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O triunfo de Angélica
Anne e Serge Golon
Mais uma vez separada do marido, o Conde Joffrey de Peyrac, que partira para a
França com o governador da colónia, o Sr. de Frontenac, Angélica não tinha a quem
recorrer. Numa cabana perdida na imensidão gelada do interior do Canadá, diante das
ruínas do que fora a fortaleza de Wapassu, destruída pelos canadenses comandados
pelo Conde de Loménie-Chambord, ela não sabia o que seria de sua vida e das três
crianças que a acompanhavam: seus dois filhos gémeos, os bebés Rodrigo Rogério e
Gloriandra, além de Carlos Henrique, o enjeitado filho de Jenny Manigault, que
tomara a seus cuidados. Os perigos pareciam brotar de toda parte: até sua filha
Honorina fora obrigada a buscar refúgio entre os iroqueses, perseguida pela sanha
vingativa da diabólica Duquesa Ambrosina de Maudribourg. A Diaba da Acádia e seu
aliado secreto, o Padre Sebastião d'Orgeval, seus piores inimigos, como que
ressurgiam das trevas. Quem viria em seu socorro: o Arcanjo da profecia? Como, se
seu filho Cantor — identificado com o tal Arcanjo — acompanhava o irmão,
Florimond, nas homenagens e divertimentos da corte do Rei-Sol, Luís XIV, em
Versalhes, do outro lado do oceano?
A VIAGEM DO ARCANJO
CAPÍTULO I
"E Ela, tenho certeza", pensara Cantor de Peyrac. No mesmo instante, enfiara um luís
de ouro na palma de um lacaio próximo a ele.
— O nome dessa mulher que acaba de cruzar comigo!... O lacaio não sabia, mas,
estimulado pela fortuna que acabava cair-lhe do céu, não precisou mais de um minuto
para voltar e msinuar-se na assembleia que formava um círculo em torno ao bilhar do
rei, e sussurrar ao ouvido do belo pajem, tão generoso:
— Sra. de Gorrestat.
— Seu esposo? Qual é? Seus títulos? — retorquiu-lhe o pajem, doando-lhe. um
segundo óbolo.
Dessa vez o lacaio abandonou por uma hora seu posto de porta-tocheiro, calculando
que, se aquela deserção arriscava atrair-lhe admoestações, custar-lhe-ia menos do que
o que tinha a ganhar a serviço daquele jovem senhor.
Antes do final da partida do rei, estava de volta e confiava a Cantor, junto ao seu
ouvido, tudo o que conseguira recolher.
Aquela senhora era a esposa do senhor governador do Nirvanais, recém-chegado a
Versalhes por convocação do rei. Corria o boato de que esperava uma nomeação
importante. Sua esposa, pessoa de qualidade, discreta e agradável, agradara à Sra. de
Main-tenon, que a recebia entre suas damas, o que para elas constituía a melhor
maneira de ficar junto ao Sol.
Soube que o casal já se preparava para embarcar no Havre para o Canadá, do qual o
Sr. de Gorrestat fora nomeado governador.
Já no dia seguinte, soube que se tratava exatamente da "viúva" do velho Parys, que
se casara com o Sr. de Gorrestat.
Tudo se encaixava.
Se queria munir-se prontamente do dinheiro para uma viagem além-mar, Cantor
precisaria encontrar um expediente. Ele compreendeu. Não havia mais nem um dia,
nem mesmo uma hora, a perder.
Correu à casa da Sra. de Chaulnes, sua amante. Encontrou-a inquieta por não ver o
seu jovem amante havia quarenta e oito horas. Sem querer dar-lhe as razões de sua
brusca decisão, Cantor avisou-a que tinha de embarcar urgentemente para a Nova
França e que, com esse intuito, teria necessidade de uma soma de vinte mil libras.
A Sra. de Chaulnes pensou que o mundo se fendesse em dois.
Deu um grito terrível, cujo eco não podia voltar-lhe aos ouvidos sem que se sentisse
petrificada de vergonha, de aflição e de dilacerante concupiscência. Um grito de
animal frustrado.
— Não!... Não você!... Jamaisl Não me deixei...
Ele a olhou com um estupor indignado.
— Não sabe então, minha cara, que nada dura eternamente?
Eis por que nos é preciso colher o fruto e saboreá-lo quando ele nos é dado... Você o
sabia quando me recebeu em seu leito. Não existe nada perene no mundo!... Tenho de
partir!...
Ela o imaginava sozinho, galopando por caminhos, atacado por bandidos, afogado...
— Mas o mar!... — gemeu.
Ele riu. O mar?... Isso não era nada. Algumas semanas ruins balançando ao sabor
das ondas, sonhando, cantarolando, ligado à sorte da nave que o conduz, uma questão
de paciência!
Sua juventude resplandecente inspirou-lhe o arrependimento de não ter sabido levar
as coisas da vida alegremente, quando tinha a idade dele.
— Você vai encontrá-lo?... O animalzinho dos bosques?... Cantor franziu o sobrolho.
Uma sombra passou-lhe pelo rosto.
— Não é certo que eu o encontre — respondeu, preocupado.
— Ele o chamou?
— Não sei...
— Não descontente o rei...
— Meu irmão tratará disso...
Trocavam algumas palavras, enquanto a Sra. de Chaulnes abria cofres, depois
caixinhas, e derramava na escarcela estendida de Cantor luíses de ouro, que nem se
dava ao trabalho de contar.
— Não o deixarei partir...
— O dever não se discute, minha cara.
— Mas afinal! O que se passa? Sua família lá na América está em perigo?...
— Pior que isso!
Ela deixou cair a cabeça em seu ombro, cobrindo-o de lágrimas.
— Meu belo sire, pelo menos, diga-me... quem vai abater?
— O Mal!...
Ele se levantou. E ela se afastou. Via-o apenas através de um nevoeiro.
Ia esperá-lo, rememorando seus gestos, seus raros sorrisos, suas palavras tão sábias.
"Minha cara, não sabe então que nada é eterno?..."
— Obrigado — gritou ele. — E reze! Reze por mim! Corria para a porta.
— Não! Você não pode partir assim... sem me dizer adeus!...
Num impulso confuso, Cantor voltou e tomou-a nos braços. Enquanto "ele a
beijava, ela soube que ele era um homem, um homem que teria tanto sonhado
encontrar na aurora de sua vida! Com o qual teria sonhado tanto viver, "dia após dia!
— Espere, meu querido... Subitamente veio-me uma ideia... Dois diamantes de
brincos pingentes, pérolas de um colar, que poderá negociar.
Entregou-os a ele, encheu-lhe as palmas das mãos, fechou-lhe os dedos sobre as
jóias como se ali estivesse seu pobre coração, que ela lhe confiava. Ele beijou as mãos
generosas que seguravam as suas.
— Obrigado. Obrigado. Falei com meu irmão para que a reem
bolse o mais cedo possível.
Ela gemia, já sem lágrimas.
— Não. Fique com tudo... Será um pouco de mim que perma
necerá com você.
Ele se lançou aos seus joelhos como da primeira vez, abraçando-a.
— Doce amiga, seja bendita!...
A vida toda ela conservaria a lembrança daqueles braços jovens enlaçando-lhe os
quadris, daquela fronte juvenil contra seu ventre.
Morreria com esse viático.
O único que guardaria, como o único tesouro de toda uma vida.
Desvairada de dor, fez disso um juramento.
Seu único viático de amor!
A perseguição levou Cantor de Peyrac até o Havre-de-Grâce, um porto da
Normandia.
O navio que levava o governador provisório da Nova França, sua esposa e sua
comitiva, fizera-se ao mar dois dias antes. Só restava esperar que a tempestade que
acabava de se formar sobre a Mancha os deportasse até o golfo da Gasconha e os
atrasasse, dando a Cantor tempo para conseguir uma passagem para si mesmo.
Encontrou dificuldades. Frota e flotilhas de pesca sazonais, navios de comércio,
encarregados do correio e de passageiros para a Nova França, já haviam embarcado
todos em coro. As primeiras partidas efetuar-se-iam aproximadamente nas mesmas
datas. Acabou por encontrar uma embarcação, retida por reparos indispensáveis de
última hora. Era um patacho, mas, ao saber que a intenção do capitão era percorrer
pelo caminho mais direto o Saint-Laurent, Cantor ofereceu uma boa quantia para
subir a bordo. Sua experiência das travessias e dos navios ensinara-lhe que uma casca
de noz rangente, provida de uma tripulação restrita, mas formada por sujeitos que se
encontram o mais das vezes no mar, pode levar vantagem quanto à velocidade sobre
os grandes monumentos de três pontes e vinte e cinco canhões.
Soube também, pela cara dos marujos, que sua aparência e seus luíses de ouro
exibidos não deixariam de suscitar intenções muito precisas em seus espíritos, como
roubá-lo e assassiná-lo.
Na segunda noite da viagem, duas silhuetas se insinuaram na despensa onde dormia,
arremessaram-se sobre a forma ali estendida e, enquanto se ocupavam em lanhá-la a
golpes de facão, dois socos violentos, aplicados na parte traseira de seus crânios,
fizeram-nas adormecer de vez.
Depois Cantor de Peyrac foi despertar o capitão e pediu-lhe que o acompanhasse a
fim de verificar os danos que haviam pretendido causar-lhe, e cuja única vítima fora o
manequim de panos e trapos estirado em seu lugar.
— Capitão — disse-lhe —, quero crer que você é um homem honrado e que não
tem participação neste complô, mas surpreende-me que não se empenhe mais,
conhecendo seus homens, em manter a boa reputação de seu navio. — E continuou:
— Estou em suas mãos, mas você está também nas minhas. Proponho um negócio. Se
eu chegar vivo às praias do. Canadá, dar-lhe-ei a metade do que contém esta bolsa
cheia de ouro. Se me matar para ficar com tudo, não apenas será obrigado a dividir
com seus piratas, mas não poderá desfrutar os poucos luíses que lhe sobrarão, pois,
daí em diante, seus dias estarão contados. Indiquei a minha família em que navio
embarcaria. Em qualquer canto do mundo aonde você fosse doravante, os homens de
meu pai o encontrariam e lhe cortariam o pescoço, no mínimo. Ocultar-lhe-ei seu
nome a fim de que não alimente o projeto de me manter cativo para pedif resgate.
Enquanto isso, um dos marinheiros que, mais hábil, conseguira se libertar dos laços
um pouco apressados com que Cantor o paralisara,..veio em socorro do capitão,
armado com sua faca. Cantor voltou-se e descarregou sobre ele a pistola à queima-
roupa.
— Você matou um de meus homens — disse o capitão, após contemplar o cadáver
por algum tempo, como se não estivesse muito certo de que estivesse ali estirado a
seus pés.
— Quem não sabe matar não pode viver — replicou seu jovem interlocutor. — Eis
uma verdade que meu irmão mais velho me repete todas as manhãs, e ambos fomos
instruídos a esse respeito por nosso pai e seu exemplo. Por isso, capitão, que essa
intervenção lhe prove a seriedade de minhas palavras. Reflita bem. A metade do ouro
que trago comigo em troca de minha vida, ou todos os meus bens e minha vida, e
você não gozará muito tempo de minha fortuna adquirida. Sem contar que seus bandi-
dos de marinheiros tentarão tirá-la de você. Portanto, proteja-me contra esses piratas
com todo o poder e domínio que detém sobre este navio, onde a lei dos homens o fez
o único mestre a bordo, depois de Deus. E começarei por lhe sugerir que, quanto
àquele, culpado de ter-se ausentado da vigia a fim de praticar seu crime, seja colocado
na golilha, de acordo com a pena prevista, pena leve, além daquela, mais
recomendada, de ficar três dias no porão.
CAPITULO II
Na Terra Nova, confirmou-se que o navio que levava o governador, sua esposa e
escolta, continuava em Quebec, como fora previsto. Nãò havia notícias de pessoas
que tivessem descido na escala e que tivessem embarcado para a baía Francesa.
Tranqiiilizou-se em relação à família.
Em Tadoussac, deixou o patacho, após acertar suas dívidas com o capitão. Uma
alegre sensação de ter voltado ao país nasceu dentro dele ao aspirar o perfume das
fogueiras, das peles, e o do rio, mais insosso, era repousante, após tantos dias na
salmoura. No entanto, por muito tempo a água era ainda salgada, muito antes de
Quebec. Entretanto, apesar de apreciar as sensações amigáveis da natureza, não
procurou dar-se a conhecer. Uma neblina antecipando o outono, bastante fresca,
permitia-lhe manter uma aba da capa sobre o rosto, e nas embarcações que tomou
emprestadas para subir o Saint-Laurent, a maior parte do tempo dormiu com o chapéu
enterrado até o nariz.
Diante da ilha de Orléans, sabia já que faria o possível para manter-se incógnito,
enquanto não tivesse sondado o ambiente, ouvido os comentários, sabido como
Quebec acolhia o governador interino e sua esposa, que ia exibir todas as suas graças
de Benfeitora para conquistar a capital. Seus sentidos alertados dar-lhe-iam uma visão
diferente da cidade.
Ereta em meio à bruma, a cidade, tão bela com seus sinos e campanários, apareceu
tocada por um morno encanto como uma cidade submersa. Contudo, não estava
deserta nem adormecida.
A agitação dentro e em torno dela pareceu-lhe fantasmagórica.
Os sinos dobraram.
Prestando atenção às palavras dos transeuntes, enquanto subia a encosta da
Montanha, soube que era a Sra. Le Bachoys que ia ser enterrada.
Um calafrio percorreu-lhe a espinha até a raiz dos cabelos.
Os crimes começavam.
Quando chegou à praça da catedral, percebeu, escondido num canto, o cortejo que
passava. Vestidas de preto, as pessoas caminhavam lentamente, salmodiando. A garoa
ocultava as copas das árvores e o cimo do campanário e do domo. As cerejeiras
silvestres à beira do riacho tinham a cor do sangue. Já era outono.
Tomou a direita, atravessando a praça, sempre com o rosto escondido entre a gola
da capa e o barrete, um chapéu camponês que comprara na viagem por causa de suas
abas largas, à moda antiga, que protegeriam melhor tanto do sol e da chuva como dos
olhares indiscretos.
Começou a subir a Rue de la Petite-Chapelle. A Taverna do Sol Levante estava
fechada. A tabuleta molhada parecia chorar.
Sua intenção era bater à porta da Srta. d'Hourredanne, mas as persianas estavam
fechadas. A casa parecia vazia. Um latido abafado sugeriu-lhe que só estavam ali a'
criada cativa inglesa e a cadela cananéia.
Ia por lá, pois sabia, tinham-no avisado, que seu glutão viera rondar por ali, inverno
após inverno. "Ele vai adivinhar que estou chegando."
Mas, ao mesmo tempo, o lugar perdia sua realidade. A casa de Ville-d'Avray ali
estava,, o olmo e o pequeno acampamento dos huronianos nos wig&ams de casca de
árvores, com os dois atlas de bronze na relva. Mas não passava de um cenário.
Parecia inimaginável que, naquele caminho lamacento, vazio e nostálgico, sua mãe,
tão bela, tivesse andado com sua corte de crianças, de selvagens e de grão-senhores,
sempre tão ridiculamente afoitos em recolher o menor de seus sorrisos e de suas
palavras.
Tudo estava apagado. Aquilo tinha apenas as aparências de um sonho triste, cheio
de mistérios e ameaças.
Vendo um filete de fumaça diluir-se preguiçosamente no alto
da casa do marquês, saltou a rampa, passou pelo pátio e pendurou-se a uma das
janelas da grande sala, onde viu luzir o reflexo de um pequeno fogo ha lareira.
Distinguiu a criada de Ville-d'Avray —a que não quisera ficar quando soube que
não teria seu amo só para ela —, ocupada em esfregar as peças de prata como se, no
dia seguinte, naquela casa abandonada, fossem receber convidados importantes para
um lanche ou ceia.
Bateu.
Ela o reconheceu imediatamente, mas continuou carrancuda.
— Oh! Você aqui a esta hora, meu rapaz? Veio com toda a família?
— Que nada! Mas trago-lhe notícias de seu amo, que vi muitas vezes em Versalhes,
em casa do rei.
Por captar a hipocrisia das pessoas importantes e não se deixar iludir por seus
trejeitos, Cantor confiava nas pessoas simples. Criados, cocheiros, criadas se calam,
mas nem por isso pensam menos. Essa mulher, de que não lembrava nome ou
sobrenome, foi naquele instante mais próxima para ele do que todas aquelas que
pudera encontrar desde sua partida.
Que alívio poder falar com franqueza e quase sem empregar muitas palavras! Uma
mímica, um fungar, um dar de ombros... bastavam para dizer tudo e com precisão.
Ainda não terminara a terrina de sopa que ela servira ao jovem viajante esfomeado,
e já sabia sua opinião sobre a mulher do novo governador, a Sra. de Gorrestat.
Embora todas aquelas damas se congratulassem com sua vinda, se felicitassem por
sua piedade, sua generosidade infinita, sua urbanidade para com todos, a ela, Joana
Serein, nascida no Canadá, seu nariz — que ela indicava — avisava que, por trás
daquela mulher, havia algo de feio, de mau. Sua vida habituara-a a reconhecer as
feiticeiras, as verdadeiras, que têm às vezes uma carinha bonita. Seu mosquete estava
carregado, apesar de não ser bem com um mosquete que se acabava com aquelas
histórias.
— Pense o que quiser, queridinho, mas que o Diabo existe, existe... Eu nunca me
engano. Nós o encontramos entre nós como em toda parte... Lembra-se daqueles
senhores que fizeram sortilégios numa pedra preta, que o exorcista teve de ir procurar
com todo o aparato.
— Foi ela que ele viu na pedra preta — disse Cantor.
E começou a fazer-lhe a longa narrativa dos dramas e malefícios que tinham se
desenrolado certo verão nas costas da Acá-dia, e dos quais aquela mesma mulher, que
reconhecera e seguira desde Versalhes, fora a instigadora.
Longa narrativa, de múltiplos episódios, que ela ouviu sentada diante dele e, como
ele, inclinada para a frente, com os braços sobre a mesa a fim de falar mais de perto, a
meia-voz, que os conduziu do fim do dia até a noite, desfiando suas horas nos
diferentes sinos e campanários do exterior, e que Joana Serein pontuava com breves
observações.
— Não me surpreende... É isso mesmo o que está acontecendo... A cidade está louca
e como que perdida... Eis por que a Hen riqueta da Sra. de Baumont morreu.
Descobriu que houvera vários atentados inexplicáveis. Os aborrecimentos choviam
sobre as pessoas honestas como granizo.
Delfina tinha fugido e, mais grave ainda, Janine Gonfarel, a proprietária do Ao
Navio de França, desaparecera.
CAPÍTULO III
CAPITULO IV
Seus olhos luziam com um brilho tão meigo e ofuscante que ela se perdia em seu
esplandor. Ao perceber que ele desaparecera, sentiu ao mesmo tempo a fraqueza e a
embriaguez que vêm a nós na convalescença, após uma longa e perniciosa enfermida-
de. Continuava a tremer, mas doravante seria forte.
CAPITULO V
Cantor abriu a porta do jardim das ursulinas. Atravessou o cercado, galgou o muro.
Não o procuravam por ali, e a neblina da alvorada era espessa. Desceu até o rio
Saint-Charles. Desconfiava que os caçadores que perseguiam seu glutão estavam por
ali. Por instantes, através dos pântanos, ouviam-se passos pesados e silhuetas
indistintas passavam por perto, chamando umas às outras. Ele respondia como se
pertencesse ao grupo, pois não o podiam distinguir com o nevoeiro.
— Encontraram o carcaju?
— Ainda não! Bicho desgraçado!...
O sol começava a aparecer e dissipar as brumas, que se diluíram numa chuva
fugitiva. Alguém gritou ao longe:
— Encontraram-no!
Cantor apressou-se, com o coração batendo e as mãos sobre as armas.
De longe, o corpo abatidój com à longa curva de pêlos dourados que lhe ensolarava
o pelame, pareceu-lhe menor, mais franzino do que aquele de que se lembrava.
"Teria se ressentido com a vida dos bosques?... Pouco habituado à natureza
selvagem, não soube defender-se?... Wolverines..."
Mas quando se aproximou bem e viu o animal meio virado, compreendeu.
"É uma fêmea. Não é Wolverines."
Ajoelhado perto do animal inerte, examinou-o.
Apesar da máscara negra de bandido, em torno de seus olhos, que tinha o poder de
assustar os índios, a pequena carcaju, com as pálpebras cerradas, tinha um aspecto tão
meigo... Seu grande corpo peludo, com a longa cauda soberba, que os assistentes co-
biçavam, contrastava com a cabeça pequena, de focinho curto. Os lábios, contraídos
numa triste careta, permitiam vislumbrar as temíveis presas dos dois lados da
mandíbula, que não tiveram sequer tempo de se descobrir para exibir sua ameaça de
defesa, pois fora apanhada na armadilha. As curtas patas dianteiras, com as garras
fechadas, erguiam-se rígidas e impotentes como braços de boneca.
Acariciou o pêlo sedoso entre as orelhas pequenas e redondas.
E adivinhou: "Sua fêmea!... Era a fêmea dele";
Cantor levantou-se, olhando à sua volta os homens silenciosos e, mais longe, os
bosques de cimos franjados de chuva perolada, onde os caçadores iam recomeçar a
perseguição a Wolverines.
"Eles mataram a fêmea dele... Mais um crime na série de crimes que vai se espalhar
na esteira da Diaba... Mas eu estou aqui, Wolverines."
Ele estava lá longe. Ou então bem perto. Vira tudo. A captura e o encarne. Jamais se
esqueceria.
Mesmo reconhecendo-o, deixaria que Cantor se aproximasse dele, daí em diante,
um daqueles humanos que haviam matado sua companheira, depois de tê-los vigiado
e perseguido a ambos, durante longos dias e noites cruéis?
Nunca se esqueceria. Nem o crime, nem aqueles que o cometeram, e havia de
persegui-los até derrotá-los, até liquidá-los, até que pudesse esganá-los, estraçalhá-los,
até conseguir pendurar no alto de um olmo suas cabeças dilaceradas, separadas do
corpo por suas garras e presas vingadoras.
Cantor voltou os olhos para os homens que o observavam. Não o reconheciam.
Sem ruído e à sua maneira peremptória, foi de um a outro dos batedores, entregando
a cada um uma gratificação, com o pedido de suspender a caçada e limitar-se àquela
caça que ali estava.
— É que... a senhora governadora também nos pagou muito bem para que
acabássemos com o carcaju que ronda Quebec há dois invernos e que vem causando
muitos estragos — observou-lhe um dos homens.
— Ela nos fez prometer que lhe mostraríamos os despojos quando voltasse de
Montreal.
— Despojos? Já os têm — disse ele. — Isso deverá satisfazê-la.
Já desaparecera.
Afastava-se sem ruído, deixando o grupo discutir com veemência sobre quem se
apropriaria dos despojos do glutão fêmea.
Pelo resto da manhã avançou pelo sobosque e pelas brenhas quase impenetráveis de
uma floresta que as lavras relegaram ao cume das encostas, mas que encontrava meio
de se espraiar e progredir bastante na cidade, até ali, onde os terrenos não tinham
ainda sido entregues aos arroteadores.
Parecia-lhe que o glutão não estava longe, seguindo-o, precedendo-o, observando-o,
e ele falava incessantemente, naquela mesma linguagem de palavras francesas,
inglesas ou índias e de onomatopéias que outrora empregava.
Finalmente, quando se encontrava na orla do valezinho devastado, vislumbrou uma
massa escura^ agachada sob arbustos, e um olhar humano à espreita.
Havia tanta tristeza mas também tanta alegria incrédula naquelas pupilas que luziam
sob as groselheiras silvestres, tanto sofrimento mas também tanta felicidade...
— Perdoe-me — disse ele mais uma vez. — Wolverines, não cheguei a tempo. Mas
vamos vingá-la, vamos vingar sua fêmea...
E continuou a falar-lhe até que sentiu que os laços estavam reatados.
Começou então a correr, galopando e saltando sobre os obstáculos do sobosque, em
direção à margem do grande rio, o caminho de água, gritando a plenos pulmões:
— Siga-me, Wolverines, siga-me, agora... venha! Venha comigo, Wolverines!...
Venha comigo a Montreal.
CAPÍTULO VI
Cantor levantou a cabeça e viu que o nevoeiro que vinha de longe recobria o rio. Ele
passaria e iria pendurar-se na beirada do monte Royal para o norte. Ou então se
dissiparia como por encanto. O outono era uma estação clara e alegre, de cores
quentes mas breves.
Por trás do nevoeiro, a voz melodios a continuava:
CAPITULO VII
Mariângela do lobo
Enquanto ela se eclipsava, Cantor deixou-se cair para trás no feno. Estendeu os
membros doloridos. Agora que estava tranquilo sobre a sorte de Honorina, sentia-se
esgotado. Não tinha mais forças para pensar em nada, permanecendo apenas pasmo
com esse encontro com sua prima Mariângela. Era verdade que se parecia com
Angélica, e supunha de bom grado que esta devia ter a mesma vivacidade airosa, em
sua juventude em Monteloup. Tinha-a ainda quando, incitada por um trabalho a
realizar ou uma diretiva a ser dada, todas coisas urgentes, geralmente, dava-lhe
vontade de correr, atravessar prados ou casas, subir alegremente uma escada ou uma
senda nos bosques, sem se preocupar com a idade ou com a dignidade de sua posição.
O surpreendente era que Mariângela tinha também alguma coisa da alma de
Angélica, e junto dela sentia-se à vontade, como se ele a tivesse conhecido sempre,
ela houvesse partilhado suas brincadeiras no Plessis ou em Versalhes, em sua primeira
infância.
Ela voltou com grandes fatias de pão, frios, um pichei de sidra. Enquanto ele comia,
ela se estendeu perto dele no feno-e lhe disse que seu pai lhe propunha partir para
França para conhecer a vida de uma jovem nobre francesa. Apoiado ao cotovelo,
sentiu que ela o examinava com os olhos brilhantes de satisfação.
Perturbou-se um pouco. Não devia esquecer que essas moças canadenses eram
muito audaciosas. Privilegiadas por seu sexo, num país em que faltavam mulheres,
inocentes e naturais, como todas as crianças que nascem fora das restrições ou das
desigualdades de uma velha sociedade hierarquizada, não se embaraçavam com os
ares reservados, que lhes pareciam sem sentido. Os caminhos alambicados do Amor
descritos pela Carte du Tendre e as sutilezas das preciosas parisienses eram-lhes
desconhecidos.
Os curas de suas paróquias e as religiosas que as ensinavam tinham muita razão em
fazê-las passar sem demora da férula da escola àquela do casamento. Desde os catorze
anos, eram afáveis mulheres de colonos, prontas a assumir a solidão do inverno, os
nascimentos anuais, os trabalhos dos campos e do estábulo, nos longínquos censos.
Mariângela do Lobo, aos dezesseis anos, quase dezessete, não sendo casada e não
reconhecendo em si qualquer vocação religiosa, achava-se numa situação que não
tardaria a tornar-se difícil. Devia ser ao mesmo tempo mais infantil e mais
amadurecida que suas companheiras, nascidas e criadas como ela na Nova França,
mas que, do berço ao casamento, cresciam estreitamente motivadas por esse destino
de mulheres de pioneiros, de fundadores de famílias, que as esperava.
Ali, os anos de formação mundana não eram levados em conta.
— Primo, já não é tempo de nos tratarmos como parentes íntimos?
Levantou-se novamente para ir buscar uma grande coberta, que lançou sobre os
dois, estendidos um ao lado do outro, pois o frio do crepúsculo começava a se fazer
sentir.
— Em que está pensaiído? — perguntou.
— O combate é para amanhã — respondeu, juntando as palmas das mãos sobre o
peito e tomando a atitude de um mor, bundo, com os olhos fechados.
Ficou-lhe grato por não lhe fazer outras perguntas e por, longe de procurar distraí-
lo, ter-se posto a dormir, depois de enterrar o narizinho confiante em seu ombro.
CAPITULO VIII
A Sra. de Gorrestat, aliás, Ambrosina de Maudribourg, olhou ao seu redor com mau
humor.
Estava diante da penteadeira, que, por instantes, lhe devolvia o reflexo de um rosto
ao qual não estava ainda totalmente habituada.
Pouco adiantava maquilar-se com habilidade, endireitar os cachos junto às têmporas
e bochechas, havia certas protuberâncias, certas cicatrizes que não conseguia apagar
inteiramente.
Ali estava ela, no centro daquela casa de grandes pedras achatadas, posta à sua
disposição pelos anfitriões de Montreal. Mesmo tendo de reconhcer que era muito
bem mobiliada, sentia-se pouco à vontade, desde que soubera que Angélica fora ali
recebida antes dela.
A desaparição da filha de Angélica parecera-lhe um mau presságio.
Começou a experimentar o insólito dos lugares onde se encontrava.
Devia ter-se lembrado de que as terras longínquas exalam forças estranhas.
Experimentara o mesmo em Gouldsboro. Mas ali era pior, pois havia também o tédio,
que vinha solapar sua febre de ação.
Era tudo tão entediante ali! Ao passo em que Gouldsboro...
Em primeiro lugar, havia Angélica. Uma mulher tão bela de se olhar, vivendo,
conquistando, fazendo sofrer. E saboreara cada minuto de aproximação, cada golpe
desferido. Nada mais delicioso do que ver obscurecer-se, devido a inquietação, a cor
verde de seu olhar, quando lhe insinuava que Joffrey de Peyrac, por quem estava tão
loucamente apaixonada, tentava tornar-se amante da Sra. de Maudribourg.
Mas era Ambrosina que se entristecia ao lembrar-se disso.
Ele! Ele! Por que aquele homem galante, de sangue meridional, não cedera a seus
avanços?...
Levara anos para compreender. "Ele me desprezava. Desmascarava todas as minhas
mentiras. Desde o primeiro instante, desconfiou de mim. Enquanto acreditava que ele
caía em minhas armadilhas, cada uma de suas perguntas insidiosas tinha por ob-jetivo
me desmascarar..."
Ainda agora, rangia os dentes ao pensar nisso. Hoje, quando retornara ao local
escolhido para sua vingança, sentia a amargura invadi-la ao rememorar o longo
purgatório vivido pela Diaba vencida.
Ah! quantos anos de fingimento!
E sem poder sequer oferecer a si mesmo o sutil e secreto prazer de torturar alguma
tola esposa de província roubando-lhe o marido, ou aquele, mais voluptuoso ainda, de
ver cederem, diante de seus encantos, as defesas masculinas de homens considerados
incorruptíveis: eclesiásticos ou altos funcionários devotos.
Tinha de ser prudente, inatacável.
Durante todos esses anos, nenhuma falha se insinuara em seu plano. Podia felicitar-
se por não, ter dado qualquer motivo de suspeita.
Uma amarga e inconcebível experiência, vivida em terras da América, a tornara
prudente.
Primeiramente, fora uma silhueta discreta deslizando pelas ruas. Julgavam que ela
se cobria com um véu por viver à sombra de um amante rico, um homem idoso que
voltara das colónias e que a tomara como amante, um tal de Nicolau Parys.
Fora preciso esperar, dar as cicatrizes do rosto tempo de se apagarem.
No final das contas,- ©velho Parys era um bom comparsa e cúmplice.
Tanto um como o outro-se ativeram aos termos do contrato firmado entre eles numa
noite sinistra, na costa leste de Tidmagouche.
Ele a queria. Sempre quisera e continuava querendo aquela mulher ferida,
desfigurada, mas cujo corpo permaneeia-intacto. Queria se espojar sobre ela, como
um porco no chiqueiro.
Quanto a ela, queria ser salva e escapar de seus inimigos, que a entregariam à justiça
do rei, se tivesse sobrevivido, como assassina, feiticeira e envenenadora.
Precisava desaparecer. Desaparecer para sempre.
O velho Parys satisfaria sua necessidade carnal com ela. Sempre preferira os velhos,
nos quais o fogo ardente de uma virilidade declinante exige, para se acender, muitos
artifícios, nos quais, desde a juventude, Ambrosina sempre fora perita.
O pacto foi concluído.
Nenhum escrúpulo, nem dela, nem dele, em assassinar Henriqueta Maillotin, que a
ajudara a evadir-se, em desfigurá-la e entregá-la aos animais selvagens da noite, que
acabariam .por tornar irreconhecível aquela jovem mulher que iria substituí-la no
túmulo.
O navio se distanciara.
A França fervilhante permitia ao casal apagar os últimos vestígios.
No fundo das províncias, encontram-se> sem dificuldade, por bons escudos
legalmente válidos, notários" ou homens de negócios, e mesmo curas complacentes
para passar papéis de casamento, ao simples enunciado de um nome de batismo,
acompanhado de data e lugar de nascimento, igualmente imaginários.
E, para se divertir, Ambrosina designara-se como nativa da província do Poitou.
Mas essa fantasia criou-lhe problemas depois. Pois essa identidade falsa lembrava-lhe
incessantemente que, se conseguira enganar a rival, nessa questão de origem, no final
Angélica fora, de qualquer modo, a mais forte.
Por isso, longe de diverti-la, aquela evocação do Poitou provocava-lhe raiva. O que
era excelente, dizia consigo, para dar prosseguimento a sua vingança.
Pois, à força de ser tão ajuizada, apagada e discreta, não teria acabado por esquecer
que só tinha um objetivo em vista: vingar-se deles e, principalmente, dela? E por
esquecer, o que era mais grave que tinha uma missão a cumprir, imposta ademais por
um amo que não suportava o fracasso?
Não fora tentada, por instantes, a esquecer? E então calafrios de terror a sacudiam,
despertando seu ódio por "eles", que a haviam colocado em xeque.
CAPITULO IX
Oculta sob um manto cinzento, que tomara de empréstimo a uma de suas criadas de
quarto, e confundindo-se, àquela hora da noite, com a sombra projetada pelo moinho
vazio, ela esperava.
Os mil ruidozinhos do lugar davam-lhe arrepios, e ela se surpreendia com um
sentimento mesclado de impaciência e de angústia que não lhe era habitual.
Saltos de rãs na água adormecida — de uma campina esponjosa coberta de caniços,
rangidos, coaxos, saltos abafados, pesados, do lado dos bosques, o estalejar de asas como
de velas moles chocando-se com as ripas do telhado do moinho, onde se abrigavam e
despertavam pequenas corujas aveludadas, que por duas vezes lançaram seu apelo
modulado.
Como fora tola deixando-se tentar por essa escapada! Ele já devia estar morto. Era tão
simples e era o que precisava ser feito. "Não", repetiu a si mesma. "Eu o matarei, mas...
depois!"
E movida por esse pensamento, passou a língua pelos lábios. Alguma coisa de si
mesma lhe escapava, como se lhe escorregassem das mãos as rédeas que sempre
mantivera firmemente sim, sempre.
De onde lhe vinha essa vontade devoradora de desfrutar o corpo do jovem, de saber
tudo sobre ele, de conhecer o vigor de seus braços enlaçando-a, de se afogar em suas
pupilas límpidas, que lhe lembravam as de sua rival, e as da criatura feminina, sua irmã,
que deveria ter subjugado tão facilmente e que se rira dela?
"Tudo, menos renunciar àquele instante", disse consigo, ardendo de um desejo que,
de segundo em segundo, lhe pareceu desconhecido e que deslizou para todos os seus
membros, como o movimento de uma serpente sutil.
Ouviu os passos de um cavalo.
Iluminado de frente pelos últimos raios de um crepúsculo que se quisera pálido,
matizado por uma claridade mais para lírio do que para rosa, um cavalo branco
apareceu, montado pelo jovem herói esperado.
Por que vinha a cavalo?
Ele não pertencia a este mundo.
Estava deslumbrada pelo brilho de suas madeixas douradas sob o grande chapéu
emplumado, que batido pela luz, lhe formava uma espécie de auréola.
Em sua embriaguez de vê-lo, perdeu a noção de sua própria realidade carnal. Não
podia nem mover-se, nem avançar um passo. O fogo de sua paixão se desprendia de
seu ser, como labaredas púrpuras que lhe fossem arrancadas uma a uma.
"Era essa a felicidade conhecida pelos humanos?", indagava-se, tomada pelo terror,
compreendendo demasiado tarde que esse corpo, traje habitual e muito mimado como
instrumento dócil, apanhava-a em sua armadilha. A espiral arrastava-a, fazendo de
sua carne uma espécie de chama devoradora e sublime, esse fogo do sangue vermelho
pelo qual "eles" estão prontos a vender sua alma, sibilante ascensão prestigiosa e fatal,
pois implicava desobedecerão mestre, o que lhe inspirava um terror sem nome, e as
dores de um arrebatamento, dissociação das naturezas inconciliáveis. O fenómeno,
que lhe causava um padecimento tão atroz quanto um esquartejamento, ocultou-lhe a
visão da bola escura e aveludada fendendo a relva como um projétil.
Tinha as pupilas fulgurantes, o pavoroso ricto daquele que fora expulso do céu para
os infernos, E arremetia contra ela.
A beleza perdida de Lúcifer ficava para o outro, lá longe, que, montado no cavalo
prateado, à beira do bosque, a fitava com os olhos translúcidos como água límpida, de
um azul inviolado.
— Face de anjo, maldito seja!... — gritou.
do novo governador, sobre a qual só se falava bem em voz alta, mas cujo
desaparecimento causou secretamente a muitos um certo alívio.
O DESERTO BRANCO
CAPITULO X
Uma ansiedade, que ela não queria ver transformada em angústia, começava a
invadi-la sorrateiramente.
Assim que abria os olhos, aquilo lhe saltava ao pescoço. Antes mesmo de ter
percebido a volta de uma nova manhã, de ter reconhecido a luz da vida ao sair do
sono e do esquecimento misericordioso, havia aquelas garras apertando-lhe o pescoço
e, no peito, um peso que a impedia de respirar. Mal-estar que traía a percepção
profunda que já possuía da situação, verdade imposta por um subconsciente mais
lúcido que seu consciente. Fazia-o recuar logo, como se faz retroceder um cavalo
empacado, à custa de injúrias e de palavras violentas, cujo vocabulário evocava com o
Pátio dos Milagres. Entre elas, a mais convincente e expressiva começava por um
m..., palavra que todo francês, de todo tipo e de ambos os sexos, parece trazer do
berço, escondida num canto da memória e que permite exprimir, em circunstâncias
muito penosas, o conjunto de seu desprazer. •
Confissão de má sorte, constatação de uma situação desastrosa, e mesmo perdida,
protesto contra o destino adverso, e contra todos aqueles, inimigos, traidores, aos
quais responsabilizamos, censura velada dirigida a nossa própria tolice e que sugere o
movimento benfazejo de bater no peito ou de se xingar de imbecil, tudo estava
contido naquela palavra, ao mesmo tempo curta e simbólica, no grito de derrota, de
impotência, mas também de feroz reivindicação contra o Céu e os homens. Depois de
tê-la repetido energicamente várias vezes, Angélica se sentia melhor.
Esse grito devia ser ouvido, compreendido por quem de direito.
Lançá-lo pelos cantos aliviava-a e lhe devolvia a coragem. O raciocínio recomeçava
a funcionar, com a ajuda de seu temperamento, e ela se deixava levar a uma visão
mais sadia e otímista das coisas.
Com efeito, de nada adiantava proferir insultos aos quatro ventos. Havia ainda o que
comer por alguns dias, e, até lá, ter-se-ia encontrado uma solução... ou então a
caravana chegaria. Tomava pé novamente com animação, endireitava-se, sacudia os
cabelos, as roupas, como que para espantar-lhes os miasmas da desgraça. Algumas
vezes, caía na gargalhada diante dos sorrisos e olhos arregalados, cheios de malícia e
de surpresa escandalizada, de Carlos Henrique e também dos gémeos — aqueles
pequenos "venenosos", como dizia Iolanda —, sempre atentos às palavras proibidas e
que não tinham perdido nada de seu requisitório contra a injustiça e a "cachorrada" da
existência.
— Levantem-se, Pequenos Polegares! Está menos frio. Vamos tentar encontrar as
armadilhas de Lymon White.
As crianças gostavam de sair quando o tempo o permitia, e ela percebeu que não era
apenas porque podiam foliar ao ar livre, mas porque estavam felizes por reconhecer
seu cenário familiar.
Para eles, era sempre Wapassu. Viu-se olhando de outro modo os arredores
devastados, como se reconhecese, por trás de uma face machucada, um ser amado.
As crianças tinham razão. As felicidades vividas em Wapassu jamais poderiam ser
apagadas, nem os atos praticados, as vitórias, as apostas...
Ele lhe dissera: "Eu lhe construirei um reino". Aquelenão era um reino. O termo
parecia-lhe impróprio em terras da América. Era uma pequena república. Com as
crianças, à noite, habituara-se a brincar de "a pequena república".
Perguntava-lhes:
— Quem habita nossa pequena república?
E elas faziam um esforço para evocar os rostos das pessoas que haviam amado e que
lhes faziam falta.
Carlos Henrique era o interprete dos gémeos quando ela não compreendia o que
explicavam ou evocavam em sua animação.
— Estão falando de Colin, estão falando do cachorro, estão falando de Granadina...
Estimulava-lhes a memória interessando-se pelas imagens que já haviam acumulado
e que, por sua escolha, os definiam, os revelavam.
— Lembram-se daquele? Daquela? Ele era gentil? Malvado, vocês dizem? O que ele
fez que não o agradou, Raimundo Rogério?
Falava-lhes daqueles que marcavam sua lembrança ou daqueles de que não se
lembravam, tomando um tom de lenda ao descrevê-los como heróis de romances,
fazendo-lhes, em episódios, a narrativa das façanhas de seus amigos, os habitantes da
pequena república.
Assemelhava-se a uma crónica, cujo desenrolar também lhe era benéfico, pois revia
mais intensamente os rostos de cada um. Retratos aos quais os comentários das
crianças, comentários que com frequência não eram destituídos de sabor,
acrescentavam um toque suplementar e às vezes inesperado.
Essas conversas permitiam-lhes evadir-se, alçar vôo para evocações alegres;
repousavam-nos da monotonia das horas escandi-das pelos instantes muito breves das
refeições e pela espera dessa outra evasão abençoada, o sono. As crianças não
estavam conscientes dessas duas obsessões que pouco a pouco se instavalam em suas
vidas e as comandavam, sentindo-se nelas ainda a chama sempre pronta a se acender
para brincar, saltar, correr ou dedicar-se a essa atividade especificamente infantil que
os adultos chamam "fazer tolices", mas Angélica sabia que teria, grande dificuldade
em conservar o rifrho de dias normais em sua vida de soterrados.
Lembrando um por um dos amigos, prometendo revê-los em breve, povoava seu
refúgio, bem vazio para crianças habituadas, desde o nascimento, a viver em
comunidade. Também lhe fazia bem evocar tantos anos felizes vividos ao lado de
Joffrey e toda aquela vida fervilhante que'se estabelecera e se desenvolvera à sombra
de sua proteção e de sua atividade incansável.
E, pouco a pouco, Angélicatomou consciência do papel que a na tragédia recente,
cujo último ato — a morte de Loménie-Chambord — lhe pesava no coração.
"Eu os detive!''
Julgando apro.veitar-se de sua ausência, eles tinham vindo, como da primeira vez
em Katarunk, e a encontraram.
Se não estivesse ali, ou se tivesse capitulado, teriam prosseguido para o sul, ao
longo-do Kennebec, e teriam capturado, sem dar um só tiro, sucessivamente, as minas
e postos disseminados, pertencentes a Joffrey de Peyrac, e depois Gouldsboro. Quanto
a Gouldsboro, talvez não deixasse de haver troca de tiros, mas naquelas condições,
com ou sem a ajuda de Saint-Castine, a bandeira do rei da França teria substituído, no
torreão do forte, a do escudo prateado do fidalgo independente.
Situação que, uma vez ratificada, seria mais espinhosa de acertar do que a atual.
Wapassu incendiara-se, mas os vingadores do Padre d'Orgeval limitaram-se a isso.
Retornaram na direção do norte.
"Eu os detive!"
Fazia-se essa justiça para manter a coragem.
Na verdade, dessa vez, apesar das aparências, não tinham, ela e Joffrey, deixado que
lhes passassem à frente.
A medida que se avança em idade e em experiência, o que se exige não é
permanecer continuamente alerta, o que seria insuportável, mas adquirir esse sexto
sentido que permite chegar a tempo em socorro dos pontos fracos da fortaleza. Às
vezes, ignorando que ela já se encontra ameaçada.
Tanto um como outro, por viverem unidos, estavam formados nesse jogo de defesa
inconsciente, sem esforço, quase sem o saber.
Seus instintos tornaram-se únicos. Quando pensava nisso, via claramente que a
decisão dele de acompanhar Frontenac, e a dela, de voltar a Wapassu, apesar dos
debates e das separações que isso custara, impusera-se naturalmente, porque era isso o
que tinha de ser feito.
Tinham recebido a graça de chegar a tempo nos pontos sensíveis visados pelo
inimigo.
O que não queria dizer que se salvaria tudo sem perdas e danos, como se costuma
dizer. Mas fora a melhor estratégia. Isto é, a que permitira evitar o pior.
"O pior foi evitado", repetia-se, lançando um olhar de desafio às lonjuras geladas
que, a cada dia, a cada hora, tomavam uma tonalidade ou uma nuança diferente. "É
uma lei, uma lei lógica da Natureza. Elas nos favorecerá... Chegamos a tempo às
seteiras, diante das quais se apresentava o inimigo, e a tempo pegamos em armas...
Teria desencadeado em vão sua crueldade cega?...
De pé no topo da colina, falava sozinha, voltando-se para um lado e para outro. Com
o correr dos dias, parou de erguer a voz e de mover os lábios, pois isso era mais um
desgaste de energias. Continuava, porém, a discorrer com veemência com seu único
interlocutor, a paisagem, numa mistura de sensações interiores que oscilavam do
medo à alegria mais exaltada, da admiração e confiança ao receio e rancor, de uma
certeza de domínio sobre os elementos ao acabrunhamento, à renúncia diante de sua
força cega.
Alternadamente, via através delas a imobilidade da Natureza, sua inércia petrificada,
a crueldade do destino dos homens e a promessa da grandeza desse destino.
Ela era a Humanidade tremula às portas do Éden. Estas, pesadas e guardadas pelo
anjo de espada chamejante, fecharam-se às suas costas. Diante dela, frio, fome,
sofrimento, suor do pão de cada dia... Mas também... a Beleza, o segredo dos tesouros
enterrados, o segredo das consolações, para essa aventura da Vida que se anunciava e
que seria preciso buscar.
Por esse motivo fazia essas surtidas quase todos os dias, como se fosse a um
encontro de afrior, ao baile, a um casamento, a uma festa.
Misturava-se a esse prazer um sentimento de espera, a certez -de que dessa vez,
naquele dia, alguma coisa ia mover-se ao longe a aproximação da caravana, a chegada
de socorro.
Sabia também que, mesmo que o horizonte permanecesse mudo, um viático lhe
seria dado, uma flor de esperança.
Através daquele espetáculo grandioso passava a corrente de uma confiança que
fortificava todo o seu ser, tornando-lhes perceptíveis as verdades salvadoras. "Através
de mim, que você contemple o sorriso de Deus!..."
De pé na plataforma, ou à borda da trincheira, dava alguns passos como que para se
colocar melhor no centra de uma solidão em que sua presença única de ser humano,
frágil, mas com esse minúsculo e vermelho coração vivo que batia dentro dela, esse
sangue vermelho e quente que circulava em suas veias, tomava um significado
decisivo.
Aquele dia, aquela madrugada, aquela orgia de cores, linhas, múltiplas formas, era
como uma ópera.
CAPITULO XI
Naquela manhã, a leste, a cortina da noite abriu-se sobre duas nuvens cor de areia,
alongadas como dunas sépia-escuras orladas de ouro. Estagnavam imóveis por detrás
do monte Kathadin. Suas metamorfoses coloridas anunciavam o aparecimento do
astro do dia.
Naves do espaço, carregadas de ameaças ou, ao contrário, das consolações do
esplendor.
Como elas, Angélica, de pé na pequena protuberância de neve gelada, esperava o
sol.
Levantava-se muito cedo e seu primeiro gesto era empunhar o caldeirão, colocado
sobre as brasas, e jogar água quente nos gonzos de couro da porta para desprendê-la.
Se um belo dia as almofadas de madeira, ferragens, gonzos, se revestissem de gelo,
não teria mais forças para mover aquela porta pesada e abrir a passagem para fora.
Se tivesse nevado durante â noite, ela se reaquecia e se punha novamente em ação,
retirando a neve com a pá e desobstruindo a beirada da soleira e os degraus talhados
no gelo, que permitiam sair da trincheira. Esta se tornava mais profunda a cada in-
verno. Isso constituíra um problema quando invernavam no fortim de Wapassu. No
início, era apenas um abrigo para quatro mineiros, edificado contra o talude, com
acesso às galerias de minas, um verdadeiro covil. Já meio enfiado sob a terra, a neve
só podia enterrá-lo ainda mais, pois as ampliações e reformas não tinham sido feitas
na entrada principal. Tinha, pois, todas as manhãs, que retinar a neve, sob pena de ver
aquela abertura logo condenada.
Depois que saía, hà noite mal iluminada, Angélica sentia o vento, sondava o frio e,
se nem um nem outro se mostravam muito agressivos,-içava-se para fora do buraco e
dirigia-se, a alguns passos dali, a um leve desvio", e onde podia observar o horizonte,
ao alvorecer.
Quando não se sentia com disposição para os trabalhos de desobstrução, subia à
plataforma por um alçapão interno. Dali também se podia abarcar com o olhar o
horizonte, mas de uma maneira menos minuciosa que do outeiro, pois o talude em que
estava encostada a casa ocultava uma parte do lago de Wapassu, chamado o Lago de
Prata. Este, recoberto de uma leve camada de ne^e naquele momento, formava a seus
pés uma grande extensão branca.
Nos dias de muito frio, na fase mais difícil da estação, as horas que.precedem o
alvorecer são talvez as menos sofridas. Se a neve e as rajadas de vento não sopram,
parece que o gelo afrouxa seu abraço, marcando uma pausa clemente.
Angélica gostava daquela hora, que parecia prometer o perdão.
Não estava mais assustada por estar sozinha ali, nas trevas infinitas do céu e da terra
misturadas, e onde nenhuma luz penetrava. Perdera um pouco a noção das datas e,
quando a luz do dia começava a se expandir, desvelando aquele deserto branco mudo,
surdo e congelado, não queria reconhecer que se havia atingido aquele momento do
ano que, nos outros invernos, fazia com que as pessoas de Wapassu pensassem com
seus botões, ou dissessem àqueles que se impressionavam com isso: "O inverno se
fechou".
De todo modo, não vinha ali para meditar sobre sua solidão. Havia uma vida, um
movimento ao qual era sensível naquele instante grandioso, o mesmo e diferente a
cada nascer do sol.
Era a vida. Mexia-se. Falava. Um teatro ordenava-se para ela em todos os pontos do
horizonte. A imagem não era idêntica.
Era às vezes o único momento do dia em que podia perceber o sol. Através de uma
bruma translúcida, ele se levantava, como um enorme escudo rosa, depois
desaparecia, apanhado por uma pesada cortina de nuvens.
Mas outras vezes o espetáculo se desenrolava com magnificência, instante após
instante, até que, estando todas as cortinas erguidas, todos os instrumentos da'
orquestra afinados, o sol consentia em prosseguir seu caminho para um mundo
purificado e, por aquele dia, transmutado em branco e azul.
Agora, as duas nuvens, por trás do monte mais elevado, pareciam duas baleias
escuras escoltadas por baleotes, nuvenzinhas que haviam surgido, não se sabia como,
do éter azul. Seus dorsos eram escuros, de um cinza pesado de tormenta, e os ventres,
de um branco cintilante. Suas formas se alongaram, navegando, tornando-se, ao se
estirar e se dividir, ilhas, praias, continentes com praias cor de mel, à beira de uma
água azul levemente verde. Daquele jade puro ia surgir o astro dourado.
A oeste, a luz que subia já enganchava pontas de rubis, multiplicava os punhados de
jóias lançadas ao léu, ametistas, pérolas, diamantes, através da massa escura e
tormentosa das montanhas adormecidas.
Nos vales indistintos, as neblinas se destacavam contra um cinza espesso,
distendendo-se, numa preguiçosa melancolia, acima dos rios e dos riachos,
encobrindo-lhes os meandros.
O lençol estendia-se de um lugar a outro, mas sem pressa. Seria um dia em que o sol
teria por mais tempo direito de cidadania sobre o mundo, direito usurpado com
frequência pelas nuvens invernais. Ao meio-dia, quando o sol estivesse a pino,
poderia deixar as crianças saírem. E como todas as manhas, no momento de deixar a
plataforma ou -o belvedere, hesitava,, não se decidia a voltar para dentro; retida pelo
encanto, experimentava uma frustração deprimente...
Para se decidir a entrar, era preciso que o frio começasse a penetrar em seus ossos,
que não sentisse mais nem os pés, nem as mãos entorpecidas, e certa vez teve medo
de que o nariz lhe tivesse congelado, como acontecera com Eufrosina Delpeh, a co-
madre de Quebec, que, a fim de espionar os maus passos da Sra. de Castel-Morgeat,
incorrera nesse dano. Voltando para o calor, espreitou, no espelho, com inquietação,
seu apêndice nasal, prometendo a si mesma que seria mais prudente no futuro. Se um
dia ou outro tivesse de reaparecer em Versalhes, não podia fazê-lo marcada por
cicatrizes indeléveis de suas viagens no Novo Mundo. As cicatrizes são gloriosas
apenas para os homens.
E no entanto, aquela manhã, alguma coisa a detinha. Várias vezes voltou da porta a
seu ponto de observação, com a impressão confusa de que um detalhe lhe escapara.
Subitamente, com o coração batendo, uma interrogação se esclareceu. -
Em meio àquelas brumas errantes e longínquas, àquelas névoas exaltadas dos
pântanos endurecidos e dos abismos fechados sobre quedas-d'água geladas, seu olhar
detivera-se numa mancha ao longe, alternadamente esbranquiçada ou transparente, de
formas cambiantes, e que se arredondava por vezes, como que impelida por um sopro
do vento, ou, ao contrário, estirava-se verticalmente no ar puro, subitamente calmo,
num filete branco. Menos que nada: uma mancha arredondada, depois um filete
branco alongando-se, mas que não mudava de lugar.
A partir do momento em que reparou nele novamente, não lhe despregou mais os
olhos. Prendia até a respiração para poder observá-lo melhor. Estava infinitamente
longe e não tinha mais consistência que um sonho.
Mas não podia confundir-se nem com as briímas acima dos rios, nem com neblina.
Era fumaça.
Voltou para casa num transporte de alegria, mas não querendo acreditar naquele
frágil indício.
Seria fumaça?
Muitas vezes durante o dia voltou a sair, a fim de espreitar o sinal, e ele continuava
no mesmo lugar.
— Você fica saindo o tempo todo! — queixaram-se as crianças.
Finalmente, não teve mais dúvida: era fumaça. E, atrás da fumaça, havia homens.
Fossem eles quem fossem, representavam a salvação.
Ao cair da noite, deu mais uma saída. Voltada para a direção de onde vinham os
sinais de fumaça, não conseguiu distinguir nenhum ponto vermelho que, na sombra da
noite, teria revelado a localização de uma fogueira.
"Por isso mesmo!", tranqúilizou-se. "Eles deixaram o lugar e apagaram o fogo
porque continuam 'a caminhar para nós."
Ficou observando durante muito tempo; quando, diante da obscuridade crescente,
decidiu afinal ir para dentro do fortim, estava tão congelada que mal conseguia
mover-se.
Apesar da decepção por não ter podido distinguir nenhum ponto vermelho,
continuava a ver naqueles diferentes indícios novas razões para esperar.
"Eles" vinham, "eles" subiam em sua direção. Aqueles fogos eram de uma parada,
antes da última etapa que os traria a Wa-passu, naquela mesma noite.
Algumas horas mais e os homens da mina do Sault-Barré, os da mina do Croissant,
talvez os de Gouldsboro, alertados, desabariam na trincheira de neve e bateriam na
porta do seu retiro, como daquela primeira vez em que, sob trombas-d'água, tinham se
refugiado, após o episódio de Katarunk, e seria um nunca acabar de congratulações:
0'Connell, Lymon White, Colin Paturel...
Acendeu o fogo na sala grande. Era o máximo que podia fazer para preparar-lhes
uma recepção, fora a aguardente e o vinho...
Para fazer as vezes de farol, subiu para fincar na neve uma grande tocha.
Preparou os colchões e cobertas, e esperou.
Ficou acordada a noite toda, mantendo o fogo aceso, espreitando cada estalo no
exterior, julgando ouvir a todo momento ruídos de passos ou de vozes no sopro do
vento, e precipitando-se ao seu encontro à soleira~'da porta na noite glacial.
Mas pela manhã ninguém tinha aparecido, e o grande silêncio continuava.
Entretanto, quando subiu à plataforma, a fumaça ao longe permanecia lá, no mesmo
lugar, parecendo divertir-se com sua espera, desdobrando-se de modos diversos, em
pequenos topetes ou penachos bem visíveis, tfepois fundindo-se até apagar-se com-
pletamente, para tornar a aparecer. Estava sempre lá como um sopro humano falando
de vida,Tima respiração humana à superfície da terra.
Daí em diante decidiu ir até lá para ver. Pelo menos, tentaria avançar
suficientemente ao encontro do fenómeno para formar uma opinião. Se havia pessoas
lá, elas representavam socorro, possibilidade que não podia desprezar. A ideia de
deixar as três crianças sozinhas, nem que fosse por algumas horas, preocupou-a. Eram
tão pequenas! Fez algumas recomendações a Carlos Henrique: entre outras, não se
aproximar do fogo; acendera-o com pedaços de turfa, que duravam bastante tempo e
não produziam chamas altas.
— E se o fogo apagar?
— Irão para a cama, sob as cobertas, para se aquecer. Não demorarei muito.
Voltarei antes do anoitecer.
Enfiou os calções de Lymon White, seu capote de lã grossa, puxou o capuz sobre a-
cabeça, cobrindo-o, além disso, com um de seus gorros de pele, tão apreciados pelos
habitantes de Wapassu.
Escolheu uma raquete bem leve, pegou uma arma de pederneira, pendurou à cintura
um chifre para pólvora e saquinhos com balas.
As crianças seguiram-na até a porta, prometendo comportar-se.
"E se me acontecer alguma coisa? Um acidente!", pensou, atormentada. "O que seria
deles?"
Recordou-se de sua angústia, na época de suas cavalgadas no Poitou, naquele dia em
que, depois de deixar Honorina, um bebe de dezoito meses de vida, amarrada ao pé de
uma árvore, a fim de correr em socorro daqueles homens atacados, recebera um golpe
na batalha, perdera a consciência e dera por si na prisão, desconhecendo o que
acontecera com a criança, sozinha na floresta.
Sem saber o que ia encontrar ao final de sua expedição, voltou ao quarto e escreveu
numa folha de papel: "Há três crianças pequenas sozinhas no fortim de Wapassu.
Socorrei-as, pelo amor de Deus", e enfiou-a no bolso do capote. Se fosse ferida, se...
Era preciso prever tudo e agir "como se..."
Mas de fato, estava persuadida de que só se lançava a essa empresa para dissipar
uma dúvida insuportável: era ou não fumaça,
aquilo?... O que mais receava era estar tendo uma miragem.
Encontrou as crianças brincando na sala, onde tinham mais espaço que no quarto.
— Podem brincar um pouco aqui, mais sair, não.
— Nem para ir até o lago deslizar um pouco? — perguntou Carlos Henrique,
decepcionado.
— Deus do céu! Não! Não podem sair, estou dizendo.
— Nem para fazer bolas de neve?
— Nem para fazer bolas de neve — repetiu. — Por favor, meu homenzinho, você
tem de se comportar como um irmão mais velho, como Tomás. Você se lembra de
quando ele lhe dizia: "Respeite as instruções". Minha instrução é: "Não saia".
Quanto aos gémeos, só lhe restava uma coisa: obedecer a Carlos Henrique.
E repetiu-lhe ainda uma vez tudo o que ele devia fazer e não fazer, dirigiu uma
última súplica a seus anjos da guarda e saiu para a planície.
Avançava sem poder calcular a distância que teria de percorrer. Não sabia se o
ponto que visava,e do qual não tirava os olhos, estava próximo ou se situava a horas,
ou dias, de caminhada.
Aquela fumaça ao longe era um sopro fino, uma mancha ínfima que se diluía, por
momentos; perdia-a de vista, depois percebia-a novamente, sem estar certa de não se
iludir. Dir-se-ia que era um sopro de agonizante, cuja interrupção significaria para ela,
na verdade, quase que a morte.
Seria, de qualquer modo, a perda de uma esperança louca.
Felizmente, de passo em passo, a fumaça tornou-se mais precisa a seus olhos,
lacrimejantes de frio, fatigados de perscrutar a luz para não perder de vista aquele
traço azulado, que, finalmente, começou a se desdobrar mais nítido e mais próximo
sobre uma cortina de árvores negras.
A margem da floresta, homens tinham acendido uma fogueira. Não os via, mas,
doravante, sua presença era indubitável.
Outros pensamentos a assaltaram. Homens! Amigos? Inimigos?
Homens que, vendo-a aproximar-se, uma forma indistinta e desajeitada, mexendo-se
na imensidão branca, crendo talvez tratar-se de um animal, poderiam atirar à queima-
roupa, como numa caça qualquer.
Nesse momento e inesperadamente, um pedaço de bruma amarelada, bastante
espessa, arrastou-se para ela pela-esquerda e a envolveu.
"Prefiro isso!", pensou.
O odor da fumaça a guiaria, pois agora podia percebê-la pelo olfato. Era
embriagador. E apesar do perigo possível, Angélica estremecia de impaciência.
Subitamente, sob suas raquetes, o solo cedeu.
Avançando numa paisagem cujo revelo se esbatia devido à neblina, viu tarde demais
a beira de uma falha profunda. Só teve tempo de se agarrar a uma pequena árvore no
rebordo.
CAPÍTULO XII
Angélica inclinou-se por cima da ravina. Era daquela falha que a fumaça se erguia
em volutas preguiçosas, estendendo-se como um lençol e misturando-se à pesada
bruma.
Nesse momento, o ramo ao qual se agarrara, e que estava coberto de gelo, quebrou
como vidro e ela desabou no buraco, batendo nos rochedos mas sem se machucar,
devido à espessura da neve que arrastava consigo.
Viu-se no fundo, quase enterrada pela avalancha, e teve muita dificuldade em livrar-
se dela, encontrar a arma, que lhe escapara das mãos, e uma das luvas, que lhe fora
arrancada. A neve introduzira-se em suas mangas, no pescoço, no capuz.
Com movimentos de nadadora, conseguiu atingir um terreno mais firme,
encontrando-se junto a um riachinho semigelado.
Diante dela erguiam-se as colunatas de gelo de uma queda-d'água, um "salto", como
diziam ali. Ao pé de uma cascata, no momento congelada e muda, estagnava-se a
fumaça, emanando dos do-mos submersos de dois wigWatns índios, desses abrigos
que os nómades armam apressadamente com varinhas flexíveis, sobre as quais jogam
pedaços de casca de olmos ou de carvalhos. Através dos interstícios das cascas e sem
mesmo derreter completamente a neve, filtrava-se a fumaça, traindo a presença de
vida.
Ao redor, e apesar da queda da neve fresca da noite anterior, distinguiam-se sinais
de um acampamento. Percebeu um trenó e um arreio que emergiam e julgou ter
ouvido rosnar um cachorro no interior de um dos dois cogumelos recobertos de
branco.
Com o dedo no gatilho, ficou à espreita. Ficara tão privada de qualquer presença
humana naquelas longas semanas, provavelmente meses, que hesitava e temia o
contato. Amigos? Inimigos? índios? Ou exploradores-de bosques canadenses?...
A placa de casca que servia de porta afastou-se. Um rosto de mulher índia sob sua
tiara de contas mostrou-se a meio, depois apagou-se para dar lugar ao do seu amo e
senhor, um índio, o qual, para sair do covil, apontou à frente um alto birote oleoso,
ornado de "facões" negros feitos de asas de corvo. Soerguendo a cabeça, observou a
intrusa, postada a alguns passos atrás dos arbustos.
Pelo perfil arqueado, o queixo curto, os olhinhos faiscantes, ela supôs tratar-se de
um abenaki do sul. Assemelhava-se a Pik-sarett. A visão do mosquete não parecia
impressioná-lo.
Aventurando-se, chamou-o de longe, saudando-o em sua língua. Ele respondeu em
francês.
— Eu o saúdo. Sou Pengashi, da Federação, dos Wapanogs. De onde saiu, criança?
Por sua silhueta, devia tomá-la por um jovem branco. Ela esboçou um gesto para o
alto da ravina.
— De Wapassu, lá longe.
Ele franzia os olhos para vê-la melhor.
— Eu pensava que estivessem todos mortos lá. Vi de longe as ruínas do forte e das
casas...
Deu-se então a conhecer, e ele pareceu agradavelmente surpreso. Ela lhe disse que
estava sozinha em Wapassu com três crianças.
— Aproxime-se! Entre! — intimou-lhe, afastando-se para abrir-lhe passagem pela
estreita entrada.
Ela fincou as raquetes diante da soleira, ao lado da cabana, e deslizou para o interior
do wigwam. Uma vez fechada a porta, isto é, a placa de casca de árvore recolocada
contra a abertura, aquele abrigo estreito, onde só se podia estar sentado, ficou agra-
dável. Estavam imersos numa espessa fumaça, mas Angélica foi sensível sobretudo ao
cheiro de mingau, que devia ter sido cozido numa panela colocada sobre as brasas, e
do qual duas ou três crianças acabavam de juntar os restos em escudelas de madeira.
Eram certamente pessoas muito pobres. Tinha escrúpulos em pedir-lhes comida.
Pengashi contava que o inverno os surpreendera quando não havia sequer concluído o
comércio de verão nas costas de New Hampshire. Mais que isso, não tivera tempo de
caçar e de defumar carne e peixe suficientes para as provisões de inverno.
Desprovido de munições, tendo que abandonar suas peles num esconderijo ao pé de
uma árvore, tornara a subir para as montanhas do interior para reunir-se à gente de sua
tribo; estavam, porém, quase na mesma situação que ele, e todo mundo se dispersara,
a fim de arriscar sua sobrevivência, cada um por seu lado. Seu irmão mais velho
encorajara-o a dirigir-se ao norte, a fim de pensar o inverno sob a proteção dos
brancos de Wapassu. Mas, após uma longa e penosa viagem, cruzou com alguns
grupos dispersos de abenakis e algonquinos, que perambulavam, desorientados, e que
o avisaram de que o Forte do Homem do Trovão estava destruído, não havendo
vivalma ali.
No entanto, não querendo acreditar naquilo, ele prosseguiu, e percebeu de longe as
ruínas enegrecidas; resignou-se, mas, como estava quase sem víveres, antes de partir
em outra direção procurou um lugar propício para acampar, a tempo de preparar
armadilhas. Esperava poder apanhar alguma caça, muito rara devido ao inverno
precoce.
Tinham erguido suas cabanas havia três dias. No fundo de sua ravina, preocupado
apenas com as armadilhas e a caça, antes de pôr-se novamente a caminho,
nâo.pensara em examinar mais de perto o sítio de Wapassu e procurar ali sinais de
vida, o que explicava que não tivesse notado a fumaça do fortim.
Sua intenção era continuar para o norte e pôr a família ao abrigo das missões no
Forte de -Richelieu ou no Forte Sainte-Anne.
Enquanto falava, fumava seu cachimbo em pequenas baforadas e conservava uma
expressão satisfeita, abanando a cabeça com o ar entendido de alguém que tem
convicções próprias e que se felicita por ter conduzido tão bem os negócios.
— O Forte de Richelieu? O Forte Sainte-Anne? Mas fica muito longe — observou-
lhe Angélica. — Por que não tentam voltar Pela Chaudiéré em direção a Quebec?
Teriam de percorrer uma distância menor.
Ele sacudiu a cabeça. Ouvira dizer que o exército do novo governador invernava no
Forte de Richelieu e nos dos lagos Saint-Sacrement e Champlain, e que as barcas
haviam passado todo o outono levando um abastecimento monumental de Montreal
para lá.
Não apenas ficaria com os seus, protegido da fome, mas também estaria no local
quando chegasse a primavera, para participar da grande campanha guerreira que se
preparava contra as Cinco Nações iroqueses.
De repente perguntou o nome das crianças que estavam com ela no fortim, e quando
ela respondeu, manifestou novamente uma grande satisfação.
— Carlos Henrique! Carlos Henrique! — repetiu várias vezes.
Depois, inclinando-se para ela, com um ar malicioso, confiou-lhe:
— Sou o cunhado de Jenny Manigault.
Em resumo, ele era o irmão de Passaconaway, o chefe dos pemacooks, que raptara
Jenny, e com quem ela fora se encontrar depois de sua fuga, confiando seu filho
Carlos Henrique a Angélica.
Pengashi achava que seu irmão mais velho agira mal raptando uma francesa.
— Nós dissemos a ele, no começo, nós, seus parentes, amigos. "Meu irmão, tome
cuidado", sempre lhe dizíamos. "Você raptou uma francesa, e nossos aliados brancos
do Canadá vão criar problemas conosco." Então, ele foi se esconder nas montanhas
Verdes, mas, depois, avisou-me que soubera que sua cativa francesa era da mesma
religião que os ingleses, daqueles que tinham crucificado Nosso Senhor Jesus Cristo,
e que, por essa razão, seus compatriotas franceses a considerariam como prisioneira,
se lhes propusesse devolvê-la. E, longe de resgatá-la, os franceses a entregariam a
outros abenakis como butim. Compreendeu então que ninguém viria tomá-la dele, se
soubesse precaver-se contra uns e outros.
A última vez que Pengashi vira o irmão, o chefe Passaconaway, ele se preparava
para "descabanar" com sua família, comnosta de Jenny e da criança que tivera com
ela, uma menininha, sua mãe e um jovem primo, que perdera toda a família na guerra
do Rei Filipe.
O inverno anunciava-se muito rigoroso nas montanhas Verdes. Quis se aproximar
do litoral, preocupando-se em não atrair a suspeita dos colonos ingleses que
avançavam, cada vez mais numerosos, em direção às montanhas para deslindar a
floresta, e que viam por toda parte, assim que a pluma de um selvagem despontava,
contingentes guerreiros do norte canadense, franceses e abenakis, vindos para
escalpelá-los.
Passaconaway não era batizado como Pengashi, que era cristão, assim como sua
família, e até seus pais. Passaconaway desconfiava dos homens brancos que podiam
vir tomar-lhe Jenny; dos franceses, porque ela era de sua raça, e dos ingleses, porque
era de sua religião. Ficaria feliz por poder levar a Jenny notícias do filho.
— Se você voltar para o norte, não terá tempo de rever seu irmão nem de transmitir
a Jenny notícias de seu filho — disse ela.
Mas essa noção de tempo e de distância não impressionava o índio. De qualquer
modo, a campanha de guerra contra os iro-queses os conduziria para perto das regiões
onde se escondiam Passaconaway e sua pequena tribo.
Depois que os iroqueses fossem aniquilados, Pengashi poderia seguir um
contingente decidido a recolher as cabeleiras dos ingleses entre os habitantes das
fronteiras, o que o colocaria nos limites da hinterlândia do New Hampshire e das
montanhas Verdes. Poderia subtrair alguns dias aos combates para encontrar os seus e
visitá-los.
No wigwam de Pengashi havia duas mulheres. A' mais nova dava de comer a um
bebe amarrado a uma pequena prancheta. Era sua filha mais velha, cujo marido
morrera esmagado por uma arvore, durante seu êxodo.
— As neves chegaram muito cedo. As árvores não tinham ainda perdido as folhas.
Com o peso, muitas delas se quebraram.
A outra, a esposa, observava Angélica com um olhar pouco ameno. Apesar da
estreiteza da cabana, resolvera besuntar os cabelos com gordura de urso líquido. As
índias tinham sempre muito cuidado com os cabelos. Aquela, a despeito de sua
situação
precária, não derrogava seus hábitos. Perguntou a Angélica se não tinha um pente
para dar-lhe, de chifre ou de osso, pois o seu, de madeira, se quebrara.
Pengashi mandou-a calar-se, com mau humor, e Angélica compreendeu que lhe
censurava desperdiçar banha de urso quando suas provisões estavam esgotadas.
Sua filha mais velha, a jovem viúva, por sua vez, indagou se a mulher branca podia
fornecer-lhe uma faixa para seu-recém-nascido. Acusava também o inverno. Não
pudera fazer uma provisão daquela penugem de caniço ou de madeira de pruche soca-
da com que se revestiam as coxas dos bebes, a fim de não sujar as peles. Mais uma
vez, o índio mandou a filha calar-se, lembrando que as mulheres tinham usado o pó da
madeira de pruche para desengordurar os cabelos, antes de lavá-los, só para tornar a
engordurá-los depois. Seus cabelos! Sempre seus cabelos! E não tinham o que comer!
Mas logo depois pedia a Angélica, para ele, álcool e também uma coberta, pois não
pudera ir à feira buscar nos navios ou no posto do holandês as mercadorias de que
precisavam.
Angélica lamentou não ter trazido álcool. Pusera-se a caminho tão persuadida de
estar indo em direção a uma miragem que não pensara em se munir, pelo menos, de
um pouco daquele produto de troca. Recomeçou a explicar sua situação. Estava
sozinha naquele fortim com as três crianças, entre as quais Carlos Henrique. Tinham
lenha para se aquecer, mas as reservas de alimentos estavam se esgotando. Esperava
socorro, que um companheiro sobrevivente fora buscar, mas até agora não chegara
ninguém. E a neve recobrira completamente o lugar das armadilhas.
Enquanto falava, não podia deixar de olhar cobiçosamente para a tigela com gordura
de urso e um resto de mingau de milho; depois de muitas encenações, as crianças
acabaram deixando-o para o cachorro, que esperara pacientemente sua decisão,
lançando-se depois avidamente àquela suprema bolinha de pasta.
Com a perspicácia de seus congéneres, Pengashi, sempre fumando, deve ter
compreendido a linguagem muda de seus olhares. Acabou de fumar seu cachimbo e,
dirigindo-lhe novamente uma de suas piscadelas de conivência, pediu-lhe que o
acompanhasse ao lado de fora, dirigiu-se ao segundo wigwam, fazendo-lhe m sinal
para que entrasse com ele. Dois velhos encontravam-se ali- um homem e uma mulher
de tranças grisalhas, sentados com muita dignidade no fundo da cabana. Coberto com
um gorro de pele, o homem fumava seu cachimbinho de pedra vermelha e a
intervalos, estendia-o à velha esposa, para que desse algumas baforadas. Uma menina
de cerca de doze anos, agachada ao lado do fogão, raspava cuidadosamente uma pele,
da qual arrancava os últimos fiapos de carne e de nervos, por menores que fossem,
para jogá-los numa panela colocada sobre os tições, no centro da cabana.
Angélica e seu anfitrião tomaram seus lugares. Pengashi explicava aos pais quem
era ela e as razões de sua vinda. Eles escutavam, sem parar de fumar e sem que um
músculo de seu rosto se mexesse; podia-se perguntar se tinham ouvido alguma coisa
do que lhes dizia o filho. Este não se aborrecia com sua indiferença, dando-se ao
trabalho de respeitar as regras de cortesia devidas aos ancestrais.
Observando a pequena índia curvada sobre sua tarefa, Angélica surpreendeu o olhar
de curiosidade que ela lhe lançava e viu uma pupila clara numa carinha magra
escurecida pelo sol e pela gordura, mas que deixava vislumbrar manchas de sardas.
Apesar da gordura que os untava, os cabelos trançados, presos na testa por uma tira
bordada com miçangas coloridas e cerdas de porco-espinho, tinham um reflexo
dourado. Mais uma pequena cativa inglesa.
— Meu irmão era tão louco por sua cativa branca! Deu-me vontade de ter uma
também em meu wigwam. Há alguns anos, com um grupo aliado, seguimos a
campanha do Toga Negra, que desceu ate as proximidades de Portsmouth. Raptei esta
menina. Ela era tão pequena e tão loura! Fui eu quem lhe calçou os primeiros
mocassinos. Arranjei um meio de cortá-los e costurá-los, apesar da corrida na floresta,
pois .os yennglis nos perseguiam e tivemos de matar quase todos os nossos outros
cativos, que não podiam manter a velocidade. Coloquei-lhe esses mocassinos nos pés.
E depois, acabou. Ela já não era uma criança de yenngli. Daqui a pouco estará
suficientemente grande para tornar-se minha esposa. È por isso que Ganita não gosta
dela. Então dei-a como criada para meus pais.
Angélica ouvia-o, menos atenta a suas palavras que aos gestos.
Ele penetrara até o fundo do wigwam e soerguera uma placa de casca de árvore que
formava a parede, tirando um volumoso pacote coberto de gelo, envolto em peles.
Depois de fechar cuidadosamente a abertura, ordenou com voz rude à pequena criada
que atiçasse o fogo. Esperou que o calor voltasse ao interior da cabana para desenrolar
as peles, endurecidas pelo gelo. Com certo orgulho, mostrou um grande bloco gelado
de uma matéria avermelhada.
— Fiz uma boa caça anteontem. Um filhote de gamo. Mas não contei tudo a minha
mulher Ganita. Ela logo ia querer fazer uma patuscada. Ela não tem miolos. Meus
pais não dirão nada. Eles aprovam que eu seja parcimonioso. O inverno é um inimigo
traiçoeiro e cruel, e nunca é demais precaver-se.
Pegou num canto uma velha lâmina de espada bem afiada e, com três ou quatro
golpes decisivos, cortou um grande retâgulo de carne, enrolando-o num pedaço de
pele, também cuidadosamente cortado. Enquanto ordenava à pequena criada que
costurasse as bordas do embrulho, o que ela fez com rapidez e habilidade, puxava, de
um outro buraco, do lado de fora, um saco, do qual retirou duas raízes de rábano e
uma colherona encerrada numa bainha de couro corrediça. Abrindo-a, contou na
concha da mão, com tanto cuidado quanto um avarento com suas moedas, parcelas
pretas ou amarronzadas de um produto leve, cujo valor parecia apreciar tanto quanto o
ouro.
Hesitava, acrescentava três ou quatro pastilhas de suplemento, hesitava novamente,
sacudia um pouco o saco, depois parecia reconsiderar e arrepender-se de seu gesto, e
se corrigia, derramando mais um pouco. Quando a mão ficou cheia, pediu que
Angélica estendesse as suas para recolher a preciosa provisão.
— Deixa esses frutinhos dos bosques incharem dentro de um caldo. Eles defendem
do escorbuto.
Ela se confundiu em agradecimentos.
— Eu sou o cunhado de Jenny Manigault — respondeu, como o parentesco o
constrangesse a certas obrigações para com ela. --- Não teria com você algum objeto
que eu pudesse entregar-lhe uando tornar a vê-la? Meu irmão mais velho acha que sou
mentiroso. Assim ele poderá ver que falo a verdade.
Angélica procurou alguma coisa que pudesse deixar com o selvagem e que
testemunharia a Jenny que ele a encontrara. Para Tenny, uma palavra escrita. Não
tinha papel, nem pena, nem tinta consigo, e não usava nenhuma jóia. Exceto uma
aliança muito larga em seu dedo emagrecido. Acabou tirando-a meio maquinalmente,
entregando-a a Pengashi e explicando-lhe que Jenny reconheceria aquele anel, que
vira em sua mão.
— Pode dar-me também seu fuzil? — pediu o abenaki, após guardar a aliança na
sacolinha suspensa ao pescoço que todo índio usa no peito. — Tenho direito a um
fuzil, pois sou batizado.
Essa generosidade que demonstrou e que o deixou satisfeito não lhe custou caro.
Com todo o arsenal armazenado nos flancos do fortim de Wapassu, podia dar-se a
esse luxo.
Pengashi rejubilou-se.
— Tenho também um presentinho que Jenny me deu para seu filho, mas não
consigo encontrá-lo:. Aposto que foi essa danada da Ganita que o furtou de mim. Mas
vou fazê-la confessar. Volta daqui a três dias. Quem sabe! Com o fuzil, se o Grande
Espí
rito continuar a ser bom comigo, talvez eu consiga um pouco de carne para partilhar
com você.
Apesar de batizado, quando se tratava de caça, preferia dirigir-se ao Grande
Espírito.
Ela prometeu trazer aguardente, uma coberta para sua velha mãe e a faixa para o
bebe.
Com alegria por levar víveres suplementares para alguns dias, a volta lhe pareceu
fácil e rápida. Chegou a casa antes da noite.
Aliviada, apertou contra o peito as crianças. Como eram corajosas, tão pequenas,
por terem sabido esperá-la sem se assustar com sua ausência, sem se inquietar e sem
fazer tolices!
— Comemos ê depois dormimos — disse Carlos Henrique.
Ela deixou para falar-lhe sobre a mãe mais tarde.
Aquele Pengashi a enganara com seus projetos de voltar para as montanhas Verdes.
Será que conseguiria, pobre coitado, atingir as missões do norte? Deixou passar
alguns dias antes de retomar o caminho de seu acampamento.
No intervalo, um vento desagradável começou a soprar. Vento seco mas glacial, que
corroía como poeira de aço a superfície da neve. Esperou, sabendo que não poderia
dar dois passos sem ser derrubada, e, se quisesse rastejar, teria rodopiado, sendo var-
rida de um lado para outro, ao rés-do-châo; compreendeu por que, naquela estação,
Pengashi erguia suas cabanas na parte mais fundas das ravinas.
Finalmente, um dia o vento começou a amainar, deixando sob um céu baixo e
ameaçador um mundo decapado, recoberto por uma carapaça de gelo. As coníferas
estavam negras como tinta, sem uma pitada de neve em suas agulhas, com as folhas
despojadas cor de osso, os ramos em forma de candelabro, sem o mínimo galhinho.
Devido ao adiantado da hora, teve de esperar pelo dia seguinte para ir ao
acampamento dos índios. Levaria um quartilho de aguardente, um pente, algumas
faixas de pano e, apesar de não estar muito bem provida, duas cobertas de lã inglesa
de Limburgo para os avós.
Mas, durante a noite, a neve recomeçou a cair em grande flocos. Com medo de se
perder, esperou mais-um dia, depois outro. Agora o vento cessara totalmente, mas as
pancadas de neve, mole e silenciosa, pareciam não ter fim. Na manhã seguinte, houve
uma calmaria. Os flocos ficaram mais esparsos, turbilhonando com lassidão, parando
pouco a pouco.
Um trecho do horizonte se descobriu para oeste num espaço restrito, mas suficiente
para que tivesse a possibilidade de saber em que direção estava indo.
Fez suas recomendações a Carlos Henrique, como da vez anterior, e, depois de
desobstruir mais ou menos os arredores da entrada, içou-se para fora e rumou para a
planície. Contra qualquer expectativa, encontrou, apesar de quase apagados, vestígios
de sua antiga pista. Com a passagem constante de névoas e nuvens no horizonte, era
impossível tentar localizar os sinais de fumaça do pequeno acampamento perdido.
O céu baixava cada vez mais, a neve recomeçou a cair. Caía compacta, mas o vento,
que transforma uma paisagem já escura numa muralha intransponível, ainda não se
levantara e provavelmente não se levantaria. Prosseguiu a caminhada.
Dessa vez, munira-se de um feixe de varinhas para balizar a pista. Quase
imediatamente, lamentou não tê-las cortado mais compridas, pois a neve, em enormes
flocos macios, caindo como um dilúvio, ameaçava recobri-las dali até a sua volta.
Apesar das raquetes, afundava até os joelhos a cada passo que dava. Avançava
lentamente, mais pesadona que um urso, guiando-se pelo sulco muito tímido do
trajeto anterior.
Como da primeira vez, não percebeu a beirada abrupta do despenhadeiro e, não
tendo pressentido a tempo o desnível, foi arrastada para o fundo, na mesma
precipitação de neve, o que não tinha gravidade, pois ela lhe amortecia a queda.
Precisou de mais tempo para se livrar da neve, mas, em compensação, não perdera
nem a raquete nem as luvas.
A ravina assumira um aspecto fantasmagórico. As árvores estavam transformadas
em longos círios gigantes, chorando suas lágrimas de cera lívida, e a própria cascata
desaparecera, confundindo-se com os rochedos submersos.
Nem sinal dos wigwams.
"Eles descabanaram."
Depois, aproximando-se, percebeu a forma redonda de um dos dois abrigos e, em
seu alívio de sabê-los presentes, não se preocupou por não ver fumaça. Chamou, não
teve resposta. Levantou a cavilha de madeira, afastou a casca de árvore da entrada, e
percebeu os dois velhos no fundo, sentados lado a lado, com as pernas cruzadas, o
homem com seu gorro de peles e a velha com sua tiara bordada enfeitada com uma
pena, tal como os deixara, da primeira vez.
Saudou-os. Uma fina poeira de neve, infiltrando-se por um buraco no teto,
pulverizava os tições do fogão, assim como os dois velhos, sublinhando-lhes de
branco as dobras das roupas.
Não pareciam dar-se conta daquela neve fina que pouco a pouco os recobria e,
impassíveis, fixavam-lhe os olhos turvos.
Só depois de um bom tempo, quando notou o cachimbo apagado colocado diante do
homem e constatou a invasão da cabana pelo sopro-imperceptível da poeira de neve,
compreendeu que estavam mortos.
No momento em que Pengashi e sua família partiam de novo, pelos espaços nevados
e pelos furacões, numa direçào tão distante quanto incerta, o ancestral dissera: "Meu
filho, eu fico. Minha pista termina aqui".
Segundo o ritual e a tradição, Pengashi deixara-lhes o wigwam para abrigá-los, um
último fogo aceso diante deles, Com uma última panela colocada sobre os tições,
contendo duas supremas rações da sagamité, uma última pitada de tabaco para o
cachimbo do pai; depois, recolocando cuidadosamente a placa de casca de árvore que
servia de porta, e acompanhado pela mulher, os filhos, a filha mais velha, o bebe e a
cativa inglesa, com seus passos lentos nas raquetes, carregando e arrastando os
aprestos dos pobres e derradeiros bens, retomou sua marcha para o norte, à procura
das missões e dos postos franceses. -
Angélica ficou inerte, ajoelhada diante das duas dignas múmias, até que viu à sua
volta que a neve começava a se depositar sobre suas roupas e que estava petrificada
de frio.
Com um gesto instintivo, estendeu a mão para a panela. Mas, como já esperava,
estava vazia e meio encoberta pela neve.
Tinham fumado calmamente o cachimbo da paz, passando-o um para o outro, e
depois, após a última baforada, o velho índio colocara o objeto sagrado diante dele.
Esperaram que o último tição se apagasse repartindo então os últimos bocados de
alimento terrestre. Depois, com as mãos colocadas sobre os joelhos, na obscuridade
que pouco a pouco se resfriava, deixaram vir a morte.
Quando o galho desabara sobre o teto do wigwam, eles já estavam longe,
continuando seu caminho pelas planíceis do Grande Espírito, lá onde só existe calor e
luz.
Sob a luz baça que entrava pela abertura, não se cansava de contemplá-los, retida
involuntariamente, sem pensamentos, sem saber por quê, por aquele espetáculo
macabro, e no entanto nobre e sereno. Continuavam tão vivos que se continha para
não colocar em seus ombros as cobertas que trouxera.
Pouco a pouco, um detalhe insólito atraiu-lhe a atenção adormecida. Nas mãos
abertas de cada uma das duas personagens hieráticas, repousava uma espécie de torrão
de alguma coisa indistinta. Seme-lhava-se a um grande cascalho de lama, também
salpicado de neve.
Mas ao se aproximar percebeu quê era comida. Dois grandes blocos congelados de
mingau de milho, misturado com pedaços de carne e frutas secas. A última refeição
dos ancestrais, em que não haviam tocado.
Estremeceu com uma alegria insensata. Trémula, desprendeu os dois pedaços das
palmas esquelétricas e hesitou, interrogando-os com o olhar: "E para mim? Sabiam
que eu ia voltar?"
Em seus peitos, entre os amuletos de dentes de ursos, cerdas de porco-espinho,
colares de conchinhas, entre saquitéis, medalhas, via brilhar aquelas cruzinhas de ouro
feitas e usadas pelos índios batizados do sudeste.
Deveria ver nesse gesto uma suprema oferenda ao Deus da caridade sem limites que
os Togas Negras lhes ensinaram a cultuar?
O que era uma ração a mais nesta terra, tinham pensado, quando iam partir para lá,
onde estariam saciados para sempre? A mulher branca e as crianças brancas de
Wapassu tinham fome.
Transbordante de gratidão, enfiou seu butim na sacola. Havia também uma sacolinha
de couro colocada sobre a porção que a mulher segurava; também pegou-a, pois
parecia fazer parte da oferenda.
Ao se retirar, chocou-se com um objeto envolto em pele, que não vira
anteriormente. Pela forma, reconheceu uma armadilha de aço para os pequenos
animais de pele e se lembrou de que se queixara a Pengashi de não ter encontrado as
que o inglês colocara no outono.
Em troca do fuzil, o índio lhe deixava um de seus instrumentos de caça para
comércio, que poderia lhe oferecer uma última oportunidade.
Recuando de joelhos, saiu do wigwam, olhando uma última vez para os velhos.
— Obrigada! Obrigada! Que Deus os abençoe.
Ajustou e firmou melhor a porta, esforçando-se por tapar a abertura no teto, a fim
de. evitar-lhe o máximo tempo possível o ultraje dos animais carniceiros.
CAPITULO XIII
Seres humanos tinham vindo e, no entanto, em seguida, a situação lhe pareceu pior
que antes. Tinham-lhe dado uma prorrogação de alguns dias de alimentos, mas
arrebataram-lhe a esperança.
A visão daquela pequena família errando através do deserto branco forneceu-lhe a
medida do isolamento em que estava encerrada.
Agarrou-se à ideia de que Pengashi falaria dela. Saberiam que estava viva.
Mas será que Pengashi voltaria algum dia, ele também, à praia dos vivos? Sem fim
era a pista, mortais as tempestades. Tocada pelo inverno, toda caça desaparecera no
céu e na terra. Com o fuzil, o índio teria alguma possibilidade. Não se arrependia de
ter-lhe deixado a arma.
Como último recurso, os índios comeriam o cachorro.
Ela sonhou com favas no toicinho e feijões de Boston, que, em Salem, se
degustavam regados com creme e melaço. Chamou Ruth e Noémia em seu socorro.
Despertou dando um grito de decepção, que assustou as crianças.
Montanhas de pratos fumegantes, que se lhe deparavam como na mesa do rei.
Os últimos anos tinham sido marcados por um selo de vitalidade cintilante,
aureolados ao mesmo tempo de esplendores terrestres e ingerências místicas, que
emprestavam a tudo um sentido diverso daquele que lhe atribuíra outrora.
Pensava nos primeiros dias de sua chegada ao Novo Mundo.
Pensava em Wallis, sua égua, inquieta e atormentada como ela, que se defrontara
com a tartaruga gigante, símbolo dos iroqueses.
"Os cavalos!... Os cavalos!"
No outono passado, no momento do ataque dos índios, enquanto corria para a
cabana de Lymon White para se refugiar, percebera numa visão relâmpago os cavalos
que, ao longe, galopavam através das pradarias, como que tomados de pânico,
adivinhando que era o fim de Wapassu e que era preciso fugir. Não sabia se aquela
visão lhe causava mal-estar ou se a tranquilizava.
"Eles descerão para o sul. Procurarão o caminho das charnecas e dos planaltos.
Livres, reencontrarão seu instinto, se organizarão em rebanhos..."
Mas o Maine era uma região muito difícil, de florestas e precipícios, e o inverno
chegara cedo demais.
"Não pense. Imagine antes que estão felizes por ter reencontrado o espaço. Tinham
sido habituados a viver ao ar livre e, no fim do verão, alguns se tornavam novamente
selvagens e indomáveis."
As crianças berravam a plenos pulmões, enquanto Carlos Henrique se inclinava
sobre ela.
— Não chore, mamãe! Eu os vi galopar! Não se deve ficar triste. Eles saberão
encontrar o caminho. Irão para os lugares onde há menos neve e muita grama e
povoarão a América.
Era preciso lutar contra a loucura do silêncio; obrigava-se a falar com as crianças,
manter sua atenção desperta.
Dizia-lhes que o cão boboca dera provas de grande inteligência. Fora embora antes
do incêndioe, de certa forma, o anunciara. E fora encontrar-se com Honorina, que
estava entre os iroqueses. Quando Honorina voltasse, ensinar-lhe-ia a atirar com o
arco.
Seus rostos pálidos iluminavam-se quando se pronunciava o nome de Honorina.
"Honorina, minha queridinha! Meu tesouro!"
Honorina sobreviveria. Era a mais forte de todos.
CAPITULO XIV
Partir. Andar até os bosques lá embaixo. Será que poderia fazê-lo?... A neve caíra
sem descanso. Não poderia naquele dia arrastar-se até a ravina de Pengashi.
Examinava periodicamente a armadilha, encontrando-a sempre vazia. Acabou por
retirar a isca, que poderiam consumir.
Uma vez, quando se arrastava novamente até lá, em meio às rajadas de neve,
procurou-a em vão, perdeu-se, e só conseguiu reencontrar o fortim guiando-se pelo
cheiro fugaz da fumaça.
Outra vez, desmaiou no caminho, aíordou dura de frio, arrastou-se para o abrigo,
não saberia dizer até hoje com que forças.
Quando, de manhã, por ocasião de breves claros no céu, se esforçava para abrir a
porta e subir para ver o nascer do sol, seu distanciamento da casa, onde as crianças
repousavam, tomava ares de fuga. Não tinha mais coragem de vê-las definhar. Por
enquanto, estavam dormindo. Aquecera seus corpos franzinos com tisanas, às quais
misturava plantas calmantes, já que dispunha de muitas. No sono, esqueciam as
agonias da fome. Mas lembrava-se das histórias da velha Rebeca, de La Rochelle. A
velha Rebeca que, jovem mãe de três crianças, presenciara o sítio de La Rochelle, sob
o Cardeal de Richelieu. "O que se haveria de encontrar numa cidade, quando tudo o
que pode ser comido já o foi? Não se deixa nem a um talo de grama tempo para
crescer entre os lajedos..."
"Foi meu filho mais velho que se foi em primeiro lugar", contava ela. "Certa manhã,
pensei que estivesse dormindo. Mas estava morto."
Então Angélica se precipitava à cabeceira das crianças, espreitando-lhes a respiração
em seus lábios descorados.
Depois subia de novo ao outeiro. Postava-se diante do horizonte, elevando as mãos
com as palmas unidas como para uma invocação, sacerdotisa de um sacrifício de que
era a única celebrante.
A frisa malva e cinza das montanhas desenrolava-se contra um céu realmente cor de
pêssego. "Por que você é tão cruel?", gritava à Natureza. "Tão bela e indiferente?"
Também lhe foram recusados aqueles momentos em que, saindo e se
movimentando, extraía forças da impressão de estar fazendo alguma coisa.
O poente aquela noite foi de um amarelo agressivo, ácido, contrastando com o
encarneiramento das montanhas, de um azul água-marinha. Era belo mas inquietante.
A noite, o blizzard começou a soprar. Não veio de mansinho, mas com uma violência
brutal que acordou as crianças, habituadas todavia a esses uivos das noites de inverno
e às sacudidelas dos batentes.
Mas, surpresas, acreditaram que o teto ia despencar. Angélica abençoou o céu por
estar o posto tão profundamente ancorado na terra e na rocha.
Apertava as três crianças contra si, cobrindo-as de beijos e murmurando-lhes
palavras reconfortantes.
— Eles passam! Eles passam! Estão apenas passando.
Os negros esquadrões de tempestade, entretanto, não paravam de passar.
As noites e os dias sucediam-se, sem que se pudesse saber se era dia ou noite.
CAPÍTULO XV
Precisava ao menos reunir suas energias para mover-se através do espaço estreito
que lhes permanecia reservado. Se se limitasse àquele único cómodo, não poderia
levantar-se mais e deslizaria lentamente no sono da morte, com os filhos ao lado até
que, parando de dispensar-lhes seu próprio calor e suas forças vitais, adormecessem
também para sempre contra seu corpo de gelo.
— Levante-se! Mova-se.
Endireitava-se, enrijecia-se, agia como um autómato. Lançava aos ombros sua
manta, no gesto habitual, cotidiano. Abria a porta do quarto e tomava o corredor com
a mesma.resolução com que começava cada estação, e cada dia, na soleira da
habitação principal de Wapassu, atravessava os pátios, inspecionava os estábulos e
armazéns, transpunha os limites das muralhas, visitava os acampamentos indígenas
mais próximos, is fazendas vizinhas que, pouco a pouco, se espalhavam fora dos
muros, família por família. Do lado de fora, agora, era o deserto. Naquele dia, na
grande sala, percebeu que a porta bloqueada pela neve tornava impraticável a saída.
Outra hora, prometeu a si mesma, quando se sentisse mais forte, se empenharia em
abri-la e depois arrastar-se, passo a passo, até a armadilha. Poderia orientar-se?
Desprender o aparelho da massa de neve? Começou a andar em volta do quarto,
batendo o tacão no assoalho, para ouvir o barulho de seus passos.
Arrastou um escabelo para junto do respiradouro, a única saída pela qual a luz do
dia podia ainda escoar-se, parcimoniosamente, como uma água turva mas presente,
para o fundo de seu túmulo. Por ali, talvez, seria mais fácil deslizar para fora.
Arrancou com a faca a proteçào de pele, untada de óleo. Um muro de gelo
bloqueava quase inteiramente a abertura. Pelo interstício desobstruído, um frio cruel
lhe mordia o rosto. Ergueu a gola do manto até os olhos. Seu olhar seguia a fuga da
superfície da neve, na qual uma fonte de luz invisível projetava salpicos de cobre:
aurora ou crepúsculo? Permaneceu observando bastante tempo, decidindo afinal que
era crepúsculo. Ia poder desse modo determinar o andamento dos dias e das noites.
Com a condição apenas de que a tempestade não voltasse a enterrar o mundo em sua
noite eterna.
Recolocou a pele que servia de cortina, ocupou-se em tapar o respiradouro com uma
proteção de esponja e de peles, fixando-as com pregos. Já que, pelo menos, lhe
restavam ferramentas, tinha obrigação de servir-se delas. Proteção contra o frio!
Todos os dias viria despregar um pano da cortina, a fim de seguir a evolução das
horas, da temperatura no exterior. Estava coberta por um suor de fraqueza, mas
decidiu que esses trabalhos lhe revigoravam as forças, do mesmo modo que é
necessário mexer-se e ativar-se quando o entorpecimento do gelo se apodera dos
membros e do espírito.
Alimentou as crianças, dosando cada bocado, percebendo-lhes a avidez, que não
podia satisfazer, cuidou delas, mimou-as, enrolou-as mais nas peles de gato selvagem,
ganhou novas esperanças ao vê-las sorrir e até rir e pronunciar algumas palavras.
Entretanto, apenas o sono delas, embora lhe notasse a inquietante apatia, a
tranquilizava,'a serenava. Despertas, podia ler muito bem em suas carinhas e corpos o
que lhes faltava, receando a cada dia perceber os sinais precursores do mal terrível, o
escorbuto, ou os sinais precursores da morte.
Ainda restavam muitas provisões: gorgura, carne salgada, milho, para três ou quatro
dias, talvez mais. Dedicava-se todos os dias a retirar o gelo do respiradouro.
Depois, acabou toda a comida. Após engolir os últimos bocados, as crianças
enroscaram-s*e no entorpecimento. A fome chegaria antes do escorbuto. Ela mesma,
desesperada, fugia da visão de seu último sono. Içou-se até o respiradouro, deslizou
convulsivamente para fora da passagem que cavara no gelo, soergueu-se gritando:
— Não quero vê-los morrer!...
Deu consigo correndo _ na superfície gelada e cintilante, repetindo:
— Não quero vê-los morrer! — e afastando-se, como Agar no deserto, afastando-se
da árvore sob a qual morria seu filho Ismael.
Tropeçou, caiu de encontro às mandíbulas da armadilha que emergia do chão. Um
coelho das neves ali estava preso, branco no meio de todo aquele branco, quase
invisível, congelado e tão hirto quanto as mandíbulas de aço.
Desprendeu-o por milagre; dessa vez, protegendo as mãos com o xale' e com o
auxílio da faca, encontrou os gestos que devia fazer. Pegou o coelho nos braços.
Apertou-o contra o peito.
— Obrigada! Obrigada, irmãozinho! Como és bom! Como és bom por teres vindo!
Nunca sentira de forma tão intensa e terna a aliança do homem e do animal. O
animal, que dissera ao homem: "Eu, eu quero muito... Tome-me, sirva-se de mim para
sobreviver, agora que, por sua culpa, perdemos o Paraíso terrestre".
"Contarei essa história às crianças..."
Mais dois ou três dias de alimentação!
— Obrigada! Obrigada, irmãozinho!...
Aquele era o sinal. O sinal de que atingiriam o fim do túnel. Que aqueles que
estavam a caminho para salvá-los chegariam a tempo. Acalentava contra o peito o
animalzinho rígido e com grande orelhas erguidas.
— Obrigada! Obrigada, irmãozinho!
Esperou. E tudo era silêncio. A tocha crepitava como que chorando, aos
pouquinhos, fraca, também ela moribunda.
Tudo era fracasso.
Tinham sonhado com um Novo Mundo. Tinham labutado para construí-lo. Ela
amara Wapassu, Gouldsboro e Salem... e Que-bec... E Quebec apagara Wapassu e,
um dia, Ruth e Noémia seriam enforcadas nos patíbulos de Salem.
Rostos desfilavam. Pela primeira vez, via o que ocultava sua fachada comum. Tudo
era tão claro e tão nítido daí em diante!
Ilusões! Vivera apenas ilusões! Ilusões que viu se cristalizarem na ingénua imagem
de Gouldsboro que acalentara o tempo todo.
Deteve-se. Sua agitação se acalmava. A cortina fechada diante da qual tripudiara por
tanto tempo abrira-se e, pelo menos, estava aliviada por não ter mais que alimentar
esperanças sem futuro. Quantas vezes sonhara que um dia, em Gouldsboro, iria
sentar-se, cercada de amigos, e que seria agradável. As dificuldades seriam
aplainadas. Não haveria mais distâncias.
Naquele espécie de vazio causado pela fome e pela angústia, seu cérebro rodopiava
numa embriaguez vertiginosa, numa corrida desabalada que não conseguia deter, mas
cujo desenrolar de pensamentos precipitados, aparentemente opostos e incoerentes,
não era destituído nem de lógica nem de lucidez.
O que importava não era servir a Deus. O que importava era a forma de consolo
ritual com que se decidia servi-lo.
O Espírito desaparecera por trás dos quadros rígidos e pontuais, os dogmas e
práticas que eles idolatravam, mais preocupados em manter suas crenças, e assustados
de perdê-las, do que em agradar ao Todo-Poderoso.
Loménie estava certo. Não se luta contra um santo. E esse santo decidira fazer
guerra a três princípios que ele abominava.
Primeiramente, a mulher, rival do homem no coração de Deus e perversa por
natureza, depois a beleza, que aos olhos dele não era, de modo algum, um dom do céu
mas uma armadilha de Satã, enfim sua liberdade de espírito, porta aberta a todas as
heresias, inadmissível, ademais, numa mulher.
E hoje, quando toda uma obra gigantesca e benfazeja estava perdida, não haveria um
dedo que se erguesse acusador, nenhuma voz para gritar: "Jesuíta, você é um
criminoso! E um destruidor!
"Ele triunfa", disse consigo, "e nós estamos perdidos."
A tensão, que a mantinha vibrante como a corda de um arco, caiu bruscamente.
Seus ombros se abateram. .
"Ele triunfa!" pensou, com desânimo. "Oh! por que, por que é preciso que triunfe
dessa forma?"
Nesse exato momento, e quando, sucedendo a sua exaltação, a consciência do estado
lamentável em que se encontrava a invadia com uma onda sufocante, houve um
baque, uma espécie de pancada na porta, ressoando demoradamente, no silêncio já
quase tumular do pequeno posta enfiado na neve. Foi breve e súbito, mas muito
nítido.
Alguma coisa chocou-se contra a madeira, e, enquanto ela estremecia e sustinha a
respiração, duvidando de seus sentidos, sem poder determinar de onde exatamente
viera o ruído, houve uma segunda pancada, mais surda, igual à que produziria um
punho vigoroso batendo-na porta ou o choque de um bastão-manejado com as duas
mãos ou da coronha de um fuzil, talvez!? Depois, nada mais.
Dessa vez, tinha certeza. Duas vezes ressoara uma pancada na porta.
Permaneceu rígida, interrogando ainda o silêncio novamente opaco, excetuando-se
as modulações sibilantes do vento turbi-lhonando incessantemente ao redor, sem se
precipitar para se convencer de que não havia sido vítima de uma alucinação.
O estremecimento de uma alegria incrédula começou a correr-lhe nas veias, com
uma efervescência, um arrepio de seda tal como o dos riachos no momento do degelo,
fazendo-a desfalecer, sufocar, enquanto sua carne estremecia. Era a mesma sensação
que a fizera erguer-se uma noite em sua primeira invernada, quando a fome os
ameaçava. A tempestade soprava lá fora e nenhum socorro podia ser esperado.
Nenhuma pancada a alertara daquela vez. Apenas uma sensação poderosa. Ela
dissera, numa voz átona:
"Há alguém lá fora".
E, com a Sra. Jonas, caminhou para a porta. Aquela mesma porta ali, enquanto seus
companheiros abanavam a cabeça, caçoando um pouco. As duas, apoiando-se,
puxaram a pesada porta revestida de uma carapaça de gelo. E, através das rajadas do
blizzard, perceberam silhuetas nuas inclinadas sobre a trincheira de neve. Eram
Tahutaguete e seus mohawks, que, enviados por Utakê e o Conselho das Mães
Iroquesas, lhes traziam víveres...
Dessa vez, a mesma alegria diante do milagre a invadia com tanta violência que
receava cair se esboçasse um gesto.
"Eu sabia que ele viria. Utakê! Utakê! Eu sabia que ele não ia me abandonar, que
'eles' viriam..."
Tremia dos pés à cabeça... Logo iria poder dar aos filhos uma sopa de feijões, bem
quente,_ engrossada com carne-seca desfiada. Oh! meus filhos! Como vai ser bom! E
depois arroz integral, alguns punhados daqueles grãos transparentes e marrons
recolhidos na superfície dos lagos, no Illinois, a aveia-louca que se coloca para
germinar num pouco de água morna e que cura o escorbuto...
Teria forças para abrir aquela porta? Era preciso.
Andou até ela com passos duros e arrastados de velha.
Após retirar a tranca e girar as chaves, no momento de afastar o pesado batente,
hesitou, apoiando-se à madeira. E se fosse uma alucinação? Não! Não! Não tinha
sempre conservado no coração, sem nada dizer, a esperança de que o milagre da
primeira invernada se repetisse?...
Teve de lutar, como que invadida por um pesadelo, para abrir aquela porta que dava
para a noite como um perigoso abismo cheio de monstros dissimulados. E, forçando-
se a suportar o amplexo coercitivo do frio, levantou os olhos para o cimo da trin-
cheira.
A tempestade não tinha a severidade cruel da outra vez. Percebeu a lua entre nuvens
de aço negro esgarçado, que corriam céleres num céu de chumbo derretido.
A crista branca dos altos entulhos de neve diante da porta resplandecia, mas
nenhuma silhueta humana se perfilava naquele cenário, em que a obscuridade e a
claridade se entrelaçavam tumultuosamente.
Teria sonhado?...
Forçava tanto a vista que seus olhos choravam de frio. Sua esperança não queria
morrer. Mantinha-a dentro de si como um peso enorme suspenso que não queria
deixar cair, pois ele a esmagaria e ela não sobreviveria. Não! Não! Não tinha
sonhado! Ouvira uma pancada... duas até... Sentia... Sentia que acontecera algo.
Alguma coisa havia mudado... Alguma coisa se movera, alterando a imutável e
impávida solidão que os cercava, e os mantinha prisioneiros. A noite deixara de ser
deserta. Um movimento humano ocorrera.
Com o rosto estendido para o rebordo de neve deu um passo adiante, mas lua se
escondeu com a chegada súbita de espessas nuvens escuras arremessando-se ao
assalto do céu, como se lamentassem ter deixado se instaurar por alguns instantes uma
sutil trégua. Surpresa e adivinhando a tempestade iminente, tornou a avançar, depois
cambaleou e por pouco não caiu sobre um obstáculo.
Chocara-se contra uma massa dura e escura. Parecia um bloco de pedra lançado
horizontalmente no chão. Sua mão apalpou, adivinhou as dobras de uma textura
inólita, couro ou pano áspero, que um fino pedrisco soprado pelo vento norte" já
estava recobrindo de pó: um saco! um saco grande!... Víveres!... Provisões!...
Então não tinha sonhado!...
"Eles" tinham vindo...
Abarcou com os braços a massa que, provavelmente lançada do alto da trincheira, se
comprimia entre as paredes, obstruindo a entrada.
Era um saco enorme, inchado, em relevo.
Feijões! Milho! Abóboras secas!...
Víveres!...
Não conseguindo movê-lo mudou de tática. Febrilmente, com os dedos nus
esfolados pelo gelo, procurava agarrar uma saliência, uma dobra que lhe permitisse
puxar com força suficiente para abalar e arrastar o volume pelo leve declive que dava
acesso à porta.
Estava muito fraca. Pensou em entrar para pegar as luvas. Mas nada no mundo
poderia fazê-la afastar-se de sua presa, temendo, se o fizesse, que o sonho acabasse.
A tempestade desabou, encobrindo bruscamente a lua, abaixando o céu ao nível da
terra e derramando, até o fundo do buraco onde se encontrava, turbilhões de neve que,
em alguns segundos, ameaçavam soterrar a ela e ao fardo que tentava deslocar.
Finalmente encontrou uma saliência mais dura numa das extremidades e, quando
conseguiu agarrá-la, o resto sucedeu-se com relativa facilidade. Recuava, de joelhos,
com a cabeça abaixada para escapar às bofetadas da ventania, e pouco a pouco conse-
guiu encontrar a soleira, entrar na grande sala, para onde arrastava o saco, enquanto
trombas de neve se introduziam às suas costas.
Num canto, a luz fraca da tocha vacilava.
Consciente de estar finalmente abrigada e de que devia evitar, a todo custo, ficar na
obscuridade, e ainda de que era urgente voltar a fechar aquela pesada porta antes que
a neve, que se amontoava, tornasse a operação impossível, Angélica arrastou-se mais
uma vez para a abertura.
Reunindo suas forças, ergueu-se. Cada movimento lhe era custoso. Retirar a neve,
puxar a porta, empurrá-la, ajustá-la, colocar os ferrolhos, virar a fechadura, colocar a
tranca.
O silêncio voltou. Angélica, exausta, apoiou-se ao batente para não cair.
Seu esforço fora tão grande e tão desesperado, que a sensação de alegria e de triunfo
vivida ao descobrir aquela encomenda diante da porta se dissipara. Experimentava
apenas um sentimento morno de esgotamento, enquanto, lutando para não desfalecer,
se abandonava à cadência ofegante de sua respiração, que lhe passava como um fogo
através dos pulmões, da garganta, dos lábios ressecados, já insensíveis à mordida do
frio. A sala, que achara fria pouco antes, parecia-lhe agora sufocante. Acalmou-se,
ganhou vida.
Abatida por uma imensa fadiga, fechava os olhos, depois os abria. O saco
continuava ali no chão, aquele saco que encerrava sua salvação e a das crianças.
Na penumbra, achou a forma estranha. A luz fraca da tocha, projetando sua sombra,
conferia-lhe um comprimento desmedido.
Hesitante e apunhalada por uma suspeita súbita, aproximou-se e ajoelhou-se. A neve
derretida em volta da massa estendida revelava um casulo comprido de pele
grosseiramente curtida, fechada quase inteiramene de uma ponta a outra por uma tira
de couro trançado.
Mas uma das extremidades"êstava solta, entreabrindo-se ligeiramente. Angélica,
subitamente horrorizada, julgou vislumbrar naquela fresta o esboço de um rosto.
Aproximou a mão temerosamente, afastou aquele espécie de capuz.
A face de um homem apareceu-lhe enegrecida, aparentemente queimada, com
pálpebras cerõsas, pálidas e fechadas. Permaneceu petrificada, oprimida por um
decepção incomensurável.
Não era um saco contendo víveres que fora deposto à sua porta.
Era um cadáver.
CAPÍTULO XVI
Teria desejado dizer-se: é sangue. Mas não dizia, não pensava nada.
Sabia. Chegara o instante que devia chegar.
Teria podido dizer consigo: este crucifixo, seu crucifixo, é outro padre que o está
usando.
Mas seu entendimento recusava-lhe qualquer clemência. Não se enganava sobre a
inanidade de tal explicação falaciosa.
Sabia! Este crucifixo pertencia ao mártir que estava estirado ali, sem vida.
Este corpo era o delel
Este cadáver era ele!
Seu despertar a fazia flanrar, ainda indolor, entre o esquecimento dispensado pelo
sono e a apreensão latente por aquilo que a aguardava quando voltasse à^realidade.
Foi um momento de transição misericordioso. "Tudo está resolvido", disse consigo
com um alívio" infinito, "tudo está resolvido".
Seu corpo estava leve, mas repousado.
O pensamento das crianças arrancou-a de um estado de languidez semelhante a uma
suave embriaguez, que lhe retirava todas as forças. Levantandp-se, seu primeiro olhar
lúcido era para elas e, como a cada vez, seu coração baqueava com o receio de que a
morte as tivesse alcançado enquanto ela dormia.
Mas continuavam a dormir pacificamente. E pareceu-lhe ler naqueles rostinhos
emagrecidos um reflexo da beatitude que acabava de experimentar. Inquietava-se.
"Eles dormem demais. E preciso despertá-los."
Mas, ao acordar, reclamariam comida.
Apoiou-se à guarda da cama e se lembrou: "Não há mais nada para comer".
Lembrou-se. Quisera sair para tentar, custasse o que custasse, caçar. Emergindo
como que das profundezas de um oceano no-turno, fragmentos do que acontecera na
véspera se impuseram: ouvira uma batida na porta, havia um saco, e eram víveres.
Tropeçava no acre bafio da decepção que quase a matara. Não, não eram víveres.
Gemia alto. Não queria saber a continuação.
"Eu sonhei!"
Houvera um cadáver, e esse cadáver estava vivo.
"Eu sonhei."
Ela se tranquilizava: "Eu sonhei".
Reinava uma grande calma. Dentro e fora do forte, a tempestade amainara. A neve
estava acima das janelas, mas, por aquela ténue luz de alabastro, transpassada pela
flama de uma lamparina que invadia o aposento, ela adivinhava que o sol brilhava
num céu purificado.
"Será que sonhei?"
Ela olhava suas mãos esfoladas pelo gelo. Cada detalhe de sua luta insana contra a
neve, contra a porta, contra o peso do saco, vinha-lhe à memória e lhe deixava amarga
a boca.
Sua decepção, sua loucura, sua cólera contra Utakê, seus gritos, a goela negra da
noite abocanhando-a em suas presas, soltando uivos sinistros, quase devorando-a, o
silêncio tumular da grande sala quando ela conseguira reentrar e empurrar os pesados
batentes protetores. E aquele grande corpo negro no centro, estendido, inerte, sobre o
soalho.
O corpo ainda estaria lá, na sala ao lado? perguntou-se.
Esse pensamento lhe deu a noção, a um só tempo assustadora e insólita, de uma
outra presença partilhando aquele abrigo perdido.
E se realmente "ele" ainda estivesse lá?
"O que você fez?", pensou, aterrada.
"Na verdade, 'ele' estava morrendo e você o abandonou!" . Fraca e lúcida agora, não
podia explicar-se o que a impelira a fugir para apagar o horror daquilo que acabava de
surgir rompendo a monotonia já horrível dos dias que estava vivendo, a mergulhar no
misericordioso sono para esquecer.
"Que delírio dominou-me? Pensei que era... O Padre d'Orgeval... Por que essa
obsessão?"
Porque Ruth lhe havia dito: "Eles vão sair do túmulo!!!" Sentiu-se louca e culpada.
Estava agora certa de ter visto brilhar um rubi no crucifixo? Talvez fosse apenas
sangue, sangue, repetia. Não constatara que aquele homem estava coberto de
chagas?... Tinha perdido a cabeça!
"O que você fez?"
Com gestos lentos, levantava-se, alisava maquinalmente as roupas e jogava um
casaco aos ombros.
Na lareira, o fogo mantivera-se sob as cinzas e, uma vez reanimado, produziu chamas
alegres. Em contraste com o quarto bem aquecido, o corredor e a sala estavam gelados.
Seu alento flutuou imediatamente em vapor diante dela. Caminhou apoiando-se às
paredes, tremendo de ansiedade, incrédula aingV è alimentando uma secreta esperança
de que todos os vestígios daquele pesadelo tivessem desaparecido.
Mas ele continuava lá. Estátua jacente negra e imóvel, no meio da sala, ali no chão,
tal como o deixara na noite anterior.
Parada à soleira da porta, examinou-o de longe, tocada pelo terror e pela aversão.
Certas tribos primitivas fogem e descabanam se se comete a inabilidade de
introduzir em sua aldeia uma encomenda com aquela forma alongada de um cadáver.
Compreendia-os. O que não a deixava menos terrificada.
"O que você.fez? O infeliz estava moribundo. E agora ele está verdadeiramente
morto."
O pensamento de que o chefe dos mohawks montara aquela horrível mistificação a
fim de que ela pudesse se vingar de seu inimigo-acabando com ele e, talvez,
comendo-o, sacudiu-a num sobressalto salutar de nojo e de cólera.
"Você não me conhece, Utakê! Não compreendeu quem eu sou!...
"Mesmo assim, ele ganhou, aquele selvagem!"
Com as entranhas retorcidas, ela fugira.
"O que foi que eu fiz? Mesmo que fosse ele, o que é um absurdo, não tinha o direito
de deixá-lo morrer."
Movida por uma infinita piedade, por um infinito remorso, chegou-se suavemente e
ajoelhou-se junto ao corpo.
Inclinada, afastava tom as duas mãos os pedaços de couro enrijecido do capuz e, tal
como nas criptas medievais se descobrem, no fundo das cogulas de pedra revolvidas,
os rostos em lágrimas daqueles "chorões" cujas estátuas velam junto aos túmulos dos
reis, ela encontrava ali, no vazio da sombra, aquela mesma face que, ela também
rígida, como mármore, entrevira na véspera. Uma face enegrecida pela barba hirsuta e
sangrenta, as cicatrizes e queimaduras. Pensava: "Perdoe-me. Perdoe-me!..."
Era um homem branco, um padre missionário católico, um francês, um jesuíta, e ela
não compreendia que espécie de medo ou rancor a agitara ao vê-lo, impelindo-a a
fugir. Era um homem branco, um cristão, um mártir, um moribundo, um irmão.
E não deveria ter feito aquilo.
— Perdoe-me, meu padre. Eu pequei. Perdoe-me, pobre homem!
As lágrimas a cegavam.
Fustigou-se. Não adiantava mais nada chorar. O que ia fazer, agora que ele estava
morto? E por sua culpa!
Seu olhar desceu até o crucifixo. O rubi ali estava e cintilava. O rubi!
Com os olhos pousados na face martirizada, perscrutando os traços informes e
desconhecidos, ela se interrogava.
Quem poderia ser esse jesuíta? E por que trazia ao pescoço o crucifixo do Padre
d'Orgeval?
Um arrepio tomou conta dela. Acabava de discernir um leve vapor flutuando acima
do rosto imóvel. Então ainda estava vivo? Inimaginável!
Febrilmente, procurou nos bolsos, encontrou seu espelhinho e passou-o diante dos
lábios rígidos.
A mão lhe tremia, a vista se lhe embaralhava, mas não pôde negar o vestígio do
hálito que aflorava.
— Está vivo!
Instantaneamente reencontrou força e coragem.
"Vou cuidar dele! Tenho de salvá-lo!"
Apressou-se, impelida por uma febre de resgate, um sentimento de urgência. Se
conseguisse arrancar aquele homem à morte, dizia consigo, eles todos estariam
salvos.
Era o sinal. O sinal da Redenção, o sinal do Céu sobre a Terra.
O sinal de que sobre eles velava uma força mais justa e misericordiosa que a dos
homens.
Dirigiu-se ao outro cómodo para atiçar o fogo sob panelas cheias de água.
As crianças continuavam a dormir.
Voltou com um cântaro de bebida tépida, o cofre de remédios, os instrumentos de
cirurgia, faixas de bandagem.
Juntara à bebida que queria fazê-lo engolir uma boa dose de álcool. Aquilo acabaria
com ele ou o ressuscitaria. Era um risco. Entretanto, sempre confiara na promessa
contida na denominação latina "aqua vitae", "água da vida".
Sob os lábios enegrecidos e ressecados, a mandíbula crispada fechara-se como um
estojo. Mas conseguiu filtrar, gota a gota, a bebida através das frestas entre os dentes,
que tinham se quebrado, caído ou apodrecido. Isso lhe tomou um tempo enorme, pois
receava ver transbordar da cavidade bucal o precioso líquido, mas um imperceptível
reflexo de deglutição deve ter-se produzido, pois a xícara ficou vazia e ela se
persuadiu de que, pelo menos, o remédio impregnara as papilas ressecadas e que ele
ia se insinuar lentamente e reanimar o corpo petrificado. Precisaria cuidar para que
não se reaquecesse depressa demais, pois sabia que somente o frio o mantivera vivo,
entorpecendo-o como ao animal que hiberna, evitando que as feridas se
deteriorassem.
Com sua "água" benfazeja, de cujo segredo era depositária, lavou-lhe o rosto,
untando as pálpebras grudadas pelo sangue e pelo pus com um bálsamo emoliente.
Seria preciso esperar para tratar das queimaduras do peito, pois retirar os pedaços de
tecido negro ali aderidos exigiria um trabalho de muita paciência.
Desistiu de arrancar o crucifixo de seu estojo de carne.
A JANGADA DE SOLIDÃO
CAPITULO XVII
Nos primeiros dias, vendo as crianças correrem pela casa com uma necessidade de
se expandir, de reencontrar agilidade e forças, concebeu o projeto de -levá-los para
fora a fim de tomar ar.
O sol brilhava. Podia-se percebê-lo através dôs interstícios das janelas e das
ombreiras que ela tapara cuidadosamente contra o frio de todas as maneiras possíveis.
Mas ao adivinhá-lo, acima daquele buraco esfumaçado, foi tomada por uma
necessidade de sentir-lhe a carícia. O sol tinha virtudes terapêuticas divinas. Mais de
uma vez constatara a cura de feridas ulcerosas, eczema, dar-tros, pela exposição aos
raios solares. Um pouco de sua carícia e as crianças lânguidas recuperavam o apetite,
o vigor. Joffrey contara-lhe de que modo sua mãe, em sua infância, ao recebê-lo
ferido, machucado, das mãos do aldeão das Cévennes, que o levara do massacre no
qual perecera sua ama-de-leite, o instalara no terraço do palácio de Toulouse, onde ele
permanecera durante anos, exposto aos raios do deus Febo, recuperando sua saúde.
Içou-os pelo alçapão à pequena plataforma que servia de telhado acima de seu
antigo quarto e reuniu-se a eles; eles ficaram ali, vacilantes, numa luz dourada pálida,
cruel, petrificante, que lhes feria os olhos enfraquecidos pela penumbra, as pálpebras
irritadas e avermelhadas pela fumaça, numa atmosfera confinada.
Cobertos como estavam, mostrando apenas a ponta do nariz, o frio oprimiu-os,
fazendo-os cair como os passarinhos nos galhos nas florestas. Quando Carlos
Henrique quis falar, uma lufada de ar secou-lhe as palavras no fundo da garganta, e
ele permaneceu de boca aberta, incapaz de tornar a fechá-la.
Angélica apressou-se a fazê-los descer para dentro, fechou o alçapão da plataforma,
a do falso celeiro acima, e refugiou-se no quarto único. Voltou para acender um bom
fogo na lareira da sala principal e ferver um grande caldeirão de água. Enfiou as
crianças tal como estavam na cama grande, ao lado do moribundo. Fê-las engolir uma
bebida quente com uma grande colher de mel — aquele mel, mais precioso que o
ouro, que encontrara também entre as vitualhas enviadas, exsudando em seu cestinho
de casca —, transportou para o quarto seus caldeirões de água fervente, encheu uma
tina de madeira e, quando o banho ficou pronto, desvestiu-os e mergulhou os três,
carregando-os rígidos e pálidos como se, mais ainda do que o frio, a paisagem de fim
de mundo que haviam entrevisto, ao mesmo tempo lívida e de um azul pálido
translúcido, houvesse tido o dom de petrificá-los.
Readquiriram logo as cores e se animaram, tagarelando com loquacidade. De pé na
tina, excitaram-se, com os olhos brilhantes. Os gémeos contavam uma história com
grandes gestos descritivos que faziam respingar a água, ambos exagerando os
detalhes.
Angélica só podia compreender algumas palavras" de seu pequeno jargão, que
repetiam a todo momento: navio, pássaro, não deve! não deve!
— Mas o que estão dizendo? — informou-se com Carlos Henrique, para quem essa
linguagem não era Jiermética e que seguia sua exposição aprovando com a cabeça.
— Estão dizendo que as águas ainda não se retiraram e que não se deve soltar a
pomba! Sabe, mãe, como na Arca de Noé!... Contei-lhes que estamos na Arca de Noé.
Eles gostam muito disso. Mas dizem que ainda não se deve enviar a pomba para fora.
Faz frio demais... Oh! mamãe, é verdade. Ela não teria onde pousar. Não poderia
voar. Olhe como agitam os braços e depois param para mostrar que ela não poderia
voar.
— Pluf. — fez Raimundo Rogério, deixando-se cair na tina em meio aos salpicos,
imitado imediatamente pela irmã.
— Veja, dizem que ela cairia, pluf, como uma pedra... Carlos Henrique voltou-se
para a cama e gritou:
— Não é, morto, que não se pode ainda enviar a pomba?...
— Com quem estás falando?
— Com o "morto"... Falo frequentemente com ele enquanto você está preparando a
comida ou quando vai buscar lenha no depósito.
— E ele responde?
— Não. Mas ouve tudo.
Mas essas objurgações piedosas não produziam nenhum efeito. E ele parecia às vezes
mais morto do que quando o descobrira em sua mortalha de couro.
Entretanto as feridas do rosto se cicatrizavam.
Ela notara, da primeira vez em que as tratara, que não eram queimaduras, mas chagas
estranhas, causadas aparentemente por instrumentos pontudos ou garras. Esses buracos
estavam infectados e envenenados à volta toda. Depois de alguns dias, o inchaço cedera
e formaram-se cascas, dando ao doente um aspecto deplorável. Mas, quando as crostas
caíram, os traços das feridas começaram a se apagar. A carne tornava-se sadia, embora
lívida. As bochechas se encheram, a imensa fronte, sobre a qual caíam mechas de
cabelos com reflexos castanho-dourados, se desanuviou, e ela viu esboçarem-se traços de
um rosto que não era destituído de beleza, uma beleza viril e regular. "A beleza de Cristo",
suspiravam alguns penitentes um pouco exaltados, ao evocar seu confessor, o Padre
d'Orgeval.
CAPITULO XVIII
Ele não parou durante toda a noite de indicar-lhe as etapas do trabalho. Ela acendera
um fogo bem alto na outra sala, dispondo ali todos os seus caldeirões, pratos,
escudelas. E vinha perguntar-lhe, descabelada e com as mãos ensanguentadas:
— E agora?
Ele dizia:
— Pegue uma serra, um machado, um cutelo. Serre, corte, raspe,
triture!...
O que a surpreendeu muito foi descobrir que não se tratava de uma fêmea, mas de
um macho.
— Como se explica que não seja uma fêmea?
— Porque é um macho — retrucou ele, sempre com aquela careta que ela julgava
ser um sorriso zombeteiro.
Ele era exasperante, não tinha qualquer consideração pelo estado de fadiga no qual
ela se encontrava e que a tornava meio atoleimada.
— Um filhote o acompanhava.
— Não era um filhote, mas um alce provavelmente novo, magro e de menor
tamanho que o ancestral.
Ele lhe dava instruções precisas para retirar o coração, um prato especial.
— Ele não tem coração — lançou-lhe ela. — A bala estourou-o.
— Você queria visar o coração?
— Sim.
— Só uma bala?...
— Sim.
— A que distância?
— Ao alcance de um tiro.
Foi o balbucio das crianças que a despertou. Dormira tão bem que não compreendia
muito bem onde estava. Tinha sobre os ombros uma coberta de peles. Adormecera de
joelhos, com a testa apoiada à mão do morto.
— Quem colocou essa pele sobre mim? — perguntou a Carlos Henrique, que estava
de pé ao seu lado.
— Ele! — respondeu o menino, apontando para o homem deitado.
Não estava, portanto, morto. Essas ressurreições e desaparições tinham algo de
esgotante.
Acabava de se perguntar .se não fora visitada por um "verdadeiro" morto que, por
instantes, parecia morto e em outros voltava a habitar-lhe o corpo. '
A mão cerúlea era bem a mão de um morto. Examinou-a. Era uma mão fina e longa
que permanecia aristocrática, apesar da deformação dos dedos cortados e das unhas
arrancadas. Acariciou-a várias vezes. A mão permanecia gélida. Não se reaquecera
nem ao calor de sua fronte.
— Por que você chorava? — perguntou uma voz.
— Quando?
— Antes de adormecer.
— Porque julguei que você havia morrido. Respondia àquela voz como à de um
fantasma..
Mas sentiu estremecer a mão que segurava entre as suas, e ele exclamou:
— Você lamentaria então minha morte!? meu fim? Eu, seu pior
inimigo?...
Ela continuava, sem o perceber, com a face apoiada,à sua mão, espreitando-lhe o
estremecimento.
"Que força existe nele!", pensou rememorando aquele instante em que ele dissera:
"Aproxime-se! Venha! Venha mais para perto!" E em que a pegara com mãos que
pareciam garras e, à força, apoiara a cabeça dela contra seu ombro comunicando-lhe sua
força, ele, um moribundo, a força para se levantar, sair e matar o alce.
Ficou muito tempo apoiada, de joelhos, como quando dormira aquele sono reparador,
e depois, levantando a cabeça, sorriu. Teve a impressão de que os lábios lhe devolviam o
sorriso. Uma trégua seria possível.
CAPÍTULO XIX
Ela reconhecera ser ele Sebastião D'Orgeval, declarado morto havia dois anos,
martirizado pelos iroqueses. Convencer-se disso iria exigir-lhe mais tempo. O passado
edificara situações e imagens e tudo isso se esboroava diante da realidade,
recompondo-se depois com brutalidade. O Padre d'Orgeval estava morto, e aquele que
ali estava era um impostor. Ser-lhe-ia preciso esperar para obter resposta às perguntas
que colocava a si mesma. Uma febre muito alta apoderara-se do doente, e,
examinando-lhe as pernas no dia seguinte pela manhã, Angélica notava que uma delas
estava mais inchada, com a pele esticada. O receio da terrível gangrena invadiu-a.
Quando uma coisa como aquela começava, só havia duas saídas: a morte ou a ablação
do membro atingido.
"Não! Não! Isso eu não poderia fazer."
Tinha cortado uma alce inteiro, mas ter de serrar uma perna de um ser vivo, não, não
poderia! Readquiriu sua força interior.
Ele tinha de viver. Eles também. Muitos sinais haviam sido dados. Obstinou-se em
prodigaJizar-lhe todos os remédios de que dispunha.
O espectro da gangrena se afastou. Mas a febre não baixava. Ele se agitava,
lamuriando-se e virando a cabeça da direita para a esquerda e repetindo: "Oh! que ela
se cale!...", e balbuciando o tempo todo frases indistintas, em iroquês.
Quando a febre baixou, .permaneceu prostrado, dando a Angélica novamente a
impressão de que um morto partilhava a moradia, ou pelo menos um ser enfraquecido,
o que lhe era mais difícil de suportar. Pois, agora que havia carne para muito tempo,
teria desejado rejubilar-se e distender-se.
Considerando que talvez fosse realmente o Padre d'Orgeval, o pensamento de que os
índios haviam levado o grande missionário a um tal grau de depauperamento, de
exaustão, mas também, por vezes, de embrutecimento, a atormentava.
A moléstia que o corroía ia além de seus males físicos. Essa força que alguns
momentos irrompia nâo parecia pertencer ao mesmo indivíduo que, abandonando-se
às visões de seu delírio ou do torpor, parecia estar se deixando deslizar para a morte
por covardia.
Teria desejado apagar os vestígios das sevícias que sofrera, fazê-lo voltar ao que era
antes, o grande, o intratável, o intolerante Padre d'Orgeval, que conduzia suas tropas
ao combate brandindo sua bandeira bordada, que se prostrava em preces ao pé do
altar, que odiava a Mulher porque só conhecera mulheres infames e as combatia como
a encarnação do Mal, mas também que sofria as traições de seus amigos, aqueles que
diziam ter o dom da ubiquidade, confessando na Acádia, nos grandes Lagos, em
Quebec, que sabia tudo, articulava mil intrigas e fabricava velas verdes perfumadas
com a cera dos frutos da flor-de-cera.
Certa manhã, enquanto escovava os cabelos das crianças contando-lhes uma
história, sentiu que ele "a observava de maneira consciente, e, voltando-se em sua
direção, viu naquele olhar, novamente lúcido, uma expressão sorrateira.
Esboçava uma espécie de careta zombeteira, que ela julgou vulgar, cuja significação
não poderia precisar, mas que lhe despertou novamente as dúvidas. Aquele que jazia
ali era um impostor, algum explorador de bosques, desocupado, excomungado, bêba-
do, que para evadir-se pegara o crucifixo, a sotaina do falecido Padre d'Orgeval.
Fixava-a com aquele sorriso sardónico, desdentado, o que lhe pareceu muito
desagradável. Não pôde impedir-se de lançar-lhe:
—Quem é você?
A essa pergunta abrupta, ele mudou de expressão e pareceu inquieto.
—Já lhe disse! Sou Sebastião d'Orgeval, da Companhia de Jesus.
E seu olhar vacilou, em virtude de uma tendência a envesgar que se seguira à febre
alta.
_ Não! Não é o Padre d'Orgeval. Ele era um ser de elite. Você!— Você é
desprezível. Roubou seu crucifixo, sua identidade, tudo... Não é ele... Sinto-o.
Aproximou-se do leito, espreitando aquela face estranha, de expressão ambígua e
subitamente angustiada.
— Quem é você? — repetiu. — Não é o jesuíta santo e mártir. Vou desmascará-lo.
Puxou um escabelo e sentou-se à sua cabeceira, sem desviar-lhe os olhos. Estava
decidida a preparar-lhe uma armadilha para confundi-lo.
— Fale-me de sua irmã de leite — disse ela, num tom de conversa.
Ele pareceu perturbado como uma criança com medo de não encontrar a resposta
correta. Ela insistiu.
— Sim, sua irmã de leite... seu nome começa com A, como o da Diaba... Como
poderia esquecer essa criatura do Diabo, Ambrosina?
Sua pele terrosa empalideceu. Seu: olhar turvou-se e ele virou a cabeça. Depois
respondeu, hesitante:
— Não... não era minha irmã de leite... mas... de Zalil.
Depois recomeçou a sorrir com a brusca ironia, continuando, após um breve silêncio:
— Entretanto, a mãe de Zalil foi também minha ama-de-leite antes dele. O filho
mais velho de Zalil, que ela amamentava ao mesmo tempo que a mim, meu
verdadeiro irmão de leite, tinha um pé aleijado... Colocado ao,séu lado, pelo que me
lembro, ele queria matar-me. Disseram-me que fui eu que acabei por estrangulá-lo em
nosso berço comum.
Angélica estremeceu, lembrando-se das palavras que Ambro-sina gostava de repetir
com exaltação e nostalgia: "Éramos três crianças malditas, lá longe, nas montanhas do
Dauphiné".
Falava de bom grado sobre sua infância. Ela o encorajava. Essa infância parecia
familiar a Angélica, provavelmente por causa das histórias e da pessoa de Ambrosina,
que os aproximava pelo conhecimento íntimo e sem ilusões que cada um deles tinha
acerca daquela criatura.
Infância soturna, dominada pela noite e pelos massacres, ao lado de seu temível pai,
que lhe colocara, ainda muito jovem, um espadeirão nas mãos, abençoado pelo
capelão do castelo, para ir massacrar os hereges das regiões vizinhas.
Nascera pois entre mulheres demoníacas, cada uma delas submissa, de diferentes
formas, ao Maligno.
— Eram todas Liliths, a mulher primeira do pecado, o princípio feminino do Mal.
Desde muito jovem, Ambrosina, encantadora como um anjinho, esmerava-se em
todos os vícios, em especial no da mentira e crueldade.
— E foi esse paradigma de vícios que você nos enviou para alcançar seus objetivos
de abater seus rivais, da baía Francesa!...
D'Orgeval deu um sorriso zombeteiro.
— Um magnífico combate para duas belas mulheres!... Ela não pensava que você
lhe devolveria suas armas: astúcia e impertinência. Você triunfou!
— Não inteiramente, ai de mim! Pois ela tampouco estava morta. Ela voltou para
concluir sua obra.
Mas quando começou a explicar-lhe com veemência o desenrolar dos últimos
acontecimentos, ele demonstrou indiferença. Não parecia convencido de que se
tratasse da mesma Ambrosina, tão perigosa.
Seu espírito parecia detido diante dos primeiros episódios de sua luta. O que
acontecera depois que fora para as tribos iroque-sas não lhe interessava.
Como ele evocasse Loménie, que fora seu amigo dos tempos de colégio, ela se
informou sobre os acontecimentos que o tinham levado daquele rude Dauphiné ao
convívio dos jesuítas, no início da adolescência. Ele falou a esse respeito de boa
vontade.
— Eu tinha um tio, irmão de meu pai, bispo ou cónego, não sei mais, tão feroz em
descarregar a férula da Igreja sobre suas ovelhas quanto meu pai com sua espada
sobre os hereges. Ele pôs na cabeça que eu devia entrar para as ordens, e meu pai
tentou inutilmente demonstrar-lhe que eu era seu único herdeiro, sem conseguir
demovê-lo. Ignoro se, como filho caçula, o eclesiástico queria ficar com uma parte da
herança. Os dois enormes indivíduos lutaram durante dois dias, tanto pelas armas dos
argumentos como por ameaças e alguns socos. Foi minha intervenção que decidiu a
partida em favor do bispo. Consciente, pela graça de Deus, de que tudo o que eu vivia
no domínio paterno não era sadio e acabaria por causar minha perda moral e física,
insisti junto a meu tio em acompanhá-lo. Foi assim que entrei para o Colégio de
Clermont dos Jesuítas em Paris.
Naquele dia ele se recusou a dizer qualquer outra coisa. Quando fingia não se
lembrar ou estar confuso, ela sabia que nele isso era sinal de uma dor insuportável,
que não conseguia superar com palavras sem desmaiar. Recomendava-lhe então que
tivesse pa ciência, reconduzia-o a questões anódinas, a assuntos menos penosos.
Mas nada em sua vida fora anódino, parecia-lhe.
CAPÍTULO XX
Ele gemeu.
Seu peito erguia-se de maneira espasmódica. Ela se levantou e foi encher uma tigela
com uma bebida quente. Depois, voltando à sua cabeceira, deslizou-lhe o braço sob os
ombros, amparando-o enquanto ele bebia.
— Fale agora, se quiser. Que você queria esconder?
— O que me aconteceu.
— Mas afinal o quê?
— Como vou sabê-lo... A descoberta de paixões desconhecidas? Você não pode
compreender. Um dia eu lhe explicarei tudo... melhor... Como explicar o sentimento
que se apoderou de mim? Mais do que um sentimento, ele exigia que eu abandonasse
tudo, como o jovem rico do Evangelho, que eu me apresentasse diante de vocês,
estrangeiros jurados de destruição, e que reconhecesse: "Sou um dos seus".
"Pior: agindo dessa maneira, entreguei-me, aproximando-me de seu objeto, às penas
de uma paixão que só poderia ser corrosiva e mortal, pois era assim que eu sempre
considerara os transportes do amor, mas que .permanecia, adivinhava-o
antecipadamente, insaciável, fazendo de mim um danado que queimava de um fogo
cujo domínio jamais eu suspeitara.
"Quantas confissões tinham me descrito os mesmos sintomas irresistíveis, e que
deviam ser evitados e combatidos, pois abrem-nos um paraíso, em que se é o único a
penetrar, através de delícias e sofrimentos, que somos os únicos a viver, a dar, e dos
quais, subitamente, me sentia presa.
"Caí fulminado como por um raio. A palavra é fraca. Encontrei-me só. Único em
minha espécie, num mundo povoado de inimigos. O Amor!... Eu compreendia, o
Amor."
— Valia a pena fazer disso um drama tão grande? — disse ela, prudentemente.
— Sim! Pois era a negação de toda a minha vida e, por isso mesmo, minha
condenação.
"Encontrei-me nu, sem sequer a fé num deus qualquer ao qual pudesse oferecer o
sacrifício de minha metamorfose. Devia obedecer à iluminação?
"Não pude fazê-lo. Isso exigia demais de mim. Decidi prosseguir meu caminho na
direção escolhida. Mas, a partir daquele dia, tudo foi destruído. E tudo não passou de
uma lenta e convulsiva queda de todo o meu ser até o fim.
"Contra você e os seus, tentei todos os meus planos. Mandei buscar na França a
súmula do processo de feitiçaria movido outrora contra seu marido..Mas sua vitória
em Quebec suplantou-me em rapidez, e não mesurpreendeu. Eu estava vencido de an-
temão, como, no fundo, sempre estivera. Quando vocês se aproximaram de Quebec,
Maubeuge me exilou."
Deteve-se, depois lançou, num súbito acesso de cólera:
— Sem sua intervenção, eu teria retomado a cidade, e vocês não a teriam
conquistado.
Continuou, num outro tom de voz:
— Maubeuge, meu superior, me exilou. Não sem antes fustigar-me com palavras
duras. Entretanto, o que ele me disse, naquele último encontro, eu já sabia. Eu o
soubera, num clarão, à beira de um lago.
"Meus votos de obediência me obrigavam a me afastar, no momento em que me
sentia mais desprovido... Fui para muito longe, sozinho e sem amigos.
"Perdi meus poderes. "
"Sentia no fundo de mim a covardia, a fraqueza invadindo-me, e o medo de ser
despojado daquilo que constituía minha força dominadora sobre os outros me
atormentava."
Falou pouco dos meses passados nos povoados de um largo setor entre o lago
Frontenac ou Ontário e o lago Huron. O ponto de ligação dos missionários era esse
estabelecimento do Forte Sainte,-Marie, reconstruído no estreito que ligava o lago
Huron ao lago Superior ou Tracy.
Situava-se a meses de navegação do último ponto da Nova França habitado, o
povoado de Lachine, perto de Montreal, de onde partiam, para lá das corredeiras,
todas as expedições para o alto Saint-Laurent e os Grandes Lagos. Fora os homens de
guarnição dos fortes, como do Forte Frontenac, isolados, raros e a semanas de marcha
uns dos outros, e à exceção da passagem de alguns "viajantes" ou exploradores de
bosques, mais ou menos desprovidos de licença, selvagens, nada mais que selvagens.
As missões agrupavam os índios batizados e os catecúmenos de nações iroquesas,
mais ou menos dispersas e aniquiladas pelas guerras com seus congéneres pagãos: os
neutros, os do Erie, os andastes, e também iroqueses das Cinco Nações, convertidos,
perseguidos e expulsos de suas tribos por esse fato. Eles deixavam o vale dos Cinco
Lagos para vir se reunir à sombra dos franceses e dos jesuítas, não somente a fim de
poder praticar sua nova fé, mas também para receber proteção dos militares franceses.
Segundo o que dava a entender, o jesuíta, banido e relegado, parecia ter atravessado
aqueles anos, que se apresentavam como anos ativos de apostolado, num estado de
transes nervosos, cuidadosamente dissimulados aos olhos de seus irmãos de religião,
os outros jesuítas, e de seus ajudantes e servidores franceses. Procurava evitar os
exploradores de bosques e os comerciantes canadenses, recusando-se a tomar
conhecimento de fosse o que fosse que acontecesse no Canadá ou na Acádia. Daí o
rumor que se espalhara prematuramente nas cidades, censos e senhorias da Nova
França, de que estava prisioneiro dos iroqueses, pois nenhuma notícia chegava jamais
sobre ele. E, ademais, não recebeu nenhuma notícia de quem quer que fosse. Ninguém
procurou se informar sobre o lugar em que se encontrava nem fazer chegar-lhe às
mãos qualquer mensagem.
— De fato, compreendi que ninguém se preocupava comigo — disse com um
muxoxo de amargura. — Nem com o que podia acontecer-me, nem com a
importância dos trabalhos aos quais eu dedicava meus dias. O Sr. e a Sra. de Peyrac
estavam em Que-bec, e todos procuravam voltar-se para os vencedores, ávidos em se
beneficiar com o encontro.
"Queriam esquecer-me. Eu desaparecera. E era mais simples dizer que eu era cativo
dos iroqueses.
"Ora, cativo eu fui. Mas apenas depois de minha 'morte', essa morte que, como você
disse, foi inicialmente anunciada na Nova Inglaterra, antes de o ser na Nova França."
CAPÍTULO XXI
CAPITULO XXII
À cabeceira do supliciado
Quando ele se calou, aniquilado, com as pálpebras fechadas, Angélica ficou durante
muito tempo sentada à sua cabeceira. Os termos da confissão que acabara de fazer-
lhe, e tudo o que implicavam, e esclareciam em seu espírito.
— Agora compreendo. Era esse, portanto, o terrível segredo
que o jovem Emanuel queria confiar-me no jardim.
Ela falara a meia-voz, para si mesma. Ela abriu bruscamente os olhos.
— O jovem Emanuel? Os iroqueses não o imolaram?
— Não, nós o vimos vivo. Ele acompanhava o Padre de Marville quando este,
escoldado por Tahutaguete, o chefe dos onon-dagas, chegou a Salem para levar a
notícia dè sua "morte" e... de seu martírio.
— Por que Utakê quis que os ingleses fossem os primeiros a saber?
— Não era "os ingleses primeiro", mas nós. Ora, Utakê sabia que estávamos na
Nova Inglaterra, meu esposo e eu, e queria que fôssemos avisados antes do franceses.
— "Inimigos mais terríveis do que eu sou para você..." — murmurou, como se
recitasse uma frase que lhe martelava a memória. — Assim, enviou primeiro a você, a
quem eu havia combatido tanto, esse colar que dizia: "Seu inimigo não pode mais
prejudicá-la". Oh! Como ele tinha razão!
"Haveria criatura mais desprezível e mais despojada de todas as possibilidades de
prejudicá-la que eu?! Mas eu compreendo a que imperativo obedeceu Marville,
testemunha de meu renegamento, declarando-me morto. Era preciso salvar a honra da
ordem!"
"E certamente não poupou esforço para isso, deve-se fazer-lhe justiça", pensou
Angélica, rememorando o luxo de detalhes com que o jesuíta lhes descrevera em
Salem a "morte gloriosa" do Padre d'Orgeval.
Sua intuição era portanto correta. Em toda aquela cena não deixara de supor o tempo
todo uma mentira oculta. Através da personalidade orgulhosa do Padre de Marville,
sentira vibrar um sofrimento de esfolado vivo, um sofrimento verdadeiro, feito de
humilhação, de decepção, de pavor e de pesar. Podia-se adivinhar o que sentira aquele
jesuíta convicto diante da ruína do mestre, da covardia do maior e do melhor dentre
deles, a seus olhos. A ordem dos jesuítas tinha sido marcada com a mais horrível das
máculas: a abjuração.
— Que seu irmão em religião o tenha feito passar por morto, por não ter outra
solução para ocultar sua vergonha, eu admito — disse ela. — Mas que tenha
aproveitado a oportunidade para invocar sobre nós a maldição do céu e nos tornar
responsáveis-por seu suplício, isso era levar a hipocrisia muito longe. O que há de
verdadeiro nessa acusação que, ao que parece, teria proferido em seu suplício: "É ela!
É por sua culpa que morro!"?
— Tudo isso é verdadeiro. Sim, eu proferi, gritei, com todas as minhas forças essas
palavras. No momento em que o chefe Utakê baixava sua mão e, por desprezo,
concedia-me perdão, subsistia em mim a vontade de clamar minha justificativa, de dar
àqueles que eu escandalizava pelo menos uma explicação que ate-
uasse o alcance de meu ato... fazê-los acreditar, por exemplo, que eu tinha sido
vítima dos maus espíritos, e só me aparecia ""esse caos, como lhe disse, o objeto
responsável por minha ruí-a, a mulher cuja visão me arrastara por um processo que eu
não odia nem analisar, nem admitir, numa loucura fatalmente con-ária a tudo o que
era o caminho reto de minha vida até então, ponto de me persuadir de estar certo, ao
denunciar os sortilégios e gritar-lhes: "E ela! E ela que me condena, é a ela, áDama do
Lago de Prata, que devo minha p^rda, que devo minha morte..."
Deu um soluço profundo, semelhante a um estertor.
— Eu falava de minha morte, que eu sentia desabar sobre mim. A verdadeira morte,
a morte total, a morte de mim mesmo... A morte do herói que eu havia sido... que eu
quisera ser?., que sonhara ser. Minha morte total... Eu não existia mais... E fora ela
que me matara. Ela, a Mulher, minha inimiga de sempre.
"Eu o sei... Era uma ideia louca, monstruosa, acusá-la, a você especialmente, mas
minha obsessão nutrira-se de tantas aberrações, durante anos de mutismo e de solidão,
que eu conseguira persuadir-me de meu enfeitiçamento.
"Eu gritava: 'É ela, a Dama do Lago de Prata é a causa de minha morte... Vinguem-
me!... Vinguem-me!...'
"Vi suas faces lívidas e rígidas. Soube que... eu gritava em vão. Eles não me
vingariam. Eles não me vingariam como eu merecia ser vingado... Eles não eram
meus amigos!... Tinham dormido durante minha agonia! Horrorizados com minha
abjuração, eles me rejeitavam... Nada subsistia dos sentimentos de afeição, de devo-
tamente, de respeito que eu acreditava que tivessem por mim. Soube que nunca me
tinham amado. Eu não era mais nada para eles."
Ele se agitava, e Angélica, receando que fosse acometido por um novo acesso de
febre, não deu atenção ,a suas palavras, avisando-o de que estava na hora de seus
"ágapes" cotidianos.
Levantou-se para ir preparar e aquecer as rações, enquanto ele continuava a falar.
— É verdade. Humilhado como estava diante de minha ruína, eu gritava que era
preciso destruir aquela feiticeira. Pelo menos foi como indiquei a Marville, em sua
perplexidade, o caminho a seguir para prosseguir minha luta.
"Enquanto Tahutaguete o conduzia para a costa, deve ter re-moído sua amargura.
Havia recebido um abalo interior mais violento que o da tortura, e sendo seus recursos
de transmutação mística limitados, deve ter-se apegado a esse pensamento de com-
bater inimigos.
"Para não ser por sua vez destruído, precisava construir uma versão. Está bem! Está
bem! Ele agiu corretamente."
Angélica escutava-o, intrigada.
— Palavra de honra, parece até que você o aprova!... Pois bem! Agora vejo que não
é lenda quando dizem que os jesuítas sempre se apoiam, em qualquer circunstância.
Mas não era o momento de recomeçar o debate.
Fez as crianças se levantarem. Tomava-as nos braços e ninava-as, uma após outra,
para despertá-las suavemente. Beijava-lhe as bochechas frescas, os cabelos
embaraçados e sedosos, adorava sua fragilidade e sua inocência, a luz de seus olhos e
de seus sorrisos, seus pequenos corpos harmoniosos e perfeitos, em que a vida e o
vigor fremiam novamente. "Vocês são a consolação do mundo! São o tesouro de
minha vida!", murmurava, baixinho. "São a justificativa de nossas lutas ferozes, de
nossos combates imbecis!..."
Dava a cada uma um pouco de carinho, cantarolando-lhes um versinho, como um
segredo ao seu ouvido, enquanto passeava de lá para cá, e depois as fazia sentar-se
num banco diante dela, derramava sopa numa escudela e distribuía o alimento em
suas boquinhas abertas como as de passarinhos.
Era um ritual imutável.
Olhando para os gémeos, seus dois anos e meio completos e solidamente postados
em seu lugar nesta terra, evocou-lhes a primeira cólera, quando as duas "coisinhas",
que acabara de pôr no mundo em Salem, haviam desaprovado em altos brados a in-
tervenção do Padre de Marville.
Teria sido o rumor de vozes desagradáveis ou o fato de se verem subitamente postas
de lado por pessoas habitualmente atentas e subitamente transformadas como galinhas
no galinheiro pela aparição de um jesuíta no seio da puritana Salem, ou a obscura
intuição daquilo que se declarava hostil à sua família, sua mes-nie, sua casa, sua
criadagem e tripulantes?...
"Vocês já faziam parte da tribo, meus pequenos Peyrac!..."
Ou simplesmente as amas-de-leite nervosas e curiosas tinham esquecido a hora da
mamada?...
Angélica, a parturiente, em seu roupão caseiro, estava sentada nos degraus da escada
de Mrs. Cranmer, cercada por todas as mulheres inglesas e heréticas da casa, e
embaixo, o Padre de Marville, como profeta vingador, com o rosto encovado pelas
privações, a sotaina esfarrapada, apontava-a e gritava: "E ela que é a causa dessa
morte".
Explodira então o vigoroso concerto gemelar e contestador daquelas criaturas que,
juntas, não pesavam seis libras. E o espetáculo se encerrara.
Ria sem querer daquela lembrança, mas, apesar de vontade de descrevê-la a seu
hóspede, conteve-se. Não era hora para amenidades.
Depois de alimentar seus filhotes, deu-lhes um pauzinho de ju-juba para enganar-
lhes a fome, caso não estivessem saciados.. Então, pôs a esquentar o caldeirão cheio
de água para as abluções e arrastou o escabelo para o outro lado da cama, à cabeceira
do ferido. Ajudou-o a recostar-se nos travesseiros a fim de poder alimentá-lo mais
comodamente, sentou-se com a tigela na mão e começou a fazê-lo engolir caldo em
pequenas colheradas. Não sabia nunca se conseguiria fazê-lo comer sem dificuldades.
Seja por apatia, seja por desejo de economizar provisões, ele demonstrava uma
verdadeira repugnância em relação à comida. Sentia-se humilhado por estar entregue
à sua mercê, numa dependência infantil? Suas mãos, seus braços estavam muito
fracos para poder segurar a tigela e levar à boca a colher sem derrubá-las.
Naqueles momentos irritava-se menos com ele do que quando ele discorria com
uma súbita autoridade. Via nele um homem que superestimara os próprios talentos
para dominar o cavalo fogoso da vida, uma vida que ele pretendera superior; o
impetuoso e sorrateiro corcel do destino fizera-o perder as estribeiras. "Quando não se
está preparado, os fatos se encarregam de avisá-lo disso!"
Essa máxima dirigia-se também a si mesma, e julgando-o pela medida de suas
experiências e à luz das confidências que acabava de ouvir, pôs-se a considerá-lo
como um irmão, um irmão de combate.
— Folgo em saber que ele tenha sido poupado — murmurou ele. — Ele, o jovem
"dado" que tinha um nome tão belo... Emanuel... E que eu escandalizara tanto... Folgo
em saber que tenha escapado ao fogo... E que tenha conservado a vida... Ele saberá o
que fazer dela, para a glória de Deus e o benefício dos homens.
Vendo-o sereno e aceitando com docilidade o alimento que lhe oferecia, julgou o
momento inoportuno para revelar-lhe toda a verdade a propósito do pobre Emanuel,
que, infelizmente, também estava morto.
CAPITULO XXIII
Conversavam sobre temas que teriam feito arregalar-se de uma surpresa inquieta os
olhos de quem quer que não tivesse vivido na América, perguntas, resposta que só
podem ser trocadas por aqueles que falam, enfraquecidos, na penumbra de uma
invernada sem fim.
— Você teria me comido? — perguntou ele, certo dia em que ela lhe contava a
descoberta na soleira da porta e o desagrado por encontrar, em vez de víveres, um
cadáver.
— Talvez!... Não... Também pensei nisso. Foi um pensamento fugaz... Foi uma
vertigem causada pela fome, uma tentação... Eu estava exausta. Começava a
compreender que não tornaria a ver o homem que amo, que meus filhos estavam
morrendo... Não havia nenhum outro recurso... e tivera uma esperança tão grande...
Não, realmente. Se isso me passou pela cabeça, foi com horror... E depois... você
estava vivo! Não! Não! Utakê... Não sei o que ele quis... Será que o mandou para mim
para que acabasse com você, o comesse?... Não sei. Tudo isso é muito louco... Seria o
fim, o fim do mundo, o fim de nossos mundos... Não se deve pensar nisso...
— Pois bem! A mim eles comeram — disse — um pouquinho assim, em pequenos
pedaços que um guerreiro me retirava das omoplatas com uma faca bem afiada...
enquanto me levaram ao suplício.
— É por isso que você tem essas duas feridas nas costas?
Notara que não eram queimaduras, e que as feridas cicatrizadas, apesar de seus
cuidados deixavam profundos sulcos na pele.
— Sim!... Ele me comia, depois cuspia, dizendo: "Como sua carne é imunda!"
— Quando aconteceu isso? Em que suplício?
— No segundo"..; no terceiro, se quiser...
— Mas eu julgava que Utakê tinha decidido poupá-lo!
— Eu também acreditava que já estava resolvido. -Durante meses, eu me habituara,
me acostumara à minha escravidão. Era evidentemente moído de pancadas da manha
à noite, o que mantinha as forças de minha Tia, minha cara Tia Nenibush, que
descontava em mim seus nervos, e no fundo éramos bons amigos. Tínhamos
conversas interessantes. As mulheres índias não são nada tolas. Têm muito tutano.
Gostam de refletir sobre os destinos humanos, e o domínio dos sonhos abrem
múltiplos labirintos à sua imaginação. Eu recolhia e cortava lenha para ela, ia à
floresta buscar um animal que um parente dela lhe caçava. Ia, tropeçando nas raízes,
perdendo-me nas brenhas, acompanhando por zombarias das indiazinhas ágeis que
também iam buscar os produtos da caça dos pais ou esposos. Eu voltava muito depois
delas. Chamavam-me de Mulher Negra e riam de meu desajeitamento para encontrar
o caminho e penetrar na floresta, pois, você pode imaginar como, mais ainda que os
exploradores de bosques comerciantes, que são indianizados, nós, missionários,
embaraçaçdos com nossas sotainas, ganhamos os prémios do desajeitamento entre os
senhores selvagens. "Você é mais desajeitado que os yennglis", diziam-me.
"Creio que nem vi passar as estações. Nem as contei. Um outono? Dois outonos...
talvez três?... Depois foi aquela outra manha, em que foram me buscar novamente. O
inverno era atroz. As neves começavam cedo aquele ano. Eu estava tingindo peles,
que minha Tia e eu devíamos preparar para o parente caçador.
"Não compreendi quando vi diante de mim quatro guerreiros, entre os jovens
corajosos, que vinham procurar-me, encarregados de me levar à aldeia vizinha, aonde
o chefe dos mohawks, Utakê, acabara de chegar. Fui imediatamente invadido por uma
mortal inquietação, ao saber da chegada de meu pior inimigo.
"Já lhe disse. Eu acabara por me acalmar. Não temia mais nem as pancadas nem as
fadigas daquela existência, nem a monotonia daqueles trabalhos humilhantes. Não
receava nem desejava a morte, a menos que me fosse concedida por um golpe de
tomahawk. Minha única obsessão era o receio de perecer sob as dores do fogo.
"Estava pois nessa situação quando vieram naquela fria manhã em que estava
tingindo peles.
"Vieram e me disseram a fórmula consagrada e para mim aterradora: 'Meu irmão,
coragem! Chegou o momento de cantar seu canto de morte'.
"Segui-os, não apenas mudo, mas num estado de estupor e de abatimento que
bambeava tanto as pernas que tiveram de me segurar pelos braços. Eram pessoas
muito jovens, aterradas por meu comportamento. Foi entretanto nesse trajeto que um
deles começou a comer minhas costas.
"Quanto a Nenibush, foi ela que se encarregou de me cantar meu canto de morte
com o concerto que ofereceu com protestos e uivos, agarrando-se, furiosa, a meus
trapos para não me deixar ir.
"Foi apenas no meio do caminho que os guerreiros conseguiram li-vrar-se dela.
Ouço-a ainda gemendo e maldizendo, pobre mulher, à qual retiravam uma segunda vez
seu filho-prisioneiro-escravo. Seus gritos gravaram-se em minha memória e me
perseguem em meu sono."
— Ouvi quando você repetia: "Ah! que ela se cale! que ela se cale!"
— Sem dúvida, trata-se mesmo dela!... Ao chegar ao burgo, encontrei alguns
guerreiros em volta dos chefes das Cinco Nações, e à sua frente, como lhe disse,
Utakê, o mohawk. Fez-se um longo discurso.
"Ó Hatskon-Ontsi, aqui está você! Teria reencontrado a amizade de seu Deus e o
caminho de Sua Força?... Você que é o maior entre os maiores dos Togas Negras,
você nos feriu e insultou mais que ninguém. Nós, que nascemos no orgulho de nossa
morte, que nos rejubilamos desde muito cedo com a ideia da morte nas torturas, a fim
de provar a grandeza do homem, você nos humilhou em nossas crenças.'
"Eu ferira profundamente Utakê, sabia-o. Minha covardia e minha fuga tinham feito
deleita inimigo implacável; furioso por ter sido enganado, de uma maneira, a seu ver,
desonrosa, mas pouco me importava, as palavras,não me atingiram.
"Finalmente, calou-se. Depois, após um longo momento, disse: ' 'Vejo pelo seu rosto
que não se emendou e que não merece sofrer a prova dos bravos... Mas não se rejubile
tão depressa, pois nos o entregaremos às mulheres'.
'Elas então irromperam com gritos agudos, jorrando de cada uma das Casas
Compridas como uma torrente rolando as águas mortíferas. Como lhe descrever?
Também nesse ponto minhas lembranças são caóticas. Só Gonsigo rever claramente o
momento em que, seguro por mil punhos miúdos e com garras, lanharam-me o rosto
com a ponta de caniços cortantes. Depois duas delas avançaram e, quando ficaram
bem perto, vi que seguravam, com os punhos bem cerrados, pequenos roedores que se
debatiam, só com a cabeça de fora, exibindo uma boca de dentes afiados, que elas me
aplicaram aqui e ali, nas faces, na testa; eles começaram a morder e mordiscar,
enquanto as mulheres histéricas riam e repetiam que iam deixá-los atacar meus olhos.
"Pus-me a gritar de pavor, mais do que de dor.
"Deveria ter dominado aquele sentimento de repulsa, agora sei. E calar-me, pois
creio que, por uma nova razão, teria podido suportar a dor em silêncio. Mas era tarde
demais. Eu me desou-rava mais uma vez.
"Diante disso, os anciãos interviram e me retiraram das mãos das mulheres e das
crianças, arrastando-me para um canto até a sala do Conselho. Falavam entre eles e
me observavam com um ar sombrio e desanimado, como os médicos contemplados
um caso desesperador, cuja gravidade ultrapassa sua competência.
"Ouvi-os pronunciar palavras que tinham mais ou menos o seguinte sentido: 'É
preciso no entanto prepará-lo".
"Após deliberarem, levaram-me para outra aldeia, onde havia uma choupana
especial para pitar, isto é, reservada unicamente ao exercício de fumar.
"Era uma casa pequena, em que mal cabíamos, os anciões, os chefes, alguns de seus
'prestidigitadores' e eu. O cachimbo da paz começou a circular de boca em boca.
Quando chegou a mim, pediram-me que tirasse mais baforadas que os outros. Isso du-
rou muito tempo, e não ficaria surpreso se tivesse durado dois ou três dias. Ficamos
assim fumando sem beber, sem nenhum alimento. No início circulou uma cabaça, não
para beber mas para as necessidades naturais, unicamente para o líquido. Mas este
logo se tornou rarefeito. Estávamos vazios, inteiramente impregnados de fumaça. O ar
estava azul, denso. Os cantos salmodia-dos sustentavam o estado de idiotia.
"Senti náuseas. Meus pulmões queimavam. Depois desmaiei completamente,
aspirado por um fenómeno que me seria difícil descrever, pois apagou-se quase
inteiramente de minha memória. O que eu suponho é que, durante essa 'ausência',
encontrei minha alma. Não apenas o meu eu, mas, mais complicado que isso, os
diferentes amálgamas de minha alma, rostos, personagens de um tempo passado,
vidas antigas que sobrecarregavam meu eu, que tinham se insinuado no centro de meu
ser atual, submergindo-o, sufocando-o, paralisando-o com as gavinhas de uma vinha
inculta. Entidades embaraçosas e estéries, fora de seu direito, que é deixar a criatura
nova prosseguir livremente seu destino, desembaraçando-se pouco a pouco dessas
sombras. Durante essa 'viagem' talvez eu tenha conseguido expulsá-las.
"Revejo a cena. Os anciãos continuavam à minha volta, mais como médicos do que
como torturadores... Sim, a droga ajudou-me a voltar ao ponto de partida. A couraça
era tão dura, que era preciso ao menos isso! Ajudou a quebrar essa concha petrificada
ao redor do núcleo de meu ser. Nisso, muitas drogas são úteis quando a alma não
pode, por suas próprias forças, reencontrar o fio de seu destino porque o Maligno,
sempre ele, se divertiu em embaraçá-lo para perdê-la.
"Usadas eventualmente, elas salvam o espírito sem prejudicar o corpo... Os índios
das possessões espanholas têm um cogumelo que permite tais regenerações, ajudando
pelo menos a sobreviver sem enlouquecer tudo quando o que é humano se fecha..."
C A PIT U L O X X IV
Foi Sebastião d'Orgeval quem dessa vez voltou lentamente os olhos a fim de
observar aquele perfil de mulher ao seu lado, aureolado pela luz proveniente da
lareira, aquela boca fina e perfeita que pronunciava tais palavras.
— Compreendo agora como você pôde vencer Ambrosina. É isso o que ela não lhe
pode perdoar. Julgam-na uma mulher sensível, vulnerável. E subitamente você se
revela astuta, implacável.
— Se bem entendo, você quer dizer que eu não faço o jogo, não?... Não é a primeira
vez que me fazem essa censura e, sobretudo, que ficam desolados com isso... seria tão
fácil, sem isso!... não é? "Fazer o jogo."Que jogo?... O da fraqueza, prostrando-se,
vencida, aos pés da força?... Aquele da mulher hereditariamente submissa, inclinando-
se espontaneamente diante do homem, do guerreiro... O da sensibilidade e da
generosidade, fatalmente espezinhadas e destruídas pela crueldade e traição dos
adversários, que não têm escrúpulos.
"É fácil abusar da bondade e do impulso dos corações generosos para causar sua
perda. Sou uma sagitariana. Sempre me foi insuportável dar a meus inimigos
a'satisfação de minha derrota sem fazê-los arrepender-se, de um modo ou de outro,
por pouco que seja. Uma questão de justiça. Restabelecer o equilíbrio entre o Bem e o
Mal. Entre as leis do Céu e as da Terra. Mas há mais algumas coisas. O ser humano
está no meio. Ele não tem escolha.
"Não somos nós, os 'ternos', que nos mostramos duros e intratáveis, sem pé nem
cabeça. E a vida, são os outros, os desgarrados ou os inecrupulosos. E a mediocridade,
é a felonia dos outros que nos obriga à escolha.
"Quer o queimaremos, quer não, quer sonhemos com harmonia, paz, felicidade
cotidiana, crianças felizes em meio a nossas obras fecundas, chega um momento em
que somos obrigados a fazer uma escolha, um dia em que temos de pegar em armas.
Para sobreviver ou para defender a inocência. E essa obrigação o que mais odeio, mas
aprendi como ela era inelutável. Poucos são os que podem evitar enfrentá-la, pelo
menos uma vez na vida.
"Cláudio de Loménie morreu porque ele fizera sua escolha, a de servir-lhe. Saiba,
Sr. d'Orgeval, que me impôs um ato de que nunca me consolarei. Pois eu também o
amava."
Essas duas cenas convulsivas deixaram-nos abalados, esgotados.
Enquanto retomavam forças, estendidos lado a lado, flutuaram sobre águas
pacíficas, compreendendo a inanidade de suas discussões e a profundidade de um
sentimento que vinha de longe e que se parecia com a amizade.
Acima deles passavam os-eoros do vento e também o dos anjos em cavalgadas
fantásticas.
CAPÍTULO XXV
Imaginavam sempre que tudo fora dito, que a paz voltara a reinar. entre eles. E
depois, a uma palavra, a uma alusão, despertavam-se o rancor, o desespero, os
arrependimentos.
Rancor por ter pago um tributo tão pesado, desespero diante do irreparável,
arrependimentos por terem se mostrado medrosos, imperfeitos, por terem, por boa
vontade, feito o jogo de reles paixões que, uma vez saciadas, parecem fúteis,
desproporcionais em relação aos desastres que acarretam, os lutos que engendraram,
as lágrimas que fizeram correr.
O SOPRO DO ORANDA
CAPITULO XXVI
CAPITULO XXVII
CAPITULO XXVIII
Um companheiro de miséria — Apenas um corpo em movimento
— Onde foram parar todos os pães da segunda fornada? — gritou o Irmão Adriano,
quando, decepcionados por não ver seu hóspede na missa, os dois religiosos foram à
sala comum e o convertido abriu a porta do forno.
Desorientado, ele olhava à sua volta e não discernia nenhum vestígio daquele que,
na noite anterior, batera à sua porta e pedira hospitalidade.
— Será que sonhamos? Era uma assombração?...
— Uma assombração não furta três sacos de farinha de flor de trigo, três de milho e
a metade de nossa reserva de ameixas — observou o Padre de Lambert, depois de
fazer uma rápida ins-peção no armazém de víveres.
— Vamos ver se não roubou mais nada — disse o irmão, muito pesaroso.
— Que mais queria que roubasse?... Comida é o que ele queria.
— Ele pegou o reboque.
— Para levar o saque.
O padre não queria contar que notara o desaparecimento de uma sotaina e de um
missal.
Durante a noite, a tempestade passara por eles. De madrugada, nuvens escuras
sobrevoaram a missão, uma neve revolta caíra, mas era apenas um prelúdio de quedas
mais pesadas que não deveriam tardar. No tapete fino e aveludado formado pela neve
fresca, a pista do reboque e das raquetes ainda era visível. Seguiram-na até um pouco
além da paliçada e ficaram a olhar para as lonjuras, para o perigoso sudeste inabitado,
em direção do qual se fora o desconhecido. A tempestade continuava a avançar, e pro-
metia ser feroz. A neve recobriria as pegadas do ladrão, se não ele mesmo e seus
furtos, enterrando-os.
— Por que chora, meu irmão? — interrogou o padre professo.
— Vamos! Vamos! São apenas algumas libras de farinha roubadas! Ele deixou o
suficiente para nós.
— Não é por isso que estou chorando — disse o convertido. —Que me importa o
furto...
Lágrimas corriam-lhe pelas faces de camponês, sem que pudesse retê-las, mas eram
lágrimas suaves.
— Estou chorando porque me lembro de nossa vigília ontem à noite. Como nos
sentíamos bem quando ele estava sentado co-nosco, partilhando nossa refeição e
conversando! Que luz! O padre, você o notou?
— Com efeito — disse o padre, sonhador. — Havia uma espécie de claridade em
torno dele, e uma serenidade em nós e à nossa volta.
— Não me lembro de mais nada além disso. Nem de suas palavras, nem dos
assuntos dé nossas conversas; lembro-me apenas que seus olhos eram azuis como o
céu e que nossos corações estavam repletos de alegria.
CAPÍTULO XXIX
Várias milhas antes ele já retomara seus saltos dementes. Um pânico que, a cada
passo, se dilatava, retorcendo-lhe as entranhas.
"Oranda! Oranda!"
Havia várias milhas já deveria ter percebido ao longe aquele vestígio de fumaça que
olhos exercitados não podem confundir com os rastros de neblina e que o teriam
avisado da aproximação de Wapassu.
Queimava os olhos para descobrir aquele vestígio de vida na paisagem morta, por
trás das fendas da máscara de couro indígena que fizera para se proteger da
reverberação.
Já devia ter percebido o cheiro de fumaça, pensava, farejando o vento, por mais
ténue que ela fosse,- diluída do ar gelado.
Nada. E uma apreensão mortal o abatia. Ele parava e torcia as mãos. Depois
continuava, voava por cima dos barrancos, engolindo, sem vê-la, a pista branca,
impelido pelo ritmos das raquetes batendo na neve e pelo barulho de sua respiração
sibilante.
Tarde demais! Lá embaixo, no fundo do impávido horizonte translúcido e gélido,
estava a Punição!...
"O que eu fiz?", dizia consigo. "Eu quis sua morte, quis sua destruição... Através
dela eu queria destruir a Mulher. Deus, por que deixaste uma loucura dessas apoderar-
se de mim? Eu queria servi-lo... Não pensava que ela fosse tão frágil, tão alegre, tão
meiga! Não pensei nas crianças pequenas. Como se não soubesse que atrás de toda
mulher existem crianças! O Senhor, por que me fez nascer entre os demónios? Por
que regou minha infância com sangue?..."
Fez alto.
O atroz estava diante dele. Seus olhos choravam de dor por trás da máscara de
couro, pois avistava fortim de Wapassu. Mas nenhum filete de fumaça se elevava acima
do telhado meio enfiado sob as neves.
Nenhum movimento.
Jamais em toda sua vida experimentara um choque tão terrível.
"Eles estão mortos! Eles estão mortos!"
Foi um estalejar das chamas que despertou Angélica, e ela se ergueu com um
sobressalto de espanto, pois, percebendo que ia perder os sentidos, evitara acender o
fogo, receando cair ou não poder vigiá-lo, ou que as crianças resolvessem brincar com
ele, com boa intenção de mantê-lo aceso.
Estava tão fatigada...
Viu o viajante de joelhos diante dela, espreitando-lhe o olhar.
— Por que não acendeu o fogo? — gritou. — Quase morri de sofrimento quando
não vi nenhuma fumaça acima do telhado.
Ela lhe disse que as horas do dia lhe pareceram muito quentes, preferindo deixar o
fogo apagar-se para economizar um pouco da provisão de lenha. Tinha saído com as
crianças, era preciso aproveitar aquele sol. Em seguida...
Ele pousou a fronte em seus joelhos, e Angélica viu entre os cabelos espessos a
tonsura, semelhante a uma hóstia branca.
— O Senhor! — murmurou. — O Senhor! Que sofrimento! Mas cheguei a
tempo.
Então ela lhe confessou como um pecado que, havia alguns dias, estava com febre.
Teria se resfriado ou seria um ataque de malária?
— Agora estou aqui. Trago-lhe também compota de cidra, ameixas e todo tipo de
fruta seca, grãos de aveia-louca, mel, melaço...
Pendurava o caldeirão à cremalheira, vertendo-lhe água.
— Por que, se está febril, não se aqueceu deitando sob as cobertas?
Ela explicou-lhe que receara ser arrastada pelos delírios da febre.
Ficando sentada, podia ficar acordada.
Compreendeu que ela não sabia mais há quantos dias ele partira, que não encontrara
mais forças para os gestos essenciais dos cuidados às crianças, que tinha parado à
espera de sua volta... Que só conseguia manter-se viva repetindo-se incessantemente:
"Não adormeça..."
Ela olhava ao seu redor com desolação.
— Desculpe-me, faz tempo que nem varro nem arrumo a casa. Está um chiqueiro.
Com muitas precauções, ele a carregou e colocou na cama.
— Agora estou aqui. Eu me encarregarei de cuidar de você.
Deitou-a, cobrindo-a com cuidado.
— Vou só chamar à ordem aqueles jogadores inveterados que estão na sala
entretidos numa partidinha de cucarne, e já lhe mostro nossas riquezas. Depois vou
preparar-lhe uma sopa digna de minha Tia Nenibush.
Mas ela virou a cabeça, murmurando que não tinha fome.
Dispôs as rodas de pão nas prateleiras ao longo das paredes do quarto e da sala
grande, no lugar onde guardavam as provisões. E quando não houvesse mais pão,
poderiam assá-lo. Fariam crescer um bom pão no forno, daquele pão que é, por
excelência, o alimento dos franceses, prato vital e rico, nascido no entanto de tão
poucas coisas, água, sal, um pouco de fermento e farinha. Farinha de flor do trigo, mi-
lagre das searas, produto do grão mais precioso que o ouro. Pão, vinho. Vinho, havia
muito pouco na missão. Apenas vinho de missa. Deixara-o. Em compensação, trazia
uma provisão de aguardente.
E também velas. Mas ia-economizá-las. Podem constituir o último recurso para
engrossar a sagamité, que fica muito quente mas demasiado rala no fim das
invernadas.
Só as acenderiam para as festas, logo seria o dia de Santa Honorina.
— Faremos um bolo em homenagem a sua grande irmã e rezaremos por ela.
Durante a noite, ela o ouviu delirar. Abriu os olhos e percebeu na parede as rodas de
pão da Missão de São José, dispostas como rostos bonachões velando por ela.
Então ele voltara? Mas onde estava?
Na realidade, jamais acreditara que voltasse.
Sofrera sua partida como uma morte, e isso influíra mais sobre sua saúde que as
privações.
Ele estava estirado diante da pedra da lareira, enrolado numa coberta.
Ainda fraca, mas sentindo-se melhor, foi ajé ele e ajoelhou-se ao seu lado. Dormia
um sono febril e murmurava frases sem nexo. Àquele viajante que acabava de
atravessar o Tártaro gelado do Inferno, só oferecera queixas e nenhuma hospitalidade.
Tivera contudo tempo de dizer-lhe que ele parecia um espectro. Parecia quase em pior
estado do que quando o encontrara costurado na mortalha de couro. A pele lívida sob a
barba hirsuta, o nariz azulado, os olhos afundados na sombra do capuz, um esqueleto
sob a roupagem gelada por seu suor na corrida, e agora úmida, irritando as feridas,
uma assombração...
Como pudera executar tal façanha, despender tal esforço?!
Despertou-o suavemente.
— Venha aquecer-se na cama. Aposto que suas feridas se reabriram e que você nem
sequer tomou uma tigela de caldo. Ah!
que belo par formamos!...
Mas, revezando-se um ao outro, continuariam a fazer a morte recuar.
CAPITULO XXX
A profecia se cumpriu
Dias depois, ele lhe falou da morte daquela que eles continuavam a chamar de
Ambrosina de Maudribourg. Surpreendera a notícia nas palavras trocadas pelos dois
jesuítas da Missão de São José.
A CONFISSÃO
CAPITULO XXXI
Um comediante nato
Assim que readquiriu forças e ficou em condições de cuidar ele mesmo das feridas
das pernas, instalou-se no quarto de Lymon White. A lareira do pequeno cómodo
correspondia-se com a chaminé central, que, construída segundo os modelos da Nova
Inglaterra, abria-se para quatro fogos diferentes. Um dava para o antigo quarto dos
Jonas. Os dois outros, para a grande sala.
Dispôs-se a reanimar a casa entorpecida. A noite, não parava de vigiar os fogos.
Entrava de mansinho, saía novamente como uma sombra.
Angélica, não tendo mais com o que se preocupar, dormia um sono mais reparador.
Ele subia à plataforma para farejar as mudanças de tempo, para provar a si mesmo,
pensava ela, que o inverno afrouxava seu abraço.
Nevou abundantemente, e as portas e janelas foram novamente bloqueadas. Mas a
própria neve era sinal de um abrandamento.
O gelo, tão temível, parecia recuar.
Desobstruíam com constância a entrada do túnel, que dava apenas para o universo
fechado, branco e cinza da neve enjoativa e invasora. Entretanto, Angélica não a
odiava. Preferia aquela neve, pendurada sobre eles como que os envolvendo em seu
regaço, ao círculo sem fim de um universo sem vida ou ao sopro das tempestades.
Aquela neve salvara-os no outono.
Como o inverno era longo! Todavia, cada dia marcava um avanço.
Quando se lembrava do estado em que fora deposto na soleira da porta aquele que,
com multo cuidado e vigilância, a ajudava agora, só podia, felicitar-se com a marcha
do tempo.
Naquela manhã, estava sentada ao lado da lareira enrolando as tiras de bandagem,
lavadas previamente em água fervente, à qual juntara um pouco de cinzas. Usara
abundantemente aquelas faixas, mas, daí em diante, podia alinhar os rolinhos de teci-
do branco e deixá-los de reserva no cofre de farmácia, esperando não ter de servir-se
deles por um bom tempo.
Subitamente o Padre d'Orgeval surgiu diante dela,.vestido com uma sotaina preta.
Ao vê-lo ficou estupefada.
Estava exatamente como o imaginara outrora, quando era seu inimigo declarado, e
quando receava constantemente vê-lo surgir diante dela, acusador e implacável, e
várias vezes, obsedada por, essa imagem, julgara tê-lo visto aparecer, uma silhueta
negra, confundindo-o com outras. Eosse uma vez Penobscot, à beira de um bosque —
mas não era ele, era o Padre de Vernon. Fosse na pequena casa de Ville d'Avray, ao
pé da escada, uma noite em Quebec — e era simplesmente Joffrey, que voltava tarde
da noite vestido com seu capote preto. Ou então, na penumbra da casa dos jesuítas,
sempre em Quebec, a aparição inopinada de um deles fizera-a estremecer, mas
reconhecera uma vez mais o Padre de Guérande. E assim, muitas outras vezes, por
uma silhueta entrevista, pensara: "Desta vez é ele!... Chegou a hora do combate". Mas
sempre, abrigando-se por trás de outros porta-vozes, ele se furtara.
E agora ali estava, com a mão colocada sobre o peito, segurando a ponta do
crucifixo onde brilhava o rubi, fino, delgado, quase elegante em sua toga preta; o
largo cinto, apertando-lhe a cintura magra, conferia-lhe uma silhueta quase feminina,
com um ar espanhol, à imitação do grande Inácio de Loyola, pelo colarinho alto com
o avesso branco arredondado.
Simultaneamente ela pensou: "Como é belo!", depois: '"Onde arranjou essa
sotaina?!" E finalmente, com um medo pânico: "Ele vai-se embora!"
Mas, sem deixar-lhe tempo de abrir a boca, ele lhe pedia para não se emocionar e
não interromper sua tarefa. Desejava simplesmente falar com ela.
Depois adivinhando seu receio, ele afirmou que isso não punha em questão sua
presença entre eles. Ele permaneceria ao seu lado até a volta da primavera, até que
pudesse deixá-los entre amigos.
Havia somente dois ou três pontos ainda que gostaria de esclarecer.
Primeiramente, falou de seu amigo mais dileto, Cláudio de Loménie-Chambord.
Lentamente, com uma espécie de devoção, evocou sua amizade e aquela forma de
amor existente entre eles, sutil, encantadora e dilacerante, amor do coração aceito,
amor carnal recusado, fazendo com que para que cada um deles o outro fosse o
símbolo do fogo que queima no coração de todos os seres, oriundo do mesmo lar
único do amor essencial, e através do qual tinham podido amar com paixão e ternura
o resto da humanidade. Mas forma inacabada, porque interdita pela dura Bíblia, a qual
devia, nos tempos primeiros, dar primazia à procriação.
Amor sublimado, pois, uma vez que não tiveram outra escolha, que haviam vivido
desde a juventude e durante os longos anos naquela incompletude, mas que lhes
permitira prosseguir com alegria e, frequentemente, com paz de coração, os caminhos
árduos de devotamento e sacrifícios de suas vocações.
— E ainda — disse, prosseguindo um discurso que devia ter repetido amiúde a si
mesmo — eu me pergunto atualmente se não teria sido melhor para a glória de Deus
que não nos tivéssemos separado de forma alguma, pois aprendi que nada é mais
criativo e vitorioso que o amor sincero, e reconheço que esse puro e terno amor que
eu nutria por meu irmão predileto me preservou do peso da solidão e da aridez do
coração e preencheu por muito tempo meu ser afétivo, deixando em paz meus senti-
dos, que não desejam ser envolvidos. Ensinam-nos em nosso noviciado a dominar
pela sublimação esses desejos imperiosos. Eu era um mestre nisso.
Falou em seguida sobre o rancor e o ciúme devorador que sentira pelo outro, o
homem a quem ela pertencia, o homem que a possuía e que, em virtude de uma
injustiça intolerável, era também amado por ela.
Essa confissão era mais difícil, pois ele começava a conhecer melhor Angélica e
sabia que, se conseguia acolher com uma fronte serena o anúncio de que ele quisera
sua morte, era mais sensível quando se tratava daquele a quem adorava.
Não assegurou-lhe, a ele, seu esposo, seu amante, seu amor, não quisera matar.
Teria desejado afastá-lo. Teria desejado que ele desmerecesse esse amor. Teria
desejado ver sua soberba diminuir, quebrar sua insolente aptidão para viver.
— Não julga que a vida sempre lhe foi fácil, não? — tentou protestar Angélica.
— Ele sabia tudo — atalhou ele —, e eu não conseguia suportar isso.
Como era afortunado, pensara muitas vezes, aquele homem pelo qual ela estava tão
perdidamente apaixonada e que não havia recusado nem a carne, nem o amor, e
jamais se perturbara com as leis. Ateu, libertino, pisava em todos os preceitos,
zombava da Igreja e de suas instituições — seu processo não fora provocado pelas
queixas do bispo de Toulouse?
— Eu via que, em contrapartida a tantas transgressões efetuadas com desenvoltura e
sem se preocupar com o escândalo, ele havia coroado essa existência culposa pela
descoberta das mais elevadas e embriagadoras alegrias. Não apenas descobrira o
Amor, o verdadeiro, o que se liga ao êxtase divino,'mas fora correspondido. Tendo
obtido a mais bela das mulheres, fora amado por ela. Ele foi aquele designado para
satisfazê-la, arrebatá-la, maravilhá-la, ensiná-la.
"Aquele fidalgo de aventuras, aquele Conde de Peyrac, merecia tanto? Eu o
maldizia. Por que ele e não eu?...
"Comecei a invejá-lo por não ter moralidade, nem apegos, nem servidão e
vassalagem de qualquer espécie para com ninguém... E no entanto, eu o sentia justo,
entre os justos. Tinha medo de compreendê-lo. Era ele quem tinha razão. Ele que
andava pelo Caminho da Verdade, porque andava no caminho de sua verdade. Isso
também eu tive de enfrentar.
"E uma coisa terrível descobrir o erro que se cometeu e a amplitude das armadilhas
nas quais se caiu. É preferível ficar cego a compreender que a luz da Verdade não nos
é concedida segundo nossos méritos, mas segundo o Plano. E melhor continuar a
acreditar que somos um dos eleitos."
— E agora, o que pensa a esse respeito?
— Que Deus acolhe todas as vias que exaltam Sua grandeza e celebram Sua
bondade. Estou tranquilo e seguro de mim mesmo, apesar de perdido diante dos meus,
para sempre. Eis o que eu queria confessar-lhe para que o passado não deixe subsistir
equívocos e amarguras entres nós. Era preciso desembaraçar esses acontecimentos do
engano das aparências: Eu não combatia por Deus e vocês ?ião eram Seus inimigos.
"Tudo aconteceu alhures, lá onde se abrem, os novos olhares e onde se preparam as
transformações das gerações. Mas... tudo e tão lento na terra..."
Calou-se.
CAPITULO XXXII
Dir-se-ia que havia nele um aspecto do espírito de Joffrey. Cada vez mais ela
acreditava ouvi-lo quanto o jesuíta se exprimia. Pois sentia que as palavras que ele
empregava, as teorias que enunciava, eram exatamente aquelas, dentre a multidão de
pensamentos que fermentavam no cérebro genial do senhor da Aquitânia, que Joffrey
não teria hesitado em lançar e desenvolver com brilho e ardor nas cortes antigas da
Arte de amar. Com a diferença de que ao Trovador do Languedoc, que havia perdido
sua voz no átrio de Norte-Dame quando ali o arrastaram com uma corda no pescoço,
repugnava expor atualmente em voz alta o fundo de seu pensamento. Aprendera a
calar-se. Mas o que ele enunciava por sua conduta causara transtornos mais
importantes que seus discursos.
Seu coração ansiava por Joffrey. Ela pensava baixinho: "Eu o compreendo, meu
amor. Nós nos reencontraremos na paz e falaremos juntos".
Em várias oportunidades o Padre d'Orgeval repetiu que desejava que o Sr. de Peyrac
não perdesse suas forças inquietando-se com a sorte de sua família.
— Estou aqui para velar por vocês.
O importante era o rei. E conquistando-o, o Sr. de Peyrac faria mais para o bem dos
povos e dos continentes do que tentando lançar-se em socorro dos seus.
Ela afirmou-lhe que sempre vira Joffrey consagrar-se a uma tarefa sem se deixar
distrair no momento por nada, e sobretudo por falsos alarmas.
— Talvez até demais — acrescentou, com uma ponta de censura.
Seu imenso poder de concentração não deixava de criar nos corações ciumentos uma
impressão de abandono, e ela sempre se inquietara quando seu interesse, por exemplo,
se dirigia ao género feminino.
No momento, era o rei. Tudo seria conduzido magistralmente, Sebastião d'Orgeval
estava convencido disso.
Ela se divertia quando este insistia em que o Sr. de Peycrac devia também preparar
com o maior cuidado sua instalação no reino da França.
— Você não pode vir a sofrer, qualquer desconforto! Deve poder aproveitar todos os
prazeres que sua fortuna lhe permite e que a capital do reino coloca à' sua disposição.
Ser-lhe-á preciso uma numerosa criadagem devotada, eficaz, ausência de preocu-
pações domésticas, carruagens, belas parelhas. Nas paredes de seus palacetes e de suas
residências campestres, belos quadros, ricas tapeçarias, móveis, objetos jdeestima,
seda, veludo para vos vestir, jóias para vos ornamentar.
— Pode estar certo — dizia-lhe ela —, meu caro diretor de consciência. Se meu
esposo desejar meu retorno à Europa e decidir ali esperar-me, tudo estará pronto e não
faltará nada. Nenhum bibelô, nenhum adereço, nada que possa devolver-me o gosto pela
existência e me ajudar a encontrar o esquecimento daquilo que perdi.
O FIM DO INVERNO
CAPÍTULO XXXIII
A face oculta de Deus — Rei e rainha da Criação, anjos entre flores de luz
CAPITULO XXXIV
CAPITULO XXXV
Antes de abrir os olhos, ela pensou: "Quem estão queimando?" O cheiro que lhe
invadia o sono apagou-se quando voltou à consciência em seu quarto do fortim de
Wapassu. O sol se punha, e ela dormira apenas algumas horas. Sentia-se bem, enfim
repousada. Dessa vez, pensou, ele poderia partir. Olhou para a lareira onde estava o
crucifixo e viu brilhar o rubi. "Vai deixar-me o crucifixo quando se for?... Ou irá
colocá-lo novamente ao pescoço?"
Depois, voltando a cabeça, percebeu, sentado à sua cabeceira, um jovem de
colarinho branco, vestido de preto, que, ao vê-la acordada, levantou-se e dirigiu-se
para ela, sorrindo.
— Bom dia, Dame Angélica.
— Marcial Berne? Que faz aqui?
— Encarregaram-me de velar por seu repouso, cara Dame Angélica. Você dormia
tão profundamente ao chegarmos, que, depois de nos asseguramos de que estava com
vida, a deixamos entregue a seu sono reparador
Angélica ergueu-se, apoiada aos travesseiros, para olhá-lo com mais atenção.
— Você não havia partido para Boston para seus estudos?...
Ele riu, parecendo aliviado por ver que ela o reconhecia e se lembrava dele sem
esforço.
— Tem boa memória, Dame Angélica. Mas achei que não era momento, quando
Gouldsboro estava ameaçada de um ataque, de ir debruçar-me sobre os hieróglifos em
país inglês. Nosso outono foi perturbado. Era melhor conservar todos os braços
valentes, tanto mais .que o inverno se mostrou a seguir, mais do que nunca,
tempestuoso. A neve abateu-se sobre nós, e um frio de rachar árvores. O mar gelou na
embocadura dos rios Penobs-cot e Kennebec.
Vendo-a ouvi-lo com atenção, ele contou que, na costa, nem desconfiavam do que
acontecera em Wapassu. Nenhuma notícia chegava até lá. Já estavam acostumados
com o silêncio hibernal, e mais que nunca, naquele ano, cada qual vivera em sua
fortaleza, combatendo o inimigo principal: o frio, as neves e, para muitos, a fome.
Quando chegou até eles a notícia, proveniente de vagos rumores de relatos
indígenas, de que Wapassu fora atacado e queimado no outono, ficaram aterrados.
Diziam que todos os habitantes haviam sido levados como prisioneiros para Quebec,
o que era preferível à morte e reconfortava um pouco seus amigos, que aguardavam
mais detalhes.
Depois, quando o frio começou a amainar, o inglês mudo chegara, conduzido por
um empregado do posto do holandês de Houssnock. Lymon White fora retido como
cativo numa aldeia abenaki. Quando a tribo "descabanou" por causa da fome, ele
fugiu, dirigindo-se como pôde aos lugares habitados. Levava a notícia surpreendente
de que Angélica e seus filhos estavam vivos em Wapassu, correndo grande perigo de
perecer... se isso já não tivesse acontecido.
Descartou-se resolutamente a pavorosa perspectiva. O Sr. Paturel organizou
imediatamente uma caravana de socorro, que não levara menos de dois meses a se
deslocar, pois os rios e cursos de água ainda estavam gelados.
— E eis que nos encontramos há algumas horas do lugar.
O rapaz começou a falar com loquacidade.
— Que alegria de encontrá-la com vida! Que alívio à nossa angústia. As crianças!
Como estão bonitas! — extasiava-se —, como cresceram! E estão falando que é uma
maravilha!
Quem podia imaginar, repetia, que, depois de ter atravessado tais provações, iriam
encontrar os pirralhos com tão boa saúde!... E acrescentou que o pai de Carlos
Henrique quisera fazer parte da caravana. Sua experiência de bu.shranger lhes fora
preciosa. Na verdade, ele também temera pelo filho. Este parecera reconhecê-lo com
alegria.
Enfim, todo mundo estava feliz, e só esperavam que ela despertasse para ficar
inteiramente tranquilos e festejar esse feliz desfecho de uma provação tão longa e
terrível.
Um pesado passo de botas fez ranger o assoalho do corredor, e na moldura da porta
baixa apareceu a forte estatura de Colin Paturel.
Seu olhar ansioso se iluminou quando viu Angélica recostada ao travesseiro e
parecendo atenta ao que lhe explicava Marcial Berne. Foi nesse momento que este
deixou de ser para Angélica uma aparição ainda incerta. Quando viu Colin inclinar-se
para ela, compreendeu que não estava sonhando.
— Oh! meus caros homens! — exclamou, lançando-se-lhes ao pescoço e cercando-
os com os braços.
O momento tão esperado, tão sonhado, e que tantas vezes parecera impossível de se
realizar, acontecera. Seres humanos tinham-nos finalmente encontrado em sua solidão
e, o que era o cúmulo da felicidade e do reconforto, eram os seus, os homens de
Gouldsboro.
E Colin começava a contar o que Marcial já havia exposto. O anúncio demasiado
tardio do desastre de Wapassu, como tiveram de esperar para se pôr a caminho para as
regiões inacessíveis do interior, as dificuldades de locomoção, quantas vezes tinham
sido detidos pelas últimas tempestades de neve e as incomodida-des do degelo.
Descreveu o medo lancinante que tiveram de não encontrá-los vivos, e a alegria, em
que custaram a acreditar, por descobrir no forte as crianças muito vivas e espertas,
que os acolheram com muita graça. Um verdadeiro milagre! Capaz de incitar os
próprios huguenotes a colocar uma vela diante de alguma divindade papista falando
de milagre.
—Quem estão queimando? — murmurou Angélica, maquinalmente.
Seu subconsciente continuava a se sentir indisposto por aquele cheiro de fogo, de
incêndio, muito penetrante e desagradável para ela. Eram fogueiras de um
acampamento? Não estava mais habituada ao cheiro dos humanos.
Colin pareceu não ouvir ou não compreender o sentido da pergunta estranha. Não
entendia por que ela dizia: "Quem estão queimando?", e não: "O que estão
queimando?"
Era um homem das praias atlânticas, e não do interior, e ainda estava aturdido
pelcTcombate com as florestas e rochedos que tivera de travar para .chegar àquele
coração das montanhas.
Insistia em que haviam acreditado no milagre de sua-sobrevi-vência, e a prova disso
era que, compreendendo pelas narrativas — se assim se podia dizer —.do pobre mudo
que Angélica e as crianças estavam desprovidas de tudo lá em cima, haviam trazido,
além de víveres, roupa-branca, roupas de mulher e de crianças, sapatos e brinquedos,
tudo oferecido com a melhor boa vontade pelas damas e crianças de Gouldsboro.
— Oh! que ideia sublime! — exclamou Angélica. — Como a vida é boa!
Ao ouvir esses detalhes, o renascimento pôs-se a correr-lhe pelas veias com a
mesma alegre vivacidade de uma fonte que finalmente quebra sua prisão de gelo.
— Depressa, quero me levantar!
Seu olhar caiu sobre o crucifixo, no batente da-lareira.
— Eele?
— Ele?
— O homem que estava conosco... Aqui... Não o viram?... encontraram?...
— Com efeito! — reconheceu Colin, enquanto Marcial lhe lançava um olhar atento
e depois se calava. — Com efeito — continuou Colin. — Quando chegamos à beira
do lago, percebemos na outra margem um homem que estava colocando armadilhas
ou nassas. Tinha o aspecto de um explorador de bosques, e, receando que surgissem
em seu encalço exércitos vindos do norte, escondemo-nos primeiro. Depois, como
parecia estar sozinho, dois dentre nós se mostraram e o chamaram. Ao ver-nos, ele
abandonou precipitadamente o que estava fazendo e fugiu.
— Finalmente! Deus seja louvado! — suspirou ela. — Ele fugiu...
Fechou os olhos, recostando-se, subitamente fraca, ao travesseiro. Continuava a
segurar-lhes as mãos, como uma criança medrosa, adormecendo ao ver presenças
tranquilizadoras. Segurava-os agora. Não os deixaria mais. A afeição de seus olhares
pousados nela a reaquecia. E logo reveria Joffrey.
—Deus seja louvado! — repetia. — Meus caros homens!
Ia poder voltar a viver, retornar ao convívio dos humanos como quando se retorna a
casa.
Entretanto, uma sensação confusa continuava a atormentá-la.
— Colin, que cheiro de fogo e de carne grelhada é esse, tão forte?... Estão
preparando um regra-bofe? Estou com náuseas. Parece um acampamento índio...
— Os iroqueses estão lá embaixo! — disse Marcial.
CAPITULO XXXVI
Finalmente chegou!
E viu imediatamente.
Uma silhueta de carne nua, magra e miserável, amarrada ao pilar em meio às danças
sincopadas de alguns "prestidigitadores" e à fumaça das brasas a seus pés, um homem
branco cercado pelo bale horrível dos machados incandescentes que faziam chiar a
pele de suas coxas, enquanto facas passavam e tornavam a passar lentamente,
sabiamente, cortando pequenas tiras sobre seu peito.
Foi a única coisa que viu inicialmente, e teve de parar para reter o grito que lhe
subia aos lábios e retomar fôlego.
Tarde demais!... Ela chegava tarde demais!...
Mas olhando novamente na direção do supliciado, viu que ele inha a cabeça erguida
e os olhos voltados para o céu.
Seu silêncio não era o da morte, mas do heroísmo.
Tudo se tornou diferente. Tudo entrou nos eixos. Pôde avançar novamente, rápida,
cheia de energia e de esperança.
— Utakê! Utakewata! Dê-me sua vida!
Ela ia sozinha, lançando seu apelo numa voz alta e clara.
— Utakê! Utakê! Dê-me sua vida!...
Ele voltou para ela o rosto, o deus vermelho, o deus tutelar da América, e, em meio
às manchas sarapintadas de suas pinturas de guerra, seu olhar era febril. Sua cimeira
erguida e os pingentes das orelhas fremiam. Aproximou-se alguns passos, enquanto
ela parava. Não parecia surpreso por vê-la ali, mas sua expressão continuava
ameaçadora. Estabeleceu-se um longo silêncio.
— Até quando você me pedirá vidas? — lançou-lhe enfim, mal-humorado. — Dei-
lhe a sua e a de seus filhos. Não basta?... Até quando você se obstinará em salvar
aqueles que a rejeitam ou aqueles que querem sua perda? O que importa esse jesuíta?
Por que quer salvar-lhe a vida? Ele era seu inimigo. Enviei-o a você para que
acabasse com ele. Enviei-o para que acabasse com ele — insistiu, animando-se —
com suas unhas à moda das mulheres. E você não o fez. Eu a desprezo. Você
desobedeceu às leis da justiça.
— Não preciso obedecer as suas leis. Venho de outro país, e tenho outro Deus para
me julgar. Você o sabe muito bem, você, que atravessou o oceano, Utakê, Deus-das
Nuvens...
Utakê começou a andar para lá e para cá, dirigindo-se com ênfase às tropas
iroquesas, agrupadas na encosta relvada, numa mistura de dialeto mohawk e de
francês, que ele falava muito bem apesar do sotaque agudo resultante de uma
pronúncia gutural, quase sem movimento de lábios.
— Vocês a ouviram?... Sou eu que a cumulo de benefícios, e é ela quem me dita
ordens.
Continuou a se agitar com uma mímica que significava que estava sufocando de
indignação e com gestos derrisórios que exprimiam que toda a sua razão era
suplantada pela inconsciência dos seres, e sobretudo dos brancos, e sobretudo das
mulheres!...
Depois, retesando-s,e subitamente, sua expressão mudou e adquiriu uma gravidade
solene. O rosto pintado pareceu transmudar-se em pedra, os olhos de jade, imóveis
nas órbitas dilatadas, lançaram estranhos fulgores.
Com um gesto lento e hierático estendeu para Angélica o braço, que permaneceu
hirto como o de uma estátua.
As palavras que lhes caíram da boca tiveram uma espécie de ressonância eterna.
— Olhem! Eis aqui uma mulher louca a serviço de um deus louco. E isso tem seu
valor... Ela é louca mas é fiel a seu deus, que disse esta frase insensata: "Perdoem seus
inimigos". Uma mulher tão louca quanto seu deus, ei-la. Ela, pelo menos, tem o
coração reto e segue seu caminho sem se desviar. Salvou o inglês doente e o iroquês
ferido, o pirata francês abatido e o Toga Negra moribundo. E vem gritar: "Devolva-
lhe a vida! Devolva-lhe a vida!...
Sua pose mudou um pouco, os movimentos de seu braço tornaram-se ao mesmo
tempo acusadores e líricos.
— Sim, você é bem isso... Você não se desvia de seu caminho, Kawa, estrela fixa, e
o que podemos nós contra a estrela que está colocada no centro do céu, apontando
sempre para a mesma direção?... Segui-la! Na noite de nossas almas, na noite de
nossos corações... Ah! você brilha e no entanto nos desnorteia...
— Eu não o desnorteio.
— Sim!... Você me enganou. Eu lhe enviei o jesuíta para que acabasse com ele.
— Não! Você sabia que eu não acabaria com ele... A prova é que, antes de enviá-lo,
lhe disse: "Voltarei para buscá-lo e devorarei seu coração".
O chefe dos mohawks permitiu-se uma breve risada.
— Queria saber se você era de fato isto: a estrela fixa.
— Portanto, sabia que eu o pouparia. Então, pare de usar artimanhas comigo, Utakê.
Você me deu sua vida uma vez. Pode muito bem dá-la uma segunda.
O chefe das Cinco Nações recomeçou a andar de um lado para outro, como um
animal feroz.
— Pois bem! Eu lhe darei sua vida! Não quero que escarneçam de você por ter
respeitado os preceitos loucos de seu Deus louco — declarou.
A um sinal deje, um jovem guerreiro avançou e cortou as cordas que amarravam o
prisioneiro. Mas, apesar das cordas cortadas, ele permaneceu de pé, imóvel.
Ainda veria aqueles que se agitavam à sua volta nesta terra?
Todavia, a ordem de Utakê de libertá-lo e sua subsequente execução provocaram a
cólera daqueles que participavam do suplício e que, instalados em torno da fogueira,
preparavam suas ferramentas de tortura com a aplicação e a seriedade de trabalha-
dores conscienciosos.
Um deles, chamado Hiyatgu, precipitou-se para a'arena. Seu discurso, pronunciado
em seu dialeto loquaz, era difícil de acompanhar, mas seu furor era visível e os gestos
exagerados o tornavam explícito.
Cpmo seus associados presentes, não admitia ver-se privado de uma nobre e difícil
tarefa, a de fazer morrer lentamente um inimigo abominável — que, mal havia
começado o suplício, já lhe retiravam das mãos —, tarefa para a qual ele, Hiyatgu, era
reconhecidamente muito hábil e cuja execução lhe proporcionava intensas sensações,
orgulho e satisfação. A isso se acrescentava a da vingança, que encontrava finalmente
o objeto em que saciar esse ardente sentimento de desforra. Sem extingui-lo
completamente, nem apagar o luto, cuja sombra encobriria para sempre o espírito de
Hiyatgu ao se lembrar dos filhos, da mulher, dos guerreiros, mortos nas muralhas de
sua cidade de Onondaga ou nas chamas daquelas Casas Compridas incendiadas,
colocaria um bálsamo nos mais vivos ressentimentos, sabendo que ofereceria aos
manes dos desaparecidos, multiplicada, a dor causada por seus ensinamentos
fanáticos, seus apelos à guerra contra o iroquês, acolhidos com tão boa vontade por
aqueles traidores huronia-nos e aqueles malditos algonquinos, inimigos hereditários e
que não tardariam também a pagar por todos esses crimes. Eles também, por suas
ordens, haviam causado a partida dos seus, tão atroz, imerecida e prematura, para as
terras de caça do Grande Espírito. Deviam devolver-lhe a vida para que viesse
destruí-los novamente?
Sua tirada veemente provocou uma aprovação geral por parte dos iroqueses
presentes, traduzida por um surdo ronco, tão profundo e prolongado que poderia fazer
acreditar na aproximação da tempestade se o céu não estivesse tão puro e azul.
Hiyatgu, adivinhando que tinha o controle da situação, interpelou Utakê de modo
mais direto.
— Não existe chefe supremo entre nós, Utakê. Se houvesse, ele seria escolhido entre
os onondagas, dos quais faço parte, e não entre os mohawks. Você infringiu os
princípios da Liga Iroque-sa. Não tem o direito de nos tirar a caça, nós também
participamos da caçada.
— Não é uma caça, mas meu inimigo — retorquiu Utakê, sem se perturbar. —
Somente eu sofri com ele em minha juventude, quando fui raptado e levado para o
outro lado do oceano para remar nos grandes barcos, as galeras do rei da França. E,
desde minha volta, sempre os defendi de suas emboscadas. O Conselho colocou-me à
frente daquilo que restava de nossos povos. Não comece a esquecê-lo, agora que o
perigo foi afastado, graças a minhas astúcias e minhas injunções.
Um outro ronco se elevou, mas, dessa vez, Hiyatgu não se deixou iludir, pois,
conhecendo seu adversário, sabia que a aprovação se dirigia às palavras de Utakê. :
— Seja! Devolva-o — gritou-lhe com raiva. — Mas não será dito que não obtive
nada!
Sua manobra foi demasiado rápida.
Num salto, pulou sobre o prisioneiro, sempre de pé, encostado ao pilar do suplício.
Empunhando-lhe a cabeleira, cortou com uma lâmina aguçada o alto da testa e puxou.
Um grito saído de todas as bocas sublinhou seu ato imprevisto e cruel.
Hiyatgu, triunfante, afastou-Sé.
Insensível à indignação e à cólera que provocava, pôs-se a emitir urros alucinados,
cortados por imitações de cânticos cristãos. E, balançando seu trofeu como um
incensório ou um hissope, aspergia a relva de sangue ao seu redor.
Durante essa cena, os dois chefes haviam prosseguido sua querela, continuando a se
desafiar, primeiramente pelo insulto depois entregando-se ao bale da luta, girando um
em volta do outro, brandindo o machado e o tomahawk, Utakê, louco de raiva por ter
visto sua supremacia e seu direito de clemência questionado, e sua palavra traída pelo
gesto do rival; este, lembrando-lhe incessantemente que as sentenças que estatuíam o
destino de um prisioneiro deviam ser tomadas no Conselho, e que o chefe dos
onondagas tinha prioridade sobre o dos mohawks...
Embriagados mais por uma mágoa que não conseguiam definir do que pela
aguardente, pouco usada por aqueles chefes, essa querela em palavras e ameaças foi
sangrenta.
Finalmente, ficou decidido que Utakê e o outro se bateriam num duelo iroquês, com
o machado e o tomahawk.
Foi portanto um combate muito curto e cerrado, com passes e cambalhotas
magistrais e que concluiu resolutamente pela vitória, por assim dizer, dos dois chefes,
tão fortes um quanto o outro, e que não conseguiram ser atingidos por golpes suficien-
temente mortais para colocar este ou aquele fora de combate.
Mais tarde, a disputa se reacendeu quando se colocou o problema de saber se o
coração do jesuíta seria comido assado ou cru. A discussão alteou-se a graus de
veemência elevadíssimos, e a luta entre esses últimos sobreviventes das Cinco Nações
estava prestes a estourar e se transformar em batalha, mas a questão foi acertada pela
eloquência de Utakê.
— Eu sou filho da Paz. Enterro o machado de guerra ao mesmo tempo que devoro
este coração. Temos de comê-lo palpitante ainda, porque ele deve nos comunicar sua
força sobre-humana e sagrada.
— Mas ele está envenenado — retorquia o outro. — Para não Se tomar seu veneno
ao mesmolempo que sua força, deve ser assado.
— Não! Não é assim. O coração de Hatskon-Ontsi não tem mais veneno. Este
coração é puro. Este coração está purificado.
A mulher branca fezrse fiadora dele ao reclamá-lo, ao devolvê-lo a nós.
Dessa vez Utakê foi o mais rápido. O mais rápido a abrir o peito do morto e
arrancar-lhe o coração. Tocados pelo respeito, os outros fizeram silêncio.
O dia acabava. O céu tornava-se vermelho no poente. Na luz púrpura, Utakê
levantou, na ponta dos dedos, aquele coração tão discutido, perolado de sangue.
— Ei-lo. Vamos alimentar-nos deste coração purificado, receberemos os conselhos
deste coração que nos trouxe o ódio e que nos amava. Poderemos marchar em busca
da paz. A paz para nossas aldeias, a paz para nossos cantões que renascerão, pois não
fomos todos exterminados. Ele nos inspirará. Ele nos trará o conhecimento desses
franceses indomáveis que nos confundem o espírito e enganam nossos corações, e nos
guiará para saber o que devemos esperar deles, a confiança que devemos conceder-
lhes para sua sobrevivência e a nossa.
Assim que os chefes iroqueses pegaram das mãos de Angélica o corpo do Padre
d'Orgeval, Colin Paturel levantou a jovem mulher nos braços e a levou até o forte,
sem muita dificuldade. Ela era tão leve, imaterial!
A pressa de arrancá-la às loucuras mortais que campeavam naquelas paragens
apoderou-se dele. O dia já ia muito alto para que se pudesse organizar a partida.' Seria
preciso ficar até o dia seguinte.
Com as ventanias noturnas aproximava-se uma noite gelada, e no fortim, mãos
diligentes haviam acendido fogos em todas as lareiras. Recriava-se o alegre ambiente
que haviam conhecido os homens de Peyrac na primeira invernada, com seus
mineiros, soldados, artesãos, trabalhadores, estrangeiros de todas as nações e
aventureiros de todo tipo. Acampariam no velho abrigo aquela noite, sob a guarda de
sentinelas que se fenderiam a cada duas horas e que vigiariam permanentemente os
bosques, as lonjuras, os arredores e mais assiduamente o valezinho onde faiscavam as
fogueiras dos iroqueses e de onde chegava, em lufadas, o ronco lúgubre dos cantos e
dos tambores.
As crianças, saciadas de guloseimas, já haviam comido e dormiam no antigo quarto
dos Jonas, veladas por pares de olhos zelosos e enternecidos, que não as perdiam de
vista um só instante. Bens preciosos que se julgavam perdidos, tesouros que era preci-
so agora levar com vida para as praias.
Dormiam apertando nos braços os brinquedos trazidos para elas de Gouldsboro.
Angélica pediu que a deixassem chorar sozinha.
Mas Colin ficou junto dela, e, quando via a onda de soluços se acalmar, dizia
algumas palavras que aludiam à paz que encontraria entre eles em Gouldsboro, à volta
próxima do conde, que não deveria tardar. Essas palavras não chegavam até ela,
apenas o som de uma voz diferente que rompera a noite eterna dos dias de inverno.
Ela erguia as pálpebras doloridas e via-se sozinha na jangada da sobrevida. Via
Colin sentado ao seu lado, atento, e a inquietação e a ternura daquele olhar claro,
familiar.
Subitamente, afinal, o relógio do tempo soara. Uma pancada. E foi o fim dos dias
sem fim.
As portas de gelo se romperam. 'Os homens haviam surgido.
Podia acreditar que nada acontecera. Ou poucas coisas. Nada a não ser alguma coisa
muito simples e muito natural na vida dos homens. Alguns meses de inverno para
atravessar. "Tudo tem fim!... tudo recomeça", dizia ele. Teria podido acreditar que
havia sonhado. Um fantasma acompanhando-a com sua força para ajudá-la a chegar
ao fim do túnel: Teria podido acreditar que ele não existira, se não houvesse esse
crucifixo, sempre ali, que ela percebia com sua pequena cintilação Vermelha
refletindo as luzes do fogo.
— Colin, você não me disse que o jesuíta levava ao pescoço um crucifixo, e que
caminhava estendendo-o a você?
— Isso mesmo... Mas'quando os selvagens o pegaram eleretirou-o e deu-o para
mim: Disse-me de modo muito cortês, mas muito firme: "Senhor, por favor, tenha a
bondade de recolocar este santo objeto no batente da lareira, no quarto em que neste
momento a Sra. de Peyrac está adormecida. Ela tem estado muito doente, mas ei-la
fora de perigo. Quero que ao despertar veja este crucifixo em seu lugar habitual".
Gritou-me de longe, quando o arrastavam: "Suba depressa para o forte. As crianças'
estão sozinhas!..."
Angélica começou a rir em meio a suas lágrimas.
— ...Como era autoritário!... Era um maníaco!... Oh! realmente, para esses detalhes,
era maníaco como uma mulher!... Por que
dormi?
Continuou a chorar, mas mais suavemente.
— Por que dormi? Por que dormi tanto tempo? Se eu tivesse acordado no momento
em que vocês chegavam acompanhados dos iroqueses, ele teria tido tempo de fugir.
— Não creio que quisesse isso — disse Colin.
CAPITULO XXXVII
Mais tarde retirou as roupas sujas de sangue do mártir e impregnadas pelo cheiro de
fumaça, pelo odor do inverno, pelo odor dos longos meses passados nas trevas.
Desejava chorar mais, mas ao ver-se vestida com roupas limpas e pouco usadas e
reconhecer nas pregas da saia, do blusão e do lenço o perfume discreto de sua amiga
Abigail, uma euforia benfazeja a conquistou.
Logo estaria junto à doce amiga, deixando-se rodear por suas atenções, ouvindo o
mar bater nas praias de Gouldsboro, enquanto esperava que surgissem as velas do
navio que traria Joffrey de volta.
Abigail pensara em tudo. Inclusive juntara ao que mandara um saquinho de cascas
de quina trazidas por Shapleigh.
Deslizou para o sono tranquilamente. Soube que dormia quando o rosto de jesuíta
veio inclinar-se sobre o seu. Seus olhos eram azuis e não havia nenhuma brecha negra
no sorriso dos- belos dentes, que não tivera tempo de tratar. Julgou que fosse dizer-
lhe: "Há um alce lá fora!... Levahte-se". Mas ele contentou-se em sussurrar-lhe: "E
Honorina?", com uma piscadela cúmplice, como para lembrar-lhe um segredo entre
eles, e que ainda tinham uma obra comum a resolver.
— E verdade! Honorina!... Eu sei por que não quero deixar wapassu — disse a
Colin, que continuava à sua cabeceira. — Tenho de esperar Honorina. Ela não sabe
que Wapassu foi incendiado e tentará encontrar-nos aqui.
Colin Paturel ignorava tudo a respeito da odisseia de Honori-na, e julgava lembrar-
se de que a menina estava interna no colégio das religiosas em Montreal. Mas, vendo
Angélica agitar-se, afirmou-lhe que ficariam em Wapassu o tempo que fosse preciso
para esperar Honorina, prometendo interiormente convencê-la no dia seguinte. Por
ora, a noite ainda era profunda. Era preciso dormir, insistiu.
Como ela estava fraca, nervosa e diáfana!, pensava, olhando-a recair no sono como
que sob o efeito de um desmaio, mas sempre indomável.
Colin Paturel ajoelhou-se junto dela e colocou os lábios sobre a mão abandonada.
— Obrigado! Obrigado, meu cordeiro — murmurou-lhe. —Obrigado por ter salvo a
felicidade de nossas vidas suplantando sua morte...
A segunda fase de seu repouso, um pouco antes da aurora, foi para Angélica mais
turbulenta. "Os iroqueses! Os iroqueses!", repetia, perseguindo um pensamento que
lhe fugia mas que, ao final, se tornou preciso. "Os iroqueses, mas são eles, pelo menos
alguns dentre eles, que podiam me dar notícias de Honorina... Se ela passou o inverno
numa de suas nações... esqueci-me de pedir-lhe informações..."
Acordou gritando: "Os iroqueses". Estava sozinha dessa vez, mas num quarto
ensolarado. Haviam-na deixado dormir, apesar da chegada do dia.
Zangada consigo mesma, atirou-se para fora da cama, com todas as energias
reanimadas.
— Os iroqueses ainda estão por aí?
— Sim! Muito ruidosos e desagradáveis, para nossa infelicidade; continuam a
parlamentar e a querelar no fundo do valezinho.
— Graças a Deus!...
Ela lhe explicou que era preciso ir ao encontro deles ou convocá-los imediatamente,
pois apenas por eles podia esperar obter notícias de Honorina. Sem tentar distraí-la de
sua ideia fixa, Colin pôde satisfazer-lhe a vontade logo. Não havia necessidade de
convocá-los. Estavam vindo até eles. Utakê fizera-se anunciar com os seus para dali a
uma hora.
Saindo, Angélica percebeu a grande poltrona de madeira que fora levada para fora.
— O mensageiro do mohawk recomendou que lhe fosse preparada uma cadeira para
que você possa escutar, sem fadiga, sua arenga, que ele pretende dirigir-nos antes de
despedir-se, e que será longa.
Angélica tomou assento na poltrona preparada para ela, sacudindo a cabeça com
resignação. "Esses índios, jamais os compreenderei!..."
Na esplanada, seu olhar abarcava a perspectiva de Wapassu, que lhe pareceu mais
deserto ainda que nos primeiros dias, anos antes, quando haviam chegado em
caravana para encontrar, no fundo daquele covil, os quatro mineiros que já haviam
começado a trabalhar ali.
A esquerda, distinguia uma parte do Lago de Prata, reverberando ao sol, esquecido
de que sobre sua planície branca ela correra, perseguida pelos lobos, arrastando um
cadáver de alce.
Ao longe, na curva verdejante do valezinho, a multidão castanha dos iroqueses se
agitava, e seus gestos de idas e vindas pareciam indicar que estavam se preparando
para partir.
— Se eles subirem sem armas, será preciso que nossas sentinelas dissimulem as suas
— recomendou Angélica a Colin.
Pediu aos dois rapazes encarregados de vigiar Raimundo Rogério e Gloriandra que
viessem colocar-se ao seu lado com as crianças. Seus dois rebentos, estava persuadida,
não deixariam de se interessar por aquele espetáculo multicolorido de uma delegação
iroquesa, mas não era por isso que tomava essas medidas, que suscitou murmúrios de
desaprovação ao seu redor. Ela explicou àqueles que se inquietavam que a visão das
crianças lisonjeava os índios, e principalmente os ferozes iroqueses, provando-lhes
que não inspiravam receio e que eram recebidos como amigos da família.
Fora alguns, homens do grupo, que haviam andado pelos bosques à procura de
peles, ou-que tinham tido a oportunidade de viver nas aldeias fronteiriças, a maior
parte daqueles que tinham vindo das margens para socorrê-los nutria uma forte
desconfiança em relação-aos índios do interior, mais ainda em relação aos iroqueses,
muito temidos, e cujos contingentes de guerra vinham de muito longe semear o
pânico entre os algonquinos do leste.
Angélica permanecia calma. De sua parte, não temia nada. Temia apenas perder a
paciência. Ou ser vencida pela impaciência durante o discurso, em sua espera de
receber algumas notícias sobre a filha. Tinha pressa de interrogar Utakê. Dele talvez
obtivesse uma indicação, alguém que a tivesse visto, percebido, quem sabe falado
com a menina, e que lhe devolveria a esperança, garantindo-lhe que estava viva,
apesar das guerras, epidemias e fome. Deveria pois esperar sem nervosismo o final da
arenga.
Uma pequena mão colocou-se sobre a sua, pousada no braço da poltrona.
— Eu também estou aqui — disse-lhe Carlos Henrique, lembrando-lhe sua presença
com uma voz gentil. Angélica abraçou-o e apertou-o contra o peito.
— Sim, você também, você é meu filho, meu valente compa-nheirinho. Vai ficar de
pé ao meu lado e me ajudar a receber o chefe das Cinco Nações. Conserve sua mão na
minha e fique bem ereto como o orgulhoso soldado que é.
O que mais lhe iria pedir Utakê? O impossível... ou talvez nada. Com ele, podia-se
esperar qualquer coisa.
— Eis nossos teatrais que avançavam — disse a Colin, de pé atrás dela, e que lhe
pareceu mais tenso e menos à vontade que se tivesse de tomar de assalto toda uma
frota de piratas das Antilhas.
Quanto a ela, ladeada pelo pequeno Carlos Henrique, olhava-os vir sem receio, e
quase sem rancor. Levavam na cintura as machadinhas de combate e os tomahawks de
pedra vermelha ou branca. Tinham deixado os mosquetes no vale, e Angélica fez sinal
aos portadores de mosquetes, que se mantinham com a mecha pronta para o ataque,
para que se escondessem atrás da casa ou nas brenhas ao redor.
Os chefes das Cinco Nações pararam a alguns passos da poltrona, seguidos de uma
massa de guerreiros reunidos.
Um sol pálido, um sol ainda frio de inverno os iluminava.
Apesar do penacho de plumas e de peles, cerdas de porco-espinho nos cabelos
levantados, colares de dentes de urso, braceletes de penugens tingidas de vermelho,
eles estavam magros, quase tão magros quanto lobos esfomeados. Sua carne pareceu-
lhe pálida sob a retícula azulada das tatuagens. Ignorava que haviam vivido
escondidos longos dias nas trevas da terra, atravessando, num percurso de várias
léguas, os meandros das grutas e rios subterrâneos.
A homilia de Utakê, contrariamente ao aviso que havia dado, foi de curta duração.
Mas, ainda que tivesse escolhido com cuidado, em seu francês castigado, as palavras
adequadas, foi um discurso difícil de compreender. Cada palavra puxava outra e ia
mais longe, tal como as linhas superpostas das montanhas.
Mais tarde, lembrar-se-ia dela como uma mão aflorando as cordas de uma harpa, e
cujos sons chegassem até ela amplificados pelo eco, e pelo eco do eco.
Todavia, ele começou falando com toda a simplicidade sobre sua querela com
Hiyatgu.
— Um de nós deveria estar morto. É a lei. E eis-nos aqui diante de você com vida,
nós dois. O que significa, Kawa: de seu último combate, como de meu combate com
Hiyatgu, não houve vencedor nem vencido. Foi um combate que nada decidiu. Porque
na realidade não há inimigo e não há guerra. Apenas um precipício e uma ponte que
faltava para passá-lo. Mas a cláusula é secreta e é preciso esconder-s,e daqueles que
não vêem a ponte e que não compreendem por que nós a atravessamos.
"Teconderoga me fez fazer coisas bem estranhas desde que o vi. Ele torcia meu ser
por dentro como uma pele ria água do rio. Ele obrigou minha razão a pensar um
pouco ao lado de seu caminho habitual, o que é um sofrimento e um perigo, mas pode
conduzir à ponte.
"Você, você é o espírito flutuante de Teconderoga. Ele se mantinha na terra, arcado
sob o peso da ciência, e você, você corria para a frente; leve e invisível para me
agarrar. Soube disso quando os vi em Kátarunk, depois do fogo. Dois e unidos, e de
uma força tão grande! Foi o que disse o Toga Negra: 'Unidos não se pode abatê-los.
É.preciso separá-los'."
— Mas Teconderoga não está mais aqui, e você vai partir. Eis-me obrigado a andar
ainda um pouco ao lado de meu caminho, se não quiser perder tudo. E eis por que
Hiyatgu está vivo... Eis por que eu o poupei — disse, lançando um olhar prov.ocativo
ao chefe dos onondagas. — Tenho ainda necessidade de ouvir uma palavra apenas de
sua boca, Kawa. Assegure-me, assegure-me que aquele que morreu ontem não voltará
para nos destruir..."
— Cpmo você pode duvidar? — disse ela, surpresa de ler em seus traços impassíveis
uma ansiedade real. — Você é avisado dessas coisas melhor que eu mesma.
— A fome e a derrota enfraqueceram a clareza de minhas pres-ciências. Do mesmo
modo que Teconderoga me fortalecia, Hatskon-Ontsi perturbava e enfraquecia meus
julgamentos.
— Você fala no passado. Dá a si mesmo a resposta, Utakê. Não há vencido nem
vencedor, você dizia, porque nunca houve inimigo. Você, que comeu seu coração,
sabe agora como ele os amava...
— Não irá ele aplicar-se em ajudar seus irmãos de raça, os franceses, contra nós?
— Não! Os franceses não precisam dele da mesma forma que vocês, iroqueses das
Cinco Nações, e foi por vocês que ele veio. Digo-lhe isso porque foi o que ele me
disse e porque é o que sinto também. Veio para ficar entre vocês. Daqui a algum
tempo ele se infiltrará entre você. Eu sei que você principalmente o sentirá presente
para ajudá-lo na sua tarefa e combater ao seu lado.
— Quer dizer que ele terá descoberto a justiça de nossa causa e a horrível traição
com que nos oprimem nossos inimigos? — interrogou o mohawk, cujas pupilas negras
refletiam uma centelha de alegria e triunfo.
Angélica fechou os olhos. A imagem de Wapassu destruído, a América que
deixavam para trás parecia-lhe como um campo de ruínas, uma terra queimada, uma
terra que se devoraria a si mesma até que os renovos de raízes mais robustas
conseguissem firmar-se e dominar o caos.
Não estava em condições de lançar sobre o futuro um olhar otimista, mas precisava
responder-lhe'e devolver-lhe a confiança.
— Ele terá descoberto que você mereceu tê-lo ao seu lado para apoiá-lo e aconselhá-
lo até o fim de seus dias — respondeu com firmeza, mas erguendo as pálpebras com
dificuldade.
Nesse breve instante em que fechara os olhos para refletir, julgara que ia desfalecer,
ou pelo menos adormecer, de tal modo estava fatigada, mas sabia que, mesmo feridos
ou ameaçados como estavam presentemente, os selvagens, e sobretudo seu inter-
locutor, eram capazes de adiar sua partida e minimizar o perigo que os espreitava, a
fim de continuar uma discussão "de valor", mostrando, pela apresentação e refutação
dos argumentos de sua defesa e de seus ataques, uma resistência que poderia levá-los
até a noite.
— Você crê realmente? — recomeçou Utakê, tomando fôlego por um longo
período.
As pálpebras de Angélica fecharam-se novamente. Reabriu-as corajosamente,
ficando surpresa por ver o chefe das Cinco Nações inclinado diante dela e
apresentando-lhe nas duas palmas uma fina tira de couro com contas de koris brancas,
pretas e malva.
— Ofereço-íhe este colar de porcelanas — disse ele. — É tudo o que me resta do
tesouro de guerra dos mohawks, que os franceses chamam de "agniers". Guarde-o
como símbolo de minha aliança eterna, e este, não o perca.
— Mas eu não perdi o wampum das Mães das Cinco Nações que você me enviou em
nossa primeira invernada aqui — protestou Angélica. — Ele desapareceu no incêndio
de Wapassu. Talvez se pudesse encontrá-lo nos escombros, não?
— As mães que o enviaram a você estão mortas — disse Utakê com uma voz cava
—, e o wampum que teceram com suas próprias mãos está enterrado sob as cinzas.
Assim são os sinais.
Ele recuou alguns passos, deixando o fio de conchinhas enfiadas sobre os joelhos de
Angélica.
— E agora tenho de dar-te notícias de sua filha, cujo nome é impronunciável,« que
nós, iroqueses, chamamos de Nuvem Vermelha — disse, num,tom voluntariamente
neutro e comedido.
Mas seu olhar faiscou de malícia, rejubilando-se antecipadamente com o que ia
suscitar com essas palavras numa francesa tão impulsiva quanto aquela que estava à
sua frente e que, ainda que se esforçasse por respeitar as maneiras ponderadas dos
índios, continuava submetida ao sangue fervilhante e anárquico da raça dos caras-
pálidas sem educação.
Não podia falhar.
Angélica soltou uma exclamação de alegria, e sua expressão dolente deu lugar à
mais desperta excitação do mundo.
— Honorina! Minha filha Honorina! Você sabe alguma coisa sobre ela?... Sabe onde
ela está? Ah! diabo de mohawk! Por que se calava? Por que não.o disse logo?
— Porque em seguida você não teria escutado coisa alguma dos discursos que eu
tinha de fazer-lhe. Não teria dado a menor atenção às palavras muito importantes que
tinha a lhe comunicar antes de deixá-la, para talvez nunca mais rever, e eu fazia
questão de me dirigir a uma pessoa atenta. Você não teria sequer notado, eu a conheço
— disse com um grande gesto desiludido —, que eu lhe oferecia meu único ramo de
porcelanas em sinal de aliança eterna, ó Mãe que você é! ó Mulher! Mulher! Mulher
que você é, pois você é três vezes mulher, pela lua e pelas estrelas. Há mulheres que
podem se lembrar do homem que foram num outro ciclo, e encontrar as palavras ou
atitudes que não chocam absolutamente a dignidade daquele que a ela se dirige, mas
você sempre foi demasiado mulher para se preocupar com isso...
— Fale! — exclamou Angélica, agarrando-se com ambas as mãos nos braços da
poltrona.
Se estivesse lidando com Piksarett, ter-se-ia levantado para sacudi-lo por suas
tranças de honra.
— Fale! Eu lhe suplico, Utakê! Diga-me tudo o que sabe sobre ela e não me faça
esmorecer, ou prometo que vou me lembrar que fui também um guerreiro que
manejava o cutelo melhor que você mesmo, e que o fez compreender isso uma noite
junto à fonte, e isso não aconteceu numa vida anterior.
Utakê deu uma gargalhada, imitada por seus companheiros, que não compreendiam
inteiramente a alusão, mas apreciavam a animação da cena.
Depois, acalmando-se:
— Seja! Dir-lhe-ei tudo o que sei sobre ela. Vou primeiro dizer o que sei com
certeza.
— Onde ela está? Está viva? Você a encontrou?...
O mohawk fez uma expressão melindrada.
— Se eu a encontrei? Que está dizendo? Se ela partilhou todos os meses de inverno
a vida de uma família na Casa Comprida do ohtara do Chevreuil aux Oneiouts, e,
todos os dias, eu, que me dirigia ao Conselho da Federação como chefe das Cinco
Nações, via-a e conversava com ela, até o dia em que, maldito seja, o novo Onôncio
de Quebec conduziu novamente suas tropas
até nosso vale dos Cinco Lagos e queimou o provoado de Tuansho, apesar de suas
fortes paliçadas, após um combate assustador.
"É por isso que não posso responder com certeza à primeira pergunta: 'Onde está
ela?...' Nem à segunda: 'Ela está viva?...' Pois, talvez você o ignore, quase toda a
população desse povoado pereceu, exceto alguns poucos miseráveis que consegui
arrastar comigo e subtrair por minha habilidade ao furor vingador dos franceses e de
seus danados huronianos, e desses cachorros de abenakis. Tudo o que posso dizer
com certeza é que ela não estava entre nós." Ele repreendeu com um gesto o
movimento desesperado de Angélica. "Sei que algumas mulheres e crianças
iroqueses, disseram-me, foram levadas pelos franceses até as missões de São José ou
de Quinté, perto do Forte Frontenac, mas não posso dizer-lhe seguramente se ela
estava entre elas."
Cobrindo o rosto com as mãos para dissimular seus traços, Angélica recusava-se a
encarar que a criança tivesse perecido nas chamas das aldeias incendiadas. Era
impossível. Era-lhe pois preciso desejar que Honorina estivesse em poder do.s
franceses, seus compatriotas, que eles a tivessem levado de volta a Madre Bourgeoys
ou a seu tio e sua tia do Lobo.
Utakê levantou os braços com solenidade como para reclamar do céu a inspiração e,
das pessoas presentes, a mais escrupulosa atenção.
— E agora vou lhe dizer o que sei dela, Nuvem Vermelha, por vidência.
Fechou os olhos e começou a sorrir.
— Ela chega! — murmurou. — Ela vem para você! Nao se apresse em deixar estes
lugares, Kawa, pois sua filha se dirige para o Lago de Prata para aqui encontrá-la. Ela
está acompanhada... por um anjo!...
Novamente deu uma sonora gargalhada como se tivesse sido testemunha de uma
brincadeira.
— Ah! Você me escuta neste momento, e desta vez sem dormir!...
Ria cada vez mais, sustentado pela hilaridade de seus guerreiros. E com essas
explosões de uma alegria franca, suscitada mais uma vez pelas expressões aturdidas
dos brancos, e por suas dificuldades em dar fé às revelações tão seguras dos sonhos,
os iro-queses se afastaram e se separaram daquela que provavelmente jamais
tornariam a ver.
Atordoada pelo que Utakê acabara de dizer-lhe, Angélica compreendeu demasiado
tarde que eles se haviam eclipsado. E quando quis pelo menos fazer voltar Utakê para
pedir-lhe mais informações e despedir-se melhor dele, não se encontrou mais nem
sinal do chefe mohawk nem de seus companheiros.
— Por favor, alcancem-no — suplicou ela.
Utakê não dissera sobre Honorina: "Eu a via todos os dias?..." Queria interrogá-lo
sobre a menina perdida no coração da vasta América.
E depois deu-se conta de que em nenhum momento pensara em agradecer-lhe pelos
sacos de alimento que ele lhe mandara por intermédio do jesuíta.
— Alcancem-nos!
Mas não conseguiram encontrar os iroqueses, que haviam partido à procura dos
fragmentos errantes de suas tribos, a fim de reconduzi-los ao vale dos Ancestrais, e à
procura de seus inimigos para exterminá-los.
Tinham-se diluído na vasta paisagem de montes, bosques e abismos, nas pistas
invisíveis e não-traçadas.
E, para dizer a verdade, ninguém se sentia realmente muito ansioso por alcançá-los.
CAPITULO XXXVIII
Cantor puxou o barco para a pequena praia, num recanto do rio, e depois, içando-o
sobre a cabeça, carregou-o até um abrigo de rochedos, onde o escondeu sob os galhos.
— Não iremos mais muito longe pela água — disse. — Temos de ir a pé. Mas se
andarmos bastante, poderemos estar em Wapassu um pouco depois do meio-dia.
A criança índia que o acompanhava opinou com seu penacho vermelho de cabelos
eriçados, e pôs-se a andar docilmente atrás dele. Cantor segurava-a por uma corda
presa ao pulso, pois a criança estava meio cega, e, no início de sua viagem, por várias
vezes, quase a perdera ao atravessar florestas muito cerradas.
"Maldito inverno!", pensava Cantor enquanto, num passo estugado, seguia a linha
da crista dos montes eriçados, cuja pista maltraçada os levava a Wapassu. Na Europa,
podia-se conceber o poder do deus feroz do inverno que os petrificava a todos, no
lugar em que os surpreendia? E pobre daquele que procurasse enfrentá-lo. Por pouco
os dois irmãos Lemoyne, que quiseram prosseguir seu caminho em direção à grande
missão dos jesuítas em Sault-Sainte-Marie, não puderam voltar para os odjibways sem
"se perder". Só o conseguiram graças a uma fogueira que Cantor acendera para eles,
entre duas tempestades.
Maldito inverno! Muito precoce, longo e rigoroso, que não lhe permitira salvar a
tempo Honorina. Mas teria podido fazê-lo? Pois o inverno é implacável e os teria
apanhado a ambos em qualquer lugar inexoravelmente, e, talvez, longe de qualquer
abrigo, no no man's land do deserto branco.
Em Quinté, carregando-a nos braços, pensara: ".Que importa! Está viva! Nossa mãe
a curará!"
Sua única oportunidade,.pobrezinha! Ela, que já não era muito hábil, agora
esbarrava em tudo, caía, perdia-se. Ela estava abusando, dissera consigo, readquirindo
já as rabugices de irmão mais velho. Tivera de carregá-la nas costas e acabara por
prendê-la com uma cordinha, enquanto, enfrentando os barrancos do degelo, a
travessia das aldeias irOquesas incendiadas, pilhadas e cobertas de cadáveres, o
perigo dos lagos e dos rios, cujo gelo cedia sob °s pés, empreendiam a longa viagem
de volta para Wapassu.
Em Orange, onde se concederam uma noite de repouso sob o conforto dos colchões
de penas dos holandeses, Cantor se interrogara.
Se o Hudson fora desobstruído dos gelos, teria achado mais seguro continuar a
viagem descendo em direção a Nova York. Depois, de escala em escala, subiriam
novamente para Goulds-boro. O périplo teria exigido vários meses.
Era melhor continuar em direção ao leste, pela selvageria das florestas.
Ele era como a irmã. Sentia a impaciência de voltar para casa. De voltar o mais
depressa possível para a casa dele, a casa deles. E a casa, a casa deles, ficava em
Wapassu. Era o rosto e os olhos de sua mãe, seus braços abertos, sua alegria de vê-los,
que eles não paravam de imaginar,, era a presença do pai, o sorriso dele, raro mas tão
caloroso, tão cúmplice, tão estimulante, que a gente se dispunha a conquistar o mundo
para ser digno dele, receber-lhe a aprovação, eram seus amigos, os espanhóis, os Jonas,
eram o irmãozinho e a irmãzinha que ele não conhecia, mas dos quais Honorina não
parava de falar-lhe. Ela se perguntava como bebés daquela idade haviam podido realizar
tantas proezas em suas curtas vidas.
Ele se voltava e olhava-a andar atrás dele "com um profundo sentimento de felicidade.
Tinha vontade de dizer-lhe que ela se parecia com um porco-espinho sem touca, mas
continha-se. Estava tão orgulhosa por estar vestida como um menino iroquês!
— Utakê disse que eu era digna de ser um guerreiro, e, já que havia meninos aos quais
permitiam vestir-se de mulher quando não sentiam gosto pelas armas, não havia razão
para impedir-me de me vestir de menino, pois eu atirava bem com o arco... Era bem
feito para essas mulheres idiotas que queriam que eu fosse buscar lenha ou apanhar o
animal morto pelo caçador, sob pretexto de que eu era uma menina.
As vezes ela parava. Um receio se apoderava dela.
— Acha que ela esteja morta? — perguntou um dia.
— Quem?
— Minha mãe, que está me esperando em Wapassu.
Ela dizia "minha mãe" num tom possessivo, mas Cantor não a levou a mal. Negava
enfaticamente.
— Não! Isto não e possível. Ela nao pode morrer. Vou lhe explicar por quê. Muitas
forças malignas se aliaram contra ela. E você sabe o que acontece nesses casos?...
— Não!
— Um bem imprevisto nasce desse mal intenso. É uma lei, como numa operação de
transmutação química.
Honorina balançava a cabeça. Desde a mais tenra idade, ouvira discutir ao seu redor
química, alquimia, fenómenos científicos.
Ela contou que numa noite de inverno, nos cantões iroqueses, enquanto estava
dormindo, vira Angélica moribunda, e começara a correr, urrando: "Minha mãe está
morrendo! Oh! façam alguma coisa por ela!...", pondo em polvorosa todos os
habitantes da Casa Comprida. Corriam de uma toca a outra, informando-se sobre a
saúde da índia que a adotara.
Calou-se, rememorando fatos que haviam se apagado de sua memória desde que
fora acometida pela doença. Depois continuava suas confidências. No fogo vermelho
da febre, várias vezes Angélica fora visitá-la. E, persuadida de que sua mãe estava ao
seu lado, lutava a fim de poder falar-lhe. Mas quando voltava a si, só via tristes rostos
indígenas inclinados sobre ela e que sacudiam a cabeça: "Não, sua mãe não está
aqui!" Uma velha índia compreendeu o que era preciso fazer para manter viva a
menininha branca. Dizia-lhe: "Beba este caldo, e quando despertar sua mãe estará
aqui".
Uma vez ela acordou, e estava curada. Podia levantar-se, ir ao rio. A velha índia não
estaca mais lá, pois morrera,-e Honorina sabia que sua mãe jamais viera. Pouco
depois, os franceses chegaram e se encarregaram das mulheres e das crianças
sobreviventes.
CAPITULO XXXIX
1. Os Amores de Angélica
2. O Suplício de Angélica
3. Angélica e o Príncipe das Trevas
4. A Vingança de Angélica
5. Angélica e as Insídias da Corte
6. Angélica, a Favorita do Rei
7. Angélica e o Pirata
8. Angélica, Cativa no Harém
9. Angélica, Rebelde Guerreira
10. Angélica, Clandestina... Maldita
11. Angélica no Barco do Amor
12. Angélica no Fim do Arco-íris
13. Angélica na Floresta em Chamas
14. Angélica e a Caçada Mortal
15. Angélica e Seu Amor Proibido
16. Angélica Ultrajada
17. Angélica e a Duquesa Diabólica
18. A Satânica Rival de Angélica
19. Angélica e o Çomplô das Sombras
20. Angélica, Rainha de Quebec
21. O Inesquecível Natal de Angélica
22. Angélica e o Perdão do Rei
23. Angélica e as Feiticeiras de Salem
24. O Fascínio de Angélica
25. Angélica e a Estrela Mágica
26. O Triunfo de Angélica
Caro leitor,
Neste volume, encerramos a publicação de todos os livros escritos por Anne e Serge
Golon, com as aventuras de Angélica, a Marquesa dos Anjos.
Foi um grande êxito de vendas, um sucesso da Nova Cultural. Tanto assim que, a
partir da próxima quinzena, estaremos reiniciando o lançamento dos títulos dessa série.
O Editor
OS AUTORES:
ANNEE SERGE GOLON
Serge Golonbikoff nasceu em -Bukhara (URSS) em 1903 e Simone (Anne) Changeuse,
em Toulon (Franca), em 1928. Çonheeeram-se e casaram-se na Africa, para onde Anne,
com o dinheiro de um prémio literário, viajara como jornalista. Serge era uma ,
celebridade na época: formado em geologia, mineralogia e química, cruzara o misterioso
continente em busca de ouro e diamantes, acabando por participar da descoberta de
estanho em Katanga (Zaire). Atraída por sua fama, Anne resolveu entrevistá-lo.
De volta à França, em 1952, já casados, tiveram a ideia de escrever unia novela histórica
ambientada no século XVII: Serge colhendo as informações no Arquivo de Versalhes e
Anne exercitando um talento para as letras manifestado já na infância.
O sucesso de Angélica, Marquesa dos Anjos, lançado em 1959, foi imediato, animando os
autores a produzirem novos volumes. Estes, traduzidos para vários idiomas e transpostos
para o cinema, fizeram da heroína uma das personagens mais famosas do mundo.