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O século XX, o século do não, foi responsável por um forte solavanco socioinstitucional
no continente sul-americano que deixou suas marcas entre nós. A velocidade dos
acontecimentos, os abalos e mudanças causadas pelos avanços tecnológicos
comprometeram toda a nação, alterando-lhe hábitos e costumes. Rapidamente nosso
espaço urbano, em um mundo marcado pela crise de paradigmas – especialmente o
fracasso do pensamento cartesiano –, apontava claramente para nosso quadro
verdadeiramente descompassado diante do dinamismo e modernidade do exterior. O
resultado mais calamitoso foi que tínhamos “perdido o bonde da História”.
Por ser uma ditadura, a população oprimida sentia a força do poder de punição que o
Estado sempre fazia questão de ostentar. Por serem militares, os governos dificilmente
conseguiam assumir caráter popular em seu perfil e prática de poder. Enfim, vivemos
nas universidades, durante o período em questão, a tutela da ordem. Não conseguíamos
ser uma idéia de universidade, tampouco uma universidade de idéias. O ensino das
sombras e a cultura do medo marcavam as relações entre docentes e discentes, dentro de
um ambiente manchado por violência, controle, coerção e ameaças constantes.
Por tudo isso, insistimos aqui na necessária e urgente tarefa de mapear o que pode ser
feito na relação entre a mais recente Lei de Diretrizes e Bases da Educação (9394/96) e
a (re)construção da cidadania em nosso país. Sabemos que é, hoje, tarefa necessária e
principalmente decisiva para a retomada da construção e do ritmo de continuidade do
nosso maior sentido identitário de nação.
O conceito de cidadania, tomando por base a Constituição, é muito mais uma cidadania
imaginada que constatada. Implica sempre direitos e deveres observados e cumpridos
sempre no tempo em que a lei está em vigor. Tomando do ponto de vista do legislador e
suas expectativas, fica claro que insiste em afirmar que todos devem ter assegurados os
seus direitos, como o da educação.
Temos os excluídos (Perrot, 1991, p. 238), sem direito à posse de terra e alijados da
oportunidade de lucro gerado por sua produção. Ao longo dos anos, foram desenhadas
novas formas de vida em outros mundos urbanos de nossa geografia social. Nosso país
promoveu a configuração de um quadro social de pessoas que já não mais pertencem
oficialmente ao mundo dos incluídos. Hernando de Sotto, em O mistério do capital,
afirma tratar-se de um fenômeno mundial (2000). Porém notamos que carregam
desesperada e insistente permanência: o elo do contato com suas origens culturais.
Como denominarmos tal contingente de informais, excluídos etc.? Excluídos se refere
ao mundo que os envolve. Algo maior, mais denso, mais nervoso e menos decifrado
pela grandeza. Sotto afirma que são pessoas que possuem casa própria, registro em
cartório, identidades, mas vivem no desemprego absoluto por mais de oito anos.
Famílias inteiras estão envolvidas nesse universo. Compõem universos sociais distintos,
universos de cultura distintos e, certamente, escolas e saberes distintos. Hoje, na
América do Sul, representam um total de 78% da população urbana (Sotto, 2000). A
pergunta que não quer calar é: Vivem de quê? Como se relacionam e qual sua identidade
cultural? Praticam o capitalismo ou estão fora dele? Como isso é possível dentro de um
Estado puramente e ainda regulacionista, que se diz neoliberal? Hernando de Sotto
novamente socorre classificando-os como extralegais. Extralegais? Como? Alguém
pode viver assim por muito tempo? O mais aterrador de tudo é que a pesquisa do
respeitadíssimo cientista chileno afirma que, somente aqui na América do Sul, possuem
e movimentam quase US$ 1 trilhão apenas em suas propriedades (moradias). Como isso
se encontra em nossos centros urbanos? Será que somente o Estado do Rio de Janeiro
está fora dessa realidade? Como a escola e a universidade se justificariam diante de um
quadro tão desafiador? Quem são essas pessoas? Cidadãos ou não-cidadãos?
Certamente suas economias subcapitalizadas representariam uma temeridade para o
Estado. Trata-se de um caso de polícia e justiça, obviamente. O Estado regulacionista é
incapaz de realizar mudanças pela absoluta incapacidade de não mais acertar na sua
classificação social. Seu maior pecado foi ter permitido a proliferação da pobreza e da
profunda desigualdade social sob a insana alegação ser apenas um resultado do jogo do
capitalismo.
O centro urbano convive com uma forma de capitalismo sombrio cujos componentes
não possuem expectativas do exercício da cidadania plena. Ter emprego ou trabalho
formal faz parte de um quadro em profundas transformações.
Ser cidadão brasileiro, à luz da Lei de Diretrizes e Bases, torna-se um imenso desafio.
Diversos profissionais de áreas de trabalho variadas criticam e/ou reclamam de maneira
contumaz da má formação educacional dos educandos que formamos.
Em seu primeiro parágrafo do artigo 1º, a LDBEN afirma, sob o título de Educação,
que:
Esta lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente por meio
do ensino, em instituições próprias.
A lei coloca a escola como responsável direta pela transmissão através do ensino da
educação escolar. O que seria essa educação escolar? Qual seu objetivo? Estaria a escola
pronta para tal obrigação? Temos muitas dúvidas e indagações. Sabemos que não há
condições ideais para a plena execução do desejo que expressa a lei. A lei especifica que
a Educação vincula a Escola ao mundo do trabalho e à prática social. Seu segundo
artigo diz:
A lei imputa o dever da educação a duas instituições com várias facetas, como a
família? Qual família (Tort, 2001; Scheinvar, 1998)? A rica, a pobre, ou ainda a família
do extralegal? Será que o Estado, sempre através de seus representantes, aprova leis em
benefício próprio e deixa escolas e outras instituições sem condição de atendimento de
qualidade? Qual o padrão seguir diante do difícil quadro de complexidades sociais em
que estamos mergulhados? Temos uma certeza: o exercício da cidadania imporá sempre
algumas respostas. Porém, ao observarmos o artigo 3º da LDBEN, notamos princípios
que nos parecem, hoje em dia, verdadeiros desafios à educação:
igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; liberdade de aprender,
ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de
idéias e de concepções ideológicas; respeito à liberdade e apreço à tolerância;
coexistência de instituições públicas e particulares; gratuidade do ensino público em
estabelecimentos oficiais; valorização do profissional da educação escolar; gestão
democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de
ensino; garantia do padrão de qualidade; valorização da experiência extra-escolar;
vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais.