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da Medicina e da Saúde
Integralidade é integridade.
da inefável sabedoria popular.
Integralidade no SUS
Por mandamento constitucional, são consideradas grandes diretrizes
do SUS: eqüidade, universalidade, integralidade, controle social.
E a integralidade se define como conjunto contínuo e articulado de
ações e serviços, preventivos e curativos, individuais e coletivos, em
todos os níveis de complexidade é considerado como um direito de:
integralidade.
Convém conferir esta definição de integralidade, porque a de
controle social é exatamente oposta ao significado do termo no
mundo inteiro.
A integralidade no sistema de saúde brasileiro significa que ele deve
estar dotado de serviços integrais do ponte de vista temporal
(contínuos), integrais do ponto de vista de seus objetivos técnicos
(preventivos e curativos) e integrais do ponto de vista de sua clientela
(indivíduos e coletividades).
1
Esta noção está muito bem posta na Wikipédia, ainda que este
aspecto do conceito não esgote as possibilidades do uso (e do
abuso) deste conceito na Medicina.
mostrar útil em termos operativos entretanto, diminui a efetividade
clínica nos procedimentos diagnosticadores ou terapêuticos. Mas
prejudica sobretudo a investigação científica, limitada por essa
perspectiva estreita e unilateral de seu objeto de investigação ou de
intervenção. O organismo é um sistema orgânico e psicológico
integrado em dois ambientes o natural ou ecológico e o sociocultural.
Não se utiliza aqui o termo "holístico" com referencia à Medicina
integral, porque pode parecer mais apropriado para dar a idéia de
totalidade, porque o mesmo é utilizado por numerosos autores de
procedimentos equivocados, obsoletos ou anticientíficos, muitos dos
quais estão mais próximos da fraude do que da ciência.
A Integralidade da Medicina
A Medicina é integral por sua natureza, pois seu fracionamento, a
não ser como recurso didático e de aprendizagem, a
descaracterizaria completamente. Este caráter de integralidade
pode ser reconhecido ponto característico da Medicina, tanto como
teoria quanto como pratica individual e social. Integralidade que se
manifesta nas diversas dimensões de suas manifestações teóricas e
práticas; tanto no que respeita à sua unidade, quanto à sua
totalidade. Não existe nem pode existir uma fração de Medicina. A
Medicina é um sistema de conhecimentos e de atividades, de
atitudes, de atos e atividades caracterizados por sua unidade, sua
totalidade e sua integralidade.
Só o positivismo mecanicista mais ingênuo que, felizmente está
sumindo do mundo intelectual civilizado (o que significa que
permanecerá aqui por mais uma geração, pelo menos), cultivaria a
aventura intelectual e moral de subdividir a integralidade da
Medicina em partes; em suas partes constituintes aparentes e
trabalhar cada uma delas como se fosse autônoma.
A integralidade da Medicina deve ser defendida em todos os
terrenos em que for ameaçada, porque seu fracionamento não
interessa à sociedade e não serve à civilização. Embora,
eventualmente, possa ser útil a alguns interesses sociais localizados
e a alguns governos sem qualquer preocupação com o futuro dos
povos que governam. Governos que praticam a máxima atribuída ao
rei da França, Louis XIV a quem se atribui a frase: depois de mim, o
dilúvio. Para expressar seu absoluto desprezo por quaisquer
conseqüências de seus atos de governo no presente ou no futuro.
Ao mesmo tempo que exibia a enormidade de seu ego.
Se não, veja-se a seguir.
A Integralidade Institucional
As instituições são organizações sociais de longa duração e
importates para a sociedade que resultam de influências ideológicas
e exercem grande influência nas coletividades e indivíduos. No
passado, quando o conhecimento científico e a profissão médica
ainda não haviam sido reconhecidos e institucionalizados, cada
cultura alimentava suas próprias crenças sobre as enfermidades e
seus próprios costumes sobre a maneira de lidar com os enfermos.
Cada povo podia ter a sua própria Medicina, segundo seus valores
culturais e suas possibilidades tecnológicas. No entanto, desde o
início do século, esta realidade sofre uma radical transformação. O
avanço vertiginoso apresentado pelas ciências, notadamente pelas
ciências médicas de natureza biológica, determinou algumas
profundas transformações nesta realidade cultural.
Estes avanços resultaram na produção de recursos tecnológicos de
diagnóstico e tratamento impensáveis há algum tempo. Recursos
que trouxeram muito prestígio à sua atividade. Enquanto que,
contraditoriamente, determinaram um aumento exagerado no custo
financeiro de sua aplicação. O que se transformou em um obstáculo
ao seu desenvolvimento e, mesmo, à sua aplicação na maior parte
das pessoas. No Brasil, a assistência médica contemporânea de
qualidade se transformou em um privilégio da minoria (cada vez
menor, na medida em que se concentra a renda), em grave
contradição com sua tradição humanitária e com a expectativa que
a sociedade faz de seu desempenho ideal e em confronto com a
Constituição.
Em todo o mundo, institui-se a nova Medicina cientificamente
fundamentada como modelo de conduta diagnóstica e terapêutica,
segundo o modelo com que era praticada nos países centrais da
Europa (principalmente, na França, na Alemanha, na Inglaterra e na
Rússia), da América do Norte (Estados Unidos) e na Ásia
(principalmente na China e no Japão) ao longo do último século.
Porque as enfermidades e os enfermos são praticamente idênticos
em toda parte. Praticamente, todos os países legislaram sobre isso
e a Medicina científica contemporânea foi se impondo, graças a
comprovada eficácia de seus procedimentos frente aos recursos
utilizados anteriormente com a mesma finalidade. Recursos que
sobreviveram unicamente para aquelas condições clínicas à
margem das possibilidades terapêuticas atuais ou para os setores
da população economicamente excluídos da possibilidade de se
beneficiarem deles.
O fenômeno de exclusão cultural em relação às novas possibilidades
da Medicina diminuiu exponencialmente nas últimas décadas.
Atualmente, é possível dizer que a instituição médica é única em
todo o mundo. Pois, em todos países, em todas as regiões, em todas
as formações econômicas, em todas as culturas. As pequenas
dissensões que se verificam entre correntes religiosas ou políticas
diferentes não chegam a comprometer minimamente a unidade
institucional da Medicina atual. Os congressos da Associação Médica
Mundial e, principalmente de suas federadas de especialistas fazem
prova material desta assertiva. As diferenças de possibilidades e
práticas médico-assistenciais que existem no mundo são devidas às
diferenças sócio-econômicas e mais raramente culturais, e não às
geográficas.
A unidade técnica da Medicina será detalhada adiante, mas pode
ser verificada na unidade da literatura especializada e pela
universalidade de seus procedimentos técnicos. É cada vez maior a
identidade dos tratamentos ministrados aos pacientes em todo o
mundo. Os doentes podem ser transferidos em linhas de referência
e contra-referência que consideram apenas a maior ou menor
quantidade e sofisticação dos recursos empenhados, sem diferenças
significativas, ao menos naquilo que verificação científica pode
estabelecer com um mínimo de segurança.
A Medicina é instituição social que integra aspectos éticos, técnicos
e laborais, humanitários e científicos numa unidade indissolúvel.
Unidade assegurada por sua integralidade institucional e que
também pode ser verificada em todos esses campos de sua
realização. Integralidade que corresponde ao melhor interesse da
sociedade. Unidade e integridade que vêm sendo cultivadas e
ampliadas nos últimos vinte e cinco séculos por gerações e
gerações de médicos. Ao mesmo tempo que a transparência e a
publicidade com que este processo se realiza, lhe assegura a
necessária confiança pública na qual esta unidade institucional se
alimenta. A clareza e a publicidade em que vive a instituição médica
no mundo inteiro são os maiores aliados da consciência que os
povos têm da necessidade de sua existência.
Até hoje, em toda História, nenhum povo e nenhuma pessoa abriu
mão da reivindicação de dispor da melhor Medicina e da melhor
assistência médica a serviço de suas necessidades. Mas pesa em
seu desfavor o seu custo financeiro, já mencionado e a tendência
burocrática, mercantil ou tecnizadora. Fatos que podem influir
negativamente em sua valorização social.Outro fator que pode
influir negativamente na imagem da Medicina e que, prejudica seu
desempenho institucional, é fator exógeno a ela. Trata-se das
tendências ideológicas individualista e consumista que caracterizam
o momento sócio-econômico vivido pelo mundo. Tendência que é,
por si mesma, incompatível com o comunitarismo solidário e
altruísta que impregna o modelo da Medicina, tal como ela foi
elaborada e vem sendo praticada nos últimos séculos. Ao menos em
termos ideais.
No plano endógeno, as deformações cientifista, burocrática e
mercantil são os grandes fatores de desumanização do trabalho
médico. Mas não se pode omitir a desumanização oriunda do
despreparo técnico e da incapacidade científica (muitas vezes
disfarçadas de burocratismo). Não obstante, o maior adversário da
instituição médica brasileira atual é a condição de
subdesenvolvimento, de super-exploração interna e internacional e
a imensa desigualdade social que viceja no Brasil. A desigualdade
social e a exclusão se expressam por desigualdade na distribuição
dos frutos de trabalho comum e na exclusão de imensas camadas
sociais dos direitos individuais e sociais mais comzinhos. Entre eles,
o direito à saúde (entendido como direito de acesso ao recurso mais
eficaz que sua condição sanitária existir. E não o mais barato e não
o que ofereça comissão para funcionários corruptos e para caixinhas
partidárias e para o bolso de governantes e outros gestores públicos
corrompidos, que se servem de seus postos, cargos e funções ao
invés de os servirem.
Tal como acontece com todas as demais instituições sociais, a
instituição médica reflete simultaneamente as necessidades que
motivaram sua institucionalização e as possibilidades sociais que
instrumentam sua realização. Da mesma maneira que o fruto nunca
cai longe da árvore que criou, as instituições sociais refletem, ao
menos em linhas gerais, as características das sociedades em que
foram gestadas e paridas. Isto também acontece com a instituição
médica.
Num sistema social altruísta, sua Medicina se desenvolverá na
mesma direção. Altruisticamente. Acontece que hoje se desenvolve
no país dos brasileiros uma cultura essencialmente egoísta,
imediatista e hedonista. Descaminhos que atuam como valores que
impregnam toda prática social. Seja política, religiosa, profissional
ou qualquer outra que se desenvolva naquele terreno. O culto do
sucesso financeiro a qualquer preço toma conta da nação. É um
milagre que a maioria dos médicos não se tenham corrompido.
Nota do tradutor:
Parece exagero dos autores responsabilizar o avanço técno-
científico da Medina e a especialização exagerada pelo
distanciamento e perda da interação humana na relação médico -
paciente, desconsiderando a influência da argentarização e da
tecnização da sociedade na qual a medicina é praticada.
A Integralidade Temporal da Medicina
Outro engodo que costuma tentar os que estudam (e ensinam)
Medicina no Brasil é o que faz por onde estabelecer uma diferença
essencial entre a Medicina de ontem e a Medicina atual; como se
em dois momento no tempo mudasse sua identidade essencial. Não
muda. Mudam os meios, os recursos e os processos dos quais os
médicos se servem para alcançar seus objetivos. O modelo da
Medicina permanece intacto. Os objetivos, os motivos e seu modelo
ideal permanecem os mesmos, intactos. Sem falar na continuação
da estrutura técnica, ética e social da Medicina que assegura o
componente mais importante de sua identidade há mais de vinte e
cinco séculos. A Medicina mantém intocada sua estrutura essencial
há mais de dois mil e quinhentos anos. A intituição médica é das
mais antigas entre as profissões e serviu de modelo a todas as
outras. Perde em efetividade para suas contemporâneas, como as
religiosas por conta de sua menor (e variada) hierarquização.
A Medicina conserva sua identidade estrtural ao longo do tempo por
mais que se acrescentem ou mudem seus procedimentos. Ainda
que sofra grandes e profundas transformações de sua forma. Cada
momento da Medicina se integra na unidade da relaão médico-
paciente e nos momento evolutivos de cada ptocedimento que se
integram vomo uma corrente em que cada elo acrescentado ou que
substitui outro neos eficaz, não prejudicam sua intgridade,
aperfeiçoam-na,
Como as pessoas que conservam sua identidades ao longo dos
anos de vida, as instituições mantêm a sua ao longo do tempo.
Cabendo aqui a metáfora da faca que tem seu cabo e sua lâmina
trocada diversas vezes por seu dono, conservando sua identidade
ao longo do tempo. Isto leva à supervalorização sistemática das
novas tecnologias e dos novos recursos, como se eles fossem
sempre melhores. Não são. Ou, ao menos não são sempre.
Também se milita muito no equívoco, aparentemente oposto, de
supor que as tecnologias mais antigas, até mesmo a remotíssimas,
seriam melhores que as mais modernas apenas por serem
conhecidas e praticadas há mais tempo. O que, tampouco é
verdadeiro. Em geral, a tecnologia mais nova é mais eficaz. Mas
nem sempre e cada caso deve ser avaliado. O avanço da tecnologia
proporcionou imensas oportunidades para os humanos viverem
mais e melhor. Ainda que traga consigo seus próprios riscos e
problemas que devem ser enfrentados oportuna e adequadamente.
Mas todas esta são mudanças de forma e na aparência da Medicina.
Embora muito mudada em seus recursos e em seus artefatos, a
Medicina de hoje é a mesma de sempre naquilo que é essencial: os
encargos sociais de diagnosticar doenças e tratar doentes. E o traço
essencialmente humanitário de seu exercício profissional. Tal como
as demais tecnologias, a Medicina atual é mais eficaz que a de
antanho por causa da tecnologia. Na medida em que a Medicina de
cada momento absorve os mais recentes avanços da tecnologia de
diagnosticar enfermidades e tratar enfermos faz-se mais efetiva.
Contudo, existe uma prática médica atualizada e outra,
desatualizada; uma, eficaz e outra, ineficaz. A Medicina
contemporânea e a obsoleta. Nos tempos atuais e na maior parte
das vezes, quando se fala de uma sabedoria antiga, é da ignorância
que se fala; e quando se gabam as excelência do saber do povo, é
do desconhecimento e da fé nas superstições que se está
mencionando.
Ai dos médicos atuais e, principalmente, de seus pacientes se
conservassem as mesmas informações, as mesmas crenças e as
mesmas técnicas vigentes na Medicina Tradicional Grega. Ainda
se encontram em sebos manuais de Medicina de cem anos atrás.
Qualquer um pode ver como os pacientes eram tratados. Os
estudantes de medicina costumam rir muito destes manuais e
formulários antigos. No entanto, convém lembrar que seus netos
também irão rir da Medicina como é praticada hoje. Seu consolo
será saber, com certeza, que a Medicina de cada momento é a
melhor que se pode obter naquela época. Como qualquer outra
tecnologia.
Pelo menos em grandes traços, pode-se pretender que cada
momento da história as tecnologias diagnósticas e terapêuticas,
como as demais diga-se de passagem, têm sido, invariavelmente,
melhores do que o momento anterior. Afinal, a sabedoria antiga
situava o planeta térreo no centro do universo, indicava esterco de
gado para tratar o cordão umbilical recém cortado e cultivou todos
os tipos de superstições, feitiçarias e outras incontáveis expressões
mágicas e místicas para explicar tudo e intervir em tudo que é
situação de enfermidade. Caso alguns aspectos da Medicina de hoje
se revelarem menos eficazes ou, de alguma maneira, piores do que
a de ontem, isto certamente se deve mais a problemas políticos,
sociais (humanos, em resumo) do que a dificuldades próprias da
tecnologia. Em princípio, o conhecimento mais amplo, mais
profundo e mais verdadeiro (com o sentido de mais válido e mais
fidedigno) substitui o que se mostra seu oposto em ambas
qualidades. Como, aliás, se poderá ver no capítulo referente à
cientificidade do conhecimento médico. E a tecnologia mais eficaz
empurra a menos eficaz para a obsolescência.
A estratégia mercadológica de fabricantes de medicamentos,
equipamento outros insumos médicos, que trocam modelos e
produtos por substitutos sem gande vantagem real para
assegurar patentes, aumentar lucro ou simular evolução não
desmente esta afirmativa. Ao contrário.
Em geral, expressões como conhecimento antigo, conhecimento
tradicional, antigas tradições se referem a algo foi descartado
porque se revelou mais caro ou mais perigoso, menos verossímil ou
menos eficaz para os propósitos que o originaram. Porque o antigo
conhecimento que se mantém válido e confiável, permanece atual.
Indefinidamente. Até ser desmentido ou comprovado falso. Uma das
características do pensamento científico (de todas as épocas) tem
sido sua facilidade de descartar inutilidades. Ao contrário do
pensamento dogmático (religioso ou não). Neste caso, mesmo
aceitando uma tendeência melhorista na natureza e na sociedade,
importa diferenciar o novo da novidade.
Convém não esquecer que existe muita religião disfarçada de
ciência de preferência esportivas e muitas outras. Ninguém, em sã
consciência, substituiria seu automóvel moderno por uma carroça
ou carreta de tração animal, alegando que resulta do conhecimento
antigo, da sabedoria dos séculos. Nem procuraria um curandeiros ou
um médio para pilotar um avião, pelos mesmos motivos. Nem
prefere morar em uma caverna ou em um mocambo porque é uma
tecnologia antiga. Mas pretende justificar assim o uso de remédios e
procedimentos diagnósticos obsoletos e destituídos de qualquer
efetividade baseando-se unicamente em sua antigüidade. Além do
quê, deve-se dizer, costuma ser mais fácil recomendar a tecnologia
antiga para os outros do que usá-la. Muito mais. Principalmente em
se tratando de um procedimento médico.
Como se vê, parte importante do estudo da noção de integralidade
médica consiste em considerar sua unidade no tempo. A Medicina
de cada momento guarda íntima relação com a que passou e com a
que se lhe seguirá. E essa unidade temporal tem sido assegurada,
muito mais por seus elementos intersubjetivos do que pelos técno-
científicos.
Embora os médicos de cada geração sejam diferentes e as
tecnologias diagnósticas e terapêuticas tenham sofrido
transformações vastas, profundas e radicais desde que a Medicina
foi instituída na Antigüidade, todos os componentes da cultura (e
não apenas os médicos) consideram-na a mesma de sempre. A
identidade das pessoas e das coisas, principalmente das
instituições, tem um traço característico interessante. Tende a
conserva-se a mesma a despeito das mudanças ocorridas na coisa
ou na pessoa identificada. Este fato da conservação temporal da
identidade da Medicina pode ser muito bem ilustrado pela parábola
da faca.
Um trabalhador tinha uma faca e a utilizava muito em seu
trabalho pesado submetendo a desgaste permanente. Para
mantê-la na melhor condição de uso, a cada ano trocava sua
lâmina; e mudava seu cabo a cada quatro ou cinco anos.
Trabalhou com ela mais de quarenta anos. Com a mesma faca,
apesar das mudanças radicais que sofria. Essa faca conseguia
ser, simultaneamente, mais de uma e rigorosamente a mesma.
Tal como sucede com a Medicina. Apesar de apresentar
características extremamente diferentes em cada momento.
Conserva-se íntegra em sua estrutura profissional.
Desde sua formulação pelos médicos gregos do século V a.C. como
Medicina Racional, a profissão médica e seu conteúdo de
conhecimentos e habilidades vêm mantendo íntegros seus pilares
conceituais gerais, suas diretrizes técnicas e seus valores éticos,
além de suas diretrizes profissionais nos terrenos relacional, moral e
político, a despeito das notáveis mudanças técnicas que se
impuseram em todos os aspectos em sua atividade, especialmente
no plano diagnosticador e terapêutico, seu núcleo mais essencial.
Apesar de tanta mudança, a estrutura da Medicina continua a
mesma.
A unidade temporal da Medicina, mantida ao longo dos últimos vinte
e cinco séculos, tem sido assegurada pela sua cientificidade e
laicidade, pela manutenção da hegemonia do vetor intersubjetivo
na relação do médico com o paciente e no destaque da vinculação
solidária entre os dois sujeitos dessa interação. Isto é, por seu
caráter verdadeiramente humanista.
Veja-se a fundamentação técnica e ética da Medicina hipocrática
adiante neste texto e constate-se sua identidade com o modelo
médico atual. A Medicina como deve ser.
A Integralidade Espacial
Hoje, pratica-se a mesma Medicina em todos os rincões do mundo e
as diferenças notadas dependem mais da distância social,
econômica e cultural do paciente ou da comunidade onde se
processa o tratamento do que da distância geográfica. Em um
mesmo hospital, um enfermo pode estar sendo beneficiado com a
melhor tecnologia e outro, morrendo por falta de tecnologias
relativamente simples ou remédios relativamente baratos. Com a
rapidez alcançada pelos meios de transporte e com a
instantanidade dos meios de comunicação, a Medicina (como
qualquer outra atividade cientificamente assentada) é a mesma em
qualquer parte do globo.
Um médico bem formado em uma boa escola em qualquer país não
deve experimentar dificuldades insuperáveis para se adaptar em
outro lugar do mundo. Como se pode verificar com muita facilidade
apenas viajando por alguns países. Ao menos, do ponto de vista de
seu trabalho. A diferença que houver radicará muito mais na maior
ou menor habilidade que puder desenvolver em cada procedimento,
na sua possibilidade de atualização e de correção em informações e
técnicas específicas que forem incorporadas ao arsenal, do que mas
diretrizes de conduta com que se exerce a clínica aqui, ali ou acolá.
A diferença mais essencial parece residir nas possibilidades
tecnológicas disponíveis, na justiça com que é ofertada às pessoas,
na maior ou melhor disposição moral e no grau de socialização do
povo. Socialização entendida como consciência do outro como
complemento da consciência de si mesmo, o que determina um tipo
de consciência do nós.
Onde quer que exista um núcleo mais ou menos estrurado de
povoação organizada, ali haverá o trabalho médico. Nos locais em
que o mercado e as pessoas que o compõem puderem manter uma
agência bancária, ali haverá um serviço de assistência médica. Nos
casos em que o mercado não puder faze-lo, o Estado terá que
prover essa necessidade.
Veja como mudam os paradigmas e de distorcem os valores. Há
poucos anos, o dever inicial deria do Estado e o mercado agiria
supletivamente. Agora, é o contrario. Pelos menos enquanto as
pessoas forem convencidas que deve ser assim.
A estrutura da Medicina é a mais ou menos a mesma em todos os
lugares, podendo variar apenas os recursos disponíveis e em sua
organização e quais as frações da sociedade que podem se
beneficiar da tecnologia mais nova. Ao menos quando se tratar de
sua dimensão científica objetiva e da interação intersubjetiva. Não
tem qualquer sentido falar em uma Medicina norte-americana,
chinesa ou brasileira, a menos que se faça referência aos costumes
e à dimensão não científica de seu exercício. Mesmo a ética médica,
ao menos em seus valores e princípios mais gerais, conforma uma
unidade lastreada em uma cultura. Pois fluem diretamente das
condições da vida material e espiritual daquele povo.
Como qualquer outra expressão tecnológica, a Medicina antiga se
apresentou sob formas muito diferentes, de conformidade com as
tradições culturais particulares de cada cultura na qual se
desenvolveu. Entretanto, com o passar do tempo, tendeu a se
unificar em torno de um modelo único. Geralmente, o que produz
resultados mais eficazes. Atualmente, em todo mundo predominam
na Medicina, os valores técnicos da ciência contemporânea, os
valores éticos cultivados pelos médicos nos últimos vinte e cinco
séculos e os valores humanos edificados pela sociedade ao longo do
seu desenvolvimento.
Em última análise, os meios médicos diagnósticos e terapêuticos
são recursos tecnológicos. Sua acessibilidade depende de uma
correlação imediata entre seu preço (e não necessariamente seu
custo, diga-se de passagem) e da possibilidade de compra de quem
necessita dele ou de quem o remunera em seu lugar. Em muitos
lugares o Estado subvenciona a compra de tais recursos. Ao menos
nos países em que a saúde do povo em geral e de cada pessoa em
particular é considerada como responsabilidade do Estado e direito
da cidadania. Embora existam muitas formas de assistência médica
no mundo, o que varia é sua qualidade. Variações de qualidade de
uma mesma modalidade de intervenção técnica.
Entretanto, deve-se cuidar de reconhecer as diferentes qualidades
da assistência médica com as diferentes concepções de tratamento
das enfermidades e cuidados com a saúde (que muitos denominam
inadequadamente de medicinas ou sistemas médicos). Porque, no
mundo todos, só existe uma Medicina e um sistema médico. O resto
é propaganda enganosa. A única Medicina é aquela formada pelos
médicos e o único sistema médico é aquele formado pela
organização de profissionais, estabelecimentos e instituições que
são organizadas e funcionam de acordo com o conhecimento
científico mais válido, mais fidedigno e mais atual.
Muito mais do que as variáveis geográficas ou culturais, pode-se
notar notável influência dos fatores sócio-econômicos na qualidade
da assistência médica proporcionada às pessoas e aos sistemas
sociais humanos. No entanto, o fato de existir recursos assistenciais
(inclusive médicos) ao alcance de pobres e de ricos, não autoriza a
imaginar uma Medicina de pobre e uma Medicina de rico, que sejam
qualitativamente diferentes.