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IMAGEM- ACONTECIMENTO

Rosângela Miranda Cherem-CEART/UDESC

O presente artigo considera cinco questões para pensar uma história e teoria da
arte, distanciando-se quer das abordagens que adentram a obra pelas compleições de
estilo e descrições meramente técnicas ou formalistas, quer das que privilegiam seus
contornos contextuais ou biográficos. Sob a forma de pequenos ensaios, arma-se uma
espécie de topologia teórico-conceitual para abordar a obra de arte como um território
constituído tanto por probabilidades ou plausibilidades visibilizadas sob certas
circunstâncias datadas e contingências geográficas; como por possibilidades e afetos
explicativos, ou seja, que ultrapassam os contornos do varal cronológico e fazem aparecer
aquilo que insiste e persiste, tornando-se abertura para infinitas combinações e
desdobramentos. Neste campo de confluências, a obra de arte não é apreendida nem como
objeto ou sujeito, nem como matéria ou conceito, mas como um acontecimento, cujas
injunções irresolutas não cessam de rebater e retornar, lançando-a para além do tempo-
espaço em que foi gerada.

1- O CATÁLOGO DE BUFFON E O CALEIDOSCÓPIO DE BENJAMIN OU A


IMAGEM COMO CINTILAÇÃO. Como pensar a obra de arte fora dos centros considerados
recorrentemente como palcos produtores e disseminadores de cânones e tendências ou
como pensar a obra de arte fora das abordagens cujas referências são dadas pelo
catálogo? Como reincidir o que se encontra em condição periférica e pouco qualificada sem
cair na visada monótona e exaustiva das abordagens já feitas? Como armar uma relação
entre os artistas e suas obras sem tornar ambas as instâncias meros equivalentes, evitando
tanto a lógica da salvação pela exaltação do injustamente esquecido como o veredito do
merecidamente ignorado? Considere-se os escritos do Conde de Buffon (1707-1788) em
Histoire Naturelle de l’homme1, onde foram apresentadas as distinções entre a Europa e o
Novo Mundo. Interessado em apreender a verdadeira natureza humana à luz da biologia,
este filósofo contemporâneo das ambições enciclopedistas dividiu a espécie humana em
quatro raças distintas: europeus, chineses, negros e americanos. Comparando as demais
com a primeira, formulou os fundamentos da superioridade do civilizado e de seu
empreendimento, justificando a primazia do colonizador. Sendo a referência dada pelo

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conhecido e familiar, tudo aquilo que escapasse deste domínio ou parâmetro tendia à
desqualificação e inferiorização.
Nesta sorte de enquadramento catalográfico, onde se afirmam as molduras
classificatórias e a hierarquização do mundo, importantes fundamentos da epistémê
moderna eram definidos e confirmados, embora suas bases heteróclitas se mantivessem
preservadas numa enorme zona de sombra ou ponto cego. Assim, por exemplo, o
aristocrático iluminista observou que na América o clima era mais úmido e por isso seus
habitantes não possuiam cabelo crespo e nem barba, sendo que pela mesma razão
climática eram também mais indolentes e fabricantes de artefatos inferiores aos europeus.
A atmosfera imperfeita e mais imatura igualmente seria responsável por fazer os europeus
degenerarem mais rapidamente neste continente. Em outras palavras, fora do campo
conhecido, legitimado e instituído restava a incompletude e a falta, sendo a alteridade
concebida como uma dessemelhança que deveria caminhar para uma equivalência em
relação ao modelo ou estágio considerado mais perfeito e acabado, incontestavelmente
superior.
Ocorre que a problemática ensejada por Buffon, permite estabelecer algumas
comparações em relação a certos perigos a que se expõe o estudioso dos fenômenos
artísticos. De um lado espreita a desqualificação do que escapa aos ordenamentos ou
padrões definidos por certos circuitos legitimados e instituídos; por outro lado incide a
postura defensiva no sentido da reparação do valioso ignorado ou do injustamente
esquecido com vistas à ampliação ou reinserção no catálogo, sendo que ambas as
posições freqüentemente oscilam entre a homogeneização e a singularização extremada.
Aspecto que tanto assume a constatação da inferioridade de um ponto em relação a outro,
como se parece empreender um esforço de ressarcimento da verdade histórica.
Desdobramento da sistemática catalogadora em relação à obra de arte, em particular
contraponto e desafio à disciplina da história da arte, Walter Benjamin aborda as
sensibilidades e percepções óticas na modernidade em suas variedades e combinações.
A este respeito, Didi-Huberman2 lembra que o teórico alemão não apenas tinha
conhecimento do objeto inventado em 1817 por Alphonse Giroux, como recorreu ao
caleidoscópio como um modelo teórico. Assim como no tubo de imagem polido ficavam
guardados pedaços desfiados de tecido, pequenas conchas, plumas, poeiras e cacos de
vidro, a passagem do século XIX ao XX poderia ser lida pela moda, os panoramas, as
fotografias, as exposições, os reclames, o cinema e o ambiente privado. O paradigma dos
novos tempos não poderia mais ser dado pela materialidade irrepetível da pintura, repleta

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de simbologias partilhadas através de um repertório erudito, inscrita numa longa tradição
referenciada pela noção de beleza, juízo estético, gosto e estilo.

Dispensando a memória e a experiência em prol das vivências, o caleidoscópio


continha por princípio o movimento constante e o reembaralhamento infinito das formas
cujas semelhanças seriam mantidas um processo de reprodutibilidade, sendo assimiladas
com sentidos semelhantes aos das novidades pelas crianças, ou seja, sem vínculos de
temporalidade contínua com o passado. No movimento errático das dessimetrias
multiplicadas, a estrutura inesgotável da imagem moderna era dada pelo caráter ilusório da
novidade e pela constante desmontagem interior das coisas conjugada com elementos
díspares. O que surgia eram as reconfigurações de detritos e a cintilância dos resíduos.
Através de um movimento incessante que produzia tanto o sobressalto e a queda de
formas como os choques e as recomposições, a imagem surge como uma reconfiguração,
remontagem visual que testemunha um tempo de perturbações e turbulências, variações e
alterações. Desse modo, Benjamin esboçava não apenas um modelo ótico mas um outro
modo para abordar a obra de arte, voltada para a leitura da catástrofe insidiosa do mundo,
sendo o passado um arsenal de escombros e fragmentos. Eis o ponto em que a imagem
artística pode ser abordada, ultrapassando tanto os limites de território-nação, como
também de cópia-original, remoto-contemporâneo, texto-contexto, vida-obra, forma-
conteúdo, proximidade-distância, superfície-profundidade. Recusando a retenção temporal,
a transformação progressiva e meramente historicista, bem como as tramas hierarquizadas
com pretensões à objetividade, a obra de arte pode se afirmar como um acontecimento,
através do qual se configuram os sentidos que emergem pelos procedimentos de
recombinação e montagem.

2- A MONTAGEM DE WARBURG E A ALTERAÇÃO DE FREUD OU A IMAGEM


COMO DISTÂNCIA. Como produzir um campo de reflexões que, sem negar a ação
temporal, contorne uma história da arte cronológico-evolutiva para privilegiar as questões
que reverberam no tempo e no espaço, implicando e compondo distintas temporalidades?
Como abordar as questões próprias ao campo do visível, reconhecendo as mesclas
temporais e fragmentos de memórias alhures mas evitando os sentidos já dados? Como um
repertório ótico constituído fora dos circuitos legitimados pode ser reconfigurado e adquirir
potência? Ao terminar sua tese de doutorado sobre Sandro Botticelli, o erudito alemão Aby
Warburg (1866-1929) foi a Nova York para o casamento do irmão e nos meses de
novembro de 1895 a abril de 1896, viajou pelo território Pueblo do Novo México e Arizona,

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onde observou construções e peças cerâmicas, desenhou, fotografou e adquiriu além de
objetos, fotos de cenas e rituais indígenas. Quando retornou, continuou a escrever sobre
arte para conferências e congressos, abordando temas sobre Guirlandaio e o tempo dos
Médicis, Dürer e a melancolia, Lutero e a astrologia, as quimeras em Landshute e os
zodíacos no palácio de Schifanoia. Ao longo de suas análises, especialmente ao regressar
dos Estados Unidos para a Alemanha em 1909, procurou filtrar os conhecimentos de
Burckhardt (1818-1877), contemporâneo de Marx e professor de Woelfflin (1864-1945), mas
também acrescentou as concepções de Nietzsche (1844-1900), com quem havia se
correspondido quando estudante e que, por sua vez, fora aluno de Burckhardt. A partir de
ambas as referências, montou uma constelação de problemas onde o que dominava eram
as forças irracionais, recolocando o problema da tradição-transmissão cultural e
considerando as ondas ou vibrações do passado que afetavam seu presente.
Detalhe importante, cabe lembrar que os livros de sua biblioteca eram dispostos não
pelas convenções disciplinares e sim pela constituição de problemas desdobrados a partir
de seu interesse pela arte, religião e mito. Em 1933, quando devido às contingências
políticas, a mesma foi transferida para Londres, já dispunha de mais de 60 mil volumes,
sendo complementada por um atlas composto por sessenta e três painéis, agrupando mais
de mil fotografias através dos quais seu proprietário procurava reconhecer simbologias
visuais e fórmulas expressivas universais transmitidas culturalmente. Compreendendo-as
como documentos humanos grávidos de história, considerava a vida póstuma da imagem,
abordando-as como uma espécie de fóssil sobrevivente. Nem a simples continuidade, nem
os arquétipos, empreendendo um esforço para juntar Burckhard e Nietzsche, interessava a
Warburg encontrar nas imagens tanto os lapsos e recalques culturais, como as
persistências do inapto e os retornos do irresoluto que ficavam contidos nas formas
imagéticas. A este respeito, em seu último seminário, ministrado na Universidade de
Hamburgo entre 1926 e 1927, abordou a teoria da polaridade presente nas duas matrizes
teóricas que lhe serviram de referência, considerando as imagens tanto como evidências e
indícios singulares, como vestígios e sintomas partilhados.3
Todavia os procedimentos que o levaram a considerar os elementos paradoxais da
imagem devem ter se apresentado com maior contundência por ocasião da sua internação
psiquiátrica, ocorrida entre 1921 e 1924, quando surgiram junto aos seus delírios e surtos
persecutórios, além das linhas e curvas dos cabelos e vestes das ninfas estudadas na tese
sobre Botticelli, as danças e gestos, objetos e cenas associados aos índios pueblos.
Naquele ambiente, em abril de 1923 Warburg tentou provar seus progressos terapêuticos

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através da apresentação de uma conferência intitulada Imagens do território dos índios
pueblos na América do Norte4, onde expunha uma espécie de fábula sobre a trajetória
cultural ocidental. Sua exposição pode ser lida pela contigüidade de três partes: numa
primeira associa as práticas mágicas e danças ritualísticas dos pueblos à realidade da seca,
à necessidade da chuva e ao medo do raio. Na parte seguinte a análise recai sobre o
ocidente, do paganismo ao monoteísmo, incluindo os rituais orgíacos da Grécia, a serpente
benfazeja de Asclépio e a de bronze de Moisés, além da presença viperina na teologia
medieval. Depois aborda a modernidade ocidental, sua relação com as Américas, a igreja
católica e a catequização indígena. Por fim reflete que, se o mito do progresso produziu a
expulsão da serpente, uma vez que a civilização pretendeu separar conhecimento mítico e
conhecimento científico, esta retornava na forma recalcada dos fios do telégrafo e telefone,
atrofiando a capacidade de pensar o medo e a destruição que se instalaram no próprio seio
da razão ocidental. Sendo as formas serpentinas parte integrante do pensamento mítico,
elo entre a experiência humana e o mundo circundante, resposta simbólica às forças
incônscias e indômitas, ao pretender distanciar as forças naturais e os modos
antropomórficos de reconhecê-las, a cultura da era das máquinas perdeu a capacidade de
refletir sobre a destruição e o caos.
Sobre esta mesma conferência, dois aspectos interessantes ainda merecem ser
destacados. O primeiro se refere ao fato de que Warburg não testemunhou todas as cenas
evocadas, pois a dança da serpente ocorria no mês de agosto e não nos meses em que
viajou pelas terras indígenas, razão pela qual preencheu os acontecimentos que não viu
com as fotografias adquiridas durante a viagem, tendo as mesmas servido de base para
sua conferência. O segundo aspecto a ser assinalado é que, cinco dias depois de sua
apresentação, pediu numa carta a seu bibliotecário, Fritz Saxl, para não mostrar a ninguém
o texto escrito por onde conduziu sua reflexão sob o argumento de que a mesma não
passava do movimento de uma rã decaptada5. Conectando estes dois registros
aparentemente díspares, pode-se alcançar melhor os procedimentos e abordagem das
imagens como lâminas combinadas e justapostas através das quais a reflexão emerge
como um jogo intempestivo e anacrônico para onde incidem de um lado, as probabilidades
e plausibilidades históricas e de outro, as possibilidades interpretativas, marcadas por
afinidades empáticas, afectivas e ficcionais. Tais confluências tanto permitem reconhecer,
através da imediatez das fotografias dos registros artísticos e dos pueblos, uma distante e
longa história da razão ocidental como aparição, portanto considerar ao mesmo tempo, um
mundo em apagamento e um problema crucial do presente europeu em tempos de guerra,

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como possibilita considerar que dizer e ver tais conjunções não passa de um delírio
intelectivo ou percepção inverificável, portanto contração involuntária de um animal acéfalo.
Assim, no texto apresentado primeiramente como conferência e só publicado muito
tempo depois contra a vontade de seu autor, prevalecem características de uma operação
realizada tanto através do pensamento nascido dos lapsos e esquecimentos, como através
dos sentidos obtidos pelos efeitos de contigüidade e cintilação. Considerando as imagens
menos como representações ou ilustrações e mais como um coeficiente que emerge
através da sobreposição de temporalidades, seu alcance seria dado pelos procedimentos
de figuração e movimento, condensação e desvio, montagem e ruptura, corte e aparição.
Interrogando os regimes de verdade que sustentam a história da arte como disciplina, o
erudito alemão situava-se na contra-mão dos manuais que simplificam a relação vida e
obra, bem como dos catálogos que reduzem a obra aos estilos e escolas ou que tomam a
obra de arte como fontes reveladoras que iluminam uma época, conformando-se a um meio
específico e seqüência temporal dada ou como mera expressão de contextos históricos e
econômicos.
Não à toa, menos de um século depois Warburg passou a ser considerado tanto na
pauta dos estudos culturais, como pelas implicações psicanalíticas, os procedimentos
cinematográficos e o próprio surrealismo batailleano, além de permitir um cruzamento com
teóricos pós-estruturalista que adentram pela problemática da teoria como ficção. De sua
parte, em 1933 Walter Benjamim6 iria refletir sobre os processos que engendram a
semelhança, observando que os mesmos fazem parte de um repertório filogenético que
atravessou da pré-história à antiguidade, perpassando a leitura de pegadas e o poder
revelador dos astros, vísceras e outros acasos através dos quais os destinos humanos
seriam vinculados, persistindo na força onopatopaica das palavras, no poder revelador da
escritura e da grafologia, além das brincadeiras infantis e outros comportamentos
miméticos. Ao situar a semelhança sobre o fluxo das coisas era a própria linguagem que se
elaborava, construindo conexões e percepções instaladas sob os equívocos da vidência
que se acreditava ou fazia passar por evidência.
Nas formulações warburguianas emergia um campo para problematizar as imagens
através das aproximações empáticas, reconhecendo-as como persistência de irresoluções
e resíduos de tempo, imbricando passado e presente não como mera continuidade, nem
como simples arquétipos. Longe da história da arte como disciplina relacionada a um
humanismo à maneira de Vasari, Kant ou Panofsky, esta era concebida mais como uma
espécie de arsenal de imagens que, ultrapassando o tempo onde foram feitas, voltavam

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como renitência que interrompe o fluxo regular das coisas. Sem jamais caberem num
momento perfeitamente adequado, nelas incidiria uma lei subterrânea que persistiria como
latência onde se conjugam diferente-semelhante, imobilidade-aceleração, recalque e
retorno. Daí decorre a noção de sintoma como aquilo que a imagem é portadora e que
permite interrogar sua relação com o tempo, tornando-se uma espécie de lei avariada que
retorna como uma enfermidade. Nem conceito semiológico, nem conceito clínico, trata-se
de uma noção operatória que recusa submissão ao tempo eucrônico para afirmar-se como
potência que recusa tanto conceder a última palavra ao presente como ser confinada ao
tempo cronológico.
Nesta mesma clave, problematizando a temporalidade e suas implicações na
história da arte, Didi Huberman7 assinala que toda obra possui mais memória do que
história, pois o tempo não se reduz à história, sendo que a memória é feita de tempos
descontínuos e heterogêneos, resultando daí sua existência na contradança da cronologia.
Dito de outro modo, a relação tempo-imagem pressupõe uma constante articulação com a
memória, uma vez que toda obra carrega consigo um pretérito e também uma projeção em
direção à posteridade, sendo que nela está contida uma fagulha explosiva que permanece
naquilo que um dia foi, fazendo com que o passado não cesse de se reconfigurar como
abertura. Inscrevendo a imagem no centro da historicidade, a epistemologia do
anacronismo interroga a linearidade e o varal cronológico e recorre ao entendimento de que
o passado só existe através da decantação, configurando-se como montagem que acontece
de modo intempestivo e inverificável, ou seja, presença que habita os domínios da
proximidade empática. Situando as experiências humanas para além dos meros
enquadramentos e continuidades cronológicas, as imagens passam a ser concebidas como
sonhos recorrentes ou questões irresolutas que retornam sob certas contingências,
persistindo e insistindo como ondas mnemônicas.
Em outras palavras, assumindo elos diretamente ligados à concepção warburguiana,
o historiador francês ratifica que algo do que um dia foi, persiste e insiste nas imagens,
atravessando os tempos e voltando como ondas mnemônicas. Abandonando a noção
simplificadora de que a arte é produto de seu tempo e se delimita apenas pelos contornos
da biografia ou das injunções de um tempo e lugar, a produção imagética não estaria
relacionada à sucessão mas à recorrência, tampouco estaria relacionada ao novo ou à
mera capacidade de imaginar e criar mas associada ao esquecimento e aos elementos
recalcitrantes que retornam como vibrações sísmicas. Considerando uma história das
sensibilidades e percepções sobre as imagens pictóricas que se reconhece em des-tempos

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e para onde incidem questões abordadas tanto na noção benjaminiana de tempo impuro,
como na noção borgeana de temporalidade labiríntica, chega-se ao entendimento de que
cada época traz consigo infinitas possibilidades de encontros com o passado, bem como
prefigura e guarda potencialidades futuras.
No começo da mesma década em que Warburg proferia sua conferência sobre as
danças serpentinas dos pueblos, Freud8 problematizava sobre o fenômeno da repetição ou
recalque, potencializando a repetição como uma conduta necessária e fundada em relação
ao que não pode ser substituído. Observando uma criança com um pouco mais de um ano
e que ainda não domina plenamente a linguagem oral, trazia à cena sua brincadeira com
um carretel que era lançado como algo que desaparecia mas era depois recuperado
alegremente como aquilo que retornava, podendo ser resumido como isso acaba de partir,
isso acaba de voltar, isso volta a partir e torna a voltar. Vendo aí um gesto que simbolizava
a ausência e a presentificação materna, o psicanalista discorreu sobre a compulsão à
repetição que estaria presente nos jogos infantis, na rememoração do paciente em
processo de psicanálise e também nos procedimentos artísticos. Reconhecendo um prazer
resultante do movimento que tendia a restaurar um estado anterior das coisas e, em última
instância, ao inorgânico, ou seja um trabalho sobre a morte, salientava um prazer liberado
nesta espécie de dramaturgia em que se finge morrer enquanto a morte ainda não chegou.
Remetendo às degradações e mudanças inerentes às coisas e ao mundo, delineava o
conceito psicanalítico de alteração como equivalente a um signo lingüístico constantemente
esvaziado e ressignificado que interpunha a suspensão temporal à metamorfose das
formas, assinalando tanto o deslocamento ou deriva de um estado para outro como o
conceito de sintoma. Em outras palavras, assassinato da coisa e simbolização da ausência,
criação e destruição, lembrança e esquecimento, beleza e caos, eis o movimento para onde
incide o fluxo e refluxo da imagem.

3- A SÉRIE DE DELEUZE E A DUPLICAÇÃO DE KRAUSS OU A IMAGEM COMO


REPETIÇÃO SEM ORIGEM. Como construir um campo de análise onde o que prevalece e
ainda pode ser dito incide sobre o estranho que escapa e surpreende bem ali onde uma luz
já posta parece apenas indicar que tudo já está conhecido? Como evitar a armadilha da
diluição das singularidades em contextos homogeinizadores e extrínsecos ou das
particularidades isoladoras e desconectadas que ignoram a formulação-armação de
problemas? Seguindo um raciocínio semelhante ao efetuado por Roland Barthes9 para fazer
uma distinção entre obra e texto, pode-se conceber também uma diferença entre obra e

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imagem. Enquanto a obra se inscreve no domínio do verificável e da classificação,
delimitando-se pelos enquadramentos e filiações ou pertencendo à ordem do instituído e do
significado, a imagem impõe fraturas, travessias e disseminações, aceitando a reflexão não
como um produto da consciência, mas do pensamento que opera por incessantes lances de
refração. Enquanto a obra se inscreve no domínio da coleção, conformando-se a certos
espaços e circuitos mesmo que permaneça silenciada ou apagada, imóvel ou esquecida, a
imagem é aquilo que cintila num repertório serial, constituído por e constitutivo de certos
jogos de rebatimento na qual a diversidade se apresenta não como sucessão mas como
uma espécie de derivação sem original, ao mesmo tempo combinada e difusa, articulada e
proliferante. Assim, se a obra pode ser pensada como produto de cultura, como imagem ela
é sempre o seu desvio, pois ao recolocar certas perturbações e dissimetrias torna-se
diferença que se inscreve como potência, assinalando uma singularidade que ultrapassa
tanto a premeditação dos procedimentos e a intenção dos gestos artísticos, como permite
inscrevê-la na infinitude de outras séries onde as diferenças coexistem e se rebatem.
Bem verdade que convém evitar a simplificação da exclusão e do antagonismo para
encontrar na obra aquilo que a faz cintilar através de sua própria materialidade e em seus
próprios termos, ou seja como jogo de cores e planos, luzes e formas, cifra mas também
resto que opera um segredo no legível. Refletindo sobre o jogo da diferença como
repetição, Deleuze10 destaca que a diferença não se constitui em conformidade com a
moralidade do belo, do justo ou do verdadeiro, mas sim com o poder do diverso. Neste
sentido, a despeito de todo manto de coerência, precisão e hierarquia que se pretenda
impingir-lhe, a série imagética como acontecimento não está dada mas é constituída menos
de modo causal mas casual, menos de modo seqüencial mas truncado. Enquanto a
generalidade obedece a leis com permanências e variáveis possibilitando que um termo
possa ser traduzido por outro e o particular possa ser reposto e substituído, uma vez que é
indeterminado e indiferenciado, a repetição se apresenta enquanto vibração secreta que se
inscreve como transgressão e que ocorre entre generalidades. Sendo que a repetição não
tem equivalente nem semelhante, guarda na singularidade o traço do desvio e do
insubstituível, enviando sempre a um irrecomeçável. Tornando o esquecimento e o
inconsciente uma potência, inventa gravitações e saltos que não apresentam equivalência
ou semelhança, pois do mesmo modo que não se pode trocar a alma, a repetição não
implica num acréscimo que ocorre por uma segunda ou terceira vez, mas eleva-se à
enésima potência como primeira vez.

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Lembrando que o sentido da palavra origem está associado à desrazão e ao
disparate, tanto encobrindo o acaso e o óbvio como forjando o sentido de pureza e verdade
do criador, assinala que atrás de toda a verdade existe uma proliferação de enganos.
Confrontando o encadeamento cronológico e a ordem causal destaca a rede onde
enumeráveis acontecimentos e acidentes que, vistos em sua dispersão e exterioridade,
indicam sempre um começo difícil de desenlaçar, repleto de falhas de apreciação, maus
cálculos, resultados acidentais e marcas sutis. Sendo que na raiz do que se conhece não
há verdade nem ser, também não há parentesco, pois o conhecimento é baixo, mesquinho
e inconfessável.11 Assim, o ponto em que surge um acontecimento remete sempre a um
determinado estado de disputas e à entrada de certas forças em cena, adquirindo
importância o salto pelo qual elas passam dos bastidores para o teatro, num longo combate
travado contra as condições mais desfavoráveis12. Eis o território sobre o qual incide o
sentido da palavra Ursprung, ironizada e depreciada pelo filósofo alemão devido à
pretensão de atingir um ponto essencial ou de tocar a precisão daquilo que foi em seu
instante primordial.
Entretanto, se a diferença não funda origem e nem remete a um ponto original, daí
decorre a compreensão de que para além dos seus autores e atributos emolduráveis,
alcançar a obra implica não apenas um mergulho na sua condição de evidência e registro
documental, mas interrogar como se tecem as redes que constituem e legitimam suas
compleições, atributos e visibilidades. Contornando as questões de valor simbólico,
recepção, circuito, mercado ou constituição de fortuna crítica e passando pela combinação
de imagens através da qual se produz uma recolha ou estoque e pela recombinação ou
associação proliferante de fragmentos estanques, chega-se ao território onde é possível
reconhecer uma potência plástica capaz de ativar o pensamento teórico, alimentando o
entendimento de que toda a criação possui seu duplo não na originalidade nascida de um
ponto zero ou a partir de uma ultrapassagem, mas sim na repetição e retorno de
inquietações que se refazem incessantemente para voltar como renitência, desvio e
esquecimento.
De sua parte, contrapondo o que chamou de mito da originalidade das vanguardas,
Rosalind Krauss abordou a questão da origem da obra e do original artístico como uma
espécie de condição operatória da própria modernidade. Problematizando aquilo que
retorna como recalque e está sujeito à duplicação incessante, considerou para fins de
análise tanto os procedimentos escultóricos empregados por Rodin como os procedimentos
pictóricos onde predominaram a grade e a retícula13. Adentrando o campo da história da

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arte menos através de um campo cronológico-evolutivo e mais considerando os lapsos e
recalques, a estudiosa apontou a estrutura repetitiva como afirmação de um modelo anti-
histórico. Assim, ao reivindicar os preceitos da originalidade, as vanguardas professaram
um sentido de vida primordial com potência de auto-gestão e regeneração resguardada de
tramas externas, salva e descontaminada da tradição. Refutando a perspectiva como
realidade natural e desmaterializando a exterioridade da superfície e do mundo circundante,
o recurso reticular buscou uma lógica contrária às noções de hierarquia e centro, recusando
a possibilidade narrativa e discursiva através do caráter auto-referencial, autônomo e anti-
real. Todavia, sendo a superfície concebida pela ausência de centro e como
transbordamento, a duplicação também resultaria numa espécie de prisão, impedindo
derivas mais flexíveis e caracterizando-se como um paradoxo da auto-imitação e como um
insondável sistema de reduplicação.
Ocorre que, em tempos de revolução industrial e de reprodutibilidade técnica, as
artes plásticas insistiram em confirmar seu estatuto romântico, associado ao espontâneo e
ao irrepetível. Por sua vez, se no século XIX as cópias tiveram um importante papel
pedagógico na formação do gosto, o culto da originalidade e da espontaneidade artística
serviu para confirmar o mito da genialidade do artista. Os próprios impressionistas, ao
conceberem as telas como uma cadeia de montagem, sabiam que era preciso um
procedimento muito estudado e calculado para que suas pinceladas parecessem
imperfeições de instantes independentes. Todavia, incorporando e ratificando o discurso da
originalidade, reprimiam e desacreditavam o discurso complementário da cópia sem
original. Sendo a duplicação um recurso que remete a algo já visto que retorna como
fantasma, isto também pode ser observado num romance de Jane Austen ao falar da
paisagem pitoresca como algo sempre reconhecido em relação a um lugar precedente. Eis
o recalque ou sintoma das obras modernistas que reivindica um ponto de partida original
mas faz retornar nas artes plásticas a sensibilidade romântica guardada na literatura e
relacionada ao pitoresco como duplicação e possibilidade de repetição infinita.
Se a grade ou retícula é um procedimento que permite pensar a repetição, o vazado
consiste num meio ou tipo particular de matriz. Para Krauss, este seria o polêmico caso da
reprodução autorizada dos trabalhos em bronze de Rodin e seu processo ao mesmo tempo
póstumo e autoral, particularmente devido a seu caráter de arte composta que se move do
desenho às escaiolas, do molde vazado às esculturas. Sabe-se que quando este artista
morreu A porta do inferno sequer estava pronta, havendo apenas uma série de escritos a
lápis sobre as escaiolas as quais ainda não tinham sido vazadas. Sendo que a relação do

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escultor com seus vazados era sempre muito remota e que o artista concedeu autorização
para que os mesmos pudessem ser feitos após sua morte, é aí que se pode considerar as
esculturas que compõem aquele portal como cópias sem original. Implicando no recurso
dos vazados, a arte composta resultaria, necessariamente, em deslizamento tanto de
escala como de material. Ou seja, para Rodin a reprodução das formas pressupunha as
propriedades estruturais da retícula, justificada pela imaginação modular que produz um
múltiplo. Tal entendimento técnico e conceitual, coloca a proliferação da estrutura no centro
da produção escultórica, dispensando o caráter da autenticidade manual em tempos de
reprodutibilidade técnica. Contudo, obliterando a problemática do múltiplo, as vanguardas
engessaram a possibilidade de compreensão da arte composta como um singular
multiplicado ou pluralidade irredutível, sendo que a persistência do discurso sobre a
originalidade e seus congêneres de autenticidade explica-se mais pelos diversos interesses
institucionais, jurídicos e econômicos.
Remetendo à abordagem benjaminiana acerca do inconsciente ótico e interrogando
os pressupostos vanguardistas sobre a originalidade das obras através da questão da
reduplicação e reprodução sem origem, Rosalind Krauss permite considerar que as
mesmas são portadoras de gestos que pertencem a temporalidades precedentes. Por sua
vez, tal raciocínio também possibilita uma aproximação com Didi-Huberman14 ao
problematizar a imagem artística através das formas que sobrevivem em des-tempos como
espectralidade de gestos, assinalando as complexas estratificações temporais delineadas
pelos atravessamentos e fragmentos da memória. Em contraposição ao entendimento das
imagens como re-apresentação de questões circunscritas a certo tempo-espaço, o mesmo
autor enfatiza o sintoma como uma particularidade que emerge no movimento serial. Eis o
ponto em que ambas abordagens guardam seu parentesco com a noção de eterno retorno
de Nietzsche, não como o movimento que volta ao idêntico ou ao sempre mesmo, mas
como uma curva espiralada por onde espreita aquilo que jamais se alcança ou se resolve.

4- O ARSENAL DE MALRAUX E TORRE DE DERRIDA OU A IMAGEM COMO


MUTAÇÃO PROLIFERANTE. Como adentrar num arsenal imagético, cujas fontes
documentais e registros complementares são demasiado escassos ou inacessíveis? Uma
vez acessado o arsenal e constituída a série de imagens, com quais fios tecer a trama
imagética? Como problematizar a imagem artística numa série sem perder-se diante das
meras generalidades ou leituras simplificadoras e banalizantes que confundem imagem
com ilustração ou apressam as particularidades diluindo-as em meio a peculiaridades

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absolutizantes? Para examinar melhor tais inquietações, convém ratificar uma história da
arte onde o que prevalece são questões que reverberam como sobrevivência, quer
considerando as obras que se encontram na condição de exceção ou epifenômenos, quer
as não-pertencentes ao repertório legitimado, inseridas num circuito a que se pode chamar
por falta de melhor termo, periférico. A este respeito cabe destacar que para Malraux 15 o
nascimento de um arsenal imagético a partir da reprodutibilidade técnica, resulta em
complexas metamorfoses no que diz respeito aos sentidos e destinos da obra de arte.
Se com a modernidade o que se conhece como obra de arte encontra-se definido a
partir do nascimento do museu, é assim que ela atravessa e sobrevive para além do
contexto em que nasceu, deslocada do ambiente da religião ou da corte para o teatro
mundano e que, para além de seu caráter de espetáculo e consumo, continua persistindo
como obra de arte. Neste sentido, o museu ampliou a capacidade de destacar, ressuscitar
ou apagar obras, produzindo e alimentando um arsenal constante de imagens
selecionadas, onde cada uma delas preserva um poder de projeção sobre a imaginação. De
sua parte, a reprodutibilidade resultante do advento da imprensa e ampliada pela fotografia
permitiu conhecer mais obras que qualquer museu pode conter e possibilitou que cada
interessado pudesse constituir seu próprio acervo ou museu imaginário.
Se o museu nasceu em tempo coetâneo da pintura em tela e conjugado com a
intenção de produzir admiração pela beleza, a reprodução em massa das obras fez com
que surgissem novas comparações, agrupamentos e classificações, sendo que a fotografia
ampliou estas combinações ao explorar novos ângulos, valorizar fragmentos, isolar e
recombinar detalhes, metamorfoseando a materialidade artística através de fotos
admiráveis e mesmo inserindo neste circuito as obras marginais. Embora a alteração de
tamanho, cores e ausência de textura e relevo tenha simplificado o contato com a obra, a
história da arte tornou-se a história do fotografável. Assim, por exemplo, as tapeçarias, os
baixos-relevos, as estátuas e as arquiteturas perderam sua profundidade e tornaram-se
pranchas, sendo libertadas da matéria para serem abordadas unicamente por seu conteúdo
imagético. Ademais, sendo formado pelas recordações particulares de cada um e não
dependendo de um local, o museu imaginário pertence a todos, sendo que a reprodução
não rivaliza com as obras mas evoca-as. Num mundo de esquecimento, é assim que
ressuscitam e sobrevivem.
Dito de outro modo, Malraux considera que o museu imaginário é um fenômeno do
mundo moderno, particularmente ampliado com a reprodutibilidade técnica, possibilitando
não só acessar diferentes acervos como também estabelecer novos reembaralhamentos e

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sentidos. Acrescentando novas iluminações às imagens, reativando sua potência e
colocando-as em constante movimento, trata-se de refletir menos sobre aquilo que um dia
foram ou o que foi dito sobre elas, e mais sobre sua capacidade de continuar afetando e o
que ainda podem dizer. Desdobramento da compreensão acerca dos sentidos e
concepções contidos da obra de arte, se o museu foi um dia o local onde as obras puderam
sobreviver, apesar de quase todas que ali se encontram terem sido arrancadas de seu
destino original, o museu imaginário, alimentado pela ampliação da reprodutibilidade
técnica, permite que as obras sobrevivam como contra-forma, esvaziando o antagonismo
entre criação artística e ficção, ao mesmo tempo em que esta última reduplica infinitamente
a própria obra. É então que a noção de museu imaginário parece muito próxima da noção
de arsenal, enquanto lugar para onde confluem os saques e pilhagens constantemente
reaproveitados e destinados aos mais diferentes fins. Eis um território instigante,
especialmente quando se considera a sobrevivência e ressignificação de um vasto
repertório composto de detritos e cuja resplandecência não passa de artifício.
Em Torre de Babel16 Derrida assinala uma biblioteca incongruente, cujos fragmentos
cintilantes potencializam os acontecimentos mundanos sabotando a história monumental,
reembaralhando o próprio arsenal da modernidade e fissurando seus empilhamentos
ordenadores. Tal entendimento voltaria em Mal de Arquivo17, ultrapassando sua condição
de lugar fundador da memória dos nomes próprios e dos eventos singulares para remeter a
uma alteridade infinita, posto que os conceitos, como as imagens, jamais se encontram
consigo mesmo, vivendo apenas como verdade espectral. Então, face à ordem
catalográfica já dada, o que conta são menos os significados fechados e mais os lapsos,
dilemas e irresoluções contidos nas imagens e avistados através de certos rasgos que
ultrapassam o manuseio documental, des-hierarquizando e embaralhando incessantemente
certas verdades legitimadas para operar por uma indébita appropriatio, combinando e
sobrepondo, rearticulando códigos e apoiando-se na suspeita de que a reta é a rota da arte.
Por outro lado, em tempos em que se afirma a crise dos cânones estéticos, alimentada a
duras penas pelos especialistas feridos no coração das incertezas, pode-se reconhecer o
dispositivo do zapping, procedimento que recusa a assimilação autômata para adentrar num
arsenal, em busca tanto de retroleituras como de aggiornamentos.
No raciocínio que tanto colocou em xeque os limites do pensamento e da linguagem,
como observou a distinção entre imagem e linguagem, Foucault problematizou o
nascimento da própria epistémê moderna, onde as verdades históricas e os campos de
saberes ordenadores se constituem e configuram. Discutindo a rede secreta que,

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escondendo o arbitrário e o tateante, ordena as coisas e os fenômenos, naturaliza as
semelhanças e diferenças e produz aproximações, o autor de As palavras e as coisas
argumenta que sobre as classificações incidem estranhos e vertiginosos encontros,
compõem-se séries que dispõem, hierarquizam e regulam coisas díspares, até que as
mesmas possam ser reconhecidas e apaziguadas como familiares. Mas, mal são
esboçados, todos esses agrupamentos se desfazem, pois a orla de identidade que os
sustenta, por mais estreita que seja, é ainda demasiado extensa para não ser instável 18.
Assim ao encarar a tarefa de pensar ao mesmo tempo as imagens e os lugares em que
elas se encontram, torna-se conveniente considerar a concepção de arquivo relacionado às
faltas e desvios, cujas sombras e silêncios nada têm de neutro ou ingênuo. Eis o terreno
onde o museu imaginário, como arsenal infinito e único de afecções se cruza às
recorrências babélicas, permitindo combinações que tanto consideram a série pelos efeitos
de condensação e desvio, como por uma espécie de teia onde se acoplam diferentes
temporalidades e contingências, injunções e confluências.

5-O ACONTECIMENTO DE BAUDRILLARD E AS CONFLUÊNCIAS DE CARROL


OU A IMAGEM COMO SENTIDOS PARADOXAIS. Como evitar o risco da compilação e da
catalografia que tudo simplifica e encaixa, ultrapassando o mero clichê de que todo homem
é produto de seu tempo ou que todo fenômeno é produzido historicamente? Como armar
um campo de pensamento, articulando problemas para compor uma série acontecimental e
acolhendo as confluências impossíveis as quais a imagem é portadora? Em que medida
uma obra de arte contém, ao mesmo tempo, sinais e sintomas, construção e ruína,
probabilidades (território do plausível e do finito) e possibilidades (território dos
atravessamentos infinitos)? Para desenrolar este novelo melhor reforçar a inquietação em
relação ao varal cronológico, procedimento bastante conhecido daqueles que tomaram as
complexidades do tempo como seu objeto de reflexão. Assim, distinguindo a poética da
história, Aristóteles19 afirmou a nobreza da primeira sobre a segunda, uma vez que esta
última estaria circunscrita pela unidade do tempo construída apenas na relação de
encadeamento e causalidades, enquanto a primeira poderia levar em conta e combinar as
possibilidades do acontecido. Enquanto uma estaria presa à teia das necessidades e
particularidades, a outra poderia abarcar a imaginação, elevando-se ao universal.
Partindo de premissas opostas e colocando em xeque os preceitos fundantes da
civilização ocidental, Nietzsche também reservou para a história um estoque de críticas,
assinalando-a como pressuposto para valorização do progresso, entendendo que viver

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historicamente seria o mesmo que dormir sem sonhar [pois] tudo que é orgânico requer não
somente luz mas também escuro20. Porém, reconhecendo nas verdades platônicas e cristãs
uma racionalidade que solapa a vida, apontou o humanismo e o antropocentrismo como um
refinamento do auto-engano, criticando a história monumental e universalizante que iguala
o desigual e deprecia a diferença, impondo sua força de astro luminoso e soberbo. E posto
que o conhecimento não é nobre e nem sublime, mas é logro, disfarce e engano assentado
sobre a mentira, também a verdade se liquefaz. Assim, o filósofo alemão demanda um
pensamento supra-histórico que consegue situar-se no limiar do instante, esquecendo que
a matéria é um erro e a lógica um absurdo, que o mundo não é orgânico e o vivente é uma
espécie rara de morto, pois houve eternidades em que ele não estava, quando de novo ele
tiver passado, nada terá acontecido21. Considerando que a existência humana pressupõe o
engano e que apenas o artifício faz a existência suportável, somente a filosofia pode fazer
da existência um fenômeno estético e a arte fazer da mentira uma potência.
Bem verdade que as testemunhas do processo das complexidades temporais
poderiam continuar sendo arroladas. A este respeito basta lembrar as críticas de Walter
Benjamin ao colar cronológico do historicismo e ao marxismo simplificador contrapostas
pela compreensão de impurezas temporais e cujos desdobramentos encontraram em Didi
Huberman uma análise sobre as misérias da eucronia rebatidas pelo anacronismo. Mas
para evitar um caminho já bastante percorrido, melhor buscar uma interlocução com a
noção de acontecimento em Jean Baudrillard22. Segundo este intelectual francês o tempo
que correspondia à história era pautado pelos marcos cronológicos, sedimentados pelas
ações e feitos partilhados e reconhecidos cultural ou socialmente como únicos. Sendo
nosso presente marcado pelo excesso de história, em que predomina uma abundância
avassaladora de informações, mentalidades, sexualidade, cotidiano, turismo, publicidade,
mercado, pornografia, etc, tudo se torna regido pela liquidação e diluição, banalização e
indiferença configurada como mais do mesmo. A encenação midiática do tempo real se
encarregaria de apresentar o tempo como um eterno presente através das telas
hegemônicas do écran, obliterando os saltos e rupturas em detrimento de um eterno
continuum. Contraponto deste acúmulo e homogeinização impiedosa, destaca-se a noção
de acontecimento, sendo que assim como a sedução é a parte da sexualidade que não se
reduz ao sexo, o acontecimento é a parte da história que não se reduz à história.
Depreende-se deste entendimento que, assim como o destino é maior do que a história,
também a arte não se reduz ao encadeamento causal, existindo nas mais diferentes
culturas, sem contudo viver subjugada pela influência e determinação da história.

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De sua parte, ao pensar a relação entre a obra de arte e o tempo, Henri Focillon 23
assinalou que assim como a vida espiritual não coincide necessariamente com os eventos
históricos, a vida das formas não se ajusta automaticamente à vida social. Saber que os
fatos se sucedem na ordem cronológica não é tudo, posto que as marcações temporais não
são como uma fita métrica a pontuar um espaço entre aparentes ou indiferentes vazios. Do
mesmo modo que existem graves confusões entre a cronologia e a vida, entre a referência
e o fato a obra de arte tem menos a ver com uma sucessão cronológica e mais com um
campo de incidências que é sempre constituído e constituidor de precocidades e
sobrevivências, antecipações e atrasos, atualidades e inatualidades. Reconhecendo que
nenhuma forma conserva sua integridade mas impõe incessantemente uma desagregação,
para o historiador da arte, é através da metamorfose que as formas sobrevivem ao
esvaziamento de seu conteúdo e periodicamente se revigoram. Eis a noção de
acontecimento assinalando que as marcas temporais têm menos a ver com a inserção
passiva da cronologia e mais com uma precipitação eficaz do momento, ou seja com um
manuseio móvel da estrutura temporal.
A este respeito, pensando o último romance de Lewis Carrol, Deleuze24 salienta que
um acontecimento se constitui menos pelo que acontece como acidente ou sucessão de
eventos e mais por aquilo que se relaciona ao sentido obtido pelo jogo incessante entre
alcançar e formular. Existindo em contigüidade, são apresentados em Silvia e Bruno25 dois
enredos que nada têm em comum, acolhendo o paradoxo em que o mundo dos humanos
coexiste e independe do das fadas e duendes. Ao incluir diversas possibilidades e
simultaneidades de tempos, aquele romance torna-se um território de confluências
impossíveis, construído como um campo multi-serial que acolhe vizinhanças e
particularidades. Sendo o tempo histórico finito, o tempo do acontecimento é infinitamente
subdivisível, desmontando identidades fixas e ultrapassando limites, desmembrando a
relação causal e perturbando a realidade. Daí decorre o entendimento de que a arte se
constitui como território que abriga tudo aquilo que é tecido pelo pensamento, aceitando as
combinações paradoxais de probabilidades e possibilidades, através das quais tanto
comparecem as noções operatórias situadas no domínio do plausível, da exatidão e
precisão documental, como os procedimentos para onde conflui a escala ficcional. Para o
filósofo francês o acontecimento se inscreve na lógica do sentido produzida a partir de uma
infinidade de submúltiplos que se combinam como partes moventes de um fluxo, permitindo
que o feito artístico possua a força de um sonho e reinscrevendo a experiência imagética
numa clave que que extrapola o visual e o dizível. Desse modo, a relação imagem-

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linguagem não se constitui como continuidade, mas como distância produzida por dois
regimes de verdade distintos.
Se a arte não tem a ver com origem e nem com representação, mas com presença e
aparição, é porque opera nas brechas e fendas, fragmentos e descontinuidades, residindo
aí sua potência de acontecimento, também é aí que o entendimento de Deleuze parece se
encontrar com o de Baudrillard. Porém, se o acontecimento demanda um trabalho do
pensamento, posto que não é algo que se encontra pronto ou está dado, não se deve
ignorar que sua tessitura também passa pelo trabalho de colher evidências, seguir pegadas
e trabalhar sobre sinais, como base para compreender o contexto particular de certos
fenômenos, cujas plausibilidades explicativas demandam fontes que singularizam certos
aspectos, inscrevendo-os num meio e seqüência temporal específica, marcada por certas
especificidades capazes de se fazerem reconhecíveis numa espécie de estranha
familiaridade. É então que a tarefa de pensar a imagem demanda ainda um outro
movimento destinado a alcançar os elementos recalcitrantes que fulguram como vibrações
e ecos de sentimentos e irresoluções que retornam como sobrevivência de um recalque, um
lapso, uma perturbação ou inaptidão. Reconhecidas nas dobras temporais, as imagens
passam pela combinação de fragmentos distantes, aparecendo menos na exterioridade de
uma coleção ou estoque e mais na composição de partes intervalares e proliferantes, cujos
fragmentos funcionam como heterogeneidades que potencializam a extra-parte. Daí decorre
a compreensão do acontecimento como um campo produzido por um tipo de pensamento
que opera por báscula e que permite articular sentidos através de combinações,
descentramentos e particularidades que situam a obra de arte numa instância combinatória,
onde os anversos e reversos se constituem como figurações oníricas e para onde confluem
as inumeráveis e infinitas convergências.

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1
REFERÊNCIAS

BUFFON, Conde de. Del Hombre. Escritos antropológicos. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1986.
2
DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2006, pág. 119 e segs.
3
BURUCUA, José Emilio. Historia, Arte e Cultura. De Aby Warburg a Carlo Ginzburg. Mexico: Fondo de
Cultura Económica, 2002.
4
KOERNER, Joseph Leo. Introdução. In: Aby Warburg, Le Rituel du Serpent. Paris: Mácula.
5
IBDEM, pág.26
6
BENJAMIN, Walter. A doutrina das semelhanças. In: Walter Benjamin. Magia e técnica, arte e política.
Obras Escolhidas, vl.I. São Paulo: Brasiliense, 1985.
7
DIDI-HUBERMAN, Georges. Apertura. In: Ante el tiempo. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2006.
8
FREUD, Sigmund. Para além do princípio do prazer. In: Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro:
Imago,1996, vl. XVIII
9
BARTHES, Roland. Da obra ao Texto. In: O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988, pág.71 e segs.
10
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988, págs. 21 a 61
11
NIETZSCHE. Friedrich. Para a Genealogia da moral. In: Obras incompletas. São Paulo, Nova Cultural,
1987,vl. II, pág. 77 e segs.
12
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal,
1985, págs. 15 a 37.
13
KRAUSS, Rosalind. La originalidad de la vanguardia y otros mitos modernos. Madrid, Alianza Editorial,
1996,capítulo I
14
DIDI-HUBERMAN, Georges. L’Image Survivante. Histoire de l’art et temps de fantoms selon Aby
Warburg. Paris: Les Éditions de Minuit, 2002.
15
MALRAUX, André. Museu imaginário. Lisboa: Edições 70, 2000, págs. 11 a 35.
16
DERRIDA, Jacques. Torres de babel. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002.
17
_______________ . Mal de arquivo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001, pág.109 e segs.
18
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. S.P.: Martins Fontes, 1990, 5ª ed., pág. 8.
19
ARISTÓTELES. Poética. In: Os Pensadores. S.P.: Nova Cultura, 1987, vl. II, pág.21 e segs.
20
NIETZSCHE. Friedrich. Considerações Extemporâneas. In: Obras incompletas. S.P.: Nova Cultural,
1987,vl. II, pág. 23 e segs.
21
NIETZSCHE. Friedrich. Sobre verdade e a mentira no sentido extra-moral. In: Obras incompletas. São
Paulo, Nova Cultural, 1987,vl. I, pág. 31
22
BAUDRILLARD. Jean. O paroxismo indiferente. Lisboa: Edições 70, 2000, pág.17 a 36.
23
FOCILLON, Henri. Vida das formas. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, cap. V.
24
DELEUZE, Gilles. A lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2007, pág.51 e segs.
25
CARROL, Lewis. Algumas aventuras de Silvia e Bruno. São Paulo: Iluminuras, 1997.

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