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Livro Nienna

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Sinopse

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Índice

Segredinhos dos Personagens


Epígrafe
01.Nostalgia
02.Coisas incompreensíveis
03.Frissons
04.O Supra-Sumo da Esquisitice
05.O Início da Maratona
06.Borboletas
07.Bruxa
08.Bicho do Mato
09.Elfa?
10.Senhor Perfeição
11.Segredos
12.Mal-Estar
13.Louca
14.Pacto
15.Doce Criança
16."Algo Diferente"
17.Uma Pergunta
18.Conto-de-Fadas
19.Ânsia
20.Nome
21.Irmãs
22.O Mistério da Batata

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Segredinhos dos Personagens

Lune:
- Não tem ideia de qual é a sua idade verdadeira;
- Muito menos sua data de aniversário;
- É viciada, alucinada, louca pelo filme Moulin Rouge e chora TODAS as vezes
que assiste, apesar de...;
- Não poder chorar. Reflita;
- O seu amor pelas plantas e pelos animais não é uma paixão humana
qualquer;
- Suas cores favoritas são lilás, roxo e cinza claro;
- Todos dizem que é um sonho quando a Lune decide cantar, mas ela se sente
terrivelmente desconfortável quando faz isso sem estar muito deprimida ou
muito feliz;
- Adora usar qualquer coisa que tenha fitas ou amarrá-las em qualquer lugar,
mesmo que seja apenas no cabelo;
- Ama dançar;
- Praticamente não tem pêlos (os únicos lugares com pêlos nela são as
sobrancelhas, os cílios e as penugens finíssimas dos braços, das coxas e... bom,
deixa pra lá);
- No fundo, sempre achou que fosse mesmo uma bruxa, embora tenha
ignorado e negado esse tempo todo;
- Ama chá de hortelã;
- Ama batata-frita;
- Jamais cortaria mais de três dedos de cabelo;
- Adora novelas e assiste Cinderela quantas vezes colocarem na sua frente;
- Realmente não consegue entender como chegou ao Ensino Médio;
- Secretamente, sempre pede permissão para a grama antes de pisar nela;
- Sua letra é um garrancho;
- Diz que não acredita nos gnomos, sereias e nos seres mágicos da floresta,
mas fica em dúvida;
- Quase caiu do telhado uma vez (pergunta: o que ela fazia num telhado?);
- Acha que para o Luan ser perfeito, só falta usar boné. E com a aba para trás;
- O seu cheiro natural é muito parecido com lavanda, embora nem todos
consigam senti-lo;
- Morre de medo do escuro;
- Morre de medo de assombração;
- Cozinha maravilhosamente bem;
- Conversa com seu peixinho, de vez em quando. E jura que ele entende;
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- Não gosta muito que as pessoas a toquem (a menos que sejam muito
íntimas);
- Tem três pares de All Stars, todos em tom pastel;
- É capaz de comer qualquer receita com leite condensado sozinha;
- Não tem religião, mas não consegue dormir sem fazer uma oração que seja;
- Tem sonhos estranhos quase todas as noites;
- Jura que, quando criança, via várias brincando no seu quarto durante a noite.

*****

Luan:

- Seu maior sonho é abrir uma escola de música;


- Costuma ser divertido e brincar com as pessoas, mas sempre prefere estar
sozinho;
- É um grande fã da Madonna;
- É vidrado em sorvete;
- Tem dificuldades sérias em expressar o que sente...;
- ... Por isso opta sempre por não dizer nada;
- Já foi obrigado, por sua mãe, a ficar um mês inteiro sem gameboy, graças ao
vício;
- Até seu pai morrer, era indiferente quanto a música;
- Já disseram várias vezes que sua voz é praticamente idêntica à do cantor
Michael Bublé (e ele concorda, embora não admita);
- Gosta mesmo de animais;
- Nunca namorou;
- É viciado em Coca-Cola;
- Ouve vozes estranhas, de vez em quando;
- Ama futebol e é muito bom nisso;
- Se sai bem em todas as materias escolares, mas acha que 30% da
matemática só existe porque ainda não haviam inventado a televisão;
- Tem memória fotográfica;
- Quando fica com sono, perde muito da sensatez que o acompanha
normalmente;
- Adora ter a atenção de quem gosta, mesmo sempre fingindo que não liga;
- Tem sérios problemas com bochechas cor-de-rosa, principalmente as dele
próprio;
- Não suporta pedir desculpas, mas sempre dá um jeito de se redimir;
- Nunca se deixa empolgar demais na frente dos outros;
- Quando fica nervoso, guarda pra si e acaba descontando no primeiro que
passa na frente;
- Adora essa coisa da Lune sorrir o tempo todo e por qualquer motivo;

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- Sempre demonstra seu carinho com palaras opostas. Portanto, não se ofenda
se ele lhe chamar de "besta homérica", isso é muito, muito bom;
- Adora subir na bicicleta e ir pra lugar nenhum;
- Busca companhia das pessoas sem deixar que elas percebam isso;
- Já fez bons anos de Le Parkour;
- É bem chegado em jogos de cartas;
- Aliás, é bem chegado em qualquer tipo de jogos, especialmente os de
computador;
- A primeira vez que viu Lune achou que tinha tomado alucinógenos. Ou que
estava bêbado.

*****

Lise:

- Seu sonho é fazer engenharia mecânica;


- Desenha muito bem;
- Se considera a maior e melhor fã de Johnny Depp;
- Chocólatra;
- Leitora devota, principalmente se tratando de clássicos da ficção científica e
da literatura de horror;
- Seu QI é um tanto acima da média;
- Já fez um boxe;
- Quando seu pai era vivo, a obrigou a aprender um instrumento musical;
- Ela escolheu contra-baixo acústico;
- Odeia futilidade, a menos que seja dela própria;
- Não é nada parecida com sua melhor amiga;
- É do tipo que atrai as pessoas, especialmente as muito diferentes dela;
- Seu sonho de consumo é uma Harley;
- Ou um Fusca preto;
- Ama corujas, serpentes e escorpiões;
- Uma das primeiras travessuras de que se lembra foi ter colado chiclete no
cabelo de uma vizinha e pressionado bastante;
- Fez isso porque a tal vizinha pediu para que entregasse uma carta de amor
para Luan;
- A segunda travessura que se lembra foi ter queimado a carta na frente da
menina. Com 7 anos;
- Não sabe o nome da maioria dos caras que já beijou. E, acredite, foram
muitos;
- Ao contrário do que muitos pensam, ela é da forma que é porque gosta, não
para atrair a atenção;
- Embora admita que chamar a atenção é bem legal;
- Por incrivel que pareça, sabe ser muito sensível;

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- Acredita no amor;
- Acredita em Deus;
- Acredita na ironia, sarcasmo e arrogancia também;
- Ao contrário de Luan, não tem problema nenhum em dizer "me desculpe".
Apenas é muito seletiva quanto a quem merece ouvir;
- Adora desenhos japoneses;
- Ama Guns N' Roses, The Strokes, Metallica e Offspring;
- Costuma dar passeios clandestinos noturnos;
- É canhota e vive com a mão esquerda enfaixada;
- Usa a meia do uniforme embolada sobre os tornozelos só pra implicar com a
mãe;
- Ama o fogo;
- Sempre achou que, se fosse pra Luan casar, seria com alguém no mínimo
melhor do que ela;
- Por isso, sempre achou que ele nunca se casaria;
- Quando criança, adorava trançar o cabelo (segredo segredíssimo!);
- É uma das maiores adeptas da Teoria da Relatividade;
- Duvida que dois mais dois sejam quatro simplesmente porque duvida de tudo;
- Vai pra diretoria, em média, cinco vezes por mês;
- Só não foi fixada na polícia certa vez porque o pai da sua melhor amiga é do
ramo;
- Ama o Natal e acredita no Papai Noel;
- Sempre, SEMPRE quis ter um Pokémon.

*****

Epígrafe

Parece que eu sempre soube que você e eu estaríamos juntos nessa ,


eu juro que sonhei com você. Todas aquelas noites sem fim, hoje eu estou
sozinha. É como se eu passasse sempre o buscando, agora eu sei que valeu
com você. Com você eu sinto que estou finalmente em casa. Eu
corro um milhão de milhas só para ouvir você dizer meu nome

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Capítulo 01 - Nostalgia

A vida te guardou surpresas interessantes, minha querida.


Lembro bem da minha avozinha dizendo essas palavras, tanto que nem
parece ter acontecido há anos. Claro, naquela época eu não imaginava o
significado delas e, para ser sincera, ainda não entendo. Só sei que, se ela
disse, é verdade.
Tenho ainda uma visão muito nítida de uma casinha pequena e delicada,
com plantas, flores, arbustos e uma agradável senhora baixinha parada em
frente à porta. Ela acenava lentamente, com um sorriso sentido, para a
menininha chorosa sendo arrastada jardim afora. Uma covardia completa da
minha mãe, se quer mesmo saber. Quer dizer, eu tinha cinco anos e ela, sei lá,
o quíntuplo disso, sem contar três vezes minha altura. Porém, as palavras ditas
por aquela velhinha momentos antes da cidadã – aparentemente minha linda e
bizarra mamãe – invadir o pequeno lugar e me arrancar de lá, nunca foram
esquecidas.
Bom, óbvio que eu não queria ir, eu tinha uma vida muito da feliz.
Acordava com montes de passarinhos na minha janela, passava momentos
maravilhosos com minha avó, brincando todos os dias no bosque ao lado da
nossa casa e comia todo tipo da comida mais maravilhosa de que tenho
lembrança. Além disso, aquela mulher me arrastando pelo braço era
praticamente um monstro, não tinha como não ter medo. Todo mundo deveria
ter medo dela. Era medonha e não medonha no sentido físico de algo horroroso
produzido no inferno. Uma das grandes dádivas da minha família é que todas
as mulheres nascem com a alegria da beleza. A forma linda e sombria daquela
criatura era admirável, sem comparação. Alta, esguia, com cabelos impecáveis
e olhos magníficos. Quando andava, o balanço leve e delicado do seu corpo
transmitia a ilusão de estar flutuando. Os cabelos lisos ondulavam no ar a
qualquer simples movimento, pareciam feitos de seda.
Certo, seria um pouco injusto falar dessa forma sobre os cabelos dela, já
que os meus são realmente parecidos. A diferença é que tudo fica mais bonito
nela. E assustador também.
Mas imagine essa pessoa entrando em fúria dentro de sua casa, com um
olhar de nitrogênio líquido, querendo arrancar a filha de perto de você. Eu não
sei o que você faria, mas digo com total certeza: minha avó foi muito
inteligente em não relutar.
Como se estivesse prevendo, vovó me chamou para uma conversa logo
antes de mamãezinha linda aparecer. E é daí que vêm, acredito, minhas mais
importantes lembranças – até porque, do bosque onde vivíamos, não me
lembro de muito mais.

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"Minha querida," começou, com a mesma voz bondosa de sempre,
acariciando de forma estranha o alto da minha cabeça. "Você terá de ir
embora".
"Por quê?" eu disse, já sentindo os olhos marejados. "A senhora vai me
expulsar daqui?".
Ela soltou um risinho muito fraco, mas totalmente sincero.
"Claro que não meu amor… se eu pudesse ficaria com você para sempre.
Mas não foi minha a decisão".
"Mas para onde? Eu não tenho nenhum lugar para ir…".
"Uma mulher bonita virá buscá-la".
"Mas… eu não quero… quero ficar aqui, com a senhora e meus amigos".
Realmente, não faço idéia de que amigos eu falava, mas ela pareceu
compreender muito bem. Coisas de avó.
"Nem sempre podemos ter o que desejamos… há coisas que não nos
convém decidir… e seus amigos estarão com você onde você for, desde que
não se esqueça deles. E eu também estarei". Nisso, ela faz outra pausa lenta e,
com certa dificuldade, tira de dentro do longo vestido um fino cordão prateado
com um pingente. Uma bolinha pequena, feita de algo como vidro, com uns
fiapinhos e névoas brilhantes no meio.
―Tome isso e cuide, pois ele servirá para que não se esqueça de toda
sua vida aqui e, mais tarde, lhe ajude a descobrir quem você é. Se você não me
esquecer, de alguma forma ainda estaremos unidas". Ela faz uma pequena
pausa e, com os olhos vagos, sem exatamente olhar para mim, sorri, dizendo:
"A vida te guardou surpresas interessantes, minha querida‖.
Naquele momento, eu não fazia idéia do que ela pretendia com o papo
de descobrir quem eu sou. Para ser sincera, ainda não faço. Mas se há algo de
importante que eu trouxe da minha vida verde é saber o quanto aquela
senhora tranqüila, de cabelos prateados e olhos, sim, cinzas, era sábia.
Portanto, nunca deixei ao menos tocarem essa jóia, com medo de que algo
acontecesse. Porque, de certa forma, mesmo não fazendo sentido para mim,
sei a importância que fazia para ela.
Se me perguntarem se sinto saudades, não vou pensar um segundo
antes de responder que sim. Morro de saudades e trocaria tudo por uma
oportunidade de voltar. Queria uma chance de crescer lá, em meio às flores,
correndo entre as árvores… passando horas com as borboletinhas engraçadas
que pousavam nas pétalas todo fim de tarde e perseguindo os bichinhos
estranhos que viviam pelo gramado para, logo depois, perdê-los de vista, sem
nunca localizar suas tocas. Lembro vagamente, também, do grande cavalo
selvagem que certa vez encontrei em uma clareira distante. Branquíssimo. Sua

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crina e sua cauda varriam o chão, de tão longas. Maravilhoso. Bom, tudo
naquele bosque parecia maravilhoso, de certa forma.
Há quem ache exagerado esse meu amor pelas coisas da natureza, mas
eu não posso evitar, faz parte de quem eu sou. Eu daria qualquer coisa para ter
crescido com tudo isso. Mas logo depois da minha avó ter falado sobre as
surpresas da vida para mim, minha carinhosa mãe chegou e me carregou
embora.
E eu vim parar na cidade.

Capítulo 02 - Coisas Incompreensíveis

Ah! A cidade grande… barulho, carros, aviões, fumaça e câncer. Fala


sério, alguém realmente gosta de morar num lugar assim?
O.k., saindo do momento depressivo-nostálgico agora. Quando disse que
daria tudo pela vida que tinha, talvez não tenha falado tão sério. Sim, eu daria
mesmo, mas… não odeio morar aqui, é onde passei a maior parte da minha
vida e Liège não é o buraco do mundo. Eu até gosto. E, também, sabe quando
você está em algum lugar, sente ser totalmente o errado, porém, sabe que
deve estar? É, talvez não. De qualquer forma, é o que eu sinto. Ainda creio
existir algum propósito para todos esses anos em que me senti fora do lugar.
Há anos não sei como é me sentir eu mesma.
Mais especificamente, desde que minha mãe me deixou neste lugar, com
meu pai. Sim, deixou. O quê? Alguém por acaso pensou que ela me arrancaria
dos braços doces de minha avó para me manter perto, ficar com a filhinha
amada, ser mãe? Uma ova. Depois daquele dia, eu nunca mais a vi. Ela nunca
nem apareceu para dar um ―alô, filha imunda‖. E logo descobri, também, que
quando ela apareceu na porta do meu pai, mal sabia quem ele era. Eles tiveram
um "caso" (sabe, esses ―casos‖ relâmpagos depois de alguns goles de álcool) e
ela desapareceu. Cinco anos depois voltou, dizendo: "você tem bela filha,
parabéns, se vira com a garota". Ele me disse que não acreditou muito,
inicialmente. Pra falar a verdade nem a reconheceu. Mas já falei sobre minha
mãe, certo? Sabe Deus como, no fim ela fez lavagem cerebral nele. Mas eu
reclamo? É claro que não, pois se aquela bruxa podre – sim, eu me sinto
culpada por falar assim da minha própria mãe – não tivesse conseguido, eu
(talvez) ainda estaria com ela. E meu pai é realmente, realmente, fantástico.
Então, se eu de repente tivesse a chance de voltar para o bosque, não
seria com fogos de artifício. Pipocas, talvez.

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Ah, e também tem Nara. Mas Nara merece muito mais do que um
parágrafo rápido e sem importância. Mais tarde ela dá as caras por aqui.
Então, cá estou encostada na porta de vidro do meu quarto, olhando
para o dia chuvoso lá fora e resistindo à tentação de ir para a varanda me
molhar. Eu gosto quando chove. Me dá certa sensação de paz ver acontecer
algo natural no meio do artificialismo que constitui essa coisa chamada
metrópole.
Fui reflexiva demais, agora. Desnecessário.
— Lune, chérie, está pronta? – meu pai bate com cuidado à porta, já
que ele não ousa entrar quando está fechada. E eu acho isso muito bom, afinal,
já tenho elevações consideráveis abaixo do queixo e não me sentiria
confortável em uma situação, mesmo ocasional, em que ele as descobrisse.
Quer dizer, esse é o tipo de coisa guardada para alguém especial. Que pode
nunca chegar a vir, no meu caso, mas esqueça. Além disso, o meu pai é
daqueles que acreditam nos eternos onze anos. Continua dizendo, ainda hoje:
"minha filhinha, tão pequenininha…".
— Sim, papai – disse, abrindo a porta do quarto, com a mochila no
ombro. Ele me sorri, ajustando os óculos retangulares. Meu pai é um cara
bonitão, sabe? Meio desajeitado, estabanado talvez, mas ainda sim é muito
bonito. Faz pose de intelectual maduro, charmoso e solteiro. Ainda mais
ultimamente, que anda se arrumando além do comum para o trabalho.
Ah, esqueci de dizer. Eu me chamo Lune. Lune Noire.
Noire não deve ser meu sobrenome, mas um tipo de segundo nome.
Uma brincadeira sem graça da minha mãe, pelo menos é o que imagino. Não é
o sobrenome do meu pai e não posso confirmar se é o dela, porque, bem,
mamãe não consta no meu registro de nascimento. Na verdade, para mim, é
meio confuso o fato de eu estar registrada como filha de Otto Johel Gautière,
pois só o conheci com cinco anos e minha mãezinha, quando se trata de
documentos, não existe. Sim! Veja só, pelo que diz meus papéis, eu não tenho
mãe. Devo ter nascido de um pé de repolho.
Isso me faz concluir que: ou aquela mulher abduziu meu pai e o fez
inconscientemente me registrar (sabe Deus como conseguiu isso sem
apresentar um útero para justificar o nascimento), ou a certidão foi enviada
pelos anjos. Um verdadeiro mistério, não acha?
Bom, ela pode ter oferecido uma grana gorda para o cara do cartório,
também. Ou oferecido outras coisas.
Deixa pra lá.
O fato é que todos me chamam somente assim, minha carteira de
identidade está assim, a carteirinha de estudante está assim. E eu gosto do
meu nome, só não entendo o significado. Lua Negra, nada a ver. Quer dizer, eu

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pareço um Everest de chantilly. Papai costumava dizer, no inverno, para eu sair
com roupas laranja néon, só para o caso de não conseguir me enxergar no
meio dos flocos. Nem sequer meus olhos são escuros. Acho que por disfunção
genética – mistura do cinza da minha mãe com o castanho do meu pai – meus
olhos saíram… ah, bem, amarelos.
Sim. Amarelos.
Um amarelo estranho, mas ainda assim, amarelo.
Bem, na verdade, os raios é que são amarelos e em volta é quase, – ou
meio – cinza. Sim, não dá mesmo para entender. E por favor, não comente
nada, já tenho que agüentar muita gente dizendo, ou que é lente, ou que eu
sou o anticristo. Eu não sei como isso aconteceu, mas não gostaria de ouvir
mais do que já sou obrigada a suportar. O preconceito das pessoas me assusta.
Papai me leva todos os dias para a escola. Não é exatamente caminho
para ele, mas ele sempre fez isso, não será agora que irá mudar mesmo que eu
já esteja praticamente na reta final dos meus anos escolares. O maior problema
disso tudo é eu chegar atrasada por sua causa, graças à demora para se
arrumar. Não sei se devo arriscar uma pergunta inocente para tentar descobrir
o que está levando essa criatura a querer ficar cada dia mais cheirosa, elegante
e no mundo da Lua, mas por enquanto vou deixando meio quieto. Eu já
suspeito mesmo, prefiro não confirmar.
Ao chegar à escola, desço do carro e corro até a porta, por ordens do
meu pai, pois ele fica com medo de me ver resfriada. Eu, sinceramente, não sei
por que ainda se preocupa tanto, já que, conforme os fatos, eu sou a criança
que menos pegou doenças na história do universo. Com o total de, hum,
nenhuma.
Isso mesmo, dá pra acreditar?
Nunca, nem gripe, nem sarampo, nem caxumba, nem micose.
Nem mesmo uma infecção, por brincar na terra e pôr o dedo na boca
depois.
Também prefiro que você não fique fazendo comentários, isso já é
estranho o bastante para mim. Cara, como eu queria ser normal. Sei lá, só uma
conjuntivite para variar.
Enquanto corro para dentro do colégio, pisando nas poças e molhando
toda a minha saia do uniforme, vejo alguém me esperando perto da porta.
— Lune! – Nara grita, visivelmente feliz, para que eu a localize no meio
das muitas pessoas tão encharcadas quanto eu.
Nara. Uma vez vi num site que esse nome indica alguém que não se
empenha muito em agradar as pessoas próximas. Bom, eu gostaria de poder
dizer ao fracassado da internet que ele está errado. Você não conhece a minha

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Nara, amigo. Porque a minha Nara é a criatura mais doce, mais solidária e mais
amorosa que existe na face dessa terra. Ela não se empenha em demonstrar
carinho, não, sr.-sabe-tudo-errado-sobre-nomes. Ela faz isso naturalmente e
pode ter certeza: as pessoas que ela ama se sentem as mais importantes do
universo.
Nara é minha melhor amiga há anos, desde que eu mudei para cá e, um
dia, a defendi de umas meninas bestas que estavam tirando onda só porque ela
era gordinha. As garotas nunca mais se aproximaram de nós e eu nem lembro
o que fiz demais. Elas de repente saíram correndo, caindo, tropeçando, uma
loucura.
Pelo amor de Deus, a gente tinha acabado de aprender a dizer a idade
usando mais de uma mão e o preconceito já existia. Meus amiguinhos da
floresta eram mais evoluídos que isso.
Mas Nara, ao contrário de mim, não se importou com o que as meninas
faziam, apenas porque não queria chatear ninguém. Muita gente acha isso
terrivelmente idiota e, realmente, não é nada saudável, entretanto… caramba,
existe coisa mais nobre? Eu acho que não.
— Oi, amiga – ela diz, arrastando as palavras, e me recebe com um
abraço – como tem passado?
— Nara, a gente se viu ontem – digo sorrindo e lhe dou um beijo no
rosto como cumprimento.
— É, eu sei – ela gargalhou – você está porca como sempre, vamos nos
secar.
Longe da chuva, dou uma boa olhada para minhas meias e concluo que,
no momento, elas estão variando entre o "imundo" e o "caso perdido". Não
deviam nos obrigar a usar saia, principalmente em dias assim. Mas, sabem
como é: "Nossa instituição é uma das mais respeitadas do país e nos
esforçamos para manter a ordem exemplar. O uniforme serve para identificar
nossos alunos caso seja ocorrido algum tipo de desrespeito contra a própria
criança, a sociedade, ou a escola, sempre mantendo os indispensáveis traços
do tradicionalismo". E blá-blá-blá.
Mas o que isso significa? Significa que o modelo ainda é quase o mesmo
desde o tempo que mulheres não usavam calças. Tudo isso porque, um dia, um
(a) babaca teve uma visão qualquer de alunos vestindo uniformes colegiais
fofinhos, a achou linda e nos obrigou a seguir o padrão.
É.
Não que eu não goste de usar saias. Mas a gravata me incomoda.
Ah, em nosso colégio não é permitido entrar com o uniforme
emporcalhado, por isso existem vestiários para que os alunos com vestimentas

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inadequadas possam dar um trato na situação. Também não é permitido entrar
com os sapatos denominados "externos" – apenas um nome bonito para
chamar o que você calça na rua – portanto todos têm de trocá-los. E tudo isso
é para – eu me pergunto se cada orientador daqui recebe uma apostila com
frases prontas para decorar, porque, é incrível, todos eles falam sempre a
mesma coisa, todos os anos – "ensinar aos nossos alunos que os bons hábitos
adquiridos na escola são mais que fundamentais, são um padrão de vida,
formando, assim, cidadãos exemplares".
Na real, eu acho que a diretora viaja demais.
Qual outra explicação para por o nome do Papai Noel num colégio? Sim
porque, pra quem não sabe, o famoso Papai Noel conhecido no mundo todo,
originalmente, era São Nicolau. Por isso nosso uniforme é vermelho e branco.
Dizem que antigamente era verde. Ah, sei lá.
Mas, quanto aos sapatos, eu nem reclamo muito, já que os internos são
mais bonitos. Vermelhos. Me sinto a própria Dorothy, pena que não posso ter
um cachorro. Papai é alérgico.
Nara abre seu próprio armário e me estende a toalha. Se tem alguém
que verdadeiramente me conhece eis a pessoa. Nara sabe que eu nunca trago
toalhas. É uma forma de me revoltar contra a mania lunática e obsessiva por
higiene desse lugar.
Enquanto enxugo minhas pernas e assisto a arrumação sistemática de
minha amiga – meias empilhadas do lado direito, mudas extras do uniforme
separadas uma em cada cabide, essa coisa toda – a pergunto se verificou em
que sala vamos ficar nessa imensa instituição de ensino.
E ela me lança um sorriso inspirador. Aqueles do tipo bem feliz,
silencioso e derramando ansiedade.
E eu não entendi o que ele significava.
Depois de notar que não entendi, Nara revira os olhos, bufa e explica,
como se estivesse ensinando uma criança de três anos a somar:
— Lune. Qual é o seu maior sonho desde que pisou aqui?
— Subir na árvore do pátio três! – eu respondo de imediato, feliz por
raciocinado tão rápido.
Pela cara dela, respondi errado.
— Não, Lune. Sabe aquele antigo sonho seu, de estudar num bloco todo
verde, cheio de plantas…?
Aí eu saquei.
Um sonho, é um sonho que se realiza – como já havia dito Cinderela.

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Termino de vestir as meias limpas – cedidas por Nara – numa rapidez
ímpar e nós atravessamos praticamente a escola toda. Maravilhoso destino. O
único dos blocos da nossa escola que é completamente ao ar livre. Tá, a
questão não é ser só ao ar livre, mas há muita grama nele. Muitas flores. Um
pequeno lago artificial, com peixinhos. Até uma árvore realmente grande, muito
maior do que as desse bloco e dos outros também.
Até mesmo uma horta. E coelhos.
Bom, é claro que existe uma explicação para toda essa área verde. Aqui
também é onde se instalam todos os laboratórios. Inclusive, se me permite
dizer, são muito legais. Principalmente o que tem uma simulação do
ecossistema num negócio gigante de vidro, do tamanho de uma parede. Sem
contar a fazenda de formigas. Eu adoro a fazenda de formigas.
Por toda a minha vida estudantil no Saint-Nicolas, cobicei as salas
espaçosas, as portas de vidro e janelas grandes. E agora estou numa.
— Nara, eu não acredito – disse pra ela enquanto meus olhos cintilavam.
Eu corri imediatamente para conseguir o melhor lugar perto dos vitrais e
sentei feliz da vida, lá no fundo, na penúltima mesa. Dava até para sentir o
cheiro da grama molhada. Nara se sentou na minha frente e começou a
organizar suas coisas enquanto eu admirava a paisagem verde e úmida do lado
de fora. Não via a hora de apreciar tudo aquilo de perto. Por muito tempo, a
escola foi uma tortura para mim. Ficar o dia todo sentada numas cadeirinhas
pequenas dentro de um quadrado de cimento nunca foi muito confortável para
mim. Principalmente quando as salas tinham como paisagem apenas um
corredor com mais salas. Era totalmente claustrofóbico.
Juro, me desliguei completamente do mundo durante estes minutos de
perdição. Tanto que levei o maior susto ao escutar uma voz nada comum aos
meus ouvidos.
— Olá… – ouço o tom animado, vindo da carteira de trás.
— Ah… está falando comigo? – me viro, surpresa. Não sei se ele acabou
se assustando com minha atitude brusca, mas de repente sua feição mudou. O
sorriso charmoso dissipou-se em algo desajeitado assim que o vi. Olho para
Nara com uma expressão de interrogação, a fim de verificar se o "olá" não era
destinado a ela, mas minha amiga estava tão atônita quanto eu.
Ah, não.
Depois de alguns segundos de silêncio, como algum tipo de clique, o
cara desatou a falar, do nada.
— Ah, me desculpe, não sei o que me deu, mas eu vi você olhando lá
para fora e… senti vontade de conversar com você. Desculpe se te atrapalhei…
eu realmente…

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E calou a boca.
— Não, tudo bem… – eu disse cuidadosa, mas ele continuou calado, com
os olhos em mim. O cara é um tanto confuso. Tentei procurar algo para falar,
mas também não achei nada. Para nossa sorte, depois do que pareceu serem
séculos, a orientadora entrou na sala.
Nem um minuto depois, um bilhetinho muito bem dobrado cai sobre
minha mesa assim que a mulher começa a declarar toda a política da
instituição, a mesma que cita todos os anos.
Desdobro o papel e vejo uma caligrafia torneada. Era de Nara.
É claro, quem mais me mandaria um bilhete? Dã.
Lune, de novo? O que você tem, afinal?
Rabisco a resposta logo abaixo, com minha letra fina de extremidades
exageradas. Um contraste horroroso com a dela.
Eu gostaria muito de saber também.

Capítulo 03 - Frissons

Está tudo um pouco confuso, certo? Pois bem, acontece que não é algo
incomum uma reação parecida da parte de algum garoto ao me ver, ao menos
pela primeira vez. Isso já aconteceu várias vezes durante os anos da minha
vida. Alguns não eram muito agradáveis aos olhos, outros, segundo minha
companheira fiel, eram tão lindos que chegava a dar vontade de chorar. Eles
sempre ficam assim, meio abestalhados. Certa vez, esbarrei num garotinho
magricela, ele devia ter uns 11 anos e derrubei suas coisas no chão. Eu juro, só
percebi a expressão paralisada quando terminei de juntar suas coisas e dizer o
quinto "me desculpe". E ele não desviou os olhos, pelo menos enquanto o pude
avistar. Tinha coriza escorrendo pelo seu nariz.
Mas, sobre os caras legais – desconsiderando os inúmeros "café-com-
leite" pertencentes à classe da puberdade – eles reagem com um pouco mais
de classe. Sim, ainda ficam bobos – em alguns casos, obsessivos – mas é um
pouco mais fácil de lidar. Depois da fase das tentativas de conquista, eles não
falam mais comigo.
Nunca senti nada por nenhum deles. Nem atração, nem desejo, nem
paixão, nem absolutamente nada. Nem ao menos amizade, pois todos
acabavam se afastando de mim. Nara já disse várias vezes que sou idiota. Não
sei, mas simplesmente não via nada de mais, eram apenas… garotos?
Sim, para mim isso não significa grande coisa.

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Tenho colegas e converso com eles (de vez em quando). Eles muito
raramente tentam bater um papo aleatório, mas quando isso acontece, não
demora mais do que quinze minutos. Ou porque somem mesmo, ou porque
surge alguma garota e os leva para longe. É sempre assim. A maioria das
meninas não aprecia minha companhia. Sendo assim, fico na minha, para não
arranjar confusão com ninguém.
Posso parecer meio arrogante ou prepotente, mas não sou. Não é que
eu saia tratando de assuntos assim com todo mundo. Na verdade, não falo
direito sobre isso nem mesmo com Nara. Nossas conversas resumem-se a um
ou outro comentário dela sobre inveja ou "como ele era bonito", e uma
exclamação final: "como você é burra".
Eu até, às vezes, sinto vontade de saber como seria ter problemas com
espinhas, estar muito acima do peso, sei lá, me apaixonar. Mas eu sou e
sempre vou ser assim. A mesma coisa.
— Agora, pessoal, gostaria de dizer quem são os alunos novos este ano
– a orientadora dizia para a turma sonolenta – temos o Sr. Steven, que se
mudou ao final do ano escolar para nossa cidade, diretamente da Inglaterra.
Ah, ali está ele, logo atrás da Srta. Noire. E também temos mais um rapaz, que
não se encontra na sala por enquanto, mas logo chegará. Espero uma recepção
calorosa da parte de vocês.
Ela termina de falar sobre os novatos e todos voltam para a posição
sonolenta. A parte de interesse geral acabou de passar. Voltei a olhar para a
chuva e a observar os pingos caindo pesados sobre as folhas. Eu podia ouvir
seus agradecimentos – não, mentira, não podia. Acho que não. Isso me
confunde. Esqueça –. Mesmo Nara, que normalmente mostra-se dedicada e
atenta ao que qualquer pessoa importante diz, começa a passar a limpo os
horários das aulas para o quadro da agenda, nem sequer se importando com as
inutilidades que a mulher recita lá na frente.
Fiquei uns bons minutos assim, sonhando acordada. Talvez uns cinco.
Talvez quinze. Mas, repentinamente, uma sensação esquisita, como uma onda
de formigamento suave passou por todo meu corpo, até a ponta dos dedos.
Admito ter ficado ligeiramente assustada com a sensação, pois, vou dizer e
vocês vão ter que acreditar, não foi um formigamento normal. Minha cabeça
latejava e eu pisquei algumas vezes até entender que não estava enxergando
direito. Milhares de pontinhos coloridos brilhavam por cima das coisas,
formando desenhos, me impedindo de ver nitidamente.
Então, noto uma manifestação de burburinhos pela sala. Quando me
viro, vejo uma pessoa parada na porta.
Na verdade, olhando de relance, pareciam duas pessoas. Uma brilhava
muito. Porém, quando o formigamento e os pontinhos cessaram, eu consegui

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recuperar a noção de que tinha cérebro e percebi que era uma só. A figura sutil
atrás dela havia desaparecido.
— Desculpe. Tenho licença? – o garoto da porta pergunta com
educação.
— Ah, claro que sim, querido. Pessoal, este é Luan Mathieu V… – ela
hesita um instante e lê algo num papel – Volker Chermont, mudou-se de
Namur. Façam com que ele se sinta bem entre vocês – a orientadora fala com
um sorriso direcionado para a turma e sinto um certo tom de ordem.
Inicialmente, mal notei sua aparência física, fiquei mais preocupada com
minha estranha sensação de déjà vu. No entanto, ao vê-lo caminhar até o
fundo oposto da sala, noto que as garotas tinham razão pelo murmúrio, pois,
sem os malditos pontinhos brilhantes brincando na minha íris, os traços do seu
rosto ficam bem delineados.
É um cara alto, com um ar confiante. Mas, ainda assim, tem algum
menino escondido por ali em seu rosto. Talvez perto das bochechas… ou atrás
da pontinha de seu sorriso, num dos cantos da boca. Ou quem sabe esteja nos
cabelos desajeitados, levemente levantados no meio. Os olhos são… não sei
como definir os olhos.
Ah, merda.
— Lune, você está bem? – Nara me desperta com uma enorme cara de
preocupação. Eu a olho desnorteada.
— Ah… claro, por quê? – pergunto com a voz mais aguda que o normal.
— Você está tremendo e… está com calor? – ela disse muito surpresa,
fiscalizando cada expressão do meu rosto.
— Estou? – eu perguntei, sem prestar atenção. Mas então notei meu
rosto molhado. Passei minha mão pela nuca e contemplei meu suor – Estou.
— Mas está chovendo. E ventando. E frio – tento não a encarar
diretamente, pois, na realidade, estou tão surpresa quanto ela. Sinto com um
choque sua mão gelada sobre minha testa.
— Meu Deus, será que você virou humana? – Nara ri, divertida e
incrédula – Está doente?
— Claro que não, não fale besteiras – grunhi, com o cenho franzido,
enquanto livrava minha nuca do cabelo comprido. Como eu queria que
houvesse ao menos uma janela aberta.
Eu mal tinha terminado de juntar todo o cabelo quando nossa
orientadora direcionou seus olhos assustadores em minha direção. Já nessa
hora, achei que fosse me ferrar por algum motivo. Então, ela falou para algo
atrás de mim:

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— Sr. Steven, eu agradeceria se pudesse se conter e direcionar seu nariz
para a frente da sala e não para a nuca da Srta. Noire, mesmo que esta não
possa conter seu fogo num dia chuvoso como o nosso.
E fitou Nara, completando:
— Srta. Lausanne. Vire-se para frente.
Vaca maldita. Eu juro (mentira) que queria morrer e levar você comigo.
As palavras da velha soaram como um baque contra a sonolência da
sala. Logo, todos os quase adormecidos se esticaram para assistir, aos risos,
minhas bochechas avermelharem. E quanto mais riam, mais elas
avermelhavam. As garotas escrotas da sala – as quais apresentarei
posteriormente – murmuravam entre sorrisinhos.
Aparentemente, enquanto eu estava com o cabelo levantado e a nuca
aparecendo, o nosso amigo, Sr. Steven, pregou os olhos nela e,
gradativamente, inclinou-se em minha direção até quase enfiar o nariz no meu
pescoço louro-platinado.
Eu ainda tentava imaginar como faria para tirar os olhos da turma toda
de cima de mim quando noto que não há mais nenhum a ser tirado. Todos
agora se encaminharam para o fundo da sala. Quer dizer, já estavam, mas
agora é o do outro lado.
O garoto novo, ou melhor, o tal Luan, está em pé, em frente a um vitral.
Ele estende a mão e o escancara. Um vento frio e reconfortante, ao menos
para mim, rodopiou pelo lugar, feliz da vida. Houve um silêncio imediato.
— Que foi? Não está tão frio assim – ele disse, olhando inocente para a
turma e para a orientadora e voltou a sentar, parando os olhos em mim.
Houve mais de uma coisa estranha quando cruzamos nossos olhares
pela primeira vez. A número um é que, de uma forma inédita, me senti do
outro lado da moeda. Eu não tive coragem de me mexer até ele desviar os
olhos. E depois, não consegui descolar os meus dele.
Tá, talvez nenhuma garota conseguisse. Mas isso foi incrível, para mim.
Eu prendi minha atenção em alguém. Impressionante. Claro, admito: eu
esperava uma expressão facial um pouco menos idiota.
A outra coisa estranha não aconteceu comigo. Foi com ele. Por uma
fração de segundo, eu quase vi uma expressão perdida se formar em seu rosto,
a mesma que surge sempre que qualquer cara novo me vê. Mas ela não
chegou a tomar forma. Algo entrou em seu lugar, algo esfumaçado que se
instalou bem atrás de seus olhos e deixou sua face desfocada por um instante,
para mim. Depois disso, Luan abriu um belo sorriso confortável e parou de me
olhar.

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A velha mal amada, apesar de parecer querer falar algo, não protestou
em nada, apenas concordou e continuou falando sobre as suspensões. Eu podia
sentir uma onda de raiva passando pelas garotas da sala e me encolhi na
cadeira.
O único momento em que foi possível ignorar o clima homicida foi
quando botei os pés para fora da escola. Sim, o intervalo também foi
interessante, já que me contentei em percorrer cada metro quadrado de verde
existente naquele bloco, mas como andei muito, encontrei muitos ombros. É
engraçado como eles apreciam esbarrar nos meus a cada três passos.
Ah, sim, isso não durou muito, pois logo eles foram para os banheiros.
Clássico, não importa a idade, o tamanho, a raça, etnia ou cor, garotas
fofocarão na frente do banheiro e/ou dentro dele. As pessoas podem não se
respeitar, mas respeitam os banheiros.
Pif. Poupem-me.
Bom, eu não me importo com essas manias delas, nem com os
esbarrões. Questão de preguiça. É mais fácil não me incomodar. Mas isso não
me impede de achar uma coisa besta, certo? Nara diz que é inveja da parte
delas, mas não liguem para os dizeres de Nara sobre mim, ela me valoriza
demais e a si própria de menos. A pobrezinha não sabe como é de verdade:
linda. Reflexos de um passado desprezado e acima do peso, talvez, embora eu
viva falando que ela já era linda quando gorda. Eu não tenho absolutamente
nada contra gordos. Eu gosto de gordos. E acho que todo mundo deveria
gostar, não apenas pelo fato de serem bons de abraçar, mas porque são
pessoas.
De qualquer forma, mesmo tendo emagrecido horrores e hoje ter um
corpinho delicado e frágil de boneca, Nara continua se achando pouca coisa. Às
vezes acho que ela precisa de terapia.
Chego ao fim da rua e avisto minha casa.
Se me permite, essa é a hora perfeita para um pouco de autobiografia.
Quando cheguei, com todo meu um metro de altura, Otto morava num
apartamento minúsculo, lá pros lados mais urbanos de Liège. Ele não tinha nem
ao menos uma planta na janela, vê se pode. A minha vinda foi uma revolução.
Já nos primeiros meses, não suportando minha depressão por falta de clorofila,
meu pai juntou todas as suas economias, todas mesmo, e comprou uma
construção meio acabada, afastada do centro. Mesmo estando numa
localização ruim e em condições precárias, ela tinha um espaço considerável de
grama. Para mim, o lugar perfeito.
Por ser a última casa de uma rua sem saída, a única coisa que passa por
aqui são os outros moradores e seus animais de estimação. Nossos vizinhos
são: uma velhinha esquisita e seu Rottweiler no lado esquerdo e uma moça
divorciada com três filhos no direito
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Eu mesma fiz toda a estética do jardim. Tem mini-rosas enlaçadas nas
grades das sacadas, luzes no jardim, três coelhos, vários peixes e uma
tartaruga.
Vindo de mim, o que esperavam? Só não tenho uma floresta dentro do
quarto porque uma vez aprendi que ter plantas em lugares fechados é
perigoso. É, culpa do gás carbônico. Ou tipo isso.
Mas, aguarde, ainda faltam alguns ajustes e assim que houver uma
sobra de verba bacana, eu vou deixar tudo digno da realeza. Enquanto isso,
estou muito feliz com tudo do jeito que está, principalmente quando sento sob
o carvalho enorme que temos nos fundos. É sério, ele é fantástico, coisa antiga
mesmo. Pra ter noção, dá pra ver a árvore lá do ponto mais distante da rua,
pois sua copa é mais alta que o telhado. Ali, embaixo dele, é onde,
normalmente, passo a maior parte do tempo livre, escrevendo, ouvindo música,
brincando com algum pobre coelho que esteja por perto… bom, é o único lugar
em que chego perto de me sentir num lar – mesmo ainda não obtendo muito
sucesso.
Tudo bem, já estou parecendo obsessiva demais.
A tarde passa rápido quando estou cuidando do jardim. Tanto que,
quando ouço o som do relógio da sala, me surpreendo com o horário. Me
certifico mais uma vez de que já completei meus afazerem diários e parto em
direção à porta dos fundos, afim de tomar um banho muito necessário.
Antes de entrar, ouço o portão se abrir. É mais ou menos sempre assim,
papai chega (atualmente anda chegando mais tarde, milagre desta vez ser
cedo) e vou recebê-lo. Se ele está de bom humor, me joga sua maleta e suas
meias quando entra em casa. Se não está, ele pede por comida.
Corro para frente de casa e quase derrapo na grama, pois, sabe como é,
ainda estou com os sapatos "externos" e eles não foram exatamente planejados
para correr sobre plantas úmidas. Muito menos para frear nelas.
— Lune! – meu pai se assusta em ver meu estado de lamentação – isso
é jeito de se apresentar na frente das visitas?
Merda.
— Esse é o seu uniforme? – ele acrescenta surpreso – Onde esteve
afinal? Olhe sua camisa, parece que esteve brincando com algum monstro de
lama.
Baixo os olhos e vejo que minha camisa do uniforme, um dia branca,
está amassada e com manchas de patinhas marrons. A saia, geralmente cor de
chumbo, está preta e marrom, isso sem falar nos pedacinhos de grama
pendurados.
— Seu rosto está imundo e seu cabelo está pingando terra, onde esteve?

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Oh Deus. Papai, cale a boca.
— Cuidando dos coelhos – respondo baixinho.
Não sei se você percebeu, mas ele disse "visitas". Pois bem, eis que
surge de trás dele uma moça impecavelmente bonita, bem vestida e limpa.
Mais nova que Otto – eu acho – com cabelos no ombro e corte repicado. As
bochechas são levemente rosadas, num ar saudável.
Bom, pelo menos meu pai poderia ser compreensivo e se tocar de que é
impossível passar a tarde num jardim depois da chuva sem se sujar de lama.
— Chérie – ele voltou a falar comigo, com um esboço de sorriso. Eu
sabia, eu sabia! Lá no fundo da sua alma desumana ele está morrendo de rir –
vou sair para jantar com uma… a propósito, esta é Victoire, mudou-se este ano
para cá. Não sei que horas eu volto, mas tem comida no freezer, qualquer coisa
é só esquentar e…
— Papai, eu sei cozinhar – eu cuspo as palavras. O que é isso, está
realmente preocupado com minha alimentação ou apenas quer parecer o pai
atencioso e impressionar sua "amiga"? Que inclusive é meio suspeita, esse ar
respeitoso não é confiável.
— Ah… claro, claro – ele disse sem graça – então, se cuide.
Ele me deu um beijo receoso, por causa da sujeira. Sorri um sorriso bem
falso para ele, dando tchauzinho para a moça. Ele age como um cavalheiro e,
assim que Victoire dá as costas, ele aponta para mim e se debulha em
gargalhadas silenciosas.
Sacana sem escrúpulos. Amiga é? Hum.
Coitado. Acha que me engana.

Capítulo 04 - O Supra-sumo da Esquisitice

Cara, é difícil de entender.


Estou aqui, sentada no meio da grama – sozinha, pois Nara prefere
assuntos relacionados à secretaria ao invés de fazer companhia à sua amiga
amada – vendo de longe os coelhos pularem dentro de sua limitada jaulinha e
pensando bem quietinha na minha vida. A grama está mesmo bem agradável,
sério, todo mundo deveria experimentar isso aqui algum dia. Relaxa. Mas não,
as garotinhas localizadas num grupo próximo têm de discordar. Tudo bem,
deve ser mesmo estranho ver alguém sentado sozinho na grama, e o pior, em
cima do orvalho. Provavelmente, quando eu decidir tirar meu traseiro daqui, ele

22
vai estar molhado. Eu sei disso. E elas parecem saber também. Principalmente
a menininha de cabelos ruivos.
É, olha a minha cara de preocupada.
Baixo a cabeça, a fim de procurar algum inseto bonitinho, e o engraçado
é que bem quando penso que adoraria ver uma joaninha, uma pousa na minha
mão. Eu pisco para ela meio intrigada, mas dou um sorriso surpreso em sua
direção. Que coincidência, não acha? Mas ela está ali, andando no meu dedo,
parecendo feliz.
Fico totalmente na minha, brincando de passar o bichinho de uma mão
para outra, planejando o que farei depois que levantar. Ouço as risadinhas
histéricas das garotas e reconheço, em meio delas, Nicole e Chantal, ambas da
minha classe. Chantal parece estar liderando a alegria, provavelmente dizendo
coisas engraçadíssimas sobre a maluca-estranha-de-olho-amarelo-e-bunda-
molhada, enquanto Nicole balança os cabelos louros, sem abandonar o olhar
gelado. Normal ela balançar aqueles fios lisos daquele jeito, pois há um grupo
de garotos logo mais à frente.
O problema é: de tão entretida que eu estava com minha vidinha
interior, não percebi algo vindo com velocidade em minha direção. Na verdade,
só noto a coisa quando ela bate com força na minha cabeça. Posso até
imaginar a cena cômica dos meus cabelos voando como um ventilador.
Instantaneamente grito, ouvindo a explosão de gargalhadas. Bem, deve
ser engraçado ver a garota que você e suas amigas consideram o supra-sumo
da esquisitice levar uma pancada na cabeça.
Eu mal consigo focar o chão. Seja quem for, a pessoa que atirou aquilo
tem uma força realmente admirável, minha cabeça lateja tanto que o mundo
todo parece estar aumentando e diminuindo de tamanho. As risadas ecoam alto
no teto da cúpula, a dor aumenta ainda mais. Ou, porque dói mais, as risadas
parecem mais altas. Não tenho certeza. Só o que desejo é um mundo silencioso
onde Nicole e Chantal tenham punhados de grama dentro da boca.
E a joaninha ainda foi embora, minha consciência diz, como uma
sobrevivente vitoriosa.
— Ei, você está bem? – uma voz distante ressoa um tanto preocupada e
consigo ouvir passos apressados. O cara está correndo em minha direção.
Levanto a cabeça para tentar ver quem é, mas a luz faz minha cabeça atingir o
limite da dor.
Essa é a pior sensação que eu já tive em toda minha vida, podem
mesmo por fé nisso.
Sei que nunca fiquei doente, nem nada, mas uma pancada na cabeça é
uma pancada para qualquer um. Ainda mais se for uma pancada forte, com
alguma coisa dura. Quando ouço a pessoa passar do chão de pedra do pátio

23
para a grama, minhas mãos, braços e tórax começam a formigar intensamente.
Claro, também noto o silêncio geral, não há mais uma risada sequer.
Entretanto, depois de perceber essas coisas, só o que sinto é uma mão tocar
meu ombro sutilmente e um choque agudo na altura do peito.
Mais nada.
Acordo tempos depois em algum lugar confortável.
— Ah… – meu resmungo ecoa num lugar silencioso. Minha cabeça ainda
lateja e me sinto péssima. Tento descolar as pálpebras, mas a luz está forte e
me obrigo a manter os olhos bem fechados. Já estou feliz com a opção de
voltar a dormir quando alguém segura meu ombro e o sacode não muito
sutilmente.
— Lune! – uma voz mais do que conhecida vem até meus ouvidos. É
Nara, parecendo muito preocupada. Me preparo psicologicamente para ver a
luz outra vez, sem empolgação. Pelo menos até outra voz me chamar a
atenção.
— Opa – reconheço o tom masculino absolutamente calmo – tudo bem?
Com muita dificuldade, abro os olhos e os sinto lacrimejar. Limpo ao
menos um deles, para poder identificar quem é o borrão desconhecido. Nara
sorri feliz e está com uma gigantesca cara de alívio perto de mim, mas a pessoa
localizada do outro lado é que me prende.
Olho para ele e me surpreendo. O que ele está fazendo ao lado da
minha cama?
Espera. O que eu estou fazendo numa cama?
Num impulso, me sento, mas tudo roda e Nara se adianta em minha
direção, segurando minhas costas, depois me deitando novamente.
— O que aconteceu? – pergunto na segurança dos meus travesseiros e
puxando ainda mais o lençol para perto do rosto. Não sei por que, mas sempre
que se está numa cama e há pessoas em pé olhando para você, se esconder
sob algum pedaço de pano proporciona a ilusão reconfortante de invisibilidade.
Olho para o cidadão e ele dá um sorrisinho que bem pareceu carinhoso.
Ou culpado.
— Desculpe, é tudo por minha causa – ele fala, olhando para minhas
cobertas, passando a mão pelo cabelo com um jeitinho que é uma graça.
Realmente, era culpa – eu estava jogando e chutei a bola com muita força. Ela
passou direto, atravessou o pátio e bem… foi parar na sua cabeça.
— Eu estava voltando da secretaria quando vi você, fiquei tão
preocupada! – Nara disse, segurando minha mão. Agora lembro que ela estava
na secretaria, falando sobre algo desconhecido e misterioso.

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— O que você foi fazer na secretaria? Eu fiquei sozinha! – falo, me
sentindo novamente ultrajada pelo abandono.
Eles me olharam de uma forma estranha.
— Eu acho que ela ainda está fora da casinha, parece meio tonta – Luan
diz para minha amiga. Eu me sinto confusa.
— Não – Nara sorri, realmente contente – ela está normal.
— Ah – Luan solta, ainda com o olhar duvidoso no rosto – nossa, me
desculpe, eu realmente chutei forte. Também, fiquei preocupado, vai que você
tem algum tipo de traumatismo ou algo assim? Seria assustador.
— É, seria mesmo – meu piloto automático concorda.
(…)
Tudo bem, eu sei que ele estava falando sério, mas eu ri. Sabe como é,
impulso, eu esqueci que ele me fazia sentir esquisita.
Foi engraçado.
Quando percebo, vejo que ele também está rindo. Rindo de verdade, de
um jeito sincero mesmo, com os olhos caídos parecendo tão carinhosos e… ele
é bonito. Ele é lindo. Ele é…
Vou dormir.
Tá, a verdade é que me perco um pouco na sua expressão.
Além disso…
Faz covinhas quando ele sorri. Lindas covinhas. Covinhas realmente,
realmente… fofas.
— Que bom que está bem… eu jamais me perdoaria – ele diz diminuindo
a curvatura dos lábios e sinto minhas bochechas corarem quando seus olhos
ficam sérios – me desculpe mesmo, Lune.
Lune.
Ele disse meu nome.
Eu sei, eu sei que isso não deveria parecer uma coisa tão fantástica. Mas
foi como eu me senti. De repente, eu estava me sentindo como a pessoa mais
importante do mundo, só porque ele disse meu nome.
Lune parece ser uma palavra muito mais bonita, depois disso.
Ele continuou mais animado.
— Eu gostaria de ficar, mas tenho que sair daqui antes que a mulher da
enfermaria volte, ela não gostou muito de mim – eu concordo com a cabeça,
mas no fundo penso que é uma pena terrível – te vejo mais tarde – Luan
termina sua falação com um sorriso e vejo seus ombros largos se afastarem.
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Sua camisa está mal ajeitada sobre a regata do uniforme, usada na Educação
Física e em jogos esportivos. A gravata está apenas jogada em torno do
pescoço. Nem de muito longe isso é uma visão desagradável.
Quando o vejo fechar a porta, me sinto realmente sozinha.
— Ele não pode ficar aqui, a enfermeira teve que ir telefonar para seu
pai e disse que os garotos só devem permanecer no quarto se acompanhados
por uma das responsáveis pela enfermaria – Nara diz e, então, faz uma pausa.
— Meu Deus, Lune! – ela guincha afobada, me fazendo pular de susto –
Até quando você se ferra tem sorte?
Eu a olho como se fosse a criatura mais débil que já vi na minha vida.
— Você não viu a cena, por isso me olha assim, mas, meu Deus! – ela
parece querer se abanar – menina, foi lindo! – ela senta na ponta da minha
cama perdendo o olhar no nada à sua frente.
— Então conte logo – eu a apressei, tentando não demonstrar
empolgação. O que deu mesmo muito trabalho.
Com os olhos brilhando ela começou seu relato cheio de emoção. A
primeira coisa que fez foi contar, entusiasmada, todos os esforços de Luan para
tentar ficar com a gente, mesmo com a mulher maluca o chutando daqui. É
sério, brigaram e tudo o mais. Claro, não foi um sucesso, mesmo tendo posto –
a palavra certa seria "jogado" – a camisa e a gravata que a mulher pediu. Ele
ficou lá fora até a mal amada se mandar para conversar com meu pai e Nara o
recolher.
Mas a parte boa mesmo foi antes disso.
— Eu estava voltando quando vi, de longe, um vulto branco passar
rápido e você se inclinar bruscamente para o lado. Eu parei para assistir,
tentando entender o que havia acontecido, então ouvi a voz de Luan em algum
lugar. Logo depois ele passa correndo, numa visão incrível, tenho de dizer.
Você não sabe o que foi aquele cara de regata preta correndo na sua direção,
era como um daqueles salva-vidas gostosos nos seriados, sabe? Com uma
regatas justas…
— Tudo bem, pule esses detalhes – ordenei um pouco irritada, não por
não querer sabê-los, mas por ter consciência do que perdi.
— Ah sim – ela pisca – aí ele agachou bem ao seu lado e, assim que
encostou em você, você despencou. Oh, meu Deus Lune, foi lindo… ele pegou
você no colo! Sem a menor dificuldade… eu juro que quase chorei, de tão
romântico que foi e não tenha dúvidas, ele é forte mesmo, mais do que
aparenta, porque sabe, os braços dele são torneados, mas não têm aqueles
músculos…

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Eu solto um pigarro e ela olha para mim, corando. Pelo amor de Deus,
eu tenho olhos, não preciso que outra pessoa fique falando toda emocionada
das curvas sutis e firmes dos braços de ninguém. Ainda mais esse ninguém.
Continuando.
— Bom, de qualquer forma, quando isso aconteceu eu já estava me
aproximando, pude contemplar a cara boquiaberta daquelas idiotas frescas
sentadas ali perto, garota, eu quase pulei de alegria. Claro que não o fiz, estava
preocupada com você e tudo mais – finalmente, ela pára de falar e pisca em
minha direção, sorrindo cheia de solidariedade. Eu só a observo, intimamente
me xingando, por estar desacordada num dos momentos mais bonitos da
minha vida.
Mas claro que não poderia dar isso na cara.
Espera.
— Você estava mesmo preocupada comigo? Porque não pareceu – eu
solto, irritada.
— Oh meu Deus, Lune, é claro que eu estava, você sabe que eu te amo,
sua besta.
Nós nos encaramos com cara feia por algum tempo.
— Sei – eu digo, no final.
Ela pisca.
— Hum… foi só isso que aconteceu? – estou tentando parecer
desinteressada, algo errado nisso?
Aparentemente sim, já que ela me olha como se eu fosse maluca.
— Não, srta. Não-estou-satisfeita-com-nada. Há mais uma coisa – ela
levanta o queixo, provavelmente tentando parecer desafiadora – lembra-se
do… Phil?
— Phil? Quem é esse agora?
— Mais conhecido como Sr. Steven-cheira-nucas – ela contrai os lábios
para segurar uma risada.
Oh, sim, sim.
— O cara é pirado, completamente pirado. Assim que Luan pega você
nos braços e tenta levar para a enfermaria, o cara aparece, tipo, do além,
berrando coisas do tipo: "babaca-retardado-que-não-sabe-chutar-uma-bola".
Silêncio.
— É claro, é óbvio que Luan não ia revidar – ela continua – ele é um
cara de classe, sabe? E adivinha? Presta atenção porque essa é a melhor parte:

27
o único momento em que Luan reagiu foi na hora que o babaca-cheira-nucas se
enfiou na frente dele, tentando tirar você dos braços dele.
— O que ele fez? – pergunto, já não conseguindo disfarçar a ansiedade,
como uma espectadora fiel e curiosa.
— Ele? – Nara fala com um ar superior, amando ser o centro das
atenções – Segurou você em seus braços ainda mais firme, o mirou com os
olhos mais sérios que eu já vi na vida e disse: "sai".
(Silêncio).
— E Phil obedeceu como um cãozinho – completou, depois da pausa
tensa.
— Uau – eu arremato depois de outra pausa tensa.
— Vou te contar, esse Luan tem um poder incrível. Ele é surreal.
Olho para ela com uma expressão marota no rosto e ela retribui.
— É.
— O Phil é bem bonito também, mas ele conseguiu superar todos os
outros garotos juntos ao se tratar de, bom, obsessão.
— Isso passa, você sabe.
— É – ela concorda.
Eu sei do que ela está falando e ela tem razão. Como eu já disse, os
caras tendem a ficar burros quando me conhecem – as histórias detalhadas
ficam para mais tarde – mas Phil está disparado na competição.
A responsável pela enfermaria reaparece minutos mais tarde, dizendo
que meu pai está vindo me buscar. Ela ordena que eu fique onde estou até ele
vir, mas eu me sinto ótima, levanto e saio do quartinho antes que ela consiga
me manter prisioneira. Eu nasci de novo.
E agora, quem é a babaquinha que molha a bunda na grama? Hein,
hein? Quem é a idiotinha que brinca com insetos?
Quem é que foi carregada para a enfermaria pelo cara mais gostoso do
Lycée?
Desculpe, papai, mas você não vai precisar vir me buscar.

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Capítulo 05 - O Início da Maratona

Eu, pobre inocente, pensei que iria sair da enfermaria e, numa diversão
infantil, rir um pouco à custa das coleguinhas desprezíveis. Sabe, para tirar
algum peso de ter assistido o papel inverso a vida toda. Oh não, não que elas
não tenham ficado frustradas com o que aconteceu entre mim e o novo alvo da
escola. Na real ficaram e foi divertido por alguns segundos. É uma pena que
não tenha durado mais.
Olha que legal! Descobri um novo imbecil na minha vida.
Como se já não tivesse muitos.
Assim que saio do ambiente com cheiro de remédio e convenço meu pai
de que eu realmente estou ótima – não com uma doença em estado terminal,
como ele pensa – avisto as tais garotinhas me olhando com cara de nojo –
aquele tipo de nojo profundo. Nicole parecia tentar lançar um raio de gelo em
mim.
Ótimo, maravilhoso, mas de que adiantou se logo em seguida o otário do
cheira-minhas-nucas surgiu do nada com todos os seus problemas mentais?
Não, me diz… o que eu tenho a ver com os problemas psicológicos dele?
Tenho a palavra "divã" escrita na testa?
Sabe o que eu acho? Acho que todas as pessoas deveriam vir de fábrica
com um pisca de alerta bem na cabeça. Se o indivíduo fosse agradável, a luz
verde estaria constantemente acesa. Mas, se ela oferecesse qualquer tipo de
perigo para a sociedade, deveria piscar um vermelho e amarelo frenético, de
deixar cego. E ter sirene. Tipo aquelas coisas sobre os carros de polícia, que
abalam a visão e provocam surdez ao mesmo tempo.
Pois bem, já que isso infelizmente não ocorre, quem paga sou eu.
— Ah, Lune – sintam o drama. Isso tudo enquanto Phil segura meus
ombros, com cara de quem me conhece desde criança e acabou de me resgatar
de uma ameaça mortal – você está bem?
Eu balanço tranquilamente minha cabeça, sinalizando que sim. Mas, me
arrependi instantaneamente porque… bom, como eu ia adivinhar? Depois disso,
ele me puxa e, com um suspiro de alívio, me abraça. Muito forte mesmo. Tão
forte que senti umas três costelas estalarem. Isso mesmo, na frente de todo
mundo.
O que esse camarada tem na cabeça?
Eu fico com tanto, tanto ódio que… que… não faço nada.
Simplesmente não sei o que fazer.

29
Estou em estado de choque, certo? Queria que eu chegasse na voadora
e ainda dissesse "vê se não toca, sacou, chéri?" e cuspisse no chão?
Tá, sei que sim. Mas não fiz.
Em apenas poucos segundos de contato íntimo, eu já estava ficando fora
do sério, mesmo com toda a energia gasta tentando não demonstrar o quanto
ficaria feliz o atirando de um penhasco. Como algum tipo de último pensamento
racional pré-explosão psicótica, começo a empurrá-lo de leve, sabe, de um jeito
meio disfarçado… e passei rápido para um estágio de maior de força exercida.
No final, eu estava dando pancadinhas.
Mas não é que o infeliz era persistente?
Claro que, na verdade, a infeliz ali era eu.
Várias pessoas no pátio olhavam com cara perplexa, enquanto outras,
mais educadas, fingiam não estar vendo. É óbvio que grande parte olhava
porque, bem, Phil não é o tipo de cara que você olha e diz: "misericórdia,
abriram os portões do inferno" e sim o tipo que você olha e diz: "meu Deus,
vou morrer, Gabriel veio me buscar".
Porém, apesar de toda essa cena ser ruim para minha já não alta
aceitação pública, o pior mesmo, ao menos para mim, foi olhar por cima da
criatura à minha frente.
Vai, eu sei que você é um gênio. Quem eu vejo saindo do vestiário, com
o cabelo pingando e olhando diretamente para nós?
Bingo!
Encaro Luan e tremo quando ele desvia o olhar para o chão, virando de
costas.
Quer dizer, não sei nada sobre os pensamentos de Luan, não mesmo.
Mas minha revolta com aquilo tudo aumentou de tal forma que as pancadas
passaram sem pensar para socos. E eu não tinha mais a mínima noção do que
estava fazendo.
— Sai de perto de mim, AGORA! – grito absurdamente alto, o idiota dá
um pulo de um metro para trás e eu resisto bravamente à tentação de cuspir
na sua cara. Ao invés disso, saio correndo dali.
É, por pouco hoje não foi o melhor dia da minha vida.
Corro, corro e corro mais.
E faço isso muito bem, sabe. Várias vezes me chamaram para participar
de competições. Eu não quis porque não encaro isso assim. Para mim, correr é
uma forma de me sentir livre, sentir o vento no rosto, esquecer dos problemas,
esse clichê todo. É mais uma terapia do que uma disputa. Muitas vezes também

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me chamaram de covarde. Pode até ser que eu seja. Não me importo. Eu
continuo correndo.
Enquanto procuro um esconderijo num canto perdido qualquer do
colégio, penso nas surpresinhas da minha vida. Se for a esse tipo de
acontecimento que a velha se referiu lá no início dos meus cinco anos de idade
– garotos alucinados pegando em mim e me agarrando à força na frente do
único cara de quem me importo minimamente – ela poderia ter usado outra
palavra no lugar de "interessantes". ―Revoltantes‖ se adaptaria legal.
Encontro um lugar bem eficiente para me esconder: um pequeno espaço
inútil entre duas colunas de uma parede, com um arbusto enorme na frente.
Me enfio ali dentro, sentando ridiculamente no cantinho como uma criança
faceira fugindo do castigo. Séculos depois, ninguém pareceu ser capaz de me
encontrar. Na real, a hora do almoço chega e eu continuo aqui, feliz com minha
covardia.
Droga, estou morrendo de fome.
Mas não vou por o pé para fora daqui, não, vai ser humilhante demais.
Principalmente depois de ter saído correndo daquele jeito. Claro, me esconder é
ainda mais baixo, porém… não enquanto ninguém me encontrar.
Sou covarde mesmo, confesso. O pior é que me sinto meio idiota, sabe,
por ter fugido. Seria muito mais digno se eu tivesse ficado e lutado como uma
pessoa madura e bem equilibrada. Mas aquele cara, o Luan, não sei… tem algo
nele.
O que é isso agora?
Levanto a cabeça assustada e vejo uma mão surgir de um dos cantos do
arbusto, empurrando as folhas.
— Oi! – Luan diz, me olhando com uma expressão estranha, algo como…
"estou sério, mas morrendo de vontade de rir" – acha que já dá pra sair?
Merda.
— Lune! – Nara aparece do outro lado do arbusto não tão eficaz agora –
Ah, que bom que te achamos! Eu estava doida atrás de você, te procurei por
tudo…
— Acho bom alguém colocar um GPS em você, está matando sua amiga
– ele diz pensativo e Nara concorda, parecendo profundamente aliviada.
De repente, não sei por que, sinto minhas bochechas esquentarem.
— Venha, vamos almoçar – Luan me estende a mão, que inclusive é o
dobro da minha, e por alguns milésimos de segundo não sei o que fazer.
Vamos Lune, é tão simples. É só segurar.

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Mas eu continuo olhando, como se esperasse que ela começasse a
dançar.
É tão simples o que você tem de fazer. VAI!
Trêmula, ergo o braço.
Mais estranho do que minha cara de imbecil dopada foi quando meus
delicados dedinhos tocaram os dele. Outro choque fino, na altura do peito. Ao
menos desta vez não desmaiei, apesar da leve tontura.
Atordoada pelo que havia acabado de acontecer, levo minha outra mão
até o lugar exato de onde veio o choque.
Meu colar.

Capítulo 06 - Borboletas

Como pode um colar dar choque?


Isso é estranho demais.
Quanto mais eu penso, mais transtornada fico. Não são só choques e
tonturas. Mas também formigamentos, a forma como fiquei quando o vi pela
primeira vez… minhas mãos, mesmo depois de soltá-lo, ainda formigam na
palma.
Qual é, eu não sou idiota, consigo perceber que tudo isso tem alguma
ligação com Luan. Sempre, em todos os momentos em que ele está perto,
alguma parte do meu corpo formiga, seja o peito, sejam os braços, as mãos e
até… os pés (pensaram outra coisa?).
Das primeiras vezes os efeitos pareciam mais fortes. Por exemplo, o
choque que senti pouco antes de desmaiar pareceu muito mais forte do que o
de agora. Claro, eu posso ter desmaiado pela pancada, mas não falo sobre o
desmaio. Falo da sensação.
O que será isso? Vidro? Nunca ao menos parei para pensar sobre este
colar… pode um vidro dar choque? Acho que não, vai saber… com toda a coisa
dos átomos, nunca se sabe. Mas eu nunca me machuquei numa janela, pelo
menos.
Talvez não seja vidro.
É pesadinho… e é resistente. Todo mundo sabe, vidro é um material
meio vagabundo, sem contar que lasca por nada. Agora, analisando assim de
perto, essa coisa não chega a ter um mísero risco.

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E se for… algum tipo de cristal?
Poderia, não poderia?
Que eu saiba, Cristal também risca. Ou existe algum tipo de Cristal
poderoso ―inrriscável‖? (Eu sei, foi um neologismo horroroso).
Lembro das palavras da minha avó, ao me entregar essa jóia. "Tome
isso e cuide, pois ele servirá para que não se esqueça de toda sua vida aqui e,
mais tarde, lhe ajude a descobrir quem você é. Se você não me esquecer, em
algum lugar nós ainda estaremos unidas‖. Me envergonho em saber que só
venho a pensar nisso depois de tantos anos. Cinco até quase dezessete. Um
período longo, não?
―Quem sabe não estivesse madura o bastante pra pensar‖.
É. Quem sabe.
O pior é que passo a tarde toda refletindo sobre essa fatia profunda da
minha vida. A tarde e também parte da noite, afinal, sobre o que mais as
pessoas pensam enquanto caminham sozinhas, por um trajeto desabitado e
praticamente sem iluminação? Na vida. Meio frustrante que, no fim, minha
única conclusão é: ou o colar não é normal, ou eu não sou normal (jura?) ou o
anormal é ele, Luan.
Coisa que eu já sabia desde o começo.
Hum… talvez eu devesse ter aceitado a carona oferecida pela mãe de
Nara. Está meio assustador aqui. Fui visitar minha doce amiga após a aula e
demorei demais. Mas, vamos lá Lune, aja como a garota corajosa e otimista
que é. Este é um momento perfeito para refletir, ter paz consigo mesma… há
algumas estrelas no céu, a Lua está linda, tudo meio escuro, silencioso…
Que dá medo, dá.
Certo, quem estou tentando enganar, já disse que sou covarde.
Mas, tenho que aprender a controlar meus nervos, como já dizia Bela,
para Fera. Uma coisa que minha avozinha estava sempre falando nos tempos
felizes da minha infância, é: o medo só atrai o medo. Inclusive ela era cheia
dessas frases reflexivas. Sempre me dizendo para enfrentar as dificuldades, que
fugir e se acovardar não é dignidade de espírito, que a coragem é apenas o
medo suprimido e blá-blá-blá. Pelo amor de Deus, eu tinha cinco anos. Se não
menos (não tenho culpa, não lembro ao certo quanto tempo fiquei por lá).
Bom, se eu consigo lembrar disso até agora, algum efeito teve. Não é
que a velha era mesmo surpreendente?
Agora… acho que estou me lembrando de alguma coisa… mas uma
guerra? Ah! Não, era um sonho, esquece. Eu estava tendo algum pesadelo

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realmente ruim. Algo a ver com uma guerra e pessoas caídas por todo o lado…
– credo, que visão horrorosa – eu acordo gritando, e então…
Espera.
Borboletas?
Paro no meio da calçada e cerro os olhos, pesquisando nos arquivos
mais profundos do meu cérebro, fazendo esforço para ver melhor. Com a
lembrança estranha até perdi a linha de concentração. Uma lembrança frágil.
Não posso perder isso, não posso deixar essa lembrança cair. Se ela cair, se
espatifa como uma taça de cristal (desculpe pela metáfora nada criativa).
Vamos, Lune, concentre-se.
A janela aberta… cortinas voando… sons de passos apressados…
provavelmente da minha avó. Enquanto isso… borboletas? Sim, tinha
borboletas. Mas estava escuro, como eu poderia vê-las tão nitidamente? Mal
podia identificar o resto do lugar, a não ser que…
Elas brilhassem.
Que absurdo, borboletas não brilham.
Continuo relutante minha caminhada, ainda enfiada dentro das tais
memórias.
Sim, não há dúvidas, eram borboletas! E, mesmo sabendo que não
brilham, na minha cabeça estão brilhando claramente, coloridas e ligeiras,
deixando um rastro sutil de luz. E eu não parecia me admirar com elas.
Como pude esquecer?
— Ah, o que é isso agora!?
Primeiro é choque e agora essa porcaria de cristal/vidro/sei-lá-o-quê
decide ficar mais pesado? Tudo bem, já não é exatamente leve, mas nada
como isso! Não vem não, eu senti aumentar o peso sim, exatamente na hora
em que ouvi algum barulho, logo ali atrás daqueles arbustos…
Acho que estou ficando cada dia mais neurótica.
Ergo a cabeça, procurando algo entre os jardins ou qualquer outro ruído,
mas a única coisa que ouço são os latidos distantes e enfurecidos de Roget, o
cachorro da minha vizinha estranha.
Essa é boa, agora, além de um forte grau de neurose e um colar
possuído, ainda tenho que ficar ouvindo ruídos suspeitos por aí.
Estou desesperada!
Não. Calma. Ouça as palavras da velha sábia. O medo só atrai o medo.
Calma Lune, está precisando de um psicólogo. Dêem um psicólogo para Lune!
Deve ser só um gato.

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Não, não, eu tenho que me certificar de alguma coisa, mas o que é, o
que é…
―A Lua‖.
Olho para o céu.
Uma nuvem imensa está se aproximando, preguiçosa, da Lua Cheia.
NÃO!
Mais uma vez no dia, corri desesperadamente, corri sem pensar e sem
olhar para trás. Meu coração palpita puro medo e minha testa está pingando.
Avisto minha casa se aproximando e olho novamente para a nuvem, agora
começando a cobrir a pontinha da Lua. Uma onda de terror ainda mais intensa
gela meu sangue e, com meus últimos fios de fôlego, acelero ainda mais. Não
faço idéia da minha velocidade, mas lágrimas escorrem pelo meu rosto, por
causa do vento frio. Meu peito dá saltos de felicidade quando entro feito um
tufão pela porta e desmonto no assoalho do hall, sorvendo quantidades
extensas de ar para suprir a sede dos pulmões.
Amém, estou em casa.

Capítulo 07 - Bruxa

— Lune, isso é interessantíssimo!


Quer saber? O céu está lindo hoje.
É verdade, bem azul.
E adoro quando as nuvens começam a tomar forma de alguma coisa.
Olha, aquela ali parece a cabeça de um dinossauro. E aquela outra parece um
pato e a outra… uma furadeira elétrica.
— Isso é incrível, tem idéia de que, se essa lembrança voltou depois de
tanto tempo, muitas outras podem vir?
É, eu nunca aprendo. Estou novamente na grama. Mas creio ser melhor
desta vez, já que aqui é um canto fora de atenções ao lado da quadra de
futebol e bate bastante Sol (o.k., mesmo se não batesse, já são duas da tarde,
então, sem orvalho hoje). Claro, ainda há garotinhas me olhando como se eu
fosse uma criatura bizarra, mas o número diminuiu consideravelmente.
Perdoe-as, elas não sabem o que fazem.
— E isso do colar, meu Deus!

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Eu gostaria de não ter que ouvir Nara. Deixar isso passar, apenas para
abafar um pouco o assunto, sabe… mas no momento é mais vantajoso
agüentar firme a falação e continuar sentadinha aqui, na beirada da quadra de
futebol. Sabe quem está jogando? Adivinhe! Aposto que você acertou.
Cara, ele é maravilhoso, até quando está com o cabelo colando na testa
e com o uniforme largado assim… quer dizer, estamos numa aula livre, o jogo
foi combinado às pressas e ele não teve tempo de se trocar. Só tirou a camisa
branca, ficando com a regata preta de baixo, colocou chuteiras e prendeu a
gravata no cós da calça para não perdê-la – e vou dizer, essa gravata vermelha
pendurada perto do ilíaco é uma coisa.
Eu já tinha notado que Luan sempre usa outra camiseta por baixo do
uniforme. Quer dizer, o cara tem estilo.
… Hum.
É pra ser sincera? Ele ficaria muito melhor se tirasse a preta também.
— Lune, está prestando atenção em mim?
Ah, olha uma borboleta.
Olho para meus sapatos e vejo os pequenos riscos no vermelho
brilhante. Fico pensando se eu poderia entrar no fantástico mundo de Oz com
eles. Preciso de novos urgentemente, apesar de um paninho com água já
resolver boa parte do problema. Sabe, meu pai sempre brigava comigo por
sujar todas as minhas roupas e não ter uniformes limpos para usar no dia
seguinte. Nesses casos, normalmente, eu ligava para Nara – a tagarela de
plantão – e pedia suas roupas emprestadas. O uniforme ficava um pouco mais
curto, mas ainda assim servia muito bem, já que ela (agora) é magrinha e coisa
e tal. No fim das contas, já deve ter uns três anos que ela me convenceu a
sempre deixar um limpo, de reserva, no armário do colégio – ignore o ocasional
problema com as meias no primeiro dia de aula… qual é, era o primeiro dia,
não esperava que eu me lembrasse de tudo também.
— Ah, Lune – ela fala com uma voz arrastada e solta um suspiro. Nara
continua falando sem parar e eu não agüento mais. Ruborizo um pouco,
olhando para ela – será que não entende?
— Não, não entendo – fecho a cara e olho para o lado oposto. Odeio
quando esta cidadã sentada no balanço à minha direita começa com esses
assuntos, porque, bom, eu sei bem em que ponto ela vai chegar.
Eu acabei de lhe contar sobre ontem, sabe, o que eu lembrei, e contei
mesmo sabendo que ela viria com esse papinho de anos. Bom, eu não
pretendia realmente falar nada, mas Nara me conhece bem demais. Percebeu
algo de estranho, perguntou se estava tudo certo… e eu sou péssima para calar
a boca. Não adianta, não sei mentir.

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A única coisa que não cheguei a relatar realmente foi o detalhe, aquele
pequeno detalhe, da coisa das borboletas brilharem. Essa informação eu tive a
consciência de guardar, apesar de eu ter quase certeza de que o brilho era
culpa da minha imaginação fértil e da minha memória falha. Nem valeria a pena
compartilhar a informação.
Ah… também não contei a coisa do medo terrível da nuvem. Não. Esse
tipo de coisa é melhor ignorar, definitivamente. Bizarro demais para ficar
pensando. Hoje eu acordei estranha, sem me lembrar de nada do que
aconteceu depois de ter corrido como uma louca na rua. Na verdade, nada
estava muito nítido tirando as borboletas, o colar e o medo agudo ainda
machucando o peito. Levantei da cama com a cabeça latejando, pensando em
como havia ido até meu quarto. Eu apaguei completamente depois que
atravessei a porta.
Mas não quero pensar nisso. Mesmo. Já me chamaram a atenção
milhares de vezes na sala, perdi a consciência por alguns segundos, bati com a
cabeça na janela, fez o maior barulho e todo mundo riu de mim, só porque não
conseguia parar de pensar em tudo isso. Estou estressada mesmo, quase
chorando.
Tá, não é para tanto. Eu não choro nunca.
E o pior é que é verdade.
— Lune! – ela se levanta irritada e põe os braços na cintura, parecendo
muito com minha avó quando eu aprontava alguma – Eu não sei o que está
acontecendo com você, mas você está agindo como uma criança!
Viro minha cabeça tão rápido que ela até estremece. E creio que meu
olhar arregalado também a fez parar e pensar no que tinha dito. Ela se sentou
novamente no balanço onde estava e, lentamente, começou a se mover para
frente e para trás. Eu também me afundei na grama, refletindo. Pela primeira
vez na minha vida alguém disse que agi como se não tivesse mais idade do que
realmente tenho. E com razão.
Como sempre faço quando estou pensando, pego meu colar, agora com
o peso normal, e brinco com ele. Cada ranhura, cada rajado dentro do vidro,
parece que carrega um significado. Pelo menos é o que sinto.
Desde que ele começou com esses fricotes de choque, engorda,
emagrece, lança ondinhas de formicações é que ando perdendo as estribeiras.
Também desde aquele garoto aparecer. Não consigo entender esses efeitos…
até… até começo a pensar se Nara não teria mesmo razão.
Meu Deus, que idéia idiota. Nunca acreditei nem será agora que vou dar
ouvidos às suposições fantásticas dela. É uma idéia no mínimo ridícula. Sem
falar que, sei lá, ontem eu estava tão estranha e com a cabeça tão virada… não
seria de se admirar que tivesse pirado. No mínimo inventei coisas por causa do

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medo, igual às ilusões de ver um duende gigante no lugar de uma colina de
roupas, quando as mães – e pais, no meu caso – apagam as luzes do quarto.
"É só sua imaginação", eles dizem. "Está apenas com medo".
— Lune… – ela diz vagarosamente, quase num sussurro, mas eu a corto
rápido.
— Não, Nara. Não adianta, não importam quais sejam seus argumentos,
é uma idéia sem pé nem cabeça. Você não entende? Não. Faz. Sentido.
— Eu sei que não, mas não há outra forma de explicar!
— E você acha que alegar bruxaria é uma boa forma de explicar? – soltei
de uma vez e ela estremeceu, sentindo a dor da alfinetada.
Não, é sério, não estou brincando. Ela realmente acha que sou uma
bruxa, feiticeira ou o escambau. Eu não entendo por que ela sustenta essa idéia
há tanto tempo, mas que importa?
O pior é que, no fundo, ela aparenta ter vergonha de acreditar numa
hipótese dessas, mas mesmo assim não desiste de falar: "mas, Lune, olhe só
para você, você não é normal".
— Lune… quantas pessoas você conhece que têm olhos amarelos, nunca
ficaram doentes, têm orel… – eu lhe mando um olhar mortal e ela engasga –
bem… você sabe, todas essas coisas. Você tem até um colar que dá choque e
parece ter vida própria. Você sabe, de certa forma, possui alguma coisa com a
natureza, com os animais, que ninguém mais tem.
— Se você disser mais uma palavra sobre tudo isso eu levanto daqui e
vou embora – digo e tampo os ouvidos. Na mesma hora percebo que ela está
me olhando com a cara de "está vendo?" mais triste do mundo. E eu, bom, de
mau humor e percebendo minha infantilidade, volto à posição normal.
— Desculpe – falo depois de um silêncio constrangedor. Ela me dá um
sorrisinho carinhoso e olha para o chão, parecendo sem graça.
Eu não gosto de estragar os planos de Nara, mas… é uma idéia absurda.
Quer dizer, eu tenho olhos amarelos, nunca fiquei doente e… todo o resto.
Quanto ao negócio da natureza, eu apenas gosto muito dela e a respeito. Nada
mais que isso.
Mas bruxa já é demais.
Bem, sob outro ponto de vista, reconheço, se nós estivéssemos na época
da inquisição, com certeza eu seria queimada na fogueira. De cara.
"Olha, ela tem olho amarelo!".
"Legal, vamos queimar?".
Graças, tive mais sorte.

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— Lune, é só… você precisa aceitar que se não há outras formas de
explicar… bom. Algo a mais tem que ser. E essa coisa, das suas memórias…
você passou tantos anos no escuro, sem se lembrar de quase nada e agora, de
repente, você lembra? Ainda mais com tudo isso acontecendo… o colar, tudo.
Talvez se você desse mais abertura a essas coisas, aceitasse um pouco mais,
lembraria de muitas outras coisas.
— Para quê? – lanço a pergunta com agressão. Sentia meu corpo
reagindo à irritação, a vontade incontrolável de estalar os dedos, a necessidade
de respirar com força. Nara percebeu isso, logicamente, mas teve a paciência
de respeitar.
Devagar, ela levantou do balanço e se agachou a meu lado. Encarei seus
olhos, surpresa com sua expressão controlada e… penalizada. Ela estava com
pena de mim.
— Para, quem sabe, conseguir se lembrar melhor de sua mãe. De sua
avó. Lembrar de quem eram, de quem você é. Foi isso que sua avó disse, não
foi? Que estaria com você desde que se lembrasse dela.
Assim que disse essas palavras, Nara beijou minha testa com carinho e
saiu de perto. Não por que realmente precisava, acho, mas porque sentiu ser a
hora certa para me deixar sozinha. Eu a assisti sair dali, mas não a via
realmente. Apenas fitava suas costas enquanto minha cabeça rodava, pensado
no que disse. Minha avó. Eu realmente gostaria de poder lembrar melhor dela.
De seu rosto. Eu ainda via sua silhueta em minhas memórias, seu perfil
enquanto cozinhava para mim. Mas… não da forma como costumava.
Antigamente eu poderia desenhá-la em uma folha de papel, cada ruga, cada
tipo de sorriso. Agora… já é mais difícil ver seu rosto. E isso é a última coisa
que eu gostaria de perder. Seu rosto em minhas memórias.
Enquanto viajo nas minhas próprias imagens mentais, perco a noção de
mundo. Deixo até de ver Luan correr pelo campo e, com certeza, se uma bola
viesse em minha direção novamente, eu não teria a mínima noção disso. Por
isso, quando Luan se apóia de costas na trave do balanço ao lado, eu saltei tão
alto com o susto que meu traseiro doeu ao bater novamente no chão.
Esperava o quê de uma pessoa passando por possíveis problemas
psicológicos permanentes?
— Pensando em que? – ele pergunta, fazendo uma pausa para eu
respirar – Assustada?
Eu o olho irritada, mas, na verdade, com o coração saltitando de alegria.
Seu sorriso é lindo. Sua presença é maravilhosa. Ele está sorrindo para mim,
achando graça no susto. Sinto o calor do seu corpo roçando meu braço, mesmo
estando à quase um metro de distância.
Espera, é uma distância bastante grande para isso.

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— Um pouco – respondo e olho para o chão, sentindo a penugem da
nuca se arrepiar.
Estou tentando disfarçar, o.k.? Dá um tempo.
— Algum motivo especial?
— Não, só não esperava. Se estiver procurando Nara, ela foi até a
secretaria – digo tentando não demonstrar interesse. Quer dizer, eu nem sabia
realmente se ela estava na secretaria. E também, eles andam conversando
tanto ultimamente. Bom, na verdade não, só na enfermaria, mas ao contrário
de mim acho que ela não tem medo dele. Certo, também não tenho, ele
apenas… me deixa estranha. Fico suscetível ao ponto de deixá-lo me assustar.
Ou me assustar por causa dele. Tanto faz, alguma dessas duas frases faz
sentido?
— O que te faz pensar que estou procurando Nara? – ele diz com um
sorriso divertido, agachando-se ao meu lado.
— Bom, achei que quisesse… – respondi sem jeito algum, olhando sem
disfarçar para o desenho firme das suas costas.
Oh, Deus.
Perto demais, perto demais. Estou começando a suar. Quase tanto
quanto ele.
Deus, ele acabou de sair do jogo, o cabelo está com algumas mechas
coladas na testa e posso ver a pele molhada dos seus braços refletindo a luz do
dia. Não faço idéia de por que isso é tão atraente, mas, meu Pai, é. Demais.
Brinco com a bolinha do meu colar de um jeito nervoso, rezando para
que ela não me dê uma surpresinha ou algo do tipo. Luan olha para mim com
atenção.
— O que seria isso?
E então, que os anjos me tenham, esse cidadão que não deve ter nada
na cabeça fez algo que ninguém nunca fez antes.
Tocou no meu colar.
E pior. Eu deixei.
E não aconteceu nada. Absolutamente nada.
Não que eu esperasse algo acontecer. Mas… que droga é essa? Ele me
toca e eu levo choque, ele toca na porcaria do vidro (ou cristal, dane-se) e
nada acontece?
Me sinto até decepcionada.
Luan continua sustentando uma expressão interrogativa e meio que
começo a gaguejar. Perto demais, perto demais.

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— Anh… é… foi um ―pesen‖ – pigarro – presente da minha avó – merda.
Ele baixa os olhos para a peça, observando-a com uma atenção
minuciosa.
— É bonita – diz, por final, e solta. Assim que a jóia bate no meu peito,
uma onda calorosa se expande por tudo e deixa meus dedos dormentes ao
passar por eles – gosta dela?
Pisco os olhos, meio confusa.
Nada de choques, nem sensações desagradáveis. Um calorzinho
reconfortante. Mas acho que ele percebeu que algo havia acontecido, pois sem
querer fechei os olhos e fiquei meio chapadona.
— Da sua avó – ele acrescenta.
Aceno de um jeito meio patético que sim, gosto dela. Eu poderia ter dito
que não faço a mínima idéia de onde ela está, mas eu não consegui raciocinar
o suficiente para formular uma continuidade de conversa. Não sei por que
motivo ele sorriu. Olhando bem nos meus olhos…
— Imagino.
— Por quê? – pergunto, meio sem conseguir formar os sons adequados.
— Você ficou com um olhar meio doce, de repente.
Um olhar meio doce. Um olhar meio doce! Meu Deus, alguém me mate.
Essas palavras vieram quase ritmadas até meus ouvidos, tanto que não pude
responder. Ao invés disso, me deixei levar por minha perplexidade (também
doce!) durante um bom período de silêncio.
— Ah, eu tenho que te agradecer.
— Pelo que? – mal penso na pergunta, deixando-a sair automaticamente
pelos meus lábios. Minha cabeça voa em torno de outras coisas. Coisas doces.
— Porque graças a você agora eu tenho compromissos toda terça-feira.
Não entendi o que ele está tentando me dizer. E Luan deve ter sacado,
pois logo explicou e resolveu o problema.
— Eu entrei para o time. De futebol. E só se convenceram de que eu
estava mesmo apto para entrar quando chutei aquela bola direto na sua
cabeça. Disseram que foi um chute realmente bom, mesmo que a mira precise
melhorar – ele termina de falar sorrindo para mim e eu acabo percebendo
como estamos próximos. Vagamente me pergunto se isso é bom ou não, sabe,
o fato dele ter entrado para o time porque mandou um canhão direto na minha
cabeça. Mas ele parece achar que é, então está tudo lindo. Confesso que minha
atenção está muito mais presa em como suas coxas formam uma linha perfeita
quando Luan está agachado assim.

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Então.
Além disso, ele continua me olhando, bem nos meus olhos…
Tem alguma coisa com o sorriso dele, estou falando sério.
— AI! Qual é, otário! – mais do que de repente, a pessoa, há segundos
ao meu lado, berra e dou um pulo de uns quinze metros – exagero, exagero.
Ergo a cabeça, meio zonza, para ver o que aconteceu e Luan se pôs em pé,
parecendo extremamente irritado. Noto suas mãos. Uma está colada em seu
ombro, enquanto a outra segura, sem dificuldades, umas daquelas bolas de
futebol menores.
Eu já falei sobre as mãos dele, não falei?
Luan parecia lindo olhando assim, desse ângulo. De baixo. Seu maxilar
parece incrivelmente maior.
De repente ele atira a bola com força para o campo, acertando bem na
cabeça um indivíduo que estava preocupado demais rindo sem parar para se
ligar na revanche. Reconheço de longe os cabelos dourados de Phil, o infeliz
que não desiste de mim.
Eu já vi caras virem falar comigo do nada, pedirem por uma ida ao
cinema, um lanche juntos ou, até mesmo, uma passadinha "rápida" em suas
casas. Mas todos costumavam me deixar em paz depois de uns três foras. O
mais insistente, até agora, havia sido um que ficou, por um mês inteiro,
jogando bilhetinhos e me comprando lanches na cantina. E, mesmo assim,
parecia estar só querendo agarrar mais uma. Acho que eu era considerada
como um tipo de prêmio para ele. Agora, esse Phil está ficando chato.
Uma idéia me ocorre e eu me levanto do chão.
— Está tudo bem? – pergunto, pondo a mão no seu ombro afetado. E
considerando que o tal ombro era o oposto a mim, digamos que… ficou uma
cena interessante meu braço atravessando a frente de Luan, enquanto minha
outra mão pousava inocente sobre sua cintura. É claro que, quando fiz isso, tive
vários tipos de sensações, mas nem de longe foram desagradáveis.
Luan vira o rosto para mim, parecendo sair de algum transe mental de
fúria. E, mais sensacional ainda: após abrir um meio sorriso, sobe
confortavelmente seu braço (o que não foi prejudicado por um míssil) e me
envolve com ele. E permanece assim, como se fosse a coisa mais natural do
mundo. O esperado. O certo. O cabível. E mais um monte de palavras como
essas.
Jesus!
— Está, sim… tudo bem – e abre um sorriso maior. Senti minhas pernas
se acovardarem.

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— Essa doeu, não foi? Tem que ver isso se estiver doendo muito – Nara
se aproxima de nós com um ar divertido. É incrível como ela consegue sempre
chegar na hora certa para assistir a confusão. Acho que a bruxa aqui não sou
bem eu.
— Não, não é nada. Ele não chutaria tão forte nem que fizessem nascer
uma perna nova – Luan brinca, tirando risadas de nós duas.
— Você é meio obcecado por cabeças? Sempre acerta a cabeça das
pessoas – Nara faz a pergunta com uma voz inocente demais para ser
verdadeira.
— Dependendo da pessoa, sim. Dependendo da pessoa, não – ele solta
uma risadinha divertida e olha para mim – diferente de algumas pessoas.
Eu pisco para ele. Não entendi essa.
— Como é?
— Como é o quê? – ele rebate a pergunta, com um sorriso maroto
surgindo no canto direito da boca.
— O que você quis dizer com isso, aí. Tinha um duplo sentido, não estou
louca.
Ele ri de um jeito encantador, jogando a cabeça para trás e eu me delicio
com isso. Sua risada é tão contagiante que quase não resisto ao ímpeto de
acompanhá-lo.
— Não sabia que você era cheia de duplos sentidos, mente poluída – ele
diz, cutucando minha têmpora com o indicador. Fácil, obviamente, pois, apesar
de eu ter tirado a mão de seu ombro, continuei parada na mesma posição. Ali,
juntinha dele. Ou seja, muito, muito perto. Colada, praticamente.
O mais estranho, na verdade, foi não ter me dado conta disso até
perceber que ele não esticou o braço nem um pouco para me tocar.
Ruborizo até sentir que posso fritar um ovo na bochecha.
— Até mais tarde – Luan diz e caminha em direção aos bancos para
pegar sua camisa. O caminho que seu braço desenhou enquanto estava em
minha cintura lateja, como se estivesse gritando, implorando por sua volta. E
eu me arrepiei inteira. Não entendi o porquê do ―até mais tarde‖, se já estamos
praticamente na hora de ir para casa, mas deixa para lá. Estou em choque. Isso
foi maravilhoso demais para que eu não me sinta extasiada.
E, também, é admirável que ele esteja assim, andando normalmente. Se
eu tivesse levado uma bolada daquelas no ombro, estaria me revirando no
chão, como uma lombriga com epilepsia.
— Então, vejo que está melhor – tenho a impressão de ouvir Nara. Não
respondo, porque ainda estou ocupada demais observando as costas

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triangulares de Luan. Nem ao menos cheguei a prestar atenção nela. Claro, isso
antes dela me sussurrar:
— Muito bem, Srta. Deslumbrada, vamos sair daqui, chega de atenções
por hoje.
Só então percebi que todos os caras do campo não estavam jogando,
mas me olhando com uma expressão incrédula no rosto.

Capítulo 08 - Bicho do Mato

Como é bom se sentir livre um pouco não é? Pena que eu só consigo me


sentir assim ao fim do dia, na minha varanda. Por quê? Sei lá. Acho que por ser
um lugar alto e conseguir sentir o vento de um jeito bem bacana. É gostoso me
debruçar sobre a grade da sacada, olhar para a rua ao lado, sentir a brisa
morna do pôr-do-sol no rosto… sem comentar que só o fato de já ser sexta-
feira me anima em muito.
Sempre gosto de vir aqui depois do meu banho, olhar a paisagem
enquanto penteio o cabelo… uma cena bem romântica.
Quer dizer, nem tanto hoje.
Meu cabelo é enorme, sabe? Louro-platinado, fino, liso e dá um trabalho
do caramba desembaraçar. Ele chega juntinho ao fim das costas, isso mesmo,
quase na bunda. E considere que não sou tão baixa.
Agora, imagine: ele está molhado e seu condicionador estava no fim,
portanto, você não pode usar o suficiente para todo o comprimento, tendo que
aplicar o último suspiro do bendito apenas nas pontinhas. Logicamente, depois
dessas constatações, você pensa em investir no seu bom creme para pentear,
aquele que tem cheirinho de orquídea, mas descobre que também acabou e
seu papai querido não fez compras, logo, a lista que continha seus produtos de
sobrevivência, a lista que você preparou com todo o cuidado, não foi nem
tocada.
E você está aí, na sua sacada linda, envolta de rosas cor-de-rosa
pequenininhas, perfumadas, porém, não. Consegue. Pentear. O. Cabelo. De.
Jeito. Nenhum.
— Ah, que droga! – berro, quando a porcaria da escova fica presa num
nó realmente grande e faz ir pro espaço meu último resquício de paciência.
Me apoio derrotada sobre a sacada – com a escova ainda suspensa nos
fios da minha nuca – bufando e olhando para o horizonte. O Sol já está quase
indo por completo e o céu está todo num tom bonito de amarelo.

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De longe avisto meu pai vindo de carro e já me animo. Eu gosto muito
de ficar sozinha, mas a companhia dele me agrada, assim, no final do dia.
Normalmente, nós comemos porcarias juntos, enquanto nos divertimos
contando como foi o dia um do outro. É incrível, ele é muito divertido, de
verdade. Consegue deixar a história de um simples dia chato de trabalho
interessante, principalmente quando desata a falar mal da mulher que trabalha
bem perto dele e fica mandando olhadelas suspeitas em sua direção. Ao que
parece, ela é feia de doer, tem nove graus de miopia, é magra feito um pau e
só usa roupa estampada com temas da selva. Eu quase me rasgo de rir quando
ele fala dela.
Desço as escadas correndo para recebê-lo e reclamar pelas compras não
feitas, mas, antes mesmo de chegar aos últimos degraus, derrapo com uma
freada brusca e caio de bunda.
… A porta da frente, cheia de vidros coloridos foscos…
… Sombras de pessoas…
Isso não é bom.
AimeuDeusaimeuDeusaimeu…
Tento correr de volta lá para cima, mas, como o destino me preparou
surpresas interessantes, não dá tempo nem de me pôr em pé direito. Derrapo
mais uma vez no tapete da escada e me agarro no corrimão exatamente na
hora em que a porta abre.
Nada a se surpreender. Meu pai entra carregado de algumas sacolas.
Como da outra vez, deve estar tentado se mostrar o pai prestativo e
preocupado. Mesmo com essa mania doentia de trazer visitas sem avisar.
Bom, a cagada já está feita mesmo, certo? Por que me incomodar?
Certo.
Pelo menos foi o que pensei, tranquilamente, até Luan entrar pela porta.
Oh, não.
CagadacagadacagadaCAGADA!
Olhei desesperada para baixo e sinto dizer: minhas vestimentas, nas quais
depositava toda expectativa restante, estavam piores do que o cabelo.
Maldito macacão, maldita coisa rosa com estampa da Barbie (velhas
recordações de uma camiseta), maldito All Star rasgado e sola descolando.
Um uniforme imundo é melhor do que fantasia de fazendeira pop. Só
faltaram o balde e a vaca.
Não tem jeito. Eu sou uma caipirona mesmo. Não, pior que isso. Eu
ficaria feliz em ser caipira, se eu realmente fosse uma. Mas, não. Eu pareço
uma e das mais falhas.
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Papai pára no hall, enquanto as outras três pessoas se enfileiram ao seu
lado. Oh, não, nem isso ele pode fazer por mim, ficar na porta para que outros
não vejam meu estado miserável. Imediatamente disfarço a posição ingrata e
finjo estar apenas arrumando a sola do tênis, mesmo que o tapete torto,
amassado e desalinhado denuncie minha queda ridícula.
Olho para o rosto dos visitantes inoportunos. A moça, a mesma que me
viu no outro dia vestida de abominável monstro de lama está… bem, parecendo
achar graça. Luan está sorrindo divertidíssimo com a situação. E… a garotinha
estúpida me olha com cara de desprezo.
Timidamente, e com certa (muita) dificuldade, desprendo a escova da
minha nuca.
— Anh… oi – digo, levantando a mão num gesto cômico. Meu pai foi o
primeiro a falar.
— Lune… você teve uma briga com o ventilador ou algo assim? – todos
acham graça da sua piadinha sem graça, mas ninguém ri, tirando Luan, que
parece querer abafar uma risada.
Ah claro, se dobrem e riam da otária com cabelo-moita.
— Não – começo a responder sem graça – meu creme acabou.
— Luninha, amor, eu não disse que íamos ter visitas? Por que não se
arrumou antes?
— Ah… disse? – retiro o que falei sobre a mania doentia.
— Disse.
— Ah, bem, você saberia se eu tivesse me lembrado.
Ele me olha e por fim solta uma risada gostosa. A moça também ri e
Luan tem um ar estranho nos olhos. A menina continua com o olhar de
desprezo.
— Bom… aqui está Victoire, que você já conhece, e seus filhos. Luan
você já conheceu também, não filha? Vic me disse que estudam juntos e eu te
perguntei ontem… e esta é Lise, a caçula – ela direciona um olhar de ódio para
o meu pai. Talvez não goste do status de irmã mais nova.
— Bom, vou levar as compras pra cozinha. Faça companhia pro Luan,
filha.
E saiu, seguido por Victoire – que oferecia ajuda – e Lise, simplesmente
porque não tinha o que fazer.
Luan fica parado onde está. Me observando. E eu ali, analisando meu
tênis, tento não me lembrar de que estou na presença dele. Tipo, imaginando
outra coisa no lugar. Pena que nossa imaginação não é a mesma de quando
tínhamos cinco anos de idade.
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Finalmente crio coragem para encarar o problema. O cara parece estar
achando tudo muito cômico… merda, ele não consegue deixar de ficar lindo por
um único maldito segundo? Isso seria minha sanidade.
Eu não acredito que acabei de pensar nisso.
Levanto dos degraus da escada.
— Ah, bem, se não se importa eu vou lá para cima e…
— Acho que nossos pais vão se casar.
Engasgo com a minha própria saliva e ele corre para me ajudar.
— O-o que você – pausa para tosse – disse?
— Ah, desculpe ser tão direto assim – ele sorri abertamente, dando
tapinhas nas minhas costas – mas eu creio que é isso que vai acontecer.
Arregalo os olhões para ele, que dá mais uma gargalhada.
Como assim. Meu pai? Se casar? Que tipo de maluquice é essa?
Merda.
Mas… eles podem se ajuntar, por que não? Quer dizer, não precisam
exatamente casar.
Ah, meu Deus, qual a diferença?
Espera, estou me desesperando à toa. É, é isso. O cara acabou de falar
um absurdo, ele nem deve ter motivos nenhum.
— Por que você diz isso, está querendo me assustar? – lanço a pergunta
para Luan de uma forma agressiva e irracional. Ele ergue as sobrancelhas para
mim, como se isso pudesse defendê-lo da minha ira. Ele parece estar tentando
ler alguma coisa no meu rosto, mas eu não me importo. Esse indivíduo não
pode chegar assim na minha casa e começar a mandar merdas assim na minha
cara!
Então… por que ele não pára de me olhar como se a sua suposição fosse
óbvia e não precisasse de explicações?
Não, não pode. Meu Deus, isso acabou de começar, não podem casar
assim, de uma hora pra outra. Tem que namorar antes. Eu imaginei mesmo
que meu pai estivesse se enrolando em alguém, a arrumação toda para ir
trabalhar, os jantares que arranjava toda semana… estava sempre meio
perdidão… os homens apaixonados sempre ficam meio sem saber para onde ir,
sabe, babacas. Mas eu nem sabia de nada. Isso não deve estar acontecendo há
muito tempo.
Na verdade, está sim. Para um cara que nunca vi se interessando por
nenhuma mulher, nunca vi saindo com ninguém nem vi mencionar nada sobre

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isso… três meses pode ser bastante tempo. Pois essa palhaçada toda começou
há uns três meses.
Aí, agora, meu pai vem trazer a moça de seus olhos para jantar aqui em
casa, com os filhos dela – que, inclusive, um me causa formigamentos e a outra
parece querer vomitar em mim.
Eu conheço meu pai. Ele não faria isso antes de ter certeza que gosta
muito da pessoa.
De certa forma, é isso que me perturba mais.
Não, é demais para uma inocente garota como eu.
Despenco nos degraus da escada.
Luan me olha com interesse. E eu olho para o nada com interesse.
Minha incredulidade devia estar estampada na minha testa, pois ele sustentava
uma expressão penalizada e confusa.
— Tem ciúmes do seu pai? – o cara de covinhas perfeitas pergunta e eu
não tenho uma resposta. Quer dizer, eu gosto tanto do meu pai que talvez
tenha me acostumado com a presença dele só pra mim. Sabe, sem mais
ninguém, assistindo filmes, conversando, comendo batatas-fritas, apreciando os
maravilhosos chocolates belgas ou tomando sorvete… mas… outra mulher?
Dividindo tudo isso? Nunca pensei em algo assim.
— Não, é só que… ah – tento falar, mas escuto as vozes animadas na
cozinha. Levanto assustada. Eu não deveria estar aqui ainda. Não posso deixar
que me vejam assim de novo, principalmente com a cara de idiota agora
estampada. Me viro para Luan e não penso mais vezes antes de agarrar seu
pulso e puxar escada acima. Na verdade, seria mais adequado dizer que não
penso antes de agarrar seu pulso e puxar escada acima. Subi quase aos
tropeços, lembrando na metade do caminho que deixei a escova lá em baixo e
não peguei nada que pudesse me ajudar a pentear o cabelo. Voltei quase
rolando para procurar qualquer coisa que pudesse salvar minha situação. A
estas alturas, até óleo de cozinha serviria.
Por sorte, tinha o creme.
Mas deixei a escova lá. Ah, isso não importa.
Alcancei Luan e passei correndo, com ele ao meu calço.
Não sei o que papai acharia de um garoto no meu quarto, nunca cheguei
perto de ter um lá, mas não me interessa, estou em estado de nervos. Meu pai,
casar? Esquece.
Ao topo da escada, atravesso correndo a pequena sala com a TV e enfim
chegamos à porta do meu quarto. Só depois de puxar Luan para dentro é que

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me lembro das toalhas molhadas espalhadas, mas não é hora pra isso. Ele
passa os olhos pelo aposento, enquanto vago sem rumo.
— Ai meu Deus. É verdade – digo sem pensar.
— O que é verdade? – ele diz calmamente, com um ar feliz, parando em
frente à penteadeira. Então, pega alguma coisa e joga. Seguro o objeto vindo
na direção do meu nariz e pisco devagar. Estou atordoada o suficiente para não
me dar conta de que peguei um objeto em pleno ar. Eu nunca tive coordenação
o bastante para isso.
— Eles vão se casar – falo, mais para mim mesma do que para ele,
observando a nova escova de cabelo em minhas mãos. Despejo um pouco de
creme na palma e passo nos fios emaranhados, pensando no meu pai e sua
futura esposa conversando amigavelmente sobre uma escova de cabelo
esquecida na escada pelo penteado Papai Noel na primeira páscoa em família.
— É o que tudo indica. Seremos irmãos – ele diz. Eu surto com a idéia.
Estou me sentindo meio idiota. Ah, esquece. Levanto e vou para a porta
da varanda pensativa, ainda escovando os cabelos. A brisa agora está gelada,
mas mesmo assim não saio da frente dela. Ouço Luan se levantar e parar atrás
de mim.
— Você não me respondeu. Sente ciúmes ou não?
— Não – digo convicta e quase posso sentir seu sorriso atrás de mim.
Desisto – tá, eu só não me sinto confortável com outra mulher por perto… não
tenho mãe, sabe… – vou perdendo a força na fala e ele abre o resto da porta
de correr. Encostando-se com o ombro nela, também observa o céu escurecido.
— O que aconteceu com ela?
Eu, que estava distraída encarando a pouca luminosidade sobre a copa
das árvores, não dou importância para o fato de mal conhecê-lo. Ali, naquele
momento, seu calor perto de mim era confortável. E familiar. Como uma antiga
recordação esquecida há muito, muito tempo.
— Sumiu.
Fez-se um período de silêncio até ele falar de novo.
— Sumiu, tipo, abandonou?
Eu, de um jeito meio fraco, só consigo sinalizar a resposta afirmativa
balançando a cabeça. Como ela me incomoda, como aquela mulher me
incomoda. Por que fez isso? Um dia eu vou te encontrar e você vai pagar…
— Lune? – a voz de Luan soa grave perto dos meus ouvidos e eu pisco,
confusa – tudo bem?
Eu olho para ele sem compreender e sem me lembrar de meus
pensamentos.
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— É, vivemos tanto tempo sozinhos que me acostumei com toda a
atenção dele – concluo minha explicação, voltando a pentear os cabelos. Ele
pareceu meio atordoado, sabe-se lá por que.
— Acho que eu entendo – diz, por fim, ainda me encarando com uma
sobrancelha mais alta que a outra e eu, suspirando, falo para o tapete:
— Bom, mas quero que ele seja feliz.
— É isso que importa – meu futuro-meio irmão conclui e me lança um
sorriso reconfortante. Foi meio inconsciente, mas eu sorri também. É engraçado
como me sinto confortável perto dele. Quer dizer, eu o conheci faz menos de
uma semana. É engraçado.
Uma brisa mais gelada ainda bate sobre meu rosto e eu estremeço um
pouco. Luan, então, sai da sua posição confortável, me puxa para dentro pela
parte de trás do meu macacão e fecha a porta.
Isso foi meio fofo, se quer mesmo saber.
— Espero você lá fora – e sai, olhando pela última vez meu cabelo ainda
em formato de guarda-chuva.
Depois de conseguir desembaraçar tudo e colocar uma roupa
cuidadosamente planejada – apenas um jeans, uma blusa de lã larga caída num
dos ombros e um All Star menos despedaçado –caminho em direção à porta,
sem nem olhar o espelho. Coisa de que me arrependi mais tarde. Não muito
mais tarde, na verdade. Foi assim que botei o pé no corredor e dei de cara com
o cidadão esperando educadamente ao lado da porta.
Ah droga, esqueci!
Bom eu não poderia adivinhar. Eu não preciso me olhar no espelho. Eu
sou sempre a mesma coisa. Sempre a mesma cara, o mesmo cabelo e o
mesmo tudo. Por que eu perderia tempo admirando minha imagem enquanto
tem um cara fantástico me esperando logo ali?
Acho que, depois de hoje, vou começar a pensar mais sobre a utilização
do tal objeto.
Luan assume uma expressão estranha no rosto e eu tremo da cabeça
aos pés.
— Meu car… – palavra inapropriada – isso é sua orelha?

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Capítulo 09 - Elfa?

Novamente, me sinto em posição desfavorecida. O time adversário está


em bem melhor posição do que eu e não há ninguém para marcar o
impedimento. Só posso esperar que minha fada madrinha surja para me salvar.
Ele está ali, em pé, observando meus pequenos monstrinhos se
projetarem para fora da cabeça. Só faltam bater asas e alçar vôo. Me jogo para
dentro do quarto – única defesa a pensar no momento – e parto para uma
busca desesperada.
— Ei, o que foi? – Luan entra atrás de mim e sinto em sua voz algum
tom de deboche.
Sacana sem alma.
Encontro sobre a pia do banheiro o objeto estimado. Meu aparelho
especial, projetado por mim mesma, há alguns anos. Devo à ele minha vida. É
precário, mas eficiente.
Bem, o quê você faria se sentisse uma vergonha terrível de alguma parte
do seu corpo? Uma operação? Assumiria com orgulho? Viraria emo e tentaria –
apenas tentaria – se matar? Não sei você, mas eu me virei com o que deu.
Arranquei a alça – de silicone – de um sutiã (um dos primeiros que ganhei na
vida) e adaptei uns grampos nas pontas, como esses de segurar papel. Depois,
foi só prender nas orelhas e voilà.
E ainda é ajustável! Claro, tive que colar borrachinhas nos grampos, para
não machucar. Não sou masoquista, também.
Agora meio que me arrependo de ter conseguido pentear o cabelo
decentemente, sabe como é, pelo menos os nós davam uma certa sustentação
e as orelhas não apareciam, graças ao volume desorganizado. Mas, com ele liso
e penteado, elas simplesmente pularam.
Na minha conversinha com Nara há algumas horas, ela pretendia falar
sobre alguma coisa que também não é normal em minha pessoa. Luan acabou
de descobrir. Nara já disse várias coisas sobre elas, minhas orelhas. Antes ela
me perguntava se eu não havia pulado de dentro de algum livro de Tolkien,
mas isso pelo menos ela dizia brincando, não igual ao negócio de ser bruxa
(tudo bem, ela quer se jogar de um prédio toda vez que fala, mas, ainda assim,
acredita). Sabem, ela se empolgou bastante quando O Senhor dos Anéis virou
filme, gritava à todos os ventos que eu era idêntica aos tais elfos da Terra-
média. Se é que existiam outros em outro lugar.
Ah, sei lá.
Mas, ao menos no filme, as orelhas deles eram bonitinhas, pontudinhas
para cima. A minha é uma bacia disforme, pontuda e projetada para frente,
nada comparado à elegância das orelhinhas da Galadriel.
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Por falar nisso, eu não reclamaria nada em ficar com o Legolas, por
exemplo. Bem que ele poderia ter saído em busca de aventuras comigo, ao
invés de um anãozinho barbudo que não tomava banho.
Oh, eu o faria feliz.
Viro para Luan e dou de cara com seu rosto iluminado pela luz da
sacada. Ele ainda estava dando um meio sorriso, totalmente zombador.
— Que foi? – mando num tiro e ele sorri completamente. Lindo, claro,
como sempre. Aquele sorriso típico de galanteadores que te fazem
desabrochar. Caloroso e sincero. E as covinhas.
Deus, as covinhas.
Acho que vou correr até ali na sacada, quem sabe tenho a sorte de não
conseguir frear.
— Você – ele diz apoiando-se ao lado da porta, rindo abertamente da
minha cara, sem nem se importar com o que eu achava disso. Sem falar que
parece absolutamente confortável, como se não fosse sua primeira visita aqui e
sim a casa de uma velha amiga – é engraçada.
— Está me chamando indiretamente de palhaça ou isso é um disfarce
para não admitir que está rindo das minhas – pausa momentânea para engolir
em seco e sinalizar sem jeito para a lateral da minha cabeça – orelhas.
As sobrancelhas dele levantam, assim, de uma forma linda e, com um
dos cantos da boca mais alto do que o outro, Luan ergue o indicador e dedo
médio, deixando claro que ambas as opções estão certas.
— Ah, que bom! – berro, mais irônica que nunca.
Ele solta outra gargalhada gostosa, jogando a cabeça para trás e
congelo de admiração. Odeio ficar nervosa, nunca consigo agir com calma,
classe, tolerância e tudo aquilo que as pessoas elegantes dizem para você fazer
nos momentos desconfortáveis.
— Eu estou só brincando, Lune, claro que não é nada disso. Suas orelhas
são só um pouco… diferentes – ele conclui, rindo bastante da cara com a qual o
olho.
— Você riria se visse alguém com… com… problemas dermatológicos ou
algo assim? – pergunto irritada.
Tudo bem, eu sei que não foi o melhor exemplo do mundo. Eu sei.
— Fala sério, você não tem senso de humor – ele responde, com uma
careta.
— E você não tem… não tem… alma – estou perdendo a noção, não sei
mais como posso me salvar da demência que com certeza vai contaminar meu
cérebro se eu continuar convivendo com esse cidadão.
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Derrotada, me jogo na cadeira da penteadeira. Percebo Luan me assistir
com curiosidade, analisando cada centímetro do meu rosto transtornado, mas
não crio coragem para cravar meus olhos amarelos nos dele. Então, sem mais
nem menos, vejo ele se mover com calma.
Como sempre, cada mínima reação dele faz meu peito arfar e eu preciso
me controlar muito para não deixar meu nervosismo transparecer.
Principalmente quando, ainda sorrindo, Luan se aproxima e fica de joelhos na
minha frente.
Cerro os punhos para dominar os dedos trêmulos quando nos encaramos
por alguns segundos. O castanho dos seus olhos parece mais caloroso assim,
de perto, como chocolate derretido.
— Você…
E, como em todos os momentos emocionantes prestes a acontecer na
minha vida, alguém decide ser uma boa hora para atrapalhar. Meu pai vem
subindo as escadas, chamando por meu nome.
Ô, merda.
— Levanta e corre – o interrompo muito a contragosto num sussurro
desesperado e salto da cadeira. Saímos do quarto correndo e paramos na sala
de TV a tempo de assistir suas cabeças aparecerem nas escadas. Enfio um
sorriso amarelo no rosto e pergunto, alegre, com a maior cara-de-pau da
Bélgica:
— Chamou, papai?
Ouço Luan abafar uma risada atrás de mim e tento acertá-lo
disfarçadamente com a escova de cabelos.
Graças aos céus, conseguimos disfarçar bem a cara de culpa, pois aquela
minha dúvida sobre o quê papai pensaria ao ver um garoto no meu quarto foi
praticamente respondida.
— Onde a senhorita estava? – disse, tentando camuflar a irritação com
um tom de voz casual e um sorriso forçado. Porém, eu sei que, quando Otto diz
"senhorita", não está pulando de felicidade comigo. Luan respira calmamente
ao meu lado e no momento em que decido abrir a boca, ele parece perceber
meu fracasso persuasivo eminente e se adianta, dizendo:
— Tem uma linda casa, Sr. Gautière.
Perfeito, pois a única coisa que eu estava planejando dizer era ―Ah…
onde eu estava? Ah…‖.
Ou seja, seria nosso fim.
Apenas com essas palavras, a expressão do velho Sr. Gautière se
amansa. É lógico, eu estava mostrando a casa para Luan. Absolutamente

53
lógico, ele é um grande amigo da escola. Meu pai criou uma filha muito
educada.
— Ah, obrigada Luan, pode me chamar de Otto – papai responde e
percebo Victoire me fitando. Sinto alguma coisa estranha no olhar dela. Mesmo,
mesmo.
Essa mulher é muito esperta.
Assim que papai as convida para o seguirem, pois ele iria realmente
mostrar a casa para alguém, Lise passa por nós com um olhar simplesmente
congelante. Me senti como se tivesse acabado de sair de um frigorífico. Luan
parece perceber e quando sua irmãzinha desvia o olhar, ele desce o rosto até
mim para sussurrar algo perto do meu ouvido, arrepiando todos os pêlos da
minha nuca.
Lógico, ele não sabe disso.
— Talvez a pequena Lise tenha percebido algo – tento manter minha
expressão indiferente, para não demonstrar que a sensação dos meus cabelos
balançando enquanto ele fala próximo às minhas bochechas faz meu coração
quase criar vida própria e sair correndo.
— E agora, será que posso conhecer a casa ou já conheci o único
cômodo importante? – ele diz, afastando-se e sorrindo gentilmente.
Meio apavorante, se querem saber.
Ele é apavorante. Eu estou afirmando, acredite. Aquele tipo de pavor
que deixa suas pernas fincadas no chão e faz seus batimentos cardíacos terem
uma média de uns mil por segundo. E o pior é, de alguma forma, você apreciar
isso.
E ―você‖, nesse caso, significa ―eu‖.
Depois de um tour por toda a casa, um bate-papo legal (pelo menos
para a maioria) na sala de estar e muitas beliscadas de aperitivos, o momento
de encher a barriga com comida de verdade chegou. A aflitiva hora do jantar.
Aflitiva? É, não deveria ser, afinal, nós três – eu, Luan e Lise – já esperávamos
por aquilo. Aquela declaração mágica. Já esperávamos porque, no fundo,
conhecemos as índoles subitâneas – ou seja, totalmente sem noção – dos
nossos pais. Porém, já que eles – nossos pais – não tiveram a consideração de
amaciar a idéia do matrimônio antes de socá-la em nossa goela, fingimos não
esperar. Sabe como é, demonstrar surpresa. Então, todos nos postamos em
volta da mesa, sobre nossos respectivos lugares, com os ares alegres e
confortáveis de pessoas encontrando velhos amigos ou parentes para uma ceia
de Natal.
Mas sabem, mesmo com a leve atuação, tenho de admitir que essa coisa
toda acabou se tornando divertida, em certa altura. São boas pessoas, muito

54
agradáveis e simples, bem humoradas (é, é, vocês sabem, menos uma).
Victoire se empolgou contando suas histórias hilárias, meu pai/eu rimos sem
parar e Luan sempre tinha comentários sarcásticos a acrescentar – e, também,
olhares misteriosos pra jogar em qualquer demonstração minha de ter achado
graça.
Ah, olha só, as vezes eu ria sem nem saber por que estava rindo. E eu
achava que essas coisas só aconteciam em filmes e com pré-adolescentes.
(…).
Ah, sim, o fato é que eu realmente gostei deles.
Mas tudo isso durou apenas até todos limparem a comida do prato. Pois,
depois disso, o lugar destinado à sobremesa – minha torta de chocolate
maravilhosa – foi tomado por um ar terrivelmente sério e, bem, angustiante.
Qualquer um tem noção do quanto é estranho eles declararem a coisa
toda assim, no primeiro encontro de famílias, sem ao menos enviar uma única
circular para os demais indivíduos envolvidos. Todavia, tentarei considerar a
ansiedade e relevar. Meu pai nunca foi casado. A existência de uma
pretendente em algum tempo remoto (que com certeza não foi minha mãe) é
algo totalmente possível, mas, até o ponto que me cabe, nunca houve. E,
também, analisando a forma como estava nesses últimos meses, sou forçada a
botar fé no interesse do cara.
Putz, vocês devem imaginar, esse tipo de coisa complica o nosso
trabalho de filhos. Custava mesmo avisar algumas semanas antes?
O.k., posto todas essas coisas, sinto-me tranqüila para conseguir levar
em conta e perdoar tamanha falta de tato. Eles quiseram dar a notícia de uma
forma bonita, juntos. E eles estão tão apaixonados. Não agüentam mais
esperar.
Romântico, não é?
É.
E mesmo sendo estranho, quem disse minha vida é do tipo
convencional?
— Bem, eu gostaria de – pondo-se em pé e segurando uma taça de
vinho, meu pai inicia gentilmente seu discurso – quer dizer, nós gostaríamos de
contar para vocês…
(Silêncio).
— Ah, droga, é mais difícil do que eu pensava – ele tenta cochichar para
Victoire, que o olha impaciente, mas eu consigo ouvir perfeitamente mesmo do
outro lado da mesa – bem, nós queríamos contar… eu e Vic, nós – pigarro –
nós…

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— Nós estamos namorando – ela cospe de uma vez tudo isso na minha
cara com uma expressão agradável. Em seguida, olha com irritação para meu
pai que, definitivamente, é um bunda mole.
(Silêncio).
Ah, ótimo, para mim está o.k. Podem namorar o quanto quiserem, vocês
são adultos, podem se ver de vez em quando noturnamente e também finais de
semana, quem sabe até compareço a alguns programinhas de família. Muito,
muito bom mesmo.
— Na verdade, estamos noivos.
Isso sim não foi muito sutil. Logo de cara, pá. Agora engulam isso com
Coca-Cola.
E foi tão pouco sutil – e lindo ao mesmo tempo – que a própria Victoire
arregalou os olhos para ele. Sim, porque foi meu pai – meu pai, em quem um
dia depositei minha confiança – que mandou essa. Aparentemente, ela não
sabia.
Bom, o quê eu deveria fazer? Aplaudir? Soltar uma exclamação?
Puta merda.
Graças à um mandato de misericórdia divina, para variar, foi Luan quem
agiu primeiro. Logo depois que sua mãe – com os olhos brilhando de verdade –
aceitou o anel reluzente oferecido por meu pai, ele se levantou num pulo e a
abraçou com tanto entusiasmo que chegou a tirá-la do chão. E eu morri de
inveja.
Ah, isso está rápido demais pro meu gosto. Eu preciso de tempo pra
digerir, caramba, uma coisa de cada vez, uma coisa de cada vez!
Então, me manco de que estou com cara de parede descascando e
preciso mexer minha bundinha.
— Até que enfim vamos desencalhar, dona Vic! – diz o futuro meio-irmão
mais gostoso do, sei lá, universo.
— Parabéns papai – digo timidamente, quando criei coragem para sair
da cadeira e lhe dar um abraço. Vagamente, escuto ele comentar algo sobre
medo da nossa aceitação e felicidade por ter dado tudo certo. Ainda sem
raciocinar, lhe respondo que o medo era pura bobagem e vou apoiá-lo em
qualquer situação.
Concordando ou não.
É, eu quero que ele seja feliz e, se isso o faz feliz, por que eu deveria
implicar? Mesmo não estando acostumada em vê-lo com outra mulher,
dividindo o tempo livre, essas coisas, mas Victoire é uma moça legal, bonita,

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parece divertida e é uma boa pessoa, mesmo conseguindo ter ainda menos
prudência que meu pai.
Além disso, vai trazer de bagagem um filho que, bom… é.
Meu Deus. Choque.
Acho que preciso me sentar.
Eu não tinha realmente me tocado sobre isso antes.
Quer dizer, ele já tinha me dito, claro, mas o meu cabelo e minhas
orelhas são tão importantes que não prestei atenção. O quê ele disse mesmo?
Que seríamos irmãos?
Claro, até eu já disse, mas entre dizer e realmente pensar no assunto há
um hiato muito grande.
Caramba, Luan vai ser meu meio-irmão. Ou seja, se papai chegar a se
casar com essa mulher (que é uma moça bem legal e simpática, repito) isso
quer dizer que vamos… morar juntos? Do tipo, acordar juntos, ir para a escola,
jantar, sair, ir ao cinema em família, passar Páscoa, Natal, Réveillon, Corpus
Christi?
Bom, pode ser divertido não pode? São pessoas de companhia agradável
e Luan consegue ser agradável mesmo sem dizer nada. Só olhando você se
sente a pessoa mais alegre do mundo.
É, é uma criatura com boas energias. Ótimas energias. Maravilhosas
energias.
Só isso, ele é zen.
Claro que nossa querida Lise (que está agora sentadinha, aplaudindo e
até sorrindo encantadinha com o… "beijo" que meu – meu, meu – pai deu na
mãe deles) não precisava exatamente vir junto no contrato. Ela não tem cara
de quem gosta muito de mim, imagine, não tenho paciência nem para me
suportar, ainda mais ser obrigada a suportar uma pré-adolescente na
puberdade trazendo amiguinhas para uma festa do pijama, na qual vão tomar
sorvete direto do pote, comer chocolate, falar mal das "otárias" da sala e espiar
o irmão gato sem camisa no quarto.
Meu Deus, será que ele fica sem camisa no quarto?
— Agora, nós propomos um brinde à nossa união – Victoire diz com um
sorriso bem extenso. Dá para ver que está saltando de felicidade. E a visão de
um certo cara sem uma certa camisa até me entusiasmou bastante.
Ei, eu não sou de ferro, sabe? Principalmente com ele me olhando assim,
com esse sorriso mais puxadinho para um lado, as covinhas, os olhos cor de
chocolate iluminados pelo lustre, todo aquele clima romântico, coisa e tal.

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Ai, Jesus! Eu tenho que parar de falar dele.
Todos levantam as taças e fazem o tal "tim-tim", se me permitem uma
onomatopéia. Depois da sobremesa, Victoire levanta e começa a tirar nossos
pratos com restos de torta.
Imediatamente eu e meu pai saltamos, eu para ajudar a tirar a mesa e
meu pai para fazê-la parar – Victoire, não a mesa, que já estava parada e sem
intenções de se mover. Para mim, foi uma alegria vê-lo não conseguir. Lógico,
é o meu dia de lavar a louça, mesmo tendo ficado em dúvida se ainda faria isso
hoje, pois o Sr. Gautière anda querendo tanto se mostrar um homem caseiro,
cozinhando e tudo (eu descobri que poderia ter sacado que teríamos visitas,
era só olhar na geladeira e dar de cara com as duas lasanhas imensas logo na
primeira prateleira). Mas essa ―Vic‖ é de matar. Ela virou para ele e disse, com
um sorriso divertido no rosto:
— Pode deixar, Otto. Um dia, se você não fizer nenhuma cagada,
seremos uma família, acabarei nisto de qualquer forma.
Bom, até aí tudo bem. Mas, infelizmente, ela decide complementar
pouco antes de sair da sala:
— E, também, será ótimo eu e Lune nos conhecermos melhor.
Merda.
Eu ainda mantenho um fio de esperança preso em meu pai, mas Luan
consegue fazer o favor de arrebentá-lo.
— Otto, está passando um amistoso da seleção hoje, gosta de futebol?
Acho que ainda dá pra assistir o segundo tempo.
E não restou mais nenhum tipo de relutância. Homem de opinião fraca.
Malditos pratos, maldito futebol.

Capítulo 10 - Senhor Perfeição

E agora, aqui estou, com um pano nas mãos, enxugando e guardando


tudo. Começo a imaginar que seria uma boa idéia trocar toda a louça de jantar
por algo descartável.
— Aqui, chérie – Victoire me passa uma travessa.
Enquanto enxugo, penso onde estaria a nossa pequenina Lise,
desaparecida desde que alguém disse que tínhamos um lindo quintal. Estou
com medo por meus coelhos, espero sinceramente que ela não goste de
animais.

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— Bom… e tudo bem com você?
— É, sim, tudo ótimo – ou melhor, espero que goste. Já pensou o que
faria com os pobrezinhos? Nada mais me vem à mente senão meus filhotes
pulando com bombinhas amarradas no rabo.
Vejo Victoire fazer uma pausa pensativa e noto não estar atribuindo à
ela uma conversa fácil. Melhor prender minha atenção nela. Se toca Lune, se
toca.
— Você não ficou… bem, mal com o fato de eu e seu pai… bem,
ficarmos juntos, ficou?
— Ah, não – pretendo mesmo parar por aí, mas não sei por que, de
repente vejo as palavras simplesmente se formarem na minha boca – quer
dizer, ele gosta de você, eu quero que meu pai seja feliz, mesmo que não vá
ter tanto tempo mais para mim…
Percebo o que falei e sinto minhas bochechas corarem. Ela solta uma
risadinha divertida enquanto me sinto uma ridícula egoísta.
— Ora, bobagem, nós apenas vamos nos juntar a vocês, mas ainda vão
continuar juntos – ela sorri e olha para mim. Eu tento dar um sorriso largo e
sincero, mas talvez não tenha sido efetivo, pois ela continua – é, tudo bem, sei
que não vai ser a mesma coisa, também não vai ser o mesmo para Luan e Lise.
— Luan parece estar lidando bem com a situação – faço uma pequena
observação pensando falar baixo e, logo depois, descubro não ter sido o
suficiente. Tá, que mal há nisso? Claro, soou de uma forma meio… admirada,
mas foi totalmente involuntário.
— Ele sempre lida bem com tudo – ela ri.
Ah, claro, ele é o senhor perfeição, agora cheira minha bunda.
Desculpe a alteração de humor, é que está meio abafado aqui.
Caímos no silêncio. Só o som das louças se batendo na pia ecoava, de
uma forma meio desconfortável.
— Eu não posso imaginar como teria sido a perda de Mathieu se Luan
não estivesse conosco – ela solta, com uma voz meio carregada. Victoire ter
dito algo assim foi completamente inesperado, quer dizer, estava ali, feliz, e de
repente me olhou e mandou essa. Na real, fiquei com a impressão de que só
desabafou porque parou os olhos em mim. Mas, para variar, devo estar
viajando.
Depois dessa confissão, fiquei sem reação a ponto de me desligar
totalmente da tomada. Literalmente entrei em off. Se esse Mathieu é quem eu
penso que é – ou foi –, absolutamente não se trata de um assunto feliz.

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— Mathieu era seu marido? – pergunto com voz mansa e ela afirma com
a cabeça, fitando a travessa em suas mãos e quem pareceu entrar em off desta
vez foi ela até que, de súbito, assume um sorrisinho amargo no rosto.
— Luan foi forte – ela soltou e voltou-se para a pia – ele adorava o pai,
viviam juntos… foi um choque para todos quando faleceu.
— E como ele… morreu? – idiota, seja mansa e cuidadosa, uma vez na
sua vida.
— Ah, um tumor no cérebro – ela prossegue ainda mais comovida – nós
sabíamos, buscávamos cirurgias, mas todas as que nos falavam eram
complicadíssimas, extremamente arriscadas, uma série de outras coisas… no
fim, não pudemos fazer nada, ao menos com as condições da época. E, de uma
forma ou de outra, Mathieu tinha consciência: cedo ou tarde iria acontecer,
então preferiu deixar como estava e aproveitar o tempo… restante.
— Deve ter sido horrível – disse, tentando parecer solidária, talvez sem
muito sucesso. Ela confirma, novamente com a cabeça.
— Todos sofremos muito. Lise era tão inocente, chorava desesperada
me perguntando quem tinha feito aquilo com o pai dela. Eu tentava ao máximo
dar apoio para eles, mas mal estava conseguindo ficar em pé. Luan foi
maravilhoso, segurou quase toda minha barra e de Lise sozinho. Via o quanto
me esforçava tentando ser forte e via quando não estava conseguindo. Passou
a fazer coisas para mim, me ajudava com a casa, cozinhava, cuidava de nós
duas… ele aparecia todas as noites para ver se eu estava bem, isso depois de
colocar Lise para dormir, contando histórias sobre um lugar maravilhoso onde
todas as pessoas eram felizes, não existia nada de "feio" ou "mau"… e só quem
era muito importante era convidado para morar…
Então, ela começou a chorar.
E eu não sabia o que fazer além de pensar: ―merda, merda, merda‖.
Não sabia se fazia alguma coisa, se me encantava com a história, ou se
ficava no meu canto, esperando ela se recuperar… quer dizer, o que eu poderia
fazer? Isso tudo foi meio estranho, ela começou a se abrir comigo do além,
cara. Pessoa perturbada. O que eu faço, o que eu faço?
Após refletir por alguns instantes, decido que preciso tomar uma atitude
(jura?). De uma forma desajeitada, toco gentilmente seu braço, seguindo
algum tipo de instinto. É, algo me dizia que, se eu encostasse sua pele, tudo
ficaria melhor. De fato, não sei como, esse gesto simples surtiu efeito, pois
quase instantaneamente Victoire passa a sorrir, mais nostálgica do que nunca.
Sim, sorrir. Abertamente. Fiquei com medo de ela ser bipolar.
Foi bem estranho, na verdade. Quando toquei seu braço, senti como se
uma espécie de energia fluísse de mim. Victoire também, para ajudar, assumiu

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uma expressão diferente de um segundo para o outro, aliviada, o tipo de
expressão que vemos nos sofredores quando injetamos morfina neles.
Sim, eu sei. Bizarro. Como tantas outras coisas ultimamente.
— Sabe o que Lise sempre perguntava? – indagou de repente, sorrindo
para o alto e secando os olhos. Respondi que não, óbvio, e ela esticou ainda
mais os lábios, bem esquisitinha.
— Ela perguntava: "O papai foi pra lá, Lu?". E ele respondia: "Mas é
claro! E foi chamado com tanta urgência que nem precisou ficar velhinho".
Sério. Alguém me responde: quem é esse cara? Ele não pode ser
normal.
— Eu sinto muito… – digo depois de muito tempo em silêncio – mas é
uma história linda, se é que isso não lhe ofende.
— A perda de Mathieu foi incurável… mas não me ofendo, ao contrário,
reconheço. Por que só coisas felizes podem ser bonitas, a final de contas?
— Quantos anos ele tinha? – digo, finalmente me sentindo segura para
libertar essa pergunta, engasgada há tanto tempo – Luan, quero dizer.
— Treze.
Eu aceno com a cabeça, apenas para mostrar que ouvi.
Agora, pensando certinho, estou me sentindo mal por todas aquelas
coisas de antes. Victoire conseguiu mudar tudo o que eu pensava sobre ela e
sua família, apenas contando um pedaço da sua história. Um pedaço incrível.
Então, me surpreendo com o que salta em minha mente: eu quero
conhecê-los.
Veja só: eu, Lune, a rainha do desinteresse e do desapego, quero
conhecer alguém.
Revolução.
— Vocês serão muito bem vindos à nossa família – acabo por dizer mais
como uma auto-confirmação do que uma palavra de conforto. Entretanto,
Victoire enche o peito de alegria e se atira em volta do meu pescoço.
Foi estranho, foi inesperado. Mas foi completamente legal da parte dela.
Eu mesma me deixei contagiar pela emoção da mulher e respirei feliz.
Desamarrando o avental, ela se vira e diz, com um ar diferente:
— Só espero que você e meu filho se dêem melhor do que você e minha
filha.
Sorrio sem graça e ela pisca para mim.
— E ele é bonitão, hein? Puxou a mãe – conclui.

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Mais tarde, no meu quarto, as coisas parecem começar a se encaixar.
Meu pai estar namorando, meu pai estar namorando uma moça legal, meu pai
estar namorando uma moça legal com filhos, meu pai estar namorando uma
moça legal com filhos os quais: um parece ser perfeito e conhece minhas
orelhas e a outra é, no mínimo, a personificação da antipatia.
Levanto da cama e abro a porta da sacada, indo calmamente até a
grade. Olho lá para baixo, onde estive até uma hora atrás.
Eu estava ali, com Luan e sua irmãzinha esquisita. Certo, quem sou eu
para chamar alguém de esquisita. Mas o que quero dizer é… eu não consigo
sacar qual é a dela. E, a propósito, eu estava certa quanto à Lise não gostar de
animais. Bom, não sei se não gosta, apenas não deu atenção a eles. Apenas
usou o jardim e os coelhos como desculpa para meter o pé e telefonar para
uma de suas amigas.
"Ela é meio estranha, tem olho amarelo e um cabelo prateado lambido".
"Não, não é olho castanho, é amarelo".
"Manon, você está me ouvindo? Eu disse amarelo".
É.
Ela vai ver quando trouxer as amiguinhas para a festinha do pijama e eu
colocar um besourinho bonitinho lá.
Luan também, apesar de todas as coisas boas que espalho sobre ele, é
um cara estranho. E provo. Por exemplo, depois de toda a limpeza da cozinha
estar terminada e Victoire ter ido lá para cima, com meu pai, decido ficar por
ali, sentada, pensando na vida, sossegada. Até Luan entrar e me dar o pior
susto, sei lá, da minha vida – sim, é claro que é mentira, só estou colocando
nele a culpa para poder atribuí-la à alguém. É que, novamente, os cosmos
querem sacanear a garota sinistra e aí decidem fazer a porta dos fundos se
escancarar num tempo praticamente simultâneo com o susto besta de Luan.
Até pareceu que a porta assustou-se também.
"Acabou o jogo?" – eu e minhas formas lesadas de iniciar assuntos. Ele
puxa uma cadeira e se senta folgadamente.
"Não, mas quis deixar minha mãe e seu pai sozinhos um pouco", disse,
pegando uma bolacha de dentro do pote em cima da mesa e enfiando na boca.
Com um ar alegre, olhou para trás de mim: "esta sua porta está possuída?".
Eu não entendi, primeiramente, sobre o que estava falando, mas quando
direcionei minha atenção para onde Luan apontava, deparei-me com uma porta
meio louca. Tipo, batendo na parede sozinha. É, tinha até um ventinho, eu
sentia, mas não parecia nem de longe forte o bastante para mover nada. Ao
menos para nós, ali na mesa.

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Falando bem sério, eu não estava num bom juízo para sentir coisas
seguramente, então não acreditem na minha narrativa. Meu coração ainda
estourava quase no ritmo da porta, ou igual, nem estava ouvindo direito
também. Ele, claro, estava se lixando para meu nervosismo tamanho. Já deve
ter passado por muitas situações como essa na vida, com todas as garotinhas
que, bem, deve ter pegado por aí.
Eu acho.
Pra quem sempre foi chamada de "a garota que se acha adulta", estava
me saindo uma bela menininha na questão sexo oposto.
Mas afinal, que culpa tenho? A vida é feita de experiências, se eu nunca
passei por alguma, devo agir como se fosse expert?
Tá, mas não dá.
"Onde está Lise?" ele fala, olhando ainda desconfiado para aquela coisa
batendo insistentemente, parecendo querer ultrapassar a parede. Só então me
lembro de sua irmãzinha e decido procurá-la.
Sem dúvida, criaturas peculiares.
Penso se será difícil me acostumar com essa nova situação. Acho que
por minha vida ter sido "igual" durante tanto tempo, não tenho facilidade para
me adaptar à novas circunstâncias. Por outro lado, lembro do que senti naquele
momento com Victoire, na cozinha. A vontade de conhecer sua família melhor,
saber sobre suas vidas, seus sonhos… não é todo dia que me envolvo com
outras pessoas… geralmente as pessoas com quem converso são Nara e meu
pai. E… se por acaso eu admitisse estar feliz apenas com Nara e meu pai,
estaria mentindo. Eu sinto falta de pessoas, sem dúvida. Talvez seja esse o
porquê do interesse em Victoire, Luan e até mesmo Lise. Oportunidade de me
envolver e valorizar mais alguém.
Volto minha atenção para a paisagem noturna. O céu está iluminado, a
Lua bem em frente à sacada. É gostoso sentir a noite assim, com ela roçando
no seu rosto. As estrelas piscam pra você como quem diz que, não importa o
que aconteça, sempre estarão ali.
De uma forma meio repentina, me sinto nostálgica. Lembro de uma
noite, há muito, muito tempo atrás. Nem sei quanto exatamente, só me recordo
ser criança. Estava parada numa calçada com alguém ao meu lado, não tenho
certeza quem. Eu olhava incansavelmente para o céu escuro, como se buscasse
algo especial nele, mas tudo estava assim, escuro, brilhante e tranqüilo. Só…
lembro de sentir saudades… de nada. Só sentia. Meu colar pesava no pescoço…
talvez para a visão de uma criança ele pesasse muito mais do que agora. Mas
machucava. Então, do nada, a pessoa sombria ao meu lado puxa meu braço
com uma força desnecessária a fim de seguir em frente e continuar nosso
caminho.

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Capítulo 11 - Segredos

— Lune Noire, como se atreve a fazer isso comigo?


Parece estranho, mas eu realmente esperava que, depois de um dia tão
cheio ontem, o de hoje poderia ser um daqueles discorridos normalmente, sem
adrenalina. É, comum, para variar. Um absurdo, eu sei, mas sou uma ingênua
irreparável.
Sonhei em chegar na escola e, calmamente, dentro do meu direito de
privacidade, contar à Nara sobre o dia anterior. Só a ela.
Como é que dizem? Notícia ruim corre rápido.
Oh, não, não. Não ruim para mim, não é a isso que me refiro. Me refiro
a elas, essas garotas todas circulando por aqui, me olhando de maneira
macabra. Posso ver as marcas negras em volta dos seus olhos, maldade pura.
Instintos assassinos.
Será possível que não posso nem respirar? Ou também roubaram todo o
oxigênio do planeta? Passo a correr risco de vida da noite para o dia e nem me
avisam?
— Você deveria ter me contado imediatamente de tudo! Deveria ter me
ligado assim que enfiaram o nariz para dentro da sua casa!
Nem Nara, que se autodenomina minha melhor amiga (desconsiderem
que também a denomino assim, estamos tentando denegrir sua imagem) pôde
me dar um segundo de sossego.
Não… sossego para Lune? Para quê? Ela não precisa disso.
Mas prefiro ir para uma parte do relato mais interessante, não quero me
estender sobre o sermão/desabafo de Nara. O legal mesmo é que: depois do
sermão/desabafo que acaba de ser ignorado, sua autora me avisa que: todo
mundo (ou melhor, toda a população feminina do colégio acima de 11 anos)
está falando de mim como nunca na vida. Afinal, é uma novidade incrível: eu,
Lune, praticamente a menos interessada em garotos da escola, começa a se
envolver com um.
O que é mentira, porque eu não estou envolvida com ninguém.
Não por falta de vontade. Mas elas não sabem disso.
Eu não sei o que você acha, mas não é uma ótima maneira de começar
o dia?

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Ao que parece, Fantine – uma das melhores amigas de Nicole e,
também, a maior fofoqueira que provavelmente conhecerei em minha vida –
mora perto da casa onde Luan está morando. Ela anda passeando muito com
seu Pinscher pela redondeza ultimamente e justamente na hora que meu pai
querido foi buscar a família Chermont, ela estava esticando as pernas do
cãozinho. Ali.
Bem, aí vocês já sabem, provavelmente a homicida ligou um fato ao
outro e telefonou para todo mundo que conhecia para contar a novidade. "Ah,
Lune está se achando, como a garota poderia tirar uma conclusão dessas?",
vocês perguntam. Eu respondo: a) ela é aliada do partido que acha que eu sou
filha do Diabo; b) segundo relatos, ela viu papai e sua noiva beijarem-se
rapidamente antes de entrarem no carro, então, não tirou tantas conclusões
brilhantes assim; e c) ela conhece meu pai, o viu ano passado quando ele veio
bater um papo amigável com a diretora porque um menino tinha tentado me
dar um beijo e eu bati a cabeça dele num projetor de imagem.
Qual é, tudo bem que sangrou um pouco, mas foi reflexo, não tive
tempo de pensar. Autodefesa.
E isso são águas passadas.
Até gente que nunca se importou muito com minha existência ficou me
olhando estranho na aula. Sem motivo nenhum, se quer saber minha opinião,
eu não tenho culpa se meu pai sabe escolher as famílias com quem se envolve.
Não sou eu que estou com o cara, é meu pai que está com a mãe dele, não
posso mudar isso, felizmente.
Infelizmente, quero dizer.
Mas, no fim das contas, o pior mesmo da história não são os olhares
psicopatas das garotas de todo o colégio Papai Noel. O pior mesmo foi o que o
animal chamado Phillip fez. Sério, eu sei, é cruel, mas o cara parece que não
pensa! Eu não faço idéia do que isso faz no planeta terra, por mim ele deveria
estar, sei lá, virando bacon em Mercúrio.
Eu, que já estava bem enrolada, obviamente não precisava de mais um
show no meio da escola para piorar. Na verdade, comigo as coisas pioram sem
eu precisar fazer nada, mas já que Phil é uma alma gentil e altruísta, ele quis
ajudar. E fez isso vindo berrar em pleno intervalo falsas acusações contra
minha santíssima imagem. E isso acarretou uma série de comentários, que
acarretaram uma defesa espetacular e a defesa espetacular acarretou vários
outros comentários. Ou seja, meu dia virou uma bosta.
Calma, eu explico.
Eu estava saindo da sala, sabe, só saindo da sala. Caminhando
tranqüilamente, pensando em como o dia estava lindo e perfumado, acabei
sendo – junto com Nara e, como vi posteriormente, Phil – uma das últimas a

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me retirar do recinto. Até aí estava tudo bem, não há nenhum problema nisso.
A encrenca mesmo teve início quando Phil surgiu ameaçadoramente sabe Deus
de onde e bateu a porta com força, fechando nós três lá. Foi quando ele
começou a… a… vomitar palavras na minha cara.
A intenção dele, acho, até foi boa, tentando improvisar um lugar
reservado para dar o escândalo. Porém, todas as janelas, além de serem de
vidro, estavam escancaradas e isso não ajudou muito a abafar o som. O pior é
que, como a sala estava vazia, fazia um certo eco quando ele gritava.
— Qual vai ser? – ele "dizia" – Você vai ser irmã desse cara e o que vai
ser amanhã? Acha que não sei que está pulando de alegria com isso?
Ele falava dúzias de coisas. É sério, sem parar.
E se estivesse, irmão, e daí, e daí?! – minha consciência dizia. Mas, como
sou uma porcaria de boa menina, continuava em silêncio, pensando o quanto
meu nome deveria ser escrito no cânon. "Canonizem Lune!" eles ainda hão de
clamar.
Percebia Nara me olhando assustada, mas eu mantinha meus olhos
cravados nos dele. Meu maior esforço era tentar não prender minha atenção ao
que Phil descontroladamente fazia passar pela boca, mas sim olhar para sua
face insana enquanto respirava e esvaziava a mente.
Acabei, sem querer, notando que Phil é um cara de físico realmente
decente. Sabe aquela aparência tipo inglês sacana, que a gente encontra numa
rua perto de um pub qualquer, com um cigarro na boca, olhos cerrados e
cabelo jogado? Então, tipo isso. Não que Phil realmente fume, beba ou seja um
canalha, estou falando apenas do estilo. Tem muita mulher por aí que se
desdobraria por um cara assim, com ar de cafajeste, ainda mais ele não sendo
realmente um. Ou não totalmente.
Mas, bem, eu tenho que admitir que, apesar de todos os defeitos, ele
poderia ganhar muita coisa com esses olhos verdes, é só tirar esse ar obcecado
de cima. O cabelo dele lembra aqueles cortes tigelas, que as mães geralmente
fazem quando tem preguiça de levar o filho num profissional. É, eu sei, aquilo é
brega, mas eu disse que lembra, apenas. Acreditem em mim, ficou muito bom
mesmo. Me lembra um pouco Paul McCartney nos tempos de ouro dos Beatles.
Quase ri com isso.
Será que esse cara não vai calar a boca?
— … eu não acredito, simplesmente não posso acreditar que você vai
deixar isso acontecer bem em baixo do seu nariz… – continua, incansável. Essa
situação já está começando a dar no saco, juro por Deus. Exausta, me dou por
vencida e apoio minha cabeça no ombro de Nara, fechando os olhos. A
expressão de desprezo no meu rosto está bem visível e juro que se tivesse uma

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lixa de unha a estaria usando. Sabe como é, dá um efeito muito legal de:
―mimimi, nem te ouço‖.
Então, me surpreendo quando meu eficiente suporte sai de meu alcance.
Vejo Nara passar apressada pela porta e virar à esquerda, mas a perco de vista,
graças a todos os curiosos próximos da sala que olham descaradamente ou
fingem não olhar. Momentaneamente sinto raiva deles, mas não posso culpá-
los. Também estaria olhando se não fosse comigo.
Ótimo, estou levando bronca, passando por macaco de circo, quinze
vezes mais mal-humorada e, agora, sozinha (tirando as dezenas de pessoas em
volta, mas esqueça delas). Grande amiga Nara, grande. Batam palmas para
você.
Mais alguns minutos correm e é quando começo a pensar em quantos
adjetivos não-legais posso achar para Phil por ordem alfabética que ele diz algo
imperdoável:
— Vocês vão morar juntos! Sabe o que é isso? Por mais que você esteja
caída por ele, isso é demais!
Então, juro para vocês, mesmo que eu tivesse visto Nara se aproximar
com Luan ao seu calço, eu teria dito o que disse e feito o que fiz. Sério.
Qual é a dele? Ele disse que eu estou caída por Luan? Que se dane se
estou mesmo ou não, ele não sabe disso!
— Você é doente? – perguntei com raiva.
Apesar da frase pequena (infelizmente foi só o que saiu por hora) o
efeito foi muito bom. Phil, que obviamente não esperava pela manifestação,
calou-se por alguns instantes. Foi lindo ver a cara de idiota que ele ganhou,
mesmo por pouco tempo. Foi mais ou menos nessa hora que vi Luan se
aproximar. Os cochichos cessaram e ele – meu príncipe super pegável – abriu
sua boca para falar alguma coisa, porém, foi interrompido pela fúria acumulada
de Phil, que decidiu explodir no pior momento possível.
— VOCÊ É QUEM É! – berrou, descontrolado, encarando meus olhos com
fúria. Até pude perceber babinhas pulando de sua boca.
O meu primeiro impulso foi gritar novamente, mas toda essa vontade
morreu assim que vi a expressão no rosto do Luan atrás dele.
Quando em minha vida eu poderia imaginar que um cara tão lindo e
calmo quanto Luan, poderia se tornar tão ameaçador? Ao me deparar com seu
rosto fitando a nuca de Phil como se a quisesse fazer pegar fogo, cheguei a me
sentir diminuir alguns centímetros. Toda minha impaciência foi substituída pelo
instinto concreto de que eu deveria calar a boca. É sério, fiquei até meio
paralisada, tipo isso.
Mas me recuperei logo, não se preocupem.

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Bom, voltando à narrativa: foi tão divertido!
— E quem é você pra falar da vida dela? – Luan disse, agarrando a
camisa de Phil e com a voz parecendo terrivelmente perigosa, principalmente
em conjunto com o cenho franzido. Phil arregalou os olhos com a surpresa e
tentou se manter em pé enquanto Luan avançava alguns passos para frente.
Acredito que seja difícil manter o equilíbrio quando tem alguém com uma
expressão homicida segurando sua camisa e fazendo você andar de costas.
Eles se encararam por algum tempo e assim que Phil se recuperou do
susto, engoliu em seco, fez aquela cara de "mamãe, ele está brigando comigo"
e mandou:
— E quem é você pra encostar essas mãos sujas em mim?
— O mesmo cara que pode fazer você engoli-las.
— Eu não como porcaria.
A temperatura da sala pareceu cair para -35. Ouviu-se um "uhhh" do
lado de fora da janela e eu ergui as sobrancelhas. Bom, o quê mais poderia
fazer? Ele é maluco.
Olhei para Nara e tive uma inoportuna vontade de rir. Ela abriu a boca
de um jeito muito engraçado. Ah, cala a boca Lune, presta a atenção na briga.
Vocês me desculpem sabe, é que estou feliz porque não estou mais
envolvida.
Primeiramente, pareceu que Luan não sabia o que responder, pois ficou
em silêncio. Mas depois percebi que ele estava sorrindo. Mas não era um
sorriso normal. Era aquele sorriso meio de lado, com os olhos pegando fogo,
aquele tipo de sorriso que a gente vê só nos vilões maus e lindamente
inteligentes dos filmes da TV. Ele sorriu, endireitou o corpo, mas manteve a
mão firmemente presa na camisa de Phil. Aí ele virou pra mim.
— Lune, venha aqui.
— O quê? Eu? – falei com uma vozinha aguda, arregalando ainda mais
os olhos.
— Venha aqui.
Se fosse em outras eras, eu teria perguntado quem ele era para mandar
em mim. Mas na atual circunstância, o melhor que fiz foi obedecer. Parei a
cerca de um metro e meio de distância deles.
— Mais perto.
Oh, grandessíssima merda.
Dei mais um passo e meio.
(Existe meio passo?).

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Então, Luan fez um movimento brusco e forçou a nuca de Phil para
baixo. Ele bem que tentou escapar, mas estava muito próximo da parede e, ao
ir para trás, não teve para onde fugir. Tentou dar cotoveladas em Luan com o
braço direito, mas Luan o segurou firme.
— Peça desculpas – Luan disse com simplicidade. A voz dele estava
calma, seca, e o ar superior era bem visível.
Luan é forte, mas não é o Senhor Incrível. Acredito que se ele e Phil
estivessem em um estado diferente, a luta seria muito justa. Acontece que,
como Phil é infinitamente mais burro, deixou a situação chegar num ponto que
ele não tem como se mover direito. Aí… fazer o que, se ferrou.
Só que, caramba, eu tava tão bem no meu cantinho.
— Luan, não… – grunhi.
— Vamos! – ele forçou ainda mais o pobre e otário Phil para o chão.
— Ah, o.k., o.k., desculpa! – Phil, por fim, ainda que de má vontade,
acatou a ordem de Luan. Acho que não por que quisesse, mas sim porque viu
que não tinha outra saída.
Que perdedor.
Assim que as palavras foram soltas, Luan o largou imediatamente.
Calmamente, foi saindo de perto, porém, logo que virou de costas, Phil – agora
não mais o cheira-nucas e sim o suicida – disse baixinho, mas bem audível:
"babaca".
Logo que vi Luan se virar com o mesmo olhar psicopata no rosto, entrei
rápido em sua frente e pisei com toda força da minha alma no pé de Phil. E
quer saber? Doeu. Foi o suficiente para mantê-lo ocupado com a própria dor e,
também, distrair Luan até podermos sair dali sem maiores conseqüências.
Enquanto eu virava de costas e chegava rápido até a porta, resistindo ao
desejo de, como da outra vez, voltar e cuspir na sua cara inglesa, vejo três
garotos da nossa turma se aproximarem e irem em sua direção.
Obviamente eu queria acabar com aquilo de uma forma marcante,
batendo a porta e tudo, mas a curiosidade me pegou e não pude sair antes de
ver o quê eles pretendiam se metendo na confusão. Os três acabaram se
posicionando em volta de Phil. Delano, o único que eu conhecia de fato,
propositalmente ficou entre nós.
Assim que Phil não pode mais me ver, aconteceu uma coisa estranha.
Ele segurou a cabeça com as duas mãos e apertou as têmporas, suspirando
alto. E aí, perguntou:
— Cara, que dor. O que foi isso?
Aí eu já não entendia mais nada.

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Quer dizer, como assim?
Olho para Luan, que ainda encarava o chão com raiva, porém, com um
ar pensativo nos olhos e percebi que alguma coisa além da minha compreensão
estava acontecendo. Quer dizer, Luan, Delano, todos os outros pareciam saber
de algo que eu claramente não entendia e, quando estava pronta para
perguntar o que era aquele clima todo, Delano, ainda sem se mover, diz:
— Acho que é melhor vocês irem agora.
Mesmo sem entender, pensei por alguns segundos e decidi seguir a
instrução. Não sei ao certo por que, mas de repente me vi olhando para o rosto
de Delano e confiando nele.
Acho que não tinha falado sobre Delano antes, mas a verdade é que nos
conhecemos há anos. Ele é uma das pessoas que sempre estiveram por perto,
na mesma classe, esbarrando comigo pelos corredores, mas, infelizmente, não
fazem mais parte da minha vida. O que me incomoda, de certa forma, porque
há uns três anos costumávamos conversar e eu sempre senti grande afeição
por ele. Gostava da sua companhia.
Mas, como aconteceu com todos os caras que eu convivi, ele se
apaixonou. De uma forma não recíproca. E acabou sendo apenas mais um dos
muitos que se pouparam da minha presença.
Passei dando um leve toque em Luan, esperando que me seguisse. Para
o bem geral de nós três, Luan entende o recado e, junto de Nara, me
acompanha na saída apressada sob o silêncio do pátio.

Capítulo 12 - Mal-Estar

Ninguém se atreveu a abrir a boca diante do Luan que acabei de


conhecer.
Claro, depois disso tudo, minha vida estava mais comentada do que se
estivesse num reality show. Ouvi de tudo que você pode imaginar. Ouvi dizer
que meu pai vai se casar com a mãe dele porque estamos ficando sem
dinheiro. Ouvi dizer que Luan estava: ou tentando aparecer, ou apaixonado
loucamente por mim, ou ambas as hipóteses. Pior de tudo, algumas pessoas
juram ter visto trocas de olhares comprometedoras minhas com Luan e têm
certeza absoluta do romance – sigiloso, de acordo com certas fontes, por causa
da religião dos nossos pais que desaprovam o relacionamento. Fora todos os
comentários de que eu, Phil e Luan, somos um grande triângulo amoroso.
Acho que nunca me senti tão popular.

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O engraçado é que ninguém comenta a história real: meu pai e Victoire
se apaixonaram, formaremos uma família feliz e Phil é doente.
O pior é que não é brincadeira. Verdadeiramente acho que esse cara tem
alguma energia anormal, uma "força" macabra que o impede de deixar minha
vida em paz. Eu garanto, ou é problema de verdade, ou é crise de identidade,
ou ele simplesmente cheira alguma coisa.
Quer dizer, não foi culpa minha, tenho a consciência tranqüila. Meu pai
decide sobre a vida dele (infelizmente), é adulto, tem casa própria, sabe dirigir
e paga minhas contas. Nada mais justo do que eu permitir que ele siga sua
própria vida e deixe que se apaixone. Eu não consigo nem cuidar da minha
direito. Alguém pôr a culpa dessa situação toda sobre mim é inaceitável.
E foi Luan quem disse!
Quando saímos do pátio, fiquei meio sem saber para onde ir, então só
guiei a manada para qualquer lugar. Por fim, acabamos parando perto das
salas do primário, encostados na cerca do parquinho. Nara parou ao meu lado,
com a mão no queixo, pensativa. Luan pendurou-se na grade, parecendo
querer incendiar os balanços das pobres criançinhas inocentes. E eu,
confortavelmente, apoiei minhas costas e fiquei admirando tudo, com uma
certa expectativa no rosto. Nara, ainda não aceitando a situação, foi a primeira
a confirmar meus palpites, procurando explicações lógicas para tudo,
articulando possibilidades. Eu, por minha vez, já tinha aceitado que o cara é
maluco, só isso. Não seria a primeira vez que encontro caras problemáticos,
qual é a novidade? Para mim, Phil é apenas mais um insano que nasceu para
me perturbar.
— Não é possível. Ele deve saber de alguma coisa mais. Deve ter algum
motivo para acreditar que Lune é responsável por algo.
— Motivo para acreditar? Motivo? Me diga, Nara, o que levaria qualquer
pessoa normal a jogar a culpa disso em Lune se simplesmente não há culpa?
— Bom, não sei… alguém pode ter dito que foi Lune que uniu seus pais,
por exemplo, não dá pra saber, só…
— E Lune é DEUS? – Luan falou com um sarcasmo ardido que fez Nara,
a pessoa que conheço mais fascinada por discussões, arregalar os olhos.
— Anh… oi? – arrisquei uma pequena tentativa.
— Ela agora ORDENA que pessoas se apaixonem umas pelas outras?
Não deu.
— Bom, ela poderia ser…

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— Ah! Já sei! Lune é o próprio Cupido encarnado, que tem o poder de
obrigar a raça humana a se apaixonar, que acha? – a ironia de Luan alfinetava
cada centímetro da corajosa oponente – que tipo de lunático acreditaria nisso?
Mais uma vez, ela se calou, dessa vez ficando com as bochechas
coradas.
E eu sei o porquê. Sei exatamente o que ela estava pensando e também
sei o quanto ela se envergonha disso. Ela me olhou pelo canto dos olhos e eu
acenei levemente com a cabeça, sinalizando um "não".
Entendi perfeitamente a pergunta feita pelo olhar dela, por mais óbvia
que fosse a resposta. É claro que eu não tive nada a ver com o sentimento de
Victoire pelo papai, mas sei que as especulações de minha amiga sobre mim
ultrapassam o limite do racional, então, simplesmente respondi. Não quero
mais discussão do que já temos, além disso, ela está confusa, coitada. Nunca
perdeu uma discussão antes e tem uma melhor amiga bruxa. O fardo não é
para qualquer um.
Mas ainda não tinha, realmente, me concentrado na discussão. Até
agora estava só olhando para Luan, notando como ele está maravilhoso,
mesmo com a cabeça explodindo de raiva. Ah, é que ver como os caras ficam
furiosos quando alguém se mete com alguma garota já é algo bem atraente de
se observar, mas quando você (no caso, eu) é a garota em questão, acreditem,
é bem melhor. Não sei o que acontece comigo, mas ser a única a ver essa
criatura agarrada na grade, olhando para o chão e bufando é muito, muito legal
mesmo. Mesmo que a coisa legal seja alguém perdendo a cabeça de ódio.
Eu sei, a vida é um paradoxo muito grande às vezes.
…O.k., o.k.! Nara também está vendo. Sermos as únicas a ver essa
criatura agarrada na grade, olhando para o chão e bufando é muito, muito legal
mesmo.
Ah, viram? Não fica a mesma coisa.
— O cara é um completo idiota, então, tudo certo? – ele termina, com
um sorrisinho cruel. Eu sei que está sendo muito… "arisco", mas acho que essa
não é a verdadeira intenção dele. Acho que deve ter só perdido a cabeça. Como
eu não sou exatamente uma pessoa calma e racional – calma talvez, racional
dificilmente – não sei muito bem como é para ele ficar irritado assim. Mas, pelo
que eu percebi, não se deixar levar pela ira constantemente causa algum tipo
de acúmulo de emoções que, quando sai uma, todas vão atrás. O problema é
que: quem atura somos nós.
Os olhos de Nara, mesmo com todo o esforço da dona, começam a ficar
um pouco mais brilhantes. Conheço minha amiga e ela sabe que a fúria de
Luan não se dirige exatamente à sua pessoa. Porém, também sei que Nara não
consegue suportar grosserias, ainda mais injustamente. Por isso, pude

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adivinhar que seus olhos mais cedo ou mais tarde ficariam mais brilhantes e, de
fato, ficaram. Não é culpa dela, apenas acontece.
Mesmo me deliciando em ver suas bochechinhas vermelhas, talvez seja a
hora de Luan voltar a ser o cara de antes.
— Luan – digo mansa e com cuidado. Ele gira a cabeça para mim como
se tivesse esquecido da minha presença ali. Meio assustado, corre os olhos por
nós duas. Nara disfarça, olhando rápido para o chão, porém, ele parece notar
seus olhos lacrimosos e assume alguma expressão arrependida.
— Obrigada pelo que fez hoje… – volto a falar com um sorriso, para
quebrar o clima negativo – mas que tal esquecer isso tudo?
Luan me encara por alguns instantes e, como se seus braços pesassem
uns 53 quilos, solta a grade e se vira, encostando-se nela. Com muito cuidado –
e tomada por uma coragem que temo não voltar por uns 15 anos – ergo minha
mão e a apoio no alto de seu braço, tentando confortá-lo.
Por um segundo, pensei que Luan fosse me chutar, arremessar ou algo
do gênero. Mas, depois, foi como se o mundo todo se iluminasse e sorrisse
para mim, tipo uma menininha, ao ganhar o presente mais desejado no
aniversário.
Ele suspirou, me olhou bem nos olhos e, subindo sua mão até a minha,
envolveu a ponta dos dedos nos meus, de uma forma totalmente encantadora.
E é isso, não adianta fugir de nós mesmos. Quando a vida te prepara
coisas interessantes e sua avó meio maluca ainda as prediz, é porque vai ser
assim, não importa o quanto você fuja e resista. Pelo menos, quando se trata
de coração, é como funciona.
Desde que o vi entrar naquela sala, desde que me senti formigar da
cabeça aos pés, desde que levei choques por sua causa de um colar dotado de
vida própria, eu deveria ter aceitado de uma vez o que se passava pela minha
cabeça. O que eu sentia era a realidade pura e verdadeira.
E agora cansei.
O.k., admito.
Não sei o que se passa pela cabeça dele, muito menos se é recíproco.
Mas o fato é que, pela primeira vez na minha vida, acho que estou gostando de
alguém.
Isso mesmo.
Eu, Lune Noire, estou apaixonada.
Tudo bem, "apaixonada" é uma palavra forte, não tenho certeza de que
isso não passa de uma atração porque o cara é lindo, fantástico, misterioso,

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gostoso (com o perdão da palavra) e… muito mais. Na verdade, acho que a
gente nunca tem certeza.
Claro que, como toda garotinha crente de ter encontrado seu príncipe –
sem saber se o tal príncipe acredita ter encontrado uma princesa – não
consegui me livrar da praga que acompanha todo o amor platônico: a tal da
esperança.
A esperança é o tipo de sentimento que não deveria vir acompanhada do
amor não correspondido. Existe maior desgraça? Por culpa dela, as garotinhas
encantadas ficam criando relações sentimentais para tudo que um cara faz em
respeito a elas. Se a vítima empresta uma borracha: está apaixonado. Se a
vítima oferece uma carona: está tentando ficar perto. Se a vítima olha: estava
admirando.
Ah, que inferno!
Por causa dela, a esperança, menininhas tomadas pela paixão se
declaram para o carinha de quem estão a fim e, muitas vezes, levam um pé na
bunda. Por causa dela, me pego pensando se Luan não estaria tornando meus
sentimentos recém descobertos recíprocos, ao retribuir meu afago.
Sempre, em toda minha vida, senti pena das colegas que assistia,
eventualmente, se deixarem levar nas asas da esperança e acabarem com a
cara amassada num poste do amor. Me preparei, criei teorias, meditei e me
auto-protegi deste mal incontrolável da mente apaixonada.
E agora, cá estou eu.
Claro, minha atitude imediata foi me desvencilhar desse pensamento.
Não, muito obrigado, não quero dar ouvidos à esperança e acabar de cara no
chão mais tarde.
Não, com Lune Noire será diferente!
Por isso não me iludi quando, no segundo que nossos olhares se
encontraram, eu achei verdadeiramente sentir (achar verdadeiramente, isso faz
sentido?) que era um sentimento mútuo. Pelo menos, eu tentei não me iludir.
Não há como explicar por que estou dizendo isso, mas foi como se eu
estivesse dentro da cabeça dele, dentro dos seus olhos, ouvindo eles me
contarem tudo, me contarem que era real. Dentro da minha cabeça, seus olhos
me pegavam no colo e me faziam acreditar que enquanto estivessem ali, eu
poderia esquecer de mim.
E isso me deixou feliz.
E, com a felicidade, veio aquele calorzinho acolhedor, que subia pelo
braço até o centro do peito, então, espelhando-se nos meus olhos, em forma
de lágrimas. Ou quase lágrimas, pois não choro e não tenho certeza se apenas
ter água nos olhos pode ser definido como lágrima.

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Estranho, não?
Acredito mal estar conseguindo descrever como é esse sentir. Só posso
afirmar… que não é o tipo de coisa que acontece com todo mundo. Porque, de
certa forma, eu sinto isso. Um sentimento de tanto apreço e tanto prazer que
tenho medo de não poder aproveitá-lo para sempre. E, seja pessimismo ou
temor, algo me incomoda. Nele. No sentimento. Em alguma coisa… algum tipo
de peso que não me deixa estar tão feliz quanto acredito que seria o comum
estar.
Eu quero estar. Eu quero viver isso, sempre.
Não está entendendo nada? É, pelo menos agora sabe como eu me
sinto.
Ah, e por favor, se alguém aí já tiver se apaixonado de verdade, dá pra
escrever uma carta dizendo se isso é previsto? Sabe como é, tem gente (eu)
que vive tanto tempo num mundo surreal que, quando precisa, não sabe
identificar uma situação "comum".
Ah, ajuda dizer se a veia dramática vem junto.
Bom, sendo paixão ou não, o importante é que me rendi e não tenho
mais vergonha de admitir que minha vontade, agora, é ver ele se virar e me
dar um abraço. Um abraço apertado, daqueles aconchegantes, em que seus
braços envolvem minha cintura e me apertam forte.
Porém, como não se pode ter tudo na vida, eu fico feliz com seus dedos
juntinhos dos meus assim. Já está de bom tamanho.
Caramba, quero chorar.
Não deveria ter gritado com Phil, afinal, ele disse a verdade. Eu estou
caída por Luan. E, não havia notado isso antes, mas o fato de nós morarmos
juntos realmente complica as coisas, na atual circunstância. Nós vamos morar
sob o mesmo teto, mais cedo ou mais tarde, e o que vai ser da minha vida?
Tudo bem, vamos esquecer da maldita incerteza por enquanto, vamos supor
que eu não me esqueça dessa droga de paixão por um bom tempo. Nossos pais
se casam e vamos morar na mesma casa, dividindo corredores, cozinha, e o
pior, o aparelho de som.
Se esse sentimento não for correspondido, meu Deus, como vai ser
quando ele arranjar uma namorada? O que vou fazer? Não, imaginem só: ele
chegando em casa, apresentando a todos sua pretendente e sua pseudo-irmã
estaria ali, sentada, assistindo e desejando mais do que tudo estar no lugar
dela, sendo obrigada a viver com uma constante e bonita dor-de-cotovelo.
Ah, não. E o pior não é isso, vem agora: COMO vou ficar se ele arranjar
uma que seja meiga, pequena, delicada, tenha olhos azuis e lindos cachos cor
chocolate? Ela vai se sentar à nossa mesa, desdobrar o nosso guardanapo,

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colocar no colo e vai fazer uma oração, mais bonita, muito mais bonita do que
qualquer uma minha, agradecendo a Deus pela sua vida maravilhosa, pelo seu
namorado maravilhoso e pela maravilhosa família dele. Ela vai querer ser minha
amiga e eu vou gostar dela porque ela será perfeita e querida demais. Vai me
convidar para ser madrinha do casamento deles.
Oh, isso sim seria um belo de um pesadelo, não?
Ponha-se no meu lugar, você também não gostaria de morrer? Tudo
bem, morrer é demais, também acho. Quem sabe entrar em coma. Alcoólico.
Bom, não é tão desesperador assim, eu posso me juntar à irmãzinha
dele e o espiar sem camisa no quarto.
Chegando em casa, já estava mais do que decidido que o plano seria:
alimentar os animais e cair na cama. Despeço-me dos meus coelhinhos, vendo
suas carinhas tristes por causa da falta de atenção do dia, e subo para meu
quarto, desejando mais do que tudo uma cama. Todas as descobertas e
acontecimentos do dia giravam dentro da minha cabeça e a única forma que
via de fugir disso era pegando no sono – apesar de que, com minha sorte,
muito provavelmente acabaria sonhando com Luan.
Apago a luz e, sem nem tirar o uniforme, entro em baixo do lençol lilás e
admiro por alguns minutos os carneirinhos do papel de parede sob a luz
amarelinha do fim do dia. Literalmente, contando carneirinhos.
Não sei quanto tempo depois, pois acredito ter cochilado, ouço a porta
da frente se abrir e passos subindo as escadas, seguido por alguém entrando
no quarto. Mal me dou ao trabalho de subir as pálpebras, apenas vislumbro o
borrão que se tornou meu pai, segurando alguma coisa que não consegui e
nem tentei descobrir o que era. Ele falou algo, mas não prestei atenção, já
estava novamente sendo vencida pela vontade de dormir. Ainda consegui
assistir ele depositar os embrulhos sobre a penteadeira e escutar uma
pergunta, mesmo não entendendo seu significado. Grunhi um som de
consentimento qualquer e nem o esperei fechar a porta, apenas me deixei
embalar e embalar… e embalar…
Acordo horas depois, com frio. Sentindo o vento da porta da sacada
aberta, me xingo mentalmente por tê-la esquecido assim. Estranho, nunca
esqueço de fechar.
Grogue, abro os olhos lentamente, um mais do que o outro, e alguma
coisa está diferente. É como se alguém tivesse jogado vários sacos de glitter
por todo o quarto, sensação parecida com a de quando vi Luan pela primeira
vez. Tudo está brilhando, o ar, os móveis, o teto e até eu mesma. Penso se não
estou com algum problema na retina e, não sei se faço bem ou mal, sento na
cama. Então, sinto tudo girar e minha cabeça lateja loucamente enquanto, mais
uma vez, tento enxergar alguma coisa, porém, minha visão falha, como se

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estivesse indo e voltando, e sinto dor ao direcionar o olhar para um grande
brilho perto da sacada.
Vencida, decido fechar os olhos definitivamente. Tendo agora apenas os
outros sentidos, tento me levantar e caminhar até a porta, mas quando o faço,
tudo piora. Sinto como se toda energia fosse sugada do meu corpo, meus
braços parecem ter carregado uma carroça por quilômetros e estão tão sem
vida quanto minhas pernas. Simultaneamente, meu colar assume um peso
assombroso e uma dor fina corta minha nuca de ponta à ponta, o que me faz
ficar meio inconsciente. A impressão que tenho é a de que minha cabeça está
desconectada de todas as outras partes do corpo e qualquer movimento que
faço é pura sorte.
Procuro a mesinha ao lado da cama para tentar acender o abajur, mas
não consigo saber onde nenhum deles está e, sabe-se lá com que estímulo,
impulsiono meu tronco para frente, na esperança de conseguir me segurar nas
cortinas. Porém, elas fogem dos meus dedos e acabo, sem querer, com o
ombro direito colado no vidro da porta.
Possuída por um mal-estar nauseante e um desespero nada mais do que
justificável, mais uma vez, abro os olhos. Então eu surto ao ver através do
pedaço de cortina preso pelo meu corpo a sombra de um animal enorme.
Eu amo os animais. Eles me fazem bem e me sinto feliz ao lado deles.
Mas ao assistir aquele cão gigantesco, dando seus passos pesados e lentos em
direção à entrada da sacada, eu não senti nada mais do que medo. Medo de
morrer.
Entro em um choque de horror e não tenho chance nem de pensar. Só o
que consigo notar – além dos latidos alucinados de Roget, o Rottweiler da
vizinha – é meus joelhos vacilando, a visão sendo sugada e a sensação de cair
nos braços de alguém.
Depois disso, mais nada.

Capítulo 13 - Louco

Quando acordo, vejo que não estou na minha casa.


Ah, muito longe disso. O colchão não é tão confortável, as cobertas não
são tão fofinhas e meus carneirinhos sumiram. Muito, muito menos minha
roupa é igual ao meu pijama do Snoopy. Mandando a real, eu nem sequer
estou usando roupa. Isso aqui mais parece um avental, eu uso isso pra lavar
louça.

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— Acho que este aqui está virando nosso local de encontro.
Dou um pulo tão grande que até me pergunto como esse tecido verde
claro não se rasgou em várias partes. E agradeço por não ter rasgado, acho
que não é uma boa apressar tanto meu relacionamento com Luan assim.
Eu devo ter feito uma expressão arregalada muito idiota, porque ele riu
da minha cara. Normal, é muito gratificante quando a pessoa por quem seu
coração está pulando de alegria ri de você, tipo, o tempo todo.
Certo, falando bem sério, eu acho que eu também riria de mim se, sabe
como é, não fosse eu mesma. Qual é, olha só para mim.
— E desde quando esse é o meu lugar favorito no mundo? – pergunto
num misto entre irritação e êxtase, entendendo finalmente onde estou.
Reconheci os aparelhos esquisitos.
— Desde que me conheceu, pelo que parece, sempre acaba aqui e dá
um jeito de me encontrar primeiro – ele sorri ainda mais ao ver meu olhar
espantado – ei, eu estou brincando.
Baixo meus olhos tentando me lembrar de tudo o que aconteceu, mas só
identifico imagens vagas.
— Luan, o que houve?
Ele pisca algumas vezes até começar a falar.
— Ué, se você não sabe, muito menos eu.
Lanço um olhar torto e ele dá risada. Novamente.
— Tá, eu não sei, seu pai ligou lá em casa para contar que estava
trazendo você para o hospital porque você tinha desmaiado. Então pegamos
um táxi e viemos. Ele não me contou nada, não teve muito tempo para isso,
sabe, com o desespero e tudo o mais.
— E onde ele está agora? – pergunto percebendo que papai não deu
nem sinal de vida desde que acordei. É, eu sei, que foi há um minuto.
— Falando com os médicos eu acho… você fez alguns exames, deve
estar vendo se já saíram e todo o resto.
— Exames? – pergunto quase engasgando – Há quanto tempo estou
inconsciente?
— Há mais de três horas, acho – ele olha no relógio – ah, é, é, mais de
três horas.
Eu fico tão espantada que nem posso raciocinar direito. Quer dizer, mais
de três horas para acordar de um desmaio? Tempo bastante para quem teve a
vida toda uma saúde intocável.

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— Na verdade, já fazem três horas e trinta e sete minutos – ele
acrescenta pensativo – e acho que eu já deveria ter ido avisá-los que você
acordou – disse, levantando-se imediatamente. Sem pensar, agarro sua mão
com o desespero estampado no rosto. Para meu consolo, ele se espanta tanto
que quase posso rir pela inversão de papéis. Se eu não estivesse em crise, é
claro.
— Não vá… – imploro, sentindo minhas bochechas esquentarem tanto
que daria para fritar alguma coisa. Engulo em seco – fica aqui.
E juro para vocês: o que ele fez em seguida vai ficar marcado
eternamente na minha história de vida.
Eu desejo, do fundo do coração, que todas as garotas do universo
possam um dia receber um sorriso igual a esse. Quando vejo sua expressão se
formar, é como se todo o resto tivesse se apagado e só existíssemos eu e ele
em todo o planeta. As sobrancelhas arqueadas de uma forma tão carinhosa,
seus lábios perfeitos expandidos, formando as covinhas mais lindas que já vi e
provavelmente verei em todos os dias da minha existência bizarra… parece que
tudo ali tem uma sintonia perfeita, a melodia perfeita para me deixar feliz. E,
depois que ele simplesmente faz meu mundo parar apenas com a expressão do
seu rosto, volta a sentar, girando sua mão e segurando a minha como se fosse
feita de um vidro muito frágil. Então, põe-se a acariciá-la com o polegar,
formando pequenos círculos.
E é exatamente aí que não posso mais segurar a esperança no cativeiro
que eu havia preparado com tanto carinho para ela. Ela vem com força total, só
para acabar com minha vida. Cruel como nunca alguma jamais foi, acendendo
um grande e alto luminoso em neón, com luzes coloridas, piscando:
"ELEGOSTADEVOCÊ"
Não sei quanto tempo fiquei olhando dessa forma deslumbrada para os
olhos dele, mas assim que me sinto segura o suficiente para relaxar nos
travesseiros e o vejo mexer os lábios provavelmente para falar algo tão bonito
quanto ele, a porta do quarto se escancara e papai entra com Victoire e Lise no
seu encalço.
Eu, decepcionada, quero voltar a dormir.
Eu até me pergunto o que Lise estaria fazendo aqui já que não nutre
sentimentos calorosos por mim, mas prefiro ficar na minha, principalmente
porque ela está usando uma roupa que nunca imaginaria nela, aí não consigo
prender a atenção em outra coisa, de tão abismada que estou. Eu achava que
fazia bem o tipo de blusinhas brilhantes e saias cor-de-rosa. Agora, quem
imaginaria um All Star e uma jaqueta de couro? Eu não.
E o jeans dela está rasgado no joelho.

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No exato momento que a família toda voltou, Luan largou minha mão
como se ela fosse feita de urtiga. Depois, olhou de relance para mim e se
afastou com, eu juro, as bochechas um pouco mais rosadas.
— Lune! Graças a Deus que acordou – papai diz com uma voz aliviada.
Até me sinto culpada por ter ficado assim, nunca o tinha visto desse jeito. Ah,
nunca tínhamos passado por isso mesmo – faz muito tempo?
— Pouco mais de 5 minutos eu acho – Luan responde com uma voz
esquisita.
— Tudo isso? – ele olha para o pobre sem entender – e por que não foi
nos avisar?
Tenho certeza que meu pai não quis parecer irritado com ele, mas,
infelizmente, foi o que pareceu. Victoire até ficou meio sem graça. Então, me
sensibilizei por Luan. Quer dizer, meu pai é uma boa pessoa, de verdade, mas
ele não precisava ter falado dessa forma.
Tá, tá, eu confesso, eu tomei as dores do cara porque gosto dele, e daí?
— Fui eu que pedi, papai – disse, num tom de gemido que obviamente
era pura enganação – acordei e não havia ninguém aqui além dele, como
esperava que eu ficasse?
Com certo prazer vi seu rosto se transformar em algo parecido com o
remorso. Qual é, o cara fica aqui cuidando de mim quando todo mundo se
manda, me proporciona essa visão abençoada logo quando desperto e ainda
me dá o sorriso mais lindo da história para, no final, levar um coice do meu
pai?
Ora, veja só. É mesmo muita injustiça. Eu jamais me calaria enquanto
meu pai dá o mole de ficar chateado com ele. Era você, Papai-Desnaturado-
Otto, que deveria estar na cabeceira da minha cama, chorando diante do meu
leito doente, quando eu acordasse de três horas e trinta e sete minutos de
desmaio.
Não que eu esteja reclamando. Só achei injusto, sabe como é.
Que culpa eu tenho? Que tipo de garota não ficaria atordoada depois do
sorriso que recebi? Bom, desculpe decepcioná-los, mas sou humana. Posso não
ser uma humana das mais tradicionais, mas, ainda assim, humana.
Enquanto me distraía com o ar agradecido dos olhos de Luan, meu pai
me pedia mil desculpas.
Só me ferro nessa família.
— Desculpe filhinha, mas eu precisava de notícias, você nunca me deu
um susto desses em anos e agora desmaia e fica horas inconsciente…

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— Mas o senhor podia ter sido um pouco mais educado – eu disse, numa
voz fingida de mágoa – Luan ficou aqui de toda a boa vontade. Não foi assim
que me educou.
— Tem razão filhinha, tem razão – ele fazia carinho na minha mão, não
parecendo estar ligando muito para o que eu estava dizendo. Parecia apenas
querer se desculpar comigo para não contrariar.
Acho que eu deveria desmaiar mais vezes, papai fica muito engraçado.
Tão vulnerável.
Sem aviso, uma pontada forte na cabeça me trás de volta ao mundo real
e eu me lembro de tudo como num bombardeio.
— Quem me segurou? – mando de repente e um silêncio estranho e
confuso paira sobre o quarto. Imediatamente, percebo que acabei de surtar de
um jeito meio esquisito e que deveria ter me controlado. Mas agora já era.
— Como disse, amor? – mandou papai, sem entender muito.
— Quando eu caí. Quem me segurou? – repeti, um tanto mais sem
graça.
Tremo quando vejo meu pai e Victoire se entreolharem. Luan olha de
mim para eles e Lise… bom, Lise não faz nada.
— Desculpe, florzinha, mas não sei do que você está falando – diz meu
pai, sem jeito.
Aí eu me afundo no colchão. Não só por ele ter me chamado de
florzinha, mas… qual é, eu desmaiei e perdi um pouco os sentidos, mas antes
disso eu estava bem lúcida. Certo, não tão lúcida, mas conseguia saber a
diferença entre imaginação e tato. Mas, se meu pai não sabe…
— Qual é pai – digo com uma risadinha nervosa – eu não fiquei louca.
Sei muito bem o que aconteceu antes de perder os sentidos, eu tinha levantado
e vi algo do outro lado da cortina… então vacilei e antes de cair no chão senti
alguém…
De novo o silêncio tenso.
— Eu tenho certeza – reforcei, antes que houvesse alguma dúvida.
— Sinto muito, Luninha – pude perceber claramente a voz nervosa de
meu pai – mas não havia ninguém lá.
— Eu acordei com você me chamando e, quando cheguei lá, você estava
caída ao lado da sua cama – acrescentou logo depois.
Bom, agora nos encontramos numa situação bastante peculiar. Seu pai e
sua provável futura família pensam que você é maluca, mas há uma batalha
emocionante entre a sinceridade e o bom senso. Eles têm medo de falar a
verdade porque você vai pensar que estão te chamando de pirada, mas
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também não querem te magoar. Logo, o próximo passo é ficarem procurando
motivos para provar para você e para si mesmos que você não é, sabe, uma
maluca de pedra.
Com essa situação toda, preferi nem compartilhar o fato de que eu não
gritei por ninguém antes de desmaiar. Até por que, eu estava mesmo me
sentindo bastante louca com a história toda.
— Ah, chérie – Victoire foi a primeira – você tem certeza mesmo? Às
vezes pode só ter tido a impressão…
— É! – papai – Você pode ter tido algo como um sonho, sabe, isso já
aconteceu comigo, uma vez fui levantar para ir ao banheiro, mas estava com
muito sono e caí, por que tinha adormecido em pé, acredite, eu sonhei que
tinha realmente ido ao…
— Eu acho – Lise – que você bateu com a cabeça.
(Silêncio).
— Ou – Luan disse ao meu lado, parecendo ser o mais equilibrado de
todos e claramente tentando me fazer sentir melhor – você bateu com as
costas na cama e teve a impressão de ter sido alguém.
— Isso! – Papai e Victoire exclamam, num coro quase perfeito.
— Ou simplesmente bateu a cabeça – Lise diz mais uma vez,
infelizmente, parecendo a mais confiável de todos.
É realmente admirável os esforços deles em tentar encontrar uma
solução, mesmo que não tenham me convencido. Eu tenho a nítida impressão
de que alguém – alguém adulto – me segurou. Foi como uma imagem na
minha mente, veio como um… ah, não sei explicar. Mas… parecia alguém
gentil. E familiar.
Ah, o que eu estou dizendo, se não foram eles não pode ter sido mais
ninguém.
— Lise, pare com isso – Victoire cospe na direção de Lise, com raiva – os
médicos a examinaram, ela não bateu a cabeça.
— Puxa – a menina retruca, erguendo as sobrancelhas em minha direção
– que pena, então ela é louca mesmo.
Afundo nos travesseiros, pesada. Estou me sentindo meio fraca ainda e
só tenho vontade de me deixar embalar e embalar… e embalar…
Devo estar mesmo ensandecida.
Deito a cabeça um pouco para o lado e vou fechando os olhos devagar,
ainda ouvindo meu pai e Victoire conversarem nervosos. Nada que eu
realmente entenda, principalmente porque não quero. Prefiro ficar aqui, me
deixando levar pelo sono. É engraçado como quando você está assim, com os
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olhos fechados você consegue captar coisas que não perceberia antes… quase
posso ver Luan, ao meu lado, e Lise, sentada mais adiante… consigo sentir a
presença deles, as mudanças na claridade, o ar… eu sempre gosto de fazer isso
no jardim de casa, apenas sento e fecho os olhos. É como se o ar me
contasse…
Quando tudo está escuro e penso que vou cair no sono em questão de
segundos, algo quente toca minha mão.
— Lune – a voz de Luan resgata meus sentidos. Tudo bem, como é ele
eu dou um desconto. Abro os olhos e, ao invés da natural expressão relaxada,
encontro sobrancelhas preocupadas.
Ele havia se aproximado muito e me observava com o cenho franzido.
Gentilmente, afasta os cabelos do lado do pescoço que acabei de deixar livre,
coisa que faria qualquer garota surtar. Porém, como sua expressão não é boa,
seguro a onda.
— O que é isso, Lune? – diz em voz baixa, tocando o lado do meu rosto
para virá-lo um pouco mais. Levo minha mão até a nuca e algo úmido encontra
meus dedos.
— O que… – eu afasto a mão para conseguir ver e falo assustada – é
sangue?
Presumo que tenha dito isso um pouco alto demais, pois papai e Victoire
pararam no mesmo instante de sussurrar às minhas custas.
— Como é, Lune? – papai se aproxima rápido, não sem antes dar uma
boa olhada na situação e fazer cara feia para Luan, que me tocava com
intimidade. Não tanto quanto eu gostaria, obviamente. Sinto minhas bochechas
corarem.
Eu sei e você sabe. Mas meu pai não sabia que o motivo de Luan estar
com a mão no meu pescoço era totalmente inocente. O pior é que nem posso
culpá-lo por ter praticamente empurrado o garoto ao se aproximar, pois, ainda
que com ótimas intenções, ele estava mesmo perto, debruçado em cima de
uma cama que já é alta.
Sabe como é, não pude deixar de corar.
Mas quem diria que um homem feito como meu pai seria tão mal
educado? Já não bastava ter falado com Luan daquela forma desagradável
antes, agora se enfia na frente do garoto. Eu, mesmo sabendo que não posso
culpá-lo, me enfureço ao ver o rapaz cambalear e quase cair sentado na
cadeira às suas costas. Por um segundo, Luan me pareceu irritado, se não vi
mal.

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Eu queria poder dar uns bons cascudos no meu velho, mas na atual
circunstância de amiga-apaixonada, eu não tinha esse direito. Ia dar muita
bandeira.
— Você está bem filhinha? – disse o sr. Otto-sem-modos – Como fez
isso?
— Não sei, ainda não tenho olhos nas costas – discutir pode não ser o
melhor, mas ninguém disse que não posso ser grossa de vez em quando – se
me arranjar um espelho talvez possa responder melhor.
Quando papai abriu a boca para se oferecer, eu o cortei.
— Luan, pode tentar achar algum pra mim?
Meu pai piscou em minha direção.
— Eu pego um para você, filhinha.
— Não, eu quero que ele me ajude – falei, com os olhos cerrados.
Claro, só depois pensei na possibilidade de Luan não querer ir, mas ele é
educado e se levantou ágil, fazendo que sim com a cabeça e um sorriso no
rosto.
Eu sou muito cara-de-pau mesmo. Papai pareceu meio frustrado, mas
nem liguei.
Victoire, que estava parada no pé da cama me sorri alegre. Nem sei
direito o porquê, mas ela sorria abertamente. Depois, se aproximou e olhou
torto para meu pai, que imediatamente pareceu desconcertado e foi puxado
para mais longe, abrindo espaço suficiente para Luan passar com o pequeno
espelhinho que tirou do banheiro do quarto.
Aproximando bem, percebi o que era. Um corte fino, manchado de
sangue e emoldurado por um vergão muito vermelho, de ponta à ponta da
minha nuca.
Exatamente sabe onde? Sob meu colar.
Agora me lembro. Me lembro bem. Quando levantei senti o peso vindo
da jóia e não era, óbvio, um peso comum. Tinha algo a mais nele, algo que –
pelo visto – me machucou.
Hoho.
Coisa completamente normal. O que há com você? Vai me dizer que
nunca aconteceu de um colar assumir o peso de um bloco de concreto de uma
hora para outra? É claro que já, acontece o tempo todo com todo mundo.
Porque eu sou completamente normal.
Quer saber, ainda bem que já estou no hospital, assim só me resta
levantar daqui e descobrir qual é a área de psiquiatria.

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— É, belo exame, profissionais do hospital – sussurrei, admirada por
médicos e enfermeiras não terem visto um corte daquele tamanho.
Isso acontece só para me perturbar, só pode. Por que tudo acontece em
torno desse cristal?
Qual é, contos de fadas não existem, isso não é real. Primeiro eram os
choques, as ondas de calor… depois ficou pesadinho, mas algo que ainda dava
para duvidar… eu já tinha aceitado que não passava de mera impressão minha.
Mas nessa situação é impossível, loucura, duvidar. Chegou a me machucar. Fez
ferida. Claro, o sangue já coagulou, depois de tanto esse tempo, mas… não se
pode questionar: meu colar é um mutante sem propósito.
Eu detesto admitir, mas estou com medo.
Tá, eu sei, sou medrosa, não tenho por que detestar admitir.
Será que…? Não.
Não, isso é uma idéia ainda mais absurda, Nara não poderia ter razão.
O.k., piração, qual é Lune, acorda. Você não pode estar pensando…
Sinto minhas mãos tremerem com o receio. Agora entendo como deve
ser para minha amiga, tão cética, manter depois de anos a mesma opinião a
meu respeito. É como uma guerra, só que dentro da sua cabeça. Tudo aquilo
que você sempre pensou ser a verdade se confunde com tudo aquilo que você
sempre pensou não existir e, num momento, você percebe que a verdade
sempre foi o que não existia. As pessoas que você sempre julgou serem
sonhadoras e criativas, de repente, são sábias.
Acho que é mais ou menos nesse ponto que você descobre que, na
verdade, não sabe nada, não é? Você se pergunta: quem sou eu no meio de
tudo isso? Então, percebe que não passa de uma criança presunçosa, que
pensava ter razão sobre tudo. E o pior, é que ainda se nega a acreditar!
Assim como eu, procurando uma saída qualquer além da explicação mais
óbvia. Assim como Nara demorou anos até criar coragem para me confessar
realmente o que achava sobre mim. E eu ri dela, sem nem pensar no quanto
isso a magoaria. Não me importei em saber o quanto ela sofreu antes de me
contar. Não quis saber o quanto ela mesma já tinha se repreendido por pensar
aquilo. Ri, como se ela fosse louca.
E agora estou aqui, anos depois, passando pelo mesmo.
Minha cabeça gira tanto que, pela primeira vez em anos, sinto vontade
de arrancar essa jóia do pescoço. Se ainda não a arranquei, é apenas por causa
da lembrança que tenho da minha avó.
Minha avó.

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Ela não era uma pessoa comum. E, mesmo tendo tanta certeza de tudo
que falava, tenho a impressão nítida de que, se alguém a confrontasse algum
dia sobre seus pensamentos, ela nada mais faria do que considerar a opinião
alheia e tentar acreditar nela. Porque ela sim não seria cética. Ela sim não era
presunçosa. Sabia que não era dona da verdade, como as outras pessoas
teimam em crer que são. Se ela estivesse comigo quando, anos atrás, ri da
opinião de Nara, teria me repreendido.
Ah, sim. Minha avó não era como as outras pessoas.
Era uma velhinha muito interessante, ela. Me sinto mal em pensar que
nem ao menos conheço seu nome. Lembro daquele cabelo comprido e
prateado, os olhos bondosos, sempre lacrimosos… as mãos carinhosas. Lembro
das comidas que fazia… mesmo sem ter a mínima idéia de como eram. Até
hoje, nunca consegui encontrar pratos tão deliciosos quanto os que ela fazia,
no velho fogãozinho à lenha.
Lembro da casinha, simples e pobre, no meio da clareira de um bosque.
O Sol batia na minha janela, muito cedo, e eu logo corria descalça sobre as
folhas caídas das árvores, ainda molhadas pelo orvalho. Lembro das borboletas,
voando em minha volta como se realmente brincassem comigo… elas realmente
brilhavam, não brilhavam?
Definitivamente, acho que sim.
Me recordo de tantas outras coisas… é estranho que não consiga me
lembrar aonde era. Tantas conversas, tantos conselhos… tardes de dança e
música com aquela pessoa tão amável.
E não sei como encontrá-la.
Sinto saudades.
Refletindo sobre as maneiras, aparência, lembranças que tenho de
minha avó, admito que era uma criatura realmente peculiar e lhe cairia muito
bem o papel de boa velhinha, aquelas que aparecem em contos de fadas. Mas
há uma grande diferença entre o parecer e o ser. Duvido muito que minha avó
saísse por aí cantando Bibidi-bobidi-boo.
Por exemplo, nossa vizinha, a Sra. Miralle: é uma francesa meio
perturbada que mora sozinha com seu monstruoso Rottweiler – um cachorro
que se quisesse quebrava todos seus ossinhos em uma bocada só. Ele é o
Roget. É assustador, mesmo que para mim nunca tenha feito nada, acho que
porque sabe que no fundo gosto dele. Várias vezes já entrei sorrateiramente no
quintal da Sra. Miralle apenas para lhe dar água fresca. Não porque ela seja
uma dona ruim, ela é estranha, seus filhos lhe deram o cachorro para cuidar da
casa, pois ela não faz. Tá, tá, a questão é: a velha é meio maluca. Nunca sai de
casa a menos que seja para pendurar a roupa, regar suas plantas e de vez em

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quando pôr comida para o coitado do Roget, que sempre está preso. Sai
fumaça daquela chaminé incessantemente e ela nunca abre as cortinas.
Ela tem tudo para ser uma ótima candidata à bruxa. Mesmo assim, acho
apenas que ficou meio caduca quando enviuvou do velho Heitor. Tenho pena
dela, por ser tão sozinha e muitas vezes já fui regar as plantinhas que ficam
para fora da sua cerca, sabe como é, para ajudar.
Mas, não. Apesar de toda a estranheza sinistra da Sra. Miralle, quem
parece mais apta a ser eleita como bruxa, fada, elfa, feiticeira, qualquer coisa
não-humana, além de mim, é minha avó.
E eu nem a conheço o suficiente para dizer que ela não é tudo isso.
Apenas rezo para que ainda esteja viva.

Capítulo 14 - Pacto

Nienna… Nienna…
O tempo se aproxima…
Mas ainda não é hora de saber…
— Bom dia…
— Bom dia, meu anjo – papai diz, jogando três pãezinhos de chocolate
sobre meu prato. Uma prova de que ele está mesmo tentando me agradar, ele
nunca, nunca, compra pães de chocolate pro café da manhã. Mesmo não sendo
tão manhã assim.
E ele me chamou de anjo. O caso é sério.
— Dormiu bem, chérie? Tudo bem? – acrescentou com um sorriso.
— Sim, só um sonho estranho – respondi sonolenta.
— Pesadelo? – pergunta, interessado.
— Não… só estranho. Algo como uma mulher sussurrando alguma coisa.
Não que eu tenha visto a mulher. Na real, não vi absolutamente nada,
pois estava dormindo demais até para isso.
— Você está bem, meu amor? Melhorou? – papai fala com a voz tensa e
vem até mim para colocar a mão sobre minha testa.
— É, é, tô bem sim – digo distraída, pensando se já não acabei de
responder essa pergunta. Acho que não.

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Esses pãezinhos estão realmente bons.
Enquanto penso nisso, vejo Victoire passar ao meu lado, com uma
camisola de seda.
— Bom dia Lune, tudo bem? – ela diz carinhosa.
— Bom di… – nessa hora eu engasgo quase cuspindo todo o chá da
boca. Por sorte, apenas uma gota escorre até o queixo.
Claro, uma reação completamente exagerada, devido ao meu atual
desequilíbrio mental. Afinal, eles são adultos, pessoas feitas e namorados, sim.
Aceite isso, Lune, sua tonta, e limpe a baba escorrendo.
— Papai, se importaria se eu fosse comer na sala? – tempo pra pensar, é
só o que preciso. Acalmar os nervos, dar uma relaxada enquanto assisto
desenho. Talvez cantar um pouco.
— Ah… – ele me deu uma boa olhada curiosa, mas apenas concorda –
claro que não, amor, pode ir.
Meio atordoada, pego meu prato, dou um sorrisinho para os pobres
apaixonados e me dirijo até a sala do andar de cima, que é o lugar mais
distante possível. Eu sei, eu não deveria ficar assim, mas será que não dava
mesmo para ir com um pouco mais de calma? Ah, tudo bem vai, eu acabei de
passar a noite num hospital, a vida sexualmente ativa deles é
momentaneamente irrelevante.
É.
Subo a escada praticamente de olhos fechados, por causa da fadiga
emocional. Realmente, acho que não estou bem. E sabe o pior? É que não faço
a mínima idéia do porquê. Claro, eu sei que estou cansada por causa da noite
no hospital, mas estou falando de algo mais profundo, não físico. Ah, que se
dane, eu não estou me sentindo em condições de pensar sobre o motivo de
todo esse saco cheio. A verdade é essa, estou de saco cheio. E estou com
raiva, sei lá do quê. Certo, raiva é exagero, talvez eu nem tenha a habilidade de
sentir raiva. É apenas meu humor ácido, por culpa do estresse e da péssima
noite de sono. É isso.
Chegando aos últimos degraus, começo a cantarolar, e me sinto um
pouco melhor. Largo o prato e a xícara sobre a mesinha e me jogo de costas no
sofá, massageando os olhos. É confortável ficar assim, com as pernas
penduradas. Me estico para ajeitar o pescoço na almofada próxima, por pior
que ela seja. Eu jurava que tínhamos almofadas macias.
Que noite horrível. Tudo está totalmente vago na minha cabeça e cada
lembrança é como se fosse um flash com significado isolado. Não tenho a
mínima idéia de como fui parar naquele hospital, meu Deus. Eu lembro… eu
lembro… ah, eu não lembro de nada além daquele avental ridículo e de Luan.

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Aliás, do sorriso do Luan.
E agora, acordo e descubro que meu papaizinho e Victoire, mãe do cara
que me deixa débil, já passaram para o nível superior, que inclui passar a noite
juntos aqui, na nossa casa.
Aperto os olhos mais forte.
— Que vida…
— Reclamar da vida não é eticamente correto.
— E quem se importa? – respondo sem ter a capacidade de me mancar.
É, apenas alguns milésimos de segundo depois, pulo para o canto oposto
do sofá, olhando sem acreditar para sobre o quê eu estava deitada.
Ou, seria melhor, quem.
Claro. Claro! Quem mais poderia? Ninguém mais que Luan, o próprio,
sentado relaxadamente logo ali. Olho para sua coxa, ex-almofada dura e
desconfortável, e acho que nunca fiquei tão vermelha na minha vida.
Ah, minha fadinha mágica, por que COMIGO?!
— Você deve pensar que os necessitados da África estão bem piores que
você. Isso não é certo.
— Ah, Luan, desculpe… – digo com a voz tremendo e com o peito
arfando, ainda sem acreditar.
— Não por mim. Deveria ajoelhar e pedir perdão a Deus, por sua
ingratidão.
Esse cara é esquisito. Eu levaria isso em conta se não estivesse ocupada
tentando não suar o sovaco.
Sinto muito, eu quis dizer axila.
— Desculpe por não ter te visto aí – falo com uma voz aguda
involuntária.
Muito, muito envergonhada. Totalmente envergonhada. Bizarramente
envergonhada. Fo… deixa pra lá. Luan apenas sorri e volta sua atenção à
televisão, mudando os canais.
— O que está fazendo aqui? – solto num tiro, com os olhos ainda
arregalados e os dedos agarrados na borda do sofá, de uma forma meio
lunática.
— Ora, eu dormi aqui. Todos dormimos – ele diz confuso, apontando pra
Lise que acaba de cruzar o corredor ao fundo com uma escova de dentes na
boca – não se lembra?

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Ah, eu lembrei, claro que eu lembrei, óbvio que eu lembrei. O QUE VOCÊ
ACHA?
Houve alguns segundos de silêncio até eu me lembrar de que ainda é
sexta-feira.
Poxa vida, preciso ligar pra Nara. E de uma aspirina.
— Você não deveria estar na escola? – pergunto sem pensar muito.
— Tanto quanto você – ele sorri e responde – aliás, menos do que você,
já que seu sono foi bem extenso se contar as horas de desmaio. Pense só, eu
fiquei ali, o tempo todo, guardando seu sono como um cavalheiro preocupado.
Mamãe foi muito legal em dar a todos um dia de folga. Eu não mereço um dia
de folga? – ele conclui, forçando uma expressão falsa e totalmente encantadora
em minha direção, com as sobrancelhas arqueadas num ângulo doce, de dar
dó.
Nem preciso dizer que precisei usar todo o meu autocontrole para não
puxá-lo para o colo e lhe dar carinho.
Meu Deus, ele é tão… aaah!
Sem saber como soltar uma sílaba sequer sem evidenciar a minha
admiração, apenas balanço a cabeça. Ele sorri, ainda olhando para mim assim,
com a cabeça meio caída para um lado, e, com uma voz rouca, suave e
perfeita, pergunta:
— Ei, você vai comer aquilo?
Ele poderia ter me pedido qualquer coisa, qualquer coisa, que eu teria
realizado seu desejo sem pestanejar. Vejo meus pães deliciosos, derretendo
chocolate, esfriando. Nego com a cabeça e passo o prato de boa vontade,
alegre por poder deixá-lo contente. Observo Luan separar o que já estava
mordido e, depois, começar a comer. Penso se o separou por que tem nojo de
ingerir alguma possível baba minha. O que não seria promissor para, sabe
como é, oportunizar um futuro beijo.
É simplesmente impossível não admirar esse cara. Não digo
apaixonadamente desta vez, mas frustradamente. Quer dizer, ele está pela
segunda vez aqui, casa de pessoas que conheceu a menos de uma semana e
está agindo como se morasse aqui há anos. Eu nunca conseguiria. Bom, vendo
pela sua aparência – cabelo amassado, calça jeans surrada e uma camiseta azul
escura com um rasguinho no ombro – eu diria que está é se sentindo em casa.
Incrível é como ele não consegue deixar de ser lindo. Eu não consigo
despregar meus olhos dele.
Está calor aqui não está?
— Está tudo bem? – ele diz de repente, meio confuso – está doente?

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Paro de me abanar.
Muito gentil, ele levanta e caminha até o vitral do outro lado da sala.
Atrás da sua camiseta tem uma estampa da Madonna, mas optei por não
comentar para não deixá-lo constrangido. Ele abre a fechadura e, com a maior
facilidade, levanta o vidro gigantesco que eu sempre peno pra conseguir mover
do lugar. Quando sinto a brisa chegar no meu rosto, a única vontade que tenho
é de levantar e me deixar levar por ela.
Fale a verdade. Tem coisa melhor do que acordar, abrir as janelas e
sentir o vento fresquinho da manhã balançar os cabelos? Para mim, existem
poucas coisas mais agradáveis.
Então me lembro de que não estou sozinha na sala e devo estar com
uma cara muito aérea. Abro os olhos e tenho certeza que até minha testa está
vermelha. Enquanto isso, lá está ele, encostado na janela e sorrindo divertido.
— Você é uma criaturinha bem interessante, Lune Noire.
E volta para o sofá, para terminar de comer.
O que eu poderia fazer?
O mesmo que toda garota apaixonada faz em momentos como este.
Sorri.
Logo depois nós nos infiltramos numa discussão acirrada sobre o destino
do pãozinho comido. Eu disse que não queria, pois não estava com fome, mas
ele se irritou, pegou metade dele e enfiou na minha boca, alegando que perdeu
a oportunidade de comê-lo por minha culpa, pois acreditou ingenuamente que
eu ainda o desejava. Morreu de rir quando engasguei e quando tive que beber
metade do meu precioso chá de hortelã sem nem sentir o gosto, apenas para
conseguir respirar de novo. Quase o matei com a almofada.
Qual é. É óbvio que tá rolando um clima. Ainda mais agora, que conheço
o motivo da rejeição ao pãozinho mordido. E não tinha nada a ver com minha
baba.
Pensando bem, ele não faz o tipo que liga muito para a baba de garotas.
Safado sem vergonha.
— Olá! – um coro histérico explode na minha porta mais tarde, naquele
mesmo dia.
Estava rolando um clima.
Maldita porta com vidro. Não pude nem ter tempo de correr. Quando vi
aquela turba estranha e disforme se aproximando da minha varanda, era tarde
demais. Elas reconheceram minha luminosa cabeleira loura e começaram a
gritar. Foi tipo cena de filme sabe? A mocinha encontra-se sozinha no local e,
de repente, avista um vulto enorme e suspeito crescer atrás do vidro… ela se

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aproxima lentamente, com a tradicional expressão de "mas que mer…" quando,
então, a porta se abre e o monstro pula, com gritos ferozes e garras afiadas e…
Cabelos escovados, sorrisos brilhantes, olhinhos luminosos e delineados.
Eu preferia que fosse o Freddy Krueger. Pelo menos, se ele aparecesse,
significaria que eu estaria sonhando.
Mas, o que se pode fazer?
Uma… três… mais Nicole e Chantal… é, é um grupo forte. Bons
adversários, bons. Creio que não conseguirei sozinha. Terei que ceder ao jogo
do inimigo, momentaneamente.
— Oi meninas! Que surpresa! – sorria Lune, sorria, eu sei que você
pode.
Sorri.
Não consigo pensar em mais nada além de matar a infeliz alma que
levou toda aquela turma até meu lar.
E matar todo o resto também.
— Lune! Que bom te ver! – a inimiga ruiva dá um passo perigoso em
minha direção. Atenção, você está invadindo meu espaço!
— Oi, Chantal – respondo com um sorrisinho forçado. Imagino uma
pequena Lune sentada no meu ombro, gritando, com as mãos na cabeça: "Meu
Deus! Tirem essa piranha daqui! Meu Deus! AAAH!".
— Lune, será que podemos entrar? – a lourinha passou à frente, com
toda a sua franjinha retinha e cílios viradinhos, que gracinha, tchutchuquinha.
Pelo menos ela não faz o meu alarme natural antifalsidade querer explodir de
tanto berrar. Ela não esconde sua frieza sombria e macabra. Mas não, não
esquente, eu sou uma escultura de gelo em pessoa.
Pelo menos tento. O maior problema, na verdade, é que minha bondade
canônica é maior do que deveria.
Dou de ombros e, quando me dou conta, as vejo empilhadas na sala de
estar.
Nicole. Você tem uma pedra de gelo no lugar de um coração. Chantal…
você não tem coração.
Quando ia fechar a porta, percebo que quase a acertei no nariz de
alguém. E, para minha surpresa, foi a pessoa que eu menos esperava ver
acompanhada de meninas feito elas. Nara vem até mim, com a culpa tatuada
na testa. Se ela tivesse um rabo, poderia apostar minha vida que ele estaria
entre suas pernas.
Ah, Nara, você me paga.

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— Lune, Luan não está por aqui?
Por sorte, isso pareceu mais importante que o olhar em brasa que eu
dirigia à Nara. O encaminho para a garotinha sentada no braço do meu sofá,
com as perninhas cruzadas e a saia obviamente dobrada na cintura para que as
coxas aparecessem.
Eu poderia ter dito que não. Poderia ter dito qualquer coisa, que ele saiu,
está no banheiro, dormindo, ou que morreu.
Mas eu virei as costas e subi as escadas.
Enquanto subia, usava o meu par de neurônios (sim, devem ser um par,
só pode) para arquitetar um contra-ataque infalível. Mas, lógico, eu não
conseguiria sozinha. Esbarrei em Lise, no último degrau.
Confesso, a primeira coisa que pensei foi algo do tipo: Lise sentada no
sofá, conversando amigavelmente com as visitas, pois se merecem.
Mas, quando ia passar por ela, ela deu um passo, parando exatamente
em minha frente. Foi aí que pude fixar meus olhos nos seus.
"Ondas", se é que me entendem.
Essa garotinha pode ter todos os defeitos do mundo. Pode ser arrogante,
metidinha, orgulhosa e me odiar ao infinito. Mas tem uma característica
peculiar e que me atrai demasiadamente: defende o irmão como um leão
defende uma metade de zebrinha.
Não que ela tenha dito algo. Nenhuma de nós duas soltamos uma
palavra sequer para fora da boca. Não foi necessário. Quando uma faísca se
cruzou em nossos olhares, um pacto silencioso se selou entre nós. Sorrimos
uma para outra e ela disse: "eu vou chamar".
"Maninho, tem algumas meninas lá em baixo querendo te ver".
"Meninas?".
"Sim, muito agradáveis e bonitas".
"Você vai aprontar alguma não vai? Diga que já vou descer".
É por essas e outras que digo que é importante conhecer cada membro
da família.
Desci cantarolando.
— Onde está? – a mesma garota pergunta.
— A irmã dele foi chamar – respondi distraída. Ouviu-se um "aaaah, que
gracinha!" geral no aposento.

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Meio que senti pena de Lise quando desceu, pois a situação se agravou
significativamente. Todas iniciaram um processo insuportável de bajulação:
"oooh, como você é linda!", "você é a cara do seu irmão!", "que fofinha!".
Bando de interesseiras.
Mas, sabe que eu tenho a leve impressão que Lise está adorando isso.
Ao contrário de mim, se ela tivesse uma submetralhadora em mãos, não
fuzilaria todas elas. Não, acharia algo mais cruel.
Pensando assim, começo a ficar com medo dela.
Alguns minutos depois Luan desceu. E o cretino estava um gato.

Capítulo 15 - Doce Criança

Ele deve ter acabado de sair do banho. Nem fez questão de secar o
cabelo. Claro, é um cretino, gosta de se sentir o gostosão. Exibir a sua essência
de "pegador".
Não, só pra vocês terem uma idéia: sabe quando você não seca as
costas direito e, quando põe a blusa, ela fica grudada com enormes círculos
transparentes delineando cada mísero músculo?
Voilà.
Senti um arrepio na espinha quando vi aquela camiseta colada nos
ombros de Luan. Sim, porque é automático. Você vê um cara assim e
imediatamente imagina a camiseta evaporando, dando lugar à pele, lisa, macia,
cheia de gotinhas de água…
O maldito fedia a charme.
Engoli em seco e fingi que não era comigo. Mas todas as outras da sala,
menos Nara, pareceram saltar de êxtase ao ver o cara alto, forte, molhado e
sensual descendo as escadas da minha casa, esfregando o cabelo e fazendo
espirrar agüinha por todos os lados. Sem falar que, como a camiseta não era
um absurdo de comprida, seu braço levantado a fez subir, deixando um fio de
pele à mostra. Sim, bem no ilíaco. Sim, com a calça jeans caindo, frouxa. Sim,
com um pequeno pedaço de tecido preto aparecendo. Aquele pedaço de tecido
preto.
Só bastava uma piscadinha e ele teria qualquer uma de nós aos seus
pés, sem nem fazer esforço. Eu seria a primeira a correr.
O que é isso Lune? Que falta de amor próprio.

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Quase me dei um tapa.
Com muito calvário e sacrifício, tirei os olhos dele, do seu ilíaco e do
pedaço de tecido preto. Também fingi não notar todos os cumprimentos de
diferentes níveis de sedução destinados à sua pessoa (desde beijinho certeiro
na bochecha até aceno com cruzada de pernas). Acabei parando em Lise. Ela
parecia infantil dentro do pijama que vestia. Se bem que, depois de ter a
oportunidade de vê-la com vestimentas grunge, jamais alguém se deixa levar
por algo tão banal como pijamas.
O quê? Ah, sim, um pijama. E pantufas. De patinhas de urso. Ela vestiu
isso o dia todo, disse que estava com preguiça, não dava a mínima para que
horas fossem nem para o fato das pantufas darem chulé e mandou tanto eu
quanto Luan tomar… bem, tomar. Mesmo ficando meio surpresa, achei
bastante adequado para o tipo.
A criatura me olhava curiosa. Fico imaginando o que ela estaria
pensando, com esse ar esquisito.
— Já sei! – ela mandou, de repente, forjando a voz para transformá-la
em algo suave – vou fazer um suquinho pra gente, que tal?
— Meu Deus, isso não seria perfeito? Obrigada Lise! – disse Chantal.
Um coro de "Meu Deus, isso seria mesmo perfeito, obrigada Lise!"
seguiu-se.
Não as culpe. Elas não são garotas más, não são cruéis e não são
treinadas para humilhar e planejar a destruição dos outros, essa é apenas a
minha forma de ver as coisas. Não esqueçam que eu sou a narradora aqui e
faço o que quiser com isso.
— Então, Luan, que anda fazendo nessa vidinha sem graça dentro de
casa?
— Ah, o de sempre, comendo, dormindo, respirando, tocan…
— Ai, que coisa chata! Por que não sai com a gente pra se divertir?!
— Sim, nós saímos sempre tão sozinhas…
— Verdade, tão solitárias, indefesas, cinco garotas pela rua ao
anoitecer…
— Você iria adorar!
Querem saber, esqueçam quem narra essa bosta. Elas devem ser
mesmo crias do capeta.
Lise aparece 15 minutos mais tarde, com uma bandeja.
— Quem gostaria de uma bebidinha? – ela fala com uma estranha
ênfase no "bebidinha". Sorria como uma modelo de consultório de ortodontia.

95
Logicamente, todas soltaram exclamações de prazer, já que a irmãzinha
bonitinha do gatão ali é muito querida por ele. Eu, distante, no parapeito da
janela, desejava arrancar Nicole e sua amiguinha desconhecida à mordidas de
perto de Luan.
Para quê? Ele nem ao menos olhou para mim desde que desceu.
Lise começou a distribuir os copos, recebendo piscadinhas frenéticas de
todas e retribuindo o gesto. Estranho ver uma garota como ela, que usa
jaquetas gigantescas e calças retalhadas interpretando um papel tão… puro.
Ela passa por mim e me dá um copo, fazendo um cortejo. Sinceramente,
me surpreendi. Eu pensava que ela ia, sei lá, botar fogo na cozinha, jogar
merda no cabelo delas, arrancar saias. Mas não, ela volta com uma bandeja
cheia de suco.
Decepcionei.
— Esperem meninas, esperem! Faltou o brinde! – diz Chantal.
Um clique estalou na minha cabeça quando vi Lise se animar toda e
dizer com um brilho nos olhos:
— Ótima idéia, assim todas tomam juntas!
Ah, meu Deus.
Ela…
É claro.
E a desgraçada nem me avisou de nada!
Olho para Luan e percebo que suas mãos estão vazias. Santo Cristo,
como eu sou imbecil! De que me servem um belo par de neurônios no cérebro
se eles nunca se cumprimentam? E o que eu faço com esse suco?
— Vamos brindar o quê? – diz Lise, com uma vozinha inocente. É fácil
enganar todo mundo com essa carinha de criatura de Jesus.
Calma Lune, relaxa, desencana. Tudo que você precisa fazer é pensar.
Ah, claro.
É só não beber. Óbvio, bota na boca e finge que bebe.
É.
… E se ela colocou algo perigoso aí? E se minha boca amortecer? E se
tiver tinta nesse troço? E se tiver algum veneno mortal? E se tiver laxante?
Olhando bem, parece suco de uva. Ou seja, líquido escuro. Ou seja mais
ainda, líquido suspeito. Isso, Lune, você está conseguindo pensar, haha!
Legal, não posso perder a técnica. Olhe de novo, de novo…

96
— Aaah, por que não brindamos à você!? Você é tão doce! – respondeu
Chantal.
— Por que não brindam a saúde da Lune, não estão aqui por isso? –
intervém Nara, pela primeira vez, com um pesado tom sarcástico na voz.
Calem a boca!
— O.k., o.k., isso também – disse a ruiva, tendo como fundo sonoro um
risinho preso de alguém e um "hum" de Nicole, que acabou me distraindo.
Vai Lune, vai, vai, você tem pouco tempo.
Bolinhas, tem bolinhas no suco. Mas isso não me diz nada, é normal ter
bolinhas em sucos. Se bem que tem muitas bolinhas, mas não consigo imaginar
o que são.
— Temos que falar algo sobre Luan também, ele não pode ficar de fora!
– sei lá quem disse.
— Não, não precisa, é sério – Luan fala, provavelmente sorrindo.
O copo! O copo é colorido, não é transparente. Não dá pra ver o
conteúdo, isso significa que ninguém vai perceber se tem ou não alguma coisa
dentro!
Isso não ajuda. E agora, como eu me livro disso?
— Então brindaremos à sua humildade – exclama Nicole, olhando
profundamente nos olhos de Luan – está decidido.
Ai Deus, é agora, o que eu faço? Pobre Nara, vai beber também.
O.k., hoje ela merece.
— Então, um br… – começa Chantal, mas, parece que por um voto de
misericórdia, silencia. Aí, percebo um som esquisito ao fundo.
A campainha.
— Eu atendo! – grito, levantando num pulo, como se eu esperasse que
mais alguém quisesse ir atender. Caminho até a porta com os joelhos em crise
e olhando todos os cantos para ver se acho alguma lixeira ou recipiente ao
alcance.
Eu nem me preocupei em imaginar quem seria. Eu agradeceria mesmo
que fosse um criminoso fugitivo.
Um cara alto, bonito e com cabelos louros irradiando luz surge na minha
frente.
— Phil, o que está fazendo aqui? – digo, com um olho mais aberto que o
outro.
— Oi Lune – ele me cumprimenta com um sorriso amarelo.

97
HÁ! Nem acredito, tenho uma solução!
Diante desse fato, esqueço que ele é Phil, o desequilibrado responsável
pela minha vergonha escolar dos últimos dias, e corro para a varanda,
fechando a porta logo atrás.
— Escuta… – ele começa, inseguro – o professor hoje nos avisou que
você não passou muito bem ontem… e eu quis vir te ver.
Mas eu não estava interessada em responder, sorria como nunca na
vida. Eu achei uma solução, e sozinha!
Depois de uns segundos, ele notou meu sorriso e tive a ligeira impressão
de vê-lo se animar. Talvez tenha passado por sua cabeça que eu sorria por sua
causa. De qualquer forma, isso se dissipou quando, com um suspiro de alívio,
despejei o líquido do copo na saída da calha.
Um dos momentos mais marcantes da minha vida.
Olho para Phil.
— E bem… e eu também queria te pedir desculpas, sabe, pelas minhas
crises no colégio, não sei o que anda acontecendo comigo, mas ultimamente
parece que eu ando saindo da realidade…
E nisso, há um silêncio. Da parte dele porque espera algum tipo de
resposta e da minha porque ainda penso no líquido estranho, se dissipando no
ralo mais próximo.
O clima ficou meio constrangedor. Quer dizer, ele veio até aqui, para me
ver, para pedir desculpas, se redimir, como o inglês educado que é. Eu deveria
estar atribuindo mais atenção ao rapaz. E também, vai que o cara não raciocina
muito mesmo? Ele pode ter um ataque psicopata de repente.
Ouço risadas vindas da sala. Devem ter rido de algo que Luan disse. O
que será que elas fariam se eu fechasse a porta na cara de Phil? O que será
que Luan faria se…
— Quer entrar? – fala sério, sou uma alma muito bondosa.
— Claro – responde.
— Aconteça o que acontecer, não aceite o suco.
Talvez eu esteja sendo um pouco cruel. Estou convidando Phil para
entrar apenas por interesses próprios, e o pior, interesses em outra pessoa. Na
verdade, não pensei em nada na hora. Fiz o que senti vontade.
Por outro lado, de que adianta eu ficar me remoendo pelo cara que está
lá sentado no meu sofá com cinco menininhas rindo de tudo e mostrando as
pernas por qualquer motivo? Ele não está se importando comigo. É verdade
que ele também não me destratou. Apenas não me dirigiu a palavra. Sim, eu
sei, ele não é obrigado a fazer nada disso, ainda mais na frente de outras
98
garotas. Mas… eu queria que ele pulasse nos meus braços e mandassem todas
elas se catar. Lógico, isso não vai acontecer mesmo.
Mas fiquei com dor-de-cotovelo.
— Phillip! – Chantal (como sempre, fazendo o papel da anfitriã
insuportável) grita – aceite um suco e brinde com a gente!
Phil me olha significativamente e diz que não, obrigado. Pessoa sábia,
até me sinto emocionada em ver que acreditou em mim. Fico tentada a dar
créditos a ele.
Vejo Luan.
Sabem para o que ele olha? Para Phil. E com o cenho meio franzido.
Até aí tudo bem, não fosse o fato de, em seguida, ele olhar com a
mesma expressão para mim. Raiva? Possível.
Mas não. Não era só isso.
Pela primeira vez, quis realmente estar ali. Ele olhava para mim com
uma expressão muito concentrada. Desejei muito que no momento estivesse
batendo um ventinho, para balançar meus cabelos, tipo cena de filme…
Espera. Isso está acontecendo. AHÁ!
Como em câmera lenta, deslizo o pescoço mais a frente, na direção da
brisa e dos meus fios claros. Então, capricho no olhar fatal. Pisco devagar.
Quando percebo, o seu cenho não está mais franzido.
— Bom, pessoas, então vamos brindar! À Lune, nossa colega, que
infelizmente passou mal ontem, à Lise, que preparou essa bebida e também ao
Luan, pela sua humildade e todo o resto!
E todas tomam um gole – no meu caso, gole fantasma – precedido por
risos. Percebo uma veia saltar no pescoço de Luan.
A primeira coisa que me preocupou foi Nara, mas ela não tinha nem feito
menção de erguer o braço.
Que droga, por que eu não pensei nisso!?
—… Lise, do que é esse suco, chérie? – Nicole pergunta, com uma ruga
saltando no canto da boca.
— De uva, por quê?
— Nossa, como está doce… – uma garota perto de mim reclama.
— Está ruim? – diz Lise, fingindo uma voz sentida.
— Minha dieta foi pro espaço – a garota com a aparência mais meiga de
todas soltou essa, num tom lamentoso.

99
— Poxa, me desculpe… – Lise lamentou ainda mais – talvez tenha
exagerado no açúcar.
— Ah, Isabelle, não ligue para uma dieta boba, afinal, estamos numa
ocasião diferente. Às vezes é bom dar uma escapadinha – consolou Chantal.
Pela expressão de algumas, tento imaginar o quão doce isso está.
Mesmo assim, não vejo nisso uma idéia brilhante. Pelo jeito nem Luan, pois
parece aliviado. Não muito, claro.
— Se tiver ruim vocês não precisam tomar – Lise fala num gemidinho
que realmente dá vontade de colocá-la no colo. Eu não sei como ela consegue
fazer isso, mas se eu soubesse, com certeza tiraria algum proveito.
— Ah… é que está… um pouquinho enjoativo… – diz Chantal.
— Tem um gostinho diferente também – Isabelle fala, olhando para o
próprio copo.
— Tem tanto açúcar assim? – pergunta Luan, num tom sério, apesar de
claramente relaxado. Aparentemente a ameaça de um perigo maior dissipou-se.
— É, um pouco – diz uma delas.
— Um pouco? Isso aqui está até grosso! – uma garota, provavelmente
mais preocupada com as calorias do que com a bajulação, diz, cheia de nojo –
é como tomar mel, açúcar e um vidro de adoçante juntos!
— Lise, o que você fez? – ele questiona, com uma insinuação óbvia, ao
menos para mim. Todas interpretaram como uma pergunta comum, mas eu
entendi o que ele realmente quis dizer: "Qual foi a merda que você jogou aí
dentro?".
Phil não pára de se aproximar. Daqui a pouco lhe dou um tiro.
— Ah, Lu! – me assusto com o berro de Lise e a vejo se atirar em torno
da cintura do irmão. Com o rosto escondido em seu peito (coisa que me causa
uma inveja profunda) ela continua pesarosa – eu errei na mão, eu não queria
contar porque fiquei com medo… eu estava colocando o açúcar, mas me distraí
com um passarinho pousado na janela – meu Deus – e… metade do pacote
caiu dentro da jarra.
Ouviu-se um "aaaaaah" uníssono na sala.
— Lise – Luan massageava os olhos – nós temos um vidro muito
pequeno para guardar o açúcar, por que você pegou o pacote?
— Pois é! Mas o vidrinho estava quase vazio, então peguei o pacotinho…
— Lise, aquele "pacotinho" tem cinco quilos.
Eu vi muitas caretas se formarem. Até eu fiz uma.

100
— Bom… agora tem menos – ela terminou, sorrindo para o irmão. Seus
olhos reluziam maldade.
Houve um silêncio. Luan sabia: a história do vidrinho vazio era mentira.
O coitado está tão cheio que só falta explodir. Quer dizer, isso se ela não tiver
jogado ele também. Mas, acho que esse detalhe não precisa ser comentado.
— Desculpem – a pobre menininha incompreendida sussurrou olhando
para os próprios pés. Isso comoveu muita gente. O problema é que comoveu
Chantal até demais.
— Oh, queridinha, não fica assim… sabemos que foi sem querer. Olha,
está um pouco enjoativo, mas te agradaria se eu tomasse mais um gole?
Para que perguntar?
— Uau, você faria isso? Isso ia fazer meu coração pular!
Chantal tem um coração bom demais. E dessa vez estou sendo mesmo
sincera. Ela sorriu e, com muita, muita garra, tomou mais um gole, enorme. Eu
a vi até mastigar a gosma antes de engolir.
Sabe, é uma pena elas não gostarem de mim. Se gostassem,
poderíamos até ter uma pequena afeição.
Claro, sem considerar o fato de que seria necessário não estarem
interessadas no meu cara.
Meu cara? Cale a boca Lune, você não tem cara.
Consciência maldita.
Eu não deveria dar atenção à você, mas isso é melhor do que escutar a
conversa insuportável do quinteto sentado nos meus móveis.
Pelo menos, nesse momento.

Capítulo 16 - "Algo Diferente"

— Ic.
Estão ouvindo?
— Ic. Ic.
Pois é, eu também.
— HÁ HÁ HÁ! – uma longa e barulhenta tomada de fôlego – HÁÁÁ HÁ!

101
—PARE Chantal! Oh, sua vadia, está fazendo Isabelle morrer de
vergonha!
— Lune – Nara cochicha ao meu ouvido – algo não está certo.
— Ic.
— Cale a boca, Nicole! Ela está piando igual a um passarinho!
— Por que não está certo? Eu estou achando ótimo – cochicho de volta.
— Isso se chama SOLUÇO, sua anta, e você está gritando igual a uma
garotinha vendo a Britney Spears! – censurado – que pariu, você é uma
desgraça mesmo, pare de rir como uma velha que foi – censurado –
decentemente pela primeira vez em anos, eu estou com dor de cabeça!
— Alguém pode me emprestar um gravador, eu preciso ter isso de
recordação – digo.
Vejo Luan olhar para todas as cinco com uma expressão totalmente,
totalmente abismada.
— Eu tenho um – diz Lise, sentada ao meu lado – ele é meio velhinho,
mas vai servir.
— Ótimo, ótimo. Está aí?
— Sim, sim, está aqui no bolso já, é de praxe – diz ela, tirando o
aparelhinho do pijama.
Bom, o quê posso dizer? Pouco tempo depois de Chantal ter,
corajosamente, se oferecido para tomar mais um gole, a carinha comovente de
Lise a convenceu a tomar um pouco mais. Quando eu vi, a pobre ruiva estava
persuadindo insistentemente suas companheiras a fazer o mesmo, talvez por
querer não ser a única a engordar, talvez por simplesmente ter enlouquecido.
Mas o fato é: todas tentaram, ao menos mais um pouco, ingerir a meleca
calórica. Sabe como é, ―por Luan!‖, como Chantal disse em determinado
momento.
E deu nisso.
— Nara, me empresta esse seu copo – Phil dirige-se à minha amiga. Ela
lhe entrega o copo. Ele cheira, faz uma careta, cheira melhor e experimenta um
gole muito pequeno. Depois, projeta uma careta imensa.
— Nossa, realmente é como tomar mel com açúcar – conclui.
— Isso todo mundo já sabe, gênio – Lise ironiza.
— É, gênio. Mas dá pra perceber que tem "algo diferente" aqui.
— "Algo diferente"? – Nara parece surpresa.
— Sem dúvida, gata – Phil diz, ainda observando o copo.

102
Mesmo que ele tenha dito isso numa casualidade óbvia, senti Nara
estremecer um pouco.
— Oh yeah, baby. Muito "algo diferente" – diz Lise.
— O que seria esse "algo diferente"? – pergunto.
— Só tem uma coisa que poderia causar o efeito que estamos vendo –
diz ele.
— O quê? – insisto.
— Você é meio inconseqüente, não é? – Phil pergunta tranquilamente,
me ignorando.
— Na verdade, não. Apenas "algo diferente" significa noção imediata do
fato e isso não podia acontecer. Fui esperta o bastante para solucionar o
problema.
— Claro, aí você jogou três quilos de açúcar dentro de uma jarra de um
litro cheio de… bom, ―algo diferente‖.
— HÁ HÁ HÁ! Eunãoconsigopararderir! – longa e barulhenta tomada de
fôlego.
Por que ninguém me responde o quê é?
— Ela tem razão, quanto mais açúcar menos dá pra notar – Nara, após
experimentar um gole microscópico, também já entendeu do que se trata o
―algo diferente‖ – mas mesmo assim, não teria resultado nessa cena toda com
tão poucos goles. Muito menos em tão pouco tempo.
Lise abaixou-se em nossa direção, fazendo sinal com o indicador para
abaixarmos também.
— O segredo, chérie – sussurra – é a mistura.
— Ic.
— Impossível – Nara diz, inconformada – você não pode ter treze anos.
— Eu assisti muito "O Pimentinha" e filmes afins. Apenas aperfeiçoei o
dom – a pequena sorri.
— Fico imaginando quanta mistura de "algo diferente" tem aqui dentro –
Phil conversa com o copo.
Eu desisto de tentar saber o que é o "algo diferente".
— Ic.
— Chantal está tão rosa que parece uma porca! – uma grita, apontando
e se dobrando de tanto rir. O engraçado é que ela ri sem soltar som algum.

103
— Que saco Cécile! Não tem respeito por alguém morrendo de dor de
cabeça, que inferno, vai tomar no – Nicole grita, irritadíssima, segurando os
ouvidos com as mãos.
— Isso pode nos trazer problemas – Nara parece preocupada.
— Isso se elas se lembrarem – diz a cabeça do crime.
— Mesmo que lembrem, duvido que vão conseguir saber o porquê –
observa Phil.
Luan envia olhares que parecem flamejantes na direção de Lise.
— Lune, que pena que não experimentou a bebida. Eu estava quase
apostando que você não ia se ligar a tempo – a menor fala. Sacana.
— Você acha o que? Pareço burra? Eu me dei conta imediatamente do
perigo e me livrei do problema sem o menor esforço.
Qual é, uma mentirinha para salvar o orgulho não pesa.
— A propósito, Lune – Lise sussurra ao pé do meu ouvido, abrindo um
sorriso mais largo de um lado só (coisa que me dá arrepios) – Luan estava sem
camisa no quarto, quando fui chamá-lo.
Meu estômago simplesmente quis trocar de lugar com minha garganta.
Senti a boca secar em segundos. Tão seca que não me surpreenderia se tivesse
grãos de areia.
Maldita. Foi por isso que ela se ofereceu para chamar o desgraçado no
meu lugar.
Ficamos mais uns minutos admirando o ambiente, eu ainda pensando
em Luan sem camisa, saindo do banho. Phil agora estava quase colado comigo,
e de fato estaria, se não fosse Nara em seu caminho. Ela parece estar um
pouco irritada, seus joelhos estão apertados porque ele não pára de se
aproximar e parece nem estar notando sua presença. Eu já tentei me afastar
três vezes.
Com uma irritação profunda na voz, Nara fala ao meu ouvido:
— Será que podemos conversar lá fora?
Eu a olho com uma expressão de interrogação, mas faço um sinal
positivo. Levanto e atravesso a sala, passando pela porta colorida que dá
acesso à lateral da casa. Vejo Luan me acompanhar com os olhos, mas finjo
nem ter notado.
Qual é, ele não está lá com todas elas em volta, babando? Tem cinco
garotas ali, indo do cacheado ao escorrido, dos arcos de cabelos às franjas, do
louro feio ao ruivo. Eu não entendo. Quem precisa de louro-prateado e olhos
amarelos quando se tem isso?

104
Eu já não sou normal mesmo, posso correr o mundo atrás de alguém
que também tenha uma disfunção genética e formar uma nova civilização.
Ou virar uma solteirona e entrar pro Greenpeace.
Pense bem, melhor do que entrar pro grupo feminino de coreografia,
como minha professora de ballet sugeriu há alguns anos atrás. Eu disse: "não,
obrigado, prefiro ser gente". Não que garotas de grupos de dança não sejam
gente, eu adoro dançar. Mas é que as meninas da minha escola não são. Um
dos requisitos para entrar é não ter namorado (um dos motivos pra ela ter me
oferecido a vaga), pois o grupo exige muito tempo de dedicação. Ao menos foi
essa a desculpa dela. Todo mundo sabe, entretanto, que o motivo da exigência
é o grande "assedio" do público masculino, se é que me entende. O grupo de
coreografia feminino é quase como um certificado de "sou bonita e gostosa" e
os figurinos que elas escolhem costumam mostrar bem isso. Dá para sacar,
facilmente, que o público masculino não assedia ninguém. Ele apenas estende a
mão e pega o que lhe é ofertado.
Por isso gostava mais do ballet.
Sentei na fonte do jardim.
— Lune… – parei ao ouvir a voz de Nara ao meu lado. Tinha até me
esquecido de que ela estava ali.
— Você merecia uns cascudos, hein? – disse irritada, mas em um leve
tom de brincadeira.
Porém, engoli a voz. Ela não parece bem.
— Desculpe, mas não consegui evitar que viessem – dizia, fitando o chão
– na verdade vim mais para me desculpar por isso. Seu pai me ligou hoje de
manhã contando a história toda e pedindo para eu avisar a direção. O professor
anunciou para sala que você não estava bem e por isso Luan também não tinha
aparecido. Você sabe, depois disso fizeram comissão para vir te ver. Me
ameaçaram dizendo que se eu não explicasse o caminho iriam jogar meus
cadernos no lixo ou abrir um frasco de shampoo dentro da minha bolsa, igual
ano passado. Já que foi assim, preferi vir junto, pra pedir desculpas.
E eu aqui brava com ela. Ah, Lune, você é uma porca sem coração.
— Ah, Nara, não deveria ter se preocupado com isso – falei, totalmente
sem graça. Estou com vontade de pegar Nara no colo – como elas tiveram
coragem de falar isso pra você? Deveria ter me contado!
Mas ela não me respondeu. Não falou nada. Olhou para o chão, com um
sorrisinho que nem deveria ser sorriso.
Estou me sentindo péssima.

105
— A minha vontade era pegar uma por uma e afogar aqui nessa fonte –
disse, para tentar fazê-la se sentir melhor. Porém, ela abanou a cabeça.
— Não precisa. Já estou acostumada. E duvido muito que fossem de fato
fazer aquilo, falaram apenas porque… bom, deixa pra lá – ela ergue a cabeça e
seus olhos me parecem um tanto brilhante.
— Bom, Lune – Phil fala de repente, me assustando – eu também vim só
para me desculpar, por ontem, sabe como é. E pra te ver, claro, adoro fazer
isso.
Me desculpe Phil, mas não estou nem aí para suas cantadas agora.
— Anh… então, vou indo – ele fala com um sorriso encantador.
— O.k.
Desculpem, foi o máximo que saiu.
O cara bonitão de olhos verdes lança um sorriso ainda mais charmoso
em minha direção e caminha para o portão. Percebo que minha amiga o
observa se distanciar, com os olhos meio caídos. Depois volta sua total atenção
para o chão. Há poucos metros de Phil desaparecer de vista, volta a falar:
— Ele ficou muito preocupado quando o professor disse que você tinha
passado mal.
Houve uma pausa constrangedora entre nós. Quer dizer, eu não tinha o
que falar, fiquei meio sem ação. Estava pensando em dizer algo como: "ah é?"
ou "sério?" só para não ficar em branco, mas não consegui nada além de
balançar os ombros.
Então, solta um suspiro pesado.
— Tenho que ir – fala, sem me olhar nos olhos.
Nem ao menos me abraçou como sempre. Algo definitivamente não está
bem.
Quer dizer, desde que chegou percebi que estava um pouco para baixo,
mas achei que fosse só pela companhia. Mas agora, parece que o problema é
comigo.
Fiz mesmo alguma coisa que a deixou assim?
Alguns passos à diante ela se vira.
— Seu pai contou que deixou você ficar em casa à tarde por causa de
um compromisso hoje. Espero que seja divertido.
— Compromisso? – pergunto totalmente espantada, com os olhos
arregalados e tudo. Eu não lembro de compromisso nenhum.

106
— É… ele disse que como vocês iam sair e ele não iria conseguir
desmarcar, preferiu te dar o dia todo em casa.
— E… – pergunto, com medo da resposta – ele por acaso contou qual
seria esse compromisso tão importante?
Ela me olha com uma cara estranha, como se estivesse pensando como
eu posso ser tão do jeito que sou. Tem alguns dias que até eu me surpreendo.
Na verdade, todos os dias eu me pergunto como consegui chegar ao Lycée.
— Vocês vão jantar, Lune. Imagino que seja em um restaurante de alto
nível, ele não desmarcou o jantar de hoje porque só conseguiria outra mesa
sexta-feira em mais ou menos quinze dias.
O desespero começa a fazer minhas mãos suarem. Não, jantar em
família não, por favor.
Então lembro das caixas sobre a minha poltrona.
Ela tem razão, é um restaurante de alto nível. No mínimo, o que a caixa
guarda é o vestido.
Eu sei o que está acontecendo. Papai fica com peso na consciência por não
poder passar mais tanto tempo comigo e, como Victoire sente o mesmo, eles
unem o útil ao agradável nos levando em seus passeios.
Quem sabe eu deva explicar pro meu pai que tentar repor os preciosos
minutos que perdi com ele ao lado de mais três pessoas não é o ideal. Quer
dizer, não funciona.
Eu já estava de saco cheio antes, agora, depois dessa tarde, estou
perturbada. Principalmente se tratando de Luan. Para minha própria sanidade
mental, acho que não deveria ir. Porém, quando digo isso a Nara, ela me lança
um olhar, no mínimo, muito assassino.
Pude sentir um quase ódio florescer em seus olhos.
— Como assim "acho que não vou"? – o tom de ira usado nessas poucas
palavras me fazem encolher pelo menos três centímetros. Aquele tom baixo e
pausado que te dá a impressão de perigo iminente. Eu poderia ter dito alguma
coisa, mas minha voz desapareceu. Engoli em seco.
— Escute aqui, Lune Noire – sua voz ainda é baixa e suave. Seus olhos
brilham a chama da revolta e da destruição do mundo. É sério, a menina
incorporou alguma coisa – você vai nesse jantar. Vai usar um vestido lindo. Vai
usar uma linda fita no cabelo e uma linda maquiagem nos olhos. Não se atreva
a vir com essa só porque está com dor-de-cotovelo.
— Mas… – tentei argumentar em minha própria defesa, porém, sem
chance. Ela estava com raiva. E quando Nara está com raiva, você não tem
chance contra ela, porque em 99,7% dos casos ela tem razão. Poucas, muito

107
poucas vezes na minha vida eu a vi assim, para vocês terem idéia, e olhe que
ela é minha melhor amiga há anos.
— Eu sei e você também deveria saber que é muito mais bonita que
qualquer uma delas lá dentro – finalmente o rostinho Serial Killer se afasta do
meu nariz, deixando os cachinhos voltarem para seus devidos lugares sobre os
ombros – se está com tanta dor-de-cotovelo assim, está fazendo totalmente o
contrário do que deveria. Você deveria entrar naquele quarto, se arrumar como
nunca e passar por Luan de um jeito que o faria engasgar com esses fios
prateados que você carrega na sua cabeça.
— Que, inclusive, deve ser a única utilidade dela – acrescenta, de uma
forma cruel.
Senti minha bunda quase quebrando o cimento, tamanha minha vontade
de entrar nele. Eu preferia que Nara tivesse me batido, eu me sentiria melhor.
— Seria muito bom se – ela recomeçou – ao invés de ficar se fazendo de
menininha mimada que não tem o que quer, você fosse você mesma, tentando
pelo menos fazer ele enxergar o que está perdendo. E eu acho que é isso que
você vai fazer, se não quiser ter uma morte bem dolorosa e esmiuçada.
— Ma…
— Você entendeu, Lune? – ela termina com o rosto a mais ou menos dez
centímetros do meu e eu, de fato, calo a boca. De medo.
Essa foi a pior esculachada que já tomei na vida.
— Eu não sei o que aconteceu com você, você não era assim.
Me lembrem, por favor, de nunca mais me fazer de imatura na frente da
minha grande amiga, para minha própria saúde.
— Agora eu tenho que ir – ela se recompôs, ainda me encarando fundo,
e eu concordei com a cabeça – você vai fazer o que eu te disse?
Concordei com a cabeça (de novo). Depois, ela me lançou um breve
sorriso e virou as costas. Deu alguns passou e virou de novo.
— Você não sabe a sorte que tem, Lune.
E foi.

Capítulo 17 - Uma Pergunta

Bom, é isso. Acabei de levar uma lavada de corpo e alma. Se Nara


tivesse chegado com um rifle e me dado um tiro no meio do cérebro, a
sensação teria sido melhor – é, não faz sentido, se ela tivesse me dado um tiro
assim eu não teria tempo de ter sensação nenhuma. Ignorem.

108
Do que eu estou reclamando, a final de contas? É pra isso que as
melhores amigas servem, certo? É imbecil pensar que os amigos servem só
para passar a mão na sua cabeça e te emprestar meias. Se o fizessem,
estariam sendo neutros e inertes, coisa que um amigo não pode ser. Ele não
estaria colaborando para o seu próprio crescimento pessoal.
Mas, deixe eu tentar justificar. O que ocorre é que, em toda a minha
vida, eu nunca precisei levar uma desmoralização dessas de alguém. Claro,
papai brigou comigo quando, lá pelos meus inocentes sete anos de idade, voltei
para casa com um passarinho morto nas mãos. Quer dizer, isso foi o que ele
achou, porque logo depois ele acordou e voou muito bem. Também brigaram
comigo quando eu quis subir numa árvore alta na escola, já que, pelo que eu
dizia, queria "sentir o vento mais de perto". Ah! Papai quase me matou ano
passado quando eu me atirei sem dó na frente de uma bicicleta em alta
velocidade. É, bom, o que eu poderia fazer? Ela ia passar direto por cima
daquele gatinho, ele ia morrer, enquanto eu só fiquei com um hematoma na
perna. O.k., hematoma enorme e muito preto, mas quem liga? Grande coisa.
O fato é que, uma bronca como essa, como a de Nara, eu nunca levei.
Muito menos uma bronca por temperamento. Bem, eu nunca me apaixonei,
logo, nunca tive dor-de-cotovelo, ciúmes, inveja, ou qualquer coisa. Na
verdade, eu nunca tive nada. Para mim, é como se eu tivesse dormido por
todos esses anos. Uma morta-viva, nada muito além disso. Mas, eu tenho
percebido… de alguns tempos pra cá eu me sinto… como posso dizer? Como se
estivesse regredindo.
Antigamente as pessoas comentavam o quanto eu era madura para a
minha idade. Eu não achava isso, porque, como eu disse, eu não achava nada.
Na minha "festa" de quinze anos, minha tia Madelaine disse – para meu pai,
claro – que ela duvidava que eu tivesse mesmo a idade que estava
completando. Disse que, talvez, minha querida mamãe tivesse mentido para ele
e era para ele tomar cuidado. "Cuidado por quê?", você me pergunta. Cuidado
porque eu poderia não ser filha dele.
Tia Madelaine é uma senhora perturbada, mora sozinha na França,
nunca casou. Suspeito que ainda seja virgem. De qualquer forma, papai – que
já não se esforçava para manter contato – agora não faz a mínima questão.
Não que eu garanta que sou mesmo filha biológica dele, nem ele faz isso.
Simplesmente não nos interessa saber. Não sei nem como ele não a botou para
fora de casa naquele exato instante.
E aqui estou eu, a famosa "moça com idade de menina", sentada numa
fonte velha e cheia de musgos, ainda pensando na surra verbal que levei,
apenas por um motivo: tentar prolongar ao máximo a hora de voltar para
dentro.

109
Ah. Bom. Minha melhor amiga, aquela que eu sempre defendia e
aconselhava a ser mais forte e a enfrentar as outras pessoas, está me dando
lições de moral. O que eu posso fazer?
Aceitar que está certa, subir as escadas e obedecer, o.k.
Se Luan quiser trepar com suas amigas na minha sala de estar, dane-se
(claro, claro, até parece). Ele decide sobre sua própria vida. O que eu sei é que
vou subir aquelas escadas, vestir aquele vestido e me fazer de desinteressada.
Fingir total e absoluto desinteresse.
— Aonde vai? – ele me pergunta, quando atravesso a sala. Paro e giro
meu corpo em sua direção, como se não compreendesse muito bem sua língua.
— Subir – eu disse, colocando uma das mãos na cintura e fazendo o
jogo de eu-não-preciso-de-você – temos compromisso, não se lembra?
Várias meninas olharam para mim e eu noto como algumas têm uma
maquiagem linda ao redor dos olhos. Seria bom se pudesse pedir conselhos a
alguma delas, porque, por Deus, vou precisar de muita ajuda com o rímel.
Bom, enfim, elas olharam para mim simplesmente porque se assustaram
com a minha situação de compromisso com Luan. Quer dizer, se assustaram
não, no mínimo ficaram mordidas mesmo, borbulhando de ódio. Muito, muito
diferente do que eu estava pensando sobre pedir conselhos. Aí está o
contraste. Por que eu sempre tenho que ser a boazinha? Eu poderia, pela
primeira vez, ser cruel em uma situação diferente da de sempre: defender
Nara.
Eu não preciso mais mostrar que me importo. Acho que está na hora de
deixar claro as regras do jogo.
Uh, me senti perigosa agora.
— Tinha me esquecido – ele respondeu com a voz morrendo, sem tirar
os olhos de mim. Com muita naturalidade, olhei delas (as meninas) para
minhas unhas e disse com um sorriso divertido:
— Se não perdesse tanto seu tempo, quem sabe pensaria em coisas
mais importantes, como o jantar de hoje à noite. Mas – ergo os olhos para ele,
com uma insinuação óbvia e um sorriso parecido com os que aparecem no
rosto de Lise freqüentemente – você é quem sabe.
Para minha surpresa, após alguns segundos de confusão, ele riu.
A mesma risada encantadora de sempre.
Uma satisfação inoportuna cresceu em algum lugar. Não era apenas a
satisfação em ver que, no fundo, nada mudou, que ele ainda se sente bem
comigo, ele se importa. Além disso, era a sensação boa de saber que aquele
sorriso era para mim. Aquele olhar divertido, era por minha causa.
Meu objetivo ao dizer o que disse não era atingi-lo, mas sim atingir as cinco

110
garotinhas que se apossaram da minha sala. Inclusive, uma delas está sobre a
cadeira de leitura do meu pai e isso é imperdoável. Contudo, um suspiro quente
de felicidade encheu meu peito e, para disfarçar minhas bochechas cor-de-rosa,
andei rápido, retomando o caminho inicial.
Enquanto subia as escadas, pulando, ouvi uma a uma pegarem suas
coisas no intuito de caírem fora. Elas mal haviam chegado até a porta quando
uma mão se fechou gentilmente ao redor do meu braço. Parei os pulos no
susto e fiz menção de virar o rosto, porém, antes de conseguir, a voz de Luan
chegou rouca aos meus ouvidos.
— Precisamos conversar sobre você e seus modos.
Notei que ele estava sorrindo. Não consegui evitar um leve sorriso
também.
— Acha mesmo?
Me desvencilhei suavemente da sua mão e fui para o quarto, vitoriosa.
Saio de lá apenas três horas depois.
— Santo Deus… – diz meu pai, acho que tentando me elogiar – o divino
realmente caprichou contigo, hein, filha?
Eu viro um pouco a cabeça – depois percebendo que foi igual a um
cãozinho confuso. Penso se seria o caso de dizer para meu pai que o que ele
disse não é assim… digamos… encantador. Quer dizer, ele é meu pai. Mas achei
melhor deixar passar, a intenção foi boa.
De fato, depois que eu coloquei meus "grampinhos" e meu cabelo
começou a secar escondendo minhas saliências pavorosas – mais conhecidas
como orelhas – comecei a gostar muito da imagem que eu via no espelho.
Claro que o vestido ajuda, pela graciosidade, essa coisa toda, e parece óbvio
que não foi meu pai quem o escolheu. Tem um dedinho de Victoire nisso – ou
eu poderia dizer uma mão inteira? Papai nunca me compraria um vestido com o
busto tipo coração (ele nem sabe que eu tenho seios) muito menos um acima
do joelho. E, como se isso não bastasse, os brilhinhos denunciam a minha
futura madrasta, tipo, totalmente.
Mas eu gostei, sabe, a cor é bonita, eu adoro cinza. Ou seria cor gelo?
Gelo tem cor?
E, é incrível, mas eu estou mesmo me sentindo "leve e perfumada como
uma flor caindo de sua árvore". Era o que dizia na embalagem de toda a
parafernália de produtos para banho que joguei dentro da banheira – que,
inclusive, nunca se sentiu tão útil.
Corrigindo: depois de uns 25 minutos tentando descobrir como eu
deveria usar todas aquelas coisas, ela nunca se sentiu tão útil.

111
O.k., tá certo, era só abrir e jogar lá dentro. Mas a quantidade? A
eficiência? Para que servia, a final de contas? Para mim, era só um monte de
pedrinhas, bolinhas, pétalas secas. Na dúvida joguei o negócio todo, rezando
para que não saísse fedendo a lavanda. A coisa da espuma também foi um
problema, porque, cara, olha só a idéia brilhante: uma bola esquisita e dura,
com o que pareciam ser minúsculos pedaços de sabonete roxo e lilás. Isso fazia
a espuma. E tinha que jogar lá dentro.
Bom, eu joguei.
E depois me danei pra caçar ela de novo, antes que inundasse meu
banheiro. Começou a subir espuma em cima de mim de tal forma que quase
sufoquei. Então, você imagina a cena, eu, com a espuma até o pescoço,
tentando encontrar uma maldita bolinha escorregadia enquanto lutava para
esticar o pescoço o suficiente para respirar.
Será que não dava mesmo pra continuar com o tradicional mililitro?
Mas a espuma não derramou. Não foi dessa vez que você pôde rir de
mim dessa forma.
E agora você me pergunta, como o bom leitor que é: por que eu teria
tudo isso, se não sei usar? Bom, na verdade, eu ganhei essas coisas – assim
como muitas outras do tipo – no mesmo fatídico aniversário de quinze anos. Eu
tenho cinco tias, sabe? E vários primos. Sinceramente, lembro o nome de
menos da metade deles. A hora em que ganhei esse monte de produtos, eu
achei que a mulher tinha uma terrível falta de criatividade. Me admira que inda
esteja dentro da validade (sim, está, eu verifiquei).
Fale a verdade, que tipo de garota quer ganhar pedrinhas e
sabonetinhos em seu aniversário de quinze anos? Eu lembro que queria
pantufas. Ou uma viagem para um Safari, na África do Sul.
Tá, eu sei que a maioria de vocês não concorda quanto ao Safari.
Que seja, de qualquer forma, eu realmente estou me sentindo "leve e
perfumada como…".
Essa parte vocês já sabem.
— Está pronta, certo? – meu pai pergunta enquanto pega as chaves do
carro – Se você ainda não estiver, vou amarrar você, porque é impossível ficar
mais gata do que já está.
Otto, eu devo mesmo lembrar você de que você é meu pai?
Dou uma última olhada no espelho da sala de jantar e vou para o carro.
Assim que sento, me arrependo de não ter tirado uma foto para Nara ver como
eu a obedeci. Se bem que, nem sei se ela gostaria de ver. Sei lá, ela estava tão
chateada. O meu medo é que eu tenha mesmo feito algo, porque se eu fiz, sou
uma pessoa ainda pior por não saber o que foi.

112
Entenda o meu drama.
A única imagem que fica na minha cabeça é ela observando Phil ir
embora.
Será que ela…? Não, ela não poderia estar apaixonada por ele.
"Você não sabe a sorte que tem Lune".
Ah, esquece. É melhor eu parar de tentar fazer trabalho de gente. Se eu
começar a pensar muito, daqui a pouquinho vou estar embolando tudo e aí
vocês já sabem. O melhor que tenho a fazer é esperar. Amanhã converso com
ela, simples.
Além disso, nós chegamos.
Olho para a casa de estilo clássico com admiração, imaginando como
uma mulher que sustenta sozinha os filhos consegue manter um lugar tão
lindo. Bom, pensando um pouquinho melhor, uma mulher assim, nessas ótimas
condições, unida ao meu pai, que ganha o suficiente para a nossa casa
enorme… bom. No mínimo terei um jardim pronto e fantástico.
Até me animei.
— Minha flor, é melhor você levantar, já, já Vic está vindo aí – papai diz,
desligando o motor e abrindo a porta para ir buscar nosso futuro complemento
de família. Eu abro a porta distraída e, antes de chegar a levantar a bunda,
uma coisa interessantíssima chama minha atenção.
A porta da bela varanda estava se abrindo e de dentro dela saía uma
criatura de preto.
Uma criatura de preto que parecia terrivelmente, mortalmente,
encantadora.
Assim que ela me viu, fez um sorriso enorme aparecer em seu rosto.
Para mim, esse sorriso foi como, tipo, uma dose de morfina quando se
está sentindo muita dor. Imediatamente, meu peito relaxou, meus olhos caíram
e um espelho da expressão dele cresceu no meu rosto.
Eu me sentia péssima por não conseguir controlar meus músculos. Não
importava o quanto ele estivesse se aproximando e o quanto pudesse achar
minha cara de abobada total estranha. Os meus lábios continuavam os
mesmos.
Eu sou como uma marionete. Eu não consigo não sorrir enquanto ele
está sorrindo, é como se houvessem fios invisíveis nos ligando.
— Oi, Lune – ela pára ao lado da minha porta, com aquele ar de menino
alegre que eu adoro, demais, mais que tudo.

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— Oi, Luan – eu me desmancho através da janela do carro e ele solta
uma leve gargalhada por causa do meu cumprimento patético.
Sim, sem contar o sorriso patético.
Não me culpe. Você não tem noção do quê está parado aqui nesse exato
instante.
Eu me sinto uma retardada completa. E o pior, eu estou feliz com isso.
Ah, agora sim colega. Quero ver qual garota tem a coragem de dizer que
eu não tenho razão. Simplesmente visualize: Luan, o cara dono do sorriso
perfeito – e das covinhas perfeitas – o está direcionando para você. Ele está
vestindo todo o seu um metro e oitenta e três (vi a ficha dele na Educação
Física) com um terno preto, uma camisa preta e uma gravata preta lustrosa.
Isso tudo enquanto você pensa qual a forma mais rápida de se matar dentro de
um carro, sem deixar que ele perceba.
E olha que eu ainda nem comentei sobre o cabelo, que hoje não está
com a tradicional elevação no meio. Está totalmente molhado e bagunçado,
com algumas mechinhas caídas na testa.
Eu quero mesmo me abanar.
— Você está com um cheiro diferente – ele comenta, abrindo mais
minha porta – parece lavanda.
— É lavanda. E é "diferente" no sentido de ruim ou de bom?
— Nada a reclamar, combina com você.
Esquece ele. Desvia os olhos, Lune.
Pronto, já me sinto melhor. O painel do carro é bem, bem mais
interessante, sabe. E tem luzinhas. Luan não tem luzinhas. Nem ar
condicionado.
Pensando bem, seria útil se Luan tivesse ar condicionado.
— Lune! – Victoire me chama antes mesmo de chegar ao carro, com o
jeito exagerado de sempre. Ela acena os braços para mim, parecendo não se
importar se isso é ou não elegante.
Fazendo um tremendo esforço para ignorar Luan bem ao meu lado, eu
levanto do banco e piso pela primeira vez na calçada. Assim quem o faço,
Victoire parece entrar numa espécie de transe. O braço, que estava a meio
caminho de ser abaixado, pára onde está e seu olhar se fixa de tal forma em
mim que chego ao ponto de ficar vermelha. Olho para baixo, a fim de ver se há
algo errado comigo.
Passo a mão no cabelo.
Meu pai precisou chamá-la três vezes até ela reviver.

114
— Oh, meu Deus, Lune! – ela suspira – Eu já achava você maravilhosa,
mas olhe isso!
— Olhe isso o que? – pergunto, deixando aparecer bem o meu tom
assustado.
Não que isso já não fosse bem óbvio pelos olhos arregalados.
— Você está perfeita!
— Ah! – eu sorrio, contente por não haver nada de errado – Obrigada.
— Estou se palavras, meus olhos enchem de água só de olhar – ela
disse, realmente com os olhos brilhando.
Acho que ela está começando a exagerar. Só um pouquinho. Sabe como
é.
— Queria tanto, tanto que a minha Lise ficasse assim. Mas ela tem que
estar sempre de preto. Comprei um vestidinho tão lindo, verdinho… mas não
teve jeito.
— Qual é, Marie. Fala sério, "verdinho"? Por que você tem aversão a
preto? – Lise diz, agora aparecendo por trás de sua mãe. O vestido dela é bem
o que eu chamaria de "não convencional". Um dos seus ombros está à mostra e
ela tem uma fita negra no pescoço.
E… bom, ela está de coturno.
— "Qual é", Lise, olhe para a sua roupa, você está indo para um
restaurante de alto nível, filha, não para uma lanchonete de alto nível. E, custa
mesmo me chamar de mãe?
Lise revirou os olhos e sorriu, entrando no carro.
— Mesmo que eu quisesse, Marie, eu não poderia usar o seu verdinho
hoje. Estou de luto.
— Luto é, maninha? – Luan descobre que tem voz, entrando logo atrás
dela e eu dou a volta, para não me sentar ao seu lado – Por acaso matou
alguém com algum suco envenenado ultimamente?
— Nem brinque Luan, você pode dar idéias a ela – Victoire diz,
parecendo sinceramente preocupada – e, Lise, para você, meu nome é mãe.
Nós três demos risada no banco de trás e eu começo a me desesperar
quando Luan ri com os olhos grudados em mim.
Isso é terrível, terrivelmente lindo, meu Deus!
Atravessamos a cidade até chegar ao bendito restaurante.
— Bem vindos – um rapaz jovem nos cumprimenta e, antes que eu
pudesse pensar em abrir a porta, ela se escancara e uma mão gentil se estende

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em minha frente. Levo alguns segundos para me acostumar com toda essa
atenção. Noto que o mesmo está acontecendo do lado oposto e assisto o outro
cara ajudar Victoire a descer, como um verdadeiro cavalheiro.
É uma pena que hoje em dia eles tenham que receber salário para isso.
— Seja bem vinda, bela senhorita – o meu cavalheiro particular diz, me
olhando diretamente nos olhos, com uma voz vaga bastante conhecida.
Depois de passar alguns segundos me olhando, meu pai estende as
chaves do carro na direção dele. O rapaz se assusta e finalmente solta minha
mão. Eu estava tão boba com tanta cordialidade e atenção que se alguém com
o crachá do lugar viesse e pedisse para gastarmos todo nosso dinheiro em
sobremesas, eu obedeceria. Sorrio com educação e agradeço, enquanto
acompanho rapidamente meu pai até a porta – o.k., boa parte da minha
rapidez era porque Luan já estava quase ao meu lado.
Eu estou me prevenindo, certo? Não confio mais nos meus sentidos, vai
que eu pulo em cima dele ou algo do tipo.
Perigoso.
Passamos por um portal todo de vidro e uma moça elegantíssima vem
falar conosco.
— Sejam bem vindos – ela diz com um sorriso simpático, segurando uma
prancheta e eu me desespero quando sinto Luan parando muito próximo, bem
atrás de mim. Consigo até sentir o calor do corpo dele e eu vou ficar maluca,
não estou mentindo – já tem uma mesa, senhor?
— Já, quer dizer, sim – Otto engasgou. Victoire solta uma risadinha
divertida.
— Sigam-me, por favor – a moça nos direciona pelo corredor e nós
saímos num salão enorme e requintado, que parecia ser 55% feito de
mármore. Ela nos deixa numa mesa ao lado de uma vitral que escorria água
pelo lado de fora. Eu adorei o efeito, é claro.
Mas agora: de quem foi a idéia fantástica de me colocar sentada ao lado
de Luan?
Qual é, será que ninguém percebeu ainda que o cara está tentando me
matar? Alguém tem idéia do que isso causa em mim, quer dizer, ele está
praticamente colado comigo e ele está perfumado. Isso é um atentado contra a
minha saúde e sanidade mental, eu tenho o pleno direito que querer viver!
Euqueroviver!
… ah meu Deus, ele acabou de encostar o joelho na minha perna.
— Nossa! – Victoire grita e meu coração acelera mais do que já está –
que susto! Vocês ouviram a jorrada de vento? Muito forte!

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— Eu vi, até espalhou a água do vidro. Será que vai chover? – papai
pergunta, olhando para o vitral. Tento com todas as minhas forças me
concentrar no que eles estão dizendo, apesar da conversa ridícula. Fala sério,
vir pra um restaurante de alto nível para falar do tempo? Não mesmo.
Mas o que eu quero saber do vento e de conversa? O cara acabou de
encostar o joelho na minha perna!
Merda, ele está vindo de novo, não, não, não, ah…
SAI DAQUI!
— Olha, outra vez! – Victoire pula novamente, assustando-se e ME
assustando.
A qualquer segundo eu vou ter um ataque cardíaco, isso é sério. Pelo
amor de Deus, eu passando pela maior crise aqui e eles parecendo que nunca
viram um ventinho na vida. Preciso me controlar para não agarrar sua camisa e
arrancar um pedaço, tipo aquelas tietes ridículas em shows de modinha.
Preciso sair de perto desse cara.
— Ah… papai, vou até o banheiro – eu disse, com um tremor visível na
voz que, inutilmente, tentei disfarçar. Beleza, ninguém nem sequer notou,
estavam todos olhando a água dançar na janela. Enquanto me afasto, ainda
ouço Victoire comentando como está ficando calmo, sem nem olhar na minha
direção.
Paro em frente à pia gigantesca, que fica entre as portas dos banheiros
feminino e masculino, e me encosto ali, tentando diminuir o ritmo dos
batimentos cardíacos. Para disfarçar um pouco, começo a lavar as mãos bem
devagar, tentando estender ao máximo o tempo.
Tá, tudo bem, fiquei pensando em você-sabe-quem.
Mas, entenda, não tem como. Eu não consigo esquecer o joelho dele
roçando no meu.
— Preciso lhe fazer uma pergunta.

Capítulo 18 - Conto-de-Fadas

Por um segundo, meu mundo pára. Me senti num filme de terror, bem
naquele momento em que a mocinha está fugindo e, inocentemente, acha que
escapou do perigo. Aí, começa a tocar aquela música sinistra e o assassino
surge bem no seu cangote, como uma sombra. O susto é extraordinário, os
olhos se arregalam, a respiração cessa e a pobre menina fica parecendo
alguém com bronquite asmática, sugando o ar desesperadamente.

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Aí, normalmente, a menina delicada decide que é hora de achar uma
solução – e de fato sempre acha.
Não agora, porque a mocinha da vez sou eu.
Definitivamente, eu seria uma péssima protagonista de filme de terror.
Talvez servisse mais para o papel da melhor amiga, aquela que nunca acredita
que pode morrer é sempre a primeira a se dar mal.
Considerando que não havia assassino nenhum ali – a única coisa que
Luan matou foi minha habilidade de pensar – só posso supor uma coisa: meus
neurônios me odeiam. Me assustei dessa forma mesmo com um espelho deste
tamanho socado bem na minha cara.
Graças à minha estagnada no tempo e no espaço, eu só volto a ter
noção do que faço quando sinto algo frio crescendo perto do meu umbigo.
Meus ouvidos supersônicos imprestáveis voltam a funcionar e eu percebo vozes
altas vindas das mesas, gritos, um pandemônio.
Esquece, nada é mais importante que a água em abundância jorrando
para cima do meu vestido.
— Merda! – eu grito, afastando imediatamente a mão da torneira.
Sim, claro, porque a água não me atacaria por vontade própria. No
susto, acabei subindo as mãos alguns centímetros e tampei metade da boca da
torneira.
Coincidentemente, a única metade que não me acertaria em cheio.
É, eu sou uma besta.
Sinto minhas bochechas esquentarem quando ouço Luan gargalhando da
cagada que eu realizei.
— Lune! – ele diz, zombando sem vergonha nenhuma, entre gordos e
incontroláveis risos – como você consegue?!
Se eu fosse um desenho animado, eu agora estaria com aqueles
sustenidos irritados pulando na testa.
— Consigo o que? – meio cuspo a pergunta, mais morrendo de vergonha
do que realmente ofendida.
— Não sei, como você conseguiu se manter viva até hoje? – (pausa para
risos) – Já seria uma boa explicação – Luan ainda ria. E ria.
E ria mais.
— Digamos que destreza não é uma das minhas especialidades, mas fico
feliz em te deixar tão alegre – eu disse rangendo os dentes. Isso fez ele
gargalhar ainda mais, o efeito oposto ao que eu gostaria. Tenho vontade de
acrescentar que estou torcendo para vê-lo com indigestão por tanto rir.

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É verdade, ele não poderia ter uma indigestão porque nós ainda não
comemos nada.
Quer saber, me ignore.
— Quer parar de rir de mim, por favor?! – eu cuspo, deixando
transparecer claramente meu nervosismo agora. Ele enxuga as lágrimas dos
olhos ainda rindo e olha para o salão. As vozes voltaram a subir e tento
recordar se houve algum anuncio de mal tempo na TV.
Mas as vozes subiram bem quando eu… ué, por que…
— Caramba, esse povo está animado hoje – Luan comenta do nada e
algo dentro da minha cabeça se racha. No mínimo, meus neurônios estavam
começando a criar um pensamento e com a interrupção bateram a testa um no
outro. Comentário interessante, Luan, obrigada por me fazer perder a linha de
raciocínio.
Volto minha atenção para a pia, vendo o estrago que fiz. Tem água por
tudo. Com um suspiro pesado, pego uma das minúsculas toalhinhas e me
ponho a secar todo o mármore.
Sim, eu admito que, em grande parte, isso é uma distração qualquer
para me concentrar em tudo que não seja Luan. Enquanto isso, ele decide
parar feito um vegetal e ficar só me olhando, com um sorriso bobo e fofinho
nas fuças.
— Você vai ficar aí parado me olhando ou vai dizer qual é sua pergunta?
– digo, tentando fingir que não estou olhando para ele.
— Espera, eu estou pensando em uma coisa – ele diz, ainda com a
mesma expressão, agora com o dedo em riste.
— Não… esquece – conclui. Vai entender.
— Luan, diga logo o que quer.
— Ah, sim, eu já disse, vim perguntar uma coisa – disse ele, com uma
expressão confusa.
Ao mesmo tempo que quero amassá-lo como se fosse um bichinho de pelúcia,
quero socá-lo, de verdade.
— Isso eu já sei, criatura abençoada, mas você não acha que deveria
fazer a pergunta?
— Ah! É! – Luan grita, soltando mais risos.
Hahá, eu tenho tanta vontade de lhe dar um tapa às vezes.
Certo, estou me distraindo muito.
— Mas… não sei, considerando tudo isso… – ele continua, mais confuso
ainda.

119
— Objetividade, Luan, por favor.
— Sim, então, pela situação lá, quem sabe você devesse ficar calma
antes.
Mas hein?
— Anh… lá onde? – pergunto abestalhada, com uma sobrancelha mais
alta que a outra.
— No salão.
— Por quê?
— Pelos fatos.
— Mas que fatos?
— Esses fatos – conclui, apontando para o salão com uma das mãos e
para o teto com a outra, fazendo círculos.
(Silêncio).
— Que merda você está tentando dizer?
— Que você deve ficar calma.
— Sim, pelos "fatos"?
—… É. Vai entender – ele termina, sorrindo descaradamente.
VAI TOM…
— Luan, diga logo o que quer! – soco a pia, com um olhar alucinado e
negro.
— Ei! Calma lá! – o cretino diz e dirijo meu olhar maligno para ele – tá
bom, tá bom, eu digo… é simples, na verdade, eu só queria perguntar o que te
deu hoje à tarde. O jeito que falou com as meninas… e por que deixou aquele
cara entrar.
Penso nisso por alguns segundos.
Espera… eu entendi bem? Ele veio me indagar sobre a forma que tratei
as visitas na minha casa?
— "As meninas" – comecei a responder entre os dentes e esfregando a
pia com muito mais força que o necessário – eram visitas suas, não minhas.
— E só por isso você falou daquele jeito? – ele forçou ainda mais o
assunto e antes que eu explodisse (o que era bem provável) acrescentou com
voz mansa – se controle.
Lancei meu olhar homicida para ele novamente.
—… Por favor? – ele completou.

120
Eu queria gritar, juro que queria, mas ele – detesto admitir – tinha
razão. Descontei em mais alguns centímetros de pia.
Além disso, ele pediu ―por favor‖.
— Isso é algum tipo de bronca? Ficou ofendido por eu ter sido cruel com
suas visitas? Me desculpe por tê-las tratado tão mal.
— Não, nada a ver, isso foi divertido – diz ele com um sorrisinho
inocente que me parece encantadoramente lindo – e não estou tentando lhe
dar uma lição, só queria saber se… não há algum outro motivo para você ter
agido assim.
— Elas serem falsas e cheias de segundas intenções sobre você já não é
um bom motivo? – digo com fúria para o mármore. Engasgo.
Claro que existe um outro motivo, sempre existe um outro motivo, mas
você nunca saberá qual é, porque eu não sou gente.
— Segundas intenções comigo? – ele pegou.
Espero que também não tenha pegado meu leve arregalar de olhos e o
suor frio se formando na minha testa. Se ele interpretar isso de verdade, minha
vida estará acabada.
Ótimo, quem precisa dela?
Tudo bem, eu preciso.
— Ah… é! – meus lábios se movimentam rápido demais e eu os sinto
tremer com o desespero – É c-claro que sim – risadinhas nervosas – elas d-
disseram que foram por minha causa, sabe, porque eu passei mal à noite e aí
avisaram na escola que eu não tava bem, e-então elas foram lá me ver mas –
mais risadinhas nervosas – veja só, não é engraçado?
—… O que exatamente é engraçado? – ele ainda está tentando
processar minha explicação, dá pra ver em seus olhos. No fim das contas
percebo que não falei coisa com coisa.
— É engraçado como… como… elas são falsas e acham que eu sou
burra!
— Mas você é meio burra.
Enfio o calcanhar na canela dele. Depois, aprecio os breves segundos de
silêncio enquanto Luan não pode abrir a boca, pois está tentando não urrar de
dor.
— I… isso foi m-muito cruel – sua voz volta depois de um tempo.
— Não vou me desculpar.

121
— Certo, me ferrei nessa. Mas eu ainda não entendi as segundas
intenções – disse o pobre, curvado, ainda massageando a perna e com uma voz
pequena de sofrimento.
—… Pois é, né, ainda não entendeu – pense, Lune – então… segundas
intenções sobre você porque elas foram te ver dizendo que era por minha
causa!
EU CONSEGUI!
— Mas aí… não seria melhor ter dito que as segundas intenções eram
com você?
Meu estômago dá uma cambalhota.
— HAHA! É, não é?! – viro para ele, com um escancarado sorriso falso e
levanto a mão em sua direção para dar uma batidinha de gozação em seu
braço. Ele se encolhe de medo do meu tapa.
Acho que o traumatizei de alguma forma.
Mas que exagero, era só uma brincadeirinha pra descontrair.
Sem perceber, começo a rir do medo dele. Ele parece ofendido e fecha a
cara para mim.
— É, divertido, né? Você ainda não respondeu a segunda parte da
pergunta.
Rio mais, sem peso na consciência nenhum, até me tocar das suas
palavras e deixar meu riso morrer. Foi como se alguém chegasse e abaixasse o
botão do volume. Vejo a cara presunçosa dele com fogo em meus olhos.
— Apostou tudo em uma falha de memória minha? Eu tenho pelo menos
três bilhões de vezes mais neurônios do que você – ele provocou.
— Por que esse sorrisinho petulante? – devolvi sua provocação, tentando
mentir para ganhar tempo – Acha que é difícil eu responder essa pergunta?
— Essas palavras são suas.
A expressão dele era vitoriosa. Eu não podia deixá-lo vencer essa, meus
instintos não permitem.
Assumindo uma posição confiante que não era minha, me aproximei dele
com todo meu charme esotérico. Luan não apresentou reação nenhuma, mas
captei rapidamente seu peito arfar.
Antes de tudo, quero deixar bem claro que nunca faço coisas deste
gênero, não faz meu feitio perturbar as pessoas assim. Na verdade, não me
lembro de ter feito isso alguma vez na vida, mas, de repente, foi como se algo
despertasse, algo natural, adormecido há muito tempo.

122
Eu não sei explicar, mas senti meus movimentos fluírem com uma
graciosidade sobrenatural. Meus cabelos balançaram minimamente enquanto
deslizava pelo piso sem ter certeza absoluta se estava andando ou roçando o
chão. Olho para Luan com uma vibração desconhecida até por mim. Se me
perguntassem, diria certamente que minhas íris estavam cintilando.
— Deixei Phil entrar simplesmente porque posso fazer isso.
Minha voz saiu baixa e chegou a seus ouvidos dançando, cheia de uma
sensualidade que – JURO – não tive intenção nenhuma de produzir.
Agora sim, Luan reagiu. Uma de suas mãos partiu em minha direção e
eu estava convicta de que seria agarrada pela cintura.
O problema é que sua mão partiu, mas não chegou. Ele a desviou, a
jogou em seu cabelo e virou-se, ficando de lado para mim.
Aquilo me pegou tão de surpresa que até cortou meu clima. Pisquei sem
entender nada.
E, sei lá porque, fiquei possessa por um aborrecimento sem tamanho. Quando
ele recuperou a voz, eu já estava a ponto de enfiar um cabo de vassoura em
seu nariz (é, nariz).
— Boa tentativa, gracinha. Mas não era essa a resposta esperada.
— Pois é essa que vai ter – disse com raiva. Ou pelo menos eu acho que
era raiva, pois não sou muito do tipo que sente isso com freqüência.
— É sério, Lune. Não entendi, depois de tudo que aquele cara te fez
você o recebe de braços abertos em casa. Eu fico pensando se…
— Eu não o recebi de braços abertos, o deixei entrar porque me pediu
desculpas e sou muito generosa.
— Sei – ele ri, sem muita vontade, ainda sem me encarar.
— Sou, ué.
— Então, eu sei.
A raiva volta e sobe até minha testa. Ele toma coragem e olha para mim
pela primeira vez depois de todo esse tempo e dá risada da minha cara
vermelha.
— Não precisa ficar assim, eu estou brincando.
— Tudo bem Luan, olha…
— Você está interessada por ele?
— Como? – cuspo, ou melhor, quase vomito com a surpresa. Pensei não
ter ouvido direito.

123
— Você gosta dele? – Luan repete, também pensando que não ouvi
direito.
Olho para ele absolutamente incrédula.
— Você bebe?
— Só socialmente.
Realmente contenho um impulso de estapeá-lo, deixando chegar até ele
apenas o olhar.
— Qual é, Lune! – sua expressão é de genuína surpresa, acho que não
esperava um olhar irritado tão sincero quanto o meu – Eu só fiz uma pergunta,
não cometi um crime nem nada assim.
Eu sei disso, seu idiota, mas o que eu posso fazer? OLHA A PERGUNTA
QUE VOCÊ ME FAZ!
Ou, pelo menos, era o que eu queria ter dito. Ao invés disso, massageei
os olhos, suspirei e disse com toda a consciência do mundo:
— Não, Luan. Não estou interessada nem por ele nem por ninguém,
certo?
Notei seus olhos fixados em mim, com uma momentânea curiosidade.
Depois de alguns segundos, ele esvazia o peito e abre um sorriso em minha
direção, parecendo mesmo contente.
— Desculpe. Acho que eu nem deveria ter perguntado.
— Sem problemas – analiso seu rosto, meio confusa. Em alguns
momentos é difícil interpretar se ele está sendo sincero ou apenas falando por
falar.
— Não, é sério. Quer dizer, eu não tenho nada a ver com tudo isso,
perguntei uma coisa íntima assim sem mais nem menos. Nossa, nada a ver,
realmente, desculpe.
É surpreendente vê-lo envergonhado. Dá pra ver nitidamente que está
se xingando em pensamentos.
— Não tem importância – digo, olhando pensativa para a pia branca –
você pode me perguntar o que quiser.
—… O.k. Eu não sou de fazer essas coisas, sei lá o que me deu. Acho
que vou parar de ouvir minha consciência.
Eu ri brevemente, mas parei quando percebi seu ar sério. Ele não estava
brincando.
— Você veio perguntar isso por que ouviu sua consciência?
— É, volta e meia ouço ela. É uma voz chata.

124
Luan conclui e sorri em minha direção. Não consigo saber se está
mesmo falando sério ou está brincando. Porque eu também escuto coisas
aleatórias, às vezes.
Principalmente em sonhos.
Não que isso importe.
— Bom… – começo, insegura sobre o quê estou dizendo – acho que
você deve ouvi-la quando achar que deve.
— É, mas dessa vez não tive sorte, te perturbei sem motivo.
―Teve um motivo‖.
Legal, agora eu estou ouvindo coisas também. Olho para Luan e o vejo
refletir sobre algo.
— Você não me perturbou… é só que não é uma coisa tão simples.
— O que não é tão simples? – disse, antes de conseguir segurar. Seu
arrependimento ficou claro logo depois.
— Me interessar por alguém não é tão simples.
— Ah.
(Silêncio constrangedor).
— Acho que entendo o que está dizendo – completou.
— Entende? – pergunto, surpresa.
— Alguém comentou algo assim comigo, esses dias aí.
— Sobre mim?
Ele fez uma pausa tensa e encostou-se de costas na pia, cruzando os
braços.
— Mais ou menos.
—… O que disseram, exatamente? – me prendo em suas palavras,
temendo qualquer coisa que pudesse me comprometer, qualquer coisa ruim
que mais alguém pudesse ter dito.
— Era sobre Phil, mas claro que você estava bem envolvida. Disseram
para eu ter paciência com ele. Disseram… que sou uma exceção estranha. E
algumas garotas hoje à tarde discutiram sobre você receber o cara em casa.
Uma delas disse que você não poderia ter feito de outra forma, pois está bem
acostumada com "merdas assim", pelas palavras dela. Não entendi muito bem,
fiquei um tanto curioso.
Eu entendi perfeitamente.
A garota tem razão, eu estou bem acostumada.

125
— Tudo bem – comecei, a fim de tentar esclarecer pelo menos um
pouco as coisas para ele – A questão é simples. Acontece que você é uma
exceção. Quando os caras me conhecem não reagem como você reagiu, eles
ficam meio fora de controle… como o Phil. Geralmente passa depois de um
tempo, mas até lá… com você não. Você se manteve indiferente o tempo todo.
Não tenho certeza, mas, ao menos para mim, meu tom de voz
evidenciou em muito o quanto isso me decepcionava. Eu queria, queria muito
que ele tivesse interesse por mim e o fato de justamente Luan ser diferente
parecia injusto.
Nem eu conhecia o tamanho desse rancor.
— É o que parece – Luan soltou, olhando perdidamente para o salão à
nossa frente. Depois me fitou bem firme, como se finalmente tivesse
conseguido coragem suficiente para me ver de verdade. Um arrepio teimoso
percorreu minha fina penugem dos braços.
— Deve ser mesmo difícil – ele deixou as palavras escorrerem com a voz
penetrante que usa sempre quando fala baixo demais. Isso me causou mais um
arrepio.
— Não foi pra você – observei com um falso bom humor.
— É o que parece – falou em tom definitivo e sorrindo muito mais com
os olhos do que com os lábios. Finalmente pude perceber o quanto estávamos
próximos. Eu podia sentir o cheiro do colarinho da sua camisa apenas com
minha fraca respiração. Nossos olhos deviam estar a, no máximo, trinta e cinco
centímetros de distância, considerando a diferença de altura.
Ou seja: comecei de verdade a ficar nervosa.
Porém, ao mesmo tempo, não queria desviar. Essa proximidade me
agradava em muito, quase tanto quanto o tom de avelã da sua íris.
— A propósito – ele tornou a me presentear com meu tom favorito de
voz e, por incrível que pareça, se aproximou ainda mais – você está linda hoje.
Não vou me ater em descrever como meus joelhos quase cederam ou
como desejei arduamente me esticar até alcançar seus lábios. Entretanto, não
posso deixar de citar o jeito como, logo depois de ter dito isso, ele ergueu o
braço e tirou, com muita doçura, uma mecha de franja da frente dos meus
olhos. Depois disso, eu já não tinha certeza se aquilo era fantasia ou realidade,
só sabia que a distância entre nossos rostos diminuía sutilmente. Nesse ponto,
eu já não podia afirmar se estava ou não voando, mas juro que senti meus pés
saírem do chão.
E exatamente quando dedos calorosos deslizaram por minha cintura e eu
fechei meus olhos, Victoire chegou.
— Meninos… NOSSA, me desculpe!

126
Luan se afastou de mim com uma agilidade invejável. A última coisa que
vi separada de mim foi sua mão, muito feliz em volta do meu corpo segundos
antes. Ele foi tão abrupto que nem mesmo me enfureci. Ainda tentava me
recuperar da falta de fôlego e, principalmente, da frustração, quando ela voltou
a falar.
— Meninos, por favor, por favor, me perdoem, eu precisei vir com a
desculpa de usar o banheiro, Otto estava querendo vir ele mesmo chamar
vocês, o segurei lá o máximo que pude, mas não estava resolvendo mais,
então… perdão! Eu sinto muito!
— Tudo bem mãe, relaxa – Luan acalmou Victoire e eu estava quase o
socando, quando notei seu rosto. Suas bochechas estavam num vermelho vivo
que nunca vi antes. Quando Luan percebeu que eu o estava observando, fingiu
coçar os olhos para esconder a cor do seu rosto e virou de costas para mim,
indo até Victoire.
Isso foi no mínimo muito, muito encantador.
— Você não vem? – ele gritou para mim, já desaparecendo por trás da
parede que nos impedia de ver nossa mesa. Muito feliz, ainda sonhando,
consegui descolar meus pés e andar com eles, porque é meio pra isso que eles
servem.
Uma conversa estranha, com uma pessoa estranha, numa noite estranha
e com um final quase perfeito, digno de contos-de-fadas.
Era tudo o que eu precisava.

Capítulo 19 - Ânsia

Como eu estou? Muito feliz.


O resto da noite simplesmente sumiu. A única coisa que eu fazia era
ficar feito um zumbi olhando para o nada, recordando a sensação maravilhosa
dos dedos de Luan circulando minha cintura, o calor vindo da sua pele, o cheiro
aveludado da sua roupa, seu sorriso, seus olhos e seus longos cílios.
Os únicos momentos em que eu me esquecia dessas imagens era
quando a irritação por Victoire voltava a me atormentar. Ou seja, toda vez que
eu ouvia sua voz. ―Lune, aceita um pouco disso, meu amor?‖, ―Lune, gostaria
que eu te servisse um pouco mais de suco?‖.
Maldição.

127
Eu sei, ela só estava enchendo meu saco e tentando ser agradável, se
redimir pelo acontecido minutos antes. Tenho que levar isso em consideração.
Maldição.
―NÃO, Victoire, não quero mais suco‖, eu respondia, sem nem me
lembrar de agradecer a oferta. Timidamente, ela baixava a cabeça e voltava a
procurar mais coisas pra me socar goela abaixo. E a pobre permaneceu o final
de semana inteiro nessa árdua tarefa de me amansar. Lavou minhas roupas,
meu acolchoado, tirou o pó das minhas prateleiras e limpou os vidros da minha
porta. Consegui pará-la apenas quando a peguei no flagra tentando podar as
rosas lindas da sacada.
―O que está fazendo com essa tesoura de jardim, Victoire?‖, perguntei,
tensa.
―Ah, eu só pensei em ajudar você com essas plantas‖, ela respondeu,
sorrindo.
―Aham, muito obrigada, mas essas plantas foram presentes de Nara e de
várias amigas que já passaram por minha vida, é uma coisa muito especial pra
mim, sabe? Inclusive, tenho muitas coisas assim, desse tipo, um monte, um
monte mesmo, objetos, plantas, meu peixe, listas disso e eu gosto de cuidar
delas eu mesma, saca? Em consideração às pessoas especiais que conheci.
Você entende?‖.
―Nossa, por Deus, eu não sabia! Me perdoe, é claro que eu entendo!‖.
―Mas, muito, MUITO obrigada pela boa intenção! Você está sendo uma
ótima pessoa para essa família‖.
Os olhos dela brilharam.
―M-meu Deus, você me deixa muito feliz com isso, Luninha!‖, Victoire
termina, me abraçando forte, verdadeiramente feliz.
É claro que eu estava mentindo.
E, se me permite, tem que ser muito alienado para cair numa dessa.
Quer dizer, ―presentes de várias amigas que já passaram pela minha vida‖? Eu?
Qual é, que tipo de anormal acredita nisso? Olha bem pra minha cara. Pif.
Mesmo assim, decidi parar de perturbá-la depois de mandar essa
blasfêmia gigantesca. Me ocorreu, em determinado momento, que eu teria que
manter o controle para não enlouquecer, já que ela passaria o final de semana
inteiro conosco (sim, soube da notícia sábado de manhã, quando a cidadã sem
noção disse com um ar inocente: ―vou cuidar da casa para vocês esse final de
semana, em agradecimento ao seu pai pelo jantar. Pensei em começar a
limpeza pelo seu quarto, você tem sido tão amorosa com a minha família,
Luninha.‖).

128
Pois é.
Mas, como sou uma pessoa de coração puro, decidi pegar leve por um
tempo – grifem esse ―por um tempo‖. Ela é mesmo boa para meu pai, sabe, o
cara está feliz como nunca. Acontece que só levo isso em consideração quando
não estou cega por minha frustração pulsante. O troco dela ainda está por vir.
O que importa, no momento, é ver como Luan passou todo sábado e
domingo mal conseguindo me olhar nos olhos. Parece que toda sua coragem
para se aproximar de mim se esvaiu num único ato – que não deu certo.
Maldição.
Eu mal posso acreditar, nós estivemos tão perto, tão perto…
Claro, afinal, ele já estava com os dedos na minha cintura. Eu não posso
ser cínica e burra ao ponto de dizer que não aconteceria nada de estupendo
caso Victoire não tivesse aparecido.
Maldição.
Voltando ao ponto: não é loucura da minha cabeça. Ele realmente estava
segurando minha cintura e certamente não faria isso se seu objetivo fosse só
dizer: ―então, tem uma meleca bem gorda no seu nariz‖.
Não, com certeza não.
E isso só me leva a uma conclusão: ele ia me… beijar? (Se fosse mesmo
uma conclusão, não seria uma pergunta. Acho que devo rever meus conceitos
de certeza e incerteza. Dane-se). Continuando. Oh, meu Deus, santa
esperança, tomara que sim. Por que Victoire teve que interromper? MALDIÇÃO.
Ah. É verdade. Ela teve que interromper porque se não o fizesse, seria
meu pai, e aí estaríamos ferrados. Sim, verdade.
Mas, se ele ia me beijar… (sinto coisas estranhas quando penso nessa
palavra) ele podia simplesmente ter tentado de novo.
O.k., a vergonha, blá-blá-blá.
Inevitavelmente, olho para o indivíduo do outro lado da sala de aula. Ele
fica simplesmente lindo de uniforme. Camisa branca, os últimos botões abertos,
a gravata vermelha frouxa em volta do pescoço e meio pendente para um lado.
A calça, que deveria ser certinha, também está um pouco desleixada. O cabelo
voltou ao pseudo-moicano de sempre, os olhos voltaram a ter aquele ar
inocente de todos os dias. Parece óbvio que seus pensamentos estão voando
longe. Espero que não estejam em um lugar mais longe do que o lado oposto
desta sala. Ou seja, mais especificamente, onde eu estou.
Depois de tantos anos sem saber o que é sexo oposto, depois de tanto
me acusarem de lésbica e coisas afins, estou apaixonada por um cara. Não
consigo esconder o quanto isso me parece estranho.

129
Um cara. Estou apaixonada por um cara.
Bom, ainda bem que é um cara.
Nada contra quem não acha, sem crise.
A questão é: não estou acostumada com a situação. Tudo isso ainda é
estranho, meio surreal. Eu, apaixonada, sonhando coisas babacas e totalmente
sem noção como véus, grinaldas e uma linda casa afastada da cidade com um
jardim estupendo, onde criaríamos nossos três filhos, um gato amarelo
chamado Fromage e cães alegres e saltitantes chamados Petit e Gateau (o
porquê de meus animais terem apenas nomes de alimentos é um mistério).
Sim, eu cheguei ao ponto imaginário ridículo de nomear os animaizinhos que
teremos. Tudo isso sendo que, até antes de Luan surgir, a única pessoa
conhecida que tinha o trabalho de perder tempo fantasiando coisas assim era
Nara. E eu ainda me dava ao luxo de rir da cara dela.
Pobre de mim, mera idiota apaixonada.
— Do que está rindo, Lune? – Nara vira e me pergunta, com uma
expressão de ―você é usou drogas?‖ estampada no rosto. Só aí percebo que eu
não estava rindo em silêncio, como imaginava que estava.
É, é tudo tão irônico e eu sou tão burra que nem consigo rir de mim
mesma sem tornar isso público. Grande, Lune, grande.
Nara ainda está infeliz com a minha pessoa e me sinto envergonhada
demais para explicar o porquê do meu riso. Com esse humor todo, é capaz dela
concordar caso eu dissesse que estava rindo por que me achava uma anta
histórica.
— Nada não, uma coisa que vi na TV – disse, coçando o nariz.
Resposta infinitamente mais segura. Ponto pra mim.
Ela deu de ombros e continuou lendo o romance. Um grave problema:
quando Nara não presta atenção na aula, é porque algo alarmante está
acontecendo, algo do tipo: ela não está bem. Dane-se, Luan acaba de morrer
no joguinho em que está brincando e ele fica fantástico quando está puto com
seu Game Boy.
— Lune – Nara me chama e interrompe minha observação fanática.
— Hum? – respondo, sem dar importância.
— Acho que aquelas ali estão armando alguma coisa.
Essa informação nova consegue me distrair minimamente.
— ―Aquelas ali‖, quem? – respondo, ainda sem olhar.
— Aquelas – ela indica com a cabeça Chantal e Nicole, franzindo a testa
e finalmente conquistando minha inteira atenção.

130
A dupla está cochichando alguma coisa, lançando olhares sugestivos
para Luan e Chantal parece meio frenética. Depois de algumas trocas de frases
suspeitas, a ruiva obviamente falsa pára os olhos em mim e os desvia, pois
descobre meus faróis amarelos acompanhando cada movimento seu.
Sem dúvida, estão tramando alguma coisa.
— O que acha que pode ser? – sussurro para Nara, me sentindo num
filme de 007.
— Não faço a mínima idéia, mas seja o que for, a coisa é contigo e com
seu Don Juan – ela me responde, voltando a ler o livro.
— Ele não é ―meu Don Juan‖ – respondo automaticamente.
— Minta para a sua avó – Nara me responde, com uma careta, sem nem
erguer os olhos do livro e eu me sinto tão interessante quanto uma mosca
batendo num vidro.
— O.k., talvez seja mentira mesmo – demonstro minha forma mais
humilde.
Ela revira os olhos.
— Que seja, a coisa é que, se eu fosse você, ficaria em alerta. Por mais
difícil que isso seja, no seu caso – ela retruca, ainda sem se dar o trabalho de
parar a leitura.
— Não gostei da cutucada, mas, afirmativo, me manterei a postos e em
alerta, câmbio.
Ela apenas me olhou como se eu fosse psicologicamente afetada, balançou a
cabeça e voltou às páginas. Gostaria de saber que bicho a mordeu.
Ao término da aula, Chantal é a primeira a se levantar. Ela vai até a
porta e chama por sua amiga que, por sua vez, faz um sinal nada educado com
o dedo do meio.
Hoho! Por essa ninguém esperava! Quase ri. Quer dizer, antes de Nara e
eu nos encaramos sombriamente.
Espero minha amiga bonitinha terminar de arrumar seu material, como
sempre, e saio tranquilamente da nossa classe, admirando os raios do Sol sobre
a grama logo à frente. Não que o clima bizarro entre mim, Chantal, Nicole e
Luan não fosse interessante, mas eu não estava muito disposta a estragar meu
dia com qualquer bobagem da parte delas. O que elas poderiam fazer, colocar
cola em minha bolsa e grudar chiclete em meu cabelo? Faça-me o favor. Seja lá
o que for, o dia está bonito demais para que eu consiga me incomodar. Afinal,
há algumas horas atrás, eu, eu, e não elas, tive Luan passando os dedos pela
minha cintura. Cada vez que a lembrança de suas mãos tocando meu corpo
volta, eu encho meu peito de euforia.

131
Foi por isso que, quando saí pela porta, demorei alguns segundos até
perceber um cenário nada comum.
E eu estava muito feliz até esse momento.
Esse é um dos problemas da vida ter preparado coisas interessantes
para você. Nem sempre ―interessante‖ é sinônimo de ―fantástico‖.
Logo depois de pôr os pés fora da sala, me deparo com a paisagem linda
de Chantal prensando Luan contra a parede, usando muito as coxas, fazendo
um nó em sua gravata. Tudo bem, nada demais. O problema foi quando, assim
que me viu, ela passou uma de suas mãos pelo pescoço de Luan e o puxou
com força em direção… a sua própria boca.
Acho que ele não soube o que fazer por culpa da surpresa. Por uns bons
segundos, a única coisa que Luan conseguiu foi ficar ali, recebendo um beijo.
Permaneceu imóvel, de olhos abertos e sobrancelhas levantadas, enquanto sua
boca era assediada por uma outra que agia de forma muito determinada.
Enquanto a mim, também levei alguns segundos para demonstrar
qualquer reação. Fiquei paralisada, olhando, enquanto a voz pequenininha da
minha razão me dizia que aquilo não era nada demais, só um beijo roubado
que acabaria assim que Luan se desse conta do que estava acontecendo e
recobrasse a lucidez. Porém, foi impossível evitar. Começou como uma pontada
pequena, a pontada afiada que é o choque. Depois, aquilo que era apenas um
incômodo pequeno no fundo do estômago, ou da minha mente, ou dos dois, foi
crescendo… e, num piscar de olhos, a dor se avolumava e tomava conta de
tudo. Minha respiração ficou ofegante, o peito subia e descia com força
enquanto eu procurava um meio de trazer ar para meus pulmões da melhor
forma possível. Logo percebi que as ―pontadas‖ que eu sentia em meu corpo
eram só a pulsação do meu coração.
De repente, tudo mudou. Minha visão mudou. A temperatura do meu
corpo. Os sentimentos. E, ao mesmo tempo em que eu assistia aquela cena,
minha atenção se dividia para o que estava se transformando aqui dentro. Perdi
o controle quando, involuntariamente, eu me retorci, cruzando os braços ao
redor da cintura, agarrando com força minha pele a ponto de senti-la se
rompendo com a força das minhas unhas. Meu instinto acreditou que assim o
desconforto diminuiria. Não funcionou e meus olhos se umedeceram.
Mas por quê? Não deveria ter dor nenhuma, não tinha que existir
desconforto nenhum. Era apenas um beijo. Um beijo sem sentido, um beijo que
não tinha importância.
Então, por quê?
Tudo foi muito rápido, mas para mim, cada milésimo de segundo eram
minutos. Minha primeira vontade foi disparar na direção de Chantal para
arrancá-la dali, nem que, para isso, fosse necessário arrancar sua pele. Porém,

132
não pude, pois uma voz pequena em minha cabeça ordenou que não me
aproximasse. No fundo, bem no fundo, eu entendia o porquê. Eu cometeria um
erro gravíssimo se tocasse nela. Com certeza, um erro muito grande.
No entanto, era difícil conter os impulsos irracionais do meu corpo.
Eu conhecia essa sensação, eu já a tive muitos anos atrás, apesar de
não poder me recordar quando. Agora, eu me recordo do descontrole, da
queimação, da dor. A qualquer momento a água de meus olhos poderia cair.
Mas não caía.
Notei, num instante de maior consciência, que havia um desconforto
crescendo em minha garganta, como uma espécie de ânsia. Achei que
vomitaria, portanto, mantive minha boca firmemente travada. Era como se algo
estivesse simplesmente entalado ali, atrapalhando a respiração.
Nada fazia sentido. Não faz sentido. Não tem por que doer assim.
―Tem‖, a voz em minha cabeça insistia.
Não, não tem. Não tem.
Chantal prensou ainda mais seu corpo contra o de Luan.
Meus lábios começaram a se mover sem meu controle. Eu queria dizer
aquilo, mas não pensei em fazê-lo. Na verdade, ainda quis, de qualquer forma,
não abrir a boca, mas não consegui. Quando notei, uma melodia estranha se
misturava à voz que eu tentava conter, provocando um som nada bonito.
— Fique longe dele – o chiado saiu por meus lábios com tanta
intensidade que a penugem do meu braço se ergueu. Sentia a raiva pulsar em
meus olhos e, no momento seguinte, uma sensação muito estranha percorreu
meu corpo. Parecia outra onda de arrepio, mas era como se meu sangue
estivesse se transformando e expandindo para fora da pele, num fluxo
estranho. Mas nada havia à minha volta senão o ar.
Depois disso, um vento furioso atravessou o pátio.
A violência do ar foi grande ao ponto de fazer Chantal perder o
equilíbrio. A rajada atingiu com violência a lateral do seu corpo, forçando-a a
tirar as mãos de Luan e agarrar-se à janela mais próxima. Foi aí que encontrei
o olhar de Luan e minhas emoções mudaram. A raiva foi substituída pela velha
dor. Minha visão ficou mais nítida e eu parei de tremer, saindo levemente do
estado de transe.
―Saia daí‖, a voz soou autoritária, não admitindo desobediências.
Sem questionar ou relutar, movi meus pés em passos tímidos, enquanto
relutava em desviar os olhos de Luan. Eu tinha uma pequena noção do vento
movendo os cabelos de Chantal em direção ao seu rosto, chicoteando-o por
todas as direções, enquanto ela não sabia se protegia os olhos ou segurava a

133
saia, insistindo em se erguer. Uma personalidade em mim se deliciou com isso,
porém, eu consegui afastá-la.
―Corra‖, a voz ordenou mais uma vez.
A última coisa que vi antes de disparar foi a expressão estranhamente
amedrontada de Luan em minha direção.
Depois disso, corri o máximo que pude.

Capítulo 20 - Nome

―Essa é você‖, a voz dizia, sem nexo algum. Eu apenas desejava que ela
se calasse.
―Você vai aceitar. Você vai entender‖.
Cale a boca.
―Essa dor vem do que você é‖.
Essa dor não faz sentido.
―Você não se lembra de quem é‖.
Eu me olho no espelho todos os dias.
―Se visse, já teria percebido o contrário‖.
Eu sou Lune.
―Você é Nienna‖.
— Lune!
De repente, foi como despertar de um sonho.
Alguém grita meu nome, mas antes que eu consiga voltar
completamente a mim, uma coisa pequena atravessa minha frente. Talvez seja
mais adequado dizer que ela se joga na minha frente. Nós travamos um
encontro violento e caio de joelhos no concreto. Antes mesmo de estar
consciente o bastante para sentir a dor, ouço risos.
— Isso foi tenso! – Lise, estendida ao meu lado, desabafa entre
gargalhadas. Ela ri muito, com as mãos desnorteadas no ar e os cabelos
ondulados espalhados pelo chão. Suas bochechas estão vermelhas, talvez por
causa da adrenalina. A minha vontade é perguntar se ela tem algum prazer em

134
sentir dor. Porém, se eu abrir a boca, o desconforto instalado no fundo da
minha garganta ganhará a liberdade.
Finalmente, Lise consegue não rir o suficiente para ser capaz de me
olhar. Na mesma hora, qualquer vestígio de alegria desaparece de seu rosto. Eu
imagino o que ela vê. Uma garota caída, de joelhos, agarrada à própria barriga
numa posição retorcida. Seus lindos cabelos louros tocam o chão e seu belo
rosto está molhado por lágrimas.
Não que eu tenha conseguido chorar. Hoje, mais do que nunca, desejei
ter essa capacidade. Mas, não, a água dos meus olhos apenas escorreu com o
vento enquanto eu corria o máximo que podia.
— O que foi? – Lise se apóia sobre os cotovelos e não faz questão de se
arrumar. Não parecia preocupada com a desordem dos seus cabelos e com as
coxas quase inteiramente à mostra, ganhando bastante atenção do grupo de
jovens bem próximo a nós. Na verdade, ela parecia não dar a mínima. Mesmo.
Quando ouço o tom preocupado de sua voz, algo em mim desaba.
Quando percebo, já estou no ombro de Lise, cansada e sem força nenhuma
para continuar agüentando sozinha a dor ainda latejante no meu peito.
Sendo bem sincera, eu esperava que ela me empurrasse ou reclamasse.
Mas, diferente do que eu imaginava, além de um singelo ―ai, Deus‖, ela não
protestou nem por um segundo. Pelo contrário: segurou minhas costas sem
jeito, num meio-abraço. Lise, a garotinha que eu chamei de estúpida a primeira
vez que vi, é quem está aqui, no chão duro de um pátio, me oferecendo seu
ombro sem reclamar.
Como as coisas mudam.
— Lune – ela diz o mais mansa que sua personalidade consegue – o que
aconteceu? Você está horrível.
Fiz um esforço tremendo para engolir a ânsia. Passado um tempo,
consegui diminuí-la o bastante para ser seguro falar.
— Ah, Lise… – eu disse para seu ombro, estranhando o som suave e
melódico da minha voz – você nem imagina…
— Tem algo a ver com meu irmão? – ela mandou ver, de uma vez só,
tipo um soco no estômago.
Lógico, eu devia ter imaginado. Tapada como sou, deixei muito clara,
para quem quisesse ver, minha explosão de sentimentos por Luan. Aliás, não.
Tapada como sou, além de fazer isso, ainda acreditei piamente que conseguiria
esconder com sucesso alguma coisa. Às vezes eu mesma sinto pena de mim.
Em resposta para Lise, apenas balanço a cabeça afirmativamente. Sim,
estou assinando meu contrato de morte. Eu assumo: Lise, estou apaixonada
por seu irmão.

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— Vamos sair daqui.
Ela me ajuda no trabalho árduo de me levantar e meus joelhos doem
absurdamente. Olho para eles e percebo que logo estarão enfeitados com belos
e grandes hematomas.
Lise pergunta se há algum lugar mais tranqüilo aonde eu queira ir. Não
tenho certeza se o mais agradável seja o mais adequado, considerando que
Luan me encontraria facilmente, mas, ao mesmo tempo, não existe nenhum
outro em que eu queira ficar agora. Preciso urgentemente sentir o cheiro das
folhas e me aconchegar numa grama. Caminhamos em passos lentos para meu
habitual cantinho-escondido-nada-secreto-atrás-do-arbusto. Em total silêncio.
Eu fiz isso, não fiz?
Não sei ao certo em qual nova informação devo pensar. Tento, com toda
a minha concentração, afastar a mais desagradável delas, a imagem que, a
cada flash, me embrulha o estômago e me deixa dividida entre a dor, a raiva e
a ânsia.
O maior problema disso tudo é que minha concentração nunca foi
grande coisa. Mesmo com todo o esforço possível, só consigo pensar nos lábios
de Chantal sobre os de Luan. É horrível. E não deveria ser. Quer dizer, por um
lado, qual garota não se abalaria na minha situação? Qualquer uma. Mas a
questão não é essa. Não é a perturbação, e sim o tamanho dela. É enorme, é
demais, é anormal.
Anormal. Claro que é anormal. Depois de hoje, da reação que tive ao ver
aquele beijo, continuar tentando me convencer de que todas as experiências
estranhas da minha vida são meros acasos seria mais do que negligência: seria
a mais pura essência da ignorância. Seria admitir a existência de nenhuma
célula cerebral dentro da minha cabeça – e vale lembrar de que tenho um
belíssimo par. Mais tarde espero conseguir convencer meu casal de neurônios a
dispor de algum tempo e suor em favor de refletir sobre o transe assustador de
hoje, já que, agora, qualquer trabalho a mais sobre eles poderia resultar numa
sobrecarga.
— É aqui? – Lise me acorda e, meio atordoada, digo que sim. Ela fecha a
cara.
— Você deveria se olhar no espelho. Está numa situação de dar nojo.
— Estou tão feia assim? – pergunto meio envergonhada. Levo a mão
timidamente à cabeça no intuito de abaixar alguns fios de cabelo. Pensando
bem, não estou muito certa de que quero a verdade.
— Não me faça rir – ela responde revirando os olhos – quem sabe no
apocalipse você fique feia, com todo o fogo e as desgraças. O que está ridículo
é essa sua expressão de piedade. Se o mais ferrado dos indigentes tivesse

136
algumas aulas com você, em cinco dias suas esmolas o fariam mais rico do que
Tio Patinhas.
Ela deve ter razão. Estou mesmo me sentindo digna de piedade, embora
ache difícil alguém ser mais rico do que Tio Patinhas. Lise não está feliz com
isso. A cada segundo, vejo seu rosto ficar mais furioso. Engraçado. Quando ela
franze as sobrancelhas, lembra muito o irmão. E só contemplar essa
semelhança já é o suficiente para encher meus olhos de água e fazer crescer o
desconforto do meu pescoço… e quanto mais ela se enfurece, mais fica
parecida…
De repente, seu pequeno e delicado braço se ergue em fúria.
— EI! – grito, absolutamente chocada, e instintivamente seguro minha
bochecha direita, já quente – FICOU MALUCA?
— Não, mas você deve ter ficado idiota! – ela grita em resposta,
ensandecida.
— Você me deu um tapa! – deixo a indignação tomar conta do
momento. Ninguém nunca me deu um tapa.
Os olhos verdes de Lise parecem queimar. Num instante, minha coragem
balança de verdade.
— Escute, Lune Noire, mas escute bem, porque vou falar só uma vez – a
pequena criatura à minha frente levanta o dedo indicador e o estica bem em
frente ao meu nariz. Meus pêlos do braço se arrepiam com o tom assassino de
sua voz – nunca mais quero ver você com essa cara de ―pobre de mim‖,
principalmente quando for por culpa de outras pessoas, qualquer uma.
Entendeu?
— É fácil para você falar – digo ainda segurando o rosto e totalmente
envergonhada – não era você quem estava lá assistindo aquela louca assediar
Luan só por que ela e todo mundo acha que estou perdidamente apaixonada
pelo cara – frisei bem a palavra acha, perceba. E não sei por que,
sinceramente. Como se adiantasse de algo.
— Não, não era. Mas pode ter certeza de que, se fosse, não estaria aqui
escondida numa moita, com ar de ―oh, Deus, cura esta ferida, meu coração foi
vítima da cruel flecha da dor-de-cotovelo‖. A estas horas aquela vaca estaria na
enfermaria, implorando para Madame Chercris ajudá-la a colar os dentes de
volta na boca.
Olhando para a pequena e, sem conseguir escapar do seu olhar
imperdoável, tive, por fim, que admitir a derrota. Ela tem completa razão. Estou
fazendo um papel ridículo. Bom, nenhuma novidade até aí. Mas, realmente, não
posso baixar a cabeça e continuar agindo como uma injustiçada vítima do
destino.

137
Com muito pesar, é isso o que digo para ela. E por um momento – bem
pequeno mesmo – pude ver nela uma expressão doce. Nunca havia percebido
como Lise – com seus cabelos chocolate, seus cachos e enormes e soltos, seus
olhos e cílios grandes, lábios bem torneados – se parecia com uma boneca.
Daquelas caras, de porcelana, com bochechas rosadas. Obviamente essa figura
não dura muito, pois logo se notam as meias 3/4 amontoadas sobre o
calcanhar, a gravata torta pendente e a faixa suja enrolada na mão esquerda,
como uma belíssima delinqüente juvenil. Com covinhas.
— Fico feliz. Você fica melhor fazendo o papel de burra, não de coitada.
Aaah, tá, entendi. Valeu.
Nós nos sentamos desconfortavelmente na grama atrás do arbusto e
admiro a cor escarlate dos meus joelhos. Em poucos segundos, me perco em
pensamentos. Meu estômago se remexe só de pensar em Luan. Me esforço
para não demonstrar nenhuma sensação ruim, Lise não precisa e nem merece,
depois de se preocupar tanto com minha auto-estima, ver qualquer sinal de
fraqueza em meu rosto. Não sou digna de pena. E nunca vou ser.
Quem sabe, se eu repetir isso muitas vezes, posso passar a acreditar.
— Então foi isso que aconteceu – Lise solta, olhando para as folhas ao
nosso lado e coçando a cabeça, desarrumando ainda mais seus cabelos
compridos.
— Sim – respondo, suspirando e também olhando para as folhas –
aquela maníaca ainda se deu ao trabalho de esperar até eu entrar no campo de
visão para poder apreciar a cena.
Lise deu risada.
— Isso foi realmente baixo. Nem eu chegaria a um nível tão medíocre.
Quer dizer, só as mais necessitadas precisam assediar um cara para conseguir
um beijo e enfurecer alguém. Pena eu não estar por perto na hora, teria
arrancado aquela parasita do meu irmão com tanta sutileza quanto se descola
uma unha usando uma espátula de bolo.
Uma imagem terrível e dolorosa passa por minha cabeça e eu a empurro
para um canto obscuro qualquer do meu cérebro. Por um instante fico em
dúvida se conto para Lise sobre meu transe psicótico. Penso em Chantal sendo
atirada contra a parede, lutando contra o vento que erguia suas roupas e
atirava seus cabelos com violência contra seu rosto. Tudo isso enquanto eu,
cheia de sensações novas e sentindo o coração ferver, clamava, desejava,
louvava tudo aquilo. Agora, depois da raiva dissipada, me sinto desprezível. E
muito satisfeita. Totalmente ambíguo e confuso. Então, voltamos à pergunta:
eu fiz aquilo?

138
Mais ou menos nesse andar dos pensamentos, ouço ruídos do outro lado
do arbusto. Sem aviso nenhum, Luan afasta alguns galhos e se faz surgir por
trás da planta.
— PUT…! – solto um palavrão que não vale a pena ser descrito. Num
movimento de autodefesa involuntário, viro meu rosto para a parede oposta, já
sentindo todos os efeitos daquela visão inesperada: falta de ar, dores no
estômago, um objeto não identificado na garganta e uma horrível pressão no
peito. Não sei em que me concentro primeiro, se no meu coração – que parece
querer saltar para a grama e fugir desesperado berrando por socorro – ou se
em Lise, sempre com ótimos reflexos, que agora está empurrando Luan para
fora do meu cantinho privativo.
— Lise, o que está fazendo aqui? – ele fala calmamente, respirando
fundo, como se estivesse em busca de uma grande paciência divina.
— Me certificando de que você também não estará.
Silêncio. Luan bufa.
— Lune, eu preciso falar com você – Luan diz, mal conseguindo me ver,
com a voz fraca.
Eu quero falar com você.
— Lune, por favor, será que podemos conversar?
Eu adoraria, é o que eu gostaria de responder. Porém, não posso olhar
para Luan e movimentar minhas pregas vocais ao mesmo tempo, não agora.
Alguma coisa, lá no fundo, me diz que não posso correr esse risco. A ânsia
precisa se manter exatamente onde está. Precisa.
— Garanhão, cai na real, ela não vai falar com você agora – Lise diz,
depois de ter o bom senso de esperar para ver se eu estaria de acordo com
uma conversa.
— Lune, eu preciso saber como você está… fala comigo – o tom de Luan
já era o de súplica. E a cada batida, meu coração doía mais só por não poder
ajudá-lo.
Não posso olhar para ele, não posso.
— Qual é Luan, como você acha que ela está?
Obrigada, Lise. Essa é uma coisa que eu gostaria de saber.
— Tudo bem, Lune, você não quer conversar, mas pelo menos me ouça.
Eu não tive nada a ver com isso, nunca iria provocar nada assim, eu juro…
— Eu sei.
Sim. Essa frase saiu de mim.

139
Finalmente encontrei forças o suficiente para falar, mesmo que com a
voz melódica, como ocorreu com Lise logo que a encontrei. Mais uma vez me
surpreendo com a harmonia dos sons que soltava pelos lábios.
De que forma consegui falar? Bastou não olhar para Luan de forma
alguma e não pensar em nada. Mas acho que a maior responsável por esse
avanço, foi o orgulho. Eu nunca, nunca poderia deixar qualquer vestígio de
falsas interpretações. Luan não pode saber que toda a minha dor vem da
simples imagem de seus lábios colados em outros que não os meus. O orgulho,
inexplicavelmente, conseguiu transpor os obstáculos.
— Não pense nisso. Não estou assim por sua causa. Apenas estou
cansada de ser vista por todos como uma espécie de brinquedo bobo.
Pausa para tomar fôlego.
— Prometo que assim que eu estiver melhor, converso com você.
— Mas…
— Eu vou ficar bem – o interrompo, nem um pouco gentil. Não por
impaciência ou irritação. Apenas não sei quanto tempo vou conseguir manter
minha voz controlada, sem aquele desconforto atravessado no pescoço.
Por algumas vezes, ouvi inícios de sílabas saindo de sua boca. Porém,
nenhuma delas chegou a formar uma frase ou palavra sequer.
Lise, ao perceber meu indício de ponto final, se manifesta.
— Muito bem, a festa acabou, cai fora, bundão.
— O quê? Mas eu preciso falar com ela! – a voz volta à boca de Luan,
que tenta retomar o tempo perdido. Ele parece muito confuso.
— Luan! Cai fora!
Agora, Lise parece irritada e, seu irmão, totalmente perdido. Ao mesmo
tempo em que parece saber que a conversa acabou, não quer ir embora. Minha
vontade sincera é olhar para ele, conversar, explicar tudo o que sinto. Abraçar.
Saber o que ele está sentindo.
Luan.
— Lune, não foi minha culpa…
— Culpa? – o tom firme de Lise não permite vacilo. Ela se aproxima dele
e fala baixo, com a voz meio rouca, aquelas que fazem a gente se sentir quinze
centímetros mais baixo. De alguma forma, essa frase de Luan despertou seu
espírito justiceiro.
— Culpa pelo quê? Por ter sido o maior bunda-mole que já inventaram?
Que tipo de menininho indefeso você se tornou de repente?

140
O silêncio impera sobre o ambiente. Meus neurônios trabalham. Lise está
falando sério? Ela realmente acha que Luan tem culpa?
Luan tem culpa?
— Você deixou uma ruiva necessitada sexualmente fazer o que queria
com você porque acha tudo divertido e agora estão rindo de Lune por aí, isso
você acha divertido? – ela continua ameaçadora. Seu irmão não consegue
produzir nenhum som. Centenas de questionamentos brotam na minha cabeça.
Segundos depois, ouço passos na grama. Luan está voltando para a sala
de aula. Um súbito desespero se instala. Não posso permitir que ele se afaste
de mim desse jeito, cheio de incertezas. Não me controlo:
— Luan – me limito a deixá-lo ver o perfil de meu rosto, ainda que
apenas por entre a abertura entre os galhos – obrigada por se importar e vir
até aqui.
Um silêncio constrangedor se estende até que Lise perca de novo a
paciência. Volto a olhar para a parede, mas, mesmo estando longe de poder
ver o rosto de Luan, uma sensação reconfortante arrepia meus braços.
Ele quer ficar.
— Agora se manca, irmãozinho. E chame Nara, caso a vir, ela precisa
assumir seu papel de melhor amiga. Estou ficando com enxaqueca por causa da
frescura de vocês, prefiro a certeza de um murro bem dado no supercílio.
Senti ambos irem embora. Lise, furiosa, obviamente com seu estoque
diário de boas ações esgotado.

Capítulo 21 - Irmãs

Um tempo sozinha é tudo de que preciso. Acho. Um tempo tranqüilo e


sem nenhum tipo de acontecimento absurdo para que meus neurônios tenham
a chance de tomar um chá e relaxar. Quem sabe, pensando com calma, eu
consiga aceitar melhor tudo o que aconteceu. Possa deixar de me incomodar
com a dor e tentar entender a explosão de reações que tomou conta do meu
corpo. Sim. É isso que vou fazer. Sentar aqui, respirar fundo e canalizar a
sensação ruim do meu peito para fora.
Não consigo explicar com muita eficiência o que senti exatamente
quando vi o beijo. Sei que foi um beijo sem importância, que não havia
intenção nenhuma da parte de Luan. Sei. Mas, mesmo com essa consciência,
alguma coisa bem escondida dentro de mim foi incomodada, alguma coisa
sensível e de muita força que eu não lembrava existir. Não faço idéia do que

141
seja. Só sei que um pedaço de mim, há muito guardado e enfraquecido, foi
violado. E, se não me engano, aquele transe veio de sua ferida.
Quando vi Luan preso contra a parede e os lábios de Chantal brincando
sobre os seus, senti como se estivesse num plano diferente, um plano mais
denso. Não sei se essa é a palavra, mas eu sentia a pressão do ar, a dificuldade
em respirar. Meu peito doía, meu coração parecia sofrer com o esforço das
palpitações. Aquela ânsia desconfortável que, na menor das chances, tentava
passagem. Meus músculos estavam rígidos, dormentes, embora eu sentisse
minha energia vital se esvair por diferentes pontos do meu corpo. Cabeça,
mãos, peito, costas. Agora, lembrando bem das imagens, cores me chamam a
atenção. Engraçado. Nunca tinha parado para pensar se as nossas lembranças
vêm em cores. Essas, em especial, estão manchadas de vermelho.
Ainda há mais uma coisa. Durante toda a cena, eu tive a impressão de
perder alguma coisa. Era como se, a cada segundo, alguém viesse e sugasse de
mim um pouco de Luan. E ainda me sinto dessa forma cada vez que penso em
Luan e Chantal. Seus corpos juntos. As mãos dela em sua nuca, correndo os
dedos entre os fios do seu cabelo… tudo justamente da forma que, por muitas
vezes, fiz em meus sonhos.
Não tenho certeza se você consegue me entender e imaginar como isso
dói. Pois, para mim – me perdoe se isto soar com exagero – foi como se minha
essência tivesse sofrido um acidente. Um impacto contra um muro de concreto.
Seja lá o que isso significa.
De forma alguma estou aqui justificando o meu estado de autopiedade,
mas, vendo as coisas por esse ângulo, foi bastante compreensível.
Isso é, caso você entenda a intensidade das emoções. Foi mais ou
menos tudo isso que quis explicar para Nara quando se aproximou e se sentou
muito quieta em minha frente. Durante uns bons minutos, se ocupou com a
tarefa inútil de alisar, ajeitar e refazer as pregas de sua saia. Fui esperta o
suficiente para notar que, obviamente, ela só estava fazendo aquilo para não
ter que olhar para mim, já que não havia nada para ser arrumado ali.
Mesmo sentindo milhas de distância entre nós, ao ver seu rosto, sempre
doce e familiar, não consigo simplesmente continuar agindo como se não
houvesse nada demais acontecendo. Afinal, Nara é – e sempre foi – o meu lado
mais sensato. Porém, enquanto eu falava tudo o que acabei de relatar aqui, via
seus olhos se encherem de água. Até que desatou a chorar.
Pode imaginar qual foi o meu espanto?
Parei de falar no mesmo instante, surpresa demais para conseguir
continuar. Não me sinto muito confortável. Devo dizer que, ver essa reação,
mais do que perturbada ou preocupada (o que, pode ter certeza, estou), me
deixou curiosa.

142
Meu Deus, o que aconteceu com ela?!
Tentei ao máximo respeitar seu espaço e a deixar em paz, mas a
curiosidade é um insetinho asqueroso. Quando pica, a ferida fica coçando,
coçando e coçando até cravarmos as unhas nela.
— Nara, por que está chorando? – pergunto com a voz mais açucarada
possível e toco seu joelho, num ato medíocre de apoio. Ela esconde o rosto nas
mãos e soluça sem parar.
Nara é daquele tipo de pessoa que só chora quando se emociona muito.
O detalhe é que ela se emociona muito com bastante facilidade. É muito
interessante ouvir seus desabafos, é quase como… assistir novela. Por mais que
o motivo das lágrimas seja banal, o jeito dela de ver as coisas é sempre um
drama incrível. O problema é que, hoje em particular, não sei o motivo e, dessa
forma, não posso afirmar se é banal ou não. Com certo pavor, me dou conta de
que o problema pode ser eu mesma.
Entro em desespero, obviamente. Ela já estava estranha há tempos, mas
em momento algum me dei ao trabalho de perguntar o porquê. Sou uma amiga
vergonhosa. Com amargura, sinto a culpa pesar sobre meus ombros. Distraída
como sou, posso tê-la magoado sem sequer notar e nem me interessei em
saber qual era o problema. O sentimento de curiosidade vai embora num
instante e o medo assume o seu lugar. É miserável o fato de eu ter visto as
coisas acontecerem sem me dar conta do tamanho da minha falta de
consideração.
— Nara, eu fiz alguma coisa? Por favor, me diga, você sabe que sou
meio lenta para perceb…
— Pare, Lune, por favor!
Aí percebi que as coisas estavam realmente críticas. Nara mal podia
ouvir minha voz. E o que eu faço? Milhões de alternativas me vêm à cabeça,
provando o trabalho árduo, porém pouco útil, dos meus neurônios. Sim,
porque, se eles tivessem achado uma solução plausível, eu não estaria ainda
aqui inerte e com a boca aberta como uma planta carnívora.
Decido – em parte por achar mesmo melhor e em parte por falta de
opções mais criativas – esperar Nara se acalmar para, por iniciativa própria, me
explicar seu choro. Não demorou muito. Mais ou menos três minutos depois ela
(ainda sem me encarar) desabafa.
— Me desculpe, Lune.
Essas mesmas palavras já estavam muito bem formadas na ponta da
minha língua, prontas para serem soltas. A surpresa não me permitiu dizer
nada. Não era bem essa a frase que eu estava preparada para ouvir.

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— Como é? – pisco em sua direção, confusa. Suas bochechas ardem
num vermelho gritante.
— Me desculpe, Lune, fui uma amiga ridícula para você.
— … Amiga ridícula?
— Sim.
— Hã?
— Pare com isso! – ela se enfurece com minha evidente dificuldade de
compreender as coisas e me encara com seus olhões inchados.
— Desculpa, Nara, o que…
— Não peça desculpas!
Acho melhor eu ficar quieta de vez.
Sua vergonha é bastante perceptível, agora. Pela forma como está
agindo, acho que realmente não fiz nada de errado (não que isso seja uma
conclusão brilhante de minha parte).
Sabe, quem não conhece não tem idéia do quanto Nara fica doce
quando está derramando lágrimas. Os olhos castanhos redondos ficam
levemente esverdeados quando cheios de água, as voltinhas graciosas nas
pontas do cabelo curto, os lábios volumosos totalmente cor-de-rosa e a
expressão de menina insegura dão vontade de carregar no colo e levar para
casa. Sempre pensei que quando um cara se apaixonasse por ela com certeza
seria por que a viu chorando.
Então, dá para entender por que fiquei tão comovida.
— Lune, eu… – Nara volta a falar – não sei se consigo dizer isso – pausa
para suspiro – ontem… ontem eu estava bastante incomodada. Tudo bem, essa
não é a palavra certa.
Ela suspira mais uma vez.
— A verdade é que, ontem, eu senti muita inveja. De você.
(Silêncio).
Era só isso?
Ou eu perdi algum pedaço importante da conversa ou o choro dela é
mesmo exagerado. Tipo, não que inveja seja algo bom, mas tem invejas e
invejas. Eu mesma invejo Nara por milhões de coisas. Pela sua capacidade em
fazer coisas significativas, como escrever, pintar as unhas, colocar acento nas
palavras certas ou manter o caderno longe da terra e da chuva. Mas, como ela
me olha ansiosa, acho que lhe devo algum tipo de resposta. Por isso, falo:
— Uau, Nara. Obrigada.

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No mesmo instante percebi que falei bobagem. Nara ergue a cabeça, me
fulminando com os olhos. Quase peço desculpas, mas considerando o insucesso
da última vez, decido calar a boca.
O.K.! O.K.! Ninguém precisa se matar aqui, foi só um erro de
interpretação pequeno que já será resolvido, minha inteligência não é das mais
podres, também. Não me xingue.
— Como assim ―obrigada‖?
Ela parece bastante chocada com a minha aparente falta de noção das
coisas. Inicio minha defesa imediatamente.
— Nara, não há nada de errado nisso, somos amigas.
— Não, não, não! – ela balança a cabeça de um lado para o outro com
tanta rapidez que eu ficaria tonta em cinco segundos se me atrevesse a fazer o
mesmo – Essa é a inveja boa!
— Sim, é isso que estou querendo dizer, é uma inveja boa! – sorrio, feliz
por tê-la feito compreender e dou palmadinhas de felicitação em sua mão
esquerda.
Apesar disso, Nara não tem a mesma reação. Novamente ela baixa os
olhos e, após alguns suspiros, percebo uma lágrima cair sozinha em seu joelho.
Depois de um tempo o número de lágrimas aumenta e, quando vejo, sua
cabeça está pousada sobre minha clavícula.
E eu fiquei, tipo, hã? E agora, meu Deus. Sei que devo abraçá-la de
volta, mas simplesmente não consigo me mover.
— Me desculpe, Lune, eu estou me sentindo a pior amiga do mundo –
ela fala, com a cabeça ainda sobre minha clavícula.
— Mas você sabe que não é, pare com isso – seguro seus braços, sem
saber o que fazer. Quer dizer, até pouco tempo atrás eu estava propícia a esse
tipo de cena.
— Não foi um mal entendido! Isso é que você não entendeu! Não foi
uma inveja boa. Foi aquela que ninguém deveria sentir, por ninguém. Aquela
que a gente sente pelas pessoas que mais odeia.
Ah.
— Você é maravilhosa, sempre foi – ela continua falando para meus
ossos enquanto eu interpreto o que ela acabou de dizer – desde a primeira vez
que nos vimos, quando jogou aquela garota estúpida que estava rindo de mim
a um metro e meio de distância e quase a fez quebrar a coluna.
A informação me distraiu por uns segundos.
— Eu fiz isso? – perguntei, incrédula.

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— Sim, fiquei tão feliz quando percebi que você não se lembrava. Eu
nunca quis te dizer por que sabia que você se sentiria um monstro.
— Bom, eu estou me sentindo agora – respondo, horrorizada comigo
mesma e confusa, também. Como não me lembrei disso?
— Mas não deve, Lune, não deve, você é maravilhosa e eu prometo
nunca mais esconder nada de você.
Eu não sei o que dizer. E o estoque de frases dela parece ter se
esgotado também. Eu acabei de descobrir que quase quebrei a coluna, veja
bem, a coluna de alguém. Isso explica porque a garota saiu tropeçando
daquele jeito.
Depois de alguns minutos de silêncio triste – da parte dela – e pasmo –
da minha parte – eu consigo lembrar minhas células do cérebro de que são
possuidoras da magnífica capacidade de movimentarem meus músculos.
Seguro firmemente os braços de Nara e a coloco reta.
— Por que você sentiu inveja de mim, Nara? – pergunto meio incerta se
há mesmo algo passível de inveja na minha pessoa. Algo importante,
logicamente.
Vejo mais lágrimas beirarem seus olhos.
— Ontem, quando você faltou… várias pessoas vieram me perguntar de
você. Bom, seria mais justo dizer que vários garotos vieram perguntar de você.
Uns quinze, assim. Até alguns que tinham namoradas. Na primeira distração da
parte delas, vieram e perguntaram se você estava bem. ―Ei, Nara, ouvi que
Lune está no hospital, como ela está? Não é nada grave, certo?‖ ou ―você é a
amiga da Lune? Ela está internada, está bem? Por que se ela estiver mal eu
queria levar algo para ela‖… – ela chorou mais – aquilo me deixou furiosa.
— Mas, por quê? – percebo que meus lábios se entreabriram, porém,
não faço questão de esconder meu espanto. Nem um pouco – Eles estavam só
se importando comigo.
Ela parece terrivelmente envergonhada. O que é muito bom.
— Eu nunca tinha percebido o quanto isso me incomodava, Lune, mas
naquele dia todos os anos que me senti apagada perto de você voltaram de
uma só vez.
Eu parei um pouco e pensei. Pensei mesmo, de verdade. Durante anos,
quem se sentiu apagada fui eu. Eu me via como uma garota aleatória, que
acordava e ia para a escola todos os dias porque me diziam ser o certo. Porque
era isso que as garotas geralmente faziam. Porque era o natural. Eu nunca me
vi como alguém de fato. Eu malmente tinha vontade de ficar aqui. Eu malmente
me queria em estar aqui.

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E, agora, Nara, minha melhor amiga, a pessoa que mais admirei por
toda a vida, me diz que se sente apagada perto de mim. Eu ao menos tenho
uma vida. Eu tenho uma inércia.
Isso é… até Luan chegar.
Analisando bem, depois de Luan, meus dias se transformaram
completamente. O que é meio digno de um conto-de-fadas.
— Você me conhece – Nara continua, depois de se recuperar o suficiente
para poder formar sílabas –. Desde pequena sonhei com casamentos, filhos.
Fantasiava romances imensos e namorados da realeza. Agora, falando assim,
pareço bastante idiota e me sinto dessa forma, acredite, mas não posso mudar
as coisas. Eu sou do tipo romântica. E ontem meio que me dei conta de que
ninguém nunca percebeu minha existência – ela faz uma pequena pausa e
limpa suas bochechas. Depois, com a voz trêmula, conclui: –. Ninguém nunca
vai me notar enquanto tiver você para ver, Lune.
— Nara, você sabe que eu nunca pedi por isso.
— Eu sei! – ela se apressa em esclarecer e, num gesto involuntário,
alcança minhas mãos.
Nisso, os quilômetros diminuem drasticamente e, pela primeira vez em
bastante tempo, consigo ver em Nara a mesma menina tímida que me
acompanhou por anos. Que me olhava sempre em busca de proteção, de
carinho, de atenção. E, reciprocamente, ela parece também reconhecer em
mim a criança que sempre a tratou como o maior dos presentes.
Assombrada, perguntei a mim mesma quanto tempo fiquei sem perceber
que a pequena Nara de nossa infância havia sumido. Aquela que me abraçava
todos os dias, sem pular nenhum, e chupava as pontas das marias-chiquinhas
enquanto sonhava acordada.
E minha amiga parecia estar se perguntando a mesma coisa sobre mim.
O silêncio fez eu me sentir horrível. Nara sempre foi minha única amiga.
Sempre. E depois que nos conhecemos nunca mais nos separamos. Eu mudava
de colégio, ela mudava também. Ela mudava, eu fazia de tudo para ir estudar
com ela. E, mesmo assim, não dei por falta de nada quando ela mudou. Não
notei sua transformação. E, por sua expressão de agora, ela também não
parece ter notado a minha. O momento em que deixei de ser aquela criança
alegre, aquela caixinha de sonhos, para ser a Lune de agora. Aliás, a Lune
anterior a Luan.
— Eu só não tinha notado, Lune.
— Também não notei. Também estava longe.
Ela me olha com aquela cara, tipo, ―hã?‖ e esclarece:

147
— Não, não isso – ela solta um riso fraco – eu não entendia o seu lado.
Nunca havia notado o seu modo de ver as coisas.
(Silêncio).
— Não entendeu, não é?
— Não, desculpe – respondo humilde. Ela sorri.
— Eu me limitava a pensar no meu lado. Via você desprezar todo mundo
e achava isso horrível da sua parte. Achava horrível você não ter noção e jogar
fora a sorte que tinha. Eu sempre fiz de tudo para ser uma boa pessoa. Sempre
quis que gostassem de mim, faz parte de quem sou, também. Nunca me
preocupei com o seu motivo para mandar todos os garotos do mundo passear.
Você simplesmente não gostava deles, mas eu não pensava assim. Eu só
pensava que era injusto. E, depois de hoje, finalmente caiu minha ficha. Você
também sofre. Você não é um zumbi humano por opção, como eu acreditava
que fosse.
— Você achava que eu era um zumbi humano?
— Bom… sim. Você era um zumbi humano.
(…).
Ah é, é, ela tem razão.
— Quando a gente conhecia um cara – ela continua, ajeitando uma
mecha de cabelo atrás da orelha e olhando para minhas mãos – ele olhava para
você. Ele conversava com você. Podia ser qualquer um, de qualquer tipo. Era
sempre você. Desde que me lembro. Bom, ainda é. Eu… eu sempre tentei
relevar essas coisas. Achava que, quando fosse para ser o cara certo, ele iria
olhar para mim. Mas, com o tempo, eu percebi que enquanto eu estivesse com
você, ninguém faria isso, mesmo que fosse, tipo, minha alma gêmea. Até
mesmo quando o encanto por você passava, eles não me notavam, porque
simplesmente se afastavam. Procuravam fingir que você não existia e,
conseqüentemente, se esqueciam de mim também.
Ela fez uma pausa para recuperar a voz e suspirar.
— E… e eu amo você – Nara me sorri e eu sinto vontade de abraçá-la
com muita força, para tentar aliviar qualquer coisa que estivesse ali – eu jamais
iria deixar você sozinha, mesmo que por uns minutos, só para, sei lá, tentar
arranjar um namorado. Eu nunca me afasto de você, você é uma das pessoas
mais importantes para mim, você é como minha família. Mas a coisa é que…
com o tempo, fiquei sufocada.
— Por isso você fugia de mim quando Luan estava por perto? Como
aquele dia do balanço? – pergunto, morrendo de medo da resposta. Não queria
que meu novo motivo de felicidade fosse um desconforto para ela.

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— Não. Com Luan sempre foi diferente. Mas, quando percebi que ele
provocava algo em você, fiquei meio boba. Vi que, justamente ele, não tinha
nenhum tipo de reação alucinada. Isso mexeu comigo. Eu vi que você não está
livre de sofrer por amor e tinha medo de que isso me mostrasse o quanto eu
estava errada por sentir inveja. Eu não ficava por perto quando Luan se
aproximava porque tinha medo de que você notasse. Sabe, a minha inveja.
— Eu não amo Luan – digo, irritada – você sabe, é apenas uma atração.
Amor é coisa séria.
Ela revira os olhos.
— Não importa, Lune, o negócio é que… eu fui terrivelmente infantil.
Terrivelmente. E fui um lixo de pessoa. E o pior: vi de perto a forma como ficou
assistindo aquela cena deprimente de Chantal e só fiquei lá, vegetando. Na
verdade… eu já suspeitava que algo assim fosse acontecer… pude ouvi-las
falando algumas palavras soltas. E fiquei quieta. Você sempre me defendeu,
sempre cuidou de mim e hoje, quando você mais precisou não fiz nada. E estou
arrependida. E prometo que nunca mais vou negligenciar você. Eu te amo,
irmãzinha.
Ela termina, me dando um enorme abraço. E eu a abraço de volta,
logicamente, muito feliz por ter minha amiga de volta. Minha irmã. Que, sem
notar, deixei ir embora e não percebi sua ausência para trazê-la de volta.
— Nara, me desculpe, eu nunca percebi nada disso.
— Não tem que se desculpar. Eu não devia ter deixado meus
pensamentos me afastarem de você. E, não sei que tipo de mel existe em você
que atrai todos os homens, mas, seja o que for, apenas está em você. Nada
pode mudar isso. Deve ser só, sei lá, sua alma bruxa.
— Isso não foi engraçado – respondo, desgrudando seus braços de meu
pescoço.
— E não era para ser, não deve ser tão emocionante ter uma alma
bruxa.
— Cale a boca.
E nós damos risadas juntas. E acabou.
— Hã… tem muita gente rindo de mim, lá na matrix? – continuo,
enquanto solto um suspiro de alívio. Afinal, além do sentimentalismo e aquela
melação toda, alguém precisa me informar das coisas.
— Bom… tem muita gente rindo de você. Sabe, você saiu correndo e
praticamente declarou para todos os ventos que está apaixonada por alguém.
Você movimentou muito a cabeça dos garotos por lá.

149
— É, eu imagino. Todos os caras que chutei o traseiro devem estar
querendo minha cabeça.
— Acho que não. Os caras não são vingativos como nós, mulheres,
costumamos ser. A maioria deles não se importa e está só batendo nas costas
de Luan, dizendo: ―aí, gostosão, levou o peixe grande?‖; ―Sortudo do‖… você
sabe, aquela palavra imprópria.
Estou incerta sobre como me sinto por ter sido chamada de peixe.
— Bom, agora eu entendo porque Luan fez tanta questão de vir
esclarecer as coisas, é pura pressão e saco cheio.
Um silêncio um pouco incômodo surgiu e eu pude perceber um novo ar
em volta de Nara. Ela olhava para as próprias mãos e parecia desconfortável.
De repente, suspira e esfrega os olhos.
— Eu troquei umas palavrinhas com Luan depois que você saiu. Quis
fazer alguma coisa depois do desempenho vergonhoso de só ficar assistindo.
Ele não pareceu muito flexível.
— Como assim?
— Bom, ele estava consciente de que você não ficou feliz e também de
que deveria ter relutado, ao invés de só esperar que uma ventania misteriosa
atacasse os cabelos da estupradora demente. Mas… quando fui falar com ele,
ele só enfatizou o quanto não poderia ter feito nada. Não gosto disso.
— O que ele disse?
Ela suspira mais uma vez e se dedica mais do que o normal a ajeitar os
frisos da saia.
— Ele disse que não teve culpa se uma ruiva alucinada se atirou em
cima dele e afirmou que estava sem opções de ação. Então eu lhe disse uma
opção bastante óbvia: a de ter mandado ela se ferrar. Aí Luan ficou puto da
vida e disse que eu ―não entendia nada‖.
— Espera – espera, espera aí – ele disse assim mesmo, que você ―não
entendia nada‖?
Ela fez que sim com a cabeça.
— Isso foi…
— Meio grosseiro. Eu sei.
Eu não queria aceitar.
— Sim, foi mesmo – aceitei, no fim das contas.
— Mas, sabe, também tem muita gente com medo, por causa do seu
olhar assassino.

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— Olhar assassino? – pareço confusa o suficiente para convencer Nara
de que não sei mesmo do que está falando. Ela empalidece um pouco,
arrependida do que disse.
— Bom… – ela começa, relutante – digamos que você ficou com uma
expressão meio… assustadora.
— Sei… – na verdade, não sei – e como foi essa expressão?
— Ah… aquilo… os olhos meio arregalados, fixos no espaço, os cabelos
se erguendo em volta de você… – ela fez uma pausa incerta e, por fim,
concluiu – a íris meio vermelha.
— COMO?
Ela diminui de tamanho alguns centímetros frente ao meu pânico. Íris
vermelha? Quem fica com a íris vermelha? Como alguém fica com a íris
vermelha? Eu tinha milhares de perguntas, a confusão estava bem
demonstrada nas linhas do meu rosto. Eu quero insistir, quero saber o que
aconteceu. Mas, de repente, me sinto tão cansada que mal consigo mover os
lábios. Pela segunda vez no mesmo dia, sinto minha energia vital fugir de mim.
Então ouço uma voz. A mesma de sempre:
―Esqueça isso. Não importa‖.
Sim. Vou esquecer.
Nara vê meus olhos caídos, minha respiração pesada. Segura minha mão
e a examina, para constatar se tenho vontade suficiente para movê-la. Depois
de mexer em meus dedos um por um e concluir que não estou com ânimo nem
para impedir que ela estale meus ossos (coisa que detesto), sorri para mim e
diz:
— Bom… você não vai assistir mais aulas hoje, não é?
Eu sinalizo que, com certeza, não.
— Legal. Então vamos dar um jeito de sair daqui. Podemos sair, nos
divertir e…
Ao ver a animação de Nara, me recordo do por que estou ali. Por que
cheguei ao ponto ridículo de correr e me esconder atrás de uma planta. Mesmo
que eu tenha conseguido me distrair das lembranças anteriores, elas voltam. E
com força. Os problemas com Nara, as imagens em vermelho, meus olhos
vermelhos, Luan… tudo acabou me deixando exausta. Com o corpo cansado, eu
não via como ignorar as dores ainda persistentes. Pelo que vejo, elas ainda vão
levar tempo para passar, já que estão todas trancadas aqui dentro. Sei
perfeitamente do que preciso agora.
Eu preciso chorar.
E sei como fazer isso.

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— Nara – digo levantando e sentindo os joelhos latejarem – quem sabe
seja a hora de apenas ir para casa e assistir um filme.
Ela parou uns segundos e sorriu para mim. Pareceu compreender
exatamente o que eu queria.
— Tudo bem, vamos para casa assistir Moulin Rouge pela
qüinquagésima nona vez na sua curta vida de quase dezessete anos.

Capítulo 22 - O Mistério da Batata

Várias pessoas costumam criticar Moulin Rouge. A maior parte delas


justifica a aversão dizendo que é um filme viajado, louco e cheio de partes
incompreensíveis ridículas, como aquela em que todos se unem numa música
estranha para convencer o duque da maravilha do espetáculo espetacular. Já a
menor parte dessas pessoas afirma achar o filme uma bosta porque
simplesmente odeia musicais. Realmente, existem alguns musicais
insuportáveis, até para mim. Aqueles em que o personagem se encontra nas
situações mais deprimentes e, mesmo assim, tem ânimo para cantar numa voz
feliz: e ago-ora, estou na me-erda e isso ééé uma grande porcari-i-a – estou
dando um exemplo, logicamente.
Mas, não Moulin Rouge.
Há três anos, estava sentada calmamente neste mesmo sofá, viajando
nos pensamentos. Me lembro bem da Lua, pois era para ela que eu olhava.
Também me lembro de estar me sentindo um tanto sozinha, sentindo falta de
alguém. Não que isso fosse uma novidade, naquela época eu constantemente
sentia falta de alguém. Talvez eu estivesse pensando na minha mãe. Ou,
melhor dizendo, estivesse pensando em uma mãe qualquer. Pelo menos, é o
que suspeito – que o indivíduo misterioso fosse, no fim das contas, a figura
materna que nunca tive.
Não importa.
O fato é que essa pessoa, seja quem fosse, me fazia falta. Uma falta
imensa e, no momento em que Nara irrompeu pela porta de casa e subiu a
escada pulando vários degraus de uma só vez, eu estava a ponto de dormir.
Esperava que, dormindo, conseguisse acabar com a ausência. Esperava que a
pessoa me visitasse. Porque ela costumava fazer isso. Por várias vezes acordei
de um sonho sorrindo, tudo porque ela estava nele, com sua presença
estranha. Sem um rosto, sem um nome, mas sempre por perto, me tocando.
Me aninhando num abraço. Brincando com meus fios de cabelo. Beijando meu
rosto com seus lábios cheios de saudade. Saudade de algo que nunca
aconteceu.

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Então, Nara chega com uma caixa numa mão e um saco de batatas-
fritas na outra.
―Moulin Rouge‖ ela diz ―precisamos assistir. Agora‖.
Confesso que, inicialmente, não me interessei muito. Pensei ser mais um
daqueles filmes água-com-açucar românticos com que Nara costumava se
encantar. Ainda mais por ser musical. Não que eu não goste deles, eu adoro
música, principalmente as que envolvem minha própria voz. Mas a maioria – se
não todos – os que eu havia assistido até ali, não eram grande coisa. Ou eram
bons, mas não o suficiente para me tirar mais do que um ―legal mesmo‖ ao
final do filme.
Não preciso dizer o quanto foi diferente com Moulin Rouge. Isso nem é
uma coisa fácil. Mas vou tentar mesmo assim: foi como se o filme tivesse
substituído alguma parte que faltava e me levou para bem perto da pessoa que
eu estava esperando há pouco tempo. Me fez acordar, me deu algo pelo que
torcer, me deu um motivo para pensar no amor. E o principal e o mais
chocante: me fez chorar.
Nós assistimos três vezes seguidas. Na primeira, eu entrei em choque,
fiquei pasma, com os olhos cheios de lágrimas. Não queria acreditar. Na vez
seguinte, fiquei muda do início ao fim, mal conseguindo ver as cenas. E, na
terceira vez, chorei. Chorei mesmo, de escorrer lágrima e soluçar. Enquanto eu
unia voz com Ewan McGregor ou Nicole Kidman, parecia sentir tudo o que seus
personagens estavam sentindo. E chorei como nunca na minha vida.
Após esse dia, sempre que Nara fica sabendo que pretendo assistir o
filme, ela faz o possível para estar junto. Porque diz que me ver cantando as
músicas de Moulin Rouge é uma das melhores coisas que alguém pode ter o
privilégio de presenciar.
Vai entender. Na verdade, a única coisa que eu faço é… cantar. E canto
como se a história fosse comigo. Nunca me vi como uma pessoa com
imaginação fértil, mas confesso que quando vejo Moulin Rouge, minha cabeça
vira tanto que eu sinto a situação como se fosse comigo. E quase me convenço
disso. O amor representado por eles é tão forte e triste que eu sinto em mim
mesma, desejando nunca ter de passar pela mesma coisa.
E, ainda assim, sempre com a sensação de que vou.
Bom, enfim. Expliquei tudo isso só para tornar a minha situação atual
um pouco menos chocante e eliminar a chance de alguém levar um susto sem
tamanho. Porque, se alguém subir subitamente essa escada, com certeza vai
berrar de medo.
A menos que o alguém em questão seja Lise, que se limitou a arregalar
os olhos e fixá-los em mim, com sua natural expressão de mau-humor e um
enorme ponto de interrogação pairando no ar.

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Não sem motivo. As pessoas mais centradas, no caso, ela, conseguem
manter o rosto impassível ao se deparar com uma garota descabelada
encolhida num sofá coberto por fragmentos de batatas fritas, enquanto, com o
rosto metido num edredom velho cheio de retalhos, canta em lágrimas o
quanto o mundo é bonito agora que a pessoa amada está no mundo.
É.
Pensa só no meu desespero quando percebi sua excelentíssima presença
me encarando. Eu já achava muito que Nara visse essa cena ridícula. Para
minha sorte, ela estava com mais sobrecarga de irritação do que hoje à tarde e,
por isso, nem se incomodou com a visão. Apenas balançou a cabeça e sentou
bem no meio do sofá, entre Nara e eu, com sua impressionante cara de
incômodo profundo. Inicialmente, pensei que o incômodo fosse eu, mas depois
percebi que seus pensamentos estavam longe. A cada cinco segundos, ela
franzia o cenho, bufava e olhava para o relógio na parede.
— Aconteceu alguma coisa, Lise? – perguntei de forma muito cautelosa,
uns três minutos depois dela se sentar.
Não obtive resposta. Ela só balançou a cabeça e fez um sinal estranho
com as mãos, como se dissesse que falaria depois. Dei-me por vencida e passei
a comentar com Nara meu desesperado desejo por mais batatas fritas. Estava
quase conseguindo convencê-la a sair para comprar quando o telefone tocou e,
com muito custo e coragem, levantei para atender.
— Hã – disse, sem muito entusiasmo.
— Lune? – uma voz masculina soou do outro lado da linha, mas logo na
primeira sílaba minha esperança se quebrou. Eu seria capaz de reconhecer a
voz de Luan num pigarro e, absolutamente, uma sílaba foi o suficiente para eu
ter certeza de que não era ele.
— E se for? – a falta de entusiasmo continuava.
— Oi, aqui é o Phillip. Sabe, o Phil.
— Ahã, oi, Phil.
Ele estava interrompendo meu filme e, além disso, minha petição por
batatas. Ele merecia uma atenção congelada.
— Bom… eu liguei para saber como você está.
— Bem.
— Está precisando de alguma coisa? Por que posso…
— Não, não, eu estou legal. Tirando a miséria de batatas fritas estou
tranqüila.
— Batatas fritas? Eu posso…

154
— Não, sério, tudo bem.
(Silêncio).
— Hã… – ele prosseguiu – sei que pode ser uma coisa meio chata de se
perguntar, mas é que eu realmente estou preocupado com você. Bom, de
qualquer forma, se você não quiser, eu vou entender… eu estava pensando,
amanhã a gente podia dar uma volta, sabe, depois da aula mesmo, aproveitar o
final da tarde.
O cara não espera nem o defunto esfriar.
Certo. Realmente, foi um absurdo ele tentar uma investida assim logo de
cara. Sem contar todas as mancadas que o pobre coitado já deu, todas as
psicoses e coisa e tal. Mesmo assim… bom. Eu aceitei.
Sim! Foi estupidez!
Eu juro que não ia aceitar, estava quase desligando quando Nara e Lise
pareceram se ligar do assunto do telefonema e começaram a me mandar sinais
incompreensíveis. Disse para Phil retornar a ligação dali a uns cinco minutos e,
depois de ordens intolerantes de Lise – praticamente gritadas, sabe-se lá por
que, alguém poderia ouvi-las de cima do Everest – fui convencida a aceitar.
Afinal, era só um passeio à luz do pôr-do-sol.
―Aceite! Vamos! Ele é louco por você!‖, a pequena dizia. Eu olhava
desamparada para Nara, que apenas dizia ―seria bom ter por perto um cara que
se importa, só para variar‖. Eu tentei rebater, lembrando-as de que Luan se
importava. Afinal, ele veio me procurar.
Passei todos os cinco minutos considerando os argumentos delas. Eu não
queria aceitar, ou, pelo menos, essa era a única consideração clara na minha
cabeça. Havia muitas outras, mas todas confusas. Construções lógicas que
ainda não estavam prontas. Sabe como é, meus neurônios são lentos, com
certeza qualquer coisa mais elaborada levaria tempo para ficar nítida. Mas,
mesmo lotada de raciocínios turvos, algo foi se montando e algumas pecinhas
foram se encaixando até que considerei a possibilidade de concordar com as
meninas. Não consigo explicar qual fator foi responsável por esse progresso,
pelo menos por enquanto, mas asseguro que era bastante razoável.
Por isso disse sim, mesmo insegura ainda, já que não estou acostumada
a pensar. Sempre acreditei ter uma natureza intuitiva. Sempre optei pelas
alternativas certas, não lógicas.
E, bem, veja aonde vim parar. Num sofá, chorando e me entupindo de
fritura.
Por esse motivo quis uma vez na vida arriscar a fazer algo lógico. Afinal,
os seres humanos são famosos por isso. Por pensar. E que a voz irritante do

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meu subconsciente vá dormir, sem se esquecer de antes jogar os não faça isso,
não faça isso na privada e dar descarga.
Que tipo.
Seria um eufemismo dizer que Phil ficou feliz com minha decisão final.
Por que, para falar bem sério, ele entrou em êxtase – me desculpem os
curiosos, eu gostaria de poder reproduzir a sua reação, mas as circunstâncias
não contribuem. Ele pareceu não acreditar, ficou perguntando ―é sério? É sério
mesmo?‖ o tempo todo, isso sem contar a respiração eufórica. É bom ver
alguém ficar assim só por poder estar em minha companhia. Coisa que, vale
ressaltar, Luan nunca fez.
Ah, qual é o meu problema? Ele não precisa demonstrar nada. Não é
culpa dele se desenvolvi um tipo de dependência. Me sinto ridícula por tentar
culpá-lo de algo. Por isso, não quero me forçar a pensar no meu passeio com
Phil como um tipo de vingança. Porque não é. Luan não merece vingança.
Aliás, não só isso. Para ser uma vingança, ele precisaria gostar de mim.
Acho que, sob esse prisma, eu adoraria poder me vingar. Infelizmente,
não há pré-requisitos suficientes.
Mas, vamos esquecer isso. Como eu disse, não existe vingança. Até
porque, seria cruel. Com Phil. Ele estava sendo sincero. Está preocupado
comigo. E não duvido nada que, amanhã, faça o possível para me fazer sentir
melhor.
É um sujeito estranho, psicótico, louco. Mas eu gosto dele.
Quem sabe, lá no fundo, um dos motivos para eu ter aceitado foi esse. É
um cara ótimo, eu posso ver isso. E se importa comigo. Depois da conversa de
Nara, fiquei sem jeito de dispensar mais essa oportunidade. Um pouco de razão
ela tem. Eu poderia valorizar mais as coisas que já estão ao meu alcance.
Eu achei que precisava fazer alguma coisa. Por isso aceitei.
Só não entendi muito bem a sensação de prazer de Lise. Ela pareceu
satisfeitíssima com a novidade e começou a perguntar milhões de coisas sobre
Phillip. Não me deixou em paz nem por um segundo, nem quando eu quis
descer para conferir se a porta estava mesmo trancada, pois pensei ter ouvido
o trinco abrir. Mandou Nara nessa difícil missão.
Sei lá.
Pensando por outro lado, depois de hoje, vê-la entusiasmada por conta
da minha atitude pró-ativa não é algo tão incomum, acho.
… Ou… espera.
Não. Não, espera aí. Tem algo muito errado nessa história. Caiu a ficha.
A maquininha voltou a funcionar. As roldanas do meu cérebro giraram.

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Isso é desesperador. Humilhante.
Eu sei por que definitivamente aceitei o convite de Phil.
Não tem nada a ver com o papo de Nara. Nada a ver com a insistência
de Lise. E também não tem a ver com Phil ser ou não um cara bacana, embora
isso seja uma parcela. Bem pequena, mas é.
O problema é que… Phil está preocupado comigo, Nara está preocupada
comigo, Lise se preocupou comigo…
E Luan também. E aí está o problema.
Ele veio me procurar. Para esclarecer as coisas. E isso só pode ter três
explicações:
a) Ele veio atrás de mim porque não agüentava mais todo mundo
insistindo e lutando pelo esclarecimento da situação, a fim de evitar o
prolongamento do meu estado;
b) Ele veio atrás de mim porque sente algo pela minha pessoa e não
quis que nada atrapalhasse nosso relacionamento ainda inexistente;
c) Ele veio atrás de mim porque ficou preocupado com o meu bem estar.
Em outras palavras, sentiu pena.
Frente a todas as hipóteses, eu pisei na merda.
Porque, não importa qual das três teorias é a verdadeira, nas três Luan
sabe. O que eu sinto.
Claro, nenhuma novidade, essa informação já tinha passeado diversas
vezes entre meus neurônios. Se bobear até já dançou ciranda com eles. Eu já
sabia. Mas ainda não tinha me dado conta do tamanho do problema.
Nunca me senti tão ridícula.
Não deveriam fazer isso. Phil, Nara, Lise, Luan. Ninguém deveria estar
assim. Porque eu não deveria estar assim. Estou agindo como se tivesse sido
traída. E não fui. Luan não é nada meu. Nada. E, depois de ter saído correndo
daquela forma, cavei minha própria sepultura amorosa.
Fico me perguntando o que Luan estaria pensando de mim. Estaria
pensando como sou idiota por levar esse tipo de coisa a sério? Talvez.
Cale a boca, Lune, ―talvez‖? ―Talvez‖ é o tipo de resposta que se dá para
quem pergunta se você tem apenas uma célula cerebral.
A resposta certa é: COM A MERDA DA ABSOLUTA CERTEZA.
Foi isso que me fez repensar a decisão e aceitar o convite de Phil. Quem
passou horas e horas num sofá vendo Moulin Rouge e se entupindo de Coca-
Cola/batatas fui eu. Não Luan. Eu fiz isso. Porque sou idiota. Porque não segui
o que Lise disse. Preferi me recolher em uma dor que, desde o principio,

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reconhecia como incoerente. E, diante de tudo isso, percebi a necessidade de
sair do poço. Quem sabe tentar restabelecer a minha auto-estima. Mostrar para
todo mundo que não estou no chão, deprimida, arrasada, digna de
preocupação. Mostrar para Chantal que eu ainda posso ser melhor do que ela.
O.k., estou me sentindo estranha.
Isso é tão… normal. Comum. Tão humano que não parece eu mesma.
Acho que preciso de um chá bem forte e umas pílulas calmantes.
Esqueça, alguém traga a morfina.
Já eram quase onze horas da noite quando decido assistir o filme pela
última vez – hoje, obviamente – e descer para caçar uma bebida. Meu pai ainda
não voltou e não tenho certeza de que voltará. Digamos que Lise foi muito
eficiente. Sim, porque só pode ter sido ela a responsável por arrancar o pobre
de casa. No mínimo bajulou a mãe para resolver o problema e convencê-lo a
passar a noite fora.
O mistério é: se ele não voltou e não esteve em momento algum em
casa, da onde veio o pacote de batatas fritas parado indefeso e inocente sobre
a mesa da sala? Não havia batata alguma na última vez que desci.
Com certa dificuldade, quebrei a cabeça para tentar achar uma
explicação para o mistério da batata. E, como facilmente se supõe, não
consegui. Me conformei com a teoria de que, como não pus os pés nessa
escada depois da chegada de Lise – pelo menos não de acordo com minha
memória – ela poderia ter comprado, largado na primeira superfície e se
esquecido de avisar.
Claro que há um furo nisso, pois Lise é do tipo que não se esquece de
nada. Ainda mais depois dos meus insistentes pedidos por comida. A propósito,
Lise também não faz é do tipo que traz comida para os outros. Porém, o sono e
o cansaço não me permitiam pensar em muito mais, então peguei o saco e
subi, pressionando-o contra meu peito como uma viciada em cocaína faria
depois de uma semana sem ver um grama sequer na frente. Por hoje, vou me
limitar a assistir meu filme e, com sorte, consigo pegar no sono ouvindo o Ewan
McGregor cantar que o amor nos leva ao lugar ao qual pertencemos. Numa
dessa, dormindo assim, consigo sonhar com aquela pessoa, que sempre
visitava meu sono. Sonhar com seus braços me envolvendo e com seus dedos
acariciando minhas bochechas.
Ou, não sei. Mesmo depois de tudo, não tenho certeza se é
necessariamente ela que quero ver quando fechar os olhos. Desde que Luan
assumiu o papel, os sorrisos ao acordar têm sido maiores. Com ele, tenho um
olhar, um cheiro, um toque para reconhecer. Uma voz para ouvir. Mesmo que
tudo só aconteça no meu próprio mundo.

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Meu mundo. Às vezes, gostaria de permanecer nele. Às vezes acho que
já estou. E, às vezes, acho que o deixei há muitos anos.
Engraçado como tudo fica acessível nos sonhos.

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A autora

Sou uma curitibana orgulhosa, nascida dia 11 de setembro, e


acabei de me formar em Letras Português pela PUC/PR. Muitas
pessoas me perguntam por que escolhi Letras e, ao contrário do
que a maioria pensa, não escolhi o curso pensando nas
oportunidades de trabalho ou por qualquer outro motivo geralmente
visto por aí. A verdade é que eu não sou tão chegada em estudar
[sim, só de pensar naqueles textos técnicos, nas provas e nos
trabalhos, já me dá três tipos diferentes de enjoo. Então, por favor,
não seja como eu]. Nunca prestei atenção o suficiente nas aulas,
desde criança, e não faço ideia de como consegui passar da sétima
série. Eu quis fazer Letras, exclusivamente, para melhorar minha
escrita e, quem sabe, ter mais chances de escrever alguma coisa
um tantinho melhor do que os textos desconexos, desorganizados e
verborrágicos da época do Ensino Médio. Porém, apesar de toda a
aversão aos estudos, dificilmente tirava alguma nota abaixo de 8,0.
Vai entender, a vida é esquisita.

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