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CARLOS MATHEUS
ser seu estilo desordenado e turbulen- tomava sempre os mesmos temas, bus-
to. Outro, o período histórico em que cando agregar-lhes algo de novo. Não
viveu. Os principais motivos, contudo, tinha a ambição de construir um siste-
parecem residir no próprio conteúdo ma, embora seu pensamento caminhas-
de suas idéias e sobretudo nas detra- se para isso. Escrever foi para ele ape-
ções e incompreensões que cercaram nas uma das maneiras de filosofar. Seu
sua obra. olhar e seu pensamento caminhavam
além das palavras, porque nem sem-
*** pre cabiam nos limites de seus signifi-
Scheler nasceu em Munique, a ci- cados.
dade mais extrovertida da Alemanha. Outro possível motivo do esqueci-
Tinha uma personalidade candente. Sua mento da obra de Scheler pode ser atri-
vida transcorreu entre o mundo aca- buído ao período de transição da épo-
dêmico e a turbulência social e política ca em que viveu. Sua biografia trans-
das primeiras décadas do século XX. corre em uma fase de grandes mudan-
Sua inquietação filosófica transparecia ças no mundo das idéias e dos aconte-
em seus atos, em seus gestos, em suas cimentos políticos. Iniciou seus estudos
aulas. Tudo era ocasião para indaga- e sua reflexão filosófica no final do sé-
ção e reflexão. Pensava, questionava e culo XIX. Ingressou na vida universi-
vivia filosoficamente. Seu temperamen- tária nos tempos em que, sob a futili-
to combativo e ardente o levou a viver dade da belle époque, armavam-se a tra-
com toda intensidade sua procura so- gédia Primeira Guerra Mundial e a ger-
bre o sentido da vida e do lugar do minação dos regimes ditatoriais que
homem no mundo. Nele, vida e razão abalariam o século XX. Sua pátria, já
jamais estiveram separadas. em acelerado processo de expansão
Seus textos refletem essa atitude de industrial, ingressava em uma caótica
interrogação contínua, pela qual esta- situação econômica, que culminaria em
va sempre à procura do lado oculto das uma tremenda crise econômica e na
coisas e das aspirações humanas. Seus nova retórica da propaganda política.
textos transparecem esse seu modo de As tensões sociais e os conflitos no
viver. Seu estilo caudaloso e passional mundo das finanças preparavam o ca-
o levou a escrever longos parágrafos, minho para a demagogia dos manipu-
em que as idéias se dispersam, retor- ladores das massas que viriam substi-
nando e girando como luzes em movi- tuir o discurso dos professores por um
mento. Lembra a circulação de cores militarismo delirante e disposto a si-
na efervescência das formas das pintu- lenciar o trabalho das universidades.
ras de Van Gogh ou as sombras revela- Não teve tempo para se contrapor ao
doras dos quadros de Rouault, ou, ain- nazismo (como certamente o faria) por-
da, a efervescência das sinfonias de que veio a falecer antes de sua ascensão
Mahler. Não evitava contradições e ao poder.
nem buscava uma coerência lógica. Re- Scheler foi contemporâneo da me-
valores.11 Tratava-se, a partir desse pon- humana, que produz uma enorme su-
to, de buscar o desdobramento social cessão de realizações de valores. A
de sua teoria do conhecimento dos va- cada grupo social desde um bem
lores. Partindo da ética para a sociolo- menor, como a família, até um outro
gia, Scheler, na última fase de sua obra bem maior, como uma nação cor-
(1922-1927), saiu em busca de um fun- responde uma estrutura própria de
damento ontológico para a atividade valores que são captados e realizados
social do ser humano, passando neces- ao longo de sua temporalidade. Sendo
sariamente pela transformação de sua fixos, assumem as mais diversas reali-
visão universalista dos valores em zações materiais sem perder sua es-
uma lei sociológica de validade uni- sência, mas produzindo a riqueza da
versal que pudesse servir de funda- diversidade histórica e da pluralidade
mento à relação das pessoas entre si e cultural de que é feita a natureza hu-
destas com os valores que realizam tan- mana.
to em sua vida privada quanto em seu Para Scheler, o conhecimento não
relacionamento social. constitui apenas um ato estritamente
A lei sobre a qual funda sua teoria individual. Todo processo de forma-
do conhecimento social ou seja, sua ção da individualidade inclui neces-
sociologia do conhecimento se ba- sariamente uma referência ao outro.
seia na noção de interdependência en- Esse outro pode ser tanto o conjunto
tre o real (instintivo) e o ideal (espiri- das gerações passadas como a suces-
tual) na produção dos fatos sociais. En- são futura. Toda explicação produzi-
tende que a natureza humana, tanto da pelo conhecimento é gerada so-
como pessoa quanto como sociedade, cialmente, de modo a relacionar algo
seria o resultado de uma conjugação novo àquilo que já era conhecido. A
entre impulsos instintivos e fatores es- noção de intersubjetividade, presente
pirituais. Tanto para a pessoa como no pensamento fenomenológico,
para a sociedade, os valores são fixos, adquire em Scheler um significado
imutáveis e eternos. Tão imutáveis co- supratemporal porque está relaciona-
mo as constelações de idéias presen- da com a autopercepção do próprio in-
tes no pensamento de Platão. A mu- divíduo a partir daquilo que o grupo
dança cabe à dinâmica material da vida social possibilita conhecer.
A noção de pessoa, em Scheler, tem
um profundo caráter de interação en-
11. A relação entre valor e pessoa, investigada por
Scheler na parte VI de sua obra já citada, permitiu
tre o eu e o outro. Chega mesmo a dizer
distinguir pessoa de indivíduo e criar uma nova que não há o eu sem o outro, no mes-
visão do caráter ético da pessoa humana, como mo sentido em que nega o puro cogito
um ser concreto que se define por ser único e ir- cartesiano em nome do caráter de rea-
repetível. Sua teoria axiológica da pessoa humana
veio a exercer influência sobre a noção de
lidade presente na autopercepção do
personalismo em autores como Paul Landsberg, sujeito. Nisso, a teoria da intenciona-
Emmanuel Mounier e Paul Ricoeur e outros. lidade assume um papel determinante