Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
Érico Veríssimo
A história que vou contar não tem a rigor um princípio, um meio e um fim. O
Tempo é um rio sem nascentes a correr incessantemente para a Eternidade, mas bem se
pode dar que em inesperados trechos de seu curso o nosso barco se afaste da
correnteza, derivando para algum braço morto feito de antigas águas ficadas, e só Deus
sabe o que então nos poderá acontecer. No entanto, para facilitar a narrativa, vamos
supor que tudo tenha começado naquela tarde de abril.
Era o primeiro ano da Guerra e eu evitava ler os jornais ou dar ouvidos às pessoas
que falavam em combates, bombardeios e movimentos de tropas.
"Os alemães romperão facilmente a linha Maginot" assegurou-me um dia o
desconhecido que se sentara a meu lado num banco de praça. "Em poucas semanas
estarão senhores de Paris." Sacudi a cabeça e repliquei: "Impossível. Paris não é uma
cidade do espaço, mas do tempo. É um estado de alma e como tal inacessível às
Panzerdivisionen." O homem lançou-me um olhar enviesado, misto de estranheza e
alarma. Ora, estou habituado a ser olhado desse modo. Um lunático! É o que murmuram
de mim os inquilinos da casa de cômodos onde tenho um quarto alugado, com direito à
mesa parca e ao banheiro coletivo. E é natural que pensem assim. Sou um sujeito um
tanto esquisito, um tímido, um solitário que às vezes passa horas inteiras a conversar
consigo mesmo em voz alta. "Bicho-de-concha!" — já disseram de mim. Sim, mas a essa
apagada ostra não resta nem o consolo de ter produzido em sua solidão alguma pérola
rara, a não ser... Mas não devo antecipar nem julgar.
Homem de necessidades modestas, o que ganho, dando lições de piano a
domicílio, basta para o meu sustento e ainda me permite comprar discos de gramofone e
ir de vez em quando a concertos. Quase todas as noises, depois de vaguear sozinho
pelas ruas, recolho-me ao quarto, ponho a eletrola a funcionar e, estendido na cama,
cerro os olhos e fico a escutar os últimos quartetos de Beethoven, tentando descobrir o
que teria querido dizer o Velho com esta ou aquela frase. Tenho no quarto um piano no
qual costumo tocar as minhas próprias composições, que nunca tive a coragem nem a
necessidade de mostrar a ninguém. Disse um poeta que
Entre a idéia
E a realidade
Entre o movimento
E o ato
Cai a Sombra.
Pois entre essa Sombra e a mal-entrevista claridade duma esperança vivia eu,
aparentemente sem outra ambição que a de manter a paz e a solitude.
No Inverno, na Primavera e no Verão sinto-me como que exilado, só encontrando
o meu clima nativo, o meu reino e o meu nicho no Outono — a estação que envolve as
pessoas e as coisas numa surdina lilás. É como se Deus armasse e iluminasse o palco do
mundo especialmente para seus mistérios prediletos, de modo que a qualquer minuto um
milagre pode acontecer.
Naquele dia de abril andava eu pelas ruas numa espécie de sonambulismo, com a
impressão de que o Outono era uma opala dentro da qual estava embutida a minha
cidade com as suas gentes, casas, ruas, parques e monumentos, bem como esses navios
de vidrilhos coloridos que os presidiários constroem pacientemente, pedacinho a
pedacinho, dentro de garrafas. Veio-me então o desejo de compor uma sonata para a
tarde. Comecei com um andantino serenamente melancólico e brinquei com ele durante
duas quadras, com a atenção dividida entre a música e o mundo. De súbito as mãos
sardentas dum de meus alunos puseram-se a tocar escalas dentro de meu crânio com
uma violência atroz, e lá se foi o andantino… Fiquei a pensar contrariado nas lições que
tinha de dar no dia seguinte. Ah! A monotonia dos exercícios, a obtusidade da maioria
dos discípulos, a incompreensão e a impertinência dos pais! Devo confessar que não
gostava da minha profissão e que, se não a abandonava, era porque não saberia fazer
outra coisa para ganhar a vida, pois repugnava-me a idéia de tocar músicas vulgares
nessas casas públicas onde se dança, come e bebe à noite.
Quando o andantino me voltou à mente, fiquei a seguir suas notas como quem
observa crianças a brincarem de roda num jardim. De repente um ruído medonho e
rechinante trincou de cima a baixo o vidro de meu devaneio, ao mesmo tempo que
alguém me puxava violentamente para trás. Ora, não tenho nenhum instinto de
conservação. Dizem que Shelley também era assim. Talvez seja uma pretensão absurda
estar eu aqui a comparar-me com o poeta. Mas a verdade é que não tenho. Levei um
bom par de segundos para compreender que quase ficara debaixo das rodas dum ônibus,
e que um transeunte desconhecido me salvara a vida. Balbuciei um agradecimento para
o homem que ainda me segurava o braço, mas o que me impressionava mesmo no
momento era a expressão de fúria do chofer que gritava: "Não enxerga, animal?" Como
era possível alguém encolerizar-se e dizer grosserias numa tarde de Outono? O ônibus
retomou a marcha. O meu salvador perdeu-se na multidão.
Percebi então que estava à frente do edifício da Biblioteca Pública. O casarão
pardo e severo tinha um ar tão convidativo e protetor que, sem saber exatamente por
que, resolvi entrar. Atravessei o saguão de mármore, penetrei na sala de leitura e
aproximei-me do funcionário a quem hoje chamo Confúcio por motivos que em breve
ficarão suficientemente claros. Éramos já velhos conhecidos, pois eu costumava ir com
alguma freqüência à Biblioteca.
O homem ergueu os olhos e perguntou: "Que deseja o amigo?" A minha indecisão
tomou a forma dum sorriso. Podia pedir um livro de poemas ou algum ensaio sobre
Mozart; no entanto, surpreendi-me a dizer:
— Quero ver uns jornais velhos.
— Que jornais?
Mencionei o nome do mais antigo matutino da cidade.
— E as datas?
— 1912.
Era o ano de meu nascimento. O funcionário afastou-se, tornou pouco depois com
dois grandes volumes encadernados debaixo do braço e depô-los sobre a mesa junto da
qual eu me sentara.
Comecei a folhear distraidamente os jornais, achando um sabor nostálgico nos
anúncios de cinema e teatro, nas notícias da coluna social e principalmente nas apagadas
reproduções de fotografias em que homens e mulheres apareciam com as roupas da
época. No exemplar cuja data correspondia exatamente à daquele dia de abril, encontrei
na página dos "Precisa-se" um anúncio que me chamou a atenção:
PROFESSOR DE PIANO.
Precisa-se dum professor de
piano, pessoa de bons
costumes, para lecionar moça
de família já com quatro anos
de estudo. Tratar à Rua do
Salgueiro n° 25 (é uma casa
antiga, com um anjo triste no
jardim).