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CONTROLE DE SI, DOR E REPRESENTAÇÃO FEMININA ENTRE

LUTADORES(AS) DE MIXED MARTIAL ARTS

Samuel Oliveira Thomazini


Licenciado em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo (CEFD/UFES).

Cláudia Emília Aguiar Moraes


Mestre em Educação (CED/UFSC) e membro do Laboratório de Estudos em Educação Física (LESEF).

Felipe Quintão Almeida


Mestre em Educação (CED/UFSC), doutorando em Educação (CED/UFSC) e membro do Laboratório de Estudos em
Educação Física (LESEF) e do Núcleo de Estudos e Pesquisa Educação e Sociedade Contemporânea (CED/UFSC).

Resumo
Esta é uma pesquisa realizada em três academias especializadas em Mixed Marcial Arts (MMA), em que se analisam
alguns elementos indispensáveis à forja identitária de lutadores dessa modalidade. A etnografia durou sete meses,
oportunidade para combinar uma observação participante, devidamente registrada no diário de notas, com a realiza-
ção de entrevistas semi-estruturadas com atletas. Fotografias e filmagens dos locais de treinamento e de competição
foram recursos metodológicos também úteis. Os resultados indicam a existência de processos bioidentitários vincu-
lados ao controle de si e à racionalização da dor, apontando, além disso, para uma representação ambígua da presença
feminina em um universo ainda predominantemente masculino.
Palavras-chave: esporte de combate – educação do corpo – identidade

o jiu-jitsu, o boxe, o kickboxer, o muai thay, a


Introdução luta greco-romana, o kung fu, e outros. Nossa
presença no campo teve o objetivo geral de

D esde o seminal estudo de Wacquant


(2002), inúmeros trabalhos de cunho
etnográfico foram produzidos nas academias
entender os processos concernentes à forja
identitária do lutador de MMA, seja este ho-
mem ou mulher.
e/ou clubes que oferecem esportes de comba- O trabalho de campo foi realizado em três
te e/ou artes marciais. Este estudo se insere academias, na cidade de Vila Velha (ES). Nos
neste movimento ao realizar uma pesquisa, sete meses imersos no campo, entre novem-
também etnográfica, em academias espe- bro de 2007 e junho de 2008, combinamos
cializadas na prática de Mixed Marcial Arts a observação participante, devidamente regis-
(MMA), termo que corresponde à denomi- trada no diário de notas, com a realização de
nação mais recente da prática corporal que entrevistas semi-estruturadas com sete atletas
mundialmente ficou conhecida como Vale- de MMA (seis homens e uma mulher), dois
Tudo, esporte caracterizado pelo emprego de treinadores especializados em MMA e uma
técnicas corporais oriundas de diversas artes atleta de boxe, que era sparring2 da supracita-
marciais e/ou esportes de combate,1 tais como
2 O sparring representa tanto um(a) lutador(a) quanto uma
dinâmica de treinamento. Um(a) lutador(a) é um sparring
1 Para maiores informações sobre a presença e desenvolvi- quando participa de um treinamento (luta no ringue) com
mento do MMA no Brasil, sugerimos consultar o pioneiro outro(a) lutador(a) (geralmente superior tecnicamente) e
trabalho de Nunes (2004), com atletas homens de MMA tem seu valor mediante o grau de dificuldade que ele(a) pode
na cidade de Porto Alegre. impor a seu oponente, no sentido de proporcionar-lhe com

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da lutadora de MMA. Nessas entrevistas, pro- Entre a rua e o ringue:
curamos valorizar desde a vinculação inicial o controle de si ou o ethos do lutador
dessas pessoas com “o mundo” das artes mar-
ciais e/ou esportes de combate (suas histórias Wacquant (2002), em seu célebre estudo
de vida), até chegar ao seu envolvimento com com lutadores de boxe, conclui que o espaço
treinos e competições, visando esta modali- da academia constitui uma verdadeira escola
dade específica. Fotografias e filmagens dos da moralidade, uma máquina capaz de fa-
locais de treino e também das competições bricar o espírito da disciplina e do sacrifício
que os(as) lutadores(as) das academias par- que converge para o controle e a domestica-
ticiparam foram um recurso metodológico ção da força física e da violência desmedida
importante. A aproximação e inserção nes- contra o outro. Esse domínio de si (do seu
tes campos foi favorecida pelo fato de um corpo) é o que determina e justifica, sob um
dos observadores ter exercido, durante anos, código de conduta rígido e diferenciado, o
o ofício de lutador e professor de kickboxer habitus pugilístico. Nessas circunstâncias, é
naquela cidade, sendo previamente conheci- considerado imoral todo aquele comporta-
do da maioria dos sujeitos que participaram mento que contraria o ethos do grupo a que
desta investigação. pertence o praticante. Em nosso trabalho no
Neste artigo, divulgamos um campo, os gladiadores entrevistados, para
recorte da etnografia realizada, de modo lembrarmos da representação que os(as)
a descrever, inicialmente, dois aspectos lutadores(as) gostavam de se vincular, foram
importantes à forja identitária dos(as) unânimes em afirmar que nada mais se con-
atletas em questão: (1) a incorporação de trapõe ao ethos em que são socializados do
que o uso de suas técnicas fora do único es-
um ethos esportivo baseado no controle
paço em que elas deveriam ser empregradas:
de si e na distinção entre o ringue e a rua o ringue. Há uma distinção muito marcante
e (2) a valorização de um ethos sacrificial entre o que é uma luta de MMA (portanto,
vinculado à racionalização da dor e do legítima e moral) e o que é considerado bri-
sofrimento corporal. Discutimos também ga. A trocação3 dentro de um ringue, seja a
(3) as representações que a presença praticada com o companheiro/companheira
feminina suscitava entre os atletas e as de sparring, seja a que acontece no comba-
táticas das atletas de nosso campo para te em uma competição, é o motivo que leva
adquirir visibilidade e legitimidade todo atleta de MMA à vida de privação e
naquele universo predominante masculino. de sacrifício (dentro e fora do ringue), sem a
A estratégia básica, nos três tópicos, foi qual jamais tornar-se-ia um(a) guerreiro(a),
outra representação que os lutadores/luta-
cotejar os elementos da pesquisa realizada
dora gostavam de empregrar para referir a
com a literatura existente a respeito. si próprios. O que escapa a este propósito,
Reservamos as considerações finais como as brigas de rua, significa entre eles um
para um sucinto balanço dos elementos comportamento totalmente contrário à forja
apresentados. de um “lutador de verdade”. Dois agentes do
campo assim se manifestam a respeito: “Luta

maior intensidade as duras provações que um(a) lutador(a) 3 Termo utilizado pelos lutadores/lutadora para referir-se à
deve “passar” antes do “grande dia” (da luta propriamente luta efetuada “em pé”, em que os(as) atletas usam socos,
dita). Assim, uma “luta” (treinamento) com estas característi- chutes, joelhadas e cotoveladas, não sendo permitidas que-
cas, também é chamada de sparring. das e luta no chão.

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é dentro do ringue. Na rua é briga, é coisa os olhos que a gente vê os caras lá quebrando
de moleque, de marginal” (lutador D). “Só tudo, batendo no vidro, quebrando a cabeça,
sem um ringue. Colocando em outras pala-
existe luta no ringue. Na academia é treino vras, é assim: saiu do ringue não é mais luta.
e na rua é tumulto, confusão, agressão físi-
ca” (lutador C). A mesma opinião prevalece A literatura nacional tem empregado os
entre os investigados quando se discute a re- termos “pit boy” e “casca grossa”, respectiva-
alização dos eventos clandestinos de MMA, mente, para caracterizar aqueles indivíduos
pois estes apenas contribuem para denegrir que não fazem o uso “correto” das técnicas de
a imagem do esporte: “[...] os caras lutando luta que dominam (imorais, se considerarmos
como se fossem animais, não é essa visão que o ethos que deveriam respeitar e reproduzir)
a gente quer no esporte; o vale tudo não é e aqueles que fazem o uso conforme deter-
briga de animais, é um esporte, um esporte mina o código de conduta do esporte em
que tem regras; agora é o MMA, não é vale questão. Nas palavras de Ceccheto (2004, p.
tudo, acho que esses caras tinham que estar 170), essa classificação “[...] expressa a ten-
tudo na cadeia” (Lutador B); “[...] sou contra dência ao caráter positivo que a violência ga-
as lutas clandestinas. Acho que é uma desva- nhou entre esses grupos (os pit boys), e a se-
lorização do atleta que está ali, compete; não gunda refere-se ao lutador experiente, ícone
dá segurança, não tem ambulância, não tem da superioridade técnica e de compromisso
estrutura; aqui no Brasil virou uma febre, com a ética competitiva baseada em regras”.
qualquer academia está fazendo luta e acha A figura do “casca grossa” corresponde àque-
bonito esse tipo de coisa” (Lutadora). le lutador que, identificando no seu corpo o
Os relatos acima são semelhantes aos pre- instrumento de trabalho e uma arma poderosa
sentes em Wacquant (1998), pois seus entre- (WACQUANT, 1998), entende que o uso
vistados afirmavam evitar as brigas de rua não das habilidades de seu corpo-arma fora dos
tanto devido às complicações legais que isso espaços (permitidos) tornar-se-á contraditó-
poderia provocar, mas porque esse compor- rio à ética do bom lutador ou lutadora: “Uma
tamento violaria sua ética profissional. Esta- luta no ringue são dois atletas profissionais,
belecem, assim, “[...] uma demarcação aguda treinaram para fazer aquilo ali. Uma luta na
entre boxe e briga de rua, e insistem em que rua você pode pegar um cara que nunca fez
suas habilidades profissionais (‘é uma coisa do nada, e simplesmente é uma covardia você
tipo técnico’) não devem ser confundidas com bater num cara na rua que nunca fez nada;
briga de rua” (WACQUANT, 1998, p. 77). é uma arma: é você armado e o cara desar-
Constatação idêntica obtemos no trabalho de mado” (Lutador A). Aqui vale o mesmo que
Nunes (2004), pois também em sua pesqui- Diógenes (2003) e Ceccheto (2004) conclu-
sa de campo, dessa vez com atletas de MMA íram em relação aos lutadores de jiu-jitsu: os
(todos homens), os brigões são mal vistos pois lutadores de MMA também disciplinam e
seu comportamento dificulta não somente a controlam, na labuta diária do treinamento,
obtenção de recursos e patrocínios para os seus apetites vorazes. Realizam uma trans-
verdadeiros lutadores de MMA, mas também formação em seus corpos, que de um mero
coloca inúmeras barreiras à legitimação e con- corpo lugar-de-raiva, morada de agressões
solidação deste esporte no Brasil. Em relação descontroladas, modifica-se em um corpo
a isso, assim se refere o lutador F: arma-branca, não explosivo. A dedicação
religiosa aos treinos e a adesão ao ethos que
[...] em vez de ajudar o esporte em si, isso envolve a prática do MMA, funcionaria, as-
atrapalha, porque a sociedade já vê o esporte
como meio de marginalidade e olhando com
sim, como uma protocolar prática disciplinar

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capaz de se opor à violência sem razão dos tência na prática do esporte em questão, mas
confrontos imprevistos, sem limites e sem também por exercer uma influência moral e
sentidos, tal como aqueles que muitas vezes uma autoridade na relação que mantém com
vimos ser noticiados na imprensa brasileira seus alunos. Desse modo, se as academias
durante o processo de popularização deste constituem escolas da moralidade, como diz
esporte no Brasil, a partir da década de 1990. Wacquant (2002), os(as) mestres(as) são seus/
Esse controle do próprio corpo, de sua força suas professores(as).
física ou da violência em potencial que ele
encerra (presente e legítima nos ringues, mas O convívio ou a racionalização da dor:
imoral quando usada nas ruas), além de fazer no pain, no gain!
parte do dispositivo geral de preservação do
corpo do(a) lutador(a) de MMA, constitui Se a coragem, a ousadia, a valentia e a téc-
peça fundamental à forja de sua identidade, nica apurada são pré-requisitos para se tornar
da sua identificação com e no grupo. um(a) lutador(a) “casca grossa”, o caminho
Assim, “[...] a figura do professor ocupa percorrido para alcançar tal status deve ser
um lugar importante na construção do ‘esti- trilhado “sobrevivendo-se” a um treinamento
lo’ de um lutador: ele pode concorrer, gros- que impõe, entre outras regras já constituídas
so modo, para disciplinar as paixões ou para pelo grupo, a convivência diária e constante
estimular o comportamento deliberadamen- da dor. Suportar as intermináveis dores em
te agressivo dos lutadores” (CECCHETO, partes diferentes do corpo, sem ser persuadido
2004, p. 151). Isso está também muito pre- a desistir do seu propósito ou mesmo enfra-
sente nas falas dos dois treinadores entrevis- quecer o espírito e o corpo guerreiro (NUNES,
tados: “Em relação às brigas, tem professor 2004), se torna uma “regra” de conduta, um
que se promove com isso [cita vários nomes]. modo de operar, possibilitando um reconhe-
Mas o fim dessa rapaziada é morte, cadeia ou cimento coletivo capaz de transformá-lo em
aceitar Jesus. [...] Isto tudo é verdade! Não te- um(a) legítimo(a) representante desta cas-
nho raiva dos meninos não! Mas são atletas ta, os homens de ferro (GASTALDO, 1995)
queimados [...]” (Treinador Y ). (mulheres de ferro, porque não!). O reconhe-
cimento da dor como elemento intrínseco à
Eu sou totalmente contra as brigas, sempre tem construção do corpo do(a) guerreiro(a) ou
uns que gostam das brigas. Eu tenho um pro-
jeto social e tento conscientizar os moleques.
do(a) gladiador(a) é um pré-requisito comum
Mas eu digo uma coisa: não é pra levar desaforo não só aos lutadores/lutadora de nosso campo
pra casa. Se for para se defender... Na conver- de trabalho, mas trata-se de um componente
sa tudo se resolve. Parece que os caras (alunos) fundamental da forja de qualquer praticante
se espelham no professor; se o cara é brigão (o
de esporte de combate (WACQUANT, 1998,
professor), parece que os caras procuram. E o
que mais tem é professor que estimula isso. O 2002; CECCHETO, 2004; GASTALDO,
vale tudo foi um fator positivo na diminuição 1995; NUNES, 2004; TURELLI; VAZ,
da violência, ou seja, o brigão na rua não vai ser 2006) ou esporte de caráter mais viril, como
chamado pra eventos (Treinador X). o rúgbi (RIAL, 1998).4 Ela parece ser, como

“O professor é que ‘faz’ o aluno, isto é, o


perfil do lutador seria debitado à orientação 4 O domínio da dor (do corpo, portanto) não é exclusividade
dos esportes de caráter mais viril, mas encontra-se também
dada pelo treinador” (CECCHETO, 2004, p. presente nas modalidades em que não há qualquer contato
151). Assim concebido, o(a) mestre é mais do físico, como o atletismo, o balé e mesmo as atividades de
que um(a) instrutor(a) técnico(a), sendo reco- treinamento corporal que acontecem em academias de gi-
nástica e musculação. Conferir, a este respeito, Gonçalves
nhecido não apenas por seu capital de compe- (2007), Torri, Bassani e Vaz (2007) e Hansen e Vaz (2004).

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Wacquant (1998) aponta, uma companheira Nas academias de MMA investigadas,
inseparável daqueles que praticam estes es- está em jogo uma educação do corpo em que o
portes: “Os pugilistas devem também apren- trabalho pedagógico que ali acontece tem por
der a controlar e a conviver com o descon- função substituir um corpo não acostumado
forto físico, com a dor e com os ferimentos” com pancadas por um corpo estruturado e fi-
(WACQUANT, 1998, p. 84). Nas palavras do sicamente remodelado conforme as exigências
lutador B, “Isso aí a gente tem que aprender da prática em questão. Sendo assim, os(as)
a conviver. O bom é você saber porque você lutadores(as) criam estratégias para sublimar
está sentindo dor”. Para o lutador A: a dor e suportar o sofrimento. Por um lado,
procuram mitigá-la através do uso de medi-
Geralmente o atleta está com alguma coisa do- camentos diversos, analgésicos, sprays, poma-
endo, ou o joelho, a coxa, a canela, mão, dedo, das, ataduras, bolsas térmicas, equipamentos
sempre tem alguma coisa, você nunca treina
100%, não tem jeito. É um esporte de contato,
de proteção, enfim, uma série de artimanhas
de impacto, não tem como você não estar com cujo propósito não é cessar a fonte da dor, mas
um tostãozinho, uma torçãozinha no dedo, ou permitir que o treinamento continue, mesmo
no cotovelo, uma bursite, alguma coisa está do- com ela: “Claro, todo atleta sente em locais es-
endo, não tem jeito cara. A gente vai se virando:
pecíficos. Tomo antiinflamatório, infelizmente
está doendo ali, força mais com a outra, está
doendo a perna, chuta mais com a outra e pro- uma automedicação, não tem como ficar indo
tege a que está doendo e vai embora. no médico toda a semana por causa de uma
dor, aí a gente usa uma pomada analgésica, um
Muito embora os autores com os quais antiinflamatório, gelo” (Lutador E).
trabalhamos associem este aprendizado como Por outro lado, conforme já haviam ob-
medida simbólica da masculinidade dos luta- servado Nunes (2004) e Gastaldo (1995),
dores, trata-se de um requisito que é comum os(as) atletas empregam técnicas que objeti-
também ao universo da lutadora de MMA vam o fortalecimento das regiões mais atin-
que entrevistamos: “Dor é o tempo inteiro, é gidas, como a aplicação de golpes no colega
um chutando sua perna, sua cabeça e machu- de treino com o intuito de ele os assimilar
ca a articulação, ameniza com gelo e às vezes melhor, até o momento de o corpo tornar-se
com antiinflamatório. Temos um fisiotera- indiferente ou resistente às investidas do(a)
peuta na nossa equipe que nos ajuda nisso” parceiro(a) de treino. Não surpreende que,
(Lutadora). na avaliação da lutadora de MMA, “Lutar na
Como afirmam Turelli e Vaz (2006, p. 6), academia é um vale tudo todos os dias porque
desenvolve-se nos espaços em que se prati- você se quebra treinando; acho que o treina-
cam artes marciais e/ou esportes de combate, mento é a parte mais difícil da competição;
independente do sexo, uma poderosa peda- você conseguir agüentar aqueles dias de trei-
gogia da dor e do sofrimento, que “[...] não namento, tomando pancada, tomando bronca
é apenas aceita, mas considerada autêntica, do treinador” (Lutadora).
com processos que a legitimam e com impli- No universo investigado, o treinamento
cações para a educação do corpo. A dor em sparring aparece como o exercício mais “vivo”
si é algo frente ao qual se deve ser indiferen- desse aprendizado e convívio com a dor, na
te, algo com o que se deve saber conviver”. medida em que se o vivencia, várias e várias
Antes de ser entendida como uma expressão vezes, antes da luta propriamente dita. Como
irrenunciável da corporalidade, ela passa a re- pudemos notar, os treinos sparring podem se
presentar um obstáculo a ser suportado, su- tornar tão intensos, desafiadores e penosos
perado, ou, inclusive, tornado fonte de prazer que, perto deles, a luta parece mais fácil. De
(VAZ, 2001; RIAL, 1998). acordo com um de nossos informantes:

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O sparring que a gente faz, é o que eu ia fa- Mulher no ringue:
lar, nosso treinamento é muito mais difícil o que eles acham, o que elas pensam?
que a luta. A luta em si o máximo que ela
vai durar é quinze minutos, um treino dura
em média duas horas, você faz cinco ou seis Estudos demonstram que o ambiente
sparrings como se fosse a luta em si; então o das academias de esportes de combate e/ou
treino é muito pior em si, porque é como se artes marciais é dominado por uma cultura
estivesse lutando, só que com várias pessoas
(Lutador A). masculina, permeada, no dizer de Gastaldo
(1995), por uma semântica da virilidade que
considera a presença feminina uma afronta à
Nessas circunstâncias, o sparring não
ordenação simbólica daquele universo. Em
prepara o corpo para o pior (que está por
nossa pesquisa, a dissonância cognitiva encar-
vir). Ele é o pior! O resultado é que, além
nada nas mulheres também esteve presente.
de preparar o corpo do(a) guerreiro(a) para
Ela manifestou-se na representação, conforme
o combate, ele minimiza os possíveis danos
Ceccheto (2004) já havia observado, segundo
que o(a) atleta pode sofrer devido às inves-
a qual as mulheres têm uma tendência para a
tidas do(a) adversário(a). Embora aos olhos
fraqueza e para a pouca resistência, o que di-
do espectador neófito isso possa parecer uma
ficulta o envolvimento delas em uma prática
vã brutalidade irracional ou uma orgia selva-
na qual se exige muita força e resistência. O
gem, constitui o efeito de um plano racional,
lutador C assim se manifesta a respeito:
composto de táticas e estratégias que, mes-
mo sendo muito violentas e dolorosas, nem Para ser sincero acho ridículo. [...] acho que
por isso deixam de ser muito controladas e o MMA não está envolvido diretamente com
metódicas. Após assistirmos ao vídeo de um mulheres. O esporte para a mulher seria o judô,
dos sparrings filmados, ficamos impressiona- o jiu-jitsu, o taekonwdo; acho que a mulher
dos com a cooperação antagônica e/ou cláusu- não tem essa agressividade que o homem tem
a ponto de disputar o MMA, então não acho
las não-contratuais que unia os dois lutadores certo ou tão eficaz a mulher praticar o MMA.
naquela sessão meticulosa de treino: o lutador
sabia em que local bater, com qual intensida- O depoimento anterior revela não so-
de, quando devia recuar, se afastar, deixar o mente uma posição tipicamente de gênero
companheiro respirar um pouco, em suma, é (o esporte como produtor de corpos generi-
dotado de um senso prático, corporal, mimé- ficados), em que as mulheres são autorizadas
tico, que o coloca em condições de alcançar a praticar os esportes mais adequados à sua
uma justa medida entre o leve e o pesado, em “essência” – então incompatível com a ética
condições de garantir um treinamento duro do sacrifício (WACQUANT, 2002) imanen-
mas sem grandes consequências à integrida- te à preparação de um lutador desta moda-
de física do seu colega de treino. lidade –, mas também evidencia que a noção
Essa aprendizagem radical da dor que de agressividade ou virilidade está associada
acontece no sparring serve ainda para fomen- à masculinidade. Ao defender seu cargo de
tar, entre os(as) lutadores(as), um domínio lutador contra a feminilização é a idéia mais
das emoções desencadeadas pelas trocas de “profunda” de si mesmo como homem que
socos e pontapés, bastante intensas em um ele está pretendendo proteger, afinal, a cultu-
combate de campeonato. Este trabalho emo- ra em que está inserido associa quase a tota-
cional, associado à racionalização da dor físi- lidade de seu valor como lutador, perante a
ca, é mais um poderoso elemento da consti- si próprio e aos demais, graças à imagem da
tuição identitária do(a) lutador(a) de MMA virilidade. A presença feminina parece em-
(WACQUANT, 2002). baralhar essa representação. Soma-se a essa

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representação o fato de que, no mercado de de gênero predominantes, a ponto de alguns
bens simbólicos dominado pela visão mascu- lutadores verem com “naturalidade” a presen-
lina (BOURDIEU, 2007), como é o caso dos ça feminina nos ringues de MMA: “Eu acho
esportes de combate, a mulher é sempre vista bacana, eu admiro muito, não é fácil não, não
pelo olhar do dominante, o lutador, que a ava- só com o preconceito que é muito grande,
lia pelas características que ele tem e ela não. mas é que elas treinam com homens porque
Na medida em que a mulher conquista tais não têm mulheres para treinar, a não ser iso-
características, e os valores a elas associados, o ladamente em outras artes [marciais]” (Luta-
fundamento do discurso masculino torna-se dor F); “Eu vejo como qualquer outro atleta.
(ainda mais) insustentável. Minha irmã, por exemplo, eu vejo como qual-
Um grupo de lutadores, sem perder de quer outro atleta meu; não tem diferença en-
vista esta representação negativa relaciona- tre homem e mulher; é como qualquer outro
da à presença feminina entre os praticantes esporte” (Lutador A).
de MMA, chega mesmo a delimitar “seus O depoimento de um dos treinadores
lugares” neste espaço. Por um lado, sua pre- chega mesmo a apontar para o caráter con-
sença é legítima quando desfila sua beleza e tingente das representações de gênero: “O es-
suas formas nos intervalos entre os rounds de porte é pra todos, desde que lutem mulheres
um combate, distraindo o público e os pró- com mulheres e homens com homens. Exis-
prios lutadores (Lutador C); por outro lado, tem mulheres bastante agressivas e homens
sua permanência é tolerada quando assumem sem nenhuma agressividade” (Treinador Y ).
uma postura de subordinação em relação aos Essa igualdade discursada entre os gêneros
atletas. As “Marias-tatames” são um exem- era notável, sobretudo, naqueles momentos
plo desse caso, pois sua representação entre de sparring em que o lutador A e a lutado-
os lutadores corresponde à “[...] percepção ra se enfrentavam no ringue. A trocação era
da mulher como inelutavelmente interessada realmente bastante intensa entre eles, pouco
nas vantagens proporcionadas pelo lutador, importando ao lutador se do outro lado es-
ou melhor, pelo seu corpo, para protegê-la ou tava uma mulher, que ainda por cima era sua
sustentá-la” (CECCHETO, 2004, p. 171). irmã biológica. O fato de a lutadora encarar o
Afinal de contas, “Qual mulher que não gosta momento mais árduo de toda a preparação (o
de ver um cara saradão ali de guerreiro; tem sparring) enfrentando um homem minimiza
mulher que não gosta não, mas a maioria gos- as diferenças socialmente construídas entre os
ta. Mulher gosta de Homem né bicho, pegada sexos, estremecendo, assim, o mito da fragili-
forte” (Lutador D). dade feminina. Para nós, espectadores daquela
situação, quando a lutadora estava no sparring
Tem muita mulher que gosta de lutador, não com um homem, mais do que sua beleza e
vou dizer que são todas, mas te digo que não sei
curvas, os atributos destacados eram sua for-
se é pela sensação de segurança que o lutador
do lado pode passar, ou até mesmo pelo porte ça, coragem, ousadia, garra e seu destemor em
físico, ou até mesmo por está ali no meio da lutar com outro homem (maior e mais pesa-
galera, aquela coisa toda, enfim, é fato que atrai, do), todas essas qualidades que seriam pos-
sendo “Maria-tatame” ou não (Lutador E). tas à prova no combate com outra guerreira,
durante um campeonato. As iniciativas como
A despeito desses constrangimentos nor- a da lutadora de MMA contribuem para se
mativos sobre a presença da mulher no es- definir novas formas de ser mulher, dando
porte, conseguimos identificar nas academias visibilidade, como disse Aldeman (2003), a
investigadas representações masculinas que outras representações da feminilidade. Nos
conseguem romper com aquelas hierarquias dizeres da própria lutadora:

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Mulher tem aquela mania: ah, não vou lutar mação identitária dos lutadores e lutado-
não porque sou frágil; eu acho que as pesso- ra de MMA. Apresentamos o duplo ethos
as vêem a luta para a mulher dessa forma e
não é assim. A mulherada se acha delicada que os(as) atletas precisam assimilar para
demais, muito fresca para treinar; a luta tem a serem reconhecidos(as), entre seus iguais,
característica de ser grosseira e a mulher tem como guerreiros(as) e “verdadeiros(as)”
a característica de ser o sexo frágil; não é as- lutadores(as). Uma característica importan-
sim, a gente é batalhadora e guerreira como os
te desse duplo ethos é que ele “atravessa”, por
homens (Lutadora).
assim dizer, os corpos dos(as) atletas, seja
porque exige deles(as) um domínio de si cujo
No caso da lutadora de boxe, essa rein-
resultado é a transformação de seus corpos
venção da feminilidade e da própria fisicalida-
potencialmente explosivos em armas-brancas
de (DEVIDE, 2005) passa pela necessidade
(pautado pela moral segundo a qual a briga
de ela ser mais durona, pois, segundo suas
fora dos ringues é coisa de marginal), seja
próprias palavras:
porque implica em uma introversão do sacri-
fício que é naturalizada graças ao desenvolvi-
Eu ainda me sinto um pouco com o coração
mais aberto, então tô tentando cada vez mais mento de uma pedagogia baseada no controle
endurecer meu coração, não ter mais peninha e na racionalização da dor. Esse duplo ethos,
das oponentes; agora é mandar porrada e cair ao ser assumido também pelas mulheres, des-
dentro, senão é a gente que toma. [...] Porque mitifica a idéia de que elas têm uma “essência”
você não pode ter pena da pessoa, ela não vai ter
de você, então tem que ser pior que ela, meter ou identidade que é incompatível com a prá-
a porrada logo pra ela desmaiar, senão vou per- tica dos esportes que envolvem um contato
mitir ela fazer isso comigo. Sangue azul é san- corporal mais acentuado, como é o caso dos
gue frio é a mesma coisa de coração de pedra. esportes de combate.
E por falar em mulheres, a investigação
Essas mulheres forçudas (GOELLNER; identificou a existência de uma representação
FRAGA, 2003) do século XXI desnaturali- ambígua associada à presença feminina nas
zam, em suas práticas, as diferenças sexuais e, academias investigadas: ao mesmo tempo em
por conseqüência, de inferiorização feminina que as academias são espaços de afirmação
neste espaço “naturalmente” concebido como dos ideais predominantes de masculinidade,
masculino. Fazem isso sem precisar assumir em que as mulheres ou são estigmatizadas
posturas masculinizantes,5 normalmente as- como existências estranhas naquele universo
sociadas àquelas que se “aventuram” em espa- ou como presenças submissas aos homens,
ços tradicionalmente vistos como não apro- alguns lutadores consideram a presença do
priados para elas. sexo (não tão) “frágil” entre os ringues uma
conquista que deveria ser respeitada e valori-
Palavras finais zada, sem que elas precisem ser assimiladas ao
igual, perdendo, assim, sua própria alterida-
Analisamos, neste artigo, alguns ele- de. Essa representação, aliada às estratégias e
mentos que se mostraram relevantes à for- táticas empregadas pelas mulheres na batalha
diária do treinamento, é um importante passo
na direção de romper, nos esporte de comba-
5 A lutadora de boxe, por exemplo, tem clareza que a agres- te, com aquilo que Goellner (2006) denomina
sividade necessária à luta está restrita ao ringue e somente
a ele. Já a lutadora de MMA gosta de destacar “sua femi- de estética da contenção: “[...] nada de excessos,
nilidade”, lutando com luvas rosas, maquiada e de maria- nem de gorduras, nem de músculo, nem de
chiquinha nos cabelos, além de, ao final de cada vitória nos ousadias, nem de inserções em espaços que
ringues, mostrar toda sua sensualidade com uma “sambadi-
nha”, em suas próprias palavras.
parecem não ser seus”. As meninas de nosso

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campo são excelentes exemplos de que, além DEVIDE, F. P. Gênero e mulheres no esporte:
de belas, as mulheres podem também ser lite- história das mulheres nos jogos olímpicos
ralmente fatais. modernos. Ijuí: Unijuí, 2005.
DIÓGENES, G. Itinerários de corpos juvenis:
Self-control, pain and female representation among o tatame, o jogo e o baile. São Paulo: Anna-
mixed martial arts fighters blume, 2003.

Abstract
GASTALDO, E. L. Kickboxer – esportes de
This research work was conducted in three gyms which combate e identidade masculina. 1995. 185 f.
specialize in Mixed Martial Arts (MMA). We analyzed Dissertação (Mestrado em Antropologia So-
elements which are essential to the forging of fighter cial) – Programa de Pós-Graduação em An-
identity in this type of fight. Ethnographic studies las- tropologia Social, Universidade Federal do
ted for seven months, which gave us the opportunity
to apply both participant observation – recorded in a
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1995.
field journal – and semi-structured interviews to the GOELLNER, S. Entre o sexo, a beleza e a
athletes. Photographs and video-recording of training
saúde: o esporte e a cultura fitness. Labrys: es-
and competition places were also carried out. Results
indicate the existence of bioidentity processes linked to tudos feministas, n. 10, jul./dez. 2006. Dispo-
self-control and to the rationalization of pain, which nível em: http://www.unb.br/ih/his/gefem/
point to an ambiguous representation of the presence of labrys10/riogrande/silvana.htm. Acesso em:
females in a still male-dominant environment. 15 maio 2008.
Keywords: combat sports – education of the body –
identity GOELLNER, S.; FRAGA, A. B. Antinoüs
e Sandwina: encontros e desencontros na
Control de si mismo, dolor y presencia femenina educação dos corpos brasileiros. Movimento,
entre luchadores(a) de mixed martial arts
Porto Alegre, v. 9, n. 3, p. 59-82, set./dez. de
Resumen 2003.
La investigación fue realizada en tres gimnasios espe-
cializados en Mixed Marcial Arts (MAA), se analizaron
GONÇALVES, M. C. Corpos e subjetiva-
rasgos esenciales de la construcción de las identidades ções: o domínio de si e suas representações em
de luchadores y luchadoras de esa modalidad. La etno- atletas e bailarinas. 2007. 118 f. Dissertação
grafía duró siete meses, oportunidad para acordar una (Mestrado em Educação) – Programa de
observación participante, registradas en el diario de no- Pós-Graduação em Educação, Universida-
tas, con la realización de entrevistas semi-dirigidas con
atletas. Fotos y filmaciones de los locales de capacitaci-
de Federal de Santa Catarina, Florianópolis,
ón y de competencias también fueron recursos metodo- 2007.
lógicos útiles. Los resultados sugieren la presencia de
HANSEN, R.; VAZ, A. F. Treino, culto e
procesos bioidentitarios vinculados al control de si y a
la racionalización del dolor, y además, señalando hacia embelezamento do corpo: um estudo em aca-
una representación ambigua sobre la presencia femeni- demias de ginástica e musculação. Revista
na en un universo donde predomina el masculino. Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v.
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Porto Alegre, 2004.

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