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caderno especial

Democracia
e governança financeira

Julho 2010 51
especial | Democracia e Governança financeira

O déficit democrático
nas instituições
multilaterais
Fernando J. Cardim de Carvalho
Economista, professor titular do Instituto de Economia da UFRJ e um dos coordenadores do projeto
Liberalização financeira e governança global: o papel dos organismos internacionais

Por muito tempo, o funcionamento dos mercados financeiros foi considerado uma ati-

vidade de pouco interesse para as organizações da sociedade civil. Para muitas pessoas,

esses mercados apenas serviam para redistribuir renda entre os grupos de renda mais

alta da população. Alguns ricos ficavam mais ricos, outros, consequentemente, menos,

mas acreditava-se que a sociedade como um todo não tinha por que devotar atenção a

esse jogo. O que interessava era o que acontecia com a economia real, com os setores

produtivos, com o emprego, entre outros.

A crise econômica dos últimos três anos mostrou a validade de uma esquecida

lição de grandes pensadores do capitalismo: nada é mais real em uma economia capi-

talista do que o dinheiro, os lucros e como eles são apropriados. O funcionamento do

sistema financeiro não é indiferente para o restante da sociedade. Por um lado, porque

o principal canal pelo qual as instituições financeiras ganham dinheiro é pela oferta de

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O déficit democrático nas instituições multilaterais

crédito, em suas muitas formas. Quando esse ção, nem consumo em economias capitalistas.
crédito é ofertado para os que produzem e ad- O produto despenca, o desemprego cresce, e
quirem bens, ele pode contribuir para acelerar a população, especialmente aqueles grupos de
o crescimento econômico e para conceder à renda mais baixa que não têm onde se apoiar na
população acesso aos bens que deseja - espe- hora de necessidade, paga o preço do aumento
cialmente aqueles de mais alto valor, como bens dramático de pobreza. Isso tudo acontece apesar
de consumo durável, automóveis e residências. da capacidade “real” de produção continuar
Ao contrário, quando esse crédito é dirigido a fundamentalmente a mesma. As fábricas conti-
outras instituições e agentes financeiros, como nuam de pé, as máquinas continuam existindo
aconteceu nos últimos anos nas economias mais - mesmo se paradas -, os trabalhadores que
avançadas, o resultado é sempre a construção poderiam estar utilizando-as continuam vivos,
de castelos de cartas, fadados, cedo ou tarde, mas em suas casas ou perambulando pelas ruas
ao desmoronamento. em busca de oportunidades de emprego. Os
A segunda razão pela qual o funciona- pensadores mais conhecidos que analisaram as
mento do sistema financeiro não pode ser indi- economias capitalistas continuam tendo razão:
ferente para a sociedade é porque quando esses nada é mais real em uma economia assim do
mercados se tornam disfuncionais, novamente que o dinheiro e as finanças.
como aconteceu nos últimos anos, eles acabam A globalização financeira é um processo
entrando em crise. E crises financeiras contagiam pelo qual os mercados financeiros de todo o
rapidamente o resto da economia. Instituições mundo tendem a se unificar. No seu limite, dei-
financeiras cujo capital esteja ameaçado ou te- xam de existir os mercados financeiros nacionais
nha diminuído por causa de perdas não fazem e passa a existir apenas um grande mercado,
empréstimos. Sem empréstimos, não há produ- o mercado mundial, no qual compradores e

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vendedores de ativos financeiros fazem suas Mundial também impuseram muitos controles
transações, sem que sua nacionalidade ou re- de capitais e os mantiveram em operação até
sidência faça qualquer diferença. Esse processo recentemente, na década de 1980. Grandes
se dá por vários canais. potências emergentes como a China e a Índia
Por um lado, instituições financeiras os mantêm até hoje.
nacionais se tornam multinacionais: bancos Na América Latina, o canto da sereia (ou
americanos se instalam ou se expandem nos o conto do vigário) do neoliberalismo levou a
mercados latino-americanos, europeus e asi- maioria dos países a remover essa forma de
áticos. Bancos europeus e asiáticos fazem o proteção. Argentina, Brasil (de Collor a Lula),
mesmo. Até mesmo casas bancárias latino- Chile, México, todos compraram a propaganda
americanas perseguem o mesmo objetivo, como de que mercados financeiros são eficientes e
é o caso dos grandes bancos não precisam de controles. No Brasil, ainda há
privados brasileiros e, mais poucas semanas, o Banco Central continuava a
recentemente, até mesmo tomar medidas para liquidar os últimos resquí-
Um resultado o Banco do Brasil. Esses
bancos captam recursos nos
cios dos controles (que, a bem da verdade, já
não eram aplicados, pela falta de vontade das

da globalização lugares onde se instalam e


usam esses recursos para
autoridades, há muito tempo).
Um resultado da globalização financei-
comprar ativos na própria ra é a perda de influência de governos locais
financeira é economia para onde vieram sobre variáveis estratégicas, como a oferta
ou, quando as leis assim de crédito e seu custo. Se governos almejam
a perda de permitem, em outras. acelerar o crescimento econômico por meio
O segundo canal de da redução de juros, terão de enfrentar a
influência de globalização resulta da des- possibilidade de fuga de capitais. Uma fuga
montagem dos controles de de capitais se dá, precisamente, quando os
governos locais capitais. Durante a maior
parte do século XX, pratica-
detentores de capitais julgam que podem
conseguir melhores ganhos em outro lugar.
sobre variáveis mente todas as economias
impunham controles sobre
Fugas de capitais podem resultar não apenas
de tentativas de redução de juros, mas tam-

estratégicas, a circulação de capitais, seja


de estrangeiros que querem
bém porque os detentores de riqueza podem
não concordar com a orientação política de
vir fazer aplicações no país, um dado governo, ou de medidas específicas,
como a oferta seja de residentes desse como a criação de impostos sobre fortunas
país que querem fazer suas e outras iniciativas similares. Governos são
de crédito e aplicações no exterior. Esses intimidados pela operação de mercados finan-
controles variavam desde ceiros e a simples ameaça de crise pode reduzir
seu custo a proibição de fazer certas muito as ambições de mudança, especialmente
operações (como jogar em aquelas que impliquem redução de privilégios
bolsas de outros países) até que os agentes financeiros vejam como direitos
a criação de barreiras, como adquiridos (sempre auxiliados, naturalmente,
a taxação desses investimen- por grupos de economistas prontos a escrever
tos de modo a torná-los menos atrativos aos trabalhos destinados a mostrar como o aten-
agentes privados. dimento desses interesses é bom para todos
A razão pela qual se aplicavam esses e para o país).
controles era a de que moeda estrangeira Crises financeiras marcam o funciona-
é um insumo precioso, especialmente para mento de economias capitalistas há mais de
economias que dependam de bens e serviços dois séculos. Nada há de surpreendente na
importados, e, por isso, seu uso tinha de ser sua ocorrência (exceto para os que realmente
administrado pelo governo. Países em desen- compram a ideia de que esses mercados são
volvimento apelaram em maior ou menor grau eficientes), embora sua violência, às vezes,
para esses controles durante seu processo de como agora, possa escapar dos padrões co-
industrialização (no Brasil, por exemplo, esses nhecidos. Na verdade, quando da ocorrência
controles datavam da década de 1930). Os da última crise financeira com impacto com-
países europeus que tiveram de reconstruir parável (pior sob alguns ângulos, melhor sob
suas economias depois da Segunda Guerra outros), a da década de 1930, a percepção de

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O déficit democrático nas instituições multilaterais

que essas atividades podem mesmo se tornar cidade de intervenção e contenção de crises
armas de destruição em massa – como George de governos foram corroídas, portanto, tanto
Soros usou a expressão para se referir a deri- domesticamente quanto internacionalmente,
vativos –, levou os países mais avançados, sob ainda que não inteiramente destruídas.
a liderança dos Estados Unidos do presidente
Franklin Roosevelt, a criar um grande conjunto
Déficit democrático
de instrumentos de controle do funcionamento
de mercados financeiros capazes de evitar novas No entanto, já desde a década de 1970 alguns
crises catastróficas, ou pelo menos amenizar os sinais de perigo começaram a ser visíveis. Em
seus impactos. meados daquela década, a quebra de um ou
Na era pré-globalização financeira, que outro banco nos Estados Unidos e na Europa
durou até os anos 1970 e 1980, o aparato de começavam a indicar que a globalização estava
regulação financeira criado pôde ser manejado criando um tipo novo de risco, gerado fora das
com eficácia e crises financeiras de vulto não fronteiras de um país.
voltaram a ocorrer por cerca de cinquenta anos. O primeiro desses sustos foi dado quando
As instituições criadas pelo governo Roosevelt um banco alemão, relativamente pequeno -
foram copiadas e adaptadas pela maioria dos pouco relevante em si, mas bastante integrado
países do mundo, desenvolvidos e em desen- no mercado financeiro mundial -, faliu por
volvimento. A competência na definição das causa de uma descoordenação entre seus ne-
regras (que, estrito senso, é o que se chama de gócios nos mercados japonês e americano. O
regulação financeira) e na sua implementação banco Herstatt captava em um país e aplicava
(atividade chamada de supervisão financeira, em outro e quando teve de interromper suas
exercida em muitos países pelo Banco Central) atividades acabou criando problemas na Ásia
ajudou a criar mercados financeiros mais ou e nos Estados Unidos além, naturalmente, na
menos sólidos, capazes de apoiar a atividade Europa. O resultado mais importante desse e de
produtiva sem criar riscos excessivos para a outros episódios ocorridos à mesma época foi a
sociedade como um todo. percepção de que, tendo instituições financeiras
Um economista americano que a crise operando em vários mercados nacionais, cada
atual tornou célebre, Hyman Minsky, adver- país acabava se expondo ao risco de ter de en-
tiu, há décadas, que a segurança pode gerar frentar uma crise gerada fora da jurisdição de seu
a complacência. Nas palavras que usava, a governo. Naturalmente, se um choque é gerado
estabilidade pode se tornar desestabilizante, por uma instituição financeira operando fora das
porque a experiência da ausência de crises fronteiras nacionais, o Estado não tem como
leva muitos a acreditar que crises são coisa do intervir para exigir que instituições estrangeiras
passado, já não são mais ameaças e, por isso, se comportem da maneira como gostaria.
não é necessário que os cuidados e precauções Desse modo, enraizou-se a crença de
tomados no passado continuem sendo aplica- que era necessário definir instâncias interna-
dos. Foi isso exatamente que caracterizou o cionais de regulação e supervisão financeira
que se tornou conhecido como desregulação para garantir que instituições operando em
financeira, processo que foi acelerado na era mercados sobre os quais um dado país não
Reagan/Thatcher. tem controle não venham a criar dificuldades
Fundamentalmente, o processo consis- para esse país. Foi nesse contexto que nasceu o
tiu na desmontagem de restrições à atividade Comitê da Basiléia para a Supervisão Bancária,
dos agentes e instituições financeiros, sob o ou Comitê da Basiléia, como é conhecido. O
pressuposto de que os mercados sabiam o comitê serve para que supervisores financeiros
que é melhor e dispensavam a intervenção nacionais possam discutir métodos e padrões
do governo, que críticos liberais sempre de regulação e supervisão comuns, de modo
caracterizam como pesada, desengonçada a garantir que um nível mínimo de seguran-
e poluída pela corrupção, o que consideram ça seja alcançado por todos, evitando com
monopólio estatal. isso que membros de comportamento mais
Ao mesmo tempo que as instituições duvidoso possam causar crises e prejuízos a
nacionais de proteção eram desmontadas, outros países.
dando mais liberdade (e poder) a mercados A iniciativa em si não foi uma má ideia,
financeiros, a globalização projetava processo especialmente se há a crença de que a globali-
semelhante para a economia mundial. A capa- zação veio para ficar - já houve outros períodos

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de globalização no passado, mas que foram Por outro lado, esperava-se que as
interrompidos por grandes crises. Se mercados orientações do Comitê fossem seguidas por
se tornaram maiores que governos, o que se todos os países que não quisessem ser conside-
buscava era criar uma espécie de “governo rados como párias pelos mercados financeiros,
internacional”, pelo menos na esfera da regu- fortalecidas pela adesão de instituições como o
lação financeira. Se os reguladores nacionais se FMI e o Banco Mundial, que as transformaram
articulam para perseguir políticas semelhantes, em paradigma de modernidade. Assim, as
os agentes privados não terão para onde fugir orientações eram decididas por um grupo de
e não poderão, assim, corroer o poder de in- reguladores de dez países e sua aplicação era
tervenção dos Estados. garantida por outras instituições que, como se
O problema dessa iniciativa foi que ela sabe, são mais representativas, mas nas quais
envolveu apenas os países mais desenvolvidos as vozes dos diversos países são ouvidas de
e, mesmo assim, nem todos. O Comitê da modo extremamente desigual.
Basiléia reunia supervisores financeiros do O Comitê da Basiléia exclui, o FMI e o
G10 (teoricamente os supervisores das sete Banco Mundial controlam o tempo de microfone.
maiores economias do mundo, mas que po- Esse é o chamado déficit democrático caracterís-
dia ter um pouco mais ou um pouco menos tico das instituições financeiras multilaterais. De
que dez membros realmente). Não foi criado fato, apenas a ONU, a organização internacional
como uma instância oficial, mas como um que menos influência tem sobre essas matérias,
clube informal de reguladores, um espaço dá voz e voto igual a cada país. Nas outras, ou
de, digamos, socialização, que lhes permitisse a voz não existe e voto ainda menos, ou a voz
conversar sobre problemas regulatórios. A existe, mas o voto dos mais fracos é repartido
natureza informal da associação serviu como por um grande número de países.
instrumento de exclusão, deixando de fora os Foi exatamente para denunciar e pro-
pouco mais de 170 países que não compõem por alternativas de governança para essas
o G10. Dentre esses pouco mais de 170 países instituições que o Ibase iniciou em 2006 um
incluía-se todo o mundo em desenvolvimento, projeto, patrocinado pela Ford Foundation, em
além de países da periferia do grupo de países Nova York, intitulado Liberalização financeira
chamados de “avançados”. e governança global: o papel dos organismos
A exclusão era justificada por razões internacionais. Esse projeto, co-coordenado
de eficiência: com poucos membros, o Comitê por Jan Kregel e pelo autor deste artigo, reúne
poderia analisar e examinar em profundidade cerca de quinze participantes de quase todos
as alternativas mais eficientes de regulação e os continentes, acadêmicos e militantes de or-
propor métodos que incorporassem as téc- ganizações de sociedade civil. Da sua atividade
nicas mais avançadas de supervisão. Nesse já resultaram quatro seminários de debate,
comitê nasceram as estratégias de regulação com a presença de representantes de outras
financeira conhecidas como Acordo da Basi- organizações da sociedade civil, e um número
léia de 1988 e, mais recentemente, o Basiléia significativo de textos e outros materiais sobre
II, de 2004. Além de um grande número de o tema, todos disponíveis no site <www.de-
orientações sobre todos os aspectos da re- mocraciaefinancas.org.br>.
gulação financeira, vista, claro, do ponto de Dentre os trabalhos realizados no âm-
vista liberal que dominou ideologicamente bito do projeto, selecionamos três textos, que
essa discussão nas últimas duas décadas, até ocupam as páginas seguintes. Cada um explora
a eclosão da crise. um ângulo particular e apresenta as conclusões
O argumento da superior eficiência per- a que chega cada autor individualmente. A
mitida pela exclusão de todos os países que não diversidade das posições apresentadas reflete a
fossem os mais ricos desmoronou rapidamente riqueza dos debates e do material acumulado
quando a crise começou. Na verdade, instâncias pelo projeto, podendo servir de instrumentos
de decisão como o Comitê da Basiléia apenas de capacitação de movimentos ou mesmo de
veicularam a mesma ideologia liberal que levou indivíduos que, percebendo a essencialidade
à desregulação e ao desmonte de controles assumida por mercados financeiros nas eco-
de capital que estão na raíz da crise que já se nomias modernas, se decida a participar dos
prolonga há três anos, e que se traduz, entre debates e pressionar por uma governança mais
outros, pelos 10% de desempregados da eco- democrática das instituições responsáveis pela
nomia norte-americana. ação regulatória.

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Finanças internacionais. É hora de radicalizar

Finanças internacionais
É hora de radicalizar
Bruno Jetin1
Economista do Centre d'Economie, Université de Paris Nord, França

Em 1998, durante a crise financeira no Leste Asiático, Paul Krugman publicou um famoso

artigo expressando a consternação dos que creem em uma economia de livre mercado:

“Salvando a Ásia: É hora de radicalizar”2.

Dez anos depois, uma nova crise financeira entrou em erupção, desta vez, no centro

do capitalismo, os Estados Unidos. De acordo com o The Economist, agora “o capitalismo

está acuado”.3 Uma janela de oportunidade se abriu novamente para os que apoiam a

reconstrução de uma nova ordem financeira. Os altermundialistas devem aproveitar o

momento para expor seus argumentos em favor de um sistema financeiro e monetário

radicalmente novo e centrado nas necessidades das pessoas.

Financiar uma economia capaz de fornecer empregos dignos, educação, saúde e 1Como membro do comitê
científico da Attac França, me
beneficiei de seus debates
habitação, respeitando a natureza e as culturas, deve ser a “raison d'etre” de um novo internos. No entanto, sou
o único responsável pelas
opiniões expressas neste
documento.
sistema financeiro, baseado na maior descentralização possível, pois é assim que o con-
2 Paul Krugman, “Saving
Asia: It’s time to get radical”,
trole democrático dos cidadãos pode ser melhor exercido. Fortune, Nova York, 7 de
setembro de 1998.

3 "The Economist", 18 a 24
[Traduzido por Mariana Dias] de outubro de 2008.

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Em âmbito nacional, o Banco Central Se concordarmos com esses objetivos e


e as autoridades financeiras e monetárias de- princípios, podemos imaginar um novo sistema
vem ser submetidos à autoridade política de financeiro, com as seguintes características.
parlamentos e governos. Representantes dos
sindicatos dos setores bancário e financeiro,
Âmbito nacional: um sistema
juntamente com representantes de organiza-
baseado em bancos públicos
ções da sociedade civil (OSCs), devem tornar-se
membros de conselhos executivos de bancos e O financiamento da economia deve se basear
do Banco Central. A total transparência seria em bancos e não em mercados financeiros. Os
baseada no princípio do livre acesso à contabili- mercados financeiros não estão preocupados
dade, possibilitando o controle democrático. em financiar investimentos produtivos – ainda
A cooperação internacional financeira e mais se esses projetos forem investimentos de
monetária entre países deve seguir os mesmos longo prazo com lucros incertos. Tampouco
princípios. Essa cooperação pode ser construída estão interessados em financiar investimentos
com o princípio da proximidade, para facilitar voltados para as necessidades das pessoas, a
o controle democrático – até porque pessoas não ser que sejam altamente rentáveis a curto
pertencentes a uma mesma área geográfica prazo, o que nunca acontece. E quando os
tendem a ter mais interesses em comum que po- mercados financeiros financiam ondas de ino-
dem ser satisfeitos por meio de cooperação. vações e ciclos de crescimento, isso se dá a um
O princípio da subsidiariedade significa custo muito alto.
que a cooperação internacional e as instituições A especulação infla bolhas seguidas por
que a tornam possível devem ser estabelecidas, estouros que desestabilizam as economias. A
primeiramente, em âmbito regional. Uma are- lição é clara: a maior parte do financiamen-
na democrática regional deve ser criada para to deve vir de bancos e não dos mercados
possibilitar o debate público sobre o que deve de ações. E mais: bancos podem ser mais
ser financiado e sobre como gerir democratica- facilmente controlados e organizados para
mente as instituições financeiras e monetárias financiar produção e serviços socialmente
regionais. Duas novas instituições regionais necessários do que mercados financeiros, cujo
seriam criadas: um banco de desenvolvimento grande número de investidores anônimos pode
para financiar a economia solidária, e uma fugir do controle e investir em qualquer coisa
instituição monetária, para administrar a co- que seja rentável, ainda que seja totalmente
operação monetária, e, possivelmente, uma inútil e poluente.
moeda regional. Como normalmente não existe Nacionalizar todo o setor bancário é a
parlamento regional4, os parlamentos nacionais única maneira de garantir que bancos retomem
dos países-membros exerceriam controle direto sua função básica: fornecer crédito à economia.
sobre essas instituições, juntamente com repre- Há muita confusão sobre a re-regulação do
sentantes de sindicatos e OSCs. setor bancário e financeiro hoje. Muitos dos
No âmbito mundial, duas novas institui- que antes culpavam o excesso de regulação,
ções financeiras, completamente democratiza- hoje estão pedindo uma regulação sensata e
das, seriam criadas sob a autoridade das Nações ética. Mas a ética desaparece assim que uma
Unidas. Um novo “banco de desenvolvimento nova bolha começa a crescer. A única maneira
mundial” e uma nova “instituição monetária de garantir que a regulação será respeitada é
mundial” poderiam substituir o Banco Mundial com o controle de todo o setor bancário, por
e o FMI. Se novas instituições mundiais deveriam meio de uma nacionalização completa.
ser criadas do zero ou se seriam o produto final A nacionalização do setor bancário não
de uma profunda reforma é uma questão em deve, porém, reproduzir os erros do passado.
aberto. Essas novas instituições seriam para a A governança democrática do setor bancário
resolução de problemas que não podem ser público deveria ser garantida pela eleição de
solucionados regionalmente, seja porque são conselhos executivos dos bancos, com membros
globais, ou porque as instituições regionais não do parlamento, representantes de sindicatos do
possuem recursos suficientes para resolvê-los. setor bancário e de OSCs dos setores popula-
Esse é o caso da África, onde a maioria dos pa- res que utilizam serviços bancários: pequenos
íses é tão pobre que a mutualização de seus re- produtores agrícolas e pequenas empresas,
cursos fiscais não seria suficiente para financiar trabalhadores autônomos e cooperativas e
4 Com exceção do Parlamento
Europeu. os investimentos necessários nas áreas sociais. clientes comuns.

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Finanças internacionais. É hora de radicalizar

Por que precisamos de mercados financeiros?

Não há nada que bancos não possam financiar. A história mostra que muitas inovações foram financiadas
por bancos. E bancos de investimentos especializados podem perfeitamente investir em novos serviços
e bens intangíveis se os riscos forem claramente assumidos.
Mais precisamente, a história mostra que países em desenvolvimento bem-sucedidos, como o Brasil
ou Coreia do Sul, para citar apenas dois exemplos, contam amplamente com bancos públicos para
financiar sua industrialização. Na Coreia do Sul, todo o setor bancário esteve, por vezes, sob controle
estatal. Vários países desenvolvidos, como a França, tinham até a década de 1990, e ainda têm, pode-
rosos bancos estatais que financiam capital e diversos setores de tecnologia, como a energia nuclear,
telecomunicações e indústrias de trens de alta velocidade, juntamente com o financiamento de habitação
social. Não há nenhum argumento definitivo em favor da superioridade dos mercados financeiros, mesmo
em fases posteriores de desenvolvimento. Economias, mesmo as capitalistas, podem perfeitamente viver
sem mercados financeiros.
Se os mercados financeiros fossem fechados, empresas privadas seriam completamente financiadas
por crédito e os gastos públicos seriam financiados por impostos progressivos e corporativos. A lógica é
que é socialmente mais justificável que o Estado seja financiado por impostos e não pela dívida pública.
Caixas de poupanças públicas recolheriam mais dinheiro para financiar gastos públicos, em troca de
uma taxa fixa de juros.
Se o mercado financeiro precisasse ser mantido, no caso de as receitas fiscais e poupanças não serem
suficientes para o total de gastos públicos, seria estritamente regulado. Derivativos5 de todos os tipos se-
riam proibidos e impostos sobre as transações garantiriam que investidores focassem no longo prazo.
Essas propostas podem parecer distantes da realidade, mas até pouco tempo atrás, a nacionalização
do sistema bancário também parecia. Os pacotes de resgate nos EUA e Europa - que de certa forma
“nacionalizaram” bancos privados - trouxeram o tema de volta às manchetes. Esses pacotes de resgate
provam que nacionalizar grandes bancos não é apenas possível: é também desejável.

Esses representantes da sociedade civil ser responsável por essas três metas – e não
garantiriam que os bancos não participassem de apenas pela inflação.
atividades especulativas ou outras aventuras dos • O Banco Central não deve ser independente.
chamados “produtos financeiros inovadores”. O papel e o poder do Banco Central são
Eles também garantiriam que empréstimos grandes demais para serem deixados nas
fossem oferecidos prioritariamente a projetos mãos de auto-proclamados “gestores in-
sociais e ecológicos, debatidos e incluídos em dependentes”, à margem de qualquer tipo
um planejamento democrático. de controle democrático.
Essa governança democrática do novo • A regulamentação dos bancos de desenvol-
sistema bancário nacionalizado seria complemen- vimento também deve ser revista, de modo a 5 Derivativo é um contrato no
qual se definem pagamentos
tada por outras medidas de democratização do incluir todos os aspectos do desenvolvimen- futuros baseados no
comportamento dos preços
Banco Central e outras autoridades públicas. to social: redução da pobreza e desigualda- de um ativo de mercado
• Audiências com o presidente do Banco de de renda, redução da desigualdade de (chamados commodities).
Pode-se dizer que derivativo é
Central no parlamento para que sua política gênero, da discriminação contra pessoas um contrato cujo valor deriva
de um outro ativo.
seja explicada e suas decisões justificadas. com deficiência, da desigualdade étnica,
Isso já existe em alguns países, como nos das desigualdades regionais e proteção do 6 Pleno emprego e
crescimento sustentável
EUA e na União Europeia. Representantes meio ambiente. não são contraditórios, mas
objetivos complementares.
de sindicatos e OSCs também poderiam Pleno emprego não
questionar a política do Banco Central. implica maior quantidade
Instituições e governança possível de produção com
• Audiências públicas com gerências de outros ônus ao meio ambiente.
financeira regionais Reduzir horas de trabalho
bancos públicos, especialmente com bancos por indivíduo permitiria
de desenvolvimento, devem ser organizadas A integração regional pode oferecer uma alter- compartilhar trabalho entre
todos os trabalhadores, sem
no parlamento com mecanismos que per- nativa à globalização neoliberal em comércio, necessariamente aumentar
demais a taxa de crescimento
mitam membros do parlamento e represen- investimentos, finanças, políticas monetária e do PIB e da destruição da
tantes do movimento social interrogá-los. cambial. Mas a integração regional não é pro- natureza, como acontece
na China. Nos países ricos,
• A regulamentação do Banco Central deve gressiva por si só. Um regionalismo com foco nas a taxa de crescimento zero
ou mesmo a diminuição do
incluir o pleno emprego e crescimento pessoas estabeleceria duas novas instituições: um PIB devem ser discutidas. A
sustentável6 como metas oficiais, além do novo tipo de banco de desenvolvimento regional produção de bens e serviços
é suficiente, mas distribuída
controle da inflação. O Banco Central deve e um novo fundo monetário regional. desigualmente.

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O mundo Um “Banco do Sul” interior do G-20. Do lado das OSCs, esse debate
latino-americano poderia ser- é obscurecido pela posição a ser adotada vis-à-
precisa de vir de modelo para a criação vis as instituições financeiras internacionais8 já
de outros na Ásia e África. existentes: devemos fechá-las ou reformá-las?
multilateralismo Um “Fundo Monetário do
Sul”, regional e totalmen-
Fechá-las abre o caminho para a constru-
ção de uma nova arquitetura financeira mundial,

para resolver te independente, poderia


ser financiado por reservas
com governabilidade democrática e um novo
mandato. Mas todo mundo sabe como isso é

problemas cambiais, swaps multilaterais


entre os países-membros e
difícil. Reformar as instituições existentes a partir
de dentro, para democratizá-las, mudar seus obje-
parte dos impostos sobre tivos e sua organização verticalizada pode parecer
globais, chegar transações financeiras regio- mais factível: é, na verdade, tão difícil quanto
nais. Um dos seus objetivos fechá-las, pois essas instituições são fortemente
a acordos seria administrar a criação controladas pelos países desenvolvidos, que não
de uma moeda regional, aceitarão ceder o poder sem discussão.
e organizar reduzindo a dependência em A origem da última crise financeira não
relação ao dólar americano. é financeira, mas social. Em muitos países de-
solidariedade senvolvidos e em desenvolvimento, os salários
estagnaram ou caíram, enquanto os lucros dis-
Novas instituições
pararam, com uma pequena parte deles sendo
financeiras globais
transformado em investimentos. Por essa razão,
Quatro medidas básicas po- a solução para a crise financeira não pode ser
deriam ser tomadas para puramente financeira. Melhorar a situação de
democratizar o FMI e o Banco trabalhadores e desempregados, reduzindo a
Mundial7: reforma do sistema de voto; reforma pobreza, é a melhor maneira de resolver a crise.
do processo de escolha do diretor geral; reforma É necessário um pacote de resgate social.
da formação de conselhos tomadores de decisão; As seguintes medidas sociais poderiam
e a mudança do local das Instituições Financeiras ser adotadas.
Internacionais (IFIs) para os países em desenvol- • Redistribuição de riqueza a favor de traba-
vimento, o que reforçaria o multilateralismo. lhadores. Particularmente importante em
O mundo precisa de multilateralismo países como o Brasil, onde as diferenças
7 Woods, Ngaire 2008. para resolver problemas globais, chegar a acor- sociais são extremas, mas também em países
8 FMI, Banco Mundial, OMC dos e organizar solidariedade. Há um debate ricos, onde a desigualdade de renda cresceu
e o Banco de Compensações
Internacionais (BIS). em curso sobre a reforma das IFIs, inclusive no nas últimas décadas.

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Finanças internacionais. É hora de radicalizar

• Os credores precisam manter uma exposição


clara dos empréstimos que fazem e assumir
pelo menos parte do risco.
• Securitização deve ser, na maioria dos ca-
sos, proibida. Fundos de hedge10 devem ser
abolidos.
• As agências de rating devem perder seu pa-
pel no quadro da regulação e uma agência
estatal deve ser criada.
• Empréstimos sobre hipotecas devem ser
abolidos, pois levam ao “sobre-endivida-
• Promoção do trabalho digno por meio da mento” das famílias.
redução de todas as formas de flexibilização Finalmente, para evitar a próxima crise, é
das normas trabalhistas, levando à diminui- necessário se livrar da dominância das finanças
ção da precarização dos direitos sociais e sobre a economia real. 9 É devidamente reconhecido
que algumas dessas propostas
da pobreza. • Tributação adequada dos acionistas para coincidem com as propostas
feitas em outros lugares,
• O aumento dos déficits orçamentários e das que não tenham incentivos para aumentar especialmente pela Attac-
dívidas públicas deve ser pago com aumento a exploração dos trabalhadores11. Europa. Ver “The time is
ripe: Democratic control over
dos impostos sobre a renda das famílias • Tributações de todos os tipos de transfe- financial markets!”. Attac
Europe: Berlin, 2008.
mais ricas e sobre o lucro das empresas. rências de capital, incluindo operações em
10 São fundos comuns de
Assim como pela tributação de todos os moeda, a fim de reduzir a hipertrofia do recursos privados que investem
lucros não investidos das empresas, o que setor financeiro e reduzir a velocidade da em instrumentos negociáveis
(títulos e derivativos),
aumentaria a receita fiscal do Estado para lógica do curto prazo (Attac 2008). que podem empregar
alavancagem por vários
financiar o pacote de resgate social ou leva- • Um fundo especial para crises deve ser meios, inclusive por posições
ria ao aumento da produção e, em seguida, criado a fim de amortecer as consequências a descoberto, e, geralmente,
não são regulamentados
do número de empregos. da crise na economia real. Seria alimentado (ver Crise financeira e déficit
democrático. Ibase, 2009,
Algumas outras propostas para a ques- por meio de um desconto extra de impostos p. 16. Disponível em
tão financeira9. sobre os rendimentos de capital acima de <www.democraciaefinancas.
org.br )>.
• Definição dos limites de alavancagem e 50 mil euros e um imposto de 1% extra em
11 Frederic Lordon, um
ampliação de sua abrangência para todo todos os lucros das empresas (Attac 2008). economista francês, propôs
Isso evitaria a socialização das perdas do um dispositivo especial de
tipo de fundos de investimentos, limitando tributação de acionistas
riscos e especulações. setor financeiro. O princípio “quem polui que ele chama de “Margem
limitada autorizada de
• Extensão da regulação bancária e da regu- paga” seria aplicado a todos os atores do acionista“ (SLAM). Para
setor financeiro. mais detalhes, veja: <www.
lação prudencial a todas as instituições que mondediplomatique.
fazem empréstimos. • Proibição de paraísos fiscais. fr/2007/02/LORDON/14458>.

• Os bancos centrais não devem refinanciar Apresentei aqui um breve sumário de 12 Para análises mais
compreensivas, veja: Jetin,
bancos indiscriminadamente, com as mesmas alguns princípios e medidas que podem ser Bruno. “Reconstruindo as
taxas de juros para todos os bancos comerciais considerados quando pensamos em um siste- finanças internacionais: É
hora de radicalizar“. Ibase,
e de investimentos, pois valida, a posteriori, ma financeiro e monetário radicalmente novo, Rio de Janeiro, 2008 (versão
integral). Jetin, Bruno."The
suas atividades especulativas e cria um risco democrático e centrado nas necessidades das Basel II accord and the
moral. Os bancos centrais devem refinanciar pessoas. Uma apresentação mais detalhada development of market-based
finance in Asia." Ibase, Rio de
bancos caso a caso, alocando montantes pré- pode ser encontrada em meus escritos ante- Janeiro, 2007a. Jetin, Bruno.
"The Basel II accord and the
definidos que, ultrapassados, implicariam em riores produzidos para a iniciativa Liberalização development of market-based
refinanciamentos com taxas de juros maiores. financeira e governança global: o papel das finance in Asia." 2007b.
Disponíveis em <www.
Isso ajudaria a evitar bolhas. entidades internacionais.12 democraciaefinancas.org.br>.

Julho 2010 61
especial | Democracia e Governança financeira

Finanças a serviço das


pessoas ou tornar o
cassino mais seguro
para os jogadores?1
Peter Wahl
Diretor da organização Weed (Economia Mundial, Ecologia e Desenvolvimento) sediada em Berlim,
fundador e membro da direção nacional da rede Attac Alemanha.

Esta é a mais séria crise financeira internacional desde a Segunda Guerra Mundial. O

foco da crise foi o centro do próprio sistema mais avançado e sofisticado do mundo. É

uma crise do tipo “salame”: seu conteúdo aparece fatia por fatia e seu final ainda não

se divisa no horizonte. Os EUA entraram em recessão e haverá uma redução clara do

crescimento global. Muitos países em desenvolvimento serão indiretamente atingidos

pela recessão nos EUA e pela diminuição da demanda e do crescimento global. Os países

mais pobres são afetados duplamente pela crise dos mercados financeiros e dos preços

dos alimentos.

1 Este artigo foi escrito


antes da crise do euro que
atingiu a Grécia e ameaça se
espalhar por outros países do
continente europeu. [Traduzido por Jones de Freitas]

62 Democracia Viva Nº 45
Finanças a serviço das pessoas ou tornar o cassino mais seguro para os jogadores?

Sob a pressão da crise, mesmo as corren- O volume, escopo e variedade dos


tes dominantes da comunidade financeira defen- negócios financeiros cresceram rapidamente.
dem algumas mudanças. O FMI, o Comitê de Por meio de arbitragens e especulação com
Estabilidade Financeira (FSB – Financial Stability moedas, títulos, diferenciais de taxas de juros
Board) e outros buscam caminhos para a estabi- etc., surgiram novas fontes de renda, que pro-
lidade sistêmica. Centenas de propostas, algumas duziam lucros maiores do que investimentos
muito controversas, estão sendo apresentadas na economia real.
e seus escopos e direções dependerão dos inte- Nesse sistema, que Keynes chamou de
resses que as moldarem. Os banqueiros pedem cassino, a busca do lucro máximo no menor
intervenção do Estado porque os mercados tempo possível torna-se cada vez mais a razão
falharam, mas o que visam é a socialização dos básica da atividade econômica. Outras metas,
prejuízos e a manutenção dos lucros em mãos como a competitividade a longo prazo, a inova-
privadas. Quando os gerentes de fundos pedem ção tecnológica e a geração de emprego ficam
estabilidade financeira, referem-se à estabilidade para trás. Como resultado, há um baixo inves-
de seus rendimentos e de seus bônus. timento estrutural na economia real, com suas
O papel da sociedade civil é não aceitar deletérias consequências para o crescimento,
esses termos para o debate. O fracasso do trabalho e bem-estar social.
modelo dominante nunca foi tão óbvio. Desa-
creditado, abre-se uma oportunidade histórica
para mudanças substanciais.

O que está em jogo?


A estabilidade sistêmica é uma questão im-
portante e a sociedade civil enfrenta o desafio
de apresentar propostas e avaliar criticamente
as propostas governamentais e privadas. En-
tretanto, elas precisam ser sistêmicas e não
tratar somente de elementos superficiais da
atual crise. Esta não resulta de circunstâncias
infelizes, nem pode ser reduzida a um fracasso
da supervisão das agências de classificação de
risco ou ao mau comportamento de bancos e
fundos de hedge.2 A crise tem raízes sistêmicas
A financeirização aumentando a
e, portanto, a estrutura e os mecanismos do
desigualdade
sistema estão em jogo. Nas finanças, o crescimento da renda e dos
Além dos riscos que afetam a estabilida- ativos é extraordinariamente dinâmico e tanto
de do atual sistema financeiro, outros aspectos maior quanto maior for a renda dos aplicadores.
devem ser colocados na pauta, como o domí- O “bolo” cresce e a fatia dos mais poderosos e
nio dos mercados financeiros sobre a economia ricos fica maior. Ao mesmo tempo, os salários
real e seus efeitos sobre a distribuição de renda reais estagnaram ou declinaram na maioria
e riqueza e a igualdade social. dos países.
A introdução do câmbio flutuante, o As políticas fiscais conservadoras tam-
fim dos controles de capitais e a liberalização bém têm contribuído para a concentração de
e desregulamentação dos mercados financei- renda. Com o objetivo de aumentar a atrativida-
ros levaram ao estabelecimento de um novo de de um país, os investidores e especuladores
modelo econômico, chamado por alguns de recebem vantagens fiscais e outros privilégios. 2 São fundos comuns de
capitalismo financeiro. Foi uma virada históri- Os mercados financeiros utilizam sua influência recursos privados que investem
em instrumentos negociáveis
ca, pois enquanto nas três primeiras décadas para diminuir os impostos diretos e aumen- (títulos e derivativos),
que podem empregar
que se seguiram à Segunda Guerra Mundial tar os indiretos (impostos sobre o consumo, alavancagem por vários
os mercados financeiros cumpriam um papel imposto sobre o valor agregado etc.), penali- meios, inclusive por posições
a descoberto, e, geralmente,
subordinado e instrumental em relação à eco- zando os mais pobres. Além disso, a dinâmica não são regulamentados
(ver Crise financeira e déficit
nomia real, após os anos 1980, as finanças dos mercados financeiros produz uma pressão democrático. Ibase, 2009,
passaram a ser o centro dominante das eco- permanente pela privatização dos sistemas de p. 16. Disponível em
<www.democraciaefinancas.
nomias avançadas. seguridade social e dos serviços públicos, o que org.br )>.

Julho 2010 63
especial | Democracia e Governança financeira

não somente cria uma tendência para que esses é papel da sociedade civil pensar unicamente
sistemas se tornem voláteis e instáveis, como em termos pragmáticos. É preciso ir além. A
também aprofunda a desigualdade social. própria apresentação de alternativas é uma
Os países em desenvolvimento e os gru- força política produtiva. A atual crise abre uma
pos sociais mais vulneráveis são especialmente oportunidade para a sociedade civil apresentar
atingidos. Estima-se que, no mundo em de- perspectivas de mudança amplas, profundas
senvolvimento, as perdas causadas pelas crises e de longo prazo.
dos últimos 25 anos alcancem um quarto do Ao mesmo tempo, é necessário desen-
Produto Nacional Bruto (PNB). Porém, mesmo volver propostas de acordo com estratégias de
quando não existe uma crise à vista e os merca- ação. É preciso estabelecer metas que possam
dos financeiros funcionam de forma adequada, ser atingidas no curto prazo, mas que tam-
a volatilidade dos mercados representa uma bém preparem o terreno para uma mudança
tensão econômica permanente e custos para os no equilíbrio de poder e para reformas de
países em desenvolvimento. As flutuações das maior alcance.
taxas de câmbio são responsáveis pela constante
volatilidade das receitas de comércio exterior e
Crise e estabilização de curto prazo
de serviço da dívida.
Necessitamos de mu- O FMI, o Comitê de Estabilidade Financeira e
danças substanciais de pa- alguns governos e bancos centrais adotaram
radigma: a meta não pode medidas como injeções de liquidez, exigências
A transparência ser tornar o cassino mais de transparência, aumento dos investimentos
seguro para os jogadores, e públicos e até mesmo a nacionalização como
é uma sim colocar as finanças a ser-
viço de uma economia que
forma de gestão da crise. Mas essas medidas
não enfrentam suas causas fundamentais.

precondição priorize a equidade social,


a estabilidade econômica e
Tanto por razões de justiça como para man-
ter a disciplina no mercado, aqueles que se

para qualquer o desenvolvimento humano


sustentável sobre a maximi-
beneficiaram do sistema no passado precisam
pagar a conta. Assim, o princípio de que o
zação dos lucros. especulador paga deve ser observado em
supervisão e termos estritos.
Cada país afetado pela crise deve criar
regulamentação Nova arquitetura
financeira
um fundo de emergência especial para prover
liquidez se o funcionamento do sistema estiver
eficientes A complexidade do atual em perigo; amortecer as consequências sobre
sistema financeiro exige a a economia real; e prover um fundo de emer-
articulação de vários ins- gência para os países pobres.
trumentos para a resolução A transparência é uma precondição
dos problemas, sendo, além para qualquer supervisão e regulamentação
disso, necessário diferenciar as medidas de curto, eficientes. Portanto países que se recusam a
médio e longo prazos e suas diferentes abran- suspender o sigilo bancário quando solicitados
gências e metas. Classificamos essas medidas pela instituição supervisora de outro país devem
em quatro níveis: medidas de gestão de crise e ser pressionados por tarifas extras e até por
de estabilização de curto prazo; soluções para embargo, se necessário. Operações financeiras
problemas de estabilidade de médio e longo não contabilizadas no balanço das instituições
prazos; superação da dinâmica da desigualdade financeiras tiveram um papel importante na
no sistema financeiro; e rompimento do domínio crise e devem ser imediatamente proibidas. Os
das finanças sobre a economia real. padrões contábeis devem ser reformulados,
Algumas das propostas serão mais fá- criando-se um sistema internacional que acabe
ceis de serem implementadas, pois convergem com as brechas legais.
para os interesses da comunidade financeira Todos os países devem ser autorizados
e/ou das pessoas que tomam as decisões e estimulados a usar controles de capitais para
políticas. Outras medidas só poderão ser im- evitar o contágio da crise. Exigências de capital
plementadas caso haja um deslocamento con- e práticas prudenciais no setor bancário devem
siderável do equilíbrio de poderes na direção ser reformuladas. Os requisitos de capital para
do desenvolvimento humano. No entanto, não os bancos e a divulgação da sua exposição

64 Democracia Viva Nº 45
Finanças a serviço das pessoas ou tornar o cassino mais seguro para os jogadores?

ao risco precisam ser melhorados. É também As taxas de câmbio flutuantes estão na


essencial separar os serviços bancários de inves- origem de muitos dos problemas do sistema
timentos dos demais serviços financeiros. Além financeiro. Elas produzem riscos e, portanto,
dessas, outras medidas devem ser tomadas tais acarretam custos para o comércio e abrem
como o fortalecimento da supervisão e impedir caminho para especulação e levam a um siste-
que fundos de hedge e outras instituições alta- ma volátil e instável. Assim, primeiro devemos
mente alavancadas especulem com alimentos considerar a estabilização das taxas de câmbio
e matérias-primas. e, a longo prazo, sua substituição por taxas fixas
Para combater a queda no crescimento ou a fusão de moedas, com o estabelecimento
e no emprego devem ser implementados pro- de moedas regionais como o euro.
gramas de investimentos públicos em infraes- Os problemas de administração do
trutura social e meio ambiente. Eles podem câmbio podem ser solucionados pela adoção
ser financiados de acordo com o princípio de de um imposto sobre transações cambiais em
que o especulador paga, isto é, taxando-se os dois níveis, vinculado a uma banda cambial
ganhos dos especuladores e das instituições variável. Enquanto a taxa de câmbio real ficar
financeiras. dentro da banda, o imposto será baixo. Tão
logo os limites sejam ultrapassados, uma se-
gunda alíquota de imposto, de valor proibitivo,
Estabilidade de médio e longo prazos
entra em vigor, trazendo a taxa de câmbio de
A cooperação política deve ser o principal volta à banda.
modo de regulação no lugar da “autocorreção Enquanto houver certos riscos globais
das forças do mercado”. É preciso estabelecer na economia real (como a volatilidade das
o controle democrático, assim como a coope- taxas de câmbio), os derivativos podem cum-
ração entre economias nacionais. No processo prir um papel positivo se servirem de seguro
de tomada de decisões econômicas, devem ser contra riscos. Com esse objetivo, devem ser
priorizados o desenvolvimento sustentável e os negociados nas bolsas de valores, padroniza-
direitos humanos. dos e autorizados pela autoridade supervisora.
Precisamos chegar a um acordo sobre Entretanto, as operações de balcão devem ser
um novo Bretton Woods, desenvolvendo um banidas. Nenhum ator sujeito à supervisão deve
marco institucional adequado, no âmbito da ter permissão para emitir e negociar produtos
ONU, e adaptado ao mundo de hoje. Um ele- fora desse marco.
mento importante de um novo acordo seria a Os fundos de hedge não trazem nenhum
descentralização e a subsidiariedade, ou seja, beneficio para a economia e precisam ficar sob
o FMI, o Banco Mundial e a OMC deveriam ser supervisão, sendo submetidos às mesmas exi-
complementados por fortes fundos regionais, gências de capital e outros requisitos a que os
bancos de desenvolvimento e acordos comer- bancos. Assim, a sua alavancagem será reduzida
ciais regionais. Os mandatos dessas instituições a um limite sustentável. A supervisão deve ser
devem ser redefinidos, passando a ser suas aplicada de acordo com os países onde operam,
prioridades máximas a redução da pobreza, a e não onde estão sediados legalmente – em
igualdade global e o bem-estar geral. geral, um centro extraterritorial (offshore).3 É
O Banco Mundial e o FMI devem ainda necessário impedir que bancos façam
ser democratizados por meio de sistemas negócios com os fundos de hedge.
de votação equilibrados. A sua governança A maior parte dos países emergentes se
deve estar baseada no interesse de todos desvinculou do FMI, pois puderam pagar suas
que são afetados por sua ação, incluindo dívidas com o Fundo. No entanto, para o grupo
a sociedade civil, consumidores, sindicatos, de países pobres altamente endividados (HIPCs,
indígenas etc. O BM, o FMI e a OMC devem na sigla em inglês) a crise da dívida não chegou
ficar sob o controle da ONU. Como inicial- ao fim. Um regime de dívida sustentável para
mente planejado, o Conselho Econômico e os países em desenvolvimento incluiria o can-
Social da ONU (Ecosoc, na sigla em inglês) celamento imediato e incondicional das dívidas
precisa ter o mesmo status que o Conselho externas insustentáveis dos HIPCs. 3 Provavelmente, isso será o
fim dos fundos de hedge, pois
de Segurança, mas sem o direito de veto das Deve-se estabelecer um regime de insol- todo o seu modelo de negócio
está baseado em escapar
grandes potências. A supervisão nacional e vência para devedores soberanos e novos países de regras e supervisão. Se
a cooperação internacional entre os órgãos credores, como a China e a Índia, devem ser in- forem tratados como bancos,
perderão sua vantagem
regulatórios devem ser fortalecidas. cluídos num regime de dívida multilateral. Este competitiva e interesse.

Julho 2010 65
especial | Democracia e Governança financeira

regime não deve mais ser determinado de forma A regulação dos fundos “private equity”,
unilateral pelos credores e seus interesses. se feita de forma adequada, dirigindo-os para o
Os paraísos fiscais e centros bancários financiamento de investimentos, pode aumen-
extraterritoriais (offshore) são um risco à esta- tar a eficiência da economia real e ser fonte de
bilidade: servem somente a indivíduos ricos e capital. As exigências de capital precisam ser
especuladores institucionais que desejam escon- aumentadas e a alavancagem limitada a um
der seus ativos das autoridades fiscais, máfia, nível sustentável. São necessárias reformas na
terroristas, traficantes de armas e outras forças governança corporativa e os sindicatos, consu-
criminosas que desejam lavar dinheiro. Por isso, midores e outras partes interessadas devem ter
a atual função econômica desses centros deve participação obrigatória nas decisões.
ser totalmente interrompida. Deve haver limites regulatórios para o en-
dividamento das famílias. Moradia para as cama-
das sociais com o menor poder de compra assim
Enfrentar a concentração de renda
como o acesso à propriedade residencial devem
A tributação progressiva da renda do capital é ser parte dos programas sociais governamentais.
um instrumento fundamental para a supera- Para que haja uma mudança real, a
ção da dinâmica da desigualdade no sistema orientação básica é ter como objetivo romper
financeiro. Enquanto os lucros com transações o domínio dos mercados financeiros sobre a
financeiras e as recompensas para banqueiros economia real. Muitas das medidas acima men-
e altos executivos forem muito maiores do cionadas contribuiriam para uma reorientação
que na economia real, haverá incentivo para das atividades econômicas como, por exemplo,
a especulação e riscos excessivos. Assim, os o imposto sobre transações com moedas, con-
incentivos para lucros excessivos (não lucros troles de capitais, regulamentação de taxas de
per se) precisam ser eliminados, tanto no caso câmbio, imposto de renda progressivo etc.
de indivíduos quanto de instituições. Para fechar as muitas brechas legais
A privatização dos sistemas sociais e que ainda permanecem, outros instrumentos
de infraestrutura importante, como energia poderiam ser utilizados. Alguns deles são a
e transporte, precisa parar e ser revertida. As tributação de todos os tipos de transferência de
questões sociais subjacentes a esses sistemas, capital (para reduzir a hipertrofia e o poder do
como envelhecimento da população, saúde, setor financeiro), diminuindo sua velocidade de
sociedade baseada no conhecimento, mobili- operação e visão de curto prazo; a criação de
dade, proteção do meio ambiente etc, são tão incentivos para que os bancos voltem a financiar
ligadas à própria existência que não podem ser as empresas; e fortalecer e privilegiar, por meio
deixadas à tirania comercial. Como envolvem de tributação, por exemplo, o setor público e
bens comuns, requerem gestão pública. cooperativo da indústria financeira.

66 Democracia Viva Nº 45
Reforma do FMI Pensamentos e reflexões de um militante em Washington

Reforma do FMI
Pensamentos e reflexões
de um militante em Washington
Rick Rowden1
Ativista, especialista em relações Norte-Sul e em instituições financeiras internacionais.

Nos últimos anos, várias tendências fizeram com que a disparidade de poder entre os países

na Diretoria Executiva do FMI ficasse cada vez mais fora de sincronia com a evolução das

normas contemporâneas. Primeiramente, embora o FMI tenha sido concebido para pro-

porcionar apoio de curto prazo para o equilíbrio de balanço de pagamentos – direcionado

a outros países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)

e não a países de baixa renda –, tal propósito se inverteu nas últimas décadas, criando

uma situação na qual os países ricos, com maior poder de decisão, não ficavam expostos

às condicionalidades exigidas dos países mais pobres e tomadores de empréstimos. Esse

desequilíbrio político nunca foi o propósito inicial ou intenção do Fundo, nem de sua

estrutura de governança original, e essa desigualdade de poder se tornou importante alvo

de críticas a sua legitimidade. Em segundo lugar, muitas economias emergentes e grandes

países de renda média já não tinham representação proporcional na Diretoria Executiva

do FMI compatível com o tamanho de suas economias, o que estimulou a demanda por

reformas na divisão de votos e cotas na Diretoria. Em terceiro lugar, a alteração de normas

e expectativas sobre representatividade, transparência e accountability2 das instituições

públicas nas últimas décadas tornou a estrutura de governança do FMI cada vez mais 1 Rick Rowden trabalhou em
Washington com ONGs de
incidência e foi analista sênior
para o escritório da Action Aid
fora de sintonia com os padrões contemporâneos, levando à demandas de modernização nos EUA. Trabalhou também
como consultor da UNCTAD
em Genebra. Atualmente,
da governança do FMI para a manutenção de sua legitimidade. está fazendo doutorado em
Economia na Índia.

Além disso, muitos insiders do FMI lamentaram a redução dos processos de toma- 2 Accountability é um
termo sem tradução exata,
que se refere à necessidade
de prestação de contas
da de decisões por consenso na última década. Embora a Diretoria Executiva continue por parte dos governos e
administrações. Usa-se, por
vezes, “responsabilização”, em
[Traduzido por Mariana Dias] tradução aproximada.

Julho 2010 67
especial | Democracia e Governança financeira

a tomar decisões baseadas em “consenso”, a diferença cada vez maior no âmbito da trans-
determinação desse consenso é feita pela Presi- parência entre países desenvolvidos e em desen-
dência, pelo diretor-geral ou diretor-adjunto. A volvimento, já que as economias industrializadas
decisão é tomada em um processo totalmente publicam mais documentos do que as nações em
fechado e sem accountability. A progressiva re- desenvolvimento. Em resposta às exigências de
dução na duração das discussões e a diminuição maior transparência, governos dos países desen-
da ênfase em decisões consensuais e construção volvidos acusaram países em desenvolvimento de
de compromissos fizeram com que os países serem os obstáculos à transparência.
em desenvolvimento se sentissem ainda mais A preocupação com a falta de transpa-
alienados da instituição. rência do FMI e sua instituição parceira, o Banco
Os membros do Fundo vêm debatendo Mundial, levou à formação da Iniciativa Global
como renovar a fórmula que define os direitos pela Transparência (GTI, na sigla em inglês), que
de voto dentro da instituição. Após mais de dois procura romper o segredo que cerca as opera-
anos de negociação para a reorganização das ções das instituições financeiras internacionais.
fórmulas utilizadas para calcular votos básicos Como uma ferramenta para alcançar esse obje-
e a divisão de cotas entre membros, algumas tivo, foi esboçada uma Carta de Transparência,
mudanças foram feitas. Mas os países ricos, um documento que descreve nove princípios que
que representam cerca de 15% dos membros devem reger o acesso à informação de institui-
do FMI, continuaram a exercer quase 60% dos ções financeiras internacionais (IFIs)4.
direitos de voto na instituição3. Os documentos que detalham os progra-
O processo oficial de reforma da governan- mas de empréstimo do FMI para países de média
ça do FMI até agora incluiu somente negociações e baixa renda contêm mudanças extremamente
sobre a proporção de direito de voto entre seus controversas de política econômica e que, muitas
membros. Mas para que qualquer mudança real vezes, são condicionalidades para acesso a crédito.
sobre o controle do poder ocorra, uma série de Entre essas condicionalidades estão a liberalização
outras questões deve ser abordada, incluindo o comercial, privatizações, liberalização das contas
aumento da transparência nos processos de de- de capital e bancário, bem como metas de políticas
cisão e nos documentos oficiais. A publicação dos fiscal e monetária que podem restringir, e muito, as
votos para todas as decisões da diretoria é vital. taxas de crescimento, o tamanho de orçamentos
Espaços de participação envolvendo todas as par- e salários de funcionários públicos. No entanto,
tes interessadas precisam ser criados, assim como apesar de sua importância, as informações con-
métodos para aumentar a capacidade dos países tidas no documento são pouco compreendidas
em desenvolvimento se pronunciarem a uma só pela sociedade civil globalmente.
voz bem como de realizarem ações coletivas. Apesar do progresso recente em matéria
O processo oficial de reforma da gover- de transparência, o FMI, infelizmente, regrediu
nança do FMI continua aquém do necessário em um dos princípios mais importantes da Carta
para aumentar a legitimidade da instituição. de Transparência: a divulgação automática. A
Existe um acordo tácito oficial de que o tamanho primeira política de publicação do FMI, criada
de uma economia e seu peso na economia global em 2001, continha intenção de divulgação para
3 Nota da editora: na reunião
anual de primavera entre são as medidas que contam no FMI. As ideias de quatro tipos de documentos, incluindo as Cartas
o Banco Mundial e o FMI, um país/um voto, de maiorias duplas, que con- de Intenções e Memorandos de Políticas Econô-
em 25 de abril de 2010,
foi decidido o aumento no siderem o peso da população, ou de algum tipo micas e Financeiras. No entanto, em 2003, o FMI
direito de voto de alguns
países em desenvolvimento, de “ação afirmativa”, visando aumentar o poder reviu essa política e passou a requerer permissão
tais como Brasil, Índia e dos países mais pobres, não estão colocados para por escrito das autoridades de cada país antes
China. Sendo que a China
teve o aumento mais discussão. Dada essa situação, pode-se esperar de publicar um documento. Tal fato constitui, na
significativo, quase dobrando
sua participação anterior – de que a influência de algumas das principais eco- verdade, a intenção de não divulgação. A nova
2,77% para 4,42%. Com nomias emergentes seja relativamente fortaleci- definição permanece em vigor.
essa mudança, os países em
desenvolvimento passaram a da. Mas, apesar disso, nenhuma democratização
deter 47% dos votos.
significativa da estrutura de poder no FMI parece
4 V. “Transparency at Limites das reformas de políticas
IMF: guide for civil society
provável em um futuro próximo.
on getting access to A mais nova versão da política de divulgação de A única reforma importante de política ocorrida
information from IMF”,
Global Transparency informações do FMI demonstra a tendência de nesses anos de neoliberalismo foi o cancelamento
Initiative, 2007. <http:www.
brettonwoodsproject.org/
aumento de transparência. Hoje, os documentos de dívidas bilaterais com os países doadores do
art-557777>. são publicados em maior quantidade do que Norte, concedido pela Iniciativa dos Países Pobres
5 HIPCs, sigla em inglês. em qualquer outro momento. Há também uma Altamente Endividados (HIPCs5), e, em seguida,

68 Democracia Viva Nº 45
Reforma do FMI Pensamentos e reflexões de um militante em Washington

pela Iniciativa de Alívio da Dívida Multilateral civil que continuam participando. Se políticas de
(MDRI). Apesar de pouquíssimas nações terem se ajuste estrutural e alternativas possíveis não podem
beneficiado desses acordos, tais transformações ser discutidas nas consultas realizadas por governos
representam as mudanças mais significativas nas no âmbito do PRSP, as organizações da sociedade
políticas do FMI nos últimos anos. É essencial notar civil deveriam avaliar se a participação em outro
que foram fruto da pressão política interna e exter- tipo de consulta pública, liderada pela sociedade
na sobre os governos do G7 que dominam a dire- civil, constituiria uma estratégia mais útil na defesa
toria do FMI e do Clube de Paris, assim como sobre de políticas alternativas de desenvolvimento e na
os doadores de recursos para a ajuda oficial. mobilização de apoio político interno.
Além da anulação das dívidas, houve
oportunidades para avançar em outras frentes
Dominância da ideologia
de transformação política, mas não foram leva-
neoliberal e monetarista
das adiante. Por exemplo, no que se refere às
conservadoras políticas fiscal e monetária do É provável que a principal restrição de mudança
Fundo, quase nada foi alcançado. Embora, em das políticas do FMI seja o domínio do neolibe-
anos mais recentes, possa ter havido acordo de ralismo em muitas áreas de influência. Como
liberação de países devedores para empregar po- Susan George bem explicou, os neoliberais
líticas fiscal e monetária mais expansivas, a fim de passaram grande parte da década de 1970
capacitá-los a absorver mais ajuda estrangeira e investindo em instituições e estabelecendo as
aumentar gastos públicos para alcançar as metas bases ideológicas para a rápida decolagem de
do milênio – pelo menos em termos de gastos suas ideias com a ascensão dos regimes Reagan/
sociais –, os últimos anos foram caracterizados Thatcher, no começo dos anos 19807.
pelas mesmas políticas restritivas, com foco único Nos 30 anos seguintes, essas ideias foram
na estabilidade macroeconômica. totalmente incorporadas às estruturas de pensa-
O The New York Times resumiu correta- mento dominante, de ministérios a “think tanks” e
mente em editorial a desconexão atual das polí- à mídia corporativa, para não mencionar editoras
ticas dos países doadores: “Há a necessidade de- e departamentos universitários que ensinaram a
sesperada por uma política de maior coerência em duas ou três gerações de estudantes de Economia
um período em que muitos governos nacionais, o pensamento pura e exclusivamente neoliberal.
incluindo o de Washington, estimulam governos Assim como ilustra o excelente trabalho de Ha-
africanos a gastar mais em saúde e educação, ao Joon Chang, as ideias neoliberais que, quando
mesmo tempo em que as instituições financeiras introduzidas nos anos 1980, eram vistas como um
internacionais, em grande parte controladas por conjunto conservador de opções políticas, entre
esses mesmos governos ocidentais, têm pressio- uma série de outras escolhas, posteriormente pas-
nado os países africanos a encolher suas folhas de saram a ser entendidas como o único conjunto de 6 Documentos de
planejamento que os países
pagamento, inclusive o pagamento de professores opções políticas disponível para “policy makers”. de baixa renda e altamente
endividados apresentam ao
e profissionais de saúde.” As referências a políticas heterodoxas, tais como FMI e ao Banco Mundial,
O processo de produção de Documentos barreiras alfandegárias, políticas industriais ou nos quais se comprometem
a reduzir a pobreza,
de Estratégia para a Redução da Pobreza6 (PRSP, políticas fiscais e monetárias expansionistas, foram descrevendo as políticas
macroeconômicas e sociais
em inglês) foi iniciado. Nesse processo, “ouvir os totalmente retiradas do currículo dominante dos a serem desenvolvidas
pobres”, “aumentar a participação da comunida- departamentos universitários de Economia e das durante um período. A
partir da apresentação
de" e “comprometer-se com a redução da pobre- editoras de livros universitários8. desse documento, o país
em questão pode pedir o
za” nos países mais pobres do mundo estão entre A Action Aid apresentou à diretora-exe- abatimento de sua dívida
os mantras repetidos por altos líderes do Banco cutiva americana do FMI, Meg Lundsager, cópias perante o Banco Mundial,
o FMI e demais países
Mundial e do FMI. Faz parte da composição da impressas de cerca de uma dúzia de artigos exis- doadores, tendo acesso a
novos créditos, empréstimos
“carinha feliz” que as instituições financeiras glo- tentes na literatura econômica acadêmica sobre a e recursos a fundo perdido.
bais esperavam poder pintar em seus próprios ros- localização do nó na relação crescimento-inflação. O PRSP deve, em tese, ser
construído com a participação
tos, já que muitas organizações da sociedade civil Tais artigos mostram que há pouca evidência da sociedade civil (N.E.).
haviam rejeitado completamente os programas de empírica para justificar a manutenção de níveis 7 “How to win the war
of ideas: lessons from the
reajuste estrutural e as outras reformas de política de inflação tão baixos quanto os que o FMI vêm gramscian right,” por Susan
econômica que acompanham as condições de determinando há mais de 25 anos. No entanto, George. Dissent Magazine.
Verão 1997. <http://plec.
empréstimos para o desenvolvimento. ela, literalmente, empurrou a pilha de papéis para blogspot.com/Dissent%20
-%20Gramscian%20right>.
No entanto, esse processo não foi bem o lado e disse: “Eu não me importo com o que
sucedido até o momento, o que levanta uma dis- está na literatura. Os Estados Unidos simplesmente 8 “Kicking away the ladder,”
by Ha-Joon Chang. London:
cussão essencial para as organizações da sociedade acreditam que a inflação deve ser baixa!” Anthem Press, 2002.

Julho 2010 69
especial | Democracia e Governança financeira

O domínio do neoliberalismo nos fóruns 2008, um funcionário da Action Aid pediu a um


e espaços públicos de discussão e negociação representante do FMI para definir o que o Fundo
significa que o modelo econômico em si não é entende por “desenvolvimento econômico”. Este
sequer questionado, e que suas falhas não são incluiria mais empregos, diversificação econômica,
mencionadas. Tal fato apresenta restrições às mais empresas nacionais? O funcionário do FMI
mudanças políticas do FMI. Sem alternativas a disse que “não iria responder a essa pergunta”.
maior liberalização comercial, privatização e des- O problema é que praticamente nenhuma
regulamentação, o que resta à “ajuda oficial inter- dessas organizações sequer pensa sobre o FMI e
nacional” é polvilhar um pouco mais de dinheiro muito menos sobre suas políticas. Isso representa
para saúde, educação, agroexportação e, talvez, grande obstáculo no sentido de mudar as políticas
microcrédito. E, assim, pressupõe-se acriticamente do FMI ou propor algum tipo de reforma.
que tudo isso constitui “desenvolvimento”. A maioria dessas organizações não in-
vestiu adequadamente em treinamentos básicos
de “alfabetização econômica” e, assim, não têm
Desafios às organizações da
conhecimento de conceitos básicos de teoria do
sociedade civil
comércio, nem de política fiscal e monetária.
Devemos reconhecer que a maioria dos grupos Esse é um problema de extrema importância:
da sociedade civil também não faz perguntas crí- o excesso de especialização de muitas OSCs
ticas nos fóruns internacionais sobre o que deve em assuntos específicos, como meio ambiente,
constituir o “desenvolvimento econômico”. direitos humanos, direitos trabalhistas, questões
De muitas maneiras, as principais orga- relativas à água, educação e saúde etc, tem
nizações de desenvolvimento foram seduzidas contribuído para esse fenômeno.
durante os últimos 10 anos pelo discurso da O fato de que muitas tiveram grande
“redução da pobreza” e, agora, podem ter difi- sucesso ao estabelecer ligações com instituições
culdade de distinguir “ajuda externa”, “redução internacionais que compartilham das mesmas
da pobreza” e “desenvolvimento”. Muitas, mas opiniões e que estão lutando por essas questões
não todas, foram carregadas para uma espécie em fóruns regionais ou internacionais é digno de
de “gueto da redução da pobreza", onde estão nota. Mas o fato de que, simultaneamente, es-
presas. “Desenvolvimento” como conceito se con- queceram de investir em “alfabetização econômi-
funde com auxílio à saúde e à educação, esforços ca” ou de analisar o modelo de desenvolvimento
para microfinanças e ajuda de emergência para se- dominante e seus fracassos é desanimador.
cas e inundações, com centenas de organizações Além disso, muitas organizações tam-
da sociedade civil (OSCs) contratadas à disposição. bém sofrem as consequências do domínio do
Nos Estados Unidos, isso se manifesta ao longo neoliberalismo durante os últimos 30 anos
do processo para a aprovação do Foreign Aid Bill em que liberalização comercial, privatização
(que regulamenta os recursos para ajuda a países e desregulamentação são as únicas políticas
estrangeiros) no Congresso, e a mobilização para conhecidas. Simplesmente não sabem da exis-
que seja aprovado. tência de alternativas.
Nesse contexto, os termos “redução da Atualmente, articulações da sociedade
pobreza”, “desenvolvimento” e “ajuda externa” civil norte-americana estão tentando aproveitar
são utilizados alternadamente e se tornaram a crise no sistema financeiro para pressionar
indistinguíveis no discurso popular, praticamente por uma mudança política real no FMI e pelo
sem qualquer pensamento analítico crítico. O o fim de suas políticas nocivas à promoção dos
mesmo se desdobra em muitas OSCs com sede direitos humanos e da justiça social.
em Washington, em “think tanks”, entre membros O desenrolar da crise financeira global
do Congresso Nacional e ex-embaixadores etc, e de seus impactos sobre a economia real – em
que gostariam de criar um novo Departamento particular a importante perda de empregos e
de Desenvolvimento Global, que ultrapassaria a precarização das condições de trabalho e de
a Usaid9 e elevaria seu novo formato ao nível moradia de um número significativo de pessoas –
de ministério. Assim, mais uma vez, os termos tornou clara a necessidade de cidadãos e cidadãs
“redução da pobreza”, “desenvolvimento” e se engajarem na luta por outra regulação do sis-
“ajuda externa” seriam utilizados alternadamente tema financeiro global. Dessa forma, poderemos
9 Agência Americana e tornar-se-iam sinônimos. atuar no sentido da superação do atual “déficit
para o Desenvolvimento Em uma reunião de OSCs, durante en- democrático” e levar o foco para onde deve estar:
Internacional, na sigla em
inglês (N.R.) contros do FMI e Banco Mundial, em abril de nas condições de vida dos cidadãos.

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