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1. Apresentação
Existem dois preconceitos sem cuja superação é difícil avançar na discussão do
tema proposto para esta mesa-redonda. O primeiro é o que assimila, confunde,
transforma em sinônimos “agricultura familiar” e expressões como “produção de
baixa renda”, “pequena produção” ou até mesmo “agricultura de subsistência”. O
segundo é o que considera as grandes extensões territoriais trabalhadas por
assalariados como a expressão mais acabada do desenvolvimento agrícola. Os dois
preconceitos são evidentemente solidários e respondem pela visão tão freqüente de
que, apesar de sua importância social, não se pode considerar a agricultura familiar
como relevante sob o ângulo econômico.
Para discutir estes temas, o presente texto divide-se em três partes, além desta
apresentação. Inicialmente (item 2), procura-se oferecer uma definição de
agricultura familiar e as principais informações a respeito de seu desempenho, em
países capitalistas centrais e no Brasil. Mesmo não se tratando de um panorama
completo sobre o tema, as informações oferecidas procuram mostrar que
agricultura familiar e pequena produção não podem ser tomadas como sinônimos.
Em seguida (item 3) é apresentada a questão específica proposta na mesa-redonda:
o uso do solo na agricultura familiar. Discutem-se dados nacionais propostos por
um estudo da FAO (1995) e os resultados de uma pesquisa publicada recentemente
sobre o Estado de São Paulo. Em ambos os casos, fica nítido o potencial
econômico da agricultura familiar. No item 4 sugere-se (sem aprofundar o tema)
que ao potencial econômico embutido na agricultura familiar corresponde uma
vocação ainda mais importante: a de servir como base para uma estratégia
descentralizada de desenvolvimento.
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Departamento de Economia da FEA e PROCAM/USP - E-mail: abramov@usp.br
O uso da expressão agricultura familiar no Brasil é muito recente (1). Até dois anos
atrás, os documentos oficiais usavam de maneira indiscrimida e como noções
equivalentes “agricultura de baixa renda”, “pequena produção”, quando não
“agricultura de subsistência”. Da mesma forma, a grande maioria dos textos
acadêmicos voltados a este tema adotava os mesmos termos. Um dos grupos do
Programa Integrado de Pesquisas Sociais em Agricultura o PIPSA, que existe
desde 1979, chamou-se até recentemente “diferenciação social da pequena
produção”. Também no interior do movimento sindical, era a defesa dos
“pequenos produtores” que mobilizava grande parte de sua atuação.
Um dos mais importantes livros recentes sobre este tema (Gasson e Errington,
1993:20) destaca seis características básicas que definem a agricultura familiar.
1
Para uma discussão a respeito, ver Abramovay, 1997
b) É bem verdade que as caracterísiticas expostas por Gasson e Errington não se
encontram em todos os casos: é freqüente que os membros da família não vivam
na unidade produtiva (característica 6), por exemplo. Pode acontecer também -
embora isso seja bem menos freqüente - que o processo sucessório (2) envolva
pessoas que não são da família (característica 5). Nos países capitalistas centrais, a
tendência é que nem todos os membros da família se envolvam com o trabalho
agrícola (característica 4). Mas os traços apontados por Gasson e Errington
formam o que na tradição da sociologia weberiana chama-se “tipo ideal”: um todo
coerente que serve para estabelecer as comparações com os dados da pesquisa
empírica. Não se trata de uma invenção, mas da síntese articulada das
características básicas de um certo comportamento social.
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Para uma discussão recente sobre processos sucessórios no interior da agricultura familiar, ver
Abramovay et al. (1997).
Nos países capitalistas centrais, o trabalho assalariado é expressivo apenas em três
situações:
Contrariamente ao que ocorre nos países capitalistas centrais o Brasil (e esta é uma
característica de praticamente toda a América Latina e Caribe) é fortemente
marcado pela estrutura bi-modal de seu desenvolvimento agrícola. Empregada
no conhecido estudo de Johnston e Kilby (1975) a expressão bi-modalismo
designa aquelas situações em que (contrariamente ao que ocorreu nos países
capitalistas centrais) a agricultura familiar não é o módulo central do
desenvolvimento e onde o peso econômico e territorial das grandes extensões
territoriais baseadas no trabalho assalariado é decisivo. Não por coincidência, os
sistemas bi-modais predominam em países fortemente marcados pela concentração
da renda e pela pobreza, como o Brasil, a África do Sul, a Indonésia, entre outros.
Mas é interessante observar que mesmo em países com forte peso de tradição
latifundiária, ao lado de milhões de unidades que podem ser consideradas a justo
título como precárias, pequenas, gerando uma renda agrícola extremamente baixa,
desenvolve-se também um segmento familiar dinâmico capaz de integrar-se ao
sistema de crédito, cujo comportamento econômico difere da famosa e tão
estudada aversão ao risco, que adota a inovação tecnológica e integra-se a
mercados competitivos. É claro que este dinamismo não depende de características
supostamente “culturais” dos agricultores, mas de três fatores básicos:
• da formação dos agricultores, fator que hoje ganha uma importância crucial
Ali onde, mal ou bem, estas três condições foram minimamente preenchidas,
assistiu-se ao florescimento de uma agricultura familiar cuja importância
econômica recentemente começa a ser avaliada. É o caso, em especial, dos Estados
do Sul do País, de cuja agricultura familiar depende parte considerável da
agroindústria: não é a Sadia, nem a Perdigão que produzem os frangos e os suínos
que serviram de âncora verde para o Plano Real e trazem juntos ao País mais US$
1 bilhão em divisas, mas sim dezenas de milhares de agricultores trabalhando
fundamentalmente com mão-de-obra familiar.
Por mais precárias e fragmentadas que sejam estas informações elas pretendem
trazer para a discussão desta mesa redonda três aspectos centrais:
a) agricultura familiar não pode ser tomada como sinônimo de pequena produção
c) mesmo num País marcado pela força do latifúndio e pelo peso social de milhões
de estabelecimentos que, de fato, são pequenos sob o ângulo de sua participação
na oferta agrícola, há um segmento importante de agricultores familiares cuja
expressão econômica é muito significativa e em alguns casos até majoritária
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Definidas como aquelas onde o peso da mão-de-obra familiar (medida em tempo anual de trabalho) supera o
da contratada
3. Uso do solo: alcance e limites da inverse relationship
Inverse relationship: este termo usado por Cline (1970) em seu estudo sobre o
Nordeste brasileiro, e, hoje consagrado na literatura internacional sobre uso do
solo, aponta para duas características fundamentais da agricultura dos países em
desenvolvimento: os baixos retornos do trabalho e a alta intensificação do uso da
terra. É quase clássica a asserção segundo a qual os menores imóveis representam
a maior parte dos informantes, ocupando a menor parte da área, mas contribuindo
com uma produção por área muito superior à dos maiores imóveis e absorvendo
muito mais trabalho que estes últimos.
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O trabalho da FAO foi muito criticado por sugerir uma estratificação por área para o estudo social
da agricultura. Na verdade, o estudo propõe é algo bem menos pretencioso: tomando como
exemplares da agricultura familiar os estabelecimentos entre 20 e 100 hectares e como
exemplares da patronal aqueles que estão entre 500 e 10.000 hectares montar parâmetros
comparativos entre os dois segmentos. O problema é que ficam de lado os imóveis representativos
de parte muito importante da oferta que estão entre 100 e 500 hectares.
assalariamento, seja temporário, seja permanente. Com base no tempo de trabalho
da família e de membros contratados, os imóveis de São Paulo (com base numa
amostra representativa) foram estratificados em quatro classes:
• A classe 1 é composta por aqueles imóveis que não recorreram, durante o ano
de 1991, a qualquer forma de trabalho assalariado (nem permanente, nem
temporário).
Esta divisão foi cruzada com a estratificação por área adotada nos estudos do IEA
e serviu de base para organizar os dados referentes a quatro informações básicas:
• valor da produção
• área empregada
A tabela 1 sintetiza este cruzamento de informações e oferece dados que não vão
exatamente na mesma direção do que é consagrado na literatura internacional
sobre o tema:
CLASSE 2
Estrato Informantes Dias-homem Valor da produção Área
CLASSE 3
Estrato Informantes Dias-homem Valor da produção Área
CLASSE 4
Não é indiferente, para a sociedade, de onde vem a sua oferta agrícola. O caso de
São Paulo mostra que o setor patronal não é menos “eficiente” que o familiar. O
que os distingue entretanto refere-se aos efeitos multiplicadores de cada um sobre
o desenvolvimento: o domínio do trabalho assalariado é marcado sistematicamente
por condições sociais precárias. “Morar da cidade e ainda depender da atividade
agrícola... tende a conduzir a uma condição de vida de enorme precariedade, que
nãopode ser atribuído somente à baixa renda que aquela atividade proporciona”,
afirma Leone (1995:161). Entre os residentes nas cidades e que dependem do
assalariamento no campo é que estão as piores condições de vida, mesmo no
Estado mais próspero da Federação.
Nas regiões onde predominam as grandes fazendas não existe hoje vida política e
associativa no meio rural. A América Latina, para usar a feliz expressão de
Emiliano Ortega (1992) é um Continente sub-municipalizado. Enquanto um país
como a França possui 27 mil unidades administrativas locais, a América Latina no
seu conjunto possui 17 mil municípios. As funções socializadoras
convencionalmente desempenhadas pelas grandes fazendas coloniais (de maneira
precária e clientelista, sem dúvida) desapareceram com a expulsão de seus
moradores e não foram substituídas por instituições públicas voltadas às
necessidades da maioria. O desenvolvimento de unidades familiares de produção -
como mostram os exemplos de assentamentos bem sucedidos como o da Fazenda
Promissão em São Paulo - imprime um novo dinamismo ao conjunto da vida
municipal e reorganiza a tradicional hierarquia nas relações entre cidade e campo.
A agricultura familiar é um elemento decisivo para que haja a pressão social na
oferta racionalizada de serviços (transportes, educação, comunicações,
eletricidade) e portanto para que se reduzam as diferenças entre a vida social na
cidade e no campo, condição básica, evidentemente, para que o meio rural passe a
funcionar como manancial de possibilidades na luta contra a exclusão social.
Bibliografia
Veiga, José Eli O desenvolvimento agrícola: uma visão histórica. São Paulo,
Edusp/Hucitec, 219p (Estudos Rurais, 11), 1991