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cadernos de campo
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Cader nos
de campo
REVISTA DOS ALUNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
ANTROPOLOGIA SOCIAL DA USP
A n o 11 • 2 0 0 2
10
4
CONSELHO EDITORIAL
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS Prof.ª Dr.ª Beatriz Perrone Moisés, Prof.ª Dr.ª Dominique Tilkin
HUMANAS Gallois, Prof.ª Drª. Edilene Coffaci de Lima, Prof.ª Dr.ª Else
Diretor: Sedi Hirano Maria Lagrou, Prof. Dr. Etienne Samain, Prof.ª Dr.ª Fernanda
Arêas Peixoto, Prof.ª Dr.ª Heloísa Pontes, Prof. Dr. John Cowart
Vice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz Dawsey, Prof. Dr. John Manuel Monteiro, Prof. Dr. José
Francisco Quirino dos Santos, Prof. Dr. José Guilherme Cantor
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA Magnani, Prof. Dr. Júlio Assis Simões, Prof.ª Dr.ª Laura de Mello
e Souza, Prof.ª Dr.ª Lilia Katri Moritz Schwarcz, Prof. Dr. Marcio
Chefe: Prof.ª Dr.ª Sylvia Caiuby Novaes Silva, Prof. Dr. Marco Antônio da Silva Melo, Prof.ª Dr.ª Maria
Vice-Chefe: John Cowart Dawsey Filomena Gregori, Prof.ª Dr.ª Maria Lúcia Montes, Prof.ª Dr.ª
Marta Amoroso, Prof.ª Dr.ª Neusa Gusmão, Prof. Dr. Omar
Ribeiro Thomaz, Prof.ª Dr.ª Paula Montero, Prof. Dr. Peter Fry,
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM Profa. Drª. Renata Paolielo, Prof. Dr. Renato Queiroz, Prof. Dr.
ANTROPOLOGIA SOCIAL Sérgio Adorno, Prof.ª Dr.ª Simoni Lahud Guedes, Profa. Dra.
Suely Kofes, Prof.ª Dr.ª Sylvia Caiuby Novaes, Prof. Dr. Tiago
Coordenadora: Prof.ª Dr.ª Lilia Katri Moritz Schwarcz
de Oliveira Pinto, Prof. Dr. Vagner Gonçalves da Silva , Prof.
Vice-Coordenador: Prof. Dr. Márcio Silva Dr. Walter Neves.
ISSN 0104-5679
Sumário
ar tigos ................................................... 9
artigos Entrevista com Luiz de Castro Faria - Ana
Paula Mendes de Miranda e Melvina Afra
Narrativas e o modo de apreendê-las: A Mendes de Araújo ........................... 99
experiência entre os caxinauás - Eliane
Camargo ......................................... 11 tradução ........................................... 115
Etnias de fronteira e questão nacional: o caso WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova
dos “regressados” em Angola - Luena gestão da miséria nos Estados Unidos -
Nascimento Nunes Pereira ............... 45 Antônio Rafael .................................. 117
Um grande atrator: toré e articulação Teses e disser tações defendidas .......... 153
dissertações
(inter)étnica entre os Tumbalalá do sertão
baiano - Ugo Maia Andrade ............ 79
Editorial
ar tigos
10
N ARRATIV
ARRATIV AS
TIVAS E O MODO D E APREENDÊ - L AS : A EXP ERIÊNCIA ENTRE OS
EXPERIÊNCIA
CAXINA UÁS.
CAXINAUÁS
E LIANE C AMARGO
CELIA ( CNRS ) E NHII ( USP ) *
resumo: A transmissão oral é, ainda hoje, uma abstract: Narratives and the way of getting into
prática dinâmica entre os caxinauás. Alguns de them: an experience among Cashinahua. The oral
seus mecanismos lingüísticos mostram uma transmission keeps going, still nowadays, as a
afinidade lexical entre forma e sentido: yui ‘contar dynamic practise among Cashinhaua people.
histórias’, (xenipabu) miyui ‘histórias (dos Some of its linguistics mechanisms show a lexical
antepassados)’, e gramatical: eska ‘assim’, segundo affinity between form and sense: yui ‘to tell stories’,
o que aprendi, e haska ‘assim’, como asserto o que miyui ‘traditional stories (learnt by oral
enuncio. Esses quatro exemplos são uma amostra transmission)’, and grammatical: eska ‘so (referring
de que cada língua, com seu léxico, categoriza, to what has been learnt)’, and haska ‘so’ (the
organiza e conceitua não somente lexemas, mas narrator assumes what he says). These four
também organizações gramaticais. A presente examples are a sample of how each language with
contribuição propõe um breve panorama sobre a its lexicon categorizes, organizes and
transmissão oral, sua apreensão pelos ‘locais’ e conceptualizes not only lexicon, but also
por nós, estudiosos da língua. grammatical organizations.
palavras-chav
palavras-chave:e: Amazônia, caxinauá (kaxinawa, key-wor
key-words: ds: Amazon, caxinauá(kaxinawa,
cashinahua), etnolingüística, língua indígena, cashinahua), etnolinguistics, indian language,
Pano (família lingüística), tradição oral, Acre. Pano, oral tradition, Acre.
Para este estudo, elejo uma narrativa que O interesse da coleta de narrativas para
conta a história de um anzol marupiara, isto o meu estudo sobre o caxinauá2 é o de
é ‘com sorte’ (xeamati menki1) que virou apreender a organização da estrutura da
panema, ou seja ‘sem sorte’ (yupa), por ter língua, com seus processos morfossintáticos
tido os peixes que pescou (bakawan e e a semântica que advém da situação de
yapawan ) comidos por uma mulher comunicação. As narrativas podem revelar
menstruda (ainbu himiya). O texto revela termos tabus não verbalizados fora do
que a infração de consumir um desses contexto narrativo, estruturas arcaicas,
peixes em período menstrual faz com estruturas próprias de narrativas, com as
que o esposo (da infratora) torne-se quais o enunciador informa a proveniência
panema, ao menos temporariamente. do que narra (experiência pessoal ou
Para sair desse tipo de panemismo uma transmissão oral). Tem-se ainda, através das
longa dieta se faz necessária, como narrativas, acesso aos valores aspecto-
abordada no item 3 . temporais que remetem a fatos realizados em
Da d o s e x t r a í d o s d a n a r r a t i v a um tempo remoto. Um outro fator relevante
permitem mostrar uma faceta de como no ato de narrar é o comportamento, seja
esse grupo organiza o mundo: o que é pela expressão corporal, seja pela retórica,
recebido pela tradição oral é transmitido ou, ainda - conforme a situação de
pelas mesmas vias. Ao iniciar a sua fala comunicação -, pela dialética do narrador
referente à transmissão de conhecimento, o diante do seu público. Presenciando e
mediador da mensagem, i.e., o narrador, compartilhando momentos importantes da
declara ser dos antepassados a autoria da transmissão oral dos caxinauás3, pude ainda
narrativa. Esta declaração é legitimada pela apreender algumas das mensagens liminares
base lexical eska- e pelo morfema modal - de suas narrativas, como ilustram alguns
kiaki. Ao decorrer da narrativa, o narrador trechos do relato proposto adiante.
personaliza a sua versão com ajustes pessoais
através de onomatopéias, intonações, gestos,
estruturas sintáticas nas quais utiliza formas 2 Meu estudo descritivo da língua caxinauá (hantxa kuin)
que remetem à responsabilidade do foi iniciado em 1989, no alto rio Purus (Brasil). Desde
1994, tenho estado no mesmo rio e em seu afluente, o rio
enunciador, como o uso do assertivo –ki. Curanja (kuda hen), no Peru. As diferentes pesquisas de
Com esse morfema, o enunciador assume a campo totalizam um pouco mais de dois anos de contato
responsabilidade do que enuncia, cuja in loco com o grupo.
paráfrase seria do tipo: eu afirmo que/eu 3 Os caxinauás (huni kuin) são um grupo cinegético e agri-
asserto que. cultor. A carne de caça (mitu) é o alimento de prestígio
por excelência. A população global está em torno de 5.400
pessoas, a saber: 3.964, no Brasil, e 1.400, no Peru (ISA,
2001:12). Eles têm sido um dos grupos mais bem docu-
mentados em língua vernacular na literatura etnográfica
amazônica do Brasil. Em 1914 [1941], o historiador João
Capistrano de Abreu publicou um vasto material bilingüe
1 Com adaptações para o leitor do português, a grafia caxinauá-português com narrativas sobre cosmologia,
da transcrição do texto segue o sistema fonológico fatos cotidianos e sessenta e seis advinhações caxinauá.
da língua, composto de quatro vogais e de quatorze Nove décadas depois, em 1995 [2000], a CPI-Acre edi-
consoantes, a saber: a, i, e (representa uma vogal tou uma coletânea que contou com uma importante par-
central média), u, m, n, p, t, c, k, b, d, y (oclusiva ticipação dos caxinauás, na transcrição e na versão em
palatal surda), tx (oclusiva palatal sonora) s, x (fric- português dos textos em língua vernacular. Hoje, muitos
ativa retroflexa), h, ts, w. caxinauás, sobretudos homens, são escolarizados.
1. A TEATRALIDADE DO NARRADOR E O
TEATRALIDADE Em geral, o público mantém-se em
PÚBLICO silêncio. Passagens gozadas arrancam risos,
principalmente de crianças. São estas ainda
A língua tem recursos morfossintáticos que intervêm ocasionalmente, fazendo
e estilísticos que indicam o dinamismo e a perguntas para entender melhor um fato
rapidez de uma ação. São morfemas como ainda não conhecido/memorizado,
–baunbaun ‘circular’, -bidan ‘vaivém’, -kain verificando se não perderam o fio da meada.
‘centrífugo’, -bain ‘centrípeto’ que indicam Às vezes intervêm, adiantando algumas
diferentes tipos de movimentos. As seqüências. O silêncio é uma conduta de
narrativas caxinauás são em geral floreadas respeito pelo narrador, sobretudo se ele é
com muitas repetições, de forma a enfatizar considerado um representante vivo do
ações fortes, sobretudo as que expressam conhecimento ancestral: anibu para os
esforço físico e/ou mental (dor, muito homens e inka yuxan para as mulheres. Fora
trabalho, longas caminhadas). de passagens engraçadas, rir é permitido (e
Os narradores já consagrados têm como mesmo freqüente) quando narradores-
característica uma grande desenvoltura novatos estão sendo postos à prova. Sob risos
corporal, acompanhada de expressões faciais muitas vezes incontidos dos presentes, eles
e corporais, e ainda usam recursos sonoros devem contar a sua versão até o fim e devem
para imitar barulhos diversos ou sons de manter-se indiferentes à gozação dos jovens:
animais, mudando a intonação conforme o são etapas a serem superadas. O narrador-
personagem4. Essa versatilidade aparece novato pode chegar a narrar histórias da
especialmente entre os homens, mesmo que cosmologia caxinauá fora do domínio
o desempenho de algumas mulheres não doméstico, ou seja, fora de sua residência
deixe nada a desejar. Com todas essas ( hiwe ). Apesar da estreita relação de
encenações, que facilitam a visualização do parentesco que o liga com o público, este é
texto, o narrador masculino se mantém exigente, rindo da versão considerada “mal
sentado (às vezes deitado) na rede5. Na contada”. Os novatos estão sendo
presença de homens, as mulheres se sentam observados por ‘detentor(es) do
no chão. conhecimento ancestral’ que toma(m) a
palavra, fornecendo explicações de passagens
importantes não mencionadas, retomando
4 No caso específico de Marcelino Piñedo, que narrou o seqüências mal formuladas ou partes que
texto abaixo: yaix bipapi xeamati baka bipaunibuki ‘pes- julgam importantes para o corpo da
cavam com anzol de dedinho de tatu’, ele emprega mui-
tas onomatopéias e repetições de forma a dinamizar o
narrativa6.
discurso. Esta maneira pessoal de narrar, bastante apre-
ciada, vem sendo adotada por seus descendentes.
6 Poucas vezes assisti a “sessões de ensinamentos” como
essas e sempre em uma mesma comunidade, o que não
5 Para o meu estudo, ocorreu-me fazer gravações no me permite afirmar que seja uma prática sociocultur-
roçado. Já aconteceu de passar um mês acampada na al. Uma das vezes, sugeriram-me ligar o gravador para
praia, onde fiz gravações à noite com a família que eu uma sessão de xenipabu miyui yuikindan: fala das
acompanhava. Nesses casos, fora de casa, nem sem- histórias dos antepassados, que o anfitrião fazia para
pre levávamos a rede, e o narrador masculino se sen- mim. Nesta ocasião, foi solicitou se que a uma das
tava no chão (varrido ou coberto com folhas, ou então mulheres (não residente daquela casa) participasse das
em cima de uma esteira). Em todas essas situações, o gravações. Quando ela terminou de narrar, o anibu ‘an-
narrador sempre esteve acompanhado de seu cônjuge, cião’ retomou muitas partes da narrativa recontando
filhos e netos (consangüíneos). novamente com detalhes.
ar tigos
14 ELIANE CAMARGO
ar tigos
16 ELIANE CAMARGO
O termo miyui ‘história’ pode vir Quando se conta uma história após a
posposto ao nome do personagem, outra, sendo a que se segue uma outra
explicitando ser a “história de” (3a-b): versão da anterior, a fórmula introdutória
não é mais empregada. O enunciador
(3). indica com o termo betsa ‘outro’ que se
a. Dume K uin Teneni miyui mia yuinun
Kuin trata de uma outra versão. Em alguns casos
eskapaunikiakidan o narrador retoma o nome da narrativa
(Eu) vou te contar a história de Dume Kuin
que vai contar: betsa…dume yuxibu
Teneni. Ela era assim… miyui, como ilustra (5c):
b. Dau pepa Ainbu Yuxan Kudu miyuiki
Kudu miyuiki, (5).
eskanikiaki a. Betsa
etsadan, xenipabu betsa
betsadan.
A história das plantas venenosas de Ainbu Yuxan Uma outra, outra (história de) antepassado(s).
Kudu era assim…
b. Betsa nukun xeamati, xeamati waxunnun
bia, mia yui-nun
Em (3c) o narrador chama a atenção para
um dos personagens. Trata-se da ‘menina que Eu vou te contar outra (história) do nosso anzol.
copulava com uma minhoca’ ainbu nuin (O pescador) fez um para pescar.
bene wa- e que mais tarde casou-se com as
cader nos de campo · n. 10 · 2002
NARRATIVAS E O MODO DE APREENDÊ-LAS: A EXPERIÊNCIA ENTRE OS CAXINAUÁS 17
c. Miyui betsa
betsadan hawen kena dume yuxibu Em (7a-c) nota-se a construção hatixunki
miyui. seguida do nome do personagem principal
Outra história, o nome dela é Dume Yuxibu. da narrativa. Uma outra fórmula, menos
produtiva, é ilustrada em (7d):
Uma fórmula distinta das apresentadas
acima é enunciada principalmente por (7).
mulheres. Informa que a narrativa procede a. H atixunki
atixunki, nukun Txapaketanwan
dos ‘antepassados’ xenipabu , e, em miyuidan
seguida, pela estrutura de posse (en miyui A nossa história do Txapaketanwan16 acabou.
‘minha história’), expressa uma versão
como fazendo parte de seu ‘estoque de b. Hatixunki Sanin Taden Iti miyuidan
conhecimento’. Acabou a história de Sanin Taden Iti.
(6). c. Ibubuki nukui kaidan. Hatixunki
atixunki, ainbu-n
inu bene wa-ni miyuidan.
Eskanikiaki xxenipabu
enipabu
enipabu, en miyui
miyuidan matu
yuinun ninkawe Os pais dela foram encontrá-la. Acabou a
história da mulher que se casou com a onça.
Eu vou contar para vocês como eram os
antepassados. Escute(m)! d. Inawan iyuni huayadan. Hatixunki
atixunki, na miyui
hantxadan.
AS FÓRMUL AS DE ENCERRAMENT
FÓRMULAS O
ENCERRAMENTO
Quando chegou havia sido levado por Inawan.
Como mencionado acima, as fórmulas Esta história acabou de ser contada.
de encerramento são mais homogêneas
que as de introdução, apresentando três As formas cristalizadas hatiski e desuki
lexicalizações 15 , hatixunki , hatiski e são usadas para encerrar uma narrativa de
desuki, que designam que aquela narrativa origem, de encantações ou de fatos
chegou ao seu término. Com hatixunki, vivenciados pelo narrador. Em (8a), o termo
o narrador finaliza todas as narrativas que dami ‘transformação’ revela que se trata de
se referem a personagens importantes da uma narrativa cujo foco é a ‘transformação’.
cosmologia caxinauá. As narrativas de Se em (8a) trata-se da transformação de um
encantações ou ainda aquelas de fatos animal (sapo) em outro animal (mutuca),
vivenciados pelo narrador são marcadas (8b) aborda a metamorfose de pessoas em
pelas outras duas lexicalizações. animais:
Hatixunki marca as narrativas (8).
concernentes a personagens importantes a. Damidan pesteidan hatun nuku
da cosmologia, como Txapaketanwan, pimiski. Pestendan, hatixuki, tua miyui
Sanin Taden Iti, Inawan, Ainbu inu bene. daminaidan. Hatiski
atiski.
ar tigos
18 ELIANE CAMARGO
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20 ELIANE CAMARGO
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22 ELIANE CAMARGO
Mesmo havendo uma palavra para 1. betsa28 nuku-n xeamati, xeamati wa-xun-
‘tarrafa’ hisin no estoque lexical da língua nun bia, mia yui-nun, yaix bipapi xeamati wa-
de origem, o narrador emprestou do xun, (Vou) te contar outra história do nosso
português a palavra ‘malha’ maya [maja]. anzol. (O pescador) fez um anzol para pescar:
Na frase dispi mayakin txaipa waxun, que o anzol feito de dedinho de tatu.
seria ‘faz uma longa malha de soca de mais 2. dispi maya-kin, txaipa wa-xun, mais de
de 50 metros [para pegar peixe]’, o narrador 50 metros de dispi maya-xun, yaix bipapi,
refere-se ao pescador que está enrolando o xeamati maya-xun, dispi-ki bake-xun, ha-
fio (muito longo) para dar um nó. wen baka biti-k.
(O pescador) fez uma longa corda (de
5. APRESENTAÇÃO DO TEXT
PRESENTAÇÃO O
TEXTO algodão), com mais de 50 metros, para
com o anzol de dedinho de tatu, puxar o
A narrativa é apresentada em versão peixe.
bilingüe, tendo na coluna à esquerda o texto 3. bake-xun mexku 29 tsaka-xun, haintxi-
em língua caxinauá e na coluna à direita a xun, Para puxar e matar (os peixes), ele
correspondência em português. As põe a isca de mexku .
informações contidas entre parênteses
referem-se a dados complementares, 4. nuanwan-anu po a-xun,
(Daí,) joga (a corda) no poço: po (ouve-
fornecidas ou pelo narrador (coluna à
se o atrito do contato da corda com a
esquerda) 27 ou em português (coluna à água).
direita). Estas últimas referem-se a
esclarecimentos que proponho para um 5. mana-nun bakawan-nan-dan bi-bain-
melhor entendimento da tradução. Os iki-ki, nini-bidan toh deda-kindan toh,
hífens segmentam o radical da palavra (o po pu pu keti a-xun, (tsau deda-kindan),
primeiro elemento) e os diferentes sufixos bakawan bi-ai-dan, (O pescador) fica
(os demais elementos gramaticais) que lhe esperando até o bakawan pegar a isca.
(Daí) ele vai puxando toh , e ao puxar po
são associados. Informações complementares
pu pu , bate (no peixe) com o terçado e
encontram-se em nota de rodapé.
vai puxando, puxando o bakawan que está
pegando (o anzol).
6. O TEXTO
TEXTO
6. deda-xun datan 30-tan,
(Puxa) e deixa-o na praia.
yaix bipapi xeamati baka bipaunibuki
Pescando com anzol de dedinho de tatu 7. ana betsa, mexku betsa haintxi-xun,
bakawan ka-ai
De novo, pôs outra isca de mexku , e lá
27 Com a colaboração de Paco Puricho Piñedo, a narrativa
foi transcrita, traduzida e verificada in loco. A compreen- vai o bakawan
são das nuanças semânticas da língua foi possível graças
às explicações fornecidas pelo narrador, Marcelino Ce-
cilio Piñedo. Contamos ainda com a ajuda de seus filhos
Paco, Jairo e Mequias. Gravado em 1994, em Colombi-
ana, no rio Curanja, Peru. 29 A isca com o peixinho mexku é amarrada com uma soca
(dispi) no anzol feito de dedinho de tatu (yaix bipapi).
28 O narrador encadeou uma história na outra sobre os seres
temidos da água, por isso inicia esse relato com betsa 30 Datan indica que o personagem puxa o peixe, deixando-
‘outro(a)’, isto é, uma outra história. o na areia da praia.
ar tigos
24 ELIANE CAMARGO
8. pu, pok, nua namakis-dan, pu ak-a, tsau- daí (joga n’água) po, como da outra vez e no
xun31, pu, pok (lança a corda longe) bem lá no mesmo lugar, o anzol mergulhou e ali
meio do poço, pu, fez o barulho do atrito da amontoaram-- se peixes.
corda com a água. Assentou (a corda, lá dentro
14. bi-iki-ki ana-dan. bi-bidan-ai, ana nini-
do poço).
bidan-kin, (nini-a-kin, nini-bidan-a-kindan,
9. mi-n mana-nun, mi-n mana-nun, mi-n nini-bidan-a-kindan), tun keti a-kindan, tso.
mana-nun ana bi-bain-iki-ki32, nunu-kain-ai. Parece que está pegando de novo. (O peixe) ia
Você espera, espera, espera, e (daí) percebe que pegando (a isca) e (o pescador) ia de novo
(a corda) está se mexendo de novo. puxando pra cá, pra lá (puxava pra lá, pra cá,
puxava pra lá e pra cá) e tun arrastou (o peixe)
10. he daun, daun, daun, unu puntes wa-tan-
até a praia tso, onde o deixou.
aya, mi-n nini-bidan-a hu-i-dan, nini-bidan.
E quando vai puxando he daun, daun, daun, 15. hati bi-nan-we, i-tan
você vai puxando prá lá, prá cá, e vai indo Vamos pegar só isso!, pensavam.
(em direção à praia) e continua puxando,
16. bu-pauni-bu-kiaki.
arrastando (o peixe) até a praia.
Levaram (muitos peixes).
11. toh, keti tsau, deda-kindan, xada-baun,
17. nuku-n beya xeamati-wen-dan yaix
tsau deda-kindan,
bipapi-dan, ha-wen kena-dan.
E toh (você o assenta na areia), tsau corta-
É nosso costume (de pescar) com o anzol cujo
lhe.
nome é dedinho de tatu.
12. menki-dan yaix bipapi-dan, menki-dan
18. haska wa-tan, hatu pima-kin itxa wa-xun,
xeamati menki-dan,
hatu pi-ma-kin ha-wen xau itxa wa-xun, puta-
O dedinho de tatu é esperto. O anzol é um
kin. Fazem assim: dão-lhes de comer (e por
excelente pescador.
fim, quando terminam de comer), ajuntam
13. ana betsa keun-xun po, habias-tiu-di-dan, os espinhos de peixe e jogam fora.
puku-a, hakima-tan ik-a-tan,, puku-a.
19. ana baka bi xada katsi-dan, bi xada katsi33,
De novo, pega outra isca e enfia (no anzol) e
nuku yupan wa-mis-bu-ki, i-xun-dan,
Querem novamente pegar mais peixe, querem
31 Nesta passagem, ao trabalhar a tradução da narrativa com amontoar mais (peixes, mas se) ficam
o narrador, anotei as informações complementares, tanto panemas, dizem.
em espanhol como em caxinauá, que o narrador fornecia
ao reescutar a gravação. Dentre essas informações, ex- 20. baka xeamati-wen bi-a, ainbu himi i-kin pi-
plicou que o pescador puxava a linha para o seu lado, a-dan yupa-mis-ki, ana bi-a-ma-dan.baka
mas o peixe também, com isso o peixe ficou com o corpo
todo amarrado com a linha e, desse jeito, tentando se sal-
xeamati-wen bi-a, ainbu himi i-kin pi-a-dan
var, atravessava o rio de um lado para o outro. Disse ain- yupa-mis-ki, ana bi-a-ma, ma yupa wa-a-bu-ki,
da que alguém que está na margem do rio grita: nedi xaxu Se a mulher menstruada comer do peixe
bewe, aka ‘Traga a canoa para este lado aqui! disse’.
pescado com esse anzol, (o pescador) fica
O informante adicionou que quando o amigo (haibu) pe-
diu ao pescador que voltasse para a praia com a canoa, o panema e não pesca mais. Se a mulher
peixe novamente mergulhou (bitxi) todo enrolado com a menstruada comer do peixe pescado com esse
soca: hawen haibun xaxu beaya ana bok bitxibainkin ‘O anzol, (os pescadores) ficam panemas e não
amigo dele, ao pedir para trazer a canoa, bok de novo, o
peixe mergulhou levando o pescador para dentro do rio.’ pescam mais, (pois) já estão panemas.
O sufixo -bain associado a bitxi ‘mergulhar’ indica que o
peixe mergulhou abruptamente, puxando o homem rio
33 O narrador explica que o pescador tem cuidado com o
adentro.
osso do peixe, arrastando-o para jogar fora do rio e pon-
do-o na praia, em seguida volta ao rio para pegar mais
32 Isto é, espera pouco tempo e logo depois pega outro peixe. peixe.
21. ha yupa wa-a-bu-n, yutxi yutxi-wen peixe para a superfície. Os peixes uns atrás
xeamati pukus a-kin, a-xun bi-bain-bidan34, dos outros iam mergulhando (e o anzol ia
Se ficam panemas, põem pimenta no anzol e pegando), pegava yapawan.
jogam-no n’água, (daí) puxam (o anzol) pra
29. nini-bidan (nini-bidan-kin, nini-bidan-
lá e pra cá.
kin) teh, tsok, deda-kindan,
22. nu-n duntan, sama-ke-i menki-mis-ki uxe e (o pescador) ia puxando, puxando, puxando,
bestitxai, binu-tan. puxando: teh, tsok cortou (o peixe) com o
Guardamos o peixe e jejuamos durante um machado.
mês, daí voltamos a ser excelentes pescadores.
30. ton tsek mananan-dan tsok tsau-ken.
23. ana puku-i ka-a unanxubida bi-iki-ki. (Depois) ton, tsek (o pescador) arrastou o(s)
Voltamos a procurar peixe, jogando o anzol peixe(s até) o barranco e tsok puxou(-o(s))
no rio e parece que rapidamente ele (o anzol) para o barranco.
pega (peixes).
31. nu-n mana-ai tsau-ken.
24. ha bi-bain-ai, mi-n a-bidan-ai, nini-kidan-kin, Esperamos sentados.
Ele (o peixe) puxa para o lado (do pescador).
32. ana ha bi-bain-iki-ki a-bidan-a rok hantse-
25. nini-bidan-a-kin, nini-bidan-a-kin, nini- ke-i-dan,
bidan-a-kin, nini-bidan-a-kin, nini-bidan-a- (O anzol) ia pegando novamente por todos
kin, ton, tsau deda-kin-dan, os lados, vai pra lá e volta (com peixe), rok e
Você vai puxando, puxando, puxando, (o pescador) tira o anzol da boca (do peixe).
puxando, puxando, puxando, puxando e daí
33. hanua baka unan-xu-ki, ma ha-wen (kexa
ton (pega o peixe), tsau corta-o com machado.
baxne-a, ka-xu-ki) ma hamabia,
26. haska wa-xun: tou mananan datan-tan, Agora o peixe conhece o anzol e, ao topar o
É desse jeito mesmo que acontece: tou (o anzol com a boca, ele vai embora, (pois) já
pescador) jogou (o peixe) na praia. está esperto.
27. ana habiaskadi wa-xun: pok ak-a, puku ak- 34. nu-n mana tsau-ken.
ai, po namakis puku-i-dan po, nua namakis Esperamos sentados.
pok. (Daí) refez tudo de novo: (põe a isca no
35. ana ha bi-bain-iki-ki a-bidan-a.
anzol e) pok joga-a no rio: po. Joga-a bem no
(O anzol) vai novamente pescando por aqui e
centro, po bem no meio do poço do rio: pok.
por ali.
36. tok hantse-ke-i-dan, hantse-ke-kain-a-ki.
28. (puku-i-dan) nunu-kain, bi-bain-iki-ki,
tok, (o peixe) tira o anzol da sua boca, tira e
nunu-kain-ai, bakawan xea-a, bakawan-nan-
vai embora.
dan, nunu-kain-ai, bi-bain-iki-ki yapawan-
nan-dan, 37. hanua baka unan-xu-ki.
(O anzol) mergulha aqui e ali, e vai O peixe já sabe que o anzol é para pegá-lo.
mergulhando aqui e ali. Daí vai trazendo o 38. ma ha-wen kexa baxne-a, ka-xu-ki, ma
ha-wen nabu yui-a-kin, ma baka unan a-xu-
ki, ana bi-a-ma, ana baka bi-a-ma-ken,
34 Cura-se o panemismo com pimenta colocada no anzol
Ele já está esperto e já contou à sua família
para pegar peixe novamente. Uma vez feita a dieta e pos-
ta a pimenta no anzol, o pescador volta a pescar. O pes-
cador, ao lançar a linha n’água, notou que o anzol voltou
a ser marupiara pelo fato de sentir que a linha puxava 35 Isto é, o peixe já conhece a astúcia do anzol e não cai
para o fundo do rio passou a puxá-la para o lado dele. mais na armadilha.
ar tigos
26 ELIANE CAMARGO
(de peixes). O peixe já conhece35o anzol e não narrador em relação ao que enuncia e
cai mais nessa armadilha. Não pega mais (a apontam os elementos que provêm do
isca). conhecimento tradicional que são do
39. hu-xun ma hadukun bi-a-ki, ma hadukun domínio coletivo.
bi-a be-xun, be-xun pi-pauni-bu-ki bakadan,
Antes (o peixe) vinha (perto do anzol) e pegava 7. LÉXICO BÁSICO DA NARRATIV
NARRATIVA
TIVA
(a isca). Antes (o anzol) pegava os peixes que
comiam (a isca). ana: de novo, novamente.
40. (bakawan bi-kindan haska wa-pauni-bu- baka: peixe.
ki). baka xeamati-wen bi-kindan, haska wa- bakawan: peixe (sp. grande).
pauni-bu-ki. baxne: esperto.
Era assim que acontecia antigamente quando bestitxai um (numeral).
os peixes mordiam a isca. Era assim que se bi: pegar; baka bikin ‘pegar peixe (pescar)’.
pescava com anzol. binika:: pegador, baka binika ‘pescador’(lit.pegador
binika
de peixe).
A partir dos dados lingüísticos e de suas bipapi: dedinho.
análises apresentadas, pode-se notar que datan: puxar.
cada língua, com o seu léxico, categoriza, deda: bater com machado (para matar).
organiza e conceitua não somente palavras, dispi: corda.
mas também organizações gramaticais e dutan: guardar, arrumar.
retóricas. Vimos em caxinauá que, entre as hadukun: antes, primeiro.
primeiras, eska e haska mostram uma hantse: tirar da boca.
sutileza semântica tomada pelo enunciador haska: assim, haska wa ‘fazer assim’, haska
em relação ao que enuncia. Com eska, ele wa-pauni-bu-ki ‘faziam assim’, ‘era
informa ter adquirido tal conhecimento assim que faziam’.
pela tradição oral, mas somente com haska himi: sangue, ainbu himi ikin ‘mulher
se responsabiliza pela versão que divulga. menstruada’.
Entre as segundas, os caxinauás evidenciam keti: assentar, deixar (na praia), arrastar algo
por meio de morfemas “mediativos” a e deixar em algum lugar.
posição que tomam em relação a mensagem kexa: boca.
que divulgam. O narrador mediatiza a mana: esperar.
informação, explicitando com -kiaki que menki: marupiara, com sorte para caçar ou
se trata de um conhecimento coletivo que pescar.
lhe foi transmitido e, por sua vez, ele está mexku: peixe (sp. pequena).
no papel de transmissor. Com -iki, que nabu: família.
remete a fatos em realização ou não namaki: no meio de.
realizados, o enunciador explicita que não nini: puxar, (ninin, conforme a variação
se responsabiliza pelo que enuncia. dialetal).
O entendimento de recursos lingüísticos nuan: poço; nuanwan ’poço grande’.
como esses permite-nos apreender melhor pi: comer.
a essência do texto, com suas sutilezas piti: comida.
semânticas. Como vimos, certas estruturas same: jejuar.
lingüísticas mostram a posição tomada pelo unan: conhecer.
ar tigos
28
resumo: O ensaio aborda a emergência étnica de uma família abstract: This paper deals with the ethnic emergence of an
extensa na região do Vale do Jequitinhonha a partir da extended family in the area of Vale do Jequitinhonha River. This
intensificação – incidente tanto sobre o plano pessoal como o process took place, both in the personal and social levels, as the
social – de significados para o patronímico Índio, também finding out of Indian patronymic, also used in the area for
utilizado regionalmente como um designativo étnico na ethnically labeling out people. The aim is to follow analytically a
identificação de seus portadores. Trata-se de acompanhar process through which names occur as symbolic carriers of
analiticamente um processo através do qual os nomes constituem meaning, which make it possible for the actors to critically
veículos simbólicos que possibilitam aos atores a elaboração elaborate social vectors present in the field of interethnic relations
criativa de traduções das forças presentes no campo das relações of categories for the self-identification of Brazilian Indians. For
interétnicas para as categorias da auto-identificação indígena. this research, several methodological approaches have been used
Para conduzir a investigação, diversas abordagens teóricas foram in a complementary way, according to procedures for onomastic
utilizadas de modo complementar, de acordo com a metodologia studies. These studies deal with proper names, based on the
característica da onomástica - que se dedica ao estudo dos nomes epistemological presupposition that there is a close relationship
próprios, partindo do pressuposto epistemológico da existência between the name and the Person. The hypothesis, both
de um estreito vínculo entre o nome e a Pessoa. A hipótese, psychoanalytical and anthropological, of a “fetishism of a name”
tanto psicanalítica quanto antropológica, do “fetichismo do has been taken to a social arena where interethnic relations have
nome”, foi levada para um campo social onde as relações historically been dealt with in a confliting way. This takes place
interétnicas são travadas, historicamente, de forma conflituosa, on the inside of a “struggle of taxonomies”, here as a movement
no interior de uma “luta de classificações” que ora se apresenta of the re-shaping of social vectors, after the setting up of a
em movimento de reconfiguração de forças, a partir da instalação Pankararu settlement in the rural area of Aracuai- State of Minas
de uma aldeia Pankararu na área rural do município de Araçuaí Gerais, Brazil, which was made possible by the action of the
– MG, viabilizada pela pastoral indigenista da Diocese local. Indian Workforce from the local Diocese.
palavras-chav
palavras-chave:e: Antropologia dos Nomes Pessoais; key-wor ds: Anthropology of Personal Names; Indian
key-words:
História Indígena; identidade; etnogênese. History; identity; ethnogenesis.
* Doutoranda da Área Sociedades Indígenas: Etnologia, Políti- É bem isto, efetivamente, que nos deixam
ca e História. Doutorado em Ciências Sociais. Unicamp.
entrever as mudanças de nome: a maneira
1 Trabalho final do curso “A Antropologia dos Nomes Pessoais: pela qual o patronímico faz ligadura na
Indivíduo, Pessoa, Identidades” ministrado pela Profa. Dra. Aracy
Lopes da Silva. Unicamp. 2º Sem. 1998. Comunicação apre- identidade, para si e para os outros, para o
sentada no Fórum de Pesquisa sobre Onomástica, XXII Re- melhor e para o pior, protegendo ou
união da ABA – Brasília – julho de 2000. Agradeço, in memo-
riam, à leitura e às sugestões da saudosa Profa. Aracy, bem como
aprisionando, num signo que pode tornar-
a Thais Gontijo, psicanalista do Aleph, Psicanálise e Transmis- se sinal, estigma ou assinalamento. (...)
são, pelas indicações bibliográficas. À família Índio (hoje con- Receber um nome é achar-se humanamente
hecida como Aranã) e à Geralda Soares, indigenista do Cedefes
(Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva), agradeço, acolhido na ordem instituída das gerações,
respectivamente, a acolhida e as discussões acerca deste trabal- mas é igualmente se achar classificado,
ho, realizado com o apoio da Fapesp.
30 IZABEL MISSAGIA DE MATTOS
ar tigos
32 IZABEL MISSAGIA DE MATTOS
causa desse nome, se sentem, de fato, ordem alfabética, eles têm a “sorte” de seus
“indígenas”, por outro lado, não pode ser nomes portarem, as mesmas iniciais5. Não
compreendido senão no interior de uma parece ser absurdo, seguindo a direção
situação interétnica, que o qualifica - apontada pelo autor, pensar de forma
juntamente com os que partilham o mesmo semelhante em relação à identificação entre
designativo étnico - enquanto alteridade, de pessoas com o mesmo sobrenome, pois um
acordo com uma lógica que atribui ao ser vínculo “mágico” parece atuante na
índio valores relacionais. delineação de uma etnicidade que, ao assim
O exercício de articular a dimensão definir-se, passa a ser carregada de valores
“substancialista” à “relacional” - no caso do de caráter estigmatizante, provenientes de
patronímico “Índio” -, apesar de uma situação relacional, interétnica.
aparentemente baseado no paradoxo de um O nome “Índio” que esses indivíduos
“fetichismo em movimento”, justifica-se na carregam - seja como patronímico que
medida em que está orientado no sentido compõe a sua “assinatura”, seja como
de superar oposições rígidas - esforço que qualidade indígena inerente à sua Pessoa -
crescentemente se impõe a uma reflexão pode caracterizar, de acordo com os
antropológica desafiada pelas fronteiras, contextos interétnicos em que se inserem,
consideradas tanto em seu sentido histórico significados diversos para a ação política, de
e social quanto simbólico (Lopes da Silva, assujeitamento ou resistência. Em todos os
2001: 23). A articulação dinâmica entre casos, um signo do destino parece estar
essas diferentes abordagens parece, de fato, inscrito no nome.
interessar a uma Antropologia dos Nomes Bernard Vernier (1989:04), em sua análise
Pessoais que visa “captar a dimensão das escolhas matrimoniais na ilha grega de
processual e criadora das práticas Karpathos, demonstra, estatisticamente, a alta
onomásticas e seu impacto sobre a constante incidência de “escolha de objetos incestuosos
redefinição do universo sociocultural onde tendo como suporte os nomes” [como por
têm vigência” (Lopes da Silva, 1998). exemplo, a freqüência de cônjuges com o
Ambas as vertentes para o estudo dos mesmo nome ou cujos nomes têm a mesma
nomes - ou seja, a “substancialista” e a inicial do nome da mãe(pai) ou da irmã(o)],
“relacional” não parecem ser, de fato, o que comprovaria a hipótese da existência
excludentes. Bernard Vernier (1989), a partir de “fetiche” ou “substancialismo” do nome
do estudo das relações de afinidades nas famílias estudadas. Para ele, “o
construídas sobre a sustentação simbólica substancialismo do nome está também
dos nomes próprios - inicialmente na ilha presente naqueles que vêem um signo do
grega de Karphatos e posteriormente entre destino em seu nome”.
as “boas” famílias do Norte da França - De acordo com a interpretação
observou como o pensamento substancialista
pode estar articulado ao pensamento
relacional: uma relação de afinidade entre 5 “E de fato, não se pode excluir totalmente que o pensa-
mento substancialista seja ao mesmo tempo um pensa-
indivíduos - como ele estatisticamente mento relacional, posto implicitamente que as diferenças
demonstra - pode ocorrer quando, de natureza entre dois indivíduos têm algo a ver, mesmo
submetidos por exemplo a práticas escolares que seja em fração ínfima, com a distância que separa as
iniciais dos seus nomes dentro do alfabeto”. (Vernier,
de chamada ou classificação que utiliza 1989: 06)
psicanalítica de Erik Porge (1998:16), o estes autores, “de fato, nomes e práticas de
patronímico, bem como o prenome, nomeação são uma das maneiras mais
implicaria sempre uma determinação ex- importantes através das quais tais processos
terna, antecessora do sujeito: “o nome de identificação social são efetuadas”.
próprio” - diz Porge - “divide o sujeito, pois Em estudo sobre a manipulação de
quando o sujeito quer agarrar sua identidade identidade através do nome entre os
através do seu nome próprio, ele aí encontra macaenses eurasianos, estes autores -
uma determinação exterior que o ultrapassa partindo de uma perspectiva que vê a cultura
e que faz obstáculo à auto-apreensão de sua como “um processo dialético unificado de
identidade. (...) É o que se traduz por no- produção coletiva e subjetiva” (Sangren apud
men omen, o nome fixa o destino”. Pina-Cabral & Lourenço, 1993: 02) - se
A importância do nome na definição da propuseram a descrever o contexto
subjetividade tem sido investigada e emocional e experimental propício para tais
demonstrada em pesquisas que buscam ar- mudanças, que levaram à rejeição do próprio
ticular hipóteses da psicanálise e da patronímico.
sociologia. Bernard Vernier (1989:12), em
sua pesquisa realizada na França e na Grécia, Este problema de mudança de
concluiu que “a ordem de nascimento sendo sobrenome tem profundas raízes na história
igual, as escolhas [afetivas] ditas narcísicas Macaense. Desde 1841, o governo da
são ligeiramente mais altas quando ego tem Dinastia Qing proibiu todos os sujeitos
o mesmo nome de seu pai de mesmo sexo.” chineses de conversão ao catolicismo. Isto
Daí adviria sua constatação de que o significa que, até então, todos os chineses
processo identificatório desenvolvido na convertidos tinham que abdicar de suas
criança pela nomeação constitui um dos identidades étnicas chinesas: eles cortavam
mecanismos mais escondidos de habitus6. seu hairpiece7 (então simbolizando o fim de
Ao analisar as práticas de nomeação en- sua aliança com os Qing), eles vestiam
tre os macaenses de origem européia, João roupas ocidentais, eles adotavam um nome
de Pina-Cabral e Nelson Lourenço (1993), português, e eles eram tomados pela
exploram a relação entre identidade pessoal comunidade portuguesa - apesar da
e identidade étnica no contexto de discriminação subsequente que eles sofriam
transformação da rede de diferenciação por parte desta comunidade também
étnica decorrente das mudanças no sistema depender do papel que eles desempenhavam
político-administrativo de Macau. Para isso, na vida da cidade. Esta opção, no entanto,
lançam mão da noção de estigma tal como envolvia um estigma profundo. Aos olhos
trabalhada por Goffman, ou seja, como “a da moralidade confuciana chinesa, esta
situação do indivíduo que é desqualificado pessoa tinha cometido os mais graves dos
de aceitação social total” (Goffman apud pecados contra a piedade filial.
Pina-Cabral & Lourenço 1993:12). Para (Pina Cabral & Lourenço, 1993: 26-27)
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34 IZABEL MISSAGIA DE MATTOS
Na situação descrita e analisada pelos três filhos8 . Um deles, Pedro Índio, conhecido
autores, o recurso da interdisciplinaridade é também como Sangê, transformou-se no
largamente utilizado, uma vez que a patriarca da família cuja trajetória do nome
compreensão do processo histórico é um dos pesquisamos.
principais integrantes da análise Estudos sobre os nomes familiares, por sua
propriamente antropológica de manipulação vez, têm demonstrado como estes são
étnica através da estratégia de mudança do ferramentas para a apreensão de “crenças,
nome. Já a categoria analítica “estigma” religiões e tradições”, uma vez que
permite apreender a pressão emocional que “representam um ponto de convergência de
gera um contexto adequado para tais fenômenos biológicos, culturais e históricos
mudanças, o que nos remete a outra envolvidos na gênese e na mudança das
fronteira disciplinar: a configuração de uma populações” (Azevedo, 1980:360).
identidade pessoal “deteriorada”, que o Na memória do grupo familiar, a
estigma supõe, é objeto por excelência de imagem de Mané Índio, carregada de
estudos da psicologia, notadamente aquela atributos de coragem, é representada
que se dedica às origens sociais de distúrbios como uma figura que desafiou o
emocionais. processo de escravização. Seus atos de
No caso dos Índios - como são conhecidos f o r ç a e r e b e l d i a s ã o re l a t a d o s e
os indivíduos da família aqui enfocada quando re f o r ç a d o s p o r s e u s f a m i l i a r e s . O
evocados em conjunto -, o estigma social patronímico parece constituir, pois,
experimentado por alguns de seus portadores mais um ato de afirmação de sua
se manifesta em determinados contextos diferença, na medida em que os outros
extrafamiliares, a partir de sua identificação índios que também teriam vivido o
como “bichos-do-mato”. Esse estigma passa, mesmo processo de “desarraigamento”
posteriormente, a se inscrever no espaço não teriam chegado a deixar inscrito o
intrafamiliar, e se expressa na recusa de alguns nome de sua origem étnica na
de seus membros de transmitir seu nome para descendência, como Mané Índio fez.
as futuras gerações, o que os faz burlar a regra Esta é, em todos os casos, a versão de
de transmissão do patronímico e adotar o de seus netos e bisnetos que, como ele, se
outrem. s e n t e m n a l i b e rd a d e d e o u t r a v e z
A interpretação dos significados de ser (da q u e r er e m , o u n ã o , i n s c r eve r e s s e
família) Índio, na situação histórica enfocada, símbolo-étnico-patronímico “Índio”
será relacionada, ainda, à memória social
relativa à origem da família. Segundo
interpretações fornecidas pelos integrantes da
família, a situação de mudança de nome é 8 Esta versão conjectura que o casal de crianças
verificada no momento do surgimento do indígenas trazido de Itambacuri seriam, na verdade,
irmãos. Porém, em versão colhida posteriormente,
patronímico. O primeiro Índio, chamado o menino Manoel Índio teria vindo sozinho de
Manoel, teria vindo das matas do Itambacuri, Itambacuri, unido-se em matrimônio com uma
mulher negra. A dispersão das crianças indígenas
vale do Rio Doce, e sido adquirido ainda entre os “nacionais”, em todos os casos, foi uma
menino por um poderoso “coronel” da região, prática amplamente utilizada pelo indigenismo
juntamente com uma menina indígena, com “civilizacional” no período, o que torna
surpreendente não a “emergência” étnica deste
quem mais tarde teria se casado e concebido grupo, mas a exclusividade deste caso.
em sua descendência, como sinal de e à fé10 nele implicadas. De acordo com Jacques
resistência e memória 9. Lacan (1971) “O pai é um termo da
A abordagem do problema levantado - ou interpretação analítica. A ele se refere alguma
seja, o dos significados sociais e simbólicos do coisa” (apud Porge, 1998: 8). A partir daí, Erik
patronímico “Índio” como elementos Porge (1998: 09) conclui que “se o pai não é
integrantes da identidade pessoal e coletiva de senão referencial, os nomes para designá-lo são
seus portadores -, segundo a vertente os nomes de relação ao pai. (...) O Nome-do-Pai
“substancialista” torna possível o diálogo com não é o nome próprio do pai, ainda que não seja
a psicanálise - a qual, por sua vez, vem enfatizar sem concernir-lhe. Ele é o nome próprio ao pai
a preeminência do pai na constituição da como nome, nomeado e também nomeante, e
realidade psíquica. A vertente “substancialista” o nome do conjunto dos nomes do pai”.
destaca, pois, a existência de um princípio do O Nome-do-Pai constitui, segundo a leitura
fetichismo do nome, ou seja, de um laço psicanalítica, um conjunto de referências que
indissolúvel entre o nome e a pessoa que o possibilita a entrada do sujeito no mundo do
carrega. A presença de um estreito laço entre simbólico, na medida em que o remete à Lei.
um nome e seu portador é, de fato, verificável Para Lacan (1979: 173) o Nome-do-Pai
em diversas sociedades onde o nome participa representa, desde os tempos “primordiais”, o
da forma íntima da pessoa, ou seja, ele (o suporte da função simbólica que identifica o
nome) vale por ela (a pessoa). Para Bernard sujeito à figura da lei, a qual, em última instância,
Vernier (1989:03), nessas sociedades, “nomear instaura a ordem humana por meio da interdição
é evocar, tomar posse (...). Agir sobre o nome do incesto (ou da castração simbólica, no nível
é agir sobre seu portador”. Este princípio, no psicanalítico). “A lei primordial” - diz Lacan - “é
entanto, de acordo com a argumentação por pois aquela que, regulando a aliança, sobrepõe o
ele desenvolvida, é generalizável para qualquer reino da cultura ao reino da natureza entregue à
sociedade. lei do acasalamento”11.
O conceito freudiano de Nome-do-Pai - que 10 “O pai é um nome cujo referente não é garantido por uma
não coincide com o de patronímico, mas que verdade de experiência, ele é garantido pela fé na nominação
inevitavelmente lhe concerne - é, por sua vez, deste nome. (...) A incerteza estrutural sobre a paternidade
torna incontornável sua abordagem pela fé na palavra que
utilizado na psicanálise em alusão à religiosidade nomeia o pai. Daí o termo Nome-do-Pai.” (Porge, 1998: 8)
9 Alguns dados obtidos após a elaboração deste estudo me 11 Não é objetivo desse estudo discorrer sobre a inspiração levi-
pareceram extremamente surpreendentes: ao pesquisar, straussiana subjacente à concepção de um “inconsciente
pois, os patronímicos indígenas em documentos do antigo estruturado como linguagem”, elaborada por Jacques Lacan. Nem
Aldeamento Central Nossa Senhora dos Anjos de há espaço, aqui, para o resgate de uma antiga discussão entre
Itambacuri, deparei-me – dentro da gama amplamente antropologia e psicanálise sobre a possibilidade de um universal
diversificada de sobrenomes de origem étnica (Potén, humano, como o postulado pelo “complexo de Édipo”, tal como
Potão, Aranã, dentre outros) – com o registro de matrícula concebido por Sigmund Freud. Discussões como estas se
da menina Djanira Índia de Souza, do grupo étnico encontram bem desenvolvidas na abordagem comparativa sobre
botocudo conhecido como Aranã, cujo pai, então já o “Édipo Africano” feita por Ortigues (1989), em que os autores
falecido (1914), constava com o nome de Manoel Índio puderam esclarecer detalhadamente como “o incesto materno do
de Souza. A tendência ao desaparecimento dos referidos qual fala metaforicamente a psicanálise é algo muito mais
sobrenomes étnicos (supostamente em função do estigma elementar do que a diversidade das instituições familiares. (…)
social que lhes são associado) é percebida já no período Em todo lugar o problema é o mesmo, qualquer que seja a maneira
de funcionamento do Aldeamento de Itambacuri. Uma de resolvê-lo: consiste no fato de que a diferenciação sexual entre
das raras exceções parece ter sido o nome Índio. A lógica menino e menina inscreve na vida emocional uma construção
da miscigenação que envolveu o indigenismo capuchinho simbólica das relações pessoais, e que a análise desta construção
parece ser a mesma que implicou o desaparecimento da faz aparecer uma base afetiva da ética fundada na relação do
língua e dos sobrenomes étnicos botocudos (Mattos, ser humano com sua origem. (Ortigues, 1989: 282-283 – ênfases
1999). originais).
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36 IZABEL MISSAGIA DE MATTOS
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38 IZABEL MISSAGIA DE MATTOS
O nome “Caboco” traz em si uma indivíduo a ser registrado não pode fazê-lo
memória étnica, porém de uma situação de remetendo à sua filiação paterna, restando-
“disfarce” da condição indígena. Por isso não lhes apenas a confirmação do nome da mãe
carrega, como o nome “Índio”, o peso dos - o que aponta novamente para a função de
mesmos qualificativos, uma vez que significante-mestre do Nome-do-Pai, que se
pressupõe um maior grau de “domesticação” recobre, no inconsciente psíquico, de valores
ou mesmo “escravidão”. Talvez esse não e afetos por se originar da fé: pater semper
esteja, mesmo, tão concernido à função incertus est. (Porge, 1998: 8).
psicanalítica de Nome-do-Pai12, posto que, Ambos os nomes, no entanto, se referem
reduzido à sua oralidade, não chegou a se à realidade de um passado de escravidão
transformar em registro, ou “assi(g)natura”. indígena, presente na memória desse povo.
Prova disso é que o cognome familiar Parte da família dos Cabocos, assim como
extinguiu-se nas gerações mais novas, não da dos Índios, contatadas na pesquisa, vive
mais identificadas com o designativo étnico, na Fazenda Alagadiço, local de encontro de
termo de apelação restringido à geração dos suas histórias e antiga propriedade do célebre
pais, tios e avós. Coronel Murta, que possuía, entre seus
Tendo em vista também o alto grau de escravos, índios “comprados” de uma rede
arbitrariedade envolvido no registro de de tráfico de crianças que caracterizou a
determinados sobrenomes nos cartórios da colonização daquela região (Mattos, 1996).
região - que denuncia um exagerado poder Tanto no caso da primeira família quanto
de determinação destes sobre o registro dos no da segunda é obrigatório se referir à
nomeados - torna-se curioso observar o pessoa por meio de seu designativo étnico
registro do patronímico “Índio” em após o primeiro nome. Todos os oito irmãos
detrimento do cognome familiar “Caboco”. de Luzia Caboca, por exemplo, são
Talvez este seja ainda mais desqualificante conhecidos com o apelido “Caboco”
que o nome “Índio”, e sua pronúncia, por acrescido ao prenome, assim como seus pais.
isso mesmo, se restringe ao contexto rural, O mesmo ocorre com os Índios: a pronúncia
que lhe dá sentido, posto que esse grupo do sobrenome se impõe imediatamente após
familiar é historicamente identificado como o nome e, em muitos casos, substitui o
mão-de-obra desqualificada das grandes próprio prenome.
fazendas da região. A família dos Cabocos, não por acaso,
É importante também esclarecer que a mesclou-se à família Índio em uma sólida
maior parte tanto dos Índios quanto dos relação de aliança, fato que diz sobre
Cabocos de origem rural só foram estigma: Cabocos e Índios não parecem,
devidamente registrados após se tornarem assim, descriminarem-se através de
adultos, quando lhes foi exigido, por atribuições de identidades “deterioradas”.
motivos diversificados, alguma espécie de A partir do núcleo familiar composto por
documentação. Casos há em que o próprio Emiliana (caboca), Jóvi Índio e seus sete
filhos, moradores da Fazenda Alagadiço,
podemos penetrar inicialmente no universo
12 Segundo a psicanálise, ao Nome-do-Pai são atribuídas da análise onomástica aqui almejada, na
funções-chave no psiquismo como “a procriação, a in- medida em que evidencia as formas
terdição do incesto, a relação do significante à lei, a função
do nomear...” (Porge, 1998: 14). utilizadas na nomeação.
Nesse caso, todos os filhos têm o nome posto que, entre estes, a geração mais nova
“Índio” na assinatura, como gostam de frisar. não mais se identifica como cabocla, ou seja,
Emiliana afirma ter transformado seu de origem indígena. Os jovens Índios, no
sobrenome por livre escolha, adotando o entanto, demonstram vívido interesse pelo
“Índio” (como fez, afinal, com o próprio movimento indígena inaugurado na região.
marido “Índio”, o qual, sendo enteado da
irmã, era cuidado pela futura esposa quando C O N T E X TTO
O H I S T Ó R I C O- S I T U
UAACIONAL E
bebê). UTILIZ AÇÃO DO NOME
UTILIZAÇÃO “ÍNDIO”
O marido - filho do primeiro casamento
de Pedro Índio Sangê, e neto, portanto, de Algumas tendências sobre o uso do
Mané Índio, capturado nas matas do patronímico “Índio” foram observadas no
Itambacuri - “assina” Joverdil Índio de universo pesquisado em três situações
Souza; ela, no entanto, diz ter preterido o distintas: na Fazenda Alagadiço, no
sobrenome Souza - patronímico da mãe de município de Araçuaí ( MG); no “Campo”,
“Jóvi”, apesar de tê-lo curiosamente município de Cornel Murta (MG) e em
deslocado da posição habitual - por Barreiro, região industrial da capital mineira.
considerar “lindo” o nome “Índio”. Esse
fato, relatado na presença de sua sobrinha e a) A Faz
Faz enda Alagadiço
azenda
cunhada Terezinha Índia (ou Tereza Índio
Araújo, de acordo com sua “assinatura”), foi A Fazenda Alagadiço foi uma das
prontamente por esta interpretado: Emiliana propriedades da família Murta - poderosa
estaria identificada desde criança com esse econômica e politicamente na região. Sua
nome por ter sido “criada no meio dos área é de aproximadamente 1.800 alqueires.
Índios”, o que a fez “tomar amor por eles”, Herdou-a uma das filhas do Coronel Inácio
segundo a Índia. Murta que, não deixando descendentes,
O significado de Caboco como estigma, doou-a à Igreja Católica, em 1944. Jóvi
tendo tornado-se anacrônico no contexto da Índio chegou a trabalhar em suas terras,
configuração interétnica atual13, retoma, no tendo vindo para a região por causa do
entanto, outros significados a partir da relacionamento com os Cabocos - afins do
instalação de uma aldeia indígena na antiga Índios - que ali se encontravam. Ele próprio
Fazenda Alagadiço, que cria um novo foi criado em uma fazenda nas imediações,
contexto interétnico que tende a valorizar após a morte da mãe no parto de sua irmã,
as tradições e a indianidade, como veremos conhecida simplesmente por Caboquinha,
a seguir. de quem não se sabe notícias. O outro irmão
Essa revalorização étnica tende, contudo, também dispersou-se do grupo, tendo
a atingir mais aos Índios que aos Cabocos, posteriormente falecido.
As histórias do cativeiro que cercam a
Fazenda Alagadiço ainda hoje atemorizam
seus moradores. As almas que ali circulam
13 Este grupo familiar deveria ter, ainda na geração de Luz-
não dão paz a quem por ventura resolver
ia Caboca, um status social relacionado à sua condição passar uma noite em sua sede, hoje
de indígena, tomado, na região, por um tipo de gente a abandonada. Conta-se que na colocação da
ser domesticada, submetida a trabalhos pesados, escravi-
zada. cumeeira - uma tora de madeira muito
ar tigos
40 IZABEL MISSAGIA DE MATTOS
pesada - três índios teriam morrido. As espanhola Manos Unidas com o apoio do
torturas dos cativos somam-se à memória CEDEFES (Centro de Documentação Elói
dos costumes, danças e músicas dos Ferreira da Silva).
“cativeiros”. A chegada das cinco famílias Pankararu
Seu Jóvi Índio ressente-se de ter tem provocado uma curiosa reação por parte
convivido pouco com o pai, Pedro Sangê, dos membros da família Índio que moram
memorável entre sua descendência por na mesma antiga fazenda, instigando-os à
dominar a leitura e a escrita - conhecimentos reflexão acerca de sua própria condição de
muito valorizados por sua raridade entre “alteridade”.
aquela população. Os seus dez irmãos do Travando relações próximas com os
segundo casamento do pai com a irmã de Pankararu, eles também os designam como
sua esposa (caboca) parecem ter tido mais a si mesmos: com o nome próprio acrescido
oportunidades de usufruir de seu convívio, do nome Índio, como se fosse um adjetivo,
em um sítio muito isolado, onde até hoje ou um sobrenome. Se consideramos que a
vive grande parte dos Índios da família. A perspectiva onomástica “substancialista”
localidade, conhecida como “Campo”, no (Vernier, 1989) mostra como a colocação
município mineiro de Coronel Murta, de vários indivíduos dentro de uma mesma
região do Médio Vale do Jequitinhonha, faz categoria linguística tende a criar entre eles
parte de um latifúndio da família Campos, um laço - sobre o qual se basearia o
hoje moradora da capital mineira. substancialismo do pensamento popular -,
No início da década de 1990, o Bispo de podemos entender como os Índios
Araçuaí decidiu promover uma “reforma” percebem os índios como a si próprios,
nas terras da Fazenda Alagadiço, após chegando a afirmar que nunca tiveram
algumas tentativas frustradas de ocupação. dúvidas em relação à sua própria identidade
Ela chegou a funcionar como patronato, casa indígena. Essa certeza a respeito de sua
de retiros e casa de freiras, mas nunca chegou origem e identidade étnica, por sua vez,
a ser produtiva. advém, em grande parte, da fé no
A “reforma agrária” efetuada consistiu em patronímico, superacrescentado de
titular lotes de terra para as famílias de sentimentos, memórias e afetos relativos à
trabalhadores que lá habitavam. O bispo, sua alteridade, inscrita no próprio Nome-
porém, foi mais adiante ao idealizar ali uma do-Pai.
aldeia para os índios Pankararu que Os Pankararu, por seu turno, também
habitavam o Posto Indígena Fazenda reconhecem os vestígios da presença indígena
Guarani, cuja etnia majoritária é Pataxó. A histórica na região. De fato, essa não se reduz
criação de uma reserva ecológica está à existência pretérita de índios escravizados
também em andamento no local. isoladamente. No século XVIII se tem
Os Pankararu ali se instalaram, em 60 notícia, nesse local, de um grande aldeamento
hectares de terra, em junho de 1994, conhecido como Lorena dos Tocoyós, onde
juntamente com suas esposas de outras os Tocoyós, de língua Maxacali, teriam vivido
etnias de áreas indígenas de Minas Gerais, submetidos à autoridade militar dos coronéis-
Pataxó e Krenak, casadas com dois irmãos fazendeiros, transformando-se lentamente em
Pankararu. Um projeto de beneficiamento canoeiros e trabalhadores rurais da região
da aldeia foi financiado pela ONG (Brandão, 1913).
As reações impulsivas de um filho de Jóvi ocorre com mais freqüência no meio urbano.
e Emiliana foram atribuídas pelo pai às Ao “Campo” (na realidade, Fazenda
qualidades indígenas das quais ele seria Campo Queimado, onde habitam os Índios
portador. Famoso por conhecer e receitar historicamente, como agregados), só se chega
plantas medicinais para todos os tipos de à cavalo. Para não se perder é preciso
males, esse jovem Índio tem pleiteado os perguntar onde moram os índios, e o local
mesmos direitos conquistados pelos será indicado. Lá se planta, se cria animais de
Pankararu em relação aos benefícios do pequeno porte e se caça, porém a água é pouca
projeto financiado pelas Manos Unidas. e a seca teêm castigado drasticamente a região.
Seus cabelos compridos e seu ofício de Os Índios consomem o que podem produzir
curador denunciam sua auto-percepção e vivem seu modo de vida sem depender da
enquanto Índio - ou seja, a afirmação de cidade. Os gêneros que precisam “importar”
sua diferença, o que remete novamente à da cidade, como o querosene das lamparinas,
ambivalência e ao fetichismo inerentes à sal, etc., são adquiridos aos sábados, dia de
condição de Índio. feira, onde se pode adquirir mercadorias por
Apesar de não haver uniformidade na meio de troca.
aparência indígena de todos os irmãos, a Um costume que os Índios do “Campo”
“assinatura” agrada a todos os que moram no compartilham com os demais é o uso da
Alagadiço. Os irmãos que foram para São bebida denominada “chamego” em suas
Paulo, apesar de também serem cognomeados reuniões festivas. Ela é feita a partir de uma
“Índios” nos seus respectivos empregos, planta corante, conhecida como “quiabinho”,
devido aos traços fisionômicos, preferiram garapa de cana e cachaça, como teria ensinado
não transmitir o nome para as novas gerações. Pedro Sangê. Nas cidades usam sucos de fruta
artificiais em pó para colorir e adoçar a bebida.
b) O
Oss Índios do “Campo
“Campo”” Todos parecem apreciar e mesmo as crianças
são incentivadas a experimentar.
O “Campo” sintetiza o “ideal étnico” dos
outros Índios dispersos pela zona rural e ur- c) O
Oss Índios da rregião
egião do Barr
Barr eir
arreiro-B
eiro elo
Belo
bana de Araçuaí, Belo Horizonte e São Paulo: Horiz onte
orizonte
lá se vive em choupanas de palha e se partilha
certos rituais, alguns aprendidos através de Além de patronímico, o nome “Índio”
Pedro Sangê, a quem são atribuídos muitos acaba por adquirir, em situações extra-
conhecimentos, artes e ofícios. familiares, características próprias a um
Dizer que grande parte dos Índios da apelido estigmatizante. Dessa forma, aqueles
família lá habitam se justifica: lá todos integrantes da família que foram habitar nas
mantiveram o patronímico em seus registros, periferias de Belo Horizonte e São Paulo
inclusive as crianças, o que é acabam sendo chamados simplesmente de
significativamente relevante para a perspectiva “Índio”, principalmente nos casos quando,
interpretativa aqui desenvolvida. Lá, o aliada ao nome, a aparência física também
estigma de portar no nome uma alteridade concorre para denunciar a ascendência
não ameaça os nomeados. O contexto em que indígena próxima.
interagem socialmente não exerce pressão no A família pesquisada em um bairro indus-
sentido de redefinirem sua identidade, como trial de Belo Horizonte descende do “Seu”
ar tigos
42 IZABEL MISSAGIA DE MATTOS
Jumá, apelido de Pedro Inácio Índio, o filho é, de fato, fronteiriça com o Estado da Bahia)
mais velho de Pedro Sangê, em seu segundo foi considerado pelo patrão como “bugre”
casamento. A esposa do Seu Jumá é filha de devido à sua aparência. Essa atribuição étnica
uma “cativeira” da Fazenda Alagadiço, que, vem constituir mais um elemento que
como todos em sua condição, inclusive os concorre, nesses indivíduos, para a
índios também considerados “cativeiros”, incorporação da figura do índio na elaboração
dormiam “apeados” (acorrentados pelos pés) da identidade, já baseada no valor simbólico
para não fugirem durante a noite. Outras expresso no patronímico.
práticas de torturas contra os “cativeiros” são Apesar do estigma étnico, a imagem do
relatadas, porém as estratégias de burlá-las pai, orgulhoso de sua ascendência, parece se
realizadas por Mané Índio são especialmente impor sobre a “degeneração” anunciada pelo
valorizadas na memória, como forma de nome. De fato, a identificação entre os
marcar a diferença étnica. homens da família ao “objeto” do
Dos catorze filhos desse casal, apenas a patronímico pode indicar, ainda, uma
metade foi registrada com o patronímico, partilha de estigma que propicia a superação
devido em parte à arbitrariedade dos de uma auto-imagem negativa através da
cartórios. Eles saíram do “Campo” ligação com o pai. Para Vernier (1989:05),
diretamente para a região industrial da capi- “dar a qualquer um o nome de uma pessoa
tal mineira, onde nasceu o último filho. (...) é um dos meios mais utilizados
O nome sempre foi motivo de “zoada” na socialmente para aproximá-los e criar entre
escola: a jovem entrevistada conta que era eles um laço fundamental. Trata-se de práticas
chamada de “Índio Canibal” ou “Índio simbólicas das quais se espera efeitos reais.”
Caipora” pelos colegas. Outras vezes as Mesmo assinando “Índio”, as mulheres da
pessoas tendiam a “corrigir” o estranho família são conhecidas pelo sobrenome Índia,
sobrenome, escrevendo-o “Inácio”, que se o que parece gerar um certo incômodo em
assemelha à grafia de “Índio” na escrita à mão, suas identidades de gênero. Uma das filhas
para aliviar o peso da diferença experimentada de Pedro Sangê, resolveu, por isso, “consertar”
por seus portadores. seu sobrenome e o das filhas, transformando-
Seu Jumá, que trabalha como vigilante o de uma vez para Índia - fato que de novo
noturno, apresenta em seus traços físicos o aponta para o fetichismo desse sobrenome,
seu estigma étnico. Aprecia, como o pai, o pois portá-lo significa impregnar a pessoa
fato de ser e parecer um Índio: conta-se que com as qualidades sonhadas. Vestir o nome
seu pai, que tinha vários apelidos, mantinha Índio é vestir a imagem de “outro”. É ser
comprido os cabelos pretos, para a diferente. Alguns suportam esse estigma,
curiosidade das pessoas da região. Contava outros não. Um estigma carregado de
que sua gente não se assemelhava aos índios masculinidade, que torna mais difícil a sua
“bonitos” da Amazônia, com os cabelos assunção/transmissão por parte das mulheres
muito lisos. da família.
A descendência masculina de Pedro Jumá A filha de Seu Jumá, por exemplo, gosta
parece manter a apreciação em torno da de se “fantasiar” de indígena em casa,
aparência indígena do pai e do avô. Seu filho, simplesmente para sentir-se mais de acordo
apresentado como “Bahiano” na obra em que com seu nome (sangue?). Já o seu marido e
trabalhava (a região de Minas de onde vem primo cruzado, no entanto, se ressente de não
trazer o nome “Índio” em sua assinatura: sua aprofundar a análise nessa direção: a
mãe, Terezinha Índia, temendo a associação enunciação da necessidade de
do nome com a figura de “bicho-do-mato”, interdisciplinaridade deu-se no intuito de
preferiu não passar o nome para a pontuar perspectivas importantes para a
descendência. Com isso, afirma sentir-se não apreensão do problema: a identificação
tão indígena como a prima-esposa, que foi pessoal e étnica propiciada pela partilha
nomeada com o patronímico “Índio”. de um patronímico que veicula
Ter o nome “Índio” e ser indígena - aquele simbolicamente uma memória familiar e
primeiro pai, originário das matas de social.
Itambacuri, temido e mítico - é uma Nesse sentido, a contribuição da
associação quase inevitável para os homens psicanálise mostrou sua fecundidade ao
da família, fato que, por sua vez, remete ao apoiar grande parte das interpretações
princípio do fetichismo do nome, pois se ele contidas no texto acerca dos significados
significa a existência de um “laço indissolúvel do Nome-de (do)-Índio (Pai). Foi
entre o nome e a pessoa”, as qualidades possível, com isso, detectar a presença de
atribuídas ao nome acabam também por significados que se entrecruzam no nível
impregnar a pessoa que o porta. das subjetividades em ressonância com
Talvez pelo fato de a origem do nome ser significados atribuídos situacionalmente
atribuída à própria bravura do índio Manoel em diferentes contextos etnográficos em
que, num esforço de resistência, teria que os Índios têm que se haver com a
intencionalmente transmitido sua memória alteridade que o nome expressa, como
a seus descendentes, em forma de sobrenome. um fetiche que se acrescenta ao
Através dessa interpretação, os homens patronímico.
nomeados Índios parecem se orgulhar mais Por outro lado, para um aprofundamento
de carregarem os atributos de força e desejo da análise do fenômeno enfocado, torna-
de resistência nele implicados. Por isso, se diz se ainda necessário evidenciar o caminho
que aquele que não transmite o patronímico de dupla mão por onde os nomes passam
para seus filhos “é contra o Índio”, como a transportar novos significados.
garante seu Jóvi. Considerar a produção social de sentido
- neste caso, as traduções do patronímico
CONCLUSÃO
ONCLUSÃO inseridas em um novo contexto de
configuração das forças em jogo nas
Ângulos diversos de análise foram disputas de poder local - uma modalidade
utilizados na interpretação dos dados da “luta de classificações” (Bourdieu,
obtidos na pesquisa. A metodologia 1989), implicaria cotejar a produção de
utilizada em caráter experimental identidades regionais com os conflitos
baseou-se apenas na interpretação de travados nas relações materiais e
relatos orais. Uma pesquisa documen- simbólicas entre os que têm interesses em
tal poderia trazer novos dados tanto um determinado modo de classificação.
sobre a história dos Índios quanto sobre Aqui marcamos o limite deste trabalho,
o contexto interétnico em transformação bem como a possibilidade de futuras
histórica. interpretações.
Não houve, entretanto, pretensão de
ar tigos
44 IZABEL MISSAGIA DE MATTOS
r esumo: Este artigo trata dos ex-exilados abstract: This article deals with the Angolan
angolanos, de origem etnolinguístico Bakongo, former-exiled, ones of ethnolinguistic origin
retornados a Luanda após um longo período de Bakongo, returning to Luanda, after a long period
vivência no país vizinho Zaire (atual RDC), of experience in the neighboring country Zaire
durante a guerra de independência de Angola (current RDC), during the Angola’s
ocorrida entre os anos de 1961-1974. Os Bakongo independence war, between the years of 1961-
são uma “etnia de fronteira” presente tanto em 1974. The Bakongo is an “ethnic boundary”
Angola como nos dois Congos. O retorno deste living in Angola as in the two Congos. The regress
grupo, com pelo menos uma geração nascida no of this group, with at least one generation born
exterior, sugere questões sobre a formação e o in the exterior, suggests questions on the
acirramento de identidades étnicas e o formation and the instigation of ethnic identities
aparecimento de novas concepções de and the appearance of new conceptions of
nacionalidade a partir de uma cultura construída nationality from a culture constructed in a
numa experiência externa ao país. A busca de novas external experience to the country. The searching
formas de participação de reconhecimento social of new forms of participation of social recognition
e político através da disputa da legitimidade em and politician through the dispute of the
torno de concepções de identidade nacional é mais legitimacy around conceptions of national
um ingrediente complexificador no processo da identity is an ingredient in the complex process
reconstrução nacional de Angola. of the national reconstruction of Angola.
palavras-chav
palavras-chavee: identidade nacional, etnicidade, key-
ey-wwords: national identity, ethnicity, Angola,
ords:
Angola, bakongo bakongo
I NTRODUÇÃO
NTRODUÇÃO passaram por áreas ocupadas por grupos
étnicos, grupos estes que não possuíam
A constituição dos Estados em África, necessariamente limites territoriais precisos,
organizada de acordo com o princípio de prerrogativa essencial dos Estados-nações.
não alteração dos limites coloniais, A discussão sobre a relação entre etnias e
ocasionou a manutenção de fronteiras que Estados-nações em África foi sempre
permeada pelo senso comum de que a
instabilidade africana seria, a princípio,
* Mestre em Antropologia Social pela USP e doutoranda devida à formação de Estados multiétnicos,
do PPGAS/USP. Bolsista FAPESP.
46 LUENA NASCIMENTO NUNES PEREIRA
corpos políticos que abrigariam em seu seio da reconstrução nacional de Angola, ainda
uma miríade de povos culturalmente hoje mergulhada em conflitos civis.
distintos e naturalmente hostis entre si. As
etnias cortadas por fronteiras seriam mais A NGOL
NGOLAA
um fator agravante de instabilidade política
e social dos países emergentes. Localizado na região austral da África,
Outros analistas, que descartaram na costa ocidental, e com uma superfície de
acertadamente este tipo de explicação, 1.246 km², ou cinco vezes o tamanho do
centrado num essencialismo étnico, Estado de São Paulo, Angola é o 7º maior
buscaram outras hipóteses – históricas e país da África em extensão. Sua população,
econômicas – para a crise africana, tais como estimada em 11 milhões de habitantes1,
o legado colonial, a adoção de governos encontra-se desigualmente distribuída pelo
autoritários, o não desenvolvimento social território, já que 90% desta concentra-se na
e econômico, a não inclusão de forças metade oeste do território e em torno de
minoritárias no sistema político. É 50% nas cidades, principalmente na capital,
necessário, contudo, não perder de vista a Luanda, que deve ter atualmente cerca de 4
dinâmica social e política mobilizada por milhões de habitantes.
grupos que transitam e se comunicam A classificação das etnias em Angola
continuamente entre fronteiras nacionais. historicamente tem levado em conta o
Como exemplo para esta discussão, parto tradicional critério lingüístico. Dessa forma,
da pesquisa sobre ex-exilados angolanos de o país conta com cerca de dez grupos étnicos,
origem etnolingüística Bakongo retornados sendo que os três maiores grupos –
à capital do país depois da independência, Ovimbundu, Ambundo e Bakongo –
após um longo período de vivência no país somam 75% da população2.
vizinho, Zaire (atual República Democrática De colonização portuguesa, Angola
do Congo), durante a guerra de libertação alcançou sua independência em 11 de
de Angola, ocorrida entre os anos de 1961 e novembro de 1975, após catorze anos
1974. Os Bakongo são o que chamo aqui de guerra anti-colonial, encerrada em
de “etnia de fronteira”, presentes tanto em 1974 com a Revolução dos Cravos, que
Angola como nos dois Congos. pôs fim, em Portugal, a cinqüenta anos
O retorno desse grupo, que inclui pelo de regime autoritário. De fins de 1974
menos uma geração nascida no exílio, sugere a novembro de 1975 teve lugar o
questões sobre a formação e o acirramento governo de transição, do qual
de identidades étnicas e o aparecimento de participaram o novo governo português
novas concepções de nacionalidade a partir e os três movimentos de libertação até
de uma cultura construída numa experiência
externa ao país, estranha aos habitantes mais
antigos da capital angolana. 1 As estimativas, feitas por diversas fontes, basearam-se
A busca de novas formas de participação, no censo de 1991.
de reconhecimento social e político, através 2 Esta população é, quase na sua totalidade, do tronco ban-
da disputa da legitimidade em torno de tu, que predomina na região centro-sul da África. Outros
concepções de identidade nacional é mais pequenos grupos não–bantu em Angola são os Khun,
vulgarmente chamados de bosquímanes, presentes no sul
um ingrediente complexificador no processo do país.
ar tigos
48 LUENA NASCIMENTO NUNES PEREIRA
mais aprofundado. Atualmente, assistimos independente, fez de Luanda uma região sui
à continuação dessa terceira guerra civil, generis em Angola.
recomeçada após o fracasso dos Acordos de A “sociedade crioula” (que deu origem a
Lusaka (1994) e do Governo de Unidade e um setor importante do que chamarei de
Reconciliação Nacional (GURN). “sociedade luandense”) diz respeito a uma
formação social antiga, produzida pelo
LUANDA E NORTE DE ANGOL
NORTE NGOLAA – DIFERENÇAS período do tráfico de escravos em Angola.
HISTÓRICAS E REGIONAIS Nesse período, setores da sociedade local de
Luanda e da região do rio Kwanza (sul de
O interesse no grupo de ex-exilados Luanda), além da cidade de Benguela, ao
retornados do Zaire deve-se ao fato de este sul do país, foram responsáveis, em parceria
grupo ter tido uma longa vivência e (desigual) com portugueses e brasileiros, pela
socialização no país vizinho: mais de uma empresa do tráfico.
geração nasceu e cresceu no antigo Congo Isso proporcionou a emergência de uma
Belga (depois Zaire, atualmente República pequena burguesia negra e mestiça angolana,
Democrática do Congo). O retorno dos que num amalgamento com o setor branco
exilados não é feito, na sua maioria, para a colonial produziu uma sociedade
região de origem do grupo, o norte de original, no sentido social e cultural. As
Angola 6, e sim para a capital do país, marcas mais evidentes da crioulização dessa
Luanda. sociedade verificavam-se pela difusão do
A região de Luanda possui uma kimbundo como língua de uso doméstico e
especificidade dentro da história da língua franca no comércio do interior, pela
colonização portuguesa em Angola. Não se formação de famílias mistas, pela convivência
trata apenas do fato de a composição inter-racial (que não supõe, obviamente, a
etnolingüística da região de Luanda ser ausência de conflito racial ou a inexistência
majoritariamente Ambundo. A ocupação de hierarquias de base racial). A adoção de
portuguesa dessa região foi a mais antiga e usos e costumes africanos (que muitas vezes
intensa no país, remontando ao período do “escapavam” para a esfera pública), associada
tráfico de escravos (séculos XVI a XIX). A ao aprendizado do português e dos costumes
antigüidade da colonização, somada ao metropolitanos, conferiu a essa população um
papel de proa que sempre assumiu na forte sentido de enraizamento e de falta de
economia colonial e, depois, no país identidade com o resto do território,
majoritariamente rural e que, na época, ainda
não tinha sido integrado completamente ao
6 As populações bakongo, de língua kikongo, somam cerca
sistema colonial.
de um milhão de pessoas em Angola, atualmente. No Essa sociedade crioula ruiu com a
período pré-colonial comportavam o Reino do Kongo, transição do sistema colonial do trato
formado no século XIV, que no seu apogeu compreendia
uma área que é hoje a parte do sul do Gabão, o sudoeste negreiro para a colonização “moderna”
do Congo e do Zaire e o noroeste de Angola. Foi com o portuguesa, no início do século XX. A nova
Reino do Kongo que os portugueses estabeleceram seus
primeiros contatos na costa ocidental africana, em fins
forma de colonização implicou a
do século XV, a princípio mantendo relações igualitárias prevalência do poder metropolitano sobre
de comércio e intercâmbio. Mais tarde, o comércio passou a elite colonial, a intensa entrada de colonos
a ser eminentemente escravagista e, conseqüentemente,
desestruturador das sociedades formadoras deste reino. portugueses, que ocuparam os espaços dos
ar tigos
50 LUENA NASCIMENTO NUNES PEREIRA
que, livre da opressão portuguesa, ofereceria gueto, morando também nos bairros do
melhores condições de vida, impossíveis de centro da cidade. Depreende-se disso uma
serem conquistadas no Zaire, que atravessava grande diversificação entre os regressados
sérios problemas de ordem econômica. quanto ao nível econômico, à escolaridade,
O período de transição foi marcado pelos à capacitação profissional, etc.
confrontos, na capital angolana, entre o Quer pelo desenvolvimento do comércio
MPLA e a FNLA. O confronto armado informal, numa economia controlada pelo
entre estes dois movimentos de libertação – Estado, quer pela entrada de quadros
o terceiro movimento, a UNITA, havia se qualificados no setor do funcionalismo
retirado de Luanda nesse período – marcou público, os regressados demonstraram uma
profundamente a sociedade luandense. As enorme capacidade de adaptação e
tropas da FNLA eram compostas por transformação de suas condições de vida
angolanos do norte de Angola, por exilados num meio relativamente hostil. Essa
no Zaire e também por tropas do exército hostilidade, que inicialmente devia-se à
zairense, dado o apoio determinado do identificação dos regressados com
governo zairense de Mobutu Sesse Seko à participantes da FNLA – partido inimigo
FNLA. da maioria dos habitantes de Luanda – foi
Do ponto de vista dos habitantes de depois sendo demarcada pela rejeição à
Luanda, os angolanos regressados do Zaire introdução de elementos culturais e costumes
e estabelecidos na capital, durante e depois percebidos como estranhos à população
dos conflitos entre os dois movimentos, local.
tivessem ou não relações diretas com a Delineou-se então um acirramento das
FNLA, adquiriram a alcunha de diferenças entre “ regressados ” (que
estrangeiros. No mesmo sentido, a entrada formavam um grupo francamente
das tropas da FNLA foi identificada como minoritário) e “luandenses”, expressas por
uma invasão zairense e estrangeira. A certos símbolos e valores. A introdução de
identificação simplista e depreciativa modos de vida aprendidos no Zaire
regressados = FNLA = zairenses se tornou o acarretou aos regressados o estigma,
raciocínio padrão para setores da população conferido pelos luandenses, de “estrangeiros”
de Luanda. e “zairenses”.
O aprendizado do modo de vida urbano A língua portuguesa, amplamente
de Kinshasa, comparado com o luandense, utilizada em Luanda ao longo do período
diferenciava os regressados em diversos colonial, e usada após a independência como
aspectos: no vestuário, na alimentação, no língua de unidade nacional, língua de
tipo de habitação, nas práticas religiosas e cultura9 e de Estado, jamais havia sido
em outros hábitos e costumes. Esse modo considerada uma língua nacional exclusiva,
de vida era percebido pelos regressados como no sentido de que se pudesse definir quem
“uma cultura mais africana” em oposição à
dos luandenses, considerados mais voltados
para Portugal e para o Brasil. 9 A expressão “língua de cultura” é utilizada aqui para
Os regressados passaram a ocupar denotar apenas a preferência (não a exclusividade) de uma
principalmente certos bairros da periferia língua para fins de expressão artística, sobretudo literária,
científica e de comunicação social e não indica um senti-
de Luanda, mas não se restringiram a um do valorativo ou hierarquizante de minha parte.
era ou não angolano a partir da competência diz respeito a modos de vida bastante
do seu uso. Em Luanda, a partir da entrada diferenciados experimentados nas duas
dos regressados, que tinham como língua capitais.
principal não o kikongo (língua materna A concentração dos regressados em certos
Bakongo) mas o lingala (língua veicular de bairros da periferia da capital angolana e a
Kinshasa), o português passou a ser usado, criação de organizações internas (igrejas,
pelos luandenses, como um demarcador de associações de ajuda mútua, organizações
nacionalidade e de “angolanidade”. não governamentais, além de uma profusão
Em resposta a essa postura, os de negócios, casas comerciais, oficinas)
regressados, na busca de situarem-se como consolidaram a visão dos regressados como
pertencente à mesma “nação”, passaram a um grupo coeso, solidário, assumindo uma
considerar a cultura bakongo/regressada identidade e uma auto-organização próprias,
como sendo a cultura verdadeiramente distintas do resto da sociedade luandense.
“africana”, em oposição à luandense, Com o passar do tempo, e considerando as
“crioulizada”, “destribalizada”. mudanças políticas, econômicas e sociais
No contexto político angolano, a noção ocorridas em Angola, especialmente em
de “crioulo” foi assumindo um perfil sócio- Luanda, pode-se perceber a transformação
econômico e racial, identificando-se, no das relações entre os dois grupos. Dois
discurso dos setores de oposição, a um grupo aspectos dessa transformação foram a
de “mulatos” que ocupa os mais altos abrupta transição para a economia de
escalões do poder e do funcionalismo mercado (fins da década de 1980) e as
público. O caráter de “destribalizado”, longe eleições (1992), com a posterior retomada
de ser um fator de afirmação de da guerra civil. Verificam-se então os
nacionalidade, foi encarado pelos aspectos de integração e contato, bem como
regressados como uma africanidade os fatores de etnicidade, de estigma e da
insuficiente, ou seja, faltaria aos luandenses violência atuando na separação dos grupos
o ingrediente, a categoria obrigatória da identificados.
africanidade, que seria o pertencimento A Sexta-feira Sangrenta foi uma das
étnico (Pereira, 1997). conseqüências do agravamento da tensão
Chamo atenção, contudo, para o fato de que sucedeu à não aceitação, por parte da
o confronto político-cultural entre “luandenses” UNITA, dos resultados das primeiras
e “ regressados ” estar formatado pelo eleições em Angola, ocorridas em fins de
confronto de dois tipos de vida urbana: a de setembro de 1992. Os combates se
Luanda e a de Kinshasa. A reivindicação de reiniciaram, de forma irrevogável, no
maior “africanidade” feita pelos regressados começo do ano de 1993.
Bakongo não se dá num apelo à uma Os regressados , na cidade de Luanda,
africanidade rural (tal como faz Savimbi, líder tinham votado maciçamente em Jonas
da UNITA, por exemplo). Tanto a Savimbi, a despeito da existência de todos
“africanidade” bakongo/zairense/ regressado, os partidos políticos de origem bakongo
como o orgulho “nacional/moderno” q u e s e f o r m a ram após a adoção do
propagado pelos luandenses se faz num multipartidarismo. Talvez porque vissem em
quadro de vivência urbana de pelo menos Savimbi a única opção capaz de se contrapor
mais de duas décadas para os dois grupos e ao governo, cuja imagem estava, na época,
ar tigos
52 LUENA NASCIMENTO NUNES PEREIRA
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54 LUENA NASCIMENTO NUNES PEREIRA
ar tigos
56 LUENA NASCIMENTO NUNES PEREIRA
utilizada como um diferencial importante. Aldeia (região de Bairros regressados Cidade em geral
origem) /bakongo
Nesses meios, há uma preocupação com o
ensino do kikongo aos mais jovens. Essa Âmbito Doméstico
Rua entre Rua com
regressados/bakongo desconhecidos
preocupação também é seguida de perto
Cerimônias e rituais
pelas igrejas de maior acolhida entre religiosos (noivado,
bakongos e regressados. casamento, óbito). Igrejas nos bairros
Igrejas nos bairros regressados/bakongo
Igrejas em geral
ar tigos
58 LUENA NASCIMENTO NUNES PEREIRA
língua veicular, mais do que mera “língua daquela “angolanidade” a que nos referimos
oficial”, relega para as esferas não públicas neste artigo: uma identidade nacional
da vida social outras línguas concorrentes. hegemônica que, ao menos em Luanda, tem
O não domínio do português por setores passado pelo critério da “expressão” em
da população impede o acesso dessas à língua portuguesa.
plenitude da vida social, que engloba as Essa discussão em torno das línguas e do
dimensões pública e privada. No caso do seus diversos usos é extensa e tem diversos
grupo regressado, as pessoas com maior desdobramentos. Cabe aqui apenas reforçar
dificuldade em falar português são as que esse é um ponto nodal da discussão que
mulheres mais velhas, mas não só. Essas envolve a “questão nacional”, suas formas
pessoas acabam por permanecer nos bairros de expressão, seus critérios de pertencimento
e têm restringido o acesso ao mercado de e exclusão.
trabalho. Ainda que os mercados livres não É interessante perceber o sentido da
ofereçam dificuldades aos falantes do lingala, palavra “expressão”, que se contrapõe à
o campo de atuação torna-se limitado. Não noção de “língua oficial” ou ao termo mais
é possível ao mau falante de português neutro “de fala portuguesa ou francesa”. A
estabelecer outras relações com pessoas que menção aos países de língua oficial
não sejam de seu meio étnico. Acima de portuguesa como “países de expressão
tudo, esses indivíduos se tornam mais portuguesa” indica uma partilha cultural,
vulneráveis à arbitrariedade dos poderes. uma dimensão afetiva, que é o que
A permanência do uso do lingala que, justamente tem sido o português para
no caso dos regressados, concorre com o muitos angolanos, mas não para todos, ou
português no domínio do vernáculo pelo menos não exclusivamente. Ainda que
(expresso pelo uso do lingala nas ruas, nos ninguém em Angola defenda o uso exclusivo
mercados) indica a manifestação de um da língua portuguesa e muitos sejam
modo de vida que insiste em estar no espaço defensores ardorosos do multilingüismo, na
público, ainda que este seja dominado pelo prática tem sido difícil dissociar a construção
português. de uma identidade nacional angolana fora
Todavia, o sotaque dos regressados que da “expressão”, no sentido mais afetivo
falam português os identifica frente aos possível, em língua portuguesa.
luandenses e indica uma “falta”, um domínio
insuficiente da língua, que lhes retira um MOBILIDADE E TERRITÓRIO
capital importante para o pertencimento e
o controle dos espaços da cidade e nacional. O apelo a identidades mais amplas, como
Não é que os regressados não possam se “africana” e “bantu”, tem sua maior referência
comunicar em português e serem entendidos no fato de o grupo Bakongo ser uma etnia
(dimensão veicular do português em cortada por fronteiras nacionais e por sua
Angola), trata-se de um domínio da língua grande mobilidade territorial, através da
portuguesa que indica o pertencimento a ela articulação de redes comerciais, e circulação
e a uma comunidade de sentido – posta pela por diversos países africanos.
dimensão do vernáculo (Anderson, 1989). A valorização da mobilidade regressada
Esse domínio distingue os regressados dos expressa-se no fato de os Bakongo/regressados
luandenses e dá aos últimos a primazia se referirem aos luandenses com o termo
ar tigos
60 LUENA NASCIMENTO NUNES PEREIRA
ETNIA DE FRONTEIRA E
FRONTEIRA QUESTÃO NACIONAL
NACIONAL implicitamente, como um meio atrasado e
“tribal”15.
O estudo sobre os regressados de Luanda, É em nome da chamada “África
suas organizações internas, seu posicionamento profunda” que a UNITA de Savimbi
frente à sociedade hegemônica e as respostas apresenta sua oposição ao MPLA. Em seu
que procuraram criar em busca de sua auto- discurso, diz atuar em nome das sociedades
afirmação como grupo, às vezes distinto e rurais, que são, para os dirigentes da UNITA
separado (criação e afirmação de identidade (por sinal, também urbanizados e formados
étnica), às vezes integrado e pertencente ao à ocidental), a verdadeira Angola genuína,
todo nacional (afirmação de pertencimento autêntica ou realmente africana. Savimbi
nacional), é interessante para pensar sobre buscou apoiar-se na região do planalto
as alterações dos discursos e das disputas em central de Angola, região ovimbundo, cuja
torno da identidade nacional. população teria sido a mais prejudicada
A dinâmica regressado x luandense, desde a ocupação mais intensa dos
contudo, está longe de ser a principal portugueses em Angola, a partir da década
contradição identitária da sociedade de 1920.
angolana, que ainda permanece presa à É entre essas duas concepções (referidas
bipolarização entre as duas maiores forças aqui de forma um pouco grosseira) que
político-militares do país, o governo, prevalece a disputa que divide Angola até
comandado pelo MPLA, e o partido hoje, no sentido ideológico e cultural das
armado da UNITA, expressa na continuada concepções de nação e angolanidade. Porém,
guerra civil. Essas duas forças vêm permanecem fora dessa contenda outras
representando duas formas de perceber o formas de perceber e conceber a nação e o
todo nacional a partir de perspectivas nacional angolano. A especial inserção dos
distintas que parecem se mostrar Bakongo na sociedade angolana,
inconciliáveis. considerando a sua dimensão internacional
Prevaleceu, a partir do governo do e a história das suas elites, formadas no
MPLA, uma perspectiva não racial, não Congo, trazem outras perspectivas para esse
étnica e não tribal, voltada para a construção debate.
de uma ideologia nacional de molde Chamo atenção para a especificidade
modernizador, bem ao caráter de sua elite, dessa argumentação “regressada”, que traz
longamente urbanizada e ocidentalizada. A para o debate a dimensão regional na qual
perspectiva “voluntarista” dessa elite teve Angola está inserida. É preciso lembrar
como contrapartida uma visão que em Angola, dos três principais
homogeneizadora da sociedade angolana e gr upos etnolingüísticos, Ambundo,
um profundo desconhecimento das suas Ovimbundo e Bakongo, os dois
populações rurais, seus valores e aspirações. primeiros estão inscritos no território
Esse desconhecimento deveu-se ao
afastamento histórico da sociedade
luandense das áreas do interior, o que 15 A organização do nacionalismo angolano no exílio e as
acabou gerando uma profunda não dificuldades da implantação da guerrilha no meio rural
identificação entre o meio urbano e a mais densamente povoado também são fatores que ex-
plicam a pouca aproximação desses dois “mundos” an-
“África profunda”, considerada, ainda que golanos.
angolano16. O grupo Bakongo encontrava- não deve ser percebida, a princípio, como
se cortado por fronteiras coloniais17, hoje um fator de instabilidade.
nacionais. É com os recursos e o “capital”
de uma “etnia de fronteira” que este grupo BIBLIOGRAFIA
com um histórico de especificidade
transnacional traz a reivindicação de uma ANDERSON, Benedict. Nação e
identidade regional ou africana, pois não Consciência Nacional . São Paulo:
vêm encontrando no Estado nacional Editora Ática, 1989.
vigente um espaço político-institucional
capaz de abrigar, dentro do todo nacional, APPIAH, K. A. Na casa de meu pai: a
todas as demandas que essa especificidade África na filosofia da cultura . Rio de
acarreta. Janeiro: Contraponto, 1996.
Houve uma evidente diminuição da
imposição homogeneizante por parte do GONDOLA, Charles Didier. Villes
governo e retira-se, aos poucos, o véu que caía Mirrois: migrations et identités
sobre as discussões em torno das questões sobre urbaines à Kinshasa et Brazzaville,
etnia e raça, antes temas tabus. As afirmações 1930-1970. Paris: L’Harmattan,
em torno da real diversidade das sociedades 1996.
que compõem o todo nacional não são mais
percebidas atualmente como afirmações MABEKO TALI, Jean-Michel. La
seccionistas ameaçadoras da unidade do país. “chasse aux Zairois” à Luanda. In:
Outras identidades vêm surgindo no Politique Africaine:. L’Angola dans la
espaço público, algumas que ultrapassam guerre. Paris: nº 57, março 1995.
o âmbito nacional (identidades bantu,
regionais, africana) e outras que, por vezes, PEREIRA, José Maria Nunes. Angola:
lhe estão inscritas, mas que atravessam identidade nacional e africanidade .
constantemente a fixidez de base territorial R i o d e Ja n e i r o : Un i v e r s i d a d e
do Estado-nação (etnia, clãs, famílias, Cândido Mendes, 1997 (mimeo).
regiões). A emergência de identidades não-
nacionais – e transnacionais – vêm PEREIRA, Luena Nascimento Nunes. Os
alterando e influindo decisivamente no regressados na cidade de Luanda: um
conteúdo e na conformação de identidades estudo sobre identidade étnica e nacional
nacionais em disputa. Torna-se um desafio em Angola. Dissertação de Mestrado.
político legítimo abrigar institucionalmente PPGAS/USP, 2000.
essas demandas, considerando que a
diversidade étnica (e outras diversidades) RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia
do poder. São Paulo: Editora Ática, 1993.
ar tigos
62
INTRODUÇÃO
NTRODUÇÃO Um dos editores2 do Lampião de Esqui-
na e alguns de seus colaboradores também
No final da década de 1970 - mais especifi- ajudaram na criação do Grupo Somos de
camente em 1978 - nas cidades de São Paulo e Afirmação Homossexual, primeiro grupo de
Rio de Janeiro, alguns homens se uniram para ativismo homossexual de São Paulo. Algu-
fundar um jornal que tratasse de assuntos rela- mas dessas pessoas também eram, ou se tor-
cionados à homossexualidade no Brasil. Assim naram no futuro, autores de obras ou en-
surgia o Lampião de Esquina1. saios que tratavam a questão da homossexuali-
dade do ponto de vista histórico e an-
* Doutorando SPGAS -USP tropológico. Tendo em vista que, devido à
escassez de trabalhos sobre o tema da ho-
1 As reuniões do Conselho do jornal aconteciam, pelo
menos nas primeiras edições, em esquema mensal de reve-
zamento, ora em São Paulo ora no Rio, mas a redação do
jornal praticamente funcionava no Rio. Os integrantes 2 João Silvério Trevisan participou ativamente tanto do
cariocas tinham maior peso na decisão das pautas, sobre- Grupo Somos de Afirmação Homossexual quanto do jor-
tudo pela influência do jornalista Aguinaldo Silva. nal Lampião de Esquina.
64 JOSÉ RONALDO TRINDADE
mossexualidade3 no Brasil, esses atores/autores que proponho pensar é exatamente por que es-
acabaram se tornando a principal referência bib- colheram capturar alguns elementos em detri-
liográfica para qualquer estudo desse tipo no mento de outros para avaliar uma questão – a
país4, acredito ser importante entender a tra- homossexualidade – em determinados contextos.
jetória dessas pessoas e verificar de que forma
suas biografias influenciaram nas maneiras I - INFLUÊNCIAS PÓS-MODERNAS?
NFLUÊNCIAS
como pensaram certas questões relativas à ho-
mossexualidade no Brasil.Os atores/autores a A tentativa de entender a trajetória de de-
serem abordados neste trabalho são João terminados autores para então pensar sobre o
Silvério Trevisan, James N. Green, Peter Fry e olhar que eles lançaram à homossexualidade em
Edward MacRae, cujos livros integram uma suas obras encontra apoio nas propostas de uma
bibliografia básica para qualquer estudo sobre a antropologia que vem sendo chamada de pós-
homossexualidade no Brasil5. Na análise da tra- moderna e que está sendo produzida, princi-
jetória dos sujeitos citados, partiremos do pres- palmente, nos Estados Unidos. A publicação
suposto de que os atores históricos estão inseri- de um diário pessoal que Malinowski (1997)
dos numa rede social, num universo de repre- escreveu in loco – que permaneceu por muito
sentações que define o modo como eles per- tempo secreto – suscitou discussões sobre a
cebem o mundo à sua volta, utilizando-se de presença do antropólogo em campo e sobre
repertórios disponíveis no imaginário social. O como traços de sua personalidade, ou con-
3 Faz-se necessária uma ressalva para fins metodológicos sobre o tratempos enfrentados durante a pesquisa, po-
uso do termo “homossexualidade”, pois existe uma polêmica em dem influenciar nas representações que ele faz
torno dessa palavra. Alguns autores, atentando para a invenção
histórica desse termo, afirmam só ser possível sua utilização para
ao transformarem texto os dados de pesquisa.6
envolvimentos sexuais entre pessoas do mesmo sexo, a partir do Profundamente inspirados por pensadores eu-
final do século XIX. Costa (1992), por exemplo, prefere utilizar a ropeus como M. Bakhtin, M. Foucault, R.
expressão “homoerotismo”, que, em sua opinião, representaria
qualquer envolvimento erótico entre pessoas do mesmo sexo, sem Barthes e P. Bourdieu, os chamados pós-
necessariamente remeter à uma discussão identitária. modernos exploraram na antropologia alguns
4 Luis Mott, Jurandir Freire Costa e Richard Parker também es- insights provenientes da filosofia da linguagem
creveram importantes trabalhos sobre homossexualidade no e da epistemologia das ciências. Nesse sentido,
Brasil que podem ser considerados obras de referência. Toda-
via, os autores escolhidos para compor esse texto participaram, passaram a refletir sobre as condições de
direta ou indiretamente, de movimentos pioneiros no que diz produção do texto etnográfico – a construção
respeito ao ativismo homossexual no Brasil , quais sejam o jor-
nal e o grupo de militância já citados.
textual e o tipo de interlocução cultural estabe-
lecidos pelas etnografias clássicas e contem-
5 James Green era estudante de pós-graduação de Ciência Política na
USP, no final dos anos 70 e Edward MacRae estava desenvolvendo, porâneas. Não se deve esquecer também que os
juntamente com sua militância, seu trabalho de mestrado na UNICAMP, referidos autores foram inspirados pela antro-
que, depois, desdobrou-se em doutorado na USP,. A dissertação de
Green ainda não tratava da homossexualidade, mas os textos de
pologia interpretativa proposta por Clifford
MacRae sobre esse assunto já circulavam desde 1979. Quanto à Geertz7, segundo a qual a interpretação an-
Peter Fry, este já tinha escrito as primeiras versões de seus famosos tropológica seria uma leitura de segunda ou ter-
textos – “Da hierarquia à igualdade: a construção social da homo-
ssexualidade masculina no Brasil” e “Homossexualidade masculi-
na e cultos afro-brasileiros”, este, inclusive, publicado no número 2 6 Malinowski (1997 ). Ver também Silva (1997/98 ).
da Revista Religião e Sociedade, em 1977, sob o título “Mediuni-
dade e sexualidade” – antes de se tornar um dos editores do Lampião. 7 Vale lembrar que antropologia interpretativa proposta por
João Silvério Trevisan publicou Devassos no Paraíso pela primeira Geertz surgiu no contexto da desconfiança dos antropólogos
vez em 1986, mas antes do Somos-SP e do Lampião, já tinha publi- com relação à capacidade explicativa dos modelos clás-
cado livros de ficção sobre homossexualidade, sendo já um jornalis- sicos de representações culturais holísticas e fechadas do
ta e ficcionista mais ou menos reconhecido. Outro (Silva, 2001).
ceira mão feita “por sobre os ombros do na- dado são tecidas 8 . Vale lembrar que os
tivo”, que é quem faz a leitura em primeira mão atores/autores selecionados para este texto
de sua cultura. Como lembra Silva, “A análise tornaram pública sua homossexualidade
cultural interpretativa afirmava explicitamente em determinados momentos, e é partindo
no texto etnográfico seus limites ou mesmo o desse pressuposto que utilizarei fragmen-
caráter particular e muitas vezes provisório dos tos de suas vidas particulares para com-
resultados da análise” (Silva, 2001). preender um pouco seus pontos de vista
Certamente os antropólogos chamados sobre a existência, ou não, de uma identi-
de pós-modernos não foram os primeiros dade homossexual.
a apontar questões referentes ao contexto Já existem estudos produzidos fora do
de produção das etnografias, ou mesmo a Brasil que procuram considerar o fato de
considerar o papel da biografia dos etnó- autores homossexuais terem escrito sobre
grafos emsuas reflexões. Todavia, na medi- o tema da homossexualidade e de que ma-
da em que assentam suas críticas an- neira sua vida pessoal interfere tanto na
tropológicas numa perspectiva episte- produção acadêmica como nas pesquisas de
mológica, essas questões acabam adquirin- campo realizadas 9. É nesse sentido que
do uma importância crucial em suas análises. abordar a biografia dos autores da homo-
A crítica pós-moderna deve, no entan- ssexualidade no Brasil, que também foram
to, ser entendida num contexto específico. atores históricos desse processo, pode nos
O meio antropológico norte-americano ajudar a refletir sobre a natureza das con-
passava por “(...) um contexto de auto-re- stantes divergências desses autores. Aqui,
flexão em relação ao tipo de prática de os limites entre o autor e o ator são muito
pesquisa e de escritos produzidos sobre os tênues. Acredito que vale a pena mer-
povos estudados, em geral dependentes gulhar na investigação desses limites.
econômica, política e culturalmente da so- Afinal, se é através da memória que as
ciedade do pesquisador” (Silva, 2001), ou pessoas definem suas identidades, a ex-
seja, trata-se de uma antropologia que difere periência desses atores pode ter muito
da produzida em terras brasileiras, que sem- a dizer sobre suas produções intelec-
pre se voltou para si, mesmo quando estu- tuais.
dava povos culturalmente diferentes. O
conhecimento de tal contexto me leva a crer
que essa crítica não pode ser incorporada à 8 Vale lembrar que as questões epistemológicas, reclamadas
antropologia brasileira em todos os seus com tanta ênfase pelos antropólogos ditos pós-modernos,
também vêm sendo discutidas em outras disciplinas. Entre
aspectos. os historiadores, essas questões vêm sendo suscitada
Entretanto, se o que produzimos desde a década de 70 por autores como Hayden White
são textos, tanto quanto os europeus (1973) e, mais tarde, voltam à tona num rico debate em
torno das interseções entre História e Antropologia.
e norte-americanos, as questões rela- Historiadores como Dominick La Capra (1988), Roger
tivas à construção discursiva dos tex- Chartier (1985), Phillip Benedict & Giovani Levi (1985)
e James Fernandes (1988) atentaram para os limites
tos ensaísticos, históricos ou etnográ- do texto e para os diálogos com a Antropologia e a Teoria
ficos, bem como suas condições de Literária na produção de textos históriográficos.
produção, podem ser de grande valia
para entender como determinadas 9 Ver LEWIN, Ellen &LEAP, Willian L. Out in the Field: Re-
flections of Gay and Lesbian Anthropologists. Chicago:
noções a respeito de um grupo estu- University of Illinois Press, 1996.
ar tigos
66 JOSÉ RONALDO TRINDADE
idos para morar em Berkeley e trabalhei lá, questões da sociedade e ponto final’. (...) Com
limpando casa, inicialmente, depois num res- essa reflexão nós dizíamos que o movimento
taurante.” homossexual não tinha que se filiar ao movi-
mento proletário: os homossexuais são donos
Foi em Berkeley que Trevisan conheceu de sua própria voz. Os que quisessem pode-
os anarquistas e também o movimento ho- riam ser de esquerda, mas o nosso tratava-se de
mossexual, bem como as lutas de feministas, um movimento autônomo”13
negros e ecologistas .“Em Berkeley comecei a
tomar consciência não apenas de ser o que eu Fundado o Grupo Somos de Afirmação Ho-
era, mas de batalhar pra poder ser o que eu era.” mossexual, a maneira como as lutas deveriam
O contato com o movimento homossexual ser conduzidas tornou-se motivo de sérias dis-
americano, que havia surgido com Stonewall12, cussões, causando inclusive separações internas
suscitou em Trevisan a possibilidade de imple- entre os militantes14.
mentar, no Brasil, um tipo de luta semelhante. Um dos militantes que acreditava nessa luta
Porém, a empatia com idéias anarquistas se fez maior contra o sistema capitalista era James N.
presente no momento de pensar um movimen- Green. Nascido em 1951 em Baltimore, nos
to homossexual brasileiro. Estados Unidos, Green deixou a cidade em
Ao voltar para o Brasil e aproximar-se de 1968 para estudar numa universidade de origem
pessoas que também se sentiam oprimidas por Quaquer15 , onde se formou em Ciência Políti-
serem homossexuais em uma cultura rigida- ca, em 1972. Durante a faculdade, envolveu-se
mente machista, Trevisan defrontou-se com nas manifestações contra a Guerra do Vietnã,
novas formas de implementar essa luta. Algu- além de procurar resolver uma questão relevan-
mas das pessoas que aderiram ao movimento te em sua vida: a homossexualidade.“O fato de
estavam envolvidas com outras causas políticas sentir que era homossexual gerava a sensação
e tinham como inimigo comum o sistema de não saber o que fazer”16.
capitalista que, em última instância, seria Nesse período, entrou em contato com os
responsável pela manutenção da discriminação movimentos feminista e da contracultura. Suas
em todos os seus níveis.
13 Entrevista de João Silvério Trevisan. In: SILVA, Cláudio
“A luta maior era a luta do proletariado, que Roberto da. Reinventando o Sonho: História oral de vida
não poderia sofrer nenhum tipo de ruptura...e política e homossexualidade no Brasil contemporâneo.
Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 1998. p. 225.
nós estávamos ameaçando a sua unidade. A
nossa reflexão era a seguinte: ‘Se você é pro- 14 Ver MacRae (1989).
letário ou não, sendo preto, você vai ser dis-
criminado. Se você é proletário ou não, pobre 15 Os Quaquers construíram um grupo protestante peculiar,
ou não, sendo mulher você vai ser discrimina- na Inglaterra, surgido em 1640. Eram um grupo de origem
pacifista, a favor da igualdade social e que se recusavam
da (....) desse modo, a luta de classes não pode a prestar lealdade ao rei, motivos pelos quais muitos fo-
ser uma varinha mágica que explique todas as ram presos e sofreram perseguições religiosas. Posterior-
mente, fizeram um acordo e conseguiram terras fora da
Inglaterra, fundando uma colônia no Estados Unidos – a
Pensilvânia – onde, pela primeira vez, houve liberdade
12 A invasão do bar Stonewall, freqüentado por religiosa no Novo Mundo.
homossexuais, ocorrida em Nova York em 1969, é
considerada um marco do ativismo homossexual nos 16 Entrevista de James N. Green. In: SILVA, Cláudio Roberto
EUA. Sobre esse assunto, John D’Emilio (1983). da, op. cit.
ar tigos
68 JOSÉ RONALDO TRINDADE
questões pessoais, entre as quais despontava a Green veio para o Brasil, mais especifica-
homossexualidade, encontravam ecos nesses mente para São Paulo, no final dos anos 70.
movimentos. Envolveu-se nas lutas políticas contra a ditadu-
ra militar e, em 1977, passou a militar na Con-
“Ao participar de conferências de mulheres, vergência Socialista. Nesse período, aproximou-
comecei a perceber o apoio ao novo modelo se dos integrantes do Grupo Somos, ainda
masculino. Nestes eventos, havia agrupações bastante embrionário. Porém, os ideais revolu-
internas compostas por homens, entre os quais cionários de Green levaram-no a conceber o
se encontravam homossexuais assumidos”17 movimento homossexual de forma distinta
daquela proposta por Trevisan.
Assim como Trevisan, Green aproximou-se
da militância homossexual nos Estados Uni- “Eu idealizava a construção de um movi-
dos. Isso é particularmente interessante, pois mento gay-lésbico que lutasse pelos seus direi-
foram dois atores importantes para a fundação tos, como fazia o movimento negro e o movi-
do primeiro grupo de ativismo homossexual no mento feminista. Acreditava contudo na neces-
Brasil – O Grupo Somos de Afirmação Ho- sidade de alianças com outros setores sociais.
mossexual, sediado em São Paulo. Embora já Não somente com as minorias (...) mas com
se possa falar de diferentes contextos sociais e qualquer um onde houvesse homossexuais, por
de experiências diversas no modo de vivenciar exemplo, a classe trabalhadora e as classe
as relações homoeróticas, outras questões de- populares. Ao meu modo de ver, esses eram os
vem ser levantadas. setores mais dispostos a fazer uma transformação
Se Trevisan aderiu à causa da global da sociedade. (...) Sempre reivindiquei
homossexualidade por ela estar ligada diretamente essa posição dentro do Somos...batalhava por
às suas próprias experiências, também era muito este ponto de vista. Isso causou divergências
simpático às idéias anarquistas, com as quais se no próprio movimento homossexual.”19
relacionou nos Estados Unidos. Green, por outro
lado, estava envolvido em lutas contra regimes Além de causar discussões internas ao grupo,
totalitários e contra o capitalismo. Chegou, tais modos de pensar a militância acabaram se
inclusive, a viajar para a América Latina, onde refletindo nas obras de Green e Trevisan. Um
alguns grupos revolucionários pretendiam minar tópico é particularmente interessante nesse sen-
as bases do sistema capitalista tido: embora ambos tenham vivido aqueles anos
no Brasil – o período de formação do movi-
“Eu, como muitas pessoas, idolatrava a mento homossexual brasileiro –, a maneira
América Latina, Che Guevara, a Revolução como pensavam as questões relativas à “identi-
Cubana. Ao meu modo de ver, a esquerda norte- dade” parecem ser bastante diferentes em seus
americana estava meio fraca, caminhando para livros.
o declínio. Na América Latina parecia que tudo Numa abrangente pesquisa sobre a história
estava acontecendo”18 da homossexualidade brasileira, que se estende
desde o Brasil colonial até os anos 90 do século
17 Entrevista de James N. Green. In: SILVA, Cláudio Roberto XX, Trevisan procura demonstrar que o envolvi-
da, op. cit.
18 Entrevista de James N. Green. In: SILVA, Cláudio Roberto 19 Entrevista de James N. Green. In: SILVA, Cláudio
da, op. cit. Roberto da, op. cit., p. 384.
mento entre pessoas do mesmo sexo – que ele na esteve, nesse período, preocupada com to-
chama de homossexualidade – não é uma in- das as práticas que implicassem a quebra de uma
venção recente, mas já se fazia notar desde os disciplina do trabalho – vadiagem, prostituição,
primeiros séculos da colonização. Perseguidos alcoolismo. Essa noção insere a discussão da
pela Igreja, que caracterizava essa prática como homossexualidade num panorama mais
pecado nefando, os homossexuais foram presos amplo, que seria outra modalidade da ex-
pelo tribunal do Santo Ofício e, em alguns ca- ploração capitalista.
sos, mandados para a fogueira.(Trevisan, 2000). Logo, é possível perceber duas maneiras dis-
Sua obra parte do pressuposto de que tintas de pensar a homossexualidade. Ambas,
qualquer tipo de envolvimento erótico entre no entanto, encontram apoio na trajetória de
pessoas do mesmo sexo deveria ser entendido seus autores. Trevisan sempre mostrou-se céti-
como homossexualidade. Como um dos fun- co em relação à constituição de lutas políticas
dadores do grupo Somos, Trevisan apostava com um viés partidário, simpatizando-se com
na idéia de que era necessário construir uma causas anarquistas.
identidade homossexual. Somente dessa for-
ma seria possível lutar contra os pressupostos “Eu tive participação em vários grupos
machistas que tornavam conflituosas as vidas políticos. Participei inclusive da Ação Popular,
dos homossexuais. Ao investigar a história bra- mas tenho muita dificuldade para me sentir
sileira em busca de relações entre pessoas do conivente com partidos. A minha consciência
mesmo sexo, o autor oferece aos homossex- ultrapassa a conivência do partido e esse é um
uais um passado e, junto a isso, a motivação outro problema na minha vida (...) eu me
para que assumam uma identidade pautada considerava maoísta, mas na verdade, o que me
nas suas práticas eróticas e afetivas. atraía no maoísmo era o anarquismo implícito
Green também acredita na existência de uma em alguns de seus aspectos.”20
identidade homossexual; todavia, os percursos
que traça para chegar a essa noção são com- A identidade homossexual que surge na obra
pletamente diferentes daqueles propostos por de Trevisan, tanto quanto sua própria trajetória,
Trevisan. Em seu livro, Green procura verificar não está atrelada a uma organização política,
a construção social da homossexualidade no nem é fruto da exploração econômica de um
Brasil, tomando como recorte temporal os últi- sistema. Para ele, ser homossexual já seria causa
mos anos do século XIX e estendendo-se até o suficiente para que as pessoas se organizassem e
início dos anos 80 do século seguinte. Esse lutassem contra o machismo existente na so-
recorte já evidencia que, para o autor, a invenção ciedade. Quando remonta ao Brasil Colônia
histórica da homossexualidade ocorreu num para evidenciar a perseguição de que foram víti-
contexto específico: a incorporação das práti- mas os homens que se envolveram sexualmente
cas homoeróticas pela medicina na segunda com outros homens, o autor pretende mostrar
metade do século XIX. A homossexualidade a uma continuidade do preconceito, do patriar-
que ele se reporta começou a se tornar uma preo- calismo e da influência da Igreja na avaliação
cupação médica num momento político e da homossexualidade. Não seria, então, apenas
econômico de substituição, em terras brasilei-
ras, do trabalho compulsório pela mão-de-obra
assalariada. Cumprindo um papel específico –
20 Entrevista de João Silvério Trevisan. In: SILVA, Cláudio
a construção do trabalhador ideal –, a medici- Roberto da, op. cit., p. 225.
ar tigos
70 JOSÉ RONALDO TRINDADE
vingaria até meados dos anos 70. Esse modelo penetra, independentemente de se o faz com
cederia lugar para outro, o igualitário (gay/gay), um homem ou com uma mulher, e bicha é
que passou a conduzir as relações sexuais entre quem é penetrado, assumindo, nesse
homens a partir dos anos 70. Não é meu momento, o papel sexual relativo ao sexo
objetivo, aqui, analisar a pertinência ou não feminino – a passividade. Se essa não era uma
das idéias de Fry, mas discutir sobre o que questão para os brasileiros, que viam tal prática
possibilitou que este autor enxergasse tal de forma coerente com as noções vigentes de
realidade em terras brasileiras, afinal, em homossexualidade, para um estrangeiro
estudos anteriores realizados no Brasil, essa colocou-se como um problema bastante
questão não foi sequer ressaltada22. instigante.
Peter Fry vem de um contexto
socialmente diferente da realidade brasileira, “No Brasil, a sexualidade masculina ainda
assim, o que talvez já estivesse naturalizado para corre solta [o autor se refere aos anos
um pesquisador brasileiro era novidade para 70]...precisa de muito menos para ser
ele. comprovada. Não sei como é hoje em dia, mas
era perfeitamente comum um homem casado,
“Custei a perceber que não poderia olhar com filhos, transar com meninos e achar
para o Brasil com o meu olhar inglês. O totalmente normal. Num Brasil mais ou
mundo não é o mesmo....estou convencido menos popular, estou convencido que era outra
disso! Enquanto na Inglaterra já havia uma coisa. No Brasil, um rapaz poderia manter
identidade estanque – num gueto mais ou relações sexuais com outro homem sem deixar
menos escondido e privado, complicado por de ser homem....achei isso interessante”24
causa da lei - , percebia que no Brasil a história
era muito diferente. A sexualidade masculina As conclusões a que Fry chegou através de
é mais interessante que na Inglaterra. O próprio suas pesquisas antropológicas colocavam-no
termo homossexual parecia uma mentira em em choque com a militância homossexual que
cima da realidade brasileira....achava isso muito estava surgindo. Para ele, não se podia falar
complicado!”23 em identidades sexuais estanques num país
como o Brasil, onde as pessoas implementam
Enquanto nos países do hemisfério norte suas práticas sexuais de maneiras tão diversas.
as relações sexuais entre homens se colocavam
como uma atividade específica dos “Para todo mundo é claro que nos Estados
“homossexuais”, as definições macho e bicha Unidos, quem não passa por branco é negro.
estavam pautadas no papel assumido durante No Brasil essa história é mais nuançada....é
a interação sexual. Macho seria aquele que muito relativa. Nos Estados Unidos já se pen-
sava em identidades estanques, fronteiras níti-
das entre o que é homossexual e o que é
22 É importante lembrar que, ainda na década de 50, foi de- heterossexual.....ainda há uma discussão sobre
fendida uma tese sobre homossexualidade em São Pau-
lo, na Escola de Sociologia e Política e que, nessa análise,
a existência ou não do bissexual! No Brasil é
as questões apontadas por Fry não pareciam tão relevan- uma questão muito relativa...mais complicada!
tes. Barbosa da Silva. Homossexualismo.
23 Entrevista de Peter Fry. In: SILVA, Cláudio Roberto da, 24 Entrevista de Peter Fry. In: SILVA, Cláudio Roberto da,
op. cit. op. cit.
ar tigos
72 JOSÉ RONALDO TRINDADE
Não há identidades estanques, com fronteiras pensar em identidades estanques ainda hoje.
muito claras. Porém o movimento homossex- Suas reservas em relação à forma como a
ual parte do princípio de que há uma identi- militância se desenvolvia no Brasil – muito em
dade homossexual...que essa fronteira existe”25 virtude de como pensava a questão da “identi-
dade” – levaram-no, inclusive, a afastar-se do
Ao assumir o posicionamento de an- movimento homossexual.
tropólogo – atento às diversidades e à peculiar- Também antropólogo, Edward MacRae
idade da cultura (homo)sexual brasileira – a nasceu em São Paulo, em 1946, filho de pai
posição de militante, nos moldes de como a escocês e mãe brasileira, numa família de classe
militância vinha se desenvolvendo no Brasil e média alta. MacRae teve uma formação bilíngüe
em outros lugares do mundo, foi ficando em e sua família fez questão de manter esse bilingüis-
segundo plano. Para Fry, era impossível con- mo através de escolas especializadas. Em 1960
cordar com a assunção de uma identidade ou foi estudar em Edimburgo, Escócia, numa es-
conclamar outras pessoas a assumirem essa cola antroposófica. Nesse período, morou com
identidade. seu tio-avô, que era escocês. Dois anos e meio
depois, foi mandado para um colégio interno
“Em São Paulo, havia todo um processo de na Inglaterra, onde permaneceu até ingressar
dizer aos michês que deveriam assumir uma na faculdade.
identidade gay...isso não tem nada a ver!!! Eram Ingressou na Universidade de Sussex, onde
rapazes ganhando dinheiro, talvez começou a cursar economia. Nas férias da
gostando...não sei!?....não importa! Então, não faculdade, entre 1965 e 1966, MacRae foi para
gostava dessa imposição pragmática de dizer aos os Estados Unidos. Era um período bastante
outros o que eles têm de decidir.”26 conturbado: nessa época acontecia o Verão do
Amor e surgiam os hippies. Nessas férias
Enquanto Green e Trevisan apostam numa MacRae teve os primeiros contatos com as dro-
identidade homossexual, embora a construam gas mais consumidas pelos jovens americanos
de maneiras diferenciadas27, Fry chama a simpáticos à contracultura.
atenção para a necessidade de se pensar as práti-
cas homoeróticas no Brasil de modos diversos “O movimento hippie demorou alguns
de como elas eram pensadas nos países do meses para chegar à Inglaterra. Mas justamente
hemisfério norte. Para este último, é impossível quando começou, assisti aquilo desabrochar nos
Estados Unidos, estava lá e já lia Timothy Leary.
Fiquei muito interessado em experimentar LSD,
25 Entrevista de Peter Fry. In: SILVA, Cláudio Roberto da, mas só experimentei maconha”28
op. cit.
amigos socialistas, com os quais participou de apartamento foi visitado por Deus e o mundo.
manifestações contra a Guerra do Vietnã em Até o Zé Celso ensaiou ‘As Bacantes’ nele”.
frente à embaixada americana. Nessa época O grupo ligado ao teatro levava uma vida
aconteciam também as manifestações de 68 na homossexual movimentada. As pessoas nele
França, o que acabava atingindo a vizinha In- envolvidas mantinham relacionamentos mais
glaterra de determinada maneira. ou menos públicos, freqüentavam determina-
Ao concluir seu curso, MacRae voltou ao dos espaços e montavam espetáculos contesta-
Brasil e encontrou um país que vivia sob uma dores da moral e dos papéis de gênero. MacRae
pesada ditadura. Decidiu voltar à Inglaterra e passou a manter contato com alguns intelec-
iniciar o mestrado em sociologia da América tuais da UNICAMP, que o levaram a iniciar
Latina na Universidade de Essex. Durante esse uma pós-graduação em antropologia. Foi en-
curso, envolveu-se com a esquerda mais anar- tão que se deu a aproximação com o an-
quista e também com o movimento feminista, tropólogo Peter Fry, que se tornou seu orienta-
que tomava cada vez mais força. Através das dor numa pesquisa sobre homossexualidade.
feministas conheceu o Gay Libertation Front, Durante a semana, morava em Campinas na
que, tanto quanto as feministas, buscava ques- casa de Fry e, nos finais de semana ambos
tionar os rígidos papéis de gênero que permea- vinham para São Paulo, onde ficavam em seu
vam a sociedade. apartamento.
Depois de concluir o mestrado, voltou ao Através de Fry, MacRae tomou conhecimen-
Brasil e passou a se relacionar com pessoas liga- to do jornal Lampião e se aproximou do Grupo
das ao teatro e à publicidade. Ainda marcado Somos que se tornaria, então, objeto de sua
pelos estudos do mestrado, resolveu fazer via- pesquisa: preocupou-se em estudar a formação
gens pelos países da América Latina que viviam e os rumos que o grupo tomaria. Suas idéias
sob ditaduras. sobre identidade homossexual foram visivel-
mente influenciadas pelos estudos que Fry havia
“Acho que passei doze anos sem ir à Ingla- desenvolvido, como, por exemplo, a afirmação
terra, só viajava pela América do Sul.(...) Na de dificuldade de se pensar identidades es-
época do Allende estive no Chile, viajei uns três tanques e os problemas que isso gerava para a
meses pela América do Sul, para Machu Pichu, manutenção de um grupo de militância ho-
para a Argentina, assistindo os filmes censura- mossexual. Porém, suas questões vão além
dos que não passavam no Brasil, então visitei a dessa discussão. As ligações anteriores com o
Argentina no período entre ditaduras, pois tudo pensamento socialista, movimentos gays e
acontecia lá”29 feministas e com as lutas de outros setores – as
chamadas “minorias” – levaram-no a refletir
Por volta de 1974, MacRae herdou de sua sobre as possibilidades de uma militância ques-
avó um apartamento na Praça da República, tionadora.
em São Paulo. Intensificaram-se, nesse perío-
do, as relações com pessoas ligadas a um teatro “No Somos sempre vi a questão
mais questionador da realidade social, que pas- homossexual sob o ângulo político. Achava que
saram a se reunir em seu apartamento...“Esse ela deveria estar ligada a outras questões políticas
29 Entrevista de Edward MacRae. In: S ILVA , Cláudio 30 Entrevista de Edward MacRae. In: S ILVA , Cláudio
Roberto da, op. cit. Roberto da, op. cit.
ar tigos
74 JOSÉ RONALDO TRINDADE
e de esquerda. Dos meus amigos eu era o mais Porém, a despeito desses pontos comuns,
‘politizado’. Havia pessoas que diziam: ‘Não cada um deles encontrou maneiras diferentes
queremos sair dizendo ABAIXO A de pensar tanto a militância como as questões
DITADURA...que coisa careta!’. Eu muito pelo ligadas à identidade sexual. Se para Trevisan falar
contrário, achava que não era careta dizer em identidade homossexual significa remeter a
ABAIXO A DITADURA. Ela tinha que ser uma história muito anterior, não sendo,
abaixada porque era um horror”30 portanto, fruto de conjunturas políticas e sociais,
Green prefere pensar essa identidade como um
A pesquisa de MacRae acabou se transfor- “fazer-se” histórico, a partir das situações de
mando no primeiro trabalho acadêmico a con- conflito e solidariedade que marcaram as
tar a história de um grupo de militância ho- experiências homoeróticas no século XX. No
mossexual no Brasil. Nele, o autor aborda a entanto, dizer que Green busca uma organização
criação do Somos, os conflitos internos e as dis- social e política de seus sujeitos para então pensar
cussões sobre as estratégias de luta implemen- a constituição de uma identidade não significa
tadas por esse grupo. A Construção da Igual- dizer que a história pensada por Trevisan seja
dade foi publicado em 1989 e, embora as identi- apolítica. Afirmar, como faz Trevisan, que a
dades estanques sejam revistas em sua pesquisa, homossexualidade sempre existiu, também é
MacRae procura explorar a importância da um projeto político, ainda que não se refira a
militância para uma maior abertura da socie- uma política institucional.
dade com o objetivo de pensar questões ligadas Embora Fry tenha se aproximado das lutas
à homossexualidade. homossexuais em seu país, as formas como a
militância acontecia na Inglaterra não o
ALGUMAS CONCLUSÕES
ONCLUSÕES agradavam. Uma vez no Brasil, passou a
conhecer uma realidade social, política e sexual
Ao abordar as trajetórias e as obras desses muito diferente. Observou comportamentos
atores/autores, algumas semelhanças podem que se distinguiam daquilo que havia
ser apontadas. Talvez a mais importante presenciado em seu país. Fry acreditava que
delas seja o fato de que os quatro atores/ transplantar idéias advindas de outras
autores experimentaram uma realidade experiências de relações homoeróticas para as
social externa ao Brasil. Embora brasileiros, terras brasileiras era pouco saudável. Daí suas
tanto Trevisan quanto MacRae travaram reservas com o modo de constituição da
conhecimento com a experiência de militância homossexual no Brasil. Logo,
militância que se desenrolava nos países começou a forjar novas idéias a respeito do
“desenvolvidos” do hemisfério norte. Green envolvimento entre pessoas do mesmo sexo no
e Fry não eram brasileiros, e cada um em Brasil.
seu país pôde vivenciar outras experiências O engajamento de MacRae com as lutas
políticas e sociais relacionadas à políticas das minorias, a aproximação com a
homossexualidade. O contato com atmosfera contestatória da classe teatral e a
realidades estrangeiras parece, então, ter sido amizade com Peter Fry o levaram à elaboração
um marco importante no surgimento do de um trabalho que, ao mesmo tempo em que
primeiro grupo de militância homossexual olhava com reservas para questões relacionadas
no Brasil e dos trabalhos sobre a identidades homossexuais estanques, atentava
homossexualidade escritos no futuro. para a importância da militância no
desenvolvimento das lutas por direito e CHARTIER, Roger. “Text, Symbol and
cidadania. MacRae não deixava, no entanto, Frenchness”. In The Journal of modern His-
de observar os diversos projetos políticos que se tory. n. 57, 1985.
chocavam no cotidiano dessa militância.
Por fim, fiz um esforço no sentido de refletir CHAUNCEY, George. Gay New York: Gen-
sobre como os sujeitos históricos podem ser der, Urban Culture and the making of the
influenciados por suas próprias trajetórias, seja gay male world. 1890-1940. Nova York:
na maneira como se organizam politicamente, Basic books, 1994.
seja no modo como representam ou recontam
o passado em seus escritos. É certo, porém, que CLASTRES, Pierre. “O Arco e o Cesto”. In: A
as entrevistas utilizadas para compor este texto Sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro:
são fruto de um esforço da memória que, de Francisco Alves, 1978.
alguma forma, seleciona e reinterpreta os acon-
tecimentos num presente construído por leitu- CLIFFORD, James. A Experiência Etnográfi-
ras bastante particularizadas. ca: Antropologia e Literatura no século XX.
Vale lembrar que, ao investigar a biografia Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.
desses atores/autores, me torno mais um autor,
refletindo sobre a trajetória dessas pessoas e, dessa COSTA, Jurandir Freire. A Inocência e o Ví-
forma, construindo meu próprio trabalho cio. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1992.
acadêmico. Nesse sentido, resta ser problema-
tizado – o que pretendo fazer ao longo de CRAPANZANO, Vincent. Waiting: The
minha tese – quais as implicações disso para a White of South Africa. Nova York: Random
produção de uma etnografia. Por enquanto, este House, 1985.
texto representa muito mais o início de uma
investigação do que o estabelecimento de uma DANIEL, Herbert e PARKER. AIDS, a ter-
resposta definitiva. ceira epidemia: Ensaio e tentativas. São Pau-
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78
* Mestre e Doutorando em Antropologia Social – USP Numa atitude que lembra a dos heróis
Bolsista CNPq (Av. Nossa Sra. da Assunção, 1336, ap. 21,
Vila Butantã. 05359-001. São Paulo - SP. Tel 3719-2841. míticos fundadores, o patriarca da família
E-mail: ugomaia@usp.br) Fatum, João (de Silivina) Vieira Fatum,
1 Em cosmologia física, o “grande atrator” é um corpo oculto de instalou em sua propriedade, na fazenda São
altíssima densidade e força gravitacional responsável pelo Miguel, um cruzeiro de toré, obedecendo às
deslocamento convergente de galáxias em sua direção e que pode
ser o resultado de uma gigantesca concentração de energia cristalizada
recomendações do encanto Manuel Ramos.
na forma de super cordas após a explosão primordial que deu origem Foi a criação do mundo. Era o final dos anos
ao universo. Utilizo a imagem do atrator para o toré por este
40 e a concessão vinda do sobrenatural deu a
apresentar – dentro do universo tumbalalá – grande densidade
simbólica, alto poder de atração e de concentração de signos de licença para que os Fatuns e alguns outros
identidade e estar referenciado às origens do grupo. retomassem a autonomia ritual frente aos
índios Truká, então aprendizes desses segredos
2 Este texto é parte de minha pesquisa de mestrado com o grupo
Tumbalalá, concluída em janeiro de 2002 e que contou com o pelas mãos dos Tuxá de Rodelas. Fundação do
financiamento da FAPESP, através da concessão de bolsa de terreiro de toré do São Miguel, instauração de
mestrado, durante o período de agosto de 1999 a agosto de 2001.
80 UGO MAIA ANDRADE
auto-hipnose provocada por dança e cantos monó- ritual apresenta um extraordinário poder de
tonos, resulta em visões que, afirmam, permitem aglutinar símbolos unificadores basilares para
aos participantes falar com os espíritos” (Hohenthal a construção de uma identidade exclusiva
Jr., 1960a: 61). A penetração dessa planta no uni- tumbalalá que, por sua vez, vem emergindo
verso ritual dos índios do Nordeste é bastante acen- de uma ampla matriz cultural regional.
tuada e todo o simbolismo que gravita em torno As variantes do toré são o praiá e o ouricuri,
dela se assemelha àquele atribuído aos encantos. praticados pelos Pankararú, Geripankó,
A rigor, os rituais do toré e da mesa de toré Pankararé, Jeripankó, Kantaruré, Kambiwá
(considerando-se as devidas distinções performáti- (praiá) e Fulni-ô, Kariri-Xokó, Xucuru-Kariri,
cas e de ordem estrutural) consistem na manutenção Tingui-Botó (ouricuri) (Nascimento, 1998:
dos vínculos com esses seres, o que imediatamente 15), e sua sessão privada é chamada de mesa
produz a necessidade do sancionamento de ações de toré 6 ou particular. Os encantos ou
coletivamente válidas nos planos moral e político. encantados constituem a parte ativadora do
A sistematização dessas ações e programas morais toré e formam uma grade de entidades,
formam o “regime” tumbalalá, que será melhor exclusivas ou compartilhadas regionalmente,
discutido adiante. O setting para o toré público que circulam entre as aldeias analogamente ao
envolve, fundamentalmente: um terreiro retangu- movimento na rede de relações interétnicas que
lar ou espaço de terra batida e lisa com um cruzeiro unem os grupos indígenas do Nordeste. São
de madeira em um de seus lados menores; oficiantes entidades sobrenaturais, classificadas pelos
ritualmente aptos; uma audiência participante, que Tumbalalá em encantos do brabio (ou da terra,
varia de quinze a oitenta pessoas que dançam e da caatinga) e das águas – com aparentes
entoam as linhas, ou simplesmente observam, e a atribuições de prerrogativas apropriadas a esses
bebida da jurema. A presença dos encantos – me- dois elementos –, que se distinguem dos
diante transe possessivo dos mestres – decorre da espíritos dos mortos por passarem por um
competência ritual dos oficiantes, o que, de resto, processo de encantamento que transforma, de
determina todo o sucesso do ritual, que se adensa à maneira volitiva, e não compulsória, uma
medida que os símbolos de comunhão com o so- pessoa que morreu em um encanto,7 que passa
brenatural e o passado (a jurema, o conteúdo das a habitar não um estrato separado de nosso
linhas, a fumaça ofertada aos encantos, etc.) vão se mundo empírico, mas locais específicos
tornando mais operativos. (morros, cachoeiras, depressões no terreno,
Concorrem também para tal comunicação el- grutas etc.) na geografia da aldeia.
ementos católicos, como o cruzeiro, e a freqüente
invocação de santos – Jesus Cristo, Deus e Nossa 6 Uma mesa pode ser encomendada por alguém que pretende
uma dádiva dos encantos, comumente a cura para uma enfer-
Senhora – o que revela as fortes influências do midade, ou por aquele que está retribuindo um dom já obtido
catolicismo popular e de cultos afrobrasileiros, do sobrenatural. O contratante encomenda então o ritual aos
embora o discurso dos oficiantes mestres de toré oficiantes reconhecidamente habilitados, convida algumas pes-
soas mais chegadas e arca com todas as expensas (velas,
veementemente afaste qualquer relação com estes cachaça, fumo, jurubeba, etc.) da cerimônia, que poderá ser
últimos, por considerá-los práticas voltadas para o realizada em sua própria residência em dias específicos da se-
mana.
mal e contrárias à ideologia cristã5. Em síntese, o
7 Entre os Tumbalalá, é acessível a algumas pessoas um
encantamento provisório ao modo das viagens
5 Para um bom entendimento das relações entre toré e for- xamanísticas, incluindo transformação física e
mas afro-brasileiras de culto à jurema, como o catimbó invisibilidade, poderes conectados fortemente ao plano
ou candomblé de caboclo, cf. Nascimento (1994; 1998). onírico.
ar tigos
82 UGO MAIA ANDRADE
ritual dos Truká. O trabalho ritual do toré é Há uma espécie de tensão permanente en-
também re-produção cultural, atualização tre a mistura e a herança indígena que é
histórica do tempo dos antigos índios, detentores manifesta no universo religioso do toré tum-
de saberes mais apurados e que resistiram ao balalá. Este é um casamento indissolúvel, quase
tempo, porque sobreviveram na forma dos incômodo, que provoca soluções criativas para
encantados. Re-ligar e re-criar são ações desviar-se dos olhares acusadores e desabona-
conjuntas, indissociáveis, realizadas na re- dores por parte de segmentos regionais não
produção simbólica do trabalho do toré; são indígenas sempre de plantão para detectar far-
atitudes que não ostentam sinais diversos e sas sociológicas.
antagônicos (“religar”, como fator de De um lado, o Estado brasileiro exige a
positividade, retorno, volta à origem, e “re- demonstração de uma ligação entre os atuais
criar” como fator de negatividade, arbítrio, grupos nordestinos (este é um procedimento
postulação, degeneração), senão aos olhos de geral, não valendo somente para a região Nor-
quem procura por alguma pureza ou deste) e as antigas populações indígenas au-
originalidade imaculada. Porque a re-criação tóctones como requisito para atender ao pedi-
é um elemento tão próprio da cultura que não do desses grupos do direito ao território e à
haveria re-ligare sem ela, já que é do presente tutela oficial. Do outro, os índios nordestinos
que os homens pensam o passado para reinventam o toré para satisfazer esses fins e
construir sua historicidade. Nada de serem declarados remanescentes indígenas,
desalentador, portanto, existe no fato de a ação caboclos ou índios mais “apurados”. É o que
inventiva e criativa adotada pelos sujeitos se registra, por exemplo, dos Kiriri, Atikun,
coletivos serem elementos centrais para o Truká, Kambiwá e vários outros que
entendimento antropológico do modo como (re)aprenderam o toré para o apresentar à agên-
as culturas funcionam (Wagner, 1981: 35). cia oficial indigenista, que assim exigia para
conceder o reconhecimento de sua indianidade
II (Reesink, 2000: 340; Grünewald, 1999: 150;
Arruti, 1999: 261). Tudo isso ocorre porque a
“Nós tinha aquela visão mesmo de tra- concessão dos direitos indígenas a essas popu-
balhar [bem]. Aí trabalhamos... Aí faz que nem lações baseia-se na comprovação de vínculos
dizia Tubaviana (Inspetor Tubal Viana, fun- genealógicos com os silvícolas aldeados nos séc-
cionário do antigo SPI), que era homem ex- ulos XVII, XVIII e XIX, e, para tanto, é
periente, ele dizia que não precisa: - Ói Ar- necessário um laudo antropológico favorável
cilon (Acilon Ciriaco da Luz, ex-cacique Truká de identificação étnica. Em muitos casos, en-
nas décadas de 40-50), não precisa você chamar tretanto, é improvável que tal vínculo possa
pessoa nenhuma, destar que o sangue chama. ser retraçado e nem sequer há como aplicar o
E não é mesmo? O sangue vai chamando, vai adjetivo de “remanescentes indígenas” a várias
chamando aqueles que daquela descendência, famílias que formam esses grupos, como é o
vai chamando, vai chamando quando vai, tá a caso dos Tumbalalá.
aldeia completa. Não é mesmo? Tá a aldeia Se almejamos um tratamento mais
completa!” criterioso a essa questão, não basta desassociar
(Sr. Aprígio Fatum. Fevereiro de 1999). a concessão oficial dos direitos indígenas da
pureza cultural e estendê-la igualmente aos
“remanescentes”, como propõe Oliveira Filho
ar tigos
84 UGO MAIA ANDRADE
(1999: 117-118), já que tanto os “puros” Cícero – É. Eles foram e voltaram, né? De-
quanto os “misturados” possuem vínculos pois foram voltando aos poucos, foi alguns fo-
genealógicos com populações autóctones ram voltando, né?
locais (havendo apenas uma questão de (Sr. Luís Fatum, 78, Cícero Marinheiro, 40.
diferença de grau). Quando pensamos na área Setembro de 1998)
etnográfica Nordeste, corremos o risco de, em
não se encontrando tais vínculos genealógicos, Quando os Tumbalalá empregam um
engrossar o coro acusatório dos regionais não- discurso que visa legitimar a indianidade de
índios a favor da farsa sociológica. Além disso, certas genealogias não estão, necessaria-
o material empírico da etnografia não é o grupo mente, traçando uma linha que os conecta
social, mas indivíduos, famílias e suas aos índios antigos da missão de Pambú, em-
trajetórias, o que nos coloca uma séria questão: bora em várias ocasiões se digam descendentes
como falar de “grupo remanescente indígena”, deles. Famílias que se autoconsideram tron-
apoiando-se nos critérios genealógicos, quando cos velhos, e são assim vistas por outras, nem
as famílias que o compõem possuem trajetórias sempre apelam para a autoctonia como for-
múltiplas e diversas que, muitas vezes, não as ma de validar sua qualidade tradicional e
conectam às populações autóctones locais do competência ritual; através da exposição de
passado? certos circuitos e trajetos cumpridos pelos
A luz para esse impasse (que não é somente antigos parentes que chegaram a Pambú em
classificatório, mas diz respeito a revisões nas determinada época se estabelece a relação
metodologias aplicadas ao estudo de popu- com o universo simbólico caboclo, mesmo
lações “ultra misturadas”) pode vir dos que sua origem familiar seja parcialmente
próprios sujeitos em questão e de seus discur- exógena.
sos sobre a mistura e suas genealogias: A aloctonia não é uma qualidade negativa
que desabone as genealogias a ponto de ser
Sr. Luís – [Meu] pai tem a família dele em algo sobre o qual não se fala. Evidentemente,
Salvador, família Vieira. É dentro de Salvador a disputa pelo status de tronco velho da
mesmo. aldeia tumbalalá tende a atribuir mais
Família grande. prestígio às famílias que se auto-representam
Sr. Luís – É grande. E por parte da nossa como autóctones, em detrimento daquelas
bisavó, é Cariri [...] Minha bisavó, cariri. De que têm ramos vindo de fora. Mas o que
Pernambuco. Já meu bisavô, de Salvador. Den- importa mesmo nesse caso é captar os
tro de Salvador. discursos que explicam e neutralizam a
Cícero – Essas famílias, da indescendência propriedade potencialmente negativa da
dos índios, houve uma guerra há muito tem- aloctonia apelando para um fluxo circular
po, por questão de os branco querer tirar os de saídas e retornos de famílias de índios
índios da região dele, né? Aí houve muita que deixaram a aldeia tumbalalá
morte, morreu muito índio muitas pessoas e involuntariamente. A dicotomia “de fora/
muitos índios fugiram daqui, saíram, né? En- de dentro” deixa de fazer sentido e os
tão as famílias foram, fugiram e depois volta- movimentos de famílias exógenas passam a
ram. denotar um retorno à terra de origem, como
Sr. Luís – De um canto pra outro. se vê na fala de Cícero Marinheiro.
Mas há uma ressalva: a modalidade mais Essas pessoas são, por assim dizer, “rema-
usual de discurso autenticador de genealo- nescentes indígenas translocais” que não têm
gias adotada pelos tumbalalá do núcleo São sua indianidade obliterada pela aloctonia, já
Miguel é aquela que toma por partida a his- que a qualidade de índios nordestinos (não
toricidade indígena do local de emigração importando de que local sejam) basta para lhes
das famílias, que foi sendo fixada na garantir o acesso à identidade exclusiva tum-
memória coletiva do grupo provavelmente balalá, desde que haja a filiação a um de seus
através dos circuitos de trocas rituais esta- núcleos de toré. É fazendo parte dos trabalhos
belecidos com os grupos originários dessas rituais especificamente tumbalalá que a aloc-
regiões. Ter um bisavô ou avó que veio de tonia individual ou familiar pode ser revertida
Tacaratú, Serra do Umã ou Rodelas8, por em identidade local, anulando sua potenciali-
exemplo, lugares que são reconhecidamente dade de exclusão. Tal situação evidencia-se, so-
“terra de índio”, pode atestar a pertença de bretudo, no discurso daqueles que, não tendo
uma pessoa ao universo caboclo tumbalalá, já ainda aderido formalmente à causa étnica, es-
que este emerge do quadro regional mais am- tão prestes a “entrar para os índios” frente às
plo de referências a um universo indígena pressões crescentes em que urge uma tomada
maior, sendo o toré simultaneamente o veícu- de posição:
lo de inclusão no simbólico regional e de
emergência da identidade particular. “Rapaz, eu digo a minha verdade, porque
de modo que a gente tá falando ficar nos olho
dos paus a gente tem que acompanhar. Porque
8 Essas três áreas indígenas são umas das mais antigas do é o seguinte: nós somos da, do mesmo [rumo],
sertão do São Francisco. A aldeia dos índios Pankararu
(localizada no entorno da cidade de Tacaratú – PE, bem né? É só a família que tem sangue, né? [...]
próximo à divisa entre os estados da BA, PE e AL) teve Nós temos que seguir a aldeia [...] E olhe, a
suas terras demarcadas em 1941 pelo SPI, mas a redução
desse grupo, por religiosos jesuítas, às margens do São
bisavó de [?] é irmão da minha avó, né, tem
Francisco, data do início século XVII quando, então, sangue. Eu, parte de meu avô, tem sangue,
foram deslocados de ilhas vizinhas e da região que hoje né? De meu avô, que não era daqui também,
ocupam (PETI/MN, 1993: 38-39). A Serra do Umã,
tradicional área de refúgio de índios, negros e brancos né, ele já veio de lá, né, é das caatinga. Então,
nos séculos XVIII e XIX, passou a constar dos arquivos quer dizer, que nós não vamos deixar nosso
do SPI como território de ocupação indígena na década
de 40 do último século, época em que os “caboclos da
pros outros, né? Nós tem que acolher [...]”
Serra do Umã” reclamaram o etnônimo Atikum-Umã e (Cecílio Barbalho, 35. Março de 2000).
adotaram o toré, mas apenas em 1993 viria a acontecer
definitivamente a demarcação de suas terras (PETI/MN,
1993.: 1-2). Data também dos anos 40 do século passado Autores como George Marcus (1991;
a implantação do primeiro posto indígena na cidade de 1998) vêm dando boas contribuições aos
Rodelas (BA) e o início do penoso processo de
demarcação e regularização do território Tuxá, grupo
estudos antropológicos , arejando a disciplina
descendente de várias etnias aldeadas desde o século XVII com noções de abertura e fluidez de fronteiras,
nas vizinhanças de Rodelas, região que até o penúltimo aplicadas às identidades multilocalizadas que
quartel do século XIX sediou missão religiosa. A última
desterritorialização desse grupo ocorreu nos anos 80 do são construídas por múltiplos agentes em
século passado, quando as famílias Tuxá foram impelidas, contextos variados. A expressão
por força da construção da barragem de Itaparica e
submersão de seu território tradicional, a se transferirem
multilocalidade está conectada com a idéia de
para duas áreas vizinhas à cidade de Nova Rodelas (BA) fluxos culturais que ressalta a qualidade
– uma cerca de 100 km, rio acima, da antiga Rodelas, e dinâmica e escorregadia da cultura e da
outra próxima à cidade de Ibotirama (BA), distando 1200
km (PETI/MN, 1993.: 33-34). circulação de seus signos. Essa metáfora
ar tigos
86 UGO MAIA ANDRADE
ar tigos
88 UGO MAIA ANDRADE
Eu digo nos dias em que não tem o e são utilizados programaticamente como
trabalho. elementos definidores de fronteiras simbóli-
Da. Santa – No dia que nós não tem o cas de natureza interna pelos grupos étni-
trabalho nós tem o regime. Quer saber como? cos. E são um fator importante de integri-
Sr. Luís – No guia.11 dade e coesão coletivas, principalmente no
Da. Santa – No guia. Soltar fumaça. Nós São Miguel, onde canta-se uma linha de toré
tem que soltar fumaça... que conclama seus membros a aderirem a
Sr. Luís – Pros encantados [...] comportamentos e valores inscritos no uni-
Então todo regime é amarrado ao trabalho? verso do toré :
Da. Santa – É. Quer dizer que no dia que
não estamos trabalhando estamos regimando, “Oh Jurema
né? [...] Oh Jurema
Sr. Luís – Nós temos que fazer aquela Eu quero ver meus caboclo no regime
devoção com eles (os encantos). Eu quero ver meus caboclo enregimar”
(Sr. Luís, Sr. Aprígio Fatum e Da. Santa,
sua esposa. Março de 2000). IV
O índio regimado é aquele que trabalha Como o regime do toré é o grande atrator
corretamente dentro dos rigores rituais e não cultural que perpassa a esfera do político, os
é displicente no trato com os encantos; sol- projetos sustentados pelos dois núcleos
ta fumaça no quaqui regularmente para eles, político-rituais apresentam suas diferenças
frequenta o toré com disciplina e não adere radicadas nas práticas de toré adotadas em
às práticas relacionadas ao candomblé. A ên- seus respectivos terreiros e nas histórias
fase sobre o regime tumbalalá também pode amparadas por eles. Apesar de os valores
consolidar-se no domínio das relações in- que constituem aquilo que compreendo ser
terpessoais, embora passem igualmente pelo o regime moral tumbalalá estarem
toré, esboçando uma ética da solidariedade marcantemente aí enraizados, há pouca
expressa no ideal do bem comum, como normatização incidindo sobre eles, motivo pelo
parece ser mais patente no núcleo da Mis- qual não devemos lhes atribuir a qualidade de
são Velha. um sistema moral. Meu interesse pelo assunto
O regime moral tumbalalá é constituído começou a surgir depois que passei a observar
a partir de valores genéricos idealizados que que as fronteiras sustentadas mediante
cada um dos núcleos entende que faltam no diferenças radicadas em valores eram mais
grupo oposto e que podem ser auto-atribuí- interna e menos externamente operantes; a
dos como traços distintivos que sinalizam a diacriticidade moral é manipulada para
superioridade de seus projetos políticos e registrar diferenças entre os núcleos do São
rituais. Ao contrário de repousarem num es- Miguel e Missão Velha e, somente por
trato imóvel das crenças, os valores podem extensão, entre o São Miguel e os Truká.
Manifestação de oposições valorativamente
apoiadas entre tumbalalás e “outros” mais
11 Ou quaqui, cachimbo artesanalmente feito com a raiz da externos não são presentes no momento, apesar
jurema. Deve ser batizado, na intenção de um encanto que de as monografias sobre o Nordeste indígena
receberá a fumaça daquele guia, durante uma mesa de toré,
ficando imerso na bebida da jurema. indicarem que os “regimes de índio”
ar tigos
90 UGO MAIA ANDRADE
amparados pelos vários grupos servem, mação das alianças entre os grupos indígenas
principalmente, como meio de auto-delegação do Nordeste. O toré, então, passa a denotar o
de atributos identitários frente aos regionais imperativo de indianidade e o canal principal
não índios, o que não exclui sua operatividade de comunicação interétnica, ao mesmo tem-
junto às facções internas que procuram formas po em que produz internamente formas de
de diferenciarem-se entre si. organização e legitimação de papéis políticos,
Grosso modo, é possível dizer que as cate- pois “a linguagem ritual, melhor que outras,
gorias de acusação levantadas pelo núcleo São se presta à organização política desses grupos,
Miguel contra as práticas de toré adotadas na reunindo ambas as características, organizati-
Missão Velhas estão instruídas por uma série va e de demarcação simbólica de fronteiras
de binarismos que opõem conceitos antitéti- étnicas, tanto para fora como para dentro”
cos e excludentes: bem/mal; certo/errado; tra- (Nascimento, 1994: 37).
balho de índio/trabalho de negro; cristandade/ O toré tumbalalá faz parte de uma ampla
paganismo-candomblé. Apesar de o toré ser, rede de trocas rituais que, tendo começado,
por natureza, um ritual que mistura elemen- sobretudo com os Truká e Tuxá há mais de
tos indígenas, afro-brasileiros e do catolicis- cinqüenta anos, se estende conforme se es-
mo popular, via de regra se nega a “mistura” treitam os laços políticos do grupo com
com o candomblé, para efeito de não outros povos indígenas nordestinos. Sua
desqualificar seu trabalho enquanto ritual de dinâmica segue a velocidade em que se desen-
índio e comprometer a natureza da identidade volvem os episódios do atual movimento
daqueles que o praticam. Nota-se que a antítese político tumbalalá. Notavelmente, o toré pos-
fundamental que subjaz à imputação das sui uma ampla capacidade de refletir e
categorias depreciativas que incidem sobre o assimilar esses acontecimentos, o que pode
toré diz respeito a dois universos religiosos, o ser representado pelas incorporação de linhas
candomblé e o catolicismo, representados re- – cantigas semelhantes às ladainhas do catoli-
gionalmente – e provavelmente também pelo cismo popular que conjugam os elementos do
imaginário popular brasileiro de forma geral universo indígena nordestino em letras sim-
– como radicalmente distintos e irrecon- ples e curtas, cantadas durante o toré – de
ciliáveis, embora as práticas religiosas popu- outros grupos com os quais os Tumbalalá vêm
lares no Nordeste brasileiro refutem tamanha mantendo recentemente contatos e pela cres-
diferença, contrariando as pregações “puristas” cente presença de encantos de outras aldeias
dos discursos de seus oficiantes. nos terreiros do São Miguel e da Missão
Tudo o que já foi exposto até aqui deve ser Velha.
suficiente para corroborar a afirmativa de que
o movimento étnico tumbalalá não pode ser BIBLIOGRAFIA
compreendido apenas como uma mobilização
política de cunho pragmático, pois há um ARRUTI, José M. Andion. “A árvore Pankararú:
núcleo central bastante forte de crenças em fluxos e metáforas da emergência étnica no
torno de uma origem indígena comum que, sertão do São Francisco”. In: OLIVEIRA, João
se não são compartilhadas igualmente por to- P. de (org.). A viagem da volta: etnicidade,
dos, se impõem como uma referência constante. política e reelaboração cultural no Nordeste
A rigor, o campo religioso é o ambiente privi- indígena. Rio de Janeiro: Contra Capa
legiado para a partilha de representações e for- Livraria, 1999. p. 229-277.
ar tigos
92
ar tes da vida
94
artes da vida
96
entrevista
98
ENTREVIST
NTREVISTA COM LUIZ DE CASTR
VISTA O FARIA
ASTRO
REALIZADA EM NITERÓI NO DIA 9 DE AGOSTO DE 2001.
Apr esentação
presentação percepção de diversas experiências em
transformação.
Luiz de Castro Faria construiu uma Seu depoimento reafirma o papel de
carreira acadêmica de mais de 60 anos como testemunha, ou melhor, de “praticante”
Professor Emérito da UFRJ e da UFF, sua voluntário de um campo em construção.
trajetória se confunde com a constituição Dentre as muitas formas de fazer
da Antropologia no Brasil. Foi o fundador Antropologia experimentadas, Prof. Castro
e o primeiro presidente da Associação Faria sempre teve como linha o pensar
Brasileira de Antropologia; no início dos criticamente sobre a produção acadêmica,
anos 50 trabalhou no Institut d’Ethnologie sabendo que o bom pesquisador sempre está
de l’Univeristé de Paris e na cadeira de disposto a aprender.
Antropologia do London College , em
Londres. APRENDENDO A FAZER ANTROPOL
NTROPOLOGIA
OPOLOGIA
Suas histórias são conhecidas mesmo por
aqueles que não partilharam de seu convívio Cadernos de Campo: Nós gostaríamos
por serem constantemente narradas por que o senhor falasse sobre sua iniciação na
muitos de seus ex-alunos. Entrevistá-lo Antropologia e no trabalho de campo.
representou um desafio: fazê-lo falar não
apenas sobre suas memórias - dentre as quais Prof
of.. Castr
Castroo Faria: Em geral, todos se
Faria:
figura sua participação na expedição à Serra interessam pela expedição de 1938. Nós
do Norte, em 1938, com Claude Lévi- estamos em 2001, eu estou com 88 anos, e
Strauss-, mas sobre a prática antropológica, a questão da idade é extremamente
da qual ele jamais se afastou, mesmo se importante. Eu sempre fui muito solicitado
declarando um militante da Antropologia para falar da Expedição com Lévi-Strauss.
em recesso. A primeira coisa que eu digo aos alunos é:
Cercado por seus livros, Castro Faria “Olha! Eu tinha 24 anos, estava iniciando a
conversou durante uma tarde sobre os minha carreira, Lévi-Strauss é um pouco
prazeres e afazeres dessa ciência feita de mais velho, mas também não era ninguém,
sedução – a Antropologia – traduzida estava começando a carreira”. Esse ponto é
principalmente pelo trabalho de campo e fundamental, porque, em geral, os alunos,
pelas viagens, que proporcionam a quando falam da minha presença na
100 ENTREVISTA COM LUIZ DE CASTRO FARIA
Dinheiro nada! Mas é uma tradição que seguir, porque senão não poderia
mundial, há profissões que não estavam na funcionar. O problema é que esse Decreto
universidade, uma delas era a Antropologia. criou 42 cátedras e havia um artigo da lei
Não sei se vocês sabem isso, mas a Faculdade determinando que todas teriam que seguir
Nacional de Filosofia era onde se ensinavam o padrão estabelecido por essa lei.
as matérias que nenhuma universidade Essa lei criou a cadeira de Antropologia
ensinava, porque as universidades eram para cujo lugar, até então, era o Museu Nacional,
os profissionais liberais, elas formavam o Museu Göeldi e o Museu Paulista, que
médicos, engenheiros, advogados. A publicavam sobre Antropologia e tinham
Antropologia não tinha lugar na Antropologia feita por formados em
universidade, nem as outras ciências. O qualquer curso superior que tivessem
Museu Nacional, que é de 1818, sempre teve interesse pela disciplina. Não havia,
zoólogos, botânicos, geólogos, mas nada portanto, no Brasil, em universidade nem
tinha haver com a universidade. Essas em curso superior, nenhuma disciplina de
ciências estavam em outras instituições, Antropologia.
como os museus. A Faculdade de Filosofia Por esse Decreto de 1940, o primeiro ano
que vocês hoje conhecem em termos de era Antropologia Física, depois era Etnologia
organização e de experiência pessoal, só Geral e, no terceiro, era Etnologia do Brasil.
surgiu no Brasil em 1940 com um Decreto- A USP teve, desde o começo, dois
Lei de Getúlio Vargas e Gustavo Capanema. professores, um de Antropologia, que era o
Essa lei estipulava que todas as instituições professor Egon Schaden, que ensinava de
denominadas Faculdade de Filosofia acordo com a tradição européia, era a
deveriam seguir o mesmo programa e todas chamada de Antropologia Física, estudo de
se submeteram, inclusive a USP. Só a partir raças, que não tinha nada a ver com o que,
de 1940 que a universidade passou a abrigar hoje, os jovens alunos pensam que seja
várias ciências, as ciências naturais, quase Antropologia. O outro era de Etnologia
todas, e a Antropologia. É um documento Geral, o professor Plínio Airosa, o homem
que eu acho que todos deviam ler hoje, do Tupi, que deixou uma quantidade de
porque é impressionante como é que um trabalho sobre o Tupi, o Tupi histórico,
governo ditatorial criou essa instituição que baseado em cronistas.
se chamou Faculdade Nacional de Filosofia
e estabeleceu que todas as Faculdades de Cadernos de Campo: Como o senhor
Filosofia tinham que seguir todas as aprendeu a fazer Antropologia?
disciplinas na ordem em que eram impostas
pela lei. Pr of
of.. Castr
Castroo Faria: Como assistente
Faria:
voluntário. Era um sistema antigo, que
Cadernos de Campo: Como isso vigorou aqui, na Europa, em toda parte.
aconteceu na prática? Todas as faculdades Alguém interessado aproximava-se de um
funcionaram da mesma forma? profissional competente e ficava ao lado dele
como estagiário.
Prof
of.. CastroF
Castro aria: Sim, todas da mesma
Faria:
forma. A USP, por exemplo, que tinha Cadernos de Campo: De quem o
sempre uma pretensão à independência, teve senhor era assistente?
entrevista
102 ENTREVISTA COM LUIZ DE CASTRO FARIA
Prof
of.. CastroF
Castro aria: Eu era assistente de
Faria: fizemos concurso, ainda no tempo do DASP,
três, Heloísa Alberto Torres, que fazia uma fiscalização terrível. Vou mencionar um
Arqueologia; Raimundo Lopes, que fazia fato, que talvez vocês não tenham percebido,
Etnologia e José Bastos de Ávila, que fazia porque não foram de forma alguma
Antropologia Física. A gente passava a atingidas por esse ato discricionário, um ato
trabalhar ao lado desses especialistas e ia do governo ditatorial. Vocês já ouviram falar
aprendendo e ajudando a fazer. Eu fiz muita na desacumulação? Até 1937 os
coisa para o Museu: desenhos, preparação profissionais, sobretudo, os profissionais
de material para aula. Esse sistema foi liberais, ocupavam dois, três, quatro, cinco
universal, porque as universidades não lugares, porque não havia nenhuma restrição
davam nenhum apoio a essas disciplinas, a esse sistema. Getúlio Vargas, na
nem aqui, nem em lugar nenhum no Constituição outorgada de 1937, resolveu,
mundo. com um simples termo aditivo das
Disposições Transitórias, ele aboliu isso no
Cadernos de Campo: Qual era a sua Brasil inteiro. O Museu, inclusive, foi
formação, professor? atingido. As avaliações não são
concordantes. Eu sempre defendi a
Prof
of.. Castr
Castroo Faria: Eu fiz dois cursos
Faria: desacumulação, fui por mais de 10 anos
que hoje mudaram de lugar, estão nas membro do Conselho Universitário da
universidades, mas na época não estavam, Universidade, sempre defendi um ponto de
estavam em instituições do Ministério da vista contrário ao da maioria dos colegas,
Educação. Um deles chamava-se de que acharam que isso tinha sido um prejuízo
Biblioteconomia. Eu o fiz ainda na para as instituições científicas do Brasil - aqui
Biblioteca Nacional e era um curso no Rio, sobretudo o Instituto Oswaldo Cruz
extraordinário, fora do comum, pelas e o Museu Nacional - e eu sempre achei ao
matérias, pelas disciplinas. O outro foi contrário, porque, inclusive, eu fui nomeado
Museologia também feito, na época, no interino para vaga de um professor do
Museu Histórico Nacional. Esses dois cursos Museu Nacional, que acumulava um lugar
me aproximaram cada vez mais do Museu de professor de Grego da Faculdade
Nacional e da prática da pesquisa, Nacional de Filosofia. É claro que ele optou,
trabalhando com os pesquisadores do Museu como todos os outros, pela faculdade,
Nacional. Esse é um sistema que ainda está porque na faculdade, os catedráticos, se
em vigor, no Museu ainda existe o local de quisessem, não davam aula, tinham
estagiário. É uma maneira de qualificar a assistentes que o faziam. Era muito menos
pessoa. tempo de trabalho, o Museu obrigava a oito
horas de trabalho. Os professores
Cadernos de Campo: Quando o senhor catedráticos faziam a carreira em termos de
voltou da Expedição, continuou publicações, participação em instituições
trabalhando como praticante? científicas, eles não tinham obrigação maior
com o ensino. Enfim, houve a
Prof
of.. Castro F
Castro aria: Sim, até chegar a
Faria: desacumulação. O Museu esvaziou, porque
época de fazer concurso. Fui nomeado os da área de Geologia eram quase todos
interino durante algum tempo e depois professores da Politécnica, os da área de
entrevista
104 ENTREVISTA COM LUIZ DE CASTRO FARIA
Prof
of.. Castro F
Castro aria: Eu acho que todas
Faria: Prof
of.. Castro F
Castro aria: Já soube que ficou
Faria:
as graduações, todas, sem exagero, são muito reduzido há um tempo mínimo. O que eu
deficientes. A de Antropologia também é penso é muito simples: eu acho que os
deficiente. Depende, é claro, da pessoa que tempos tinham que ser reduzidos, porque
exerce o ensino, mas parece que até hoje era um absurdo um mestrado em quatro
muita gente ainda não desconfiou que essa anos. Em primeiro lugar, eu acho que o
Lei de 1940 que ampliou as Faculdades Brasil precisa destruir esse mito da pós-
Nacionais de Filosofia, Ciências e Letras, graduação como salvação da graduação, isso
provocou a criação no Brasil inteiro, de norte é um absurdo. Quem quer fazer
a sul, de Faculdades de Filosofias e Ciências, Antropologia, faz com essas deficiências,
sem o curso de ciências. Ensinar ciências é porque para se fazer profissional em alguma
caro, exige laboratório, exige instrumentos, coisa, o que é preciso é gostar daquilo, é ler,
exige material de consumo. As faculdades é trabalhar, é participar de projetos, etc. Há
que surgiram com esse nome no Brasil, alguns anos atrás fazer um trabalho de
primeiro, eram quase todas instituições campo era uma matéria complexa, que
entrevista
106 ENTREVISTA COM LUIZ DE CASTRO FARIA
entrevista
108 ENTREVISTA COM LUIZ DE CASTRO FARIA
entrevista
110 ENTREVISTA COM LUIZ DE CASTRO FARIA
realmente com outra visão do mundo. As Norte, eles tiveram índios e tiveram
exposições nunca vão desaparecer. Eu acho negros, mas a história da América é outra
que serão cada vez mais presentes, só que, coisa. Aqui não, aqui é muito forte a
provavelmente, sob outras formas. Vocês famosa trilogia e eu acho que isso tem que
trabalham com computador, vão à ser revisto. No Brasil, os nossos grandes
internet e podem consultar e podem escritores, os intérpretes da formação
procurar isso e aquilo, mas a forma mais brasileira, hesitaram muitas vezes.
elementar que é a de exibição de materiais,
de peças e textos bem produzidos para Cadernos de Campo: Professor, por
provocar interesse... que o título Escritos Exumados10?
entrevista
112 ENTREVISTA COM LUIZ DE CASTRO FARIA
poderia até não existir num número e ele Enfim, é preciso se ter uma Antropologia
não guardava. Isso me calou fundamente. capaz de resolver problemas. Eu dei um
Então, nessas publicações, o título é muito curso na UFF, que se dizia na programação
claro Escritos Exumados , estava tudo que mais importante que ler era fazer. Então,
publicado, mas ninguém lia. Ninguém lia eles tinham que fazer pesquisas dentro da
porque as publicações, vocês sabem que elas cidade. Um dia eu levei todos os meus
vão se tornando cada vez mais raras. As alunos e alguns colegas ao mercado do peixe,
revistas especializadas acabam se tornando porque aqui no mercado há um italiano que
um veículo de comunicação, mas dentro de diz que me conhece há 30 anos, desde que
um circuito muito fechado, só os da mesma fundaram o mercado, ele só vende camarão
especialidade recebem a revista, ela não é e carne de siri, é um italiano, um grande
vendida em banca de jornal, nenhuma delas. amigo meu. Eu já tinha estado no Maranhão
Eu ouvi uma vez de um colega: “pena, o e numa “base”, como eles chamam lá os
Castro Faria publicou muito pouco”. Eu restaurantes populares, onde eles servem o
publiquei muito, só um volume desse tem melhor camarão, o Maranhão é a terra do
407 páginas, mas não era lido. Não só eu, camarão, e o dono do restaurante vai na
qualquer outro, a situação é a mesma. Eu mesa de todo mundo, veio para a nossa e o
publiquei esses dois volumes só recolhendo grande orgulho dele era distinguir o camarão
artigos já publicados nos Boletins do Museu macho do camarão fêmea. Então, eu levei
Nacional, Anuário de Antropologia e outras os alunos todos, os colegas inclusive, ao
revistas, resolvi reunir tudo e publicar com mercado do peixe. Eu tenho vários amigos
esse nome. lá, tem um que se chama Beleza, é feio como
o diabo, é um nortista, Beleza. Todos me
SABER FAZER conhecem, eu entro, eles logo saúdam,
chamam… Eu sempre tive muita facilidade
Cadernos de Campo: O senhor acha de trabalhar com pescadores e com pesca e
que é possível se fazer uma antropologia com peixe, porque eu pescava, eu fazia essas
urbana ou isto está muito próximo do que coisas. Eu os levei por causa, como eu falei,
seria a sociologia? daquele italiano, que é aquele que só vende
camarão e carne de siri e falei do negócio de
P r of
of.. Castr
Castroo Faria: Eu acho que o
Faria: macho e fêmea. Ele disse: “mas isso é tão
importante é saber fazer Antropologia. Se é fácil!” E mostrou um camarão macho e um
Urbana ou não, isso é secundário. O camarão fêmea, separou e todos
problema da escolha do objeto de pesquisa aprenderam. Enfim, essa coisa de fazer,
é um problema muito pessoal e que pode se porque é preciso, a pesquisa antropológica
chamar urbana, como pode se chamar rural. tem isso de especial: o pesquisador precisa
Enfim, eu acho que saber fazer Antropologia ter a capacidade de se tornar simpático,
é o importante, e ela pode se tornar uma agradável. Ele precisa de condições de
Antropologia Urbana, se houver interesse do trabalho, de condições favoráveis, e essas
pesquisador. Minha pergunta é sempre essa: dependem dele, não adianta preparo
que diferença faz você ter uma Antropologia acadêmico, é preciso saber trabalhar, é
Urbana ou não ter Antropologia com preciso ter essa forma de aproximação, de
restrição nenhuma de área e nem de época? empatia. Acontece que, em geral, as pessoas
a mesma coisa. Nós estudamos, no ano Todos os times europeus hoje têm uma
passado, retrasado, nós ministramos um quantidade de jogadores de várias cores, de
curso no Museu com o professor Moacir várias nacionalidades. Enfim, é esse
Palmeira sobre estudos de comunidades. problema que eu acho que vejo claramente
Nós temos um número apreciável de porque eu fui antropólogo, antropólogo
estudos. O antropólogo voltou-se para isso. físico inclusive, que trabalhava com raças e
Aqui no Brasil surgiram vários estudos e variações raciais. Hoje a globalização é a
agora está sendo reeditado o livro do negação disso tudo. É inútil você pensar em
Antônio Cândido, “Parceiros do Rio separar, porque a ideologia mundial é a de
Bonito”. aproximar, de igualar. Antigamente era o
contrário, era de separar. Eu fui antropólogo
Cadernos de Campo: Nós queríamos que trabalhava com pesquisas métricas,
perguntar sobre as tradições antropológicas separava os grupos raciais, não tinha dúvida
no Brasil tanto no período de formação da nenhuma que um grupo de suecos ou
Antropologia como atualmente. O senhor noruegueses era um grupo de gente alta,
acha que existe uma tradição antropológica clara, loira, dolicocéfala. Hoje um time de
brasileira? futebol tem uma mistura de gentes, de
muitos profissionais de vários países. É o
Pr of
of.. Castr
Castroo Faria: Que existe uma
Faria: mundo que está mudando, as ciências têm
tradição antropológica brasileira é que mudar. A Antropologia que eu fazia não
indiscutível, só que ela não estava na tem mais sentido nenhum. A preocupação
universidade. É preciso ter sempre em mente básica da Antropologia, dessa Antropologia
que o lugar da Antropologia até 1940 não no sentido europeu, a Antropologia
era a universidade. Na universidade só tinha biológica, física, o objetivo dela era separar,
escolas profissionais liberais, elas só era distinguir. Hoje ninguém quer separar…
formavam médicos, engenheiros,
advogados, etc. Ninguém precisava de Cadernos de Campo: É por isso que não
Antropologia, mas o Museu Nacional tem mais Antropologia Física no Brasil?
publica Antropologia desde 1876, no
primeiro volume dos Arquivos do Museu Prof
of.. Castr
CastrooF aria: Tem, mas não tem
Faria:
Nacional. Publica a Antropologia que se importância nenhuma. Nem aqui e nem na
fazia na época. Estudava-se crânios de jazidas América do Norte. Foi uma área de
arqueológicas, depois se passou a estudar conhecimento que perdeu muito da
populações brasileiras. Hoje as importância e é fácil compreender, era uma
transformações são tão grandes que eu ciência que se preocupava exatamente em
chamo a atenção dos alunos: esperem uma distinguir, separar e hoje, com a
copa mundial, quando focalizar o time da globalização, a ideologia é contrária, é reunir
Holanda ou da Suécia, olhem para lá! O que todo mundo, não é distinguir, não é separar.
vocês encontram? Pretos, gente de todas…
E a tradição continua: primeiro, cantam o
hino nacional para um time que é composto
de indivíduos de várias nacionalidades.
tradução
116
ESTRUTURAS
STRUTURAS ELEMENTARES DE RECIPR
ELEMENTARES OCIDADE
RECIPROCIDADE
devedor para com sua comunidade. O status unusual cosmogonic vision that all forces
ontológico do chefe é, para Clastres, for life, fertility, creativity within this world
definido por sua relação de dívida em relação of the social have their origin in the
à a sociedade. dangerous, violent, potentially cannibalistic,
Overing vai demonstrar, através de uma exterior domains beyond the social”
análise dos dados da organização social das Overing, 2000:6). Mas essas forças da
sociedades indígenas da América do Sul, cultura, que a autora já apontava como
que, se a vida social tem início a partir da destruidoras da vida social, serão controladas
posse de bens culturais diferenciados por através da vontade, intenção e habilidade dos
parte dos heróis míticos que fundaram estas indivíduos que participam da vida social. A
sociedades, é apenas quando estas forças são ênfase agora é nas virtudes morais e na
controladas e distribuídas (através das estética das relações interpessoais, muito
prestações rituais típicas das sociedades de mais do que na estrutura que conformaria
organização dual ou do casamento estas relações. Daí a importância de
endogâmico nas sociedades das Guianas) investigar as emoções, a cognição, a estética
que a vida social é possível. A existência e a poética, a dialógica, a fenomenologia e a
social implica, nessas sociedades, diferença organização social (idem, p. 8).
e perigo (ao contrário da vida após a morte, A distinção fundamental entre os
quando há identidade e segurança), e é domínios doméstico e jurídico da sociedade,
fundamental que se possa controlar essas tão enfatizada pelos pesquisadores do
forças que permitem, como mostra a autora, Harvard Central Brazil Research Project, cai
a saúde, a fertilidade da terra e a riqueza da por terra, principalmente por não
comunidade. Para evitar os riscos que reconhecer no domínio doméstico os
ameaçariam a vida social é preciso que a aspectos que marcam a vida social. Central
reciprocidade entre afins seja completa, dizia à crítica desta oposição é a reflexão feminista
Overing em 1984. que põe a nu a posição secundária ocupada
Hoje, quase trinta anos após a primeira pelas mulheres nessa distinção entre o
publicação de Estruturas Elementares de domínio doméstico e o domínio jurídico.
Reciprocidade, os textos de Joanna Overing “The chauvinistic reductionism of the
continuam a refletir sua preocupação com structural-functionalist and structuralist
a filosofia indígena. Mas, se as preocupações grand paradigms of society and societal
são as mesmas, a perspectiva que ela ordering where the agency of women was
atualmente prioriza é certamente outra. ignored and society itself equated with male
Aliança entre afins e troca ou reciprocidade structures of domination and subordination
não aparecem nem mesmo como verbetes – to be ordered through either descent or
em “The Social and Cultural Anthropology alliance – took another couple of generations
– the Key Concepts”, publicado por Rapport to unveil and unravel. [...] Terms such as
e Overing em 2000. Suas reflexões hoje society , community , family , kinship ,
giram muito mais em torno de uma descent, lineage, or structure, function,
etnografia voltada para as práticas cotidianas system are to be used at the peril of totally
de convívio, para a construção diária de uma eluding another people´s understanding of
sociabilidade, que propicie condições what they are doing socially – which is the
favoráveis a este convívio. “…it is not an very raison d´être of the anthropological
tradução
120 SYLVIA CAIUBY NOVAES
BIBLIOGRAFIA
ESTRUTURAS ELEMENT
STRUTURAS ARES DE RECIPR
ELEMENTARES OCIDADE - UMA NO
RECIPROCIDADE NOTTA COMPARA
COMPARA TIV
ARATIV A SOBRE
TIVA
O PENSAMENT
ENSAMENTOO SÓCIO-POLÍTICO NAS GUIANAS, BRASIL CENTRAL E NOR OESTE
OROESTE
AMAZÔNICO*
JOANNA OVERING
TRADUÇÃO DE RENATO SZTUTMAN**
REVISÃO DE SYLVIA CAIUBY NOVAES***
Nas sociedades jê e bororo do Brasil Central, sociais guianeses são atomísticos, dispersos
a apreensão da sociedade como um processo e altamente fluidos em sua forma.
inserido em um esquema cosmológico Uma regra prescritiva de casamento
específico ganha forma espacial, que salta associada às variações de um tipo dravidiano
aos nossos olhos, tanto no layout circular de terminologia de relação é, até onde se
ou semi-circular de suas aldeias como na vida sabe, universal aos grupos ameríndios das
ritual complexa. As classificações Guianas (ver, por exemplo, Rivière 1974
dicotômicas da realidade são explicitadas na sobre a organização caribe, Overing Kaplan
vida cerimonial. Cada aldeia é repartida por 1972 e 1975 sobre os Piaroa, Lizot 1971
um sistema de metades, ou séries de sistemas sobre os Yanomami). Por toda essa região, a
de metades, opostas de modo diádico e entre união privilegiada, no sentido que Lévi-
as quais relações elaboradas de Strauss (1969:120) confere ao termo, ocorre
complementaridade lógica são ritualmente no interior do grupo local de pertencimento,
formalizadas (ver Lave 1979, DaMatta identificado então como unidade de
1979, Melatti 1979, Crocker 1979, parentes 2 próximos (ver Riviére 1969,
Maybury-Lewis 1979). No Noroeste Henley 1979, Albert sobre os Yanomami in
Amazônico, princípios de estrutura social Ramos & Albert 1977, Overing Kaplan
são semelhantemente visíveis a olho nu, mas 1981). O grupo local tradicional convive
em graus distintos. A segmentação do corpo comumente em uma grande casa comunal
da sucuri ancestral, da cabeça à cauda, que se revela um grupo de parentesco
fornece o padrão conceitual da segmentação cognático endogâmico. O pertencimento à
territorial dos patri sibs de um grupo casa é normalmente baseado em um
exogâmico, que constituem unidades de princípio de afinidade. Um adulto deve se
troca com patri sibs de grupos exogâmicos casar no interior desta casa, mantendo ali
de origem diversa no corpo da sucuri. suas relações com afins. Classifiquei, em
Quando comparada à organização altamente outro momento, essa estrutura como um
ritualizada das sociedades do Brasil Central “grupo de parentesco baseado na aliança”
e ao layout bem conceitualizado das aldeias (1973, 1975), visto que se mantém como
do Noroeste Amazônico, os grupos de unidade de cognatos pela restrição ideal da
parentesco endogâmicos dos ameríndios das troca em seu interior. Sua unidade como tal
Guianas aparecem como amorfos e fluidos. é associada ao número de trocas
Nas Guianas, não há arranjos espaciais matrimoniais entre homens no interior do
complexos que reflitam a ordem da vida próprio grupo local (Overing Kaplan 1984).
social. Não há tampouco grupos de Como já comentei (1984), é uma ironia
nominação, metades que estabeleçam trocas que nas sociedades em que a regra prescritiva
rituais umas com as outras, refletindo
cerimonialmente uma visão particular do
2 O termo “parente(s)” corresponde à tradução do termo em
ordenamento cosmológico ou expressando inglês kin ou kinsmen. Este termo contrasta com outro que
um eterno ordenamento do “outro mundo” será igualmente encontrado no texto – “aparentado”, que
designa o que em inglês aparece como relative . Em
pelo passado mítico. Não há ritual para português, o termo “parentesco” possui um campo
declarar o elaborado intercruzamento das semântico maior que o de kinship, já que este último reúne
unidades pelas quais a sociedade se apenas as relações consangüíneas, reservando para o termo
relatedness um campo que abriga os laços de afinidade.
reconstitui. À primeira vista, os grupos (Nota do tradutor)
de casamento é de esmagadora importância das outras (ver Overing Kaplan, 1977 e 1981).
para a organização de seus grupos locais não Hesito aqui em empregar o termo “dualismos
haja evidência de uma organização dual, ao subjacentes”, preferindo diferença como termo
passo que na organização das relações entre para descrever o princípio metafísico que
as metades nas sociedades jê e bororo, a troca reivindico como princípio de ordenamento
de mulheres entre metades assuma um papel comum a todas essas sociedades. Afirmo ainda
relativamente menor na compreensão da que, na teoria indígena, a “diferença” está associada
interação social (Lave 1979, DaMatta 1979, ao perigo e, por isso, deve ser compreendida, em
Melatti 1979, Crocker 1979, Maybury- última instância, como variação no conjunto de
Lewis 1979). Nas Terras Baixas da América forças na cultura e do poder em geral controlado.
do Sul, a organização dual não é Em suma, a existência social é identificada tanto
freqüentemente associada a uma regra com a diferença como com o perigo e,
prescritiva de casamento, e, de fato, a inversamente, a existência a-social (por exemplo,
presença de tal regra não implica, de modo o mundo depois da morte) com a identidade e a
algum, a presença de uma organização dual. segurança. É por essa razão que os ameríndios
Esse contraste – de um lado, sociedade com conferem tanta ênfase à vida social como produto
organizações duais elaboradas, mas sem regra de uma adequação de elementos e forças, que
de casamento prescritivo associado; de devem, necessariamente, ser diferentes uns dos
outro, sociedades com regra prescritiva, mas outros para que a sociedade exista: é apenas por
sem evidência de uma organização dual – meio de tal mistura “adequada” que a segurança
será pertinente para a discussão seguinte a pode ser conquistada e o perigo, afastado.
propósito da variação que encontramos Finalmente, a segurança na sociedade torna-
entre sociedades na elaboração de princípios se nada mais senão a “reciprocidade completa”,
de troca no interior delas. Meu argumento que contrasta com a “incompleta”, em que
é de que, sob tal contraste, reside um forças mutuamente perigosas encontram-se
princípio unitário de sociedade. O contraste perigosamente (ver Overing Kaplan, 1984).
na organização reflete meramente os vários Tais princípios são expressos abertamente
modos pelos quais uma filosofia da vida nas cosmogonias dos Piaroa3 e do Noroeste
social semelhante pode expressar “estruturas
elementares de reciprocidade”.
Desse modo, devo afirmar que, apesar do 3 A pesquisa de campo entre os Piaroa realizou-se em 1968 e
grande contraste na organização das sociedades 1977 com M.R. Kaplan, ao qual devo muito pelos dados
coletados em conjunto. A pesquisa de 1977, da qual advêm
do Brasil Central e do Noroeste Amazônico em muitos dos dados apresentados a seguir, foi financiada pela
relação às das Guianas e de suas estruturas sociais SSRC Grant HR 5028, Fundo de Pesquisa Central da
Universidade de Londres, Fundo da Escola de Pesquisas
muito dessemelhantes, reside uma filosofia Econômicas, e o Instituto de Fundos de Viagem Latino-
semelhante de existência social que implica Americana. O SSRC também concedeu-me um Research
também uma compreensão particular do poder Grant (HRP 673) que me dispôs de tempo para a análise
dos dados adquiridos em 1977. Os Piaroa residem nas
político e do controle sobre as forças da cultura, Guianas ao longo do médio rio Orenoco. Integram um
ou dos recursos escassos no mundo, que tal poder grupo lingüístico independente, o Saliva, e têm um número
significativo de “intrusões” caribe em seu vocabulário. Na
poderia impor. O princípio da vida social ao qual estrutura social e política, pertencem etnograficamente às
me refiro é a idéia de que a sociedade pode existir Guianas. Ver Dreyfus (1984), que acentua a importância
apenas mediante o contato e a mistura apropriados do tratamento das Guianas, ao lado das ilhas da Costa, como
um todo unitário singular (embora complexo) no que diz
entre entidades e forças, diferentes que são umas respeito à sua organização política.
tradução
124 JOANNA OVERING
Amazônico e na vida cerimonial do Brasil os habitantes das Guianas em geral com seus
Central. Não foi, contudo, pelo viés da vizinhos mias “sócio-centrados” ao Sul, que
análise estrutural que cheguei às minhas destinam certos tipos de controle ao jugo
conclusões. A medida pela qual os grupos da sociedade. Nas Guianas, tal controle é
caribe se referem abertamente, seja no ritual, responsabilidade do indivíduo.
seja na cosmologia, a uma teoria que Para os Piaroa, e provavelmente
equaciona sociedade com diferença e perigo, outros guianeses, as forças da cultura,
com a reunião de forças culturais diferentes a-sociais em sua origem, são
em origem, é um tema a ser explorado. Se domesticadas no interior do indivíduo,
tal discurso não aparece imediatamente que possui a responsabilidade de
como evidente, devo, não obstante, controlá-las privadamente. A ênfase
acrescentar que a estrutura social caribe, em piaroa na responsabilidade do
seu ideal de união endogâmica, promove indivíduo sobre tais forças não é senão
uma afirmação encoberta desses princípios um aspecto de uma filosofia
que poderiam bem ser acentuados de forma individualista sutil, extrema em
mais óbvia em outras sociedades de florestas qualquer escala pela qual pode ser
tropicais. medida (ver Lukes, 1973), e que
Os Piaroa e os índios das Guianas em assume um papel excessivamente
geral fazem o possível para que a organização importante no pensamento social
do grupo local suprima as diferenças que piaroa, como suspeito ser, da mesma
compõem a sociedade, ao passo que as forma, o caso dos falantes de língua
culturas jê, bororo e do Noroeste Amazônico caribe nas Guianas, que também
tendem a enfatizá-las. O reconhecimento de enfatizam o auto-controle e a
tal variação entre os ameríndios na responsabilidade individual. Segundo
manifestação social dessa diferenciação Melatti (1979:67), entre os Krahó,
cultural ou, ao contrário, a supressão desta falantes de uma língua jê do Brasil
conduz a um longo caminho de reflexão Central, o self físico recebe, durante
sobre as estruturas sociais dos grupos das rituais elaborados, uma roupagem
Terras Baixas da América do Sul. Entre os externa de identidade cultural que, por
Jê, os Bororo e os ameríndios do Noroeste sua vez, fornece ao indivíduo
Amazônico, as forças da cultura são identidade social. De modo diverso,
socialmente controladas, como evidenciado entre os Piaroa, o social, a cultura e
pelos princípios relativamente formais de suas forças – incluindo os nomes
organização típicos dessas sociedades próprios – integram uma roupagem
mencionados acima. Sugiro que as estruturas interna, cuja natureza é privada,
sociais atomizadas, comumente encontradas devendo ser domesticada
nas Guianas, e os agrupamentos sociais individualmente. Como devo ilustrar
guianeses são advindos de uma filosofia abaixo, o controle social do self não é
individualista4, fortemente veiculada por senão par te de um conjunto mais
esses ameríndios, uma filosofia que contrasta amplo de idéias que os Piaroa guardam
sobre a auto-identidade, a composição
do self e a domesticação dos elementos
4 Ver Rivière (1984) que também enfatiza a importância do
individualismo para o pensamento sócio-político guianês. (forças) de que é constituído.
O CONTR
ROOLE SOCIAL DAS FORÇAS DA metades exogâmicas, cada qual contendo
CULTURA: EXEMPL
CULTURA OS DO
EXEMPLOS BRASIL CENTRAL E quatro matriclãs que permanecem em
DO NOROESTE AMAZÔNICO
OROESTE ordem espacial fixa distanciando-se uns dos
outros ao redor do círculo da aldeia. Essa
Etnógrafos das sociedades jê setentrionais divisão da aldeia em oito partes corresponde
(Melatti 1979, Lave 1979, DaMatta 1979) às oito seções das forças do cosmo. Todos os
observam a articulação das instituições nomes de coisas no universo estariam
sociais complexas com um conjunto de repartidos entre os oito matriclãs, cada qual
crenças associadas à transmissão de possuindo um oitavo do estoque de nomes
identidades sociais baseada em nomes, que e de sua força, o aroe corporado, ou “essência
envolvem a relação entre doadores e categórica” de cada elemento possuído. Na
receptores de nomes. A continuidade da topografia do mundo subterrâneo, o mundo
sociedade não pode ser compreendida fora dos aroe, todas as “entidades totêmicas” (sua
de tal mecanismo de transmissão de um força?) e os membros mortos de um clã
conjunto de nomes tomado como um todo determinado vivem juntos na clareira
imutável. Grupos portadores de nomes são alocada por aquele clã, um arranjo espacial
descritos por estes autores como unidades que é replicado na aldeia. Assim, as forças
corporadas adquirindo, em sua perpetuação, da cultura, os recursos escassos possuídos por
não apenas conjuntos de nomes, mas cada clã, possuem sua fonte sob a terra. A
também ritos, parafernália ritual e locações mais valiosa riqueza do clã, suas próprias
de grupos rituais (ver Overing Kaplan “representações dos espíritos”, é dada de
1981). Em outras palavras, os conjuntos de presente aos clãs da metade oposta para ser
nomes dividem entre si os recursos escassos desempenhada pelos seus membros. Cada
da sociedade que são, digamos (tomando a clã deve realizar sua responsabilidade
evidência do caso bororo), as forças da categórica e ritual em relação aos outros clãs,
cultura: forças que permitem a saúde, a representando uma das oito categorias pelas
riqueza e a fertilidade da terra e da quais o universo é classificado.
comunidade, e, nesse sentido, forças Como os grupos portadores de nomes jê
doadoras de vida (e destruidoras de vidas) e os clãs bororo, o sib pira-paraná do
do mundo. Para os Jê setentrionais, a Noroeste Amazônico também controla os
transmissão do nome carrega consigo a recursos rituais e seu próprio conjunto de
transmissão da afiliação cerimonial, o nomes pessoais (C. Hugh-Jones 1979, S.
conhecimento esotérico e os direitos e Hugh-Jones 1979). Como entre os Bororo,
obrigações rituais: em sua aquisição, o nome as forças da cultura apropriadas socialmente,
fornece ao indivíduo uma identidade social por cada sib, têm sua fonte nas profundezas
e, assim, transforma-o em membro de um da terra, onde se alojam em “casas do
grupo social que possui uma parte das forças despertar”, as casas de pedras dos sibs
da cultura disponíveis no mundo. localizadas no mundo subterrâneo, de onde
A observação certamente mais clara sobre vêm as almas dos recém-nascidos e para onde
o controle social das forças culturais no vão as almas dos mortos. É no contexto da
Brasil Central foi oferecida por Crocker posse por cada clã de seus próprios estoques
(1979) sobre os Bororo. A sociedade bororo, de nomes pessoais, reciclados em cada
representada na aldeia, é composta de geração alternada, juntamente com as almas
tradução
126 JOANNA OVERING
A mensagem mítica consiste na idéia de que próximo à terra dos aroe entre os Bororo e
a interação de tais diferenças, como pré- os casas de despertar no Pirá-Paraná. No
requisito para a vida social, é potencialmente entanto, ao contrário da imagem dos lares
perigosa. Trata-se de um perigo que emerge subterrâneos dos Bororo e do Noroeste
quando a reciprocidade entre afins Amazônico, os clãs pós-morte piaroa são
permanece incompleta (por exemplo, casas sem qualquer cultura (ta´kwarü ).
quando de roubo ou incesto) e, por isso, Dessa feita, não há forças de vida nem de
pode ser evitado apenas por meio do cultura que possam ser extraídas por um
estabelecimento cuidadoso da reciprocidade Piaroa vivo de sua fonte de origem, lugar
entre eles. Os perigos da afinidade são tão desprovido de poder. Para o Piaroa, as
grandes que os Piaroa preferem suprimir distinções espaciais do pós-vida e da criação
lingüística e socialmente uma classificação não são de modo algum replicadas na vida
que enfatizaria as diferenças subjacentes e social, onde, por meio de combinações, os
necessárias para a relação afim e, desse modo, clãs perderam completamente sua
também para a ordem social. Assim, entre distintividade espacial e social.
os Piaroa, não há associação simples de uma A classificação de habitats significativos
classificação de domínios significativos com é usada politicamente, sempre que as
regras de casamento e identificação grupal. distinções são expressas ativamente por
A classificação dos domínios e suas forças, competidores políticos para estruturar suas
tão importante para a cosmogonia, não batalhas individuais. Antes de discutir a
ganha projeção sobre o sistema matrimonial, supressão, na vida social piaroa, da diferença
tampouco fornece o meio para identificar que, apesar de suprimida é necessária à
grupos sociais. ordem social e à sua expressão no campo
Os Piaroa, assim como as culturas do político, devo descrever de maneira breve
Noroeste Amazônico, enfatizam aspectos da cosmogonia piaroa, buscando
sobremaneira as práticas matrimoniais de esclarecer uma discussão recente5.
tempos primordiais. Foi por meio de
intercasamentos entre os primeiros homens C OSMOGONIA P IAR
IAROOA : VIOLÊNCIA E CA OS
CAOS
e mulheres piaroa, cuja origem se dera em PRIMEIROS
PRIMEIROS
espaços separados de criação – acima e
abaixo da terra –, que a sociedade pôde vir à Ricoeur nota, em The symbolism of evil
luz fazendo com que todos os Piaroa se (1969:178), que o “mal é tão velho quanto
tornassem cognatos, como o são atualmente. o mais velho dos seres; o mal é o passado do
Apesar de o pertencimento clânico não ser”. Como nos mitos das civilizações antigas
implicar, de forma alguma, obrigações para a que Ricoeur faz referência, a mitologia
o indivíduo nessa vida, seu clã representa a piaroa remete também a uma violência de
sua origem e a casa para a qual ele voltará poder inscrita na origem das coisas. Trata-
após a morte. Os Piaroa acreditam que, no se de um princípio de violência que tanto
pós-vida, os membros de cada clã viverão
juntos em um local espacialmente separado 5 Ver para um relato detalhado tanto sobre a cosmogonia
de todos os outros clãs – separado dos afins, como sobre o sistema clânico piaroa, Overing, “The paths
dos animais, de todos os seres diferentes de of sacred words”, apresentado no seminário “Xamanismo
nas Terras Baixas da América do Sul” no 44o. Congresso
si. Conceitualmente, trata-se de algo Internacional de Americanistas, 1982, Manchester.
tradução
128 JOANNA OVERING
estabiliza como destrói (ver Ricoeur, a topografia da terra, seus elementos naturais
1969:182-3). Os poderes incontrolados e (montanhas, rochas, sistemas fluviais,
não-domesticados envolvidos no trabalho da cachoeiras). As forças da Anta/Sucuri,
criação se revelam demasiado destrutivos, associadas a esses dois conjuntos de criação,
selvagens e venenosos para permanecerem o da cultura em oposição ao dos elementos
livres como forças ilimitadas dentro do naturais da terra e do céu, eram diferentes
mundo social. Para que a ordem criada por em qualidade e, quiçá, em força. Os poderes
eles permaneça intacta, esses poderes de Kuemoi eram venenosos e malignos por
possantes, ao final do tempo mítico, foram sua selvageria, ao passo que os de Wahari,
apartados do mundo social, instalando-se relativamente controlados e benevolentes em
em outros mundos. Essa separação assegura sua força. A oposição entre selvageria e
um maior controle dessa maldade, dessa controle refletia no tipo de seres criados ao
potencialidade para o mal. longo do tempo mítico, seres que não eram
Antes da criação dos mundos celeste e senão aspectos de seus respectivos poderes
terrestre, todas as fontes de poder do e, como tais, revelavam-se auxiliares nas
universo estavam instaladas abaixo da batalhas contínuas pelo poder engendradas
superfície da terra, cuja face ainda não havia pelos dois feiticeiros mais poderosos do
se constituído. No tempo mítico, esses tempo mítico.
poderes subterrâneos, que se tornavam A fonte da cultura na terra, nas suas
lentamente desgovernados, adquiriam uma origens, eram as forças venenosas e selvagens
força responsável pela criação de todos os de Kuemoi, que lhe foram dadas pelo pai
elementos e seres do universo superficial e Ofo/Da’a sob a forma de alucinógenos
pelo conhecimento que permitia uma certa venenosos. Embora senhor da cultura e do
existência. A maior parte dos poderes cultivo, Kuemoi criou todas as cobras
responsáveis pela forma e vida da superfície venenosas e insetos do mundo. Envenenou
terrestre provinha do mundo subterrâneo de todas as grandes formações rochosas e as
Ofo/Da´a, uma Anta/Sucuri quimérica. correntes. Ele é avô dos ferimentos, pai das
Dois grandes afins míticos, Kuemoi e piranhas e criador de sapos venenosos. É
Wahari, cujo nascimento resultou de um ato também avô do sono e senhor da escuridão.
de Ofo/Da´a e cujos poderes foram O crocodilo, o jacaré e peixes perigosos são
concedidos pelo mesmo, foram, á sua parte, da família de Kuemoi, como o são também
responsáveis pela criação da maior parte dos o esquilo e o urubu, o primeiro o que
elementos do mundo piaroa. Os poderes que anuncia o perigo e o segundo, predador de
a Anta/Sucuri transmitiu a esses dois animais selvagens. Em suma, todos os
demiurgos eram distintos em sua origem e animais que mordem e que apresentam
opostos em seus efeitos. Kuemoi, senhor do perigo e todas as coisas venenosas nesse
domínio aquático, trazia para a superfície mundo, sendo classificados como “animais
da terra poderes de seu local de nascimento, selvagens” (dea ruwa), categoria que inclui
o mundo subaquático, permitindo os próprios Piaroa, são da família ou da
desenvolver, entre outras coisas, práticas de criação de Kuemoi e são classificados como
cultivo de plantas, o fogo de cozinha, “pensamentos de Kuemoi”. Assim, na
ornamentos, poderes de caça, curare, veneno cosmogonia piaroa, a cultura pertence ao
de peixe. Wahari, senhor da floresta, criava poder incontrolado e venenoso de Kuemoi
e tem sua fonte na loucura do mesmo. Como assim, com Kuemoi, que também se
provedor de cultura aos habitantes da transformava em aspectos de seus próprios
floresta (os Piaroa e, antes deles, Wahari), pensamentos (por exemplo, predadores,
seu “presente” é venenoso, tão selvagem como a onça e o urubu).
como os seus poderes desenfreados de Como grandes feiticeiros, Kuemoi e
feitiçaria. Mesmo os seus filhos, as plantas Wahari representam o fracionamento na
do roçado, são venenosos. Terra dos poderes de Ofo/Da’a, o deus
A cultura, constituída de poderes supremo Anta/Sucuri, cuja casa se
venenosos e descontrolados que advêm da encontrava abaixo da superfície terrestre.
escuridão, é parcialmente domada pelas Wahari casou-se com a filha de Kuemoi.
forças da luz que criaram os elementos Com a união desses dois grandes poderes,
naturais (inanimados) do universo. Wahari, opostos pela associação de cada um com um
genro de Kuemoi e senhor da floresta, gasta diferente domínio do cosmo – o mundo
boa parte do tempo mítico não apenas subaquático e o mundo terrestre –, as
tentando roubar a cultura de Kuemoi, mas relações sociais passaram a existir e a
também para transformar os seus estragos fertilidade do deus Anta/Sucuri ganhou
em forças mais controladas e mais eficazes expressão como sociedade. Em outras
para seu uso seguro pelos habitantes da palavras, essa união conduziu à emergência
floresta. Se o poder de Kuemoi é do estado social em tempos míticos.
descontrolado, Wahari representa a Contudo, a relação afim então estabelecida
possibilidade de um poder controlado. A permaneceu desleal, manifestando uma não-
força de seus atos espetaculares de criação reciprocidade gritante. Como mencionado
derivaram de um alucinógeno não venenoso acima, a maior parte dos mitos piaroa
oferecido pela Anta/Sucuri quando ainda destina-se à narração de duelos entre esses
habitava a morada subterrânea de seu dois demiurgos pela conquista e controle de
nascimento. Como criador da maioria das elementos, forças e domínios. Kuemoi,
características da terra, Wahari foi senhor das águas, desejava comer animais
denominado “senhor do mundo”. Se selvagens, e Wahari permanecia atento para
Kuemoi era o senhor das trevas e da noite, as armadilhas que o primeiro tramava para
Wahari era o senhor da luz – seu poder era ele e sua família. Á sua parte, Wahari
tanto que foi capaz de instalar o sol no céu. desejava cultura. Foi apenas em seu
Ele era também o senhor dos animais casamento com Maizze, filha de Kuemoi,
selvagens, então humanos em sua forma, e que ele recebeu como dons plantas
de sua morada. Por meio de seus cultivadas e o conhecimento para a sua
pensamentos, ele criou todos os animais preparação. Depois de tê-la desposado,
rupestres e pássaros selvagens. Foi ele Wahari despendeu muito do tempo
também quem criou os Piaroa valendo-se disponível roubando artefatos culturais de
de peixes capturados em lagos. Wahari podia seu sogro, sempre procurando domá-los em
voar e, com efeito, sempre se transformava proveito de seu uso. No final do tempo
em beija-flores e gaviões, produtos de seu mítico, ele roubou artefatos culturais,
próprio pensamento, para realizar atos possuídos pelos “pais” dos animais selvagens.
fantásticos, para percorrer grandes distâncias Toda a cultura que Wahari recebeu ou
sobre a terra e dentro dela. Contrastava, roubou pertence atualmente aos Piaroa, uma
tradução
130 JOANNA OVERING
uma pessoa deve decidir por si só quantos e de qualquer homem comum, não pode
quais poderes – como a caça, a pesca, a possuir tudo o que há no mundo.
feitiçaria, o canto – poderá suportar das Atualmente, os senhores da terra e da água
fontes não-domesticadas localizadas dentro possuem os domínios da água e da floresta.
de si mesmo. Esses poderes são adquiridos Eles não são Wahari e Kuemoi, mas o
por meio da liderança do xamã experiente, espírito da floresta, Re´yo, e o espírito da
que apreende essas fontes cautelosamente água, Ahe Itamu , que adquiriram tal
em seus vôos à morada dos deuses. Quando controle sobre esses habitats no final do
um indivíduo cresce, ele recebe dos deuses tempo mítico. Estes dois espíritos guardam
grande quantidade de contas, que seus respectivos domínios, os protegem,
permanecem instaladas no seu interior e tornam seus habitantes férteis e punem os
dentro das quais os poderes da cultura são que ameaçam suas formas de vida. Eles
armazenados e, então, domesticados. O também cooperam como guardiões da
estado interno de uma pessoa, com o comida dos roçados. O ponto relevante é,
mínimo de poderes incorporados, torna-se obviamente, que os habitats de terra e água,
confuso quando elementos exógenos a e seus produtos, não são possuídos por
invadem seja por sua permissão, seja por homens. Tal controle não é parte do escopo
vontade alheia (doença). A roupagem do poder político na sociedade piaroa, um
interior do xamã é elaborada especialmente poder que seria visualizado pelos Piaroa
e, dessa forma, é ele que deve exibir o maior como de fato muito perigoso. O líder xamã
controle. O controle apropriado das não tem poder para ordenar o trabalho de
emoções implica o apaziguamento das forças outros. Durante as grandes cerimônias que
culturais que habitam o interior de uma ele oferece, convida os outros para
pessoa. Sentimentos viciosos, intentos trabalharem para ele e para a sua
malignos e ciúmes aborrecem, mas não são comunidade, mas jamais ordena que
considerados prejudiciais ao homem que trabalhem. É sua obrigação controlar e lutar
tomou para si poucos poderes dos deuses. contra as forças selvagens da cultura que
Essas mesmas características, em um xamã, adentram a sociedade, mas não controlar (ao
são consideradas como resultado da falta de menos abertamente) o comportamento
domesticação adequada de poderes social de indivíduos de sua comunidade;
potencialmente selvagens e malignos, ou cada qual deve administrar seu próprio
seja, são pensadas como altamente perigosas controle pessoal, um assunto privado em que
para o bem-estar da sociedade e como um se deve manter domesticadas as forças da
indicador de um poder interno incontrolado cultura e as capacidades para tais no interior
capaz de matar por pouco, causar desastres da pessoa.
naturais, impedir o aumento da caça e
provocar a perda de fertilidade da terra. P OLÍTICA , AFINIDADE E C L ASSIFICAÇÃO
LASSIFICAÇÃO
As forças da cultura, introjetadas na MÍTICA
pessoa, não exigem a posse de seu produto,
mas sim a habilidade ou capacidade de usá- A mensagem mítica, assim pensam os
lo. O xamã como líder político, como aquele Piaroa, equaciona a sociedade e a sua
que possui dentro de si domesticada uma possibilidade com a afinidade, com a
quantidade de força de cultura maior que combinação de itens diversos. A sociedade
tradução
132 JOANNA OVERING
literal, e age com eles desta forma. Nesse enfraquecê-los, os Piaroa estão em uma
ponto, a metáfora converte-se em uma relação de não-parentesco com eles. Eles não
ontologia que afirma explicitamente que o são chamados “afins”. A maior parte das
“fantástico” é verdadeiro. mortes entre os Piaroa são causadas por
Tal linguagem – e as transformações – feiticeiros de outras tribos, e a vingança
extraída das classificações dos elementos e piaroa a tais mortes se dá por meio daquilo
forças do cosmo como existiam no tempo que os jovens chamam de “a bomba piaroa”,
mítico não deve ser usada para estruturar uma mágica de vingança poderosa
relações dentro da casa: não se deve jamais combinando venenos potentes e certas
frisar a diferença essencial de um afim, uma partes da anatomia da vítima que são
vez que se vive com ele. Se a competição queimadas em conjunto e enviadas pela
política na casa torna-se séria, esta sofre fumaça e pelo canto ao território do
imediatamente uma fissão. Assim, o afim feiticeiro, onde resultam mortes em massa.
potencial é Kuemoi, o canibal, o portador A relação, em exceção daquela com o
de forças culturais indomáveis. Com ele, parceiro comercial ocasional, é de
nenhuma troca matrimonial é controlada e reciprocidade negativa acentuada.
os laços de afinidade são fracos. O doador Menos perigosas, porém ainda
de doenças, o canibal, é aquele com quem ameaçadoras, são as relações com membros
se trava uma relação de reciprocidade de outros territórios piaroa. Nesse caso, não
incompleta ou, ainda, negativa. A relação há uma relação natural de morte ou de
entre afins efetivos que vivem juntos na casa transmissão de doença, o perigo é, isso sim,
não deve ser modelada pela relação vigente o de morte social, e a relação permanece
na sociedade mítica entre dois afins como reciprocidade negativa. Quando se
arquetípicos, mutuamente inimigos (ver viaja para outro território, leva-se consigo
Overing Kaplan, 1984). alimentos que não podem ser trocados e,
Os Piaroa classificam suas relações com ainda pior, uma esposa. Com exceção da
os outros em um contínuo que se move do parceria formal de comércio, as demandas
perigo à segurança, da diferença à por reciprocidade não podem ser atendidas.
identidade. Essa classificação, que supõe Para não ter de enfrentar um problema desse
uma escala crescente de empatia social, não tipo, os indivíduos com quem se interage
é tão incomum. Tomemos alguns aspectos devem ser sempre classificados como
pertinentes sobre essa discussão sobre a “parentes”, e não “afins”, uma classificação
classificação de outros via categorias que que carrega a conotação da extrema
denotam graus vários de distância e segurança mediante as ameaças de uma terra
proximidade social. As relações mais estranha, da comida estranha e de pessoas
distantes e perigosas são aquelas com estranhas.
animais e membros de outras tribos, com No interior de um território, onde
quem os Piaroa nutrem uma relação de homens classificam a maior parte homens
predação: o perigo é sempre o da morte, de outros grupos locais como afins, há
tanto para os Piaroa, por meio de suas ações, sempre a possibilidade de conquistar com
como para os animais e os estrangeiros (via eles uma relação de reciprocidade e de
feitiçaria). Porque eles têm o direito de matar estabelecer uma relação confiável de troca.
os membros de ambas as categorias e Tais transações com afins potenciais são por
tradução
134 JOANNA OVERING
das quais habitam quase todos os membros indiretamente reciprocado, como na troca
de diferentes parentelas conjugais, aproximam- indireta, à medida que todo homem no
se, ao menos em um nível ideológico, do ideal interior do grupo recebe uma esposa de
de uma parentela endogâmica. A grande ficção dentro do mesmo. Em certo sentido, por
é, certamente, que a sociedade como grupo meio do casamento endogâmico, a própria
endogâmico isolado, que se replica no tempo noção de troca matrimonial, e não apenas
é constituída da associação de itens os seus perigos, foi apagada. Ironicamente,
“semelhantes”, seguros uns aos outros, e não é por meio da troca matrimonial,
perigosos, como os afins “dessemelhantes”. especialmente a desempenhada dia após dia
Aqui, vislumbra-se, entre os Piaroa, uma no interior da casa, o dom continuamente
dialética interessante entre a sociedade como retornado, que as diferenças são anuladas e
mundo ideal de parentelas endogâmicas e a a segurança readquirida. Se visualizarmos a
sociedade que inclui o todo mais amplo: afins reciprocidade, como faz Lévi-Strauss
potenciais e oponentes políticos. (1969:84), como meio mais imediato de
O casamento endogâmico não implica integrar a oposição entre o self e os outros,
apenas segurança, mas também manutenção os Piaroa, pelo viés do casamento
de todos em casa como aparentados endogâmico, têm levado esse princípio ao
próximos, o que torna fluida a distinção seu extremo lógico, visto que aí o self e os
entre “parentes” e “afins”; trata-se de um outros não são apenas unificados, mas
casamento reciprocado, que faz reafirmar os tornados todos de um só tipo.
laços prévios de afinidade no grupo. Na Assim, a sociedade é, para os Piaroa,
teoria piaroa, quanto maior o número de equacionada com a afinidade, a conjunção
trocas matrimoniais decretadas entre dois de itens diversos (afins) e forças culturais. A
afins, mais segura a relação e mais unificado endogamia se torna, para eles, uma filosofia
o grupo como unidade de cognatas. Este é da sociedade, um “meio caminho”, que
um tipo de troca matrimonial freqüentemente supera até certo ponto os perigos do estado
encontrado nas Guianas (ver Rivière 1969, social, e um ditado que sustenta que a
Henley 1979, Arvelo-Jiménez 1971), em sociedade só pode existir na conjunção de
que a viabilidade da relação de afinidade, a elementos perigosos e diferentes. Em suma,
aliança política e a unidade do grupo são a endogamia como ideal expressa o medo
correlacionados com o número de trocas piaroa em relação ao estado social, tornando-
matrimoniais estabelecidas entre homens se, então, um princípio subjacente a uma
dentro do grupo local. Teoricamente, a sociedade suspeita de sua própria natureza
reduplicação de qualquer laço de afinidade social.
dentro do grupo – como quando um
conjunto de irmãos se casa com um CONCLUSÃO:
ONCLUSÃO ESTRUTURAS ELEMENT
ESTRUTURAS ARES DE
ELEMENTARES
conjunto de irmãs – é ao mesmo tempo um RECIPROCIDADE7
RECIPROCIDADE
casamento replicado e reciprocado, do ponto
do grupo como um todo. No interior de Acredito ser possível afirmar de maneira
um grupo endogâmico, o laço matrimonial geral sobre os ameríndios da floresta tropical
não precisa ser diretamente reciprocado
como na troca de irmão/irmã: qualquer
casamento dentro do grupo é ao menos 7 Ver Overing Kaplan (1981).
tradução
136 JOANNA OVERING
que suas noções de reciprocidade, adequada entre seres de categorias vistas como
e inadequada, impõem uma filosofia da significativamente diferentes, necessários
relação entre coisas que são as mesmas e da uns aos outros para que a sociedade exista.
relação entre coisas que são distintas entre Tais princípios de troca expressam também
si. É sob essa perspectiva que vejo ser possível uma filosofia política particular, que alega
alcançar uma compreensão mais apurada da que nenhum homem ou grupo pode ter
proliferação dos dualismos no interior dessas posse exclusiva das forças da cultura, ou de
culturas, a despeito de seus conteúdos ou um conjunto destas, tampouco pode exercer
das maneiras pelas quais eles são expressos. um controle total sobre os seus produtos.
Há entre os Piaroa a expressão cosmológica
de uma charada, que creio ser geral aos Se as distinções expressas referem-se à
índios das Terras Baixas Sul-americanas e de lógica classificatória de nomes, aos atributos
considerável importância para a simbólicos de habitats cósmicos, ou, como
compreensão de certas ambigüidades no no caso clássico, a “parentes” e “afins” ou
ordenamento dos seus universos sociais, que “casáveis” e “não-casáveis”, como ditado por
alega a necessidade das diferenças para a vida uma regra prescritiva de casamento; em cada
social – em última instância, diferenças nas exemplo, tais contrastes são empregados na
forças da cultura. Trata-se, porém, de um elaboração de trocas que são claramente
mundo onde a conjunção de tais diferenças “elementares” em sua forma – contudo, uma
acarreta perigo, ao passo que a convivência elaboração que é, em ultima instância,
de elementos e forças semelhantes implica derivação cultural, e não social. J. C. Crocker
segurança e não-sociedade, ou seja, uma (1979:296-7) comenta, no que diz respeito
existência a-social. à elaboração de estruturas entre os Jê e
Tanto os Bororo como os Jê evitam os Bororo, que categorias encontradas em
perigos da diferenciação social por meio de outras fontes de distinções, que não aquelas
transações rituais elaboradas entre metades, advindas de uma regra prescritiva de
que estabelecem “vias rituais” entre grupos casamento, “podem possuir precisamente as
de nominação (ver, por exemplo, Crocker mesmas implicações inexoráveis para a
1979, DaMatta 1979, Lave 1979 e Melatti interação social, que deve exprimir um
1979). Por meio de inversões comuns a esses modelo lógico como a mais rígida estrutura
sistemas, em que o “eu” se torna o “outro” e ‘ elementar prescritiva’”. Em vez de “sistemas
o “outro” se torna o “eu” – onde o chefe de elementares de parentesco e casamento”, é
uma metade é escolhido pelo outro ou a possível remeter-se, de maneira mais geral,
representação dos totens de uma metade é a “estruturas elementares de reciprocidade”
encenada pelos outros –, a identidade e a e, nesse sentido, tratar as sociedades
diferença entre categorias culturais (e sociais) ameríndias das Guianas, do Noroeste
tornam-se tão indistintas como no Amazônico e do Brasil Central como alguns
casamento endogâmico guianês. Em cada dos muitos exemplos de uma estrutura
uma dessas sociedades, os princípios de troca básica.
são até certo ponto princípios metafísicos, As implicações para a vida social indígena
em que a ênfase é dada menos na obtenção do ordenamento das estruturas elementares
de um tipo particular de formação grupal, de reciprocidade apontam que a sociedade
mas na aquisição de relações apropriadas em si torna-se uma lógica para a manutenção
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REITAS OS EDIT
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ESPAÇOS O: HUMANIT
ULO AS/IMPRENSA OFICIAL, 2000.
UMANITAS
FRAYA FREHSE*
resenhas
150 FRAYA FREHSE
resenhas
152 FRAYA FREHSE
Janeiro
Autor
utor: Alecsandro José Prudêncio Ratts
DISSERTAÇÕES
ISSERT DE MESTRADO
Título: “O mundo é grande e a nação
também: identidade e mobilidade em
território de negros” – Tese
Autor: Laércio Fidelis Dias
Título: “Uma etnografia dos procedimentos Banca: Prof (a).Dr(a).
terapêuticos e dos cuidados com a saúde das Kabenguele Munanga (orientador)
famílias Karapuna” J oão Baptista Borges Pereira
Banca: Prof(a). Dr(a). Renato da Silva Queiroz
Lux Boelitz Vidal (orientadora)
Neusa Maria Mendes de Gusmão
José Franciso Quirino dos Santos
Cynthia Andersen Sarti
Eliane Camargo Autor: Sueli Pereira Castro
T í t u l o : “A festa santa na terra da
Fev er
ever eir
ereir
eiroo parentalha: Festeiros, herdeiros e parentes
Sesmaria na baixada Cuiabana Mato-
DISSERTAÇÕES
ISSERT DE MESTRADO grossense”
Banca: Prof(a). Dr(a).
Autor: Carlos Machado Dias Júnior Maria Margarida Moura (orientadora)
Título: “Próximos e distantes: estudo de um Renate Brigitte Viertler
processo de descentralização e (re) construção
Ariovaldo Umbelino de Oliveira
de relações sociais na região sudeste da Guiana”
Banca: Prof(a). Dr(a). Neusa Maria Mendes de Gusmão
Dominique Tilkin Gallois (orientadora)
Marnio Teixeira Pinto
Beatriz Perrone-Moisés
154
Abril Agosto
DISSERTAÇÕES
ISSERT DE MESTRADO TESES DE DOUTORADO
DOUTORADO
Outubro
utubro Novembr
embroo
DISSERTAÇÕES
ISSERT DE MESTRADO DISSERTAÇÕES
ISSERT DE MESTRADO
Autor: Francirosy Campos Barbosa Ferreira Autor: Tayna de Cássia Santos Pereira
Título: “Imagem oculta: reflexões sobre a Título: “Igreja do Rosário dos Pretos do
relação entre os muçulmanos e a imagem Pelourinhos: um clamor com axé –
fotográfica” identidade negra e inculturação afro-
Banca: Prof(a). Dr(a). brasileira na Igreja do Rosário dos Pretos”
Sylvia Caiuby Novaes (orientadora) Banca: Prof(a). Dr(a).
Miriam Lifchitz Moreira Leite Kabenguele Munanga (orientador)
Etienne Ghislain Samain Antonia Aparecida Quintão
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães
Autor: Nadja Havt Bindá
Título: “Representações do ambiente e Dezembr
embroo
territorialidade entre os Zoé/PA”
Banca: Prof(a). Dr(a). DISSERTAÇÕES
ISSERT DE MESTRADO
Word97 para Windows) sistema IBM PC vírgula, nome (org.), ponto, título em
(386, 486, Pentium ou superior). itálico, ponto, local da publicação, dois
pontos, editora, vírgula, data, vírgula,
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