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DEMOCRACIA
NA
AMÉRICA
LATINA
Fernando Henrique Cardoso
OUTUBRO DE 1984 45
A DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA
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comparativa das políticas econômicas Não desejo discutir aqui, estes aspec-
entre países com regimes militares e des- tos contraditórios da ideologia dos regi-
tes com as democracias remanescentes mes burocrático-autoritários. Prefiro
no continente mostra que o estilo do ater-me às conseqüências efetivas da
desenvolvimento deveu-se menos à for- relação entre este tipo de regime e a so-
ma do regime, do que ao tipo de Estado. ciedade que o desenvolvimento depen-
Que quero dizer com isto? Apenas dente-associado criou. Um Estado
que se é verdade que os regimes se mili- Cabe, desde logo, fazer uma distinção de dominação de
tarizaram, o novo poder não alterou as entre países. No extremo sul do conti- classes menos
bases da dominação social. O Estado, nente (Argentina, Chile e Uruguai) as que burocrático-
enquanto síntese das relações de domi- políticas internacionalizadoras da econo- militar
nação, continuou respondendo às classes mia operam sobre uma base social e pro-
e não, estrito senso, ao estamento buro- dutiva que desde o século passado havia
crático-militar. Assim, a resposta à per- sido formada com duas características
gunta "quem manda", é só parcialmente: marcantes: exitosas economias primário-
os militares. Mandam, sim; controlam o exportadoras e forte capacidade integra-
Estado; mas não definem neste mandar dora da sociedade. Trata-se de países
e neste controlar as políticas centrais do que transplantaram para a América La-
governo. tina populações européias que dizimaram
ou concentraram regionalmente as po-
pulações indígenas preexistentes e que,
ê-se por aí a conseqüência ao sopro da antiga divisão internacional
imediata da inexistência de um do trabalho especializaram-se na comple-
"partido militar" ou de um mentação da economia da Europa. So-
partido reacionário estrutura- cialmente, o capitalismo de velho estilo
do. Desferido o golpe, alijadas do gover- lançou raízes neste tipo de sociedade. As
no as forças políticas consideradas alvos classes se formaram à européia, com uma
preferenciais (os progressistas, esquerdis- burguesia competitiva, uma pequena
tas, nacionalistas e democrata-populares) burguesia imigrada, e uma massa de tra-
os militares chamam ao governo os con- balhadores assalariados, tanto no campo
servadores-liberais e os tecnocratas ou como na cidade, sem sofrer a concorrên-
são por eles cercados. E, paradoxal- cia de ex-escravos, de indígenas desen-
mente, no que diz respeito à política raizados ou de bolsões de miseráveis e
econômica, comportam-se como se fos- marginais.
sem rainhas da Inglaterra: assistem à "li- Os golpes militares nestes países, des- Relações
beralização da economia", às vezes com troçaram de fato, instituições democrá- diferenciadas
calafrios nacionalistas na espinha, e ter- ticas: partidos arraigados na população e entre golpes e
minam por assumir, na prática, a posi- com longa história, parlamentos respei- cada base
ção de que "o que é bom para a General tados pela cidadania e, numa palavra, social
Motors é bom para o país". uma "sociedade civil" relativamente ati-
Este aspecto híbrido dos regimes mili- va. Encontraram estruturas estatais só-
tares desconcertou a muitos analistas. lidas, com ampla capacidade de coorde-
Por um lado a repressão, a vontade de nação econômica, mas sem uma burocra-
tudo ordenar para imprimir numa socie- cia isolada dos partidos. Os militares
dade que eles consideram senão anár- tiveram, portanto, que coibir duramente
quica, amorfa, a marca de uma disciplina
a sociedade e encontraram terreno menos
capaz de suportar os atropelos da reivin-
dicação social. Por outro, uma condução fértil na burocracia e no estilo de desen-
político-econômica orientada pelos velhos volvimento econômico (menos marcado
ideais de laissez-faire, mas que, pouco a pela presença das grandes corporações
pouco, se transfigura em dirigismo e in- oligopolísticas internacionais) para servir
tervencionismo estatal para assegurar o de patamar ao "salto para frente" das
crescimento a partir das grandes empre- ideologias de grandeza nacional.
sas oligopólicas. E à margem de tudo Outro é o panorama da sociedade bra-
isso, pela voz dos conservadores, o eco sileira e mesmo da peruana, como outro
do liberalismo político, tentando contra- seria o da mexicana e da venezuelana se
por-se ao mesmo tempo ao corporativis- nelas tivesse ocorrido a militarização do
mo militar-estatal e aos traços mais Estado. Os traços patrimonialistas da
abertamente fascistas que setores da so- sociedade são mais fortes, as classes me-
ciedade e das Forças Armadas nunca nos nítidas à luz do figurino da Europa
deixam de propor. de antes da Segunda Guerra Mundial, os
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preto a frase de Kierkegaard, tão do no Brasil, viu sua Reunião Anual trans-
agrado de Albert Hirschman: convém formada em uma quase "Convenção do
alimentar a paixão pelo possível. Mas Terceiro Estado". Só que os porta-vozes
como toda paixão, esta também idealiza não eram propriamente membros do
seu limite e o vê em expansão contínua. Terceiro Estado: eram eminentes cien-
tistas ou homens de cultura que por esta
a tarefa de Sísifo de expandir característica "chamavam a atenção" e
as fronteiras do que pode ou tinham os meios de comunicação de
não ser feito num regime au- massa dispostos a dar-lhes certa cober-
toritário é que contou deci- tura. Na Argentina não foram os cien-
sivamente a ação de exemplaridade de tistas que cumpriram este papel, mas
pessoas e grupos ligados ao que, na Amé- um Prêmio Nobel da Paz ou um jorna-
rica Latina, se convencionou chamar de lista anglo-argentino que, publicando em
"sociedade civil". A própria ambigüidade inglês, em Buenos Aires, denunciava as
vocabular — sociedade civil — que dis- violências.
torce a interpretação correta do conceito, Mais tarde, quando os ventos liberali-
ajudou a formar um clima de oposição zantes sopraram mais forte, os meios de
aos militares. Na prática, todo embrião comunicação, e notadamente a imprensa,
de organização da sociedade e toda per- atuaram decididamente para dar maior
sonalidade que se destaca na luta contra nitidez, não apenas à reivindicação de-
o autoritarismo passa a fazer parte deste mocrática, mas à reivindicação social.
partido dos sem partido: a sociedade ci- Primeiro foi a vez dos empresários.
vil. A tal ponto materializou-se a corren- Lideranças foram constituídas não tanto
te antigoverno e anti-regime assim con- por delegação das bases empresariais,
siderada que, ingenuamente, um dos mas através do processo ao qual já me
principais jornais brasileiros publicou o referi, que vincula imprensa, intelectuais
governador de oposição de um Estado capazes de formular propostas alternati-
numa fotografia em que aparecia a "so- vas para a política econômica e modelos
ciedade civil", isto é, os presidentes das de conduta democrático-reivindicante
associações profissionais e voluntários e com personalidades empresariais que
as personalidades altivas que mantêm a "vestiam o figurino". A tal ponto que
chama da luta pelos direitos civis e po- a reivindicação pública do "direito de
líticos. . . greve" foi posta na boca de um líder
Apesar dos exageros, ocorre, efetiva- empresarial antes do que na de um diri-
mente, nos países que sacodem a poeira gente sindical... E houve um jornal,
do autoritarismo uma espécie de "inven- especializado em business, a Gazeta
ção dos atores". Esta invenção desdobra- Mercantil, que praticamente formalizou
se em dois tempos. No primeiro criam-se a existência de lideranças antigoverno
as entidades de resistência: as Comissões e anti-sistema, através da criação de um
de Justiça e Paz da Igreja, as "Mães dos forum anual de empresários que elegia
desaparecidos", os Comitês pela Anistia, previamente os "dez mais" da categoria e
etc. É normal, em qualquer situação his- os fazia aprovar uma declaração, quase
tórica, que haja uma articulação deste sempre reivindicando democracia e livre
tipo, tão logo os regimes, por suas con- iniciativa.
tradições internas ou por fenômenos ex- É este aspecto de ressurgimento da A eficácia do
ternos aos países, são incapazes ou não política fora dos tentáculos do Estado — espalhafatoso
mais desejam congelar a sociedade. O ao nível da sociedade —, mas por meca- na política
que foi peculiar no caso latino-americano nismos próprios das "sociedades de mas-
foi a institucionalização prática de ins- sa", que chama a atenção. Há sempre
tâncias reivindicativas, de canais de ne- algo de espalhafatoso, de capaz de ser
gociação entre a sociedade e o regime e consumido pelo grande público, de qua-
mesmo de lideranças a partir de círculos se-publicidade, mesmo no mais autêntico
muito limitados de pessoas, mas com movimento liberador.
alta capacidade — pelas características Não foi diferente, neste aspecto, com
das sociedades de massa contemporâneas os sindicatos. O mesmo desdém dos re-
— de criar fatos novos. gimes militares pela mobilização popular
Explico-me. Em pleno regime autori- e por sua sustentação organizada na so-
tário, antes da liberalização (quando se ciedade — baseada na crença de que o
falava de "descompressão") a Sociedade Estado tudo pode — deixou brechas
Brasileira para o Progresso da Ciência, inesperadas na organização sindical. Na
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Neste ponto, o jogo cênico da proje- continente, é sempre regulada por uma Cidadania
ção de desejos e de valores pelos meios instância social do Estado. contemporâne
típicos da sociedade de consumo e das Mas seria um equívoco pensar que a:
grandes massas e a reivindicação direta assim se consolida o liberalismo. Não se para além do
de uma vontade social que se tece no trata aqui do individualismo possessivo, individualismo
reconhecimento da identidade de quem nem existe a crença segundo a qual o possessivo.
está próximo e da exterioridade de um cidadão é o proprietário.
outro que é, ao mesmo tempo, adversá- Já disse que a reivindicação nasce com
rio — inimigo mesmo — e padrão de o espírito da communitas; menos do que
referência, torna clara a complexa rela- o êxito individual na competição regida
ção política em emergência. pelo mercado (da economia ou da polí-
Movimento social, espírito de comu- tica) dá-se o encontro entre uma moti-
nidade, concreção de relações primárias vação solidarista, fortemente associativa,
entre a base e a liderança (um padre, um e o reconhecimento pelo estado do "di-
vizinho, um líder sindical definidos) são reito da categoria", do bairro ou do
ingredientes muito fortes no processo grupo.
reivindicante. Este seria o segundo engano: o de
Diante deles os partidos podem pare- crer que o espírito democrático latino-
cer débeis para expressar o momento de americano dispensa o estado e os parti-
globalidade; o Estado, que sem dúvida dos. A leitura anarquista e libertária na
expressa o UNO, como diria Touraine, análise de alguns destes movimentos so-
passa a ser alvo e esperança. É comum, ciais tem induzido uma teorização da
neste contexto, esboroar-se a força rei- "sociedade pura", como se, de repente,
vindicante do movimento social no es- abolíssemos não só os regimes militares,
critório do funcionário do Estado, seja mas o capitalismo oligopólico e suas
concedendo a demanda, seja interpondo instituições, à frente das quais o Estado
entre ela e a massa a barreira da violên- Providência (hoje o Estado Endividado).
cia que corta expectativas. Não é o que ocorre, não obstante. É
E muita tinta tem sido gasta para en- esta fusão entre a consciência da dife-
tender a "novidade" do movimento so- rença — do específico —, que constitui
cial e da constituição de novos atores novos atores, e o reconhecimento do Es-
políticos. Não faltou mesmo quem pas- tado como instância reguladora necessá-
sasse do temor de um novo populismo ria da nova sociedade, que faz emergir
(quando o funcionário se casaria com o um paradigma de democracia distante
líder social) para o extremo oposto: dos moldes clássicos. Nele, por certo, o
mortos os partidos, nasceriam os novos Estado representa a dominação de clas-
atores da liberação social, capazes de or- ses. Mas não se resume a ela. E isto por
ganizar a sociedade autoprogramada. várias razões: porque ao tornar-se Esta-
Duplo engano. Amiúde a retórica do-produtor e ao dar abrigo a uma bu-
forte dos movimentos de base, os da rocracia empresarial a luta reivindicativa
Igreja Católica sobretudo, esconde por "da sociedade" passa a ser, ipso facto,
trás da teologia da libertação e de uma uma luta "dentro do Estado"; porque
nunca completamente enunciada teoria em suas funções reguladoras o Estado
da nova revolução, uma profunda cons- intervém na competição entre capitais e
ciência de direitos e de reivindicação de na formação deles; porque a regulamen-
participação democrática. Dá-se uma re- tação da cidadania, como disse, não se
leitura de Marshall, com a Igreja a jogar resume à definição da condição de elei-
o papel, a despeito da linguagem, de tor, mas implica na concessão pelo Esta-
grande propulsora da cidadania. Fenô- do de direitos sociais publicamente re-
meno não surpreendente para quem sabe conhecidos; e assim por diante.
que, em nome de Deus, de seu chama- O Estado passa a existir entrelaçado
mento e de uma ética de restrições e de com a sociedade, refazendo, de outro
trabalho, o protestantismo ajudou à for- modo, a distinção clássica entre a socie-
mação do capitalismo. Nesta ótica, a dade civil e a sociedade política. Dá-se
doutrina social da Igreja, a revalorização a panpolitização do social e, nesta acep-
dos pobres e a reivindicação social mais ção restrita, a socialização do estatal.
forte, estariam contribuindo para o sur- Emerge, no horizonte valorativo das
gimento da democracia na América La- crenças democráticas a noção do público:
tina e para a ampliação da cidadania. mais do que restringir a ação do Estado
Cidadania esta que, nas condições do e dar força ao setor privado a luta anti-
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