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Martin Heidegger e a
essência da técnica
DULCE CRITELLI
ca, nenhum regime totalitário, cuja pos- fora do círculo vicioso da interpela-
sibilidade não passou, mas nos ameaça ção produtora.
desde a sua primeira ocorrência. Todavia, de onde viria essa possi-
O que Heidegger quer nos dizer é bilidade de abandono e entrega? Essa
que o ser é sempre as possibilidades possibilidade de transcendência? Cer-
que descobrimos nos entes e que nos tamente, não de dentro desse círculo
empenhamos por realizar. Possibilida- fechado do Ocidente e que se constituiu
des às quais damos realidade quando em sua essência. Certamente, não do
as empreendemos. Descobrimos as pos- apelo do mesmo. Seria preciso que pu-
sibilidades de energia nas quedas déssemos ouvir um outro chamado que
dágua e empreendemos sua possibili- não esse que brota do hábito do contro-
dade de presentificação e uso. Ou des- le, da representação controladora, da
cobrimos uma forma num bloco de interpelação produtora. Ouvir esse ou-
mármore e o esculpimos para que ela tro chamado implicaria que pudésse-
se torne presente como uma obra. Ou mos estar livres desse hábito, desgar-
percebemos que um filho tem um ta- rados dele. Ouvir outro chamado e des-
lento musical e oferecemos a ele todas cobrir outra possibilidade para nosso
as condições para que se torne um destino histórico, outra possibilidade
músico... Heidegger quer nos dizer que para cuidarmos do ser exige uma pas-
o ser é o possível do mundo e de nós sagem pelo silêncio. Exige uma parada
mesmos, mas um possível entregue aos no vazio, onde se possam esmorecer as
nossos cuidados e sob nossa responsa- determinações, os vícios da técnica, as
bilidade. explicações da ciência... Ouvir um ou-
Cuidar do ser é, então, cuidarmos tro chamado significa tampar os ouvi-
da nossa própria destinação histórica: dos para o mesmo, para o que já se sabe.
como os indivíduos exclusivos que cada Ficar em silêncio. E o silêncio é passa-
um de nós é, mas ao mesmo tempo em gem. Tempo de esvaziamento e dispo-
conjunto, pois a humanidade não nos é nibilidade para a nova palavra, para a
dada apenas no singular, mas também nova luz, para o novo apelo.
no plural; não existimos, co-existimos. O novo caminho para o Ocidente é
Como bem o explicita Hannah Arendt, a abertura para o que lhe é inaudito e
não é o Homem, mas são os homens que desconhecido. Especificar esse inaudi-
habitam a Terra.8 to é impossível, exatamente por ele ser
O caminho inaudito para o Ociden- inaudito. Por isso o gosto e o cheiro de
te está no abandono decisivo do do- aventura que exala.
mínio sobre o ente e a entrega ao ser
em seu poder-ser. Está no salto para Enfim, sobre a nova ética...
advento. Exige entrar nesse lugar onde apenas se devemos criar e fazer isto
nada nos é dado nem nada está pron- ou aquilo. Se devemos assinar tratados
to. Pisar no chão do inseguro. Arcar desta ou daquela natureza, mas diz res-
com o gesto não codificado, com a de- peito à decisão pela nossa humanida-
cisão não autorizada, com o resultado de: que não nos tomem mais das mãos
desejado sempre em aberto, com o fim a possibilidade da autoria de nossa
às escuras. destinação histórica. Que não nos en-
A interpelação produtora da técni- ganemos mais que comandamos quan-
ca é sempre determinante do nosso agir, do estamos sendo comandados, espe-
pensar e conduzir. A interpelação da cialmente pelas nossas próprias ilusões
técnica nos substitui em nossas decisões sobre quem somos e o que podemos.
e ações. Substitui-nos em nossa respon- A nova ética diz respeito à redes-
sabilidade, uma vez que ela nos ofere- coberta do lugar do homem no univer-
ce tudo já previamente delimitado. so. Mas está por se fazer. E é isto, justa-
Substitui-nos naquilo que mais nos ca- mente, que torna o pensamento de
racteriza em nossa humanidade, segun- Heidegger uma espécie de testamento:
do Heidegger, que é o sermos pasto- juntamente com as descobertas que nos
res do ser,9 cuidadores do ser.10 lega, repõe-nos na liberdade de deci-
Como a técnica estipula o modo do dirmos o que fazer com elas.
cuidar, ela nos rouba nossa condição:
cuida por nós. A abertura ao inaudito,
a passagem pelo silêncio, a ausência de
referências do novo possível significam,
em última instância, a reintegração da
mais essencial determinação do nosso
ser, a reintegração da posse de nós mes-
mos, da nossa condição de encarrega-
dos pelo ser. Que a técnica nos auxilie, Recebido em 19/3/2002
mas não nos retire de nós mesmos. Aprovado em 30/10/2002
A nova ética é essa da decisão e do
encargo por si mesmo, ou seja, pela res-
ponsabilidade do cuidar de nosso des-
tino histórico.
Decisão fundamental, que não diz