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Título: O triunfo de Angélica

Autor: Anne e Serge Golon


Título original:
Dados da Edição: Editora Nova Cultural 1989
Publicação original:
Gênero: Romance Histórico
Digitalização e correção: Nina
Estado da Obra: Corrigida

Nos quase trezentos anos que se seguiram ao descobrimento da América, os


franceses tentaram de todas as formas estabelecer um império colonial em terras do
Novo ^ Mundo. Desde o início do séc. XVI, quando a ação isolada de corsários e
comerciantes os levou a explorar o litoral americano, até o final do séc. XVIII,
quando tiveram de se retirar, cedendo ao avanço do imperialismo inglês, os franceses
chegaram mesmo a estender seus domínios por um considerável território — no
Brasil, nas Antilhas, na América do Norte.
O auge da presença francesa na America registrou-se durante o reinado de Luís
XIV, quando o Canadá passou a ser uma colónia oficial, administrada diretamente
pela Coroa francesa. O comércio e o povoamento foram incentivados, fundaram-se
novas cidades, firmaram-se alianças com os nativos.
Mas a terra nunca produziu as imensas riquezas ambicionadas, e a sólida presença
inglesa na região acabaria por frustrar seus sonhos coloniais. Depois da Revolução,
praticamente findava o poderio francês no Novo Mundo.
Angélica e seu amor, o Conde Joffrey de Peyrac, viveram o auge do domínio
francês em terras americanas.
"Depois de tudo o que passei", conclui Angélica, "o céu bem que me deve a
felicidade!"
Num derradeiro gesto de esperança, Angélica correu o olhar pelo vasto horizonte ao
longo da fortaleza destruída de Wapassu. Além, muito além das montanhas geladas do
Canadá, do outro lado do oceano, o Conde Joffrey de Peyrac a esperava.
Numa espécie de vazio causado pela saudade e pela angústia, sua mente rodopiou
numa embriaguez vertiginosa. Ilusões! Vivera apenas ilusões! Sonhara com um Novo
Mundo. Trabalhara para construí-lo. Amara todos aqueles lugares: Katarunk,
Wapassu, Gouldsboro, Salem, Quebec. Todos, um a um, deixados para trás.
O futuro que a aguardava era ainda um mistério, mas levaria consigo todas aquelas
histórias com que preencher horas inteiras de numerosas vigílias e travessias.
Reencontraria os amigos, e poderiam brindar e beber alegremente. Sua vida e sua obra
não se apagariam. A lembrança de tantos momentos carregados de significados
permaneceria como uma soberba promessa de felicidade.
Agora seu desejo era navegar para a Europa num belo navio, numa viagem sem
atropelos nem tempestades. Lá encontraria um esposo cheio de expectativas, para em
seus braços se lançar, prometendo-se mutuamente uma vez mais: dali por diante,
nunca mais iriam separar-se!

O triunfo de Angélica
Anne e Serge Golon

Mais uma vez separada do marido, o Conde Joffrey de Peyrac, que partira para a
França com o governador da colónia, o Sr. de Frontenac, Angélica não tinha a quem
recorrer. Numa cabana perdida na imensidão gelada do interior do Canadá, diante das
ruínas do que fora a fortaleza de Wapassu, destruída pelos canadenses comandados
pelo Conde de Loménie-Chambord, ela não sabia o que seria de sua vida e das três
crianças que a acompanhavam: seus dois filhos gémeos, os bebés Rodrigo Rogério e
Gloriandra, além de Carlos Henrique, o enjeitado filho de Jenny Manigault, que
tomara a seus cuidados. Os perigos pareciam brotar de toda parte: até sua filha
Honorina fora obrigada a buscar refúgio entre os iroqueses, perseguida pela sanha
vingativa da diabólica Duquesa Ambrosina de Maudribourg. A Diaba da Acádia e seu
aliado secreto, o Padre Sebastião d'Orgeval, seus piores inimigos, como que
ressurgiam das trevas. Quem viria em seu socorro: o Arcanjo da profecia? Como, se
seu filho Cantor — identificado com o tal Arcanjo — acompanhava o irmão,
Florimond, nas homenagens e divertimentos da corte do Rei-Sol, Luís XIV, em
Versalhes, do outro lado do oceano?

A VIAGEM DO ARCANJO

CAPÍTULO I

Cantor de Peyrac despede-se da amante e enfrenta os piratas

O arcanjo estava no encalço da Diaba, desde a antecâmara do rei.


Um pano de tapeçaria que se desloca, uma porta aberta para uma passagem estreita,
dois ou três degraus a galgar. A crónica fala daqueles que conduziam do salão da Sra.
de Maintenon à sala de bilhar, aonde o rei se dirigia todas as noites para jogar uma
partida.
Um pajem o precedia, para segurar o batente de tapeçaria, damas mergulhavam em
seus brocados e uma delas se levantava.
Dois olhares, um de ouro, o outro de esmeralda, que se cruzam. E na sombra dos
labirintos de um palácio, Versalhes, se engolfa o ar salino de um litoral perdido da
América, o odor de podridão do peixe que seca ao sol, uma mulher que urra ajoelhada
diante de um corpo trespassado por um arpão: "Zalil! Zalil! Não morra!..."

"E Ela, tenho certeza", pensara Cantor de Peyrac. No mesmo instante, enfiara um luís
de ouro na palma de um lacaio próximo a ele.
— O nome dessa mulher que acaba de cruzar comigo!... O lacaio não sabia, mas,
estimulado pela fortuna que acabava cair-lhe do céu, não precisou mais de um minuto
para voltar e msinuar-se na assembleia que formava um círculo em torno ao bilhar do
rei, e sussurrar ao ouvido do belo pajem, tão generoso:
— Sra. de Gorrestat.
— Seu esposo? Qual é? Seus títulos? — retorquiu-lhe o pajem, doando-lhe. um
segundo óbolo.
Dessa vez o lacaio abandonou por uma hora seu posto de porta-tocheiro, calculando
que, se aquela deserção arriscava atrair-lhe admoestações, custar-lhe-ia menos do que
o que tinha a ganhar a serviço daquele jovem senhor.
Antes do final da partida do rei, estava de volta e confiava a Cantor, junto ao seu
ouvido, tudo o que conseguira recolher.
Aquela senhora era a esposa do senhor governador do Nirvanais, recém-chegado a
Versalhes por convocação do rei. Corria o boato de que esperava uma nomeação
importante. Sua esposa, pessoa de qualidade, discreta e agradável, agradara à Sra. de
Main-tenon, que a recebia entre suas damas, o que para elas constituía a melhor
maneira de ficar junto ao Sol.
Soube que o casal já se preparava para embarcar no Havre para o Canadá, do qual o
Sr. de Gorrestat fora nomeado governador.
Já no dia seguinte, soube que se tratava exatamente da "viúva" do velho Parys, que
se casara com o Sr. de Gorrestat.
Tudo se encaixava.
Se queria munir-se prontamente do dinheiro para uma viagem além-mar, Cantor
precisaria encontrar um expediente. Ele compreendeu. Não havia mais nem um dia,
nem mesmo uma hora, a perder.
Correu à casa da Sra. de Chaulnes, sua amante. Encontrou-a inquieta por não ver o
seu jovem amante havia quarenta e oito horas. Sem querer dar-lhe as razões de sua
brusca decisão, Cantor avisou-a que tinha de embarcar urgentemente para a Nova
França e que, com esse intuito, teria necessidade de uma soma de vinte mil libras.
A Sra. de Chaulnes pensou que o mundo se fendesse em dois.
Deu um grito terrível, cujo eco não podia voltar-lhe aos ouvidos sem que se sentisse
petrificada de vergonha, de aflição e de dilacerante concupiscência. Um grito de
animal frustrado.
— Não!... Não você!... Jamaisl Não me deixei...
Ele a olhou com um estupor indignado.
— Não sabe então, minha cara, que nada dura eternamente?
Eis por que nos é preciso colher o fruto e saboreá-lo quando ele nos é dado... Você o
sabia quando me recebeu em seu leito. Não existe nada perene no mundo!... Tenho de
partir!...
Ela o imaginava sozinho, galopando por caminhos, atacado por bandidos, afogado...
— Mas o mar!... — gemeu.
Ele riu. O mar?... Isso não era nada. Algumas semanas ruins balançando ao sabor
das ondas, sonhando, cantarolando, ligado à sorte da nave que o conduz, uma questão
de paciência!
Sua juventude resplandecente inspirou-lhe o arrependimento de não ter sabido levar
as coisas da vida alegremente, quando tinha a idade dele.
— Você vai encontrá-lo?... O animalzinho dos bosques?... Cantor franziu o sobrolho.
Uma sombra passou-lhe pelo rosto.
— Não é certo que eu o encontre — respondeu, preocupado.
— Ele o chamou?
— Não sei...
— Não descontente o rei...
— Meu irmão tratará disso...
Trocavam algumas palavras, enquanto a Sra. de Chaulnes abria cofres, depois
caixinhas, e derramava na escarcela estendida de Cantor luíses de ouro, que nem se
dava ao trabalho de contar.
— Não o deixarei partir...
— O dever não se discute, minha cara.
— Mas afinal! O que se passa? Sua família lá na América está em perigo?...
— Pior que isso!
Ela deixou cair a cabeça em seu ombro, cobrindo-o de lágrimas.
— Meu belo sire, pelo menos, diga-me... quem vai abater?
— O Mal!...
Ele se levantou. E ela se afastou. Via-o apenas através de um nevoeiro.
Ia esperá-lo, rememorando seus gestos, seus raros sorrisos, suas palavras tão sábias.
"Minha cara, não sabe então que nada é eterno?..."
— Obrigado — gritou ele. — E reze! Reze por mim! Corria para a porta.
— Não! Você não pode partir assim... sem me dizer adeus!...
Num impulso confuso, Cantor voltou e tomou-a nos braços. Enquanto "ele a
beijava, ela soube que ele era um homem, um homem que teria tanto sonhado
encontrar na aurora de sua vida! Com o qual teria sonhado tanto viver, "dia após dia!
— Espere, meu querido... Subitamente veio-me uma ideia... Dois diamantes de
brincos pingentes, pérolas de um colar, que poderá negociar.
Entregou-os a ele, encheu-lhe as palmas das mãos, fechou-lhe os dedos sobre as
jóias como se ali estivesse seu pobre coração, que ela lhe confiava. Ele beijou as mãos
generosas que seguravam as suas.
— Obrigado. Obrigado. Falei com meu irmão para que a reem
bolse o mais cedo possível.
Ela gemia, já sem lágrimas.
— Não. Fique com tudo... Será um pouco de mim que perma
necerá com você.
Ele se lançou aos seus joelhos como da primeira vez, abraçando-a.
— Doce amiga, seja bendita!...
A vida toda ela conservaria a lembrança daqueles braços jovens enlaçando-lhe os
quadris, daquela fronte juvenil contra seu ventre.
Morreria com esse viático.
O único que guardaria, como o único tesouro de toda uma vida.
Desvairada de dor, fez disso um juramento.
Seu único viático de amor!
A perseguição levou Cantor de Peyrac até o Havre-de-Grâce, um porto da
Normandia.
O navio que levava o governador provisório da Nova França, sua esposa e sua
comitiva, fizera-se ao mar dois dias antes. Só restava esperar que a tempestade que
acabava de se formar sobre a Mancha os deportasse até o golfo da Gasconha e os
atrasasse, dando a Cantor tempo para conseguir uma passagem para si mesmo.
Encontrou dificuldades. Frota e flotilhas de pesca sazonais, navios de comércio,
encarregados do correio e de passageiros para a Nova França, já haviam embarcado
todos em coro. As primeiras partidas efetuar-se-iam aproximadamente nas mesmas
datas. Acabou por encontrar uma embarcação, retida por reparos indispensáveis de
última hora. Era um patacho, mas, ao saber que a intenção do capitão era percorrer
pelo caminho mais direto o Saint-Laurent, Cantor ofereceu uma boa quantia para
subir a bordo. Sua experiência das travessias e dos navios ensinara-lhe que uma casca
de noz rangente, provida de uma tripulação restrita, mas formada por sujeitos que se
encontram o mais das vezes no mar, pode levar vantagem quanto à velocidade sobre
os grandes monumentos de três pontes e vinte e cinco canhões.
Soube também, pela cara dos marujos, que sua aparência e seus luíses de ouro
exibidos não deixariam de suscitar intenções muito precisas em seus espíritos, como
roubá-lo e assassiná-lo.
Na segunda noite da viagem, duas silhuetas se insinuaram na despensa onde dormia,
arremessaram-se sobre a forma ali estendida e, enquanto se ocupavam em lanhá-la a
golpes de facão, dois socos violentos, aplicados na parte traseira de seus crânios,
fizeram-nas adormecer de vez.
Depois Cantor de Peyrac foi despertar o capitão e pediu-lhe que o acompanhasse a
fim de verificar os danos que haviam pretendido causar-lhe, e cuja única vítima fora o
manequim de panos e trapos estirado em seu lugar.
— Capitão — disse-lhe —, quero crer que você é um homem honrado e que não
tem participação neste complô, mas surpreende-me que não se empenhe mais,
conhecendo seus homens, em manter a boa reputação de seu navio. — E continuou:
— Estou em suas mãos, mas você está também nas minhas. Proponho um negócio. Se
eu chegar vivo às praias do. Canadá, dar-lhe-ei a metade do que contém esta bolsa
cheia de ouro. Se me matar para ficar com tudo, não apenas será obrigado a dividir
com seus piratas, mas não poderá desfrutar os poucos luíses que lhe sobrarão, pois,
daí em diante, seus dias estarão contados. Indiquei a minha família em que navio
embarcaria. Em qualquer canto do mundo aonde você fosse doravante, os homens de
meu pai o encontrariam e lhe cortariam o pescoço, no mínimo. Ocultar-lhe-ei seu
nome a fim de que não alimente o projeto de me manter cativo para pedif resgate.
Enquanto isso, um dos marinheiros que, mais hábil, conseguira se libertar dos laços
um pouco apressados com que Cantor o paralisara,..veio em socorro do capitão,
armado com sua faca. Cantor voltou-se e descarregou sobre ele a pistola à queima-
roupa.
— Você matou um de meus homens — disse o capitão, após contemplar o cadáver
por algum tempo, como se não estivesse muito certo de que estivesse ali estirado a
seus pés.
— Quem não sabe matar não pode viver — replicou seu jovem interlocutor. — Eis
uma verdade que meu irmão mais velho me repete todas as manhãs, e ambos fomos
instruídos a esse respeito por nosso pai e seu exemplo. Por isso, capitão, que essa
intervenção lhe prove a seriedade de minhas palavras. Reflita bem. A metade do ouro
que trago comigo em troca de minha vida, ou todos os meus bens e minha vida, e
você não gozará muito tempo de minha fortuna adquirida. Sem contar que seus bandi-
dos de marinheiros tentarão tirá-la de você. Portanto, proteja-me contra esses piratas
com todo o poder e domínio que detém sobre este navio, onde a lei dos homens o fez
o único mestre a bordo, depois de Deus. E começarei por lhe sugerir que, quanto
àquele, culpado de ter-se ausentado da vigia a fim de praticar seu crime, seja colocado
na golilha, de acordo com a pena prevista, pena leve, além daquela, mais
recomendada, de ficar três dias no porão.

As previsões do jovem navegador mostraram-se corretas.


O patacho, com o vigor do vira-lata face aos cães de raça, evitava os aguaceiros,
pés-de-vento, piratas e calmarias podres, e corria a boa velocidade pelas rotas
ordinárias.
Foi uma travessia fácil, daquelas que entretém o tédio do marinheiro.
O jovem loiro, sentado contra a amurada, soprando uma flauta de pastor grego e
mergulhando durante horas na contemplação das imagens, continuava a tentar os
bandidos, que quiseram obter suas riquezas por vias menos diretas. Enviaram-lhe um
homem de Dieppe chamado Léon, o Muçulmano, porque ficara dez anos cativo em
Argel entre os bárbaros e habituara-se a usar turbantes e aproveitar-se de rapazes.
O sorriso meigo com que abordou Cantor congelou-se quando ao ajoelhar-se perto
dele, sentiu a ponta de uma adaga espetar-lhe as costelas.
— Que quer de mim? — perguntou o jovem loiro.
O homem de turbante procurou fazer-se entender. Cantor segurava-o com uma mão
e com a outra continuava a cortar-lhe a respiração com a ponta do punhal.
— Conhece o regulamento de bordo "Faltas-Castigos"? Quais são os termos para
aquela que se prepara para pedir-me que cometa com você?
Cantor recitou com uma voz monocórdia de aluno:
— Falta: sodomia; pena: estrangulamento e lançamento ao mar ou desembarque
numa ilha deserta, às vezes, sem água...
— Nosso capitão fecha os olhos para esses jogos...
— Posso pedir-lhe que os abra. Paguei-o para isso.
O pobre Muçulmano repelido saiu, indo confirmar a seus confrades que não havia
nada a fazer. Nem sequer conseguira ver a bolsa com os luíses de ouro. Em
compensação, pela japona entreaberta do loirinho, vira um verdadeiro arsenal. Duas
pistolas, um cutelo e uma machadinha como as dos índios. E mais a espada pendente
do boldrié. E devia ter uma adaga em cada bota.
Desse modo, a seguir, tudo permaneceu calmo. Estavam na outra vertente da
viagem. Mais próximos do grande continente da América que da Europa familiar.

CAPITULO II

As aparências de um sonho triste — Cantor esgueira-se ao Convento das


Ursulinas

Na Terra Nova, confirmou-se que o navio que levava o governador, sua esposa e
escolta, continuava em Quebec, como fora previsto. Nãò havia notícias de pessoas
que tivessem descido na escala e que tivessem embarcado para a baía Francesa.
Tranqiiilizou-se em relação à família.
Em Tadoussac, deixou o patacho, após acertar suas dívidas com o capitão. Uma
alegre sensação de ter voltado ao país nasceu dentro dele ao aspirar o perfume das
fogueiras, das peles, e o do rio, mais insosso, era repousante, após tantos dias na
salmoura. No entanto, por muito tempo a água era ainda salgada, muito antes de
Quebec. Entretanto, apesar de apreciar as sensações amigáveis da natureza, não
procurou dar-se a conhecer. Uma neblina antecipando o outono, bastante fresca,
permitia-lhe manter uma aba da capa sobre o rosto, e nas embarcações que tomou
emprestadas para subir o Saint-Laurent, a maior parte do tempo dormiu com o chapéu
enterrado até o nariz.
Diante da ilha de Orléans, sabia já que faria o possível para manter-se incógnito,
enquanto não tivesse sondado o ambiente, ouvido os comentários, sabido como
Quebec acolhia o governador interino e sua esposa, que ia exibir todas as suas graças
de Benfeitora para conquistar a capital. Seus sentidos alertados dar-lhe-iam uma visão
diferente da cidade.
Ereta em meio à bruma, a cidade, tão bela com seus sinos e campanários, apareceu
tocada por um morno encanto como uma cidade submersa. Contudo, não estava
deserta nem adormecida.
A agitação dentro e em torno dela pareceu-lhe fantasmagórica.
Os sinos dobraram.
Prestando atenção às palavras dos transeuntes, enquanto subia a encosta da
Montanha, soube que era a Sra. Le Bachoys que ia ser enterrada.
Um calafrio percorreu-lhe a espinha até a raiz dos cabelos.
Os crimes começavam.
Quando chegou à praça da catedral, percebeu, escondido num canto, o cortejo que
passava. Vestidas de preto, as pessoas caminhavam lentamente, salmodiando. A garoa
ocultava as copas das árvores e o cimo do campanário e do domo. As cerejeiras
silvestres à beira do riacho tinham a cor do sangue. Já era outono.
Tomou a direita, atravessando a praça, sempre com o rosto escondido entre a gola
da capa e o barrete, um chapéu camponês que comprara na viagem por causa de suas
abas largas, à moda antiga, que protegeriam melhor tanto do sol e da chuva como dos
olhares indiscretos.
Começou a subir a Rue de la Petite-Chapelle. A Taverna do Sol Levante estava
fechada. A tabuleta molhada parecia chorar.
Sua intenção era bater à porta da Srta. d'Hourredanne, mas as persianas estavam
fechadas. A casa parecia vazia. Um latido abafado sugeriu-lhe que só estavam ali a'
criada cativa inglesa e a cadela cananéia.
Ia por lá, pois sabia, tinham-no avisado, que seu glutão viera rondar por ali, inverno
após inverno. "Ele vai adivinhar que estou chegando."
Mas, ao mesmo tempo, o lugar perdia sua realidade. A casa de Ville-d'Avray ali
estava,, o olmo e o pequeno acampamento dos huronianos nos wig&ams de casca de
árvores, com os dois atlas de bronze na relva. Mas não passava de um cenário.
Parecia inimaginável que, naquele caminho lamacento, vazio e nostálgico, sua mãe,
tão bela, tivesse andado com sua corte de crianças, de selvagens e de grão-senhores,
sempre tão ridiculamente afoitos em recolher o menor de seus sorrisos e de suas
palavras.
Tudo estava apagado. Aquilo tinha apenas as aparências de um sonho triste, cheio
de mistérios e ameaças.
Vendo um filete de fumaça diluir-se preguiçosamente no alto
da casa do marquês, saltou a rampa, passou pelo pátio e pendurou-se a uma das
janelas da grande sala, onde viu luzir o reflexo de um pequeno fogo ha lareira.
Distinguiu a criada de Ville-d'Avray —a que não quisera ficar quando soube que
não teria seu amo só para ela —, ocupada em esfregar as peças de prata como se, no
dia seguinte, naquela casa abandonada, fossem receber convidados importantes para
um lanche ou ceia.
Bateu.
Ela o reconheceu imediatamente, mas continuou carrancuda.
— Oh! Você aqui a esta hora, meu rapaz? Veio com toda a família?
— Que nada! Mas trago-lhe notícias de seu amo, que vi muitas vezes em Versalhes,
em casa do rei.
Por captar a hipocrisia das pessoas importantes e não se deixar iludir por seus
trejeitos, Cantor confiava nas pessoas simples. Criados, cocheiros, criadas se calam,
mas nem por isso pensam menos. Essa mulher, de que não lembrava nome ou
sobrenome, foi naquele instante mais próxima para ele do que todas aquelas que
pudera encontrar desde sua partida.
Que alívio poder falar com franqueza e quase sem empregar muitas palavras! Uma
mímica, um fungar, um dar de ombros... bastavam para dizer tudo e com precisão.
Ainda não terminara a terrina de sopa que ela servira ao jovem viajante esfomeado,
e já sabia sua opinião sobre a mulher do novo governador, a Sra. de Gorrestat.
Embora todas aquelas damas se congratulassem com sua vinda, se felicitassem por
sua piedade, sua generosidade infinita, sua urbanidade para com todos, a ela, Joana
Serein, nascida no Canadá, seu nariz — que ela indicava — avisava que, por trás
daquela mulher, havia algo de feio, de mau. Sua vida habituara-a a reconhecer as
feiticeiras, as verdadeiras, que têm às vezes uma carinha bonita. Seu mosquete estava
carregado, apesar de não ser bem com um mosquete que se acabava com aquelas
histórias.
— Pense o que quiser, queridinho, mas que o Diabo existe, existe... Eu nunca me
engano. Nós o encontramos entre nós como em toda parte... Lembra-se daqueles
senhores que fizeram sortilégios numa pedra preta, que o exorcista teve de ir procurar
com todo o aparato.
— Foi ela que ele viu na pedra preta — disse Cantor.
E começou a fazer-lhe a longa narrativa dos dramas e malefícios que tinham se
desenrolado certo verão nas costas da Acá-dia, e dos quais aquela mesma mulher, que
reconhecera e seguira desde Versalhes, fora a instigadora.
Longa narrativa, de múltiplos episódios, que ela ouviu sentada diante dele e, como
ele, inclinada para a frente, com os braços sobre a mesa a fim de falar mais de perto, a
meia-voz, que os conduziu do fim do dia até a noite, desfiando suas horas nos
diferentes sinos e campanários do exterior, e que Joana Serein pontuava com breves
observações.
— Não me surpreende... É isso mesmo o que está acontecendo... A cidade está louca
e como que perdida... Eis por que a Hen riqueta da Sra. de Baumont morreu.
Descobriu que houvera vários atentados inexplicáveis. Os aborrecimentos choviam
sobre as pessoas honestas como granizo.
Delfina tinha fugido e, mais grave ainda, Janine Gonfarel, a proprietária do Ao
Navio de França, desaparecera.

Inclinou-se ainda mais para a frente.


— Seria preciso saber o que atormenta Madre Madalena. O senhor governador foi
visitá-la e, pelo que dizem, ao vê-lo, a freira desfaleceu de horror...
Nesse momento, na catedral, soaram duas ou três badaladas, a hora noturna do
maior repouso e, subitamente, o jovem explorador de bosques e a mulher do Canadá
se interromperam e se entreolharam, com os sentidos alertados por mudanças sutis na
textura do silêncio noturno.
Cantor lançou um olhar vivaz para as janelas, verificando, com alívio, que ao cair da
tarde ela colocara os batentes internos. Ninguém podia, do lado de fora, vê-lo sentado
àquela mesa, onde uma grande vela se consumia numa pirâmide inchada.
Ambos pensaram ao mesmo tempo. "Eles" se aproximam! "Eles" rondam a casa!
Com um sinal do queixo, ela o intimou a levantar-se. Sem fazer barulho, desceram
às adegas. Como outrora, ali se encontravam ovelhas sonolentas e palha, na qual ele
se escondeu. A criada alojava-se a meio caminho da escada de pedra. Admirou a
presteza com que ela Vestiu a vasquinha e a touca de-dormir, enquanto ao rés-do-
chão o ruído surdo de punhos batendo sacudia a porta, acompanhado de chamados e
de injunções: "Abram!..."
Fingindo-se de mulher arrancada do sono, ela subira e, de seu esconderijo, ele ouviu
um diálogo veemente que por vezes tomava ares de discussão.
Surpreendeu-se de que a numerosa tropa que sentia em volta da casa não tivesse
ainda irrompido porta adentro e feito um revista completa.
Era, cercado de soldados do prebostado e delegados do novo governador, aquele
manhoso do preposto dos Assuntos Religiosos, encarregado de observar, no momento
da chegada dos navios, eventuais clandestinos da religião reformada, protestantes
tentando desembarcar na Nova França. Procuravam um jovem louro que ao chegar
não se apresentara no cartório para declarar sua fé católica.
A fiel guardiã da casa de Ville-d'Avray recusara-se a retirar a trava da porta e abrir.
— Isso não são modos. O que lhes deu a uma hora dessas?
Contentara-se em abrir a parte de cima da porta lateral e postar-se ali, como a uma
janela, de modo que não se podia penetrar na casa sem forçar a passagem,
empurrando-a e galgando a parte de baixo da porta, que era bem alta.
O preposto dos Assuntos Religiosos retirara-se com seus homens, afirmando porém
que poderia voltar.
Ela baixou de novo a voz.
— Ela deu ordens, ou ele deu ordens terminantes para procurar seu carcaju e matá-
lo. Homens e selvagens, por boa recompensa, estão dando uma batida, faz mais de
uma semana, nos arredores da cidade, nos lugares onde supõem estar sua toca.
Cantor sentiu-se empalidecer.
Era certamente "ela"! Se subsistira alguma dúvida sobre a identidade da Diaba,
reconhecia aquela ferocidade minuciosa para com todos aqueles que a haviam
ofendido, sobre os quais tinha de vingar-se, mesmo se fosse um pobre animal dos
bosques!...
Tê-lo-ia reconhecido a ele, Cantor de Peyrac, na antecâmara do rei, ele, que a
repudiara outrora, o filho daquela que não conseguira vencer?
— Meu glutão será mais forte que eles todos — afirmou com fervor, pensando em
Wolverines.
— Isso nem se discute! Claro! — encorajou-o. — Um carcaju, todos nós sabemos, é
muito mais maligno que um homem!
Quanto a sair da casa sem ser visto nem preso, não havia problemas.
E já que, antes de mais nada, queria encontrar Madre Madalena, pois bem! O
caminho estava livre!
Desde o tempo em que costumavam cavar o chão em Quebec e quando isso trazia
um monte de problemas e processos monstro, teria sido uma pena não se utilizar
daquela rede de toupeiras tão cómoda, quando a tempestade impedia pôr o nariz fora
de casa ou quando se temia o olho do vizinho. Bastaria lembrar a adega do Sr. Ville-
d'Avray, que dava na de Banistere, o qual tinha um processo com as ursulinas, cujas
cavações, feitas sob um terreno pertencente a ele, tinham por engano levado a seus
entrepostos.
Foi assim que, à noite, depois de ter passado pelas adegas e ter emergido em meio às
reservas de vinhos e de queijos do Convento das Ursulinas, Cantor de Peyrac
conseguiu se introduzir até o ateliê de douração da religiosa visionária.

CAPÍTULO III

Madre Madalena, em desgraça, recebe uma visita inesperada

"Eles" não acreditavam nela. "Eles" não acreditavam mais nela.


Isso desde a visita da mulher do novo governador ao Convento das Ursulinas.
Importunada, repreendida, punida, Madre Madalena, a freirinha visionária, fora
relegada ao ateliê de douração, onde devia, como penitência, trabalhar sem descanso,
sem ter o direito de falar durante o dia com suas companheiras, tendo de levantar-se à
noite para cuidar da "cola de aparas de luvas" ou do urucu e da goma-guta para fazer o
vermelhão, tremendo sobre um fogareiro, cuja chama precisava permanecer estável e
baixa.
Cogitou-se em privá-la da santa comunhão cotidiana, mas ela chorara tanto, que a
superiora teve pena dela.
— Que Deus a ajude, que Ele lhe inspire o arrependimento. Reconheça que você quis
se tornar interessante... que quis intervir na política que não lhe diz respeito...
Certamente, lamentamos pelo Sr. de Frontenac, mas você não teve habilidade.
— Minha madre, eu apenas disse a Santa Verdade. E ela, aquela que eu vi elevando-se
das águas... a Diaba!
— Basta!... Não recomece com sua mania. Esse caso já foi resolvido há muito tempo e
suas visões nos causaram aborrecimentos suficientes... sem que hoje tenhamos de
transformar o novo governador em inimigo.
Portanto, ficou ali, sozinha e sem defesa com seu pesado e aterrador segredo. Seu
coração se congelava. "Senhor, vai me abandonar?"
A cidade se transformava, como que virada do avesso, e mostrava uma máscara
oposta. Só se falava da piedade, da modéstia, da caridade da Sra. de Gorrestat.
Ela prestava atenção às tagarelices, que chegavam do outro lado dos muros do
claustro. Sozinha nesse concerto de elogios, a Sra. Le Bachoys tivera uma frase
chocante, em que se viu uma declaração de guerra, devida talvez ao ciúme, ou à
fidelidade que muitos mantinham ao Sr. de Fromenac.
Tendo alguém observado, diante da Sra. Le Bachoys, como a primeira dama da
Nova França tinha maneiras suaves, ela replicara: "A serpente também tem maneiras
suaves".
Madre Madalena ficou esperançosa.
A Sra. Le Bachoys era considerada uma "pecadora", mas isso era sinal de ousadia,
de coragem, e eis por que ela saberia resistir. Se pelo menos a pobre religiosa pudesse
falar com ela em segredo! Madre Madalena conseguiu fazer enviar-lhe um recado, a
respeito de uma encomenda de tabernáculo que os burgueses da cidade baixa
desejavam oferecer a uma paróquia da costa de Beaupré. Mas a menina que levara o
recado voltou anunciando que a boa senhora fora acometida por uma congestão... e
que temiam por seus dias. Enquanto lidava com seus instrumentos durante o dia,
Madre Madalena rezava por sua cura. Ouviu o dobre dos sinos. Dizia-se que a Sra. Le
Bachoys sacrificara-se muito pelo amor, e que aquilo um dia havia de lhe acontecer.
Ela estava morta.
O desespero e o terror invadiram o coração da freirinha.
Temia menos por sua vida, embora soubesse que um dia a "outra" voltaria para
acabar confèla, do que pelo que ia abater-se sobre o país, nem bem arrancado ao
paganismo, e ao qual consagrara sua vocação.
Era-lhe indiferente morrer.
Como não compreendera há tempos que nada havia acontecido ainda? Era isso o
que deveria ter dito aos juízes, aos confessores, quando a interrogavam e a
confrontavam com a Sra. de Peyrac. Nada aconteceu ainda! Não sejam tão
impacientes nem de ser tranquilizados, nem de concluir algo. Eles decidiram que o
caso da visão estava terminado. Ora, era agora que ia se desenrolar o drama da
Acádia, assaltada pelo demónio súcubo saído das águas. E ninguém mais esperava por
ele.
Caiu de joelhos no ateliê deserto. "Deus! Piedade!" .
Naquele halo luminoso e amendoado como a auréola de Cristo, via definir-se a
eterna imagem, a obsessão daqueles anos todos de debates e de confrontações que
sofrera, a mulher nua, de uma beleza surpreendente, com seus olhos atravessados por
sentimentos imundos, e tremia dos pés à cabeça.
"Deus, não fará nada para nos salvar?" Atrás dela, houve um leve ruído.
Voltando-se, percebeu o Arcanjo.

CAPITULO IV

A mensagem redentora do Arcanjo

Deus tivera piedade dela.


O Arcanjo da visão ali estava, o mesmo que lhe aparecera, armado com uma espada,
fazendo recuar os espíritos malignos, enquanto um monstro de dentes aguçados, que
ele parecia comandar, se lançava sobre a Diaba e a fazia em pedaços.
E, tal como observara desde a primeira vez que vira a Sra. de Peyrac, a outra mulher
que se opunha à aparição diabólica, o arcanjo vencedor se parecia com ela.
Uma onda de alegria inundou-a, como um rio que regenera uma terra árida.
Por que duvidara? Não sabia que o Bem triunfaria?
Ele se aproximou, com um dedo sobre os lábios.
— Minha irmã, eu me chamo Cantor de Peyrac. A senhora conhece minha mãef
Agora ela compreendia. Bom Deus! O senhor sabe servir-se dos homens para Sua
justiça e para socorrer os inocentes!
Sua emoção era tanta, que teve de retirar os óculos.para enxugá-los, pois estavam
turvos pelas lágrimas.
Depois a angústia apunhalou-a novamente. Se a Sra. de Peyrac se encontrava em
Quebec, estava em perigo.
Ele sacudiu a cabeça.
— Não, não tema nada. Ela está em seus domínios e meus pais ignoram que voltei à
América. Mas acorri à senhora, minha irmã, quando soube que a Sra. de Gorrestat se
dirigia ao Canadá.
— Então... Você sabe quem ela é?
— Sei.
Os lábios de Madre Madalena tremiam. Juntou as mãos e disse, precipitadamente:
— Impeça-a de fazer malefícios, senhor. É horrível. Ninguém crê em mim.
— Ninguém. E aqueles que sabem calam-se ou tremem. Silêncio! Estou'só. É
preciso silenciar. Não dizer mais nada. Vim para lhe recomendar isso e para que saiba
que estou a caminho.
— Mas... como você entrou?
— Silêncio — repetiu ele, docemente. — E preciso agir com naturalidade. Não
incite mais sua vingança... Humilhe-se... Desculpe-se... Humilhe-se... Onde ela está?
— No momento, dizem que está em Montreal.
— O que não a impede de deixar atrás de si um rastro de morte... Minha irmã, evite
encontrar-se em presença de quem quer que lhe peça para vê-la... Desobedeça à Santa
Regra, se preciso for... Senão ela conseguirá matá-la também.
— Não temo a morte.
— É proibido dar a vitória ao Destruidor — sussurrou ele —, quando se sabe... Seja
mais forte que suas astúcias... Vou ao encontro dela.

Seus olhos luziam com um brilho tão meigo e ofuscante que ela se perdia em seu
esplandor. Ao perceber que ele desaparecera, sentiu ao mesmo tempo a fraqueza e a
embriaguez que vêm a nós na convalescença, após uma longa e perniciosa enfermida-
de. Continuava a tremer, mas doravante seria forte.

CAPITULO V

Cantor em busca de seu glutão, Wolverines

Cantor abriu a porta do jardim das ursulinas. Atravessou o cercado, galgou o muro.
Não o procuravam por ali, e a neblina da alvorada era espessa. Desceu até o rio
Saint-Charles. Desconfiava que os caçadores que perseguiam seu glutão estavam por
ali. Por instantes, através dos pântanos, ouviam-se passos pesados e silhuetas
indistintas passavam por perto, chamando umas às outras. Ele respondia como se
pertencesse ao grupo, pois não o podiam distinguir com o nevoeiro.
— Encontraram o carcaju?
— Ainda não! Bicho desgraçado!...
O sol começava a aparecer e dissipar as brumas, que se diluíram numa chuva
fugitiva. Alguém gritou ao longe:
— Encontraram-no!
Cantor apressou-se, com o coração batendo e as mãos sobre as armas.
De longe, o corpo abatidój com à longa curva de pêlos dourados que lhe ensolarava
o pelame, pareceu-lhe menor, mais franzino do que aquele de que se lembrava.
"Teria se ressentido com a vida dos bosques?... Pouco habituado à natureza
selvagem, não soube defender-se?... Wolverines..."
Mas quando se aproximou bem e viu o animal meio virado, compreendeu.
"É uma fêmea. Não é Wolverines."
Ajoelhado perto do animal inerte, examinou-o.
Apesar da máscara negra de bandido, em torno de seus olhos, que tinha o poder de
assustar os índios, a pequena carcaju, com as pálpebras cerradas, tinha um aspecto tão
meigo... Seu grande corpo peludo, com a longa cauda soberba, que os assistentes co-
biçavam, contrastava com a cabeça pequena, de focinho curto. Os lábios, contraídos
numa triste careta, permitiam vislumbrar as temíveis presas dos dois lados da
mandíbula, que não tiveram sequer tempo de se descobrir para exibir sua ameaça de
defesa, pois fora apanhada na armadilha. As curtas patas dianteiras, com as garras
fechadas, erguiam-se rígidas e impotentes como braços de boneca.
Acariciou o pêlo sedoso entre as orelhas pequenas e redondas.
E adivinhou: "Sua fêmea!... Era a fêmea dele";
Cantor levantou-se, olhando à sua volta os homens silenciosos e, mais longe, os
bosques de cimos franjados de chuva perolada, onde os caçadores iam recomeçar a
perseguição a Wolverines.
"Eles mataram a fêmea dele... Mais um crime na série de crimes que vai se espalhar
na esteira da Diaba... Mas eu estou aqui, Wolverines."
Ele estava lá longe. Ou então bem perto. Vira tudo. A captura e o encarne. Jamais se
esqueceria.
Mesmo reconhecendo-o, deixaria que Cantor se aproximasse dele, daí em diante,
um daqueles humanos que haviam matado sua companheira, depois de tê-los vigiado
e perseguido a ambos, durante longos dias e noites cruéis?
Nunca se esqueceria. Nem o crime, nem aqueles que o cometeram, e havia de
persegui-los até derrotá-los, até liquidá-los, até que pudesse esganá-los, estraçalhá-los,
até conseguir pendurar no alto de um olmo suas cabeças dilaceradas, separadas do
corpo por suas garras e presas vingadoras.
Cantor voltou os olhos para os homens que o observavam. Não o reconheciam.
Sem ruído e à sua maneira peremptória, foi de um a outro dos batedores, entregando
a cada um uma gratificação, com o pedido de suspender a caçada e limitar-se àquela
caça que ali estava.
— É que... a senhora governadora também nos pagou muito bem para que
acabássemos com o carcaju que ronda Quebec há dois invernos e que vem causando
muitos estragos — observou-lhe um dos homens.
— Ela nos fez prometer que lhe mostraríamos os despojos quando voltasse de
Montreal.
— Despojos? Já os têm — disse ele. — Isso deverá satisfazê-la.
Já desaparecera.
Afastava-se sem ruído, deixando o grupo discutir com veemência sobre quem se
apropriaria dos despojos do glutão fêmea.
Pelo resto da manhã avançou pelo sobosque e pelas brenhas quase impenetráveis de
uma floresta que as lavras relegaram ao cume das encostas, mas que encontrava meio
de se espraiar e progredir bastante na cidade, até ali, onde os terrenos não tinham
ainda sido entregues aos arroteadores.
Parecia-lhe que o glutão não estava longe, seguindo-o, precedendo-o, observando-o,
e ele falava incessantemente, naquela mesma linguagem de palavras francesas,
inglesas ou índias e de onomatopéias que outrora empregava.
Finalmente, quando se encontrava na orla do valezinho devastado, vislumbrou uma
massa escura^ agachada sob arbustos, e um olhar humano à espreita.
Havia tanta tristeza mas também tanta alegria incrédula naquelas pupilas que luziam
sob as groselheiras silvestres, tanto sofrimento mas também tanta felicidade...
— Perdoe-me — disse ele mais uma vez. — Wolverines, não cheguei a tempo. Mas
vamos vingá-la, vamos vingar sua fêmea...
E continuou a falar-lhe até que sentiu que os laços estavam reatados.
Começou então a correr, galopando e saltando sobre os obstáculos do sobosque, em
direção à margem do grande rio, o caminho de água, gritando a plenos pulmões:
— Siga-me, Wolverines, siga-me, agora... venha! Venha comigo, Wolverines!...
Venha comigo a Montreal.

CAPÍTULO VI

Na pista de Honorina — O barqueiro Pedro Lemoine


Antes de aparecer diante daquela que vinha perseguindo de tão longe, a Sra. de
Maudribourg, hoje mulher do novo governador, Cantor rodou através, das ruas de
Ville-Marie, de Montreal. A cidade ao pé do monte Royal estava ainda marcada pela
grande feira de peles do outono, cuja tradição se perpetuava com a vinda das tribos
vizinhas.
Cantor jamais estivera em Montreal, e se sentia estranho.
Seu espírito permanecia ocupado por dois pólos: Ambrosina, que devia surpreender,
apanhar na armadilha, e Honorina, que devia proteger, pôr a salvo, se ainda houvesse
tempo.
Andando para a frente e para trás com hesitação, sem decidir sobre a qual das duas
faria sua primeira visita, compreendeu sua imprudência. Se continuasse a se expor
daquela maneira, far-se-ia notar. Já estavam se voltando à sua passagem. Ali as
notícias corriam depressa. E tinha de se lembrar que a tal Sra. de Gorrestat tentara
mandar matá-lo, antes de sua partida de Versalhes, e prendê-lo em Quebec.
Sem tergiversar mais, decidiu-se pelo Convento de Nossa Senhora. Não se
enganava. Sua hesitação em buscar notícias de Honorina era causada pelo medo.
Medo de saber que chegara tarde demais. Um pressentimento não parava de
atormentá-lo. Conhecia muito bem o ser infernal que jurara destruir dessa vez para
sempre. Se "ela" chegara à ilha de Montreal havia três «emanas, não devia ter
esperado para atacar a filha de Angélica, pois era esse seu objetivo ao empreender
aquela viagem aparentemente oficial. Isso também sabia Cantor, por instinto. Por isso,
quando uma religiosa, de ar altivo sob um lenço preto bordado de branco, o recebeu
num parlatório cheirando a cera e maçãs recém-colhidas, não se surpreendeu ao ouvi-
la dizer que Honorina de Peyrac não estava mais ali. Mas, captando o nome da Sra. de
Gor-restat misturado às explicações muito confusas que lhe dava sua interlocutora,
seu coração baqueou. Obrigou-se, contudo, a exigir, num tom leve e casmurro,
maiores detalhes, e por fim compreendeu que a menina desaparecera, tendo escapado
por diversas vezes, pois "era muito desobediente".
A Sra. de Gorrestat, que se apresentara como uma grande amiga da Sra. de Peyrac,
interessava-se pela menina. Ao saber de seu desaparecimento, tinha movido céus e
terra para encontrá-la. "Céus e terra! O inferno, isso sim!", pensou. Em resumo, era
tocante ver com que dedicação aquela grande dama, que tinham doravante a
felicidade de acolher junto àquele que ocupava o mais alto posto da colónia — o que
era — explicou num longo parêntese — outro sinal da bênção divina, pois até então a
colónia só tivera em sua direção governadores privados da doce e generosa influência
de uma companheira, e agora se podia augurar que as obras de caridade seriam
beneficiadas, com esse domínio mais aberto à compreensão e à atividade feminina —,
era pois comovente e encorajador ter podido constatar com que fervor ela pusera todo
o país em ação para encontrar a pequena interna fugitiva e a ajuda que trouxera
espontaneamente às pobres religiosas de Nossa Senhora em sua preocupação.
Cantor examinou sem condescendência aquela que lhe falava, e ela lhe desagradou.
Pediu para ver Madre Margarida Bourgeoys. Lembrava-se subitamente de tê-la
encontrado, sem dar a isso muita atenção, em Tadoussac e em Quebec, e que aquela
mulher caridosa e alerta parecia ser verdadeiramente uma amiga de sua mãe.
Mas, apertando os lábios, Madre Delamare disse que Madre Bourgeoys, sua
diretora, cujas funções estava naquele momento assumindo, fora convocada com
urgência por monsenhor, o bispo, em Quebec, e que se cogitava inclusive que deveria
fazer uma viagem à França, a fim de explicar-se com o arcebispado de Paris, e
também a Roma, em virtude dos estatutos de sua ordem de religiosas docentes mas
não clausuradas, o que era motivo de muitas controvérsias nos meios eclesiásticos.
O rapaz deixou o lugar num estado de espírito agitado, em que se misturavam cólera
para com as damas do lugar, inquietação por Horiorina, terror em relação a
Ambrosina. O pesadelo recomeçava.
Chegando à cerca que delimitava o pomar, voltou-se para a casa baixa e branca, no
fim da alameda, que tinha por fundo a extensão cinzenta do rio confundida com o céu
do mesmo azul-acinzentado que as águas. Traçada ao longe, a linha da infinita
floresta americana mal se distinguia sob a aproximação de um nevoeiro, arauto dos
primeiros frios.
Sentadas na relva, sob macieiras de ouro polido e cerejeiras nuançadas de
encarnado, as meninas comiam pão com melaço e o olhavam com curiosidade.
Por trás da imagem mais inocente, uma sombra sinistra rondava. Um sopro deletério
envenenava o ar que se respirava. Havia como que um hálito ruim que embotava as
cores e o brilho da vida feliz, para impregná-las de pecado.
Como Madre Bourgeoys pudera deixar em seu lugar uma pessoa como aquela que o
recebera, que falava extasiada daquele monstro de vícios, Ambrosina? Mais urna que
se deixara enganar e que subitamente se achava guardiã do Mal, entre as santas
mulheres.
Enquanto subia uma alameda de carvalhos que levava à estrada carroçável e que o
ocultava da casa, ouviu alguém correr atrás dele e percebeu uma jovem religiosa que
se esforçava por alcançá-lo, provocando muito barulho com as pesadas saias.
— Senhor, pelo que compreendi, é o irmão de nossa pequena Honorina. Oh! caro
senhor, encontre-a! O que irá dizer Madre Bourgeoys quando voltar? Ela deixou
ordem para que a menina pudesse partir com a caravana, conforme pedido do
mensageiro enviado por sua mãe. Como nossa irmã Delamare se-deixou enredar a
esse ponto?...
A força de interrogá-la, o rapaz compreendeu como as coisas haviam ocorrido.
Ambrosina, usando das prerrogativas de sua posição, armada com seu suave e
inflexível poder sobre os seres de boa vontade, como sobre as almas negras
igualmente, detivera tudo e acionara a máquina ao contrário, a seu bel-prazer.
Suspendera a partida de Honorina, mandara trazê-la de volta. Depois a menina
desaparecera, mas aparentemente não caíra nas mãos de Ambrosina, pois esta
mandara continuar as buscas. A menos que fosse apenas um artifício para dissimular
seu crime. Ela era capaz de tudo. Um dia encontrariam um pequeno cadáver mutilado.
O coração de Cantor doía-lhe, confrangido pela angústia.
— Não ouso emitir em voz alta minha opinião — sussurrou a freirinha, olhando para
os lados —, mas alegrei-me de que a menina tenha escapado, pois essa pessoa, a
mulher do novo governador, me pareceu assustadora...
— E você tem razão, irmã — desferiu-lhe ele —, pois sei de fonte segura, de uma
fonte eclesiástica, que se trata de um demónio, um demónio súcubo.
Ela deu um grito de horror, tapou a face com as mãos e fugiu soluçando para a casa.
Cantor estava furioso. Essas freiras eram todas retardadas? Uma abandonava suas
responsabilidades por uma viagem que podia durar pelo menos dois anos, a outra,
assim que sua superiora virara as costas, contrariava suas ordens, uma terceira se
escondia, com medo de incorrer em censuras por tentar proteger as crianças... Depois
voltou atrás. Pobres mulheres! Podia-se reconhecer ali o vento de desordem que se
levantava à passagem da Diaba.
Mas, enquanto isso, o que acontecera a Honorina?
Chegou à margem do rio e começou a acompanhar seu curso, sem saber ainda o que
fazer. Para abordar a inimiga, a hábil criatura de língua viperina, precisava refazer as
energias. Pensava em Honorina e, por trás dás palavras pronunciadas no parlatório:
"ela era muito desobediente", "ela desapareceu", "causou uma grande confusão,
fugiu", revia a silhueta da garotinha de cabelos ruivos, alta "como três maçãs", com a
carinha redonda, desprovida de beleza mas tão cómica, encimando-lhe o lindo
pescoço, naquela atitude de desafio e dê dignidade tão característicos...
Que força indomável naquela criaturinha! Era por isso que havia uma tendência, a
se mostrar duro e injusto para com ela. E ele em primeiro lugar, pensou com
remorsos. É verdade que ela era insuportável.
Mas continuava a sentir raiva de todas as mulheres, e quando pensou na injustiça
que jamais deixara de pesar sobre Honorina, sua cólera estendeu-se àqueles que a
tiveram sob sua guarda e que não lhe tiveram amor, portanto, a si mesmo. Todo
mundo queria livrar-se "da menina. Ele também, quando estava em Wapas-su, queria
que ela fosse punida. Aquela menininha, exigente e suscetível, que monopolizava sua
mãe e mesmo seu pai sem qualquer direito, o agastava. De onde vinha aquela
menina?... Era melhor não pensar nisso, pois sentia vontade... de desembaraçar-se
dela.
E agora, era bem feito! Não sabiam nem onde ela estava. Todo mundo quisera isso.
Mas era uma coisa horrível, mais pesada que chumbo para se carregar. Pois ela era tão
pequena e tão engraçada... Era orgulhosa, teimosa mas indefesa. "O que é uma
criança?", diz o iroquês. "Não se pode dar importância a seus atos, pois ela não tem
juízo. O que lhe deve o adulto?... Defendê-la enquanto ela se fortalece e cria juízo!...
Mas Honorina fora arrancada e lançada ao vento!... Lembrava-se de quando ela lhe
levava raminhos de flores, quando lhe engraxava as botas para lhe agradar... Ela
sempre o amara. Ele era seu preferido. Por que a repudiara? Não compreendia mais.
Era apenas uma criança! Não deveria ter deixado aquele estúpido ciúme corroer seu
próprio coração. E agora Honorina estava perdida, por culpa deles todos, por sua
culpa...

As lágrimas brotavam-lhe dos olhos... Esforçava-se por retê-las.


"Seguirei sua pista!... Irei até o fim do mundo. Farei aquela megera confessar. Eu a
encontrarei, Honorina... Vou trazê-la de volta."
A pequena Honorina em. preces. Fora assim mesmo que ela se anunciara da última
vez. Ele havia ido às ursulinas de Quebec para despedir-se dela, antes de embarcar
com Florimond. Mas ela mandara dizer pela madre superiora que estava rezando na
capela, que tinha tido uma visão... e simplesmente se recusara a vê-lo. Que cabeça-
dura!..."
Enxugou os olhos.
"Vou encontrá-la, cabeça-dura!.

Sozinho, acompanhava a beira do rio. Estava agora longe da cidade e ultrapassara as


últimas casas, dispersas em meio aos jardins e campos.
Ouvia apenas o roçar das plantas altas contra as botas e o sussurro dos insetos de
fim de verão, cujo número começava a reduzir-se pelas noites frias, agrupados em
nuvens vorazes.
Maquinalmente dirigia-se para o oeste, tomara a direção oposta à de seu
acampamento, um canto sob os chorões que escolhera na extremidade oposta da ilha,
num lugar pouco povoado, onde só havia, no alto da colina, um velho moinho
abandonado, por que o proprietário do lote nunca trouxera um contingente de pessoas
para povoar essas terras. Os sulpicianos que as haviam cedido estavam em
negociações para retomá-las, mas o caso se arrastava, e o lugar, enquanto isso,
continuava a ser domínio da caça aquática. .
Cantor de Peyrac desembarcara ali pela manhã. Não se aproximara da ilha de
Montreal sem precaução, e após uma série de manobras destinadas a confundir sua
pista, e a encontrar em cada etapa seu companheiro Wolverines, seguia-o ao longo do
rio. Dotado de um instinto que o avisava a distância de suas intenções, o animal
esperava-o sob um arbusto no lugar onde o jovem viajante deixava a barca ou o navio
em que conseguira passagem por um dia para subir o Saint-Laurent, ou então Cantor,
sentado junto à fogueira na noite do litoral, via-o surgir ao cabo de algumas horas,
dando grandes saltos cómicos.
A canoa servira-lhe para fazer o animal atravessar. E agora, o glutão estava na ilha.
Era preciso agir depressa, antes que os cães ou os índios ou habitantes, lavradores,
pescadores, caçadores ou casais de namorados o descobrissem e anunciassem sua
presença.
Cantor de Peyrac tinha dè arquitetar um plano. Mas precisava acalmar dentro de si
aquele furacão de inquietação que o submergira.
Esforçou-se por se acalmar e encontrou consolo na lembrança de todas as
brincadeiras que fizera com Honorina, aquele diabrete de cabelos ruivos. Pois, no
fundo, os dois entendiam-se muito bem. Muitas' vezes empoleirava-a nos ombros para
fazê-la dançar e saltar "como os índios" em suas danças guerreiras, gritando “iu! iu!
iu!", e uma noite enluarada levara-a, às escondidas, para escutar o coro dos jovens
lobos, chegando bem perto para vê-los.

Uma voz de rapaz cantando sobre a água chegou até ele.

"A seis de maio do ano passado,


Fui lá para cima...
Para fazer por lá uma longa viagem...
Ir aos países altos
Em meio a todos os selvagens..."

Cantor levantou a cabeça e viu que o nevoeiro que vinha de longe recobria o rio. Ele
passaria e iria pendurar-se na beirada do monte Royal para o norte. Ou então se
dissiparia como por encanto. O outono era uma estação clara e alegre, de cores
quentes mas breves.
Por trás do nevoeiro, a voz melodios a continuava:

"Quando a primavera chega


Os ventos de abril sopram em suas velas
Para voltar a meu país
Na extremidade de Saint-Sulpice
Irei saudar minha amiga
Que é a mais bonita..."

Uma barca despontou, saindo do nevoeiro, conduzida apenas por um rapaz de


dezoito a vinte anos, robusto, no qual Cantor reconheceu Pedro Lemoine, terceiro
filho de um negociante de Ville-Marie. O mais velho, Carlos de Longueil, servia
como tenente no Regimento de Saint-Laurent em Versalhes e fazia parte de sua
companhia.
Depois de se olharem, cumprimentaram-se. Pedro Lemoine passara também uma
rápida temporada na corte. Apesar da pouca idade, era um marinheiro emérito, que já
conduzira navios na travessia do oceano.
— Julgava que você estivesse na França. Traz notícias de nosso irmão Carlos?
Tivemos notícias dele recentemente por Tiago, meu irmão do meio, que voltou na
escolta do Sr. de Gorrestat, o novo governador.
Ao ver Cantor franzir o sobrolho, acrescentou:
— Isso não quer dizer que estejamos de acordo com ele. Ele é meio louco, o Tiago.
Fez parte do conchavo contra o Sr. de Frontenac. Mas tudo isso vai se acalmar com o
inverno que se aproxima... E você, teria chegado também com o governador?...
— Vim para procurar minha irmãzinha, Honorina de Peyrac.
Pedro Lemoine, amarrando o barco numa estaca à margem do rio, saltou para a terra.
Estava se dirigindo a Lachine e decidira fazer uma parada, enquanto o nevoeiro se
dissipasse.
— Sua irmãzinha, você diz? — perguntou, com um ar pensativo. — Imagine que há
menos de três semanas ela estava aí, bem no lugar onde você está. Estava aí, sozinha,
tão pequena e carregando um grande alforje. Eu a vi. Disse-me que queria ir até o
solar do Lobo, à casa dos tios. Levei-a em minha barca e deixei-a não muito longe do
solar.
— Meu tio De Sancé! — exclamou Cantor, iluminado, pois via ali uma pista para
encontrar Honorina.
Dera pouca atenção à descoberta de uma parentela no Canadá. Já bastavam todas
aquelas que Florimond desencavava em Paris.
Subiu por sua vez na barca do jovem canadense. Obteria mais informações lá
embaixo. "Ora, vejam, aquela danadinha!", dizia consigo, todo animado, "como soube
se arranjar direitinho..."
Um vento fresco dissipara as brumas. Cruzaram uma barca carregada de crianças.
Os jovens de Montreal passavam a vida sobre a água, manobrando velas.
Mosqueadas de branco, as corredeiras se anunciaram a montante.
Pedro Lemoine deixou Cantor na extremidade inferior da costa. Disse-lhe que se
preparava para partir para o alto Saint-Laurent e que, se quisesse encontrá-lo, estaria
em Lachine, onde ia recolher bagagens e mercadorias.

CAPITULO VII

Mariângela do lobo

Um elfo de cabelos loiros descia a campina, ainda verde, correndo e dançando,


vindo em sua direção.
Tinha um olhar que lhe pareceu familiar. Achou-a imediatamente muito graciosa e,
quando ela parou a alguns passos para examiná-lo com ar pensativo, lembrou-se de
que uma das filhas daquele tio, reencontrado após um silêncio de quase trinta anos,
teria, diziam, os traços semelhantes aos de sua mãe, Angélica de Peyrac, nascida
Sancé de Monteloup. O que, na ocasião, lhe parecera impossível. Em seu foro íntimo,
devia retratar-se.
Não seria mais o único a evocar um rosto que fazia o rei suspirar quando ele
aparecia, o que ao mesmo tempo lisonjeava e causava alguma inquietação ao jovem
pajem, portador, a contragosto, de sombrias lembranças para Sua Majestade.
Esta era uma evidência que acarrateria outra. Os dois jovens pareciam-se de tal
forma um com o outro que acabaram por rir.
— Prima, abracemo-nos! Como se chama?
— Mariângela. E você, suponho que seja Cantor, não?
Olhava à sua volta e começava a se surpreender por não ver ninguém mais, como se
a jovem com jeito de fada fosse a única habitante de um domínio adormecido sob efeito
de um súbito encantamento.
Ela o avisou que seus pais estavam ausentes. Tinham sido chamados a Quebec e
tiveram que partir para a capital, a fim de acolher o governador que substituía o Sr. de
Frontenac. O que não impedira que o tal governador chegasse a Montreal quase ime-
diatamente após a partida do Sr. e Sra. do Lobo.
— Mas o que significa essa-maluquice de viagem e de correr por causa do
governador? — gritou Cantor, novamente transtornado. — As pessoas estão
enlouquecendo?
— Gom efeito.
— Por quê?
— Porque o governador e sobretudo sua esposa estão pondo o país inteiro de pernas
para o ar.
Finalmente alguém que não se deixava iludir. Ela o mirava com os olhos claros e
tranquilos, um pouco trocistas.
— Por que você se desola tanto por não ver meus pais?
— Eles poderiam dar-me notícias de minha irmãzinha Honorina. Soube que ela
tentqu encontrá-los.
— Se é por sua irmã que está preocupado, posso dar-lhe notícias dela.
Por pouco não a sacudiu, tão impaciente estava. — Você a viu?
— Não. Mas sei o que lhe aconteceu. Um índio trouxe-me notícias dela.
— Fale, eu lhe imploro.
— Primeiro ela foi escondida entre os iroqueses da missão de Khanawake, dos lados
da Madeleine, em frente a Lachine, e depois os índios a levaram para mais longe.
— Por quê?
— Para que escape àquela mulher que quer matá-la.
O pobre Cantor sentiu o peito dilatar-se sob o efeito de um alívio incomensurável.
— Oh, minha amiga, você me agrada — disse ele, passando afetuosamente o braço
pelos ombros da adolescente. — Venha contar-me tudo isso num lugar tranquilo,
longe dos olhos curiosos que vêem de longe.
Esperou que ela o fizesse entrar no solar, mas ela o levou para o lado das
dependências de serviço, introduzindo-o numa vasta construção, meio granja, meio
entreposto. Ganchos dependurados do teto prendiam lotes de peles. Num canto, uma
boa parte da colheita de feno fora-empilhada, e foi ali que se sentaram.
Notou alguns objetos de toucador, um pente e uma escova colocados sobre uma
arca, uma almofada, uma manta e um braseiro como os usados nos navios.
Depois da partida dos pais, contava Mariângela, não demorou muito para acontecer.
"Eles" tinham voltado. E o problema é que ela não compreendera que daquela vez não
fora por eles que tinham voltado.
— Vi-os de longe. Sua carruagem estava parada embaixo, no grande prado, no
Caminho do Rei. Não sabia o que vinham fazer ali nem o que esperavam. Só o soube
mais tarde. Mas era a garotinha que estavam esperando, e foi lá que a pegaram.
— Senhor! — exclamou Cantor, lívido.
Ela colocou vivamente a mão no braço do primo.
— Ela escapou-lhes, eu lhe estou dizendo! Mas tenha paciência, deixe-me
prosseguir minha história. Eles voltaram no dia seguinte, esses franceses, como
periquitos com seus saltos vermelhos, rendas e plumas. Dessa vez subiram até o solar.
A esposa do governador andava à frente. Eu disse a meus irmãos: "Vamos sumir
daqui! Vamos sair por trás e nos esconder no bosque". — Ela continuou: —
Encontraram a casa vazia. Mas, depois de sua passagem, eu não quis voltar para
dentro da casa. Mandei meus irmãos instalarem-se na cidade, os maiores com os
senhores de Saint-Sulpice, onde fazem seus estudos, e o mais jovem, em casa de
minha irmã, casada com o oficial com guarnição no burgo de Saint-Armand.
Enquanto isso, alojei-me neste armazém. Alguns dias mais tarde, vi o índio que
rondava pelas imediações, procurando alguém para entregar sua mensagem. Chamei-
o, e ele me contou tudo. Honorina fugira com a ajuda de uma de suas irmãs batizadas
da tribo dos agniers, e eles a esconderam, entres eles, em Khanawake. Mas, quando
viram que aquela mulher vinha procurá-la com tanta constância e quê seus padres
jesuítas, julgando agir cor-retamente, lhe davam ajuda, ficaram muito assustados.
Então, con-fiaram-na a uma caravana de cidadãos das Cinco Nações que, apesar de
batizados, desejavam reaproximar-se de sua nação iroquesa.
— Está salva!... — gritou Cantor, erguendo-se se atirando o chapéu para o alto.
Agarrando as mãos de Mariângela, fê-se girar numa ciranda entusiasta. — Minha
irmã está salva! Priminha, você tirou de meu coração um peso enorme! Essa caça
podre, essas feras da corte não poderão mais persegui-la no fundo de nossas florestas!...
— Não o tentaram. Dizia-se à boca pequena que a Sra. De Gorrestat não conseguia
disfarçar seu desprazer diante da inanidade das investigações.
— Que caminho tomaram os homens de Khanawake para ir ao país das Cinco
Nações?
— Ignoro. O índio batizado me disse que o intinerário devia ficar em segredo para
que a menina corresse o menor risco possível.
— Certo! Eu encontrarei... mas mais tarde. Antes, tenho de acabar com o demónio.
E, creia-me, minha amiga, não será coisa fácil livrar a terra da sua presença ímpia.
Como ele esboçasse um movimento para se despedir, a moça reteve-o.
— Anoitece. Você teria de ir pela estrada, pois essa parte do rio não é navegável à
noite. Que faria se voltasse à cidade e o reconhecessem? Fique até amanhã pelo
menos. Será um dia novo, e suas forças também. Vou buscar-lhe algo para comer.

Enquanto ela se eclipsava, Cantor deixou-se cair para trás no feno. Estendeu os
membros doloridos. Agora que estava tranquilo sobre a sorte de Honorina, sentia-se
esgotado. Não tinha mais forças para pensar em nada, permanecendo apenas pasmo
com esse encontro com sua prima Mariângela. Era verdade que se parecia com
Angélica, e supunha de bom grado que esta devia ter a mesma vivacidade airosa, em
sua juventude em Monteloup. Tinha-a ainda quando, incitada por um trabalho a
realizar ou uma diretiva a ser dada, todas coisas urgentes, geralmente, dava-lhe
vontade de correr, atravessar prados ou casas, subir alegremente uma escada ou uma
senda nos bosques, sem se preocupar com a idade ou com a dignidade de sua posição.
O surpreendente era que Mariângela tinha também alguma coisa da alma de
Angélica, e junto dela sentia-se à vontade, como se ele a tivesse conhecido sempre,
ela houvesse partilhado suas brincadeiras no Plessis ou em Versalhes, em sua primeira
infância.
Ela voltou com grandes fatias de pão, frios, um pichei de sidra. Enquanto ele comia,
ela se estendeu perto dele no feno-e lhe disse que seu pai lhe propunha partir para
França para conhecer a vida de uma jovem nobre francesa. Apoiado ao cotovelo,
sentiu que ela o examinava com os olhos brilhantes de satisfação.
Perturbou-se um pouco. Não devia esquecer que essas moças canadenses eram
muito audaciosas. Privilegiadas por seu sexo, num país em que faltavam mulheres,
inocentes e naturais, como todas as crianças que nascem fora das restrições ou das
desigualdades de uma velha sociedade hierarquizada, não se embaraçavam com os
ares reservados, que lhes pareciam sem sentido. Os caminhos alambicados do Amor
descritos pela Carte du Tendre e as sutilezas das preciosas parisienses eram-lhes
desconhecidos.
Os curas de suas paróquias e as religiosas que as ensinavam tinham muita razão em
fazê-las passar sem demora da férula da escola àquela do casamento. Desde os catorze
anos, eram afáveis mulheres de colonos, prontas a assumir a solidão do inverno, os
nascimentos anuais, os trabalhos dos campos e do estábulo, nos longínquos censos.
Mariângela do Lobo, aos dezesseis anos, quase dezessete, não sendo casada e não
reconhecendo em si qualquer vocação religiosa, achava-se numa situação que não
tardaria a tornar-se difícil. Devia ser ao mesmo tempo mais infantil e mais
amadurecida que suas companheiras, nascidas e criadas como ela na Nova França,
mas que, do berço ao casamento, cresciam estreitamente motivadas por esse destino
de mulheres de pioneiros, de fundadores de famílias, que as esperava.
Ali, os anos de formação mundana não eram levados em conta.
— Primo, já não é tempo de nos tratarmos como parentes íntimos?
Levantou-se novamente para ir buscar uma grande coberta, que lançou sobre os
dois, estendidos um ao lado do outro, pois o frio do crepúsculo começava a se fazer
sentir.
— Em que está pensaiído? — perguntou.
— O combate é para amanhã — respondeu, juntando as palmas das mãos sobre o
peito e tomando a atitude de um mor, bundo, com os olhos fechados.
Ficou-lhe grato por não lhe fazer outras perguntas e por, longe de procurar distraí-
lo, ter-se posto a dormir, depois de enterrar o narizinho confiante em seu ombro.

CAPITULO VIII

A ressurreição de Ambrosina — Cantor face a face com a diaba

A Sra. de Gorrestat, aliás, Ambrosina de Maudribourg, olhou ao seu redor com mau
humor.
Estava diante da penteadeira, que, por instantes, lhe devolvia o reflexo de um rosto
ao qual não estava ainda totalmente habituada.
Pouco adiantava maquilar-se com habilidade, endireitar os cachos junto às têmporas
e bochechas, havia certas protuberâncias, certas cicatrizes que não conseguia apagar
inteiramente.
Ali estava ela, no centro daquela casa de grandes pedras achatadas, posta à sua
disposição pelos anfitriões de Montreal. Mesmo tendo de reconhcer que era muito
bem mobiliada, sentia-se pouco à vontade, desde que soubera que Angélica fora ali
recebida antes dela.
A desaparição da filha de Angélica parecera-lhe um mau presságio.
Começou a experimentar o insólito dos lugares onde se encontrava.
Devia ter-se lembrado de que as terras longínquas exalam forças estranhas.
Experimentara o mesmo em Gouldsboro. Mas ali era pior, pois havia também o tédio,
que vinha solapar sua febre de ação.
Era tudo tão entediante ali! Ao passo em que Gouldsboro...
Em primeiro lugar, havia Angélica. Uma mulher tão bela de se olhar, vivendo,
conquistando, fazendo sofrer. E saboreara cada minuto de aproximação, cada golpe
desferido. Nada mais delicioso do que ver obscurecer-se, devido a inquietação, a cor
verde de seu olhar, quando lhe insinuava que Joffrey de Peyrac, por quem estava tão
loucamente apaixonada, tentava tornar-se amante da Sra. de Maudribourg.
Mas era Ambrosina que se entristecia ao lembrar-se disso.
Ele! Ele! Por que aquele homem galante, de sangue meridional, não cedera a seus
avanços?...
Levara anos para compreender. "Ele me desprezava. Desmascarava todas as minhas
mentiras. Desde o primeiro instante, desconfiou de mim. Enquanto acreditava que ele
caía em minhas armadilhas, cada uma de suas perguntas insidiosas tinha por ob-jetivo
me desmascarar..."
Ainda agora, rangia os dentes ao pensar nisso. Hoje, quando retornara ao local
escolhido para sua vingança, sentia a amargura invadi-la ao rememorar o longo
purgatório vivido pela Diaba vencida.
Ah! quantos anos de fingimento!
E sem poder sequer oferecer a si mesmo o sutil e secreto prazer de torturar alguma
tola esposa de província roubando-lhe o marido, ou aquele, mais voluptuoso ainda, de
ver cederem, diante de seus encantos, as defesas masculinas de homens considerados
incorruptíveis: eclesiásticos ou altos funcionários devotos.
Tinha de ser prudente, inatacável.
Durante todos esses anos, nenhuma falha se insinuara em seu plano. Podia felicitar-
se por não, ter dado qualquer motivo de suspeita.
Uma amarga e inconcebível experiência, vivida em terras da América, a tornara
prudente.
Primeiramente, fora uma silhueta discreta deslizando pelas ruas. Julgavam que ela
se cobria com um véu por viver à sombra de um amante rico, um homem idoso que
voltara das colónias e que a tomara como amante, um tal de Nicolau Parys.
Fora preciso esperar, dar as cicatrizes do rosto tempo de se apagarem.
No final das contas,- ©velho Parys era um bom comparsa e cúmplice.
Tanto um como o outro-se ativeram aos termos do contrato firmado entre eles numa
noite sinistra, na costa leste de Tidmagouche.
Ele a queria. Sempre quisera e continuava querendo aquela mulher ferida,
desfigurada, mas cujo corpo permaneeia-intacto. Queria se espojar sobre ela, como
um porco no chiqueiro.
Quanto a ela, queria ser salva e escapar de seus inimigos, que a entregariam à justiça
do rei, se tivesse sobrevivido, como assassina, feiticeira e envenenadora.
Precisava desaparecer. Desaparecer para sempre.
O velho Parys satisfaria sua necessidade carnal com ela. Sempre preferira os velhos,
nos quais o fogo ardente de uma virilidade declinante exige, para se acender, muitos
artifícios, nos quais, desde a juventude, Ambrosina sempre fora perita.
O pacto foi concluído.
Nenhum escrúpulo, nem dela, nem dele, em assassinar Henriqueta Maillotin, que a
ajudara a evadir-se, em desfigurá-la e entregá-la aos animais selvagens da noite, que
acabariam .por tornar irreconhecível aquela jovem mulher que iria substituí-la no
túmulo.
O navio se distanciara.
A França fervilhante permitia ao casal apagar os últimos vestígios.
No fundo das províncias, encontram-se> sem dificuldade, por bons escudos
legalmente válidos, notários" ou homens de negócios, e mesmo curas complacentes
para passar papéis de casamento, ao simples enunciado de um nome de batismo,
acompanhado de data e lugar de nascimento, igualmente imaginários.
E, para se divertir, Ambrosina designara-se como nativa da província do Poitou.
Mas essa fantasia criou-lhe problemas depois. Pois essa identidade falsa lembrava-lhe
incessantemente que, se conseguira enganar a rival, nessa questão de origem, no final
Angélica fora, de qualquer modo, a mais forte.
Por isso, longe de diverti-la, aquela evocação do Poitou provocava-lhe raiva. O que
era excelente, dizia consigo, para dar prosseguimento a sua vingança.
Pois, à força de ser tão ajuizada, apagada e discreta, não teria acabado por esquecer
que só tinha um objetivo em vista: vingar-se deles e, principalmente, dela? E por
esquecer, o que era mais grave que tinha uma missão a cumprir, imposta ademais por
um amo que não suportava o fracasso?
Não fora tentada, por instantes, a esquecer? E então calafrios de terror a sacudiam,
despertando seu ódio por "eles", que a haviam colocado em xeque.

Ah! quantos anos fingindo, espreitando no espelho a cura, e depois a ressurreição de


seu rosto. Certos vestígios jamais se apagariam. Não era isso o que mais a tocava.
Não era mais totalmente a mesma, e por vezes se felicitava por isso. Não era mais tão
bela, tão jovem, e isso era culpa de Angélica, dizia-se, pois parecera-lhe que a outra
nutrira com sua derrota a própria beleza, a própria juventude. "Quanto mais eu descia
mais ela se tornava deslumbrante. Sim... até em Tidmagouche, quando estava doente,
e eu a mantinha à minha mercê..."
Acalentando suas ofensas, os anos haviam passado para Ambrosina, a reclusa, a
apagada.
Os véus foram se tornando menos espessos. Os espelhos lhe anunciavam que podia
reaparecer à luz do dia, e chegou o momento de o velho Parys falecer, por efeito de
alguma poção. E pouco depois, para ela, sua viúva, de fugir para outra cidade e
mostrar-se com o rosto descoberto e sob outro nome.
A seguir, tudo se passara conforme seus planos, longamente urdidos, segundo seus
desejos.
Foi apenas depois de desposar, em Nevers, o Sr. de Gorrestat, intendente de
província, que começou à recrutar seus "fiéis": senhores arruinados ou criados sem
escrúpulos, almas negras de sua espécie, que atrelava a sua fortuna e que, bem pagos,
bem recompensados de mil maneiras, se encarregavam, sob sua ordens, de intrigar,
comprar alianças ou cumplicidades e, se fosse preciso, reduzir ao silêncio os
"estorvos".
O primeiro desses servidores não era, sem sabê-lo, aquele homem de pouca
inteligência e muita vaidade, mas munido de apoio seguros e relações importantes,
que transformara em marido, o Sr. de Gorrestat?
Muito rapidamente e atenta a todas as oportunidades, encorajara-o a se ocupar dos
negócios coloniais, depois a pleitear um cargo na Nova França. Múltiplas
intervenções obtiveram para ele sua nomeação como governador interino, durante a
viagem do governador efetivo, o Sr. de Frontenac, obrigado a ir a Paris explicar-se
com seu soberano. No pé em que estavam as coisas, já se podia considerar certa a
desgraça de Frontenac, e seu substituto, vice-rei por vários anos.
Para Ambrosina, sua esposa, que se fazia chamar Armanda, nascida Richemont, e
que todos admiravam por acompanhá-lo tão corajosamente àqueles longínquos e
rudes países, houvera duas semanas em Paris onde se introduzira em algumas
repartições. Havia algum tempo, pedira, por correspondência entregue por homens da
lei, que se mandasse esclarecer o caso do La Licorne. Não deixava de ser engraçado
reclamar, sob pretexto de parentesco, notícias da Sra. de Maudribourg e de sua
expedição.
Depois, dirigira-se a Versalhes, para uma reverência ao rei, que não a notou de
modo algum.
Uma reverência supérflua, entretanto. Junto ao batente de uma porta, o olhar verde
de um adolescente fixara-se no seu, com um súbito clarão.
Prontamente a carruagem dos Gorrestat tomava o caminho do Havre, e Ambrosina
rejubilava-se por afastar-se da capital e fazer-se ao mar.
Não receava as travessias. E pouco lhe importava começar pela província do
Canadá, como exigia seu novo título de mulher de governador. A primeira vez viera
como uma benfeitora, livre para ir aonde quisesse. Mas, dessa vez, tinha de passar por
Que-bec, e armara-se antecipadamente de paciência, preparando seu sorriso mais
gentil.
Mas... o que todos eles estavam pensando?...
Seu objetivo não era ser incensada por aqueles xucros coloniais.
Nunca tivera a intenção de ficar mofando em Quebec, uma cidade dos antípodas
gelados, que tinha a pretensão de passar por capital. Uma "pequena Versalhes", dizia
aquele ridículo Ville-d'Avray. E Frontenac, o bufão, acreditava nisso.
Mas sua nova função a obrigava a descer até lá, a ser ali recepcionada e aclamada,
se fosse preciso. Por outro lado, isso não era de todo inútil, pois pretendia acertar ali
alguns contenciosos com aqueles que, conforme soubera, haviam apoiado seus piores
inimigos, Joffrey e Angélica de Peyrac, e pedido a desgraça do Padre Sebastião
d'Orgeval. O anúncio de sua morte a espicaçara.
"Mais tarde, Gouldsboro", dissera a si mesma. "Paciência, pelo tempo que for
preciso..."
Tivera razão.
Desde os primeiros dias de navegação no Saint-Laurent, o presente lhe apresentava
imagens do passado. E já estavam mortos os que deviam morrer. Ah! como se
alegrara vendo balançar, pendurado às vergas de sua nau capitânia, o Tenente de
Barssem-puy, que a odiava por ter mandado executar Maria, a Meiga, sua amiga!
"São ingleses!", conseguira convencer seu esposo, o novo governador. "Traidores
inimigos, que conseguiram penetrar no estuário do Saint-Laurent... Execute-o para
mostrar que não é, como o governador Frontenac, indulgente com esses inimigos da
França e com os huguenotes franceses renegados, seus aliados."
Pena que, por causa do nevoeiro, não se tivesse podido capturar toda a tripulação do
pequeno iate, que navegava arvorando o pavilhão de franquia do Conde de Peyrac!
E em Quebec, sentindo-se reconhecida e suspeita em certos olhares, fizera
prontamente justiça.
Infelizmente, aquela tola da Delfina e a gorda proprietária do Ao Navio de França,
cuja antipatiapudera perceber, tinham-lhe escapado por entre os dedos... Por quê?
Como?... Inquietava-se, sentindo vacilar a infalibilidade de suas astúcias.
Considerara uma volta afinal da sorte e da proteção oculta, da qual começava a
duvidar, saber que a filha do Conde e da Condessa de Peyrac — a menina para a qual
Angélica apanhava ame-tistas nas praias de Gouldsboro — era interna na instituição
das religiosas da Congregação de Nossa Senhora, em Montreal.
O acaso entregava-lhe a filha de seus inimigos. Lambia os beiços, antecipadamente.
O Diabo, desta vez, estava do seu lado. A ilha de Montreal, a montante do rio, ficava
longe, mas os prazeres que antevia nessa captura e nos sofrimentos que infrigiria a
pequena vítima compensavam os aborreciamentos daquelas viagens fluviais em meio
às homenagens, que sentia serem falsas e perigosas, daqueles colonos-aldeões
grosseiros, que queriam ser chamados de "habitantes" e que se consideravam como
senhores pelo simples fato de terem recebido direitos de caça e pesca.
Mas quanto mais os detestava mais se rejubilava, pois teria muitas oportunidades
mais tarde de fazê-los pagar por sua arrogância. E começava a aceitar, a rigor, uma
estação nos gelos da pequena corte de Quebec, já que lhe anunciavam que não podia
ser de outra maneira. "Mais tarde, Gouldsboro... Você pode esperar. Gouldsboro,
tornarei a encontrá-la! A vingança é um prato que se come frio," E repetindo
interiormente o ditado, explodia num riso estridente. "Muito frio!..."
Podia esperar aquele prato de resistência depois de oferecer a si mesma em Montreal
o de raptar a pequena Honorina, torturá-la até a morte e enviar, uma a uma, as provas
do crime a sua tão odiada, tão desejada, tão maldita inimiga, Angélica, de beleza es-
tonteante, possuidora de um incompreensível poder de sedução, Angélica, a mãe
daquela criança.
"Partamos rapidamente para Montreal", dissera ao esposo; "é preciso que
conheçamos todos os nossos administrados antes do inverno, e que apaguemos em
cada um deles a lembrança do governador anterior, o Sr. de Frontenac."
Sim, tudo andara muito bem até então. Até o momento em que se encontrara diante
daquela menina enfurecida, que se pusera a urrar, tratando-a de envenenadora: "É a
Dama Lombarda! É a Dama Lombarda, a envenenadora..."
Quanta paciência e abnegação aparente tivera de demonstrar para apagar a má
impressão da cena! Aquelas pessoas do Canadá tinham uma proteção ridícula a adorar
suas crianças e a dar-lhes razão em tudo.
Conseguira afastar Madre Bourgeoys, fazendo que fosse convocada pelo bispo em
Quebec, e também os tios de Honorina, pois era com desprazer que tomava
conhecimento de haver naquelas paragens um irmão de Angélica. Tudo isso era
exatamen-te desagradável. Deve-se'desconfiar da coalização oculta dos membros de
uma mesma família; cria-se entre eles, mesmo entre aqueles que pouco se conhecem e
não se dão bem, uma cumplicidade natural, de uma espécie mal conhecida, mas de
ondas poderosas.
Conseguira pois afastar da criança seus protetores importantes; foi procurá-la no
convento e, ao saber que fugira, conseguira capturá-la de novo. E depois, novamente,
um inexplicável revés. Sua presa desaparecia. Desvanecia-se, melhor dizendo. Todas
as investigações, uma fortuna distribuída, tudo em vão.
Ambrosina agora via claramente. Não fora por culpa de um enfraquecimento
pessoal de suas faculdades, alteradas por uma inércia demasiado longa, durante anos
de desterro numa província da França, não fora pela perda da proteção satânica, que
jamais lhe faltara, não fora sequer pelo fato de os franceses e os índios do Canadá se
revelarem menos maleáveis, menos fáceis de enganar que os humanos do Velho
Mundo, que Ambrosina, a Diaba, se via posta em xeque. Mas porque, uma vez mais,
atacara a "eles". Era-lhe pois preciso concluir que a menina era tão perigosa quanto a
mãe.
Pior ainda!...
O que havia afinal naquela família que lhe era tão adverso?...
Espalhou à sua frente, sobre a penteadeira, o conteúdo dos dois cofrinhos
encontrados no alforje da criança.
E, diante daqueles objetos heteróclitos de valor desigual, uma turquesa, por
exemplo, e plumas, conchinhas, um dente de ca-chalote gravado, adivinhava que
alguns deviam ter pertencido a Angélica, antes que os desse à filha.
Ali havia largada uma mecha flocosa dos longos cabelos ruivos que ela mesma
arrancara da cabeça da menina, ao maltratá-la com raiva. Pegou aquela mecha entre o
polegar e o indicador, fazendo-a deslizar na outra mão.
Onde estava ela agora, aquela pequena miserável? Como alcançá-la? Causar-lhe
infelicidade?
"Podem-se fazer muitas coisas com cabelos..."
Em Paris, teria uma pletora de endereços úteis, nomes de adivinhos e adivinhas, que
se podiam visitar em seus covis. Mas ali...
"Devia ter providenciado os serviços de um mágico."
Teria podido fazê-lo, sem atrair a atenção da polícia e acarretar, consequentemente,
suspeitas e investigações?
Passando por Paris, quisera consultar a mais famosa das feiticeiras, a Mauvotsiíi,
chamada La Voisin.
Ao se aproximar de sua casa, vira saindo de lá um grupo de "missionários",
daqueles padres pertencentes à or-de-nx fundada pelo Sr. Vicente de Paulo para
pregar à gente humilde, e aquilo lhe parecera inquietante e insólito, motivo pelo qual
se afastara precipitadamente. Dois dias depois, Paris inteira tomava conhecimento da
prisão da adivinha em causa. Ambrosina tremia só de lembrá-lo. E, por trás daquela
prisão, sempre o horroroso policial Francisco Desgrez.
Por causa daquela personagem, sua partida para o Havre assumira o aspecto de uma
fuga. Como da primeira vez, quando lhe escapara no momento exato em que fora
prender sua amiga íntima, a Marquesa de Brinvilliers.
Dessa vez, o policial atingia o cerne da fortaleza dos envene-nadores.
Como as notícias correm, o Sr. e a Sra. de Gorrestat ainda não tinham embarcado
quando souberam que La Voisin era acusada de tentativa de envenenamento do rei.
Atenaís de Montespan fugia da corte.
"Se ela for interrogada, dará o meu nome. Foi outrora, com minha cara Brinvilliers,
uma de suas mais assíduas clientes... Mas que importa que me nomeie? Estou morta",
morta!"
Deu uma gargalhada que finalizava numa cachota macabra e sem eco.
— A Duquesa de Maudribourg está morta! — disse, em voz alta.
Mas não pôde deixar de olhar em torno, medrosamente.
Não era uma coisa injusta?
Sempre fugir. Sempre esconder-se, sempre dissimular.
Entretanto, Ambrosina sentira-se aliviada por poder fazer-se ao mar, refugiar-se no
Novo Mundo — onde poderia se manter incógnita com mais facilidade, como da
primeira vez —, escapando, num refluxo imprevisível das circunstâncias, àquele Des-
grez e a seu mestre, o tenente de polícia do reino, Sr. de La Reynie, ambos cães de fila
do rei..
Seria preferível não deixar em sua passagem nenhuma pista que pudesse ser
farejada.
Contava com o Sr. de Varange, perito na arte de feitiçaria e que a esperava em
Quebec, para a função de mágico.
Ora, eis que lhe anunciavam sua morte... e há muito tempo. Desaparecido,
efetivamente. Seu desaparecimento coincidira com a visita que o Sr. e a Sra. de
Peyrac tinham feito a Quebec.
Por que Varange desaparecera no momento em que "eles" chegavam? Como se
quisesse ceder-lhes o lugar...
Uma suspeita assustadora começou á apoderar-se dela.
'Eles' também estão por trás dessa morte... desse desaparecimento", disse consigo.
"Foi ela que o matou!", exclamou.
Estava tão segura de seu pressentimento que não mais conseguia discernir se estava
se deixando levar por divagações obsessivas ou se estava sendo avisada magicamente
da realidade.
Angélica matara o Sr. de Varange. Só podia ter sido ela. Onde? Quando? Por quê?
Como adivinhara que o velho debochado era seu cúmplice? Impossível sabê-lo. Mas
fora Angélica quem matara o Conde de Varange.
"Vou gritar em toda a parte que foi ela quem o matou, e... vão me considerar louca.
Serei olhada com suspeita... Mesmo esse Garreau d'Entremont, que só espera uma
denúncia nesse sentido... Ele também sabe que foi ela que matou Varange."
Mas pediria provas...
Essa nova polícia, que o rei pusera em ação, exigia provas. Antigamente, bastava
recorrer à delação, à acusação, à pecha de feitiçaria.
Hoje, queriam provas...
E a flor da nobreza da França seria enviada à Bastilha ou ao exílio, e, mesmo, à
guilhotina, por culpa dos cadáveres de crianças recém-nascidas, imoladas nas missas
negras, muito bem pagas, rezadas sobre um ventre de prostituta. Que visão ridícula e
despropositada! Que importância tinham esses bebés sem nomes, verdadeiras larvas
humanas, em comparação às grandes personagens que pagavam um preço tão alto por
sua imolação?
"Larvas humanas, ignóbeis larvas brancas retorcendo-se e bocejando", repetiu,
torcendo a boca numa careta de asco, "sem nome e nem mesmo batizadas... Ah! sim.
Parece que La Voisin ou outra comadre as batizava antes de enfiar-lhes a agulha no
coração... Idiota."Ela vai pagar caro por haver arrancado a Satã sua presa..."
Provas! Não podia acusar Angélica sem apresentar provas!
Deteve abruptamente a louca progressão de seu pensamento. Não devia mais fazer
projetos. Sentia medo. O Medo! Era a primeira vez. Por não tê-lo experimentado
nunca, adivinhava que era o medo que lhe apertava a garganta.
Cometera um erro por esquecer.
Esquecer o que acontecera na Acádia. O Fracasso! A Derrota total! Mas
sobrevivera, com a única finalidade de concluir sua missão. Senão, não tinha razão
alguma para sobreviver. Se não o conseguisse desta vez, não lhe concederiam
sobrevivência. O medo e o ódio dilataram-lhe o coração, despertando nele espasmos
voluptuosos. Suas mãos se abriam e fechavam no desejo de apertar um pescoço de
criança, um pescocinho branco e firme, muito ereto, muito belo, o de Honorina, que
trazia em si a dor possível de Angélica.
"Ah! como odeio as duas!..."
A frustração e o desejo das visões entrevistas atormentavam-na desvairadamente.
"Que volúpia!", repetia baixinho com unrlongo suspiro, nascido do mais profundo
de suas entranhas.
Suas entranhas despertavam. Graças a Deus!, teria dito, se um pacto interior feito
com as forças infernais não lhe proibisse empregar esse vocábulo, a não ser em voz
alta e para enganar. Como é difícil afinal habitar uma carne tão fraca! E eis que, fora
de qualquer estratégia, desejava um amplexo amoroso para acalmar ardores quase
dolorosos, inspirados pelas evocações lúbricas de seus projetos frustrados, de sua
vingança inacabada.
Queria muito gozar, mas não sofrer, e seu corpo pareceu-lhe fraco, subjugado,
suplantado por forças que ela mesma desencadeara.
"Tornei-me realmente, eu também, uma criatura humana?...", indagava-se com
terror.
A voz de um serviçal informando-lhe que um homem jovem desejava falar-lhe
chegou ate ela.
— Mande-o entrar!
Sentiu uma presença no limiar do aposento, a alguns passos, e voltou-se.
Estremeceu-se violentamente. Mistura de medo e de satisfação. Aquele que acabava
de entrar era uma resposta a suas dúvidas e indecisões. Preferia o corpo-a-corpo com
o adversário.
No corpo-a-corpo era a mais forte. E quando se tratava de um belo jovem como
esse, a vitória estava assegurada de antemão. Ela podia fazer as mulheres chorar,
destroçá-las, destruir-lhes a existência, mas não domá-las, exceto algumas. Enquanto
esses machos imbecis, escravos de seus sentidos e de sua vaidade, era muito fácil
levá-los a ceder, de joelhos tremendo.
Entretanto, havia também o medo.
Desde que se sentira reconhecida por ele em Versalhes, na an-tecâmera do rei, uma
surda certeza a obsedava, a de que ele não permaneceria lá. Eis por que quisera
mandar matá-lo imediatamente. O atentado fracassara, então?
O receio não cessara de atormentá-la. Ridículo! Pois, chegando ao Havre com o
esposo, embarcara para a Nova França.
Apesar disso, não parava de imaginar aquele Cantor de Pey-rac, que tinha os
mesmos olhos da mãe, procurando saber mais coisas a respeito dela. Embarcando
talvez em sua perseguição. Estava tão convencida disso que, ao sair de Quebec para
Montreal, previra sua vinda. Descrevera-o a seus homens, que deixou à sua espera no
lugar, e dera-lhes ordens precisas a seu respeito e do glutão. O animal fora morto, mas
ele, como lhes escapulira novamente?
Ele tirou graciosamente õ" chapéu de feltro e saudou profundamente.
— Senhora, está me reconhecendo?
— Certamente — disse ela, levantando a cabeça com desafio '—, e não me cabe
nenhum mérito, pois, desde Versalhes, você me persegue. Posso saber por quê?
— Reconheci-a, senhora, quando todos a julgavam morta há vanos anos. Não é
normal ter querido assegurar-me de que meus olhos não me haviam enganado?
— Uma curiosidade tão desmedida, que o impele a vir aos antípodas para satisfazê-
la? Está gracejando, senhor!... Ou mentindo...
— Senhora, ao meu ardor e à minha paixão, que importam os mares a atravessar...
Nada representam quando,se„trata de me assegurar desse milagre. Você está viva! E,
com efeito, tratava-se, para mim, ao me lançar em seu encalço, de satisfazer desejos
muito diversos de uma simples curiosidade. Oh! senhora — prosseguiu, sem deixar-
lhe tempo de perceber nele e nela a falsidade daquelas declarações —, quantas
lágrimas derramei, quantos remorsos me atormentaram, quantas saudades me
dilaceraram! Você foi tão maltratada na praia de Tidmagouche, e tão injustamente! A
loucura dos homens não tem limites quando o ciúme se apodera deles. Eis, portanto, o
que eu tinha a lhe dizer, e por que atravessei os mares, já que um acaso abençoado me
permitia, implorando seu perdão, apaziguar minha consciência.
Acredita nele? Havia nos olhos puxados de Ambrosina clarões frios e fixos,
assassinos. Ela repetiu:
— Viram-no correndo em Quebec...
— Eu estava à sua procura.
— Não acredito em você, belo pajem.
Como era belo esse Cantor de Peyrac! Seu nome e sua beleza faziam ao mesmo
tempo rilhar os dentes e subir água à boca.
Em Versalhes, quando por ali passara, ouvira mexericos a propósito de uma das
damas de honra da rainha, que estava louca por ele. A tal ponto que, em vez de
censurá-la e desfazer-se dela, a rainha, que a apreciava muito, concedera-lhe um
feriado de amor ilimitado, deixando-a "arrulhar" seu jovenzinho até não poder mais.
Pequeno deus, pequeno senhor, investido já de poder e de arrogância, ali estava
naquelas plebeias províncias, tendo deixado tudo por ela afirmava ele.
— Está me ferindo, senhora, duvidando de minha lembrança e de meu fervor. De
que modo poderia provar-lhe esses sentimentos senão cometendo a loucura de
persegui-la? O que eu procurava nessa corrida insensata? Veja! Julgando tê-la
reconhecido, abandonei imediatamente meus cargos na corte. Arrisco-me à desgraça
junto ao rei... Mas não pensei em nada!... Quem faria tal gesto senão impelido pelo
ardente e sincero sentimento que ouso confessar-lhe? Não reconhecê-lo é lançar-me
ao desespero e desconhecer também a força dos ardores que me inspira. Ah! Sra. de
Maudribourg. Pronuncio este nome sem mesmo acreditar.
— Psiu! — fez ela, vivamente. — Com efeito, não o pronuncie.
Olhou em torno com terror. Seu ser se desdobrava. Ela era ainda, mas com
dificuldade, a Sra. de Gorrestat, mulher do novo governador, tendo já conquistado os
edis da colónia, e estabelecido a reputação de dama caritativa e casta, mas, desde que
ele surgira, era sobretudo aquela mulher aventureira do Novo Mundo — como esse
papel lhe agradara! — que alguns anos antes passara, nas praias da Acácia, por uma
odisseia secreta, cujas peripécias nutriram incessantemente suas lembranças com fan-
tasmagorias.
— Tidmagouche!... — disse, com amargura. Os cantos da boca descaíram-lhe, e
adivinhou que o trejeito a enfeava. Mas não pudera refreá-lo. — Tidmagouche, não
me lembro de você ter me tratado com justiça.
— Eu era apenas uma criança.
— Era isso o que me agradava — disse ela, numa voz estrangulada, com um sorriso
matreiro e cruel.
"Dane-me, Senhor, por meu pecado", pensou ele, "mas, pelo menos... que minha
carne sirva para issc^L. aturdi-la, perdê-la, mistificá-la!"
Foi invadida por um tremor. Explodiria em insultos, cuspindo fogo e chamas, como
na praia de Tidmagouche, ou, ao contrario, esse estremecimento era o sinal precursor
de.sua rendição? Ele notara suas fraquezas,"sêus receios. Tiraria partido disso, ao
mesmo tempo para levá-la de volta ao passado e fazê-la temer o presente. Não queria
ser reconhecida. Ainda não eliminara totalmente testemunhas perigosas de seu
passado. Havia vários pontos em que não tinha segurança, em que precisava ser
assegurada. Sua beleza, entre outros, suas possibilidades de sedução...
— Então é você realmente — sussurrou, fingindo-se deslumbrado. — Reagiu a seu
nome. Ainda me restava uma dúvida...
— Por quê?... — lançou, com ansiedade. — Mudei tanto assim?
— Sim, mudou, mas mesmo assim a reconheci. Que mistério explica que seja mais
bela do que em minha lembrança, mais próxima de meu sonho, Sra. de...
— Não me nomeie — intimou-o novamente.
— Ambrosina, então! Ambrosina! Esse nome cheio-de encanto preencheu minhas
noites, cantando incessantemente dentro de mim...

Avançou imperceptivelmente para ela.


Os olhos verdes defrontavam-se com o olhar de âmbar, depois apoderaram-se dele,
e essas duas luzes se aniquilavam numa espécie de trégua, um arrefecimento
passageiro da luta.
Ela sentiu junto de si aquela carne rija de um homem muito jovem, e dediciu
acreditar nele, pois disso, dessa sólida e segura sensualidade primitiva, tinha daí em
diante uma fome e uma sede devoradoras. Sua necessidade dele devastava tudo,
sacudia-lhe o corpd, mas chocava-se-com a onda contrária de sua desconfiança
demoníaca. Havia em seu ser um debate incoerente. Reconduzida a uma vida
longínqua, esquecida, apagada, em que ele fora quase o mesmo diante dela, numa
praia, um pouco mais jovem apenas, mais criança, perdeu o controle de suas palavras.
— Todavia você estava com aqueles que se lançaram sobre mim para me massacrar!
— Deus me livre disso; tive, ao contrário, piedade de você, da violência que era
cometida contra você naquele momento. Creia-me.
As pupilas de Ambrosina brilharam com um clarão venenoso.
— Não acredito em você — repetiu. — Lembro-me de sua maldade quando, em
Gouldsboro, eu tentava agradá-lo.
— Eu era apenas uma criança, minha cara, assustado com o amor e o domínio da
carne, que me eram desconhecidos.
— Bem que eu quis iniciá-lo.
— Tive medo.
— Tinha medo da cólera de sua mãe, que tinha ciúmes de mim. Por causa de minha
beleza, que rivalizava com a dela. E que me odiava porque eu conseguira seduzir seu
pai e atraía o olhar dos outros homens.
Cantor sentiu que empalidecia.
O horror e o asco comprimiam-lhe a garganta.
Felizmente para ele, ela se voltara para o espelho e se examinava, inconsciente de
trair com essa atitude uma inquietação quanto à perenidade de sua beleza e de seus
poderes. Depois sorriu, serenada.
— Em seguida, ele me renegou e mentiu para satisfazê-la. E você também, pobre
tolinho... Não ousou contrariá-la... Não será um pouco tarde agora para vir implorar
meu perdão?...
Nunca mais, jurou a si mesmo, enojado, ouviria mulher alguma murmurar-lhe
palavras de encontro e promessas voluptuosas. E, enquanto ela falava, ele a via virar e
revirar nervosamente em torno do dedo um longo fio de ouro vermelho, um fio de
cobre, flexível, cintilante, que atraía o tempo todo seu olhar, a despeito de si mesmo,
até que compreendeu que eram alguns cabelos de Honorina, alguns dos longos
cabelos da ruivinha, que a harpia provavelmente arrancara do crânio dela,
maltratando-a em sua fúria.
"Eu a matarei", disse consigo, com uma soturna intensidade dolorosa, a única capaz
de ajudá-lo a dominar sua cólera. "Eu a matarei, Diaba!... Que Deus me assista e
sustente minha espada!..."
— "Elas" me desafiaram — resmungou Ambrosina. — Elas!... Apenas elas!... Elas
me escaparam!... É inadmissível! Isso exige punição!... Ah! como as odeio, às duas!
Quanto a ele, não lhe queria mal... por ter me repudiado. Não.'Era um homem. O
homem tem todos os direitos. O homem tem o direito de ser o mais forte. Pois é o
mais fraco. Faço o que quero com eles, um dia ou outro. Mas as mulheres, não, as
mulheres não têm o direito de triunfar sobre mim! As mulheres me pertencem.
Mulheres, quero-as apenas como vítimas ou cúmplices! Quanto aos homens, não há o
que temer deles. Mas elas, elas zombaram de mim... Ah! como odeio às duas...
Um pouco afastado, atrás dela, adivinhava que estava falando de Angélica e de
Honorina: Uma candente indignação turvou-Ihe a vista. Sua mãe! E uma criança, sua
meia-irmã!... Seja como for, uma criança colocada sob Sua proteção, pois se tornara
seu meio-irmão mais velho.
Como aquela horrível criatura ousava falar delas naquele tom diante dele?... Como
se ele já fosse uma aquisição indiscutível dela!...
"Tome cuidado!", intimou a si mesmo, esvaziando o cérebro de todos os
pensamentos. "Que ela não suspeite nada do que o agita..."
E surpreendeu o olhar que ela lhe lançava pelo espelho. Procurando adivinhar-lhe os
pensamentos, pronta a lançãr-se sobre ele, uma fúria, ao menor sinal, brilho de cólera
ou de repugnância, que poderia fazê-la suspeitar que ele não lhe era totalmente
devotado. A seus pés... Acorrentado pelo desejo carnal que o cegaria, tornando-o
indiferente a tudo o que não fosse ela, surdo às aterradoras palavras que ela
pronunciava como que por descuido, a fim de provocar sua ira. A menor suspeita do
que ele sentia verdadeiramente decidiria sobre seu destino.
Mas ela não conseguiu ler nos olhos claros, fixos nela, nada além de uma impávida
luz, essa fixidez ausente, obsedada, quase imbecil, que uma cobiça ardente,
estrangulada, empresta por vezes ao olhar dos homens.
Tê-la-ia enganado? Gostaria de crer nisso. O suor molhava as costas do pobre
Cantor, tomado pelo medo de que pudesse alertá-la pelo quebrantamento de um só de
seus "pensamentos.
Toda a astúcia e sangue-frio de seu pai se reuniam nele. Compreendia agora aquela
força de dissimulação do Conde de Pey-rac, que tantas vezes o irritara ou
decepcionara, ferindo sua sensibilidade infantil, embora também se abrigasse à
sombra daquela força e se felicitasse com sua proteção.
Compreendia que a arma se forja pela virulência do inimigo, pela extensão do
perigo, que a traição só pode ser evitada com uma traição ainda maior.
Deu mais um passo em sua direção.
"Que minha carne sirva ao menos para isso", pensou, "que minha carne, que a
subjuga, sirva para isso... Para a salvação de todos!..."
Ela via tão próxima sua boca polpuda, firme, que capitulou, enquanto ele
murmurava:
— Onde?... e... quando?...
Esse ultimato já dera certo anteriormente.
Fora Florimond quem lhe indicara algumas estratégias e fórmulas que, pretendia,
eram irresistíveis.
Ela estremeceu da cabeça aos pés. O desnorteamento ávido que apareceu em seu
rosto provocou-lhe náuseas.
Ela respondeu, ofegante:
— Esta noite, na ponta da ilha, a jusante do rio. Ali existe um moinho abandonado...
cercado de olmos e de faias-pretas. E o nevoeiro se soma à noite para dissimular
aqueles que não querem ser vistos. Espera-lo-ei lá, junto ao bosquezinho...

CAPITULO IX

O fim da Diaba — Reação devastadora do Mal e a fúria dos elementos

Oculta sob um manto cinzento, que tomara de empréstimo a uma de suas criadas de
quarto, e confundindo-se, àquela hora da noite, com a sombra projetada pelo moinho
vazio, ela esperava.
Os mil ruidozinhos do lugar davam-lhe arrepios, e ela se surpreendia com um
sentimento mesclado de impaciência e de angústia que não lhe era habitual.
Saltos de rãs na água adormecida — de uma campina esponjosa coberta de caniços,
rangidos, coaxos, saltos abafados, pesados, do lado dos bosques, o estalejar de asas como
de velas moles chocando-se com as ripas do telhado do moinho, onde se abrigavam e
despertavam pequenas corujas aveludadas, que por duas vezes lançaram seu apelo
modulado.
Como fora tola deixando-se tentar por essa escapada! Ele já devia estar morto. Era tão
simples e era o que precisava ser feito. "Não", repetiu a si mesma. "Eu o matarei, mas...
depois!"
E movida por esse pensamento, passou a língua pelos lábios. Alguma coisa de si
mesma lhe escapava, como se lhe escorregassem das mãos as rédeas que sempre
mantivera firmemente sim, sempre.
De onde lhe vinha essa vontade devoradora de desfrutar o corpo do jovem, de saber
tudo sobre ele, de conhecer o vigor de seus braços enlaçando-a, de se afogar em suas
pupilas límpidas, que lhe lembravam as de sua rival, e as da criatura feminina, sua irmã,
que deveria ter subjugado tão facilmente e que se rira dela?
"Tudo, menos renunciar àquele instante", disse consigo, ardendo de um desejo que,
de segundo em segundo, lhe pareceu desconhecido e que deslizou para todos os seus
membros, como o movimento de uma serpente sutil.
Ouviu os passos de um cavalo.
Iluminado de frente pelos últimos raios de um crepúsculo que se quisera pálido,
matizado por uma claridade mais para lírio do que para rosa, um cavalo branco
apareceu, montado pelo jovem herói esperado.
Por que vinha a cavalo?
Ele não pertencia a este mundo.
Estava deslumbrada pelo brilho de suas madeixas douradas sob o grande chapéu
emplumado, que batido pela luz, lhe formava uma espécie de auréola.
Em sua embriaguez de vê-lo, perdeu a noção de sua própria realidade carnal. Não
podia nem mover-se, nem avançar um passo. O fogo de sua paixão se desprendia de
seu ser, como labaredas púrpuras que lhe fossem arrancadas uma a uma.
"Era essa a felicidade conhecida pelos humanos?", indagava-se, tomada pelo terror,
compreendendo demasiado tarde que esse corpo, traje habitual e muito mimado como
instrumento dócil, apanhava-a em sua armadilha. A espiral arrastava-a, fazendo de
sua carne uma espécie de chama devoradora e sublime, esse fogo do sangue vermelho
pelo qual "eles" estão prontos a vender sua alma, sibilante ascensão prestigiosa e fatal,
pois implicava desobedecerão mestre, o que lhe inspirava um terror sem nome, e as
dores de um arrebatamento, dissociação das naturezas inconciliáveis. O fenómeno,
que lhe causava um padecimento tão atroz quanto um esquartejamento, ocultou-lhe a
visão da bola escura e aveludada fendendo a relva como um projétil.
Tinha as pupilas fulgurantes, o pavoroso ricto daquele que fora expulso do céu para
os infernos, E arremetia contra ela.
A beleza perdida de Lúcifer ficava para o outro, lá longe, que, montado no cavalo
prateado, à beira do bosque, a fitava com os olhos translúcidos como água límpida, de
um azul inviolado.
— Face de anjo, maldito seja!... — gritou.

O impacto do animal derrubou-a. E ela se transformou no mesmo instante em sua


presa devastada.
— Deixe-me chegar perto — dizia Cantor.
Apesar de sua repugnância e do maldito terror que o invadia, apeara do cavalo e, nas
trevas, girava em torno-da cena imunda, tentando acalmar o glutão enfurecido.
Mas este não queria afastar-se. Lançava-se com ímpeto sobre ela, investia, voltava
sem cessar.
— Deixe-me chegar perto! Devo fazer isso!
Durante a viagem, a meia-voz ou em pensamento-, viera falando com o animal
domesticado por ele, atiçando-o daí em diante contra a mulher assassina que ele seria
encarregado de exterminar.
O que sabia Wolverines? Lembrava-se dos cães gigantescos, tão grandes quanto
ursos, que Ambrosina lançara contra ele em Tid-magouche? Adivinhava que era às
suas ordens, a ela, que obedeciam os caçadores que o acossaram em volta de Quebec
e tinham matado sua fêmea diante de seus olhos?... Teria subitamente "visto", como o
pequeno gato outrora, a verdade do ser aparecido?
— Deixe que eu me aproxime! Tenho de fazê-lo! Eu prometi.
Tenho de enterrar-lhe minha adaga no coração, a fim de assegurar-me de sua morte.
Eu prometi. Depois você poderá fazer o que quiser!...
O cavalo relinchava, dominado pelo pânico, encabritando-se, puxando o galho ao
qual estava preso. Atabou quebrando-o e fugiu a galope!...
A tempestade eclodiu! Uma tempestade sem chuva. Um raio, passando em
ziguezague ao nível dos telhados de Ville-Marie, caiu sobre as ardósias do solar que
fora posto à disposição do senhor governador, e ricocheteou, como uma bola
caprichosa, engolfando-se por uma das chaminés.
Foi o tempo de formar-se uma fila de pessoas até o rio e de se apanharem os baldes,
e já estava tudo consumido. Não sobraram senão as paredes de pedra enegrecidas.
Os serviçais e as criadas salvaram-se a tempo. O governador estava aquela noite em
casa dos senhores de Saint-Sulpice. Foi essa a razão pela qual não se procurou
imediatamente a Sra. de Gorrestat, julgando-a desaparecida no incêndio.
Foi preciso esperar para poder sondar as ruínas ainda quentes, quando se
surpreenderam por não encontrar nenhum vestígio dela. Simultaneamente, um
caçador de abetardas acorreu, falando de um cadáver horrivelmente mutilado,
encontrado lá pelos lados da ponta do moinho.
Diante dos restos irreconhecíveis que, mistura de carnes e de pedaços de tecido,
tinham já servido de pasto às raposas, ainda se duvidava.
Mas a pavorosa descoberta, não longe dali, de uma cabeça de mulher de cabelos
longos e soltos, embebidos em sangue, pendurada no galho de um olmo, fez com que
todas as testemunhas desistissem de prosseguir as investigações sobre a identidade da
vítima. O horrível espetáculo levou os oficiais e fidalgos, recém-chegados da França,
a vomitar, encostando a testa ao tronco de uma árvore.
Cercados de homenagens, baixaram-se rapidamente os restos da desditada mulher
É

do novo governador, sobre a qual só se falava bem em voz alta, mas cujo
desaparecimento causou secretamente a muitos um certo alívio.

Na ilha de Montreal as investigações criminais não tinham a seriedade que lhes


emprestavam ali em Quebec, a capital, onde um Garreau d'Entremont se empenhava
em fazer reinar a justiça do rei, com a ajuda de uma polícia inspirada nas reformas do
tenente de polícia civil e criminal do reino, o Sr. de La Reynie.
Estavam ali nos postos avançados, numa região pioneira.
Cheio de ambições, que lhe haviam sido insufladas, e da necessidade de agir, o Sr.
de Gorrestat mandou enforcar um iroquês chamado Magoniganbauit. Tratava-se de
um índio batizado, mas acusavam-no de traição, pois seu nome significava "amigo do
iroquês".
Esse tipo inédito de execução gelou de espanto todos os índios. Achavam indigno
que, pelo estrangulamento, se impedisse um condenado de entoar seu canto de morte.
Retomando o projeto que concebera de suplantar em ações gloriosas seus
predecessores; que haviam agido apenas como governadores, enquanto ele pretendia
agir como vice-rei, aproveitou-se do pretexto de vingar a morfe ignominiosa da
esposa para reclamar o início imediato de uma campanha de represálias até os confins
do vale das Cinco Nações.
Estava seguro de. encontrar em Montreal, onde não faltavam mortos a vingar,
seguidores entusiastas nesse projeto.
Quatro companhias, o mesmo número da milíci'a,~urh pouco menos de abenakis,
algonquinos ou huronianos, se reuniram e dispuseram-se numa flotilha animada e
cantante, subindo o Saint-Laurent para atingir o Forte Frontenac.
Convocou seu missionário, o Padre Raquet, que se dirigiu aos cantões com o
capelão das tropas, o Padre de Guérande, e conseguiu persuadi-los a enviar uma
delegação a Cataracuí para homenagear o novo governador.
As tribos, que lamentavam não ter seu encontro habitual de verão para festins e
danças com o Sr. de Frontenac, deixaram-se tentar por um convite lisonjeiro, embora
tardio, que lhes incitava a curiosidade. Numerosos capitães e grandes homens das
Cinco Nações, acompanhados cada um de uma pequena escolta de guerreiros,
tomaram o caminho do lago Ontário.

Ao término do banquete, quando estavam bem adormentados pela boa comida,


mandou que as tropas os cercassem e lhes amarrassem uma corda ao pescoço e aos
braços, também atados, prendendo-os a cepos que os carpinteiros tinham acrescentado
aos preparativos da festa, sem que ninguém o notasse. Diante disso, "eles começaram
a entoar a plenos pulmões seus cantos de mortos".
Quarenta e cinco chefes iroqueses foram assim capturados e enviados a Ville-Marie,
depois a Quebec, sendo outros tantos embarcados imediatamente para servir nas
galeras de Marselha.
Assim que foi avisado de que os quarenta delegados das Cinco Nações tinham sido
mandados para as galeras da França, o Sr. de Gorrestat, sempre ébrio de raiva e de
transportes interiores grandiosos, como que possuído, lançou suas tropas sobre os can-
tões iroqueses. Em Cataracuí, mandou-as desembarcar o mais próximo possível, isto
é, na margem sudeste do lago Ontário. A escolha do território era infeliz.
Os onondagas comportavam-se, havia vários anos, como nação pacífica.
Haviam sempre resistido aos apelos do massacre geral dos franceses, incessante
lançados por Utakê, um dos mais ardorosos chefes da tribo dos agniers.
A moderação não beneficiou os onondagas. Seiscentos regulares, trezentos
milicianos e o mesmo número de aliados selvagens caíram sobre eles. Em poucos
dias, duas de suas mais importantes aldeias foram incendiadas: Cassuets e Tuansho.
Seus guerreiros, numerosos mas dispersos pelas primeiras caçadas, não tiveram
tempo de se reunir.
Nesse momento, o inverno abateu sua pesada pata sobre um outono ainda incipiente
e que se anunciava brando, como se a Natureza se sentisse subitamente importunada
pelas loucuras delirantes dos homens.
Soldados vindos da metrópole, vestidos com suas roupas de verão, despertavam sob
a neve, ou não despertavam, congelados no sono.
Muitos foram esmagados pela queda de árvores que, ainda cobertas de folhas,
sucumbiam sob o peso da insólita neve.
Foí um desastre. Sem raquetes, insuficientemente vestidos, os homens se afogavam
nos montes de neve, nos pântanos invisíveis, nos lagos que em certos lugares não
estavam suficientemente gelados, e pelos quais entravam, julgando estar atravessando
planícies.
Cantor de Peyrac, que durante esse tempo subira o rio Utauais e chegava à baía
Georgiana, com a intenção de alcançar pelo sul os cantões iroqueses, detido pelas
neves, conseguira chegar à grande ilha de Manituline para invernar entre os
odjibways.

A leste do Ontário, os exércitos bem ou mal reunidos e guiados pelos milicianos


canadenses, eles mesmos incomodados pela chegada precoce do frio, mas conhecendo
o país, fecharam-se nos fortes ou muralhas das missões que os sobreviventes
conseguiram alcançar, os fortes dos lagos Champlain ou Saint-Sacrement, ao norte do
rio Hudson, os fortes Saint-Louis e Sainte-Thérèse, Saint-Anne, na ilha de Lamothe, o
Forte de Richelieu e até o Sorel.
O Sr. de Gorrestat permaneceu no Forte Frontenac, no lago Ontário.
No início, esperava-se uma volta do bom tempo, um abrandamento, uma retomada
normal da estação. Não foi o que se deu.
Até as margens do,Atlântico no sul e as do golfo-Saint-Laurent a leste, franjadas de um
mar enegrecido e esverdeado, carregando pedaços de gelo, o deserto branco se estendia,
recobrindo por longos meses espaços infinitos.
Num ponto dos quais, denominado Wapassu, uma mulher e três crianças pequenas,
prisioneiras de um fortim soterrado, privadas de qualquer ajuda, iriam morrer de fome
dali a algumas semanas.

O DESERTO BRANCO

CAPITULO X

Em Wapassu destruído, a espera angustiante de Angélica

Uma ansiedade, que ela não queria ver transformada em angústia, começava a
invadi-la sorrateiramente.
Assim que abria os olhos, aquilo lhe saltava ao pescoço. Antes mesmo de ter
percebido a volta de uma nova manhã, de ter reconhecido a luz da vida ao sair do
sono e do esquecimento misericordioso, havia aquelas garras apertando-lhe o pescoço
e, no peito, um peso que a impedia de respirar. Mal-estar que traía a percepção
profunda que já possuía da situação, verdade imposta por um subconsciente mais
lúcido que seu consciente. Fazia-o recuar logo, como se faz retroceder um cavalo
empacado, à custa de injúrias e de palavras violentas, cujo vocabulário evocava com o
Pátio dos Milagres. Entre elas, a mais convincente e expressiva começava por um
m..., palavra que todo francês, de todo tipo e de ambos os sexos, parece trazer do
berço, escondida num canto da memória e que permite exprimir, em circunstâncias
muito penosas, o conjunto de seu desprazer. •
Confissão de má sorte, constatação de uma situação desastrosa, e mesmo perdida,
protesto contra o destino adverso, e contra todos aqueles, inimigos, traidores, aos
quais responsabilizamos, censura velada dirigida a nossa própria tolice e que sugere o
movimento benfazejo de bater no peito ou de se xingar de imbecil, tudo estava
contido naquela palavra, ao mesmo tempo curta e simbólica, no grito de derrota, de
impotência, mas também de feroz reivindicação contra o Céu e os homens. Depois de
tê-la repetido energicamente várias vezes, Angélica se sentia melhor.
Esse grito devia ser ouvido, compreendido por quem de direito.
Lançá-lo pelos cantos aliviava-a e lhe devolvia a coragem. O raciocínio recomeçava
a funcionar, com a ajuda de seu temperamento, e ela se deixava levar a uma visão
mais sadia e otímista das coisas.
Com efeito, de nada adiantava proferir insultos aos quatro ventos. Havia ainda o que
comer por alguns dias, e, até lá, ter-se-ia encontrado uma solução... ou então a
caravana chegaria. Tomava pé novamente com animação, endireitava-se, sacudia os
cabelos, as roupas, como que para espantar-lhes os miasmas da desgraça. Algumas
vezes, caía na gargalhada diante dos sorrisos e olhos arregalados, cheios de malícia e
de surpresa escandalizada, de Carlos Henrique e também dos gémeos — aqueles
pequenos "venenosos", como dizia Iolanda —, sempre atentos às palavras proibidas e
que não tinham perdido nada de seu requisitório contra a injustiça e a "cachorrada" da
existência.
— Levantem-se, Pequenos Polegares! Está menos frio. Vamos tentar encontrar as
armadilhas de Lymon White.

As crianças gostavam de sair quando o tempo o permitia, e ela percebeu que não era
apenas porque podiam foliar ao ar livre, mas porque estavam felizes por reconhecer
seu cenário familiar.
Para eles, era sempre Wapassu. Viu-se olhando de outro modo os arredores
devastados, como se reconhecese, por trás de uma face machucada, um ser amado.
As crianças tinham razão. As felicidades vividas em Wapassu jamais poderiam ser
apagadas, nem os atos praticados, as vitórias, as apostas...
Ele lhe dissera: "Eu lhe construirei um reino". Aquelenão era um reino. O termo
parecia-lhe impróprio em terras da América. Era uma pequena república. Com as
crianças, à noite, habituara-se a brincar de "a pequena república".
Perguntava-lhes:
— Quem habita nossa pequena república?
E elas faziam um esforço para evocar os rostos das pessoas que haviam amado e que
lhes faziam falta.
Carlos Henrique era o interprete dos gémeos quando ela não compreendia o que
explicavam ou evocavam em sua animação.
— Estão falando de Colin, estão falando do cachorro, estão falando de Granadina...
Estimulava-lhes a memória interessando-se pelas imagens que já haviam acumulado
e que, por sua escolha, os definiam, os revelavam.
— Lembram-se daquele? Daquela? Ele era gentil? Malvado, vocês dizem? O que ele
fez que não o agradou, Raimundo Rogério?
Falava-lhes daqueles que marcavam sua lembrança ou daqueles de que não se
lembravam, tomando um tom de lenda ao descrevê-los como heróis de romances,
fazendo-lhes, em episódios, a narrativa das façanhas de seus amigos, os habitantes da
pequena república.
Assemelhava-se a uma crónica, cujo desenrolar também lhe era benéfico, pois revia
mais intensamente os rostos de cada um. Retratos aos quais os comentários das
crianças, comentários que com frequência não eram destituídos de sabor,
acrescentavam um toque suplementar e às vezes inesperado.
Essas conversas permitiam-lhes evadir-se, alçar vôo para evocações alegres;
repousavam-nos da monotonia das horas escandi-das pelos instantes muito breves das
refeições e pela espera dessa outra evasão abençoada, o sono. As crianças não
estavam conscientes dessas duas obsessões que pouco a pouco se instavalam em suas
vidas e as comandavam, sentindo-se nelas ainda a chama sempre pronta a se acender
para brincar, saltar, correr ou dedicar-se a essa atividade especificamente infantil que
os adultos chamam "fazer tolices", mas Angélica sabia que teria, grande dificuldade
em conservar o rifrho de dias normais em sua vida de soterrados.
Lembrando um por um dos amigos, prometendo revê-los em breve, povoava seu
refúgio, bem vazio para crianças habituadas, desde o nascimento, a viver em
comunidade. Também lhe fazia bem evocar tantos anos felizes vividos ao lado de
Joffrey e toda aquela vida fervilhante que'se estabelecera e se desenvolvera à sombra
de sua proteção e de sua atividade incansável.
E, pouco a pouco, Angélicatomou consciência do papel que a na tragédia recente,
cujo último ato — a morte de Loménie-Chambord — lhe pesava no coração.
"Eu os detive!''
Julgando apro.veitar-se de sua ausência, eles tinham vindo, como da primeira vez
em Katarunk, e a encontraram.
Se não estivesse ali, ou se tivesse capitulado, teriam prosseguido para o sul, ao
longo-do Kennebec, e teriam capturado, sem dar um só tiro, sucessivamente, as minas
e postos disseminados, pertencentes a Joffrey de Peyrac, e depois Gouldsboro. Quanto
a Gouldsboro, talvez não deixasse de haver troca de tiros, mas naquelas condições,
com ou sem a ajuda de Saint-Castine, a bandeira do rei da França teria substituído, no
torreão do forte, a do escudo prateado do fidalgo independente.
Situação que, uma vez ratificada, seria mais espinhosa de acertar do que a atual.
Wapassu incendiara-se, mas os vingadores do Padre d'Orgeval limitaram-se a isso.
Retornaram na direção do norte.
"Eu os detive!"
Fazia-se essa justiça para manter a coragem.
Na verdade, dessa vez, apesar das aparências, não tinham, ela e Joffrey, deixado que
lhes passassem à frente.
A medida que se avança em idade e em experiência, o que se exige não é
permanecer continuamente alerta, o que seria insuportável, mas adquirir esse sexto
sentido que permite chegar a tempo em socorro dos pontos fracos da fortaleza. Às
vezes, ignorando que ela já se encontra ameaçada.
Tanto um como outro, por viverem unidos, estavam formados nesse jogo de defesa
inconsciente, sem esforço, quase sem o saber.
Seus instintos tornaram-se únicos. Quando pensava nisso, via claramente que a
decisão dele de acompanhar Frontenac, e a dela, de voltar a Wapassu, apesar dos
debates e das separações que isso custara, impusera-se naturalmente, porque era isso o
que tinha de ser feito.
Tinham recebido a graça de chegar a tempo nos pontos sensíveis visados pelo
inimigo.
O que não queria dizer que se salvaria tudo sem perdas e danos, como se costuma
dizer. Mas fora a melhor estratégia. Isto é, a que permitira evitar o pior.

"O pior foi evitado", repetia-se, lançando um olhar de desafio às lonjuras geladas
que, a cada dia, a cada hora, tomavam uma tonalidade ou uma nuança diferente. "É
uma lei, uma lei lógica da Natureza. Elas nos favorecerá... Chegamos a tempo às
seteiras, diante das quais se apresentava o inimigo, e a tempo pegamos em armas...
Teria desencadeado em vão sua crueldade cega?...
De pé no topo da colina, falava sozinha, voltando-se para um lado e para outro. Com
o correr dos dias, parou de erguer a voz e de mover os lábios, pois isso era mais um
desgaste de energias. Continuava, porém, a discorrer com veemência com seu único
interlocutor, a paisagem, numa mistura de sensações interiores que oscilavam do
medo à alegria mais exaltada, da admiração e confiança ao receio e rancor, de uma
certeza de domínio sobre os elementos ao acabrunhamento, à renúncia diante de sua
força cega.
Alternadamente, via através delas a imobilidade da Natureza, sua inércia petrificada,
a crueldade do destino dos homens e a promessa da grandeza desse destino.
Ela era a Humanidade tremula às portas do Éden. Estas, pesadas e guardadas pelo
anjo de espada chamejante, fecharam-se às suas costas. Diante dela, frio, fome,
sofrimento, suor do pão de cada dia... Mas também... a Beleza, o segredo dos tesouros
enterrados, o segredo das consolações, para essa aventura da Vida que se anunciava e
que seria preciso buscar.
Por esse motivo fazia essas surtidas quase todos os dias, como se fosse a um
encontro de afrior, ao baile, a um casamento, a uma festa.
Misturava-se a esse prazer um sentimento de espera, a certez -de que dessa vez,
naquele dia, alguma coisa ia mover-se ao longe a aproximação da caravana, a chegada
de socorro.
Sabia também que, mesmo que o horizonte permanecesse mudo, um viático lhe
seria dado, uma flor de esperança.
Através daquele espetáculo grandioso passava a corrente de uma confiança que
fortificava todo o seu ser, tornando-lhes perceptíveis as verdades salvadoras. "Através
de mim, que você contemple o sorriso de Deus!..."
De pé na plataforma, ou à borda da trincheira, dava alguns passos como que para se
colocar melhor no centra de uma solidão em que sua presença única de ser humano,
frágil, mas com esse minúsculo e vermelho coração vivo que batia dentro dela, esse
sangue vermelho e quente que circulava em suas veias, tomava um significado
decisivo.
Aquele dia, aquela madrugada, aquela orgia de cores, linhas, múltiplas formas, era
como uma ópera.

CAPITULO XI

Imenso abismo de gelo — Um ténue sinal de fumaça

Naquela manhã, a leste, a cortina da noite abriu-se sobre duas nuvens cor de areia,
alongadas como dunas sépia-escuras orladas de ouro. Estagnavam imóveis por detrás
do monte Kathadin. Suas metamorfoses coloridas anunciavam o aparecimento do
astro do dia.
Naves do espaço, carregadas de ameaças ou, ao contrário, das consolações do
esplendor.
Como elas, Angélica, de pé na pequena protuberância de neve gelada, esperava o
sol.
Levantava-se muito cedo e seu primeiro gesto era empunhar o caldeirão, colocado
sobre as brasas, e jogar água quente nos gonzos de couro da porta para desprendê-la.
Se um belo dia as almofadas de madeira, ferragens, gonzos, se revestissem de gelo,
não teria mais forças para mover aquela porta pesada e abrir a passagem para fora.
Se tivesse nevado durante â noite, ela se reaquecia e se punha novamente em ação,
retirando a neve com a pá e desobstruindo a beirada da soleira e os degraus talhados
no gelo, que permitiam sair da trincheira. Esta se tornava mais profunda a cada in-
verno. Isso constituíra um problema quando invernavam no fortim de Wapassu. No
início, era apenas um abrigo para quatro mineiros, edificado contra o talude, com
acesso às galerias de minas, um verdadeiro covil. Já meio enfiado sob a terra, a neve
só podia enterrá-lo ainda mais, pois as ampliações e reformas não tinham sido feitas
na entrada principal. Tinha, pois, todas as manhãs, que retinar a neve, sob pena de ver
aquela abertura logo condenada.
Depois que saía, hà noite mal iluminada, Angélica sentia o vento, sondava o frio e,
se nem um nem outro se mostravam muito agressivos,-içava-se para fora do buraco e
dirigia-se, a alguns passos dali, a um leve desvio", e onde podia observar o horizonte,
ao alvorecer.
Quando não se sentia com disposição para os trabalhos de desobstrução, subia à
plataforma por um alçapão interno. Dali também se podia abarcar com o olhar o
horizonte, mas de uma maneira menos minuciosa que do outeiro, pois o talude em que
estava encostada a casa ocultava uma parte do lago de Wapassu, chamado o Lago de
Prata. Este, recoberto de uma leve camada de ne^e naquele momento, formava a seus
pés uma grande extensão branca.
Nos dias de muito frio, na fase mais difícil da estação, as horas que.precedem o
alvorecer são talvez as menos sofridas. Se a neve e as rajadas de vento não sopram,
parece que o gelo afrouxa seu abraço, marcando uma pausa clemente.
Angélica gostava daquela hora, que parecia prometer o perdão.
Não estava mais assustada por estar sozinha ali, nas trevas infinitas do céu e da terra
misturadas, e onde nenhuma luz penetrava. Perdera um pouco a noção das datas e,
quando a luz do dia começava a se expandir, desvelando aquele deserto branco mudo,
surdo e congelado, não queria reconhecer que se havia atingido aquele momento do
ano que, nos outros invernos, fazia com que as pessoas de Wapassu pensassem com
seus botões, ou dissessem àqueles que se impressionavam com isso: "O inverno se
fechou".
De todo modo, não vinha ali para meditar sobre sua solidão. Havia uma vida, um
movimento ao qual era sensível naquele instante grandioso, o mesmo e diferente a
cada nascer do sol.
Era a vida. Mexia-se. Falava. Um teatro ordenava-se para ela em todos os pontos do
horizonte. A imagem não era idêntica.
Era às vezes o único momento do dia em que podia perceber o sol. Através de uma
bruma translúcida, ele se levantava, como um enorme escudo rosa, depois
desaparecia, apanhado por uma pesada cortina de nuvens.
Mas outras vezes o espetáculo se desenrolava com magnificência, instante após
instante, até que, estando todas as cortinas erguidas, todos os instrumentos da'
orquestra afinados, o sol consentia em prosseguir seu caminho para um mundo
purificado e, por aquele dia, transmutado em branco e azul.
Agora, as duas nuvens, por trás do monte mais elevado, pareciam duas baleias
escuras escoltadas por baleotes, nuvenzinhas que haviam surgido, não se sabia como,
do éter azul. Seus dorsos eram escuros, de um cinza pesado de tormenta, e os ventres,
de um branco cintilante. Suas formas se alongaram, navegando, tornando-se, ao se
estirar e se dividir, ilhas, praias, continentes com praias cor de mel, à beira de uma
água azul levemente verde. Daquele jade puro ia surgir o astro dourado.
A oeste, a luz que subia já enganchava pontas de rubis, multiplicava os punhados de
jóias lançadas ao léu, ametistas, pérolas, diamantes, através da massa escura e
tormentosa das montanhas adormecidas.
Nos vales indistintos, as neblinas se destacavam contra um cinza espesso,
distendendo-se, numa preguiçosa melancolia, acima dos rios e dos riachos,
encobrindo-lhes os meandros.
O lençol estendia-se de um lugar a outro, mas sem pressa. Seria um dia em que o sol
teria por mais tempo direito de cidadania sobre o mundo, direito usurpado com
frequência pelas nuvens invernais. Ao meio-dia, quando o sol estivesse a pino,
poderia deixar as crianças saírem. E como todas as manhas, no momento de deixar a
plataforma ou -o belvedere, hesitava,, não se decidia a voltar para dentro; retida pelo
encanto, experimentava uma frustração deprimente...
Para se decidir a entrar, era preciso que o frio começasse a penetrar em seus ossos,
que não sentisse mais nem os pés, nem as mãos entorpecidas, e certa vez teve medo
de que o nariz lhe tivesse congelado, como acontecera com Eufrosina Delpeh, a co-
madre de Quebec, que, a fim de espionar os maus passos da Sra. de Castel-Morgeat,
incorrera nesse dano. Voltando para o calor, espreitou, no espelho, com inquietação,
seu apêndice nasal, prometendo a si mesma que seria mais prudente no futuro. Se um
dia ou outro tivesse de reaparecer em Versalhes, não podia fazê-lo marcada por
cicatrizes indeléveis de suas viagens no Novo Mundo. As cicatrizes são gloriosas
apenas para os homens.

E no entanto, aquela manhã, alguma coisa a detinha. Várias vezes voltou da porta a
seu ponto de observação, com a impressão confusa de que um detalhe lhe escapara.
Subitamente, com o coração batendo, uma interrogação se esclareceu. -
Em meio àquelas brumas errantes e longínquas, àquelas névoas exaltadas dos
pântanos endurecidos e dos abismos fechados sobre quedas-d'água geladas, seu olhar
detivera-se numa mancha ao longe, alternadamente esbranquiçada ou transparente, de
formas cambiantes, e que se arredondava por vezes, como que impelida por um sopro
do vento, ou, ao contrário, estirava-se verticalmente no ar puro, subitamente calmo,
num filete branco. Menos que nada: uma mancha arredondada, depois um filete
branco alongando-se, mas que não mudava de lugar.
A partir do momento em que reparou nele novamente, não lhe despregou mais os
olhos. Prendia até a respiração para poder observá-lo melhor. Estava infinitamente
longe e não tinha mais consistência que um sonho.
Mas não podia confundir-se nem com as briímas acima dos rios, nem com neblina.
Era fumaça.

Voltou para casa num transporte de alegria, mas não querendo acreditar naquele
frágil indício.
Seria fumaça?
Muitas vezes durante o dia voltou a sair, a fim de espreitar o sinal, e ele continuava
no mesmo lugar.
— Você fica saindo o tempo todo! — queixaram-se as crianças.
Finalmente, não teve mais dúvida: era fumaça. E, atrás da fumaça, havia homens.
Fossem eles quem fossem, representavam a salvação.

Ao cair da noite, deu mais uma saída. Voltada para a direção de onde vinham os
sinais de fumaça, não conseguiu distinguir nenhum ponto vermelho que, na sombra da
noite, teria revelado a localização de uma fogueira.
"Por isso mesmo!", tranqúilizou-se. "Eles deixaram o lugar e apagaram o fogo
porque continuam 'a caminhar para nós."
Ficou observando durante muito tempo; quando, diante da obscuridade crescente,
decidiu afinal ir para dentro do fortim, estava tão congelada que mal conseguia
mover-se.
Apesar da decepção por não ter podido distinguir nenhum ponto vermelho,
continuava a ver naqueles diferentes indícios novas razões para esperar.
"Eles" vinham, "eles" subiam em sua direção. Aqueles fogos eram de uma parada,
antes da última etapa que os traria a Wa-passu, naquela mesma noite.
Algumas horas mais e os homens da mina do Sault-Barré, os da mina do Croissant,
talvez os de Gouldsboro, alertados, desabariam na trincheira de neve e bateriam na
porta do seu retiro, como daquela primeira vez em que, sob trombas-d'água, tinham se
refugiado, após o episódio de Katarunk, e seria um nunca acabar de congratulações:
0'Connell, Lymon White, Colin Paturel...
Acendeu o fogo na sala grande. Era o máximo que podia fazer para preparar-lhes
uma recepção, fora a aguardente e o vinho...
Para fazer as vezes de farol, subiu para fincar na neve uma grande tocha.
Preparou os colchões e cobertas, e esperou.
Ficou acordada a noite toda, mantendo o fogo aceso, espreitando cada estalo no
exterior, julgando ouvir a todo momento ruídos de passos ou de vozes no sopro do
vento, e precipitando-se ao seu encontro à soleira~'da porta na noite glacial.
Mas pela manhã ninguém tinha aparecido, e o grande silêncio continuava.
Entretanto, quando subiu à plataforma, a fumaça ao longe permanecia lá, no mesmo
lugar, parecendo divertir-se com sua espera, desdobrando-se de modos diversos, em
pequenos topetes ou penachos bem visíveis, tfepois fundindo-se até apagar-se com-
pletamente, para tornar a aparecer. Estava sempre lá como um sopro humano falando
de vida,Tima respiração humana à superfície da terra.

Daí em diante decidiu ir até lá para ver. Pelo menos, tentaria avançar
suficientemente ao encontro do fenómeno para formar uma opinião. Se havia pessoas
lá, elas representavam socorro, possibilidade que não podia desprezar. A ideia de
deixar as três crianças sozinhas, nem que fosse por algumas horas, preocupou-a. Eram
tão pequenas! Fez algumas recomendações a Carlos Henrique: entre outras, não se
aproximar do fogo; acendera-o com pedaços de turfa, que duravam bastante tempo e
não produziam chamas altas.
— E se o fogo apagar?
— Irão para a cama, sob as cobertas, para se aquecer. Não demorarei muito.
Voltarei antes do anoitecer.
Enfiou os calções de Lymon White, seu capote de lã grossa, puxou o capuz sobre a-
cabeça, cobrindo-o, além disso, com um de seus gorros de pele, tão apreciados pelos
habitantes de Wapassu.
Escolheu uma raquete bem leve, pegou uma arma de pederneira, pendurou à cintura
um chifre para pólvora e saquinhos com balas.
As crianças seguiram-na até a porta, prometendo comportar-se.
"E se me acontecer alguma coisa? Um acidente!", pensou, atormentada. "O que seria
deles?"
Recordou-se de sua angústia, na época de suas cavalgadas no Poitou, naquele dia em
que, depois de deixar Honorina, um bebe de dezoito meses de vida, amarrada ao pé de
uma árvore, a fim de correr em socorro daqueles homens atacados, recebera um golpe
na batalha, perdera a consciência e dera por si na prisão, desconhecendo o que
acontecera com a criança, sozinha na floresta.
Sem saber o que ia encontrar ao final de sua expedição, voltou ao quarto e escreveu
numa folha de papel: "Há três crianças pequenas sozinhas no fortim de Wapassu.
Socorrei-as, pelo amor de Deus", e enfiou-a no bolso do capote. Se fosse ferida, se...
Era preciso prever tudo e agir "como se..."
Mas de fato, estava persuadida de que só se lançava a essa empresa para dissipar
uma dúvida insuportável: era ou não fumaça,
aquilo?... O que mais receava era estar tendo uma miragem.
Encontrou as crianças brincando na sala, onde tinham mais espaço que no quarto.
— Podem brincar um pouco aqui, mais sair, não.
— Nem para ir até o lago deslizar um pouco? — perguntou Carlos Henrique,
decepcionado.
— Deus do céu! Não! Não podem sair, estou dizendo.
— Nem para fazer bolas de neve?
— Nem para fazer bolas de neve — repetiu. — Por favor, meu homenzinho, você
tem de se comportar como um irmão mais velho, como Tomás. Você se lembra de
quando ele lhe dizia: "Respeite as instruções". Minha instrução é: "Não saia".
Quanto aos gémeos, só lhe restava uma coisa: obedecer a Carlos Henrique.
E repetiu-lhe ainda uma vez tudo o que ele devia fazer e não fazer, dirigiu uma
última súplica a seus anjos da guarda e saiu para a planície.

Avançava sem poder calcular a distância que teria de percorrer. Não sabia se o
ponto que visava,e do qual não tirava os olhos, estava próximo ou se situava a horas,
ou dias, de caminhada.
Aquela fumaça ao longe era um sopro fino, uma mancha ínfima que se diluía, por
momentos; perdia-a de vista, depois percebia-a novamente, sem estar certa de não se
iludir. Dir-se-ia que era um sopro de agonizante, cuja interrupção significaria para ela,
na verdade, quase que a morte.
Seria, de qualquer modo, a perda de uma esperança louca.
Felizmente, de passo em passo, a fumaça tornou-se mais precisa a seus olhos,
lacrimejantes de frio, fatigados de perscrutar a luz para não perder de vista aquele
traço azulado, que, finalmente, começou a se desdobrar mais nítido e mais próximo
sobre uma cortina de árvores negras.
A margem da floresta, homens tinham acendido uma fogueira. Não os via, mas,
doravante, sua presença era indubitável.
Outros pensamentos a assaltaram. Homens! Amigos? Inimigos?
Homens que, vendo-a aproximar-se, uma forma indistinta e desajeitada, mexendo-se
na imensidão branca, crendo talvez tratar-se de um animal, poderiam atirar à queima-
roupa, como numa caça qualquer.
Nesse momento e inesperadamente, um pedaço de bruma amarelada, bastante
espessa, arrastou-se para ela pela-esquerda e a envolveu.
"Prefiro isso!", pensou.
O odor da fumaça a guiaria, pois agora podia percebê-la pelo olfato. Era
embriagador. E apesar do perigo possível, Angélica estremecia de impaciência.
Subitamente, sob suas raquetes, o solo cedeu.
Avançando numa paisagem cujo revelo se esbatia devido à neblina, viu tarde demais
a beira de uma falha profunda. Só teve tempo de se agarrar a uma pequena árvore no
rebordo.

CAPÍTULO XII

O cunhado de Passaconaway — Insólita caridade no wigwam abandonado

Angélica inclinou-se por cima da ravina. Era daquela falha que a fumaça se erguia
em volutas preguiçosas, estendendo-se como um lençol e misturando-se à pesada
bruma.
Nesse momento, o ramo ao qual se agarrara, e que estava coberto de gelo, quebrou
como vidro e ela desabou no buraco, batendo nos rochedos mas sem se machucar,
devido à espessura da neve que arrastava consigo.
Viu-se no fundo, quase enterrada pela avalancha, e teve muita dificuldade em livrar-
se dela, encontrar a arma, que lhe escapara das mãos, e uma das luvas, que lhe fora
arrancada. A neve introduzira-se em suas mangas, no pescoço, no capuz.
Com movimentos de nadadora, conseguiu atingir um terreno mais firme,
encontrando-se junto a um riachinho semigelado.
Diante dela erguiam-se as colunatas de gelo de uma queda-d'água, um "salto", como
diziam ali. Ao pé de uma cascata, no momento congelada e muda, estagnava-se a
fumaça, emanando dos do-mos submersos de dois wigWatns índios, desses abrigos
que os nómades armam apressadamente com varinhas flexíveis, sobre as quais jogam
pedaços de casca de olmos ou de carvalhos. Através dos interstícios das cascas e sem
mesmo derreter completamente a neve, filtrava-se a fumaça, traindo a presença de
vida.
Ao redor, e apesar da queda da neve fresca da noite anterior, distinguiam-se sinais
de um acampamento. Percebeu um trenó e um arreio que emergiam e julgou ter
ouvido rosnar um cachorro no interior de um dos dois cogumelos recobertos de
branco.
Com o dedo no gatilho, ficou à espreita. Ficara tão privada de qualquer presença
humana naquelas longas semanas, provavelmente meses, que hesitava e temia o
contato. Amigos? Inimigos? índios? Ou exploradores-de bosques canadenses?...
A placa de casca que servia de porta afastou-se. Um rosto de mulher índia sob sua
tiara de contas mostrou-se a meio, depois apagou-se para dar lugar ao do seu amo e
senhor, um índio, o qual, para sair do covil, apontou à frente um alto birote oleoso,
ornado de "facões" negros feitos de asas de corvo. Soerguendo a cabeça, observou a
intrusa, postada a alguns passos atrás dos arbustos.
Pelo perfil arqueado, o queixo curto, os olhinhos faiscantes, ela supôs tratar-se de
um abenaki do sul. Assemelhava-se a Pik-sarett. A visão do mosquete não parecia
impressioná-lo.
Aventurando-se, chamou-o de longe, saudando-o em sua língua. Ele respondeu em
francês.
— Eu o saúdo. Sou Pengashi, da Federação, dos Wapanogs. De onde saiu, criança?
Por sua silhueta, devia tomá-la por um jovem branco. Ela esboçou um gesto para o
alto da ravina.
— De Wapassu, lá longe.
Ele franzia os olhos para vê-la melhor.
— Eu pensava que estivessem todos mortos lá. Vi de longe as ruínas do forte e das
casas...
Deu-se então a conhecer, e ele pareceu agradavelmente surpreso. Ela lhe disse que
estava sozinha em Wapassu com três crianças.
— Aproxime-se! Entre! — intimou-lhe, afastando-se para abrir-lhe passagem pela
estreita entrada.
Ela fincou as raquetes diante da soleira, ao lado da cabana, e deslizou para o interior
do wigwam. Uma vez fechada a porta, isto é, a placa de casca de árvore recolocada
contra a abertura, aquele abrigo estreito, onde só se podia estar sentado, ficou agra-
dável. Estavam imersos numa espessa fumaça, mas Angélica foi sensível sobretudo ao
cheiro de mingau, que devia ter sido cozido numa panela colocada sobre as brasas, e
do qual duas ou três crianças acabavam de juntar os restos em escudelas de madeira.
Eram certamente pessoas muito pobres. Tinha escrúpulos em pedir-lhes comida.
Pengashi contava que o inverno os surpreendera quando não havia sequer concluído o
comércio de verão nas costas de New Hampshire. Mais que isso, não tivera tempo de
caçar e de defumar carne e peixe suficientes para as provisões de inverno.
Desprovido de munições, tendo que abandonar suas peles num esconderijo ao pé de
uma árvore, tornara a subir para as montanhas do interior para reunir-se à gente de sua
tribo; estavam, porém, quase na mesma situação que ele, e todo mundo se dispersara,
a fim de arriscar sua sobrevivência, cada um por seu lado. Seu irmão mais velho
encorajara-o a dirigir-se ao norte, a fim de pensar o inverno sob a proteção dos
brancos de Wapassu. Mas, após uma longa e penosa viagem, cruzou com alguns
grupos dispersos de abenakis e algonquinos, que perambulavam, desorientados, e que
o avisaram de que o Forte do Homem do Trovão estava destruído, não havendo
vivalma ali.
No entanto, não querendo acreditar naquilo, ele prosseguiu, e percebeu de longe as
ruínas enegrecidas; resignou-se, mas, como estava quase sem víveres, antes de partir
em outra direção procurou um lugar propício para acampar, a tempo de preparar
armadilhas. Esperava poder apanhar alguma caça, muito rara devido ao inverno
precoce.
Tinham erguido suas cabanas havia três dias. No fundo de sua ravina, preocupado
apenas com as armadilhas e a caça, antes de pôr-se novamente a caminho,
nâo.pensara em examinar mais de perto o sítio de Wapassu e procurar ali sinais de
vida, o que explicava que não tivesse notado a fumaça do fortim.
Sua intenção era continuar para o norte e pôr a família ao abrigo das missões no
Forte de -Richelieu ou no Forte Sainte-Anne.
Enquanto falava, fumava seu cachimbo em pequenas baforadas e conservava uma
expressão satisfeita, abanando a cabeça com o ar entendido de alguém que tem
convicções próprias e que se felicita por ter conduzido tão bem os negócios.
— O Forte de Richelieu? O Forte Sainte-Anne? Mas fica muito longe — observou-
lhe Angélica. — Por que não tentam voltar Pela Chaudiéré em direção a Quebec?
Teriam de percorrer uma distância menor.
Ele sacudiu a cabeça. Ouvira dizer que o exército do novo governador invernava no
Forte de Richelieu e nos dos lagos Saint-Sacrement e Champlain, e que as barcas
haviam passado todo o outono levando um abastecimento monumental de Montreal
para lá.
Não apenas ficaria com os seus, protegido da fome, mas também estaria no local
quando chegasse a primavera, para participar da grande campanha guerreira que se
preparava contra as Cinco Nações iroqueses.
De repente perguntou o nome das crianças que estavam com ela no fortim, e quando
ela respondeu, manifestou novamente uma grande satisfação.
— Carlos Henrique! Carlos Henrique! — repetiu várias vezes.
Depois, inclinando-se para ela, com um ar malicioso, confiou-lhe:
— Sou o cunhado de Jenny Manigault.
Em resumo, ele era o irmão de Passaconaway, o chefe dos pemacooks, que raptara
Jenny, e com quem ela fora se encontrar depois de sua fuga, confiando seu filho
Carlos Henrique a Angélica.
Pengashi achava que seu irmão mais velho agira mal raptando uma francesa.

— Nós dissemos a ele, no começo, nós, seus parentes, amigos. "Meu irmão, tome
cuidado", sempre lhe dizíamos. "Você raptou uma francesa, e nossos aliados brancos
do Canadá vão criar problemas conosco." Então, ele foi se esconder nas montanhas
Verdes, mas, depois, avisou-me que soubera que sua cativa francesa era da mesma
religião que os ingleses, daqueles que tinham crucificado Nosso Senhor Jesus Cristo,
e que, por essa razão, seus compatriotas franceses a considerariam como prisioneira,
se lhes propusesse devolvê-la. E, longe de resgatá-la, os franceses a entregariam a
outros abenakis como butim. Compreendeu então que ninguém viria tomá-la dele, se
soubesse precaver-se contra uns e outros.
A última vez que Pengashi vira o irmão, o chefe Passaconaway, ele se preparava
para "descabanar" com sua família, comnosta de Jenny e da criança que tivera com
ela, uma menininha, sua mãe e um jovem primo, que perdera toda a família na guerra
do Rei Filipe.
O inverno anunciava-se muito rigoroso nas montanhas Verdes. Quis se aproximar
do litoral, preocupando-se em não atrair a suspeita dos colonos ingleses que
avançavam, cada vez mais numerosos, em direção às montanhas para deslindar a
floresta, e que viam por toda parte, assim que a pluma de um selvagem despontava,
contingentes guerreiros do norte canadense, franceses e abenakis, vindos para
escalpelá-los.
Passaconaway não era batizado como Pengashi, que era cristão, assim como sua
família, e até seus pais. Passaconaway desconfiava dos homens brancos que podiam
vir tomar-lhe Jenny; dos franceses, porque ela era de sua raça, e dos ingleses, porque
era de sua religião. Ficaria feliz por poder levar a Jenny notícias do filho.
— Se você voltar para o norte, não terá tempo de rever seu irmão nem de transmitir
a Jenny notícias de seu filho — disse ela.
Mas essa noção de tempo e de distância não impressionava o índio. De qualquer
modo, a campanha de guerra contra os iro-queses os conduziria para perto das regiões
onde se escondiam Passaconaway e sua pequena tribo.
Depois que os iroqueses fossem aniquilados, Pengashi poderia seguir um
contingente decidido a recolher as cabeleiras dos ingleses entre os habitantes das
fronteiras, o que o colocaria nos limites da hinterlândia do New Hampshire e das
montanhas Verdes. Poderia subtrair alguns dias aos combates para encontrar os seus e
visitá-los.
No wigwam de Pengashi havia duas mulheres. A' mais nova dava de comer a um
bebe amarrado a uma pequena prancheta. Era sua filha mais velha, cujo marido
morrera esmagado por uma arvore, durante seu êxodo.
— As neves chegaram muito cedo. As árvores não tinham ainda perdido as folhas.
Com o peso, muitas delas se quebraram.
A outra, a esposa, observava Angélica com um olhar pouco ameno. Apesar da
estreiteza da cabana, resolvera besuntar os cabelos com gordura de urso líquido. As
índias tinham sempre muito cuidado com os cabelos. Aquela, a despeito de sua
situação
precária, não derrogava seus hábitos. Perguntou a Angélica se não tinha um pente
para dar-lhe, de chifre ou de osso, pois o seu, de madeira, se quebrara.
Pengashi mandou-a calar-se, com mau humor, e Angélica compreendeu que lhe
censurava desperdiçar banha de urso quando suas provisões estavam esgotadas.
Sua filha mais velha, a jovem viúva, por sua vez, indagou se a mulher branca podia
fornecer-lhe uma faixa para seu-recém-nascido. Acusava também o inverno. Não
pudera fazer uma provisão daquela penugem de caniço ou de madeira de pruche soca-
da com que se revestiam as coxas dos bebes, a fim de não sujar as peles. Mais uma
vez, o índio mandou a filha calar-se, lembrando que as mulheres tinham usado o pó da
madeira de pruche para desengordurar os cabelos, antes de lavá-los, só para tornar a
engordurá-los depois. Seus cabelos! Sempre seus cabelos! E não tinham o que comer!
Mas logo depois pedia a Angélica, para ele, álcool e também uma coberta, pois não
pudera ir à feira buscar nos navios ou no posto do holandês as mercadorias de que
precisavam.
Angélica lamentou não ter trazido álcool. Pusera-se a caminho tão persuadida de
estar indo em direção a uma miragem que não pensara em se munir, pelo menos, de
um pouco daquele produto de troca. Recomeçou a explicar sua situação. Estava
sozinha naquele fortim com as três crianças, entre as quais Carlos Henrique. Tinham
lenha para se aquecer, mas as reservas de alimentos estavam se esgotando. Esperava
socorro, que um companheiro sobrevivente fora buscar, mas até agora não chegara
ninguém. E a neve recobrira completamente o lugar das armadilhas.
Enquanto falava, não podia deixar de olhar cobiçosamente para a tigela com gordura
de urso e um resto de mingau de milho; depois de muitas encenações, as crianças
acabaram deixando-o para o cachorro, que esperara pacientemente sua decisão,
lançando-se depois avidamente àquela suprema bolinha de pasta.
Com a perspicácia de seus congéneres, Pengashi, sempre fumando, deve ter
compreendido a linguagem muda de seus olhares. Acabou de fumar seu cachimbo e,
dirigindo-lhe novamente uma de suas piscadelas de conivência, pediu-lhe que o
acompanhasse ao lado de fora, dirigiu-se ao segundo wigwam, fazendo-lhe m sinal
para que entrasse com ele. Dois velhos encontravam-se ali- um homem e uma mulher
de tranças grisalhas, sentados com muita dignidade no fundo da cabana. Coberto com
um gorro de pele, o homem fumava seu cachimbinho de pedra vermelha e a
intervalos, estendia-o à velha esposa, para que desse algumas baforadas. Uma menina
de cerca de doze anos, agachada ao lado do fogão, raspava cuidadosamente uma pele,
da qual arrancava os últimos fiapos de carne e de nervos, por menores que fossem,
para jogá-los numa panela colocada sobre os tições, no centro da cabana.
Angélica e seu anfitrião tomaram seus lugares. Pengashi explicava aos pais quem
era ela e as razões de sua vinda. Eles escutavam, sem parar de fumar e sem que um
músculo de seu rosto se mexesse; podia-se perguntar se tinham ouvido alguma coisa
do que lhes dizia o filho. Este não se aborrecia com sua indiferença, dando-se ao
trabalho de respeitar as regras de cortesia devidas aos ancestrais.
Observando a pequena índia curvada sobre sua tarefa, Angélica surpreendeu o olhar
de curiosidade que ela lhe lançava e viu uma pupila clara numa carinha magra
escurecida pelo sol e pela gordura, mas que deixava vislumbrar manchas de sardas.
Apesar da gordura que os untava, os cabelos trançados, presos na testa por uma tira
bordada com miçangas coloridas e cerdas de porco-espinho, tinham um reflexo
dourado. Mais uma pequena cativa inglesa.
— Meu irmão era tão louco por sua cativa branca! Deu-me vontade de ter uma
também em meu wigwam. Há alguns anos, com um grupo aliado, seguimos a
campanha do Toga Negra, que desceu ate as proximidades de Portsmouth. Raptei esta
menina. Ela era tão pequena e tão loura! Fui eu quem lhe calçou os primeiros
mocassinos. Arranjei um meio de cortá-los e costurá-los, apesar da corrida na floresta,
pois .os yennglis nos perseguiam e tivemos de matar quase todos os nossos outros
cativos, que não podiam manter a velocidade. Coloquei-lhe esses mocassinos nos pés.
E depois, acabou. Ela já não era uma criança de yenngli. Daqui a pouco estará
suficientemente grande para tornar-se minha esposa. È por isso que Ganita não gosta
dela. Então dei-a como criada para meus pais.
Angélica ouvia-o, menos atenta a suas palavras que aos gestos.
Ele penetrara até o fundo do wigwam e soerguera uma placa de casca de árvore que
formava a parede, tirando um volumoso pacote coberto de gelo, envolto em peles.
Depois de fechar cuidadosamente a abertura, ordenou com voz rude à pequena criada
que atiçasse o fogo. Esperou que o calor voltasse ao interior da cabana para desenrolar
as peles, endurecidas pelo gelo. Com certo orgulho, mostrou um grande bloco gelado
de uma matéria avermelhada.
— Fiz uma boa caça anteontem. Um filhote de gamo. Mas não contei tudo a minha
mulher Ganita. Ela logo ia querer fazer uma patuscada. Ela não tem miolos. Meus
pais não dirão nada. Eles aprovam que eu seja parcimonioso. O inverno é um inimigo
traiçoeiro e cruel, e nunca é demais precaver-se.
Pegou num canto uma velha lâmina de espada bem afiada e, com três ou quatro
golpes decisivos, cortou um grande retâgulo de carne, enrolando-o num pedaço de
pele, também cuidadosamente cortado. Enquanto ordenava à pequena criada que
costurasse as bordas do embrulho, o que ela fez com rapidez e habilidade, puxava, de
um outro buraco, do lado de fora, um saco, do qual retirou duas raízes de rábano e
uma colherona encerrada numa bainha de couro corrediça. Abrindo-a, contou na
concha da mão, com tanto cuidado quanto um avarento com suas moedas, parcelas
pretas ou amarronzadas de um produto leve, cujo valor parecia apreciar tanto quanto o
ouro.
Hesitava, acrescentava três ou quatro pastilhas de suplemento, hesitava novamente,
sacudia um pouco o saco, depois parecia reconsiderar e arrepender-se de seu gesto, e
se corrigia, derramando mais um pouco. Quando a mão ficou cheia, pediu que
Angélica estendesse as suas para recolher a preciosa provisão.
— Deixa esses frutinhos dos bosques incharem dentro de um caldo. Eles defendem
do escorbuto.
Ela se confundiu em agradecimentos.
— Eu sou o cunhado de Jenny Manigault — respondeu, como o parentesco o
constrangesse a certas obrigações para com ela. --- Não teria com você algum objeto
que eu pudesse entregar-lhe uando tornar a vê-la? Meu irmão mais velho acha que sou
mentiroso. Assim ele poderá ver que falo a verdade.
Angélica procurou alguma coisa que pudesse deixar com o selvagem e que
testemunharia a Jenny que ele a encontrara. Para Tenny, uma palavra escrita. Não
tinha papel, nem pena, nem tinta consigo, e não usava nenhuma jóia. Exceto uma
aliança muito larga em seu dedo emagrecido. Acabou tirando-a meio maquinalmente,
entregando-a a Pengashi e explicando-lhe que Jenny reconheceria aquele anel, que
vira em sua mão.
— Pode dar-me também seu fuzil? — pediu o abenaki, após guardar a aliança na
sacolinha suspensa ao pescoço que todo índio usa no peito. — Tenho direito a um
fuzil, pois sou batizado.
Essa generosidade que demonstrou e que o deixou satisfeito não lhe custou caro.
Com todo o arsenal armazenado nos flancos do fortim de Wapassu, podia dar-se a
esse luxo.
Pengashi rejubilou-se.
— Tenho também um presentinho que Jenny me deu para seu filho, mas não
consigo encontrá-lo:. Aposto que foi essa danada da Ganita que o furtou de mim. Mas
vou fazê-la confessar. Volta daqui a três dias. Quem sabe! Com o fuzil, se o Grande
Espí
rito continuar a ser bom comigo, talvez eu consiga um pouco de carne para partilhar
com você.
Apesar de batizado, quando se tratava de caça, preferia dirigir-se ao Grande
Espírito.
Ela prometeu trazer aguardente, uma coberta para sua velha mãe e a faixa para o
bebe.

Com alegria por levar víveres suplementares para alguns dias, a volta lhe pareceu
fácil e rápida. Chegou a casa antes da noite.
Aliviada, apertou contra o peito as crianças. Como eram corajosas, tão pequenas,
por terem sabido esperá-la sem se assustar com sua ausência, sem se inquietar e sem
fazer tolices!
— Comemos ê depois dormimos — disse Carlos Henrique.
Ela deixou para falar-lhe sobre a mãe mais tarde.
Aquele Pengashi a enganara com seus projetos de voltar para as montanhas Verdes.
Será que conseguiria, pobre coitado, atingir as missões do norte? Deixou passar
alguns dias antes de retomar o caminho de seu acampamento.
No intervalo, um vento desagradável começou a soprar. Vento seco mas glacial, que
corroía como poeira de aço a superfície da neve. Esperou, sabendo que não poderia
dar dois passos sem ser derrubada, e, se quisesse rastejar, teria rodopiado, sendo var-
rida de um lado para outro, ao rés-do-châo; compreendeu por que, naquela estação,
Pengashi erguia suas cabanas na parte mais fundas das ravinas.
Finalmente, um dia o vento começou a amainar, deixando sob um céu baixo e
ameaçador um mundo decapado, recoberto por uma carapaça de gelo. As coníferas
estavam negras como tinta, sem uma pitada de neve em suas agulhas, com as folhas
despojadas cor de osso, os ramos em forma de candelabro, sem o mínimo galhinho.
Devido ao adiantado da hora, teve de esperar pelo dia seguinte para ir ao
acampamento dos índios. Levaria um quartilho de aguardente, um pente, algumas
faixas de pano e, apesar de não estar muito bem provida, duas cobertas de lã inglesa
de Limburgo para os avós.
Mas, durante a noite, a neve recomeçou a cair em grande flocos. Com medo de se
perder, esperou mais-um dia, depois outro. Agora o vento cessara totalmente, mas as
pancadas de neve, mole e silenciosa, pareciam não ter fim. Na manhã seguinte, houve
uma calmaria. Os flocos ficaram mais esparsos, turbilhonando com lassidão, parando
pouco a pouco.
Um trecho do horizonte se descobriu para oeste num espaço restrito, mas suficiente
para que tivesse a possibilidade de saber em que direção estava indo.
Fez suas recomendações a Carlos Henrique, como da vez anterior, e, depois de
desobstruir mais ou menos os arredores da entrada, içou-se para fora e rumou para a
planície. Contra qualquer expectativa, encontrou, apesar de quase apagados, vestígios
de sua antiga pista. Com a passagem constante de névoas e nuvens no horizonte, era
impossível tentar localizar os sinais de fumaça do pequeno acampamento perdido.
O céu baixava cada vez mais, a neve recomeçou a cair. Caía compacta, mas o vento,
que transforma uma paisagem já escura numa muralha intransponível, ainda não se
levantara e provavelmente não se levantaria. Prosseguiu a caminhada.
Dessa vez, munira-se de um feixe de varinhas para balizar a pista. Quase
imediatamente, lamentou não tê-las cortado mais compridas, pois a neve, em enormes
flocos macios, caindo como um dilúvio, ameaçava recobri-las dali até a sua volta.
Apesar das raquetes, afundava até os joelhos a cada passo que dava. Avançava
lentamente, mais pesadona que um urso, guiando-se pelo sulco muito tímido do
trajeto anterior.
Como da primeira vez, não percebeu a beirada abrupta do despenhadeiro e, não
tendo pressentido a tempo o desnível, foi arrastada para o fundo, na mesma
precipitação de neve, o que não tinha gravidade, pois ela lhe amortecia a queda.
Precisou de mais tempo para se livrar da neve, mas, em compensação, não perdera
nem a raquete nem as luvas.
A ravina assumira um aspecto fantasmagórico. As árvores estavam transformadas
em longos círios gigantes, chorando suas lágrimas de cera lívida, e a própria cascata
desaparecera, confundindo-se com os rochedos submersos.
Nem sinal dos wigwams.
"Eles descabanaram."
Depois, aproximando-se, percebeu a forma redonda de um dos dois abrigos e, em
seu alívio de sabê-los presentes, não se preocupou por não ver fumaça. Chamou, não
teve resposta. Levantou a cavilha de madeira, afastou a casca de árvore da entrada, e
percebeu os dois velhos no fundo, sentados lado a lado, com as pernas cruzadas, o
homem com seu gorro de peles e a velha com sua tiara bordada enfeitada com uma
pena, tal como os deixara, da primeira vez.
Saudou-os. Uma fina poeira de neve, infiltrando-se por um buraco no teto,
pulverizava os tições do fogão, assim como os dois velhos, sublinhando-lhes de
branco as dobras das roupas.
Não pareciam dar-se conta daquela neve fina que pouco a pouco os recobria e,
impassíveis, fixavam-lhe os olhos turvos.
Só depois de um bom tempo, quando notou o cachimbo apagado colocado diante do
homem e constatou a invasão da cabana pelo sopro-imperceptível da poeira de neve,
compreendeu que estavam mortos.
No momento em que Pengashi e sua família partiam de novo, pelos espaços nevados
e pelos furacões, numa direçào tão distante quanto incerta, o ancestral dissera: "Meu
filho, eu fico. Minha pista termina aqui".
Segundo o ritual e a tradição, Pengashi deixara-lhes o wigwam para abrigá-los, um
último fogo aceso diante deles, Com uma última panela colocada sobre os tições,
contendo duas supremas rações da sagamité, uma última pitada de tabaco para o
cachimbo do pai; depois, recolocando cuidadosamente a placa de casca de árvore que
servia de porta, e acompanhado pela mulher, os filhos, a filha mais velha, o bebe e a
cativa inglesa, com seus passos lentos nas raquetes, carregando e arrastando os
aprestos dos pobres e derradeiros bens, retomou sua marcha para o norte, à procura
das missões e dos postos franceses. -

Angélica ficou inerte, ajoelhada diante das duas dignas múmias, até que viu à sua
volta que a neve começava a se depositar sobre suas roupas e que estava petrificada
de frio.
Com um gesto instintivo, estendeu a mão para a panela. Mas, como já esperava,
estava vazia e meio encoberta pela neve.
Tinham fumado calmamente o cachimbo da paz, passando-o um para o outro, e
depois, após a última baforada, o velho índio colocara o objeto sagrado diante dele.
Esperaram que o último tição se apagasse repartindo então os últimos bocados de
alimento terrestre. Depois, com as mãos colocadas sobre os joelhos, na obscuridade
que pouco a pouco se resfriava, deixaram vir a morte.
Quando o galho desabara sobre o teto do wigwam, eles já estavam longe,
continuando seu caminho pelas planíceis do Grande Espírito, lá onde só existe calor e
luz.
Sob a luz baça que entrava pela abertura, não se cansava de contemplá-los, retida
involuntariamente, sem pensamentos, sem saber por quê, por aquele espetáculo
macabro, e no entanto nobre e sereno. Continuavam tão vivos que se continha para
não colocar em seus ombros as cobertas que trouxera.
Pouco a pouco, um detalhe insólito atraiu-lhe a atenção adormecida. Nas mãos
abertas de cada uma das duas personagens hieráticas, repousava uma espécie de torrão
de alguma coisa indistinta. Seme-lhava-se a um grande cascalho de lama, também
salpicado de neve.
Mas ao se aproximar percebeu quê era comida. Dois grandes blocos congelados de
mingau de milho, misturado com pedaços de carne e frutas secas. A última refeição
dos ancestrais, em que não haviam tocado.
Estremeceu com uma alegria insensata. Trémula, desprendeu os dois pedaços das
palmas esquelétricas e hesitou, interrogando-os com o olhar: "E para mim? Sabiam
que eu ia voltar?"
Em seus peitos, entre os amuletos de dentes de ursos, cerdas de porco-espinho,
colares de conchinhas, entre saquitéis, medalhas, via brilhar aquelas cruzinhas de ouro
feitas e usadas pelos índios batizados do sudeste.
Deveria ver nesse gesto uma suprema oferenda ao Deus da caridade sem limites que
os Togas Negras lhes ensinaram a cultuar?
O que era uma ração a mais nesta terra, tinham pensado, quando iam partir para lá,
onde estariam saciados para sempre? A mulher branca e as crianças brancas de
Wapassu tinham fome.
Transbordante de gratidão, enfiou seu butim na sacola. Havia também uma sacolinha
de couro colocada sobre a porção que a mulher segurava; também pegou-a, pois
parecia fazer parte da oferenda.
Ao se retirar, chocou-se com um objeto envolto em pele, que não vira
anteriormente. Pela forma, reconheceu uma armadilha de aço para os pequenos
animais de pele e se lembrou de que se queixara a Pengashi de não ter encontrado as
que o inglês colocara no outono.
Em troca do fuzil, o índio lhe deixava um de seus instrumentos de caça para
comércio, que poderia lhe oferecer uma última oportunidade.
Recuando de joelhos, saiu do wigwam, olhando uma última vez para os velhos.
— Obrigada! Obrigada! Que Deus os abençoe.
Ajustou e firmou melhor a porta, esforçando-se por tapar a abertura no teto, a fim
de. evitar-lhe o máximo tempo possível o ultraje dos animais carniceiros.

CAPITULO XIII

Os pingentes de Jenny Manigault — A loucuras do silêncio

Quando esvaziou a pequena sacola de couro encontrada perto da avó, um par de


brincos pingentes deslizou na mão de Angélica, pequenas granadas engastadas em
prata cinzelada. Eram os brincos que Jenny Manigault de La Rochelle usava no dia
em que fora raptada pelos índios.
Angélica contemplou-os com emoção, desejando que sua aliança pudesse um dia
chegar até a pobre criança. Prestes a entregar o presente a Carlos Henrique, a falar-lhe
da mãe, conteve-se.
A fome tornava a todos frágeis. Sua sensibilidade se aguçava, oscilava. Uma coisa
de nada tocava-os, atingia-os, e não se podia saber de que modo repercutiria o menor
choque.
As crianças não eram infensas ao que ela mesma, adulta, experimentava. Portanto,
ainda que fosse mais fácil distraí-los, receou abalar o bom equilíbrio do menino.
Sabia que, de sua odisseia com a índia, que o arrastara duas estações de wigwan a
wigwan, não conservava uma lembrança feliz. Evitava sempre falar a esse respeito e
não respondia quando se aludia a ela. Se, por outro lado, reconhecera nela sua mãe, a
ruptura não teria deixado nele uma ferida? Evocá-la não iria despertar sua nostalgia e
mergulhá-lo na melancolia? Ele aprendera a sorrir em Wapassu, o que levara vários
meses.
Recolocou as modestas jóias na sacolinha.
Mais tarde as entregaria, ao menino, quando ele estivesse maior, ou quando
tivessem saído daquele pesadelo e estivessem todos reunidos, sentados em volta de
uma boa mesa, na casa de Abigail. Ele gostava dela, pois fora a única a consolar sua
pequena infância abandonada.
Assim que pôde, foi preparar a armadilha que lhe deixara Pen-gashi, a alguma
distância do posto. Colocou-a ao abrigo de uma árvore, num lugar que lhe pareceu
propício à passagem da caça, sacrificou uma bolinha de carne para a isca, enquanto se
perguntava se era mesmo daquele modo que se procedia e censurando-se por não ter
testemunhado maior interesse pelo manejo daqueles engenhos de desgraça. Armas de
caçadores furtivos! Seu pai, um fidalgote provinciano, praguejava contra os
camponeses furtivos que lhe pilhavam os coelhos-bravos para poder colocar um coe-
lho na panela. Pego em flagrante pelo couteiro, o homem arriscava-se a ser enforcado,
segundo a lei senhorial. Mas os San-cé de Monteloup sempre foram pobres demais
para pagar os serviços de um couteiro, e o barão nunca enforcou ninguém. As vezes,
os senhores da vizinhança, tão esfomeados quanto seus aldeões nos anos de má
colheita, organizavam com os vizinhos batidas em suas terras, a fim de pegar um
veado ou dois, partilhando-o entre eles.
Pensava vagamente em tudo isso enquanto lutava, com os dedos entorpecidos, com
a malvada mandíbula de aço que era preciso fechar sobre o pulso.
Ali, na América, a carne de veação era caçada com fuzil, tanto pelos brancos como
pelos índios. Muitos continuavam a caçar com arco, reservando-se aos chefes o uso
das armas de comércio, mas ele estava se generalizando. As armadilhas serviam à
captura dos animais de pêlo, moeda de câmbio; na primavera os indígenas levavam-
nos para a feitoria ou entregavam-nos aos viajantes e exploradores de bosques, "que
vinham em suas canoas, em troca das mercadorias de trato: machados, facas, lâminas
de espadas, panelas, aguardente, e muitos outros objetos dos quais eram ávidos e aos
quais nãò podiam renunciar.
O tráfico de peles era terminantemente recusado em Wapas-su, a fim de não
descontentar os franceses; por isso Angélica se desinteressara. Não gostava de
imaginar aquele estalo perpétuo das armadilhas fechando-se sobre os bichinhos dos
bosques, aquela música macabra que pairava perpetuamente nos grandes espaços
selvagens. Disse consigo que fora estúpida. Em sua juventude, não era tão sensível
em relação aos bichos. Honorina, com sua mania de se identificar com toda criatura
inocente maltratada, a influenciara.

Seres humanos tinham vindo e, no entanto, em seguida, a situação lhe pareceu pior
que antes. Tinham-lhe dado uma prorrogação de alguns dias de alimentos, mas
arrebataram-lhe a esperança.
A visão daquela pequena família errando através do deserto branco forneceu-lhe a
medida do isolamento em que estava encerrada.
Agarrou-se à ideia de que Pengashi falaria dela. Saberiam que estava viva.
Mas será que Pengashi voltaria algum dia, ele também, à praia dos vivos? Sem fim
era a pista, mortais as tempestades. Tocada pelo inverno, toda caça desaparecera no
céu e na terra. Com o fuzil, o índio teria alguma possibilidade. Não se arrependia de
ter-lhe deixado a arma.
Como último recurso, os índios comeriam o cachorro.
Ela sonhou com favas no toicinho e feijões de Boston, que, em Salem, se
degustavam regados com creme e melaço. Chamou Ruth e Noémia em seu socorro.
Despertou dando um grito de decepção, que assustou as crianças.
Montanhas de pratos fumegantes, que se lhe deparavam como na mesa do rei.
Os últimos anos tinham sido marcados por um selo de vitalidade cintilante,
aureolados ao mesmo tempo de esplendores terrestres e ingerências místicas, que
emprestavam a tudo um sentido diverso daquele que lhe atribuíra outrora.
Pensava nos primeiros dias de sua chegada ao Novo Mundo.
Pensava em Wallis, sua égua, inquieta e atormentada como ela, que se defrontara
com a tartaruga gigante, símbolo dos iroqueses.
"Os cavalos!... Os cavalos!"
No outono passado, no momento do ataque dos índios, enquanto corria para a
cabana de Lymon White para se refugiar, percebera numa visão relâmpago os cavalos
que, ao longe, galopavam através das pradarias, como que tomados de pânico,
adivinhando que era o fim de Wapassu e que era preciso fugir. Não sabia se aquela
visão lhe causava mal-estar ou se a tranquilizava.
"Eles descerão para o sul. Procurarão o caminho das charnecas e dos planaltos.
Livres, reencontrarão seu instinto, se organizarão em rebanhos..."
Mas o Maine era uma região muito difícil, de florestas e precipícios, e o inverno
chegara cedo demais.
"Não pense. Imagine antes que estão felizes por ter reencontrado o espaço. Tinham
sido habituados a viver ao ar livre e, no fim do verão, alguns se tornavam novamente
selvagens e indomáveis."
As crianças berravam a plenos pulmões, enquanto Carlos Henrique se inclinava
sobre ela.
— Não chore, mamãe! Eu os vi galopar! Não se deve ficar triste. Eles saberão
encontrar o caminho. Irão para os lugares onde há menos neve e muita grama e
povoarão a América.
Era preciso lutar contra a loucura do silêncio; obrigava-se a falar com as crianças,
manter sua atenção desperta.
Dizia-lhes que o cão boboca dera provas de grande inteligência. Fora embora antes
do incêndioe, de certa forma, o anunciara. E fora encontrar-se com Honorina, que
estava entre os iroqueses. Quando Honorina voltasse, ensinar-lhe-ia a atirar com o
arco.
Seus rostos pálidos iluminavam-se quando se pronunciava o nome de Honorina.
"Honorina, minha queridinha! Meu tesouro!"
Honorina sobreviveria. Era a mais forte de todos.

CAPITULO XIV

Entre a fome e a tempestade

Angélica começava a duvidar de que o "pior fora evitado".


"Você me traiu! Você me traiu", censurava ao horizonte mudo, quando subia à
plataforma. "Você prometeu... Havíamos feito umcontrato com você... Nós lhe
trazíamos cavalos! Trazíamos o teto e o incenso da fumaça dos homens. Trazíamos a
aliança dos homens de boa vontade. Os trabalhos dos homens, o fogo de seu coração e
as chamas de seu génio."
O pior seria a morte das crianças, depois sua própria morte. Joffrey recebendo a
notícia, ele, que dissera: "Agora não poderia mais viver sem você".
A ele, tão só, tão renegado, não podia fazer isso. Se desaparecesse, seria ela quem
infligiria o golpe de misericórdia naquele homem indómito. Daria o triunfo a seus
inimigos, que haviam jurado terminar com a alegre força daquele espírito livre.
Ele teria o direito de censurá-la para todo o sempre. Dir-lhe-ia:
"...Você me corroeu o coração, a mim, que não me deixaria capturar nas malhas do
Amor, para em seguida desaparecer e me deixar desarmado diante daqueles que
juraram minha perda, os bispos, os devotos, os tolos, os ignaros, os pedantes, os
ciumentos, os incapazes, os medíocres, os tiranos débeis e os tiranos inspirados...
como o Rei-Sol, que a disputava comigo, Angélica, meu amor, mas um tirano de
qualquer modo, o que é repulsivo, você me deixou depois de tirar-me todas as forças,
como Dalila, com os cabelos de Sansão..."
— "Não! Não! Não diga isso. Eu lhe prometo que sobreviverei", gritou.
Não! O pior seria a morte das crianças, e que ela sobrevivesse e reaparecesse diante
dele, como da primeira vez, sem as crianças!.. Ciclo infernal, história caçoísta
recomeçada, composta por um bardo feroz, que lhes dispensaria os corações em
farrapos... O coro dos medíocres, o coro dos destruidores, clamando com alegria:
"Desta vez... desta vez, estão vencidos!.,."
"Não pense! Não pense!", ordenava Angélica a si mesma, quando sua imaginação
esmorecia. Pois sabia que desgastava inútilmente suas forças.
Já nem tinha coragem, toda manhã, de insultar o destino, como fizera no início. Ao
despertar, já não eram as expressões enérgicas do Pátio dos Milagres que lhe
voltavam aos lábios, mas, num estado de sonolência, ouvia-se murmurar: "Meu
Deus! Meu Deus! Meu Deus!...", invocações que lhe emergiam à consciência como as
bolhas de seu desespero.
E todos sabem que esse apelo à ajuda suprema, quando se manifesta no ser humano,
tão convencido de seu poder de sair de todas as dificuldades por seus próprios meios,
significa que ele entrevê o fim de suas esperanças terrestres, que atingiu o fundo de
sua desgraça. :
Ninguém. Nenhum ser humano!...
É preciso crer em Deus! Deus permanece. "Deus que está em toda parte, em todos
os lugares!...", como diz a oração.

...Jó queixando-se de sua miséria a Deus:


"Tu me engoliste como o leite!
Tu me partiste como o queijo..."
"Jó!... é preciso não esquecê-lo... No fim, Deus lhe devolveu tudo." Bem se vê que
tudo isso foi escrito por homens e não por mulheres!...
Pôs cinturões e retalhos de couro para ferver e fazer uma gelatina, que acompanhava
as poucas colheradas de alimento, parcimoniosamente dividido entre eles. Dois dias,
três dias no máximo. E depois... Para ganhar .um. dia para as crianças, ela se privava,
sustentava-se com aguardente.
Estava dominada pelo medo das alucinações. Pois então, azar, teria alucinações.
Tinha de resignar-se a isso. Fazia parte dos fenómenos da fome.
Pegava um pouco de aguardente no côncavo da mão e friccionava as crianças para
revigorá-las. De tanto procurar em todos os cantos, encontrou um restinho de pó de
café turco numa lata. Lymon White tinha suas pequenas fraquezas. Foi um belo dia.
Depois de preparar o café com o máximo cuidado, bebeu-o como um néctar precioso,
dando-o também às crianças. Carlos Henrique fez uma careta.
— Hum, que ruim!...
Mas bebeu com avidez, e todos pareceram menos dolentes depois.

Partir. Andar até os bosques lá embaixo. Será que poderia fazê-lo?... A neve caíra
sem descanso. Não poderia naquele dia arrastar-se até a ravina de Pengashi.
Examinava periodicamente a armadilha, encontrando-a sempre vazia. Acabou por
retirar a isca, que poderiam consumir.
Uma vez, quando se arrastava novamente até lá, em meio às rajadas de neve,
procurou-a em vão, perdeu-se, e só conseguiu reencontrar o fortim guiando-se pelo
cheiro fugaz da fumaça.
Outra vez, desmaiou no caminho, aíordou dura de frio, arrastou-se para o abrigo,
não saberia dizer até hoje com que forças.

Quando, de manhã, por ocasião de breves claros no céu, se esforçava para abrir a
porta e subir para ver o nascer do sol, seu distanciamento da casa, onde as crianças
repousavam, tomava ares de fuga. Não tinha mais coragem de vê-las definhar. Por
enquanto, estavam dormindo. Aquecera seus corpos franzinos com tisanas, às quais
misturava plantas calmantes, já que dispunha de muitas. No sono, esqueciam as
agonias da fome. Mas lembrava-se das histórias da velha Rebeca, de La Rochelle. A
velha Rebeca que, jovem mãe de três crianças, presenciara o sítio de La Rochelle, sob
o Cardeal de Richelieu. "O que se haveria de encontrar numa cidade, quando tudo o
que pode ser comido já o foi? Não se deixa nem a um talo de grama tempo para
crescer entre os lajedos..."
"Foi meu filho mais velho que se foi em primeiro lugar", contava ela. "Certa manhã,
pensei que estivesse dormindo. Mas estava morto."
Então Angélica se precipitava à cabeceira das crianças, espreitando-lhes a respiração
em seus lábios descorados.
Depois subia de novo ao outeiro. Postava-se diante do horizonte, elevando as mãos
com as palmas unidas como para uma invocação, sacerdotisa de um sacrifício de que
era a única celebrante.
A frisa malva e cinza das montanhas desenrolava-se contra um céu realmente cor de
pêssego. "Por que você é tão cruel?", gritava à Natureza. "Tão bela e indiferente?"
Também lhe foram recusados aqueles momentos em que, saindo e se
movimentando, extraía forças da impressão de estar fazendo alguma coisa.
O poente aquela noite foi de um amarelo agressivo, ácido, contrastando com o
encarneiramento das montanhas, de um azul água-marinha. Era belo mas inquietante.
A noite, o blizzard começou a soprar. Não veio de mansinho, mas com uma violência
brutal que acordou as crianças, habituadas todavia a esses uivos das noites de inverno
e às sacudidelas dos batentes.
Mas, surpresas, acreditaram que o teto ia despencar. Angélica abençoou o céu por
estar o posto tão profundamente ancorado na terra e na rocha.
Apertava as três crianças contra si, cobrindo-as de beijos e murmurando-lhes
palavras reconfortantes.
— Eles passam! Eles passam! Estão apenas passando.
Os negros esquadrões de tempestade, entretanto, não paravam de passar.
As noites e os dias sucediam-se, sem que se pudesse saber se era dia ou noite.

CAPÍTULO XV

Em meio ao delírio, o cadáver de um mártir

Precisava ao menos reunir suas energias para mover-se através do espaço estreito
que lhes permanecia reservado. Se se limitasse àquele único cómodo, não poderia
levantar-se mais e deslizaria lentamente no sono da morte, com os filhos ao lado até
que, parando de dispensar-lhes seu próprio calor e suas forças vitais, adormecessem
também para sempre contra seu corpo de gelo.
— Levante-se! Mova-se.
Endireitava-se, enrijecia-se, agia como um autómato. Lançava aos ombros sua
manta, no gesto habitual, cotidiano. Abria a porta do quarto e tomava o corredor com
a mesma.resolução com que começava cada estação, e cada dia, na soleira da
habitação principal de Wapassu, atravessava os pátios, inspecionava os estábulos e
armazéns, transpunha os limites das muralhas, visitava os acampamentos indígenas
mais próximos, is fazendas vizinhas que, pouco a pouco, se espalhavam fora dos
muros, família por família. Do lado de fora, agora, era o deserto. Naquele dia, na
grande sala, percebeu que a porta bloqueada pela neve tornava impraticável a saída.
Outra hora, prometeu a si mesma, quando se sentisse mais forte, se empenharia em
abri-la e depois arrastar-se, passo a passo, até a armadilha. Poderia orientar-se?
Desprender o aparelho da massa de neve? Começou a andar em volta do quarto,
batendo o tacão no assoalho, para ouvir o barulho de seus passos.

Arrastou um escabelo para junto do respiradouro, a única saída pela qual a luz do
dia podia ainda escoar-se, parcimoniosamente, como uma água turva mas presente,
para o fundo de seu túmulo. Por ali, talvez, seria mais fácil deslizar para fora.
Arrancou com a faca a proteçào de pele, untada de óleo. Um muro de gelo
bloqueava quase inteiramente a abertura. Pelo interstício desobstruído, um frio cruel
lhe mordia o rosto. Ergueu a gola do manto até os olhos. Seu olhar seguia a fuga da
superfície da neve, na qual uma fonte de luz invisível projetava salpicos de cobre:
aurora ou crepúsculo? Permaneceu observando bastante tempo, decidindo afinal que
era crepúsculo. Ia poder desse modo determinar o andamento dos dias e das noites.
Com a condição apenas de que a tempestade não voltasse a enterrar o mundo em sua
noite eterna.
Recolocou a pele que servia de cortina, ocupou-se em tapar o respiradouro com uma
proteção de esponja e de peles, fixando-as com pregos. Já que, pelo menos, lhe
restavam ferramentas, tinha obrigação de servir-se delas. Proteção contra o frio!
Todos os dias viria despregar um pano da cortina, a fim de seguir a evolução das
horas, da temperatura no exterior. Estava coberta por um suor de fraqueza, mas
decidiu que esses trabalhos lhe revigoravam as forças, do mesmo modo que é
necessário mexer-se e ativar-se quando o entorpecimento do gelo se apodera dos
membros e do espírito.
Alimentou as crianças, dosando cada bocado, percebendo-lhes a avidez, que não
podia satisfazer, cuidou delas, mimou-as, enrolou-as mais nas peles de gato selvagem,
ganhou novas esperanças ao vê-las sorrir e até rir e pronunciar algumas palavras.
Entretanto, apenas o sono delas, embora lhe notasse a inquietante apatia, a
tranquilizava,'a serenava. Despertas, podia ler muito bem em suas carinhas e corpos o
que lhes faltava, receando a cada dia perceber os sinais precursores do mal terrível, o
escorbuto, ou os sinais precursores da morte.
Ainda restavam muitas provisões: gorgura, carne salgada, milho, para três ou quatro
dias, talvez mais. Dedicava-se todos os dias a retirar o gelo do respiradouro.
Depois, acabou toda a comida. Após engolir os últimos bocados, as crianças
enroscaram-s*e no entorpecimento. A fome chegaria antes do escorbuto. Ela mesma,
desesperada, fugia da visão de seu último sono. Içou-se até o respiradouro, deslizou
convulsivamente para fora da passagem que cavara no gelo, soergueu-se gritando:
— Não quero vê-los morrer!...
Deu consigo correndo _ na superfície gelada e cintilante, repetindo:
— Não quero vê-los morrer! — e afastando-se, como Agar no deserto, afastando-se
da árvore sob a qual morria seu filho Ismael.
Tropeçou, caiu de encontro às mandíbulas da armadilha que emergia do chão. Um
coelho das neves ali estava preso, branco no meio de todo aquele branco, quase
invisível, congelado e tão hirto quanto as mandíbulas de aço.
Desprendeu-o por milagre; dessa vez, protegendo as mãos com o xale' e com o
auxílio da faca, encontrou os gestos que devia fazer. Pegou o coelho nos braços.
Apertou-o contra o peito.
— Obrigada! Obrigada, irmãozinho! Como és bom! Como és bom por teres vindo!
Nunca sentira de forma tão intensa e terna a aliança do homem e do animal. O
animal, que dissera ao homem: "Eu, eu quero muito... Tome-me, sirva-se de mim para
sobreviver, agora que, por sua culpa, perdemos o Paraíso terrestre".
"Contarei essa história às crianças..."
Mais dois ou três dias de alimentação!
— Obrigada! Obrigada, irmãozinho!...
Aquele era o sinal. O sinal de que atingiriam o fim do túnel. Que aqueles que
estavam a caminho para salvá-los chegariam a tempo. Acalentava contra o peito o
animalzinho rígido e com grande orelhas erguidas.
— Obrigada! Obrigada, irmãozinho!

No dia seguinte, voltou à armadilha.


Com fragmentos da pele do coelho e um pouco dos ossos moídos, preparou uma
isca suscetível de trair animais maiores e carniceiros. Recolou a armadilha.
Mas não pôde voltar a ela, pois a tempestade levantou-se prolongando o
aprisionamento dos seres vivos ao fundo de seus abrigos; toda tentativa de sair e
distanciar-se deles equivaleria a uma condenação à morte imediata. De novo ergueu-
se o espectro da fome.

Era uma noite lúgubre. Víveres esgotados. Morte próxima.


Percebendo uma calmaria do lado de fora, dirigira-se à sala grande e tentara
desobstruir o orifício do respiradouro, para constatar que, dessa vez, a saída se tornara
impraticável. Tudo estava tapado, bloqueado. Neve, gelo, ou uma árvore abatida? Dia
ou noite? Já não se podia saber. Seus cálculos avisavam-na de que era noite. Mas de
que servia enumerar os dias e as horas? Iam morrer. Ela girava e andava pela grande
sala deserta e gélida. Seu cérebro começou também a girar loucamente, mostrando-lhe
as etapas de sua vida que a haviam conduzido àquela hora.
O fel que lhe queimava as entranhas tornava-se uma maré de amargura, nascida da
fome e da desgraça, submergindo-lhe os pensamentos.
Viu-se no centro de um inexplicável feixe de hostilidades que a haviam rodeado a
vida toda e soube claramente que, atraindo amigos, nunca cessara de estar cercada de
inimigos.
Não inimigos ferozes, e que soubessem por que motivo queriam aniquilá-la. Mas
inimigos por natureza, em outros termos, por condição.
Simplesmente inimigos que eram seus inimigos porque não podiam ser seus amigos.
Que erro cometera para ser assim condenada? Não soubera se submeter? Deveria ter
se submetido?
"Mas eu obedeci ao Amor..."
"Oh! meu amor", exclamou, "nunca houve ninguém a não ser você, jamais houve
alguém além de você... Eu lhe prometo, partiremos ainda. Não voltaremos mais.
Iremos à China, iremos para qualquer lugar, pouco importa!... Com você..."
Continuava a andar como um animal enjaulado e se sentia animada a decidir sobre
sua vida, quando a morte estava ali.
As perguntas embarálhâvam-se em sua cabeça: "Estávamos errados por não
compreender? Por não nos submetermos?... ao fato de que não se pode ter razão
contra todos? Contra o mundo inteiro?... E sobretudo contra os representantes de
Deus?"
Loménie a adjurara:
"Não temos o direito de esquecer os ensinamentos de nossa infância, e que a graça
do batismo foi-nos dada ao nascermos. A morte de um santo veio para lembrar-me
isso. Cara Angélica, submeta-se... pois, sinto-o, não terá razão contra ele".
A predição se cumpria.
Mas Angélica, perdida, aniquilada, continuava a se debater:
"Que erro imperdoável cometi? Tão grande que tenha de pagar com a morte de
meus filhos? Faltou-me humildade? Quem nos virá dizê-lo? Quem nos reconhecerá?
Se Deus se cala... E vinga assim seus ministros desafiados!...
"Faltou-nos humildade", reiterou, voltando o rosto para os quatro cantos da sala,
como se ali estivessem emboscados interlocutores, agachados na sombra que a triste
tocha acesa mal conseguia dissipar.'
"Pecamos por audácia, fé, confiança?
"Quem me responderá?
"Acusadores não me faltam. Mas quem virá dizer-me: "Você não se enganou...
Você me consolou com seu fervor... Não traiu a mensagem...'"

Esperou. E tudo era silêncio. A tocha crepitava como que chorando, aos
pouquinhos, fraca, também ela moribunda.
Tudo era fracasso.
Tinham sonhado com um Novo Mundo. Tinham labutado para construí-lo. Ela
amara Wapassu, Gouldsboro e Salem... e Que-bec... E Quebec apagara Wapassu e,
um dia, Ruth e Noémia seriam enforcadas nos patíbulos de Salem.
Rostos desfilavam. Pela primeira vez, via o que ocultava sua fachada comum. Tudo
era tão claro e tão nítido daí em diante!
Ilusões! Vivera apenas ilusões! Ilusões que viu se cristalizarem na ingénua imagem
de Gouldsboro que acalentara o tempo todo.
Deteve-se. Sua agitação se acalmava. A cortina fechada diante da qual tripudiara por
tanto tempo abrira-se e, pelo menos, estava aliviada por não ter mais que alimentar
esperanças sem futuro. Quantas vezes sonhara que um dia, em Gouldsboro, iria
sentar-se, cercada de amigos, e que seria agradável. As dificuldades seriam
aplainadas. Não haveria mais distâncias.
Naquele espécie de vazio causado pela fome e pela angústia, seu cérebro rodopiava
numa embriaguez vertiginosa, numa corrida desabalada que não conseguia deter, mas
cujo desenrolar de pensamentos precipitados, aparentemente opostos e incoerentes,
não era destituído nem de lógica nem de lucidez.
O que importava não era servir a Deus. O que importava era a forma de consolo
ritual com que se decidia servi-lo.
O Espírito desaparecera por trás dos quadros rígidos e pontuais, os dogmas e
práticas que eles idolatravam, mais preocupados em manter suas crenças, e assustados
de perdê-las, do que em agradar ao Todo-Poderoso.
Loménie estava certo. Não se luta contra um santo. E esse santo decidira fazer
guerra a três princípios que ele abominava.
Primeiramente, a mulher, rival do homem no coração de Deus e perversa por
natureza, depois a beleza, que aos olhos dele não era, de modo algum, um dom do céu
mas uma armadilha de Satã, enfim sua liberdade de espírito, porta aberta a todas as
heresias, inadmissível, ademais, numa mulher.
E hoje, quando toda uma obra gigantesca e benfazeja estava perdida, não haveria um
dedo que se erguesse acusador, nenhuma voz para gritar: "Jesuíta, você é um
criminoso! E um destruidor!
"Ele triunfa", disse consigo, "e nós estamos perdidos."
A tensão, que a mantinha vibrante como a corda de um arco, caiu bruscamente.
Seus ombros se abateram. .
"Ele triunfa!" pensou, com desânimo. "Oh! por que, por que é preciso que triunfe
dessa forma?"
Nesse exato momento, e quando, sucedendo a sua exaltação, a consciência do estado
lamentável em que se encontrava a invadia com uma onda sufocante, houve um
baque, uma espécie de pancada na porta, ressoando demoradamente, no silêncio já
quase tumular do pequeno posta enfiado na neve. Foi breve e súbito, mas muito
nítido.
Alguma coisa chocou-se contra a madeira, e, enquanto ela estremecia e sustinha a
respiração, duvidando de seus sentidos, sem poder determinar de onde exatamente
viera o ruído, houve uma segunda pancada, mais surda, igual à que produziria um
punho vigoroso batendo-na porta ou o choque de um bastão-manejado com as duas
mãos ou da coronha de um fuzil, talvez!? Depois, nada mais.
Dessa vez, tinha certeza. Duas vezes ressoara uma pancada na porta.
Permaneceu rígida, interrogando ainda o silêncio novamente opaco, excetuando-se
as modulações sibilantes do vento turbi-lhonando incessantemente ao redor, sem se
precipitar para se convencer de que não havia sido vítima de uma alucinação.
O estremecimento de uma alegria incrédula começou a correr-lhe nas veias, com
uma efervescência, um arrepio de seda tal como o dos riachos no momento do degelo,
fazendo-a desfalecer, sufocar, enquanto sua carne estremecia. Era a mesma sensação
que a fizera erguer-se uma noite em sua primeira invernada, quando a fome os
ameaçava. A tempestade soprava lá fora e nenhum socorro podia ser esperado.
Nenhuma pancada a alertara daquela vez. Apenas uma sensação poderosa. Ela
dissera, numa voz átona:
"Há alguém lá fora".
E, com a Sra. Jonas, caminhou para a porta. Aquela mesma porta ali, enquanto seus
companheiros abanavam a cabeça, caçoando um pouco. As duas, apoiando-se,
puxaram a pesada porta revestida de uma carapaça de gelo. E, através das rajadas do
blizzard, perceberam silhuetas nuas inclinadas sobre a trincheira de neve. Eram
Tahutaguete e seus mohawks, que, enviados por Utakê e o Conselho das Mães
Iroquesas, lhes traziam víveres...
Dessa vez, a mesma alegria diante do milagre a invadia com tanta violência que
receava cair se esboçasse um gesto.
"Eu sabia que ele viria. Utakê! Utakê! Eu sabia que ele não ia me abandonar, que
'eles' viriam..."
Tremia dos pés à cabeça... Logo iria poder dar aos filhos uma sopa de feijões, bem
quente,_ engrossada com carne-seca desfiada. Oh! meus filhos! Como vai ser bom! E
depois arroz integral, alguns punhados daqueles grãos transparentes e marrons
recolhidos na superfície dos lagos, no Illinois, a aveia-louca que se coloca para
germinar num pouco de água morna e que cura o escorbuto...
Teria forças para abrir aquela porta? Era preciso.
Andou até ela com passos duros e arrastados de velha.
Após retirar a tranca e girar as chaves, no momento de afastar o pesado batente,
hesitou, apoiando-se à madeira. E se fosse uma alucinação? Não! Não! Não tinha
sempre conservado no coração, sem nada dizer, a esperança de que o milagre da
primeira invernada se repetisse?...
Teve de lutar, como que invadida por um pesadelo, para abrir aquela porta que dava
para a noite como um perigoso abismo cheio de monstros dissimulados. E, forçando-
se a suportar o amplexo coercitivo do frio, levantou os olhos para o cimo da trin-
cheira.
A tempestade não tinha a severidade cruel da outra vez. Percebeu a lua entre nuvens
de aço negro esgarçado, que corriam céleres num céu de chumbo derretido.
A crista branca dos altos entulhos de neve diante da porta resplandecia, mas
nenhuma silhueta humana se perfilava naquele cenário, em que a obscuridade e a
claridade se entrelaçavam tumultuosamente.
Teria sonhado?...
Forçava tanto a vista que seus olhos choravam de frio. Sua esperança não queria
morrer. Mantinha-a dentro de si como um peso enorme suspenso que não queria
deixar cair, pois ele a esmagaria e ela não sobreviveria. Não! Não! Não tinha
sonhado! Ouvira uma pancada... duas até... Sentia... Sentia que acontecera algo.
Alguma coisa havia mudado... Alguma coisa se movera, alterando a imutável e
impávida solidão que os cercava, e os mantinha prisioneiros. A noite deixara de ser
deserta. Um movimento humano ocorrera.
Com o rosto estendido para o rebordo de neve deu um passo adiante, mas lua se
escondeu com a chegada súbita de espessas nuvens escuras arremessando-se ao
assalto do céu, como se lamentassem ter deixado se instaurar por alguns instantes uma
sutil trégua. Surpresa e adivinhando a tempestade iminente, tornou a avançar, depois
cambaleou e por pouco não caiu sobre um obstáculo.
Chocara-se contra uma massa dura e escura. Parecia um bloco de pedra lançado
horizontalmente no chão. Sua mão apalpou, adivinhou as dobras de uma textura
inólita, couro ou pano áspero, que um fino pedrisco soprado pelo vento norte" já
estava recobrindo de pó: um saco! um saco grande!... Víveres!... Provisões!...
Então não tinha sonhado!...
"Eles" tinham vindo...
Abarcou com os braços a massa que, provavelmente lançada do alto da trincheira, se
comprimia entre as paredes, obstruindo a entrada.
Era um saco enorme, inchado, em relevo.
Feijões! Milho! Abóboras secas!...
Víveres!...
Não conseguindo movê-lo mudou de tática. Febrilmente, com os dedos nus
esfolados pelo gelo, procurava agarrar uma saliência, uma dobra que lhe permitisse
puxar com força suficiente para abalar e arrastar o volume pelo leve declive que dava
acesso à porta.
Estava muito fraca. Pensou em entrar para pegar as luvas. Mas nada no mundo
poderia fazê-la afastar-se de sua presa, temendo, se o fizesse, que o sonho acabasse.
A tempestade desabou, encobrindo bruscamente a lua, abaixando o céu ao nível da
terra e derramando, até o fundo do buraco onde se encontrava, turbilhões de neve que,
em alguns segundos, ameaçavam soterrar a ela e ao fardo que tentava deslocar.
Finalmente encontrou uma saliência mais dura numa das extremidades e, quando
conseguiu agarrá-la, o resto sucedeu-se com relativa facilidade. Recuava, de joelhos,
com a cabeça abaixada para escapar às bofetadas da ventania, e pouco a pouco conse-
guiu encontrar a soleira, entrar na grande sala, para onde arrastava o saco, enquanto
trombas de neve se introduziam às suas costas.
Num canto, a luz fraca da tocha vacilava.
Consciente de estar finalmente abrigada e de que devia evitar, a todo custo, ficar na
obscuridade, e ainda de que era urgente voltar a fechar aquela pesada porta antes que
a neve, que se amontoava, tornasse a operação impossível, Angélica arrastou-se mais
uma vez para a abertura.
Reunindo suas forças, ergueu-se. Cada movimento lhe era custoso. Retirar a neve,
puxar a porta, empurrá-la, ajustá-la, colocar os ferrolhos, virar a fechadura, colocar a
tranca.
O silêncio voltou. Angélica, exausta, apoiou-se ao batente para não cair.
Seu esforço fora tão grande e tão desesperado, que a sensação de alegria e de triunfo
vivida ao descobrir aquela encomenda diante da porta se dissipara. Experimentava
apenas um sentimento morno de esgotamento, enquanto, lutando para não desfalecer,
se abandonava à cadência ofegante de sua respiração, que lhe passava como um fogo
através dos pulmões, da garganta, dos lábios ressecados, já insensíveis à mordida do
frio. A sala, que achara fria pouco antes, parecia-lhe agora sufocante. Acalmou-se,
ganhou vida.
Abatida por uma imensa fadiga, fechava os olhos, depois os abria. O saco
continuava ali no chão, aquele saco que encerrava sua salvação e a das crianças.
Na penumbra, achou a forma estranha. A luz fraca da tocha, projetando sua sombra,
conferia-lhe um comprimento desmedido.
Hesitante e apunhalada por uma suspeita súbita, aproximou-se e ajoelhou-se. A neve
derretida em volta da massa estendida revelava um casulo comprido de pele
grosseiramente curtida, fechada quase inteiramene de uma ponta a outra por uma tira
de couro trançado.
Mas uma das extremidades"êstava solta, entreabrindo-se ligeiramente. Angélica,
subitamente horrorizada, julgou vislumbrar naquela fresta o esboço de um rosto.
Aproximou a mão temerosamente, afastou aquele espécie de capuz.
A face de um homem apareceu-lhe enegrecida, aparentemente queimada, com
pálpebras cerõsas, pálidas e fechadas. Permaneceu petrificada, oprimida por um
decepção incomensurável.
Não era um saco contendo víveres que fora deposto à sua porta.
Era um cadáver.

Seus sentidos recusavam-se a compreender. E teria agora desejado apagar aquela


descoberta diante da porta, aquilo que, pouco antes, a projètara ao ápice da felicidade.
"Que isso não tenha acontecido! Que não seja isso!" O destino não tinha o direito de
brincar assim com sua miséria! Aquela cabeça de morto no fundo de um capuz
obscuro, o que significava? Que tipo de brincadeira? Que mascarada?
Pela palidez das pálpebras abaixadas, contrastando com o negrume do rosto, no qual
as queimaduras do gelo se misturavam à sujeira de uma barba negra e hirsuta,
adivinhou que era um homem branco, provavelmente um francês. Havia também san-
gue coagulado, enegrecido, no rosto... Os lábios eram dois traços delgados
carbonizados, arregaçados sobre o brilho dos dentes, o que lhe emprestava um aspecto
macabro.
Um explorador de bosques perdido?... Viera-morrer junto à sua porta, esgotado?
Não! Não o teria confundido, desde o início, com um pacote informe. Ora, ele estava
todo costurado, da cabeça aos pés, numa pele virada com o avesso para fora, como
numa mortalha.
Então, "eles" tinham vindo.
"Eles"... Franceses? índios? Iroqueses? Ãbenakis} Presenças humanas na noite
mortal e deserta do inverno; em vez de se darem a conhecer, "eles" depuseram aquele
morto à sua porta, desvanecendo-se depois como fantasmas.
Só os iroqueses seriam capazes de uma visita tão cruel e inútil. Mas por quê?
Mecanicamente puxou um cordão, alargando a abertura. Quando afastava os
pedaços de couro enrijecidos, arrastou alguma coisa que estava colada e viu tratar-se
de um retalho de pano preto, ao qual aderia um pedaço de carne. A pele e a carne
daquele homem já deviam estar em putrefação. Parecia breu, alcatrão. Era a carne de
um homem queimado, que, ao menor toque, se desfazia.
Angélica perdeu o fôlego. Sua garganta contraiu-se de horror e de piedade.
— Uma mártir!... um padre!...
Sobre o peito o crucifixo se incrustava nas próprias feridas, uma pequena cruz
simples de missionário.
— Pobre infeliz!...
Subitamente, levantou-se de um salto, fora de si, com os olhos dilatados.
— O que você fez, Utakê?... O que você fez?
Continuava trémula, mais de raiva impotente que de medo.
A incredulidade, a certeza de estar vivendo um pesadelo e de estar sendo vítima das
alucinações da loucura lutavam dentro dela, movidas por um sentimento de fatalidade
inelutável, lembrando-lhe que ela sempre soubera também que isso aconteceria um
dia. A tal ponto que tinha a impressão de já ter vivido várias vezes aquele instante que
acabara de viver. Aquele instante em que seu olhar vira brilhar no centro da pequena
cruz, como uma gota de sangue, o brilho vermelho de um rubi.

CAPÍTULO XVI

Frente a frente com o jesuíta Sebastião d'Orgeval

Teria desejado dizer-se: é sangue. Mas não dizia, não pensava nada.
Sabia. Chegara o instante que devia chegar.
Teria podido dizer consigo: este crucifixo, seu crucifixo, é outro padre que o está
usando.
Mas seu entendimento recusava-lhe qualquer clemência. Não se enganava sobre a
inanidade de tal explicação falaciosa.
Sabia! Este crucifixo pertencia ao mártir que estava estirado ali, sem vida.
Este corpo era o delel
Este cadáver era ele!

Ele, ele, enfim! O perseguidor!... O inimigo sem rosto.


Utakê mantivera sua promessa: "Irei lançar a seus pés o corpo de seu inimigo!..."
Ele, ali a seus pés, o jesuíta maldito.
Sebastião d'Orgeval, o irredutível. Ele, a seus pés, aquela forma informe em
decomposição, quebrado, queimado, mortificado de cem modos?...
Morto!...
E ela, Angélica, a Mulher que ele, sem conhecer, perseguira com seu ódio, de pé,
diante dele, lançando àqueles restos macabros um olhar também" quase extinto.

Quanto tempo ficou imóvel?


Alguns segundos talvez? Longos minutos? Durante esse tem-Do a natureza
misericordiosa concedeu-lhe uma total ausência de sensações e pensamentos. Nem
dor, nem revolta, nem ódio, nem alegria, nem triunfo...
Começou então lentamente a voltar a si, à realidade. Não tremia mais. Não sofria
mais fome ou medo. Havia dentro dela apenas um grande vazio que, pouco a pouco,
como uma maré cinzenta que se dilata e sobe sem ruído, foi preenchido por uma
infinita tristeza. Amarga e estéril vitória! A onda tocava-lhe os lábios, fazendo-a
vacilar.
Zumbindo nos seus ouvidos, plangente como o sopro de uma concha marinha
distante, chegava até ela intermitentemente um apelo lamentoso, tão triste e nostálgico
como o que às vezes paira sobre Salem ou Gouldsboro, nas noites de nevoeiro ou de
lua... Um apelo tão dilacerante que ficou abalada. Dir-se-ia o lamento de uma criatura
humana. E, mais uma vez, voltava à superfície de si mesma, reencontrava o clarão
vacilante da tocha nas paredes de madeira desniveladas do fortim de Wapassu e sua
solidão tumular, e, a seus pés, aquela forma estendida, da qual percebeu se escapar em
certos instantes o gemido lúgubre.
Ora, quando julgava ter tocado o fundo do desespero, da revolta e da repulsa, sua
angústia renascia, requerendo suas últimas forças para um novo dilema.
Se queixumes escapavam dos lábios daquele morto, isso devia significar que ainda
estava vivo?!... •
Mais uma vez, acreditou ter perdido o juízo. Seu cérebro, fustigado por um chicote
áspero, pôs-se velozmente em funcionamento, recusando abandonar-se ao delírio e,
imperativamente, ela o iptimou a se pronunciar, sem falsear a verdade, por mais
espantosa que fosse.
Como um animal teimoso, reconduzia-o à frente do obstáculo, obrigava-o a
considerá-lo sem anteparos, por mais demente que parecesse.
Estava louca?... Ou então, se reconhecia que dos lábios negros daquele morto se
escapavam queixumes, devia admitir portanto que estava... vivo?
E nesse caso, por que Utakê o jogara à sua porta? Por que 6 devolvera vivo a ela?
Para satisfazer a qual de suas leis vingativas ou canibais? Para que ela acabasse com
ele? Para que o comesse?...
Era isso o que ele queria, segundo sua lógica e sua ética, de raízes primitivas,
entretecendo obscuramente sabedoria e loucura, generosidade e crueldade, vingança e
alimento?
Um espasmo retorceu-lhe as entranhas. Sentiu queimar-lhe o estômago torturado, e
levou a mão à boca para reter uma náusea incoercível. Comida, carne, carne. Um
cozido quente!... e saboroso!... A salvação! A vida!
Precipitou-se em direção à porta para fugir das imagens atrozes e encontrou, na
indignação e na raiva que a sacudiam, forças redobradas para soerguer ainda a pesada
tranca, puxar os ferrolhos, girar as chaves, arrancar o batente à neve e aos gelos.
Lançou-se para fora, na tormenta, chamando-os com todas as suas forças.
— ...Voltem! índios, voltem! Voltem!...
O blizzard a acometia com mil serpentes furibundas, silvando, estridentes. Teve de
recuar, enceguecida. Mas continuava a gritar:
— Voltem! Voltem! Mohawksl... Não têm o direito!... Não têm o direito de fazer
isso!...
Misturava palavras francesas e iroquesas. Estariam escutando-a, agachados, nus e
selvagens, atrás de montes de neve endurecida?...
— Vocês me traíram, índios! Vocês me traíram, índios iroqueses. Vocês me
mataram! Eu morro por sua causa!...
Caiu desmaiada na mortalha profunda e suave da neve amontoada à porta. Mais
tarde se lembraria de ter-se ali afundado com um infinito alívio.
A lembrança das crianças reanimou-a. Julgou ver diante dela três pequenas silhuetas
cinzentas no blizzard mortal, chamando-a e, aterrorizada, ergueu-se de um salto. "Eles
vão se congelar!"
Os braços abertos para socorrê-los só encontraram o vazio, e dessa vez soube que
fora mesmo vítima de uma alucinação.
Todavia, de volta ao interior do posto, continuava perseguida pela ideia de que
haviam, acordado e, não a tendo encontrado, haviam saído à sua procura.
Cambaleando de fadiga, arrastou-se até o quarto e viu os três, que continuavam a
dormir serenamente na cama grande, um gémeo de cada lado de Carlos Henrique,
inclinando suas pequenas cabeças para ele, que as apoiava no pescoço.
Tranquilizada, retornou à entrada para terminar o que não tivera tempo de fazer:
fechar a porta inteiramente.
Teve de trabalhar muito para desobstruir a porta, mas já não sentia fraqueza.
O medo de ter-lhes quase causado a morte com seu desmaio era tão grande que nada
mais importava.
Um sentimento de culpa a atormentava.
Como ousava deixar-se dominar daquela maneira pelos nervos quando era afinal o
único amparo daquelas três pequenas vidas?!...
Consagrou à tarefa de fechar a porta as últimas reservas de energia.
A neve penetrara em turbilhões no interior da sala central, formando uma grande
montanha, mas isso não tinha importância, pois seu refúgio estava novamente
fechado. Os furores do inverno bateriam em vão, e a neve derreteria ali dentro.
Voltando ao quarto bem aquecido, sentia-se loucamente reconhecida para com o
céu.
O pior fora evitado!...
Ficou contemplando as crianças, achando-lhes as bochechas um pouco rosadas.
Seria a mistura de liquens e grãos que lhes dera para beber antes de pô-los na cama,
como a derradeira refeição, que lhes fizera bem?... Olhou o que restava no fundo da
tigela, aqueceu-o sobre as brasas e bebeu demoradamente a mistura bem quente. Sim,
aquilo fazia bem, e era o que bastava. Não tinha necessidade de mais nada! Sentada
na pedra da lareira, apoiou-se ao montante do fogão.
Abastecido com madeira de olmo, o fogo duraria bastante. Pensou em ir repousar um
pouco; depois refletiria. Adormeceu, acordou tremendo, colocou mais lenha e turfa na
lareira e, quase inconsciente, enfiou-se sob as cobertas perto das crianças, no grande
leito, que lhe pareceu deliciosamente morno. Adormeceu. Estava feliz.

Seu despertar a fazia flanrar, ainda indolor, entre o esquecimento dispensado pelo
sono e a apreensão latente por aquilo que a aguardava quando voltasse à^realidade.
Foi um momento de transição misericordioso. "Tudo está resolvido", disse consigo
com um alívio" infinito, "tudo está resolvido".
Seu corpo estava leve, mas repousado.
O pensamento das crianças arrancou-a de um estado de languidez semelhante a uma
suave embriaguez, que lhe retirava todas as forças. Levantandp-se, seu primeiro olhar
lúcido era para elas e, como a cada vez, seu coração baqueava com o receio de que a
morte as tivesse alcançado enquanto ela dormia.
Mas continuavam a dormir pacificamente. E pareceu-lhe ler naqueles rostinhos
emagrecidos um reflexo da beatitude que acabava de experimentar. Inquietava-se.
"Eles dormem demais. E preciso despertá-los."
Mas, ao acordar, reclamariam comida.
Apoiou-se à guarda da cama e se lembrou: "Não há mais nada para comer".
Lembrou-se. Quisera sair para tentar, custasse o que custasse, caçar. Emergindo
como que das profundezas de um oceano no-turno, fragmentos do que acontecera na
véspera se impuseram: ouvira uma batida na porta, havia um saco, e eram víveres.
Tropeçava no acre bafio da decepção que quase a matara. Não, não eram víveres.
Gemia alto. Não queria saber a continuação.
"Eu sonhei!"
Houvera um cadáver, e esse cadáver estava vivo.
"Eu sonhei."
Ela se tranquilizava: "Eu sonhei".
Reinava uma grande calma. Dentro e fora do forte, a tempestade amainara. A neve
estava acima das janelas, mas, por aquela ténue luz de alabastro, transpassada pela
flama de uma lamparina que invadia o aposento, ela adivinhava que o sol brilhava
num céu purificado.
"Será que sonhei?"
Ela olhava suas mãos esfoladas pelo gelo. Cada detalhe de sua luta insana contra a
neve, contra a porta, contra o peso do saco, vinha-lhe à memória e lhe deixava amarga
a boca.
Sua decepção, sua loucura, sua cólera contra Utakê, seus gritos, a goela negra da
noite abocanhando-a em suas presas, soltando uivos sinistros, quase devorando-a, o
silêncio tumular da grande sala quando ela conseguira reentrar e empurrar os pesados
batentes protetores. E aquele grande corpo negro no centro, estendido, inerte, sobre o
soalho.
O corpo ainda estaria lá, na sala ao lado? perguntou-se.
Esse pensamento lhe deu a noção, a um só tempo assustadora e insólita, de uma
outra presença partilhando aquele abrigo perdido.
E se realmente "ele" ainda estivesse lá?
"O que você fez?", pensou, aterrada.
"Na verdade, 'ele' estava morrendo e você o abandonou!" . Fraca e lúcida agora, não
podia explicar-se o que a impelira a fugir para apagar o horror daquilo que acabava de
surgir rompendo a monotonia já horrível dos dias que estava vivendo, a mergulhar no
misericordioso sono para esquecer.
"Que delírio dominou-me? Pensei que era... O Padre d'Orgeval... Por que essa
obsessão?"
Porque Ruth lhe havia dito: "Eles vão sair do túmulo!!!" Sentiu-se louca e culpada.
Estava agora certa de ter visto brilhar um rubi no crucifixo? Talvez fosse apenas
sangue, sangue, repetia. Não constatara que aquele homem estava coberto de
chagas?... Tinha perdido a cabeça!
"O que você fez?"
Com gestos lentos, levantava-se, alisava maquinalmente as roupas e jogava um
casaco aos ombros.
Na lareira, o fogo mantivera-se sob as cinzas e, uma vez reanimado, produziu chamas
alegres. Em contraste com o quarto bem aquecido, o corredor e a sala estavam gelados.
Seu alento flutuou imediatamente em vapor diante dela. Caminhou apoiando-se às
paredes, tremendo de ansiedade, incrédula aingV è alimentando uma secreta esperança
de que todos os vestígios daquele pesadelo tivessem desaparecido.
Mas ele continuava lá. Estátua jacente negra e imóvel, no meio da sala, ali no chão,
tal como o deixara na noite anterior.
Parada à soleira da porta, examinou-o de longe, tocada pelo terror e pela aversão.
Certas tribos primitivas fogem e descabanam se se comete a inabilidade de
introduzir em sua aldeia uma encomenda com aquela forma alongada de um cadáver.
Compreendia-os. O que não a deixava menos terrificada.
"O que você.fez? O infeliz estava moribundo. E agora ele está verdadeiramente
morto."
O pensamento de que o chefe dos mohawks montara aquela horrível mistificação a
fim de que ela pudesse se vingar de seu inimigo-acabando com ele e, talvez,
comendo-o, sacudiu-a num sobressalto salutar de nojo e de cólera.
"Você não me conhece, Utakê! Não compreendeu quem eu sou!...
"Mesmo assim, ele ganhou, aquele selvagem!"
Com as entranhas retorcidas, ela fugira.
"O que foi que eu fiz? Mesmo que fosse ele, o que é um absurdo, não tinha o direito
de deixá-lo morrer."
Movida por uma infinita piedade, por um infinito remorso, chegou-se suavemente e
ajoelhou-se junto ao corpo.
Inclinada, afastava tom as duas mãos os pedaços de couro enrijecido do capuz e, tal
como nas criptas medievais se descobrem, no fundo das cogulas de pedra revolvidas,
os rostos em lágrimas daqueles "chorões" cujas estátuas velam junto aos túmulos dos
reis, ela encontrava ali, no vazio da sombra, aquela mesma face que, ela também
rígida, como mármore, entrevira na véspera. Uma face enegrecida pela barba hirsuta e
sangrenta, as cicatrizes e queimaduras. Pensava: "Perdoe-me. Perdoe-me!..."
Era um homem branco, um padre missionário católico, um francês, um jesuíta, e ela
não compreendia que espécie de medo ou rancor a agitara ao vê-lo, impelindo-a a
fugir. Era um homem branco, um cristão, um mártir, um moribundo, um irmão.
E não deveria ter feito aquilo.
— Perdoe-me, meu padre. Eu pequei. Perdoe-me, pobre homem!
As lágrimas a cegavam.
Fustigou-se. Não adiantava mais nada chorar. O que ia fazer, agora que ele estava
morto? E por sua culpa!

Seu olhar desceu até o crucifixo. O rubi ali estava e cintilava. O rubi!
Com os olhos pousados na face martirizada, perscrutando os traços informes e
desconhecidos, ela se interrogava.
Quem poderia ser esse jesuíta? E por que trazia ao pescoço o crucifixo do Padre
d'Orgeval?
Um arrepio tomou conta dela. Acabava de discernir um leve vapor flutuando acima
do rosto imóvel. Então ainda estava vivo? Inimaginável!
Febrilmente, procurou nos bolsos, encontrou seu espelhinho e passou-o diante dos
lábios rígidos.
A mão lhe tremia, a vista se lhe embaralhava, mas não pôde negar o vestígio do
hálito que aflorava.
— Está vivo!
Instantaneamente reencontrou força e coragem.
"Vou cuidar dele! Tenho de salvá-lo!"
Apressou-se, impelida por uma febre de resgate, um sentimento de urgência. Se
conseguisse arrancar aquele homem à morte, dizia consigo, eles todos estariam
salvos.
Era o sinal. O sinal da Redenção, o sinal do Céu sobre a Terra.
O sinal de que sobre eles velava uma força mais justa e misericordiosa que a dos
homens.
Dirigiu-se ao outro cómodo para atiçar o fogo sob panelas cheias de água.
As crianças continuavam a dormir.
Voltou com um cântaro de bebida tépida, o cofre de remédios, os instrumentos de
cirurgia, faixas de bandagem.
Juntara à bebida que queria fazê-lo engolir uma boa dose de álcool. Aquilo acabaria
com ele ou o ressuscitaria. Era um risco. Entretanto, sempre confiara na promessa
contida na denominação latina "aqua vitae", "água da vida".
Sob os lábios enegrecidos e ressecados, a mandíbula crispada fechara-se como um
estojo. Mas conseguiu filtrar, gota a gota, a bebida através das frestas entre os dentes,
que tinham se quebrado, caído ou apodrecido. Isso lhe tomou um tempo enorme, pois
receava ver transbordar da cavidade bucal o precioso líquido, mas um imperceptível
reflexo de deglutição deve ter-se produzido, pois a xícara ficou vazia e ela se
persuadiu de que, pelo menos, o remédio impregnara as papilas ressecadas e que ele
ia se insinuar lentamente e reanimar o corpo petrificado. Precisaria cuidar para que
não se reaquecesse depressa demais, pois sabia que somente o frio o mantivera vivo,
entorpecendo-o como ao animal que hiberna, evitando que as feridas se
deteriorassem.

Com sua "água" benfazeja, de cujo segredo era depositária, lavou-lhe o rosto,
untando as pálpebras grudadas pelo sangue e pelo pus com um bálsamo emoliente.
Seria preciso esperar para tratar das queimaduras do peito, pois retirar os pedaços de
tecido negro ali aderidos exigiria um trabalho de muita paciência.
Desistiu de arrancar o crucifixo de seu estojo de carne.

Empenhava-se agora em desprender o corpo em todo o'comprimento do couro


espesso e muito duro daquela espécie de casulo no qual ele fora envolto e costurado
inteiramente, da cabeça aos pés. Vendo, à cabeceira, um pedaço de corda pendurada,
podia imaginar que "eles" o haviam arrastado assim, no gelo, por léguas, pois o couro
malcurtido era tão resistente e liso quanto a madeira 'de um reboque.
Um corpo sacudido por montes e vales nevados, atrás daqueles índios seminus,
iroqueses ou abenakis, correndo aos saltos em suas raquetes, empreendendo uma
corrida alucinada pela brancura imaculada dos dias, pelo negror das tempestades
sibilantes e das noites, arrastando aquele corpo, em sua mortalha de couro, tudo isso
para ir jogá-lo na soleira de um covil onde Angélica, a Dama do Lago de Prata, e suas
crianças pequenas, abandonadas por todos, morriam de fome.
"Jamais os compreenderei, índios."
O estojo enrugado cerrava-se sem cessar, e teve de cortá-lo em placas, como uma
casca de árvore. Sob o envelope duro, ficou surpresa por encontrar espécies de
almofadas, que pareciam estar ali para envolver e acolchoar o corpo do mártir.
Puxando-o, retirou o primeiro saco de pele de gamo, inchado e esticado, e, antes
mesmo de ter desamarrado o atilho, adivinhou-lhe o conteúdo.
Como a decepção na noite anterior, a alegria de hoje poderia tê-la matado.
— Oh! Utakê! Utakê! Deus das Nuvens!...
Como da outra vez!
Feijões, feijões do vale dos'Cinco Lagos!...
Deslumbrada, fazia-os deslizar na palma da mão, tal como um avarento
contemplando sumamente extasiado suas moedas de ouro.
— Víveres! As crianças!... Elas serão salvas...
Outros sacos e saquinhos continham arroz, germe de aveia-louca, carne salgada,
grãos e pedaços de abóboras secas, e ainda milho, ervilhas, feijões...
— Obrigada, meu Deus! Obrigada, meu Deus!
Ajoelhada, erguia as mãos juntas num gesto de gratidão.
O sol brilhava. Ele penetrava pelo estreito respiradouro, e o feixe de luz incidia
sobre ela. A obscuridade recuara. A vida retomava seu curso.
"Elas estão salvas! Obrigada, meu Deus!..."
Falava bem alto e ria de felicidade.
Sentiu que alguém a fitava em sua expressão de alegria delirante.
Virando a cabeça, percebeu que as pálpebras do moribundo estavam levantadas. Um
olhar filtrava-se por elas, um olhar diluído, incolor, mas um olhar.
Por mais estranho que fosse o meio empregado pelo sutil Uta-kê para socorrê-la,
aquele infeliz trouxera-lhes a salvação.
Renasceu a áspera vontade de retirar dos limbos aquele espírito que, havia tantos
dias, errava às portas da morte.
Disse, em voz alta:
— Está em segurança, meu padre. Não receie mais. Vou cuidar de você. Vou curá-
lo.
Essas palavras a ajudaram a compreender que ele estava vivo, a lembrar-se daquilo
que precedera seu estado de inconsciência.
— Está me ouvindo, meu padre?... Sê me ouve, faça-me um sinal, tente mover as
pálpebras...
Decorreu um longo tempo. As pálpebras não pestanejavam. E os olhos
permaneciam fixos e sem expressão.
Estaria morrendo?
Foram os lábios que se moveram, mexendo-se no vazio várias vezes; depois, um
som escapou deles e uma voz longínqua e penosa, mas distinta, perguntou:
— Quem... é você?
Ela hesitou. Sua cabeça girava. Sentiu vertigem. Encontrava-se num limiar temível,
e teria desejado adiar o momento de transpô-lo.
Com os olhos presos àquele elhar de cego, respondeu, ofegante:
— Sou a Condessa de Peyrac.
Ele não se moveu. Mas se poderia jurar que uma luz azul brilhara, por um momento,
naquelas pupilas turvas.
Ou seria uma ilusão? O fruto de sua obsessão?
Nenhuma força poderia tê-la obrigado a interrogá-lo, por sua vez.
E também teria ele ouvido? Compreendido?
"Vou preparar a comida para as crianças", disse consigo; "depois... veremos."
Mas eis que o fenómeno se repetia. Os olhos pálidos se animavam, e, devolvendo-
lhes a vida com o colorido da íris, o mesmo brilho azul emergia translúcido, de um
azul muito ténue, muito puro, muito intenso, mas também trespassado por uma
cintilação dura e ferina: o brilho da safira.
O olhar ali estava também.
A mesma voz abafada e frágil elevou-se, desmentindo por sua fraqueza o olhar no
qual acabava de se reunir toda a energia do corpo percluso. Teve de inclinar-se para
mais perto a fim de captar as palavras pronunciadas. E era lamentável e quase
dilacerante ouvir aquele timbre partido e ver aqueles lábios feridos esforçarem-se por
pronunciar as fórmulas de cortesia consagradas pelo uso de uma educação
aristocrática.
— Per... permita-me, senhora... que... que... rae apresente. Eu
me chamo... Sebastião... d'Orgeval...
O feixe de sol se deslocava com lentidão.
Nada se movia no forte perdido, nada parecia vivo, exceto aquelas nuvens
evanescentes de duas respirações conjugadas, condensadas pelo frio.
Ténue sinal de vida, para duas vidas prestes a extinguir-se, o vapor prateado de seus
fôlegos esgotados fremia entre eles.
Aquilo não deveria ter acontecido daquele modo. Era tarde demais!
Mas acontecera.
Angélica de Peyrac e o jesuíta Sebastião d'Orgeval olhavam-se frente a frente.

A JANGADA DE SOLIDÃO

CAPITULO XVII

O refúgio volta à vida — Cuidados com o mártir moribundo

As ressurreições obtidas por uma terrina de mingau de milho enriquecido com um


pouco de carne-seca incluem-se entre aqueles fenómenos que redimem a enfermidade
do mundo e confortam as crenças num Deus bom e generoso.
Era preciso aparentemente tão pouco e dons da terra tão modestos para conduzir da
beira do túmulo aquelas crianças cheias de vida e que a fome estiolava como flores
privadas de água!
Angélica alimentara-as com pequenas quantidades, como pássaros, deixando-as
adormecer entre cada colherada. E agora elas despertavam como numa bela manhã de
Wapassu outrora, e deslizavam para fora da cama as perninhas magras, impacientes
de partir para a descoberta de todas as surpresas que lhes prometia aquele novo dia.
E Carlos Henqrique, que se vestira com esmero e impusera aos gémeos pelo menos
vestir uma casaco por cima das roupas de dormir, plantava-se diante de Angélica e lhe
dizia:
— Posso ajudá-la, minha mãe, a cuidar do "morto"?
Tinha ele encontrado um meio de sair do quarto e de explorar a casa? E de descobrir
na sala grande aquele corpo estirado no chão? Certamente.
Os três estavam muito mais lúcidos que ela, que, mais uma vez, emergia de um
repouso mais próximo do desfalecimento que do sono.
Na véspera — tinha sido na véspera? —, durante algumas horas, fora tão-somente
uma formiga laboriosa transportando tesouros inestimáveis para o quarto comum:
saquinhos de carne-seca e arroz integral, sacos de milho e de feijões, lascas de
abóboras secas que ela preparara e reservara, dividindo-as em porções cotidianas. Oh!
Caro e santo alimento!
Pendurara imediatamente caldeirões na cremalheira, onde colocara punhados de
trigo-sarraceno, e num outro pusera feijões com um pouco de sal natrão para apressar
o cozimento; diluíra a carne-seca em água morna para introduzi-la de surpresa na bo-
ca das crianças inertes com os pedaços de abóbora amassados. Tinham ingerido esse
primeiro viático sem abrir os olhos. E somente depois ela se alimentara, relegando
para o fundo do pensamento a lembrança da declaração que lhe fizera aquela voz
moribunda: "Eu sou o Padre d'Orgeval".
O estranho processo que usara Utakê para socorrê-la continuava a mantê-la em
estado de incerteza. O próprio Utakê mandara dizer-lhes: "O Padre d'Ofgeval está
morto", e tudo isso parecia alucinação.
Mas nada lhe assegurava que fosse Utakê o chefe iroquês mo-hawk que lhe enviava
aqueles víveres salvadores. E o pobre mártir talvez não fosse senão um pobre jesuíta
dos Grandes Lagos que enlouquecera com as torturas.
Ouviu-se murmurar: "Não aguento mais esses selvagens! Não os suporto mais!..;
— Não — respondeu mais alto, dirigindo-se a Carlos Henrique —, você é muito
gentil, querido. Mas prefiro que fique aqui cuidando de Raimundo Rogério e
Gloriandra, a fim de que não caiam no fogo e não façam tolices.
Pegou uma escova e começou a escovar-lhes os cabelos, e depois os seus.
Aí está. Basta um pouco de sopa no estômago para que nos sintamos novamente
criaturas dignas de viver.
A vida, em sua essência, é isso: alimentação. Não recomece a pensar, não canse seu
cérebro. Há ainda muitos dias pela frente antes do fim da invernada.
Mas agora, apesar de precariedade de sua situação, o processo de salvação estava
iniciado.
Pois, tendo chegado ao fundo do desespero e confessado a si mesma: "É o fim",
ocorrera um milagre, em que via uma garantia de que todos eles chegariam com vida ao
término daquela longa viagem de inverno.
Até ele, o "comatoso"...
"Eu sou louca", pensou, com a escova na mào. "Como o abandonei desse modo?!...
Mais uma vez estou abandonando-o!"
Depois, fatigada, dando-se algum tempo para recuperar as energias, dizia: "Um pouco
mais... um pouco menos... Ele está morto! Ele vai morrer!... O que posso fazer?... Mas
quem pode ser ele?"
Não acreditava realmente que ele tivesse falado com ela, e sua declaração: "Eu me
chamo Sebastião d'Orgeval", confundia-se em seu espírito com os efeitos de sonhos ou
de obsessão. Era agora que acreditava realmente na morte anunciada pelo Padre de
Marville. Pois não podia ser de outra maneira.
Entretanto, começou a fazer seu plano de ação para cuidar daquele infeliz: tinha ervas,
bálsamos, bandagens. Caldo também, porque seria preciso alimentá-lo quando ele saísse
de seu estado letárgico.
Faria os curativos no cómodo ao lado. O frio ali era glacial. Se ele não o matasse,
manteria sua insensibidade.
A seguir seria preciso arrastá-lo para aquele cómodo, instalá-lo diante da lareira. Será
que se reaqueceria? Voltaria à vida? Emer-geria de seus limbos? Conseguiria retornar da
condição de um cadáver, de um corpo miserável que ela teria cuidado como de uma
criança, um ser humano que se faria conhecer e partilharia sua clausura invernal?
Temia mostrar ao menino o estado a que um ser humano podia ser reduzido pela
crueldade de seus semelhantes. Mas Carlos Henrique, nascido em terras da América,
teria talvez suportado esse espetáculo com mais simplicidade do que ela, aceitando sem
dificuldade, como toda criança, o cenário dos lugares de seu nascimento, a selvageria que
o embalara, as regras do teatro erigido onde, como naqueles gestos ou mistérios da velha
Europa, nos estrados montados nos átrios das igrejas e das catedrais, cada personagem
desempenhava seu papel simbólico segundo um ritual imutável.
Ali, sobre um fundo de florestas e de águas cascateantes, de lagos com horizontes
sem fim e vales desertos, era a gesta dos dois mundos defrontando-se, os mesmos atos
colocados, as mesmas personagens irreconciliáveis: de um lado o 'missionário de
sotaina preta, chapéu grande, cruz na mão, uma barba inquietante e suà febre de
levar.a Deus as almas pagãs; do outro, o gla-bro índio nu, emplumado, tatuado, e sua
feroz e inexplicável paixão, como um código de honra, pela morte pela tortura, fosse
ela a sua ou a dos outros.
Tinha agora de fazer-lhe curativos dos pés a cabeça. Como havia resolvido, fez essa
primeira operação na sala grande, no lugar onde ele jazia desde a sua chegada.
Continuava contudo a respirar, mas com um alento tão fraco que ela se perguntava
por onde começar sua tarefa, para não partir, num gesto desconside-rável ou muito
brutal, o fio ténue daquela existência.
Quando quis retirar o crucifixo, foi inútil tomar todas as precauções, colocando
compressas de água quente ao redor; a marca continuou ali, incrustada, transudando
sangue entre as carnes enegrecidas.
Segurou a cruz de madeira de buxo, na qual o olho do minúsculo rubi cintilava.
Depois de lavá-la piedosamente, colocou-a num pano branco. Precisou cortar o
cordão que a sustinha ao pescoço.
Não saberia dizer do que o homem estava vestido. Tendo cortado com certa
dificuldade a pele coriácea de um gibão, retirou peça por peça os farrapos negros de
uma sotaina.
Queimaduras e mais queimaduras, algumas das quais exalavam um cheiro pútrido.
"Pobre infeliz! Pobre infeliz!, não podia deixar de murmurar, indo de uma ferida a
outra e sem compreender como, coberto de tantas queimaduras, ainda lhe era possível
manter-se vivo. Mas depois de lavar e relavar-lhe o corpo, os braços, as pernas esque-
léticas, um exame intrigado lhe fazia observar a "distribuição" das queimaduras,
algumas causadas pela aplicação em cheio de machados incandescentes e outras por
sovelas incandescentes que atravessavam um músculo. Restava uma superfície
considerável de carne que fora poupada. E notou que o membro viril não sofrera
qualquer dano.
Era costume dos iroqueses respeitar a vítima naquilo que ela, a seus olhos, tinha de
mais sagrado.-Não amarravam seu inimigo no pilar de torturas com o intuito de
humilhá-lo e de aviltá-lo. Ao contrário, essa tradição das tribos iroquesas de fazer
peref cer nos suplícios mais bárbaros aqueles que os haviam combatido era uma
marca de honra, que se sentiriam culpados de reCusar a um adversário valoroso.
Sofrer e aplicar bem a tortura constituía um dos mais preciosos ensinamentos que eles
recebiam, disciplina cujo pensamento e preparação não cessavam de dominar sua
vida, desde o nascimento até a morte, uma morte que todo guerreiro digno desse
nome sempre desejava tão lenta quanto terrível.
Ao acaso das conversas, Angélica soubera por pessoas do Canadá que os iroqueses
eram peritos na administração dos suplícios, conseguindo torturar um prisioneiro mais
de doze horas, e até dois dias, sem que ele morresse ou perdesse a lucidez. A fim de
obter esse resultado, procuravam evitar o derramamento de sangue.
"É uma ciência", afirmara-lhe com certo orgulho um L'Aubigniere ou um Nicolau
Perrot, "e nossos huronianos, que são de raça iroquesa, demonstram muita habilidade
nessa prática."
Dessa vez poder-se-ia dizer que haviam torturado o missionário de modo a permitir-
lhe sobreviver. Mas por muito pouco.
Sentia náuseas.
Apesar do frio penetrante que reinava na grande sala, estava banhada de suor...
Espreitava as reações no rosto do supliciado. Fora, porém, do leve vapor acima dos
lábios, ele não dava nenhum sinal de vida. Foi preciso cortar-lhe bem ou mal a barba
eriçada, cheia de nós e pegajosa de sangue seco.
Finalmente examinou-o, coberto agora de pomada e ataduras. O pior seria arrastá-lo
até o quarto.
Quando tentou deslocá-lo, ele deu um profundo gemido. O primeiro. A dor voltava-
lhe com a consciência.
— Tenho de transportá-lo — explicou-lhe bem alto, esperando que sua voz o
alcançasse onde ele se encontrava.
Mas ele soçobrou novamente, deu um estertor e tornou-se mais pesado ainda. Só
depois que lhe colocou diante dos lábios um espelhinho, que foi pegar no quarto,
ficou convencida de que não dera o último suspiro.
\ Pensara ém instalá-lo numa enxerga diante do fogo. Essa solução não a satisfazia.
Por um lado, no chão, arriscava-se a se res-íriar, por outro, podia morrer com a face
assada, se o fogo ficasse muito alto, como o desditado rei da Espanha que, doente, não
encontrara ninguém para afastá-lo do braseiro, pois o preposto encarregado protocolar
mente dessa função não pôde ser encontrado.
E, para ficar assado, bastava o estado em que se encontrava.
Carlos Henrique trouxe-lhe a solução que, em sua fadiga, não lhe ocorria.
— Devemos colocá-lo em nosso leito. Ali está sempre quente. Vamos pô-lo de um
lado e ficaremos do outro; você ficará no meio para cuidar de todos.
— Tem razão, meu menino.
Dessa vez aceitou a ajuda da criança. Com muita energia, cerrando os dentes, ele
susteve os pés envoltos em curativos, enquanto, segurando sob os ombros a comprida
e sinistra marionete machucada, ela o içava como podia do outro lado da cama. Ti-
veram de recomeçar várias vezes, e os gemidos da mulher e do menino respondiam
aos profundos gemidos do mártir, enquanto sua cabeça balançava para todos os lados,
caía para a frente ou tombava para trás, como um frango com o pescoço quebrado.
Foi finalmente deitado em toda a extensão, e ela suspirou ao vê-lo protegido do
chão duro e do frio e na situação de um honrado doente destinado a se encaminhar
para a cura ou, caso contrário, em estado de exalar com dignidade o último suspiro.
Com seixos envoltos em peles ou panos grossos, poderia ajudá-lo a se reaquecer,
pois era preciso evitar que ele perdesse, na luta contra o frio, suas últimas forças.
Agora que transpusera esse limiar de hibernação, do estado de coma, não devia mais
recair num estado letárgico, precursor da morte. O processo de cura, além da linha
fatal, devia prosseguir incessantemente para uma volta à consciência, que o traria de
regresso ao convívio dos vivos. Sobre os travesseiros de crina e de ervas, nos quais se
apoiava a cabeça descarnada, ela colocara um pano branco. Poderia à noite, quando
estivesse ao seu lado, umedecer-lhe os lábios ressecados, fazê-lo beber alguns goles,
vigiar a febre ou a perigosa recaída de fraqueza, acalmar-lhe os sofrimentos, mudar as
compressas, reduzir a dolorosa inflamação de uma ferida com alguma pomada...
Naquele dia, depois de tê-lo instalado na cama, quando doente e enfermeira
descansaram um pouco, resolveu cortar-lhe os cabelos, encontrando o sinal de uma
tonsura, malcuidada. Tratava-se pois realmente de um padre.
Depois friccionou-lhe o crânio e as têmporas com um vinagre medicinal.
Aplicou-lhe compressas sobre os olhos queimados pela reverberação da neve e
ameaçados de cegueira branca.
Sabia que esses cuidados que lhe dispensava com habilidade, pois tinha uma prática
de muitos anos — na verdade desde a infância —, os aproximavam. De estranho que
era tornava-se seu filho, e ela, sua mãe.
Tentava lembrar-se de que se tratava do Padre d'Orgeval, seu inimigo, seu assassino,
em suma, acreditando cada vez menos nisso, pois cuidar e receber cuidados é uma das
mais espontâneas linguagens de paz e de compreensão mútua.
Lutava antecipadamente contra o apego que ia tecer-se coti-dianamente entre eles,
devido, nela, á seu devotamento, e nele, a sua dependência.
Inerte, não tendo um sopro de vida, era também difícil acreditar que ele fosse real, e,
Húrarite aquele dia, ela sobressaltou-se várias vezes ao descobrir sua forma imóvel
estendida na cama.
Quando anoiteceu, e depois de ter por sua vez posto as crianças na cama, arrumando
os remédios, as bebidas que poderiam ser necessárias durante a noite e coberto o fogo
com cinzas, permaneceu indecisa, sem se resolver a ir deitar-se junto àquela las-
timável múmia, fixa êm'sua rigidez mortal, interrogando-se, atormentada por questões
que toldavam sua alegria primeira ao receber os víveres para salvar os filhos.
"O que eu devia fazer? Agi corretamente?... Qual é o dever do ser humano em.nosso
tempo?... Cuido dele... Mas quem ele é?... Uma fraude?... Ou na verdade nosso
irredutível inimigo?... Em ambos os casos, perigo!... Salvei Ambrosina. Arranquei-a
das mãos dos homens que queriam matá-la. E desse modo deixei-a continuar a
praticar seus crimes. Pus minha filha em perigo!...
Colocara o crucifixo do jesuíta sobre o anteparo da lareira, e os clarões abafados
das brasas faziam cintilar o rubi.
— O cruz, perdoe-me — disse em voz alta. — Bem sei que é de você que vem todo
milagre.
A noite foi tranquila.
Pela manhã, acordou persuadida de que tinha sonhado aquela intrusão extravagante
em sua existência condenada. Depois, encontrou-o, com uma mistura de satisfação e
de terror. Não podia, porém, esquecer que "devia à sua vinda as bochechas mais
rosadas de seus filhos e a volta à vida no forte, enterrado sob a neve, que estivera
prestes a se transformar em seu túmulo.

Nos primeiros dias, vendo as crianças correrem pela casa com uma necessidade de
se expandir, de reencontrar agilidade e forças, concebeu o projeto de -levá-los para
fora a fim de tomar ar.
O sol brilhava. Podia-se percebê-lo através dôs interstícios das janelas e das
ombreiras que ela tapara cuidadosamente contra o frio de todas as maneiras possíveis.
Mas ao adivinhá-lo, acima daquele buraco esfumaçado, foi tomada por uma
necessidade de sentir-lhe a carícia. O sol tinha virtudes terapêuticas divinas. Mais de
uma vez constatara a cura de feridas ulcerosas, eczema, dar-tros, pela exposição aos
raios solares. Um pouco de sua carícia e as crianças lânguidas recuperavam o apetite,
o vigor. Joffrey contara-lhe de que modo sua mãe, em sua infância, ao recebê-lo
ferido, machucado, das mãos do aldeão das Cévennes, que o levara do massacre no
qual perecera sua ama-de-leite, o instalara no terraço do palácio de Toulouse, onde ele
permanecera durante anos, exposto aos raios do deus Febo, recuperando sua saúde.
Içou-os pelo alçapão à pequena plataforma que servia de telhado acima de seu
antigo quarto e reuniu-se a eles; eles ficaram ali, vacilantes, numa luz dourada pálida,
cruel, petrificante, que lhes feria os olhos enfraquecidos pela penumbra, as pálpebras
irritadas e avermelhadas pela fumaça, numa atmosfera confinada.
Cobertos como estavam, mostrando apenas a ponta do nariz, o frio oprimiu-os,
fazendo-os cair como os passarinhos nos galhos nas florestas. Quando Carlos
Henrique quis falar, uma lufada de ar secou-lhe as palavras no fundo da garganta, e
ele permaneceu de boca aberta, incapaz de tornar a fechá-la.
Angélica apressou-se a fazê-los descer para dentro, fechou o alçapão da plataforma,
a do falso celeiro acima, e refugiou-se no quarto único. Voltou para acender um bom
fogo na lareira da sala principal e ferver um grande caldeirão de água. Enfiou as
crianças tal como estavam na cama grande, ao lado do moribundo. Fê-las engolir uma
bebida quente com uma grande colher de mel — aquele mel, mais precioso que o
ouro, que encontrara também entre as vitualhas enviadas, exsudando em seu cestinho
de casca —, transportou para o quarto seus caldeirões de água fervente, encheu uma
tina de madeira e, quando o banho ficou pronto, desvestiu-os e mergulhou os três,
carregando-os rígidos e pálidos como se, mais ainda do que o frio, a paisagem de fim
de mundo que haviam entrevisto, ao mesmo tempo lívida e de um azul pálido
translúcido, houvesse tido o dom de petrificá-los.
Readquiriram logo as cores e se animaram, tagarelando com loquacidade. De pé na
tina, excitaram-se, com os olhos brilhantes. Os gémeos contavam uma história com
grandes gestos descritivos que faziam respingar a água, ambos exagerando os
detalhes.
Angélica só podia compreender algumas palavras" de seu pequeno jargão, que
repetiam a todo momento: navio, pássaro, não deve! não deve!
— Mas o que estão dizendo? — informou-se com Carlos Henrique, para quem essa
linguagem não era Jiermética e que seguia sua exposição aprovando com a cabeça.
— Estão dizendo que as águas ainda não se retiraram e que não se deve soltar a
pomba! Sabe, mãe, como na Arca de Noé!... Contei-lhes que estamos na Arca de Noé.
Eles gostam muito disso. Mas dizem que ainda não se deve enviar a pomba para fora.
Faz frio demais... Oh! mamãe, é verdade. Ela não teria onde pousar. Não poderia
voar. Olhe como agitam os braços e depois param para mostrar que ela não poderia
voar.
— Pluf. — fez Raimundo Rogério, deixando-se cair na tina em meio aos salpicos,
imitado imediatamente pela irmã.
— Veja, dizem que ela cairia, pluf, como uma pedra... Carlos Henrique voltou-se
para a cama e gritou:
— Não é, morto, que não se pode ainda enviar a pomba?...
— Com quem estás falando?
— Com o "morto"... Falo frequentemente com ele enquanto você está preparando a
comida ou quando vai buscar lenha no depósito.
— E ele responde?
— Não. Mas ouve tudo.

Depois a temperatura baixou mais ainda, e a tempestade, cujos anúncios observara,


declarou-se. O frio era tão intenso que foi uma tempestade seca, mais terrível ainda
que as que trazem a neve. O blizzard, o vento do nordeste, o "nordait" dos cana-
denses, "esse cruel inimigo do homem" vindo do pólo, passou pela superfície da terra
a velocidades incalculáveis, com uma violência, uma fúria, que desenraizou árvores,
ceifou como uma lâmina gigante afiada o cimo dos bosquezinhos nas ilhas dos lagos,
carregou aldeias de wigwams inteiras com seus habitantes.
Naquele "ano, o inverno que tomou de assalto o Escudo Lau-renciano, do Labrador
ao sudoeste do Maine, foi tão terrível que ursos adormecidos morreram de frio em
seus covis, o que é raríssimo acontecer.
Angélica temia em alguns momentos que o vento uivante acabasse por enganchar-se
no fortim de Wapassu, por mais enfiado que estivesse na terra e na falésia, e lhe
arrancasse o telhado como uma simples panela perdendo sua tampa.
Transportara para o quarto comum uma considerável provisão de madeira, que,
empilhada, ocupava a quarta parte do espaço. Não teria pois de sair daquele último
refúgio interior, cuja porta, mesmo dentro da casa, era sacudida em alguns momentos.
Três dias, quatro dias, permaneceram encolhidos sob as cobertas, procurando no sono
o esquecimento das saturnais externas. Angélica só se levantava para cuidar do fogo,
verificar as aberturas, portas, janelas, reforçar as trancas das ombreiras, preparar as
rações de alimento — com a preocupação que recomeçava a despontar, de que não se
esgotassem muito rapidamente —, fazer todas aquelas bocas avidamente entreabertas
engoli-las, dar de beber às crianças e ao doente. Era preferível tomar tisanas quentes
de camomila e de tília para ter um sono tranquilo a enervar-se e assustar-se com os
clamores selvagens que corriam lá em cima sobre a terra.
As crianças pareciam não se perturbar com aquele ruído do vento. As tempestades
da América do Norte haviam embalado suas curtas vidas. Dormiam muito, mas dessa
vez era um sono melhor. Quanto a ela, permanecia acordada, concedendo-se apenas
curtos períodos de repouso, alerta contra os assaltos lúgubres do exterior, que traziam
sombrias ameaças: a destruição da habitação sob a ventania ou o incêndio, sempre
ameaçador com o fogo, cuja fumaça era soprada para dentro pelas lufadas contrárias.
Precisava também trocar os curativos do ferido. Longa e ingrata tarefa, que
aumentava seu esgotamento.
Ele permanecia inerte, inconsciente.
Em certos certos momentos ela o sentia muito distante, alhures, num lugar onde
podia restaurar suas forças, e em outros, o estado de insensibilidade no qual ele
mergulhava advertia-a da lenta aproximação de uma saída fatal.
Insensivelmente ele começou a recusar alimento. Deixava-o escorrer pelas
comissuras dos lábios, e Angélica punha-se ao mesmo tempo irritada e desesperada,
pois, de um lado, era um alimento precioso que não se podia desperdiçar, e, de outro,
isso indicava que ele estava começando a perder os reflexos da sobrevivência.
Falava-lhe num tom baixo, suave e persuasivo, sabendo que o conhecimento pode
ser atingido sem que nada se perceba, por sons, inflexões ou palavras que o despertem
e o tirem de sua apatia. Como para as crianças, procurava o que poderia despertar
nele, um religioso, seu interesse pela existência e encorajá-lo a fazer um esforço a fim
de voltar à superfície de seu ser e se alimentar. — É preciso viver, padre... É um dever.
Deus o exige! Abra a boca!... Tente engolir....Faça um esforço!... Pelo amor de Deus!...
Pelo amor à Santa Virgem!

Mas essas objurgações piedosas não produziam nenhum efeito. E ele parecia às vezes
mais morto do que quando o descobrira em sua mortalha de couro.
Entretanto as feridas do rosto se cicatrizavam.
Ela notara, da primeira vez em que as tratara, que não eram queimaduras, mas chagas
estranhas, causadas aparentemente por instrumentos pontudos ou garras. Esses buracos
estavam infectados e envenenados à volta toda. Depois de alguns dias, o inchaço cedera
e formaram-se cascas, dando ao doente um aspecto deplorável. Mas, quando as crostas
caíram, os traços das feridas começaram a se apagar. A carne tornava-se sadia, embora
lívida. As bochechas se encheram, a imensa fronte, sobre a qual caíam mechas de
cabelos com reflexos castanho-dourados, se desanuviou, e ela viu esboçarem-se traços de
um rosto que não era destituído de beleza, uma beleza viril e regular. "A beleza de Cristo",
suspiravam alguns penitentes um pouco exaltados, ao evocar seu confessor, o Padre
d'Orgeval.

CAPITULO XVIII

A caçada ao alce — Angélica e os lobos — Diálogo com um morto

Ao cabo de seis dias, os furores do blizzard começaram a amainar e, certa noite, o


vento parou completamente. Uma calma surpreendente estabeleceu-se, o que
coincidiu para Angélica com o melhor sono de que desfrutou após um longo período e
um sonho paradisíaco.
Fosse por pressentir o fim da tempestade, sabendo instintivamente que podia relaxar
a guarda, fosse porque chegara o momento, como em todo episódio dramático, de o
movimento de terror refluir para enviar os sinais de esperança, ela dormia como uma
criança feliz, e viveu esse sonho que lhe pareceu tão verdadeiro que a percorreu com
uma impressão subjacente de que tivera um pesadelo horrível na noite anterior. Nesse
pesadelo, estava encerrada com as crianças num buraco sob a terra enquanto uma
tempestade furiosa passava acima de suas cabeças. Que sonho estúpido! Num
momento em que fazia um tempo tão boni
to naquela primavera e os pássaros cantavam apaixonadamente nas árvores!
Estava apoiada ao braço de Joffrey enquanto caminhavam pelas alamedas de um
parque, ou talvez de uma floresta, pois era uma floresta furta-cor e cintilante, cheia de
árvores de espécies escolhidas e bem ordenadas, carvalhos e castanheiros, escoltados
por pequenos faiais e bosquezinhos de freixos e, dispersos aqui e ali, um pinheiro azul
de tronco rosa, uma conífera elegante, lançando notas escuras sobre a seda verde das
folhagens.
Uma floresta que poderia.ter sido um parque, pois seus caminhos e veredas tinham a
clara elegância de aléias traçadas, e ela via pousar na areia_a-ponta de seus sapatos de
cetim bordado rosa e prata.
Havia uma volúpia em andar naquele caminho calçada com sapatos tão
encantadores.
Apoiava-se ao braço de Joffrey e sentia o calor de seu braço, de seu corpo, de sua
perna contra ela em sua caminhada. Sentia a adoração de seu olhar, que se voltava
incessantemente para ela, e a doçura de seus lábios pousando-lhe no rosto, nas
pálpebras, na boca, na testa, nos cabelos, atraídos continuamente, nãp conseguindo
saciar-se com sua carne viva, sua pele suave e morna, seu sorriso, sua presença.
Chegaram à beira de um promontório e postaram-se ali, tendo às suas costas a
floresta murmurante.
Joffrey1 passou um braço por seus ombros e com o outro indicou-lhe, embaixo, um
pequeno castelo claro, diante do qual se estendia o mosaico vermelho, malva e azul
de-canteiros à francesa.
Ao derredor, a mesma floresta o cercava, mas era uma floresta humana, com seus
recantos de sombra e de luz, suas rochas e águas murmurantes, rebanhos de corças e
javalis, mas que levava além a outros domínios, outros campos lavrados.
No seio da floresta o pequeno castelo era uma ilha cor de mel.
Curiosamente, pois era a primeira vez que o descobria, Angélica soube que naquela
manhã, ao despertar, numa das encruzilhadas, vira pousar um pássaro branco cercado
de luz: a pomba da Arca.
Ela perguntou:
— Há um pombal aqui?
— Sim, há um pombal.
Ficou tão contente que julgou estar vivendo um conto de fadas, mas tudo era muito
real.
— E nossa casa? — interrogou.
O braço de Joffrey enlaçou-lhe os ombros e sua voz dizia:
— Construí para você muitos palácios e casas... Mas este é o presente do rei!...
A garra de um abutre pegou-lhe o.pulso e ela não conseguiu dar um grito. O abutre
caíra daquele céu azul-pálido da Ile-de-France?... Estaria querendo pegar a pomba?
Emergiu do sonho num estado de sofrimento que a deixou emudecida.
A garra em seu punho era uma mâo.
Uma mão horrível, com os dedos mutilados, roídos.
Um homem que ela não conhecia e de olhos dementes estava inclinado sobre ela,
quase lhe tocando o rosto e repetindo:
— Há um alce lá fora, um alce canadense!... Acorde, senhora.
A voz autoritária arrancava-a de seu sonho, de seu entorpecimento.
— Levante-se! Levante-se! Há um alce lá fora. Tem de abatê-lo. Isso lhe dará
carne... carne até a primavera...
A notícia penetrou no espírito de Angélica. Bruscamente, livrando-se da garra do
abutre que a segurava, pulou para fora da cama. Com o coração disparado, os olhos
arregalados, perguntava a si mesma quem era aquele homem barbudo que estava
vendo ali, no lugar de seu "morto".
Ele repetia:
— Abata-o... Terá carne até a primavera...
Começou a enfiar mecanicamente o casaco e as botas. Depois tirou o mosquete do
cabide, procurou o polvorinho e o saco de balas. Voltando-se subitamente, olhou para
o leito, fixando no catre aquele desconhecido que lhe falara com uma voz vinda de
alhures e que continuava a fitá-la com olhos ardentes.
— Que está dizendo? Como sabe que há caça lá fora, um alce?
— Vivi muito tempo prisioneiro dos iroqueses, e sei quando o animal está
rondando... Apresse-se! Que está esperando?... Não se deve deixá-lo afastar-se...
— Está delirando...
— Não! Eu sei... Depressa, não o deixe escapar.
Então ela pensou que a vida — se estava ainda viva — tomava aspectos fantásticos
e burlescos. Era a primeira vez que dialogava com ele, de humano para humano, de
vivo para vivo.
Ele estava realmente ali:
Estava realmente vivo.
Era o Padre Sebastião d'OrgeVal, diante dela. Discutiam e brigavam por causa da
carne, por causa do alimento do qual sua
sorte dependia, como os índios exacerbados pela fome, como todas
as verdadeiras criaturas daquele deserto branco, expostas ao inverno infernal.
— Apresse-se! Apresse-se! O que está esperando?
— Não posso sair. Faz muito frio! E estou muito fraca. Deixou o mosquete tombar
contra a parede, sem forças para
sustentá-lo.
— Na verdade, você não acredita em mim — disse ele, encolerizado. — E, todavia,
a vida está la fora... Você deve sair.
Estava inclinada a acreditar nele. Estava pronta a arriscar-se por uma ilusão, uma
miragem. Mas cada etapa pareceu-lhe insuperável. Por onde sair? Conseguiria subir
ao telhado? Colocar as raquetes? Avançar na neve profunda? Ela cairia, morreria
sozinha...
Ninguém para socorrê-la.
— Se eu cair, ninguém virá... As crianças morrerão.
— Aproxime-se. — A mesma voz estranha adjurava-a: — Aproxime-se!
Obedece u-lhe, incerta de que essa ordem emanasse dele, desconfiada da loucura
que parecia ter-se apoderado daquele semimorto e sem conseguir resistir a ele.
— Chegue mais perto!
Ele estendia para ela dois braços hirtos, que tinham dificuldade em se mover, e as
duas mãos que a seguravam dobravam sua vontade renitente. O que queria dela?
Obrigava-a a ajoelhar-se perto da cama. E, sempre com aquela energia de ferro contra
a qual sua fraqueza não tinha qualquer poder, puxava-lhe a cabeça contra seu ombros,
mantendo-a ali apertada.
Ouviu-o falar acima dela.
— Você poderá fazê-lo! Sempre ganhou! Com esse alce, haverá carne até a
primavera para você e seus filhos. Tem de abatê-lo... Você pode...
— E se eu falhar o tiro?
— Não falhará. Dizem que você atira muito bem, Sra. de Pey-rac. Melhor do que
qualquer arcabuzeiro... Ganhe! Ganhe mais uma vez, Sra. de Peyrac. Você foi chefe
de guerra...
Subitamente, viu-se de pé, arreada da cabeça aos pés, movida por uma vontade
feroz. Dirigiu-se à sala grande. Decidira sair pelo sótão, sobre a plataforma. Dali,
poderia primeiro verificar se havia realmente, nas paragens do ioite, um alce, como
ele afirmava.
A noite estava mais glacial do que julgara, mas clara pela magia de uma lua quase
redonda, semelhante a uma frágil concha de nácar, prestes a se quebrar sob o efeito do
gelo. As estrelas, pequenas e numerosas, juncavam o firmamento de rastros pálidos,
suavizando o azul aveludado da noite. Sob a abóbada celeste, tudo era branco ou
negro. Branca era a planície gelada, negros os buques de árvores, as florestas junto às
quais impalpáveis rastros de bruma pareciam captar em luzes fugazes os reflexos da
claridade lunar. O blizzard arrancara a neve das árvores, emprestando-lhes silhuetas e
volumes tenebrosos.
Olhou em torno de si, ávida por surpreender, naquele silêncio petrificado, o eco de
um passo, o movimento de uma sombra. Nada se mexia. Seus olhos doíam. Sentia
florescer em seus cílios cristaizinhos de gelo.
Não quisera acreditar nele, mas, agora que constatava a inanidade de seu aviso,
percebia, decepcionada, que a esperança a invadira imediatamente.
Deu a volta na plataforma, olhando para todos os pontos do horizonte. Se o animal
passara junto, à casa, deveria encontrar suas pegadas. Mas a neve em volta do fortim
era um belo tapete branco imaculado que havia muito tempo não era pisado nem por
homem nem por animal. Procedeu a um exame do bosque-zinho mais próximo, que
avançava como uma ilha num mar leitoso.
Não queria desistir sem antes ter tentado tudo, e pensou em saltar por cima da
muralha, que estava apenas a uma toesa do solo com a acumulação das neves, para ir
desemboscar aquela caça fantasma na floresta, se ela ali estivesse. Foi nesse instante
que discerniu uma agitação na zona de sombra projetada junto ao pequeno bosque.
Saindo cautelosamente de seu abrigo, o animal apareceu. Sua silhueta parecia imensa,
destacando-se contra a neve. Avançava com passos hesitantes, aspirando o ar. Atrás
dele, alguma, coisa se moveu, e um alce de menor porte surgiu na sua esteira.
— Dois! São dois! Uma fêmea e seu filhote!
Começaria pelo adulto. Depois pensaria em garantir a outra presa.
Aproximou-se da beirada de madeira contra a qual pretendia apoiar-se.
O que lhe picava o rosto eram gotas de suor geladas. Sua língua estava tão seca,
tinha tanta sede, que agarrou um punhado de neve e o levou à boca. A dor causou-lhe
um choque e depois lhe fez bem. Seu espírito desanuviado permitia-lhe raciocinar.
Devia ter gestos lentos, precisos, e não podia tremer.
Calculara que àquela distância tinha ainda uma chance de atingi-lo. Mas eis que,
talvez alertado, o animal agitou-se e tomou alguma distância, depois começou a
correr.
Sobre a neve dura, o alce se distanciava como que galopando, e o eco de seus
cascos, diminuindo e abafando-se, escandia a louca decepção de Angélica. Agora não
podia mais atirar da plataforma. Era muito longe.
O menor, que tentara seguir a corrida da mãe, pareceu hesitar e parou. Decidiu
tentar o tiro. Tentar ao menos atingir aquele.
Subitamente o adulto voltava a galope. Angélica, que se preparava para mudar de
lugar para visar melhor o filhote, não compreendeu inicialmente a direção tomada por
aquela massa em movimento, uma sombra negra sob o luar. Vendo-a aumentar,
compreendeu que o animal se reaproximava e pôs-se prontamente em posição à beira
da seteira.
Quando ombreou a arma e pôs o dedo no gatilho, sentiu que aquele dedo em
repouso aderira à placa de aço e que deixava, ao levantá-lo, um retalho de carne. Mal
percebeu o ferimento. A dor nada era naquele momento crucial.
Desejava deixar o animal aproximar-se o máximo possível, pois ele parecia
impelido como uma bala na direção do posto.
Mas, vendo-o diminuir, a corrida e depois parar e farejar o ar, virando para a direita
e para a esquerda um perfil papudo com um longo focinho caprino, não quis arriscar-
se a vê-lo partir numa outra direção e atirou.
Reunindo todas as suas faculdades de visão, de precisão e de instinto, visara a
cernelha para atingir o coração, pois temia que a cabeça pequena e móvel fosse um
alvo menos seguro.
Quando olhou, em meio ao estrondo dos ecos do tiro, repetido de maneira infinita
até os últimos cimos curvos dos montes Apalaches, o animal continuava de pé.
Recarregou apressadamente, não sabendo com que dedos podia realizar os gestos
necessários, pois não os sentia mais.
Mas quando, tremula, de impaciência e.de ansiedade, levantava a arma para mirar
novamente, não viu mais o alce. Em Seu lugar havia um montículo negro sobre a
superfície lívida da extensão nevada. O filhote fugira e se refugiara, ao abrigo do bos-
quezinho.
O animal caíra fulminado. Apenas a pressão de seu corpo repartida pelas quatro
patas dotadas de cascos flexíveis, uma base larga e preênsil como ventosas, o
mantivera de pé por alguns segundos após sua morte. Depois desmoronara
pesadamente.
Uma espécie de embriaguez de alegria invadiu Angélica, diante do efeito de uma
vitória tão completa e cheia de segurança de vida mais embriagadora ainda. Para lá do
corpo do animal morto, era o inverno vencido.
Despencou pelos degraus das escadas do sótão, atravessou cómodos e corredores
quase sem tocar o chão.
— Consegui! Consegui!
Jogou-se ao pé da cama, rindo e soluçando, e apertando com os braços o corpo de
seu morto-vivo.
— Consegui! Consegui! Oh, meu caro padre, obrigada. Estamos salvos! Estamos
salvos!"'
— Trouxe o animal?
Ele a empurrava, e ela quase caiu ao pé da cama.
—Trouxe o animal?... Não se deve abandoná-lo aos lobos!...
Ela soltou um grito. De revolta, de esgotamento... de consternação, enfim.
— Ah!... Não me deixa respirar... tomar fôlego!... Os lobos, você diz?... Os lobos!
Meu Deus!...
— Se tiverem tempo de chegar^não lhe deixarão nada... Apressese, mulher tola!
Eles não estão longe, eu os ouvi!
As luzes, que julgara ver à fímbria da floresta, seriam os olhos deles? Não. Ele
simplesmente queria a sua morte, que mergulhasse novamente naquele frio glacial
para mocrer. Não, não aguentava mais! Amanhã iria buscar o animal.
— Apresse-se, apresse-se!... — repetia ele. — Cuidado com os lobos... Leve uma
tocha, que é a melhor arma. E uma pistola de dois canos, se tiver uma preparada.
Senão, a tocha. Apenas a tocha. Pegue um trenó selvagem ou um pano grosso, uma
coberta para puxar sua caça sobre a neve... pegue uma tira de pano para amarrar o
animal, é melhor do que cordas, pois elas são muito rígidas... correias para içar a
carga. Vá! Vá...
— Não conseguirei.
— Vá! Estou lhe dizendo! O tempo está passando!
A pistola de dois canos? Não havia nenhuma em condições de funcionamento.
Na sala grande, ocupou-se da tocha. Pegou uma comprida como um círio e bem
embebida e foi acendê-la na lareira do quarto comum. Reassumira seu autocontrole,
se se considerasse que uma fervilhante cólera interior pode gerar algumas vezes o
sangue-frio distraindo o espírito, com seu domínio, dos problemas insuperáveis do
momento. Estava muito calma agora.
Perguntara-se algumas vezes se poderia-odiar o jesuíta que os prejudicara tanto.
Mas agora sabia que o odiava com todas as forças.
Estava furiosa contra ele, aquele homem, aquele intruso, por causa da sanha com
que a empurrara, gritando: "Apresse-se, mulher tola!"
Era preciso reconhecer que a maneira como se lançara sobre ele chorando de alegria
vazava-se no delírio mais imbecil e mais deliquescente, e que era imperdoável ter-se
deixado levar àquela histeria e ter esquecido a irrupção possível dos lobos num lugar
de caça.
Ocupada com sua vindita, ordenou mentalmente, com uma rapidez inigualável, as
diferentes fases da operação que se anunciava. E em primeiro lugar precisava
desprender a porta, principal, pelo menos abri-la. Fora de cogitação içar o alce morto
à plataforma, e para introduzi-lo pelo alçapão pequeno, teria de cortá-lo antes, o que
lhe seria impossível fora da casa. Só tinha uma solução: pôr o alce abatido naquela
sala, introduzindo-o pela porta.
Essas diferentes possibilidades apresentavam-se ao seu espírito numa velocidade
vertiginosa, pois tinha de decidir sem demora.
Por sorte, os esforços que despendera para desprender a porta, na noite em que
encontrara o "cadáver" na soleira, surtiram seus efeitos. Os gonzos, fechaduras, barras
de ferro, funcionavam bem. Untara-os com um pouco de geléia de líquen. Teve
apenas de dar algumas pancadas com pás e picaretas de quebrar gelo para abri-la
mais.
A trincheira diante do posto estava coberta de uma fina poeira raspada pelo vento na
superfície da neve endurecida. Sobre essa neve, que parecia polida por uma plaina,
aquela espécie de trenó de couro não curtido, no qual os iroqueses lhe haviam enviado
o Padre d'Orgeval, aberto em toda a sua largura, deslizaria facilmente.
Com a tocha em punho, munida de um saco cheio de rolos de correias e tiras de
pano, arrastando atrás de si o trenó emba-raçante, içou-se para fora da trincheira, e,
quando estava conseguindo galgá-la, um uivo suave elevou-se aparentemente bem
próximo.
Não tivera tempo de pôr as raquetes, mas seu uso na neve endurecida era inútil e
teria atrasado sua caminhada.
O alce fêmea continuava ali, caído. E em volta da forma abatida, o menor girava em
passos cautelosos rias longas patas filiformes. Depois endireitava-se, tremendo da
cabeça aos pés e olhando a sua volta como se todas as saídas estivessem fechadas à
sua fuga. Angélica parou e plantou á tocha no solo. O terror do jovem animal era tal
que sua chegada pesada e ruidosa não conseguira fazê-lo afastar-se do cadáver do
outro. Atirou à queima-roupa. "Dois", pensou, vendo-o cair perto da mãe. "Com isso
estamos garantidos; sobreviveremos até a primavera."
Foi então que ouviu como que o sussurro de uma maré avançando, um barulho feito
dê marteladas pequenas e continuadas, e percebeu os lobos que vinham a galope da
orla da floresta.
O tiro tinha-os imobilizado apenas ligeiramente. Eles retomavam sua corrida em
direção à presa entrevista, parecendo uma vaga de espuma cinza rolando para ela,
pontilhada pelas luzes douradas de seus olhos. Não se deixou impressionar por sua
volta furtiva e rápida.
— Tarde demais, meus bons amigos — disse-lhes. — A carne vai ser minha.
Apanhou a tocha e colocou-a na dianteira do alce abatido, criando um círculo de luz
que manteria a distância as feras esfomeadas, mas receosas do fogo do homem.
Depois recarregou o mosquete, colocando-o ao alcance da mão.
Enquanto vigiava incessantemente, para lá da luz, o bale enervado e mudo dos
lobos, cujas idas e vindas se cruzavam e entre-cuzavam numa hesitação febril, ela
empurrava, puxava, sacudia sobre o trenó o corpo enorme do alce, agarrando-o como
lhe era possível, pelas patas, orelhas, acreditando num dado momento que o gelo lhe
soldara o flanco ao solo. Manejou a faca e o machado freneticamente, e desprendeu-o
bem depressa, amarrou-o de qualquer jeito com as tiras de bandagem que ele
recomendara como preferíveis às cordas, içando por cima mais facilmente o corpo do
filhote e fixando a tocha na retaguarda sob o peso dos corpos dos animais; còm o
mosquete atravessado sobre o trenó, atrelou-se às correias de couro e conseguiu abalar
sua curiosa equipagem. Uma vez a caminho, o gelo sobre o qual se deslocavam
tornava a tarefa fácil. Andava tão depressa quanto podia, quase correndo, adivinhando
que os lobos se lançavam em seu encalço, retidos todavia pela chama da tocha na
retaguarda e pela chuva de fagulhas que chovia sobre eles a cada solavanco. Mas a
fiel amiga subitamente vacilou. Angélica não teve tempo para deter o trenó e
precipitar-se para trás para pegá-la, antes que ela caísse na neve, com o risco de
apagar-se.
O que provocara a queda da tocha fora o deslizamento do filhote mal arrimado, que
caíra do trenó e que ela percebeu, felizmente, a menos de dez passos. Incidente que
começara na sua primeira fase por provocar o recuo dos lobos, medrosos de todos os
ruídos, de todos os movimentos insólitos.
Ainda dava tempo. Com a tocha nas mãos, Angélica correu para pegá-lo e colocá-lo
novamente no trenó, mas tropeçou e caiu.
Quando se levantou, os lobos estavam bem perto dela, do outro lado do animal e
prestes a enfiar-lhe as presas.
Agitou a tocha com frenesi, gritando: — Para trás! Para trás!
Mas ele se recusavam a recuar, com as patas agarradas ao solo, a espinha abaixada
ao mesmo tempo para a esquiva e para o salto para a frente. E ao se inclinar para
apanhar a pata do filhote de alce e puxá-lo para ela, viu, quase ao nível dos seus, os
olhos dos lobos, que Honorina amava tanto, e que lhe pareceram menos
fosforescentes do que ao longe nos bosques, mas apenas brilhantes, mais meigos
ainda do que os dos cães, quase humanos e como que suplicantes, ávidos e tristes. Viu
como estavam magros e eram pouco numerosos no total, cinco ou seis, submetidos
como ela à provação infernal que ameaçava suas existências: a fome.
Não tinham ferocidade. Era ela a mais feroz, não querendo deixar nada de sua presa.
"Vou deixar-lhes o filhote", pensou, "devo fazê-lo, devo."
Começou a recuar lentamente, de joelhos, continuando a brandir a tocha para impor-
lhes respeito pelo tempo que pudesse.
— Deixo-lhes o filhote — gritou-lhes.
E dessa vez eles se sobressaltaram e deram um pulo para trás, ao ouvir aquela voz
humana que se erguia, surpreendentemente clara e poderosa, no ar gelado. "Deixo-
lhes o filhote... porque têm fome... e porque somos irmãos... irmãos."
"Fome, fome, fome!... Irmãos, irmãos, irmãos!...", repetiram os ecos intermináveis
do país do cristal. Chegara ao trenó e permanecia de joelhos, o que era mais perigoso
do que ficar de pé.
Era para permanecer ao nível de seus olhos, e, enquanto ela os fixou com o olhar,
eles não se moveram. Apenas quando se levantou foi que pôde vê-los aproximarem-se
do filhote de alce, duvidando ainda de sua boa esmola, e depois se lançarem voraz-
mente a ele.
Outra vez, Angélica atrelou-se aos arreios de couro com uma energia redobrada. Um
leve declive facilitava sua corrida para o forte, e sua carga a aco"mpanhava sem
dificuldade, trepidando e raspando ao passar por asperezas com um ruído repercutido
que lhe enchia os ouvidos. Próximo ao final, a tocha, mal-equilibrada, caiu, rolando
sobre a neve e apagando-se com crepitação. Preferiu hão parar. Voava, sendo às vezes
ultrapassada pelo trenó.
A sombra do forte mergulhou-a na obscuridade. Dificuldades surgiram. Havia
barrancos nos quais caiu. A carga virava. O animal se deslocava. Empurrava-o mal-e-
mal sobre o trenó e refazia os nós com dedos inexistentes.
Chegando finalmente à beira da trincheira, derrubou sua carga para baixo e saltou
por sua vez.
Perguntava-se incessantemente se os lobos, depois de darem cabo prontamente de
sua magra ração, não a seguiriam. Levantando os olhos julgou distinguir um lobo
maior, mais magro e mais velho que os outros, inclinado e apontando o focinho
pontudo enquanto ela tentava empurrar a porta para introduzir na sala o corpo do
enorme alce.
Estava ali debatendo-se naquele buraco com aquele animal do tamanho de um
cavalo que, ao cair, havia prendido o mosquete, e a porta nada de se abrir. E o lobo
ali, olhando para ela.
Fantasmagoria! Muito tempo depois, a lembrança do lobo de focinho comprido e
dos olhos oblíquos e humanos, dos olhos tristes, sonhadores e todavia cheios de
interesse, por seus gestos, aquele lobo que talvez não tivesse visto, yiria colocar um
bálsamo agridoce em seu coração. Ela se lembraria que murmurara com os lábios
rachados: "Eu lhe suplico! Eu lhe suplico!..."
Contaria às crianças que o eco dos lugares perdidos de Wapas-su desaparecido
cantara: "Nós somos irmãos... irmãos... irmãos!"
E que a passagem do alce através das portas e do sass obscuro do fortim era
exatamente igual a um monstruoso parto, do quaí ela tivesse sido a parteira
minúscula, como no conto de Gargân-tua. Isso era uma coisa que os faria rir e bater as
mãos, lançando gritos agudos de vingança e alívio provocados pelo aspecto cómico
do trágico.
"Meus filhos", diria, "o alce finalmente ali estava na sala do forte. As duas portas
estavam fechadas. Nem os lobos, nem ninguém podia vir tirá-lo de nós. Tínhamos
carne daí em diante. Carne, até a primavera!"
— Dei-o aos lobos — declarou-lhe com ar de desafio —, dei-lhes o filhote!...
O homem deitado dirigia-lhe um olhar zombeteiro, parecia-lhe, como se sua
excitação lhe parecesse pueril.
— Pela manhã vão ver se eles deixaram os cascos. Pode-se fazer uma boa sopa de
cola, muito nutritiva, como último recurso... E agora é preciso destrinchar o animal...
Não se deve esperar — disse, num tom impaciente, como se previsse a revolta de sua
lassidão. — É preciso retirar as vísceras, que podem estragar as partes sadias, cortar a
língua, separar os miúdos, o fel, a bexiga.
Tem um avental grande, de couro?

Ele não parou durante toda a noite de indicar-lhe as etapas do trabalho. Ela acendera
um fogo bem alto na outra sala, dispondo ali todos os seus caldeirões, pratos,
escudelas. E vinha perguntar-lhe, descabelada e com as mãos ensanguentadas:
— E agora?
Ele dizia:
— Pegue uma serra, um machado, um cutelo. Serre, corte, raspe,
triture!...
O que a surpreendeu muito foi descobrir que não se tratava de uma fêmea, mas de
um macho.
— Como se explica que não seja uma fêmea?
— Porque é um macho — retrucou ele, sempre com aquela careta que ela julgava
ser um sorriso zombeteiro.
Ele era exasperante, não tinha qualquer consideração pelo estado de fadiga no qual
ela se encontrava e que a tornava meio atoleimada.
— Um filhote o acompanhava.
— Não era um filhote, mas um alce provavelmente novo, magro e de menor
tamanho que o ancestral.
Ele lhe dava instruções precisas para retirar o coração, um prato especial.
— Ele não tem coração — lançou-lhe ela. — A bala estourou-o.
— Você queria visar o coração?
— Sim.
— Só uma bala?...
— Sim.
— A que distância?
— Ao alcance de um tiro.

Sempre aquele brilho de ironia.


Só percebeu a chegada do dia e que já estavam no meio da manhã quando viu
Carlos Henrique diante dela propondo-se a ajudá-la, enquanto os dois pirralhos,
vestidos com roupas limpas que o menino os ajudara a vestir, começavam a chafurdar
no meio dos quartos de carne e a se interessar pelas orelhas do.alce e por seus grandes
olhos extintos sob cílios semelhantes a escovas. Não tinham o sentimentalismo de
Honorina, que teria dito: "Pobre alce!"
— Dar-me-á ao menos algum tempo para cuidar de meus filhos e preparar-lhes um
caldo? — gritou a seu atormentador e guia no corte da carne.
Ele perguntou-lhe se ela colocara os pedaços principais de carne envoltos em peles
ou em cascas de árvore no gelo, consentindo finalmente em que interrompesse o
trabalho.
Mesmo assim, ditava-lhe a receita do caldo, os pedaços que ela devia usar, era a
receita de sua "Tia Nenibush", disse-lhe, e Angélica começou a considerá-lo um
loucov
Ou então era ela que estava ficando louca por ter respirado aquelas exalações de
sangue e de entranhas quentes. Estava ao mesmo tempo enojada e superexcitada.
Deu de beber às crianças, e sua alegria era tanta que se esquecia de seus membros
doloridos e das horas de provação. Bebeu por sua vez, julgando que iria desmaiar de
tanto bem-estar. Ainda não era hora para isso. Preparou para ele uma tigela do divino
e quente néctar e, embriagada como se tivesse, em vez de caldo de carne, bebido um
cálice cheio de vinhos capitosos, entregou-o a ele. Sustentando-lhe a cabeça, fê-lo
beber em pequenos goles. Ele se calava Ela pensava que, depois do alce, depois de tê-
lo acomodado um pouco, seria preciso renovar-lhe as compressas.
— O menino já me dispensou alguns cuidados. Eu posso esperar. Repouse, senhora.
— Realmente. Você me concede um pouco de repouso?!... Não esperava tanta
bondade de sua parte — ironizou ela.
Dirigiu-se cambaleante para a lareira, surpresa com seus gestos, mas encantada, pois
era vida que voltava para ela, com agressividade, e o raciocínio, reações de pessoa
viva e, não mais semimorta. Era sinal de que a ceifeira não os alcançara. Oh! Obri-
gada a você, jesuíta! Caro mensageiro da noite e dos iroqueses. Ele era destestável,
mas era um boa coisa ser capaz de irritar-se contra alguém. A vida voltaria a ser
cotidiana, os gestos se tornavam seguros, os gestos daqueles que têm com que se
aquecer e se alimentar sobre a terra.
Não acontecera nada. Olhando para o leito, ela se perguntava ainda o que fazia ali.
Ele tinha um olhar muito azul.
Duas luzes puras que emergiam daquela cloaca cinza na qual se perdia seu olhar
habitual Sua voz, novamente longínqua, fraca e hesitante, se elevou.
— Creio dever apresentar-lhe minhas desculpas, senhora, por minha falta de
civilidade. A caça passava ao seu alcance. Os segundos eram preciosos.
— Isso não era motivo para me insultar, como fez. Você, que é a causa de nosso
estado miserável, meu e dessas pobres crianças, você, que, mesmo morto, continuou
sua obra de destruição, você, a quem devemos a perda de tudo o que havíamos
sonhado, concebido, construído, edificado, com tantos esforços e sacrifícios aqui!
Tomou fôlego e, como ele continuassecalado, deixou fluir sua onda de cólera.
— E lhe informarei em primeiro lugar que tive razão em não me lançar do telhado
onde me encontrava empoleirada para trazer para dentro aquele animal enorme. Não
poderia nem arrastá-lo até o posto nem subir ao teto e entrar na casa. A porta estava
fechada... Não seria você quem poderia me ajudar! Nem nenhuma dessas frágeis
crianças! Você não sabe de nada!... Você me repugna. Não passa de desprezo,
orgulho, egoísmo... Julga que me diverte curar suas feridas- úma a uma, esgotar-me
para devolver-lhe a vida, a você, a quem injustamente devo tantas desgraças, tantas
derrotas, mortes e desastres? E ainda por cima me insulta! Ah! Como você odeia as
mulheres!
Via-lhe a face" empalidecer e o olhar turvar-se, mas não conseguia refrear suas.
palavras. Já estava na hora de ele ouvir aquelas verdades de sua própria boca. E azar
dele se reassumia sua aparência de tronco morto e apodrecido, abatido sobre a terra
que vai absorvê-lo e enterrá-lo. Era isso mesmo o que ele era.
Quando ela se calou, ele falou entretanto, e sua voz continuava inteligível, apesar de
lenta e rouca.
— Tem razão, senhora, eu lhe devo mil desculpas. O trato com os bárbaros torna as
pessoas grosseiras, e toda a vilania, toda a lama que permanecem no fundo dos
corações dos homens emergem à superfície naquele que não possui uma alma
suficientemente forte para resistir a esse rebaixamento. Perdoe-me, senhora.
Repetiu várias vezes, num tom de súplica intensa: "Perdoe-me! Perdoe-me!", e
calou-se.
Essa súbita humildade fez ceder sua cólera, que se apagou como a chama de um
fogo de palha, deixando-à completamente sem forças, o que a fez apoiar-se à parede.
— Não sei o que me deu — reconheceu —, para gritar assim e perder a cabeça,
depois de ter abatido o alce... Fiquei enlouquecida... Mas não sei se era de alegria, de
reconhecimento, da embriaguez de vitória...
— Nossos corpos são fracos para as correntes que os atravessam — disse ele. — Há
coisas enterradas que subitamente saem como cóleras ou desesperos de crianças que
jamais teriam sido expressos. A loucura se apodera de nós quando percebemos que
estávamos armados para a vitóra, mas que não estávamos ainda preparados para ela.
— Eu não estava pronta para viver um instante tão sublime — disse ela, com o
coração pulsando ainda com uma emoção que não conseguia nem controlar nem
explicar.
— Estamos prontos para o que devemos viver — respondeu ele —, mas nem sempre
é o que havíamos previsto. Daí nosso desnorteamento...
Sua voz baixou.
— Deus sabe que eu não estava pronto para nada do que me dispus a viver. Tudo foi
surpresa.
Depois de ter assim falado com uma clareza e uma lucidez que não deixavam de ser
estranhos, vindos dele e naquele lugar, calou-se novamente e pareceu apagar-se e
desaparecer, como se desertasse do ser vigoroso e decidido que o habitara por
algumas horas.
Via-o tão pálido, com as pálpebras azuladas e fechadas, o ar contrafeito, que
compreendeu que o esforço feito por ele para levar a bom termo a batalha do alce o
aniquilara. Ele reunira suas últimas forças. Pronunciara uma última palavra: "Perdoe-
me". E depois, expirara.
Foi para ela um choque supremo. Ele estava morto. Dessa vez, estava morto de
verdade.
Caiu de joelhos junto à cama, invadida por uma terrível decepção, que apagava a
exaltação da vitória.
"Carne até a primavera."
Seria preciso novamente ficar sozinha. Ele estava morto. Ficaria novamente sozinha
com as crianças.
Pousou a fronte sobre a mão inerte e pôs-se a soluçar.

Foi o balbucio das crianças que a despertou. Dormira tão bem que não compreendia
muito bem onde estava. Tinha sobre os ombros uma coberta de peles. Adormecera de
joelhos, com a testa apoiada à mão do morto.
— Quem colocou essa pele sobre mim? — perguntou a Carlos Henrique, que estava
de pé ao seu lado.
— Ele! — respondeu o menino, apontando para o homem deitado.
Não estava, portanto, morto. Essas ressurreições e desaparições tinham algo de
esgotante.
Acabava de se perguntar .se não fora visitada por um "verdadeiro" morto que, por
instantes, parecia morto e em outros voltava a habitar-lhe o corpo. '
A mão cerúlea era bem a mão de um morto. Examinou-a. Era uma mão fina e longa
que permanecia aristocrática, apesar da deformação dos dedos cortados e das unhas
arrancadas. Acariciou-a várias vezes. A mão permanecia gélida. Não se reaquecera
nem ao calor de sua fronte.
— Por que você chorava? — perguntou uma voz.
— Quando?
— Antes de adormecer.
— Porque julguei que você havia morrido. Respondia àquela voz como à de um
fantasma..
Mas sentiu estremecer a mão que segurava entre as suas, e ele exclamou:
— Você lamentaria então minha morte!? meu fim? Eu, seu pior
inimigo?...
Ela continuava, sem o perceber, com a face apoiada,à sua mão, espreitando-lhe o
estremecimento.
"Que força existe nele!", pensou rememorando aquele instante em que ele dissera:
"Aproxime-se! Venha! Venha mais para perto!" E em que a pegara com mãos que
pareciam garras e, à força, apoiara a cabeça dela contra seu ombro comunicando-lhe sua
força, ele, um moribundo, a força para se levantar, sair e matar o alce.
Ficou muito tempo apoiada, de joelhos, como quando dormira aquele sono reparador,
e depois, levantando a cabeça, sorriu. Teve a impressão de que os lábios lhe devolviam o
sorriso. Uma trégua seria possível.

CAPÍTULO XIX

A cumplicidade de náufragos desenganados

Ela reconhecera ser ele Sebastião D'Orgeval, declarado morto havia dois anos,
martirizado pelos iroqueses. Convencer-se disso iria exigir-lhe mais tempo. O passado
edificara situações e imagens e tudo isso se esboroava diante da realidade,
recompondo-se depois com brutalidade. O Padre d'Orgeval estava morto, e aquele que
ali estava era um impostor. Ser-lhe-ia preciso esperar para obter resposta às perguntas
que colocava a si mesma. Uma febre muito alta apoderara-se do doente, e,
examinando-lhe as pernas no dia seguinte pela manhã, Angélica notava que uma delas
estava mais inchada, com a pele esticada. O receio da terrível gangrena invadiu-a.
Quando uma coisa como aquela começava, só havia duas saídas: a morte ou a ablação
do membro atingido.
"Não! Não! Isso eu não poderia fazer."
Tinha cortado uma alce inteiro, mas ter de serrar uma perna de um ser vivo, não, não
poderia! Readquiriu sua força interior.
Ele tinha de viver. Eles também. Muitos sinais haviam sido dados. Obstinou-se em
prodigaJizar-lhe todos os remédios de que dispunha.
O espectro da gangrena se afastou. Mas a febre não baixava. Ele se agitava,
lamuriando-se e virando a cabeça da direita para a esquerda e repetindo: "Oh! que ela
se cale!...", e balbuciando o tempo todo frases indistintas, em iroquês.
Quando a febre baixou, .permaneceu prostrado, dando a Angélica novamente a
impressão de que um morto partilhava a moradia, ou pelo menos um ser enfraquecido,
o que lhe era mais difícil de suportar. Pois, agora que havia carne para muito tempo,
teria desejado rejubilar-se e distender-se.
Considerando que talvez fosse realmente o Padre d'Orgeval, o pensamento de que os
índios haviam levado o grande missionário a um tal grau de depauperamento, de
exaustão, mas também, por vezes, de embrutecimento, a atormentava.
A moléstia que o corroía ia além de seus males físicos. Essa força que alguns
momentos irrompia nâo parecia pertencer ao mesmo indivíduo que, abandonando-se
às visões de seu delírio ou do torpor, parecia estar se deixando deslizar para a morte
por covardia.
Teria desejado apagar os vestígios das sevícias que sofrera, fazê-lo voltar ao que era
antes, o grande, o intratável, o intolerante Padre d'Orgeval, que conduzia suas tropas
ao combate brandindo sua bandeira bordada, que se prostrava em preces ao pé do
altar, que odiava a Mulher porque só conhecera mulheres infames e as combatia como
a encarnação do Mal, mas também que sofria as traições de seus amigos, aqueles que
diziam ter o dom da ubiquidade, confessando na Acádia, nos grandes Lagos, em
Quebec, que sabia tudo, articulava mil intrigas e fabricava velas verdes perfumadas
com a cera dos frutos da flor-de-cera.
Certa manhã, enquanto escovava os cabelos das crianças contando-lhes uma
história, sentiu que ele "a observava de maneira consciente, e, voltando-se em sua
direção, viu naquele olhar, novamente lúcido, uma expressão sorrateira.
Esboçava uma espécie de careta zombeteira, que ela julgou vulgar, cuja significação
não poderia precisar, mas que lhe despertou novamente as dúvidas. Aquele que jazia
ali era um impostor, algum explorador de bosques, desocupado, excomungado, bêba-
do, que para evadir-se pegara o crucifixo, a sotaina do falecido Padre d'Orgeval.
Fixava-a com aquele sorriso sardónico, desdentado, o que lhe pareceu muito
desagradável. Não pôde impedir-se de lançar-lhe:
—Quem é você?
A essa pergunta abrupta, ele mudou de expressão e pareceu inquieto.
—Já lhe disse! Sou Sebastião d'Orgeval, da Companhia de Jesus.
E seu olhar vacilou, em virtude de uma tendência a envesgar que se seguira à febre
alta.
_ Não! Não é o Padre d'Orgeval. Ele era um ser de elite. Você!— Você é
desprezível. Roubou seu crucifixo, sua identidade, tudo... Não é ele... Sinto-o.
Aproximou-se do leito, espreitando aquela face estranha, de expressão ambígua e
subitamente angustiada.
— Quem é você? — repetiu. — Não é o jesuíta santo e mártir. Vou desmascará-lo.
Puxou um escabelo e sentou-se à sua cabeceira, sem desviar-lhe os olhos. Estava
decidida a preparar-lhe uma armadilha para confundi-lo.
— Fale-me de sua irmã de leite — disse ela, num tom de conversa.
Ele pareceu perturbado como uma criança com medo de não encontrar a resposta
correta. Ela insistiu.
— Sim, sua irmã de leite... seu nome começa com A, como o da Diaba... Como
poderia esquecer essa criatura do Diabo, Ambrosina?
Sua pele terrosa empalideceu. Seu: olhar turvou-se e ele virou a cabeça. Depois
respondeu, hesitante:
— Não... não era minha irmã de leite... mas... de Zalil.
Depois recomeçou a sorrir com a brusca ironia, continuando, após um breve silêncio:
— Entretanto, a mãe de Zalil foi também minha ama-de-leite antes dele. O filho
mais velho de Zalil, que ela amamentava ao mesmo tempo que a mim, meu
verdadeiro irmão de leite, tinha um pé aleijado... Colocado ao,séu lado, pelo que me
lembro, ele queria matar-me. Disseram-me que fui eu que acabei por estrangulá-lo em
nosso berço comum.
Angélica estremeceu, lembrando-se das palavras que Ambro-sina gostava de repetir
com exaltação e nostalgia: "Éramos três crianças malditas, lá longe, nas montanhas do
Dauphiné".

Voltando à realidade, ela protestou energicamente:


— Tolices! Quiseram persuadj-lo dessa fábula para assustá-lo, escravizá-lo. Que
tenha sido cercado em sua infância por mulheres perversas e cruéis, acredito. Tive
uma amostra disso com sua Ambrosina. Mas que tenha sido feito à sua imagem, não
acredito.
— Com que ardor você me defende!... Mas talvez você tenha razão. Quanto mais
estranho é o nascimento, mais exigente o destino.
— Você foi carregado com um fardo muito grande, padre, e não sem motivos.
— Você poderia expor-me os motivos?
— Não o conheço suficientemente bem. Na verdade ignoro tudo a seu respeito. A
personagem que lhe foi atribuída: o missionário, o guerreiro, o conquistador de
mundos novos para a glória de Deus e do reino, o padre devotado à salvação das al-
mas, era mesmo você?, ou não passava de uma roupagem, um disfarce para um
período transitório? Não teria se tornado jesuíta apenas para poder mais facilmente
tomar seu atalho?
— Que me conduziria aonde?
— Aonde está chegando, talvez.
Ele se debateu.
— Não. Não creio. Não quero aceitar que tantos horrores, tantos atos vis sejam o
caminho de meu destino, desejado por Deus... Seus raciocínios estão fortemente
maculados de heresia. Isso a aproxima de Lutero, que dizia: "Peque, mas peque
fortemente!..."
— Oh! Não me fatigue, por favor. Não estou em condições de discutir teologia. Os
dogmas! A Letra! Armas que matam. Quero dizer simplesmente que é preciso lançar
sobre sua vida um outro olhar... considerá-la através de outras verdades... E que você
deveria parar de se preocupar com o que diz Lutero, Calvino ou São Tomás... Pois
não está apto a decidir sobre o que é pecado ou não!
Ela falara sem refletir. Fora uma troca de palavras súbita, como duas lâminas
brilhantes de duelistas cruzando-se no início de um combate para avaliar suas forças.
Essas últimas palavras fizeram-no estremecer, e ela reencontrou o brilho perigoso de
suas pupilas, cuja cor azul se tornava, com a volta da saúde, mais precisa, mas não se
deixou impressionar.
— Sim! Sim! É assim, por mais jesuíta que seja, e não me fará mudar de ideia. Não
falemos de assuntos lúgubres.
Ele permaneceu estendido por um breve momento e depois lançou o corpo para trás,
mantendo-se rígido e de olhos fechados. Angélica perguntou a si mesma se, sob o
efeito da contrariedade, ele não estaria novamente passando desta para melhor, e
arrependeu-se por ter sido tão ríspida, por não ter tido mais cuidado. Mas quando se
levantava por deixá-lo repousar, ele se ergueu com um movimento ágil e, tomando-
lhe a mão entre as suas, levou-a aos lábios:
— Deus a abençoe! — murmurou.

Seguir-se-ia um período silencioso, atenuado, mas não destituído de vivacidade e de


brilho, tal como os que dispensam as brasas ardentes de um fogo minando sob um
manto de cinzas.
Era na verdade um manto de neve.
E Angélica perdeu um pouco a noção do tempo, dividindo-o bem ou mal entre
noites, em que precisava levantar-se para cuidar do fogo, e os trabalhos diurnos, que
realizava muito lentamente, como se dava conta. Cozinhar, dar banho nas crianças,
escovar-lhes os cabelos, trocar os curativos, distribuir as refeições, pois o dia, tão
escuro e tão pouco diferente da noite, era muito curto. Via-o terminar com prazer,
podendo enfiar-se novamente sob as cobertas. Mais tarde levantar-se-ia para alimentar
outra vez toda a sua gente; seria então o momento de ir para trás de sua cortina fazer
suas abluções e sentar-se diante do espelho para cuidar por sua vez dos cabelos. Mas
algumas vezes sentia-se logo exausta de se manter sentada e voltava rapidamente para
a cama, onde se deixava ficar com um suspiro de bem-estar; o leito, que era quente e
onde se podia distender no repouso, esquecer a fome e as angústias, do dia seguinte,
esse leito levou-os de um dia para o outro do inverno mortal, levou-os ao fundo da
sombra, como uma jangada carregada de homens exangues descendo a corrente de um
rio noturno em direção à luz da primavera.
Colocava em pratos revestidos com estopa úmida pequenas porções de arroz, de
aveia-louca, para germinar dia após dia; esses germes representavam uma defesa
contra o escorbuto, que era ali chamado também "moléstia da terra", sendo tão
ameaçador nas invernadas, quando faltavam víveres frescos, quanto nos navios. Dava
uma colherada todos os dias às crianças; quando quis introduzir-la nos lábios do
"comatoso", ele virou a cabeça, gemeu e depois murmurou:
— Dê-o às crianças. Sou uma boca inútil. Por que me salvou? Por que não me
comeu?...

Tudo havia mudado.


O deserto branco afrouxava seu abraço.
A noite, às vezes, acordava surpresa por sentir a doçura de momentos em que,
finalmente, a angústia, ancorada no fundo de seu ser, se dispersara. O conforto que
experimentava, do calor, do repouso concedido a seus membros enfraquecidos, do
sono das crianças, permitia-lhe relaxar, desfrutando daquela calma em que todas as
coisas tranquilizadoras estavam enfim nos devidos lugares.
A claridade dos carvões abrigados sob as cinzas lançava reflexos róseos e dançantes
na vigas baixas do abrigo. A presença humana ao seu lado deixara de causar-lhe um
mal-estar ambíguo, em que se misturavam o medo que se ligava a um nome inimigo e
o receio que sentia permanentemente de vê4o morrer. Suas rea-ções primeiras haviam
se acalmado. Restava apenas a obsessão de que, a todos os fracassos que a ele devia,
se juntasse ainda o de vê-lo sucumbir. Teria visto esse fim como o anúncio inelutável
do deles. Censurava-lhe antecipadamente esse último golpe. Até o dia em que isso
também se evaporou, e compreendeu que não queria que ele morresse porque se lhe
afeiçoara. No silêncio da noite, escutava a respiração de seu morto, entrecortada em
alguns momentos pelo estertor ou por palavras desconexas. "Sede!... Sede!...", ou
então: "Ah! que ela se cale!... que ela se cale!..." Era uma voz humana, em resposta ao
grande silêncio que estivera prestes a enterrá-la nos limbos da loucura. Suas sensações
aguçadas percebiam tudo a respeito daquela existência que tomara lugar ao lado deles
em seu túmulo. Em palavras breves e sussurradas teciam-se uma cumplicidade, uma
aproximação de cegos procurando-se em sua obscuridade, náufragos, únicos
sobreviventes na superfície do mar, chamando um ao outro nas brumas.
— Está dormindo?
— Não.
— Sente dores?
— Não.
Uma vez ele respondeu:
— Não sei... Há muito esqueci o que é viver sem sofrer...
E começou a discorrer em seu tom de professor catedrático
sobre os princípios expostos na Practica Inquisitionis, um dos célebres manuais da
Inquisição, escrito por Bernarel, que foi o Grande Inquisidor de Toulouse durante
quase vinte anos, no início do século XII. Citou "Faudencia de tormento" como
método de tortura utilizado de modo corrente. Nela, também, dizia, como que dando
continuidade a uma conversa anterior, o sangue não devia verter-se de maneira a
acarretar uma morte demasiado rápida. Eis por que se ativeram a três pontos
principais: a roda, o cavalete e o interrogatório pela água. O fogo vinha em seguida,
para a purificação.
No início, julgando que estivesse delirando, deixou-o prosseguir seu sinistro
discurso, mas, como ele parecia esperar uma resposta ou comentário, intimou-o a
meia-voz:
— Cale-se. Esses assuntos podem alimentar seus pesadelos. É noite. Durmamos.
— Não é noite, mas dia.
Sem se mexer e sem mesmo reabrir os olhos, ele sempre sabia se do lado de fora era
dia ou noite, se a neve caía ou se o céu estava limpo, se o vento ia soprar ou se a
geada ia aumentar.
Isso ajudou Angélica a dar à existência uma estrutura mais de acordo com a
disciplina, que ajuda os mortais a conduzir a vida, de um dia a uma noite e de uma
noite a um dia, para reuni-los em meses, depois em anos. Sendo o dia destinado a se
ficar de pé e aos trabalhos, podia resistir melhor à tentação de se estirar e se refugiar
no sono, tentação que a ameaçara quando, não podendo mais agarrar-se senão a vagas
claridades que não sabia como interpretar, se deixava dominar pela influência da
noite.
Seguir-se-iam pois as horas e os dias, as semanas, quase os meses do coração do
inverno, seu núcleo duro e negro, cortado de remissões ensolaradas, mais perigosas
que as tempestades uivantes, que aquelas pesadas e inesgotáveis quedas de neve, um
período interminável e muito breve, mistificador como úmTlabirinto, obscuro e
opressivo como um subterrâneo por onde se rateja sem esperança de algum dia
encontrar a luz solar na outra extremidade, pontuado de momentos de encantos, de
uma doçura e de uma ternura infinitas, que nasciam daquela pegajosa intimidade do
inverno, envolvendo de neve algodoada dias em qué o sono tinha tanta importância,
noites em que, consciente da vacuidade do mundo enfim deserto, o pensamento se
comprazia em eclodir mais livremente, pois amiúde não souberam se era dia ou noite,
um tempo fora do tempo, e em que Angélica sentia o estranhamento de ser conduzida
por forças vitais de uma espécie desconhecida," vindas para ajudá-los a atravessar o
inverno num estado de graça semelhante ao que se deve experimentar quando se anda
sobre as águas e que, pela duração de sua salvação, os libertava do peso e da
impotência que oprimem os humanos.
"Como fomos felizes!", dir-se-ia ela um dia.
Essas palavras lhe viriam aos lábios quando se voltasse para aquele tempo. Tudo
tinha um sentido. Tudo era de uma leveza, de uma simplicidade, de uma clareza
incríveis: os gestos, os silêncios, as palavras e até essas praias cegas do sono.
Narrativas, confissões, confidências, discussões, ensinamentos, tudo foi trocado entre
eles.
"Queria não me esquecer de nada", dizia consigo Angélica, receando o
enfraquecimento da memória.
Imaginava-se mais tarde com uma pena na mão, diante de uma janela ensolarada,
aberta sobre os murmúrios de um parque, ocupada em redigir suas "Crónicas da
jangada de solidão", em que duas vozes subterrâneas, abafadas pela noite e pelo peso
do inverno, dialogavam tendo por único eco um balbucio de crianças ou o crepitar do
fogo na lareira de seixos, em que as respostas tinham sido dadas pouco a pouco sobre
ele, seu passado, mas também sobre o futuro, os destinos, as revoluções dos tempos e
dos espíritos, e até aquela pergunta que um dia se colocara: "E eu? Quem sou eu?", e
à qual Ruth, a maga de Salem, replicara: "Alguém um dia lhe dirá".
Para o jesuíta o desenvolvimento da crónica seguia a evolução lenta e anárquica de
sua volta à saúde e, numa certa medida, à razão. Dir-se-ia que esta emergia, aos
arrancos, de uma ganga de embrutecimentos, cujos estupores profundos da alma o
haviam ferido, acrescido do efeito mais material de revoadas de pauladas, de
preferência no crânio, com as quais, segundo seu relato, fora cotidianamente
cumulado em seus anos de cativeiro. As palavras que lhe escapavam às vezes, como
que por descuido, retraçavam esse calvário. Por exemplo, a propósito de discussões
para tornar saborosa a sagamité, o mingau de milho ou de trigo-sarraceno, explicou:
— Oh! Minha Tia Nenibush me cobria de pancadas, mas era uma ótima cozinheira.
Conhecia pelo menos oito receitas diferentes para preparar o trigo-sarraceno.
— Quem era sua Tia Nenibush?
— Minha ama iroquesa.
No início, suas voltas à superfície tomavam um aspecto estranho. Como se tivesse
se esforçado para reunir dentro de si os pedaços de uma personagem que se
esfacelara, dizia de repente, com sua voz rouca, hesitante e aplicada, de magister
mundano:
— Senhora, gostaria de ouvir-me falar sobre os alces?
— Os alces?
Mas Carlos Henrique, arrastando os gémeos para ouvi-lo, garantia:
— Gosto quando ele conta histórias de bichos, mamãe.
Foi no dia em que Angélica estava fervendo os cascos do filhote de alce que, num
esforço supremo, fora buscar, no dia seguinte à caça, e que encontrara em meio aos
rastros dos lobos, misturados a alguns ossos e pedaços de pele, sobras do festim. E eis
què ele lhe explicava por que, naquela época do ano, não podia ser uma fêmea com o
filhote.
— Ele não tinha chifres — arguiu Angélica.
— O alce macho perde os chifres em dezembro, e eles só começam a crescer
novamente por volta de abril, até se tornar aquele soberbo penacho que, no outono,
aumenta a excitação do cio. Irritado e perigoso, seu chamado faz então ressoar as
florestas.
A fêmea só parirá oito meses depois. Daí por que é impossível encontrar,
nessa"estação, uma fêmea com o filhote.
— Que estúpida! Eu sabia tudo isso, parece-me, mas estava fora de mim...
— Os dois animais, um velho e um jovem, expulsos de seus territórios pelas
intempéries, deviam ser os últimos sobreviventes de um bando disperso pelo frio e
pela fome.
A pergunta que ela fez:
— Como sabia que havia um alce lá fora?
Respondeu irrefletidamente:
— E você? Como soube, numa noite de Epifania, que o Padre Massérat e seus
companheiros morriam sob a neve, a alguns passos de sua casa?
Ele sabia muitas coisas sobre ela, sobre eles. E afinal não havia nisso 'nada de tão
maravilhoso, se se lembrasse a que ponto, durante seus anos de América, a existência
daquele jesuíta estivera mesclada à deles.
Pouco a pouco, começou a esclarecer pontos obscuros.
— Padre — disse-lhe um dia —, nas procissões em Quebec costumam levar, num
relicário, um de seus dedos, ainda que isso não prove nada, pois os canadenses,
missionários ou exploradores de bosques, jamais foram avaros de suas falanges em
prol da salvação dos índios, solícitos em testemunhar pela tortura diante dos pagãos
sua fé cristã e sua dedicação ao rei da França. Mas, no que se refere a você, Sebastião
d'Orgeval, falam de relíquias santas. Você está morto, padre, morto como mártir dos
iroqueses. Está já na lista das beatificações apresentadas a Roma, em breve virá a
canonização. Como se explica a divulgação de sua morte e, além de tudo, há mais de
dois anos já?
Ele fechou os olhos e deixou passar um tempo antes de responder, com um tom de
desprezo:
— Os tagarelas gostam de criar lendas.
— Aquele que levou a notícia não tinha nada que autorizasse a dizer que era um
tagarela, no sentido em que o entende. Trata-se de um de seus irmãos de ordem.
Pareceu-me muito sério e pouco afeito a brincadeiras, o Padre de Marville. Ora, eu
mesma o ouvi afirmar: "O Padre d'Orgeval morreu como mártir. Eu sou testemunha".
E nos descreveu seus suplícios e seu, fim. Acompanhava-o Tahutaguete, o chefe dos
onondagas, que levava a meu esposo, da parte de Utakê, o chefe dos mohawks, um
colar de wampum, avisando-lhe: "O Padre d'Orgeval está morto". Vi o colar e
decifrei-lhe a "mensagem".

O jesuíta soergueu-se na cama, com os olhos faiscando de cólera.


—Ele fez isso! Ele fez isso! — repetiu várias vezes, sem que ela pudesse saber se se
referia a Utakê ou ao Padre de Marville.
— Ele ousou fazer isso!...
Verrumou-a com um olhar feroz.
—O que dizia exatamente esse colar?
—Na verdade, acreditamos nesse primeiro sentido, que confirmava as declarações
do Padre de Marville. Mas as palavras exatas do wampum eram: "Seu inimigo não
pode mais prejudicá-lo".
Viu-o sacudir-se em espasmos e julgou que estivesse sufocando, mas ele ria às
gargalhadas, um riso rouco e desencantado.
—É verdade... Oh! Como isso era verdadeiro!... "Seu inimigo não pode mais
prejudicá-lo."
Voltou-se para ela, perdendo as forças, e deixou-se cair sobre o travesseiro,
murmurando:
— Mas foi por culpa sua, por sua culpa. Sua culpa... tudo!...
Por essas explosões de raiva, compreendia melhor que estava diante de um homem
que vinha perseguindo-os com sua hostilidade havia muito tempo, e que a atacara
pessoalmente.
— Por que tanta animosidade no que se refere a mim, padre? Você não me
conhecia... Jamais me havia visto!...
— Sim, eu a vi.
Ela recebia pois a confirmação daquilo que até então fora apenas uma suspeita.
Adivinhando a que incidente ele aludia, sentiu que não estavam, nem um nem outro,
em condições de abordar com franqueza e simplicidade o tema. Nesse ponto, ele se
chocava contra um obstáculo que o deixava ofegante, como que invadido por uma
angústia enorme, e elá preferia restringir-se àqueles primeiros esboços de
confidências. Preferia que ambos permanecessem nas explicações superficiais.
Adivinhava o mergulho que ele seria obrigado a dar, um dia ou outro, nas zonas
proibidas de seu ser. Pressentia que era de seu dever ajudá-lo nisso, e que somente ela
podia fazê-lo.

Falava de bom grado sobre sua infância. Ela o encorajava. Essa infância parecia
familiar a Angélica, provavelmente por causa das histórias e da pessoa de Ambrosina,
que os aproximava pelo conhecimento íntimo e sem ilusões que cada um deles tinha
acerca daquela criatura.
Infância soturna, dominada pela noite e pelos massacres, ao lado de seu temível pai,
que lhe colocara, ainda muito jovem, um espadeirão nas mãos, abençoado pelo
capelão do castelo, para ir massacrar os hereges das regiões vizinhas.
Nascera pois entre mulheres demoníacas, cada uma delas submissa, de diferentes
formas, ao Maligno.
— Eram todas Liliths, a mulher primeira do pecado, o princípio feminino do Mal.
Desde muito jovem, Ambrosina, encantadora como um anjinho, esmerava-se em
todos os vícios, em especial no da mentira e crueldade.
— E foi esse paradigma de vícios que você nos enviou para alcançar seus objetivos
de abater seus rivais, da baía Francesa!...
D'Orgeval deu um sorriso zombeteiro.
— Um magnífico combate para duas belas mulheres!... Ela não pensava que você
lhe devolveria suas armas: astúcia e impertinência. Você triunfou!
— Não inteiramente, ai de mim! Pois ela tampouco estava morta. Ela voltou para
concluir sua obra.
Mas quando começou a explicar-lhe com veemência o desenrolar dos últimos
acontecimentos, ele demonstrou indiferença. Não parecia convencido de que se
tratasse da mesma Ambrosina, tão perigosa.
Seu espírito parecia detido diante dos primeiros episódios de sua luta. O que
acontecera depois que fora para as tribos iroque-sas não lhe interessava.
Como ele evocasse Loménie, que fora seu amigo dos tempos de colégio, ela se
informou sobre os acontecimentos que o tinham levado daquele rude Dauphiné ao
convívio dos jesuítas, no início da adolescência. Ele falou a esse respeito de boa
vontade.

— Eu tinha um tio, irmão de meu pai, bispo ou cónego, não sei mais, tão feroz em
descarregar a férula da Igreja sobre suas ovelhas quanto meu pai com sua espada
sobre os hereges. Ele pôs na cabeça que eu devia entrar para as ordens, e meu pai
tentou inutilmente demonstrar-lhe que eu era seu único herdeiro, sem conseguir
demovê-lo. Ignoro se, como filho caçula, o eclesiástico queria ficar com uma parte da
herança. Os dois enormes indivíduos lutaram durante dois dias, tanto pelas armas dos
argumentos como por ameaças e alguns socos. Foi minha intervenção que decidiu a
partida em favor do bispo. Consciente, pela graça de Deus, de que tudo o que eu vivia
no domínio paterno não era sadio e acabaria por causar minha perda moral e física,
insisti junto a meu tio em acompanhá-lo. Foi assim que entrei para o Colégio de
Clermont dos Jesuítas em Paris.

Voltou com frequência a seus anos de estudos na adolescência, falando da amizade


do jovem Cláudio de Loménie-Chambord, exceto de seu tempo de noviciado, pois
tratava-se de longos anos de iniciação, vedados ao profano, e que a disciplina da
ordem lhe impunha calar. Voltava depois à infância, à negra infância, mas para
deplorar, dessa vez, a perda daquele estado de inocência quando chega a adolescência.
— As crianças se lembram do inefável. O êxtase é algumas vezes concedido
somente ao inocente. Com que rapidez a cinza e a areia são lançadas sobre seus
sonhos... Julguei reencontrar isso algumas vezes junto ao pequeno Cláudio de
Loménie, alguns anos mais novo que eu. Os caminhos que fui obrigado a tomar em
seguida afastaram-me de sua doçura.

— Eles me quebraram alguma coisa aqui — dizia, apontando o quadril.


E ela julgava que' estivesse falando dos torturadores iroqueses, mas ele se referia a
seus mestres-jesuítas.
— Quebraram não, pior que isso, torceram, até que o ramo
cheio de seiva se tornasse seco e petrificado e incapaz de renascer... Eu era -urna
criança da natureza. Dominado pelas fontes e pelo sangue... As mulheres escapam
com mais facilidade a essas influências. Conseguem conciliar melhor a' lu"z e a
sombra, a harmonia e ó caos... Uma vez mais, quando eu embarcava para a América,
onde me esperava meu antigo condiscípulo Cláudio de Loménie-Chambord, que se
tornara Cavaleiro de Malta, eu alimentava ilusões. A América! Acreditava que, vindo
para cá, a luz estivesse à minha espera. Mais tarde, depois de anos de lutas, eu
continuava esperando encontrá-la. A obra que eu abraçara, e em que fora bem-
sucedido, preenchia minha expectativa!... Via estender-se até os confins dessa terra
selvagem o reino de Cristo, que eu viera trazer para cá. — Ele continuou: — Por isso,
quando soube que um fidalgo de aventuras, que não dependia nem do rei da França
nem do rei da Inglaterra, se instalava nessa no man's land do Maine, nas costas da
Acádia, fiquei imediatamente de sobreaviso. Tomei informações sobre ele. Era um
flibusteiro das Pequenas Antilhas. Mas havia mais alguma coisa. Se eu via nele um
perigo, aquele que ele preparava para mim era de uma espécie desconhecida. Dessa
vez, esse trazia consigo minha perda.
— Creio poder assegurar-lhe que meu^esposo, ao se instalar nas costas do Maine
com cartas de gerência do Massachusetts, ignorava tudo a seu respeito. Ao contrário,
sempre se mostrou disposto a encontrar todo habitante ou missionário da região,
francês, inglês, escocês, para se aliar a ele. Quanto a mim, no início, nem sequer
estava presente nas paragens da baía Francesa.
— Para dizer a verdade, não foi o perigo da vinda dele o que me alertou. A baía
Francesa é um tal cadinho de nações que todos podem ainda encontrar ali o seu lugar.
Mas eu tivera uma espécie de sonho: "Tudo começa. Tudo começa", gritava-me uma
voz na nuvem...

Naquele dia ele se recusou a dizer qualquer outra coisa. Quando fingia não se
lembrar ou estar confuso, ela sabia que nele isso era sinal de uma dor insuportável,
que não conseguia superar com palavras sem desmaiar. Recomendava-lhe então que
tivesse pa ciência, reconduzia-o a questões anódinas, a assuntos menos penosos.
Mas nada em sua vida fora anódino, parecia-lhe.

CAPÍTULO XX

Uma paixão condenada


—Seja como for, eu tinha conseguido até então que os diques não se rompessem —
declarou de repente.
Depois, como lhe acontecia regularmente, deixou passar um longo momento de
silêncio, dando a impressão de que perdera o fio do pensamento ou que adormecera.
Continuou, com uma voz sufocada, monocórdia e por instantes trémula:
— A primeira vez que os diques se romperam... foi naquele dia do outono.. Eu
andava na floresta. A essa altura, Loménie, por ordem minha, devia investir contra o
posto de Katarunk.
"Ele e eu tínhamos feito um acordo de "arrancar sem demora as raízes do invasor,
que prometiam -proliferar.
"Agíamos sem a aprovação de Frontenac, mas não era a primeira vez que meu
amigo de infância e eu fazíamos nossos negócios de acordo com nossas próprias
ideias. Eu o apressara a pôr-se em ação, a fim de chegar antes 'deles', daqueles que
subiam do sul numa caravana... Cláudio atearia fogo no posto, depois prepararia a
emboscada. De minha parte eu me preparava para reunir-me a um segundo
contingente de forças armadas vindo de Trois-Rivieres e de Ville-Marie, assim como
da região do Richelieu. Huronianos e algonquinos, comandados pelos melhores
senhores canadenses que já me haviam acompanhado em minhas campanhas contra os
heréticps da Nova Inglaterra: L'Aubigniere, Maudreuil, Pont-Briand.
"Estava indo pois ao seu encontro, seguro de ter posto tudo em açào para acabar
com os indesejáveis. Mas eu andava como num pesadelo. Pois uma notícia me fora
transmitida: 'eles' subiam com cavalos.
"Não sei por que esse detalhe me atormentava o espírito como uma verruma de
artesão penetrando profundamente na madeira e extraindo-lhe a substância.
"Havia nessa audácia de invadir o centro de uma região até então deserta, não
apenas com mulheres e crianças, mas com cavalos, uma afirmação de não se deixar
deter por nada, uma tranquila segurança de se mostrar finalmente o mais forte, e que
eu sentia como um desafio.
"O pressentimento associado a meu sonho abalava minha convicção de levar aquela
campanha a bom termo, apesar do cuidado que tínhamos tido em prepará-la, a certeza
de que nenhum daqueles estrangeiros lhe escaparia.
"Eu começava a andar num estado desdobrado. Estava ao mesmo tempo com os
estrangeiros e seus cavalos, realizando uma façanha sem precedentes, e com Loménie
e as tropas que os esperavam para trucidá-los.
"A floresta chamejava. Quero dizer, eu a via chamejar a meus olhos. O vermelho e o
dourado das árvores no outono cercavam-me de chamas imóveis, e o calor
incandescente do dia contribuía para essa miragem. Ela era em toda parte a presença
temível. Minha angústia chegou a tal ponto que, no cimo de um promontório, a
cavaleiro de um lago, tive de me deter, a fim de retomar fôlego.
"E foi então que eu A vi. Ela, 'a mulher nua saindo das águas".
"Pronto!", pensou Angélica.
Ele calou-se.
Mas quando ele se calava, ela não procurava romper o silêncio... Menos por
tolerância que por lassidão. Menos por pudor que por estar habituada a esse tipo de
debate. Havia expresso muitas vezes sua defesa quanto a seus direitos, que ela julgava
dentre os mais inalienáveis, de poder, numa cálida tarde de verão indígena,
reconhecidamente escaldante, banhar-se num dos dez mil lagos da regiãodo Maine
americano, região por outro lado considerada tão impenetrável que havia poucos
riscos, num âmbito de milhares de milhas ao redor, de que pudesse ser percebida por
um estrangeiro-, de passagem por ali.
Que isso tenha acarretado toda uma série de dramas, de complicações e até guerras,
que teriam provavelmente-ocorrido cedo ou tarde, mas que encontraram um pretexto
para eclodir, foi o que se encarregaram de fazê-la compreender no decorrer dos anos,
em que vira apresentar-se ao mesmo tempo toda a artificialidade do fenómeno, mas
também sua amplitude secreta, indecifrável para todos ou quase todos.
A vontade de reduzir o caso a suas proporções normais ditou-lhe uma reflexão
muita chã, as únicas palavras que podiam obrigá-lo a reconhecer que ele se utilizara
disso para subjugar os espíritos.
— Não me diga que julgou ter visto realizar-se a visão da Madre Madalena sobre a
Diaba da Acádia que agitava sua grei! Você, menos que ninguém, poderia enganar-se
a esse respeito!
— É verdade — concordou, com uma voz sufocada. — É verdade, jamais tive a
menor dúvida de que não fosse você a mulher demoníaca da visão de Madre
Madalena de Quebec. Ao contrário. Mas eu me escondi. Decidi esconder-me atrás das
mentiras, não porque lhes desse crédito, mas do mesmo modo que o animal em perigo
se camufla. Depois do que acabava de me acontecer, não tinha outra alternativa.

Ele gemeu.
Seu peito erguia-se de maneira espasmódica. Ela se levantou e foi encher uma tigela
com uma bebida quente. Depois, voltando à sua cabeceira, deslizou-lhe o braço sob os
ombros, amparando-o enquanto ele bebia.
— Fale agora, se quiser. Que você queria esconder?
— O que me aconteceu.
— Mas afinal o quê?
— Como vou sabê-lo... A descoberta de paixões desconhecidas? Você não pode
compreender. Um dia eu lhe explicarei tudo... melhor... Como explicar o sentimento
que se apoderou de mim? Mais do que um sentimento, ele exigia que eu abandonasse
tudo, como o jovem rico do Evangelho, que eu me apresentasse diante de vocês,
estrangeiros jurados de destruição, e que reconhecesse: "Sou um dos seus".
"Pior: agindo dessa maneira, entreguei-me, aproximando-me de seu objeto, às penas
de uma paixão que só poderia ser corrosiva e mortal, pois era assim que eu sempre
considerara os transportes do amor, mas que .permanecia, adivinhava-o
antecipadamente, insaciável, fazendo de mim um danado que queimava de um fogo
cujo domínio jamais eu suspeitara.
"Quantas confissões tinham me descrito os mesmos sintomas irresistíveis, e que
deviam ser evitados e combatidos, pois abrem-nos um paraíso, em que se é o único a
penetrar, através de delícias e sofrimentos, que somos os únicos a viver, a dar, e dos
quais, subitamente, me sentia presa.
"Caí fulminado como por um raio. A palavra é fraca. Encontrei-me só. Único em
minha espécie, num mundo povoado de inimigos. O Amor!... Eu compreendia, o
Amor."
— Valia a pena fazer disso um drama tão grande? — disse ela, prudentemente.
— Sim! Pois era a negação de toda a minha vida e, por isso mesmo, minha
condenação.
"Encontrei-me nu, sem sequer a fé num deus qualquer ao qual pudesse oferecer o
sacrifício de minha metamorfose. Devia obedecer à iluminação?
"Não pude fazê-lo. Isso exigia demais de mim. Decidi prosseguir meu caminho na
direção escolhida. Mas, a partir daquele dia, tudo foi destruído. E tudo não passou de
uma lenta e convulsiva queda de todo o meu ser até o fim.
"Contra você e os seus, tentei todos os meus planos. Mandei buscar na França a
súmula do processo de feitiçaria movido outrora contra seu marido..Mas sua vitória
em Quebec suplantou-me em rapidez, e não mesurpreendeu. Eu estava vencido de an-
temão, como, no fundo, sempre estivera. Quando vocês se aproximaram de Quebec,
Maubeuge me exilou."
Deteve-se, depois lançou, num súbito acesso de cólera:
— Sem sua intervenção, eu teria retomado a cidade, e vocês não a teriam
conquistado.
Continuou, num outro tom de voz:
— Maubeuge, meu superior, me exilou. Não sem antes fustigar-me com palavras
duras. Entretanto, o que ele me disse, naquele último encontro, eu já sabia. Eu o
soubera, num clarão, à beira de um lago.
"Meus votos de obediência me obrigavam a me afastar, no momento em que me
sentia mais desprovido... Fui para muito longe, sozinho e sem amigos.
"Perdi meus poderes. "
"Sentia no fundo de mim a covardia, a fraqueza invadindo-me, e o medo de ser
despojado daquilo que constituía minha força dominadora sobre os outros me
atormentava."

Falou pouco dos meses passados nos povoados de um largo setor entre o lago
Frontenac ou Ontário e o lago Huron. O ponto de ligação dos missionários era esse
estabelecimento do Forte Sainte,-Marie, reconstruído no estreito que ligava o lago
Huron ao lago Superior ou Tracy.
Situava-se a meses de navegação do último ponto da Nova França habitado, o
povoado de Lachine, perto de Montreal, de onde partiam, para lá das corredeiras,
todas as expedições para o alto Saint-Laurent e os Grandes Lagos. Fora os homens de
guarnição dos fortes, como do Forte Frontenac, isolados, raros e a semanas de marcha
uns dos outros, e à exceção da passagem de alguns "viajantes" ou exploradores de
bosques, mais ou menos desprovidos de licença, selvagens, nada mais que selvagens.
As missões agrupavam os índios batizados e os catecúmenos de nações iroquesas,
mais ou menos dispersas e aniquiladas pelas guerras com seus congéneres pagãos: os
neutros, os do Erie, os andastes, e também iroqueses das Cinco Nações, convertidos,
perseguidos e expulsos de suas tribos por esse fato. Eles deixavam o vale dos Cinco
Lagos para vir se reunir à sombra dos franceses e dos jesuítas, não somente a fim de
poder praticar sua nova fé, mas também para receber proteção dos militares franceses.
Segundo o que dava a entender, o jesuíta, banido e relegado, parecia ter atravessado
aqueles anos, que se apresentavam como anos ativos de apostolado, num estado de
transes nervosos, cuidadosamente dissimulados aos olhos de seus irmãos de religião,
os outros jesuítas, e de seus ajudantes e servidores franceses. Procurava evitar os
exploradores de bosques e os comerciantes canadenses, recusando-se a tomar
conhecimento de fosse o que fosse que acontecesse no Canadá ou na Acádia. Daí o
rumor que se espalhara prematuramente nas cidades, censos e senhorias da Nova
França, de que estava prisioneiro dos iroqueses, pois nenhuma notícia chegava jamais
sobre ele. E, ademais, não recebeu nenhuma notícia de quem quer que fosse. Ninguém
procurou se informar sobre o lugar em que se encontrava nem fazer chegar-lhe às
mãos qualquer mensagem.
— De fato, compreendi que ninguém se preocupava comigo — disse com um
muxoxo de amargura. — Nem com o que podia acontecer-me, nem com a
importância dos trabalhos aos quais eu dedicava meus dias. O Sr. e a Sra. de Peyrac
estavam em Que-bec, e todos procuravam voltar-se para os vencedores, ávidos em se
beneficiar com o encontro.
"Queriam esquecer-me. Eu desaparecera. E era mais simples dizer que eu era cativo
dos iroqueses.
"Ora, cativo eu fui. Mas apenas depois de minha 'morte', essa morte que, como você
disse, foi inicialmente anunciada na Nova Inglaterra, antes de o ser na Nova França."

CAPÍTULO XXI

O suplício entre os iroqueses— Um covarde entre os heróis

—Eis em que circunstâncias fui capturado.; Certa manha de verão, em companhia do


Padre de Marville e de um jovem "dado"canadense, Emanuael Labour, que havia um
ano fora para ali devotar-se à conversão dos selvagens, além de alguns neófitos, eu me
dirigia a uma aldeia para celebrar a missa, quando fomos cercados por um contingente de
guerreiros iroqueses. Você sabe como eles são. Estamos andando pelo centro de uma
floresta aparentemente deserta, mas na qual os pássaros estão calados, e subitamente os
troncos das árvores se desdobraram com uma silhueta humana. E eis-nos cercados por
fantasmas emplumados que se apoderam de nós.

O calvário começava. Depois de dois dias de caminhada, guerreiros e prisioneiros


chegaram às cercanias de uma das primeiras aldeias do vale dos iroqueses.
— Nenhum de nós tinha ilusões. A tortura e a morte nos esperavam.
"A noite foi longa na cabana onde fomos encerrados. Conhecíamos a sorte que nos
estava reservada. Eu olhava com inveja meus companheiros Marville e Labour, que,
depois de terem rezado, haviam mergulhado num sono tranquilo. Eu mesmo os
exortara a essa serenidade, dizendo-lhes que eles estavam nas mãos do Senhor. As palavras
saíam-me dos lábios como substâncias estranhas.
"Fui invadido por uma fria paralisia. E eles, reconfortados por minhas palavras,
dormiam, enquanto eu, espreitando as horas, via aproximar-se o momento das
assustadoras torturas que já conhecera. 'Ah! que a noite jamais termine, que não
comece um novo dia. Que Deus pare a terra, que Ele nos destrua a todos, humanos
dementes e cruéis, vermes da Criação, mas que jamais chegue o instante da dor que
nos preparam. Você não viveu, dizia comigo. Não conheceu a felicidade. 'E agora
esse corpo, que não conheceu o amor, vai ser entregue aos bárbaros para suplícios aos
quais sua carne se recusa.'
"Ah! A agonia de Cristo, como estava próxima! Nenhum anjo veio me consolar. Eu
não fizera por merecê-lo.
"Estava no inferno. O céu era surdo. Estava num inferno povoado de demónios.
Num inferno às portas do qual havia deixado toda e qualquer esperança.
"Subsistiam em meu espírito apenas o medo visceral das torturas e, em meu
pensamento, as razões daquela odiosa fatalidade. E a lembrança daquela a quem eu
devia minha queda voltou-me ao pensamento. Um rosto, uma silhueta de mulher,
sempre a mesma. Você, surgindo desse caos como que para me desafiar, rejubilar-se,
felicitar-se com minha perda...:
"Não", disse ele, colocando a mão sobre a dela. "Tudo isso é falso. Você não tinha
nenhuma responsabilidade sobre aquele delírio que me corroía havia tanto tempo, a
não ser por existir, por me ter aparecido!
"Mas, naquele momento, penetrado pelo terror, tremendo dos pés à cabeça, como
um animal forçado que sente a morte e espera o abate, eu hauria um sombrio sustento
num sentimento de rancor e de ódio para com uma personagem símbolo — uma mu-
lher — que, com sua aparição, transtornara o curso de minha vida.
"Disse-lhe uma vez que eu não estava preparado para nada do que empreendera.
Ora, uma coisa é tomar consciência de um erro ou de um fracasso, e todos devemos
nos esforçar para enfrentá-lo eventualmente. Outra coisa, porém, e muito mais mortal,
é perceber sua própria existência, já longa, como ridícula e perigosa impostura, fruto
ela mesma de um monstruoso engano, cuja malícia jamais soubemos discenir.
"Desse despertar dava minha perda. Por essa brecha todas minhãs defesas haviam
fugido.
"Minha presença-naqueles lugares, entre aqueles demónios prontos a me imolar
pàrecia-me não só intolerável, mas de uma insuportável injustiça.
"Subia-me aos lábios um grito que, num último sobressalto de dignidade, eu
impedia de sair.
'Duas vezes, não! Duas vezes, não!'
"Eu acreditava ter ganho por meu primeiro suplício direito à serenidade e à
predominância. Mas Deus me enganara, também nesse caso. Não me bastava ter sido
torturado uma vez, ter perdido meus dedos...
"Ao alvorecer, ouvi nossos índios cristãos, huronianos e iro-queses, que haviam sido
colocados numa outra cabana, começarem a cantar seus cantos de morte. Percebi que
vinham buscá-los, pois o canto se distanciava, mas por instantes podia-se ouvi-lo
vogar pela floresta, acima da aldeia. Depois percebi os bafios do cheiro de carne
grelhada tão característico que uma-brisa levava até nós: o odor dos suplícios.
"O sol nasceu. Por um interstício das paredes da cabana, sempre espreitando, vi a
luz do dia invadir um céu puro e suave, refletindo-se na superfície de um lago.
"Levaram-nos por nossa vez. Até a clareira onde, já bem queimados, nossos índios
continuavam a insultar seus torturadores. Outros se calavam, para lá da palavra, com a
língua cortada ou queimada, mas com olhares lúcidos ainda.
"Três pilares nos esperavam.
"Revezando-se junto às vítimas, os guerreiros eram numerosos, reunidos numa
espécie de silêncio solene e preocupado, cortado apenas, periodicamente, por uma
litania de insultos e de responsos, nos quais, conforme o ritual, lançavam-se ao rosto
uns dos outros as razões que possuíam para se odiar, para ter-se combatido e feito
perecer amigos e parentes mútuos.
"Diante de mim, surgiu Utakê, que me enfrentou com seu olhar brilhante.
"As náuseas do medo atormentavam minhas entranhas.
"Foi então que ele se aproximou de mim, munido de um sílex de gume afiado e de
um pequeno malho e, fazendo-me abrir a boca, quebrou-me dois dentes. Um serviço
limpo e rápido.
'"Você tão orgulhoso de sua dentadura, Toga Negra!', disse ele. 'Inveja', como todos
os brancos, nossos dentes sadios. Ouço dizerem: 'Que belos dentes têm esses
selvagens!' E eu sei que você procurou descobrir nosso segredo para conservar os seus
tão belos e brilhantes quando eram quando chegou a nossas terras. £ eu o vi mascar
goma misturada com argila fina e suco de su-magre branco, como nós, para
conservar-lhes a brancura e a saúde. Você não gosta de sofrer, Toga Negra, nem de
ser diminuído diante de seus inimigos, e sobretudo, de seus amigos!...'
"Pus-me a tremer.
"Um guerreiro aproximou-se do jovem Emanuel e, pegando-lhe a mão, começou a
serrar-lhe uma falange com o gume de uma concha.
"Tudo se misturava. Estava abnubilado por aquele dedo branco do jovem
adolescente que o índio ia serrando com a concha, e pelas gotas de sangue caindo
pesadamente no chão.
"Eu pensava: 'Eles já me tiraram dois dedos. Dessa vez, se me cortarem outros,
estará acabado. Não poderei mais dizer a missa. O papa me recusará autorização por
causa de minhas mutilações, e dessa vez ele não passará por cima disso, pois saberá
que não sou digno'.
"Era uma coisa demente e sem lógica, mas o centro de meu espírito tornou-se um
turbilhão de revolta, desespero e recusa.
"Um grito! Um grito de pavor soprou em meu peito como um furacão. Eu ouvia esse
grito e não sabia que era eu que bramia.
"Joguei-me de joelhos diante de Utakê. Rastejava a seus pés, suplicando-lhe que me
poupasse. Que me poupasse sobre tudo o suplício. 'Mais uma vez, nãol-Mais uma vez,
não!...' gritava-lhe. 'Mate-me, mas poupe-me da tortura, farei o que você quiser.'
"O que havia de mais horrível nessa cena abjeta era perceber os olhares perdidos,
escandalizados, incrédulos, daqueles que me cercavam, tanto dos carrascos quanto de
meus infelizes companheiros prometidos ao martírio, daqueles, dentre os neófitos, que
ja haviam derramado seu sangue- e sofrido sua paixão pela fé cristã, e que,
semimortos," assistiam a minha ignóbil fraqueza.
"Depois, todos aqueles olhares se apagaram, se estreitaram, passaram a ser um único
olhar, o olhar azul e cândido daquela criança, do pequeno 'dado2 canadense. Emanuel,
que se deixava destacar, nu, no pilar de torturas, sem um queixume nem um sinal de
medo, e que, me olhava, me olhava... horrorizado!... Nió pelos sofrimentos e pela
morte próxima, mas por mim... horrorizado!..."
—Não chore — disse ela. — Faz mal a seus olhos. Você pode ficar cego.
Ela se levantou e foi banhar-lhe as pálpebras. As lágrimas escorriam em pequenos
sulcos pela face machucada, enquanto ele arquejava com soluços secos e dilacerantes.
Ycalme-se! Acalme-se! — dizia-lhe Angélica, num tom baixo e reconfortante.
Acariciou-lhe suavemente a fronte, constelada de equimoses e de cicatrizes pérfidas.
— Acalme-se, meu Padre! Tornaremos a falar de tudo isso um outro dia.
Mas era-lhe preciso prosseguir o alucinante relato.
—Há uma certa volúpia em ser covarde, quando se lutou a vida toda para dominar
os demónios do medo — continuou ele.
— Eu não ocultava absolutamente... O que posso dizer-lhe? Como descrever o
covarde alívio que eu experimentava por me reencontrar vivo e ver afastar-se o
espectro sinistro dos sofrimentos desumanos? Pouco me importava o desprezo com
que todos me cumulavam, os vivos e os mortos, os carrascos e as vítimas, os amigos e
os inimigos...
"Eu ouvira os chefes discutirem sobre entregar-me às mulheres e às crianças, o que
era reservado aos guerreiros poltrões que davam mostra de pusilanimidade diante da
morte e do suplício, e, acredite-me, aquelas pequenas criaturas inocentes de unhas
pontudas não eram melhores que seus esposos, pais e irmãos para fazê-lo morrer
como um covarde sofrendo dores inomináveis.
"Mas essa situação humilhante foi julgada ainda muito honrosa para mim, que havia
trazido a toda a Companhia uma vergonha sem precedentes.
'Graças a Deus', disse comigo, adivinhando o veredicto.
"Meio desfalecido depois dessa crise, permaneci estendido no chão, com a fronte na
poeira. Eu teria beijado a terra viva. Eu a teria comido.
"Levantaram-me brutalmente. Os olhos de Utakê eram duas lâminas cortantes.
" 'Não espere nada de mim', disse-me. 'Não lhe concederei o benefício de matá-lo
com um golpe de tomabawk, como deseja. Você susparia o título de mártir junto a
seus irmãos. E isso não lhe concederei tampouco. Você é muito vil, e me feriu com
sua conduta, a mim, que o honrava. Você nos faz não só duvidar da grandeza de seu
Deus, mas de sua existência.'
"Nada mais de seu desprezo me atingia, mesmo quando, em seguida, me atiraram
como lixo aos pés de uma mulher velha, para ser seu servidor e substituir-lhe o filho,
que ela perdera na guerra. Essa perda a deixava sem ninguém para levar-lhe caça e
realizar as tarefas que a idade avançada não lhe permitia mais efetuar.
"Minha patroa me moía de pancadas... tanto mais que eu era muito desastrado,
pouco robusto, e ela era objetivo de zombaria e de brincadeiras perpétuas por parte
das companheiras, pois jamais se vira uma mulher da aldeia servida por um
prisioneiro que se houvesse mostrado tão covarde diante da morte, tão repugnante em
suas súplicas. A vergonha recaía sobre ela. 'Como você pôde fazer isso', dizia-me,
'você, que representava meu filho?' Eu tentava mostrar-lhe que, no momento daqueles
acontecimentos, ainda não lhe fora dado como escravo. Mas para ela essa divisão do
tempo não passava de brincadeira...
"Para certas coisas, entre os índios, não existe antes e depois. Ela confundia seu
filho e a mim, apoiando-se na certeza, que se estabeleceu pouco a pouco, de que eu
era seu filho ou a reencarnação dele, e isso era muito vergonhoso para ela. Então eu
lhe lembrava que seu filho, precisamente, morrera com muita coragem, torturado
durante pelo menos seis horas pelos huronianos do Sr. de L' Aubigniére. Mas isso não
a consolava, pois vira em sonho que eu era seu filho e que minha atitude diante dos
chefes das Cinco Nações a desonrara.-Ora, você sabe que os sonhos têm para os
índios uma prioridade absoluta sobre a realidade dos fatos."

CAPITULO XXII

À cabeceira do supliciado

Quando ele se calou, aniquilado, com as pálpebras fechadas, Angélica ficou durante
muito tempo sentada à sua cabeceira. Os termos da confissão que acabara de fazer-
lhe, e tudo o que implicavam, e esclareciam em seu espírito.
— Agora compreendo. Era esse, portanto, o terrível segredo
que o jovem Emanuel queria confiar-me no jardim.
Ela falara a meia-voz, para si mesma. Ela abriu bruscamente os olhos.
— O jovem Emanuel? Os iroqueses não o imolaram?
— Não, nós o vimos vivo. Ele acompanhava o Padre de Marville quando este,
escoldado por Tahutaguete, o chefe dos onon-dagas, chegou a Salem para levar a
notícia dè sua "morte" e... de seu martírio.
— Por que Utakê quis que os ingleses fossem os primeiros a saber?
— Não era "os ingleses primeiro", mas nós. Ora, Utakê sabia que estávamos na
Nova Inglaterra, meu esposo e eu, e queria que fôssemos avisados antes do franceses.
— "Inimigos mais terríveis do que eu sou para você..." — murmurou, como se
recitasse uma frase que lhe martelava a memória. — Assim, enviou primeiro a você, a
quem eu havia combatido tanto, esse colar que dizia: "Seu inimigo não pode mais
prejudicá-la". Oh! Como ele tinha razão!
"Haveria criatura mais desprezível e mais despojada de todas as possibilidades de
prejudicá-la que eu?! Mas eu compreendo a que imperativo obedeceu Marville,
testemunha de meu renegamento, declarando-me morto. Era preciso salvar a honra da
ordem!"
"E certamente não poupou esforço para isso, deve-se fazer-lhe justiça", pensou
Angélica, rememorando o luxo de detalhes com que o jesuíta lhes descrevera em
Salem a "morte gloriosa" do Padre d'Orgeval.
Sua intuição era portanto correta. Em toda aquela cena não deixara de supor o tempo
todo uma mentira oculta. Através da personalidade orgulhosa do Padre de Marville,
sentira vibrar um sofrimento de esfolado vivo, um sofrimento verdadeiro, feito de
humilhação, de decepção, de pavor e de pesar. Podia-se adivinhar o que sentira aquele
jesuíta convicto diante da ruína do mestre, da covardia do maior e do melhor dentre
deles, a seus olhos. A ordem dos jesuítas tinha sido marcada com a mais horrível das
máculas: a abjuração.
— Que seu irmão em religião o tenha feito passar por morto, por não ter outra
solução para ocultar sua vergonha, eu admito — disse ela. — Mas que tenha
aproveitado a oportunidade para invocar sobre nós a maldição do céu e nos tornar
responsáveis-por seu suplício, isso era levar a hipocrisia muito longe. O que há de
verdadeiro nessa acusação que, ao que parece, teria proferido em seu suplício: "É ela!
É por sua culpa que morro!"?
— Tudo isso é verdadeiro. Sim, eu proferi, gritei, com todas as minhas forças essas
palavras. No momento em que o chefe Utakê baixava sua mão e, por desprezo,
concedia-me perdão, subsistia em mim a vontade de clamar minha justificativa, de dar
àqueles que eu escandalizava pelo menos uma explicação que ate-
uasse o alcance de meu ato... fazê-los acreditar, por exemplo, que eu tinha sido
vítima dos maus espíritos, e só me aparecia ""esse caos, como lhe disse, o objeto
responsável por minha ruí-a, a mulher cuja visão me arrastara por um processo que eu
não odia nem analisar, nem admitir, numa loucura fatalmente con-ária a tudo o que
era o caminho reto de minha vida até então, ponto de me persuadir de estar certo, ao
denunciar os sortilégios e gritar-lhes: "E ela! E ela que me condena, é a ela, áDama do
Lago de Prata, que devo minha p^rda, que devo minha morte..."
Deu um soluço profundo, semelhante a um estertor.
— Eu falava de minha morte, que eu sentia desabar sobre mim. A verdadeira morte,
a morte total, a morte de mim mesmo... A morte do herói que eu havia sido... que eu
quisera ser?., que sonhara ser. Minha morte total... Eu não existia mais... E fora ela
que me matara. Ela, a Mulher, minha inimiga de sempre.
"Eu o sei... Era uma ideia louca, monstruosa, acusá-la, a você especialmente, mas
minha obsessão nutrira-se de tantas aberrações, durante anos de mutismo e de solidão,
que eu conseguira persuadir-me de meu enfeitiçamento.
"Eu gritava: 'É ela, a Dama do Lago de Prata é a causa de minha morte... Vinguem-
me!... Vinguem-me!...'
"Vi suas faces lívidas e rígidas. Soube que... eu gritava em vão. Eles não me
vingariam. Eles não me vingariam como eu merecia ser vingado... Eles não eram
meus amigos!... Tinham dormido durante minha agonia! Horrorizados com minha
abjuração, eles me rejeitavam... Nada subsistia dos sentimentos de afeição, de devo-
tamente, de respeito que eu acreditava que tivessem por mim. Soube que nunca me
tinham amado. Eu não era mais nada para eles."

Ele se agitava, e Angélica, receando que fosse acometido por um novo acesso de
febre, não deu atenção ,a suas palavras, avisando-o de que estava na hora de seus
"ágapes" cotidianos.
Levantou-se para ir preparar e aquecer as rações, enquanto ele continuava a falar.
— É verdade. Humilhado como estava diante de minha ruína, eu gritava que era
preciso destruir aquela feiticeira. Pelo menos foi como indiquei a Marville, em sua
perplexidade, o caminho a seguir para prosseguir minha luta.
"Enquanto Tahutaguete o conduzia para a costa, deve ter re-moído sua amargura.
Havia recebido um abalo interior mais violento que o da tortura, e sendo seus recursos
de transmutação mística limitados, deve ter-se apegado a esse pensamento de com-
bater inimigos.
"Para não ser por sua vez destruído, precisava construir uma versão. Está bem! Está
bem! Ele agiu corretamente."
Angélica escutava-o, intrigada.
— Palavra de honra, parece até que você o aprova!... Pois bem! Agora vejo que não
é lenda quando dizem que os jesuítas sempre se apoiam, em qualquer circunstância.
Mas não era o momento de recomeçar o debate.
Fez as crianças se levantarem. Tomava-as nos braços e ninava-as, uma após outra,
para despertá-las suavemente. Beijava-lhe as bochechas frescas, os cabelos
embaraçados e sedosos, adorava sua fragilidade e sua inocência, a luz de seus olhos e
de seus sorrisos, seus pequenos corpos harmoniosos e perfeitos, em que a vida e o
vigor fremiam novamente. "Vocês são a consolação do mundo! São o tesouro de
minha vida!", murmurava, baixinho. "São a justificativa de nossas lutas ferozes, de
nossos combates imbecis!..."
Dava a cada uma um pouco de carinho, cantarolando-lhes um versinho, como um
segredo ao seu ouvido, enquanto passeava de lá para cá, e depois as fazia sentar-se
num banco diante dela, derramava sopa numa escudela e distribuía o alimento em
suas boquinhas abertas como as de passarinhos.
Era um ritual imutável.
Olhando para os gémeos, seus dois anos e meio completos e solidamente postados
em seu lugar nesta terra, evocou-lhes a primeira cólera, quando as duas "coisinhas",
que acabara de pôr no mundo em Salem, haviam desaprovado em altos brados a in-
tervenção do Padre de Marville.
Teria sido o rumor de vozes desagradáveis ou o fato de se verem subitamente postas
de lado por pessoas habitualmente atentas e subitamente transformadas como galinhas
no galinheiro pela aparição de um jesuíta no seio da puritana Salem, ou a obscura
intuição daquilo que se declarava hostil à sua família, sua mes-nie, sua casa, sua
criadagem e tripulantes?...
"Vocês já faziam parte da tribo, meus pequenos Peyrac!..."
Ou simplesmente as amas-de-leite nervosas e curiosas tinham esquecido a hora da
mamada?...
Angélica, a parturiente, em seu roupão caseiro, estava sentada nos degraus da escada
de Mrs. Cranmer, cercada por todas as mulheres inglesas e heréticas da casa, e
embaixo, o Padre de Marville, como profeta vingador, com o rosto encovado pelas
privações, a sotaina esfarrapada, apontava-a e gritava: "E ela que é a causa dessa
morte".
Explodira então o vigoroso concerto gemelar e contestador daquelas criaturas que,
juntas, não pesavam seis libras. E o espetáculo se encerrara.

Ria sem querer daquela lembrança, mas, apesar de vontade de descrevê-la a seu
hóspede, conteve-se. Não era hora para amenidades.
Depois de alimentar seus filhotes, deu-lhes um pauzinho de ju-juba para enganar-
lhes a fome, caso não estivessem saciados.. Então, pôs a esquentar o caldeirão cheio
de água para as abluções e arrastou o escabelo para o outro lado da cama, à cabeceira
do ferido. Ajudou-o a recostar-se nos travesseiros a fim de poder alimentá-lo mais
comodamente, sentou-se com a tigela na mão e começou a fazê-lo engolir caldo em
pequenas colheradas. Não sabia nunca se conseguiria fazê-lo comer sem dificuldades.
Seja por apatia, seja por desejo de economizar provisões, ele demonstrava uma
verdadeira repugnância em relação à comida. Sentia-se humilhado por estar entregue
à sua mercê, numa dependência infantil? Suas mãos, seus braços estavam muito
fracos para poder segurar a tigela e levar à boca a colher sem derrubá-las.
Naqueles momentos irritava-se menos com ele do que quando ele discorria com
uma súbita autoridade. Via nele um homem que superestimara os próprios talentos
para dominar o cavalo fogoso da vida, uma vida que ele pretendera superior; o
impetuoso e sorrateiro corcel do destino fizera-o perder as estribeiras. "Quando não se
está preparado, os fatos se encarregam de avisá-lo disso!"
Essa máxima dirigia-se também a si mesma, e julgando-o pela medida de suas
experiências e à luz das confidências que acabava de ouvir, pôs-se a considerá-lo
como um irmão, um irmão de combate.
— Folgo em saber que ele tenha sido poupado — murmurou ele. — Ele, o jovem
"dado" que tinha um nome tão belo... Emanuel... E que eu escandalizara tanto... Folgo
em saber que tenha escapado ao fogo... E que tenha conservado a vida... Ele saberá o
que fazer dela, para a glória de Deus e o benefício dos homens.
Vendo-o sereno e aceitando com docilidade o alimento que lhe oferecia, julgou o
momento inoportuno para revelar-lhe toda a verdade a propósito do pobre Emanuel,
que, infelizmente, também estava morto.

CAPITULO XXIII

O segundo martírio do jesuíta

Conversavam sobre temas que teriam feito arregalar-se de uma surpresa inquieta os
olhos de quem quer que não tivesse vivido na América, perguntas, resposta que só
podem ser trocadas por aqueles que falam, enfraquecidos, na penumbra de uma
invernada sem fim.
— Você teria me comido? — perguntou ele, certo dia em que ela lhe contava a
descoberta na soleira da porta e o desagrado por encontrar, em vez de víveres, um
cadáver.
— Talvez!... Não... Também pensei nisso. Foi um pensamento fugaz... Foi uma
vertigem causada pela fome, uma tentação... Eu estava exausta. Começava a
compreender que não tornaria a ver o homem que amo, que meus filhos estavam
morrendo... Não havia nenhum outro recurso... e tivera uma esperança tão grande...
Não, realmente. Se isso me passou pela cabeça, foi com horror... E depois... você
estava vivo! Não! Não! Utakê... Não sei o que ele quis... Será que o mandou para mim
para que acabasse com você, o comesse?... Não sei. Tudo isso é muito louco... Seria o
fim, o fim do mundo, o fim de nossos mundos... Não se deve pensar nisso...
— Pois bem! A mim eles comeram — disse — um pouquinho assim, em pequenos
pedaços que um guerreiro me retirava das omoplatas com uma faca bem afiada...
enquanto me levaram ao suplício.
— É por isso que você tem essas duas feridas nas costas?
Notara que não eram queimaduras, e que as feridas cicatrizadas, apesar de seus
cuidados deixavam profundos sulcos na pele.
— Sim!... Ele me comia, depois cuspia, dizendo: "Como sua carne é imunda!"
— Quando aconteceu isso? Em que suplício?
— No segundo"..; no terceiro, se quiser...
— Mas eu julgava que Utakê tinha decidido poupá-lo!
— Eu também acreditava que já estava resolvido. -Durante meses, eu me habituara,
me acostumara à minha escravidão. Era evidentemente moído de pancadas da manha
à noite, o que mantinha as forças de minha Tia, minha cara Tia Nenibush, que
descontava em mim seus nervos, e no fundo éramos bons amigos. Tínhamos
conversas interessantes. As mulheres índias não são nada tolas. Têm muito tutano.
Gostam de refletir sobre os destinos humanos, e o domínio dos sonhos abrem
múltiplos labirintos à sua imaginação. Eu recolhia e cortava lenha para ela, ia à
floresta buscar um animal que um parente dela lhe caçava. Ia, tropeçando nas raízes,
perdendo-me nas brenhas, acompanhando por zombarias das indiazinhas ágeis que
também iam buscar os produtos da caça dos pais ou esposos. Eu voltava muito depois
delas. Chamavam-me de Mulher Negra e riam de meu desajeitamento para encontrar
o caminho e penetrar na floresta, pois, você pode imaginar como, mais ainda que os
exploradores de bosques comerciantes, que são indianizados, nós, missionários,
embaraçaçdos com nossas sotainas, ganhamos os prémios do desajeitamento entre os
senhores selvagens. "Você é mais desajeitado que os yennglis", diziam-me.
"Creio que nem vi passar as estações. Nem as contei. Um outono? Dois outonos...
talvez três?... Depois foi aquela outra manha, em que foram me buscar novamente. O
inverno era atroz. As neves começavam cedo aquele ano. Eu estava tingindo peles,
que minha Tia e eu devíamos preparar para o parente caçador.
"Não compreendi quando vi diante de mim quatro guerreiros, entre os jovens
corajosos, que vinham procurar-me, encarregados de me levar à aldeia vizinha, aonde
o chefe dos mohawks, Utakê, acabara de chegar. Fui imediatamente invadido por uma
mortal inquietação, ao saber da chegada de meu pior inimigo.
"Já lhe disse. Eu acabara por me acalmar. Não temia mais nem as pancadas nem as
fadigas daquela existência, nem a monotonia daqueles trabalhos humilhantes. Não
receava nem desejava a morte, a menos que me fosse concedida por um golpe de
tomahawk. Minha única obsessão era o receio de perecer sob as dores do fogo.
"Estava pois nessa situação quando vieram naquela fria manhã em que estava
tingindo peles.
"Vieram e me disseram a fórmula consagrada e para mim aterradora: 'Meu irmão,
coragem! Chegou o momento de cantar seu canto de morte'.
"Segui-os, não apenas mudo, mas num estado de estupor e de abatimento que
bambeava tanto as pernas que tiveram de me segurar pelos braços. Eram pessoas
muito jovens, aterradas por meu comportamento. Foi entretanto nesse trajeto que um
deles começou a comer minhas costas.
"Quanto a Nenibush, foi ela que se encarregou de me cantar meu canto de morte
com o concerto que ofereceu com protestos e uivos, agarrando-se, furiosa, a meus
trapos para não me deixar ir.
"Foi apenas no meio do caminho que os guerreiros conseguiram li-vrar-se dela.
Ouço-a ainda gemendo e maldizendo, pobre mulher, à qual retiravam uma segunda vez
seu filho-prisioneiro-escravo. Seus gritos gravaram-se em minha memória e me
perseguem em meu sono."
— Ouvi quando você repetia: "Ah! que ela se cale! que ela se cale!"
— Sem dúvida, trata-se mesmo dela!... Ao chegar ao burgo, encontrei alguns
guerreiros em volta dos chefes das Cinco Nações, e à sua frente, como lhe disse,
Utakê, o mohawk. Fez-se um longo discurso.
"Ó Hatskon-Ontsi, aqui está você! Teria reencontrado a amizade de seu Deus e o
caminho de Sua Força?... Você que é o maior entre os maiores dos Togas Negras,
você nos feriu e insultou mais que ninguém. Nós, que nascemos no orgulho de nossa
morte, que nos rejubilamos desde muito cedo com a ideia da morte nas torturas, a fim
de provar a grandeza do homem, você nos humilhou em nossas crenças.'
"Eu ferira profundamente Utakê, sabia-o. Minha covardia e minha fuga tinham feito
deleita inimigo implacável; furioso por ter sido enganado, de uma maneira, a seu ver,
desonrosa, mas pouco me importava, as palavras,não me atingiram.
"Finalmente, calou-se. Depois, após um longo momento, disse: ' 'Vejo pelo seu rosto
que não se emendou e que não merece sofrer a prova dos bravos... Mas não se rejubile
tão depressa, pois nos o entregaremos às mulheres'.
'Elas então irromperam com gritos agudos, jorrando de cada uma das Casas
Compridas como uma torrente rolando as águas mortíferas. Como lhe descrever?
Também nesse ponto minhas lembranças são caóticas. Só Gonsigo rever claramente o
momento em que, seguro por mil punhos miúdos e com garras, lanharam-me o rosto
com a ponta de caniços cortantes. Depois duas delas avançaram e, quando ficaram
bem perto, vi que seguravam, com os punhos bem cerrados, pequenos roedores que se
debatiam, só com a cabeça de fora, exibindo uma boca de dentes afiados, que elas me
aplicaram aqui e ali, nas faces, na testa; eles começaram a morder e mordiscar,
enquanto as mulheres histéricas riam e repetiam que iam deixá-los atacar meus olhos.
"Pus-me a gritar de pavor, mais do que de dor.
"Deveria ter dominado aquele sentimento de repulsa, agora sei. E calar-me, pois
creio que, por uma nova razão, teria podido suportar a dor em silêncio. Mas era tarde
demais. Eu me desou-rava mais uma vez.
"Diante disso, os anciãos interviram e me retiraram das mãos das mulheres e das
crianças, arrastando-me para um canto até a sala do Conselho. Falavam entre eles e
me observavam com um ar sombrio e desanimado, como os médicos contemplados
um caso desesperador, cuja gravidade ultrapassa sua competência.
"Ouvi-os pronunciar palavras que tinham mais ou menos o seguinte sentido: 'É
preciso no entanto prepará-lo".
"Após deliberarem, levaram-me para outra aldeia, onde havia uma choupana
especial para pitar, isto é, reservada unicamente ao exercício de fumar.
"Era uma casa pequena, em que mal cabíamos, os anciões, os chefes, alguns de seus
'prestidigitadores' e eu. O cachimbo da paz começou a circular de boca em boca.
Quando chegou a mim, pediram-me que tirasse mais baforadas que os outros. Isso du-
rou muito tempo, e não ficaria surpreso se tivesse durado dois ou três dias. Ficamos
assim fumando sem beber, sem nenhum alimento. No início circulou uma cabaça, não
para beber mas para as necessidades naturais, unicamente para o líquido. Mas este
logo se tornou rarefeito. Estávamos vazios, inteiramente impregnados de fumaça. O ar
estava azul, denso. Os cantos salmodia-dos sustentavam o estado de idiotia.
"Senti náuseas. Meus pulmões queimavam. Depois desmaiei completamente,
aspirado por um fenómeno que me seria difícil descrever, pois apagou-se quase
inteiramente de minha memória. O que eu suponho é que, durante essa 'ausência',
encontrei minha alma. Não apenas o meu eu, mas, mais complicado que isso, os
diferentes amálgamas de minha alma, rostos, personagens de um tempo passado,
vidas antigas que sobrecarregavam meu eu, que tinham se insinuado no centro de meu
ser atual, submergindo-o, sufocando-o, paralisando-o com as gavinhas de uma vinha
inculta. Entidades embaraçosas e estéries, fora de seu direito, que é deixar a criatura
nova prosseguir livremente seu destino, desembaraçando-se pouco a pouco dessas
sombras. Durante essa 'viagem' talvez eu tenha conseguido expulsá-las.
"Revejo a cena. Os anciãos continuavam à minha volta, mais como médicos do que
como torturadores... Sim, a droga ajudou-me a voltar ao ponto de partida. A couraça
era tão dura, que era preciso ao menos isso! Ajudou a quebrar essa concha petrificada
ao redor do núcleo de meu ser. Nisso, muitas drogas são úteis quando a alma não
pode, por suas próprias forças, reencontrar o fio de seu destino porque o Maligno,
sempre ele, se divertiu em embaraçá-lo para perdê-la.
"Usadas eventualmente, elas salvam o espírito sem prejudicar o corpo... Os índios
das possessões espanholas têm um cogumelo que permite tais regenerações, ajudando
pelo menos a sobreviver sem enlouquecer tudo quando o que é humano se fecha..."

Passou a falar do mistério dos conhecimentos que o continente ainda inexplorado do


Novo Mundo continha.
Ela esperava com paciência.
E, depois de refletir por muito tempo, ele voltou ao que se seguira à saída da
choupana de pitar.
— Ainda assim, eu não estava curado. Os anciãos não se iludiam, pois continuavam
a me olhar com ar dubitativo, mas, de minha parte, sentia-me mais como alguém que
acaba de sofrer uma cirurgia, a ablação de órgãos importantes, mas que estavam
podres e eram portanto perigosos. Somente o futuro diria o benefício que eu iria
retirar daquela terapia singular.
"Eu adivinhava seus sentimentos. Para eles, os brancos eram uma espécie ingrata e
inoportuna, que não aproveitava os precisos tesouros e ensinamentos "dispensados
pela natureza tutelar.
Era preciso pegá-los muito jovens, diziam, para fazer deles homens dignos desse
nome.
"Estavam tão convencidos de que não podiam tirar muita coisa de mim que
renuciaram a pedir-me para cantar meu canto de morte enquanto me conduziam de
novo ao sacrifício. Eu não era um ser honrado. Eu os cobria de vergonha. Dessa vez,
para torturar uma criatura tão reles, escolheram um lugar afastado da aldeia, onde
havia um velho pilar abandonado, e prepararam os instrumentos para aquecer ao fogo:
machados, sovelas, com caras de nojo de pessoas obrigadas a realizar a mais
entediante e insípida das tarefas..."

Angélica ouviu-o dar risadinhas como se revisse o espetáculo, e sobretudo as


expressões aborrecidas dos carrascos humilhados, que começou a nomear à meia voz:
— Utakê, Tahutaguete, Gosadaya, Hiyatgu, Garagonti.
Depois continuou a rir e, naqueles momentos, ela percebia-lhe um espírito jovem e
brincalhão que apenas sua existência entre os selvagens lhe permitira exprimir.
— E... o que aconteceu em seguida?
— Ignoro-o.
Deixou passar um longo tempo. Ela pensou-que ele tivesse adormecido. Mas ele
repetiu:
— Ignoro-o... No entanto, lembro-me também... Vejo os machados incandescentes
que passaram ao longo de minhas coxas e parece-me sentir aquele cheiro infecto de
carne queimada sufocando-me... Creio ter sofrido o suplício... e creio ter sofrido
horrivelmente... É muito vago... Não sei se gritei novamente, aumentando a vergonha
de meus infelizes carrascos...
Deu novamente uma risadinha nervosa e soluçante.
— Tenho ainda uma última lembrança, uma visão, melhor dizendo. Vejo Utakê
acima de mim, ele é muito grande e ele me domina, pois parece-me que estou
estendido no chão; atrás dele há o sol e grandes nuvens brancas dilatando-se,
modeladas pela luz, deslizando através do céu como velas. Ele me diz:
" 'Não creia que vou perdoar-lhe a vergonha, Hatskon-Ontsi, a você que foi tão
grande, a você que me enganou e me insultou mais que ninguém no mundo. Não
admitirei que deixe em nossas memórias uma lembrança de desprezo e que se ouse
dizer, quando seu nome for evocado: aquele que não merece sequer um nome era o
inimigo de Utakewata! Você vai partir. Vou enviá-lo para além dos montes. Mas eu o
perseguirei... tornarei encontrá-lo...
"Perguntei-lhe:
"Por que não acaba comigo?"
" 'Não cabe a mim acabar com você. Você atraiu maiores inimigos que eu, a quem
cabe esse direito.'
"Diante do enigma dessa resposta, senti medo novamente. A quem iria entregar-
me?... Seus olhos cruéis chamejaram.
'"Eu lhe declaro, Hatskon-Ontsi, você sofrerá, nesta terra, todas as dores, todas as
paixões... até ser digno de que eu devore o coração!...'"

— Em seguida, houve uma longa viagem obscura, de que não me lembro.


"Da época mais sombria de minha infância, julgo ter conservado a esperança de que
um dia eu poderia entrever a face luminosa da mulher, depois de ter-lhe conhecido o
lado venenoso. Minha via, sem sabê-lo, encontrava seu significado naquele ca-
minhar... A gente acredita que parte para as missões da América, mas agora sei que
parti para um outro encontro.
"Quando despertei estava entre seus braços. Ela curava minhas feridas e dava-me de
beber, como nenhuma mãe, nenhuma mulher jamais fizera por mim.
"Eu a reconhecia e nunca pensara vê-la tão próxima. Ela se identificou, eu esperava,
extasiado e aterrorizado, aquele nome.
"Então, compreendi o quê Utakê quisera. Quão sutil e refinada foi sua vingança! Do
mesmo modo que não podia fugir do tição inflamado aproximando-se de minha carne,
não podia furtar-me à derradeira prova:
"O sonho ia estourar. A taça da salvação seria afastada de meus lábios. Eu retornaria
às áridas e inelutáveis certezas da crueldade do mundo, contra a qual não há remédio.
"Entretanto; quando, por minha vez, eu disse meu nome, só pude ler em seu rosto
tristeza, sofrimento e compaixão."

C A PIT U L O X X IV

Amor e ódio no jogo das paixões

Após esses dois longos e penosos relatos, houve um período de interminável


mutismo.
Mortificado em seu orgulho, estaria procurando no silêncio o esquecimento? Ela
continuaria a falar-lhe, a fim de manter-lhe o espírito alerta. Entretanto, mostrava-se
prudente quando se sentia tentada a mencionar Joffrey de Peyrac. Evitava instintivamente
pronunciar-lhe o nome, ou dizer: "meu esposo", pois sabia que, então, sua voz se
abrandava, provocando nele uma irritação mesclada de amargura.
Se ele proclamava muito alto que ela era sua principal inimiga, ela adivinhava que
Joffrey despertava nele um antagonismo mais confuso, pois dessa vez, a "traição" vinha
do homem, e ele devia ter sonhado com um mundo em que todos os homens se uniriam
para rebaixar e reduzir ao silêncio a Eva culpada, que havia arrastado Adão e toda a
criação ao caos do pecado.
Por provocação, tentativa de justificativa à qual não queria renunciar, quando
recomeçava a falar, ele não hesitava em se mostrar acerbo.
— Por sua culpa, perdi meus dois amigos mais queridos.
— Pont-Briand? Ele se impacientava.
— Pont-Briand não era alguém que se pudesse elevar ao nível de amigo. Era apenas
um executante. O que lhe aconteceu foi lógico e sem más intenções.
— Você o induziu a isso de maneira hábil e maquiavélica.
— Como julgar os seres sem deixá-los fazer uma escolha, e assim se desmascarar?
Eu movi para a frente esse peão, e, graças a essa manobra, soube melhor não quem ele
era, pois conhecia-o muito bem, mas quem era você, e também a que tipos de provo-
cações podia reagir o Sr. de Peyrac.
"Mas deixemos Pont-Briand. Ele cumpriu seu papel.
"Fqlo de um de meus colegas de ordem, o Reverendo Padre de Vernon, e depois do
Cavaleiro de Loménie-Chambord, meu irmão dileto desde o colégio de Clermonte,
onde ele me sorriu pela primeira vez. Eu tinha catorze anos e ele, onze.
"Com esses dois, jamais tive qualquer querela. Nem sombra. Um entendimento
perfeito. O conhecimento mútuo, a aliança eficaz em tudo. Em nossas missões e em
nossos trabalhos. E foi só você aparecer para tudo desmoronar! O meus amigos
desaparecidos! Quanta mágoa por tê-los perdido assim!, a vocês, que eram uma parte
de mim mesmo!"
— Como soube que o Cavaleiro de Loménie estava morto?
— Morto!?
Seu grito explodiu como o de um homem que acaba de ser atingido no coração por
um punhal assassino.
Angélica compreendeuque, até então, quando dizia: "Eu o perdi", falava do desafeto
sentimental do Cavaleiro de Malta em relação a ele, não sabendo nada sobre seu fim,
Foi sentar-se ao pé da cama a fim de olhá-lo de frente. Inclinando para ela, ele
fitava-a com um olhar alucinado, querendo decifrar em seu rosto a sentença em que se
recusava a acreditar.
— Foi você que o matou?
— Sim!
Reclinou-se lentamente para trás. Sua face estava emaciada.
— Fui a causa disso?
— Você é a causa de todas as desgraças da Acádia. Você era o Homem negro que
estava por trás da Diaba da visão. Você o soube sempre.
— Ele?! Não é possível! Onde? Quando foi isso?
— Aqui mesmo. No outono.
— Eu não disse a ele para vir. Cjueria mantê-lo afastado de minha desgraça. Temia-
muito por sua vida.
— Acontece que foi ele quem ouviu melhor seu apelo: "Vingue-me". Uma vez mafs,
você o enviara para a vingança, e ele veio. Era uma missão sagrada. Dessa vez ele não
faltaria com seu de ver, como em Katurunk, e realizaria seus desejos de álém-túmulo.
"E você mente a si mesmo, como fez em outras oportunidades. Sempre contou com
ele, mais do que com qualquer outro, para obter nossa capitulação! Sempre esperou
que ele se arrependesse de sua cegueria, que o levara a pronunciar-se a nosso favor,
que voltasse a você, que reconhecesse seus erros culposos, que o afastaram de você,
seu amigo e mestre.
"Ele pretendia renovar a façanha frustrada de Katarunk. Atacar o Forte de Wapassu
em nossa ausência e queimá-lo.
"Mas eu estava presente.
"Não tinha outra alternativa senão executar-me, após obter a rendição de todos os
nossos territórios até Gouldsboro, ou reconduzir-me à Nova França, não como
triunfadora dessa vez, mas como prisioneira. Ali, eu teria sido entregue a Ambrosina.
O ciclo infernal estava fechado. Aquele que você havia escolhido.
"Do alto deste fortim, onde eu estava refugiada, vi-o aproximar-se. Ele estava
persuadido de que eu me deixaria convencer. Eu o abati. O que mais poderia fazer?
Render-me? Trair os meus? Meus esposo? Meu amigos? Todos aqueles que haviam
confiado em nós?
"Privadas de seu chefe, suas tropas se retiraram, não sem ter antes pilhado e depois
incendiado Wapassu."
Ele baixava as pálpebras, pálido e sem fôlego. O sofrimento o consumia.
— O Cláudio, Cláudio! — gritou — Meu irmão, meu amigo. Pelo menos você o
matou imediatamente, espero?... pelo menos sua lendária habilidade lhe terá poupado
uma longa agonia? Pois, ferido, longe de qualquer socorro, é preferível acabar com
um ferido a arrastá-lo pelas intermináveis pistas do retorno!... Diga-me.
Segurou-lhe o punho.
— Ele morreu imediatamente, não é?
— Não sei! — gritou, libertando-se com tanto mais cólera quanto nunca deixara de
recear ter tremido demais ao puxar o gatilho. — Eles retiraram o corpo e se foram.
— Se tivesse de encarar seus longos sofrimentos e sua agonia, jamais a perdoaria.
— E devo perdoar a você? Você se preocupa com nossos feridos, com aqueles que
seus "vingadores" deixaram agonizar na ravina ou, quem sabe, no incêndio? Ignoro
tudo o que aconteceu a meus amigos. É melhor assim. Senão, não sei se poderia
perdoar-lhe o destino dessas mulheres e crianças, minhas companheiras, minhas
amigas, crianças que vi nascer aqui em Wa-passu e que foram arrastadas pelas "pistas
intermináveis do retorno", morrendo talvez de frio e de esgotamento, ou entregues
cativas, como butim, a selvagens fedorentos... Por sua culpa! Por sua culpa!
Eles se espreitaram, abespinhados, ofegantes como dois lutadores esgotados pelo
combate e que olham, pasmos, correr o sangue.
— Selvagens fedorentos? Por que fala assim dos selvagens? Eu a ouvi felicitar-se
por saber que sua filha Honorina estava refugiada com os iroqueses e em segurança.
— Com efeito! E preferível o verme e a sujeira das Casas Compridas iroquesas a
cair nas mãos de uma Ambrosina, discípula de Satã, de Lúcifer, de Belial e das oitenta
legiões do Inferno!... O que não impede que seja um destino terrível ser prisioneiro
dos índios.
Depois, cessaram o debate, não por falta de acusações para lançar ao rosto um do
outro, mas por falta de energia para continuá-lo.
Por várias vezes ele se defendeu de ter feito a Sra. de Maudribourg vir para a
América...
— Apesar de tê-la encorajado a trabalhar em meus projetos, não pensava que viria.
Ambrosina esteve comigo em Paris, quando eu ali pregava, numa de minhas voltas.
Jamais me perdoou por haver fugido dela. Ela sabia que sua paixão me repugnava.
Isso tinha raízes tão profundas! Jamais me tentou. Ela era meu medo. Meu medo das
mulheres, que erguera uma barreira entre ela e meu desejo.
Quando soube que estava rica, que tinha influência, concebi a ideia de fazê-la servir
a meus desígnios, encorajando-a a fretar uma expedição cujo objetivo era enviar
colonos, escolhidos entre corsários ou flibusteiros, reconquistar um território que eu
julgava francês, Gouldsboro, que caíra nas mãos dos hereges.
"Em Paris, ela fez' maravilhas, indo: de um ministério a outro. Os togados caíam
como patinhos em suas armadilhas. Os armadores mais empedernidos vinham comer
em suas mãos. Ela recrutou Colin Paturel, seu "navio e sua tripulação.
"Quando lhe foi dada a oportunidade de desenvolver astúcias e enganos e
desempenhar o grande papel de sedutora junto a um número considerável de homens,
pudemos, ela e eu, conciliar-nos. Eu era seu confessor, ela era minha penitente. Eu a
encorajava a colocar-se como benfeitora para a salvação da Nova França, e ela se
rejubilava por desempenhar um papel num obra que causaria dramas e derrotas. Vi
brilharem seus olhos quando lhe falei de,seu esposo. Naquele momento, ele ainda não
a havia trazido consigo. Quando lhe indiquei sua presença, ela deve ter tomado a
decisão de fazer parte da expedição. Teve tempo para reunir todas as informações a
seu respeito. Era muito hábil e ultrapassava de muito as recomendações que eu teria
podido fazer-lhe."
— Pensei ter entendido que no momento de partida do La Licorne a polícia estava
em seu encalço. Sua melhor amiga, a Sra. de Brinvilliers, acabava de ser presa pelo
policial Desgrez. E descobria-se uma das maiores envenenadoras da história, um
monstro de perversão, depravada desde a mais tenra idade.
— Ambrosina também jamais foi uma criança. Era um produto das trevas.
— Ela não deveria ter nome. Toda vez que a nomeio sinto um calafrio
— Ela se chama "legiões"...
— Padre de Vernon suspeitou dela imediatamente. Denunciou-a numa carta que lhe
era destinada, mas que ela furtou em seguida, depois de tramar sua morte. Tive essa
carta sob os olhos e lembro-me que ela dizia, em resumo, o seguinte: "Sim, meu pa-
dre. A Diaba está em Gouldsboro, mas não é a mulher que me indicou expressamente
como tal, a Condessa de Peycrac!!.. "Julga que o fato de o Padre de Vernon tê-la
desmascarado seja razão suficiente para que você se queixe de tê-lo perdido, enquanto
amigo, por minha culpa? Ele continuava a ser-lhe muito dedicado. Não pode
censurar-lhe não se ter mostrado um executante hábil e eficaz nas missões que lhe
confiou. Ou seja, espionar os novos ingleses ou assegurar-se da mi-nha presença no
navio de Clin Paturel.
— Você está obcecado, francamente! Ele, o Padre de Vernon! um verdadeiro
jesuíta, Senhor! Que jesuíta! Fazia-me pensar em meu irmão Raimundo. Frio com
gelo! Confundi-o facilmente com um inglês.
— Estava apaixonado por você... Tomou-a em seus braços
— ...Para me tirar da água... Mas como você sabe de tudo isso?
— Recebi dele uma carta enviada da fortaleza de Pentagouet. Estava ainda na casa
do Barão de Saint-Castine, depois de tê-la deixado reconquistar Gouldsboro.
Tomando, também ele, como o Coronel de Loménie-Chambord, a iniciativa de
contrariar minhas ordens e de julgar minhas intenções. Essa carta continha um
envelope selado com suas armas e algumas breves linhas, nas quais me solicitava o
obséquio de fazer chegar a carta anexada à Sra. de Peyrac caso lhe acontecesse
alguma desgraça.
— Aquela carta? Então você a leu?
— Sim! Eu era seu confessor.
— Belo confesso!
— Essas licenças são autorizadas aos diretores de consciência.
— Bela consciência!
— Era uma carta de amor. Começava assim: Minha cara criança, minha pequena
companheira do VOiseau Blan".
Subitamente, o humor de Angélica mudou, e ela começou a rir, a rir tanto que as
crianças, acordadas, a imitaram.
— Perdoe-me! — disse, recompondo-se — , mas a vida é tão maravilhosa! Uma
vidente mê disse um dia: "O amor a protege!..." O Amor me protegeu. O Padre de
Vernon não pôde deixar a senteça ser execultada. Não pôde deixar que eu fosse
afogada.
Ele mergulhou!... O meu caro Merwin! Como estou feliz!...
Mais tarde, ele voltou ao assunto de Loménie-Chambord. Não conseguia esquecê-lo.
Não suportava principalmente a insensibilidade dela. Ficara alvoroçado.escandalizado
com a brutalidade com que ela resumira a cena fatal: "Ele vinha com as mãos nuas,
falando de paz. Eu o abati ". Era chocante!
— Mais chocante para mim, desastroso — replicou Angélica —, teria deixar-me-
enternecer, deixar-me submeter, segui-lo, entregando-lhe Wapassu, meus partidários,
meus filhos, deixá-lo continuar, como pretendia, sua campanha até Gouldsboro, onde,
com a ajuda de Saint-Gastine, ou contra ele, quem sabe?, o estabelecimento lhe teria
sido entregue. Sem terçar armas?... não é coisa certa. Haveria mortos. A fraqueza
muitas vezes apenas adia o massacre e multiplica sua amplitude.
"Você me achou brutal, meu padre, em minhas palavras, porque lhe expus todos os
conflitos e tormentos que agitaram minha alma e partiram meu coração, aqueles
poucos segundos de hesitação antes de atirar. Necessitaria de horas para descrevê-los.
Eu lhe gritava: 'Não se aproxime! Não se aproxime!...'
"Mas ele continuava a avançar. Ele também fizera sua escolha, renegando a aliança
que fizera conosco. Contando com a afeição que eu lhe dedicava para render-me mais
facilmente... O que acontecia com ele? Recaíra sob sua égide a ponto de fazer pouco
de sua própria honra, para comprazê-lo, comprazer a sua memória? Ou tentava
escapar?, escapar àquela escolha, escapar a todos os que não o compreendiam mais?...
Eu o abati", repetiu.

Foi Sebastião d'Orgeval quem dessa vez voltou lentamente os olhos a fim de
observar aquele perfil de mulher ao seu lado, aureolado pela luz proveniente da
lareira, aquela boca fina e perfeita que pronunciava tais palavras.
— Compreendo agora como você pôde vencer Ambrosina. É isso o que ela não lhe
pode perdoar. Julgam-na uma mulher sensível, vulnerável. E subitamente você se
revela astuta, implacável.
— Se bem entendo, você quer dizer que eu não faço o jogo, não?... Não é a primeira
vez que me fazem essa censura e, sobretudo, que ficam desolados com isso... seria tão
fácil, sem isso!... não é? "Fazer o jogo."Que jogo?... O da fraqueza, prostrando-se,
vencida, aos pés da força?... Aquele da mulher hereditariamente submissa, inclinando-
se espontaneamente diante do homem, do guerreiro... O da sensibilidade e da
generosidade, fatalmente espezinhadas e destruídas pela crueldade e traição dos
adversários, que não têm escrúpulos.
"É fácil abusar da bondade e do impulso dos corações generosos para causar sua
perda. Sou uma sagitariana. Sempre me foi insuportável dar a meus inimigos
a'satisfação de minha derrota sem fazê-los arrepender-se, de um modo ou de outro,
por pouco que seja. Uma questão de justiça. Restabelecer o equilíbrio entre o Bem e o
Mal. Entre as leis do Céu e as da Terra. Mas há mais algumas coisas. O ser humano
está no meio. Ele não tem escolha.
"Não somos nós, os 'ternos', que nos mostramos duros e intratáveis, sem pé nem
cabeça. E a vida, são os outros, os desgarrados ou os inecrupulosos. E a mediocridade,
é a felonia dos outros que nos obriga à escolha.
"Quer o queimaremos, quer não, quer sonhemos com harmonia, paz, felicidade
cotidiana, crianças felizes em meio a nossas obras fecundas, chega um momento em
que somos obrigados a fazer uma escolha, um dia em que temos de pegar em armas.
Para sobreviver ou para defender a inocência. E essa obrigação o que mais odeio, mas
aprendi como ela era inelutável. Poucos são os que podem evitar enfrentá-la, pelo
menos uma vez na vida.
"Cláudio de Loménie morreu porque ele fizera sua escolha, a de servir-lhe. Saiba,
Sr. d'Orgeval, que me impôs um ato de que nunca me consolarei. Pois eu também o
amava."
Essas duas cenas convulsivas deixaram-nos abalados, esgotados.
Enquanto retomavam forças, estendidos lado a lado, flutuaram sobre águas
pacíficas, compreendendo a inanidade de suas discussões e a profundidade de um
sentimento que vinha de longe e que se parecia com a amizade.
Acima deles passavam os-eoros do vento e também o dos anjos em cavalgadas
fantásticas.

CAPÍTULO XXV

A fuga das crianças — Esperança de salvação

Imaginavam sempre que tudo fora dito, que a paz voltara a reinar. entre eles. E
depois, a uma palavra, a uma alusão, despertavam-se o rancor, o desespero, os
arrependimentos.
Rancor por ter pago um tributo tão pesado, desespero diante do irreparável,
arrependimentos por terem se mostrado medrosos, imperfeitos, por terem, por boa
vontade, feito o jogo de reles paixões que, uma vez saciadas, parecem fúteis,
desproporcionais em relação aos desastres que acarretam, os lutos que engendraram,
as lágrimas que fizeram correr.

Seu antagonismo explodiu mais uma vez, e isso ocorreu todavia de um


acontecimento que deveria ser marcado pelo signo da alegria: sua primeira saída do
fortim, depois de um longo período inclemente de noites e tempestades, durante o
qual não puderam fazer nada além de ficar enterrados em seu buraco, saída que veria
os primeiros passos do "ressuscitado" à luz do dia.
Desde o início, ela tomara o cuidado de fazê-lo flexionar as pernas, apesar das
dores, que o faziam gritar. Pois ela notara que ele podia executar movimentos que
davam mostras de flexibilidade e de vigor, como daquela vez em que ele se erguera
para alcançar-lhe a mão e beijá-la. E isso evitava o enrijecimento dos membros, que
se arriscavam a ficar deformados pelas cicatrizes, sempre imperfeitas, das
queimaduras.
— Hoje você deve tentar sentar-se — disse-lhe ela, estendendo-lhe as mãos para
segurá-lo.
Chegava o momento de encorajá-lo a mover-se ainda mais.
Os progressos foram lentos, marcados contudo por etapas decisivas, superadas de
uma hora para outra como que por um milagre.
Um dia ele ficou de pé, esquelético, desengonçado, como um polichinelo quebrado,
mas conseguindo deslocar os pés algumas polegadas, enquanto ela o segurava, ou
melhor, o carregava, pela cintura, com um dos braços em volta de seus ombros, e ele
se apoiava com a outra mão no pequeno Carlos Henrique.
Como o tempo melhorara, ela decidiu dar uma saída com ele e as crianças. A
estação atravessava um período de estabilidade. O frio continuava intenso, mas o sol
brilhava sobre a neve recém-caída e fofa.
Angélica desprendera a porta. Com as crianças, pusera o nariz para fora e percebera
a carícia do sol para lá do abraço do gelo. E a época, no meio da invernada, em que
alguns ursos se arriscam a uma saída titubeante para em seguida tornar a mergulhar
num sono mais benéfico.
Em Wapassu, nos outros invernos, todo mundo saía, passando as breves horas
ensolaradas do dia a flanar. Faziam-se visitas, ia-se ver os índios, passeava-se com as
raquetes, andava-se de trenó e as crianças deslizavam à beira do lago, ou, para imitar
a sociedade de Quebec, que organizava suas partidas de patinação e piqueniques no
Pão de Açúcar, perto das quedas Montmorency, erguiam-se toldos em volta de
braseiros, distribuindo salsichas e pães com melaço. Para as crianças eram sempre
dias de alegria. Nessa época, Angélica e Joffrey subiam ao cimo do torreão e olhavam
a animação em volta da bela fortaleza de madeira de Wapassu, com a fumaça
elevando-se dos telhados enterrados das outras casas que, sob sua salvaguarda,
haviam proliferado em torno. Os gritos das crianças soavam ao longe, os risos das
mulheres, as interpelações dos homens, chamando-se ou encorajando-se em seus
trabalhos.
Saíam para tomar ar e sol como uma panaceia, que era preciso amealhar, antes que a
tempestade os aprisionasse por outras longas semanas, entre quatro paredes, sob o
peso das neves.
Quando da chegada do Padre d'Orgeval moribundo, depois de ter-lhe tirado os
andranjos que o cobriam, ela vasculhara entre as camisas e coletes de Lymon White para
vesti-lo. Trouxe-lhe para aquela ocasião calções, meias, sapatos do guardião da casa — o que
teria acontecido cõm o pobre mudo? —, além do casaco e do gorro de pele forrados,
Quando viu o jesuíta, equipado dos pés à cabeça, não resistiu à malícia de perguntar-lhe se
ele não ficava impressionado por estar vestido com os trajes de um inglês puritano
congregaciònalista de Massachusetts. Ele replicou, estremecendo:
— Como ousa brincar sobre suas traições? A canalha perniciosa de que se cercaram,
você e seu esposo, causaram sua perda.
Como ele estava de pé e muito vacilante, tendo ela e Carlos Henrique dificuldade em
sustentá-lo, obrigou-se a ter paciência e permaneceu em silêncio.
Cometeu uma imprudência. A de não levar em conta a emoção que tais palavras,
injustas e revoltantes, despertavam nela.
A aventura começava mal. Fora um erro não ter renunciado a ela e prosseguir em seu
desígnio, que era arrastar todo mundo para fora. Enfraquecida pela contrariedade e pelo
rancor que aquelas reflexões mal-intencionadas de seu paciente lhe haviam provocado,
sentiu-se mal. Odiou-o por isso.
— Com você, vou envelhecer dez anos — disse-lhe ela.
Mas ele não compreendeu. Estava preocupado em avançar ao longo do corredor,
custando-lhe cada passo um grande esforço e provavelmente muita dor.
Quando conseguir transpor a trincheira gelada, achando-se de pé ali na neve, presas do
frio e da luz, o olhar que Angélica lançou sobre a planície branca e resplandecente, em
vez de feliz, foi amargo.
O que via destacar-se contra o céu azul eram as ruínas de Wapassu, cujo caos,
recoberto de neve, erguia uma bárbara catedral do outro lado da colina.
Nas saídas precedentes, sempre evitara voltar-se para aquele lado, mas hoje, por causa das
palavras que acabara de ouvir, experimentava uma perigosa vertigem medindo toda
extensão do desastre. Isso lhe partiu o coração, pois acabara por se esquecer, na
urgência das ameaças da fome. Mas o espetaculo era para ela ainda mais penoso pelo
fato de se encontrar diante do homem que quisera aquela derrota e que podia rejubilar-
se com ela.
— Olhe! — gritou, dirigindo-se a forma masculina, de pé ao seu lado. — Eis sua
obra! Rejubile-se! Você se queixa de seus amigos, de seus fiéis, que o traíram.
Mesmo assim eles o vingaram bem... Não se lamente mais disso. Você ganhou... Pois
as últimas adjurações de um santo mártir são ordens sagradas. Eis o resultado!
As palavras violentas lhe saíam da boca. Repisara-as por muito tempo, repetindo-as
em voz alta quando ficava sozinha no silêncio do deserto branco. Mas era incapaz de
ordená-las, de dar uma coesão ao que lhe queria explicar.
— Teria sido preciso tão pouco para que tudo fosse salvo!... para que o pobre
Emanuel tivesse tido tempo para me falar antes de morrer!
— Morrer? Emanuel? Você não me havia dito que ele fora poupado?
— Pelos iroqueses, sim! Mas não pelos seus! Ele está morto!... Morreu para que
ninguém conhecesse a verdade sobre sua ruína... Ele foi até o jardim, em Salem, para
me fazer revelações. Ia falar. Ia confiar-me sem dúvida o que vira no vale das Cinco
Nações, ia gritar-me: "Não é verdade! O Padre d'Orgeval não morreu como mártir
entre os iroqueses. Ele não a acusou, a você, Sra. de Peyrac, a você, a Dama do lago
de Prata, inocentada pelas mais altas instâncias da Igreja, senão para dissimular sua
fraqueza diante das torturas, encontrar um pretexto para sua fraqueza, mas não
enganaria ninguém. Tudo não passa de mentiras", ter-me-ia dito chorando, "mas vejo
meus mais veneráveis mestres construírem uma lenda destinada a enganar as almas
piedosas".
"Eis o que estava prestes a me dizer. Eis o que explicava sua palidez e seu desatino.
Ele não aguentava mais sentir-se envolvido nessa felonia."
O jesuíta tentava acompanhar-lhe as palavras loquazes, espreitando-a com um olhar
ansioso.
— E?„. Ele falou?
— Não teve tempo. O Padre de Marville surgiu diante de nós. Intimou o rapaz a
calar-se e segui-lo. Não o revi mais. No dia seguinte recolhiam das águas .do porto o
corpo de Emanuel Labour. Dirão que ele se suicidou? Receio que uma vontade estra-
nha o impeliu a isso.
E como Angélica julgasse ter surpreendido no olhar fixo pousado sobre ela um
brilho de alívio, sentiu-se enlouquecer de indignação.
— Você também acha que está tudo bem assim, não é? Você o teria feito? Teria
jogado com seus "poderes", como diz, para arrastar aquela pobre criança,
desorientada, enfraquecida pela fome, pela fadiga e pelas torturas, a destruir-se a si
mesma, a se afogar voluntariamente, carregando seu segredo para o túmulo? Ele, tão
cristão, tão corajoso, como se poderia explicar tal gesto, se não soubesse que vocês
não hesitam, vocês, padres, a desencadear certas influências, quando julgam
necessário... como tantas vezes fizeram...
"Você o teria feito, teria sacrificado a criança também você, como o Padre de
Marville o fez. Era preciso salvar a honra da ordem. Pois bem! Aí está. Olhai à sua
volta. A honra da ordem está salva. E nossa obra está aniquilada."
Ela ofegava. Pequenas nuvens de vapor escapavam-lhe da boca, sublinhavam as
palavras irrisórias que ouvia a si mesma pronunciar, lançando-as aos quatro ventos do
universo gélido.
— As últimas palavras de um mártir têm o peso de ordenações! O imperativo de um
testamento!... Marville soube o que conseguiria colocando-o nos altares. Sabendo que
não poderia jamais apagar a realidade de seu ato, ele transmutou esse chumbo em
ouro puro e, dissimulando-o, o fez servir à maior glória de Deus e do reino. Você é o
maior. Você os simboliza a todos.
Glória lhe seja prestada, Padre d'Orgeval. Edificam-lhe capelas, e multidões lhe
dirigem preces e súplicas. Seu irmão em religião fez mais do que vingá-lo. Ele o
canonizou. E quem iria se arrepender do resultado de uma tão brilhante impostura!...
O frio raspava-lhe a garganta. Estava errada por falar assim, gritar dessa maneira,
isso de nada mais adiantava e não vingava ninguém.
Angélica tossia. Seus lábios estavam secos.
"De que adianta a cólera?", pensou, arrependendo-se de sua explosão e do estado em
que se colocara, pois sentia o suor escorrendo-lhe pela espinha e congelando-se. "De
que adianta essa diatribe dirigida a um ressuscitado que não se aguenta em pé e que
não consegue dar um passo?!"
E retomou fôlego, com os olhos fechados, e depois erguendo-os para ele.
Viu sua boca aberta, sua mandíbula caída, numa expressão de estupor, mas também
de incredulidade. Acabava de dar-se conta da maquinação que o Padre de Marville
armara em torno de seu nome. Começou a sacudir a cabeça e repetiu várias vezes:
— O que foi que eu fiz?!... O que. foi que êu fiz?!...
Vagarosamente dobrou os joelhos. Ela estendeu o braço para ampará-lo.
Mas ele simplesmente se ajoelhara. E ela o viu erguer os olhos, depois as mãos para
o céu.
— Perdoe-me, Emanuel. E vocês, muito caros e santos e modestos mártires, meus
irmãos jesuítas do Canadá, vocês, que o mundo esquecerá, perdoem-me! Perdoem-me
por ter usurpado, involuntariamente, a glória e a reverência que lhe são devidas, a
vocês somente, verdadeiros sacrificados de Deus, vocês, que morreram apenas pelo
amor de Cristo e não pela adulação dos homens, para lhes servir, de exemplo e não
para suscitar sua veneração idólatra, perdoem-me!
"Perdoem-me os erros cometidos por minha culpa, as felonias às quais impeli os
meus. Perdoem-me! A mim, indigno, a mim, a vergonha de nossa santa ordem, a
mim, o mais vil, a mim, o mais covarde. Pela fraternidade de nossos compromissos,
conservem-me sua piedade, orem por meu resgate, e pela virtude de suas santas
chagas, ó, eu lhes suplico, dignem-se assistir-me na hora da minha morte!...
A luz que tornava sua face translúcida viria do sol ou da transfiguração interior de
seu ser?...
Mais uma vez Angélica se encontrava diante de um desconhecido, perguntando-se
onde ficara o indivíduo ao qual acabava de dirigir seu violento requisitório.
Depois, subitamente, viu-se novamente cercada pelo grande silêncio branco e o frio
cruel.
— Onde estão as crianças? — gritou, voltando à realidade. —Para onde foram?
Olhava ao_redor. As" crianças haviam sumido. Recomeçou a bater os dentes de frio
e de pânico. Perdera a cabeça discutindo com aquele homem, perdera as crianças de
vista.
— Onde estão?— Onde estão? Onde estão as pobres inocentes?...
— Estão lá, à beira do lago, deslizando na neve — disse o Padre d'Orgeval, que
"tinha uma visão penetrante.-
Levantara-se e colocara-lhe a mão no ombro.
— Acalrne-se!
— Não poderei jamais ir tão longe para buscá-las. Mas como é que elas conseguem?
Eu mal tenho forças para dar alguns passos, e elas voam como pássaros. Como
alcançá-las?... Estão se afastando. O meu Deus!
— Não se mova — disse ele. — Elas vão voltar. Vão voltar por conta própria.
Uma bruma sorrateira de fim de dia começava a despontar ao longe, dando às
florestas azuis um tom pastel, fundindo toda a paisagem por trás de um véu de
irrealidade.
Angélica não via mais as crianças e estava inquieta.
— Estão voltando?
— Sim, estão voltando.
— Não consigo vê-las. Onde estão? Elas vão desaparecer. Desaparecer!...
— Não, elas vão voltar! Acalme-se.
Sentia aquele braço nervoso enlaçando-a para sustentá-la e impedi-la de lançar-se à
procura das crianças, pois teria caído e não poderia levantar-se.
Depois as crianças ressurgiram diante dela, três pontos redondos, que nem sequer
eram silhuetas, tão pequenas e desengonça-das estavam em suas roupas, mas três
pontos que aumentavam visivelmente de segundo em segundo.
— Estão vindo?
— Sim, estão vindo.
Estavam vindo, como se nascessem do ouro vermelho do inverno. Carlos Henrique
no meio, dando a mão aos gémeos, que bamboleavam sem pressa ao lado dele, os frês
muito satisfeitos com sua expedição.
— Não lhes diga nada. Não ralhe com eles... Eles são o nosso perdão! São a nossa
salvação!

O SOPRO DO ORANDA

CAPITULO XXVI

Insinua-se o "mal da terra"

Ela acreditava que o alce, fornecendo-lhes reservas de carne até a primavera,


garantiria sua sobrevivência até lá. Mais eis que despontava a face insidiosa do
segundo mais cruel inimigo das invernadas, depois da fome: o escorbuto. Face
horrível, apodrecida, de carnes inchadas e gengivas sanguinolentas...
Começou a perceber-lhe a aproximação ao notar a palidez e a fatiga da pequena
Gloriandra. Essa encantadora boneca, sempre alegre, e que seguia, com uma
animação tão devotada quanto admirativa, as iniciativas de seus irmãos, não a
acostumara à inquietação. Desde as primeiras horas de seu nascimento, dando provas
de uma vigorosa saúde, ela sobrenadava como um pequeno peixe valente na
correnteza das doenças e provações físicas que se abatiam sobre o irmão, e que se
haviam habituado a vê-la transpor, por suas próprias forças e sem prejuízos.
Talvez por causa disso, Angélica levou mais tempo para se alertar. E quando se deu
conta, o mal já lhe parecia muito adiantado. De todo modo, não lhe era possível detê-
lo, pois faltavam-lhes elementos essenciais à alimentação.
Com a menina no colo, acáriciava-lhe o rosto redondo, em que as pupilas de um
azul cambiante se haviam turvado, acariciava os longos cabelos negros, tão belos e
incrivelmente longos numa criança tão pequena, que pareciam vesti-la, ocultá-la em
seu abandono contra o ombro da mãe, enquanto os pequenos lábios inchados se
esforçavam em vão para esboçar um sorriso.
— O minha princesinha! O meu tesouro! Não é possível! Sei ainda tão poucas
coisas sobre você! Não tive ainda tempo para conhecê-la. E voeê se vai!... Eu lhe
suplico... Não parta!
Esse terror", assa loucura, eram seu primeiro reflexo sob o choque da descoberta.
Acreditara piamente que estivessem a salvo de tudo, e que todos reveriam a primavera
com saúde...
Como defender-se da horrível doença?... Ia encontrar um meio. Mas nos primeiros
instantes só podia apertar a criança contra o peito, apaixonadamente.
Gloriandra de Peyrac! A princesinha! A pequena maravilha!, ornada de todas as
graças. A filha do Conde de Toulose. Pensou em Joffrey. Pensou nas mulheres de sua
linhagem. E na regente da Aquitânia, sua mãe, soberba e ardente, sobre a qual ele
dizia, evocando as vagabundagens de sua juventude aturdida, que, mesmo no fim do
mundo, e sem lhe confessar uma lembrança coti-diana, guardara a sensação de jamais
tê-la deixado. A esse espírito tutelar ela confiou a criança condenada.
Aquela mulher adorara seu filho, e Angélica compreendia e partilhava esse
sentimento. Sua bravura devia ter dado à mãe de Joffrey o poder de continuar a velar
por ele no além-túmulo.
"Você não tem o direito de deixar que lhe retomem sua filhinha."
Estipulado o acordo, sentiu-se melhor.
A voz do jesuíta, que estava deitado,, chegou até ela.
Ele se informava sobre sua preocupação, estampada em sua fisionomia.
— Minha filhinha, eu a julgava salva — murmurou Angélica. — E eis que
recomeço a recear que me seja tirada, que não alcance o fim do inverno.
Ela mordia os lábios, e era a primeira vez que ele a via retendo as lágrimas.
Descobria-lhe nos traços transtornados a vulnerabilidade de seu coração, a ternura
comovente que aquele belo rosto, às vezes tão imperioso, com um olhar que podia ser
tão fulgurante, fazia esquecer.
— Outra vez, não! — murmurou. — Essa angústia, novamente, não!
— Ah! Você vê?... Compreende agora o que isso quer dizer. Outra vez, não. E o
segundo golpe que provoca a queda... Para este, não se tem uma reserva de forças. O
que você receia?
— O escorbuto.
Ele fez um esforço para sentar-se e sair da cama, depois, com pequenos passos de
doente de gota, foi inclinar-se sobre a criança e examiná-la com atenção.
Em seguida, voltou a estirar-se na cama e fechou os olhos com um profundo
suspiro.
Mas, ao cabo de alguns instantes, disse, com voz firme:
— Confie.

CAPITULO XXVII

Uma partida insensata

De manhã, ao despertar, viu-o de pé junto à cama, vestido com o casaco e o


gorrinho de Lymon White.
Disse-lhe que decidira partir e andar até encontrar um posto ou uma missão, de onde
traria o suplemento de víveres necessários.
Ia subir para o norte até atingir os canais gelados de Mégantic. Quando tivesse
encontrado o fio de um outro riozinho que serpenteava no verão entre falésias de
duzentos pés de altura, sabia que estaria no caminho mais curto, embora não o menos
acidentado, para chegar à Missão de São José, dos abenakis, na região da Haute-
Chaudiere, uma das mais modestas, mas a mais próxima para eles. Podia ser que
estivesse deserta. Que todos ali estivessem mortos ou tivessem ido embora. Caso
contrário, procuraria algo para mudar a sempiterna dieta de carne de alce, mais milho,
farinha, quem sabe repolhos, se os padres os cultivassem, conservados sob a neve. E
se não pudesse achá-los no caminho, sob as árvores, encontraria em sua farmacopeia
aquela famosa casca de árvore, com a qual o chefe huroniano, durante a primeira
invernada no rio Saint-Charles, salvara a tripulação de Car-tier, dizimada pelo
escorbuto. "A sabedoria manda que nos fiemos nos remédios dos selvagens, quando já
deram provas de eficácia."
Angélica levantara-se. Estava de pé diante dele, sem conseguir acreditar em sua
decisão. Quanto mais pensava nela, mais o projeto lhe parecia o que era: louco,
insensato e fadado ao fracasso irreparável, apesar da esperança que despertava.
Mesmo um homem vigoroso não teria podido pôr-se a caminho naquela época do ano
para atravessar a região por uma extensão tão grande, sem que todos lhe predissessem
morte certa.
O círculo dos furacões cercava sua ilha deserta, e ela compreendera muito bem que
ninguém podia escapar dele nem penetrar ali antes do degelo.
A distância era imensa. As tempestades ameaçavam todos os dias, e se uma delas o
surpreendesse, ele "se perderia", conforme a terrível expressão, que condena o isolado
perdido sob as rajadas de neve, sem ponto de referência nas trilhas apagadas.
— Sua filha foi atingida — disse ele, lançando um olhar à pequena Gloriandra. —
Eu trarei a casca específica para isso — repetiu —, ou frutos secos, ameixas-pretas,
repolhos, todas as coisas que afastam em pouco tempo o escorbuto, e também milho,
feijões e grãos de aveia-louca para germinar.
— E se os jesuítas o reconhecerem? E se não o deixarem voltar?
— Só existem dois jesuítas lá. Um professor, o Padre de Lambert, e um coadjuntor
temporal, talvez um servidor leigo. No máximo, três brancos. No verão, o lugar é
impraticável por causa das cheias da Chaudiere, quando se abandona a cabana isolada
infestada finalmente de pernilongos. Mas, no inverno, permanecem ali para dar
assistência às populações errantes, que tentam alcançar Levis e Quebec a fim de
buscar socorros e que, nessa etapa, morrem de fome e frio no caminho.
Angélica não podia habituar-se à ideia. Jamais conseguiria chegar até lá! Pereceria
no caminho. Depois, lembrou-se da vinda de Pont-Briand e de seu índio, o grupo de
Loménie e D'Árreboust, as façanhas isoladas de intrépidos como o jovem Alexandre
ou Pacífico Jusserant, o "dado" do Padre d'Orgeval, e até daquela louca tripulação de
Joffrey, que perseguira Pont-Briant até o lago Mégantic, para matá-lo em duelo.
Os loucos do deserto branco. Havia às vezes alguns que sobreviviam e que
voltavam, pois aquela era uma região para os insensatos.
Todavia, ela insistiu:
— Você está fraco, ferido, ainda doente. Mal se mantém de pé.
Ele ergueu o dedo, como que posto em comunicação com um contato invisível.
— O sopro do Oranda me sustentará.
— O que é o Oranda?
— O Espírito" e a força suprema no seio das coisas, no próprio ar que respiramos.
Eu o chamarei. Ele virá.
Num movimento, ela se lançou sobre ele, apertáhdo-o em seus braços.
— Você voltará, não.é?
— Voltarei. E você, viva! — disse ele, abraçando-a também, cada um querendo
deixar ao outro o viático de sua confiança. — Viva, ó mulher bem-amada, a fim de
que meu sacrifício não seja inútil!

CAPITULO XXVIII
Um companheiro de miséria — Apenas um corpo em movimento

Ele saltava! Galgava o espaço! Quebrava o cristal do frio, atravessava as vibrações


douradas do sol.
Não possuía mais corpo. Não era ele que reconhecia a pista. Era a pista que lhe fazia
sinal. A floresta que se abria diante dele. Sabia onde transpor as falhas do terreno com
um salto. Onde abordar os montes para atravessá-los. Por instantes, voltava a cabeça
para trás.
"Oranda! Oranda!"
O Grande Espírito lhe trazia sua desforra. Ele seria um homem como os outros,
lutando pela salvaguarda de uma mulher e de crianças pequenas.
Houve algumas borrascas, mas o tempo permaneceu limpo. Flocos de neve
eriçavam-lhe a barba.
Uma brusca tempestade levantou-se no último dia, mas ele sabia que estava perto e
não se perdeu. Foi através das rajadas sibilantes que ouviu o carrilhão»
O sino da salvação! O sino do ofício noturno. Salve Regina! Salve Rainha do Céu!
Foi o tempo de sair da floresta, atravessar uma longa planície e subir lentamente
para a missão, e o céu limpou-se, as nuvens portadoras de neve fugiram.
Seus lábios enegrecidos pelo gelo e pelo sol esboçaram um sor-nso quando avistou a
cruz da capela.
"Como eu te amo, signo de amor! Deus crucificado! Escândalo do Universo, como
eu te amo!"
O cheiro cálido era embriagador.
— Fizemos pão — disse-lhé o-missionário que o acolhia.
Os dois jesuítas consideravam-no em silêncio. Ele se inquietou. Estariam achando
estranho que não se identificasse?
— Você se perdeu, primo? — perguntou-lhe o irmão coadjuntor, que tinha um rosto
de sólido camponês.
Ele sacudiu a cabeça negativamente. Depois compreendeu que sua aparência era a
de um joão-ninguém, esquálido, meio enlouquecido pela solidão dos bosques, o
medo, a fome. Todavia, não se lançou sobre o alimento que lhe apresentavam. Fez um
sinal indicando que queria primeiramente apenas aquecer-se e repousar.
Quando se sentou diante da lareira, sentiu que as vestes se lhe colavam na carne em
diferentes pontos, pois as feridas se tinham aberto de novo. Recusou-se a perceber seu
corpo. Ele era apenas um ouvido atento. Escutava aquelas vozes de homens falando
francês, retomando a língua algonquina quando o índio aparecia. Os índios tinham
uma aparência estranha. Seu dialeto era quase incompreensível para os abenakis da
região. Atribuiu-lhes parentescos com os narrangasetts do sul. Caiu a noite.
Depois de ter rezado o terço na capela e entoado os cânticos com os fiéis, os
missionários fechavam as portas da pequena paliçada que cercava a habitação.
"Todos esses ruídos de uma missão", ele se dizia, "esses odores! Um cheiro de
incenso. Um cheiro de pão! De velas apagadas. De missais! Ruídos de irmãos
arrumando os terços na sacristia. Murmúrios de preces..."
Os dois homens de batinas pretas voltaram para a sala comum. Respeitavam o
silêncio do hóspede estrangeiro, mas ele os examinava em segredo e desconfiava de
sua sutileza. Dialogavam uns com os outros, primeiro sobre os nómades que
acampavam à sua porta. Sobreviventes da grande confederação dos narragassetts.
Ingleses sanguinários do sul haviam acabado com sua revolta para sempre. Depois
conversaram sobre acontecimentos da Nova França. O novo governador parecia
decidido a reduzir os iro-queses que trabalhavam para os ingleses. Começara uma
campanha militar, detida pelo inverno. Também falaram de Wapassu, e ele ficou
muito atento. A coalizão que Frontenac imprudentemente fizera com o fidalgo
francês, aliado dos hereges da Nova Inglaterra, fora dissolvida. No outono, a
campanha do Sr. de Loménie pusera fim àquela perigosa vizinhança. O ninho de pira-
tas ímpios fora queimado. Wapassu não existia mais, e não renasceria de suas cinzas.
Seu coração batia. Pensava nela, tão longe, lá embaixo.
Calava-se. Perguntava-se se não estariam falando para ele, por havê-lo
reconhecido... ou se não adivinhavam de onde ele vinha... Depois tranqúilizou-se,
compreendendo que se tratava apenas de um diálogo banal, como os que travam após
um dia de trabalho aqueles que se encontram e comentam a situação, a fim de decidir
sobre o dia seguinte. Notícias chegadas recentemente tinham informado aqueles dois
solitários sobre mudanças de política, cujas etapas não haviam podido acompanhar.
Ouviu-os felicitar-se pela partida — dizia-se já "pelo chamado" — do Governador
Frontenac, tão hostil à Companhia de Jesus.
Calava-se. Naquele ardor de destruir Wapassu que sentia em suas palavras, como se
se tratasse de uma cruzada santa, reconhecia sua própria raiva, aquela que alimentara
outrora, e não a compreendia mais.
"Você está lá longe", pensava, referindo-se à visão de uma mulher e à ternura de seu
olhar pousado nele, meio indulgente, meio provocante, um olhar que ela só tinha para
ele, "e me pertence, mesmo que eu seja apenas um companheiro de passagem, um
companheiro de miséria, um inimigo ao qual você nunca perdoará, um pobre homem
que merece piedade, mesmo que você não pertença senão ao outra,, aquele que habita
em seu coração, aquele pelo qual você enlanguesce seu corpo, apaixonado pelo seu
corpo, sua força, seu sorriso. Não sou nada perto dele, mas você me pertence se eu o
quiser", repetia a si mesmo, encontrando uma doçura e um conforto nesse tratamento
ousado, sinal de uma amizade mais profunda e que nunca transporia seus lábios, pois
"eu sou aquele que veio para lhe dar apoio e ajudá-la a viver até que você possa se
encontrar do outro lado do inverno e correr novamente para seja amor. Não sou nada,
mas terei oferecido a você esse presente, que é mais que sua vida, conservá-la viva
para ele, com os filhos de seu amor."
Ficava sentado no canto da lareira, com os olhos baixos, acentuando seu lado um
pouco limitado de "viajante" taciturno que se "perdera" no furor do inverno, mal
refeito das fadigas e dos esforços que tivera de fazer para escapar à morte branca.
Receava também trair-se por seu olhar, e respondia às perguntas que lhe faziam
resmungando.
O irmão dispôs escudelas sobre a mesa e copinhos de estanho.
— Você vem partilhar nossa refeição, amigo?
Obedeceu-lhes, decidindo-se a retirar o gorro preto e as luvas forradas.
Quando avançou a mão para pegar o pedaço de pão que lhe estendiam, deram-lhe
um olhar de piedade e de respeito.
— Você também, meu irmão, sofreu nas mãos dos iroqueses, parece-nos.
Tinha de responder.
Falou de uma viagem aos andastes e como permanecera em seguida entre os sioux,
aquelas tribos do extremo oeste dos Lagos, que são aliadas dos neutros e dos petuns,
receando cair nas mãos de seus torturadores no caminho de volta. O anúncio da
companhia do Sr. de Gorrestat contra os iroqueses o encorajara a fazer uma tentativa,
mais tivera dificuldades dessa vez de escapar aos sioux, que queriam detê-lo, e depois
a rudeza do inverno, muito rigoroso aquele ano, atrasara seu avanço.
— Não será você um habitante do cabo da Madeleine, cuja família está sem notícias
há três anos? — perguntou o padre.
Mas o irmão coadjutor sacudia a cabeça antes dele. Todos os rostos da Nova França
lhe pareciam ser perigosamente familiares.
— Não o reconheço, primo!
Ia continuar a fazer-lhe perguntas.
Para desviar-lhes a atenção, esforçou-se por interrogá-los sobre seus trabalhos.
Quantos catequistas? Quantos batismos por ano?
Falaram de bom grado sobre seu ministério. Esse ano, havia aquelas tribos
algonquinas que haviam subido do sul. Os índios não ouviam com boa vontade a boa
palavra, disse o padre, mas, tendo perdido tudo para os ingleses, eles compreendiam
que o único refúgio que podiam doravante encontrar era à sombra da cruz católica e a
da bandeira do rei da França.
Chegavam em grupos cada vez mais numerosos. Não era fácil alimentá-los, cuidar
deles, defendê-los-das feitiçarias de seus "prestidigitadores" e da amoralidade de suas
mulheres. E sobretudo da embriaguez, que causava grandes crimes.
— Temos uma reserva pequena de bebidas alcoólicas aqui. Apenas para os doentes e
feridos. Nem sequer fazemos cerveja, para não tentá-los. Mas, assim que o tempo
melhora e o frio fica menos intenso, eles partem em campanha, a pretexto de caçar,
tornando a subir para Sorel ou Levis para obter provisões de aguardente, em troca das
peles, que muitas vezes roubam nas armadilhas das tribos locais, o que cria muitos
conflitos.
Conversaram e ele se deixou ficar a escutá-los, aprová-los, encorajá-los por breves
palavras, tocado de piedade por eles, de compaixão pela rudeza de sua existência.
Mas, sabendo em que fonte santa hauriam sua coragem, admirava-os, invejava-os,
sentia-se seu irmão mais do que nenhuma outro poderia sê-lo e, ao mesmo tempo,
separado deles para sempre, até a eternidade, como que por uma dura e intransponível
cortina, como o véu da morte.
O fogo diminuía na lareira, e suas luzes vermelhas e saltitantes refletiam-se nas
faces dos três homens sentados à mesa e inclinados uns para os outros numa atitude
de confiança.
Sebastião d'Orgeval foi o primeiro a tomar consciência de que a noite avançava.
— Faz-se tarde, meus amigos — murmurou. — Não é tempo de irem descansar?
Quanto a mim, se me permitirem, dormirei nesta sala, naquele banco de-pedintes, que
estou vendo ali.
Os dois religiosos levantaram-se silenciosamente. O irmão coadjuntor lembrou-se
de que precisava vigiar até o fim o cozimento do pão da segunda fornada.
— Eu vigiarei — interpôs-se o hóspede.- — Peço-lhes, repousem. Ficarei feliz por
retribuir-lhes a hospitalidade com algum serviço.
O Padre de Lambert e o irmão aquiesceram com um sinal de cabeça. Estavam diante
da porta, segurando lamparinas chamadas de "bico-de-corvo", cuja mecha,
mergulhada na gordura de urso, difundia um halo dourado-escuro como o das
iluminuras. Na missão, as velas eram reservadas para a capela.
Eles olhavam para o homem, de pé ali na penumbra o homem com mãos de mártir,
o hóspede que viera do frio desértico, como que surgido, nascido da própria
tempestade, de suas rajadas e de seus gritos, e que não procurava mais simular a
postura canhestra e ríspida de um explorador de bosques insubmisso, habituado aos
índios.
— Nós nos levantamos para rezar as matinas — disse o Padre de Lambert. —
Nossos dias não nos dão muito tempo para isso. Em seguida, direi a missa. Você
estará conosco?
— Com alegria. E se não me julgar indigno, depois de confessar-me, ficaria feliz
por assisti-lo.
Fizeram um sinal de cabeça afirmativo, e retiraram-se, com gravidade.
Sua noite seria curta.
Precisava aproveitar esse curto espaço de tempo.
Para ele, não haveria sono. Quando tornou a se levantar, suas feridas se fizeram
lembrar. Não poderia cuidar delas. Os primeiros movimentos que esboçou
provocaram-lhe caretas de dor. Pensou nas mãos suaves de Angélica aplicando
compressas nos ferimentos e naquela rugazinha entre suas Sobrancelhas quando se
punha examinar com atenção uma chaga, como se lhe falasse frente a frente e ouvisse
suas explicações.
Sorriu. "Rápido! Apressemo-nos!"
Foi até o forno e, pelo cheiro que dele se desprendia, avaliou o tempo que ainda
seria preciso para que os pães ficassem assados.
Depois entrou num telheiro contíguo que devia servir de cozinha no verão. No
inverno guardavam ali reboques e raquetes, botas e luvas forradas, gorros, pesados
casacos de pele ou capotes de lã grossa com capuz.
Escolheu um reboque grande, comprido e sólido, já arreado, e um par de raquetes de
reserva. Entreabriu a porta da cabana e viu o pátio interno atravancado de neve com
um terrapleno desobstruído diante da casa. O aterro de neve, debruado de luar,
projetava sua sombra até o limiar. Dispôs o reboque do lado de fora,- retirando
também o par de raqueques.
Voltou para o interior da cabana e foi abrir o galpão onde eram guardadas as
provisões.
Agia sem fazer qualquer ruído, com passos tão leves e gestos tão precisos que nem
um índio teria podido supreendê-lo.
Do armazém, trouxe sacos de farinha de trigo, trigo-sarraceno, caixas de ameixas e
de conservas de limões verdes, grãos de aveia-louca, melaço, pães de açúcar, sal,
potes de conservas de gordura de pato, feijões, abóboras secas e todo tipo de ervas.
Dirirgiu-se à sacristia da capela e pegou alguma coisa numa das prateleiras. Voltou
para a casa. Deslocava-se com tal serenidade evanescente que parecia não deixar
nenhum rastro nem na neve, nem na terra batida dos armazéns e das adegas, nem nos
assoalhos da habitação. Toda a astúcia corporal do índio estava nele.
Procurava ainda um objeto que achou finalmente num cofre-zinho da sala grande e,
antes de se afastar, colocou algumas cinzas no fogo, a fim de abafá-lo. O produto de
sua rapina fora solidamente arrumado no reboque.
Em último lugar, voltou à habitação e abriu o forno para pegar os pães que estavam
bem crescidos e que se poderiam considerar assados. Pegou-os todos e levou-os um a
um para o reboque. Segurava-os junto ao coração com voluptosidade, aquecendo-se
com seu calor e dizendo consigo que aquele perfume de pão era o mais embriagador
da terra para uma pessoa esfomeada.
Em certo momento receou que aquele incenso generoso do mais nobre alimento do
homem, o pão, chegasse às narinas dos religiosos adormecidos. No ar gelado, os
eflúvios se elevavam como uma oferenda sagrada.
Cobriu os pães fumegantes com uma coberta de cornércio, tornando a apertar as
fivelas e atilhos. Depois calçou as raquetes, passou pelos ombros os arreios do
reboque e pôs-se a caminho através do pátio.
Não sentia mais nada, nem dor, nem fadiga. Era apenas um corpo em movimento, e
o brilho claro do luar lhe era indiferente. Ao chegar à porta da paliçada, retirou
habilidosamente as diversas cavilhas, girou a chave'da forte fechadura que eles
haviam colocado para desencorajar os ladrões noturnos e começou a avançar pela
planície.
Pouco depois, voltou-se. Do outro lado da colina, a missão, já semi-enterrada"sob
massas de neve, começava a desaparecer aos seus olhos. A pequena cruz do sino
continuava a brilhar como filigrana prateada contra o céu azul-escuro e vazio, pois,
sob o brilho da lua ou de uma leve névoa, não se via brilhar nenhuma estrela.
Num nível inferior, havia os wigwams dos índios, wapanogs e wonolancets,
amontoados em covis, dos quais se elevava um lençol estagnante de fumaça. Mas
poucas luzes brilhavam. No coração da noite, economizavam lenha.
Os ruídos eram abafados, como a própria vida, não apenas pelo inverno, mas pela
miséria e a angústia da derrota. A interrogação do dia seguinte como um peso infinito
que nunca mais se poderia fazer recuar, rejeitar.
Crianças choravam, cães latiam, velhos tossiam. Era um barulho que mal se ouvia,
muito fraco, longínquo, como um sonho.
Olhou na direção do sudeste e viu, acima das montanhas iluminadas pela lua, uma
barra preta que subia lentamente. A tempestade. Era para ela que ele se dirigia.
Eles nem pensaram em persegui-lo.

— Onde foram parar todos os pães da segunda fornada? — gritou o Irmão Adriano,
quando, decepcionados por não ver seu hóspede na missa, os dois religiosos foram à
sala comum e o convertido abriu a porta do forno.
Desorientado, ele olhava à sua volta e não discernia nenhum vestígio daquele que,
na noite anterior, batera à sua porta e pedira hospitalidade.
— Será que sonhamos? Era uma assombração?...
— Uma assombração não furta três sacos de farinha de flor de trigo, três de milho e
a metade de nossa reserva de ameixas — observou o Padre de Lambert, depois de
fazer uma rápida ins-peção no armazém de víveres.
— Vamos ver se não roubou mais nada — disse o irmão, muito pesaroso.
— Que mais queria que roubasse?... Comida é o que ele queria.
— Ele pegou o reboque.
— Para levar o saque.
O padre não queria contar que notara o desaparecimento de uma sotaina e de um
missal.
Durante a noite, a tempestade passara por eles. De madrugada, nuvens escuras
sobrevoaram a missão, uma neve revolta caíra, mas era apenas um prelúdio de quedas
mais pesadas que não deveriam tardar. No tapete fino e aveludado formado pela neve
fresca, a pista do reboque e das raquetes ainda era visível. Seguiram-na até um pouco
além da paliçada e ficaram a olhar para as lonjuras, para o perigoso sudeste inabitado,
em direção do qual se fora o desconhecido. A tempestade continuava a avançar, e pro-
metia ser feroz. A neve recobriria as pegadas do ladrão, se não ele mesmo e seus
furtos, enterrando-os.
— Por que chora, meu irmão? — interrogou o padre professo.
— Vamos! Vamos! São apenas algumas libras de farinha roubadas! Ele deixou o
suficiente para nós.
— Não é por isso que estou chorando — disse o convertido. —Que me importa o
furto...
Lágrimas corriam-lhe pelas faces de camponês, sem que pudesse retê-las, mas eram
lágrimas suaves.
— Estou chorando porque me lembro de nossa vigília ontem à noite. Como nos
sentíamos bem quando ele estava sentado co-nosco, partilhando nossa refeição e
conversando! Que luz! O padre, você o notou?
— Com efeito — disse o padre, sonhador. — Havia uma espécie de claridade em
torno dele, e uma serenidade em nós e à nossa volta.
— Não me lembro de mais nada além disso. Nem de suas palavras, nem dos
assuntos dé nossas conversas; lembro-me apenas que seus olhos eram azuis como o
céu e que nossos corações estavam repletos de alegria.

CAPÍTULO XXIX

"Eles estão mortos!"

Várias milhas antes ele já retomara seus saltos dementes. Um pânico que, a cada
passo, se dilatava, retorcendo-lhe as entranhas.
"Oranda! Oranda!"
Havia várias milhas já deveria ter percebido ao longe aquele vestígio de fumaça que
olhos exercitados não podem confundir com os rastros de neblina e que o teriam
avisado da aproximação de Wapassu.
Queimava os olhos para descobrir aquele vestígio de vida na paisagem morta, por
trás das fendas da máscara de couro indígena que fizera para se proteger da
reverberação.
Já devia ter percebido o cheiro de fumaça, pensava, farejando o vento, por mais
ténue que ela fosse,- diluída do ar gelado.
Nada. E uma apreensão mortal o abatia. Ele parava e torcia as mãos. Depois
continuava, voava por cima dos barrancos, engolindo, sem vê-la, a pista branca,
impelido pelo ritmos das raquetes batendo na neve e pelo barulho de sua respiração
sibilante.
Tarde demais! Lá embaixo, no fundo do impávido horizonte translúcido e gélido,
estava a Punição!...
"O que eu fiz?", dizia consigo. "Eu quis sua morte, quis sua destruição... Através
dela eu queria destruir a Mulher. Deus, por que deixaste uma loucura dessas apoderar-
se de mim? Eu queria servi-lo... Não pensava que ela fosse tão frágil, tão alegre, tão
meiga! Não pensei nas crianças pequenas. Como se não soubesse que atrás de toda
mulher existem crianças! O Senhor, por que me fez nascer entre os demónios? Por
que regou minha infância com sangue?..."
Fez alto.
O atroz estava diante dele. Seus olhos choravam de dor por trás da máscara de
couro, pois avistava fortim de Wapassu. Mas nenhum filete de fumaça se elevava acima
do telhado meio enfiado sob as neves.
Nenhum movimento.
Jamais em toda sua vida experimentara um choque tão terrível.
"Eles estão mortos! Eles estão mortos!"

Lançou-se pela encosta lançando gritos e apelos desesperados.


— Aqui estou, minhas crianças!... Aqui estou, estou chegando! Estou chegando!...
Vou preparar-lhes uma boa sagamité.
Quase quebrou o pescoço, caindo na trincheira com sua carga.
Levantava-se de novo, investia contra a porta pesada. Ela estava encostada e cedeu,
batendo vagarosamente contra o vazio e o silêncio.
Embaraçado pelas raquetes, que não havia retirado, permanecia na soleira da porta,
piscando os olhos feridos, a fim de se habituar à penumbra. Pouco a pouco distinguia
com estupor as três crianças muito agasalhadas, mas que, no meio da sala jogavam
cucarne tranquilamente.
— Onde está sua mãe?
— Mamãe está dormindo! — responderam com um gesto em direção ao quarto.
E continuaram a fazer soar, com gravidade, os ganizes no assoalho de madeiras
grossas.
Ainda ofegante, pensava:
"Ela está morta! E as crianças confundem sua imobilidade e seu silêncio com um
sono profundo."
Com passos titubeantes, tremendo dos pés à cabeça, chegou ao quarto no fundo do
corredor e entrou.
Ela estava sentada diante da lareira apagada e dormia, com efeito, numa atitude de
abandono que traía uma grande fadiga.
A claridade de um sol pálido entrando pela pequena bandeira da janela, diante da
qual a neve fora retirada, amarelecia seu rosto já muito pálido; novamente
estremecendo, ele julgoú-a morta.
Tocou-lhes as mãos, as faces. Estavam geladas, mas percebeu o leve movimento de
sua respiração.
Ajoelhado na pedra da lareira, começou a quebrar gravetos e reunir ramos e cavacos
para acender o fogo.
— Aqui estou, minhas crianças — resmungava —, agora estou aqui... Vou preparar-
lhes uma boa sagamité... bem quente, com airelas... Estou aqui... Trago-lhes a vida...

Foi um estalejar das chamas que despertou Angélica, e ela se ergueu com um
sobressalto de espanto, pois, percebendo que ia perder os sentidos, evitara acender o
fogo, receando cair ou não poder vigiá-lo, ou que as crianças resolvessem brincar com
ele, com boa intenção de mantê-lo aceso.
Estava tão fatigada...
Viu o viajante de joelhos diante dela, espreitando-lhe o olhar.
— Por que não acendeu o fogo? — gritou. — Quase morri de sofrimento quando
não vi nenhuma fumaça acima do telhado.
Ela lhe disse que as horas do dia lhe pareceram muito quentes, preferindo deixar o
fogo apagar-se para economizar um pouco da provisão de lenha. Tinha saído com as
crianças, era preciso aproveitar aquele sol. Em seguida...
Ele pousou a fronte em seus joelhos, e Angélica viu entre os cabelos espessos a
tonsura, semelhante a uma hóstia branca.
— O Senhor! — murmurou. — O Senhor! Que sofrimento! Mas cheguei a
tempo.
Então ela lhe confessou como um pecado que, havia alguns dias, estava com febre.
Teria se resfriado ou seria um ataque de malária?
— Agora estou aqui. Trago-lhe também compota de cidra, ameixas e todo tipo de
fruta seca, grãos de aveia-louca, mel, melaço...
Pendurava o caldeirão à cremalheira, vertendo-lhe água.
— Por que, se está febril, não se aqueceu deitando sob as cobertas?
Ela explicou-lhe que receara ser arrastada pelos delírios da febre.
Ficando sentada, podia ficar acordada.
Compreendeu que ela não sabia mais há quantos dias ele partira, que não encontrara
mais forças para os gestos essenciais dos cuidados às crianças, que tinha parado à
espera de sua volta... Que só conseguia manter-se viva repetindo-se incessantemente:
"Não adormeça..."
Ela olhava ao seu redor com desolação.
— Desculpe-me, faz tempo que nem varro nem arrumo a casa. Está um chiqueiro.
Com muitas precauções, ele a carregou e colocou na cama.
— Agora estou aqui. Eu me encarregarei de cuidar de você.
Deitou-a, cobrindo-a com cuidado.
— Vou só chamar à ordem aqueles jogadores inveterados que estão na sala
entretidos numa partidinha de cucarne, e já lhe mostro nossas riquezas. Depois vou
preparar-lhe uma sopa digna de minha Tia Nenibush.
Mas ela virou a cabeça, murmurando que não tinha fome.

Apesar de suas recusas, conseguiu engolir algumas colheres do mingau.


O fortim de Wapassu assinara um novo contrato com a sobrevivência.
Angélica se resfriara quando fora procurar tripas de rochedo e casca de espinheiros
para Gloriandra. Conseguira encontrá-las e dera-lhe uma tisana. A menina estava
melhor.
— Mulher de pouca fé — disse ele —, não me comprometi a mante-los todos com vida
de qualquer maneira? Até a minha volta, quando se persuadirá que o mais precioso de
si mesma é invisível? Você parece desprezar esses "poderes" com que, todavia, foi
abundantemente provida, confiando apenas em seus atos. Esse é um defeito feminino,
um defeito de dona de casa. Cristo o denunciou quando foi visitar Marta e Maria. As
mulheres só se sentem em paz com
sua consciência quando podem provar sua utilidade, e apresentam, de modo às vezes
excessivo, a justificativa de sua existência.
Pois bem, disse ela, fora um erro não ter ficado a esperá-lo, de braços cruzados,
como uma lâmpada acesa de vigília. Não era de seu temperamento fazer isso. E,
apesar de suas admoestações, tão cedo não se corrigiria.
Mas, encolhida sob as cobertas, com as pálpebras baixadas sobre uma martelante
dor descabeça, concordou em -que era um dos prazeres da vida abandqnar-se à
doença, transferindo a outra pessoa todas as responsabilidades.
Agora que o sopro do Oranda permitira ao jesuíta seu giro de salvação, o combate
contra o inverno podia ser retomado.

Dispôs as rodas de pão nas prateleiras ao longo das paredes do quarto e da sala
grande, no lugar onde guardavam as provisões. E quando não houvesse mais pão,
poderiam assá-lo. Fariam crescer um bom pão no forno, daquele pão que é, por
excelência, o alimento dos franceses, prato vital e rico, nascido no entanto de tão
poucas coisas, água, sal, um pouco de fermento e farinha. Farinha de flor do trigo, mi-
lagre das searas, produto do grão mais precioso que o ouro. Pão, vinho. Vinho, havia
muito pouco na missão. Apenas vinho de missa. Deixara-o. Em compensação, trazia
uma provisão de aguardente.
E também velas. Mas ia-economizá-las. Podem constituir o último recurso para
engrossar a sagamité, que fica muito quente mas demasiado rala no fim das
invernadas.
Só as acenderiam para as festas, logo seria o dia de Santa Honorina.
— Faremos um bolo em homenagem a sua grande irmã e rezaremos por ela.

Durante a noite, ela o ouviu delirar. Abriu os olhos e percebeu na parede as rodas de
pão da Missão de São José, dispostas como rostos bonachões velando por ela.
Então ele voltara? Mas onde estava?
Na realidade, jamais acreditara que voltasse.
Sofrera sua partida como uma morte, e isso influíra mais sobre sua saúde que as
privações.
Ele estava estirado diante da pedra da lareira, enrolado numa coberta.
Ainda fraca, mas sentindo-se melhor, foi ajé ele e ajoelhou-se ao seu lado. Dormia
um sono febril e murmurava frases sem nexo. Àquele viajante que acabava de
atravessar o Tártaro gelado do Inferno, só oferecera queixas e nenhuma hospitalidade.
Tivera contudo tempo de dizer-lhe que ele parecia um espectro. Parecia quase em pior
estado do que quando o encontrara costurado na mortalha de couro. A pele lívida sob a
barba hirsuta, o nariz azulado, os olhos afundados na sombra do capuz, um esqueleto
sob a roupagem gelada por seu suor na corrida, e agora úmida, irritando as feridas,
uma assombração...
Como pudera executar tal façanha, despender tal esforço?!
Despertou-o suavemente.
— Venha aquecer-se na cama. Aposto que suas feridas se reabriram e que você nem
sequer tomou uma tigela de caldo. Ah!
que belo par formamos!...
Mas, revezando-se um ao outro, continuariam a fazer a morte recuar.

CAPITULO XXX

A profecia se cumpriu

Dias depois, ele lhe falou da morte daquela que eles continuavam a chamar de
Ambrosina de Maudribourg. Surpreendera a notícia nas palavras trocadas pelos dois
jesuítas da Missão de São José.

A esposa do novo governador, em visita oficial a Montreal, tendo se afastado em


seu passeio, fora vítima, no outono, de uma estranha agressão.
— Ela morreu! Um animal selvagem devorou-a.
— Não é a primeira vez que isso acontece.
— Dessa vez, é verdade — murmurou ele.
As opiniões da colónia, muito abalada pelas condições horríveis desse atentado sem
precedentes, permaneciam.divididas a respeito da agressão. Uns falavam de um
animal selvagem que a teria feito em pedaços, outros, de um ataque de um grupo de
iroque-ses que rondavam sorrateiramente nesse fim de verão.
— Você soube detalhes? Não é usual uma dama de prestígio ser atacada por um animal
selvagem na ilha de Montreal, que é bem povoada.
— A Sra. de Gorretast fora passear à noitinha lá pelos lados do moinho, na
extremidade oeste da ilha. Sozinha. Apesar da reputação de piedade e virtude que já
havia granjeado, dizem as mas línguas que tinha uni encontro amoroso.
— Sempre a mesma ambiguidade quando se fala dela. Uns são inocentes e querem
acreditar em seu encanto, outros sabem e se calam e só falam-depois. Então ela se
afastou, sozinha, dirigindo-se a ponta do Moinho. E depois?
O companheiro de infância de Ambrosina sorriu sardónico.
— E o Arcanjo "estava lá! E o monstro!...
— O que viram?
— Nada! Nem ninguém! Não havia vestígios nos arredores, nem de passos, nem de patas...
a não ser, segundo dizem, o traço de garra na casca de uma árvore... Mas, nada. Se havia
vestígios foram apagados. O que habilitou em seguida a tese de um ataque de índios, pois, para
apagar vestígios com tanto talento, seria preciso ser um espírito ou um frequentador dos
bosques. Era preciso dar ao Sr. de Gor-restat algo para alimentar-lhe o sofrimento e o desejo
de represálias. Conseguiram persuadi-lo de que a morte da mulher se devia a um grupo de
iroqueses e, apesar das evidências, segundo os ferimentos, de que fora antes vítima de um
animal feroz — o que também não deixava de parecer inverossímil, tão perto da cidade —,
o esposo aniquilado, que não tivera coragem de olhar o corpo, arranjou forças para
enfrentar sua desdita num ardoroso desejo de vingança.
"Um chefe huroniano foi propor-lhe uma "caldeira", isto é, uma expedição de guerra. O
exército, os senhores canadenses e os aliados selvagens puseram-se em ação. Para justificar
essa exibição de navios e barcos carregados de armas partindo para o lago Cham-plain,
recorreu-se à astúcia. O novo governador enviou uma convocação aos chefes das Cinco
Nações, manifestando o desejo de encontrá-los e oferecer-lhes um festim em suà honra. Os
iroqueses, que lamentavam não ter estado no pawa do Forte Frontenac em Cataracuí,
como todos os anos, aceitaram o convite do novo Onôn-cio. Durante a refeição, os chefes
foram raptados e acorrentados, e depois levados a Quebec, de onde foram enviados às galeras
do rei.
"Apenas Utakê, que estava em expedição num lugar distante, e, parece, Tahutaguete,
escaparam.
"O exército continuou em direção ao Vale dos Cinco Lagos. Mas com a chegada do
inverno, de um rigor sem igual, as tropas tiveram de retroceder, com algumas baixas.
Retiraram-se para os fortes e feitorias de comércio, pretendendo continuar a campanha na
primavera.
— O Mal prossegue seu caminho. Estará ela realmente morta?
— Tanto quanto pode .estar uma pessoa cuja cabeça foi encontrada na forquilha de uma
árvore, enquanto o corpo jazia no chão a alguns passos dali.
A profecia se cumpriu.

A CONFISSÃO

CAPITULO XXXI

Um comediante nato

Assim que readquiriu forças e ficou em condições de cuidar ele mesmo das feridas
das pernas, instalou-se no quarto de Lymon White. A lareira do pequeno cómodo
correspondia-se com a chaminé central, que, construída segundo os modelos da Nova
Inglaterra, abria-se para quatro fogos diferentes. Um dava para o antigo quarto dos
Jonas. Os dois outros, para a grande sala.
Dispôs-se a reanimar a casa entorpecida. A noite, não parava de vigiar os fogos.
Entrava de mansinho, saía novamente como uma sombra.
Angélica, não tendo mais com o que se preocupar, dormia um sono mais reparador.
Ele subia à plataforma para farejar as mudanças de tempo, para provar a si mesmo,
pensava ela, que o inverno afrouxava seu abraço.
Nevou abundantemente, e as portas e janelas foram novamente bloqueadas. Mas a
própria neve era sinal de um abrandamento.
O gelo, tão temível, parecia recuar.
Desobstruíam com constância a entrada do túnel, que dava apenas para o universo
fechado, branco e cinza da neve enjoativa e invasora. Entretanto, Angélica não a
odiava. Preferia aquela neve, pendurada sobre eles como que os envolvendo em seu
regaço, ao círculo sem fim de um universo sem vida ou ao sopro das tempestades.
Aquela neve salvara-os no outono.
Como o inverno era longo! Todavia, cada dia marcava um avanço.
Quando se lembrava do estado em que fora deposto na soleira da porta aquele que,
com multo cuidado e vigilância, a ajudava agora, só podia, felicitar-se com a marcha
do tempo.
Naquela manhã, estava sentada ao lado da lareira enrolando as tiras de bandagem,
lavadas previamente em água fervente, à qual juntara um pouco de cinzas. Usara
abundantemente aquelas faixas, mas, daí em diante, podia alinhar os rolinhos de teci-
do branco e deixá-los de reserva no cofre de farmácia, esperando não ter de servir-se
deles por um bom tempo.
Subitamente o Padre d'Orgeval surgiu diante dela,.vestido com uma sotaina preta.
Ao vê-lo ficou estupefada.
Estava exatamente como o imaginara outrora, quando era seu inimigo declarado, e
quando receava constantemente vê-lo surgir diante dela, acusador e implacável, e
várias vezes, obsedada por, essa imagem, julgara tê-lo visto aparecer, uma silhueta
negra, confundindo-o com outras. Eosse uma vez Penobscot, à beira de um bosque —
mas não era ele, era o Padre de Vernon. Fosse na pequena casa de Ville d'Avray, ao
pé da escada, uma noite em Quebec — e era simplesmente Joffrey, que voltava tarde
da noite vestido com seu capote preto. Ou então, na penumbra da casa dos jesuítas,
sempre em Quebec, a aparição inopinada de um deles fizera-a estremecer, mas
reconhecera uma vez mais o Padre de Guérande. E assim, muitas outras vezes, por
uma silhueta entrevista, pensara: "Desta vez é ele!... Chegou a hora do combate". Mas
sempre, abrigando-se por trás de outros porta-vozes, ele se furtara.
E agora ali estava, com a mão colocada sobre o peito, segurando a ponta do
crucifixo onde brilhava o rubi, fino, delgado, quase elegante em sua toga preta; o
largo cinto, apertando-lhe a cintura magra, conferia-lhe uma silhueta quase feminina,
com um ar espanhol, à imitação do grande Inácio de Loyola, pelo colarinho alto com
o avesso branco arredondado.
Simultaneamente ela pensou: "Como é belo!", depois: '"Onde arranjou essa
sotaina?!" E finalmente, com um medo pânico: "Ele vai-se embora!"
Mas, sem deixar-lhe tempo de abrir a boca, ele lhe pedia para não se emocionar e
não interromper sua tarefa. Desejava simplesmente falar com ela.
Depois adivinhando seu receio, ele afirmou que isso não punha em questão sua
presença entre eles. Ele permaneceria ao seu lado até a volta da primavera, até que
pudesse deixá-los entre amigos.
Havia somente dois ou três pontos ainda que gostaria de esclarecer.
Primeiramente, falou de seu amigo mais dileto, Cláudio de Loménie-Chambord.
Lentamente, com uma espécie de devoção, evocou sua amizade e aquela forma de
amor existente entre eles, sutil, encantadora e dilacerante, amor do coração aceito,
amor carnal recusado, fazendo com que para que cada um deles o outro fosse o
símbolo do fogo que queima no coração de todos os seres, oriundo do mesmo lar
único do amor essencial, e através do qual tinham podido amar com paixão e ternura
o resto da humanidade. Mas forma inacabada, porque interdita pela dura Bíblia, a qual
devia, nos tempos primeiros, dar primazia à procriação.
Amor sublimado, pois, uma vez que não tiveram outra escolha, que haviam vivido
desde a juventude e durante os longos anos naquela incompletude, mas que lhes
permitira prosseguir com alegria e, frequentemente, com paz de coração, os caminhos
árduos de devotamento e sacrifícios de suas vocações.
— E ainda — disse, prosseguindo um discurso que devia ter repetido amiúde a si
mesmo — eu me pergunto atualmente se não teria sido melhor para a glória de Deus
que não nos tivéssemos separado de forma alguma, pois aprendi que nada é mais
criativo e vitorioso que o amor sincero, e reconheço que esse puro e terno amor que
eu nutria por meu irmão predileto me preservou do peso da solidão e da aridez do
coração e preencheu por muito tempo meu ser afétivo, deixando em paz meus senti-
dos, que não desejam ser envolvidos. Ensinam-nos em nosso noviciado a dominar
pela sublimação esses desejos imperiosos. Eu era um mestre nisso.

Ela o escutava atentamente, enquanto continuava a enrolar as tiras, já que ele o


pedira, mas com mais lentidão, dando involuntariamente uma suavidade ritual àqueles
gestos simples dos afazeres cotidianos que acalentam a vida.

Quando ele falou do ardor do sentimento que o unira ao Conde de Loménie-


Chambord, pensou em Ruth e Noémia, e seu coração se rejubilou ao ouvir esse padre
de batina preta conceder a seu amor proibido uma espécie de absolvição indireta. No
entanto, tratava-se realmente do Padre Sebastião d'Orgeval ali à sua frente.
Pouco a pouco sentiu-se invadida por uma convicção tranquilizadora de que naquela
hora podiam dizer um ao outro tudo.
Estavam sozinhos no mundo.
Num mundo destruído, deserto, inacessível.
Ninguém podia ouvir suas palavras, ninguém podia recolhê-las para distorcê-las e
transformá-las em armas mortíferas.
Não precisavam recear nem ser compreendidos. Nem desencaminhar, enganar, ferir,
decepcionar, fazer inimigos que destruíssem suas vidas e a dos seus entes queridos.
A loucura de Babel agitava-se para além das fronteiras visíveis.
Quanto a eles, estavam sozinhos sem outra testemunha a não ser o Criador.
Tomou novamente a palavra, dizendo que devia voltar àquele dia de outono, ao lago
de Moxie. Aquele dia em que, numa ruptura de todo o ser, acabava de compreender
que o Amor, e o amor carnal também, podia ser o caminho do sagrado. Consequência
da revelação. O desmoronamento de toda a sua vida, desmantelamento dos quadros
que a sustinham.
— Soube então que o Amor era um dom de Deus, e que eu fora culpado, muito
culpado, de tê-lo ignorado.
"Censurava a meu corpo estar implicado nesta revelação. Sensações de arroubos e
de arrebatamento jamais experimentados. No momento, abençoei a Deus por isso.
Mas era demais. Eu desfaleci. Voltei a mim tomado pela confusão e também pelo ter-
ror. Procurava retomar pé em meu universo familiar. A ideia da Diaba anunciada
atravessou-me o espírito e foi-me difícil refrear um grito de vitória.
"Achara minha jogada.
"Foi assim. Não quis reconhecer a Luz. Ela me feria em todas as defesas que eu
edificara para me preservar contra aquilo que
eu odiava e que mais me aterrorizava: o Amor, que eu confundia com
concupiscência, o Amor, noção ignorada e que vinha me tocar com sua luz, que vinha
me revelar o inverso oculto de seu mistério e ensinar-me que a força de um tal
sentimento podia dar a todo indivíduo a sensação de existir na terra, e que é tudo para
nós.
"Aquilo que eu entrevira era muito louco... Eu me obstinei. Talvez porque não visse
como materializar a revelação. Renunciar a meus melhores amigos, decepcioná-los...
Apontavam-me com o dedo, dizendo: 'Ele ficou louco...' A Mulher, o Amor, a
liberdade da consciência... Era muito tarde para mim. Meu corpo estava formado,
rígido, forjado no poder sobre os seres, na guerra, no poder... Deixar tudo... por uma
verdade entrevista... sem nada esperar em troca.
"E como circunstância agravante, eu entrevira os cavalos dos homens no sobosque,
uma caravana. Adivinhara quem era minha aparição... Portanto, tudo entrava nos
eixos. Podia continuar minha guerra. Sim, como você vê, procuro desculpas. Mas isso
não muda nada. Não as tenho.
"Soube-o no dia em que deixei de ter a consciência pura dian-:e dos meus atos.
Quando era criança, partia para massacrar os protestantes com minha grande espada,
estava apavorado, mas tão convencido de servir a Deus e de que Ele me perdoaria
esses crimes...
"Nós nascemos cegos, cercados por neblinas, assustados por monstros; levamos
anos para compreender que não passam de espantalhos de palha e de madeira morta.
"Mas quando se vê claro, é então que começa a culpa.
"Sinto-me criminoso por fêf continuado a viver dando àquilo que realizava
aparências de açóes virtuosas, que na realidade ocultava todas as loucuras de um
sentimento amoroso.
"Esse amor, que eu chamava de ódio, a fim de poder encontrar razões para pensar
nele. Falava de campanhas de guerra, de cruzadas, a fim de justificar a obsessão de
meus pensamentos.

"Todos os projetos de derrotas, de captura, de vingança, de perseguições quê


fomentava contra vocês, nasciam sob o aguilhão de uma atração à qual eu recusava
dar um nome. Eu acreditava querer abater, destruir, apagar, aviltar aquilo que não
merecia triunfar, e estava obsedado por uma única coisa: aproximar-se disso.

"Acreditava que era para destruir os inimigos de Deus,"para cumprir minha


missão...
"Quando subi para o assalto de Newchevanik, depois de Brunswick Falis, sabia que
você estava lá, naquele lugarejo de puritanos na colina, e gritava: 'Tragam-na até
aqui!' Estava certo de atingir o objetivo. Vibrava, e não sabia com que impaciência...
O que eu esperava daquele instante em que ela estaria diante de mim, vencida,
prisioneira?... Mas ela não foi... E Piksarett desapareceu com você!... Não ria!... Eu
começava a compreender que o duelo tinha mais importância do que eu lhe queria
atribuir, que eu não era o único a decidir esse duelo... e seu desfecho.
"Louco, quis sua morte para extirpar aquilo que me corroía, crendo que em seguida
reencontraria minha alma."

Falou em seguida sobre o rancor e o ciúme devorador que sentira pelo outro, o
homem a quem ela pertencia, o homem que a possuía e que, em virtude de uma
injustiça intolerável, era também amado por ela.
Essa confissão era mais difícil, pois ele começava a conhecer melhor Angélica e
sabia que, se conseguia acolher com uma fronte serena o anúncio de que ele quisera
sua morte, era mais sensível quando se tratava daquele a quem adorava.
Não assegurou-lhe, a ele, seu esposo, seu amante, seu amor, não quisera matar.
Teria desejado afastá-lo. Teria desejado que ele desmerecesse esse amor. Teria
desejado ver sua soberba diminuir, quebrar sua insolente aptidão para viver.
— Não julga que a vida sempre lhe foi fácil, não? — tentou protestar Angélica.
— Ele sabia tudo — atalhou ele —, e eu não conseguia suportar isso.
Como era afortunado, pensara muitas vezes, aquele homem pelo qual ela estava tão
perdidamente apaixonada e que não havia recusado nem a carne, nem o amor, e
jamais se perturbara com as leis. Ateu, libertino, pisava em todos os preceitos,
zombava da Igreja e de suas instituições — seu processo não fora provocado pelas
queixas do bispo de Toulouse?
— Eu via que, em contrapartida a tantas transgressões efetuadas com desenvoltura e
sem se preocupar com o escândalo, ele havia coroado essa existência culposa pela
descoberta das mais elevadas e embriagadoras alegrias. Não apenas descobrira o
Amor, o verdadeiro, o que se liga ao êxtase divino,'mas fora correspondido. Tendo
obtido a mais bela das mulheres, fora amado por ela. Ele foi aquele designado para
satisfazê-la, arrebatá-la, maravilhá-la, ensiná-la.
"Aquele fidalgo de aventuras, aquele Conde de Peyrac, merecia tanto? Eu o
maldizia. Por que ele e não eu?...
"Comecei a invejá-lo por não ter moralidade, nem apegos, nem servidão e
vassalagem de qualquer espécie para com ninguém... E no entanto, eu o sentia justo,
entre os justos. Tinha medo de compreendê-lo. Era ele quem tinha razão. Ele que
andava pelo Caminho da Verdade, porque andava no caminho de sua verdade. Isso
também eu tive de enfrentar.
"E uma coisa terrível descobrir o erro que se cometeu e a amplitude das armadilhas
nas quais se caiu. É preferível ficar cego a compreender que a luz da Verdade não nos
é concedida segundo nossos méritos, mas segundo o Plano. E melhor continuar a
acreditar que somos um dos eleitos."
— E agora, o que pensa a esse respeito?
— Que Deus acolhe todas as vias que exaltam Sua grandeza e celebram Sua
bondade. Estou tranquilo e seguro de mim mesmo, apesar de perdido diante dos meus,
para sempre. Eis o que eu queria confessar-lhe para que o passado não deixe subsistir
equívocos e amarguras entres nós. Era preciso desembaraçar esses acontecimentos do
engano das aparências: Eu não combatia por Deus e vocês ?ião eram Seus inimigos.
"Tudo aconteceu alhures, lá onde se abrem, os novos olhares e onde se preparam as
transformações das gerações. Mas... tudo e tão lento na terra..."
Calou-se.

Angélica acabara de enrolar as faixas, colocando-as cuidadosamente uma após outra


no escabelo ao lado.
Percebeu que a deixara nervosa. Mas que ela não falaria. Pois, com efeito, tudo era
imponderável, e tinha havido muitas palavras.
Com as mãos sobre os joelhos, ela o olhava.
Um leve sorriso brincava-lhe no canto dos lábios.
Ele achou-lhe uma graça -infinita e fechou os olhos.
Entretanto, após um longo silêncio meditativo, ela disse:
— Posso fazer-lhe uma pergunta?
E como ele aquiecesse com um movimento da cabeça, ela disse:
— Onde arranjou essa sotaina en perfeito estado? Pensei ter feito em pedaços aquela
que você usava quando chegou!
— Tomei-a emprestada aos missionários de São José.
— Por que a vestiu hoje?
— Para confissões difíceis às vezes é necessário uma armadura.
— Padre d'Orgeval, às vezes me pergunto se seu erro inicial não teria sido entrar
para os jesuítas em vez de se apresentar ao grupo do Sr. Moliere. Não é um
comediante nato?
— Sempre fui... No colégio fiz todos os grandes papéis dos heróis da Antiguidade.
Pois você não ignora que a educação dos jesuítas atribui muita importância ao teatro.
É preciso ter gosto pela declamação e pela tragédia para pregar. E não seria viver com
os índios, que são comediantes natos, que iria curar-me disso.

CAPITULO XXXII

Um aspecto do espírito de Joffrey de Peyrac — Sonhos de regresso à Europa

A seguir, guardou cuidadosamente a sotaina "emprestada" e recolocou o crucifixo


sobre o batente da lareira do quarto de Angélica. Algumas vezes viu-o lendo um
missal, que provavelmente também tinha trazido da missão.
Daí em diante, quando falavam, era, como ele dissera, num clima de confiança e de
familiaridade novas. Podia falar-lhe de Joffrey. Ele a escutava avidamente. Deu-se
conta de que nunca tivera oportunidade de falar a respeito dele ede seu amor, mesmo
com Abigail.
O frio continuava forte e trazia incessantemente pesadas nuvens fustigadas de neve,
que caíam como cataratas ou turbilho-navam com agitação, obrigando-os a se
encerrar em casa, subindo gradualmente para os desencadeamentos ordenados da
tempestade, em atrelagens conduzidas por um vento único que conhecia seus
caminhos e só tinha uma finalidade: devastar a terra até o osso.
Assobios, estertores, uivos."
Velha harmonia, um pouco",cansativa, um pouco desgastada. Companhia familiar
que escutavam, reunidos novamente no único quarto, junto ao único fogo que devia
ser mantido com sentimentos mesclados de simpatia e de receio pelo que bramia aci-
ma de suas cabeças, pois, se discerniam um imperceptível abrandamento nas
violências- do furacão, sabiam que ainda não estavam a salvo de um despertar de suas
forças numa derradeira cnse, durante a qual destruiria ludo, como os velhos tiranos
loucos.
Os períodos de dias mais tépidos surgiam entre duas tempestades. Mas quando se
falava em tepidez, isso era muito relativo. Durante as breves saídas que se permitiam
fazer, esforçavam-se em vão por perceber aquele ruído ténue, aquele ruído das águas
que recomeçam a murmurar nas profundezas dos bosques. Em vão se voltavam para
as árvores mais próximas para ouvir o apelo aflautado, estridente do pássaro que
nunca se vê, mas que se denomina "o pássaro da primavera" e que teria prefigurado
para eles a pomba da Arca.
Oprimidos pelo eterno silêncio, a impassibilidade de uma paisagem onde ainda se
lia a morte de todas as coisas, falavam das cidades longínquas que reveriam um dia, a
cidade, refúgio dos homens.,
Os homens têm muita razão de construir cidades. Seu instinto gregário os impele a
pôr em comum todos os bens e serviços de que têm necessidade para sustentar esta
mísera vida que uma côdea de pão e um vizinho caridoso podem salvar da morte.
Só quem não conheceu o deserto branco do inverno nas re-giãos incivilizadas pode
se queixar das cidades.
Sebastião d'Orgeval encorajava-a a fazer projetos no sentido de uma volta à Europa.
— Nem por isso esses deslocamento e essa mudança cortarão os elos que vocês já
estabeleceram com o Novo Mundo. O sr. de Peyrac é tão hábil quanto os novos
ingleses em singrar os mares com seus navios, e não lhe será difícil conservar um pé
em cada porto, de Nova York a Quebec, do mesmo modo que sempre fez em todo o
resto do mundo.
Em sua opinião, o destino das colónias não se resolveria apenas por aqueles que ali
se encontravam. Não havia saída, fora do círculo, que já se tornara infernal, das
guerras, das campanhas de represálias, dos massacres perpetrados de ambas as partes,
sem distinção de vítimas, índios ou brancos, ingleses ou franceses, ou seus
partidários.
— A bússola está lá — dizia. — Versalhes governa os destinos desses povos até os
confins dos vales mais desconhecidos e menos visitados. Miúdas expedições de
formigas roem os espaços. O Sr. de La Salle não tardará a ir plantar o estandarte do
rei da França no Illinois, e quem sabe?, até no golfo do México, se conseguir descer o
rio Mississipi, o Pai das Águas, até sua embocadura. Os espanhóis não reagirão.
— E a Nova Inglaterra ficará cercada.
— Veja que é de Versalhes que se decidem as partilhas, e as guerras que delas
decorrem. Se seu esposo não tivesse podido acompanhar o Sr. de Frontenac, as
intrigas fomentadas contra ele teriam conduzido nosso melhor governador à Bastilha.
É preciso fazer ainda mais por ele. E preciso que ele volte ao Canadá. Pois o novo
governador é um louco. E, o que é pior, um louco imbecil.
Ela evocou a corte. Ele falara, não sem razão, de uma selva perigosa, e quem mais
que ela podia saber disso? No entanto, naqueles dias em que toda visão se adorna com
um véu de clemência, era a beleza de Versalhes que lhe aparecia, de preferência às
intrigas sortidas que circulavam nas estranhas do palácio.
Era o culto que o rei prestava à Beleza, a todas as formas de arte, o que, aos olhos de
Angélica, absolvia Luís XIV.
A corte era uma selva, mas também o Templo do Beleza.
— E no entanto — disse Angélica — é mais difícil voltar com confiança a um lugar
onde se sofreu do que fazer ali suas primeiras armas.
Mas ela sentia forças vivas prontas a se erguer. Agora que Jof-frey entrara em
contato com o rei, cumprira sua missão diplomática, teria desejado estar perto dele,
não deixá-lo sozinho no meio daquela fauna absurda e fútil, cuja espécie lhe era tão
contrária. A dois, tudo seria mais fácil e principalmente mais divertido. A dois,
poderiam desfrutar, os encantos de Versalhes e o que ali havia de excelente e que tão
poucos apreciavam no trato com o soberano.
Quando voltava desses desvaneios, o peso do silêncio e a rudeza do cenário que
reencontrava eram difíceis de superar. Receava ainda um último e sorrateiro golpe do
destino.
Do lado de fora, um planeta deserto e congelado.
— Dá para imaginar que em algurfia parte existem palácios onde se dança, onde se
deleitam com músicas celestes, onde se fazem rega-bofes de patês tão grandes que
uma criança disfarçada em Amor pode ali se esconder para surgir sob os aplausos de
uma corte coberta de pérolas e fitas, ébria de todos os prazeres, que existam banquetes
onde se podem degustar, segurando com as duas mãos enormes e deliciosas frutas,
colhidas nos jardins do rei?
— Sim, dá para imaginar — dizia ele —, e pode-se agradecer aos céus por isso. É a
honra de nossa estrela Terra manter assim sem descanso, em alguns pontos, fogo, paz
e riqueza. Se a vida se extinguisse em toda parte, se em toda parte só houvesse misé-
ria, então seria realmente o fim do mundo.
"Quanto reconhecimento não devemos ter nós, perdidos em nossa geena, para com
aqueles que, neste momento, dançam, riem, ou, como o rei, continuam a procurar e a
criar todas as formas de Beleza para encantar os olhos e os espíritos!
"Pois isso significa que o fogo continua a crepitar, ainda que numa única lareira do
mundo, e que há esperança para nós de vir um dia também a sentar-nos, vivos, entre
os que estendem suas mãos a essas chamas revigorantes e partilhar com eles o festim.
Tudo é permitido à esperança, se se sabe que num só ponto o fogo permanece.
"Certamente, a vaga de lama, crimes e torpezas, que nos arrasta, é poderosa. Mas a
vaga de ouro e de pedrarias dos esplendores da vida, lava incandescente que escapa ao
vulcão divino, que carrega nossos êxtases e arrebatamentos, nossas alegrias e ardores,
tem também sua força irresistível. E com ela que devemos iluminar nossos sonhos e
ambições."

Dir-se-ia que havia nele um aspecto do espírito de Joffrey. Cada vez mais ela
acreditava ouvi-lo quanto o jesuíta se exprimia. Pois sentia que as palavras que ele
empregava, as teorias que enunciava, eram exatamente aquelas, dentre a multidão de
pensamentos que fermentavam no cérebro genial do senhor da Aquitânia, que Joffrey
não teria hesitado em lançar e desenvolver com brilho e ardor nas cortes antigas da
Arte de amar. Com a diferença de que ao Trovador do Languedoc, que havia perdido
sua voz no átrio de Norte-Dame quando ali o arrastaram com uma corda no pescoço,
repugnava expor atualmente em voz alta o fundo de seu pensamento. Aprendera a
calar-se. Mas o que ele enunciava por sua conduta causara transtornos mais
importantes que seus discursos.
Seu coração ansiava por Joffrey. Ela pensava baixinho: "Eu o compreendo, meu
amor. Nós nos reencontraremos na paz e falaremos juntos".
Em várias oportunidades o Padre d'Orgeval repetiu que desejava que o Sr. de Peyrac
não perdesse suas forças inquietando-se com a sorte de sua família.
— Estou aqui para velar por vocês.
O importante era o rei. E conquistando-o, o Sr. de Peyrac faria mais para o bem dos
povos e dos continentes do que tentando lançar-se em socorro dos seus.
Ela afirmou-lhe que sempre vira Joffrey consagrar-se a uma tarefa sem se deixar
distrair no momento por nada, e sobretudo por falsos alarmas.
— Talvez até demais — acrescentou, com uma ponta de censura.
Seu imenso poder de concentração não deixava de criar nos corações ciumentos uma
impressão de abandono, e ela sempre se inquietara quando seu interesse, por exemplo,
se dirigia ao género feminino.
No momento, era o rei. Tudo seria conduzido magistralmente, Sebastião d'Orgeval
estava convencido disso.
Ela se divertia quando este insistia em que o Sr. de Peycrac devia também preparar
com o maior cuidado sua instalação no reino da França.
— Você não pode vir a sofrer, qualquer desconforto! Deve poder aproveitar todos os
prazeres que sua fortuna lhe permite e que a capital do reino coloca à' sua disposição.
Ser-lhe-á preciso uma numerosa criadagem devotada, eficaz, ausência de preocu-
pações domésticas, carruagens, belas parelhas. Nas paredes de seus palacetes e de suas
residências campestres, belos quadros, ricas tapeçarias, móveis, objetos jdeestima,
seda, veludo para vos vestir, jóias para vos ornamentar.
— Pode estar certo — dizia-lhe ela —, meu caro diretor de consciência. Se meu
esposo desejar meu retorno à Europa e decidir ali esperar-me, tudo estará pronto e não
faltará nada. Nenhum bibelô, nenhum adereço, nada que possa devolver-me o gosto pela
existência e me ajudar a encontrar o esquecimento daquilo que perdi.

O FIM DO INVERNO

CAPÍTULO XXXIII
A face oculta de Deus — Rei e rainha da Criação, anjos entre flores de luz

Surpreendeu-o examinando as armas. Bem cuidadas, envoltas em panos


impregnados de óleo, não haviam sofrido danos. Havia abundância de munições.
O fim do inverno representava a volta dos homens.
Ele conservava a lembrança daquilo que surpreendera na Missão de São José. Assim
que o degelo começasse e os riachos, rios e lagos ficassem livres dos gelos, o Sr. de
Gorrestat e seu exército retomariam a campanha contra os iroqueses.
— Eles estão em prontidão no lugar. Cercarão os povoados e os queimarão. Pode
ser que seja o fim dos iroqueses. Mas eu os conheço. Utakê escapará uma vez mais.
Ele trará consigo todos os sobreviventes. Inutilmente os perseguirão. Pois eles terão
desaparecido da face da terra.
— O que quer dizer com isso?
— Terão desaparecido! — repetiu, com um gesto indicando apagamento. — Quero
dizer que terão se tornado invisíveis.
E como ela esperasse a continuação, intrigada, ele consentiu em dizer algo mais.
— Não quero dizer que estarão mortos. Eles reaparecerão.
— Não nego o maravilhoso em muitos fenómenos, mas, nesse, penso que deve
haver uma explicação material que você vai dar-me. Seja, Padre d'Orgeval, também
não disseram que você voava pelos ares?!... e que "podia tornar-se invisível?
Entretanto...
Mas ele apenas sorriu, mergulhado em profundas reflexões. Tenho uma opinião
sobre isso, e creio que você tem razão. Assim que seus perseguidores tiverem se
retirado, eles ressurgirão na face"da terra e... não longe daqui.
Ele conhecia de cor todos os segredos da imensa região de rochedos e de brenhas de
florestas selvagens, cavada per lagos, estriada de falhas profundas intransponíveis
numa extensão de léguas, empolada de montanhas em vagas sucessivas que lhe bar-
ravam o acesso, e que se chamava, conforme as bandeiras, Mai-ne ou Acádia,
inextricável, incivilizável, que só podia se abrir para alguns loucos que saltam as
corredeiras, ou que conhecem os bloqueios secretos dos precipícios ou os entrançados
misteriosos de pistas antigas, de uma linha de cristas a outra.
Era uma loucura ter trazido para ali cavalos. Era uma utopia da parte do Sr. de
Peyrac, lançava ele, com zombaria, ter julgado que se poderia um dia abrir estradas
nesse lugar, que um dia se coriseguiria unir o norte e o sul, o Atlântico e o Saint-
Laurent, atravessando-o.
Dois terços da França. Um deserto. Os próprios povos nómades não se agrupavam
ali. Pois era um trecho de deserto impenetrável, uma teia de aranha, sim, uma teia de
aranha, na complicação e no visco de sua teia, inverno e verão. Era preciso ser
canadense ou abenaki para arriscar-se nesses lugares, ou então pertencer a um
contingente de guerra iroquês em expedição para o litoral.
— Por onde eles passarão?
— Creio que sei.
Mas não dizia mais nada.
— Então, se está persuadido de que vão surgir, e não longe daqui, é preciso fugir,
meu padre.
Opôs a sua instância um rosto subitamente sombrio.
— Para que vida?... Para que existência? Para que obra?
— Sua vida.
— Ela já não me interessa... Dela só posso esperar perambu-lações solitárias. Não
me sinto feito para ser ermitão. O mais isolado anacoreta pertence, até em sua solidão,
a uma comunidade escolhida por ele. Aqueles que, como ele, ouviram o apelo do
deserto, que professam o gosto da mesma austeridade e sobretudo das mesmas
disciplinas místicas. O eremita liga-se a seus irmãos de espécie, dirige orações ao
mesmo Deus, medita sobre as mesmas verdades. Tomei consciência disso em nossas
palestras. Não existe mais comunidade para mim.
— Seremos sua comunidade. Não o abandonaremos. Mesmo no fundo dos
desertos... Existem lugares muito bons desse tipo, você sabe! — disse ela, tentando
sorrir e amenizar as palavras.
— Oh! eu sei. No Dauphiné... por exemplo... A França é rica desses lugares de
recolhimento. Existem belos valezinhos que incitam à oração. Há cartuxas, abadias,
grutas junto a águas murmurantes... Mas não são a América. Minha América.
— Alguns capuchinhos eremitas encontraram um lugar para erguer seu oratório lá
pelos lados do rio Saint-Jean ou do istmo de Chignecto. Conheço um deles. E
disseram-me que havia monges procurando refúgio em Maryland, que é o Estado
católico das possessões inglesas. De qualquer maneira, onde estiver, estaremos
ligados a você.
Sentia-se tentado. Menos pela perspectivas dessa existência, apesar de tudo vazia,
que teria de enfrentar, pois nenhuma luz poderia substituir a vocação religiosa que
queimara por tanto tempo, em seu íntimo, do que por esse medo diante da ideia de
cair novamente nas mãos do iroquês, que Angélica sabia ainda existir e que o
encorajava a partir para outros lugares.
Adivinhando, nos dias que passavam, o afrouxamento do círculo de gelo do inverno,
vendo a terra renascer por sinais invisíveis, encorajavam-se mutuamente a emergir da
inércia da morte, em que os mergulhavam o frio e a obscuridade ainda reinantes, a
imitar a corajosa e constante Mãe do género humano, esta terra que não se recusava a
reflorir da nudez e das devastações do inverno.
— Assim que a primavera chegar — dizia ele —, quanto trabalho para limpar o
lugar! Contando as barreiras quebradas, os tetos arruinados, as sendas cortadas, os
objetos perdidos que a neve levada pelos ares nos devolve... e os corpos. Existe uma
energia irresistível em recomeçar tudo, não é?
— Quantos corpos terei"de contar? Terá ficado algum sob os escombros de
Wapassu?... E o que me trará a primavera.
— Não — afirmou ele. — Nada de mortos. Seus heréditos de todo género, sobre os
quais você fala com tanta ternura: seus hu-guenotes, seus quacrés," seus lolardos
ingleses, seus "pobres de Lyon", a pior seita francesa, mais ainda que os cátaros, esses
val-denses de que falam como que do Diabo em nossas montanhas, você verá, eles
não estão todos mortos... Você haverá de encontrá-los e ainda salvá-los.
Ele sorria vendo que suas palavras atingiam seu objetivo e que o ardor que já lhe
inspirava a perspectiva de se debater pela salvação de seus amigos punha-lhe nas
faces uma cor rosada.
— Você pode tudo, minha cara. O rei está a seus pés. Ora, que estou dizendo? O
cetro do rei está em suas mãos. O soberano, que já governa a metade da Europa e uma
parte do Novo Mundo, a escuta, e por sua influência, mais do que pelas armas, você
poderá agir e fazer o bem. Por isso, você deve superar sua fadiga e sarar. Apenas
alguns dias no.s separam da salvação: a primavera.
— Seja. Mas, então, você deixará que o salve? Ouvirá meus conselhos, que lhe
recomendam afastar-se a tempo?
O jesuíta desviou os olhos e sacudiu docemente a cabeça.
— Utakê me disse: "Eu voltarei, prometi a mim mesmo comer seu coração. Você
deve isso a mim, Toga Negra".
— Loucura! Não se deixe levar pela loucura dos selvagens. Você mesmo dizia que
não se deve tentar compreendê-los, nem perder a razão seguindo os meandros de seus
pensamentos.
— Utakê me disse: "Você deve isso a mim, Toga Negra. Não veio do outro lado do
oceano, até nós, para isso}"
Ela protestou com ardor.
— Não! Não! Uma vez!... Duas vezes!... Já basta! Você pagou seu tributo a sua
vocação. Fuja! Vá para a baía Francesa. Nós o encontraremos. Encontrar-lhe-ei um
refúgio. Escondê-lo-ei num lugar seguro.
— Não posso deixá-la sozinha com as crianças.
— Sinto-me melhor agora. Prometo-lhe. Parta sem demora.
— Não fique o tempo todo pensando em me mandar embora. A estação das
tempestades e das quedas de neve ainda não se encerrou. Não é por mim que receio.
Sare! Sarará mais depressa se não se atormentar nem por mim, nem por ninguém. Não
tema nada. Saberei avaliar o momento de me afastar tranquilamente.
Angélica não protestou mais. Ele tinha razão. A noite ainda era profunda. A noite de
inverno que torna os dias tão curtos, reduzindo-os certas vezes a uma cinzenta
travessia de algumas horas, algodoada de neve caindo ou zebrada de rajadas
fustigantes.
Ocorreu então a Angélica que era preciso reter aquelas horas, que seriam as horas
derradeiras do inverno, e, como ele lhe recomendava, parar de se atormentar para
desfrutar-lhes a riqueza e o encanto.
Depois de realizados os trabalhos do dia, o jesuíta sentava-se diante do fogo,
Angélica ficava na cama com as crianças e seus brinquedos, e recomeçavam a falar
casualmente e depois a conversar mais demoradamente.
Ele voltava menos ao passado, falando sobretudo da sua vida de missionário, de
suas experiências entre as tribos.
— Elas sobreviverão — dizia ele —, elas se prolongarão, mas pelo encontro dos
elementos mais fortes que existem nelas com o que há de mais forte em nós. Utakê
sabe o que diz quando me avisa: "Quero comer seu coração".
"A natureza esmaga aqueles que se opõem à sua marcha. Condena aqueles que se
recusam a seguir sua torrente imperiosa. Aqueles que não querem ouvir
desaparecerão, pois sua voz é a própria voz da Criação. Ora, a Criação é um lento
nascimento, um lento partejar, uma lenta encarnação do poder divino que se encontra
instilado, insuflado nas maravilhas do mundo. Nenhum povo, nenhuma ideologia,
pode recusá-la, pois essa força é cega e irresistível. Ela sabe o que faz. Cruelmente, às
vezes.
"Povos desaparecem por ter recusado o avanço. A evolução da Criação é nosso
dever. Não~o sabemos. Julgamo-nos senhores dela. Mais longe, sempre mais longe.
Os homens podem chegar à destruição, jamais à destruição completa antes da hora. E
o completamento da Criação que perseguimos. Todos os espíritos são seus
depositários, por mais humildes'que sejam, como essas crianças pequenas. Cada um
contribui com seu raminho, seu feixe, para esse grande fogo,que não consome, mas
engendra."
— Um fogo também o atingirá se pronunciar tais palavras no púlpito — disse
Angélica, que se deixara transportar por sua eloquência e que subitamente se
reencontrava em sua pobre cabana —, e às criaturas frágeis também, por se igualarem
a opiniões tão grandiosas.
— E no entanto todos os ouvidos humanos podem ser abertos para ouvi-las. Mas
"eles têm olhos e não vêem. Eles fêm ouvidos e não ouvem". Por trás desta palavra, a
Natureza, imperativa, dominadora, inelutável, não vêem que se oculta a face de Deus.
E se eu digo Deus, não o compreenderão. Verão seu ídolo. Não o verão, não o
conceberão a imensa aventura dos mundos à qual cada homem, com toda a
humanidade, é arrastado. O que os cativa são suas pequenas preocupações, seus
pequenos negócios.
Levantava-se diante do fogo e olhava a seus pés como se contemplasse do alto do
púlpito uma assistência ocupando a nave de uma igreja.
— Eles estão lá, sentados- em bancos de madeira, em cadeiras de palha ou em
banquetas de tapeçaria de cetim, eles estão lá, nos tronos, e levantam o nariz para
ouvir o pregador, mas pouco lhes importam as palavras que lhe caem dos lábios. Não
se pode abrir-lhes o horizonte. Ele é estreito demais. Eles não querem saber. E mesmo
a América, ela é muito vazia e muito vasta para ouvir e compreender o que acontece,
o que vai acontecer. Mas, pelo menos, ela é vasta e vazia e o futurp lhe está aberto.
Eis por que eu a amo... Nela se descobrem mais facilmente os segredos enterrados. Se
eu posso desdobrar meu corpo e se ele permanece aparentemente mergulhado no sono
enquanto meu espírito viaja e vê esse corpo pesado elevá-lo acima da terra e deslocá-
lo, não é, não é sequer porque Deus me concede uma graça ou por ter recebido um
dom, mas porque, por intermédio de revelações pessoais, de adivinhações pessoais,
penetrei no caminho de um segredo natural. Uns falam de milagres e outros falarão de
ciências!...
"Entretanto, as mulheres são mais aptas que os homens a apreender os mistérios
ocultos. Talvez seja por isso que o Espírito Maligno se preocupou tanto em ocultar-
lhes a verdade, a essas curiosas. Com que cuidado, com que malícia impediu-as de
agir, sobretudo de pensar."
— Foi a punição de Eva, ávida de conhecimento, e já aturdida e indisciplinada por
natureza.
— Não. Antes mais audaciosa já e sem temor a Deus... por natureza!...
Eles riam. Divertiam-se tratando assim com impertinência as personagens bíblicas,
tratando-as como marionetes no pequeno teatro de seus colóquios.
O severo jejum ao qual estavam, apesar de tudo, submetidos, liberava-lhes o espírito
tal como uma leve embriaguez. A solidão de seu estado e o excesso de sofrimentos
padecidos fizeram recuar, até apagá-lo, o círculo dos olhares-juízes que não cessam
de pesar sobre cada membro de uma sociedade, na qual o acaso o fez nascer. Do
mesmo modo, sentiam-se, em relação a soberanos que dirigiam o mundo, cheios de
desenvoltura. Abandonados num astro morto, podiam olhar do alto os poderosos da
Terra. O desaparecimento da vida em torno deles transformara-os em rei e rainha da
Criação.
O tom de brincadeira e de comédia que adotavam e os risos que não conseguiam
refrear faziam com que as crianças prestassem atenção a suas palavras. Elas ficavam
imóveis e boquiabertas, dirigindo os grandes olhos para um e para o outro, podendo-
se dizer que as palavras mais abstratas tinham o poder de mergulhá-las em êxtase,
transportá-las para fora de si mesmas, ao domínio do sonho e da visão.
— Olhe-as — murmurava ele —, como são belas! São flores de luz.

Ouvia-o andando de lá para cá no posto, cortando lenha, falando com as crianças.


Era como a presença de um anjo. Viera como um anjo. Para escorar, render sua força
de mulher que enfraquecia. Sua força de mulher e de mãe amorosa, encarregada de
manter com vida as crianças pequenas, mas também a pequena Honorina perdida
entre os iroqueses, força que devia se ligar, como que por um fio de prata, à de
Joffrey, que lutava, ao longe, por eles. Joffrey de Peyrac, o conde-cavaleiro, o
defensor, o invencível, o indómito, abrigo, refúgio, força de todos eles.
Mas as forças do homem mais4orte são tão fracas, seus meios, tão reduzidos! Nem
todo o ouro do mundo pode resgatar a impotência na qual o çojocam muitas vezes as
escolhas de suas lutas ou de seus mandatos. Ele não passa de um ponto mínimo no
universo.
Mesmo Joffrey, dizia consigo, avaliando como aquele homem estava investido de
encargos, e em quantas partilhas, apesar de sua coragem sem limites, se encontrava
acuado. Somente o Espírito pode multiplicar a força. Ela compreendia o que ele quisera
dizer-lhe, em palavras febris e apaixonadas, na última noite na costa Leste, quando a
apertava nos braços. Sua força seria a sua. Sua constância sustentaria a sua.
Era apenas um inverno, no qual cada um combateria no torreão que devia guardar.
Uma vez aceito isso, era preciso reconhecer que as intervenções do céu para sua
salvaguarda tomavam as mais irnprevisíveis formas e rostos.
Ela não parara de tossir,- desde a última doença, e, sob efeito do calor do dia, ao qual
se sucedia o frio glacial das noites, teve uma recaída.
Tossia, e isso lhe lembrava o tempo da costa Leste, quando Marcelina, a Bela, fora cuidar
dela, acompanhada de lolanda e de Querubim. Marcelina certamente estava viva e,
portanto, lolanda também, e, sem dúvida nenhuma, Querubim.

CAPITULO XXXIV

A primeira flor da primavera

Ele entreabriu a porta cautelosamente, dizendo:


— A primeira flor!
Segurava entre o polegar roído e o dedo médio truncado um açafrão rosa, com o
cálice aberto sobre pistilos dourados e ornado por algumas folhinhas em feixes verde-
claros.
— Encontrei-a ao virar uma placa de gelo, sob a beira do telhado que está
começando a gotejar. Ela abrira caminho na sombra e no gelo, era de uma brancura de
alface, levemente esverdeada, e depois, após alguns instantes em contato com o ar e
com o sol, se soergueu e se adornou com todas as suas cores, como com um sangue
novo subindo-lhe ao rosto.
Deixou a flor junto dela, num jarrinho de água.
Angélica pensava em Cantor. Sua voz sob a janela no fim da invernada.
"Mãe, a primeira flor!"
Teve uma súbita vontade de revê-lo, de rever os filhos, de reunir todos os seus à sua
volta, como estavam naquela época. A ideia de atravessar o oceano para consegui-lo
cessara de parecer-lhe insuperável. Como a vinda das flores, tudo ia ordenar-se
espontaneamente. Ho-norina se juntaria a eles em Gouldsboro, e depois embarcariam,
e todos se reencontrariam: Florimond, Cantor, Honorina, Raimundo Rogério e
Gloriandra, todos, perto de Joffrey, sob sua asa. E também o pequeno Carlos Henrique
e todas as crianças, todos os jovens que tivessem necessidade de ajuda, de socorro para
iniciar o périplo de sua existência em meio às emboscadas deste século. Que teto
abrigaria tão numerosa família? Que província seria seu feudo? Pouco importava!...
Onde Joffrey dissesse: "Fiquemos!", onde sua prudente experiência, seu
conhecimento dos homens, da trama de suas alianças, o autorizassem à dizer:
"Ergamos aqui nossa tenda. Aqui podemos viver em paz ainda um tempo de nossa
vida".
"Joffrey! Joffrey!, logo a primavera vai eclodir, e poderemos nos encontrar!"

Gelo, à noite. Um vento forte se ergueu, curiosamente inaudível, infiltrando-se


como um elemento espesso que tivesse preparado uma temperatura polar, da qual só
se tomaria consciência sob seu efeito paralisante e mortal.
As árvores, que haviam recomeçado a respirar, foram imediatamente ajaezadas de
gelo até a ponta da última agulha ou raminho.
Angélica levantou-se tiritando de frio e batendo o queixo, persuadida de que fora
acometida por outro acesso de febre, e desanimada com a recaída.
Mas ouviu as crianças se agitarem e se queixarem em seu sono.
Seu companheiro logo chegou com cobertas e peles.
— A florzinha tinha razão em se conservar sob a neve — sussurrou. — Ela sabia
melhor que nós que o inverno ainda não acabou.
Atiçou o fogo, trouxe seixos enrolados em flanela com que os cercou e fez Angélica
tomar uma bebida qilente, com uma dose de aguardente, da qual parecia ter guardado
de sua expedição à Missão de São José uma reserva inesgotável e que se renovava
incessantemente, como no milagre do óleo santo do templo ou no dos pães e peixes
do Evangelho.
Acendeu o fogo em todas as lareiras do fortim, e ela o ouviu o resto da noite — ou
melhor, pressentiu-lhe a presença, pois ele tinha sempre a mesma maneira furtiva de
se deslocar como os felinos ou os índios — ir e vir para vigiar as lareiras e subir à
plataforma, a fim de se certificar de que as chaminés estavam puxando na medida
certa.
Podiam-se permitir essa orgia de lenha, explicou-lhe, pois aquele era apenas o
último assalto do Pai Inverno.
— Ele luta ainda. Mas é em vão. A primavera não e.stá longe.
A primavera sempre volta.
E para convencê-los ao mesmo tempo da iminência dessa volta e permitir-lhes olhar
uma última vez de frente o inimigo que não os tinha vencido, não quis que
renunciassem à saída cotidiana.
Permaneceram imóveis, e as próprias crianças desistiram de debater-se, no seio de
uma paisagem de cristal, cintilante de mil fogos, sob uma luz translúcida que parecia
brotar de todas as direções.
Sebastião d'Orgeval mostrou-lhes ao longe a mesma bruma dourada, bruma com
uma água de pérola arrastando-se com as aparências desses vapores de calor que se
vêem no verão. Ilusão. Era o gelo. Mas, olhando-o mais de perto, descobria-se que
essa neve que não havia caído pulverizava o fundo já verdejante dos vales.
— O Pai Inverno não quer ceder. Mas isso não significa nada. Isso não nos
impedirá, daqui a uma semana, de colher dente-de-leão e comer nossa primeira
salada.
Colheram dentes-de-leão.
Ele tinha hábitos de celibatário, de homem que aprendera a se arranjar sozinho. A
colheita das pequenas estrelas de verdura ligava-se a um ritual solene no início da
nova estação.
Angélica recomendou que se raspassem as raízes, colocando-as de lado para secar.
Essa flor, essa franja de espuma à beira do telhado, que deixava escoar lágrimas de
alegria, esse ruído distante nas florestas proveniente do murmúrio das águas liberadas,
e a superfície opaca do lago que ela percebera como um espelho sem polimento, tudo
isso anunciava a salvação, mas também a volta dos homens. A neve derreteria
depressa. Veriam diminuir, encolher-se a superfície de seu manto branco, e a neve
desapareceria "sem que se saiba", como diziam as crianças espantadas, "para onde ela
foi!!..."
Sobre as superfícies esponjosas liberadas, pés calçados de mo-cassinos já estavam a
caminho. As notícias iam começar a correr. Chegariam de Gouldsboro e conheceriam
finalmente a sorte de Wapassu. De todo modo, como de hábito, formar-se-ia uma
caranava para subir para o alto Kennebec, e Colin Paturel estaria provavelmente mais
apressado aquele ano para vê-la pôr-se em marcha, para informar-se sobre Angélica.
Essas diferentes perspectivas faziam-na oscilar entre a alegria e a angústia.
Ela repetia: "Fuja! Fuja!", sem saber se lhe recomendava fugir dos homens
civilizados, que não compreenderiam mais sua linguagem, ou dos índios incivilizados,
que viriam buscá-lo para fazê-lo morrer pelas torturas.
— Prometo-lhe que partirei.
Levou-a para o quarto e ajudou-a a deitar-se. Voltou com uma tigela nas mãos.
— Beba mais uma tisana! É a última que nos resta. As pequenas flores nos
escoltaram até agora e nossas provisões estão terminando, mas logo renascerão e você
poderá colhê-las. .
— Em Wapassu?! Acabou-se. Eu teria perdido quase todas as colheitas... E agora,
acabou-se.
— Haverá de colhê-las na Ile-de-France. As flores estão em toda parte. São as
amigas mais fiéis do homem. Por ora, durma e recupere suas forças. Quando
despertar, falaremos de meus pro-jetos. Partirei amanhã... ou depois de amanhã,
tranqúilize-se. Vejo que está bem recuperada. Durma sossegadamente. As crianças
estão brincando diante da casa. Vou até a beira do lago colher vime para fazer nassas,
que os ajudarão a pescar enquanto sua caravana não chega.
Esses preparativos pareceram-lhe de bom augúrio, apesar de não confiar
inteiramente neles.
"Está esperando que 'eles' cheguem", pensou, com uma mistura de irritação e de
mágoa. "Não tem o direito de me fazer isso. Depois do trabalho que tive para curá-
lo..."
Pensou nele com ternura, como teria pensado em um de seus filhos ameaçado. "Não
quero que ele tenha de passar de novo por provações atrozes. Não quero mais que seja
ignorado e desprezado. Quero que ele viva. Feliz! Ele merece viver. Pagou um preço
muito alto."
— Você me promete que partirá amanhã?...
— Sim! Sob a condição de que, quando acordar, você possa descer comigo até o
lago.
— Então, nesse caso, eu o obedeço. Vou dormir para adquirir forças.
Deslizou para o sono com felicidade e, pela primeira vez, com uma sensação de
verdadeira convalescença.

CAPITULO XXXV

A chegada dos homens de Gouldsboro — O cheiro da grelha dos iroqueses

Antes de abrir os olhos, ela pensou: "Quem estão queimando?" O cheiro que lhe
invadia o sono apagou-se quando voltou à consciência em seu quarto do fortim de
Wapassu. O sol se punha, e ela dormira apenas algumas horas. Sentia-se bem, enfim
repousada. Dessa vez, pensou, ele poderia partir. Olhou para a lareira onde estava o
crucifixo e viu brilhar o rubi. "Vai deixar-me o crucifixo quando se for?... Ou irá
colocá-lo novamente ao pescoço?"
Depois, voltando a cabeça, percebeu, sentado à sua cabeceira, um jovem de
colarinho branco, vestido de preto, que, ao vê-la acordada, levantou-se e dirigiu-se
para ela, sorrindo.
— Bom dia, Dame Angélica.
— Marcial Berne? Que faz aqui?
— Encarregaram-me de velar por seu repouso, cara Dame Angélica. Você dormia
tão profundamente ao chegarmos, que, depois de nos asseguramos de que estava com
vida, a deixamos entregue a seu sono reparador
Angélica ergueu-se, apoiada aos travesseiros, para olhá-lo com mais atenção.
— Você não havia partido para Boston para seus estudos?...
Ele riu, parecendo aliviado por ver que ela o reconhecia e se lembrava dele sem
esforço.
— Tem boa memória, Dame Angélica. Mas achei que não era momento, quando
Gouldsboro estava ameaçada de um ataque, de ir debruçar-me sobre os hieróglifos em
país inglês. Nosso outono foi perturbado. Era melhor conservar todos os braços
valentes, tanto mais .que o inverno se mostrou a seguir, mais do que nunca,
tempestuoso. A neve abateu-se sobre nós, e um frio de rachar árvores. O mar gelou na
embocadura dos rios Penobs-cot e Kennebec.
Vendo-a ouvi-lo com atenção, ele contou que, na costa, nem desconfiavam do que
acontecera em Wapassu. Nenhuma notícia chegava até lá. Já estavam acostumados
com o silêncio hibernal, e mais que nunca, naquele ano, cada qual vivera em sua
fortaleza, combatendo o inimigo principal: o frio, as neves e, para muitos, a fome.
Quando chegou até eles a notícia, proveniente de vagos rumores de relatos
indígenas, de que Wapassu fora atacado e queimado no outono, ficaram aterrados.
Diziam que todos os habitantes haviam sido levados como prisioneiros para Quebec,
o que era preferível à morte e reconfortava um pouco seus amigos, que aguardavam
mais detalhes.
Depois, quando o frio começou a amainar, o inglês mudo chegara, conduzido por
um empregado do posto do holandês de Houssnock. Lymon White fora retido como
cativo numa aldeia abenaki. Quando a tribo "descabanou" por causa da fome, ele
fugiu, dirigindo-se como pôde aos lugares habitados. Levava a notícia surpreendente
de que Angélica e seus filhos estavam vivos em Wapassu, correndo grande perigo de
perecer... se isso já não tivesse acontecido.
Descartou-se resolutamente a pavorosa perspectiva. O Sr. Paturel organizou
imediatamente uma caravana de socorro, que não levara menos de dois meses a se
deslocar, pois os rios e cursos de água ainda estavam gelados.
— E eis que nos encontramos há algumas horas do lugar.
O rapaz começou a falar com loquacidade.
— Que alegria de encontrá-la com vida! Que alívio à nossa angústia. As crianças!
Como estão bonitas! — extasiava-se —, como cresceram! E estão falando que é uma
maravilha!
Quem podia imaginar, repetia, que, depois de ter atravessado tais provações, iriam
encontrar os pirralhos com tão boa saúde!... E acrescentou que o pai de Carlos
Henrique quisera fazer parte da caravana. Sua experiência de bu.shranger lhes fora
preciosa. Na verdade, ele também temera pelo filho. Este parecera reconhecê-lo com
alegria.
Enfim, todo mundo estava feliz, e só esperavam que ela despertasse para ficar
inteiramente tranquilos e festejar esse feliz desfecho de uma provação tão longa e
terrível.
Um pesado passo de botas fez ranger o assoalho do corredor, e na moldura da porta
baixa apareceu a forte estatura de Colin Paturel.
Seu olhar ansioso se iluminou quando viu Angélica recostada ao travesseiro e
parecendo atenta ao que lhe explicava Marcial Berne. Foi nesse momento que este
deixou de ser para Angélica uma aparição ainda incerta. Quando viu Colin inclinar-se
para ela, compreendeu que não estava sonhando.
— Oh! meus caros homens! — exclamou, lançando-se-lhes ao pescoço e cercando-
os com os braços.
O momento tão esperado, tão sonhado, e que tantas vezes parecera impossível de se
realizar, acontecera. Seres humanos tinham-nos finalmente encontrado em sua solidão
e, o que era o cúmulo da felicidade e do reconforto, eram os seus, os homens de
Gouldsboro.
E Colin começava a contar o que Marcial já havia exposto. O anúncio demasiado
tardio do desastre de Wapassu, como tiveram de esperar para se pôr a caminho para as
regiões inacessíveis do interior, as dificuldades de locomoção, quantas vezes tinham
sido detidos pelas últimas tempestades de neve e as incomodida-des do degelo.
Descreveu o medo lancinante que tiveram de não encontrá-los vivos, e a alegria, em
que custaram a acreditar, por descobrir no forte as crianças muito vivas e espertas,
que os acolheram com muita graça. Um verdadeiro milagre! Capaz de incitar os
próprios huguenotes a colocar uma vela diante de alguma divindade papista falando
de milagre.
—Quem estão queimando? — murmurou Angélica, maquinalmente.
Seu subconsciente continuava a se sentir indisposto por aquele cheiro de fogo, de
incêndio, muito penetrante e desagradável para ela. Eram fogueiras de um
acampamento? Não estava mais habituada ao cheiro dos humanos.
Colin pareceu não ouvir ou não compreender o sentido da pergunta estranha. Não
entendia por que ela dizia: "Quem estão queimando?", e não: "O que estão
queimando?"
Era um homem das praias atlânticas, e não do interior, e ainda estava aturdido
pelcTcombate com as florestas e rochedos que tivera de travar para .chegar àquele
coração das montanhas.
Insistia em que haviam acreditado no milagre de sua-sobrevi-vência, e a prova disso
era que, compreendendo pelas narrativas — se assim se podia dizer —.do pobre mudo
que Angélica e as crianças estavam desprovidas de tudo lá em cima, haviam trazido,
além de víveres, roupa-branca, roupas de mulher e de crianças, sapatos e brinquedos,
tudo oferecido com a melhor boa vontade pelas damas e crianças de Gouldsboro.
— Oh! que ideia sublime! — exclamou Angélica. — Como a vida é boa!
Ao ouvir esses detalhes, o renascimento pôs-se a correr-lhe pelas veias com a
mesma alegre vivacidade de uma fonte que finalmente quebra sua prisão de gelo.
— Depressa, quero me levantar!
Seu olhar caiu sobre o crucifixo, no batente da-lareira.
— Eele?
— Ele?
— O homem que estava conosco... Aqui... Não o viram?... encontraram?...
— Com efeito! — reconheceu Colin, enquanto Marcial lhe lançava um olhar atento
e depois se calava. — Com efeito — continuou Colin. — Quando chegamos à beira
do lago, percebemos na outra margem um homem que estava colocando armadilhas
ou nassas. Tinha o aspecto de um explorador de bosques, e, receando que surgissem
em seu encalço exércitos vindos do norte, escondemo-nos primeiro. Depois, como
parecia estar sozinho, dois dentre nós se mostraram e o chamaram. Ao ver-nos, ele
abandonou precipitadamente o que estava fazendo e fugiu.
— Finalmente! Deus seja louvado! — suspirou ela. — Ele fugiu...
Fechou os olhos, recostando-se, subitamente fraca, ao travesseiro. Continuava a
segurar-lhes as mãos, como uma criança medrosa, adormecendo ao ver presenças
tranquilizadoras. Segurava-os agora. Não os deixaria mais. A afeição de seus olhares
pousados nela a reaquecia. E logo reveria Joffrey.
—Deus seja louvado! — repetia. — Meus caros homens!
Ia poder voltar a viver, retornar ao convívio dos humanos como quando se retorna a
casa.
Entretanto, uma sensação confusa continuava a atormentá-la.
— Colin, que cheiro de fogo e de carne grelhada é esse, tão forte?... Estão
preparando um regra-bofe? Estou com náuseas. Parece um acampamento índio...
— Os iroqueses estão lá embaixo! — disse Marcial.

CAPITULO XXXVI

O perdão de Utakê — O coração do mártir

— Encontramo-los lá pelos lados de Katarunk, o antigo posto destruído —


emendou logo Colin; — era um contingente de guerra, o que nos fez perder alguns
dias preciosos, primeiro para nos defender de sua emboscada, depois para nos fazer
reconhecer por eles e persuadi-los de que hão tínhamos intenções hostis. Os índios
malecitas e etchemins que nos acompanhavam se retiraram, e não os vimos mais.
Enfim, o chefe desses intratáveis convenceu-se de que não pertencíamos aos
"normandos", inimigos deles.
— Utakê?
— É o nome dele.
— Para onde ele se dirigia?
— Para Wapassu, como nós. Dizia querer "apoderar-se de um jesuíta, o Padre
d'Orgeval, que se encontrava aqui. Não sei se queria apoderar-se de seu fantasma ou
de seu espírito, pois, se não me falha a memória, esse missionário está morto há dois
anos. Sobre isso também nossas discussões não foram fáceis com esse selvagem.
"Você não sabe nada", dizia-me com desprezo quando eu lhe tentava demonstrar que
o padre não podia estar em Wapassu, pois fora morto, e, pelo que nos foi dito, pelo
próprio Utakê. Por outro lado, eu tentava fazê-lo compreender que tínhamos pressa de
chegar ao nosso destino, pois sabíamos que estava lá, senhora, mas temíamos não
conseguir encontrá-la viva. "Ela está viva", retorquia-me, sempre com um desdém su-
premo. Apesar de sua garantia, insistíamos em dizer-lhe que estávamos impacientes
por vir em seu socorro, receando chegar demasiado tarde. Essa reflexão ou nossa
impaciência demasiado evidente, não sei, quase entornou o caldo. "Eu sou amigo de
Te-conderoga, normando", disse ele. "Não pense que é mais amigo do que eu e que
ele me deva menos que a você. Vigiei melhor por sua estrela do que você o
fez...Sentíamo-nos em brasas. Esses demónios não são nada fáceis, e nós, que estamos
habituados aos abenakis batizados do Sr. de Saint-Castine, não sabíamos como tratá-
los. Enfim, consentiram em deixar-nos prosseguir, atrasando-nos um pouco devido ao
peso das cargas, aumentadas por aquelas abandonadas pelos nossos ajudantes índios.
Os iro-queses continuaram em nosso encalço ou nos precediam. Não sei se utilizaram
outros caminhos. Seguíamos o caminho habitual. Enfim, um dia, avistamos, do alto de
uma colina, as ruínas de Wapassu, e pouco depois... estávamos perto de você — con-
cluiu Colin, com a voz subitamente embargada.
Segurou a mão de Angélica, para disfarçar a emoção.
— Vamos levá-la de volta a Gouldsboro, Angélica a você e a seus filhos. Somente
lá estará fora de perigo. O Barão de Saint-Castine e seus etchemins e malecitas nos
defenderão de qualquer adversário que apareça enquanto o Sr. de Peyrac, ao qual
empenhou lealdade, não voltar. Ambos são da Gasconha, e prometeram-se assistência
mútua. Ele nos ajudará a nos defender pela diplomacia, se tivermos algum problema
com as pessoas da Nova França, e pelas armas, se se tratar dos iroqueses. Temos de
partir sem demora. Não temos condições de defesa ou de ataque, nem segurança.
Infelizmente! Aqui a batalha está perdida. Já é muito que esses terríveis inimigos dos
franceses tenham concordado em nos deixar com vida, apesar de sermos franceses.
..
Ela o ouvia olhando-o fixamente, e ele se perguntava de onde lhe viera a ideia de
que estava enfraquecida e que talvez lhe seria preciso — reencontrando com doçura e
compunção em sua fisionomia as cicatrizes do deserto — carregá-la nas costas no ca-
minho de volta, como fizera outrora nas estradas do Magreb.
Certamente aquele rosto tão querido trazia a marca de provações indizíveis, mas era
evidente que as atravessara e dominara sem querer abandonar nada de sijnesma, nem
a energia, nem a vitalidade de coração.
— E o homem? — repetiu Angélica.
Ela o fitava com aqueles olhos claros que se dilatavam, acentuando a cor verde,
límpida e rara, olhos cujo poder conhecera e que naquele momento analisava dizendo-
se que éleS arrebatavam a alma, na acepção mais próxima da palavra "arrebatar", ou
seja, mais de "apoderar-se" do que de "encantar", apesar de o encanto também existir.
Um homem sob esse olhar não tinha escapatória.
Desviou a cabeça.
— Pois bem, já lhe dissemos! — replicou, sob a perturbação que o subjugava apesar
de todas as rudes e rígidas barreiras que o Governador Colin Paturel quisera erguer
entre eles. — Avistamos esse homem na outra margem do lago, e ele fugiu.
"Em seguida, cautelosamente, contornamos o lago, que não podíambs atravessar, e
chegamos próximo da parte baixa do fortim... E então..."
— E então?...
— Então, nesse momento, os iroqueses saíram da floresta, pelo oeste, comandados
por Utakê. Vi o chefe mohawk correr em minha direção desabaladamente, brandindo
o tomahawk. Ele me gritou: "Aquele que eu procuro está lá. Você o deixou
escapar!..." Protestei energicamente, mas nunca estive tão próximo de ter o crânio
rachado, sem ter tempo sequer para levar a mão à coronha da pistola; meus
companheiros não puderam nem levar a arma ao ombro... Se ele não tivesse parado do
mesmo modo brusco a alguns passos de mim, eu estaria morto. Mas ele parou. E
estendeu o dedo para o alto da colina.
"Erguendo os olhos, percebemos o Toga Negra. Um jesuíta estava em pé lá no alto,
imóvel como uma aparição. Esperávamos que desaparecesse. Mas ele começou a
descer para nós num passo tranquilo, enquanto ficávamos todos em suspenso, brancos
e selvagens igualmente petrificados, e perguntando-nos que intenções se ocultavam
por trás de sua audácia. Segurava uma cruz, estendendo-a a nossos olhos, e, quando se
aproximou, vi no centro do crucifixo uma pedra vermelha brilhante.
"O jesuíta foi diretamente a Utakê, dizendo-lhe: 'Eis-me aqui'."
— E eles o pegaram — murmurou Marcial.
Angélica permanecia petrificada, ouvindo decrescer dentro dela o eco daquele
gongo solene: "Eles o pegaram".
— Colin, o que fizeram com ele? O que fizeram com ele?
Ele virava a cabeça.
Eles o haviam levado, contou, para o valezinho. Depois seu chefe subira até as
ruínas de Wapassu, trazendo de lá um pilar de paliçada enegrecido. Depois de fincá-
1© no chão, amarraram o jesuíta, tiraram-lhe as roupas e começaram a supliciá-lo.
Angélica sobressaltou-se, erguendo-se num salto.
— Leve-me até eles!
Colin a segurou, enquanto, apoiada a ele, ela vacilava.
Com veemência, lançou-lhe todas as palavras que lhe giravam pela cabeça desde a
sua chegada. Pois ele a conhecia e teria agora desejado que ela tivesse dormido por
mais tempo.
— Eu lhe suplico, Angélica! Basta de riscos! Basta de loucuras! Já não obtivemos
muito do céu encontrando-a a você e a suas crianças, vivas?!... Temos de partir o mais
cedo possível. Aproveitar que eles estão... ocupados.
— Deixe-me! Você não pode saber. Não suportarei que ele caia novamente em suas
mãos. Leve-me até eles!...
— Angélica, quer que nos massacrem? Sabem como eles são com seus prisioneiros.
Seus costumes são sagrados. Não suportarão que os brancos se intrometam. E ainda
que tentássemos... Será preciso matar todo mundo. Não estamos em condições, estou
lhe dizendo! Não podemos intervir...
— Vocês, talvez. Mas eu posso. Eles não me metem medo... Se eu pudesse andar,
iria sozinha. Ajude-me. Ajude-me a andar.
— Angélica, pelo amor de Deus, só estarei seguro de sua vida quando a tiver levado
para a margem. Com que cara vou me apresentar diante de seu esposo se -você não
estiver mais viva? Esse pesadelo me atormenta. Você decide nossa morte! Pense nele!
Ela teve uma breve hesitação.
— Joffrey faria o mesmo!
Subitamente ela se precipitou, esquecendo-se de calçar os sapatos. Sentia-se mais
leve descalça para correr. Correr...
Ouvia Marcial, o jovem huguenote de La Rochelle, gritar com desespero:
— Por quê, por quê, Dame Angélica?... É apenas um jesuíta... Um de nossos piores
inimigos...
"Ah! não me amolem com seus 'piores inimigos'!...", pensou ela.
Mas não teve forças para lançar-se sua resposta. Atravessou, sem vê-las, sem saudá-
las uma ala de pessoas. Mais tarde voltar-Ihe-ia à lembrança o choque que sentira ao
distinguir o espaço deserto que permanentemente os cercara preenchido de súbito por
presenças humanas.
Estava agora descalça sobre o tapete castanho-douradó da relva esmagada, recém-
liberada do degelo. Vestia sua pobre saia velha, que a acompanhara durante toda a
invernada, tinha o aspecto de um fantasma, mas seu olhar não os enganava. Todos os
que a viram aparecer como que saída de um túmulo a reconheceram. Era realmente
ela, e não tinha nada de uma moribunda.
Colin a sustentava, mas era ela que o arrastava dirigindo-se ao valezinho onde
estava reunida a massa sombria e emplumada dos iroqueses e de onde se elevava,
transportados por um vento sereno, o odor de fumaça e um rumor incessante de
tambores.
A um sinal de Colin, vários dos homens de Gouldsboro, entre os quais o grande
Siriki, os seguiram de perto, segurando os mosquetes, enquanto outros iam se postar
nas cercanias do fortim e na plataforma, prontos para qualquer eventualidade. Mas
ninguém queria voltar para dentro, e o grupo, com as crianças nos braços, ficou a
olhar de longe.
— Você não pode compreender, Colin — murmurava Angélica, enquanto avançava.
— Duas vezes, não! Três vezes, não!...
Não posso deixar que façam isso.
Seus pés mal tocavam a terra. Era apenas a força de Colin que a sustinha,
impelindo-a para a frente, o que explicava a sensação de estar no mesmo lugar, como
nos pesadelos, em que uma força contrária nos prega ao chão.
E diante dela, as longas, longas e longínquas montanhas dos Apalaches se
desenrolavam, contra um céu pálido com trilhas mais verdes nos vales.
Uma natureza virgem e soberba despertara, e tão feroz e terna que as ruínas
enegrecidas de Wapassu, do outro lado da grande ravina, a cavaleiro do lago na ponta
do bosque, pareciam belas.
Ouvia aproximar-se o ruído dos tambores. O cheiro de fogo e de carne queimada se
intensificava, e era nessa direção que se inclinava seu esforço. Seu cérebro estava
como que vazio... Uma prece ali estremecia: "Meu Deus, faça que... faça que... eu não
chegue demasiado tarde!... O wampum... não tenho mais o wampum..."
Lá embaixo!... O coração da América queimando a própria carne, devorando-a para
sobreviver.
Teria desejado correr, arrastar Colin.
— Eu lhe suplico, não se destrua — implorava ele. — Veja, você está fraca. Vai
cair.
Receava agora, por tê-la sentido tão frágil em seu corpo emagrecido, que
sucumbisse àquela crise de força sobré-humana.
Mas ela não o ouvia. O coração dela também ardia... De revolta e de pesar. De
revolta e de pesar impotentes... até o fim dos tempos.
Colin não podia saber. Era muito longo para contar-lhe... Era impossível contar-
lhe... Mas precisava chegar lá embaixo.

Finalmente chegou!
E viu imediatamente.
Uma silhueta de carne nua, magra e miserável, amarrada ao pilar em meio às danças
sincopadas de alguns "prestidigitadores" e à fumaça das brasas a seus pés, um homem
branco cercado pelo bale horrível dos machados incandescentes que faziam chiar a
pele de suas coxas, enquanto facas passavam e tornavam a passar lentamente,
sabiamente, cortando pequenas tiras sobre seu peito.
Foi a única coisa que viu inicialmente, e teve de parar para reter o grito que lhe
subia aos lábios e retomar fôlego.
Tarde demais!... Ela chegava tarde demais!...
Mas olhando novamente na direção do supliciado, viu que ele inha a cabeça erguida
e os olhos voltados para o céu.
Seu silêncio não era o da morte, mas do heroísmo.
Tudo se tornou diferente. Tudo entrou nos eixos. Pôde avançar novamente, rápida,
cheia de energia e de esperança.
— Utakê! Utakewata! Dê-me sua vida!
Ela ia sozinha, lançando seu apelo numa voz alta e clara.
— Utakê! Utakê! Dê-me sua vida!...
Ele voltou para ela o rosto, o deus vermelho, o deus tutelar da América, e, em meio
às manchas sarapintadas de suas pinturas de guerra, seu olhar era febril. Sua cimeira
erguida e os pingentes das orelhas fremiam. Aproximou-se alguns passos, enquanto
ela parava. Não parecia surpreso por vê-la ali, mas sua expressão continuava
ameaçadora. Estabeleceu-se um longo silêncio.
— Até quando você me pedirá vidas? — lançou-lhe enfim, mal-humorado. — Dei-
lhe a sua e a de seus filhos. Não basta?... Até quando você se obstinará em salvar
aqueles que a rejeitam ou aqueles que querem sua perda? O que importa esse jesuíta?
Por que quer salvar-lhe a vida? Ele era seu inimigo. Enviei-o a você para que
acabasse com ele. Enviei-o para que acabasse com ele — insistiu, animando-se —
com suas unhas à moda das mulheres. E você não o fez. Eu a desprezo. Você
desobedeceu às leis da justiça.
— Não preciso obedecer as suas leis. Venho de outro país, e tenho outro Deus para
me julgar. Você o sabe muito bem, você, que atravessou o oceano, Utakê, Deus-das
Nuvens...
Utakê começou a andar para lá e para cá, dirigindo-se com ênfase às tropas
iroquesas, agrupadas na encosta relvada, numa mistura de dialeto mohawk e de
francês, que ele falava muito bem apesar do sotaque agudo resultante de uma
pronúncia gutural, quase sem movimento de lábios.
— Vocês a ouviram?... Sou eu que a cumulo de benefícios, e é ela quem me dita
ordens.
Continuou a se agitar com uma mímica que significava que estava sufocando de
indignação e com gestos derrisórios que exprimiam que toda a sua razão era
suplantada pela inconsciência dos seres, e sobretudo dos brancos, e sobretudo das
mulheres!...
Depois, retesando-s,e subitamente, sua expressão mudou e adquiriu uma gravidade
solene. O rosto pintado pareceu transmudar-se em pedra, os olhos de jade, imóveis
nas órbitas dilatadas, lançaram estranhos fulgores.
Com um gesto lento e hierático estendeu para Angélica o braço, que permaneceu
hirto como o de uma estátua.
As palavras que lhes caíram da boca tiveram uma espécie de ressonância eterna.
— Olhem! Eis aqui uma mulher louca a serviço de um deus louco. E isso tem seu
valor... Ela é louca mas é fiel a seu deus, que disse esta frase insensata: "Perdoem seus
inimigos". Uma mulher tão louca quanto seu deus, ei-la. Ela, pelo menos, tem o
coração reto e segue seu caminho sem se desviar. Salvou o inglês doente e o iroquês
ferido, o pirata francês abatido e o Toga Negra moribundo. E vem gritar: "Devolva-
lhe a vida! Devolva-lhe a vida!...
Sua pose mudou um pouco, os movimentos de seu braço tornaram-se ao mesmo
tempo acusadores e líricos.
— Sim, você é bem isso... Você não se desvia de seu caminho, Kawa, estrela fixa, e
o que podemos nós contra a estrela que está colocada no centro do céu, apontando
sempre para a mesma direção?... Segui-la! Na noite de nossas almas, na noite de
nossos corações... Ah! você brilha e no entanto nos desnorteia...
— Eu não o desnorteio.
— Sim!... Você me enganou. Eu lhe enviei o jesuíta para que acabasse com ele.
— Não! Você sabia que eu não acabaria com ele... A prova é que, antes de enviá-lo,
lhe disse: "Voltarei para buscá-lo e devorarei seu coração".
O chefe dos mohawks permitiu-se uma breve risada.
— Queria saber se você era de fato isto: a estrela fixa.
— Portanto, sabia que eu o pouparia. Então, pare de usar artimanhas comigo, Utakê.
Você me deu sua vida uma vez. Pode muito bem dá-la uma segunda.
O chefe das Cinco Nações recomeçou a andar de um lado para outro, como um
animal feroz.
— Pois bem! Eu lhe darei sua vida! Não quero que escarneçam de você por ter
respeitado os preceitos loucos de seu Deus louco — declarou.
A um sinal deje, um jovem guerreiro avançou e cortou as cordas que amarravam o
prisioneiro. Mas, apesar das cordas cortadas, ele permaneceu de pé, imóvel.
Ainda veria aqueles que se agitavam à sua volta nesta terra?
Todavia, a ordem de Utakê de libertá-lo e sua subsequente execução provocaram a
cólera daqueles que participavam do suplício e que, instalados em torno da fogueira,
preparavam suas ferramentas de tortura com a aplicação e a seriedade de trabalha-
dores conscienciosos.
Um deles, chamado Hiyatgu, precipitou-se para a'arena. Seu discurso, pronunciado
em seu dialeto loquaz, era difícil de acompanhar, mas seu furor era visível e os gestos
exagerados o tornavam explícito.
Cpmo seus associados presentes, não admitia ver-se privado de uma nobre e difícil
tarefa, a de fazer morrer lentamente um inimigo abominável — que, mal havia
começado o suplício, já lhe retiravam das mãos —, tarefa para a qual ele, Hiyatgu, era
reconhecidamente muito hábil e cuja execução lhe proporcionava intensas sensações,
orgulho e satisfação. A isso se acrescentava a da vingança, que encontrava finalmente
o objeto em que saciar esse ardente sentimento de desforra. Sem extingui-lo
completamente, nem apagar o luto, cuja sombra encobriria para sempre o espírito de
Hiyatgu ao se lembrar dos filhos, da mulher, dos guerreiros, mortos nas muralhas de
sua cidade de Onondaga ou nas chamas daquelas Casas Compridas incendiadas,
colocaria um bálsamo nos mais vivos ressentimentos, sabendo que ofereceria aos
manes dos desaparecidos, multiplicada, a dor causada por seus ensinamentos
fanáticos, seus apelos à guerra contra o iroquês, acolhidos com tão boa vontade por
aqueles traidores huronia-nos e aqueles malditos algonquinos, inimigos hereditários e
que não tardariam também a pagar por todos esses crimes. Eles também, por suas
ordens, haviam causado a partida dos seus, tão atroz, imerecida e prematura, para as
terras de caça do Grande Espírito. Deviam devolver-lhe a vida para que viesse
destruí-los novamente?
Sua tirada veemente provocou uma aprovação geral por parte dos iroqueses
presentes, traduzida por um surdo ronco, tão profundo e prolongado que poderia fazer
acreditar na aproximação da tempestade se o céu não estivesse tão puro e azul.
Hiyatgu, adivinhando que tinha o controle da situação, interpelou Utakê de modo
mais direto.
— Não existe chefe supremo entre nós, Utakê. Se houvesse, ele seria escolhido entre
os onondagas, dos quais faço parte, e não entre os mohawks. Você infringiu os
princípios da Liga Iroque-sa. Não tem o direito de nos tirar a caça, nós também
participamos da caçada.
— Não é uma caça, mas meu inimigo — retorquiu Utakê, sem se perturbar. —
Somente eu sofri com ele em minha juventude, quando fui raptado e levado para o
outro lado do oceano para remar nos grandes barcos, as galeras do rei da França. E,
desde minha volta, sempre os defendi de suas emboscadas. O Conselho colocou-me à
frente daquilo que restava de nossos povos. Não comece a esquecê-lo, agora que o
perigo foi afastado, graças a minhas astúcias e minhas injunções.
Um outro ronco se elevou, mas, dessa vez, Hiyatgu não se deixou iludir, pois,
conhecendo seu adversário, sabia que a aprovação se dirigia às palavras de Utakê. :
— Seja! Devolva-o — gritou-lhe com raiva. — Mas não será dito que não obtive
nada!
Sua manobra foi demasiado rápida.
Num salto, pulou sobre o prisioneiro, sempre de pé, encostado ao pilar do suplício.
Empunhando-lhe a cabeleira, cortou com uma lâmina aguçada o alto da testa e puxou.
Um grito saído de todas as bocas sublinhou seu ato imprevisto e cruel.
Hiyatgu, triunfante, afastou-Sé.
Insensível à indignação e à cólera que provocava, pôs-se a emitir urros alucinados,
cortados por imitações de cânticos cristãos. E, balançando seu trofeu como um
incensório ou um hissope, aspergia a relva de sangue ao seu redor.

O jesuíta permanecia de pé. De seu crânio escalpelado, o sangue corria-lhe pelo


rosto em mil regatos enceguecedores. Um guereiro puxou-o para a frente pelo ombro,
mas, apesar disso, ele não caía.
Quando dois homens, pegando-o pelos braços, o arrancaram do pilar,
desprenderam-se, da espinha até os rins, tiras de carne que ali se grudaram.
Foi aquele corpo sangrando que arrastaram e lançaram aos pés de Angélica.
Ela se ajoelhou, inclinando-se até envolvê-lo com os braços e aproximar o rosto do
dele.

Dessa vez ele acabara.


Não voltaria mais dentre os mortos.
A vida apagara-se na face sangrenta, pois as pálpebras haviam se fechado sobre o
olhar ainda brilhante, cego por uma súbita chuva de sangue.
Angélica desamarrou o lenço de pescoço e tentou suavemente estancar-lhe o sangue.
Chamou a meia-voz:
— Padre! Padre d'Orgeval! Meu amigo!
A voz dela, mulher longínqua e terrestre, podia alcançá-lo nas zonas do inferno... ou
do paraíso onde seu espírito já vagava? Desejava ouvi-la? Ele levantou as pálpebras.
Seu olhar ainda azul iluminou-se com uma centelha de alegria. Ele a via mas
distanciava-se como num navio rumo às margens ida alegria eterna, e ela sentiu que
permanecia, pesada, ajoelhada num chão duro sujo de sangue, na obscuridade da
terra. Houve então um brilho zombeteiro, depois uma expressão grave e imperiosa, e
ela julgou ouvir a adjuração que ele lhe repetira com tanta frequência: "Viva! Viva!
Por seu triunfo e por nossa luz... Viva para que meu sacrifício não tenha sido em vão".
Seu olhar turvou-se. Leu ainda nele uma súplica ardente, triste e quase humilde de um
homem que não se julgava digno, mas que, na última hora, aspirava ao mérito, o
ardente desejo de um coração que viera para a Nova França para a salvação dos
selvagens e que os amara tanto.
A última exigência de sua vocação.
Indagava-lhe suplicante quem iria dispor de seu cadáver. Ela compreenderia? Mas
ela compreendia tudo. Estava tão próxima dele! Tinham seguido juntos trilhas pouco
comuns, haviam explorado o dédalo dos mistérios do Amor e das múltiplas aparências
sob as quais se dissimula sua chama.
— Sim, eu lhe prometo — disse a meia-voz e ainda que essa decisão lhe fizesse mal
—, eu o entregarei a eles, eu o entregarei aos iroqueses. E eles comerão seu coração...
E você permanecerá entre eles... para sempre.

Durante essa cena, os dois chefes haviam prosseguido sua querela, continuando a se
desafiar, primeiramente pelo insulto depois entregando-se ao bale da luta, girando um
em volta do outro, brandindo o machado e o tomahawk, Utakê, louco de raiva por ter
visto sua supremacia e seu direito de clemência questionado, e sua palavra traída pelo
gesto do rival; este, lembrando-lhe incessantemente que as sentenças que estatuíam o
destino de um prisioneiro deviam ser tomadas no Conselho, e que o chefe dos
onondagas tinha prioridade sobre o dos mohawks...
Embriagados mais por uma mágoa que não conseguiam definir do que pela
aguardente, pouco usada por aqueles chefes, essa querela em palavras e ameaças foi
sangrenta.
Finalmente, ficou decidido que Utakê e o outro se bateriam num duelo iroquês, com
o machado e o tomahawk.
Foi portanto um combate muito curto e cerrado, com passes e cambalhotas
magistrais e que concluiu resolutamente pela vitória, por assim dizer, dos dois chefes,
tão fortes um quanto o outro, e que não conseguiram ser atingidos por golpes suficien-
temente mortais para colocar este ou aquele fora de combate.
Mais tarde, a disputa se reacendeu quando se colocou o problema de saber se o
coração do jesuíta seria comido assado ou cru. A discussão alteou-se a graus de
veemência elevadíssimos, e a luta entre esses últimos sobreviventes das Cinco Nações
estava prestes a estourar e se transformar em batalha, mas a questão foi acertada pela
eloquência de Utakê.
— Eu sou filho da Paz. Enterro o machado de guerra ao mesmo tempo que devoro
este coração. Temos de comê-lo palpitante ainda, porque ele deve nos comunicar sua
força sobre-humana e sagrada.
— Mas ele está envenenado — retorquia o outro. — Para não Se tomar seu veneno
ao mesmolempo que sua força, deve ser assado.
— Não! Não é assim. O coração de Hatskon-Ontsi não tem mais veneno. Este
coração é puro. Este coração está purificado.
A mulher branca fezrse fiadora dele ao reclamá-lo, ao devolvê-lo a nós.
Dessa vez Utakê foi o mais rápido. O mais rápido a abrir o peito do morto e
arrancar-lhe o coração. Tocados pelo respeito, os outros fizeram silêncio.
O dia acabava. O céu tornava-se vermelho no poente. Na luz púrpura, Utakê
levantou, na ponta dos dedos, aquele coração tão discutido, perolado de sangue.
— Ei-lo. Vamos alimentar-nos deste coração purificado, receberemos os conselhos
deste coração que nos trouxe o ódio e que nos amava. Poderemos marchar em busca
da paz. A paz para nossas aldeias, a paz para nossos cantões que renascerão, pois não
fomos todos exterminados. Ele nos inspirará. Ele nos trará o conhecimento desses
franceses indomáveis que nos confundem o espírito e enganam nossos corações, e nos
guiará para saber o que devemos esperar deles, a confiança que devemos conceder-
lhes para sua sobrevivência e a nossa.

Então, quando a lua de cornos pontiagudos .como um punhal oscilava no céu de um


azul primaveril, os chefes das Cinco Nações Iroquesas sobreviventes, confrangidos ao
mesmo tempo por uma dor e uma esperança imensas, partilharam e devoraram o
coração de seu inimigo Hatskon-Ontsi, o jesuíta duas vezes morto e várias vezes
mártir.

Assim que os chefes iroqueses pegaram das mãos de Angélica o corpo do Padre
d'Orgeval, Colin Paturel levantou a jovem mulher nos braços e a levou até o forte,
sem muita dificuldade. Ela era tão leve, imaterial!
A pressa de arrancá-la às loucuras mortais que campeavam naquelas paragens
apoderou-se dele. O dia já ia muito alto para que se pudesse organizar a partida.' Seria
preciso ficar até o dia seguinte.
Com as ventanias noturnas aproximava-se uma noite gelada, e no fortim, mãos
diligentes haviam acendido fogos em todas as lareiras. Recriava-se o alegre ambiente
que haviam conhecido os homens de Peyrac na primeira invernada, com seus
mineiros, soldados, artesãos, trabalhadores, estrangeiros de todas as nações e
aventureiros de todo tipo. Acampariam no velho abrigo aquela noite, sob a guarda de
sentinelas que se fenderiam a cada duas horas e que vigiariam permanentemente os
bosques, as lonjuras, os arredores e mais assiduamente o valezinho onde faiscavam as
fogueiras dos iroqueses e de onde chegava, em lufadas, o ronco lúgubre dos cantos e
dos tambores.
As crianças, saciadas de guloseimas, já haviam comido e dormiam no antigo quarto
dos Jonas, veladas por pares de olhos zelosos e enternecidos, que não as perdiam de
vista um só instante. Bens preciosos que se julgavam perdidos, tesouros que era preci-
so agora levar com vida para as praias.
Dormiam apertando nos braços os brinquedos trazidos para elas de Gouldsboro.
Angélica pediu que a deixassem chorar sozinha.
Mas Colin ficou junto dela, e, quando via a onda de soluços se acalmar, dizia
algumas palavras que aludiam à paz que encontraria entre eles em Gouldsboro, à volta
próxima do conde, que não deveria tardar. Essas palavras não chegavam até ela,
apenas o som de uma voz diferente que rompera a noite eterna dos dias de inverno.
Ela erguia as pálpebras doloridas e via-se sozinha na jangada da sobrevida. Via
Colin sentado ao seu lado, atento, e a inquietação e a ternura daquele olhar claro,
familiar.
Subitamente, afinal, o relógio do tempo soara. Uma pancada. E foi o fim dos dias
sem fim.
As portas de gelo se romperam. 'Os homens haviam surgido.
Podia acreditar que nada acontecera. Ou poucas coisas. Nada a não ser alguma coisa
muito simples e muito natural na vida dos homens. Alguns meses de inverno para
atravessar. "Tudo tem fim!... tudo recomeça", dizia ele. Teria podido acreditar que
havia sonhado. Um fantasma acompanhando-a com sua força para ajudá-la a chegar
ao fim do túnel: Teria podido acreditar que ele não existira, se não houvesse esse
crucifixo, sempre ali, que ela percebia com sua pequena cintilação Vermelha
refletindo as luzes do fogo.
— Colin, você não me disse que o jesuíta levava ao pescoço um crucifixo, e que
caminhava estendendo-o a você?
— Isso mesmo... Mas'quando os selvagens o pegaram eleretirou-o e deu-o para
mim: Disse-me de modo muito cortês, mas muito firme: "Senhor, por favor, tenha a
bondade de recolocar este santo objeto no batente da lareira, no quarto em que neste
momento a Sra. de Peyrac está adormecida. Ela tem estado muito doente, mas ei-la
fora de perigo. Quero que ao despertar veja este crucifixo em seu lugar habitual".
Gritou-me de longe, quando o arrastavam: "Suba depressa para o forte. As crianças'
estão sozinhas!..."
Angélica começou a rir em meio a suas lágrimas.
— ...Como era autoritário!... Era um maníaco!... Oh! realmente, para esses detalhes,
era maníaco como uma mulher!... Por que
dormi?
Continuou a chorar, mas mais suavemente.
— Por que dormi? Por que dormi tanto tempo? Se eu tivesse acordado no momento
em que vocês chegavam acompanhados dos iroqueses, ele teria tido tempo de fugir.
— Não creio que quisesse isso — disse Colin.
CAPITULO XXXVII

Um último discurso de Utakewata — Notícias de Honorina

Mais tarde retirou as roupas sujas de sangue do mártir e impregnadas pelo cheiro de
fumaça, pelo odor do inverno, pelo odor dos longos meses passados nas trevas.
Desejava chorar mais, mas ao ver-se vestida com roupas limpas e pouco usadas e
reconhecer nas pregas da saia, do blusão e do lenço o perfume discreto de sua amiga
Abigail, uma euforia benfazeja a conquistou.
Logo estaria junto à doce amiga, deixando-se rodear por suas atenções, ouvindo o
mar bater nas praias de Gouldsboro, enquanto esperava que surgissem as velas do
navio que traria Joffrey de volta.
Abigail pensara em tudo. Inclusive juntara ao que mandara um saquinho de cascas
de quina trazidas por Shapleigh.
Deslizou para o sono tranquilamente. Soube que dormia quando o rosto de jesuíta
veio inclinar-se sobre o seu. Seus olhos eram azuis e não havia nenhuma brecha negra
no sorriso dos- belos dentes, que não tivera tempo de tratar. Julgou que fosse dizer-
lhe: "Há um alce lá fora!... Levahte-se". Mas ele contentou-se em sussurrar-lhe: "E
Honorina?", com uma piscadela cúmplice, como para lembrar-lhe um segredo entre
eles, e que ainda tinham uma obra comum a resolver.
— E verdade! Honorina!... Eu sei por que não quero deixar wapassu — disse a
Colin, que continuava à sua cabeceira. — Tenho de esperar Honorina. Ela não sabe
que Wapassu foi incendiado e tentará encontrar-nos aqui.
Colin Paturel ignorava tudo a respeito da odisseia de Honori-na, e julgava lembrar-
se de que a menina estava interna no colégio das religiosas em Montreal. Mas, vendo
Angélica agitar-se, afirmou-lhe que ficariam em Wapassu o tempo que fosse preciso
para esperar Honorina, prometendo interiormente convencê-la no dia seguinte. Por
ora, a noite ainda era profunda. Era preciso dormir, insistiu.
Como ela estava fraca, nervosa e diáfana!, pensava, olhando-a recair no sono como
que sob o efeito de um desmaio, mas sempre indomável.
Colin Paturel ajoelhou-se junto dela e colocou os lábios sobre a mão abandonada.
— Obrigado! Obrigado, meu cordeiro — murmurou-lhe. —Obrigado por ter salvo a
felicidade de nossas vidas suplantando sua morte...

A segunda fase de seu repouso, um pouco antes da aurora, foi para Angélica mais
turbulenta. "Os iroqueses! Os iroqueses!", repetia, perseguindo um pensamento que
lhe fugia mas que, ao final, se tornou preciso. "Os iroqueses, mas são eles, pelo menos
alguns dentre eles, que podiam me dar notícias de Honorina... Se ela passou o inverno
numa de suas nações... esqueci-me de pedir-lhe informações..."
Acordou gritando: "Os iroqueses". Estava sozinha dessa vez, mas num quarto
ensolarado. Haviam-na deixado dormir, apesar da chegada do dia.
Zangada consigo mesma, atirou-se para fora da cama, com todas as energias
reanimadas.
— Os iroqueses ainda estão por aí?
— Sim! Muito ruidosos e desagradáveis, para nossa infelicidade; continuam a
parlamentar e a querelar no fundo do valezinho.
— Graças a Deus!...
Ela lhe explicou que era preciso ir ao encontro deles ou convocá-los imediatamente,
pois apenas por eles podia esperar obter notícias de Honorina. Sem tentar distraí-la de
sua ideia fixa, Colin pôde satisfazer-lhe a vontade logo. Não havia necessidade de
convocá-los. Estavam vindo até eles. Utakê fizera-se anunciar com os seus para dali a
uma hora.
Saindo, Angélica percebeu a grande poltrona de madeira que fora levada para fora.
— O mensageiro do mohawk recomendou que lhe fosse preparada uma cadeira para
que você possa escutar, sem fadiga, sua arenga, que ele pretende dirigir-nos antes de
despedir-se, e que será longa.
Angélica tomou assento na poltrona preparada para ela, sacudindo a cabeça com
resignação. "Esses índios, jamais os compreenderei!..."
Na esplanada, seu olhar abarcava a perspectiva de Wapassu, que lhe pareceu mais
deserto ainda que nos primeiros dias, anos antes, quando haviam chegado em
caravana para encontrar, no fundo daquele covil, os quatro mineiros que já haviam
começado a trabalhar ali.
A esquerda, distinguia uma parte do Lago de Prata, reverberando ao sol, esquecido
de que sobre sua planície branca ela correra, perseguida pelos lobos, arrastando um
cadáver de alce.
Ao longe, na curva verdejante do valezinho, a multidão castanha dos iroqueses se
agitava, e seus gestos de idas e vindas pareciam indicar que estavam se preparando
para partir.
— Se eles subirem sem armas, será preciso que nossas sentinelas dissimulem as suas
— recomendou Angélica a Colin.
Pediu aos dois rapazes encarregados de vigiar Raimundo Rogério e Gloriandra que
viessem colocar-se ao seu lado com as crianças. Seus dois rebentos, estava persuadida,
não deixariam de se interessar por aquele espetáculo multicolorido de uma delegação
iroquesa, mas não era por isso que tomava essas medidas, que suscitou murmúrios de
desaprovação ao seu redor. Ela explicou àqueles que se inquietavam que a visão das
crianças lisonjeava os índios, e principalmente os ferozes iroqueses, provando-lhes
que não inspiravam receio e que eram recebidos como amigos da família.
Fora alguns, homens do grupo, que haviam andado pelos bosques à procura de
peles, ou-que tinham tido a oportunidade de viver nas aldeias fronteiriças, a maior
parte daqueles que tinham vindo das margens para socorrê-los nutria uma forte
desconfiança em relação-aos índios do interior, mais ainda em relação aos iroqueses,
muito temidos, e cujos contingentes de guerra vinham de muito longe semear o
pânico entre os algonquinos do leste.
Angélica permanecia calma. De sua parte, não temia nada. Temia apenas perder a
paciência. Ou ser vencida pela impaciência durante o discurso, em sua espera de
receber algumas notícias sobre a filha. Tinha pressa de interrogar Utakê. Dele talvez
obtivesse uma indicação, alguém que a tivesse visto, percebido, quem sabe falado
com a menina, e que lhe devolveria a esperança, garantindo-lhe que estava viva,
apesar das guerras, epidemias e fome. Deveria pois esperar sem nervosismo o final da
arenga.
Uma pequena mão colocou-se sobre a sua, pousada no braço da poltrona.
— Eu também estou aqui — disse-lhe Carlos Henrique, lembrando-lhe sua presença
com uma voz gentil. Angélica abraçou-o e apertou-o contra o peito.
— Sim, você também, você é meu filho, meu valente compa-nheirinho. Vai ficar de
pé ao meu lado e me ajudar a receber o chefe das Cinco Nações. Conserve sua mão na
minha e fique bem ereto como o orgulhoso soldado que é.
O que mais lhe iria pedir Utakê? O impossível... ou talvez nada. Com ele, podia-se
esperar qualquer coisa.
— Eis nossos teatrais que avançavam — disse a Colin, de pé atrás dela, e que lhe
pareceu mais tenso e menos à vontade que se tivesse de tomar de assalto toda uma
frota de piratas das Antilhas.
Quanto a ela, ladeada pelo pequeno Carlos Henrique, olhava-os vir sem receio, e
quase sem rancor. Levavam na cintura as machadinhas de combate e os tomahawks de
pedra vermelha ou branca. Tinham deixado os mosquetes no vale, e Angélica fez sinal
aos portadores de mosquetes, que se mantinham com a mecha pronta para o ataque,
para que se escondessem atrás da casa ou nas brenhas ao redor.
Os chefes das Cinco Nações pararam a alguns passos da poltrona, seguidos de uma
massa de guerreiros reunidos.
Um sol pálido, um sol ainda frio de inverno os iluminava.
Apesar do penacho de plumas e de peles, cerdas de porco-espinho nos cabelos
levantados, colares de dentes de urso, braceletes de penugens tingidas de vermelho,
eles estavam magros, quase tão magros quanto lobos esfomeados. Sua carne pareceu-
lhe pálida sob a retícula azulada das tatuagens. Ignorava que haviam vivido
escondidos longos dias nas trevas da terra, atravessando, num percurso de várias
léguas, os meandros das grutas e rios subterrâneos.

A homilia de Utakê, contrariamente ao aviso que havia dado, foi de curta duração.
Mas, ainda que tivesse escolhido com cuidado, em seu francês castigado, as palavras
adequadas, foi um discurso difícil de compreender. Cada palavra puxava outra e ia
mais longe, tal como as linhas superpostas das montanhas.
Mais tarde, lembrar-se-ia dela como uma mão aflorando as cordas de uma harpa, e
cujos sons chegassem até ela amplificados pelo eco, e pelo eco do eco.
Todavia, ele começou falando com toda a simplicidade sobre sua querela com
Hiyatgu.
— Um de nós deveria estar morto. É a lei. E eis-nos aqui diante de você com vida,
nós dois. O que significa, Kawa: de seu último combate, como de meu combate com
Hiyatgu, não houve vencedor nem vencido. Foi um combate que nada decidiu. Porque
na realidade não há inimigo e não há guerra. Apenas um precipício e uma ponte que
faltava para passá-lo. Mas a cláusula é secreta e é preciso esconder-s,e daqueles que
não vêem a ponte e que não compreendem por que nós a atravessamos.
"Teconderoga me fez fazer coisas bem estranhas desde que o vi. Ele torcia meu ser
por dentro como uma pele ria água do rio. Ele obrigou minha razão a pensar um
pouco ao lado de seu caminho habitual, o que é um sofrimento e um perigo, mas pode
conduzir à ponte.
"Você, você é o espírito flutuante de Teconderoga. Ele se mantinha na terra, arcado
sob o peso da ciência, e você, você corria para a frente; leve e invisível para me
agarrar. Soube disso quando os vi em Kátarunk, depois do fogo. Dois e unidos, e de
uma força tão grande! Foi o que disse o Toga Negra: 'Unidos não se pode abatê-los.
É.preciso separá-los'."

Onde, quando, Sebastião d'Orgeval-explicara isso ao chefe das Cinco Nações?...


Provavelmente, jamais. Utakê talvez o tivesse ouvido em sonho...

— Mas Teconderoga não está mais aqui, e você vai partir. Eis-me obrigado a andar
ainda um pouco ao lado de meu caminho, se não quiser perder tudo. E eis por que
Hiyatgu está vivo... Eis por que eu o poupei — disse, lançando um olhar prov.ocativo
ao chefe dos onondagas. — Tenho ainda necessidade de ouvir uma palavra apenas de
sua boca, Kawa. Assegure-me, assegure-me que aquele que morreu ontem não voltará
para nos destruir..."
— Cpmo você pode duvidar? — disse ela, surpresa de ler em seus traços impassíveis
uma ansiedade real. — Você é avisado dessas coisas melhor que eu mesma.
— A fome e a derrota enfraqueceram a clareza de minhas pres-ciências. Do mesmo
modo que Teconderoga me fortalecia, Hatskon-Ontsi perturbava e enfraquecia meus
julgamentos.
— Você fala no passado. Dá a si mesmo a resposta, Utakê. Não há vencido nem
vencedor, você dizia, porque nunca houve inimigo. Você, que comeu seu coração,
sabe agora como ele os amava...
— Não irá ele aplicar-se em ajudar seus irmãos de raça, os franceses, contra nós?
— Não! Os franceses não precisam dele da mesma forma que vocês, iroqueses das
Cinco Nações, e foi por vocês que ele veio. Digo-lhe isso porque foi o que ele me
disse e porque é o que sinto também. Veio para ficar entre vocês. Daqui a algum
tempo ele se infiltrará entre você. Eu sei que você principalmente o sentirá presente
para ajudá-lo na sua tarefa e combater ao seu lado.
— Quer dizer que ele terá descoberto a justiça de nossa causa e a horrível traição
com que nos oprimem nossos inimigos? — interrogou o mohawk, cujas pupilas negras
refletiam uma centelha de alegria e triunfo.
Angélica fechou os olhos. A imagem de Wapassu destruído, a América que
deixavam para trás parecia-lhe como um campo de ruínas, uma terra queimada, uma
terra que se devoraria a si mesma até que os renovos de raízes mais robustas
conseguissem firmar-se e dominar o caos.
Não estava em condições de lançar sobre o futuro um olhar otimista, mas precisava
responder-lhe'e devolver-lhe a confiança.
— Ele terá descoberto que você mereceu tê-lo ao seu lado para apoiá-lo e aconselhá-
lo até o fim de seus dias — respondeu com firmeza, mas erguendo as pálpebras com
dificuldade.
Nesse breve instante em que fechara os olhos para refletir, julgara que ia desfalecer,
ou pelo menos adormecer, de tal modo estava fatigada, mas sabia que, mesmo feridos
ou ameaçados como estavam presentemente, os selvagens, e sobretudo seu inter-
locutor, eram capazes de adiar sua partida e minimizar o perigo que os espreitava, a
fim de continuar uma discussão "de valor", mostrando, pela apresentação e refutação
dos argumentos de sua defesa e de seus ataques, uma resistência que poderia levá-los
até a noite.
— Você crê realmente? — recomeçou Utakê, tomando fôlego por um longo
período.
As pálpebras de Angélica fecharam-se novamente. Reabriu-as corajosamente,
ficando surpresa por ver o chefe das Cinco Nações inclinado diante dela e
apresentando-lhe nas duas palmas uma fina tira de couro com contas de koris brancas,
pretas e malva.
— Ofereço-íhe este colar de porcelanas — disse ele. — É tudo o que me resta do
tesouro de guerra dos mohawks, que os franceses chamam de "agniers". Guarde-o
como símbolo de minha aliança eterna, e este, não o perca.
— Mas eu não perdi o wampum das Mães das Cinco Nações que você me enviou em
nossa primeira invernada aqui — protestou Angélica. — Ele desapareceu no incêndio
de Wapassu. Talvez se pudesse encontrá-lo nos escombros, não?
— As mães que o enviaram a você estão mortas — disse Utakê com uma voz cava
—, e o wampum que teceram com suas próprias mãos está enterrado sob as cinzas.
Assim são os sinais.
Ele recuou alguns passos, deixando o fio de conchinhas enfiadas sobre os joelhos de
Angélica.
— E agora tenho de dar-te notícias de sua filha, cujo nome é impronunciável,« que
nós, iroqueses, chamamos de Nuvem Vermelha — disse, num,tom voluntariamente
neutro e comedido.
Mas seu olhar faiscou de malícia, rejubilando-se antecipadamente com o que ia
suscitar com essas palavras numa francesa tão impulsiva quanto aquela que estava à
sua frente e que, ainda que se esforçasse por respeitar as maneiras ponderadas dos
índios, continuava submetida ao sangue fervilhante e anárquico da raça dos caras-
pálidas sem educação.
Não podia falhar.
Angélica soltou uma exclamação de alegria, e sua expressão dolente deu lugar à
mais desperta excitação do mundo.
— Honorina! Minha filha Honorina! Você sabe alguma coisa sobre ela?... Sabe onde
ela está? Ah! diabo de mohawk! Por que se calava? Por que não.o disse logo?
— Porque em seguida você não teria escutado coisa alguma dos discursos que eu
tinha de fazer-lhe. Não teria dado a menor atenção às palavras muito importantes que
tinha a lhe comunicar antes de deixá-la, para talvez nunca mais rever, e eu fazia
questão de me dirigir a uma pessoa atenta. Você não teria sequer notado, eu a conheço
— disse com um grande gesto desiludido —, que eu lhe oferecia meu único ramo de
porcelanas em sinal de aliança eterna, ó Mãe que você é! ó Mulher! Mulher! Mulher
que você é, pois você é três vezes mulher, pela lua e pelas estrelas. Há mulheres que
podem se lembrar do homem que foram num outro ciclo, e encontrar as palavras ou
atitudes que não chocam absolutamente a dignidade daquele que a ela se dirige, mas
você sempre foi demasiado mulher para se preocupar com isso...
— Fale! — exclamou Angélica, agarrando-se com ambas as mãos nos braços da
poltrona.
Se estivesse lidando com Piksarett, ter-se-ia levantado para sacudi-lo por suas
tranças de honra.
— Fale! Eu lhe suplico, Utakê! Diga-me tudo o que sabe sobre ela e não me faça
esmorecer, ou prometo que vou me lembrar que fui também um guerreiro que
manejava o cutelo melhor que você mesmo, e que o fez compreender isso uma noite
junto à fonte, e isso não aconteceu numa vida anterior.
Utakê deu uma gargalhada, imitada por seus companheiros, que não compreendiam
inteiramente a alusão, mas apreciavam a animação da cena.
Depois, acalmando-se:
— Seja! Dir-lhe-ei tudo o que sei sobre ela. Vou primeiro dizer o que sei com
certeza.
— Onde ela está? Está viva? Você a encontrou?...
O mohawk fez uma expressão melindrada.
— Se eu a encontrei? Que está dizendo? Se ela partilhou todos os meses de inverno
a vida de uma família na Casa Comprida do ohtara do Chevreuil aux Oneiouts, e,
todos os dias, eu, que me dirigia ao Conselho da Federação como chefe das Cinco
Nações, via-a e conversava com ela, até o dia em que, maldito seja, o novo Onôncio
de Quebec conduziu novamente suas tropas
até nosso vale dos Cinco Lagos e queimou o provoado de Tuansho, apesar de suas
fortes paliçadas, após um combate assustador.
"É por isso que não posso responder com certeza à primeira pergunta: 'Onde está
ela?...' Nem à segunda: 'Ela está viva?...' Pois, talvez você o ignore, quase toda a
população desse povoado pereceu, exceto alguns poucos miseráveis que consegui
arrastar comigo e subtrair por minha habilidade ao furor vingador dos franceses e de
seus danados huronianos, e desses cachorros de abenakis. Tudo o que posso dizer
com certeza é que ela não estava entre nós." Ele repreendeu com um gesto o
movimento desesperado de Angélica. "Sei que algumas mulheres e crianças
iroqueses, disseram-me, foram levadas pelos franceses até as missões de São José ou
de Quinté, perto do Forte Frontenac, mas não posso dizer-lhe seguramente se ela
estava entre elas."
Cobrindo o rosto com as mãos para dissimular seus traços, Angélica recusava-se a
encarar que a criança tivesse perecido nas chamas das aldeias incendiadas. Era
impossível. Era-lhe pois preciso desejar que Honorina estivesse em poder do.s
franceses, seus compatriotas, que eles a tivessem levado de volta a Madre Bourgeoys
ou a seu tio e sua tia do Lobo.
Utakê levantou os braços com solenidade como para reclamar do céu a inspiração e,
das pessoas presentes, a mais escrupulosa atenção.
— E agora vou lhe dizer o que sei dela, Nuvem Vermelha, por vidência.
Fechou os olhos e começou a sorrir.
— Ela chega! — murmurou. — Ela vem para você! Nao se apresse em deixar estes
lugares, Kawa, pois sua filha se dirige para o Lago de Prata para aqui encontrá-la. Ela
está acompanhada... por um anjo!...
Novamente deu uma sonora gargalhada como se tivesse sido testemunha de uma
brincadeira.
— Ah! Você me escuta neste momento, e desta vez sem dormir!...
Ria cada vez mais, sustentado pela hilaridade de seus guerreiros. E com essas
explosões de uma alegria franca, suscitada mais uma vez pelas expressões aturdidas
dos brancos, e por suas dificuldades em dar fé às revelações tão seguras dos sonhos,
os iro-queses se afastaram e se separaram daquela que provavelmente jamais
tornariam a ver.
Atordoada pelo que Utakê acabara de dizer-lhe, Angélica compreendeu demasiado
tarde que eles se haviam eclipsado. E quando quis pelo menos fazer voltar Utakê para
pedir-lhe mais informações e despedir-se melhor dele, não se encontrou mais nem
sinal do chefe mohawk nem de seus companheiros.
— Por favor, alcancem-no — suplicou ela.
Utakê não dissera sobre Honorina: "Eu a via todos os dias?..." Queria interrogá-lo
sobre a menina perdida no coração da vasta América.
E depois deu-se conta de que em nenhum momento pensara em agradecer-lhe pelos
sacos de alimento que ele lhe mandara por intermédio do jesuíta.
— Alcancem-nos!
Mas não conseguiram encontrar os iroqueses, que haviam partido à procura dos
fragmentos errantes de suas tribos, a fim de reconduzi-los ao vale dos Ancestrais, e à
procura de seus inimigos para exterminá-los.
Tinham-se diluído na vasta paisagem de montes, bosques e abismos, nas pistas
invisíveis e não-traçadas.
E, para dizer a verdade, ninguém se sentia realmente muito ansioso por alcançá-los.

CAPITULO XXXVIII

A odisseia de Cantor e Honorina

Cantor puxou o barco para a pequena praia, num recanto do rio, e depois, içando-o
sobre a cabeça, carregou-o até um abrigo de rochedos, onde o escondeu sob os galhos.
— Não iremos mais muito longe pela água — disse. — Temos de ir a pé. Mas se
andarmos bastante, poderemos estar em Wapassu um pouco depois do meio-dia.
A criança índia que o acompanhava opinou com seu penacho vermelho de cabelos
eriçados, e pôs-se a andar docilmente atrás dele. Cantor segurava-a por uma corda
presa ao pulso, pois a criança estava meio cega, e, no início de sua viagem, por várias
vezes, quase a perdera ao atravessar florestas muito cerradas.

— Onde arranjou esse selvagenzinho? — perguntara-lhe o boticário do Forte


Orange, naquela noite em que, depois de atravessar mil perigos, puderam dormir ao
abrigo das muralhas da cidadezinha anglo-flamenga, no alto Hudson.
Respondera que era um órfão iroquês, que recolhera entre os sobreviventes dos
massacres, e epidemias que haviam dizimado o vale dos mohawks.
Era difícil confessar ao bravo holandês, que, muito caridoso, fora buscar uma
pomada para cuidar dos olhos do pequeno ma-quas, que o bugrinho era sua meia irmã
Honorina de Peyrac.
Honorina fora enfim encontrada por ele num campo de refugiados do lago Ontário,
entre as mulheres e crianças iroquesas reunidas pelos franceses sob a ptoteção dos
sulpicianos de Quinte.
O Sr. de Gorrestat, o intratável e limitado governador com que fora brindada a Nova
França — provisoriamente, dizia-se, mas que parecia um pesadelo —, não esperara o
degelo completo das neves para lançar novamente seus exércitos contra os cantões
iroqueses.
Foi assim que Cantor, que, ele também, desde os primeiros sinais de degelo, se pusera
a caminho, não sem incorrer no risco de enfrentar as últimas e temíveis tempestades do
rigoroso inverno, só encontrara, quando se aproximou das regiões onde queria procurar
sua jovem irmã, povoados devastados pelos combates, fumegantes ainda dos incêndios.
Desnorteou-se perguntando-se se não estaria morta, onde deveria investigar.
Diziam que os iroqueses tinham "desaparecido da face da terra...
Um contingente dos mais valentes e dos principais "capitães" daquelas nações, entre
os quais o incansável Utakê, evaporara-se no momento de uma batalha decisiva, e os
viajantes e exploradores de bosques supunham-nos escondidos da perseguição dos
franceses e de seus aliados índios sob os labirintos subterrâneos de grutas, cuja longa
rede se desenrolava invisível através de várias dezenas de milhas. Mas nenhum branco
jamais penetrara ali. E corria uma lenda de que a obscuridade era ali tão profunda que
uma permanência muito prolongada naquelas trevas fazia perder a visão.
Cantor ocupava-se com os sobreviventes, sobretudo com as mulheres e as crianças, entre
as quais lhe restava uma esperança de obter alguma informação sobre a pequena
Honorina.
Jamais esqueceria sua alegria, mesclada de terror e de compaixão, quando finalmente a
encontrara, uma noite, à luz das fogueiras, quando a segurara nos braços, uma
pequena caça gordurosa, magra de fazer medo. Terror porque por pouco não a
reconhecera sob seus trajes de menino, repudiando-a inicialmente; então ela escapara e
ele tivera de percorrer todo o campo lançando seu chamado de antigamente: "HonnL.
HonnL." Compaixão, descobrindo-á desfigurada pelas marcas da varíola, cuja epidemia
começara por dizimar as populações iroquesas já durante o inverno.
Não diziam até que fora o Sr. de Gorrestat que tivera a ideia de mandar introduzir
cobertas de comércio que haviam abrigado variolosos entre os inimigos, cuja perda
pretendia?...
Mas diziam tantas coisas! Os flagelos abatiam-se sobre aquelas regiões selvagens
como o furacão. Dir-se-ia que as intenções tinham possibilidades de materialização e
de rapidez anormais. Elas se realizavam mais depressa que o pensamento. E, por
outro lado, a imobilidade da morte também tinha o poder incomensurável de congelar
subitamente todo sinal de vida por centenas e milhares de lugares, pois o domínio do
frio impedia qualquer movimento, qualquer deslocamento dos seres durante meses na
superfície de um continente.

"Maldito inverno!", pensava Cantor enquanto, num passo estugado, seguia a linha
da crista dos montes eriçados, cuja pista maltraçada os levava a Wapassu. Na Europa,
podia-se conceber o poder do deus feroz do inverno que os petrificava a todos, no
lugar em que os surpreendia? E pobre daquele que procurasse enfrentá-lo. Por pouco
os dois irmãos Lemoyne, que quiseram prosseguir seu caminho em direção à grande
missão dos jesuítas em Sault-Sainte-Marie, não puderam voltar para os odjibways sem
"se perder". Só o conseguiram graças a uma fogueira que Cantor acendera para eles,
entre duas tempestades.
Maldito inverno! Muito precoce, longo e rigoroso, que não lhe permitira salvar a
tempo Honorina. Mas teria podido fazê-lo? Pois o inverno é implacável e os teria
apanhado a ambos em qualquer lugar inexoravelmente, e, talvez, longe de qualquer
abrigo, no no man's land do deserto branco.
Em Quinté, carregando-a nos braços, pensara: ".Que importa! Está viva! Nossa mãe
a curará!"
Sua única oportunidade,.pobrezinha! Ela, que já não era muito hábil, agora
esbarrava em tudo, caía, perdia-se. Ela estava abusando, dissera consigo, readquirindo
já as rabugices de irmão mais velho. Tivera de carregá-la nas costas e acabara por
prendê-la com uma cordinha, enquanto, enfrentando os barrancos do degelo, a
travessia das aldeias irOquesas incendiadas, pilhadas e cobertas de cadáveres, o
perigo dos lagos e dos rios, cujo gelo cedia sob °s pés, empreendiam a longa viagem
de volta para Wapassu.
Em Orange, onde se concederam uma noite de repouso sob o conforto dos colchões
de penas dos holandeses, Cantor se interrogara.
Se o Hudson fora desobstruído dos gelos, teria achado mais seguro continuar a
viagem descendo em direção a Nova York. Depois, de escala em escala, subiriam
novamente para Goulds-boro. O périplo teria exigido vários meses.
Era melhor continuar em direção ao leste, pela selvageria das florestas.
Ele era como a irmã. Sentia a impaciência de voltar para casa. De voltar o mais
depressa possível para a casa dele, a casa deles. E a casa, a casa deles, ficava em
Wapassu. Era o rosto e os olhos de sua mãe, seus braços abertos, sua alegria de vê-los,
que eles não paravam de imaginar,, era a presença do pai, o sorriso dele, raro mas tão
caloroso, tão cúmplice, tão estimulante, que a gente se dispunha a conquistar o mundo
para ser digno dele, receber-lhe a aprovação, eram seus amigos, os espanhóis, os Jonas,
eram o irmãozinho e a irmãzinha que ele não conhecia, mas dos quais Honorina não
parava de falar-lhe. Ela se perguntava como bebés daquela idade haviam podido realizar
tantas proezas em suas curtas vidas.
Ele se voltava e olhava-a andar atrás dele "com um profundo sentimento de felicidade.
Tinha vontade de dizer-lhe que ela se parecia com um porco-espinho sem touca, mas
continha-se. Estava tão orgulhosa por estar vestida como um menino iroquês!
— Utakê disse que eu era digna de ser um guerreiro, e, já que havia meninos aos quais
permitiam vestir-se de mulher quando não sentiam gosto pelas armas, não havia razão
para impedir-me de me vestir de menino, pois eu atirava bem com o arco... Era bem
feito para essas mulheres idiotas que queriam que eu fosse buscar lenha ou apanhar o
animal morto pelo caçador, sob pretexto de que eu era uma menina.
As vezes ela parava. Um receio se apoderava dela.
— Acha que ela esteja morta? — perguntou um dia.
— Quem?
— Minha mãe, que está me esperando em Wapassu.
Ela dizia "minha mãe" num tom possessivo, mas Cantor não a levou a mal. Negava
enfaticamente.
— Não! Isto não e possível. Ela nao pode morrer. Vou lhe explicar por quê. Muitas
forças malignas se aliaram contra ela. E você sabe o que acontece nesses casos?...
— Não!
— Um bem imprevisto nasce desse mal intenso. É uma lei, como numa operação de
transmutação química.
Honorina balançava a cabeça. Desde a mais tenra idade, ouvira discutir ao seu redor
química, alquimia, fenómenos científicos.
Ela contou que numa noite de inverno, nos cantões iroqueses, enquanto estava
dormindo, vira Angélica moribunda, e começara a correr, urrando: "Minha mãe está
morrendo! Oh! façam alguma coisa por ela!...", pondo em polvorosa todos os
habitantes da Casa Comprida. Corriam de uma toca a outra, informando-se sobre a
saúde da índia que a adotara.
Calou-se, rememorando fatos que haviam se apagado de sua memória desde que
fora acometida pela doença. Depois continuava suas confidências. No fogo vermelho
da febre, várias vezes Angélica fora visitá-la. E, persuadida de que sua mãe estava ao
seu lado, lutava a fim de poder falar-lhe. Mas quando voltava a si, só via tristes rostos
indígenas inclinados sobre ela e que sacudiam a cabeça: "Não, sua mãe não está
aqui!" Uma velha índia compreendeu o que era preciso fazer para manter viva a
menininha branca. Dizia-lhe: "Beba este caldo, e quando despertar sua mãe estará
aqui".
Uma vez ela acordou, e estava curada. Podia levantar-se, ir ao rio. A velha índia não
estaca mais lá, pois morrera,-e Honorina sabia que sua mãe jamais viera. Pouco
depois, os franceses chegaram e se encarregaram das mulheres e das crianças
sobreviventes.

Nas proximidades do lago de Saint-Sacrement, Cantor sentiu-"os", pululando à sua


volta.
— Não grite! "Eles" estão em toda parte!...
Jogou-se com-ela atrás de um arbusto, que começava a recobrir com uma resina
esverdeada os renovos pegajosos. Os sobos-ques sob o efeito dos primeiros sinais da
primavera, brotos, folhas tímidas, enroladas como lagartas, ofereciam uma aparência es-
batida, enevoada, propícia a todas as emboscadas.
Talvez fosse um engodo! A floresta estava vazia. Nào, ele não sonhara. Erguendo os
olhos, viu flutuar, parcialmente, no celeiro molhado -pelas brumas baixas, uma
bandeira com uma flor-de-lis.
— "Eles" estão em toda parte, atrás de cada árvore!...
Por sorte, um rosto adolescente apareceu-lhe entre os ramos, o do jovem Ragueneau,
com o qual havia cantado Meia-noíte cristã na noite de Natal, na Catedral de Quebec.
Filho do Dr. Ragueneau, que, com seus dez filhos, levava todos os verões seu dízimo
num buque de flores de seu jardim às religiosas da Santa Casa, ele fora convocado
porque tocava pífaro e tambor.
Precedendo o exército, o rufar dos tambores semeava o terror nos corações iroqueses.
O exército franco-índio — cento e vinte soldadosda metrópole, quatrocentos regulares
canadenses e o mesmo número de índios das missões, garantindo o avanço e os guardas
de flanco — seguia a habitual pista que conduzia aos mohawks e aos oneidas. "Essa pista
era tortuosa, interrompida em toda parte, cortada por buracos e despenhadeiros
atravessada por inúmeras torrentes..."
Para alcançar o norte do Maine, Cantor devia atravessar esse exército em toda a sua
extensão como um rio. O jovem Ragueneau lançou-lhe aos ombros um dólmã branco
rasgado, uniforme do célebre regimento de Carignan. Assim vestido, misturado à tropa e
arrastando o selvagenzinho cego, ficou ali por vários dias, aproveitou os bivaques, onde
se comia bem, proveu a mochila com enguias defumadas, carne-seca e rações de pão.
Depois afastou-se da longa fila guerreira que deslizava inexoravelmente em direção ao
sul, à procura dos sobreviventes das Cinco Nações, com a possibilidade de tropeçar
com os primeiros habitantes das fronteiras da Nova Inglaterra e ali recolher escalpo;, e
cativos para se desincumbir de uma perseguição inútil.
Continuando rumo ao leste, atravessaram uma região deserta, sem homens, sem
animais, sem trilhas. Penetravam no Maine, o verdadeiro Maine, inextricável, onde,
várias vezes por dia, era preciso, para efetuar qualquer avanço, descer ao fundo das
gargantas, encontrar uma passagem na efervescência das torrentes ou das quedas-
d'água, escalar novamente a falésia abrupta do outro lado.
Apesar de sua habilidade e faro, Cantor surpreendia-se girando no mesmo lugar
entre os galhos de árvores quebradas hesitando entre as pegadas de pistas indígenas,
muitas vezes desativadas, e que não levavam a parte alguma. Os bosquezinhos de
Versalhes tinham-no feito perder o senso de direção naqueles cerrados, pensava com
despeito.
Mas os cursos de água tornavam-se navegáveis. Uma pequena tribo de índios
nómades, que emergia do inverno como sarças ressecadas, acabava de costurar barcos
de casca de árvores à beira de um rio, envernizando-os com resina de abeto
balsâmico.
As noites eram gélidas, mas o sol aquecia durante o dia. Os índios tinham recolhido
a seiva adocicada do ácer e recuperavam as forças bebendo-a.
Com os índios, irmão e irmã desceram o rio, atravessaram lagos, transpuseram, com
o barco sobre a cabeça, os saltos que, de degrau em degrau, os levavam para outros
lagos ou vales sulcados de rios, onde se reuniam wigwams, semelhantes a sobrevi-
ventes do frio. Levavam suas peles e discutiam a direção que deviam tomar para ir ao
comércio: seja na direção dos franceses, seja na direção dos ingleses.
Cantor comprou um barco e os dois remaram, continuando seu giro rumo ao leste.
Um dia, entre duas nuvens de um dia um pouco invernal, perceberam o cimo ainda
recoberto de neve do monte Kathadin.
Wapassu não estava longe.
Era a última etapa numa suave manhã. Mais uma ou duas horas de caminhada...
Ouviu atrás dele gemidos de cachorrinho e voltou-se.
— Cansada?
Estava surpreso, pois jamais ela se queixara das longas caminhadas que lhe
impunha.
— Ela me tirou minhas caixinhas de tesouros! — choramingava Honorina.
Na hora não sabia do que ela estava falando. Já ia tão longe o navio, a perseguição,
o golpe de misericórdia, o fim da Diaba! Era como se ela nurtcà tivesse existido!
Surpreendia-se até ao pensar que tinha vivido na corte da França. Tornara-se
novamente um adolescente do Novo Mundo.
— Ela me tirou tudo, até o dente de cachalote de casca de castanha e a conchinha
que você me tinha dado...
— Que está dizendo?
A doença deixara-lhe uma fraqueza na garganta, e, quando ela choramingava, sua
voz ficava ininteligível.
— Até o anel de meu pai e a carta de minha mãe — continuava, num tom de
homilia, Honorina, cuja aproximação de Wa-passu devia ter-lhe despertado as
lembranças.
— Talvez tenha sido isso o que a enfraqueceu — murmurou, sonhador.
Foi a vez de Honorina tentar compreender e interrogá-lo.
— O que está dizendo?
— O anel de seu pai e a carta de sua mãe devem ter-lhe saltado ao rosto,
compreendeu? E depois disso, ela ficou como que paralisada. Compreendeu?
Ela sacudiu gravemente a cabeça. E, nesse pensamento, Honorina encontraria
consolo para a perda de-seus tesouros.
Eles tinham mordido a Envenenadora, e fora bem feito!...

"Estamos chegando!...", pensou ele.


Mas não mais, como anteriormente, sob a comoção de uma impaciência infantil, que
em sua exultação continha a mesma vasta impressão de vitória, de perfeição, de
alargamento infinito que acabava de experimentar no momento em que murmurou
estas palavras: "Estamos chegando!", e em que sentiu que englobava todos os seus
num movimento novo.
A porta se abria e eles penetravam todos juntos por ela. Tudo era imenso e
luminoso.
"Para tanta felicidade, um dia cantarei numa abadia Sua glória."
No instante seguinte, voltara a ser um jovem explorador de bosques, levando pela
mão sua irmã selvagenzinha, e já contemplava com um olhar desconcertado e
vagamente ansioso o sítio de Wapassu, que, daquele belvedere, deveria ter-lhe
parecido mais povoado, e mais animado, e, em todo caso, mais bem construído,
pensou imediatamente.
Tinham-lhe feito em cartas muito relatos detalhados, não apenas sobre a construção
e reformas do grande forte, mas sobre ás habitações cercadas de jardins que haviam
proliferado para além da paliçada. Descreveram-lhe pastagens cobertas de rebanhos,
campos lavrados, ravinas drenadas, preparadas para os cavalos.
Ele reconhecia o quadro e só via extensões desertas... recobertas de vegetação nova,
mas desertas.
Avançou mais e descobriu as ruínas enegrecidas.
Crispou inadvertidamente a mão em torno da de Honorina.
— O que foi, Cantor? — perguntou ela.
— Nada — respondeu, felicitando-se de que ela não pudesse distinguir esse
espetáculo de desolação. — Estamos chegando! Logo veremos... a casa.
— O que está havendo? Onde estão todos?...
Seu pai, sua mãe, os pequenos gémeos! Os Jonas, os Malapra-de, os artesãos, os
soldados! Seu coração pulsava fortemente no peito. Eram pulsações tão dolorosas que
não conseguia pensar além destas duas perguntas torturantes que lhe soavam na cabe-
ça a cada batida:
"O que aconteceu? Onde estão todos? O que aconteceu?... Onde estão todos?"
Continuou a andar, e um novo trecho de paisagem descòrtinou-se a seus olhos.
Estava de tal modo aflito, com o olhar tão emba-ralhado, que não reconheceu
imediatamente, encostado ao pico rochoso, o antigo fortim, que, no entanto, lhe era
tão familiar, pois ali passara uma invernada. Pouco a pouco, notou o movimento de
silhuetas humanas em torno.
"Até que há bastante gente, pensando bem", disse consigo.
Um vestido de mulher. Sua mãe! Sim! Era ela! Recomeçou a respirar, mas estava
com as pernas bambas pelo medo que sentira.
Honorina arrancou a mão da sua e precipitou-se, na ponta do rochedo...
— Cuidado, não caia — gritou ele, apavorado.
Mas o cômico iroquesinho com o rosto bexiguento iluminado de alegria, erguia os
braços para o sol.
— Cantor! Estou vendo-o! Estou vendo-o...
— Quem você está vendo?...
— O velho da Montanha! Eu o vejo! Hoje posso vê-lo! Pegou-a na beira do
precipício, segurou-lhe a mão. Ambos permaneceram imóveis lá no alto, ainda
invisíveis aos olhos daqueles que, mais embaixo, se ocupavam em reunir os elementos
da caravana, preparando-se para tomar o caminho do sul e deixar o lugar.
Estavam lá em cima, o irmão e sua jovem irmã, e.na falésia rochosa batida
obliquamente pelos raios do sol, as sombras e as luzes esculpiam o relevo de uma face
augusta e pacífica.
— Também o vê, Cantor?
— Sim, eu o vejo — respondeu ele. — Está olhando para nós dois.
— Está nos sorrindo... Olá, Velho da Montanha! Aqui estou, Honorina. Eu voltei. E
desta vez posso vê-lo! Oh! Cantor! Como estou feliz! A vida é bela!...
— E você não está completamente cega! Hurra! Hurra! Agora, venha... Vamos fazer-
lhes uma surpresa daquelas...
Colocou-a escanchada nas costas e desceu saltando de rochedo em rochedo rumo a
Wapassu.

CHEGADA DE CANTOR E HONORINA A WAPASSU

CAPITULO XXXIX

"Encontramos as crianças! Podemos partir" — Um novo limiar de felicidade

— É preciso partir, minha amiga — dizia Colin.


Quatro dias, cinco dias... seis dias de prorrogação!... Angélica acabara por consegui-
los. Mas os últimos adiamentos se esgotavam.
A pequena Honorina não surgira dos bosques, acompanhada ou não de um anjo,
como predissera aquele louco do Utakê. Se fossem fiar-se nos sonhos dos selvagens...
diziam as pessoas das orlas, ansiosas por se afastar antes que aparecessem
contingentes de guerra de não se sabe que nação, mas contra os quais não teriam
condições de lutar.
Lymon White, o inglês mudo, familiarizado com Wapassu, e o pai de Carlos
Henrique, explorador de bosques tarimbado, foram buscar Angélica e Colin Paturel,
sob inspiração de um pro-jeto que permitiria conciliar tudo. Propunham ficar no lugar,
instalados no fortim. Se as predições do iroquês por acaso se realizassem, pois bem,
Honorina não encontraria o lugar deserto. Os dois homens se encarregariam dela e a
levariam até Gouldsboro.
Apesar dessa nova decisão, Angélica não podia aceitar a sentença.
Partir!... Partir sem voltar a cabeça!
Abandonar tudo!
Jamais tornaria a ver Wapassu.
O Wapassu! É proibido conhecer o Éden na terra? Mas você o conheceu. De que se
queixas?...
— Olhem para as crianças! Elas sabem que não voltarão mais...
A primavera subia como o mar!... Jamais parecera tão bela, tão suave, tão cheia de
flores e de cantos de pássaros.
— Mais .um dia! Esperemos mais um dia — suplicava Angélica.
Irritava-se com sua pressa em deixar o lugar.
Quatro, cinco... seis dias de prorrogação, é pouco!
E no entanto aqueles dias estavam investidos de um poder de esquecimento e de
renascimento que valia por anos.
Quatro, cinco... seis dias, e não era preciso mais que isso para que, com a mesma
celeridade com que a primavera começava a invadir de verdor os vales, se evaporasse,
derretesse, se apagasse como por encantamento um tempo de morte que parecera que
jamais terminaria...
Ele também desaparecia, o jesuíta, ainda que ela procurasse retê-lo sob o aguilhão
do apego e do remorso.
Nas primeiras noites, quando se deitava, sempre se lembrava daquele momento que
ele vivera e que ela não vira...porque estava dormindo.
Aquele momento em que, tendo percebido os primeiros homens aparecendo do
outro lado do lago, ele abandonara suas nassas de pesca e correra em direção ao
fortim pela última vez. E passando junto às crianças, lançara-lhes: "Fiquem bem-
comportados! Não se mexam! Eu voltarei".
Fora até o quarto de Lymon White. Vestira sobre o corpo descarnado a Toga
Negra... A maldita! A magnífica!... Abotoara-a de alto a baixo com os dedos
enfermos, colocara o cinto e enfiara o cordão do crucifixo no pescoço. Depois saíra. E
talvez o pequeno Carlos Henrique, ao vê-lo, lhe houvesse gritado: "Morto, aonde você
vai?"
Andara pela ravina e apresentara-se diante dos homens vindos para fazê-lo perecer.
Ela se agitava no sorto, censurando-se. Pois, em seguida, perguntara-se se não teria
podido tentar cuidar dele, mesmo escalpelado. O sangramento de feridas na cabeça é
abundante, mas pode ser facilmente estancado. "Eu deveria ter cuidado dele... Eu
deveria..." Deixara-o sangrar em seus braços, aniquilada. Esperando essa morte.
Esperando essa morte. Era preciso que ele morresse...
Ah! longa, longa morte, como às vezes demora a vir, você que ode ser tão súbita e
tão breve!
Colin, sentado pacientemente à sua cabeceira, não tentava convencê-la,
contentando-se em murmurar-lhe palavras de conforto e agasalhá-la quando ela
acordava em prantos.
Depois, quando sua saúde melhorou, a inquietação por Hono-rina suplantou a do
drama recente, dissipando-se a visão que a obsedava e que não conseguia deixar de
reviver ponto por ponto. Seu sono daí em diante tornou-se tranquilo e profundo.
Desperta, o ruído das vozes, das alterações, aquele movimento de silhuetas em torno
dela, ancoravam-na outra vez à terra, em que por isso a colocassem totalmente entre
eles. Estava mudada. Não sabia ainda em quê. Isso já acontecera vaias vezes em sua
vida, mas nunca com aquela impressão de ruptura, de despojamento, como quando se
põe de lado uma roupa.
Às vezes irritava-se com eles por suas palavras sensatas, as previsões lógicas, os
projetos materiais e sólidos referentes à partida sobretudo por não poder explicar-se e
comunicar-se realmente om nenhum deles, mesmo com Colin. Seu espírito, seu
coração, sua alma, debatiam-se como pássa-os contra as grades de uma gaiola
demasiado estreita. Isso a punha nervosa, facilmente impaciente, o que se censu-ava.
— Perdoem-me — repetia incessantemente. — Fui um pouco ríspida...
Mas eles lhe perdoavam tudo, e, como não eram testemunhas suas agitações
interiores, só podiam rejubilar-se, inclusive Colin, por vê-la readquirir o espírito
combativo e bastante vigor para scutir e opor-se-lhes quando a instavam a partir.
Na verdade maravilhavam-se com a rapidez com que reassumia a vitalidade:
Ao sol, seus cabelos, como que sob as mãos hábeis de um mestre cabeleireiro que os
nutrisse com óleos revigofantes, readqui-riam flexibilidade e brilho.
A palidez diáfana tingia-se de rosa nos pômulos, os lábios descoloridos ganhavam
vida, a sombra cavada sob os olhos já não era senão um círculo azulado sabiamente
esbatido, de modo que, nesse período transitório que a levava da doença à saúde,
apresentava essa beleza perturbadora, resultante dos artifícios das mulheres que se
aprontam para um baile.

Os índios nómades começavam a chegar em pequenas famílias, ,e não


compreendiam: onde estavam o posto, o pão, os copos cheios de continhas
coloridas?...
Contemplavam o sítio transformado do Wapassu que estavam habituados a
frequentar, depois, recusando a realidade, levantavam os pitis de peles sobre varas
cruzadas ou os wigwams arredondados como cascos de tartaruga, feitos de cascas de
árvores sobre arcos flexíveis. A fumaça lenta das fogueiras, os latidos dos cães e os
gritos das crianças recriavam a trama familiar que anunciava os trabalhos de verão.

O último dia consentido havia terminado, e, naquela manhã, a caravana estava


formada diante do fortim.
Angélica estava tão ressentida com Colin que nem lhe respondia quando ele lhe
dirigia a palavra.
No último momento, o sinal de partida foi atrasado, pois não encontravam as três
crianças, que tinham aproveitado os preparativos para escapar de uma vigilância
demasiado constrangedora. Tinham tomado gosto pelas explorações pessoais.
Entretanto, não deviam estar longe.
Enquanto se lançavam à sua procura, os carregadores recolocaram no chão as cargas
que já tinham içado aos ombros.
Os olhos de Angélica percorreram o horizonte de Wapassu.
Subitamente não se sentiu mais triste. Aqueles montes, aqueles bosques haviam lhe
confiado um segredo inefável. Esquecê-lo, deixar-se tomar pelo peso da terra era-lhe
proibido
Os índios, que observavam de longe os brancos, subitamente também se animaram e
se dirigiram para eles em massa, com exclamações afetuosas...
Angélica sentiu perpassar-lhe o mesmo sopro luminoso que transfigurava todo
sofrimento.
Uma criança índia corria em sua direção, com os braços abertos, tropeçando, e não
soube que presciência a fez lançar-se para ela, correndo também com os braços
estendidos. Foi como o cimo de uma vaga de amor arrebentando, resumindo todos os
transportes, paixões e esperanças de seu ser.
— Honorina!
Ergueu a forma frágil, tão leve, e, apertando-a nos braços, julgou morrer de
felicidade.
Nem o aspecto repelente do rosto e dos trajes, nem o disfarce de menino, nem a
cimeira de cabelos vermelhos viscosos de resina tinham-na enganado.
Teria reconhecido, sob qualquer máscara, a chama dos olhinhos de Honorina...
— Eu sabia que você viria... O você!, indomável, realizou seus sonhos, pelo que
vejo, não é?!...
E ela ria, girando loucamente com a criança junto ao coração.
— Um guerreiro iroquês!, um guerreiro iroquês! Venham todos, vejam que
maravilha... Um guerreiro iroquês voltou para nós!...
No alarido que se seguiu,-mma voz gritou:
— Senhor Deus! Ela teve varíola!
Uma outra voz, nova e quase desconhecida, replicou:
— Sim, mas está viva, e nossa mãe vai curá-la. Essa voz e essas palavras desviaram
a atenção de Angélica, que sentira um choque gelado ao ouvir a terrível palavra: "a
varíola"!...
— Cantor!... Cantor!... Mas... de onde você vem?...
— De Versalhes — respondeu Cantor, muito mundano —, mas fazendo um
pequeno desvio por Quebec, Montreal e Ontário.
— Ele foi me buscar entre os iroqueses — disse Honorina orgulhosa.
Angélica colocou-a nó chão para estender a mão para o rosto de Cantor, mas foi ele
quem a tomou nos braços.
Ela sentiu-lhe a força determinada, feroz. Era um homem. Adivinhou tudo. O encontro
que o levara a embarcar, a perseguição que fizera, o gesto que realizara...
Nesse momento, dois ou três homens devotados, que não estavam a par de nada,
voltaram gritando:
— Encontramos as crianças! Podemos partir.
E todo mundo caiu na risada, desafogando a necessidade de distender-se. Podiam
partir...
— Viu seu pai?
Cantor arregalou os olhos. Ignorava que o Conde de Pey-rac fora para a Franca.
Seus navios haviam se cruzado no oceano.

Angélica compreendeu que, se o futuro que os esperava estava carregado de mistério,


estava-o igualmente de um montão de histórias a serem contadas uns aos outros e que
preencheriam as horas de numerosas vigílias ou travessias.
Sua vida não estava arruinada, sua obra não estava apagada. Wa-passu permaneceria uma
rica e soberba messe de lembranças e de felicidades.
Estava agora num novo limiar, com Honorina junto a ela e, à sua frente, bastante
contentes consigo mesmo mas prontos para a partida, os três pirralhos, lambuzados de
fuligem por terem tentado explorar as ruínas e segurando os primeros buques de flores
colhidas.
As imagens se precipitavam. O futuro desconhecido já se preenchia. E, em primeiro
lugar, em sua marcha de volta rumo ao sul, seria preciso aproveitar o desaparecimento
das neves para ir aos postos e minas inacessíveis informar-se sobre os sobreviventes do
inverno... ou dos ataques do outono.
A perda dos bens não era nada.
A única coisa que não aceitaria era que houvesse outras vítimas.
Vítimas inocentes, que teriam sido imoladas à malignidade de uma Ambrosina.
Exigia que não houvesse mais vítimas.- Era assim. Queria isso. Não haveria vítimas.
Reencontrariam os Jonas, os Malaprade e seus filhos, os valões e os lolardos
ingleses, os suíços, os espanhóis...
E poderiam beber e brindar alegremente, à saúde de todos, nas praias de
Gouldsboro, antes de singrar para a Europa num belo navio, numa viagem que não
conheceria tempestades, para um rei ponderado, amigos fiéis, impacientes por revê-la,
um esposo cheio de expectativa, com o prestígio assegurado, nos braços do qual se
lançaria prometendo a si mesma, mais uma vez, nunca mais separar-se dele.
Quanto a Honorina?... Pegou-a no colo para ver-lhe o rosto de perto e examiná-lo.
Sua vista ameaçada? Ainda estava em tempo. Assumiu a responsabilidade de cuidar
das pálpebras, aumentando depois a acuidade da visão atingida pela horrível doença.
A pele do rosto, a pele fina de criança crivada de cicatrizes? Levaria mais tempo! Ou
talvez pouco tempo!?... Dependia dos meios que empregasse. Ela os encontraria,
conseguiria. De uma coisa estava certa: conseguiria que os sinais de sofrimento e da
maldição que tinham se abatido sobre ela desde o nascimento se apagassem do rosto
da criança bem-amada.
Não faltavam forças miraculosas no mundo: mãos curadoras, taumaturgos, fontes de
rios sagrados depositários da corrente divina, lugares consagrados, tocados por Seu
poder...
"Eu irei, percorrerei o mundo se for preciso, e mais uma vez, ainda uma vez, você
será salva, minha criança..."
Abraçou-a apaixonadamente, como se apertasse contra si sua vida nova.
"Não haverá mais vítimas! Será assim! Sinto-o! Encontraremos todos os nossos
amigos perdidos!... E você, você será bela! E será feliz!... .
"Depois de tudo!", pensou, desafiando com as pupilas verdes a luz da primavera.
"Depois de tudo!... O céu bem que me deve isso!..."

Ordem ideal de leitura das aventuras de Angélica:

1. Os Amores de Angélica
2. O Suplício de Angélica
3. Angélica e o Príncipe das Trevas
4. A Vingança de Angélica
5. Angélica e as Insídias da Corte
6. Angélica, a Favorita do Rei
7. Angélica e o Pirata
8. Angélica, Cativa no Harém
9. Angélica, Rebelde Guerreira
10. Angélica, Clandestina... Maldita
11. Angélica no Barco do Amor
12. Angélica no Fim do Arco-íris
13. Angélica na Floresta em Chamas
14. Angélica e a Caçada Mortal
15. Angélica e Seu Amor Proibido
16. Angélica Ultrajada
17. Angélica e a Duquesa Diabólica
18. A Satânica Rival de Angélica
19. Angélica e o Çomplô das Sombras
20. Angélica, Rainha de Quebec
21. O Inesquecível Natal de Angélica
22. Angélica e o Perdão do Rei
23. Angélica e as Feiticeiras de Salem
24. O Fascínio de Angélica
25. Angélica e a Estrela Mágica
26. O Triunfo de Angélica

Caro leitor,

Neste volume, encerramos a publicação de todos os livros escritos por Anne e Serge
Golon, com as aventuras de Angélica, a Marquesa dos Anjos.

Nos 26 volumes que apresentamos, Angélica protagonizou a maravilhosa trama que a


conduziu da corte resplandecente do Rei-Sol às sarjetas de Paris, dos haréns da África à
intimidade de piratas. Angélica amou, fez e sofreu intrigas, odiou, foi temida ou
adorada, num verdadeiro turbilhão de emoções, sustentado por uma narrativa de
excelente qualidade literária.

Foi um grande êxito de vendas, um sucesso da Nova Cultural. Tanto assim que, a
partir da próxima quinzena, estaremos reiniciando o lançamento dos títulos dessa série.

Não perca a oportunidade de sugerir a amigos, presentear, ou completar sua coleção: na


próxima quinzena sai o no 1 e, a cada quinze dias, sairão as edições seguintes de Angélica,
a inesquecível Marquesa dos Anjos.

O Editor
OS AUTORES:
ANNEE SERGE GOLON
Serge Golonbikoff nasceu em -Bukhara (URSS) em 1903 e Simone (Anne) Changeuse,
em Toulon (Franca), em 1928. Çonheeeram-se e casaram-se na Africa, para onde Anne,
com o dinheiro de um prémio literário, viajara como jornalista. Serge era uma ,
celebridade na época: formado em geologia, mineralogia e química, cruzara o misterioso
continente em busca de ouro e diamantes, acabando por participar da descoberta de
estanho em Katanga (Zaire). Atraída por sua fama, Anne resolveu entrevistá-lo.
De volta à França, em 1952, já casados, tiveram a ideia de escrever unia novela histórica
ambientada no século XVII: Serge colhendo as informações no Arquivo de Versalhes e
Anne exercitando um talento para as letras manifestado já na infância.
O sucesso de Angélica, Marquesa dos Anjos, lançado em 1959, foi imediato, animando os
autores a produzirem novos volumes. Estes, traduzidos para vários idiomas e transpostos
para o cinema, fizeram da heroína uma das personagens mais famosas do mundo.

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