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ÉTICA
INTRODUÇÃO
1
Ver HEIDEGGER, Martin. O que é isto Filosofia [Qu’est-ce La Philosophie]. In: Os Pensadores. São Paulo:
Abril Cultural, 1979. p.13-31.
2
Cf. HUSSERL, Edmund. A Filosofia como ciência de rigor. Coimbra: Atlântida.
3
3
Cf. MARÍAS, Julián. A Visão Responsável. In: Antropologia Metafísica. São Paulo: Duas Cidades, 1971. p.9-14.
4
Ibidem.
4
5
Segundo Aristóteles (Metafísica I, 1,2 e Ética a Nicomâco VI), as ciências podem ser classificadas considerando
seu objeto e grau de universalidade. Às ciências poéticas [arte ou técnica] é reservada a tarefa da produção dos
bens necessários à vida humana [abrigo, alimento, saúde, bens culturais, etc.]. À Filosofia Prática [que examina
o agir humano: práxis] compete refletir sobre a vida individual [Ética] e a vida na cidade [Política], indicando os
critérios pelos quais atingiremos o máximo de realização humana, consideradas todas as possibilidades de vida
feliz na perspectiva da realização do bem individual e do bem comum. As Ciências Teóricas, gratuitas, dividem-
se em particulares [aquelas que examinam aspectos particulares do ser: como a biologia, a física, a psicologia e a
matemática] e a Filosofia Primeira, saber abrangente que investiga os primeiros princípios da realidade. Se as
Ciências Poéticas e a Filosofia Prática são conhecimentos aplicados, entretanto, as Ciências Teóricas são
exercício gratuito de investigação. As Ciências Teóricas, destacamos, tratariam de aspectos particulares do ser
[Ciências Particulares] ou do ser enquanto ser [Filosofia Primeira]. Segundo Aristóteles, participam em maior
grau da natureza da Sabedoria – objeto da investigação das Ciências – os conhecimentos mais universais e
gratuitos. Assim, teríamos a seguinte classificação, ascendente, quanto ao grau de dignidade e importância das
ciências: Ciências Poéticas, Filosofia Prática, Ciências teórico-particulares e Filosofia Primeira [Metafísica].
Em nossa concepção, a Filosofia Prática [Política e Ética] – enquanto conhecimento aplicado – é exercício
filosófico pleno, ação reflexiva de primeira grandeza. A Ética, reflexão prática, conseqüentemente, é pleno
exercício filosófico, reflexão indispensável, Filosofia em sentido maior.
6
Aristóteles, no entanto, define Ética como ciência, ou seja, define-a como um exercício
rigoroso que investiga o agir humano. De que agir ou ações estamos falando? De um agir
específico, qualificado, nascido da reflexão e da deliberação, capaz de afetar a vida do
agente e, sobretudo, a vida de outras pessoas. Determinar a natureza de tal agir
confrontando-o com os fins da vida humana, seria a tarefa da Ética.
Podemos, igualmente, definir Ética como ciência da moral, ou melhor, como teoria ou
ciência do comportamento moral dos homens em sociedade6. A Ética, enquanto teoria,
pretende ser conhecimento rigoroso sobre o comportamento qualificável como moral.
Moral7, por sua vez, deriva de mos, mores: costume, costumes [uso, caráter,
comportamento]. Por moral, entendemos o conjunto de normas aceito e vivido por
indivíduos concretos em determinada sociedade. O objeto da Ética é, por conseguinte, o
comportamento caracterizado como moral8, ou seja, nascido da reflexão e da consciência,
orientado por normas admitidas e realizadas livremente por indivíduos que compartilham
suas vidas em determinada sociedade. É conveniente recordar: esse comportamento,
caracterizado por moral, afeta a vida de outras pessoas. Na realização da moral,
6
Cf. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. 22. ed. RJ: Civilização Brasileira, 2002. p. 23.
7
Mos, mores é a tentativa dos latinos traduzirem ethos, daí as palavras ethikós e moralis [Cf. SARAIVA, F.R. dos
Santos. Novíssimo Dicionário Latino-Português. Rio de Janeiro: Garnier, 1993. p.435/754]. Aquilo que a tradição grega
denominava ética, portanto, passou a ser designado pelos latinos por moral. Ética [do grego ethos] indica:
costume, condução de vida, regras de comportamento, caráter de uma pessoa ou de um povo. Moral [do latim
mos, mores] designa: costumes, conduta de vida, regras de comportamento, remete ao agir humano. Ética e
Moral, portanto, numa primeira compreensão, podem ser consideradas sinônimas, pois as palavras coincidem na
indicação de comportamento justificado por normas. Entrementes, embora as línguas ocidentais tenham usado
esses vocábulos como sinônimos, é interessante diferenciá-los. Nessa perspectiva, convencionamos,
considerando a evolução do uso das palavras, indicar por Ética a dimensão teórica, reservando a palavra Moral
para sinalizar a instância dos costumes e normas. Em nosso estudo, destacamos, por questões metodológicas e
epistemológicas [em acordo com a tradição inaugurada por Aristóteles], por Ética indicaremos o momento
teórico e por Moral a dimensão normativa e os costumes.
8
Se o objeto da Ética é o comportamento moral, é conveniente entendê-lo. Em primeiro lugar, os animais,
altamente especializados, estão rigidamente ligados ao meio ambiente. O ser humano, ao contrário, plástico
[moldável] recebe da cultura uma segunda natureza que permitirá sua sobrevivência. Essa segunda natureza, a
cultura, situa o homem no mundo, destacando-o do cosmo. Ser gregário, racional e portador de linguagem, o
homem buscará na cultura respostas às diferentes necessidades. Nessa direção, precisará descobrir, interiorizar e
realizar normas, pois sua plasticidade, seu comportamento não-fixado instintivamente, ao mesmo tempo que lhe
abre ao mundo, exige novo suporte. Esse processo de interiorização das normas é mediado pela educação,
realizando as várias etapas de socialização incorporadoras do indivíduo ao tecido social. Os animais,
destacamos, recebem do rígido aparato instintivo a direção do seu comportamento. O homem, frisamos,
encontrará na moral [nas normas] efetiva orientação e adequada compensação cultural. Em segundo lugar,
somente poderá ser caracterizável como moral, o ato que, tendo realizado ou não a norma, afeta positiva ou
negativamente a vida de outras pessoas. Em terceiro lugar, a ação moral supõe a capacidade de antecipar os
resultados, nascendo de livre deliberação, sendo avaliável segundo suas conseqüências. Em quarto lugar, o
comportamento moral supõe a capacidade de resistir à coerção externa ou interna na direção do agir voluntário.
Em quinto lugar, à voluntariedade segue-se racionalidade compartilhável intersubjetivamente, capaz de conceber
e reivindicar a norma, adequando-a, realizando-a, avaliando-a. A Ética procurará compreender e significar o
comportamento que denominamos como moral.
7
salientamos que o grau de autonomia e liberdade varia entre indivíduos, culturas e épocas
da história. Entretanto, quanto maior o grau de autonomia presente na vida moral dos
indivíduos e sociedades, tanto mais qualificada e plena será essa dimensão da existência.
9
Dimensão subjetiva da vida moral.
10
Dimensão objetiva da vida moral.
11
Quais são as condições e os pressupostos da livre adesão do agente moral ao obrigatório [ao dever]? Por que e
como o agente ético livremente realiza o obrigatório proposto pelo dever?
8
12
O que é o Mínimo Ético? Através de um exercício racional-comunicativo podemos indagar: quais são os valores e
princípios que permitiriam a convivência entre os humanos em sociedade? Esses valores e princípios, por sua validade
intersubjetiva, por seu caráter trans-cultural, por seu conteúdo de racionalidade, forneceriam as bases dessa convivência num
mundo em crescente globalização e mundialização. O respeito à vida em geral e às pessoas, o exercício da solidariedade, a
promoção dos direitos e liberdades fundamentais, encontrariam no Mínimo Ético sua referência e fundamento. Nesse sentido:
quais são as coisas mais importantes em minha vida? Quais são os valores pelos quais oriento minha existência? Incluo as
outras pessoas e seres vivos no meu projeto de vida? Como minhas escolhas axiológicas são, de fato, vividas?
13
Como devemos compreender a instância normativa moral na sua relação com a lei? As normas morais
traduzem valores e princípios que orientam a vida em sociedade. Ligam-se ao costume, se enraízam na
consciência do indivíduo e são livremente cumpridas ou violadas. Essas normas podem, com o tempo, receber
explicitação em forma de lei positiva [escrita]. A lei, em sua positividade, traduz, antecipa ou contraria a norma
moral, exercendo sob as pessoas poder coercitivo. Se as normas morais regulam, com certo grau de
espontaneidade a vida dos indivíduos, a lei ordena por seu caráter coercitivo. Daí as diferenças entre o moral e o
legal, e os conseqüentes conflitos. Cumpre à Ética indagar se determinado dispositivo legal é, de fato,
moralmente válido e eticamente justificável.
9
15
VÁZQUEZ, 2002, p.50-52.
16
A vida moral orientada por normas exteriores ligadas ao direito e ao costume, torna-se vida moral
interiorizada, vivida desde convicções íntimas e partilhadas com outros membros da sociedade.
17
Ou seja, pelo crescimento da responsabilidade desses indivíduos e grupos em seu comportamento moral.
18
Valores como: solidariedade, amizade, lealdade, honradez, veracidade, senso de justiça.
11
propugnar os direitos da pessoa, do Idoso, das crianças, defender o meio ambiente, etc.
Não é suficiente haver declarações consignadas pelas nações. É prioritário transitar do
plano formal dessas declarações à vida e suas reivindicações; é urgente realizá-las, dar-lhes
sentido práxico.
Finalmente, se a vida moral implica numa relação livre e consciente com a norma e
sua realização, é preciso pensar o problema da autonomia e heteronomia moral. Quando
agimos, recebemos, de fato, influências da sociedade, da cultura e da época da qual
fazemos parte. Entretanto, sempre agimos com algum grau de liberdade. O contexto, ao
incidir sobre nossas ações, salientamos, não elimina nossa capacidade de escolher e
decidir. Escolhemos, decidimos e agimos num mundo que, ao nos acolher, condiciona e
possibilita nossas existências. Logo, se valores e normas sempre traduzem o ambiente
donde brotam, ainda assim, podemos interpretá-los e decidir realizá-los segundo grau de
autonomia capaz de fundar a responsabilidade. Do exposto, porque capazes de autonomia,
somos responsáveis. Dizendo de outra maneira: se, quando agimos, atuamos segundo os
valores e normas recebidos de nossa sociedade, cultura, época, entrementes, ainda assim,
agimos com algum grau de liberdade. Verificando que a pessoa é liberdade finita, o agir
humano implica num grau de heteronomia ou determinação exterior. Entretanto, o conteúdo
recebido [norma] precisa ser interiorizado, refletido, avaliado, assumindo como meu. Assim,
o agir humano torna o heterônomo [a lei recebida do exterior] norma assumida
autonomamente [aceita interior e livremente]. E, frisamos, tanto mais consciente a
realização da norma, tanto mais autêntica a vida moral. Seria oportuno, em conseqüência,
investigar o processo de amadurecimento para a vida moral19.
Conclusão Preliminar
A vida moral implica numa relação livre e consciente entre os indivíduos e entre
esses e a sociedade, visando o bem de cada um e de todos. A reflexão ética, ao estudar o
comportamento moral, poderá, efetivamente, contribuir ao enriquecimento da existência
humana. Para além dos condicionamentos, na esfera da intimidade, na descoberta do si
19
Ver, nesse sentido, o resumo de Bárbara Freitag (cf. “Moralidade e educação Moral”. In: _______ . Itinerário
de Antígona. A questão da moralidade. SP, Campinas: Papirus, 1997. p.192-207) referente ao estudo
transcultural realizada pelo psicólogo norte-americano Lawrence Kohlberg sobre os estágios do desenvolvimento
da moralidade [descrição das seis etapas do desenvolvimento moral ou da gradativa passagem da heteronomia à
autonomia na esfera da vida moral].
12
20
Cf. VÁZQUEZ, A Essência da Moral (cap. III), 2002, p. 63.
14
21
Resume Vázquez (A essência da moral, cap. III, p. 65): “As normas existem e valem independentemente da
medida em que se cumpram ou se violem. O normativo e o fatual não coincidem; todavia, como já assinalamos,
encontram-se em relação mútua: o normativo exige ser realizado e, por isso, orienta-se no sentido do fatual; o
realizado (o fatual) só ganha significado moral na medida em que pode ser referido (positiva ou negativamente) a
uma norma. Não há normas que sejam indiferentes à sua realização; nem há, tampouco, fatos na esfera moral (ou
da realização da moral) que não se vinculem com normas. Assim, portanto, o normativo e o fatual no terreno
moral (a norma e o fato) são dois planos que podem ser distinguidos, mas não completamente separados”.
15
entre os indivíduos e a sociedade da qual fazem parte22. Nessa direção, três aspectos
regulam a vida moral23:
Quais são, então, os atos que podem ser caracterizados ou classificados como
morais? São aqueles que apresentam conseqüências, não apenas para o agente, mas para
outras pessoas. Dessa maneira, ir ou não ir ao cinema numa tarde de sábado não implica
em conseqüências para a vida de outras pessoas. Mas, descumprir promessa, romper a
palavra empenhada injustificadamente, resulta em ação moral e responsabilidade
conseqüente.
A moral, ao regular a vida dos membros de uma sociedade, importa num caráter
social, supõe a intervenção dessa sociedade no comportamento de seus participantes, pois
fornece quadro normativo apto a orientar a vida das pessoas. Todavia, quanto mais
consciente seja o individuo, quanto mais presente se faça nas suas ações, quanto mais aja
por reflexão e menos por imposição, tanto mais plena e livre será sua existência moral24. Na
consciência, finalmente, decide-se a vida moral na direção do cumprimento ou
22
Importa perguntar: até que ponto somos agentes ou pacientes da cultura, enquanto membros de determinada
sociedade. É inegável a existência de condicionamentos que envolvem nossas vidas e limitam a liberdade em
assumir regras orientadoras de nosso comportamento. Entretanto, há instância de reflexão e liberdade segundo a
qual agimos e pela qual nos tornamos responsáveis por nossos atos, por nossa vida. Não importa o que fizeram
de nós, o importante é saber o que fazer com o que fizeram de nós. A afirmação precedente indica: somos
responsáveis, apesar dos condicionamentos existentes, por nossas ações. A vida moral, assim, em sua
maturidade, consiste na capacidade de assumir as conseqüências de nossas ações, considerada a conquista dessa
esfera de reflexão e liberdade capaz de nos tornar mais plenos porque responsáveis.
23
Cf. VÁZQUEZ, A essência da moral (cap. III), 2002, p. 67-69.
24
Afirma Adolfo Vázquez (A essência da moral, cap. III, 2002, p. 73): “O sujeito do comportamento moral [...]
é uma pessoa singular. Por mais fortes que sejam os elementos objetivos e coletivos, a decisão e o ato respectivo
emanam de um indivíduo que age livre e conscientemente e, portanto, assumindo uma responsabilidade social. O
peso dos fatores objetivos – costumes, tradição, sistema de normas já estabelecidas, função social deste sistema
etc. – não nos pode fazer esquecer o papel dos fatores subjetivos, dos elementos individuais (decisão e
responsabilidade pessoal), ainda que a importância deste papel varie historicamente de acordo com a estrutura
social existente. Mas, inclusive quando o indivíduo pensa que age em obediência exclusiva à sua consciência,
uma suposta voz interior, que em cada caso lhe indica o que fazer, isto é, inclusive quando pensa que decide
sozinho no santo recesso de sua consciência, o individuo não deixa de acusar a influência do meio social de que
é parte e, a partir de sua interioridade, tampouco deixa de falar à comunidade social à qual pertence”. Vázquez
insiste na dialética entre o individual e o coletivo, indicando, na instância interior, a presença das vozes da
sociedade; mas, ao mesmo tempo, reconhece que, em última instância, contra os condicionamentos ou, até, a
favor das normas recebidas, quem decide é o indivíduo, portador da possibilidade da reflexão, agente livre e
consciente.
16
25
Ver FREITAG, Barbara. “Moralidade e educação moral”. In: _______ . Itinerário de Antígona. A questão da
moralidade. SP Campinas: Papirus, 1997. p.192-207.
17
26
Cf. VÁZQUES, A essência da moral, cap. III, 2002, p. 78.
27
A norma [ou preceito] é uma regra de ação que atualiza valores e princípios.
19
3 RESPONSABILIDADE E LIBERDADE
O ser humano, ser racional e livre, realiza a si mesmo através de seus atos. Atos
precedidos de reflexão, deliberados, decididos, realizados livremente e, portanto, capazes
de responsabilização. As ações morais, especificamente, não afetam, sublinhamos,
somente a vida do agente, mas, também, a vida de outras pessoas. Quando as ações
morais são avaliadas, é possível averiguar conseqüências positivas ou negativas
resultantes, seu impacto sobre a vida individual, familiar e social. Desejamos,
presentemente, entender o significado do que seja responsabilidade moral, cotejando a
relação entre liberdade e responsabilidade, indicando as situações nas quais o agente é
dispensado de responsabilização e, finalmente, analisaremos algumas teorias sobre a
liberdade.
28
Cf. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética (Responsabilidade Moral, determinismo e liberdade). 22. ed. RJ:
Civilização Brasileira, 2002. Cap. III. p.109.
21
em segundo lugar, sua causa principal no próprio indivíduo, na sua vontade, e não noutro
agente ou, até mesmo, em fatores internos perturbadores do seu estado consciente e livre29.
Se o conhecimento e a liberdade, em resumo, fundamentam a responsabilidade moral,
entretanto, a ignorância involuntária e a privação da liberdade eximem o sujeito ético de
responsabilidade30.
Estudaremos, tendo em vista o exposto, as possíveis situações nas quais o agente é
isento de responsabilidade: a ignorância involuntária [a], a coação externa [b] e a coação
interna [c]. Todavia, antecipamos, na maioria dos casos, o agente é responsável, pois é
capaz de superar tanto a ignorância involuntária, quanto a coação interna e externa.
29
Se circunstâncias podem inibir ou possibilitar atos livres, é importante, pois, indagar: em que situações o
indivíduo é responsável por seus atos? Ou, quando o indivíduo é isento [dispensado] de responsabilização?
Declara Vázquez (2002, p.110) que, já desde os tempos de Aristóteles, contamos com uma velha resposta a essas
perguntas, observadas duas condições fundamentais: “a) que o sujeito não ignore nem as circunstâncias nem as
conseqüências de sua ação; ou seja, que seu comportamento possua um caráter consciente. b) que a causa dos
seus atos esteja nele próprio (ou causa interior), e não em outro agente (exterior) que o force a agir de certa
maneira, contrariando a sua vontade; ou seja, que a sua conduta seja livre”.
30
Afirma Vázquez (2002, p.110): “Tão-somente o conhecimento, de um lado, e a liberdade de outro permitem
falar legitimamente de responsabilidade. Pelo contrário, a ignorância, de uma parte, e a falta de liberdade de
outra (coerção) permite eximir o sujeito da responsabilidade moral”.
31
Conforme Vázquez (2002, p.111), “a ignorância neste sentido amplo se apresenta, portanto, como uma
condição que exime da responsabilidade moral”.
32
Conhecidos os fatores [condição do carro: estado dos pneus, faróis, amortecedores, equipamentos de
seguranças, freios, etc.] fatos [ou acontecimentos] podem e devem ser antecipados e evitados. Um motorista é
ciente de que dirigir um veículo em condições precárias é imprudente. A capacidade de previsão, no referido
exemplo, permite antecipar conseqüências [positivas ou negativas], bem como, prevenir acidentes.
22
Uma pessoa pode ser responsabilizada por um ato se, e somente se, a causa desse
ato esteja dentro dela e não provenha de fora, ou seja, não tenha sua origem em algo ou
alguém que a force contra a sua vontade. A coação externa, por conseguinte, anula a
responsabilidade, pois, se o agente sofre coação ou pressão externa, perde controle sobre
si mesmo e seus atos. A causa, estando fora do agente, em conclusão, isenta-o de
responsabilidade37. Um condutor que, dirigindo sóbria e prudentemente, para evitar acidente
vê-se, ocasionalmente, envolvido numa colisão com um terceiro veículo, pelo imponderável
33
Uma criança, em fase precoce de desenvolvimento cognitivo e moral, é incapaz de entender o real significado
de suas ações. É preciso explicar o significado de seus atos para que possa, então, avaliar o alcance desses atos.
34
A ignorância involuntária [ou não voluntária] supõe que o indivíduo não apenas desconhecia as circunstâncias
e natureza de seu ato, mas, sobretudo, não tinha obrigação de conhecê-las. Uma pessoa que – ignorando a
situação clínica de um amigo portador de uma neurose – lhe oferece objeto capaz de desencadear reação
patológica [por exemplo: cólera], está dispensada de responsabilidade. Já, os parentes do „neurótico‟ deveriam
ter prevenido a pessoa em questão sobre o problema de seu familiar. O estado de desenvolvimento intelectual e
emocional de cada pessoa, destacamos, corresponderá à proporcional responsabilidade correspondente.
35
Vázquez (2002, p.113) esclarece: “Em resumo: a ignorância das circunstâncias, da natureza ou das
conseqüências dos atos humanos autoriza eximir um indivíduo de sua responsabilidade pessoal, mas essa isenção
estará justificada somente, quando, por sua vez, o indivíduo em questão não for responsável por sua ignorância;
ou seja, quando se encontra na impossibilidade subjetiva (por motivos pessoais) ou objetiva (por motivos
históricos e sociais) de ser consciente do seu ato pessoal”. Aproveitando a explicação de Vázquez, ampliando
reflexão, o nível de desenvolvimento espiritual de determinada sociedade, por exemplo, exime o individuo de
responsabilização. Aristóteles, v. g., envolvido no clima espiritual de seu tempo, considerava a escravidão
expediente aceitável. Entre os gregos a escravidão, ligada à guerra, era amplamente legitimada. Entretanto,
embora a matriz cultural de Aristóteles o dispense de responsabilidade sobre sua posição frente à escravidão; tal
isenção não nos autoriza a concordar com esse costume. A escravidão, ou qualquer forma de violação da
dignidade humana, em qualquer cultura ou época, é reprovável.
36
O direito examina a responsabilidade [legal] segundo o dolo ou culpa. Um delito doloso, por exemplo, acarreta
grau maior de responsabilização do que infração culposa.
37
De outro modo: se a causa foge ao poder e controle do indivíduo, elimina sua capacidade de escolha e
decisão.
23
vemos, portanto, que a coação externa pode anular a vontade do agente moral e
eximi-lo de sua responsabilidade pessoal, mas isso não pode ser tomado em
sentido absoluto, porque há casos em que, apesar de suas formas extremas,
sobra-lhe certa margem de opção e, por conseguinte, de responsabilidade moral.
Quando, portanto, Aristóteles assinala a falta de coação externa como condição
necessária de responsabilidade moral, isso não significa que o agente não possa
resistir, em nenhum caso, a esta coação e que não seja responsável pelo que faz,
todas as vezes que está sob o seu poder. Se esta condição se postulasse em
termos absolutos, chegar-se-ia em muitos casos a reduzir enormemente a área da
responsabilidade moral. E esta redução seria menos legitima tratando-se de atos
cujas conseqüências afetam profundamente a amplos setores da população ou à
39
sociedade inteira .
38
Lembramos, por exemplo, que confissões colhidas através de tortura não têm valor jurídico, devendo ser
contestadas.
39
VÁSQUEZ, 2002, p.115.
40
Alegações dos expoentes nazistas estão nos anais do Julgamento de Nüremberg.
41
Hiroshima foi bombardeada em 06 de Agosto de 1945 e Nagasaki a 09 de Agosto de 1945. As duas cidades do
Japão, as primeiras arrasadas pelo poderio atômico-belico, são símbolo da irracionalidade e horror da guerra, da
utilização dos recursos da ciência e da técnica segundo fins militares. Até agora, sobreviventes e seus
descendentes sofrem as conseqüências da bomba atômica. Pablo Picaso, em seu imenso painel Guernica,
também registrou o horror da guerra. O pueblo de Guernica foi bombardeado em 26 de Abril de 1937 pela
Legião Condor da aviação alemã, em apoio ao general Franco e suas tropas, durante a guerra civil espanhola.
Recursos técnicos modernos foram utilizados, ali, pela primeira vez na história. No painel, hoje em Espanha, no
Museu Reina Sofia, as figuras fragmentadas e espalhadas na tela formam estranha totalidade. Para sentirmos o
horror registrado por Picaso, recordamos a mãe que, tal qual nova pietà, chorando, carrega o filho desacordado
em seus braços. Nüremberg, Hiroshima, Nagasaki e Guernica retratam a responsabilidade de autoridades civis e
militares, pesquisadores e outros agentes diante de ações criminosas das quais não estão isentos.
24
Poderão existir atos, cuja causa esteja dentro do sujeito, e sobre os quais não
poderá ser responsabilizado moralmente? Atos – movidos por coação interna irresistível –
dispensam o agente de responsabilidade. Mas, no que consiste a coação interna? Quando o
sujeito, premido por pulsão interna incontrolável, realiza ações de caráter patológico, está
caracterizada a coação interna. A cleptomania, desajustes sexuais profundos e algumas
neuroses, por exemplo, dispensam o agente de responsabilidade moral42. Nos referidos
casos, o sujeito não tem consciência das motivações e da natureza dos seus atos, pois
premido internamente, não pode resistir aos estímulos externos desencadeadores de
pulsões internas e conseqüentes ações doentias. Ao que, acrescentamos, existem graus
distintos para diferentes patologias. Somente profissionais capacitados, experientes e
treinados43, após detalhado exame, podem diagnosticar a incapacidade de uma pessoa
sobre seus atos. Ademais, muitas patologias são controláveis terapêutica e
medicamentosamente. Situações patológicas extremas, diagnosticadas com prudência,
podem, inclusive, indicar a interdição do sujeito afetado e conseqüente afastamento do
convívio social44.
Nas situações comentadas “a coação interna é tão forte, que o sujeito não pode agir
de maneira diferente daquela que operou, e não tendo realizado o que livre e
conscientemente teria querido45” está dispensado de responsabilidade. Os exemplos
discutidos, destacamos, ilustram situações extremas, ou seja, situações de coação interna
irresistíveis por parte da pessoa afetada.
42
Cf. VÁZQUEZ, 2002, p.116-7.
43
Como psiquiatras e psicólogos, por exemplo.
44
As situações de interdição de pessoas portadoras de síndromes impeditivas do convívio social são exceções,
pois as patologias mentais, se adequadamente tratadas [por terapia ou medicação], podem regredir ou encontrar
controle. Situações extremas, como as patologias envolvendo desajustes sexuais, podem exigir permanente
interdição e privação de liberdade. Esses casos, muitas vezes, implicam na internação em institutos psiquiátricos
forenses. Mas, destacamos, as patologias mentais oferecem, normalmente, maior perigo para os seus portadores
do que para outras pessoas. Lembramos, ainda, que essas patologias devem ser adequadamente diagnosticadas e
tratadas, pois esse é um direito de toda pessoa: receber adequado tratamento médico. Recordamos: a
discriminação de pessoas com doenças mentais é reprovável, pois se receberem a devida atenção médica,
familiar e social, elas tornam-se produtivas e ativas participantes do seu núcleo social. A pessoa, enfim, não é a
doença da qual padece, podendo, se receber terapêutica correta, recuperar sua saúde mental ou orgânica.
45
VÁZQUEZ, 2002, p.117.
25
Salientamos que, embora seja difícil traçar a linha divisória entre o normal e o
anormal [doentio] no comportamento dos seres humanos, na maioria das vezes podemos
resistir à coação interna46. As pessoas, cotidianamente, são afetadas por coerções internas
relativas, capazes de controle racional e voluntário. A coação interna, em conclusão, não é
tão forte ao ponto de se tornar incontrolável, anulando, desse modo, a vontade e a
responsabilidade do agente.
46
Cf. VÁZQUEZ, 2002, p.117-8.
47
Atos verificados ou avaliados segundo sua positividade ou negatividade [promovem ou prejudicam a vida
individual e a vida em comum – realizando, concretamente, as noções de bem e mal].
26
48
Cf. VÁZQUEZ, 2002, p.119.
49
Para a física mecanicista, o universo e todos os entes e fenômenos nele contidos estariam submetidos à lei
universal de causa-efeito. As regularidades existentes, representáveis matematicamente, expressariam a rede de
conexões estabelecidas dentro desse mundo-máquina, revelando as regras pelas quais „as coisas funcionariam‟.
Competiria ao cientista, ao examinar esse mundo-máquina, extrair seus segredos para, então, a par do
desenvolvimento da previsibilidade científica, dominar os fenômenos naturais. A denominada física quântica,
aceitando a existência dessas regularidades, no entanto, demonstra que no universo há espontaneidade. No
campo da Biologia, o modelo mundo-máquina é visto como inadequado, pois seres vivos não são máquinas. As
máquinas, artificiais, são montáveis e desmontáveis. Os seres vivos nascem, crescem, se reproduzem e morrem.
Adaptam-se criativamente aos diversos ambientes. O Princípio Gaya, ao conceber a Terra como um ser vivo, é
tentativa de superação, no campo da Biologia [e da Ecologia profunda], do determinismo mecanicista proposto
pela física dos modernos, pois inadequado à compreensão dos fenômenos ligados à vida.
50
LAPLACE apud VÁZQUEZ, 2002, p.121.
27
3.2.2 O libertarismo
Segundo essa posição, ser livre significa decidir e agir como se quer ou, de outro
modo, poderíamos agir de maneira diferente do realizado se assim quiséssemos e
decidíssemos57. Explicitando: poderíamos ter decidido e agido arbitrariamente, pois o
comportamento humano é, absolutamente, incausado. Contudo, se a causa da ação se
encontra, exclusivamente, no indivíduo, somente poderia ter acontecido, paradoxalmente,
51
Se o modelo positivista de ciência é insuficiente para compreender a cultura, pois essa situa o ser humano no
mundo, abrindo-lhe novos horizontes; tampouco é adequado à tematização das questões existenciais [como a
liberdade], sendo incapaz de conceber resposta suficiente ou satisfatória.
52
Também denominada behaviorista.
53
Ou para além do orgânico.
54
O ser humano é finito, mortal, dotado de exigências biológicas, culturais, afetivas e espirituais a que necessita
responder.
55
Cf. VÁZQUEZ, 2002, p.122.
56
O homem, segundo Martin Heidegger, é um Dasein [um ser-aí-no-mundo]. E, situado no mundo, precisa dar
conta da existência, respondendo aos apelos da vida fática, correspondendo às circunstâncias e necessidades que
o envolvem.
57
Ibidem, p.123.
28
58
O libertarismo, ao conceber abstratamente a liberdades, ao des-mundanizar o homem, ao desconsiderar as
circunstâncias culturais e históricas que possibilitam a existência, nega, tal qual o determinismo absoluto, a
liberdade humana em sentido autêntico. Somos, diariamente, desafiados por inúmeros problemas que exigem
reflexão, escolha, decisão e ação. Toda decisão livre implica em condicionamentos que não inibem escolha,
decisão e ação. No exemplo de Vázquez (2002, p.124-5), Pedro pode associar-se ou não no protesto contra o
desemprego. Pedro, desde suas circunstâncias, pode agir numa ou noutra direção. Nós, igualmente, mesmo que
pressionados pela mídia e outros mecanismos, podemos, por exemplo, decidir pelo consumo responsável e não
predatório. Os limites à liberdade não impedem seu acontecimento, mas facultam seu concreto exercício.
Decidimos, em resumo, a partir de nós mesmos, desde nossa interioridade, mas segundo o possível.
59
Cf. VÁZQUEZ (2002, p.125-6).
60
O que é a liberdade? Por que ela inclui ou supõe algum grau de determinação? O problema proposto nas
questões solicita breve reflexão sobre o sentido das expressões: necessidade, contingência e determinação. A
Filosofia clássica propôs dois conceitos reivindicadores de nossa atenção: necessidade e contingência. Por
necessidade entendemos aquilo que sendo não pode deixar de ser [ou não poderia não ser]. Já, por contingência,
compreendemos aquilo que sendo, poderia não ser. O indivíduo humano, contingente, poderia não ter vindo à
existência e um dia não mais será. Ao mesmo tempo, está submetido à necessidade, pois, enquanto existente, é
um ente racional e social, capaz de indagar sobre o sentido de suas ações. A liberdade, considerados os dois
conceitos, é exercício de um ser contingente que, diante do necessário [limites e possibilidades] é capaz de
escolher, decidir e agir. Noutra perspectiva, o comportamento humano inclui determinado grau de determinação
advindo da história de cada pessoa, da constituição do seu caráter, dos limites e possibilidade ligados à cultura
ou à situação histórico-social. Todavia, esse grau de determinação não é absoluto, mas relativo. Tal grau relativo
de determinação apresenta horizonte e contexto – a escolhas possíveis e factíveis – realizáveis pelo agente moral.
Liberdade implica, concluindo, certo jogo entre contingência e necessidade, certa dialética entre liberdade e
determinação relativa. A liberdade acontece, em síntese, porque um ente finito e contingente é capaz de
deliberar, segundo possibilidades abertas pelo mundo que o acolhe.
29
61
A tese do determinismo absoluto defende: se tudo é causado, não há liberdade. Já, a proposta do libertarismo
supõe o caráter arbitrário [ou inconseqüente] da liberdade humana.
62
Cf. VÁZQUEZ, 2002, p.127.
63
Ou seja: a liberdade encontraria seu lugar no âmbito formal da razão.
64
Op. Cit., p.128.
65
Ou, quem conhecendo as leis que regulam os processos naturais [a necessidade], submete-se livremente à
necessidade.
66
Op. Cit., p.129.
30
67
Os fatos descriminados indicam a existência de crise planetária e explicitam cega submissão à necessidade.
Em nossos dias, sobretudo, é preciso pensar o impacto das ciências e da técnica sobre nossas vidas, bem como,
indicar a relação das tecnologias com interesses mercantis, freqüentemente, inaceitáveis. Logo, se não podemos
viver sem a técnica moderna, necessitamos, entretanto, perguntar: como proceder diante de suas exigências?
Como conciliar os interesses das diversas populações com a preservação da casa planetária? Libertar-se da
necessidade exige, contemporaneamente, repensar nossa aliança com a técnica e nossa concepção de mercado.
Somos capazes de empreender mecanismos sociais capazes de gerir os mecanismos de mercado? Até que ponto,
usamos, prudentemente, os objetos técnicos? Até que ponto esses objetos nos dominam? São questões que nos
convidam ao exercício do pensamento.
68
O trabalho, não transforma, apenas, a natureza alheia em cultura, mas é ação criativa que, ao inserir o homem
no mundo, o realiza e humaniza.
69
Declara Vázquez (2002, p.129-30): “Marx e Engels aceitam as duas características antes assinaladas: a de
Spinoza [liberdade como consciência da necessidade] e a de Hegel [sua historicidade]. A liberdade é, por
conseguinte, a consciência histórica da necessidade. Mas, para eles, a liberdade não se reduz a isto; ou seja, a um
conhecimento da necessidade que deixa intacto o mundo sujeito a essa necessidade. A liberdade do homem com
relação à necessidade – e particularmente com relação à que vigora no mundo social – não se reduz a transformar
a escravidão espontânea e cega numa escravidão consciente. A liberdade não é apenas assunto teórico, porque o
conhecimento, por si só, não impede que o homem esteja sujeito passivamente à necessidade natural e social. A
liberdade acarreta um poder, um domínio do homem sobre a natureza e, por sua vez, sobre a sua própria
natureza. Esta dupla afirmação do homem – que está na própria essência da liberdade – traz consigo uma
transformação do mundo sobre a base de sua interpretação; ou seja, sobre a base do conhecimento de seus nexos
causais, da necessidade que o rege. O desenvolvimento da liberdade está, pois, ligado ao desenvolvimento do
homem como ser prático, transformador ou criador, isto é, está vinculado ao processo de produção de um mundo
humano ou humanizado, que transcende o mundo dado, natural, bem como ao processo de autoprodução do ser
humano que constitui precisamente a sua história”.
70
Como, por exemplo: conhecimento, estruturas políticas e econômicas, ciência e tecnologia, arte, tradições
religiosas, mídias, etc.
71
Práxis: ação transformadora [individual e social].
72
Ou dialética relação.
31
O homem é realizador de valores. Mas, o que são valores? No que consiste o juízo
valorativo? Quais são os pólos e elementos presentes na ação avaliativa? Vivemos crise de
valores? Em consiste essa crise? Podemos falar numa educação para os valores? O que
isso significa? São questionamentos importantes e solicitadores de nosso empenho
reflexivo.
No que consiste avaliar? Avaliar significa: estimar, julgar, atribuir determinado valor a
um objeto. No juízo valorativo está em jogo a totalidade da vida humana, mente e corpo,
razão e sensibilidade profunda, liberdade e contexto cultural. No ato valorativo
encontramos: o sujeito que avalia, o objeto avaliado e valor atribuído ou negado ao referido
objeto. Os juízos lógico-matemáticos, por exemplo, em sua objetividade formal, ao
envolverem, predominantemente, as faculdades racionais, não implicam maiores debates.
Os juízos estéticos e morais, entretanto, por abrangerem e solicitarem a totalidade da vida
humana, por implicarem em posturas existenciais, por articularem complexa amalgama de
elementos intersubjetivamente compartilháveis merecem nossa atenção.
Os juízos estéticos, emitidos pelo sujeito que aprecia o belo, examinam se o objeto é
agradável ou desagradável. O julgamento estético, enquanto julgamento de gosto, supõe
critérios relativos à beleza, proporção, harmonia e mensagem presentes no objeto causador
da vivência estética. Se a dimensão estética é inerente à vida humana, precisa ser cultivada.
Mas, é importante indagar: quais são os critérios do juízo estético? O juízo de gosto pode
ser enriquecido, no percurso da vida de uma pessoa, pelo cultivo da dimensão estética da
vida? Pela aquisição de conhecimentos? Pela elaboração de critérios avaliativos? O cultivo
da dimensão estética da vida é possível, pois, assim como aprendemos a falar, escrever e a
conviver com outras pessoas, também aprendemos a apreciar o belo presente na natureza
e nas obras de arte, atualizando nossa capacidade apreciadora, buscando critérios de
33
73
Belo manifestado na cultura popular, nas artes plásticas, na música, no teatro e cinema, na natureza. Há que
abrir-se, conhecer e cultivar essas distintas possibilidades.
34
74
Ponto de partida: o que vem em primeiro lugar.
75
No caso da bondade de um objeto, essa bondade é indicada por seu bom funcionamento.
35
Adolfo Sánchez Vázquez, no capítulo Moral e História de sua Ética, indica alguns
critérios do progresso moral. Assim, do grau de interação entre os interesses individuais e
coletivos, da presença de uma vida moral – nascida da vida subjetiva – que venha substituir
formas coercitivas de pressão comportamental, resultará maior ou menor progresso moral
naquela sociedade.
Vázquez enuncia a descoberta de valores autenticamente humanos ocorrida,
gradativamente, ao longo da história. Amizade, veracidade, lealdade, cooperação, justiça e
solidariedade são exemplos de valores revelados nos processos históricos e indispensáveis
à convivência e aperfeiçoamento das sociedades. Cumpriria, a cada um e a todos a tarefa
de compreender e traduzir em ações esses valores, contribuindo à comum construção de
sociedades, nas quais, todos os seres humanos encontrem espaço de realização pessoa
através de vida criativa e satisfatória. Somos capazes, de fato, de compreender e traduzir
esses valores em normas? Somos capazes de instituir normas subjetiva e publicamente
aceitas, aptas a responder aos problemas e exigências surgidos ao longo dos tempos? Se,
de fato, esses valores descobertos ao longo da história, pela sua importância e conteúdo se
impõem, como poderemos vivê-los? Como deveremos traduzi-los nas complexas relações
que estabelecemos no dia-a-dia, envolvidos por conflitos econômicos, familiares e laborais?
Como apresentá-los através de normas adequadas aos nossos tempos? São questões
importantes, dão o que pensar.
Junto dessas indagações, surge a pergunta pelo mínimo ético. Considerando que a
vida em geral [e a vida humana em especial] é o valor fundamental [o maior bem], como
respeitá-la? Como encontrar e viver esse mínimo ético, num mundo globalizado em
76
O ser humano é capaz de antecipar idealmente o resultado de suas ações, fazendo escolhas valorativas,
optando por meios adequados e realizadores do fim visado. Assim, é capaz, igualmente, de responder pelas
conseqüências – positivas ou negativas, moralmente valiosas ou reprováveis – de suas ações.
77
Os valores se encarnam, isto é, se concretizam, se realizam, acontecem.
36
78
A globalização econômica e tecnológica permitiu a mundialização, mundialização caracterizada pelas trocas
culturais. Entretanto, essas trocas culturais têm sido realizadas superficialmente, levando, inúmeras vezes, ao
desenraizamento, à fragmentação das identidades. A pluralidade cultural, de fato, é um bem. Mas, precisa ser
cultivada a partir de autêntico e profundo diálogo intercultural, promotor da tolerância, da descoberta de
elementos comuns. Entretanto, esse diálogo deverá assegurar o respeito ao específico de cada cultura. Caso
contrário, vencerá a homogeneidade redutora e inibidora das diferenças, impedindo a troca de valores
significativos, capazes de enriquecer a cultura humana como um todo.
79
Intercultural e inclusive, inter-religioso.
80
Exemplos: declaração dos direitos do homem, das crianças, dos idosos, do meio ambiente. Dessas declarações
são signatários inúmeros países, entretanto, pouco se faz para que elas aconteçam, regulando, efetivamente, a
vida das pessoas.
81
Através de ações orientadas por valores positivos, que considerem o outro e o princípio da justiça.
37
Breve conclusão
82
Variante que resulta da aliança da ciência com a técnica.
83
Progresso, aqui, é sinônimo de avanço tecnológico.
38
para com o outro. Educação para valores, cultivo de uma cultura da paz é condição
indispensável para visarmos, conforme Aristóteles, a vida boa com o outro em instituições
justas. Nossa práxis [o conjunto de nossas ações individuais e coletivas] poderá ultimar a
justiça na direção da vida boa com o outro. Nessa direção, importa indagar:
Mas, quem é o outro? O que é a justiça? Como tecer, através de nossas práticas,
instituições justas? No que consiste a educação para valores? Por que essa educação
supõe a superação da heteronomia e dos automatismo? Se oscilamos, em nossa existência,
entre heteronomia e autonomia, porque a autonomia é o horizonte de nossas buscas,
realizações e orientação ética?
39
5 A AVALIAÇÃO MORAL
84
Cf. VÁZQUEZ, A avaliação moral, 2002, p. 153.
85
Ibidem.
40
86
Sobre o caráter concreto e histórico da avaliação moral, Vázquez (2002, A avaliação moral, p. 154) indaga:
qual é o conteúdo atribuído ao trabalho? Nas sociedades eminentemente mercantis, o trabalho é compreendido,
apenas, como mercadoria. Noutras sociedade, onde as contradições entre trabalhador e propriedade privada dos
meios de produção já foram enfrentadas, o trabalho passa a ser visto como fonte de criatividade e constituição do
humano. Nessas sociedades, o trabalho já não é mais um peso, porém modo de ser do homem, ganhando, desse
modo, conteúdo positivamente moral.
87
Axiologicamente: concebíveis do ponto de vista de uma teoria do valor.
88
Cf. VÁZQUEZ, 2002, A avaliação moral, p. 158-160.
41
exercício da ciência e Filosofia, bem como, estariam aptos a atuar no campo político. A
felicidade seria exercício de autodomínio: vida segundo a justa medida e realizadora da
excelência somática, intelectual, espiritual e política. Quando a razão governa o corpo,
quando a temperança, a justiça, a coragem e a prudência orientam o agir, nascem
condições à vida intelectual e política. O anthropos, ao realizar sua natureza ou essência,
enquanto animal racional e político, alcançaria a felicidade.
O filósofo grego, de fato, compreendeu que a realização do bom implica em
condições econômicas capazes de atender nossas necessidades básicas, pois ninguém é
feliz quando oprimido pela necessidade. Tendo as condições básicas de vida resolvidas, o
ser humano poderia dedicar-se ao estudo e à vida em sociedade, atualizando, assim, sua
natureza. Entretanto, preso ao horizonte de seu tempo, acabou Aristóteles por excluir da
plena realização da eudaimonia, mulheres, estrangeiros e escravos.
Em nossos dias, surge outro problema: como determinar o conteúdo da felicidade?
Numa sociedade marcada pelo individualismo, em que domina a noção de propriedade
privada89, onde o individualismo é traço de caráter social, como devemos pensar a
felicidade?
Diante dessas indagações, a tese de que a felicidade é o único bom fica prejudicada
por sua excessiva generalidade. Todavia, a contribuição de Aristóteles se encontra na
afirmação de que a satisfação das condições materiais é indispensável à realização da vida
humana. Realizar o bom ou alcançar a felicidade em cada ato humano e durante a
totalidade de uma vida, sublinhamos, supõe gozar de direitos econômicos mínimos – sem os
quais a liberdade se torna inviável e a vida humana acontece diminuída.
89
Muitas vezes esquecemos o primado do social sobre o privado, pois domina a compreensão da propriedade
privada em sentido absoluto. Lembremos: sobre cada propriedade privada pesa uma hipoteca social. Assim, tanto
o público como o privado estão a serviço do bem comum.
90
Cf. VÁZQUEZ, 2002, A avaliação moral, p.160-164.
42
A tese geral – de que todos os seres humanos procuram o prazer e buscam evitar a
dor – está correta. Entretanto, ao separar o prazer das conseqüências [todo prazer é
intrinsecamente bom], o novos hedonistas erram, pois não podemos salvar o prazer –
isolando os resultados alcançados. Assim, o prazer causado pela vingança não pode, assim,
ser separado da própria vingança. O prazer, do ponto de vista moral, somente terá sentido,
se o julgarmos não intrinsecamente [a partir de si mesmo], mas extrinsecamente, indagando
por suas conseqüências.
91
Ao classificar os prazeres (cf. REALLE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia. 3. ed. São Paulo:
Paulus, 1990. v. I. p.247), Epicuro propõe a seguinte discriminação: 1) prazeres naturais e necessários à
conservação da vida (comer quando se tem fome, beber quando se tem sede, etc.); 2) prazeres supérfluos [comer
bem, beber comidas refinadas, vestir-se com sofisticação, etc.]; 3) prazeres não naturais e não necessários ou
vãos (ligados à riqueza, fama, poder, honras, etc.). Os prazeres responderiam aos desejos surgidos no interior do
homem. Os primeiros prazeres, segundo Epicuro, são os únicos habitualmente satisfeitos, pois têm por natureza
um preciso limite: eliminado o desconforto, suprida a necessidade, o prazer cessa de crescer. Os desejos do
segundo grupo, por não terem limite preciso, por não cessarem com a supressão da dor do corpo, por
continuarem a existir, poderiam provocar danos. Os prazeres do terceiro grupo [voltados à alma e não ao corpo]
são causa de enormes desajustes e perturbações. Epicuro recomenda, enfim, o cultivo regrado dos prazeres,
descrevendo os perigos apresentados pelo cultivo dos prazeres supérfluos e não-naturais. O filósofo do Jardim
recomenda vida moderada, cultivada segundo a ordem da natureza e na direção das autênticas necessidades da
alma. O filósofo do Jardim, justamente por isso, elogia o exercício filosófico e a contemplação estética, pois
essas atividades seriam fonte de tranqüilidade, ordenamento, prazer e felicidade duradouros.
92
Notadamente os filósofos ingleses modernos, para os quais o processo do conhecimento encontraria seu ponto
de partida no exercício perceptivo sensorial ou empírico. O empirismo moderno releu as teses antigas adaptando-
as, dando-lhes novo sentido.
93
Encontramos duas teses fundamentais (a e b) e outras duas teses derivadas (c e d).
94
Em si mesmo.
43
A segunda tese dos novos hedonistas procura eliminar a linha divisória entre o bom e
mau em sentido moral. Bondade e maldade teriam significado meramente instrumental95. É
deveras complicado sustentar essa versão. Dois exemplos podem ajudar no entendimento
da inconsistência dessa posição: a) é possível atribuir positividade ao prazer experimentado
por um assaltante desconsiderando a dor da vítima? b) é conseqüente separar o prazer de
uma noite de boêmia da ressaca do dia seguinte?
95
Bom e mau seriam, apenas, noções operatórias e desvinculadas da vida real, na qual ações apresentam conseqüências.
96
É inviável, por exemplo, comparar a intensidade e duração dos prazeres usufruídos num concerto sinfônico e num show de
música popular. Quais critérios e índices permitiriam tal mensuração e comparação?
97
Ou seja: de um fato [todos os seres humanos procuram o prazer e evitam a dor] deduz-se um juízo de valor que ganha foro
de exclusividade e universalidade [na totalidade da vida, somente o prazer é o bom].
considerada a totalidade da vida, somente o prazer é o bom].
44
pertencemos ao reino dos fins [alcançáveis pela razão]. Por conseguinte, não basta agir em
acordo com o dever [ex., cumprir o prometido], mas é preciso agir por dever. Uma pessoa
pode cumprir o prometido visando vantagens, por temer as conseqüências. Aquele que age
racionalmente, somente considera o dever e age por e pelo dever, desconsiderando
inclinações ou outras variáveis que poderiam contaminar a decisão de agir racionalmente. O
bom somente se concretizará, quando agirmos não por inclinação, mas pelos ditados da
razão: por, com e pelo dever.
O único que é moralmente bom é a boa vontade: a vontade que age não só de
acordo com o dever, mas pelo dever100. Dever determinado unicamente pela razão. Por seu
caráter excessivamente formal, pela separação entre vida concreta e vida racional, observa
Adolfo Vázquez, essa concepção do bom [identificada com a boa vontade] se revela vazia
de conteúdo e irrealizável. Um mesmo ato, contraditoriamente, se motivado pelo dever ou
por uma inclinação afetiva, seria, ao mesmo tempo, moral e imoral. Por que ajudamos uma
pessoa? Movidos pelo sentido do dever? Por um sentimento? Por ambos os motivos?
Segundo Kant, moralmente válida [e boa] seria a ação causada pelo dever [por uma decisão
racional]. Uma ação motivada por um sentimento não apresentaria, assim, positividade
moral.
98
Cf. Guy Durant (Introdução geral à bioética. 2. ed. São Paulo: São Camilo / Loyola, 2007. p. 276-7): segundo Kant, todo
ser humano, enquanto ser racional, poderia viver a dimensão moral da existência autonomamente. Os seres humanos seriam
capazes de conceber postulados pelos quais orientariam suas existências. Destacamos: 1) age somente segundo a máxima que
faça com que possas querer, ao mesmo tempo, que ela se torne uma lei universal; 2) Age de tal modo que trates a
humanidade tanto em tua pessoa como na pessoa de todos os outros sempre, ao mesmo tempo, como um fim, e jamais
simplesmente como um meio.
99
Cf. VÁZQUEZ, 2002, A avaliação moral, p.164-168.
100
A ênfase no dever permite denominar a escola fundada por Kant de escola deontológica.
45
No que consiste o útil? Útil para quem? Para além do egoísmo ético e do altruísmo
ético, encontramos o utilitarismo [pragmatismo ou conseqüencialismo]101. O bom ou o útil
seria encontrado no útil e vantajoso para maior número de pessoas102. Mas, como conciliar
os meus interesses com os interesses dos demais, quando esses interesses são conflitivos?
O utilitarismo aceita a tese do sacrifício pessoal, da própria felicidade em favor de uma
comunidade inteira. O utilitarismo avalia as conseqüências, por isso pode ser chamado de
conseqüencialismo.
Um ato será bom (ou útil), portanto, consideradas as conseqüências,
independentemente do motivo ou intenção que levou a concretizá-lo. Mas, como e com
quais critérios podemos antecipar e avaliar as conseqüências de um ato moral? O que é o
útil? É a felicidade? O prazer? Consiste na satisfação das necessidades básicas? Na
realização dos direitos mínimos capacitadores da liberdade? Como calcular e determinar
esse útil? Como pensar a relação entre meios e fins?
Se para Jeremy Bentham (1748 – 1832)103 o prazer é o unicamente bom, se para
Stuart Mill (1806 -1873)104 a felicidade é o unicamente bom [felicidade para o maior número
de pessoas], se para G. E. Moore105 o bom é uma combinação de prazer e felicidade – como
determinar, qualificar e quantificar o que é o prazer, a felicidade ou uma pluralidade de bens
[para maior número de pessoas]? Que fatores entrariam no cálculo utilitarista? O bom é uma
questão de cálculo?
Ademais, quando pensamos a felicidade para maior número, não deveríamos pensá-
la para todas as pessoas? O útil ou bom permite exclusões? Podemos conceber a
felicidade de alguns negligenciando a felicidade dos outros? Quais são as condições
antropológicas e sociais da felicidade? Contemporaneamente, quando, através de leitura
equivocada, reduzimos as teses utilitaristas ao egoísmo ético: é possível sustentar a
101
Segundo o Utilitarismo, podemos e devemos buscar a conciliação entre os interesses pessoais e os interesses
da sociedade. Se o altruísta sacrifica a si mesmo, considerando as necessidades da comunidade; se o egoísta visa,
apenas, satisfizer seus desejos; o utilitarismo propõe interessante conciliação entre os legítimos interesses do
individuo e os legítimos interesses da coletividade. Buscar o bom, assim, implica em conciliar os interesses do
individuo e os interesses do grupo social ao qual ele pertence. O sacrifício pessoal, nessa perspectiva, somente se
justifica, quando as conseqüências dessa ação altruísta se revelam benéficas à totalidade social. Salientamos: o
utilitarismo está longe do egoísmo ético, situação psicológica que contempla, apenas, a satisfação desmedida dos
desejos e ambições de um indivíduo narcisisticamente descomprometido e abstratamente separado da sociedade.
102
Ibid. p.168-171.
103
Cf. VÁZQUEZ, 2002, A avaliação moral, p. 168-171.
104
Ibidem.
105
Para Moore, segundo Vázquez (2002, p.170), o útil resulta de uma pluralidade de bens intrínsecos que nossos
atos podem causar, dentre eles, o prazer e a felicidade. Moore, portanto, pertence a escola do utilitarismo
pluralista.
46
Definir o bom e descrever seu conteúdo é desafio permanente. Entretanto, para além
dos limites existentes nas diversas teorias sobre o bom como valor, destacamos algumas
descobertas.
Para Aristóteles, o bom é pensado na perspectiva da plena realização do humano e
na direção da felicidade possível. Em seus aspectos positivos, a doutrina epicurista identifica
o bom com o prazer regrado e, sobretudo, com os prazeres elevados. Kant supõe a
capacidade humana em viver segundo princípios racionais compartilháveis e fundadores de
contrato social exeqüível. Os utilitaristas pensam na conciliação entre os interesses
individuais e coletivos. Ao abordarmos as diferentes teses, tendo explicitado suas
contradições, acabamos, também, por encontrar diferentes contribuições que, se
adequadamente pensadas, podem auxiliar-nos na tarefa cotidiana de determinar e avaliar o
bom realizado e buscado em cada ação.
Conclusão
A esfera do bom, segundo Vázquez106, deve ser procurada: a) numa relação peculiar
entre o interesse pessoal e o interesse geral; b) na forma concreta que essa relação assume
historicamente. É necessário, então, conciliar os interesses individuais com os interesses
coletivos, percebendo que a afirmação da individualidade é um processo histórico e cultural.
Em nossos dias, em conseqüência, precisamos transcender a concepção mercantil de
subjetividade, baseada em trocas interesseiras e na satisfação causada pelo consumo.
Necessitamos reafirmar nossos compromissos com a totalidade social, redescobrindo a
responsabilidade para com o outro, alimentando essa subjetividade com conteúdo ético.
A afirmação de autêntica subjetividade pressupõe, igualmente, ultrapassagem de
concepção abstrata e burocrática de sociedade, na qual o individual é absorvido pelo geral,
em que a pessoa é desconsiderada em sua história, expectativas e capacidades107.
O bom se efetiva, sobretudo, pela incorporação ativa de cada indivíduo na vida
social, pela sua real contribuição às transformações necessárias e capazes de assegurar os
direitos básicos e inalienáveis de cada pessoa. O bom se efetiva pelo acontecimento da
solidariedade, da cooperação, da ajuda mútua. O bom acontece quando, ao afirmar meus
direitos individuais, descubro a relação entre meus direitos e os direitos do outro. Sou capaz
de direitos, portanto, porque o outro é portador direitos. Trabalharei, conseqüentemente,
pelo efetivo atendimento das necessidades fundamentais de cada pessoa. A compreensão
de que direitos implicam em deveres, de fato, é um ganho considerável.
Realizamos o bom, portanto, quando ao nos distanciarmos de perspectiva egoísta,
somos capazes de nos colocar no „lugar do outro‟, desenvolvendo atitude de respeito e
práticas promotoras da vida. Partindo dessa afirmação, seria interessante, ao avaliarmos
ações alheias, perguntar pelo sentido de nossas próprios atos. Nossas ações consideram o
outro, sua história, necessidades e expectativas? O outro é visto como fim em si mesmo ou
instrumento de nossos interesses? Quais são os critérios que orientam nossas práticas? A
satisfação imediata de interesses individuais é o critério exclusivo de nosso agir? Efetuar
essas perguntas, questionar a si mesmo, indagar pela legitimidade das práticas sociais,
considerar e avaliar a relação entre o individual e o social, criticar os conceitos que orientam
nossa busca de realização ou felicidade, pensamos, é extremamente importante. A reflexão
ética sobre nossas práticas morais cotidianas, e sobre nossos conseqüentes julgamentos,
contribuirá à educação da dimensão ética da existência e ao exercício de vida moral mais
autônoma e responsável.
106
Cf. VÁZQUEZ, 2002, A avaliação moral, p.172-175.
107
Nessa direção, o público e o privado são expressões da vida em sociedade. O público e o privado devem,
prioritariamente, buscar o bem comum. Assim, as instituições públicas não podem ser privatizadas segundo
interesses corporativos; à iniciativa privada compete, igualmente, realização de suas finalidades sociais.
Compreensão equivocada da relação entre o público e o privado, pensamos, é danosa aos indivíduos e à
sociedade.
48
6 OBRIGATORIEDADE MORAL
108
Cf. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p.179.
49
109
A pessoa autônoma dá a si mesma o conteúdo da norma [regra de ação ou lei moral] que obriga, pois é capaz
de concebê-la e compreendê-la. O agente moral, assim, é dono de seus atos quando, consciente e livremente,
atualiza a norma em cada ação efetuada. A pessoa, possuindo a si mesma em cada ato, em conseqüência, acaba
por governar a si própria, ou seja, torna-se autárquica. O ser humano, concluímos, nunca é completamente
autárquico e autônomo, entrementes, pode atingir graus distintos de autarquia e autonomia. A autonomia e a
correspondente autarquia resultam da decisão de imprimir em cada ato – racionalidade e humanidade –,
atualizando, desse modo, a liberdade, efetivando praxicamente a existência. Tanto mais plena a vida humana,
quanto mais autônoma e autárquica, aberta ao mundo e ao outro.
110
Explica Vázquez (2002, p.181): “Impondo uma forma de comportamento moral não querida ou não escolhida
livremente, a coação externa entra em conflito com a obrigação moral e acaba por substituí-la. Já vimos algo
semelhante num capítulo anterior, com respeito aos casos de coação externa extrema (ameaça grave ou
imposição brutal física) que provém de outro sujeito e que impede o agente moral de cumprir sua obrigação.
Finalmente, a obrigação moral perde sua razão de ser, quando o agente opera sob uma coação interna, ou seja,
sob a ação de um impulso, desejo ou paixão que forçam ou anulam por completo a vontade”. À coação interna e
externa, acrescentamos a ignorância involuntária. A ignorância involuntária acontece quando o sujeito não pode
e, de fato, não prevê a situações danosas nas quais possa se encontrar envolvido.
111
Lemos em SARAIVA, F.R. (Novíssimo Dicionário Latino-Português. 10. ed. Rio de Janeiro / Belo
Horizonte: Garnier, 1993. P.799): “Obligatio, onis [...] ação de prender, de empenhar (a vontade, a palavra). [...].
Prender-se, obrigar-se, tomar sobre si uma obrigação”. A obrigação, deduzimos, nos une voluntariamente à
palavra empenhada, à norma racionalmente concebida e voluntariamente realizada.
50
112
No primeiro caso [obrigatoriedade moral], cumpro a norma porque – íntima e livremente – decidi efetivá-la. No segundo
caso [obrigatoriedade legal ou jurídica], cumpro a norma porque a lei, em sua positividade [texto legal], é coercitiva.
Examinemos um exemplo de nosso cotidiano. Por que respeitamos as regras de trânsito? Por valorizarmos a vida e termos
decidido – livre e intimamente – pelo cumprimento das normas legais? Por temer as punições decorrentes do seu
descumprimento? Podemos respeitar as normas de trânsito, conforme exemplo, unindo decisão moral e respeito legal
[cumpro – voluntariamente – a prescrição legal]. Segundo a reflexão ética, conclui-se, há empobrecimento da vida moral
quando predomina a separação entre a dimensão moral e legal do preceito, quando deixamos de cumprir a regra por decisão
livre, respeitando-a, simplesmente, devido a sua imposição compulsória. Processos educativos, aproximação dos interesses
individuais e coletivos, maturidade jurídica são caminhos a percorrer na direção de sempre maior integração entre liberdade e
legalidade.
113
Afirma Vázquez (Ética, 2002, p. 180): “Não há propriamente comportamento moral sem certa liberdade, mas esta, por sua
vez, como se demonstrou oportunamente, supõe e se concilia com a necessidade, ao invés de excluí-la. E posto que não há
comportamento moral sem liberdade – embora não se trate de uma liberdade absoluta, irrestrita ou incondicionada – a
obrigatoriedade não pode ser entendida no sentido de uma rígida necessidade causal que não deixaria certa margem de
liberdade. Se eu fosse casualmente determinado a fazer x até o ponto de não poder fazer outra coisa a não ser aquilo que fiz,
sem que não me fosse possível optar por outra ação; isto é, se, agindo, não tivesse a possibilidade de intervir – como causa
especial – na cadeia causal em que se inserem meus atos, o meu comportamento não teria um verdadeiro sentido moral. Tal
tipo de determinação ou necessidade nada tem a ver com a obrigatoriedade moral”.
114
Como dizíamos em Responsabilidade e Liberdade, concordando com Vázquez, cotidianamente somos desafiados por
pressões externas e internas, somos convocados ao exame das possíveis conseqüências de nossos atos. Entretanto,
conseguimos, na maioria das vezes, vencer a coação externa, interna e a ignorância involuntária. Somente em situações
extremas ou excepcionais – a coação externa e interna é irresistível, a ignorância se apresenta como involuntária porque
invencível.
115
VÁZQUEZ, 2002, p.182.
51
116
VÁZQUEZ, 2002, p.183.
117
As observações que seguem acompanham, em grande parte, Vázquez (2002, p.184-189).
118
Normas, recordamos, são princípios traduzidos em regras de ação.
52
envolvidos num determinado dilema moral, aplica uma norma, com adequação, àquela
situação singular e irrepetível. É a consciência que, portanto, livremente acolhe e realiza o
obrigatório [a norma e o dever consequente], segundo a especificidade de cada caso.
A consciência moral é sempre compreensão de uma obrigação moral – e avaliação
de nosso comportamento – em acordo com as regras de ação livre e conscientemente
aceitas. Se não existe nem autonomia e nem heteronomia absolutas, pois quando fala a voz
da consciência, „falam os homens de meu tempo‟, „com os quais convivo e compartilho o
mundo‟; entretanto, essa voz também é „a minha voz‟. A pessoa, práxica e responsável, é
capaz de tomar distância, pesar as influências e decidir pelo melhor para si e para os outros
com os quais convive.
A consciência moral exprime, também, a culpa e o arrependimento. Quem, após
exame de consciência de determinada ação, alguma vez, ainda não se arrependeu? O
arrependimento implica na revisão da ação na consideração das pessoas afetadas. Uma
palavra infeliz, uma ação precipitada, um julgamento equivocado reivindicam revisão. Se
não é possível realizar, novamente, o ato, pois esse já aconteceu [é passado]; entrementes,
é viável, formalmente, revisá-lo e, se for o caso, desculpar-se, fazer algo para compensar os
resultados negativos alcançados. O ato de desculpar-se, por exemplo, pode restabelecer
vínculos fundados na justiça e na mútua abertura. Afinal de contas, se somos frágeis e
finitos, porque responsáveis podemos rever e dar um sentido positivo às ações negativas
que, eventualmente, realizamos. O homem é finito, frágil, perfectível. Quebras emocionais
acompanham sua existência. Esses desconfortos podem ser administrados, cotidianamente,
através da auto-análise, conversa, entre-ajuda e, até mesmo, através de terapia.
É conveniente diferenciar o remorso [ou culpa] resultante da avaliação das
consequências negativas de nossos atos sobre a vida de outras pessoas, do remorso [ou
culpa] patológico. Quando o remorso, frisamos, se transmuta em escrúpulo excessivo, é
preciso procurar corrigir esse desvio. Nessa direção, salientamos, é tão indesejável a culpa
patológica quanto à indiferença moral. Se na culpa patológica encontramos sentimento
perturbador, igualmente, a indiferença moral impede o convívio entre os seres humanos.
Revisar atitudes e ações negativas é necessário para o convívio em sociedade. No
que consistiria, então, uma educação estimuladora da descoberta do outro e do sentido
positivo da normatividade moral? Que estimulasse sempre maior autonomia e autarquia?
Que desenvolvesse o senso da comum responsabilidade relativa ao existir no mundo? São
indagações importantes que precisam ser meditadas e vividas.
53
Conclusão
a encarnação dos princípios, valores e normas numa dada sociedade, não só como
tarefa individual, mas coletiva, ou seja, não apenas como moralização do individuo,
mas como processo social no qual as diferentes relações, organizações e
120
instituições sociais desempenham um papel decisivo .
119
Cf. VÁZQUEZ, 2002 (a realização da moral), p. 209.
120
Ibidem, p.209.
56
descobrimos que falta tempo para nós mesmos. A revolução industrial, tendo prometido
felicidade para maior número de pessoas através do consumo cedeu lugar à revolução da
informática. Esta, ao possibilitar controle eficiente e crescente das nossas vidas produtivas,
pela multiplicação de tarefas e responsabilidades, acentua-nos a alienação, pois nossas
vidas – virtualizadas – já não se dão conta da existência. É-nos exigido responder, com
urgência, aos imperativos técnicos de um mundo em aceleradas transformações. Nesse
contexto, quem somos? Quais são os desejos profundos que cultivamos? Por que
executamos tantas tarefas e tantos papéis sociais? Como nos relacionamos com o mundo e
com as outras pessoas?
A par do quadro descrito, sociologicamente explicitável, o número de excluídos da
vida econômica, do acesso aos direitos básicos é dado que não podemos deixar de
perceber.
O fenômeno da alienação, portanto, diante do quadro brevemente exposto, vem se
acentuando. Os processos econômicos, nas sociedades pós-industriais, têm salientado o
caráter alienante do existir humano. Existir alienadamente é perceber a vida pessoal
desconstituída em conteúdo e significado, seja nos processos de trabalho, seja no acesso
aos resultados da atividade laboral, seja nas relações interpessoais. Admitimos que, em
todas as sociedades e, mesmo na vida humana, persistam diferentes graus de alienação.
Entrementes, quando a alienação [resultado das relações econômicas] acaba por anular o
gosto pela vida, reduzindo a existência humana ao cumprimento burocrático e impessoal de
atividades enfadonhas, impedindo a constituição de relações éticas e estéticas promotoras
de nossa comum humanidade, é preciso parar e pensar, revisar conceitos e práticas.
Vázquez sentencia que os problemas morais da vida econômica
121
VÁZQUEZ, 2002 (a realização da moral), p. 219.
57
promoverem o ser humano ou, reduzindo-o a objeto, precisam ser analisadas eticamente,
pois apresentam dimensão moral inerente. Eticamente é preciso superar concepção
antropológica e moral redutora do homem a agente econômico e mero consumidor122.
122
O denominado homem econômico, de fato, não existe. Há um ser humano multifacetado que, ser criativo,
através do trabalho, busca responder às diversas necessidades: materiais e espirituais. O ser humano, agente
econômico, é – também – ser político, ético, estético, etc. As múltiplas dimensões do homem, em sua
complexidade, estão presentes nas inúmeras manifestações culturais. A expressão homem econômico denuncia,
portanto, compreensão reducionista do humano. Essa concepção ou visão distorcida e reducionista, entretanto, é
acriticamente assumida, seja no cotidiano, seja teoricamente. É preciso, então, ultrapassá-la teórica e
praxicamente.
123
Cf. VÁZQUEZ, 2002 (a realização da moral), p. 220.
124
Cf. FROMM, Erich. Ter ou ser. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara,
125
Ou seja: Para perpetuar o ciclo de comprar, possuir e consumir coisas [mercadorias].
58
por ele. O homem consumidor, condicionado, trabalha [?] para adquirir coisas que, de fato,
não precisa, esquecendo-se de si e de relações amplas com o mundo e com as outras
pessoas.
Acreditando que a felicidade se encontra em consumir, o homem consumidor
buscará seu espaço no mercado, competindo e procurando derrotar seus possíveis
concorrentes, pois precisa garantir seu status quo para continuar consumindo. Nesse
processo, terá tantas personalidades quantas forem exigidas, mercantilizando a si mesmo,
procurando agradar àqueles que podem manter seu padrão de consumo. Existirá para
consumir, olvidando a vocação humana em ser. Os reflexos, na moral, da ideologia do
homem consumidor são bastante evidentes, pois confundimos individualidade com
individualismo, competição moderada com a violenta, satisfação de necessidades com
egoísta busca de satisfação de veleidades [supérfluos]. Incapazes, muitas vezes, de buscar
a adequada medida em nossas vidas, justificamos quaisquer meios para satisfação dos fins
desejados. Inabilitados em lidar com a frustração, acabamos por não desenvolver a
resiliência, essa capacidade de positivar e integrar os aspectos negativos da vida,
positivando-os.
7.3 Avaliação ética dos reflexos da moral do homem econômico [ou consumidor] na
vida concreta
126
A transferência de responsabilidades implica na perpetuação de comportamentos de matiz egoísta. Parece
vigorar – em nossos dias – uma espécie de des-responsabilização generalizada. Em verdade, antes de transferir
responsabilidades, cada pessoa deveria indagar: o que compete e o que posso fazer – aqui e agora – no lugar que
ocupo no tecido social? Daí a máxima: pensar globalmente e agir localmente.
59
127
Não cabe, pensamos, quando destacamos a tarefa educativa das diversas mídias [no campo da indústria das
informações e do lazer], propor tutela ou censura sobre os meios de comunicação social. A censura é tão nociva
quanto a cega submissão, das empresas de comunicação social, aos interesses do mercado. Acreditamos,
entretanto, que os diversos veículos da indústria cultural podem encontrar e propor critérios para o seu
desempenho e, decorrente inserção na construção de um país mais solidário e responsável.
60
Que é pessoa? Segundo Tomás de Aquino, pessoa é uma substância [ser que
existe em si mesmo], dotada de intelecto e vontade, capaz de conhecer e querer, capaz de
realizar a si mesma através de seus atos. Enquanto seres temporais, donos de nossos atos,
eles nos formam. Já Aristóteles anunciava: o anthropos é um animal racional e político,
portador de uma faculdade denominada prudência [ou sabedoria prática], capaz de decidir,
em cada situação, pela justa medida. Essa justa medida não se encontraria nem no
excesso, tampouco na falta, mas no justo meio, deliberado em cada circunstância.
Aristóteles e Tomás de Aquino nos falam da importância do hábito: repetição espontânea de
ações segundo a justa medida, incorporadoras, ao caráter, dessa disposição à vida
moderada e excelente. Se nossos atos nos formam, é interessante destacar, nosso caráter
será excelente ou vicioso em consonância com a justa medida realizada ou não em cada
ato. Em conseqüência, nos tornamos justos, temperantes, prudentes, solidários, amigos,
estudiosos, capazes de respeitar as outras pessoas, porque repetimos, cotidianamente,
ações em harmonia com essas disposições do caráter. A formação do caráter, enquanto
disposição à justa medida, supõe, para esses pensadores, disciplina e práxis.
Através de Kohlberg, percorremos os estágios que conduzem da heteronomia à
autonomia. Autônomo, propriamente, é a pessoa capaz de decidir-se pela realização do
princípio em sua universalidade, sendo capaz de pôr-se no lugar do outro. Autônomo é
aquele que cumpre a norma por decisão própria, realizando a justiça na direção da partilha
racional de direitos e deveres. É preciso perguntar: até que ponto nos educamos, e
oportunizamos em nossas famílias e escolas, vivências na direção da autonomia.
Respeitamos os diversos processos nos quais as pessoas estão envolvidas? Estimulamos o
exercício da autonomia? A descoberta e realização de valores? Educarmo-nos à cultura da
paz, transitando da sociedade de informações à sociedade do conhecimento, não implica no
estimulo à autonomia moral?
O tema da autonomia moral nos encaminha à reflexão sobre a responsabilidade. A
reflexão sobre a responsabilidade supõe consideração sobre o cuidado. Responsável não é,
apenas, aquele que é capaz de assumir as conseqüências de suas ações. Responsável é,
também, quem se empenha em promover sua existência na consideração da comum
pertença ao mundo. Martin Heidegger nos lembra: o homem é um ser-aí-no-mundo
[Dasein]128. O ser-aí, aberto ao mundo, precisa cultivá-lo, torná-lo habitável. Porque no
aberto do mundo, tendo que destinar-se [realizar sua existência], o Dasein precisa cuidar.
128
Retornaremos a Martin Heidegger e ao tema do Cuidado [Sorge, em alemão], quando refletirmos sobre Ética
e meio ambiente, Ética e técnica moderna [como lidar com os utensílios tecnológicos sem que esses nos
dominem?].
61
Cuidar implica em preocupar-se: construir abrigos, cultivar os campos, etc. Cuidar implica
em solicitude: ser-com-os-outros-no-mundo. Cuidar é, pois, cultivar-com, tornando o mundo
nossa casa planetária. Acontece que, nos tempos da onipresença da técnica, olvidamos o
cuidado, renunciamos à responsabilidade para com o mundo: o Dasein não mais se destina,
não mais se responsabiliza, pois transferiu à técnica essa tarefa. Em conseqüência, vive
inautenticamente.
Quais pistas Heidegger nos oferece para entender e agir no mundo da técnica? Se
não podemos viver sem a técnica e, ao mesmo tempo, ela é impeditiva do humano? Martin
Heidegger recomenda: é preciso afastar-se do círculo da técnica, dessa relação de
progresso e regresso. Saindo da órbita da técnica, descobriremos que se, o poder da
técnica é superior às capacidades do Dasein em dominá-la, de outro, solicita o seu trabalho
e empenho. Nessa solicitação estaria escondida a possibilidade da recuperação do cuidado.
Mas, como lidar com os artefatos tecnológicos? Quando deles precisamos, devemos, então,
usá-los. No que consiste, enfim, o uso adequado dos utensílios técnicos? Consiste no uso
prudente. Usá-los sem que nos dominem. Usá-los serenamente129.
129
Ver, nesse sentido, os anexos 04 [O Dasein e a Técnica Moderna] e 05 [Serenidade].
62
8 O CUIDADO [Sorge]
130
Kohlberg procurou demonstrar e caracterizar as diversas fases do desenvolvimento moral [passagem da
heteronomia à autonomia moral]. Carol Gilligan inova em suas pesquisas pela elaboração de teoria psicológica
sobre o cuidado. Heidegger, em sua analítica existencial [Ser e Tempo], esclarece: o cuidado [Sorge] não é um
acréscimo, mas modo de ser do Dasein Humano [do homem].
131
Cf. JUNGES, José Roque. Bioética. Hermenêutica e casuística. São Paulo: Loyola, 2006. p.76-80.
132
Pesquisas envolvendo adolescentes e adultos jovens, em diferentes lugares: USA, Turquia e Israel
[latitudinais ou interculturais], durante considerável período de tempo. Esses indivíduos foram acompanhados da
adolescência até idade adulta [em diferentes fases de seu desenvolvimento], tendo respondido, periodicamente,
testes formulados pelo pesquisador de Harvard [longitudinais ou verticais].
63
133
Segundo Kohberg (Cf. Bárbara Freitag. “Moralidade e Educação Moral”. In: Itinerário de Antígona. A
questão da Moralidade. SP, Campinas: Papirus, 1997. p.192-207) os estágios do desenvolvimento moral seriam
seis. No primeiro estágio, denominado moralidade heterônoma, é considerado moralmente certo [correto] não
violar regras que ocasionem punições, trata-se de um obedecer por obedecer. No segundo estágio, individualista,
prevaleceria intenção instrumental e troca. É correto obedecer a normas quando essas satisfaçam o interesse
imediato, atendendo às próprias necessidades e desejos. Encontramo-nos diante de moral egocêntrica. No
terceiro estágio, busca-se conformidade interpessoal. O indivíduo se conforma ao que os outros esperam, pois
deseja ser aceito pelo grupo. É preciso manter relações de confiança, lealdade, respeito e gratidão, pois
participamos de uma coletividade. Há desejo de respeito às regras, porém, sob perspectiva estereotipada do bem.
No quarto estágio, o indivíduo moral está apto a cumprir suas obrigações. A perspectiva sociomoral busca
legitimar o todo social, o funcionamento das instituições. No quinto estágio, alguns valores universais são
defendidos como indispensáveis à vida em comunidade [liberdade, vida, etc.]. Predomina, entretanto, visão
contratualista ou legalista. No sexto estágio, a pessoa pauta suas ações por princípios universais, justificados
racionalmente e capazes de orientar o agir. As leis e acordos sociais são considerados válidos porque se apóiam
nesses princípios. Estamos, agora, falando de princípios universais de justiça, como a igualdade dos direitos
humanos e o respeito à dignidade dos seres humanos em sua unicidade irrepetível. A perspectiva moral desse
sexto estágio é a de qualquer ser racional capaz de reconhecer, no fato de que as pessoas são um fim em si
mesmas e precisam ser tratadas como tais, a fonte da moralidade. Kohlberg propugna educação que possibilite
transição da heteronomia à autonomia na vida moral. JUNGES (2006, p.79) oferece um esquema dos diferentes
estágios: α) No nível pré-convencional temos: estádio 1: “a orientação de castigo e de obediência”; estádio 2:
“orientação instrumental e relativista”; β) No nível convencional: estádio 3: “a concordância interpessoal ou
orientação a ser bom menino ou boa menina”; estádio 4: “a orientação da lei e da ordem”; γ) No nível pós-
convencional: estádio 5: “a orientação legalista do contrato social”; estádio 6: “a orientação por princípios
universais e éticos”.
134
Em solucionar, nos testes propostos, casos envolvendo dilemas morais.
135
JUNGES, 2006, p.81.
136
Ibidem, p.81.
137
No espaço existencial, o Dasein se relaciona com coisas, objetos, seres vivos, outras pessoas. Nesse espaço, relacionar-se
é anular a distância através da proximidade [tendo coisas à-mão, dirigindo o olhar para determinada direção e coisa, estando
face-a-face, etc.]. O espaço existencial difere do espaço geométrico [representação abstrata]. No mundo [espaço existencial],
o Dasein realiza sua existência pela relação [estando próximo ou distante].
64
modo de ser do Dasein138, vê-se obstaculizada. Transitando num espaço virtualizado, o ser-
aí já não mais existe no aberto do mundo, já não mais se relaciona, autenticamente, com
coisas e pessoas, já não mais destina a si mesmo. Atarefado, encontra desculpas à sua
incapacidade de gerir a existência: estou muito ocupado, as atividades me consomem,
preciso ganhar a vida. Diante do quadro brevemente descrito, importa indagar: quem,
realmente, nós somos? Somos o resultado dos papéis sociais que desempenhamos, as
múltiplas tarefas que executamos? Por que nos prendemos às rotinas que inventamos? Por
que não nos desvencilhamos das rotinas impostas? Por que precisamos, sempre, parecer
tão ocupados? Somos, de fato, capazes em assumir a vida como tarefa, sem transferirmos
responsabilidades?
O ser-aí-no-mundo é temporal. Não estamos falando do tempo do relógio ou do
tempo multiplicado pela aceleração tecnológica. Estamos enunciando o tempo da existência:
ser presença [kairós]139. Tempo que é, simultaneamente, em cada instante vivido: passado,
presente e futuro. Somos, num presente que se esvai, um passado atualizado e um futuro
por realizar, ou seja, possibilidade140. Descobrimos que a possibilidade última [derradeira] é
nossa impossibilidade: um dia não mais seremos. O Dasein, temporal, um dia não mais
será. Constatada nossa condição mortal141, nos evadimos dessa descoberta, montando
rotinas e executando tarefas, fixando-nos, alienadamente, num presente que nega o futuro.
A ocupação, nesses dias de onipotência da técnica, em conseqüência, é um modo de negar
nossa condição mortal. Essa ocupação desordenada impossibilita, igualmente, vivermos
com intensidade o presente e preocuparmo-nos autenticamente com o futuro. Se estamos
sempre diante de possibilidades, se o futuro é imprevisível, a resposta às incertezas
resultantes dessa condição não será encontrada na dispersão das ocupações, mas no
cuidado. Como devemos, então, compreender o cuidado?
O Dasein, no aberto do mundo e diante do possível, precisa cultivar esse mundo,
tornando-o habitável. Ao destinar-se [realizar sua existência] o ser-aí-no-mundo é
138
Dasein ou ser aí [no mundo]. O ser humano é o ente privilegiado que indaga pelo sentido do ser [pelo
significado de sua própria existência]. O ser aí encontra no mundo o horizonte de sua existência. Como, então,
devemos compreender a expressão mundo? Por mundo não devemos entender a soma dos entes, mas o lugar
significado [nomeado pela linguagem], habitado e cultivado pelo Dasein [pelo homem]. O mundo, essa
totalidade de significados [o horizonte vital de sua existência] é o a priori concreto que acolhe o ser aí. O
Dasein, nessa perspectiva, ao acolher o mundo [nomeando-o, cultivando-o, habitando-o] constitui a si mesmo
e ao próprio mundo. O Dasein, podemos inferir, existe no aberto do mundo pelo cultivo responsável desse
mundo. As coisas não têm mundo, o animal é pobre de mundo, o Dasein é rico de mundo [é formador de
mundo]. De fato, as coisas participam do mundo através do Dasein. Em conclusão, assim como não há Dasein
sem mundo, não há mundo sem o Dasein. O Dasein, sublinhamos, é um ser-aí-no-mundo [in-der-Welt-Sein].
139
Kairós ou tempo da existência: presença a si mesmo, no mundo, no gratuito e intenso dom de existir
140
Vivenciamos o tempo na perspectiva de sua tridimensionalidade [presente das coisas passadas: memória;
presente das coisas presentes: visão; presente das coisas futuras: expectação / Cf. Santo Agostinho no Livro XI
das Confissões]. Em realidades, o Dasein é o próprio tempo: ele se temporaliza nas vivências do tempo.
141
Pois na gratuidade do existir, um dia não mais seremos.
65
142
Cuidado [do latim Cura, ae] indica: diligência, atenção. Interessante constatar: as palavras cuidado e cura têm
a mesma raiz etimológica. Na língua alemã cuidado é sorge.
143
O ser-aí-com [Mit-Dasein].
66
144
O Dasein não se encontra diante de um mundo que interpreta, mas é-no-mundo.
145
Dasein ou ser-aí-no-mundo.
146
Recordamos que nos anexos 04 e 05 explicitamos o problema do Enigma da Técnica e a questão do uso
prudente dos utensílios técnicos.
67
147
De modo explicito e em perspectiva sistemática.
68
148
Capra (FRITJOF. O Ponto de Mutação. São Paulo: Cultrix. 1997. p.19) afirma: “As últimas décadas de nosso
século vêm registrando um estado de profunda crise mundial. É uma crise complexa, multidimensional, cujas
facetas afetam todos os aspectos de nossa vida – a saúde e o modo de vida, a qualidade do meio ambiente e as
relações sociais, da economia, tecnologia e política. É uma crise de dimensões intelectuais, morais e espirituais;
uma crise de escala e premência sem precedentes em toda a história da humanidade. Pela primeira vez, temos
que nos defrontar com a real ameaça da extinção da raça humana e de toda a vida no planeta”.
149
As desigualdades econômicas [no interior das nações e nas relações entre países centrais e periféricos]
continuam acentuando o hiato entre aqueles que têm acesso aos bens de consumo indispensáveis à sobrevivência
[alimento, água potável, remédios, escola, trabalho e lazer] e aqueles que estão abaixo do nível de pobreza. A
mundialização, entendida como uniformização cultural, acrescentamos, des-territorializa culturalmente, tanto os
consumidores da cultura de massa, quanto os emigrantes que saem de seus países na busca de uma existência
digna. São questões importantes que merecem nossa atenção.
69
150
Capra (FRITJOF. A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 1998. p. 23) declara: “Quanto mais estudamos os
principais problemas de nossa época, mais somos levados a perceber que eles não podem ser entendidos
isoladamente. São problemas sistêmicos, o que significa dizer que estão interligados e são interdependentes. [...]
Em última análise, esses problemas precisam ser vistos, exatamente, como diferentes facetas de uma única crise,
que é, em grande medida, uma crise de percepção. Ela deriva do fato de que a maioria de nós, e em especial
nossas grandes instituições sociais, concordam com uma visão de mundo obsoletas, uma percepção da realidade
inadequada para lidarmos com nosso mundo superpovoado e globalmente interligado”. A crise ambiental que
presenciamos, além de repousar em práticas inadequadas, sustentar-se em estruturas econômicas e sociais
frágeis, encontra – nos conceitos pelos quais formamos a imagem do mundo e lidamos com nossos problemas
fator que precisa ser levado em conta. Pelos conceitos que aceitamos acriticamente, de fato, aceitamos
comportamentos, justificamos práticas, legitimamos agressões à vida humana e à vida em geral. O que deve
mudar primeiro? As estruturas sociais, econômicas e política precisam mudar, concomitantemente, com a
mentalidade. É urgente, pois, uma revolução conceitual que possibilite perceber, conceber e agir na direção de
um mundo habitável.
151
Para Descartes, a mente [coisa pensante] é capaz de descrever [medindo] as coisas extensas [dotadas de
largura, altura, profundidade e peso], segundo regularidades matemáticas. Essa concepção permitiu o avanço das
ciências experimentais, mas desconsiderou a relação homem-mundo. A relação sujeito-objeto, pressuposta no
modelo cartesiano, desconhece que a inserção do homem no mundo é anterior ao acontecimento das ciências
experimentais. Antes de as examinar em laboratório, para exemplificar, as coisas existem e têm significado para
a vida de cada pessoa. O que é mundo [esse a priori concreto]? O mundo é a totalidade prévia de sentido que
acolhe cada ser humano, sendo constituído pela linguagem. O existir originário não acontece, assim, no espaço
geométrico de Descartes [representação], mas no espaço existencial. Ora, se a ciência é necessária, entretanto,
ela parte de nossa inclusão no mundo. O engano de Descartes foi conceber que a relação mente-objeto é anterior
à situação homem-mundo. Fritjof Capra em „A concepção mecanicista da vida‟ (In: O Ponto de Mutação, 1997,
p.95-115) possibilita verificarmos o impacto da visão mecanicista sobre nossas vidas.
70
152
Para Capra (1998, p.46) segundo a perspectiva sistêmica, “o primeiro critério, e o mais geral, é a mudança das
partes para o todo. Os sistemas vivos são partes integradas cujas propriedades não podem ser reduzidas às partes
menores. Suas propriedades essenciais ou sistêmicas são propriedades do todo, que nenhuma das partes possui.
Elas surgem das relações de organização das partes – isto é, de uma configuração de relações ordenadas que é
característica dessa determinada classe de organismos ou sistemas. As propriedades sistêmicas são destruídas
quando um sistema é dissecado em elementos isolados”. Com efeito, isolar as partes do todo, dissecando-as
[objetivando-as e isolando-as] resulta em compreensão insuficiente, reducionista e artificial. Sobretudo, quando,
após dissecação do todo, tendo examinado artificialmente seus constituintes, o remontamos desconsiderando as
complexas e ricas relações efetuadas pelas partes na totalidade que formam.
153
Cf. „A concepção sistêmica da vida‟ em CAPRA (1997, p.259-298).
154
Sugerimos leitura de „O paradigma complexo‟ (In: MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo.
Porto Alegre: Sulina, 2007. p.57-93). No referido capítulo Edgar Morin descreve a complexidade e os
paradigmas concernentes à mútua-implicação que envolve todos os processos humanos e cósmicos.
71
155
Cf. CAPRA, 1998, p.25-26.
156
Ibidem, p.26.
157
Ibidem, p. 26.
72
158
Gaya é o nome pelo qual os antigos gregos denominavam a Terra, compreendida como um ser vivente.
159
Segundo Capra (1997, p.277) “A percepção consciente da Terra como algo vivo, que desempenhou
um papel importante em nosso passado cultural, foi dramaticamente revivido quando os astronautas
puderam, pela primeira vez na história humana, ver nosso planeta a partir do espaço exterior. A visão
que eles tiveram de um planeta em toda a sua refulgente beleza – um globo azul e branco flutuando na
profunda escuridão do espaço – impressionou-os e comoveu-os profundamente; como muitos deles
têm declarado desde então, foi uma imensa experiência espiritual que mudou para sempre suas
relações com a Terra. As magníficas fotos que esses astronautas trouxeram, ao voltar, tornaram-se um
novo e poderoso símbolo para o movimento ecológico e podem muito bem ser o resultado mais
significativo de todo o programa espacial”.
73
Qual é o valor que, de fato, atribuo às culturas que povoam nosso planeta? Qual é o valor
que, efetivamente, concedo à vida em todas suas manifestações e aspectos? Respeito,
efetivamente, os outros seres humanos, os animais e os vegetais? Protejo as águas?
Questiono o consumismo predatório? Valorizo as culturas primais ou originárias? Sou capaz
de visualizar, antecipadamente, um novo mundo – empenhando minhas capacidades na
direção de sua viabilidade e sustentabilidade? Nos dias de uniformização cultural,
depredação de nichos ambientais, é preciso, portanto, cotidianamente, reafirmar o valor da
diversidade cultural e biológica, pois, tal diversidade perpetua, enriquece e fortalece a vida
planetária.
A defesa das florestas, dos animais, das águas continentais e dos oceanos é prática
que necessita ser implementada através da mudança de conceitos e hábitos. E como isso é
difícil! Como superar, então, a visão adocicada e asséptica do ecologismo raso e
implementar práticas do ecologismo profundo? Cada um de nós é convidado a pensar sobre
esse assunto.
Ecologistas profundos, diante da inusitada crise de nossos dias, inclusive,
propugnam, para além da sustentabilidade, o desenvolvimento estacionário. O que isso quer
dizer? Como repensar, então, os processos econômicos e as relações de trabalho?
Inevitavelmente, em razão da crise ambiental, a Ecologia profunda questiona nossos
conceitos, hábitos, argumentos, práticas. Não deveríamos temer esses questionamentos,
mas enfrentá-los com coragem, visão, razão, afetividade e efetividade. Re-aprender a ser,
educarmo-nos na direção da sustentabilidade, da valorização da vida humana e planetária,
da integratividade implica em transformações para que o futuro possa acontecer. O fim do
futuro ou um futuro viável, em suma, depende de cada um de nós e de todos. Pensemos,
pois, globalmente, mas, sobretudo, atuemos local e cotidianamente, se, efetivamente, nos
sentirmos responsáveis pela continuidade da vida humana na comum casa planetária,
compartilhada com tantas belas e ricas formas de vida.
CONCLUSÕES FINAIS
Que conceito de Paz desejamos? Não pode ser a paz dos mortos, nem a paz ordenada pelo ditador,
nem a paz que elimine os direitos individuais. Não queremos a paz do silêncio. Tem que ser a paz conseguida
entre iguais, em comum acordo compartilhando a Terra, isto é, vivendo juntos. Para isto deve emergir um novo
respeito entre as culturas [...] Já somos quase 7 bilhões de pessoas, e 3 bilhões já vivem nas cidades. A cidade é
densa, é um espaço para compartilhar e é na cidade que aparece claramente a globalização e onde há mais
necessidade da nova convivência. A concentração cosmopolita nas cidades se opõe atualmente à antiga
dispersão rural. Se, ao mesmo tempo, diminui o papel aglutinador tradicional das doutrinas e aumenta a
informação, o conhecimento, é necessária uma nova cultura da convivência que seja democrática, cosmopolita,
160
civil e culta .
160
Joan Clos, prefeito de Barcelona. In: Fórum das Culturas 2004 (Barcelona 09 de Maio a 26 de Setembro de
2004). Encarte Zero Hora de 01 de Agosto de 2004.
161
RACHELS, 2006, p.194-206.
76
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77
Valores sinalizam conteúdos com significado existencial, descobertos e realizados pelos seres
humanos – nas suas relações no mundo que os acolhe. Não permanecemos indiferentes frente a
valores, pois sua presença afeta e qualifica nossas vidas. Os valores morais [ou éticos] concernem à
162
vida de outras pessoas, sendo capazes de penetrar outros valores, conferindo-lhes sentido .
Princípio [do latim principium-princeps]: aquilo que se põe em primeiro lugar, começo, ponto de
partida, referência capaz de orientar o comportamento humano. Norma: tradução do valor [e do
163
princípio] em regra orientadora da ação .
2 Sujeito ético
Sujeito ético é todo ser humano capaz de responsabilidade, ou seja, capaz de responder pelas
164
conseqüências de suas ações . Dois níveis de responsabilidade, destacamos, estão em jogo nas
práticas profissionais: responsabilidade ética e profissional. A primeira corresponde à livre decisão de
cumprir normas e princípios, a segunda deriva da aplicação ou realização dos códigos normativos e
leis que regulam o exercício profissional. O profissional, sujeito ético, assim, ao compreender seus
compromissos humanos, conscientemente busca efetivar as exigências normativas e legais da sua
profissão. Responsabilidade, recordamos, implica, sobremaneira, em cuidar. Cuidar implicar em
preocupar-se e ser solicito para com o outro. Cuidar significa: cultivar o mundo com outros seres
humanos, tornando-o habitável.
162
Os valores éticos são capazes penetrar os valores econômicos, técnicos, estéticos, cognitivos conferindo-lhes
sentido e orientação.
163
É muito difícil diferenciar valores e princípios. Entretanto, se valores de referem à instância do ser, do bem e
da verdade, os princípios explicitam esses valores. Ex. Bem: a vida humana. Princípio: respeito à vida humana.
Ex. Valor: verdade. Princípio: dizer a verdade.
164
É importante perguntar: no que consiste a responsabilidade ética e profissional? Quais são os marcos
deontológicos e legais reguladores das respectivas responsabilidades éticas e profissionais de minha atividade
profissional? É importante conhecê-los.
78
3 Deontologia
165
Deontologia [do grego déon-déontos] é estudo dos códigos de normas que regulamentam o
exercício das diversas profissões, considerando o bom exercício dessas profissões, os direitos e
deveres dos profissionais e o bem das pessoas que procuram o auxílio desses profissionais.
Como justificar eticamente os princípios e normas que orientam uma profissão? Como evitar
o corporativismo, reafirmando o caráter autêntico do exercício profissional. Deontologia, igualmente,
designa a doutrina de Kant que, em sua Filosofia moral, privilegia o dever. O conjunto de direitos e
deveres dos profissionais em sua relação com o cliente, o público, seus colegas e sua corporação é,
também, denominado deontologia.
166
Ética indica , prioritariamente, a reflexão sobre o conjunto das exigências do respeito e da
promoção da pessoa. O direito positivo nomeia, em primeiro lugar, o conjunto de regras aplicáveis
numa determinada sociedade e sancionadas pela autoridade pública. Direito designa, num segundo
momento, a reflexão sobre as leis e seu significado. Se a Ética trata do dever ser na direção do ótimo,
o direito visa harmonizar as relações humanas na sociedade, conciliando os interesses das diversas
pessoas, procurando realizar o possível. Se a Ética, ao examinar o comportamento moral, considera
a interioridade e a voluntariedade da ação; o direito atua coercitivamente visando o cumprimento da
167
lei em sua positividade .
A prudência é o exercício racional-prático que intenciona a justa medida nas ações. Por justa
medida, entendemos, medida adequada, ponderada, racional, moderada e moderadora. A razão
prática, em seu exercício prudencial, prevê as conseqüências das ações e busca efetivar o bem em
cada ato realizado.
O princípio da precaução considera, antevendo possíveis resultados, adequada e humanitária
aplicação das ciências e tecnologias no âmbito da vida humana. O princípio da precaução é lembrado
pelos bioeticistas, freqüentemente, como salvaguarda aos possíveis abusos decorrentes do ensaio
168
terapêutico . O princípio da precaução, ampliado, se aplica ao agir humano nos diferentes âmbitos,
pois a pessoa é capaz de antecipar, idealmente, o alcance e conseqüências de seus atos.
165
DURANT, Guy. Introdução Geral à Bioética. História, conceitos e instrumentos. 2 ed.Trad. Nicolas Nyimi
Campanário. São Paulo: São Camilo / Loyola, 2007. p.80-82.
166
Ibidem, p.83-84.
167
Em decorrência, é lícito indagar: a lei positiva sanciona ou questiona o costume? Toda lei é moralmente
aceitável e eticamente justificável? Por que cumprimos a lei: por seu valor ou poder coercitivo?
168
Cf. CLOTET, Joaquim (org); FEIJÓ, Anamaria; OLIVEIRA, Marília Gerhardt (org). Bioética, uma visão
panorâmica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005, p.10.
79
Anexo 2 [Excerto]
A Pesquisa de Kohlberg
169
Barbara Freitag
O nome de Lawrence Kohlberg (1927-1987) ficou de tal modo associado aos estudos da
moralidade que muitos autores lhe atribuem, equivocadamente, o papel de formulador da teoria da
psicogênese da moral. Poucos sabem ou admitem que Kohlberg construiu seu trabalho teórico,
metodológico e até mesmo educacional sobre os alicerces lançados por Piaget. Poucos sabem ou
admitem que Kohlberg foi um aluno lato e stricto sensu de Piaget. Verdade é que foi um excelente
aluno. Examinou os pressupostos da teoria moral de Piaget e desenvolveu a teoria e a metodologia,
dando à pesquisa científica sobre a moralidade um peso e uma estatura sem precedentes. Kohlberg
confirmou e consolidou a tese do paralelismo entre lógica e moral, a teoria dos estágios, a
universalidade dos processos cognitivos e morais, reformulou a metodologia e a teoria, reforçou a
pesquisa intercultural no campo da moralidade e desenvolveu programas de educação moral nos
coleges e nas universidades americanas.
Para estudar com maior precisão a passagem de um estágio psicogenético a outro, Kohlberg
realizou uma série de estudos longitudinais. O mais conhecido é sobre a psicogênese da moral de 75
meninos e rapazes (idade inicial: de 10 a 16 anos) de Chicago, cujo desenvolvimento foi
acompanhado durante 15 anos. Os meninos/rapazes eram entrevistados de três em três anos,
169
Texto de FREITAG, Barbara. “Moralidade e educação moral”. In: _______. Itinerário de Antígona. A questão
da moralidade. SP Campinas: Papirus, 1997. p.192-207.
80
permitindo, assim, a reconstrução (nos mesmos sujeitos) dos diferentes estágios do julgamento
moral. No final da pesquisa, esses sujeitos tinham atingido a idade entre 25 e 30 anos. O mesmo
procedimento foi aplicado durante 6 anos a um grupo de adolescentes turcos e a jovens judeus que
viviam em um kibutz em Israel (cf. Kohlberg, 1976).
Kohlberg também resolveu substituir as historietas paralelas usadas por Piaget para analisar
o julgamento moral da criança, suas noções de justiça e punição por histórias contendo sérios
conflitos ou dilemas morais, de cunho existencial. Os sujeitos entrevistados eram solicitados a julgar a
ação dos protagonistas da história, conforme sua opção por uma ou outra alternativa, dentro da
situação de conflito.
Um dos conflitos mais usados, debatidos, analisados e codificados foi o “dilema de Heinz”. A
historieta tomada como ponto de partida para a entrevista clínica posterior (no sentido piagetiano já
explicitado) é a seguinte:
“A mulher de Heinz estava à morte, pois tinha câncer. Somente un remédio, que o
farmacêutico da cidade tinha descoberto, poderia salvá-la. Mas o farmacêutico estava cobrando uma
fortuna pelo remédio, que estava dez vezes acima do seu preço de custo. Heinz, o marido da mulher
enferma, pediu dinheiro a todos os amigos, mas só conseguiu juntar a metade do que solicitava o
farmacêutico pelo remédio. Explicou então a este a situação. Contou-lhe que a mulher estava
morrendo e pediu que vendesse o remédio pela quantia que obtivera ou que permitisse pagar o
restante mais tarde. Mas o farmacêutico foi implacável, não se dispondo a vender o remédio senão
pelo preço inicialmente estipulado. Heinz, desesperado, resolveu arrombar a farmácia e levar o
remédio para a mulher. Heinz estaria agindo corretamente? Justifique seu ponto de vista” (cf. Colby e
Kohlberg, 1987, vol. 2, p. 1).
Outros dilemas ou conflitos são apresentados e estudados, como o caso de um navio que
afunda. No escaler encontram-se três sobreviventes: o capitão, um marinheiro jovem e inexperiente e
um cientista velho. O equipamento e as reservas de combustível e alimentação para assegurar o
salvamento efetivo dariam para somente duas pessoas. Um dos três sobreviventes teria de saltar ao
mar. Quem deveria tomar a decisão? Qual deles? Quais seriam os argumentos a favor e contra em
Cada um dos casos.
Como Piaget, Kohlberg e suas equipes utilizaram-se da entrevista clínica, do diálogo com
argumentação e contra-argumentação, mas também de discussões em grupo sobre os dilemas acima
relatados, gravados em teipe e vídeo, a fim de permitir o estudo, em detalhe, da fala, da mímica, dos
gestos de cada interlocutor. Esse material serviria de base para determinar o estágio moral atingido
pelos entrevistados ou membros do grupo.
A teoria psicológica da moralidade desenvolvida por Kohlberg e suas equipes emerge de uma
reformulação metodológica e teórica permanente, em que fica difícil dizer de qual dos pólos partiu o
impulso para a renovação. Mas visto que os procedimentos metodológicos definem os limites, o grau
de diferenciação e abstração adotado para captar os dados da realidade, as opções metodológicas
implicam recortes de uma suposta realidade empírica que fornece material que impõe reformulações
teóricas e vice-versa.
A teoria dos seis estágios lançada em 1958 por Kohlberg e defendida até o final da década de
1960 (cf. Kohlberg, 1969) estava longe do grau de diferenciação, reflexão e consolidação da teoria
apresentada na década de 1980 (cf. Kohlberg et al. 1983, Colby e Kohlberg, 1987, vol. 1), mas já
introduzia reflexões teóricas importantes, como a distinção clara entre forma e conteúdo da
argumentação e a diferenciação em seis estágios, compreendidos como totalidades estruturadas,
seguindo uma seqüência invariável e ordenando-se em patamares hierárquicos.
82
Os dois primeiros estágios são típicos de uma consciência moral para a qual o valor moral
reside em acontecimentos externos: quase físicos (as xícaras quebradas etc) e não em pessoas e
princípios. Nos dois estágios subseqüentes, a consciência moral atribui valor moral à conformidade
da ação em relação às expectativas e aos papéis socialmente definidos pelos outros (grupo).
Somente nos últimos dois estágios a consciência moral passa a atribuir um valor moral à coerência
interna do ator e aos padrões, direitos e deveres que ele próprio define para orientar sua ação.
Sua teoria mantém a tese central de que há uma seqüência de estágios morais invariantes,
assim como existe essa seqüência para o pensamento lógico-matemático. Como neste, a
estruturação da consciência moral também ocorre em patamares cada vez mais elevados e mais bem
equilibrados, decorrentes da interação do organismo com seu meio. Kohlberg acredita que sua teoria
é mais abrangente do que a de Piaget, porque pressupõe as estruturas lógico-matemáticas para
construir os novos patamares da consciência moral, produzindo uma transformação da relação do
sujeito com a sociedade em cada patamar, impondo reformulação dos próprios conceitos de eu e
sociedade.
Por isso a teoria do desenvolvimento cognitivo de Kohlherg postula que o julgamento moral
coincide com um processo de role taking (assunção de papéis), em que emerge uma nova estrutura
lógica em cada estágio, paralelamente aos estágios do pensamento desenvolvidos por Piaget. Essa
estrutura pode ser formulada como noção de justiça. Em cada patamar, essa estrutura é mais
abrangente, diferenciada e equilibrada que no anterior. Por isso urna estrutura subseqüente é capaz
de julgamentos e argumentações para os quais a estrutura anterior ainda não tinha competência
(Kohlberg, 1976 pp. 163 e 195).
Em sua nova formulação da teoria dos seis estágios morais, Kohlberg distingue três grandes
níveis da moralidade: o pré-convencional, o convencional e o pós-convencional.
No nível pré-convencional, são diferenciados dois estágios: o estágio 1 [a moralidade heterônoma] e
o estágio 2 [individualismo, intenção instrumental e troca]. Neste nível, a criança é sensível às regras
sociais, distingue o bem e o mal, o certo e o errado, mas interpreta essas caracterizações ou como
conseqüências físicas ou hedonísticas da ação (punição, recompensa, troca de favores), ou como
poder físico dos que formulam as leis que definem o bem, o mal, o certo, o errado.
Estágio 4 – Sistema social e consciência. (a) Está certo cumprir com as obrigações
assumidas. As leis precisam ser respeitadas e seguidas, exceto em casos extremos em que elas
entram em conflito com outras normas sociais. Também está certo empenhar-se pela sociedade, pelo
grupo ou pela instituição. (b) As razões apresentadas para justificar tais ações são manter as
instituições como um todo, evitar o desmoronamento do sistema se cada um fizesse o que bem
entendesse, ou, ainda, cumprir as obrigações conforme nos foi ensinado. (c) O sujeito adota uma
perspectiva sociomoral que diferencia o ponto de vista da sociedade do ponto de vista dos acordos
ou motivos interpessoais. O sujeito assume o ponto de vista do sistema que define os papéis e as
regras. As relações individuais são percebidas na perspectiva do lugar no sistema.
85
Estágio 5 – Contrato social ou utilidade e direitos individuais. (a) É correto estar atento ao fato
de que as pessoas defendem uma variedade de valores e opiniões e a maioria desses valores e
regras é relativa ao grupo. Geralmente, essas regras relativas devem ser respeitadas simplesmente
porque fazem parte do contrato social, e isso insere-se no interesse da imparcialidade. Alguns valores
universais, como vida e liberdade, precisam ser defendidos, independentemente da opinião da
maioria. (b) Como razões para agir de maneira moralmente correta são apontadas a obrigação com a
lei, a necessidade de respeitá-la para o bem-estar de todos e o contrato social. Há uma preocupação
com a fundamentação racional das leis e dos deveres segundo o princípio “o maior bem para o maior
número de pessoas”. Existe o sentimento de um compromisso contratual no qual se entrou por livre e
espontânea vontade com relação a família, amigos, companheiros de trabalho. (c) A perspectiva
adotada pelo sujeito é a da prioridade relativa do indivíduo em relação ao social. O indivíduo racional
dá-se conta de valores e direitos prioritários em relação aos vínculos sociais e aos contratos. Integra
as perspectivas por mecanismos formais de acordo, contrato, imparcialidade objetiva. Considera os
pontos de vista moral e legal, reconhece que eles às vezes chocam-se e considera difícil integrá-los.
Estágio 6 – Princípios éticos universais. (a) É considerado correto seguir princípios éticos
auto-selecionados. Leis particulares e acordos sociais são válidos, porque eles apóiam-se em tais
princípios. Quando as leis violam esses princípios, age-se de acordo com o princípio. Trata-se de
princípios universais de justiça: a igualdade dos direitos humanos e o respeito à dignidade dos seres
humanos como pessoas individuais. (b) As justificativas para agir de modo moralmente correto
fundamentam-se na validade de princípios morais universais e na convicção de haver um
compromisso com esses princípios. (e) A perspectiva adotada é a de um ponto de vista moral, isto é,
a de qualquer ser racional que reconhece como natureza da moralidade o fato de que as pessoas são
fins em si mesmos e precisam ser tratadas como tais (cf. Kohlberg et ai., 1983, vol. 1, pp. 18-19).
Comum à antiga e à nova versão da teoria dos seis estágios é o caráter de teoria dura: uma
seqüência invariante de estágios, organizados segundo uma hierarquia, em que cada um forma uma
totalidade integrada que absorve o anterior, mostrando-se esse novo estágio mais equilibrado,
integrado e competente que os precedentes. Isso significa, como significava para Piaget no caso do
pensamento lógico, que crianças, adolescentes ou adultos que atingiram os níveis superiores da
escala de Kohlberg (isto é, da consciência moral pós-convencional) apresentam estruturas cognitivo-
morais mais equilibradas que crianças ou adolescentes em níveis inferiores (da moralidade pré- ou
convencional).
Isso significa, por sua vez, que aquelas têm mais competência intelectual e moral para
resolver conflitos morais que essas, simplesmente porque são capazes de recorrer a todos os
argumentos cognitivamente necessários para optar por uma das alternativas, procurando assumir o
ponto de vista de todos os envolvidos (role taking) e reduzindo danos e efeitos colaterais.
convencional). Alcançá-lo passa a ser um objetivo e uma exigência que decorre da própria teoria e
impõe-se por um moral point of view. Segundo Kohlberg, essa exigência tem uma dupla
fundamentação: a psicológica e a filosófica (cf. Kohlberg, 1981, pp. 219-220).
Do ponto de vista psicológico, amparado pela pesquisa empírica, pode-se afirmar que os
indivíduos procuram alcançar os estágios mais elevados da argumentação racional e da justificativa
moral. Valendo-se do mecanismo da abstraction réfléchissante, sublinhado nos trabalhos do Piaget
maduro, o indivíduo transcende, por necessidade e por impulsos internos, os patamares da
organização mental e moral, atingidos graças à sua interação com o mundo da natureza e da
sociedade. Assim como a criança abstrai de suas experiências com os objetos do mundo externo as
categorias quantidade, qualidade, modalidade ou relação, ela também abstrai das experiências com o
mundo social princípios de ação (moral) que transcendem a experiência da regra social vivida. Por
isso mesmo, Kohlberg pode afirmar que as propriedades de uma regra moral social divergem de um
princípio moral. O princípio moral é o único que pode garantir uma consciência moral integrada, ao
contrário da regra moral social, simplesmente porque as regras morais (como no caso do dilema de
Heinz: “não roubes” e “não deixes um ser humano morrer gratuitaniente”) podem existir e ter
legitimidade social, mesmo estando em conflito entre si ou sendo mutuamente excludentes. Esse não
é o caso do princípio moral. O princípio moral fornece uma regra ou um método que permite priorizar
as regras morais sociais, justificando a opção por uma em detrimento de outra.
Fiel a Kant, Rawls, Dewey, Mead e outros, Kohlberg atribui à razão prática, ou seja, à
consciência moral pós-convencional, orientada pelo princípio da justiça, um valor moral superior à
razão téorica, ou seja, à estrutura do pensamento lógico-formal, porque trata-se de um raciocínio
(moral) mais complexo e diferenciado do que o raciocínio lógico. Não há nem paralelismo nem
equivalência; há diferença de grau e qualidade. O raciocínio moral é um raciocínio mais rico, pois
envolve, além dos objetos e de suas coordenações, os sujeitos, seus pontos de vista e suas relações
entre si e a consideração dos efeitos de muna ação sobre todos os participantes da situação
170
Quadro Resumo dos estágios de Kohlberg
β) No nível convencional:
γ) No nível pós-convencional:
170
Cf. JUNGES, José Roque. Bioética. Hermenêutica e casuística. São Paulo: Loyola, 2006. p. 79.
88
Anexo 03 [Excerto]
172
SOBRE A MAIÊUTICA :
“- E não ouvistes, pois, dizer que sou filho de uma parteira muito hábil e séria, Fenareta? –
Sim, já ouvi dizer isso. E ouvistes também que me ocupo igualmente da mesma arte? – Isso, não. –
Pois bem, deves saber que é verdade [...] Reflete sobre a condição da parteira e compreenderás
mais facilmente o que quero dizer. Tu sabes que nenhuma delas assiste as parturientes quando ela
mesma se encontra grávida ou parturiente, mas unicamente quando não se acha em estado de dar a
luz [...]. E não é natural e necessário que as mulheres grávidas são mais bem auscultadas pelas
parteiras que por outras? – Certamente. – E as parteiras têm também remédio e podem, por meio de
cantilenas, excitar os esforços do parto e fazê-los, se quiserem, mais suaves, e aliviar as que têm um
parto muito laborioso, e fazer abortar quando sobrevêm um aborto prematuro? – Assim o é,
efetivamente. – Ora bem, toda a minha arte de obstetra é semelhante a essa, mas difere enquanto se
aplica aos homens e não às mulheres, e relaciona-se com as suas almas parturientes e não com os
corpos. Sobretudo, na nossa arte há a seguinte particularidade: que se pode averiguar por todo meio
se o pensamento do jovem vai dar à luz a algo de fantástico e falso, ou de genuíno e verdadeiro. Pois
acontece também a mim, como às parteiras: sou estéril de sabedoria; e o que muitos têm reprovado
em mim, que interrogo os outros, e depois não respondo nada a respeito de nada por falta de
sabedoria, na verdade pode me ser censurado. E é esta a causa: que Deus me obriga a agir como
obstetra, porém veda-me dar à luz. E eu, pois, não sou sábio, nem posso mostrar nenhuma
descoberta minha, gerada por minha alma; mas os que me freqüentam, a princípio (alguns também
em tudo) ignorantes; mas depois, adquirindo familiaridade, como assistidos pelo deus (daimon),
obtêm proveito admiravelmente grande, como parece a eles próprios e aos outros. E, não obstante, é
manifesto que nada aprenderam comigo, mas encontraram, por si mesmos, muitas e belas coisas
que já possuíam [...] É verdade que os meus familiares passam justamente pelo mesmo estado das
parturientes, porque sentem as dores do parto e estão cheios de angústia, dia e noite, ainda maiores
do que as daquelas. Essas dores a minha arte as pode provocar e fazer cessar [...] Confia, então, em
mim, como filho de parteira e parteiro que sou; e às perguntas que eu te fizer, trata de responder da
maneira que puderes. E se depois, examinando alguma das coisas que disseres, a julgar imaginária e
não verdadeira, e por isso separá-la e a dissecar, não te ofendas, como fazem as primíparas com
seus filhinhos”.
Sócrates, filósofo e parteiro de almas, inaugurou os debates éticos no Ocidente propondo o
tema do autoconhecimento. Qual é o parto que realizam as almas? O parto da verdade [exercício
maiêutico], através da explicitação dos conceitos, segundo as perguntas sugeridas pelo filósofo. Ao
171
Cf. Platão, Teeteto, 148-151.
172
Maiêutica ou a arte de auxiliar os discípulos no partureio da verdade.
89
Observação: as questões não precisam ser respondidas [desejam apenas orientar a leitura do presente texto,
ligando-o com o tema da avaliação moral].
90
Diante do enigma da Técnica somos convidados a operar um distanciamento de sua órbita. O que
tal atitude significa?
174
Diante do enigma da técnica , retornando à indagação sobre o sentido da existência num mundo
desconstituído, é interessante meditarmos sobre as respostas de Martin Heidegger às indagações do
175
professor Kojima . Ao ser inquirido sobre o que significa a europeização do mundo, Heidegger identifica
esse processo com a gradativa ocidentalização do planeta, caracterizada pela presença operativa da
técnica que, ao descerrar as forças ocultas da natureza, dominando essas energias, transforma todas as
coisas em mercadoria.
O Filósofo da Floresta Negra, ao ser questionado sobre a perda da essência do humano, enuncia –
na impossibilidade de o homem da era da técnica tornar-se aquilo que, até agora, não pôde ser – a raiz
dessa perda. Assim, o Dasein, desde sua finitude, ao responder ao projeto da técnica, ao ser interpelado
pela técnica a explorar racionalmente a natureza – esse fundo de reserva calculável e manipulável –
esquece de si mesmo, vê-se impedido de cuidar. Impedido de cuidar, não pode realizar sua humanidade,
tornando-se, tal qual a natureza que manipula, um objeto descartável.
173
Cf. HEIDEGGER, Martin. O Enigma da Sociedade Industrial. Trad. Ernildo Stein. In: STEIN, Ernildo. Uma
Breve Introdução à Filosofia. Ijuí: Editora Unijuí, 2002. p. 193-202.
174
No que consiste o enigma da técnica moderna? Se a pergunta pela técnica moderna não encontra satisfatória,
isso não significa que devamos desistir de indagar. Qual é o sentido da técnica moderna? A Técnica moderna,
ultrapassando o conceito clássico de técnica [arte ou fazer com autoridade] é o resultado da aliança estabelecida
entre o pensamento que calcula e domina [ciência moderna] e a técnica. Ademais, se não podemos viver sem a
Técnica moderna, ao mesmo tempo, não conseguimos lidar satisfatoriamente com ela. Nisso consiste o enigma
da Técnica moderna: perguntamos por um sentido que, ainda, não compreendemos. Aliás, o poder da Técnica
tem-se revelado superior às capacidades do Dasein humano destiná-la. Entre o ser-aí [homem] e o mundo, a
técnica se ergue como barreira impeditiva do cultivo desse mundo. Se não podemos viver sem a técnica e não
podemos viver com ela, por que, então, insistir na indagação? Por que essa é a tarefa que caracteriza o ser
humano: a capacidade de refletir, meditar, indagar pelo sentido das coisas, do mundo, da existência. Enquanto
insistirmos no exercício do filosofar, ainda seremos humanos.
175
Cf. HEIDEGGER, Martin. O Enigma da Sociedade Industrial. In: STEIN, Ernildo. Uma Breve Introdução à
Filosofia. Ijuí: Unijuí, 2002. p. 194-202.
91
SERENIDADE
[Gelassenheit]
176
Ver HEIDEGGER, Martin. Serenidade. Lisboa: Instituo Piaget, 2000 (Verlag,Günter Neske Pfullingen, 1959). Trata-se
de oração proferida pelo filósofo suevo por ocasião de homenagem ao seu conterrâneo, o músico Conradin Kreutzer. No
referido texto Heidegger avalia o impacto da Técnica moderna sobre nossas vidas, denunciando uma fuga do pensamento,
mas, ao mesmo tempo, indicando caminhos para lidarmos adequadamente com os „utensílios técnicos‟.
177
Cf. ibidem, p.11.
178
Ibidem, p.11.
179
Todos os dias somos estimulados por informações veiculadas por diferentes mídias e, até mesmo, nos exercícios escolares.
Entrementes, incontáveis vezes, não analisamos essas informações, não indagamos sobre sua origem, não realizamos a crítica
dos conceitos, não investigamos como os fenômenos veiculados são interpretados. Ora, é preciso destacar: informação não é
conhecimento. O conhecimento é exercício crítico de investigação, exigente, reflexivo. Exercício que convida ao estudo, à
solidão, ao trabalho interpretativo e ao debate intersubjetivo – segundo argumentos validados coerentemente. Necessitamos,
portanto, transitar da sociedade da informação à sociedade do conhecimento. A revolução informática nos garantiu acesso à
informação, mas como trabalhá-la, como torná-la conhecimento significativo, operativo, transformador? Nessa tarefa,
contamos, apenas, com o esforço pessoal e intersubjetivo do pensamento reflexivo, sem o qual estaremos caminhando na
direção da automação e não da autonomia, da autarquia e da comum responsabilidade .
180
Num tempo acelerado pelas mediações tecnológicas, de admiráveis avanços informáticos, já não vivemos no tempo da
presença [kairós] e na gratuita acolhida do mundo e dos outros [ser-no-mundo-com]. A partir dessa constatação,
legitimamente, podemos indagar: quem, de fato, somos? O resultado da adição dos papéis sociais que representamos num
tempo que nos consome? Por que executamos tantas tarefas? Vivemos no tempo acelerado do relógio eletrônico ou no tempo
da presença? O que significa habitar o mundo? Por que a habitação do mundo reivindica o cuidado e o cultivo desse mesmo
mundo? Por que a técnica impede o contato com o mundo e, desse modo, a responsabilidade?
181
Cf. Op. Cit. , 2000, p. 12.
93
182
Cf. HEIDEGER, 2000, p. 18.
183
Ibidem, p.19.
184
Lembremos da utilização da Bomba atômica sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki, ato que encerrou a segunda guerra
mundial.
185
Op. Cit., p.21.
94
Podemos utilizar os objetos técnicos, mas, ao utilizá-los, permanecer livres deles. Podemos
utilizar os objetos técnicos tal como devem ser utilizados. Podemos utilizá-los com liberdade, sem nos
tornarmos seus escravos. Podemos dizer sim e não aos objetos técnicos, impedindo que nos
186
absorvam e desconstituam nossa relação responsável com o mundo. Se dissermos sim e não aos
objetos técnicos, usando-os prudentemente, nossa relação com o mundo tornar-se-á tranqüila.
Deixemos os objetos técnicos entrarem em nosso mundo cotidiano e, ao mesmo tempo, os deixemos
fora, ou seja, permitamos repousarem em si mesmos.
A atitude frente os objetos técnicos [dizer sim e não] – denominemos serenidade para com as
187
coisas . Todavia, se ainda não compreendemos o poder oculto da técnica, é necessário indagar
188
pelo sentido do fazer técnico e aprender a lidar inteligentemente com os utensílios técnicos . A
serenidade em relação às coisas e a abertura ao mistério asseguram perspectiva de novo
enraizamento, que permitirá existir com responsabilidade, que evitará transferirmos à técnica – nossa
comum tarefa habitar o mundo.
Permanece, entretanto, um perigo. No que consiste tal perigo? De acreditarmos que o único
pensamento legítimo, capaz de responder às questões humanas, é o pensamento que calcula.
Contudo, em todos os lugares, convidemos à reflexão, pois somente o pensamento que medita é
capaz de dar conta do sentido, inclusive do significado, implicitamente aceito, de que a técnica
moderna é o único lenitivo aos problemas do homem. Exerçamos, então, o pensamento na sua
essência, insistindo e pergunta pelo sentido radical de todas as coisas.
APLICAÇÃO
2 Somos capazes de utilizar os objetos técnicos adequadamente ou nos deixamos dominar por eles?
3 Quais são os sinais positivos e os sinais negativos da onipresença da técnica em nossas vidas?
186
HEIDEGGER, 2000, p. 23-24.
187
Ibidem, p.24.
188
Cumpre destacar que Heidegger, gradativamente, percebe que o poder da técnica é superior ao poder do Dasein histórico
[homem] em desconstituí-lo. Mas, é tarefa intransferível realizar o ato de pensar, insistir e renovadamente perguntar.
95
Anexo 05 [Artigo]
Anexo 06 [Artigo]
A cor do dinheiro*
Anexo 07 [Artigo]
Lixo e consumismo*
*Lixo e consumismo, por Sérgio da Costa Franco [Zero Hora, 12 / Junho / 2009].
scostafranco@hotmail.com