Sunteți pe pagina 1din 44

o FATOR GEOGRÁFICO

Ín d i c e NA FORMAÇÃO
E NO DESENVOLVIMENTO
DA CIDADE DE SÃO PAULO’
o fator geográfico na formação e no desenvol-
vimento da cidade de São P aulo................ 7
Contribuição para a geografia urbana da ci-
dade de São Paulo ...................................... 38
A região de São Paulo não oferece à primeira
vista atrativos capazes de explicar a localização aí de
um grande centro de mais de dois milhões de habi-
tantes, que representa a segunda cidade do Brasil e a
terceira da América do Sul. Parece que os fatores
físicos e naturais não tiveram aqui influência al-
guma. Na qualidade das terras, é esta uma das
regiões mais pobres do Estado. Os centros agrícolas
de importância não se localizam nas suas proximi-
dades, e quem percorre os arredores da cidade im-
pressiona-se com a vida primitiva que aí domina.
Todas as pequenas cidades ou vilas que a rodeiam
não passam de povoados miseráveis e decadentes:
São Miguel, Guarulhos, Barueri, Cotia, Mbói, Ita-
it
Cidade de São Paulo
Caio Prado Jr.

interior. É a isto que São Paulo deve sua qualidade


pecerica etc. Ê este fenômeno curioso e quiçá de primeiro centro do planalto, e foi esta a primeira
único no mundo. Num raio de muitas dezenas de causa de sua preeminência.
quilômetros, a região de São Paulo é uma das mais Vários fatores geográficos concorrem para essa
primitivas e miseráveis do Estado. precedência. Em primeiro lugar o estreitamento da
Contudo, apesar disto, o local de São Paulo é, faixa costeira. Enquanto ao norte, da Bahia até o Rio
sob vários aspectos, privilegiado. E é a isto que o de Janeiro, o litoral forma uma larga planície, pelo
maior centro do Estado deve sua situação e desenvol- contrário, a partir da extremidade oeste do Rio, e
vimento. seguindo-se São Paulo, pode-se dizer que desapa-
rece, de tão esguia que se toma. Na altura de São
Vicente e Santos, o mar não dista da base da serra
I senão 15 quilômetros. E mesmo este acanhado es-
paço é em grande parte inaproveitável para o homem
As causas que determinam a grandeza de São sem trabalhos preliminares vultosos. É que se consti-
Paulo vêm atuando desde o início da colonização; tui principalmente de terrenos baixos, mangues e
e numa persistência digna de nota, se mantiveram pântanos imprestáveis para a agricultura e, além
até hoje apesar de todas as transformações econômi- disso, insalubres. S6 moderaamente, e à custa de
cas, sociais e políticas por que atravessou nosso pais grandes obras de drenagem, conseguiu-se livrar uma
nesses 400 anos de sua existência. parte mínima do litoral das endemias aí reinantes.
Comecemos pela análise do sítio escolhido. Da Trata-se portanto de uma zona hostil ao homem e
Bahia para o Sul, cosida ao litoral, ergue-se a Serra que por isso tinha poucas probabilidades de assistir a
do Mar, que divide o território meridional do Brasil um desenvolvimento considerável da colonização eu-
em duas seções distintas e bem caracterizadas: uma ropéia.
faixa costeira, mais ou menos estreita, constituída de O planalto, pelo contrário, apresenta ao povoa-
terrenos baixos, pouco acima do nível do mar e, mento condições naturais muito mais favoráveis.
separado dela pelo abrupto da serra, que cai quase a Constituído de terras altas e saudáveis, de um clima
pique, o planalto interior. Ê na primeira destas se- temperado e por isso muito mais ao gosto de colonos
ções que a colonização primeiro se estabelece, em europeus, oferecia atrativos consideráveis. Enquanto
núcleos esparsos que se sucedem de norte a sul. no litoral (Santos) reina um clima tropical que se
Na altura de São Paulo, isto é, na latitude de exprime pelas médias do mês mais quente (janeiro)
24®, é partindo de São Vicente, é que a colonização e mais frio üulho) respectivamente pelas tempera-
litorânea primeira ascende ao planalto e penetra o
10 Caio Prado Jt \de de São Paulo 11

turas 24,7® e 18,6® C., no planalto (São Paulo) en- Existe, portanto, desde o início da colonização
contramos para as mesmas médias: 18,6® e 13,8® C. paulista, utn nítido deslocamento de seu centro, do
Concorre outra circunstância, esta de natureza eco- litoral, onde teve começo, para o planalto. Isto cons-
nômica, que impulsiona o povoamento do planalto. titui 0 primeiro fator que vai influir na constituição e
São as numerosas tribos incUgenas ai estabelecidas e desenvolvimento, no planalto, do maior núcleo da
que apresentam aos colonos um farto abastecedouro capitania e de todo o sul da colônia. E este seria São
de mão-de-obra. Como se sabe, é em larga escala ao Paulo.
braço do índio, antes da introdução do negro afri- Por que São Paulo? De todos os pontos desta
cano — e em São Vicente por muito tempo ainda — barreira que é a Serra do Mar e que separa o litoral
que recorre inicialmente a colonização. do planalto, é justamente este, central, a meio cami-
Tudo isto se combina para que a pressão colo- nho do percurso da serra em território paulista, que
nizadora, em direção ao interior, se exerça com mais oferece maior facilidade de acesso.
intensidade nesta parte do litoral brasileiro. A ocu- Para leste apresenta-se a serra não só como um
pação do planalto paulista se inicia e desenvolve abrupto, formando uma muralha contínua de alti-
muito cedo, ao contrário de outras regiões do país. O tude mínima de 900 m, mais ainda como uma larga
litoral é quase desprezado, e a não ser em São Vi- zona acidentada, de cumes que atingem 1500 e 2000
cente e raros outros pontos, ele é deixado ao aban- m, e que se estende até o Vale do Paraíba. As pas-
dono. Pelo contrário, o planalto prospera. Proibido sagens são aí difíceis, e até hoje ainda apresentam
inicialmente seu acesso pelo primeiro donatário, embaraços consideráveis. Ninguém ignora o que são
Martim Afonso, a pressão é tão grande que ele é estes caminhos de Parati a Cunha, de Ubatuba a São
legalmente franqueado pouco depois, em 1544, por Luís do Paraitinga, de São Sebastião a Paraibuna:
ordem de d. Ana Pimentel, mulher de Martim Afon- verdadeiros atalhos de alpinistas?
so e sua procuradora para os negócios da capitania. Para oeste, as condições não são melhores. De-
Desde então o afluxo dos colonos se tom a intenso e saparece, é verdade, o abrupto da serra, que se esca-
um momento houve em que se temeu mesmo o des- lona aí em degraus sucessivos. Alguns rios impor-
povoamento completo do litoral. Fato este de que tantes conseguem mesmo penetrar o interior, rom-
encontramos provas nas queixas das câmaras de São pendo a barreira de montanhas: o Ribeira de Iguape
Vicente e Santos, que repetidamente pedem ao go- e seus afluentes. Mas, em compensação, a zona de
veraador-geral providências contra este abandono serras se alarga consideravelmente, até 100 km e
que deixava suas vilas expostas aos ataques de índios mais, apresentando uma topografia particularmente
e corsários. acidentada e revestida de uma densa cobertura fio-
12 Ccào Prado Jr. í Cidade de São Paulo 13

restai. Quanto aos rios, eles não facilitam a passa- portugueses, um caminho predileto dos índios. A
gem: é que não correm perpendiculares à costa, mas colonização européia não fez mais que aproveitá-lo.
paralelos, seguindo uma direção estrutural orientada E a sua preferência se justifica.
no sentido das dobras do terreno; NE-SO. Não ofe- Escolhido o caminho de penetração do planalto,
recem por isso passagens para o interior: seus vales a colonização se detém na altura de São Paulo, e aí se
formam seções paralelas ao litoral. estabelece dando lugar ao centro colonial que culmi-
Entre estas partes leste e oeste da Serra do Mar, naria na formação e desenvolvimento da atual ci-
interpõe-se a região central, na altura de Santos e dade. Explica-se a escolha pela existência aí de uma
São Paulo. Aí a barreira montanhosa desce para imensa clareira natural na floresta que revestia o
800 m, formando uma seladura entre os cumes de território paulista: são os Campos de Piratininga. A
ambos os lados. Além disto, segue-se, ao abrupto falta de arborização neste sítio explica-se pela for-
para o interior, não uma topografia acidentada, mas mação do terreno, constituído de depósitos flúvio-
um peneplano de relevo senil onde se situam as nas- lacustres terciários argilosos que dão um solo pobre.
centes do Tietê. O terreno acha-se aí entulhado pelo Não se desenvolveu nele por isso nenhum tipo vege-
material de decomposição intensa das rochas crista- tativo de porte e denso, e a floresta natural que
linas locais — efeito da temperatura e pluviosidade cobria os terrenos graníticos e cristalinos que se suce-
excessiva do lugar, superior a 4 m — e que o mau dem desde a Serra do Mar interrompe-se aí para dar
escoamento não consegue drenar. Este produto das lugar a um vasto descampado.
rochas decompostas permanece assim in loco, for- Este fato já há muito exercia considerável in-
mando planuras aluviais que se sucedem do Alto da fluência sobre a repartição do povoamento indígena.
Serra até as cercanias de São Paulo, interrompidas Os Campos de Piratininga eram muito conhecidos
apenas por cumes cristalinos semi-imersos. pelos índios antes da chegada dos portugueses, e
Comparado às demais passagens da serra, é este abrigavam numerosas tribos. Constituía assim, por
ponto ideal. Só um abrupto para vencer — e este uma verdadeira destinação física, o papel de conden-
mesmo inferior ao da serra de leste. Depois disto, um sador demográfico.
terreno plano de percurso fácil. Pode observá-lo sem Explica-se. A floresta sempre foi, nas primeiras
dificuldade quem põrcorre a linha da Santos-Jundiaí, fases do povoamento de um tèrritório, inimiga do
da estação do Alto da Serra a Santo André. Ne- homem. Particularmente a floresta tropical, que é a
nhuma obra de arte de vulto, nenhum túnel, nenhum nossa, exuberante e impenetrável. O aproveitamento
corte notável foi necessário. Tais são os motivos que da terra depende aí de grandes e difíceis trabalhos
fazem desta passagem, já muito antes da vinda dos preliminares de desbravamento e de um combate
14 Caio Prado Jr. Cidade de São Paulo 15

sem tréguas contra o avanço da vegetação florestal. estabelecidos no litoral do Rio de Janeiro e do Espí-
Os descampados oferecem ^ pelo contrário, a vanta- rito Santo. Aí o povoamento se deteve na fralda da
gem de um terreno limpo e já preparado para a serra.
instalação humana. O meio biológico da floresta tro- Todas estas circunstâncias se combinam para
pical não é favorável ao homem, que por isso a evita. favorecer os Campos de Piratininga e fazem conver-
Não é sem razão que nas zonas tropicais a floresta gir para eles a colonização do planalto. São eles,
aparece não raro como refúgio de populações infe- de fato, o primeiro ponto ocupado pelos portugueses.
riores, expulsas por outras mais fortes e superiores Já antes da expedição de Martim Afonso e, portanto,
das regiões menos desfavorecidas. É o caso, entre do início da colonização oficial do território paulista,
outros, dos Semangs, refugiados nas matas tropicais tinham-se nele fixado vários europeus, dos quais o
da Malásia, dos Vedás, no Ceilão, dos Puãs, em mais conhecido ê o famoso João Ramalho. O lugar
Boméu, dos Bambutis, no Congo. A não ser no caso escolhido por estes primeiros colonos fora o ponto em
particular em que é justamente o solo florestal que se que o Caminho do Mar desemboca no campo, isto é,
procura, pelas suas condições naturais de fertilidade,
na altura da atual Vila de Santo André. Daí o nome
os estabelecimentos humanos se dirigem de prefe- de Borda-do-Campo dado à povoação, nome que
rência para as regiões sem m ata.’ conservou quando mais tarde, em 1553, foi por Tomé
Não só a clareira de Piratininga é a primeira de Sousa, primeiro govemador-geral do Brasil, eri-
zona de campo primitivo e original com que se de- gida em vila. Santo André da Borda do Campo, é a
para ao penetrar o planalto pelo caminho do mar, designação que teve. E todo povoamento ulterior do
acima referido, mas ainda é em todo o planalto meri- planalto teve sua origem, e a princípio se concentrou
dional brasileiro uma destas zonas mais próximas do unicamente nesta planície despida de árvores.
litoral.'* Ela dista do Alto da Serra, seguindo-se o ca- Quanto ao fato de ter cabido ao sítio de São
minho, apenas 30 km. Os colonos vicentinos tiveram
Paulo a primazia sobre todos os demais do Campo,
assim a sorte de encontrar bem perto deles uma zona ele também se deve, em grande parte, a fatores de
descampada do planalto, adrede preparada para nela
ordem física. Ê certo que historicamente, por anti-
se estabelecerem. Sorte igual não tiveram os colonos
güidade, èste privilégio deveria caber a Santo André.
de outros pontos do litoral brasileiro. Esta talvez Como vimos, é aí que se estabelecem os primeiros
uma das causas, a par das outras assinaladas, que
colonos europeus; e quando os jesuítas fundam seu
fizeram o povoamento do Brasil estacar alhures, por colégio, núcleo primitivo de São Paulo, Santo André
muito tempo, na faixa costeira. Minas é povoada por
já gozava das prerrogativas de vila.
paulistas, chegados pelo interior, e não por colonos
Não vamos aqui entrar nos pormenores da riva-
16 Caio Prado Jr. I Cidade de São Paulo 17
i ---------------------------------------------------------------------
. lidade entre os jesuítas de São Paulo e os mamelucos acima da planície inferior, forma o espigão divisor
de Santo André, em tomo de qual dos núcleos ha- das águas do Anhangabaú e do Tamanduateí, hoje
vería de prevalecer. Como se sabe, os jesuítas tiveram canalizados; ^ e dela se divisa um horizonte vastís-
ganho de causa nas suas pretensões, e em 1560, Mem simo: a seu pé desdobra-se a planície unida e sem
de Sá, terceiro govemador-geral, quando da sua vi- obstáculo algum de vulto que pudesse furtar à vista
sita a Piratininga, se decide por São Paulo, transfe- do observador a aproximação ou os movimentos do
rindo para aí a qualidade de vila e mandando eva- inimigo. Aliás, a posição vantajosa de São Paulo
cuar Santo André, que desaparece sem deixar vestí- havia de se confirmar repetidamente em todo o correr
gios. do agitado período das primeiras décadas de sua
Este deslocamento, que deu ao núcleo jesuítico a história.
hegemonia do planalto paulista, pode ser atribuído a Santo André, pelo contrário, erguia-se na orla
fatores geográficos? Os historiadores pouco se têm da mata, sem defesa natural alguma e exposto por
ocupado com a questão, e o ato do governador é em isso a ataques súbitos e imprevistos. Não foram pou-
geral atribuído à ascendência jesuítica na adminis- cos os contratempos que isto lhe valeu. Não fora o ato
tração e na política da cDlônia. O fato contudo é que, oficial de Mem de Sá, fazendo-a desaparecer do nú-
seja por influência exclusiva, seja combinada com mero de vilas do planalto, e certamente a hostilidade
outras causas, intervieram também, e poderosa- do gentio, mais cedo ou mais tarde, se incumbiria
mente, fatores de ordem física. A superioridade do disso.
sítio de São Paulo é incontestável, e é provável íyAinda há outras circunstâncias naturais que de-
mesmo que os jesuítas o tivessem escolhido exata- savantajavam a vila de João Ramalho. Fazia-se sentir
mente por isso. Em primeiro lugar, com relação à nela a falta da proximidade de um rio. Esta falta
defesa contra as ameaças e ataques do gentio; cir- impedia que os moradores se socorressem do peixe
cunstância importantíssima, primordial, nas condi- para sua alimentação e dificultava a criação de gado.
ções da época e que não passaria por certo desper- Tal circunstância pesou consideravelmente nos des-
cebida ao observador de então. A aldeia jesuítica tinos de Santo André. Os moradores se queixam,
possuía a este respeito uma posição estratégica es- o problema é de difícil solução e nunca foi resolvido
plêndida. Ocupava no alto de uma colina — onde satisfatoriamente. As atas da Câmara no-lo revelam.
hoje está o centro da cidade, precisamente o Largo Assim, na vereação de 20 de setembro de 1557 encon-
do Palácio ou Pátio do Colégio — um sítio natural- tramos a seguinte passagem: “Reguereo o procu-
mente defendido por escarpas abruptas e acessível rador do cõselho aos ofysyaes em nome do povo como
por um lado apenas. Esta colina, alta de 25 a 30 m estavão em esta dyta vylla e moryão de fom e paçavão
p;.
18 Caio Prado Jr. I Cidade de São Paulo 19

muyto mall e moryõo ho guado e que se fossem que farinha e não se podem ajudar do peixe do
dentro do termo delia de llõgo dallgü ryo... e llogo na rio, porque está três léguas daí, nem vivem em
dyta camara requereo e dyse que não consemtya em parte conveniente para suas criações e se os dei-
tall mas amtes se nyso se recresesem algüas mortes xassem chegar ao rio tinham tudo e sossega-
hou perdas de fazenda de aver o dyto povo dar cõta a riam.” (Arquivo S. I. Roman., Bars. 15, ff. 43.
que dyreito fo se". O texto é confuso, faltando um V. — publicado na Revista do Arquivo M uni-
trecho importante, suprimido pela destruição parcial cipal de São Paulo, Ano I, vol. II)
do documento. Alegação de dificuldades considerá-
Este rio a que se refere o jesuíta só pode ser o
veis é contudo positiva, e o sentido geral da passa-
Tietê, que corria nas proximidades do núcleo dos
gem, embora difícil de precisar, parece conter uma
padres. E tudo leva a crer que Nóbrega interpretava
sugestão de se deslocar o sítio da vila em direção de
algum rio. Sugestão esta, aliás, repelida pela Câ- o sentir geral dos moradores de Santo André. Tanto
mara, que preferiu responsabilizar o povo, isto é, a assim que a transferência ordenada por Mem de Sá
comunidade, pelos prejuízos futuros dos moradores não suscitou por parte deles oposição alguma de
em vidas ou bens patrimoniais. Solução esta, como se vulto, e tudo se passou na maior harmonia possível.
O próprio Jòão Ramalho, grande adversário dos je-
vê, que nada resolvia e apenas indicava a dificuldade
do problema. Tudo isto, aliás, é confirmado clara- suítas e da sua aldeia, parece que se conformou sem
mente por uma carta do jesuíta Nóbrega, datada da grande protesto com a decisão do governador-geral.
Bahia e dirigida ao provincial da Ordem em Portu- Pouco depois destes sucessos, vemo-lo aceitar cargos
gal: na administração paulistana.
Deixando de lado, portanto, as circunstâncias'',
“Também me parece que se devia dizer a Mar- históricas imediatas e particulares que determinaram ,
tim Afonso e a Sua Alteza que se quer que a preferência por São Paulo, permanece o fato geral
aquela Capitania se não despovoe de todo, que da superioridade física de sua localização como causa,
dêem liberdade aos homens para que os do determinante principal da fixação nele do primeiro
Campo se juntem todos juntos do rio de Pirati- centro colonial do planalto paulista.
ninga, onde eles escolherem. E os do mar se
ajuntem também todos juntos onde melhor for
por estarem mais fortes, porqüe a causa de des- II
povoarem é fazerem-nos viver na Vila de Santo
André da Borda do Campo, onde não tem mais Uma vez fixado em São Paulo o ponto inicial de
r
20 Caio Prado Jr. Cidade de São Paulo 21

partida do povoamento e colonização do planalto, representar notável papel na primeira fase do povoa-
procuremos as causas que determinaram o desen- mento; na margem direita, o Piracicaba, franca-
volvimento da vila e a preeminência que sempre mente navegável, sem obstáculo algum, até o salto
manteve sobre as demais da Capitania. do mesmo nome.
Relativamente à colonização do planalto, São Esta situação de São Paulo, relativamente ao
Paulo ocupava nele uma situação geográfica privile- sistema hidrográfico do planalto, tem nos primeiros
giada. Em primeiro lugar por ser o centro natural do tempos da colonização uma importância considerá-
sistema hidrográfico da região. Sem o saberem, seus vel. Embora não se trate de rios muito favoráveis à
fundadores tinham-no estabelecido num ponto donde navegação, ainda assim eles representam a melhor e
irradiam em quase todas as direções, ou pelo menos mais utilizada via de comunicação. Não só para as
as principais, estas vias naturais de comunicação que grandes expedições de reconhecimento e exploração
são os cursos de água. do interior, as entradas e bandeiras, mas também, e é
O Tietê que o banha ou que pelo menos, no isto o principal, para o intercâmbio das populações
São Paulo primitivo, corria nas suas proximidades, que se estabelecem no planalto. E é para gozar das
e além disto, era ainda acessível pelo Tamanduateí, vantagens destes caminhos naturais e de fácil acesso
cujas águas, antes de modemamente canalizadas, que o povoamento procura no início, de preferência e
banhavam o sopé do outeiro onde se erguia a vila, e quase exclusivamente, a margem dos rios. Partindo
eram perfeitamente navegáveis por pequenas embar- de São Paulo, o povoamento do planalto começa por
cações,* o Tietê forma como que o tronco daquele seguir duas direções, ambas pelo Tietê: uma rio
sistema. No seu curso superior, por um curioso aci- acima, outra rio abaixo. Ê seguindo estas linhas que
dente geográfico, quase se confunde com o alto Pa- os colonos se vão estabelecendo e formando as pri-
raíba, que decorrendo em direção oposta, constitui meiras povoações e vilas. Rio abaixo encontramos já
um verdadeiro prolongamento, para nordeste, do seu muito cedo: Nossa Senhora da Expectação do ô
curso. Rio abaixo, depois de percorrer todo o terri- (hoje Freguesia do O) e Pamaíba, que em 1625 é
tório do Estado, cortando-o em direção noroeste, constituída em vila. E pelas variantes do Pinheiros,
lança-se no Paraná que pelos seus afluentes da mar- seu afluente Jeribatiba (Rio Grande), do Cotia e
gem direita abre as comunicações de Mato Grosso. E afluente Mbói-Mirim (Embu), inúmeras povoações e
neste extenso tronco articulam-se, formando como aldeias de índios fundadas ou dirigidas pelos jesuí-
que os ramais do sistema, seus vários afluentes: na tas: Pinheiros, Itapecerica, Ibirapuera (hoje Santo
margem esquerda, pouco abaixo de São Paulo, o Pi- Amaro).
nheiros, o Cotia e seus tributários, que haviam de Tietê acima, a marcha é mais rápida. Antes do
F .
22 Caio Prado Jr. i Cidade de São Paulo 23
f.
I*.-------------------------
fim do século XVI encontramos no seu curso vários
aldeamentos: Guarulhos, Itaquaquecetuba, São Mi-
guel; a povoaçâo, logo vila, de Moji das Cruzes; e
passando para o Vale da Pardba, São José dos Cam-
pos. Este setor da capitania toma-se logo a sua re-
gião mais povoada. No século XVII ele se povoa
densamente, concentrando-se no vale do rio a grande
maioria das povoações e vilas da Capitania: além da
citada São José, e para não lembrar senão as vilas,
mais Jacareí, Taubaté, Pindamonhangaba, Guara-
tinguetá, Lorena. Deve-se isto principalmente ao fato
de ser o Vale do Paraíba não só a parte mais fértil do
território então conhecido da Capitania, como ainda
o mais importante roteiro das bandeiras que por aí
passavam em demanda de Minas Gerais, sertão de
São Francisco, norte-nordeste do país.
Em suma, são as margens dos rios as zonas ini-
cialmente procuradas pelo povoamento do planalto
paulista. E não só pelas vantagens assinaladas, como
também por outras: maior fertilidade das terras,
abundância de água e facilidade para a obtenção do
peixe, gênero de grande importância na alimentação
da época. Já tivemos ocasião de ver como estes dois Embora não se trate de rios muito favorável à navegação,
últimos fatores influíram no abandono de Santo ainda assim eles representam a melhor e mais utilizada via
André da Borda do Campo, situado longe de qual- de comunicação.
quer rio importante. Até fins do século XVI não en-
contramos em todo o planalto paulista aglomerado
algum afastado das margens dos citados rios. E
mesmo um século depois, o número de vilas e povoa-
ções nestas condições é diminuto. São Paulo, por-
tanto, como centro deste sistema hidrográfico ao
24 Caio Prado Jr. Cidade de São Paulo 25

longo do qual se desenvolve a colonização vai for- Estas rochas permianas dão um terreno mais ou
jando sua supremacia. menos plano e unido, que para W. se sucede imedia-
Há outra circunstância física que impele a colo- tamente ao abrupto da Mantiqueira (ao norte de São
nização do planalto paulista por estas linhas de que Paulo), e à topografia acidentada da Serra de Para-
São Paulo ocupa o centro natural. E esta circuns- napiacaba (ao sul). Tal passagem para o norte é
tância havia de se manter e continuar sua ação em alcançada, para quem parte de São Paulo, na altura
benefício da capital mesmo quando o povoamento se de Campinas (vide mapa).
afasta afinal dos cursos de âgua. Refiro-me ao relevo Os mesmos terrenos permianos oferecem outra
do território. passagem. Como vimos, eles estendem em continua-
Quem observa o mapa de São Paulo nota que a ção para o sul, tomando na altura de Sarapuí e Itape-
Mantiqueira penetra na região de São Paulo pelo tininga a direção W. É nesta parte meridional dos
norte, como uma cunha que termina, à vista da ci- terrenos permianos que estão os campos de Sorocaba
dade, no Morro do Jaraguá. De um e de outro lado e Itapetininga, aproveitados para as comunicações
desta cunha abrem-se duas passagens fáceis, forma- com o sul: Paraná e Rio Grande.
das por terrenos mais ou menos planos que contras- Estas três grandes passagens — para NE., pelo
tam nitidamente com a topografia acidentada e ina- Vale do Paraíba; para o N. por Campinas e Moji
cessível da serra; e o que é mais, constituindo princi- Mirim, em direção a Minas e Goiás; para W. e S.,
palmente campos descobertos, não apresentam os por Sorocaba e Itapetininga, em direção às capita-
obstáculos de florestas difíceis de penetrar. São estas nias meridionais da colônia — estas três grandes
passagens para NE., o Vale do Paraíba, que às van- passagens determinadas pelo relevo do solo seriam os
tagens já assinaladas acrescenta mais esta. A partir principais fatores que condicionariam a expansão
de Jacareí ele se apresenta como uma planície quase colonizadora do planalto paulista. Ê que elas repre-
unida e perfeita. Deve-se esta topografia à qualidade sentam as únicas possíveis, tanto para o N. como
do terreno, formado de depósitos flúvio-lacustres ar- para W. e S. Ladeando-as na região norte, levanta-se
gilosos, análogos aos da capital. Para o norte, a pas- a Mantiqueira, barreira contínua de cumes que ul-
sagem é constituída pelos afloramentos de arenitos e trapassam 2000 m. Ao sul, é a Serra de Paranapia-
xistos argilosos e cálcicos permianos, que se esten- caba, que com sua topografia acidentada e difícil
dem do NE. do Estado — Mococa e Casa Branca — impede as passagens e o estabelecimento do homem.
até o sul — Itararé e Faxina —, descrevendo um Este é assim impelido para as depressões que acom-
vasto arco de círculo cuja face convexa passa nas panham aqueles terrenos acidentados. É nelas por
proximidades de São Paulo, por Campinas e Itu. isso que se estabelece o povoamento, é nelas que se
26 Caio Prado Jr. %dade de São Paulo 27

desenvolve a colonização. E todas as três convergem ferrovias — e até hoje mesmo, embora em muito
para São Paulo, que se constitui assim como nó deste reduzida escala — as tropas de burros, principal
sistema topográfico. meio de transporte da província até época muito re-
Há uma quarta zona do planalto que, embora cente. Mesmo o norte do p d s se supria, através de
pequena e de progresso mais lento, já começa a ser São Paulo, dos muares que vinham dos campos do
povoada na segunda metade do século XVII. Ê a sul.
região que hoje compreende Atibaia, Bragança e Para o norte, por Moji, é o famoso caminho dos
outras cidades vizinhas. Esta parte da Capitania, Guaiases, aberto já em fins do século XVIII, e que
metida em cheio na Mantiqueira, oferece contudo levava às minas de Goiás attavés do Triângulo Mi-
condições topográficas favoráveis. Os vales do alto neiro. O outro caminho para o norte é a estrada de
Atibaia e Jaguari rasgam aí clareiras de terrenos Átibaia e Bragança, de importância mais local, mas
menos acidentados em que foi possível desenvolver que assim mesmo servia de comunicação subsidiária
cedo a colonização. E esta região também, exata- com o sul de Minas.
mente como as demais, converge para São Paulo. Para W. finalmente abre-se o caminho de Mato^
Combinam-se de tal forma rede hidrográfica e Grossò, de tão grande importância depois que na-
relevo, ambos determinantes da expansão demográ- quela região se começa a lavrar o ouro. Estas comu-
fica paulista, para darem a São Paulo a primazia do nicações com Mato Grosso se fazem, como vimos,
centro do povoamento do planalto. pelo Tietê.. É da freqüência destas viagens rio abaixo
Esta evolução da colonização do planalto pau- que surge o porto de Araritaguaba, mais tarde Porto
lista se reflete nitidamente na disposição das estra- Feliz, ponto de embarque dos viajantes que de São
das. O mapa^ indica o traçado das principais, em Paulo até ai, evitando as grandes cachoeiras, faziam
fins do século XVIII. Para nordeste, pelo Vale do o caminho por terra. Ê ainda pelo Tietê e seu afluen-
Paraíba, é a estrada que serve às já citadas vilas e te, o Piracicaba, que se fazem as primeiras comu-
povoações da faixa marginal daquele rio. Para su- nicações com os campos de Áraraquara, cujo povoa-
doeste, é a estrada que leva aos campos de Sorocaba, mento se inicia em fins do século XVIII.
Itapetininga e Guarapuava (no atual Estado do Pa- Como se vê, através de toda a história colonial
raná), e dali para as capitanias meridionais, desta- da capitania, São Paulo ocupa o centro do sistema de
cadas de São Paulo no século XVIII. É por este comunicações do planalto. Todos os caminhos, flu-
caminho que São Paulo se abastecia de gado para o viais ou terrestres, que cortam o território paulista
seu consumo e para reexportação; é por aí também vão dar nele e nele se articulam. O contato entre as
que nos chegavam, e assim será até a introdução das diferentes regiões povoadas e colonizadas se faz ne-
28 Caio Prado Jr. 2 de de São Paulo 29

cessariamente pela capital. O intercâmbio direto é Último chegou a ser bastante freqüentado pelos via-
impossível. “Entre estas artérias históricas — escreve jantes que, vindos por via marítima, demandavam o
Teodoro Sampaio referindo-se às estradas acima ci- sertão mineiro. Ê possível que além destes tivessem
tadas — irradiantes, como os dedos de uma gigan- existido outros, embora não figurem nas cartas da
tesca mào espalmada sobre o território paulista, me- época. E isto é suficiente para mostrar que mereciam
deava o deserto, o verdadeiro sertão, ampliando-se pouca atenção.
sempre, e cada vez mais ignorado à proporção que as De todas estas estradas, a de Santos foi sempre,
estradas se afastam, e todavia não mais conhecido de longe, a mais importante. Não só por ser a mais
nas próprias vizinhanças da capital, que era o centro acessível, como também porque liga os dois pontos,
verdadeiro deste sistema da viação interior” . ® respectivamente do litoral e do planalto, mais povoa-
Mas, não é só esta posição central na grande dos e-importantes: a ilha de São Vicente e a região
encruzilhada do planalto que dá a São Paulo na era circunvizinha de São Paulo. Como já referimos, a
colonial a preeminência que sempre desfrutou. É ele, colonização teve no litoral seu progresso entravado
além disto, o ponto intermediário, a escala necessá- pelas dificuldades naturais da região. Concentrou-se
ria das comunicações entre o planalto e o litoral. principalmente na ilha de São Vicente — onde se
É pelo Caminho do Mar, a antiga trilha dos índios 'fundam sucessivamente São Vicente (1532) e Santos
transformada em principal artéria da capitania, que (1534) — com uma tênue irradiação ao longo da
se realiza quase todo o contato entre aquelas duas costa, em direção de Cananéia e São Sebastião. Ê
seções do território paulista. Santos, além disto, o principal porto, pode-se dizer o
A barreira imensa que a Serra do M ar ergue único ponderável, da Capitania, e isto em grande
entre o planalto e o litoral tom a singularmente di- parte devido às suas excepcionais qualidades, seu
fíceis, já o vimos, as comunicações entre estas re- estuário profundo, abrigado e de fácil acesso. Por
giões. Ê por isso que em todo o correr da história isso ele é o verdadeiro ponto de articulação da capi-
paulista não encontramos serra acima senão muito tania com o mundo exterior.
poucos caminhos mais ou menos freqüentados e que A importância do Caminho do Mar é portanto
por isso gànham em importância na proporção em considerável desde o início da colonização. Por ele
que rareiam. Eles aparecem apenas num ou noutro transitam não só a exportação e importação do pla-
ponto mais acessível da serra. Âté fins do século nalto, mas ainda os gêneros alimentares consumidos
XVIII, além do de Santos, não podemos citar mais no litoral, todos eles produzidos no interior. O litoral
de três: de São Sebastião a Jacareí, de Ubatuba a fornecia o açúcar, gênero de exportação; mas é do
Taubaté, de Parati (Estado do Rio) a Cunha — este planalto que lhe provinham os mantimentos: a carne.
30 Caio Prado . de São Paulo 31

a farinha de mandioca, os cereais. Âté o trigo era Entre o planalto e o litoral, pelo Caminho do
então produzido no planalto; exportava-se mesmo I Mar, há portanto um intercâmbio intenso. Sâo Pau-
daí para outros pontos do país, e o que é mais inte- I io, como ponto intermediário, como escala necessária
ressante e verdadeiramente paradoxal, até para o Rio ! deste intercâmbio, aufere dele grandes proveitos.
da Prata. Não se prestava o litoral para tais culturas, Desde logo, há entre estes dois núcleos, São Paulo e
e sua dependência do planalto neste terreno foi sem- Santos, uma ação recíproca permanente, e a impor-
pre completa. Numa vereação de 1564 da Câmara de tância de um se projeta fatalmente sobre o outro.
São Paulo lê-se que no litoral "se não podião dar hos Ambos se completam, e no sistema econômico da
mãotimètos p« sostentamento das ditas villas {São capitania satisfazem cada qual uma destas funções
Vicente e Santos) e êgenhos e nê haverem pastos è q conexas e inseparavelmente ligadas: centro natural
podesepaser ho muitogadü vacã. do planalto e porto marítimo. Não fosse a fatalidade
da Serra do Mar, e estas duas funções caberíam a um
s6 centro, que englobaria o que hoje constitui as duas
2 Moji Mirim cidades. A configuração geográfica do território
apartou estas funções. O Caminho do Mar que as
^ Moji Guaçu
articula, restabelecendo a unidade que necessaria-
V / mente as deve englobar, tira daí toda sua considerá-
Jundiftí
X vel importância. E o sistema 500 Paulo-Caminho do
Mar-Santos toma-se o eixo, a base do organismo
V econômico da capitania.
CAMPOS DE SOROCABA
' VALE DO RIO PARAlBA Para terminar este capítulo, apresentamos o es-
/ 2 O
a. S s 1 3 quema acima que representa em seus contornos ge-
8
1 ^ | l
tí §! / rais os resultados atingidos pela colonização paulista
o
i
n em fins do século XVIII. As linhas que irradiam de
1
1
e s / São Paulo indicam não só as artérias principais do
ã-
» ?» / sistema de viação da capitania, mas ainda os eixos
em tomo dos quais se condensa a população do
planalto. Tal esquema explica suficientemente a im-
portância relativa atingida por São Paulo na época
de que tratamos, isto é, até as vésperas da eman-
cipação política do país.
32 Caio Prado Jt C idaiftãe São Paulo 33

III Norte, onde florescera com tanta pujança no século


anterior.
Em princípios do século passado inicia-se uma Esta fase de atividade extrativa que não dava
nova fase da história paulista e da colonização do margem para outras ocupações, ou dava-a em pro-
planalto. O povoamento do atual território do Estado porções muito pequenas, só se interrompe com o
se limitara até então às regiões que passamos em re- esgotamento, aliás prematuro, das minas. Isto mais
vista: além do litoral, a zona da capital, e dispondo- ou menos pelos fins do século XVIII. O Brasil então
se à sua volta, em estrela, algumas linhas de povoa- retoma a sua feição essencialmente agrícola. E assim,
mento que penetram o interior. Em suma, a coloni- enquanto por seu turno as regiões mineradoras per-
zação progredira muito pouco nestes primeiros três dem seu esplendor do século XVIII, as demais, São
séculos. Ê que já em fins dos seiscentos a Capitania Paulo inclusive, entram num período de surto econô-
atingira seu apogeu, para daí em diante decair rapi- mico, favorecido, aliás, pelas novas condições polí-
damente. A descoberta do ouro em Minas Gerais, ticas do país depois da sua emancipação da metró-
pouco depois seguida pela de Goiás e Mato Grosso, pole portuguesa.
representa a meta final do esforço tenaz dos paulistas O início do século XIX marca por conseguinte o
durante quase dois séculos, votado ao reconheci- abrir de um período de reorganização econômica. A
mento de todo o território que havia de constituir o colonização do território paulista, sua ocupação e
Brasil de hoje, e à procura de metais preciosos. Rea- exploração, estacionária e mesmo em regresso du-
lizado este fim, São Paulo encerra sua obra e entra rante o período precedente, se intensifica não só nas
numa fase de prolongada estagnação. Não só inter- zonas já penetradas, mas nas demais que restavam
rompe sua expansão colonizadora, mas se despovoa. por desbravar. Este processo se perpetuou, mani-
Seus habitantes, atraídos pelas minas cujo território, festando-se até nossos dias nesta ininterrupta expan-
antes abrangido pela Capitania, vai sendo dela desta- são para W. que caracteriza a história contemporâ-
cado sucessivamente, aos pedaços, no correr do sé- nea de São Paulo.
culo XVIII, vão-ie estabelecer nas novas capitanias Em todo este movimento de expansão, a capital
criadas à sua custa. conserva sua posição central e portanto sua preemi-
Este fenômeno, aliás, embora mais pronunciado nência. A colonização se desenvolve principalmente
em São Paulo, e de efeitos mais profundos, é comum para N. e W., tomando como ponto de partida os
a todo o país. O século XVIII é um período em que extremos já alcançados e que tinham São Paulo por
toda a atividade da colônia está canalizada para as centro. A base econômica desta expansão cabe ini-
minas; a agricultura decai enormemente, mesmo no cialmente a dois produtos, o açúcar e o café, que no
34 Caio Prado Ji de São Paulo 35

segundo quartel do século passado representam jun- primazia. No total do comércio exterior da província
tos, e em partes mais ou menos iguais, mais de 50% (Rs. 5.604:2771289 em 1835) o porto de Santos con-
da produção total da província e a quase totalidade tribuiu com cerca de 71% (Rs. 3.971:3261254)."’
de sua exportação. Vejamos como se localizam estas São Paulo portanto se mantém, apesar de tudo, o cen-
lavouras e a posição que ocupam com relação a São tro principal da economia paulista. E esta situação
Paulo. cada vez mais se afirma. O desenvolvimento da cultu-
A cultura da cana se concentra na região a no- ra cafeeira, que logo havia de monopolizar a economia
roeste da capital, região que lhe é naturalmente da província, não se processa nas zonas em que pri-
tributária. Os grandes municípios produtores são; meiro se localizou. O litoral é logo abandonado, e o
Campinas, Piracicaba, Capivari, Porto Feliz, Itu e Vale do Paraíba perde, em fins do Império, toda sua
Moji Mirim. Ê assim por São Paulo, em demanda de passada importância. São as férteis terras, primeiro
Santos, que se faz o escoamento da produção. A zona do norte, depois do oeste, muito mais próprias ao seu
do açúcar é dominada por São Paulo. cultivo, que vão constituir a zona de eleição do cafeei-
! Quanto ao café, ele escapou, a princípio, desta ro. E toda esta região que é por sua situação tributária
hegemonia paulistana. Seus grandes centros se loca- de São Paulo, tem nesta cidade seu centro natural.
lizam inicialmente no litoral: São Sebastião, Vila Assim, a capital da província, ameaçada momenta-
Bela e Ubatuba; e daí, galgando a Serra do Mar, neamente na sua hegemonia pela fixação primitiva
ocupam o Vale do Paraíba. São Paulo conserva-se da sua principal riqueza em zonas excêntricas a ela,
por isso à margem desta atividade, sendo o comércio recupera integralmente sua posição de centro econô-
do café feito diretamente pelos portos citados, ou mico da província. O sistema ferroviário que então se
pelo Rio de Janeiro. Toda esta zona da província, constitui amolda-se, como é natural, a tal estrutura,
que impropriamente se chamou Norte, tornou-se du- e é de São Paulo que vão irradiar as novas vias de
rante o Império — até hoje ainda há vestígios disto comunicação. Basta observar o mapa atual de São
— tributária do Rio muito mais que de São Paulo. Paulo para se verificar que as estradas de ferro repe-
Economicamente faz parte do Rio; a ponto de se ter tem, com pequenas variantes, os antigos caminhos
cogitado um momento em destacá-la de São Paulo de penetração, fluviais e terrestres, da Capitania.
para constituir com um trecho do território flumi- Mesmo o Vale do Paraíba, momentaneamente orien-
nense (Resende, Valença, Parati, São João do Prín- tado para o Rio de Janeiro e os portos do litoral leste
cipe e Ilha Grande) e de Minas Gerais (Campanha e (Ubatuba e São Sebastião) — é novamente articu-
Baependi) uma nova província. ’ lado à capital pela Central do Brasil. E aos poucos as
Mesmo assim, contudo, a capital conserva sua estradas de ferro vão abrindo novas zonas, esten-
36 Caio Prado Jr, ide de São Paulo 37

dendo seus tentáculos para longe a fim de englobar 61% do capital total invertido na indústria do Es-
no sistema econômico paulista um território cada vez tado, e a mesma proporção do número de operários.
maior. Desprezam limites políticos e vão invadir ou- Ê de fato em São Paulo que encontra maiores van-
tros Estados, articulando assim no organismo de São tagens. Situa-se aí no centro do sistema econômico
Paulo zonas exteriores consideráveis, como o Triân- do Estado, numa posição que comanda simultanea-
gulo Mineiro e o norte do Paraná. E tudo isto, desen- mente todas as suas zonas; e ao mesmo tempo tem
volvendo regiões que por suas ligações naturais se nas suas proximidades o porto de Santos. Tratando-
tornam economicamente tributárias da capital, vai se de uma indústria que consome, em grande parte,
naturalmente se refletir no progresso e desenvolvi- matéria-prima importada, a sua localização é deter-
mento desta. minada principalmente por estes dois fatores: comu-
* As estradas de ferro ainda tiveram outro efeito nicações fáceis com os mercados consumidores, e
considerável sobre São Paulo. Facilitando as comuni- proximidade do centro importador da matéria-prima
cações, tomando-as mais rápidas, elas atraíram para e do aparelhamento industrial. Ambas as condições
a capital as camadas abastadas da população pau- se realizam na capital melhor que em outro ponto
lista, os fazendeiros, grandes proprietários, que antes qualquer do Estado.
habitavam ou as suas próprias fazendas, ou as ci- Nem lhe falta a energia necessária para pro-
dades mais próximas a elas. Com as estradas de ferro pulsionar a indústria; o curso encachoeirado do
puderam estes fazendeiros, ao mesmo tempo que se Tietê, pouco abaixo dele, lhe fornece força hidráulica
mantinham em contato estreito com suas proprie- em abundância. E o formidável desnivelamento da
dades, aproveitar a vida mais confortável de um Serra do Mar, também nas suas proximidades e que
grande centro. Inúmeras cidades do interior, hoje começa a ser aproveitado, garante para o futuro
insignificantes vilas provincianas, já foram teatro, reservas quase ilimitadas.
em tempos idos, de uma vida econômica e social mais O desenvolvimento atual de São Paulo é por-
intensa. A capital, favorecida pelo novo sistema de tanto facilmente explicável. Ele é função do pro-
comunicações, absorveu esta vida. gresso de toda esta parte, a mais rica do Brasil, de
Um último fator, e este conseqüência dos já ci- que a cidade é o centro econômico natural e neces-
tados, veio completar esta obra de consolidação da sário.
hegemonia paulistana: é a localização das indústrias.
Com o progresso do Estado, surgem as grandes in-
dústrias, e é na capital que de preferência elas se
localizam. Em 1933, a indústria da capital possuía
iode de São Paulo 39

CONTRIBUIÇÃO PARA
A GEOGRAFIA URBANA
DA CIDADE DE SÃO PAULO

Localização de São Paulo


Não há quem não tenha observado o paradoxo
de São Paulo; uma grande cidade moderna, consi-
derável centro urbano cuja população ultrapassa hoje
dois milhões de habitantes, e situada numa região
desfavorecida pela natureza e, do ponto de vista hu-
mano, das mais primitivas. Num raio de muitas de-
zenas de quilômetros, é um quase deserto que se
estende em volta da cidade; deserto pontilhado ape-
nas por estas pequenas vilas e miseráveis povoados
que são Guarulhos, São Miguel, Barueri, Cotia, Num raio de muitas dezenas de quilômetros, é um quase
Mbói, Itapecerica etc.; ou onde apenas se esboça deserto que se estende em volta da cidade; deserto ponti-
uma vida que o poderoso influxo da própria aglo- lhado apenas por estas pequenas vilas e miseráveis po-
voados.
meração paulistana não podia deixar de provocar. A
40 Caio Prado. iade de São Paulo 41

influência não vai aí de fora para dentro, mas em contribuiu apenas, com seus efeitos devastadores,
sentido contrário, da cidade para a região que a cir- para o empobrecimento maior ainda da região pau-
cunda; não pode portanto ser computado como fator listana. Quanto a outras formas de atividade que
do desenvolvimento de São Paulo. poderíam dar vida a esta região, como a indústria
As zonas florescentes do Estado, onde a ocupa- manufatureira, elas ainda são muito recentes e não
ção humana se desenvolveu e prosperou, situam-se se desenvolveram suficientemente para fazer as vezes
longe da capital. Em qualquer direção que parte o da agricultura e preencher o vácuo em torno da capi-
viajante, caminhará muito antes de atingir cidades tal.
ou núcleos importantes, regiões de um elevado nível • Não são portanto as riquezas da região onde se
humano. E antes de chegar aí, não verá outra coisa situa São Paulo, riquezas naturais inexistentes,^ que
que uma paisagem agreste e despida de qualquer estão na base do desenvolvimento da cidade.’^Ê a
atrativo, onde o homem está ausente e a natureza é outros fatores que São Paulo deve o seu progresso.
pobre e hostil. Para leste, viajará até Moji das Cru- Um sobretudo, que em última análise explica e con-
zes, 50 km de estrada; para norte, até Atibaia, numa diciona os demais, e que é a posição relativa que a
distância de quase 70; para noroeste, em demanda cidade ocupa no conjunto do sistema econômico,
da região economicamente mais desenvolvida do Es- político e social de que é o centro geográfico natural e
tado, nada encontrará antes de Jundiaí, para lá de necessário. Sistema que abrange uma grande região
um raio de 50 km. Se for para oeste, terá deesperar e engloba não apenas o Estado de São Paulo, com os
Sorocaba (100 km); e para o sul, até atingir o litoral e seus nove milhões de habitantes e seu considerável
o porto paulista, que é Santos, são extensões quase desenvolvimento, mas ainda zonas importantes de
desertas e miseráveis que atravessará numa distância Estados vizinhos que giram hoje na órbita paulista;
além de 70 km. o Triângulo Mineiro, o norte do Paraná, o sul de
Natureza agreste, pobreza das terras e relevo Mato Grosso; e mesmo, até certo ponto, o longínquo
acidentado, estão aí os fatores que isolaram São sul de Goiás.
Paulo neste largo círculo de desertos. A agricultura, Um tal fator vem de longe, pode-se dizer que do
única possibilidade econômica do Estado até meio início da colonização paulista; não é fruto de uma
século atrás, não se pôde fixar aí; passou rapida- política, de uma ação consciente e deliberada do
mente, e só nos primeiros tempos da colonização, homem. Surge natural e espontaneamente do con-
indo depois localizar-se muito além, nas terras mais curso de certas circunstâncias físicas que predesti-
férteis do Vale do Paraíba, primeiro; do norte e oeste nam a cidade de São Paulo àquele papel de centro
da província mais tarde; e aquela rápida passagem deste setor do país. Já abordei em outro lugar o
42 Caio Prado Jr,
ie de São Paulo 43

assunto sob um tal aspecto histórico.* Deixando aqui


independentes entre si; entre elas medeiam ainda
este lado da questão, destacarei apenas o papel de
espaços vazios, às vezes perfeitos desertos humanos.
São Paulo nos dias que correm, e que não só faz dele
Sao a configuração do território paulista e a ação de
o grande centro urbano que é, mas lhe garante para o
Outros fatores naturais os grandes responsáveis por
futuro uma progressão que será sempre paralela à da
tão curiosa estrutura demográfica. E ela tem tama-
zona e do sistema geográfico a que pertence. São
nha importância para a capital (a qual deriva daí a
Paulo não perderá nunca sua qualidade de grande
maior parte de sua importância e significação), que o
centro deste planalto de que ocupa o bordo oriental e
marítimo. assunto merece aqui uma análise mais atenta. Pas-
semos pois em revista, embora sumariamente, aque-
Quem observa a carta paulista, verificará desde
las faixas em que se distribui a população paulista.
logo que o povoamento, e com ele todos os fatos que
A primeira, a mais antiga, tem o rumo nordeste
acompanham o estabelecimento humano (aparelha-
e acompanha o Vale do Paraíba depois que deixa as
mento econômico e urbano, vias de comunicação
margens do Tietê. Não insisto sobre as causas que
etc.) aparece nela nitidamente compartimentado. O
determinaram a ocupação precoce daquele vale, por-
território de São Paulo se povoou, e a sua estrutura
que seria invadir um domínio que pertence mais à
geo-humana ainda reflete muito bem um tal fato, em
história e que já desenvolvi em outra parte (art. cit.).
faixas radiantes. Não se difundiu por contigüidade e
por anéis concêntricos; nem as populações que o Interessa-nos aqui apenas observar que esta zona,
alongando-se por mais de 300km, concentrando uma
ocupam enxamearam por ele ao acaso de circunstân-
população relativamente densa e representando uma
cias locais favoráveis. A distribuição do povoamento
paulista se fez de acordo com uma regra geral que passagem importante, pois que por aí transitam as
vias de comunicação terrestre que articulam o pla-
tem sido até hoje invariável, e que consiste numa
nalto paulista com a capital do país, esta zona forma
progressão, a partir de um centro, que é justamente a
rigorosamente um estreito corredor, trancado late-
região ocupada pela capital, por linhas que penetram
ralmente, e cuja única saída natural é para a região
o interior em várias direções. Tais linhas representa-
onde está situada a capital de São Paulo. De um
ram o papel de eixos em torno dos quais se agrupou a
lado, ao sul, onde se estende o litoral, ergue-se a
população; esta ficou assim distribuída em faixas
Serra do Mar, que lhe barra a passagem por eleva-
mais ou menos largás que irradiam de um centro
ções de grande altitude e um abrupto que, de mais de
comum: precisamente a capital. Faixas tão nitida-
1000 metros, cai a pique sobre o mar. Alguns cami-
mente diferenciadas que se conservaram até hoje,
nhos, em demanda dos portos de Ubatuba, São Se-
apesar de todo o progresso das comunicações, quase
bastião, Caraguatatuba e Parati (no Estado do Rio)
!e de São Paulo 45
44 Caio Prado Jr

fícação econômica. Quanto a estradas de rodagem


conseguem romper esta barreira e comunicam o Vale dignas desse nome, a única que existe ligando Ca-
do Paraíba diretamente com o mar. Mas são cami- xambu (sul de Minas) com Queluz no Vale do Pa-
nhos difíceis e, embora antigos, só tiveram certa raíba, e aproveitando a famosa e histórica garganta
importância no tempo em que o Vale do Paraíba do Embaú, conta apenas com pouco mais de um de-
constituiu um centro de cultura cafeeira de grande cênio, e não é ainda por enquanto, senão pouco mais
vulto econômico, e que o transporte em cargueiros que o caminho de turistas que do Rio e de São Paulo
nâo encontrava nestes atalhos de montanhas um obs- vão em demanda das estações de águas do sul de
táculo invencível. A locomoção mecânica de nossos Minas.
dias, seja por estrada de ferro ou de rodagem, tomou Ao norte e ao sul, o Vale do P ard b a está por-
estas vias inutilizáveis, a não ser a custo de obras tanto fechado; e mesmo do lado do Rio de Janeiro,
vultosas que nem o litoral, nem as necessidades do onde se repete o abrupto da Serra do Mar, o corredor
Vale do Paraíba comportam ou exigiram até hoje. assim formado encontra tais obstáculos que, não
Existe, é verdade, um projeto de estrada de ferro que fosse a circunstância de ser o Rio a capital do pms e
ligará diretamente estas zonas, eníroncando-se na um grande porto (sem contar a necessidade de ligar
Central do Brasil e terminando em São Sebastião; São Paulo com ele por via terrestre), correría o risco
e uma estrada de rodagem moderna, de data relati- de se transformar num simples beco, com sua única
vamente recente, comunica Paraibuna com Caragua- saída voltada para São Paulo. Ai sim, a passagem é
H tatuba e São Sebastião. Mas, tudo isto são por en- aberta e franca. O vale do alto Paraíba, no cotovelo
quanto ensaios apenas. A Serra do M ar foi e conti- que forma o rio, quase toca o Tietê que leva as
nua sendo uma barreira que fecha, do lado do litoral, comunicações até São Paulo pela ampla e fácil via
o Vale do Paraíba. que acompanha suas margens planas e unidas. São
Do outro lado, as dificuldades não são menores. Paulo não podia pois deixar de ser como é, chave
Está aí a Mantiqueira elevando-se a quase dois mÜ desta primeira faixa do povoamento paulista.
metros e fechando, ainda mais que a Serra do Mar, # A segunda, sempre partindo da capital, segue
as passagens; e apesar do fato de terem estas passa- em direção norte. Aí o povoamento penetra em cheio
gens uma grande significação histórica, pois por aí se na Mantiqueira, aproveitando a clareira de terrenos
fizeram as primeiras penetrações de Minas Gerais e menos acidentados, acessível ao estabelecimento do
do interior do Brasil, o que sobra delas é quase nada. homem, que nele rasgam os vales do alto Atibaia e
A estrada de ferro Sul-Mineira atravessa a Manti- Jaguarí. Nestes vales concentrou-se o povoamento,
queira por um túnel na altura de Cruzeiro, no Estado dando origem a estas cidades que são Bragança,
de São Paulo; é uma via difícil, e de pequena signi-
46 Caio Prado ^ f ,Cidade de São Paulo 47

Atibaia, Piracaia e outras. Aí também, o povoa- tucatu. Ela se espalha em manchas, de Campinas até
mento se dispôs numa faixa, que, tanto para leste 0 extremo norte do Estado, acompanhando est-a for-
como para oeste (sobretudo na primeira destas dire- mação triásica dos arenitos de Botucatu que consti-
ções), se interrompe para dar lugar a um vazio; e é tuem uma faixa dirigida de sul a norte.
para São Paulo e não para os lados, dificilmente Ocupadas as terras roxas, outras favoráveis à
acessíveis, que converge a vida desta zona. cultura cafeeira foram encontradas nos solos consti-
Finalmente no oeste do Estado, o povoamento se tuídos sobre a base dos arenitos da série de Bauru.
estabelece e hoje se distribui em várias faixas que se A disposição destes arenitos, como se pode ver na
irradiam em leque desta mesma região central onde carta geológica do Estado, acompanha os divisores
está a cidade de São Paulo. Estas faixas acompa- dos grandes rios citados; são faixas grosseiramente
nham os divisores das águas dos grandes rios afluen- paralelas e sucessivas, dirigidas de leste para oeste, e
tes do Paraná: Grande, Tietê, Aguapeí, Peixe, Para- que se interpõem, de norte a sul, entre aqueles rios;
napanema. O leito destes rios forma uma divisa na- medeando entre tais faixas, isto é, ocupando o vale
tural destas zonas de povoamento. Rios imprestáveis de tais rios, uma formação mais antiga, triásica, os
para a navegação, sujeitos a enchentes volumosas e arenitos da série de Caiuá, que dão em regra solos
focos permanentes de anófeles que tornam a maleita pobres e pouco favoráveis à cultura do café. A natu-
aí endêmica, suas margens são evitadas pelo homem reza do solo, fator primordial numa expansão e fixa-
que se localiza de preferência nos terrenos altos que ção demográfica que se fez na base única de uma
formam os espigões divisores. Há ainda um fator que produção agrícola, combina-se assim com a disposi-
determina tal preferência: é a qualidade do solo. A ção dos rios para compartimentar o oeste, reprodu-
^expansão paulista se fez para oeste, como é sabido à zindo o mesmo fato que, sobretudo o relevo, deter-
custa da cultura do café; e são por isso os solos favo- minara no leste do Estado.
ráveis a esta cultura que, em última análise, condi- As vias de comunicação, como é natural, refle-
cionaram o povoamento e sua distribuição. Foi a tem tal circunstância no seu traçado. A rede de estra-
princípio, a partir de meados do século passado, das de ferro paulista, bem como a de rodagem, dese-
quando começa a arremetida para oeste, a famosa nha-se na carta de São Paulo “como uma vasta mão
terra roxa que atraiu as fazendas de café. A terra espalmada” , para repetir a etpressão feliz que Teo-
roxa, como se sabe, é produto de decomposição de doro Sampaio empregou quando se referiu aos pre-
rochas basálticas resultantes de derramamentos vul- decessores destas vias modernas na antiga capitania.
cânicos (traps) posteriores no triásico e que afloram Para nordeste, servindo o Vale do Paraíba, é a Cen-
nos terrenos que constituem a chamada série de Bo- tral do Brasil, para a zona de Atibaia e Bragança,
48 Caio Prado J le de São Paulo 49

a Bragantina] para NNO., percorrendo a faixa que fda Bragantina, da Mojiana, da Paulista, da No-
fica ao norte do Tietê, e onde se concentra a maior i roeste, da Alta Paulista e da Sorocabana.
população e riqueza do Estado, as companhias Pau- Esta situação privilegiada de São Paulo com re-
lista eMojiana; entre o Tietê e o Aguapeí, a Noroeste lação ao povoamento do planalto paulista é comple-
do Brasil (designação esdrúxula e sem sentido real); tado pela sua proximidade do litoral, e sobretudo do
entre este último rio e o do Peixe, a chamada Alta porto principal, pode-se dizer mesmo único do Es-
Paulista (que sendo um simples ramal sem nome tado, que é Santos. Podemos aqui observar um con-
próprio, recebeu esta denominação convencional traste curioso entre o que se deu, neste terreno, em
para se diferenciar da estrada a que pertencia, &Pau- São Paulo e em outros setores do país. No Norte,
lista)-, e finalmente, entre o Peixe e o Paranapa- como é por exemplo o caso de Recife e da Bahia, o
^ nema, a Sorocabana. Estas estradas são quase inde- porto é ao mesmo tempo o centro geográfico da
pendentes entre si, e não se articulam efetivamente região que lhe é tributária; aquelas cidades exercem
senão na região central do Estado, onde está a Capi- simultaneamente uma dupla função, porto e centro
tal. Além, elas se separam cada vez mais, a ponto de distribuidor. Em São Paulo, uma tal dupla função
nenhum ramal, a não ser excepcionalmente, permitir foi cindida em suas partes componentes, cabendo a
a passagem de uma para outra; fato este que reflete primeira a Santos e a segunda a São Paulo. E não
muito bem o caráter de faixas bem diferenciadas em podia ser de outra forma. A colonização paulista se
que se distribui o povoamento que margeia as suas expandiu no planalto, e não se concentrou no litoral,
linhas respectivas. como se deu nos exemplos citados. Nem o litoral
O centro de irradiação desse leque de faixas, paulista se prestava para isto; o planalto, limitado
servidas cada qual por sua linha de estrada de ferro, pela Serra do Mar, aproxima-se aqui da costa até
bem como de rodagem, é a região da capital,que se uma distância mínima, deixando apenas uma estreita
ê torna assim o nó onde se articulam todas as vias de língua de terras litorâneas, cuja pouca extensão
comunicação, e para onde se volta, portanto, toda a ainda é agravada pela natureza ingrata do terreno,
vida do Estado. Aliás, a distribuição do povoamento quase todo ocupado por mangues. Não havia lugar aí
e ocupação em faixas que acompanham as linhas para um desenvolvimento apreciável da ocupação
ferroviárias radiantes de um centro comum, que a humana; circunstância aliás que se fez sentir desde o
nomenclatura das regiões em que se divide o Estado, início da colonização. O litoral paulista foi sempre
caso talvez único, não encontrou nada melhor que desprezado. A não ser num breve período, meados
empregar as denominações com que são conhecidas do século passado, em que a cultura do café, e com
aquelas estradas; e temos assim as zonas da Central, ele a atividade humana decorrente de uma riqueza
se Caio Prado Jr. ide de São Paulo 51

apreciável, animou alguns pontos dele como Sâo Se- em conjunto um verdadeiro sistema geográfico) têm
bastião e Ubatuba, o litoral vegetou sempre num hoje uma significação apenas histórica ou se redu-
quase abandono; e isto, no dia de hoje, é um fato zem a importância mínima. O de São Paulo-Santos,
notório e tão sentido que representa um problema pelo contrário, valoriza-se continuamente. Concor-
que chega a ser alarmante, tal o estado de deca- rem para isto vários fatores, de que os geográficos são
dência física e moral a que chegou a escassa popu- certamente os de maior relevo. De um lado São
lação que o ocupa. Paulo, pela posição privilegiada que ocupa no pla-
Fixando-se de preferência no planalto, o povoa- nalto, posição esta que analisei mais acima, concorre
mento tinha de procurar nele o seu centro, porque o grandèmente. De outro Santos, que com a sua barra
separava do mar uma barreira imensa e transponível profunda, larga e bem abrigada pela ilha fronteira de
apenas em uns raros pontos mais acessíveis, mas nem Santo Amaro, é não só o melhor senão o único porto
por isso mais fáceis. O relevo do solo paulista estava, natural deste setor da costa brasileira, como um dos
portanto, a impor este sistema de duas cidades con- melhores de todo o país. E a isto vem juntar-se a maior
jugadas, dividindo entre si as funções de porto, ponto facilidade de comunicações através da montanha
de articulação das comunicações com o exterior; e nesta altura da Serra do Mar. Ê de fato este pon-
centro do povoamento, ponto fácil de convergência to, a meio caminho do litoral em território pau-
da vida deste planalto densamente habitado em opo- lista, o que mais se presta à passagem do homem.
sição a um litoral despovoado. O sistema São Paulo- Para leste, apresenta-se a serra não só como um
Santos, entre muitos outros, foi o que predominou. abrupto, formando uma muralha contínua de alti-
Estava longe de ser único: ao longo de toda a Serra tude mínima de 900 metros, mas ainda como uma
do Mar repete-se o mesmo fenômeno de cidades con- larga zona acidentada, de cumes que atingem 1500 a
jugadas, uma, no litoral servindo de porto, outra 2000 metros, e que se estende até o Vale do Paraíba.
próxima a ela mas no alto, porta para o interior do Já me referi acima às dificuldades, aí, do acesso pelo
planalto. Além de São Paulo e Santos temos os exem- mar.Para oeste as condições não são melhores. De-
plos de Parati e Cunha (aquele, no Estado do Rio, saparece, é verdade, o abrupto da serra que se esca-
esta última, cidade em São Paulo); Ubatuba e São lona aí em degraus sucessivos. Alguns rios importan-
Luís do Paraitinga; São Sebastião e Paraibuna ou tes conseguem mesmo penetrar o interior rompendo
Salesópolis; também no Paraná temos um caso para- a barreira de montanhas: o Ribeira de Iguape e seus
lelo em Paranaguá e Curitiba; e em Santa Catarina, afluentes. Mas, em compensação, a zona de serra se
São Francisco e São Bento. Muitos desses sistemas alarga consideravelmente, até 100 km, e mais, apre-
(a designação é merecida porque tais cidades formam sentando uma topografia particularmente aciden-
52 Caio Prado Ji ide de São Paulo 53

tada com suas quebradas e asperezas de terreno suce- nível de base local e serve de escoadouro. Assim o
dendo-se ininterruptamente até o limite ocidental do produto das rochas decompostas permanece in loco,
cristalino que atinge aí a sua largura máxima contí- formando planuras aluviais que se sucedem desde o
nua em todo território paulista. A Serra do Mar Alto da Serra até as cercanias de Sào Paulo, inter-
recebeu mesmo neste setor um nome local particular; rompidas apenas, mas esparsamente, por cumes cris-
Serra de Paranapiacaba. Quanto aos rios, eles não talinos semi-imersos.
facilitam a passagem porque, não correndo perpen- Comparada às demais passagens da serra é este
dicularmente à costa, mas paralelos a ela, com uma portanto um ponto ideal. S6 um abrupto a vencer —
direção estrutural orientada no sentido das dobras do e este mesmo sensivelmente inferior ao da serra de
terreno, NE.-SO., cortam o interior com seus vales leste. Depois disto, um terreno plano de percurso
em seções paralelas ao litoral e que não servem por fácil. Pode observá-lo sem dificuldade quem percorre
isso de passagem cômoda. E tal é a razão principal a linha da Santos-Jundiaí, da estação do Alto da
por que esta grande zona do Estado permaneceu até Serra até São Paulo. Nenhuma obra de arte, de
hoje num quase abandono, com sua escassa popu- vulto, nenhum túnel, nenhum corte notável foi neces-
lação de caboclos que se mantêm na base exclusiva sário. Os trilhos se insinuam entre os cumes crista-
de uma agricultura rudimentar e primitiva. linos que emergem, achando sempre, mesmo sem se
Entre estas partes leste e oeste da Serra do Mar alongarem excessivamente, os terrenos unidos e pla-
interpõe-se a região central, na altura de Santos e nos que encerram aqueles cumes esparsos. Tais sào
São Paulo. Aí a barreira montanhosa desce para 800 os motivos que sempre fizeram desta passagem da
m e ao abrupto da serra segue-se para o interior uma serra, já desde muito antes da vinda dos europeus,
topografia original. Os acidentes do terreno, ao con- um caminho predileto dos índios. A colonização por-
trário do que se dá para oeste e leste, foram aí em tuguesa não fez mais que aproveitá-lo. E a sua prefe-
grande parte entulhados pelo material de decompo- rência se justifica.
sição intensa das rochas cristalinas locais — efeito da Nestas condições, para aquelas funções conju-
temperatura elevada e alta pluviosidade do lugar, gadas a que me referi, de centro de comunicações e
superior a 4 m — e que o mau escoamento não con- convergência da vida do planalto, de um lado; e de
segue drenar. Para leste, existe a drenagem ativa da outro, porto marítimo, isto é, ponto de articulação
bacia do alto Paraíba; para oeste, a do Ribeira de das comunicações do planalto com o exterior, São
Iguape: daí o acidentado do terreno descoberto. No Paulo e Santos apresentam incontestavelmente van-
ponto que nos ocupa, é o alto Tietê, correndo quase tagens naturais consideráveis: todos os fatores geo-
na mesma altitude que o Alto da Serra, que fixa o gráficos se uniam aí para fazer do sistema que em
Caio Prado / fe de São Paulo 55

conjunto ambas as cidades formam, a base funda- das as funções de uma capital no sentido integral da
mental da vida humana de toda esta imensa região Ipalavra: centro político e administrativo, social e cul-
que ocupa o planalto centro-sul do país. tural. São Paulo tomou-se incontestavelmente o cen-
Como se vê, a localização de São Paulo é, sob o tro único de toda a vida humana deste setor do terri-
ponto de vista geográfico, e com relação a toda esta tório brasileiro, que se tomou hoje a mais importante
região que abrange o Estado atual e setores impor- do país. Não podia deixar de ser, portanto, a grande
tantes de Estados vizinhos, separados dele política e cidade que é. E a tudo aquilo veio juntar-se, afinal,
administrativamente, mas pertencentes ao mesmo um novo fator, de certo modo conseqüência já dos
sistema geográfico e econômico, admirável. Verda- anteriores, e que foi a mola-mestra deste considerá-
deira chave e centro dela, São Paulo tinha de neces- vel impulso da cidade nos últimos cinqüenta anos;
sariamente gozar da preeminência marcada, que impulso que faria dela, já não com relação à região
sempre caracterizou, sobre as demais cidades da que ocupa, ou mesmo do país em conjunto, mas em
região; e assim foi no passado como ainda o é hoje. Ê termos absolutos, a grande metrópole de hoje. Isto
certo que houve fases em que outras lhe disputaram foi obra da indústria, que nesta região, a mais desen-
tal primazia. Circunstâncias de momento, que per- volvida e próspera do país, escolhe justamente a ci-
tencem hoje inteiramente à História, fizeram com dade de São Paulo por centro principal.
que tais cidades rivais de São Paulo passassem mo- Nem podia ser de outra forma: a localização da
mentaneamente para um primeiro plano. Taubaté, indústria, ou pelo menos da sua parte mais impor-
Itu, mais recentemente Campinas, tiveram fulgores tante, não podia fugir da capital. Aí ela se encontra
passageiros que ofuscaram quase a supremacia pau- não somente no centro das comunicações do seu
listana; sob certos aspectos pelo menos. Num ba- mercado principal, que é justamente o Estado e re-
lanço geral da história, contudo, encontraremos São giões circunvizinhas, como ainda na proximidade de
Paulo sempre em primeiro lugar e acompanhando Santos, que para a indústria tem uma dupla função:
paripassu, se não cor avanço, o desenvolvimento da é por mar que se escoa uma boa parte da sua pro-
Capitania, da Província, do Estado. Chamou para si dução em demanda de outros mercados nacionais;
o comando e a direção de todos os setores da vida e é por via marítima que chega a maior parte da
paulista, e já hoje ninguém poderá mais duvidar da matéria-prima e dos produtos semi-acabados que
sua liderança efetiva e total. Em conseqüência da sua utiliza, bem como todo seu aparelhamento mecâ-
posição de centro geográfico e econômico, foram-se nico.
concentrando nela aos poucos, com exclusão com- Nestas condições, só uma circunstância teria
pleta, pode-se dizer, das demais cidades paulistas, sido capaz de desavantajar São Paulo neste terreno
56 Caio Prado Jr,

da atividade industrial, e esta seria a deficiência da


energia, problema sério num país que é pobre em
combustíveis. A única fonte de energia aproveitável
em larga escala no Brasil é a hidráulica, e o desen-
volvimento industrial do país está, por enquanto pelo
menos, na dependência quase exclusiva dela. O nosso
carvão é pouco e de má qualidade; o petróleo ainda é
um projeto. O combustível utilizado até hoje em
escala apreciável entre nós foi a lenha das nossas
matas, ou então, mais recentemente, o carvão impor-
tado. Fontes precárias, se não imprestáveis para uma
indústria de vulto. Recorreu-se por isso à energia
hidráulica; e aí, o país estava admiravelmente apa-
relhado. O seu solo acidentado, que tantos ônus
apresentara e ainda apresenta ao desenvolvimento da
penetração e da ocupação humana, conceder-lhe-ia
ao menos esta vantagem que a era da eletricidade
tornou aproveitável: energia hidráulica em abun-
dância.
São Paulo não foi excluído deste fator da natu-
reza. Se na proximidade imediata da capital, os rios
(em particular o Tietê, único de águas volumosas)
têm um curso pouco acidentado, correndo em ter-
reno plano e formando as várzeas imensas que repre-
9 sentaram um papel tão grande, como veremos, na
^ estrutura e configuração da cidade, o seu perfil muda
radicalmente pouco adiante. Quando o Tietê sai des-
tes terrenos argilosos onde se situa a capital (e que 0 Vale do Tietê se estreita, o rio torna-se um canal repre-
analisarei com mais vagar em outra parte deste tra- sado entre rochas duras e resistentes à erosão onde as
balho), e rompe a barreira montanhosa um pouco águas se precipitam num curso quase torrencial por sobre
para oeste, onde começa a ocorrência do cristalino. corredeiras e cachoeiras ininterruptas.
58 Caio Prado Ji ! de São Paulo 59

se interpõe à sua passagem; depois desta soleira de dantes cursos de água que regam aí o Alto da Serra, e
rochas resistentes que fixa o nível de base do seu formadas estas imensas represas que se estendem
curso superior e é o responsável pela senilidade da- hoje daquele alto até Santo Amaro (60 km em sua
quele curso, o Vale do Tietê se estreita, o rio torna-se maior extensão), conseguiu-se desviar as águas assim
um canal represado entre rochas duras e resistentes à retidas da bacia do Tietê, a que pertenciam, para o
erosão onde as águas se precipitam num curso quase mar, jogando-as serra abaixo de uma altura de
torrencial por sobre corredeiras e cachoeiras inin- 800 m.
terruptas. Ê este o aspecto do Tietê depois que se Não houve, portanto, como certamente não ha-
afasta de São Paulo; e aproveitando tal acidente vería, obstáculo algum de vulto que se opusesse ao
geográfico, construíram-se as primeiras grandes usi- desenvolvimento da indústria paulistana. E o im-
nas hidrelétricas do Estado: Parnaíba e Rasgão (Pi- pulso que vai dar à cidade, que passa rapidamente a
rapora). O potencial aí obtido foi suficiente, durante ser um grande centro manufatureiro, é considerável.
muitos decênios, para satisfazer às necessidades da Basta observar a curva do crescimento demográfico
grande cidade industrial em que se tornava São de São Paulo a partir de 1890, quando se inaugura
Paulo. justamente esta fase industrial: ela inflete, então,
Mas, o futuro só se tornou garantido quando os fortemente para cima, indicando com nitidez o efeito
olhos se voltaram para outro lado, para esta barreira que sobre ela teve a industrialização.
imensa que se levanta tão próxima da capital, e que O papel da indústria paulistana na importância
até então servira apenas para embaraçar as comuni- da cidade se exprime hoje pelo número dos traba-
cações do planalto com o litoral; refiro-me à Serra do lhadores nela empregados, e que sobe a quase
Mar. O desnivelamento aí, a prumo, e que se cifra 300 (XX), ^ o que representa cerca de um quarto do
em mais de 800 m, resolveu cabalmente, e pode-se total dos trabalhadores industriais do Brasil. Com-
dizer que para sempre, o problema da energia de São putando-se as famílias daqueles trabalhadores, veri-
Paulo. Porque ele alia, para o feito em questão, a fica-se que pelo menos metade da população total
abundância da água que fornece uma pluviosidade paulistana é composta de pessoas que tiram direta-
considerável, mais de 4 m anuais do Alto da Serra. mente da indústria seus meios de subsistência. Ê o
Encontrava-se assim, na vizinhança próxima de São suficiente, creio, para mostrar o que significa a in-
Paulo — algumas dezenas de quilômetros apenas — dústria para a importância da cidade.
em condições de potencialidade e facilidade de apro- Se a indústria foi a mola-mestra do desenvol-
veitamento excepcionais, uma fonte praticamente vimento urbano de São Paulo neste último meio sé-
inesgotável de energia hidráulica. Captados os abun- culo em que a cidade passou para o rol dos grandes
60 Caio Prado ! de São Paulo 61

1950 Se computamos os filhos de estrangeiros, chega-


2221 s n à conclusão que a maioria da população paulis-
la é hoje estrangeira ou de recente origem estran-
!ira. São Paulo forma assim um destes típicos cen-
•s cosmopolitas que resultaram do fato mais sa-
^licnte do século passado até princípios do atual, e
1940 que é o enorme deslocamento humano que então se
1318539
verificou da Europa para a América. Encarado por
este prisma, São Paulo é um fato análogo ao das
grandes cidades norte-americanas; e, na América do
Sul, ao das capitais da Argentina, Buenos Aires, e do
1920 Uruguai, Montevidéu (embora esta última em muito
579033
menores proporções). Quem procura compreender
São Paulo não pode esquecer este aspecto da ques-
tão; tanto mais importante que sem aquelas fortes
correntes imigratórias, a cidade não seria certamente
centros urbanos contemporâneos, é a imigração es- ò que é, e o São Paulo que aqui procuro descrever
trangeira que, fornecendo-lhe a maior parte do ele- não existiría. A explicação do desenvolvimento pau-
mento humano, contribui sobretudo para aquele seu listano e do caráter da cidade tem para fazer de São
notável crescimento demográfico. Não existem dados Paulo a grande cidade que é. De um lado os fatores
que exprimam o número de estrangeiros fixados em que chamarei internos, e que são a localização da
São Paulo no correr deste meio século de industria- cidade no centro natural e ponto de convergência de
lização e imigração — que são os dois fatos máximos uma grande região altamente favorável ao desenvol-
da vida da cidade naquele período. Mas podemos vimento e progresso do homem; é o que procurei
avaliar aquela contribuição pela nacionalidade dos mostrar nas páginas anteriores. A outra causa seriam
seus habitantes. O recenseamento de 1949 apresenta os fatores gerais que, na distribuição da imigração
os seguintes resultados: européia na América, escolheram para pontos de
concentração certos setores privilegiados entre os
Brasileiros 955 173 72%
Estrangeiros 371088 28%
quais figura esta parte meridional do Brasil, e São
Paulo em particular. Seria este, sem dúvida, um
1326261
capítulo indispensável para um estudo de conjunto
62 Coib Prado i Id» São Paulo 63

da cidade e da sua vida. Mas ele excede um pouco o interessa particularmente, com o Tietê e seus
assunto restrito de que aqui me ocupo; e contento- afluentes da margem esquerda, o Tamanduateí
me, por isso, em deixá-lo apenas assinalado. O Pinheiros (que no seu curso superior é o Guara-
anga). Estes três rios, em particular o primeiro,
longe o mais caudaloso, correm em largas várzeas
Estrutura interna da cidade ide chão plano que, unindo-se na confluência deles,
! liolam um pequeno maciço de forma alongada na
Sobre esta larga faixa de terrenos cristalinos de direção leste-oeste, com altitudes várias que atingem
formação arqueana e relevo extremamente aciden- em alguns pontos 820 m, isto é, pouco mais de 100 m
tado que beira o litoral paulista, constituindo os seus acima do nível das baixadas que o limitam.
dois grandes sistemas orográficos, a Serra do Mar e a Este maciço, embora da mesma constituição
da Mantiqueira — faixa esta que não é senão o bordo geológica que as planícies circunjacentes, escapou da
oriental do embasamento cristalino do Brasil que ação erosiva e aplanadora sofrida por estas; e ficou
aflora aí descoberto como se dá, aliás, ao longo de ai, nitidamente destacado, a dominar uma larga área
quase toda nossa costa e em grande parte do terri- de terrenos planos. É numa das extremidades dele
tório interior do país — depositaram-se no terciário que nasceu a cidade de São Paulo; hoje ela o ocu-
sedimentos argilosos de origem flúvio-lacustre que pa inteiramente, transbordando mesmo largamente
desenham na carta geológica do Estado duas peque- para fora em todas as direções; mas o núcleo prin-
nas manchas. Uma, de forma alongada, constitui cipal da cidade ainda é este que cobre o maciço.
hoje o fundo do Vale do Paraíba; a outra, mais Cercado por aquelas várzeas citadas, que o iso-
compacta, situa-se a meio caminho do litoral pau- lam, o maciço paulistano liga-se por sua extremidade
lista, afastada uns 50 km para o interior. Estes ter- leste com as demais elevações deste relevo de colinas
renos argilosos, em contraste com as rochas cristali- sucessivas a que me referi e que constitui o aspecto
nas que os cercam, dão um relevo menos acidentado: fisiográfico particular da bacia flúvio-lacustre em que
em vez de serras, uma sucessão contínua de colinas se situa, por uma linha de altitudes que oscilam em
com desnivelamentos que não ultrapassam algumas torno dos 800 m e que formam um espigão que se
dezenas de metros. E os grandes cursos de água que prolonga, sempre com a mesma altitude, pelo maciço
os regam abrigam neles várzeas externas que for- a dentro, constituindo como que sua espinha dorsal.
mam, com suas largas planícies, os únicos terrenos É dele que se desprendem as rampas que em declive
lisos de toda esta parte leste do Estado. Ê o que se dá .mais ou menos acentuado, sobretudo a segunda refe-
com o Paraíba; e na outra mancha citada que aqui rida abaixo, descem, para norte e leste, em demanda
64 Caio Prado I Ide São Paulo 65

das várzeas do Tietê e do Tamanduateí; e para sul e as águas abundantes que se despejavam sobre
sudoeste, do Pinheiros. No esquema junto pode-se vertente do espigão. Cavaram por isso leitos
observar este espigão mestre do maciço paulistano, ifundos que cortam a cidade, dividindo-a em
que nele figura em sombreado e que é hoje acom- apartimentos até hoje ainda de comunicação difí-
panhado pelas seguintes vias públicas: Rua Domin- entre si por sobre os vales de vertentes quase a
4 gos de Morais, Avenida Paulista, Avenida Dr. Ar- ^rumo que os separam, e que obrigaram, nos pontos
naldo, Alto do Sumaré, prolongando-se até o alto da íttiais importantes da cidade, à construção de via-
Vila Pompéia, onde o terreno descamba à procura da f dutos que dão a São Paulo um dos seus aspectos mais
confluência do Pinheiros e do Tietê. ^característicos: viaduto de Santa Ifigênia, do Chá,
A sua vertente mais importante — importante Major Quedinho, Martinho Prado, Maria Paula.
com relação à cidade — é a que olha o N ., descendo Deriva dessa topografia irregular o sentido geral
para o Tietê. É nela que se acha o setor mais antigo, do desenvolvimento da cidade e a estrutura do seu
e até hoje, núcleo central da cidade. Observemo-lo plano fundamental. A cidade nasceu justamente do
mais de perto. Dois riachos, um afluente do Taman- promontório que forma a várzea do Tamanduateí de
duateí, o outro do Tietê, cavaram nesta vertente e um lado, e o Vale do Anhangabaú do outro, domi-
perpendicularmente a ela, sulcos profundos que, em nando aí a planície extensa formada por aquela vár-
particular o primeiro, tiveram e têm ainda um papel zea e a do Tietê, no ponto em que confluem. Esse foi
de relevo na configuração geral e na estrutura da 0 local escolhido pelos primeiros povoadores brancos
^ cidade. São eles: o Anhangabaú (com seus dois da cidade em virtude das vantagens estratégicas que
afluentes: o Saracura e o Bexiga) e o Pacaembu. oferecia para um núcleo que contava pela frente com
O eixo desses riachos que hoje desapareceram traga- a hostilidade do gentio, e é naquele promontório, que
dos pela canalização subterrânea que São Paulo mo- na terminologia corrente passou a chamar-se a “co-
derna exigia, deixando apenas o testemunho doo lina central” , que se fixou o centro da cidade, repro-
vales profundos que cavaram, está assinalado, no es- duzindo o atual Triângulo, como são conhecidas as
quema junto, por linhas pontilhadas. Correndo em três ruas principais — Quinze de Novembro, São«
declive acentuado, sobre um terreno formado pela Bento e Direita, que nem por isso deixa de ser torta
mesma argila friável de todo o maciço, e portanto — o traçado dos primeiros caminhos que palmilha-
pouco resistente; alimentados pela pluviosidade ele- vam aquele promontório quando São Paulo cabia
vada e de chuvas torrenciais que caracterizam o clima inteiramente nele e era apenas o pequeno arraial de
paulistano, esses riachos formavam antes, sobretudo jesuítas, índios, mamelucos e uns poucos brancos.
na estação das chuvas, fortes correntes que reco- Daí irradiou a cidade; e as.linhas pelas quais se
de São Paulo 67
66 Caio Prado Jr,\

fez esta irradiação que acompanhou, como era natu- •O nosso Santo Amaro), bem como o oeste da capita-
ral, as antigas estradas, fixaram o traçado das gran- nia: Pamídba, Porto Feliz, Sorocaba. Esta estrada,
des artérias de hoje. Desceu para o Tietê seguindo as principiando no mesmo ponto que a anterior, al-
elevações que ficam no ângulo formado pelas várzeas cança por uma ladeira íngreme (ladeira do Piques,
deste rio e do Tamanduateí, e riscando o traçado hoje Rua Quirino de Andrade) o alto do espigão que
atual das ruas Brigadeiro Tobias e Florêncio de separa o Anhangabaú do Pacaembu, seguindo por
Abreu. Para o Tamanduateí, atravessando-o e se- ele; e é hoje reproduzido pela Rua da Consolação.
guindo além, sempre para leste, foi margeando a Ficou assim delineada a cidade e balizado o seu
estrada que levava às cidades e povoações do Vale do crescimento. Este se fez inicialmente, de preferência
Paraíba. Em sentido oposto, a expansão da cidade e quase exclusivamente, no interior do maciço prin-
encontra os obstáculos da topografia acidentada do cipal da cidade. As planícies que o cercam, salvo ao
maciço. Envereda pelos espigões, acompanhando as longo das estradas que as atravessam para leste e
estradas que procuram os altos porque aí encontram para norte, ficaram desertas: terreno ingrato, var-
um terreno melhor e porque, para irem além, têm de zeoso, pouco saudável, ninguém o queria. £ um fator
galgar o espigão mestre do maciço que fecha a cidade recente que lhes deu vida e impulsionou para elas o
para o sul. Três são estas estradas principais: a pri- crescimento da cidade. São as estradas de ferro.
meira toma o dividor entre o Tamanduateí e o Estas não acompanham as antigas vias de comuni-
Anhangabaú — e é hoje representada pela Rua da cação situadas em regra nos altos; instalam-se na-
Liberdade, que continua pela Rua Vergueiro até a quelas baixadas, onde encontram um terreno mais
estrada do mesmo nome. A outra, começando no igual e fácil, cosendo-se embora, para ficarem pró-
fundo do Vale do Anhangabaú, no ponto em que este ximas do núcleo povoado, às rampas que limitam o
recebe o seu afluente Saracura (hoje esse ponto é o maciço onde estava concentrada a cidade. A São
Largo da Memória) procura o divisor destes riachos, Paulo Railway (hoje Santos-Jundiaí), primeira linha
e é nos dias que correm a Rua Santo Amaro, prolon- ferroviária que cortou o território paulista, comu-
gada pela Avenida Brigadeiro Luís Antônio (cujo nicando, através da capital, o porto (Santos) com o
setor mais próximo do centro é de origem muito mais setor mais importante do Interior, cuja porta está em
recente). Finalmente, a última destas estradas que Jundiaí, atravessa São Paulo beirando o maciço da
seguem para o sul é a que demanda as aldeias e cidade sem penetrar; descreve assim um arco de
povoações que se formaram nas margens do rio Pi- círculo que, tomando pela baixada do Tamanduateí,
nheiros e seus afluentes (Pinheiros — hoje bairro segue depois da confluência deste com o Tietê, pela
desse mesmo nome — Mbói, Itapecerica, Ibirapuera, deste último rio até fora da cidade. Nesta linha ini-
68 Caio Prado À réê Sõo Paulo 69

ciai entroncam-se as que vieram depois: a Central


do Brasil que acompanha as margens do Tietê, rio rários.-que se estabelecem nos terrenos mais in-
acima; a Sorocabana, rio abaixo. Itos das baixadas do Tietê e do Tamanduateí, as
As ferrovias atraíram o povoamento que toma, lldências burguesas se fixam nas alturas do ma-
Localizam-se, a princípio, contíguos ao centro,
assim, uma nova direção. Ao longo delas fixam-se as
indústrias que procuram, como é natural, suas proxi-
ra 0 lado do Tietê, isto é, na direção norte; e daí
acompanhando o bordo inferior do maciço,
midades. E com a indústria vem o seu acompanha-
9UCO acima da linha em que começa a baixada do
mento necessário que são os bairros operários. Assim
É aí que se instala o bairro de Santa Ifigênia,^
se formam estes setores recentes, hoje densamente
povoados, que envolvem as estradas de ferro e bor- )m suas residências aristocráticas de fins do século
dam, como uma auréola, as faces sul e leste do Ppassado, que se prolongam depois pelos Campos Eli-*'
maciço paulistano: Ipiranga, Cambuci, Mooca, Brás, ?llos. Para o outro lado da cidade, isto é, nos pontos
Pari, Luz, Bom Retiro, Barra Funda, Água Branca, tnais elevados desta vertente do maciço, aparecem
Lapa. primeiro as chácaras, cujos parques e jardins vão
lendo loteados e substituídos aos poucos por verda-
O centro comercial ficou na colina (mais pro-
deiros bairros urbanos compactos. Ê o caso da Con-
priamente, como vimos, um promontório) onde nas-
solação; depois, seguindo a antiga estrada do Ver-
ceu a cidade. Mas espremido no espaço acanhado
gueiro, a Liberdade; e já no alto do espigão mestre
que lhe reservaram os barrancos que o cercam de três
do maciço, a Vila Mariana. ^
lados, vai-se alargando pelas elevações fronteiras, do
Em princípios do século atual, os bairros resi-
outro lado daqueles barrancos, graças à facilidade de
acesso que lhe proporcionaram os viadutos já refe- denciais lançam-se decididamente pelo flanco do
ridos — o primeiro dos quais, o do Chá, foi inau- maciço, subindo-lhe as encostas à procura de terre-
gurado em 1892. nos mais altos e saudáveis; é a vez de Higienópolis,»
que será o bairro da aristocracia paulista das for-
As residências burguesas ou médias, que, até
fins do século passado, nesta insignificante cidade tunas saídas do café. E subindo sempre, as residên-
que mais não era então São Paulo, se confundiam cias alcançam o alto do espigão, onde se instala,
acompanhando-o fielmente, a Avenida Paulista. Já
com o centro comercial, destacavam-se quando o
então a progressão cafeeira se interrompera, as novas
crescimento da atividade urbana já não comportava
fortunas saem da indústria e do comércio, quase todo
mais residências em pleno centro. Ê lá por 1880 que
em mãos de estrangeiros, imigrantes enriquecidos
se formam os primeiros bairros propriamente resi-
nesta Canaã americana: a Avenida Paulista será o
denciais; e vamos notar que, ao contrário dos bairros
bairro residencial dos milionários desta nova fase da
70 Caio Prado Jt f ê» Sõo Paulo 71

economia paulista, estrangeiros ou de recente origem Itituir um núcleo já povoado quando a cidade o
estrangeira quase todos. E a arquitetura do baiito o Itnça — ao contrário dos terrenos vizinhos, então
dirá bem claramente. ipletamente desertos — tomava mais difícil o
Da Avenida Paulista, pelas escarpas abruptas ibelecimento aí de um bairro residencial mo-
que demandam a várzea do Pinheiros, descem novos irno. De outro lado, a proximidade maior do rio
bairros. E a própria várzea começa a ser ocupada; já lheiros, cujas margens são um foco permanente de
não, como foi o caso de suas irmãs do Tietê e do >squitos, fazia-o menos atraente. Deixou-se por
Tamanduateí, por populações operárias, mas pela IO o bairro às categorias mais modestas da popu-
mesma burguesia de Higienópolis e da Avenida Pau- piação.
lista. Inaugura-se tal ocupação por esta obra-prima Com o povoamento da várzea do Pinheiros, bem
de urbanismo que é o Jardim América, iniciado em eomo do setor oeste do maciço, para lá da margem
1910. A designação ficará, e os bairros da várzea do aiquerda do Vale do Pacaembu, cuja ocupação foi
Pinheiros serão todos “jardins” : Jardim Paulista, limultânea àquela (e igual no caráter, isto é, resi-
Jardim Europa. Jardins no nome e no aspecto: vege- dencial burguês), termina a ocupação integral do
tação profusa, amplos espaços livres, construções maciço principal da cidade. Mas, não terminou sem
isoladas em meio de grandes parques. Será este o deixar atrás de si muitos claros que ainda subsistem.
recanto mais pitoresco de São Paulo; o seu caráter se A vertente norte, em particular, ficou cortada por
afasta completamente dos modelos urbanísticos que áreas não urbanizadas: são aquelas que os vales
herdamos do passado, e traz um cunho acentuada- abruptos e já citados, do Anhangabaú e do Pa-
mente anglo-saxão que lhe imprimiu a empresa da- caembu, sobretudo do primeiro, neste sentido muito
quela origem que lançou este tipo de urbanismo mais atrasado, embora, pela sua posição central,
depois largamente imitado. mais importante, tornavam inaproveitáveis sem gran-
Encravado nestes bairros aristocráticos ficou a des trabalhos preliminares de preparo do terreno. E
velha povoação de Pinheiros, antes tão longe da ci- São Paulo conservou, plantado em cheio nele, setores
dade, e que, alcançada e englobada por ela, se trans- que em nada se parecem como pertencentes a uma
formou em simples bairro. Mas não acompanhará grande cidade. São desbarrancados onde a ação do
em categoria os bairros vizinhos: Pinheiros vai for- homem não se fez ainda sentir e em que, entre a
mar, em meio dos jardins e parques deste setor su- vegetação silvestre que aí cresce desordenadamente e
doeste da cidade, que se destinara às residências de sem peias, encontram-se ainda aspectos de caráter
luxo, uma nota dissonante — um modesto bairro de rural, quando não da mais primitiva vida do nosso
'população operária. Ê que, de um lado, o fato de sertão. Só muito recentemente, com a abertura de
72 Caio Prado Jr, ; I dê São Paxdo 73

avenidas que percorrem o fundo daqueles vales (Nove Oriente, Belenzinho, prolongando-se até a
de Julho, Pacaembu e Itororó, ainda em projeto) se i; o mesmo se deu com toda a faixa que beira o
começaram a urbanizar estes setores esquecidos da eiço e onde correm as linhas da Santos-Jundiaí e
cidade, integrando-os h a sua vida de grande centro. Sorocabana, o que aliás já referi acima. Mais
Voltemos contudo, aqui, àqueles setores da ci- Ia Ix o contudo, na várzea propriamente, onde o
dade que ficam para leste e norte, invadindo as bai- Btê corre com o seu curso caprichoso de meandros
xadas do Tamanduateí e do Tietê, e que deixamos i anéis sucessivos, e onde, na estação das chuvas, a
para acompanhar a ocupação desta parte mais im- la transborda largamente e se espraia em alguns
portante e central da cidade que é a do maciço. Re- jntos sobre um a dois quilômetros de largura, a
feri que para aquele lado o maciço ficou bordado por ^ocupação torna-se impossível sem a canalização do
^um a cintura industrial que acompanha as linhas de Wo, que foi até hoje protelada (e que representa sem
estrada de ferro. Tal determinação se manteve: estas dúvida a maior, mais importante e premente obra de
direções do crescimento da cidade, ao contrário da urbanismo que São Paulo está a exigir). Por isso a
direção sul, de caráter residencial e burguês, ficaram cidade interrompe-se aí, para recomeçar muito além,
reservadas às indústrias e povoamento operário. A nos altos que beiram a várzea na sua margem direita.
várzea do Tamanduateí, mais estreita que a outra, Nestes altos já se tinha fixado, desde o início da colo-
foi cedo urbanizada com a canalização do rio, o que nização, algum povoamento. Nossa Senhora da Ex-
regularizou o escoamento das suas águas, estancando pectação do õ é o mais antigo arraial do planalto
as cheias periódicas e tornando habitáveis as suas paulista depois de São Paulo. Uma linha de bairros ^
margens. Acompanham-nas hoje parques e avenidas sucessivos os acompanha hoje, desde aquele antigo
ajardinadas (Independência, Estado, Parque D. Pe- povoado, integrado na cidade com o nome de Fre-
dro II, Cantareira, em vias de conclusão); e a cidade, guesia do ó : Casa Verde, Chora-Menino, Mandaqui,
sem solução de continuidade, ocupou a várzea e se Santana, Vila Guilherme, Vila Maria etc. A várzea é
estendeu para as elevações do outro lado da baixada, apenas ocupada em estreitas faixas que a atravessam
adensando-se aí uma população considerável que em perpendicularmente, acompanhando as vias de co-
bairros sucessivos leva hoje a cidade até as proximi- municação, artificialmente elevadas por aterros aci-
dades do município de São Caetano. ma do nível das enchentes, e que ligam o corpo da
A urbanização da baixada do Tietê foi prote- cidade àqueles bairros afastados: Avenida Santa Ma-
lada; uma parte, a mais importante porque acompa- rina, Estrada do Limão, Avenida Rudge, Rua Vo-
9 nha e envolve a Estrada de Ferro Central do Brasil, luntários da Pátria, Avenida Guilherme Cotching e
integrou-se na cidade, e forma hoje os bairros do umas poucas outras. Sem contar esta estrada de ferro
74 Caio Prado Jr, Ide São Paulo 75

de brinquedo, embora de enorme importância para I propaganda mais intensa ou mais hábil. As terras
São Paulo, que é a Cantareira. Icercavam São Paulo quando se deu o surto atual,
A população destes bairros é a mesma da parte Icomeça nos últimos anos do século passado, es-
ocupada da baixada: operários que se fixaram £u ivam praticamente abandonadas. Os especuladores
(embora longe das indústrias, que se conservaram terrenos, adquirindo-os a preço baixo (ou a preço
nas margens das estradas de ferro) para aprovei- lenhum pelo tão difundido sistema do “grilo” , que é
tarem terrenos baratos, comprados a prestações, ocupação pura e simples sem título algum), não
onde podem construir suas casinhas, comumente iso- ftlveram mais que traçar as ruas, às vezes no papel
ladas, mesmo no centro de um minúsculo terreno apenas, e passá-los aos compradores, que o cresci-
livre, que muitas vezes é horta ou jardim. Constitui mento considerável e vertiginoso da cidade fornecia
mesmo o aspecto característico da maioria daqueles em abundância. E como cada qual cuidava natural-
bairros enumerados (como se dá aliás com o dos ci- mente apenas do seu, permanecendo os poderes pú-
tados mais acima, que prolongam a cidade pelo Ta- blicos numa indiferença completa, aconteceu o que
manduateí para suleste), este de casinholas, verda- era fatal: bairros desarticulados e desordenadamente
deiras caixas de fósforos, espalhadas por morros e distribuídos, que mesmo quando traçados interna-
colinas. mente com algum critério — o que aliás raramente
Em resumo, São Paulo compõe-se hoje de um foi o caso — não se ligam entre si, não fazem ao
núcleo central que ocupa o maciço cercado pelas menos corpo com a cidade dentro de um sistema
várzeas do Tietê, do Tamanduateí e do Pinheiros; e lógico e de conjunto. Surgindo como surgiram, da
de uma auréola de bairros que se instalaram numa noite para o dia, ao acaso das conveniências ou opor-
parte destas várzeas, e, transpondo-as, vão alargar- tunidades da especulação, não são em regra contí-
se pelas elevações da outra margem. Bairros que guos, sucedendo-se ininterruptamente, como seria
nasceram, em sua grande maioria, ao acaso, sem numa cidade planejada: espalham-se por aí à toa, fa-
plano de conjunto; frutos da especulação de terrenos zendo sucessão de áreas urbanizadas com interrup-
em “lotes e a prestações” — o maior veio de ouro que ção de outras completamente ao abandono, onde
se descobriu nesta São Paulo de Piratininga do século muitas vezes nem ao menos uma rua ou caminho
XX. Desenvolveram-se muitas vezes, o mais das vezes transitável permite o acesso direto. Pode-se dizer que^^
mesmo, não porque o local escolhido fosse o melhor salvo na sua parte central que ocupa o maciço, e na
ou respondesse mais às necessidades imediatas da ci- vizinhança imediata dele, São Paulo é uma cidade,
dade, mas simplesmente porque eram vendidos com que ainda espera ser urbanizada, no sentido integral
facDidades maiores de pagamento ou acompanhados da palavra; espera ser organizada, que todas suas
76 Caio Prado Jr, Ide São Paulo 77

partes se integrem num sistema geral de comunica- 10 da região circunvizinha, com exceção apenas
ções e vias públicas, onde os melhoramentos e ser- Ibaixadas dos grandes rios que a banham, fez de
viços, como seria elementar, se estendam homoge- Paulo uma cidade das ladeiras, cujo declive
neamente sobre toda a área ocupada. Está aí, certa- Bntuado longos e penosos trabalhos de urbanização
mente, o maior programa de obras urbanísticas que iseguiram apenas, e só em poucos casos, suavizar.
São Paulo hoje apresenta. Uras são as ruas mais ou menos planas da cidade,
Quanto à distribuição dos tipos de setores urba- Jvo aquelas que percorrem transversalmente al-
nos dentro da cidade, o zoning, já referi em linhas iima encosta mais uniforme, ou as que pertencem
gerais como ele se fez. O seu traço mais saliente e >aos bairros que ocupam as baixadas dos rios. O
característico é esta divisão que se estabelece entre o mesmo acidentado da topografia determinou tam-
maciço, onde ficou o centro comercial, o setor resi- bém este outro traço característico e já referido, que
dencial das classes médias — que começam ultima- lão os viadutos; a cidade já conta com cinco de
mente a se aglomerar em tomo do centro, nos gran- grande vulto; outros muitos estão em projeto, e o seu
des prédios modernos de apartamentos, feição que número tenderá sempre a crescer: o modelado do
São Paulo só conhece de vinte anos para cá — e à terreno o impõe. A cidade acabará com um verda-
medida que se vai em direção sul, subindo o espigão deiro sistema completo de vias públicas suspensas
e descendo depois sua vertente oposta, das classes que lhe emprestará um caráter talvez único no mun-
superiores, numa gradação quase perfeita (os terre- do. Com os viadutos virão os túneis: um já atravessa <
nos residenciais mais caros de São Paulo são hoje os o espigão mestre da cidade, comunicando o centro
da Avenida Paulista); e doutro lado, as baixadas do comercial, pelos vales do Anhangabaú e Saracura,
Tietê e do Tamanduateí, bem como das elevações da com os bairros da várzea do Pinheiros; outros se tor-
outra margem que acompanham, ocupadas pelas narão com o tempo indispensáveis, e será este mais
classes proletárias; ambos estes setores separados por um traço original de São Paulo que, com o outro,
uma cintura de indústrias que envolvem as linhas de fará dela uma cidade dividida em dois planos sobre-
estrada de ferro, bordando a base do maciço. postos, cidade de dois pavimentos.
I Concluindo, pode-se dizer que a estrutura da Os cursos d’água tiveram um papel ainda maior.g
cidade de São Paulo foi grandemente influenciada As grandes várzeas formadas pelos três principais
pelos fatores geográficos, sobretudo o relevo e os oferecem, de um lado, terrenos planos inexistentes
cursos de água, que lhe marcaram profundamente a noutra parte da região onde está localizada a cidade,
fisionomia. (O primeiro, pelo acidentado deste ma- e foram por isso aproveitadas, como vimos, para a
ciço que se escolheu como berço da cidade, bem instalação das linhas de estrada de ferro, o que deter-
7S Caio Prado Jr.

minou o desenvolvimento aí dos setores industriais


da cidade. Doutro lado, os seus pontos mais sujeitos
às enchentes periódicas foram evitados e contorna-
dos; daí estes claros que interrompem a cidade, e
fazem o transeunte tão freqüentemente estacar sur-
preso, na extremidade de uma rua densamente po-
voada e movimentada, diante de um pântano ou
largas extensões vagas, onde, num conjunto pura-
mente rural, vagueiam soltos animais domésticos,
vacas, burros, cabras, ou aparece alguma pequena
cultura de hortaliças. Aspecto semelhante se observa
no próprio coração da cidade, neste outro setor que
ocupa o maciço central; já referi os claros que aí
abrem os vales de vertentes abruptos do Anhangabaú
e seus afluentes. E o mesmo se observa nesta auréola
de bairros esparsos que circundam o núcleo central
da cidade. Tudo isto faz de São Paulo uma cidade
descontínua, em que se alternam, num caos com-
pleto, aspectos de grande centro urbano, modesto
povoado de roça, ou mesmo zona de sertão. O pro-
gresso da cidade vai naturalmente suprimindo tudo
isto, e a urbanização vence, aos poucos, aqueles obs-
táculos naturais e outras dificuldades que o cresci-
mento fulminante da cidade não teve tempo de aba-
ter, preferindo contorná-los e deixá-los provisoria-
mente entregues à sua feição natural. Tempo virá em
que São Paulo, contínuo e homogêneo, será apenas a
monotonia de um grande centro moderno. Mesmo,
contudo, os antigos cursos d'agua, sumidos em cana-
lizações subterrâneas ou represados em leitos de ci-
mento e pedra, estarão ainda aí, seja no acidentado
80 Caio Prado Jr. de São Paulo 81

da topografia, por eles esculpida, seja no traçado das já o assinalei muitas vezes, abrange não somente o
ruas e avenidas, cujas linhas mestras serão sempre Estado de que é a capital, mas invade Estados vizi-
estas grandes vias que acompanham, como as velhas nhos, é considerável. Resumir este fato de natureza
estradas do São Paulo quinhentista, os espigões, ou o tão complexa em algumas páginas é tarefa impos-
fundo dos vales; saltando por pontes as escarpas sível; sem esquecer que o assunto tem sido até hoje
mais abruptas, ou varando-as por túneis. muito poucas vezes considerado. Mas, creio que não
é admissível deixar de assinalá-lo. Entre outras ra-
zões, está em que se liga a uma das questões mais
Projeção exterior de São Paulo importantes a serem tratadas num estudo completo
da cidade, sob o seu aspecto geográfico, e que diz
O exterior fez São Paulo: é o desenvolvimento e respeito ao seu abastecimento. A manutenção destes^
a riqueza da região do país de que ocupa o centro, milhões de pessoas que se aglomeram em São Paulo/
que lhe impulsionou o progresso aíg fazer dele a depende da importação maciça de produtos agrícolas!
grande cidade que é. Em sentido contrário agiu a que têm de ser procurados fora dela. Tal necessi-\,
cidade, estendendo ao seu redor e para longe, num dade, que é vital, exige por seu turno um aparelha-
largo círculo que a expansão do organismo paulista mento imenso — instalação de culturas e indústrias
«vai tomando cada vez maior, a sua influência. In- agrárias, vias de comunicação, organização comer-
fluência complexa e múltipla que não cabería abor- cial — cujo papel na vida econômica e social, bem
dar aqui em seu conjunto, mas que pertence sem como na estrutura geo-humana de São Paulo é consi-
dúvida, em alguns de seus aspectos, à geografia. A derável. A geografia, mesmo num esboço sumário
intensidade da vida num grande centro urbano como como este, não pode esquecê-lo.
São Paulo representa um estímulo constante que atua Faltam infelizmente, neste terreno, os dados
em seu redor; é um foco de energias que irradiam e mais importantes, fundamentais para um estudo
vão despertar, às vezes a grande distância, atividades completo de tal natureza, e que são os elementos
e transformações que interessam à geografia e que se estatísticos. O que São Paulo consome, o que lhe
tornam inexplicáveis quando é esquecida aquela chega diariamente em quantidades certamente imen-
fonte donde partiu o impulso inicial e renovador. sas pelas suas estradas de ferro e de rodagem, é igno-
A influência da cidade de São Paulo na vida rado. Estamos aqui restritos ao consumo de dois gê-
econômica, e em conseqüência, entre outras, na pai- neros apenas: a carne e o leite, sobre que existem
sagem — de tão grande importância para o geógrafo dados oficiais; ainda assim incompletos, porque os
— de muitos setores da região que ocupa, e que. números são dados em bloco, sem distinção da ori-
82 Caio Prado Jr, de São Paulo 83

gem, isto é, das regiões de proveniência, de tâo gran- ela deficiência do solo como pelo acidentado da
de importância para a geografia. Na falta de tais Dpografia, é compensada pelo alto rendimento de
dados, e enquanto perdurar esta falta, estamos pois ilturas hortenses intensivas que contam com mer-
restritos a uma análise de caráter puramente quali- ftado tão próximo.
tativo e descritivo. Qualquer precisão de natureza Esta humanização da paisagem se nota por toda
mais científica é impossível. E isto se repete mais ou parte, muito em princípio ainda, pois não data de
menos em todas as questões conexas com o assunto mais de 20 anos, e extremamente esparsa. Concen-
que pretendo aqui tratar. tra-se contudo em alguns pontos privilegiados, onde
A influência exterior da cidade de São Paulo se então a transformação já é completa. O setor que fica
®faz sentir em primeiro lugar, neste semideserto que a « oeste da capital, acompanhando a estrada de ro-
circunda. Assinalei já este fato paradoxal, que é a dagem que leva ao município vizinho de Cotia, é em
desolação que cerca a cidade num raio de muitas particular neste terreno, um exemplo notável. Os
dezenas de quilômetros. A ocupação humana passou campos cultivados, sobretudo com a batata, se unem
por aí rapidamente, e foi fixar-se com mais estabi- {ú numa paisagem continua e ininterrupta de peque-
lidade muito além. A zona propriamente paulistana, nas culturas, rara não só nestes arredores paulista-
com exceção do núcleo urbano, ficou mais ou menos nos, mas no Brasil em geral, que destas grandes
deserta. É a cidade, crescendo, sobretudo depois do áreas cultivadas conhece apenas, em regra, as monó-
impulso considerável que data de fins do século pas- tonas extensões de infindáveis plantações: café, cana,
sado, que vai preenchendo esse vácuo, ou direta- algodão etc., de aspecto tão diverso.
mente, estendendo por ele seus bâirros e subúrbios, O fator principal da transformação desta região |
ou despertando nele uma nova vida. É o fato citado de Cotia, que já se tornou famosa em São Paulo, nãol
mais acima, a necessidade do abastecimento da ci- é nenhuma circunstância particular à zona, fatoresí
dade, o primeiro fator de um tal ressurgimento. Es- naturais ou outros. Conta-se mesmo que esta zona de
tendendo-se como uma auréola em torno de São Cotia era conhecida pela má qualidade de seu solo. A
Paulo, multiplicam-se as culturas e indústrias agrá- causa daquela transformação está na imigração japo-^
rias — leiterias, avicultura etc. — concentradas em nesa, que aí se fixou numa extensa gleba adquirida
pequenas chácaras e sítios que em alguns pontos já há alguns decênios por uma companhia semi-oficial
transformaram sensivelmente a paisagem, substi- de imigração e colonização, dedicando-se a esta
tuindo os capoeirões, capoeiras e carrascais que ca- forma de atividade em que não encontrava concor-
racterizam os arredores paulistanos por extensões rentes, e que dizia tão bem com sua índole e prece-
cultivadas unidas. A má qualidade do terreno, tanto dentes na terra de origem: a cultura intensiva e labo-
84 Caio Prado J I <U São Paulo 85

riosa do sólo, mesmo ingrato e difícil.^ rtriável; a água, abundante por toda parte. A faci-
Este primeiro ensaio frutificou, e a ocupação ide de acesso por vias de comunicações já estabe-
japonesa irradiou em todos os sentidos. Adotou novos idas e melhores nem sempre é um incentivo maior.
processos. Já não adquire a terra: arrenda-a de seus Ites núcleos de culturas se comunicam às vezes com
proprietários, muito felizes em encontrar quem lhes grandes vias de acesso da cidade por caminhos
lavre as propriedades, mesmo em troca de rendas lase intransitáveis, simples atalhos onde os cami-
pequenas, valorizando o que parecia antes total- lOes que transportam os produtos se atolam nos
'"mente inaproveitável. E com isto, a colonização japo- de chuva, ou vão aos trancos por entre os sulcos
nesa enxameou pelos arredores de São Paulo, multi- |»rofundos que suas rodas e a água, correndo por aí
plicando estes pontos esparsos em que, em meio de leomo numa torrente, cavaram em seu leito. Enquan-
extensões desertas e silvestres, se concentram peque- ^to isto, estradas e caminhos melhores são despre-
nas áreas caprichosamente lavradas e cultivadas, que zados.
são uma característica da agricultura japonesa e que !í Doutro lado, estes núcleos não são permanen-
não agrupam às vezes mais que algumas dezenas de tes. Dada a enorme extensão desocupada e a relati-
minúsculos campos. De uma forma geral, estes nú- vamente pequena área aproveitada — tratando-se,
cleos de culturas japonesas (que constituem sem dú- como é o caso, de culturas anuais (batatas, tomates
/vida o principal elemento de humanização dos arre- etc.) — e tendo em vista o sistema de exploração
/ dores de São Paulo), difundidos, esparsos, larga- empregado que é o do arrendamento, cujo prazo ra-
/ mente afastados em regra uns dos outros, espalham- ramente ultrapassa um ano, as culturas se deslocam
/ se principalmente no setor que vai do sudoeste ao continuamente, à procura de solos novos ainda não
\ noroeste da cidade, passando pelo oeste. É aí o do- esgotados pela produção de dois ou três anos conse-
mínio japonês por excelência, centralizado nesta cutivos. Está aí, aliás, um problema que não foi
zona principal, já referida, que é Cotia. Não é possí- ainda lembrado, embora pareça muito sério. Nin-
vel, parece-me, explicar a localização de tais núcleos guém ignora o ônus que traz esta instabilidade: um
por um princípio geral. Eles se espalham ao acaso solo desnudado para a cultura torna-se presa fácil
das conveniências dos proprietários de terras, dis- da erosão e rapidamente se destrói; sem contar toda
postos a arrendar suas propriedades, e daqueles que a série de outros prejuízos econômicos e mesmo so-
de motu proprio foram ao encontro da colonização ciais que traz uma tal instabilidade humana, que
japonesa, animando e estimulando-a, com preços e constrói apenas o provisório, passando logo, e sem a
facilidades maiores. A qualidade do solo é sempre, possibilidade de fixar valores permanentes e estáveis.
mais ou menos, a mesma; a topografia, praticamente Em outras direções de São Paulo, norte, nor-
86 Caio Prado Jr. ffidade de São Paulo 87

deste, leste, para os lados da Serra da Cantareira, mente, esta bacia geológica flúvio-lacustre de terre-
Guaruihos e Moji das Cruzes, os arredores da cidade nos argilosos, nunca foi, a não ser em pontos res-
também sf; animam, mas em ponto menor e com tritos, uma região de florestas. Predominou aí sem-
caráter às vezes diverso. Já aí não se vê tanto o pre uma vegetação de gramíneas com árvores espar-
japonês. Predominam outras nacionalidades estran- sas, em particular a araucária (o pinheiro do Paraná;
geiras: portugueses, espanhóis, para não citar senão o rio e a aldeia, hoje bairro de Pinheiros, derivam daí
as principais. As culturas também já são outras. 0 seu nome). Antes do nascimento de São Paulo, o
Vêem-se mais as hortaliças, sobretudo para o lado de seu sítio já era conhecido como dos “Campos de Pira-
Moji; as frutas, na Serra da Cantareira; as flores, nos tininga” ; circunstância que já antes da colonização
arredores e proximidades de Guaruihos. E, ao lado européia atraía o povoamento indígena, que aí se
desta atividade agrícola, aparecem (o que não se vê condensou, e facilitou mais tarde o estabelecimento
na direção oeste, analisada acima) núcleos de povoa- dos brancos. Mas à medida que se sai desses terrenos
mento operário. São pequenos satélites esparsos da argilosos, passando para os solos que se originaram
cidade, para cujas indústrias convergem diariamente da decomposição local de rochas cristalinas, e que
seus habitantes, e que, embora isolados no campo e cercam aqueles terrenos de todos os lados, entra-se
afastados do centro, são antes bairros urbanos que numa zona de densa cobertura florestal. Muito ata-
núcleos rurais, porque as habitações se erguem ali cada e desbastada pela ação destruidora da coloni-
em terrenos vazios, onde nenhuma cultura ou outras zação, a floresta que cercava São Paulo se acha hoje,
instalações denotam o aproveitamento agrário da re- praticamente, toda ela substituída por capoeiras e
gião. Esta fixação de populações nitidamente urba- alguns capoeirões, matas secundárias que o largo
nas, operários na maioria, em zonas que pareciam à período em que jazeram ao abandono permitiu que
primeira vista mais próprias para núcleos rurais ex- se reconstituíssem. Esta mata secundária está hoje
plica-se pelas linhas da Central do Brasil, que comu- aproveitada pelos lenhadores para a produção de
nicam estas zonas diretamente com o principal setor combustível vegetal, única utilização possível desta
industrial de São Paulo, que se estende dentro da madeira de má qualidade que a mata atual fornece.
cidade ao longo do eixo daquela estrada de ferro. O Dada a dificuldade e custo do transporte, a lenha é
mesmo fato, aliás, se reproduz para sudeste, ao longo antes, e in loco, carbonizada (para reduzir o peso)
da Santos-Jundiaí. em “caieiras” , como são chamadas estas pilhas de
Outra forma de atividade que o desenvolvimento paus de lenha regularmente dispostos, cobertas de
de São Paulo provocou em seus arredores é a indús- barro e em forma de calotas esféricas onde a ma-
tria do carvão de lenha. O sítio da cidade, própria- deira, ateando nela o fogo, entra em combustão lenta
88 Caio Prado Jr, ! de São Paulo 89

e se transforma em carvão. Esta indústria de lenha- |jfc)rniiou-se completamente; e hoje os parques, jar-
dores, isolada no meio da floresta, em postos às vezes Idins, pomares e plantações de luxo, cercando habi-
do mais difícil acesso, onde o transporte se faz ainda liações às vezes magníficas, cobrem em boa parte
e unicamente em lombo de burro, é de um primiti- toda esta região.
vismo impressionante; e no mesmo nível estão os seus Do outro lado de São Paulo, para o norte, a
trabalhadores, caboclos na maioria, que dão uma S^rra da Cantareira, pelo seu clima favorável, atraiu
nota bem característica a estes arredores paulistanos também uma tal ocupação de recreio. E as chácaras
de nível de vida humana ainda tão baixo em sua se multiplicaram; embora aqui, num setor já menos
maior parte. aristocrático, combine-se mais freqüentemente o re-
e Mas, não são apenas estes fatores econômicos creio com um aproveitamento econômico, ainda que
que provocaram e provocam o povoamento e utiliza- subsidiário.
ção pelo homem deste semideserto que circunda a Para completar este quadro sumário da projeção
cidade. O fator diversão tem também o seu papel, exterior de São Paulo, faltaria ainda destacar a sua
e de vulto?Chácaras particulares de recreio, parques influência em setores mais afastados. Porque tal in-
e pontos de diversão, para onde a população paulis- fluência não fica nos arredores: vai até extremos que
tana converge nos dias de folga, já tomaram tal vulto à primeira vista nem se suspeitam. Lembro-me de ter
que transformaram a paisagem local e não podem encontrado, em regiões do sul de Minas, lugares cuja
escapar à observação do geógrafo. De todos os arre- vida econômica está hoje intimamente ligada à ci-
dores da capital, é Santo Amaro que se tornou centro dade de São Paulo que lhe consome a melhor parcela
de atração por excelência desta atividade recreativa. dos produtos, remetendo em troca os gêneros manu-
Favoreceu-o sem dúvida o imenso lago que forma aí a faturados de que necessita. Linhas regulares de ca-
barragem e represa construída como um suplemento minhões atravessam por más estradas estas centenas
de energia para o consumo da cidade, duplicada hoje de quilômetros de separação para unir a cidade a tão
por esta represa nova a que me referi noutra parte longínquos rincões. Tais ligações por estrada de ro-
deste trabalho, que se prolonga até o alto da Serra, dagem, tornando possível um contato que pelas fer-
servindo para desviar as águas da bacia do Tietê para rovais era praticamente irrealizável, modificaram
o mar, serra abaixo. São Paulo, longe do mar, e assim profundamente a vida de muitos lugares. Ãs
dispondo apenas de um rio pouco atraente como é o antigas fazendas monoculturais e de baixa densidade
Tietê, encontrou nestas represas um sucedâneo que econômica, foi possível substituir uma exploração
na falta de melhor foi avidamente aproveitado. Santo intensiva e policultora que o amplo'mercado ofere-
Amaro, em particular, às margens da represa, trans- cido por uma cidade de mais de dois milhões de
90 Caio Prado Jr. A Cidade de São Paulo 91

habitantes, como Sâo Paulo, podia proporcionar. que dizem respeito à própria estrutura orgânica do
Mais perto, dentro do próprio Estado, este fato é país, pois elas trazem um tom de vida completa-
naturalmente muito mais sensível. O caso da região mente novo, que o Brasil não conheceu ainda no
de Campinas é, entre outros muitos, bem caracterís- passado, e desconhece ainda na maior parte do se u
tico. O impulso considerável da região nestes últimos território.
anos, depois do colapso que sofreu com a destruição
de seus cafezais pela broca, aliada à crise econômica
que aniquilou o que restava ainda de sua antiga Notas
prosperidade, é sem dúvida, em boa parte, devido à
proximidade de São Paulo, que permitiu a transfor-
(1) Publicado em Geografia (órgão da Associação dos Geó-
mação de muitas das antigas fazendas de café, lotea- grafos Brasileiros), n? 3, set. 1935.
das e divididas, em produtores intensivos de gêneros (2) Isto foi escrito antes da construção das rodovias que
de grande preço consumidos na capital. Outra ori- unem hoje P araibuna a C araguatatuba, e São Lids do Paraitinga
gem não tiveram estas zonas fruticultoras e hortí- a U b atu b a.
colas que cercam Campinas (Louveira, Valinhos, (3) E sta regra não tem um caráter geral. H á mesmo casos
em que se verifica exatam ente o oposto. Na colonização do cha-
Rocinha etc.). O ressurgimento do Vale do Paraíba, m ado Middle West americano, a floresta é desbravada e ocu-
estagnado e em franca decadência desde fins do Im- p ad a em prim eiro lugar, enquanto as regiões das Great Prairíes,
pério, quando é abandonada aí a cultura do café, ao lado, seguem-se depois, embora o solo apresente id um a ferti-
também se origina em grande parte da instalação de lidade quase única no mundo. Este fato se explica por duas
uma indústria de laticínios, consumidos em São Pau- causas: em prim eiro lugar porque os colonos, habituados a ju l-
gar a fertilidade do solo pelo revestimento florestal, relação esta
lo e no Rio de Janeiro. exata nas regiões donde provinham, Nova Inglaterra e Pensil-
I Resumindo, o fato é que a formação de um vânia, evitaram os campos que supunham pouco aproveitáveis
grande centro urbano, como São Paulo, neste setor p ara a agricultura; em segundo lugar, a preferência pela m ata
do país, determinou nele transformações de vulto foi devida à necessidade de materiais de construção, inexistentes
que já se fazem sentir nitidamente e que, com o nas Great Prairies.
(4) A outra é no Paraná. Aí tam bém , transposta a serra,
tempo, se tornarão cada vez maiores. Já se torna deparam -se logo com os Campos de Curitiba; e por isso tam bém ,
impossível compreender esta região brasileira onde muito cedo, já em fins do século XVI, a colonização partida do
se situa, e explicar os fatos mais salientes de sua vida litoral — P aranaguá — sobe a serra e ocupa o planalto.
econômica e mesmo social, para não dizer política, (5) Apesar de já muito transform ado o local por obras
sem levar em conta a presença aí desta concentração posteriores, esta topografia ainda se revela de forma bem nítida.
Salvo nos pontos onde se fizeram aterros vultosos — como na
demográfica imensa que é a cidade. Transformações
92 Caio Prado Jr. A Cidade de São Paulo 93

Ladeira do C armo e outros — as escarpas ainda lá estão, dando (3) P ara m aior esclarecimento desta questão da imigração
um a idéia bem nítida do que seria a colina, berço de São Paulo, japonesa em São Paulo, remeto o leitor p ara o trabalho de Eddy
nos primeiros anos de sua existência. Observe-se, entre outras, a de F. Crissiúma, “Concentração Japonesa em São Paulo” , em
ram pa que fica por detrás do antigo Palácio do Governo, hoje Geografia, Ano I, n? 1,1935.
Secretaria da Educação, e da Secretaria d a Justiça, antiga Poli- (4) Seria de interesse enorme, sob todos os aspectos, ana-
cia Central. lisar o papel verdadeiram ente revolucionário que estes dois meios
(6) E sta via pelo T am anduateí sempre foi muito utilizada, de transporte recentes — o caminhão p ara as mercadorias, a
e a atual Ladeira do Porto-Geral lem bra o tem po em que existia jardineira p ara os passageiros — representam hoje no Brasil.
d o porto onde se em barcava em São Paulo, via Tietê e as locali-
dades de suas margens.
(7) O traçado das estradas nesse m apa foi organizado
tendo por base o Mapa Corográfico da Capitania de São Paulo,
de Antônio Roiz M ontezinho (1791-92), que figura n a Coletânea
de Mapas da Cartografia Paulista Antiga (São Paulo, 1922),
reunida por A. E. Taunay.
(8) Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo, VI, 163. Hoje ainda é curioso notar como o povoamento
de São Paulo se concentra em tom o destes caminhos primitivos
de penetração, deixando subsistir largos espaços intermediários,
quase desertos. Isto é particularm ente sensível nos arredores da
capital.
(9) Melo Nogueira, Revista do Arquivo Municipal de São
Paulo, Ano I, vol. III.
(10) M arechal Daniel Pedro Mfiller, Ensaio dum Quadro
Estatístico da Província de São Paulo, 1836.

CONTRIBUIÇÃO PARA A G EOGRAFIA URBANA


DA CIDADE D E SÃO PAULO

(1) Geografia (órgão da Associação dos Geógrafos Brasi-


leiros), n? 3, set. 1935.- Este trabalho é o que figura no presente
livro sob o título “ O F ator Geográfico n a Form ação e no Desen-
volvimento da Cidade de São Paulo” .
(2) 291690, segundo os últimos dados publicados. Boletim
Estatístico do Conselho Nacional de Estatística, n? 34, abr.-jun.
1951, p. 58.

S-ar putea să vă placă și