Longe de qualquer forma de determinismo, muito especialmente
econômico, a história que precisa ser (re)lembrada é a de que no Estado Moderno a instituição do capitalismo como modo de produção central e determinante de uma estrutura social dividida basicamente em duas classes deu ao cárcere (até então entendido como uma mera sala de espera de torturas e suplícios) um novo significado Surgindo, a partir daí, as primeiras instituições destinadas à reclusão dos pobres.
A prisão passa a ser a proposta para o controle das classes marginais.
Independentemente das camadas da população às quais pode ser aplicada (pobres, vagabundos, prostitutas,criminosos), sua utilidade consiste no fato de que agora o corpo é valorizado por encerrar uma potencialidade produtiva, e os sistemas de controle têm início concentrando-se nas atitudes, na moralidade, na alma dos indivíduos. (DE GIORGI, 2006, p. 41)
Como afirmam Rusch e Kirchheimer (2004) os diferentes sistemas
penais e suas variações estão intimamente relacionados às fases do desenvolvimento econômico. E é com a constituição do Estado Moderno que o cárcere se torna a materialização de um modelo ideal de sociedade capitalista industrial, um modelo que se consolida através de um processo de “desconstrução” e “reconstrução” contínua dos indivíduos no interior da instituição penitenciária. O pobre se torna criminoso, o criminoso se torna prisioneiro e, enfim, o prisioneiro se transforma em proletário. (DE GIORGI, 2006, p. 44/45)
Séculos se passaram e os pobres, vagabundos, prostitutas e
pequenos criminosos continuam sendo o alvo central, senão único, do sistema punitivo encarcerador consubstanciado em um programa político-ideológico que encontra sentido atualmente nos termos underclass e inimigo. Underclass como a síntese de um pensamento segundo o qual os pobres são responsáveis pelos males da degeneração social. E, inimigo como aquele que deve responder penalmente pelo que é e não pelo ato que tenha praticado. Em qualquer hipótese, na concepção aqui adotada de algum modo underclass e inimigo são os indivíduos descartáveis e descartados pelo sistema produtivo a necessidade de diminuição (ou, se possível, extinção) de políticas sociais de amparo aos pobres, aos quais a única ação estatal possível seria a criminal.
Desde os anos 80 do século XX, na acepção que lhe cunhou Charles
Murray (mentor intelectual da tolerância zero), a palavra underclass serve para identificar as legiões de pobres que beneficiários de programas sociais seriam avessos ao trabalho e, por tal motivo, responsáveis pela ruína social e devastação moral tanto das metrópoles norte-americanas, quanto de cidades européias O despontar da chamada tolerância zero cuja prática implica coibir delitos menores (tais como a embriaguez, jogatina, mendicância, atentados aos costumes, ameaças) e outros comportamentos anti- sociais associados aos sem-teto tem objetivos ideológicos ainda maiores do simplesmente tratar os pobres como uma underclass. No mundo acadêmico a tese justificadora e legitimadora de um “direito penal do inimigo” deve-se a Günther Jakobs (2008) para quem os inimigos são os criminosos econômicos, terroristas, delinqüentes organizados, autores de delitos sexuais e outras infrações penais perigosas. Ou seja, o inimigo é quem se afasta de modo permanente do Direito e não oferece garantias cognitivas de que vai continuar fiel à norma. Este inimigo para Jakobs (2008) não é pessoa e contra ele, portanto, não se justifica um procedimento penal (legal), mas, sim, um procedimento de guerra. Afinal, alguém que não oferece segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, não deve esperar ser tratado como pessoa A presença massiva de pobres e marginalizados nas cadeias gera a construção de mais presídios privados, mais renda para seus exploradores, movimenta a economia, dá empregos, estabiliza o índice de desempregado etc. Os pobres e marginalizados finalmente passaram a cumprir uma função econômica: a presença deles na cadeia gera dinheiro, gera emprego etc. Como o sistema penal funciona seletivamente (teoria do labelling approach), consegue-se facilmente alimentar os cárceres com esse “exército” de excluídos. Em lugar de ficarem jogados pelas calçadas e ruas, economicamente, tornou-se útil o encarceramento deles. Com isso também se alcança o efeito colateral de se suavizar a feiúra das cidades latino-americanas, cujo ambiente arquitetônico urbanístico está repleto de esfarrapados e maltrapilhos. Atenua-se o mal-estar que eles “causam” e transmite- se a sensação de “limpeza” e de “segurança”. O movimento “tolerância zero” (que significa tolerância zero contra os marginalizados, pobres etc.) é manifestação fidedigna desse sistema penal seletivo. Optou claramente pelos pobres, eliminando-lhes a liberdade de locomoção. Quem antes não tinha (mesmo) lugar para ir, agora já sabe o seu destino: o cárcere. Pelo menos agora os pobres cumprem uma função socioeconômica! Finalmente (a elite políticoeconômica) descobriu uma função para eles. (GOMES, 2005)
O processo de implementação de um Estado penal para responder às
desordens suscitadas pela desregulamentação da economia, pela dessocialização do trabalho assalariado e pela pauperização relativa e absoluta de amplos contingentes do proletariado urbano, aumentando os meios, a amplitude e a intensidade da intervenção do aparelho policial e judiciário, equivale a (r)estabelecer uma verdadeira ditadura sobre os pobres. (WACQUANT, 2001, p. 10) iMxkVwfvsY