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O oratório como símbolo de poder
no cotidiano religioso dos espaços domésticos da São Paulo colonial
Silveli Maria de Toledo Russo∗
A reflexão ora apresentada integra uma pesquisa que se encontra em andamento e tem
como objetivo a elucidação histórica de questões referentes ao exercício religioso doméstico e a
apreensão de parâmetros estilísticos, culturais e técnicos de um conjunto de oratórios produzidos
no Brasil nos séculos XVIII e XIX.
∗
Arquiteta (silveli@usp.br); doutoranda em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo pela FAU- Formatado: Fonte: Não
USP, com apoio da CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Negrito
1
Pierre Bourdieu, “Gênese e estrutura do campo religioso”. In: Pierre Bourdieu. A economia das trocas simbólicas. Formatado: À direita: -45,4
São Paulo, Perspectiva, 2005, p. 14. pt
Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
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Vemos também que era permitido acomodar os ditos oratórios elevados a altar em um
dos cômodos da casa de forma a atender à comodidade dos moradores, que, por sua vez, como
elucidam os processos consultados, deveriam seguir certas determinações de ordem canônica, no
sentido de separar o local do oratório das demais dependências da casa, e entre outras
indicações, assegurar a sua perfeita construção e o uso dos devidos ornamentos nas quatro cores
que se usa a Igreja.
Sobre essas qualidades Augusto Maria é claro ao descrever o costumeiro acervo dos
altares, que incluía, entre outros componentes, o crucifixo, os castiçais, as toalhas, o missal com
sua estante, as galhetas, o vinho e a água, a campainha, o cálice, as hóstias3. Sem esquecer dos
paramentos sacerdotais necessários, com a variação de cores que se ajustava com as quatro cores
litúrgicas em voga: o branco, o vermelho, o verde e o roxo4. É o que podemos observar na
reconstituição concreta dos objetos que serviam para o sacrifício eucarístico, valendo-nos do
conteúdo de alguns inventários post mortem dos anos finais do período colonial, mormente
aqueles referentes às propriedades rurais e urbanas dos proprietários de oratório, citados nos
breves apostólicos, cujo teor permite levantar algumas pistas bastante aproximadas do material,
imagens e adereços dos oratórios aqui levados em conta.
3
Augusto Maria, Exposição histórico-litúrgica da santa missa, São Paulo, Paulinas, 1962, p. 12-15, 18-22 e 23-28.
4
Relativamente à simbologia das mesmas, o branco é reservado à purificação da Virgem; o vermelho, símbolo do
amor e do martírio, utiliza-se para celebrar o Pentecostes, e nas festas dos apóstolos e mártires; o verde simboliza a
vida e a esperança, conveniente às celebrações da Epifânia até o Advento; o roxo, sinônimo da mortificação e da Formatado: Fonte: Não
penitência, é usado durante a quaresma, entre outras alturas; finalmente o preto, a cor do demônio, impõe-se para os Negrito
ofícios aos defuntos. Cf. Louis Rèau, Iconographie de l´Art Chrétien, v.1, tomo 1o, Paris, Universitaires de France, Formatado: À direita: -45,4
1955, p. 236. pt
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painéis do Senhor crucificado que ornam as paredes do aposento em que está o oratório5.
Longe do tímido núcleo urbano da São Paulo setecentista, em áreas mais rarefeitas de
casas e de igrejas, não admira que ganhasse destaque o mérito dos altares de uso privado
enquanto complementos dos espaços públicos de culto. Nas palavras de Luis Saia, era “o local
tratado com mais zelo na residência (...) onde as fechaduras recebem espelhos tratados com
especial lavor, as colunas são decorativas, às vezes até ricas, e, sobretudo aparecem a talha e as
pinturas (...)”8.
5
AJESP, Processo 869, Cartório 1º Ofício da família. Ano inicial: 1822.
ACMSP, Processo 37 envolvendo breve apostólico de oratório privado. Autores: João Franco da Rocha. Local:
Sítio do Oratório. Ano inicial: 1791.
6
Carlos Alberto Cerqueira Lemos, Casa Paulista, São Paulo, Edusp, 1999, p. 31.
7
Vânia Carneiro de Carvalho, Gênero e Artefato. O sistema de objetos doméstico na perspectiva da cultura
material, São Paulo, 1870-1920, Tese de doutorado apresentada ao Departamento de História da FFLCH/USP, sob
a orientação do Prof. Dr. Ulpiano Bezerra de Meneses, São Paulo, mimeo., 2001.
8
Luis Saia, Morada paulista, São Paulo, Perspectiva, 1995, p.56.
9
Como afirma Antonil, “A hospitalidade é uma ação cortês, e, também, virtude cristã, e no Brasil muito exercitada Formatado: Fonte: Não
e louvada; porque, faltando fora da cidade as estalagens, vão necessariamente os passageiros a dar consigo nos Negrito
engenhos (...)”. Cf. André João Antonil, Cultura e Opulência do Brasil por suas drogas e minas, Belo Horizonte; Formatado: À direita: -45,4
São Paulo: Editora Itatiaia; Editora Universidade de São Paulo, 1982, p. 94. pt
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XVIII e de novos hábitos daí então introduzidos nos bastidores da cena doméstica, mas isso é
uma outra história que não cabe estender neste breve texto.
As recônditas relações firmadas entre esses dois segmentos sociais reiteram o que
falamos até aqui. A propósito, Maria Borrego, em estudo sobre negócios e poderes na São Paulo
10
Laura de Mello e Souza, O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII, São
Paulo, Companhia das Letras, 2006, p. 461.
11
Ver Ilana Blaj, “Mentalidade e sociedade: revisitando a historiografia sobre São Paulo colonial”, Revista de
História, nos 142-143 (2000), pp. 239-259. Formatado: Fonte: Não
12
Ilana Blaj, op. cit., p. 253. Negrito
13
Laima Mesgravis, A Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (1599-1884). Contribuição ao estudo da Formatado: À direita: -45,4
assistência social no Brasil, São Paulo, Conselho Estadual de Cultura, 1976, p. 198. pt
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colonial, chama a atenção para o referencial de tais segmentos com as redes clientelares do
Estado patrimonialista português, “pela oferta de bens econômicos pelo pólo socialmente
inferior em troca de bens simbólicos, com vistas ao acesso a posições de prestígio, de outro
modo inatingíveis” 14.
Neste entrecho, cabe reiterar que a Câmara e a participação nas irmandades não eram os
únicos veículos de nobilitação. A mesma tendência de projetar tais pretensões de
reconhecimento, tanto por parte dos agentes mercantis como de outros segmentos daquela
sociedade, está na obtenção do já comentado Breve Apostólico de Oratório; autorização, como
observa Carlos Lemos, obtida por meio de gestões em que preponderavam as influências
familiares, o poder político e a força dos “cabedais” perante o bispo e o cabido da região17. O
universo católico projetava-se também como fator social de distinção entre os colonos.
14
Maria Aparecida de Meneses Borrego, A teia mercantil: negócios e poderes em São Paulo colonial (1711-1765),
Tese de doutorado apresentada ao Departamento de História da FFLCH/USP, sob a orientação da Profa. Dra. Laura
de Mello e Souza, São Paulo, mimeo., 2006, p. 148.
15
Idem, p. 72.
16
Além de contribuírem financeiramente com a instituição, os irmãos professos colaboravam na organização de Formatado: Fonte: Não
cultos e procissões, buscando desta forma conquistar o reconhecimento como bons cristãos, merecedores da Negrito
salvação eterna. Cf. Maria Aparecida de Meneses Borrego, op. cit., p. 151. Formatado: À direita: -45,4
17
Carlos Alberto Cerqueira Lemos, op. cit , p. 32. pt
Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
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bom”18. Com respeito à documentação referente à Ordem de Cristo, uma vez solicitada a entrada
na instituição o candidato sujeitava-se a diligências que devassavam a sua vida pregressa com
vista a identificar seu caráter, sua honra, e as qualidades de sua genealogia que se revelassem
respeitáveis.
18
Ilana Blaj, op. cit., p. 254.
19
“O hábito era dado como recompensa a determinados serviços prestados pelos vassalos a Sua Majestade,
guardando em si capital simbólico e econômico, pois, além da marca distintiva, o agraciado era remunerado com
uma tença anual”. Maria Aparecida de Meneses Borrego, op. cit., p. 176. Formatado: Fonte: Não
20
IANTT, Habilitações da Ordem de Cristo, letra J, maço 24, doc. no 2. Negrito
21
Stuart Schwartz B, Segredos internos. Engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo, Companhia das Formatado: À direita: -45,4
Letras, 1988, p. 218. pt
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Indicações sobre essa aproximação podem ser recolhidas, de início, na obra de Arlindo
Rubert sobre a História da Igreja no Brasil. Nesta obra, em volume relativo ainda ao século
XVII, o referido autor se lembra, com efeito, de ressaltar a existência de uma “respeitável
porcentagem” de leigos que, mais instruída diante da média da população, “já se inspirava na
renovação tridentina, recorrendo aos sacramentos da penitência e eucaristia com notável
freqüência” 23.
22
Realizado entre 1545 e 1563, reuniu-se com o objetivo de reformar a Igreja e o clero e, por extensão, as normas e
práticas doutrinárias e os costumes devocionais que lhes estavam associados.
23
Arlindo Rubert. A Igreja no Brasil, v.3. Santa Maria, Pallotti, 1981, p. 287.
24
Fernando Torres Londoño. Público e Escandaloso: Igreja e Concubinato no Antigo Bispado do Rio de
Janeiro. Tese de doutorado apresentada ao Departamento de História da FFLCH/USP, sob a orientação da Profa.
Dra. Maria Luiza Marcilio. São Paulo, mimeo., 1992, p. 190-244.
25
D. Sebastião Monteiro da Vide. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Feitas e ordenadas pelo Formatado: Fonte: Não
Ilustríssimo e Reverendíssimo Senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, propostas e aceitas em o synodo diocesano, Negrito
que o dito Senhor celebrou em 12 de junho do anno de 1707. São Paulo: Typographia 2 de dezembro, 1853, Livro Formatado: À direita: -45,4
1º, tit. 23, § 83. pt
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Neste entrecho, achamos válido lançar um olhar para a postura da hierarquia católica até
o período em estudo; assim sendo, já podemos discorrer a respeito da sua organização no Brasil
nos três primeiros séculos, período controlado pelo regime de Padroado, cujo direito de atuação,
cedido pelo papa ao rei português, dispunha da responsabilidade de promover a organização da
Igreja nos interesses expansionistas do cristianismo católico, entendidos à época como deveres
missionários.
A reforma moral e intelectual do clero constituiu uma das preocupações que mobilizaram
os sacerdotes reunidos neste Concílio. No Brasil, a reforma tridentina só chegaria de forma
sistemática no século XVIII, coincidindo com o longo reinado de D. João V (1706-1750). De
acordo com Eduardo Hoornaert, D. Lourenço de Mendonça, bispo do Rio de Janeiro (de 1632 a
1638) criticou esta situação com as seguintes palavras: “A viagem à Bahia é longa, mais de
trezentas léguas, e perigosa por motivo dos inimigos e chegando lá, quase não acham o bispo. O
Brasil com mil e duzentas léguas tem um só bispo e por vezes nenhum” 27.
Vale dizer que entre 1551 e 1676 o Brasil tinha somente a diocese de Salvador da Bahia.
Nos idos de 1676 e 1677 foram criadas mais três dioceses: a de Pernambuco, Rio de Janeiro e,
então, a de São Luís do Maranhão que era diretamente dependente de Lisboa. Já a criação da
diocese na capitania de São Paulo - que viria acontecer somente na primeira metade do século
XVIII, mais precisamente em 1745, juntamente com a de Mariana - insere-se no conjunto de
transformações afluídas na Colônia neste século. Lembramos que neste momento ocorreu a
mudança do eixo econômico do Nordeste para o Sudeste da Colônia - os descobrimentos
auríferos das Minas Gerais motivaram a efetivação de um controle maior no Sudeste também
por parte da Coroa.
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Via de regra, depois de obter o mencionado documento papal, era necessário dar início a
um processo destinado a alcançar da autoridade episcopal a validação das mesmas dádivas para
a diocese local. Davam início, então, os processos dessa natureza pelo requerimento do
proprietário ou proprietários da residência onde estava situado o oratório. Acompanhava-o, em
tal caso, uma relação de justificativas da postulação, dispondo de modo conjunto os motivos que
os ditos proprietários precisavam comprovar em vista de se mostrarem merecedores do
privilégio outorgado pelo documento, a exemplo do que fez José Rodrigues Pereira e sua mulher
Ana de Oliveira Monte. Ao requererem a concessão de oratório elevado a altar em 1751, tinham
como premissa viverem como nobres, entre outras indicações.
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Por outro lado, atuando como um bem simbólico de prestígio, a posse de um oratório
tomado como objeto litúrgico parece ter sido sobretudo uma das estratégias utilizadas pelos
detentores desse privilégio para expressar ainda mais a sua posição superior, fato que, a nosso
ver, é uma marca para o entendimento de tal sociabilidade religiosa ensejada na dimensão
doméstica.
FONTES
Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
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São Paulo, Editora Itatiaia; Editora Universidade de São Paulo, 1982 [Texto confrontado com o
da edição de 1711].
VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Feitas e
ordenadas pelo Ilustríssimo e Reverendíssimo Senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, propostas
e aceitas em o synodo diocesano, que o dito Senhor celebrou em 12 de junho do anno de 1707.
São Paulo: Typographia 2 de dezembro, 1853.
BIBLIOGRAFIA
BORREGO, Maria Aparecida de Meneses. A teia mercantil: negócios e poderes em São Paulo
colonial (1711-1765). Tese de doutorado apresentada ao Departamento de História da
FFLCH/USP, sob a orientação da Profa. Dra. Laura de Mello e Souza. São Paulo, mimeo., 2006.
BOURDIEU, Pierre. “Gênese e estrutura do campo religioso”. In: Pierre Bourdieu. A economia
das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva, 2005.
LEMOS, Carlos Alberto Cerqueira, Casa Paulista, São Paulo, Edusp, 1999.
MARIA, Augusto. Exposição histórico-litúrgica da santa missa. São Paulo, Paulinas, 1962.
NAZ, Raoul (dir.). Dictionnaire de droit canonique, v. 5. Paris, Letouzey et ané, 1935-1965.
RÉAU, Louis. Iconographie del´Art Chrétien, v.1, tomo 1o. Paris, Universitaires de France,
1955.
RUBERT, Arlindo. A Igreja no Brasil, v.3. Santa Maria, Pallotti, 1981, p. 287.
Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.