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Março de 1922
Fonte: http://guy-debord.blogspot.com.br.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Para os eruditos burgueses dos nossos dias, o marxismo representa não só uma grave
dificuldade teórica e prática de primeira ordem, mas, além disso, uma dificuldade teórica de
segunda ordem, uma dificuldade "epistemológica". Não é possível arrumá-lo em nenhuma
das gavetas tradicionais do sistema das ciências burguesas e mesmo se se quisesse abrir
especialmente para ele e para os seus compadres mais chegados uma nova gaveta chamada
sociologia, ele não ficaria sequer quieto lá dentro, iria constantemente passear para todas as
outras. "Economia", "filosofia", "história", "teoria do Direito e do Estado", nenhuma destas
rubricas pode contê-lo, mas nenhuma estaria a salvo dele se se quisesse metê-lo noutra.
Falta-lhe, portanto, por completo aquela qualidade que Karl Marx celebrou uma vez como "a
raiz da moral e da probidade alemãs, que se encontra não só nos indivíduos, mas também
nas classes", esse "egoísmo modesto que reivindica a sua própria estreiteza de espírito e
deixa que a façam valer contra si próprio". Pelo contrário, já nessa inconstância latina com
que zomba de todas as tentativas de classificação, mesmo dos mais eminentes dignatários
da república das letras burguesa, se reconhece, independentemente de tudo o resto, que ele
é totalmente estranho ao "carácter alemão".
Esta comparação, bem como toda a exposição precedente sobre a essência da doutrina
de Marx, pouco poderão de certo dizer, à primeira vista, a quem não tiver já penetrado por
si próprio mais profundamente nesta doutrina. Quer-se travar conhecimento coma a
"concepção materialista da história" de Marx e nós começamos com explicações que já se
situam elas próprias totalmente no terreno desta nova concepção marxista e, por
conseguinte, já a pressupõem. Consideramos, porém, que esta via, por mais impraticável
que pareça a princípio, é a única que permite conduzir a uma verdadeira compreensão do
ponto de vista novo e singular de Karl Marx. O filósofo Hegel exige, na sua Fenomenologia
do Espírito, da consciência do indivíduo que se confie espontaneamente a ele e ao seu
método "dialéctico", mesmo se o pensamento segundo este método filosófico lhe parece, a
princípio, uma tentativa análoga à de "caminhar sobre a cabeça"; do mesmo modo, quem
/
quiser chegar a uma verdadeira compreensão do método de Marx, da "dialéctica
materialista", em contraposição à "dialéctica idealista" de Hegel, deve começar por se
confiar sem reservas a este método, tanto quanto lhe for possível. Nenhum professor de
natação pode ensinar a nadar quem não quer entrar na água antes de ter apreendido a
nadar. O próprio Karl Marx procede sempre n’O Capital e nas outras obras do seu período de
maturidade de forma que o seu ponto de vista materialista, para cujo desenvolvimento e
fundamentação mais aprofundada todas estas obras, por sua vez, contribuem, está já,
contudo, nelas pressuposto. Isto aplica-se à Crítica da Economia Política de Marx, mas
também à sua crítica de toda a ciência e de toda a filosofia burguesas, que qualificamos
atrás de "crítica da ideologia" no sentido que Marx, dá ao termo. Em todas as obras de
Marx, não se encontra senão um único passo em que ele tenha tentado parafrasear explícita
e, em certa medida, completamente o ponto de vista específico a partir do qual todas as
suas obras desde meados dos anos quarenta foram escritas. Esse passo, cada palavra do
qual deve se pesada, lida e relida vezes sem conta, se se quiser assimilar completamente o
sentido destas poucas frases extremamente condensadas, encontra-se no prefácio à Crítica
da Economia Política de 1859. Com a clareza enérgica que caracteriza o seu estilo, Marx dá
aqui algumas curtas "indicações" sobre o curso dos seus estudos universitários e sobre a
sua breve actividade jornalística. Foi nesta que ele se viu primeiro na "situação embaraçosa"
de ter que se pronunciar sobre "os chamados interesses materiais" e caiu, assim, num
terrível conflito interior com o seu ponto de vista anterior, que era, no essencial, idealista
hegeliano. O seu jornal foi interdito pela censura poucos meses depois do início da sua
actividade como redactor e ele aproveitou "avidamente" a oportunidade para se retirar de
novo da cena pública "para o gabinete de trabalho", a fim de esclarecer estas dúvidas.
Nestas poucas frases, exprime-se com a maior clareza e precisão possíveis o traçado e
os elementos do que se deve entender por «concepção materialista da história e da
sociedade». Mas nem se tenta apoiar estas afirmações em qualquer demonstração nem se
indica suficientemente as extensas consequências teóricas e práticas que delas resultam,
para dar ao leitor que não tenha lido as principais obras de Marx uma ideia da sua
importância; falta também, por fim, uma prevenção contra determinados equívocos que a
forma e o conteúdo destas frases em certa medida favorecem. E que, para o objectivo
imediato que Marx se propunha com estas breves «indicações», todos os acrescentamentos
desse tipo teriam sido supérfluos. Ele comunica ao leitor por que «fio condutor» se deixou
guiar nos seus estudos económicos e sociais. E é evidente que a única maneira como Marx
podia demonstrar teoricamente que o seu método era «adequado» era aplica-lo a
determinados domínios da investigação cientifica, em particular ao estudo dos factos «de
economia política». Friedrich Engels cita uma vez. num contexto semelhante, o provérbio
/
inglês «the proof of the pudding is in the eating»(3). Não será nunca uma discussão teórica
mais ou menos confusa que poderá decidir definitivamente se um método cientifico é
correcto ou não, mas apenas um ensaio «prático», por assim dizer, desse método. Como
Marx sublinha expressamente, não se deve procurar nestas frases, tal como se apresentam
por si sós, mais que um «fio condutor» para o estudo dos dados empíricos (quer dizer, neste
contexto, históricos) da existência social do homem. Mais tarde, Marx manifestou-se ainda
mais que uma vez contra o equívoco que significava querer ver nelas mais que isso. Mas é
evidente que, por trás destas frases se esconde algo mais do que aquilo que nelas se
exprime directamente. Não esgotamos o seu significado se não virmos nelas mais que o
enunciado hipotético de um «principio heurístico». Juntamente com tudo o que Karl Marx
escreveu antes e depois, elas contêm o que, mais do que todas as chamadas «filosofias»
que produziu a época burguesa moderna, merece o nome de «mundividência» filosófica.
Isto porque a separação rígida entre teoria e prática que caracteriza justamente esta época
burguesa e que a filosofia da Antiguidade e da Idade Média tinham desconhecido. é aqui,
pela primeira vez nos tempos modernos, superada de novo completamente, o que já Hegel,
ao elaborar o seu método «dialéctico», tinha preparado. Citámos já, atrás, algumas palavras
do célebre passo do Manifesto Comunista sobre o significado das «concepções teóricas» no
sistema do comunismo marxista:
«Darwin atraiu a atenção para a história da tecnologia natural, quer dizer, para a
formação dos órgãos das plantas e dos animais como instrumentos de produção
da sua vida. Não merece a mesma atenção a história da formação dos órgãos
produtivos do homem social, da base material de toda a organização social
particular? E não seria ela mais fácil de levar a cabo, já que, como diz Vico, a /
história do homem se distingue da história da natureza porque aquela fizemo-la
e esta não? A tecnologia desvenda o comportamento activo do homem face à
natureza, o processo directo de produção da sua vida e, portanto, também das
suas condições sociais de existência e das representações espirituais que delas
derivam».
Todo o «materialismo» tem, como já vimos, a sua primeira origem na critica da religião.
Ao declarar, nos seus programas, a religião «assunto privado», em vez de vincular os seus
partidários expressamente a agir «irreligiosamente», a social-democracia colocou-se já por
isso em posição irreconciliável com o principio fundamental do marxismo. Para a dialéctica
materialista, a religião pode tanto ser «assunto privado» como qualquer outra ideologia. Se
não recuamos perante um paradoxo, poderíamos antes caracterizar francamente este
estado de coisas nos termos seguintes: a irreligiosidade, o combate «à»religião, em geral, e
não só o combate às pretensões exclusivas de dominação de uma qualquer religião
determinada, já oferecido do ponto de vista democrático-burgês, tem para o revolucionário
materialista o mesmo significado que a religião tem para o crente. Trata-se aqui de um
«problema materialista de transição» semelhante ao que já destacámos atras a propósito do
«Estado», da «ciência» da filosofia. Na medida em que se desenrola como um processo
intelectual no cérebro humano antes, durante e depois da transformação das condições
sociais de produção, transformação em que se baseia tudo o resto, a critica, combate a
superação da religião tem ainda inevitavelmente sob um certo aspecto, a forma de
«religião», justamente na sua qualidade de «superação da religião», neste sentido, a
fórmula, hoje usada a maior parte das vezes como simples maneira de falar, que designa o
socialismo ou o comunismo como a «religião deste mundo» reveste-se ainda de um muito
grande significado real para. a actual fase de evolução da sociedade europeia (ainda e,
talvez, precisamente para ela). A «religião deste mundo», como primeira etapa, ainda
absolutamente insuficiente, na transição para a consciência plenamente imanente
/
(diesseitig) do mundo da sociedade comunista, corresponde efectivamente no Estado da
«ditadura revolucionária do proletariado» do período de transformação revolucionária da
sociedade capitalista na sociedade comunista.
Uma irreligiosidade radical, um ateísmo activo, são, pois. a condição prévia evidente de
uma plena imanência do pensamento e da acção no sentido do materialismo de Marx. Mas
esta plena imanência não resulta ainda da simples superação das representações religiosas
do Além. Há ainda um «Além» mesmo «neste mundo» enquanto se acreditar no valor
intemporal e, portando, supra-terrestre de quaisquer «ideias» teóricas ou práticas. E mesmo
depois de o pensamento humano ter superado mais esta etapa, pode acontecer que
continue a não encontrar a imanência especifica e, em última análise, única real que,
segundo Marx (segunda tese sobre Feuerbach) não se encontra senão na «prática» humana.
Só o ultrapassar também desse «Além» que continua ainda agarrado ao materialismo
simplesmente «naturalista» ou «contemplativo» (anschauend) como resíduo intacto da
época dualista burguesa constitui, por conseguinte a verdadeira realização da «imanência»
no sistema da concepção materialista da história e da sociedade de Karl Marx. O passo
decisivo pelo qual o novo materialismo marxista chega a esta realização definitiva e capital
da sua imanência consiste em opor à realidade definida simplesmente, no sentido restrito e
cientifico do termo, como «natureza», a realidade da «existência prática, social e histórica
do homem». Como precisamente o livro de Woltmann e centenas de outros e, sobretudo, a
evolução histórica das diversas tendências dos partidos socialistas e semi-socialistas da
Europa e da América não se cansam de demonstrar, o materialismo essencialmente
naturalista e contemplativo não é de modo algum capaz de dar uma solução «materialista»
ao problema da revolução social a partir do seu ponto de vista, pois que a ideia de uma
revolução a realizar no mundo real graças a acções humanas reais já não tem para ele
qualquer «objectividade» material. Para um materialismo destes, para o qual a objectividade
da acção humana prática permanece sempre, em última análise, um, «Além» imaterial, só
há, em consequência, duas atitudes possíveis face a realidades «materiais práticas» como a
«revolução». Ou deixa, como diz Marx na primeira tese sobre Feuerbach, «o
desenvolvimento do aspecto activo ao idealismo». via que seguiram e seguem todos os
maxistas-kantianos, revisionistas e reformistas, ou então toma o caminho que a maioria dos
sociais-democratas alemães seguiu até a guerra e que hoje, depois de a social-democracia
ter passado a um reformismo declarado, se tornou posição característica dos «marxistas
centristas»: considera o declínio da sociedade capitalista e o nascimento da sociedade
socialista-comunista como uma necessidade económica que, mais tarde ou mais cedo, «virá
por si» com a necessidade das leis naturais. Esta via conduz então, segundo todas as
probabilidades, e fenómenos «extra-económicos» que caem do céu e permanecem
propriamente inexplicáveis, como a Guerra Mundial de 1914-1918, que, de início, ficou sem
ser aproveitada para a libertação do proletariado. Bem pelo contrário, como Karl Marx e
Friedrich Engels repetiram sempre em todas as suas obras desde a juventude até ao fim da
vida, a despeito de toda a «teoria das duas almas» (Zweiseelentheorie), só a revolução que
a actividade humana prática realizará conduz da sociedade capitalista à comunista; e esta
revolução não deve ser concebida como uma mutação «intemporal» mas antes como um
longo período de luta na transição entre a sociedade capitalista e a comunista, no decurso
da qual a ditadura revolucionária do proletariado deve realizar a transformação
revolucionária de uma na outra (Marx, Glosas Marginais ao Programa do Partido Operário
/
Alemão, 1675). É que, segundo o principio geral deste seu materialismo que Marx tinha já
formulado, trinta anos antes, com uma concisão clássica, na terceira das Teses sobre
Feuerbach, primeiro esboço da sua nova concepção materialista
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Notas de rodapé:
(1) Cf. o Manifesto Comunista, capitulo II: "Proletários e Comunistas" (retornar ao texto)
(2) As citações dos últimos períodos pertencem ao artigo sobre a lei contra os roubos de madeira, à
correspondência Marx—Ruge—Feuerbach—Bakunine e à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (tudo isto
publicado em Nachlass, volume I). (retornar ao texto)
(3) Cf. Engels, introdução à edição inglesa de Do socialismo Utópico ao Socialismo Científico (1893)
reproduzida na Neue Zeit XI, I, p. 15 sgs. (retornar ao texto)
(4) Esta «introdução», que nos dá as informações mais profundas sobre as premissas da invetigação de Marx,
foi publicada pela primeira vez na Neue Zeit, 21, I, p. 710 (retornar ao texto)
(5) H. Michels Verlag, Düsseldorf, 1900. Entre os trabalhos em língua alemã sobre os fundamentos filosóficos
do marxismo, é este de longe o melhor, apesar da posição errada que discutimos acima. (retornar ao texto)
(6) É estranho que Woltmann, no parágrafo 1, qualifique de simples «exame» das relações entre pensamento
e ser já como «materialismo» (materialismo dialéctico!). Em vez disso deveria dizer mais ou menos: o
materialismo dialéctico (ou dialéctica materialista), que, contrariamente ao idealismo dialéctico (a dialéctica
idealista) de Hegel, concebe o pensamento e o ser como momentos de uma unidade em que não é o
pensamento que determina o ser, mas o ser que determina essencialmente o pensamento. O facto de
Woltmann evitar aqui uma tomada de posição precisa relaciona-se com a sua atitude gnoseológica kantiana
que discutimos acima. (retornar ao texto)
(7) Cf., no último capitulo da Introdução Geral à Crítica da Economia Política, a nota 4, que é característica.
Nalguns passos d’O Capital, fala de forma mais precisa da insuficiência do «materialismo abstracto das ciências
naturais, que exclui o processo histórico» e contrapõe-lhe como «único método materialista e, por conseguinte,
cientifico» aquele outro que não se contenta com reduzir pela análise as formas e os conteúdos dos diversos
fenómenos «sociais» e «espirituais» da existencia histórica ao seu «núcleo terrestre», mas que, inversamente,
procura também «desenvolvê-los a partir das condições reais de vida» (Kapital, I, 13, nota 89) (retornar ao
texto)
(8) Ibid., p. 712. O termo «Subjekt» é empregue aqui no sentido do francês «sujet», quer dizer, no sentido do
termo alemão «Objekt» e não no sentido actual do alemão «Subjekt», como prova uma comparação com as
pp.718 e 774 (retornar ao texto)
Inclusão 04/08/2015