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A

DEMOCRACIA
NA
AMÉRICA
LATINA
Fernando Henrique Cardoso

il novecentos e oitenta e qua- zada em sociologia política foi pródiga


tro. Faz vinte anos, ruía na na descrição dos regimes militares e no
América Latina o governo elei- vaticínio sobre seu destino à durabili-
to do Brasil. Esta queda iniciou dade. Houve, sem dúvida, acertos razoá-
a série de golpes militares no continen- veis na análise. Dois foram os debates
te. Pouco a pouco, como num jogo de que apaixonaram: a relação entre desen-
dominó, foram caindo governos atrás volvimento econômico e ditadura militar
governos: o de Ilia, na Argentina, o de e a natureza propriamente política dos
Belaunde, no Peru, o do Uruguai, o da regimes recém-instalados.
Bolívia, até que — suprema humilhação Neste último aspecto, houve avanços
para o regime que era a quintessência da consideráveis na análise. A surpresa dos
democracia latino-americana — deu-se a primeiros golpes, unificou as perplexida-
tragédia de Allende, em 1973. des: caudilhos militares outra vez, foi a
O ciclo O Cone Sul inteiro, virava um grande primeira reação dos analistas para quali-
Paraguai (onde Stroessner já comemora ficar as ditaduras. Stroessner teria vin-
"paraguaio"? mais de trinta anos de ditadura militar). gado o Paraguai derrotado pela guerra
Daí por diante, a literatura especiali- da Tríplice Aliança (Argentina, Brasil e

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Uruguai) impondo, um século mais tar- do-os sentir os 1, 2, 3 muitos Vietnãs


de, aos vencedores de antes, o modelo por toda parte —, os militares acentua-
de dominação personalístico-militar. Du- ram a repressão, valorizaram a ordem
rou pouco o engano. Se fora certa ver e, se algo institucionalizaram foi o espí-
em Ôngania a figura do chefe persona- rito corporativo. Ocuparam descarada-
lista e se no Brasil um marechal como mente as instituições estatais e fizeram Quixotes contra
Castello Branco — entre os muitos que do solo da burocracia campo próprio de Torquemadas:
temos — deixara sua marca no novo manobras. o nascimento
regime, os uruguaios mantiveram a apa- Nasciam assim, sob o incentivo do me- dos regimes
rência civil do regime e os brasileiros, do — por toda a parte sentiam a amea-
apesar dos chefes, estavam subordinados ça do comunismo — os regimes do ter-
do terror.
antes às Forças Armadas como corpora- ror. Não que inexistisse a ameaça. Os
ção, do que aos caprichos de um homem. tupamaros, os montoneros, os guerri-
Na sinuosa história política latino- lheiros das cidades (mais do que dos A metamorfose
americana — e eu vou referir-me mais campos) viviam sua saga, pagando com do caudilhismo:
ao sul do continente do que às demais
regiões — renascia das cinzas do caudi-
sangue o tributo à possibilidade, que burocratização
acreditavam existente, de fundar na terra das F.A. e
lhismo outro fenômeno, talvez menos o paraíso sem males da igualdade social.
maléfico quanto às aparências, mas mais Mas entre o visionarismo armado de uns autoritarismo.
persistente em seus efeitos: a burocrati- e a bestialidade de repressão estatal de
zação das Forças Armadas servindo de outros, a distância era enorme. A tortura
espinha dorsal para o autoritarismo do
ganhou dos quixotes modernos a batalha
Estado.
política. E tentou fazer das sociedades,
Curioso processo este. Mais curioso
sanchos-pança da ordem, quase sem pro-
ainda porque nasceu sob o incentivo de gresso.
dois outros fenômenos — que acaba- Mas que ordem era esta?
ram por corresponder-se reciprocamente E foi neste ponto que houve avanço
— e que não têm origens estritamente teórico significativo. Os novos regimes,
burocrático-autoritárias: o da profissio- de base militar, eram, na expressão con-
nalização das Forças Armadas e o da sagrada de Guillermo O'Donnell, buro-
guerrilha revolucionária. Ambos, por crático-autoritários.
certo, assim atuaram por efeito do con- Não se tratava mais — eu notara isto
flito leste-oeste, refletindo, com atraso, no caso brasileiro nos anos 60 —
o calor da "guerra fria". do caudilhismo tradicional. Mesmo Pi-
De fato, se o golpe de 1964 no Brasil nochet, que veio depois, expressava e
fez-se "em nome da democracia", na estava submetido a um enquadramento
luta contra o populismo e o esquerdis- da Corporação Armada. O ditador podia,
mo, que propunham reformas de base como no Brasil, disfarçar-se em presi-
nas estruturas sociais e eram acusados dente eleito pelo Congresso; os partidos
de violadores da Constituição, fez-se redefinidos pela nova ordem, funciona-
apoiado no setor do exército que, in- riam e o Congresso referendaria a esco-
fluenciado pelos ideais democrático-libe- lha do presidente.
rais reativados na luta contra o nazi-fa- Por certo, a ambigüidade entre a for-
cismo na Itália durante a Segunda Guer- ma democrática e a substância autoritária
ra Mundial, tornara-se, também, o mais assegurada pela tropa e pela rigidez dos
"profissionalizante". Tanto assim que no controles estatais, desapareceria na Ar-
livro famoso de Alfred Stepan The Mi- gentina, porque nela a Junta Militar —
litary in Politics, ainda se esperava dos os chefes das três armas — silenciara
militares profissionais aquilo que Samuel tudo mais. No Uruguai, mantinha-se ora
Huntington considerara sua "missão": um colegiado civil, ora um presidente
ajudar a institucionalização da vida es- civil. No Peru, militarizava-se mais ain-
tatal e política. da na aparência: as Forças Armadas as-
Ledo engano. Não bastavam as pro- sumiram a revolução e a queriam pro-
clamadas intenções "liberais" e "institu- gressista. E na Bolívia, funcionava a
cionalizadoras" para nortear o caminho gangorra permanente entre personalismo
do novo militarismo. Atormentados pela caudilhesco, controle corporativo do
eventualidade da guerra revolucionária exército e generais democratizantes.
das místicas guerrilhas do "Che" — a Mas, a despeito da forma do regime,
imaginação militar-obscurantista operava o substrato comum era claro: ao invés
verdadeira multiplicação dos pães, fazen- da competição livre do poder entre par-

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tidos, o rígido controle dos comandos "internacionalização do mercado inter- Os regimes
burocráticos militares; à ideologia es- no". Em palavras diretas: as corpora- burocrático-
querdista-progressísta que era mobiliza- ções multinacionais, desde meados dos autoritários.
dora, contrapunha-se a rígida noção de anos 50, mais aceleradamente entre
que mais vale a apatia das massas e a 1965/1975, investiram maciçamente em
clarividência dos líderes encastelados no alguns países da região, Brasil especial-
Estado; à ideologia democrático-liberal, mente. Quisessem ou não, os militares,
opunha-se a noção de um certo estatis- neste caso, foram garantia de internacio-
mo dirigista, baseado em Planos de De- nalização da economia e com sua repres-
senvolvimento e almejando a grandeza são ajudaram a conter os ímpetos redis-
da pátria. tributivistas, facilitando a acumulação de
Regimes desmobilizadores, portanto. capitais e o crescimento econômico.
Frios quanto ao chamamento ideológico, Entendamo-nos bem. Não foram os O "tripé" de
mesmo para motivar os que os apoiavam. militares por sua ação, que investiram quatro pernas:
Repressivos até ao limite da tortura. capitais e desenvolveram a base produ- estatais,
Controladores até a supressão da liber- tiva dos países. Foram as grandes em- multinacionais,
dade de imprensa e de comunicação. presas. Nem houve sequer (salvo em
Híbridos, muitas vezes, hesitando entre modestíssima escala no Peru) um esfor- e nacionais e
a profissionalização da tropa e a ocupa- ço para dotar o Estado-nação de capaci- a ordem
ção aberta e descarada das sinecuras e dade autônoma de produção. Ao contrá- repressiva.
cargos públicos pelos militares. rio, aceitou-se a ideologia predominante
Mais próximos estiveram estes regi- de associação crescente entre o setor pri-
mes da situação espanhola pós-movimen- vado nacional, o setor estatal e as mul-
to propriamente fascista ou da portugue- tinacionais, os quais constituiriam, em
sa do salazarismo, do que do fascismo conjunto, o "tripé do desenvolvimento".
italiano ou alemão que fora mais civil, Mas, se é certo que em alguns países
mais mobilizador e ávido pelo controle — especialmente nos que se militari-
partidário. Na América Latina dos mili- zaram na década de 70, como a Ar-
tares no poder, os partidos são mais or- gentina e o Chile — a "nova direita" e
namentos do regime do que peça de sua a "nova economia" já operavam para
sustentação. Quando existem, vivem à reforçar a divisão internacional do tra-
míngua do poder, sequiosos por ele, sub- balho que manteria a diferença entre
servientes, quase sempre, aos verdadei- países industrializados e agro-exportado-
ros amos e senhores. res, os regimes militares não pregavam
Mas quem seriam estes? o "imobilismo econômico", como se
E é neste ponto que passo a falar so- anunciara e temera na década de 1960.
bre a relação entre a ditadura militar e Noutras palavras: a dinâmica da eco-
o desenvolvimento econômico. nomia, mesmo nos países dependentes,
De início, como os golpes se opuse- não obedece as ideologias. Estas se mes-
ram ao progressismo latino-americano clam àquela, redefine-a, às vezes dá-lhe
(fosse ele populista, como no caso de maior ou menor velocidade. Mas a dinâ-
Goulart, desenvolvimentista, como no mica da economia não se resume ao dis-
caso de Ilia, popular-desenvolvimentista, curso dos que mandam. Na Argentina e
como com os peronistas ou com Belaun- no Chile, houve, por certo, uma desace-
de, popular-socialista, como no caso de leração do crescimento, sem que deixas-
Allende) imaginou-se que teriam ocorri- se de haver a internacionalização da
do para "impedir o desenvolvimento economia. Mas no Peru e notadamente
nacional". Não foram poucos os autores no Brasil, os militares conviveram com
que viram no militarismo a marca do o crescimento econômico, sob a forma
colonial-fascismo. A dependência econô- do que eu chamei de "desenvolvimento
mica fazia renascer o fantasma da volta dependente-associado". Expandia-se a ba-
à agricultura e à exportação; da morte se produtiva do país, incentivavam-se as
da industrialização; da minimização da joint-ventures com as corporações mul-
idéia de Estado-nação e de política ex- tinacionais e aceitava-se o estilo de de-
terna independente. senvolvimento que ligava umbilicalmente
Fui dos que se opuseram, na época, as economias locais às exteriores.
a esta tese para analisar o caso brasilei- O ponto importante a assinalar diz
ro. Não que os militares propusessem respeito a que, sob este aspecto, a mili-
incentivos ao "popular desenvolvimen- tarização do poder jogou um papel me-
tismo". Mas ocorrera o que chamei de nor do que se imaginava. A análise

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comparativa das políticas econômicas Não desejo discutir aqui, estes aspec-
entre países com regimes militares e des- tos contraditórios da ideologia dos regi-
tes com as democracias remanescentes mes burocrático-autoritários. Prefiro
no continente mostra que o estilo do ater-me às conseqüências efetivas da
desenvolvimento deveu-se menos à for- relação entre este tipo de regime e a so-
ma do regime, do que ao tipo de Estado. ciedade que o desenvolvimento depen-
Que quero dizer com isto? Apenas dente-associado criou. Um Estado
que se é verdade que os regimes se mili- Cabe, desde logo, fazer uma distinção de dominação de
tarizaram, o novo poder não alterou as entre países. No extremo sul do conti- classes menos
bases da dominação social. O Estado, nente (Argentina, Chile e Uruguai) as que burocrático-
enquanto síntese das relações de domi- políticas internacionalizadoras da econo- militar
nação, continuou respondendo às classes mia operam sobre uma base social e pro-
e não, estrito senso, ao estamento buro- dutiva que desde o século passado havia
crático-militar. Assim, a resposta à per- sido formada com duas características
gunta "quem manda", é só parcialmente: marcantes: exitosas economias primário-
os militares. Mandam, sim; controlam o exportadoras e forte capacidade integra-
Estado; mas não definem neste mandar dora da sociedade. Trata-se de países
e neste controlar as políticas centrais do que transplantaram para a América La-
governo. tina populações européias que dizimaram
ou concentraram regionalmente as po-
pulações indígenas preexistentes e que,
ê-se por aí a conseqüência ao sopro da antiga divisão internacional
imediata da inexistência de um do trabalho especializaram-se na comple-
"partido militar" ou de um mentação da economia da Europa. So-
partido reacionário estrutura- cialmente, o capitalismo de velho estilo
do. Desferido o golpe, alijadas do gover- lançou raízes neste tipo de sociedade. As
no as forças políticas consideradas alvos classes se formaram à européia, com uma
preferenciais (os progressistas, esquerdis- burguesia competitiva, uma pequena
tas, nacionalistas e democrata-populares) burguesia imigrada, e uma massa de tra-
os militares chamam ao governo os con- balhadores assalariados, tanto no campo
servadores-liberais e os tecnocratas ou como na cidade, sem sofrer a concorrên-
são por eles cercados. E, paradoxal- cia de ex-escravos, de indígenas desen-
mente, no que diz respeito à política raizados ou de bolsões de miseráveis e
econômica, comportam-se como se fos- marginais.
sem rainhas da Inglaterra: assistem à "li- Os golpes militares nestes países, des- Relações
beralização da economia", às vezes com troçaram de fato, instituições democrá- diferenciadas
calafrios nacionalistas na espinha, e ter- ticas: partidos arraigados na população e entre golpes e
minam por assumir, na prática, a posi- com longa história, parlamentos respei- cada base
ção de que "o que é bom para a General tados pela cidadania e, numa palavra, social
Motors é bom para o país". uma "sociedade civil" relativamente ati-
Este aspecto híbrido dos regimes mili- va. Encontraram estruturas estatais só-
tares desconcertou a muitos analistas. lidas, com ampla capacidade de coorde-
Por um lado a repressão, a vontade de nação econômica, mas sem uma burocra-
tudo ordenar para imprimir numa socie- cia isolada dos partidos. Os militares
dade que eles consideram senão anár- tiveram, portanto, que coibir duramente
quica, amorfa, a marca de uma disciplina
a sociedade e encontraram terreno menos
capaz de suportar os atropelos da reivin-
dicação social. Por outro, uma condução fértil na burocracia e no estilo de desen-
político-econômica orientada pelos velhos volvimento econômico (menos marcado
ideais de laissez-faire, mas que, pouco a pela presença das grandes corporações
pouco, se transfigura em dirigismo e in- oligopolísticas internacionais) para servir
tervencionismo estatal para assegurar o de patamar ao "salto para frente" das
crescimento a partir das grandes empre- ideologias de grandeza nacional.
sas oligopólicas. E à margem de tudo Outro é o panorama da sociedade bra-
isso, pela voz dos conservadores, o eco sileira e mesmo da peruana, como outro
do liberalismo político, tentando contra- seria o da mexicana e da venezuelana se
por-se ao mesmo tempo ao corporativis- nelas tivesse ocorrido a militarização do
mo militar-estatal e aos traços mais Estado. Os traços patrimonialistas da
abertamente fascistas que setores da so- sociedade são mais fortes, as classes me-
ciedade e das Forças Armadas nunca nos nítidas à luz do figurino da Europa
deixam de propor. de antes da Segunda Guerra Mundial, os

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bolsões de "marginais" muito grandes Na Argentina, de igual modo, desor- Do uso e
não só regionalmente (como no Nordes- ganizou-se a base produtiva assentada no abuso das
te brasileiro ou no "Altiplano do Peru"), velho capitalismo competitivo e, se pro- "necessidade
como também nas áreas mais desenvolvi- gresso houve nas exportações (como s
das. Simultaneamente, o impacto da nova eventualmente também ocorreu no Chi- históricas"
industrialização posterior a meados da le) deveu-se apenas aos incentivos que,
década de 50, criara já nestes países um na antiga ordem econômica teriam be-
Estado-empresarial moderno e um em- neficiado alguns setores com os ventos
presariado internacionalizado. da prosperidade: a exportação agrícola
Ocorreu com a estrutura social e pro- para um mundo — no caso o soviético,
dutiva destes países algo semelhante a principalmente — faminto de grãos no-
um grande corte histórico. Passaram da bres e baratos. Quanto ao resto, foi só
economia agro-exportadora e dos bolsões desmando; especulação financeira, evasão
da economia de subsistência que sufoca- de divisas e retração, até mesmo numéri-
vam o parque industrial relativamente ca, da base produtiva e da classe traba-
modesto, orientado para o mercado in- lhadora.
terno e sustentado pelas "políticas de Neste caso — no argentino — se dos
substituição de importações", para o es- militares no poder se esperava a grande
tilo de desenvolvimento baseado nas transformação que, acumulando capitais,
grandes corporações privadas e estatais aprofundaria a divisão do trabalho e lan-
funcionando no quadro da atual inter- çaria o país numa "etapa superior" de
nacionalização do processo produtivo. desenvolvimento econômico, teve-se ape-
Correlatamente, o antigo patrimonialis- nas imobilismo e desacerto, como que
mo refez-se no setor produtivo estatal, dando razão às análises não dos argen-
a burocracia modernizou-se, sem perder tinos que esperavam que lá ocorresse,
força, as classes trabalhadoras urbanas e como no Brasil, o "milagre econômico",
as classes médias modernas (cujos compo- mas aos sociólogos e economistas brasi-
nentes são empregados das grandes cor- leiros, se estes, quando falavam em "pas-
porações privadas e públicas, ou exercem torização" da economia se tivessem refe-
profissões de base técnica e no terciário rido à Argentina e não à sua própria
moderno — educação, saúde, comunica- terra...
ção social, administração, etc.) passaram Outro foi o impacto das políticas eco-
a viver ao compasso das "sociedades de nômicas dos regimes militares no Peru
massa". E mesmo no campo — onde
e no Brasil, pois nestes países não ocor-
permanecem quase intocados segmentos
reu uma adesão à histeria friedmaniana.
da antiga estrutura social — chegam os
Pelo contrário, os núcleos de racionali-
efeitos da capitalização e da moderniza-
dade desenvolvimentista, assentados no
ção da sociedade.
Vê-se, portanto, que se em qualquer setor produtivo estatal e na dinâmica da
dos casos aqui mencionados o regime empresa privada, tolheram os efeitos das
burocrático-militar, no aspecto político, propostas ortodoxas. Se vez por outra,
se assemelhou, pelo menos quanto às notadamente no caso brasileiro, a retó-
ideologias, quanto à forma do regime e rica era deste tipo, na prática os gover-
quanto à voracidade repressiva (embora nos não deixaram de sustentar o setor
com graus diferentes em cada país, público, de manter ativa política de ex-
conforme a diversa resistência das clas- pansão e de promover, desordenada-
ses e de seu ímpeto de luta), outras fo- mente, associações, como já disse, entre
ram as conseqüências das políticas eco- capitais locais, estatais e internacionais.
nômicas adotadas e diferentes foram os Só recentemente, sob pressão da crise
efeitos do impacto do crescimento eco- mundial, do endividamento extraordiná-
nômico dependente-associado sobre a rio da economia e da política monetária
sociedade. de Reagan tentando contornar o déficit
Com efeito, no Chile e no Uruguai a público pela via do aumento e da flutua-
"nova economia" mais não fez do que ção da taxa de juros, viu-se o Brasil de-
diminuir o ímpeto de crescimento, pri- sistir de dizer uma coisa, em linguagem
vatizar setores da atividade econômica de ortodoxia econômica, e praticar outra,
e social sem dotá-los de recursos de no mais puro desenvolvimentismo ao
expansão, manter, quando não ampliar, estilo latino-americano.
o desemprego e transformar em carica- Vê-se, portanto, que não foram pro-
tura a inserção das economias locais na priamente os militares ou os regimes
nova divisão internacional do trabalho. burocrático-autoritários que deram o tom

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às economias. E nem se pode atribuir a nado dos círculos militares e administra-


emergência das ditaduras à discutível tivos vinculados aos serviços de manu-
"necessidade histórica" que as fases do tenção da ordem e de controle das infor-
crescimento econômico imporiam. Tam- mações) durasse mais do que os momen-
pouco cabe imaginar que em sociedades tos de conflito político-social aberto ou
estrutural e historicamente diversas, co- que se dirigisse indiscriminadamente à
mo as que estou analisando, políticas e sociedade toda, restringindo-se aos seto-
ideologias a grosso modo semelhantes, res ditos "subversivos".
tenham efeitos homogêneos. A própria dinâmica da economia in-
Estas diferenças, por sua vez, não ex- ternacionalizada leva à abertura de hori-
plicam, embora qualifiquem, o modo do zontes. Homens de negócio, técnicos,
renascimento do ideal e das práticas de- assessores, universitários e estudantes
mocráticas na América Latina. E, nesta vão e vêm pelo mundo afora ao ritmo
altura da exposição, gostaria de reavaliar da expansão da produção, dos investi-
os caminhos e o significado da nova vo- mentos externos e do comércio. Não se
ga de democracia no continente. atêm ao horizonte cultural estreito que,
nos piores momentos, o militarismo ten-
A voga democrática ta impor ao país.
A resistência democrática, até que
az pouco tempo, era de bom ocorra a liberalização do regime, convive
tom vaticinar a estabilidade e com o autoritarismo. Esta resistência fin-
a durabilidade dos governos ca raízes no plano social, mais do que
militares; predomina agora a no político. E no plano da própria luta
tendência oposta. Vê-se, por todo lado, burocrática, mais do que nos partidos,
democratização. Convém indagar: até proscritos ou amesquinhados.
que ponto é isto verdadeiro e o que Com as prudentes ressalvas quanto à
significa democracia em países da perife- diversidade de situações de país para país
ria do sistema capitalista mundial que, e de momento para momento, é inegável
bem ou mal, se industrializaram e se mo- que a Igreja Católica, por um lado, a pe-
dernizaram. quena imprensa que foge ao controle dos
Quanto à tendência democratizadora, meios de comunicação, de outro, os grê-
é preciso vê-la cum grano salis. Ela exis- mios profissionais (dos advogados e dos
te, e é geral, ao nível da sociedade. escritores, sobretudo), as Universidades e
Encontra resistência, e em alguns países algumas organizações científicas, bem
resistência vitoriosa, ao nível do Estado. como setores sindicais, acabaram por to-
De fato, paradoxalmente, o conserva- mar em suas mãos, com força, o tema
dorismo desenvolvimentista sustentado dos direitos humanos e, mais tarde, o
por alguns governos militares e o caráter da redemocratização.
híbrido do autoritarismo antipartidário É certo que a política de defesa dos
acabaram criando condições sociais adver- direitos humanos do governo Carter con-
sas à duração dos regimes de exceção. tribuiu para legitimar estas lutas. E dú-
Em alguns casos, como notadamente vida não cabe que a condução desastrosa E o Josué
no Brasil, a nova sociedade — de mas- da Guerra das Malvinas foi o fenômeno militar
sas, aberta à influência do cosmopolitis- precipitador principal da retomada de-
mo cultural, sincopada ao ritmo das tele- mocrática da Argentina. Mas, ainda as- não pode parar
visões e dos mass-media — tão logo os sim, os "fatores externos" apenas rede- o Sol. . .
regimes se liberalizaram, tornou-se uma finiram e acentuaram um processo de
sociedade reivindicante. Noutros casos, luta democrática que já estava presente
mesmo sob o guante militar — como no nas sociedades latino-americanas. E neste
Chile e no Uruguai —, a própria inter- caminhar para a redemocratização creio
nacionalização do sistema produtivo e a que surgiram novas práticas e há em
não fascistização completa do poder emergência novas idéias.
mantiveram quando não expandiram os Quanto às novas práticas, o que cha-
núcleos da sociedade civil que resistem ma mais atenção ao observador que co-
ao autoritarismo. Mais ainda, nos países nhece a dinâmica das sociedades latino-
em que existe a presença ativa das "no- americanas (e elas ocorrem também em
vas classes" (o empresariado internacio- países que não foram vítimas de regimes
nalizado, os setores médios modernos e militares), é a presença dos "movimentos
as lideranças operárias), tornou-se difícil sociais" no quadro preferencial da polí-
que o ímpeto repressivo (em geral ema- tica. É óbvio que a mobilização de mas-

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sas, as greves, o protesto urbano e o ru- litical life after autoritarian rule:
ral, não são fenômenos novos nestas tentative conclusions about uncertain
sociedades. O que é novo é sua reper- positions, p. 94).
cussão na percepção dos atores políticos Não subscrevo, totalmente, esta afir-
e é o entrelaçamento entre eles, os par- mação como já veremos. Mas é inegável
tidos e o Estado, sobre o qual falarei que a contenção das práticas repressivas
adiante. e a aceitação da liberalização do regime
Entendamo-nos bem. Na resistência por parte de setores das Forças Armadas
ao autoritarismo, inicialmente, os movi- e do governo foi e é, condição impor-
mentos sociais não correram à frente. A tante para a superação do autoritarismo.
resistência se deu a partir dos setores Mas por que se reforçam os "brandos"?
progressistas da "classe média": bispos É neste ponto que se dá o entrecru-
e padres, professores e jornalistas, fami- zamento da luta no plano da sociedade Por que se
liares de presos políticos. Tratava-se com o jogo propriamente político. Não reforçam os
antes de uma ação de exemplaridade, de ocorre, necessariamente, a conversão ín- "brandos"?
poucos, e em geral realizada por perso- tima de alguns donos do poder (aliás,
nalidades que por sua eminência social quem disto pode saber com certeza, se-
ou cultural estavam mais abrigadas da não o psicanalista ou o padre confes-
repressão. Mas o que tornou os regimes sor?). O processo político requer outro
militares mais vulneráveis foi a junção tipo de explicação: na luta interna pelo
dos efeitos liberalizadores desencadeados poder — especialmente diante de algum
por estas lutas com a reivindicação so- fracasso econômico ou militar dos gene-
cial mais ampla. rais de turno ou quando se aproxima o
Daí que, na dinâmica política, antes de período de sucessão normal da chefia —
ocorrerem avanços propriamente redemo- as bandeiras disponíveis para a apresen-
cratizadores (eleições livres, regionais ou tação de plataformas de ação não são
nacionais, limitação dos efeitos de leis re- ilimitadas. A existência, na sociedade,
pressivas, anistias, reconhecimento da vi- de focos liberalizantes e a necessidade de
da partidária, etc.) houve a criação de um ampliar a base de apoio para reforçarem-
clima de diminuição do medo à repressão se no poder faz com que alguns setores
e de garantia de liberdades civis (habeas militares ultrapassem o círculo dos que
corpus, liberdade de imprensa, etc.). mandam e emitam sinais liberalizantes
A tal ponto valeu como força política hacia afuera. O general repressivo de
este ganho paulatino de espaços de li- ontem, traveste-se, assim, com as rou-
berdade que em teorização recente sobre pas mais suportáveis do liberalismo de
o modelo da transição à democracia, amanhã.
O' Donnell e Philippe Schmitter, fazem- Estabelecida esta dinâmica, depois de
na repousar primordialmente no conflito tateios, dificuldades e rejeições entre os
interno ao regime, entre "duros" e grupos de resistentes para que sejam es-
"brandos", definidos os últimos como tabelecidas pontes com os setores do
os que advogam a liberalização política. regime que se propõe a uma "abertura",
Pouco a pouco, na crença destes autores, ou o processo de transição se estiola em
passar-se-ia à efetiva redemocratização. umas poucas concessões ou entram em
E é tal o cuidado para evitar que no ca- cena novos atores, menos motivados pelo
minho se perca a chance de um horizonte abrandamento da ordem política e mais
democrático, e são tão tenras e instáveis exigentes quanto à ordem social e quan-
as forças realmente redemocratizadoras to à agenda efetivamente redemocrati-
em jogo que, para eles: zadora.
Our factual conclusion — stated Por isso, faço reservas às conclusões de
above as a normative preference — O' Donnell e Schmitter. Não se trata de
is that for such countries the only andar devagar, negociando cada passo,
route to political democracy is a pa- para evitar o retrocesso, mas de ter ca-
cific and negociated one, based on cife para, desatada a dinâmica liberaliza-
initial liberalization and the introduc- dora, forçar situações políticas que trans- Devagar com o
tion of institutions of electoral com- formem o regime. Aplica-se aqui o afo- andor que o
petition, interest representation and risma: em política ou se deslocam os
executive accountability, with the limites do possível, ampliando os hori- santo é de barro
costs, trade-offs and uncertainties zontes de alternativas, ou se aceita que ou alimentar
such a course, entails (Guillermo a forma atual da ordem é a conveniente. a paixão pelo
O'Donnell e Philippe Schmitter, "Po- É neste sentido dinâmico que eu inter- possível?
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A DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA

preto a frase de Kierkegaard, tão do no Brasil, viu sua Reunião Anual trans-
agrado de Albert Hirschman: convém formada em uma quase "Convenção do
alimentar a paixão pelo possível. Mas Terceiro Estado". Só que os porta-vozes
como toda paixão, esta também idealiza não eram propriamente membros do
seu limite e o vê em expansão contínua. Terceiro Estado: eram eminentes cien-
tistas ou homens de cultura que por esta
a tarefa de Sísifo de expandir característica "chamavam a atenção" e
as fronteiras do que pode ou tinham os meios de comunicação de
não ser feito num regime au- massa dispostos a dar-lhes certa cober-
toritário é que contou deci- tura. Na Argentina não foram os cien-
sivamente a ação de exemplaridade de tistas que cumpriram este papel, mas
pessoas e grupos ligados ao que, na Amé- um Prêmio Nobel da Paz ou um jorna-
rica Latina, se convencionou chamar de lista anglo-argentino que, publicando em
"sociedade civil". A própria ambigüidade inglês, em Buenos Aires, denunciava as
vocabular — sociedade civil — que dis- violências.
torce a interpretação correta do conceito, Mais tarde, quando os ventos liberali-
ajudou a formar um clima de oposição zantes sopraram mais forte, os meios de
aos militares. Na prática, todo embrião comunicação, e notadamente a imprensa,
de organização da sociedade e toda per- atuaram decididamente para dar maior
sonalidade que se destaca na luta contra nitidez, não apenas à reivindicação de-
o autoritarismo passa a fazer parte deste mocrática, mas à reivindicação social.
partido dos sem partido: a sociedade ci- Primeiro foi a vez dos empresários.
vil. A tal ponto materializou-se a corren- Lideranças foram constituídas não tanto
te antigoverno e anti-regime assim con- por delegação das bases empresariais,
siderada que, ingenuamente, um dos mas através do processo ao qual já me
principais jornais brasileiros publicou o referi, que vincula imprensa, intelectuais
governador de oposição de um Estado capazes de formular propostas alternati-
numa fotografia em que aparecia a "so- vas para a política econômica e modelos
ciedade civil", isto é, os presidentes das de conduta democrático-reivindicante
associações profissionais e voluntários e com personalidades empresariais que
as personalidades altivas que mantêm a "vestiam o figurino". A tal ponto que
chama da luta pelos direitos civis e po- a reivindicação pública do "direito de
líticos. . . greve" foi posta na boca de um líder
Apesar dos exageros, ocorre, efetiva- empresarial antes do que na de um diri-
mente, nos países que sacodem a poeira gente sindical... E houve um jornal,
do autoritarismo uma espécie de "inven- especializado em business, a Gazeta
ção dos atores". Esta invenção desdobra- Mercantil, que praticamente formalizou
se em dois tempos. No primeiro criam-se a existência de lideranças antigoverno
as entidades de resistência: as Comissões e anti-sistema, através da criação de um
de Justiça e Paz da Igreja, as "Mães dos forum anual de empresários que elegia
desaparecidos", os Comitês pela Anistia, previamente os "dez mais" da categoria e
etc. É normal, em qualquer situação his- os fazia aprovar uma declaração, quase
tórica, que haja uma articulação deste sempre reivindicando democracia e livre
tipo, tão logo os regimes, por suas con- iniciativa.
tradições internas ou por fenômenos ex- É este aspecto de ressurgimento da A eficácia do
ternos aos países, são incapazes ou não política fora dos tentáculos do Estado — espalhafatoso
mais desejam congelar a sociedade. O ao nível da sociedade —, mas por meca- na política
que foi peculiar no caso latino-americano nismos próprios das "sociedades de mas-
foi a institucionalização prática de ins- sa", que chama a atenção. Há sempre
tâncias reivindicativas, de canais de ne- algo de espalhafatoso, de capaz de ser
gociação entre a sociedade e o regime e consumido pelo grande público, de qua-
mesmo de lideranças a partir de círculos se-publicidade, mesmo no mais autêntico
muito limitados de pessoas, mas com movimento liberador.
alta capacidade — pelas características Não foi diferente, neste aspecto, com
das sociedades de massa contemporâneas os sindicatos. O mesmo desdém dos re-
— de criar fatos novos. gimes militares pela mobilização popular
Explico-me. Em pleno regime autori- e por sua sustentação organizada na so-
tário, antes da liberalização (quando se ciedade — baseada na crença de que o
falava de "descompressão") a Sociedade Estado tudo pode — deixou brechas
Brasileira para o Progresso da Ciência, inesperadas na organização sindical. Na

52 NOVOS ESTUDOS N.° 10


Argentina seria quase natural que assim quem veja o risco de um novo populis-
fosse, dada a tradição sindicalista-buro- mo na fusão entre a exemplaridade da
crática. Os militares poderiam confiar na ação de uns poucos, com o borbulhar
inércia dos aparatos. Mas no Chile, onde efetivo da reivindicação das bases, fil-
houve tantos expurgos, foi inesperada a trada pelo estilo pasteurizado de institu-
reação recente da liderança sindical nova. cionalização do novo pela via da TV.
E no Brasil os militares de tal forma Terrível engano. A nova sociedade, ao
"despolitizaram" o movimento operário, mesmo tempo em que gera a "cultura
pela repressão e pelo pouco caso à base do espetáculo", que penetra na política,
sindical, que sem o querer permitiram a gera também dois fenômenos específi-
criação de novas lideranças e de um ger- cos: a segmentação do social e a busca
me de sindicalismo reivindicante. de um novo espírito de comunidade.
Com efeito, durante os largos anos do Não me cabe neste momento descrever
regime puramente arbitrário, os sindica- os efeitos — muitos dos quais perversos
tos, à sombra do grande público, foram- — da nova sociedade ("programada", de
se reforçando com aparatos corporativos. serviços, "de massa" ou que apelido te-
Engajaram advogados, construíram pré- nha) sobre a integração das classes. Mas
dios, criaram jornais. E lutaram por não é difícil perceber que o transplante
vantagens materiais para suas categorias. das formas de produzir e de viver das
No instante em que se dá o início da sociedades de capitalismo avançado para
liberalização, há uma metamorfose: gre- os países da periferia, aumentou a cha-
ves bem organizadas e lideranças altivas, mada heterogeneidade estrutural. Entre o
cujo prestígio firmou-se no período rei- trabalhador do ABC de São Paulo, cora-
vindicativo e "apolítico" anterior. Mas ção da industrialização, e os bóias-frias
viu-se mais ainda, o mesmo processo de (os trabalhadores rurais volantes) do
fusão entre os aspectos reivindicantes, a mesmo Estado, para não falar dos traba-
vontade democrática e o estilo mass- lhadores e dos sem emprego do Nordes-
consumption da sociedade da propa- te, existe um abismo maior do que entre
ganda: "Lula" foi capa de revista, entre os trabalhadores do ABC e os operários
1979 e 1982, em maior proporção do franceses.
que qualquer outro líder, em qualquer Segmentou-se, mais ainda, uma socie- O papel da
época da história do Brasil. dade já muito segmentada. E, ao mesmo utopia
Ocorreu algo assim como a invenção tempo, aumentou a ânsia de participar eletrônica
necessária de novas lideranças a partir do "mundo desenvolvido". De novo, a
de um movimento de pinças: a penosa TV e o rádio, tornaram realidade visual
reivindicação da base — autêntica — e para o desempregado crônico, para o tra-
o espalhafatoso lançamento público de balhador do campo e para o trabalhador
um produto de mercado. dos setores tradicionais, o mundo da
abundância. Abundância, é certo, mais
Alguns se assustam com este aspecto
da publicidade do que real. Mas ainda
da política, porque crêem que a luta de-
assim, símbolo de um novo horizonte
mocrática, por estes meios, estiola o
humano e cultural. E este processo vale
conflito social e corta o ímpeto para
também para as classes médias, segmen-
transformações mais profundas. Outros tadas, desiguais, mas sequiosas de fruir
temem que tudo vire manipulação não o novo mundo.
dos "donos do poder", mas dos "patrões Sociedade segmentada, permeada ao
da nova sociedade" ou no plano oposto mesmo tempo pela expectativa de êxito
de movimentos sociais que se isolam dos e da obtenção de algo melhor na vida,
partidos. gera, também, um estilo de reivindicação
De fato, se é certo que ambas tendên- que se apóia na parte mais do que no
cias ocorrem, é esta, ao mesmo tempo, todo: na categoria profissional mais do
a forma concreta peia qual se dá a mo- que na idéia de classe; no bairro e na
bilização nas sociedades contemporâneas vizinhança mais do que no Estado e no
e, a despeito dos riscos de alienação — país; no líder local mais do que no na-
e que processo político não padece de- cional; na paróquia mais do que no par-
les? — é por esta forma também que se tido. Mas cada segmento deseja obter o
rearticula a política de massas. que supõe já ter sido alcançado pelo "ou-
Esta peculiaridade do renascimento da tro". Exige, com força, a reivindicação
política, ou melhor, do reengajamento específica, porém, almeja alcançar o ge-
da sociedade na política, desconcerta aos ral que lhe é dado conhecer através da
observadores. Não faltou, nem falta, diferença.

OUTUBRO DE 1984 53
A DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA

Neste ponto, o jogo cênico da proje- continente, é sempre regulada por uma Cidadania
ção de desejos e de valores pelos meios instância social do Estado. contemporâne
típicos da sociedade de consumo e das Mas seria um equívoco pensar que a:
grandes massas e a reivindicação direta assim se consolida o liberalismo. Não se para além do
de uma vontade social que se tece no trata aqui do individualismo possessivo, individualismo
reconhecimento da identidade de quem nem existe a crença segundo a qual o possessivo.
está próximo e da exterioridade de um cidadão é o proprietário.
outro que é, ao mesmo tempo, adversá- Já disse que a reivindicação nasce com
rio — inimigo mesmo — e padrão de o espírito da communitas; menos do que
referência, torna clara a complexa rela- o êxito individual na competição regida
ção política em emergência. pelo mercado (da economia ou da polí-
Movimento social, espírito de comu- tica) dá-se o encontro entre uma moti-
nidade, concreção de relações primárias vação solidarista, fortemente associativa,
entre a base e a liderança (um padre, um e o reconhecimento pelo estado do "di-
vizinho, um líder sindical definidos) são reito da categoria", do bairro ou do
ingredientes muito fortes no processo grupo.
reivindicante. Este seria o segundo engano: o de
Diante deles os partidos podem pare- crer que o espírito democrático latino-
cer débeis para expressar o momento de americano dispensa o estado e os parti-
globalidade; o Estado, que sem dúvida dos. A leitura anarquista e libertária na
expressa o UNO, como diria Touraine, análise de alguns destes movimentos so-
passa a ser alvo e esperança. É comum, ciais tem induzido uma teorização da
neste contexto, esboroar-se a força rei- "sociedade pura", como se, de repente,
vindicante do movimento social no es- abolíssemos não só os regimes militares,
critório do funcionário do Estado, seja mas o capitalismo oligopólico e suas
concedendo a demanda, seja interpondo instituições, à frente das quais o Estado
entre ela e a massa a barreira da violên- Providência (hoje o Estado Endividado).
cia que corta expectativas. Não é o que ocorre, não obstante. É
E muita tinta tem sido gasta para en- esta fusão entre a consciência da dife-
tender a "novidade" do movimento so- rença — do específico —, que constitui
cial e da constituição de novos atores novos atores, e o reconhecimento do Es-
políticos. Não faltou mesmo quem pas- tado como instância reguladora necessá-
sasse do temor de um novo populismo ria da nova sociedade, que faz emergir
(quando o funcionário se casaria com o um paradigma de democracia distante
líder social) para o extremo oposto: dos moldes clássicos. Nele, por certo, o
mortos os partidos, nasceriam os novos Estado representa a dominação de clas-
atores da liberação social, capazes de or- ses. Mas não se resume a ela. E isto por
ganizar a sociedade autoprogramada. várias razões: porque ao tornar-se Esta-
Duplo engano. Amiúde a retórica do-produtor e ao dar abrigo a uma bu-
forte dos movimentos de base, os da rocracia empresarial a luta reivindicativa
Igreja Católica sobretudo, esconde por "da sociedade" passa a ser, ipso facto,
trás da teologia da libertação e de uma uma luta "dentro do Estado"; porque
nunca completamente enunciada teoria em suas funções reguladoras o Estado
da nova revolução, uma profunda cons- intervém na competição entre capitais e
ciência de direitos e de reivindicação de na formação deles; porque a regulamen-
participação democrática. Dá-se uma re- tação da cidadania, como disse, não se
leitura de Marshall, com a Igreja a jogar resume à definição da condição de elei-
o papel, a despeito da linguagem, de tor, mas implica na concessão pelo Esta-
grande propulsora da cidadania. Fenô- do de direitos sociais publicamente re-
meno não surpreendente para quem sabe conhecidos; e assim por diante.
que, em nome de Deus, de seu chama- O Estado passa a existir entrelaçado
mento e de uma ética de restrições e de com a sociedade, refazendo, de outro
trabalho, o protestantismo ajudou à for- modo, a distinção clássica entre a socie-
mação do capitalismo. Nesta ótica, a dade civil e a sociedade política. Dá-se
doutrina social da Igreja, a revalorização a panpolitização do social e, nesta acep-
dos pobres e a reivindicação social mais ção restrita, a socialização do estatal.
forte, estariam contribuindo para o sur- Emerge, no horizonte valorativo das
gimento da democracia na América La- crenças democráticas a noção do público:
tina e para a ampliação da cidadania. mais do que restringir a ação do Estado
Cidadania esta que, nas condições do e dar força ao setor privado a luta anti-

54 NOVOS ESTUDOS N.° 10


estatal torna-se uma luta pela transpa- piradora de um ideal de organização da
rência da ação governamental e para o boa sociedade. No passado uruguaio ou
aumento do controle social (público) chileno assim era; na Argentina, mesmo
das políticas oficiais e da gestão estatal. com o viés peronista, também; no Peru,
É neste quadro valorativo, no qual o pelo menos o Apra e os democrata-cris-
fundamento social da reivindicação de- tãos seguiram o figurino; no Brasil o
mocrática e a identidade e autonomia patrimonialismo tradicional restringia
dos atores sempre referidas ao todo se mais os partidos ao modelo do "círculo
fazem presentes, que emerge a ação par- de notáveis".
tidária nova. É indiscutível que, a des-
peito da força das associações civis, os oje, ainda que persistam as
anos de autoritarismo não têm sido ca- antigas denominações, como
pazes de deslegitimar a ação dos parti- no caso do radicalismo argen-
dos. No Chile e no Uruguai, a despeito tino, a nova sociedade refaz
da proscrição, os velhos partidos conti- o molde partidário. Ao mesmo tempo
nuam subjacentes à luta. No Peru e na limita o caudilhismo, o clientelismo e o
Argentina, desvencilhada a sociedade do populismo graças à forma autônoma e
jugo militar, voltam à cena os apristas, reivindicante da sociedade diante do Es-
os peronistas, os radicais e os partidos tado, que dispensa relação de subserviên-
de esquerda. E no Brasil, proscritos os cia ou de favor para com quem concede
antigos partidos, criados outros pelo e restringe os efeitos unificadores das
próprio autoritarismo, a sociedade rea-
ideologias partidárias. Na medida em
giu e reocupou-os, dando-lhes feições
inesperadas para o regime. que os partidos, para crescerem nas so-
Não está em discussão o fenômeno ciedades segmentadas, têm que agregar
histórico "partido". Cabe, entretanto, a setores sociais com interesses muito dis-
pergunta sociológica: e a que correspon- tintos, a unidade ideológica torna-se
dem eles na nova sociedade pós-autori- problemática.
tária? Esta última característica, somada à
A resposta, novamente, não pode ser valorização dos grass root movements
buscada no quadro exclusivamente polí- tem levado alguns observadores a enga-
tico. Neste, com maiores ou menores no. Crêem que o futuro partidário dos
alterações, os partidos cumprem funções países latino-americanos há de aproximá-
similares às de antes do autoritarismo. los da situação norte-americana. Nos
E os militares, como disse no início, não EUA os partidos são máquinas de pro-
criaram partidos próprios, nem tiveram duzir votos. Para isto, abrigam em seu
força ideológica suficiente para, no oca- seio interesses distintos, enraizados em
so do poder, permanecerem vivos com situações de classe muitas vezes confli-
uma proposta para a nova sociedade. tantes, buscam com voracidade a vitória
Mas isto não quer dizer que os parti- para, sem distinções ideológicas maiores,
dos de hoje sejam os mesmos de antiga- lançarem-se, com empenho, no spoil
mente. E numa dupla direção: nem a system, dividindo cargos e vantagens
anterior estrutura partidária, do período entre os seguidores. O paradoxo da
das sociedades formadas à européia pela Se as novas situações partidárias na imperfeição
economia agro-exportadora mantém-se América Latina apresentam algo disto, versus precisão
intocada, nem as formas populistas, cau- substituindo o antigo clientelismo por pragmática dos
dilhescas e clientelísticas que conviveram técnicas mais aperfeiçoadas de dividir o novos partidos
com os partidos mais clássicos servem butim do Estado, não deixam, entretanto,
de base para a organização partidária de conter núcleos ideológicos mais "du-
emergente na nova situação democrática. ros". Ao mesmo tempo em que agregam
Com efeito, por virtude das formas interesses e se apresentam à pugna como
sociais emergentes já descritas e da força grandes "frentes" mais do que como par-
do capitalismo da grande empresa, tor- tidos, dividem o espectro das opções
nou-se difícil a cristalização de partidos políticas entre os que desejam mudar
de massa capazes de corresponder à de- (a "esquerda") e os mais imobilistas (a
finição de Cerroni, inspirada nos mode- "direita"). Serão imperfeitos os cortes
los de partidos socialistas e comunistas ideológicos, confusas as fronteiras entre
da Europa: uma organização, apoiada em setores do radicalismo e do peronismo,
setores sociais mais ou menos homogê- do PMDB e do PDS no Brasil e mesmo
neos, e portadora de uma filosofia ins- entre a nova esquerda chilena e a esquer-
da da democracia cristã, mas são reais.

OUTUBRO DE 1984 55
A DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA

Por quê? exposição, creio que, de novo, há uma


Porque nas condições latino-america- visão distinta do jogo democrático. A
nas a desigualdade social, agravada pelos democracia, pós-autoritarismo militar,
regimes militares, não permite a opera- ganha a força de um valor em si. Existe,
ção ideológica do consenso, que faz da é certo, a reivindicação da autonomia do
alternância do poder nos Estados Uni- social como componente indispensável
dos apenas uma acentuação de tendên- no novo horizonte político latino-ameri-
cias ao redor do eixo dado pela Consti- cano; existe, inequivocamente, o senti-
tuição. Se os cortes ideológicos na Amé- mento da desigualdade social e a con-
rica Latina não são tão pronunciados vicção de que sem reformas efetivas do
como entre os socialistas espanhóis e os sistema produtivo e das formas de dis-
homens do antigo regime, ou entre so- tribuição e de apropriação de riquezas
cialistas e comunistas e o anterior gover- não haverá Constituição nem estado de
no francês, eles existem. São fortes es- direito capazes de eliminar o odor de
pecialmente na questão das reformas farsa da política democrática. Mas existe
sociais necessárias e no tratamento a ser também a crença de que o sistema po-
dado à questão nacional, vista hoje fun- lítico, seja no aspecto partidário, seja
damentalmente como a questão de não no estatal, não absorve a dinâmica do
pagar ou de como pagar a dívida externa social e não deve absorvê-la. E correla-
e seus juros. tamente, sente-se que a panpolitização
Assim, neste aspecto, os partidos pós- inespecífica do social, por si só, não re-
autoritarismo se reconstróem de outra faz instituições, nem assegura o equilí-
brio necessário entre os distintos níveis
maneira. Não apenas quanto à menor
da sociedade. A nova democratização
diferenciação entre eles no plano ideoló- inclui um reequilíbrio de poderes entre
gico e quanto à base de sua sustentação, Estado, movimentos da sociedade civil e
mas também na agudização, a despeito partidos.
desta homogeneização, da pugna sobre Sucede, portanto, nestes países da
as reformas sociais e sobre a questão Relendo
América Latina, algo assim como uma
nacional. E, ao lado disto, no seu rela- releitura simultânea de Rousseau e de Rousseau,
cionamento com os movimentos sociais Montesquieu, à luz de um pós-marxismo Montesquieu,
e com o Estado. que não renega a preeminência do confli- Marx abaixo do
Neste último aspecto houve também to de classes. A fundamentação do Esta- Equador
um redirecionamento. Tornaram-se par- do brota de um neo-hobbesianismo que
tidos mais enraizados na sociedade do não justifica a onipresença estatal na
que na burocracia (como já o eram no necessidade de garantir a liberdade do
Chile, e, em menor proporção, no Uru- indivíduo-proprietário, usurpando deles
guai) e ao mesmo tempo mais próximos os direitos. Ainda mais, a nova demo-
dos movimentos sociais e menos sequio- cracia descrê da teoria das "duas liber-
sos de controlá-los. Compreende-se o dades", a política e a econômica, do
primeiro movimento: o autoritarismo Tratado de Locke e não se enraiza ex-
tornou o Estado objeto de desconfiança; clusivamente nas instituições locais ou
para obter votos mais vale o apoio rei- nas associações voluntárias animadas
terado da opinião pública do que o con- pelo espírito de religião, como Tocque-
trole de algum ministério. E se com- ville mostrou que ocorria na América.
preende também a perda de força dos As práticas desta democratização, bro-
partidos da esquerda organizada que tada numa sociedade dinâmica, a despei-
têm ambição de serem a semente de to- to do autoritarismo militar e desigual, a
da a sociedade e forma estatal futura. despeito do êxito econômico estão, in
Esta última perda ocorreu da desvalori- status nascendi. Falta quem as teorize.
zação do Estado como pólo de aglutina- Mas, mais falta ainda, que novos passos
ção valorativa; e a idéia de que os par- sejam dados para ver se, de fato, pode-
tidos devem ser o molde da sociedade se falar de uma nova democracia, ou se,
futura perdeu o atrativo por causa da já na próxima curva da história, com farda
vista vocação de autonomia do social. ou sem ela, morrerão as esperanças no
Mas não foram só os partidos de esquer- nascedouro.
da que perderam força ao persistir nes-
tes objetivos. No conjunto, reorganizou- Fernando Henrique Cardoso é sociólogo. Senador da
República pelo PMDB.
se a relação de todos os partidos com os
Novos Estudos Cebrap, São Paulo
movimentos sociais e com o Estado. n.° 10, pp. 45-56, out. 84
E neste ponto, para concluir tão longa

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