatar as bandeiras do movimento de
medicina social europeu do século XIX - que a saúde fosse direito de todos e dever do
Estado.

Do SUS ao Programa Saúde da Família

A aprovação da nova Constituição em 1988 e das Leis Orgânicas em 1990


garante legalmente um sistema público de saúde que deve ter equidade, integralidade,
universalidade, controle social e hierarquização da assistência. A contra-hegemonia
descobre, a duras penas, que a escrita do texto legal não é suficiente para o
enfrentamento de uma hegemonia sanitária capitalista. Cada palavra destacada nos
remte pensar na extrema dificuldade de sua implantação num país sem tradição de
cidadania garantida.
Uma entre as múltiplas constatações é a de que as universidades têm de formar
outro tipo de profissional. Um profissional que praticamente inexiste na atenção
primária/básica. As filas nos hospitais são enormes em função disso. E a leitura que a
hegemonia faz é de que devem ser construídos mais hospitais. O aparato ideológico
tenta demonstrar sempre que o serviço público é ineficaz, que é só para pobres. As
tentativas de reversão da tendência hegemônica são para reforçar o controle social,
assumir a administração de municípios, elaborar portarias e normas operacionais, criar
programas, fomentar mudanças na trajetória de formação. As histórias dessas tentativas
podem ser simbolizadas pelas lutas da ABEM desde a década de 1970, mas muito mais
fortemente a partir dos anos 1980. E 1991, cria, com outras entidades, a CINAEM, para
agrupar essa contra-hegemonia na formação e apontar um modelo formador
diferenciado.20
Os anos 1990 trazem perspectivas de algum grau de mudança, seja pelos
dirigentes das instituições de nível superior na medicina ou por se iniciar em 1993
(governo Itamar) uma proposta de ênfase ministerial na atenção básica/primária/integral
da família com a criação do Programa Saúde da Família (PSF).
A criação e a manutenção do PSF - que não deveria mais ser chamado Programa
Saúde da Família, mas, sim, de Estratégia de Atenção Básica, porque é estruturante do
SUS - permitem redimensionar a organização dos serviços de saúde municipais.
A viabilização de maior aporte de recursos para o PSF, a partir de 1997, por
sobre a verba irrisória do Piso de Atenção Básica (PAB), estimula os municípios a
contratarem, por salário mais digno, médicos que tenham alta resolubilidade e queiram
trabalhar oito horas por dia, em equipe multidisciplinar, promovendo saúde e
trabalhando com grupos terapêuticos nas comunidades onde se localiza o Centro de
Saúde, fazendo educação e se vinculando a uma população adstrita.

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Pois bem, aí se põe a contradição em evidência. Os municípios precisam de um


profissional que as faculdades de medicina, na grande maioria, não estão formando, e
não querem um especialista, nem trabalho no hospital.
O que nos pode parecer estranho na verdade tem uma razoável explicação. O
capitalismo internacional, no interesse de garantir o pagamento de dívidas externas dos
países aos bancos, passa a se interessar por colaborar com os países que queiram
investir em atenção básica. O entendimento é que esta atende melhor, com menor custo.
Isto permite que algumas diretrizes do SUS tenham financiamento internacional. Este
fato, associado à luta do movimento sanitário, começa a criar outra hegemonia na área
da saúde.
Surgem financiamentos internacionais para garantir um novo modelo de
formação de profissionais de saúde, em especial o médico. Mas não se pense que o
complexo médico-industrial não luta pela sua manutenção. Ou que o Banco Mundial e o
Movimento Sanitário pensem da mesma forma.
Ora, se entendemos estes movimentos na área da saúde, entendemos que cada
qual tenta manter sua hegemonia, impregnar sua ideologia.
Os movimentos que propugnam a mudança (que também não pensam
exatamente da mesma forma), como ABEM, Rede Unida, Abrasco e CFM, pressionam
o MEC em busca de mudanças. E estas surgem, como por exemplo, a aprovação das
diretrizes curriculares em 2001, para modificar os cursos da área da saúde até 2004.
As sucessivas gestões do Ministério da Saúde aportam mais e mais recursos para
colaborar com a mudança, seja por intermédio do PROMED ou agora com os Pólos de
Educação Permanente, trabalhando em todos os níveis: desde parcerias com o serviço às
residências ou mestrados profissionalizantes.
Mesmo assim, nas faculdades de medicina, a mudança é lenta; com muitas
dificuldades. Parece haver uma tendência a não mudar, e isto nos remete a pensar nas
teorias do conhecimento.

Um pouco de epistemologia

Fleck,21 médico epistemólogo, ao estudar estilos/coletivos de pensamento, nos


explica como se dá a instauração de um estilo, como dentro de um coletivo ele se
mantém e granjeia novos “adeptos”, e como um estilo tende a persistir e a não dialogar
com os diferentes.
Na gênese da mudança de um estilo de pensamento, vários autores adotam, na
lógica construtivista, maneiras semelhantes. Já nos parece suficientemente explicado
que a determinação é externa, social e ideológica; mas é preciso esclarecer um pouco
mais a lógica interna. Autores como Kuhn,15 falando de revolução científica para
mudança de paradigmas, Bachelard,22 tratando de rupturas epistemológicas, ou Piaget,23
dizendo das desequilibrações para construir um novo pensar, nos trazem as dificuldades
estruturais internas de mudança no pensar.
Esquematicamente, podemos dizer que há três níveis de dificuldade para
mudança:
a) Estruturais externas - as que envolvem o capitalismo internacional e
nacional. Da organização Internacional do Comércio ao complexo médico-industrial. As
do governo, como a estrutura do MEC, a lógica do Ministério da Ciência e Tecnologia;
b) Estruturais internas - dependentes do contexto social: como se constrói um
estilo de pensamento;

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c) Conjunturais - GED (gratificação das universidades federais); não-


contratação de mais professores; professores que não acreditam em educação; falta de
disponibilidade horária para reuniões; não haver dedicação exclusiva; a estrutura dos
guetos departamentais; a não-prática acadêmica; a separação básico-profissionalizante;
o reconhecimento de liderança para chamar uma reunião só se for do “seu time”.
O caso que nos interessa examinar neste trabalho é a existência de dois grande
blocos ideológicos e a diferença entre eles, para tentar caracterizar as dificuldades
estruturais internas. O agrupamento a seguir radicaliza as diferenças, mas a partir delas
poderemos pensar em matizes.24
Grosso modo, hoje as tendências ideológicas podem ser divididas assim:

MUDANÇA NÃO-MUDANÇA
Movimento pela Reforma Sanitária Atuação/valorização do complexo médico-
industrial
Verdade como processo/provisioriedade Verdade absoluta
Valorização da pesquisa qualitativa Só interessa a pesquisa quantitativa
Valorização da psicologia e do cultural Valorização da célula e da química
Valorização da atuação Todo poder ao médico
multiprofissional/interdisciplinar
Valorização da pessoa como um todo Valorização do conhecimento fragmentado
Permeabilidade/humildade Onipotência
Flexibilidade Rigidez
Pensamento crítico político Alienação
Centro de saúde/comunidade Hospital/indivíduo
Inclui promoção de saúde Só trará o doente
Educação como relação sujeito-sujeito, na Educação com o médico-sujeito e o paciente
relação médico-paciente como objeto
Flexibilidade para outras racionalidades Fechamento para outras racionalidades
médicas (chamadas de charlatanismo, etc)
Valorização da saúde pública Negação à saúde pública

É claro que são estereótipos, mas servem como balizamento para entender os
grandes confrontos ideológicos.
Acredito que uma caricatura de um exemplo prático seja a forma mais fácil de
decodificar como se dá a entrada de um novo integrante num estilo de pensamento e
como este vai reproduzi-lo depois. Tomemos um médico, que trabalha como professor
vinte horas por semana num hospital-escola e outras vinte horas semanais em seu
consultório privado, numa policlínica, em sua especialidade. Faz dois plantões em
emergência por semana. Fez sua especialização num hospital em Ohio (E.U.A.), tendo
morado lá durante quatro anos. É professor há dois anos, e seu salário como tal beira o
ridículo. Um de seus alunos na décima terceira fase do curso pergunta sobre um detalhe
anatômico raro num músculo que só uma cirurgia especializada consegue visualizar. O
professor sabe a resposta, estudou muito sobre aquilo (aquele pedaço do corpo), já
salvou vidas em função disto, ganha dinheiro com esse saber, fez um curso recente de
atualização e aprendeu novos exames e medicamentos a recomendar. Ele não lembra o
nome de seu paciente, também não sabe se tem família ou em que trabalha; refere-se a
ele como “o do leito 14”. Lembra que suas aulas (quando ainda era aluno) eram para
cem alunos, e ele tinha que estudar muito em casa para decorar novas inserções
musculares (era isso que caía na prova); teve de “ralar” muito para conseguir fazer sua
residência; teve de copiar o discurso de seus professores (estudando por cadernos), se

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não “rodava”. Lembra quando o professor disse que, se não usasse as palavras
científicas, não seria aceito no coletivo. Lembra também quando ouviu o “rolar
protodistólico” no leito 37, que o professor de semiologia tanto valorizou; seus colegas
não ouviram (Ah! Que satisfação tão grande ganhar uma competição de
conhecimentos...). Portanto, aprendeu um jeito de falar, teve reforço psicológico por
ouvir de uma determinada forma, tirou notas boas por decorar técnicas, e em função
disso foi aceito num coletivo. Acabava, dessa forma, de entrar no estilo de pensamento
hegemônico, sem ao menos saber o que é hegemonia ou os grandes blocos históricos.7
Além disso, dentro do estilo de pensamento gerado, ele só será aceito e
respeitado se cumprir algumas regras do coletivo, tais como: nossa verdade científica
não aceita que possam existir outras verdades (a isso Fleck chama de
incongruência/incomensurabilidade entre estilos de pensamento); os outros profissionais
da saúde estudaram menos, sabem menos, tem menos responsabilidade, portanto quem
deve tudo mandar é o médico. E, como conseqüência, trabalho interdisciplinar não cabe.
Para manter o monopólio do conhecimento do fragmento, deve participar de muitos
congressos de especialidade, onde não existem questionamentos sobre o caráter
geral/social que a medicina deve ter.
Quando for professor vai fazer uma “suave coerção”21 para que os alunos
tenham os mesmos rituais de iniciação, falem a mesma linguagem e reproduzam o estilo
de pensamento, e que construam muros para não deixar entrar outras idéias
“alienígenas”. E entende que, para ser bom professor, basta aprofundar o conhecimento
técnico da especialidade e despejar este conteúdo no recipiente vazio, que é a cabeça do
aluno.25
O objetivo é reproduzir o seu modelo (considerando que seja bem intencionado),
e, portanto, será o da medicina privada, que lhe dá dinheiro. Pede muitos exames e
receita muitos remédios porque senão diz que os pacientes não acreditam nele. E ainda,
se não pedir e acontecer algum contratempo, poderá sofrer uma ação judicial. Fala uma
linguagem de círculo esotérico/só para iniciados,21 o que lhe dá a impressão de que os
pacientes e os alunos ficarão embevecidos de ouvi-lo. Tudo o que não esteja de acordo
com o seu pensamento cartesiano é “falsa medicina”, perda de tempo ou politicagem.
Não conhece o SUS, ou o que seja promover saúde. Saúde pública é para sanitaristas.
Desconhece ou nega que epidemiologia é a base de seu raciocínio.26 Acredita que, se a
maioria da categoria médica pensa de uma forma, nada vai mudar nas políticas de saúde
(nem para ele), por isso não precisa estar atualizado nelas. O melhor lugar para pedir
exames é uma clínica que já tenha laboratório ou um hospital. Ah! O hospital!!!
Entende que não é possível saber toda medicina, então se aprofunda na parte
(oportunamente na víscera). Acredita que sabe tratar prescrevendo: exercício, dieta,
mudança de hábitos, medicamentos e cuidados. Mas atenção! É aqui que a falácia se
estabelece:
- Onde ele aprendeu medicamentos? Na farmacologia da quarta fase? Como os
representantes de laboratório? Copiando como verdade o que o professore do leito
prescreve?
- O que sabe de dieta, se em seu curso não gastou mais que (no máximo) vinte
horas estudando alimentos?
- Exercícios adequados ele aprendeu com fisioterapeuta ou com professor de
educação física? Já que médico tem de ensinar médico, qual o médico que sabe disso?

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Caderno de Texto

Seminário de Educação Médica NE – Barbalha, agosto de 2008

- Para mudar hábitos há implicações pedagógicas. Onde aprendeu educação?


Vendo os seus professores? As propagandas do Ministério? Já estudou alguma vez
Paulo Freire ou pedagogia problematizadora ou PBL?
Existem, portanto, dois grandes blocos/macrotendências ideológicas. Dentro
deles, diversas nuanças. O estereótipo acima pode até nem existir de forma tão
radicalizada, mas... Faz pensar. Como se faz então para que a mudança, na direção que a
contra-hegemonia deseja, possa acontecer?

As possibilidades de mudança

Se a ideologia está baseada nas condições materiais de existência, e estas


produzem o pensamento hegemônico, a mudança do mercado de trabalho é um potente
mecanismo indutor de mudanças. Com uma nova lógica de financiamento para a
atenção básica e sendo o grande agente contratador os municípios - que recebem mais
por terem médicos gerais que promovam saúde -, há um estímulo para que formação se
dê de forma diferenciada.
Ao lado dessa questão estrutural, as forças que apostam na mudança têm de
investir numa ruptura epistemológica/revolução científica/novo estilo de pensamento
dentro das academias. Isso se dá sensibilizando os serviços/comunidades onde os alunos
começaram a conviver, os diretores das faculdades e, principalmente, passando pela
ideologia dos alunos e professores dos departamentos. Aí é que está o nó. Em sua
maioria, os professores não abrem brechas em suas muralhas, não querem conversar,
são impermeáveis, boicotam a mudança, pois esta os deixa inseguros (isso é a
incongruência fleckiana de pensamento).
As possibilidades nas universidades estão no trabalho interdisciplinar; no ouvir
os alunos; na inserção precoce destes, em contato com as pessoas das comunidades; na
inclusão do conteúdo educação/pedagogia nos cursos; na criação de rodas de discussão
(no começo só os permeáveis virão; é necessária a insistência permanente na abertura
aos outros, às diferenças).
Portanto, ouvir o outro, respeitar opiniões diferentes, permitir-se considerar que
seu pensamento não está pronto - que não há um jeito de olhar, que existem
possibilidades boas de atuações diferentes da sua, que as respostas que temos dado
podem ser muito melhoradas.
O problema é que quem admite essas premissas já está permeável ou em
processo de mudança, pois está construindo o novo modelo. Os que não aceitam isso é
que não querem o novo modelo.
Para trabalhar a questão, que é fundamental, temos que entender cada vez mais
como funcionam “as cabeças” dos médicos do modelo tradicional. Não adianta iniciar
as discussões por filosofia/epistemologia, porque eles nem virão se o tema for este. Só
admitirão reconhecer esses assuntos como importantes se sua “verdade médica” for
abalada. É o que Cutulo17 chama de criar ou buscar complicações para este raciocínio
linear do positivismo. Desestabilizar as “verdades”. Portanto, trabalhar com o desmonte
dessas verdades médicas que não incorporam o psicológico, o cultural e o social.27
Desconstruir o “paradigma” biologicista. Desmascarar as certezas (saber remédios,
dietas, exercícios, cuidados; onde aprenderam?).
Será necessário formar novos profissionais, mesmo que o grupo contra-
hegemônico seja minoritário, para que estes sejam os novos professores. O Ministério
da Saúde tem feito a sua parte, estimulando as rodas de Educação Permanente, também
como fonte de financiamento para projetos. A Portaria 198 do Ministério da Saúde de

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Caderno de Texto

Seminário de Educação Médica NE – Barbalha, agosto de 2008

fevereiro de 2004 (MS-2004) caracteriza a Educação Permanente como a continuidade


da luta pela reforma sanitária e a ruptura dos monopólios do saber; não é a academia
que tudo sabe, nem o serviço, porquanto fruto também dessa academia, mas a interface
dos dois, com os atores do controle social, que pode apontar as verdadeiras necessidades
da população.
Teremos de continuar a pressionar o MEC, ampliando o número de aliados nesta
direção, para rever sua política de pós-graduação, compatibilizar as necessidades da
população com as residências médicas (aliás, por que não multiprofissionais?), contratar
novos professores, mudar a graduação, etc.
Não se trata de abandonar a prática médica clínica tradicional, mas
redimensioná-la, ressignificá-la, enquadrá-la numa prática humanizada, crítica,
reflexiva, que veja a pessoa como um todo nas suas relações e que amplie as
possibilidades de resolubilidade. Em suma, contribuir para que o povo reaja às situações
de opressão física, mental e social, e p possa ser mais feliz. E isso inclui as
possibilidades para que o médico também possa ser.

MEDICINA, SAÚDE E SOCIEDADE1


José Carlos de Medeiros Pereira

I – INTRODUÇÃO

Nosso propósito é apresentar uma certa rotação de perspectivas quanto ao modo


de analisar tanto o processo saúde-doença como a assistência médica. O primeiro é
freqüentemente pensado como sendo quase exclusivamente biológico. Em relação à
segunda ela é vista, demasiadas vezes, como se se orientasse sobretudo por
considerações de ordem médica. Ora, saúde e doença são objetos ao mesmo tempo
sociais e biológicos. Os homens são sadios, enfermam e morrem não segundo apenas
variáveis biológicas, mas por razões, o mais das vezes, sociais. Quanto à assistência
médica, mais facilmente se percebe que ela é constituída por um conjunto de práticas
sociais que obedecem a poderosos determinantes econômicos, políticos e de outras
ordens também não-médicas.
A assistência médica é, inquestionavelmente, objeto de estudo das Ciências
Sociais, principalmente da Sociologia. Trata-se, por certo, de uma instituição social,
com a especificidade de se constituir de um complexo de ações e relações sociais
referidas à área médica. Mas pode ser objeto também de uma disciplina de fronteira à
qual nos referiremos adiante. Tal disciplina, em outra de suas vertentes, volta-se,
igualmente, para o estudo das determinações extrabiológicas da saúde e da doença,
principalmente desta, quando encarada não em termos de indivíduos isolados, mas de
uma população que apresenta segmentos sociais vivendo em condições diferenciadas.
Assim, quando se analisa como a enfermidade ocorre e se distribui na população
descobre-se que o fato de ela se individualizar em determinados organismos biológicos
é, em grande parte, uma conseqüência de serem esses organismos membros
participantes de determinadas relações sociais.

II – A MEDICINA SOCIAL

1
Publicado originalmente em Estudos de Saúde Coletiva, nº 4, pp. 29-37, Rio de Janeiro, novembro de 1986

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Caderno de Texto

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Sem dúvida, as várias ciências sociais poderiam dar conta da investigação dos
determinantes da assistência médica, como já dissemos. Por outro lado, elas poderiam
também estudar: a) os determinantes sociais que fazem com que um dado fenômeno na
área da Saúde Coletiva seja considerado normal ou patológico; b) ou, ainda, os fatores e
condições igualmente sociais que levariam tal fenômeno a se manifestar diversamente
nos vários segmentos sociais (classes, frações de classe, grupos ocupacionais, de renda
etc). No entanto, especialmente de duas décadas para cá, foi se desenvolvendo uma
novel disciplina, a Medicina Social, que se voltou especificamente para o estudo dessas
duas ordens de questões(15). A par de outras razões, talvez se possa dizer que, para o
surgimento desta, militaram desdobramentos havidos nas investigações realizadas em
dois campos de estudo aparentemente distintos. Num caso, a Epidemiologia, disciplina
médica, passou a se interessar, cada vez mais, pela convergência do social e do
“natural” na explicação da manifestação do fenômeno doença. Verificou que este
depende, freqüentemente, de condições suficientes, de natureza social, tanto ou mais até
que de causas necessárias, de natureza biológica. De seu lado, trabalhadores intelectuais
na área da Sociologia e, mais recentemente, na da Economia, estabeleceram claramente
que o funcionamento e a estrutura do sub-sistema social representado pela assistência
médica obedecem a razões extramédicas. Nada mais natural que sendo ambas as
questões vinculadas, de um modo ou doutro, à Medicina, fosse adquirindo contornos a
disciplina a que nos estamos referindo.
Na verdade, algumas correntes heterodoxas dentro da própria Medicina, gozando
de maior ou menor prestígio conforme o momento histórico e os paradigmas científicos
pelos quais ela se norteou, freqüentemente consideraram o fato de os homens doentes
serem também participantes de determinadas relações sociais, as quais é preciso levar
em conta. Especialmente nos últimos anos, por influência de tais correntes, a Medicina
vai deixando de ser quase que apenas o conhecimento (biológico principalmente) da
doença e dos meios de curá-la e/ou a ciência do corpo humano, normal e patológico.
Um número significativo de trabalhadores na área vai percebendo, cada vez com maior
clareza, que a explicação das doenças e sua cura é facilitada pelo conhecimento do
contexto social em que vivem as pessoas. Bem ou mal, eles têm buscado explicá-las
através da referência a fatores sociais, ainda que, o mais das vezes, esse social seja
encarado como constituído por características de pessoas, na já tradicional concepção
multicausal da doença. Apesar disso, na atualidade, muitos dos cultores da disciplina
médica procuram ampliar o objeto da mesma, a maneira de representá-lo
cientificamente e o modo de apreendê-lo. Cada vez mais, em face disso, cremos que a
Medicina tenderá a ser concebida também como uma ciência históricosocial,
percebendo que as características dos seres humanos (doentes ou não) são sobretudo um
produto de forças sociais mais profundas, ligadas a uma totalidade econômico-social
que é preciso conhecer e compreender para explicarem-se adequadamente os fenômenos
de saúde e de doença com os quais ela se defronta.
Passando a Medicina a ser encarada como atrás, suas práticas sociais puderam
vir a ser, também, objeto de investigação médica e não apenas de alguma ciência social.
De qualquer forma, essas novas concepções facilitaram a constituição da Medicina
Social, voltada para o estudo tanto dos processos que mantêm a saúde ou provocam a
doença como das práticas sociais que procuram recuperar ou manter aquela. Trata-se de
uma mudança qualitativa, porque o objeto de tal disciplina não é representado por
corpos biológicos, mas por corpos sociais. Não se trata, tão-somente, de indivíduos, mas
de sujeitos sociais, de grupos e classes sociais e de relações sociais referidas ao processo
saúde-doença. Realizada tal mudança, as práticas sociais da medicina e a doença seriam

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objeto de investigação, especificamente, dessa disciplina social, que se poderia vincular


à Medicina desde que ela fosse concebida como uma ciência que tivesse um objeto
social e natural ao mesmo tempo.
A rotação de perspectivas quanto ao modo de encarar e interpretar esses objetos
de estudo representa uma ruptura em relação à corrente positivista predominante. Tal
rotação faz avançar a interpretação, introduzindo tipos diversos de explicação,
sobretudo sociológica. O uso deles pela Medicina Social permite a inserção dos fatos
observados e das relações descobertas em teorias mais abrangentes; permite ver coisas
novas, como se elas estivessem sendo criadas pelo investigador porque, agora, fatos
conhecidos são olhados a partir de outros pontos de vista, embora também
conhecidos(16: 101). É certo que os paradigmas da Biologia, de modo geral usados na
Medicina, são menos controvertidos. Eles permitem, inclusive, que quase todos os
investigadores utilizem o mesmo modelo de análise, ao qual se conformam, Mas tal
procedimento gera menores oportunidades de questionamento e, conseqüentemente, de
reflexões sobre as questões estudadas (7). Ora, nas Ciências Sociais inexiste um
paradigma único sobre o qual se assente um crescimento científico cumulativo. Sua
existência implicaria num acordo entre seus grandes cientistas quanto à concepção da
sociedade, o que seria praticamente impossível, pois esta, ao contrário dos objetos
naturais com os quais lida a Biologia e outras ciências naturais, é plena de divisões e
conflitos dos quais o próprio investigador é parte. Mas, com isso, o avanço
proporcionado pode ser significativo: uma criatividade mais expressiva, mais profícua,
cientificamente falando, que acaba produzindo resultados também significativos.

III – A ENFERMIDADE COMO FENÔMENO SOCIAL

Adotar a perspectiva da Medicina Social implica em encarar a enfermidade


como um fenômeno social também. Tomá-la como um fenômeno natural, como
habitualmente se faz, tem implicações políticas inegáveis: permite transformar
problemas sociais em problemas técnicos, com soluções dependentes da adoção de
procedimentos igualmente técnicos e não políticos. Diga-se que o primeiro tipo de
solução é o geralmente disponível pelos serviços médicos. Tal fato contribui,
certamente, para a Medicina tender a adotar antes um tipo de explicação e não outro.
Não nos esqueçamos que ela é, em grande parte, uma técnica de intervenção. Esta
característica, e a formação, da mesma forma, muito técnica dos médicos, favorecem a
adoção de uma concepção fragmentada do homem e da doença. Tal fragmentação, feita
com o objetivo de melhor analisar, para conhecer, o objeto de estudo, impede que este
seja inserido num todo social coerente. Tratando-se, porém, de objeto e de problemas
sociais, idealmente se exigiria, de quem explica e propõe soluções, a percepção de como
se estrutura e funciona o sistema social no qual um se insere e os outros ocorrem. A
proposta da Medicina Social pretende preencher essa lacuna, procurando ultrapassar o
nível de concreticidade dos fenômenos médico-sociais, não os tomando como se eles
fossem transparentes, como muitas vezes se faz. Oferecendo uma visão mais abrangente
da doença e dos homens doentes, essa disciplina pretende chegar a uma interpretação
sociologicamente mais rigorosa dos fenômenos e a uma proposição de soluções
socialmente mais relevantes. Ou seja, ela se propõe ultrapassar a mera aparência dos
mesmos, para chegar, realmente, ao que considera a sua essência.
Para a Medicina Social boa parte das doenças constitui uma manifestação muito
concreta das relações sociais (sobretudo de produção) de que os homens participam. Por
isso é que elas se apresentam tão diversamente, se consideramos os diferentes

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segmentos sociais. Vinculando-se ao modo como os homens vivem, trabalham, se


divertem, se relacionam enfim, a prevenção da enfermidade, mantendo-se a saúde, tem
muito a ver com quaisquer melhorias nas condições de vida proporcionadas, entre
outras coisas, pela diminuição da desnutrição, pelo acesso a moradias mais adequadas,
pelo exercício de um trabalho física e mentalmente menos desgastante etc. Em outras
palavras, os homens enfermam e morrem desigualmente por pertencerem a uma e não a
outra classe social, por exercerem diferentes ocupações, por se vincularem a este ou
aquele setor econômico (rural ou urbano-industrial por exemplo), por compartilharem
culturas ou sub-culturas distintas etc. Isto é que os faz correr riscos desiguais de
contraírem moléstias e de morrerem. Os trabalhadores rurais, por exemplo, correm mais
riscos do que os burocratas do serviço público por estarem muito mais expostos ao
binômio excesso de trabalho-consumo deficiente (8).
Ainda que como fenômeno biológico a doença possa ter características
universais, podendo o homem ser encarado como um ser isolado, da perspectiva da
Medicina Social, fora de seu contexto social esse homem é uma abstração, algo que não
existe. Ele participa de uma sociedade histórica, dividida, conflituosa, competitiva, em
que os diferentes segmentos sociais têm desigual poder, riqueza e prestígio. Por isso,
uma visão reducionista do problema de saúde e doença, perdendo de vista essa
totalidade social, acaba não proporcionando o entendimento procurado do problema. A
divisão deste em partes, para se proceder à análise, pode ser conveniente apenas quando,
em seguida, faz-se a síntese, chegando a uma concepção enriquecida do conjunto do
qual se partiu. Só quando se tem um mínimo de percepção dos fatores sociais
produtores da enfermidade é que se pode compreender porque a presença da causa
necessária de uma doença não necessariamente a desencadeia se não estiverem
presentes as condições suficientes para que ela exista. É nesse sentido que se pode dizer
que a verdadeira causa da tuberculose são as precárias condições de vida e não o bacilo
de Koch.
Na explicação cabal da produção tanto da saúde como da doença entre os
homens, na quase totalidade dos casos, é preciso, pois, ter em conta as relações sociais
de que eles participam numa realidade social concreta. Nesse sentido é que podemos
ousar afirmar que se o DDT e o BHC matam barbeiros em todo lugar, também é
incontestável que se as pessoas tivessem outras condições de moradia e melhores
condições de vida, a incidência e a prevalência de uma doença como a de Chagas
possivelmente diminuiriam em proporção maior do que quando se tentam soluções
baseadas na noção de que sua causa fundamental é a presença de triatomíneos
infectados. Da mesma forma poderíamos nos referir à esquistossomose. Freqüentemente
se pensa em combatê-la procurando melhores moluscocidas e não em fazer com que as
pessoas vivam em condições de não precisar entrar em contacto com águas infestadas.
Num e outro caso,quando a explicação da doença não contempla o social, as soluções
aventadas deixam intocada a estrutura social determinante da doença.
É o caso de muitas proposições epidemiológicas que partem do pressuposto da
inevitabilidade da presença do homem numa determinada cadeia epidemiológica. Ora,
se suas relações com os outros homens e com a natureza fossem diferentes da que está
ocorrendo naquele lugar e naquele momento histórico ele não participaria de tal cadeia.
Sem que essas relações sejam levadas em consideração, a Medicina, o mais das vezes,
vai se limitar a enfrentar a doença já produzida. Evidentemente, este modo de proceder
constitui uma solução correta em face do problema individual existente, mas não como
explicação e solução, ao nível coletivo, do fenômeno doença. O pressuposto da
inevitabilidade desta se suas causas necessárias não forem afastadas assenta-se na

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Caderno de Texto

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tendência das ciências naturais de se voltarem para as características universais da


produção dos fenômenos. Esta tendência se vincula, por sua vez, à suposição de que se
está diante de um universo contínuo, em que as diferenças pouco explicam. Ora, não é
este o caso de qualquer fenômeno e processo envolvendo seres humanos, pois, em
termos societários, é cientificamente incorreto desconsiderar-se as diferenças sociais. Se
não nos voltarmos para elas, nossas constatações a respeito, por exemplo, da incidência
e prevalência de quaisquer doenças serão meras abstrações. Não nos dirão que grupos
ocupacionais ou frações de classes sociais são afetados. De fato, como já nos dizia
Marx, a população é uma abstração se deixarmos de lado suas divisões.
É em decorrência do fato de as relações sociais variarem historicamente que
existe, também, uma historicidade das doenças. Dependendo da evolução das condições
específicas existentes numa dada formação social concreta, umas doenças surgirão e
outras desaparecerão. A tuberculose, por exemplo, foi uma doença largamente
disseminada enquanto perduraram as condições de existência precárias determinadas,
entre outras razões, pela Revolução Industrial. Neste século, entretanto, diminuiu de
muito sua morbi-mortalidade sempre que essas condições melhoraram, antes mesmo de
terem sido descobertos tuberculostáticos eficazes. Da mesma forma, à medida que uma
sociedade passa de predominantemente rural a urbano-industrial serão diferentes as
enfermidades que afetarão seus membros. Poderão diminuir as zoonoses e verminoses,
mas aumentar os acidentes (de trabalho, de trânsito), as violências ou as doenças cardio-
vasculares. Em termos mais gerais, pensemos na passagem do mundo subdesenvolvido:
a doença sobe dos intestinos para os pulmões. O que é poluído agora é o ar e não o
chão(1).

IV – DETERMINANTES EXTRAMÉDICOS DA ASSISTÊNCIA MÉDICA

Tradicionalmente concebe-se a assistência médica como o conjunto de práticas


sociais da Medicina visando, especificamente, a promoção da saúde e a prevenção e
cura da doença ao nível individual. Não entrariam na definição aquelas atividades
promotoras de saúde não exercidas por profissionais da saúde, como também as
medidas coletivas. Há um certo consenso, por exemplo, de que o saneamento é antes
engenharia sanitária do que medicina. Nem mesmo as medidas levadas a cabo pela
medicina preventiva são sempre encaradas como assistência médica. Estão também
excluídas a indústria farmacêutica, de aparelhos hospitalares etc. Cecília Donnangelo
resume o que foi dito afirmando que a assistência médica seria o “conjunto de ações de
diagnóstico e terapêutica dirigidas ao consumidor individual”(3). Há outras concepções
de assistência médica mas, para nossos propósitos vamos nos cingir a esta para
distingui-la de Saúde Pública, no sentido de medidas orientadas coletivamente visando
o atingimento dos fins mencionados acima.
Ainda que a assistência médica diga respeito exclusivamente à atividade
exercida por médicos, de modo algum, como já foi dito, ela se faz tendo em conta
apenas critérios médicos. É que as práticas sociais referidas constituem uma instituição
social cujo funcionamento e dinâmica obedecem a determinações extramédicas.
Dificilmente serão os médicos que, nas condições concretas de sua atuação, decidirão
quem e como alguém será atendido e considerando critérios tão-somente médicos. O
mais das vezes, como umas vidas têm mais valor do que outras em termos societários,
políticos e econômicos, serão nesses termos que as decisões serão tomadas. Ou seja, os
pacientes serão assistidos em razão de sua capacidade de pagamento, ou porque podem
exigir a assistência médica dado o poder de que dispõem ou, ainda, porque são

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Caderno de Texto

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considerados economicamente mais produtivos do que outros. Sobretudo nas sociedades


capitalistas, em que há um quase completo domínio dos interesses econômicos, os
valores alheios à medicina tenderão, em muito, a orientar as decisões.
Sendo assim, há necessidade de analisar mais profundamente os aspectos
sociais, políticos e econômicos responsáveis pelo desvirtuamento dessa assistência (em
relação ao ideal expresso) de modo a não produzir os resultados que, medicamente, dela
seriam esperáveis na redução, por exemplo, da morbi-mortalidade do conjunto da
população. Nessa análise, uma das primeiras questões que chamam a atenção é a
tendência de considerar a saúde e a doença como sendo de responsabilidade individual.
Esta é, em grande parte, uma conseqüência de modo predominante de pensar nas
sociedades capitalistas. Contudo, ela já era também a visão dominante na medicina.
Mesmo antes do capitalismo a atenção médica era considerada uma questão
individual(5). Além do mais, agravando o problema, ao não se voltar para a
determinação social da saúde e da doença, a assistência médica acaba atuando, muito
freqüentemente, mais sobre os efeitos do que sobre as causas.
A determinação social da assistência médica é claramente percebida inclusive
quando se estuda sua história. Como nunca existiram sociedades históricas sem imensas
desigualdades sociais, o que se vai observar é que o tratamento e prevenção da doença
sempre variaram de um segmento social para outro. No capitalismo, especificamente,
pode-se mesmo dizer que a proteção da vida e da saúde depende de um cálculo
econômico. Isto é visível, por exemplo, na própria distribuição geográfica dos médicos.
Eles, como diz Illich, têm tendência compreensível de se instalarem “onde o clima é
sadio, a água pura e as pessoas podem pagar seus serviços”(6). Mas não é só por
regiões, evidentemente, que a distribuição é desigual. O mesmo se pode dizer em
relação às várias classes sociais. À distribuição desigual dos médicos pode-se
acrescentar uma série de outros serviços de saúde, como hospitais, centros de saúde,
laboratórios, pessoal para-médico etc. Há uma hierarquia de tratamento porque os
corpos são vistos socialmente. Ou seja, eles se hierarquizam de acordo com sua
produtividade, com o capital neles investido (por exemplo, num médico investiu-se
mais do que num professor primário), com seu status, com seu poder. Muitas vezes,
mesmo quando o Estado se volta (em termos de assistência médica) para a população
marginal e o sub-proletariado é porque está preocupado em diminuir as tensões sociais,
por exemplo.
Evidentemente, numa sociedade capitalista, é inevitável que se façam tais
cálculos econômicos e políticos e se considere a capacidade de pagamento dos que se
encontram enfermos. Afinal os recursos são sempre escassos (em face do modo como
são estruturados os serviços). Daí ser necessário que se tenha uma base “racional” para
decidir. Ao estabelecê-la considerando coisas como a produtividade ou a capacidade
(expressa na possibilidade de pagar), o sistema social vigente pode tornar a
diferenciação da assistência médica relativamente aceitável para o conjunto da
população, porque se funda em distinções tidas como socialmente normais em nossa
sociedade. É claro que seria incorrer num mecanicismo pouco defensável explicar toda
e qualquer transformação no âmbito da assistência médica como estando inteiramente
vinculada aos interesses do capital. Em qualquer sistema sócio-econômico global as
instituições sociais nele existentes tendem a funcionar de modo a reproduzi-lo. Assim
sendo, a medicina, enquanto prática social, acaba tendo esse papel no capitalismo como
teria em outro modo de produção.
Na verdade, é muito interessante observar que a orientação coletiva da medicina,
enquanto assistência médica, é muito mais expressiva com o avanço do capitalismo do

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Caderno de Texto

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que em modos de produção anteriores. Os serviços de assistência crescem


quantitativamente e segmentos sociais, até então desassistidos, são
incorporados ao cuidado médico. Uma outra explicação para essa incorporação, além
das já mencionadas (preocupação com a produtividade e controle das tensões sociais)
estaria no fato de que tanto a indústria farmacêutica como a de equipamentos cresceu
enormemente nestas últimas décadas. Como o lucro dessas atividades só se efetiva
através dos atos médicos, que levam ao consumo das mercadorias produzidas por essa
indústria, ela pressiona sempre no sentido de que os cuidados médicos se estendam a
uma porção maior da população. É evidente que a própria população, por sua vez, luta
para que o Estado proporcione sempre assistência médica mais adequada, o que leva à
expansão da mesma, ainda que com diferenciação muito grande de qualidade, conforme
se assinalou.
A discussão sobre relações da assistência com a estrutura social pode ser
encarada ainda sob outros aspectos, mas vamos nos limitar a estes. Poderíamos, por
exemplo, discutir o enorme desenvolvimento do aparato técnico dessa assistência; a
crescente politização do ato médico; os movimentos de contestação a esse gigantismo
tecnológico; a contradição gerada pelos custos crescentes dessa assistência, o que
inevitavelmente vai lhe estabelecer um limite; as tentativas de racionalização dos
serviços médicos; o surgimento de medicinas alternativas etc. Os limites de espaço nos
obrigam, entretanto, a restringirmos nossa exposição aos pontos abordados.

V – CONCLUSÕES
O desenvolvimento de uma disciplina como a Medicina Social contribuiu, ao
lado de outras causas evidentemente, para esclarecer a dupla natureza (biológica e
social) do objeto da Medicina. O processo saúde-doença tendeu, cada vez mais, a ser
percebido como sendo determinado (em boa parte pelo menos) pelo funcionamento e
dinâmica do sistema social inclusivo onde ele ocorre. Passaram a ser devidamente
consideradas as diferenças sociais na produção dos ditos fenômenos. Percebeu-se que
saúde e doença só são explicáveis quando a sociedade deixa de ser vista como um todo
homogêneo, estável e ahistórico e passa a ser, ao contrário, visualizada como dividida
em classes, estratos e grupos sociais, freqüentemente opostos e mesmo antagônicos. Sob
esse prisma, foram inovadas as concepções metodológicas que norteavam o
entendimento da enfermidade. Ultrapassando relações causais imediatas, geralmente
vinculadas apenas às características do organismo biologicamente considerado, a
rotação de perspectivas proporcionada permitiu chegar à noção de totalidade social. Ou
seja, entender que nem mesmo são as características sociais das pessoas que explicam
boa parte das doenças, mas o conjunto de forças sociais mais profundas, as quais só
podem ser adequadamente compreendidas quando nos voltamos para o bosque,
deixando de nos cingir tanto às árvores que o compõem. Em termos de explicação e
solução do problema doença, a novel disciplina tem mostrado que encarar o homem
isoladamente, ou a população indistintamente, implica, sem dúvida, em construir uma
abstração inadmissível.
A explicação sociológica dos fenômenos médico-sociais, contudo, refere-se,
principalmente, aos processos sociais vinculados às práticas sociais da medicina
(especialmente assistência médica). É que, nesse caso, os fenômenos são
inequivocamente sociais, com a especificidade de estarem vinculados à área médica. A
visão mais abrangente e totalizadora de como se estrutura, funciona e se transforma o
sistema social, permite à Medicina Social determinar com mais precisão os aspectos
extramédicos presentes na assistência médica. Tratando-se de uma sociedade dividida

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em segmentos sociais que mantêm entre si relações de dominação-subordinação ao


nível sócio-econômico e político, entende-se que, nela, a proteção da vida e da saúde
dependa de um cálculo econômico. É que, na verdade, tal assistência não é prestada,
exatamente, a corpos biológicos mas a corpos sociais. O que está em jogo é a
produtividade dos mesmos, seu poder, sua riqueza, seu prestígio. Quem os possui
recebe tratamento (ou melhor tratamento). Não se pode, evidentemente, desconsiderar a
capacidade política das classes dominadas de lutar por uma melhor atenção médica, mas
a expansão da mesma, ocorrida no capitalismo, vincula-se, em grande parte, ao processo
de reprodução ampliada do capital. Ou seja, valores alheios à ordem médica, em geral,
orientam as decisões nesse campo.
Enfim, uma diferente concepção geral do mundo e o domínio de outro
instrumental metodológico, permitiram desenvolver um marco teórico de mais longo
alcance seja no tocante à explicação do processo saúde-doença, seja na compreensão
dos determinantes das práticas sociais da medicina.Tornou-se evidente que, para isso,
era necessário considerar a sociedade específica em que esses fenômenos ocorrem, com
seu sistema de estratificação social, de produção econômica e de distribuição de bens e
serviços. Sobretudo no caso da assistência médica, a perspectiva aberta pela Medicina
Social apontou o fato de as soluções aventadas, ao nível individual e coletivo,
basearamse, freqüentemente, numa percepção incorreta das relações socioculturais e dos
interesses político-econômicos envolvidos. Se a visão predominante contribui, muitas
vezes, para tecnificar variados problemas que são principalmente sociais,
transformando-os em problemas médicos, esta outra (ainda heterodoxa) tende a colocá-
los no campo específico de sua resolução: o político.
RESUMO

O artigo apresenta o ponto de vista da Medicina Social quanto ao estudo tanto do


processo saúde-doença como da assistência médica. Nele, de início, se aponta o fato de
essa disciplina ter-se aproveitado, recentemente das contribuições feitas pela
Epidemiologia Social (no tocante à interpretação social do processo saúde-doença) e
pela Sociologia da Saúde (quanto à determinação extramédica da assistência médica). É
exposto, em linhas gerais, o modo como essa disciplina explica os dois processos.
Esclarece-se como ela concebe a Medicina como uma ciência histórico-social também,
encarando os homens, sadios ou doentes, não apenas como corpos biológicos mas,
sobretudo, como corpos sociais, inseridos em sociedades dadas, membros de
determinadas classes e grupos sociais, participantes de relações sociais específicas.
Indica-se como a rotação de perspectiva decorrente, ao alterar o paradigma do
investigador, permite a este ver coisas novas em relação aos mesmos fatos.
Em seguida estuda-se mais de perto a enfermidade como fenômeno social.
Mostra-se como vê-la apenas como fenômeno natural tem enorme signficado político,
pois transforma os problemas sociais envolvidos na produção da doença em problemas
técnicos e não políticos. A Medicina Social, ao não fragmentar seu objeto, insere o
fenômeno num todo social coerente, ao contrário da Medicina tradicional. Sua proposta
de investigação ultrapassa o exagerado nível de concreticidade com que esta vê o
processo saúde-doença, permitindo-lhe considerar outros aspectos essenciais do mesmo.
É que a nova disciplina entende que o estudo do homem, sadio ou doente, isolado de
seu contexto social, constitui mera abstração, já que ele participa de sociedades
históricas, divididas, conflituosas, competitivas, em que os diferentes segmentos sociais
têm desigual poder, riqueza e prestígio. Conseqüentemente, não se pode tomar a

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presença do homem numa determinada cadeia epidemiológica como inevitável. Ou seja,


a Medicina Social volta-se para as diferenças sociais, considerando-as fundamentais.
Na parte final discutem-se os determinantes extramédicos da assistência médica.
Este seria o outro conjunto de fenômenos pela qual se interessaria a disciplina
examinada. Depois de se definir o que se entende por assistência médica, mostra-se
como as práticas sociais da mesma configuram uma instituição social. Tomando-a como
tal, verifica-se que a assistência médica raramente guia-se por critérios tão-somente
médicos: em termos societários, políticos e econômicos, umas vidas têm sempre mais
valor do que outras. As mesmas diferenças de tratamento são também claramente
percebidas quando se estuda a história da assistência médica. É que como os corpos são
principalmente sociais, eles se hierarquizam de acordo com sua produtividade, com o
capital neles investido, segundo seu status e poder. Mesmo quando a assistência médica
se volta para as populações marginais, o mais das vezes o que se pretende com ela é
diminuir as tensões sociais.
O autor entende, contudo, que explicar toda e qualquer transformação no âmbito
da assistência médica como se vinculando inteiramente aos interesses do capital seria
incorrer num mecanismo inadmissível. Crê que para explicar cabalmente o processo em
discussão seria preciso ter em conta toda a complexidade da realidade social, na qual os
aspectos políticos e sociais, por exemplo, desempenham também um importante papel.
Ainda que sendo as determinações econômicas as mais evidentes, sem dúvida, haveria
ainda que discutir outros pontos, como a influência da ciência e da técnica no aparato
técnico dessa assistência, a crescente politização do ato médico, os movimentos de
contestação ao tipo de assistência médica hoje em voga, as tentativas de racionalização
dos serviços médicos, o surgimento de medicinas alternativas etc.

RIQUEZA, PODER E DOENÇA


José Carlos de Medeiros Pereira

É de senso comum que riqueza, poder e prestígio estão estreitamente associados.


Também é de senso comum que aqueles mais ricos, poderosos e de posição social
elevada vivem mais e melhor. Qualquer consulta às estatísticas de mortalidade infantil
nos mostra que os coeficientes variam segundo as condições socioeconômicas dos pais.
Ora, se a simples possibilidade de sobrevivência depende dessas condições, igualmente
delas depende a esperança de vida ao nascer, a probabilidade de se manter ou não sadio,
a de adquirir esta ou aquela enfermidade. Vemos, de fato, ao compulsar os dados
relativos às causas dos óbitos, que moléstias evitáveis e passíveis de cura tais como as
doenças transmissíveis, do aparelho respiratório, do aparelho digestivo e da primeira
infância são causadoras de mortes entre os pobres, em proporção muito maior do que
entre os ricos, de educação superior, detentores de autoridade e de posição social
elevada. As pessoas, nessas condições, morrem, em proporção maior, de outras
moléstias, como tumores e doenças cardio-circulatórias. As distinções existentes entre
os países desenvolvidos e subdesenvolvidos evidenciam-se nos subdesenvolvidos entre
ricos e pobres. Quer dizer, há um padrão de morbi-mortalidade para países com
condições diferentes e igualmente um padrão diferente, dentro de cada país, para
estratos socioeconômico diferentes.
Em que é que uma condição sócio-econômica representada por baixos
rendimentos, escolaridade insuficiente em face das exigências do mercado de trabalho,
poucos contatos sociais etc. vai interferir nas condições de vida que têm significado

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médico? Fundamentalmente porque, quem ganha pouco, tem de dedicar a maior porção
desse ganho à alimentação e um pouco menos à moradia e vestuário. Artigos de
residência, assistência à saúde e higiene, serviços pessoais, recreação, educação, leitura,
viagens são deixados de lado. Estes itens só ganham maior proporção quando a renda
familiar se eleva, o que está de acordo com a lei formulada por um estatístico alemão do
século passado (lei de Engel), segundo a qual, à medida que aumenta a renda,
aumentam em termos absolutos os gastos com alimentação, vestuário, habitação
(despesas correntes) mas diminuem em termos relativos.
As várias pesquisas realizadas no Brasil, por organismos oficiais ou não,
confirmando a lei de Engel, mostram que as famílias que ganham até um salário mínimo
dispendem, de modo geral, mais de 80% de seus ganhos com alimentação, enquanto
aquelas que têm renda superior a 18 salários mínimos gastam apenas cerca de 15%
dessa renda com essa finalidade. Em 1970, os 40% mais pobres da população brasileira
auferiam apenas 10,01% da renda nacional, enquanto os 10% mais ricos se apropriavam
de 47,79% da mesma (Cf. C. G. LANGONI, “Distribuição da renda e desenvolvimento
econômico do Brasil”). Esta desproporção se manteve nos últimos dez anos. Daí não
causar nenhum espanto o fato de que a desnutrição e a subnutrição sejam endêmicas no
Brasil.
Não se deve inferir disso que as pessoas ganhem pouco porque trabalham pouco
e, conseqüentemente, se tornem doentes. A conhecida colocação a respeito do círculo
vicioso da pobreza e da doença (Cf. C. E. WINSLOW, The Coast of Sickness and the
Price of Health), poderia levar a essa conclusão. Afirma WINSLOW: “Era claro... que a
pobreza e a doença formavam um círculo vicioso. Homens e mulheres eram doentes
porque eram pobres; tornavam-se mais pobres porque eram doentes e mais doentes
porque eram mais pobres”. Se as mediações entre os dois fenômenos não forem
devidamente esclarecidas, corre-se o risco de aceitar que, se os homens forem mais
saudáveis, tornar-se-ão mais ricos, o que não é correto. A relação não é direta. A
distribuição da riqueza depende do poder que as várias camadas sociais detenham
dentro de um determinado sistema sócio-econômico e não da sanidade ou enfermidade
de seus membros. É extremamente importante ter-se isso em conta, sem o que podemos
estabelecer uma falsa relação de causalidade. Uma ciência fragmentadora do real, além
de ideologicamente conservadora, freqüentemente não permite entender, em se tratando
da doença, que os problemas médicos decorrentes não se resolvem apenas através da
aplicação de recursos médicos, ainda que sua solução dependa também dessa aplicação.
Quando não se atenta para as relações mais amplas envolvidas no suposto
círculo vicioso da pobreza e da doença fica-se num aparente bonito jogo de palavras
(cientificamente incorreto e politicamente reacionário): alguém é doente porque é pobre
ou, ainda, é pobre porque é doente. A solução do impasse implicaria sempre numa
atividade missionária dos médicos, curando os pobres doentes ou, então, fazendo com
que tais pobres trabalhassem mais. Essa proposição do círculo vicioso da pobreza e da
doença (se não for devidamente esclarecida) reduz-se a uma mera tautologia. Se
aplicada a um país, por exemplo, poder-se-ia expressar da seguinte forma: “Um país é
pobre porque é pobre”, ou, ainda “uma população é doente porque é doente” (Cf.
Gunnar MYRDAL, Teoria Econômica e Regiões Subdesenvolvidas, MEC-ISEB, 1960,
p. 26).
Descartemos, pois, o aspecto de responsabilidade individual existente, em larga
proporção, em tais afirmações. Consideremos sempre os pontos essenciais da questão,
que se vinculam à estrutura e funcionamento do sistema sócio-econômico global.
Façamos sempre a pergunta pertinente ao caso, que é saber porque um conjunto de

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homens não tem, muitas vezes, o bastante para comer. Não apontemos como causa
aquilo que, geralmente, é efeito: a doença, a subnutrição. Para corrigir esse efeito seria
preciso uma razoável alteração estrutural de modo, por exemplo, que houvesse uma
melhor distribuição da renda, que a política econômica posta em prática contemplasse
uma maior criação de empregos, que fosse diminuída a dependência econômica,
política, tecnológica etc. que vivemos do exterior e assim por diante. Em suma, as
tautologias, por bem expressas que sejam costumam ser cientificamente pobres como
explicação dos processos que pretendem esclarecer.

SOCIEDADE E EDUCAÇÃO MÉDICA


José Carlos de Medeiros Pereira

Em termos mais gerais, a educação contribui para o processo socializador. As


instituições educacionais procuram inculcar nos educandos aqueles valores, normas,
atitudes, comportamentos etc. que são comuns à cultura da sociedade em questão. A
educação tem, assim, um papel homogeneizador. Devemos considerar, no entanto, que
as sociedades complexas são sempre segmentadas de vários e diferentes modos,
apresentando diversas subculturas, de modo que existem também diversos sistemas
educacionais, de acordo com
esses meios sociais variados. Sob essa ótica, o papel social que a sociedade atribui à
educação é conservador. Ela funciona como um dos principais processos de controle
social. Entendendo-se educação como produto da vida social, é difícil pensar-se em
moldar a sociedade a partir dos sistemas educacionais, o que não impede que se possa
pensar a educação como um agente de mudança social.
De qualquer forma, o sistema educacional tende antes a sofrer o impacto das
transformações sociais do que a ser esse agente. Há uma espécie de demora cultural no
caso das instituições educacionais em relação ao que se passa no sistema social global.
Mais ainda, os
sistemas educacionais da maioria dos países tem uma história pregressa, de modo que
eles próprios dificilmente também podem passar por modificações drásticas. Sua
história, suas tradições, constituem uma realidade viva, de modo que qualquer mudança
que se imagine no aparelho formador de profissionais, por exemplo, não pode supor que
se possa partir da estaca zero, ainda que existam modelos muito melhores. Os mortos,
de certo modo, sempre guiam
os vivos, o que não significa que não nos possamos subtrair a essa direção. Também o
futuro pode ter grande influência na orientação do presente. De fato, mais e mais a idéia
que se faz do futuro, os planos existentes em relação ao mesmo, contribuem para que o
presente seja moldado de acordo com essa idéia, com esses planos.
Encarando as relações entre sociedade e educação sob os aspectos abordados até
aqui, fica claro que, com referência à formação de profissionais, em nosso caso o
médico, o que os grupos sociais, econômica e politicamente dominantes esperam é que
eles sejam formados de acordo, sobretudo, com as necessidades do sistema econômico.
Em termos realmente societários, a idéia norteadora é de que sejam formados de acordo
com a realidade nacional na qual esses profissionais vão agir. É uma idéia
inegavelmente correta, mas, infelizmente, incompleta, porque não é fácil definir-se a
realidade nacional na qual tais profissionais vão atuar e, principalmente, a que interesses
estarão atrelados, mesmo contra sua vontade, uma vez

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formados.
Qual é, de fato, a realidade dos países subdesenvolvidos? A realidade é que são
países economicamente dependentes, às vezes também politicamente, mas o que, talvez,
seja o mais grave, culturalmente dependentes. Ora, uma das manifestações da
dependência cultural é o desenvolvimento de mentalidades igualmente dependentes
(PARDO, s/d.) no sentido de boa parte das pessoas desses países tenderem a considerar
sua própria sociedade como possuindo uma cultura inferior comparativamente ao
paradigma que porventura elas tenham. Em consequência, sua criatividade,
frequentemente, visa ajustar o sistema de formação profissional de seus países aos
padrões tecnológicos vigentes na sociedade tomada como modelo. É evidente que seria
um contra-senso rechaçar a tecnologia dos países desenvolvidos pelo simples fato de
que seja estrangeira. O que se repele é a escolha da mesma em desacordo com as
necessidades societárias reais do país dependente.
Não tendo em conta, também, a realidade própria do país o sistema educacional
corre o risco de formar profissionais de nível superior com habilidades, conhecimentos
e valores ajustados a uma realidade alheia. A evasão de cérebros é uma das
conseqüências bem conhecidas dessa política educacional. Quanto ao modo de a
sociedade influir na educação
profissional, um estudo levado a cabo na Universidade Autônoma Metropolitana-
Xochimilco, do México, intitulado El Diseño Curricular (1976), mostrou que a relação
não é direta, havendo
uma mediação representada pela prática social da profissão. Transformações radicais na
prática médica, por exemplo, repercutiriam “sobre o currículo tradicional, modificando-
o parcialmente ou gerando novas oportunidades profissionais”. Esta conclusão é
importante, pois demonstra que não é a produção do conhecimento a variável principal
responsável pela mudança na educação profissional mas sim a aplicação desse
conhecimento. Há, contudo, um fator de complicação. É que há várias práticas sociais
da profissão, até mesmo antagônicas, embora uma possa ser dominante num momento.
Certamente, na profissão médica, essas várias modalidades de prática existem. A
dominante projetará sua influência sobre a educação profissional, embora tanto as
práticas decadentes como as emergentes influam. A maneira como essas práticas
acabam repercutindo sobre o currículo vai depender de intermediações políticas
propriamente ditas e da Universidade, que é onde se decide se uma prática vai se
integrar ou não ao currículo. (Cf. pp. 25 a 27 principalmente).
Tendo em conta as relações mais específicas entre educação e economia
(também parte de nosso tema), ficou claro, sobretudo a partir da Segunda Guerra
Mundial, que a educação, especialmente a profissionalizante, constitui um dos grandes
investimentos que a sociedade pode realizar, por ser altamente produtivo e,
consequentemente, um fator significativo para levar a cabo os processos de crescimento
econômico e de desenvolvimento social. No caso da educação médica, ela tem
particular importância não só social como também econômica, desde que contribua
efetivamente desta é um dos fatores relevantes de promoção de ambos os processos.
Merece ainda referência, na discussão das relações entre sociedade e educação, o
modo como a maioria da população, brasileira no caso, vê a educação sistemática,
especialmente a que conduz a uma profissão. Predomina aqui uma visão utópica e
insatisfatória: a do mito de que a obtenção de um diploma de nível superior constitui o
canal de ascensão social e econômica
por excelência. Há um divórcio entre crença e realidade. Uma das conseqüências desse
modo de encarar a educação superior, é de que a população acaba dando excessiva

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importância à educação formal em seus aspectos exteriores, tomando o acessório pela


essência. Ou seja, não percebe que as portas do sucesso sempre se abriram mais
facilmente para aquele que dispunha de um diploma, mas desde que este constituísse o
coroamento de uma situação sócio-econômica
anterior elevada. Especialmente as camadas médias tomaram a nuvem por Juno, vendo a
posse do diploma como causa da posição privilegiada de alguns e não o inverso, isto é,
o diploma de curso superior como manifestação daquela posição superior.
Finalmente, quanto ao papel criador da educação, normalmente é exercido em
grau mais elevado pela Universidade. A ela, principalmente, cabe ser a mediadora entre
os objetivos da sociedade inclusiva e a educação formal, como também a tarefa de
contribuir para que a própria sociedade se altere. Já dissemos que ainda que, de modo
geral, a educação seja um produto social, isso não obsta a que a Universidade possa
cumprir esse papel inovador. Para cumprí-lo é
preciso, porém que ela não exagere seu papel de instituição transmissora passiva de
conhecimentos. A Universidade autêntica não se limita tão-somente a formar
profissionais, mas desempenha uma missão maior que é a de duvidar e negar, ou seja
realizar a crítica, o que implica na apreciação do valor do pensamento, dos
conhecimentos produzidos e da ação deles derivada. Isso significa reagir sobre o meio,
tentanto alterar os aspectos da realidade que o
conjunto dos membros da instituição considere como indesejáveis. Ao realizar tal tarefa
nós estaremos fazendo história e não somente sofrendo.

Neoliberalismo e Formação Profissional em Saúde


Júlio César França Lima
Pesquisador LATEPS/EPSJV/FIOCRUZ

A referência para a construção desse texto foi o trabalho em saúde e o recorte


escolhido envolve duas temáticas: a difusão e consolidação do neoliberalismo no Brasil
e a formação profissional em saúde. Ao discutir essas temáticas procuro responder
algumas questões, entre as quais: quais as mudanças decorrentes do receituário
neoliberal no Sistema Único de Saúde (SUS), tendo em vista particularmente a relação
público-privado?; e qual formação profissional para qual SUS?
Em função dessas questões, inicialmente retomo o conceito de saúde tal qual foi
sendo construído desde o final da década de 1970 e que chega aos anos 1980, apontando
para a construção de uma proposta de política de saúde de cunho universalista,
igualitária e com controle social. Depois, procuro mapear os obstáculos que o SUS teve
de enfrentar para sua operacionalização, na década de 1990, e as mudanças que nesse
período vão sendo operadas na concepção de educação profissional em saúde.

Anos 1980: formação e participação no SUS democrático

Para iniciar essa reflexão, considero que a melhor forma de fazê-la é revisitar o
conceito de saúde a partir de uma entrevista que Sergio Arouca concedeu à revista Radis
da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em outubro de 2002, e publicada posteriormente

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na revista Trabalho, Educação e Saúde no ano seguinte. Arouca, intelectual e militante,


foi uma das principais lideranças do que se convencionou chamar de movimento da
reforma sanitária brasileira, na década de 1980, que protagonizou vitórias importantes,
entre as quais, a inscrição na Constituição Federal de 1988 de que “a saúde é um direito
de todos e dever do Estado”, isto é, um bem público, de responsabilidade estatal e
universal. Vitória importante, conquistada com a participação de um amplo leque de
forças sociais no contexto da reconstrução democrática do país, que vai sendo
reconfigurada nos anos de 1990.
Nessa entrevista, Arouca declara que a sua luta naquele momento, em 2002, era
pela retomada dos princípios da reforma sanitária, pois na sua avaliação “a reforma
acabou se resumindo à criação do Sistema Único de Saúde (SUS)”. Paradoxalmente, ao
operacionalizar o sistema os dirigentes dos diversos níveis de governo abandonaram
seus princípios, reduzindo a reforma ao SUS, quando na sua origem, nos anos 1980,
está imbricada com a perspectiva de reforma social, isto é, com a construção de um
projeto de sociedade democrática de massas, que não se reduzia ao setor saúde como
aponta Fontes.
Além isso, com esse projeto de reforma que ia além da reforma setorial, o
movimento não podia deixar de exigir também mudanças no conteúdo e na forma de
pensar e fazer saúde. Isso vai se expressar na ampliação do conceito de saúde e na
necessidade de reestruturação do processo de trabalho em saúde, a partir da redefinição
do seu modelo assistencial. Por outro lado, essas mudanças passam a exigir também um
novo compromisso ético-político dos trabalhadores de saúde pautado fundamentalmente
na questão da construção da democracia e na defesa da dignidade humana, assim como
mudanças na materialidade das práticas e da formação em saúde.
Para o pensamento marxista na saúde, que se desenvolve na segunda metade dos
anos 1970 e que nos anos 1980 vai influenciar o movimento da reforma sanitária, a
saúde é definida como o resultado das relações sociais que os homens estabelecem em
sociedade e destes com a natureza, no processo de produção de sua existência. E,
particularmente, como produto das relações que os homens estabelecem com as formas
de organização social da produção material, que permitem ou não maior qualidade de
vida, acesso à alimentação saudável, à moradia, à educação, ao trabalho, ao lazer, a
serviços de saúde, entre outros. Essa concepção de saúde define um processo no qual a
própria doença não pode mais ser pensada ou reduzida ao corpo biológico. Exige-se
considerar também o corpo socialmente investido, isto é, verificar como o corpo do
homem se dispõe em sociedade antes de tudo como agente de trabalho, pelo fato de o
trabalho definir o sentido e o lugar dos indivíduos na sociedade. Quem antecipa essas
discussões na década de 1970, de forma muito clara, é Cecília Donnangelo no seu livro
Saúde e Sociedade. Em sua análise, a autora discute o quanto o corpo, enquanto objeto
do trabalho em saúde, só se realiza, mesmo como estrutura anatômica e fisiológica, por
intermédio das qualificações ou determinações que adquire no plano da existência
material e social.
Esta forma de entender a saúde está na base da perspectiva de reforma social, ou,
da necessidade de uma reforma que não fosse apenas setorial, da mesma forma que do

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boom de estudos de epidemiologia social que se verifica no período. Agrega-se a isto o


destaque que passa a ser dado à dimensão de historicidade das práticas de saúde, isto é,
só podiam ser compreendidas no contexto histórico de determinada sociedade e num
dado momento do seu desenvolvimento.
Do ponto de vista da prática educativa ou da formação profissional em saúde,
essa nova concepção de saúde vai exigir uma nova concepção de educação, segundo a
qual os trabalhadores deveriam ser educados não apenas para compreender o seu papel
como membro de uma equipe de saúde, mas principalmente para participar da gestão do
sistema, intervir na sua organização e atuar no seu controle. Quer dizer, o par
‘formação-participação’ é conseqüência direta do lema central do movimento da
reforma sanitária, sintetizada na idéia Saúde e Democracia. A formação profissional é
entendida aí como uma condição sine qua non para a própria participação, no sentido de
qualificar a intervenção dos trabalhadores na definição e organização do sistema de
saúde, aliando com isso, a dimensão técnica e a dimensão política na formação dos
futuros dirigentes do sistema.
Essa questão está na origem das discussões então travadas em torno da
concepção politécnica de ensino no âmbito do setor saúde e um dos motivos que, a
nosso ver, pode ter influenciado a definição constitucional inscrita no artigo 18, da
Constituição Federal de 1988, de atribuir ao SUS a função de ordenar a formação de
recursos humanos em saúde, que até aquele momento era responsabilidade exclusiva do
Ministério da Educação. Essa concepção de ensino, tributária da tradição socialista, tem
por objetivo permitir o domínio dos fundamentos das diversas técnicas utilizadas na
produção, e não o mero adestramento em técnicas produtivas. “A noção de politecnia
diz respeito ao domínio dos fundamentos científicos das diferentes técnicas que
caracterizam o processo de trabalho produtivo moderno. Diz respeito aos fundamentos
das diferentes modalidades de trabalho”.
Essas idéias também estão na base da defesa que Arouca vai fazer na citada
entrevista, de que é preciso discutir Saúde não como uma política do Ministério da
Saúde, mas como uma função permanente do Estado. Daí aponta para o papel de sensor
crítico que o setor deve exercer sobre as políticas econômicas e a liderança que deve ter
no desenvolvimento de práticas que, no seu entendimento, ampliam a Reforma
Sanitária, não a restringindo a uma reforma setorial, mas que no limite tenciona e exige
uma reforma societária.
O conceito fundamental que Arouca vai enfatizar nessa entrevista é o de
intersetorialidade, uma das principais diretrizes do SUS. Para ele, essa noção deve servir
de base para o desenvolvimento de políticas públicas e práticas intersetoriais ou para o
desenvolvimento local, integral e sustentável. Aponta que para a realização desse
projeto intersetorial é necessário o estabelecimento de um governo que não seja um
somatório de ministérios que disputam entre si os parcos recursos da área social, como
indicam Paulani e Pochmann, mas que tenha um projeto societário que permita a
implementação de práticas intersetoriais.
Portanto, na década de 1980, são formuladas referências fundamentais para a
construção-operacionalização do SUS, num contexto de ampliação dos espaços

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democráticos e de conquista de direitos, tanto no âmbito da saúde, como no da


educação.

Anos 1990: a reforma do Estado e a universalidade do SUS

Entretanto, o SUS terá de enfrentar, na década de 1990, uma outra realidade.


Podemos enumerar, com Arouca, as diversas conquistas legais que o setor saúde
inscreveu na Constituição Federal de 1988, entre as quais, o princípio de universalidade,
a partir do qual todo brasileiro tem direito à saúde; o dever do Estado em promover a
saúde; a aprovação, em 1990, da Lei Orgânica da Saúde; a consolidação das
Conferências Nacionais de Saúde como fórum privilegiado de discussões e; a
formalização dos Conselhos de Saúde com caráter deliberativo e representação de
usuários, a partir da Lei nº 8.142/90. Essas vitórias foram sendo viabilizadas pelo
próprio movimento sanitário, seja no interior do Estado, seja fora dele, nas instituições
como a Fiocruz e em outros espaços institucionais, como as Secretarias de Saúde.
Temos ainda a presença do movimento municipalista, que se torna cada vez mais forte
junto com uma série de atores e movimentos sociais.
Em que pese a presença dessas forças sociais e suas conquistas, um número
crescente de estudos começam a apontar a partir da segunda metade dos anos 1990, para
duas questões: a privatização e a focalização no campo da saúde, que o SUS passa a
enfrentar com o governo Collor. As análises apontam que a privatização na área ocorre
de duas maneiras não excludentes mas complementares. Uma que, inspirado em
Arouca, denomino de ‘universalização do privado’ e a segunda denominada por
Correia, de ‘universalização excludente’.
A primeira forma é interna ao sistema, pois decorre da própria lógica do modelo
assistencial do SUS, que privilegia a atenção hospitalar e que, na ausência do Estado
nos diversos municípios brasileiros, terceiriza a assistência principalmente com a
contratação do setor privado filantrópico, mas não só, e a de serviços de diagnóstico e
terapia, para executar a atenção à saúde da população. Pela própria brecha
constitucional, que considera o setor privado complementar ao setor público, este vai se
consolidando e mantendo-se como o principal prestador da atenção hospitalar no país,
reeditando a velha política do extinto Instituto Nacional de Assistência Médica e
Previdência Social do ex-Ministério da Previdência e Assistência Social
(INAMPS/MPAS), na década de 1970, tão combatida pelo movimento da reforma
sanitária, e incorporado ao Ministério da Saúde, em 1993. Não é por acaso que Arouca
declara, na entrevista, que o Ministério da Saúde sofreu uma ‘inampização’, isto é,
transformou-se em um grande comprador de serviços médicos, mantendo o setor
privado da saúde como um grande mercado para a indústria de medicamentos e
equipamentos médicos. Como diria Donnagello, ampliando e mantendo a
mercantilização da saúde, ou, realizando a mais-valia produzida em diversos setores
industriais dentro do setor saúde. Por isso, Arouca é contundente quando diz que “o
SUS como modelo assistencial está falido, não resolve nenhum problema da
população”.

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Os dados relativos ao ano de 2002, não deixam dúvida quanto ao predomínio do


setor privado na assistência hospitalar. De 7.397 hospitais existentes no Brasil, 65%
estão sob o controle do setor privado. Mesmo considerando apenas os hospitais próprios
e aqueles conveniados com o SUS, isto é, 5.933 hospitais, 58% são privados, e de
439.577 leitos hospitalares, 63% são leitos privados. O setor público predomina no
âmbito da assistência ambulatorial ou na oferta da rede básica de serviços, que não é um
setor lucrativo para a iniciativa privada. Assim, o que se verifica, ao longo do tempo, é
de um lado, a ampliação da atenção básica, por meio do Programa Saúde da Família
(PSF), financiado por intermédio do Piso da Atenção Básica (PAB), com base em um
valor per capita nacional, que é multiplicado pela população da área, para custeio dos
procedimentos - parte fixa, e por incentivos financeiros para implantação de vários
programas, como Agente Comunitário de Saúde, Vigilância Sanitária etc. -parte
variável. De outro lado, o financiamento da atenção hospitalar, de média e alta
complexidade, sob a forma tradicional de procedimentos produzidos, um mecanismo
que sempre foi denunciado como um espaço privilegiado de mercantilização. Nessa
lógica mercantil, as instituições públicas cumprem o papel de atender às famílias pobres
com alto risco de adoecimento e as empresas médicas ou agências seguradoras se
tornam responsáveis pela assistência médica ou clínica e pelos procedimentos de alta
complexidade, de maior lucratividade. Esta é uma das principais críticas que se faz à
forma de financiamento das ações de saúde implantada pelo Ministério da Saúde através
da Norma Operacional Básica de 1996 (NOB/96), que continua em vigor. Isto porque,
de um lado, induziu fundamentalmente a oferta de uma ´cesta básica´ pelos municípios,
através de programas que podem ser considerados focais como o Programa de Saúde da
Família e de Agentes Comunitários de Saúde (PSF/ PACS), enquanto na outra ponta, a
mercantilização, por intermédio do financiamento da assistência médica.
Esse formato parece configurar aquilo que Laurell, denomina de ‘privatização
seletiva’ em trabalho onde analisa a proposta do Banco Mundial para o setor saúde, em
1993. Para a autora, esta seria uma característica distintiva do processo de privatização
em saúde nos países latino-americanos, no qual o setor público se torna responsável
pela oferta de um pacote de serviços essenciais, reservando ao setor privado os setores
mais rentáveis da assistência clínica, considerando a relação custo/benefício.
A essa fórmula agrega-se ainda uma nova faceta, que é a introdução da forma
neoliberal de gestão dos serviços públicos de saúde com a transformação dos hospitais
públicos e outros serviços de saúde em agências privadas denominadas ‘organizações
sociais’. Em nome da modernização gerencial, entrega-se nas mãos de agentes privados,
como as cooperativas médicas, os serviços de saúde, que são financiadas com recursos
públicos. O exemplo mais dramático dessa política de corte neoliberal ocorreu na gestão
Paulo Maluf, com a implantação do Plano de Assistência à Saúde (PAS), na segunda
metade dos anos 1990, em que toda a rede pública do município de São Paulo foi
entregue às cooperativas de trabalho e os funcionários se tornaram cooperativados.
Assim, ao mesmo tempo, elimina-se a figura do servidor público com a flexibilização e
a desregulamentação das relações de trabalho, e compromete o serviço que antes era
público com o faturamento, com a otimização da relação custo-benefício, com a

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quantidade e não com a qualidade da atenção prestada à população. Além disso, ainda
temos uma forma de privatização que se dá no interior do próprio setor público, que é a
terceirização de determinados setores, como os serviços de diagnóstico e terapia.
O segundo processo de privatização é a ‘universalização excludente’, que é
conseqüência direta do subfinanciamento do SUS. As restrições financeiras que ao
longo da década de 1990 foram reduzindo drasticamente o gasto público per capita em
saúde no Brasil tiveram como conseqüência o sucateamento, a precarização crescente da
rede assistencial pública existente e a baixa remuneração dos trabalhadores de saúde, o
que resultou na expulsão – por isso excludente – de usuários potenciais do SUS.
Essa política de arrocho financeiro exerceu uma dupla função. A primeira é
ideológica. A crise do setor saúde não é explicada como conseqüência do encolhimento
do tamanho do Estado, da redução dos gastos sociais, da redução do gasto per capita em
saúde, ou, como trata Leda Paulani, da expoliação dos recursos públicos. Muito ao
contrário, a crise é explicada como decorrência da ineficiência do Estado, que gasta mal
os poucos recursos que tem para aplicar na área social e em conseqüência da corrupção
no interior do setor público. Então, nesses termos, o melhor a fazer é privatizar,
entregando à iniciativa privada a administração da coisa pública, ao mesmo tempo em
que transforma a racionalidade administrativa em elemento fundamental para sair da
crise. Isso vai justificar a mudança da natureza jurídica dos serviços públicos, e
contribuir para o desenvolvimento e expansão do mercado privado de planos e seguros
de saúde.
Essa propaganda ideológica, que contou com a colaboração dos meios de
comunicação de massa, diminuiu fortemente a adesão da população ao SUS e assegurou
um patamar de demanda para os seguros privados de saúde, que explodiram durante os
anos de 1990. E isto ocorreu porque o discurso ideológico combina-se com uma
materialidade, que se expressa no fato da população chegar aos hospitais e não
encontrar bons serviços, só precariedade e dificuldade de acesso: ausência de
profissionais, filas intermináveis, falta de materiais e equipamentos, mal atendimento,
agenda lotada etc. Uma situação que acaba produzindo uma sensação de que o ‘serviço
público é ruim mesmo’. É um processo sutil e importante, que paulatinamente vai
mudando o sentido da saúde. De bem público de responsabilidade estatal converte-se
em bem privado ou bem público não estatal. A saúde deixa de ter um caráter de direito
universal de cujo cumprimento o Estado é responsável, para converter-se em um bem de
mercado, que os indivíduos devem adquirir.
Agrega-se a isso o fato de que desde a década de 1980 os estudos indicam que a
demanda por serviço supletivo de saúde já é um componente implícito das negociações
entre capital e trabalho. Essa demanda por assistência médica diferenciada, por formas
de seguro e serviços próprios nas empresas, torna-se um item cada vez mais forte na
agenda de negociação coletiva dos trabalhadores mais organizados, o que vai fragilizar
ainda mais o modelo assistencial público e universal e fortalecer as diferenciações e as
segmentações no acesso aos serviços de saúde, conforme o tipo de inserção no mercado
de trabalho.

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A segunda função é econômica, pela necessidade de o capital controlar e colocar


os grandes excedentes de capital nas áreas de produção e serviços que antes estavam nas
mãos dos Estados, configurando o desenvolvimento do que Armando Boito Jr. vai
denominar de uma ‘burguesia dos serviços’. Segundo alguns estudos, a agenda do
Banco Mundial para saúde vai se inscrever exatamente nessa ofensiva de recuperação
de serviços sociais para as empresas privadas, propondo a remercantilização de tais
serviços. Isso constitui um dos móveis de crítica que atualmente se faz ao Estado do
Bem-Estar Social em todo o mundo, motivado pelo interesse em controlar o fundo
público destinado ao setor saúde. Há dados que demonstram a importância da
participação dos gastos em saúde no PIB nacional dos países capitalistas centrais. Desse
ponto de vista, o próprio princípio de universalidade que se inscreveu na Constituição
brasileira de 1988 é utilizado como justificativa para se ampliar a cobertura dos planos e
seguros privados de saúde, já que o investimento público no país é precário.
Os dados sobre a composição do gasto em saúde no Brasil referente a 2003,
retirados do estudo de Ugá & Marques ajudam a exemplificar essa questão. Elas
demonstram que naquele ano o gasto público total com saúde foi da ordem de 42%,
enquanto o gasto privado foi de 58%. Dos gastos privados, 20% equivalem aos gastos
com planos e seguros de saúde e 38% ao gasto das famílias com medicamentos. Para as
autoras, esse padrão de financiamento da saúde no Brasil se aproxima muito mais do
modelo liberal de tipo americano, em que o gasto público é equivalente a 44%, um
pouco acima do Brasil, do que da estrutura de gasto dos sistemas nacionais de saúde de
cunho welfariano, de acesso universal e integral, que inspirou o movimento da reforma
sanitária brasileira e que estava na base do projeto de sociedade que se discutia nos anos
1980. No Reino Unido, na Dinamarca e na Suécia, o gasto público com saúde é,
respectivamente, 97%, 84% e 78%, em sua maioria, financiados pelos impostos gerais.
O que se percebe é que à medida que se criaram as condições para a inclusão das
camadas populares antes excluídas do sistema previdenciário, também se criaram as
condições para que os trabalhadores melhor remunerados fossem expulsos de tal
sistema e do SUS, o que obrigou-os a comprar os serviços do setor privado,
incrementando, assim, a mercantilização da saúde e da previdência. Sobre esse último
aspecto, Paulani diz que a imposição pelo Estado brasileiro de tetos de valor reduzido
para os benefícios, primeiro para os trabalhadores do setor privado no governo
Fernando Henrique Cardoso, depois para os trabalhadores do setor público no governo
Lula da Silva, abriu imediatamente à acumulação privada todo o imenso território da
previdência, sendo que o último governo ofertou-lhe o presente mais valioso, os
servidores públicos, de salário médio mais elevado e praticamente sem risco de
desemprego.
Para caracterizar o crescimento vertiginoso dos planos de saúde, recorro aqui a
dois estudos. O primeiro de Pires, aponta que, em 1988, dez milhões de pessoas, cerca
de 10% da população na época, tinha plano de saúde e que esses planos representavam
uma capacidade instalada de trezentas empresas. Em 1998, um levantamento do IPEA,
informa que o setor privado autônomo – esse setor privado integra seguradoras de
saúde, cooperativas médicas e empresas de medicina de grupo – acolhia, naquele ano,

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mais de mil empresas, movimentava cerca de 14 milhões de dólares por ano, o


equivalente a 2.6% do PIB, e cobria aproximadamente 27% da população do país. Em
1996, segundo o estudo de Pires, o faturamento das empresas de plano de saúde era em
torno de 10 bilhões de reais, maior do que o de grandes empresas como a Volkswagen e
a Ford juntas ou o dobro do faturamento da IBM. Face a esse crescimento vigoroso dos
planos e seguros de saúde no Brasil, a questão central para o SUS se tornou a
capacidade de regular esse mercado pelo Estado e sobre os critérios em que se dá a
articulação público-privado na prestação de cuidados médicos, cujo marco foi a
aprovação da Lei nº 9.656/1998. O debate gira em torno do questionamento sobre
quanto de autonomia o mercado privado de saúde deve manter em relação ao Estado e
não exatamente sobre a possibilidade de o sistema público de saúde prescindir da
colaboração do setor privado.
Portanto, a proposta do SUS, construída sob a égide dos princípios de
universalidade, equidade, integralidade, descentralização e participação social,
confronta-se ao longo dos anos 1990, por um lado, com o desfinanciamento,
conseqüente ao ajuste das finanças públicas para a geração do superávit fiscal, o que
acaba por subordinar, como refere Pochmann, as políticas sociais e no nosso caso, a
política de saúde, à economia, ganhando relevo as medidas de caráter compensatório e
deixando em segundo plano o sistema de proteção social universal. Por outro lado, o
SUS também vai se confrontar com a estagnação social de grandes contingentes
populacionais, expressa no aumento da concentração de renda e a persistência das
desigualdades sociais.
O impacto do receituário neoliberal incrementado pela associação da burguesia
nacional com a internacional e a conseqüente superexploração do trabalho, como
destacam Cardoso e Paulani, sobre a saúde da população, pode ser verificado em dois
exemplos muito perversos. Um muito visível para todos e outro absolutamente invisível
aos nossos olhos. O elemento visível é a violência urbana, que presenciamos a todo o
momento, no nosso cotidiano, e que é um fenômeno intimamente associado ao quadro
de desigualdades que se instalou no país – não está associado à questão da pobreza, só
isso não explica. No ano 2000, só para termos uma pálida idéia, as causas externas, que
incluem homicídios e agressões, foram a segunda causa de morte no país, quase
empatadas com as neoplasias, configurando a violência como um grave problema de
saúde pública, em todas as regiões do pais. Ou seja, convivemos com doenças e/ou
causas de morte de um lado, que são semelhantes ao quadro epidemiológico de
sociedades capitalistas avançadas, como câncer, problemas de doenças do aparelho
circulatório etc., e de outro lado, com doenças e/ou causas de morte que têm a ver com a
desigualdade social.
O outro exemplo, invisível para a sociedade, mas que está associado à
desigualdade e à deteriorização das condições de moradia e alimentação nos grandes
centros urbanos, principalmente Rio de Janeiro e São Paulo, é o recrudescimento dos
casos de tuberculose, principalmente a partir de 1995. São casos que têm ocorrido,
principalmente, na faixa etária de 20 a 59 anos, que coincide com o período de vida de

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maior atividade produtiva dos homens e que, ao contrário do que se acreditava, apenas
um quarto deles tem associação com a AIDS.
Nesse quadro de agravamento das questões sociais, de sonegação de condições
objetivas mínimas para a existência humana, o que pode prevalecer é aquilo que
Severino denomina de niilismo axiológico. Isto é, de esvaziamento dos valores, de fim
das utopias, da esperança de um futuro melhor, da incapacidade de construir projetos,
predominando como únicos critérios o receituário neoliberal da eficiência e
produtividade, veiculados nos anos 1990 pelas agencias financeiras internacionais,
nomeadamente o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Segundo o
estudo de Correia, esse último organismo internacional propõe uma agenda da saúde aos
países por ele subsidiado agrupada em três pontos: 1º: criar um ambiente propício para
que as famílias melhorem suas condições de saúde; 2º: tornar mais criterioso o
investimento público em saúde; 3º: facilitar a participação do setor privado. Pelos dados
apresentados acima, portanto, a análise leva a concluir que esses três pontos são
viabilizados pela oferta de uma cesta básica, pelos municípios, às famílias pobres com
maior risco de adoecimento, através do Programa Saúde da Família (PSF); pela
racionalidade gerencial, defendida como uma das principais alternativas para sair da
crise e exacerbada durante a gestão de José Serra no Ministério da Saúde, que Arouca
denomina de fúria regulatória; e, por último, pela mercantilização da atenção hospitalar
de média e alta complexidade, através da universalização do privado e da
universalização excludente.
Entretanto, parece não haver consenso dentro do setor saúde sobre o caráter
focal ou não da expansão da atenção básica, que têm como base o Programa Saúde da
Família (PSF). Há uma tensão na relação focalização x universalização, o que leva
algumas forças a disputar dentro do Estado a transformação dessa proposta em
estratégia de implantação da universalização da saúde e, nesse sentido, como um
requisito da universalidade ou forma de reorganizar o modelo assistencial. Para Arouca,
por exemplo, o PSF pode ser visto de duas maneiras: como um programa paralelo, sem
aderência ou organicidade ao SUS e, desse ponto de vista, focal, ou ser um modelo
reestruturante do sistema de saúde, apoiado no conceito de intersetorialidade.

Formação Profissional em Saúde: concepções em disputa

Diante desse modelo de saúde, formalmente universal, mas que, ao contrário de


universalizar a atenção pública, foi universalizando a atenção privada por meio do setor
público; expulsando clientela potencial do SUS para os seguros privados, que acabam
pagando duas vezes por um direito que o Estado tem o dever constitucional de conferir;
e que tende a focalizar suas ações nos destituídos de renda através do SUS coletivo,
como refere Bahia, qual a educação profissional em saúde para qual SUS?
Antes de avançarmos, é importante situarmos a magnitude do “mercado
educativo” em saúde, que é outro filão de mercantilização que se expande pelo Brasil
afora. Segundo levantamento que realizamos no Censo da Educação Profissional de
2002, temos, no Brasil, 995 estabelecimentos de ensino que oferecem 1.473 cursos de

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educação profissional em saúde. Esses estabelecimentos e cursos, em sua maioria, estão


localizados na região Sudeste, certamente porque aí também se concentra o mercado de
trabalho em saúde, configurando uma importante desigualdade regional na distribuição
da formação profissional em saúde no país. Dos cursos oferecidos, 81% são da
iniciativa privada, apontando para o caráter eminentemente privado da formação em
todas as regiões brasileiras. Os principais cursos oferecidos são de auxiliares e técnicos
de enfermagem (56%). Dos alunos matriculados em todos os cursos, 63% freqüentam
cursos noturnos, o que pode estar indicando que, em sua maioria, são alunos
trabalhadores que não têm outra alternativa de acesso à educação profissional em saúde,
senão após o expediente de trabalho.
Não conhecemos nenhum trabalho ou resultado de pesquisa que indique a
qualidade desses cursos, o projeto pedagógico, a concepção de formação e de saúde etc.
Mas o predomínio do setor privado de ensino e a precária qualidade dos cursos
oferecidos, na década de 1980, particularmente na área de enfermagem, aliado ao
grande contingente de trabalhadores sem formação atuando no setor público e à
necessidade de expansão de cobertura do SUS decorrente do processo de
municipalização da saúde, estão na base da organização e abertura das escolas técnicas
do SUS, a partir de 1980, com o Projeto Larga Escala. De fato, é a partir dessa iniciativa
que o Estado assume progressivamente a responsabilidade pela educação profissional
em saúde no país. Antes disso, a prática dominante dentro do setor público era o
‘aprender-fazendo’ na prática cotidiana e/ou por meio de treinamentos organizados por
núcleos de formação e, depois, por meio de escolas de enfermagem dentro dos próprios
hospitais – cada hospital tinha a sua escola para treinar/formar os seus trabalhadores.
Entretanto, com a ampliação da concepção de saúde realizada pela reforma
sanitária e com a complexidade decorrente dessa ampliação, aliado ao progressivo
processo de descentralização e municipalização da saúde, que se acelera nos anos 1990,
isso não era mais possível. Já não bastava a experiência e o treinamento, era necessário
organizar escolas técnicas de saúde para a formação e ampliação da consciência
sanitária dos trabalhadores e dos futuros profissionais de saúde sobre os princípios da
reforma e do projeto societário que ela enseja. Eles deviam ser educados não apenas
para compreender o seu papel individual como membro da equipe de saúde, mas,
principalmente, atuar coletivamente na gestão do sistema, na sua organização e controle.
Portanto, uma perspectiva democrática, que associa formação e participação,
encampada pelo Projeto Larga Escala, por meio de sua proposta de integração ensino-
serviço. Um dos pressupostos dessa concepção pedagógica é a necessidade de uma
‘relação permanente’ entre a atividade didática e a prestação dos serviços, que sirva não
só como substrato ao processo de formação, como a própria integração da escola com os
serviços de saúde deve ser realizada na perspectiva de reorganização desses serviços
com a participação dos trabalhadores.
Em que pese os limites e obstáculos que se colocaram para efetivação dessa
perspectiva democrática de formação, que não pode ser dissociada dos próprios rumos
que o SUS tomou a partir dos anos 1990; em que pese o difícil processo de afirmação e
consolidação das escolas técnicas do SUS, a sua maioria vinculada às secretarias

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estaduais de saúde e que viveram ao longo desse tempo ao sabor das conjunturas
políticas, clientelistas etc., importa destacar que nesse período se verifica uma
redefinição da concepção de educação do SUS. Aquela concepção abrangente, que
aliava formação e participação para a construção coletiva de um sistema, dá lugar a uma
concepção restrita, de cunho individualista e voltado prioritariamente para o local de
trabalho, muito longe da perspectiva de intersetorialidade, defendida por Arouca. Isso se
verifica mais recentemente, na definição de formação profissional inscrita na Política
Nacional de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde, como um “processo que
sistematiza os conhecimentos técnicos e científicos por meio da educação profissional
[...], com o objetivo de propiciar ao indivíduo o permanente desenvolvimento de
aptidões, habilidades, competências específicas e posturas solidárias perante os
usuários, para o exercício do trabalho e da educação a fim de inseri-lo nos setores
profissionais”. Parece-nos que esse fenômeno está associado à difusão da sociabilidade
neoliberal que ao longo dos anos de 1990, principalmente a partir do governo FHC,
difundiu-se no país e que do ponto de vista da formação humana, como sinaliza
Severino, opera a subversão do desejo, da vontade e do conhecimento, emulando uma
suposta autonomia e suficiência do sujeito individual.
No plano educacional, essa ideologia se materializou como demonstra o estudo
de Ramos, na adoção da pedagogia das competências, que conduz a uma abordagem
individualizante da formação do trabalhador e o responsabiliza por sua
empregabilidade. Uma noção que foi facilmente incorporada pelo setor saúde por um
motivo, do meu ponto de vista, muito simples: porque ela destaca a imprevisibilidade do
processo de trabalho. Como Ramos e outros autores já apontaram, essa noção surge do
mundo do trabalho com a flexibilização e integração dos processos produtivos, que
passam a valorizar a subjetividade e o saber tácito do trabalhador, passando a contrapor
a partir daí a qualificação real adquirida no processo de trabalho à qualificação formal
adquirida na Escola. Com isso, afirma-se a idéia de que a construção de aprendizados
vai além da aquisição formal de conhecimentos academicamente validados e
transmitidos pela escola, supervalorizando assim as experiências adquiridas no processo
de trabalho, principalmente considerando as rápidas mudanças que se processam nos
projetos de trabalho ou decorrentes dos eventos imprevistos que ocorrem com as novas
formas de produção flexível.
O trabalho em saúde tem importantes similaridades com o conjunto dos
trabalhos existentes na sociedade. Entre elas, o uso dos conceitos de administração
científica e racional aplicados aos cuidados; é um trabalho coletivo, que tem como lócus
privilegiado de prática o hospital moderno; a incorporação crescente de equipamentos e
tecnologias materiais; e o assalariamento do conjunto dos seus trabalhadores.
Entretanto, é um trabalho que tal qual o trabalho educativo se completa no ato de sua
produção, particularmente no processo de cuidar; é um trabalho reflexivo, de difícil
racionalização e normatização; algum dos seus produtos tem a objetividade das
mercadorias, porém não tem a universalidade de seu valor de uso, como por exemplo,
uma chapa de raio-X, uma bota de gesso etc.; e opera cotidianamente com as incertezas
decorrentes da indeterminação das demandas, com as descontinuidades e a necessidade

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de prontidão no atendimento. Uma de suas características, portanto, é sempre lidar com


situações de emergência e imprevisto. Esta característica é determinada pelo próprio
objeto de trabalho, que se materializa num corpo socialmente investido, um objeto
histórico e variável.
Nessa medida, os trabalhadores de saúde devem ser competentes para agir em
função de possíveis ocorrências não previstas do processo de trabalho em saúde. Não é
por acaso que é um dos trabalhos sociais mais desgastantes, tanto do ponto de vista
físico, como mental e emocional. Portanto, não é por acaso também que a noção de
competência foi rapidamente assimilada pelo setor saúde, mas de forma absolutamente
acrítica e ahistórica. No limite, a noção de competência com sua ênfase na experiência e
nos aspectos subjetivos da prática, tende a desqualificar os saberes escolares e a escola,
como agente que disputa a transmissão de conhecimentos, forçando-a a se adequar não
às necessidades do educando, mas às necessidades do mercado de trabalho, neste caso, o
de saúde.
Ao contrário, acreditamos que o acesso dos trabalhadores ao conhecimento é
uma das mediações fundamentais para a transformação da sociedade. Cardoso, por
exemplo, afirma que para ultrapassar o ‘consenso’/consentimento/submissão, que é
construído ideologicamente pelo poder, é necessário questionar os quadros de
pensamento estabelecidos e essa luta ideológica não prescinde do acesso ao
conhecimento, principalmente numa sociedade capitalista dependente como a brasileira.
Frigotto aponta de forma muito clara, que se os conhecimentos científico, técnico e
tecnológico são forças de dominação sob o capital, também são elementos de
emancipação humana e são cruciais e necessárias a ela. Portanto, são alvos de disputa de
projetos sociais antagônicos e condição sine qua non da sociedade socialista. Severino
também salienta que o conhecimento é uma ferramenta fundamental que o homem
dispõe para dar referências à condução da sua existência histórica e que o grande
desafio que a escola deve enfrentar para superar a sociabilidade neoliberal vigente é
simultânea e contraditoriamente, inserir os educandos nas malhas culturais de sua
sociedade e levá-los a criticar e a superar essa inserção. Isto é, fazer um investimento na
conformação das pessoas a sua cultura ao mesmo tempo em que precisa levá-las a se
tornarem agentes da transformação dessa cultura. Portanto, essas questões apontam para
a luta teórica e ideológica que está posta para todos aqueles que militam na educação e
na saúde. Se no campo educacional a luta passa, como diz Frigotto, pela afirmação do
caráter estratégico e prioritário do direito à educação escolar básica, unitária, politécnica
ou tecnológica, no campo da saúde a luta central é pela afirmação do direito à saúde no
espaço político e no espaço escolar.
A argumentação do Banco Mundial que fundamenta a necessidade de
privatização dos serviços de saúde, como salienta Laurell, parte da definição de que a
saúde é um bem privado, porque é consumido por indivíduos privados. É toda uma
construção lógica que, junto com outras justificativas, tem o propósito de destruir o
conceito dos direitos sociais e, particularmente, o direito à saúde, pois é uma condição
indispensável da privatização e da mercantilização dos serviços de saúde, visto que, a
rigor, não é possível reconhecer esse direito sem especificar simultaneamente as

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correspondentes obrigações sociais e públicas. No seu artigo, Laurell nos dá ferramentas


para avançarmos essa discussão. Ela diz que o fato de um bem ou serviço ser
consumido pelos indivíduos privadamente, não impede, em absoluto, que seja
considerado de interesse público e garantido pela sociedade através do Estado.

Educação médica, hospitais universitários e o Sistema Único


de Saúde
Gastão Wagner de Sousa Campos

Considerações metodológicas

Realizou-se estudo objetivando esclarecer em que modalidades de serviço de


saúde ocorreria a formação dos alunos de medicina. Para isto foi selecionada uma
amostra qualitativa (não-probabilística) entre a quase centena de Faculdades de
Medicina (80 credenciadas pelo Ministério da Educação e Cultura) existentes no Brasil
durante o ano de 1995.
Dois critérios dirigiram esta escolha: um primeiro, regional – que nenhuma
região geográfica ficasse fora da pesquisa; e um segundo, inspirado na noção de tipo
ideal, ou seja, foram eleitas escolas consideradas modelo pelas próprias instituições
médicas.
Nestas instituições procedeu-se a levantamento da carga horária curricular
transcorrida em cada uma das três classificações em que foram enquadrados os serviços
onde ocorriam estágios práticos. A saber: a) serviços especializados vinculados a
Hospital Universitário – ambulatórios, enfermarias, centros de diagnóstico ou de
terapia, segundo quaisquer das especialidades médicas reconhecidas pela Associação
Médica Brasileira (AMB) ou pelo Conselho Federal de Medicina (CFM); b) serviços
gerais vinculados a Hospitais Universitários, ou seja, todos espaços ligados diretamente
às denominadas quatro especialidades raízes (Campos, 1997) ou básicas: clínica médica,
cirurgia geral, pediatria e gineco-obstetrícia; e c) serviços extramuro, ou seja, todos
aqueles externos à estrutura dos Hospitais Universitários, isto é, postos ou centros de
saúde, hospitais-dia, equipes de saúde pública ou de internação domiciliar etc.
Elegeu-se trabalhar com 14 faculdades públicas – 10 federais, faculdades ligadas
às Universidades Federais dos estados do Rio Grande do Sul, Paraná, Rio de Janeiro,
Goiás, Pará, Ceará, Pernambuco, Bahia, Mato Grosso e a Escola Paulista de Medicina
em São Paulo –; e 4 estaduais – Faculdades de Medicina da Universidade de São Paulo
(USP), da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) e da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp) em São Paulo, e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Uerj) no Rio de Janeiro. Estudou-se a distribuição de estágios conforme a modalidade
de serviço em que ocorreram durante o ano de 1995.
O resultado deste levantamento surpreendeu mais pela homogeneidade do que
pela distribuição de freqüência das diversas modalidades de estágio prático. Encontrou-
se que 86% dos estágios práticos ocorriam em serviços pertencentes aos próprios
Hospitais Universitários. Destes, 46% eram realizados em uma das quatro áreas básicas
ou raízes e 40% em unidades especializadas. Portanto, apenas 14% do treinamento se
passavam em espaços externos às Faculdades (Campos, 1995).

O intramuro das faculdades de medicina no Brasil

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Se 86% da carga horária dos estágios práticos dos cursos médicos se


desenvolvem dentro de Hospitais Universitários, são estes, pois, os espaços que
compõem o denominado “interno” das faculdades. Durante quase toda a fase de
formação clínica, incluindo a de internato, os alunos são treinados dentro dos
denominados Hospitais Universitários. Algumas escolas têm estágios em centros de
saúde, ou em outras modalidades de serviços do SUS; mas, seguramente, pode-se
afirmar que seu peso qualitativo e quantitativo (14% na amostra levantada) na
composição curricular é pequeno.
Que lógica presidira a organização destes Hospitais Universitários? Que
responsabilidade assistencial estariam assumindo? E a que lógica assistencial
obedeceriam? Enfim, que imaginário estariam conformando entre os futuros médicos?
Bem, embora haja sensíveis distinções entre as localidades, são serviços
estruturados para atender casos complexos. Deveriam ocupar o ápice da pirâmide de um
sistema hierarquizado, constituindo o nível terciário da atenção. Todos os 16 Hospitais
Universitários pesquisados (vinculados às Universidades Federais ou Estaduais acima
citadas) declaram esta missão em seus estatutos, ou regimentos ou atas de fundação.
Entretanto, confrontando-se este discurso com o perfil real da produção percebe-
se a relevância destas unidades também no atendimento de casos simples ou de outros
típicos do denominado nível secundário. A realidade, portanto, quase nunca está
estritamente de acordo com esta racionália dos planejadores e muitos destes hospitais
têm funções muito mais amplas, realizando atendimentos de complexidade média ou até
primária.
De qualquer maneira, a lógica que os estrutura é a da especialização, com todas
as conseqüências daí decorrentes. Em primeiro lugar, sempre que possível, prioriza-se
trabalhar com uma certa fase do processo saúde-doença, tendendo a assumir casos de
difícil diagnóstico ou tratamento; o que, progressivamente, iria dificultando ao aluno
acompanhar tanto o comum prevalente em cada região, como a evolução inteira da
maioria dos casos.
Para darem conta de sua missão, estes Hospitais estariam obrigados a operar
com alta e veloz incorporação de tecnologia e com importante grau de fragmentação do
processo de trabalho entre dezenas de especialidades. Assim, quase todos estes
Hospitais Universitários têm o mesmo desenho organizacional: estando divididos em
tantos serviços quantas são as especialidades médicas, o que complica bastante qualquer
integração do ensino clínico.
Sem dúvida, há diferenças importantes entre a quantidade de recursos investidos
nestes vários hospitais conforme a região do país. Contudo, a lógica que os estrutura é a
mesma. Um aparece como o modelo-ideal ao qual o outro pretenderia chegar um dia.
Estes serviços valorizam uma clínica centrada em “procedimentos tecnológicos”
e pouco cultivam aquela clínica trabalho-humano concentrada (Camargo, 1992;
Campos, 1992; Schraiber, 1993).
Infelizmente, sabe-se que freqüentemente a utilização de onerosos arsenais
diagnósticos e terapêuticos nem sempre implicam uma responsabilidade integral com a
cura ou reabilitação dos pacientes (OPS, 1992; Banco Mundial, 1993). E isso vem
ocorrendo, em parte, pelo excesso de demanda – um retorno a um ambulatório ou uma
transferência de um paciente de um setor responsável por diagnósticos para outro
encarregado de proceder cirurgias ou quimioterapias, por exemplo, pode demorar meses
–; mas também pela fragmentação e desintegração do ato clínico.

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Em quase todos estes serviços ocorre um enfraquecimento das equipes mais


generalistas; pediatras, internistas ou cirurgiões são deslocados por professores
envolvidos com aspectos muito específicos da clínica. Em conseqüência, tanto o
atendimento, quanto o ensino perdem seus eixos integradores, compartimentalizando-se
em esferas privadas com pequena integração entre si. Em geral, o quarto ano de
medicina transformou-se em um pot-pourri de mini-cursos, procedendo-se a uma
divisão dos estágios entre dezenas de especialidades que pouco dialogam entre si. Além
do mais, cada uma destas disciplinas estrutura-se segundo uma lógica inadequada. Ao
estruturar cursos, estes professores-especialistas procedem como se todos os alunos
fossem ser especialistas naquela área. A questão sobre o que um médico geral ou de
qualquer outra especialidade necessitaria saber sobre o tema não é a lógica que preside a
construção dos conteúdos dos estágios e da abordagem teórica. Cursos de psiquiatria ou
de medicina preventiva, ou de hematologia, quase todos são estruturados para formar
especialistas em cada uma destas áreas: o que um médico pediatra, ou clínico
necessitaria saber sobre psiquiatria, ou saúde pública, esta lógica não comanda a
organização de estágios e do currículo.
O poder nestes Hospitais está também muito esfacelado. A ordenação
universitária – por departamentos –, potencializada pela lógica médica de se organizar
em dezenas de especialidades, acabam criando instituições dificílimas de governar. Em
geral, os superintendentes, ou diretores clínicos, ou até mesmo os dirigentes do SUS,
todos podem pouco em relação aos serviços universitários. A fragmentação atinge tal
grau que, em muitas localidades, vários destes departamentos se autonomizaram tão
radicalmente que se transformaram em novos serviços, os famosos Institutos. Há
exceção, mas em geral, esta autonomia excessiva não resulta necessariamente em
progresso. Em alguns casos aproveitou-se esta liberdade para a livre invenção e para a
criação de serviços com reconhecida excelência ética e técnica. Na maioria das
situações, contudo, identifica-se uma tendência de progressivo descompromisso dos
docentes com a assistência, com o ensino e com a pesquisa. Boa parte dos professores
de medicina – falta levantamento franco sobre isso – tem dupla militância profissional,
combinando atividades privadas com obrigações públicas. Ultimamente, o público
estaria sendo relegado a segundo plano, de tal maneira que a assistência nestes Hospitais
passou a ser realizada predominantemente por residentes; e o ensino diretamente
supervisionado por professores, em conseqüência, tenderia a recuar para aulas
expositivas ou discussões semanais de casos clínicos. Em regra geral, a convivência
diária do professor com o aluno reduziu-se muito.
Algumas faculdades têm procurado reter professores mais tempo dentro dos
espaços intramuros oferecendo-lhes a alternativa de trabalhar com pacientes particulares
ou de convênios privados. Isto, que poderia até aliviar a situação econômica dos
professores, não tem melhorado o ensino. Aos alunos de graduação, em geral, não se
lhes permite “treinar” em pacientes “diferenciados”.
A conclusão que se pretende não é sobre a total inconveniência deste modelo
organizacional. Ao contrário, o Brasil precisa de hospitais especializados. O que se
advoga, sim, seria a inadequação destes hospitais para o ensino de graduação de
medicina ou de enfermagem. São serviços ótimos para residência, pós-graduação e
realização de pesquisa de ponta. Mas não estariam servindo para formar médicos com
capacidade e responsabilidade clínica integral.
Neste sentido, e somente neste sentido,ter-se-ia que proceder a um deslocamento
dos espaços práticos de ensino. Como ensinar cirurgia geral, pediatria, clínica médica,
psiquiatria e saúde pública em serviços estruturados para o atendimento especializado?

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Caderno de Texto

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Haveria que se formar profissionais de saúde, treinando-os também em centros de


saúde, hospitaisdia, em domicílios, na comunidade, em escolas etc.
Esta constatação é velha, porém a demora em superá-la somente tem
demonstrado, à náusea, a urgência em corrigi-la (Feurwerker, 1997). E, seria
exatamente este o ponto de fracasso da maioria dos projetos reformadores do ensino
médico. Como realizar este movimento, contudo, quando a maioria dos professores tem,
cada vez mais, uma vocação e um tino sempre mais especializado. Onde estariam os
professores de clínica? Os pediatras, que antes foram sobretudo pediatras e agora são
cada vez mais pediatras em alguma coisa: cirurgiões infantis, neuropediatras,
neonatólogos etc. Que pedaço da Saúde Coletiva ensinar aos futuros clínicos? E onde se
meteram os sanitaristas, que agora somente se encontram epidemiólogos, especialistas
em ambiente, em toxicologia, em saúde ocupacional ou administração? Que ator social
poderia capitanear esta diáspora, este movimento de mudança do ensino de espaços
altamente especializados para hospitais gerais, ambulatórios de cirurgia, centros de
saúde, hospitais-dia, serviços de atenção domiciliar etc.? Como obrigar professores a
ensinar de dentro da lógica de um saber transdisciplinar? Como constranger os solitários
e arrogantes médicos especialistas a operar em equipes articuladas, centralmente,
segundo o problema que pretendem resolver e, portanto, ensinar?
Em geral, em quase todo o país, estas modalidades “alternativas” de atenção,
onde deveria ocorrer a maior parte do trabalho clínico e sanitário, estão sob
responsabilidade dos sistemas municipais ou estaduais. As universidades, é importante
insistir, gerenciam Hospitais Universitários, que, por sua vez, dispõem apenas de
ambulatórios e enfermarias especializadas, e, em alguns casos, também contam com
pronto-socorro. Concluindo, para deslocar o ensino até outras instâncias do SUS haveria
que se sair do intramuros. Haveria que se desenvolver a maior parte do ensino de
clínica, pediatria, gineco-obstetrícia e saúde pública, em centros de saúde e hospitais
gerais. Como ensinar psiquiatria moderna sem acesso dos alunos a Hospitais-dia ou aos
Centros de Apoio Psicossocial? Como ensinar cirurgia sem cirurgia ambulatorial?
Como tratar diabetes sem serviços com programas de atenção integral ao diabético, o
que pressupõe equipe multidisciplinar, acesso a laboratórios, consultas individuais,
trabalho de grupo etc., etc. Alguns Hospitais Universitários tentam compensar estes
problemas desenvolvendo, no nível terciário, programas semelhantes, mas as
dificuldades citadas limitam e dificultam o sucesso e a continuidade destes esforços
bem intencionados.
O lógico, o mais acertado, estaria na expansão do espaço de ensino. Do
predomínio do Hospital Universitário, na graduação, dever-se-ia caminhar para uma
preponderância destes outros espaços durante a formação prática dos alunos de
medicina, ou de enfermagem, ou de fisioterapia, ou de psicologia etc.

De que médico necessitaria o sistema público de saúde?

Generalistas ou especialistas, esta discussão também é velha, contudo, ela não


trata do essencial até mesmo porque ambos os tipos de profissionais são necessários ao
SUS, desde que distribuídos em proporções equilibradas conforme necessidades
sanitárias e disponibilidade de recursos.
O essencial seria discutir a capacidade de produzir saúde por parte dos médicos
formados. São potentes para promover a saúde, ou seja, para prevenir, curar e reabilitar
doenças? São capazes de se integrar a variados modelos de serviço, conforme variem as
necessidades de saúde? Saberiam trabalhar em centros de saúde, hospitais gerais, em

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Caderno de Texto

Seminário de Educação Médica NE – Barbalha, agosto de 2008

atenção domiciliar etc., utilizando-se do que houver de mais moderno, eficaz e acessível
em tecnologias médicas e/ou sanitárias?
Entretanto, mesmo quando se fala de generalista não se deveria estar sempre
pensando num certo padrão homogêneo de saberes. Se para pequenas localidades do
interior se precisaria do velho profissional “faz-de-tudo”, desde pré-natal a parto,
cirurgia à visita domiciliar, curativo à prevenção; para a maior parte da população, que
vive em conglomerados urbanos, necessitar-se-ia de serviços básicos (centros de saúde,
policlínicas etc.), de hospitais, de serviços voltados para urgência, saúde mental, etc.,
com um número grande de “especialistas-gerais” (pediatras, clínicos, gineco-obstetras,
cirurgiões gerais, psiquiatras e sanitaristas), todos apoiados por especialistas localizados
em ambulatórios e hospitais terciários.
A crise contemporânea da clínica explicase em grande parte pelo fato de tanto o
ensino,quanto a assistência e a pesquisa terem se centrando quase que exclusivamente
na última modalidade de serviço acima citado.
Procede-se como se a especialização fosse toda a medicina, como se o
atendimento especializado fosse toda a assistência. O resultado é uma crise de eficácia
da clínica, somada, paradoxalmente, a uma outra crise denominada de custos crescentes
– para mesmos resultados se gasta cada vez mais dinheiro, consultas, exames, etc.
(Ribeiro, 1995).
Os desafios da formação médica estão, portanto, ligados aos desafios da
assistência. O segredo para uma formação médica adequada estaria guardado junto com
o segredo dos modos como se poderia reformar a clínica e a saúde pública. A reforma
do ensino depende da reforma dos saberes e práticas que deveriam reorientar a clínica e
a saúde pública.
A meta das Faculdades deveria ser formar médicos com alta capacidade de
resolver problemas de saúde. Formar médicos com capacidade de se integrarem em
equipes multiprofissionais, com capacidade para reconhecer a determinação, ao mesmo
tempo, social, subjetiva e biológica dos processos saúde e doença, e uma vez realizado
este reconhecimento, serem capazes de criar projetos terapêuticos que combinassem
recursos destas três esferas conforme o caso e as possibilidades existentes. E,
principalmente, formar médicos capacitados a construir vínculos e a assumir
responsabilidades frente à cura ou reabilitação dos seus pacientes, superando a tradição
contemporânea de concentrar quase toda responsabilidade apenas na realização,
segundo certos preceitos, de certos procedimentos técnicos. Reformular a clínica,
produzindo uma clínica ampliada – ampliação do campo de saberes, de
responsabilidades e de práticas (Campos, 1992).
Ou seja, a recuperação da clínica depende da ampliação dos espaços onde foi
sendo encerrada. As Faculdades, em geral, mantiveram-se afastadas deste esforço de
resgate. Ao contrário, em muitos episódios, têm desqualificado esforços para reformular
as práticas de controle de doenças crônicas ou de reabilitação em saúde mental. Há uma
tendência na medicina de fechamento à saúde pública, alunos e professores subestimam
a necessidade de incorporação destes saberes para o exercício de uma boa clínica. O
mesmo acontece com a dimensão subjetiva. Os médicos foram progressivamente se
desobrigando desta responsabilidade, em conseqüência perderam resolutividade e
humanidade e prazer de trabalhar.
Inevitavelmente, portanto, haveria que se proceder a um deslocamento do eixo
sobre o qual é realizada a formação de profissionais da saúde: a maior parte do ensino
de graduação não pode continuar encerrada nos especializados Hospitais Universitários.

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Caderno de Texto

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Pequenas indicações para integração docente-assisntencial

Para que este deslocamento ocorresse de fato, haveria necessidade de as Escolas


articularem-se com o SUS. Procurar municípios e serviços estaduais para realização de
acordos e contratos, que permitissem a utilização de centros de saúde, hospitais-dia,
ambulatórios, serviços de vigilância, etc., como campo permanente de estágio para os
alunos.
Há aqui uma tradição ingênua passível de crítica. Alguns professores,
honestamente envolvidos com estas experiências, têm defendido um naturalismo
radical. O ensino deveria ocorrer nas mesmas e, em geral, precárias condições da maior
parte dos serviços públicos. O objetivo seria propiciar ao aluno o contato com a miséria
e com o social.
Em primeiro lugar, para conhecer a miséria não seria preciso sair dos Hospitais,
bastaria dar um pulo ao pronto-socorro! E o social é ubíquo, está em todo lugar, até em
cada um dos pacientes atendidos individualmente. Não seriam estes motivos suficientes
para implantação de estágios extramuros.
A razão mais forte para justificar este movimento estaria em que não é possível
formar bons clínicos, nem ensinar saúde pública, apenas em serviços altamente
especializados.
Tendo em vista estes fatores, defende-se ainda que as Faculdades deveriam
propor às instituições do SUS contratos de co-gestão, os quais propiciassem aos
serviços conveniados algum benefício: entre outros, inclusive no financiamento, em
geral, haveria que ocorrer certa melhoria das condições de trabalho nestas unidades da
rede para que os objetivos de ensino pudessem ser alcançados. Um serviço integrado ao
ensino precisaria de mais salas, tanto para atendimento (assegurar uma boa relação
aluno/paciente), como para discussões e seminários didáticos.
Por que a co-gestão?
Os Hospitais Universitários têm grande autonomia de gestão. Talvez fosse
conveniente maior grau de integração e articulação com o SUS, criando-se instâncias
em que usuários e autoridades sanitárias regionais pudessem opinar.
Por outro lado, em relação a outros serviços da rede do SUS, as Faculdades
tendem a não assumir nenhum compromisso. O que não é bom, porque nem sempre os
modelos de atenção dos serviços do SUS são os mais recomendáveis e as Escolas
deveriam contar com certa autonomia para experimentar coisas novas sem abdicar de
compromissos com o público. Além do mais, programas em co-gestão têm mais
estabilidade, diminuindo os efeitos negativos da descontinuidade administrativa dos
serviços públicos. E, por último, não há como negar, que uma unidade da rede, para
funcionar como campo de estágio, sempre demandaria alguns reparos e reformas. Mais
espaço para concentrar um número mínimo de alunos, senão nunca haveria professores
suficientes etc.
Restaria discutir-se a viabilidade política, técnica e financeira deste movimento
de mudança.
As maiores resistências contrárias a esta expansão seriam internas às
Universidades. Prefeituras e governos estaduais teriam a ganhar com estes movimentos.
Há problemas, neste lado também, sem dúvida. A co-gestão implicaria permanentes
acertos e negociações e diminuiria a autonomia dos governos locais sobre pedaços do
sistema de saúde. Mas os benefícios assistenciais seriam tamanhos que, em geral, os
governos têm aceitado com relativa facilidade participar de projetos de integração

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Caderno de Texto

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docente-assistencial, até mesmo porque costuma haver melhoria da qualidade dos


serviços conveniados.
Já quanto às Faculdades há inúmeras dificuldades. Os professores estariam
muito presos à lógica dos serviços especializados e teriam resistência a sair dos
Hospitais Universitários. Os alunos, em geral, estariam também encantados pela
medicina dos aparatos em que o paciente é quase um insumo a mais. É-se obrigado a
reconhecer nas Faculdades de Medicina uma das instituições mais estáveis do país. Tem
sido muito difícil compor uma massa crítica de docentes e de alunos a favor de
mudanças que as aproximassem do SUS. No máximo, têm-se conseguido fazer esta
aproximação quando há compromisso exclusivo com o papel de retaguarda
especializada. Mas daí para as Escolas assumirem papel ativo na reformulação e criação
de novos modelos de atenção há uma distância incrível. No entanto, há a crise. E a crise
fala todo o tempo sobre necessidade de mudanças. Talvez esta insistência reiterativa
possa propiciar mudança. Assim, ainda que parciais, há possibilidade de alterar os
modos como se está ensinando medicina.
Concluindo, mais do que mudanças de grades curriculares, estar-se-ia
necessitando de ampliar os espaços onde ocorre a formação clínica dos alunos.
Conseguir articular teoria com prática, tanto nas disciplinas das preventivas como
naquelas de várias outras cadeiras, e realizar estas alterações didáticas ao mesmo tempo
em que fossem inventandas novas maneiras de assegurar atenção integral às pessoas.
Além do modelo Hospital Universitário, agregar outros modelos de atenção no processo
de formação: o dos centros de saúde, das equipes multidisciplinares, do trabalho
comunitário e no domicílio, da recuperação do social e do subjetivo na clínica e,
centralmente, o da criação de estruturas que permitissem a existência de outros padrões
de relação médico/paciente ou, segundo conceitos mais abrangentes, da equipe de
saúde/usuários. Também nos espaços voltados para ensino, urge a invenção de
dispositivos institucionais que estimulassem a produção tanto de padrões de vínculo
como de responsabilidade que propicie o resgate da eficácia e da humanização do
trabalho em saúde.
Em suas linhas gerais, estas conclusões poderiam ser aplicadas também à
formação de outros profissionais de saúde que não os médicos. Enfermeiros,
psicólogos,fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, entre outros, ganhariam muito com
a ampliação dos espaços práticos em que fizessem estágios.

Análise crítica sobre especialidades médicas e estratégias para


integrá-las ao Sistema Único de Saúde (SUS)

Gastão Wagner de Sousa Campos


Maurício Chakour
Rogério de Carvalho Santos

Considerações sobre as especialidades médicas


e sobre sua influência na organização do trabalho em saúde

CAMPOS, G. W. S.; CHAKOUR, M. & SANTOS, R. C.


Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):141-144, jan-mar, 1997.

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Caderno de Texto

Seminário de Educação Médica NE – Barbalha, agosto de 2008

A criação de especialidades médicas tem sido mais ou menos “livre” no Brasil.


A Associação Médica Brasileira (AMB) tem deixado a cargo dos médicos a iniciativa
pela abertura de novas Sociedades de Especialistas. Em documento interno estabeleceu-
se que “para caracterizar uma área de atuação médica como especialidade é necessário
que ela reúna pelo menos cem especialistas afins, e que exista há pelo menos dois anos
como entidade civil organizada”.
Estes dois critérios – uma dada massa crítica de profissionais e certa estabilidade
temporal para a área de atuação – têm uma lógica tipicamente liberal; a livre-iniciativa
dos profissionais descobriria necessidades do sistema de atenção sem outros
condicionantes que os acima mencionados. Ou seja, para a entidade médica encarregada
por lei da regulamentação das especialidades não haveria critérios políticos, sociais ou
econômicos interferindo neste processo.
Em nenhum momento menciona-se qualquer possibilidade de planejamento da
quantidade ou do tipo de especialistas que deveriam estar sendo formados. No entanto,
hoje, já é possível constatar-se a insuficiência desta política. Paradoxalmente, uma vez
criada a especialidade, parece esgotar-se o espírito liberal e desregulamentador das
entidades médicas. Verifica-se clara tendência da maioria das sociedades de
especialistas de definir de modo extremamente rígido a área de competência das
especialidades, conseqüentemente negando aos demais médicos capacidade para
realizar procedimentos incluídos na área de competência regulamentada por cada
especialidade.
Partindo de uma postura liberal, a política das especialidades defende normas
estritamente corporativistas. Esta contradição tem gerado mais problemas do que
soluções para os sistemas públicos e privados de saúde. Por um lado, é inegável a
legitimidade técnica da maioria das especialidades médicas. Em geral, contribuem para
aumentar a capacidade resolutiva da prática médica. Um exemplo: a existência de
cirurgiões especializados em mão aumentaria, teoricamente, a possibilidade de
recuperação de casos considerados perdidos até alguns anos atrás. Por outro lado,
contudo, a fragmentação do trabalho médico em múltiplas especialidades tem
dificultado o diagnóstico e a instituição de terapêuticas em tempo hábil.
Em decorrência, multiplicam-se os encaminhamentos e a realização de exames
complementares injustificados. Ainda não se encontraram diretrizes práticas que
atenuassem estes efeitos inevitáveis da incorporação de novas especialidades aos
sistemas de saúde. Quer nos países desenvolvidos, quer em outros mais pobres,
constatam-se tanto um declínio da eficácia dos serviços de saúde, quanto um outro
efeito deletério que se convencionou denominar de “elevação crescente dos custos em
saúde”.
Retomando o exemplo anterior, se é estúpido negar valor à existência de
algumas equipes especializadas em cirurgia de mão, estrategicamente posicionadas em
hospitais de referência regional, não podemos ignorar, também, que, na medida em que
são instalados estes novos serviços, desenvolve-se tendência da maioria dos cirurgiões
gerais de encaminharem todos os casos de lesão desta parte do corpo, ainda que

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Caderno de Texto

Seminário de Educação Médica NE – Barbalha, agosto de 2008

tivessem tradição de resolvê-los com razoável grau de competência no período anterior


à existência destes serviços especializados.
Sendo assim, quando se adotam processos de trabalho centrados na lógica da
especialização, há sempre uma tendência ao esvaziamento de função e posterior
desaparecimento das “especialidades mais gerais”. Refiro-me não somente ao clínico
geral, supostamente, egresso das faculdades, mas aos pediatras, gineco-obstetras,
cirurgiões gerais e internistas. O mesmo efeito passa a acontecer também com algumas
outras especialidades-raízes de alguma linha de especialização, como os casos dos
neurologistas e cardiologistas.
No Brasil, o Sistema Único de Saúde pretendeu enfrentar este problema criando
um modelo hierarquizado de atenção. Em teoria, haveria uma rede básica onde
trabalhariam ou o clínico geral (médico de família) ou, pelo menos, equipes compostas
pelas quatro “especialidades gerais”: clínica médica, pediatria, gineco-obstetrícia e
medicina sanitária. Em algumas situações incorporam-se cirurgiões, para cirurgia
ambulatorial, e psiquiatras.
Sem dúvida, é uma proposta racional. Entretanto, ela tem encontrado
dificuldades práticas para sua operacionalização. De saída, não são facilmente
encontrados clínicos gerais, trata-se de um profissional em extinção no País. Além do
mais, constata-se uma tendência das redes primárias operarem com baixíssima
capacidade resolutiva, não somente por problemas de infra-estrutura ou de manutenção,
que são relevantes, mas também pela dificuldade de os profissionais médicos exercerem
a clínica com sentido eficaz. Os melhores serviços básicos funcionam como pronto-
atendimentos voltados para cuidado sintomático e são, em inúmeras localidades,
instâncias de triagem que não aliviam a sobrecarga dos especialistas.
As faculdades de medicina têm estruturado seus cursos dentro da mesma lógica.
A maioria dos professores tem formação especializada e tem dificuldade em conservar
e, portanto, em transmitir saberes e práticas mais polivalentes. O ensino é segmentado e,
muitas vezes, padece de lacunas básicas importantes, conforme as características
aleatórias da composição do corpo docente. Observa-se na residência uma tendência a
reproduzir este modelo. Pesquisa recente da Fundap encontrou que as áreas menos
procuradas pelos graduados são exatamente aquelas das “especialidades gerais”. Não
há, por parte das escolas, dos hospitais ou dos governos, políticas que priorizem a
formação desta ou daquela especialidade.
Nota-se, tanto pelos valores dos honorários da tabela da AMB, como pelos
salários e normas de remuneração de órgãos governamentais, uma desvalorização do
trabalho mais clínico, mais polivalente, mais integrativo, em contraste com uma
supervalorização de outros dependentes de tecnologias “duras”, de equipamentos
operados por especialistas em “pedaços” muito específicos do processo diagnóstico ou
terapêutico. Provavelmente, estes estímulos financeiros expliquem o perfil de interesse
dos candidatos à residência. Portanto, urgem soluções que modifiquem o sentido da
graduação médica, da residência e das políticas das entidades médicas e do Estado.
Algumas diretrizes potencializadoras de mudanças:

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a) Reconhecendo a inevitabilidade da especialização, como definir a área de


competência de cada especialidade de maneira a não ocorrer uma concomitante perda da
capacidade de resolver problemas de saúde dos demais médicos? Já nos referimos à
propensão das especialidades definirem um campo muito rígido de atribuições próprias.
Até chegamos a identificá-la com certo corporativismo. Por outro lado, ao mesmo
tempo em que se busca retirar atribuições das especialidades-raízes, observase, por parte
dos novos especialistas, a perda de habilidades médicas básicas. Cirurgiões descuidam
da clínica, clínicos da dinâmica psíquica dos seus pacientes, cardiologistas ignoram a
pneumologia básica e assim sucessivamente. Desta forma, a prática médica se complica
sem que ocorra, proporcionalmente, melhoria da eficácia ou diminuição de custos. Ao
contrário. Uma linha alternativa de raciocínio poderia ser a seguinte: dividir a
denominada área de competência de cada especialidade em dois espaços inclusivos: Um
mais geral, denominado campo de competência, que incluiria os principais saberes da
especialidade-raiz e que, portanto, teria um espaço de sobreposição de exercício
profissional com outras especialidades. O campo de competência não caracterizaria
monopólio profissional da especialidade; ao contrário, seria um campo de intersecção
com outras áreas. Por exemplo: o campo de competência do especialista em cirurgia de
mão seriam as lesões de mão e mais saberes e práticas próximos ao do cirurgião geral. E
um segundo, mais específico, denominado de núcleo de competência, que incluiria as
atribuições exclusivas daquela especialidade, justificando, portanto, a sua existência
como uma nova área.
Retomando o exemplo: o núcleo de competência do especialista em cirurgia de
mão poderia ser constituído pelos casos graves de trauma, amputação ou semi-
amputação da mão com lesões importantes de vasos ou outras estruturas nobres. Se
adotado este critério, inúmeras lesões de mão continuariam a ser também da
competência do cirurgião geral. O campo de competência teria limites e contornos
menos precisos e o núcleo, ao contrário, teria definições as mais delineadas possíveis. A
constituição destes espaços organizados, segundo um jogo de negociações provisórias,
em certa medida intermináveis porque impossíveis de serem arbitradas exclusivamente
por uma racionalidade técnica. Isto porque a definição destes campos dependeria
também de interesses políticos, profissionais e não apenas de diretrizes médicas
positivas. Neste sentido, a AMB e órgãos públicos poderiam organizar encontros entre
todas as especialidades ligadas à cirurgia, à pediatria, ou à neurologia, mediando os
resultados dos debates entre as várias alternativas que certamente surgirão. Com a
criação destas duas lógicas de critérios, uma mais flexível e outra mais rígida, pretende-
se assegurar tanto a necessária existência de especialidades, quanto a conservação da
capacidade resolutiva das chamadas especialidades gerais ou especialidades-raízes.
Senão, com o tempo, elas seriam expropriadas de toda capacidade resolutiva. Ao
mesmo tempo, partindo-se desta perspectiva, caberia exigir-se do especialista certa
polivalência – a específica ao seu campo de competência, contribuindo assim, também,
para a ampliação da declinante capacidade resolutiva dos profissionais altamente
especializados.

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Seminário de Educação Médica NE – Barbalha, agosto de 2008

b) Se a proposição e o aparecimento de novas especialidades seguem


inevitavelmente um padrão mais ou menos livre, dependente tanto da iniciativa dos
médicos, quanto de algumas regulamentações, o Sistema Único de Saúde não deveria
furtar-se de ter uma política que interferisse nesta dinâmica. Basicamente, acreditamos
que o SUS deveria criar mecanismos que indicassem uma clara prioridade não só pela
formação, como também pela contratação de trabalho desta ou daquela especialidade.
Quanto à formação, sabe-se que instituições governamentais custeiam a maioria das
vagas para residência. Neste sentido, seria viável, sem grandes rearranjos institucionais,
proceder-se a definição do perfil dos profissionais a serem formados conforme
necessidades de saúde e a lógica do sistema público. Superar o laissez-faire atualmente
existente, que reproduz de forma centralizada os interesses ou dos profissionais
enquanto corporação, ou do mercado, é um desafio inadiável. A principal diretriz
sugerida seria a definição de cotas mínimas de vagas para as denominadas
“especialidades gerais”: pediatria, cirurgia geral, clínica médica, gineco-obstetrícia e
saúde pública. Poder-se-ia, em curto prazo, instituir-se a obrigatoriedade de o conjunto
dos serviços de residência médica reservassem metade das vagas para estas áreas.
Caberia às Secretarias Estaduais e Comissões de Residência Médica administrarem esta
distribuição, de maneira que um serviço especializado exclusivamente em pediatria, por
exemplo, não se visse obrigado a criar residência de clínica. Seria ridículo. O importante
seria o planejamento em toda a rede. Estas residências seriam terminais, ou seja, as
demais especialidades somente contariam com a outra metade do número de vagas para
prosseguimento dos seus cursos específicos. Estas cotas sugeridas deveriam ser revistas
periodicamente conforme o impacto no sistema de formação e no assistencial. Além
disso, seria importante assegurar que todas as especialidades iniciassem a residência por
uma destas “especialidades gerais”, conforme já é praxe em inúmeras instituições.
c) Quanto ao mercado de trabalho, haveria que se considerar que de pouco
adiantaria modificar o perfil da residência se não houvesse mudanças equivalentes no
perfil de contratação e de remuneração de médicos do SUS. Haveria que se valorizar o
exercício destas especialidades gerais, assegurando tanto salários, como incentivos por
desempenho adequados. Por outro lado, seria importante rever o quadro de pessoal de
hospitais públicos, ampliando o número de profissionais com estas características
também nos níveis secundário e terciário de atenção. Metade dos médicos de um
hospital moderno poderia também ter este perfil mais resolutivo e polivalente.
Por último, caberia iniciar um processo de discussão com a AMB e com o
Ministério da Saúde voltado para a revalorização dos procedimentos clínicos e
cirúrgicos mais integrais e abrangentes. A atual política está degradando o trabalho
essencialmente interpessoal da Medicina.

Comentários finais

Com estas diretrizes, pretendemos tão-somente indicar alguns caminhos que, se


trilhados, poderiam desencadear processos de superação de algumas das dificuldades do
sistema de saúde brasileiro. Trata-se de uma abordagem parcial e que tem como

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Seminário de Educação Médica NE – Barbalha, agosto de 2008

objetivo mais estimular a elaboração de novas alternativas para estes já velhos


problemas sanitários, do que pretender fornecer receitas acabadas

Histórico dos projetos e propostas sobre um Exame de


Habilitação para os Médicos do Brasil e o posicionamento
da DENEM
Exame de ordem para Medicina: solução efetiva? – Anarella Meirelles, Francisco da
Cunha e Pedro Almeida. Artigo da Coord. Regional SUL 2 da DENEM publicado na
revista do Sindicato dos Médicos de SP em fevereiro de 2002.

Em entrevista publicada no jornal O Estado de São Paulo, de 14 de dezembro


último, Roberto Luiz d’Ávila, Corregedor do Conselho Federal de Medicina,
mencionou a intenção daquele Conselho em implantar um Exame de Ordem para
Medicina. Seria um exame semelhante ao que a Ordem dos Advogados do Brasil
realiza para o curso de Direito: só poderia exercer legalmente a profissão quem
obtivesse uma nota mínima em um Exame teórico.
A princípio, tal proposta pode parecer uma solução para o evidente e grave problema
que é a má qualidade dos recursos humanos na área de saúde. Porém, a importância e
a complexidade desse problema exigem decisões tomadas com ampla reflexão e
discussão envolvendo diversos atores da sociedade.
O Exame de Ordem para Medicina não é uma idéia nova: o Conselho Regional
de Medicina de São Paulo fez essa proposta em 1990. A discussão que se seguiu
culminou com a criação da Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do
Ensino Médico (CINAEM), formada por representantes das diversas categorias
envolvidas com a educação médica, dentre elas a Direção Executiva Nacional dos
Estudantes de Medicina (DENEM), entidade representativa de todos os estudantes de
medicina do país.
O próprio CREMESP, que defendia a instituição do Exame de Ordem, viu na
CINAEM uma alternativa melhor para solucionar os problemas do ensino médico. Por
isso, a proposta foi retirada, e passou-se a discutir a avaliação continuada das escolas
médicas, ao contrário da avaliação punitiva que o Exame de Ordem representaria.
Em mais de dez anos, a CINAEM tem avaliado de diversas formas as escolas
médicas, propondo um processo de transformação. Os resultados obtidos
cientificamente pela CINAEM demonstram que o aspecto cognitivo é apenas um dos
diversos pontos falhos da formação médica no Brasil. Além disso, demonstrou-se que –
ainda quanto ao aspecto cognitivo – a diferença entre escolas públicas ou privadas é
pouco significativa, assim como entre as regiões do País.
Se o aspecto cognitivo não é o único responsável pela situação crítica da formação
médica no Brasil, quais são os outros fatores? Certamente a pouca experiência prática,
a super-especialização, a falta de ética, o corporativismo e a relação médico-paciente
desumanizada são alguns deles. Outro, bastante destacado pela CINAEM, é a
discrepância entre a formação médica e as necessidades sociais. Na escola médica,
fala-se muito das patologias e dos procedimentos mais complexos e muito pouco de
prevenção, assistência primária, doenças mais prevalentes. Assim, formam-se médicos
distantes da realidade, sem consciência de seu papel no Sistema Único de Saúde – o
maior empregador da categoria.

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Seminário de Educação Médica NE – Barbalha, agosto de 2008

Assim, a proposta apresentada pelo CFM revela-se simplista e superficial, por


abordar apenas o aspecto teórico, cognitivo. Se aprovada, agradará à opinião pública,
que anseia por soluções para a grave crise da saúde brasileira. Estará, entretanto,
muito longe de resolvê-la: pelo contrário, teria diversas conseqüências indesejáveis.
Em educação, a avaliação à qual os alunos são submetidos tem grande
influência sobre o restante do processo educacional. Assim, a implantação do Exame
de Ordem certamente favoreceria a transformação de escolas médicas em “cursinhos”
voltados para a aprovação do aluno no Exame de Ordem – assim como muitas vezes
ocorre com a prova de Residência Médica. Outra conseqüência bastante prejudicial
seria o aparecimento de “bacharéis em Medicina” que não teriam direito de exercer
legalmente a profissão, apesar de formados. Esses “quase-médicos” acabariam
tornando-se curandeiros, exercendo ilegalmente a profissão (prática abominável
adotada inclusive por alguns estudantes de medicina!).
Assim sendo, a Regional Sul-2 da DENEM (correspondente aos estados de São
Paulo e Paraná) convoca as entidades médicas e os representantes da sociedade civil
organizada a debater esta questão, para que não se tome uma decisão precipitada e,
possivelmente, equivocada.

Transcrição de framento inicial do texto “Sobre o Exame de Ordem do CREMESP”


produzido pela DENEM no ano de 1990 com seu posicionamento sobre a proposta da
criação de um Exame de Ordem.

Sobre o Exame de Ordem do CREMESP

A respeito da proposta do CREMESP de condicionar a validade do curso médico a


um Exame de Ordem, nós, os estudantes de medicina, temos uma posição definida.
Publicamente, o CREMESP defende a aplicação da prova, para solucionar os
problemas de desvios da conduta médica. A prova garantiria um "mínimo de qualidade"
do profissional.
Inicialmente é preciso destacar que a conduta médica é a somatória de, ao menos,
três fatores: a formação médica, as condições do Sistema de Saúde e um componente
individual.
A formação médica no país apresenta graves problemas que têm fundamentalmente
duas causas: a política educacional e o currículo.
A política educacional privilegiando a iniciativa privada, permite a existência de
cursos sem as mínimas condições para ministrar o ensino, não só o médico. O único
caminho para se solucionar esta questão é uma discussão política com toda a sociedade
sobre como e para quem deve ser a educação.
O currículo está completamente desvinculado da realidade social do país. Com
raras exceções é o mesmo há 40 anos. Alterações ocorrem somente no sentido de
inclusão de tecnologia. Não há uma discussão sobre qual deve ser o perfil do médico
formado. Praticamente não existem currículos melhores e piores no estado de São
Paulo, apenas melhores e piores condições de ensino (recursos técnicos e humanos).
Basicamente, o currículo é deficiente em dois pontos, no conceito de avaliação e na
filosofia de ensino, sendo que a discussão desta passa antes por uma definição do perfil
do profissional. A avaliação serve, atualmente, para verificar se o aprendizado ocorre:
uma inútil constatação. Na verdade, ela pode ser uma importante ferramenta do ensino
se for aplicada para verificar se o aprendizado está ocorrendo , permitindo que eventuais
deficiências sejam corrigidas. Esta proposta pressupõe o diálogo entre docentes e

49
Caderno de Texto

Seminário de Educação Médica NE – Barbalha, agosto de 2008

estudantes na busca de um fim comum, transmitir e repensar participativamente o


conhecimento.
A filosofia de ensino resume-se a uma carga teórica para somente uma posterior
aplicação prática. Nesta concepção o estudante é visto como um computador que
primeiro recebe os dados para depois computá-los. Exatamente na contra-mão da
ciência, que evolui a partir da busca de soluções para problemas concretos. Soluções
estas que constituirão a teoria. Deste modo, a teoria deveria vir para solucionar os
problemas que os estudantes encontrariam num primeiro contato com a prática médica.
A perspectiva de implantação de um novo currículo médico confronta-se com a
proposta de Exame de Ordem do CREMESP : no tocante ao conceito de avaliação, que
nesta prova, mais que nunca, assumiria um caráter punitivo, e na própria contralização
do que deve ou não ser ensinado.
O Sistema de Saúde, hoje, é o grande responsável pelos desvios de conduta, sendo
na sua concepção incompatível com a ética médica, já que condiciona qualidade de
atendimento ao poder aquisitivo. A conivência da classe médica, na sua maioria, com
esta situação é certamente responsável pelo descrédito da Medicina no país. Cabe
lembrar aqui, como sintoma desta conivência, que as alterações curriculares que se
caracterizam pela inclusão de tecnologia visam simplesmente adequar o profissional a
este sistema.
É obrigação de todos os médicos e das respectivas entidades representativas a
construção de um sistema único, hierarquizado e descentralizado de saúde, como
deliberado na 8ª Conferência Nacional de Saúde.
Neste ponto o Exame de Ordem do CREMESP não ataca o problema, contribui
negativamente por ser, como já referido, centralizador, confrontando-se com a formação
médica, que ao nosso ver deve ser discutida dentro desta nova concepção de Sistema de
Saúde.
A função do CRM é exatamente a de fiscalizar a atividade o médico como
indivíduo (negligência e má fé), a exemplo do que ocorre em outros países. Se as
condições de saúde no país tornam esta atividade insuficiente para evitar os desvios de
conduta, cumpri ao CRM fazer corpo ao lado das outras entidades representativas na
busca de soluções definitivas, e não enfraquecê-las ainda mais impondo medidas
paliativas.

POÉTICA POLÍTICA E O MOVIMENTO ESTUDANTIL


DE MEDICINA: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O
PROTAGONISMO ESTUDANTIL
Alexandre Amorim∗

“Cada promessa é uma ameaça; cada perda


um encontro. Dos medos nascem as
coragens; e das dúvidas, as certezas. Os
sonhos anunciam outra realidade possível, e
os delírios outra razão. Somos enfim, o que

Educador popular e estudante do 6º ano do curso de medicina da Universidade Federal de Pernambuco
fazemos para transformar o que somos”.
(UFPE). Foi Coordenador geral do Diretório Acadêmico de Medicina da UFPE em 2002. Foi membro
eleito da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (Denem) em 2003, como Coordenador
Regional Nordeste II e em 2004 como Coordenador de Área de Políticas de Saúde.

50
Caderno de Texto

Seminário de Educação Médica NE – Barbalha, agosto de 2008

Uma pequena introdução

Após cinco anos junto ao movimento estudantil de medicina – entre


formulações, atos e constantes ressignificações – encontrava-me um tanto “devedor”.
Eu devia as minhas idéias por escrito (para além das conversas formais e informais), de
forma que outros tantos, mesmo os que não estão no movimento estudantil, pudessem
acessá-las. Afinal, do que viu e ouviu o escritor regressa com os olhos vermelhos, com
os tímpanos perfurados (Deleuze, 1997, p.14), repleto de sentimentos e pensamentos
para compartilhar.

Entretanto, não desejava apenas repetir a fórmula da narrativa autobiográfica.


Desejava achar a “brecha” por onde desviar. Olhar entre, através. Perfurar “buracos”
na linguagem para ver ou ouvir “o que está escondido atrás” (Deleuze, 1997, p.09).
Entre as cobranças e as provocações de vários companheiros e companheiras –
militantes vários, não só pertencentes ao movimento estudantil – para que eu escrevesse,
pensava que haveria de encontrar uma fórmula para exercer a escrita como verdadeiro
caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer
matéria vivida ou vivível (Deleuze, 1997, p.11).
A inquietação renitente sempre foi a de por onde começar. Poderia ser pelo
começo. Mas que começo? De onde as coisas começam? Se é que começam! Pensava
comigo mesmo que para aventurar-me nesta espiral de reflexões havia de iniciar e partir
de algum ponto que desvelasse o óbvio, ainda que partindo dele. Escolher elementos
geradores de “desconfiança”. Que categoria poderia então ser utilizada, em um ensaio
inicial, para ajudar a ver e ouvir o movimento estudantil e seu sistema semiótico?
Após conversações e vivências que tive neste último ano que passou, comecei a
acreditar que se debruçar sobre “o protagonismo” (enquanto categoria para análise) e
sobre algumas de suas zonas de vizinhança me ajudaria a apreender mais sobre o
movimento estudantil e sobre suas relações com o processo de socialização política do
estudante universitário, considerando a implicação2 deste personagem elemento
potencialmente transformador de realidades, recriador de mundos.

Precisava de lentes insólitas para olhar. Comecei a estudar o protagonismo como


conceito depois que deixei de ocupar cargos de representação do movimento estudantil
de medicina. Em 2005, durante o II Encontro da Articulação Nacional de Movimentos e
Práticas de Educação Popular e Saúde (Aneps), realizado em Recife, fui convidado a
colocar a disposição daquela roda um pouco dos tantos olhares e escutas vividos por
um educador popular “iniciante” que vinha de uma longa militância no movimento
estudantil de medicina.

2
A noção de implicação, trabalhada pelos analistas institucionais, não se resume a uma questão de
vontade de decisão consciente (...). Ela inclui uma analise do sistema de lugares, o assinalamento do
lugar que ocupa (...) daquele que ele busca ocupar e do que lhe é designado ocupar (...) com os riscos
que isso implica (Benevides apud Merhy, 2002, p. 08).

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Caderno de Texto

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O tema era “protagonismo popular e democracia”. Na ocasião, construí uma


análise do cotidiano da universidade e seu poder de captura3, tentando destacar as linhas
de fratura4 que eu pensava virem sendo forjadas nas lutas estudantis e na entrada das
executivas de saúde no cenário da saúde coletiva e sua aproximação com os
movimentos populares. Falava de brechas, passagens para a ampliação dos sentidos da
saúde para os estudantes. Entendendo que os conceitos podem (...) ser armas para a
ação de outros (...) que dispõe deles para fazer a critica de mundo, para instaurar
outros mundos (Gallo, 2005, pg. 41), percebi – depois daquela experiência – a
importância que uma aproximação conceitual mais complexa poderia trazer ao processo
de surgimento de uma nova sociabilidade militante (Mesquita, 2004, p.02) para o
movimento estudantil e para além dele.
Este ensaio lança-se ao desafio (sem bote salva-vida) de propor outros territórios
analíticos para o protagonismo. Territórios (des)encadeadores de um sem número de
reflexões-ações “em defesa da vida”. Uma aventura do pensamento que institua (...)
vários acontecimentos, que permita um ponto de visada sobre o mundo, sobre o vivido
(Gallo, 2005, pg. 45), fazendo contato com a gênese do conceito, não em busca de uma
verdade, mas da operação de (re)significações e possibilidades.

Do Nascimento do Teatro ao Surgimento do Protagonista

Vários dos termos que utilizamos hoje nas formulações (e no discurso) da saúde
coletiva e das ciências sociais como: ator, atuação, representação, cenários,
protagonista, foram emprestadas do Teatro5 e das Artes Cênicas. Como coloca Herbert
de Souza: São as categorias com que se trabalha: (...) cenários, atores (...). Cada uma
destas categorias merece um tratamento à parte, mas no conjunto elas poderiam ser
estudadas como elementos da “representação da vida” ou uma peça de teatro (Souza,
2004, p.09).
Remeter (mesmo que brevemente) ao teatro torna-se necessário posto que se o
conceito é criação, é necessário que se saiba, exatamente o que é ele, e quais as
condições e possibilidades de sua produção (Gallo, 2005, pg. 44). Neste caso, criar e
recriar o conceito de protagonismo (e de protagonista) exige uma compreensão – de
cunho não apenas etimológico – que se deve buscar na Grécia antiga, no surgimento do
teatro.
O teatro nasce na Grécia6 originando-se das procissões e festas religiosas feitas
3
Neste caso, captura das subjetividades. Processo onde as singularidades são modelizadas a partir de um
modelo de subjetividade vigente, hegemônico.
4
Linhas de fratura é uma formulação original. Admitindo que em qualquer bloco histórico ou de poder,
brechas são deixadas livres para que os atores sociais se movimentem e vivam a ilusão da participação,
mas brechas são cavadas por atores que disputam pela participação onde ela não existe. Ambas
possibilidades podem ser territórios de alargamento das lutas pela participação e ampliação política da
mesma.
5
A partir da etimologia grega, quer dizer miradouro, lugar de onde se vê.
6
Embora existam recentes estudos que indicam que os egípcios, indianos e chineses, praticavam o teatro
antes dos gregos, o teatro como se conhece hoje no ocidente tem a gênese de seus elementos básicos na
Grécia.

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em homenagem a Dioniso7. As procissões inicialmente tinham um caráter comunitário e


encerravam-se quando todos os celebrantes juntavam-se para ouvir os jovens que,
vestidos como bodes, cantavam um hino improvisado, o ditirambo8. O teatro era o
canto ditirâmbico: o povo livre cantando ao ar livre. O carnaval. A festa (Boal, 2005,
p.177).
Num segundo momento, após a aproximação das classes dominantes, a festa que
todos podiam participar vai dando lugar a uma estrutura previamente organizada: o
Coro, aonde somente algumas pessoas iriam ao palco e só elas poderiam representar
enquanto todas as outras permaneceriam sentadas, receptivas, passivas, estes seriam os
espectadores (Boal, 2005, p.12). As celebrações foram capturadas. Dividiu-se o Coro
em: Corifeu – que ocupava na sociedade uma relação de poder diferenciada – e os
Coreutas, (pessoas da aristocracia ou geralmente eleitas pela mesma) para responder a
um texto recitado pelo Corifeu. Neste segundo momento apenas o Corifeu “vestia-se de
bode”, representando Dioniso.
Em certa ocasião surge de dentro coro Thespis, que rompe com os coreutas
caminhando para o centro da apresentação e desafiando o Corifeu, com um texto de sua
própria autoria. Nos estudos da história do teatro os Corifeus são considerados os
primeiros atores (pois possuíam uma identidade característica, uma persona9) e Thespis
é considerado primeiro Protagonista, pois é o primeiro que entra em emulação contra os
deuses10 (Silva, 2003, p.01), representados ali pelo Corifeu.
Quando Thespis “inventou” o protagonista esse invento significou uma
rebeldia, uma transgressão. No entanto, bem cedo (...), esse invento foi neutralizado, e
o que era (novamente) improvisação livre passou (novamente) a ser texto descrito e
pré-censurado (Boal, 2005, p.73). A pressão da aristocracia faz com que o jovem
Thespis – que a princípio após seu rompimento com o Coro do qual participava, viaja
de cidade em cidade mostrando o novo tipo de apresentação, num teatro ambulante,
mambembe – passe a escrever textos para as classes dominantes, bem como figure nos
espetáculos da mesma.
Há desta maneira uma segunda captura, onde o diálogo Protagonista-Coro passa
a ser (ou segue sendo) claramente o reflexo do diálogo Aristocrata-povo (Boal, 2005,
p.73). A partir desses diálogos e apresentações, começa a se construir o Herói Trágico,
que passou depois a dialogar não só com o Coro, mas também com seus semelhantes
(Deuterogonistas e tritagonistas) (Boal, 2005, p.73).
Anold Hauser coloca que a Tragédia (e conseqüentemente o Herói Trágico, seu

7
Dioniso é o deus da metamorfose (metamórphosis), deus da transformação, do vinho, do prazer – e do
teatro. Muitas vezes representado por um bode, na qual se transformava, estava entre os deuses mais
populares da Grécia. Os gregos devotavam muitos festivais a este deus, em algumas regiões ele se tornou
tão importante quanto Zeus.
8
Do grego dithýrambos, é uma composição de versos e instâncias irregulares realizadas para exprimir
entusiasmo (enthusiasmós) ou êxtase (ékstasis), sentimentos, para os gregos, associados com Dioniso.
9
Máscara, representação de um papel. De persona vem o termo personagem: aquele que usa a máscara,
que representa um papel.
10
“Agón”, significa originalmente assembléia, reunião (para jogos, festas e atos religiosos), mas como
incluía o elemento competição, passará mais tarde ao sentido de combate; daí, no teatro, o protagonista:
prot (primeiro); agon (luta); ista (sufixo) (Silva, 2004, pg. 01).

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personagem principal) é a criação mais característica da democracia ateniense; em


nenhuma outra forma artística os conflitos interiores da estrutura social estão mais
clara e diretamente apresentados (Boal, 2005, p.33). Thespis era alguém extremamente
próximo da aristocracia, e em última análise o “seu” protagonismo a princípio
transgressor, convertido em Heroísmo conservou a aristocratização do teatro, que antes
existia em suas formas populares de manifestações massivas, desfiles, festas etc (Boal,
2005, p.73) onde o verdadeiro protagonista era o povo.
O Estado e os homens ricos pagavam as produções e naturalmente não
permitiam a encenação de peças de conteúdo contrário ao regime vigente (Hauser apud
Boal, 2005, p.33). O protagonista que surge inicialmente (movimento de
desterritorialização) torna-se Herói trágico (movimento de reterritorialização), que passa
a ser apresentado ao povo pelo Estado, como exemplo de virtudes (aristocráticas) a ser
seguido, servindo aos fins políticos de coerção ao povo (Boal, 2005, p.73).

Protagonismo... Qual Protagonismo? : A poética política

Estes pequenos fragmentos da história grega provocam em direção de algumas


reflexões. A escolha de trabalhar este ensaio produzindo tangenciamentos (pontos de
contato) com o teatro não é uma escolha desinteressada. Partindo da compreensão de
que todo teatro é necessariamente político, porque política são todas as atividades do
homem, e o teatro é uma delas, e de que o mesmo pode ser uma arma muito eficiente
(Boal, 2005, p.11) de dominação ou de libertação, tampouco, foi desinteressada a
escolha de – em se utilizando a linguagem teatral – trazer os agenciamentos de Augusto
Boal11, para contribuir com a produção de novos sentidos e significados para o
protagonismo.
Para Boal, é preciso derrubar os muros que dividem o espectador do ator. Para
isso seria preciso construir uma outra Poética, uma Poética do Oprimido, uma Poética
Política. A Poética Política tem, portanto, sempre presente seu principal objetivo:
transformar o povo, “espectador”, ser passivo no fenômeno teatral, em sujeito, em
ator, em transformador da ação dramática (Boal, 2005, p. 181-182), resgatar o
protagonismo numa produção estética que permita a produção de interações e
significados. A poesia é arte e a arte apresenta sempre uma visão (um olhar) do mundo.
Sendo um lugar de onde se olha é, portanto, inevitavelmente, política. Uma breve
cartografia das práticas de transformação cultural do movimento estudantil de medicina,
por exemplo, apontará a arte como muito mais do que um fenômeno puramente
contemplativo. A arte é, também, e sempre, um fenômeno essencialmente político (Boal,
2005, p. 35-36), sendo a poesia um dos pilares da religação dos saberes complexos.
A Poética é um agenciamento estético e político. A poesia (e a arte em geral),
tem o potencial de nos colocar sintonizados a mundos de sensibilidade – de si e do outro
(em alteridade) – sendo a sensibilidade em si mesma relação. No entanto, por quase
dois milênios, o sentido da poesia, da profecia, do irracional ficou confinado como a-
científico, nas esferas do metafórico, do alegórico, do subjetivo enquanto pensares

11
Teatrólogo, nascido em 1931 no Rio de Janeiro e hoje diretor do CTO – Centro do Teatro do Oprimido,
esteve exilado por motivos políticos entre 1971 e 1986, quando desenvolveu em vários países
experiências teatrais com técnicas inovadoras (Teatro Jornal, Teatro do Oprimido, Teatro Fórum etc) que
provocavam os espectadores a deixarem de sê-lo, tomando para si o papel de ator.

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errantes, destituídos de aplicação aferível (Yunes, 2003, p.277).


Apre(e)nder o protagonismo enquanto elemento constituinte principal da Poética
Política – ao mesmo tempo que é seu mais importante objetivo – é admitir a rede de
combinações e mesclas (...) que o pensamento heterodoxo descortina, confrontando o
cogito cartesiano, e construindo possibilidades para sua superação (Yunes, 2003,
p.277).
Poética: entusiasmo criador, inspiração ou atração pelo belo, comovente. A
poesia implicada no rompimento com a lógica dos totalitarismos é essencialmente
possibilidade, transformação. Criada e recriada constantemente é criação viva, em ato, é
poiesis: ação de inventar, de criar algo. Poiesis vem do grego – poese para nós – e
significa criar, produzir, fazer. Poética e Poiética, Poesia e Poiesis: Arrasta a língua
para fora de seus sulcos costumeiros, leva-a a delirar (Deleuze, 1997, p.09) como que
se fossem de tal maneira imbricadas e não houvesse possibilidade de separá-las,
identificamos que tantas são as regiões fronteiriças entre poética e política que só nos
restaria acoplar estes dois termos tanto quanto já se acoplam as duas idéias. Somente aí
o nosso “olhar sobre o olhar que olha” poderá captar a realidade viva sem mutilá-la
demais (Pessis-Pasternak, 1992, p.84).
O que a Poética do Oprimido (a Poética Política) propõe é a própria ação
(Boal, 2005, p.182), o próprio devir. O espectador não delega poderes ao personagem
para que atue nem para que pense em seu lugar: Ao contrario, ele mesmo assume um
papel protagônico (Boal, 2005, p.182). Canta com sua própria voz, com sua própria
boca. Quando é verdadeira, quando nasce da necessidade de dizer, a voz humana não
encontra quem a detenha. Se lhe negam a boca, ela fala pelas mãos, ou pelos olhos, ou
pelos poros, ou por onde for (Galeano, 2005, p.23). Dá-se a retomada do canto
ditirâmbico! É possível voltar a ter voz, uma voz polifônica, que soa única,
singularizada.
O protagonismo – implicado e atrevido12 – mescla-se a poética política, na
produção de fluxos próprios. Um exercício poiético da política, segundo as
possibilidades deliberadas e disputadas por colocar em jogo uma direção à vida, às
relações, às interações à sociedade. Não há, portanto, como conter a poética política em
determinismos, pois se cria e se opera em vários vetores. Ela pode ser capturada, mas
nunca contida, pois é fluxo, devir, desejo.
Vivenciar a Poética Política é criar linhas de fratura, possibilidades de
protagonismo real. Ser protagonista é atuar através de uma Poética Política, de modo
que possa transformar a ação dramática inicialmente proposta, ensaiar soluções
possíveis, debater projetos modificadores (...), preparando-se para a ação real (Boal,
2005, p.182).

Movimento, po(i)ética e política

Para que o palco – onde o protagonista atua e convoca o desejo dos


espectadores, para que rompam com a barreira e também se tornem atores e novos
protagonistas – esteja claro, mais iluminado, o foco se moverá mais um pouco. Para
seguir na prazerosa aventura de desconstruir (...) noções de conceitos previamente
estabelecidas (Gallo, 2005, pg. 45) serão descortinadas mais algumas nuances de
imprevisão de limites, vizinhança e mestiçagem. Para que, desta forma, caiam as
certezas e apenas fiquem as possibilidades, o palco, os atos em sua duração.
12
Aquele que se atreve, que ousa, arrojada e temerariamente.

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Quando aludimos a expressão movimento – seja social, estudantil, popular etc. –


vem-nos quase instantaneamente a imagem de algo que atua, mas também que se move,
se movimenta, ∆V = ∆S/∆T. No logotipo da Denem13, por exemplo, vê-se um lápis que
atravessa as letras da sigla, desenhado um rastro de velocidade, dando-nos a clara noção
de travessia, que se move: Movimento em Defesa da Vida.
Uma primeira movimentação para entender como se pode dar a poética política –
e conseqüentemente o protagonismo – no movimento estudantil de medicina, exige que
façamos uma aproximação à física para a construção de outras possibilidades de
entendimento do movimentar-se.
Na formação elementar são passados – ao menos geralmente – apenas as noções
da física clássica. Cabe lembrar, neste sentido, que as ciências newtonianas guardam
relações com as ciências cartesianas, ambas de bases deterministas. Numa rápida
interconexão poderíamos lembrar o quanto estas duas estão em concordância geral com
o positivismo de Comte ou com o relatório de Flexner, fortes influências no exercício da
educação médica. A composição do pensamento acadêmico contemporâneo conduz
fortemente a pensar a partir de ciências e cientistas que se voltaram à busca das
simetrias do Universo (Pessis-Pasternak, ano, p. 37), homeostases do vivo,
regularidades da humanidade. É interessante notar que até mesmo na física quântica –
que avança para além da mecânica clássica – busca-se o entendimento das partículas e
antipartículas.
Coloca-se, portanto, mais uma provocação! Nos encontramos em um Universo
com uma simetria rompida, estranha ao ideal de harmonia geométrica da física
clássica. Seguindo o encadeamento de idéias induzido pelo senso comum, seríamos
levados a reconhecer e a pensar movimento a partir das leis da Dinâmica, principal
paradigma da física clássica, ao qual todos os outros seriam reduzidos. Sendo, no
entanto, cada vez mais difícil admitir que um só conceito possa refletir as diferentes
facetas do Universo é preciso – para seguir nossa aventura de reflexão – superar a física
clássica, seu determinismo e sua reversibilidade. Podemos nos dispor a pensar o
movimento para além de seus fundamentos, que deixam inclusive de existir quando a
física (e a mecânica) clássica não mais reinam incontestes. Num momento em que as
pesquisas atuais incorporam elementos aleatórios em número cada vez maior
(Prigogine, 1996, p. 37).
Lançando-se ao desafio do autoconhecimento, da autopoiese (da autocriação),
em que as conexões em rede e que o pensamento complexo (logo, não-linear) nos
ajudam a estruturar novas e criativas teorias e que, estas, nos ajudam a construir outros
mundos possíveis – fora do controle totalizador – fica mais fácil entender a utilidade do
aprofundamento em algumas questões da física contemporânea, trazidas por Ilya
Prigogine14, afinal, no presente, a física se abriu, e somos levados ao entendimento de
pluralidade de níveis interconexos, sem que nenhum deles possa mais se colocar como

13
Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina, criada em 1986 como órgão representativo
máximo dos estudantes de medicina brasileiros. Posteriormente assume como um de seus princípios a
Defesa da Vida, guardando fortes relações com algumas correntes do movimento de reforma sanitária
brasileira, que este ensaio irá aprofundar adiante.
14
Ilya Prigogine, nascido em 1917, em Moscou, recebeu o Prêmio Nobel de Química em 1977 pela sua
teoria das “estruturas dissipativas” (a desordem como geradora da ordem) no campo da termodinâmica do
não-equilíbrio.

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Caderno de Texto

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prioritário ou fundamental (Prigogine, 1996, p.13).


Precisamos ver a paisagem que só aparece no movimento (Deleuze, 1997, p.16).
Esta é misturada, mesclada. O estanque, o determinado, transmuta-se quando observado
pela janela do automóvel em velocidade, em movimento. O movimento muda a visão de
quem está nele movendo-se, faz revelações apenas permitidas para aqueles que se põe
em movimento, em fluxos de devir. As instabilidades exigem um fluido de energia, que
enquanto estruturas dissipativas, todos os corpos dissipam. Este fluxo movente do
movimento é o fluxo do devir – pedra angular de toda a mudança. Desta maneira, se
assumimos que o movimento que desejamos se inscreve num sistema dinâmico instável,
podemos com mais facilidade projetar espaços – dentro dele e para além dele – que
atuem na poiese da autonomia de seus atores-autores15.
Prigogine nos sugere uma escuta poética da natureza para reintegrar o homem
ao Universo (Pessis-Pasternak, ano, p.39). Uma escuta poética refuta o Universo
estruturado e determinado, considerando que está longe do equilíbrio e que a matéria
sempre adquire novas propriedades, a vida torna-se mais milagrosa (Prigogine, 1996,
p.11). Um movimento dotado de escuta poética – e, portanto, agenciador coletivo de
enunciações poético-políticas – permite ser entendido longe do equilíbrio, acolhendo e
trabalhando com o aleatório: como em um movimento Dionisíaco, onde estão presentes
o êxtase e o entusiasmo em formulações e atos disruptores. A despeito do rigoroso
controle dos espaços à participação que possam ser colocadas, este movimento se
relaciona também com o aleatório, com a variedade das formas, com as experiências
que podem vir a ser desenvolvidas.
Inscritos em um movimento que se movimenta sem poder prever o
comportamento exato e determinado de cada trajetória, atores-autores dificilmente serão
coagidos por trajetórias regulares, linhas retas, estabilizadas em equilíbrio. Assim, o
movimento comporta em si a poética política e com ela interage não mais se assentando
em certezas, como nas leis deterministas, mas movendo-se sobre possibilidades, criando
brechas. Poética e política se unem para a melhor compreensão desse Movimento, de
maneira a permitir o aumento da capacidade de produção estética da vida, para que
aquilo que é fundamental não se construa em oposição à arte, ao cotidiano e aos
diversos planos de racionalidade que o habitam (Ceccim & Ferla, 2005, p. 264).

O Movimento estudantil de medicina

Atrelando as reflexões feitas sobre poética, política e movimento a mais um


breve exercício de (re)invenção de conceitos poderia se dizer que o movimento
estudantil é antes de tudo, um movimento plural, capaz de se expressar através de
vários grupos que se potencializam no cotidiano dos estudantes, não estando restrito às
organizações formais ou instituições, mas manifesto na própria dinâmica de criação de
interesses e pautas que – transformadas diariamente pela realidade estudantil – torna-
se capaz de mobilizar os estudantes (Mesquita, 2004, p.01)

15
Formulação original buscando ampliar significados. Atores-autores (usados sempre como sinônimo
das noções de Protagonista aqui apresentadas), seriam atores sociais que agem e formulam, utilizando-se
da ação, sentimento, criação e pensamento sem estabelecer entre seus agenciamentos relações
hierarquizadas.

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Caderno de Texto

Seminário de Educação Médica NE – Barbalha, agosto de 2008

Em alguns estudos realizados sobre a participação social dos estudantes


universitários observou-se que os estudantes concluintes apresentam um maior índice
de participação nas lutas sociais e estudantis dentro da universidade que os alunos
iniciantes. (Brandão, 2001, p.02). No entanto os mesmos estudos consideram que o
simples fato de estudar na universidade não indicava grande influência no
desenvolvimento de práticas e atividades eleitorais (Brandão, 2001, p.02) e políticas.

Estes estudos respondem, em parte, as questões das importantes relações


transversais que se estabelecem entre o Movimento Estudantil e a poética política,
quando nos colocam que alguns grupos são de suma importância para a formação (...)
e socialização16 (...) política dos estudantes, destacando especialmente a importância
da participação no movimento estudantil (Brandão, 2001, p.01).

Num momento em que o contexto político, principalmente quando comparado à


outros momentos da historia política do Brasil, não favorece a participação dos jovens
(...) na política nacional, ou (...) nas instituições e grupos formalmente instaurados com
a finalidade de atuar nos assuntos público (Brandão, 2001, p.03), o movimento
estudantil muitas vezes apresenta-se como um coletivo agregador. Pautando-se na
pluralidade e trazendo outras linguagens, desterritorializando o espaço cotidiano
acadêmico e operando ressignificações estéticas, éticas (poéticas) e políticas, torna-se
capaz de aglutinar, transformando a crítica social individual em ação coletiva. Desta
maneira cria, opera poiéticamente.

Juntos e a procura de possibilidades – afastadas do equilíbrio e das linhas retas –


estes novos atores juvenis começam a desenhar novos elementos que se expressam
através do surgimento de outras demandas de juventude, bem como, de outras formas
organizativas (Mesquita, 2004, p.01) compreendidas desde tendências partidárias, até
conformações que expressam interesses temáticos mais localizados como, por exemplo,
os movimentos de cultura, de gênero, de diversidade sexual e as Executivas de Curso17.

Por serem organizadas a partir de uma nova lógica de militância, as Executivas


de Curso, revitalizam o movimento estudantil através de novos signos e linguagens.

16
A socialização política refere-se ao conjunto de experiências que contribuem particularmente para a
formação da auto-imagem do individuo em relação ao sistema político e em relação às instituições da
sociedade (...) e não se restringe a um período especifico da vida, pois se trata de um processo inacabado
e em continuo desenvolvimento, restaurado em cada situação na qual o individuo participa (Brandão,
2001, p.01).

17
As Executivas de Curso são também conhecidas como Movimento Estudantil de Área, isto é, um
movimento organizado pelos estudantes a partir de cada área do conhecimento, a partir de cada curso.
As mesmas surgem em sua maioria na década de 70, a princípio, para debater questões e problemas
corporativos e de alguma maneira preencher o vazio da União Nacional dos Estudantes (UNE) que na
época se encontrava na clandestinidade (Mesquita, 2004, p.01).

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Trazem estruturas mais plásticas, mais flexíveis. Realizam fóruns que privilegiam a
discussão em pequenos grupos ao invés de realizarem encontros e seminários
massificadores. O contato direto e mais informal dos dirigentes com os estudantes, bem
como, os espaços culturais que facilitam um maior entrosamento entre os mesmos,
destacam a concepção assumida que rompe com a dicotomia entre a ética da militância
e a subjetividade dos militantes (Mesquita, 2004, p.04).

A interconexão de temáticas específicas dos cursos – como mudanças


curriculares, avaliação, qualidade dos cursos – com questões políticas mais gerais
permite que com o tempo, algumas delas se fortalecem e criam vínculos com outros
movimentos sociais, formulando novas políticas (mais amplas) para a entidade
(Mesquita, 2004, p.03).
A Denem nasce em 1986, a partir do movimento estudantil e no interior do
movimento sanitário brasileiro18. Nasce desta forma como um movimento
particularmente plural e repleto de heterogeneidades; composto de vários blocos
históricos diferentes, mas dotado de uma matriz discursiva que poderia ser expressa pela
luta por saúde como direitos de todos e dever do Estado em prover políticas públicas
democráticas e dirigidas a uma vida com qualidade de cidadania.
Toma para si a Defesa da Vida como sendo um dos seus princípios estatutários
em campanha realizada em 1992 – que resultou inclusive a inclusão do título
Movimento em Defesa da Vida em sua marca: DENEM - Direção Executiva Nacional
dos Estudantes de Medicina: Movimento em Defesa da Vida! – como coloca Rogério
Carvalho19 em entrevista para a Executiva em 1998: A gente definiu uma campanha
nacional, que era a Campanha em Defesa da Vida, o mote que queríamos dar
consistência e articular todos os projetos do movimento (Denem, 1998, p.4).

A Defesa da Vida vem sendo, desde então, a orientação de várias das ações
políticas desta Executiva – desde a participação ativa nos processos de transformação
das escolas médicas e da melhoria dos hospitais universitários em todo país, como na
dura militância, nos últimos anos, contra o projeto de lei do Ato Médico – que a partir
dos preceitos colocados anteriormente, configura-se como importante influência no
processo formacional do estudante de medicina que participa deste espaço, que passa a
reconhecer que os modelos atuais de ordenamento das práticas clínicas e sanitárias já
perderam seu rumo maior: o da defesa da vida individual e coletiva (Merhy, 2002,
p.115).

Protagonismo estudantil e possibilidades

A vida é o principal componente da poética política e não há vida cognoscente

18
O movimento estudantil setorial teve uma atuação específica no interior do movimento sanitário,
participando tanto na sua origem como na sua articulação (Escorel, 1999, p.74).
19
Rogério Carvalho foi presidente da DENEM em 1991 e partícipe de uma gestão responsável por várias
mudanças estruturais na Executiva, inclusive a criação do Centro de Estudos e Pesquisas de Educação e
Saúde (CENEPES). Cabe salientar que na época a executiva contava com o cargo de presidente, tendo
esta estrutura “presidencialista” sido posteriormente substituída, em um amplo processo de
horizontalização, onde passou a operar através de coordenações.

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sem uma poiese política. As interações humanas são interações políticas e é no ser vivo
e não em algum tipo de principio transcendente, que se concentram os esforços para
pensá-la como um processo de autocriação contínuo (Eirado & Passos, 2004, pg. 02). E
a autocriação (autopoiese) coloca-se em oposição direta aos processos de modelização.
Vivemos hoje a era da modelização. Viaja-se de uma cidade para outra para ver
exatamente as mesmas lojas, vestir as mesmas roupas e comer nas mesmas lanchonetes.
Fora das cabeças, os mesmos cortes de cabelo, dentro delas, os mesmos pensamentos.
Subjetividades são encaixadas em modelos e em padrões. O CMI20 torna-se facilmente
interessante aos nossos olhos, e conseqüentemente nos torna cada vez mais absorvíveis
aos padrões de desejo universais. Desejo de consumo, de captação de capital: o
individualismo crescendo e engolindo a tudo e a todos. Aparece em formas e meios
múltiplos e variados. Mas a sua essência não se modifica. Trata-se de frear o individuo,
de adaptá-lo ao que preexiste (Boal, 2005, p.91).
O sistema não se mostra diferente na universidade, que inclusive, há muito
perdeu sua função de formadora de uma postura critica e abriu espaço para outros
objetivos e valores na vida social dos jovens, voltados para aspectos mais individuais
(Brandão, 2001, p.05). A prática médica é procedimento e corporativo-centrada –
amplamente modelizadora – e lá está o mesmo sistema, a mesma máquina de captura e
padronização. Tecnologias duras e a(s) ciência(s) determinista(s) seguem
acompanhando os estudantes por toda a sua formação e continuam sendo raras as
políticas públicas de desenvolvimento de recursos humanos para o SUS que têm como
objetivo o público de estudantes universitários da saúde (Ceccim & Bilibio, 2004, p.
20), numa perspectiva verdadeiramente transformadora.
Singularizar-se21 é um atrevimento nesse sistema que funciona para diminuir,
aplacar, satisfazer e eliminar tudo que possa romper o equilíbrio social; tudo, inclusive
os impulsos revolucionários (Boal, 2005, p.91). Singularizar-se: o protagonismo, a
poética política, a criação de linhas de fratura. Brechas por onde se escapa para outros
territórios possíveis. Neste sentido a poética política vem defender e afirmar vida
radicalmente. É defesa e afirmação, em ato e em essência, tal qual a vida se faz em ato
por força da poiese política num círculo virtuoso22. É devir, é transformação.
Considerando que a problemática do questionamento do sistema capitalístico
não é mais do domínio exclusivo das lutas políticas e sociais em grande escala ou da
afirmação da classe operária e que não podemos mais classificar nossos opositores em
rubricas claramente delimitadas (Guattari & Rolnik, 2005, p.57) torna-se estratégico
atuar na subversão dos processos modelizadores. Com o despertar desta consciência e

20
CMI – Capitalismo Mundial Integrado, termo criado por Félix Guattari, nos anos 60, como alternativa
ao termo “globalização” e entendendo que as questões referentes ao capitalismo globalizado, são mais do
que apenas relações de dominação de mercado. É mundial, porque atinge países a princípio livres de sua
influência (como a China) e integrado porque se insere sem limite em todos os meandros constituintes da
sociedade contemporânea.
21
Entendido aqui como processo de resistência aos empreendimentos capitalísticos de nivelação e
aprisionamento das subjetividades. É desfazer-se dos sistemas modelizadores e permanentemente recusá-
los.
22
Formulação inventada para valorização das círcularidades e em contraposição a conceituação de círculo
vicioso.

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através deste exercício – o de atrever-se, o de singularizar-se, o de agir como


protagonista – aumentamos nossas chances de sucesso na invenção de revoluções
moleculares23.
É preciso considerar ainda que os estudantes organizados representam uma
força social forte (...) uma potente aliança de parceiros interessados em implantar
políticas direcionadas ao fluxo dos desejos. Pela apreensão (e aprendizado) dos
métodos ágeis e deslizantes (Ceccim & Bilibio, 2004, p. 20) desses protagonistas, pode-
se (re)criar maneiras de operar políticas. Inventar outras formas possíveis: políticas e
poéticas. Entendendo que este coletivo traz para a roda outras linguagens que trazem
consigo conteúdos e métodos, diferentes dos tradicionais, pode-se impulsionar
transformações reais através do estabelecimento de transversalidades, de conexões.
Enquanto a militância do movimento seguir na defesa e afirmação da vida, estarão
afirmando a poética política e criando e recriando-se enquanto atores político-poéticos,
reais protagonistas. Só assim poderão ser produzidos mundos onde existam
possibilidades para a vida, essencialmente poiéticos.
Entendendo, por fim, que nos processos libertários não há o que esconder ou
camuflar e que devemos criar possibilidades trazidas sempre pelo descortinamento de
tudo quanto nos pareça óbvio ou normal, mesmo que por um instante: levantem as
cortinas para que não as abaixem novamente. Cortinas jamais. Cantemos nossos
ditirambos livremente. Deixemos o sol entrar. Tomar os movimentos como um lugar de
ver e ouvir e de ajudar a fazê-lo. Lutemos por isso. Libertar e libertar-se de qualquer
forma de opressão, num infinito e incessante fluxo autocriador, autopoiético.

PAPEL DA REDE DE ATENÇÃO BÁSICA EM SAÚDE


NA FORMAÇÃO MÉDICA – DIRETRIZES.
Prof. Dr. Gastão Wagner de Sousa Campos*

Pretendemos neste documento apontar algumas diretrizes para o ensino médico


na rede de atenção primária à saúde.
Funções da rede de atenção básica no sistema de saúde e a busca da
universalidade, eqüidade e integralidade.
A atenção básica à saúde (ABS) deveria se constituir em uma das principais
portas de entrada para o sistema de saúde (não a única, o que implicaria em
burocratização intolerável, o Pronto-socorro é outra porta possível e necessária, por
exemplo). Porém espera-se dela muito mais do que isso. Afirma-se que na ABS
deveriam ser resolvidos 80% dos problemas de saúde da população (1), assume-se com
isso que, nas configurações que o SUS vem adquirindo colocam-se para a ABS pelo
menos três funções importantes (2):
Acolhimento à demanda e busca ativa com avaliação de vulnerabilidade: os pacientes
precisam ser acolhidos no momento em que demandam. Sem isso a ABS nunca se
constituirá em verdadeira porta do sistema. A dimensão do acolhimento pressupõe a
disposição, organização e preparação da equipe para receber, em momentos e horários
variáveis, grande variedade de demandas e avaliar os riscos implicados assegurando seu
atendimento, visando à máxima resolutividade possível. Ao mesmo tempo, por meio do

23
Termo também trazido por Félix Guattari, o “molecular” aqui é a ordem dos fluxos, dos devires, das
transições de fases e das intensidades.

61
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recurso da visita domiciliar, adscrição de clientela e análise das condições de saúde da


comunidade e do território espera-se uma postura que vincule pessoas, famílias e a
comunidade às Equipes de ABS e identifique o risco e vulnerabilidade desses
indivíduos, famílias e setores da comunidade.
Clínica ampliada: a clínica realizada na rede básica de saúde tem uma série de
especificidades, o que a torna diferente da realizada em grandes centros hospitalares ou
ambulatórios de especialidades (3). Contrário ao que se costuma pensar há grande
complexidade nas intervenções na rede básica. O complexo se define em termos de
número de variáveis envolvidas em um dado processo, nesse sentido é necessário
intervir sobre a dimensão biológica ou orgânica de riscos ou doenças, mas será também
necessário encarar os riscos subjetivos e sociais. Essas dimensões estarão presentes em
qualquer trabalho em saúde, no entanto na rede básica atingem uma expressão maior,
sendo necessário não somente considerar esses aspectos no momento do diagnóstico,
mas também lograr ações que incidam sobre estas três diferentes dimensões. A
proximidade com as redes familiares e sociais dos pacientes facilita essas intervenções,
porém sem eliminar sua complexidade.
Ainda, a possibilidade de se construir vínculos duradouros com os pacientes é
condição para o aumento de eficácia das intervenções clínicas, sejam essas diagnósticas,
terapêuticas ou de reabilitação. A construção do caso clínico pode ser efetivada em
vários encontros ao longo do tempo, com isso, ao mesmo tempo, aumentar-se-á a
confiança entre profissionais e usuários. Assim, a clínica deverá ser ampliada, partindo
de seu núcleo biomédico para os aspectos subjetivos e sociais de cada sujeito,
respeitando a característica singular de cada caso - ‘cada caso é um caso’ - sem abrir
mão de critérios técnicos previamente definidos (diretrizes clínicas, programas, etc).
Saúde Coletiva: ainda será necessário que a rede básica realize procedimentos de
cunho preventivo e de promoção à saúde no seu território. Busca ativa de doentes,
vacinas, educação, medidas para melhorar a qualidade de vida, projetos intersetoriais,
tudo isso vêm sendo recomendado amplamente pela bibliografia da área e contribui com
certeza para a resolução e prevenção de inúmeros problemas de saúde (4).
Observa-se que, na prática, essas funções se entrelaçam, a integralidade e a
efetividade do cuidado dependerão da possibilidade e da capacidade de cada Equipe
combinar modos de intervenção de cada um desses campos na proporção exigida pelo
caso.
A composição dessas três funções não é uma tarefa simples. É freqüente se
observar desvios que diminuem a capacidade da rede, em alguns casos há redes que se
voltam somente para a prevenção de riscos e ações comunitárias deixando toda a
resolutividade clínica para a rede de urgência e hospitalar. Em outros, observa-se uma
ABS transformada em pronto atendimento clínico de baixa qualidade. Nenhuma dessas
alternativas garante o papel resolutivo que a ABS deve sustentar. A capacidade de a
rede básica resolver 80% dos problemas de saúde dependerá tanto de investimentos,
quanto da adoção de um modelo organizacional adequado e que permita o cumprimento
dessas três funções.

Modelo Organizacional para a ABS:

Para atingir-se essa capacidade de resolver problemas de saúde, há hoje um


reconhecimento de que a ABS deverá ordenar-se segundo algumas diretrizes:
- Trabalho em Equipe Interdisciplinar: sabe-se que nenhum
profissional conseguiria ter um acúmulo de conhecimentos e habilidades práticas

62
Caderno de Texto

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suficiente para cumprir simultaneamente essas três funções. Por outro lado, a
fragmentação da atenção básica em diversas especialidades ou profissões, que não
buscam formas integradas para a atuação, tem se demonstrando como sendo um modelo
inadequado. No Brasil, o Ministério da Saúde, a partir de 1994, apoiando-se em
experiências municipais, adotou um desenho para a composição básica dessa Equipe
com base na lógica da Saúde da Família: médico, enfermeiro, dentista, técnicos ou
auxiliares de enfermagem e odontologia, todos com formação e função de generalistas,
e os agentes de saúde, uma nova profissão, em que trabalhadores recrutados na
comunidade fazem ligação da equipe com família e com a comunidade (5).
Em algumas localidades há experiências que incorporam outros
profissionais à ABS, ainda que procurem manter sempre a Equipe de Saúde da Família
como núcleo central para ordenar a atenção. Com a idéia de constituírem-se redes de
Apoio Matricial, agregam-se Equipe de Saúde Mental, Reabilitação, Nutrição, Saúde
Coletiva e Desenvolvimento Social, Saúde da Mulher e da Criança, entre outras, que
trabalham articuladas com várias Equipes de Saúde da Família em um determinado
território. Algumas cidades têm experimentado deslocar especialistas em áreas com
grande demanda para também atuarem na atenção básica.
- Responsabilidade Sanitária por um Território e Construção de
Vínculo entre Equipe e Usuários: com objetivo de definir-se a responsabilidade sanitária
de modo claro, recomenda-se que cada Equipe de Saúde da Família bem como outras
com função de Apoio Matricial tenham a seu encargo o cuidado à saúde de um conjunto
de pessoas que vivem em um mesmo território. A Equipe deve conhecer os
condicionantes de saúde dessa região, bem como identificar risco e vulnerabilidade de
grupos, famílias e pessoas, desenvolvendo projetos singulares de intervenção. A
construção de vínculo depende desse desenho organizacional e também da ligação
longitudinal – horizontal ao longo do tempo – entre Equipe e usuários.
- Abordagem do Sujeito, da Família e do seu Contexto, a busca da
Integralidade em ABS: que depende do exercício combinado das três funções acima
explicitadas. Dentro dos limites da ABS, cada Equipe deve contar com meios para
resolver problemas de saúde valendo-se de ações clínicas, de promoção e prevenção e,
até mesmo, de reabilitação e alívio do sofrimento. Espera-se que as Equipes consigam
tanto apoiar a comunidade e outros setores para a intervenção sobre determinantes do
processo saúde/doença, quanto garantir atenção singular aos casos com maior
vulnerabilidade.
- Reformulação do saber e da prática tradicional em saúde:
Recomenda-se uma reformulação e ampliação do saber clínico, com a incorporação de
conceitos e de ferramentas originários da saúde coletiva, saúde mental, ciências sociais
e de outros campos do conhecimento que permitam aos trabalhadores de saúde lidar
com a complexidade do processo saúde e doença, incorporando o social e o subjetivo,
bem como fazer a gestão do trabalho em equipe e em sistemas de rede.
Para isso é fundamental a instituição de programas de educação permanente,
com cursos e discussão de casos, de consensos clínicos, que tornem possível esse
trajeto.
Migrar o ensino para a ABS não significa automaticamente migrar o ensino para
um paradigma novo. Freqüentemente a ABS reproduz, em condições limitadas, o
mesmo modelo de atenção à saúde dos serviços especializados. A Abordagem Integral
depende da reformulação do paradigma tradicional denominado de biomédico. Para isso
recomenda-se tomar o sujeito em sua família e em seu contexto econômico, social e

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Caderno de Texto

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cultural, bem como envolver os usuários tanto na gestão do sistema de saúde, quanto na
construção de sua própria saúde.
- Articular a ABS em uma rede de serviços de saúde que assegure apoio e
amplie a capacidade de resolver problemas de saúde. A ABS necessita de uma ligação
dinâmica e de apoio com outras redes, a saber, de urgência, hospitalar, de centros
especializados, de saúde coletiva, de desenvolvimento social, etc.

A ABS realmente existente:

De fato, onde existiria essa ABS idealizada em recomendações e textos teóricos?


Em nenhum lugar, com certeza. Como está acontecendo com o SUS em geral, também a
implantação da rede de ABS no Brasil está ocorrendo de maneira bastante heterogênea.
O que se resumiu acima são recomendações genéricas, que alguns gestores e
profissionais procuram transformar em realidade.
Em tese teríamos quase 100 milhões de brasileiros vinculados a distintos
programas na ABS. No entanto, a qualidade e a capacidade resolutiva desses serviços é
muito desigual. Temos desde cidades com baixa cobertura, até outras que alcançaram
setenta por cento de famílias vinculadas à ABS. O apoio ao exercício de uma clínica
eficaz é igualmente heterogêneo, o mesmo se pode dizer sobre a integração da ABS ao
sistema hospitalar e de especialidades. Além disso, há problemas sérios com a política
de pessoal, desde o sistema precário de contratação até a quase inexistência de
oportunidade tanto para a formação especializada quanto para acesso a processos de
educação permanente. A maioria absoluta dos médicos, enfermeiros e dentistas não tem
formação especializada em saúde da família, ou saúde coletiva ou para o exercício de
uma clínica ampliada de cunho generalista, nem contam tampouco com apoio técnico
ou institucional (6).
Concluindo pode-se observar que, apesar da mudança de cenário, a ABS tende,
na prática, a reproduzir o modelo biomédico dominante, sendo necessários esforços
continuados e sistemáticos para reformular esse tipo de prática e de saber.
Nesse sentido, as Escolas Médicas deverão colocar-se como parceiras dos
sistemas locais de saúde objetivando um esforço articulado para a efetiva organização
da ABS.

Por que o ensino na rede básica de saúde?

Há uma recomendação curricular genérica de que a formação médica busque


uma variação de cenários para o ensino prático. Na mesma linha recomenda-se a
inserção do aluno desde o início do curso em atividades práticas (7). Além disso, se na
rede básica se espera sejam resolvidos 80% dos problemas de saúde da população, se
aceitamos que as intervenções no território são de grande complexidade, e se ainda
acrescentamos a isso que grande parte da população brasileira vive na pobreza, teremos
claras evidencias técnicas e éticas de que nossas escolas médicas devem formar um
profissional competente para intervir nessa realidade. Nesse sentido, a rede básica é um
campo de práticas potencial e necessário, no qual os vários cursos de formação de
profissionais de saúde deverão inserir seus alunos.
Em medicina, cursos que combinem teoria e prática voltada para o campo da
Saúde Coletiva podem ser desenvolvidos desde o primeiro ano. O ensino de
metodologia sobre educação em saúde, visita domiciliar, epidemiologia aplicada a

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serviços, política e gestão em saúde, projetos comunitários e intersetoriais, tudo isto e


muito mais pode fazer parte de módulos com estágios em ABS desde o primeiro ano.
Além do mais, se observa que, progressivamente, com a implantação do SUS,
grande parte dos casos que antes demandava atendimento em hospitais e serviços de
urgência, busca atenção na ABS. Assim o próprio ensino da clínica necessita de novos
cenários. Além do mais, na ABS o aluno seria ensinado a fazer uma abordagem
ampliada e singular de cada caso, o que qualificaria a formação teórica sobre diretrizes.
Entrar em contacto com essa complexidade, com a obrigação de trabalhar em equipe e
de fazer um seguimento longitudinal possibilita que o aluno se aproprie de
competências essenciais para o exercício da profissão.
Valorizar o ensino na rede básica visa atender uma demanda social
inelutável de nosso país, bem como ampliar os cenários para práticas tanto de clínica
quanto de saúde coletiva, e também honrar a promessa de bem formar nossos alunos
(8). Ainda, pressupõe aceitar que a prática é fundante da formação e que há experiências
que nenhum livro pode fornecer.
Por último, implica reconhecer que os problemas que o SUS deve resolver são
problemas também para as Escolas Médicas. Nesse sentido, não estamos formando
médicos com competência e habilidade para o exercício dessa função essencial ao
sistema e à saúde dos brasileiros. A ABS não logrará efetivar-se se não contar com
milhares de médicos capazes para trabalhar em equipe, exercer uma clínica ampliada,
participar de projetos coletivos e que estejam abertos para continuar aprendendo.

Necessidades pedagógicas colocadas pela relação ensino – serviços na ABS.

- O aluno de graduação precisa de uma estrutura de estágio que permita e facilite


o trânsito entre teoria e prática. Os docentes - como mediadores fundamentais dessa
relação - deveriam, necessariamente, ser capacitados para esse novo tipo de ensino.
O vínculo com o docente é um grande facilitador, assim o contato prolongado,
horizontal, com um mesmo professor deveria ser estimulado. Isso ainda permitiria um
cuidado adicional com os alunos que, muitas vezes, sentem-se desorientados nessa etapa
de sua formação e sofrem o impacto da realidade que lhes é apresentada.
As atividades planejadas deveriam estimular a busca de informação, leituras,
reflexões e permitir que a partir das questões que a prática coloca se descubram e
estudem novos conteúdos.
No caso, a grade curricular deverá ser ordenada de maneira a permitir cursos
mais longos, com estágios no mesmo serviço, de modo que o aluno possa acompanhar
casos clínicos ou sanitários por um período longo.
- O estágio na rede básica precisa ser ordenado, tanto por razões
pedagógicas quanto de funcionamento dos serviços, em pequenos grupos de alunos,
com supervisão e acompanhamento de professores e de tutores ou colaboradores
escolhidos entre Equipes da ABS. Nos primeiros anos, os estágios na rede básica se
voltam para o campo da saúde coletiva, e seriam coordenados por professores e
profissionais com formação especializada ou que se apropriaram de conhecimentos
sobre clínica ampliada e saúde pública.
A partir do quarto ano e no internato, contudo, recomendam-se estágios clínicos
na rede básica. O ensino de pediatria, ginecologia, obstetrícia, clínica médica,
psiquiatria, infectologia, entre outras disciplinas, depende cada vez mais da prática que
acontece fora do hospital universitário, na ABS ou em Centros de Referência. Nessa
situação é importante que os professores especialistas se articulem com as Equipes de

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Caderno de Texto

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generalistas em saúde da família, buscando articular o ensino prático com a lógica de


funcionamento do modelo de atenção da rede básica. Operando com os agentes de
saúde, fazendo discussão de caso em Equipe, visita domiciliar, educação em saúde,
elaboração de projeto terapêutico e de intervenção sobre o território, etc.
O ensino na ABS não pode ser responsabilidade apenas dos docentes de Saúde
Coletiva ou de Saúde da Família, necessita do envolvimento de outras especialidades
conforme descrito acima. Depende ainda da possibilidade de se recrutar na rede de ABS
monitores ou tutores que dêem viabilidade a necessária descentralização e multiplicação
dos campos de prática.

Como operacionalizar as relações ensino-serviço?

Contratação clara de responsabilidades com a rede pública (projetos de


integração, contratos e convênios, etc.). Em geral, os Hospitais Universitários estão sob
gestão da própria Universidade, o mesmo não acontece com as redes de atenção básica.
No Brasil, 97% da rede básica encontram-se sob direção municipal, nesse caso a
descentralização se realizou quase completamente. Recomenda-se que as Escolas
elaborem projetos de integração docente-assistencial com as Secretarias Municipais,
definindo com clareza os vários componentes dessa relação. Por um lado, é importante
assegurar espaço para os alunos: definição de distritos, serviços e equipes onde
ocorrerão os estágios; por outro, é fundamental assegurar reciprocidade; ou seja,
compromisso da Escola, representada por alunos e docentes, com o respeito às diretrizes
políticas sanitárias adotadas, bem como com a qualidade da atenção.
Investimento para assegurar infra-estrutura básica para o ensino em ABS: Os
locais onde trabalham as Equipes não necessariamente estão preparados para receber
um grupo, ainda que pequeno, de alunos; é importante que a Universidade, em parceria
com o Ministério e Secretarias de Estado, elabore projetos para adaptação desses
espaços também para o ensino. Algum apoio ao transporte de alunos e professores é
importante, com a descentralização dos espaços de prática fica complicado o
deslocamento de alunos e docentes, sendo conveniente assegurar-se formas que
facilitem esses deslocamentos. Apoio em informática é fundamental para o ensino a
distância e a utilização de recursos da tele-medicina pelos alunos, docentes e Equipes.
Projetos de acesso fácil à biblioteca e consulta especializada qualificam esses estágios
bem como o próprio funcionamento da rede básica.
Parceria estreita com gerencia local e Equipe (reuniões, discussões,
planejamento conjunto, etc.) em todos os locais onde ocorra estágio. Além do contrato
geral com o gestor municipal, é importante que cada docente com seus alunos realizem
um contrato – explicitação do projeto de ensino e assunção de compromissos
compartilhados – com o dirigente e com a Equipe junto aos quais ocorrerá o estágio
prático.
Desenho de estágios que valorizem o contato horizontal propiciando a
construção de vínculos, tanto com usuários (visando a ampliação da clínica) quanto com
a equipe (favorecendo a construção de uma identidade profissional apta para esse tipo
de trabalho).
Elaboração de uma rede de cooperação entre Hospital Universitário e rede
básica, respeitando-se as diretrizes de regionalização porventura existentes, mas
facilitando o apoio de especialistas às Equipes de Saúde da Família.
Montagem de dispositivos de Desenvolvimento Docente com apoio
institucional, objetivando educação continuada dos docentes, contratados e tutores por

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meio de discussão de temas teóricos, de casos e problemas originários da própria


experiência e também de outras experiências análogas.
Definição de um Corpo Docente para cada um desses módulos, composto por
professores, profissionais contratados e tutores recrutados entre o próprio pessoal da
rede básica. Ainda que os papéis e responsabilidades sejam distintos, recomenda-se o
funcionamento do Corpo Docente em lógica de equipe com colegiado de gestão. Ainda
que haja polêmica sobre o tema, seria conveniente remunerar a dedicação docente dos
tutores.
Apoiar docentes e alunos para que a rede básica se constitua em um campo de
investigação e produção de conhecimento, sempre que possível e conveniente
envolvendo parceiros do sistema de saúde.

SISTEMA NACIONAL DE AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO


SUPERIOR (SINAES)24
As Políticas Educacionais do Governo Lula: o Sistema de Avaliação

Situando a questão
São partes constituintes da Reforma da Educação Superior a criação e o
fortalecimento de mecanismos de controle do governo sobre as instituições de ensino
superior, dentre os quais um sistema nacional de avaliação centralizado que garanta
grande parte desse almejado controle.
A avaliação da educação superior tem sido alvo da atenção dos últimos
governos. Esse interesse de tornar prioritária a política de avaliação tem como
explicação o papel que o Estado brasileiro assumiu no contexto das reformas dos anos
90, isto é, de um ente avaliador e regulador das ações que se passam na esfera social.
Nesse modelo em que o Estado, se desresponsabilizou de grande parte de suas
funções, privatizando suas ações, restou-lhe o papel de avaliar os resultados
apresentados nas diferentes esferas que o compõem e regular as ações dos vários órgãos
que desenvolvem as políticas públicas e privadas.
O governo FHC centrou força na avaliação da educação, criando diferentes
mecanismos como o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), o Exame
Nacional do Ensino Médio (ENEM), o Exame Nacional de Cursos (ENC/provão), além
da criação de comissões para avaliação da oferta de cursos e de ensino.
O atual governo, num movimento de aprofundamento das políticas de seu
antecessor, manifestou, desde o primeiro ano, 2003, a preocupação com a avaliação da
educação, como forma de regulação. A instituição, no primeiro semestre do governo,
por decreto presidencial, de uma comissão para propor um “novo” modelo de avaliação
para a educação superior parece traduzir bem o interesse seu sobre o assunto.
A comissão instituída apresentou o relatório de suas atividades, no qual estava a
proposta da criação de um sistema nacional de avaliação.
O ANDES-SN fez uma análise do documento do SINAES, publicado pelo INEP
em outubro de 2003, apresentando suas convergências e divergências em relação à
proposta governamental.
Refletindo contradições no âmbito do governo, em dezembro de 2003, por meio
de medida provisória, foi instituído o “Sistema Nacional de Avaliação e Progresso do

24
Texto elaborado no GTPE por Clóvis R. Guterres – (SEDUFSM), Lucília Augusta L. de Paula, (ADUR-RJ),
Olgaíses Maués (ADUFPA), Roberto Carlos Lyra da Silva- (ADUNI-RIO) e Suelene Pavão (Regional Norte II).

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Ensino Superior - SINAPES”, deixando de lado muitos aspectos indicados pela primeira
comissão. Com algumas alterações, dentre elas a supressão da palavra progresso,
esse modelo de avaliação (medida provisória) se transformou na Lei nº 10.861 de 14 de
abril de 2004, que institui o Sistema Nacional de Avaliação de Educação Superior -
SINAES. Mais recentemente, foi baixada pelo MEC a portaria nº 2051 de 9 de julho de
2004, que regulamenta os procedimentos de avaliação da educação superior.
O ANDES-SN, numa posição crítica em relação às políticas educacionais
propostas pelo governo, apresentou no 47º CONAD (Novembro de 2003) o Texto de
Referência - TR nº 29, que, após apreciação, teve aprovada a deliberação de “rejeitar a
Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior devido ao seu caráter
antidemocrático e heteronômico”.
O ANDES-SN tem uma posição clara e consubstanciada sobre o entendimento
da concepção e da operacionalização da avaliação da educação superior. Essa
compreensão está explicitada em diferentes documentos, destacando-se o Caderno do
ANDES-SN, no 2, 3ª. Edição, atualizada e revisada em outubro de 2003, que contém as
bases epistemológicas e políticas daquilo que o Sindicato Nacional vem, historicamente,
defendendo para a educação, e conseqüentemente, para a avaliação, a saber, a
concepção da educação como um bem social e do Estado como provedor da educação e
da cidadania.
É, pois, a partir dessa compreensão, inclusive de que avaliação “não se dá em
abstrato”, que se tecerão algumas considerações que poderão servir de subsídios para a
ampliação da discussão sobre a Portaria Ministerial nº 2.051 de 9 de Julho de 2004.

Pontos focais da Portaria

O SINAES, instituído pela Lei nº 10.861 de 14 de abril, avoca a si a condução


do processo de avaliação assentado no tripé: avaliação das instituições de ensino
superior; dos cursos de graduação e do desempenho acadêmico dos estudantes.
O planejamento e a operacionalização das ações serão realizados pela Comissão
Nacional de Avaliação da Educação Superior – CONAES A avaliação será: interna
(auto-avaliação), coordenada pela Comissão Própria de Avaliação (CPA) e externa “in
loco”, realizada por comissões externas designadas pelo INEP constituídas por
indicação do MEC, a partir de nomes cadastrados e capacitados pelo INEP.
Os resultados das avaliações externas25 das instituições e cursos de graduação
serão expressos por meio de conceitos, numa escala de cinco níveis, representando: 4 e
5 indicativos de pontos fortes, 3, mínimo aceitável para efeitos de credenciamento ou
recredenciamento; 1 e 2, indicativo de que instituição tem, na sua avaliação, pontos
fracos.
O INEP será o órgão do MEC responsável pela operacionalização da avaliação a
partir das diretrizes e normas definidas pela CONAES. Em caso de resultados
insatisfatórios no processo de avaliação, a instituição assinará protocolo de
compromisso com o MEC para “superação das dificuldades detectadas”.

Algumas considerações

25
O parecer da avaliação externa é um somatório de todas as avaliações indicadas pelo SINAES: PDI, relatórios
parciais e finais do processo de auto-avaliação, dados do Censo da Educação Superior e do Cadastro de Instituições
de Educação superior, dados do ENADE, relatórios de avaliação dos cursos de graduação, dados dos questionários
socioeconômico dos estudantes, relatórios e conceitos da CAPES, documentos sobre credenciamento ou
recredenciamento, (: Art.15 da Portaria 2051/04)

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Apesar das intenções expressas no art. 1º da portaria em relação às finalidades


do SINAES, percebe-se que o sistema de avaliação irá credenciar o funcionamento das
instituições: “o processo de credenciamento e renovação de credenciamento de
instituições, e a autorização, o reconhecimento e a renovação de reconhecimento de
cursos de graduação” (art.32). Como, conforme o PROUNI, o Estado irá selecionar as
instituições privadas que farão jus a verbas públicas, a questão do credenciamento
assume um lugar proeminente na “reforma” da educação superior.
Também o caráter de punição/premiação está posto pelo ENADE, tendo em
vista que este é considerado “componente curricular obrigatório” dos cursos de
graduação, devendo constar do histórico escolar do aluno a data em que o exame foi
realizado. Os resultados serão expressos numa escala de cinco níveis e encaminhados
aos alunos e às instituições. Tal procedimento deverá possibilitar que os resultados
sejam informados, nos casos de seleção de qualquer ordem, às quais os ex-alunos
venham a se submeter: emprego, cursos de pós-graduação, bolsas de mestrado, etc. Da
mesma forma, os alunos que obtiverem melhor desempenho no ENADE receberão
distinções e estímulos.
As funções e a constituição da CONAES levantam algumas reflexões. A ela
competirá o estabelecimento dos procedimentos, dos mecanismos, das diretrizes, das
propostas para o desenvolvimento das instituições. Além disso, também será essa
comissão que estabelecerá as diretrizes para a constituição das Comissões Próprias de
Avaliação (CPA).
Assim, essa CONAES concentrará todas as ações relativas ao sistema nacional
de avaliação. O mais preocupante, além da centralização de poderes, refere-se à forma e
à composição da referida comissão . O número de membros será de 13, assim
constituídos: INEP (1), CAPES (1), MEC (3), mais 5 membros indicados pelo Ministro
da Educação, representante dos docentes (1), dos técnicos-administrativos (1) e dos
estudantes (1). Será uma comissão majoritariamente governista.
Para a realização da auto-avaliação, serão constituídas as CPAs, por ato do reitor
da instituição, não assegurando os princípios democráticos. Essas comissões serão
constituídas por “todos os segmentos da comunidade universitária e da sociedade civil
organizada”. Esse ponto é questionável, na medida em que o Movimento Docente
entende que compete à comunidade interna a realização da autoavaliação, devendo a
instituição gozar de plena autonomia para tal, de acordo com as suas especificidades
locais e regionais. O sentido dessa “ampla” comissão é preocupante, visto que poderá
representar uma interferência indevida na instituição. Também a constituição, pouco
clara, em termos de número e de forma, pode ensejar atos arbitrários por parte dos
reitores ou correspondentes. Outro aspecto não menos relevante é a indeterminação da
sociedade civil: como nos lembra Bourdieu, quando os neoliberais falam em sociedade
querem dizer, na verdade, o mercado.
Ainda quanto à auto-avaliação, destacam-se os aspectos sobre os quais a
CONAES e o INEP estabelecerão as diretrizes e orientações, a partir de alguns pontos
enunciados na Lei 10.861, art. 3º. Dentre esses, destacam-se a responsabilidade social e
a sustentabilidade financeira, entendidas como forma de desresponsabilização do poder
público, obrigando as IES a buscarem recursos via parcerias públicoprivadas, além de
ensejar a mercantilização da educação.
A avaliação externa das instituições será feita por comissões externas, como já
acontecia na política do governo anterior. Tanto a Lei 10861/04 quanto a Portaria
2051/04 não esclarecem a questão da constituição dessa comissão que terá uma função

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importante, atuando como sintetizadora de todos os processos avaliativos ocorridos nas


Instituições de Ensino Superior - IES. O Movimento Docente defende que essa
avaliação se realize por meio da implantação de um conselho social com outra função e
natureza.
Haverá também uma comissão externa de avaliação de cursos que trabalhará a
partir do especificado no art. 20 da portaria. Os comentários feitos a propósito da outra
comissão são pertinentes a esta. O ENADE, realizado pelo INEP e aplicado
periodicamente, resignifica o Provão e aprofunda o caráter ranqueador, produtivista e
punitivo. O ENADE é componente curricular obrigatório, devendo constar no histórico
escolar informação sobre se o candidato se submeteu ou não a tal exame.
A CONAES, após apreciação dos resultados das avaliações interna e externa
(auto-avaliação da instituição, avaliação dos cursos e dos estudantes) indicará, caso seja
insatisfatório, a necessidade de a instituição assinar um protocolo de compromisso,
estipulando os termos e o prazo para o seu cumprimento. Esse protocolo representa
mais uma interferência na autonomia da instituição, na medida em que o seu
descumprimento enseja penalidades que vão desde a suspensão temporária da abertura
de processo seletivo, até a perda de mandato do dirigente responsável pela ação não-
executada.
O SINAES, da forma como está instituído (lei e portaria), deixa claro o sentido
de regulação que é dado à avaliação. Essa concepção de avaliação é fundamental para
dar apoio ao modelo de universidade que está sendo proposto na (contra) reforma da
educação superior, sendo parte integrante desta, estando presente no documento II do
MEC “Reafirmando Princípios e Consolidando Diretrizes da Reforma da Educação
Superior”.

Finalizando

No bojo da reforma da educação superior, encontra-se o Sistema Nacional de


Avaliação da Educação Superior – SINAES, como “novo” mecanismo de regulação e
ajuste da educação às exigências dos organismos internacionais O Movimento Docente
tem proposta para a universidade, seu papel social, suas funções acadêmicas e entende
que a avaliação deve-se dar a partir da concepção de homem livre, de educação
emancipatória e de sociedade democrática, solidária e fraterna. Portanto, a avaliação
proposta pelo SINAES não encaminha para essa opção política-teórico-metodológica
que está incorporada aos princípios do MD, que defende uma avaliação participativa,
emancipatória, democrática, contrária, pois, à avaliação apontada pelo SINAES.
A defesa da educação pública, gratuita, laica, com qualidade social não se
coaduna com o que está proposto no Sistema Nacional de Avaliação da Educação
Superior, instituído pela Lei nº 10861/04 e pela Portaria nº 2051/04, e reforça a
importância de defender a proposta incluída no Caderno 2 do ANDES-SN.

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