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APRESENTAÇÃO
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exigiria a especificação de que se trataria de uma teoria do comportamento
econômico, a aplicação da abordagem econômica aos fenômenos
convencionalmente percebidos como pertencendo a outros campos (ciência
política, sociologia) envolve justamente a suposição de que a economia como
disciplina teórica redunda numa teoria do comportamento racional como tal, a
qual seria em princípio válida para qualquer comportamento que envolva um
problema de eficácia e seja, portanto, passível de ser apreciado em termos de
racionalidade: a busca do poder político, status ou prestígio social não menos
do que a de ganhos “econômicos” ou materiais.
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com recurso à construção teórica assentada em postulados referidos ao plano
individual ou "micro” – ou de estabelecer, segundo o conhecido lema da
escolha racional, “os fundamentos micro dos fenômenos macro”. Uma
caracterização simples que permite esclarecer tanto os possíveis fundamentos
dessa expectativa quanto as dificuldades que defronta se tem com a distinção
de Jon Elster entre o comportamento intencional, de um lado, e, de outro, dois
tipos de causalidade, a causalidade subintencional e a causalidade supra-
intencional.4
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“coletivismo metodológico”, destacando-se a idéia da contradição micro-
macro e a percepção do caráter problemático da ação coletiva, que a
perspectiva sociológica convencional tende classicamente a ver, ao contrário,
como decorrendo natural e espontaneamente do simples compartilhamento de
determinada condição objetiva pelos indivíduos ou atores de nível “micro”.
Por outro lado, contudo, é claramente precária a aposta decisiva da abordagem
econômica em sua face mais ortodoxa, segundo a qual seria possível deduzir a
sociedade e reconstruí-la teoricamente a partir da mera suposição de
racionalidade e de agentes individuais calculadores postos numa espécie de
“estado de natureza”. Pois a recuperação do cálculo do agente e a avaliação da
racionalidade da ação supõem que se esteja adequadamente informado a
respeito do contexto em que o agente atua – e que se possa, portanto, entre
outras coisas, aquilatar a extensão e a acuidade da informação que o próprio
agente processa ao agir e assim a qualidade do seu cálculo. Ora, o analista não
tem como obter a informação requerida com os instrumentos da abordagem
econômica ou da perspectiva da escolha racional por si mesma, e não pode
prescindir, na caracterização do contexto, do equipamento fornecido pela
ciência social convencional. Por outras palavras, o uso do próprio postulado
de racionalidade, que seria a marca distintiva da abordagem econômica,
remete à ciência social convencional. E a receita consistirá em combinar o
recurso àquele postulado, importante e mesmo indispensável (e de fato sempre
presente, ainda que frequentemente de forma tosca e pouco elaborada, em
qualquer esforço de “compreensão” do comportamento), com a
contextualização que só a ciência social convencional possibilita.
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microeconômicos”, simetricamente ao lema da escolha racional. Mas é
também o caso de diversas tentativas correntes de estabelecer uma economia
“pós-walrasiana”, genericamente designada às vezes como o “novo
institucionalismo” ou a “nova economia institucional”. Apesar de
ambiguidades e desdobramentos equívocos, que se ligam com a pretensão
reiterada de revelar as “microfundações” das instituições, podem citar-se
perspectivas como a do “intercâmbio conflituoso”, de Samuel Bowles e
Herbert Gintis, ou a da “economia da informação” tal como proposta por
Joseph Stiglitz, onde se estudam as “falhas de mercado” e se questionam
velhos supostos da economia neoclássica (preferências dadas, “enforcement”
sem custos, informação sem custos): têm-se aí exemplos de esforços que
levam à diluição das fronteiras entre a economia e as demais ciências sociais
de maneira que resulta diferente da mera invasão do campo convencional
destas últimas pelos instrumentos tradicionais da análise econômica – e que
ocasionalmente, como nos trabalhos de Robert Bates, chega mesmo ao recurso
explícito às contribuições de sociólogos e cientistas políticos.5
5
Vejam-se, por exemplo, Samuel Bowles e Herbert Gintis, “The Revenge of Homo Economicus:
Contested Exchange and the Revival of Political Economy”, Journal of Economic Perspectives, vol.
7, n. 1, 1992, pp. 83-102; Jose E. Stiglitz, Whither Socialism?, Cambridge, Massachusetts, The MIT
Press, 1994; e Robert Bates, Beyond the Miracle of the Market, Cambridge, Cambridge University
Press, 1989.
5
economistas e sociólogos a respeito da democracia e sua dinâmica, com
atenção especial para Downs.6
6
dos sistemas partidários empreendidas por Giovanni Sartori (que não pode ser
visto como adepto da escolha racional em sentido mais estrito) em Parties and
Party Systems, de 1976, que culminam nas implicações e ramificações da
idéia de competição espacial e se envolvem em intenso diálogo com Downs.7
7
Giovanni Sartori, Parties and Party Systems: A Framework for Analysis, volume I, Cambridge,
Cambridge University Press, 1976. Note-se que a edição brasileira (Partidos e Sistemas
Partidários, Brasília, UnB/Zahar, 1982) contém importante adendo ao texto da edição inglesa
original, que se encontra justamente no capítulo final sobre a competição espacial.
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Projeto “Pacto Social e Democracia no Brasil”, executado pelo autor em colaboração com Mônica
Mata Machado de Castro, Edgar Magalhães, Antônio Augusto Prates e Malori Pompermayer. Seus
resultados que aqui interessam podem agora ser encontrados em Fábio W. Reis e Mônica M. M.
Castro, “Democracia, Civismo e Cinismo: Um Estudo Empírico sobre Normas e Racionalidade”,
Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 16, no. 45, fevereiro de 2001.
7
predomínio de considerações orientadas pelos interesses. Se os mecanismos
assim sugeridos mostram-se importantes para o caso de democracias
consolidadas e efetivas, onde a vigência de normas e da “cultura cívica” não
teria por que ser vista como obstáculo à atuação “downsiana” do cálculo
guiado por interesses, eles o são também, e de modo provavelmente especial,
para fenômenos como a deterioração das disposições democráticas em
situações de crise. Sem falar do jogo “fisiológico” de vale-tudo próprio da
condição pretoriana em que tão longamente nos debatemos e cuja vigência
impede o enraizamento efetivo das instituições democráticas: a superação
dessa condição não parece depender apenas (ou sequer principalmente) de que
normas cívicas sejam difundidas e assimiladas, mas antes de um difícil jogo
de coordenação em que as cognições e expectativas venham a convergir de
maneira consistente em direção propícia.