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cadernos de campo
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cader nos de campo · n. 10 · 2002


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Cader nos
de campo
REVISTA DOS ALUNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
ANTROPOLOGIA SOCIAL DA USP

A n o 11 • 2 0 0 2
10
4

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO COMISSÃO EDITORIAL


Ana Paula Mendes de Miranda, Francirosy Campos Barbosa
Reitor: Prof. Dr. Adolpho José Melfi
Ferreira, Janine Helfst Leicht Collaço, Melvina Afra Mendes de
Vice-Reitor: Prof. Dr. Hélio Nogueira da Cruz Araújo, Ronaldo Trindade

CONSELHO EDITORIAL
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS Prof.ª Dr.ª Beatriz Perrone Moisés, Prof.ª Dr.ª Dominique Tilkin
HUMANAS Gallois, Prof.ª Drª. Edilene Coffaci de Lima, Prof.ª Dr.ª Else
Diretor: Sedi Hirano Maria Lagrou, Prof. Dr. Etienne Samain, Prof.ª Dr.ª Fernanda
Arêas Peixoto, Prof.ª Dr.ª Heloísa Pontes, Prof. Dr. John Cowart
Vice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz Dawsey, Prof. Dr. John Manuel Monteiro, Prof. Dr. José
Francisco Quirino dos Santos, Prof. Dr. José Guilherme Cantor
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA Magnani, Prof. Dr. Júlio Assis Simões, Prof.ª Dr.ª Laura de Mello
e Souza, Prof.ª Dr.ª Lilia Katri Moritz Schwarcz, Prof. Dr. Marcio
Chefe: Prof.ª Dr.ª Sylvia Caiuby Novaes Silva, Prof. Dr. Marco Antônio da Silva Melo, Prof.ª Dr.ª Maria
Vice-Chefe: John Cowart Dawsey Filomena Gregori, Prof.ª Dr.ª Maria Lúcia Montes, Prof.ª Dr.ª
Marta Amoroso, Prof.ª Dr.ª Neusa Gusmão, Prof. Dr. Omar
Ribeiro Thomaz, Prof.ª Dr.ª Paula Montero, Prof. Dr. Peter Fry,
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM Profa. Drª. Renata Paolielo, Prof. Dr. Renato Queiroz, Prof. Dr.
ANTROPOLOGIA SOCIAL Sérgio Adorno, Prof.ª Dr.ª Simoni Lahud Guedes, Profa. Dra.
Suely Kofes, Prof.ª Dr.ª Sylvia Caiuby Novaes, Prof. Dr. Tiago
Coordenadora: Prof.ª Dr.ª Lilia Katri Moritz Schwarcz
de Oliveira Pinto, Prof. Dr. Vagner Gonçalves da Silva , Prof.
Vice-Coordenador: Prof. Dr. Márcio Silva Dr. Walter Neves.

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA/ ADDRESS PROJETO GRÁFICO


FOR CORRESPONDENCE Revista: Ricardo Assis
Cadernos de Campo - Revista dos Alunos de Pós-Graduação Grafismos: Alecsandro J. P. Ratts
em Antropologia Social da USP
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - USP FOTO DE CAPA
Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 - 05508-900 - São Paulo - Luiz de Castro Faria
SP - Brasil
Fax: (011) 211-2096 Tel: (011) 3818-3703 EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
e-mail: cadcampo@usp.br Paul Helfst

Esta revista é indexada pelo: REVISÃO


Índice Brasileiro de Ciências Sociais - IUPERJ-RJ Joana Tuttoilmondo
Ulrich’s International Periodical Directory

Publicação Anual / Anual publication


Solicita-se permuta / Exchange desired

ISSN 0104-5679

Todos os Direitos Reservados

cader nos de campo · n. 10 · 2002


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Sumário

editorial ........................................... 7 entrevista ............................................ 97


entrevista

ar tigos ................................................... 9
artigos Entrevista com Luiz de Castro Faria - Ana
Paula Mendes de Miranda e Melvina Afra
Narrativas e o modo de apreendê-las: A Mendes de Araújo ........................... 99
experiência entre os caxinauás - Eliane
Camargo ......................................... 11 tradução ........................................... 115

O Nome “Índio”: patronímico étnico como Estruturas elementares de reciprocidade


suporte simbólico de memória e - Apresentação de Sylvia Caiuby
emergência indígena no Médio Novaes ...................................... 117
Jequitinhonha – Minas Gerais - Izabel
Missagia de Mattos .......................... 29 resenhas ............................................ 139

Etnias de fronteira e questão nacional: o caso WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova
dos “regressados” em Angola - Luena gestão da miséria nos Estados Unidos -
Nascimento Nunes Pereira ............... 45 Antônio Rafael .................................. 117

Atores/Autores: histórias de vida e produção YÁZIGI, Eduardo. O Mundo das calçadas.


acadêmica dos escritores da Por uma política democrática de espaços
homossexualidade no Brasil - José públicos - Fraya Frehse .................... 121
Ronaldo Trindade ............................ 63

Um grande atrator: toré e articulação Teses e disser tações defendidas .......... 153
dissertações
(inter)étnica entre os Tumbalalá do sertão
baiano - Ugo Maia Andrade ............ 79

ar tes da vida ....................................... 93


artes

Fotos de Luiz de Castro Faria ................ 94


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Editorial

É com grande prazer que apresentamos A seção inaugurada no número anterior,


o décimo número da Revista Cadernos de Artes da Vida, traz para os leitores belas
Campo, resultado de onze anos de trabalho imagens proporcionadas por Luís de Castro
e dedicação dos alunos da Pós-Graduação Faria, resultado de um de seus primeiros
em Antropologia Social da USP. trabalhos de campo em Arraial do Cabo
Em nosso último número algumas (RJ). Sensível em captar imagens, retratando
mudanças importantes foram iniciadas na o cotidiano de uma pequena vila de
estrutura da revista e em seu formato, agora pescadores, as fotos apontam para a latente
consolidadas neste novo exemplar. A partir cumplicidade entre pesquisador e
do novo projeto gráfico, procuramos pesquisado, idéia que seu autor defende
elaborar meios de adaptar a edição a essa como ponto de partida para a construção
nova realidade sem, no entanto, perder a de uma etnografia de boa qualidade. Essa
qualidade do material acadêmico que tem questão foi melhor desenvolvida durante
sido sempre motivo de nossos esforços. Vale entrevista concedida aos membros da
lembrar que a proposta que nos impulsiona comissão editorial, reproduzida aqui em
nessa tarefa é servir de canal para expor idéias nossas páginas na seção de entrevistas. Nela
construídas a partir de elementos obtidos também poderemos observar quando Castro
no trabalho de campo – especificidade por Faria relembra, algumas passagens de sua
excelência de nossa disciplina. experiência como observador na famosa
A partir dessa proposta é que, neste expedição de Lévi-Strauss, ocorrida em
número, temos a oportunidade de publicar 1938.
a tradução de um texto de etnologia: Os artigos que compõem essa edição
“Estruturas Elementares de Reciprocidade”, dialogam com campos de reflexão diversos,
de Joanna Overing, publicado inicialmente embora o tema identidade, de maneira
na década de 80. Sylvia Caiuby Novaes faz acidental, seja o fio que os alinhava. No
a apresentação e nos transporta para os 70 e campo da etnologia indígena, inquietações
poucos..., evocando a imagem do então em torno da identidade ecoam em dois
professor Pierre Clastres, servindo de ponto artigos, ainda que sob ângulos distintos: um
de partida para a introdução do contexto trata da importância dos patronímicos na
no qual a autora produziu suas reflexões, definição da memória e emergência
muito discutidas apesar da distância que indígena, o outro aborda o Toré e as
marca sua primeira publicação. articulações entre os Tumbalalá do sertão
8

baiano. Em outro artigo, a construção da


identidade étnica de um grupo de ex-
exilados angolanos é discutida no contexto
atual de Angola. O instigante tema da
identidade volta a ser reinvidicado em um
artigo que procura relacionar a trajetória de
alguns autores e suas opções teóricas sob o
tema da homossexualidade. Completando
esta edição, um último texto desvia-se um
pouco dessa linha ao abordar a transmissão
oral através de narrativas Caxinauá.
Gostaríamos de ressaltar, ainda, que o
resultado final desta publicação não seria
possível sem o incontável apoio dos
funcionários e professores que integram o
Departamento de Antropologia da USP
que, com paciência e consideração às
inúmeras limitações que constrangem a
edição, contribuíram para a publicação de
mais um número de nossa revista.

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ar tigos
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N ARRATIV
ARRATIV AS
TIVAS E O MODO D E APREENDÊ - L AS : A EXP ERIÊNCIA ENTRE OS
EXPERIÊNCIA
CAXINA UÁS.
CAXINAUÁS

E LIANE C AMARGO
CELIA ( CNRS ) E NHII ( USP ) *

resumo: A transmissão oral é, ainda hoje, uma abstract: Narratives and the way of getting into
prática dinâmica entre os caxinauás. Alguns de them: an experience among Cashinahua. The oral
seus mecanismos lingüísticos mostram uma transmission keeps going, still nowadays, as a
afinidade lexical entre forma e sentido: yui ‘contar dynamic practise among Cashinhaua people.
histórias’, (xenipabu) miyui ‘histórias (dos Some of its linguistics mechanisms show a lexical
antepassados)’, e gramatical: eska ‘assim’, segundo affinity between form and sense: yui ‘to tell stories’,
o que aprendi, e haska ‘assim’, como asserto o que miyui ‘traditional stories (learnt by oral
enuncio. Esses quatro exemplos são uma amostra transmission)’, and grammatical: eska ‘so (referring
de que cada língua, com seu léxico, categoriza, to what has been learnt)’, and haska ‘so’ (the
organiza e conceitua não somente lexemas, mas narrator assumes what he says). These four
também organizações gramaticais. A presente examples are a sample of how each language with
contribuição propõe um breve panorama sobre a its lexicon categorizes, organizes and
transmissão oral, sua apreensão pelos ‘locais’ e conceptualizes not only lexicon, but also
por nós, estudiosos da língua. grammatical organizations.
palavras-chav
palavras-chave:e: Amazônia, caxinauá (kaxinawa, key-wor
key-words: ds: Amazon, caxinauá(kaxinawa,
cashinahua), etnolingüística, língua indígena, cashinahua), etnolinguistics, indian language,
Pano (família lingüística), tradição oral, Acre. Pano, oral tradition, Acre.

O presente artigo tem como proposta no plano lingüístico como no plano


apresentar algumas chaves para o etnográfico. O primeiro plano mostra as
entendimento do modo como se organiza fórmulas de introdução e de encerramento
uma narrativa em língua vernacular, tanto ou, ainda, alguns dos mecanismos
lingüísticos com os quais o narrador
* Doutora em Lingüística geral pela Universidade de Paris especifica a sua posição de mediador da
IV (Paris-Sorbonne), rua Augusta, 614/13, 01304-000 São mensagem que divulga. O segundo revela
Paulo/SP, email: camargo@vjf.cnrs.fr
Atualmente, vinculada ao DA-FFLCH e ao NHII-USP, desen- algumas das regras sociais do grupo. Na
volve seu pós-doutoramento, financiado pela FAPESP. Es- narrativa proposta, nota-se uma dessas
tuda duas línguas amazônicas: caxinauá (PANO) e wayana
(CARIBE ). Membro do Centro de Estudos de Línguas In-
regras. Ela é dirigida à mulher. Esta não
dígenas da América (CELIA-CNRS, França) e do Nú- deve comer carne em período menstrual.
cleo de História Indígena e do Indigenismo (NHII-USP).
12 ELIANE CAMARGO

Para este estudo, elejo uma narrativa que O interesse da coleta de narrativas para
conta a história de um anzol marupiara, isto o meu estudo sobre o caxinauá2 é o de
é ‘com sorte’ (xeamati menki1) que virou apreender a organização da estrutura da
panema, ou seja ‘sem sorte’ (yupa), por ter língua, com seus processos morfossintáticos
tido os peixes que pescou (bakawan e e a semântica que advém da situação de
yapawan ) comidos por uma mulher comunicação. As narrativas podem revelar
menstruda (ainbu himiya). O texto revela termos tabus não verbalizados fora do
que a infração de consumir um desses contexto narrativo, estruturas arcaicas,
peixes em período menstrual faz com estruturas próprias de narrativas, com as
que o esposo (da infratora) torne-se quais o enunciador informa a proveniência
panema, ao menos temporariamente. do que narra (experiência pessoal ou
Para sair desse tipo de panemismo uma transmissão oral). Tem-se ainda, através das
longa dieta se faz necessária, como narrativas, acesso aos valores aspecto-
abordada no item 3 . temporais que remetem a fatos realizados em
Da d o s e x t r a í d o s d a n a r r a t i v a um tempo remoto. Um outro fator relevante
permitem mostrar uma faceta de como no ato de narrar é o comportamento, seja
esse grupo organiza o mundo: o que é pela expressão corporal, seja pela retórica,
recebido pela tradição oral é transmitido ou, ainda - conforme a situação de
pelas mesmas vias. Ao iniciar a sua fala comunicação -, pela dialética do narrador
referente à transmissão de conhecimento, o diante do seu público. Presenciando e
mediador da mensagem, i.e., o narrador, compartilhando momentos importantes da
declara ser dos antepassados a autoria da transmissão oral dos caxinauás3, pude ainda
narrativa. Esta declaração é legitimada pela apreender algumas das mensagens liminares
base lexical eska- e pelo morfema modal - de suas narrativas, como ilustram alguns
kiaki. Ao decorrer da narrativa, o narrador trechos do relato proposto adiante.
personaliza a sua versão com ajustes pessoais
através de onomatopéias, intonações, gestos,
estruturas sintáticas nas quais utiliza formas 2 Meu estudo descritivo da língua caxinauá (hantxa kuin)
que remetem à responsabilidade do foi iniciado em 1989, no alto rio Purus (Brasil). Desde
1994, tenho estado no mesmo rio e em seu afluente, o rio
enunciador, como o uso do assertivo –ki. Curanja (kuda hen), no Peru. As diferentes pesquisas de
Com esse morfema, o enunciador assume a campo totalizam um pouco mais de dois anos de contato
responsabilidade do que enuncia, cuja in loco com o grupo.

paráfrase seria do tipo: eu afirmo que/eu 3 Os caxinauás (huni kuin) são um grupo cinegético e agri-
asserto que. cultor. A carne de caça (mitu) é o alimento de prestígio
por excelência. A população global está em torno de 5.400
pessoas, a saber: 3.964, no Brasil, e 1.400, no Peru (ISA,
2001:12). Eles têm sido um dos grupos mais bem docu-
mentados em língua vernacular na literatura etnográfica
amazônica do Brasil. Em 1914 [1941], o historiador João
Capistrano de Abreu publicou um vasto material bilingüe
1 Com adaptações para o leitor do português, a grafia caxinauá-português com narrativas sobre cosmologia,
da transcrição do texto segue o sistema fonológico fatos cotidianos e sessenta e seis advinhações caxinauá.
da língua, composto de quatro vogais e de quatorze Nove décadas depois, em 1995 [2000], a CPI-Acre edi-
consoantes, a saber: a, i, e (representa uma vogal tou uma coletânea que contou com uma importante par-
central média), u, m, n, p, t, c, k, b, d, y (oclusiva ticipação dos caxinauás, na transcrição e na versão em
palatal surda), tx (oclusiva palatal sonora) s, x (fric- português dos textos em língua vernacular. Hoje, muitos
ativa retroflexa), h, ts, w. caxinauás, sobretudos homens, são escolarizados.

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NARRATIVAS E O MODO DE APREENDÊ-LAS: A EXPERIÊNCIA ENTRE OS CAXINAUÁS 13

1. A TEATRALIDADE DO NARRADOR E O
TEATRALIDADE Em geral, o público mantém-se em
PÚBLICO silêncio. Passagens gozadas arrancam risos,
principalmente de crianças. São estas ainda
A língua tem recursos morfossintáticos que intervêm ocasionalmente, fazendo
e estilísticos que indicam o dinamismo e a perguntas para entender melhor um fato
rapidez de uma ação. São morfemas como ainda não conhecido/memorizado,
–baunbaun ‘circular’, -bidan ‘vaivém’, -kain verificando se não perderam o fio da meada.
‘centrífugo’, -bain ‘centrípeto’ que indicam Às vezes intervêm, adiantando algumas
diferentes tipos de movimentos. As seqüências. O silêncio é uma conduta de
narrativas caxinauás são em geral floreadas respeito pelo narrador, sobretudo se ele é
com muitas repetições, de forma a enfatizar considerado um representante vivo do
ações fortes, sobretudo as que expressam conhecimento ancestral: anibu para os
esforço físico e/ou mental (dor, muito homens e inka yuxan para as mulheres. Fora
trabalho, longas caminhadas). de passagens engraçadas, rir é permitido (e
Os narradores já consagrados têm como mesmo freqüente) quando narradores-
característica uma grande desenvoltura novatos estão sendo postos à prova. Sob risos
corporal, acompanhada de expressões faciais muitas vezes incontidos dos presentes, eles
e corporais, e ainda usam recursos sonoros devem contar a sua versão até o fim e devem
para imitar barulhos diversos ou sons de manter-se indiferentes à gozação dos jovens:
animais, mudando a intonação conforme o são etapas a serem superadas. O narrador-
personagem4. Essa versatilidade aparece novato pode chegar a narrar histórias da
especialmente entre os homens, mesmo que cosmologia caxinauá fora do domínio
o desempenho de algumas mulheres não doméstico, ou seja, fora de sua residência
deixe nada a desejar. Com todas essas ( hiwe ). Apesar da estreita relação de
encenações, que facilitam a visualização do parentesco que o liga com o público, este é
texto, o narrador masculino se mantém exigente, rindo da versão considerada “mal
sentado (às vezes deitado) na rede5. Na contada”. Os novatos estão sendo
presença de homens, as mulheres se sentam observados por ‘detentor(es) do
no chão. conhecimento ancestral’ que toma(m) a
palavra, fornecendo explicações de passagens
importantes não mencionadas, retomando
4 No caso específico de Marcelino Piñedo, que narrou o seqüências mal formuladas ou partes que
texto abaixo: yaix bipapi xeamati baka bipaunibuki ‘pes- julgam importantes para o corpo da
cavam com anzol de dedinho de tatu’, ele emprega mui-
tas onomatopéias e repetições de forma a dinamizar o
narrativa6.
discurso. Esta maneira pessoal de narrar, bastante apre-
ciada, vem sendo adotada por seus descendentes.
6 Poucas vezes assisti a “sessões de ensinamentos” como
essas e sempre em uma mesma comunidade, o que não
5 Para o meu estudo, ocorreu-me fazer gravações no me permite afirmar que seja uma prática sociocultur-
roçado. Já aconteceu de passar um mês acampada na al. Uma das vezes, sugeriram-me ligar o gravador para
praia, onde fiz gravações à noite com a família que eu uma sessão de xenipabu miyui yuikindan: fala das
acompanhava. Nesses casos, fora de casa, nem sem- histórias dos antepassados, que o anfitrião fazia para
pre levávamos a rede, e o narrador masculino se sen- mim. Nesta ocasião, foi solicitou se que a uma das
tava no chão (varrido ou coberto com folhas, ou então mulheres (não residente daquela casa) participasse das
em cima de uma esteira). Em todas essas situações, o gravações. Quando ela terminou de narrar, o anibu ‘an-
narrador sempre esteve acompanhado de seu cônjuge, cião’ retomou muitas partes da narrativa recontando
filhos e netos (consangüíneos). novamente com detalhes.

ar tigos
14 ELIANE CAMARGO

Muitos caxinauás em torno de vinte e os caxinauás fica evidente que estas


trinta anos conhecem com exímios detalhes condições parecem não afetar em nada as
certas narrativas. Muitas vezes, se o anibu crenças e as regras culturais10. No Purus, o
ou a inka yuxan esquece o nome de um conhecimento da tradição cultural, que,
personagem ou perde o fio da narrativa, o essencialmente, envolve o conhecimento da
jovem intervém discretamente dando a farmacopéia, dos criptogramas ou grafismos
seqüência ou lembrando o nome do (kene), de regras sociais como a das alianças
personagem7. Esses jovens, todavia, ainda ( bene kuin ‘esposo ideal’ ou bene xaka
não estão aptos a exibir em público8 o ‘esposo não ideal, mas permitido’), das
conhecimento que têm da tradição ancestral. funções das metades (representadas por inu
A aparência ocidentalizada, que domina ‘onça pintada’ e dua ‘onça suçuarana’), é
as aldeias – com suas casas familiares (hiwe) dinâmico, ao menos na região do rio
ao invés de casas comunitárias, as ‘malocas’ Curanja. Esse conhecimento, passado
(xubu), a vestimenta industrializada ao revés oralmente, mantém a identidade caxinauá,
de estojo peniano para os homens e saias de sendo as narrativas o maior dos
algodão marrom ( xapu batxi ) para as instrumentos de ensinamento.
mulheres usados antigamente9 e a produção Como em toda sociedade, entre os
de artefatos da cultura material para a venda caxinauás também há aqueles que são
– não deve ser entendida sem qualquer reputados por sua sabedoria e são eles os
mediação como marca de assimilação e de “mediadores” da tradição. Reputação essa
adoção de padrões resultantes do contato que, muitas vezes, seus descendentes devem
com a alteridade (nawa) e a conseqüente e tentam manter. Alguns testemunhos dizem
perda da sua própria identidade cultural. Na que os jovens não são aptos a contar o que
verdade, na convivência mais próxima com sabem, porque às vezes ouviram narrativas
que eram voltadas a outras pessoas, pois, via
7 As versões de histórias narradas por jovens fornecem-
nos trechos que formam o corpo do texto, não entrando
de regra, divulga-se somente o que é
nas nuanças semânticas do conteúdo. Conforme a sua de- transmitido por ascendência (pais, avós e tios
scendência, revelar informações que fazem parte do es- consangüíneos e/ou classificatórios). Por
toque do conhecimento de sua linhagem parece não ser
permitido. sinal, muitas vezes eles identificam a
procedência do saber: e-n mia miyui-dan,
8 O uso do termo “público” dá-se no sentido de narrar di- e-n epa11-n yui-pauni mia miyui-ai ‘vou te
ante de membros da família, e não em particular, como
em ocasiões de gravação, como indicadas na nota 5. contar uma história, vou te contar a história
que meu pai contou’, ou, ainda, e-n mia
9 Em uma filmagem realizada por Harold Schultz e sua miyui-dan, e-n ibu huni txitxi 12-n yui-
esposa Wilma Chiara, nos anos 50, mostra a vestimenta
dos caxinauás antes da adoção da vestimenta industriali- pauni yui-iki-ki ‘vou te contar a história que
zada. Filmagens retomadas no filme kape, le crocodile, a mãe de meu pai contou, parece que ela
de P. Deshayes e B. Keifenheim.
conta (assim)’.
10 Em 1999, pude assistir algumas mudanças políticas impostas
pelo governo Fujimori, como a obrigatoriedade do uso do
espanhol para os chefes de aldeias indígenas. Isso fez com
que jovens caxinauá substituissem seus pais, avós ou “so-
gros” que eram chefes políticos (xanen ibu). Mesmo observ- 11 epa ‘pai classificatório’.
ando essas mudanças impostas pelos nawa (Outro), eles não
me pareceram preocupados com o fato de que a evolução dos 12 ibu huni (genitor / homem) ‘genitor (masculino)’, txitxi
eventos pudesse ameaçar a expressão de sua cultura. ‘avó’.

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NARRATIVAS E O MODO DE APREENDÊ-LAS: A EXPERIÊNCIA ENTRE OS CAXINAUÁS 15

Além disso, a sabedoria vem com o tempo, AS FÓRMUL AS DE INTR


FÓRMULAS ODUÇÃO
INTRODUÇÃO
com o escutar, razão pela qual são os anibu e
as inka yuxan (não por acaso costumam ser Nas fórmulas introdutórias o narrador
os anciãos, os representantes vivos da sempre chama a atenção dos interlocutores
ancestralidade) que apresentam uma grande anunciando que vai contar-lhes uma história
desenvoltura e conhecimento da tradição. Há e pede para que o escutem: mia yuinun,
pessoas que por um outro motivo não ninkawe (lit.) ‘(eu) te conto, escute!’ É
receberam esse ensinamento: por terem interessante notar que a forma é sempre em
perdido a família cedo ou por terem sido relação “eu-tu” (en -mia), ou seja, entre o
criados por pessoas que não descendem enunciador e o(s) co-enunciador(es),
daquelas famílias nas quais tradicionalmente mostrando a relação de proximidade/
se formam estes “transmissores do afinidade que (deve) existe(ir) entre os
conhecimento ancestral”13. personagens, i.e., a relação entre aquele que
narra e aquele(s) que participa(m) de forma
2. AS ESTRUTURAS LINGÜÍSTICAS PRÓPRIAS
ESTRUTURAS
passiva da história, pela escuta da narrativa.
DE UMA NARRATIV
NARRATIVA
TIVA
Nas narrativas caxinauás a presença da
Para o texto narrado, o caxinauá dispõe palavra miyui ‘histórias’, quase sempre
de diferentes construções que indicam tanto determinada pelo termo xenipabu
o início como o término de uma narrativa. ‘antepassado’, ou seja xenipabu miyui,
O narrador tem ainda ao seu dispor esclarece ao(s) interlocutor(es) que se trata
marcadores gramaticais que mostram o grau de ‘histórias dos antepassados’. Este termo
de implicação que ele tem no que enuncia. aparece em construções introdutórias
Quatro deles (eska, haska, -kiaki, -iki) serão referentes a personagens fundamentais na
brevemente apresentados adiante. cosmologia caxinauá, como ilustradas em
(3). O semantismo lexical de miyui está
2.1. A ESTILÍSTICA DA NARRATIV
NARRATIVA
TIVA
fortemente ligado a histórias que procedem
da tradição oral, enquanto a palavra yui, que
designa ‘contar (a) história (de X, ou sobre
Quando o narrador entoa a voz para X)’, aparece nas construções sintáticas como
narrar uma história, fórmulas introdutórias mia yui-nun ‘(eu) te conto’14.
explicam a fonte da narrativa: histórias da
vida de um personagem ou da origem de Ao contar uma história vivenciada por
doenças, de fatos vivenciados pelo narrador ele mesmo ou vivenciada por aquele que
ou por alguém que ele conhece ou lhe contou o fato, o narrador não costuma
conheceu. As fórmulas de encerramento são empregar o termo miyui, mesmo que o
menos diversificadas que as introdutórias, termo xenipabu ‘antepassado’ seja
como examinaremos abaixo: empregado (1a). Para indicar que a
história é sobre a vida caxinauá ou sobre
um personagem da cosmologia, o
narrador empregará a estrutura hiwe-a
13 Esses dados são frutos de ‘bate-papos’ com os caxinauás,
sem que tenha havido um trabalho voltado especifica- ‘vivido’ (1b, 2).
mente à transmissão oral do grupo. Tema, por sinal, rico,
que merece ser estudado, posteriormente, em profundi-
dade. 14 Em outros contextos yui designa também ‘dizer’.

ar tigos
16 ELIANE CAMARGO

(1). duas onças. O nome dessas onças, inu e dua,


a. Nukun xenipabu mawa, mawadan hatu pipaunibu designam as duas metades constitutivas dessa
mia yu
yuiai. sociedade dualista. Dua ‘onça suçuarana’ é
conhecida, no texto mítico, sob o nome de
(Eu) vou te contar como os nossos antepassados inawan e aparece, a seguir, como primeiro
comiam os mortos…
elemento na frase:
hiwee adan, nun eskapauniki
b. Nun mananan hiw
c. Inawan iyuniki ainbu dananan nuin
mia yui
yuinun ninkawe
txutamakin, ainbun nuin bake wa
wamaima
(Eu) vou te contar como vivíamos no barranco. miyuiki
Escute!
O Inawan levou a mulher que teme homens
Quando se trata da vida de um e copula com a minhoca. É a história da
personagem, o seu nome aparece como mulher que fez filho de minhoca.
primeiro elemento da frase:
Em histórias de encantações, o emprego
(2). do termo dami ‘transformação’,
a. Mana D umeya hiweadan eskapaunikiaki,
Dumeya ‘metamorfose’ dispensa o emprego do termo
mia yuinun ninkawe miyui ‘história’:
(Eu) vou te contar a história de como o Mana (4).
Dumeya vivia. Era assim, escute!
Dume xenadan dami
daminikiaki, ainbu kaina ewai,
b. Sanin Taden IIti
ti hiweadan eskapaunikiaki; yametans ewai, yametan ewai, ewakunkauni
mia yuinun ninkawe
Da transformação do verme do tabaco, que
(Eu) vou te contar a história de como o Sanin nasceu da mulher, ele (o verme de tabaco)
Taden Iti vivia. Era assim, escute! crescia à noite e ficava esperto de dia.

O termo miyui ‘história’ pode vir Quando se conta uma história após a
posposto ao nome do personagem, outra, sendo a que se segue uma outra
explicitando ser a “história de” (3a-b): versão da anterior, a fórmula introdutória
não é mais empregada. O enunciador
(3). indica com o termo betsa ‘outro’ que se
a. Dume K uin Teneni miyui mia yuinun
Kuin trata de uma outra versão. Em alguns casos
eskapaunikiakidan o narrador retoma o nome da narrativa
(Eu) vou te contar a história de Dume Kuin
que vai contar: betsa…dume yuxibu
Teneni. Ela era assim… miyui, como ilustra (5c):
b. Dau pepa Ainbu Yuxan Kudu miyuiki
Kudu miyuiki, (5).
eskanikiaki a. Betsa
etsadan, xenipabu betsa
betsadan.
A história das plantas venenosas de Ainbu Yuxan Uma outra, outra (história de) antepassado(s).
Kudu era assim…
b. Betsa nukun xeamati, xeamati waxunnun
bia, mia yui-nun
Em (3c) o narrador chama a atenção para
um dos personagens. Trata-se da ‘menina que Eu vou te contar outra (história) do nosso anzol.
copulava com uma minhoca’ ainbu nuin (O pescador) fez um para pescar.
bene wa- e que mais tarde casou-se com as
cader nos de campo · n. 10 · 2002
NARRATIVAS E O MODO DE APREENDÊ-LAS: A EXPERIÊNCIA ENTRE OS CAXINAUÁS 17

c. Miyui betsa
betsadan hawen kena dume yuxibu Em (7a-c) nota-se a construção hatixunki
miyui. seguida do nome do personagem principal
Outra história, o nome dela é Dume Yuxibu. da narrativa. Uma outra fórmula, menos
produtiva, é ilustrada em (7d):
Uma fórmula distinta das apresentadas
acima é enunciada principalmente por (7).
mulheres. Informa que a narrativa procede a. H atixunki
atixunki, nukun Txapaketanwan
dos ‘antepassados’ xenipabu , e, em miyuidan
seguida, pela estrutura de posse (en miyui A nossa história do Txapaketanwan16 acabou.
‘minha história’), expressa uma versão
como fazendo parte de seu ‘estoque de b. Hatixunki Sanin Taden Iti miyuidan
conhecimento’. Acabou a história de Sanin Taden Iti.
(6). c. Ibubuki nukui kaidan. Hatixunki
atixunki, ainbu-n
inu bene wa-ni miyuidan.
Eskanikiaki xxenipabu
enipabu
enipabu, en miyui
miyuidan matu
yuinun ninkawe Os pais dela foram encontrá-la. Acabou a
história da mulher que se casou com a onça.
Eu vou contar para vocês como eram os
antepassados. Escute(m)! d. Inawan iyuni huayadan. Hatixunki
atixunki, na miyui
hantxadan.
AS FÓRMUL AS DE ENCERRAMENT
FÓRMULAS O
ENCERRAMENTO
Quando chegou havia sido levado por Inawan.
Como mencionado acima, as fórmulas Esta história acabou de ser contada.
de encerramento são mais homogêneas
que as de introdução, apresentando três As formas cristalizadas hatiski e desuki
lexicalizações 15 , hatixunki , hatiski e são usadas para encerrar uma narrativa de
desuki, que designam que aquela narrativa origem, de encantações ou de fatos
chegou ao seu término. Com hatixunki, vivenciados pelo narrador. Em (8a), o termo
o narrador finaliza todas as narrativas que dami ‘transformação’ revela que se trata de
se referem a personagens importantes da uma narrativa cujo foco é a ‘transformação’.
cosmologia caxinauá. As narrativas de Se em (8a) trata-se da transformação de um
encantações ou ainda aquelas de fatos animal (sapo) em outro animal (mutuca),
vivenciados pelo narrador são marcadas (8b) aborda a metamorfose de pessoas em
pelas outras duas lexicalizações. animais:
Hatixunki marca as narrativas (8).
concernentes a personagens importantes a. Damidan pesteidan hatun nuku
da cosmologia, como Txapaketanwan, pimiski. Pestendan, hatixuki, tua miyui
Sanin Taden Iti, Inawan, Ainbu inu bene. daminaidan. Hatiski
atiski.

16 Txapaketanwan é conhecido como o irmão de Nete Bekun,


personagem chave da gênese dos caxinauás. De tanto
15 Lexicalizações são aqui entendidas como construções chorar, abelhas puseram, em seus olhos, larvas, das quais
sintáticas não mais redutíveis, ou seja, segmentadas. Por surgiram os quatro membros constitutivos da sociedade
exemplo, a construção hati-xun-ki (até-para-assertivo) não dualista: dois meninos, inu e dua, e duas meninas, inani
faz mais sentido para os caxinauás que concebem, hoje e banu. Inu e inani pertencem à metade inu (onça pinta-
em dia, essa construção como uma palavra. da) e dua e banu à metade banu (onça suçuarana).

ar tigos
18 ELIANE CAMARGO

Virou mutuca que nos come. Acabou a 2.2. AS FORMAS DE MEDIAÇÃO DA


história do sapo que se transformou em TRANSMISSÃO DE CONHECIMENTO
CONHECIMENTO
mutuca. Acabou. (história do sapo Tua)
b. Haskai hiwenibukiaki. H atiski miyui O sistema da língua apresenta formas
hantxadan. lexicais e gramaticais que permitem ao
enunciador mostrar a posição que toma
Eles viveram assim (razão pela qual). Acabou a
diante do fato que enuncia. Nos contextos
fala da história. (história do kue pama).
de narrativas, ele se serve de marcadores
Em (8c), vê-se que desuaki e hatiski gramaticais (sufixos modais) que explicitam
podem aparecer em seqüência de que o que enuncia provém de um
enunciados, designando ‘fim/término da conhecimento coletivo e que desempenha
narrativa’: um papel de ‘mediador’, transmitindo uma
c. Haskai hiwenibukiaki. Hanudi desu
desuaki. mensagem. Alguns recursos lingüísticos
permitem ao narrador informar, no início
(Razão pela qual) eles viveram assim . É de sua ‘fala’, que o que relatará foi lhe
até aqui, acabou. (história do Dume
transmitido (eska-, -kiaki). No final da fala,
yuxibu ).
geralmente usa termos para explicitar que o
Em (9) tem-se ainda duas fórmulas que lhe foi ensinado, ele transmitiu,
de encerramento bastante produtivas responsabilizando-se pela versão que divulga
que r emetem a histórias de fatos (haska-ki). No corpo do texto, é bastante
vivenciados pelo narrador ou a fatos de produtivo o uso do sufixo -iki que remete à
que o narrador é a fonte do ‘mediação’ no presente. Diferentes
conhecimento: marcadores caracterizam o início e o
(9). término de uma narrativa. Vejamos alguns
exemplos.
a. Hatixunki, miyuidan. H atiski
atiski.
Acabou a história. É só até aqui. OS LEXEMAS ESKA E HASKA

b. H atiski miyui hantxadan.


Dentre as formas lingüísticas que
É só isso a fala da história. caracterizam as narrativas caxinauás, dois
Em (9c), tem-se o extrato de uma lexemas designando ‘assim’ são
fala sobre como usar a pimenta na imprescindíveis: eska e haska. O primeiro é
cozinha caxinauá. Com o emprego de empregado na introdução e o segundo na
hatiski , o enunciador indica que tudo parte final das histórias.
o que sabe ou intenciona falar sobre a
questão está dito, assinalando assim o Eska
término de sua fala:
Com eska o enunciador expressa que
c. Yutxi wa-kindan... bude yutxi-dan, narra uma das ‘formas de como o
hanua betsa-dan, hatiski
hatiski. evento, a ser abordado, se passou’.
Como usar a pimenta... pimenta com Informa ainda que o enredo da história,
palmito é outra forma (de usá-la). É só isso da qual não é o autor, será narrado tal
(que tenho a falar).

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NARRATIVAS E O MODO DE APREENDÊ-LAS: A EXPERIÊNCIA ENTRE OS CAXINAUÁS 19

como ele aprendeu pela transmissão ‘mediador de um conhecimento obtido pela


oral: transmissão oral’.
(10). -kiaki
a. Yube hiwea eska
eskapaunikiaki, mia yuinun Com -kiaki o narrador faz referência ao
ninkawe. tempo dos antepassados, mostrando a sua
Era assim que vivia Yube, (eu) vou te contar. posição de mediador do conhecimento
Escute(-me)! sociocultural que lhe foi/é transmitido. Essa
forma gramatical permite-lhe tomar
b. Eska
Eskanikiaki mia yuinun ninkawe
distância em relação ao fato relatado,
Era assim, (eu) vou te contar. Escute(-me)! remetendo-o a eventos históricos/
mitológicos, deixando claro que o que
Haska enuncia provém de um conhecimento que
lhe foi transmitido. Pode-se constatar esse
Com haska o narrador tem uma postura morfema nos exemplos (2-3, 6, 8b, 10-11).
mais objetiva. Informa que história contada Tomemos um trecho de uma fala sobre o
advém da transmissão oral e que ele se ‘viver na terra dos incas’. O narrador
responsabiliza pela versão que divulga: transmite uma informação da qual não tem
(11). experiência pessoal, porém, tal
conhecimento provém da transmissão oral,
a. Haska
askanikiaki, Dume Kuin Teneni mawaidan indicado por –kiaki:
hatixunki.
(10).
Foi assim a morte de Dume Kuin Teneni .
Acabou. Inka hiwe-a-dan daya-{a}ma-dan txidin besti,
katxa nawa, buxka wa-tan pi, txidin-mis-bu-
b. Haska
askakainni inu keneyanikiaki, damidan.
kiaki
kiaki.
H aska
askanikiaki.Hatixunki,Mana Dumeya
miyuidan. Na vida de inca, ele não trabalha, só faz txidin
(dança do gavião), katxa nawa (mariri) o buxka
Assim virou onça pintada. Foi assim. Acabou a
história de Mana Dumeya.
watan para comer, ele só dança o txidin.
-iki
OS GRAMEMAS17 DE MEDIAÇÃO DA INFORMAÇÃO
Em um contexto de narrativas, o
morfema -iki remete a um acontecimento
O caxinauá dispõe de dois morfemas, - no qual o narrador participa como
kiaki e –iki, com os quais o enunciador personagem da história ou então dá a sua
marca a sua posição de mediador em relação opinião, assinalando que não se
ao que enuncia. Esses sufixos são bastante responsabiliza pelo que enuncia. O
produtivos nas narrativas. Com eles, o emprego de -iki está bastante presente na
narrador informa não ser a fonte direta da da narrativa apresentada adiante, nas frases
informação que divulga. Indica, assim, (5, 9, 19, 23, 28, 32, 35)18.
através de recursos gramaticais, ser o

18 Para maiores detalhes sobre o valor modal e o emprego


17 Gramemas designam ‘formas gramaticais’. desse sufixo, remeter-se à Camargo (1996).

ar tigos
20 ELIANE CAMARGO

(bakawan ou yapawan) trazido pelo esposo


3 . TRANSMITINDO REGRAS SOCIAIS é a maneira de lembrar a relação tabu que
liga o sangue à alimentação animal ( cf.
Uma das características relevantes de uma Lagrou, 1998). A infração das regras
narrativa caxinauá é que a história tem um penaliza o sustento: o sustentador, por não
sentido social. Este é, muitas vezes, revelado poder ir à busca de peixe (alimento animal),
de forma liminar, através de figuras de e os sustentados, que ficam sem o alimento.
sintaxe, escamoteando o conhecimento O texto mostra essa relação tabu que envolve
coletivo da prática social, que não precisa um conhecimento coletivo dos yuxibu19,
ser explicitado. Na narrativa abaixo, seres do cosmos, muitas vezes designados
referente à pesca, por exemplo, os caxinauás por “monstros”, como sugere a síntese
revelam alguns de seus tabus. Tomam o abaixo:
anzol, feito de dedo de tatu canasta,
representando o pescador marupiara. Este Síntese: yaix bipapi xeamati é a história
Síntese
passa a ser panema caso, em período de um anzol marupiara, feito de dedinho
menstrual, a esposa/mulher (que prepara o de tatu. Este se torna panema quando o
alimento animal) comer deste peixe peixe que pesca é comido por uma mulher
(bakawan e/ou yapawan). Esta é a maneira menstruada. O seu sangue faz com que os
de lembrar a relação tabu que liga o sangue peixes se tornem astuciosos, não mordendo
à alimentação animal, não sendo permitido mais a isca amarrada no anzol. Esta infração
à mulher comer carne em período das regras sociais obriga o pescador a fazer
menstrual. uma dieta, deixando o anzol repousar, para
No texto, o narrador explicita que o anzol voltar à atividade da pesca posteriormente.
pode deixar o pescador panema (sem sorte
para pescar) se a mulher menstruada comer O intermediador entre o elemento
o peixe que o anzol pescou: nuku yupan aquático, animal comestível (o peixe), e o
wamiski, ixundan baka xeamatiwen bia elemento animal comedor (o homem) é o
ainbu himi iki piadan yupamiski, ana tatu. Este intermedeia a ação de pescar e o
biamadan ‘Deixam-nos panema. É (assim) seu produto através de seu dedinho, usado
que nos deixam. Pescou com o anzol- como anzol. O tatu é um ser inofensivo,
pescador, mas a mulher menstruada (ainbu sem dentes, resistente pela sua carapaça.
himi ik- ) comeu [o peixe], tornando-o Como o tracajá e o jacaré, o tatu é
panema (yupamiski), e não dá mais para considerado um animal cascudo (yuinaka
pescar ([com ele], ana biamadan )’. Na xakaya), tendo uma forte ligação com o
verdade, atribui-se ao anzol o estado de
panemismo e não ao pescador, que depende 19 A questão que envolve os seres designados yuxibu é de-
da sorte do anzol de atrair e pegar os peixes. masiada complexa, razão pela qual ela não será desen-
volvida neste artigo. Sugiro a leitura do capítulo a eles
Segundo depoimentos, para que o dedicado por Lagrou (1998).
pescador volte a ser marupiara, uma dieta
de um mês é necessária e o anzol não pode 20 As águas têm outros seres, materialmente visíveis ao
ser pendurado. Falar da transgressão da homem, com quem este tem contato: mai dunuwan ou
mananan dunuwan ‘cobra-grande da terra’ ou ‘jibóia’, e
mulher que, menstruada, comeu do peixe hene dunuwan ‘cobra-grande das águas’ ou ‘sucuriju’ ou
ainda ‘anaconda’, na referência mítica.

cader nos de campo · n. 10 · 2002


NARRATIVAS E O MODO DE APREENDÊ-LAS: A EXPERIÊNCIA ENTRE OS CAXINAUÁS 21

mundo aquático, dominado pela ‘anaconda’ simbolicamente, é a relação entre os


yube20 (cf. Camargo, 1999b). Ela está na monstros das águas e o homem, feita através
esfera do cosmos e é vista somente em sonho do anzol/tatu, que está sendo expressa. Para
ou em alucinações provocadas pelo nixi pae, tal relação de troca alimentar, o elemento
o ‘ayahuasca ‘, bebida alucinógena. De fato, sangue deve ser excluído.
o homem não tem contato com a anaconda Esta narrativa mostra uma infração às
yube por sua imaterialidade: condição de regras sociais: o ‘sangue menstrual’ e o
seres não visíveis pelos seres animados (ao alimento animal (neste caso, o peixe) não
menos humanos), como assinala Lagrou devem se misturar, pois o seu fornecedor,
(1998:64-67). McCallum (1996:56) os yuxibu (das águas) não se alimentam de
qualifica-os de “monstros” 21 , já João sangue.
Capistrano de Abreu (1941:421-424)
interpretou-os como “diabos”22. 4. CHAVES DE LEITURA
HAVES
O papel do tatu/anzol na história é o de
intermediar a relação entre o homem (huni) Dentre os diferentes fenômenos
e o peixe (baka). Esta intermediação é feita lingüísticos, extraio alguns cujo entendimento
pela isca de mexku, que é oferecida a esses é interessante para a análise de discurso.
monstros das águas em troca do peixe-
alimento de prestígio ao homem. Segundo AS ONOMATOPÉIAS
ONOMAT
Lagrou (1998:66), esses yuxibu (das águas)
alimentam-se da terra e das águas, nutridas O narrador emprega diferentes
pelo suor, urina e fezes humanas. O sangue onomatopéias que nos ajudam a visualizar
está excluído dessa relação de alimentos diferentes movimentos do pescador no ato da
nutrientes desses monstros das águas. No pesca: puxar o peixe até a praia, golpear com
início do texto em língua vernacular, o machado a cabeça do peixe e, ainda, os
narrador explicita que a isca serve para pegar barulhos do atrito do contato do anzol com a
o peixe (bake-xun mexku tsaka-xun). Isto água. Esses são alguns dos recursos que a língua
é, ela o atrai, ele a morde e o pescador pega- caxinauá oferece à dinâmica da narrativa, o
o, levantando-o (bake ‘levantar’) e matando- que nos faz apreender cada um dos passos
o (tsaka ‘matar’) a golpes de terçado. Porém, como se fôssemos espectadores. Vejamos
algumas das formas onomatopéicas usadas
21 Para yuxibu, o narrador fala em ‘ser encantado’, outros
no texto proposto adiante:
informantes concordam com ele, sendo que alguns adi- (11).
cionam a noção de ‘milagre’. Outros ainda preferem con-
trapô-lo com a palavra dami, ‘transformação’. a. po, ou pu ‘barulho do atrito da queda da
Em diferentes contextos, os yuxibu designam seres te-
merosos, fortes, resistentes, imbatíveis. São temidos por
corda na água’ (1, 8, 13);
sua força e voracidade canibal e agridem o homem con-
b. pok ‘movimento indicador de que a corda
sumindo o seu princípio vital (yuxin), interferindo no
equilíbrio da sociedade. foi até o meio do poço do rio (8) ;
c. tsok, tsau, ton (12, 25, 29, 30) ‘atrito da
22 Os dados coletados por este autor mostram que os yuxibu
habitavam lagoas (nuawan) (versos 4784-4789) de onde
batida do machado no peixe’;
saíram o ‘jacaré-açu’ kapetawan, as ‘araras vermelhas’ d. toh , teh ‘movimento de puxar a corda
xawan, as ‘onças’ inu, os ‘macacos-prego’ xinu, as ‘su-
curijus’ dunuwan, os ‘cachorros’ kaman e os ‘galos’ taka- bruscamente’ (6, 32); toh, tso, tou ‘indica o
da (bene), todos criações dos yuxibu.

ar tigos
22 ELIANE CAMARGO

movimento; brusco de jogar o peixe na areia’ A INCISA: ITAN


ITAN
(11, 16, 29);
e. he daun daun daun ‘movimento rápido de Com o emprego da incisa de i-tan, o narrador
puxar a corda’ (10); expressa o que ele acha que o personagem deve
f. tun ‘barulho de arrastar’ (16); g. rok ‘barulho ter dito ou deveria ter dito, como em (15). O
seco de extrair o anzol da boca do peixe’, ao narrador supõe essa situação no texto e a expressa
passo que o termo hantse designa ‘tirar o anzol pela incisa24: (15).
da boca do peixe’ (32); - hati bi-nan-we, i-tan. Vamos pegar só isso,
h) tok ‘barulho dos peixes que pegam a isca’ pensavam.
(36).
Na narrativa sobre o ‘anzol feito de tatu’, EMPRÉSTIMO FRASAL E LEXICAL
as onomatopéias e as repetições, que
caracterizam a versão oral, são mantidas23. Na versão vernacular do texto, destacam-
se em português uma frase e uma palavra25.
MORFEMAS QUE MARCAM MO
MARCAM VIMENT
MOVIMENTO
VIMENTO A primeira refere-se à medida: mais de 50
metros de, noção não gramaticalizada em
O caxinauá gramaticaliza diferentes tipos de caxinauá. Termos que designam medida e
movimento, dentre os quais: -baun repetido, - distância são emprestados do português ou
bidan vaivém, -bain ‘centrípeto’, -kain ‘centrífugo’. do espanhol (metro, quilometragem, etc.).
Os paradigmas abaixo permitem comparar três Nesta língua, o sistema numeral
valores morfêmicos -bain, -baun e -bidan: tradicional conta de 1 a 5: uma ‘unidade’
(12). bestitxai, um ‘par’ dabe, ‘uma unidade e um
bain-
a. nini-bain-
bain-kin ‘ele puxa a linha de pesca em um par’ bestitxai inun dabe, ‘dois pares’ dabe
golpe seco de maneira forte e rápida’; inun dabe, e ‘uma mão’ meken bestitxai ou
bain
b. xinan-bain
bain-kin ‘ele está pensando fixamente em dasi ‘bastante’. Quanto à numeração
alguém, ou em alguma coisa’. complexa, há termos que vão até 20,
(13). contando os dedos das mãos e dos pés. Essa
baun-
a. nini-baun-
baun-kin ‘ele puxa a linha de pesca muitas numeração não é muito usada, embora seja
vezes seguidas’; ensinada na escola26. Os mais empregados
baun
b. xinan-baun
baun-kin ‘ele pensa em várias coisas (como
são os números ditos em português ou em
em trabalhar, em viver em outro lugar)’.
espanhol.
Na narrativa, duas construções são produtivas:
(14).
a. ninin ‘puxar’ > ninin-bidan ‘puxar para si’; 24 Conheço duas formas de incisa: itan e ixun. Os difer-
b. bi ‘pegar’ > bi-bain-bidan ‘puxar num movimento entes empregos e valores semânticos ainda estão em es-
tudo.
de vaivém’. O pescador puxa de um lado e o peixe de
outro.
25 Os caxinauás do Peru são procedentes da cabeceira do
rio Envira e entraram mata adentro para se proteger das
correrias que dominaram esta região na época forte da
exploração do caucho e da borracha. Os mais velhos, ain-
da hoje, usam termos em português que entraram no sis-
tema lexical do caxinauá.
23 O narrador, ao reescutar a sua fala gravada, quis eliminar
as onomatopéias, para deixar um texto mais fácil de se
entender. Ao ver que havia riscado as formas onomat- 26 Segundo informações in loco, essa contagem foi introduzida no
opéicas, disse: na hantxadan pepaki, xabaki ‘Esta fala é universo caxinauá com a formação escolar elaborada e realiza-
boa. É clara.’ da por membros do Summer Institute of Linguistics.

cader nos de campo · n. 10 · 2002


NARRATIVAS E O MODO DE APREENDÊ-LAS: A EXPERIÊNCIA ENTRE OS CAXINAUÁS 23

Mesmo havendo uma palavra para 1. betsa28 nuku-n xeamati, xeamati wa-xun-
‘tarrafa’ hisin no estoque lexical da língua nun bia, mia yui-nun, yaix bipapi xeamati wa-
de origem, o narrador emprestou do xun, (Vou) te contar outra história do nosso
português a palavra ‘malha’ maya [maja]. anzol. (O pescador) fez um anzol para pescar:
Na frase dispi mayakin txaipa waxun, que o anzol feito de dedinho de tatu.
seria ‘faz uma longa malha de soca de mais 2. dispi maya-kin, txaipa wa-xun, mais de
de 50 metros [para pegar peixe]’, o narrador 50 metros de dispi maya-xun, yaix bipapi,
refere-se ao pescador que está enrolando o xeamati maya-xun, dispi-ki bake-xun, ha-
fio (muito longo) para dar um nó. wen baka biti-k.
(O pescador) fez uma longa corda (de
5. APRESENTAÇÃO DO TEXT
PRESENTAÇÃO O
TEXTO algodão), com mais de 50 metros, para
com o anzol de dedinho de tatu, puxar o
A narrativa é apresentada em versão peixe.
bilingüe, tendo na coluna à esquerda o texto 3. bake-xun mexku 29 tsaka-xun, haintxi-
em língua caxinauá e na coluna à direita a xun, Para puxar e matar (os peixes), ele
correspondência em português. As põe a isca de mexku .
informações contidas entre parênteses
referem-se a dados complementares, 4. nuanwan-anu po a-xun,
(Daí,) joga (a corda) no poço: po (ouve-
fornecidas ou pelo narrador (coluna à
se o atrito do contato da corda com a
esquerda) 27 ou em português (coluna à água).
direita). Estas últimas referem-se a
esclarecimentos que proponho para um 5. mana-nun bakawan-nan-dan bi-bain-
melhor entendimento da tradução. Os iki-ki, nini-bidan toh deda-kindan toh,
hífens segmentam o radical da palavra (o po pu pu keti a-xun, (tsau deda-kindan),
primeiro elemento) e os diferentes sufixos bakawan bi-ai-dan, (O pescador) fica
(os demais elementos gramaticais) que lhe esperando até o bakawan pegar a isca.
(Daí) ele vai puxando toh , e ao puxar po
são associados. Informações complementares
pu pu , bate (no peixe) com o terçado e
encontram-se em nota de rodapé.
vai puxando, puxando o bakawan que está
pegando (o anzol).
6. O TEXTO
TEXTO
6. deda-xun datan 30-tan,
(Puxa) e deixa-o na praia.
yaix bipapi xeamati baka bipaunibuki
Pescando com anzol de dedinho de tatu 7. ana betsa, mexku betsa haintxi-xun,
bakawan ka-ai
De novo, pôs outra isca de mexku , e lá
27 Com a colaboração de Paco Puricho Piñedo, a narrativa
foi transcrita, traduzida e verificada in loco. A compreen- vai o bakawan
são das nuanças semânticas da língua foi possível graças
às explicações fornecidas pelo narrador, Marcelino Ce-
cilio Piñedo. Contamos ainda com a ajuda de seus filhos
Paco, Jairo e Mequias. Gravado em 1994, em Colombi-
ana, no rio Curanja, Peru. 29 A isca com o peixinho mexku é amarrada com uma soca
(dispi) no anzol feito de dedinho de tatu (yaix bipapi).
28 O narrador encadeou uma história na outra sobre os seres
temidos da água, por isso inicia esse relato com betsa 30 Datan indica que o personagem puxa o peixe, deixando-
‘outro(a)’, isto é, uma outra história. o na areia da praia.

ar tigos
24 ELIANE CAMARGO

8. pu, pok, nua namakis-dan, pu ak-a, tsau- daí (joga n’água) po, como da outra vez e no
xun31, pu, pok (lança a corda longe) bem lá no mesmo lugar, o anzol mergulhou e ali
meio do poço, pu, fez o barulho do atrito da amontoaram-- se peixes.
corda com a água. Assentou (a corda, lá dentro
14. bi-iki-ki ana-dan. bi-bidan-ai, ana nini-
do poço).
bidan-kin, (nini-a-kin, nini-bidan-a-kindan,
9. mi-n mana-nun, mi-n mana-nun, mi-n nini-bidan-a-kindan), tun keti a-kindan, tso.
mana-nun ana bi-bain-iki-ki32, nunu-kain-ai. Parece que está pegando de novo. (O peixe) ia
Você espera, espera, espera, e (daí) percebe que pegando (a isca) e (o pescador) ia de novo
(a corda) está se mexendo de novo. puxando pra cá, pra lá (puxava pra lá, pra cá,
puxava pra lá e pra cá) e tun arrastou (o peixe)
10. he daun, daun, daun, unu puntes wa-tan-
até a praia tso, onde o deixou.
aya, mi-n nini-bidan-a hu-i-dan, nini-bidan.
E quando vai puxando he daun, daun, daun, 15. hati bi-nan-we, i-tan
você vai puxando prá lá, prá cá, e vai indo Vamos pegar só isso!, pensavam.
(em direção à praia) e continua puxando,
16. bu-pauni-bu-kiaki.
arrastando (o peixe) até a praia.
Levaram (muitos peixes).
11. toh, keti tsau, deda-kindan, xada-baun,
17. nuku-n beya xeamati-wen-dan yaix
tsau deda-kindan,
bipapi-dan, ha-wen kena-dan.
E toh (você o assenta na areia), tsau corta-
É nosso costume (de pescar) com o anzol cujo
lhe.
nome é dedinho de tatu.
12. menki-dan yaix bipapi-dan, menki-dan
18. haska wa-tan, hatu pima-kin itxa wa-xun,
xeamati menki-dan,
hatu pi-ma-kin ha-wen xau itxa wa-xun, puta-
O dedinho de tatu é esperto. O anzol é um
kin. Fazem assim: dão-lhes de comer (e por
excelente pescador.
fim, quando terminam de comer), ajuntam
13. ana betsa keun-xun po, habias-tiu-di-dan, os espinhos de peixe e jogam fora.
puku-a, hakima-tan ik-a-tan,, puku-a.
19. ana baka bi xada katsi-dan, bi xada katsi33,
De novo, pega outra isca e enfia (no anzol) e
nuku yupan wa-mis-bu-ki, i-xun-dan,
Querem novamente pegar mais peixe, querem
31 Nesta passagem, ao trabalhar a tradução da narrativa com amontoar mais (peixes, mas se) ficam
o narrador, anotei as informações complementares, tanto panemas, dizem.
em espanhol como em caxinauá, que o narrador fornecia
ao reescutar a gravação. Dentre essas informações, ex- 20. baka xeamati-wen bi-a, ainbu himi i-kin pi-
plicou que o pescador puxava a linha para o seu lado, a-dan yupa-mis-ki, ana bi-a-ma-dan.baka
mas o peixe também, com isso o peixe ficou com o corpo
todo amarrado com a linha e, desse jeito, tentando se sal-
xeamati-wen bi-a, ainbu himi i-kin pi-a-dan
var, atravessava o rio de um lado para o outro. Disse ain- yupa-mis-ki, ana bi-a-ma, ma yupa wa-a-bu-ki,
da que alguém que está na margem do rio grita: nedi xaxu Se a mulher menstruada comer do peixe
bewe, aka ‘Traga a canoa para este lado aqui! disse’.
pescado com esse anzol, (o pescador) fica
O informante adicionou que quando o amigo (haibu) pe-
diu ao pescador que voltasse para a praia com a canoa, o panema e não pesca mais. Se a mulher
peixe novamente mergulhou (bitxi) todo enrolado com a menstruada comer do peixe pescado com esse
soca: hawen haibun xaxu beaya ana bok bitxibainkin ‘O anzol, (os pescadores) ficam panemas e não
amigo dele, ao pedir para trazer a canoa, bok de novo, o
peixe mergulhou levando o pescador para dentro do rio.’ pescam mais, (pois) já estão panemas.
O sufixo -bain associado a bitxi ‘mergulhar’ indica que o
peixe mergulhou abruptamente, puxando o homem rio
33 O narrador explica que o pescador tem cuidado com o
adentro.
osso do peixe, arrastando-o para jogar fora do rio e pon-
do-o na praia, em seguida volta ao rio para pegar mais
32 Isto é, espera pouco tempo e logo depois pega outro peixe. peixe.

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NARRATIVAS E O MODO DE APREENDÊ-LAS: A EXPERIÊNCIA ENTRE OS CAXINAUÁS 25

21. ha yupa wa-a-bu-n, yutxi yutxi-wen peixe para a superfície. Os peixes uns atrás
xeamati pukus a-kin, a-xun bi-bain-bidan34, dos outros iam mergulhando (e o anzol ia
Se ficam panemas, põem pimenta no anzol e pegando), pegava yapawan.
jogam-no n’água, (daí) puxam (o anzol) pra
29. nini-bidan (nini-bidan-kin, nini-bidan-
lá e pra cá.
kin) teh, tsok, deda-kindan,
22. nu-n duntan, sama-ke-i menki-mis-ki uxe e (o pescador) ia puxando, puxando, puxando,
bestitxai, binu-tan. puxando: teh, tsok cortou (o peixe) com o
Guardamos o peixe e jejuamos durante um machado.
mês, daí voltamos a ser excelentes pescadores.
30. ton tsek mananan-dan tsok tsau-ken.
23. ana puku-i ka-a unanxubida bi-iki-ki. (Depois) ton, tsek (o pescador) arrastou o(s)
Voltamos a procurar peixe, jogando o anzol peixe(s até) o barranco e tsok puxou(-o(s))
no rio e parece que rapidamente ele (o anzol) para o barranco.
pega (peixes).
31. nu-n mana-ai tsau-ken.
24. ha bi-bain-ai, mi-n a-bidan-ai, nini-kidan-kin, Esperamos sentados.
Ele (o peixe) puxa para o lado (do pescador).
32. ana ha bi-bain-iki-ki a-bidan-a rok hantse-
25. nini-bidan-a-kin, nini-bidan-a-kin, nini- ke-i-dan,
bidan-a-kin, nini-bidan-a-kin, nini-bidan-a- (O anzol) ia pegando novamente por todos
kin, ton, tsau deda-kin-dan, os lados, vai pra lá e volta (com peixe), rok e
Você vai puxando, puxando, puxando, (o pescador) tira o anzol da boca (do peixe).
puxando, puxando, puxando, puxando e daí
33. hanua baka unan-xu-ki, ma ha-wen (kexa
ton (pega o peixe), tsau corta-o com machado.
baxne-a, ka-xu-ki) ma hamabia,
26. haska wa-xun: tou mananan datan-tan, Agora o peixe conhece o anzol e, ao topar o
É desse jeito mesmo que acontece: tou (o anzol com a boca, ele vai embora, (pois) já
pescador) jogou (o peixe) na praia. está esperto.
27. ana habiaskadi wa-xun: pok ak-a, puku ak- 34. nu-n mana tsau-ken.
ai, po namakis puku-i-dan po, nua namakis Esperamos sentados.
pok. (Daí) refez tudo de novo: (põe a isca no
35. ana ha bi-bain-iki-ki a-bidan-a.
anzol e) pok joga-a no rio: po. Joga-a bem no
(O anzol) vai novamente pescando por aqui e
centro, po bem no meio do poço do rio: pok.
por ali.
36. tok hantse-ke-i-dan, hantse-ke-kain-a-ki.
28. (puku-i-dan) nunu-kain, bi-bain-iki-ki,
tok, (o peixe) tira o anzol da sua boca, tira e
nunu-kain-ai, bakawan xea-a, bakawan-nan-
vai embora.
dan, nunu-kain-ai, bi-bain-iki-ki yapawan-
nan-dan, 37. hanua baka unan-xu-ki.
(O anzol) mergulha aqui e ali, e vai O peixe já sabe que o anzol é para pegá-lo.
mergulhando aqui e ali. Daí vai trazendo o 38. ma ha-wen kexa baxne-a, ka-xu-ki, ma
ha-wen nabu yui-a-kin, ma baka unan a-xu-
ki, ana bi-a-ma, ana baka bi-a-ma-ken,
34 Cura-se o panemismo com pimenta colocada no anzol
Ele já está esperto e já contou à sua família
para pegar peixe novamente. Uma vez feita a dieta e pos-
ta a pimenta no anzol, o pescador volta a pescar. O pes-
cador, ao lançar a linha n’água, notou que o anzol voltou
a ser marupiara pelo fato de sentir que a linha puxava 35 Isto é, o peixe já conhece a astúcia do anzol e não cai
para o fundo do rio passou a puxá-la para o lado dele. mais na armadilha.

ar tigos
26 ELIANE CAMARGO

(de peixes). O peixe já conhece35o anzol e não narrador em relação ao que enuncia e
cai mais nessa armadilha. Não pega mais (a apontam os elementos que provêm do
isca). conhecimento tradicional que são do
39. hu-xun ma hadukun bi-a-ki, ma hadukun domínio coletivo.
bi-a be-xun, be-xun pi-pauni-bu-ki bakadan,
Antes (o peixe) vinha (perto do anzol) e pegava 7. LÉXICO BÁSICO DA NARRATIV
NARRATIVA
TIVA
(a isca). Antes (o anzol) pegava os peixes que
comiam (a isca). ana: de novo, novamente.
40. (bakawan bi-kindan haska wa-pauni-bu- baka: peixe.
ki). baka xeamati-wen bi-kindan, haska wa- bakawan: peixe (sp. grande).
pauni-bu-ki. baxne: esperto.
Era assim que acontecia antigamente quando bestitxai um (numeral).
os peixes mordiam a isca. Era assim que se bi: pegar; baka bikin ‘pegar peixe (pescar)’.
pescava com anzol. binika:: pegador, baka binika ‘pescador’(lit.pegador
binika
de peixe).
A partir dos dados lingüísticos e de suas bipapi: dedinho.
análises apresentadas, pode-se notar que datan: puxar.
cada língua, com o seu léxico, categoriza, deda: bater com machado (para matar).
organiza e conceitua não somente palavras, dispi: corda.
mas também organizações gramaticais e dutan: guardar, arrumar.
retóricas. Vimos em caxinauá que, entre as hadukun: antes, primeiro.
primeiras, eska e haska mostram uma hantse: tirar da boca.
sutileza semântica tomada pelo enunciador haska: assim, haska wa ‘fazer assim’, haska
em relação ao que enuncia. Com eska, ele wa-pauni-bu-ki ‘faziam assim’, ‘era
informa ter adquirido tal conhecimento assim que faziam’.
pela tradição oral, mas somente com haska himi: sangue, ainbu himi ikin ‘mulher
se responsabiliza pela versão que divulga. menstruada’.
Entre as segundas, os caxinauás evidenciam keti: assentar, deixar (na praia), arrastar algo
por meio de morfemas “mediativos” a e deixar em algum lugar.
posição que tomam em relação a mensagem kexa: boca.
que divulgam. O narrador mediatiza a mana: esperar.
informação, explicitando com -kiaki que menki: marupiara, com sorte para caçar ou
se trata de um conhecimento coletivo que pescar.
lhe foi transmitido e, por sua vez, ele está mexku: peixe (sp. pequena).
no papel de transmissor. Com -iki, que nabu: família.
remete a fatos em realização ou não namaki: no meio de.
realizados, o enunciador explicita que não nini: puxar, (ninin, conforme a variação
se responsabiliza pelo que enuncia. dialetal).
O entendimento de recursos lingüísticos nuan: poço; nuanwan ’poço grande’.
como esses permite-nos apreender melhor pi: comer.
a essência do texto, com suas sutilezas piti: comida.
semânticas. Como vimos, certas estruturas same: jejuar.
lingüísticas mostram a posição tomada pelo unan: conhecer.

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NARRATIVAS E O MODO DE APREENDÊ-LAS: A EXPERIÊNCIA ENTRE OS CAXINAUÁS 27

unaxubida: rápido, rapidamente. DESHAYES, Patrick e KEIFENHEIM, Barbara.


xeama: absorver, engolir; baka xeama ‘pescar Penser l’autre. chez les Indiens Huni
com anzol’. Kuin de l’Amazonie. Paris: L’Harmattan,
xeamati: anzol. 1994.
yaix: tatu canasta. ISA. Povos Indígenas no Brasil, 1996-
yapawan: peixe (sp. grande). 2000. São Paulo: Instituto Socio
yui: contar, dizer. Ambiental, 2001.
yupa: panema, sem sorte para caçar ou KENSINGER, Kenneth. The Way Real
pescar. People Ought to Live: Essays on the
Peruvian Cashinahua. Illinois:
8. BIBLIOGRAFIA Waveland Press, Prospect Heights,
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21, 1996a. p. 1-20. perspectivista da identidade e
CAMARGO, Eliane. “Valeurs médiatives en alteridade entre os Kaxinawa. Tese de
caxinaua”. In: GUENTCHÉVA, Zlatka doutorado em antropologia, São
(org.). Énonciation médiatisée, Louvain, Paulo: PPGAS/USP, 1998.
Paris: Peeters, 1996b. p. 271-284. MCCALLUM, Cecilia. “Morte e pessoa
CAMARGO, Eliane. “La découverte de entre os Kaxinawá”. In: Mana, n. 2/2,
l’amour par Hidi Xinu. Récit caxinaua”. 1996. p. 49-84.
In : Bulletin de l’Institut Français PALMER, Gary, B. Toward of theory of
d’Etudes Andines, 28(2): 1999a. p.249- Cultural Linguistics. Austin: Austin
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toxiques. Récit caxinaua”. In: Regards des
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CAPISTRANO DE ABREU, João. Rã-txa
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Sociedade Capistrano de Abreu, Livraria
Briguiet, 1941[1914].
CPI-ACRE. Shenipabu miyui, história dos
antigos. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2000.

ar tigos
28

cader nos de campo · n. 10 · 2002


29

O NOME “ÍNDIO”: PATR ONÍMICO ÉTNICO COMO SUPOR


TRONÍMICO TE SIMBÓLICO DE MEMÓRIA
SUPORTE
E EMERGÊNCIA INDÍGENA NO MÉDIO JEQ
EMERGÊNCIA UITINHONHA – MINAS GERAIS1
EQUITINHONHA

IZABEL MISSAGIA DE MATTOS*

resumo: O ensaio aborda a emergência étnica de uma família abstract: This paper deals with the ethnic emergence of an
extensa na região do Vale do Jequitinhonha a partir da extended family in the area of Vale do Jequitinhonha River. This
intensificação – incidente tanto sobre o plano pessoal como o process took place, both in the personal and social levels, as the
social – de significados para o patronímico Índio, também finding out of Indian patronymic, also used in the area for
utilizado regionalmente como um designativo étnico na ethnically labeling out people. The aim is to follow analytically a
identificação de seus portadores. Trata-se de acompanhar process through which names occur as symbolic carriers of
analiticamente um processo através do qual os nomes constituem meaning, which make it possible for the actors to critically
veículos simbólicos que possibilitam aos atores a elaboração elaborate social vectors present in the field of interethnic relations
criativa de traduções das forças presentes no campo das relações of categories for the self-identification of Brazilian Indians. For
interétnicas para as categorias da auto-identificação indígena. this research, several methodological approaches have been used
Para conduzir a investigação, diversas abordagens teóricas foram in a complementary way, according to procedures for onomastic
utilizadas de modo complementar, de acordo com a metodologia studies. These studies deal with proper names, based on the
característica da onomástica - que se dedica ao estudo dos nomes epistemological presupposition that there is a close relationship
próprios, partindo do pressuposto epistemológico da existência between the name and the Person. The hypothesis, both
de um estreito vínculo entre o nome e a Pessoa. A hipótese, psychoanalytical and anthropological, of a “fetishism of a name”
tanto psicanalítica quanto antropológica, do “fetichismo do has been taken to a social arena where interethnic relations have
nome”, foi levada para um campo social onde as relações historically been dealt with in a confliting way. This takes place
interétnicas são travadas, historicamente, de forma conflituosa, on the inside of a “struggle of taxonomies”, here as a movement
no interior de uma “luta de classificações” que ora se apresenta of the re-shaping of social vectors, after the setting up of a
em movimento de reconfiguração de forças, a partir da instalação Pankararu settlement in the rural area of Aracuai- State of Minas
de uma aldeia Pankararu na área rural do município de Araçuaí Gerais, Brazil, which was made possible by the action of the
– MG, viabilizada pela pastoral indigenista da Diocese local. Indian Workforce from the local Diocese.
palavras-chav
palavras-chave:e: Antropologia dos Nomes Pessoais; key-wor ds: Anthropology of Personal Names; Indian
key-words:
História Indígena; identidade; etnogênese. History; identity; ethnogenesis.

* Doutoranda da Área Sociedades Indígenas: Etnologia, Políti- É bem isto, efetivamente, que nos deixam
ca e História. Doutorado em Ciências Sociais. Unicamp.
entrever as mudanças de nome: a maneira
1 Trabalho final do curso “A Antropologia dos Nomes Pessoais: pela qual o patronímico faz ligadura na
Indivíduo, Pessoa, Identidades” ministrado pela Profa. Dra. Aracy
Lopes da Silva. Unicamp. 2º Sem. 1998. Comunicação apre- identidade, para si e para os outros, para o
sentada no Fórum de Pesquisa sobre Onomástica, XXII Re- melhor e para o pior, protegendo ou
união da ABA – Brasília – julho de 2000. Agradeço, in memo-
riam, à leitura e às sugestões da saudosa Profa. Aracy, bem como
aprisionando, num signo que pode tornar-
a Thais Gontijo, psicanalista do Aleph, Psicanálise e Transmis- se sinal, estigma ou assinalamento. (...)
são, pelas indicações bibliográficas. À família Índio (hoje con- Receber um nome é achar-se humanamente
hecida como Aranã) e à Geralda Soares, indigenista do Cedefes
(Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva), agradeço, acolhido na ordem instituída das gerações,
respectivamente, a acolhida e as discussões acerca deste trabal- mas é igualmente se achar classificado,
ho, realizado com o apoio da Fapesp.
30 IZABEL MISSAGIA DE MATTOS

sobreclassificado ou desclassificado, às vezes. indivíduo em seu grupo”. Mauss (1979), em


Sob a empresa de hierarquias sociais ou das seu ensaio sobre “A Alma, o Nome e a Pessoa”
paixões nacionais, a vaidade pessoal ou a - no qual aponta Leenhardt como precursor
vingança coletiva fazem patronímico, através da investigação do tema sob abordagem
do índice de origem, do indicador de um sociológica -, demonstra, de acordo com essa
valor ou d’uma natureza. perspectiva, a importância analítica da
Nicole Lapierre2 confusão existente entre o nome e a pessoa
em diversas sociedades, ilustrando com
I NTRODUÇÃO
NTRODUÇÃO
registros etnográficos de sociedades distintas
como o nome pode determinar toda a vida
O filão simbólico do conjunto dos termos do indivíduo, definindo sua posição em seu
de apelação - sejam nomes próprios, apelidos, clã, em sua família e na sociedade.
patronímicos, etc. - tem demonstrado sua O campo antropológico de estudo dos
fecundidade na abordagem de temáticas nomes pessoais e de família, nos últimos vinte
cruciais para a Antropologia, como a das anos, tem sido preferencialmente abordado
identidades de indivíduos e grupos, que será no interior das discussões sobre a Pessoa; a
discutida neste artigo. tendência, porém, de vincular-se
De fato, o estudo dos nomes abre teoricamente a discussões diversificadas -
“janelas” entre as ciências sociais e as como, por exemplo, a abordagens sobre
disciplinas afins, como a lingüística, a etnicidade - começa a se fazer notar, o que
história, o estudo das relações de gênero ou faz com que a onomástica se caracterize
a psicanálise3. É bom lembrar que essas atualmente como um campo “propício à
disciplinas, por sua vez, há muito vêm compreensão de dinâmicas e processos sociais
contribuindo com a antropologia em um e identitários negociados em contextos
contínuo diálogo suscitado por temas que específicos” (Lopes da Silva, 1998).
exigem abordagens interdisciplinares. A Este ensaio se destina a abordar questões
abordagem, por exemplo, da noção de relativas ao processo identitário de um grupo
Pessoa - intimamente articulada à familiar a partir da utilização da onomástica
problemática levantada pelo estudo dos na interpretação do seu patronímico étnico,
nomes -, se considerada um “fenômeno so- em suas dimensões histórica, social e
cial total”, deve englobar dimensões que vão simbólica. As questões a serem apresentadas
dos seus aspectos físicos aos aspectos e desenvolvidas neste trabalho, a partir da
psíquicos e sociais. discussão sobre os significados sociais e
A Escola Sociológica Francesa - em seu simbólicos do patronímico “Índio” tanto para
programa baseado na suposição da os indivíduos isoladamente quanto para o
determinação social das categorias de grupo familiar que o porta, se colocam, então,
pensamento - veio demarcar o campo de no campo da constituição das identidades que
estudo do significado dos nomes na os nomes revelam e conformam.
designação “das posições especiais do Os nomes serão considerados aqui em sua
dimensão de representação simbólica - na
2 LAPIERRE, Nicole. Mudar de Nome. Paris: Stock, 1995 medida em que dizem respeito à gênese so-
p. 177 apud Porge (1998).
cial da percepção da Pessoa - e, ainda, em sua
3 Ver Lopes da Silva (1984: 237). dimensão processual e empírica - uma vez

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O NOME “ÍNDIO”: PATRONÍMICO ÉTNICO COMO SUPORTE SIMBÓLICO DE MEMÓRIA E EMERGÊNCIA INDÍGENA NO MÉDIO JEQUITINHONHA – MINAS GERAIS 31

que seus portadores os manipulam conhecimento nativo (Sanchis,1998) - em


criativamente em virtude dos valores um movimento simultâneo no qual atuam
identitários que eles veiculam e que, na forças no sentido de fora (exógena) para
prática, tornam-se negociáveis de acordo com dentro, as quais, por sua vez, interceptam
os significados estabelecidos relacionalmente. forças que atuam no sentido contrário, de
Ambos os aspectos - representação e dentro (endógenas) para fora.
processo - estão envolvidos na produção de O processo de etnogênese a ser aqui
identidades e encontram nos nomes meios descrito, a partir da manipulação dos
que tornam possível sua realização. significados do nome familiar “Índio”,
A continuada reflexão sobre a questão da conforma-se, assim, de maneira a articular
identidade tem demonstrado sua premência as circunstâncias históricas aos fatores
no âmbito dos estudos antropológicos, ainda propriamente simbólicos, que determinam
que sejam destacados, nas críticas e seu “fetiche” e seu estigma.
discussões sobre o conceito, antagonismos
que opõem os diferentes pontos de vista para VERTENTES TEÓRICAS E INTERDISCIPLINARIDADE
ERTENTES
a sua apreensão - seja quando observado à NO ESTUDO DOS NOMES
luz de um enfoque histórico, processual, ou
sob o olhar da etnologia (Vilaça, 2001). Os estudos sobre o nome tem se
A análise de Manuela Carneiro da Cunha polarizado em torno de duas vertentes
(1985) sobre o fenômeno, por sua vez, teóricas: uma “substancialista” - assim
demonstra como a identidade se constitui considerada por enfatizar a idéia da
enquanto “estratégia de diferenças” existência de um vínculo mágico entre o
referenciada no presente, na interação nome e seu portador, que vigora nas mais
sistêmica entre grupos, e não em remotas diversas sociedades humanas 4 - e outra
tradições. A autora evidencia seu duplo relacional, posto que enfoca os nomes como
aspecto de contrastividade e virtualidade, o categorias de classificação em um
que inviabiliza sua apreensão sob uma determinado código, apreensível apenas pela
perspectiva “substancialista”, à qual sua posição relativa às outras categorias.
escapariam as constantes recomposições e Ora, se, por um lado, o caso da família
“reinvenções” que tanto a caracterizam Índio, a ser descrito e analisado neste estudo,
enquanto processo. oferece rendimento a uma abordagem de
O modo como a identidade é aqui viés “substancialista”, em decorrência do
abordada pretende englobar o fenômeno em fetiche - esse vínculo mágico entre o nome
seu dinamismo, enfocando as imagens e seu portador - que se acrescenta à
relacionadas à indianidade - que se ajustam subjetividade daqueles nomeados, que, por
ao patronímico “Índio” tomado como
veículo simbólico - que são negociadas por
4 De acordo com as hipóteses psicanalíticas, sociologizadas
indivíduos com elas identificados em seus por Bernard Vernier (1989), que buscou sua demonstração
diferentes contextos de interação. Considero através de análises estatísticas e biográficas sobre escolhas
afetivas baseadas no nome, “O nome, o sobrenome, as
ainda que as identidades “reinventadas” só letras que são pronunciadas mais fortemente, funcionam
podem, de fato, “pegar”, tornando-se como signos que são decodificados pelo inconsciente e
coletivas, quando “descobertas” dentro das interpretados em uma lógica substancialista, como
informações sobre a própria natureza do portador assim
pautas re-conhecíveis do sistema de identificado”.

ar tigos
32 IZABEL MISSAGIA DE MATTOS

causa desse nome, se sentem, de fato, ordem alfabética, eles têm a “sorte” de seus
“indígenas”, por outro lado, não pode ser nomes portarem, as mesmas iniciais5. Não
compreendido senão no interior de uma parece ser absurdo, seguindo a direção
situação interétnica, que o qualifica - apontada pelo autor, pensar de forma
juntamente com os que partilham o mesmo semelhante em relação à identificação entre
designativo étnico - enquanto alteridade, de pessoas com o mesmo sobrenome, pois um
acordo com uma lógica que atribui ao ser vínculo “mágico” parece atuante na
índio valores relacionais. delineação de uma etnicidade que, ao assim
O exercício de articular a dimensão definir-se, passa a ser carregada de valores
“substancialista” à “relacional” - no caso do de caráter estigmatizante, provenientes de
patronímico “Índio” -, apesar de uma situação relacional, interétnica.
aparentemente baseado no paradoxo de um O nome “Índio” que esses indivíduos
“fetichismo em movimento”, justifica-se na carregam - seja como patronímico que
medida em que está orientado no sentido compõe a sua “assinatura”, seja como
de superar oposições rígidas - esforço que qualidade indígena inerente à sua Pessoa -
crescentemente se impõe a uma reflexão pode caracterizar, de acordo com os
antropológica desafiada pelas fronteiras, contextos interétnicos em que se inserem,
consideradas tanto em seu sentido histórico significados diversos para a ação política, de
e social quanto simbólico (Lopes da Silva, assujeitamento ou resistência. Em todos os
2001: 23). A articulação dinâmica entre casos, um signo do destino parece estar
essas diferentes abordagens parece, de fato, inscrito no nome.
interessar a uma Antropologia dos Nomes Bernard Vernier (1989:04), em sua análise
Pessoais que visa “captar a dimensão das escolhas matrimoniais na ilha grega de
processual e criadora das práticas Karpathos, demonstra, estatisticamente, a alta
onomásticas e seu impacto sobre a constante incidência de “escolha de objetos incestuosos
redefinição do universo sociocultural onde tendo como suporte os nomes” [como por
têm vigência” (Lopes da Silva, 1998). exemplo, a freqüência de cônjuges com o
Ambas as vertentes para o estudo dos mesmo nome ou cujos nomes têm a mesma
nomes - ou seja, a “substancialista” e a inicial do nome da mãe(pai) ou da irmã(o)],
“relacional” não parecem ser, de fato, o que comprovaria a hipótese da existência
excludentes. Bernard Vernier (1989), a partir de “fetiche” ou “substancialismo” do nome
do estudo das relações de afinidades nas famílias estudadas. Para ele, “o
construídas sobre a sustentação simbólica substancialismo do nome está também
dos nomes próprios - inicialmente na ilha presente naqueles que vêem um signo do
grega de Karphatos e posteriormente entre destino em seu nome”.
as “boas” famílias do Norte da França - De acordo com a interpretação
observou como o pensamento substancialista
pode estar articulado ao pensamento
relacional: uma relação de afinidade entre 5 “E de fato, não se pode excluir totalmente que o pensa-
mento substancialista seja ao mesmo tempo um pensa-
indivíduos - como ele estatisticamente mento relacional, posto implicitamente que as diferenças
demonstra - pode ocorrer quando, de natureza entre dois indivíduos têm algo a ver, mesmo
submetidos por exemplo a práticas escolares que seja em fração ínfima, com a distância que separa as
iniciais dos seus nomes dentro do alfabeto”. (Vernier,
de chamada ou classificação que utiliza 1989: 06)

cader nos de campo · n. 10 · 2002


O NOME “ÍNDIO”: PATRONÍMICO ÉTNICO COMO SUPORTE SIMBÓLICO DE MEMÓRIA E EMERGÊNCIA INDÍGENA NO MÉDIO JEQUITINHONHA – MINAS GERAIS 33

psicanalítica de Erik Porge (1998:16), o estes autores, “de fato, nomes e práticas de
patronímico, bem como o prenome, nomeação são uma das maneiras mais
implicaria sempre uma determinação ex- importantes através das quais tais processos
terna, antecessora do sujeito: “o nome de identificação social são efetuadas”.
próprio” - diz Porge - “divide o sujeito, pois Em estudo sobre a manipulação de
quando o sujeito quer agarrar sua identidade identidade através do nome entre os
através do seu nome próprio, ele aí encontra macaenses eurasianos, estes autores -
uma determinação exterior que o ultrapassa partindo de uma perspectiva que vê a cultura
e que faz obstáculo à auto-apreensão de sua como “um processo dialético unificado de
identidade. (...) É o que se traduz por no- produção coletiva e subjetiva” (Sangren apud
men omen, o nome fixa o destino”. Pina-Cabral & Lourenço, 1993: 02) - se
A importância do nome na definição da propuseram a descrever o contexto
subjetividade tem sido investigada e emocional e experimental propício para tais
demonstrada em pesquisas que buscam ar- mudanças, que levaram à rejeição do próprio
ticular hipóteses da psicanálise e da patronímico.
sociologia. Bernard Vernier (1989:12), em
sua pesquisa realizada na França e na Grécia, Este problema de mudança de
concluiu que “a ordem de nascimento sendo sobrenome tem profundas raízes na história
igual, as escolhas [afetivas] ditas narcísicas Macaense. Desde 1841, o governo da
são ligeiramente mais altas quando ego tem Dinastia Qing proibiu todos os sujeitos
o mesmo nome de seu pai de mesmo sexo.” chineses de conversão ao catolicismo. Isto
Daí adviria sua constatação de que o significa que, até então, todos os chineses
processo identificatório desenvolvido na convertidos tinham que abdicar de suas
criança pela nomeação constitui um dos identidades étnicas chinesas: eles cortavam
mecanismos mais escondidos de habitus6. seu hairpiece7 (então simbolizando o fim de
Ao analisar as práticas de nomeação en- sua aliança com os Qing), eles vestiam
tre os macaenses de origem européia, João roupas ocidentais, eles adotavam um nome
de Pina-Cabral e Nelson Lourenço (1993), português, e eles eram tomados pela
exploram a relação entre identidade pessoal comunidade portuguesa - apesar da
e identidade étnica no contexto de discriminação subsequente que eles sofriam
transformação da rede de diferenciação por parte desta comunidade também
étnica decorrente das mudanças no sistema depender do papel que eles desempenhavam
político-administrativo de Macau. Para isso, na vida da cidade. Esta opção, no entanto,
lançam mão da noção de estigma tal como envolvia um estigma profundo. Aos olhos
trabalhada por Goffman, ou seja, como “a da moralidade confuciana chinesa, esta
situação do indivíduo que é desqualificado pessoa tinha cometido os mais graves dos
de aceitação social total” (Goffman apud pecados contra a piedade filial.
Pina-Cabral & Lourenço 1993:12). Para (Pina Cabral & Lourenço, 1993: 26-27)

6 “Em si mesmo, o costume de dar ao recém-nascido o nome


de um parente faz desenvolver na criança um processo iden-
tificatório. Trata-se de um dos mecanismos mais comuns da 7 Segundo o Oxford Dictionary, “hairpiece” teria o sig-
reprodução do habitus e indiretamente da ordem social das nificado de uma espécie de implante artificial de cabe-
sociedades concernidas.” (Vernier, 1989:03). los, aplicado sobre o natural.

ar tigos
34 IZABEL MISSAGIA DE MATTOS

Na situação descrita e analisada pelos três filhos8 . Um deles, Pedro Índio, conhecido
autores, o recurso da interdisciplinaridade é também como Sangê, transformou-se no
largamente utilizado, uma vez que a patriarca da família cuja trajetória do nome
compreensão do processo histórico é um dos pesquisamos.
principais integrantes da análise Estudos sobre os nomes familiares, por sua
propriamente antropológica de manipulação vez, têm demonstrado como estes são
étnica através da estratégia de mudança do ferramentas para a apreensão de “crenças,
nome. Já a categoria analítica “estigma” religiões e tradições”, uma vez que
permite apreender a pressão emocional que “representam um ponto de convergência de
gera um contexto adequado para tais fenômenos biológicos, culturais e históricos
mudanças, o que nos remete a outra envolvidos na gênese e na mudança das
fronteira disciplinar: a configuração de uma populações” (Azevedo, 1980:360).
identidade pessoal “deteriorada”, que o Na memória do grupo familiar, a
estigma supõe, é objeto por excelência de imagem de Mané Índio, carregada de
estudos da psicologia, notadamente aquela atributos de coragem, é representada
que se dedica às origens sociais de distúrbios como uma figura que desafiou o
emocionais. processo de escravização. Seus atos de
No caso dos Índios - como são conhecidos f o r ç a e r e b e l d i a s ã o re l a t a d o s e
os indivíduos da família aqui enfocada quando re f o r ç a d o s p o r s e u s f a m i l i a r e s . O
evocados em conjunto -, o estigma social patronímico parece constituir, pois,
experimentado por alguns de seus portadores mais um ato de afirmação de sua
se manifesta em determinados contextos diferença, na medida em que os outros
extrafamiliares, a partir de sua identificação índios que também teriam vivido o
como “bichos-do-mato”. Esse estigma passa, mesmo processo de “desarraigamento”
posteriormente, a se inscrever no espaço não teriam chegado a deixar inscrito o
intrafamiliar, e se expressa na recusa de alguns nome de sua origem étnica na
de seus membros de transmitir seu nome para descendência, como Mané Índio fez.
as futuras gerações, o que os faz burlar a regra Esta é, em todos os casos, a versão de
de transmissão do patronímico e adotar o de seus netos e bisnetos que, como ele, se
outrem. s e n t e m n a l i b e rd a d e d e o u t r a v e z
A interpretação dos significados de ser (da q u e r er e m , o u n ã o , i n s c r eve r e s s e
família) Índio, na situação histórica enfocada, símbolo-étnico-patronímico “Índio”
será relacionada, ainda, à memória social
relativa à origem da família. Segundo
interpretações fornecidas pelos integrantes da
família, a situação de mudança de nome é 8 Esta versão conjectura que o casal de crianças
verificada no momento do surgimento do indígenas trazido de Itambacuri seriam, na verdade,
irmãos. Porém, em versão colhida posteriormente,
patronímico. O primeiro Índio, chamado o menino Manoel Índio teria vindo sozinho de
Manoel, teria vindo das matas do Itambacuri, Itambacuri, unido-se em matrimônio com uma
mulher negra. A dispersão das crianças indígenas
vale do Rio Doce, e sido adquirido ainda entre os “nacionais”, em todos os casos, foi uma
menino por um poderoso “coronel” da região, prática amplamente utilizada pelo indigenismo
juntamente com uma menina indígena, com “civilizacional” no período, o que torna
surpreendente não a “emergência” étnica deste
quem mais tarde teria se casado e concebido grupo, mas a exclusividade deste caso.

cader nos de campo · n. 10 · 2002


O NOME “ÍNDIO”: PATRONÍMICO ÉTNICO COMO SUPORTE SIMBÓLICO DE MEMÓRIA E EMERGÊNCIA INDÍGENA NO MÉDIO JEQUITINHONHA – MINAS GERAIS 35

em sua descendência, como sinal de e à fé10 nele implicadas. De acordo com Jacques
resistência e memória 9. Lacan (1971) “O pai é um termo da
A abordagem do problema levantado - ou interpretação analítica. A ele se refere alguma
seja, o dos significados sociais e simbólicos do coisa” (apud Porge, 1998: 8). A partir daí, Erik
patronímico “Índio” como elementos Porge (1998: 09) conclui que “se o pai não é
integrantes da identidade pessoal e coletiva de senão referencial, os nomes para designá-lo são
seus portadores -, segundo a vertente os nomes de relação ao pai. (...) O Nome-do-Pai
“substancialista” torna possível o diálogo com não é o nome próprio do pai, ainda que não seja
a psicanálise - a qual, por sua vez, vem enfatizar sem concernir-lhe. Ele é o nome próprio ao pai
a preeminência do pai na constituição da como nome, nomeado e também nomeante, e
realidade psíquica. A vertente “substancialista” o nome do conjunto dos nomes do pai”.
destaca, pois, a existência de um princípio do O Nome-do-Pai constitui, segundo a leitura
fetichismo do nome, ou seja, de um laço psicanalítica, um conjunto de referências que
indissolúvel entre o nome e a pessoa que o possibilita a entrada do sujeito no mundo do
carrega. A presença de um estreito laço entre simbólico, na medida em que o remete à Lei.
um nome e seu portador é, de fato, verificável Para Lacan (1979: 173) o Nome-do-Pai
em diversas sociedades onde o nome participa representa, desde os tempos “primordiais”, o
da forma íntima da pessoa, ou seja, ele (o suporte da função simbólica que identifica o
nome) vale por ela (a pessoa). Para Bernard sujeito à figura da lei, a qual, em última instância,
Vernier (1989:03), nessas sociedades, “nomear instaura a ordem humana por meio da interdição
é evocar, tomar posse (...). Agir sobre o nome do incesto (ou da castração simbólica, no nível
é agir sobre seu portador”. Este princípio, no psicanalítico). “A lei primordial” - diz Lacan - “é
entanto, de acordo com a argumentação por pois aquela que, regulando a aliança, sobrepõe o
ele desenvolvida, é generalizável para qualquer reino da cultura ao reino da natureza entregue à
sociedade. lei do acasalamento”11.
O conceito freudiano de Nome-do-Pai - que 10 “O pai é um nome cujo referente não é garantido por uma
não coincide com o de patronímico, mas que verdade de experiência, ele é garantido pela fé na nominação
inevitavelmente lhe concerne - é, por sua vez, deste nome. (...) A incerteza estrutural sobre a paternidade
torna incontornável sua abordagem pela fé na palavra que
utilizado na psicanálise em alusão à religiosidade nomeia o pai. Daí o termo Nome-do-Pai.” (Porge, 1998: 8)

9 Alguns dados obtidos após a elaboração deste estudo me 11 Não é objetivo desse estudo discorrer sobre a inspiração levi-
pareceram extremamente surpreendentes: ao pesquisar, straussiana subjacente à concepção de um “inconsciente
pois, os patronímicos indígenas em documentos do antigo estruturado como linguagem”, elaborada por Jacques Lacan. Nem
Aldeamento Central Nossa Senhora dos Anjos de há espaço, aqui, para o resgate de uma antiga discussão entre
Itambacuri, deparei-me – dentro da gama amplamente antropologia e psicanálise sobre a possibilidade de um universal
diversificada de sobrenomes de origem étnica (Potén, humano, como o postulado pelo “complexo de Édipo”, tal como
Potão, Aranã, dentre outros) – com o registro de matrícula concebido por Sigmund Freud. Discussões como estas se
da menina Djanira Índia de Souza, do grupo étnico encontram bem desenvolvidas na abordagem comparativa sobre
botocudo conhecido como Aranã, cujo pai, então já o “Édipo Africano” feita por Ortigues (1989), em que os autores
falecido (1914), constava com o nome de Manoel Índio puderam esclarecer detalhadamente como “o incesto materno do
de Souza. A tendência ao desaparecimento dos referidos qual fala metaforicamente a psicanálise é algo muito mais
sobrenomes étnicos (supostamente em função do estigma elementar do que a diversidade das instituições familiares. (…)
social que lhes são associado) é percebida já no período Em todo lugar o problema é o mesmo, qualquer que seja a maneira
de funcionamento do Aldeamento de Itambacuri. Uma de resolvê-lo: consiste no fato de que a diferenciação sexual entre
das raras exceções parece ter sido o nome Índio. A lógica menino e menina inscreve na vida emocional uma construção
da miscigenação que envolveu o indigenismo capuchinho simbólica das relações pessoais, e que a análise desta construção
parece ser a mesma que implicou o desaparecimento da faz aparecer uma base afetiva da ética fundada na relação do
língua e dos sobrenomes étnicos botocudos (Mattos, ser humano com sua origem. (Ortigues, 1989: 282-283 – ênfases
1999). originais).

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36 IZABEL MISSAGIA DE MATTOS

Mané Índio, ao nomear sua descendência metodológicos para essa abordagem


com a história de sua origem, teria, pois, interdisciplinar, o autor sugere os recursos
promovido, do ponto de vista da psicanálise, da biografia e da estatística. No entanto, com
uma mudança de nome que “pode mesmo relação ao método biográfico, ele pondera
ter o efeito de reintegrar o sujeito em sua que as demonstrações das hipóteses
história e sua filiação” (Porge, 1998:10). psicanalíticas podem estar longe de serem
Casos como esse, geralmente decorrentes de compatíveis com a linguagem e o rigor
perseguição do Estado ou genocídio, levam típicos das análises de cunho sociológico. A
Erik Porge (1998: 10) a concluir que “os principal limitação de sua própria
laços que existem entre nome próprio do investigação residiria, segundo sua leitura,
pai e Nome-do-Pai não querem dizer (...) nessa incompatibilidade de linguagem: de
que não se deve mudar de nome, sob pena fato, na interpretação de Vernier, as
de trazer danos à eficácia do Nome-do-Pai”. generalizações ficam restritas aos resultados
Ao contrário - como no caso analisado do estatísticos, permanecendo os estudos de
armênio Jean Clusat, que mudou seu nome caso e biografias apenas como apêndices que
voluntariamente ao migrar para a França ilustram curiosamente as tendências
após ter sido expropriado do seu observadas estatisticamente.
patronímico por causa da perseguição dos Tendo em vista a profunda significação
Turcos -, o novo nome pode representar “um do patronímico enfocado neste ensaio, tanto
verdadeiro signo de emancipação, uma para a subjetividade quanto para a situação
liberação que finalmente tornava possível a histórica sob análise, o conceito psicanalítico
transmissão, até aí bloqueada pelo pavor” de Nome-do-Pai foi utilizado no sentido de
(Lapierre apud Porge, 1998: 12). iluminar interpretações das informações
Tendo em vista a discussão realizada, o orais e etnográficas colhidas em um curto
presente estudo enfocará a relação entre a período de pesquisa de campo.
memória social e o patronímico do grupo Aqui também corre-se o risco de transpor
étnico, visando instigar novas questões no fronteiras que exigem estreitos limites. Esta
campo do estudo dos nomes em opção, no entanto, tem a ver com a natureza
antropologia e apontar algumas de suas do tema recortado para análise. Todavia, a
possibilidades de desenvolvimento. A pretensão deste trabalho foi apenas a de
interdisciplinaridade almejada aqui se trazer um exemplo da fecundidade teórica
explica: a origem étnica e a memória social aberta por esse campo de estudos que se nos
às quais esse sobrenome reporta têm levado descortina, como um convite para futuras
seus portadores a atribuir-lhe valores e revisitas.
significados que dizem respeito tanto à sua O nome “Índio” constitui uma realidade
identidade pessoal quanto social. muiltifacetada. Como adjetivo do prenome,
Bernard Vernier (1989) procura adequar qualifica seus portadores como “bichos-do-
métodos da sociologia e da psicanálise à mato”, estigmatizando-os, portanto. Como
onomástica, apontando a necessidade, substantivo, torna o próprio nomeado
presente nas ciências sociais, de produzir símbolo da figura do índio, por ele
estudos sobre os nomes nos quais seja incorporado. A substantivação do sobrenome
possível um diálogo com teorias da - seu fetichismo - é experimentada pelo
psicanálise. Como instrumentos nomeado de tal forma que se reflete no

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O NOME “ÍNDIO”: PATRONÍMICO ÉTNICO COMO SUPORTE SIMBÓLICO DE MEMÓRIA E EMERGÊNCIA INDÍGENA NO MÉDIO JEQUITINHONHA – MINAS GERAIS 37

gênero: as mulheres parecerem tender a perspectiva relacional, a partir de uma


excluir o “signo do Índio” - tão associado relação de oposição, de polarização. Ora, o
aos valores de senso comum sobre a “bicho-do-mato” existe enquanto
masculinidade, como coragem, força e contraponto do cidadão moderno, habitante
potencial de rebeldia - de sua “assi(g)natura” das cidades, integrado à civilidade e ao
através de estratégias como casamento ou “progresso”; é nesse contraponto que as
pela não nomeação de suas filhas com o identidades pessoais dos portadores do
patronímico. Ou, de uma outra forma, sobrenome oscilam ambiguamente - entre,
apesar de assinarem o sobrenome sem flexão de um lado, uma forma de memória social
de gênero, como usualmente se faz, são baseada no valor do Nome do Pai (Índio) e,
designadas oralmente como “Índia”, termo de outro lado, uma forma de estigma - , o
que, em situações extra-familiares, que leva alguns dos nomeados a eliminar o
necessariamente acompanha o prenome, sobrenome, tão carregado de significados,
para precisar a identificação, o que serve para das gerações subseqüentes, enquanto outros
qualificar aqueles sujeitos também tendem a mantê-lo, valorizando, ao mesmo
etnicamente. tempo, o ser “índio”como uma espécie de
É bom lembrar aqui que o alto índice de etnicidade.
analfabetismo característico do Vale do A abordagem relacional do significado do
Jequitinhonha, muitas vezes faz com que o nome torna-se necessária, pois, como
nome próprio nem sempre coincida com o afirmam Pina-Cabral & Lourenço
registrado. Interessante, nesse sentido, é o (1994:120), “a identidade étnica funciona
caso de uma “correção” ortográfica realizada como estigma em todo contexto no qual se
por uma das filhas de Pedro Sangê em sua é forçado a interagir ativamente com pessoas
“assinatura” (registro civil). Ela teria “puxado de outro grupo étnico”.
o rabinho” da última letra do sobrenome,
transformando-se a si mesma, literalmente, F A M Í L I A ÍN D I O E FA M Í L I A C A B O C O:
em “‘Índia”, de acordo com o termo de SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS
apelação através do qual era conhecida na
prática. Este novo “patronímico” Para melhor situar a problemática
(transformado em “matronímico”) passou discutida, é melhor localizarmos e
a ser adotado no nome de suas filhas. historicizarmos os acontecimentos que
Apesar de o nome estar carregado de envolvem esses “Índios”. Para isso, é
valores e afetos, e ter até mesmo um caráter interessante compará-los aos “Cabocos”,
de “coisa” - uma vez que remonta à figura categoria étnica que se transformou em uma
“selvagem” do avô, aprisionado nas matas espécie de “patronímico-apelido” de outra
de Itambacuri, a quem a memória étnica/ família em interação histórica com a família
familiar atribui qualificativos de força e enfocada. Com “patronímico-apelido”quero
magia que se agregam, como um fetiche, ao dizer que o designativo étnico - também
nome de sua descendência - , a etnicidade fletido de acordo com o gênero - acompanha
que ele sustenta aponta para a necessidade o nome de cada um dos indivíduos da
de abordar essa atribuição de significados família, valendo como seu sobrenome em
estigmatizantes que, por sua vez, podem ser uma população de tradição exclusivamente
apreendidos tão-somente de uma oral.

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38 IZABEL MISSAGIA DE MATTOS

O nome “Caboco” traz em si uma indivíduo a ser registrado não pode fazê-lo
memória étnica, porém de uma situação de remetendo à sua filiação paterna, restando-
“disfarce” da condição indígena. Por isso não lhes apenas a confirmação do nome da mãe
carrega, como o nome “Índio”, o peso dos - o que aponta novamente para a função de
mesmos qualificativos, uma vez que significante-mestre do Nome-do-Pai, que se
pressupõe um maior grau de “domesticação” recobre, no inconsciente psíquico, de valores
ou mesmo “escravidão”. Talvez esse não e afetos por se originar da fé: pater semper
esteja, mesmo, tão concernido à função incertus est. (Porge, 1998: 8).
psicanalítica de Nome-do-Pai12, posto que, Ambos os nomes, no entanto, se referem
reduzido à sua oralidade, não chegou a se à realidade de um passado de escravidão
transformar em registro, ou “assi(g)natura”. indígena, presente na memória desse povo.
Prova disso é que o cognome familiar Parte da família dos Cabocos, assim como
extinguiu-se nas gerações mais novas, não da dos Índios, contatadas na pesquisa, vive
mais identificadas com o designativo étnico, na Fazenda Alagadiço, local de encontro de
termo de apelação restringido à geração dos suas histórias e antiga propriedade do célebre
pais, tios e avós. Coronel Murta, que possuía, entre seus
Tendo em vista também o alto grau de escravos, índios “comprados” de uma rede
arbitrariedade envolvido no registro de de tráfico de crianças que caracterizou a
determinados sobrenomes nos cartórios da colonização daquela região (Mattos, 1996).
região - que denuncia um exagerado poder Tanto no caso da primeira família quanto
de determinação destes sobre o registro dos no da segunda é obrigatório se referir à
nomeados - torna-se curioso observar o pessoa por meio de seu designativo étnico
registro do patronímico “Índio” em após o primeiro nome. Todos os oito irmãos
detrimento do cognome familiar “Caboco”. de Luzia Caboca, por exemplo, são
Talvez este seja ainda mais desqualificante conhecidos com o apelido “Caboco”
que o nome “Índio”, e sua pronúncia, por acrescido ao prenome, assim como seus pais.
isso mesmo, se restringe ao contexto rural, O mesmo ocorre com os Índios: a pronúncia
que lhe dá sentido, posto que esse grupo do sobrenome se impõe imediatamente após
familiar é historicamente identificado como o nome e, em muitos casos, substitui o
mão-de-obra desqualificada das grandes próprio prenome.
fazendas da região. A família dos Cabocos, não por acaso,
É importante também esclarecer que a mesclou-se à família Índio em uma sólida
maior parte tanto dos Índios quanto dos relação de aliança, fato que diz sobre
Cabocos de origem rural só foram estigma: Cabocos e Índios não parecem,
devidamente registrados após se tornarem assim, descriminarem-se através de
adultos, quando lhes foi exigido, por atribuições de identidades “deterioradas”.
motivos diversificados, alguma espécie de A partir do núcleo familiar composto por
documentação. Casos há em que o próprio Emiliana (caboca), Jóvi Índio e seus sete
filhos, moradores da Fazenda Alagadiço,
podemos penetrar inicialmente no universo
12 Segundo a psicanálise, ao Nome-do-Pai são atribuídas da análise onomástica aqui almejada, na
funções-chave no psiquismo como “a procriação, a in- medida em que evidencia as formas
terdição do incesto, a relação do significante à lei, a função
do nomear...” (Porge, 1998: 14). utilizadas na nomeação.

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O NOME “ÍNDIO”: PATRONÍMICO ÉTNICO COMO SUPORTE SIMBÓLICO DE MEMÓRIA E EMERGÊNCIA INDÍGENA NO MÉDIO JEQUITINHONHA – MINAS GERAIS 39

Nesse caso, todos os filhos têm o nome posto que, entre estes, a geração mais nova
“Índio” na assinatura, como gostam de frisar. não mais se identifica como cabocla, ou seja,
Emiliana afirma ter transformado seu de origem indígena. Os jovens Índios, no
sobrenome por livre escolha, adotando o entanto, demonstram vívido interesse pelo
“Índio” (como fez, afinal, com o próprio movimento indígena inaugurado na região.
marido “Índio”, o qual, sendo enteado da
irmã, era cuidado pela futura esposa quando C O N T E X TTO
O H I S T Ó R I C O- S I T U
UAACIONAL E
bebê). UTILIZ AÇÃO DO NOME
UTILIZAÇÃO “ÍNDIO”
O marido - filho do primeiro casamento
de Pedro Índio Sangê, e neto, portanto, de Algumas tendências sobre o uso do
Mané Índio, capturado nas matas do patronímico “Índio” foram observadas no
Itambacuri - “assina” Joverdil Índio de universo pesquisado em três situações
Souza; ela, no entanto, diz ter preterido o distintas: na Fazenda Alagadiço, no
sobrenome Souza - patronímico da mãe de município de Araçuaí ( MG); no “Campo”,
“Jóvi”, apesar de tê-lo curiosamente município de Cornel Murta (MG) e em
deslocado da posição habitual - por Barreiro, região industrial da capital mineira.
considerar “lindo” o nome “Índio”. Esse
fato, relatado na presença de sua sobrinha e a) A Faz
Faz enda Alagadiço
azenda
cunhada Terezinha Índia (ou Tereza Índio
Araújo, de acordo com sua “assinatura”), foi A Fazenda Alagadiço foi uma das
prontamente por esta interpretado: Emiliana propriedades da família Murta - poderosa
estaria identificada desde criança com esse econômica e politicamente na região. Sua
nome por ter sido “criada no meio dos área é de aproximadamente 1.800 alqueires.
Índios”, o que a fez “tomar amor por eles”, Herdou-a uma das filhas do Coronel Inácio
segundo a Índia. Murta que, não deixando descendentes,
O significado de Caboco como estigma, doou-a à Igreja Católica, em 1944. Jóvi
tendo tornado-se anacrônico no contexto da Índio chegou a trabalhar em suas terras,
configuração interétnica atual13, retoma, no tendo vindo para a região por causa do
entanto, outros significados a partir da relacionamento com os Cabocos - afins do
instalação de uma aldeia indígena na antiga Índios - que ali se encontravam. Ele próprio
Fazenda Alagadiço, que cria um novo foi criado em uma fazenda nas imediações,
contexto interétnico que tende a valorizar após a morte da mãe no parto de sua irmã,
as tradições e a indianidade, como veremos conhecida simplesmente por Caboquinha,
a seguir. de quem não se sabe notícias. O outro irmão
Essa revalorização étnica tende, contudo, também dispersou-se do grupo, tendo
a atingir mais aos Índios que aos Cabocos, posteriormente falecido.
As histórias do cativeiro que cercam a
Fazenda Alagadiço ainda hoje atemorizam
seus moradores. As almas que ali circulam
13 Este grupo familiar deveria ter, ainda na geração de Luz-
não dão paz a quem por ventura resolver
ia Caboca, um status social relacionado à sua condição passar uma noite em sua sede, hoje
de indígena, tomado, na região, por um tipo de gente a abandonada. Conta-se que na colocação da
ser domesticada, submetida a trabalhos pesados, escravi-
zada. cumeeira - uma tora de madeira muito

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40 IZABEL MISSAGIA DE MATTOS

pesada - três índios teriam morrido. As espanhola Manos Unidas com o apoio do
torturas dos cativos somam-se à memória CEDEFES (Centro de Documentação Elói
dos costumes, danças e músicas dos Ferreira da Silva).
“cativeiros”. A chegada das cinco famílias Pankararu
Seu Jóvi Índio ressente-se de ter tem provocado uma curiosa reação por parte
convivido pouco com o pai, Pedro Sangê, dos membros da família Índio que moram
memorável entre sua descendência por na mesma antiga fazenda, instigando-os à
dominar a leitura e a escrita - conhecimentos reflexão acerca de sua própria condição de
muito valorizados por sua raridade entre “alteridade”.
aquela população. Os seus dez irmãos do Travando relações próximas com os
segundo casamento do pai com a irmã de Pankararu, eles também os designam como
sua esposa (caboca) parecem ter tido mais a si mesmos: com o nome próprio acrescido
oportunidades de usufruir de seu convívio, do nome Índio, como se fosse um adjetivo,
em um sítio muito isolado, onde até hoje ou um sobrenome. Se consideramos que a
vive grande parte dos Índios da família. A perspectiva onomástica “substancialista”
localidade, conhecida como “Campo”, no (Vernier, 1989) mostra como a colocação
município mineiro de Coronel Murta, de vários indivíduos dentro de uma mesma
região do Médio Vale do Jequitinhonha, faz categoria linguística tende a criar entre eles
parte de um latifúndio da família Campos, um laço - sobre o qual se basearia o
hoje moradora da capital mineira. substancialismo do pensamento popular -,
No início da década de 1990, o Bispo de podemos entender como os Índios
Araçuaí decidiu promover uma “reforma” percebem os índios como a si próprios,
nas terras da Fazenda Alagadiço, após chegando a afirmar que nunca tiveram
algumas tentativas frustradas de ocupação. dúvidas em relação à sua própria identidade
Ela chegou a funcionar como patronato, casa indígena. Essa certeza a respeito de sua
de retiros e casa de freiras, mas nunca chegou origem e identidade étnica, por sua vez,
a ser produtiva. advém, em grande parte, da fé no
A “reforma agrária” efetuada consistiu em patronímico, superacrescentado de
titular lotes de terra para as famílias de sentimentos, memórias e afetos relativos à
trabalhadores que lá habitavam. O bispo, sua alteridade, inscrita no próprio Nome-
porém, foi mais adiante ao idealizar ali uma do-Pai.
aldeia para os índios Pankararu que Os Pankararu, por seu turno, também
habitavam o Posto Indígena Fazenda reconhecem os vestígios da presença indígena
Guarani, cuja etnia majoritária é Pataxó. A histórica na região. De fato, essa não se reduz
criação de uma reserva ecológica está à existência pretérita de índios escravizados
também em andamento no local. isoladamente. No século XVIII se tem
Os Pankararu ali se instalaram, em 60 notícia, nesse local, de um grande aldeamento
hectares de terra, em junho de 1994, conhecido como Lorena dos Tocoyós, onde
juntamente com suas esposas de outras os Tocoyós, de língua Maxacali, teriam vivido
etnias de áreas indígenas de Minas Gerais, submetidos à autoridade militar dos coronéis-
Pataxó e Krenak, casadas com dois irmãos fazendeiros, transformando-se lentamente em
Pankararu. Um projeto de beneficiamento canoeiros e trabalhadores rurais da região
da aldeia foi financiado pela ONG (Brandão, 1913).

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O NOME “ÍNDIO”: PATRONÍMICO ÉTNICO COMO SUPORTE SIMBÓLICO DE MEMÓRIA E EMERGÊNCIA INDÍGENA NO MÉDIO JEQUITINHONHA – MINAS GERAIS 41

As reações impulsivas de um filho de Jóvi ocorre com mais freqüência no meio urbano.
e Emiliana foram atribuídas pelo pai às Ao “Campo” (na realidade, Fazenda
qualidades indígenas das quais ele seria Campo Queimado, onde habitam os Índios
portador. Famoso por conhecer e receitar historicamente, como agregados), só se chega
plantas medicinais para todos os tipos de à cavalo. Para não se perder é preciso
males, esse jovem Índio tem pleiteado os perguntar onde moram os índios, e o local
mesmos direitos conquistados pelos será indicado. Lá se planta, se cria animais de
Pankararu em relação aos benefícios do pequeno porte e se caça, porém a água é pouca
projeto financiado pelas Manos Unidas. e a seca teêm castigado drasticamente a região.
Seus cabelos compridos e seu ofício de Os Índios consomem o que podem produzir
curador denunciam sua auto-percepção e vivem seu modo de vida sem depender da
enquanto Índio - ou seja, a afirmação de cidade. Os gêneros que precisam “importar”
sua diferença, o que remete novamente à da cidade, como o querosene das lamparinas,
ambivalência e ao fetichismo inerentes à sal, etc., são adquiridos aos sábados, dia de
condição de Índio. feira, onde se pode adquirir mercadorias por
Apesar de não haver uniformidade na meio de troca.
aparência indígena de todos os irmãos, a Um costume que os Índios do “Campo”
“assinatura” agrada a todos os que moram no compartilham com os demais é o uso da
Alagadiço. Os irmãos que foram para São bebida denominada “chamego” em suas
Paulo, apesar de também serem cognomeados reuniões festivas. Ela é feita a partir de uma
“Índios” nos seus respectivos empregos, planta corante, conhecida como “quiabinho”,
devido aos traços fisionômicos, preferiram garapa de cana e cachaça, como teria ensinado
não transmitir o nome para as novas gerações. Pedro Sangê. Nas cidades usam sucos de fruta
artificiais em pó para colorir e adoçar a bebida.
b) O
Oss Índios do “Campo
“Campo”” Todos parecem apreciar e mesmo as crianças
são incentivadas a experimentar.
O “Campo” sintetiza o “ideal étnico” dos
outros Índios dispersos pela zona rural e ur- c) O
Oss Índios da rregião
egião do Barr
Barr eir
arreiro-B
eiro elo
Belo
bana de Araçuaí, Belo Horizonte e São Paulo: Horiz onte
orizonte
lá se vive em choupanas de palha e se partilha
certos rituais, alguns aprendidos através de Além de patronímico, o nome “Índio”
Pedro Sangê, a quem são atribuídos muitos acaba por adquirir, em situações extra-
conhecimentos, artes e ofícios. familiares, características próprias a um
Dizer que grande parte dos Índios da apelido estigmatizante. Dessa forma, aqueles
família lá habitam se justifica: lá todos integrantes da família que foram habitar nas
mantiveram o patronímico em seus registros, periferias de Belo Horizonte e São Paulo
inclusive as crianças, o que é acabam sendo chamados simplesmente de
significativamente relevante para a perspectiva “Índio”, principalmente nos casos quando,
interpretativa aqui desenvolvida. Lá, o aliada ao nome, a aparência física também
estigma de portar no nome uma alteridade concorre para denunciar a ascendência
não ameaça os nomeados. O contexto em que indígena próxima.
interagem socialmente não exerce pressão no A família pesquisada em um bairro indus-
sentido de redefinirem sua identidade, como trial de Belo Horizonte descende do “Seu”

ar tigos
42 IZABEL MISSAGIA DE MATTOS

Jumá, apelido de Pedro Inácio Índio, o filho é, de fato, fronteiriça com o Estado da Bahia)
mais velho de Pedro Sangê, em seu segundo foi considerado pelo patrão como “bugre”
casamento. A esposa do Seu Jumá é filha de devido à sua aparência. Essa atribuição étnica
uma “cativeira” da Fazenda Alagadiço, que, vem constituir mais um elemento que
como todos em sua condição, inclusive os concorre, nesses indivíduos, para a
índios também considerados “cativeiros”, incorporação da figura do índio na elaboração
dormiam “apeados” (acorrentados pelos pés) da identidade, já baseada no valor simbólico
para não fugirem durante a noite. Outras expresso no patronímico.
práticas de torturas contra os “cativeiros” são Apesar do estigma étnico, a imagem do
relatadas, porém as estratégias de burlá-las pai, orgulhoso de sua ascendência, parece se
realizadas por Mané Índio são especialmente impor sobre a “degeneração” anunciada pelo
valorizadas na memória, como forma de nome. De fato, a identificação entre os
marcar a diferença étnica. homens da família ao “objeto” do
Dos catorze filhos desse casal, apenas a patronímico pode indicar, ainda, uma
metade foi registrada com o patronímico, partilha de estigma que propicia a superação
devido em parte à arbitrariedade dos de uma auto-imagem negativa através da
cartórios. Eles saíram do “Campo” ligação com o pai. Para Vernier (1989:05),
diretamente para a região industrial da capi- “dar a qualquer um o nome de uma pessoa
tal mineira, onde nasceu o último filho. (...) é um dos meios mais utilizados
O nome sempre foi motivo de “zoada” na socialmente para aproximá-los e criar entre
escola: a jovem entrevistada conta que era eles um laço fundamental. Trata-se de práticas
chamada de “Índio Canibal” ou “Índio simbólicas das quais se espera efeitos reais.”
Caipora” pelos colegas. Outras vezes as Mesmo assinando “Índio”, as mulheres da
pessoas tendiam a “corrigir” o estranho família são conhecidas pelo sobrenome Índia,
sobrenome, escrevendo-o “Inácio”, que se o que parece gerar um certo incômodo em
assemelha à grafia de “Índio” na escrita à mão, suas identidades de gênero. Uma das filhas
para aliviar o peso da diferença experimentada de Pedro Sangê, resolveu, por isso, “consertar”
por seus portadores. seu sobrenome e o das filhas, transformando-
Seu Jumá, que trabalha como vigilante o de uma vez para Índia - fato que de novo
noturno, apresenta em seus traços físicos o aponta para o fetichismo desse sobrenome,
seu estigma étnico. Aprecia, como o pai, o pois portá-lo significa impregnar a pessoa
fato de ser e parecer um Índio: conta-se que com as qualidades sonhadas. Vestir o nome
seu pai, que tinha vários apelidos, mantinha Índio é vestir a imagem de “outro”. É ser
comprido os cabelos pretos, para a diferente. Alguns suportam esse estigma,
curiosidade das pessoas da região. Contava outros não. Um estigma carregado de
que sua gente não se assemelhava aos índios masculinidade, que torna mais difícil a sua
“bonitos” da Amazônia, com os cabelos assunção/transmissão por parte das mulheres
muito lisos. da família.
A descendência masculina de Pedro Jumá A filha de Seu Jumá, por exemplo, gosta
parece manter a apreciação em torno da de se “fantasiar” de indígena em casa,
aparência indígena do pai e do avô. Seu filho, simplesmente para sentir-se mais de acordo
apresentado como “Bahiano” na obra em que com seu nome (sangue?). Já o seu marido e
trabalhava (a região de Minas de onde vem primo cruzado, no entanto, se ressente de não

cader nos de campo · n. 10 · 2002


O NOME “ÍNDIO”: PATRONÍMICO ÉTNICO COMO SUPORTE SIMBÓLICO DE MEMÓRIA E EMERGÊNCIA INDÍGENA NO MÉDIO JEQUITINHONHA – MINAS GERAIS 43

trazer o nome “Índio” em sua assinatura: sua aprofundar a análise nessa direção: a
mãe, Terezinha Índia, temendo a associação enunciação da necessidade de
do nome com a figura de “bicho-do-mato”, interdisciplinaridade deu-se no intuito de
preferiu não passar o nome para a pontuar perspectivas importantes para a
descendência. Com isso, afirma sentir-se não apreensão do problema: a identificação
tão indígena como a prima-esposa, que foi pessoal e étnica propiciada pela partilha
nomeada com o patronímico “Índio”. de um patronímico que veicula
Ter o nome “Índio” e ser indígena - aquele simbolicamente uma memória familiar e
primeiro pai, originário das matas de social.
Itambacuri, temido e mítico - é uma Nesse sentido, a contribuição da
associação quase inevitável para os homens psicanálise mostrou sua fecundidade ao
da família, fato que, por sua vez, remete ao apoiar grande parte das interpretações
princípio do fetichismo do nome, pois se ele contidas no texto acerca dos significados
significa a existência de um “laço indissolúvel do Nome-de (do)-Índio (Pai). Foi
entre o nome e a pessoa”, as qualidades possível, com isso, detectar a presença de
atribuídas ao nome acabam também por significados que se entrecruzam no nível
impregnar a pessoa que o porta. das subjetividades em ressonância com
Talvez pelo fato de a origem do nome ser significados atribuídos situacionalmente
atribuída à própria bravura do índio Manoel em diferentes contextos etnográficos em
que, num esforço de resistência, teria que os Índios têm que se haver com a
intencionalmente transmitido sua memória alteridade que o nome expressa, como
a seus descendentes, em forma de sobrenome. um fetiche que se acrescenta ao
Através dessa interpretação, os homens patronímico.
nomeados Índios parecem se orgulhar mais Por outro lado, para um aprofundamento
de carregarem os atributos de força e desejo da análise do fenômeno enfocado, torna-
de resistência nele implicados. Por isso, se diz se ainda necessário evidenciar o caminho
que aquele que não transmite o patronímico de dupla mão por onde os nomes passam
para seus filhos “é contra o Índio”, como a transportar novos significados.
garante seu Jóvi. Considerar a produção social de sentido
- neste caso, as traduções do patronímico
CONCLUSÃO
ONCLUSÃO inseridas em um novo contexto de
configuração das forças em jogo nas
Ângulos diversos de análise foram disputas de poder local - uma modalidade
utilizados na interpretação dos dados da “luta de classificações” (Bourdieu,
obtidos na pesquisa. A metodologia 1989), implicaria cotejar a produção de
utilizada em caráter experimental identidades regionais com os conflitos
baseou-se apenas na interpretação de travados nas relações materiais e
relatos orais. Uma pesquisa documen- simbólicas entre os que têm interesses em
tal poderia trazer novos dados tanto um determinado modo de classificação.
sobre a história dos Índios quanto sobre Aqui marcamos o limite deste trabalho,
o contexto interétnico em transformação bem como a possibilidade de futuras
histórica. interpretações.
Não houve, entretanto, pretensão de

ar tigos
44 IZABEL MISSAGIA DE MATTOS

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cader nos de campo · n. 10 · 2002


45

ETNIAS DE FRONTEIRA E QUESTÃO NA


FRONTEIRA CIONAL: O CASO DOS “REGRESSADOS” EM
NACIONAL
ANGOL
NGOLAA

LUENA NASCIMENTO NUNES PEREIRA*

r esumo: Este artigo trata dos ex-exilados abstract: This article deals with the Angolan
angolanos, de origem etnolinguístico Bakongo, former-exiled, ones of ethnolinguistic origin
retornados a Luanda após um longo período de Bakongo, returning to Luanda, after a long period
vivência no país vizinho Zaire (atual RDC), of experience in the neighboring country Zaire
durante a guerra de independência de Angola (current RDC), during the Angola’s
ocorrida entre os anos de 1961-1974. Os Bakongo independence war, between the years of 1961-
são uma “etnia de fronteira” presente tanto em 1974. The Bakongo is an “ethnic boundary”
Angola como nos dois Congos. O retorno deste living in Angola as in the two Congos. The regress
grupo, com pelo menos uma geração nascida no of this group, with at least one generation born
exterior, sugere questões sobre a formação e o in the exterior, suggests questions on the
acirramento de identidades étnicas e o formation and the instigation of ethnic identities
aparecimento de novas concepções de and the appearance of new conceptions of
nacionalidade a partir de uma cultura construída nationality from a culture constructed in a
numa experiência externa ao país. A busca de novas external experience to the country. The searching
formas de participação de reconhecimento social of new forms of participation of social recognition
e político através da disputa da legitimidade em and politician through the dispute of the
torno de concepções de identidade nacional é mais legitimacy around conceptions of national
um ingrediente complexificador no processo da identity is an ingredient in the complex process
reconstrução nacional de Angola. of the national reconstruction of Angola.
palavras-chav
palavras-chavee: identidade nacional, etnicidade, key-
ey-wwords: national identity, ethnicity, Angola,
ords:
Angola, bakongo bakongo

I NTRODUÇÃO
NTRODUÇÃO passaram por áreas ocupadas por grupos
étnicos, grupos estes que não possuíam
A constituição dos Estados em África, necessariamente limites territoriais precisos,
organizada de acordo com o princípio de prerrogativa essencial dos Estados-nações.
não alteração dos limites coloniais, A discussão sobre a relação entre etnias e
ocasionou a manutenção de fronteiras que Estados-nações em África foi sempre
permeada pelo senso comum de que a
instabilidade africana seria, a princípio,
* Mestre em Antropologia Social pela USP e doutoranda devida à formação de Estados multiétnicos,
do PPGAS/USP. Bolsista FAPESP.
46 LUENA NASCIMENTO NUNES PEREIRA

corpos políticos que abrigariam em seu seio da reconstrução nacional de Angola, ainda
uma miríade de povos culturalmente hoje mergulhada em conflitos civis.
distintos e naturalmente hostis entre si. As
etnias cortadas por fronteiras seriam mais A NGOL
NGOLAA
um fator agravante de instabilidade política
e social dos países emergentes. Localizado na região austral da África,
Outros analistas, que descartaram na costa ocidental, e com uma superfície de
acertadamente este tipo de explicação, 1.246 km², ou cinco vezes o tamanho do
centrado num essencialismo étnico, Estado de São Paulo, Angola é o 7º maior
buscaram outras hipóteses – históricas e país da África em extensão. Sua população,
econômicas – para a crise africana, tais como estimada em 11 milhões de habitantes1,
o legado colonial, a adoção de governos encontra-se desigualmente distribuída pelo
autoritários, o não desenvolvimento social território, já que 90% desta concentra-se na
e econômico, a não inclusão de forças metade oeste do território e em torno de
minoritárias no sistema político. É 50% nas cidades, principalmente na capital,
necessário, contudo, não perder de vista a Luanda, que deve ter atualmente cerca de 4
dinâmica social e política mobilizada por milhões de habitantes.
grupos que transitam e se comunicam A classificação das etnias em Angola
continuamente entre fronteiras nacionais. historicamente tem levado em conta o
Como exemplo para esta discussão, parto tradicional critério lingüístico. Dessa forma,
da pesquisa sobre ex-exilados angolanos de o país conta com cerca de dez grupos étnicos,
origem etnolingüística Bakongo retornados sendo que os três maiores grupos –
à capital do país depois da independência, Ovimbundu, Ambundo e Bakongo –
após um longo período de vivência no país somam 75% da população2.
vizinho, Zaire (atual República Democrática De colonização portuguesa, Angola
do Congo), durante a guerra de libertação alcançou sua independência em 11 de
de Angola, ocorrida entre os anos de 1961 e novembro de 1975, após catorze anos
1974. Os Bakongo são o que chamo aqui de guerra anti-colonial, encerrada em
de “etnia de fronteira”, presentes tanto em 1974 com a Revolução dos Cravos, que
Angola como nos dois Congos. pôs fim, em Portugal, a cinqüenta anos
O retorno desse grupo, que inclui pelo de regime autoritário. De fins de 1974
menos uma geração nascida no exílio, sugere a novembro de 1975 teve lugar o
questões sobre a formação e o acirramento governo de transição, do qual
de identidades étnicas e o aparecimento de participaram o novo governo português
novas concepções de nacionalidade a partir e os três movimentos de libertação até
de uma cultura construída numa experiência
externa ao país, estranha aos habitantes mais
antigos da capital angolana. 1 As estimativas, feitas por diversas fontes, basearam-se
A busca de novas formas de participação, no censo de 1991.

de reconhecimento social e político, através 2 Esta população é, quase na sua totalidade, do tronco ban-
da disputa da legitimidade em torno de tu, que predomina na região centro-sul da África. Outros
concepções de identidade nacional é mais pequenos grupos não–bantu em Angola são os Khun,
vulgarmente chamados de bosquímanes, presentes no sul
um ingrediente complexificador no processo do país.

cader nos de campo · n. 10 · 2002


ETNIAS DE FRONTEIRA E QUESTÃO NACIONAL: O CASO DOS “REGRESSADOS” EM ANGOLA 47

então reconhecidos 3 : o MPLA – impossibilidade de os três movimentos


Movimento Popular para Libertação de formarem um só governo da nova Angola
Angola; a FNLA – Frente Nacional de independente. Iniciou-se então uma guerra
Libertação de Angola e a UNITA – União civil entre os movimentos, com participação
Nacional para a Independência Total de de diferentes forças militares estrangeiras
Angola. apoiando os diversos lados. Esta guerra foi
A solução violenta para a libertação do vencida pelo MPLA, que assumiu sozinho
jugo colonial foi comum em países que o poder em novembro de 1975. Logo nos
sofreram uma colonização com povoamento primeiros anos do governo do MPLA, que
branco e/ou administração direta, caso das procurou implementar um regime de caráter
cinco colônias portuguesas em África4, cuja socialista, teve início a guerra contra a UNITA.
metrópole recusava-se a uma solução Fenômeno tipicamente inscrito no
negociada, como aconteceu na grande contexto da Guerra Fria, no qual os países
maioria dos países africanos. Mas a periféricos buscaram apoio dos dois blocos
peculiaridade de Angola está no fato de que, mundiais hegemônicos e, com isso,
por diversos motivos, a luta armada foi refletiram as rivalidades econômicas,
levada a cabo por três movimentos de políticas e ideológicas destes blocos, o
libertação, isolados e sem coordenação conflito de Angola teve uma dimensão
conjunta, que lutaram contra o poder claramente internacionalizada. O regime do
colonial e, muitas vezes, entre si mesmos5. MPLA, liderado por Agostinho Neto,
No período do governo de transição, contou com o apoio (militar, logístico,
sediado em Luanda, em 1974, ficou clara a técnico e/ou econômico) de Cuba, União
Soviética e países do Leste Europeu. A
UNITA, liderada por Jonas Savimbi, teve o
3 Os três movimento tinham reconhecimento do novo apoio dos Estados Unidos e do regime racista
governo português, da ONU e da OUA (Organização da
Unidade Africana). da África do Sul.
Na dimensão regional, envolveram-se no
4 São elas Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde conflito o antigo Zaire, que anteriormente
e São Tomé e Príncipe. Ainda assim, a colonização por-
tuguesa nestas cinco colônias foi bastante diferenciada,
apoiava a FNLA e depois passou a dar
com maior presença de colonos em Angola e Moçam- suporte à UNITA, e a Namíbia, cujo
bique do que na Guiné Bissau, por exemplo. território, fronteiriço com Angola, era
ocupado pela África do Sul. A organização
5 Embora seja uma tarefa muito perigosa, é possível identificar
regiões de influência de cada um dos três movimentos: a que lutava pela emancipação namibiana – a
FNLA teve predominância no norte, com o apoio majoritário SWAPO, que assumiu o poder em 1990,
da população bakongo; a UNITA atuou sobretudo na região
do Planalto Central, de população ovimbundo, e o MPLA
com a independência do país – era aliada
teve maior adesão na área centro-norte, de população do MPLA.
ambundo, e nas cidades, principalmente na capital e região Os Acordos de Bicesse, em 1991,
e em Benguela, mais ao sul do país. As áreas de influência
são apenas um indicativo, sendo errôneo afirmar que houve puseram fim à guerra e eleições para a
um alinhamento meramente étnico a cada um dos presidência e para o parlamento foram
movimentos de libertação. Fatores ideológicos, de
urbanização e do processo de formação das elites dirigentes
marcadas para novembro de 1992. Todavia,
de cada um dos movimentos também influenciaram na a UNITA não aceitou a vitória do MPLA,
formação das zonas de influência. O período da guerra anti- num pleito legitimado pela ONU, e
colonial alterou significativamente estes alinhamentos
iniciais. retornou ao conflito armado, dessa vez ainda

ar tigos
48 LUENA NASCIMENTO NUNES PEREIRA

mais aprofundado. Atualmente, assistimos independente, fez de Luanda uma região sui
à continuação dessa terceira guerra civil, generis em Angola.
recomeçada após o fracasso dos Acordos de A “sociedade crioula” (que deu origem a
Lusaka (1994) e do Governo de Unidade e um setor importante do que chamarei de
Reconciliação Nacional (GURN). “sociedade luandense”) diz respeito a uma
formação social antiga, produzida pelo
LUANDA E NORTE DE ANGOL
NORTE NGOLAA – DIFERENÇAS período do tráfico de escravos em Angola.
HISTÓRICAS E REGIONAIS Nesse período, setores da sociedade local de
Luanda e da região do rio Kwanza (sul de
O interesse no grupo de ex-exilados Luanda), além da cidade de Benguela, ao
retornados do Zaire deve-se ao fato de este sul do país, foram responsáveis, em parceria
grupo ter tido uma longa vivência e (desigual) com portugueses e brasileiros, pela
socialização no país vizinho: mais de uma empresa do tráfico.
geração nasceu e cresceu no antigo Congo Isso proporcionou a emergência de uma
Belga (depois Zaire, atualmente República pequena burguesia negra e mestiça angolana,
Democrática do Congo). O retorno dos que num amalgamento com o setor branco
exilados não é feito, na sua maioria, para a colonial produziu uma sociedade
região de origem do grupo, o norte de original, no sentido social e cultural. As
Angola 6, e sim para a capital do país, marcas mais evidentes da crioulização dessa
Luanda. sociedade verificavam-se pela difusão do
A região de Luanda possui uma kimbundo como língua de uso doméstico e
especificidade dentro da história da língua franca no comércio do interior, pela
colonização portuguesa em Angola. Não se formação de famílias mistas, pela convivência
trata apenas do fato de a composição inter-racial (que não supõe, obviamente, a
etnolingüística da região de Luanda ser ausência de conflito racial ou a inexistência
majoritariamente Ambundo. A ocupação de hierarquias de base racial). A adoção de
portuguesa dessa região foi a mais antiga e usos e costumes africanos (que muitas vezes
intensa no país, remontando ao período do “escapavam” para a esfera pública), associada
tráfico de escravos (séculos XVI a XIX). A ao aprendizado do português e dos costumes
antigüidade da colonização, somada ao metropolitanos, conferiu a essa população um
papel de proa que sempre assumiu na forte sentido de enraizamento e de falta de
economia colonial e, depois, no país identidade com o resto do território,
majoritariamente rural e que, na época, ainda
não tinha sido integrado completamente ao
6 As populações bakongo, de língua kikongo, somam cerca
sistema colonial.
de um milhão de pessoas em Angola, atualmente. No Essa sociedade crioula ruiu com a
período pré-colonial comportavam o Reino do Kongo, transição do sistema colonial do trato
formado no século XIV, que no seu apogeu compreendia
uma área que é hoje a parte do sul do Gabão, o sudoeste negreiro para a colonização “moderna”
do Congo e do Zaire e o noroeste de Angola. Foi com o portuguesa, no início do século XX. A nova
Reino do Kongo que os portugueses estabeleceram seus
primeiros contatos na costa ocidental africana, em fins
forma de colonização implicou a
do século XV, a princípio mantendo relações igualitárias prevalência do poder metropolitano sobre
de comércio e intercâmbio. Mais tarde, o comércio passou a elite colonial, a intensa entrada de colonos
a ser eminentemente escravagista e, conseqüentemente,
desestruturador das sociedades formadoras deste reino. portugueses, que ocuparam os espaços dos

cader nos de campo · n. 10 · 2002


ETNIAS DE FRONTEIRA E QUESTÃO NACIONAL: O CASO DOS “REGRESSADOS” EM ANGOLA 49

“filhos da terra”. Neste processo, destaca-se recém-chegados. As possibilidades de estudo,


o afastamento dos negros e mestiços dos ainda que dentro do enquadramento
cargos da administração e a conseqüente restritivo colonial, eram muito maiores do
perda do seu relativo poder econômico. que no norte de Angola, bem como as de
Esse novo período do colonialismo aprendizagem profissional.
português em Angola consolidou a Esse trânsito transformou-se em exílio
centralidade de Luanda como pólo político permanente, do lado norte da fronteira,
e econômico da colônia. A alta taxa de com a tomada das terras dos angolanos
urbanização e o aumento da presença pelos colonos brancos, a partir da década
portuguesa (com cada vez mais segregação de 1940, e com o início da guerra anti-
entre africanos e metropolitanos) faz de colonial, a partir de 1961. O desenrolar da
Luanda uma cidade com forte influência guerra fez a saída de angolanos aumentar
lusitana. drasticamente, conferindo a essas
A progressiva perda da matriz africana populações o status de refugiadas. Os
(ou pelo menos de seus elementos mais angolanos refugiados fixaram-se na região
visíveis) por parte da população “assimilada” do Baixo Congo (área rural) e na capital,
(não branca) e a falta de identidade com a Leopoldville (depois Kinshasa, com a
população rural são características marcantes independência do Congo/Zaire, em 1960).
da sociedade luandense até o período Essas populações7 tiveram praticamente o
posterior à independência. Cabe ressaltar mesmo tipo de inserção das populações
também a forte influência urbana da capital emigradas anteriormente para o Zaire:
sobre toda a região do interior kimbundo inserção através das famílias e, na cidade, no
(áreas de Malange, Kwanza Sul), que fez setor do comércio. Provavelmente, é a partir
expandir esse modo de vida de forte marca desse período (1961) que se verifica o
lusitana/crioula. crescimento do setor informal da economia
Por sua vez, as populações bakongo, na capital do Congo/Zaire.
situadas no norte/noroeste de Angola, foram
encontrar, por diversos motivos, sua principal O RET ORNO DO EXÍLIO E O SUR
RETORNO GIMENT
SURGIMENTO DO
GIMENTO
referência urbana em Leopoldville, capital do GRUPO DOS “REGRESSADOS”
GRUPO
Congo Belga. Para esses grupos de mesma
origem, descendentes das populações que Com a independência de Angola já se
formavam o antigo reino do Kongo, a verificava o retorno de muitos angolanos8.
fronteira nunca foi uma barreira, e viagens O desejo de retorno dava-se tanto pelos laços
constantes eram feitas entre as duas colônias. familiares e de amizade deixados para trás
No Congo Belga, a comunidade angolana quanto pela busca de uma “terra prometida”
podia contar com uma rede de relações
provenientes do parentesco alargado, que
incluía parentes nascidos do lado norte da 7 A estimativa de entrada angolanos no Zaire entre 1961 e
1965 é de cerca de 400 mil pessoas.
fronteira, além dos que já tinham migrado
anteriormente. Essas redes de relações 8 O número de angolanos e seus filhos que retornaram para
possibilitaram uma inserção relativamente Angola é bastante impreciso, considerando que uma parte
rápida no mercado de trabalho ou uma da população fixou-se nas províncias angolanas de origem
– Zaire e Uíge. Estimo, arriscadamente, que, em Luanda,
retaguarda que garantia a sobrevivência dos a população regressada seja da ordem de 300 mil.

ar tigos
50 LUENA NASCIMENTO NUNES PEREIRA

que, livre da opressão portuguesa, ofereceria gueto, morando também nos bairros do
melhores condições de vida, impossíveis de centro da cidade. Depreende-se disso uma
serem conquistadas no Zaire, que atravessava grande diversificação entre os regressados
sérios problemas de ordem econômica. quanto ao nível econômico, à escolaridade,
O período de transição foi marcado pelos à capacitação profissional, etc.
confrontos, na capital angolana, entre o Quer pelo desenvolvimento do comércio
MPLA e a FNLA. O confronto armado informal, numa economia controlada pelo
entre estes dois movimentos de libertação – Estado, quer pela entrada de quadros
o terceiro movimento, a UNITA, havia se qualificados no setor do funcionalismo
retirado de Luanda nesse período – marcou público, os regressados demonstraram uma
profundamente a sociedade luandense. As enorme capacidade de adaptação e
tropas da FNLA eram compostas por transformação de suas condições de vida
angolanos do norte de Angola, por exilados num meio relativamente hostil. Essa
no Zaire e também por tropas do exército hostilidade, que inicialmente devia-se à
zairense, dado o apoio determinado do identificação dos regressados com
governo zairense de Mobutu Sesse Seko à participantes da FNLA – partido inimigo
FNLA. da maioria dos habitantes de Luanda – foi
Do ponto de vista dos habitantes de depois sendo demarcada pela rejeição à
Luanda, os angolanos regressados do Zaire introdução de elementos culturais e costumes
e estabelecidos na capital, durante e depois percebidos como estranhos à população
dos conflitos entre os dois movimentos, local.
tivessem ou não relações diretas com a Delineou-se então um acirramento das
FNLA, adquiriram a alcunha de diferenças entre “ regressados ” (que
estrangeiros. No mesmo sentido, a entrada formavam um grupo francamente
das tropas da FNLA foi identificada como minoritário) e “luandenses”, expressas por
uma invasão zairense e estrangeira. A certos símbolos e valores. A introdução de
identificação simplista e depreciativa modos de vida aprendidos no Zaire
regressados = FNLA = zairenses se tornou o acarretou aos regressados o estigma,
raciocínio padrão para setores da população conferido pelos luandenses, de “estrangeiros”
de Luanda. e “zairenses”.
O aprendizado do modo de vida urbano A língua portuguesa, amplamente
de Kinshasa, comparado com o luandense, utilizada em Luanda ao longo do período
diferenciava os regressados em diversos colonial, e usada após a independência como
aspectos: no vestuário, na alimentação, no língua de unidade nacional, língua de
tipo de habitação, nas práticas religiosas e cultura9 e de Estado, jamais havia sido
em outros hábitos e costumes. Esse modo considerada uma língua nacional exclusiva,
de vida era percebido pelos regressados como no sentido de que se pudesse definir quem
“uma cultura mais africana” em oposição à
dos luandenses, considerados mais voltados
para Portugal e para o Brasil. 9 A expressão “língua de cultura” é utilizada aqui para
Os regressados passaram a ocupar denotar apenas a preferência (não a exclusividade) de uma
principalmente certos bairros da periferia língua para fins de expressão artística, sobretudo literária,
científica e de comunicação social e não indica um senti-
de Luanda, mas não se restringiram a um do valorativo ou hierarquizante de minha parte.

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ETNIAS DE FRONTEIRA E QUESTÃO NACIONAL: O CASO DOS “REGRESSADOS” EM ANGOLA 51

era ou não angolano a partir da competência diz respeito a modos de vida bastante
do seu uso. Em Luanda, a partir da entrada diferenciados experimentados nas duas
dos regressados, que tinham como língua capitais.
principal não o kikongo (língua materna A concentração dos regressados em certos
Bakongo) mas o lingala (língua veicular de bairros da periferia da capital angolana e a
Kinshasa), o português passou a ser usado, criação de organizações internas (igrejas,
pelos luandenses, como um demarcador de associações de ajuda mútua, organizações
nacionalidade e de “angolanidade”. não governamentais, além de uma profusão
Em resposta a essa postura, os de negócios, casas comerciais, oficinas)
regressados, na busca de situarem-se como consolidaram a visão dos regressados como
pertencente à mesma “nação”, passaram a um grupo coeso, solidário, assumindo uma
considerar a cultura bakongo/regressada identidade e uma auto-organização próprias,
como sendo a cultura verdadeiramente distintas do resto da sociedade luandense.
“africana”, em oposição à luandense, Com o passar do tempo, e considerando as
“crioulizada”, “destribalizada”. mudanças políticas, econômicas e sociais
No contexto político angolano, a noção ocorridas em Angola, especialmente em
de “crioulo” foi assumindo um perfil sócio- Luanda, pode-se perceber a transformação
econômico e racial, identificando-se, no das relações entre os dois grupos. Dois
discurso dos setores de oposição, a um grupo aspectos dessa transformação foram a
de “mulatos” que ocupa os mais altos abrupta transição para a economia de
escalões do poder e do funcionalismo mercado (fins da década de 1980) e as
público. O caráter de “destribalizado”, longe eleições (1992), com a posterior retomada
de ser um fator de afirmação de da guerra civil. Verificam-se então os
nacionalidade, foi encarado pelos aspectos de integração e contato, bem como
regressados como uma africanidade os fatores de etnicidade, de estigma e da
insuficiente, ou seja, faltaria aos luandenses violência atuando na separação dos grupos
o ingrediente, a categoria obrigatória da identificados.
africanidade, que seria o pertencimento A Sexta-feira Sangrenta foi uma das
étnico (Pereira, 1997). conseqüências do agravamento da tensão
Chamo atenção, contudo, para o fato de que sucedeu à não aceitação, por parte da
o confronto político-cultural entre “luandenses” UNITA, dos resultados das primeiras
e “ regressados ” estar formatado pelo eleições em Angola, ocorridas em fins de
confronto de dois tipos de vida urbana: a de setembro de 1992. Os combates se
Luanda e a de Kinshasa. A reivindicação de reiniciaram, de forma irrevogável, no
maior “africanidade” feita pelos regressados começo do ano de 1993.
Bakongo não se dá num apelo à uma Os regressados , na cidade de Luanda,
africanidade rural (tal como faz Savimbi, líder tinham votado maciçamente em Jonas
da UNITA, por exemplo). Tanto a Savimbi, a despeito da existência de todos
“africanidade” bakongo/zairense/ regressado, os partidos políticos de origem bakongo
como o orgulho “nacional/moderno” q u e s e f o r m a ram após a adoção do
propagado pelos luandenses se faz num multipartidarismo. Talvez porque vissem em
quadro de vivência urbana de pelo menos Savimbi a única opção capaz de se contrapor
mais de duas décadas para os dois grupos e ao governo, cuja imagem estava, na época,

ar tigos
52 LUENA NASCIMENTO NUNES PEREIRA

extremamente desgastada. O fato é que, especificidade em relação ao resto do país e,


desde dezembro de 1992, já havia registros sobretudo, às elites de Luanda10.
de ataques, assaltos e intimidações nos Do ponto de vista da integração, com o
bairros regressados , feitos por parte de tempo, o contato/convívio/conflito entre
policiais, milícias, militares ou bandidos luandenses e regressados se rotinizou. Podem
fardados (atendendo às exigências do ser identificados alguns elementos externos
processo de paz, o governo havia que acompanharam essas transformações.
desmobilizado um grande contingente de Os acordos de Lusaka, em 1994,
militares). diminuíram o impacto da guerra, ainda que
Na manhã do dia 22 de janeiro de 1993, não tenham cessado por completo os
motivados por boatos sobre a infiltração de conflitos (que foram retomados em fins de
soldados zairenses no norte de Angola em 1998). Houve continuidade dos trabalhos
apoio à UNITA, explodiram ataques aos da Assembléia Nacional e a criação do
moradores de Luanda que pudessem ser Governo de Reconciliação e Unidade
identificados como zairenses ou regressados. Nacional (GURN), que vinha tentando
A identidade das pessoas era demarcada pelo conferir uma normalidade institucional a
modo de vestir, de falar e especialmente pela um lento processo de paz, que veio a
forma como elas pronunciassem a palavra demonstrar-se ineficiente.
“arroz” (o modo de pronunciar afrancesado – Por outro lado, houve mudança no
ou lingalizado – é facilmente identificável na contexto regional. A deposição e posterior
pronúncia dos dois “rr”). As informações sobre morte de Mobutu Sesse Seko e o apoio do
o número de mortos e feridos ainda hoje são governo angolano ao novo presidente do
contraditórias e desencontradas. Os debates Zaire, agora renomeado Congo, Desiré
levados a cabo no Parlamento, bem como os Kabila, pôs fim a uma rivalidade de mais de
inquéritos policiais foram inconclusos quanto trinta anos entre Angola e o Congo.
aos responsáveis pelas agressões. A abertura da economia, e sua
Desde então, nunca mais foram desarticulação, acarretou um descomunal
registrados ataques semelhantes à “Sexta-feira crescimento e generalização do mercado
Sangrenta” considerada por diversos analistas informal, com a entrada de diversos
como um evento atípico num contexto de segmentos da população neste setor, antes de
tensão étnica que, até então, nunca havia presença predominante dos regressados. O
ultrapassado as discriminações e agressões estigma de comerciantes ilegais,
verbais. Nesta altura, verificou-se uma reação “candongeiros”, conferido aos regressados foi
importante de elites bakongo/regressadas a aos poucos perdendo força perante a
partir da circulação de panfletos e da necessidade de diversificação de atividades
realização de mobilizações nos bairros de econômicas que atingiu toda a população.
predominância regressada com acusações ao Permanece ainda a acusação de que os
governo pela responsabilidade dos ataques. regressados “introduziram” o comércio ilegal,
Notava-se nos discursos das elites bakongo além da corrupção, na economia da capital.
um forte apelo étnico, por vezes separatista,
recorrendo à unidade Bakongo através da 10 Uma análise mais detida sobre o evento da Sexta-feira San-
referência ao passado glorioso do reino do grenta, a reação da elites bakongo/ regressadas, é desen-
volvida na minha dissertação de mestrado (Pereira, 2000,
Kongo, marcando sua diferenciação e capítulo 4).

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ETNIAS DE FRONTEIRA E QUESTÃO NACIONAL: O CASO DOS “REGRESSADOS” EM ANGOLA 53

In t e r n a m e n t e , c o m o t e m p o d e Kimbundo (que tinha também um lugar


vivência em Luanda, muitas mudanças fundamental como outra língua veicular desse
aconteceram no seio da população período, que vai até o século XIX).
regressada. O progressivo domínio do A apropriação da língua portuguesa
português pela maior parte desse como língua nacional e de contestação
gr upo, especialmente a população nacionalista11 segue um longo processo na
mais jovem, foi um fator importante formação literária angolana, que inicia-se na
de integração e diminuição do imprensa nativista de fins do século XIX e
estigma. A forte solidariedade de vai até o moderno romance angolano de
grupo e o relativo sucesso de vários meados do século XX. Contudo, a expansão
indivíduos entre a comunidade do português se deu, obviamente, dentro do
regressada (desde jogadores de futebol projeto colonial de “portugalização” – uma
a professores universitários e palavra de ordem mais significativa que
empr esários) impuseram um cer to “civilização” – levado a cabo por meio da
respeito e reconhecimento por parte Igreja Católica.
da sociedade circundante. É notável Durante a luta anti-colonial o português
que a diversidade interna dessa foi a melhor forma dos nacionalistas de
população não diminuiu sua auto- diversas partes do país se comunicarem.
representação como portadora de uma Assim, a idéia de “Angola” ganha sentido
identidade comum, centrada na em grande parte devido à noção de uma
identidade Bakongo. língua partilhada, através de uma experiência
colonial comum e de uma luta unificadora
A LÍNGUA
LÍNGUA (Serrano, 1988).
De acordo com contingências
A diferença cultural mais sentida e pragmáticas ou obedecendo a propósitos e
expressa por regressados e não regressados a projetos colonial ou pós-colonial, o fato é
está nas línguas – lingala e português – e no que as línguas maternas angolanas sofreram
peso e sentidos diferenciados que cada grupo uma grande marginalização. No tempo
dá ao uso de uma e outra. No caso, trata-se colonial, o objetivo de “portugalizar”
de uma língua herdada do colonizador e de impedia a utilização das línguas africanas no
uma língua não angolana, mas veicular da ensino básico. O Estado português
região da capital do Congo/Zaire. Essas privilegiava a Igreja Católica para a ação
diferenças dizem respeito à experiência de
cada grupo em meios urbanos bem distintos 11 O uso da língua do colonizador como arma para a luta pela
independência foi comum em praticamente todos os países
– Luanda e Kinshasa – e a inserções coloniais africanos, sobretudo pela luta ter sido promovida pelas elites
também distintas – Angola e Zaire. educadas à ocidental, que precisavam obter reconhecimento
No caso dos luandenses, o uso do português político junto à comunidade internacional. O valor e os senti-
dos da internalização da língua do colonizador na cultura do
remonta ao período do tráfico. O longo contato colonizado são alvo de intensas discussões, políticas, acadêmi-
com os portugueses, a criação de uma sociedade cas, ideológicas que ganharam muito espaço no âmbito dos
chamados estudos “pós-coloniais” (Appiah, 1997). Defendo
crioula e sua rede para o interior fizeram do aqui que embora não separado deste contexto, o caso angolano
português uma língua muito disseminada e, possui especificidades importantes. Busco destacar, sobretu-
mais que isso, uma língua bastante transformada do, os aspectos que ressaltam a disseminação e o enraiza-
mento do português na sociedade angolana e não só nas suas
por seu contato longo e estreito com o elites.

ar tigos
54 LUENA NASCIMENTO NUNES PEREIRA

missionária, marginalizando as Igrejas desenraizamento tão profundo,


protestantes (quase todas estrangeiras, o que interditando ao “indígena” o aprendizado
ameaçava o projeto portugalizador), que na sua língua materna.
tinham como método e doutrina o ensino nas O processo nacionalista no Congo Belga
línguas locais. radicalizou-se de modo fortemente
No período da independência, o problema racializado e encontrou uma de suas
das línguas torna-se ainda mais complexo. Do conseqüências no movimento da autenticité,
ponto de vista pragmático, a intenção do implantado por Mobutu Sesse Seko em fins
Estado revolucionário de alfabetizar em massa, da década de 1960. Este movimento cultural
em nível nacional e de forma centralizada, tinha, na sua origem e em suas formulações
acarretou a alfabetização exclusiva em língua iniciais, objetivos bem diversos do que foi
portuguesa, já que esta possibilitaria a propagado pelo ditador e que não estão no
consecução da unidade nacional. alcance deste artigo. Todavia, apontamos
O reconhecimento da importância das neste movimento a exortação aos “valores
línguas nacionais como expressão das culturais africanos” e a imposição aos
culturas angolanas, no sentido de cidadãos zairenses de trocarem seus nomes
estimular efetivamente o seu uso e criar de origem européia por nomes “africanos”.
meios de consolidá-las, esbarrou não Este foi, certamente, um movimento que
somente na falta evidente de recursos, mas teve impacto sobretudo no meio urbano.
também numa certa incompreensão em A questão da troca de nomes teve outras
torno do que é, ou deveria ser, a implicações para os angolanos exilados no
valorização da “cultura angolana”. A Zaire, mas o que cabe destacar aqui é o
tendência de perceber a cultura e suas caráter de rejeição ao legado colonial no seu
manifestações como elementos folclóricos, sentido cultural. Assim, ainda que o francês
o distanciamento entre os centros de seja a língua dos intelectuais, da
poder e as realidades rurais (em Angola, universidade, do liceu, etc., para um
as línguas africanas são faladas sobretudo congolês pode parecer estranho assumir uma
na área rural, as cidades são bastante língua colonial como vernáculo e, mais que
lusófonas) e um certo receio de que a isso, como uma língua da cultura nacional.
valorização dos grupos étnicos fosse Não faz sentido para o congolês/zairense ou
associada ao “tribalismo” (gravíssima regressado que um angolano não saiba falar
acusação nos primeiros anos após a outra língua que não o português. O fato
independência) foram fatores ideológicos de a língua portuguesa ser considerada como
e culturais que relegaram as línguas um fator de “angolanidade”, de identidade
angolanas à marginalização. nacional, caracteriza, para um congolês, um
Por sua vez, no Congo Belga, a aspecto de subserviência e, para o angolano
alfabetização e o ciclo básico eram (nesse caso, o luandense, já que estamos nos
ensinados nas línguas locais, com uma referindo todo o tempo à relação regressado-
transição para o francês no ensino luandense), uma apropriação legítima de um
intermediário. O ensino também estava legado cultural enraizado por séculos.
nas mãos dos missionários, sobretudo A língua portuguesa em Luanda foi
católicos. Mas não havia, como no caso sendo progressivamente utilizada pela
da colônia portuguesa, um sociedade circundante para marcar sua

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ETNIAS DE FRONTEIRA E QUESTÃO NACIONAL: O CASO DOS “REGRESSADOS” EM ANGOLA 55

diferença frente ao grupo imigrado e para capacidade de absorver vocábulos de origens


classificá-lo como estrangeiro. Nesse diversas, sobretudo do francês, o lingala foi
contexto, ela se cristaliza na capital como a se impondo em toda a região que orbitava
língua da identidade nacional por excelência. em torno da capital congolesa, inclusive no
Congo Francês. Após a independência, o
O LUGAR DO KIKONGO
KIKONGO lingala manteve-se como uma língua
importante no Estado zairense, sobretudo
A inserção do grupo regressado na por ser a língua do exército de um governo
sociedade luandense implicou o aprendizado militarizado. Há, sobretudo, o aspecto da
progressivo da língua portuguesa, pela influência cultural do lingala pela grande
necessidade de inserção no mercado de aceitação e disseminação da música zairense
trabalho, pela convivência no ambiente dentro e fora de África.
escolar ou mesmo como uma estratégia para A população angolana emigrada ou
dominar os diversos códigos e símbolos que exilada no Zaire incorporou rapidamente o
definem para a sociedade circundante o lingala. O kikongo era considerado, na
pertencimento à nacionalidade angolana. capital zairense, uma língua de rurais, sendo
Por outro lado, a distintividade dos seu uso bastante restringido no âmbito
regressados como um grupo separado se público.
traduzia pela manutenção do uso do lingala O retorno à Angola e a inserção em
como língua interna ao grupo, não como Luanda tornaram o kikongo uma língua
uma língua de “gueto”, mas uma língua que pouco utilizável, à medida que o
se ouvia cada vez mais nos mercados, nas aprendizado do português tornou-se
ruas e em outros ambientes de concentração prioridade nas estratégias das famílias
de regressados. regressadas e que as gerações mais jovens,
Nesse “embate” entre o lingala e o sobretudo as que nasceram em Kinshasa,
português, perdeu o espaço o kikongo, que tinham pouco, senão nenhum, domínio da
seria a língua de expressão original do povo língua materna12.
bakongo. O kikongo, portanto, é muito O kikongo tem sido uma língua restrita
pouco falado entre os Bakongo/regressados aos mais velhos. É também a língua do meio
ou, pelo menos, tem pouquíssima expressão religioso e das cerimônias de noivado,
pública em Luanda. A perda de espaço do casamento, óbito. Ela pode ser usada no
kikongo vem acontecendo desde a migração âmbito doméstico, nas resoluções das
de angolanos para o Zaire, sobretudo questões familiares em que se recorre às
Kinshasa, onde o lingala é a língua veicular autoridades do grupo, quando há apelo ao
por excelência. saber tradicional.
A proeminência do lingala na região da Ultimamente, percebe-se que o kikongo
capital zairense é explicada por Gondola tem sido valorizado por uma parte das elites
(1996) como obra deliberada da dominação
colonial e não como um processo de
12 As famílias ou indivíduos que, no retorno a Angola, pas-
dominação de um grupo sobre outros. O saram algum tempo na aldeia de origem puderam retomar
lingala teria sido a língua obrigatória do o contato com o kikongo, que é muito forte na área rural.
ensino técnico na região da capital. Sendo Aqueles que foram diretamente de Kinshasa para Luan-
da, ou tiveram uma curta passagem pela área de origem,
uma língua de muito fácil assimilação, com provavelmente dominam muito pouco a língua dos pais.

ar tigos
56 LUENA NASCIMENTO NUNES PEREIRA

bakongo. No contexto do embate ideológico Espaços do uso Lingala, do Kikongo e


com a sociedade luandense – em que esta é do Português na perspectiva do regressado
acusada de não dominar qualquer língua
materna e ter-se “destribalizado” – o
conhecimento e a exibição do conhecimento
do kikongo por parte da elite bakongo é KIKONGO LINGALA PORTUGUÊS

utilizada como um diferencial importante. Aldeia (região de Bairros regressados Cidade em geral
origem) /bakongo
Nesses meios, há uma preocupação com o
ensino do kikongo aos mais jovens. Essa Âmbito Doméstico
Rua entre Rua com
regressados/bakongo desconhecidos
preocupação também é seguida de perto
Cerimônias e rituais
pelas igrejas de maior acolhida entre religiosos (noivado,
bakongos e regressados. casamento, óbito). Igrejas nos bairros
Igrejas nos bairros regressados/bakongo
Igrejas em geral

É muito cedo para dizer se o kikongo se regressados/bakon-


go
afirmará no meio urbano entre os jovens
Resolução de Ambientes de trabalho
que têm no lingala uma língua de mais problemas em
Entre regressados,
parentes e amigos
escolar; órgãos
família públicos
largo alcance, que lhes permite transitar por
diversos países e regiões. Por outro lado, o Mercado (mulheres
Mercado Mercado
mais velhas)
uso disseminado do português entre os
jovens regressados indica uma grande Candongueiro Candongueiro
capacidade de adaptação e integração.
Percebe-se também um maior interesse dos
Adultos, jovens e
mais jovens em dominar outras línguas, tais Mais velhos Adultos e jovens
crianças

como o inglês e o francês, que podem lhes


permitir uma maior mobilidade.
A tabela que se segue é uma tentativa
de ilustrar, de maneira bem ampla, ainda A partir desta tabela arriscamo-nos a fazer
que talvez um pouco estanque, os contextos mais algumas considerações. Percebe-se que
mais comuns do uso do lingala, do o domínio do português é fundamental para
português e do kikongo. Não é fruto ainda garantir o trânsito do regressado por todos
de uma pesquisa empírica bem os circuitos da vida da cidade – ambiente de
sedimentada, mas penso que pode auxiliar trabalho, escolas, universidades, ruas, a cidade
o entendimento da complexidade lingüística em geral (considerando principalmente o
de Luanda, sobretudo do ponto de vista dos centro da cidade). O lingala tem seu espaço
bakongo e regressados. mais restringido, mas é presente em alguns
Lembro que em Luanda convivem meios de circulação notória dos regressados,
outros grupos étnicos que trazem as línguas como o transporte (candongueiro) e o
de suas regiões para a capital. Avalio, mercado. O kikongo é ouvido apenas no
contudo, que o português é âmbito doméstico e familiar, sobretudo no
incontestavelmente a língua hegemônica da contexto religioso ou em situações
capital, seguida pelo lingala e pelo “tradicionais”.
kimbundo, este mais entrecortado e Podemos considerar, a partir de Raffestin
misturado com o português do que usado (1993), que se baseia no lingüista Henri
como uma língua corrente. Gobard, um modelo de análise que contém

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ETNIAS DE FRONTEIRA E QUESTÃO NACIONAL: O CASO DOS “REGRESSADOS” EM ANGOLA 57

quatro tipos de linguagem, em uma dada vernáculo (língua de grupo, de comunhão)


área cultural: a linguagem vernácula, local como de língua veicular, na medida em que
ou cotidiana, que o autor chama de foi a língua de comunicação, da economia e
linguagem de “comunhão” e que tem um do Estado. É sobretudo a língua referencial,
caráter espontâneo; a linguagem veicular, língua de cultura e de identidade, na qual a
com a função de comunicação, de âmbito literatura angolana vem se expressando, de
nacional ou regional; a linguagem referencial forma particular, pois “kimbundizada”, o
ou de cultura, na qual o grupo expressa e dá que indica sua apropriação, transformação
continuidade a seu legado histórico e e enraizamento.
cultural e a linguagem mítica, que se O português não é apenas a língua dos
relaciona ao passado imemorial e ao sagrado. luandenses, da capital. À expansão do
Sendo possível a um dado grupo utilizar português durante o período colonial
uma língua para cada “função”, é também seguiu-se sua utilização como forma de os
plausível que apenas uma língua assuma as nacionalistas se comunicarem para combater
quatro funções13. No caso dos regressados, o regime. A propagação da guerra civil, que
é perceptível que o lingala tem exercido a é uma das formas de penetração do Estado
função do vernáculo, cabendo ao português, angolano (já que este recruta soldados para
cada vez mais, a dimensão veicular. O o exército por todo o território), foi também
kikongo vem tendo, por vezes, o papel um importantíssimo vetor da língua
referencial (disputando este espaço com o portuguesa. Angola é um país sui generis
francês no caso dos bakongo mais em África, posto que possivelmente a maior
educados). Cabe ao kikongo, sobretudo, a parte de sua população expressa-se na antiga
dimensão mítica. língua do colono, fenômeno incomum no
Nos momentos agudos de disputa continente. Isso descaracteriza o português
política, em que a etnicidade ganha espaço como uma língua apenas urbana, da capital
nos discursos, como no caso da Sexta-feira e das elites, e torna complexo o quadro
Sangrenta, o kikongo sai do plano mítico lingüístico angolano.
ou da esfera meramente privada e assume É preciso ainda qualificar o que significa
outros significados, como pode ser visto nos “expressar-se” em português. Provavelmente,
panfletos e nas manifestações de grupos quase a metade das pessoas que falam
políticos bakongo em que são feitas português o tem como única ou primeira
referências nesta língua. A língua materna língua de expressão, e é este dado que remete
permanece, assim, na maior parte das vezes, o português à sua dimensão referencial, e não
como uma reserva simbólica indicando o apenas de vernáculo ou veicular, para uma
espaço – privado – da família, da religião e parte significativa da população.
da autoridade dos mais velhos. A língua é um instrumento de produção
O português, para a população e manifestação de poder. Expressa modos
luandense, assumiu as funções tanto de de vida, de ser e estar, de classificar e ordenar
a realidade. A marginalização de uma língua
13 O autor cita o caso da língua inglesa que, para os norte-
caracteriza também a marginalização do
americanos, assume as quatro funções. Pode ser o caso grupo que a porta. Nesse sentido, a
da língua portuguesa para a maioria dos brasileiros, con- apropriação da língua portuguesa como
siderando a incorporação nesta língua de elementos das
línguas africanas e indígenas. língua do Estado e sua generalização como

ar tigos
58 LUENA NASCIMENTO NUNES PEREIRA

língua veicular, mais do que mera “língua daquela “angolanidade” a que nos referimos
oficial”, relega para as esferas não públicas neste artigo: uma identidade nacional
da vida social outras línguas concorrentes. hegemônica que, ao menos em Luanda, tem
O não domínio do português por setores passado pelo critério da “expressão” em
da população impede o acesso dessas à língua portuguesa.
plenitude da vida social, que engloba as Essa discussão em torno das línguas e do
dimensões pública e privada. No caso do seus diversos usos é extensa e tem diversos
grupo regressado, as pessoas com maior desdobramentos. Cabe aqui apenas reforçar
dificuldade em falar português são as que esse é um ponto nodal da discussão que
mulheres mais velhas, mas não só. Essas envolve a “questão nacional”, suas formas
pessoas acabam por permanecer nos bairros de expressão, seus critérios de pertencimento
e têm restringido o acesso ao mercado de e exclusão.
trabalho. Ainda que os mercados livres não É interessante perceber o sentido da
ofereçam dificuldades aos falantes do lingala, palavra “expressão”, que se contrapõe à
o campo de atuação torna-se limitado. Não noção de “língua oficial” ou ao termo mais
é possível ao mau falante de português neutro “de fala portuguesa ou francesa”. A
estabelecer outras relações com pessoas que menção aos países de língua oficial
não sejam de seu meio étnico. Acima de portuguesa como “países de expressão
tudo, esses indivíduos se tornam mais portuguesa” indica uma partilha cultural,
vulneráveis à arbitrariedade dos poderes. uma dimensão afetiva, que é o que
A permanência do uso do lingala que, justamente tem sido o português para
no caso dos regressados, concorre com o muitos angolanos, mas não para todos, ou
português no domínio do vernáculo pelo menos não exclusivamente. Ainda que
(expresso pelo uso do lingala nas ruas, nos ninguém em Angola defenda o uso exclusivo
mercados) indica a manifestação de um da língua portuguesa e muitos sejam
modo de vida que insiste em estar no espaço defensores ardorosos do multilingüismo, na
público, ainda que este seja dominado pelo prática tem sido difícil dissociar a construção
português. de uma identidade nacional angolana fora
Todavia, o sotaque dos regressados que da “expressão”, no sentido mais afetivo
falam português os identifica frente aos possível, em língua portuguesa.
luandenses e indica uma “falta”, um domínio
insuficiente da língua, que lhes retira um MOBILIDADE E TERRITÓRIO
capital importante para o pertencimento e
o controle dos espaços da cidade e nacional. O apelo a identidades mais amplas, como
Não é que os regressados não possam se “africana” e “bantu”, tem sua maior referência
comunicar em português e serem entendidos no fato de o grupo Bakongo ser uma etnia
(dimensão veicular do português em cortada por fronteiras nacionais e por sua
Angola), trata-se de um domínio da língua grande mobilidade territorial, através da
portuguesa que indica o pertencimento a ela articulação de redes comerciais, e circulação
e a uma comunidade de sentido – posta pela por diversos países africanos.
dimensão do vernáculo (Anderson, 1989). A valorização da mobilidade regressada
Esse domínio distingue os regressados dos expressa-se no fato de os Bakongo/regressados
luandenses e dá aos últimos a primazia se referirem aos luandenses com o termo

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ETNIAS DE FRONTEIRA E QUESTÃO NACIONAL: O CASO DOS “REGRESSADOS” EM ANGOLA 59

“fixados” ou a expressão “aqueles que nunca independência, tanto do ponto de vista


saíram de Angola”. De fato, constata-se que político – envolvimento com a Guerra
os luandenses viajam bastante, mas os destinos Fria, política externa pouco centrada em
preferidos dos angolanos da capital são África (Pereira, 1999) – como do cultural
invariavelmente países europeus, sobretudo – grande influência brasileira e
Portugal, e Brasil. Só muito recentemente as portuguesa.
famílias luandenses têm aberto seu leque de Existe assim um grupo, o regressado/
opções migratórias – seja para compras, bakongo, que tem como referência um
estudos ou para fixar residência – em países território localizado regionalmente
africanos, como a África do Sul. (território contínuo), atravessado por
Pode-se perceber, através das categorias fronteiras. As relações (familiares,
veiculadas por regressados/bakongo que, comerciais, culturais) que se espalham por
por trás dessa forma específica de este território não são facilmente afetadas
mobilidade existe uma concepção de quando há o estabelecimento de fronteiras
território14 decorrente. nacionais/estatais.
Um grupo originário de uma etnia Por outro lado, os grupos que têm
atravessada por várias fronteiras e que se Luanda como centro constróem suas
constituiu pela mobilidade, pela migração, referências – culturais, políticas etc. – num
pelo exílio e pelo comércio de grande território descontínuo (Angola, Portugal,
distância constrói, organiza e estabelece Brasil), sendo, portanto, mais fácil
relações no espaço de forma diferenciada. estabelecer ou perceber rupturas. Portugal
A população de Luanda, por sua vez, é a antiga metrópole. O Brasil, embora
estabelece no seu espaço – e note-se, o possa ser um espelho para Angola e tenha
espaço da capital do país – outras relações em relação a ela algumas convergências
com outros espaços, como Portugal e culturais, não é África, está localizado do
Brasil. outro lado do oceano e possui uma
A história da cidade de Luanda se história muito diferenciada. É mais fácil
constituiu através de uma intensa relação traçar cortes nesta relação do que num
comercial com o Brasil e de uma relação território contínuo que partilha histórias
política de submissão a Portugal, na qual mais próximas e povos comuns, ou seja,
ela era o centro da colônia. Luanda relações menos intangíveis.
permaneceu “atlântica” após a O Reino do Kongo configura um
território descontínuo no tempo – posto
que não tem existência atual – e no
14 Entendo “território” como uma produção social do e so-
espaço – pois corresponde a uma área
bre o espaço (Raffestin, 1993). O território pode ser produ- cortada por várias fronteiras nacionais.
to de relações sociais efetivamente realizadas ou ser um Mas, do ponto de vista mítico, este
projeto, uma representação, um ideal. A “produção so-
cial sobre o espaço” supõe relações de poder entre atores espaço fragmentado pode ser reagrupado
sociais, grupos, classes e o Estado, envolvendo diferentes e reatualizado como um lugar de
potenciais e representações diversas do espaço (este se-
ria a matéria-prima sobre a qual se cria e produz o ter-
reafirmação de identidade, através dos
ritório). Estas representações são de alguma forma par- discursos das elites bakongo/regressadas,
tilhadas e/ou estão em concorrência. O território, para como ocorreu após a crise deflagrada em
um grupo social, pode até mesmo incluir vários territóri-
os descontínuos (no tempo e no espaço). torno da Sexta-feira Sangrenta.

ar tigos
60 LUENA NASCIMENTO NUNES PEREIRA

ETNIA DE FRONTEIRA E
FRONTEIRA QUESTÃO NACIONAL
NACIONAL implicitamente, como um meio atrasado e
“tribal”15.
O estudo sobre os regressados de Luanda, É em nome da chamada “África
suas organizações internas, seu posicionamento profunda” que a UNITA de Savimbi
frente à sociedade hegemônica e as respostas apresenta sua oposição ao MPLA. Em seu
que procuraram criar em busca de sua auto- discurso, diz atuar em nome das sociedades
afirmação como grupo, às vezes distinto e rurais, que são, para os dirigentes da UNITA
separado (criação e afirmação de identidade (por sinal, também urbanizados e formados
étnica), às vezes integrado e pertencente ao à ocidental), a verdadeira Angola genuína,
todo nacional (afirmação de pertencimento autêntica ou realmente africana. Savimbi
nacional), é interessante para pensar sobre buscou apoiar-se na região do planalto
as alterações dos discursos e das disputas em central de Angola, região ovimbundo, cuja
torno da identidade nacional. população teria sido a mais prejudicada
A dinâmica regressado x luandense, desde a ocupação mais intensa dos
contudo, está longe de ser a principal portugueses em Angola, a partir da década
contradição identitária da sociedade de 1920.
angolana, que ainda permanece presa à É entre essas duas concepções (referidas
bipolarização entre as duas maiores forças aqui de forma um pouco grosseira) que
político-militares do país, o governo, prevalece a disputa que divide Angola até
comandado pelo MPLA, e o partido hoje, no sentido ideológico e cultural das
armado da UNITA, expressa na continuada concepções de nação e angolanidade. Porém,
guerra civil. Essas duas forças vêm permanecem fora dessa contenda outras
representando duas formas de perceber o formas de perceber e conceber a nação e o
todo nacional a partir de perspectivas nacional angolano. A especial inserção dos
distintas que parecem se mostrar Bakongo na sociedade angolana,
inconciliáveis. considerando a sua dimensão internacional
Prevaleceu, a partir do governo do e a história das suas elites, formadas no
MPLA, uma perspectiva não racial, não Congo, trazem outras perspectivas para esse
étnica e não tribal, voltada para a construção debate.
de uma ideologia nacional de molde Chamo atenção para a especificidade
modernizador, bem ao caráter de sua elite, dessa argumentação “regressada”, que traz
longamente urbanizada e ocidentalizada. A para o debate a dimensão regional na qual
perspectiva “voluntarista” dessa elite teve Angola está inserida. É preciso lembrar
como contrapartida uma visão que em Angola, dos três principais
homogeneizadora da sociedade angolana e gr upos etnolingüísticos, Ambundo,
um profundo desconhecimento das suas Ovimbundo e Bakongo, os dois
populações rurais, seus valores e aspirações. primeiros estão inscritos no território
Esse desconhecimento deveu-se ao
afastamento histórico da sociedade
luandense das áreas do interior, o que 15 A organização do nacionalismo angolano no exílio e as
acabou gerando uma profunda não dificuldades da implantação da guerrilha no meio rural
identificação entre o meio urbano e a mais densamente povoado também são fatores que ex-
plicam a pouca aproximação desses dois “mundos” an-
“África profunda”, considerada, ainda que golanos.

cader nos de campo · n. 10 · 2002


ETNIAS DE FRONTEIRA E QUESTÃO NACIONAL: O CASO DOS “REGRESSADOS” EM ANGOLA 61

angolano16. O grupo Bakongo encontrava- não deve ser percebida, a princípio, como
se cortado por fronteiras coloniais17, hoje um fator de instabilidade.
nacionais. É com os recursos e o “capital”
de uma “etnia de fronteira” que este grupo BIBLIOGRAFIA
com um histórico de especificidade
transnacional traz a reivindicação de uma ANDERSON, Benedict. Nação e
identidade regional ou africana, pois não Consciência Nacional . São Paulo:
vêm encontrando no Estado nacional Editora Ática, 1989.
vigente um espaço político-institucional
capaz de abrigar, dentro do todo nacional, APPIAH, K. A. Na casa de meu pai: a
todas as demandas que essa especificidade África na filosofia da cultura . Rio de
acarreta. Janeiro: Contraponto, 1996.
Houve uma evidente diminuição da
imposição homogeneizante por parte do GONDOLA, Charles Didier. Villes
governo e retira-se, aos poucos, o véu que caía Mirrois: migrations et identités
sobre as discussões em torno das questões sobre urbaines à Kinshasa et Brazzaville,
etnia e raça, antes temas tabus. As afirmações 1930-1970. Paris: L’Harmattan,
em torno da real diversidade das sociedades 1996.
que compõem o todo nacional não são mais
percebidas atualmente como afirmações MABEKO TALI, Jean-Michel. La
seccionistas ameaçadoras da unidade do país. “chasse aux Zairois” à Luanda. In:
Outras identidades vêm surgindo no Politique Africaine:. L’Angola dans la
espaço público, algumas que ultrapassam guerre. Paris: nº 57, março 1995.
o âmbito nacional (identidades bantu,
regionais, africana) e outras que, por vezes, PEREIRA, José Maria Nunes. Angola:
lhe estão inscritas, mas que atravessam identidade nacional e africanidade .
constantemente a fixidez de base territorial R i o d e Ja n e i r o : Un i v e r s i d a d e
do Estado-nação (etnia, clãs, famílias, Cândido Mendes, 1997 (mimeo).
regiões). A emergência de identidades não-
nacionais – e transnacionais – vêm PEREIRA, Luena Nascimento Nunes. Os
alterando e influindo decisivamente no regressados na cidade de Luanda: um
conteúdo e na conformação de identidades estudo sobre identidade étnica e nacional
nacionais em disputa. Torna-se um desafio em Angola. Dissertação de Mestrado.
político legítimo abrigar institucionalmente PPGAS/USP, 2000.
essas demandas, considerando que a
diversidade étnica (e outras diversidades) RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia
do poder. São Paulo: Editora Ática, 1993.

SERRANO, Carlos. Angola: nasce uma


16 Além do pequeno grupo Nyaneka-Humbe. nação. Tese de doutoramento. PPGAS/
USP, 1988.
17 Tal como todas os outros grupos étnicos angolanos de
menor porte, como Lunda-Tchokwe, Nganguela, Herero
Ovambo.

ar tigos
62

cader nos de campo · n. 10 · 2002


63

ATORES/AUTORES: HISTÓRIAS DE VIDA E PR


UTORES ODUÇÃO ACADÊMICA DOS ESCRIT
PRODUÇÃO ORES
ESCRITORES
DA HOMOSSEXU ALIDADE NO BRASIL.
HOMOSSEXUALIDADE

JOSÉ RONALDO TRINDADE*

resumo Seguindo um caminho proposto pela abstract


abstract: Following the path suggested by
antropologia pós-moderna, produzida the post modern anthropology, produced
principalmente no cenário acadêmico norte- mainly in north-american academic scenary,
americano, o presente artigo procura pensar this paper longs to brainstorm the possible
nas possíveis relações entre a história de vida e relationships between life stories and some
os posicionamentos teóricos de alguns autores author’s theoretic conceptions who written
que escreveram sobre homossexualidade no about homosexuality in Brazil. According
Brasil. Nesse sentido, noções como identidade to this, notions as homosexual identity and
homossexual e história da homossexualidade history end up influencing and being
acabam influenciando e sendo influenciadas influenced by these authors’ own life
pela própria experiência de vida desses autores. experience.
palavras-chav es: Antropologia, Política,
palavras-chaves: key-wor
key-words:ds: Anthropology, homosexuality,
homossexualidade, Pós-Modernidade, Politic, Post Modenity, homosexual identity,
identidade homossexual, Histórias de vida. Life Stories.

INTRODUÇÃO
NTRODUÇÃO Um dos editores2 do Lampião de Esqui-
na e alguns de seus colaboradores também
No final da década de 1970 - mais especifi- ajudaram na criação do Grupo Somos de
camente em 1978 - nas cidades de São Paulo e Afirmação Homossexual, primeiro grupo de
Rio de Janeiro, alguns homens se uniram para ativismo homossexual de São Paulo. Algu-
fundar um jornal que tratasse de assuntos rela- mas dessas pessoas também eram, ou se tor-
cionados à homossexualidade no Brasil. Assim naram no futuro, autores de obras ou en-
surgia o Lampião de Esquina1. saios que tratavam a questão da homossexuali-
dade do ponto de vista histórico e an-
* Doutorando SPGAS -USP tropológico. Tendo em vista que, devido à
escassez de trabalhos sobre o tema da ho-
1 As reuniões do Conselho do jornal aconteciam, pelo
menos nas primeiras edições, em esquema mensal de reve-
zamento, ora em São Paulo ora no Rio, mas a redação do
jornal praticamente funcionava no Rio. Os integrantes 2 João Silvério Trevisan participou ativamente tanto do
cariocas tinham maior peso na decisão das pautas, sobre- Grupo Somos de Afirmação Homossexual quanto do jor-
tudo pela influência do jornalista Aguinaldo Silva. nal Lampião de Esquina.
64 JOSÉ RONALDO TRINDADE

mossexualidade3 no Brasil, esses atores/autores que proponho pensar é exatamente por que es-
acabaram se tornando a principal referência bib- colheram capturar alguns elementos em detri-
liográfica para qualquer estudo desse tipo no mento de outros para avaliar uma questão – a
país4, acredito ser importante entender a tra- homossexualidade – em determinados contextos.
jetória dessas pessoas e verificar de que forma
suas biografias influenciaram nas maneiras I - INFLUÊNCIAS PÓS-MODERNAS?
NFLUÊNCIAS
como pensaram certas questões relativas à ho-
mossexualidade no Brasil.Os atores/autores a A tentativa de entender a trajetória de de-
serem abordados neste trabalho são João terminados autores para então pensar sobre o
Silvério Trevisan, James N. Green, Peter Fry e olhar que eles lançaram à homossexualidade em
Edward MacRae, cujos livros integram uma suas obras encontra apoio nas propostas de uma
bibliografia básica para qualquer estudo sobre a antropologia que vem sendo chamada de pós-
homossexualidade no Brasil5. Na análise da tra- moderna e que está sendo produzida, princi-
jetória dos sujeitos citados, partiremos do pres- palmente, nos Estados Unidos. A publicação
suposto de que os atores históricos estão inseri- de um diário pessoal que Malinowski (1997)
dos numa rede social, num universo de repre- escreveu in loco – que permaneceu por muito
sentações que define o modo como eles per- tempo secreto – suscitou discussões sobre a
cebem o mundo à sua volta, utilizando-se de presença do antropólogo em campo e sobre
repertórios disponíveis no imaginário social. O como traços de sua personalidade, ou con-
3 Faz-se necessária uma ressalva para fins metodológicos sobre o tratempos enfrentados durante a pesquisa, po-
uso do termo “homossexualidade”, pois existe uma polêmica em dem influenciar nas representações que ele faz
torno dessa palavra. Alguns autores, atentando para a invenção
histórica desse termo, afirmam só ser possível sua utilização para
ao transformarem texto os dados de pesquisa.6
envolvimentos sexuais entre pessoas do mesmo sexo, a partir do Profundamente inspirados por pensadores eu-
final do século XIX. Costa (1992), por exemplo, prefere utilizar a ropeus como M. Bakhtin, M. Foucault, R.
expressão “homoerotismo”, que, em sua opinião, representaria
qualquer envolvimento erótico entre pessoas do mesmo sexo, sem Barthes e P. Bourdieu, os chamados pós-
necessariamente remeter à uma discussão identitária. modernos exploraram na antropologia alguns
4 Luis Mott, Jurandir Freire Costa e Richard Parker também es- insights provenientes da filosofia da linguagem
creveram importantes trabalhos sobre homossexualidade no e da epistemologia das ciências. Nesse sentido,
Brasil que podem ser considerados obras de referência. Toda-
via, os autores escolhidos para compor esse texto participaram, passaram a refletir sobre as condições de
direta ou indiretamente, de movimentos pioneiros no que diz produção do texto etnográfico – a construção
respeito ao ativismo homossexual no Brasil , quais sejam o jor-
nal e o grupo de militância já citados.
textual e o tipo de interlocução cultural estabe-
lecidos pelas etnografias clássicas e contem-
5 James Green era estudante de pós-graduação de Ciência Política na
USP, no final dos anos 70 e Edward MacRae estava desenvolvendo, porâneas. Não se deve esquecer também que os
juntamente com sua militância, seu trabalho de mestrado na UNICAMP, referidos autores foram inspirados pela antro-
que, depois, desdobrou-se em doutorado na USP,. A dissertação de
Green ainda não tratava da homossexualidade, mas os textos de
pologia interpretativa proposta por Clifford
MacRae sobre esse assunto já circulavam desde 1979. Quanto à Geertz7, segundo a qual a interpretação an-
Peter Fry, este já tinha escrito as primeiras versões de seus famosos tropológica seria uma leitura de segunda ou ter-
textos – “Da hierarquia à igualdade: a construção social da homo-
ssexualidade masculina no Brasil” e “Homossexualidade masculi-
na e cultos afro-brasileiros”, este, inclusive, publicado no número 2 6 Malinowski (1997 ). Ver também Silva (1997/98 ).
da Revista Religião e Sociedade, em 1977, sob o título “Mediuni-
dade e sexualidade” – antes de se tornar um dos editores do Lampião. 7 Vale lembrar que antropologia interpretativa proposta por
João Silvério Trevisan publicou Devassos no Paraíso pela primeira Geertz surgiu no contexto da desconfiança dos antropólogos
vez em 1986, mas antes do Somos-SP e do Lampião, já tinha publi- com relação à capacidade explicativa dos modelos clás-
cado livros de ficção sobre homossexualidade, sendo já um jornalis- sicos de representações culturais holísticas e fechadas do
ta e ficcionista mais ou menos reconhecido. Outro (Silva, 2001).

cader nos de campo · n. 10 · 2002


ATORES/AUTORES: HISTÓRIAS DE VIDA E PRODUÇÃO ACADÊMICA DOS ESCRITORES DA HOMOSSEXUALIDADE NO BRASIL 65

ceira mão feita “por sobre os ombros do na- dado são tecidas 8 . Vale lembrar que os
tivo”, que é quem faz a leitura em primeira mão atores/autores selecionados para este texto
de sua cultura. Como lembra Silva, “A análise tornaram pública sua homossexualidade
cultural interpretativa afirmava explicitamente em determinados momentos, e é partindo
no texto etnográfico seus limites ou mesmo o desse pressuposto que utilizarei fragmen-
caráter particular e muitas vezes provisório dos tos de suas vidas particulares para com-
resultados da análise” (Silva, 2001). preender um pouco seus pontos de vista
Certamente os antropólogos chamados sobre a existência, ou não, de uma identi-
de pós-modernos não foram os primeiros dade homossexual.
a apontar questões referentes ao contexto Já existem estudos produzidos fora do
de produção das etnografias, ou mesmo a Brasil que procuram considerar o fato de
considerar o papel da biografia dos etnó- autores homossexuais terem escrito sobre
grafos emsuas reflexões. Todavia, na medi- o tema da homossexualidade e de que ma-
da em que assentam suas críticas an- neira sua vida pessoal interfere tanto na
tropológicas numa perspectiva episte- produção acadêmica como nas pesquisas de
mológica, essas questões acabam adquirin- campo realizadas 9. É nesse sentido que
do uma importância crucial em suas análises. abordar a biografia dos autores da homo-
A crítica pós-moderna deve, no entan- ssexualidade no Brasil, que também foram
to, ser entendida num contexto específico. atores históricos desse processo, pode nos
O meio antropológico norte-americano ajudar a refletir sobre a natureza das con-
passava por “(...) um contexto de auto-re- stantes divergências desses autores. Aqui,
flexão em relação ao tipo de prática de os limites entre o autor e o ator são muito
pesquisa e de escritos produzidos sobre os tênues. Acredito que vale a pena mer-
povos estudados, em geral dependentes gulhar na investigação desses limites.
econômica, política e culturalmente da so- Afinal, se é através da memória que as
ciedade do pesquisador” (Silva, 2001), ou pessoas definem suas identidades, a ex-
seja, trata-se de uma antropologia que difere periência desses atores pode ter muito
da produzida em terras brasileiras, que sem- a dizer sobre suas produções intelec-
pre se voltou para si, mesmo quando estu- tuais.
dava povos culturalmente diferentes. O
conhecimento de tal contexto me leva a crer
que essa crítica não pode ser incorporada à 8 Vale lembrar que as questões epistemológicas, reclamadas
antropologia brasileira em todos os seus com tanta ênfase pelos antropólogos ditos pós-modernos,
também vêm sendo discutidas em outras disciplinas. Entre
aspectos. os historiadores, essas questões vêm sendo suscitada
Entretanto, se o que produzimos desde a década de 70 por autores como Hayden White
são textos, tanto quanto os europeus (1973) e, mais tarde, voltam à tona num rico debate em
torno das interseções entre História e Antropologia.
e norte-americanos, as questões rela- Historiadores como Dominick La Capra (1988), Roger
tivas à construção discursiva dos tex- Chartier (1985), Phillip Benedict & Giovani Levi (1985)
e James Fernandes (1988) atentaram para os limites
tos ensaísticos, históricos ou etnográ- do texto e para os diálogos com a Antropologia e a Teoria
ficos, bem como suas condições de Literária na produção de textos históriográficos.
produção, podem ser de grande valia
para entender como determinadas 9 Ver LEWIN, Ellen &LEAP, Willian L. Out in the Field: Re-
flections of Gay and Lesbian Anthropologists. Chicago:
noções a respeito de um grupo estu- University of Illinois Press, 1996.

ar tigos
66 JOSÉ RONALDO TRINDADE

II - VIDA E OBRA aquilo que fizeram, mas procurarei perceber,


através do diálogo com suas histórias de vida,
A história de vida dos autores selecionados que elementos culturais e sociais estiveram pre-
para compor este texto se confluíram em vários sentes em suas experiências e, de alguma for-
momentos, seja como militantes, críticos, es- ma, repercutiram em suas obras. Se suas vidas
critores ou acadêmicos. Esses encontros, mar- foram o que contaram ou não, já não importa.
cados por conflitos tanto pessoais como políti- O que interessa é como esse passado é recuper-
cos, evidenciam também divergências teóricas ado e que visão de mundo se revela.
que pontuam seus trabalhos. Para iniciar tal Dois dos participantes desse grupo es-
discussão, é importante inserir suas vidas den- creveram sobre a história da homossexualidade
tro de um contexto específico e bastante con- no Brasil. Ainda que um dos autores tenha
turbado da história brasileira, o final dos anos produzido seu texto dentro da academia e o
70 e início da década 80. outro não, acredito ser interessante verificar
O Grupo Somos de Afirmação Homossex- como suas experiências influenciaram nas ma-
ual surgiu ainda na década de 70 e trazia, nas neiras como resolveram contar essa história. Tra-
mentes de seus fundadores, várias maneiras de ta-se de James N. Green e João Silvério Trevisan.
pensar a homossexualidade. Enquanto alguns João Silvério Trevisan é escritor, nasceu numa
se empenhavam na construção de uma sólida pequena cidade no interior de São Paulo, filho
identidade homossexual, capaz de mobilizar esse de imigrantes italianos. No início de sua ado-
segmento na luta contra a discriminação de que lescência foi para um seminário, onde entrou
eram vítimas (e, portanto, seria uma luta espe- em contato com uma rígida disciplina e tam-
cífica contra os tabus sexuais), outros pensavam bém com as terapias psicanalíticas. Foi no
que a homossexualidade estava imersa em uma seminário que tomou consciência de sua ho-
questão mais abrangente e que atingia não ape- mossexualidade e entrou em contato com
nas os homossexuais, mas também todos os manifestações artísticas, como teatro, cin-
outros segmentos “excluídos” da sociedade10. ema, literatura. No final dos anos 70 en-
Os depoimentos utilizados neste texto fo- volveu-se na militância política e, assim,
ram colhidos para uma outra pesquisa e por passou a conhecer as idéias socialistas. An-
outra pessoa11. Todavia, acredito que sejam de- gustiado com as diversas prisões que estavam
poimentos privilegiados para esta análise justa- acontecendo durante a ditadura militar, resolveu
mente pela intenção do pesquisador de levantar sair do país num auto-exílio, em 1973. Depois
as biografias dos editores e colaboradores do de passar pelo México, foi para Berkeley, nos
jornal Lampião de Esquina. Não partirei do Estados Unidos, uma cidade que fervilhava em
pressuposto de que suas palavras são exatamente meio a conturbadas lutas estudantis.

“Na época, tinha uma fantasia parecida


10 Chamaremos, aqui, de excluídos – uma categoria so-
ciológica bastante complexa – os segmentos sociais que
com a de Rimbaud: como sabia que a fanta-
se movimentavam politicamente, na segunda metade do sia de Rimbaud era ir para Paris para ver a
século XX, reivindicando direitos e visibilolas e esse queda da cidade, com a comuna, eu queria ir
parece ser o caso das feministas, negros e operários.
para Berkeley para ver a queda do império
11 Os depoimentos foram colhidos por Cláudio Roberto da americano...porque Berkeley era a sede do
Silva para a produção de sua dissertação de mestrado Re- movimento estudantil e dos quebra-paus nos
inventando o Sonho: História oral de vida política e ho-
mossexualidade no Brasil. Estados Unidos. Eu fui para os Estados Un-

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ATORES/AUTORES: HISTÓRIAS DE VIDA E PRODUÇÃO ACADÊMICA DOS ESCRITORES DA HOMOSSEXUALIDADE NO BRASIL 67

idos para morar em Berkeley e trabalhei lá, questões da sociedade e ponto final’. (...) Com
limpando casa, inicialmente, depois num res- essa reflexão nós dizíamos que o movimento
taurante.” homossexual não tinha que se filiar ao movi-
mento proletário: os homossexuais são donos
Foi em Berkeley que Trevisan conheceu de sua própria voz. Os que quisessem pode-
os anarquistas e também o movimento ho- riam ser de esquerda, mas o nosso tratava-se de
mossexual, bem como as lutas de feministas, um movimento autônomo”13
negros e ecologistas .“Em Berkeley comecei a
tomar consciência não apenas de ser o que eu Fundado o Grupo Somos de Afirmação Ho-
era, mas de batalhar pra poder ser o que eu era.” mossexual, a maneira como as lutas deveriam
O contato com o movimento homossexual ser conduzidas tornou-se motivo de sérias dis-
americano, que havia surgido com Stonewall12, cussões, causando inclusive separações internas
suscitou em Trevisan a possibilidade de imple- entre os militantes14.
mentar, no Brasil, um tipo de luta semelhante. Um dos militantes que acreditava nessa luta
Porém, a empatia com idéias anarquistas se fez maior contra o sistema capitalista era James N.
presente no momento de pensar um movimen- Green. Nascido em 1951 em Baltimore, nos
to homossexual brasileiro. Estados Unidos, Green deixou a cidade em
Ao voltar para o Brasil e aproximar-se de 1968 para estudar numa universidade de origem
pessoas que também se sentiam oprimidas por Quaquer15 , onde se formou em Ciência Políti-
serem homossexuais em uma cultura rigida- ca, em 1972. Durante a faculdade, envolveu-se
mente machista, Trevisan defrontou-se com nas manifestações contra a Guerra do Vietnã,
novas formas de implementar essa luta. Algu- além de procurar resolver uma questão relevan-
mas das pessoas que aderiram ao movimento te em sua vida: a homossexualidade.“O fato de
estavam envolvidas com outras causas políticas sentir que era homossexual gerava a sensação
e tinham como inimigo comum o sistema de não saber o que fazer”16.
capitalista que, em última instância, seria Nesse período, entrou em contato com os
responsável pela manutenção da discriminação movimentos feminista e da contracultura. Suas
em todos os seus níveis.
13 Entrevista de João Silvério Trevisan. In: SILVA, Cláudio
“A luta maior era a luta do proletariado, que Roberto da. Reinventando o Sonho: História oral de vida
não poderia sofrer nenhum tipo de ruptura...e política e homossexualidade no Brasil contemporâneo.
Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 1998. p. 225.
nós estávamos ameaçando a sua unidade. A
nossa reflexão era a seguinte: ‘Se você é pro- 14 Ver MacRae (1989).
letário ou não, sendo preto, você vai ser dis-
criminado. Se você é proletário ou não, pobre 15 Os Quaquers construíram um grupo protestante peculiar,
ou não, sendo mulher você vai ser discrimina- na Inglaterra, surgido em 1640. Eram um grupo de origem
pacifista, a favor da igualdade social e que se recusavam
da (....) desse modo, a luta de classes não pode a prestar lealdade ao rei, motivos pelos quais muitos fo-
ser uma varinha mágica que explique todas as ram presos e sofreram perseguições religiosas. Posterior-
mente, fizeram um acordo e conseguiram terras fora da
Inglaterra, fundando uma colônia no Estados Unidos – a
Pensilvânia – onde, pela primeira vez, houve liberdade
12 A invasão do bar Stonewall, freqüentado por religiosa no Novo Mundo.
homossexuais, ocorrida em Nova York em 1969, é
considerada um marco do ativismo homossexual nos 16 Entrevista de James N. Green. In: SILVA, Cláudio Roberto
EUA. Sobre esse assunto, John D’Emilio (1983). da, op. cit.

ar tigos
68 JOSÉ RONALDO TRINDADE

questões pessoais, entre as quais despontava a Green veio para o Brasil, mais especifica-
homossexualidade, encontravam ecos nesses mente para São Paulo, no final dos anos 70.
movimentos. Envolveu-se nas lutas políticas contra a ditadu-
ra militar e, em 1977, passou a militar na Con-
“Ao participar de conferências de mulheres, vergência Socialista. Nesse período, aproximou-
comecei a perceber o apoio ao novo modelo se dos integrantes do Grupo Somos, ainda
masculino. Nestes eventos, havia agrupações bastante embrionário. Porém, os ideais revolu-
internas compostas por homens, entre os quais cionários de Green levaram-no a conceber o
se encontravam homossexuais assumidos”17 movimento homossexual de forma distinta
daquela proposta por Trevisan.
Assim como Trevisan, Green aproximou-se
da militância homossexual nos Estados Uni- “Eu idealizava a construção de um movi-
dos. Isso é particularmente interessante, pois mento gay-lésbico que lutasse pelos seus direi-
foram dois atores importantes para a fundação tos, como fazia o movimento negro e o movi-
do primeiro grupo de ativismo homossexual no mento feminista. Acreditava contudo na neces-
Brasil – O Grupo Somos de Afirmação Ho- sidade de alianças com outros setores sociais.
mossexual, sediado em São Paulo. Embora já Não somente com as minorias (...) mas com
se possa falar de diferentes contextos sociais e qualquer um onde houvesse homossexuais, por
de experiências diversas no modo de vivenciar exemplo, a classe trabalhadora e as classe
as relações homoeróticas, outras questões de- populares. Ao meu modo de ver, esses eram os
vem ser levantadas. setores mais dispostos a fazer uma transformação
Se Trevisan aderiu à causa da global da sociedade. (...) Sempre reivindiquei
homossexualidade por ela estar ligada diretamente essa posição dentro do Somos...batalhava por
às suas próprias experiências, também era muito este ponto de vista. Isso causou divergências
simpático às idéias anarquistas, com as quais se no próprio movimento homossexual.”19
relacionou nos Estados Unidos. Green, por outro
lado, estava envolvido em lutas contra regimes Além de causar discussões internas ao grupo,
totalitários e contra o capitalismo. Chegou, tais modos de pensar a militância acabaram se
inclusive, a viajar para a América Latina, onde refletindo nas obras de Green e Trevisan. Um
alguns grupos revolucionários pretendiam minar tópico é particularmente interessante nesse sen-
as bases do sistema capitalista tido: embora ambos tenham vivido aqueles anos
no Brasil – o período de formação do movi-
“Eu, como muitas pessoas, idolatrava a mento homossexual brasileiro –, a maneira
América Latina, Che Guevara, a Revolução como pensavam as questões relativas à “identi-
Cubana. Ao meu modo de ver, a esquerda norte- dade” parecem ser bastante diferentes em seus
americana estava meio fraca, caminhando para livros.
o declínio. Na América Latina parecia que tudo Numa abrangente pesquisa sobre a história
estava acontecendo”18 da homossexualidade brasileira, que se estende
desde o Brasil colonial até os anos 90 do século
17 Entrevista de James N. Green. In: SILVA, Cláudio Roberto XX, Trevisan procura demonstrar que o envolvi-
da, op. cit.

18 Entrevista de James N. Green. In: SILVA, Cláudio Roberto 19 Entrevista de James N. Green. In: SILVA, Cláudio
da, op. cit. Roberto da, op. cit., p. 384.

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ATORES/AUTORES: HISTÓRIAS DE VIDA E PRODUÇÃO ACADÊMICA DOS ESCRITORES DA HOMOSSEXUALIDADE NO BRASIL 69

mento entre pessoas do mesmo sexo – que ele na esteve, nesse período, preocupada com to-
chama de homossexualidade – não é uma in- das as práticas que implicassem a quebra de uma
venção recente, mas já se fazia notar desde os disciplina do trabalho – vadiagem, prostituição,
primeiros séculos da colonização. Perseguidos alcoolismo. Essa noção insere a discussão da
pela Igreja, que caracterizava essa prática como homossexualidade num panorama mais
pecado nefando, os homossexuais foram presos amplo, que seria outra modalidade da ex-
pelo tribunal do Santo Ofício e, em alguns ca- ploração capitalista.
sos, mandados para a fogueira.(Trevisan, 2000). Logo, é possível perceber duas maneiras dis-
Sua obra parte do pressuposto de que tintas de pensar a homossexualidade. Ambas,
qualquer tipo de envolvimento erótico entre no entanto, encontram apoio na trajetória de
pessoas do mesmo sexo deveria ser entendido seus autores. Trevisan sempre mostrou-se céti-
como homossexualidade. Como um dos fun- co em relação à constituição de lutas políticas
dadores do grupo Somos, Trevisan apostava com um viés partidário, simpatizando-se com
na idéia de que era necessário construir uma causas anarquistas.
identidade homossexual. Somente dessa for-
ma seria possível lutar contra os pressupostos “Eu tive participação em vários grupos
machistas que tornavam conflituosas as vidas políticos. Participei inclusive da Ação Popular,
dos homossexuais. Ao investigar a história bra- mas tenho muita dificuldade para me sentir
sileira em busca de relações entre pessoas do conivente com partidos. A minha consciência
mesmo sexo, o autor oferece aos homossex- ultrapassa a conivência do partido e esse é um
uais um passado e, junto a isso, a motivação outro problema na minha vida (...) eu me
para que assumam uma identidade pautada considerava maoísta, mas na verdade, o que me
nas suas práticas eróticas e afetivas. atraía no maoísmo era o anarquismo implícito
Green também acredita na existência de uma em alguns de seus aspectos.”20
identidade homossexual; todavia, os percursos
que traça para chegar a essa noção são com- A identidade homossexual que surge na obra
pletamente diferentes daqueles propostos por de Trevisan, tanto quanto sua própria trajetória,
Trevisan. Em seu livro, Green procura verificar não está atrelada a uma organização política,
a construção social da homossexualidade no nem é fruto da exploração econômica de um
Brasil, tomando como recorte temporal os últi- sistema. Para ele, ser homossexual já seria causa
mos anos do século XIX e estendendo-se até o suficiente para que as pessoas se organizassem e
início dos anos 80 do século seguinte. Esse lutassem contra o machismo existente na so-
recorte já evidencia que, para o autor, a invenção ciedade. Quando remonta ao Brasil Colônia
histórica da homossexualidade ocorreu num para evidenciar a perseguição de que foram víti-
contexto específico: a incorporação das práti- mas os homens que se envolveram sexualmente
cas homoeróticas pela medicina na segunda com outros homens, o autor pretende mostrar
metade do século XIX. A homossexualidade a uma continuidade do preconceito, do patriar-
que ele se reporta começou a se tornar uma preo- calismo e da influência da Igreja na avaliação
cupação médica num momento político e da homossexualidade. Não seria, então, apenas
econômico de substituição, em terras brasilei-
ras, do trabalho compulsório pela mão-de-obra
assalariada. Cumprindo um papel específico –
20 Entrevista de João Silvério Trevisan. In: SILVA, Cláudio
a construção do trabalhador ideal –, a medici- Roberto da, op. cit., p. 225.

ar tigos
70 JOSÉ RONALDO TRINDADE

com a introdução do capitalismo no Brasil que antropologia. Depois de realizar pesquisas de


a homossexualidade passaria a ser perseguida. campo na África, Fry veio ao Brasil lecionar na
A história que Green propõe em seu livro UNICAMP e defrontou-se com um lugar bem
atenta inicialmente para a homossexualidade menos exótico do que esperava encontrar:
no meio urbano, a resistência contra um siste-
ma em que a sua presença era reprovada, até “A primeira reação entre mudar da Inglater-
chegar nas primeiras organizações que, embora ra e chegar no Brasil foi de intenso desaponta-
não constituíssem lutas políticas – num senti- mento. Fui para Campinas e a minha versão
do institucional – , aglutinavam pessoas em romântica do Brasil, como uma mistura entre
torno de um objetivo: viver as práticas ho- África e Portugal, não tinha nada a ver com
mossexuais de forma coletiva, compartilhando aquela cidade. Na verdade achei o Brasil pouco
valores comuns e modos de vida parecidos. Os exótico...Campinas parecia uma espécie de có-
primeiros informativos, que se reportavam a pia xérox, mal feita, da classe média
fofocas, anúncios de bailes e concursos de bele- mundial...realmente fiquei muito desapontado.
za voltados para homens que se travestiam de Parecia que tinha chegado numa espécie de
mulher, teriam aberto caminho para que, no subúrbio de uma grande metrópole!”21
futuro, os homossexuais viessem a se organizar
politicamente, o que incluiu a criação de um Em meados da década de 70, Peter Fry
periódico mais consistente e de maior tiragem publicou um livro chamado Para Inglês Ver.
voltado para esse público – O Lampião de Es- Nessa coletânea de textos, Fry parecia ter saído
quina. Na obra de Green, a construção da identi- em busca desse Brasil exótico que não achou
dade homossexual, que é urdida no decorrer em sua chegada. Ali, comentava sobre a
do século XX, tem um caráter político muito homossexualidade dos pais de santo dos
forte, o que certamente fala muito da sua própria terreiros de macumba em Belém do Pará, onde
maneira de lutar contra a discriminação: a or- realizou pesquisa de campo. Além disso,
ganização política e a aliança com outros seg- abordava as representações que a feijoada
mentos discriminados e explorados da popu- adquiria enquanto um dos símbolos de
lação. identidade nacional. Passou então a investigar
Porém, enquanto Trevisan e Green preo- os entendimentos da homossexualidade
cuparam-se em escrever obras que procuravam brasileira, o que, a seu ver, eram bastante
refletir sobre a história da homossexualidade no diferentes do que acontecia em outros lugares
Brasil, outros autores voltaram-se para a antro- que havia visitado. Num texto chamado “Da
pologia. Neste texto, reportar-me-ei às pesqui- Hierarquia à Igualdade”, em que reflete sobre
sas de Peter Fry e Edward MacRae. como se deu a construção social da
Peter Fry nasceu na Inglaterra em outubro homossexualidade no Brasil, Fry propõe a
de 1941. A princípio, orientou seus estudos existência de dois sistemas pelos quais ela foi
para a matemática.“Não sabia escrever muito pensada. O primeiro seria o modelo
bem...escrevia mal! Temia um pouco as ciên- hierárquico, no qual a relação entre homens
cias mais literárias: História, Inglês, Literatura”. estaria pautada numa polaridade (bofe/macho/
O contato com a antropologia aconteceu na penetrador x bicha/fêmea/penetrada), que
universidade. Esta disciplina pareceu a Fry um
meio termo entre ciência e literatura. No pri-
21 Entrevista de Peter Fy. In: SILVA, Cláudio Roberto da,
meiro ano de graduação migrou, então, para a op. cit.

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ATORES/AUTORES: HISTÓRIAS DE VIDA E PRODUÇÃO ACADÊMICA DOS ESCRITORES DA HOMOSSEXUALIDADE NO BRASIL 71

vingaria até meados dos anos 70. Esse modelo penetra, independentemente de se o faz com
cederia lugar para outro, o igualitário (gay/gay), um homem ou com uma mulher, e bicha é
que passou a conduzir as relações sexuais entre quem é penetrado, assumindo, nesse
homens a partir dos anos 70. Não é meu momento, o papel sexual relativo ao sexo
objetivo, aqui, analisar a pertinência ou não feminino – a passividade. Se essa não era uma
das idéias de Fry, mas discutir sobre o que questão para os brasileiros, que viam tal prática
possibilitou que este autor enxergasse tal de forma coerente com as noções vigentes de
realidade em terras brasileiras, afinal, em homossexualidade, para um estrangeiro
estudos anteriores realizados no Brasil, essa colocou-se como um problema bastante
questão não foi sequer ressaltada22. instigante.
Peter Fry vem de um contexto
socialmente diferente da realidade brasileira, “No Brasil, a sexualidade masculina ainda
assim, o que talvez já estivesse naturalizado para corre solta [o autor se refere aos anos
um pesquisador brasileiro era novidade para 70]...precisa de muito menos para ser
ele. comprovada. Não sei como é hoje em dia, mas
era perfeitamente comum um homem casado,
“Custei a perceber que não poderia olhar com filhos, transar com meninos e achar
para o Brasil com o meu olhar inglês. O totalmente normal. Num Brasil mais ou
mundo não é o mesmo....estou convencido menos popular, estou convencido que era outra
disso! Enquanto na Inglaterra já havia uma coisa. No Brasil, um rapaz poderia manter
identidade estanque – num gueto mais ou relações sexuais com outro homem sem deixar
menos escondido e privado, complicado por de ser homem....achei isso interessante”24
causa da lei - , percebia que no Brasil a história
era muito diferente. A sexualidade masculina As conclusões a que Fry chegou através de
é mais interessante que na Inglaterra. O próprio suas pesquisas antropológicas colocavam-no
termo homossexual parecia uma mentira em em choque com a militância homossexual que
cima da realidade brasileira....achava isso muito estava surgindo. Para ele, não se podia falar
complicado!”23 em identidades sexuais estanques num país
como o Brasil, onde as pessoas implementam
Enquanto nos países do hemisfério norte suas práticas sexuais de maneiras tão diversas.
as relações sexuais entre homens se colocavam
como uma atividade específica dos “Para todo mundo é claro que nos Estados
“homossexuais”, as definições macho e bicha Unidos, quem não passa por branco é negro.
estavam pautadas no papel assumido durante No Brasil essa história é mais nuançada....é
a interação sexual. Macho seria aquele que muito relativa. Nos Estados Unidos já se pen-
sava em identidades estanques, fronteiras níti-
das entre o que é homossexual e o que é
22 É importante lembrar que, ainda na década de 50, foi de- heterossexual.....ainda há uma discussão sobre
fendida uma tese sobre homossexualidade em São Pau-
lo, na Escola de Sociologia e Política e que, nessa análise,
a existência ou não do bissexual! No Brasil é
as questões apontadas por Fry não pareciam tão relevan- uma questão muito relativa...mais complicada!
tes. Barbosa da Silva. Homossexualismo.

23 Entrevista de Peter Fry. In: SILVA, Cláudio Roberto da, 24 Entrevista de Peter Fry. In: SILVA, Cláudio Roberto da,
op. cit. op. cit.

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72 JOSÉ RONALDO TRINDADE

Não há identidades estanques, com fronteiras pensar em identidades estanques ainda hoje.
muito claras. Porém o movimento homossex- Suas reservas em relação à forma como a
ual parte do princípio de que há uma identi- militância se desenvolvia no Brasil – muito em
dade homossexual...que essa fronteira existe”25 virtude de como pensava a questão da “identi-
dade” – levaram-no, inclusive, a afastar-se do
Ao assumir o posicionamento de an- movimento homossexual.
tropólogo – atento às diversidades e à peculiar- Também antropólogo, Edward MacRae
idade da cultura (homo)sexual brasileira – a nasceu em São Paulo, em 1946, filho de pai
posição de militante, nos moldes de como a escocês e mãe brasileira, numa família de classe
militância vinha se desenvolvendo no Brasil e média alta. MacRae teve uma formação bilíngüe
em outros lugares do mundo, foi ficando em e sua família fez questão de manter esse bilingüis-
segundo plano. Para Fry, era impossível con- mo através de escolas especializadas. Em 1960
cordar com a assunção de uma identidade ou foi estudar em Edimburgo, Escócia, numa es-
conclamar outras pessoas a assumirem essa cola antroposófica. Nesse período, morou com
identidade. seu tio-avô, que era escocês. Dois anos e meio
depois, foi mandado para um colégio interno
“Em São Paulo, havia todo um processo de na Inglaterra, onde permaneceu até ingressar
dizer aos michês que deveriam assumir uma na faculdade.
identidade gay...isso não tem nada a ver!!! Eram Ingressou na Universidade de Sussex, onde
rapazes ganhando dinheiro, talvez começou a cursar economia. Nas férias da
gostando...não sei!?....não importa! Então, não faculdade, entre 1965 e 1966, MacRae foi para
gostava dessa imposição pragmática de dizer aos os Estados Unidos. Era um período bastante
outros o que eles têm de decidir.”26 conturbado: nessa época acontecia o Verão do
Amor e surgiam os hippies. Nessas férias
Enquanto Green e Trevisan apostam numa MacRae teve os primeiros contatos com as dro-
identidade homossexual, embora a construam gas mais consumidas pelos jovens americanos
de maneiras diferenciadas27, Fry chama a simpáticos à contracultura.
atenção para a necessidade de se pensar as práti-
cas homoeróticas no Brasil de modos diversos “O movimento hippie demorou alguns
de como elas eram pensadas nos países do meses para chegar à Inglaterra. Mas justamente
hemisfério norte. Para este último, é impossível quando começou, assisti aquilo desabrochar nos
Estados Unidos, estava lá e já lia Timothy Leary.
Fiquei muito interessado em experimentar LSD,
25 Entrevista de Peter Fry. In: SILVA, Cláudio Roberto da, mas só experimentei maconha”28
op. cit.

Na universidade, MacRae manteve contato


26 Entrevista de Peter Fry. In: SILVA, Cláudio Roberto da,
op. cit. com o movimento operário e aproximou-se das
idéias socialistas. Desistiu de cursar economia e
27 Vale lembrar que, como militantes do movimento ho- transferiu-se para a psicologia social e, a partir
mossexual, a noção de identidade que aparece nos textos
desses dois autores se aproxima bastante do que Manue-
de então, intensificou a proximidade com
la carneiro da Cunha chamou de usos políticos da identi-
dade. CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Negros Estrangei-
ros. Importante também observar a discussão que 28 Entrevista de Edward MacRae. In: S ILVA , Cláudio
Frederich Barths faz sobre identidades e fronteiras. Roberto da, op. cit.

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ATORES/AUTORES: HISTÓRIAS DE VIDA E PRODUÇÃO ACADÊMICA DOS ESCRITORES DA HOMOSSEXUALIDADE NO BRASIL 73

amigos socialistas, com os quais participou de apartamento foi visitado por Deus e o mundo.
manifestações contra a Guerra do Vietnã em Até o Zé Celso ensaiou ‘As Bacantes’ nele”.
frente à embaixada americana. Nessa época O grupo ligado ao teatro levava uma vida
aconteciam também as manifestações de 68 na homossexual movimentada. As pessoas nele
França, o que acabava atingindo a vizinha In- envolvidas mantinham relacionamentos mais
glaterra de determinada maneira. ou menos públicos, freqüentavam determina-
Ao concluir seu curso, MacRae voltou ao dos espaços e montavam espetáculos contesta-
Brasil e encontrou um país que vivia sob uma dores da moral e dos papéis de gênero. MacRae
pesada ditadura. Decidiu voltar à Inglaterra e passou a manter contato com alguns intelec-
iniciar o mestrado em sociologia da América tuais da UNICAMP, que o levaram a iniciar
Latina na Universidade de Essex. Durante esse uma pós-graduação em antropologia. Foi en-
curso, envolveu-se com a esquerda mais anar- tão que se deu a aproximação com o an-
quista e também com o movimento feminista, tropólogo Peter Fry, que se tornou seu orienta-
que tomava cada vez mais força. Através das dor numa pesquisa sobre homossexualidade.
feministas conheceu o Gay Libertation Front, Durante a semana, morava em Campinas na
que, tanto quanto as feministas, buscava ques- casa de Fry e, nos finais de semana ambos
tionar os rígidos papéis de gênero que permea- vinham para São Paulo, onde ficavam em seu
vam a sociedade. apartamento.
Depois de concluir o mestrado, voltou ao Através de Fry, MacRae tomou conhecimen-
Brasil e passou a se relacionar com pessoas liga- to do jornal Lampião e se aproximou do Grupo
das ao teatro e à publicidade. Ainda marcado Somos que se tornaria, então, objeto de sua
pelos estudos do mestrado, resolveu fazer via- pesquisa: preocupou-se em estudar a formação
gens pelos países da América Latina que viviam e os rumos que o grupo tomaria. Suas idéias
sob ditaduras. sobre identidade homossexual foram visivel-
mente influenciadas pelos estudos que Fry havia
“Acho que passei doze anos sem ir à Ingla- desenvolvido, como, por exemplo, a afirmação
terra, só viajava pela América do Sul.(...) Na de dificuldade de se pensar identidades es-
época do Allende estive no Chile, viajei uns três tanques e os problemas que isso gerava para a
meses pela América do Sul, para Machu Pichu, manutenção de um grupo de militância ho-
para a Argentina, assistindo os filmes censura- mossexual. Porém, suas questões vão além
dos que não passavam no Brasil, então visitei a dessa discussão. As ligações anteriores com o
Argentina no período entre ditaduras, pois tudo pensamento socialista, movimentos gays e
acontecia lá”29 feministas e com as lutas de outros setores – as
chamadas “minorias” – levaram-no a refletir
Por volta de 1974, MacRae herdou de sua sobre as possibilidades de uma militância ques-
avó um apartamento na Praça da República, tionadora.
em São Paulo. Intensificaram-se, nesse perío-
do, as relações com pessoas ligadas a um teatro “No Somos sempre vi a questão
mais questionador da realidade social, que pas- homossexual sob o ângulo político. Achava que
saram a se reunir em seu apartamento...“Esse ela deveria estar ligada a outras questões políticas

29 Entrevista de Edward MacRae. In: S ILVA , Cláudio 30 Entrevista de Edward MacRae. In: S ILVA , Cláudio
Roberto da, op. cit. Roberto da, op. cit.

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74 JOSÉ RONALDO TRINDADE

e de esquerda. Dos meus amigos eu era o mais Porém, a despeito desses pontos comuns,
‘politizado’. Havia pessoas que diziam: ‘Não cada um deles encontrou maneiras diferentes
queremos sair dizendo ABAIXO A de pensar tanto a militância como as questões
DITADURA...que coisa careta!’. Eu muito pelo ligadas à identidade sexual. Se para Trevisan falar
contrário, achava que não era careta dizer em identidade homossexual significa remeter a
ABAIXO A DITADURA. Ela tinha que ser uma história muito anterior, não sendo,
abaixada porque era um horror”30 portanto, fruto de conjunturas políticas e sociais,
Green prefere pensar essa identidade como um
A pesquisa de MacRae acabou se transfor- “fazer-se” histórico, a partir das situações de
mando no primeiro trabalho acadêmico a con- conflito e solidariedade que marcaram as
tar a história de um grupo de militância ho- experiências homoeróticas no século XX. No
mossexual no Brasil. Nele, o autor aborda a entanto, dizer que Green busca uma organização
criação do Somos, os conflitos internos e as dis- social e política de seus sujeitos para então pensar
cussões sobre as estratégias de luta implemen- a constituição de uma identidade não significa
tadas por esse grupo. A Construção da Igual- dizer que a história pensada por Trevisan seja
dade foi publicado em 1989 e, embora as identi- apolítica. Afirmar, como faz Trevisan, que a
dades estanques sejam revistas em sua pesquisa, homossexualidade sempre existiu, também é
MacRae procura explorar a importância da um projeto político, ainda que não se refira a
militância para uma maior abertura da socie- uma política institucional.
dade com o objetivo de pensar questões ligadas Embora Fry tenha se aproximado das lutas
à homossexualidade. homossexuais em seu país, as formas como a
militância acontecia na Inglaterra não o
ALGUMAS CONCLUSÕES
ONCLUSÕES agradavam. Uma vez no Brasil, passou a
conhecer uma realidade social, política e sexual
Ao abordar as trajetórias e as obras desses muito diferente. Observou comportamentos
atores/autores, algumas semelhanças podem que se distinguiam daquilo que havia
ser apontadas. Talvez a mais importante presenciado em seu país. Fry acreditava que
delas seja o fato de que os quatro atores/ transplantar idéias advindas de outras
autores experimentaram uma realidade experiências de relações homoeróticas para as
social externa ao Brasil. Embora brasileiros, terras brasileiras era pouco saudável. Daí suas
tanto Trevisan quanto MacRae travaram reservas com o modo de constituição da
conhecimento com a experiência de militância homossexual no Brasil. Logo,
militância que se desenrolava nos países começou a forjar novas idéias a respeito do
“desenvolvidos” do hemisfério norte. Green envolvimento entre pessoas do mesmo sexo no
e Fry não eram brasileiros, e cada um em Brasil.
seu país pôde vivenciar outras experiências O engajamento de MacRae com as lutas
políticas e sociais relacionadas à políticas das minorias, a aproximação com a
homossexualidade. O contato com atmosfera contestatória da classe teatral e a
realidades estrangeiras parece, então, ter sido amizade com Peter Fry o levaram à elaboração
um marco importante no surgimento do de um trabalho que, ao mesmo tempo em que
primeiro grupo de militância homossexual olhava com reservas para questões relacionadas
no Brasil e dos trabalhos sobre a identidades homossexuais estanques, atentava
homossexualidade escritos no futuro. para a importância da militância no

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ATORES/AUTORES: HISTÓRIAS DE VIDA E PRODUÇÃO ACADÊMICA DOS ESCRITORES DA HOMOSSEXUALIDADE NO BRASIL 75

desenvolvimento das lutas por direito e CHARTIER, Roger. “Text, Symbol and
cidadania. MacRae não deixava, no entanto, Frenchness”. In The Journal of modern His-
de observar os diversos projetos políticos que se tory. n. 57, 1985.
chocavam no cotidiano dessa militância.
Por fim, fiz um esforço no sentido de refletir CHAUNCEY, George. Gay New York: Gen-
sobre como os sujeitos históricos podem ser der, Urban Culture and the making of the
influenciados por suas próprias trajetórias, seja gay male world. 1890-1940. Nova York:
na maneira como se organizam politicamente, Basic books, 1994.
seja no modo como representam ou recontam
o passado em seus escritos. É certo, porém, que CLASTRES, Pierre. “O Arco e o Cesto”. In: A
as entrevistas utilizadas para compor este texto Sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro:
são fruto de um esforço da memória que, de Francisco Alves, 1978.
alguma forma, seleciona e reinterpreta os acon-
tecimentos num presente construído por leitu- CLIFFORD, James. A Experiência Etnográfi-
ras bastante particularizadas. ca: Antropologia e Literatura no século XX.
Vale lembrar que, ao investigar a biografia Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.
desses atores/autores, me torno mais um autor,
refletindo sobre a trajetória dessas pessoas e, dessa COSTA, Jurandir Freire. A Inocência e o Ví-
forma, construindo meu próprio trabalho cio. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1992.
acadêmico. Nesse sentido, resta ser problema-
tizado – o que pretendo fazer ao longo de CRAPANZANO, Vincent. Waiting: The
minha tese – quais as implicações disso para a White of South Africa. Nova York: Random
produção de uma etnografia. Por enquanto, este House, 1985.
texto representa muito mais o início de uma
investigação do que o estabelecimento de uma DANIEL, Herbert e PARKER. AIDS, a ter-
resposta definitiva. ceira epidemia: Ensaio e tentativas. São Pau-
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78

cader nos de campo · n. 10 · 2002


79

U M GRANDE ATRA TOR1: TORÉ E AR


TRAT TICUL
ARTICUL AÇÃO ( INTER) ÉTNICA
TICULAÇÃO ENTRE OS
2
T UMBAL ALÁ DO SER
UMBALALÁ TÃO BAIANO
SERTÃO

UGO MAIA ANDRADE*

resumo: O campo religioso vem se mostrando abstract


abstract: Religious field has been a
um domínio privilegiado a partir do qual privileged way through wich common
sentimentos comunitários e significados feelings and cultural meanings are built by
culturais são construídos pelos grupos indígenas the Indian groups at the Northeast of Brazil,
do Nordeste brasileiro, notadamente aqueles especially those called “ emergentes”. The
denominados “emergentes”. A proposta deste proposal of this article is to discuss the toré
artigo é discutir o papel que o toré desempenha as a hegemonic ritual to these people,
como ritual hegemônico entre essas populações, showing the connection between the
destacando a conexão entre o político e o political and the religious in the ongoing
religioso na construção da identidade dos building of Tumbalalá’s identity in the
Tumbalalá do Norte da Bahia. Nota-se que o North of Bahia state. It’s possible to see that
campo ritual é o espaço em que relações the ritual field is the local where interethnic
interétnicas de reciprocidade são reforçadas e relationships of reciprocity are reinforced
animam as etnogêneses regionais. and animates the regional ethnogenesis.
palavras-chav
palavras-chavee : identidade, ritual, relações key-wor
key-words ds
ds: identity, ritual, interethnic
interétnicas, índios do Nordeste. relationship, Brazilian Northeast Indians.

* Mestre e Doutorando em Antropologia Social – USP Numa atitude que lembra a dos heróis
Bolsista CNPq (Av. Nossa Sra. da Assunção, 1336, ap. 21,
Vila Butantã. 05359-001. São Paulo - SP. Tel 3719-2841. míticos fundadores, o patriarca da família
E-mail: ugomaia@usp.br) Fatum, João (de Silivina) Vieira Fatum,
1 Em cosmologia física, o “grande atrator” é um corpo oculto de instalou em sua propriedade, na fazenda São
altíssima densidade e força gravitacional responsável pelo Miguel, um cruzeiro de toré, obedecendo às
deslocamento convergente de galáxias em sua direção e que pode
ser o resultado de uma gigantesca concentração de energia cristalizada
recomendações do encanto Manuel Ramos.
na forma de super cordas após a explosão primordial que deu origem Foi a criação do mundo. Era o final dos anos
ao universo. Utilizo a imagem do atrator para o toré por este
40 e a concessão vinda do sobrenatural deu a
apresentar – dentro do universo tumbalalá – grande densidade
simbólica, alto poder de atração e de concentração de signos de licença para que os Fatuns e alguns outros
identidade e estar referenciado às origens do grupo. retomassem a autonomia ritual frente aos
índios Truká, então aprendizes desses segredos
2 Este texto é parte de minha pesquisa de mestrado com o grupo
Tumbalalá, concluída em janeiro de 2002 e que contou com o pelas mãos dos Tuxá de Rodelas. Fundação do
financiamento da FAPESP, através da concessão de bolsa de terreiro de toré do São Miguel, instauração de
mestrado, durante o período de agosto de 1999 a agosto de 2001.
80 UGO MAIA ANDRADE

uma atividade ritual independente. A espessura aldeamento de Pambú4, um ajuntamento


simbólica desse momento é acentuada na multiétnico pouco relatado pela bibliografia
história dos Tumbalalá de hoje; é a partir dele especializada, cuja natureza – secular ou
que as condições necessárias para a formação regular – é ainda obscura.
do grupo começam a estar à sua disposição É possível dizer que, via de regra, os grupos es-
mediante ações empreendidas no plano ritual tão sempre se redefinido: basta pensar nas reno-
por algumas pessoas que, num futuro distante, vações de suas gerações. Essa dinâmica tende a se
se envolveriam num projeto político de base acentuar quando os critérios de inclusão/exclusão
étnica ampliado. são selecionados a partir de revisões ensejadas por
Os Tumbalalá formam hoje um grupo decisões e disputas políticas que crivam a pertença
oficialmente recém reconhecido e ainda ou não de indivíduos ao grupo, calcadas em certos
indeterminado quantitativamente, isto elementos de seus repertórios culturais, igualmente
valendo tanto para sua população quanto reavaliados nos momentos críticos. Para os Tum-
para seu território, ambos em processo de balalá, assim como para os outros grupos indíge-
formação. Apresentam dois núcleos político- nas do Nordeste, o toré é o condensador por onde
rituais – que podem ser chamados de São passa todo universo político, motivando uma real
Miguel e Missão Velha, em função dos locais imbricação entre os campos político e religioso. O
onde estão instalados seus terreiros de toré3 toré é um complexo ritual que conjuga atividades
– desiguais em poder de articulação e públicas conectadas ao culto à jurema (Mimosa
captação de apoio, que concorrem nigra, Mimosa hostilis, Acácia hostilis, Acácia jure-
discretamente entre si sem, no entanto, ma, Mimosa verrucosa e Phitecolobium diversifo-
demonstrarem disposições para o conflito lium) a encantos, e é amplamente disseminado na
mais aberto. Os critérios atuais de adesão a área etnográfica do Nordeste indígena. Jurema é
um ou outro núcleo variam, indo do um arbusto de porte médio, espinhoso ou não,
parentesco a certas conveniências como a bastante comum no sertão do Nordeste de cuja
proximidade da residência em relação a um entrecasca se produz uma bebida amarga e de cor
dos terreiros de toré. avermelhada, com propriedades potencialmente
Ao todo, são aproximadamente 150 enteógenas, que vários grupos indígenas locais
famílias, que ocupam uma área, ainda não chamam de “vinho da jurema”.
delimitada pela FUNAI, que tem algo em Hohenthal Jr. afirma, num trecho em que, prov-
torno de 22.000 a 80.000 hectares de avelmente, descreve uma sessão de toré Tuxá que
extensão, conforme alegam algumas “geralmente, uma infusão narcótica é preparada
lideranças políticas e rituais, localizada no com o entrecasco da juremeira (Acácia jurema M.
extremo norte do sertão baiano do sub- ou Mimosa nigra), que combina com inalações
médio São Francisco (08o33’S e 039o21’W). copiosas de forte fumo de rolo e, acrescida ainda de
O movimento étnico tumbalalá envolve a
reclamação de uma herança cultural em
relação aos índios dzubukuá cariri, 4 Há referências documentais sobre uma missão de Pambú
localizada em uma ilha do rio São Francisco, provavelmente a
reduzidos, nos séculos XVII e XVIII, ao atual ilha da Assunção, situada defronte ao povoado do Pambú
(cf. Nantes, 1979: 35-36). Por deliberação do governador de
Pernambuco, João de Lencastro, ainda no final do século XVII,
todos os aldeamentos insulares jesuítas do rio São Francisco
deviam possuir uma légua em quadra em sua respectiva margem
3 Existe ainda pelo menos outro terreiro de toré, no Pé da Areia, baiana (Bandeira, 2000: 203), o que não valeu para a missão do
que não tem vida ritual própria nem posição política definida. Pambú, administrada nesta época por capuchinhos.

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UM GRANDE ATRATOR: TORÉ E ARTICULAÇÃO ( INTER)ÉTNICA ENTRE OS TUMBALALÁ DO SERTÃO BAIANO 81

auto-hipnose provocada por dança e cantos monó- ritual apresenta um extraordinário poder de
tonos, resulta em visões que, afirmam, permitem aglutinar símbolos unificadores basilares para
aos participantes falar com os espíritos” (Hohenthal a construção de uma identidade exclusiva
Jr., 1960a: 61). A penetração dessa planta no uni- tumbalalá que, por sua vez, vem emergindo
verso ritual dos índios do Nordeste é bastante acen- de uma ampla matriz cultural regional.
tuada e todo o simbolismo que gravita em torno As variantes do toré são o praiá e o ouricuri,
dela se assemelha àquele atribuído aos encantos. praticados pelos Pankararú, Geripankó,
A rigor, os rituais do toré e da mesa de toré Pankararé, Jeripankó, Kantaruré, Kambiwá
(considerando-se as devidas distinções performáti- (praiá) e Fulni-ô, Kariri-Xokó, Xucuru-Kariri,
cas e de ordem estrutural) consistem na manutenção Tingui-Botó (ouricuri) (Nascimento, 1998:
dos vínculos com esses seres, o que imediatamente 15), e sua sessão privada é chamada de mesa
produz a necessidade do sancionamento de ações de toré 6 ou particular. Os encantos ou
coletivamente válidas nos planos moral e político. encantados constituem a parte ativadora do
A sistematização dessas ações e programas morais toré e formam uma grade de entidades,
formam o “regime” tumbalalá, que será melhor exclusivas ou compartilhadas regionalmente,
discutido adiante. O setting para o toré público que circulam entre as aldeias analogamente ao
envolve, fundamentalmente: um terreiro retangu- movimento na rede de relações interétnicas que
lar ou espaço de terra batida e lisa com um cruzeiro unem os grupos indígenas do Nordeste. São
de madeira em um de seus lados menores; oficiantes entidades sobrenaturais, classificadas pelos
ritualmente aptos; uma audiência participante, que Tumbalalá em encantos do brabio (ou da terra,
varia de quinze a oitenta pessoas que dançam e da caatinga) e das águas – com aparentes
entoam as linhas, ou simplesmente observam, e a atribuições de prerrogativas apropriadas a esses
bebida da jurema. A presença dos encantos – me- dois elementos –, que se distinguem dos
diante transe possessivo dos mestres – decorre da espíritos dos mortos por passarem por um
competência ritual dos oficiantes, o que, de resto, processo de encantamento que transforma, de
determina todo o sucesso do ritual, que se adensa à maneira volitiva, e não compulsória, uma
medida que os símbolos de comunhão com o so- pessoa que morreu em um encanto,7 que passa
brenatural e o passado (a jurema, o conteúdo das a habitar não um estrato separado de nosso
linhas, a fumaça ofertada aos encantos, etc.) vão se mundo empírico, mas locais específicos
tornando mais operativos. (morros, cachoeiras, depressões no terreno,
Concorrem também para tal comunicação el- grutas etc.) na geografia da aldeia.
ementos católicos, como o cruzeiro, e a freqüente
invocação de santos – Jesus Cristo, Deus e Nossa 6 Uma mesa pode ser encomendada por alguém que pretende
uma dádiva dos encantos, comumente a cura para uma enfer-
Senhora – o que revela as fortes influências do midade, ou por aquele que está retribuindo um dom já obtido
catolicismo popular e de cultos afrobrasileiros, do sobrenatural. O contratante encomenda então o ritual aos
embora o discurso dos oficiantes mestres de toré oficiantes reconhecidamente habilitados, convida algumas pes-
soas mais chegadas e arca com todas as expensas (velas,
veementemente afaste qualquer relação com estes cachaça, fumo, jurubeba, etc.) da cerimônia, que poderá ser
últimos, por considerá-los práticas voltadas para o realizada em sua própria residência em dias específicos da se-
mana.
mal e contrárias à ideologia cristã5. Em síntese, o
7 Entre os Tumbalalá, é acessível a algumas pessoas um
encantamento provisório ao modo das viagens
5 Para um bom entendimento das relações entre toré e for- xamanísticas, incluindo transformação física e
mas afro-brasileiras de culto à jurema, como o catimbó invisibilidade, poderes conectados fortemente ao plano
ou candomblé de caboclo, cf. Nascimento (1994; 1998). onírico.

ar tigos
82 UGO MAIA ANDRADE

Os encantos costumam formar reservas trabalhando, aí o [velho sempre]... nós tra-


próprias de uma facção política, de um grupo balhava lá e cá, sábado lá e quarta aqui. Aí foi
ou de vários grupos indígenas coligados e que... o senhor sabe que esse pessoal, esse pes-
apresentam naturezas das mais diversas, indo soal que trabalha com os antigo, né? então eles
da benevolência à extrema belicosidade. conhece de todas aldeia, não sabe? Ele tá saben-
Preferencialmente, são aquelas pessoas históri- do de todas aldeia. Disse: “Oia Seu João (João
cas que representaram um papel de destaque Fatum, pai de Sr Aprígio e de Sr. Luís) aqui,
para um ou mais grupos que viram encan- aqui é uma aldeia. Essa aldeia aqui essa é a al-
tos. Eles são a transubstancialização dos deia do Pambú. Essa aldeia aqui, é a aldeia do
agentes políticos de outrora que tiveram par- Pambú.”
ticipação definitiva no processo de reconheci- Os encantos que deram a informação, não é?
mento étnico de seus grupos e de outros; “Os encantos. Aqui é aldeia do Pambú. O
são ex-lideranças políticas – históricas ou não cacique daqui era, chamava Manel Ramos.
– que desempenham no plano mítico as Quem sabe de quando [era esse] Manel Ra-
funções de articulação de que se ocupavam mos, né? [...] Ficamo trabalhando lá e cá, né?
quando vivos, como, por exemplo, o capitão (na ilha da Assunção e no terreiro do São
João Gomes, ex-cacique Tuxá da década de Miguel) trabalhando lá e cá e lá vai... aí quer
40, que hoje, como um encanto, freqüenta o saber? Nós vamos sentar nosso cruzeiro. Nós
toré do terreiro do São Miguel (um dos três temos nossa aldeia.”
terreiros de toré ativos na aldeia tumbalalá) Desde então o senhor não sabia que aqui
para orientar o grupo, dando-lhe uma série de era aldeia?
conselhos que visam manter sua unidade em “Naqueles tempo nós não sabia não. Nós tá
torno dos mesmos ideais e passos políticos a por causa dele. [...]”
serem seguidos. O pai do senhor. fazia os trabalhos na As-
sunção?
I “Lá e cá, lá e cá.”
(Sr. Aprígio Fatum, 77. Setembro de 1998)
O toré tumbalalá, fundado por João Fa- ***
tum nos anos 40, permitiu a religação com os “... quer dizer que o senhor corta um pé de
antepassados através dos encantos, acionando pau, quer dizer que ele bróia, né? que nem
os primeiros movimentos que produziriam esse trabalho aqui [...] Broiô, teve aquela para-
uma identidade exclusiva a partir de referên- deira, não sabe?, daqueles trabalho, quando
cias simbólicas ampliadas e regionalizadas: ele saiu aqui, foi ele broiando de novo. Tá hoje
nesse degrau, como Deus determina, né?”
“... que então nós estava aqui sem saber, né? (Sr. Aprígio Fatum. Fevereiro de 1999)
aqui nós não sabia o que era o toré, né? Aí foi
quando apareceu esse cacique aqui (Acilon Importa verificar na fala de Sr. Aprígio,
Ciriaco da Luz, ex-cacique Truká), que vieram filho de João Vieira Fatum, que há a
dar um encanto. A descendença, não sabe? Dos instauração de uma continuidade cultural que
antigo. Vieram dessa aldeia, Turká, aí. Ele fora suspensa em determinado momento por
(Acilon Ciriaco) não queria, ele não queria tra- fatores externos, comumente associados às
balhar, né? Aí o encanto obrigou ele trabalhar. perseguições por regionais não-índios,
[...] aí foi quando nós trabalhemo, aí ficamo atividade esta que ocorre mediante o auxílio

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UM GRANDE ATRATOR: TORÉ E ARTICULAÇÃO ( INTER)ÉTNICA ENTRE OS TUMBALALÁ DO SERTÃO BAIANO 83

ritual dos Truká. O trabalho ritual do toré é Há uma espécie de tensão permanente en-
também re-produção cultural, atualização tre a mistura e a herança indígena que é
histórica do tempo dos antigos índios, detentores manifesta no universo religioso do toré tum-
de saberes mais apurados e que resistiram ao balalá. Este é um casamento indissolúvel, quase
tempo, porque sobreviveram na forma dos incômodo, que provoca soluções criativas para
encantados. Re-ligar e re-criar são ações desviar-se dos olhares acusadores e desabona-
conjuntas, indissociáveis, realizadas na re- dores por parte de segmentos regionais não
produção simbólica do trabalho do toré; são indígenas sempre de plantão para detectar far-
atitudes que não ostentam sinais diversos e sas sociológicas.
antagônicos (“religar”, como fator de De um lado, o Estado brasileiro exige a
positividade, retorno, volta à origem, e “re- demonstração de uma ligação entre os atuais
criar” como fator de negatividade, arbítrio, grupos nordestinos (este é um procedimento
postulação, degeneração), senão aos olhos de geral, não valendo somente para a região Nor-
quem procura por alguma pureza ou deste) e as antigas populações indígenas au-
originalidade imaculada. Porque a re-criação tóctones como requisito para atender ao pedi-
é um elemento tão próprio da cultura que não do desses grupos do direito ao território e à
haveria re-ligare sem ela, já que é do presente tutela oficial. Do outro, os índios nordestinos
que os homens pensam o passado para reinventam o toré para satisfazer esses fins e
construir sua historicidade. Nada de serem declarados remanescentes indígenas,
desalentador, portanto, existe no fato de a ação caboclos ou índios mais “apurados”. É o que
inventiva e criativa adotada pelos sujeitos se registra, por exemplo, dos Kiriri, Atikun,
coletivos serem elementos centrais para o Truká, Kambiwá e vários outros que
entendimento antropológico do modo como (re)aprenderam o toré para o apresentar à agên-
as culturas funcionam (Wagner, 1981: 35). cia oficial indigenista, que assim exigia para
conceder o reconhecimento de sua indianidade
II (Reesink, 2000: 340; Grünewald, 1999: 150;
Arruti, 1999: 261). Tudo isso ocorre porque a
“Nós tinha aquela visão mesmo de tra- concessão dos direitos indígenas a essas popu-
balhar [bem]. Aí trabalhamos... Aí faz que nem lações baseia-se na comprovação de vínculos
dizia Tubaviana (Inspetor Tubal Viana, fun- genealógicos com os silvícolas aldeados nos séc-
cionário do antigo SPI), que era homem ex- ulos XVII, XVIII e XIX, e, para tanto, é
periente, ele dizia que não precisa: - Ói Ar- necessário um laudo antropológico favorável
cilon (Acilon Ciriaco da Luz, ex-cacique Truká de identificação étnica. Em muitos casos, en-
nas décadas de 40-50), não precisa você chamar tretanto, é improvável que tal vínculo possa
pessoa nenhuma, destar que o sangue chama. ser retraçado e nem sequer há como aplicar o
E não é mesmo? O sangue vai chamando, vai adjetivo de “remanescentes indígenas” a várias
chamando aqueles que daquela descendência, famílias que formam esses grupos, como é o
vai chamando, vai chamando quando vai, tá a caso dos Tumbalalá.
aldeia completa. Não é mesmo? Tá a aldeia Se almejamos um tratamento mais
completa!” criterioso a essa questão, não basta desassociar
(Sr. Aprígio Fatum. Fevereiro de 1999). a concessão oficial dos direitos indígenas da
pureza cultural e estendê-la igualmente aos
“remanescentes”, como propõe Oliveira Filho

ar tigos
84 UGO MAIA ANDRADE

(1999: 117-118), já que tanto os “puros” Cícero – É. Eles foram e voltaram, né? De-
quanto os “misturados” possuem vínculos pois foram voltando aos poucos, foi alguns fo-
genealógicos com populações autóctones ram voltando, né?
locais (havendo apenas uma questão de (Sr. Luís Fatum, 78, Cícero Marinheiro, 40.
diferença de grau). Quando pensamos na área Setembro de 1998)
etnográfica Nordeste, corremos o risco de, em
não se encontrando tais vínculos genealógicos, Quando os Tumbalalá empregam um
engrossar o coro acusatório dos regionais não- discurso que visa legitimar a indianidade de
índios a favor da farsa sociológica. Além disso, certas genealogias não estão, necessaria-
o material empírico da etnografia não é o grupo mente, traçando uma linha que os conecta
social, mas indivíduos, famílias e suas aos índios antigos da missão de Pambú, em-
trajetórias, o que nos coloca uma séria questão: bora em várias ocasiões se digam descendentes
como falar de “grupo remanescente indígena”, deles. Famílias que se autoconsideram tron-
apoiando-se nos critérios genealógicos, quando cos velhos, e são assim vistas por outras, nem
as famílias que o compõem possuem trajetórias sempre apelam para a autoctonia como for-
múltiplas e diversas que, muitas vezes, não as ma de validar sua qualidade tradicional e
conectam às populações autóctones locais do competência ritual; através da exposição de
passado? certos circuitos e trajetos cumpridos pelos
A luz para esse impasse (que não é somente antigos parentes que chegaram a Pambú em
classificatório, mas diz respeito a revisões nas determinada época se estabelece a relação
metodologias aplicadas ao estudo de popu- com o universo simbólico caboclo, mesmo
lações “ultra misturadas”) pode vir dos que sua origem familiar seja parcialmente
próprios sujeitos em questão e de seus discur- exógena.
sos sobre a mistura e suas genealogias: A aloctonia não é uma qualidade negativa
que desabone as genealogias a ponto de ser
Sr. Luís – [Meu] pai tem a família dele em algo sobre o qual não se fala. Evidentemente,
Salvador, família Vieira. É dentro de Salvador a disputa pelo status de tronco velho da
mesmo. aldeia tumbalalá tende a atribuir mais
Família grande. prestígio às famílias que se auto-representam
Sr. Luís – É grande. E por parte da nossa como autóctones, em detrimento daquelas
bisavó, é Cariri [...] Minha bisavó, cariri. De que têm ramos vindo de fora. Mas o que
Pernambuco. Já meu bisavô, de Salvador. Den- importa mesmo nesse caso é captar os
tro de Salvador. discursos que explicam e neutralizam a
Cícero – Essas famílias, da indescendência propriedade potencialmente negativa da
dos índios, houve uma guerra há muito tem- aloctonia apelando para um fluxo circular
po, por questão de os branco querer tirar os de saídas e retornos de famílias de índios
índios da região dele, né? Aí houve muita que deixaram a aldeia tumbalalá
morte, morreu muito índio muitas pessoas e involuntariamente. A dicotomia “de fora/
muitos índios fugiram daqui, saíram, né? En- de dentro” deixa de fazer sentido e os
tão as famílias foram, fugiram e depois volta- movimentos de famílias exógenas passam a
ram. denotar um retorno à terra de origem, como
Sr. Luís – De um canto pra outro. se vê na fala de Cícero Marinheiro.

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UM GRANDE ATRATOR: TORÉ E ARTICULAÇÃO ( INTER)ÉTNICA ENTRE OS TUMBALALÁ DO SERTÃO BAIANO 85

Mas há uma ressalva: a modalidade mais Essas pessoas são, por assim dizer, “rema-
usual de discurso autenticador de genealo- nescentes indígenas translocais” que não têm
gias adotada pelos tumbalalá do núcleo São sua indianidade obliterada pela aloctonia, já
Miguel é aquela que toma por partida a his- que a qualidade de índios nordestinos (não
toricidade indígena do local de emigração importando de que local sejam) basta para lhes
das famílias, que foi sendo fixada na garantir o acesso à identidade exclusiva tum-
memória coletiva do grupo provavelmente balalá, desde que haja a filiação a um de seus
através dos circuitos de trocas rituais esta- núcleos de toré. É fazendo parte dos trabalhos
belecidos com os grupos originários dessas rituais especificamente tumbalalá que a aloc-
regiões. Ter um bisavô ou avó que veio de tonia individual ou familiar pode ser revertida
Tacaratú, Serra do Umã ou Rodelas8, por em identidade local, anulando sua potenciali-
exemplo, lugares que são reconhecidamente dade de exclusão. Tal situação evidencia-se, so-
“terra de índio”, pode atestar a pertença de bretudo, no discurso daqueles que, não tendo
uma pessoa ao universo caboclo tumbalalá, já ainda aderido formalmente à causa étnica, es-
que este emerge do quadro regional mais am- tão prestes a “entrar para os índios” frente às
plo de referências a um universo indígena pressões crescentes em que urge uma tomada
maior, sendo o toré simultaneamente o veícu- de posição:
lo de inclusão no simbólico regional e de
emergência da identidade particular. “Rapaz, eu digo a minha verdade, porque
de modo que a gente tá falando ficar nos olho
dos paus a gente tem que acompanhar. Porque
8 Essas três áreas indígenas são umas das mais antigas do é o seguinte: nós somos da, do mesmo [rumo],
sertão do São Francisco. A aldeia dos índios Pankararu
(localizada no entorno da cidade de Tacaratú – PE, bem né? É só a família que tem sangue, né? [...]
próximo à divisa entre os estados da BA, PE e AL) teve Nós temos que seguir a aldeia [...] E olhe, a
suas terras demarcadas em 1941 pelo SPI, mas a redução
desse grupo, por religiosos jesuítas, às margens do São
bisavó de [?] é irmão da minha avó, né, tem
Francisco, data do início século XVII quando, então, sangue. Eu, parte de meu avô, tem sangue,
foram deslocados de ilhas vizinhas e da região que hoje né? De meu avô, que não era daqui também,
ocupam (PETI/MN, 1993: 38-39). A Serra do Umã,
tradicional área de refúgio de índios, negros e brancos né, ele já veio de lá, né, é das caatinga. Então,
nos séculos XVIII e XIX, passou a constar dos arquivos quer dizer, que nós não vamos deixar nosso
do SPI como território de ocupação indígena na década
de 40 do último século, época em que os “caboclos da
pros outros, né? Nós tem que acolher [...]”
Serra do Umã” reclamaram o etnônimo Atikum-Umã e (Cecílio Barbalho, 35. Março de 2000).
adotaram o toré, mas apenas em 1993 viria a acontecer
definitivamente a demarcação de suas terras (PETI/MN,
1993.: 1-2). Data também dos anos 40 do século passado Autores como George Marcus (1991;
a implantação do primeiro posto indígena na cidade de 1998) vêm dando boas contribuições aos
Rodelas (BA) e o início do penoso processo de
demarcação e regularização do território Tuxá, grupo
estudos antropológicos , arejando a disciplina
descendente de várias etnias aldeadas desde o século XVII com noções de abertura e fluidez de fronteiras,
nas vizinhanças de Rodelas, região que até o penúltimo aplicadas às identidades multilocalizadas que
quartel do século XIX sediou missão religiosa. A última
desterritorialização desse grupo ocorreu nos anos 80 do são construídas por múltiplos agentes em
século passado, quando as famílias Tuxá foram impelidas, contextos variados. A expressão
por força da construção da barragem de Itaparica e
submersão de seu território tradicional, a se transferirem
multilocalidade está conectada com a idéia de
para duas áreas vizinhas à cidade de Nova Rodelas (BA) fluxos culturais que ressalta a qualidade
– uma cerca de 100 km, rio acima, da antiga Rodelas, e dinâmica e escorregadia da cultura e da
outra próxima à cidade de Ibotirama (BA), distando 1200
km (PETI/MN, 1993.: 33-34). circulação de seus signos. Essa metáfora

ar tigos
86 UGO MAIA ANDRADE

privilegia o entendimento da cultura enquanto indígenas nordestinas – contrapõem-se em


processo e acentua seu caráter não-estruturado momentos determinados quando dis-
e a opacidade de seus limites. Para Hannerz putam recursos (estes, geralmente, apoio
(1997) os limites culturais podem ser tão de agências indigenistas não-oficiais, no-
difusos a ponto de, em regiões de fronteiras, tadamente o CIMI), material simbólico,
sobreviverem apenas biografias como algo prestígio ritual ou status genealógico. So-
visível. bressaem-se nesses momentos os recursos
A questão, portanto, é: onde está a cul- culturais exclusivos, que fornecem algu-
tura nos fluxos globais? Os movimentos dis- ma diacriticidade diante dos traços análogos
persivos e as fronteiras que fazem deslizar as pertencentes a outros grupos, comumente
unidades sociais com as quais a antropolo- radicados no toré, mas também na lín-
gia tradicionalmente lidou e lida (o grupo, gua9. Seja como for, a contraposição dos
a aldeia, os bandos urbanos etc.) impossi- estoques culturais dos grupos indígenas
bilitam a atribuição de rótulos culturais ex- nordestinos sempre intenciona trazer para
clusivos e estáveis aos sujeitos que transi- si mesmo uma maior proximidade com os
tam pelas zonas de fronteiras sociais, ga- “índios brabos” do passado, com o direi-
rantindo a combinação circunstancial de to de ser o depositário de seus principais
múltiplas identidades sobrepostas, pois “nas segredos culturais.
zonas fronteiriças, há espaço para a ação Não obstante essas disputas, o campo in-
[agency] no manejo da cultura” (Hannerz, terétnico no Nordeste indígena – mais pre-
1997: 24). A mistura, agora, como salienta cisamente no sertão do São Francisco, onde
Hannerz, passou a ser uma boa alternativa estão, além dos Tumbalalá, os Tuxá, Truká,
de renovação cultural (Hannerz, 1997: 25). Pankararé, Pankararú, Atikum, Kariri-Xokó,
Ao largo disso, Sahlins (1999) vem apos- Kantaruré, Tingui-Botó e Karapotó – é mar-
tando na “indianização da modernidade” cado por uma regular reciprocidade ritual e
(indigenization of modernity) como um de apoio político, que permite a multipli-
modelo de inversão do projeto e da ideolo- cação de etnogêneses calcadas em um substrato
gia colonialistas – que previram o desapare- cultural e histórico ampliado. O que acon-
cimento dos povos não-ocidentais – capaz tece, por exemplo, entre os grupos indíge-
de atestar a incorporação seletiva de elemen- nas contemporâneos norte-americanos é
tos culturais exógenos como um mecanis- bastante diferente: gozando de maior so-
mo comum às culturas “nativas”, reafirman- berania prevista na legislação americana para
do, assim, a velha idéia difusionista de que os povos nativos – administrada pelo Bureau
as culturas são estrangeiras na origem e lo-
cais no padrão (Sahlins, 1999.: xi).
Com os Tumbalalá, notemos bem, a 9 Caso especial é o dos Fulni-ô de Pernambuco, único grupo
aloctonia não só pode ser neutralizada no nordestino a manter sua língua, o yatê, ainda em uso. Na
falta de uma língua completa, algumas palavras de um
toré, pois é ela que, em vários casos, cre- idioma indígena original servem como marcadores de
dencia os indivíduos a uma identidade sin- diferença e agregadores de prestígio e status ao grupo.
Ainda na falta destas, vale o recurso criativo de manter
gular e local – ser tumbalalá, em última performaticamente um discurso numa língua indígena
instância, é um dos possíveis modos de inexistente, dependendo de quem seja o interlocutor, como
ser índio do Nordeste. Essas facetas de presenciei certa vez um índio Kiriri dirigindo-se a uma
platéia de não índios que visitava sua aldeia pela primeira
uma mesma matriz identitária – as etnias vez.

cader nos de campo · n. 10 · 2002


UM GRANDE ATRATOR: TORÉ E ARTICULAÇÃO ( INTER)ÉTNICA ENTRE OS TUMBALALÁ DO SERTÃO BAIANO 87

of Indian Affairs – e experimentando consciência histórica que lhes permitiu


processos históricos que permitiram o iso- pensar suas condições presentes e projetar
lamento entre as reservas indígenas, eles modelos de ação coletiva mais efetivos num
desenvolveram comunidades relativamente campo interétnico em que ainda persistem
distantes e estranhas entre si, de modo que a marginalização, a estereotipização étnica
vêm umas às outras como competidoras por e racial e a hegemonia cultural (Hill, 1996:
escassos recursos (federais ou gerenciados 17).
por esta esfera), competição que fica mais Não é de se admirar que no Nordeste
acirrada quando grupos oficialmente não indígena o toré tenha virado uma
reconhecidos conseguem obter tais recursos instituição de reavaliação cultural de caráter
(Nagel, 1996: 236). contra-hegemônico através da qual são
Ambos os casos são frutos de processos rearticulados valores e símbolos a fim de
históricos e modelos de redução e criar modelos efetivos de ação que
agenciamento indígenas levados a cabo por enfrentem a marginalização à qual os índios
políticas indigenistas oficiais nas colônias estão submetidos 10 . Isso explica, por
e, posteriormente, nos Estados exemplo, porque o toré tem sido aprendido
independentes do continente. O modelo ou reforçado nos momentos em que os
paternalista e exageradamente tutelar de grupos estão buscando o reconhecimento
política indigenista adotado pelo Estado oficial de sua alteridade índia; ao mesmo
brasileiro, com o SPI e depois com a tempo, o ritual cria efeitos de coesão
FUNAI, serviu de extensão à política interna e formalização de uma comunidade
missionária colonial, que dava aos índios que fazem reverberar para dentro a imagem
pouca chance de soberania, ao mesmo projetada para fora, cumprindo um
tempo em que os massacrantes processos importante papel na resistência identitária,
de redução, catequese e empresas por abarcar um conjunto de múltiplos
civilizatórias faziam das alianças, da efeitos (Reesink, 2000: 371). Com efeito,
cooperação e do compartilhamento o campo religioso tem sido o bastião onde
cultural fortes alternativas na sobrevivência permanecem os traços culturais mais
e no enfrentamento (Dantas et al., 1992: marcantemente indígenas (e daí a disputa
448). entre os grupos por performances rituais
A par disto, os Estados-nações criaram mais convincentes) e o espaço de inversão
no continente falsos contextos de interétnica onde os caboclos culturalmente
uniformidade cultural, demarcados por degenerados passam a índios regimados
fronteiras geográficas precisas, negando o (Carvalho, 1994) ou, de sub-alteridades, a
multiculturalismo interno e instituindo co-alteridades (Reesink, 2000: 388-389).
formas de historicídio como meio último
de controle sobre o passado histórico dos
povos indígenas (Hill, 1996: 13-16). Mas
foi apropriando-se dos instrumentos e 10 Quando esteve efetuando suas pesquisas no sertão do São
Francisco na década de 50, Hohenthal Jr. observou que os
recursos jurídicos desses mesmos Estados regionais não acreditavam que ainda houvesse índios no
(até atingirem a categoria de cidadãos) que local, mas apenas caboclos preguiçosos inclinados a todo
os índios americanos obtiveram as tipo de delito, como bebedeira, furto e uso de maconha,
geralmente associada ao culto à jurema, que eles
condições necessárias para uma auto- desconheciam completamente (1960b: 80).

ar tigos
88 UGO MAIA ANDRADE

III malize e mantenha uma identidade exclusiva,


mas também é nesse espaço simbólico que se
“O sangue é braiado (misturado), mas opera a transvaloração que permite uma in-
aqui e ali ele pinta”. serção menos desqualificada dos grupos indí-
(Da. Maria de Pedrinho, 66. Março de 2000) genas no campo interétnico regional e, mais
abrangentemente, na nação brasileira. Essa pas-
Para os índios do Nordeste, ter o sangue sagem é de valor político fundamental, mas
“braiado” é hoje um fator de identidade coleti- tem efeitos psicossociais importantes, porque
va regional, já que todos eles se reconhecem gera as motivações e os suportes emocionais
como produto de processos históricos se- capazes de impulsionar os indivíduos na trans-
melhantes de ampla extensão (o mais comum posição de sua condição marginalizada e da
deles foi a subordinação à agência missionária), má-consciência de si, tornando-se modelo
o que ajudou a criar o “caboclo” como uma para ação coletiva. No jargão tumbalalá e de
identidade genérica (Carvalho, 1988: 13). outros povos indígenas do Nordeste ela si-
Mas, além disso, a identidade “caboclo” foi naliza a transformação do caboclo em índio
sendo forjada a partir dos constrangimentos regimado, adepto aos valores do toré e enga-
que os índios iam sofrendo por parte dos re- jado no projeto étnico:
gionais e agentes oficiais que tentavam lhes
imputar, e lhes fazer assimilar, uma marca com Qual é o regime do caboclo?
valor diacrítico negativo, porque definidor de Sr. Aprígio: O regime? O regime do caboclo
hibridez e degeneração cultural (Reesink, é ... quer dizer que é trabalhar pra se regimar e
1983: 129). Aos “caboclos”, não sendo mais com ciência, trabalhar pra se regimar, pra
índios nem parte da sociedade regional, restaria receber a ciência, pra saber trabalhar de mais a
a participação periférica, mas passiva e pacífi- mais, né?
ca, no sistema dos brancos como meio mais O regime é no trabalho.
viável para sua reprodução física, até que suas Sr. Aprígio: No trabalho. O índio tem que
gerações seguintes fossem plenamente dissolvi- trabalhar pra se regimar [...]
das na sociedade regional. O que vale notar,
entretanto, é que, não obstante o fado de Sr. Luís – [...] O regime é o nosso mesmo
carregarem por muito tempo uma marca de- do trabalho. Se o caboclo entra no trabalho e
sabonadora criada pelos seus alternos, a desig- não sabe ele tem que regimar. No trabalho que
nação “caboclo” foi “indianizada” (retornan- é pra o regime da aldeia.
do a Sahlins) em seu tempo certo e passou a E pra ser um caboclo regimado tem que
conotar um reforçador de identidade coletiva ser como?
ampliada que, posteriormente, em momen- Sr. Luís – Ele tem que...ser regimado na
tos mais adequados, permitiu a transvaloração aldeia, como índio, que justamente tem muitos
dos signos a ela agregados, atingindo sinais aí que vem pro trabalho não trazem o pujá e
mais plenamente positivos então conectados cataioba (parte da indumentária utilizada
a um universo indígena revisitado. durante o toré) [...]
Para tal, o toré teve participação decisiva, E fora do trabalho como um índio
porque, no campo religioso, não somente se regimado deve agir?
instigam certas articulações necessárias para se Da. Santa – Fora do trabalho o caboclo
atingir um grau suficiente de coesão que for- não tem regime.

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UM GRANDE ATRATOR: TORÉ E ARTICULAÇÃO ( INTER)ÉTNICA ENTRE OS TUMBALALÁ DO SERTÃO BAIANO 89

Eu digo nos dias em que não tem o e são utilizados programaticamente como
trabalho. elementos definidores de fronteiras simbóli-
Da. Santa – No dia que nós não tem o cas de natureza interna pelos grupos étni-
trabalho nós tem o regime. Quer saber como? cos. E são um fator importante de integri-
Sr. Luís – No guia.11 dade e coesão coletivas, principalmente no
Da. Santa – No guia. Soltar fumaça. Nós São Miguel, onde canta-se uma linha de toré
tem que soltar fumaça... que conclama seus membros a aderirem a
Sr. Luís – Pros encantados [...] comportamentos e valores inscritos no uni-
Então todo regime é amarrado ao trabalho? verso do toré :
Da. Santa – É. Quer dizer que no dia que
não estamos trabalhando estamos regimando, “Oh Jurema
né? [...] Oh Jurema
Sr. Luís – Nós temos que fazer aquela Eu quero ver meus caboclo no regime
devoção com eles (os encantos). Eu quero ver meus caboclo enregimar”
(Sr. Luís, Sr. Aprígio Fatum e Da. Santa,
sua esposa. Março de 2000). IV

O índio regimado é aquele que trabalha Como o regime do toré é o grande atrator
corretamente dentro dos rigores rituais e não cultural que perpassa a esfera do político, os
é displicente no trato com os encantos; sol- projetos sustentados pelos dois núcleos
ta fumaça no quaqui regularmente para eles, político-rituais apresentam suas diferenças
frequenta o toré com disciplina e não adere radicadas nas práticas de toré adotadas em
às práticas relacionadas ao candomblé. A ên- seus respectivos terreiros e nas histórias
fase sobre o regime tumbalalá também pode amparadas por eles. Apesar de os valores
consolidar-se no domínio das relações in- que constituem aquilo que compreendo ser
terpessoais, embora passem igualmente pelo o regime moral tumbalalá estarem
toré, esboçando uma ética da solidariedade marcantemente aí enraizados, há pouca
expressa no ideal do bem comum, como normatização incidindo sobre eles, motivo pelo
parece ser mais patente no núcleo da Mis- qual não devemos lhes atribuir a qualidade de
são Velha. um sistema moral. Meu interesse pelo assunto
O regime moral tumbalalá é constituído começou a surgir depois que passei a observar
a partir de valores genéricos idealizados que que as fronteiras sustentadas mediante
cada um dos núcleos entende que faltam no diferenças radicadas em valores eram mais
grupo oposto e que podem ser auto-atribuí- interna e menos externamente operantes; a
dos como traços distintivos que sinalizam a diacriticidade moral é manipulada para
superioridade de seus projetos políticos e registrar diferenças entre os núcleos do São
rituais. Ao contrário de repousarem num es- Miguel e Missão Velha e, somente por
trato imóvel das crenças, os valores podem extensão, entre o São Miguel e os Truká.
Manifestação de oposições valorativamente
apoiadas entre tumbalalás e “outros” mais
11 Ou quaqui, cachimbo artesanalmente feito com a raiz da externos não são presentes no momento, apesar
jurema. Deve ser batizado, na intenção de um encanto que de as monografias sobre o Nordeste indígena
receberá a fumaça daquele guia, durante uma mesa de toré,
ficando imerso na bebida da jurema. indicarem que os “regimes de índio”

ar tigos
90 UGO MAIA ANDRADE

amparados pelos vários grupos servem, mação das alianças entre os grupos indígenas
principalmente, como meio de auto-delegação do Nordeste. O toré, então, passa a denotar o
de atributos identitários frente aos regionais imperativo de indianidade e o canal principal
não índios, o que não exclui sua operatividade de comunicação interétnica, ao mesmo tem-
junto às facções internas que procuram formas po em que produz internamente formas de
de diferenciarem-se entre si. organização e legitimação de papéis políticos,
Grosso modo, é possível dizer que as cate- pois “a linguagem ritual, melhor que outras,
gorias de acusação levantadas pelo núcleo São se presta à organização política desses grupos,
Miguel contra as práticas de toré adotadas na reunindo ambas as características, organizati-
Missão Velhas estão instruídas por uma série va e de demarcação simbólica de fronteiras
de binarismos que opõem conceitos antitéti- étnicas, tanto para fora como para dentro”
cos e excludentes: bem/mal; certo/errado; tra- (Nascimento, 1994: 37).
balho de índio/trabalho de negro; cristandade/ O toré tumbalalá faz parte de uma ampla
paganismo-candomblé. Apesar de o toré ser, rede de trocas rituais que, tendo começado,
por natureza, um ritual que mistura elemen- sobretudo com os Truká e Tuxá há mais de
tos indígenas, afro-brasileiros e do catolicis- cinqüenta anos, se estende conforme se es-
mo popular, via de regra se nega a “mistura” treitam os laços políticos do grupo com
com o candomblé, para efeito de não outros povos indígenas nordestinos. Sua
desqualificar seu trabalho enquanto ritual de dinâmica segue a velocidade em que se desen-
índio e comprometer a natureza da identidade volvem os episódios do atual movimento
daqueles que o praticam. Nota-se que a antítese político tumbalalá. Notavelmente, o toré pos-
fundamental que subjaz à imputação das sui uma ampla capacidade de refletir e
categorias depreciativas que incidem sobre o assimilar esses acontecimentos, o que pode
toré diz respeito a dois universos religiosos, o ser representado pelas incorporação de linhas
candomblé e o catolicismo, representados re- – cantigas semelhantes às ladainhas do catoli-
gionalmente – e provavelmente também pelo cismo popular que conjugam os elementos do
imaginário popular brasileiro de forma geral universo indígena nordestino em letras sim-
– como radicalmente distintos e irrecon- ples e curtas, cantadas durante o toré – de
ciliáveis, embora as práticas religiosas popu- outros grupos com os quais os Tumbalalá vêm
lares no Nordeste brasileiro refutem tamanha mantendo recentemente contatos e pela cres-
diferença, contrariando as pregações “puristas” cente presença de encantos de outras aldeias
dos discursos de seus oficiantes. nos terreiros do São Miguel e da Missão
Tudo o que já foi exposto até aqui deve ser Velha.
suficiente para corroborar a afirmativa de que
o movimento étnico tumbalalá não pode ser BIBLIOGRAFIA
compreendido apenas como uma mobilização
política de cunho pragmático, pois há um ARRUTI, José M. Andion. “A árvore Pankararú:
núcleo central bastante forte de crenças em fluxos e metáforas da emergência étnica no
torno de uma origem indígena comum que, sertão do São Francisco”. In: OLIVEIRA, João
se não são compartilhadas igualmente por to- P. de (org.). A viagem da volta: etnicidade,
dos, se impõem como uma referência constante. política e reelaboração cultural no Nordeste
A rigor, o campo religioso é o ambiente privi- indígena. Rio de Janeiro: Contra Capa
legiado para a partilha de representações e for- Livraria, 1999. p. 229-277.

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UM GRANDE ATRATOR: TORÉ E ARTICULAÇÃO ( INTER)ÉTNICA ENTRE OS TUMBALALÁ DO SERTÃO BAIANO 91

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ar tigos
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93

ar tes da vida
94

FOTOS DE LUIZ DE CASTRO FARIA


ASTRO

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artes da vida
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entrevista
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99

ENTREVIST
NTREVISTA COM LUIZ DE CASTR
VISTA O FARIA
ASTRO
REALIZADA EM NITERÓI NO DIA 9 DE AGOSTO DE 2001.

ANA PAULA MENDES DE MIRANDA


MELVINA AFRA MENDES DE ARAÚJO

Apr esentação
presentação percepção de diversas experiências em
transformação.
Luiz de Castro Faria construiu uma Seu depoimento reafirma o papel de
carreira acadêmica de mais de 60 anos como testemunha, ou melhor, de “praticante”
Professor Emérito da UFRJ e da UFF, sua voluntário de um campo em construção.
trajetória se confunde com a constituição Dentre as muitas formas de fazer
da Antropologia no Brasil. Foi o fundador Antropologia experimentadas, Prof. Castro
e o primeiro presidente da Associação Faria sempre teve como linha o pensar
Brasileira de Antropologia; no início dos criticamente sobre a produção acadêmica,
anos 50 trabalhou no Institut d’Ethnologie sabendo que o bom pesquisador sempre está
de l’Univeristé de Paris e na cadeira de disposto a aprender.
Antropologia do London College , em
Londres. APRENDENDO A FAZER ANTROPOL
NTROPOLOGIA
OPOLOGIA
Suas histórias são conhecidas mesmo por
aqueles que não partilharam de seu convívio Cadernos de Campo: Nós gostaríamos
por serem constantemente narradas por que o senhor falasse sobre sua iniciação na
muitos de seus ex-alunos. Entrevistá-lo Antropologia e no trabalho de campo.
representou um desafio: fazê-lo falar não
apenas sobre suas memórias - dentre as quais Prof
of.. Castr
Castroo Faria: Em geral, todos se
Faria:
figura sua participação na expedição à Serra interessam pela expedição de 1938. Nós
do Norte, em 1938, com Claude Lévi- estamos em 2001, eu estou com 88 anos, e
Strauss-, mas sobre a prática antropológica, a questão da idade é extremamente
da qual ele jamais se afastou, mesmo se importante. Eu sempre fui muito solicitado
declarando um militante da Antropologia para falar da Expedição com Lévi-Strauss.
em recesso. A primeira coisa que eu digo aos alunos é:
Cercado por seus livros, Castro Faria “Olha! Eu tinha 24 anos, estava iniciando a
conversou durante uma tarde sobre os minha carreira, Lévi-Strauss é um pouco
prazeres e afazeres dessa ciência feita de mais velho, mas também não era ninguém,
sedução – a Antropologia – traduzida estava começando a carreira”. Esse ponto é
principalmente pelo trabalho de campo e fundamental, porque, em geral, os alunos,
pelas viagens, que proporcionam a quando falam da minha presença na
100 ENTREVISTA COM LUIZ DE CASTRO FARIA

Expedição com Lévi-Strauss, pensam em especial, porque eu comecei no Museu


Castro Faria de hoje e Lévi-Strauss de hoje. Nacional. Desde cedo, quando fui à
O ano de 1938 marcou o início da nossa Expedição, fui como representante do
profissão de fé antropológica, o batismo, a Museu.
iniciação, a viagem demorada pelo interior
do Brasil, fazendo contato com tribos Cadernos de Campo: Quanto tempo
indígenas. Era tudo novidade, não só para durou a expedição?
mim, mas para ele também. Eu advirto
sempre a quem ouve as minhas Prof
of.. Castro F
Castro aria: Quase um ano, eu
Faria:
comunicações, que não se iludam, porque saí em julho do Rio, Lévi-Strauss saiu de
eu era um rapaz de 24 anos tentando ser São Paulo, nos encontramos em Cuiabá e
antropólogo. E o Lévi também, ele era depois atravessamos de Cuiabá ao
professor de São Paulo, mas não tinha nada Amazonas, atravessamos o Brasil inteiro. Foi
publicado, não tinha ainda carreira definida. realizada uma exposição de fotos minhas de
Ele era uma pessoa muito diferente, em 38 aqui no Museu Nacional numa primeira
termos de preparação para a carreira. O Lévi- vez, depois foi reproduzida no Museu de
Strauss é um normalien, é formado em Astronomia. Agora, o Conselho [CNPq]
Filosofia, habituado à reflexão, mas sem resolveu financiar grande parte de um livro
muito treinamento para viagens, com todas só de fotos e um diário de campo, o diário
as dificuldades que são criadas. escrito por um jovem de 24 anos, que eu
O professor Lévi não teve muita sorte, nem tive nem coragem de ler! Estava tudo
porque quando ele voltou para França guardado e uma professora, colega minha,
encontrou a Europa atingida pela guerra. foi minha aluna, minha orientada, depois
Isso prejudicou muito a apresentação que fez doutorado em São Paulo, é especialista
ele gostaria de ter feito de todos os trabalhos em História da Ciência, professora Heloísa
da viagem, que foi longa. Nós começamos [M. B. Domingues], ela é pesquisadora do
em Cuiabá e saímos no Amazonas, Conselho Nacional de Pesquisa e está
atravessamos o Brasil inteiro, a chamada trabalhando no Museu de Astronomia e
Linha Telegráfica Estratégica do Mato Ciências Afins. Um belo dia descobriu o
Grosso ao Amazonas, feita pelo Rondon. meu diário e as fotos. Fizeram exposições
Quer dizer, havia uma trilha, havia um de grande sucesso, todo mundo ficou
caminho, havia estações telegráficas, havia encantado e ela conseguiu o que eu nunca
postos telegráficos, no mais era deserto. Eu consegui, que foi ler o meu diário de campo.
sempre lembro e levo as pessoas a pensarem
nisso, um dos lugares mais fotografados por Cadernos de Campo: O senhor poderia
mim e que nós levamos uns seis meses para falar sobre sua carreira no Museu?
alcançar, chama-se Vilhena; hoje você vai
de Boeing, Vilhena é uma cidade de mais Prof
of.. Castr
Castroo Faria: Eu sempre cito as
Faria:
de 80 mil habitantes. Quando nós chegamos designações oficiais porque elas esclarecem
lá, só havia uma casa, a casa do telegrafista. muitas coisas. Quando eu fui para a
Eu voltei para o Rio de Janeiro para Expedição, eu era “praticante gratuito” do
começar a carreira no Museu Nacional. Eu Museu Nacional e pouco depois eu fui
fui uma pessoa com uma carreira muito promovido a “assistente voluntário”.

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ENTREVISTA COM LUIZ DE CASTRO FARIA 101

Dinheiro nada! Mas é uma tradição que seguir, porque senão não poderia
mundial, há profissões que não estavam na funcionar. O problema é que esse Decreto
universidade, uma delas era a Antropologia. criou 42 cátedras e havia um artigo da lei
Não sei se vocês sabem isso, mas a Faculdade determinando que todas teriam que seguir
Nacional de Filosofia era onde se ensinavam o padrão estabelecido por essa lei.
as matérias que nenhuma universidade Essa lei criou a cadeira de Antropologia
ensinava, porque as universidades eram para cujo lugar, até então, era o Museu Nacional,
os profissionais liberais, elas formavam o Museu Göeldi e o Museu Paulista, que
médicos, engenheiros, advogados. A publicavam sobre Antropologia e tinham
Antropologia não tinha lugar na Antropologia feita por formados em
universidade, nem as outras ciências. O qualquer curso superior que tivessem
Museu Nacional, que é de 1818, sempre teve interesse pela disciplina. Não havia,
zoólogos, botânicos, geólogos, mas nada portanto, no Brasil, em universidade nem
tinha haver com a universidade. Essas em curso superior, nenhuma disciplina de
ciências estavam em outras instituições, Antropologia.
como os museus. A Faculdade de Filosofia Por esse Decreto de 1940, o primeiro ano
que vocês hoje conhecem em termos de era Antropologia Física, depois era Etnologia
organização e de experiência pessoal, só Geral e, no terceiro, era Etnologia do Brasil.
surgiu no Brasil em 1940 com um Decreto- A USP teve, desde o começo, dois
Lei de Getúlio Vargas e Gustavo Capanema. professores, um de Antropologia, que era o
Essa lei estipulava que todas as instituições professor Egon Schaden, que ensinava de
denominadas Faculdade de Filosofia acordo com a tradição européia, era a
deveriam seguir o mesmo programa e todas chamada de Antropologia Física, estudo de
se submeteram, inclusive a USP. Só a partir raças, que não tinha nada a ver com o que,
de 1940 que a universidade passou a abrigar hoje, os jovens alunos pensam que seja
várias ciências, as ciências naturais, quase Antropologia. O outro era de Etnologia
todas, e a Antropologia. É um documento Geral, o professor Plínio Airosa, o homem
que eu acho que todos deviam ler hoje, do Tupi, que deixou uma quantidade de
porque é impressionante como é que um trabalho sobre o Tupi, o Tupi histórico,
governo ditatorial criou essa instituição que baseado em cronistas.
se chamou Faculdade Nacional de Filosofia
e estabeleceu que todas as Faculdades de Cadernos de Campo: Como o senhor
Filosofia tinham que seguir todas as aprendeu a fazer Antropologia?
disciplinas na ordem em que eram impostas
pela lei. Pr of
of.. Castr
Castroo Faria: Como assistente
Faria:
voluntário. Era um sistema antigo, que
Cadernos de Campo: Como isso vigorou aqui, na Europa, em toda parte.
aconteceu na prática? Todas as faculdades Alguém interessado aproximava-se de um
funcionaram da mesma forma? profissional competente e ficava ao lado dele
como estagiário.
Prof
of.. CastroF
Castro aria: Sim, todas da mesma
Faria:
forma. A USP, por exemplo, que tinha Cadernos de Campo: De quem o
sempre uma pretensão à independência, teve senhor era assistente?

entrevista
102 ENTREVISTA COM LUIZ DE CASTRO FARIA

Prof
of.. CastroF
Castro aria: Eu era assistente de
Faria: fizemos concurso, ainda no tempo do DASP,
três, Heloísa Alberto Torres, que fazia uma fiscalização terrível. Vou mencionar um
Arqueologia; Raimundo Lopes, que fazia fato, que talvez vocês não tenham percebido,
Etnologia e José Bastos de Ávila, que fazia porque não foram de forma alguma
Antropologia Física. A gente passava a atingidas por esse ato discricionário, um ato
trabalhar ao lado desses especialistas e ia do governo ditatorial. Vocês já ouviram falar
aprendendo e ajudando a fazer. Eu fiz muita na desacumulação? Até 1937 os
coisa para o Museu: desenhos, preparação profissionais, sobretudo, os profissionais
de material para aula. Esse sistema foi liberais, ocupavam dois, três, quatro, cinco
universal, porque as universidades não lugares, porque não havia nenhuma restrição
davam nenhum apoio a essas disciplinas, a esse sistema. Getúlio Vargas, na
nem aqui, nem em lugar nenhum no Constituição outorgada de 1937, resolveu,
mundo. com um simples termo aditivo das
Disposições Transitórias, ele aboliu isso no
Cadernos de Campo: Qual era a sua Brasil inteiro. O Museu, inclusive, foi
formação, professor? atingido. As avaliações não são
concordantes. Eu sempre defendi a
Prof
of.. Castr
Castroo Faria: Eu fiz dois cursos
Faria: desacumulação, fui por mais de 10 anos
que hoje mudaram de lugar, estão nas membro do Conselho Universitário da
universidades, mas na época não estavam, Universidade, sempre defendi um ponto de
estavam em instituições do Ministério da vista contrário ao da maioria dos colegas,
Educação. Um deles chamava-se de que acharam que isso tinha sido um prejuízo
Biblioteconomia. Eu o fiz ainda na para as instituições científicas do Brasil - aqui
Biblioteca Nacional e era um curso no Rio, sobretudo o Instituto Oswaldo Cruz
extraordinário, fora do comum, pelas e o Museu Nacional - e eu sempre achei ao
matérias, pelas disciplinas. O outro foi contrário, porque, inclusive, eu fui nomeado
Museologia também feito, na época, no interino para vaga de um professor do
Museu Histórico Nacional. Esses dois cursos Museu Nacional, que acumulava um lugar
me aproximaram cada vez mais do Museu de professor de Grego da Faculdade
Nacional e da prática da pesquisa, Nacional de Filosofia. É claro que ele optou,
trabalhando com os pesquisadores do Museu como todos os outros, pela faculdade,
Nacional. Esse é um sistema que ainda está porque na faculdade, os catedráticos, se
em vigor, no Museu ainda existe o local de quisessem, não davam aula, tinham
estagiário. É uma maneira de qualificar a assistentes que o faziam. Era muito menos
pessoa. tempo de trabalho, o Museu obrigava a oito
horas de trabalho. Os professores
Cadernos de Campo: Quando o senhor catedráticos faziam a carreira em termos de
voltou da Expedição, continuou publicações, participação em instituições
trabalhando como praticante? científicas, eles não tinham obrigação maior
com o ensino. Enfim, houve a
Prof
of.. Castro F
Castro aria: Sim, até chegar a
Faria: desacumulação. O Museu esvaziou, porque
época de fazer concurso. Fui nomeado os da área de Geologia eram quase todos
interino durante algum tempo e depois professores da Politécnica, os da área de

cader nos de campo · n. 10 · 2002


ENTREVISTA COM LUIZ DE CASTRO FARIA 103

Botânica e de Zoologia, em geral, eram de da pós-graduação que trabalha comigo aqui


Medicina ou de cursos próximos, Farmácia, em casa.
etc. O Museu hoje está dentro da
universidade e tem curso de pós-graduação DISPOSIÇÃO PARA ENSINAR
em Zoologia, em Botânica, em
Antropologia. Naquela época não tinha Cadernos de Campo: O senhor poderia
nada haver com universidade, nem tinha falar um pouco sobre a formação dos seus
cursos, o que nós fazíamos era pesquisar. alunos? Quem o senhor formou das novas
gerações de antropólogos?
Cadernos de Campo: Não tinha cursos?
Prof
of.. Castr
CastrooF aria: Bom, não há lugar
Faria:
P r of
of.. Castr
Castroo Faria: Não. Podia ter,
Faria: hoje no Brasil onde não exista um aluno do
dependia de cada um decidir dar cursos. O Castro Faria. Eu não falo porque eu sou
Museu sempre teve cursos, mas eram cursos professor, é porque eu sou citado a torto e a
oferecidos pelos pesquisadores de lá. direito por aí. Kant foi meu aluno [Roberto
Roquette Pinto, por exemplo, era um Kant de Lima], o Mello [Marco Antonio da
sucesso como professor, dava cursos de Silva Mello]. Eu passei os quatro últimos
Antropologia. Bastos de Ávila dava cursos anos, quatro anos formidáveis, dando curso
de Antropologia, que eu criticava porque para a pós-graduação da UFF e comendo
eram quase sempre cursos de picanha na tábua.
Antropometria. O primeiro curso, tinha o nome de
Representações do Brasil, que é um tema
Cadernos de Campo: Como foi a sua quase que permanente nas minhas reflexões.
carreira na UFF? Eu dava cursos no Museu Nacional sobre
pensamento social brasileiro, eu estudava
Prof
of.. CastroF
Castro aria: Eu fui, por 50 anos,
Faria: todos os autores que tinham tentado explicar
professor titular de Antropologia da UFF, o Brasil. Esse curso que eu dei na UFF foi o
porque no Museu eu não tinha primeiro, chamava-se “Representações do
compromisso de ensino. Eu fiz 50 anos há Brasil: Retratos e Caricaturas”. Pela primeira
dois anos passados, para contar de verdade vez, eu inclui as caricaturas daqueles autores
desde minha convocação para ir a uma que tentaram explicar o Brasil usando o
Congregação da Faculdade Fluminense de recurso da caricatura, do humorismo. Há
Filosofia, Ciências e Letras para tomar posse um livro que me agradece logo nas primeiras
da cadeira, depois fui submetido ao linhas por ter aprendido o valor da
Conselho Superior de Ensino para ser Antropologia, é um livro de Jorge da Silva1.
autorizado a ensinar Antropologia. Na época Eu acho que fui um professor capaz. Sempre
era professor catedrático de Antropologia. fui criativo, esses quatro anos que eu passei
Todo mundo da UFF foi meu aluno. Eles na pós-graduação da UFF, eu criei uma
não se esquecem. Ainda hoje eu recebo quantidade de coisas, criei, inclusive, uma
convites para seminários, teses... Eles me instituição, chama-se NUFEP – Núcleo
mandam tudo, mas eu não vou mais, não
tenho mais condições. Mas tem um aluno 1 SILVA, Jorge da. Violência e racismo no Rio de Janeiro.
Niterói: EDUFF, 1998. (Coleção Antropologia e Ciência
Política; 14).

entrevista
104 ENTREVISTA COM LUIZ DE CASTRO FARIA

Fluminense de Estudos e Pesquisas, ganhei inteiro, que chama “Direito de Rolha”. De


uma sala, sala 205, é onde hoje trabalha o acordo com esse direito, entre aspas, eu
professor Kant, criei uma série de posso ir a um restaurante qualquer, o mais
publicações sobre pesca. Enfim, eu sempre chique do mundo, e levar o meu vinho, o
fui muito ativo, sempre criei coisas. Então, vinho que eu quiser. Pago uma cota, mas
realmente como professor de Antropologia, chama-se o Direito de Rolha. Ninguém
eu acho que foi tudo muito bem. pensou em negar. Aqui no Rio, no tempo
que eu dava o curso, um milionário quis
Cadernos de Campo: O que o senhor levar o vinho dele para o restaurante, o
pensa sobre a cultura jurídica e burocrática restaurante não admitiu. Ele constituiu o
brasileira? Como ela pode ajudar a pensar advogado mais caro do Rio de Janeiro para
essas representações sobre o Brasil? ter o direito de levar para o restaurante o
vinho dele e beber desse vinho. Está aí o
Prof
of.. Castr
CastrooF aria: Isso é um problema
Faria: “direito de poder”. Mais tarde eu fiquei
extremamente complexo. Nós estivemos em felicíssimo, eu fui dar aula rindo, porque na
um congresso sobre Direito lá em Santa França, estava em discussão, no momento,
Catarina, fomos vários daqui... O que eu com grande agitação na imprensa, queriam
penso é que a área do Direito não tem proibir de atirar os anões do canhão, o
capacidade de auto-reforma, ela está muito “direito de arremesso”, queriam protestar
solidificada, o formado em Direito está porque disseram que era humilhante. Os
convencido de uma série de coisas que ele anões, danados da vida, não viam nada de
considera fundamentais e que são todas humilhante, eles vivem disso, acham que é
tolices. O ensino de Direito tinha que ser uma forma de esporte como outra qualquer.
completamente reformulado, mas com É o “direito de arremesso”, é atirar um anão
pressão de fora, auto-reforma eles não fazem. com aqueles canhões de circo. Era a
Eles precisam de auxílio de outros grupos, justificativa do curso o “Direito de Poder”.
de antropólogos inclusive, como o Kant,
porque auto-reforma eles não fazem, não Cadernos de Campo: O que o senhor
podem fazer. O número de faculdades de considera básico para a formação em
Direito é imenso e o Direito é muito Antropologia?
corporificado, muito estratificado, as coisas Prof
of.. Castr
CastrooF aria: Há uma coisa que,
Faria:
que são ditas são quase sagradas. Há, hoje, vocês novos se habituaram e que não
portanto, uma resistência muito forte era comum: é a leitura. Eu sempre chamei a
quando se tenta mudar alguma coisa. É uma atenção dos que estavam organizando cursos
área difícil, difícil para o Brasil, porque é de pós-graduação que a questão
preciso mudar, evidentemente, mas não se fundamental é a leitura, é a biblioteca. Não
sabe ainda como. Eu dei um curso na UFF, pode haver pós-graduação sem uma
cujo nome era “O Poder do Direito e o biblioteca especializada, o resto todo é farsa.
Direito de Poder”. Todos ficaram muito Por exemplo, o Museu tem uma biblioteca
curiosos. De onde eu tinha tirado essa idéia antiga de mais de um milhão em livros, a
do “direito de poder”? Eu estava baseado em biblioteca tradicional do Museu Nacional,
leituras de jornais recentes do Rio de Janeiro. e tem a biblioteca do programa do PPGAS
Existe uma coisa tradicional no mundo – Programa de Pós-Graduação em

cader nos de campo · n. 10 · 2002


ENTREVISTA COM LUIZ DE CASTRO FARIA 105

Antropologia Social, biblioteca enorme, religiosas e, para a Igreja, o que interessa é a


com livros que chegam à medida que o pedagogia, a filosofia. Eles não estão
professor precisa e programa. Nenhum curso interessados em ciências. Os cursos de
desse PPGAS funciona sem a bibliografia ciências são muito caros em termos de
toda exposta numa estante à disposição dos instalação, de equipamentos e a dificuldade
alunos. O professor sabe que se a biblioteca de ter professores com competência
do Museu não tiver o livro, ele tem que suficiente. Eu fui o primeiro catedrático de
trazer o dele e colocar lá na estante para uso Antropologia na Faculdade Fluminense de
dos alunos. O problema da Antropologia, Filosofia e Ciências. Era uma instituição
acho que em qualquer ciência, qualquer muito ligada à Igreja. O diretor, uma pessoa
ramo de conhecimento, o problema excelente, muito meu amigo, tinha dois
fundamental é a consulta bibliográfica. Hoje irmãos bispos e uma irmã freira. Eram
a coisa vai mudando, eu não tenho acesso a instituições sempre vigentes e desenvolvidas
internet . Vocês estão vendo aqui, uma à sombra da Igreja, com a proteção da Igreja
máquina mecânica, eu não tenho e de instituições religiosas. Hoje a coisa vai
computador, não tenho nenhum interesse mudando, vocês hoje podem sair daqui por
em computador. É uma luta, todo mundo internet e fazer pesquisas e procurar, pode
insiste que eu compre um computador e eu ser que eu esteja lá, quem sabe?!
cada vez fico mais teimoso, não quero saber
de computador nenhum, eu não posso mais Cadernos de Campo: O senhor pensa
perder tempo em aprender a lidar com o que é possível se formar um mestre em
computador. Mas, veja bem, pós-graduação Antropologia em dois anos fazendo trabalho
sem uma biblioteca especializada é farsa. de campo? Considerando que, hoje em dia,
várias pesquisas não trabalham mais com o
Cadernos de Campo: O que se pode modelo clássico de trabalho de campo e
efetivamente ensinar de Antropologia na também tem a atual política acadêmica dos
graduação? prazos, das bolsas.

Prof
of.. Castro F
Castro aria: Eu acho que todas
Faria: Prof
of.. Castro F
Castro aria: Já soube que ficou
Faria:
as graduações, todas, sem exagero, são muito reduzido há um tempo mínimo. O que eu
deficientes. A de Antropologia também é penso é muito simples: eu acho que os
deficiente. Depende, é claro, da pessoa que tempos tinham que ser reduzidos, porque
exerce o ensino, mas parece que até hoje era um absurdo um mestrado em quatro
muita gente ainda não desconfiou que essa anos. Em primeiro lugar, eu acho que o
Lei de 1940 que ampliou as Faculdades Brasil precisa destruir esse mito da pós-
Nacionais de Filosofia, Ciências e Letras, graduação como salvação da graduação, isso
provocou a criação no Brasil inteiro, de norte é um absurdo. Quem quer fazer
a sul, de Faculdades de Filosofias e Ciências, Antropologia, faz com essas deficiências,
sem o curso de ciências. Ensinar ciências é porque para se fazer profissional em alguma
caro, exige laboratório, exige instrumentos, coisa, o que é preciso é gostar daquilo, é ler,
exige material de consumo. As faculdades é trabalhar, é participar de projetos, etc. Há
que surgiram com esse nome no Brasil, alguns anos atrás fazer um trabalho de
primeiro, eram quase todas instituições campo era uma matéria complexa, que

entrevista
106 ENTREVISTA COM LUIZ DE CASTRO FARIA

dependia principalmente do próprio o curso para arranjar um emprego de


pesquisador, mas não havia maiores professor. Era grande a ambição, na época,
dificuldades. Hoje as tribos indígenas no de qualquer moça, de qualquer rapaz para
Brasil estão com antenas parabólicas e ser professor de ensino médio. Ganhava-
máquinas fotográficas de todo tipo. É se muito bem. As escolas eram preparadas
preciso levar em conta que desapareceu para formar profissionais para ganhar
simplesmente aquele índio das nossas dinheiro como professores. O problema
tradições, porque esse índio está vivendo que se vê hoje é que o quadro de
em contato com a sociedade nacional e professores é completamente
tem tudo. Não há mais aquele índio. Vocês desqualificado. Ninguém está mais
devem ter a idéia de que a Antropologia interessado. É um problema de mercado
teve como um dos seus objetivos, e isso de trabalho. Naquela época, bastava um
deformou muito o conhecimento, o diploma. Eu tive uma aluna, boa aluna,
colecionamento, fazer coleções para aqui na Faculdade Fluminense de
museus. Em alguns casos, inclusive, esse Filosofia, cujo pai era massagista do
colecionamento se converteu em uma Getúlio Vargas. Mal ela se formou e foi
moeda, em um valor. Fazer coleções e nomeada professora de ensino médio do
vender coleções se tornou um comércio Rio de Janeiro. Esse era um senhor cargo!
comum. Agora, quem é que vai fazer
coleção com indígenas hoje? Vai Cadernos de Campo: Como o senhor
colecionar o quê? O índio tem antena vê hoje o campo de trabalho do
parabólica, tem máquinas fotográficas, antropólogo? Quais são as perspectivas de
tem tudo. Não tem o que colecionar. O um antropólogo formado?
colecionismo que prejudicou muito a
Antropologia, praticamente desapareceu. Pr of
of.. Castr
Castroo F
Faria:
aria: Eu acho que são
cada vez mais difíceis por causa da
Cadernos de Campo: Professor, o competição. Nós temos hoje vários cursos
senhor fala das influências da de pós-graduação com mestrado e
Antropologia Física, da Arqueologia, da doutorado, com diferentes qualificações.
Geografia Humana na formação da Há hoje, uma competição bastante forte,
Antropologia. Agora, na nossa formação, não basta fazer mestrado e doutorado. É
a gente não vê mais essa multiplicidade um problema brasileiro difícil de remover.
de influências, nós não trabalhamos mais A Faculdade Nacional de Filosofia foi
com a Geografia, ou trabalhamos muito criada para formar professores que
pouco, de Arqueologia a gente não tem a salvassem o ensino médio, continuam a
menor noção, a Antropologia Biológica a formar mestres, doutorandos, mas a
gente não ouviu falar muito… salvação do ensino médio, evidentemente,
não está dependendo disso, porque
Pr of
of.. Castr
Castroo F
Faria:
aria: A Antropologia existem uma quantidade de fatores
vem dentro de um quadro social que se diferentes, inclusive, problemas de
modifica. Quando eu comecei ensinar políticas de governo. Se a política de
Antropologia, meus alunos todos estavam governo não remunera adequadamente o
preocupados em terminar no menor prazo professor, não adianta ter mestrado,

cader nos de campo · n. 10 · 2002


ENTREVISTA COM LUIZ DE CASTRO FARIA 107

doutorado, coisa nenhuma. Não vão escreveu Rondônia 2 ; Heloísa foi a


conseguir mudar nada. Uma profissão tem Marajó, escreveu trabalho sobre a
que estar necessariamente ligada ao biologia de Marajó, sobre a cerâmica,
mercado de trabalho, é preciso saber se etc 3 ; Raimundo Lopes 4, que foi uma
esse mercado existe e se esse mercado é figura excepcional, estou aguardando a
compensador. A Antropologia está chegada de um livro com dois trabalhos
passando por um problema: não existe raros dele e um prefácio meu chamado
mais um mercado. Professor de “Raimundo Lopes um Sábio Maranhense
Antropologia teria um mercado bastante no Museu Nacional”. Ele foi meu
acolhedor em termos de ensino, mas professor de Etnologia, era extremamente
ensinar antropologia aonde? competente, mas uma pessoa difícil.

D ISPOSIÇÃO PARA APRENDER Cadernos de Campo: Quais foram os


trabalhos de campo que o senhor fez,
Cadernos de Campo: Pensando um professor?
pouco no trabalho de campo, fica muito
clara a importância do trabalho de campo Pr of
of.. Castr
CastrooFaria: Eu percorri o Brasil
Faria:
como fundante de uma formação e de uma todo fazendo trabalhos, sobretudo, com
tradição da Antropologia… pescadores, fiz muita coisa. Eu fui muito
ativo, muito criativo, nós criamos uma
P r of
of.. Castr
Castroo F
Faria:
aria: Você tem toda série de livros sobre pescadores. Eu escrevi
razão, você percebeu um fato que é o prefácio para o livro do professor
absolutamente verdadeiro, por mais que Roberto Kant5, que é Phd de Harvard, é
esteja se modificando atualmente. Basta um professor de Antropologia aqui da
ver o programa de pós-graduação do UFF, que é muito meu amigo e foi meu
Museu Nacional, que é o mais aluno. Uma das coisas que eu fiz nestes
qualificado do Brasil, há muitas teses, últimos quatro anos foi criar essa série de
sobretudo de doutorado, com trabalho publicações sobre Pesca Artesanal aqui no
de campo, mas há outras que são Estado do Rio e já publicamos várias teses,
trabalhos bem elaborados, cuidadosos,
mas não são trabalhos de campo. E no
Museu Nacional isso era impossível. 2 ROQUETTE-PINTO, E. Rondonia. Anthropologia.
Todos, no Museu Nacional, tinham que Ethnographia. Archivos do Museu Nacional, Rio de
Janeiro, XX, 1917.
começar a carreira fazendo trabalho de
campo. Para comparar a Antropologia de 3 TORRES, Heloísa Alberto. Cerâmica de Marajó:
hoje com a Antropologia do tempo do conferência. Rio de Janeiro: Brasil Social, 1929.
Roquette [Pinto], eu costumo usar uma
4 LOPES, Raimundo. Os índios Urubus. Resenha de
explanação baseada, um pouco, na resultados da viagem no Gurupi (1930) e do estudo
história daqui, da França. Os comparativo (Urubus-Tempés). Boletim do Museu
antropólogos para se caracterizarem Nacional, Rio de Janeiro, n. 8, p. 127-129, 1932.

como profissionais, a primeira coisa que


eles tinham que fazer era um trabalho de 5 KANT DE LIMA, Roberto & PEREIRA, Luciana.
Pescadores de Itaipu. Niterói: EDUFF, 1997. (Coleção
campo. Roquette Pinto foi a Rondônia, Antropologia e Ciência Política; 8).

entrevista
108 ENTREVISTA COM LUIZ DE CASTRO FARIA

a dele, a do Diretor do Museu Nacional, à vontade trabalhando com um tema que


Luis Fernando6, e a de Rosyan Brito sobre seja grato a você, que seja agradável a você,
Arraial do Cabo7. Eu criei essa série e já que você se sinta recompensado por
publicamos vários desses estudos de trabalhar com ele. Há outros, eu não vou
comunidades de pescadores. Mas enfim, eu falar o nome, também já é falecido, ele já
viajei o Brasil todo. morreu, era um professor catedrático lá da
Quando eu cheguei da Europa em 1953 USP – eu sei porque eu financiei pesquisa
- eu fui bolsista na França, na Inglaterra - dele no Xingu – que não podia fazer
fui quase que direto para Arraial do Cabo, pesquisa de jeito nenhum, era uma pessoa
onde estavam fazendo uma pesquisa com o que estava sempre com o dedo na cara de
patrocínio do Museu, da Faculdade de alguém, estava sempre pronto em ensinar
Filosofia. Arraial do Cabo que, naquela e não em aprender. Veja, essa é uma das
época, respondia bem aos projetos de coisas fundamentais para a pesquisa
Antropologia, permitia perceber qual era o antropológica: ter consciência de que a
impacto das grandes indústrias sobre as pesquisa representa muito mais um
pequenas sociedades, sobre as práticas aprendizado do que um ensino. Você tem
artesanais, etc. Arraial do Cabo hoje é um que se dispor a aprender coisas que você
senhor centro de turismo, é muito bonita. não sabe, que a Academia não ensinou, tem
Eu ainda a conheci como arraial mesmo, que estar preparado para isso. Isso é
uma aldeia de pescadores. Em 1953, eu fui fundamental na pesquisa. A pesquisa exige
para lá, trabalhei, ainda tem aí um monte um mínimo de interação com o
de fotografias e de dados de pesquisa. pesquisado, uma atitude simpática. Eu fico
à vontade porque eu gostava de pescar,
Cadernos de Campo: O senhor acha pesquei muito, nadava, remava. E então,
que a escolha do objeto passa por uma eu tenho um universo comum de discurso,
escolha individual de gostar ou de não eu falo e eles me entendem. Se vocês vão
gostar? fazer pesquisa, vocês devem saber o que é
Prof
of.. Castr
CastrooFaria: Eu acho que passa
Faria: isso. Para fazer pesquisa com uma
necessariamente, porque não há comunidade rural, por exemplo, se você
possibilidade de se fazer uma pesquisa que não souber ser simples, você não faz. Não
seja inteiramente satisfatória sem ter faz e vai ser objeto de brincadeira, eles vão
condições de aproximação adequadas. Essa tentar ensinar para você aquilo que você
forma de aproximação depende muito dos não aprendeu. Não há possibilidade de um
seus interesses pessoais. Você se sente mais nível de interação realmente produtivo sem
essa facilidade. Você não pode dizer que
estudou uma coisa que você não gosta. Para
6 DUARTE, Luiz Fernando Dias. As redes do suor: a estudar você precisa ter um mínimo de
reprodução social dos trabalhadores da pesca em capacidade de ausentar-se do seu cotidiano,
Jurujuba. Niterói: EDUFF, 1999 (Coleção Antropologia
e Ciência Política; 18).
dos seus pensamentos mais predominantes,
etc. Precisa ter a disposição de aprender.
7 BRITTO, Rosyan Campos de Caldas. Modernidade e Eu acho que isso é fundamental, é a regra
tradição: construção da identidade social dos pescadores fundamental, é ter a disposição de aprender
de Arraial do Cabo (RJ). Niterói: EDUFF, 1999. (Coleção
Antropologia e Ciência Política; 17). e não de ensinar.

cader nos de campo · n. 10 · 2002


ENTREVISTA COM LUIZ DE CASTRO FARIA 109

C a d e r n o s d e C a m p o : O que o DESCREVER COM IMA


ESCREVER GENS E
IMAGENS TEXTOS
TEXTOS
senhor pensa de pessoas que fazem parte
de um grupo e que vão estudar o próprio Cadernos de Campo: O senhor
grupo? Por exemplo, um pescador que mencionou várias vezes, durante a entrevista,
estude pescador, um homossexual que que fez muitos desenhos para o Museu
resolva fazer pesquisa sobre Nacional. Sempre foi uma coisa muito
homossexual, alguém de alguma religião importante o uso da imagem como
que resolva estudar a própria religião, informação também a ser trabalhada. O
uma feminista que resolva estudar a senhor poderia falar um pouquinho sobre o
mulher... papel da imagem – da fotografia, do desenho
– na pesquisa antropológica?
Prof
of.. Castr
CastrooFaria: Acho que a princípio
Faria:
não é conveniente, porque a percepção pode P r o ff.. Castr
Castroo F
Faria:
aria: Eu escrevi na
ser completamente desorientada pela Revista do Patrimônio Histórico um artigo
convicção de que você é senhora de um sobre fotografia em antropologia8 e mostrei
conhecimento que é comum aos outros. É que é um instrumento indispensável de
o que se proclama há muito tempo: quanto trabalho, porque a fotografia ajuda a
maior for o distanciamento é melhor. Não destruir para construir. Eu mostrei
acho bom que essas pessoas já marcadas por fotografias de jazidas arqueológicas em que
uma opção estudem um grupo seu, porque, há um monte de pedras e mostrei que se
por exemplo, um homossexual, depois de eu não tirasse aquelas pedras do lugar eu
ter assumido completamente a opção, ele já não descobriria que lá embaixo tinha um
passou por um processo em que foi avaliado, esqueleto. Eu preciso destruir para
foi descriminado, então tudo isso não construir. Na Arqueologia isso é inevitável.
favorece a percepção clara das coisas. Eu Mostrei também uma fotografia que é
acho que o melhor é que a pessoa se distancie impressionante, porque eu fui caçar com
o máximo possível das características do alguns índios Nambiquara, que eles
grupo que ele vai estudar, porque ele terá adoram matar tucano, por causa de um tufo
muito mais facilidade em perceber o que é de penas vermelhas que eles usam na
importante e o que não é importante. decoração. O índio não é tolo,
evidentemente, e eu doido para vê-lo atirar
Cadernos de Campo: E o senhor fazia com arco e flecha, e ele certo de que arco e
diário de campo de todas as pesquisas? flecha em relação à espingarda não vale
nada. Nós fomos à caçada e ele chamava
Prof
of.. CastroF
Castro aria: Fazia. Tem uma caixa
Faria: os tucanos. Foi engraçado, porque ele
com o nome de “cadernos de campo”. Tem chamava e eu não via, não via com a rapidez
cadernos de campo minuciosos. Eu trabalhei que ele esperava, então custava atirar e
em arqueologia, então havia a cada nível, matar o tucano. Você sabe que existem pios
toda descrição. Trabalhei com feiras, até é
um dos cadernos mais enfeitados, que eu
mandei fazer cópia direta dos filmes de 35
mm e colava no caderno. Feira no interior 8 CASTRO FARIA, Luiz. O antropólogo e a fotografia:
um depoimento. Revista do Patrimônio Histórico e
da Bahia… Eu me divertia muito. Artístico Nacional, IPHAN, n. 27, p. 162-9, 1998.

entrevista
110 ENTREVISTA COM LUIZ DE CASTRO FARIA

de aves, os caçadores usam pios para atrair Cadernos de Campo: Considerando o


a caça e eu sempre fui incapaz de piar igual, que senhor escreveu, em seu livro
mas eu fotografei o índio com as mãos na Antropologia no Brasil: Espetáculo e
boca em determinada posição, chamando Excelência9, e pensando em toda a história
o tucano. Quer dizer, se não tivesse do Brasil, na tradição das exposições que
fotografia não adiantava, porque eu não Dom Pedro organizava, nas Exposições do
tinha uma peça, essa peça que aqui nós Centenário, pensando também nas
chamamos de pio não existe, é Exposições do Museu Nacional e,
simplesmente uma questão de posição da recentemente, nas Exposições dos 500 Anos,
mão nos lábios. Eu fotografei e usei nesse como o senhor pensa essas representações
artigo sobre fotografia para mostrar que se do Brasil? Qual o sentido dessas exposições
não fosse a fotografia, eu não teria trazido para explicar o Brasil?
nada. Não existe pio, o pio é a posição da
mão. A fotografia é indispensável. Eu Pr of
of.. Castr
Castroo Faria: Esse é um tema
Faria:
fotografei muito em todas as viagens. complexo, mas eu acho que a exposição
Tenho uma ótima coleção de viagens de continua sendo um instrumento de
feiras, eu sempre tive um grande interesse comunicação indispensável. Essa
por feira, já assisti feiras em vários sociedade que nós chamamos moderna é
lugares. Tenho muitas fotografias de uma sociedade que não pode dispensar
pesca. Hoje a fotografia é fácil, meio nenhum de comunicação. Então, a
antigamente era muito mais difícil. Eu exposição continua a ser um meio de
me lembro lá do Museu, que o pai desse comunicação fundamental. Nós pensamos
Oiticica que os modernistas adoram, era nos museus antigos como formas
um fotógrafo excelente, membro de zoológicas, botânicas, etc., mas nós temos
sociedades, tirou prêmio internacional. exposição de Astronáutica! A exposição
Eu sempre vivi muito ligado à fotografia como meio de comunicação, de
e, no caso desse Oiticica, eu o transmissão de conhecimentos, de
acompanhava, porque eu era muito excitação da imaginação, é indispensável
amigo do fotógrafo do Museu, que e vai continuar existindo. A prova é que
também era um excelente profissional, e nós temos Museu Nacional com mais de
o Oiticica, que era formado em século, mas nós temos exposições de
engenharia, era técnico e fotógrafo Astronáutica! Os americanos estão
amador. Ele usava fotômetro, aproximava aproveitando todo material para fazer
o fotômetro, tirava de perto, tirava disso, exposições. Portanto, a exposição como
daquilo, quando ele acaba de fazer toda técnica e como processo de comunicação
aquela ginástica com o fotômetro, o continua ativíssima, deve ser praticada e
fotógrafo do museu dizia abertura tanto, é fundamental. Essa atividade é
velocidade tanto. É porque o fotógrafo indispensável, porque os milhares de
profissional dispensa essas coisas, ele visitantes do Museu Nacional saem de lá
percebe logo, mas o Oiticica não, ele era
rigoroso, era engenheiro, acostumado a
números, então o fotômetro para ele era 9 CASTRO FARIA, Luiz. A Antropologia no Brasil:
espetáculo e excelência. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ /
realmente um instrumento adequado. Tempo Brasileiro, 1993.

cader nos de campo · n. 10 · 2002


ENTREVISTA COM LUIZ DE CASTRO FARIA 111

realmente com outra visão do mundo. As Norte, eles tiveram índios e tiveram
exposições nunca vão desaparecer. Eu acho negros, mas a história da América é outra
que serão cada vez mais presentes, só que, coisa. Aqui não, aqui é muito forte a
provavelmente, sob outras formas. Vocês famosa trilogia e eu acho que isso tem que
trabalham com computador, vão à ser revisto. No Brasil, os nossos grandes
internet e podem consultar e podem escritores, os intérpretes da formação
procurar isso e aquilo, mas a forma mais brasileira, hesitaram muitas vezes.
elementar que é a de exibição de materiais,
de peças e textos bem produzidos para Cadernos de Campo: Professor, por
provocar interesse... que o título Escritos Exumados10?

Cadernos de Campo: Professor, nessas Pr of


of.. Castr
Castroo Faria: Por uma simples
Faria:
exposições atuais, por exemplo, nas razão: é que eu acho, e acho que tenho razão,
exposições sobre os 500 Anos, o senhor que as revistas especializadas são cemitérios
não pensa que parece ter aí um retorno a onde são enterrados os artigos publicados.
um interesse sobre o primitivo? O Museu tinha os Arquivos, o Boletim e
tinha uma distribuição para cada
Pr of
of.. Castr
Castroo Faria: Essa é uma boa
Faria: especialidade. Realmente, hoje, as revistas
questão, mas não é fácil responder, porque se tornaram muito mais úteis porque são
na tradição historiográfica brasileira menos pretensiosas, não pretendem
ninguém concebe uma história do Brasil abranger espaços muito amplos, mas antes,
sem índio, negro e português. E eu por exemplo, o Museu Nacional teve, desde
costumo dizer que o Brasil podia escrever 1923, uma publicação chamada Boletim do
história como escreve o americano, que Museu Nacional, como o Museu Paulista
teve índio e teve negro e não mistura nada. tinha. Você tinha artigo de Zoologia, de
Estudam a civilização americana, aquilo Botânica, de etnografia tudo misturado. No
que eles criaram, mas não é essa a forma fim, eu fiquei impressionado, eu aprendi isso
tradicional de abordagem no Brasil. Eu já com um colega nosso do Museu Nacional,
deixei de produzir um artigo para uma que depois foi titular na USP, um alemão,
enciclopédia porque o esquema é esse. Eles professor de Geologia, um dia ele me disse:
obrigam a escrever sobre o índio, o negro “Castro Faria, o que você faz com esses
e o português. Eu tento mostrar a eles que Boletins? Porque eu não posso guardar isso,
é possível escrever uma história do Brasil eu não tenho espaço para guardar uma
sem fazer essa referência sistemática e revista que tem Geologia, Botânica,
valorativa. A importância do índio é maior Antropologia”. A parte que interessava a ele
do que a do preto, ou ao contrário, a do
preto era maior? Enfim, estão presos até
hoje a essa forma de produzir uma história 10 CASTRO FARIA, Luiz. Antropologia: escritos exumados
do Brasil, uma história que seja a história 1. Espaços circunscritos: tempos soltos. Niterói: EDUFF,
1998. (Coleção Antropologia e Ciência Política; 13).
do índio, a história do negro e a história
do português. Eu digo sempre, desafio os CASTRO FARIA, Luiz. Antropologia: escritos exumados
alunos: vejam a história americana! Eles 2. Dimensões do conhecimento antropológico. Niterói:
EDUFF, 1999. (Coleção Antropologia e Ciência Política;
não escrevem a história da América do 19).

entrevista
112 ENTREVISTA COM LUIZ DE CASTRO FARIA

poderia até não existir num número e ele Enfim, é preciso se ter uma Antropologia
não guardava. Isso me calou fundamente. capaz de resolver problemas. Eu dei um
Então, nessas publicações, o título é muito curso na UFF, que se dizia na programação
claro Escritos Exumados , estava tudo que mais importante que ler era fazer. Então,
publicado, mas ninguém lia. Ninguém lia eles tinham que fazer pesquisas dentro da
porque as publicações, vocês sabem que elas cidade. Um dia eu levei todos os meus
vão se tornando cada vez mais raras. As alunos e alguns colegas ao mercado do peixe,
revistas especializadas acabam se tornando porque aqui no mercado há um italiano que
um veículo de comunicação, mas dentro de diz que me conhece há 30 anos, desde que
um circuito muito fechado, só os da mesma fundaram o mercado, ele só vende camarão
especialidade recebem a revista, ela não é e carne de siri, é um italiano, um grande
vendida em banca de jornal, nenhuma delas. amigo meu. Eu já tinha estado no Maranhão
Eu ouvi uma vez de um colega: “pena, o e numa “base”, como eles chamam lá os
Castro Faria publicou muito pouco”. Eu restaurantes populares, onde eles servem o
publiquei muito, só um volume desse tem melhor camarão, o Maranhão é a terra do
407 páginas, mas não era lido. Não só eu, camarão, e o dono do restaurante vai na
qualquer outro, a situação é a mesma. Eu mesa de todo mundo, veio para a nossa e o
publiquei esses dois volumes só recolhendo grande orgulho dele era distinguir o camarão
artigos já publicados nos Boletins do Museu macho do camarão fêmea. Então, eu levei
Nacional, Anuário de Antropologia e outras os alunos todos, os colegas inclusive, ao
revistas, resolvi reunir tudo e publicar com mercado do peixe. Eu tenho vários amigos
esse nome. lá, tem um que se chama Beleza, é feio como
o diabo, é um nortista, Beleza. Todos me
SABER FAZER conhecem, eu entro, eles logo saúdam,
chamam… Eu sempre tive muita facilidade
Cadernos de Campo: O senhor acha de trabalhar com pescadores e com pesca e
que é possível se fazer uma antropologia com peixe, porque eu pescava, eu fazia essas
urbana ou isto está muito próximo do que coisas. Eu os levei por causa, como eu falei,
seria a sociologia? daquele italiano, que é aquele que só vende
camarão e carne de siri e falei do negócio de
P r of
of.. Castr
Castroo Faria: Eu acho que o
Faria: macho e fêmea. Ele disse: “mas isso é tão
importante é saber fazer Antropologia. Se é fácil!” E mostrou um camarão macho e um
Urbana ou não, isso é secundário. O camarão fêmea, separou e todos
problema da escolha do objeto de pesquisa aprenderam. Enfim, essa coisa de fazer,
é um problema muito pessoal e que pode se porque é preciso, a pesquisa antropológica
chamar urbana, como pode se chamar rural. tem isso de especial: o pesquisador precisa
Enfim, eu acho que saber fazer Antropologia ter a capacidade de se tornar simpático,
é o importante, e ela pode se tornar uma agradável. Ele precisa de condições de
Antropologia Urbana, se houver interesse do trabalho, de condições favoráveis, e essas
pesquisador. Minha pergunta é sempre essa: dependem dele, não adianta preparo
que diferença faz você ter uma Antropologia acadêmico, é preciso saber trabalhar, é
Urbana ou não ter Antropologia com preciso ter essa forma de aproximação, de
restrição nenhuma de área e nem de época? empatia. Acontece que, em geral, as pessoas

cader nos de campo · n. 10 · 2002


ENTREVISTA COM LUIZ DE CASTRO FARIA 113

têm e adquirem com o tempo, aproveitando


qualidades pessoais, mas ele não tem como Prof
of.. Castr
CastrooFaria: Pois é! Está aí uma
Faria:
trabalhar se não conquistar simpatia, sem pergunta que eu não sei responder, porque
ter formas de aproximação que sejam a Antropologia, eu tentei mostrar a vocês,
empáticas. A vida do pesquisador hoje mudou muito nesses últimos anos, mudou
depende disso, mas o que permanece é muito, e eu passei por esse processo. Eu
sempre essa pergunta: por que o interesse comecei com a Expedição com o Lévi-
hoje por Antropologia? Antropologia era Strauss atravessando o Mato Grosso inteiro,
uma ciência que estudava sociedades tendo contato com várias tribos e essa era
primitivas. Todos eram preparados – aqui, uma forma, inclusive, de qualificação. O
na América do Norte, na Europa - eram Lévi não seria, na Europa, um Etnólogo, se
preparados para produzir pelo menos uma ele não tivesse imaginado e realizado essa
monografia, uma tese, sobre um grupo expedição. Mas olha, isso foi em 1938 e nós
primitivo. Eu sempre critiquei, inclusive, as estamos em 2001. Hoje, primeiro que a
formas extremadas dessas práticas porque cidade, o lugar chamado Vilhena, que eu
levavam muitos profissionais, antropólogos levei meses para alcançar em lombo de
a se referirem aos índios, aos primitivos
burro, só tinha uma casa, um posto
como seus objetos pessoais, como
telegráfico, hoje eu vou de Boeing, a área se
propriedade. Eu assisti na França a um
transformou completamente. Há um trecho
oficial da Marinha, que havia feito um
de um livro americano, Clark Wissler sobre
estudo sobre esquimó e ele só se referia aos
índios americanos, foi uma das primeiras
“meus esquimós”. Aqui no Brasil muitos se
referiram às tribos que estudaram como coisas que me fizeram ler, obrigatoriamente,
propriedades suas, “meus índios”, “meus lá no Museu Nacional, e ele diz no prefácio,
Tapirapé”. Isso é um absurdo, que os americanos não têm mais índio para
evidentemente. Hoje as coisas vão se estudar, eles tinham estudado tudo, então o
transformando, cada dia mais, porque não que a Antropologia tinha a fazer, era usar os
é fácil obter permissão para trabalhar com o métodos dela para estudar as pequenas
grupo indígena e o que nós chamamos de comunidades. É quando surge claramente
grupo indígena hoje é um grupo em contato essa passagem da área de sociedades tribais
com a sociedade brasileira, em contato que os americanos já tinham estudado todas
mesmo, com instrumentos de comunicação para os estudos de pequenas comunidades
adequados. Eles estão dentro do mundo e americanas, surgem dezenas de estudos de
as sociedades primitivas eram sociedades que comunidades. Aqui no Brasil nós também
estavam restritas a um determinado passamos a estudar comunidades como um
território. A coisa mudou muito e vai mudar objeto à disposição e o abandono do estudo
cada vez mais. Vocês são moças, vão apreciar das sociedades tribais. A razão está
essas mudanças. claramente expressa: não tem mais nada a
estudar sobre índio. Na América está escrito
Cadernos de Campo: Professor, eu isso. E com os métodos antropológicos, quer
gostaria de devolver uma pergunta que o dizer, observação direta, convivência,
senhor fez durante a entrevista: por que a começaram a surgir estudos de pequenas
Antropologia continua a interessar? comunidades americanas. Aqui aconteceu
entrevista
114 ENTREVISTA COM LUIZ DE CASTRO FARIA

a mesma coisa. Nós estudamos, no ano Todos os times europeus hoje têm uma
passado, retrasado, nós ministramos um quantidade de jogadores de várias cores, de
curso no Museu com o professor Moacir várias nacionalidades. Enfim, é esse
Palmeira sobre estudos de comunidades. problema que eu acho que vejo claramente
Nós temos um número apreciável de porque eu fui antropólogo, antropólogo
estudos. O antropólogo voltou-se para isso. físico inclusive, que trabalhava com raças e
Aqui no Brasil surgiram vários estudos e variações raciais. Hoje a globalização é a
agora está sendo reeditado o livro do negação disso tudo. É inútil você pensar em
Antônio Cândido, “Parceiros do Rio separar, porque a ideologia mundial é a de
Bonito”. aproximar, de igualar. Antigamente era o
contrário, era de separar. Eu fui antropólogo
Cadernos de Campo: Nós queríamos que trabalhava com pesquisas métricas,
perguntar sobre as tradições antropológicas separava os grupos raciais, não tinha dúvida
no Brasil tanto no período de formação da nenhuma que um grupo de suecos ou
Antropologia como atualmente. O senhor noruegueses era um grupo de gente alta,
acha que existe uma tradição antropológica clara, loira, dolicocéfala. Hoje um time de
brasileira? futebol tem uma mistura de gentes, de
muitos profissionais de vários países. É o
Pr of
of.. Castr
Castroo Faria: Que existe uma
Faria: mundo que está mudando, as ciências têm
tradição antropológica brasileira é que mudar. A Antropologia que eu fazia não
indiscutível, só que ela não estava na tem mais sentido nenhum. A preocupação
universidade. É preciso ter sempre em mente básica da Antropologia, dessa Antropologia
que o lugar da Antropologia até 1940 não no sentido europeu, a Antropologia
era a universidade. Na universidade só tinha biológica, física, o objetivo dela era separar,
escolas profissionais liberais, elas só era distinguir. Hoje ninguém quer separar…
formavam médicos, engenheiros,
advogados, etc. Ninguém precisava de Cadernos de Campo: É por isso que não
Antropologia, mas o Museu Nacional tem mais Antropologia Física no Brasil?
publica Antropologia desde 1876, no
primeiro volume dos Arquivos do Museu Prof
of.. Castr
CastrooF aria: Tem, mas não tem
Faria:
Nacional. Publica a Antropologia que se importância nenhuma. Nem aqui e nem na
fazia na época. Estudava-se crânios de jazidas América do Norte. Foi uma área de
arqueológicas, depois se passou a estudar conhecimento que perdeu muito da
populações brasileiras. Hoje as importância e é fácil compreender, era uma
transformações são tão grandes que eu ciência que se preocupava exatamente em
chamo a atenção dos alunos: esperem uma distinguir, separar e hoje, com a
copa mundial, quando focalizar o time da globalização, a ideologia é contrária, é reunir
Holanda ou da Suécia, olhem para lá! O que todo mundo, não é distinguir, não é separar.
vocês encontram? Pretos, gente de todas…
E a tradição continua: primeiro, cantam o
hino nacional para um time que é composto
de indivíduos de várias nacionalidades.

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115

tradução
116

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117

ESTRUTURAS
STRUTURAS ELEMENTARES DE RECIPR
ELEMENTARES OCIDADE
RECIPROCIDADE

APRESENTAÇÃO: SYLVIA CAIUBY NOVAES*

Meados da década de 1970, mais impossiblita pensar através delas a passagem


precisamente o primeiro semestre de 1974. da Sociedade sem Estado para as sociedades
Todo vestido de negro, calça e casaco de bárbaras e civilizadas, como queriam os
couro, camisa preta, cabelo pelos ombros, evolucionistas.
um docente francês oferece na USP um O grande mérito de Clastres foi afirmar
curso de pós-graduação em Antropologia essas sociedades pelo que elas são e não pela
Política em que põe por terra a clássica visão negativa – sociedades sem Estado, sem
das sociedades primitivas como sociedades escrita, sem capacidade de acumulação de
sem Estado. Para Pierre Clastres, o professor excedentes. Clastres vai mostrar como essas
que ministrava o curso, convidado pelo sociedades, através de rituais de iniciação,
Programa de Pós-graduação em através de uma economia de subsistência,
Antropologia da USP, estas eram sociedades através do rigoroso controle da natalidade,
contra o Estado. La Société contre l´État: através dos atributos exigidos de um chefe
recherches d´anthropologie politique é indígena, conseguem se manter como
exatamente o título da obra de Pierre sociedades igualitárias.
Clastres que a Editions de Minuit publicava Dez anos depois, Joanna Overing publica
naquele mesmo ano de 1974. este artigo, que é agora oportunamente
Para Pierre Clastres, as sociedades traduzido pela Cadernos de Campo Campo.
primitivas devem ser vistas como sociedades Oportunamente porque nos dá a distância
contra o Estado, sociedades em que a necessária para entender a gênese de suas
presença do chefe não implica poder reflexões e o caminho que estas reflexões
centralizado. A ausência de relações de poder puderam trilhar quase trinta anos depois.
nessas sociedades não significa desordem ou Se Clastres identificava o poder à
anarquia e tampouco pode ser entendida natureza, força que deve ser mantida fora
como selvageria ou arcaísmo. Não é possível da sociedade, para Overing a filosofia
pensar em estruturas elementares de poder; indígena identifica o poder coercitivo às
o poder existe ou não, só existe em exercício. forças da cultura e seu produtos; daí a
É próprio da natureza mesma dessas necessidade de seu controle. Apesar das
sociedades a ausência de Estado, o que diferenças entre as sociedades indígenas do
Noroeste Amazônico, do Brasil Central e das
Guianas, há algo subjacente a esta ampla
* Chefe do Departamento de Antropologia - USP. diversidade: em todas elas a difer ença é o
diferença
118 SYLVIA CAIUBY NOVAES

princípio metafísico ordenador da que ela não se transforme em desigualdade?


organização social. Se nas sociedades jê e Este é o argumento central deste artigo de
bororo há uma organização dual elaborada, Joanna Overing, e é nas estruturas
sem uma regra nítida de casamento elementares de reciprocidade que a autora
prescritivo associado, há, por outro lado, vai detectar a estratégia da filosofia política
uma exacerbação das diferenças internas. indígena.
Entre os Bororo, por exemplo, tudo o que “…it takes at least two somethings to
existe no mundo, toda a riqueza material e create a difference”, diz Bateson (1979:76).
imaterial, como cantos, nomes e Sem diferença não há, nem mesmo,
ornamentos, foi distribuído, em tempos possibilidade de percepção. Não há,
míticos, entre os oito clãs que compõem esta tampouco, vida social. Mas, como aponta
sociedade. Na sociedade Bororo, a própria Overing neste artigo, é fundamental que
organização espacial da aldeia já revela a haja uma adequada mistura de coisas que
distribuição dessas diferenças, através das são as mesmas e de coisas que são diferentes.
casas dispostas ao redor de um círculo, em Grandes diferenças podem levar à
posições fixas, associadas aos clãs; é entre os desigualdade, tirando dessas sociedades seu
membros destes clãs que giram todas as principal atributo, que é o de serem
prestações rituais. No Noroeste Amazônico sociedades igualitárias. Apenas a
não há organização dual, mas mecanismos reciprocidade completa entre afins, através
elaborados de troca matrimonial exogâmica das práticas culturais associadas ao dualismo,
que obedecem a critérios espaciais rigorosos. entre os Jê e Bororo, ou ao casamento
A distribuição dos patri-sibs pelo território, prescritivo, como idealizado pelas sociedades
a partir do eixo cabeça-cauda da sucuri da Guiana, nas quais os afins são
ancestral, é uma clara demonstração da consanguinizados, pode assegurar a
distribuição das diferenças pelos grupos tranqüilidade da vida social. Se Clastres
sociais que compõem a sociedade – casa-se, afirmava que nas sociedades indígenas há
forçosamente, com alguém de outro grupo mecanismos que impedem que os recursos
local. Já nas sociedades das Guianas, em que sejam apropriados e controlados por um
a organização espacial não reflete a ordem grupo em detrimento do outro, para Joanna
da vida social, a regra de casamento Overing a questão do controle é central e é
prescritivo é de suma importância; não há no interior das relações sociais que este
organização dual e o grande esforço é no controle deve ser exercido.
sentido de anular as diferenças. Clastres afirmava, retomando Lévi-
Essas diferenças referem-se às forças da Strauss, que as sociedades indígenas se
cultura, sem as quais a vida social não é mantêm como sociedades igualitárias
possível. Por outro lado, há um risco porque os três elementos que caracterizam
imanente a essas forças que, se não forem a cultura como um sistema de troca (de bens,
devidamente controladas, impedirão mensagens e mulheres) são elementos que
qualquer possibilidade de uma vida social o chefe indígena detém: ele é o grande
tranqüila e segura. Estas são as questões provedor em épocas de crise, deve ter o
presentes em todas as sociedades descritas talento da oratória e tem o privilégio da
acima, a despeito da diversidade entre elas. poliginia. Por outro lado, são estes mesmos
Como controlar a diferença, como fazer para elementos que o transformam em eterno

cader nos de campo · n. 10 · 2002


SYLVIA CAIUBY NOVAES 119

devedor para com sua comunidade. O status unusual cosmogonic vision that all forces
ontológico do chefe é, para Clastres, for life, fertility, creativity within this world
definido por sua relação de dívida em relação of the social have their origin in the
à a sociedade. dangerous, violent, potentially cannibalistic,
Overing vai demonstrar, através de uma exterior domains beyond the social”
análise dos dados da organização social das Overing, 2000:6). Mas essas forças da
sociedades indígenas da América do Sul, cultura, que a autora já apontava como
que, se a vida social tem início a partir da destruidoras da vida social, serão controladas
posse de bens culturais diferenciados por através da vontade, intenção e habilidade dos
parte dos heróis míticos que fundaram estas indivíduos que participam da vida social. A
sociedades, é apenas quando estas forças são ênfase agora é nas virtudes morais e na
controladas e distribuídas (através das estética das relações interpessoais, muito
prestações rituais típicas das sociedades de mais do que na estrutura que conformaria
organização dual ou do casamento estas relações. Daí a importância de
endogâmico nas sociedades das Guianas) investigar as emoções, a cognição, a estética
que a vida social é possível. A existência e a poética, a dialógica, a fenomenologia e a
social implica, nessas sociedades, diferença organização social (idem, p. 8).
e perigo (ao contrário da vida após a morte, A distinção fundamental entre os
quando há identidade e segurança), e é domínios doméstico e jurídico da sociedade,
fundamental que se possa controlar essas tão enfatizada pelos pesquisadores do
forças que permitem, como mostra a autora, Harvard Central Brazil Research Project, cai
a saúde, a fertilidade da terra e a riqueza da por terra, principalmente por não
comunidade. Para evitar os riscos que reconhecer no domínio doméstico os
ameaçariam a vida social é preciso que a aspectos que marcam a vida social. Central
reciprocidade entre afins seja completa, dizia à crítica desta oposição é a reflexão feminista
Overing em 1984. que põe a nu a posição secundária ocupada
Hoje, quase trinta anos após a primeira pelas mulheres nessa distinção entre o
publicação de Estruturas Elementares de domínio doméstico e o domínio jurídico.
Reciprocidade, os textos de Joanna Overing “The chauvinistic reductionism of the
continuam a refletir sua preocupação com structural-functionalist and structuralist
a filosofia indígena. Mas, se as preocupações grand paradigms of society and societal
são as mesmas, a perspectiva que ela ordering where the agency of women was
atualmente prioriza é certamente outra. ignored and society itself equated with male
Aliança entre afins e troca ou reciprocidade structures of domination and subordination
não aparecem nem mesmo como verbetes – to be ordered through either descent or
em “The Social and Cultural Anthropology alliance – took another couple of generations
– the Key Concepts”, publicado por Rapport to unveil and unravel. [...] Terms such as
e Overing em 2000. Suas reflexões hoje society , community , family , kinship ,
giram muito mais em torno de uma descent, lineage, or structure, function,
etnografia voltada para as práticas cotidianas system are to be used at the peril of totally
de convívio, para a construção diária de uma eluding another people´s understanding of
sociabilidade, que propicie condições what they are doing socially – which is the
favoráveis a este convívio. “…it is not an very raison d´être of the anthropological

tradução
120 SYLVIA CAIUBY NOVAES

task” (Rapport e Overing, 2000: 221-223,


grifo dos autores).
A vida social requer a ação de indivíduos
que agem e pensam, pessoas, agentes morais
– é disto que se constitui a sociabilidade.
Se o foco é a sociabilidade, a esfera do
compartilhar tem precedência sobre
conceitos como troca ou reciprocidade.
Nesta nova abordagem, Joanna Overing não
está só. Suas reflexões somam-se a de autores
como Victor Turner, Roy Wagner, Marilyn
Strathern, para citar apenas alguns.

BIBLIOGRAFIA

BATESON, Gregory. Mind and Nature, a


necessary unity. Toronto: Bantam Books,
1979.
OVERING, Joanna e PASSES, Alan. The
Anthropology of Love and Anger, the
Aesthetics of Conviviality in Native
Amazonia. Londres: Routledge, 2000.
RAPPORT, Nigel e OVERING, Joanna.
Social and Cultural Anthropology – The
Key Concepts . Londres: Routledge,
2000.

cader nos de campo · n. 10 · 2002


121

ESTRUTURAS ELEMENT
STRUTURAS ARES DE RECIPR
ELEMENTARES OCIDADE - UMA NO
RECIPROCIDADE NOTTA COMPARA
COMPARA TIV
ARATIV A SOBRE
TIVA
O PENSAMENT
ENSAMENTOO SÓCIO-POLÍTICO NAS GUIANAS, BRASIL CENTRAL E NOR OESTE
OROESTE
AMAZÔNICO*
JOANNA OVERING
TRADUÇÃO DE RENATO SZTUTMAN**
REVISÃO DE SYLVIA CAIUBY NOVAES***

Em A sociedade contra o Estado, Pierre substantivo poderia implicar a rejeição da


Clastres (1977) alegou que a sutileza e a reciprocidade, princípio mais básico para
profundidade da filosofia política ameríndia uma política igualitária. Não obstante,
reside na recusa do desenvolvimento de um pretendo argumentar que os ameríndios
poder coercitivo e, assim, neutraliza a identificam o poder coercitivo não às forças
“virulência” da autoridade política da natureza, mas às forças da cultura, seus
(1977:35) permitindo o estabelecimento de produtos e o controle que se deve exercer
instituições igualitárias. Segundo Clastres, sobre eles. Não é a natureza que a sociedade
essa sofisticação filosófica (ainda que ameríndia rejeita, mas a posse das forças da
inconsciente) levou os ameríndios a cultura que permitiria um uso coercitivo ou
identificar o poder à natureza, qual seja, a violento e poderia impor, entre outras coisas,
uma força que deve ser mantida fora dos um controle sobre a atividade econômica e
domínios da sociedade. Em poucas palavras, seus produtos. Quando uma sociedade
o autor acreditava que a cultura, ao tomar o ameríndia atinge o ápice de tamanha
poder como ressurgimento da natureza rejeição, ela se torna uma sociedade sem
propriamente dita, acaba por negar ambos economia política1, em que não há quem
afirmando a predominância do princípio de ocupe um papel político dirigido a ordenar
reciprocidade, dimensão ontológica o trabalho alheio ou os frutos deste.
primária da sociedade ameríndia, contra a A literatura etnológica recente aponta
qual se opõem tanto o poder como a uma variação considerável na organização
natureza. Concordo com Clastres que a social das sociedades das Terras Baixas da
aceitação do poder coercitivo de modo América do Sul. Diante desse quadro, minha
interpretação sobre os dados de povos do
* Este artigo foi originalmente publicado como
Brasil Central, do Noroeste Amazônico e das
“Elementary structures of reciprocity: a comparative note Guianas pode parecer por demais genérica.
on Guianese, Central Brazilian, and North-West Amazon
socio-political thought”, na revista Antropologica (vol.
59-62, 1983-1984, pgs.331-348; Caracas, Fundacion la
Salle). 1 Por “economia política, entendo um sistema no interior do
qual um grupo ou categoria social assume o controle
coercitivo sobre o trabalho (e seus produtos) de outrem.
** Doutorando em Antropologia Social - USP, pesquisador Minha discussão não está, necessariamente, em contradição
do NHII - USP e do GRAVI. com o argumento de Rivière (1984), que postulava, para as
Guianas, “uma economia política de pessoas” em oposição
*** Docente USP. a uma “economia política de mercadorias”.
122 JOANNA OVERING

Nas sociedades jê e bororo do Brasil Central, sociais guianeses são atomísticos, dispersos
a apreensão da sociedade como um processo e altamente fluidos em sua forma.
inserido em um esquema cosmológico Uma regra prescritiva de casamento
específico ganha forma espacial, que salta associada às variações de um tipo dravidiano
aos nossos olhos, tanto no layout circular de terminologia de relação é, até onde se
ou semi-circular de suas aldeias como na vida sabe, universal aos grupos ameríndios das
ritual complexa. As classificações Guianas (ver, por exemplo, Rivière 1974
dicotômicas da realidade são explicitadas na sobre a organização caribe, Overing Kaplan
vida cerimonial. Cada aldeia é repartida por 1972 e 1975 sobre os Piaroa, Lizot 1971
um sistema de metades, ou séries de sistemas sobre os Yanomami). Por toda essa região, a
de metades, opostas de modo diádico e entre união privilegiada, no sentido que Lévi-
as quais relações elaboradas de Strauss (1969:120) confere ao termo, ocorre
complementaridade lógica são ritualmente no interior do grupo local de pertencimento,
formalizadas (ver Lave 1979, DaMatta identificado então como unidade de
1979, Melatti 1979, Crocker 1979, parentes 2 próximos (ver Riviére 1969,
Maybury-Lewis 1979). No Noroeste Henley 1979, Albert sobre os Yanomami in
Amazônico, princípios de estrutura social Ramos & Albert 1977, Overing Kaplan
são semelhantemente visíveis a olho nu, mas 1981). O grupo local tradicional convive
em graus distintos. A segmentação do corpo comumente em uma grande casa comunal
da sucuri ancestral, da cabeça à cauda, que se revela um grupo de parentesco
fornece o padrão conceitual da segmentação cognático endogâmico. O pertencimento à
territorial dos patri sibs de um grupo casa é normalmente baseado em um
exogâmico, que constituem unidades de princípio de afinidade. Um adulto deve se
troca com patri sibs de grupos exogâmicos casar no interior desta casa, mantendo ali
de origem diversa no corpo da sucuri. suas relações com afins. Classifiquei, em
Quando comparada à organização altamente outro momento, essa estrutura como um
ritualizada das sociedades do Brasil Central “grupo de parentesco baseado na aliança”
e ao layout bem conceitualizado das aldeias (1973, 1975), visto que se mantém como
do Noroeste Amazônico, os grupos de unidade de cognatos pela restrição ideal da
parentesco endogâmicos dos ameríndios das troca em seu interior. Sua unidade como tal
Guianas aparecem como amorfos e fluidos. é associada ao número de trocas
Nas Guianas, não há arranjos espaciais matrimoniais entre homens no interior do
complexos que reflitam a ordem da vida próprio grupo local (Overing Kaplan 1984).
social. Não há tampouco grupos de Como já comentei (1984), é uma ironia
nominação, metades que estabeleçam trocas que nas sociedades em que a regra prescritiva
rituais umas com as outras, refletindo
cerimonialmente uma visão particular do
2 O termo “parente(s)” corresponde à tradução do termo em
ordenamento cosmológico ou expressando inglês kin ou kinsmen. Este termo contrasta com outro que
um eterno ordenamento do “outro mundo” será igualmente encontrado no texto – “aparentado”, que
designa o que em inglês aparece como relative . Em
pelo passado mítico. Não há ritual para português, o termo “parentesco” possui um campo
declarar o elaborado intercruzamento das semântico maior que o de kinship, já que este último reúne
unidades pelas quais a sociedade se apenas as relações consangüíneas, reservando para o termo
relatedness um campo que abriga os laços de afinidade.
reconstitui. À primeira vista, os grupos (Nota do tradutor)

cader nos de campo · n. 10 · 2002


ESTRUTURAS ELEMENTARES DE RECIPROCIDADE 123

de casamento é de esmagadora importância das outras (ver Overing Kaplan, 1977 e 1981).
para a organização de seus grupos locais não Hesito aqui em empregar o termo “dualismos
haja evidência de uma organização dual, ao subjacentes”, preferindo diferença como termo
passo que na organização das relações entre para descrever o princípio metafísico que
as metades nas sociedades jê e bororo, a troca reivindico como princípio de ordenamento
de mulheres entre metades assuma um papel comum a todas essas sociedades. Afirmo ainda
relativamente menor na compreensão da que, na teoria indígena, a “diferença” está associada
interação social (Lave 1979, DaMatta 1979, ao perigo e, por isso, deve ser compreendida, em
Melatti 1979, Crocker 1979, Maybury- última instância, como variação no conjunto de
Lewis 1979). Nas Terras Baixas da América forças na cultura e do poder em geral controlado.
do Sul, a organização dual não é Em suma, a existência social é identificada tanto
freqüentemente associada a uma regra com a diferença como com o perigo e,
prescritiva de casamento, e, de fato, a inversamente, a existência a-social (por exemplo,
presença de tal regra não implica, de modo o mundo depois da morte) com a identidade e a
algum, a presença de uma organização dual. segurança. É por essa razão que os ameríndios
Esse contraste – de um lado, sociedade com conferem tanta ênfase à vida social como produto
organizações duais elaboradas, mas sem regra de uma adequação de elementos e forças, que
de casamento prescritivo associado; de devem, necessariamente, ser diferentes uns dos
outro, sociedades com regra prescritiva, mas outros para que a sociedade exista: é apenas por
sem evidência de uma organização dual – meio de tal mistura “adequada” que a segurança
será pertinente para a discussão seguinte a pode ser conquistada e o perigo, afastado.
propósito da variação que encontramos Finalmente, a segurança na sociedade torna-
entre sociedades na elaboração de princípios se nada mais senão a “reciprocidade completa”,
de troca no interior delas. Meu argumento que contrasta com a “incompleta”, em que
é de que, sob tal contraste, reside um forças mutuamente perigosas encontram-se
princípio unitário de sociedade. O contraste perigosamente (ver Overing Kaplan, 1984).
na organização reflete meramente os vários Tais princípios são expressos abertamente
modos pelos quais uma filosofia da vida nas cosmogonias dos Piaroa3 e do Noroeste
social semelhante pode expressar “estruturas
elementares de reciprocidade”.
Desse modo, devo afirmar que, apesar do 3 A pesquisa de campo entre os Piaroa realizou-se em 1968 e
grande contraste na organização das sociedades 1977 com M.R. Kaplan, ao qual devo muito pelos dados
coletados em conjunto. A pesquisa de 1977, da qual advêm
do Brasil Central e do Noroeste Amazônico em muitos dos dados apresentados a seguir, foi financiada pela
relação às das Guianas e de suas estruturas sociais SSRC Grant HR 5028, Fundo de Pesquisa Central da
Universidade de Londres, Fundo da Escola de Pesquisas
muito dessemelhantes, reside uma filosofia Econômicas, e o Instituto de Fundos de Viagem Latino-
semelhante de existência social que implica Americana. O SSRC também concedeu-me um Research
também uma compreensão particular do poder Grant (HRP 673) que me dispôs de tempo para a análise
dos dados adquiridos em 1977. Os Piaroa residem nas
político e do controle sobre as forças da cultura, Guianas ao longo do médio rio Orenoco. Integram um
ou dos recursos escassos no mundo, que tal poder grupo lingüístico independente, o Saliva, e têm um número
significativo de “intrusões” caribe em seu vocabulário. Na
poderia impor. O princípio da vida social ao qual estrutura social e política, pertencem etnograficamente às
me refiro é a idéia de que a sociedade pode existir Guianas. Ver Dreyfus (1984), que acentua a importância
apenas mediante o contato e a mistura apropriados do tratamento das Guianas, ao lado das ilhas da Costa, como
um todo unitário singular (embora complexo) no que diz
entre entidades e forças, diferentes que são umas respeito à sua organização política.

tradução
124 JOANNA OVERING

Amazônico e na vida cerimonial do Brasil os habitantes das Guianas em geral com seus
Central. Não foi, contudo, pelo viés da vizinhos mias “sócio-centrados” ao Sul, que
análise estrutural que cheguei às minhas destinam certos tipos de controle ao jugo
conclusões. A medida pela qual os grupos da sociedade. Nas Guianas, tal controle é
caribe se referem abertamente, seja no ritual, responsabilidade do indivíduo.
seja na cosmologia, a uma teoria que Para os Piaroa, e provavelmente
equaciona sociedade com diferença e perigo, outros guianeses, as forças da cultura,
com a reunião de forças culturais diferentes a-sociais em sua origem, são
em origem, é um tema a ser explorado. Se domesticadas no interior do indivíduo,
tal discurso não aparece imediatamente que possui a responsabilidade de
como evidente, devo, não obstante, controlá-las privadamente. A ênfase
acrescentar que a estrutura social caribe, em piaroa na responsabilidade do
seu ideal de união endogâmica, promove indivíduo sobre tais forças não é senão
uma afirmação encoberta desses princípios um aspecto de uma filosofia
que poderiam bem ser acentuados de forma individualista sutil, extrema em
mais óbvia em outras sociedades de florestas qualquer escala pela qual pode ser
tropicais. medida (ver Lukes, 1973), e que
Os Piaroa e os índios das Guianas em assume um papel excessivamente
geral fazem o possível para que a organização importante no pensamento social
do grupo local suprima as diferenças que piaroa, como suspeito ser, da mesma
compõem a sociedade, ao passo que as forma, o caso dos falantes de língua
culturas jê, bororo e do Noroeste Amazônico caribe nas Guianas, que também
tendem a enfatizá-las. O reconhecimento de enfatizam o auto-controle e a
tal variação entre os ameríndios na responsabilidade individual. Segundo
manifestação social dessa diferenciação Melatti (1979:67), entre os Krahó,
cultural ou, ao contrário, a supressão desta falantes de uma língua jê do Brasil
conduz a um longo caminho de reflexão Central, o self físico recebe, durante
sobre as estruturas sociais dos grupos das rituais elaborados, uma roupagem
Terras Baixas da América do Sul. Entre os externa de identidade cultural que, por
Jê, os Bororo e os ameríndios do Noroeste sua vez, fornece ao indivíduo
Amazônico, as forças da cultura são identidade social. De modo diverso,
socialmente controladas, como evidenciado entre os Piaroa, o social, a cultura e
pelos princípios relativamente formais de suas forças – incluindo os nomes
organização típicos dessas sociedades próprios – integram uma roupagem
mencionados acima. Sugiro que as estruturas interna, cuja natureza é privada,
sociais atomizadas, comumente encontradas devendo ser domesticada
nas Guianas, e os agrupamentos sociais individualmente. Como devo ilustrar
guianeses são advindos de uma filosofia abaixo, o controle social do self não é
individualista4, fortemente veiculada por senão par te de um conjunto mais
esses ameríndios, uma filosofia que contrasta amplo de idéias que os Piaroa guardam
sobre a auto-identidade, a composição
do self e a domesticação dos elementos
4 Ver Rivière (1984) que também enfatiza a importância do
individualismo para o pensamento sócio-político guianês. (forças) de que é constituído.

cader nos de campo · n. 10 · 2002


ESTRUTURAS ELEMENTARES DE RECIPROCIDADE 125

O CONTR
ROOLE SOCIAL DAS FORÇAS DA metades exogâmicas, cada qual contendo
CULTURA: EXEMPL
CULTURA OS DO
EXEMPLOS BRASIL CENTRAL E quatro matriclãs que permanecem em
DO NOROESTE AMAZÔNICO
OROESTE ordem espacial fixa distanciando-se uns dos
outros ao redor do círculo da aldeia. Essa
Etnógrafos das sociedades jê setentrionais divisão da aldeia em oito partes corresponde
(Melatti 1979, Lave 1979, DaMatta 1979) às oito seções das forças do cosmo. Todos os
observam a articulação das instituições nomes de coisas no universo estariam
sociais complexas com um conjunto de repartidos entre os oito matriclãs, cada qual
crenças associadas à transmissão de possuindo um oitavo do estoque de nomes
identidades sociais baseada em nomes, que e de sua força, o aroe corporado, ou “essência
envolvem a relação entre doadores e categórica” de cada elemento possuído. Na
receptores de nomes. A continuidade da topografia do mundo subterrâneo, o mundo
sociedade não pode ser compreendida fora dos aroe, todas as “entidades totêmicas” (sua
de tal mecanismo de transmissão de um força?) e os membros mortos de um clã
conjunto de nomes tomado como um todo determinado vivem juntos na clareira
imutável. Grupos portadores de nomes são alocada por aquele clã, um arranjo espacial
descritos por estes autores como unidades que é replicado na aldeia. Assim, as forças
corporadas adquirindo, em sua perpetuação, da cultura, os recursos escassos possuídos por
não apenas conjuntos de nomes, mas cada clã, possuem sua fonte sob a terra. A
também ritos, parafernália ritual e locações mais valiosa riqueza do clã, suas próprias
de grupos rituais (ver Overing Kaplan “representações dos espíritos”, é dada de
1981). Em outras palavras, os conjuntos de presente aos clãs da metade oposta para ser
nomes dividem entre si os recursos escassos desempenhada pelos seus membros. Cada
da sociedade que são, digamos (tomando a clã deve realizar sua responsabilidade
evidência do caso bororo), as forças da categórica e ritual em relação aos outros clãs,
cultura: forças que permitem a saúde, a representando uma das oito categorias pelas
riqueza e a fertilidade da terra e da quais o universo é classificado.
comunidade, e, nesse sentido, forças Como os grupos portadores de nomes jê
doadoras de vida (e destruidoras de vidas) e os clãs bororo, o sib pira-paraná do
do mundo. Para os Jê setentrionais, a Noroeste Amazônico também controla os
transmissão do nome carrega consigo a recursos rituais e seu próprio conjunto de
transmissão da afiliação cerimonial, o nomes pessoais (C. Hugh-Jones 1979, S.
conhecimento esotérico e os direitos e Hugh-Jones 1979). Como entre os Bororo,
obrigações rituais: em sua aquisição, o nome as forças da cultura apropriadas socialmente,
fornece ao indivíduo uma identidade social por cada sib, têm sua fonte nas profundezas
e, assim, transforma-o em membro de um da terra, onde se alojam em “casas do
grupo social que possui uma parte das forças despertar”, as casas de pedras dos sibs
da cultura disponíveis no mundo. localizadas no mundo subterrâneo, de onde
A observação certamente mais clara sobre vêm as almas dos recém-nascidos e para onde
o controle social das forças culturais no vão as almas dos mortos. É no contexto da
Brasil Central foi oferecida por Crocker posse por cada clã de seus próprios estoques
(1979) sobre os Bororo. A sociedade bororo, de nomes pessoais, reciclados em cada
representada na aldeia, é composta de geração alternada, juntamente com as almas

tradução
126 JOANNA OVERING

que vivem na “casa de despertar”, que fontes de poder advindas de diferentes


podemos compreender parcialmente o domínios do cosmo, a sociedade veio à luz.
quebra-cabeça chave das sociedades do A distinção entre habitats cósmicos mais
Noroeste Amazônico. Com exceção dos amplos, e as forças associadas a cada um,
Cubeo, os ameríndios do Noroeste tornou-se, ao menos para alguns povos do
Amazônico casam-se idealmente fora de seu Noroeste Amazônico, uma distinção
grupo lingüístico, o que implica que a língua primordial entre semelhança e diferença,
que se fala é herdada do pai. Christine fornecendo o idioma para a discussão da
Hugh-Jones (1979) acrescenta que a língua identidade e da diferença no que toca às
deveria ser considerada como parte da relações sociais e, nesse sentido, possui um
propriedade do grupo de descendência, ao grau considerável de força classificatória no
lado da parafernália ritual. Sendo assim, cada ordenamento da troca matrimonial e da vida
grupo exogâmico – um conjunto de sibs, ritual no Uaupés.
que descende de uma sucuri ancestral e que Entre as sociedades do Noroeste
tem a mesma filiação lingüística – tem seu Amazônico, aqueles do mesmo grupo
próprio estoque de nomes de coisas no exogâmico são identificados a um domínio
mundo. Se o aroe corporado, totens habitacional particular, ao passo que os afins
nomeados, de um clã bororo compreende são associados a um outro. O fato de a
um oitavo do universo, no Noroeste semelhança e a diferença serem expressas por
Amazônico, cada grupo exogâmico “possui” meio da linguagem desse domínio sugere o
um vocabulário especial, idiossincrático em reconhecimento de um controle sobre
relação a si mesmo, que cobre todos os itens forças, econômico em sua base. A
no mundo. É bem possível que o controle cosmogonia piaroa, ao narrar a criação do
sobre um conjunto específico de nomes para mundo, a origem da cultura e dos recursos
coisas imponha para esses ameríndios um naturais da terra, narra também a ocorrência
poder particular sobre essas coisas ou um de batalhas entre os dois grandes demiurgos
acesso à sua força (ver Overing Kaplan do tempo mítico, afins um do outro, por
1981). recursos e forças dos domínios, que cada
Christine Hugh-Jones (1979) conta que qual havia sido o responsável pela criação e,
o casamento entre os ameríndios do por conseguinte, pela posse. Ambos
Noroeste Amazônico deve ser desejavam apropriar-se do controle sobre as
explicitamente exogâmico não apenas em forças e os domínios do outro. Na
relação ao grupo lingüístico e à linhagem, cosmogonia e teogonia piaroa, há uma
mas também em relação à associação de menção explícita aos perigos graves aos quais
habitat, identificação conferida pelo o homem social se vê exposto quando diante
pertencimento ao sib e explicada por mitos do poder que procura apropriar-se dos
de origem. No tempo mítico, o sol primevo produtos do universo, poder que assume
dera luz a três sucuris, associadas rapidamente uma expressão coercitiva,
respectivamente aos domínios do céu, da violenta e incontrolada. Ao mesmo tempo,
terra e da água, que são ancestrais dos três como no Noroeste Amazônico, essa
grupos exogâmicos. Por meio do cosmogonia associa afinidade à diferença,
intercasamento dos membros desses grupos, no que diz respeito tanto à sua fonte de
cada qual remontando a uma origem em origem como ao tipo de poderes adquiridos.

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ESTRUTURAS ELEMENTARES DE RECIPROCIDADE 127

A mensagem mítica consiste na idéia de que próximo à terra dos aroe entre os Bororo e
a interação de tais diferenças, como pré- os casas de despertar no Pirá-Paraná. No
requisito para a vida social, é potencialmente entanto, ao contrário da imagem dos lares
perigosa. Trata-se de um perigo que emerge subterrâneos dos Bororo e do Noroeste
quando a reciprocidade entre afins Amazônico, os clãs pós-morte piaroa são
permanece incompleta (por exemplo, casas sem qualquer cultura (ta´kwarü ).
quando de roubo ou incesto) e, por isso, Dessa feita, não há forças de vida nem de
pode ser evitado apenas por meio do cultura que possam ser extraídas por um
estabelecimento cuidadoso da reciprocidade Piaroa vivo de sua fonte de origem, lugar
entre eles. Os perigos da afinidade são tão desprovido de poder. Para o Piaroa, as
grandes que os Piaroa preferem suprimir distinções espaciais do pós-vida e da criação
lingüística e socialmente uma classificação não são de modo algum replicadas na vida
que enfatizaria as diferenças subjacentes e social, onde, por meio de combinações, os
necessárias para a relação afim e, desse modo, clãs perderam completamente sua
também para a ordem social. Assim, entre distintividade espacial e social.
os Piaroa, não há associação simples de uma A classificação de habitats significativos
classificação de domínios significativos com é usada politicamente, sempre que as
regras de casamento e identificação grupal. distinções são expressas ativamente por
A classificação dos domínios e suas forças, competidores políticos para estruturar suas
tão importante para a cosmogonia, não batalhas individuais. Antes de discutir a
ganha projeção sobre o sistema matrimonial, supressão, na vida social piaroa, da diferença
tampouco fornece o meio para identificar que, apesar de suprimida é necessária à
grupos sociais. ordem social e à sua expressão no campo
Os Piaroa, assim como as culturas do político, devo descrever de maneira breve
Noroeste Amazônico, enfatizam aspectos da cosmogonia piaroa, buscando
sobremaneira as práticas matrimoniais de esclarecer uma discussão recente5.
tempos primordiais. Foi por meio de
intercasamentos entre os primeiros homens C OSMOGONIA P IAR
IAROOA : VIOLÊNCIA E CA OS
CAOS
e mulheres piaroa, cuja origem se dera em PRIMEIROS
PRIMEIROS
espaços separados de criação – acima e
abaixo da terra –, que a sociedade pôde vir à Ricoeur nota, em The symbolism of evil
luz fazendo com que todos os Piaroa se (1969:178), que o “mal é tão velho quanto
tornassem cognatos, como o são atualmente. o mais velho dos seres; o mal é o passado do
Apesar de o pertencimento clânico não ser”. Como nos mitos das civilizações antigas
implicar, de forma alguma, obrigações para a que Ricoeur faz referência, a mitologia
o indivíduo nessa vida, seu clã representa a piaroa remete também a uma violência de
sua origem e a casa para a qual ele voltará poder inscrita na origem das coisas. Trata-
após a morte. Os Piaroa acreditam que, no se de um princípio de violência que tanto
pós-vida, os membros de cada clã viverão
juntos em um local espacialmente separado 5 Ver para um relato detalhado tanto sobre a cosmogonia
de todos os outros clãs – separado dos afins, como sobre o sistema clânico piaroa, Overing, “The paths
dos animais, de todos os seres diferentes de of sacred words”, apresentado no seminário “Xamanismo
nas Terras Baixas da América do Sul” no 44o. Congresso
si. Conceitualmente, trata-se de algo Internacional de Americanistas, 1982, Manchester.

tradução
128 JOANNA OVERING

estabiliza como destrói (ver Ricoeur, a topografia da terra, seus elementos naturais
1969:182-3). Os poderes incontrolados e (montanhas, rochas, sistemas fluviais,
não-domesticados envolvidos no trabalho da cachoeiras). As forças da Anta/Sucuri,
criação se revelam demasiado destrutivos, associadas a esses dois conjuntos de criação,
selvagens e venenosos para permanecerem o da cultura em oposição ao dos elementos
livres como forças ilimitadas dentro do naturais da terra e do céu, eram diferentes
mundo social. Para que a ordem criada por em qualidade e, quiçá, em força. Os poderes
eles permaneça intacta, esses poderes de Kuemoi eram venenosos e malignos por
possantes, ao final do tempo mítico, foram sua selvageria, ao passo que os de Wahari,
apartados do mundo social, instalando-se relativamente controlados e benevolentes em
em outros mundos. Essa separação assegura sua força. A oposição entre selvageria e
um maior controle dessa maldade, dessa controle refletia no tipo de seres criados ao
potencialidade para o mal. longo do tempo mítico, seres que não eram
Antes da criação dos mundos celeste e senão aspectos de seus respectivos poderes
terrestre, todas as fontes de poder do e, como tais, revelavam-se auxiliares nas
universo estavam instaladas abaixo da batalhas contínuas pelo poder engendradas
superfície da terra, cuja face ainda não havia pelos dois feiticeiros mais poderosos do
se constituído. No tempo mítico, esses tempo mítico.
poderes subterrâneos, que se tornavam A fonte da cultura na terra, nas suas
lentamente desgovernados, adquiriam uma origens, eram as forças venenosas e selvagens
força responsável pela criação de todos os de Kuemoi, que lhe foram dadas pelo pai
elementos e seres do universo superficial e Ofo/Da’a sob a forma de alucinógenos
pelo conhecimento que permitia uma certa venenosos. Embora senhor da cultura e do
existência. A maior parte dos poderes cultivo, Kuemoi criou todas as cobras
responsáveis pela forma e vida da superfície venenosas e insetos do mundo. Envenenou
terrestre provinha do mundo subterrâneo de todas as grandes formações rochosas e as
Ofo/Da´a, uma Anta/Sucuri quimérica. correntes. Ele é avô dos ferimentos, pai das
Dois grandes afins míticos, Kuemoi e piranhas e criador de sapos venenosos. É
Wahari, cujo nascimento resultou de um ato também avô do sono e senhor da escuridão.
de Ofo/Da´a e cujos poderes foram O crocodilo, o jacaré e peixes perigosos são
concedidos pelo mesmo, foram, á sua parte, da família de Kuemoi, como o são também
responsáveis pela criação da maior parte dos o esquilo e o urubu, o primeiro o que
elementos do mundo piaroa. Os poderes que anuncia o perigo e o segundo, predador de
a Anta/Sucuri transmitiu a esses dois animais selvagens. Em suma, todos os
demiurgos eram distintos em sua origem e animais que mordem e que apresentam
opostos em seus efeitos. Kuemoi, senhor do perigo e todas as coisas venenosas nesse
domínio aquático, trazia para a superfície mundo, sendo classificados como “animais
da terra poderes de seu local de nascimento, selvagens” (dea ruwa), categoria que inclui
o mundo subaquático, permitindo os próprios Piaroa, são da família ou da
desenvolver, entre outras coisas, práticas de criação de Kuemoi e são classificados como
cultivo de plantas, o fogo de cozinha, “pensamentos de Kuemoi”. Assim, na
ornamentos, poderes de caça, curare, veneno cosmogonia piaroa, a cultura pertence ao
de peixe. Wahari, senhor da floresta, criava poder incontrolado e venenoso de Kuemoi

cader nos de campo · n. 10 · 2002


ESTRUTURAS ELEMENTARES DE RECIPROCIDADE 129

e tem sua fonte na loucura do mesmo. Como assim, com Kuemoi, que também se
provedor de cultura aos habitantes da transformava em aspectos de seus próprios
floresta (os Piaroa e, antes deles, Wahari), pensamentos (por exemplo, predadores,
seu “presente” é venenoso, tão selvagem como a onça e o urubu).
como os seus poderes desenfreados de Como grandes feiticeiros, Kuemoi e
feitiçaria. Mesmo os seus filhos, as plantas Wahari representam o fracionamento na
do roçado, são venenosos. Terra dos poderes de Ofo/Da’a, o deus
A cultura, constituída de poderes supremo Anta/Sucuri, cuja casa se
venenosos e descontrolados que advêm da encontrava abaixo da superfície terrestre.
escuridão, é parcialmente domada pelas Wahari casou-se com a filha de Kuemoi.
forças da luz que criaram os elementos Com a união desses dois grandes poderes,
naturais (inanimados) do universo. Wahari, opostos pela associação de cada um com um
genro de Kuemoi e senhor da floresta, gasta diferente domínio do cosmo – o mundo
boa parte do tempo mítico não apenas subaquático e o mundo terrestre –, as
tentando roubar a cultura de Kuemoi, mas relações sociais passaram a existir e a
também para transformar os seus estragos fertilidade do deus Anta/Sucuri ganhou
em forças mais controladas e mais eficazes expressão como sociedade. Em outras
para seu uso seguro pelos habitantes da palavras, essa união conduziu à emergência
floresta. Se o poder de Kuemoi é do estado social em tempos míticos.
descontrolado, Wahari representa a Contudo, a relação afim então estabelecida
possibilidade de um poder controlado. A permaneceu desleal, manifestando uma não-
força de seus atos espetaculares de criação reciprocidade gritante. Como mencionado
derivaram de um alucinógeno não venenoso acima, a maior parte dos mitos piaroa
oferecido pela Anta/Sucuri quando ainda destina-se à narração de duelos entre esses
habitava a morada subterrânea de seu dois demiurgos pela conquista e controle de
nascimento. Como criador da maioria das elementos, forças e domínios. Kuemoi,
características da terra, Wahari foi senhor das águas, desejava comer animais
denominado “senhor do mundo”. Se selvagens, e Wahari permanecia atento para
Kuemoi era o senhor das trevas e da noite, as armadilhas que o primeiro tramava para
Wahari era o senhor da luz – seu poder era ele e sua família. Á sua parte, Wahari
tanto que foi capaz de instalar o sol no céu. desejava cultura. Foi apenas em seu
Ele era também o senhor dos animais casamento com Maizze, filha de Kuemoi,
selvagens, então humanos em sua forma, e que ele recebeu como dons plantas
de sua morada. Por meio de seus cultivadas e o conhecimento para a sua
pensamentos, ele criou todos os animais preparação. Depois de tê-la desposado,
rupestres e pássaros selvagens. Foi ele Wahari despendeu muito do tempo
também quem criou os Piaroa valendo-se disponível roubando artefatos culturais de
de peixes capturados em lagos. Wahari podia seu sogro, sempre procurando domá-los em
voar e, com efeito, sempre se transformava proveito de seu uso. No final do tempo
em beija-flores e gaviões, produtos de seu mítico, ele roubou artefatos culturais,
próprio pensamento, para realizar atos possuídos pelos “pais” dos animais selvagens.
fantásticos, para percorrer grandes distâncias Toda a cultura que Wahari recebeu ou
sobre a terra e dentro dela. Contrastava, roubou pertence atualmente aos Piaroa, uma

tradução
130 JOANNA OVERING

das criações do demiurgo. No entanto, reciprocidade repetida que o risco, intrínseco


atualmente, os Piaroa não recebem forças à relação afim, pode ser contornado, que o
de cultura de Wahari. No final do tempo perigo da diferença absoluta pode ser
mítico, Wahari matou Kuemoi em retaliação afastado. Por outro lado, para que a
por invasões canibalísticas em seu domínio sociedade continue, as forças da cultura
na floresta. Wahari foi então morto por devem ainda integrá-la, tanto para lhe dar
membros de sua própria família em vingança vida, como para protegê-la.
pelos seus pecados a-sociais, especialmente
pelo incesto cometido com a irmã, Cheheru. O INDIVÍDUO E A DOMESTICAÇÃO DA
Ambos, Kuemoi e Wahari, foram mortos CULTURA
CULTURA
por sua irresponsabilidade social – o
primeiro reencarnou na Terra como sucuri, Vimos antes que nas sociedades bororo
e o último, como anta. Ambos perderam os e do Noroeste Amazônico, as forças culturais
presentes concedidos pelo criador Anta/ pertencem a clãs e sua fonte permanece de
Sucuri – as forças da cultura e as forças para propriedade clânica, sendo ela instalada
domesticá-la – para outros seres, deuses que abaixo da superfície terrestre no interior das
vivem, no mundo atual, uma existência moradas primordiais de cada clã. De modo
etérea sob as quedas d’água de suas casas diverso, entre os Piaroa, as forças da cultura
celestiais. São esses deuses que fornecem, aos não pertencem a grupo social algum, mas
Piaroa, os conhecimentos e os poderes da aos deuses, e são trazidas de volta à sociedade
cultura, forças demasiadamente destrutivas por meio da iniciativa individual e a partir
e, por isso, instaladas fora do mundo da responsabilidade do indivíduo. São os
terrestre, onde a vida social e conduzida de deuses que fazem com que as forças dêem
maneira selvagem e venenosa. Assim, os vida (ta´kwarü), “a vida dos pensamentos e
poderes ilimitados de Kuemoi e Wahari da cultura”, tanto para o indivíduo como
permanecem, sob a vigilância e a posse dos para a sociedade em que vive. Tais forças
deuses celestiais, guardados em caixas de são trazidas para a sociedade por meio da
cristal. habilidade do xamã, que domestica a sua
As lições do passado mítico dizem selvageria, ao alocá-las dentro de suas contas
respeito à asserção de que nenhuma vida de conhecimento, ou auxilia outros a fazer
social ordenada seria possível se tais forças o mesmo. A cultura deve ser, nesse sentido,
vagassem livremente. Sua existência domesticada no indivíduo.
desregrada contínua encorajaria, como Em geral, os Piaroa conferem muito valor
ocorrido no tempo mítico, atos de à habilidade de conduzir uma vida tranqüila
canibalismo, incesto, loucura e furto – (adiupawi). O primeiro ensinamento formal
compulsões a-sociais que ridicularizam as ao qual uma criança é submetida consiste
regras de reciprocidade (e a tranqüilidade em lições sobre controle. Os Piaroa
que delas resulta), das quais, segundo a visão consideram tal treinamento como parte de
piaroa, a sociedade é dependente em sua um processo de “domesticação”. A criança
continuidade. Como será discutido a seguir, deve adquirir cada vez mais responsabilidade
o mais adequado, ou melhor, a relação de social (ta´kwakwomena) para suas próprias
troca mais segura é aquela que deve ser ações, deve controlar as forças da cultura
reciprocada, pois é apenas por meio da conforme as incorpora. À medida que cresce,

cader nos de campo · n. 10 · 2002


ESTRUTURAS ELEMENTARES DE RECIPROCIDADE 131

uma pessoa deve decidir por si só quantos e de qualquer homem comum, não pode
quais poderes – como a caça, a pesca, a possuir tudo o que há no mundo.
feitiçaria, o canto – poderá suportar das Atualmente, os senhores da terra e da água
fontes não-domesticadas localizadas dentro possuem os domínios da água e da floresta.
de si mesmo. Esses poderes são adquiridos Eles não são Wahari e Kuemoi, mas o
por meio da liderança do xamã experiente, espírito da floresta, Re´yo, e o espírito da
que apreende essas fontes cautelosamente água, Ahe Itamu , que adquiriram tal
em seus vôos à morada dos deuses. Quando controle sobre esses habitats no final do
um indivíduo cresce, ele recebe dos deuses tempo mítico. Estes dois espíritos guardam
grande quantidade de contas, que seus respectivos domínios, os protegem,
permanecem instaladas no seu interior e tornam seus habitantes férteis e punem os
dentro das quais os poderes da cultura são que ameaçam suas formas de vida. Eles
armazenados e, então, domesticados. O também cooperam como guardiões da
estado interno de uma pessoa, com o comida dos roçados. O ponto relevante é,
mínimo de poderes incorporados, torna-se obviamente, que os habitats de terra e água,
confuso quando elementos exógenos a e seus produtos, não são possuídos por
invadem seja por sua permissão, seja por homens. Tal controle não é parte do escopo
vontade alheia (doença). A roupagem do poder político na sociedade piaroa, um
interior do xamã é elaborada especialmente poder que seria visualizado pelos Piaroa
e, dessa forma, é ele que deve exibir o maior como de fato muito perigoso. O líder xamã
controle. O controle apropriado das não tem poder para ordenar o trabalho de
emoções implica o apaziguamento das forças outros. Durante as grandes cerimônias que
culturais que habitam o interior de uma ele oferece, convida os outros para
pessoa. Sentimentos viciosos, intentos trabalharem para ele e para a sua
malignos e ciúmes aborrecem, mas não são comunidade, mas jamais ordena que
considerados prejudiciais ao homem que trabalhem. É sua obrigação controlar e lutar
tomou para si poucos poderes dos deuses. contra as forças selvagens da cultura que
Essas mesmas características, em um xamã, adentram a sociedade, mas não controlar (ao
são consideradas como resultado da falta de menos abertamente) o comportamento
domesticação adequada de poderes social de indivíduos de sua comunidade;
potencialmente selvagens e malignos, ou cada qual deve administrar seu próprio
seja, são pensadas como altamente perigosas controle pessoal, um assunto privado em que
para o bem-estar da sociedade e como um se deve manter domesticadas as forças da
indicador de um poder interno incontrolado cultura e as capacidades para tais no interior
capaz de matar por pouco, causar desastres da pessoa.
naturais, impedir o aumento da caça e
provocar a perda de fertilidade da terra. P OLÍTICA , AFINIDADE E C L ASSIFICAÇÃO
LASSIFICAÇÃO
As forças da cultura, introjetadas na MÍTICA
pessoa, não exigem a posse de seu produto,
mas sim a habilidade ou capacidade de usá- A mensagem mítica, assim pensam os
lo. O xamã como líder político, como aquele Piaroa, equaciona a sociedade e a sua
que possui dentro de si domesticada uma possibilidade com a afinidade, com a
quantidade de força de cultura maior que combinação de itens diversos. A sociedade

tradução
132 JOANNA OVERING

existe apenas por meio da interação de símbolos cosmológicos de poder fornecem


entidades e forças que são potencialmente as condições semânticas por meio das quais
muito perigosas umas às outras: a relação os competidores estruturam a sua
entre doadores e tomadores de esposas é por competição. Como xamãs, eles podem,
definição perigosa, uma vez que os afins são valendo-se das propriedades dos
estranhos capazes de atos canibais e de furtos alucinógenos, transformar-se, como fizeram
terríveis. O perigo intrínseco à relação entre os demiurgos no tempo mítico: eles também
afins só pode ser evitado por meio da podem se transformar em gaviões, sucuris,
reciprocidade apropriada. Ao reconhecer cascavéis, onças, trovões, crocodilos e
que a sociedade só pode existir pela interação urubus. Cada tipo de transformação
das diferenças, de seres distintos uns dos distingue um tipo e uma ordem específicos
outros, e ao compreender que tal mistura de poder. Algumas dessas transformações
carrega em si bastante riscos, os Piaroa remetem a Kuemoi e, como tais, consistem
despendem boa parte de sua energia social e em manifestações de poder ao mesmo tempo
estrutural no mascaramento dos princípios malignas e descontroladas. Outras, que
de diferença buscando alcançar o estado de implicam o poder de voar e não o de devorar
segurança. Essa observação deve, não outrem, remetem a Wahari. Na competição
obstante, ser tomada com cautela, uma vez política, o oponente, também um
que não pode dar conta do comportamento “cunhado”, “sogro” ou “genro”
piaroa como um todo. Assim, se as relações classificatório, é referido pelos atributos de
afins são veladas no interior da casa comunal Kuemoi, pois que seu poder é tido como
(itso´de), elas são acentuadas na relação entre descontrolado: faz uso de alucinógenos
casas no interior de um território político venenosos, transforma-se em sucuri – a
(Overing Kaplan, 1984). reencarnação de Kuemoi na terra – ou em
Ao manter a visão de que a sociedade onça – ao mesmo tempo o animal de
ganha existência apenas por meio da estimação de Kuemoi e sua manifestação
coexistência de forças dessemelhantes, a como caçador. O oponente é também visto
relação jurídica na sociedade piaroa como um feiticeiro que envia doenças fatais,
concentra-se na figura dos afins (in-laws), e tornando sua ação canibal, como era a de
as relações políticas são expressas pelo idioma Kuemoi. Vale lembrar que, entre os Piaroa,
da afinidade (Overing Kaplan, 1975). a doença é considerada sempre como um
Compete-se politicamente com alguém processo de ser devorado (ver Overing
identificado a uma categoria de afinidade, Kaplan, 1982).
mas jamais com um “pai”, “irmão” ou Esse uso da classificação mítica na
“filho”. Como escrevi certa vez (1975), um estruturação das batalhas de poder entre
homem piaroa situa-se como afim – na casas dentro de um território comum não
categoria de “sogro”, “cunhado” ou “genro” implica um ordenamento metafórico em
– em relação à maioria dos homens no natureza, antes remete a estados metafísicos
interior de seu território. Classificando-os específicos. Sob efeito de drogas
de tal maneira, ele pode competir com eles alucinógenas, um xamã vê-se transformado
como xamãs, assim como negociar em um belo Wahari, e vê o seu oponente
casamentos para seus filhos e germanos. Em transformado em Kuemoi. O xamã
batalhas políticas, no interior do território, compreende tais visões como uma verdade

cader nos de campo · n. 10 · 2002


ESTRUTURAS ELEMENTARES DE RECIPROCIDADE 133

literal, e age com eles desta forma. Nesse enfraquecê-los, os Piaroa estão em uma
ponto, a metáfora converte-se em uma relação de não-parentesco com eles. Eles não
ontologia que afirma explicitamente que o são chamados “afins”. A maior parte das
“fantástico” é verdadeiro. mortes entre os Piaroa são causadas por
Tal linguagem – e as transformações – feiticeiros de outras tribos, e a vingança
extraída das classificações dos elementos e piaroa a tais mortes se dá por meio daquilo
forças do cosmo como existiam no tempo que os jovens chamam de “a bomba piaroa”,
mítico não deve ser usada para estruturar uma mágica de vingança poderosa
relações dentro da casa: não se deve jamais combinando venenos potentes e certas
frisar a diferença essencial de um afim, uma partes da anatomia da vítima que são
vez que se vive com ele. Se a competição queimadas em conjunto e enviadas pela
política na casa torna-se séria, esta sofre fumaça e pelo canto ao território do
imediatamente uma fissão. Assim, o afim feiticeiro, onde resultam mortes em massa.
potencial é Kuemoi, o canibal, o portador A relação, em exceção daquela com o
de forças culturais indomáveis. Com ele, parceiro comercial ocasional, é de
nenhuma troca matrimonial é controlada e reciprocidade negativa acentuada.
os laços de afinidade são fracos. O doador Menos perigosas, porém ainda
de doenças, o canibal, é aquele com quem ameaçadoras, são as relações com membros
se trava uma relação de reciprocidade de outros territórios piaroa. Nesse caso, não
incompleta ou, ainda, negativa. A relação há uma relação natural de morte ou de
entre afins efetivos que vivem juntos na casa transmissão de doença, o perigo é, isso sim,
não deve ser modelada pela relação vigente o de morte social, e a relação permanece
na sociedade mítica entre dois afins como reciprocidade negativa. Quando se
arquetípicos, mutuamente inimigos (ver viaja para outro território, leva-se consigo
Overing Kaplan, 1984). alimentos que não podem ser trocados e,
Os Piaroa classificam suas relações com ainda pior, uma esposa. Com exceção da
os outros em um contínuo que se move do parceria formal de comércio, as demandas
perigo à segurança, da diferença à por reciprocidade não podem ser atendidas.
identidade. Essa classificação, que supõe Para não ter de enfrentar um problema desse
uma escala crescente de empatia social, não tipo, os indivíduos com quem se interage
é tão incomum. Tomemos alguns aspectos devem ser sempre classificados como
pertinentes sobre essa discussão sobre a “parentes”, e não “afins”, uma classificação
classificação de outros via categorias que que carrega a conotação da extrema
denotam graus vários de distância e segurança mediante as ameaças de uma terra
proximidade social. As relações mais estranha, da comida estranha e de pessoas
distantes e perigosas são aquelas com estranhas.
animais e membros de outras tribos, com No interior de um território, onde
quem os Piaroa nutrem uma relação de homens classificam a maior parte homens
predação: o perigo é sempre o da morte, de outros grupos locais como afins, há
tanto para os Piaroa, por meio de suas ações, sempre a possibilidade de conquistar com
como para os animais e os estrangeiros (via eles uma relação de reciprocidade e de
feitiçaria). Porque eles têm o direito de matar estabelecer uma relação confiável de troca.
os membros de ambas as categorias e Tais transações com afins potenciais são por

tradução
134 JOANNA OVERING

definição de reciprocidade incompleta, e o dessemelhantes: tanto a história mitológica


maior perigo é o de que tais relações possam como a ordenação cosmológica veiculam
degenerar-se da mesma maneira que as essa mensagem (ver a discussão acima sobre
relações intertribais e interterritoriais, os clãs mortuários, onde não se vive nem
relações de reciprocidade negativa. com afins nem com cultura). Essa
As relações mais seguras ocorrem, compreensão sobre a natureza das coisas no
obviamente, no interior de um grupo local, mundo social e cultural é justamente o que
tanto com os afins como com os parentes que os Piaroa cuidam de ignorar em suas relações
lá vivem. A casa, não obstante, não pode existir no interior da casa comunal. Se os Piaroa
como unidade autônoma, pois tanto o poder usassem a classificação mítica dos domínios
xamânico como a troca matrimonial implicam terrestre e aquático como linguagem para
a presença de outras casas, apesar da vigência ordenar suas trocas matrimoniais – como,
de uma ideologia que preza por um estado de ao contrário, se dá no Noroeste Amazônico
autonomia. A classificação de todos os homens – ou mesmo a distinção entre “alto” e
dentro do território como afins pode ser “baixo”, subjacente ao seu sistema de
parcialmente compreendida como metades, eles afirmariam abertamente que
reconhecimento dessa dependência: é apenas os afins efetivos são criaturas essencialmente
por meio da afinidade que a reciprocidade diferentes umas das outras e, como tais,
pode ser ativada. Vê-se, pois, que o contínuo podem devorar-se mutuamente. Assim, para
que se move do perigo para a segurança e da ignorar tais divisões haveria um método
diferença para a identidade, move-se ao mesmo capaz de solapar os perigos da diferença,
tempo da reciprocidade negativa à mascarar os elementos e forças pelos quais a
reciprocidade potencial e, finalmente, à sociedade é composta ou qualquer dualismo
reciprocidade completa – a intensidade dessa no qual deve consistir. Os Piaroa não
última relação é tão extrema que quase se pretendem aceitar as implicações advindas
aproxima da empatia que Sahlins (1972) do reconhecimento da diferença essencial,
denomina “reciprocidade generalizada”. A e é por meio de seu ideal muito forte de
segurança com o afim efetivo é parcialmente casamento endogâmico que eles são capazes
adquirida por meio de reciprocidade adequada, de atenuar a necessidade da diferença,
e é por essa razão que a troca matrimonial entre essencial à vida social, no grupo local. O
os Piaroa é firmemente baseada sobre um dispositivo mais óbvio a que eles lançam
princípio de reciprocidade levado adiante por mão para ignorar a diferença, tendo em vista
meio da repetição em série e múltipla de laços a garantia da segurança (sua finalidade), é o
afins.. casamento com um aparentado próximo ou,
ao menos, bem conhecido que vive na
O CASAMENTO ENDOGÂMICO E A AFINIDADE
CASAMENTO mesma casa. Esse ideal de endogamia de
MÚLTIPL
MÚLTIPL
TIPLAA6 grupo local, tão enfatizado pelos índios
guianeses, não é senão o outro lado da
Para os Piaroa, a sociedade ganha moeda do medo do estranho, igualmente
existência com a associação de elementos enfatizado (ver, por exemplo, Rivière 1969,
Henley 1979).
Escrevi em outra ocasião (1973 e 1975)
6 Ver Overing Kaplan (1981). que as maiores casas entre os Piaroa, dentro

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ESTRUTURAS ELEMENTARES DE RECIPROCIDADE 135

das quais habitam quase todos os membros indiretamente reciprocado, como na troca
de diferentes parentelas conjugais, aproximam- indireta, à medida que todo homem no
se, ao menos em um nível ideológico, do ideal interior do grupo recebe uma esposa de
de uma parentela endogâmica. A grande ficção dentro do mesmo. Em certo sentido, por
é, certamente, que a sociedade como grupo meio do casamento endogâmico, a própria
endogâmico isolado, que se replica no tempo noção de troca matrimonial, e não apenas
é constituída da associação de itens os seus perigos, foi apagada. Ironicamente,
“semelhantes”, seguros uns aos outros, e não é por meio da troca matrimonial,
perigosos, como os afins “dessemelhantes”. especialmente a desempenhada dia após dia
Aqui, vislumbra-se, entre os Piaroa, uma no interior da casa, o dom continuamente
dialética interessante entre a sociedade como retornado, que as diferenças são anuladas e
mundo ideal de parentelas endogâmicas e a a segurança readquirida. Se visualizarmos a
sociedade que inclui o todo mais amplo: afins reciprocidade, como faz Lévi-Strauss
potenciais e oponentes políticos. (1969:84), como meio mais imediato de
O casamento endogâmico não implica integrar a oposição entre o self e os outros,
apenas segurança, mas também manutenção os Piaroa, pelo viés do casamento
de todos em casa como aparentados endogâmico, têm levado esse princípio ao
próximos, o que torna fluida a distinção seu extremo lógico, visto que aí o self e os
entre “parentes” e “afins”; trata-se de um outros não são apenas unificados, mas
casamento reciprocado, que faz reafirmar os tornados todos de um só tipo.
laços prévios de afinidade no grupo. Na Assim, a sociedade é, para os Piaroa,
teoria piaroa, quanto maior o número de equacionada com a afinidade, a conjunção
trocas matrimoniais decretadas entre dois de itens diversos (afins) e forças culturais. A
afins, mais segura a relação e mais unificado endogamia se torna, para eles, uma filosofia
o grupo como unidade de cognatas. Este é da sociedade, um “meio caminho”, que
um tipo de troca matrimonial freqüentemente supera até certo ponto os perigos do estado
encontrado nas Guianas (ver Rivière 1969, social, e um ditado que sustenta que a
Henley 1979, Arvelo-Jiménez 1971), em sociedade só pode existir na conjunção de
que a viabilidade da relação de afinidade, a elementos perigosos e diferentes. Em suma,
aliança política e a unidade do grupo são a endogamia como ideal expressa o medo
correlacionados com o número de trocas piaroa em relação ao estado social, tornando-
matrimoniais estabelecidas entre homens se, então, um princípio subjacente a uma
dentro do grupo local. Teoricamente, a sociedade suspeita de sua própria natureza
reduplicação de qualquer laço de afinidade social.
dentro do grupo – como quando um
conjunto de irmãos se casa com um CONCLUSÃO:
ONCLUSÃO ESTRUTURAS ELEMENT
ESTRUTURAS ARES DE
ELEMENTARES
conjunto de irmãs – é ao mesmo tempo um RECIPROCIDADE7
RECIPROCIDADE
casamento replicado e reciprocado, do ponto
do grupo como um todo. No interior de Acredito ser possível afirmar de maneira
um grupo endogâmico, o laço matrimonial geral sobre os ameríndios da floresta tropical
não precisa ser diretamente reciprocado
como na troca de irmão/irmã: qualquer
casamento dentro do grupo é ao menos 7 Ver Overing Kaplan (1981).

tradução
136 JOANNA OVERING

que suas noções de reciprocidade, adequada entre seres de categorias vistas como
e inadequada, impõem uma filosofia da significativamente diferentes, necessários
relação entre coisas que são as mesmas e da uns aos outros para que a sociedade exista.
relação entre coisas que são distintas entre Tais princípios de troca expressam também
si. É sob essa perspectiva que vejo ser possível uma filosofia política particular, que alega
alcançar uma compreensão mais apurada da que nenhum homem ou grupo pode ter
proliferação dos dualismos no interior dessas posse exclusiva das forças da cultura, ou de
culturas, a despeito de seus conteúdos ou um conjunto destas, tampouco pode exercer
das maneiras pelas quais eles são expressos. um controle total sobre os seus produtos.
Há entre os Piaroa a expressão cosmológica
de uma charada, que creio ser geral aos Se as distinções expressas referem-se à
índios das Terras Baixas Sul-americanas e de lógica classificatória de nomes, aos atributos
considerável importância para a simbólicos de habitats cósmicos, ou, como
compreensão de certas ambigüidades no no caso clássico, a “parentes” e “afins” ou
ordenamento dos seus universos sociais, que “casáveis” e “não-casáveis”, como ditado por
alega a necessidade das diferenças para a vida uma regra prescritiva de casamento; em cada
social – em última instância, diferenças nas exemplo, tais contrastes são empregados na
forças da cultura. Trata-se, porém, de um elaboração de trocas que são claramente
mundo onde a conjunção de tais diferenças “elementares” em sua forma – contudo, uma
acarreta perigo, ao passo que a convivência elaboração que é, em ultima instância,
de elementos e forças semelhantes implica derivação cultural, e não social. J. C. Crocker
segurança e não-sociedade, ou seja, uma (1979:296-7) comenta, no que diz respeito
existência a-social. à elaboração de estruturas entre os Jê e
Tanto os Bororo como os Jê evitam os Bororo, que categorias encontradas em
perigos da diferenciação social por meio de outras fontes de distinções, que não aquelas
transações rituais elaboradas entre metades, advindas de uma regra prescritiva de
que estabelecem “vias rituais” entre grupos casamento, “podem possuir precisamente as
de nominação (ver, por exemplo, Crocker mesmas implicações inexoráveis para a
1979, DaMatta 1979, Lave 1979 e Melatti interação social, que deve exprimir um
1979). Por meio de inversões comuns a esses modelo lógico como a mais rígida estrutura
sistemas, em que o “eu” se torna o “outro” e ‘ elementar prescritiva’”. Em vez de “sistemas
o “outro” se torna o “eu” – onde o chefe de elementares de parentesco e casamento”, é
uma metade é escolhido pelo outro ou a possível remeter-se, de maneira mais geral,
representação dos totens de uma metade é a “estruturas elementares de reciprocidade”
encenada pelos outros –, a identidade e a e, nesse sentido, tratar as sociedades
diferença entre categorias culturais (e sociais) ameríndias das Guianas, do Noroeste
tornam-se tão indistintas como no Amazônico e do Brasil Central como alguns
casamento endogâmico guianês. Em cada dos muitos exemplos de uma estrutura
uma dessas sociedades, os princípios de troca básica.
são até certo ponto princípios metafísicos, As implicações para a vida social indígena
em que a ênfase é dada menos na obtenção do ordenamento das estruturas elementares
de um tipo particular de formação grupal, de reciprocidade apontam que a sociedade
mas na aquisição de relações apropriadas em si torna-se uma lógica para a manutenção

cader nos de campo · n. 10 · 2002


ESTRUTURAS ELEMENTARES DE RECIPROCIDADE 137

de um balanço, uma relação apropriada HENLEY, Paul. The internal social


entre itens culturais no universo que permite organization of the Panare of
à sociedade perpetuar-se. A reciprocidade Venezuelan Guiana and their
em si pode ser, assim, igualmente vista como relations with the national society .
um modo particular de auto-perpetuação, Ph.D disser tation: Cambridge
não de grupos – que podem impor o University, 1979.
controle coercitivo tanto de pessoas como
de recursos escassos —, mas de relações, uma HUGH-JONES, Christine. From the
perpetuação que se contrapõe ao milk river: spatial and temporal
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cader nos de campo · n. 10 · 2002


139

resenhas
140

cader nos de campo · n. 10 · 2002


141

WACQ
CQU UANT
ANT,, LOÏC. PUNIR OS POBRES: A NO VA GESTÃO DA MISÉRIA NOS
NOV
ESTADOS UNIDOS. RIO DE JANEIR
STADOS O: INSTITUT
ANEIRO O CARIOCA DE CRIMINOL
NSTITUTO OGIA/
RIMINOLOGIA
FREITAS BAST
REITAS OS EDIT
ASTOS ORA, 2001.
DITORA
ANTÔNIO RAFAEL*

Punir os pobres: a nova gestão da a discussão acerca dos objetivos da pena


miséria nos Estados Unidos, juntamente de prisão – neutralização , punição,
com dois outros livros do autor publicados reforma ou reinserção daqueles que
no Brasil no decorrer do último ano, caem em suas malhas – colocando no
compõe uma boa apresentação aos seu lugar uma reflexão política, na
trabalhos de Loïc Wacquant, ao mesmo acepção estrita da palavra, acerca do
tempo que possibilita a divulgação, para sentido da pena e do encarceramento.
um público mais amplo, de um Trata-se de examinar, sob esta ótica, as
pensamento extremamente vigoroso em conexões existentes entre o surgimento
seu rigor analítico e na profundidade e e a difusão daquilo que o autor nomeia
amplitude de seus argumentos. Essas de “Estado penal” e a desregulação ou
iniciativas devem ser saudadas como um liberalização econômica, como podem
avanço do mercado editorial brasileiro, ser percebidas nos seus principais
especialmente por aqueles que hoje trabalham ve t o r e s : a a s c e n s ã o d o s a l a r i a d o
com a questão criminal. pre c á r i o , o d e s m a n t e l a m e n t o o u
Se podemos resumir o tema central retração das políticas de proteção social,
que atravessa essa trilogia (como o a hipertrofia do aparelho punitivo e as
próprio autor nomeia o conjunto destas relações entre as prisões e os “guetos”
publicações), este seria a indagação (no contexto norte-americano e
proposta no epílogo da obra aqui europeu – casos privilegiados das
considerada: “afinal, para que serve a análises aqui desenvolvidas, mas que
prisão no século XXI?”(143). Ao não as esgotam).
posicionar no centro do debate uma Se o a s s u n t o p r i n c i p a l d e Os
questão freqüentemente aludida pelos condenados da cidade (Rio de Janeiro:
especialistas na matéria, o autor busca Rev a n , 2 0 0 1 ) g i r a e m t o r n o d a
dissolver o jogo de sombras que envolve marginalidade urbana – a análise dos
modos de composição dos seus
territórios e de suas formas específicas,
firmemente articuladas a um contexto
nacional determinado; sua matriz
* Doutorando, PPGAS - MN - UFRJ
142 ANTÔNIO RAFAEL

histórica de classe e seu sistema em que o autor apresenta o declínio do


hierárquico característico (nesse “Estado caritativo” (esta expressão, no
sentido, e apesar das similitudes seu entendimento, é mais adequada do
aparentes, as favelas no Brasil não que a de Estado-providência, uma vez
devem ser confundidas com as que, no caso americano, parte-se de
poblaciones no Chile, os subúrbios na u m a c o n c e p ç ã o d a p o b re z a c o m o
França ou os gueto norte-americanos, produto das carências individuais e
para citar alguns exemplos) –, em As (in)ações dos pobres; princípios da
prisões da miséria (Rio de Janeiro: Jorge compaixão e da responsabilidade
Zahar Editor, 2001) é a globalização das individual). Tal declínio foi facilitado
políticas de “tolerância zero” que ocupa por algumas características funcionais
o centro da investigação. Em Punir os e estruturais do aparelho de Estado
pobres , Wacquant procura mapear os americano: o anti-estatismo da cultura
caminhos pelos quais a criminalização política nacional, a descentralização
da miséria e o encarceramento maciço administrativa e a fragmentação do
complementar à insegurança gerada campo burocrático, a ausência de uma
p e l o a d v e n t o d o “m e n o s E s t a d o” tradição do serviço público e a
econômico e social internacionalizam- porosidade da divisão entre o público e
se, como esse modelo punitivo que o privado, a divisão estanque da ação
surge nos Estados Unidos (e cujo maior social do Estado entre social insurance
veículo de propaganda é a política de – que se responsabiliza pela gestão dos
segurança implementada na cidade de seguros e direitos trabalhistas – e
Nov a Yor k p e l o p re f e i t o R u d o l p h wellfare – que diz respeito à assistência
Giuliani) estende-se aos países europeus às pessoas dependentes ou na miséria.
e à América Latina (o caso brasileiro Mas foi a partir da era Reagan que o
aparece sinteticamente discutido na recuo da ação do Estado americano
nota introdutória). Podemos dizer que sobre o domínio da proteção social
Punir os pobres e s t á s i t u a d o n a efetuou-se com maior virulência, “a tal
interseção entre as duas obras, uma vez ponto que a ‘guerra contra a pobreza’
que, ao examinar detalhadamente o foi substituída por uma guerra contra
caso americano, conjuga as temáticas os pobres” (24). A reforma dos serviços
presentes tanto em uma quanto em sociais, votada em 1996 e referendada
outra num único quadro analítico – seja pelo governo Clinton, e no seu bojo a
n o q u e s e r e f e re à s u b s t i t u i ç ã o “lei sobre a responsabilidade individual”,
pr o g r e s s i va do “(semi)Estado- é a face mais atual desse movimento,
providência” pelo Estado Penal, seja assunto que é discutido minuciosamente
quando discute as mutações pelas quais no segundo capítulo.
passa o gueto americano. O livro segue com a apresentação de
A primeira parte do livro comporta alguns desenvolvimentos específicos, de
dois capítulos (publicados anteriormente algumas “técnicas de contração” do
como artigos em revistas acadêmicas) Estado caritativo: redução orçamentária

cader nos de campo · n. 10 · 2002


ANTÔNIO RAFAEL 143

capacitação ineficazes no cumprimento


significativa dos programas de assistência dos seus objetivos expressos, ainda que
dirigidos aos pobres; aumento dos plenamente satisfatórios no que se
obstáculos administrativos e trâmites refere aos seus fins não declarados – a
burocráticos visando desencorajar os fixação da população assistida nos
postulantes ao auxílio, eliminação pura guetos. A segunda modalidade de
e simples de dispositivos e programas exer cício dessa “política estatal de
de ajuda social (ação sustentada pelo criminalização das conseqüências da
argumento de que seria necessário miséria de Estado” (27) é o que lhe
intervir diretamente na “dependência confere certamente a sua face mais dura,
patológica” dos pobres), recuo no e também a mais visível: o encarceramento.
d o m í n i o p r i v i l e g i a d o d o social Tal é o assunto que se desenvolve na
insurance – os programas de seguro- segunda parte do livro: os modos pelos
desemprego e seguro de invalidez, por quais se dá a hipertrofia súbita do
exemplo, sofrem cortes expressivos – e, Estado penal, assim como a análise dos
por fim, supressão dos créditos federais custos e lucros gerados pelo
e verbas municipais destinadas aos encarceramento em massa. Partindo de
bairros pobres e aos seus habitantes, uma apresentação introdutória do
normalmente investidos em melhoria e sistema penitenciário americano, e
manutenção da infra-estrutura urbana, fazendo uso de dados estatísticos
no transporte, moradia, saúde e retirados de diversas publicações do
educação. Bureau of Justice Statistics do
Como contrapar te necessária ao Ministério Federal da Justiça (55), ele
desmantelamento da rede de assistência, nos brinda com um quadro valioso
erige-se a malha do Estado disciplinar, a c e r c a d a e x p l o s ã o c a rc e r á r i a n o s
chamado a substituí-la. Essa mudança E s t a d o s Un i d o s ( a p o p u l a ç ã o
também produz efeitos bastante encarcerada quadruplica em duas
concretos. Em primeiro lugar, o autor décadas, chegando a impressionante
irá assinalar a transformação dos cifra de 600 prisioneiros para 100 mil
serviços sociais em instrumentos de habitantes). Isso, como ressalta o autor,
vigilância e controle das populações em um período de estagnação ou
pobres através do condicionamento do m e s m o d e re c u o d o s í n d i c e s d e
acesso à assistência social à adoção de criminalidade. E aqui ele toca no centro
certas normas de conduta, assim como do problema: as prisões não estão cheias
ao cumprimento de algumas obrigações de “pr edadores violentos”, mas de
previamente estabelecidas, tais como: a criminosos não violentos e,
aceitação de qualquer emprego que seja especialmente, da juventude dos guetos,
oferecido, não importando a remuneração apanhada pela campanha de “guerra
e as condições de trabalho e a contra a droga”, para quem o comércio
assiduidade escolar dos filhos ou a e o varejo das drogas é a fonte de
inscrição em programas de formação ou emprego mais direta ou a única possível

resenhas
144 ANTÔNIO RAFAEL

(alguma similaridade com o caso que será distribuído pelos acionistas,


brasileiro? - resta-nos perguntar). enquanto afirmam-se os projetos para
A população carcerária, dilatada por que os custos sejam socializados entre
medidas como o alongamento das os apenados e seus familiares.
penas, a multiplicação das infrações que O gueto é o alvo privilegiado da
motivam o encarceramento fechado, a intervenção do aparelho de captura e
perpetuidade automática no terceiro observação de que se serve o Estado
crime, a aplicação da legislação criminal penal. E o é na medida em que as
“adulta” para menores de 16 anos, estratégias de contenção e controle
abarrota as cadeias e faz com que a social se deslocam dos guetos para as
preocupação primordial dos gestores do prisões. Efetuando uma leitura histórica
s i s t e m a p e n i t e n c i á r i o s e j a “f a z er acerca das “instituições peculiares”
circular” os detentos e acusados o mais usadas para confinar e controlar os afro-
rápido possível. Assim, o recurso ao americanos – a escravidão, o “sistema
setor privado surge como um dos meios de Jim Crow” e o gueto – o autor
possíveis, senão o único, de conter o apresenta, no capítulo cinco, a quarta
fluxo de prisioneiros e, paralelamente, dessas “instituições”: “o complexo
deter o abismo financeiro que se abre institucional composto por vestígios do
no orçamento carcerário dos estados gueto negro e pelo aparato carcerário ,
com a implementação da política de ao qual o gueto ligou-se por uma
enclaustramento. Pois, se “o crescimento relação estreita de simbiose estrutural
dos meios consagrados ao encarceramento e de suplência funcional” (99; grifos do
só foi possível com o corte no autor).
orçamento das verbas sociais, da saúde Todavia, para apreender essa ligação
p ú b l i c a e d o e n s i n o” ( 8 0 ) , e s s a s é necessário desenvolver, segundo a
supressões nem de longe são suficientes ótica do autor, um conceito analítico
para alimentar uma indústria crescente sólido do que seja o gueto, e ele assim
em volume de empregos e negócios. o faz: “(...) um gueto é uma relação
A título de exemplo, diz-nos Loïc etnoracial de controle e fechamento
Wa c q u a n t q u e a s a d m i n i s t r a ç õ e s composta de quatro elementos: estigma,
penitenciárias estaduais são o terceiro coação, confinamento territorial e
maior empregador do país (o que se segregação institucional” (108). Em
reflete no poder de barganha de seus seguida, ressalta que o gueto, desde a
sindicatos – em especial no apoio década de 60, vem se tornando
oferecido durante os ciclos eleitorais a funcionalmente obsoleto em relação ao
candidatos favoráveis à expansão das c u m p r i m e n t o d a d u p l a t a re f a d a s
prisões) e que o valor das ações das “instituições peculiares”: garantir o
firmas particulares que oferecem a controle da força de trabalho e a
gestão completa dos estabelecimentos manutenção da distância racial expressa
de detenção está entre os que mais através da subordinação de casta. A
sobem no mercado Nasdaq . Um lucro prisão parece tomar agora o seu lugar

cader nos de campo · n. 10 · 2002


ANTÔNIO RAFAEL 145

(a população prisional negra foi a que grande volume de dados estatísticos, o


mais cresceu desde a década de setenta), q u e p o d e r i a re s u l t a r n u m t e x t o
com o nítido agravante de que não monótono ou de difícil leitura. Isso
desempenha nenhuma função certamente não acontece devido à
econômica positiva no que se refere ao habilidade do autor em conjugar a
recrutamento de mão-de-obra, apenas apresentação desse material com outros,
executando a missão de manter os de cunho qualitativo, e entremear
negros a uma distância segura. Talvez o ambos com o exercício de problematização
pior dos mundos até aqui inventados. do que está sendo apresentado. Além
Os dois últimos capítulos se referem, disso, o livro está composto de maneira
respectivamente, ao panoptismo que que os capítulos podem ser lidos
floresce no seio do Estado penal e que separadamente, como artigos, muito
toma como objeto os delinqüentes embora não apresentem um formato
sexuais e a uma entrevista do autor estanque – existem passagens e
acerca do livro As prisões da miséria . continuidades entre eles, o que também
São ambos bastantes instigantes: o confere uma certa fluidez à leitura. O
primeiro, por desnudar a construção levantamento bibliográfico, e o uso que
d o s m e c a n i s m o s d e “ outing ” d o s dele faz o autor, por si só, já seria motivo
condenados por atentados aos costumes suficiente para a leitura da obra. Ressalte-
ou crimes sexuais (listas com nomes, se, ainda, o cuidado dos editores em
fotos e endereços em sites da internet assinalar, entre as obras do autor, aquilo
dos sex offenders ; obrigatoriedade de que já se encontra publicado no Brasil.
comunicar à vizinhança e à escolas sobre Resta, então, valorar a pertinência
a s u a p r e s e n ç a n a s p r ox i m i d a d e s ; de trabalhos como esse para os que
notificação ao público através da lidam com a questão penitenciária no
imprensa, de cartazes e panfletos Brasil. Se, de fato, não dispomos de
distribuídos pelos organismos policiais dados sistematizados que possibilitem
ou por adesivos colados no pára-choque uma análise do aparato prisional tal
dos veículos dos delinqüentes sexuais; como é desenvolvida no livro para o
castrações previstas em lei etc.); o caso americano, certamente algumas
segundo, que compõe o epílogo da características apresentadas na
obra, por nos reenviar à discussão que explicitação dos mecanismos de que
atravessa o livro, ao mesmo tempo que faz uso a penalidade neoliberal já
a distende em algumas direções, como estão presentes aqui, e com
é o caso da receptividade na imprensa conseqüências ainda mais funestas,
francesa das reflexões desenvolvidas uma vez que aplicadas a um contexto
pelo autor. de forte desigualdade social e
Por fim, vale a pena tecer alguns desprovido de tradição democrática
comentários, em primeiro lugar, sobre ou de instituições capazes de
cer tas características intrínsecas à amor tecer o choque causado pelas
composição do livro. Este apresenta um mutações no mercado de trabalho.

resenhas
146 ANTÔNIO RAFAEL

As constantes rebeliões nos presídios dos cemitérios. Cabe, assim, indagar


(motivadas pelas condições em que se que tipo de sociedade pretendemos
apresentam as cadeias brasileiras, em construir para o futuro, em especial
especial, pela estarrecedora superpopulação quando nos posicionamos diante dos
dos estabelecimentos – abastecidos, de p r o j e t o s d e re f o r m a d o s i s t e m a
igual modo, por uma “guerra às drogas” penitenciário brasileiro. Optamos por
não declarada) conjugadas com a ação lutar contra os pobres ou contra a
letal dos organismos policiais fazem pobre za e a desigualdade? Abrir a
com que, às dimensões dos guetos (no possibilidade desse questionamento é,
nosso caso, das favelas) e das cadeias, sem dúvida, o mérito principal do
tenhamos que adicionar uma outra: a livro.

cader nos de campo · n. 10 · 2002


147

YÁZIGI, EDU ARDO. O MUNDO DAS CALÇADAS. POR UMA POLÍTICA DEMOCRÁTICA
DUARDO
DE ESPAÇOS PÚBLICOS. SÃO PAUL
ESPAÇOS O: HUMANIT
ULO AS/IMPRENSA OFICIAL, 2000.
UMANITAS

FRAYA FREHSE*

Resultado da tese de livre-docência desse Eis que a ponte com a antropologia


estudioso do planejamento urbano e se faz. E o estudo se torna singular tanto
regional e, em particular, do turismo, acerca para planejadores quanto para
do qual possui inúmeras publicações, O antropólogos brasileiros, pela forma
Mundo das Calçadas é a primeira incursão pioneira como explora uma temática à
abrangente do professor de geografia da primeira vista inapreensível; afinal,
USP, Eduardo Yázigi, na temática das como cercar metodologicamente um
calçadas. Isso implica um compromisso objeto ao mesmo tempo tão ínfimo e tão
explícito com um planejamento voltado a gigante? Por um lado, precisamente por
“humanizar a cidade”. Para tanto, seria seu caráter intermediário (definem-se
necessário enfocar “os aspectos mais enquanto tais por sua localização física
envolventes do que acontece em meio a entre a casa e a rua), as calçadas podem
nossa circulação” pelas ruas. No foco estão suscitar a impressão de serem apenas
as vicissitudes do ser pedestre; valoriza-se detalhes menores em meio ao que
a “dimensão corpórea” porque, em termos verdadeiramente importaria: a casa, a
teóricos, a calçada não se restringiria ao rua. Por outro lado, há calçadas em todo
espaço físico (à àrea adjacente a estradas, lugar, o que faz delas analiticamente
vielas e ruas; a passagens, passarelas, pontes, espaços quase infinitos. Pois é
escadarias e outras extensões virtuais da exatamente essa dupla complexidade que
calçada; a áreas de pedestres em locais Yázigi se empenha em enfrentar.
semipúblicos como galerias, shopping- O autor explicita seus objetivos como
centers, passagens públicas sob edifícios, sendo: “a) contribuir para a formação da
etc.). Ela seria também – e sobretudo – as identidade da cidade; b) buscar um
relações sociais que nela se dão; carregaria trabalho de síntese que, articulando as
nela dimensões dos “pedaços” do melhores proposições e imaginando
antropólogo urbano José Guilherme outras, chegue a faire le point , a mostrar
Cantor Magnani (1984). como fica o balanço da questão das
calçadas; c) explorar teoricamente os
aspectos públicos da territorialidade
urbana da cidadania, muito mal
* Doutoranda, PPGAS - USP definidos que, finalmente, conduz a d)
148 FRAYA FREHSE

definir as linhas mestras de uma futuro”. Primeiramente, impor ta


reformulação da política de espaços “definir o processo de apropriação do
públicos no que diz respeito a calçadas”. espaço público de São Paulo” desde o
Subjaz à formulação uma concepção bem início da povoação, em 1554, até 1988,
precisa do que devam ser as calçadas quando foi promulgada a mais recente
destinadas à população, de quais devam Constituição. Para tanto, vale analisar
ser suas funções. Se a preocupação de sobretudo a legislação sobre a “vida
fundo é entender as calçadas paulistanas pública e, por conseqüência, suas
sem confundi-las em nenhum momento repercussões no espaço”, elaborada para
com as do “ flâneur baudelairiano” – o Brasil e São Paulo durante esse
argumento que abre o livro –, esses período. Num segundo momento, a
espaços pertencem a ruas que, “entorno, ênfase recai sobre os tipos de atividade e
amparado em sua inter-relação com as personagens das calçadas paulistanas
edificações lindeiras”, devem ser um hoje – contempladas geograficamente
“direito” de todos para que a segundo um “eixo expandido” entre o
“democracia” exista. Ora, nesse sentido centro da cidade e as zonas norte, sul,
retornamos sim a paradigmas políticos leste e oeste; e, temporalmente,
historicamente gestados para as ruas sobretudo na primeira metade dos anos
européias. A “cidadania” incluiria 90, aos quais se referem os dados
também, dentre as quatro “gerações de qualitativos, quantitativos e as
direitos” que a definiriam, o “direito ao observações de campo.
entorno e proteção do consumidor”. Um Esses dois blocos fornecem o lastro
pressuposto de fundo político bem empírico para que, na parte final, o autor
específico nor teia a apreensão da elabore uma proposta de planejamento
dinâmica física e social das calçadas. E para o “entorno” com base nas calçadas.
essa concepção é assumida como Isso implica retomar considerações
universalmente válida e almejada por teóricas sobre o planejamento do espaço
todos; o intuito do planejamento seria público formuladas nos contextos
precisamente traduzi-la em políticas americano e europeu, mas também
públicas para o espaço. No interior desse apontar alternativas de organização do
universo de referências, não surpreende cenário físico, da economia e da
que o autor se proponha a “articular” as sociologia das calçadas; em suma, um
“melhores” proposições em favor de uma “microplanejamento do espaço público”.
suposta “territorialidade urbana da E há mais: além de pautar-se em
cidadania”. obser vações de campo, fotografias
Ter em mente esse aspecto permite próprias e em fontes secundárias sobre
compreender melhor a estrutura da obra, as ruas da asiática Cingapura para
constituída por dezoito capítulos repensar “situações de impasse” como a
distribuídos em três partes: “I. o que das ruas paulistanas em relação à díade
eram as calçadas no passado; II. o que “civilidade-cidadania”, Yázigi apresenta
são hoje e III. o que poderiam ser no dados de uma enquete sobre a percepção

cader nos de campo · n. 10 · 2002


FRAYA FREHSE 149

do espaço público paulistano realizada o que é conflito para o autor o é


com 200 pessoas, nas ruas em 1995. também para os agentes respectivamente
Essa estrutura argumentativa deixa envolvidos nas situações de suposto
entrever um peso grande conferido à “conflito”...
história num primeiro momento; a Nas três par tes Yázigi busca
dados etnográficos num segundo; ao caracterizar os “conflitos” com enorme
planejamento urbano por fim. E isso erudição. O leitor é por vezes defrontado
apesar de o autor não explicitar estar com instigantes rastreamentos
escrevendo, nos primeiros dois terços históricos: por exemplo, sobre os
do livro, uma história e uma etnografia primórdios históricos das palavras
– o que é, aliás, significativo. Yázigi “mascate” e “camelô”; sobre as origens
não reconhece abertamente algo tão do pavimento de mosaico, comum em
freqüente na historiografia e na São Paulo a partir dos anos 20, ou
antropologia desde as descobertas dos mesmo sobre a origem romana e cristã
pós-modernos, nos anos 70: que, em da ordenação jurídica do espaço público
termos epistemológicos, os argumentos ibérico e, conseqüentemente, brasileiro.
e avaliações do autor são leituras sobre Possivelmente, nesse último caso, seja
o objeto; não são o objeto “em si”. menos imediata do que formulada, a
As referências metodológicas da suposta “influência” de códigos bem
obra, “espinha dorsal” das três partes específicos, romanos e portugueses,
do livro, são “conflito e anomalia”, que sobre o que seria a realidade
deveriam ser melhor “conhecidos” para socioespacial historicamente vigente no
ambos serem “atenuados”: conflitos Brasil urbano.
históricos entre o espaço físico das Além da er udição, destaca-se a
calçadas e certos tipos de uso; entre as riqueza dos dados. Um dos momentos
leis a elas referidas e a “relação público- etnograficamente altos do livro ocorre
privado, comprometendo a construção quando o autor, baseando-se em
dos aspectos espaciais da cidadania”; memórias orais, escritas e na
entre a economia informal e o historiografia, trata dos tipos de
comércio formal e, freqüentemente, a comércio ambulante vigentes nas ruas
c i r c u l a ç ã o ; e n t re o “ l ú m p e n , paulistanas da virada do século XX; mas
consistente de prostituição, também, mais adiante e com base em
m e n d i c â n c i a , e t c . ” e o s “p a d r õ e s Florestan Fernandes (1961), quando
m o r a i s d e c a d a t e m p o” ; e n t re a descreve lazer e brincadeiras comuns nas
sociabilidade/lazer e o espaço para sua ruas da época. A profusão de detalhes
manifestação. Assim, deparamo-nos supera o problema metodológico
novamente com o paradigma de fundo subjacente às descrições: o não-
“democracia no espaço público”, só tratamento das fontes primárias
que, dessa vez, traduzido em definições respectivamente utilizadas, dificultando
bem peculiares do que seria “conflito” que o leitor avalie o teor das
na rua. E a dúvida que permanece é se representações em jogo.

resenhas
150 FRAYA FREHSE

Em outros momentos importantes, As elites se tornavam mais zelosas de suas


sobretudo na segunda parte do livro, são intimidades e tal espaço se prestaria
apresentados dados e fotos – do autor, muito a chacrinhas e fofocas entre
em anexo – atuais sobre as ruas de São empregados e motoristas”.
Paulo. Aprendemos, por exemplo, que o Com efeito, os dados apresentados
metro quadrado de uma banca de jornal com freqüência são apenas parcamente
pode chegar a custar, dependendo do contextualizados; seus fundamentos
local, 10 mil dólares. Por sua vez, a metodológicos, portanto, permanecem
enquete da terceira par te, sobre a ininteligíveis para o público não
percepção social do espaço público, familiarizado com as fontes. Ao serem
indica que “os problemas que menos fornecidos, por exemplo, resultados de
incomodam a população são: uma pesquisa sobre os guardadores de
publicidade em canteiro de plantas; carro, só ficamos sabendo que foi
remendo nos desenhos das calçadas; “dirigida pelo Professor André Portella
mesas de bares e restaurantes que de Souza, não publicada e realizada por
ocupam o passeio; guardadores de carros suas alunas Rosângela Cerano e Lúcia de
e fachadas feias”. Fátima Carneiro Leão, em 1993”. O
Os dados apresentados deixam intuir outro lado da moeda do problema da
a relativa falta de trabalhos acadêmicos contextualização aparece em relação a
sobre as atividades sociais em curso nas alguns dados históricos apresentados.
ruas paulistanas do presente. As Por vezes, classificações correntes
informações do autor advêm sobretudo atualmente são aplicadas à descrição de
de jornais, organizações não-governamentais, fatos do passado. O autor, por exemplo,
secretarias ou departamentos de governo, estranha que, na legislação municipal de
afora fontes originais, como o serviço 1886, “apesar da abolição iminente,
telefônico de ocorrências policiais “190”. insiste-se na repressão ao negro, a quem
Ressalte-se, além dos dados, a não se conferiam direitos como aos
originalidade das observações de campo. outr os cidadãos”. Ora, se naquele
Yázigi detecta, em lugares como a Rua momento cada vez mais setores sociais
Sete de Abril, a presença de lixeiras a se engajavam na abolição da escravatura,
menos de três metros de distância uma ninguém sabia que a abolição oficial
da outra, enquanto outros lugares ocorreria dois anos mais tarde.
padecem da absoluta falta desses Alguns dados vão também na
equipamentos. É uma pena apenas que contramão de descobertas importantes
não raro os argumentos não sejam da historiografia paulistana. Refiro-me,
justificados. Sem qualquer comprovação por exemplo, à alusão de que o Código
suplementar, o autor comenta a certa de Posturas de 1886 seria o primeiro
altura que não vingaram, nos projetos conjunto de leis municipais – composto
paulistanos de “cidades-jardins”, das chamadas “posturas” – a se
originalmente inglesas, as áreas comuns “consolidar” e a “formar um código; a
nos fundos dos lotes, por não “estarem tentativa anterior não chegou a se
no espírito das elites daquele tempo (...). realizar mas é sintomática do mesmo
cader nos de campo · n. 10 · 2002
FRAYA FREHSE 151

período”. Hoje, há provas de que o Certamente, essas impressões, pequeno


código de 1886 era uma “mera fragmento das inúmeras que o extenso livro
recodificação ”, revisada e ampliada, do inspira, devem muito à antropologia. Para
código anterior vigente, de 1875 um leitor da área de planejamento urbano,
(Campos, 1997c :6). possivelmente os dados objetivos tenham
Ao lado dessa dificuldade de um peso mais contudente; “falem por si”,
contextualização, o leitor ressente-se às de forma a dispensar interpretações
vezes da falta de uma análise mais detida suplementares. Se tudo gira em torno da
dos dados. Aguarda em vão uma reflexão “democracia”, o que vai na contramão –
sobre, por exemplo, uma certa geografia da afinal, são tantos os “conflitos” – conclama
depredação de orelhões ou sobre o que o um planejamento que “reveja todas as
Comando Geral da Polícia Militar classifica instituições” em favor de “civilidade”,
como “ocorrência policial em logradouros “educação” e “capital social”. No ínterim,
públicos”. Reflexão teórica há, mas “o pedestre é continuamente humilhado e
submetida aos pressupostos de “cidadania”, violentado”.
“democracia”, “direito ao espaço público”. Assim, ficam claras as diferenças de
Na terceira parte do livro, essas noções são aporte entre a antropologia e o
relacionadas com o debate acadêmico planejamento urbano para a reflexão sobre
internacional. E se insinua o que a a metrópole. Os objetos podem até ser
antropóloga Mariza Peirano, obviamente almejados pelas duas áreas do
referindo-se a outro tipo de discussão, conhecimento. Mas as questões do
sintetiza como um risco, em trabalhos antropólogo serão outras, por se pautarem
antropológicos: “a ausência da interlocução epistemologicamente no reconhecimento
teórica que se inspira nos dados e registro da diversidade cultural, além da
etnográficos” (Peirano, 1995:52). De fato, busca do significado local de
a solidez dos pressupostos acaba, a meu ver, comportamentos e práticas culturais
cerceando as potencialidades interpretativas (Magnani, 1996:18). Logo, as cidades – e
contidas no texto – e, em parte, nos anexos, calçadas – daí resultantes também serão
sínteses informativas de alguns tópicos. outras. O planejador falará com grande
Uma interlocução mais intensa com as propriedade de um determinado mundo
ciências sociais teria sido profícua para das calçadas; o antropólogo, por sua vez,
evitar que temas importantes fossem dos infinitos mundos da calçada.
contaminados com juízos de valor
involuntários. Ao tratar dos “degredados de B IBLIOGR
IBLIOGRAAFIA
Eva” (título do capítulo VII), prostitutas,
michês e travestis, Yázigi lamenta, em CAMPOS , Eudes. A Arquitetura
relação às primeiras, que “a falta de Paulistana sob o Império. Aspectos da
perspectivas de trabalho impede uma real formação da cultura burguesa em São
política de reconquista para o trabalho Paulo . 4 vols. Tese de Doutoramento,
normal” (grifos meus). São Paulo, FAU-USP, 1997.

resenhas
152 FRAYA FREHSE

FERNANDES, Florestan. Folclore e


Mudança Social na Cidade de São
Paulo. São Paulo: Editora Anhembi
S.A., 1961.
MAGNANI, José Guilherme Cantor.
Festa no Pedaço. Cultura Popular e
Lazer na Cidade . São Paulo:
Brasiliense, 1984.
MAGNANI, José Guilherme Cantor.
“Quando o campo é a cidade.
Fazendo antropologia na metrópole”.
In: MAGNANI, José Guilherme C.
& TORRES, Lilian de Lucca (orgs.).
Na Metrópole. Textos de antropologia
urbana . São Paulo: EDUSP/Fapesp,
1996, pp. 13-53.
PEIRANO, Mariza. A Favor da
Etnografia . Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 1995.

cader nos de campo · n. 10 · 2002


153

Teses e dissertações defendidas no Departamento


de Antropologia da USP
Janeiro de 2001 a Dezembro de 2001
Dados fornecidos pela Secretaria do Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social da FFLCH

2001 T ESES DE DOUTORADO


DOUTORADO

Janeiro
Autor
utor: Alecsandro José Prudêncio Ratts
DISSERTAÇÕES
ISSERT DE MESTRADO
Título: “O mundo é grande e a nação
também: identidade e mobilidade em
território de negros” – Tese
Autor: Laércio Fidelis Dias
Título: “Uma etnografia dos procedimentos Banca: Prof (a).Dr(a).
terapêuticos e dos cuidados com a saúde das Kabenguele Munanga (orientador)
famílias Karapuna” J oão Baptista Borges Pereira
Banca: Prof(a). Dr(a). Renato da Silva Queiroz
Lux Boelitz Vidal (orientadora)
Neusa Maria Mendes de Gusmão
José Franciso Quirino dos Santos
Cynthia Andersen Sarti
Eliane Camargo Autor: Sueli Pereira Castro
T í t u l o : “A festa santa na terra da
Fev er
ever eir
ereir
eiroo parentalha: Festeiros, herdeiros e parentes
Sesmaria na baixada Cuiabana Mato-
DISSERTAÇÕES
ISSERT DE MESTRADO grossense”
Banca: Prof(a). Dr(a).
Autor: Carlos Machado Dias Júnior Maria Margarida Moura (orientadora)
Título: “Próximos e distantes: estudo de um Renate Brigitte Viertler
processo de descentralização e (re) construção
Ariovaldo Umbelino de Oliveira
de relações sociais na região sudeste da Guiana”
Banca: Prof(a). Dr(a). Neusa Maria Mendes de Gusmão
Dominique Tilkin Gallois (orientadora)
Marnio Teixeira Pinto
Beatriz Perrone-Moisés
154

Abril Agosto

DISSERTAÇÕES
ISSERT DE MESTRADO TESES DE DOUTORADO
DOUTORADO

Autor: Pedro Paulo Marques Guasco


Autor: Fábio Vergara Cerqueira
Título: “Num país chamado Periferia:
identidade e representação da realidade entre Título: “Os instrumentos musicais na vida
os “rappers”de São Paulo” diária da Atenas tardo-arcaica e clássica
Banca: Prof (a). Dr (a). (550-400 a .C.): o testemunho de vasos
José Guilherme Cantor Magnani áticos e de textos antigos”
(orientador) B anca: Prof.Dr.Haiganuch Sarian
Marília Pontes Sposito (orientador)
Sylvia Maria Caiuby Novaes
Autor: Elena Maria Andreí
TESES DE DOUTORADO
DOUTORADO Título: “A trama do sagrado: origem e
análise do candomblé em Londrina”
Autor: Pedro Martins Banca: Prof(a). Dr(a).
Título: “Comunidade Cafuza de José Kabengule Munanga (orientador)
Boiteux/SC: História e antropologia da Marta Heloísa Leuba Salum
apropriação da terra”
Vagner Gonçalves da Silva
Banca: Prof (a). Dr(a).
Josildeth Gomes Consorte
Maria Margarida Moura (orientadora)
João Baptista Borges Pereira
Neusa Maria Mendes de Gusmão Autor: Pedro Camargo Leirner
Neusa Maria Bloemer Título: “O sistema da guerra: uma leitura
antropológica dos exércitos modernos”
Julho Banca: Prof.(a) Dr.(a)
Maria Lúcia Aparecida Montes
TESES DE DOUTORADO
DOUTORADO (orientadora)

Autor: Elisete Schwade Setembro


etembro
Título: “Deusas urbanas: experiências,
encontros e espaços neo-esótericos no TESES DE DOUTORADO
DOUTORADO
nordeste”
Banca: Prof. (a) Dr. (a) Autor: Sérgio Baptista da Silva
José Guilherme Cantor Magnani Título: “Etnoarqueologia dos grafismos
(orientador) Kaigang: um modelo para a compreensão
Sandra Jacqueline Stoll das sociedades Proto-Jé meridionais”
Vagner Gonçalves da Silva Banca: Prof(a). Dr(a).
Maria Helena Oliva Augusto
Lux Boelitz Vidal (orientadora)

cader nos de campo · n. 10 · 2002


155

Outubro
utubro Novembr
embroo

DISSERTAÇÕES
ISSERT DE MESTRADO DISSERTAÇÕES
ISSERT DE MESTRADO

Autor: Francirosy Campos Barbosa Ferreira Autor: Tayna de Cássia Santos Pereira
Título: “Imagem oculta: reflexões sobre a Título: “Igreja do Rosário dos Pretos do
relação entre os muçulmanos e a imagem Pelourinhos: um clamor com axé –
fotográfica” identidade negra e inculturação afro-
Banca: Prof(a). Dr(a). brasileira na Igreja do Rosário dos Pretos”
Sylvia Caiuby Novaes (orientadora) Banca: Prof(a). Dr(a).
Miriam Lifchitz Moreira Leite Kabenguele Munanga (orientador)
Etienne Ghislain Samain Antonia Aparecida Quintão
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães
Autor: Nadja Havt Bindá
Título: “Representações do ambiente e Dezembr
embroo
territorialidade entre os Zoé/PA”
Banca: Prof(a). Dr(a). DISSERTAÇÕES
ISSERT DE MESTRADO

Dominique Tilkin Gallois (orientadora)


Mauro William Barbosa de Almeida Autor: Paula Elaine Covo
Beatriz Perrone-Moisés Título: “Um livro de vozes: relação entre a
escrita e oralidade em grupo camponês
TESES DE DOUTORADO
DOUTORADO
pentecostal”
Banca: Prof(a). Dr(a).
Autor: Henyo Trindade Barretto Filho Renato da Silva Queiróz (orientador)
Título: “Da nação ao planeta através da João Baptista Borges Pereira
natureza: uma abordagem antropológica das Lísias Nogueira Negrão
unidades de conservação de proteção
integral na Amazônia Brasileira” TESES DE DOUTORADO
DOUTORADO
Banca: Prof(a). Dr(a).
Lux Boelitz Vidal (orientadora) Autor: Carlos Tadeu Siepierski
Renato da Silva Queiroz Título: “De bem com a vida” – O sagrado
Dominique Tilkin Gallois num mundo em transformação: um estudo
Mauro William Barbosa de Almeida sobre a Igreja Renascer em Cristo e a
presença evangélica na sociedade brasileira
contemporânea”
156

Banca: Prof(a). Dr(a).


Lucrécia D’Alessio Ferrara (orientadora)
Antonio Flávio de Oliveira Pierucci
John Cowart Dawsey
Elaine da Graça de Paula Caramella

Autor: José Sávio Leopoldi


Título: “Igualdade: uma visão
antropológica com especial referência às
sociedades indígenas”
Banca: Prof.(a) Dr.(a)
Renate Brigitte Viertler (orientadora)
Rolf Nelson Kuntz
Renato da Silva Queiróz
Júlio Cesar Melatti

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157

I NSTRUÇOES PARA COLABORADORES

1. A revista publicará artigos, traduções para publicação, indicando a fonte e, sempre


e resenhas, originais e inéditos, em Língua que possível, com autorização da entidade
Portuguesa, assim como comunicações, e/ou organização que produziu o
informes e entrevistas. documento.
E ntr evistas
evistas: Essa seção destina-se a
ntrevistas
A rrtigos
tigos
tigos: Será dada prioridade à publicar entrevistas com antropólogos ou
publicação dos trabalhos produzidos pelos profissionais que desenvolvam trabalhos de
alunos do Programa Pós-Graduação em interesse da Antropologia.
Antropologia Social da FFLCH-USP. Está
aberta a participação de alunos de outros 2. Os originais dos artigos serão
programas de Pós-Graduação da USP ou de submetidos a uma avaliação prévia da
outras Universidades, assim como de outros Comissão Editorial, que avaliará seu
profissionais em concordância com as enquadramento dentro da linha editorial de
preocupações da Antropologia. Cadernos de Campo
Campo.. Se aprovado, será
Tradução
radução: Nessa seção procura-se enviado a membros da Consultoria Editorial
publicar uma tradução por número de (profissionais da área) que emitirão
revista, de um texto, ensaio ou trabalho pareceres. A partir destes pareceres, a
relevante, que não esteja disponível na Comissão Editorial julgará a viabilidade de
Língua Portuguesa. sua publicação, aprovando-os com ou sem
R esenhas
esenhas: Essa seção destina-se a modificações, ou não os aprovando.
publicar resenhas críticas e informativas de
publicações recentes (ou antigas, mas 3. Os artigos devem ser apresentados em
importantes). duas vias, acompanhados de um disquete,
Comunicações
Comunicações: O objetivo principal em texto digitado em páginas tamanho A4,
dessa seção será apresentar, aos leitores, com a extensão de no máximo 20 páginas
resoluções, documentos e textos informativos (fonte Times New Roman, corpo 12, espaço
produzidos por organizações civis, políticas, 1,5). As resenhas críticas não devem passar
religiosas, universidades, associações, de 6 páginas. É imprescindível que os
imprensa, grupos de estudos, etc., que sejam autores mandem o disquete com seu
de interesse do antropólogo enquanto trabalho em processador de texto compatível
profissional e cidadão. Devem ser enviados com softwares tipo MSWord (6.0 ou
158

Word97 para Windows) sistema IBM PC vírgula, nome (org.), ponto, título em
(386, 486, Pentium ou superior). itálico, ponto, local da publicação, dois
pontos, editora, vírgula, data, vírgula,
4. Na primeira página do original devem páginas.
ser indicados o título do artigo (conciso e · periódicos: sobrenome em caixa alta,
direto) e o(s) do(s) autor(es), com seus vírgula, nome, ponto, título entre aspas,
respectivos títulos universitários, filiação In em itálico, dois pontos, título do
acadêmica, endereço para correspondência, periódico em itálico, vírgula, local da
email. publicação, vírgula, volume e número do
periódico, vírgula, data, vírgula, páginas.
5. Os trabalhos devem ser acompanhados · disser tações ou teses: sobrenome em
dissertações
de um currículo qualificado de, no máximo, caixa alta, vírgula, nome, ponto, título da
4 linhas. Apenas os artigos devem ser dissertação ou tese em itálico, ponto, local,
acompanhados também de um resumo de no dois pontos, instituição em que foi
máximo 15 linhas, com um elenco de palavras- defendida, vírgula, data.
chaves que identifique o conteúdo do artigo,
em português e inglês. Os artigos que não seguirem estas normas
estão sujeitos à devolução para correção.
6. As notas devem ser numeradas em
algarismos arábicos em ordem crescente e 8. A simples remessa de originais à revista
necessariamente listadas ao pé da página. No implica a autorização para sua publicação. Não
decorrer do texto, as referências bibliográficas serão pagos direitos autorais. Uma vez
devem subordinar-se ao esquema (sobrenome publicados os artigos, Cadernos de Campo
do autor, data) ou (sobrenome do autor, data: reserva-se todos os direitos autorais, inclusive
página). Ex.: (MEAD, 1968) ou (MEAD, os de tradução, permitindo, entretanto, a sua
1968:61). Diferentes títulos do mesmo autor posterior reprodução como transcrição e com
publicados no mesmo ano serão identificados a devida citação da fonte.
por uma letra depois da data. Ex.: (MEAD,
1968a), (MEAD, 1968b). 9. Os conceitos emitidos nos textos
publicados serão de responsabilidade exclusiva
7. A bibliografia (ou referências dos autores, não refletindo obrigatoriamente
bibliográficas) será apresentada no final do a opinião da Comissão Editorial.
trabalho em ordem alfabética, obedecendo aos
seguintes esquemas: 10. Os artigos devem ser enviados para:

· livros: sobrenome em caixa alta, vírgula,


livros: Comissão Editorial Cadernos de Campo
nome, ponto, título em itálico, ponto, local Programa de Pós-Graduação
de publicação, dois pontos, editora, vírgula, Departamento de Antropologia USP
data. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315
· Ar tigos:
Artigos: CEP 05508-900 - São Paulo - SP
· coletâneas: sobrenome em caixa alta, e-mail: cadcampo@usp.br
vírgula, nome, ponto, título entre aspas,
In em itálico, dois pontos, sobrenome,

cader nos de campo · n. 10 · 2002


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