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A DISCIPLINA MÉDICA –
A PERMANÊNCIA DE FOUCAULT
Trabalho final da
Disciplina ministrada pela
Prof. Dr. Ricardo G. Müller
Fevereiro de 2007
A DISCIPLINA MÉDICA – A PERMANÊNCIA DE FOUCAULT
A – A HISTÓRIA
Este trabalho busca refletir sobre o disciplinamento que a Medicina tenta e, na maioria
das vezes, acaba impondo à sociedade na medida em que estabelece normas protocolares de
direcionamento e ordenamento da vida social. Seu pressuposto teórico se ancora na Teoria
Social Contemporânea, especialmente em Michel Foucault, que mapeou o caminho
metodológico e epistemológico do que ficou conhecido como genealogia e arqueologia do
saber.
Primeiramente um pouco de história. Fomos buscar em Luc Boltanski 1 a compreensão
que “... o usuário da medicina familiar hoje não esquece nunca o caráter ilegal que executa ou
pelo menos, que só tem o direito de executá-los por procuração”. Ou seja, a utilização de um
conhecimento da medicina, sem a devida autorização, poderá sofrer algum tipo de sanção.
Boltanski lembra que “ninguém tem o direito de ignorar a lei” da mesma forma que ninguém
pode ignorar a existência de uma ciência médica, e completa ele – “conhecimento de
especialista submetido à lei do progresso que a instituição escolar é a única com direito de
transmitir”.
Eis a primeira questão – o saber médico só pode ser transmitido através de uma escola,
mas o autor esclarece que a medicina não é um objeto de ensinamento em escola primária,
onde é ensinada somente a introdução das ciências naturais e da higiene para ter como
resultado “a inculcação da idéia de que existe nessa matéria um conhecimento verdadeiro e
único, aquele que a escola detém e transmite”.
Para ser mais preciso no foco de tudo isso, Boltanski enfatiza que
1
Boltanski, Luc. As Classes Sociais e o Corpo. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
médico, os médicos, aos quais se delega até o direito de falar do
próprio corpo e dos males que o atingem2.
2
Idem
3
Costa, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. 2ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1983.
4
Idem
5
Idem
6
Donnangelo, Maria Cecília Ferro. Saúde e Sociedade. São Paulo: Duas Cidades, 1976.
medida em que eles determinam cotidianamente o como se deve levar a vida a fim de
se ter saúde.
7
Idem.
vizinhos (...) é essa força estatal que a medicina deve aperfeiçoar e
desenvolver8.
B – A DISCIPLINA
8
Idem. Este trecho faz parte do livro Microfísica do Poder, de Michel Foucault.
9
Foucault, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1977.
10
Especialmente Microfísica do Poder e Vigiar e Punir.
11
Idem
Era preciso estabelecer amarras entre o corpo e o objeto manipulado para se constituir um
complexo corpo-arma, corpo-instrumento, corpo-máquina.
O que é(ra) um corpo-máquina? A narrativa de Foucault fala do soldado que havia se
tornado em algo que se poderia fabricar, isto é, transformar um corpo inapto na máquina que
se precisa. Era através da correção da postura, uma coação calculada sobre cada parte do
corpo para torná-la “perpetuamente disponível, e se prolonga, em silêncio, mo automatismo
dos hábitos; em resumo, foi “expulso o camponês” e lhe foi dada a “fisionomia de soldado”“.
De certa forma podemos perceber a presença de Pavlov neste adestramento
permanente que, ainda, existe em nossa sociedade atual e se manifesta de muitas formas. É
importante e necessário reproduzir aqui o que fala Foucault.
Para Polack13,
12
Foucault, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1977.
13
Polack, Jean-Claude. La Medicina del Capital. Madri, Espanha: Editorial Fundamentos, 1974.
Polack sintetiza o que Foucault explica com mais detalhes, e começa com o
estabelecimento de regras, de normas, para os hospitais, desde a sua estrutura física, até na
organização e separação dos doentes em áreas específicas. São estas regras, estas normas, os
elementos essenciais para o exercício e a manutenção do poder. Para Foucault poder é
17
Rocha, Acílio da Silva Estanqueiro. Biopolítica.
Disponível em http://www.ifl.pt/dfmp_files/biopol%C3%ADtica.pdf. Acesso em 22/01/2007.
18
Caponi, Sandra. A biopolítica da população e a experimentação com seres humanos. In Ciência & Saúde
Coletiva, 9(2):445-455, 2004.
19
Idem.
uma organização administrativa para controlar as atividades médicas, subordinando a prática
média a um poder administrativo do Estado, por fim, o quarto item desse processo de controle
– a nomeação de médicos, funcionários do governo, com responsabilidade sobre uma
determinada região, onde exerceria seu poder ou a autoridade de seu saber20.
Eis a medicina de Estado que ia além da formação de uma força de trabalho adaptada
às necessidades das indústrias que se desenvolviam. Para Machado “não há relação de poder
sem constituição de um campo de saber, como também, reciprocamente, todo saber constitui
21
novas relações de poder” . Neste caso, o campo de saber, que instituiu um poder, foi a
Medicina.
Outras formas de saber também participam deste disciplinamento da sociedade em
suas várias instâncias. Veiga-Neto22 mostra a diferença entre as varias formas de
disciplinamento
20
Foucault, Michel. Obra citada.
21
Machado. R. Por uma genealogia do poder. In: Microfísica do poder. 15a. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2000.
Introdução, p.VII- XXIII.
22
Veiga-Neto, Alfredo J. Michel Foucault e educação: há algo de novo sob o sol? In: Veiga-Neto, Alfredo J.
Crítica pós-estruturalista e educação. Porto Alegre: Sulina, 1995.
23
Barreto, José Anchieta E.; Moreira, Rui Verlaine O. (Org.). A outra margem: filosofia, teorias de
Enfermagem e cuidado humano. Fortaleza: EFC/Casa de José de Alencar, 2001.
Illich24 chama de “iatrogênese social o efeito social não desejado e danoso do impacto
social da medicina, mais do que sua ação direta”. Este autor enfatiza que
Outra forma de controle social exercido pela medicina é aquele promovido pelo
diagnóstico, conforme Illich, e resulta da medicalização de categorias sociais, o que ele chama
de etiquetagem iatrogênica das diferentes idades da vida humana. É importante repetir aqui o
que fala este autor.
24
Illich, Ivan. A Expropriação da Saúde. Nêmesis da Medicina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.
25
Idem.
26
Idem.
Mesmo com uma dose maior de tinta em sua descrição, Illich retrata o que se passa no
interior da medicina. A divisão técnica do trabalho médico, em múltiplas especialidades,
fragmenta de tal forma o ser humano que, de algum modo, a caricatura illichiana representa
muito bem a realidade. A necessidade, real ou aceita como tal, de se submeter à exames
obrigatórios em função de critérios aplicados em grupos etários certamente não atende à uma
necessidade concreta de tratamento. Um exemplo claro disso é o que se passa com os
chamados exames periódicos para trabalhadores de empresas públicas ou privadas. Disso não
resulta, na grande maioria das vezes, nenhuma orientação ou educação para a saúde, já que se
trata de atender a uma exigência de uma lei cujo efeito prático só favorece os chamados
“médicos do trabalho”. Cumpre-se a lei de uma forma burocrática e autoritária, pois a recusa
pode significar alguma sanção sobre quem não atendeu à convocação para o exame.
C – À GUISA DE CONCLUSÃO
A proposta deste trabalho foi tentar demonstrar que Foucault está presente na forma de
suas idéias, proposições e outras características marcantes de sua obra, nos processos
educacionais que definem a formação profissional no Brasil, aqui realçada a formação
médica. Esta educação assumiu a condição de adestramento na medida em que adotou como
relevante a inculcação de um saber técnico em detrimento de um saber que permite pensar,
pois através do pensamento é possível construir um novo e outro saber que realmente possa
ser libertador. Mais do que isso, o saber médico enquanto poder normatizador da vida em
sociedade, como foi visto em Boltanski, Costa, Donnangelo e outros autores, demarcam o
campo médico como um espaço de articulação de saberes dotados de uma ambigüidade clara,
pois os saberes da medicina, onde uma ideologia própria se impõe, ao mesmo tempo em que
domestica, também é domesticada.
Ao assumir a defesa dos interesses do capital, o médico, na maioria das vezes,
desconhece este seu papel, que chamo de “bóia-fria de multinacional”, pois cumpre a função
de ampliar a demanda pelo consumo de bens e serviços de eficácia duvidosa. Illich enfatiza
este papel quando afirma que no domínio da doença e da medicina existe um campo ilimitado
para a
Mesmo que não haja uma intenção, e ela existe na realidade, mesmo que dissimulada,
o médico segue a “cultura” da medicina através deste “imprinting” e passa a seguir os
modelos com os quais conviveu na academia. Dentre estes modelos de prática médica, quero
destacar a necessidade, criada durante a formação, de solicitar exames complementares
indiscriminadamente, supostamente baseados na ética, conforme afirmam os defensores desta
prática. Na realidade trata-se de um deslizamento semântico, pois ética exige um cuidado
absolutamente respeitoso, incluindo aqui o respeito pela autonomia do sujeito que adoece,
jamais de uma suposição que “poderia haver algum problema detectável pelo exame”. Para
exemplificar isto, vamos nos reportar a uma pesquisa apresentada por Kenzler 29 que aponta
que cerca de 85 % dos exames solicitados por médicos apresentaram resultados negativos,
significando que foram absolutamente desnecessários e que os recursos aplicados para
execução desses exames foram desperdiçados. Embora esta pesquisa seja de 2001, é
importante realçar que de lá para cá esta prática foi ampliada consideravelmente. Pesquisa
realizada pela UNIMED de Cuiabá, da qual pessoalmente participamos, demonstrou que 30 %
dos exames realizados permanecem nos laboratórios sem nunca serem recolhidos pelas
pessoas que se submeteram à ele. Ou seja, exames desnecessários.
27
Illich, Ivan. Obra citada.
28
Morin, Edgar. O Método 4. As Idéias – Hábitat, vida, costumes, organização. Porto Alegre: Sulina, 1998.
29
Kenzler, Wilhelm. A Medicina Doente. Super Interessante, São Paulo. n 5, p. 48-55, mai. 2001.
O que queremos demonstrar é que a normatização, o disciplinamento, o poder médico
sobre a sociedade continua cada vez mais presente e realça a presença de Michel Foucault e
suas teorias no cotidiano de nossa vida, especialmente no chamado setor saúde.