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Mestranda da Pós-Graduação de Psicologia na área de concentração Psicologia e Sociedade da UNESP –
Universidade Estadual Paulista, Campus de Assis.
ganhado relevância projetos em que a literatura oral e escrita aparecem como auxiliares no
processo de internação de pacientes.
A percepção deste movimento em torno das produções do âmbito fantástico-
maravilhoso faz ressaltar a importância de maiores estudos sobre estas narrativas. Enquanto
alicerce de práticas sociais, estas histórias devem receber maior atenção, evitando sua
disseminação descompromissada, inclusive nos espaços privilegiados de aquisição de cultura.
Deixamos aos críticos a responsabilidade sobre o julgamento dos méritos literários das
narrativas fantástico-maravilhosas. Neste estudo, buscamos investigar os processos
psicológicos por trás do interesse dos adultos por estas narrativas.
A discussão, como vemos, acaba por enveredar pelos caminhos do real e irreal,
conhecido e desconhecido, subjetivo e objetivo. Todas essas dicotomias são colocadas em
xeque pelo conhecimento psicanalítico. O próprio Freud (1919) já afirmava, em sua discussão
sobre o “Estranho” na literatura, que, pelo tempo em que nos colocamos nas mãos do escritor,
devemos considerar “real” o cenário escolhido para a narrativa.
Podemos dizer, a respeito do fantástico que estudamos aqui, que ele encerra aquilo que
faz parte da criação subjetiva de outrem ou de nós mesmos, contendo elementos
desconhecidos em diversos níveis (consciente, inconsciente), mas que nos despertam um
encanto fruto do reconhecimento. Esse reconhecimento pode se referir, por exemplo, à
natureza dos sentimentos humanos presentes tanto em nós como nos seres desconhecidos das
histórias, mas estará sempre presente, pois é preciso um mínimo de dosagem de conhecido, de
cotidiano, para dar vida e encanto às narrativas, sejam quais forem (HELD, 1980).
Percebemos que as narrativas fantástico-maravilhosas estão ganhando destaque num
momento em que se consolida a compreensão de estudiosos sobre a fase em que se encontra a
nossa sociedade.
Designada pelos mais diversos termos, a chamada pós-modernidade impõe uma forma
diferenciada de viver a realidade prática do dia-a-dia, que, como não poderia deixar de ser,
interfere na vivência psíquica de nossa existência.
David Harvey coloca as bases do surgimento da pós-modernidade na nova fase de
acumulação do capitalismo, e nas novas experiências de âmbito cultural. A pós-modernidade
caracterizaria uma forma esquizóide de experimentar, interpretar e ser no mundo. Fazendo
uma contraposição com o modernismo, ele diz:
As novas imposições de vida, novas formas de ser e viver, implicam uma série de
mudanças na psicologia humana, segundo o autor:
...bloqueio dos estímulos sensoriais, a negação e o cultivo da atitude blasé, a
especialização míope, a reversão a imagens de um passado perdido (daí
decorrendo a importância de memoriais, museus, ruínas) e a excessiva
simplificação (na apresentação de si mesmo ou na interpretação dos
eventos). (idem, p. 259)
Essas reflexões nos levam a perguntar como seria possível a constituição do homem
enquanto sujeito dadas as condições e contradições da vida pós-moderna.
A pós-modernidade é considerada por Bauman (1997, p. 43) uma era heterofílica.
Podemos constatar, no entanto, que a percepção da alteridade aparece distorcida, o outro é
visto enquanto objeto do gozo. A interdição do gozo dá lugar ao “mercado do gozo”:
infinitude de orgasmos, multiplicidade infindável de parceiros. A predação do corpo do outro
é descrita por Birman:
Para ocasionar a adesão do leitor, para ser ratificada, a história ⎯ por mais
estranha, louca ou fantástica que seja ⎯ deve sempre ser de tal maneira que
cada um possa, como num espelho, encontrar nela certa essência do ser
humano, de qualquer ser humano, de si mesmo: tradução de necessidades,
de angústias, de desejos, conscientes ou não. (idem, p. 151)
Podemos concluir, portanto, que as fantasias dos adultos que vivem a pós-modernidade
podem e devem ser despertadas pela literatura fantástico-maravilhosa. Embora nos
defrontemos, muitas vezes, com o rótulo da literatura infantil, percebemos que as facetas do
ser humano tocadas pela literatura fantástico-maravilhosa ultrapassam as delimitações etárias.
Se repensarmos o conceito de “infantil” à luz da teoria psicanalítica, concordaremos com
Tanis (1995, p. 169-170), que o coloca enquanto território a ser explorado em cada um de nós,
como campo dos possíveis e dos limites, fonte de inspiração e desilusão, mas sempre
referência.
E, quando o sujeito puder se reconhecer na obra, estará construindo a segurança de uma
identidade, através do encontro com a obra na forma de um outro consistente, que lhe serve de
espelho. Dessa forma, os caminhos do desejo enquanto constituição do sujeito são retomados,
através do poder crítico-reflexivo da literatura fantástico-maravilhosa.
Bibliografia
BAUMAN, Z. Mal-estar da pós-modernidade. Tradução de Mauro Gama e Cláudia
Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
___________. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2001.
BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: A psicanálise e as novas formas de subjetivação. 3a.
edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
FREUD, S. (1919) O “Estranho”. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol.
XVII (Edição Eletrônica da Imago Editora)
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e
Guacira Lopes Louro. 5a. edição. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
HARVEY, D. Condição Pós-moderna. Uma pesquisa sobre as Origens da Mudança
Cultural. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. 10a. edição. São
Paulo: Edições Loyola, 2001.
HELD, J. O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica. 3a. edição. Tradução
de Carlos Rizzi. São Paulo: Summus editorial, 1980. (Novas buscas em educação, vol. 7)
HERRMANN, F. O Divã a Passeio: à procura da psicanálise onde não parece estar. 2a.
edição. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001. (Teoria dos Campos, Coleção Psicanalítica)
TANIS, B. Memória e Temporalidade: sobre o infantil em Psicanálise. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 1995.
TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara Correa
Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975. (Coleção debates – 98)