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BRAFF, Menalton. A coleira no pescoço.

Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2006.

Alice e o Violoncelo

Um quarto só, quartinho, espremido entre uma claridade suja de outono e o


cheiro forte de suor que a cama exalava: o lar. Um quarto atravancado de sons e
objetos absurdos, sem lugar para a vida doméstica - o cubículo possível. Quando a
noite começava a entrar pela janela, o quarto encolhia ainda mais - seu parco
espaço encoberto pelas sombras. Nos dias em que não havia concerto nem ensaio,
era a hora de Alice ocupar a cadeira ao lado da cama com a cintura do violoncelo
presa entre os joelhos de calos grossos.
Num acesso de ciúme, Heitor apertou os olhos e escondeu a cabeça debaixo do
travesseiro, fingindo que dormia. Sem aquela música a cama seria intolerável, o
quarto uma prisão infecta. Se tinha que suportar tantos exercícios enervantes
durante o dia, era seu direito adormecer embalado pela música. Não tocava para os
outros, sedutora? Ninguém com mais direitos sobre Alice do que ele, seu marido.
Mas o modo como a mulher enlaçava o instrumento parecia-lhe despudoradamente
sensual.
Fingia dormir na esperança de que a mulher interrompesse a música, porque
então poderia exercer sobre ela seu império, cumprido com prazer e dor: instigá-la,
ameaçando-a com manchas roxas pelos braços, a continuar tocando, sempre,
tocando mais, até que as cãibras e a ânsia de vômito provocassem seu choro
convulso. Seus pedidos de compaixão, molhados e aflitos, tinham o poder de
comovê-lo. Então conseguia relaxar e dormir realmente.
Alice, entretanto, conhecia o jogo, suas manhas, e, ainda que exausta, não
parava de tocar. Não parava porque decidira que aquela tarde teria de ser diferente.
E a decisão se instalou numa pequena ruga da testa, uma ruga renitente. Não estava
disposta a lhe entregar mais uma vez os braços em suplício para que ele,
subjugando-a, se sentisse um pouco menos infeliz. Sem perder de vista o marido, a
mulher, fingindo distração, mantinha os olhos voltados para a janela por onde
chegava escorregando silenciosa a noite de outono. Ela sabia que Heitor, através do
tecido ralo do lençol, observava cada um de seus gestos. Esse era o jogo e Alice
tinha resolvido levá-lo até o fim.
Era preciso acender a lâmpada antes que o marido se diluísse entre as formas da
cama.
Movimentos bruscos, por baixo do lençol, revelavam que Heitor estava aflito,
engatilhado à espera. A violoncelista, então, exagerou na lentidão do adágio e na
tensão do arco a correr sobre as cordas mais graves. Fazia isso com prazer, um
prazer bem próximo do gozo. Arranhava competente os nervos do paralítico, seu
momento de domínio. Arrancava do instrumento um som rouco, plangente, lamento
que lhe subia das entranhas. A melodia se arrastava elegíaca, como um sofrimento
muito grande. Escondido pelo lençol, muito de leve, contido, Heitor revolveu-se de
gozo, atingido por aquele sofrimento sem fim que nascia da mulher e seu violoncelo.
Agitou-se e soltou um vagido animal, fraco, quase imperceptível. Como no orgasmo,
a dor de um prazer.
Sem desviar a cabeça, Alice revolveu os olhos procurando alguma coisa em que
se apoiar, pois começava a se perder nessa nova experiência de medo e coragem.
Ela sabia que o cansaço já vinha a caminho e o esperava, prevenida. Por isso era
preciso sentir o próprio corpo, situá-lo em algum lugar onde pudesse movimentar-
se. As paredes nuas não lhe ofereciam nada, os móveis começavam a sumir. No
canto do quarto, afastado, o vaso de antúrio sem brilho, acanhado, ia sumindo entre
vasos menores, tornando-se um vulto feito com os restos de algumas sombras,
insensível a qualquer disputa e à música em que se afogavam rancores. O corpo de
Alice estremeceu quando seus olhos bateram no vulto de antúrio. Ele ainda
trabalhava, o Heitor, quando lhe trouxe no aniversário aquelas folhas de plástico em
forma de coração. Uns corações verdes e outros vermelhos, longos tristonhos,
todos estéreis, que ela recebeu com fingido entusiasmo. A mulher sabia quão inábil
era seu marido no manejo das palavras e quão parcimonioso era com os gestos de
ternura. Ela sabia que expressão tamanha de carinho ele jamais repetiria. O beijo,
então, com que agradeceu, apesar de tudo, era de gratidão verdadeira. No centro da
mesa, solitário altaneiro, o antúrio reinou por uma semana, tempo que levou para
envelhecer e tornar-se insuportável à visão. Foi por isso parar no canto mais escuro
do cômodo, onde sua velhice passasse despercebida.
Heitor, a quem a mudança de lugar não pareceu abandono, tomou-se de afeição
pelas flores sem vida e esperava com ansiedade as efemérides familiares para
presentear Alice com um vaso de violetas de morim engomado e tingido.
Em uma passagem de vários trinados sucessivos, a mulher mal notou a tremura
das pernas do marido. Já era quase impossível perceber os movimentos mais sutis
de Heitor por baixo do lençol. Estava na hora de acender a lâmpada, mas o
comutador ficava fora do alcance de seu braço.
No fim do adágio, Alice arriou os braços, em repouso. Heitor estava paralisado e
tenso. Ele sabia tratar-se tão-somente de uma pausa prolongada, o fim do adágio,
mas também podia ser a rendição de Alice: o fim de suas forças. Esperava sem
respirar, concentrado. Finalmente soaram as primeiras notas do andante: vigorosas,
vibrantes, quase marciais. Protegido pela noite, Heitor descobriu a cabeça e relaxou
os músculos. Seus olhos procuravam fraquezas onde pudesse se exercitar. Na testa
de Alice o suor porejava, sem que ele percebesse. A mão direita já não sentia o arco,
mas ela continuou a tocar. Um pingo de suor que se formara no sulco da testa
desceu indeciso pelo rosto e se precipitou no chão ao mesmo tempo em que uma
nota aguda e seca bateu no peito do homem.
O dedo anular da mão esquerda, de todos o mais fraco, recusou-se a obedecer ao
comando de Alice e a nota saiu falha. Heitor soergueu-se ameaçador brusco,
esperando seu momento. Seu gesto, contudo, acendeu os restos de energia que
Alice mantinha escondidos por baixo de sua decisão. Vibrou com mais força o arco,
exagerando o sentido marcial do movimento, e, apesar das lágrimas misturadas ao
suor, que a noite escondia, convenceu o marido de que a nota falha fora apenas um
descuido. Em seguida ouviu tombar sobre o colchão de molas fracas o corpo
prematuramente avelhantado de Heitor.
Adiante alguns compassos, nova pausa com alguns segundos de repouso.
Entrava então a sonata num remanso, o largo, com suas notas prolongadas e leves,
um movimento que exigia muito pouco esforço em sua execução. Alice percebeu
quando Heitor enfiou o rosto no travesseiro, como se fosse dormir. O arco, de tão
leve, mal roçava as cordas. A melodia, apesar de um pouco triste, era calma, como
se, ao cabo de tanta luta, a espera do fim inevitável trouxesse sossego e paz.
O quarto acabou de sumir na escuridão que entrava pela janela. Alice executava
ainda alguns compassos, lentos, de agudos gemidos fazendo contraponto a notas
mais graves. Era um duo desconhecido, música jamais ouvida por Heitor, que,
perplexo, sentou-se na cama. Os sons mais graves tinham uma vibração humana,
como se fossem formados nas entranhas de sua mulher.
Intrigado, Heitor acendeu a luz ainda a tempo de ver a esposa dissolvendo-se,
transformada em fachos luminosos de sons que se desprendiam de seu corpo,
tornando o ar mais denso, colorido e quase irrespirável. Sua roupa de luz, de
passagem, enganchou-se no vaso de antúrio, que, arrastado, partiu-se no piso frio.

Signo de Touro

O caminhão parou na frente da obra e três homens tristes, com suas mãos grossas, descarregaram as
telhas em pouco mais de dez minutos. Eles estavam suados quando Sebastião chegou com brilho nos
olhos. Repararam no brilho dos olhos de Sebastião, aquela sua felicidade, nem assim deixaram de chupar as
laranjas até se engasgarem com o bagaço. O patrão parou de pernas muito abertas na frente dos três e
disse e então?, ao que os três se levantaram da sombra e foram cada um para o cumprimento de sua
obrigação. A um homem tão futuro assim não se retruca, eles pensaram. Era novembro e o sol da tarde
arranhava a pele mais do que picada de formiga.
A construção de uma casa é sempre uma demora. Os caminhões prometem um dia e voltam só no dia
seguinte, os pedreiros chupam laranjas na sombra, depois das duas horas da tarde, a chuva é uma festa boa
para se ganhar dinheiro sem trabalhar. Então as previsões, seus prazos e o dinheiro nunca chega.
Era assim que Sebastião fornecia as explicações para os pais de Clotilde. A construção de uma casa é
sempre uma demora. O senhor tem experiência. Aproveitava os intervalos da novela, tempo que o futuro
sogro usava bocejando. E se distraindo a ouvir as explicações de Sebastião: um rapaz sério e risonho, com
os dois pés plantados na vida. Aquilo era mesmo um futuro.
O combinado se cumpria. Pode ser que a construção fosse mais vagarosa do que os abraços de
Sebastião, suas mãos arrancando suspiros dos seios empinados de Clotilde. Ela, a que mais pressa no
escuro do quarto, a cabeça sozinha no travesseiro. Mas era assim. Agora é só cobrir, ele disse à noite, num
intervalo da novela e na intimidade familiar. Chegaram as telhas, hoje à tarde. Só cobrir. Mês que vem a
gente marca a data. Todos pararam de olhar para o aparelho de TV e encararam contentes o sorriso de
Sebastião. O sorriso franco de Sebastião, com aqueles dentes brancos. Então quer dizer que a Clotilde, eles
pensavam maliciando, seus pais e seus irmãos.
A mãe, a mais contente de todos por conhecer anseios da carne, seus perigos, despachou a filha mais
nova para a cozinha, porque um calor destes, não acha, Sebastião? Ele, ah, mas não precisava se
incomodar, e ela insistia: um suco sempre ajuda num calor assim, meu filho. E quase babou de gozo ao
chamá-lo de filho, deste jeito tão íntimo, mês que vem eles marcam a data.
A novela voltou a ocupar as atenções e o suco chegou anunciado pelo tilintar dos copos na bandeja. O
primeiro a ser servido foi Sebastião, lugar de honra na sala e nos corações, ele, sentindo-se um rei com suas
regalias.
Quanto mais chegava ao fim do capítulo da novela mais o futuro sogro bocejava. Sonoro. Ele sempre
fazia assim. Todos acreditavam que isso fosse por causa da doença dele. E talvez fosse. Muito educado,
pedia desculpas ao genro, dizendo com o olhar manso que era uma coisa inevitável porque, enfim, você
sabe, uma doença.
Quando os créditos começaram a aparecer subindo pela tela do televisor, o pai de Clotilde levantou-se,
distendeu os braços, abriu a boca, olhos fechados e disse bom, minha gente, acho que está na hora. Eles
todos costumavam deitar cedo, porque, enfim, você sabe, uma doença. Despediu-se de Sebastião dando-lhe
a mão a apertar, num sinal de respeito e deferência, num formalismo ingênuo que poderia significar uma
despedida, mas que, por ser ingênuo, era apenas deferência. Piscou-lhe o olho enquanto dizia que, claro,
nem todos têm a obrigação de estar com sono. Sebastião respondeu com um sorriso malicioso e agradecido.
Não era a primeira vez que ficavam sozinhos na sala depois da novela, na prática daquele namoro que já
durava uma agonia, amarrando os tijolos de seu futuro, um a um, com mãos e olhos, com lábios e língua,
porque o futuro não precisa de outra matéria para ser tecido. Mas o clima estava diferente. A luz azulada,
ocupando os lugares vazios de sofás e poltronas, as telhas empilhadas na construção, o sorriso de
cumplicidade do sogro, tudo incendiava o desejo de Sebastião, porque lhe parecia apenas antecipar o
exercício de seus direitos. Clotilde aceitou e retribuiu carícias, necessitada como andava ela também. Só
reagiu quando as duas mãos de Sebastião tentaram retirar-lhe a calcinha. Ela interrompeu o beijo, ofegante,
para dizer que não, ainda não. Mas o modo como cochichou aquilo, lá dentro do ouvido de Sebastião, era
mais forte do que um convite. Nem com o perigo de entrar alguém de repente, como acontecia, ele queria
mais contar. Já ia forçando a calcinha, porque era mais fácil rasgá-la, quando Clotilde, de um salto, pôs-se
de pé, no meio da sala. Ela arfava, suada, os olhos alucinados pelo desejo. Você ficou doido?, ela
perguntava, doido, eles nem foram dormir ainda.
Sebastião não se moveu por alguns minutos. Destruído. Só quando Clotilde chegou-se temerosa,
perguntando se estava zangado, foi que ele se levantou dizendo que precisava acordar cedo.
Um beijo de lábios indiferentes e frios foi a despedida. Um beijo murcho.

Chegaram a pensar que estivesse louca. Doida varrida, comentavam as primas, reforçando a idéia da
vizinhança. E isso, porque se fechou no quarto, de luto, fechada por dentro e por fora, não querendo ver
ninguém. Nas poucas vezes em que aparecia na calçada, andava rápido, cabeça pensa e olhos vazios, sem
cumprimentar os conhecidos com quem cruzava.
As vizinhas, quando ela passava, paravam de conversar sobre ela, que era um assunto, e ficavam
olhando-a penalizadas, mas principalmente por detrás, que pela frente dava medo ter de cruzar olhos com os
olhos da louca. Porque a loucura, como a santidade, é aterradora: representa o invisível, o inexplicável.
Ela mesma, a Clotilde, muitas vezes pensava que estivesse vivendo uma loucura.
No primeiro mês, apenas estranhou a demora. Sebastião telefonara dizendo que tinha assuntos de
família urgentes a tratar em Curitiba. Estava telefonando da rodoviária.
Passados três meses desde o último telefonema, depois de buscas, anúncios em jornais, velas para
Santo Antônio, visitas a delegacias, terreiros e hospitais, uma noite seu pai bocejou longamente no final do
capítulo da novela e caiu morto no sofá da sala.
Só aliviou o luto depois de três meses de órfã e seis de viúva.
Numa noite de sábado, ela teve o sonho invadido por um touro, um touro que a iluminava com a luz que
seu corpo pesado irradiava. Primeiro o touro lambia seu rosto. Depois ele babava e Clotilde juntava a baba
na concha de suas mãos. Então ela descobriu que queria continuar vivendo.
A manhã seguinte chegou carregada por raios de sol que clareavam, um pouco, mas que não
esquentavam nada. E em manhã assim, Clotilde preferia ficar na cama gozando o calorzinho do edredom
sem precisar pensar em nada, corpo apenas, suas sensações. Ainda mais que era domingo e os ruídos da
vida não invadiam o quarto, como em dias de trabalho e trepidação. Primeiro ela sentou-se na cama, para
bocejar. E bocejou. Com o alongamento, sentiu nos olhos e na testa um princípio de vertigem, uma tontura
que era mesmo um bem-estar, uma leveza. Olhou então para a roupa, que havia deixado à noite sobre a
poltrona e estremeceu. Que loucura era a sua, umas vestes de claustro, aqueles panos tenebrosos?
Quando chegou à cozinha, calça jeans e blusa bordô, foi recebida com festa.
− Ah, minha filha, parecia que nunca mais.
Clotilde parou com uma vertigem nos olhos, assustada, porque nunca mais era o mesmo que para
sempre, um tempo sem limites em sua vida provisória. Mas aquilo foi só o instante de uma sensação, como
um suspiro.
A mãe, o irmão e a irmã, que já tinham feito o desjejum, sentaram-se novamente ao redor da mesa para
assistirem ao renascimento de Clotilde, que amanhecera cheia de apetite.
Pela janela aberta, entrava um sol meio anêmico e uma aragem viva, quase colorida. Enquanto
mastigava, sentindo gosto em mastigar, Clotilde olhava o limoeiro no fundo do quintal, sentia o cheiro da
terra há muito esquecido, e reparou em dois pardais que vieram pulando familiares, confiantes, até o limiar
da porta.
Levantou-se da mesa e mostrou como a calça estava folgada na cintura para que gostassem de tanto rir.
A magreza de sua cintura era do mesmo tamanho da palidez de sua cútis.
Riram-se os quatro, refamiliados contentes, um domingo inteiro para ficarem juntos.

Depois do almoço, assistiram a um pouco de televisão porque era ainda um jeito de estarem juntos para
cochilar e distender os braços bocejando. Novamente uma família. Clotilde olhava com olhos novos e
enxutos para a mãe e os irmãos e pensava que novamente uma família. Então tinha vontade de rir contente.
E ria. Assim ficaram os quatro até o meio da tarde, muito recolhidos em casa, muito ligados por uma linha
invisível, quando a mãe aproveitou um intervalo e, pegando nas suas as duas mãos de Clotilde, lhe disse Vai
passear, minha filha. Você precisa se distrair, sair por aí. Clotilde invadiu os olhos de sua mãe inteiramente
feliz e respondeu que sim, mas não hoje. Queria ficar com eles, ali, daquele jeito que era novamente uma
família. Que amanhã, ela disse, amanhã gostaria de visitar a Leonor, tanto tempo sem vê-la. Amanhã. E a
Marcela junto, mãe.
Então continuaram na frente do aparelho de TV, vivendo ali dentro da sala o que se podia viver no mundo
inteiro. Apenas Clotilde, há tanto tempo sem praticar, não acompanhava muito bem o que aparecia no
monitor. Por isso foi até o quarto e trouxe uma toalha de crochê interrompida seis meses atrás. De acordo
com os comentários ou as risadas, levantava os olhos do trabalho e acompanhava por instantes o programa
de auditório. As mãos paradas no regaço, um sorriso sem razão, e ela pensava em como era bom viver de
volta.

Quando se despediram de Leonor, às cinco horas da tarde, o sol já estava macio e a cidade se enfeitava
com uma tinta morna, amarela, que tornava suas ruas menos cruas. A cidade se encolhia esperando a noite.
As poucas folhas dos plátanos, com seus tons do amarelo, oscilavam levemente no alto de galhos quase
nus, em silêncio, como em silêncio cruzavam-se as pessoas com seus abrigos de lã nas calçadas. Aquelas
folhas, como abanavam, já deveriam ter servido de presságio, anúncio do que estava por acontecer. Mas o
futuro, mesmo que passe pela frente dos olhos, não se mostra tal qual é. Clotilde propôs a caminhada até
sua casa porque precisava beber a cidade, passo a passo, e era aquela uma boa oportunidade. Não havia
em seu espírito uma intenção oculta, inconfessada, de escolher o trajeto, o que deixou por conta de Marcela.
Se passaram pela frente da obra, não foi por deliberação, mas porque a obra estava no caminho mais curto
entre os dois bairros. Era uma rua de poucos moradores, ainda, aquele atalho por entre muitos terrenos
baldios. A caminhada seria de uma hora, pouco mais, e poderiam chegar em casa com as últimas claridades
do dia.
Caminhavam a passo largo, as duas irmãs, mas não por pressa, que não são de pressa os caminhos de
volta se o coração bate contente. Era uma espécie de sede de viver, de sorver a cidade, sentindo seus
aromas, ouvindo seus ruídos, revendo paisagens conhecidas. Não era uma pressa, aquele passo, era uma
gula.
Marcela já estava treinada nos desvios, sabia escolher atalhos menos perigosos. Enquanto caminhavam
a passo largo pela rua, singrando com o rosto aquela aragem começando a esfriar, Clotilde apertava com
mão agradecida a mão da irmã. Só esporadicamente elas sentiam necessidade de sorrir uma para a outra ou
então dizer alguma palavra comentando a tarde passada na casa de Leonor.
Então aconteceu o que não deveria acontecer, estarem as duas paradas olhando a obra. Não se diziam
nada, nem suas mãos davam qualquer sinal. Paradas olhando. As duas janelas da frente, dois buracos
cegos na parede sem reboco, a varanda-garagem esboçada num quadrilátero vazio, no fundo do qual uma
abertura que poderia tornar-se uma porta. Os tijolos escurecidos pelo tempo, sol e chuva, as telhas
empilhadas a um canto. Ali o futuro estava interrompido. Era apenas o signo de um sonho que se esboroava
contra os meses.
As mãos frias da brisa envolveram o pescoço e os braços das duas irmãs, que perceberam finalmente
onde estavam. O acaso arma ciladas ou soterramos intenções desconhecidas? Os pés de Clotilde estavam
firmemente grudados no asfalto enquanto ela ouvia vozes de pedreiros, sentia o cheiro do cimento fresco,
apertava a mão de Sebastião que ia explicando como entendia o futuro, cada cômodo, como seria. Marcela
puxou a mão da irmã e disse qualquer coisa como está esfriando, Clotilde, entretanto, não conseguia
desgrudar os pés de onde estavam fincados. Neste momento seus lábios começaram a tremer, suas mãos
respondiam suando à dormência que lhe subia das pernas.
Mais tarde, sozinha com a mãe, a caçula descreveria assustada as convulsões de Clotilde, seu choro aos
arrancos lancinantes, as janelas que se abriram na vizinhança. Nunca, naqueles últimos seis meses, tinha
dado a demonstração de um desespero tão grande. O medo que sentira, então, era de que a irmã estivesse
cumprindo uma sina, como diziam as primas, a sua sina, e giravam o dedo perto da orelha.
Só um pouco antes de chegar em casa é que o choro de Clotilde acalmou. Então ficou muda, de olhos
parados, caminhando porque a irmã menor a conduzia.

O frio da manhã tinha carregado os irmãos de Clotilde para a escola, deixando para trás a mesa da
cozinha coberta de farelos de pão, xícaras sujas de café, facas lambuzadas de margarina. Perto da janela, a
mesa, a claridade fria dava-lhe forma e volume, um volume superior ao verdadeiro: monstro a dominar o
cômodo e as preocupações. Ao lado, mas diluídas na penumbra, mãe e filha voltavam mais uma vez ao
assunto da semana: o entardecer de segunda-feira.
Tanto moço bonito por aí, propôs num suspiro a mãe com sua linguagem um pouco antiga. A vida assim é
que não pode ser.
Depois do susto dado em Marcela, Clotilde se aquietara no resto daquele dia, pensativa, em viagens de
descoberta. Pouco antes de ir para a cama, na sala, o sorriso que seu rosto estampou, para dizer que agora
era outra pessoa, provocou dúvidas e surpresas. Vocês viram?, era ela com um sorriso que não se explica.
Todos foram dormir pensando naquele novo sorriso de Clotilde. A mãe e os irmãos não perceberam que ela
havia sonhado novamente, agora acordada, com aquele touro luminoso.
Nos dias seguintes, dois três dias apenas, ninguém ousou penetrar em seu mistério. Havia medo e
espanto, que impediam qualquer aproximação. E Clotilde, mal tomava seu café, aparecia com suas linhas e
agulhas, sentava-se e punha-se a trabalhar. Ninguém lhe perguntava o que fazia. Nem ela parava de sorrir.
Às vezes lalava uma melodia desconhecida, uma melodia que nascia de sua satisfação. Sim, porque o
sorriso de Clotilde era um sorriso de satisfação.
Não se podia mais suportar aquela esfinge dentro de casa, então resolveram abordá-la. Que se
explicasse. Clotilde não se explicou, mas também não se mostrou incomodada com a forma abrupta como os
familiares irromperam em seu sorriso, e como quiseram discutir cada um dos detalhes de sua vida.
Suspirou novamente. Tanto moço bonito! Sem desviar os olhos do crochê, Clotilde rebateu que não, não
era de moço bonito que estava precisando. Queria de volta era seu futuro, o futuro que teceram juntos cada
linha, cada nervura e ondulação. A mãe não se conformava com tamanha teimosia, então voltava a insistir
que futuro, futuro, minha filha, se destece assim como se tece, de acordo com as vagas e oscilações da vida.

Às vezes levava Marcela junto. Nem sempre.


De manhã, quando as manhãs orvalhadas começaram a sacudir o frio de suas costas, ia sozinha, porque
a irmã estava na escola.
Quase toda semana Clotilde visitava a obra. Por isso é que sabia tudo o que acontecia lá. Viu surgirem os
tufos de capim, viu espicharem os pendões e soltarem sementes; em vão tentou impedir o crescimento dos
mamoneiros, suas folhas brilhantes e espalmadas; seus pés formaram trilho pelo meio do mato que invadia
despudoradamente a obra, que parecia disposto a desmanchar as paredes.
Quando levava Marcela, transformava a irmã em vítima confidente. Aqui, ela dizia, aqui vai ser o lugar da
mesinha, ali vou botar o sofá e as poltronas. A cama, você não acha que fica melhor aqui perto da janela?
Marcela ouvia, fingia acreditar e se transtornava com aquelas histórias que a ninguém poderia contar. Os
devaneios loucos de sua irmã. E lembrava-se do gesto das primas: rindo, faziam círculos com o dedo
indicador apontando para a orelha.
As tardes, terminado o trabalho doméstico, Clotilde as passava sentada na varanda, nos fundos de sua
casa, tecendo toalhas de mesa, tapetes de quarto e de parede, enfeitando o futuro. E uma vez sentada, não
havia o que a movesse do lugar. Sai, minha filha, vai passear um pouco. Às vezes repetia inutilmente o
argumento dos moços bonitos. Nada. Ela sorria maliciosa.
A primavera chegou numa chuva que inundou a tarde e todos perceberam que então era o aniversário de
Clotilde. Vieram as primas, logo depois do almoço, porque não se conformavam com a cura de Clotilde. Mais
tarde chegaram as vizinhas, trazendo muitos moços bonitos, para regalo dos olhos da mãe de Clotilde.
Marcela correu ao quarto e trouxe o aparelho de som para a sala. Algumas amigas tinham prometido
comparecer com os últimos lançamentos do hit parade.
O primeiro moço bonito que se aventurou a convidar Clotilde para dançar foi o Lourenço, que todos
chamavam de Louro. Clotilde largou agulha e linhas sobre a cadeira e amarelou um sorriso de desgosto pelo
cumprimento de uma obrigação aborrecida. Louro era um rapaz da moda, por isso achava que estava
abafando. Como a fraca luz da tarde chuvosa não fosse muito ajudada pela única lâmpada acesa numa
mesinha de canto, ele tentou colar o corpo de Clotilde ao seu, o que foi possível em uns poucos segundos. O
calor de seu corpo assustou Clotilde, há tanto tempo carente, e ela se afastou. Tentou então conversar com
o par, corpos afastados, olhos nos olhos, ele conquistador. Os olhos de Clotilde fugiram de todo jeito,
rebatendo nos móveis, nos retratos retocados das paredes, e até pela porta aberta para o corredor.
Louro acabou desistindo da conquista. Não era seu dia.
Poucas tentativas como a de Louro foram feitas. Sem que se percebesse, circulou na sala a notícia de
que a noiva não estava a fim.
Aí vieram os bolos e refrigerantes e a noite caindo espantou a chuva. Sentada em sua cadeira, Clotilde
dava os últimos pontos em um tapete de quarto. Só não sorria, de tudo que aconteceu, para que não
pensassem que ela estava louca.

Durante algum tempo, Clotilde deixou de sair de casa porque o feitiço de seu corpo havia grudado na
vontade de Louro. Os dias dele pelas esquinas, esperando, uma hora ela há de sair. As vizinhas
comentaram aquilo com Marcela que veio trazer a notícia.
E Louro passou a freqüentar os assuntos da família, trazido principalmente pela viúva. Todas as virtudes
masculinas, todas as belezas viris. Com paixão gravada na testa, agora. E a família, então.
− A senhora não pode parar com isso? Que saco!
A mãe reclamou, que falava por falar, sem propósito, apenas porque não gostava de ficar calada, como
certas pessoas. Clotilde retrucou que, se era uma indireta, poderia falar claramente, porque preferia ficar
mesmo calada a dizer bobagens. A mãe não gostou dos modos da filha e retirou-se chorando e dizendo que
no tempo em que o falecido não tinha faltado ainda, naqueles tempos todos a respeitavam mais.
Correndo o risco de ser importunada na rua, Clotilde guardou agulhas e linhas na cesta e saiu. Estava
difícil de suportar o tempo parado, um tempo que não andava. Saiu a esmo, pois precisava apenas de ar e
de movimento. Eram quase onze horas da manhã e o sol estava muito quente. Ela não reparou nas horas e
tentou fugir do calor. Nos primeiros quarteirões, Clotilde andava a passos largos e sem se distrair com nada.
Fugia de Louro, um Louro muito mais de sua própria imaginação, e do sol, real, imenso, uma fornalha. No
caminho, um só pensamento: Estava arrependida da rispidez usada com a mãe, mas era impossível reagir
de outra maneira.
Como um pensamento não formulado, Clotilde estava indo na direção da escola onde os irmãos
estudavam. Quase na hora da saída. Se sua mãe não fosse tão insistente, até poderia interessá-la por seus
moços bonitos. Mas havia despudor naquela insistência, um propósito oculto. Quando Clotilde teve de
escolher um caminho, de susto marcado, estava na rua de algumas casas e vários terrenos baldios. Lá onde
Sebastião queria fazer amor com ela.
Dois quarteirões adiante, parou na frente da obra. As flores se despetalavam, preparando suas sementes.
Entre as folhas do mamoneiro, aqueles abanos antigos, os bagos de espinhos moles da mamona. Clotilde
teve de refazer seu caminho, que o mato já invadira julgando seu. Então descobriu assustada que havia
outro caminho, um atalho, com marcas recentes. O coração aos pulos, ela entrou na casa e, perto da janela
do quarto, encontrou uma cama de papelão com travesseiro de telhas. Ao lado, duas pedras serviam de
fogão. Ou lareira. Com ódio exagerado rasgou as lâminas de papelão e levou de volta para a pilha as telhas
de sua casa. Bateu uma na outra as mãos sujas de terra queimada. Vontade de quebrar tudo, rachar o
mundo, vontade de sumir no escuro e não voltar nunca mais. Sentou-se, por fim, num monte de tijolos e
chorou. Pelo pai, pela mãe, por si mesma. Chorou de saudade, uma saudade com muitas dúvidas. Chorou
de medo de não resistir ao assédio dos moços bonitos que sua mãe lhe oferecia.
*

Depois de restabelecer seu contato com a obra, quase toda semana Clotilde fazia-lhe uma visita.
Acostumou-se com a nova cama de papelão com seu travesseiro de telhas. Chegou a estabelecer uma
espécie de muda comunicação com aquele inquilino desconhecido. Deixou frutas ao lado da cama, trouxe-
lhe uma toalha, um pequeno espelho quebrado, uma almofada velha. As respostas vieram em pequenas
transformações do ambiente. Os dejetos passaram para os terrenos baldios em volta da casa, tudo muito
bem varrido, tudo cuidado.
Clotilde não poderia negar a curiosidade que a mordia. Tinha um inquilino com quem se comunicava e do
qual não falaria jamais a quem quer que fosse. Era mais um de seus segredos. Chegou a vir bem cedo à
obra, mas já encontrava tudo arrumado e deserto.
Assistida por aquela distração, Clotilde atravessou o verão, entrou pelo outono até o inverno. Sua mãe
deixara de importuná-la com seus moços bonitos, conformada, talvez, com a viuvez encruada da filha, ela,
que já andava de flerte notório com viúvo das redondezas. Quando os dias começaram a esfriar, contudo,
seu inquilino misterioso desapareceu. Deixou frutas que não foram tocadas e a cama de papelão, uma vez
retirada, não voltou a seu lugar. Clotilde andou nervosa e abatida alguns dias, mas novamente viúva,
conformou-se, voltando para seu crochê.
Diminuiu as visitas, já não tinha muita vontade de passar pela obra, que perdera o encanto.
Numa tarde gelada de julho, um domingo longo e vazio, Clotilde voltava de uma visita a Leonor, agora
noiva e de casamento marcado, quando parou parada, estátua, seu corpo, mas seu coração pulando,
completamente enlouquecido. Mato nenhum na obra, a pilha de telhas transformada em telhado. Tudo
assustadoramente limpo. Não teve coragem de entrar. Seus pés, assim que se desgrudaram do asfalto,
conduziram-na de volta para casa, entre pequenas corridas e passos agitados.
A sala estava em penumbra de domingo à tarde, uma penumbra azulada e espásmica. Toda sua família
na sala, divertindo-se com calouros ingênuos, mas sonhadores. Entrou e sentou-se em sua poltrona sem
dizer nada. Também não lhe perguntaram o porquê daqueles olhos parados, abismados, daquela respiração
ofegante como se todo o ar da sala fosse pouco para seus pulmões. Ninguém perdia o menor movimento do
que acontecia na TV. Pelo menos até a hora em que a campainha tocou.
O grito que Marcela deu quando abriu a porta, encheu-os de terror. Todos mudos, imóveis, olhando para
a aporta.
Sebastião entrou sorrindo, com seu tamanho, e Clotilde sentiu-se de repente iluminada como em seus
sonhos. Encontraram-se no meio da sala e começaram a dançar.
− Vim marcar a data − ele disse para a sogra, quando a música terminou.
*

A cerca

Joaquim Boaventura, ou simplesmente Boaventura, como julgava chamar-se, era um funcionário de


grande dignidade na visão dos vizinhos. Era respeitado como as coisas que sempre existiram e cuja origem
é um mistério. Quando começaram a surgir as casas nos arredores da cerca, Boaventura já estava lá do lado
de dentro, sentado em seu banquinho de três pernas, muito sério, tomando conta do terreno sem nunca se
distrair. Sentado à sombra, no verão; sentado ao sol, nos dias frios do inverno.
Um dia o homem do terreno, como seria sempre lembrado pelo funcionário, tocou a campainha de sua
casa e ele veio atender fechando a braguilha e apertando a cinta porque estava cochilando na sala. Era um
fim de tarde e Boaventura estava descansando de tanto procurar emprego pela cidade. O homem perguntou
Você quer um emprego?, e ele sorriu pesado, pensando que fosse uma brincadeira, pois tinha passado o dia
oferecendo-se para trabalhar e não era razoável esperar que o emprego viesse até ele assim tão facilmente.
Depois de alguma relutância, o homem do terreno aceitou o convite, cerimonioso, por isso entrou pisando
só com a ponta dos pés e sem reparar na desordem, conforme lhe solicitara Boaventura. Repetiu, então a
pergunta, e o fez com uma seriedade tão grave na voz que Boaventura não teve outro jeito senão dizer que
sim, isto é, depende. Depois de saber de todas as condições de trabalho, finalmente, ele disse que aceitava
e perguntou Então, quando é que eu posso começar? Havia alguma ansiedade em sua pergunta, que o
homem percebeu, sem usar de malícia, entretanto. Apontou com o dedo para uma pequena cruz no início de
uma linha do formulário e disse a Boaventura que assinasse aqui, ó. Mal ele terminou de assinar, o homem
apertou-lhe a mão, dizendo Parabéns, você acaba de começar.
Era quase noite quando chegaram ao terreno. O portão, um quadrilátero de tela emoldurada por tubos de
ferro, estava fechado. Boaventura recebeu as instruções iniciais e a chave. Sentiu-se muito emocionado,
pois era sua primeira vez. Tão emocionado que não atinava com a posição correta em que a chave deveria
entrar na fenda do cadeado. Finalmente, um pouco antes do pânico, o portão se deixou abrir, submisso. Os
dois entraram no terreno pisando firme: o homem na frente, singrando a paisagem com sua estatura, e
Boaventura atrás, em formação de marcha.
Poucos meses depois de empregado, o novo funcionário já estabelecera sua rotina para cumprimento
das instruções. Acordava bem cedo e, antes de sair da cama, ainda deitado, agradecia a Deus por lhe haver
concedido a luz de mais um dia. Não fazia parte das instruções, aquilo, mas fora educado assim e ele não
era do tipo de sentir prazer na ruptura das tradições. Em cinco minutos dedicava-se ao corpo, sua higiene,
enquanto o café esquentava sobre o fogareiro. O pão era dormido, mas Boaventura não se importava,
pensando que muitas pessoas nem isso têm. Só depois de alimentado, abria a porta da casinha para fazer
sua primeira ronda diária. Percorria, então, toda a extensão da cerca, examinando-a atentamente, conferindo
cada detalhe.
O terreno ficava, no início, quando Boaventura foi contratado, em um arrabalde distante, depois de um
bosque de acácias que escondiam a cidade. Nos últimos tempos, contudo, a cidade veio crescendo,
engolindo bosques e chácaras, até envolver o terreno fazendo dele uma ilha. Boaventura assistiu à chegada
dos vizinhos sem alterar nada de sua rotina, além da atenção maior que botava no exame diário da cerca.
Eram cento e vinte metros beirando agora uma calçada, no lado mais extenso, e sessenta metros de fundo.
O terreno era plano e coberto de capim, com algumas falhas, principalmente no inverno. Perto do portão
ficava a casinha do guarda e no lado oposto havia uma carroça. Mais nada. Era um terreno vazio.
A carroça dava a impressão de estar sempre parada, no mesmo lugar e na mesma posição. Mas isso
era apenas uma ilusão, pois nada pode ser imóvel se existe no tempo. O novo guarda estava incumbido de
conservá-la o melhor que pudesse, por essa razão, uma vez por semana, geralmente às sextas-feiras,
Boaventura examinava a carroça durante uma boa parte da tarde. Besuntava de graxa as quatro pontas de
eixo, repregava alguma tábua que estivesse empenando, limpava tudo e se afastava um pouco para admirar
sua obra. Com o passar dos anos foi que Boaventura finalmente percebeu quão enganosa é a imobilidade.
De um inverno para outro, mesmo trabalhando em sua conservação uma vez por semana, descobria
diferenças inelutáveis: a carroça se deteriorava. Por fim, depois que raios e cambotas já não existiam mais e
o aro, enferrujado, nada mais prendia, o guarda desistiu de continuar tentando mantê-la viva. A madeira se
desmanchava até mesmo sob as rajadas mais fortes do vento. Era um esqueleto que aos poucos se
enterrava, sumia, um montículo de pedaços do que fora uma carroça. Já fazia alguns anos que Boaventura
não se ocupava mais dela.
Depois de sua excursão matinal, quando examinava a cerca, o guarda invariavelmente sentava-se ao
lado da casa. À sombra, se fosse verão, e ao sol, quando chegava o inverno. Era ali que ficava toda manhã,
recebendo os cumprimentos dos vizinhos que passavam e respondendo-lhes com muita circunspecção.
Enfim, de certo modo ele era uma autoridade. Faltando cinco minutos para o meio-dia, chegava sua marmita,
que algum empregado da pensão lhe trazia. Era uma folga que fazia parte das normas que lhe havia
passado o homem do terreno, epíteto com que se referia ao seu contratante. O homem do terreno.
Nunca mais tivera notícias do homem do terreno. Nem dele nem de ninguém mais. Todos os meses o
salário lhe era depositado no banco, durante os muitos anos em que vinha prestando serviços para o mesmo
empregador. Às vezes, mente ociosa, pensava em perguntar quem lhe fazia tais depósitos e por quê. Mas
não perguntava. Primeiro porque não tinha para quem perguntar; depois, não tinha certeza se qualquer
pergunta desse tipo contrariava ou não as normas. Era melhor, portanto, conservar-se em silêncio.
Um dia, no fim do expediente, Boaventura olhou-se no espelho porque não se lembrava mais de suas
feições. E não se reconheceu. Havia uns sulcos desconhecidos que lhe marcavam a testa e as faces, os
olhos tinham-se tornado opacos como lâmpadas apagadas e o cabelo estava descolorido, esbranquiçado.
Lembrou-se então da carroça, mas sem propósito nenhum de comparação. E era uma lembrança tão
incômoda quão renitente. Quase não dormiu, naquela noite, pensando que não conseguira manter a
integridade da carroça, como era de sua incumbência. Algumas semanas mais tarde, já estava acostumado
com a própria aparência e com o aspecto do que restara da carroça.
Mesmo dispondo de quase todo o tempo para poder pensar, o guarda não pensava mais porque não
tinha em que pensar. Nos primeiros tempos, ainda se lembrava da família e de alguns amigos. Mas era uma
época em que se esmerava na aprendizagem das normas e procedimentos, sua rotina, por isso evitava
pensamentos que não o ajudassem. Quando todas as tarefas diárias passaram a ser executadas por hábito
apenas, sem ocupação da mente com elas, as lembranças haviam adormecido em regiões que Boaventura
não estava acostumado a explorar. Por isso, sentava-se ao lado da casa, à sombra, se era verão, e debaixo
do sol, durante o inverno, e abandonava-se à única distração que se permitia e que lhe dava um pequeno
prazer: ficava olhando para a rua e respondendo aos cumprimentos dos que passavam. Assim ficava o
guarda até a chegada do almoço, quando se encaminhava ao portão, para recebê-lo; e a tarde inteira,
esperando anoitecer.
Ontem, ao gritar no portão, o garoto que lhe trazia a marmita não obteve resposta. Apesar de meio-dia, o
sol estava macio, amarelado, e ele pôde esperar algum tempo. Gritou novamente e o resultado foi o mesmo.
Talvez o guarda tivesse saído, fora de seus hábitos, para ir ao banco − alguma necessidade imprevista.
Então voltou com a marmita para a pensão. À noite, tremendo de frio e medo, contribuiu com sua história
para os comentários que se faziam no bar mais próximo do terreno: durante o dia todo ninguém vira
Boaventura, o guarda.
Como Boaventura não fosse visto hoje de manhã, com seu grosso casacão, fazendo sua ronda ao redor
do terreno, os vizinhos se reuniram e resolveram chamar a polícia.
*

De cima de seu muro

Um dia Teodoro sentou em cima do muro de sua casa e ficou com as duas pernas tão penduradas que
parecia um desconsolo. Primeiro ele começou a observar o movimento da rua. Seus olhos atentos subiam e
desciam a ladeira, a cabeça girando um pouco sobre o pescoço. Tarde da noite, quando nada mais
acontecia na escuridão, além da passagem de gatos esporádicos e cachorros vagabundos, Teodoro entrou
para dormir, maravilhado com suas descobertas.
Passada a primeira semana, como não revelasse coisa alguma sobre suas razões, a família reuniu-se na
porta e ficou esperando que ele se recolhesse. A barreira humana impedia sua entrada, por isso Teodoro
ficou parado, com as sobrancelhas de muita admiração. Então, foi só o que ele disse, parece que temos aqui
um complô?! O filho mais velho, o único a exibir um discreto bigode, acendeu a luz e se adiantou.
− Nós todos aqui, meu pai − e apontou o semicírculo compacto − estamos muito curiosos, querendo saber
o que o senhor faz o dia todo trepado naquele muro.
Teodoro era muito sensato e não costumava inventar histórias, principalmente se fossem falsas. Ele tinha
um grande amor pela verdade, um amor que muitas vezes beirava o fanatismo. Então disse apenas o que
sabia a respeito de ficar o dia todo trepado naquele muro. Ergueu ainda mais as sobrancelhas, esticou o
lábio inferior, suspendeu os dois ombros ao mesmo tempo para dizer que, na verdade, era só o desejo de
ver, só isso, saber como é tudo.
A mulher e os filhos sabiam muito bem que era verdade o que ele dizia, então apagaram a luz da sala e
foram dormir sorridentes e satisfeitos, alguns deles dando tapinhas nas costas do pai, que também sorria.
Não era apenas das pessoas daquela rua, seus dramas e costumes, que, do alto de seu muro, Teodoro
inteirava-se. Em poucos meses foi tido como especialista em meteorologia. Dos quarteirões vizinhos
chegavam pessoas querendo saber se nas próximas horas faria frio ou calor, se era necessário sair de
guarda-chuva ou não. Mesmo de outros bairros começaram a chegar muitos fiéis ansiosos por notícias. Suas
respostas eram cotejadas com as previsões dadas por meteorologistas na televisão. Em caso de
divergência, era em Teodoro que se acreditava. Quando suas previsões saíam erradas, culpava-se o tempo
com afirmações vagas sobre o descontrole da natureza, que ultimamente deixara de agir com a lógica dos
outros séculos do mundo.
No primeiro dia de chuva, Teodoro teve de arcar com sua própria imprevidência, amargando com a roupa
molhada durante várias horas. Espiando pela janela, a esposa disse que aquilo não podia fazer bem.
− Isso não pode fazer bem − disse a esposa soltando a cortina e voltando-se para a filha, parada sobre
seus pés no meio da sala.
O guarda-chuva que lhe compraram era azul-marinho, pontilhado de estrelas muito brilhantes. Então,
quando voltou a chover, Teodoro cobriu-se com sua noite e não se molhou mais. De inconveniente, nos dias
chuvosos, apenas o fato de que as pessoas passavam sem olhar para cima, deixando de cumprimentá-lo.
Eram dias de muita solidão.
Quando chegou o verão, e isso não aconteceu de repente, como se crê, começaram a alternar-se dias de
chuva com dias de sol pesado. Foi então que o guarda-chuva tornou-se a parte de cima de Teodoro, por
cima, e ninguém mais se lembrou de sua natureza anterior. A falta de uma fotografia que registrasse os
primeiros momentos de Teodoro sobre seu muro era uma falha que ninguém percebia. Por isso, também, as
pessoas não notavam as pequenas transformações que iam acontecendo. Um homem sentado sobre seu
muro debaixo de uma noite era coisa que parecia sempre haver existido naquela rua.
Seu cabelo já descia até os ombros, um pouco mais escuro do que a barba, e ninguém se lembrava de
que nem sempre fora assim. Além disso, aquele seu olhar cada dia mais branco começava a embaçar-se por
um véu de tristeza, um véu diáfano de puro desencanto.
Na época em que os dias tornavam-se mais e mais curtos, Teodoro já sabia todos os horários dos
moradores de sua rua, conhecia os hábitos de cada um deles. Nesse tempo, a descoberta que o animou por
algumas semanas foi a de que a mulher gorda do 818 não tinha apenas um vestido. Simplesmente, por amar
a natureza, todos os seus vestidos eram iguais: fundo verde com ramos de diversas tonalidades da mesma
cor e cachos de bananas amarelas, maçãs vermelhas, cerejas arroxeadas. Foi uma descoberta casual,
quando um dia o furgão da lavanderia parou e dois funcionários descarregaram uma arara com dezenas de
vestidos verdes exatamente iguais.
Ao primeiro repórter que o procurou perguntando o que era aquilo − estar em cima de um muro − qual
suas razões, Teodoro, com o olhar ainda mais triste que de costume, respondeu que precisava saber os
sentidos da vida, por isso resolvera debruçar-se um pouco sobre seus mistérios. Com alguma raiva
injustificada, o repórter voltou a perguntar:
− E então, o que é que o senhor descobriu?
Teodoro apertou as pálpebras sobre os próprios olhos e fechou a boca de lábios secos e duros,
recusando-se a dar qualquer resposta. Cansado de esperar, o repórter deu-lhe as costas sem ao menos
perceber que duas lágrimas verteram dos olhos fechados para sumirem na barba grisalha.
A partir desse dia, cansado de contemplar a humanidade de sua rua, Teodoro passou a vigiar os
automóveis que subiam e desciam aquela rua. No início pareciam indiferenciados, com suas rodas pretas, o
vidro das janelas e do pára-brisa, com seus pára-choques e paralamas. A distinção entre eles começou aos
poucos, à medida em que se familiarizava com formas e cores e aprendia a identificar-lhes a voz.
Quando o verão finalmente retornou por cima de seu guarda-chuva, Teodoro já identificava ano de
fabricação, marca e valor. Já era capaz de enumerar as virtudes da cada um assim como apontar-lhes todos
os defeitos. Agora, além de consultas a respeito da meteorologia, era assediado por vizinhos que
tencionavam trocar de automóvel ou comprar um. Ninguém os conhecia como ele, ninguém aconselhava
com tamanha competência.
De quase todos os automóveis que lhe passavam perante os olhos, Teodoro conhecia os hábitos: hora
em que desciam e hora em que subiam a ladeira, quantas pessoas transportavam, a pressa com que
buscavam seu destino. Alguns, contudo, ele percebeu que passavam para cima ou para baixo e nunca mais
voltavam. Assim foi que nasceu a segunda dor em seu coração. Vendo um automóvel que passava pela rua
pela primeira vez, completamente estranho, Teodoro já sentia saudade e punha-se a imaginar aonde se
dirigia, que estranho destino poderia tomar na vida.
A idéia de que o mundo era vasto e de que existiam dores e alegrias muito além do alcance de sua vista
ia-se tornando insuportável. Saber que havia lugares desconhecidos com seres sobre os quais jamais
saberia o mínimo que fosse, isso era a causa de uma angústia terrível. Teodoro então fechou os olhos e não
quis mais olhar para nada.
Uma noite, Teodoro não se recolheu, como era seu costume. A esposa e os filhos, então, vieram
certificar-se do que acontecia. Sobre o muro, contudo, não encontraram mais ninguém, como se ele nunca
tivesse existido.
*

O outro lado da rua

Um pouco de frio já, quando o vento em sua roupa úmida: o frio pelo lado de dentro. Como foi isso? Não
consegue unir os pontos – a realidade movediça. Continua a andar, mas sem saber em que direção, se há
alguma. Precisa de uma lógica, entrar numa história coerente. Olha obtuso para os lados, parece que já
passei por esta rua: a frente de azulejo da loja, o luminoso azul-vermelho piscando, o reator estragado, pois
não pára de fazer um ruído irritante. Ouve passos, que secos retumbam em seu medo. Precisa saber de
quem são, a esta hora da noite, só os dois num bairro perdido da cidade, mas não pode olhar para trás
porque então, com a descoberta do medo, tudo estará consumado. Resiste. Tenta andar mais rápido, sem
conseguir. Está perdida sua noção de velocidade. Impossível andar mais rápido do que isso. E os passos se
aproximam, inventando pressa. Eles vêm de trás dos muros e das paredes, eles vêm do fundo escuro da
memória. Em tropel, atropelados, muito perseguidores. O coração de Alaor ribomba dentro de sua cabeça,
como um sangue grosso, caudal. Nas costas, a pré-ciência da tragédia. O frio pelo lado de dentro. Atravessa
a rua em fuga e disfarçadamente arrisca um olhar para trás, melhor a tragédia do que o medo dela. Ninguém
à vista, apesar do medo, que não vai embora. E dos passos que nele retumbam. Há muito tempo não vê
alma deste ou de outro mundo, como se a humanidade tivesse desertado. Provavelmente sua imaginação,
ou eco de seus próprios passos.
A mulher seguia em sua frente, sobre a cabeça um jornal aberto, suas manchetes molhadas. Era apenas
uma mulher com pressa tentando proteger-se da garoa, num dia que se dissolve numa aquarela.
Pelo menos até a esquina a marquise o protege da garoa, agora. E em casa, como será? A ruga em sua
testa. Pensando o quê?, a pobre da Amanda, cuja existência tanto depende de sua presença pontual,
sempre no mesmo horário durante todos esses anos. Pensando o quê?
Não, realmente ninguém. Talvez apenas o eco. Depois de um susto, nos inventamos a realidade que o
justifique.
E em sua pressa, ela esbarrava nas pessoas, nos postes, esbarrava nos carros que atravancavam a rua -
seu vestido amarelo inteiramente molhado. Pisou numa poça e quase caiu.
Galo cantando, Deus do céu! Galo cantando. E ele ali, ilhado num cruzamento, enquanto os filhos, em
casa. Tem dificuldade para afrouxar o nó molhado da gravata. Uma ruga na testa. O mesmo cruzamento, os
mesmos letreiros debaixo de um céu impreciso. É necessário encontrar um meio de sair dali: a jaula. As
árvores não protegem coisa alguma, os troncos em fila, perfilados. Como no parque. Bem assim, a mesma
coisa: os postes, lá, também, dedos erguidos para o céu.
Perto de seu ponto, um menino dançava no meio da rua, na frente dos carros.
Agora o tempo outra vez, o vento no chuvisqueiro. O mesmo muro todo escrito, por ali diversas vezes,
estes nomes. Quantas vezes pelo mesmo lugar?
E em casa, como será? Seus filhos. Então era o eco, então. Aquela luz lá na frente. Quem sabe um rumo
e poderá sair da jaula. Tomara. Suas pernas, nem sabe como continuam agüentando. Mas a tabuleta é a
mesma, ele já vira. É isso mesmo. À esquerda, a rua muito escura. Por isso passou reto. Sempre passa reto,
na vida. Não gosta muito de arriscar. Acaba nunca esta noite maldita!? Precisa tentar alguma coisa: as
pernas. Que é isso?! Parece sirene de carro da polícia. Ou ambulância. Lá pra trás. Ou não. Como saber,
depois de tudo, o que é pra trás ou pra frente? Precisa sair deste bairro, desta vida, desta jaula imunda.
O outro lado da rua, é isso, o outro lado da rua bóia como um pensamento no sorriso quase gelado de
Alaor, que, entretanto, não se move, pois sabe que de lá mesmo foi que veio ainda há pouco.
Quando Alaor, solícito, a segurou por um braço, ela o mirou por baixo do chuvisqueiro, um olhar líquido
de tanto medo, e se encolheu assustada antes de sair em fuga. Logo depois, desapareceu numa fila de
ônibus, todas as cores misturadas.
A calçada arrepiava-se debaixo da garoa, estilhaços coloridos, muitos sapatos pisando sobre tudo aquilo.
Todos com muita pressa de chegar, todos sempre com muita pressa, mesmo não tendo aonde chegar. Alaor
também. Em sua testa, a água, o corpo inteiramente úmido. E a fila, no ponto do ônibus, quando chegou:
muito grande, multidão. Perto da esquina, motoristas de vans chamando aos berros, eu bem que podia, e
atravessou a rua.
A fila muito grande, sapatos molhados pisando aflitos na pressa de fim de expediente. E então a van
faltava só mais um.
As ruas todas dormindo no escuro. Pior coisa é terreno baldio, como aqui, esta escuridão. Droga, justo
hoje, que é dia de tanta coisa, hoje que é dia de chegar em casa na hora certa. Tudo prejudicado, sem
cumprimento. Justo hoje. Como entender? Ainda à tarde, repassava na memória, tudo, a vida transcorrendo.
E agora, de que jeito? Não teria imaginado. Nem teria imaginado se fizesse algum esforço de imaginação.
Nunca acreditou: fatalidade do destino - existe nada. Tanta coisa em casa, depois do expediente. Acaba
nunca, esta noite! Ali, olha, aquela claridade ali. Será que? Alguém atrás de mim? Bobagem. O eco outra
vez.
Trepado em suas canelas finas, sozinho, domador de feras sem jaula, aquele menino. Guinchos de freio,
buzinas, janelas iluminadas: gritos. De umas imagens, apenas, ele se lembra. Umas imagens que se
atropelam, descosidas.
Ele lá, hesitante, faltava só mais um. Quando entrou e se acomodou, o motorista continuou gritando que
faltava só mais um. Não se lembra com clareza, mas não deve ter demorado muito: a fila do ônibus imensa.
Então ele disse o nome do bairro. O motorista, a cabeça voltada para trás, para ele, encarando-o no
escuro da van. O motorista e o sujeito do seu lado se olharam e riram. Os dois. Alaor ficou pensando será
que eu disse uma bobagem ou o nome do meu bairro é mesmo engraçado? A cara deles, o jeito todo, um
arrepio. O calor por causa dos vidros fechados. Só podia. Tudo que é novo causa um pouco de medo.
Uma praça. Uma praça estúpida, de cimento e ferro, aquela ali, pela rua da esquerda. Uma praça inútil.
Ninguém além destes postes, altos hirtos, agüentando a garoa no lombo. E umas árvores encolhidas, de
folhas gotejantes. De nada adianta passar por ela mais uma vez.
O sujeito sentado ao lado do motorista falava. Falava com a boca muito perto da orelha do outro. Eles
dois. Alaor só via a boca se mexendo. Mesmo assim, apesar de olharem toda hora em sua direção, acabou
dormindo.
Mas então para que lado, se todos já foram experimentados? Os pés de Alaor fincados na calçada, as
mãos engelhadas nos bolsos. O desânimo escorria-lhe pelo rosto atônito. A noite continua adormecida nas
sombras das árvores e nos quintais vazios. Nem mesmo os cães, nem eles, tão atentos sempre aos restos
do dia, durante a noite, nem eles para arranhar aquele silêncio imenso. Sua própria sombra oscila e ameaça
desaparecer.
A cabeça pendurada no pescoço torto, o queixo amassando o nó da gravata. Com medo de babar, como
de outras vezes, lutava contra o sono, mas estava desarmado. Acordou com a van parada perto do cinema,
no cruzamento. Quase contente ele se lembra. A iluminação mais viva por causa da noite. Os letreiros
coloridos mais coloridos. E brilhantes. A mulher gorda, que vinha no banco de trás, levou cinco minutos pra
descer. Não desencaixava.
Atravessa o ponto de interseção da cruz a passo lento, certeza alguma nas mãos ou nos bolsos. Pára na
esquina fronteira, reluta.
A mocinha com cara de secretária encolhia-se em defesa, encasulada, suando no esforço de não deixar
seus joelhos encostarem nos meus nem nos do outro vizinho, o do outro lado: um desconforto. Ela, tão
desamparada em sua beleza triste.
Nem assim, mudando de lado da cruz, resolve o problema de sua sombra, que teima em sumir. Poderia,
pensa Alaor, poderia... mas a idéia não progride, ela também debaixo da garoa, toda encolhida. E o frio pelo
lado de dentro.
Então, suada, ela começou a falar em pressa, chegar em casa. Só que falou irritada, sem muita discrição,
e a mulher gorda enfiou a cabeça leonina, fulva e solene, pela janela da van e chamou a mocinha de piranha
porque ela era bonita. Assim as vinganças.
O menino sorria, domador, o menino dominava. Sua blusa azul colada ao corpo era uma cor mais viva
para um tórax sem as muitas vantagens da vida.
Apesar do escuro, podia-se ver que ela tinha ficado muito vermelha - a mocinha. Constrangido e sem ter
o que fazer, Alaor passou a mão pela camisa, pela gravata, olhando, ver se tinha babado. Sequinha. E a
Amanda, o que será?
O barulho da van o embalava? Embalava.
Então o que vinha sentado ao lado do motorista bateu no ombro de Alaor e o acordou.
Volta para a mesma esquina em busca de melhor proteção. Sim poderá escolher um rumo, uma rua,
deixar que o acaso resolva seu destino.
A van parada numa rua escura, um fim de linha ou de mundo, e só os três. Vai passando, ele dizia. Vai
passando. E não sorria.
Chegou a pensar no fim de tudo, a família desamparada, Amanda que em tudo dependia de seus
horários certos, as crianças. Vai passando a grana. E mexia os quatro dedos quase na cara de Alaor,
apressando-o.
Já não sente mais as pernas e os pés são duas bolas geladas, a roupa tecida com fios de gelo.
Ou então ele dizia vai descendo, vai descendo. Ou vai pagando, alguma coisa assim. Alaor não consegue
lembrar. Olhou para fora, um bairro em que nunca, nem em sonho, ele pensou, este aqui. Mas aqui?! E o
sujeito de boca que se movia repetiu: vai passando, ou vai descendo, ou vai pagando. Impossível saber.
Pagou rápido e desceu, porque ainda não sabia que a noite é uma escuridão tão prolongada, onde a
memória flutua com tanta dificuldade.
*
O bezerro de ouro

"É da essência do capitalismo que tanto os bens como o trabalho


sejam geralmente comprados e vendidos no mercado. Nessa socie-
dade, as relações entre as pessoas são dominadas pelo princípio
da troca de equivalentes, do quid pro quo, não só em assuntos eco-
nômicos, mas também em todos os outros aspectos da vida."
Baran e Sweezy, Capitalismo monopolista.

O muro nasce num instante insuportável de tamanho medo e imediatamente se põe a crescer ali dentro
do peito de Armando, em silêncio, escalando escarpas e escombros, serpeando encostas, escrevendo as
divisas de seu território. Como coisa que medra, uma vida que renite obstinada. Armando consegue
vislumbrá-lo iluminado em suas cores, todo concreto com o peso, uma barreira intransponível. Desde a
primeira betoneira de argamassa, onde se assentam os primeiros tijolos, que o coração vai-lhe sendo
aliviado muito reflexivo, uma suavidade de espírito já esquecida há duas semanas e que não permite
ultrapassar alguma simplicidade: um homem pode ser a medida de seu medo? Levanta-se da escrivaninha
e de compasso aberto mede o carpete da espessura de quatro dedos − um trilho até a janela.
O sol bate sem qualquer ruído sobre o pátio limpo, por isso todo iluminado como um deserto. O menor
movimento poderá ser visto de tanto que não há movimento algum. Duas semanas de total descrença na
maioria dos seres humanos. Na quase totalidade dos seres humanos. Seu sofrimento não tem mais fim de
uma forma tão intensa que desejaria adormecer, entorpecido, para acordar apenas quando tudo isso for um
pesadelo antigo.
Para além da sebe de hibiscos, uma nuvem trêmula no céu, nuvem espiralada e vermelha que sobe da
terra e mergulha no azul. Armando volta à escrivaninha e pressiona o botão do interfone. O botão
vermelho. Aqui, pensa contente, aqui ninguém manda mais do que eu. E olha pela janela inútil, por onde
passa apenas uma nuvem branca e perdida, além de uma quina do prédio da destilaria, com uns frisos
antigos, desbotados. Finalmente, depois de um estalido seco, a voz da secretária. Dona Iolanda, localize
o Ademar, imediatamente. Quero ele na minha sala com urgência. Desligado o interfone, volta à janela.
Menos apreensivo, agora, depois daquela ordem tão firme que chega a ser um conforto sua autoria.
Para além da sebe de hibiscos, a nuvem trêmula e vermelha desloca-se tão lentamente, por causa da
distância, aqueles quilômetros de paisagem verde e ondulada, que parece não sair do lugar. Vem dos
fundos, onde o canavial mantém a cidade prisioneira, os limites, de onde nunca se espera ninguém.
Acariciando as três sílabas com lábios úmidos, dona Iolanda repete várias vezes o nome do chefe, como
o código não compartilhado com ninguém de suas fantasias amorosas. Armando finalmente atende com o
imperioso e seco: − Fale, dona Iolanda!
A secretária informa então que o presidente do sindicato aguarda na linha.
Todo o gosto amargo da vida sobe-lhe das entranhas, devastador e quente, dando o maior sinal numa
dor aguda na boca do estômago − queimação antiga com que o médico ameaça-lhe o futuro. Não fosse esse
Adão, todas as metas previstas estariam sendo alcançadas. O mundo já conheceu momentos mais felizes.
Os olhos embrenham-se no rosto sisudo de seu pai, pendurado na parede acima da escrivaninha. O cenho
carregado e o bigode espesso de seu pai, o fundador. Em seu tempo, jamais tratou com presidentes que não
fossem do país ou de grandes empresas. A corja, aos poucos, toma conta do mundo. Como um castigo?
Veja lá o que ele quer, dona Iolanda.
Ele está perguntando se o senhor confirma a reunião para as onze horas. Armando sente-se cansado, um
cansaço repentino e denso, todos os gestos pesados demais. No tempo de seu pai, sim, era tudo mais
simples: uns mandavam, os outros obedeciam. O mundo de Deus, ordenado como Ele o fez. Agora tudo
desandou: ninguém manda e ninguém obedece.
− Doutor Armando!
Doces como caramelos, as cinco sílabas a rolar entre os lábios da secretária. Pode confirmar, dona
Iolanda. Às onze horas. E aproveitando, dona Iolanda. O toldo. Mande alguém baixar o toldo aqui da minha
janela. Daqui a pouco vai ter sol querendo invadir minha sala, ouviu, dona Iolanda? Pois não, doutor
Armando. Já vou providenciar. Ah, sim, só mais uma coisa: Dona Rita de Cássia me pediu para lembrá-lo de
que hoje é sábado e que espera convidados para o almoço. A única resposta de Armando não é vista pela
secretária porque é uma cara azeda que ele faz, cara de quem chupa o limão dos compromissos sociais.

Armando senta-se em sua cadeira atrás da escrivaninha porque tem necessidade de algum lugar onde
existir e a cadeira é estofada, confortável, mas, sobretudo, porque tem um espaldar alto como um império.
Começa a relaxar e está sozinho, por isso não interrompe um bocejo que se prolonga até a ponta dos
braços esticados. Ele alcança. Olha para os lados e sente que pode alcançar. Suas mãos prolongadas,
aquele espaço. Então percebe a escrivaninha, limpa como um recesso, e vê que tinha deixado de ser
local de trabalho. Há duas semanas deixara de ser a sede do poder para transformar-se num móvel de
escritório, ordinário, um móvel inutilizado pela intransigência humana, lugar para apoiar os braços. Fecha
os olhos para ver melhor os trabalhos de construção do muro e apenas os lábios se abrem num sorriso
satisfeito.
De norte a sul, de um sol ao outro, multidão de homens trabalhando na construção do muro. Embora sem
fisionomia, por causa da distância que tudo dissolve, Armando orgulha-se da regência que exerce sobre
aqueles seres anônimos e sobre a pressa com que trabalham, mesmo sem saber para quê. Alguns
preparam a massa em betoneiras provavelmente ruidosas, outros descarregam caminhões de tijolos, uns
terceiros correm com suas carriolas e nem é possível saber o que transportam além de carriolas. A
sensação de segurança é um conforto para seus olhos fechados. Por isso Armando não quer mais abri-
los. A não ser quando tudo isso for apenas um pesadelo antigo.
O sossego, entretanto, como qualquer sossego, é de pouca duração. A imagem de uma nuvem trêmula
suja novamente o céu de seus olhos fechados. É uma nuvem espiralada e vermelha que sobe para além
da sebe de hibiscos. Armando coleciona inquietações, por isso estar dentro da própria roupa é um
desconforto. Então levanta-se rapidamente para espiar pela janela. Lá está ela, praticamente no mesmo
lugar. Quem poderá chegar por um lado assim, do limite fechado, por onde ninguém jamais chega? O
rosto imóvel de tão atento, os olhos concentrados num ponto distante, Armando mantém seu medo preso
entre as mãos. Mas não sai do lugar?, lembra-se, e sorri aliviado porque de repente pode ser a nuvem de
poeira de um redemoinho, uma vertigem que sobe para o céu. Talvez nem precise do Ademar com tanta
urgência, mas a ordem está dada e é melhor mantê-la. A hesitação não infunde confiança.
Atravessa a sala em passo contente, para enxugar as mãos na toalha do banheiro e olhar-se no espelho,
conferindo, mas apenas enxuga o medo das mãos sem consultar o espelho, pois teme descobrir no rosto
as marcas de todos aqueles sustos que desde cedo vinha levando.
Armando quase volta para sua cadeira estofada atrás da escrivaninha, mas passava pela frente da janela
e pára. Um homem vem atravessando o pátio com uma caixa de ferramentas que puxa seu ombro para
baixo, seu ombro direito. É uma caixa metálica e não consegue impedir que o reflexo do sol aumente o
brilho da manhã. No meio do pátio o homem muda de rumo como se mudasse de opinião, dirigindo-se
para o prédio das moendas. Carrega uma caixa de ferramentas e uma boca silenciosa. Por fim,
desaparece por trás dos tanques da destilaria e o pátio volta a ficar sozinho debaixo do sol. Armando olha
aquilo com o corpo todo, principalmente com o peito, onde sente um peso de pesadelo. Sacode a cabeça
várias vezes, seus olhos desfocando-se na paisagem.
Depois de passar as costas da mão na testa, os lábios quase fechados de secura, Armando finalmente vê
o quadrilátero coberto de paralelepípedos polidos. Tudo limpo como se o ano fosse demorar ainda para
ter seu início.
De repente vira-se e encara o interfone com um desejo assassino de espancá-lo. Aproxima-se da
escrivaninha e pressiona o botão vermelho.
− Dona Iolanda!
A secretária não demora a responder, Pois não, doutor Armando, mas o mel de sua voz não adoça a
irritação do chefe. Dona Iolanda, mandei que a senhora me convocasse o Ademar para minha sala, que
providenciasse alguém para me baixar o toldo e alguma outra coisa que nem me lembro mais o que era.
E então, dona Iolanda? Um instante de silêncio transparente e Armando se debate entre o gozo e o
sofrimento adivinhando gotículas de suor a cobrir o buço da secretária. Ela tensa, encurralada. Doutor
Armando, o Ademar, agora, percorre as entradas pra fiscalizar a segurança, como o senhor mandou. Me
disse que já, já está aqui. Sim, mas e o toldo? Já pedi que alguém subisse da oficina, doutor Armando. Já
deve estar chegando. E aquele Adão, que hora mesmo que a senhora marcou a entrevista com aquele
baderneiro? Às onze, doutor Armando. Pois então liga pra esse sujeito e diga pra ele vir às dez. E avisa a
Rita de Cássia que vou chegar atrasado. Ela que vá se virando com os convidados.
Vai desligar o interfone, mas uma idéia começa a circular em volta de sua cabeça. Mais uma coisa: quem
é que está na engenharia? Deve ser o doutor Thiago. Hoje é dia dele. Pois veja quem é e mande subir até
a minha sala. Com urgência, dona Iolanda. Já estou providenciando, doutor Armando.
Ao soltar o botão vermelho, Armando ocupa com o corpo todo sua cadeira imperial.

*
Um tal muro é o que pode isolar no mundo um espaço exclusivo para seu império, território seu, o lado de
dentro. Mas Armando examina com atenção um longo trecho do muro e seu coração volta a confranger-
se aflito A idéia que circula em torno de sua cabeça finalmente se impõe, exigindo mudanças no projeto
inicial. Não são umas tantas questões de custo que vão reduzir sua segurança. Gastaria toda sua fortuna
para conservar o poder, que é o poder de conquistar a fortuna. Para isso é preciso construir a cada
cinqüenta metros uma guarita com visão total dos dois lados: o de fora e o de dentro. A idéia completa
proporciona-lhe uma satisfação de que precisa, neste momento, para manter sua paz, então o sorriso que
ensaia repuxa sua boca para o lado esquerdo, um sorriso torto, e em seus olhos aparece um brilho de
atávica selvageria, uma alegria de predador.
E esse Thiago, agora, onde anda escondido, que não aparece?
Nestas últimas duas semanas, Armando acabou conhecendo cada pedra do caminho entre a tensão e o
relaxamento, mas conhecê-las tem sido de pouco proveito, pois continua tropeçando nelas toda vez que
passa. Carrega os ombros e a nuca doloridos como se estivessem suportando um peso muito grande, e
ele sabe bem de que resulta a dor, mas não tem como evitá-la. Respira fundo três vezes e solta os
membros tentando relaxar. Precisa da imaginação para jogá-los por cima de uma nuvem leve e branca,
mas a imaginação, arisca, foge pela janela e mergulha na claridade do sol, uma claridade agressivamente
gloriosa.
Armando corre até a janela porque está desconfiado de que a nuvem vermelha mudou de lugar e,
olhando de testa franzida e olhos apertados como filtros, ele descobre que, por cima da sebe de hibiscos,
bem longe, além das primeiras quadras do canavial, algum veículo se aproxima levantando poeira. Dá um
murro na soleira da janela e solta um palavrão que rola até o carpete como corpo morto, aquela
impotência. De que adianta pagar salário astronômico para um chefe de segurança, se ele some e não
atende a uma convocação? Olha por cima do ombro e encara rancoroso o interfone. Estará seu próprio
funcionário, o Ademar, envolvido com os baderneiros?
Só depois de alguns segundos opacos, em que tudo se esconde atrás da claridade, é que Armando vê os
paralelepípedos polidos ricocheteando o sol. Nunca os vira assim vagos, por baixo do céu, que não fosse
entressafra, no ressono de máquinas e caminhões, no descanso da terra e de seus habitantes. A
labareda sobe-lhe então do estômago para a garganta, e Armando lembra-se do médico e suas
catástrofes apregoadas. Mesmo então, concentra-se todo no mundo lá fora, à espera de um homem que
venha atravessando o pátio com uma caixa de ferramentas que puxe seu ombro para baixo, seu ombro
direito. Nada se move, entretanto, como se o mundo fosse uma tela antiga, pintada por algum artista mal-
humorado. Uma tela apenas em seu valor de exposição.
E esse Ademar, por onde será que anda?
Tudo aquilo, o mundo e seus desequilíbrios, a paisagem estática e dura, a demora no cumprimento de
suas ordens, aquilo tudo invade os olhos de Armando, argueiro incômodo, então ele pisca muitas vezes,
testa enrugada de aborrecimento. No lado esquerdo do pátio, acácias e fícus mantêm-se imóveis dentro
de suas copas de sono morno por cima de uns poucos automóveis. Tanta calma é uma hostilidade que
Armando não suporta. Bate a testa na vidraça e volta-se para o interior da sala, onde pode criar com as
próprias mãos um tempo só para si.
O olhar de seu pai é sombrio, pendurado na parede acima de sua cadeira de alto espaldar. Talvez
acusador. Tanto sacrifício, lutas intermináveis, para um dia ser apenas um olhar severo pendurado numa
parede. Então Armando olha com pressa para fora, porque essa idéia começa a arder-lhe no estômago.
O sol já se ajeita inteiro no carpete − um brilho.
Ora viva, finalmente, exulta Armando, alguém por mim nesta terra. Acabava de ouvir o estalido seco do
interfone e a voz de dona Iolanda, em cujos lábios rolam aquelas cinco sílabas doces como caramelos.
Doutor Armando! Ele pára quase encantado e espera que ela repita o chamado para então atender. Ouve
com paciência a história, mas no fim explode, Oh, não, dona Iolanda! Pelo amor de Deus. Mas que merda
é isso?! O Ademar pensa que está brincando de mocinho. Que droga! Ligue pra ele e ordene que mande
os meninos embora, mas sem violência. Ora, mas que merda, se incomodar com moleque chupando
cana, dona Iolanda, como se não tivesse mais nada pra fazer! E diga a ele que compareça imediatamente
à minha sala. Tem algum veículo se aproximando por dentro do canavial. Preciso saber do que se trata.
Sim senhor, doutor Armando. Eu já disse a ele que viesse logo, mas vou repetir. E esse porra do Adão,
dona Iolanda, vem ou não vem? Ele disse que vem, doutor Armando. Mas quando?! Prometeu que estaria
aqui às dez horas. Pois então, dona Iolanda, já são dez e meia. Que merda, hein, nada funciona nesta
droga! E o sol, a senhora não disse que mandava alguém abaixar o toldo, dona Iolanda? Desculpe, doutor
Armando. Já liguei cinco vezes pro almoxarifado e eles disseram que alguém estava a caminho.
No banheiro, Armando abre a torneira e deixa escorrer o jato de água fria nas mãos, que leva algumas
vezes ao rosto para enxugá-lo daquele pânico pegajoso e quente. Melhor não houvesse espelho na frente
da pia, porque não gosta nada do rosto arruinado em que se descobre.

*
Todos morando nas quatro colônias que envolvem a usina. É assim que Armando vê o futuro. Ninguém
de fora, do exterior. Ninguém de olhos escondidos, de pensamentos cheios de fumaça, nenhuma seita
exótica, incompreensível e perigosa. Para além das colinas mais próximas, ninguém mais trabalha no
muro: ele, agora, ainda sem as guaritas, recorta do mundo um território que os braços de Armando
podem abranger. Por isso ele se alonga, muito grande, e boceja cansado, como se fosse relaxar.
O sol, em silêncio, escala a escrivaninha e ali se instala, deitado e luminoso. Armando repele brusco tal
contato e pressiona o botão vermelho do interfone. Grita duas, três vezes o nome da secretária, que
finalmente responde, Pois não, doutor Armando. A senhora está demitida, dona Iolanda, sumariamente
demitida por descumprimento do dever. Espera algum tempo a resposta, que não acontece. Dona
Iolanda, com a voz menos áspera, a senhora está me ouvindo? Ela assoa o nariz antes de responder que
sim, sim, que está ouvindo, mas que não tem culpa de nada. Tudo bem, mas não precisa chorar, agora.
Esqueça o que eu disse.
Armando enxuga o rosto com uma toalha de papel, mas o rosto continua úmido.
Que horas são, dona Iolanda? Quase refeita do susto, a secretária informa, Onze e cinco, doutor
Armando. E aquele bosta do Adão, aquele canalha, não ia chegar às dez? Foi o que ele prometeu. Pois
então anote aí, dona Iolanda: quero o Ademar imediatamente na minha sala; mande alguém baixar o
toldo; preciso falar com o Thiago nos próximos cinco minutos; finalmente, veja o que aconteceu com este
merda do Adão. Entendido? Ela responde timidamente, com medo de descumprir seu dever.
Para ir até a janela, é necessário fazer a difícil viagem que separa o interior do exterior, um lago de sol
por onde Armando penetra sem se dar conta, totalmente concentrado na nuvem de poeira que se move
por cima e para além dos hibiscos. Já não há mais dúvida de que se trata de um veículo, e o chefe da
segurança ainda não foi encontrado.
O pátio, observa Armando, sempre vazio, parado, como um animal morto, uma coisa repugnante. Volta
apressado para sua cadeira. Onze e cinco. A hora penetra-lhe pelas narinas misturada com o ar. Mesmo
com a respiração precisa tomar cuidado. Poder dormir e só acordar quando tudo não passe de pesadelo
antigo.
Ouve o estalido metálico do interfone e atende ansioso: Então, dona Iolanda, alguma coisa resolvida?
− Doutor Armando.
Ele espera alguns segundos, mas a secretária não continua. Fale, dona Iolanda.
− Doutor Armando, o Adão está do outro lado do muro e o portão não abre mais.
*

Um dia apagado

Vagaroso e barulhento, sobe o portão de aço. Enquanto isso, preso ao banco pelo cinto de segurança, e
tendo botado o motor a funcionar, Arlindo tamborila sua impaciência no volante. Detesta sair de casa assim
atrasado. Fica tudo parecendo mais lento, o tempo escorrendo em caldo grosso e quente, como ali atrás o
portão, e a camada fina de suor que lhe umedece o corpo mancha a roupa, cheira mal. Horrível a sensação
de sujeira, quando tem ainda um expediente inteiro pela frente. E o pior de tudo será enfrentar aquelas
dezenas de olhos alegres de tanta malícia e acusação por tê-los deixado muito tempo de pé parados,
esperando do lado de fora.
A claridade da manhã deveria subir das lajotas de cerâmica, seu brilho, como todos os dias, ao som do
motor e das roldanas em suas canaletas. Mas não sobe. A claridade azul da manhã está escurecida ou suja
e Arlindo tamborila sua impaciência no volante, não pode, portanto, perceber a diferença. Sua impaciência
empana-lhe a visão. Não fosse a posse das chaves, pouca importância chegar vinte minutos, meia hora
atrasado. Deveria ter-se recusado à função, poderia, mas teria sido refugar uma parcela de poder e a
vaidade foi quem decidiu.
E que dizer, então, do cinto de segurança atravessado no peito, amassando a lapela do paletó?
São tantos os desconfortos, pensa Arlindo ao tamborilar sua impaciência no volante. Mas só repete o
pensamento fragmentado e abstrato, sem um suporte empírico, apenas como constatação vaga de sua
forma de existência. Submerso em água, mergulhador, sem o poder de isolar-se dela: mero figurante ou
quase objeto em seu meio, o ambiente desconfortável.
Arlindo não percebe logo o fim do ruído. Está mais concentrado no desconforto de estar dentro de si, tão
mergulhado no ambiente como se não existisse. Então o silêncio salta para o interior de seus ouvidos e ele
se assusta alegre. Engata a marcha a ré, finalmente, mas não sai do lugar. O retrovisor está coberto de
escuro: o dia apagado. Na frente da garagem, fechando-lhe qualquer possibilidade de saída, aparece aquela
mancha imensa, uma parede: o caminhão mudo em si, suspenso por pneus gigantescos, tão enormes e
parados que parecem ter nascido e crescido ali naquele lugar.
Enquanto espera que o portão da garagem seja desimpedido, Arlindo aperta as duas mãos no volante,
retesa os braços, conta lentamente até cinco e solta. Repete a pressão, estica novamente os braços e solta.
Respira fundo para então retesar o corpo todo. Solta o ar e os músculos ao mesmo tempo. Começa a sentir-
se melhor: uma tontura leve na testa, acima dos olhos, uma volúpia, os músculos frouxos, finalmente
aliviados.
Mas então, como é que é?, ele pensa olhando para trás, descaradamente corajoso. Observa ainda pouco
atento o caminhão embrulhado em sua lona, preso pelo correame. Sinal de vida nenhum. Então abre a porta
e solta-se por sua vez de suas ataduras para conferir de perto a situação. Aproxima-se sem muita cautela,
examinando os detalhes. Percorre toda volta da carreta. Está moribundamente fria, vestígio nenhum de que
aquilo tudo alguma vez já fora capaz de algum movimento. Pára na frente do caminhão, desafiador como se
parasse de pernas abertas, e anota a chapa. Percebe então o grotesco da ironia: um caminhão parado sobre
si mesmo. Guarda o papel no bolso e encara o relógio de pulso uma primeira vez. Volta a examinar o
mostrador porque não consegue mais reter a hora. O tempo já está sem nome, é apenas uma agonia.
O caminhão jaz como as coisas que nascem da eternidade: inteiramente só.
Na entrada de volta à garagem, Arlindo grita o nome da mulher, que mostra a cabeça na porta. O grito
fica pendurado por pouco tempo nas paredes cobertas de escuro, antes de escorrer para o ralo. Ele tira do
bolso o papel com a chapa anotada e então percebe que não sabe para que servem aqueles números, tão
inúteis como os do relógio. Marta e seus olhos escondidos no vão estreito da porta nada entendem do
alvoroço: o suor da camisa azul, quando ele joga o paletó sobre o banco do carro, a bola de papel que ele
arremessa na calçada como uma vingança pesada.
O marido se aproxima de Marta com as mãos vazias espalmadas para perguntar e agora, o que é que eu
faço?, mas ela também não sabe o que ele deve fazer, pois nem sabe qual a causa de todo este alvoroço.
Arlindo aponta o caminhão dormente com o queixo e a boca por trás de lábios apertados, e o espanto de
Marta se resume a bater a porta com violência contra os olhos suplicantes do marido, depois de dizer que
você é mesmo muito atrapalhado.
Arlindo desaperta o nó da gravata e os lábios, um pouco sôfrego, porque acha o mundo um lugar
apertado, com escassez de espaço. Desse mesmo jeito caminha até a calçada como se estivesse com
pressa, então solta um grito para cima, na direção do céu, na esperança de que uma voz saia por fim das
nuvens, grandiosa, medonha, capaz de explicar o mundo. Não espera por muito tempo, pois sua esperança
já nasce como coisa morta, bastante desgastada. Encaminha-se lento e desconfiado até a frente da carreta,
num movimento cheio de sestro, de cálculos. Olham-se mais uma vez, de longe, e há um início de
entendimento.
A rua está quieta, com seu ar de feriado, e a ausência de testemunhas ajuda a investigação de Arlindo,
minuciosa e esperta.
Aproxima-se do caminhão e sobe no estribo, mas isso é apenas um exercício para os músculos
entorpecidos, sem qualquer significação além de si mesmo, de sua condição de exercício. Mesmo assim
contempla-se admirado no vidro da janela. É um lugar onde jamais imaginaria ver-se refletido, e o imprevisto
do fato parece mostrar-lhe quão imponderáveis são os passos da existência humana. Tudo que existe é feito
de sustos, feixes de sustos. Descobre incrédulo, então, as marcas recentes de sua própria tentativa de
choro, agora secas em seus leitos, e decide que a brisa é suficiente para apagar qualquer vestígio do
passado.
Arlindo arregaça as mangas da camisa e tenta forçar a porta do caminhão, agora que já são velhos
conhecidos. O trinco cede com um pequeno estalido, e ele invade a boléia, sentando-se em seu novo poder.
Ao primeiro ronco do motor, os dois estremecem felizes e rumam para o sul.
*
O zelador

1
O zelador entrou na cozinha empapado de suor e fome e, quando abriu as duas folhas da veneziana,
ficou sendo meio-dia em todo aquele espaço em que a noite estava escondida. Só então viu a porta aberta
da geladeira. E era um vazio o que estava lá dentro. Um vazio iluminado com reflexos nas paredes de
esmalte branco. Ainda úmido. Num primeiro momento, pareceu-lhe um cérebro, aquele vão, porque não
conseguia organizar uma única idéia. Mas percebeu logo que não era a geladeira que latejava, com o
sangue correndo desesperado.
Apoiou na tampa da mesa as duas mãos abertas como patas, imaginando que era preciso entender o
que acontecera. E imaginou. Uma imaginação, quando pega forte o pensamento, pode parecer mais
verdadeira do que a verdade. Por isso não teve mais dúvidas: o culpado era seu companheiro Ego, o
cachorro. Há dias que ele vinha percorrendo os arredores sem encontrar caça alguma. Voltava sempre sujo
de barro, com a barriga no espinhaço.
O entendimento foi muito claro porque a janela permitia a comunicação entre o que estava dentro de casa
com o mundo de fora, inclusive aquela claridade do sol por onde descia a imaginação. E Ego, apesar de
companheiro e amigo, pertencia ao lado de fora
O suor tornou-se azedo e a fome, aguda. Assim o zelador ia sentindo seu corpo, enquanto organizava o
entendimento. O cachorro, sem auxílio de algum acaso, nada conseguiria, mas os móveis e utensílios
daquela pensão, que lhes foi designada, há muitos anos vêm sendo usados apenas pelo tempo, que a
ninguém perdoa, sejam os seres humanos ou seus apetrechos. Quando lá chegou, três meses antes, foi
a primeira impressão que teve da vila toda. Nada fechava direito, nada se conseguia abrir completamente.
Não se lembrava de ter tido muito cuidado com a porta naquela manhã quando saiu para o trabalho. O
cachorro devia ter encontrado alguma facilidade.
Ele sempre nutriu um orgulho que chegava a ser mórbido por ser zeloso com tudo. Foi citado diversas
vezes em relatórios da empresa por essa razão: a causa de seu orgulho. Mas não existe um único ser
perfeito, pois a perfeição é uma idéia e ele era um ser existente, concreto. Também não era. Ao fechar a
porta da geladeira, talvez não tivesse tido o cuidado suficiente. Acontece. Isso, contudo, não era motivo para
ter sofrido uma tal traição.
Como estivesse muito confuso, resolveu fechar as duas folhas da veneziana e acender a luz. As duas
ações lhe exigiram movimentos de pernas e braços que, por instantes, o acalmaram. Então, apesar do
suor que manchava de azul-escuro vastas áreas de sua camisa azul, arredou uma cadeira e sentou-se à
mesa. Era uma mesa grande, com tampa de fórmica cinza, onde fazia as refeições todos os dias desde
que chegaram à vila.
*
Tinha acabado de receber, das mãos do Gerente Geral, a Ordem de Serviço. Não ousou reclamar de
seus superiores, apesar de ter visto logo que era uma vila muito distante e em péssimas condições de
conservação. Seu antecessor fora um velho funcionário da Zeladoria, que jamais conseguira passar da
Classe D. Nos últimos tempos, já não se importava muito com o estado geral da vila.
Deixou o prédio da Administração um tanto frustrado, pois esperava uma promoção que não tinha vindo.
Sua idade, foi o que lhe disseram sigilosamente, operava contra ele. O tempo não passava sobre o zelador
ou passava sem muita pressa. Começou a odiar sua idade. Desde o momento em que botou o pé direito no
primeiro degrau na descida da escadaria, sentiu que alimentava um rancor marrom contra aquela sua idade.
Parou na calçada, esperando que o trânsito diminuísse, quando viu surgir a seu lado, rebolando as ancas,
um pequeno sol de focinho arreganhado e dentes à mostra. Era um baio a 22juda22s-lo daquela frustração.
Na sua espécie, pensou, é tão jovem quanto eu na minha. E em seguida viu-se dentro dos olhos redondos e
escuros. Estalou os dedos para o jovem cão, que o entendeu imediatamente. Enrolou-se, então, em suas
pernas, trêfego, pedindo afago. Ego, murmurou o zelador, acariciando sua cabeça. E o nome não foi uma
invenção, mas uma descoberta, porque o jovem cão parou de pular e, abanando a cauda, olhou com muita
simpatia para seu novo amigo.
Só ao despedir-se do cachorro, para atravessar a avenida, foi que percebeu o quanto seu futuro
companheiro já estava gravado em seus olhos. Não era muito tarde para o almoço, e sua matula lhe seria
entregue, de acordo com instruções recebidas, somente na manhã seguinte. Levou-o consigo até o
restaurante mais próximo. “Levou-o” podia muito bem ser tão-somente a expressão de um pensamento
maquinal, produto muito mais de um hábito antigo do que de alguma elaboração mental, mas ele demorou
algum tempo até chegar a essa percepção. Se é que chegou. Talvez Ego não tenha sido levado, mas tenha
simplesmente acompanhado seu novo amigo, ou seja, os dois foram juntos. Suas relações, desde esse dia
já distante, sempre foram um tanto ambíguas. O zelador nunca soube direito quem conduzia e quem era
conduzido.
Entrou e sentou-se na primeira mesa que encontrou, sem olhar para lado nenhum com medo de ver
entrando o cachorro, mas principalmente com medo que pensassem que era seu. Os cachorros, em todo
o país, estavam proibidos de entrar em restaurantes. Por isso ficou muito surpreso ao perceber o amigo
sentado sobre as patas traseiras e todo ele preso dentro de sua cor de banana madura, bem ali, do lado
de fora na frente da porta. Ego com suas orelhas caídas. Como houvesse entre ambos uma distância
razoável e já tivesse passado o perigo de ser expulso por comportamento inconveniente, o zelador pôs-se
a 22juda22s-lo detidamente, o que até então não tivera tempo de fazer. O cão estava imóvel e atento.
Apesar de suas orelhas caídas, ele tinha uma fisionomia jovial e festiva, como de alguém que sente
grande prazer no fato de estar vivo. Além desse detalhe, o zelador observou também que suas patas
eram desproporcionalmente grandes, e isso significava que sua estatura estava incompleta. O que mais o
encantou, todavia, foi a bolinha preta e úmida no vértice do focinho. Era um detalhe que harmonizava-se
muito bem, por contraste, com o restante baio de Ego.
O rapaz pediu ao garçom que trouxesse feijão branco com muitos pedaços de lingüiça, além de pão e
vinho. Uma costeleta de porco ensopada com legumes e, para completar, uma travessa com batata sauté
e guisado de carneiro. O garçom anotou o pedido e não se decidia a sair do lugar, medindo
incredulamente o autor de um pedido tão exagerado. Um casal que entrava no restaurante enxotou o
cachorro para poder passar e o zelador sentiu-se subitamente irritado, pois pareceu-lhe que seu pedido
reforçado tinha sido, enfim, inútil. Mas Ego não demorou para postar-se novamente na mesma posição,
no mesmo lugar. E sua fisionomia jovial, apesar das orelhas caídas, recompôs-se imediatamente.
Depois de servido, o zelador esperou que o garçom se afastasse e, tomando um pedaço de lingüiça na
ponta dos dedos, jogou-o na direção da porta. Ágil e certeiro, o jovem cão abocanhou a comida, que, em
dois segundos e com três movimentos rápidos da mandíbula, conseguiu engolir. Isso foi muito divertido e
então o almoço transcorreu tranqüilo, quase alegre. Os dois não pararam de comer até que as travessas
estivessem vazias. O rapaz ainda arrotou satisfeito e com prazer o gosto do vinho antes de se levantar e
dirigir-se ao caixa para entregar o vale. Mesmo tendo demorado alguns minutos sumido dentro do
restaurante, ao chegar de volta à porta, lá estava Ego sentado sobre as patas traseiras. Esperando por
seu companheiro.
2
O principal problema relacionado àquele roubo era sua promoção. Seu tempo de serviço na Zeladoria,
segundo o regulamento, autorizava-o a nutrir tal aspiração. Com um pedido antecipado de alimento, ele
sabia, adeus qualquer esperança de passar à Classe C. As vilas onde trabalharia seriam do mesmo nível
da atual, que não era diferente das anteriores. Muito distantes, mal cuidadas, em regiões inóspitas.
O zelador, apesar de jovem, apresentava sulcos profundos no rosto, principalmente os que desciam das
aletas até os cantos descaídos da boca. O futuro era agora uma névoa só em que tinha engolfado sua
vida. Limpou o suor da testa com a mão direita e percebeu que a mão estava ainda suja de terra.
Levantou-se e foi até a pia, onde lavou o rosto, os braços e as mãos. Assim estava melhor, talvez agora
conseguisse descobrir qual a melhor atitude.
Ao passar de volta pela janela, empurrou irritado as folhas da veneziana, que bateram com um ruído seco
na parede do lado de fora. Onde andaria o ladrão?, perguntava seu olhar que se perdeu nos dois
sentidos da rua. O sol claro e quente arrancava da superfície do calçamento limpo uma dança refulgente
e frenética, de raios vivos que se agitavam no ar como fantasmas presos à terra pelos pés. Magoados
pela claridade intensa, seus olhos desviaram-se para dentro da cozinha. Apagou a luz e tornou a sentar-
se.
*
Só ele acordou com o canto de um galo vizinho do alojamento. Pretendia partir antes que o sol
esquentasse, porque nos momentos mais frescos do dia − crepúsculo matutino ou vespertino − as
caminhadas rendem mais. Preferiu não acender a luz com medo de acordar alguém, por isso teve de tatear
procurando a calça, que vestiu rapidamente, e a camisa. Estava um pouco frio, àquela hora, mas logo
ganharia a estrada, a passo largo, e em pouco tempo seu corpo estaria aquecido. Jogou a mochila nas
costas e enfiou os braços pelas alças, que se cruzaram em seu peito. Para não tropeçar em nada, seus pés
se arrastaram até o corredor formado pelas camas. Então pôde caminhar normalmente, pois era um caminho
conhecido.
Abriu a porta para o ar escuro e gelado da madrugada, mas retrocedeu um passo quando um vulto claro,
não muito grande, saltou à sua frente. Não foi difícil reconhecer na criatura que pulava, em demonstrações
de alegria, Ego, seu mais recente amigo. Agachou-se no pequeno patamar para retribuir as festas com que
tinha sido saudado. O refeitório ficava a menos de dois quarteirões, distância que os dois companheiros
percorreram em passo acelerado. Brrrrrrr, fazia o zelador vibrando os lábios e esfregando as mãos nos
braços. Ele estava sentindo frio, por isso só pensava no café quente que o esperava.
Por causa do frio, a porta de vidro do refeitório permanecia fechada e foi com alguma sensação de culpa
que o zelador a manteve assim. Do lado de fora, sentado sobre as patas traseiras, Ego espiava através do
vidro aquele mundo iluminado que ele muito vagamente entendia. Enquanto passava a manteiga no pão, o
rapaz refletiu descontente que o mundo não era contínuo, como às vezes parecia, mas compartimentado,
cheio de barreiras. Ao olhar para o companheiro, percebeu que ele abanava a cauda, esperançoso. São os
impedimentos, pensou o zelador ao arrancar com os dentes um bocado do pão. Quase todos inexplicáveis,
mas aceitos passivamente. Então, como começasse a ficar acabrunhado com seus próprios pensamentos,
resolveu basear-se na razão e concluiu que os cachorros são mais resistentes ao frio, por isso a porta
poderia ficar fechada.
Terminado o café, passou no guichê, onde assinou a requisição, recebeu sua matula de viagem e saiu
com passo duro para a madrugada. O volume no bolso da calça era o pão que Ego esperava receber, pois
adivinhava que seria seu.
Mais de uma légua da cidade, a estrada enveredava por um descampado ainda ocupado por algumas
sombras, quase todas baixas e imóveis. O zelador parou na cabeceira de uma ponte porque estava escuro e
ele não conseguia ter certeza de ser uma ponte segura. Então seu corpo soube que estava submerso num
silêncio quase absoluto. O rio deveria passar muitos metros abaixo, pois parecia parado, sem existência. Ego
chegou em seguida, focinho colhendo cheiros do chão, e não hesitou em atravessar a ponte em seu trote
balançado. O rapaz não esperou melhor prova de segurança e percorreu o trajeto exatamente por onde
passara o amigo.
O pequeno vulto esbranquiçado sumiu na estrada e o rapaz riu daquele entusiasmo infantil, imaginando
as duas orelhas caídas sacudindo-se com o trote de Ego. Poucos passos à frente, estava subindo a lomba
de um pequeno outeiro porque seus passos encurtaram e a mochila tornou-se mais pesada, mas encarou a
ladeira com entusiasmo certo de que lá do alto veria enfim a mancha leitosa anunciando o nascimento do
Sol, recuperando seu senso de direção.
Era a primeira viagem que o zelador fazia acompanhado e isso era motivo de uma satisfação imensa. Na
medida em que se aproximava do alto do outeiro, ele teve essa consciência ao ver o pequeno vulto no meio
da estrada à sua espera. Sua viagem podia ser aliviada por metas mais curtas, metas que poderia atingir
com poucos passos. Parou ao lado de Ego para lhe fazer uma carícia e então olhou em redor procurando o
anúncio do Sol, que não apareceu. Foi por causa de uma brisa úmida descoberta ali no alto que ele
entendeu: a chuva não estava muito longe.
Na descida da ladeira os passos se tornaram mais largos e rápidos, não só porque tudo estava mais leve,
ou parecia estar, mas também porque não tardaria muito a chover. O jovem cão, que teve esse
pressentimento, soltou-se à frente em carreira alucinada, entrando no mato à esquerda e à direita, pulando
barranco a cima, descendo e atravessando rapidamente a estrada, assim por mais de um quilômetro.
Finalmente o zelador sentiu os primeiros pingos de chuva e não via como se proteger. Não que se sentisse
satisfeito, claro que não; mas, ante o que lhe parecia inevitável, começou a treinar seu conformismo.
Ego tinha sumido há algum tempo e o jovem não sabia mais exatamente para que lado. Enfim, quando
lhe parecia que a chuva ia despencar furiosa em seguida, o cachorro pulou no meio da entrada e voltou para
o mato emitindo um latido agudo e prolongado. Era a primeira vez que o zelador ouvia aquilo, mas entendeu
o latido como linguagem e correu atrás. Não andou mais de vinte metros mato a dentro, quando as nuvens
se despejaram fragorosamente do céu. Ele havia acabado de entrar para baixo da aba de uma rocha, onde a
chuva não o alcançava. O lugar era escuro e o zelador não se descuidava de animais perigosos. Contudo,
ao ver a naturalidade com que Ego passeava de um lado a outro da caverna, farejando todos os cantos,
sentiu confiança e desatrelou-se da mochila, que largou no fundo da caverna.
Apesar da chuva, cuja intensidade mantinha-se imutável, pela boca da caverna entrava uma
luminosidade ainda baça, mas que já permitia distinguir pedras e árvores, a extensão sem fim da planície.
Agachado ao lado da mochila, o zelador tateou o solo e percebeu que era terra seca e um pouco macia.
Aproveitou, com o propósito de descansar e sentou-se no chão. A seus pés, Ego abanava a cauda,
querendo demonstrar contentamento. Os dois já atingiam, apesar do curto convívio, um grau bastante
razoável de entendimento. Quase ao mesmo tempo os dois deitaram-se de corpo inteiro.
A terra era solta e macia. O ar, ali dentro, era tépido. O rapaz distendeu as pernas com prazer e bocejou.
A mão esquerda, a mais limpa, esfregou os olhos, abertos com violência, há umas poucas horas, pelo canto
de um galo e pela idéia da viagem. O zelador conhecia as normas de segurança e as seguia com bastante
rigor, como tudo o que fazia profissionalmente. Além das normas, que rezavam onde, quando e em que
condições poderia um funcionário entregar-se ao sono, havia também suas fobias particulares. Ele sentia um
medo mórbido, sobretudo de animais peçonhentos. Tinha pavor de cobras e aranhas, principalmente; isto é,
daqueles contra os quais qualquer força poderia tornar-se inútil. Permitir que o sono, abruptamente cortado
naquela madrugada, aos poucos voltasse, entorpecendo-lhe os membros e apagando-lhe a vontade, isso já
foi uma demonstração cabal de sua confiança em Ego. Cochichar o nome do amigo e perceber que ele havia
respondido sacudindo a cauda, foi a última coisa que o jovem fez antes de adormecer.
Os sonhos do zelador eram sempre sobre o passado. Ele não sonhava o futuro. E seu passado, apesar
de escasso, dava-lhe matéria para misturar as vilas por que passara, as estradas que tivera de enfrentar, os
trabalhos e canseiras próprios de seu ofício. Ele sonhava agora, enquanto a chuva continuava caindo forte,
com a igreja de uma das últimas vilas por onde andara. Era o interior de uma igreja com mesas redondas
cobertas por toalhas xadrezes, como dos bares de que também cuidava. E dentro da igreja estava tudo
muito escuro e ele toda hora tropeçava nas mesas redondas. Os tocos de cigarro estavam amontoados em
uma bacia de alumínio e o vento poderia espalhar tudo novamente. Ele precisava chegar à sacristia para
consertar o forro, que ruiria a qualquer momento. Por isso estava com pressa, mas ele andava arrastando os
pés, querendo evitar aquelas mesas com toalhas vermelhas com riscos brancos.
O cão latiu e o rapaz sentou-se assustado. Seu companheiro olhava para fora, atento, por onde
provavelmente passara algum animal. Fora suficiente, contudo, um latido para que as coisas se arrumassem
por ali. A chuva não tinha diminuído muito e as nuvens tornavam-se mais claras, de uma claridade leitosa. O
zelador afagou as orelhas caídas do amigo e voltou a dormir.
Quando acordou, finalmente, saciado de sono, abriu muito a boca e alongou os dois braços, em cruz,.até
tornar-se o imperador daquela caverna. Sentiu o corpo inteiro mergulhando em um bem-estar poucas vezes
experimentado. A seu lado, Ego observou os movimentos do amigo com curiosidade e muita atenção: aquele
tamanho que poderia ser uma cruz parecia estar maior do que antes. Então o zelador teve o pressentimento
de que ficaria com fome muito em breve e quis descobrir no dia em que momento estavam, para confirmar o
que já praticamente adivinhava, mas as nuvens escondiam qualquer vestígio do Sol, por onde ele andaria? A
chuva tinha deixado um friozinho alegre no dorso do ar, e, à frente da caverna, abria-se uma várzea coberta
de arbustos muito verdes e brilhantes. As sombras que tinha visto ao chegar eram formas nítidas, agora, que
ele podia identificar. Grupos de canelinhas e aroeiras emergiam daquela vegetação compacta, com suas
copas denunciando a chuva recente. O zelador espichou o pescoço e examinou as nuvens, que nada lhe
disseram. O céu e a terra estavam igualmente silenciosos e sombrios, mas não taciturnos. Teve de concluir
sozinho com seu organismo que não estava muito longe do meio-dia e sentou-se ao lado da mochila para
almoçar.
Com três, quatro dentadas, Ego engoliu a parte que lhe fora destinada, e ficou tenso, pronto para saltar
novamente, como aprendera a fazer no dia anterior, mas o amigo, mastigando quieto, não olhava mais para
ele. Grunhiu agitado, correu até o fundo da caverna, latiu para alguma sombra ou para nada, voltou a sentar-
se sobre as patas traseiras, observando o rapaz, que mastigava quieto. Sua fome era muito maior do que a
ração recebida. Sua fome era maior do que ele mesmo.
O zelador mastigava quieto, movimentando muito a mandíbula, com a mente ocupada em cálculos nada
alvissareiros. A chuva, além de atrasar a viagem logo no começo, tinha por certo embarrado a estrada,
tornando a progressão mais lenta. Dificilmente chegariam, antes da noite, à cabana indicada no mapa como
primeiro pouso. Se assim fosse, teriam de dormir ao relento, com a possibilidade de novas chuvas. Para
piorar, a matula era calculada para alimentar apenas uma boca, durante seis dias. Qualquer atraso ou
descontrole no consumo era infração que não se admitia, por causa das conseqüências disciplinares e dos
prejuízos físicos.
Os olhos de Ego, apesar de pedintes, eram também acusadores. Pelo menos foi o que sentiu o zelador
ao ter de ajudá-los. Agora, só na hora de dormir, ele pensou enquanto erguia a mochila e enfiava os braços
pelas duas alças. Foi com alguma irritação que ele saiu da caverna e, pisando a terra encharcada, virou a
cabeça e olhou para trás. Sentado à boca da caverna, Ego, decepcionado, fingia ter desistido da viagem.
À medida que avançava pela estrada barrenta, mais encolhia seu coração. Várias vezes olhou para trás,
preocupado, sem avistar o companheiro, aquela pequena mancha amarelada. Parou, algumas vezes, à
espera, mas o corpo latejava a energia recuperada na caverna e batia o remorso da demora, então
prosseguia seu caminho. Um quilômetro adiante, curvado ao peso de sua tristeza, foi surpreendido pelo
galope faceiro de Ego, que o ultrapassou com o focinho erguido, medindo as árvores que margeavam a
estrada.
Abraçadas em seu espinhento desespero, as copas de dois maricás se escureciam de anus, que se
puseram a miar irritados com a aproximação dos viajantes. Foi a festa que o jovem cão estava esperando.
Investiu contra o bando dando saltos ridiculamente infantis, pois esperava atingir os pássaros em pleno vôo.
E seu latido, que até então não tinha passado de um balbucio, tornou-se vigoroso, verdadeiro grito de guerra
de um caçador.
Foi fácil, então, restabelecerem a paz entre si: era um dia de festa. E a fome, causa do mal-estar que
mantivera o cachorro à porta da caverna fingindo ter desistido da viagem, não demorou muito a ser satisfeita.
Ego ergueu o focinho, tenso, concentrado, inspirou o ar com sofreguidão e em várias direções, para, em
seguida, precipitar-se no mato por uma ribanceira. As folhas secas do chão, apesar da chuva da manhã,
anunciaram com estardalhaço a passagem do invasor. O rapaz ainda andou cerca de cem passos antes de
sentar-se em uma pedra à espera. Assim como assim, pensava ele, não seria antes do dia seguinte que
poderiam compensar o atraso daquela manhã.
Pouco depois, vindos do mato, o zelador ouviu os latidos de seu amigo. Por cima das copas, meia dúzia
de corvos assustados batiam as asas com pressa.
Apesar dos transtornos daquele início de viagem, o jovem sorriu, pois estava contente de não haver
perdido o companheiro. Aproveitou o tempo desperdiçado para examinar o mapa, fazer seus cálculos, em
que se considerava muito habilidoso. O mais difícil era estabelecer em que momento do dia estavam. Mesmo
assim, estabeleceu que se haviam passado aproximadamente duas horas do meio-dia. Mais uma vez o céu
não pôde ajudá-lo.
Não demorou muito para que Ego reaparecesse na estrada. Vinha sujo de barro, exalando um fedor
nojento de carniça, mas com a barriga tão grande que mal conseguia trotar. Tinha o ar estúpido e feliz de
quem praticou uma proeza.
Entre os dois, aos poucos se estabelecia um entendimento silencioso como base do acordo tácito
necessário ao convívio. Naquele resto de tarde não houve mais parada, e o trote lento de Ego economizava
energias. Ele não saiu mais do lado do companheiro, que não sentia mais a catinga do cão.
Finalmente chegaram a uma ponte assinalada no mapa, e o zelador concluiu que em menos de cinco
horas não alcançariam a cabana do primeiro pouso. A escassa claridade do dia tornava-se mais fria e rala −
era preciso encontrar logo lugar onde pudessem dormir. Para isso atravessaram a ponte, uns cinco palmos
acima da água barrenta do córrego inchado. Andaram cerca de duzentos passos, lentamente, examinando
as margens da estrada. Finalmente debaixo de uma jovem mangueira de copa densa e baixa, havia uma raiz
alta formando, com um bloco de granito, um cubículo protegido, onde estariam abrigados do vento, e a
chuva, no caso de voltar, não os pegaria totalmente desprevenidos. O zelador examinou o local com um ar
de sossego. Para ele era indiferente saber ou não quem tinha passado por ali, um dia, sabe-se lá quando,
deixando ao lado da estrada uma árvore para garantir o futuro. Preso a seu presente, à possibilidade de
sobreviver e de executar o que a Zeladoria lhe determinasse, dispensava-se de qualquer reflexão sobre os
significados e as razões. Julgava, mesmo, uma ocupação inútil, pensar no passado ou no futuro. Como
segredo inviolável, mantinha um certo desprezo pelos superiores da Zeladoria que o incumbiam de
embelezamentos desnecessários nas vilas. Aquilo, na sua opinião, chegava a ser um pouco degenerado.
Flores nos jardins, pintura nova em paredes firmes, não prejudicadas pelo tempo, vasos sobre as mesas,
enfim, uma infinidade de providências que não ajudavam a conservar coisa alguma. Jamais ousara fazer o
menor comentário sobre o que pensava.
A falta de palha seca, nos arredores, foi um transtorno superado com galhos de vassoura de varetas finas
e folículos abundantes. O terreno, assim forrado, tornou-se tão macio quanto a cama em que dormira na
noite anterior. O zelador sentou-se e abriu o farnel. Ego o observava sem muito interesse. Tocou-lhe, afinal,
um pedaço de lingüiça, que ele não desprezou. Ao ver que o jantar havia terminado, o jovem cão espichou-
se entre as pernas do companheiro, ele também cansado, à espera da noite.
O segundo dia de viagem eclodiu dos latidos de Ego, que, iluminado por um sol de outono, perseguia
com muito empenho o bando de anus encarapitados no alto da mangueira. O zelador abriu os olhos
assustado e sentou-se quase num pulo. Já era dia. Depois de espantar aquela súcia ruidosa para além de
um carrascal espinhento, Ego voltou com a língua pendurada, muito vermelha e molhada. Vinha num trote
dominador, com um ar compenetrado de quem está consciente de seu poder. Recebeu sua parte da ração
matinal e observou seu companheiro, enquanto este se aprontava para a partida. Por fim, convencido de que
nada mais receberia, ganhou a estrada correndo, como se fosse logo ali buscar o Sol.
Umas poucas nuvens no céu, muito brancas, esgarçadas; uma brisa leve e fresca, trazendo notícias da
chuva do dia anterior, era o que faltava para que pudessem recuperar um pouco do tempo perdido.
Foi um dia sem novidades. A estrada, mais arenosa, estava em boas condições, o tempo mantinha-se
firme. Alguns dos marcos assinalados no mapa estavam bem visíveis, outros, que não apareciam, tinham
provavelmente sido tragados pelo mato, que crescia exuberante. Lá pelo meio da manhã, passaram pela
cabana que lhes deveria ter servido de pouso na primeira noite. Apesar da curiosidade, continuaram a
caminhada sem parar.
Além das estrepolias do cachorro, toda vez que topava com algum bando de aves ou alguma preá que
ousava atravessar a estrada em sua frente, nada mais distraía a atenção do zelador.
Só no fim da quarta jornada, o sol beirando a borda do mundo, recuperaram todo o atraso do primeiro dia:
chegaram à choupana indicada como quarto pouso. Puderam então descansar. Naquele dia, como nos
anteriores, poucos acontecimentos mereceram atenção. Um deles, contudo, foi suficiente para deixar o
zelador muito satisfeito com seu jovem companheiro. Uma preá corria pela relva à beira da estrada e só
quando estavam bem próximos ela embarafustou pelo seu túnel. Ego disparou em sua perseguição. Ora, ele
era muito grande para correr pelos pequenos túneis de capim e macega, o caminho das preás. Ele pulava,
então, o corpo perpendicular, pulava muito alto e gania desesperado. Saltando daquela maneira,
embrenhou-se pelo macegal que acabava em um banhado coberto por uma relva muito verde. Corria para a
direita, em seguida voltava pulando, sumia por trás das taboas do charco, reaparecia soltando ganidos
isolados e muito agudos. Subitamente desapareceu e parou de latir. O zelador não quis esperar pelo
desfecho: jamais descuidava de seus deveres. Mais de um quilômetro à frente, o rapaz foi alcançado pelo
amigo − barro até as orelhas, a barriga enorme e a língua vermelha pendurada. Era o fim do remorso por
andar obrigando o pobre animal a uma dieta de fome.
A viagem prosseguiu sem contratempos. Ego perseguia passarinhos dando pulos sem saber que não
tinha asas. O zelador, mesmo com o passo largo, pensava que fora uma grande sorte ter arranjado aquele
companheiro para suas viagens.
Era meia tarde do sexto dia e os dois, já um tanto alquebrados, subiam uma ladeira em curva. Nos dois
lados da estrada, algumas poucas árvores baixas e ralos arbustos. No ponto mais alto do outeiro, onde a
curva morria em um longo trecho reto em declive, o zelador soltou um grito que rolou até a várzea e
ricocheteou nos morros mais ao fundo. Lá em baixo, num descampado que um pequeno córrego cortava
quase em linha reta, seu destino. Uma vila do porte de todas as outras em que já fizera a manutenção, com
sua igreja acanhada protegendo a praça central e duas, três ruas com suas casas modestas mergulhadas
em profundo sono.

3
De repente, teve uma idéia como quem recebe uma pancada na cabeça. Primeiro, agitou-se na cadeira,
onde seu corpo não encontrava conforto: um líquido azedo rolando em suas veias. Então levantou-se de
si, sem uma solução muito nítida; convencido, contudo, de que fazia parte de suas obrigações uma
atitude violenta. Abriu a porta e apagou a luz.
O que pôs o zelador em movimento, foi a lembrança de que, além de um mês inteiro consumindo umas
batatas-doces, que ainda se encontravam em algumas hortas cuja manutenção já fizera, umas poucas
raízes de mandioca, raízes muito adultas, mas ainda consumíveis, e algumas folhas envilecidas de
hortaliças que renitiram no meio do mato, além disso, era forçoso, de acordo com os regulamentos, que
registrasse o fato em seu próximo relatório. E não era pouco ter de confessar um descuido, para ele que,
há anos, vinha realizando cada tarefa com esmero, empenhando-se nos mínimos detalhes para merecer
uma promoção.
O sangue, de azedo, passou a gelado. E o corpo todo sentiu o frio irradiado pelas veias. Desceu os
degraus da escada sentindo náusea, com as mãos trêmulas. Seus olhos, também congelados,
transformaram a paisagem numa página muito antiga em branco e preto. Na medida em que andava,
parecia afundar-se num cenário enevoado, onde sombras imóveis tinham perdido as arestas e a nitidez.
Quase tropeçou no cabo da enxada com que estivera trabalhando pela manhã, e que se escorava na
parede do galpão. Foi então que a idéia explodiu num clarão em sua cabeça.
*
Apesar da fisionomia ainda meio infantil, Ego já estava com o corpo de um adulto grandalhão. Suas patas
desde muito avisavam que isso acabaria acontecendo. Os dois já tinham passado por três vilas, com
poucos reparos a fazer, o que lhes exigiu menos de um ano e meio. O convívio contínuo do zelador e de
seu companheiro, criara entre eles uma relação de confiança mútua e um sentimento muito próximo de
uma amizade irredutível.
Na segunda vila em que estiveram juntos, um dia de inverno, o zelador percebeu que não se lembrava
mais dos sons produzidos pela garganta humana. Não que isso lhe fosse muito necessário, mas poderia
transformar-se em uma deficiência funcional em determinadas circunstâncias. Estava escovando o piso
de um salão e surpreendeu-se a pigarrear. E aquilo era um barulho vivo que lhe fazia bem aos ouvidos.
A partir desse dia, sempre que seus ouvidos sentiam falta de ruídos humanos, caminhava duro, com os
calcanhares ferindo o piso, provocando um barulho seco, ritmado, de alguma coisa que se move em rumo
certo sobre a Terra. Outras vezes, pigarreava, inventava tosse, e finalmente começou a falar com Ego. O
cão, já dono de seu tamanho, mirava-o com a cabeça adernada ora para a esquerda ora para a direita.
Nas diversas viagens que juntos empreenderam, os dois se complementavam. O cão, por ter o sono mais
leve e alguns sentidos mais aguçados, era o guardião das noites, sempre vigilante, muito responsável. O
jovem, detentor das provisões, muitas vezes via-se na contingência de saciar a fome do amigo.
Era a terceira vez que enfrentavam juntos uma estrada. Ego esticou a cauda, estatuado à frente do
zelador, focinho movimentando apenas o botão preto das narinas. Subitamente soltou um latido, um
único de enfiou-se pelo mato em carreira desabalada. Seu latido, quando recomeçou, vinha abafado pela
distância e pela vegetação densa que escondia os troncos das árvores. Cipós, arbustos, taquaris, uma
confusão de ramos entrelaçados que tornavam a passagem quase impossível.
A viagem transcorria tranqüila até ali, havia tempo de sobra para atingirem o próximo pouso. O zelador
resolveu então esperar. Conhecia muito bem cada gesto de seu companheiro. Sabia que não era uma
perseguição festiva, como quando ele espantava os anus ou qualquer outro bando de pássaros. Não era
o latido usual da diversão. Havia uma concentração em seu olhar, uma tensão que lhe corria do focinho à
cauda, que não podia ser de medo, um sentimento estranho, mas que era de apreensão por algo
desconhecido, talvez, talvez a certeza de uma tarefa excessivamente pesada.
Subitamente os latidos cessaram e o zelador teve a impressão de ouvir sons como de um cão rosnando,
até ouvir nitidamente os ganidos de dor de seu companheiro que se repetiam cada vez mais próximos e
mais lastimosos. Quando o cão pulou de volta para a estrada, o zelador percebeu o que havia
acontecido. Havia três espinhos de ouriço grudados em sua boca. Eram longos e finos, com seu corpo
amarelo e liso na parte inferior e uma espécie de penugem cinza da metade para cima.
Foi difícil mantê-lo parado, mas a dor exauria suas forças e o cão finalmente submeteu-se. O mato, em
volta, fazia um silêncio curioso e cheio de medo. Uma tal gritaria ali, naqueles ermos, era uma coisa
nunca vista. Os pássaros fugiram para longe, sozinhos ou em bandos, os pequenos animais não ousaram
aproximar-se.
Para o jovem, o espinho de ouriço não era nenhuma novidade, mesmo assim, já estava suando antes de
começar sua intervenção. Ele sabia que a retirada daquelas setas agudas causava, no início, maior
sofrimento do que deixá-las paradas onde estavam. Conhecia histórias de espinhos que andavam, a cada
movimento do portador, por causa de suas farpas viradas como em anzol. Era necessário aumentar a dor
para conseguir o alívio. E ele pôs-se a trabalhar. O cão grunhiu de dor, tentou escapar-se, arranhou com
suas unhas as pernas do companheiro, mas estava suficientemente preso e a cirurgia em alguns minutos
teve fim.
Livre dos espinhos, ainda sangrando, Ego tentou lamber as feridas, um costume atávico que não pôde
pôr em prática, agora, porque suas feridas eram dentro da boca. Parou de ganir e ficou algum tempo
parado, como que meditando na maldade animal que acabava de conhecer. De vez em quando
chacoalhava a cabeça pois sentia ainda as ferroadas que o haviam torturado. O zelador, paciente e
penalizado, afagava a cabeça do companheiro em sinal de solidariedade.
Não demorou muito para que o jovem se levantasse e enfiasse os braços pelas alças da mochila.
Conhecendo o gesto, Ego pôs-se também de pé e reencetaram a caminhada. O cão trotava tristonho ao
lado do amigo e no restante daquela tarde não se importou mais com passarinho algum.

Nenhum dos pequenos episódios que foram tecendo, ao longo do tempo, a mútua confiança pôde
naquele momento valer ao cão. Educado na rigidez dos regulamentos, o zelador não conhecia a
tolerância, vício que aprendera a banir de sua vida desde criança. Quase tropeçou no cabo da enxada
com que estivera trabalhando pela manhã, e que se escorava na parede do galpão. Foi então que a idéia
explodiu num clarão em sua cabeça. Jogou ao ombro o cabo da enxada, roliço e polido, como se
retornasse à limpeza do pátio da escola. Nem que estivesse agora no inferno, pensou, o traidor estaria
seguro.
Sua primeira idéia foi a de voltar para a frente da casa e percorrer a rua de uma ponta à outra. Não
poderia estar muito longe, arrastando todo aquele peso. Seu ouvido sensível e esperto, contudo,
reconheceu o alarido que joões-de-barro e bem-te-vis faziam na orla do mato que servia de proteção aos
fundos da horta. O zelador conhecia as vozes dos pássaros e voltou pelo caminho que passava ao lado
do galpão.
Não teve de caminhar muito para avistar a mancha cor de banana madura, imensa e imóvel. Ao lado, um
montículo de terra, onde deveria estar escondido o que Ego não conseguira devorar. Lambia as patas
dianteiras, o cão, provavelmente lavando-as depois do trabalho terminado. Não precisou virar a cabeça
para ver quem se aproximava, pois era um passo que já conhecia desde sua infância. Então sacudiu a
cauda feliz.
O zelador tomou o cabo pela extremidade e, com o olho da enxada, amassou a cabeça entre as duas
orelhas. As quatro pernas apenas estremeceram e o mundo foi encoberto por um lençol de silêncio. Nem
pássaros, nem vento, nada mais tinha voz.
Aproveitando a terra fofa da cova recém-fechada, o zelador enterrou o cão por cima de sua comida.

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