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INTRODUÇÃO HISTÓRICA AO CAMINHO DE PERFEIÇÃO

CAMINHO DE PERFEIÇÃO
Daniel de Pablo Maroto

O Caminho de Perfeição de Santa Teresa ocupa um lugar privilegiado diante de toda sua produção
literária. Madre e mestra por excelência, Teresa o demonstra de modo específico e claro através deste livro, que
condensa suas idéias chaves sobre a origem e o fim de uma Reforma. O Caminho apresenta um traço muito
maternal e o seu mais profundo e exemplar magistério. É o outro aspecto da maternidade da madre Teresa,
sendo o primeiro a fundação de conventos materiais.
O Caminho de Perfeição é um código de espiritualidade, ou livro programático de uma Reforma. É nele
que se projeta sua alma de fundadora e de madre. «Sua alma vive na doutrina deste livro», detectou já dom
Teutonio de Braganza na primeira edição do Caminho no ano 1583 1. Livro essencialmente didático, de
historiografia do divino. É a arquitetura dinâmica, a medula invisível deste edifício chamado «Reforma
carmelitana». Nascido em um ambiente estritamente conventual, mas há algo no Caminho que transcende o
tempo e o espaço. Pois nele está refletida a alma de Santa Teresa; e a alma é imortal. Dirigido inicialmente às
suas filhas para ensinar-lhes a fazer oração tornou-se depois o discurso vivo de Teresa à humanidade, como uma
carta inacabada e um diálogo interrompido com os homens. Há algo transcendente nestas páginas, que escritas
ha mais de quatrocentos anos, todavia se mantêm frescas como um corpo incorrupto.
No intento de tornar acessível ao homem moderno a leitura do Caminho, prefiro oferecer-lhe, mais que
detalhes de critica histórica e literária, o conteúdo doutrinal, em um contraste contínuo com as idéias, os fatos,
as circunstâncias que rodeiam o eu de santa Teresa como escritora e como mãe de uma Reforma. As páginas
aparentemente corretas e pacificas do Caminho pressupõem uma marcha problemática e uma boa hermenêutica
nos tornará mais compreensível sua doutrina. Partindo do Caminho como de um esquema estudarei o entorno
cultural, religioso e humano que se respira em todas as suas páginas. Nada direi de modo apriorístico por razões
de erudição ou prejuízo, ou que não esteja implicitamente escrito no livro; e o farei na medida certa e necessária
para sua total compreensão. Se o homem é o «eu» e as suas circunstâncias, também os livros são sua «essência»
e todos os condicionamentos culturais que os rodeiam, sem cujo conhecimento é muito difícil, para não dizer
impossível, sua leitura.

1. A PERIFERIA DO LIVRO

Nesta epígrafe, totalmente acessória e funcional, recolho algumas notícias que não pertencem à essência
mesma do Caminho, mas é tudo o que o leitor necessita para conhecer o livro por fora; sua história «externa»,
diria; sua gestação mais ou menos consciente e laboriosa, as fontes, a dupla redação, o êxito editorial, etc.

1.1. Origens históricas do Caminho

Quando a Madre Teresa começa a escrever o Caminho de Perfeição já era madre e doutora. Madre,
porque era fundadora do convento de São José de Ávila, com o qual se iniciava a Reforma do Carmelo; doutora,
porque já tinha terminado de escrever o Livro da vida, com espanto por parte de seus confessores. Sua
maternidade tinha se tornado explosiva da noite para o dia. A nova família de São José pedia alimento espiritual
e a Madre lhe entrega o Caminho de Perfeição, que vem a ser o «Pai Nosso» do primeiro convento da Reforma
carmelitana, e depois, de todos os Carmelos do mundo.
Ela mesma recorda anos mais tarde a origem do livro. Em uma conta de consciência escrita em Sevilha
no ano 1576, depois de recordar que tinha escrito o livro de sua vida a pedido de seus confessores, acrescenta:
«Foi de tal sorte esta relação, que todos os letrados que a viram - que eram seus confessores - diziam ser de
grande proveito para advertir sobre coisas espirituais, e mandaram-lhe que a transladasse e fizesse outro
livrinho para suas filhas - já que era priora - no qual lhes desse alguns avisos» 2.
Os acontecimentos se desenrolaram da seguinte maneira. A Santa encontrava-se no convento de São
José nos anos mais aprazíveis de sua vida. São os que seguem a fundação, 1562-1567. As monjas sabiam que a
Madre tinha escrito o livro de sua vida com muitos «conselhos» sobre a oração. Porém, essa matéria era
reservada e perigosa naqueles anos. E o Padre Báñez que era seu confessor, não era muito amigo dos fenômenos
místicos da oração que Teresa descrevia na Vida; porém, possivelmente por influências secretas das monjas de
São José, ordenou à Madre que escrevesse outro livro sobre «algumas coisas de oração». E conhecedoras do
preceito, as monjas insistiram com mais força junto à Madre, que por fim se decide a escrever, mais para que a
deixassem de «importunar» do que por vontade própria. A Santa recorda o fato muito rapidamente: «Sabendo as
1
. Cfr. nas Obras completas de Santa Teresa, ed. do P. Silverio, BMC, III, Burgos, El Monte Carmelo, 1916, p. 489.
2
. CC 53, n. 8 (numeração do Editorial de Espiritualidad). Ed. Brasileira. Relação 4 A no. 6.
irmãs deste mosteiro de São José que tinha licença... para escrever algumas coisas de oração... Importunaram-
me muito para que o fizesse... e foi tanto o desejo que vi nelas e a importunação, que me determinei a fazê-lo»3.
A Santa não deu inicialmente um título a seu «livrinho»; só depois de ter terminado a segunda redação o
chamou genericamente «avisos e conselhos». No livro se fala do «Caminho da oração» ou «da contemplação»,
ou «Caminho do céu» com fórmulas diferentes. Possivelmente ela mesma, ainda em data tardia, tenha chamado
a seu livro Caminho de perfeição. E com este título é conhecido na literatura universal.

1.2. Origens ideológicas ou fontes do Caminho

A gestação do livro é bastante surpreendente. O problema das fontes ou os antecedentes literários de


suas obras é um tema muito estudado e pouco se pode acrescentar ao que já foi dito. É um fato demonstrado que
quando a madre Teresa redige o Caminho não tem uma biblioteca à mão para consultar. Não se tem por letrada
nem escritora de ofício. A metodologia, para chamá-la de alguma maneira, então muito imperfeita, brilha
totalmente por sua ausência na elaboração do livro. Porém Teresa não se ergue como um monólito no deserto,
mas é um caudaloso rio cheio de afluentes. Quanto mais nos aprofundamos no ambiente espiritual do século
XVI e no clima religioso e espiritual da Ordem do Carmelo, mais pontos de referências encontramos nos quais
podemos enquadrar a doutrina do Caminho e de todos as obras teresianas.
Mesmo que sejam idéias próprias, ou tomadas emprestadas, tudo o que expõe no Caminho tem um
sabor de originalidade. Teresa não transcreve nunca, mas o que aceita incorpora assimilando, criticando,
vivenciando. É algo próprio de seu «eu» de escritora.
O Caminho de Perfeição vem a ser uma velada confissão não só de sua vida, mas da vida dos demais.
Quase tudo nele torna-se autobiográfico com referências históricas.
Mas que de sua cultura religiosa se fia, em primeiro lugar, da inspiração de Deus, de quem espera a
graça de saber dizer alguns conselhos úteis para suas filhas. Ela afirma isto no mesmo pórtico do livro. «E,
como digo, foi tanto o desejo que vi e a importunação (das monjas de São José), que me determinei a fazê-lo,
parecendo-me que por suas orações e humildade quer o Senhor que acerte algo a dizer que lhe aproveite e me
concederá para que eu lhes dê» 4. Adverte, de início, que a principal fonte será sua experiência e a iluminação de
Deus: «Não direi coisa que em mim ou em outras não a tenha por experiência ou me tenha sido dada na oração a
entender pelo Senhor» 5.
Sem esquemas prévios, sem livros de consulta à mão, sem tempo disponível, porque tinha que trabalhar
para comer, sem larga experiência de escritora, sente a necessidade da ajuda de Deus para poder fazê-lo. Ela
começa sabendo que vai falar de «alguns remédios para tentações de religiosas, e o intento que teve ao procurar
esta casa». Nem sequer pode dizer do que vai falar em concreto, nem crer necessário dizê-lo porque lhe parece
«coisa desconcertada» por-se a escrever. Só dirá a suas irmãs «o que mais o Senhor lhe der a entender» 6.
A elaboração é forçada. Trabalhos, longas interrupções, não esfriam o propósito nem a lógica do
discurso. Pelo contrário, o enriquecem. «Mas, que desconcertado escrevo!, bem como quem não sabe o que
faz... lede como puderes - que assim escrevo eu como posso -, e se não, queimai o que não sair bem. Quereis
estabilidade; e eu tenho tão pouco lugar, como vedes, que se passaram oito dias que não escrevo, e assim
esqueço o que digo, e ainda o que vou dizer»7. Mais adiante faz uma constatação parecida: «Faz tantos dias que
escrevi o que se passou sem ter tido lugar para retornar ao que, se não voltasse a ler, não saberia o que dizer. Por
não ocupar tempo deverá ir como sair, sem concerto» 8.
Mas, não obstante esta carência do mais elementar para «escrever com concerto» consegue desenvolver
o discurso, ela o atribuirá a ajuda de Deus: «Não sei o que tinha começado a dizer, que me divertiu; creio que o
quis o Senhor, porque nunca pensei escrever o que aqui disse» 9. «Nem sei como me ponho a falar nisso. É
como quem ouve falar de longe, que, ainda que escute que falam, não entende o que falam» 10. Ao concluir o
livro reconhece o fraco esforço mental que teve que realizar para redigi-lo; unicamente o trabalho material de
escrever: «que eu me dou por bem paga do trabalho que tive em escrever, que não por certo em pensar o que
haveria de dizer no que o Senhor me deu a entender» 11.

3
. CE prólogo, 1. Citarei CE quando me referir à primeira redação do Caminho, códice do Escorial; e CV, para a
Segunda, o códice de Valladolid.
4
. CE prólogo, 1.
5
. CE prólogo, 3. Esta última frase foi suprimida no CV.
6
. CE prólogo, 2.
7
. CE 22,1. Suprimida no CV.
8
. CE 30,1.
9
. CE 2,10.
10
10. CE 9,2.
11
11. CE 73,6.
Além da inspiração de Deus, ela apela à própria e alheia experiência. Incontáveis vezes refere-se a
«muitos mosteiros», ou simplesmente «alguns mosteiros» nos quais adquiriu experiência, como «testemunha
ocular», de certas práticas religiosas, maus costumes, efeitos desastrosos que produzem, etc. Disso toma nota
para aconselhar a suas irmãs de São José 12.
Em outras ocasiões refere-se à própria experiência nos caminhos do espírito; a oração de recolhimento
e de quietude, a diferença de ativos e contemplativos, o valor da oração vocal como meio para a contemplação,
ou nos diz que sabe a dificuldade por experiência, ou que é difícil entender sem experiência, o que supõe que ela
o conhece por essa via, etc.13.
E fica, por fim, a análise dos livros diretamente citados ou implicitamente mencionados que compõem o
entremeado doutrinal do Caminho. Em muitas ocasiões faz referência aos «livros» que falam de alguns dos
temas que ela trata, ou também menciona os autores 14. Vem depois a recordação de suas leituras mal ou melhor
assimiladas: a Sagrada Escritura, a Regra e as Constituições carmelitanas, as Colaciones de Cassiano, algum
Flos Sanctourum, e outros livros, cujo influxo velado é perceptível em uma análise meticulosa de sua doutrina,
tais como São João de Ávila, Luís de Granada, Francisco de Osuna, Bernardino de Laredo, Barnabé de Palma,
Francisco de Evia 15. Influenciou de modo definitivo não só no delineamento da Reforma carmelitana, mas na
mesma elaboração do Caminho, ainda que sempre de forma velada, um livro clássico de espiritualidade
carmelitana lido por ela durante sua estadia na Encarnação, que se chamava a Instituição dos primeiros monges,
e era atribuído ao patriarca de Jerusalém João XLIV, ainda que, provavelmente, seja um compêndio das
tradições carmelitanas realizado por Felipe Ribot por volta do ano 1370 16.

1.3. A dupla redação do Caminho

O fato da dupla redação do Caminho é para nós evidente, mas nem sempre foi na história teresiana,
criando autênticos problemas e confusões de índole textual. Conservam-se as duas redações autográfas de Santa
Teresa. A primeira na biblioteca do Real Mosteiro do Escorial, e a segunda nas Carmelitas Descalças de
Valladolid.
O autográfo do Escorial consta de 153 folhas de 215 por 155 milímetros. Começa com um prólogo e
continua sem nenhuma divisão de capítulos, ainda que a Madre Teresa tenha indicado onde queria que fossem
colocados. Os títulos ou epígrafes de cada capítulo estão todos ao final do autografo, e são originais da Santa,
ainda que tenham sido ditados e copiados por alguma religiosa. Consta de 73 capítulos. Os traços da caligrafia
indicam que foram escritos com desenvoltura, sem nenhuma preocupação estética, com a familiaridade de uma
carta ou de um escrito íntimo 17.
O autografo de Valladolid consta de 203 folhas de 212 por 155 milímetros, ainda que a numeração do
manuscrito chege até CCVII; isso se deve ao fato que a Santa arrancou algumas folhas e as substituiu por outras
de número inferior e não mudou a numeração. Do ponto de vista da caligrafia é muito mais perfeito que o do
Escorial. Evidentemente trata-se de uma cópia retocada de um texto anterior, escrito visando a um público
maior que o das monjas de São José. Existe mais cuidado estético na grafia. Consta de 42 capítulos, mas no
manuscrito são 44, isto porque o 4 e o 5 se condensam em um único capítulo nas edições por vontade da mesma
12
. Não quero entrar em mais detalhes sobre as experiências a que se refere à Santa. Centra-se, sobretudo, no
comportamento das monjas enquanto a ter amizades particulares entre elas ou com seus confessores, a queixar-se indevida
ou excessivamente de suas enfermidades, nos efeitos negativos que produz o número excessivo de monjas em um mesmo
lugar, a diferença de classe nos conventos, com incidência na «casta» ou a «linhagem», etc. Alguns exemplos podem ver-se
nos seguintes lugares: CE prólogo, 3; CE 6,5; CE 7,4; CE 16,2; CV 4,5; CV 12,1, etc.
13
. É impossível documentar estas afirmações uma a uma; Deve-se ler o livro inteiro para comprová-lo. Como exemplo
podem consultar-se os seguintes lugares: CE prólogo, 1; CE 2,6; CE 23,1; CE 27,3; CE 43,1; CE 52,4; CE 66,5; CE 68,5;
CV 2,7; CV 6,3; CV 15,3; CV 15,7; CV 18,1; CV 23,4-6; CV 24,6 CV 26,2; CV 28,1-6; CV 30,4; CV 30,7; CV 31,4; CV
31,5-6; CV 36,8-9.13; CV 38,6; CV 39,5. Cada uma destas referências tem, geralmente, expressão paralela na outra
redação.
14
. Ver, como mostra, CE prólogo, 1; CE 2,7; 6,8; 13,2; 13,4; 24,3; 29,6; 30,1; 35,4, etc. O P. Tomás da Cruz, OCD,
individuando todos estes textos observou que muitos deles foram suprimidos na segunda redação. Cfr. Caminho de
Perfeição, II, Roma, Teresianum, 1966, p. 32*, nota 5.
15
. Para todo este tema remeto ao estudo do P. Tomás da Cruz, citado na nota anterior, pp. 30*-66*.
16
. O P. Otger STEGGINK, O. Carm., identificou no arquivo da Casa Generalícia O. Carm. de Roma um antigo códice,
possivelmente procedente da Encarnação de Ávila, e que usara Santa Teresa. Cfr. A Reforma del Carmelo español. A visita
canónica del general Rubeo y su encuentro con santa Teresa (1566-1567), Roma, Institutum Carmelitanum, 1965, pp. 357-
362, especialmente notas 72-74. Ultimamente expôs a influência deste livro na elaboração dos ideais carmelitanos, não só
em santa Teresa mas no P. Gracián e em são João da Cruz. Cfr. Experiencia y realismo en santa Teresa y san Juan de la
Cruz, Madrid, Editorial de Espiritualidad, 1974, pp. 104-129.
17
. Mais detalhes em EFRÉN DE LA MADRE DE DIOS, Obras completas de santa Teresa de Jesús, II, Madrid, 1954,
pp. 17-18.
Santa, de acordo uma nota colocada no códice de Toledo. E o capítulo 17 original desapareceu pois a Santa
arrancou as folhas 59-63; e depois escreveu novamente a folha 59, que contém o final do capítulo 16 (15 das
edições), e parte do título do capítulo 18, que é o 16 das atuais edições 18.
Muitos se perguntaram a que ordem obedece a segunda redação do Caminho. Porque se trata disso, de
outra redação, não de uma simples cópia realizada pela mesma Santa. Fez uma elaboração tanto estilística como
doutrinal, de detalhes, não de enfoque; mudou de idéia em alguma ocasião. Amadurecimento e perfis.
Evidentemente não encontramos na obra mesma nenhuma explicação dada pela autora; porém podemos fazer
suposições como hipóteses prováveis.
Conta, em primeiro lugar, a expansão de sua Reforma; na mente da Santa, é feita a datação da segunda
redação antes de 1567, ou feita realidade, depois desta data, porque a segunda fundação, a de Medina del Cam-
po, é em agosto deste ano. Era previsível que cada convento de suas filhas quisesse conhecer aquele livro-
programa que era o Caminho. À Santa não lhe pareceu bem que o conhecessem tal como estava, cheio de frases
familiares, de referências pessoais, de críticas desenfadas. Isso estava bem para um grupo minoritário e
conhecido, porém não para um auditório tumultuado e crítico.
Existia, além do mais, o problema da censura, que o P. Garcia de Toledo, não precisamente o P. Báñez a
cujo juízo pensou inicialmente submeter o livro, exerceu com rigor de teólogo, e com certa benevolência. A
Santa na segunda redação irá mais longe que o censor, selecionando, suprimindo e aumentando outras idéias
que não estavam na primeira redação. Nasceu assim um livro mais polido na linguagem, com melhor divisão da
matéria em capítulos, mais universal; porém ao mesmo tempo, menos familiar e espontâneo. É um livro,
diríamos hoje, dirigido ao «grande público». Em muitas ocasiões a palavra «irmãs», íntima e fraternal,
transforma-se em «filhas», mais universal. Os conselhos dirigidos em segunda pessoa (vós, filhas, amigas,
irmãs, etc.), transforma-se na primeira pessoa do plural (nós, ou na fórmula dos verbos, façamos, acostumemo-
nos, etc.) 19.
1.4. Data de composição

Com toda certeza podemos dizer que Santa Teresa escreveu duas vezes o Caminho, porém não podemos
datar com exatidão nem uma nem outra. Os teresianistas todavia não chegaram a um acordo, pois na realidade
os dados em que deveríamos apoiar-nos são flutuantes. Dada a índole do presente escrito não me parece
conveniente deter-me em expor com amplidão toda a problemática que encerra; ademais, considero de valor
secundário sempre que a oscilação esteja entre os anos 1564-1569; outra coisa seria se se tratasse de uma data
anterior ao ano 1569. Segundo as diversas sentenças, que não faço mais que resumir, a data da primeira redação
pode oscilar entre o ano 1562, pouco depois de fundar o convento de São José, e 1566, data em que havia
terminado de escrever o Livro da Vida. Também se suspeitou que talvez começasse a escrever o ano 1562 e
continuasse sua redação nos anos sucessivos. Aceito como data mais provável o ano de 1565. Enquanto a
segunda redação podia colocar-se em 1569, porém agora se impugnou a data e se propõe como provável o ano
1566, existindo poucos meses de intervalo entre a primeira e a segunda redação. Parece-me mais provável o ano
1569. Alegar razões que avaliem esta opção me levaria muito longe 20.

1.5. Cópias e edições

Com a fundação de novos mosteiros de monjas a partir de 1567, e de frades, a partir de 1568, aumentou
o número de translados ou cópias do original do Caminho de Perfeição pondo em perigo a fidelidade ao texto
original. Hoje possuímos três cópias do texto da segunda redação e revisados pela mesma Santa. Uma está em
posse das Carmelitas descalças de Salamanca; outra nas Carmelitas descalças de Madrid; e a terceira nas
Carmelitas descalças de Toledo. Esta última serviu para imprimir a primeira edição do Caminho, realizada por
dom Teutonio de Braganza, em Évora, no ano 1583, cumprindo um desejo da Madre Teresa, como diz o mesmo
na carta-prólogo da edição: «pedindo-me encarecidamemte que o mandasse imprimir». De fato a Santa interviu
no assunto porque em carta do 22 de julho de 1579 diz a dom Teutonio: «A semana passada escrevi a vossa
senhoria longamente e lhe enviei o livrinho». O Caminho, foi, portanto, a primeira obra de Santa Teresa que se
imprimiu junto com alguns avisos. Outra edição foi feita pelo P. Gracián em Salamanca no ano 1585 segundo o
códice de Valadollid, porém tendo em conta a edição de Évora. Em 1587, saia outra em Valencia por ordem de
São João de Ribera; e finalmemte, incluido nas Obras completas de Santa Teresa, publicadas por frei Luís de
18
. Uma descrição detalhada do autografo, cf. em TOMÁS DE LA CRUZ, o. c., pp. 85*-95* e l27*-160*.
19
. O P. TOMÁS DE LA CRUZ, o. c., pp. 86*-95*, estudou atentamente as diferenças de uma e outra redação. A ele
remeto para maior ampliação de detalhes. Não resta dúvida que a segunda redação do Caminho é superior à primeira, ao
menos é a última vontade da Santa. Por isso se edita preferencialmente. Isso mesmo faz o Editorial de Espiritualidad, a cuja
edição estes comentários querem ser uma introdução.
20
. É aconselhável a leitura de EFRÉN DE LA MADRE DE DIOS, o. c., em nota 17, pp. 11-15 e 21-23; e TOMÁS DE
LA CRUZ, o. c., pp. 15*-30* e 95*-103*.
León no ano 1588 em Salamanca. Desde esta data as edições se sucederam sem interrupção, sendo uma das
mais difundidas de toda a literatura universal. Até o ano 1969 se tinha contado 94 edições do Caminho, sem
contar as 396 edições das Obras completas de Santa Teresa nas quais também se incluía o Caminho de
Perfeição. Foi traduzido em quase todas as línguas européias e algumas orientais, como o árabe, bengali, tamul,
malayalan, coreano e japonês 21. Sem dúvida alguma, este êxito editorial convida a uma leitura tranqüila
daqueles «avisos e conselhos» da Madre Teresa, chegando a ser pela força das suas idéas, mais do que o título,
um verdadeiro «Caminho de Perfeição».

1.6. Conteúdo doutrinal

Antes de entrar de cheio na problemática concreta do Caminho convém ter uma visão panorâmica de
conjunto. A estrutura - idêntica em ambas as redações - é simples e linear. Serve bem aos fins pedogógicos do
livro.
Apresenta, em primeiro lugar, a finalidade da Reforma carmelitana (busca da própria identidade das
monjas carmelitas). Esta não é outra que o serviço à Igreja, sobretudo, ajudando aos que combatem na linha de
frente (os pregadores e letrados) a partir da retaguarda (capítulos 1-3).
O único meio, é a oração. É também o núcleo do livro. Antes de falar do tema expõe os
condicionamentos da mesma dentro de um contexto conventual, ou seja, as exigêncas da caridade fraterna, o
desapego de tudo, no exterior e no interior, que implica a renúncia ao mundo, à família e até à própria vida,
aceitando valorosamente a enfermidade e a morte; e por fim a humildade, que entrelaça seus ramos no desapego
integral, como disponibilidade radical (capítulos 4-15).
Todavia antes de entrar no tema da oração propriamente dita, a autora resolve um caso de teologia
caseira porém de muita transcêndencia dentro dos conventos de clausura. O enfoque inicial da Reforma
carmelitana considera a possibilidade de chegar todas as monjas aos graus místicos da oração, ou seja conseguir
a contemplação mística. É este um problema que o homem crente moderno traz sem cuidado, mesmo que
pertença a uma Ordem de rigorosa clausura e dedique sua vida à vida contemplativa. Porém no século XVI não
era assim. A Madre Teresa, mestra como era de vida mística, incentivava as leitoras a conseguirem a «água viva
da contemplação», que é o Caminho extraordinário da experiência mística de Deus. Este enfoque poderia
dessasossegar a algumas de suas monjas e criar-lhes um complexo de frustração se não chegavam às alturas da
mística. Por isso resolve este caso prático afirmando que a pessoa tem que aceitar com humildade sua própria
situação como alma orante, quer Deus lhe conceda as graças místicas propriamente ditas, ou permita que fique
nos primeiros degraus da escada. Ela prevê que em um convento de clausura, a partir do ponto de vista da
modalidade orante, pode existir «ativos» e «contemplativos» (capítulos 16-18) 22.
A partir do capítulo 19 «começa a tratar da oração», como diz na mesmo epígrafe. Inicialmente fala da
oração em sentido geral, tanto da oração vocal ou mental: os condicionamentos básicos da oração, o modo
prático de iniciá-la, e como a oração vocal pode ser canal da oração mental e da contemplação (capítulos 19-26).
Para demonstrar esta verdade ela comenta amplamente e de modo muito pessoal a oração vocal por excelênca
que é o «Pai nosso» (capítulos 27-42).
Depois de falar de Cristo como Mestre e guia na oração e dos começos da mesma (capítulos 26-27),
passa a falar das outras formas de oração: de recolhimento (capítulos 28-29); de quietude, a primeira oração
mística, «sobrenatural», dirá ela (capítulos 30-31). Aqui se detém na explicação dos graus da oração. O
Caminho nos apresenta principalmente as formas ascéticas da oração 23.
Os últimos capítulos (32-34) são dificéis de catalogar. Neles a Santa continua fazendo o comentário do
«Pai nosso», a partir de «faça-se tua vontade assim na terra como no céu» até o final, para demonstrar uma tese
muito querida para ela: que a oração vocal (cujo exempo supremo é o «Pai nosso»), pode converter-se em
oração mental e também contemplativa. Comenta muito amplamente a oração de Cristo e encontra em suas
petições uma infinidade de sentidos espirituais, que lhe dão base para encontrar razões cheias de sensatez
humana e religiosa: que sentido tem o aceitar a vontade de Deus em nossa vida (capítulo 32); o pão de cada dia
se transforma no pão eucarístico (capítulos 33-35); o perdão das ofensas, «que nem são agravos nem são nada»,
como condição para que Deus nos perdoe (capítulos 36-37); a libertação da tentação de crerem-se santas por ter
graças místicas, das falsas humildades que separam de Deus, das falsas seguranças de não voltar a pecar, e a
tentação máxima do pecado venial (capítulos 38-41); e finalmemte a «libertação do mal», que para ela será a
libertação da vida mediante a morte (capítulo 42) 24.
21
. Cfr. SIMEÓN A S. FAMÍLIA, OCD, Bibliographia operum S. Teresiae typis editorum (1583-1967), en Positio in
Doctoratum S. Teresiae, Romae, 1969, documento 6.
22
. Estudei o problema da partir de uma perspectiva mais universal em Dinámica de la oración. Acercamiento del
orante moderno a santa Teresa de Jesús, Madrid, Editorial de Espiritualidad, 1973, pp. 280-303.
23
. Para os últimos graus da oração teresiana o leitor tem que recorrer ao Livro da Vida e, sobretudo, às Morados.
24
. Esta última interpretação é muito mais visível na primeira redação, que, corrigida pelo censor, não passou à segunda.
Esta é a síntese do livro. Para apreciar todas suas características deve-se ler repetidamemte.

2. OS PROBLEMAS DO CAMINHO EM SEU ENTORNO HISTÓRICO

Com um esquema tão geral do livro o leitor contudo se encontrará perdido em suas páginas. Um livro
«fronteiriço», como é o Caminho, necessita de uma confrontação com os problemas de seu entorno histórico
que interpreta, corrige ou adapta. À luz dos informes históricos que emergem hoje das antigas crônicas
entenderá o leitor moderno todo o conjunto arquitetônico do Caminho de Perfeição. Dois ambientes sócio-
religiosos formam o entorno condicionante das páginas do Caminho; o primeiro, é o conventual, vivido pela
Santa no mosteiro da Encarnação e «outros muitos», entre os quais se conta também, ainda que em menor
escala, seu próprio convento de São José; e o outro é o acontecer político-religioso de sua pátria, a Espanha do
século XVI, e incidentalmente da Europa.

2.1. A «Reforma» de Santa Teresa e as reformas da Igreja

Uma breve alusão à situação das Ordens religiosas na Espanha do século XVI nos ajudará a
compreender a Reforma de Santa Teresa e o Caminho de Perfeição.
É de sobra conhecido o grito de reforma «in capite et in membris» “na cabeça e nos membros”, que se
ouvia na Igreja pelo menos desde o século XV 25. As Ordens religiosas captaram a mensagem e tentaram, com
mais ou menos brio, colocá-la em práctica. A divisão inicial da Ordem franciscana entre conventuais e
observantes foi o paradigma de não reformados e reformados a partir do século XV. No que se refere à Ordem
do Carmelo, bem antes de Santa Teresa, já tinha existido tentativas de reforma, entre as quais se deve contar a
Congregação de Mantua (1413-1783), a Comgregação de Albi (1499-1584), de índole separatista em duas; por
sua parte, dois Gerais empreenderam uma reforma da Ordem, o beato João Soreth, durante os anos 1451-1471, e
Nicoláu Audet, nos anos 1524-1564 26.
A reforma das Ordens religiosas na Espanha tem velho enraizamento quando Santa Teresa inicia a
reforma do Carmelo. Já os Reis Católicos tinham concebido um ambicioso plano de reforma que fazia parte de
sua política religiosa, auxiliados por bispos tão íntegros como Hernando de Talavera, Francisco Jiménez de
Cisneros, Diego de Deza, etc.
Já é lugar comum afirmar a imoralidade do clero, dos religiosos e das religiosas no final do século XV e
início do XVI. Eis aqui um ponto de amostra: «Um grande número de conventos, não era mais do que lugares
de boa vida e de folia; certos conventos femiminos tiham caído tão baixo que se não eram autênticas casas
públicas de mulheres mundanas lhes faltava muito pouco para ser. Em 1462, durante o cerco da Orsa
gerundense... a Corte dirigiu uma repreensão ao general das tropas sitiadoras, conde de Palars, porque tolerava
que seus oficiais esquecessem suas obrigações militares «passando as noites divertindo-se no convento de Santa
Clara extramuros»27.
Devido a isto, os Reis Católicos pedem a Roma a concessão de bulas autorizando iniciar a reforma
eclesiástica em seus reinos. Assim o fazem os embaixadores dos Reis junto ao papa Sixto IV: «igualmente
porque em nossos reinos há mosteiros e casas de religião, tanto de homens como de mulheres, muito dissolutos
e desordenados em seu modo de viver ou na administração das mesmas casas e ben espirituais e temporais, do
qual nascem muitos escândalos e inconvenientes e dissoluções e coisas de mal exemplo.. . » 28.
Os documentos decisivos para a reforma foram conseguidos pelos Reis Católicos, por ironia do destino,
do imoral Alexandre VI. Primeiro, o Breve «Exposuerunt nobis», datado em Roma a 27 de março de 1493. Nele
25
. Ver os esplêndidos capítulos que dedica ao tema R. GARCÍA VILLOSLADA, SJ., Historia de la Iglesia católica,
III: Edad Nueva, 2ª ed., Madrid, BAC, 1967, pp. 519-642.
26
. Sobre este tema pode ler-se os seguintes estudos: BENITO DE LA CRUZ, OCD, Les Refourmes dan l'Ordre de
Notre-Dame du Mont Carmel, In Etudes Carmélitaines, 10 (1934,2), 155-195 (tradução espanhola cf. SILVERIO DE
SANTA TERESA, OCD, Historia del Carmel Descalzo, I, Burgos, El Monte Carmelo, 1935, pp. clviii-xc); LUDOVICO
SAGGI, O. Carm., La Comgregazione mantovana dei carmelitani sino alla morte do B. Battista Spagnoli (1516), Roma,
1954; Adriano STARRING, O. Carm., Der Karmelitengeneral Nikolaus Audet und die katholische Reform des XVI Jahrun-
derst, Roma, 1959; Otger STEGGINK, O. Carm., La Reforma del Carmelo español, Roma, 1965, pp. 168 (para o referente
ao Estado da Ordem na Espanha).
27
. S. SOBREQUÉS, La época de los Reys Católicos, In Historia social y económica de España y América, dirigido por
J. Vicens Vives, II, Barcerlona, Ed. Teide, 1957, p. 451.
28
. Cfr. José GARCIA ORO, La reforma de los religiosos españoles en tiempos de los Reys Católicos, Valladolid, 1972,
p. 34. Tampouco quero insistir mais neste aspecto geral. Para um estudo mais detalhado, ver R. GARCIA VILLOSLADA,
S. J., Historia de la Iglesia católica, III, 2ª ed., Madrid, BAC, 1967, pp. 601-641. Tarsicio de AZCONA, OFM, Isabel la
Católica.Estudio crítico de su vida y su reinado, Madrid, BAC, 1964, sobretudo o cap. 10, pp. 557-622; ID., La elección y
reforma del episcopado español en tiempos de los Reys Católicos, Madrid, 1960; O. GONZÁLEZ HERNÁNDEZ, Fray
Hernando de Talavera. Un aspecto de su personalidad, In Hispania Sacra, 13 (1960) 143-174.
se concedia aos Reis a faculdade para nomear «prelados e varões de santa e timorata consciência e integridade»,
que fossem ao mesmo tempo idôneos para a reforma. Que tivessem poder para visitar todos os conventos de
religiosas do reino, para introduzir a reforma «in capite et in membris» segundo as Constituições de cada Ordem
e castigar os abusos com justiça. Também lhes concedia faculdade para substituir os reformadores. Destituia,
por outra parte, qualquer privilégio contrário ao Breve e prometia uma Bula de reforma se os Reis o julgassem
necéssario 29.
Quatro meses depois, Alexandre VI expedia em Roma a bula «Quanta in Dei Ecclesia», datada a 27 de
julho de 1493, dirigida aos bispos de Coria e de Catania e ao arcebispo de Mesina, encarregando-lhes a reforma
por si mesmos ou com a ajuda dos Ordinários dos lugares ou seus vigários, ou, finalmente, de alguns religiosos
ou santos varões. Em poder destas letras pontifícias podiam visitar «todos e cada um dos mosteiros» e reformar
todas as coisas “in capite et in membris"; podiam privar de ofícios e dignidades aos insubordinados, e transferir
os religiosos reformados para outros mosteiros que se planejavam reformar 30.
Opina Tarsicio de Azcona que os reformadores levavam um programa bem definido de reforma de
acordo com as necessidades: «implantar o "encerramento" perfeito, é dizer, a clausura total das religiosas...
Exigir a guarda dos três votos, cortando abusos de propriedade e de incontinência. Introduzir a perfeita vida
comum... Fomentar positivamemte a vida espiritual... o silêncio religioso...» 31.
Prova de que levaram a sério o propósito de reforma são os decretos encaminhados para corrigir abusos.
Sirva como exemplo as normas ditadas para o mosteiro de Junqueras em Barcelona, dadas a 16 de fevereiro de
1495, e que reproduz as ordens dos memoriais que levavam consigo os visitadores: «1.- Vida comum própria de
comunidades religiosas... 2.- Silêncio nas oficinas e claustros do mosteiro, completo depois de Completas; 3.-
Visitas com horas fixas, no locutório comum, na presença de outra religiosa, com permissão da superiora, com
proibição severa de entrar no mosteiro pessoas estranhas, especalmemte do outro sexo; 4.- Proibição de sair do
mosteiro, salvo em casos de necessidade, na companhia de várias religiosas, devendo regressar no mesmo dia ao
mosteiro» 32.
Mais próximo à reforma de Santa Teresa está o impulso renovador do rei Felipe II, que não se fiando
muito da reforma que vinha de Roma, procura nacionalizá-la. Pede que os gerais das Ordens existentes na
Espanha sejam espanhóis; além do mais, ele podia nomear diretamente os reformadores. Em Roma não fizeram
muito caso temendo o cesaropapismo do Rei da Espanha, e sobretudo porque em Trento já se estava preparando
o Decreto «De regularibus» que previa uma reforma geral da vida religiosa 33.
Finalmente, alguns apontamentos sobre o estado da ordem carmelitana na Espanha nas vésperas da
Reforma de Santa Teresa. A trajetória do ramo masculino do Carmelo espanhol, sobretudo nas províncias da
Castela e Andaluzia, não é brilhante nem no plano intelectual nem no espiritual, devido ao seu isolamento. A
reforma de Nicolás Audet teve êxito total na Castela, bastante na Catalunha e Aragón, e nenhum na Andaluzia.
A visita de Rubeo buscará prolongar e tornar eficazes aqueles propósitos. Nas vésperas da Reforma teresiana só
a província da Castela se pode dizer que pertence aos observantes e a da Andaluzia encontrava-se em uma
situação moral muito precária apesar de ser a mais forte numericamente 34.
Quanto às monjas carmelitas antes de Santa Teresa sabemos que existiam na Espanha onze mosteiros,
sem poder determinar-se até que ponto tinha penetrado os desejos de reforma levados a cabo por Nicolás Audet
35
. Do convento da Encarnação possuímos notícias muito valiosas que utilizarei como ponto de contraste com a
nova Reforma de Santa Teresa, tal como a expõe no Caminho de Perfeição.

2.2. A Reforma de Santa Teresa como «Contra reforma» católica

Que a Reforma de Santa Teresa tem um claro sentido contrareformista é algo que está fora de toda
discussão. Poderá ser discutido o sentido de seu contra reformismo, porém não o fato. E é precisamente no
Caminho de Perfeição onde este aparece com toda clareza.
A ocasião foi o conhecimento que adquire naquele preciso ano de 1562 da situação na França da Igreja
católica. Os sucessos eram reais. Os hugonotes, franceses calvinistas fanáticos, depois da morte de Francisco II,
29
. Foi publicada, entre outros, por José GARCÍA ORO, o. c., pp. 150-151.
30
. A publicou pela primeira vez J. GARCÍA ORO, o. c., pp. 154-57.
31
. Cfr. Isabel la Católica, p. 600.
32
. Cfr. em J. GARCÍA ORO, o. c., p. 67. Alguns pontos coincidem com a reforma implantada por Santa Teresa.
33
. Toda a questão foi resumida por Otger STEGGINK, La reforma del Carmelo Español, pp. 69-95. São originais as
páginas que dedica à «Intervenção real na reforma do Carmelo Espanhol», pp. 95-102.
34
. Cfr. Otger STEGGINK, o. c., pp. 66-68 e 106. Pode ver-se a expansão da Ordem do Carmeelo tanto dos frades como
das monjas na Espanha, nas pp. 1-68. O Estudo geral na Euroupa, nas pp. 103-119. Também Adriano STARRING, O.
Carm., DerKarmelitengeneral Nikolaus Audet und die katholische Reform des XVI Jahrhunderts, Roma, 1959.
35
. Cfr. Otger STEGGINK, o. c., p. 112. Sobre o Carmelo feminino na Espanha e sua situação antes da Reforma de
Santa Teresa, cfr. O. STEGGINK, Experiencia y realismo, pp. 13-98.
a 5 de dezembro de 1560, tinham feito grandes conquistas durante a regência da rainha mãe Catalina de Médici.
Depois do Edito de Saint-Germain (17 de janeiro de 1562), no qual se permitiam certas liberdades aos
hugonotes, estes aproveitam para cometer atos de violência contra as igrejas católicas. Em 1561 pode-se falar da
existência de 2.500 igrejas pertencentes à reforma calvinista 36.
Conhecendo estes fatos o rei Felipe II informava aos mosteiros para que encomendassem a Deus a causa
católica. Assim escrevia a 2 de março de 1561 ao «Provincial da Ordem de Santo Domingo da Província de
Castela»: «Bem sabéis o estado em que se encontram as coisas de nossa religião cristã e o quanto se tem
descuidado dela em tantas províncias... e especialmente na da França, que está vizinha a estes reinos...
Encarregamos muito proverdes que em todos os mosteiros de religiosos e religiosas de vossa Ordem se tenha
especial cuidado de fazer orações e súplicas, pedindo a Deus nosso Senhor com toda eficácia pela união de dita
religião; e que nestes mosteiros... se façam procissões, como se fizeram outras vezes, em especial o ano
passado» 37.
No Concílio de Trento, o Cardeal Carlos de Guisa, informava no dia 23 de novembro de 1562 sobre
estes mesmos fatos com algumas palavras que nos recordam a descrição que nos dá Santa Teresa no Caminho:
«Por todo o reino há discórdias, ódios, pilhagem, guerras internas... são destruidos os templos sagrados,
assassinados os sacerdotes e religiosos junto ao altar, pisoteadas as espécies sacramentais... acendem-se
fogueiras que ardem com ornamentos das igrejas e com imagens de santos, relíquias convertidas em cinzas e
lançadas ao rio...» 38.
Diante desta situação Teresa como mulher cristã quer ser útil à Igreja prestando um «serviço». Haviam
outros meios de combater a heresia: a força das armas, a pregação e o pugilismo literário. Ambas as coisas eram
proibidas às mulheres de seu tempo. Por isso se refugia no terceiro: orar, sofrer pela Igreja, cumprir o melhor
possível sua profissão na vivência dos conselhos evangélicos. Este é o sentido profundo da cotrareforma
teresiana, sentido puramente espiritual, silencioso, sem ruído, porém que vai à raiz do mal.
Esta idéia está claramente exposta no pórtico do Caminho: «Ao princípio quando se começou este
mosteiro a fundar... não era minha intenção que tivesse tanta aspereza no exterior, nem que fosse sem renda...
neste tempo veio a mim notícias dos danos ocorridos na França e do estrago que tinham feito estes luteranos, e
quanto ia em crescimento esta desventurada seita... e como me vi mulher e ruim, e impossibilitada de aproveitar
no que eu quisera no serviço do Senhor... determinei-me a fazer o pouquinho que estava ao meu alcance, que é
seguir os conselhos evangélicos com toda a Perfeição que eu pudesse, e procurar que estas poucas que estão
aqui fizessem o mesmo... e que todas ocupadas em oração pelos que são defensores da Igreja, os pregadores e
letrados que a defendem, ajudássemos no que pudéssemos a este Senhor meu... » 39.
«Oh, irmãs minhas em Cristo!, ajudai-me a suplicar isto a Senhor, que para isto nos juntou aqui, esta é a
vossa vocação... » 40.
A vivência da pobreza, que ela expõe no capítulo segundo do Caminho, tem também um contexto
eclesial e contrareformista, não meramente devocional ou desejo de voltar à «Regra primitiva» como fonte de
espiritualidade. Na marcha da lógica do livro está uma digressão típicamemte teresiana 41.
Faz parte do desejo de «seguir os conselhos evangélicos com toda Perfeição», porque com isso pensava
servir melhor à Igreja. A recordação das origens da Ordem é nela conjuntural, como um apoio do seu desejo de
imitar a Cristo e ser perfeita, e visa convencer as suas monjas a aceitá-lo 42.

36
. Para maior informação, cfr. H. HAUSER, A préponderance espagnole: 1559-1660, Paris, 1933, pp. 40-47. Um
breve resumo se encontra em R. GARCÍA VILLOSLADA, S. J, Santa Teresa y la Contrarreforma católica, In Carmelus,
10 (1963) 236-237. Quando a Santa se refere aos «Reformadores» no Caminho, os chama «luteranos» (CV 1,2; 35,3), ou
«hereges» (CV 3,1; 3,8; 33,3; 34,11). Tem deles uma visão muito estereotipada, reflexo, sem dúvida, do que na Espanha se
comentava: «Querem tornar a senteciar a Cristo», «le levantam mil testemunhas», «querem por sua Igreja abaixo» (CV
1,5). Têm «em pouco o Santíssimo Sacramento», porque «lhe tiram suas pousadas destruindo as Igrejas» (CV 3,8); lhe
fazem «desacatos» e «injúrias» (CV 33,3); «perderam por sua culpa esta consolação», e por isso são «desventurados» (CV
34,11); tem sido causa de que sejam «desfeitas as igrejas, perdidos tantos sacerdotes, tirados os sacramentos» (CV 25,3; ver
CE 62,3).
37
. Archivo General de Santa Sabina, Roma, sig. XIII, 162. Citado por EFRÉN DE LA MADRE DE DIOS, O.C.D., El
ideal de santa Teresa en la fundación de san José, In Carmelus, 10 (1963) 217-218.
38
. Concilium tridentinum, diariorum, actorum, epistolarum, tractatuum nova colectio, IX, Briburgi Brisgoviae,
Görresgeselschaft, 1961, p. 163. (A trad. é de R. G. VILLOSLADA, o. c., p. 237). Cfr. CV 35,3; CE 62,3.
39
. CV 1,1-2.
40
. CV 1,5. Esta mesma idéia foi comfirmada por algumas testemunhas que depuseram nos Procesos de Beatificación e
Canonización. Por exemplo, seu cunhado Juan de Ovalle, Diego de Yepes, Inés de la Cruz, Isabel de Santo Domingo. Cfr.
In BMC, 18, Burgos, El Monte Carmelo, 1934, pp. 126, 280, 535, 19 e 85.
41
. CV 2,11.
42
. CV 2,7. Veja-se a orientação que segue o pensamento da Santa na Vida, cap. 35. O viver «sem renda», não supõe a
renúncia à propriedade radical das casas, as hortas, mas só a «mendincância incerta», que supõe viver da fé na Providência,
Muitas vezes voltará a falar do «objetivo para o qual o Senhor nos juntou nesta casa», e propõe a suas
monjas uma estratégia de combate totalmente espiritual, porque se dá conta que nem os exércitos, nem as armas
«não bastam para conter este fogo destes herejes», que consiste em recolher-se os melhores junto ao rei em uma
cidade bem fortificada. Para ela «os melhores», os capitães, são os «pregadores e teológos» e a função de sua
Reforma será ajudá-los com suas orações, para que haja «muitos letrados», e «para que sejam muito avantajados
no Caminho do Senhor», «que vão adiante em sua Perfeição», e «que se não estão muito dispostos... os
disponha o Senhor, que mais fará um perfeito que muitos imperfeitos»; e para que «depois de postos nesta
peleja... os tenha em sua mão» 43. A madre Teresa termina dizendo que se falharem no «principal», perde-se o
sentido de sua Reforma: «e quando vossas orações, e desejos, e disciplinas e jejuns não se empregarem para isto
que disse, pensai que não fazeis nem cumpris o fim para o qual aqui nos juntou o Senhor» 44.

2.3. As exigências da oração

Entendida a finalidade da Ordem, exposta nos primeiros capítulos do Caminho, o leitor poderá
compreender todo o resto. O eixo central na Reforma de Santa Teresa será a oração enquanto diálogo com Deus
a serviço da Igreja. E o núcleo do Caminho é o tema da oração em si ou em suas circunstâncias: condições,
modos, graus ou conseqüências; porém no fundo, sempre a oração. Todo o resto que diz no livro, são pretextos
ou digressões. A alma vocacionada à Reforma de Santa Teresa era chamada implicitamente à vida de oração.
Vejamos algumas das «condições» da oração, que são também as da vida comunitária. A Santa as expõe
sinteticamente:
«Antes de falar do interior, isto é, da oração propriamente dita, direi algumas coisas que quem pretende
seguir o caminho da oração precisa ter... Só me alongarei em falar de três, que são parte da mesma
Constituição... A primeira é o amor de umas para com as outras; a segunda, o desapego de todo o criado; a
terceira a verdadeira humildade, que embora tratada por último, é a principal e abrange todas » 45.

2.3.1. Comunidade fraterna na caridade

A Reforma teresiana é uma resposta em contraste com a vivência precedente da autora. Vamos ver
refletidos na confrontação de seu ideal religioso, o que viveu na Encarnação e a experiência que teve de outros
«muitos mosteiros».
A caridade, realizada em comunidade de vida, propõe alguns elementos básicos de índole humana e
psicológica, que, se faltarem, colocam em perigo o exercício da mesma. Teresa tinha a experiência na
Encarnação de Ávila do que é viver numa comunidade de 180 a 200 pessoas entre monjas, as pessoas famílares
ou de serviço 46. Quando escreve o Caminho, a comunidade de São José conta com 13 religiosas - «nesta casa
não são mais de treze nem o haverá de ser» 47. O número reduzido lhe dá a ocasião para insistir na fraternidade,
no amor mútuo, evitando as amizades particulares, que causam «danos para a comunidade muito notórios;
porque daqui vem não se amar tanto a todas, o sentir a ofensa que se faz à amiga, o desejar ter algo para regalá-
la, o buscar tempo para falar... Porque estas amizades grandes poucas vezes estão ordenadas a ajudar-se a amar
mais a Deus, antes creio que as faz começar o demônio para começar grupinhos nas religiões» 48, Para evitar as
ocasiões impõe em sua Reforma a solidão (trabalho nas celas, não «casa de trabalho»), e o silêncio 49.
O que ela quer que exista nos conventos de sua Reforma é o amor espiritual de umas com outras, no
qual não intervenha a sensualidade. A Santa se esforça por fazer-se entender porque vê que é um tema cheio de
possíveis e distorcidas interpretações. Ela chegou ao autêntico amor de «benevolência», não fundado no
interesse próprio mas no do outro. «Estas almas - condensa Teresa de Jesus - são sempre afeiçoadas a dar muito

como pode comprovar-se lendo o cap. 2 do Caminho. Para mais detalhes, remeto a Otger STEGGINK, A Reforma del
Carmelo español, pp. 370- 373, com nota 135, e a EFRÉN DE LA MADRE DE DIOS, El ideal de santa Teresa..., pp. 214-
215.

43
. Devem ler-se os números. 1, 2 e 5 do cap. 3 do CE ou os mesmos nn. do CV.
44
. CV 3,10.
45
. CV 4,3-4.
46
. Cfr. Fundações, 2,1; Carta 368,2 de fins de maio de 1581. Cfr. O. STEGGINK, La Reforma del Carmelo español, p.
292, nota 125.
47
. CV 4,7; o mesmo no CV 2,10; no CE 2,10 fala de «doce», cfr. V 36,29. Sabemos que a Santa mudou de parecer com
a tempo e admitiu até 21.
48
. CV 4,6. Deixa entrever na primeira redação que tem experiêncIas de «ninharias» ou «fraquezas de mulheres» que
viu em alguns mosteiros, que não as diz para «que não aprendam as que não sabem»: CE 6,5.
49
. CV 4,9.
mais do que receber» 50, Nos capítulos 6 e 7 do Caminho estabelece os critérios para identificar este amor
puramente espiritual: condoer-se com os males alheios, quer sejam físicos ou morais, desejar o bem supremo da
pessoa amada, desculpar suas deficiências, alegrar-se no bem ou em suas virtudes, etc. E, por outra parte, é
contrária ao uso de palavras melosas e doces: «minha vida», «minha alma», «meu bem»; «são muito típicas de
mulheres – diz - e não queria eu, filhas minhas, que o fosseís em nada, nem o parecêsseis, mas que vos
assemelhásseis a varões fortes» 51; ou criar «grupos», ambicionar lugares de mando ou defender «pontinhos de
honra» 52.
Em virtude da mesma fraternidade desaparece do convento de São José a diferença de classes entre as
monjas. No convento da Encarnação, onde a Madre Teresa passou vinte e sete anos de vida religiosa, existia a
alarmante diferença não só de classes sociais, mas duas maneiras de viver, a do rico e a do pobre. Santa Teresa
evita estas diferenças não só por motivos de pobreza, mas de fraternidade, que se fundamenta na caridade. Pelas
anotações feitas pelo Geral P. Rubeo, na visita canônica de 1567, podemos hoje aproximar-nos daquele mundo
interior da Encarnação 53.
Sabemos que em momentos de penúria econômica algumas monjas pediram ao Geral «que não se
tornem monjas somente mulheres importantes, com bons dotes», pois isso abria a porta às diferenças sociais
com suas conseqüências. Outras pedem permissão para ter rendas, esmolas ou dinheiros. Compram-se e se
vendem as celas; se doam os bens à família. Há diferenças no modo de vestir: «saias acotonadas» e «coloridas»,
«correias ornadas», monjas com toucas «coloridas» ou com «anéis», outras levam sapatos com solados e outras
têm seus «cães». No trato há também diferenças sensíveis. Algumas tinham o título de «donas», as de classe alta
ou rica. Estas tinham habitações amplíssimas (entre as quais se encontrava «dona Teresa de Ahumada»), nas
quais se recebiam parentes ou amigas e até a criada ou a escrava. Algumas, em virtude de sua origem famílar,
queriam ocupar os primeiros lugares no coro. Em vista disto, muito bem se pode concluir com as palavras de
Otger Steggink: «o mosteiro da Encarnação acabou por transformar-se em refúgio devoto para as «filhas da
burguesia», cuja tomada de hábito às vezes parecia ser mais uma solução forçada de um problema social que o
fruto de uma vocação religiosa» 54.
Na nova Reforma, segundo o Caminho de Perfeição, desaparecem estas realidades porque surge a
fraternidade e a verdadeira vida de oração. Já é sintomático que cite entre as práticas que destrõem a
fraternidade, «o desejo de ser mais, ou os pontinhos de honra». E nesse sentido, a Santa escreveu uma das
páginas mais duras contra as pessoas com tais desejos. «a que ela (a priora) perceber ser causa de alvoroço
haverá de ser encaminhada a outro mosteiro... cortai como puderdes os ramos e, se isso não bastar, arrancai a
raiz. E quando isso não for possível, que quem agir mal não saía do cárcere» 55. Quer cortar também pela raiz os
possíveis direitos de «maioria», quer seja por ser de mais alta linhagem ou casta ou dinheiro ou simplesmente
por ser a mais antiga na Ordem: «Deus nos livre, por sua Paixão, de dizer nem pensar, para deter-se nisso: «sou
mais antiga», «tenho mais anos», «trabalhei mais», «a outra é tratada melhor». Estes pensamentos, se vierem, é
preciso atalhá-los com presteza; pois se se detêm neles, ou o põem em prática, é pestilência e é de onde nascem
grandes males» 56. Não quer que fiquem em seus conventos pessoas que tem «umas condições que a tornam
amigas de ser estimadas e temidas, e fazem olhar as faltas alheias e nunca conhecer as suas» 57.
Na hora de receber noviças era rigorosa. Não queria que entrasse ninguém «para remediar-se». Não
admitia as que tinham vicio de «superioridade» ou outro semelhante; «é mal que o tenho por incurável», diz a
Madre.
«Onde há muitas, se poderá tolerar, e entre tão poucas não se poderá sofrer», escreve 58. No Caminho
está previsto que as monjas carmelitas não necessitam de dote para entrar no convento. Isto tem a vantagem de
50
. CV 6,7.
51
. CV 7,8. É aconselhável ler os capítulos 6-7 do CV, ou 9-11 do CE.
52
. CV 7,10.
53
. O primeiro que utilizou este documento, conhecido com o nome de Vísitatio hispanica, foi o P. Otger STEGGINK,
O. Carm., na sua obra La Reforma del Carmelo español.
54
. Cfr. o. c., p. 60. Convém ler as páginas que dedica ao mosteiro na Reforma del Carmelo español, pp. 291-311; In
Experiencia y realismo, pp. 70-89; e completar com algumas notícias de EFRÉN DE LA MADRE DE DIOS, OCD,
Tiempo y vida de santa Teresa, In Obras completas de santa Teresa de Jesús, 1, Madrid, BAC, 1951, pp. 341-345. Nas
assim chamadas Constituciones da Encarnação se descreve o modo de vestir das monjas carmelitas. Cfr. In SILVERIO DE
SANTA TERESA, OCD, Obras completas de santa Teresa, In BMC, IX, Burgos, El Monte Carmelo, 1924, parte 1, rúbrica
VII, pp. 488-89. Ultimamente o P. Otger STEGGINK impugnou a procedência avilense do códice publicado pelo P.
Silverio, cfr. La Reforma del Carmelo español, pp. 63-65, e Experiencia y realismo, pp. 46-50. Creio que este não obsta
para que estivessem em vigor no tempo da Santa
55
. CV 7,11; cfr. 7,10.
56
. CV 12,4; cfr. CV 12,5.
57
. CE 19,5; suprimido no CV.
58
. CV 14,1.
receber jovens de qualquer classe social e de poder dispensar quando convir. Opõe-se assim à possível pressão
de famílias burguesas que, exigiam além de tudo, que suas filhas além de serem monjas, quase sempre fossem
abadessas. «Entenda uma vez o mundo - escreve a madre Teresa - que tendes liberdade para recusá-las» 59.
Prevendo que em seus conventos entrassem também jovens de alta condição social, diz taxativamente: «quem
tiver linhagem mais nobre, deve ter o nome do pai menos vezes na boca, pois todas devem ser iguais» 60.

2.3.2. A humildade, a «honra» e a «linhagem»

Na exposição inicial do Caminho, quando fala Santa Teresa das três virtudes condicionantes da oração,
diz ao falar da humildade: «Ainda que a coloque por último, é a principal e abraça as demais» 61. Disso se dará
conta o leitor, ao comprovar que o problema da honra, dos bens, da linhagem se intrecruzam com as três
virtudes mencionadas, a caridade, a humildade e o desapego; porém cada uma a partir de perspectivas
diferentes.
As hierarquias sociais da Espanha no século XVI seguem os postulados fortemente estamentais do resto
das sociedades européias do Antigo Regime; no entanto, sobre as diferenças marcadas pela pertença aos
conhecidos estamentos (nobreza, clero, estado, marginalizados), e a partir do ponto de vista sócio-religioso, se
percebe uma divisão muito mais profunda, exigida pelas conotações «de castas» peculiares. Daqui o problema
da «honra», derivado da limpeza das contaminações com as raças moura e judia - sobretudo com esta última -,
que acompanha à história desta sociedade tragicamente conflitiva, que foi enfrentado com virulências que não
conheceram outros países europeus 62.
A «honra», em princípio, é algo vivencial, inerente à pessoa mesma, que nascia do fato de pertencer aos
«cristãos velhos», é dizer, de sangue limpo, não manchados pelo sangre nem mouro nem judeu. Porém tem
também outro aspecto, que é sua referência aos demais, à opinião, e se confunde com o «ponto de vista» do
outro; assim a pessoa é «honrada» em si e pelos outros. Segundo isto, ofender a alguém na honra era tê-lo por
cristão novo; e honrá-lo, tê-lo por cristão velho. Daí, que um dos principais interesses deste século era
demonstrar a «limpeza» de sangue mesmo que fosse falsificando a árvore genealógica. Portanto, na Espanha
existe uma especial linhagem, uma «casta» fundada não na proucedência de classe, mas sim, na religião.
Biologia e religião se fundem. Perante este motivo de honra, nem a linhagem, nem a riqueza, nem a mesma
cultura significavam nada 63.
Já disse que o convento da Encarnação de Ávila era nos tempos de santa Teresa o refúgio de muitas
jovens nobres. Pelas anotações do P. Rubeo em sua visita descubrimos os seguintes sobrenomes cheios de resso-
nâncias de linhagem: Del Aguila, Bracamonte, Bullón, Briceño, Cepeda, Comntreras, Cuevas, Guillamón,
Henao, Núñez Vela, Orozco, Pantoja, Peso, Quesada, Ramón, Sarmiento, Tapia, Tamayo, Valderrábano,
Valdivieso e Zúñinga 64.
A partir de uma perspectiva sócio-econômica as «classes» desaparecem da Reforma teresiana, ao
identificar-se todos seus membros na pobreza absoluta por um motivo funcional: favorecer a fraternidade.
Porém também, no caso de santa Teresa, o fato está condicionado pela humildade cristã que supõe a renúncia a
59
. CV 14,2; ver também CV 14,3-4; CE 20,1.
60
. CV 27,6. Fato sintomático é que em são José, no início não admitiu «freiras», ou seja, irmãs leigas, como monjas de
«diferente classe»; depois as admitiu porém não para establecer diferentes «classes sociais». As pretendidas Constituciones
do convento da Encarnação diziam a respeito de receber noviças: «Somemte terão a Deus diante de tal recebimento, de tal
maneira que a nenhuma recebam, nem por causa linhagem de seus parentes, nem por cobiça de bens temporais, nem por
nenhuma promessa, ou por outra coisa de acordo com a vaidade do século a que pertence, ou por causa de avareza; e
guardem-se que não interrogue nem se faça pacto nem inconveniência na qual se possa notar algum tipo de simonia». Parte
1, rúbrica XI, In BMC, IX, p. 491. Porém isto não se cumpria. O dito neste parte o recolhe só a mente de santa Teresa no
Caminho de Perfeição. Uma visão mais universal a encontrará o leitor no trabalho de Teófanes EGIDO, nesta mesma obra:
Ambiente histórico, 4,3 e 3,3, pp. 94 e 77. Nesta parte como nas siguintes me refiro somente à ordem espiritual das
comunidades teresianas; para completar esta visão o leitor deverá recorrer às Constituciones da Santa, In Obras completas,
Madrid, Editorial de Espiritualidad, 1976, pp. 1209-1236.
61
. CV 4,4.
62
. Não faço mais que me referir ao problema da ordem social do século XVI. Para uma informação mais completa, cfr.
Antonio DOMÍNGUEZ ORTIZ, El Antiguo Régimen: Los Reys Católicos e os Austrias, Madrid, 1973, pp. 104-193; assim
como as acertadas observações de J. I. GUTIÉRREZ NIETO, La estructura castizo-cstamental de la sociedad castellana
do siglo XVI, eIn Hispania, 33 (1973) 519-563.
63
. Estas idéias foram expostas por Américo CASTRO em todas suas obras. Ver especialmente, De la edod conflictiva,
ª
3 ed., Madrid, Taurus, 1972, pp. 23, 26, 29, 31, 87, 33, 39, 42, etc. Outras obras: La realidad histórica de España (antes,
España en su historia: cristianos, mouros e judíos), 4ª ed., México, 1971. Um bom resumo do problema em relação com
Santa Teresa; Teófanes EGIDO, OCD, La novedad teresiana de Américo Castro, In Revista de Espiritualidad, 32 (1973)
82-94.
64
. Cfr. Otger STEGGINK, La reforma del Carmelo español, p. 297.
um suposto direito de excelência ou proeminência social. No Caminho cita o costume na sociedade de seu
tempo de indagar a própria árvore genealógica, sobretudo entre as famílias de alta linhagem. «Que filho há no
mundo -escreve- que não procure saber quem é seu Pai, quando o tem bom e de tanta majestade e Senhorio?».
Para evitar disputas ela proibiu às suas monjas de falar de sua própria linhagem: «mas a que quer mais, tome
menos a seu Pai na boca» 65.
É verdade que a «honra» supõe algo imanente ao ser, que fundamenta o direito a ser honrado pela
«opinião». Isto pode ser a cultura, o talento, a alta linhagem e uma virtude; não só o fato de pertencer a «casta»
de cristãos velhos, como dá entender Américo Castro em suas obras. É sabido que o ilustre Mestre repete que
um lavrador no século XVI, se era cristão velho, tinha honra em si e merecia a boa opinião do vulgo, ainda que
fosse pobre e analfabeto 66. Santa Teresa fez supor, ao contrário desta opinião e interpretou o sentir de seu tempo
e de sua sociedade, que o povo, a «opinião», honram aos que têm dinheiro e poder e desprezam aos pobres.
Teresa se enamora da pobreza e quer viver pobremente, sabendo que não encontrará honra mundana, senão
outro tipo de honra, desprezando olímpicamente aos reis, aos senhores e a suas rendas.
«Que me importam os reis e senhores se não desejo suas rendas, nem desejo contentá-los, caso precise,
para fazê-lo, descontentar em alguma coisa a Deus? E que valor posso dar às suas honras, se estou persuadida de
que, para o pobre, a verdadeira honra é de fato ser pobre?».
«A meu ver, as honras e o dinheiro quase sempre andam juntos; e quem quer honra não despreza o
dinheiro, ao passo que quem o desdenha pouco valor dá às honras... Só por milagre quem é pobre recebe honras
no mundo; na realidade, mesmo que as mereça por si, o pobre pouco é considerado. A verdadeira pobreza traz
consigo uma honra que a todos se impõe» 67.
Não é improvável que a Santa refira-se ao problema da limpeza de sangue, que faz merecedora de honra
ao pobre, quando diz: «mesmo que as mereça por si». Porém, parece-me que se refere ao possível problema de
fundo e o transcende, ficando em um plano prático da vida conventual: a carmelita tem que ser pobre para imitar
a Cristo, fugindo ao mesmo tempo da «opinião honrosa» que traz consigo a riqueza. Este é, ao mesmo tempo,
exercício de humildade. Dá-se uma transferência do conceito de honra. «Nossa honra, irmãs, ha de ser servir a
Deus», escreve a madre Teresa 68. Não encontro nesta visão teresiana nada de influências sociais ou socio-
religiosas, como queria ver Américo Castro, mas razões puramente espirituais. A vivência da pobreza encerra
em si mesma a verdadeira «honra» porque é imitação de Cristo.
Fica todavia a ser vista uma referência mais concreta na dialética da honra a partir de sua dimensão da
«imanência da honradez» à «transcendência social da opinião», como diz Américo Castro 69. É dizer, o
problema mais grave e turbulento que é o da defesa do próprio ser («casta», «honra», «linhagem», «próprio
valor»), ante a «opinião» do povo, o «que dirão». O espanhol tem um profundo sentido da «dignidade» pessoal,
tem complexo de fazer papel de ridículo. Dai, que desde o mais tenebroso de seu subconsciente surge nele um
desejo não só de aparecer, de aparentar diante dos demais, que seria um desejo legítimo, mas de ser «estimado»
por todos como merece ou acredita merecer. Estes gérmens do sentimento humano se intensificam na Espanha
do século XVI pela especial característica e índole do povo, que funde suas raizes em vivências ancestrais
religioso-biológicas que no entanto, não foram vistas com toda clarevidência nem por psicológos nem por
historiadores. É o «ser» mesmo da Espanha o que está em conflito hoje; porém não chegamos a uma conclusão
razoável.
Teresa de Jesus tampouco faz aqui a psicanálise da alma hispânca para comprovar a procedência do
sentido da «honra» e da «dignidade». Ela constata fatos: que a pessoa, ainda que seja a monja e o frade, sente
com freqüência sua dignidade ofendida, e protesta defendendo seus hipotéticos ou reais direitos. E quer que nos
conventos de sua Reforma estes sentimentos sejam superados com a virtude da humildade, o desapego e a
caridade70. Trata-se de uma psicoterapia voltada para o divino que no contexto conventual deu bons resultados.
Pode suceder que a pessoa não exija outra coisa senão que se lhe reconheçam seus direitos: sua
linhagem, sua cultura, sua condição econômica, etc. Santa Teresa, nem sequer neste caso, o aceita em seus
conventos. «Mas, acreditai-me, se houver questões de honra ou de dinheiro (e isso tanto pode acontecer nos
mosteiros como fora deles, embora neles, como as ocasiões são menos freqüentes, maior é a culpa), mesmo que

65
. CV 27, 5-6.
66
. Vejam-se algumas mostras: «O aldeão teve honra 'dramática' por ser cristão velho com mais autenticidade que os
senhores, pois estes não tiveram reparo ao se aparentar com judeus (De la edad conflictíva, p. 29). «A prova melhor de não
pertencer à casta nefando veio assim a ser a oferecida pelo lavrador analfabeto» Ib., p. 31.
67
. CV 2, 5-6. Outro texto que considero chave: «Porque aqui "ou se dá conta das pessoas para fazê-las honra, por muito
que mereçam, senão das terras.. não fazem caso do que eles têm em si, mas do que tem seus renteiros e vassalos; e se eles
faltam, logo deixa de fazer-lhes honra»: CV 22, 4-5. «Os pobres não são honrados», dirá também, CE 20,1.
68
. CE 20,1.
69
. De la edad conflictiva, p. 26.
70
. Não se esqueça que estas virtudes, no contexto em que esceve a Santa, são as «condições» para fazer a oração.
se tenha anos de oração... nunca se poderá florescer muito nem chegar a fruir o verdadeiro fruto da oração» 71.
«Deus nos livre de mosteiros onde há pontos de honra... Que põem os religiosos sua honra em umas
coisas que eu me espanto... Sabei que nas religiões há também suas leis de honra: vão subindo em dignidade
como os do mundo... e o que chegou a ler teologia não vai se rebaixar a ler filosofia... Entre nós, a que foi priora
deve ficar inabilitada para outro ofício mais inferior, se não é aquele (que ocupava)» 72.
«Muitas vezes repito, irmãs, e agora quero deixar escrito aqui, para que não seja esquecido, que todas
desta casa... fujam mil léguas de expressões como «tive razão»,” fizeram-me isso sem razão», «não teve razão
quem fez isto comigo»... Das más razões nos livre Deus! » 73.
É dura com as pessoas que estão nos conventos, «e que são amigas de ser estimadas e temidas»; prefere
que vào embora e deixem em paz as demais 74. Queria que suas monjas chegassem à plena posse de sua
liberdade interior, que não se importassem com a falsa acusação. Ela sempre via nisto a imitação de Cristo
paciente, ajudando-o a «levar sua Cruz». «Verdadeiramente é de grande humildade ver-se condenar sem culpa
e calar, e é grande imitação do Senhor que nos tirou todas as culpas» 75. «Porque a verdadeira humilde deve
desejar de verdade ser tido em pouco e perseguido e condenado sem culpa, ainda em coisas graves» 76. No que
dizia respeito a ela pensava que por muitas coisas graves que dissessem dela sempre se dizia de menos 77.
E, finalmente aparece o aspecto mais delicado do problema que é o perdão das ofensas, das possíveis ou
reais «ofensas» feitas à pessoa. Santa Teresa, comentando as palavras do «Pai nosso»: «perdoai as nossas
dívidas, assim como nós perdoamos os nossos devedores», nos deixou conselhos cheios de prudência, que
testemunham, por uma parte, o ambiente vivido no século XVI, e por outra, a altura espiritual a que chegou.
Não é esquecimento da opinião do povo por desprezo (por provir ela mesma de casta judia e viver em um
ambiente de forte preponderância de cristãos velhos, como concluira Américo Castro), mas por sentimento de
honra que trascendia na humildade. Ela o usufrui no desprezo, na perseguição, não por revanche de raça contra a
casta dominante, mas por amor a Cristo.
Volta a sua pluma aos «pontinhos de honra», aos mecanismos defensivos da personalidade, do eu
profundo ofendido, que emerge diante situações múltiplas, e procura converter em «ofensas» e injúrias pessoais
as críticas, as advertências, as admoestações dos demais. Teresa de Jesus constata que durante um tempo
também esteve submetida a esta implacável lei de autodefesa, ia «na onda do povo». Em plena maturidade ética
e religiosa rirá de sua torpeza. «Oh, de que coisas me agravava, que eu tenho vergonha agora» 78, Os «negros
pontos de honra» são a causa de certas reações infantis de alguns religiosos e religiosas, que se consideram
«ofendidas» ao ser preteridas no desempenho de ofícios conventuais, ou por supostos “declínios” na escala dos
mesmos 79. Tudo isso tem que ser superado mediante a «humildade» cristã. As graças místicas desencandeiam o
efeito curativo mais radical, serão como um contrapeso a estas misérias. Teresa chega a afirmar que a alma a
quem Deus concede contemplação perfeita possui, junto com ela, o desejo de perdoar as ofensas e a graça de
não considerar estas coisas como ofensas80.
Ela mesma é um exemplo esplêndido destas verdades, Na primeira redação do Caminho tinha escrito
uma página na qual dizia que, ao não se considerar ofendida por ninguém, Deus a tinha que perdoar logo, de
graça, não porque perdoava, ao não ter nada que perdoar. O censor reprovou toda a página e pôs uma nota na
margem: «Não são senão verdadeiras ofensas e injúrias as que nos fazem, mesmo que maiores pecadores
sejamos; mas se hão também de perdoar para que Ele perdoe a nós». Vejamos o texto: «Que uma coisa tão
grave e de tanta importância como que nos perdoe o Senhor nossas culpas... se nos perdoem com tão baixa coisa
como é que perdoemos nós coisas que nem são agravos nem são nada. Porque, que se pode dizer nem que
injúria se pode fazer a uma como eu, que merecia que os demônios sempre me maltratassem, em que me tratem
mal neste mundo, o que é coisa justa?... Perdõe-me vosso Filho, que nada me fez sem justiça, e assim não tendo
que perdoar por Vós, se não tomardes, Senhor, meu desejo» 81.

71
. CV 12,5. «Deus nos livre de pessoa que lhe quer servir, cheia de honra e sem temer desonra», escreve também em
CE 18,5.
72
. CE 63,3; 64,1. Retocado no CV 36,4.
73
. CV 13,1. Conviria ler todo o capítulo.
74
. Cfr. CE 19,5. É mal costume diz que comecem no convento estes «pontinhos de honra», ib. 19,4.
75
. CV 15,1.
76
. CV 15,2; cfr. CV 15,7.
77
. «Nunca ouvi dizer coisa de mim que não viesse logo ficarem curtos»; CE 22,4.
78
. CV 36,3. Do tempo do noviciado nos fala na Vida; «Era afeiçoada a todas as coisas da religião, mas não a sofrer
nenhuma que parecesse menosprezo»: 5,1.
79
. Cfr. CE 63,3; 64,1; CV 36,6.
80
. CV 8,10-13; cfr. CV 12,5.
81
. CE 63,2. o texto foi eliminado no CV. Pouco mais adiante repetiu a mesma idéia: CE 65,4. Também o censor, P.
Garcia de Toledo, censurou o texto, e pôs outra nota marginal no mesmo sentido que a anterior. Por isso foi eliminado do
2.3.3. Desapego integral

As virtudes da caridade e da humildade no sentido explicado implicam uma segregação do mundo e um


desapego do próprio «eu». Vejamos agora outra perspectiva do desapego, terceira virtude necessária para agir
de acordo com o estilo teresiano.
O trato pessoal com Deus (a isto se reduz a oração na Reforma teresiana), exige uma certa segregação
do mundo. A clausura exterior da que falarei em seguida, não é mais que um sinal externo, como um símbolo de
uma realidade interior. Está implícita nesta idéia uma visão pessimista do mundo, da amizade humana, do
trabalho mesmo, com obstáculos para entregarmo-nos a Deus em plenitude. Hoje Estamos acostumados a ouvir
o contrário: que a vida é oração, que o trabalho regenera o amor de Deus na alma, que o trato com o próximo é a
melhor oração, porque pode transformar-se em caridade, etc. A visão teresiana deverá ser comprementada pela
teologia da «Encarnação» que foi definitivamente exposta pelo Vaticano II, desde que seja entendida em sua
justa medida; porque o humanismo “muito terreno” é o mais oposto ao cristianismo.
O primeiro objeto de segregação do mundo é, segundo santa Teresa, o esquecimento dos parentes e
familiares, «parentes» como diz ela. Teresa está carregada de experiências e sempre amargas.
«Fui muito querida por eles, ao que diziam, e eu os amava tanto que não lhes permitia se esquecerem de
mim. E tenho a experiência, pessoal e contada por outras, de que, afora os pais (que só por milagre deixam de se
lembrar dos filhos... aplicando-se o mesmo aos irmãos), todos os outros parentes ... diante dos sofirmentos por
que passei, foram os que menos me ajudaram neles, ao contrário dos servos de Deus” 82.
Parece-lhe pouco honrado dizer que as religiosas deixam o mundo e não se apartam dos mais próximos
que são os parentes. No entanto, o desapego integral é coisa de principiantes, até que se consiga a devida
liberdade de espírito para poder prescindir deles sem desassosego interior.
«Mas a monja que desejar ver os parentes para obter consolo, caso eles não sejam pessoas de oração,
deve considerar-se imperfeita e crer que não se desapegou, não está sã, não terá liberdade de espírito nem paz
perfeita, precisando de um médico. E afirmo que,se o mal não deixar de acometê-la e ela não sarar, não foi
feita para esta casa. A melhor solução que vejo é que não encontre os parentes até ver-se liberta, conseguindo-
o do Senhor por meio da oração. Quando estiver no ponto em que as vsitas forem encaradas como uma cruz,
que em boa hora os veja, pois então os beneficiará sem se prejudicar» 83.
Porém a experiência mais amarga lhe vem do convento da Encarnação. Nas supostas Constituições que
ali regíam estava previsto que «nenhuma das irmãs se aproximasse do lugar onde se costumava falar (o
locutório), nem ao redor, nem a nenhuma janela, nem falasse com nenhuma pessoa de fora, exceto com especial
licença da priora, e neste caso, acompanhada por uma ou duas das irmãs mais velhas ou discretas...» 84. No
entanto, sabemos que na Encarnação santa Teresa teve muita liberdade para tratar com parentes e amigos nos
locutórios 85. Também pelas anotações do P. Rubeo, descobrimos que as normas das Constituições não eram
observadas. Dentro do mesmo convento, as «donas» ou monjas ricas tinham parentes e amigas em suas próprias
habitações 86. Os locutórios da Encarnação eram frequentados por parentes e amigos, devido à penúria
econômica do mosteiro 87. Em um âmbito mais geral, o mesmo Felipe II acreditava que as normas do Concílio
tridentino sobre a redução de visitas aos conventos de monjas eram muito rigorosas porque assim deixavam de
chegar esmolas aos mesmos 88.
Na visita do Geral, Padre Rubeo, no ano 1567, algumas monjas reagiram contra os abusos das visitas
freqüentes de seculares. Queriam que se cortassem as mesmas, «para não perder o tempo em que se deveria
servir a Deus», diz dona Maria de la Cueva 89. Queixavam-se de que era na hora dos ofícios, que apareciam no
convento alguns frades «devotos» das monjas com os quais tinham «particulares amizades»; algumas vezes
apareciam “rapazinhos e moços, que não eram benfeitores nem parentes». E finalmente vem os fatos pitorescos
de que falava santa Teresa: falar com seculares «por alguma fresta das paredes, por cima dos muros ou à noite»,
é dizer, através das janelas, da porta da sacristia, dos confessionários, etc. 90.

CV. Conviria ler todo o cap. 36 do CV, e os cap. 63,64 e 65, 1-2 do CE. Esta visão parcial do problema deve ser completada
com o que diz Teófanes EGIDO nesta mesma obra, Ambiente histórico, 3, pp. 69 e ss.
82
. CV 9,3. No CE falava só de «padres», não de «irmãos». Esquecimento? Melhores experiências posteriores?
83
. CV 8,3-4. Completa algo o pensamento no CE 12,4. Conviria ler todo o cap. 9 do CV, ou o 13 do CE.
84
. Parte 1, rúbrica V, em BMC, IX, pp. 486-487.
85
. Se podem ler os cap. 7, 8 e 9 da Vida.
86
. Cfr. Otger STEGGINK, La Reforma del Carmelo español, pp. 61 e 294.
87
. Cfr. Vida, 7,6-9.
88
. Cfr. Luciano SERRANO, OSB, Correspondencia diplomática entre Es paña y la Santa Sede, 1, Madrid, 1914, n. 34.
89
. Cfr. Otger STEGGINK, La Reforma del Carmelo español, p. 301.
90
. Cfr. Vida, 7,2, e Otger STEGGINK, La Reforma del Carmelo español, pp. 301-303.
Porém, este é só um aspecto do desapego religioso exigido por santa Teresa. Tendo vencido o mundo,
ficava íntegro o mundo interior, o ser com as características do «eu» pessoal inalienável; com seu apego à vida,
com seus temores a enfermidode e a morte. O desapego integral supõe o triunfo sobre estas realidades. Não
triunfar do «eu» é - numa expressão gráfica de Teresa de Jesus - «como quem se deita muito sossegado, por ter
fechado muito bem as portas por temor dos ladrões, mas os deixa dentro de casa» 91.
Neste contexto escreveu Teresa as páginas mais vigorosas de sua obra. Sua prosa se torna chicote,
punhal afiado, espada desembainhada, bisturi que penetra e fere, descobrindo com fina ironia, às vezes com
lentidão e sarcasmo, todo esse mundo ardiloso e mesquinho que levamos escondido nos meandros do
inconsciente. É a verdadeira mulher forte, sem deixar de ser mestra e, antes de tudo, mãe. É o médico que
descobre a ferida para curá-la; o diretor teatral que ordena o despojo das máscaras.
A Estas conclusões, que indicam, sem dúvida, um conhecimento da alma da mulher e da vida
conventual, chegou por sua experiência no convento da Encarnação e de outros mosteiros conhecidos. Pela
visita do P. Rubeo, vemos que muitas monjas podiam ir na casa de seus parentes ou amigos para tratar-se, ou
que eles podiam entrar para atendê-las em suas enfermidades 92. Vejamos alguns textos da madre Teresa:
«A primeira coisa a fazer é afastar de nós o amor pelo corpo. Algumas de nós são tão comodistas por
natureza e tão amigas da própria saúde, que há muito que fazer aqui, devendo-se louvar a Deus pela guerra que
isso exige, das monjas em especial, e até de quem não o é. Mas parece que algumas de nós só vieram ao
mosteiro para tentar não morrer, e cada qual procura isso como pode... Decidi-vos, pois, irmãs; que viestes para
morrer por Cristo» 93.
Outras vezes é o desejo de fazer penitências «sem caminho nem concerto, que duram dois dias», e não
cumprir o que manda as leis da Ordem, como o silêncio, ir ao coro, «um dia porque nos doi [a cabeça], e outro
porque nos doeu, e outros três para que não nos doa» 94. Nos conventos prevê santa Teresa que há «um médico
que ajuda», «uma amiga para que chore do lado ou parente». E exclama com ironia: «1Oh, este se queixar,
valha-me Deus, entre monjas!; que a mim Ele o perdoe, que temo é já costume» 95.
Continua dramatizando na primeira redação: «Coisa imperfeitissima me parece, irmãs minhas, este
andar uivando, a se queixar sempre e a enfraquecer a fala fazendo-se de enferma...» 96. «Nosso corpo tem um
defeito - escreve também - quanto mais cuidamos dele, mais necessidades ele descobre». E refere-se com firme
intuição feminina às pessoas que não tem a quem se queixar ou não querem fazê-lo para não molestar o seu
marido: «Lembrai-vos de tantos pobres enfermos haverá que não têm a quem se queixar... Lembrai-vos também
de muitas mulheres casadas que, sofrendo graves males, não ousam se queixar para não enfadar os maridos,
mesmo quando muito padecem... Ai de mim, pecadora! Por certo não viemos para cá a fim de ser mais
regaladas que elas» 97.
Depois, vêm os conselhos práticos da mulher forte que referia antes: «E crede, filhas, que em
começando a vencer estes corpozinhos, não nos cansam tanto... Se não nos determinarmos a tragar de uma vez
a morte e a falta de saúde, nunca faremos nada» 98. Parece-me - escreve ela com energia - que quem de
verdade começa a servir a Deus, o mínimo que lhe pode oferecer - depois da vontade - é a vida» 99.
Finalmemte faz parte do desapego integral a renúncia à honra, à linhagem, o perdão das possíveis ou
reais e subjetivas ofensas, de tudo o que falamos nos parágrafos anteriores.

2.3.4. A solidão e o silêncio da clausura

O desapego ou a segregação do mundo, dos parentes, da vida, da honra e da linhagem, já constituiria a


melhor clausura para a monja carmelita orante no estilo teresiano. Porém Teresa quer algo mais para sua
Reforma; e este ideal é o que ficou delineado em seu livro Caminho de Perfeição. As pretendidas Constituições
da Encarnação, já citadas, prescreviam a clausura sob pena de excomunhão: «Porque as irmãs tem, tanto por
meio de voto, como por letras apostólicas, que nenhuma das irmãs, depois que na Ordem for professa, fora do
muro do mosteiro, de qualquer maneira que seja, não lhe seja lícito sair, ou de alguma forma violar o

91
. CV 10,1.
92
. Cfr. Otger STEGGINK, o. c., p. 299.
93
. CV 10,5. Alguns retoques no CE 15,3.
94
. CE 15,4. Suprimido no CV. Estes temas foram tratados com mais liberdade na primeira que na segunda redação.
95
. CE 15,5-6. Suprimido no CV. No lugar destas frases concluía no CV: «Porque se o demônio nos começa a
amedrontar de que nos faltará a saúde, nunca faremos nada»: 10, 8.
96
. CE 16,1. Suprimido no CV.
97
. CV 11,2-3.
98
. CV 11,4.
99
. CE 17,2. É recomemdável uma leitura demorada dos capítulos 10-12 do CV, e 14-18 do CE, muito mais amplo.
encerramento, sob pena de excomunhão...» 100. Porém sabemos que no tempo de santa Teresa «não se prometia
clausura», não era «mosteiro encerrado» 101. Por outro lado, a penúria econômica que tinha imposto o costume
das visitas aos locutórios da Encarnação, obrigava as monjas a sair do mosteiro para tratar-se fora em caso de
enfermidades, ou com outras desculpas. Outras vezes eram os superiores provinciais que permitiam às monjas
sair para acompanhar alguma senhora importante por ser amiga ou benfeitora, como o vemos no caso da Santa.
Também as anotações do P. Rubeo na visita canônica nos dão pistas dos costumes da Encarnação
quanto a clausura. Algumas pedem permissão ao Geral para poder sair em caso de necessidade ou enfermidade
própria ou por morte de seus parentes. E descobrimos que o Provincal podia dar essas licenças, porque algumas
se queixavam de que o fazia com parcialidade e favoritismo. No entanto, eram consideradas legal, ainda
algumas pedem que se introduza a mais estrita clausura, como mandava o concilio de Trento. Quando se fala,
portanto, que «se guardava a clausura» indica que quando saiam o faziam com permissão 102.
A clausura e o encerramento não possui em santa Teresa somente uma dimensão oracional, mas com ela
procura reviver em espirito as origens da Ordem. Ela apela com freqüência à «primeira Regra» 103. A solidão
absoluta dos eremitas do Monte Carmelo lhe enchia de nostalgia a alma, e em seu intento de reforma volta os
olhos àqueles cumes, àqueles homens dedicados exclusivamente em contemplar a Deus. Ela que aceita, sem
saber, uma regra que é de frades mendicantes, em espírito volta às origens da oração, solidão e contemplação,
tal e como conheceu na Instituição dos Primeiros Monges.
Em duas ocasiões recordará a suas monjas de São José: «Lembremo-nos de nossos santos padres
passados e santos eremitas cuja vida pretendemos imitar: o que passaram de dores e tão sozinhos, frios, fome,
sem ter a quem se queixar senão a Deus! Pensais que eram de ferro? Pois eram de carne como nós» 104.
«Porque o estilo que pretendemos levar é de não só sermos monjas, mas eremitas.»
Partindo desta base se entende porque quis rodear a sua oração de solidão e de silêncio. E porque esta
passa a fazer parte de sua pedogogia da oração pessoal. Assim se explica que diga que: «acostumar-se à solidão
é grande coisa para a oração» 105, e que dentro da clausura de seus conventos se edifique ermidas onde se possa
retirar a uma maior solidão.

2.4. Ambiente oracional da Espanha no século XVI e o Caminho

É de sobra conhecido, e o afirmei nestas páginas, que o Caminho é um livro sobre a oração. Pois bem,
quando a Santa começa a redigir as suas primeiras páginas, a literatura e a prática da oração ela já tinha uma
longa experiência. O secular grito de reforma, do qual fiz menção na primeira parte deste estudo, se aprofunda
na Espanha criando um clima propício para a oração. Existe um desejo difuso de volta às fontes, se sente um
chamado à interioridade, como também uma busca desesperada do Cristo dos Evangelhos, que tinha ficado
perdido na prática exterior da religião, no culto aos santos, nas peregrinações, no uso das relíquias, nas
cerimonias minuciosas. Os escritores espirituais desta época (Osuna, Laredo, Barnabé de Palma, Alonso de
Madrid, Erasmo, etc.) buscam uma espiritualidade de «interioridade» 106.
A reforma de Cisneros influencia de modo particular na vida franciscana e são eles os impulsionadores -
na primeira parte do século XVI - da espiritualidade afetiva e popular através da «oração de recolhimento». Os
«recoletórios» franciscanos desta época são ao mesmo tempo casas de oração, de solidão, de retiro e focos de
reforma 107.
Neste clima, preparado pelos reformadores e vivido pelo povo, surge uma notável literatura em torno da
oração. Desde 1500, data em que Garcia Jiménez de Cisneros publica o Exercitatório da vida espiritual, até o
ano 1559, quando se publica o Index do Inquisidor Fernando de Valdés, a Espanha vê florecer uma atrás da
100
. Parte 1, rúbrica 15, In BMC, IX, p. 497.
101
. Vida, 7,3; cfr. 4,4; 36,7; 32,9.
102
. Cfr. Otger STEGGINK, La Reforma del Carmelo español, pp. 298-301.
103
. Entre outros lugares: CV 4,2. Contraposta à Regra «como bula de relaxação»: Vida, 32,9. Todos os intérpretes estão
de acordo em afirmar que não se trata da «Regra albertina», dada aos eremitas do Monte Carmelo, aprovada por Honorio
III em 1226, mas a acomodada aos mendicantes carmelitas da Europa e aprovada por Inocencio IV em 1247.
104
. CE 16,4. Sobre os aspectos críticos da Institución de los primeros monjes e sua influência no ideal reformador de
santa Teresa, remeto a Otger STEGGINK, La Reforma del Carmelo español, pp. 357-362, e Experiencia y realismo, pp.
104-129.
105
. CV 4,9
106
. Cfr. Melquiades ANDRÉS, Interioridad na espiritualidad española en 1530, In Revista de Espiritualidad, 33 (1974)
387-399.
107
. Não quero insistir neste tema, por outra parte suficientememte conhecido, por urgência de espaço. O dito basta para
compreender os problemas do Caminho como livro de oração. Uma visão de conjunto pode ver-se em Melquiades
ANDRÉS na «introducción general» a la edición do Tercer Abecedario, de F. DE OSUNA, Madrid, BAC, 1972, pp. 3-117.
E sobre os problemas concretos da oração, M. BATAILON, Erasmo y España, 2ª ed. espanõla, México, 1966, pp. 72-608.
outra as seguintes obras: Terceiro Abecedário (Toledo, 1527), de Francisco de Osuna; Subida do Monte Sião
(Sevilha, 1535), de Bernardino de Laredo; Vergel de oração e monte de contemplação (Sevilha, 1544), de
Alonso de Orozco; Livro da oração, horas canônicas e outros oficios divinos (Coimbra, 1545), do doutor
Martín de Azpilcueta; Tratado de oração (Alcalá, 1552), de Antonio Porras; Itinerário da oração (Medina del
Campo, 1553), de Francisco de Evia; Livro de oração e meditação (Salamanca, 1554), de Frei Luis de Granada;
Diálogo sobre a necessidade e obrigação e proveito dos divinos louvores vocais... (Salamanca, 1555), do
dominicano Frei João da Cruz; Tratado da oração (Lisboa, 1556), de São Pedro de Alcântara; e outros muitos
108
.

2 4.1. Medo no ambiente

O século XVI espanhol se pode definir como um século de fé. Aqui, todos os problemas têm esta
perspectiva. A política é política religiosa, a guerra é guerra religiosa, a cultura é cultura religiosa, a arte é arte
religiosa, e assim tudo o mais. Por outra parte, a Espanha é também parte da Europa, e em seu epicentro havia
surgido o protexto radical contra o catolicismo de Roma em 1517. A Espanha, que tinha forjado sua unidade
atrás da luta secular contra o Islã, não queria o desmembramento de seu império por causa das discrepâncias
religiosas de seus habitantes.
São vários os problemas que contribuem para conturbar a convivência pacífica dos espanhóis nesta
época e criar um clima de temor, de insegurança e de tragédia.
Entre estes, estavam em primeiro lugar, os conversos, que eram cristãos novos, procedentes do Islã ou
do Judaismo, muitos deles batizados por conveniências sociais mais que religiosas; etnicamente diferenciados,
eram também religiosamente. Na Espanha, religião, raça e sangue, se identificavam; por isto, ao buscar a
«limpeza de sangue» esbarra-se na limpeza da religião, neste caso a religião cristã. O racismo por motivos
religiosos alcança na Espanha uma especial virulência.
Por outra parte, existia o grande fantasma do Protestantismo. Se a oração é o enorme esforço positivo
dos crentes deste século, o Protestantismo é o paradigma do repulsivo, do condenável. Todas as correntes desta
época estarão vinculadas a estas duas grandes realidades, o Protestantismo e a oração.
Junto com o Protestantismo vieram os contemporâneos em duas grandes correntes que fazem uma
referência concreta à oração: o Erasmismo e os Alumbrados ou abandonados.
O erasmismo não é só uma série de doutrinas extraídas das obras do grande humanista holandês,
Erasmo de Rotterdã, mas uma atitude existencial, uma práxis religiosa e espiritual, eminentemente crítica diante
de uma tradição religiosa considerada como ultrapassada, e uma busca da verdadeira religiosidade nas fontes. O
apelo com freqüência ao «cristianismo interior», enquanto contraposição às cerimonias, aos ritos vazios, ao
mero cumprimento. É um esforço de purificação. E seu desejo foi válido enquanto visou criar, ainda que não só
ele, um ambiente propício para o exercício da oração mental, que é um encontro com Deus em espírito e em
verdade, como repetirão nossos grandes autores do século XVI com fórmulas diferentes.
Os alumbrados tendem mais à heterodoxia e mais que uma ideologia é uma heteropraxis com
incidências na prática da oração mental. O alumbradismo desponta quase ao mesmo tempo com outra grande
corrente espiritual com a qual algumas vezes se confundiu, o «recolhimento». Os primeiros eram os
“abandonados”, os outros simplesmente «recolhidos».
O alumbradismo pode ser definido como uma seita de cristãos que, fundados no direito à sua
consciência individual que desejando encontrar-se com Deus - o eterno problema do século XVI sob diversos
ângulos -, iniciaram uma série de práticas religiosas e morais sustentadas em princípios afirmados no
Protestantismo, no erasmismo e no gnosticismo. Misturavam as idéias do cristianismo interior, do desprezo da
oração vocal, ainda que esta fosse a oração ofical da Igreja; praticavam a oração mental sob a forma do
«recolhimento», dando muita importância aos fenômenos extraordinários da mística. Nos últimos graus da
Perfeição acreditavam-se libertados por Deus, e transcendiam toda lei e toda norma positiva; De modo que,
quando a alma estava unida a Deus, tudo quanto o corpo realizava não tinha nenhum contéudo pecaminoso. Este
princípio levou a seita às conhecidas e exploradas aberrações sexuais 109.
Estas correntes de pensamento colocavam em perigo a ortodoxia oficial e a unidade da fé. E surgem

108
. Cfr. Daniel DE PABLO MAROTO, Dinámica de la oración. Acercamiento do orante moderno a santa Teresa de
Jesús, Madrid, 1973, pp. 91-92. É aconselhável a leitura do cap. V desta obra para tudo o que está relacionado com a
oração teresiana a partir do ponto de vista histórico, pp. 83-134.
109
. Para a espiritualidade espanhola do sigo XVI se recomendam as obras de Melquiades ANDRÉS e M. BATAILON,
citados n nota 107. Sobre os alumbrados abundam as obras. Recomendo as duas últimas: Angela SELKE, El Santo Oficio
de la Inquisición. Procéso de Fray Francisco Ortiz, Madrid, Guadarrama, 1968; e Antonio MARQUEZ, Los alumbrados,
Madrid, Taurus, 1972. Novas apreciações em Melquiades ANDRËS, Recogidos y alumbrados. Nueva visão del
alumbradismo español, In Salmanticensis, 21 (1974) 151-162; ID. Nueva visão de los alumbraduas, Madrid, Fundación
Universitaria española, 1973, 38 p.
pouco a pouco os diferentes mecanismos de defesa: a Inquisição com seus instrumentos de condenação e morte,
a censura prévia das publicações, e no ano 1502 nos tempos dos Reis Católicos, a proibição de importar livros
extrangeiros, etc. O processo reprovatório culmina em 1559, quando Felipe II ordena a volta dos espanhois que
estudavam no exterior, proibe a saída da Espanha para ir estudar fora, quando publica o índice de livros
proibidos do Inquisidor Fernando de Valdés, e é encarcerado o Arcebispo de Toledo, Bartolomeu de Carranza,
como suspeito de heresia, e são queimados vivos alguns hereges depois dos solenes e públicos «autos de fé» 110.
Diante destes fatos, o espanhol, sobretudo o povo orante, se atemoriza. Oficialmente ensina-se ao povo
o Caminho reto da vida ascética e da oração vocal, e a evitar os Caminhos extraordinários da mística com seus
elementos acessórios de visões, revelações, locuções, estigmas, etc. Multiplicam-se os casos de monjas e
«beatas» enganadas por satanás. A mesma Santa Teresa se debateu durante muitos anos na angústia de não
saber se os fenômenos extraordinários que sentia em sua alma procediam de Deus ou eram do «demônio», como
ela mesma nos confia em sua Autobiografia. No Caminho afirma: «andar com medo nesse caminho pode
prejudicar» 111.
Santa Teresa é uma testemunha excepcional de seu tempo e refere-se com freqüência no Caminho de
Perfeição à dramática situação na qual se debate a Espanha neste período. Algumas de suas descrições são
verdadeiras definições do ambiente, dos comentários do vulgo, frases petrificadas nos volumes de suas obras.
Por exemplo, a seguinte:
«Voltando agora aos que desejam seguir pelo caminho da oração e não parar até o fim... Digo que muito
importa, sobretudo, ter uma grande e muito decidida determinação de não parar enquanto não alcançar a meta,
venha o que vier, aconteça o que acontecer, sofra-se o que se sofrer, murmure quem murmurar, mesmo que não
se tenham forças para prosseguir, mesmo que se morra no caminho ou não se suportem os padecimentos que
nele há,ainda que o mundo venha abaixo. E quantas vezes, não acontece de ouvirmos dizer:: "Há perigos",
"Fulana por aqui' se perdeu", "A outra se enganou”, “Aquele que rezava muito, caiu”, “Prejudicam a
virutde”, “Não é para mulheres, pois poderiam ter ilusões", "melhor será que fiem”, "não têm necessidade
dessas delicadezas"» 112.
Em alguns textos do Caminho explicita mais seu pensamento e refere-se expressamente aos perigos que
aparecem no exercício da oração mental. «Há muitas pessoas, na verdade, a quem o simples termo oração
mental ou contemplação parece atemorizar» 113, e tira de sua própria experiência conclusões que não se
identificam com as opiniões dos «letrados» e até mesmo dos inquisidores. «Que é isto, cristãos?; entendeis isso?
Que queira dar voz e disputar - sendo quem sou - com os que dizem que não é preciso oração mental» 114.
Teresa é um vulcão de experiências sobre a oração mental e sabe explorá-las com efusão e com um
grafismo admirável: «Mas, que coisas se oferecem em começando a tratar deste Caminho! Oxalá pudesse eu
escrever com muitas mãos para que umas e outras não se esquecessem!» 115. Em Teresa se impõe a intuição
sobre a ciência e descobre, em uma argumentação linear, que também em outros caminhos há perigos; e chega a
afirmar que incitar ao medo pode ser uma armadilha do demônio. «Que coisa estranha! O mundo se espanta
mais com um dos que estão mais perto da perfeição que se engane do que com cem mil que de fato estão
mergulhados em enganos e pecados públicos – como se o demônio não tentasse os que seguem o caminho da
oração» 116. «O demônio parece ter inventado esses temores, tendo com suas manhas, ao que parece, derrubado
algumas pessoas de oração» 117.
Em conclusão, aconselha aos orantes a não fazer caso de nada, nem sequer dos teológos. «Tornando ao
que dizia, nenhum caso façais dos medos que eles puserem nem dos perigos que eles pintarem» 118. «Tende
aquele que vos disser que isso é um perigo pelo próprio perigo, e fugi dele; e não vos esqueçais deste meu
conselho» 119. «Desse modo, irmãs, - concluia o capítulo -, não considereis esses medos; nunca façais caso, em
coisas semelhantes, da opinião comum. Vede que estes não são tempos de se acreditar em todos, mas naqueles
que virdes seguir a vida de Cristo” 120.
Assim superou com coragem o medo do ambiente e voltou amável e animada ao exercício da oração
mental. Ela, com o carisma profético que lhe era próprio, resolveu as dificuldades que pareciam insuperáveis.
110
. Resumi este clima em minha obra Dinámica de la oración, pp. 93-97.
111
. CV 22,3.
112
. CV 21,2.
113
. CV 24,1.
114
. CE 37,2.
115
. CE 34,6. Suprimido no CV.
116
. CV 39,7. Retocado no CE 68,4.
117
. CV 21,7.
118
. CE 36,1.
119
. CV 21,7.
120
. CV 21,10.
Hoje, melhor que nunca, julgamos o acerto de sua intuição. Repete que para fazer oração é necessário «ter uma
grande e muito decidida determinação» 121.

2.4.2. Oração mental e oração vocal

Por medo da heterodoxia os responsáveis da fé se fixaram em uma postura receosa diante da oração
mental, sobretudo em suas formas contemplativas, por suas possíveis relações com os alumbrados e erasmitas
e destes com o Protestantismo. O antioracionismo deste grupo é antimisticismo.
Exímios representantes desta tendência são Melchior Cano, Fernando de Valdés, Frei João da Cruz, O.
P., e o mesmo Domingos Souto. Cano, crítica Bartolomeu de Carranza e a Luis de Granada por terem
universalizado a oração mental entre o povo. Via nisso um perigo de alumbradismo e quase um obstáculo para
o bom andamento da sociedade, no sentido de que o contemplativo não pode dedicar-se à vida ativa. De fato
no Indice de Valdés são condenados muitos livros sobre a oração, como os do P. Granada, Bartolomeu de
Carranza, Francisco de Evia, Bernabé de Palma, São Francisco de Borja, São João de Ávila, São Pedro de
Alcântara. É dizer, os representantes da assinalada tendência «afetiva» de nossa espiritualidade.
Frei João da Cruz, O P., escreveu um livro para inculcar no orante espanhol do século XVI a oração
vocal. Era uma réplica às correntes protestantes, erasmianas e alumbradistas, que a menosprezavam, do
mesmo modo no que se refere às cerimônias externas, etc., 122.
Fora do contexto polêmico em que escreve, se mantém em equilibrio aceitável a dignidade da oração
vocal, sobretudo quando é oração ofical da Igreja, porém admitindo a supremacia da oração mental; mas
considera a oração vocal como sendo de principantes, e a mental de aproveitados e perfeitos. Admite que a
oração mental e vocal são «duas partes ou diferenças de uma mesma oração” 123. A mental é «conveniente e
necessária», e por outra parte, também «são convenientes e razoáveis as palavras na oração para avivar e atiçar
o fervor do espírito e para sujeitar a Deus ambas naturezas» 124.
Este mesmo equilibrio se observa nos melhores escritores da época: Bartolomeu de Carranza, Luis de
Granada, Baltasar Alvarez, Osuna, etc.
Na defesa da ultrajada oração mental por parte dos teológos oficiais da Inquisição surge o dominicano
Domingo de Valtanás, que publicou em 1556 uma Apologia da oração mental, na qual afirma: «...E digo que
dizer que não há oração mental é um erro contra a divina história, que em muitas partes ensina que há oração
mental» 125.
Santa Teresa entra de cheio na polêmica, e no Caminho adota posições muito definidas, às vezes muito
comprometedoras, ante os teológos da Inquisição. Isso demonstra uma vez mais que o Caminho de Perfeição é
um livro de fronteira, de avanço espiritual. Sua opção é corajosa porque nasce de uma experiência muito
positiva nela. Vejamos como se desenvolve toda a problemática.
a) Contra erasmistas e alumbrados afirma o valor da oração vocal, não só da oração pública da Igreja,
mas da devocional. É de tanta dignidade que para almas que não tem sossego ou o entendimento, que se
distraem na oração mental pura, pode ser um alivio; e ainda pode ser o meio que Deus utiliza para levar a alma à
contemplação, como explica na mesma epígrafe do capítulo 25: «Em que diz o muito que ganha uma alma que
reza com perfeição vocalmente, e como a levantará Deus dalí a coisas sobrenaturais». E explicita ainda mais:
«E para que não penseis que se tira pouco proveito do rezar vocalmente com perfeição, eu vos digo ser muito
possível que, estando a rezar o Pai Nosso, o Senhor vos ponha em contemplação perfeita» 126.
Estas idéias brotam de um contexto existencial concreto. Possivelmente algumas de suas monjas podiam
se sentir frustradas como orantes se depois de muitos esforços realizados não conseguiam dominar suas
distrações, sua imaginação ou suas recordações na assim chamada oração mental. A Santa expõe através de todo
o Caminho, avisos que brotam sem nenhuma ordem de sua cabeça, sobre o que se deve fazer. Isto faz parte de
sua pedagogia de oração: solidão, silêncio interior e exterior, que ajudam no «recolhimento», austeridade de
vida, determinação, leitura de livros, visão atual das imagens de Cristo, etc. 127. Consola a estas almas com a
121
. CV 21,2; cfr. 19,2 e 20,2.
122
. O título é: Diálogo sobre la necesidad y obligación e provecho de la oración y divinos loores vocales..., Salamanca,
1555. Publicado ultimamemte por V. BELTRAN DE HEREDIA, In Tratados espirituales (Melchor Cano, Domingo Soto,
João da Cruz), Madrid, BAC, 1962.
123
. Cfr. Diálogo, pp. 285, 288, 290, 299.
124
. Diálogo, pp. 301-308.
125
. Foi publicado por A. HUERGA OP, na coleção de «Espirituales Españoles», serie A, n. 12, Barcelouna, Juan Flors,
1963, p. 137. Para maior informação sobre este problema no século XVI, remeto à minha obra Dinámica de la Oración, pp.
98-108.
126
. CV 25,1.
127
. Um capítulo muito completo nesta linha é o 26 do CV. Outros lugares: CV 4,9; 4,2; 21,2; 23,1; 19,1; cap. 28-29,
etc.
idéia de que a oração vocal bem feita é a perfeita oração que Deus pede a alma naqueles momentos de secura
humilhante. E muitas vezes é uma autêntica oração contemplativa. Ela explica a idéia com o exemplo de uma
velha religiosa que «nunca pôde ter senão oração vocal, e mergulhada nesta, tinha tudo». E também conhece
outras pessoas 128. Por outro lado, a oração vocal deve ser dosada para não impedir a ação de Deus na alma 129.
Para demonstrar o implícito poder contemplativo da oração vocal ela comentará longamente o Pai Nosso e por
falta de tempo e de espaço não fez o mesmo com a Ave Maria 130.
b) Porém a oração vocal no estilo teresiano traz implícita, de alguma forma, a mental, e supõe uma
atenção geral a Deus ou ao sentido das palavras da oração. Na mesma epígrafe do capítulo 24 está definida a sua
opinião: «Trata de como se deve rezar oração vocalmente com perfeição e como anda junta com a mental».
A oração mental para Santa Teresa implica a consideração dos mistérios de Deus; pois bem, estes
mistérios renascem na alma que ora vocalmente no estilo teresiano. «Sempre que me lembrar, hei de unir a
oração mental à vocal, para que não vos espanteis, filhas» 131. «Sabei, filhas, que a diferença entre a oração
mental e não mental não está em ter a boca fechada ou aberta; se, falando, entendo perfeitamente e percebo que
falo com Deus, concentrando-me mais nisso do que nas palavras que digo, estão juntas aqui a oração mental e a
vocal. Isso assim é, a menos que vos aconselhem a falar com Deus, rezando o pai nosso, ao mesmo tempo que
pensam no mundo; nesse caso, calo-me» 132.
Para Teresa parece lógico que a pessoa que reza vocalmente se prepare com alguns momentos de
reflexão, a perguntar-se sobre quem é, o que reza, com quem e sobre o que. São os verdadeiros preâmbulos do
diálogo. Assim repreende aos que negam a oração mental e admitem somente a oração vocal: «Quem poderá
afirmar que é ruim, se começarmos a rezar as Horas ou o rosário, que iniciemos pensando Naquele com quem
vamos falar e em quem é que fala para saber de que modo O haveremos de tratar?» 133, e logo, durante a mesma
oração, ter atenção às palavras que se recitam. «Porque quando digo Creio, parece-me ser razoável que eu
entenda e saiba em que creio; e quando digo “pai nosso”, exige o amor que eu compreenda quem é esse Pai
nosso e quem é o Mestre que nos ensina esta oração» 134. Nestes momentos se devem evitar as distrações para
que a oração vocal seja perfeita. «é insuportável falar com Deus e com o mundo ao mesmo tempo, pois não é
outra coisa estar rezando e ouvindo, por outro lado, aquilo que se diz, ou pensando no que nos vem à cabeça,
sem nos controlar» 135.
Numa ocasião parece referir-se a uma sentença moral que dizia que para rezar «validamente», ou seja,
para cumprir com o preceito de rezar as orações vocais, sobretudo o Ofício divino, oração vocal por excelência,
se requeria somente a repetição «material» das palavras. Ela, ao menos, o interpreta assim. Deixa que os
teológos moralistas esclareçam o problema teórico, e o resolve a nível prático: para alimentar a vida espiritual,
isto é demasiado pouco, não basta. «que não se diga de nós que falamos e não entendemos o que dizemos -
salvo se nos parecer que basta fazê-lo por costume, limitando-nos a pronunciar as palavras. Se isso basta ou
não, não me cabe dizê-lo; digam-no os eruditos. O que eu queria que fizessémos, filhas, é que não nos
contentássemos só com isso» 136.

128
. CV 30,7; cfr. 17,3 e lugares paralelos do CE 52,4 e 27,3.
129
. Cfr. CV 31,12-13.
130
. CE 73,1-2; cfr. CV 42,5 e 37,1.
131
. CV 22,3.
132
. CV 22,1. As palavras «se não os dizem», se referem a sentença de alguns teólogos contra os quais escreve a Santa
com ironia, fazendo-lhes ver a contradição interna que supõe rezar sem atenção: «Entendéis vós? Certou que penso que
não os entendéis, e assim queréis que desatinemos todos; nem sabéis qual é oração mental, nem como se deve rezar a
vocal, nem qué é contemplação; porque se o soubesséis, não comdenariéis por um lado o que louvais por outro»: CV 22,2;
ver também CV 24,6.
133
. CV 22,3. O repete quase com as mesmas expressões no CV 22,7-8; CV 24,2; CV 25,3; CE 38,2.
134
. CV 24,2.
135
. CV 24,4.
136
. CV 24,2. Na primeira redação se referia com lentidão aos «letrados»: «Se isso basta ou não, não me entrometo; isso
é de letrados; eles o dirão às pessoas que lhes der luz Deus, para que se o queiram perguntar»: CE 40,1. Certamemte ela
não perguntaria. Não está de todo clara a referência aos «letrados» de seu tempo e qual era o conteúdo de sua opinião.
Bartolomé de Carranza, seguindo a santo Tomás, admite «três maneiras de atenção na oração vocal». Uma «às palavras
que se dizem na oração», e dice que é «boa»; outra «ao sentido das palavras», e é «melhor»; finalmente, uma terceora, «no
fim da oração, que é Deus», e é «melhor que as outras duas». Cfr. Comemtarios sobre el Catecismo cristiano, Madrid,
BAC (major, 1), 1972, p. 385 e 365. Logicamente no terceiro modo de «atenção», se pode dar uma recitação «material» das
palavras, e, no entanto, esta parece ser a «melhor» atenção na oração vocal. ~Entedeu a Santa o problema? Ou, como outras
vezes, falseou sua interpretação? De fato, em um texto obscuro do Caminho, tentando explicar a atenção requerida na
oração vocal para que seja mental, afirma de si mesma: «Eu provei algumas vezes, e o melhor remédio que encontro é
procurar ter o pensamento em quem endereço as pelavras» (é dizer, naquele a quem dirige as palavras da oração vocal):
CV 24,6. cfr. CE 40,5.
De nenhuma maneira quer que se ensine ao povo, e mesmo às religiosas, só a oração vocal; ela opta pela
mental, ao menos, porque está incluída naquela. Em breves alusões Teresa demonstra que não aceita de boa
vontade a sentença ofical dos «letrados» e dos «Inquisidores». E procura convencê-los do absurdo de sua
opinião, porque não se dá oração vocal pura. Ridiculariza-os com palavras muito incisivas. É seu modo de
opinar e «disputar com os que dizem não ser preciso oração mental». Diz-lhes: «não entendeis nem sabeis qual
é a oração mental, nem como deve se rezar a vocal, nem o que é contemplação» 137.
Em outras ocasiões fala criticamente do mesmo tema com frases genéricas, porém, explícitas, referindo-
se aos inquisidores que proibem livros de oração e aos teológos que não admitem mais que a oração vocal.
«Se vos disserem que deveis orar vocalmente, verificai se o intelecto e o coração devem estar naquilo
que dizeis; se vos disserem que sim – pois não poderão dizer outra coisa -, vede como confessam que estais
obrigadas a ter oração mental...» 138.
«Quando vos disserem que não é bom que tenhais outra oração, senão vocal, não vos desconsoleis...
pois rezar vocalmente ninguém nos poderá impedir, nem rezar o pai nosso apressadamente sem o entendermos,
tampouco...» 139.
«Fazeis bem, filhas, que não nos tirarão o Pai nosso e a Avemaria» 140. «E que mesmo que nos tirem os
livros, não nos podem tirar este livro que é dito pela boca da mesma Verdade e que não pode errar» 141.

2.4.3. A mulher orante no século XVI

Afirmei anteriormente que entre os círculos oficiais da ortodoxia existia certa prevenção contra a prática
da oração mental pelo povo. Isto se intensificava tratando-se das mulheres. Hoje, em um clima totalmente
feminista, não é possível compreender toda a profundidade do problema.
Na realidade, existiam casos de monjas e beatas enganadoras, falsas místicas, alumbradas ou
protestantes. O caso mais célebre foi o da abadessa das clarissas de Córdoba, Madalena da Cruz, tida por
profetisa, mística, visionária e estigmatizada; porém, que foi presa pela Inquisição no dia 1 de janeiro de 1544, e
que declarou no dia 3 de maio de 1546 que tudo não passava de uma farsa e possessão diabólica voluntária 142.
Este caso «causou espanto em toda a Espanha», relata o P. Ribera 143. Todavia, outras visionárias ou alumbradas
não eram menos famosas: Maria de Santo Domingos, conhecida como a beata de Piedrahita; Isabel da Cruz, em
Guadalajara; Francisca Hernández, processada em 1529; E nos Autos de fé de Valadollid e Sevilha de 1559
foram também queimadas vivas algumas monjas e beatas tidas como alumbradas ou protestantes.
Ademais, nesta época corriam também sentenças peregrinas sobre a mulher, sustentadas pela teologia
escolástica, que interpretando as leis da genética humana (!) afirmavam que a mulher era uma falha da natureza,
como um varão inacabado. Este sentimento antifeminista provocava ditos tão grotescos como os escritos por
Francisco de Osuna:
«A partir do momento que tua mulher andar muitas estações e começar a dar-se a devoções e ser tida
por santa, fechá-lhe a porta; e se isto não bastar, quebra a perna se é jovem, que coxa poderá ir ao paraíso em
sua casa, sem andar buscando santidades suspeitas.Basta à mulher ouvir um sermão e fazer, se mais o quiser,
que se leia um livro enquanto fia, e assentar-se sob a mão de seu marido» 144. Antifeministas receosos da
piedade das mulheres são Cano, Domingo Bañez, os teológos da inquisição, e o mesmo são João de Ávila em se
tratando de fenômenos extraordinários da mística 145.
Santa Teresa, nisto como em muitas outras coisas, é uma antena levantada em plena Castela para
detectar o panorama religioso espanhol e a reação contra a mulher orante. Faz alusão à «opinião» do vulgo:
“quantas vezes não acontece de ouvirmos dizer: “Há perigos”, “Fulana por aqui se perdeu”, “a outra se
enganou”, Aquele que rezava muito, caiu”, “Prejudicam a virtude”, “Não é para mulheres, pois podem sobrevir-
lhes ilusões”, “Será melhor que vão fiar”, “Deixem de lado essas delicadezas...” 146.
A idéia de formar algumas comunidades de oração no estilo contrareformista, o carácter de serviço à

137
. CE 37,2. Retocou o texto no CV 22,2.
138
. CV 21,10.
139
. CE 73,1. Suprimido no CV.
140
. CE 36,4. O censour viu que se referia à proibição de livros de espiritualidade no índice de Valdés e anota à margem
do manuscrito: «Parece que repreende aos Inquisidores que proibem livros de oração». O texto não passou ao CV.
141
. CE 73,4. Suprimido no CV.
142
. Cfr. EFRÉN DE LA MADRE DE DIOS, OCD, Tiempo y vida de santa Teresa, In Obras completas de santa
Teresa, 1, Madrid, BAC, 1951, n. 414, pp. 465-466.
143
. Vida de santa Teresa, Salamanca, 1590, p. 75.
144
. Norte de Estados, Sevilla, 1531, f. 160v.
145
. Recolhi algumas testemunhas na Dinámica de la oración, pp. 108-112.
146
. CV 21,2.
Igreja de sua Reforma, brota de uma consideração feminista. Teresa se vê «mulher» e «ruim» e
«impossibilitada» para servir ao Senhor nas coisas que ela queria. Existe uma lógica interna nestas expressões
que tem um fundamento na realidade histórica e eclesial de seu tempo. Sentia-se inútil na Igreja precisamente
por ser mulher. É perceptível em muitas páginas de Santa Teresa – como também no Caminho - um lamento
surdo contra a inutilização das mulheres por parte da Igreja hierárquica que se encontrava em «grandes
tempestades» 147. Apesar de considerar-se analfabeta, como a maioria das mulheres de seu tempo - «nós
mulheres não temos instrução» 148, quando escreve o Caminho de Perfeição para suas monjas de São José,
espera «acertar em coisas pequenas mais que os letrados que, por ter outras ocupações mais importantes e
serem varões fortes, não faziam tanto caso das coisas que em si não parecem nada e de coisa tão fraca como
somos nós mulheres nos pode condenar» 149.
Para terminar não posso deixar de referir-me a uma brilhante apologia que Teresa faz da mulher orante
nas primeiras páginas do Caminho. Possivelmente a um leitor moderno o texto passe despercebido, porém no
contexto antifeminista do século XVI é uma carga explosiva colocada em uma concepção ideológica que vem a
baixo. O leitor da segunda redação do Caminho se encontra com uma frase aparentemente inofensiva, quase
incolor por sua fugacidade: «Nem vos aborrecestes, Senhor, quando andáveis no mundo, com as mulheres;
sempre as favorecestes com muita piedade» 150. Evidentemente é uma expressão incompreensível, truncada,
como uma arquitetura inacabada, e nela intuimos um pano de fundo problemático. E de fato isso aparece na
primeira redação onde havia escrito frases muito corajosas em defesa das mulheres, numa crítica velada à
«inutilidade» a que a Igreja as havia reduzido, e uma recordação amarga da atuação da Inquisição em relação a
mulher orante.
«Não vos aborrecestes com as mulheres, Senhor de minha alma, quando andáveis pelo mundo, antes as
favorecestes sempre com muita piedade e encontrastes nelas tanto amor e mais fé que nos homens, pois estava
vossa sacratíssima Mãe em cujos méritos merecemos – e por levar o seu hábito – o que desmerecemos por
nossas culpas. Não basta, Senhor, que nos tenha o mundo encurraladas... que não façamos algo que valha nada
para Vós em público, nem ousemos falar algumas verdades que choramos em segredo, senão que não haveis de
ouvir petição tão justa? Não o creio eu, Senhor, em vossa bondade e justiça, que sois justo juiz e não como os
juízes do mundo, que – como são filhos de Adão e, enfim, todos varões - (para eles) não há virtude de mulher
que não tenham por suspeita. Sim, algum dia haverá, Rei meu, em que será conhecido por todos. Não falo por
mim, pois o mundo já conhece a minha ruindade e eu me alegro que seja pública, mas porque vejo os tempos de
maneira que não há razão para desprezar ânimos virtuosos e fortes, mesmo que sejam de mulheres» 151

3. CONCLUSÃO: O CAMINHO DE PERFEIÇÃO ONTEM E HOJE

Concluo esta introdução fazendo um balanço da doutrina do Caminho e do seu sentido e valor para o
homem moderno.
Considero permanente o valor da oração como «serviço» à Igreja. É o eixo do livro e da Reforma
teresiana. Não tem o mesmo sentido hoje o estilo antireformista, próprio do momento em que escreve.
São clássicos e permanecem também alguns condicionamentos da oração pessoal: a determinada
determinação, a solidão e o silêncio, a fraternidade comunitária e suas exigências de caridade, humildade e
desapego radical. Todavia, hoje não existem os temores ambientais provocados pela Inquisição, a aversão dos
teológos contra as mulheres orantes, o ambiente antifeminemsta, os excessos místicos; porém continuam muitas
objeções contra a oração, as de sempre e outras que estão nascendo no compasso da cultura de nossa época.
De atualidade urgente continua, antes de tudo, o chamado à interioridade, a busca de um Deus
apaziguador de nossa angústia, de um Cristo vivo no mais profundo da alma, sentido como um Mestre que
ensina silenciosamente, que nos devolve o sossego perdido nas mil batalhas do ruído, da contaminação e das
pressas. Este Cristo é o núcleo da mensagem existencial teresiana vivida na «oração de recolhimento», que às
vezes provoca o surgimento da oração contemplativa.
São válidas uma infinidade de conselhos, de sentenças sobre a vida espiritual, sobre os pormenores
humanos e cristãos da vida cotidiana, que ela debulha como grãos de luz na obscuridade, às vezes seguindo o fio
lógico do discurso e outras em saborosas digressões; sentenças profundas, polidas, como as de Sancho
endereçadas ao divino, cheias de plenitude, de humanismo, de Evangelho.
147
. Vida 13,21. Ver 10 que diz no número 2,2 deste trabalho, pp. 282-285.
148
. CV 28,10; 41,6; CE 71,6.
149
. CE prólogo, 3.
150
. CV 3,7.
151
. CE 4,1. O texto foi tachado muito estupidamente pela censura, como era de se esperar, e foi muito difícil sua
reconstrução, e em algumas partes, impossível. Sigo a leitura do P. Tomás de la Cruz, no Camino de Perfección, I, Roma,
1965, pp. 67*.68*.
Outras idéias têm um sabor mais circunstancial e familiar. Os probemas provocados pelas amizades
particulares, o trato com os «parentes» e com os confessores. Hoje tem tudo isto outra perspectiva e muitos
destes princípios estão ultrapassados, e são submetidos a uma revisão constante. No entanto, as raízes
psicológicas do ser humano, são sempre idênticas. Neste mesmo contexto da afetividade não deixam de ter
vigência suas divagações sobre o amor «puro espiritual».
Ficou hoje muito desprezado o problema da «honra» por razões genéticas ou biológicas. A «limpeza de
sangue», segundo a concepção espanhola do século XVI, não tem hoje razão de ser. Porém, existem nas páginas
do Caminho princípios universais sobre o perdão das ofensas e as injúrias, a dialética entre a honra, a boa
opinião do vulgo e o dinheiro ou os bens e a «honra» cristã da pobreza, etc.
Tampouco está tão radicalizado hoje como no século XVI - e pelo mesmo o encontro ultrapassado - o
problema das facções conventuais provocados pela presença simultânea em um mesmo convento de clausura de
«ativos» e «contemplativos».
Podem estar ultrapassadas algumas sentenças ou princípios de menor importância, difíceis, no entanto,
de especificar.
Em conclusão. O balanço é positivo. E penso que o Caminho de Perfeição é um dos livros da madre
Teresa que menos tenha envelhecido com o passar do tempo.

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