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DEMOCRACIA VIVA 26

MAR 2005 / ABR 2005

Especial FSM
Dulce Pandolfi
Hamilton Pereira
Mario Lubetkin

Trabalho
escravo
J. R. Ripper

Comida
moderna
Renata Menasche
e d i t o r i a l
Cândido Grzybowski
Sociólogo, diretor do Ibase

A busca de uma democracia vibrante, da prática da cidadania


em todos os espaços, com vigilância e pressão sobre o poder constituído, de criação de condições de de-
senvolvimento sustentável nas quais todos os direitos humanos sejam para todos(as), é um compromisso
que dá o rumo à revista do Ibase. Isso nos leva a dar abrigo a olhares e vozes conhecidos e desconhecidos,
mas que nos parecem uma inestimável contribuição ao debate.

Após termos publicado uma edição temática distribuída durante o Fórum Social Mundial
2005, fazemos agora um pequeno balanço. São três visões diferentes que mostram as possibilidades e os desa-
fios que o FSM apresenta. Dulce Pandolfi, diretora do Ibase, dá voz a jovens de favelas que puderam participar
do Fórum por meio de um fundo de solidariedade constituído pelo próprio Ibase. Hamilton Pereira, poeta e
dirigente político, faz uma leitura do Fórum a partir dos desafios que traz às esquerdas e, em particular, ao PT.
Mario Lubetkin, diretor da Inter Press Service (IPS), chama a atenção para a questão crucial da comunicação a
fim de que o FSM consiga alimentar a participação de milhões na construção “de outro mundo”. Em sintonia
com os três artigos, mas chamando a atenção para os desafios do próprio movimento por outra mundialização,
traduzimos um artigo de Pierre Calame, um dos principais inspiradores e animadores da rede mundial denomi-
nada Aliança por um Mundo Responsável, Plural e Solidário, ativa no FSM desde o seu começo.

Padre Ricardo Rezende, o entrevistado deste número da revista, nos dá uma dimensão
profundamente humana e radicalmente comprometida com as pessoas excluídas na conturbada Amazônia.
A questão voltou com força neste início de 2005, mas é antiga. Padre Ricardo, desde a década de 1970, vem
atuando no sul do Pará, pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Este tema, trabalho escravo, é documentado
pelas lentes de Ripper, de quem reproduzimos fotos e publicamos um testemunho na seção de cultura. A
escravidão atual é distinta daquela do passado, mas guarda relação com ela. Diagnosticá-la, dissecar as suas
raízes e ver a relação da escravidão com a persistente exclusão social e política de descendentes negros(as)
até hoje exige um enorme esforço coletivo e é indispensável para a democracia. Henrique Cunha Jr. nos
lembra a fundamental necessidade de formar pesquisadores(as) negros(as) para tal tarefa.

A revista lança olhares sobre muitos temas novos. Destaco o artigo de Cássio Martorelli,
administrador da rede local/TI do Ibase. Cássio, em linguagem bastante didática, destaca a dimensão demo-
crática do debate sobre a adoção do software livre. Esse é um tema extremamente relevante num mundo
em que tudo tende à mercantilização, privatizando o próprio saber humano e a seu modo contribuindo para
a exclusão social. Outro debate que ainda vai render muito, apesar da aprovação recente pelo Congresso
Brasileiro da Lei de Biossegurança, diz respeito aos alimentos transgênicos. O artigo de Renata Menasche
traz luzes sobre os reflexos confusos de tal debate nas visões e práticas das pessoas, nas suas decisões de
s u m á r i o
Ibase – Instituto Brasileiro de Análises Sociais
e Econômicas
Av. Rio Branco, 124 / 8º andar
03 Artigo
20148-900 Rio de Janeiro/RJ
Formação de pesquisadores(as) negros(as), Tel.: (21) 2509-0660 Fax: (21) 3852-3517
uma necessidade democrática <ibase@ibase.br> <www.ibase.br>
Henrique Cunha Jr.
Conselho Curador
08 Artigo Regina Novaes
João Guerra
Alimentos transgênicos: no meu
Carlos Alberto Afonso
prato, não? Moacir Palmeira
Renata Menasche Jane Souto de Oliveira

16 NACIONAL Direção Executiva


Entrevista
Energia nuclear no Brasil, pauta maldita Cândido Grzybowski
Padre Ricardo Rezende Dulce Pandolfi
Marcelo Furtado e Sergio Dialetachi
Francisco Menezes
22 VARIEDADES Jaime Patalano

Coordenadores(as)
24 INTERNACIONAL Erica Rodrigues
De uma coalizão antiglobalização a Iracema Dantas
uma aliança por uma outra mundialização Itamar Silva
Pierre Calame João Roberto Lopes Pinto
João Sucupira
30 PELO MUNDO Leonardo Méllo
Moema Miranda
Núbia Gonçalves
32 ENTREVISTA
Padre Ricardo Rezende DEMO C RA C IA VIVA
48 CRÔNICA ISSN: 1415-1499
A modéstia do sábio Diretor Responsável
cultura
Alcione Araújo Cândido Grzybowski
Algemas virtuais,
dramas reais Conselho Editorial
50 RESENHAS
Alcione Araújo
Ari Roitman
54 OPINIÃO IBASE
Eduardo Henrique Pereira de Oliveira
Software livre, conhecimento compartilhado Jane Souto de Oliveira
na rede Regina Novaes
Cássio Martorelli Rosana Heringer

60 ESPECIAL FSM Coordenação Editorial


Iracema Dantas
Avanços e desafios
Dulce Pandolfi Subedição
AnaCris Bittencourt
O mosaico imperfeito
Hamilton Pereira Revisão
Marcelo Bessa
Uma comunicação à altura
dos novos desafios Assistentes Editoriais
Mario Lubetkin Flávia Mattar
Jamile Chequer
78 CULTURA
Produção
Algemas virtuais, dramas reais Geni Macedo
Para apoiar os projetos J. R. Ripper
desenvolvidos pelo Distribuição
86 ESPAÇO ABERTO Maria Edileuza Matias
Ibase, escreva para
amigos@ibase.br Autonomia e democratização da cultura Projeto Gráfico
Francisco Humberto Cunha Filho Mais Programação Visual
ou telefone para
(21) 3852-6028. 90 INDICADORES Diagramação
Doações de pessoas Imaginatto Design e Marketing
Raios X das prefeituras brasileiras
jurídicas podem ser François E. J. de Bremaeker Capa
abatidas do Imposto Arte sobre foto de J. R. Ripper
de Renda. 104 ÚLTIMA PÁGINA
Marco Fotolitos
Rainer Rio

Impressão
O Ibase adota a linguagem de gênero em suas publicações por acreditar que essa é uma estraté- J. Sholna
gia para dar visibilidade à luta pela eqüidade entre mulheres e homens. Trata-se de uma política
Tiragem
editorial, fruto de um aprendizado e de um acordo entre os(as) funcionários(as) do Ibase. No caso 5 mil exemplares
de artigos redigidos voluntariamente por convidados(as), sugerimos a adoção da mesma política.
democraciaviva@cidadania.org.br
artigo
Henrique Cunha Jr.*

Formação de
pesquisadores(as)
negros(as),
uma necessidade
A historia da formação social brasileira é a história de um escravismo criminoso que produziu,

ao longo de quase 300 anos, a imigração maciça de pessoas africanas. Como os processos

de invasões européias no continente africano encontraram fortes resistências, as regiões de

exploração e lutas variaram e se alternaram no tempo, fazendo com que as pessoas cativas

trazidas para cá viessem de diversas regiões e culturas. Dado o imenso desenvolvimento

técnico e social, para a época, vivido pelos diversos países africanos, o Brasil absorveu e se

beneficiou de mão-de-obra portadora de todas as técnicas e conhecimentos utilizados nos

diversos campos da produção no país. O conhecimento produtivo do Brasil Colônia é funda-

mentalmente africano, nas áreas de mineração, agricultura, produção de ferro e de açúcar,

manufaturas, tecelagem e construção. Isso também se observa no campo da política, se

considerarmos que os quilombos foram a forma mais sistemática de contestação do Estado

escravista. Não paradoxalmente, as artes e a cultura se fundam também sobre as mesmas

heranças africanas. Até a literatura e a música ditas eruditas são realizadas pelos povos afri-

canos e descendentes. Basta nomearmos os marcos das nossas artes e da nossa literatura

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artigo

A produção da pesquisa científica no Brasil se faixa etária das candidaturas e os regimes de


inicia a partir do fim do século XIX e início do trabalho estão fora dos perfis privilegiados pelas
século XX. Nesse momento, também se obser- políticas e pelos programas de pós-graduação.
va a participação ativa de afrodescendentes. Há Em geral, pesquisadores e pesquisadoras negros
casos extremos como o do engenheiro Teodoro ingressam no mestrado aos 35 anos, trabalham
Sampaio. Filho de escrava, depois de formado e precisam participar do sustento da família,
na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, voltou o que é incompatível com o número e valores
à Bahia para comprar a liberdade de sua mãe. das bolsas. Quem os programas favorecem
Tornou-se geógrafo, sanitarista, pesquisador e em iniciação científica e artigos? Esses(as)
está entre os fundadores da Escola Politécnica pesquisadores(as) vêm de ensino universitário
da Universidade de São Paulo. noturno, que não dá a oportunidade de inicia-
A contradição que nos preocupa é a de ção científica. As disciplinas de base dos temas
que, mesmo em face de inúmeras evidências pretendidos por estudiosos e estudiosas negros
históricas, ainda é não existem nas graduações. A única fonte de
necessário discutir a formação tem sido o próprio movimento negro.
pesquisa sobre a po- Os programas rejeitam pesquisadores e pes-
pulação negra e a for- quisadoras militantes dos movimentos negros.
mação de pesquisa- Bancas de entrevista não conseguem superar a
dores e pesquisadoras relação patroa–empregada existente nas nossas
negros. Os argumen- relações sociais cotidianas, tornando as entre-
tos da história não vistas tensas e transformando as pesquisadoras
são suficientes para negras em antipáticas. Fato mais notado entre
firmar a consciência as mulheres. Quem é antipático não entra. As
de que existe um erro negras “muito exibidas” não entram.
se perpetrando na Mas existem as pessoas negras que
composição dos cor- entram, mas não há quem conheça o tema
pos de pesquisa bra- para orientá-las. Isso produz dificuldade em ter
sileiros, nas temáticas sucesso na pesquisa no tempo determinado.
eleitas pela ciência A universidade brasileira não confessa sua ig-
brasileira, sobretudo norância nos temas de interesse da população
nas políticas cientí- afrodescendente. Assim, a responsabilidade do
ficas e de formação insucesso fica por conta do(a) pes­­qui­sador(a)
de pesquisadores e negro(a). O problema é grave. Ainda mais grave
pesquisadoras no é o fato de que nada disso tem sido questionado
país. Surpreende não pela sociedade democrática acadêmica.
apenas a ausência
de políticas na área,
Falta tudo
como também de
preocupações demo- As populações negras vivem em espaços geo-
cráticas com a implan- gráficos com total ausência de políticas públi-
tação dessas. Num cas. São áreas sobre as quais o conhecimento
país que forma 6 mil científico é praticamente inexistente. Forma-se
doutores e doutoras um círculo vicioso, nada se sabe, nada se faz
por ano, menos de de coerente, porque nada se sabe. As políticas
1% é formado de pes- universalistas do Estado se mostraram inócuas.
soas negras, menos de 1% trata temas de interesse No governo passado, uma pesquisa do Insti-
das populações afrodescendentes. tuto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
Ninguém discrimina ninguém, a razão concluiu o que os movimentos negros vinham
disto é que a pessoa negra é pobre? Errado, dizendo há quase 30 anos: a necessidade de
o motivo é que os métodos de discriminação políticas específicas. No entanto, quase nada
estão institucionalizados de tal maneira que não se sabe sobre as especificidades porque os(as)
incomodam as consciências críticas. É natural pesquisadores(as) e os temas de pesquisas têm
uma pessoa negra não entrar nos programas a ver com interesses distintos das populações
de pós-graduação. Examinando o histórico de de ascendência africana.
cerca de 2 mil pessoas negras com mestrado Negro(a) e afrodescendente aqui são
e doutorado existentes no país, vemos que a sinônimos, definições que vão além das

4 Democracia Viva Nº 26
Formação de pesquisadores(as) negros(as), uma necessidade democrática

denominações de raça social. Estão ligados triz européia não eram vistos como perigosos,
ao trânsito da história e a enfoques dos pro- danosos e dolosos à sociedade. Tal mentalidade
cessos de dominação e da produção étnica continua se processando, sob novas formas de
da submissão neste país. Temos falado da inculcação, com os mesmos resultados de um
necessidade de pesquisa e de produção de certo pânico e pelo menos indisfarçável descon-
conhecimento sobre os territórios de maioria forto quanto à visão da organização política,
afrodescendente. Não há pesquisa, não há cultural e identitária negra.
política pública, não há solução objetiva dos O país funciona bem, é democrático, a
problemas. Constituição veda qualquer discriminação de
A democracia prevê a representação de raça, sexo ou religião. Esta é a visão conformista
todos os grupos sociais em todas as instâncias e utilitária da nossa situação: a harmonia. Quando
de decisão. No estágio atual do capitalismo, um(a) pes­qui­sador(a) de pele clara se denomina
a pesquisa científica e os grupos de pesquisa negro(a), correm os pares, às vezes até mais
constituem um grupo privilegiado de exercício escuros(as) que ele
do poder – quer pela ação direta na partici- ou ela, para dissuadi-
pação nos órgãos de decisão do Estado, quer -lo(a) com uma enxur-
pela indireta, por meio da difusão dos conhe- rada de argumentos,
cimentos que justificam as ações dos poderes e essa pessoa passa a
públicos. Os grupos sociais cujos membros não ser vista como a pro-
fazem pesquisa ficam alijados dessas instân- dutora da discórdia.
cias de poder. A ausência de pesquisadores e Quem é negro(a) nes-
pesquisadoras negros tem reflexo nas decisões ta so­ciedade? Somos
dos círculos de poder: temas como educação uma população mes­
e saúde de afrodescendentes só passaram para tiça. Temos, todas as
a agenda do Estado brasileiro depois que os pessoas, um pouco
movimentos negros, com esforços próprios, de escravizado e es-
formaram uma centena de especialistas nessas cravizador no nosso
áreas e produziram um número relevante de passado. A pessoa
trabalhos científicos. negra passa a ser a
Por que não há mais pesquisa e pesqui­ introdutora de temas
sa­dores(as)? Porque não se quer. Não existe estranhos à comu-
vontade política das instituições universitárias nidade harmônica
e muito menos dos órgãos de política científica brasileira.
do Estado. Os movimentos negros têm sido As falácias
muito ativos nas propostas de políticas públicas desses argumen-
de ações afirmativas para formação de pesqui- tos não são anali-
sadores e pesquisadoras negros. Essas políticas sadas com o rigor
só têm recebido a atenção de setores isolados da comunidade
da sociedade e das fundações internacionais. científica, ficam no
pseudo-senso cien-
tífico. As referên-
Visão conformista e utilitária
cias biologizantes
São infindáveis as posições e contraposições que do tema superam as
o tema encerra. Ainda temos uma mentalidade políticas e sociais.
nacional aversa à existência de pessoas negras Pesquisadores(as) de
ou, pelo menos, contrária e insensível a qual- história se esquecem dos conceitos da história
quer manifestação de afirmação da existência social e se amparam no argumento biológico.
de identidades negras. A aversão não é contra Socialmente, não temos nada do escravizador,
a existência material desses seres ditos negros, visto que ele não mestiçou a sua posse proprie-
mas contra a nossa existência política. Tal qual tária com a nossa. Vejam que o escravizador
durante o período do escravismo criminoso, sempre vendeu as crianças que teve com as
persiste a ótica dominante do medo branco com escravizadas como escravizadas. A nossa dita
relação à onda negra. As idéias convenciam a morenidade não está representada na distribui-
sociedade de que o perigo era negro, enquanto ção de renda. Importada é a maioria ou quase
a criminalidade oficial branca do Estado e todos a totalidade das idéias científicas difundidas no
os processos de dominação impostos pela ma- país. Quais seriam os critérios da condenação

MAR / ABR 2005 5


artigo

* Henrique dessa importação em particular? A crítica da ência não serve como científico em face da própria
Cunha Jr. importação também prescreve uma ignorância história da sua construção eurocêntrica. Por que
Professor titular do sobre a nossa história social, em que os movi- as ciências físicas ainda hoje travam um imenso
Departamento de mentos negros há mais de um século pautavam debate sobre as idéias de generalização e univer-
Engenharia Elétrica e essas temáticas. salização da ciência, como as discordâncias sobre
do Programa de Pós- É certo que nos damos bem no campo a natureza do tempo e do espaço, sobre a lógica
graduação em Educação informal. Pulamos carnaval juntos(as) e jogamos da previsibilidade da ciência destruída pela teoria
da Universidade Federal
futebol. Mas não estudamos juntos(as). Muito do caos? Podemos quase afirmar que não existe
do Ceará. De 2002 a
menos, pesquisamos juntos(as). Mas é um pro- uma ciência universal, pelo menos nos moldes em
2004, foi presidente
blema social. Não temos dúvida de que é um que era concebida há 30 anos.
da Associação Brasileira
de Pesquisadores Negros
imenso problema social, para o qual não se A formação de pesquisadores e pesqui-
(ABPN) procura solução. Há quem diga que tem em casa sadoras negros passa por todos esses obstáculos
uma negra empregada que é como se fosse da ideológicos, políticos, preconceituosos, eurocên-
família. Sem que di- tricos, de dominações e até mesmo de inocências
vida com ela o capital úteis vigentes nas instituições de pesquisa e nos
cultural, a educação órgãos de decisão sobre as políticas cientificas.
das crianças ou o É fundamentalmente um problema político de
seguro-saúde da fa- concepção da sociedade e das relações sociais.
mília. No Brasil, até Problema que a sociedade científica se nega a
cachorro é membro reconhecer, negando-se a tratá-lo e colocá-lo
da família. na agenda das preocupações. A mesma atitude
Desde que ocorre na esfera governamental, que, de certa
organizamos a As- forma, reflete o pensamento das instituições
sociação Brasileira de pesquisa.
d e P es qu is a do res O capitalismo segue fabricando seus ne-
Negros, em 2000, gros e suas negras. Utiliza a produção científica
com o intuito de para reatualizar as estratégias de dominação
acelerar o processo e subordinação desses negros e dessas negras
de pesquisa das te- produzidos. As definições de negros(as) e das
máticas de interes- nossas condições de vidas seguiram se alterando
se das populações ao longo do último século. Para se ter uma idéia
afrodescendentes, dessa dinâmica, basta acompanhar as modi-
tenho ouvido pelos ficações que as Nações Unidas tiveram sobre
corredores, e às ve- a temática. Mas a média de pesqui­sadores(as)
zes explicitamente, brasi­lei­ros(as) permanece alheia a tais definições
argumentos de que e redefinições. A maioria ainda pensa a pessoa
pesquisa não tem negra no mesmo referencial racista e biológico do
cor ou que as te- século XIX. Praticam as concepções da existência
máticas abordadas de raças humanas e dos seus atributos. Tome-
por nós não são su- -se como exemplo o imenso sucesso que o livro
ficientemente uni- Casa-grande e senzala ainda faz entre essa
versais, ou seja, não maioria. Participam de um subdesenvolvimento
fazem parte da ci- científico mental no setor das relações étnicas,
ência. Concordo que com graves conseqüências para as populações
a pesquisa não tem afrodescendentes. Sob um discurso de demo-
cor, mas as políticas científicas, que não têm cracia e igualdade, impõem-se descasos e dis-
nada a ver com o cerne do fazer científico, têm criminações sobre a necessidade de pesquisas
os atributos de cor, de grupo social, de grupo em temas de interesse da população negra e da
histórico, de marginalizações e de produção das formação de pesquisadores(as) origi­ná­rios(as)
desigualdades sociais, econômicas e políticas. desse grupo social.
Quem detém o poder detém a primazia
da ciência e determina quais temas são parte ou
não da ciência. O mesmo universalismo cien­tí­
fico fez com que todas as teorias racistas fossem
produzidas, divulgadas e aplicadas pelos corpos
científicos. O argumento da universalidade da ci-

6 Democracia Viva Nº 26
MAR / ABR 2005 7
artigo
Renata Menasche*1

Alimentos
transgênicos:
no meu prato,
Ao menos desde 1999, os meios de comunicação têm veiculado notícias que atestam

a presença, nas gôndolas de supermercados brasileiros, de alimentos em cuja com-

posição tomam parte organismos geneticamente modificados. Em 2000, as primeiras

denúncias de presença de transgênicos em alimentos industrializados em território

nacional conformariam o eixo da campanha de opinião pública conduzida pela orga-

nização ambientalista Greenpeace, “Transgênicos no meu prato, não!”, que inspira o

título deste artigo. Assim, a presença de organismos geneticamente modificados na


1 Este texto é uma versão resu-
mida de um artigo de mesmo alimentação das pessoas moradoras de Porto Alegre entrevistadas2 (Rio Grande do Sul)
título (ver Menasche, 2004).

2 No período compreendido já era uma possibilidade. Tomando por abordagem as perspectivas de análise propostas
entre novembro de 2001 e
março de 2002, foram realizadas
25 entrevistas em profundidade pela antropologia da alimentação, o objetivo deste artigo consiste em, colocando o foco
com pessoas moradoras de
Porto Alegre (Menashe, 2003).
Cabe comentar que, com o ob- nas visões e práticas de informantes em relação à alimentação, buscar apreender suas
jetivo de preservar o anonimato
das pessoas informantes, os
nomes utilizados neste artigo percepções a respeito dos alimentos geneticamente modificados.
são fictícios.

8 Democracia Viva Nº 26
Sabemos que as classificações, práticas e repre- em referência a discos voadores, artefatos que
sentações que caracterizam um sistema culinário seriam produzidos por seres de outros planetas,
agem na incorporação do indivíduo a um grupo objetos voadores não identificados (ovni).
social. Afinal, “o homem se alimenta de acordo A ansiedade humana em relação à ali-
com a sociedade a que pertence” (Garine, 1987: mentação teria origem, segundo Fischler, no
4). Ao mesmo tempo, pode-se afirmar que, ao se paradoxo do onívoro, manifestando-se pela
alimentar, o indivíduo incorpora as propriedades ambivalência entre neofilia e neofobia. Ou seja,
do alimento. Temos aí o princípio da incorpora- o ser humano, para satisfazer suas necessida-
ção, como proposto por Claude Fischler. Para des nutricionais, precisa introduzir alimentos
esse autor, a incorporação variados em sua dieta. Mas, ao mesmo tempo,
é o movimento através do qual fazemos depara-se com os perigos oferecidos por novos
o alimento transpor a fronteira entre o alimentos. Inovação e prudência seriam, desse
mundo e nosso corpo... Incorporar um modo, características contraditórias do onívoro
alimento é, em um plano real, como em em suas escolhas alimentares.
Cabe aqui uma precisão, explicitada
um plano imaginário, incorporar todas ou
por Ferrières (2002: 13) em seu estudo sobre a
parte de suas propriedades: tornamo-nos
história dos medos alimentares a partir da Idade
o que comemos. [...] É certo que a vida e
Média. Enquanto o medo seria referente a um
a saúde da pessoa que se alimenta estão
objeto conhecido e claramente identificado, a
em questão cada vez que a decisão de
angústia e a ansiedade, mais difusas e difíceis de
incorporação é tomada. Mas também
suportar, seriam suscitadas pelo desconhecido.
está em questão seu lugar no universo,
A inquietação diante dos alimentos modernos,
sua essência e sua natureza, em uma
gerada por acréscimos em sua composição –
palavra, sua própria identidade: o objeto
conservantes, corantes, agrotóxicos, aditivos
incorporado intempestivamente a pode
etc. – ou por novos processos de transforma-
contaminar, transformar... (Fischler,
ção, é atestada pela multiplicação, nas últimas
1993: 66, 69)
décadas, de rumores alimentares (Fischler, 1993:
Dessa forma, sugere Fischler, se o 218). Vejamos como essa ansiedade se expressa
alimento constrói a pessoa que o ingere, é entre algumas das pessoas moradoras de Porto
compreensível que essa pessoa busque se cons- Alegre entrevistadas.
truir no ato alimentar. Daí esse autor deduz a Os enlatados, eu compro, mas morro de
necessidade vital de identificação dos alimentos, medo! [...] Parece assim que eu penso
fonte principal da atual ansiedade em relação “ah, aquela coisa ficou ali dentro tanto
à alimentação. Ele indaga: tempo!”. Que nem o milho verde, que eu
Se não sabemos o que comemos, não adoro, pra pôr numa salada. Às vezes eu
se tornaria difícil saber não somente o abro, e dá vontade... [gesto significando
que nos tornaremos, mas também o ato de jogar fora]. (Clara)
que somos? (1993: 70)
Até que chega no supermercado, até
É a partir desse quadro interpretativo, que o cara compra, o produto passa
refletindo sobre a comida industrializada das por muitas coisas, e o cara não sabe por
sociedades contemporâneas, que Fischler (1993: onde ele passou [...] Muitas coisas eles
218) cunha a expressão objeto comestível não botam ali no produto [inscrições nos
identificado (ocni), uma transposição jocosa, rótulos], porque a lei exige, mas quem
para o tema alimentação, do termo utilizado me garante aquilo lá? Eu não tenho

MAR / ABR 2005 9


artigo

condições de analisar. Eu sou um cara supermercado.


muito desconfiado. (Álvaro) Chego em casa, tiro, lavo... Bah, não
A composição dos alimentos, seu proces- consigo nem ver! Nem um frango e nem
samento e a procedência deles, bem como a outra carne sem lavar! Meto na pia,
trajetória que percorrem até serem colocados corto tudo, tiro, limpo, lavo direitinho
à disposição do público consumidor, ou, mais e separo. [...] Eu tenho uma mania,
precisamente, o fato de serem obscuros, seriam, eu passo um paninho umidozinho em
assim, como apontado pelas pessoas informantes, tudo o que é saquinho, tudo o que é
fonte de desconfiança. O que é misturado ao pó latinha, tudo que é coisa que eu trago
que se transforma em sopa? O que é acrescentado [do supermercado]. (Margarida)
aos grãos de milho verde para que se conservem por No que se refere, particularmente, às
tanto tempo na lata? Ou ao leite de caixinha, para frutas e verduras, inúmeras seriam as pessoas
que demore tanto a entrevistadas que apontariam o descascamento
estragar? Com que e/ou lavagem como “medidas profiláticas” para
é alimentada a gali- evitar eventuais efeitos nocivos causados pela
nha, cujos pedaços presença de impurezas – especialmente resíduos
congelados são ofe- de agrotóxicos – nos alimentos.
recidos ao consumo,
Meu pai não come, se ele vê tu comer
acondicionados em
um tomate com casca! Meu pai cuida
bandejas, envoltas
muito isso aí, pra gente tirar, porque a
por filme plástico?
concentração [dos agrotóxicos] está na
Se a presença
casca. (Rosane)
de elementos desco-
nhecidos na comida As verduras, deixo de molho um pouco,
moderna gera, entre pra sair o veneno. Eu ponho um pou-
as pessoas entrevis- quinho de vinagre, às vezes deixo só na
tadas, desconfiança água, porque a água elimina o veneno,
e ansiedade, não é né? Aí deixo de molho. (Marta)
de surpreender que
encontremos o mes- As frutas que a gente compra no super,
mo tipo de reação eu lavo tudo com sabão de glicerina.
diante dos alimentos Pêssego, uva, essas coisas que a gente
transgênicos, resul- come assim. Banana eu não lavo, mas
tantes, a partir de o resto, eu lavo tudo com sabão de
modificações gené- glicerina. (Dirce)
ticas, da introdução
Descascando e lavando, as pessoas
de genes estranhos
informantes considerariam ter, assim, expurga-
aos vegetais habitu-
das – física, mas também simbolicamente – as
almente consumidos.
impurezas das frutas e verduras que consomem.
Inúmeros são os estudos – particularmente os
Sujo e limpo: que tomam por objeto a alimentação em países
representações desenvolvidos – que vêm apontando a crescente
sobre a comida preocupação com a saúde nas escolhas dos
industrializada alimentos, mas também com a boa forma ou a
adesão a novas morais alimentares.
Às vezes tu nem sabe o que está com-
Em depoimentos coletados para esta pes-
prando. Não sabe de onde vem, se tem
quisa, o desconhecido, impuro, sujo seria identifi-
agrotóxico, não sabe o que eles colocam
cado pelas pessoas entrevistadas também como
pra produzir. Não sabe se é limpo, não
não-saudável. Da mesma forma, podemos sugerir,
sabe se é sujo. (Cleusa)
à interpretação construída por Douglas (1976) das
Na fala de Cleusa, moradora de Porto prescrições alimentares contidas no texto bíblico.
Alegre, a idéia de sujeira é associada à presença Nesse sentido, Cleomar, adepta do Adventismo
do desconhecido no alimento. Entre as pessoas do Sétimo Dia, citaria o Levítico para explicar as
informantes, várias seriam as que manifesta- restrições que sua religião estabelece em rela-
riam considerar sujos os produtos trazidos do ção ao consumo de carnes. Separando animais

10 Democracia Viva Nº 26
Alimentos transgênicos: no meu prato, não?

“limpos” de animais “imundos”, a informante embalagem, sua maior durabilidade. Entretanto,


associaria a pureza do alimento – decorrente algumas manifestariam considerar o leite fluido
da ausência de “produtos químicos” – à saúde. oferecido em saquinhos de melhor qualidade
Deus, desde o início, quando criou o mun- ou mais saudável. Entre essas, estariam Luísa e
do, se preocupou que as pessoas vivessem Paulo. Veremos a seguir a situação narrada pelo
bem, e vivessem felizes, e com saúde. Que casal, cabendo aqui mencionar que ambos se
não adianta tu viver, mas sem saúde. Aí definem como espiritualistas – ele kardecista,
não teria alegria nenhuma. [...] Eu tenho ela umbandista, médium.
como pra mim, que eu aprendi, o que eu Segundo seu relato, toda a família, mas
acho que é errado em termos alimentares, especialmente Paulo e uma das filhas do casal,
o que eu acho que é certo. Acho assim que manifestavam um problema de pele, de causa
qualquer pessoa entende que os produtos desconhecida. Buscando diagnóstico para o pro-
químicos não fazem bem pra saúde. [...] Os blema, Luísa realizaria uma consulta espiritual.
produtos químicos, nossa! É superpre- Eu perguntei... foi pra Mãe Oxum, uma
judicial, causa câncer, doenças as mais entidade da umbanda. Aí eu perguntei
variadas, eu acho. (Cleomar) pra ela, falei de umas coceiras, umas aler-
gias, falei “não sei se vem dos cachorros,
Essa visão pode ser mais bem apreendida
ou de alguma coisa que nós estamos
se levarmos em conta que, como evidenciado por
comendo”. Eu até não estava sentindo
Sandra Pacheco, no trabalho em que analisa, em
coceira nenhuma, eu procurava pulga
duas diferentes comunidades da capital baiana
e não via, não via nada, mas como era
adeptas do Adventismo do Sétimo Dia, as rela- muito seco, podia ser uma poeira, um
ções entre prática religiosa e hábitos alimentares, cimento, nós estávamos mexendo com
na cosmologia adventista o alimento é cimento. Aí ela disse que era do leite,
um meio para a conquista/manipulação da que tinha um conservante que estava
saúde do corpo tomado como templo fazendo mal. O leite de caixinha, ele
do Espírito Santo, instrumento físico a tem uns conservantes, umas coisas a
serviço de Deus. Esta “máquina” precisa mais ali, né? Então eles [o marido e a
ser cuidada para funcionar bem, cum- filha] observaram. Eu troquei de marca,
prir sua meta. A alimentação deve ser mas não adiantou. Aí ele [o marido]
pautada pela necessidade e não pelo comprovou, passou a tomar leite em
desejo, devendo o controle racional do pó, a Júlia também. (Luísa)
comer subjugar os elementos emocio-
No diagnóstico espiritual, a doença de
nais. Assim, os princípios de alimentação
pele teria sua causa em algo que teria sido acres-
fazem parte de um projeto mais amplo
cido ao leite longa vida para garantir sua conser-
de racionalização da conduta com vistas
vação. Conforme narrado pelo casal, seguindo a
a transformar o homem em instrumento
recomendação de Mãe Oxum, o leite de caixinha
de Deus e prova de sua glória. (Pacheco,
seria eliminado da dieta de Paulo e Júlia. Assim,
2001: 158)
eles se veriam curados do problema de pele.
É assim que, tendo por norma que aquilo Desse modo, não apenas as pessoas informantes
que se come cabe garantir a saúde do corpo, identificariam no elemento adicionado ao leite
Cleomar afirmaria que a presença de “produtos a causa da doença, como o fariam a partir do
químicos” nos alimentos – bem como modifi- parecer da entidade espiritual, o que indicaria,
cações genéticas – comprometeria sua função, é interessante notar, que também a partir do
tornando-os possíveis causadores de doenças. plano espiritual, simbólico, a comida moderna
Para melhor apreender a associação entre seria identificada como contendo substâncias
pureza do alimento e saúde, será interessante, estranhas, sendo, então, percebida como po-
ainda, analisarmos o caso relatado por Luísa e tencialmente maléfica.
Paulo a respeito do leite consumido. A maioria Assim, tendo anteriormente evidenciado
das pessoas entrevistadas declararia sua adesão entre as pessoas entrevistadas que a presença de
ao leite acondicionado em embalagens longa elementos desconhecidos nos alimentos industria-
vida, várias delas mencionando como vantagens lizados gera ansiedade, pode-se agora precisar
a possibilidade de estocagem do produto – que que essa ansiedade é substanciada a partir da
permite que a aquisição do leite seja incluída associação entre desconhecido e sujeira – ou
no rancho, a compra semanal ou mensal, rea- impureza, desordem –, por sua vez percebida
lizada em supermercado – e, uma vez aberta a como não-saudável, fonte de doenças. Do mes-

MAR / ABR 2005 11


artigo

mo modo – e, podemos sugerir, no campo do Assim é que molhos e temperos prontos,


imaginário, a partir da mesma construção –, a pratos congelados, bolos e sopas pré-preparados,
maior parte dessas pessoas informantes referir- pães e massas industrializados, alimentos enla-
-se-ia aos alimentos geneticamente modificados tados e refrigerantes seriam – juntamente com
como potencialmente prejudiciais à saúde. outros itens, anteriormente mencionados – reite-
radamente condenados. Em detrimento desses,
as preferências declaradas indicariam molhos,
O natural e as representações
iogurtes, doces, bolos, pães e massas caseiros;
do rural
galinhas e ovos caipiras; água e sucos; milho em
O molho, eu gosto de fazer, que daí faz espiga, vegetais e temperos frescos; verduras
do gosto. O molho pronto geralmente orgânicas. O que é natural, fresco, caseiro, pró-
tem uns gostos meio estranhos, eu não ximo, tradicional seria, dessa forma, afirmado
gosto. Gosto de pegar o tomate, cortar, em oposição aquilo que é artificial, processado,
fazer. [...] Não gosto muito de enlatados. distante, industrializado, moderno.
[Por quê?] Não sei, acho que o gosto não Os alimentos industrializados seriam perce-
é tão bom. Acho que às vezes o gosto bidos como excessivamente manuseados, e, ainda,
não é bom. Não é que tem gosto ruim, provenientes de lugares distantes – em alguns
mas a gente nota que não é um gosto depoimentos seria manifestada a preferência
natural, altera o gosto do produto, isso por produtos locais, gaúchos –, de origem não
eu não gosto. Gosto de sentir o gosto conhecida. Como no trabalho de Cazes-Valette
natural dos alimentos. (Gilberto) (1997: 224), seria valorizada a identificação da
origem do produto, que, muitas vezes, passa por
No depoimento de Gilberto – bem como
um ser humano, alguém conhecido – no caso
nos de muitas outras pessoas informantes –, a va-
estudado pela autora, que analisa o consumo de
lorização do natural seria construída como reflexo
carne bovina na França pós-crise da vaca louca,
da crítica ao artificial, qualificativo atribuído aos
esse alguém seria o criador ou o açougueiro. O
alimentos industrializados. Ou, como sugerido
alimento natural não seria apenas considerado
por La Soudière (1995: 158-160), temos que,
o de melhor gosto. Em oposição ao alimento in-
como reflexo da desconfiança ante o moderno,
dustrializado, seria apontado como puro e, dessa
o natural e o rural seriam identificados como
forma, saudável. Os adjetivos relacionados ao
autênticos. As possibilidades de análise oferecidas
natural seriam atribuídos aos alimentos frescos,
por essa contraposição serão aqui exploradas.
ou aos provenientes da feira, ou aos orgânicos, ou
Entre as pessoas entrevistadas, as verdu-
aos trazidos de fora.
ras adquiridas em supermercados seriam per-
Ainda, especialmente nos casos das pes-
cebidas como “muito grandes”, “sem gosto”.
soas moradoras de Porto Alegre entrevistadas e
A galinha congelada “parece palha, fica desi-
têm origem no meio rural – mas, como se pode
dratada”. Do leite “tiram todos os nutrientes”.
observar no depoimento de Karen, a seguir, não
Os ovos seriam considerados cópia dos “de
somente entre essas –, os adjetivos relaciona-
galinha mesmo”. Talvez algumas das declara-
dos ao natural seriam também atribuídos aos
ções que afirmam a superioridade do sabor dos
alimentos que remetem à memória da infância,
alimentos não-industrializados se constituam
da comida da mãe ou da avó.
em reação ao que poderia ser caracterizado
como “gosto médio”, excludente de sabores A minha avó materna, que era italiana,
fortes, proposto – como sugere Eizner (1995: a família quando veio da Europa se esta-
14) – pela indústria agroalimentar. Ou, como beleceu na zona rural, na colônia, eram
evidenciado por Álvarez e Pinotti, em estudo colonos. E a minha avó, que está viva até
sobre as mudanças e permanências nos hábitos hoje... ela é uma pessoa muito ligada à
alimentares dos argentinos, terra, sempre foi. E mesmo depois de vir
morar na cidade, depois de uma certa
a insipidez dos alimentos oferecidos pela
idade ela veio morar com meus pais... ela
indústria alimentícia e a sensação de inse-
manteve aquela profunda ligação com a
gurança provocada pela perda de controle
terra. [...] Eu lembro da minha avó italia-
sobre a cadeia de operações de produção
na, fazia uma polenta! A polenta, eu já
e elaboração da comida, provocam o
adorava. Mas depois, no dia seguinte,
resgate de variedades vegetais, animais
ela cortava a polenta em fatias, quando
locais ou regionais e produtos artesanais...
ela estava já seca, e fazia em cima de
(2000: 272)

12 Democracia Viva Nº 26
Alimentos transgênicos: no meu prato, não?

uma chapa. E eu comia aquilo com mel! dedicando ao estudo da comida como patrimônio
Como era bom! Ai, como era maravi- – e aí o caso dos produtos de terroir franceses
lhoso! Polenta brustolada, como ela diz. são particularmente significativos –, mostrando
Com mel. Que o mel, isso é uma coisa como produtos alimentícios e pratos, associa-
gozada, porque minha avó é italiana, dos a uma região, e referidos a uma natureza
meu avô é alemão, e alemão mistura e a um campo, a uma identidade, tornam-se, a
muito doce com salgado, os italianos partir das representações do mundo rural, bens
já não... Eu me lembro dos pães que a de consumo especiais (Bonnain, 1991; Bérard,
minha avó fazia, também. Eu ajudava 1998; Delbos, 2000; Rautenberg et al., 2000).
ela, que eu aprendi a fazer pão com ela. Assim, o rural tende a ser qualificado
E faço pão, e gosto, adoro fazer pão. como natural, mesmo quando, dadas as carac-
Me lembro do perfume dos pães, do terísticas intensivas da produção agropecuária
cheiro da massa crua. (Karen) – que inclui a utiliza-
É interessante remarcar que todas as pes- ção de agroquímicos
soas informantes, inclusas as nascidas em Porto dos mais diversos
Alegre, expressariam, de algum modo, uma me- tipos –, não o seria.
mória culinária rural, vivida ou herdada, isto é, Do mesmo modo
experienciada diretamente ou a partir do viven- que indicado por Ei-
ciado por seus antepassados. A ruralidade, mais zner (1995: 14) para
que qualquer outro atributo, parece condensar o caso francês, talvez
todas as vantagens que distinguem o alimento possamos identificar
desejável do alimento industrializado. nessa valorização do
De fora são os alimentos que vêm do natural e do rural mi-
interior, do meio rural, cuja origem é associada tos do natural e do
diretamente ao produtor. De fora, podem ser os artesanal, algo como
alimentos trazidos pela pessoa informante, ou a busca do consumo
por alguém de sua família, quando em visita à de “imagens dos sa-
região natal, ou por alguma pessoa conhecida bores perdidos”. A
ou parente que de lá vem. Podem, também, ser idealização do ru-
os alimentos produzidos em chácara, perto da ral, transposta aos
cidade. Ou os adquiridos em alguma viagem, de alimentos de fora,
produtores que os ofertam, à beira da estrada. torna-se evidente em
Ou os comercializados em feiras – de produtos alguns dos depoi-
orgânicos ou não –, supostamente pelas próprias mentos das pessoas
pessoas que os produzem. Ou, ainda, aqueles moradoras de Porto
que, de algum modo – como os ovos, trazidos Alegre entrevistadas
de fora pelo “pessoal do estacionamento”, nascidas no meio
para vender –, vindos do campo, chegam à rural. Em momentos
cidade por canais outros que os formalmente diferentes, as mesmas
constituídos. Os alimentos que vêm de fora são pessoas informantes
considerados os melhores. Das verduras, é dito destacariam as delícias
que “até a folha é mais macia”. A galinha, a da comida do campo
carne e o leite “não têm comparação”, “é ou- e, ao descrever a com-
tro gosto”, as do supermercado não chegam posição das refeições
“nem a seus pés”. Nos ovos “daquelas galinhas de sua infância, mencionariam a pouca variedade
criadas com milho, a gema é supervermelha, de alimentos disponíveis, ou mesmo a pobreza
bem diferente”. alimentar.
Podemos, assim, supor que, em relação aos
alimentos, ocorra o correspondente ao indicado
Percepções à mesa
por Mathieu e Jollivet (1989: 11-12), que, na
França, debruçando-se sobre o tema das repre- No que se refere aos hábitos alimentares, a
sentações da natureza, evidenciam que o senso imagem de uma ruralidade idealizada não
comum urbano tende a associar ao campo, seria a única disjunção perceptível entre as
ao rural, os valores atribuídos à natureza e ao visões expressas pelas pessoas entrevistadas e
natural. Ou, ainda, processos semelhantes aos suas práticas. Embora cada uma declarasse, em
apontados por autores que, na Europa, vêm se algum momento, como visto, algum grau de

MAR / ABR 2005 13


artigo

desconfiança e ansiedade em relação à comida nações interessantes. Gilberto – cujo trecho de


moderna, as descrições de seus cardápios coti- depoimento foi reproduzido anteriormente –,
dianos evidenciariam não apenas a inexistência por exemplo, que prefere preparar seu próprio
de adeptas de dietas como o vegetarianismo e molho de tomate, evitando o produto indus-
a macrobiótica, ou regidas pelo consumo de trializado, artificial, consome diariamente, no
vegetais exclusivamente orgânicos – dietas que, almoço, uma Coca-Cola light. Já na geladeira
como indicado por Ouédraogo (1998: 18-19), de Carla, em que só entram vegetais orgânicos,
em seu estudo das visões e práticas de consu- adquiridos na feira ecológica, freqüentada se-
midores e consumidoras parisienses adeptos da manalmente, a Coca-Cola, presença obrigatória,
alimentação orgânica, seriam parte integrante não é a light.
de um estilo de vida, regido por uma ética “que A preocupação com a dieta faria com que
valoriza extremamente a vida simples, a natureza Lourdes fosse menos rígida em relação ao refresco
e o natural, o arte- que coloca à mesa do que com os ingredientes
sanal e o rústico [...] que utiliza na preparação das refeições.
associados à saúde, à Extrato de tomate, eu não compro. Eu
ecologia, à pureza, à vou na polpa de tomate, se eu quero
solidariedade” –, mas engrossar meu molho... porque tem
também, e nem se muito aquelas porcarias. Quer ver? Já
poderia esperar que te digo, olha aqui [a informante mostra
fosse de outro modo, a embalagem, que buscara no armário,
o amplo consumo de embaixo da pia]. Eu compro a polpa de
alimentos industria- tomate. [...] Aqui não diz a composição?
lizados. Vamos ver: tomate, açúcar e sal! Mas
Cabe aqui se tu pegar um extrato de tomate no
uma observação. supermercado, tu olha o que que tem!
Como indicado por Um monte de coisa: conservantes, aci-
Darmon (1993: 77) dulantes, expectorantes [sic], não sei
– no estudo em que mais o quê. (Lourdes)
mostra que, há mais
de um século, a cres- Agora eu comprei o suco, aquele [nome
cente incidência de do produto], com aspartame, eu acho.
câncer vem sendo Então, como ele não engorda, eu gosto
percebida, na Europa, de tomar um suquinho assim, eu faço.
como decorrente de É esse aqui ó, esse aqui é Tea de Limão.
hábitos, aí inclusos os Bah! [olhando o rótulo] Tem quantidade
alimentares, advindos de coisa aqui! Tudo artificial! Acidulan-
com a civilização –, é te... edulcorante... lálálá... um monte de
comum, nas represen- porcaria. Mas não tem açúcar! Então,
tações que as socieda- isso aqui é liberado. Criança gosta, né?
Essas porcariazinhas, a gente está tendo
des constroem sobre
que ter. (Lourdes)
seu progresso, que os
aspectos positivos do Inúmeros seriam os exemplos equivalen-
mundo moderno se- tes, referentes não apenas às bebidas, mas aos
jam omitidos. Assim, mais diversos produtos. É assim que Dirce, que
talvez possamos entender que, embora o consumo prefere as verduras orgânicas, lava com sabão
de alimentos industrializados em geral, e pré- de glicerina as frutas e declarara não consumir
-preparados em particular, seja bastante difundido, galinhas de supermercado, manifestaria entu-
seriam pouquíssimas as pessoas informantes que siasmo diante das misturas pré-preparadas para
remarcariam a praticidade, facilidade ou econo- sopas: “Eu adoro sopa de pacotinho, aquele
mia de tempo decorrentes de sua utilização, a sopão. Ah, eu amo!”.
maioria preferindo ater-se a comentar, como visto, Do mesmo modo, teríamos pessoas que,
o que percebem como seus efeitos negativos. preferindo fazer seus próprios doces, consomem
Observando as detalhadas descrições de freqüentemente macarrão instantâneo; recu-
refeições coletadas com as pessoas entrevista- sando alimentos congelados ou embutidos,
das, bem como os itens presentes em suas listas têm por costume utilizar bolos de caixinha;
de compras, podem-se notar algumas combi- alimentando-se preferencialmente de vegetais

14 Democracia Viva Nº 26
Alimentos transgênicos: no meu prato, não?

orgânicos, consomem chocolates cotidiana- afirmados como preferíveis os percebidos como * Renata
mente; negando-se a incluir enlatados em seus naturais, associados a uma imagem idealizada Menasche
pratos, servem, em refeições familiares, pratos do campo. Esses elementos indicariam uma dis- Professora da
pré-elaborados, ou, ainda, que acrescentam posição à rejeição aos alimentos transgênicos. Universidade Estadual
cebolas e tomates ao molho comprado pronto, No entanto, os mesmos alimentos produzidos do Rio Grande do Sul
ou utilizam as misturas pré-preparadas para pela indústria agroalimentar desqualificados (Uergs) e pesquisadora
sopa para “incrementar” seus próprios caldos. nos depoimentos das pessoas moradoras de da Fundação
Retomemos aqui a questão que se co- Porto Alegre entrevistadas são cotidianamente Estadual de Pesquisa
Agropecuária (Fepagro)
locara como ponto de partida para o percurso consumidos por elas, o que leva a supor que
menasche@portoweb.
deste artigo: o que as visões e práticas das isso também possa ocorrer com os alimentos
pessoas informantes em relação à alimentação geneticamente modificados.
nos sugeririam a respeito de suas percepções Assim, se é possível afirmar que entre
sobre os alimentos transgênicos? a maior parte das pessoas entrevistadas os
Pôde-se, ao longo da pesquisa, observar alimentos transgênicos são objeto de rejeição,
que, para as pessoas entrevistadas, os alimentos temos que essa opinião não necessariamente
transgênicos são percebidos como incluídos em encontrará correspondência em suas atitudes
uma série de medos contemporâneos, vindo a diante das prateleiras dos supermercados e à
ser associados a clone, radiação, vaca louca, mesa. Se é verdade que os organismos geneti-
mutação, má-formação fetal e câncer. Entretan- camente modificados estão bem mais presentes
to, mesmo considerando os transgênicos po- nas lavouras e mesas brasileiras e gaúchas do
tencialmente nocivos e declarando sua rejeição que gostariam os setores contrários aos trans-
a esses alimentos, essas pessoas não adotam, gênicos, as contradições entre visões e práticas
efetivamente, a restrição a alimentos genetica- das pessoas moradoras de Porto Alegre entre-
mente modificados como critério de escolha de vistadas, evidenciadas na pesquisa, indicam que
produtos alimentícios. Assim, ao mesmo tempo as certezas a respeito do tema permanecem
em que os alimentos transgênicos são afirmados bastante aquém do que desejariam os setores
como perigosos, entre tantos riscos com que se pró-transgênicos. Não chegamos ao fim da
deparam em seu dia-a-dia, as pessoas morado- história.
ras de Porto Alegre entrevistadas parecem não
eleger esse como um dos riscos com os quais
efetivamente devem se preocupar.3
Ainda, evidenciou-se, entre essas pesso-
as, a presença de ansiedade diante da comida
moderna. Os produtos industrializados são
desqualificados, ao mesmo tempo em que são

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LA SOUDIÈRE, Martin de. Dis-moi où tu pousses: questions aux

MAR / ABR 2005 15


nacio
nacional
Marcelo Furtado* e Sergio Dialetachi**

Energia
nuclear
no Brasil,
pauta
A comunicação com o grande público na era da mídia digital, globalizada e em tempo

real é um dos grandes desafios da atualidade aos movimentos socioambientais. Em meio

a milhões de textos, fotos, vídeos e sons, as organizações da sociedade civil competem

hoje por espaços na mídia para divulgar grandes desafios nacionais e internacionais, de-

nunciar abusos e propor soluções. Os meios de comunicação estão se concentrando num

pequeno número de grandes corporações da mídia e, com isso, assumindo o controle da

informação perante o grande público. As organizações não-governamentais estão sendo

obrigadas a investir em estratégias de comunicação mais ousadas e inovadoras para

garantir a possibilidade de comunicar a um público mais amplo, a baixo custo, temas

importantes como meio ambiente, direitos humanos, desafios sociais, que muitas vezes

não entram nas pautas dos grandes veículos de comunicação.

16 Democracia Viva Nº 26
onal
A sociedade civil tem dois grandes desafios hoje. as Forças Armadas estavam resignadas a viver
Em primeiro lugar, é fundamental trabalhar em sem a presença de armas nucleares.
rede com o maior número possível de organiza- No início do governo Lula, o então mi-
ções focadas em alguns interesses comuns para nistro de Ciência e Tecnologia, Roberto Amaral,
se lograr qualquer objetivo socioambiental. Em declarou que o Brasil deveria desenvolver capaci-
segundo lugar, é essencial mobilizar o grande dade plena para o desenvolvimento de artefatos
público para que ele promova o processo de nucleares, apesar de não estar considerando a
mudança por meio da ação política e da ação construção de uma bomba atômica. A prioridade
individual e coletiva. seria o submarino nuclear e a geração de energia.
A campanha contra a retomada da O programa permitiria que, até o ano de 2010,
aventura nuclear no Brasil conta com todos os fossem produzidos 60% do urânio enriquecido
elementos que desafiam os(as) profissionais de necessário para a operação das duas usinas
comunicação. Temos forte oposição pública, nucleares existentes no país, Angra 1, Angra 2
relatórios técnicos, documentos oficiais, análises e, possivelmente, Angra 3.
qualificadas, material para Internet, campanha A questão nuclear expõe a posição fa-
pública e outros. Entretanto, esse tem sido vorável do governo Lula na possível aplicação
um tema de grande relevância ambiental e da tecnologia nuclear em áreas militares, como
enorme impacto financeiro que está recebendo o submarino nuclear, e do enriquecimento de
pouquíssima atenção da imprensa. O assunto urânio. As recentes declarações do atual ministro
é complexo, pois envolve questões ambientais de Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos, pro-
(lixo radioativo), econômicas (bilhões de dóla- movendo novas usinas e a retomada de projetos
res em investimento) e de segurança nacional nucleares militares, corroboram as declarações
(enriquecimento de urânio, submarino nuclear do ministro-chefe do Gabinete de Segurança
e o domínio do ciclo do combustível nuclear). Institucional da Presidência da República, ge-
Segundo pesquisa realizada pelo Instituto de neral Jorge Armado Félix, veiculadas pela Folha
Estudos da Religião (Iser), em meado do ano de S.Paulo em 14 de novembro de 2004. Na
passado, a pedido do Greenpeace, 80% da entrevista, o general afirmou categoricamente
população brasileira não quer a construção de que a aprovação da construção da usina nuclear
mais usinas nucleares no país. de Angra 3 “está para sair”. Ele também disse
No início do primeiro governo civil eleito que estados com capacidade nuclear estão uti-
pelo voto direto, o então presidente Fernando lizando organizações não-governamentais para
Collor (1990) noticiou, com grande destaque, barrar o Brasil no ingresso nesse clube seleto.
o fim de um projeto militar secreto. Numa área Tais declarações indicam que o Brasil pode
remota da Amazônia, fechou um buraco com caminhar na contramão do desenvolvimento
300 metros de profundidade que seria destinado sustentável e que o governo Lula está disposto a
a testes com artefatos atômicos. Era uma prova hipotecar nosso futuro ambiental e econômico.
real de que as Forças Armadas chegaram muito A tecnologia nuclear é financeiramente inviável
perto de explodir uma bomba nuclear nacional. e não existe solução para o seu lixo radioativo,
Durante o governo Fernando Henrique, o setor apresentando um grande risco à população e ao
militar foi direcionado para a construção de sa- meio ambiente. Durante o Fórum Social Mun-
télites e desenvolvimento do programa espacial dial 2005, as ministras Dilma Rousseff (Minas e
brasileiro. O presidente declarou, na época, que Energia) e Marina Silva (Meio Ambiente) mani-

MAR / ABR 2005 17


nacional

festaram sua oposição aos planos do governo meçou a ser construída em 1971, em Angra dos
Lula de construir a usina nuclear de Angra 3. O Reis (RJ), sob suspeitas de instabilidade geológica
professor Luiz Pinguelli Rosa, em evento do Fórum e sísmica do local escolhido. O nome da praia,
Brasileiro de Mudanças Climáticas, coordenado Itaorna, em língua tupi significa “pedra podre”.
por ele, também se opôs ao projeto. Simulações de acidentes revelaram a fragilidade
O Greenpeace já mobilizou mais de do projeto e a impossibilidade de evacuação da
20 mil mensagens ao presidente Lula contra a população local em caso de uma emergência.
construção de Angra 3 e a retomada da aventura Angra 1, conhecida popularmente como
nuclear brasileira com a campanha “Lulinha Nu- “vaga-lume”, por causa das freqüentes interrup-
clear – Não dê uma bola fora. Diga não à Angra ções de funcionamento por motivos técnicos, foi
3!”. A campanha circulou nos sites UOL, iG, inaugurada em 1982, em meio a controvérsias,
Yahoo!, nas revistas Época, IstoÉ, Carta Capital, já que a fabricante norte-americana, Westin-
mas foi recusada pela revista Veja sob alegação ghouse, recusou-se a transferir a tecnologia
de que a “campanha ao Brasil.
usava a imagem do Em 1975, ainda sob o regime militar, o
presidente sem sua governo firmou com a Alemanha um acordo
autorização”. Discu- de cooperação na área nuclear. Pelo acordo,
timos a opção da re- seriam instalados mais oito reatores no país:
tirada do personagem dois em Angra dos Reis, ao lado de Angra 1,
“Luli­nha Nuclear” do e outros seis no litoral sul do estado de São
anúncio, mas o texto Paulo. Reagindo rapidamente, a população
também parecia ser paulista impediu a construção de “suas” usinas
problemático para a por meio da criação de uma estação ecológica
revista. exatamente no local onde seria implantada a
central nuclear.
Assim, das oito usinas previstas, ape-
Arquivo
nas Angra 2 foi concluída. Sua construção foi
energético
marcada por problemas técnicos e constantes
A história da energia atrasos no cronograma. Começou a operar
nuclear no país teve somente em 2000, após quase 20 anos de
início por volta de construção, a um custo de cerca de US$ 14
1945, ano da explo- bilhões. Segundo números oficiais, já foram
são das bombas atô- gastos com Angra 3 US$ 750 milhões entre
micas de Hiroshima a compra e a estocagem dos equipamentos.
e Nagasaki e do fim O projeto de Angra 3 foi paralisado em 1992
da Segunda Guerra por motivos econômicos. A indústria nuclear
Mundial. Apesar de afirma que, até agora, já foi investida uma
pobre em reservas quantia de US$ 1,2 bilhão em Angra 3 e que,
conhecidas de urâ- para o término da obra, será necessária mais
nio, o Brasil era um uma quantia de US$ 1,8 bilhão.
grande exportador Hoje, no mundo inteiro, até mesmo
de monazita, um mi- na Alemanha, reatores nucleares têm sido
neral radioativo. gradativamente desativados e não há pratica-
No entanto, mente nenhuma nova usina sendo planejada
essa exportação foi ou construída, já que são consideradas caras
alvo crescente de denúncias de favorecimento e perigosas.
a interesses estrangeiros e contrabandos. Na A tecnologia nuclear é perigosa, já
tentativa de moralizar essa situação, o governo causou acidentes graves como o de Three Mile
passou a incluir nos contratos de exportação Island (Estados Unidos) e Chernobyl (Ucrâ-
a exigência de beneficiar-se do minério antes nia), com milhares de mortes e enfermidades
de remetê-lo para o exterior. Assim, foram decorrentes dos acidentes, além da perda de
formados os primeiros grupos de pesquisas e grandes áreas. A utilização desse tipo de tec-
implantadas as primeiras unidades de benefi- nologia continua apresentando graves riscos
ciamento, o que despertou desvarios sobre a para toda a humanidade. Reatores nucleares
fabricação de uma bomba atômica nacional. e instalações complementares geram grandes
A primeira central nuclear brasileira co- quantidades de lixo nuclear que precisam ficar

18 Democracia Viva Nº 26
Energia nuclear no Brasil, pauta maldita

sob vigilância por milhares de anos. Não se um de seus reatores escapou, provocando o
conhecem técnicas seguras de armazenamento derretimento do núcleo. Embora não haja
do lixo nuclear gerado. números oficiais de pessoas mortas ou afe-
Optou-se, nos reatores de Angra 1 e An- tadas pela radioatividade, sabe-se que houve
gra 2, por estocar o resíduo dentro do próprio grande aumento de incidência de câncer e
prédio do reator. No entanto, essa solução é problemas de tireóide, além de vários outros
provisória e arriscada, já que o próprio Relatório efeitos negativos sobre todos os tipos de vida
de Impacto Ambiental de Angra 2 reconhece na região.
que não há solução definitiva para os resíduos Sete anos depois, em abril de 1986, ocor-
nucleares a longo prazo. reu o mais grave acidente nuclear da história.
A explosão de um dos quatro reatores da usina
nuclear soviética de Chernobyl, na Ucrânia, lan-
Grandes acidentes
çou na atmosfera uma nuvem radioativa de 100
Em 6 e 9 de agosto de 1945, respectivamente, milhões de curies – nível de radiação 6 milhões
as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki de vezes mais alto do que o que escapara da
foram destruídas por bombas atômicas lançadas usina de Three Mile Island. Todo o centro-sul da
por aviões do Exército dos Estados Unidos. Mais Europa foi atingido. Estima-se que entre 15 mil
de 200 mil pessoas foram mortas nos ataques. e 30 mil pessoas morreram, e aproximadamente
Quase seis décadas depois do bombardeio, 16 milhões sofrem até hoje alguma seqüela em
milhares de pessoas ainda apresentam seqüelas decorrência do desastre.
em virtude da exposição à radioatividade. Um ano depois do acidente na Ucrâ-
Mais tarde, vários acidentes nucleares nia, em setembro de 1987, a violação de uma
foram registrados no mundo. Em março de cápsula de césio 137 por sucateiros da cidade
1979, a usina norte-americana de Three Mile de Goiânia (GO), resultou em quatro mortes.
Island, na Pensilvânia, foi o local de um dos Cerca de 250 pessoas tiveram problemas de
piores acidentes nucleares registrados até saúde na época. No ano passado, cerca de
hoje. O gás responsável pela refrigeração de

Comunicação e meio ambiente


Durante a última grande conferência internacional
sobre meio ambiente liderada pelas Nações Unidas,
civil não chegue ao grande público ou, eventualmen-
a Rio+10, realizada em Johannesburgo em 2002,
te, sofra modificações que podem comprometer seu
ficou muito evidente que não seria possível superar
conteúdo original.
os grandes desafios ambientais das próximas décadas
A comunicação dos temas ambientais passou a
(mudanças climáticas, gestão e acesso à água, polui-
ser um desafio maior com o aumento da complexi-
ção, desmatamento, consumo sustentável e outros)
dade dos problemas, menor especialização dos meios
sem que o movimento ambientalista se articulasse
e menor interesse do público pela pauta ambiental.
melhor com os movimentos sociais, sindicatos, setores
A reação de muitas organizações foi preparar con-
acadêmicos e setores industriais que promovem os
teúdos com maior qualidade, oferecer capacitação
produtos e tecnologias alternativas. A comunicação
para jornalistas nos temas específicos e procurar
entre os atores integrantes de uma rede de interesse
manter contato mais estreito com profissionais da
comum, assim como a comunicação com o grande
mídia para estabelecer um canal de relacionamento
público, se tornou um elemento fundamental de
e troca de informação.
qualquer campanha de mobilização.
Esse cenário complexo forçou, em particular, as
Na grande mídia, os fatos passam por um funil,
organizações ambientalistas a procurarem caminhos
e as matérias que chegam aos jornais, rádios, televi-
adicionais ou alternativos para informar o público e
são e Internet são fruto de uma decisão que leva em
mobilizar a opinião pública. A mídia local ou regio-
consideração os interesses corporativos, humanos
nal, apesar de atingir um público menor, apresenta
ou o perfil do público leitor. Muitas vezes, o assunto
mais espaço e menos competição de pauta. A mídia
é abordado com direcionamento político definido e
alternativa ou especializada também atinge um pú-
baixa qualidade. Essa baixa qualidade está freqüente-
blico menor, mas permite, em geral, matérias com
mente associada ao pouco tempo e espaço oferecido
conteúdo robusto, oferece mais independência polí-
ao(à) jornalista para preparação da matéria. Outras
tica e menos controle corporativo. A Internet oferece
vezes está associada ao investimento reduzido no
caminhos inovadores como os blogs e as redes de
treinamento de profissionais ou na falta de jornalis-
relacionamento. E ainda é possível o caminho direto
tas especialistas na equipe para cobrir nichos como
com o público.
o ambiental. Portanto, a pressão econômica aliada
ao posicionamento editorial dos meios faz com que,
muitas vezes, a informação gerada pela sociedade

MAR / ABR 2005 19


nacional

* Marcelo Furtado 1.600 foram consideradas, oficialmente, ví- alimentos e água.


Diretor de campanhas timas da radioatividade do césio de Goiânia, O projeto nuclear é tratado com tanto
do Greenpeace grande parte das quais são funcionários(as) sigilo na Presidência que alguns ministros, quan-
pú­blicos(as) que trabalharam na assistência do perguntados sobre o tema, reconheceram
**Sergio
Dialetachi às pes­soas contaminadas. Atualmente, as 6 que ele nunca entrou na pauta das reuniões
mil toneladas de lixo radioativo resultantes do ministeriais. A questão nuclear não é relevante
Coordenador da
acidente estão armazenadas em contêineres de na matriz energética brasileira, não é susten-
campanha antinuclear
do Greenpeace
concreto, em um depósito de Abadia de Goiás, tável ou renovável. Sua viabilidade só parece
próximo a Goiânia. interessar a um setor específico – o militar. O
O césio 137, subproduto das usinas nu- fortalecimento do investimento militar, com o
cleares obtido pela fusão do urânio 235, foi lar- domínio do ciclo do combustível nuclear, pode
gamente empregado no tratamento de vítimas de ser uma ameaça a nossa imagem internacional
câncer durante décadas, por meio da radioterapia. e nos remete diretamente aos anos de chumbo
Em Goiânia, ele fora retirado de dentro de um da ditadura militar, quando o Brasil flertava
equipamento que se encontrava nas ruínas do que com a possibilidade de desenvolver artefatos
costumava ser o Instituto Goiano de Radioterapia nucleares. Portanto, fica a questão: como um
(IGO), no centro da cidade. tema tão complexo, perigoso e de grande im-
Em maio de 2003, uma equipe de espe- pacto ambiental e econômico não está sendo
cialistas em radiação do Green­peace realizou no amplamente discutido na imprensa?
Iraque inspeções para detectar níveis de conta- Estamos num momento fundamental
minação próximo à central nuclear de Tuwai­ para a construção de parcerias com outras
tha, localizada no sul do país e abandonada entidades da sociedade civil contra a aventura
durante a ocupação norte-americana. Ativistas nuclear brasileira, pois o assunto é urgente
encontraram um contêiner com cerca de cinco e a decisão poderá ser tomada na próxima
quilos de uma mistura de urânio conhecida reunião do Conselho Nacional de Política
como yellowcake (bolo amarelo) a céu aberto, Energética (CNPE).
além de detectarem taxas de radioatividade de
até 10 mil vezes acima do considerado nor-
mal, em alguns locais. O Greenpeace também
apurou que pelo menos 150 famílias estavam
utilizando barris pilhados da usina para guardar

Divulgando quem faz


O Greenpeace tem buscado melhorar a qualidade
do conteúdo de sua comunicação, investindo mais
tempo e recursos na preparação das histórias e 14.250 quilômetros, por 27 capitais e cidades em
facilitando o acesso direto da imprensa com os 20 estados, no período de 73 dias, divulgando
atores dos processos de mudança. O trabalho que as energias renováveis (solar, eólica, biomassa e
fizemos na demarcação da reserva florestal em pequenas hidrelétricas). Nessa expedição, conver-
Porto de Moz é um exemplo dessa abordagem, samos com mais de 40 mil pessoas diretamente,
garantindo que a voz da comunidade tenha acesso tivemos mais de 30 horas de transmissão por
à mídia e que a discussão não seja polarizada por televisão e geramos mais de cem artigos em jor-
madeireiros e ambientalistas. nais e revistas. Também desenvolvemos conteúdo
Outro exemplo recente aconteceu nos pri- específico para Internet e, em particular, blogs
meiros dias do assassinato da irmã Dorothy Stang e redes de relacionamento. Outro exemplo foi a
em Anapu. O Greenpeace deslocou jornalistas e campanha contra os alimentos transgênicos, em
equipamento de transmissão via satélite para ga- setembro de 2004, que gerou 15 mil mensagens
rantir que as organizações sociais da região – que para o presidente Lula via Internet e mais de 700
detinham informação relevante e um importante mil visitantes em nosso site.
ponto de vista – pudessem ser ouvidas. Assim, Durante o último Fórum Social Mundial,
conseguimos conectar o assassinato em Anapu, testamos com sucesso uma nova estratégia de
uma comunidade distante, sem telefonia celular, comunicação direta. Construímos no Acampa-
com a imprensa nacional e internacional em mento da Juventude, em conjunto com a Fede-
tempo real, fornecendo fotos, notas e entrevistas. ração Gaúcha, estruturas de skate com madeira
Estamos buscando incrementar a divulgação legal e certificada pelo FSC, para engajar jovens
de nossas campanhas nos meios locais, regionais na defesa da floresta e divulgar nossa campanha
e especializados. Essa foi a estratégia durante contra a destruição da Amazônia.
a Expedição Energia Positiva: viajamos mais de

20 Democracia Viva Nº 26
O Jornal da Cidadania é distribu-
ído para pessoas que têm pouco
ou nenhum acesso à informação
crítica e comprometida com a
democracia. Nossos leitores e
leitoras são, especialmente, estu-
dantes, professoras e professores
de escolas públicas de todo o
país. Mas também trabalhadoras
e trabalhadores urbanos e rurais,
líderes de comunidades, morado-
ras e moradores de periferias. São
60 mil exemplares distribuídos
gratuitamente.

Participe de mais esta iniciativa


do Ibase. Você pode ajudar com
contribuições financeiras ou orga-

MAR / ABR 2005 21


v a r i e
v
Flávia Mattar
a r i e

Articulação feminina Respeito: degrau para Pelo direito de decidir


a paz
O 10º Encontro Feminista Latino- Pesquisas indicam que são realiza-
-americano e do Caribe será realizado Anualmente, no mês de abril, o dos, anualmente, mais de 750 mil
de 8 a 11 de outubro de 2005, em Conselho Indigenista Missionário abortos em condições inseguras no
São Paulo. Feministas brasileiras e (Cimi) organiza a Semana dos Po- Brasil. Complicações acarretadas
do Cone Sul estão se mobilizando vos Indígenas. A temática escolhida pela prática clandestina são a quarta
para a formulação da linha política para 2005 – “Paz, solidariedade e causa de mortalidade de mulheres
e de uma proposta de conteúdo, me- reciprocidade nas relações” – convi- no país. Além disso, cerca de 250
todologia e dinâmica para o evento. da a sociedade brasileira a repensar mil mulheres são internadas a cada
Em 14 de julho, ocorrerá em estilos de vida, cultivando valores ano no Sistema Único de Saúde
Brasília a primeira reunião da co- como a solidariedade e a recipro- (SUS) por complicações de abor-
missão organizadora – composta por cidade nas relações entre pessoas, to, sendo a maioria negra, jovem
18 mulheres de diferentes organiza- famílias, comunidades e povos. A e pobre.
ções – com os comitês consultivos temática está em sintonia com o Integrantes da organização Cató-
nacional e do Cone Sul. A data e o lema proposto pela Campanha da licas pelo Direito de Decidir estão
local foram agendados em virtude Fraternidade da Conferência Nacio- promovendo campanha para que
da realização, um dia antes, da nal dos Bispos do Brasil (CNBB): o aborto deixe de ser considerado
Conferência Nacional de Políticas “Solidariedade e paz – felizes os crime. A iniciativa prevê a realiza-
para as Mulheres, ou seja, uma que promovem a paz”. ção de oficinas de formação sobre
forma de aproveitar um momento Para incentivar o debate, o Cimi a situação do aborto, nas quais
de mobilização feminista. organizará encontros em diversos será utilizado um kit composto por
“A expectativa é que o encontro pontos do país, entre os dias 17 e história em quadrinhos, vídeo, CD
seja um espaço de convivência 23 de abril, contando com a pre- para rádios e cartilha. Além disso,
alegre e criativa, que preserve a sença do movimento indígena, de haverá coleta de assinaturas de for-
diversidade de pensamento. Nós, movimentos sociais, estudantes, ma qualificada, incluindo nomes de
da organização, estamos trabalhan- estudiosos(as) e simpatizantes da pessoas com posicionamento claro
do para oferecer condições para causa indígena. As regionais do em relação à necessidade da legali-
que as mulheres reflitam sobre o Cimi e o seu secretariado nacional zação do aborto, tanto do ponto de
próprio feminismo e a democracia estão disponibilizando cartazes e vista da saúde pública como social.
na nossa região”, diz a feminista textos para facilitar o aprofunda-
www.catolicasonline.org.br
Dulce Xavier. mento das discussões.

www.10feminista.org.br www.cimi.org.br

22 Democracia Viva Nº 26
d
d a d e a d e s

Debate intenso Web cidadã Caxiri na cuia

Lideranças negras de todo o Brasil Está no ar a página Ação 17 – Caxiri é bebida tradicional indígena
estão se articulando para a realiza- Jornalistas e Comunicadores pela feita à base de mandioca, frutas ou
ção da Marcha Zumbi+10, prevista Infância, em português e espanhol. raízes fermentadas. Agora, também
para ocorrer em novembro, em O projeto – uma parceria entre passou a ser nome de CD produzi-
Brasília. A afirmação da unidade Unicef, Andi e Rede Andi América do pelas comunidades uapixana e
política e o comprometimento na su- Latina – foi lançado com o objetivo macuxi, com a participação de 24
peração das desigualdades erigidas de criar uma aliança internacional indígenas. O CD Caxiri na cuia –
pelo racismo serão os pontos fortes para enriquecer a prática diária da O forró da maloca foi criado para
da iniciativa. comunicação, tanto nos veículos divulgar a história dos povos da
Entre os principais focos de que abordam a infância em seu terra indígena Raposa Serra do Sol,
discussão da articulação para a trabalho cotidiano como nos que de Roraima.
Marcha estão as melhores estraté- são elaborados especificamente para As decisões sobre a produção do
gias de mobilização e a data mais o público infantil. CD ocorreram em assembléias nas
indicada para a sua realização. Entre os serviços oferecidos aldeias e no Conselho Indígena de
Existem grupos que defendem que pelo site estão: fórum de discussão, Roraima (CIR), organização que
a articulação para Brasília deve ser bate-papo, biblioteca, banco de ficou responsável por atender às
iniciada a partir do âmbito munici- fontes, guias, glossários e agenda de pessoas interessadas em adquirir
pal. Mas também há quem julgue eventos. Assim, comuni­cadores(as), uma cópia.
ser melhor convocar todos e todas jornalistas e estudantes de comu- O CD é dedicado a Aldo Ma-
para uma plenária nacional. A data nicação de todos os países ibero- cuxi, assassinado em 2003 em
que vem sendo apontada como a -americanos e do Caribe poderão virtude de um conflito fundiário.
mais propícia para a realização da dialogar, trocar novas experiências “Cantamos a vida, a natureza e as
Marcha é o dia 16 de novembro, e discutir a qualidade da informação lutas por nossos direitos”, afirma o
em vez do dia 20 (Dia Nacional sobre a infância e a adolescên- texto de abertura do encarte do CD,
da Consciência Negra), domingo, cia. Faça parte dessa comunidade que tem, entre suas faixas, “Nós
feriado. Brasília, obviamente, es- virtual. queremos nossa terra homologada”,
tará esvaziada. “Sofrimento é demais” e “Dom de
www.accion17.org
índio”.

(95) 224-5761
cir@technet.com.br
www.cir.org.br

MAR / ABR 2005 23


intern
internacional
Pierre Calame*

De uma
coalizão

Perante uma globalização econômica sem uma regulação real, o que seria necessário?

Uma coalizão antiglobalização ou a constituição de uma aliança por uma outra mundia-

lização? Se for o caso de uma aliança, qual seria sua agenda, quais seriam seus objetivos,

suas modalidades, suas etapas e suas propostas?

Quando se trata de oposição, uma coalizão é suficiente e pouco importam as con-

tradições de interesses, o simplismo e as análises aproximativas, somente os resultados

são importantes: quanto mais numerosos, mais fortes. O desafio, porém, é outro quando

se trata não só de se opor, mas também de construir um outro mundo, de afirmar que

um outro mundo, uma outra mundialização é possível e, sobretudo, indispensável. Para

a humanidade, é uma questão de sobrevivência: o impasse social e ecológico dos atuais

modelos de desenvolvimento é evidente, e as regulações entre os Estados atuais são


[Traduzido do francês por
Ana van Eersel, revisto
incapazes de garantir a paz e a justiça.
por Jones de Freitas]

24 Democracia Viva Nº 26
acional
Isso pressupõe, primeiramente, a cor- dessa mundialização. Desse ponto de vista,
reta utilização das palavras. A falta de pre- e agrade ou não aos respectivos partidários,
cisão dos conceitos favorece uma estratégia existem, entre Davos e Porto Alegre, mais
que permite incorporar tudo quanto possível seme­l hanças do que oposições! Esses Fóruns
e atrair a atenção dos meios de comunicação; criam os espaços de diálogo e os cenários de
é uma fonte de bloqueios quando se trata de debate público na escala dos novos desafios.
construir pontos de vista. A “globalização econômica” não é a
Os termos “globalização econômica” mundialização, mesmo que se alimente dela
e “mundialização” são constantemente utili- e que a reforce. Não é um fato irreversível,
zados um no lugar do outro. Por isso, não é uma ideologia que aproveitou, durante a
podemos entender como as pessoas que são década de 1990, a morte de seu rival, com a
“antimundialização” podem estar a favor de implosão do comunismo histórico.
“um outro tipo de mundialização”. O desmoronamento do modelo pro-
Retomemos, então, a distinção entre dutivista, centralizado e totalitário caracterís-
“mundialização” e “globalização econô- tico dos sistemas soviético e chinês permitiu
mica”. A mundialização é a constatação que um tipo de pensamento de direita, que
de interdependências irreversíveis entre exerceu durante muito tempo o domínio,
todas as sociedades e todas as pessoas do reivindicasse o caráter universal de pseu-
planeta. Da Internet ao efeito estufa, da doleis econômicas e anunciasse o fim da
interconexão de idéias e de moedas à dos história e do fato político em benefício do
ecossistemas, da competição pelo acesso reino atemporal do intercâmbio mercantil.
à energia fóssil à circulação de músicas. A coalizão antiglobalização (e não
Estamos no mesmo barco, que é frágil. E “antimundialização”, como é freqüentemen-
é bem possível que ele esteja navegando te batizada pela mídia) é o reflexo de reações
em direção a um iceberg e se torne em breve multiformes, é o sobressalto, a afirmação da
um Titanic, cuja primeira classe e cujo paiol primazia da vida, da história e da democra-
afundarão juntos. Essa é a mensagem mais cia sobre a rotina cinza das patentes, das
importante da mundialização. É necessário fusões de empresas, das lógicas de poder e
mudar de rumo a tempo porque o barco da for­m atação do pensamento. Mas, após
reage lentamente; por essa razão, é preciso o despertar, temos que começar a agir,
chegar a encontrar pontos de vista em co- temos que construir. Para isso, é necessário
mum e modos de pilotagem. Antes de 1940, estabelecer uma agenda.
a consciência de humanidade era apenas um Primeira fase: reconhecer as diversi-
conceito filosófico; a humanidade tornou- dades e partir delas. Nem em Davos nem em
-se sujeito de direito depois do Holocausto. Porto Alegre, a diversidade do mundo está
O grande desafio do século XXI é fazer surgir, verdadeiramente representada. A China, a
de forma progressiva, uma verdadeira comuni- África, os países do antigo império soviético,
dade mundial dotada de novas capacidades o subcontinente indiano e os países muçul-
de regulação. manos estão praticamente ausentes dessa
O surgimento de uma sociedade civil diversidade, e cada Fórum (o econômico e
mundial que utiliza encontros mundiais, tanto o social) só reúne um pequeno número de
próprios como dos outros, que se beneficia meios, convencidos de que avançam nas te-
do fenômeno Internet e que aborda simul- ses que se encontram em debate. Em termos
taneamente questões políticas, ecológicas, do meio social e profissional – e também em
econômicas e culturais, é a clara expressão termos geográficos –, cada Fórum representa

MAR / ABR 2005 25


internacional

só uma pequena minoria do mundo. mundialização.


A construção de uma aliança para uma Essa identificação é possível? A di-
outra mundialização supõe, pelo contrário, versidade de culturas, de pontos de vista e
repartir as diversidades do mundo e buscar de interesses não representa um obstáculo
pacientemente os terrenos de entendimento radical para qualquer diálogo? Supondo que
em torno de desafios em comum. esse diálogo seja possível, poderemos fazer
De qual diversidade se deve partir? surgir dele desafios em comum e estratégias
Da diversidade geocultural, certamente. É a de mudança?
mais evidente. É necessário que cada povo É possível elaborar pontos de vista
esteja representado eqüitativamente tendo especializados em direção a uma abordagem
em conta sua importância numérica para sair mais global e mais sistemática das transfor-
do pâté d’alouette1 atual com a sua receita mações que estão sendo geradas? É imagi-
de “um cavalo ocidental por uma andorinha nável encontrar, no seio de cada meio social
asiática ou africana”. Mas também, e prin- e profissional, pessoas prontas a reconhecer
cipalmente, para e assumir suas responsabilidades e a entrar
sair da diversidade em negociações de cooperação conflitan-
de meios sociais e tes, correndo o risco de serem tratadas de
profissionais porque idealistas por umas e de traidoras sociais,
a nossa sociedade por outras? Todas essas questões têm uma
mundializada é uma importância renovada após o 11 de Setembro
sociedade na qual, e porque cada pessoa começa a compreender
com a ajuda da In- que o simplismo é a cruzada, e a cruzada é
ternet, certos meios a guerra. Elas estão no centro do processo
– grandes empre- de trabalho e do diálogo que chamamos de
sas, ONGs, cientis- Aliança por um Mundo Responsável, Plural
tas etc. – dialogam e Solidário (www.alliance21.org). As mes-
de uma ponta a mas questões estiveram também no centro da
outra do planeta, Assembléia Mundial de Cidadãos, que, por
enquanto se acen- iniciativa da Aliança e com apoio da Fun-
tua a separação de dação Charles Léopold Mayer pelo Progresso
seus vizinhos mais do Homem (FPH), reuniu-se em Lille, de 2 a
próximos. Por con- 10 de dezembro de 2001.
seguinte, a partir A Assembléia Mundial de Cidadãos,
do surgimento de por sua vez, dedicou-se a uma prática com-
“comunidades co­ parável. Nessa assembléia, a presença de
l e­g i­a­d a s ” , pesso- 400 participantes refletia a diversidade da
as pertencentes a sociedade mundial. Não debateram temas
um mes­­m o meio, preestabelecidos, mas sim elaboraram sua
conscientes de suas própria agenda identificando suas preo-
responsabilidades, cupações em comum. Essas preocupações
pode-se estabelecer possuem, portanto, uma capacidade federa-
o diálogo entre os tiva sem a qual uma sociedade democrática
meios para identifi- não pode conduzir transformações maiores.
car os desafios em Elas sintetizam de alguma forma o “sentido
comum. comum”.
E o que de- Essas preocupações estão situadas em
bater? Sobre quais bases elaborar novas três grandes áreas: os sistemas de pensamen-
perspectivas? Tanto na democracia como to; os sistemas de produção e a organização
nas empresas, o enunciado do problema e o da vida econômica e social; e os sistemas de
estabelecimento dos termos do debate ante- regulação, ou seja, a governança. Nosso
cedem a negociação de soluções e são mais mundo tem sido arrastado, há dois séculos,
importantes que a negociação em si mesma, por uma evolução técnica e econômica cada
quando se trata de elaborar estratégias de vez mais rápida. Nossos modos de pensar,
1 Literalmente “patê de coto-
mudanças. O processo de identificação de nossos sistemas de valores e de educação e
via”, uma expressão utilizada desafios em comum está atualmente no centro nossos modos de regulação evoluíram muito
em francês para aludir a uma
representação desigual. de toda estratégia de aliança para uma outra mais lentamente, tendo como conseqüência

26 Democracia Viva Nº 26
De uma coalizão antiglobalização a uma aliança por uma outra mundialização

um atraso cheio de ameaças. É esse atraso As mesmas prioridades de pluralismo, de


que deve ser resolvido prioritariamente. interdependência, de responsabilidade, de
Primeira área de preocupação: os democracia e de solidariedade devem per-
valores e os sistemas de pensamento. A co- mitir a reorientação dos esforços públicos de
munidade internacional tem uma base ética pesquisa e desenvolvimento técnico.
comum que pode ser, em complemento dos Segunda área de preocupação: os
direitos do homem, o fundamento dos com- sistemas de produção e a vida econômica e
promissos pessoais e coletivos, e também social. A ecologia industrial e territorial leva
do direito internacional e da governança a prestar atenção ao fluxo de intercâmbios
mundial. A Aliança propõe que a Carta de materiais entre empresas ou entre as socie-
Responsabilidades Humanas se transforme dades locais e seu meio ambiente em lugar de
no terceiro pilar da comunidade interna- só se interessar pelos fluxos monetários, a valo-
cional ao lado da Declaração Universal dos rização de intercâmbios independentemente
Direitos do Homem e da Carta das Nações de sua contrapartida monetária, a constituição
Unidas. O projeto da Carta, debatido e do capital social
emendado por participantes da Assembléia das sociedades, a
de Lille, apóia-se numa definição ampliada possibilidade de or-
da responsabilidade que cada pessoa deve ganizar em todos
assumir na proporção de seu saber e de seu os níveis intercâm-
poder, estendendo-se ao impacto direto e bios estipulados que
indireto de seus atos. criam tanto vínculos
Essa abordagem ampliada da res- como bens – um
ponsabilidade tem conseqüências práticas movimento de uni-
consideráveis. Ela permite, por exemplo, ficação se produz
definir as responsabilidades respectivas de progressivamente
credores, governantes e populações, no caso entre as inovações e
da dívida internacional, e também permite os ensaios até então
fundar o princípio de precaução, promover desordenados, al-
o comércio eqüitativo e as finanças respon- guns inspirados pela
sáveis. Incentiva cada meio profissional a idéia de um desen-
elaborar um código de conduta baseado no volvimento durável,
exercício prático de sua responsabilidade. A outros pela idéia
Carta impulsiona o respeito, a dignidade de uma economia
e a tolerância: isso garante que os direitos solidária, e outros
alheios sejam respeitados e leva a considerar finalmente pela
a diversidade de conhecimentos, culturas e vontade de fugir
ecossistemas como um patrimônio comum. do determinismo
Finalmente, afirma a prioridade do ser sobre e dos impasses do
o ter, o que leva à busca de modelos de poderio do mercado
desenvolvimento, à evolução de valores nos mundial.
quais o consumo mercantil não seja mais o A terceira
padrão de medida do progresso individual grande área de
e coletivo. transformações, a
A evolução dos valores corresponde mais ampla, refere-
à do pensamento. Um mundo tão interde- -se à governança,
pendente como o nosso não pode mais se ou seja, ao con-
satisfazer com uma visão segmentada, com- junto de regulações estabelecidas pelas
partimentada do ser humano, da sociedade, sociedades para garantir sua coesão e seu
do conhecimento e da biosfera. A educação, desenvolvimento a longo prazo. A reforma
a educação do ser e do mundo não pode es- da governança é a primeira prioridade que
tar baseada na transmissão de saber discipli- surge da Assembléia Mundial de Cidadãos e
nar. Deve ser a iniciação aos valores comuns dos trabalhos da Aliança. Essa reforma deve
a todas as pessoas, que é o meio pelo qual ocorrer em todos os níveis (o local e o global)
se podem entender os desafios do mundo e em todos os domínios (da gestão de ecos-
e preparar os futuros cidadãos e cidadãs sistemas à reforma dos sistemas financeiros).
para que possam ser sujeitos de sua história. As mudanças destes dois últimos séculos

MAR / ABR 2005 27


internacional

Pierre Calame obrigam a repensar os modos e os níveis de dos, e é isso que deve ser organizado. Não
Diretor da Fundação regulação, nela incluída a democracia ou a haverá governança democrática, em escala
Charles Léopold Mayer organização dos Estados, cujas bases são mundial, se os diferentes atores sociais não
anteriores à revolução industrial. se estruturarem também nesse nível.
Quatro orientações destacam-se: a A terceira orientação refere-se ao
primeira é a implementação em todos os papel da governança na proteção do direito
níveis, do local ao global, de uma gover- dos mais fracos. A primeira vocação das
nança legítima, democrática e eficiente. regulações públicas é reequilibrar os me-
Uma divisão intensifica-se em todo o mun- canismos econômicos e sociais cumulativos
do, entre a legalidade da governança – sua colocando o poder nas mãos dos países,
conformidade às regras constitucionais – e dos atores sociais ou de pessoas cada vez
sua legitimidade, o sentimento da popu- mais poderosas. Esse reequilíbrio é, hoje,
lação de concordar, com conhecimento de urgente, já que se trata de condições de
causa, com a­ban­dono da liberdade em nome negociação, de regras de jogo internacio-
das necessidades nais dos países mais pobres ou mais fracos,
do bem comum. ou da possibilidade de que, em cada país,
A democra- os grupos mais fracos façam valer seus
cia perde muito de direitos e sejam cidadãos e cidadãs plenos.
sua substância se A quarta orientação, finalmente,
as condições de refere-se à constituição de novas regulações
transparência não públicas capazes de assumir os novos de-
estão garantidas, safios sociais e ecológicos da humanidade
se os contrapoderes e de opor-se à dominação somente por
não existem e se os meio das relações mercantis. Da gestão da
verdadeiros motores água ou dos solos à reforma dos sistemas
de transformação monetários, dos limites da propriedade in-
estão fora do al- dividual à definição ou preservação de bens
cance e do controle comuns, essa orientação abrange e ordena
dos cidadãos e das muitas das preocupações do movimento
cidadãs. Nossos antiglobalização.
sistemas públicos Sistema de pensamento, sistemas
compartimentados de produção, sistemas de governança...
têm, por sua vez, Como as transformações serão enormes e,
dificuldade em as- portanto, longas, é urgente e imperativo
sumir com eficiên- realizá-las. Por causa disso, somente uma
cia os novos desa- abordagem de acordo com os próprios
fios da sociedade. objetivos tem possibilidade de sucesso:
Para que as uma abordagem democrática que parte
sociedades locais da diversidade, de baixo para cima, ligan-
possam dirigir seu do as propostas, os pontos de vista, as
futuro e também informações, a criatividade e as energias
assumir as inter- procedentes de diferentes regiões do mun-
dependências mun- do e de diferentes meios. Essa é, a meu
diais, é necessário ver, a verdadeira agenda para uma outra
definir sobre novas mundialização.
bases as modalida-
des de cooperação entre os diferentes níveis
de governança.
A segunda orientação refere-se à
estruturação internacional de diferentes
meios socioprofissionais e atores sociais e à
organização de parcerias entre os atores e o
poder público.
A governança não consiste só, e
antes de tudo, em organizar os serviços
públicos. A gestão do bem comum envolve
a responsabilidade e a cooperação de to-

28 Democracia Viva Nº 26
1 55 seguido de 18 zeros.

MAR / ABR 2005 29


MUNDO P ELO MUNDO PE
Jamile Chequer
Colaboração: Flávia Mattar

De olho na ONU Aliança estratégica Devastação cultural

Um total de 19 mil pessoas, de 19 Estudos envolvendo a interação en- Ao longo dos séculos, a humanida-
nações, representando os cinco conti- tre HIV/Aids e segurança alimentar de enfrentou muitas guerras. Além
nentes, foram consultadas entre outu- e nutricional vêm crescendo nos das atrocidades contra a vida, elas
bro de 2004 e janeiro de 2005 sobre últimos anos. Porém, há uma neces- têm outra violência em comum:
o que pensam a respeito de uma pos- sidade urgente de reunir esses estu- a devastação cultural. No Iraque,
sível reforma da Organização das dos para que uma ação efetiva em a situação não foi diferente. O es-
Nações Unidas (ONU). O estudo, larga escala seja iniciada. Muitos critor venezuelano Fernando Baéz,
apresentado durante o Fórum Social dos estudos foram feitos na África especialista no assunto, declarou
Mundial 2005 (Porto Alegre, de 26 Subsaariana, onde os riscos e im- que 1 milhão de livros, 10 milhões
a 31 de janeiro), demonstrou que pactos são muito comuns e sérios. de documentos e 14 mil artefatos ar-
79% consideram positiva a escolha Por isso, a conferência HIV/Aids, queológicos forma perdidos durante
de uma pessoa que represente sua Segurança Alimentar e Nutricional a invasão e ocupação do Iraque por
nação, eleita por cidadãos e cidadãs, – que ocorrerá de 14 a 16 de abril tropas dos Estados Unidos. Ele diz
para integrar a Assembléia Geral das em Durban, África do Sul – reunirá que os roubos continuam até hoje e
Nações Unidas. cerca de 200 pessoas, principalmen- acusa a coalizão de violar a Hague
Ao serem perguntadas se concor- te da Ásia e África, continentes em Convention. Datada de 1954, é
davam ou não com a criação de um que os problemas de insegurança uma convenção para a proteção à
parlamento da ONU composto por alimentar e o aumento da epidemia propriedade cultural em situações
representantes escolhi­dos(as) pelo coexistem. Para um trabalho mais de conflito armado, que, aliás, não
voto cidadão, a maioria (63%) se efetivo, uma rede de pessoas e or- foi assinada por Washington. “O
posicionou favora­velmente. A res- ganizações que estão interessadas, exército americano foi omisso”,
posta à pergunta sobre a importância mas não poderão estar lá, está sendo publicou a agência de informações
de ONGs, sindicatos e organizações desenvolvida como uma forma de IPS, lembrando que não protegeram
empresariais passarem a ter papel participar do processo. nem bibliotecas, nem museus, ape-
formal na ONU foi ‘sim’, com 61% A expectativa do encontro é sar de avisos de instituições como
dos(as) entrevis­tados(as) a favor. As uma atuação em larga escala que a Organização das Nações Unidas
nações que mais se destacaram na estabeleça conexões entre os dois para a Educação, Ciência e Cultura
resposta favorável à questão sobre temas. Estão previstos uma decla- (Unesco). Segundo Fernando, em
a Assembléia Geral da ONU foram ração para advocacy, uma rede de maio de 2004, 40 mil manuscritos
Índia (85%), Alemanha (85%) e ação afinada, um livro e CD-ROM foram destruídos em um ataque da
Indonésia (83%). com os papers e procedimentos da coalizão a Nasiriya.
conferência, entre outros. O escritor teve seu visto negado
para entrar nos Estados Unidos e não
está mais tendo acesso ao Iraque.
“Mas é tarde. Temos documentos e
fotos que servem de evidências das
atrocidades”, afirma.

Fonte: IPS

30 Democracia Viva Nº 26
LO MUNDO P ELO MUNDO P ELO MUNDO

Ainda crianças e armas Roteiro surdo Ferramenta proativa

A Coalizão para o Fim do Uso de A cada 15 segundos, uma pessoa Diálogo aberto, colaboração cres-
Crianças-Soldado defende que o morre de tuberculose. Em dezembro cente e busca de soluções são
Conselho de Segurança da ONU passado, a população da Repúbli- ingredientes esperados na Confe-
deve impor sanções concretas con- ca Democrática do Congo ficou rência Democracia Mundial (G05),
tra governos e grupos armados que novamente encurralada quando os sediada pela organização Fórum
usam crianças como combatentes conflitos recomeçaram no norte de Internacional de Montreal (FIM).
em conflitos. A declaração foi feita Kivu. Há dez anos, a Chechênia Cerca de 800 pessoas estarão reu-
após o encontro do Conselho que está sob conflito e cerca de 90% nidas em Montreal, de 29 de maio
discutiu o tema, no fim de fevereiro. das pessoas nos campos chechenos a 1º de junho, para analisar o leque
Documento recente do Conselho e 80% na Ingushetia perderam al- de enfoques democráticos sobre go-
identificou 42 grupos em 11 países guém próximo, vítima da violência. vernabilidade mundial, avaliar seu
violando leis internacionais de Na Etiópia, mais de 10% das crian- potencial e compartilhar lições para
recrutamento de crianças e adoles- ças não sobrevivem ao primeiro promover teoria, estratégia e prática
centes. Desses, 30 já haviam sido ano de vida. Na Somália, que democrática no mundo. Serão colo-
listados pelo menos uma vez e 21 completou 14 anos de violência, cadas na mesa as convergências e
já foram listados em dois dos três pelo menos 5 milhões de pessoas divergências das diversas linhas de
documentos sobre o assunto. “O não têm acesso a água potável e pensamento que ali se encontrarão.
conselho não pode permitir que a cuidados de saúde. Você ouviu O diretor do Ibase e mem-
outro ano passe com esses chefes essas notícias veiculadas em 2004? bro do comitê executivo Cândido
acreditando que ninguém vai fazer Provavelmente não. Elas estão Grzybowski analisa o momento
nada contra o abuso de crianças”, listadas, pela ONG Médicos sem da conferência como oportuno.
disse o coordenador da Coalizão, Fronteiras (MSF), como algumas Resultado de um momento antes
Casey Kelso. das dez crises humanitárias mais bipolar, o mundo abriga instituições
Recentemente, a ONG Save negligenciadas pela mídia no ano inadequadas para os desafios apre-
The Children declarou que mais passado. sentados e para as relações de força
de 300 mil pessoas com menos de “A grande quantidade de apoio que, hoje, estão desequilibradas
18 anos estão participando de con- oferecida às pessoas no sul da Ásia no mundo. “A ordem mundial que
flitos armados, não apenas como revela como a cobertura da imprensa temos é uma desordem porque é
combatentes, mas como espiãs e, pode ter um impacto positivo nos es- fruto de um mundo pós-guerra que
no caso das meninas, ‘esposas’ forços de se levar ajuda humanitária não existe mais”, diz. E ressalta
forçadas. Uma criança pode se tor- para pessoas que vivem em situações que, em julho, ocorrerá uma reunião
nar soldado por seqüestro, pobreza de crise”, disse Nicolas de Torrente, do G-8 e, em setembro, haverá a
familiar e necessidade de proteção. diretor executivo do MSF nos Esta- Cúpula da ONU, eventos que terão
Sua reintegração depende de um dos Unidos, completando que esse esse assunto na pauta. As inscrições
sólido entendimento social, político apoio pode ser estendido. “O silêncio para a conferência estão abertas.
e econômico. é o melhor aliado das atrocidades, e
www.G05.org
este é o sexto ano consecutivo que
incluímos na nossa lista crises como
a vivida na Colômbia e na República
Democrática do Congo”, revela.

MAR / ABR 2005 31


ENTRE Entrevista

VISTA
Ricardo
Rezende
O padre Ricardo Rezende viveu 20 anos no
sul do Pará: “Fui em 76 para conhecer; em
10 de maio de 77, fui para morar. Fiquei
12 anos em Conceição do Araguaia, depois
oito anos em Rio Maria“. Lutou pelo direito
dos(as) trabalhadores(as) rurais à terra e
pelo fim do trabalho escravo. Morando
atualmente no Rio de Janeiro, ele não se
afasta da luta que o mobilizou por tanto
tempo. Fundou e participa de instituições
como o Comitê Rio Maria e a ONG
Movimento Humanos Direitos.
Ricardo Rezende conheceu a irmã
Dorothy, assassinada na mesma região
onde o padre viveu. Ele próprio também
foi ameaçado durante muito tempo.
Nesta entrevista à Democracia Viva,
revela um conhecimento profundo
sobre uma das mais enraizadas questões
nacionais: a violência no campo. Suas
conseqüências, entre elas o trabalho
escravo, são milimetricamente expostas
em seu relato. “A escravidão nunca é
uma ação individual, é sempre fruto
de trabalho de equipe: o fazendeiro,
o gerente, o empreiteiro, o motorista,
o aliciador etc. Juridicamente, é o que
poderia ser chamado de quadrilha,
trata-se de um grupo que se organiza
para cometer um crime” – garante.

32 Democracia Viva Nº 9
26
Onde o senhor nasceu e quando depois de terem sido atacados por pistoleiros
iniciou sua vida religiosa? e terem suas casas incendiadas, reagiram e
Ricardo Rezende – Nasci em Carangola, mataram dois policiais. O Exército, então,
Minas Gerais, em 1952. Saí de lá com 6 anos imaginando que aquilo fosse o ressurgimento
para uma área semi-rural, Cisneiros, onde da guerrilha, que ainda era recente, resolveu
estudei as primeiras quatro séries do ensino interferir, voltando para a região. Dom Este-
fundamental. Com 11 anos, entrei para o vão Cardoso de Avelar, bispo de Conceição
Seminário dos Missionários do Sagrado Cora- do Araguaia, já havia tido problemas com o
ção, em Juiz de Fora. Na época, já sabia que Exército. Todas as casas paroquiais da prelazia
queria ser padre. e a própria residência do bispo haviam sido
Sua família teve influência nessa invadidas pelo Exército durante a guerrilha,
decisão? padres tinham sido torturados, freiras tinham
Ricardo Rezende – Minha família é reli- sido espancadas e uma tinha sido violenta-
giosa, mas me tornei padre por livre e espon- da. Era um clima de grande tensão social.
tânea vontade. Foi uma opção pessoal. Fiquei Tinham tentado prender frei Gil Gomes, que
no seminário até os 17 anos, quando decidi desenvolvia um trabalho junto aos índios. Era
voltar para casa. Concluí o ensino médio e um ambiente de muito medo. Dom Estêvão
prestei vestibular para a Universidade Federal disse: “Provavelmente, eles vão torturar os
de Juiz de Fora, onde cursei Filosofia e Ciência trabalhadores rurais, temos que nos manifes-
das Religiões. Concluí as duas faculdades em tar”. Ele tinha perdido a esperança, naquele
1976. Naquele tempo, tínhamos a idéia de momento, de que a solução passasse por um
criar uma comunidade de fé, com homens e diálogo entre os príncipes: o bispo, príncipe
mulheres morando na mesma casa, baseados da Igreja, e o general, príncipe do Exército.
em experiências que vinham surgindo desde a Até então, toda vez que havia conflito, ele ia
década de 60. Mesmo padres e freiras moravam até Marabá, na 8ª Região Militar, e conversa-
na mesma casa e, o que era importante, havia va com o general, apresentando o problema.
um ambiente de inserção no movimento so- Normalmente, era muito bem-recebido, com
cial. Em cima dessa idéia, ao concluir o curso, muitas promessas de solução. A última ida
decidi trabalhar em uma igreja, ainda como dele à 8ª Região Militar foi uma visita que
leigo, mas que fosse uma igreja comprometida terminou com uma ruptura. O general Euclides
com os trabalhadores. Fui até Goiás Velho; d. Figueiredo, irmão do futuro presidente Figuei-
Tomás Balduíno estava lá naquela época. De- redo, o recebeu, e o bispo apresentou mais
pois, fui para Conceição do Araguaia, no Pará. um problema de conflito fundiário. Euclides
Quando o senhor foi ordenado? disse que resolveria o problema, e d. Estevão,
Ricardo Rezende – Pedi para ser ordenado então, perguntou: “O que me garante que o
em 1979 e fui ordenado em 27 de julho de senhor vai cumprir o que está prometendo?
1980. Faço 25 anos de ordenação em 2005. O senhor não tem cumprido suas promessas”.
Chegou a Conceição do Araguaia Euclides ficou bravo e lhe disse: “O senhor
logo após a guerrilha? está sendo leviano”. E d. Estevão respondeu:
Ricardo Rezende – Conceição do Ara- “Levianos são vocês que prendem, torturam e
guaia despertava atenção e temor justamente matam”. O general ficou muito irritado, bateu
porque de 1972 a 1974 tinha havido a Guer- na mesa, quebrou um copo e expulsou o bispo
rilha do Araguaia. Em 1976, houve também da sua sala. A partir daí, d. Estevão percebeu
o Conflito do Caçador, quando lavradores, que a solução não passava mais por esse canal

MAR / ABR 2005 33


entrevista

de negociação. Por isso, sabendo que o Exército ção nesse contexto. Sabia da prisão do padre
faria coisas terríveis na região, disse aos agen- Mabone, das torturas e também da história
tes de pastoral, em um encontro do Conselho de três jovens de Petrópolis que tinham ido
Pastoral, que sua intenção era tentar deter a trabalhar na região e eram influenciados pelo
ação militar, indo até o local e demonstrando espírito franciscano. Quando o padre Mabone
a solidariedade aos trabalhadores. e Hilário foram presos e também um grupo de
E ele foi na região do conflito? trabalhadores rurais, esses três jovens ficaram
Ricardo Rezende – Não. Na região pas- ajoelhados na praça onde estavam os presos,
sava o padre Mabone, que foi fundamental de braços erguidos, rezando, e aí foram presos
nessa história. Ele disse para d. Estevão: “O também. Como dois deles eram filhos de um
senhor não pode ir, vão dizer que o senhor é oficial, não foram torturados. Foram levados
comunista, que incentiva os posseiros. Mas eu para Belém e, talvez por terem curso superior,
posso porque sou o Exército quis lhes oferecer um tratamento,
capelão militar no através da comida por exemplo, especial em
Rio Grande do Sul, relação aos demais presos. Eles recusaram. Con-
sou condecorado ceição do Araguaia era uma região isolada, a
pelo Exército, nin- ponte que ligava o atual estado de Tocantins ao
guém vai achar que estado do Pará não existia, a travessia era feita
sou comunista ou de balsa. Não havia luz elétrica, salvo de motor,
terrorista, vou ser não havia telefones públicos nas residências,
o melhor interme- apenas um telefone público. Qualquer conversa
diador nesse mo- por telefone a cidade inteira acompanhava. Eu
mento”. Dom Estê- tinha 24 anos, fiquei impressionado com tudo
vão decidiu então aquilo. Decidi ficar. Era uma prelazia enorme,
escrever uma carta com poucos padres, pouca gente trabalhando.
aos trabalhadores. Havia o Movimento de Educação de Base (MEB),
O padre Mabone coordenado pela grande amiga que também
não conhecia a re- vinha de Juiz de Fora, Heloísa. Através do
gião, então o jovem MEB, promovíamos cursos profissionalizantes,
seminarista Hilário o o supletivo do primeiro grau, com escolas
acompanhou. Quan- radiofônicas. As comunidades rurais recebiam
do os dois chegaram um rádio, daquele motivo antigo, grande, uma
a São Geraldo Ara- bateria, um lampião e material pedagógico
guaia, os oficiais do que a própria equipe elaborava, inspirada no
exército não levaram método Paulo Freire. Tínhamos 60 escolas na
em conta o fato de área rural, um monitor local e um programa na
padre Mabone ser rádio. O pessoal acompanhava a aula através
militar, e eles foram desse programa, que complementava a ação
presos e violenta- do monitor. Tudo isso, as matas, os conflitos,
mente torturados. A a coragem da equipe local, o isolamento, tudo
tortura foi realmente aquilo me atraiu. Fui em 1976 para conhecer e,
insana, o seminarista em 10 de maio de 1977, fui para morar. Fiquei
parou de ser tortura- naquela prelazia durante 20 anos.
do porque imagina- O senhor permaneceu 20 anos na
ram que ele, menor mesma região?
de idade, tinha enlouquecido. Eles batiam e Ricardo Rezende – Na mesma diocese,
faziam as mesmas perguntas, diversas vezes. Em mas em áreas diferentes. Fiquei 12 anos em
vez de responder às perguntas, ele começou a Conceição do Araguaia, depois oito anos em Rio
rir, provavelmente de nervoso. Imaginaram que Maria. Os 12 anos em Conceição foram prin-
ele estava ficando doido e deixaram-no ir em- cipalmente trabalhando na Comissão Pastoral
bora. Mas o Mabone continou sendo torturado, da Terra (CPT). Praticamente criei a CPT lá. Frei
e isso criou graves seqüelas nele. Henrique Marques tinha criado oficialmente a
Foi nesse clima que o senhor CPT na diocese em 1976, mas não havia um
decidiu ficar em Conceição escritório, nada estava organizado. Em 1977,
do Araguaia? quando cheguei, fiquei tão angustiado com
Ricardo Rezende – Sim, cheguei a Concei- o que via – trabalho escravo, violência contra

34 Democracia Viva Nº 9
26
Ricardo rezende

trabalhadores, queima de casas, expulsão de tinham tido suas casas queimadas, estavam
pessoas das suas casas –, fiquei desesperado sendo ameaçados. Um grupo de lavradores
e falei com d. Estêvão: “Estamos aqui em me procurava em uma semana, eu os ouvia,
cima de um barril de pólvora”. Aquela região ficava emocionado com suas histórias, mas
da Amazônia concentrava os maiores grupos dali a duas semanas eles reapareciam e eu
empresariais nacionais de capital financeiro já não me lembrava mais de alguns detalhes
industrial, mexendo com pecuária. Mais de 50% daquelas histórias. Por isso, resolvi começar a
do dinheiro liberado pela Sudam [Superinten- anotar as informações. Depois, eu não sabia
dência do Desenvolvimento da Amazônia] para mais onde estavam as anotações e, assim, resolvi
toda a Amazônia tinha ido para dois municípios guardá-las dentro de pastas. Então tive que
da nossa diocese: Santana do Araguaia e Con- arranjar um lugar para colocar as pastas e, por
ceição do Araguaia, como revela um livro de isso, comprei um arquivo, tive que colocar tudo
Octávio Ianni . Aquela região foi privilegiada em em certa ordem; co-
projetos governamentais para atender à iniciativa mecei a colocar pelo
privada. Conceição do Araguaia recebeu o maior nome da fazenda e
número de projetos aprovados pela Sudam e foi a separar por muni-
o segundo em volume de dinheiro; e Santana do cípio. Enfim, comecei
Araguaia foi o segundo município em número a criar um arquivo que
de projetos e o primeiro em volume de dinheiro. até hoje funciona. Ele
Era uma explosão de crescimento econômi- tem quase 30 anos e é
co. O aeroporto de Conceição do Araguaia era composto por milha-
extremamente movimentado, com um tráfego res de documentos.
aéreo surpreendente. Era uma cidade pequena, Então o
mas com muito dinheiro público liberado pela arquivo
Sudam. Além disso, centenas de caminhões des- da CPT foi
carregavam madeira nobre diariamente. Como criado a
não havia estradas, a primeira providência do partir de uma
fazendeiro era construir o campo de aviação, dificuldade
daí a intensidade do tráfego aéreo. Mas por de memória?!
causa da guerrilha, para combatê-la e preven- Ricardo Rezen-
do futuras guerrilhas, o Exército cortou toda de – Primeiramente,
aquela região de estradas. Era um momento sim. Depois, logo vi
de forte conflito fundiário. Eram dois grupos que estávamos atu-
sociais: um tinha ido buscar terra, formado por ando em uma região
pessoas que queriam ser posseiras, pequenos muito perigosa, pre-
proprietários de terra, que eram incentivados cisávamos ter provas,
pelo governo, que, por sua vez, queria ocupar dados e anotações
a Amazônia. Do outro lado, tinha os grandes a respeito das de-
grupos empresariais que também tinham núncias que recebía-
sido convidados pelo governo. Os primeiros mos. Em casos mais
chegaram de pau-de-arara, de caminhão, e o graves, pegávamos
segundo grupo chegou de avião. O segundo uma declaração do
grupo pegou muita terra. trabalhador, se ele
O senhor falou da sua participação não sabia assinar,
na organização da CPT. Poderia colocávamos a sua
falar mais sobre esse assunto? digital na folha e algumas testemunhas as-
Ricardo Rezende – A CPT foi criada em sinavam ou registrávamos em cartório uma
1975 por conta de graves conflitos no campo e declaração pública. Assim, começamos a
da violência sofrida por milhares de lavradores. transformar o arquivo em um espaço de provas
Em 1977, com a ajuda de uma equipe, consegui da arbitrariedade da polícia, dos fazendeiros,
iniciar um arquivo, que foi muito importante da violência fundiária.
na nossa luta. Esse arquivo nasceu de uma Nesse processo, convenci d. Estevão de
limitação minha: a memória. Eu me esqueço que era necessário contratar um advogado.
muito de nomes, datas, números. Quando Fizemos várias tentativas até encontramos
cheguei a Conceição do Araguaia, fui procurado Paulo Fontelles, um jovem advogado. Ele era
por lavradores que estavam sendo despejados, uma pessoa muito brilhante, inteligente, com

OUTUBRO/2000
MAR / ABR 2005 35
entrevista

uma capacidade de argumentação fantástica e ajudei a organizar a CPT em Conceição do


com experiência política. E era do PCdoB, mas Araguaia e me tornei o primeiro coordenador
até então não sabíamos. Começamos a investir local. Depois assumi cargo de direção no cha-
na área de assistência jurídica, para apoiar os mado Regional da CPT Araguaia-Tocantins, que
trabalhadores e tirá-los da cadeia. Os trabalha- abrangia o estado do Tocantins e parte do norte
dores, as verdadeiras vítimas, eram presos, não do Mato Grosso e sul do Pará, uma região maior
os pistoleiros. Não sei se pela necessidade de que a da Alemanha unificada. Fui ainda um
defesa ou se por influência de tudo que viram dos cinco diretores nacionais da CPT Nacional.
na guerrilha do Araguaia, mas os trabalhadores Em 1988, saí de Conceição do Araguaia, deixei
começaram a enfrentar pistoleiros e policiais a direção da CPT e assumi a paróquia de Rio
na mata. Maria também no sul paraense.
Esse era o contexto em que estávamos viven- Como o senhor vê a participação
do: de um lado, os das mulheres nessa resistência?
trabalhadores sendo Ricardo Rezende – As mulheres sempre
atacados, porque foram muito importantes na resistência. Tam-
resistiam; de outro bém havia no trabalho a preocupação com
lado, os fazendei- a questão de gênero. Muitos assuntos eram
ros bem-armados, levantados nessas reuniões, e a participação
com muito dinheiro feminina no sindicato se expressou fortemente.
e tendo ao seu lado Sempre tivemos candidatas femininas para a
o juiz, os advogados diretoria.
da cidade e as polí- A Aninha, Ana de Souza Pinto, da CPT de
cias militar e civil. Conceição do Araguaia, a Heloisa e a Marilza
Nessa época, por exemplo, tiveram um papel importantís-
o senhor se simo ao investir na formação das mulheres.
aproximou dos Lembro de um conflito em Xinguara em que
sindicatos de a polícia fez um cinturão em torno dos traba-
trabalhadores lhadores porque eles estavam entrincheirados.
rurais? Só quem conseguia passar eram mulheres
Ricardo Rezen- porque achavam que elas não representavam
de – Nesse perío- perigo. Justamente uma delas – uma grande
do a diretoria do amiga nossa que era evangélica, usava cabelo
Sindicato dos Tra- comprido, saia bem comprida e uma bíblia
balhadores Rurais sempre debaixo do braço – levava a munição
d e C o n ce i çã o d o para a defesa dos trabalhadores, e os policiais
Araguaia tinha so- nunca poderiam imaginar isso. Outro caso
frido interferência. de mulher que descobriu muita coisa foi a d.
Foi destituído pelo Pureza, no Maranhão. Ela até recebeu mais
governo o seu pre- tarde um prêmio da Anti-Slavery, que tem sede
sidente, e colocado em Londres. Quando o filho dela desapareceu
um pelego, um mi- e ela soube da história de trabalho escravo,
litar reformado. Por saiu louca pelo mundo. Ela era evangélica e
sugestão do Paulo carregava a bíblia, um gravador, uma máquina
Fontelles, decidimos fotográfica e um caderno que ela chamava de
criar a oposição sin- “o caderno da encrenca”. Ali, ela registrava
dical ao pelego. Colhemos, entre as Comu- o que considerava fazenda brava e fazenda
nidades Eclesiais de Base, as lideranças mais mansa. Fazenda “mansa” era a que usava o
interessantes e inteligentes. Foi assim que trabalho escravo, mas não matava; e a fazenda
surgiram Gringo, o Raimundo Ferreira Lima; “brava” matava. Ela saiu atrás do filho e conse-
João Canuto; Expedito Ribeiro de Souza; Oneide guia entrar nas fazendas porque não levantava
Lima; Maria Pereira... Começamos a descobrir, suspeitas, ninguém imaginava que ela pudesse
entre lavradores das comunidades, quem tinha representar um perigo, assim ela transitava de
liderança e sensibilidade. fazenda em fazenda, sem risco de vida.
Essa trajetória o levou à direção da O senhor nunca foi preso
CPT? ou processado?
Ricardo Rezende – Durante 12 anos, Ricardo Rezende – Fui processado pela

36 Democracia Viva Nº 9
26
Ricardo rezende

Polícia Federal, interrogado. No final da década vam áreas enormes de latifúndio, não tem ne-
de 1980, estava ameaçado de morte. Passamos nhum lugar do Brasil com tanta desapropriação
por momentos diferentes, o primeiro foi como como naquela região, mas isso não significa
os trabalhadores podiam conquistar a terra; que havia uma consciência política do que eles
o segundo foi como poderiam permanecer estavam fazendo.
na terra. A primeira fase, da qual participei Quando ocorreu a primeira assembléia do
muito intensamente, foi a da conquista da MST, eu estava em Curitiba e pude acompa-
terra. Como não ser morto, não ter a casa nhar. Mas não tínhamos como permanecer o
queimada, como ficar? Isso foi até 1984. A tempo todo articulados; acabávamos ficando
partir de 1985, com a chamada Nova Repú- de fora das discussões. Como não tínhamos
blica, surgiram as promessas – primeiro de como saber tudo o que estava acontecendo,
Tancredo, depois de Sarney – de que a reforma às vezes, também éramos mal compreendidos.
agrária seria feita. Isso criou um problema Por exemplo, quando começamos a organizar
para os fazendeiros, que ficaram em dúvida a oposição sindical, fizemos uma carta-circular
se o governo cumpriria a promessa e tiveram aos amigos para levantar dinheiro. Fizemos a
medo de perder o apoio da polícia. Eles se carta junto com nosso advogado, o Paulo Fon-
organizaram na União Democrática Ruralista telles, do PCdoB. A carta circulou pelo Brasil
e criaram milícias. Em vez de atuarem indivi- e todo mundo achou que nós fôssemos do
dualmente agiam coletivamente. Esse tipo de PCdoB e que estávamos levantando dinheiro
organização trazia novidades, o crime agora para recomeçar a guerrilha no Araguaia. E não
era organizado, crescente e seletivo. Por isso, sabíamos disso, não dominávamos esse jargão
as lideranças mais importantes começaram a político. Por esses detalhes, às vezes, éramos
morrer e tinha uma espécie de pedagogia do mal compreendidos.
terror. Não era só matar, era matar e queimar O senhor nunca se filiou
o corpo da vítima; ou matar, mas queimando a um partido?
vivo; ou era matar, mas impedir o sepulta- Ricardo Rezende – Nunca, nem subia nos
mento; matar crianças para aterrorizar os caminhões para fazer campanha, mas tinha
adultos e diminuir a resistência. Em 1988, pela minhas preferências. Pessoalmente, eu falava e
primeira vez, eu teria uma paróquia, e o bispo as pessoas sabiam em quem eu iria votar. Um
resolveu escolher uma paróquia que parecia a padre numa cidade pequena é uma referência
mais tranqüila da diocese, onde não aconte- forte. Um padre no Rio de Janeiro é um cidadão
cia nada, lugar perfeito para encaminhar um a mais entre milhares, mas, naquela região,
padre que sofria muitas ameaças. E aí fui para cada paróquia abrange um ou mais municípios
Rio Maria. Lá havia morado João Canuto e vivia e só há um padre, ele é referência.
Expedito, ambos sindicalistas rurais ligados ao As primeiras lutas foram pela terra.
PcdoB que haviam sido fundadores de capelas Quando o trabalho escravo entrou
em bairros de periferia. Na primeira oposição nessa história?
sindical que formamos, Rio Maria não existia Ricardo Rezende – Ainda na década de
como município, pertencia a Conceição do 70, d. Pedro Casaldáliga divulgou um docu-
Araguaia, e eles tinham sido membros da chapa mento alertando sobre o problema do trabalho
de oposição sindical de Conceição. Quando foi escravo. Não tenho certeza, mas possivelmente
criado o município de Rio Maria, João Canuto e a primeira denúncia contundente depois desta
Expedito criaram o sindicato local. O primeiro veio do sul do Pará. Nós começamos a registrar
foi assassinado em 1985, o segundo em 1991. a história do trabalho escravo, que tinha uma
Era uma região muito isolada. incidência muito grande, e não sabíamos nem
Como o senhor acompanhou como denominar o fenômeno, ora chamávamos
os principais acontecimentos de prisão em fazenda, cárcere privado, ora cha-
políticos da época, como a mávamos mesmo de trabalho escravo. Em 1983,
formação da CUT e do PT, fiz a primeira denúncia pública do sul do Pará
a campanha pela anistia? contra a fazenda chamada Vale do Rio Cristalino,
Ricardo Rezende – Acompanhei limita- que pertencia a Volkswagen. Já tínhamos infor-
damente. A repressão era fortíssima e tinha mações anteriores, mas o nosso drama é que
ainda o isolamento geográfico. A prática dos recebíamos as denúncias sempre a posteriori e,
trabalhadores rurais era política, mas era muito como se tratavam de empresas poderosas, não
mais avançada na prática do que na teoria. Eles tínhamos provas e não sabíamos como tratar
colocavam em questão o latifúndio, esfacela- o problema. Se denunciássemos, poderíamos

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entrevista

ser processados por calúnia. Os trabalhadores jovens, dois são menores, eles acabaram de
sempre estavam em trânsito, o escravo nunca escapar da Vale do Rio Cristalino e eles dizem
é da região, é um “estrangeiro”, isso dificultava que existem mais uns 600 homens lá dentro”.
a feitura de provas. Era a hora, poderíamos fazer um flagrante. E
Vocês tinham relação com os tinha uma grande novidade, estávamos com
posseiros locais. Como fizeram uma esperança enorme porque tínhamos
para lidar com essas pessoas de conseguido eleger um cara “progressista”, do
fora? PMDB autêntico, que era governador do estado
Ricardo Rezende – Isso foi um drama, não do Pará, Jader Barbalho. Ele tinha apoiado os
sabíamos como lidar com essa população que padres franceses quando foram presos em
estava em trânsito, se hospedava em pensões, São Geraldo, tinha ido à cadeia visitá-los,
ou nem passava pela pensão. Às vezes essas feito discursos. Na campanha eleitoral, se não
pessoas iam direto, me engano a eleição foi em 1982, ele dizia
chegavam à cidade, no palanque o seguinte: “Pistoleiros do sul
eram colocadas den- do Pará, no dia 15 de março eu tomo posse,
tro do avião e iam é melhor vocês fugirem na véspera porque,
para a fazenda. Ou, no dia 15 mesmo, todos estarão presos”. Ao
se já tinha estrada, receber o telefonema de São Félix, liguei para
chegavam à cida- o governador, que até então eu chamava de
de ao entardecer, Jader, não era Excelência. Ele tinha ido ao
recebiam cachaça nosso escritório, dado entrevista para a nossa
e à noite iam para rádio, viajava com a gente. Liguei para ele,
fazenda embriaga- não consegui falar, mas expliquei ao chefe de
das intencionalmen- gabinete que havia um caso gravíssimo e que
te para não verem precisava marcar uma audiência urgente com
o caminho. Era um o governador. Marcamos, peguei o avião, fui
pessoal com o qual a São Félix do Araguaia para buscar um dos
não tínhamos conta- três rapazes, o que tinha 18 anos, os outros
to ou, quando tínha- tinham 16 e 17 anos, e me dirigi a Belém –
mos, era esporádico. fiz uma viagem de mais de mil e quinhentos
Era um desafio tão quilômetros. A companhia aérea na região
grande que uma vez funcionava como táxi aéreo, era caríssimo.
a equipe de São Félix Chegamos lá, o governador tinha viajado
do Araguaia fez um para Brasília. Discuti com o pessoal da CPT e
estudo sobre o tema concluímos que tinha que ir atrás dele, não
e publicou com o adiantava falar com o vice. Avisei a assessoria
título de Peão gira dele e embarcamos para Brasília. Ele sabia que
peão. se tratava do problema da Volkswagen. Mas,
Era preciso ter ao chegarmos em Brasília, fomos informados
um trabalho com que ele havia viajado para o Rio de Janeiro.
o peão em sua ci- Perguntei a d. Luciano Mendes, na época se-
dade de origem, e cretário da CNBB (Conferência Nacional dos
não depois, quando Bispos do Brasil): “E agora?”. Nossa idéia era
ele já estivesse es- fazer o flagrante com o auxílio do governador.
cravizado, era uma Ele respondeu: “Se não é possível falar com
angústia sobre o que fazer. Durante alguns o governador, convoque a imprensa e faça
anos, nosso trabalho foi organizar, juntar os a denúncia aqui mesmo. É prioritário salvar
dados. Não podíamos contar com a polícia, as vidas”. Em Brasília mesmo, no prédio da
a imprensa estava longe, não tínhamos um CNBB, a imprensa foi convocada e foi feita a
jornal, nem telefone, era tudo no isolamento. denúncia. Foi a nossa primeira denúncia de
A gente só anotava e arquivava. Em 1983, uma lista de centenas de denúncias que seriam
a equipe de São Félix do Araguaia, do Mato feitas pela CPT daquela região.
Grosso, telefonou para Conceição do Araguaia Qual foi a repercussão da denúncia
– e aí já tínhamos telefone –, eu era coorde- na imprensa?
nador da regional Araguaia–Tocantins, e me Ricardo Rezende – Estavam presentes
disseram: “Ricardo, estamos aqui com três na coletiva o Jornal do Brasil, O Estado de S.

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26
Ricardo rezende

Paulo, a Folha de S.Paulo, jornais de Brasília e uma quantidade enorme de autores, do Rio de
algumas revistas. Eram muitos repórteres e fo- Janeiro e de São Paulo. Eu lia um atrás do outro
tógrafos. Não publicaram nada. O único jornal e ninguém definia o que era trabalho escravo,
que deu uma matéria, mesmo que pequena e todo mundo pressupunha que era um dado,
discreta, foi O Globo. Mas a matéria repercutiu não se descrevia.
no exterior quase imediatamente porque em Mas qual é a sua definição?
24 horas comecei a receber telefonemas dos Ricardo Rezende – O trabalho escravo é
correspondentes estrangeiros aqui no Brasil. aquele em que uma pessoa física ou jurídica,
Mas houve o flagrante na fazenda? um grupo social ou um indivíduo submete uma
Ricardo Rezende – Não conseguimos que pessoa ou um grupo de pessoas de tal forma
a polícia entrasse e fizesse o flagrante. Mas, com que ele não tem mais liberdade de vender a
as pressões vindas do exterior, o governador sua própria força de trabalho e ele é tratado
mandou instaurar um inquérito policial. Exis- como se fosse uma
tiam muitas testemunhas, eu tinha acumulado mercadoria. Algu-
documentação sobre o crime na fazenda. O de- mas características
legado da Polícia Civil responsável pelo inquérito da escravidão con-
concluiu rapidamente o inquérito. Reconheceu temporânea se asse-
ter havido trabalho escravo ali, mas afirmou que melham àquelas da
a responsabilidade era apenas dos empreiteiros, escravidão antiga, e
que a direção da fazenda não tinha nenhuma outras se distinguem
responsabilidade. E, para surpresa minha, as dela.
peças do inquérito eram apenas a documen- E quais
tação que eu tinha mandado ao governador. são essas
Na verdade, ele não foi à fazenda, não ouviu
ninguém. O Secretário de Segurança Publica
não concordou com o delegado e incluiu no
inquérito que, se o crime tinha sido feito, os
funcionários da empresa também deviam res-
ponder por ele.
Quando se começou a usar o termo
‘trabalho escravo’?
Ricardo Rezende – Sobre o ponto de vista
teórico, vários pesquisadores nos anos 1970
escreveram sobre o assunto da peonagem, mas
em geral classificaram essa forma de trabalho,
depois de descrevê-la, como “semi-escrava”.
Nos anos 1980 e seguintes, Neide Esterci e José
de Souza Martins trataram do tema de forma
mais exaustiva. Para José Martins, o que estava
havendo ali era claramente trabalho escravo.
Tenho a impressão de que a primeira tese de
doutorado sobre o assunto foi a minha. Nela,
retomo a categoria escravidão para discutir
mais exaustivamente o que isso significa. Foi
um pesadelo enfrentar a questão da categoria,
fazer uma análise sobre como ela havia sido características?
abordada por outros autores. E o pouco que Ricardo Rezende – Na escravidão contem-
havia era sobre a escravidão legal, a africana porânea no Ocidente, o que predomina é o pre-
que existiu nas Américas até o século XX ou texto da dívida para justificar sua existência; a
a antiga, que houve em Roma ou na Grécia. pessoa está sempre devendo alguma coisa e não
Não encontrava, nas áreas da antropologia pode se desligar do trabalho e do seu senhor.
e da sociologia, referências que contemplas- A segunda característica é universal. O escravo
sem o assunto. Pensei: a história vai me dar não é alguém de casa, é o de fora. Normal-
o porquê; existe uma literatura muito vasta mente, o escravo não é da região: Campos não
sobre a escravidão. E comecei a devorar livros usa como escravo o trabalhador de Campos,
de historiadores, inclusive brasileiros – existe vai buscar em Minas Gerais ou em Alagoas.

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entrevista

O Pará vai buscar no Tocantins, no Maranhão tinha, contudo, um tempo limitado. Esse é
ou no Piauí. Rio usa escravo de Minas, Minas um dos pretextos mais antigos da escravidão.
usa escravo do Nordeste. Mato Grosso do Sul Mas, no livro, ele se pergunta: quem garante
vai usar escravo mineiro. O motivo é mantê-lo que esse negro escravo que está aqui no Brasil
mais frágil, deslocado de uma rede de apoio é fruto de uma guerra justa e declarada en-
e sustentação. tre dois príncipes? Nada. Então ele deve ser
Há aspectos que diferenciam uma escravidão colocado em liberdade, conclui no primeiro
da outra, como lembra Kevin Bales. Em geral, a momento. Mas ele encontra outra justificativa
escravidão antiga era de longa duração; a nova para manter a escravidão: se a pessoa ficasse
é de curta duração e a razão é a seguinte: o na África, onde era prisioneira, seria morta. Se
escravo hoje é mais barato que o escravo do alguém vai lá e o resgata, está salvando-o de
passado. Antes havia menos escravos disponíveis. duas mortes: da morte espiritual, porque ele
Hoje, a quantidade iria para o inferno por não ser batizado, e da
de pessoas disponí- morte física, porque ele iria ser assassinado. Ir
veis ao aliciamento é lá e resgatá-lo é um ato de misericórdia. Ele
tão abundante por- não deve ser visto como um escravizado, mas
que a identidade do como um resgatado, que deve trabalhar para
escravo hoje não é indenizar aquele que o salvou, do contrário
a cor, é a pobreza, não vai ter dinheiro suficiente para salvar ou-
a miséria. Onde há tros. Aí tem um problema econômico: qual é
bolsões de miséria o tempo necessário para reembolsar a pessoa
e de desemprego, que salvou a outra? O padre fez os cálculos e
as pessoas são mais disse que esse prazo não deveria ultrapassar 20
facilmente atraídas anos. E ele ficou com um problema teológico
e escravizadas. De- e jurídico porque na Bíblia e em Roma antiga
pois que utiliza essa era previsto um tempo bem menor. Mas ainda
mão-de-obra, que assim ele justifica que a diferença no caso é que
é muito barata, é se tratavam de escravos brancos, portanto mais
mais barato descar- trabalhadores que os daqui.
tar o escravo do que O sistema de barracão, que sempre
mantê-lo na entres- existiu no Nordeste,
safra. Antigamente, é na verdade uma forma de
o escravo tinha um trabalho escravo, não?
custo que justificava O trabalhador recebe só um vale
mantê-lo mesmo na e tem que comprar na terra
entressafra. do dono da fazenda.
O pretexto da Ricardo Rezende – Exatamente, a pró-
dívida também pria categoria utilizada por trabalhadores no
foi usado para Nordeste é de trabalho cativo. O que define o
escravizar trabalho escravo é a dívida, a dívida o impede
antigos de sair. Mas o crime não deixa de existir se a
prisioneiros de vítima não tem noção de que está sofrendo o
guerra? crime. A pessoa é prisioneira de uma dívida. Às
Ricardo Rezen- vezes, a vítima acha isso normal e, se ela fugir,
de – Sim. No livro O achará que está roubando – e muitos acham
Etíope, do século XVIII, escrito por um advoga- isso, por isso, quando fogem, não buscam as
do e padre português que morava em Salvador, autoridades porque acham que são criminosos,
o autor justifica a escravidão sob a ótica de uma que estão roubando. E os outros, que não
dívida. Ele diz que todo homem nasceu para fogem, julgam os que fogem como ladrões.
a liberdade, ninguém nasceu para ser escravo. Apesar disso, o crime existe.
No entanto, a escravidão é legítima, é correta, Como funciona exatamente?
se houver uma “guerra justa e declarada entre Ricardo Rezende – É um sistema de enga-
dois príncipes”. O vencido deve indenizar o nos, de mentiras. A dívida é montada através do
vencedor por conta dos custos da guerra, então transporte do local do aliciamento até a fazen-
ele deveria trabalhar para reembolsar os gastos da; dos gastos de hospedagem e alimentação.
da guerra que eram sua dívida. A escravidão No Pará, por exemplo, existem as pensões que

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26
Ricardo rezende

vendem peões, são as pessoas que estão em dizer: “Ganhei menos do que imaginava, mas
trânsito, estão em busca de trabalho, não têm quem sabe com outro gato vai dar certo?”.
onde dormir, o dono da pensão convida : “Vem Agora, se o empreiteiro não pretende retornar
dormir aqui, quando você conseguir trabalho, ao município, não paga nada.
você me paga”. Chega o gato e compra aqueles Poderia detalhar mais como se dá a
peões, paga por eles R$ 20, R$ 30 ao dono da arregimentação dos trabalhadores?
pensão e os leva. Trata-se de uma rede de trabalho
Qual o perfil desse trabalhador? escravo?
Ricardo Rezende – Normalmente, analfa- Ricardo Rezende – A escravidão nunca
beto e desempregado. Existe o peão do trecho é uma ação individual,ela é fruto de traba-
e o peão de família. O peão do trecho não tem lho de equipe: tem o fazendeiro, o gerente,
relações familiares, não tem mulher, não tem o empreiteiro, o motorista, o aliciador etc.
para onde ir, ele sai e entra em fazenda, em Juridicamente, é o
um circuito sem saída. Em geral, também é que poderia ser cha-
alcoólatra. No Nordeste, muitos vêm do antigo mado de quadrilha,
sistema de morada, é um sistema que faz com trata-se de um gru-
que a pessoa more e trabalhe naquela terra. O po que se organiza
dono da fazenda oferece a terra, um quintal, a para cometer um
pessoa passa a morar ali, mas também trabalha. crime. O empreiteiro
Esse sistema de morada segura não só o pai e tem duas formas de
a mãe, mas também os filhos e faz com que a agir: primeiro, ele
família toda trabalhe. É o caso, por exemplo, tem que identificar
de Barras, no Piauí. Quando esse sistema entrou onde existe mão-
em crise e os trabalhadores foram “libertos”, -de-obra sobrando
eles não tinham mais interesse nesses traba- e onde existe neces-
lhadores e os filhos, desempregados, foram sidade de mão-de-
buscar trabalho fora, em São Paulo, Rio, Pará. -obra. Abundância
Eles são aliciados, chega alguém que oferece de mão-de-obra é
um trabalho com boa remuneração, oferece possível encontrar no
boas condições de trabalho e eles vão. Mas, Vale do Jequitinho-
uma vez que estão na fazenda, são informados nha, em todo o Nor-
de que não podem sair enquanto não pagarem deste, em bolsões de
a dívida. Se entrevistarmos alguns deles, são pobreza no Paraná
capazes de dizer: “Foi tudo bem”. Mas aí a e mesmo no Rio de
gente pergunta: “Devendo pode sair?”, e ele Janeiro. Quase todos
responde: “Não, não pode”. E se sair? “Aí não os estados do Brasil
pode, se tentar sair, pode até morrer.” têm regiões com alta
Eles não recebem nenhum tipo incidência de mão-
de remuneração? -de-obra ociosa. Se
Ricardo Rezende – Depende. Em geral, chega lá um carro
não recebem nada; mas recebem alguma ou alguém, às vezes
coisa se o empreiteiro pretende retornar ao utilizando um carro
mesmo município para aliciar novas pessoas. de som ou a rádio lo-
Por exemplo, pensando em retornar, termina- cal, dizendo: “Quem
da a empreita, o “gato” (empreiteiro) explica quer trabalhar no
ao trabalhador: “Infelizmente, você ganhou estado tal, na fazenda tal, onde se paga bem?”.
pouco porque você pegou uma área que era Se no local, por exemplo, a diária for de R$ 10,
mais difícil. Na próxima vez, quem sabe, vai eles vão dizer que a diária é de R$ 20. Eles têm
ter mais sucesso?”. O trabalhador, ao chegar propostas que são atraentes. Quem vai aceitar o
em casa, pode, por exemplo, comprar uma convite? Primeiro, são pessoas desempregadas,
cama de casal, que foi um dos objetivos da sua com muita necessidade. Segundo, isso pode
ida ao Pará. Ele e a mulher nunca dormiram ser a expectativa, por exemplo, para o jovem
numa cama e ele viajou pensando nisso. Ou empreender uma viagem que nunca fez. Pode
ele mesmo vai querer voltar na expectativa de ser uma espécie de rito de passagem. Qual é o
que terá mais sucesso da próxima vez, ou pelo rito de passagem de um jovem que vive no Rio
menos ele não vai falar mal do gato, mas vai de Janeiro? Se for um jovem pobre, conseguir

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trabalho; se não conseguir trabalho legal, pode bada de florestas, a predominância é masculina.
conseguir um ilegal. Ou entrar na faculdade ou Já em área de cana-de-açúcar, carvoaria ou
entrar no ensino médio. Se o jovem não tem fruticultura não tem sido raro encontrar mu-
esse rito de passagem, não se torna adulto. lheres e crianças.
Como ele vai namorar, se não trabalha nem A área que concentra o maior
estuda? Um jovem em Barras, no Piauí, por número de mão-de-obra escrava no
exemplo, não tem estudo nem trabalho, como Brasil ainda é o sul do Pará?
ele se explica para a mãe ou para a namorada Ricardo Rezende – Não sei se é exata-
a sua situação? Ele tem que provar que é ho- mente onde existe mais trabalho escravo, mas
mem e faz parte do rito de passagem correr é onde se conhecem mais casos – algo que só é
um risco. Viajar, para ele, tem algo de sedutor, possível saber graças ao trabalho feito pela CPT.
é conhecer o estranho, o diferente que, de Se compararmos os dados
um lado, seduz, de levantados pela CPT no início,
outro, ameaça. Mas quando foi criada, com os
a raiz de tudo é o levantamentos realizados hoje,
desemprego, então diria que a situação melhorou
eles vão. ou piorou?
Uma vez que Ricardo Rezende – Na Amazônia, o apo-
chegam à fazenda, geu do trabalho escravo mais recente foi nas
são informados de décadas de 70 e 80 porque as fazendas estavam
que não poderão se instalando. Quando o governo cortou os
sair sem antes pagar financiamentos e subsídios da Sudam, quando
a dívida. E lá eles derrubar mata deixou de ser benfeitoria, muitas
têm que comprar empresas diminuíram a área de devastação e
não apenas a comi- outras venderam suas fazendas. Certamente,
da, mas também os hoje há um índice menor de devastação do que
instrumentos de tra- no passado. Tudo é baseado em suposições,
balho. Isso faz com mas hoje a CPT fala que no Brasil existiriam 25
que quanto mais mil escravos por ano; a Contag [Confederação
tempo na fazenda, Nacional dos Trabalhadores na Agricultura] fala
mais a dívida au- em 40 mil. Certamente, nas décadas de 70 e
menta; a dívida não 80, o número ultrapassava os 100 mil só na
diminui, só cresce. Amazônia. Mas são estimativas apenas.
Nesse perfil de Por que o trabalho escravo
trabalhadores contemporâneo é sazonal?
e trabalhadoras O que leva os fazendeiros
escravizados, a renovar constantemente
o número de essa mão-de-obra?
pessoas negras Ricardo Rezende – O esquema é o se-
não é maior? guinte: o fazendeiro contrata empreiteiros.
Ricardo Rezen- As fazendas têm dois tipos de trabalhadores:
d e – Não tenho o permanente e o temporário. O permanente
números sobre a fica o ano inteiro, é o vaqueiro, o agrônomo,
proporção de negros o funcionário do escritório, o porteiro, o se-
e brancos. Como no gurança. Existe um corpo de funcionários com
Brasil as pessoas carteira assinada. Para atividades temporárias,
mais pobres são ne- como o período de pasta, feitura de cerca,
gras, certamente predomina o negro, mas não aceiro etc., vai depender do empreiteiro que
temos o número. Mas é surpreendente que leva os trabalhadores. Se o empreiteiro não
encontramos também entre os escravos gente tem outro contrato, libera os trabalhadores ou
loira, por exemplo, ou de origem asiática, isso pode tentar vender esses trabalhadores para
não é incomum. Mas certamente a maioria é outro empreiteiro que esteja precisando. Por
composta por negros. isso, acontece a transferência de peões de uma
São mais homens do que empreita para outra. Ou se esse gato terminou
mulheres? o trabalho nessa fazenda, mas foi contratado
Ricardo Rezende – Na atividade de derru- para trabalhar em outra, ele pode levar os mes-

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Ricardo rezende

mos trabalhadores para essa outra fazenda. Por vidas. Quando recebíamos os trabalhadores, em
exemplo, Santana de Indaiá e Santo Antônio casa ou no escritório, nossa angústia era: “O que
de Indaiá tinham o mesmo empreiteiro e ele faço para salvar essa vida e as outras?”. A solução
levava de uma fazenda para a outra aqueles era pegar um depoimento, no qual fazíamos per-
trabalhadores. Isso significa que o tempo de guntas que nos auxiliariam nessa tarefa, pergun-
permanência do trabalhador torna-se maior. tas relacionadas aos direitos humanos – qual foi
Mas se a empreita for por um tempo limitado o problema, quando foi contratado, quais foram
e não há mais trabalho, os trabalhadores são as violências sofridas, houve homicídio, houve
libertados. espancamento? –, e registrávamos esses dados.
O senhor falou em contrato. Esses No levantamento que fiz mais recentemen-
trabalhadores chegam a assinar te, pude fazer perguntas que nunca poderia
alguma coisa? fazer no Pará. Talvez nem soubesse fazê-las na-
Ricardo Rezende – Muitas vezes, o em- quele contexto em
preiteiro assina um contrato com o fazendei- que eu vivia. Pude
ro. Quando se trata de uma empresa grande, fazer perguntas aos
que paga impostos, que é reconhecida pelo trabalhadores sobre
governo, em geral, ela obriga o pistoleiro, que o medo, sobre a mu-
é o empreiteiro, a se constituir como firma. A lher, a filha, sobre a
maioria dos pistoleiros vira firma, o pretexto resistência. Queria
inicial é tirar a responsabilidade da empresa. compreender, por
Mas eles não têm obtido sucesso nisso. A Jus- exemplo, por que
tiça do Trabalho não reconhece essa isenção de ele aceitou ir para
responsabilidade porque, como o empreiteiro o Pará, quais foram
não tem condições de arcar com os custos, a as razões subjeti-
empresa beneficiada é responsável. Sob o ponto vas dele. Esse novo
de vista penal, o gerente e o fazendeiro podem lugar social que eu
ser acusados de conivência com o crime. Nos estava ocupando,
poucos casos de trabalho escravo em que houve a universidade, me
processos, os fazendeiros foram condenados. possibilitava um
Os peões assinam alguma coisa? olhar diferente, sem
Ricardo Rezende – Mais recentemente abandonar aquele
sim, antes não. Como o Grupo Móvel (do olhar anterior. Ago-
Ministério do Trabalho e Emprego) tem feito ra, em vez de rece-
fiscalização com muita freqüência, algumas ber na minha casa os
fazendas providenciam carteira de trabalho trabalhadores, fiz o
para os trabalhadores e as recolhem no escri- caminho inverso, fui
tório. Se a fiscalização chegar, os responsáveis à casa deles, nunca
pela fazenda tentam preencher às pressas tinha ido.
as carteiras profissionais. Outras assinam as Quantas
carteiras antes mesmo de a fiscalização che- entrevistas o
gar. Isso ocorre porque existem empresas que senhor fez?
estão sendo fiscalizadas duas a três vezes por Ricardo Rezen-
ano, pelo grau de reincidência no crime. Outra de – Mais de cem.
estratégia é quando um trabalhador foge e, Eu escolhi duas áre-
com medo de denúncias, o fazendeiro assina as: Barras, no Piauí,
a carteira e publica uma notícia no jornal local que é uma região dos estabelecidos que moram
informando que aquele trabalhador desapa- lá há duas ou três gerações; e o norte de Mato
receu, como se fosse abandono de emprego. Grosso, onde o pessoal está mais recentemente.
No livro que lançou ano passado, Uma das surpresas ao conversar com as famílias,
o senhor mostra como é a vida além da quantidade de pessoas que estiveram
do ex-escravo. Como foi essa no Pará, era ouvir as mulheres. Também é muito
produção e qual a diferença para impressionante a quantidade de desaparecidos.
o primeiro levantamento que o Lembro que, numa conversa com os trabalha-
senhor realizou? dores, era um grupo de cerca de 40 pessoas,
Ricardo Rezende – Quando estávamos no perguntei quem tinha parente desaparecido.
Pará, nossa equipe tinha uma urgência: salvar Uma quantidade enorme de pessoas começou

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entrevista

a tirar do bolso, da camisa, da calça ou de está vivo”. Eu disse que também esperava isso
uma bolsa um plástico e dentro dele tinha a e fui embora. Três meses depois, ela recebeu
foto do desaparecido, era o filho sumido, o um telefonema. Uma mulher ligou de Santana
noivo sumido, o esposo, o pai, quase todas do Araguaia dizendo para ela: “Queria saber
as famílias têm alguém que foi ao Pará e não se o Chico é seu filho. Ele tem alguma mulher
voltou. Essas pessoas podem ter sido mortas ou aí?”. O Chico estava vivendo com uma mulher
podem não ter retornado à família por outra em Santana do Araguaia, ele foi para a mata
razão, briga familiar. É muito comum também trabalhar, a mulher pegou a identidade dele,
outro fenômeno: o homem às vezes sai de casa viu o nome do pai e da mãe dele. Ela tinha
contra a vontade da esposa – ou da noiva ou uma amiga que era telefonista. Graças a essa
dos pais – porque ela tem medo do que possa amiga, ela descobriu que os pais do Chico
acontecer e aí ele só quer voltar quando tiver agora tinham telefone e aí ligou para Teresina
dinheiro porque tem para saber se o Chico tinha outra mulher, ela
vergonha de voltar estava com medo de estar sendo enganada. A
mais pobre do que senhora quase morreu de susto, mas descobriu
saiu. Essa vergonha que o filho estava vivo. Mas, quando o Chico
impede inclusive o voltou, a mulher contou que havia falado com
contato com a fa- a mãe dele. Aí o Chico ligou para a mãe, com
mília, a pessoa fica quem não falava há mais de dez anos. Eles
escondida. choraram e o filho disse: “Quando eu tiver
Nessas dinheiro, volto”. Ele tinha ido contra a vontade
entrevistas, da mãe, não queria voltar pior do que tinha
algum caso saído, por isso não queria manter contato.
o marcou Antes disso, ela tinha feito uma promessa que
especificamente? cumpriria se tivesse novamente o filho no colo.
Ricardo Re- Em todo o caso, estive com ela depois desse
z e n d e – Quando telefonema, ela achou que eu tinha localizado
estive em Teresina o filho dela, eu disse que não, que tinha sido
e estava na casa de coincidência. Voltei para o Rio de Janeiro e
uma religiosa, ela recebi um telefonema de lá me contando que
me contou que ali o filho tinha sido assassinado antes de voltar
perto morava uma para casa. Essa mulher, que era muito tímida,
senhora que havia analfabeta, se transformou. Ela virou uma fera,
me procurado mui- virou o mundo de cabeça pra baixo, foi à pre-
to, há muitos anos, feitura, foi ao governo do estado, conseguiu
quando eu estava um avião – uma mulher que não tinha dinheiro
em Conceição do para pegar um ônibus – do governo do estado
Araguaia, em 1986, para ir a Santana do Araguaia buscar o corpo
porque o filho dela, do filho, conseguiu que ele fosse embalsamado,
Francisco, tinha de- conseguiu levar o corpo do filho. A história é
saparecido. Naquela longa, é uma aventura, o corpo ainda ficou
ocasião, colocamos retido em Araguaina. Quando o corpo chegou
aviso nas rádios, nos em Teresina, ela colocou o filho no colo.
jornais, procuramos Vocês criaram o Comitê Rio Maria.
em hospitais, fune- Como funciona hoje?
rárias, não tivemos a menor notícia, e ela voltou Ricardo Rezende – O Comitê Rio Maria foi
para o Piauí. Agora, quando estava produzindo criado em 1991, numa reunião que fizemos em
a tese, em 2001 e 2002, fui à casa dela e ela Redenção. A idéia era criar pressões políticas e
me reconheceu, chorou muito, me apresentou jurídicas para frear as mortes, a impunidade no
ao marido, que eu não conhecia, e ela disse: campo e acelerar o processo de reforma agrária.
“Meu filho está vivo, mas não tive contato com Esse comitê acabou dando certo por uma série
ele, eu sonhei com ele esta noite, eu estava de razões, entre elas a presença de frei Henry
dormindo na rede e ele balançou minha rede des Roziers. Tivemos também a ajuda de uma
e conversou comigo. Ele está vivo porque ele série de advogados. Houve pressões na ONU
apareceu para mim hoje e agora você apa- [Organização das Nações Unidas] e na OEA [Or-
receu também, tenho certeza que meu filho ganização dos Estados Americanos]. A Anistia

44 Democracia Viva Nº 9
26
Ricardo rezende

Internacional ajudou. Foram formados Comitês colocar a visibilidade dessas


Rio Maria na Inglaterra, na França e nos Estados pessoas famosas a serviço das
Unidos, onde até hoje o comitê é mais forte. lutas sociais.
Criamos diversos grupos de pressão no Brasil E como funciona o
e fora do Brasil, que começaram a pressionar Movimento Humanos
os governos federal, estadual e municipal e o Direitos?
Poder Judiciário de tal forma que alguns casos Ricardo Rezende – O
foram julgados e condenados. Principalmente, Movimento Humanos Direi-
o objetivo central foi conseguido: nenhuma tos, criado sob inspiração
liderança foi assassinada naquela região do de Marcos Winter, está no
sul do Pará depois de 1991 até 2005. Foram Rio de Janeiro e lança luzes
assassinadas em outras regiões do Pará: na sobre o movimento social.
diocese de Marabá, por exemplo, ocorreram 19 Sua prioridade tem sido o
assassinatos de integrantes do MST [Movimento trabalho escravo, mas envolve
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra]. também a questão do menor,
Acho que o Comitê Rio Maria, a presença a questão do índio, violência
de frei Henry e o apoio dos advogados foram sexual contra menores, meio
definitivos para dar visibilidade ao sul do Pará. ambiente. E temos feito al-
Graças à movimentação após a morte do Expe- gumas ações dependendo
dito Ribeiro de Sousa, conseguimos implantar, da conjuntura. Por exemplo,
até em Brasília, um núcleo de discussão contra quando houve a invasão do
a violência no campo. Iraque, o Movimento Huma-
Mas frei Henry está sendo nos Direitos fez vinhetas pela
ameaçado de morte, não? paz, contra a guerra. Cerca
O que o Comitê está fazendo de 30 atores e atrizes deram
quanto a isso? depoimentos, e a TV Globo
Ricardo Rezende – Estamos fazendo pres- veiculou essas vinhetas du-
são de novo, isso funcionou durante um tem- rante algumas semanas. No
po, pode ser que agora os mecanismos sejam caso do assassinato da irmã
outros. Uma das coisas que fizemos naquela Dorothy, outro exemplo, o
época foi levar atores e atrizes para a região. grupo convocou a sociedade
Pensamos o seguinte: quem fala para aquele civil e fez uma manifestação
fazendeiro que está no Pará? A TV Globo. no Centro do Rio de Janeiro.
Conseguimos fazer aqui no Rio, por exemplo, Depois de Conceição do Araguaia,
o Canto da Terra, um show com Caetano Ve- o senhor ficou em Rio Maria oito
loso, Djavan, Chico Buarque, Lobão etc. Vários anos. Por que veio para
artistas fizeram um show por Rio Maria, então o Rio de Janeiro?
a imprensa toda tratou da reforma agrária. Na- Ricardo Rezende – Queria estudar, estava
quele tempo, a reforma agrária era uma espécie há muitos anos lá e não conseguia estudar
de tema-tabu, conseguimos alguns tipos de porque era ameaçado de morte e não queria
mobilização que faziam com que, às vezes, o sair sendo claramente ameaçado de morte para
tema entrasse na pauta, esse show, por exem- não dar a impressão de que estava fugindo. No
plo, propiciou isso. Depois levamos o Ângelo último ano em que passei lá, apesar da insegu-
Antônio e a Letícia Sabatella ao sul do Pará, eles rança, não houve nenhuma ameaça explícita,
estavam no auge da fama, estavam terminando nenhum telefonema, nada, aí achei que era a
uma novela, e os fazendeiros ficaram doidos, hora que daria para eu sair.
queriam autógrafos. E o Ângelo Antônio e a Atualmente, o senhor também está
Letícia Sabatella andavam abraçados com os envolvido na produção
ameaçados de morte. Era uma forma de dizer: de um filme?
tocar no ameaçado de morte era tocar neles. O Ricardo Rezende – Na verdade, são vários
Paulo Betti também foi com o Lula, o pessoal filmes. Um deles é sobre a vida de Expedito
não estava querendo autógrafos do Lula, só Ribeiro de Sousa, assassinado em Rio Maria,
do Paulo Betti. Também foram ao sul do Pará com os professores Beto Novaes, Adônia,
a Cristina Pereira e o Sérgio Mamberti. Existe Rosilene e Aida. Outro, sobre ameaçados de
um grupo de atores que tem sido solidário à morte, com Emilio Gallo. Temos outro, que
questão agrária há um certo tempo. A idéia é por enquanto é só um projeto, sobre traba-

OUTUBRO/2000
MAR / ABR 2005 45
entrevista

lho escravo, composto por cinco pequenos escravo vai crescer. Se a polícia não recebe di-
documentários. Além disso, outra atividade ária, como vai proteger lavrador, que não tem
importante que desenvolvo no Rio é que ajudei comida nem cama, nem carro para oferecer? A
a criar, com a participação da professora Gel- Polícia Federal já não tem carro; sem diária, fica
ba, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, complicado. A falta de recursos econômicos,
o Grupo de Pesquisa sobre Trabalho Escravo a decisão de cortar gastos cria um obstáculo
Contemporâneo, com um banco de dados e a também. É uma opção política de uma política
nossa idéia é, através da pesquisa e do estudo econômica que resolve o problema da dívida
dentro da universidade, auxiliar a sociedade civil externa mas não resolve os nossos problemas
e o Estado na erradicação do trabalho escravo, internos.
passar pistas para políticas públicas, inclusive. Outra questão importante é a conjuntura
Qual é a sua avaliação sobre a de sustentação do governo. A bancada rura-
reação do governo Lula em relação lista parece cada vez mais forte: em nome da
ao caso da missionária governabilidade, cede-se tudo. O problema é
Dorothy Stang? até onde isso vai. A PEC [Proposta de Emenda
Ricardo Rezende – O governo às vezes me Constitucional] que prevê a expropriação da
dá a impressão de viver uma situação de inde- propriedade de quem utilizar mão-de-obra
finição. Uma coisa é estar no Poder Executivo, escrava nunca foi à votação na Câmara dos
outra é estar no Poder Legislativo. Pelo menos Deputados. E quem presidia a Câmara dos
uma parcela do governo não sabe o que fazer, Deputados era o João Paulo, do PT!
não tem propostas. Isso me pareceu claro quan- O governo brasileiro jogou todas as cartas
do houve a morte da irmã Dorothy. O atraso para aprovar o salário mínimo, mas não fez o
para tomar medidas foi um fato. O governo já mesmo para aprovar essa PEC. O salário mínimo
sabia sobre a situação dos ameaçados há muito é um problema conjuntural, todo ano temos essa
tempo. O ministro Nilmário Miranda – que me discussão. A aprovação dessa PEC significaria uma
parece uma pessoa bastante séria – já estava segunda lei abolicionista. Em 1888 foi criada uma
convidado para ir à região. Estive no Rondon lei: é proibido trabalho escravo. Agora, poderia
do Pará com d. Maria Joel, que também é ame- ser criada outra lei: quem usar mão-de-obra
açada de morte, e ficamos impressionados com escrava perde a propriedade. Seria a criação de
o clima de violência. O Movimento Humanos uma punição exemplar. O governo Lula seria
Direitos tentou de tudo para dar visibilidade ao reconhecido, seria uma referência por essa lei
que estava acontecendo. O ministro me falou abolicionista. Mas acho que até nisso ele perde
durante o Fórum Social Mundial: “Quando o bonde da história.
soube que vocês estavam indo ao Rondon do Essa emenda está na Câmara há
Pará percebi que a situação era mais grave do mais de uma década, não?
que eu imaginava”. Ele foi, conversou com a Ricardo Rezende – Sim, a primeira propos-
d. Maria Joel e com outras pessoas ameaçadas, ta de emenda constitucional foi feita em 1992;
inclusive com a irmã Dorothy. No entanto, duas posteriormente, em 1996 ou 1997, passou
semanas depois, a irmã foi morta. Durante o pelo Senado. Agora está sendo rediscutida na
velório, que foi realizado em Belém, telefonei Câmara dos Deputados. Significa que estamos
para o José Batista, advogado da CPT que mora de novo como se estivéssemos em 1992, vol-
em Marabá e perguntei: “Batista, o que foi feito tamos à estaca zero. Agora, o presidente da
depois da passagem do ministro?”. Ele disse: casa, Severino Cavalcanti, diz que aqui não é
“Por enquanto, nada”. Houve um atraso, uma França, ele tem uma posição que demonstra
lentidão. No fundo, acho que não é falta de sua aliança com a Bancada Ruralista. Se já era
interesse; me dá a impressão de uma perplexi- difícil com o João Paulo, imagine agora! Vamos
dade, de não saber bem como enfrentar. Ele não continuar fazendo pressões. Continuará sendo
tem talvez os meios, os instrumentos. Estes são nossa prioridade. Mas sabemos que é uma luta
definidos por uma opção econômica do governo. que vai demandar muito tempo e esforço. Acho
Qual seria um exemplo dessa pouco provável que essa PEC seja aprovada,
imposição do fator econômico? infelizmente.
Ricardo Rezende – A Polícia Federal está Diante disso, sua expectativa em
dizendo que não vai fazer fiscalizações de tra- relação à reforma agrária também
balho escravo porque a diária que os policiais não é muito diferente?
recebem é tão baixa que teriam que pagar para Ricardo Rezende – A reforma agrária é
trabalhar. Se não há fiscalização, o trabalho algo mais complexo do que a PEC, que inicial-

46 Democracia Viva Nº 9
26
Ricardo rezende

mente eu imaginava ser mais simples. No caso questões da Trindade, são questões de dogmas Participaram desta
da reforma agrária, é muito mais difícil, porque que em geral têm criado problemas maiores. entrevista: AnaCris
Bittencourt, Cândido
os interesses são maiores, a propriedade tem São questões como a do aborto e do uso de
Grzybowski, Dulce
mais valor que a vida e a política agrária tem preservativo que geram mais tensões internas
Pandolfi, Iracema Dantas
privilegiado projetos que visam à exportação, na Igreja. Não sou teólogo, estudei teologia,
e J. R. Ripper
que visam ao preço de mercado. De fato, evidentemente, mas minha especialização não
não sou muito otimista. Com o governo Lula, é essa. Sou apaixonado pela teologia, pela Bí- Fotos: Vanor Correia
tivemos passos que foram além do governo blia, dou cursos, mas trabalho, escrevo sobre
Fernando Henrique Cardoso, mas muito abaixo outro tema, um tema que para a Igreja é menos
da necessidade do país. complicado.
O senhor não teve conflitos
pessoais entre a hierarquia
imposta pela Igreja e toda essa sua
militância política?
Ricardo Rezende – Não tive problemas
dessa natureza, talvez tivesse tido em Juiz de
Fora em 1976. Nunca quis perder tempo bri-
gando dentro da Igreja, para mim, o problema
era fora da Igreja, não dentro. Sempre procurei
ter uma relação com quem tinha mais simpatia
pela questão social, foi uma das razões para eu
sair de Juiz de Fora e buscar uma igreja fora.
Tive uma sorte enorme de acertar, peguei uma
prelazia coordenada por d. Estêvão Cardoso,
que tinha uma história e uma tradição de com-
promisso social e sempre me deu todo apoio. O
bispo que o sucedeu, d. José Patrício, também
tinha a mesma perspectiva. Muito mais do que
um aliado, ele foi um incentivador, nunca tive
problemas. Em relação à CNBB, também recebi
todo apoio. Enquanto morava em Conceição do
Araguaia, todas as vezes em que tive que ir a
Brasília, era muito bem-recebido. Dom Luciano,
que foi secretário-geral da CNBB, depois foi seu
presidente, foi sempre supergeneroso. Muitas
vezes, ele me hospedava no prédio da CNBB. A
primeira coletiva de imprensa que falei do tra-
balho escravo foi em Brasília, na CNBB. Nunca
tive problemas dessa natureza.
Em 1980, a CNBB fez um dos documentos
mais interessantes sobre a necessidade da
reforma agrária no Brasil. É um documento
muito lúcido e atual e foi aprovado, prati-
camente, por unanimidade. De mais de 300
bispos, talvez seis tenham votado contra. Nes-
sa questão, nunca tive nenhuma dificuldade.
Então, fé e política podem ser
conciliadas?
Ricardo Rezende – Os problemas maiores
entre padres e a hierarquia da Igreja, na maior
parte das vezes, não se referem a posições de
natureza política. É claro que existe um efeito
político, mas em geral são questões que en-
volvem aspectos morais e teológicos. Questões
ligadas à teologia propriamente, por exemplo,
se Jesus teve ou não dúvidas diante da morte,

OUTUBRO/2000
MAR / ABR 2005 47
c r ô n i c a

A modéstia do
Moreira Sampaio – nome fictício –, advogado vo de comemoração, de agradecer a Deus, de
bem-sucedido que atende a uma dezena de em- fazer penitência ou um grande gesto de filan-
presas de médio porte, bom marido, ótimo pai, tropia, para Sampaio foi uma revelação, uma
cinéfilo com veleidades literárias, tem a vida descoberta que o deixou abalado. Descobriu
que planejou e soube construí-la com esforço e que aqueles dez centímetros, os insignifican-
dedicação. O senso comum o chamaria de um tes dez centímetros, menos que a distância da
homem realizado, sortudo, ou, pelo menos, de ponta do polegar à do indicador, o separaram
aquele que não tem do que reclamar. da vida, de estar vivo, como agora estava, e
Eis que, tirando-o da comodidade de não existir mais, simplesmente não estar no
um cotidiano organizado para poupar-lhe mundo. Dez centímetros, um triz, um nada
surpresas, a vida lhe impõe o imprevisível ou, entre ser e não-ser.
dependendo de como se olhe, lhe oferece a Não que não estivesse contente – claro
oportunidade de uma extraordinária experiência. que estava, teve arrepios ao sentir-se poupado,
Ao deixar o escritório num fim de tarde e seguir achou até que algum privilégio o tocara e
para o estacionamento, desaba a marquise de agradeceu com fervor por merecer continuar
um prédio antigo, atinge duas pessoas e passa por mais tempo na Terra, convivendo com as
rente ao seu corpo, a dez centímetros de esma- pessoas, amando e sendo amado pela família,
gá-lo. Um susto. Ao mesmo tempo que se dá amigos e amigas. Para ele, o simples fato de
conta de que escapou ileso, Sampaio choca-se ainda estar vivo era motivo de alegria e o
com o estado dos que foram atingidos. Alguém inundava de gratidão.
põe uma garrafa de água na sua mão trêmula, No entanto, embora contente e agra-
ele bebe e começa a se afastar meio tonto. Sai decido, Sampaio não consegue esquecer o
dali sem um arranhão, mas tal proximidade da momento do acontecimento, aquele instante
morte jamais lhe ocorrera nos 45 anos de vida. terrível. E as imagens que não lhe saíam
O que para muitas pessoas seria moti- da cabeça davam mais nitidez à revelação

48 Democracia Viva Nº 26
que o deixara chocado. Deixou-se possuir rança, a propriedade, o conhecimento, enfim, Alcione Araújo
pelo sentimento de que a vida é apenas um cria tudo para organizar a vida, entender a alcionaraujo@uol.com.br
acaso e que nos pode ser tirada a qualquer vida – e nada há a organizar nem entender
momento, de surpresa, sem aviso, motivo na morte. Tentar entender e organizar a vida
ou explicação, por um acaso, um mero acaso é uma grande bobagem”.
sem qualquer importância. Aos 45 anos de Sampaio não esconde um misto de
idade, em plena colheita do que plantara na ressentimento e revolta, dá a impressão de
profissão e na família, o advogado Moreira que se sente traído, de que o enganaram,
Sampaio realizara, no estômago e na corrente embora não nomeie os responsáveis – nem
sanguínea, a idéia da vulnerabilidade huma- pode, se inexistem.
na. E essa consciência o deixara assustado, O advogado Moreira Sampaio entende
estarrecido, em pânico. que a queda da marquise, que não o matou nem
Conheço o Sampaio. Bem sei que o feriu, lhe concedeu, como um presente, uma
não é infantil nem imaturo. Já vivenciara vida nova. E ele quer viver essa nova vida de
a perda do pai, convive com longa doença uma maneira, de fato, nova. Acha até que a
da mãe idosa, experimentou a sensação da sua vida anterior, de homem realizado, sortu-
anestesia geral numa cirurgia, na faculdade do, que não tem do que se queixar, pertence
andou lendo sobre criminalística e medicina já a uma outra pessoa que, essa sim, talvez
legal, sei que leu Sartre e entendeu que tudo tenha morrido. Agora, quer a vulnerabilidade
na vida é contingente. Mas diz ele: “Nada presente no cotidiano. Viver como se a qual-
se compara com o que senti na pele. Parece quer momento uma marquise pudesse desabar
que abriram a cortina de um palco e me sobre a sua cabeça. Para descobrir essa vida,
deixaram ver os mecanismos que movem pôs na balança, de um lado, a profissão, a
a vida. E, ao ver, descobri que tudo o que família, os bens, a segurança; do outro, a
acontece é por mero acaso. A-ca-so! Não há intensidade, o risco, o perigo, a emoção, o
nenhuma ordem, nenhuma idéia de justiça efêmero, a liberdade. Quando perguntei para
ou de merecimento. Tudo vem do acaso. que lado pendia a balança, ele silenciou e
Os homens morrem ao acaso. Assim como sorriu. Com a modéstia de um sábio.
nascem ao acaso, claro. É um grande caos. A
gente cria as leis, a ordem, a educação, a segu-

MAR / ABR 2005 49


r e s e n h a

paço aberto para trocar idéias, experiências,


visões de mundo. Ele não é um partido ou
movimento e “não mudará o mundo; quem o
mudará será a sociedade. O Fórum cumpre,
na luta pela mudança, um papel unicamente
intermediário” (p. 21).
Esse papel – que pode ser definido
como um espaço, e não como um movimento
ou coalizão de partidos e organizações – nem
sempre é compreendido pelo público e pela
imprensa, que às vezes cobram do FSM ma-
nifestos e listas de propostas, objetivos que
nunca foram os seus. Na análise de Whitaker,
o eixo central é a adesão à Carta de Princípios
do Fórum e a busca de alternativas ao libera-
lismo, a insatisfação com o mundo atual, que
ele chama de “insurgência cidadã”.
Contudo, não é qualquer organização
que pode fazer parte do FSM. Grupos que
O desafio do Fórum utilizem a violência, como terroristas ou
Social Mundial – Um guerrilheiros, estão proibidos. O mesmo
vale para partidos e governos, que podem
modo de ver participar somente de maneira secundária, a
convite da organização de uma atividade. Os
Chico Whitaker
critérios provocam discussão – as Forças Ar-
Editora Fundação Perseu Abramo /
madas Revolucionárias da Colômbia (Farcs),
Edições Loyola
por exemplo, insistiram em participar, sem
264 págs.
sucesso – mas funcionam para preservar o
caráter democrático do Fórum.
O Fórum Social Mundial (FSM) realizou Nesse sentido também pode se com-
em janeiro sua quinta edição, reunindo mais preender a regra de decisão por consenso,
de 150 mil pessoas e influindo até mesmo estabelecida no Conselho Internacional do
nas discussões em Davos. O livro de Chico Fórum. Se, por um lado, ela torna as nego-
Whitaker, um dos criadores e principais or- ciações e articulações mais lentas e difíceis,
ganizadores do FSM, é um oportuno balanço por outro tem a vantagem de assegurar que
desse processo, contando um pouco da histó- todos os lados envolvidos terão oportunidade
ria e examinando as principais questões que de expor suas razões.
o Fórum enfrenta atualmente. O autor destaca a importância do
O autor lembra que a idéia original princípio da co-responsabilidade entre partici-
do FSM era levantar a bandeira da utopia de pantes e organização, apostando na autogestão
“um outro mundo possível” diante do “pen- como maneira de preparar as atividades do
samento único” do liberalismo dominante na FSM e desenvolvendo temas caros ao pen-
década de 1990. Reunindo lideranças sociais samento e à prática libertária: “Autonomia e
e intelectuais, o Fórum surgiu como um es- autogestão têm que ser aprendidas, para que

50 Democracia Viva Nº 26
possamos superar o infantilismo a que o siste- em Mumbai, na Índia, e o verdadeiro choque
ma capitalista nos empurra. A experiência de cultural que o evento provocou nas pessoas
autogerir atividades, num Fórum marcado por vindas do Ocidente, com o despertar de temas
diferentes tipos de diversidade, entre as quais a como a discriminação das castas e a mobiliza-
do ritmo da caminhada de cada um, transforma ção dos(as) dalits, os(as) intocáveis. Mumbai
o Fórum Social Mundial também numa grande também é um marco pela importância dada
escola de crescimento cidadão” (p. 49). às questões culturais, que passam a ganhar
A ênfase na autogestão apontou ca- mais espaço.
minhos que, num primeiro momento, não Igualmente relevante é a multiplica-
haviam sido considerados pela organização do ção dos fóruns sociais regionais, que têm
FSM. Um exemplo foi a decisão de permitir ocorrido no âmbito de países (Brasil, Chile
não apenas delegados(as) das instituições etc.), continentes (Europa, América), regiões
participantes, mas também liberar a inscrição geográficas subnacionais (Nordeste do Brasil)
de pessoas que poderiam ou não ter vínculos ou transnacionais (Amazônia, Mediterrâneo).
com movimentos sociais, mas se sentiram Já existe o projeto de realizar uma edição do
estimuladas a se reunir no Fórum. Fórum na África, e Whitaker levanta a hipó-
Uma boa parte desse grupo é formado tese de expandir o espaço para outros cantos
por jovens que contribuem para dar ao FSM do mundo, como o Oriente Médio e a Europa
um inconfundível traço de alegria e mesmo Oriental. É uma oportunidade para mobilizar
de irreverência, às vezes mostrado como ca- militantes desses lugares, que muitas vezes
ricatura, como uma versão contemporânea de não têm os recursos necessários para visitar
Woodstock. O autor observa que, para além países distantes.
dos aspectos mais chamativos para a imprensa O autor apresenta seu modo de ver
(como as roupas, o comportamento e a mú- o FSM de forma bem organizada e de fácil
sica), a participação da nova geração rendeu consulta, numa obra que se torna referência
contribuições decisivas, como a formação do para conhecer o desenvolvimento do Fórum
Acampamento Intercontinental da Juventude. Social Mundial. No entanto, o texto poderia
Outro ponto que chama a atenção de ter sido mais bem editado: em diversas oca-
Whitaker é a retomada de valores ligados à es- siões, Whitaker transcreve entrevistas que
piritualidade: “participantes de vários países concedeu à imprensa brasileira e estrangeira,
explicitaram claramente, em diversas ocasiões num formato que se torna cansativo pela
e de diversas maneiras, a necessidade de uma freqüência com que é repetido.
‘mudança interior’ como condição para se O livro contém cerca de cem páginas
conseguir construir o ‘outro mundo possível’” de anexos que incluem documentos impor-
(p. 114). O autor identifica esse sentimento tantes no Fórum Social Mundial, como a
com os movimentos católicos progressistas da Carta de Princípios e diversos artigos que
década de 1950 e indica que é algo também fazem balanços do processo e examinam
importante na agenda de correntes religiosas seus principais impactos e perspectivas. São
em diversos credos. informações valiosas para quem quer se in-
A diversidade é um elemento central formar sobre os debates que influem sobre os
no FSM e, desde o princípio, havia a convic- rumos do FSM.
ção de que o Fórum não poderia ficar restrito
a Porto Alegre. Whitaker examina em detalhes Maurício Santoro
o Fórum Social Mundial de 2004, realizado Jornalista e cientista social,

MAR / ABR 2005 51


e agricultoras, trabalhadores e traba-
lhadoras do campo, povos indígenas
e afrodescendentes, da Ásia, Europa,
América e África [...] que, por princípio,
estamos em oposição total ao modelo
neoliberal, que mata e destrói culturas,
povos e famílias camponesas no mundo
todo. Vimos como nossas organizações e
nosso movimento cresceu, se fortaleceu
e tem conseguido pôr o movimento
camponês no centro das lutas populares.
Denunciaram também “o papel de
guardiões do capital” que representam o
Fundo Monetário Internacional (FMI) e a
Organização Mundial do Comércio (OMC),
e que está sendo igualmente assumido pela
Conferência das Nações Unidas para o Co-
mércio e o Desenvolvimento (Unctad) e Orga-
nização das Nações Unidas para Agricultura
O Banco Mundial e Alimentação (FAO).
Além dos movimentos sociais que
e a terra: ofensiva estão em luta por direitos, aparecem também
e resistência na as organizações de apoio internacionais e
nacionais. A Foodfirst Information & Action
América Latina, África Network (Fian) e a Rede Social de Justiça e
e Ásia Direitos Humanos do Brasil são duas delas.
A Fian constituiu-se como “uma organiza-
Mônica Dias Martins (Org.)
ção internacional de direitos humanos que
Editora Viramundo
centra seu trabalho na realização do direito
223 págs.
à alimentação, reconhecido pelo Pacto In-
ternacional de Direitos Econômicos, Sociais
Os movimentos sociais em luta pela terra têm e Culturais [...]”, que tem aglutinado “[...]
ampliado suas estratégias de ações, quer no uma rede de organizações nacionais com
plano nacional quer no plano mundial. A Via membros em mais de 60 países da África,
Campesina, desde 1992, é marco fundamental América, Ásia e Europa”. A Rede Social de
desse processo de luta por direitos dos movi- Justiça e Direitos Humanos nasceu como
mentos sociais do mundo todo. “resultado da experiência de trabalho com
Em sua Declaração da 4ª Conferência dezenas de organizações não-governamentais
Internacional, a Via Campesina afirmou-se e movimentos sociais” e tem como “objetivo
como responder a uma demanda de ação e articu-
um movimento mundial de organiza-
lação de denúncias de violações de direitos
humanos ocorridas no Brasil”.
ções de mulheres rurais, camponeses,
Essa posição combativa da Via Cam-
camponesas, pequenos agricultores
pesina e de seus parceiros colocou para o

52 Democracia Viva Nº 26
r e s e n h a

neoliberalismo e para os órgãos internacionais Agropecuária da Colômbia); “Acordo de paz


a necessidade de opor rapidamente políticas e fundo de terras na Guatemala”, de Laura
públicas de tentativa de esvaziamento dessas Saldivar Tanaka e Hannah Wittman (pesqui-
bandeiras. Dessa forma, o Banco Mundial sadoras do Instituto Food First); e “A reforma
iniciou várias experiências de implantação agrária mexicana: do ejido à privatização”, de
de políticas de reforma agrária no interior Laura Saldivar Tanaka (também pesquisadora
dos mecanismos de mercado. do instituto).
As experiências sobre essas políticas Na terceira parte, questões relativas
do Banco Mundial são objetos centrais do ao racismo e à reforma agrária na África são
livro, organizado por Mônica Dias Martins, discutidas nos textos “A experiência sul-
pesquisadora da Rede Social de Justiça e -africana de reforma agrária”, de Wellington
Direitos Humanos, e apresentado por Maria D. Thwala (coordenador do Comitê Nacional
Luisa Mendonça e Marcelo Rezende, ambos da Terra da África do Sul), e “Reforma agrária
integrantes da Rede. O prefácio foi escrito pelo e ocupação de terra no Zimbábue”, de Tom
brilhante estudioso da reforma agrária, Plinio Lebert (também do comitê).
de Arruda Sampaio, atual presidente da Asso- A quarta e última parte traz a temá-
ciação Brasileira de Reforma Agrária (Abra). tica “Pobreza e reforma agrária na Ásia”
O primeiro artigo do livro, “O bom, com o trabalho “Problemas e desafios da
o mau e o feio: a política fundiária do Banco reforma agrária na Índia”, de Minar Pimple
Mundial”, é de autoria de Peter Rosset, co- (pesquisador da Foco no Sul Global), e o
-diretor do Institute for Food and Develop- estudo “Titulação da terra na Tailândia”, de
ment Policy, e discute as políticas globais Rebeca Leonard e Kingkorn Narintarakul Na
para o campo do Banco Mundial. Os demais Ayutthaya (ambas da Fundação do Desenvol-
textos estão subdivididos em quatro partes. vimento do Norte, da Tailândia).
Na primeira, estão os desafios da reforma As políticas do Banco Mundial relati-
agrária no Brasil com os artigos “O ‘Novo vas à reforma agrária de mercado são disse-
Mundo Rural’”, de Manuel Domingos Neto cadas para revelar ao mundo seu caráter de
(vice-presidente do CNPq); “A terra por classe e sua alternativa de mudar para nada
uma cédula: estudo sobre a ‘reforma agrária mudar. Esse envolvimento do Banco com as
de mercado’”, de Sérgio Sauer (doutor em questões relativas à terra e à produção comu-
Sociologia pela Universidade de Brasília); nitária e familiar tem o objetivo de desenvol-
“Aprendendo a participar”, de Mônica Dias ver políticas públicas que visam beneficiar
Martins; e “A contra-reforma agrária no quem detém a concentração da terra, deixando
Brasil”, de Marcelo Rezende e Maria Luisa para camponeses, camponesas, indígenas e
Mendonça. Todos analisam criticamente a demais povos africanos e asiáticos a dívida
aplicação no Brasil da política da reforma e o pagamento dos juros ao Banco Mundial.
agrária de mercado do Banco Mundial. O livro é, pois, mais um instrumento de
Na segunda parte, “Insurgência e refor- combate que vem se somar à decisão da Via
ma agrária na América Latina”, estão os três Campesina e da Fian internacional de denun-
textos sobre as experiências em outros países ciar o “Banco Mundial por promover políticas
latino-americanos: “Colômbia: mercado de de contra-reforma agrária que têm feito da ter-
terras ou reforma agrária, eis a questão”, de ra uma mera mercadoria reconcentrando-a em
Héctor Mondragón (economista e assessor poucas mãos e por ser cúmplice das massivas
da Federação Nacional Sindical Unitária e sistemáticas violações dos direitos humanos

MAR / ABR 2005 53


Ib a s e
opinião
Cássio Martorelli*

Software livre,

O direito de escolha deve estar presente em todos os momentos de nossas vidas, em

relação ao caminho que fazemos para ir e vir, o uso de nossas roupas, o que comemos,

o que pensamos, o time pelo qual torcemos e o que estudamos. E também deve se fazer

presente no software que usamos em nossos computadores. Neste artigo, tentarei bus-

car definições e idéias sobre software livre (SL), tema presente hoje em muitos jornais,

revistas, na mídia em geral, até mesmo não-especializada, e também em nossos lares e

instituições, em fóruns especializados e no contexto global.

Há anos no Brasil, e também em boa parte do mundo, principalmente nos países em

desenvolvimento, temos sido forçados(as) a utilizar o mesmo sistema operacional e os mesmos

aplicativos em nossos computadores, em casa, nos pontos de acessos, cibercafés, e no am-

biente de trabalho. Até então, não tínhamos alternativas de uso de sistemas de computadores

diferentes da monopolização de softwares que nos foi passada desde o surgimento dessa

54 Democracia Viva Nº 26
Nossa questão de aprisionamento no uso de pessoa possa ajudar outra;
software está diretamente relacionada aos pro- 4 de aperfeiçoar o programa e liberar seus
blemas culturais que enfrentamos no dia-a-dia. aperfeiçoamentos, de modo que toda
A mesma resistência que temos quanto a aceitar a comunidade se beneficie (acesso ao
o que é diferente ou novo nos aspectos sociais, código-fonte também é um prerrequisito
econômicos e étnicos também existe quando para essa liberdade).
falamos em SL. Essa herança cultural deve ser
É importante notar que os quatro itens
rompida a partir do momento que buscarmos
não fazem referência a custos ou preços. O
alternativas quanto à escolha do software que
fato de se cobrar ou não pela distribuição ou
podemos usar.
pela licença de uso do software não interfere
O movimento de SL baseia-se no princí-
no conceito de SL. Nada impede que uma có-
pio do compartilhamento do conhecimento e na
pia adquirida seja revendida, seja modificada
solidariedade praticada pela inteligência coletiva
ou não.
conectada na rede mundial de computadores.
De fato, o que garante a propagação de
Na era da informação, o acesso e o direito à
direitos em um SL é um conceito conhecido como
comunicação em rede aparecem como a nova
copyleft, presente apenas em algumas licenças.
liberdade de expressão e cidadania. “Somos
Um SL sem copyleft pode se tornar propriedade
cada vez mais uma sociedade tecnodependente.
de uma pessoa. Já um SL protegido por uma
O controle da tecnologia torna-se vital e dita as
licença que ofereça copyleft deverá ser distribu-
possibilidades de desenvolvimento e de inclusão
ído sob a mesma licença, ou seja, repassando os
social. As funções e processos principais da
direitos. Em todo caso, não é necessário redistri-
era informacional estão sendo cada vez mais
buir um SL modificado. A liberdade de utilizar
organizados em rede e através da Internet”.1
um programa significa que qualquer pessoa,
Analisando os termos liberdade de expres-
física ou jurídica, pode utilizar o software em
são e conhecimento compartilhado, há muitas
qualquer tipo de sistema computacional, para
idéias e conceitos disponíveis na Internet. O
qualquer tipo de trabalho ou atividade, sem
termo software livre se refere aos softwares for-
precisar comunicar ao desenvolvedor ou a
necidos ao público com a liberdade de executar,
qualquer outra entidade em especial.
estudar, modificar e repassar (com ou sem alte-
A liberdade de redistribuir deve incluir a
rações), sem que seja preciso, para isso, pedir
possibilidade de se repassar tanto os códigos-
permissão à pessoa que criou o programa. Em
-fonte como os arquivos binários gerados da
geral, SL se assemelha a domínio público – na
compilação desses códigos, quando isso é
verdade, software de domínio público também
possível – seja o programa original, seja uma
entra no conceito de SL.
versão modificada. Não se pode, nem há neces-
Segundo definição da Free Software
sidade, exigir autorização da pessoa que criou
Foundation (www.fsf.org), o software livre se
o software para a sua redistribuição, as licenças
refere a quatro tipos de liberdade:
de SL já dão essa prévia autorização.
1 de executar o programa para qualquer Para modificar o software (para uso
propósito; particular ou distribuição), é necessário ter
2 de estudar como o programa funciona e o código – outro prerrequisito para garantir
adaptá-lo às suas necessidades (acesso ao a liberdade do SL. Caso não seja distribuído
código-fonte é um prerrequisito para essa com os executáveis, o código deve ser dispo-
liberdade); nibilizado em local de onde possa ser baixado
1 CASTELLS, Manuel. A socieda-
3 de redistribuir cópias de modo que uma ou entregue ao(à) usuário(a), se solicitado, de em rede. Paz e Terra, 1999.

MAR / ABR 2005 55


opinião

sem custos adicionais (ou apenas se cobrando Resposta coletiva


transporte e mídia).
O cenário internacional na área de Tecnologia
Para que essas liberdades sejam reais,
da Informação (TI) aponta para um processo
têm que ser irrevogáveis. Se a pessoa que
cada vez mais agudo de disputa entre propos-
desenvolveu o programa detiver o poder de
tas conflitantes em relação à apropriação e ao
revogar a licença, mesmo que o(a) usuário(a)
tratamento de informações com a utilização de
não tenha dado motivo, o software não pode
meios computacionais.
ser considerado livre.
Hoje, o monopólio exercido por em-
Desenvolvedores(as) de software na
presas de software no mundo vulnerabiliza as
década de 1970 freqüentemente compartilha-
instituições, e mesmo governos, às políticas
vam seus programas de uma maneira similar
dessas empresas. Esse quadro se manifesta de
aos princípios utilizados hoje com o SL. No
modo especialmente forte, mas não exclusiva-
fim dessa década, as empresas começaram
mente, nos preços, na estrutura de programa-
a impor restrições
ção e atualizações, na segurança e no sigilo
ao público usuário,
das informações.
com o uso de con­
Sociedade civil, empresas públicas e
tratos de licença de
privadas, universidades, Estados nacionais e
software. Em 1984,
entusiastas em tecnologia não assistem pas-
Richard Stallman ini-
sivamente à fragilização de sua autonomia,
ciou o projeto GNU
fazendo crescer o movimento dos adeptos ao
(GNU is Not Unix),
SL. Ao contrário dos programas de empresas
fundan­do a Free Sof- proprietárias, que possuem os códigos de
tware Foun­d ation. comando fechados para impedir modificações
Stall­man introduziu por parte de sua clientela, os SL permitem que
os conceitos de SL e qualquer pessoa faça uma cópia, use-a como
copyleft, os quais fo- quiser e a distribua, na forma original ou com
ram especificamente modificações, sem pagar royalties ou licenças.
desenvolvidos para Os SL já fazem parte da rotina de insti-
dar ao público li- tuições como Universidade de São Paulo (USP),
berdade e restringir Universidade de Brasília (UnB), Universidade
as possibilidades de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Banco do Brasil
“propriedade”. e Caixa Econômica Federal (CEF) e de vários
Em 1991, o sis­ órgãos, ministérios e secretarias do governo
tema operacional já federal. No exterior, mostram resultado na
estava quase pronto, Bolsa de Valores de Nova York, Deutsch Bank,
mas faltava o prin- IBM, nos servidores do maior sítio de busca do
cipal, o kernel do mundo, o Google, na Casa Branca, em prefei-
sistema operacional. turas como de Munique – a terceira mais rica
O grupo liderado da Alemanha, que, em 2003, migrou 14 mil
por Stallman esta- computadores para Gnu/Linux – e a de Rio das
va desenvolvendo Ostras, no Rio de Janeiro.
um kernel chamado Essas experiências apontam a importân-
Hurd. Porém, naque- cia que ganhou o tema e o esforço aplicado no
le ano, ocorreu algo desenvolvimento e uso de novas ferramentas
que mudou o rumo que substituam os programas proprietários
da história da informática: o jovem finlandês pagos. Trata-se de uma tendência global. Além
Linus Torvalds conseguiu criar um kernel que de países como Alemanha, França, Espanha e
poderia usar todas as peças do sistema opera- Índia, há um número crescente de empresas
cional GNU. Esse kernel ficou conhecido como adotando essa nova forma de fazer negócio
Linux, contração de Linus e Unix. Atualmente, na área de TI.
o sistema operacional GNU com o kernel Linux O governo federal brasileiro está sendo
é conhecido como GNU/Linux ou apenas Linux. o carro-chefe desse embate. Disposto a acabar
Linus Torvalds foi o responsável pelo mascote com o monopólio no setor de informática,
oficial do Linux, chamado de Tux e perfeitamente lançou em junho de 2004 uma cartilha que
aceito pela comunidade de amantes do SL. determina a troca do sistema operacional e
aplicativos de programas proprietários para

56 Democracia Viva Nº 26
Software livre, conhecimento compartilhado na rede

Experiência do Ibase
Historicamente, o Ibase se caracteriza, entre
as ONGs nacionais, por ser uma instituição
a compreensão de que tanto a imple- O certo é que passaremos por muitas
pioneira na utilização de meios computa-
mentação de um projeto dessa grandeza mudanças, experiências positivas e ne-
cionais como ferramenta de trabalho de
como as etapas que se seguem à sua gativas, conflitos e novidades para que,
seu corpo de funcioná­rios(as) e no uso da
implementação são passíveis de alterações, em futuro próximo, possamos colher
Internet. Mais recentemente, surgiu a idéia
sugestões e negociação para ser mais bem bons fru­tos desse processo e alavancar a
de discutir uma política institucional de TI
absorvido pelo conjunto da instituição. Se, construção de uma sociedade mais justa
com enfoque na utilização de plataforma
em um primeiro momento, poderá haver e igualitária no mundo e para nós brasi­
livre. Como objetivo específico, agregar à
resistências, é importante que as pessoas lei­ros(as) e ibaseanos(as).
imagem do Ibase o fato de ser uma insti-
dêem chance ao novo e que tenham a Atualmente, estamos em processo
tuição que apóia o princípio do software
possibilidade de treinamento para uma de migração dos softwares de escri-
livre e subordina-o à missão institucional.
melhor absorção do tema. tório, navegadores, clientes de e-mail
A atenção maior desse embate tem
A mudança tem como princípios bási- e sistemas operacionais da plataforma
sido apresentar as oportunidades políticas
cos a liberdade de escolha dos programas proprietária para livre. Iniciamos, no
que representam a escolha de uma plata-
ou softwares a serem usados, a quebra início de 2004, um projeto chamado
forma livre de programas, as implicações
da monopolização dos gigantes interna- “Ibase Plataforma Livre” e estamos em
institucionais, os custos e os benefícios
cionais de software, o incentivo e apoio à pleno desenvolvimento. O principal fator
para cada um(a) de nós, funcionários(as)
pesquisa voltada à tecnologia da informa- para avançarmos é a absorção da idéia
e cida­dãos(ãs). Adicionalmente, o Ibase
ção, e ao desenvolvimento de softwares pela instituição e pelas outras pessoas
otimiza seus recursos ao não os gastar com
nacionais, a segurança, a otimização e ligadas a ela. O corpo funcional por
licenças de programas, direcionando-os
a redução nos custos com TI a médio e completo deve atuar junto com o setor
para o treinamento dos(as) funcionários(as)
longo prazos. Ao optar por essa política de TI para que, durante o processo, pos-
e o aumento de sua capacidade produtiva
institucional, o Ibase poderá aproveitar a samos alcançar os objetivos propostos e
e atualização dos equipamentos físicos.
oportunidade para ocupar um espaço maior reduzir os riscos e problemas de percurso.
Estamos conscientes de que tal mu-
também na discussão sobre a utilidade e O cenário futuro que sugerimos é de
dança institucional envolve um processo
adequação desse tipo de paradigma para uma instituição que priorize a utilização
de negociação, e não uma imposição. É
outras organizações da sociedade civil e e a difusão dos programas livres, bem
fundamental que as pessoas se sintam
entre instâncias de decisão e diálogo com como mantenha a comunicação com o
contempladas. Para tanto, deve existir
o poder público. mundo externo.

livre em toda administração federal. Significa todas usuárias de serviços de informática


que o governo deixará de gastar, a longo prazo, que operam no país –, mostra o impacto dos
pelo menos R$ 80 milhões por ano, pagos em programas livres no mercado nacional. O SL
royalties a uma única empresa líder de mercado. Linux já é utilizado por 38% das médias e
Significa também que essa migração encade- grandes empresas, com vantagens de custos.
ará uma crescente revolução verticalizada nos Pelo menos 85% das empresas que trabalham
estados, municípios, entidades e empresas com Linux no Brasil não têm certificação téc-
relacionadas com o governo e também a so- nica, como ocorre nos ambientes de software
ciedade civil. proprietários. É um sinal de que o mercado de
Estimulada pela adesão acelerada ao SL software livre Linux ainda não amadureceu, mas
por parte de órgãos e autarquias públicas, que tem muito a crescer. Isso se deve ao fato de
proporciona reduções significativas de custo, que especialistas em Linux são, na sua maioria,
a demanda por mão-de-obra especializada em jovens que se utilizam da comunidade de SL na
Linux nas áreas do governo federal está cres- Internet e seus milhares de sites para aprender e
cendo. Um programa de desenvolvimento de trocar informações. Basta fazer uma busca por
TI, especialmente orientado à inclusão digital, “linux” no Google (www.google.com.br) e se
educação e capacitação técnica, pode ser admirar com o resultado de quase 13 milhões
um ponto de partida efetivo para consolidar de links relacionados na propriedade “Web”
uma indústria de hardware e software que e quase 1 milhão na propriedade “somente
agregue valor à economia nacional, baseado páginas do Brasil”.
em equipamentos otimizados e softwares No Brasil, a entidade federal respon-
não-proprietários. sável pelo crescimento se chama Instituto de
Recente levantamento realizado no Tecnologia da Informação (ITI), uma au­tarquia
Brasil pela Impacta Pesquisas de Mercado vinculada à Casa Civil da Presidência da Repúbli-
(IPM), aplicado em 50 grandes empresas e ca, que faz o papel de autoridade certificadora
50 médias empresas da iniciativa privada – raiz da certificação digital (ICP-Brasil). O órgão

MAR / ABR 2005 57


opinião

* Cássio Martorelli é encarregado de rever as políticas gerais da assuntos ligados ao tema do SL.
Administrador da área de TI do governo brasileiro e de incenti- Para abordar o tema durante o FSM
Rede Local/TI do Ibase var a adoção do software livre em autarquias 2005, o Ibase organizou a oficina “Processo
cassio@ibase.br públicas. Segundo o ITI, há pequenos institutos de migração da plataforma proprietária para
com cem computadores, mas também grandes livre e seus aspectos reais”. O encontro teve
ministérios e empresas estatais. O Serviço Fede- como palestrantes Carlos Afonso, da Rede de
ral de Processamento de Dados (Serpro), maior Informações do Terceiro Setor (Rits); Cláudio
empresa de TI do governo federal, com mais de Ferreira Filho, do Projeto OpenOffice.org.br;
8 mil funcionários(as), criou uma força-tarefa Sophie Gosselin, da organização francesa No-
para executar o processo de migração de 60% mad; e João Cassino, representante do ITI. O
de suas estações de trabalho (aproximadamente objetivo da oficina foi debater o processo, os
2,5 mil computadores) para o sistema opera- problemas e soluções na migração de platafor-
cional GNU/Linux. mas. A atividade também buscou compartilhar
experiências e mostrar ao público participante
aspectos concretos, políticos e técnicos, pla-
Fóruns internacionais
nejamento e prática atual de uma migração
Desde o surgimento do processo Fórum Social baseada em software livre, em governos, ONGs,
Mundial (FSM), em 2001, foi na edição de universidades, empresas etc.
2005 que o SL, a sociedade da informação, a Não foi a primeira vez que Porto Alegre
revolução digital e a liberdade do conhecimento foi palco de discussões sobre SL. Em junho de
ganharam mais espaço na pauta do evento. 2004, 5 mil pessoas representando 35 países
No ano passado, em Mumbai, Índia, a orga- estiveram presentes ao 5º Fórum Internacio-
nização já havia colocado em pauta a prática nal de Software Livre. Foi uma oportunidade
durante o Fórum, mas somente no espaço singular de presenciar discussões em torno do
destinado à imprensa. Durante o FSM 2005, tema e suas nuanças, levando-nos a refletir
o tema já estava mais amadurecido e pôde ser sobre conhecimento compartilhado, solida-
planejado com antecedência. Desta vez, todos riedade e até mesmo o entusiasmo coletivo
os computadores utilizaram programa com o de desenvolvedores(as), programadores(as),
código aberto – tanto sala de imprensa como entusiastas e amantes dessa causa.
em pontos de acesso. A vedete do encontro foi o Creative
A organização do FSM 2005 destinou Commons/CC (www.creativecommnons.org),
um eixo temático chamado “Pensamento pró- cuja característica principal é a idéia de que
prio, reapropriação e socialização dos saberes, toda obra seja livre na distribuição, mas que sua
conhecimentos e tecnologias”. Várias experiên- autoria seja mantida. O CC possui vários tipos
cias de inclusão digital, de adoção do software de licenciamento sobre as obras criadas. Vale
livre e de mudança do conceito (e da gestão) dar uma passada no site e pesquisar melhor.
da propriedade intelectual foram apresentadas Para quem gosta de áudio e vídeo, é possível
em Porto Alegre, assim como houve debates baixar vários arquivos licenciados.
sobre o impacto da revolução digital em todos O próximo fórum já está marcado: será
os campos. mais uma vez em Porto Alegre, de 1º a 4 de
No Acampamento Intercontinental junho. O Comitê Organizador recebeu, até
da Juventude, foi montado o Laboratório de agora, cerca de 300 propostas de palestras
Conhecimento Livre – um espaço de produ- que pretendem abordar temas como banco
ção digital em software livre. Construído com de dados, casos de sucesso, comunidade, de-
paredes de barro, capim e bambu, com o chão senvolvimento, desktop, inclusão digital/social,
forrado de grama – princípios da chamada bio- política/filosofia, redes, segurança e governo. O
arquitetura para reduzir o impacto ambiental –, que não falta é assunto interessante. Para quem
o Laboratório de Conhecimento Livre possuía quer se envolver com o tema, é uma ótima
computadores conectados à Internet para in- oportunidade de conhecer a comunidade SL de
centivar a produção de vídeos e programas de perto, apreender conhecimentos e trocar experi-
rádio. Na minha opinião, esse foi o principal ências para projetos pessoais e institucionais. A
local de realização do SL, tanto na teoria como seguir, uma tabela com os principais programas
na prática. Muitas oficinas, palestras e cursos utilizados em softwares livres.
foram realizados para o pessoal acampado e
para quem estivesse disposto(a) a conhecer
formas alternativas de criação de inúmeros

58 Democracia Viva Nº 26
Software livre, conhecimento compartilhado na rede

Os softwares mais usados


O que faz Nome Links (gratuitamente)
Sistema operacional GNU/Linux http://www.linux.org
FreeBSD http://www.freebsd.org
OpenBSD http://www.openbsd.org.br
Servidor Web Apache (2/3 do mercado internacional) http://www.apache.org
Versões de Linux Debian http://www.debian.org.br
Slackware http://www.slackware-brasil.com.br
Conectiva http://www.conectiva.com.br
Mandrake http://www.mandrakelinux.com/pt-BR
Kurumin http://www.guiadohardware.net/kurumin
Red Hat http://www.redhat.com
Pacote escritório OpenOffice.org http://www.openoffice.org.br
Koffice http://www.kde.org
Programa gráfico GIMP http://www.gimp.org
Navegador Internet Mozilla http://www.mozilla.org
Konqueror http://www.kde.org
Galeon http://www.galeon.org
Cliente de e-mail Evolution http://www.ximian.com/products/evolution
Kmail http://www.kde.org
Banco de dados MySql http://www.mysql.org
PostgreeSQL http://www.postgresql.org.br

Glossário

Copyleft – A maioria das licenças usadas também a recém-publicada licença CC- pela licença. Geralmente, o código-fonte
na publicação de software livre permite -GNU GPL [Brasil].) não é disponibilizado, portanto modifi-
que os programas sejam modificados e Software em domínio público – Sig- cações são impossíveis.
redistribuídos. Essas práticas são geral- nifica software sem copyright. Alguns Software proprietário – É aquele cuja
mente proibidas pela legislação interna- tipos de cópia, ou versões modificadas, cópia, redistribuição ou modificação é,
cional de copyright, que tenta impedir podem não ser livres porque o(a) autor(a) em alguma medida, proibida pelo pro-
que alterações e cópias sejam efetuadas permite que restrições adicionais sejam prietário. Para usar, copiar ou redistribuir,
sem prévia autorização. As licenças que impostas na redistribuição do original ou de­ve-se solicitar permissão ou pagar.
acompanham software livre fazem uso de trabalhos derivados. Software comercial – Desenvolvido por
da legislação de copyright para impedir
Software semilivre – Apesar de não uma empresa com o objetivo de lucrar
utilização não-autorizada, mas essas
ser livre, é concedida permissão para que com sua utilização. Comercial e proprie-
licenças definem clara e explicitamente
indivíduos o usem, copiem, distribuam tário não significam o mesmo. A maioria
as condições sob as quais cópias, mo-
e modifiquem, incluindo a distribuição dos softwares comerciais é proprietária,
dificações e redistribuições podem ser
de versões modificadas, desde que o mas existem softwares livres comerciais,
efetuadas, para garantir as liberdades de
façam sem o propósito de auferir lucros. assim como softwares não-livres não-
modificar e redistribuir o software assim
Exemplos de softwares semilivres são as -comerciais.
licenciado. A essa versão de copyright
dá-se o nome de copyleft. primeiras versões do Internet Explorer da
Referências na Internet
Microsoft, algumas versões dos browsers
GPL – A Licença Pública Geral acompanha http://portal.softwarelivre.org
da Netscape e o StarOffice.
os pacotes distribuídos pelo Projeto GNU http://www.cultura.gov.br
e mais uma variedade de softwares, Freeware – O termo não possui uma http://www.iti.br
incluindo o núcleo do sistema operacional definição amplamente aceita, mas é http://www.modulo.com.br
Linux. A formulação da GPL é tal que, usado com programas que permitem a http://www.softwarelivre.gov.br
em vez de limitar a distribuição do sof- redistribuição, mas não a modificação, e http://www.iti.br
tware por ela protegido, de fato impede seu código-fonte não é disponibilizado. http://www.cipsga.org.br
que esse software seja integrado em Esses programas não são considerados http://www.fsf.org
software proprietário. A GPL é baseada softwares livres. http://www.wikipedia.org
na legislação internacional de copyright, Shareware – Software disponibilizado http://www.rits.org.br
o que deve garantir cobertura legal para com permissão para que seja redistribuído, http://www.openoffice.org.br
o software licenciado com a GPL. (Veja mas sua utilização implica o pagamento http://www.nomadfkt.org

MAR / ABR 2005 59


F Ó RUM
F Ó RUM SO C IAL MUNDIAL

SO C IAL

60 Democracia Viva Nº 26
Avanços e desafios
Dulce Pandolfi
Diretora do Ibase e pesquisadora do CPDOC/FGV
dulce@ibase.br

Mais um sucesso! Maior certeza de que um também, as certezas e as fórmulas sobre o ca-
outro mundo é possível! Foi esse o sentimento minho para construir um mundo não-capitalista.
que tomou conta dos corações e mentes das Quase tudo estava por construir. Por outro lado,
milhares de pessoas que participaram da quinta o colapso do socialismo real e o ritmo elevado
edição do Fórum Social Mundial realizada em do crescimento econômico dos Estados Unidos
Porto Alegre, de 26 a 31 de janeiro de 2005. contribuíam para reforçar teses defendidas por
Gabriel de Souza, 17 anos, morador da favela um certo número de cientistas sociais sobre o fim
Santa Marta, no Rio de Janeiro, afirma: “O da luta de classes e o fim da história.2 Segundo
Fórum foi ótimo para mim, pois abriu muitos esse grupo de cientistas, diante do fracasso da
horizontes em relação a tudo. Eu posso falar experiência socialista, o capitalismo era a única
que mudei muito. Particularmente, eu tinha alternativa a ser adotada em todos os países do
uma visão muito capitalista do mundo, mas, mundo. Anunciava-se a perspectiva de um cos-
ao participar do Fórum, mudei totalmente meu mopolitismo capitalista, pacífico e democrático.
ponto de vista”. As palavras de ordem do chamado neoliberalis-
Otimismo semelhante aparece na fala mo eram privatizar e desestatizar a economia,
do jovem Leonardo Soares Lima, morador do cujo controle e regulamentação deveriam se dar
morro do Turano, uma das favelas da Grande a partir do mercado. O processo de globalização
Tijuca, também no Rio de Janeiro: “O que era considerado positivo e inevitável.
a mídia nos passa nos deixa descrentes de Todavia, em pouco tempo, essa retó-
que pessoas diferentes possam viver unidas, rica foi perdendo fôlego. Os efeitos perversos
trocando experiências. Esse Fórum nos provou da globalização tornavam-se cada dia mais
o contrário. Somos capazes. O Fórum Social visíveis. Ela havia produzido uma enorme
Mundial 2005 fez com que as pessoas se sen- concentração de riqueza e aumentado as desi-
tissem úteis e importantes dentro de suas co- gualdades entre os países do Norte e os países
munidades, dentro da sociedade em que vivem do Sul e dentro de cada um deles. Conflitos
e percebessem que são agentes multiplicadores bélicos multiplicavam-se em diversas partes
de idéias e experiências”.1 do mundo. A partir dos ataques terroristas do
A fala desses jovens revela expectativas 11 de Setembro de 2001, a situação mundial
e esperanças na construção de um mundo me- tornou-se ainda mais dramática. Como resposta
lhor. Mas a singeleza dessas palavras contrasta a esses atentados, o governo Bush, unilateral-
com a complexidade dos problemas vividos nos mente, contrariando a posição da maioria dos
cinco continentes do nosso planeta. governos, declarou guerra ao Iraque e ocupou
Sem dúvida, vivemos tempos difíceis. o país. A atitude dos Estados Unidos fragilizou
Saímos do século XX e entramos no século XXI a Organização das Nações Unidas (ONU), cria-
distantes de uma ordem mundial justa e de- da no meado do século passado para regular
mocrática. No fim da década de 1980, caiu o as relações internacionais. A partir daí, a (in)
Muro de Berlim, um dos maiores símbolos da governabilidade acentuou-se no mundo. 1 Graças a um fundo de
solidariedade organizado pelo
chamada Guerra Fria, que polarizou o mundo Como enfrentar essa situação? Os de- Ibase, 40 pessoas, entre elas
jovens como Gabriel de Souza,
desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Logo safios eram muitos. Diante desse quadro, seria Leonardo Soares Lima, Eduardo
em seguida, nos países do Leste da Europa, possível construir uma ordem mundial centrada Farias Ferreira e Vagner Ramos
da Paz Pereira, todas morando
levantes populares exigiam a derrubada do em princípios éticos e democráticos? Enfim, em comunidades de baixa ren-
da do Rio de Janeiro nas quais
regime comunista. Esse processo, que cul- como construir uma cidadania planetária num o Instituto desenvolve projetos
minou em 1991 com o desmoronamento da mundo cada vez mais globalizado, mais violento, sociais, puderam participar do
Fórum Social Mundial.
União Soviética, representou o fim de uma mais desigual e mais diversificado?
2 Entre esses(as) cientistas,
era marcada por disputas em torno de dois Paradoxalmente, a luta contra a (in) destaca-se o economista ame-
ricano Francis Fukuyama, autor
projetos distintos: o capitalista e o comunista. governabilidade mundial e contra a globaliza- do livro O fim da história.
Com a ruína do império soviético, ruíram, ção levada a cabo por ONGs e diversos setores

MAR / ABR 2005 61


Fórum social mundial

sociais ampliou a constituição de redes inter- por mais de mil empresas multinacionais, a
nacionais e processos civis globais. A partir base organizacional do Fórum Econômico
dessas articulações, manifestações contrárias Mundial era uma fundação suíça que fun-
ao processo de globalização em curso foram cionava como consultora da ONU.
sendo organizadas em diferentes partes do Para se contrapor à opulência e ao
mundo. Uma das que produziu mais impacto elitismo de Davos, o lugar escolhido para se-
na mídia foi a de Seattle, nos Estados Unidos, diar o Fórum Social Mundial foi Porto Alegre,
contra a Organização Mundial do Comércio capital do Rio Grande do Sul. Por sua história
(OMC), em 1999, organizada por cerca de recente voltada para uma nova forma de go-
750 entidades e movimentos sociais e com mais vernar, a cidade gaúcha chamava a atenção
de 100 mil manifestantes. do mundo inteiro. Administrada pelo PT desde
O Brasil, por meio de seus sindicatos, 1988, a prefeitura conseguia trazer para o
ONGs, partidos e seu dia-a-dia práticas democráticas, como o
demais associações Orçamento Participativo, e inverter prioridades,
da sociedade civil, colocando as comunidades mais desfavorecidas
também teve par- no centro da política municipal.
ticipação em diver- O primeiro Fórum Social Mundial,
sas manifestações e realizado em janeiro de 2001, surpreendeu
articulações contra e excedeu as expectativas dos seus organiza-
o rolo compressor dores. O segundo, com as mesmas caracte-
do novo liberalis- rísticas, foi programado para 2002. A partir
mo. No dia 28 de daí, fóruns sociais temáticos e regionais
fevereiro de 2000, foram se espalhando pelos diversos cantos
representantes de do mundo. Todos deveriam se nortear pela
oito entidades bra- Carta de Princípios aprovada pelo Conselho
sileiras 3 reuniram-se Internacional do Fórum Social Mundial, em
em São Paulo e fir- junho de 2001. Definido como um espaço
maram um “Acordo plural e diversificado, não-confessional,
de Cooperação”. O não-governamental e não-partidário, o
objetivo do acordo Fórum Social Mundial deveria aglutinar as
era realizar um en- entidades e os movimentos da sociedade
contro de dimensão civil que se opunham ao neoliberalismo e
internacional, com ao domínio do mundo por qualquer forma
a participação das de imperialismo. Ainda segundo a Carta de
organizações que Princípios, apesar de ter sido um evento
vinham se manifes- localizado no tempo e no espaço, o Fórum
tando e buscando Social Mundial não poderia ser reduzido a
alternativas para um evento. Deveria se tornar um processo
combater a escalada permanente na busca por um mundo justo
do neoliberalismo. e solidário. Sem caráter deliberativo, ele não
3 As oito entidades eram: Nascia, assim, a idéia do Fórum Social Mundial.4 se constituía, portanto, em uma instância
Associação Brasileira de Orga-
nizações Não-Governamentais Para dar uma dimensão simbólica ao de poder. Embora reunisse e articulasse
(Abong); Ação pela Tributação
das Transações Financeiras em evento, ele deveria ocorrer nos mesmos dias entidades e movimentos da sociedade civil
Apoio aos Cidadãos (Attac); em que estivesse sendo realizado o Fórum de quase todos os países do mundo, ele não
Comissão Brasileira de Justiça
e Paz (CBJP) da Conferência Econômico Mundial, em Davos, uma luxuosa pretendia representar institucionalmente a
Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB); Associação Brasileira estação de esqui na Suíça. Em Davos, desde sociedade civil mundial. Mais do que tudo,
de Empresários pela Cidadania 1971, líderes políticos e representantes de ele deveria ser um espaço para debate,
(Cives); Central Única dos
Trabalhadores (CUT); Instituto grandes instituições financeiras se encontra- formulação de propostas, troca de experi-
Brasileiro de Análises Sociais
e Econômicas (Ibase); Centro vam anualmente para formular estratégias ências e articulação de ações que seriam
de Justiça Global (CJG); Movi- voltadas para a condução do capital em implementadas pelos grupos, entidades e
mento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST). escala planetária. Esse processo avançou e movimentos sociais.
4 Sobre as origens do Fórum resultou num modelo que, reforçando ou- Consolidado, o Fórum Social Mundial
Social Mundial, ver o artigo
“Fórum Social Mundial: origens
tros pactos e consensos do grande capital passou a ser realizado anualmente. À exceção
e objetivos” de Francisco Whi- transnacional, ficou conhecido mundial- de 2004, quando a cidade-sede foi Mumbai, na
taker (Correio da Cidadania, n.
222, 2000). mente como o neoliberalismo. Financiado Índia, todos ocorreram em Porto Alegre. Seu

62 Democracia Viva Nº 26
avanços e desafios

crescimento e sua importância política foram Diferentemente dos Fóruns anteriores,


se tornando incontestáveis. Em 2001, partici- quando a organização dos eventos propôs os
param 20 mil pessoas; em 2002, 50 mil; em temas que seriam debatidos, em 2005 foi im-
2003, 100 mil; em 2004, 115 mil; e, finalmente, plantada uma nova metodologia. Por meio de
em 2005, o quinto Fórum Social Mundial reuniu uma ampla consulta, realizada alguns meses
mais de 150 mil pessoas credenciadas, vindas antes do Fórum, quase 2 mil organizações
de 135 países e representando perto de 7 mil indicaram as questões e os temas que seriam
entidades. debatidos. Definidas as propostas, coube a uma
Em uma área central de Porto Alegre, comissão aglutiná-las em 11 espaços temáticos.
com mais de seis quilômetros quadrados, Reunidas nesses espaços, as atividades giraram
que passou a ser denominada Território So- em torno das mais variadas questões: defesa
cial Mundial, além dos grandes galpões já dos bens comuns da Terra e dos povos; cons-
existentes na região portuária, montaram-se trução de uma nova
centenas de tendas. A localização do Fórum, ordem democrática
em uma região central da cidade, facilitou internacional; paz
a participação da população local. Durante e desmilitarização;
o Fórum, foram realizadas mais de 2.500 direitos humanos;
atividades entre seminários, debates, shows, economias sobera-
projeções de filmes, exposições fotográficas nas; arte e criação;
etc. O evento contou com a atuação de 500 ética, cosmovisões
intérpretes voluntários(as). Foi coberto por e espiritualidades;
mais de 6 mil jornalistas profissionais e cer- comunicação; lutas
ca de 2.800 voluntários(as). Mais de 35 mil sociais etc. Essa aglu-
jovens instalaram suas barracas no Acam- tinação possibilitou
pamento da Juventude, nas margens do que pessoas e en-
rio Guaíba, onde podiam desfrutar de uma tidades interessa-
programação específica. Próximo dos(as) das em lutar pelos
jovens, representantes de 150 povos indíge- mesmos objetivos
nas estavam reunidos na Tenda Puxirum de pudessem efetiva-
Artes e Saberes Indígenas, onde discutiam e mente se encontrar,
realizavam cerimônias espirituais. articular e planejar
À semelhança de todos os demais Fó- ações comuns.
runs, o de 2005 também foi inaugurado com As grandes
uma grande marcha: por mais de cinco horas, conferências das
mais de 150 mil pessoas percorreram as ruas edições passadas
da cidade. Num misto de festa e protesto, a foram substituídas
principal palavra de ordem da passeata, can- por atividades au-
tada ou gritada nos mais diversos idiomas, togeridas. Em vez
era: “Um outro mundo é possível!”. Manifes- de projetar priorita-
tações contra a guerra e pela paz explodiam riamente as grandes
em todos os lugares da marcha. Segundo a estrelas internacionais do altermundialismo,
avaliação de Eduardo Farias Ferreira, morador a preocupação foi que o Fórum fosse, de fato,
de Sepetiba, e Vagner Ramos da Paz, membro apropriado pelos movimentos sociais, seus
atuante das associações de Piabetá e Santa principais atores. Por isso, não se priorizaram
Cruz, localidades periféricas do estado do Rio eventos grandiosos. Nas maiores tendas ou
de Janeiro, “esse foi um dos momentos mais galpões, cabiam, no máximo, 600 pessoas.
importantes. Nunca vimos tanta gente, de As únicas atividades que fugiram a esse
raças, etnias, discursos ideológicos diferentes esquema foram as duas que, reafirmando
com um mesmo propósito, de querer ter um a importância do Fórum, contaram com a
mundo melhor. Nunca mais esqueceremos presença de dois presidentes de República:
esse momento. Aquela grande marcha prova Lula, do Brasil, e Hugo Chávez, da Venezuela.
que o bem pode vencer o mal e que os países Ambas foram realizadas num grande estádio,
subdesenvolvidos e em desenvolvimento têm o Gigantinho, onde milhares de pessoas dis-
que fazer parte deste mundo globalizado de putaram um lugar ao sol. Em ambas também
uma forma igualitária”. houve muita disputa política. As presenças de

MAR / ABR 2005 63


Fórum social mundial

Lula e Chávez evidenciaram divergências entre utilizar corretamente as lixeiras. Muitas pessoas
as forças de esquerda do Brasil e do mundo. jogavam o lixo no chão ou misturavam o lixo
Parte das pessoas que se sentiam desiludidas seco com o orgânico. 5
com as posições de Lula parecia buscar em Durante o Fórum, foram articuladas e
Chávez uma alternativa para suas esperanças. lançadas inúmeras campanhas. Uma delas foi
Também, diferentemente do passado, a campanha com o lema “Você é o que você
o Fórum de 2005 foi, na prática, quase todo consome”. A proposta é que cada pessoa refli-
autogestionado. Grande parte dos serviços e ta e adira a formas de produção e distribuição
produtos oferecidos foi produzida no esquema que estejam a favor do desenvolvimento hu-
da economia solidária. É claro que, diante mano, além de reforçar o boicote a empresas
da dimensão do Fórum, isso gerou alguns transnacionais descompromissadas com o
problemas, por desenvolvimento humano. Outra campanha
exemplo, em rela- foi a Chamada Global para a Ação contra a
ção à informática, Pobreza, que contou, no ato de lançamento,
à t ra du ç ã o , a o s com a presença de Lula. O objetivo é mobilizar
aparelhos de som. milhões de pessoas para pressionar gover-
Mas é certo que nantes e dirigentes das grandes instituições
isso se constituiu multilaterais para priorizar a erradicação da
numa experiên- pobreza no mundo. Também fazem parte
cia avaliada com da agenda dessa campanha a luta por um
muitos pontos po- comércio justo, pela anulação da dívida ex-
sitivos. Por outro terna, por novas formas de financiamento,
lado, o calor qua- por mais cooperação internacional e pela
se insuportável, a fixação das Metas do Milênio, estabelecidas
precariedade de em torno dos Objetivos do Milênio, propos-
algumas tendas e tos pela ONU. A campanha conseguiu reunir
galpões, as longas mais de cem entidades e espera-se que sur-
distâncias para se jam novas adesões. Mobilizações mundiais
locomover de um estão previstas para as seguintes datas: em
espaço para o ou- 1º de julho, um dia antes da reunião dos
tro foram aspectos países mais desenvolvidos do mundo, articu-
negativos. lados no G-8; no dia 10 de setembro, um dia
Co m r e l a - antes dos atentados do 11 de Setembro nos
ção à nova meto- Estados Unidos e um pouco antes da reunião
dologia implanta- da Cúpula do ONU; e em dezembro, próximo
da, houve avanços à reunião da OMC.
significativos. En- As organizações que formam a rede
tretanto, os avan- Nosso Mundo Não Está à Venda também pre-
ços variaram de pararam manifestações contra a OMC. Elas se
espaço para espa- opõem às propostas apresentadas pelos países
ço. Onde havia mais acúmulo, o debate fluiu que compõem o G-20, incluindo o Brasil, para
melhor e as articulações também funciona- as negociações agrícolas, “pois elas se restrin-
ram melhor. Um exemplo de experiência de gem à defesa da abertura dos mercados euro-
aglutinação bem-sucedida foi a do Grupo de peus e estadunidense para grandes produtores,
Trabalho Sustentabilidade e Meio Ambiente. estimulando o modelo agrícola baseado na
Além de permear os debates do Fórum com monocultura para exportação. Os movimentos
a visão da sustentabilidade, buscou-se redu- sociais defendem o princípio da soberania ali-
zir o impacto ambiental do próprio evento. mentar, que consiste basicamente em priorizar
Segundo a avaliação feita pelo grupo, a exis- o mercado interno e a agricultura camponesa,
tência de espaços de economia popular com garantindo que cada país tenha condições de
a oferta de produtos agrícolas orgânicos, o alimentar seu próprio povo”.6
boicote aos produtos de grandes transnacio- Ainda durante o Fórum, 19 intelectuais
5 Documento de Avaliação do
GT Sustentabilidade e Meio
nais e a inscrição prévia de ambulantes foram lançaram um documento intitulado Manifesto
Ambiente do Fórum Social experiências positivas. No entanto, criticaram a de Porto Alegre, com o objetivo de sintetizar
Mundial 2005, produzido em
11 de fevereiro de 2005. incapacidade dos(as) participantes do Fórum em o consenso. Entre as pessoas que assinaram

64 Democracia Viva Nº 26
avanços e desafios

estavam José Saramago, Pérez Esquivel, I. Wal- África terá sobre o Fórum Social Mundial de
lerstein e Boaventura de Sousa Santos. Embora 2007? A importância de ir para o continente
não se questionem os pontos assinalados, africano tem que levar em conta a necessária
para algumas entidades, como a Articulação descontinuidade dos debates que a especifici-
de Mulheres Brasileiras, tal proposta caminha dade dos povos africanos exige, como a Índia já
na contramão do Fórum Social Mundial. Além exigiu em 2004. Geograficamente distante dos
de se tomar o consenso de algumas pessoas próximos encontros, como se sentirá o Brasil,
como o consenso de todas, tal atitude “coloca um dos principais articuladores e animadores
uns na condição de proponentes e outros na do Fórum Social Mundial? Jovens como Gabriel,
posição passiva de apenas aderir. É tudo o que Leonardo, Eduardo e Wagner poderão vivenciar
se quis evitar nestas cinco edições do FMS”.7 os próximos encontros? Como saber tudo isso a
Os desdobramentos do Fórum Social priori? Não há como.
Mundial são incontáveis. Dele, surgiram Trata-se de um experi-
inúmeras articulações e propostas que ali- mento social. E, como
mentarão ações dos mais diversos segmen- tal, exige apostas.
tos da sociedade civil organizada: jovens, Se esses são
feministas, indígenas, pacifistas, negros(as), apenas alguns dos
homossexuais, ecologistas etc. Inúmeras novos desafios, mui-
propostas encaminhadas no FSM 2005 vêm tos dos velhos ainda
sendo gestadas desde Fóruns anteriores: ações permanecem. A des-
contra a guerra; reforma da ONU; comércio peito do s g ra n des
justo; criação de uma universidade que reúna avanços, o embate
intelectuais e representantes dos movimentos mal começou. O ris-
sociais de todo o mundo, entre outras. Du- co e a esperança são
rante o Fórum, formaram-se algumas redes, condições essenciais
e outras antigas se fortaleceram. Enfim, o para as as pessoas
diálogo foi fecundo, e muitas parcerias fo- qu e qu erem c o n s -
ram estabelecidas. Sem dúvida, as pessoas e truir um mundo me-
as entidades saíram dali mais revitalizadas. lhor. Por tudo isso,
Ainda antes do evento, o Conselho sem dúvida, a luta
Internacional acordou que, em 2006, o Fórum continuará para que
será descentralizado. O objetivo é expandir um outro mundo
e enraizar o processo em outros lugares. Em seja possível!
2006, fóruns sociais ocorrerão simultaneamente
em distintas regiões do planeta, na mesma data
do Fórum de Davos, ou seja, durante o mês de
janeiro. Embora sujeito à confirmação, já exis-
tem as candidaturas de Marrocos (Marrakesh) e
Venezuela (Caracas) e discussões sobre um país
asiático. No entanto, em 2007 deverá ocorrer
um Fórum centralizado, possivelmente, em um
país africano.
Certamente essas mudanças repre-
sentam novos riscos e desafios. Como os
movimentos sociais e o comitê organizador
do Fórum terão fôlego para enfrentar a
descentralização? Provavelmente, haverá
um esforço adicional de garantir que a des-
centralização não signifique dispersão. Se
6 Palavras de Maria Luisa Men-
a descentralização é um objetivo legítimo donça, membro do Conselho
de um tipo de construção democrática que Internacional do FSM, no artigo
“O que esperar do Fórum Social
respeita a diversidade, por outro, pode-se Mundial?”.
perder o impacto pelo fato de o mundo todo 7 Articulando Eletronicamen-
te – Veículo de informação
não estar reunido em um mesmo lugar do da Articulação de Mulheres
planeta. Também é certo que chegou a vez da Brasileiras, ano IV, n. 109, 3

África. Mas que repercussões o acúmulo da

MAR / ABR 2005 65


Fórum social mundial

O mosaico imperfeito
Hamilton Pereira (Pedro Tierra)
Poeta e presidente da Fundação Perseu Abramo, instituída pelo Partido
dos Trabalhadores em 1996. É autor de oito livros de poemas.

Recorro a uma constatação singela, registrada há algum tempo por Hobsbawn, para iniciar este diá-

logo. O século XX se extinguiu como começou: Percorrido o tempo – breve e trágico


engendrando utopias. E indagar: para onde – de um século, afastamo-nos das utopias
aponta o século XXI? Contemplada, assim, por unificadoras, redutoras e, portanto, autoritárias.
dois prismas simultâneos, essa constatação Todos conhecemos o perigo que reside na alma
pode nos ajudar a compreender o que ocorreu dos(as) utopistas possuídos(as) pelas absolutas
em janeiro dos últimos anos em Porto Alegre verdades que professam. Aprendemos a ler
e Mumbai: um cristal que recolhe a luz das nas pedras inscritas do século XX até onde
experiências e da busca de alternativas contra nos levam essas utopias: a Auschwitz ou ao
o império da cinza – “o pensamento único” gulag. Independente das forças políticas que
– para multiplicá-la pelos infinitos vértices e a governem, Porto Alegre se desenha como a
planos capazes de ferir, com as armas da cor, as cidade da invenção, da reinvenção de utopias a
nossas retinas e os nossos sonhos. A generosi- partir da crítica, da pluralidade, da diversidade,
dade, entretanto, para não sucumbir, não pode da infinita multiplicidade dos nossos enfoques.
obscurecer o permanente exercício da crítica. Refletindo sobre modernidade e roman-
Para o primeiro Fórum Social Mundial, a tismo, num pequeno texto incluído no volume
algum espírito sensível ocorreu a idéia de que A outra voz, Octavio Paz, severo crítico das
as pessoas trouxessem consigo pedras dos seus utopias socialistas, nos adverte: “A utopia é a
lugares de origem, dos seus continentes. Depo- outra face da crítica e só uma idade da crítica
sitadas sobre o recanto de um jardim à entrada pode ser inventora de utopias: o buraco deixado
da PUC-RS, formaram outro jardim de enigmas: pelas demolições do espírito crítico é sempre
um mosaico de pedras e sentidos. Devo me ocupado pelas construções utópicas. As utopias
aproximar das pedras desse mosaico imper- são os sonhos da razão. Sonhos ativos que se
feito, para dialogar com elas. São pedras de transformam em revoluções e reformas”. Ele se
diferentes idades e formas. Trazem inscritos na referia às grandes utopias do século XVIII que
superfície os códigos do vasto tempo mineral, resultaram da implacável crítica que as precedeu
do esmeril dos ventos e, também, dos frágeis – convertida em ação revolucionária em 1789
tempos humanos. Pensá-las como testemunhos –, que, por sua vez, seriam alimentadoras da
da aventura imemorial dos povos que as con- crítica ainda mais radical do movimento ope-
verteram em alicerces, paredes, ladrilhos, casas, rário e socialista do século XIX.
estradas, monumentos. Pensá-las como signos A crise das utopias no fim do século
das vontades impressas em cada experiência XX é filha da anemia crítica das esquerdas ao
que representam. E nas mãos de quem as trouxe processo avassalador e totalitário – globalitário,
até aqui, vindas do Sul e do Norte; da sensibili- na expressão de Milton Santos – do capitalismo
dade e da compaixão; das lutas contra a fome e financeiro, na economia, do mundo unipolar
o horror da guerra; da solidariedade; vindas do na dimensão político-militar e da dissolução
combate à indiferença diante da dor do outro das identidades, na cultura. Em parte porque
e das antigas cartografias que nos ensinaram as esquerdas, nos países centrais – mas tam-
a precária noção de um planeta precário: os bém nos países periféricos... –, converteram-
contornos da Austrália, da Ásia, da Europa, da -se em porta-vozes das classes trabalhadoras
África e da América percebidos como lugares incluídas. O vigor das utopias geradas a partir
tocados – freqüentemente de modo devastador de experiências como o Fórum Social Mundial
– pelas mãos humanas. Examiná-las sob essa resultará, salvo engano, de sua capacidade de
nova luz que escapa pelas frestas da lógica do suscitar dois movimentos: radicalizar a crítica ao
mercado. Uma luz ao sul das engrenagens que sistema imperial vigente e restabelecer os laços
trituram identidades culturais, línguas, povos, entre os(as) excluí­dos(as), em escala global. A
nações; de modo limpo, asséptico e silencioso. realização do Fórum em Mumbai, em janeiro
E na velocidade dos computadores. de 2004, propiciou um momento fecundo em

66 Democracia Viva Nº 26
o mosaico imperfeito

ambas as direções: incluiu a Ásia de modo de duas décadas, na esquerda brasileira. De


definitivo na agenda do Fórum e trouxe para o algum modo, ela antecipava a crise dos partidos
centro do debate a problemática da guerra que socialistas e comunistas tradicionais, não por
atormenta quase dois terços da humanidade, uma inspiração intelectual e profética, mas pela
naquele continente. A descentralização do Fó- surda determinação de uma realidade social que
rum aprovada em Porto Alegre nos últimos dias exigia a fala de um novo personagem no cenário
de janeiro aproxima “invenção política”, que é político do país. É possível dizer que vivíamos
o FSM, de seus e suas protagonistas em cada um processo de refundação da esquerda no
continente. Em suma, a necessária radicalidade Brasil, sob o impulso do novo movimento ope-
da crítica não deve obscurecer a dimensão da rário que infundiu nela a energia social capaz
generosidade capaz de incorporar num novo de livrá-la do gueto para onde fora empurrada
projeto humanista a imensa legião dos(as) pelo Estado policial.
condenados(as) da terra. Em raros momentos da história do
Brasil assistimos a algo semelhante. O movi-
mento operário do ABC e a reação em cadeia
Construção quotidiana
que ele desatou em diferentes regiões do país
do impensável
surpreenderam, de maneira fulminante, a di-
Neste continente de paradoxos, neste país tadura militar, que se perguntava: como pôde
de paradoxos, pensando naquela sociedade se gestar tamanha força nos alicerces da socie-
fechada, na virada da década de 1970 para a dade sem que os controles policiais acusassem
de 1980, não é demais lembrar a uma frase do seus movimentos? A estupefação da esquerda
Che: “A revolução acontece quando o impossível tradicional não foi menor. Como era possível
invade o quotidiano”. Para os argumentos que emergir um movimento daquelas dimensões
desejo alinhar, julgo necessário um registro das espontaneamente, sem a fecundação prévia da
circunstâncias históricas que cercaram o nasci- teoria revolucionária, sem a mão organizadora
mento do Partido dos Trabalhadores, no Brasil. dos partidos? Tudo indica que a realidade da
Ao forçar as portas do sistema político classe operária brasileira e sua capacidade de
brasileiro, o PT constituiu-se simultaneamente organização, naquele momento, eram mais
num fato político e cultural. Político, porque fecundas e mais revolucionárias que a teoria
recolheu a indignação e as esperanças de vastas dos partidos da esquerda tradicional.
camadas populares oprimidas e deu a elas a Na raiz de todo o processo se encontra-
materialidade da ação coletiva contra a ditadura vam as políticas econômicas do regime militar
militar, já em declínio. Cultural, porque rompia que resultaram na concentração de grandes
com a tradição autoritária do comportamento plantas industriais no sudeste do país e na
das elites e da relação entre as classes sociais mobilização da mão-de-obra indispensável para
e se afirmava a partir de um exercício radical- fazê-las produzir. São importantes os registros
mente democrático. de algumas características originais dessa ex-
O movimento operário do ABC, que lhe periência de construção partidária, num país
deu o berço e o impulso, no fim da década de marginal e desmesurado – no seu potencial
1970, foi o sinal definitivo do esgotamento da e nos seus problemas – no último quarto do
ditadura militar. Revelou aos olhos de um país século XX, para a compreensão das suas possi-
castigado durante mais de duas décadas de bilidades nas relações com um fenômeno novo:
perseguição, de exílio, de delação, de tortura, o Fórum Social Mundial.
de assassinatos de opositores políticos e de ten- O Partido dos Trabalhadores constituiu-
tativas malsucedidas de resistência armada, nas -se, assim, no estuário de uma longa busca.
ruas e nos campos, ou de resistência pacífica Atraiu uma multiplicidade de experiências de lu-
dentro do parlamento consentido, um sujeito tas vindas de diferentes gerações de militantes e
social novo. Emergia com insuspeitada capaci- de várias vertentes da complexa rede de organi-
dade de mobilizar uma importante massa de zações populares que ganharam contorno sob a
trabalhadores até ali imperceptíveis dentro do ditadura: o novo sindicalismo; as comunidades
seu macacão azul. Imperceptíveis até o momen- eclesiais de base, da Igreja Católica; as pastorais
to em que cruzaram os braços num movimento populares ligadas à Conferência Nacional dos
grevista que haveria de sacudir o país. Bispos do Brasil que cumpriram um destacado
Por outro lado, a emergência dos mo- papel na resistência ao regime; as organizações
vimentos sociais de trabalhadores e trabalha- da esquerda clandestina que haviam tentado a
doras estabeleceu um ponto final na diáspora

MAR / ABR 2005 67


Fórum social mundial

resistência armada – ou militantes disper­sos(as), sociedade brasileira.


remanescentes delas –; e setores de intelec­tuais Essa nova classe operária adquiriu, ainda
que, dentro das universidades ou em centros que de maneira difusa, a consciência de estar
de pesquisa, produziam um pensamento de incluída no setor de ponta da economia, mas
resistência de diversos matizes à ditadura. se encontrava excluída das decisões políticas do
De pronto, somaram-se a eles, na cons- país. O passo seguinte era inevitável: a constru-
trução da proposta do PT, os movimentos de ção de um conjunto de instrumentos de ação
trabalhadores e trabalhadoras do campo, renas- sindical e política capaz de dar conseqüência aos
cidos com o apoio das pastorais populares e de anseios de liberdade e participação das classes
alguns grupos da esquerda clandestina que ha- trabalhadoras e dos setores médios da sociedade,
viam construído, em diferentes regiões do país, com energia suficiente para afirmar-se como
as oposições sindicais ou fundado novos sindi- força política independente, em contraposição
catos e movimentos urbanos – movimentos co- – no programa e no método – aos partidos
munitários, associações de bairro, movimentos conservadores tradicionais ou mesmos aos
contra a carestia etc. partidos comunistas clássicos.
Por fim, a proposta
atraiu personalida-
Sedução da esfinge
des da resistência
que atuavam, sob Passadas duas décadas, desde o retorno ao
a legenda do Movi- regime representativo, nenhum organismo de
mento Democrático natureza política ou social, religiosa, civil ou
Brasileiro, dentro do militar escapa à dilaceração em que se encontra
parlamento e grupos a sociedade brasileira. O volume, a qualidade
de militantes que e o ritmo das mudanças que ocorreram nos
se deslocaram dos últimos 20 anos aprofundaram o abismo que
antigos partidos co- já separava pessoas ricas de pobres no país.
munistas. Esse processo ocorreu simultaneamente com
Naquele mo- a queda da ditadura e os avanços democrá-
mento, a sociedade ticos que conquistamos. Em outras palavras,
fechada, mantida a democracia representativa, para milhões de
pelo Estado poli- brasileiros e brasileiras, veio acompanhada pelo
cial, estreitara de tal aprofundamento da miséria. Isso, de algum
modo os limites da modo, estimula, nos setores sociais excluídos,
ação coletiva de ci- simpatias por soluções populistas de direita
dadãos e cidadãs que ou mesmo a busca de amparo sob o teto das
mesmo a luta por políticas clientelistas das velhas oligarquias
reivindicações espe- regionais revigoradas.
cíficas em torno de A miséria econômica de milhões de
reposição salarial ou trabalhadores e trabalhadoras fatalmente inci-
melhores condições de sobre a ação dos seus movimentos sociais,
de trabalho adquiriu debilitando-os, e sobre a sociedade política,
uma dimensão polí- retirando-lhe legitimidade. Abriu-se, assim, na
tica inescapável e de contestação ao regime, década de 1990, uma crise de legitimidade
como se dizia então. A ditadura havia gerado tanto nos movimentos sociais como nos parti-
seu próprio impasse e o sujeito social que dos. Sob a pressão das políticas neoliberais que
haveria de destruí-la: gestara, pelo projeto de resultaram particularmente nas altas taxas de
desenvolvimento assentado sobre as grandes desemprego, no aviltamento dos salários, os
plantas industriais do setor automotivo, uma movimentos perderam consideravelmente sua
nova classe operária que se despedira de suas capacidade de mobilização e se limitaram a uma
heranças rurais, ganhara uma desconhecida defesa quase formal das conquistas anteriores.
autonomia de ação e, de repente, se dava conta Na contramão desse processo, nutrindo-se da
do papel fundamental que desempenhava na energia dos movimentos da década anterior, as
produção da riqueza do país. E revelou-se capaz esquerdas ocuparam sistematicamente espaços
de ser o ponto de convergência dos interesses, cada vez mais amplos na disputa política do
não raro contraditórios, de vastos setores da país. Ampliaram suas bancadas parlamentares,

68 Democracia Viva Nº 26
o mosaico imperfeito

assumiram governos estaduais, mais de quatro disputam com os ratos o lixo das grandes cida-
centenas de prefeituras, entre elas algumas das des para se defender da fome, os movimentos
mais importantes cidades do país, e, num pro- sociais e o Partido dos Trabalhadores passaram
cesso eleitoral inédito no Brasil, elegeram com a ser acuados pela esfinge do Estado brasileiro
votação esmagadora seu principal líder – Luiz assentada sobre os alicerces da exclusão social.
Inácio Lula da Silva – presidente da República. Essa esfinge, velha de cinco séculos, tem
De certo modo, o PT encarnou o grito organi- demonstrado enorme capacidade para destruir
zado dos(as) excluídos(as). Ofereceu-lhes uma a sangue e fogo, ou para digerir impercepti-
voz, entre outras vozes, na institucionalidade velmente, as mais autênticas e autônomas
política estabelecida. Essa forte presença dentro formas de organização social e política dos(as)
da moldura institucional trouxe consigo uma ex­clu­ído(as). Assim foi com a rebelião dos(as)
inescapável ambigüidade para um partido que escra­vos(as) negros(as) em Palmares, durante o
busca manter seus laços com as lutas sociais que período colonial; dos(as) sertanejos de Canudos
lhe deram origem. e do Contestado, na Primeira República, ou
A inclusão do PT no sistema político com as pequenas
brasileiro, contudo, não deteve, ao longo da rebeliões campone-
década de 1990, a usina de produzir exclu- sas do último quarto
são social. Entraram em cena os(as) novos(as) do século XX, na
excluí­dos(as). E são milhões. Não se encontram Amazônia; assim
inse­ri­dos(as) em nenhum setor importante da tem sido com todas
economia. Nem da política. Com exceção do as tentativas dos par-
momento do voto. Vivem, para utilizar um tidos populares que
eufemismo, na informalidade, como se diz por puseram os pés na
aqui. São invisíveis. A sociedade só percebe sua institucionalidade e
existência quando transgridem. Então, lança acabaram por fazer
sobre eles(as) o fisco e as operações policiais. da permanência nela
Vão constituindo assim, a cada dia, fora dos seu maior objetivo. À
muros de uma sociedade fraturada, as classes medida que avança-
perigosas. Primeiro são os(as) ne­gros(as) e os(as) mos para dentro de
pobres percebidos(as) com certo incômodo, um território hostil,
mas tolerados(as) com um misto de desprezo que modifica cons-
e condescendência; depois, como alvo de tantemente seus
políticas compensatórias; mais tarde, como contornos e regras,
alvo das armas da polícia. não podemos deixar
Lançados(as) para fora dos muros dos de ter os olhos fixos
condomínios, das cercas dos latifúndios, do nas classes perigosas
amparo das leis, é possível imaginar a sorte para escapar do des-
que espreita os(as) excluídos(as) dentro de lumbramento e da
alguns anos, caso o governo Lula não consiga sedução da esfinge.
interromper esse processo movido pela insen- É preciso estar aten-
sibilidade da lógica de acumulação do capital to ao fato de que a
financeiro, pela cegueira da inércia e do con- adoção do discurso
servadorismo das políticas econômicas e pela e dos métodos políticos das elites não nos le-
falta de imaginação política das esquerdas no vará a outro destino senão ao dos(as) sócios(as)
sentido de libertar-se das amarras do modelo subalternos(as) de um sistema que desejamos
neoliberal que herdou. combater. A chamada sociedade da informação
À medida que se aprofundou o abismo introduziu definitivamente um conjunto de
entre a economia formal e informal; entre os exigências ético-culturais na sua pauta como
os(as) trabalhadores(as) de uma e de outra; condição para respaldar a ação dos partidos e
entre as pessoas que sobrevivem, ainda que movimentos sociais.
precariamente, num posto de trabalho e as que
amargam o desemprego; entre as representa-
Retorno à multidão
das; entre as que elegem e as que são eleitas;
entre as que moram e as que só têm o viaduto; De como resolver aquela ambigüidade – re-
entre as que comem regularmente e as que sultante de sua presença simultânea nos mo-

MAR / ABR 2005 69


Fórum social mundial

vimentos sociais e na condução de governos de – oferecer a base social para as transfor-


nos municípios, nos estados e agora na União mações demandadas pelos(as) “novos(as)
– dependerá a profundidade das transformações excluídos(as)”.
propostas pelo Partido dos Trabalhadores e pela Uma experiência concreta, entre outras,
frente que ele lidera, para a sociedade brasileira. encarna essa busca: a experiência do Orça-
Não é demais lembrar que o partido disputou mento Participativo, em Porto Alegre e outras
pe­la quarta vez a Presidência da República e cidades brasileiras governadas por frentes de
venceu. Venceu e convenceu o povo brasileiro das esquerda. Abre caminho para fixar um novo
necessidades da mudança no modelo econômico, paradigma das esquerdas nas relações insti-
social e cultural de desenvolvimento. tucionais, a partir de um processo consistente
O Fórum Social Mundial inquire e apre- de participação da cidadania. Numa década de
senta novos desafios para essa árdua construção predomínio das políticas neoliberais, como foi
democrática conduzi­da por socialistas no Brasil. a década de 1990; de uma ideologia privatista;
Aguça a sensibilidade e amplia a percepção do individualismo e consumismo como valores
para a pluralidade de temas novos que a lógi- sociais determinantes; da produção industrial
ca globalitária lança da indiferença, as esquerdas brasileiras vieram
para as esquerdas. construindo um processo de contra-hegemonia
E abre perspectivas assentado sobre valores opostos: a solidariedade,
inéditas de equa- a ação coletiva, a participação popular, o exer-
cionamento, em es- cício de direitos, o reforço da esfera pública, a
cala global, para as democratização das relações Estado–sociedade.
grandes questões Uma experiência valiosa, não apenas
vividas pelos(as) por navegar na contracorrente do pensamento
excluídos(as) em es- único, mas por representar “a superação, de
cala global. Não por maneira contemporânea, da crise do socialismo
acaso o presidente burocrático, respondendo de maneira criativa
Lula empunhou a e original à principal política da decadência
bandeira do comba- e da derrocada do Leste Europeu, ou seja, a
te à fome e à miséria relação autocrática do Estado com a socieda-
como prioridade de de”.1 Essa experiência, entre outras, indica um
governo. caminho proposto pelas esquerdas brasileiras
O impulso do para estabelecer laços consistentes com os(as)
Fórum Social Mun- “novos(as) excluídos(as) e para combater a
dial oferece um novo indiferença das classes trabalhadoras incluídas,
alento ao abrir cami- no caso brasileiro, com o poderoso estímulo do
nho para revigorar o exercício da cidadania”.
pacto entre os novos “Outra contribuição universal do Orça-
movimentos sociais e mento Participativo é a criação de uma esfera
as esquerdas. Con- pública não estatal.” 2 A sociedade esboça
tribui para evitar a instrumentos democráticos de controle do
armadilha, sempre Estado à medida que constitui de maneira au-
presente, que deseja tônoma, num exercício de democracia direta,
aprisioná-las na mol- um processo de co-gestão da cidade com o
dura de partidos puramente de representação governo eleito e a Câmara de Vereadores. Não
como seus ancestrais: os partidos socialistas e elimina, nem mesmo diminui as atribuições da
sociais-democratas. No plano da formulação Câmara de Vereadores, que permanece como
estratégica das forças de esquerda, no Brasil, o espaço legítimo da democracia representativa,
desafio que nos propõe o Fórum Social Mundial ao contrário, valoriza esse espaço fixando novos
traduz-se em: discernir os novos caminhos pelos critérios de relação entre as pessoas eleitas e
quais passa a energia transformadora da socie- cidadãos e cidadãs protagonistas do processo.
dade – os seus novos atores – que já não são os A experiência do Orçamento Participati-
1 GENRO, Tarso; SOUZA, Ubira-
mesmos de 20 anos atrás; de compreender-lhes vo, com os novos conteúdos que aporta ao de-
tan de. Orçamento participati- a pulsação; de nomear com clareza quais são bate sobre o rumo das esquerdas, nos aproxima
vo. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 1997. as suas contradições mais profundas e aglutinar deste fato novo, o Fórum Social Mundial. A pró-
2 Id., ibid. as forças políticas interessadas em – e capazes pria trajetória dos partidos e suas relações com

70 Democracia Viva Nº 26
o mosaico imperfeito

os movimentos sociais, ao superar as antigas momento de convergência diante da ofensiva


concepções de subordinação dos movimentos, avassaladora do neoliberalismo. E demonstra
mantém pontos de contato ponderáveis com a uma capacidade in­sus­p eitada de modificar
matriz de pluralidade ideológica, autonomia de a pauta do debate mundial ao po­larizar as
ação e diversidade temática que caracterizam o atenções, já no seu momento inaugural com
Fórum Social Mundial. Faz-se agora necessário o o Fórum Econômico Mun­dial, de Davos. Não
esforço para formular as múltiplas perspectivas é ocioso lembrar que a agenda de Davos, em
de ação, em escala global, que preencham o janeiro último, dispensou uma parcela impor-
calendário de lutas, no quotidiano de cada tante de tempo ao debate em torno do combate
movimento social. Em outras palavras, é preci- à fome e à miséria no mundo. Incorporando,
so encontrar as formas permanentes de ação nos seus termos evidentemente, uma agenda
quando deixamos o “estado de multidão” em que, antes da emergência do FSM, era olimpi-
Seattle, Washington, Praga, Gênova, Florença camente ignorada.
ou Porto Alegre. Chama a atenção de quem examina a
Em algum momento, Boaventura de trajetória das esquerdas brasileiras ao longo
Sousa Santos, importante intelectual portu- dos últimos 20 anos
guês, colaborador do Fórum Social Mundial, um aspecto curioso:
definiu como um espectro bicéfalo o inimigo apesar de terem se
que enfrentamos: afastado das estra-
tégias de transfor-
A sua primeira cabeça é a eventualidade
mação social po r
de, à medida que a democracia perde
meio de rupturas
a capacidade de distribuir riqueza social,
(guerra de guerri-
estarmos a caminhar para sociedades
lhas, guerra revolu-
que são politicamente democráticas e
cionária, insurreição
socialmente fascistas. O novo fascismo
popular) e, portanto,
não é, assim, um regime político; é
adotado o processo
antes um regime social, um sistema de
de acumulação de
relações muito desiguais que coexiste
forças combinando
cumplicemente com uma democracia
lutas sociais e ocu-
política socialmente desarmada. A se-
pação de espaços
gunda cabeça do espectro é a tentação
institucionais, não
hegemônica de se pensar que a primeira
pautaram com o de-
cabeça do espectro pode ser exorcizada
nos países ricos mediante a contínua e vido relevo o debate
crescente exploração dos países pobres. em torno do proces-
Esta segunda cabeça é a globalização ne- so e dos meios para
oliberal e é a mais insidiosa porque, no a conquista da he-
deserto de alternativas por ela criado, se gemonia das idéias
arroga credivelmente ser a única solução na sociedade e o
do problema que ela própria constitui.3 papel que desempe-
nha, nessa disputa,
a formulação de um
Produção industrial do projeto cultural. A
inconformismo e aprendizado sociedade brasileira herdou da ditadura militar
da nova insurreição (1964–1985) um vasto aparato de telecomuni-
cações que foi concebido naqueles anos como
O Fórum Social Mundial constitui-se, em âmbito uma eficiente rede de “integração nacional”,
internacional, no fato político-cultural mais para recuperar a linguagem da época, e como
significativo para as esquerdas, desde a queda um sistema de controle social que pode ser
do Muro de Berlim. No Brasil, por exemplo, a expresso nesses dados da década de 1980:
capacidade que o governo Lula demonstrar de
A Rede Globo chegou então a 1982
introduzir novos elementos na agenda da es-
– ano da primeira eleição direta para
querda e os desdobramentos que vier a produzir
governadores após 1964 – como a quar-
dentro e fora do país poderão redimensionar
ta maior rede de televisão do mundo,
esse fato e conferir a ele um novo significado. O 3 Revista Visão, edição de 2 de
composta de seis emissoras geradoras, maio de 2002.
Fórum Social Mundial marca, a seu modo, um

MAR / ABR 2005 71


Fórum social mundial

36 afiliadas e mais cinco estações re- Organizações Globo, mas dividido com outras
petidoras, o que dava um total de 47 redes de informação e entretenimento – passou
emissoras, cobrindo 3.505 dos 4.063 a cumprir novos papéis.
municípios brasileiros, ou seja, 93% Num país de instituições frágeis e de
da população do país e 99% dos 15,8 partidos políticos mais frágeis ainda, o po-
milhões de domicílios com TV existentes deroso complexo de comunicação de massas
naquela data.4 – sobretudo a TV – foi posto em movimento
a partir da credibilidade construída diante da
Desejo fazer-nos refletir sobre o con-
sociedade e passou a atuar diariamente não
trole quase totalitário exercido pelo regime
apenas como indutor de hábitos de consumo,
militar e o complexo construído à sua sombra
mas como condutor das opções políticas de
sobre uma sociedade, em grande medida, ile-
cidadãos e cidadãs, de tal maneira que hoje
trada. Ocorre que as elites liberais à frente da
democracia representativa que sucedeu a dita- ocupa “[...] um lugar inconteste de ‘inte-
dura apoderaram- lectual orgânico’ da sociedade brasileira (o
-se desse complexo que) não deixa de ter relação com a crise
e, sem modificá-lo real desses outros intelectuais coletivos que
substancialmente, são os partidos atualmente legalizados, e
deram-lhe funciona- também com a crise da classe intelectual
lidade para a nova e do pensamento crítico”. 5 Sofisticou-se em
fase que se abria certa imprensa brasileira a prática de vender
nas disputas polí- opinião injetada no conteúdo mesmo da notí-
ticas no Brasil. A cia de tal modo que o(a) cidadão(ã) – ou o(a)
expressão “totalitá- con­su­midor(a) – é agressivamente conduzido(a)
rio”, que mencionei a preocupar-se com uma agenda selecionada
acima, não se re- pelos meios e recebe o discurso permeado por
fere, por suposto, juízos do veículo que consome, sobre os fatos
apenas à cobertura do dia ou da semana.
de 93% da popula- Mais do que compreender intelectu-
ção do país, mas, almente, as elites brasileiras concertaram sua
além disso e sobre- ação para o novo período partindo do enten-
tudo, à quase im- dimento de que
possibilidade de se o poder político depende relativamente
veicular um discurso pouco, exceto em tempos de crise extre-
substantivamente ma, da intervenção coercitiva do Estado.
diverso do discurso Ele se apóia, ao contrário, na força de
oficial. uma visão de mundo, num sistema de
Essa matriz pressupostos e valores sociais aceitos
evoluiu ganhando como ‘senso comum’ que legitimam
complexidade nos a distribuição do poder (hegemonia).
anos mais recentes, [...] O Estado desempenha um papel
de um lado pela con- na divulgação da visão de mundo, mas
jugação das teleco- o sistema cultural legitimador, decisivo
municações com os meios de comunicação de para o poder político, é mantido prin-
massas e com a informática, porque, a partir cipalmente por instituições privadas,
da “revolução digital”, elas não podem mais ser autônomas...6
tratadas como áreas distintas. De outro lado,
na dimensão propriamente política, diante do
impulso do movimento de massas que emergiu Idéia de ação cultural
no fim da década de 1970 e início da década revolucionária
4 LIMA, Venício A. de. Mídia, de 1980, de uma nova correlação das forças
Esse complexo painel que serve de pano de
teoria e política. São Paulo: Fun- políticas nas lutas sociais do país, do desmo-
dação Perseu Abramo, 2001. fundo para as disputas pela hegemonia na
ronamento do regime militar e da necessidade
5 Mattelart, A.; Mattelart, sociedade brasileira exige das esquerdas não
M. Carnaval de Imagens: a de um novo pacto das elites. Aquele aparato
ficção na TV. São Paulo: Brasi- apenas o esforço para a compreensão objetiva
– agora já não representado apenas pelas
liense, 1989. do processo, mas, igualmente, para conferir

72 Democracia Viva Nº 26
o mosaico imperfeito

certo grau de convergência na definição da mular uma crítica im­pie­do­sa aos fundamentos
agenda dos problemas do país, considerando do pensamento único deve ser secundada pela
que não é possível nem desejável uma unifica- necessária recuperação das utopias que nutri-
ção dos enfoques. Essa diversidade não significa ram as lutas dos setores populares nos últimos
necessariamente fragilidade, ao contrário, pode 150 anos. Se, hoje, as sociedades apresentam
ser uma riqueza. Excluídas do grande negó- suas demandas e, sobretudo nos países do Sul,
cio das comunicações no país, as esquerdas exigem urgência nas soluções, desejam também
brasileiras não dispõem de um único meio de conhecer os contornos do projeto de longo
comunicação de alcance nacional. O esforço prazo que oferecemos a elas. Em suma, a exi-
deve orientar-se em expandir e qualificar cada gência ético-cultural se instalou na medula do
vez mais no âmbito das comunicações para processo de transformação sonhado pelos(as)
alcançar a maior capilaridade possível na base novos(as) excluí­dos(as), que pressentem, ainda
da sociedade e, ao mesmo tempo, disputar os que de modo impreciso, que não haverá lugar
espaços formais na “grande mídia”. para eles(as) sem um profundo processo de
A disputa pelo controle democrático regeneração social,
dos meios de comunicação supõe uma res- em escala planetária.
posta sobre o que desejamos dizer à sociedade. Num mundo
Diluir as diferenças entre o que propõe a direita em que a palavra
e as esquerdas tem levado essas últimas a co- radical foi abolida
lherem sucessivas derrotas, no Sul e no Norte. dos dicionários da
Os processos políticos que protagonizamos no política, cabe às es-
continente, em particular na América do Sul, querdas apontar os
indicam a existência de um vasto e profundo caminhos que nos
anseio de mudanças na sociedade. Os proces- reconciliem com a
sos eleitorais que resultaram na vitória de Lula, radicalidade, não
Kirchner e Tabaré Vasquez; a resistência do apenas no exercício
povo venezuelano ao golpe contra Chávez e o da crítica, mas, so-
referendo que se sucedeu; a aproximação com bretudo, no que se
Lagos, no Chile, e a proposta de constituição refere à subversão da
lógica do processo
da Comunidade Sul-Americana de Nações re-
que diariamente re-
configuram o perfil das democracias na América
produz as condições
do Sul. Vivemos um momento privilegiado
materiais da exclu-
no continente, arduamente construído pelas
são social, tanto no
esquerdas, sob severas condições impostas
interior das frontei-
por Washington. Esse processo revela que
ras nacionais como
as esquerdas souberam evitar a tentação do
nas relações entre o
gueto, o isolamento e a derrota a que nos
Norte e o Sul. Res-
levaram as sucessivas tentativas das soluções
tabelecer, na pauta
de força. Resta enfrentar o gigantesco desafio
do debate mundial,
de governar sem abandonar os compromissos
outra tábua de va-
com as classes perigosas que nos deram raiz,
lores que balizem
sem perder o norte que aponta para a constru-
perspectivas diferentes para o desenvolvimento
ção de sociedades democráticas e soberanas.
humano é a tarefa central que nos exige a “nova
Resta investir todo o potencial dos nossos povos
insurreição”.
para formular um modelo de desenvolvimento
Retorno à reflexão de Venício A. de
sustentável e socialmente justo. Resta materia-
Lima comentando o grande educador brasileiro
lizar em ações de governo a busca secular da
Paulo Freire:
integração efetiva na economia, na sociedade
e na cultura, que alimentou o sonho dos(as) A idéia de ação cultural revolucionária
Libertadores. em Freire precisa ser compreendida
Num período histórico em que os(as) no contexto do que ele considera o
conser­vado­res(as) buscam diluir as diferenças, problema central da segunda metade
para as esquerdas torna-se crucial ex­plicitá-las do século XX: a desumanização. Este
como con­dição de reforçar a confiabilidade fato, segundo ele, constitui a liber-
6 HALLIN apud LIMA, op. cit.
no programa que apresenta. A ousadia de for- tação como o objetivo fundamental

MAR / ABR 2005 73


Fórum social mundial

a ser atingido pela ação cultural. A


desumanização se caracteriza por ser
um processo “que marca não apenas
aqueles cuja humanidade foi roubada
[os oprimidos], mas também os que a
roubaram [os opressores]”.
Assim, no processo de libertação (ação
cultural revolucionária) “os oprimidos não de-
vem, ao procurar reconquistar sua humanidade,
se transformar, por sua vez, em opressores dos
seus opressores, mas sim restaurar a humani-
dade de ambos”. Freire identifica a libertação
como “o processo [ou luta] pela afirmação dos
homens enquanto pessoas”. Para ele “a grande
tarefa humanística e histórica dos oprimidos”
torna-se então a de “libertar-se a si próprios e
seus opressores” por meio de um permanente
processo histórico de libertação.7

Carta do Sul
Este texto, de minha autoria, foi lido pela primeira
vez no ato de encerramento do 2º Fórum Social
acender outras possibilidades.
Mundial, em 2002, em Porto Alegre, ao lado do
Deixamos de parte as cifras, as taxas de
texto do escritor português José Saramago.
juros, o comportamento das bolsas de valores:
Regressamos como os pássaros migradores.
esse mundo estéril e homicida. Fixamos os olhos
Sabemos que Davos é branca. Porto Alegre, um
e o coração indignado sobre os dramas que
arco-íris, onde pousar para beber a multiplica-
nos afligem: a fome, as guerras, a exclusão
ção das cores que inventamos. Aprendemos
social, a limpeza étnica, o desemprego, a Aids,
que Davos é a ordem. O silêncio branco. Nova
a morte dos rios, a cinza das florestas, a con-
York, o poder e o medo. Porto Alegre, a liber-
centração galopante da riqueza, a destruição
dade. A palavra tecendo sonhos, como agulhas
das conquistas dos trabalhadores, o controle
urdindo um tapete sem desenho prévio.
da informação, a lógica única do pensamento
Somos filhos da vertigem. Desse impulso
único. Despidos de toda humanidade, em duas
de extrair do impossível mundo das cifras e
gerações testemunhamos a espantosa morte de
da ferocidade capitalista, um outro mundo
um continente: a África. Viemos nos despedir
possível... As mãos que trazemos tatearam
da indiferença.
noites e labirintos. Não moldam no ar o frágil
Trazemos a vocação do diverso. Do liber-
desenho da cidade futura. Sabem da terra
tário. A vocação do humano. Recusamos a
proibida pelo arame; do trabalho escasso; do
branca ordem de Davos, o poder e o medo
pão escasso; da fome. Recolhem das ruas do
de Nova York e suas siglas: OMC, FMI, Alca,
mundo destroços da alegria, da paixão, da dor,
Otan. Somos a desencontrada polifonia das
da exploração, da violência, do êxodo de tantos,
vozes do Sul e do Norte que rejeita a marcha
dos sonhos arquivados da multidão, soterrados
fúnebre do mercado. A solidariedade é o ar
pela demolição dos direitos, da resistência e,
que nos sustenta as esperanças. O mesmo
novamente, da alegria e da paixão e propõem
alento que prolonga o vôo dos pássaros
um novo mosaico. Um novo mosaico possível...
migradores. Somos herdeiros da vertigem
Morremos em Eldorado dos Carajás; a ca-
criadora dos nossos povos: pretos, brancos,
minho de uma escola em Ramallah; no sonho
amarelos, vermelhos, verdes, azuis... A frá-
que anoitece sob a burka de uma mulher em
gil possibilidade de que um outro mundo é
Mazar-i-Sarif; numa clareira na selva colombia-
possível...
na; em Gênova, no corpo de Carlo Giuliani;
ao pé das Torres Gêmeas, em Nova Iorque;
numa esquina em Kandahar. E renascemos nas
ruas rebeladas de Buenos Aires e Santo André.
Para renascer nascemos... Somos centelhas de
7 LIMA, op. cit.

74 Democracia Viva Nº 26
uma comunicação à altura dos novos desafios

Uma comunicação à altura dos novos desafios


Mario Lubetkin
Diretor-geral da agência de notícias Inter Press Service

O processo do Fórum Social Mundial (FSM) 2005 os temas de interesse do público, o que complica
foi concluído, tendo sido o mais numeroso em o trabalho dos(as) profissionais de comunicação
termos de participantes e o de maior impacto em presentes ao evento.
relação à participação e organização. A bela cida- Em especial, foram assinaladas dificulda-
dela do Fórum foi construída às margens do rio des para conseguir explicar que o FSM é somente
Guaíba, na cidade de Porto Alegre. Havia muitos a conclusão de um processo de iniciativas e
desafios e questionamentos antes da abertura do debates realizados durante todo o ano, além do
Fórum e muitos deles ainda estão sem respostas, fato de que pouquíssimas pessoas refletem sobre
mesmo após a realização desse grande evento o “dia seguinte” do Fórum, principalmente sobre
internacional – o principal evento da sociedade civil. seus efeitos e sua projeção futura.
Antes do Fórum, a comunicação e a informação do O que foi assinalado anteriormente é so-
FSM eram uns desses desafios, dos quais derivavam mente um diagnóstico da realidade, talvez o mais
muitos questionamentos. fácil de entender, por isso o Fórum Mundial de
Após o evento, um monitoramento Comunicação concentrou sua atenção sobre o que
inicial e breve dos meios de comunicações fazer e como fazer. As três resoluções finais, aceitas
em diferentes partes do mundo mostrou uma consensualmente, talvez sejam os instrumentos
diminuição de interesse pelo Fórum por parte futuros que sirvam para reverter a tendência de
desses meios de comunicação, que, em anos impacto limitado – o que, na última edição do
anteriores, haviam dado atenção particular ao FSM, ocorreu nos meios de comunicação.
encontro, até mesmo dando espaço similar ao
encontro de Porto Alegre e ao Fórum Econô-
1. Rede mundial de comunicação
mico Mundial de Davos.
para acompanhar o FSM
Essa paridade de espaço na mídia não
se repetiu, pois, enquanto Davos manteve seu A proposta é criar mecanismos permanentes que
espaço na imprensa internacional, Porto Alegre permitam aos meios de comunicação que, ao
viu o seu ser reduzido substancialmente, embora longo desse processo, demonstraram interesse
o FSM tenha credenciado mais de 4 mil jorna- em acompanhar o processo FSM – com uma visão
listas. Antes do Fórum, existia a preocupação crítica, positiva ou mesmo negativa – obter todas
de que isso pudesse acontecer. Por isso, entre as informações necessárias, não somente durante
outras iniciativas, um grupo de organizações os cinco dias desse grande evento, mas também
internacionais, redes de comunicação e figuras ao longo de todo o ano (nos fóruns nacionais, re-
destacadas do FSM se reuniram em Roma, em gionais e temáticos). Além disso, devem permitir a
setembro, para analisar as melhores formas de obtenção de informações sobre os principais aspec-
ajudar a resolver essa situação. tos do debate e das propostas que surgem desse
Entre outras idéias, ficou acertado rea- grande movimento de ativistas da sociedade civil.
lizar, um dia antes do FSM, o Fórum Mundial Jornalistas desses meios de comunicação devem
de Comunicação e Informação, com o objetivo compreender por que o Fórum é um processo, e
de concentrar os esforços de tantos(as) pro- não somente um acontecimento pontual. Por meio
tagonistas do setor de comunicação e poder de uma melhor projeção, é possível compreender
gerar mensagens de maior impacto, tanto para toda a riqueza, profundidade e contradição desse
a própria sociedade civil como para a opinião movimento de massas.
pública internacional, interessada em saber dos
resultados, desafios e do próprio futuro do FSM.
2. Comunidade virtual mundial
Esse Fórum Mundial de Comunicação teve uma
de jornalistas
visão crítica sobre a capacidade de informação
do FSM, especialmente pela dispersão gerada Esta iniciativa, relacionada à anterior, procura
pelo seu programa, no qual sempre estão previs- gerar sinergia não somente entre jornalistas [Traduzido do espanhol
tos milhares de iniciativas e debates sobre todos que trabalham nos meios de comunicação, por Jones de Freitas]

MAR / ABR 2005 75


Fórum social mundial

mas também entre qualquer profissional de que o público receba uma informação de me-
comunicação interessado(a) no FSM, para que lhor qualidade.
sejam informados(as) e participem ativamente Essas três iniciativas, vistas em conjun-
do processo de informação e comunicação do to e não de forma separada, podem ajudar a
Fórum. Mais de 10 mil jornalistas participaram, construir outra comunicação possível e, espe-
de alguma maneira, das cinco edições do FSM, o cialmente, outra forma de informar que esteja
que indica uma força muito poderosa de comu- à altura dos novos desafios contemporâneos.
nicação, mas que, por sua própria dispersão, não Caso essas idéias sejam concretizadas, serão
aparece em toda a sua dimensão. Ao contrário um resultado importante do processo do FSM,
da rede mundial de meios de comunicação, a surgido em janeiro de 2001, na cidade sulista
comunidade virtual mundial de jornalistas deve brasileira. Outras iniciativas no campo da co-
conseguir um espaço interativo, no qual comu- municação nasceram do coração desse processo
nicadores e comunicadoras possam encontrar multitudinário do FSM, como o Observatório
todas as informações necessárias e também Mundial da Mídia (MWG, na sigla em inglês),
participar da sua ali- criado há três anos e que tem por objetivo
mentação ativa, para juntar comuni­cado­res(as), acadêmi­cos(as) e o
o enriquecimento da público consumidor dos bens de comunicação
comunidade e de numa só conjunção de interesses, para melhorar
quem participa dela. a qualidade da informação nesse mundo global.
Às vezes, não somente devemos atentar à
análise do que se informa, mas também entender
3. Universidade
as lacunas do que não é informado – o que, de
virtual de
fato, é uma opção da informação. É preciso
jornalistas
compreender quem – e por que – dá tão pouca
Um tema destacado importância aos grandes temas tratados pela
no Fórum Mundial sociedade civil, especialmente às questões do
de Comunicação e desenvolvimento, tão importantes para o futuro
Informação de Porto da humanidade – freqüentemente substituídas
Alegre foi a análise por informações frívolas ou por informações
de que os aspectos errôneas sobre temas de interesse central.
de formação são es- Trata-se de entender, de modo profissional,
senciais para que com a participação ativa da universidade e de
profissionais de co- quem paga por essas informações (o público
municação possam consumidor), por que algumas tendências de
compreender me- certos meios de comunicação importantes em
lhor o significado muitos de nossos países estão concentradas em
das iniciativas da determinados temas, mesmo com má informa-
sociedade civil, seus ção, para gerar na opinião pública um estado
objetivos, alcances, de desinformação e, portanto, de desinteresse
mecanismos de fun- e de passividade diante dos grandes fatos que
cionamento etc. Não afetam seus próprios interesses.
se trata somente de Será somente o somatório de iniciativas
informar melhor, mas de melhorar a formação sérias, criativas, participativas e propositivas
para que a informação seja mais bem entendi- que permitirá passar da simples reclamação e
da. São pouquíssimos os centros universitários da crítica ao que não se informa ou ao que se
no mundo que prestam atenção ao tema informa mal a um processo no qual o público
da sociedade civil na formação de novos(as) tenha os elementos para saber, decidir e agir?
profissionais. O novo cenário virtual, com a Este é um dos desafios para o futuro do FSM:
contribuição de importantes universidades de conseguir outra comunicação, para obter uma
diferentes partes do mundo, pode ajudar a participação diferente. Do contrário, o objetivo
preencher esse vazio inadmissível. Também é de criar “outro mundo possível” ficará como
preciso focalizar na formação de ativistas da simples desejo no imaginário de milhões de
sociedade civil, para que compreendam como pessoas.
se comunicar melhor e entender os interesses
e as necessidades dos(as) jornalistas, de modo

76 Democracia Viva Nº 26
MAR / ABR 2005 77
cul c u lt u r a
J. R. Ripper*

78 Democracia Viva Nº 26
ura

Algemas
virtuais,
dramas
reais
MAR / ABR 2005 79
c u lt u r a

Trabalho escravo, condições semelhantes à es-


cravidão e formas degradantes de trabalho são
definições diferentes. Mas descrevem o mesmo
crime: a abominável exploração do ser humano
e da sua miséria. O trabalhador e a trabalhadora
escravizados têm nome, coração, corpo, alma,
sentimentos, sonhos e esperança. Lutam para
preservar sua sobrevivência e dignidade. A maio-
ria trabalhou na infância, ou seja, são pessoas
que foram vítimas de outro crime. A maioria é
analfabeta, de letras e de cidadania. Todas essas
pessoas buscam, no trabalho, salário e condições
para ser gente, para se integrar à humanidade.
Os feitores antigos e modernos não só degradam
o trabalho humano, mas também, em nome do
lucro, rejeitam a civilização.
Na Amazônia, a indústria do trabalho
escravo fabrica a destruição ecológica. Degra-
dação humana e ambiental faz parte da cultura
do lucro fácil de latifundiários e grileiros da
região. Infelizmente, escravizar, praticar cárcere
privado, explorar homens, mulheres e crianças
em trabalhos pesados, omitir socorro a pessoas

80 Democracia Viva Nº 26
Algemas virtuais, dramas reais

doentes, muitas vezes torturar e até matar são


práticas repugnantes que se repetem por várias
décadas para garantir custo mínimo nas derru-
badas das florestas que objetivam a exploração
da madeira e a preparação dos pastos para os
rebanhos de gado.
Segundo o trabalhador rural Carlos da
Costa Silva, em cada linha são derrubadas,
no mínimo, cem árvores de médio e grande
porte. Cada alqueire tem 4,84 hectares (ou
1,4 quilômetro quadrado) e é dividido em 16
linhas. Se, em cada alqueire, são derrubadas
pelo menos 1.600 árvores, significa que, numa
empreitada de 40 alqueires, são derrubadas
pelo menos 64 mil árvores de médio e grande
porte. Só a equipe de Carlos já tinha derrubado
23 alqueires e duas linhas de floresta, cerca de
37 mil árvores.
Um peão leva cinco meses para conseguir
derrubar 20 hectares de floresta. Nos municípios
de Tucumã e São Félix do Xingu foram destruídos
200 mil hectares de floresta – o que nos leva
a suspeitar da existência de 10 mil traba­lha­
dores(as) escravi­za­dos(as) nas matas.
Em um hectare da Floresta Amazônica,
existem, em média, 200 espécies de árvores.
Isso dá uma idéia da diversidade da mata.
Em várias partes da mata amazônica como
em localidades do sul amazônico, a cada dois
metros quadrados existe uma árvore, grande,
média ou pequena. Isso daria em torno de
1.500 árvores por hectare. Segundo lavradores
e lavradoras, em florestas maiores, por exemplo
Marabá, a quantidade de árvores é menor, pois
há uma competição maior por luz e algumas
não resistem.
“A escravidão é decorrência da miséria,
da negação da cidadania a brancos ou negros,
do descumprimento das leis pelos mais ricos e
poderosos, social e politicamente. O sistema de
escravidão, trabalho forçado ou degradante, é
de absoluta exclusão social. Está presente neste
país tão rico e, ao mesmo tempo, tão desumano
na distribuição de renda”, afirma Valderez Maria
Monte Rodrigues, ex-coordenadora do Grupo
Móvel de Combate ao Trabalho Escravo.
Ela enumera os itens que montam
a corrente da escravidão no Brasil: miséria,
analfabetismo, negação de cidadania, alicia-
mento, isolamento, vigilância armada, sub-
missão, pressão psicológica, castigos físicos,
endividamentos, negação do direito de ir e vir,
discriminação, tratamento desumano e trabalho
infantil. Mas talvez todos esse itens possam
ser resumidos em apenas um: ausência do
Estado. O Estado é ausente na punição da qua-

MAR / ABR 2005 81


c u lt u r a

drilha de criminosos, mandantes e executores,


na implantação da cidadania para as pobres
populações e trabalhadores(as) da região. A
justiça não funciona.
Existe o trabalho escravo clássico, no qual
a pessoa é literalmente impedida de sair da área,
vigiada por homens armados. Existem também
as situações em que a escravidão é disfarçada.
Inúmeras vezes, a escravidão é feita contra
criança ou adolescente ou por motivo de pre-
conceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT),
25 mil pessoas ainda são submetidas no Brasil
a condições semelhantes ao trabalho escravo.
Como a CPT só formula suas previsões com base
em depoimentos e denúncias, acredito que esse
número seja ainda maior.
Inúmeras vezes, quem escraviza são pes-
soas muito ricas. Por exemplo, das 13 fazendas
que compõem o Grupo Quagliato, seis já foram
denunciadas por esse crime: Rio Vermelho,
Primavera, Califórnia, Brasil Verde, São Carlos
e Santa Rosa. A Brasil Verde foi fiscalizada em
1988, 1989, 1992, 1993, 1997 e 1999. Em to­

82 Democracia Viva Nº 26
Algemas virtuais, dramas reais

das as ocasiões, constatou-se a reincidência de


gravíssimas infrações. Apesar disso, houve um
novo delito em 2000.
“Doutora, obrigado, é a terceira vez
que a senhora me liberta.” A auditora fiscal
do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE),
Cláudia Márcia Brito, escutou essa declaração
de um trabalhador que libertara em operação
anterior. Apaixonada por seu trabalho, ela
sonha com um mundo melhor para esses(as)
trabalhadores(as), mas é realista na sua reflexão
sobre trabalho escravo no Brasil: “O escravo
contemporâneo é submetido a essa situação
degradante em razão da miséria, da distribuição
injusta de renda que temos no nosso país, do
desemprego e da falta de qualificação profis-
sional e de uma reforma agrária. São muitas as
causas que levam pessoas iguais a nós a serem
desrespeitadas nos seus direitos. O trabalhador
se submete à escravidão por absoluta falta de
opção de vida e trabalho. A escravidão no Brasil
é praticada com uma freqüência muito maior
do que a sociedade imagina, pois esse tema
não é discutido abertamente pela sociedade,
pelos políticos, pelos sindicatos”.
Segundo Cláudia Brito, o próprio Minis-
tério do Trabalho só começou a se preocupar
com o tema bem recentemente. “Somente em
1995, com as ameaças de sanções internacio-
nais e a pressão da sociedade civil, foi criado
o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, com
o objetivo de combater o trabalho escravo. Atu-
almente, sentimos que há uma preocupação
maior com o tema: a própria OIT [Organização
Internacional do Trabalho], as Procuradorias
do Trabalho e da República e outros órgãos e
entidades começam a despertar e procurar so-
luções. Em nossas fiscalizações, quantas vezes,
trabalhadores libertados pelo Grupo Móvel há
dois, três meses voltam à mesma situação. Por
que isso acontece? Por falta de oportunidade
de emprego e de uma qualificação profissional
que lhes ofereça uma perspectiva de mudança.
A qualificação profissional está ligada direta-
mente à educação, e a maioria dos escravos
é analfabeta. São pessoas que não tiveram
oportunidade de exercer sua cidadania, um
direito de todos”, indigna-se ela.
O trabalho escravo não é conseqüência
da pobreza, mas do lucro fácil. Parte da nossa
economia ainda está calcada na obtenção de
matérias-primas como carvão vegetal, madeira,
cana-de-açúcar e na derrubada de florestas
para preparação de pastos a custo quase zero.
Combater o trabalho escravo deveria ser uma
determinação política, envolvendo expropriação

MAR / ABR 2005 83


c u lt u r a

de terras, prisão de pessoas ricas e influentes,


reforma agrária e investimento maciço na edu-
cação e na geração de empregos. A pessoa que
hoje é escrava trabalhou na infância, e sua mãe
e seu pai também foram escravizados. Esse é o
ciclo da ignorância, do lucro fácil, da exploração
e da escravidão por dívida e renda, por fome,
que precisa ser interrompido.
Registrar nomes e rostos de brasilei­
ros(as) ainda escravizados(as), expor sua cho-
cante servidão, essa é apenas a contribuição de
documentarista. Dar fim ao trabalho escravo
é uma tarefa difícil, mas possível, para toda
a sociedade. Venho documentando trabalho
escravo há mais de 20 anos e, infelizmente,
creio que essa chaga tem aumentado. Selecio-
nei imagens com mais de uma década e fotos
recentes que compõem uma pesquisa feita
pela OIT. Que sirvam de alerta para que esse
problema seja, de fato, resolvido.

84 Democracia Viva Nº 26
Algemas virtuais, dramas reais

* J. R. Ripper
Repórter fotográfico
ripper@imagenshu­­­­ma­­­­­

MAR / ABR 2005 85


e s pa ç o a b e rt o
Francisco Humberto Cunha Filho*

Autonomia
e

Na história constitucional brasileira, a expressão ‘direitos culturais’ aparece pela primeira

vez em 1988, visando estabelecer entendimento e tratamento sistemático da matéria, a qual

também foi tratada nas Constituições precedentes, porém de forma pontual e restrita, enfo-

cando preferencialmente as belas-artes, o beletrismo e o patrimônio edificado. Em termos

operacionais da política pública de cultura, a Constituição atual determina que “o Estado

garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais” e que “o poder público, com a

colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro”, que

se constitui de todos os bens referenciais à identidade, à ação e à memória dos diferentes

grupos formadores da nossa sociedade.

Os direitos culturais, por óbvio, são os relativos à cultura, tema fartamente tratado na

vigente Constituição brasileira, que lhe dedicou seção específica dentro do título da ordem

social, além de fazer-lhe referência em diversas outras passagens ao longo do texto. Mas

cultura, por sua vez, é um termo polissêmico, possui múltiplos significados, centenas, aliás,

86 Democracia Viva Nº 26
aberto
como bem o atestam especialistas em antro- concepção e gestão de políticas culturais;
pologia, sociologia e cultura em geral. Por atuação do Estado no setor cultural como de
essa razão, antes de qualquer passo, é neces- suporte logístico; respeito à memória coletiva;
sário delimitar do que pode ser entendido por e universalidade. É importante conhecer esses
cultura, a partir da nossa Lei Maior, o que se princípios porque, a partir dos valores por eles
faz pela acurada observação dos dispositivos veiculados, as normas devem ser elaboradas,
constitucionais já referidos, após o que é e a ação pública relativa à cultura deve ser
possível elaborar uma definição jurídica da fiscalizada.
expressão nos seguintes termos: cultura é a Precisamente sobre a maneira de como
produção humana juridicamente protegida, o Estado deve atuar nesse setor, há um campo
relacionada às artes, à memória coletiva e nebuloso no qual a tendência atual é de se
ao repasse de saberes, e vinculada ao ideal enxergar apenas a obrigação do fornecimento
de aprimoramento, visando à dignidade da de bens e serviços culturais, ou seja, o poder
espécie como um todo, e de cada um dos público como provedor. Não se descarta
indivíduos. esse importantíssimo papel, mas se adverte
A definição proposta contempla, além que ele não é o único, porque, em termos de
do elemento descritivo (produção humana ju- direitos cultuais, muitas vezes o Estado tem
ridicamente protegida), o raio de abrangência a obrigação de atuar de forma a nada fazer,
(artes, memória coletiva e repasse de saberes) abster-se mesmo, para garantir, por exemplo,
e os valores (aprimoramento e dignidade). as liberdades de expressão, criação e difusão.
Os dois primeiros elementos (descrição e Em outros momentos, a atuação estatal é de
abrangência) são tradicionais em temos de coordenação dos esforços públicos com os
definição de um certo objeto de estudo, mas os da cidadania para otimizar atitudes como
valores são usualmente vistos por tradicionalis- fiscalização, resgate e ampliação do patri-
tas com certa desconfiança, por retirar, em suas mônio cultural. Esses três tipos de posturas
opiniões, a neutralidade essencial ao estudo atribuídas ao Estado no trato da cultura (abs-
científico da matéria. Tal perspectiva, porém, tenções em favor das liberdades, prestações
encarada de forma absoluta, já está um tanto positivas e coordenação de esforços) nada
gasta até mesmo para as ciências naturais e, mais traduzem que as gerações (ou esferas)
em termos do Direito, que se rege, segundo de direitos fundamentais que vêm sendo
o culturalista Miguel Reale, pelo trinômio construídas desde que a humanidade resolveu
‘fato-valor-norma’, é de aplicação mínima, lutar por valores como liberdade, igualdade
porque o Direito existe precisamente para e fraternidade. O direito à cultura, portanto,
concretizar valores eleitos pela sociedade mesmo ganhando evidência apenas em nossos
em suas relações sociais. dias, está presente em todas as gerações de
A partir dessa constatação, e conside- direitos fundamentais.
rando que o primeiro título da Constituição Mas qual o significado de um direito
do Brasil trata “dos princípios fundamentais”, fundamental? A maneira mais simples de
deve-se entender que ‘aprimoramento e dig- chegar à resposta é, simbolicamente, colocar
nidade’ são valores embutidos nos princípios a expressão diante de um espelho invertido,
constitucionais culturais, inferíveis, também, comparando-a com seu antípoda que seria ‘um
dos elementos jurídicos até agora referidos. direito não-fundamental’, um direito simples.
Em seu conjunto, tais princípios são: plu- O resultado desse exercício pode ser eviden-
ralismo cultural; participação popular na ciado pelo próprio adjetivo ‘fundamental’,

MAR / ABR 2005 87


e s pa ç o a b e rt o

que explicita um tipo de direito especial, mais Argumentar em favor da hipótese


estável que os demais, com preferência na delineada demanda vencer algumas incom-
efetivação, guarnecido no documento jurídico preensões que ela pode suscitar. Em primeiro
mais importante, a Constituição. Além disso, lugar, de pronto se afasta a possibilidade de
tal tipo de direito, uma vez desrespeitado que seja ela contenedora de uma tautologia
ou negligenciado, gera como conseqüência ou redundância, qual seja: sendo o Brasil um
severos danos no núcleo que dá a razão de Estado democrático de direito, não somente
ser do ordenamento jurídico: a dignidade a cultura, mas todo e qualquer segmento da
humana, já referida. Os direitos culturais ação estatal deve ter gestão democrática. Esse
possuem todas essas características, o que os pensamento, não obstante correto, de tão ób-
faz merecedores, portanto, da classificação de vio cega para a realidade de que, sendo a de-
fundamentais. mocracia progressiva, ela se espraia de forma
paulatina sobre as relações sociais. Significa
que em ambientes democráticos formam-se,
Falso dilema?
não raro, reservas aristocráticas ou até mesmo
Esse status, contudo, não retira a complexida- autocráticas, que, somente com o passar do
de do tema. Ao tratar a cultura como direito tempo e a luta das pessoas interessadas, se
fundamental, a Constituição estabelece que “é harmonizam com o regime da liberdade e da
livre a expressão da atividade [cultural], inde- igualdade. Assim foi, por exemplo, com os
pendentemente de censura ou licença”. Além direitos da mulher, assim continuou sendo
disso, ordena: “a lei estabelecerá incentivos com a cultura, o que fica evidenciado pelo
para a produção e o conhecimento de bens estudo da normatividade de regência cultural,
e valores culturais”. Eis, aqui, uma equação desde o Brasil Colônia à Constituição de 1988
dilemática, que demanda desfecho. Explica- – interregno durante o qual os órgãos desse
-se: o Estado, historicamente manipulador da setor são reservados aos “notáveis homens
atividade cultural, tem a obrigação de apoiar de cultura”, com exclusão, por conseguinte,
essa atividade, cuja essência é a liberdade de dos “incultos”, assim consideradas as pessoas
expressão, e que, por isso mesmo, não raras que se identificam com “o povo”, palavra
vezes, faz a crítica do compulsório apoiador, entendida em sua acepção mais usual. A atual
o dito Estado. E mais: quem realiza a ma- Constituição não mais dá guarida a esse tipo
nifestação cultural recebeu do constituinte de diferença, o que não significa, em absoluto,
originário a incumbência de funcionar como exclusão da inteligência dos afazeres públi-
uma espécie de ouvidor ou ombudsman dos cos da cultura, mas uma aproximação desta
sentimentos sociais, podendo, a qualquer com as distintas pessoas vinculadas ao tema,
tempo, manifestar o que pensa sobre o statu cada uma contribuindo como pode. Afinal
quo, com liberdade acentuada – uma vez que de contas, o processo artístico e criativo é
está jurídica e politicamente distante, como apenas uma etapa (importantíssima, aliás)
visto, dos grilhões da censura e da licença. da manifestação cultural, que deve conviver
Mas o dilema referido é apenas apa- com outras tão simples quanto indispensáveis,
rente, porque na própria Constituição se en- como as que garantem infra-estrutura, platéia,
contra, mesmo sem a explicitação desejável, a patrocínio etc.
solução do problema; nela está ordenada uma Também se afasta a possível cogitação
gestão democrática e diferenciada da cultura, de que a hipótese contenha uma contradição,
a partir da reelaboração e da utilização de representada pela associação entre democracia
mecanismos garantidores da ‘representação e representação de interesses. A dúvida nesse
de interesses’ do segmento cultural, em de- ponto surge porque, historicamente, esse tipo
senho jurídico que possibilita a construção de representação, em momentos bastante
da seguinte hipótese: da mesma maneira que vívidos e publicizados, está mais associada
a Constituição Federal de 1988 confere au- à autocracia que a democracia. Vejam-se os
tonomia aos entes políticos (União, estados, exemplos das guildas (corporações) medie-
Distrito Federal e municípios), também o faz vais e dos experimentos parlamentares dos
para com certos segmentos sociais, é o caso da nacionalismos do entre-guerras. Sem esque-
cultura. Somente com tal prerrogativa pode-se cer essas experiências, mas, ao contrário,

ESpaço
compatibilizar plena liberdade e compulsório avivando-as para depurá-las dos erros, a
apoio público, depurado de preferências e representação de interesses de que se fala
dirigismos ilegítimos. não constitui uma retomada de modelo

88 Democracia Viva Nº 26
Autonomia e democratização da cultura

antigo; em sentido diverso, representa uma nas, com autonomia para construir, em solo * Francisco
síntese entre a representação nacional (na brasileiro, até mesmo sistemas paralelos de Humberto Cunha
qual representantes não defendem interesses direito civil e penal. Filho
de categorias isoladas, mas o anseio geral da A concretização da representação de Doutor em Direito pela
nação) e aquela outra referida. Fala-se, agora, interesses e da autonomia da cultura pode se Universidade Federal
da representação de interesses em segundo dar, por exemplo, pela instituição de órgãos de Pernambuco; mestre
em Direito pela UFC;
grau, com ampla autonomia, mas submetida normativos secundários, relativamente ao
professor de Direito
à vontade geral, estabelecida pela lei. parlamento, como os conselhos de cultura.
Constitucional da
A representação de interesses, nesses Estes, é bem verdade, não constituem algo
Unifor; autor, entre
moldes, somente pode prevalecer quando novo, em temos de nomenclatura, mas devem outros, do livro Cultura
presente pelo menos um dos seguintes fato- ser profundamente renovados nos critérios e democracia na
res: a) se ocorre o império do conhecimento de competência, composição e investidura Constituição Federal de
técnico-científico sobre o político, o que se de seus membros. Quanto à competência dos 1988 (Letra Legal, 2004)
averigua quando a situação fática demonstra conselhos, deve extrapolar a prática corrente
não ser racional a adoção de medida discri- que os reduzem a simples opinantes, passan-
cionária em lugar de outra necessariamente do a atribuir-lhes o papel de produtores de
emanada de padrões da ciência ou da técnica; normas e de fiscalizadores da execução delas.
ou b) se o reconhecimento da necessidade de Relativamente à composição, é preferível que
tratamento específico, em virtude de peculia- a representação estatal seja minoritária, pois o
ridades do modus faciendi ou da finalidade sentido dela é velar pela harmonia funcional
implícita ou explicitamente definida pela desses órgãos representativos da comunidade
sociedade, por meio da Constituição política, cultural com o todo da Administração. Quanto
em favor de determinado segmento. Assim, à investidura, deve-se atentar para que os
a atividade cultural, por ter técnicas próprias diferentes segmentos culturais (respeitada,
e a peculiar missão de livremente ponderar ainda, a complexidade de constituição deles:
sobre o statu quo, deve gerir, dentro de largas múltiplas correntes teatrais, musicais, literárias,
balizas legais, seus próprios interesses, o que de investidores, de público etc.) tenham o máxi-
é feito pela elaboração e aplicação de normas mo de poder na escolha de seus representantes,
próprias. Essa prerrogativa autonômica, aliás, somente podendo haver a recusa de nomeação
é constitucionalmente explicitada para outros em casos extremos como a inidoneidade moral
segmentos, como o desporto, que chega a ter ou a incapacidade civil.
uma justiça própria, e as comunidades indíge-
Caso Pronac
Um exemplo de estrutura possivelmente concretiza-
dora da representação de interesses do setor cultural
governo que omite observar qualquer peculiaridade
perante o Estado brasileiro pode ser extraído do
do fluxo de poder atinente ao setor cultural.
Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), que
Uma gestão pública da cultura que contemple
constitui, para esse fim, um observatório privilegiado,
os valores da autonomia e da democratização tem
em virtude dos seguintes motivos: 1) tem abrangência
a vantagem de conferir legitimidade permanente à
nacional; 2) foi promulgado sob a égide da nova
atuação estatal. Presta-se também ao fomento da
Constituição, que previu, como visto, a integração da
cidadania, pois a proximidade das pessoas interes-
cultura ao mundo democrático; 3) serve de exemplo
sadas é o mais eficiente instrumento de combate a
à construção de programas análogos, em estados e
um dos maiores males de nossa convivência cívica: a
municípios.
síndrome da ineficácia das leis, comum a todo o direito
O Pronac, em sua origem, foi construído, ao
brasileiro, e que, relativamente à cultura, tem peso
menos parcialmente, sob o signo da representação
duplicado: primeiro, pelo motivo geral da dificuldade
de interesses, quando tinha como principal órgão de
de implementação das normas; segundo, porque há a
poder a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura
necessidade prévia de entender o novo status jurídico
(CNIC), de composição plural e paritária na relação Es-
da cultura, desenhado na Constituição Cidadã. Esse
tado–sociedade, e cujos poderes eram suficientes para
entendimento, que perpassa pelo estudo acadêmico e
definir e fiscalizar ações públicas de cultura relativas
popular dos direitos culturais, conduzirá, sem dúvida,
ao dito programa. Porém, em virtude da incompre-
à racionalização gerencial do setor, permitindo oti-
ensão do novo papel constitucional da cultura, adida
mizar as responsabilidades do Estado e da sociedade
a históricos anseios centralizadores, cassaram-se,
para com a cultura, um setor tão estratégico para a
desde 1997, por meio de medida provisória há muito
vida em sociedade que, mesmo que quiséssemos,
convertida em lei, os poderes originários da CNIC. Em
dele não poderíamos nos desvencilhar.
conseqüência, o Pronac foi deformado, nesse aspecto,
não passando, hoje, de um tradicional programa de

MAR / ABR 2005 89


Indicadores
François E. J. de Bremaeker*

Raios
X das
Em 1975, o Instituto Brasileiro de Administração bora tenham sido utilizadas bases de dados
Municipal (Ibam) realizou, pela primeira vez, e procedimentos metodológicos distintos, os
uma pesquisa sobre as características e percep- resultados encontrados são passíveis de serem
ções de prefeitos e prefeitas, tendo repetido o incorporados aos resultados do presente estu-
levantamento em outras oportunidades, sempre do, pois a experiência empírica sobre o tema
a partir de dados obtidos por meio de questio- indica que é elevada a probabilidade de que os
nários aplicados durante seminários destinados resultados encontrados na pesquisa realizada
às pessoas eleitas. em 2002 não viriam a diferir significativamente
As informações contidas no presente se fosse efetuado um novo levantamento em
estudo pertencem ao cadastro elaborado pelo 2004, com prefeitos e prefeitas eleitos, pois
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e disponibi- muitas dessas pessoas se reelegeram.
lizado em meio eletrônico. Muito embora as A partir de algumas características –
informações disponíveis se refiram exclusiva- sexo, idade, grau de instrução, ocupação,
mente às características de prefeitos e prefeitas, partido político e estado de nascimento –,
pelos dados processados é possível conhecer, é possível conhecer quem está na chefia do
em detalhes, quem é esse prefeito ou essa Executivo municipal, agente político mais
prefeita, o que facilita o trabalho de pessoas próximo da população e que, portanto, tem
estudiosas do tema. mais informações a respeito das necessidades
Em fins de 2002, o Ibam realizou uma das suas comunidades.
amostra de representantes dos Executivos A descrição desse perfil está relacionada
municipais, na qual levantava as percepções com as regiões do país e com o porte demográ-
e expectativas em relação ao governo federal fico dos municípios, o que permite uma melhor
e aos governos estaduais que estariam sendo compreensão na relação que pode existir entre o
empossados em janeiro de 2003. Muito em- desenvolvimento socioeconômico do município

90 Democracia Viva Nº 26
e as características exigidas de seus prefeitos em um município do estado de Minas Gerais,
ou suas prefeitas. em decorrência da impugnação de todas as
Em 2004, foram realizadas eleições em pessoas que se candidataram. Como o estudo
5.562 municípios. Esse número corresponde a foi realizado tomando por base o cadastro de
5.558 municípios existentes em 2004 e mais prefeitos e prefeitas eleitos nos dois turnos da
quatro novos municípios instalados em 1º de eleição, os dados referentes a esse município
janeiro de 2005. foram considerados como “sem informação”.
Efetivamente, não foi realizada eleição

Principais características
As variáveis utilizadas foram estruturadas da se-
guinte forma:
candidatura, mantendo-se o máximo de detalhe,
• Sexo – se masculino ou feminino. em que são listadas 102 diferentes ocupações,
• Idade – caracterizada segundo cinco diferentes além das categorias “outra” e “não informada”.
grupos: • Partido político – considerando-se a filiação
- até 29 anos; partidária do prefeito ou prefeita eleito(a), e não
- de 30 a 39 anos; a coligação partidária.
- de 40 a 49 anos;
• Estado de nascimento – considerando-se tão-
- de 50 a 59 anos;
-somente se o prefeito ou a prefeita é natural ou
- com 60 anos ou mais.
não do estado em que se elegeu. Muito embora
• Grau de instrução – categorizado segundo
na ficha cadastral esteja relacionado o muni-
quatro diferentes grupos:
cípio de nascimento, é difícil ter certeza se a
- superior (completo ou incompleto);
pessoa eleita é realmente natural do município:
- médio (completo ou incompleto);
no caso de municípios emancipados posterior-
- fundamental (completo ou incompleto);
mente à data de nascimento do prefeito ou
- lê e escreve, o que significa dizer que não
prefeita, mesmo que a pessoa fosse natural do
freqüentou o ensino formal.
novo município, está oficialmente registrado
• Ocupação – utilizando-se a informação corres- o nascimento sob o nome do município de
pondente à declaração feita pelo(a) prefeito(a)
origem.
eleito(a) ao preencher a ficha de inscrição da

Sexo A região Centro-Oeste apresenta nú-


meros relativos próximos da média nacional:
No pleito de 2004 para as prefeituras do
92,04% de prefeitos e 7,96% de prefeitas. As
Brasil, nada menos que 92,46% das pessoas
outras duas regiões registraram uma partici-
eleitas são do sexo masculino e apenas 7,52%
do sexo feminino. A região Sul teve maior pação relativa de prefeitos abaixo da média
participação relativa de prefeitos (95,79%) e, brasileira, ou seja, são as que apresentam maior
conseqüentemente, a menor participação de participação de prefeitas: 10,02% no Norte e
prefeitas eleitas (4,21%). Percentuais bastante 10,94% no Nordeste.
semelhantes também são registrados na re- A distribuição por sexo de representan-
gião Sudeste: 94,54% de prefeitos e 5,40% tes dos Executivos municipais para o conjunto
de prefeitas. dos municípios brasileiros, segundo os grupos

MAR / ABR 2005 91


indicadores

de habitantes, não apresenta uma tendência municípios com população entre 500 mil e 1
definida, uma vez que as participações rela- milhão de habitantes (10,00%); e municípios
tivas alternam resultados acima e abaixo da com população entre 1 milhão e 5 milhões de
média nacional pelos diferentes grupos de habitantes (9,09%).
habitantes.
Em cinco desses grupos, a participação
Idade
relativa de prefeitos e prefeitas supera a média
brasileira: municípios com população até 2 mil A variável idade pode dar uma idéia da experiência
habitantes têm 93,44% do total de prefeitos e de vida do prefeito ou da prefeita e ser deter-
prefeitas; municípios com população entre 5 minante na sua escolha pela comunidade. No
mil e 10 mil habitantes (92,98%); municípios pleito de 2004, a maior parte de representantes
com população entre 10 mil e 20 mil habitantes do Executivo municipal eleita está no grupo de
(92,79%); municípios com população entre 100 idade entre 40 e 49 anos (39,36%), seguindo-se
mil e 200 mil habitantes (94,66%); e municí- em importância o grupo de idade entre 50 e 59
pios com população superior a 5 milhões de anos (27,85%). Prefeitos ou prefeitas com idade
habitantes (100,00%). entre 30 e 39 anos representam 18,70% do total,
Nos demais seis grupos, a participação enquanto aqueles(as) que possuem 60 anos ou
relativa das prefeitas supera a média nacional: mais chegam a 11,18%. Prefeitos ou prefeitas
municípios com população entre 2 mil e 5 mil com idade até 29 anos representam tão-somente
habitantes têm 8,00% do total de prefeitos e 2,21% do total.
prefeitas; municípios com população entre 20 A maior participação de prefeitos ou
mil e 50 mil habitantes (8,12%); municípios prefeitas com idade entre 40 e 49 anos é en-
com população entre 50 mil e 100 mil habi- contrada na região Centro-Oeste (47,31%) e a
tantes (8,04%); municípios com população menor participação na região Sudeste (36,39%).
entre 200 mil e 500 mil habitantes (7,87%); Para representantes com idade superior a 60

Tabela 1
Distribuição de prefeitos(as) eleitos(as) em 2004, segundo o sexo, pelas grandes regiões – Brasil
Grandes regiões
Sexo Brasil
Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

TOTAL 5.562 449 1.792 1.668 1.188 465

Masculino 5.143 404 1.596 1.577 1.138 428


Feminino 418 45 196 90 50 37
Sem informação 1 - - 1 -
-
Fontes: Tribunal Superior Eleitoral – 2004. | IBGE. Estimativa de população para 2004 (base territorial de 2005). | Tabulações especiais: Ibam. Banco de Dados Municipais (Ibamco).

Tabela 2
Distribuição de prefeitos(as) eleitos(as) em 2004, segundo o sexo, pelos grupos de habitantes – Brasil
População total (por mil)
Até 2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000
Sexo
Total a a a a a a a a a e
2 5 10 20 50 100 200 500 1.000
5.000 mais

TOTAL 5.562 122 1.238 1.311 1.317 1.010 311 131 89 20 11 2

Masculino 5.143 114 1.138 1.219 1.222 928 286 124 82 18 10 2


Feminino 418 8 99 92 95 82 25 7 7 2 1 -
Sem informação 1 - 1 - - - - - - - - -
Fontes: Tribunal Superior Eleitoral – 2004. | IBGE. Estimativa de população para 2004 (base territorial de 2005). | Tabulações especiais: Ibam. Banco de Dados Municipais (Ibamco).

92 Democracia Viva Nº 26
Raios x das prefeituras brasileiras

anos, a maior participação é encontrada na a 49 anos apresentam participações relativas


região Nordeste (11,94%) e a menor na região mais elevadas nos municípios com população
Centro-Oeste (5,38%). Quanto a representantes até 10 mil habitantes, enquanto prefeitos ou
mais jovens, a região que apresenta a maior prefeitas dos grupos de idade de 50 a 59 anos e
participação relativa é a Nordeste (4,07%), com 60 anos ou mais apresentam participações
enquanto a menor participação está na região mais elevadas nos municípios com população
Sudeste (1,02%). superior a 10 mil habitantes.
A distribuição da idade de representan- A participação mais elevada de prefei-
tes dos Executivos municipais para o conjunto tos ou prefeitas com idade inferior a 29 anos
dos municípios brasileiros mostra que existe ocorre nos municípios com população entre
uma tendência no sentido de que aumenta a 5 mil e 10 mil habitantes (3,13%). Quanto a
idade à medida que aumenta o porte demo- representantes com idade superior a 50 anos, a
gráfico dos municípios. maior participação ocorre nos municípios com
Prefeitos ou prefeitas dos grupos com população entre 1 milhão e 5 milhões de habi-
idade até 29 anos, de 30 a 39 anos e de 40 tantes (63,63%) e na totalidade daqueles com
população superior a 5 milhões de habitantes.

Tabela 3
Distribuição de prefeitos(as) eleitos(as) em 2004, segundo a idade, pelas grandes regiões – Brasil
Grandes regiões
Idade Brasil
Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

TOTAL 5.562 449 1.792 1.668 1.188 465

Até 29 anos 123 7 73 17 18 8


De 30 a 39 anos 1.040 107 360 260 214 99
De 40 a 49 anos 2.189 190 672 607 500 220
De 50 a 59 anos 1.549 111 459 536 331 112
De 60 anos ou mais 622 32 214 233 118 25
Sem informação 39 2 14 15 7 1

Fontes: Tribunal Superior Eleitoral – 2004. | IBGE. Estimativa de população para 2004 (base territorial de 2005). | Tabulações especiais: Ibam. Banco de Dados Municipais (Ibamco).

Tabela 4
Distribuição de prefeitos(as) eleitos(as) em 2004, segundo a idade, pelos grupos de habitantes – Brasil

População total (por mil)



Idade Até 2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000
Total a a a a a a a a a e
2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000 mais

TOTAL 5.562 122 1.238 1.311 1.317 1.010 311 131 89 20 11 2

Até 29 anos 123 3 27 41 24 24 3 - 1 - - -


De 30 a 39 anos 1.040 26 271 246 260 163 51 10 9 2 2 -
De 40 a 49 anos 2.189 51 499 537 509 391 102 50 39 9 2 -
De 50 a 59 anos 1.549 29 320 329 370 304 113 45 27 6 5 1
De 60 anos ou mais 622 10 114 147 145 121 41 25 13 3 2 1
Sem informação 39 3 7 11 9 7 1 1 - - - -
Fontes: Tribunal Superior Eleitoral – 2004. | IBGE. Estimativa de população para 2004 (base territorial de 2005). | Tabulações especiais: Ibam. Banco de Dados Municipais (Ibamco).

MAR / ABR 2005 93


indicadores

Grau de instrução médio, a maior participação relativa é encon-


A maior parte dos novos prefeitos e prefeitas trada na região Centro-Oeste (34,62%), seguida
brasileiros possui ensino superior (47,86%), de perto pelas regiões Norte (34,08%) e Sul
seguindo-se em importância quem possui en- (33,25%). As demais regiões se posicionam
sino médio (30,33%) e fundamental (19,11%). abaixo da média do país: Nordeste (29,69%) e
Prefeitos e prefeitas sem instrução formal cons- Sudeste (26,74%).
tituem 1,67% do total. Quanto a representantes que possuem
A região que apresenta maior participa- ensino fundamental, a maior participação re-
ção relativa de prefeitos e prefeitas com nível lativa é encontrada na região Norte (23,16%),
superior é a Sudeste (50,48%), seguindo-se em seguindo-se em importância as regiões Sudeste
importância a região Nordeste (49,11%). As (19,66%) e Sul (19,36%). As demais regiões se
demais regiões se posicionam abaixo da média posicionam abaixo da média nacional: Centro-
nacional: Sul (46,21%), Centro-Oeste (45,81%) -Oeste (17,85%) e Nordeste (17,75%).
e Norte (39,64%). A distribuição do grau de instrução de
Para prefeitos e prefeitas com ensino representantes dos Executivos municipais para o

Tabela 5
Distribuição de prefeitos(as) eleitos(as) em 2004, segundo o grau de instrução, pelas grandes regiões – Brasil
Grandes regiões
Grau de instrução Brasil
Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

TOTAL 5.562 449 1.792 1.668 1.188 465

Superior 2.662 178 880 842 549 213


Médio 1.687 153 532 446 395 161
Fundamental 1.063 104 318 328 230 83
Lê e escreve 93 10 43 30 5 5
Sem informação 57 4 19 22 9 3
Fontes: Tribunal Superior Eleitoral – 2004. | IBGE. Estimativa de população para 2004 (base territorial de 2005). | Tabulações especiais: Ibam. Banco de Dados Municipais (Ibamco).

conjunto dos municípios brasileiros mostra que 500 mil e 1 milhão de habitantes.
existe uma tendência no sentido de que aumenta
o grau de instrução à medida que aumenta o
Ocupação
porte demográfico dos municípios.
Prefeitos e prefeitas com ensino superior Segundo o cadastro do TSE, a partir das
apresentam uma participação relativa de 27,05% respostas dos novos prefeitos e prefeitas, foi
para os municípios com até 2 mil habitantes, que possível identificar 102 diferentes tipos de
se eleva paulatinamente até atingir a totalidade ocupação, além das categorias “outra” e “sem
dos casos para os municípios com população informação”. Interessante observar que as 13
acima de 1 milhão de habitantes. ocupações que apresentaram maiores indica-
Prefeitos e prefeitas com ensino médio ções totalizaram 68,02% do total de respostas,
apresentam uma participação relativa de 38,52% a saber:
para os municípios com população até 2 mil ha- • 11,27% de comerciantes;
bitantes, que se reduz à medida que aumenta o • 9,80% de agricultores ou agricultoras;
porte demográfico dos municípios, caindo para • 7,44% de médicos ou médicas;
25% para os municípios com população entre • 6,85% de empresários ou empresárias;
500 mil e 1 milhão de habitantes. • 5,57% de prefeitos ou prefeitas;
Quanto a representantes com ensino • 4,51% de advogados ou advogadas;
fundamental, apresentam uma participação • 3,96% de professores ou professoras
relativa de 28,69% para os municípios com de ensino fundamental e médio;
população até 2 mil habitantes, que se reduz a • 3,94% de servidores ou servidoras públicas
10% para os municípios com população entre municipais;

94 Democracia Viva Nº 26
Raios x das prefeituras brasileiras

Tabela 6
Distribuição de prefeitos(as) eleitos(as) em 2004, segundo o grau de instrução,
pelos grupos de habitantes – Brasil

População total (por mil)



Grau de instrução Até 2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000
Total a a a a a a a a a e
2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000 mais

TOTAL 5.562 122 1.238 1.311 1.317 1.010 311 131 89 20 11 2

Superior 2.662 33 446 541 639 597 203 105 72 13 11 2


Médio 1.687 47 422 430 407 271 74 20 11 5 - -
Fundamental 1.063 35 335 282 246 123 29 5 6 2 - -
Lê e escreve 93 3 27 43 13 4 3 - - - - -
Sem informação 57 4 8 15 12 15 2 1 - - - -
Fontes: Tribunal Superior Eleitoral – 2004. | IBGE. Estimativa de população para 2004 (base territorial de 2005). | Tabulações especiais: Ibam. Banco de Dados Municipais (Ibamco).

• 3,72% de pecuaristas; 15,91% das ocupações. Da mesma forma, se


• 3,33% de engenheiros ou engenheiras; fossem reunidos professores e professoras de
• 3,15% de servidores ou servidoras públicas ensino fundamental e médio aos servidores e às
estaduais; servidoras públicas municipais, uma vez que a
• 2,39% de produtores ou produtoras agro- primeira é um detalhamento da segunda, essa
pecuárias; e categoria se elevaria a 7,90%.
• 2,09% de administradores ou administradoras. A distribuição das 13 principais ocupa-
Da lista acima, se fossem reunidos ções segundo os grupos de habitantes mostra
numa mesma categoria agricultores e que tendem a prevalecer para os municípios de
agricultoras, pecuaristas e produtores e menor porte demográfico aquelas relacionadas
produtoras agropecuárias, que têm a ver ao setor primário (agricultor e agricultora,
com o setor primário da economia, totalizariam pecuarista e produtor ou produtora agropecu-
ária), além de servidores e servidoras públicas
Tabela 7
Distribuição de prefeitos(as) em 2004, segundo a ocupação, pelas grandes regiões – Brasil
Grandes regiões
Ocupação Brasil
Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

TOTAL 5.562 449 1.792 1.668 1.188 465


Administrador 116 3 41 25 33 14
Advogado 251 16 74 91 50 20
Agente administrativo 17 - 11 4 1 1
Agente de saúde 2 - 2 - - -
Agricultor 545 27 169 158 156 35
Agrônomo 83 6 33 16 21 7
Analista de sistemas 7 - 2 3 1 1
Aposentado 63 3 13 34 13 -
Arquiteto 12 - 3 5 2 2
Assistente social 5 - 1 4 - -
Auxiliar de escritório 4 - - 2 2 -
Auxiliar de laboratório 1 - - - - 1
Bancário 52 1 17 15 17 2
Bibliotecário/ arquiv. 2 1 - - 1 -
Biólogo 7 - 2 2 2 1 continua

MAR / ABR 2005 95


indicadores

Grandes regiões
Ocupação Brasil
Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste
Carvoeiro 1 - - - - 1
Comerciante 627 40 185 195 154 53
Comerciário 17 - 4 6 6 1
Contador 60 4 12 17 18 9
Corretor imóveis/seg. 7 - - 4 3 -
Despachante 6 - - 1 5 -
Digitador 1 - 1 - - -
Diretor de empresa 11 - 3 1 7 -
Diretor estab. ensino 7 - 1 4 1 1
Dona de casa 16 2 6 4 1 3
Economista 37 5 15 11 5 1
Eletricista 8 1 2 2 2 1
Empresário 381 36 101 127 83 34
Empresário espetáculo 11 2 4 3 - 2
Enfermeiro 7 1 3 2 - 1
Engenheiro 185 7 71 64 30 13
Estatístico 2 - 2 - - -
Estudante 13 - 9 2 1 1
Farmacêutico 20 2 5 4 9 -
Fiscal 6 - 2 1 3 -
Fisioterapeuta 4 - 2 1 1 -
Garimpeiro 1 - 1 - - -
Geógrafo 1 - - 1 - -
Geólogo 3 - 1 - 1 1
Gerente 13 1 2 2 7 1
Industrial 63 5 10 23 19 6
Jornalista 12 - 4 5 3 -
Locutor 13 2 4 1 5 1
Magistrado 1 - 1 - - -
Mecânico 2 - - - 2 -
Médico 414 16 203 119 41 35
Membro Forças Armadas 2 - - 1 1 -
Membro Minist. Público 1 1 - - - -
Militar reformado 8 1 1 4 2 -
Motorista transp. carga 22 - 9 7 5 1
Motorista transp. colet. 14 3 5 5 1 -
Ocup. cargo comissão 10 1 6 1 1 1
Odontólogo 67 5 19 27 12 4
Operad. equip. médico 1 - - - 1 -
Padeiro 3 - - 2 1 -
Pecuarista 207 31 72 55 22 27
Pedagogo 14 - 8 3 1 2
Pescador 2 - 1 - 1 -
Piloto 2 1 1 - - -
Policial Civil 12 - 5 4 2 1

continua

96 Democracia Viva Nº 26
Raios x das prefeituras brasileiras

Grandes regiões
Ocupação Brasil
Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste
Policial Militar 10 - 4 1 2 3
Prefeito 310 23 83 95 76 33
Produtor agropecuário 133 10 28 52 17 26
Professor ensinos
fund. e médio 220 31 71 47 57 14
Professor ens. profis. 7 2 1 3 - 1
Professor ens. superior 43 6 9 17 8 3
Protético 3 - 1 2 - -
Psicólogo 5 1 1 3 - -
Publicitário 4 1 1 2 - -
Químico 4 - - 3 1 -
Representante comercial 8 - 2 3 3 -
Sacerdote 22 2 7 10 3 -
Secretário/datilógrafo 5 1 2 - 2 -
Securitário 1 - - - 1 -
Senador /dep./veread. 97 7 40 21 14 15
Serralheiro 1 - - 1 - -
Serventuário da Justiça 17 1 2 4 8 2
Serv. publ. aposentado 72 7 21 26 13 5
Serv. publ. estadual 175 25 71 37 28 14
Serv. publ. federal 46 11 24 8 2 1
Serv. publ. municipal 219 8 53 82 67 9
Sociólogo 3 - 2 1 - -
Tabelião 10 - 4 2 2 2
Taxista/mot. particular 2 - 1 1 - -
Técnico agronomia 39 4 10 7 15 3
Técnico contabilidade 45 4 13 9 14 5
Técnico edificações 2 - 2 - - -
Técnico eletricidade 2 1 1 - - -
Técnic laborat./Raios X 2 1 - 1 - -
Técnico mecânica 2 - 1 1 - -
Técnico mineração 2 - - 2 - -
Técnico obras civis 1 - - 1 - -
Técnico química 1 - - 1 - -
Trab. construção civil 4 - 2 2 - -
Trab. fab. artef. mad. 3 1 - 2 - -
Trab. metalúrgico 1 - - - 1 -
Trab. serviço contábil 1 - 1 - - -
Vendedor com. atac./var. 4 2 1 1 - -
Vendedor pracista 4 1 - 2 1 -
Veterinário 37 4 9 8 12 4
Vigilante 1 - - 1 - -
Zootecnicista 4 - 2 1 1 -
Outra 345 48 111 98 56 32
Não informada 163 23 62 42 28 8

Fontes: Tribunal Superior Eleitoral – 2004. | IBGE. Estimativa de população para 2004 (base territorial de 2005). | Tabulações especiais: Ibam. Banco de Dados Municipais (Ibamco).

MAR / ABR 2005 97


indicadores

municipais (professores e professoras de ensino engenheiro(a), advogado(a) e adminis­tra­dor(a).


fundamental e médio e quem se declarou ser- 61,49% desses e dessas profissionais se encon-
vidor público municipal). tram nos municípios com população entre 10
Nada menos que 80,25% das principais mil e 100 mil habitantes.
atividades ligadas ao setor primário se encon- Em âmbito regional, ao serem destaca-
tram nos municípios com população entre 2 das as cinco principais ocupações dos novos
mil e 20 mil habitantes, enquanto, em relação prefeitos e das novas prefeitas, o que se obser-
a servidores e servidoras públicos municipais, va é que os resultados da região Sudeste são os
76,31% dessas atividades se encontram nesses que mais se aproximam do conjunto brasileiro.
mesmos municípios.
Para os municípios de médio e grande
Partido político
portes demográficos tendem a prevalecer
prefeitos e prefeitas que declararam ser empre­ Os dez partidos políticos que mais elege-
sários(as) ou profissionais liberais – médico(a), ram representantes dos Executivos munici-

Tabela 8
Distribuição de prefeitos(as) eleitos(as) em 2004, segundo a ocupação,
pelos grupos de habitantes – Brasil

População total (por mil)



Ocupação Até 2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000
Total a a a a a a a a a e
2 5 10 20 50 100 200 500 1.000
5.000 mais

TOTAL 5.562 122 1.238 1.311 1.317 1.010 311 131 89 20 11 2


Administrador 116 5 17 22 34 29 4 1 3 1 - -
Advogado 251 3 35 42 50 66 27 15 8 3 2 -
Agente administrativo 17 - 4 2 9 1 - 1 - - - -
Agente de saúde 2 - - - 2 - - - - - - -
Agricultor 545 21 168 166 122 60 8 - - - - -
Agrônomo 83 - 10 19 28 16 9 1 - - - -
Analista de sistemas 7 - 1 - 2 4 - - - - - -
Aposentado 63 - 23 18 9 8 4 - - 1 - -
Arquiteto 12 - 1 1 3 2 2 3 - - - -
Assistente social 5 - - 1 2 2 - - - - - -
Auxiliar de escritório 4 - 3 1 - - - - - - - -
Auxiliar de laboratório 1 - - - - - 1 - - - - -
Bancário 52 - 10 17 11 9 5 - - - - -
Bibliotecário/arquiv. 2 1 1 - - - - - - - - -
Biólogo 7 1 1 2 3 - - - - - - -
Carvoeiro 1 - - 1 - - - - - - - -
Comerciante 627 13 145 165 167 111 19 2 4 1 - -
Comerciário 17 1 2 8 5 1 - - - - - -
Contador 60 1 12 15 18 11 3 - - - - -
Corretor imóveis/seg. 7 - - - 4 2 1 - - - - -
Despachante 6 1 4 - 1 - - - - - - -
Digitador 1 - 1 - - - - - - - - -
Diretor de empresa 11 - 1 2 5 3 - - - - - -
Diretor estab. ensino 7 - 2 4 1 - - - - - - -
Dona de casa 16 1 6 5 3 1 - - - - - -
Economista 37 1 4 4 9 9 4 - 3 - 1 2

continua

98 Democracia Viva Nº 26
Raios x das prefeituras brasileiras

População total (por mil)



Ocupação Até 2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000
Total a a a a a a a a a e
2 5 10 20 50 100 200 500 1.000
5.000 mais
Eletricista 8 - 3 3 1 - - - 1 - - -
Empresário 381 2 42 68 109 91 40 20 8 1 - -
Empresário espetáculo 11 - 3 - 4 1 2 - 1 - - -
Enfermeiro 7 - 1 1 3 2 - - - - - -
Engenheiro 185 1 21 28 38 53 19 14 10 - 1 -
Estatístico 2 - - - 2 - - - - - - -
Estudante 13 - 3 3 2 5 - - - - - -
Farmacêutico 20 - 3 7 5 1 1 3 - - - -
Fiscal 6 - 2 2 1 1 - - - - - -
Fisioterapeuta 4 - 1 2 - 1 - - - - - -
Garimpeiro 1 - 1 - - - - - - - - -
Geógrafo 1 - - - - - - - 1 - - -
Geólogo 3 - 1 - - - - 2 - - - -
Gerente 13 - 4 5 4 - - - - - - -
Industrial 63 - 11 17 16 15 3 1 - - - -
Jornalista 12 - 1 - 3 3 4 1 - - - -
Locutor 13 - 1 2 2 3 2 1 1 1 - -
Magistrado 1 - - - - 1 - - - - - -
Mecânico 2 - - 1 1 - - - - - - -
Médico 414 1 44 70 129 113 32 15 5 5 - -
Membro Forças Arm. 2 - - 1 - 1 - - - - - -
Membro Min. Publ. 1 - - 1 - - - - - - - -
Militar reformado 8 - 3 3 - 2 - - - - - -
Motorista transp. carga 22 - 4 11 6 1 - - - - - -
Motorista transp. col. 14 3 5 4 2 - - - - - - -
Ocup. cargo comissão 10 - 2 3 3 2 - - - - - -
Odontólogo 67 - 15 13 22 13 2 2 - - - -
Operad. equip. médico 1 - - - - 1 - - - - - -
Padeiro 3 - - 1 1 1 - - - - - -
Pecuarista 207 10 57 61 43 29 7 - - - - -
Pedagogo 14 1 3 5 1 2 - 1 1 - - -
Pescador 2 - - 1 1 - - - - - - -
Piloto 2 - - - 2 - - - - - - -
Policial Civil 12 1 - 9 2 - - - - - - -
Policial Militar 10 - 6 2 1 1 - - - - - -
Prefeito 310 8 87 61 61 46 23 9 11 1 3 -
Produtor agropecuário 133 5 45 36 27 15 3 1 1 - - -
Prof. ens. fund. e médio 220 5 58 61 47 38 7 2 2 - - -
Professor ens. profis. 7 - 1 2 2 1 1 - - - - -
Professor ens. superior 43 - 3 5 9 9 5 5 6 - 1 -
Protético 3 - 1 1 - - 1 - - - - -
Psicólogo 5 - 1 1 - - - 1 1 1 - -
Publicitário 4 - - - 1 1 1 - 1 - - -
Químico 4 - - 1 1 1 - 1 - - - -
continua

MAR / ABR 2005 99


indicadores

População total (por mil)



Ocupação Até 2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000
Total a a a a a a a a a e
2 5 10 20 50 100 200 500 1.000
5.000 mais
Repres. comercial 8 - 2 2 3 1 - - - - - -
Sacerdote 22 - 3 5 6 4 3 1 - - - -
Secretário/datilógrafo 5 - 2 1 1 1 - - - - - -
Securitário 1 - - 1 - - - - - - - -
Senador/dep./veread. 97 2 15 12 13 13 10 12 12 5 3 -
Serralheiro 1 - 1 - - - - - - - - -
Serventuário da Justiça 17 - 5 3 4 4 1 - - - - -
Serv. publ. aposentado 72 1 18 16 15 13 7 2 - - - -
Serv. publ. estadual 175 8 31 52 38 31 9 4 2 - - -
Serv. publ. federal 46 - 12 9 10 13 1 - 1 - - -
Serv. publ. municipal 219 12 90 46 33 31 5 2 - - - -
Sociólogo 3 - - 1 - 1 - 1 - - - -
Tabelião 10 - 2 2 1 3 1 1 - - - -
Taxista/mot. part. 2 - - 1 1 - - - - - - -
Técnico agronomia 39 2 15 9 11 1 1 - - - - -
Técnico contabilidade 45 - 9 16 8 8 3 - 1 - - -
Técnico edificações 2 - 1 - - 1 - - - - - -
Técnico eletricidade 2 - 1 1 - - - - - - - -
Técnico laborat./raios X 2 - - - 1 1 - - - - - -
Técnico mecânica 2 - - - 1 1 - - - - - -
Técnico mineração 2 - - - 1 1 - - - - - -
Técnico obras civis 1 - 1 - - - - - - - - -
Técnico química 1 - - - - 1 - - - - - -
Trab. constr. civil 4 1 - 1 1 - 1 - - - - -
Trab. fab. artef. mad. 3 - 1 - 1 1 - - - - - -
Trab. metalúrgico 1 - - - - - - 1 - - - -
Trab. serviço contábil 1 - - - - 1 - - - - - -
Vend. com. atac./var. 4 - 1 1 2 - - - - - - -
Vendedor pracista 4 - 2 - 2 - - - - - - -
Veterinário 37 - 4 8 11 12 2 - - - - -
Vigilante 1 - 1 - - - - - - - - -
Zootecnicista 4 - 1 - - 1 2 - - - - -
Outra 345 7 106 99 70 41 16 3 3 - - -
Não informada 163 3 30 38 44 35 9 2 2 - - -
Fontes: Tribunal Superior Eleitoral – 2004. | IBGE. Estimativa de população para 2004 (base territorial de 2005). | Tabulações especiais: Ibam. Banco de Dados Municipais (Ibamco).

pais em 2004, dentro de um universo de • PP – 9,91%;


24 partidos que tiveram representantes • PTB – 7,62%;
eleitos(as), conseguiram concentrar nada • PT – 7,39%;
menos que 94,91% do total de pessoas • PL – 6,89%;
eleitas, totalizando 5.279 cargos. Os par- • PPS – 5,50%;
tidos políticos que mais elegeram prefeitos • PDT – 5,45%;
e prefeitas foram: • PSB – 3,15%.
• PMDB – 19,06%; Em âmbito regional, observa-se que,
• PSDB – 15,66%; entre os três partidos políticos que apresen-
• PFL – 14,29%; tam para o conjunto do país as principais

100 Democracia Viva Nº 26


Raios x das prefeituras brasileiras

posições, o PMDB é o partido que apresen- para todos os dez partidos, a maior concentração
ta uma situação mais regular, ocupando ocorre nos municípios com população entre 2 mil
o primeiro lugar na região Sul e quatro e 50 mil habitantes, variando essa concentração
segundos lugares. O PSDB apresenta três de 90,86% a 80,05%. A concentração pelos
primeiros lugares, nas regiões Norte, Sudeste principais partidos, ordenados segundo o número
e Centro-Oeste, o terceiro lugar no Nordeste total de prefeitos e prefeitas eleitos, é:
e o quarto lugar na região Sul. Quanto ao • PMDB – 88,40%;
PFL, o partido apresenta o primeiro lugar na • PSDB – 85,30%;
região Nordeste, o terceiro lugar no Sudeste • PFL – 90,19%;
e o quinto lugar nas regiões Norte, Sul e • PP – 89,66%;
Centro-Oeste. • PTB – 88,68%;
A distribuição de prefeitos e prefeitas • PT – 80,05%;
segundo os partidos políticos e de acordo com • PL – 90,86%;
o porte demográfico dos municípios mostra que, • PPS – 86,60%;

Tabela 9

Distribuição de prefeitos(as) eleitos(as) em 2004, segundo o partido político,


pelas grandes regiões – Brasil

Grandes regiões
Partido político Brasil
Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

TOTAL 5.562 449 1.792 1.668 1.188 465

PAN 1 - - 1 - -
PCdoB 10 - 8 1 - 1
PDT 303 17 52 69 145 20
PFL 795 40 418 210 86 41
PHS 25 - 15 6 3 1
PL 383 42 143 129 16 53
PMDB 1.060 62 268 288 373 69
PMN 31 2 14 14 - 1
PP 551 24 123 110 242 52
PPS 306 34 92 83 44 53
Prona 7 1 6 - - -
PRP 37 3 28 2 4 -
PRTB 12 4 3 5 - -
PSB 175 8 109 39 15 4
PSC 23 4 9 9 1 -
PSDB 871 89 232 354 96 100
PSDC 12 2 6 1 1 2
PSL 24 4 6 6 8 -
PT 411 60 68 156 95 32
PT do B 23 2 16 4 1 -
PTB 424 47 133 153 57 34
PTC 16 - 11 4 1 -
PTN 5 - 4 1 - -
PV 56 4 28 22 - 2
Sem informação 1 - - 1 - -
Fontes: Tribunal Superior Eleitoral – 2004. | IBGE. Estimativa de população para 2004 (base territorial de 2005). | Tabulações especiais: Ibam. Banco de Dados Municipais (Ibamco).

MAR / ABR 2005 101


indicadores

• PDT – 87,79%; prefeitas em municípios de grande porte demo-


• PSB – 84,57%. gráfico são PSDB, PT, PPS e PSB.
Como os municípios com população entre
2 mil e 50 mil habitantes representam 87,67% do
Estado de nascimento
total de municípios do país, observa-se que seis
partidos políticos foram os que mais concentraram Segundo os dados do cadastro do TSE, 83,82%
prefeitos e prefeitas nos municípios de pequeno e dos novos prefeitos e das novas prefeitas são
médio portes demográficos: PMDB, PFL, PP, PTB, naturais do próprio estado. Em âmbito regio-
PL e PDT. Sendo assim, os partidos políticos que nal, observa-se que existe uma nítida distinção
concentram maior número relativo de prefeitos e entre as regiões Norte (51,67% de prefeitos

Tabela 10

Distribuição de prefeitos(as) eleitos(as) em 2004, segundo o partido político,


pelos grupos de habitantes – Brasil

População total (por mil)


Partido político Até 2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000
Total a a a a a a a a a e
2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000 mais

TOTAL 5.562 122 1.238 1.311 1.317 1.010 311 131 89 20 11 2

PAN 1 - - - - 1 - - - - - -
PCdoB 10 - 1 1 3 2 1 1 1 - - -
PDT 303 6 68 81 59 58 11 9 7 2 2 -
PFL 795 16 169 208 216 124 38 15 6 2 - 1
PHS 25 - 3 8 7 6 - 1 - - - -
PL 383 8 88 91 93 76 16 9 2 - - -
PMDB 1.060 25 273 259 241 164 64 19 12 2 1 -
PMN 31 - 3 7 9 10 2 - - - - -
PP 551 18 157 126 119 92 30 6 2 1 - -
PPS 306 7 52 64 83 66 16 7 10 - 1 -
Prona 7 - - 4 1 2 - - - - - -
PRP 37 - 3 7 15 10 1 1 - - - -
PRTB 12 2 2 - - 5 3 - - - - -
PSB 175 1 41 31 47 29 9 8 5 3 1 -
PSC 23 - 3 4 6 6 3 1 - - - -
PSDB 871 18 178 209 194 162 65 22 16 5 1 1
PSDC 12 - - 3 3 1 3 1 - 1 - -
PSL 24 - 5 9 3 7 - - - - - -
PT 411 8 71 89 93 76 24 20 22 4 4 -
PT do B 23 - 1 5 11 6 - - - - - -
PTB 424 13 111 94 90 81 22 8 4 - 1 -
PTC 16 - - 4 8 4 - - - - - -
PTN 5 - - 2 1 2 - - - - - -
PV 56 - 8 5 15 19 4 3 2 - - -
Sem informação 1 - 1 - - - - - - - - -
Fontes: Tribunal Superior Eleitoral – 2004. | IBGE. Estimativa de população para 2004 (base territorial de 2005). | Tabulações especiais: Ibam. Banco de Dados Municipais (Ibamco).

102 Democracia Viva Nº 26


Raios x das prefeituras brasileiras

e prefeitas nascidos no estado) e Centro- apresenta nenhuma tendência, situando-se em * François E. J. de


-Oeste (52,90%), que são regiões receptoras torno da média nacional. Bremaeker
de migrantes, e as demais regiões, nas quais Economista e geógrafo
predominam largamente prefeitos e prefeitas do Ibam, coordenador
nascidos no próprio estado: 91,79% no Su- técnico do Banco de
Dados Municipais
deste; 91,41% no Nordeste; e 85,44% no Sul.
(Ibamco) e do Centro
A distribuição de representantes dos
de Estudos de Finanças
Executivos municipais, segundo o estado de Municipais (Cefim)
nascimento pelos grupos de habitantes, não
bremaeker@ibam.org.br

Tabela 11
Distribuição de prefeitos(as) eleitos(as) em 2004, segundo o estado de nascimento,
pelas grandes regiões – Brasil

Grandes regiões
Estado de nascimento Brasil
Norte Nordeste Sudeste Sul Centro-Oeste

TOTAL 5.562 449 1.792 1.668 1.188 465

Mesmo estado 4.662 232 1.638 1.531 1.015 246


Outro estado 874 213 152 125 166 218
Sem informação 26 4 2 12 7 1
Fontes: Tribunal Superior Eleitoral – 2004. | IBGE. Estimativa de população para 2004 (base territorial de 2005). | Tabulações especiais: Ibam. Banco de Dados Municipais (Ibamco).

Tabela 12
Distribuição de prefeitos(as) eleitos(as) em 2004, segundo o estado de nascimento,
pelos grupos de habitantes – Brasil

População total (por mil)


Estado de
Até 2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000
nascimento
Total a a a a a a a a a e
2 5 10 20 50 100 200 500 1.000 5.000 mais

TOTAL 5.562 122 1.238 1.311 1.317 1.010 311 131 89 20 11 2

Mesmo estado 4.662 98 1.058 1.083 1.103 838 266 114 74 17 9 2


Outro estado 874 24 175 219 209 167 43 17 15 3 2 -
Sem informação 26 - 5 9 5 5 2 - - - - -
Fontes: Tribunal Superior Eleitoral – 2004. | IBGE. Estimativa de população para 2004 (base territorial de 2005). | Tabulações especiais: Ibam. Banco de Dados Municipais (Ibamco).

Referências bibliográficas
BRASILEIRO, Ana Maria; KLEIN, Lúcia Maria Gomes. O prefeito eleições de 2004 no Estado de Minas Gerais. Rio de Janeiro: Ibam,
brasileiro: características e percepções. Coord. de Paulo Fernando 2004. 36 p. (Estudos Especiais, n. 74).
Cavallieri. Rio de Janeiro: Ibam, 1975. 145 p. ______. Perfil dos candidatos a prefeito e a vereador nas
BREMAEKER, François E. J. de. Perfil do prefeito brasileiro: eleições de 2004 no Estado de São Paulo. Rio de Janeiro: Ibam,
1989–1992. Rio de Janeiro: Ibam, 1990. 35 p. (Estudos Especiais, 2004. 37 p. (Estudos Especiais, n. 75).
n. 2). ______. Perfil dos candidatos a prefeito e a vereador nas
______. O que os prefeitos esperam dos governos federal eleições de 2004 no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ibam,
e estaduais a partir de 2003. Rio de Janeiro: Ibam, 2002. 84 p. 2004. 35 p. (Estudos Especiais, n. 76).
(Estudos Especiais, n. 42). SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos; BREMAEKER, François E.
______. Perfil dos candidatos a prefeito e a vereador nas J. de (Coords.). O prefeito brasileiro: características e percepções

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