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Comunicação e Sociedade
(a produção social de sentido e a sua eficácia simbólica)
São Paulo
2008
FACULDADE CÁSPER LÍBERO
Comunicaۥo e Sociedade
(a produ€•o social de sentido e sua efic‚cia simbƒlica)
S•o Paulo
2008
2
À
Ana,
Davi
e Tomás
3
Agradecimentos
4
Resumo
5
SUMÁRIO
Apresentação
05
Considerações finais
82
Referências Bibliográficas
85
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Apresentação
7
proposta de constru„…o de uma Economia das Trocas Simbólicas, proposta por
Bourdieu.
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No capítulo 3, são apresentadas importantes contribuições dos Estudos Culturais,
da Estética da Recepção e da Teoria das Mediações no entendimento da produção de
sentido no mundo social. Basicamente, há uma concentração no tipo de comunicação
mediada. Aqui, foi possível estabelecer aproximações entre os trabalhos de David
Morley e Roger Silverstone com as pesquisas de Canclini, Martín-Barbero e Orozco.
Foi possível avaliar o peso das propostas da Estética da Recepção na mudança do
paradigma de comunicação até então vigente.
No capítulo 4, são apresentadas as categorias principais da Economia das Trocas
Simbólicas de Bourdieu tais como habitus, campo, mercado simbólico, tipos de capitais,
etc. O que se pretendeu mostrar aqui, foi a percepção da comunicação não apenas como
uma troca de signos, mas uma troca de signos carregados de valor (sujeitos também a
desvalorização) e marcados por relação de poder. Foram avaliadas, também, as
particularidades do habitus lingüístico (o senso de aceitabilidade e o senso de
oportunidade) e a sua relação com o mercado simbólico, além da importância da
produção da doxa e do exercício do poder simbólico.
No capitulo 5, há um maior interesse no desenvolvimento das teorias da
enunciação desenvolvidas por Bakhtin e Foucault. As pesquisas de Bakhtin sobre o
aspecto dialógico de uma obra é de fundamental importância para o entendimento do
processo de produção de sentido e a questão de sua eficácia simbólica. Mesmo entre
autores que nunca se conheceram ou tiveram a oportunidade de conversar diretamente
sobre seu trabalho, o processo dialógico pode ser instaurado. Assim, cada enunciado
integra-se em uma complexa rede da comunicação com a qual se vincula, propõe
questionamentos e reavaliações etc. Este é o mesmo ponto de partida de Foucault em A
Arqueologia do Saber, obra da qual procuro avaliar a importância de categorias como as
de formações discursivas, campo e jogo enunciativo, modulações etc. São
desenvolvidas, rapidamente, algumas observações sobre sua aula inaugural no Collège
de France, A ordem do discurso, que já indica um deslocamento de seu pensamento
rumo a uma genealogia do poder.
No capítulo 6, três pesquisadores são colocados explicitamente em situação
dialógica: Bakhtin (com a análise dos gêneros), Bourdieu (com a análise dos campos
sociais) e Foucault (com a análise dos dispositivos sociais). A questão que se coloca
aqui é a da possibilidade de construção de uma teoria geral dos campos, uma teoria
sobre a produção de fronteiras e domínios discursivos e não-discursivos (gêneros
discursivos e instituições) relativamente autônomos no mundo social. O capítulo tem o
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título sugestivo: Dos dispositivos e das disposições. Trata-se de uma referência a uma
importante obra de Martín-Barbero, intitulada: Dos Meios às Mediações. Qual ou quais
são as mediações que garantem às instituições e ao seu discurso as condições de
reconhecimento e êxito, as condições para a sua eficácia simbólica.
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Capítulo1: Comunicação e Sociedade
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Unidos, logo apƒs o in•cio da Segunda Guerra. A partir da•, as complexas questŠes que
envolviam a produ„…o da linguagem passaram a ser o paradigma para se pensar os
mitos, o parentesco, a est†tica etc. (Eagleton, 1983 p. 104). Cuidadosamente, o
antropƒlogo procura estabelecer uma rela„…o entre cultura e linguagem da seguinte
forma:
Muito citado (juntamente com Edward Sapir) nos estudos sobre a rela„…o entre
linguagem e sociedade, Benjamin Whorf sofre uma dura cr•tica de Levis-Strauss. O que
se deixa transparecer na cr•tica † que normalmente ling‰istas t‡m s†rios problemas na
forma„…o antropolƒgica e antropƒlogos t‡m s†rios problemas na forma„…o ling‰•stica.
Sabe-se que tanto a linguagem quanto os sistemas de parentesco s…o sistemas de
comunica„…o e o antropƒlogo deve considerar fundamental a interpreta„…o da cultura
“em fun„…o de uma teoria da comunica„…o” (Levi-Strauss, 1985 p. 103). Essas trocas
simbƒlicas podem ser identificadas nas regras de parentesco e matrim‘nio (a
comunica„…o por meio da troca de mulheres entre os grupos), nas regras econ‘micas
(comunica„…o de bens e servi„os) e regras ling‰•sticas (comunica„…o de mensagens).
Trata-se, ent…o de verificar as poss•veis homologias entre elas, que estariam sob aten„…o
da sociologia do parentesco, da ci‡ncia econ‘mica e da lingu•stica:
Entretanto, eles n…o podem ser analisados sob uma mesma escala, pois se †
correto dizer que o casamento † uma comunica„…o de “ritmo lento”, a linguagem seria
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de “ritmo rˆpido”, pois os casamentos, obrigatoriamente, devem ser analisados na
rela„…o pessoa/valor e a linguagem na rela„…o s•mbolo/signo. Nossa sociedade (e essa
discuss…o serˆ retomada, criticamente, com Foucault e Bourdieu) criou uma esp†cie de
rela„…o “imoderada” com a linguagem: “falamos continuamente, qualquer pretexto nos
serve para nos expressarmos, interrogramos, comentarmos... Esta maneira de abusar da
linguagem n…o † universal; nem mesmo freq‰ente.” (Levi-Strauss, 1985 p. 86).
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(indiv•duos ou grupos), cujo jogo comandam. Como diz von Neumann: ‘O
jogo consiste no conjunto das regras que o descrevem’. Poder-se-…o tamb†m
introduzir outras no„Šes: partida, lance, escolha e estrat†gia. Deste ponto de
vista, a natureza dos jogadores † indiferente, o que conta † somente saber
quando um jogador pode escolher, e quando n…o pode.” (Levi-Strauss, 1985
p. 339)
Estaria a antropologia social habilitada a usar esses instrumentos? Esse tem sido
o desafio proposto por Levi-Strauss a si mesmo. Autores como Douglas e Isherwood
procuram mostrar que as rela„Šes de troca e reciprocidade estabelecidas pelo
antropƒlogo sƒ poderiam adquirir seu sentido complexo se fossem integradas a uma
teoria do consumo que envolve necessariamente uma teoria da informa„…o. Um teoria
do consumo deve levar em considera„…o as estrat†gias dos agentes para enfrentar
rela„Šes de exclus…o, apropria„Šes e tentativas de usurpa„…o que devem ser
consideradas, no fundo, rela„Šes de poder. (Douglas& Isherwood, 2004 p. 139-142)
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Ci‡ncias Sociais fizeram com que se tornassem “freaks”, “c…es vagabundos”, que
precisavam falar para pessoas que n…o pertenciam € sua disciplina para serem ouvidos.
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jˆ podem ser encontradas as principais premissas que orientam as ci‡ncias sociais nesse
sentido. S…o elas: a) os grupos humanos constituem-se na a„…o e toda a„…o sƒ pode
ocorrer devido € capacidade que esses agrupamentos t‡m de dar sentido a ela; b) esses
sentidos s…o produzidos socialmente, isto †, na intera„…o social; c) s…o experimentados
em processos de interpreta„…o, que podem adequar-se €s mais variadas situa„Šes do
cotidiano.
1
Ver: Lirˆucio Girardi J’nior. Pierre Bourdieu: questões de Sociologia e Comunicação. S…o Paulo:
Annablume, 2007 cap. 3
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Para nossa maior conveni‡ncia, podemos classificar os objetos em tr‡s
categorias: (a) objetos f•sicos, como cadeiras, ˆrvores ou bicicletas; (b)
objetos sociais, como estudantes, padres, o presidente, a m…e ou um amigo e
(c) objetos abstratos, como princ•pios morais, doutrinas filosƒficas ou
conceitos tais como justi„a, explora„…o ou compaix…o." (Blumer In:
Mortensen, 1980 p. 127)
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palavras que usamos definem nosso mundo, no sentido original do termo, ‘criando uma
fronteira, um limite’” (Mey, 2001 p 25-27).
18
comportamento n…o-verbal daqueles que est…o na conversa (mas n…o participam
diretamente dela), a percep„…o que os interlocutores t‡m do lugar e das pessoas com as
quais interagem, enfim, tudo o que pode ser chamado de “situa„…o social”, situa„…o de
intera„…o socialmente situada. Os indiv•duos agem por uma s†rie de orienta„Šes
conjugadas e autorizadas no que diz respeito €s trocas simbƒlicas. (Goffman In: Winkin,
1999 p. 150-151)
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mais o enunciador, mas o par formado pelo locutor e pelo interlocutor(...)”
(Maingueneau, 1996 p. 18-19)
O risco que o interacionismo corre diz respeito € forma pela qual identifica a
fun„…o da linguagem na constru„…o social do sentido, a linguagem como produtora de
"objetos" carregados de sentido e responsˆvel pela constitui„…o dos universos sociais.
Alguns cuidados s…o necessˆrios, ao se pensar a linguagem em uso ou a produ„…o social
de sentido por meio da linguagem. • preciso romper com a no„…o de que os signos
produzidos na intera„…o social seriam uma esp†cie de etiqueta dada aos objetos e que a
fun„…o da linguagem seria a de nomear, captando o objeto. Corre-se o risco de
identificar a linguagem apenas como uma produtora de “rƒtulos”, o que seria um
equ•voco como mostra Ara’jo (2004):
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envolve a realiza„…o de uma s†rie de sons com sentido em uma l•ngua (um ato
locutƒrio), um tipo de ato de linguagem que deve ser percebido, convencionalmente, de
certa forma como pedido, amea„a, sugest…o etc. (ato ilocutƒrio), que provoque uma
certa disposi„…o, uma a„…o por interm†dio da palavra (ato perlocutƒrio). Para que a
comunica„…o ocorra † preciso que sejam garantidas algumas condi„Šes (sociais) de
sucesso (Maingueneau, 1996 p. 8-9). Como ser…o vistas, adiante, essas condi„Šes
passar…o, pela anˆlise dos g‡neros discursivos e seus rituais enunciativos.
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Simultaneamente, alguns pesquisadores em teoria literˆria come„am a deslocar-
se da preocupa„…o com a linguagem para a preocupa„…o com o discurso, redirecionando
seus estudos para os atos de fala, em que a linguagem deixa de ser vista como uma
estrutura e passa a ser pensada em sua manifesta„…o, em seu uso, atendendo a algumas
condi„Šes de sucesso (Eagleton, 1983 p. 123).
Rodrigues observa que o modelo de transmiss…o linear e unidirecional (t…o
difundido em algumas teorias da comunica„…o), traduzido no modelo da codifica„…o-
decodifica„…o, sofre de um problema particular. Quando falamos, n…o utilizamos apenas
um cƒdigo, mas precisamos dominar um conjunto de saberes que nos permitam
entender as pistas do nosso interlocutor.
“Segundo uma concep„…o generalizada da linguagem, um locutor
constrƒi os seus enunciados, procedendo a uma codifica„…o daquilo que
pretende dizer, e dirige-os a um ou mais destinatˆrios, que compreendem
aquilo que ele lhes diz descodificando a mensagem veiculada por esses
enunciados. A intercompreens…o seria assim explicada pelo fato de tanto o
destinador como o destinatˆrio de uma mensagem possu•rem em comum o
mesmo código.
Deste ponto de vista, as dificuldades na compreens…o dos
enunciados que podem ocorrer resultam, ora da insuficiente mestria ou do
insuficiente dom•nio do cƒdigo por parte dos interlocutores, ora da
ocorr‡ncia de ru•dos, de fen‘menos perturbadores do processo de
transmiss…o ou da percep„…o das mensagens codificadas, ora de ambas estas
razŠes. [Entretanto] (...) Al†m de utilizarem em comum o mesmo cƒdigo da
l•ngua portuguesa, eles tamb†m ter…o de interpretar ind•cios ou, se
preferirmos, pistas acerca daquilo que cada um cr‡ saber. Este exemplo
mostra assim que, para entenderem o que pretendem dizer, os interlocutores,
al†m de possu•rem um cƒdigo comum, t‡m de possuir em comum um
determinado saber.” (Rodrigues, 1995 p. 140-141)
Essa cr•tica jˆ estˆ bem clara nos trabalhos de Bakhtin, quando observa que o
grande erro das anˆlises abstratas da comunica„…o consiste em avaliar a linguagem do
ponto de vista do locutor como agente isolado. Quando o outro entra nesse modelo de
comunica„…o † na simples condi„…o de “destinatˆrio passivo”.
• um erro considerar o locutor como se fosse o ponto de partida do discurso e o
receptor como um destinatˆrio passivo. Toda enuncia„…o pressupŠe uma s†rie de
condi„Šes sociais que dependem da intera„…o, da presen„a do outro, de sua histƒria:
“ O prƒprio locutor como tal †, em certo grau, um respondente, pois
n…o † o primeiro locutor que rompe pela primeira vez o eterno sil‡ncio de um
mundo mudo, e pressupŠe n…o sƒ a exist‡ncia do sistema da l•ngua que
utiliza, mas tamb†m a exist‡ncia de enunciados anteriores – emanentes dele
mesmo ou do outro – aos quais seu prƒprio enunciado estˆ vinculado por
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algum tipo de rela„…o (fundamenta-se neles, polemiza com eles), pura e
simplesmente ele jˆ os supŠe conhecidos do ouviente. Cada enunciado † um
elo da cadeia muito complexa de outros enunciados.” (Bakhtin, 2000 p. 291)
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investiga„…o sociolƒgica. A cilada consiste em autonomizar a linguagem(ou
o discurso) e ver apenas signos, trocas significantes, linguagens na moda, do
espa„o, da arquitetura, do consumo etc no contexto de uma semiologia
generalizada.” (Lahire, 2002 p. 169-170)
Rodhen (2003) observa que, no jogo, estamos sempre lutando por alguma coisa,
representando alguma coisa. Respeitar as regras e correr riscos, viver a incerteza e a
tens…o † a caracter•stica dos jogos. • preciso estar envolvido pelo jogo para que ele
tenha sentido. Ele cria uma ordem por meio da qual † poss•vel representar uma s†rie de
outros dramas homƒlogos (o certo e o incerto na vida, a alegria, a ousadia, o risco, o
imprevis•vel).
Nas trocas simbƒlicas † correto dizer que os enunciados sempre podem gerar
interpreta„Šes imprevis•veis. Lances e movimentos de “ast’cia” e “ingenuidade” podem
ser criados, manobras mais ou menos valorizadas e inovadoras podem ser produzidas.
No entanto, uma s†rie de constrangimentos s…o delimitados pelos jogos de linguagem.
Sociologicamente, somos obrigados a nos defrontar com o problema da objetiva„…o da
linguagem, o que a caracteriza como uma “institui„…o”.
O controle da interpreta„…o se dˆ por meio da identifica„…o de parentesco e
familiaridade entre um conjunto de jogadas-enunciados. Os jogos n…o delimitam todas
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as possibilidades de express…o, mas produzem a familiaridade em torno das quais certas
jogadas t‡m uma probabilidade de acontecer, um campo de poss•veis para o sentido.
Um campo de dispers…o de sentidos poss•veis e reconhecidos.
Para Wittgenstein, os jogos de linguagens s…o capazes de estabelecer um senso
prˆtico da “fam•lia” de significados para determinadas trocas simbƒlicas. Esses
esquemas prˆticos, esse senso prˆtico do mundo e das situa„Šes de intera„…o na qual se
formaram s…o capazes de orientar os indiv•duos no dom•nio de uma t†cnica. Assim, eles
s…o capazes de estabelecer “semelhan„as de fam•lia” ou uma “fam•lia de significa„Šes”
que permitem reconhecer e jogar com as possibilidades desses jogos.
Ao se pensar a comunica„…o a partir de jogos de linguagem, deve-se entender a
produ„…o de sentido como a produ„…o de certos esquemas de reconhecimento dos "ares
de fam•lia" entre os signos e as situa„Šes em que est…o integrados. A partir disso, podem
ser estabelecidas analogias, aproxima„Šes, distanciamentos na experi‡ncia com esses
jogos que em nada se assemelham a uma obedi‡ncia a regras estritas:
"Um esquema grˆfico com uma sucess…o de desenhos de rostos pode
dar a id†ia das 'passagens intermediˆrias' entre exemplares de uma fam•lia
(aqui apresento uma vers…o estilizada; quem tiver habilidade grˆfica poderˆ
fazer um desenho melhor): :-) ;-) ;-| ;=|
Na figura, entre o primeiro membro e o ’ltimo membro n…o hˆ nenhuma
caracter•stica comum, mas existem transi„Šes e membros intermediˆrios que
se apresentam de tal modo que dois membros prƒximos da s†rie das figuras
tenham sempre algo em comum." (Penco, 2006 p. 147)
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S…o esquemas de percep„…o de situa„Šes sociais jˆ conhecidas que servem de refer‡ncia
e antecipa„…o de situa„Šes sociais futuras.
Da mesma forma Lahire critica a id†ia muito difundida na Sociologia de que, em
seu processo de socializa„…o, os indiv•duos incorporam “estruturas sociais” por meio da
linguagem. Para o sociolƒgo, o que se incorpora s…o esquemas de a„…o, de intera„…o, de
representa„…o, percep„…o e aprecia„…o do mundo. Qualquer metˆfora que traduza a
tentativa de “transmiss…o” desses esquemas como transmiss…o de um patrim‘nio
cultural deve ser avaliada com muito cuidado, pois a metˆfora pressupŠe que esse
patrim‘nio seja simplesmente passado € frente como se faz com bens materiais. Na
verdade uma “heran„a cultural” deve pressupor “distor„Šes, adapta„Šes,
reinterpreta„Šes” e um investimento por parte daqueles que estar…o sujeitos a ela. O que
† apropriado ou “transmitido” n…o † propriamente um saber, mas uma experi‡ncia:
“O racioc•nio prˆtico do tipo ‘isso se parece com’, e que raramente
precisa ser dito como tal, † um racioc•nio comumente aproximativo e
variˆvel. Pode perfeitamente bem negligenciar certos tra„os da situa„…o em
curso para reter apenas um esquema relacional geral (a rela„…o homem-
mulher, a rela„…o m…e-filha, a rela„…o superior hierˆrquico-subordinado etc.),
como tamb†m se ater a um detalhe totalmente descontextualizado do
conjunto da situa„…o (um gesto, um cheiro, um sabor, uma palavra, uma voz,
um ru•do, um objeto, um lugar – casa, paisagem, bairro -, uma fotografia
etc.(Lahire, 2002 p. 69)
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ser incorporado, mas para ser assimilado. O encontro mim†tico com o
mundo ocorre com todos os sentidos, e estes desenvolvem suas
sensibilidades no decorrer deste processo.” (Gebauer&Wulf, 2004 p. 145)
27
introduzem sua prƒpria expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos,
reestruturamos, modificamos. (...) O enunciado deve ser considerado acima
de tudo com uma resposta a enunciados anteriores dentro de uma dada esfera
(a palavra ‘resposta’ † empregada aqui no sentido lato); refuta-os, confirma-
os, completa-os, baseia-se neles, supŠe-nos conhecidos e, de um modo ou de
outro, conta com eles.”” (Bakhtin, 2000 p. 314)
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Para Stierle, o resultado desse jogo depende de um “potencial de recepcional” ou
no caso de Jauss de um “horizonte de expectativas” que o texto possibilita. Esse jogo
depende da “compet‡ncia recepcional” do leitor para reconstruir a dire„…o e a inten„…o
com a qual o autor objetivou seu prƒprio texto. Para Stierle:
“A comunica„…o pragmˆtica, portanto, funciona apenas quando o
produtor e receptor dialeticamente mediados, interv‡m com posi„Šes de
pap†is em um campo de a„…o. A comunica„…o pragmˆtica funciona apenas
porque o produtor consegue imaginar o papel do receptor e vice-versa. (...) O
sujeito da produ„…o e o sujeito da recep„…o n…o s…o pensˆveis como sujeitos
isolados, mas apenas como social e culturalmente mediados, como sujeitos
‘transubjetivos’ (...)” (In: Lima, 2002 p. 128)
João e Maria
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A questão da leitura será desenvolvida em um capítulo à parte, interligada aos
tipos de comunicação mediada presentes no mundo moderno, ao modo pelo qual se
desenvolvem naquilo que Bakhtin chamou de gêneros secundários (cap.4).
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Na Am†rica Latina, o campo da comunica„…o sofre profundas transforma„Šes a
partir das novas orienta„Šes teƒricas que passam a dominar o campo das Ci‡ncias
Sociais nos anos 1970-1980. Muitas dessas transforma„Šes devem-se, em grande parte,
€ influ‡ncia de modelos ling‰•sticos ou semiolƒgicos. Al†m disso, a regi…o estava
vivendo uma nova conjuntura social e pol•tica pela a„…o dos movimentos sociais, que
passaram a desempenhar um importante papel nos processos de democratiza„…o e luta
contra as ditaduras. Tratavam-se na verdade de verdadeiras lutas simbƒlicas pela
representa„…o do mundo trazida pelas novas prˆticas sociais.
Esse v•nculo entre ci‡ncias sociais e comunica„…o teve in•cio nos anos 1970 com
os trabalhos de pesquisadores da sociologia da comunica„…o na FFLCH-USP2 e com os
novos direcionamentos que a antropologia passou a dar € no„…o de cultura popular.
Embora n…o seja este o objetivo deste artigo, † preciso lembrar que a transi„…o dos
estudos sobre a cultura popular para os estudos de comunica„…o mediada aparece em
um momento muito particular tanto na Europa quanto na Am†rica Latina.
2
Gabriel Cohn, Maria Arminda do Nascimento Arruda, Orlando Miranda e S†rgio Miceli. Para Gabriel Cohn (1973),
o grande pioneiro nessa ˆrea, tratava-se de: “Uma estrat†gia de anˆlise sociolƒgica das rela„Šes entre sistemas
simbƒlicos e sistemas sociais, aplicˆvel a uma modalidade historicamente espec•fica da sua manifesta„…o...”.
31
Esse pesquisador reposiciona, tamb†m, a maneira de pensar a rela„…o entre
tecnologia e prˆticas sociais, a partir de seus estudos sobre a televis…o. Sua anˆlise do
desenvolvimento das tecnologias de comunica„…o estˆ vinculada a um conjunto de
transforma„Šes histƒricas que marcaram a sociedade moderna. Entre eles, encontra-se
paulatina instaura„…o de uma mobilidade privatizada centrada no lar na qual revistas,
jornais, telefones e televisŠes encontram “seu lugar”. Como observa Williams, o
desenvolvimento do broadcasting estˆ diretamente ligado a uma forma cultural no
interior dos conflitos de uma ordem capitalista e, † nela, que adquire um sentido social.
32
As representa„Šes, os textos, os discursos estariam diretamente relacionados a
certos mapas de significados que permitiriam aos agentes sociais interpretar, conhecer,
reconhecer, contestar e agir no mundo social. As condi„Šes sociais, ideolƒgicas e
pol•ticas desiguais experimentadas por esses mesmos agentes no mundo social
constituem e s…o constitu•das nas representa„Šes que se objetivam nesse mundo por
meio da prˆxis. Nesses mapas de significados, produzidos pela frui„…o cultural,
encontra-se uma estrutura em domin•ncia, capaz de impor certas regras performativas,
regras que sinalizam compet‡ncias e usos dominantes e leg•timos na sua interpreta„…o.
O trabalho interpretativo enfrentaria com maior ou menor intensidade uma situa„…o de
domin•ncia simbƒlica.
Essas mudan„as no entendimento do processo de comunica„…o ter…o, tamb†m,
conseq‰‡ncias importantes nas pesquisas da teoria das media„Šes no contexto latino-
americano.
No caso brasileiro, a emerg‡ncia de novos sujeitos sociais em um contexto de
expans…o dos meios de comunica„…o sob censura (Ortiz, 1989) impulsionou diversos
agentes e cientistas sociais a pensarem o significado dessas novas prˆticas, isto †, a
refletir sobre as caracter•sticas e o papel histƒrico desses movimentos sociais. Se at† os
anos 50 e 60 o popular era pensado como importante categoria na busca de uma
identidade nacional, agora, com a presen„a de um mercado de bens simbƒlicos em
expans…o, a quest…o do nacional-popular era acompanhada da discuss…o cultura popular-
ind’stria cultural.
33
conjunto de prˆticas culturais populares centradas nos bairros e nas formas de consumo
cultural dessa popula„…o.
3
Cultura e comunica„…o s…o categorias que apresentam graus de generalidade semelhantes, capazes de abranger
quase tudo o que existe no mundo social. Quanto aos primeiros ensaios de aproxima„…o entre essas ˆreas, ver as obras
de Edmund Leach, de 1976, com o t•tulo: Cultura e comunicação, e A situação negligenciada, de Erving Goffman,
que † de 1964.
34
O impacto dessa mudan„a de avalia„…o na literatura foi deslocado para os meios
de comunica„…o pelos representantes latino-americanos da Teoria das Media„Šes ou
Teoria da recep„…o. A ind’stria cultural passa a ser vista como um espa„o de lutas
simbƒlicas, um espa„o de reapropria„Šes a partir de uma experi‡ncia particular do
cotidiano.
35
de processos socioculturais nos quais se realiza a apropria„…o dos produtos”, condi„Šes
de acesso e controle sobre a produ„…o e circula„…o dos bens culturais, acesso aos meios
e equipamentos necessˆrios para isso, etc; por recepção pode-se entender um modo
particular de consumo dos meios, o ato de ver televis…o, ouvir o rˆdio ou ler o jornal,
que envolve a produ„…o e negocia„…o de sentidos.
36
enunciado. O interlocutor produz uma “atitude responsiva ativa”, socialmente ativa,
pois o processo de interpreta„…o obriga-o a se “posicionar” no universo das trocas
simbƒlicas, concordando ou discordando com o que foi dito, ignorando-o,
complementando-o, adaptando-o. “O locutor postula esta compreens…o responsiva
ativa”, observa Bakhtin. Al†m disso, vincula-se a enunciados anteriores que mobiliza,
reelabora, critica, transformando-se um em elo da cadeia complexa de enunciados. Os
g‡neros televisivos s…o umas entre outras tantas media„Šes que permitem ao produtor e
aos canais de televis…o manter alguma rela„…o com o mundo da vida de seus
espectadores. Para Bakhtin:
Produ„Šes simbƒlicas exigem, portanto, sele„…o. Al†m disso, criam uma lƒgica
prƒpria de tradução: anota„Šes de campo, entrevistas, observa„…o direta, s…o traduzidas
em diˆlogos, tabelas estat•sticas, grˆficos, reportagens, perfis etc. Sua organiza„…o no
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interior dos g‡neros obedece a arranjos muito particulares, hierarquiza„…o das
anota„Šes, associa„Šes, desmembramento por cap•tulos etc.
38
comunica„…o ao resgatar a “cotidianidade” como espa„o de produ„Šes simbƒlicas que
merecem considera„…o teƒrica, pois transforma-o em um espa„o de cria„…o e n…o apenas
de reprodu„…o da for„a de trabalho.
A televis…o, p.ex., pode ser pensada como uma constru„…o tecnolƒgica e social
baseada em m’ltiplas media„Šes. A tecnologia cria condi„Šes para experi‡ncias
desterritorializadas, produzindo um campo de experi‡ncias culturais muito espec•ficas.
O prƒprio desenvolvimento do design e das fun„Šes dispon•veis nos aparelhos
eletr‘nicos (diminui„…o de tamanho, melhoria da recep„…o, funcionalidade), abre a
possibilidade de novos usos e apropria„Šes no interior do espa„o dom†stico e sua
integra„…o ao cotidiano da fam•lia. • importante notar a converg‡ncia teƒrica que se
desenvolve entre a Teoria das media„Šes e as novas gera„Šes dos Estudos Culturais,
particularmente com os trabalhos de Morley (1990, 1992) e Silverstone (1990, 1991,
1996), concentradas justamente na constru„…o das chamadas “tecnologias dom†sticas” e
39
de uma nova “economia moral” centrada na fam•lia. Esses estudos mostram que o
ambiente comunicacional produzido pela televis…o † tanto tecnolƒgico como social e
que as media„Šes, nele presentes, devem ser avaliadas com bastante cuidado como uma
s†rie de prˆticas rotinizadas e ritualizadas.
Por outro lado, observam que o estudo da televis…o n…o pode ser separado do uso
de outras m•dias no espa„o dom†stico. Embora n…o fa„a uso do termo media„…o ou
mesmo ecologia midiˆtica, Silverstone parece propor estudos desse tipo na anˆlise das
intera„Šes em torno da m•dia no espa„o dom†stico. De um lado, observar a din•mica
interna das prˆticas midiˆticas dom†sticas distribu•das entre variˆveis como idade,
g‡nero, tamanho da fam•lia, condi„…o social e por outro lado, relacionˆ-la € din•mica
externa de consumo cultural, uso de bens e servi„os, acesso a financiamentos e recursos
culturais. A televis…o † uma tecnologia que articula dois grandes processos de produ„…o
de significados e produz uma economia de significados muito complexa identificada da
seguinte forma: a) ela pode ser vista como um demarcador do estilo de vida, ao mesmo
tempo, em que abre a possibilidade para o acesso simbƒlico a um vasto conjunto de
estilos de vida; b) por outro lado produz um conjunto de significados mediados
disponibilizados para negocia„…o e transforma„…o por aqueles que a ela tem acesso.
40
Nesse sentido, essa nova gera„…o dos Estudos Culturais aproxima-se muito das
anˆlises latino-americanas sobre as media„Šes. Para Morley & Silverstone (1990)
existem 04 importantes dimensŠes a serem abordadas nos estudos das tecnologias de
comunica„…o e entretenimento (basicamente, a televis…o): a) o significado da televis…o
n…o estˆ no ato de ligˆ-la, mas na sua inclus…o €s atividades rotineiras e ritualizadas
centradas no lar, b) a televis…o estˆ inserida em um campo de experi‡ncias (traduzido no
interior do ambiente dom†stico e nas rela„Šes sociais externas) que † mobilizado no
processo de interpreta„…o dos espectadores, c) os graus de envolvimento com as
tecnologias de comunica„…o e entretenimento (televis…o, telefone, v•deo, DVD, ipod
etc.) variam entre os membros da fam•lia d.) os variados modos de direcionamento ou
endere„amento (“modes of address”) dessas tecnologias integram-se a contextos
culturais e sociais muito particulares.
41
pressupunham uma nova forma de organiza„…o de produ„…o do pensamento e de sua
recep„…o mais ou menos previs•vel (L†vy, 2006).
42
Esses roteiros podem ser reconhecidos pelo leitor como um estereƒtipo gen†rico,
isto como um exemplo de um g‡nero (literˆrio, televisivo etc.) jˆ conhecido ou entend‡-
lo como um caso “original” e “inovador”. Certas produ„Šes propŠem-se a ativar roteiros
mais ou menos conhecidos enquanto outras “jogam” com as suas fronteiras. Por meio
dessas media„Šes, o espectador ou leitor torna-se, de algum modo, c’mplice do autor e
segue pelas indica„Šes lacunares deixadas pelo texto. Deste modo, ele † capaz de
“enquadrar” o tipo de bem cultural com o qual se relaciona, perceber uma mudan„a de
rumo ou at† mesmo de g‡neros na grade da programa„…o televisiva (Eagleton, 1983 p.
83).
Ver televis…o torna-se um processo cultural muito mais complexo do que pode
ser normalmente avaliado. A televis…o ganha a vida cotidiana, ocupa o espa„o das
conversa„Šes diˆrias, torna-se foco de aten„…o. A presen„a da televis…o se faz mesmo
antes de se ligar o aparelho, dada a familiaridade que os espectadores jˆ estabeleceram
com esse meio, sua grade de horˆrio, seus g‡neros. Uma verdadeira rotina midiˆtica †
instaurada, regulando e ritualizando o uso do tempo no interior do espa„o dom†stico. Se
a rela„…o com a televis…o ocorre muito antes de se ligar o aparelho, esta rela„…o †
prolongada mesmo depois de ter sido desligado. Ela ocupa a conversa com a esposa, o
conselho aos filhos, as piadas no trabalho, a indigna„…o p’blica com a personagem e o
seu papel no horˆrio nobre etc.
43
experi‡ncia midiˆtica. Essa mediação institucional relaciona-se de modo complexo com
a mediação de referência, que se caracteriza pelos diversos modos de produ„…o da
identidade por g‡neros, gera„…o (idade), etnia, orienta„…o religiosa, o local de moradia e
a origem geogrˆfica (migra„Šes), a classe social, a profiss…o etc.
44
Capítulo 4: Mercados Lingüísticos e o poder simbólico
45
comunica„…o, elas n…o se reduzem de forma alguma a essa fun„…o. Isolar a linguagem
de suas condi„Šes sociais de produ„…o † ignorar que a resposta para a eficˆcia simbƒlica
da comunica„…o n…o estˆ na linguagem em si, mas no mundo social que a produziu.
Logo, rela„Šes de comunica„…o s…o rela„Šes de poder fundadas em um arb•trio, em
rela„Šes de viol‡ncia simbƒlica, socialmente institu•das. Como a produ„…o de sentido no
mundo † marcada por processos de viol‡ncia simbƒlica, o que funda qualquer troca
ling‰•stica inevitavelmente s…o rela„Šes de poder. Valer-se de uma linguagem n…o †
compartilhar um imenso tesouro comum. Os mecanismos de apropria„…o e uso desse
tesouro n…o est…o dispon•veis igualmente a todos e, todo acesso a ele, envolve
complexos processos ritualizados de concorr‡ncia, monopƒlio, exclus…o,
marginaliza„…o, domina„…o.
Inspirado em Weber e Mauss, Bourdieu desloca da economia (“econ‘mica”) um
conjunto de conceitos para desenvolver uma economia muito particular, produzida pelo
universo simbƒlico. A partir dessa orienta„…o, que reorienta as premissas do objetivismo
e da fenomenologia e rompe tanto com alternativas economicistas quanto culturalistas, o
sociƒlogo introduz nos estudos das trocas ling‰•sticas uma s†rie de no„Šes como as de
capital (econ‘mico, cultural, simbƒlico e social), lucro (simbƒlico) e mercado
(ling‰•stico). A partir de Mauss, observa que a l•ngua em si mesma n…o † capaz de
garantir sua exist‡ncia. Ela depende da expectativa coletiva que lhe garante o sentido
social. Ela se sustenta sobre as mesmas condi„Šes sociais que garantem a cren„a no
feiticeiro e sua magia:
“A l•ngua leg•tima n…o tem o poder de garantir sua prƒpria perpetua„…o
no tempo nem o de definir sua extens…o no espa„o. Somente esta esp†cie de
criação continuada que se opera em meio €s lutas incessantes entre as
diferentes autoridades envolvidas, no seio do campo de produ„…o
especializado, na concorr‡ncia pelo monopƒlio da imposi„…o do modo de
express…o leg•tima, pode assegurar a perman‡ncia da l•ngua leg•tima e de seu
valor, ou seja, do reconhecimento que lhe † conferido. (...) a luta tende
continuamente a produzir e reproduzir o jogo e tudo o mais que estˆ em
jogo, reproduzindo naqueles que se encontram diretamente envolvidos nele
(mas n…o apenas entre eles) a ades…o prˆtica ao valor do jogo e do que estˆ
em jogo (mƒveis de concorr‡ncia), que define o reconhecimento da
legitimidade. (...) Qualquer jogo termina quando se come„a a perguntar se
vale a pena.” (Bourdieu, 1996 a p.45)
46
simbólico. A produ„…o social de sentido † pensada a partir dos atos de fala e n…o da
l•ngua. • preciso lembrar que todo ato de fala sƒ pode ser colocado em movimento por
toda uma conjuntura que mobiliza as disposi„Šes incorporadas pelos agentes (habitus)
em sua experi‡ncia social em campos sociais muito particulares. A Economia das trocas
simbƒlicas observa que o discurso n…o † uma simples troca de signos em situa„Šes de
comunica„…o, mas o encontro de certas disposi„Šes sociais (habitus) com certos
mercados simbƒlicos e seus “sistemas de forma„…o de pre„os”. A fala tem um valor e
um poder diretamente relacionado a uma institui„…o e † dele que retira sua for„a
simbƒlica e as condi„Šes de sua eficˆcia.
As condi„Šes de sucesso (Austin) da comunica„…o dependem de uma rela„…o de
poder desigual, € qual o sociƒlogo dˆ o nome de poder simbólico, um tipo de poder
capaz de fazer coisas com palavras. A vantagem dessa mudan„a † enorme, pois chama
aten„…o para o fato de que na fala n…o encontramos apenas trocas de mensagens, mas
rela„Šes de autoridade, de atribui„…o de valor, de valoriza„…o ou desvaloriza„…o dos
diversos discursos que circulam nos mais diversos mercados/campos sociais. Essa
constata„…o revela que os agentes sociais desenvolvem um senso prˆtico (habitus
ling‰•stico) da aceitabilidade e oportunidade de seus discursos, antecipando de modo
prˆtico os lucros simbƒlicos de sua a„…o nas trocas simbƒlicas cotidianas.
Uma s†rie de acontecimentos ling‰•sticos n…o teriam sentido sem esse
referencial teƒrico. O senso de aceitabilidade produz um efeito de censura considerˆvel
nos agentes sociais, pois permite a antecipa„…o do que pode ou n…o pode ser dito em
determinadas situa„Šes (mercados). • por isso que, tendo a “compet‡ncia t†cnica” para
falar, os agentes sociais podem encontrar-se totalmente desprovidos da “compet‡ncia
social” que o mercado ling‰•stico no qual est…o inseridos exige. Assim, fica muito mais
fˆcil entender porque em determinados mercados, os agentes sejam capazes de dizer
com tremenda sinceridade que “n…o sabem falar”, isto †, “n…o sabem falar a partir dos
capitais reconhecidos pelo mercado simbƒlico no qual est…o colocados”. Um pequeno
trecho da obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos, dˆ o tom da rela„…o entre habitus e
mercado ling‰istico:
“Em horas de maluqueira Fabiano desejava imitˆ-lo: dizia palavras
dif•ceis, truncando tudo, e convencia-se de que melhorava. Tolice. Via-se
perfeitamente que um sujeito como ele n…o tinha nascido para falar certo.
Seu Tomˆs da bolandeira falava bem, estragava os olhos em cima de
jornais e livros, mas n…o sabia mandar: pedia. Esquisitice um homem
remediado ser cort‡s. At† o povo censurava aquelas maneiras. Mas todos
obedeciam a ele. An!Quem disse que n…o obedeciam?” (p. 23)
47
Da mesma forma, desde muito cedo, a crian„a desenvolve uma esp†cie de
kairós, um senso de oportunidade que antecipa o momento de interven„…o em uma fala.
Desde cedo, a crian„a desenvolve um senso prˆtico a respeito do tempo e da
oportunidade de suas interven„Šes e percebe que n…o pode falar sobre qualquer coisa,
com qualquer um, a qualquer momento. As antecipa„Šes que o senso de aceitabilidade e
o senso de oportunidade (conferidos pelo habitus ling‰•stico) confere aos agentes
sociais levam em considera„…o tamb†m a avalia„…o do mercado simbƒlico em que se
apresentam. • o que pode ser observado em outro trecho de Vidas Secas:
“Na palma da m…o as notas estavam ’midas de suor. Desejava saber o
tamanho da extors…o. (...) ouvira falar em juros e prazos. Isto lhe dera uma
impress…o bastante penosa: sempre que os homens sabidos diziam palavras
dif•ceis, ele sa•a logrado. Sobressaltava-se escutando-as. Evidentemente sƒ
serviam para encobrir ladroeiras. Mas eram bonitas. “s vezes decorava
algumas e empregava-as fora de propƒsito. Depois esquecia-as. Para que um
pobre da laia dele usar conversa de gente rica?” (p. 97-98)
4
Ver: Jo…o Guimar…es Rosa. “Famigerado” In: Primeiras Estórias. 15” ed. Rio de Janeiro, 2001 pp. 56-61
48
momento certo, de come„ar e terminar no tempo correto (nesses g‡neros, a
composi„…o † muito simples).” (Bakhtin, 2000 p. 303-304)
49
corre„Šes incessantes dos resultados obtidos, dialeticamente produzidas por
esses resultados." (Bourdieu, 1983a p. 65)
50
apropria„…o da fala e pelo dom•nio dos modos mais raros de express…o em uma
sociedade. • que observa Bakhtin, ao analisar a produ„…o do enunciado no interior de
g‡neros do discurso (ver cap•tulo 5) jˆ que † por meio do enunciado concreto que a
l•ngua † incorporada € vida e, a vida, incorporada € l•ngua:
“Aprender a falar † aprender a estruturar enunciados (porque falamos
por enunciados e n…o por ora„Šes isoladas e, menos ainda, † ƒbvio, por
palavras isoladas). Os g‡neros do discurso organizam nossa fala da mesma
maneira que a organizam as formas gramaticais (sintˆticas). Aprendemos a
moldar nossa fala €s formas do g‡nero e, ao ouvir a fala do outro, sabemos
de imediato, bem nas primeiras palavras, pressentir-lhe o g‡nero, adivinhar-
lhe o volume (a extens…o aproximada do todo discursivo), a dada estrutura
composicional, prever-lhe o fim, ou seja, desde o in•cio, somos sens•veis ao
todo discursivo que, em seguida, no processo de fala, evidenciarˆ suas
diferencia„Šes. Se n…o existissem os g‡neros do discurso e se n…o os
dominˆssemos, se tiv†ssemos de construir cada um de nossos enunciados, a
comunica„…o verbal seria quase imposs•vel.” (Bakhtin, 2000 p. 302)
51
O fato de Bourdieu trabalhar com o habitus, no entendimento da produ„…o social
de sentido no mundo, parece extremamente interessante, pois reintroduz a linguagem no
conjunto de uma teoria da a„…o, que envolve compet‡ncias ling‰•sticas, t†cnicas do
corpo (Mauss), perspectivas, memƒria, enfim, compet‡ncias sociais. Envolvido pelos
“jogos de linguagem”, assim redefinidos, o mundo ganha sentido prˆtico ou como
observa Marcondes: a for„a do sentido produzida por esses jogos tem um "carˆter
impl•cito, s…o internalizadas e n…o tematizadas" (Wittgenstein, 1989 p. 39)
Aprender uma l•ngua † adquirir uma compet‡ncia social, uma t†cnica que † no
fundo social. • certo que podemos falar e essa † uma compet‡ncia “t†cnica” produzida
coletivamente pelos seres humanos, mas o que † fascinante no entendimento da
linguagem † que n…o se fala de qualquer modo, com qualquer um, a qualquer momento,
sobre qualquer coisa. A fala † mais ou menos ritualizada em todas as sociedades
humanas como observa Levi-Strauss e Foucault. O senso prático da aceitabilidade de
um enunciado leva os agentes sociais a desenvolverem um senso prˆtico dos lucros
simbƒlicos que a fala † capaz de produzir em determinado mercado (honra, distin„…o,
reconhecimento, obedi‡ncia). Jˆ o senso de oportunidade (kairós), dˆ o ritmo das
interven„Šes e jogadas a serem produzidas pelos atos de fala nesse mercado.
A adequa„…o do senso prˆtico da aceitabilidade e da oportunidade ao mercado
ling‰•stico, no qual o discurso estˆ inserido, produz jogadas mais ou menos valorizadas,
mais ou menos carregadas de autoridade e legitimidade. Constata-se, ent…o, que os
discursos n…o s…o produzidos apenas para serem decifrados, compreendidos e
interpretados. Eles s…o constantemente avaliados na sua prƒpria forma ritualizada, pelo
dom•nio do g‡nero de discurso no qual os enunciados se inserem etc. Por isso, a eficˆcia
simbƒlica de um discurso pode ser produzida sem que se tenha qualquer tipo de
compreens…o “ling‰•stica” como fator principal. O ajuste mais ou menos intenso entre o
dom•nio prˆtico das estruturas da enuncia„…o e as disposi„Šes (habitus) adquiridas no
longo contato prˆtico com os g‡neros do discurso permite n…o sƒ a compreens…o do que
† dito, mas, tamb†m, de tudo aquilo que n…o † dito para que a enuncia„…o alcance a sua
eficˆcia (o senso de oportunidade, antecipa„…o das rea„Šes e avalia„Šes dos
interlocutores, do mercado/g‡nero identificado etc.) • o que pode ser observado nesta
experi‡ncia do menino mais velho em Vidas Secas, de Graciliano Ramos:
“Agora tinha a id†ia de aprender uma palavra, com certeza importante
porque figurava na conversa de sinha Terta. Ia decorˆ-la e transmiti-la ao
irm…o e € cachorra. Baleia permaneceria indiferente, mas o irm…o se
admiraria, invejoso.
52
- Inferno, inferno.
N…o acreditava que um nome t…o bonito servisse para designar coisa
ruim. E resolvera discutir com sinha Vitƒria. Se ela houvesse dito que tinha
ido ao inferno, bem. Sinha Vitƒria impunha-se, autoridade vis•vel e
poderosa. Se houvesse feito men„…o de qualquer autoridade invis•vel e mais
poderosa, muito bem. Mas tentar convenc‡-lo dando-lhe um cocorote, e isto
lhe parecia absurdo. Achava as pancadas naturais quando as pessoas grandes
se zangavam, pensava at† que a zanga delas era a causa ’nica dos cascudos e
puxavantes de orelhas. Esta condi„…o tornava-o desconfiado. Fazia-o
observar os pais antes de se dirigir a eles. Animara-se a interrogar sinha
Vitƒria por que ela estava bem-disposta” (Ramos, 2004 p. 59)
53
um n’mero de qualifica„Šes que essa pessoa deve ter (...) O carˆter
pragmˆtico do exerc•cio da voz (voicing) torna-se claro quando fazemos a
pergunta pragmˆtica apropriada: de quem s…o as vozes que ouvimos, ou,
ainda, de quem † a voz que pode ser ouvida? (...) A voz que está sendo
ouvida, contudo, n…o † a voz do indiv•duo membro da sociedade como tal,
mas do membro da sociedade informado por ela (no sentido acima referido)
e pertencendo a uma classe societal por ‘sobredetermina„…o’ (Mey, 2001 p.
79-81)
54
passam a ser avaliados e reconhecidos como leg•timos, a circular e a ter “efeitos”,
deixando de ser simplesmente “textos” para tornarem-se a„…o.
55
de valida„…o e de avalia„…o. Produz-se n…o apenas sentido, mas valor e poder no ato de
fala:
56
supõe, por parte daqueles que sofrem seu impacto, uma forma de
cumplicidade que não é submissão passiva a uma coerção externa nem livre
adesão a valores. (...) Através de um lento e prolongado processo de
aquisição, tal reconhecimento se inscreve em estado prático nas disposições
insensivelmente inculcadas pelas sanções do mercado lingüístico e que se
encontram, portanto, ajustadas, fora de qualquer cálculo cínico ou de
qualquer coerção conscientemente sentida, às possibilidades de lucro
comercial e simbólico que as leis de formação dos preços característicos de
um determinado mercado garantem objetivamente aos detentores de um
certo capital lingüístico. (Bourdieu, 1996a p.38)
57
Capítulo 5: Teorias da Enunciação
58
Essas formas expressivas s…o produzidas na intera„…o social por meio da qual
posso me definir com rela„…o ao outro, definindo-me como aquele que fala e aquele que
† capaz de se colocar no lugar de quem ouve. Nesse processo, os agentes sociais n…o
seguem regras mecanicamente, mas movimentam-se dentro de algumas fronteiras ou at†
mesmo ultrapassam-nas para alcan„ar algum efeito de poder ou originalidade, com seus
desvios e inova„Šes.
Com isso, os fundamentos sociolƒgicos do discurso come„am a se destacar, pois
o sentido sƒ pode ser produzido na rela„…o com o outro, na intera„…o. Sem as trocas
simbƒlicas presentes na intera„…o qualquer tipo de associa„…o humana seria imposs•vel.
Al†m disso, seria extremamente importante retomar duas observa„Šes feitas por
Bakhtin: a) qualquer enuncia„…o † uma "fra„…o de uma corrente de comunica„…o verbal
ininterrupta (concernente € vida cotidiana, € literatura, ao conhecimento, € pol•tica etc.”)
e b) “a comunica„…o verbal † sempre acompanhada por atos sociais de carˆter n…o-
verbal (gestos do trabalho, atos simbƒlicos de um ritual, cerim‘nica etc.) dos quais ela †
muitas vezes apenas o complemento, desempenhando um papel meramente auxiliar"
(Bakhtin, 1997 p. 12). Essa quest…o, retomada aqui, foi desenvolvida de algum modo,
no cap•tulo anterior, com a no„…o de habitus e héxis , mimese e senso prˆtico.
A enuncia„…o deve ser pensada ent…o como parte de uma rede de enuncia„Šes
anteriores com as quais estabelece um diˆlogo, contesta ou submete a reformula„…o. Da
mesma forma deve ser pensada sempre em rela„…o a uma situa„…o de enuncia„…o,
sempre diante da possibilidade de dirigir-se a um auditƒrio. O prƒprio livro, considerado
por Bakhtin como um “ato de fala impresso” † feito para ser apreendido de modo ativo,
estabelecendo seu complexo v•nculo com outros textos e outros autores que vieram
antes dele.
Quando Mey observa que as palavras dos falantes n…o s…o sempre suas, o que
estˆ sendo retomada † essa observa„…o muito destacada nos textos de Bakhtin: a
enuncia„…o † uma "fra„…o da corrente de comunica„…o verbal ininterrupta". Bakhtin
observa que a comunica„…o verbal encontra sua express…o exterior em situa„Šes
espec•ficas. A situa„…o e o p’blico a que se destina estabelecem o campo no qual as
estrat†gias enunciativas elaboram-se de modo a encontrar a sua express…o exterior
adequada. O discurso pressupŠe a presen„a do outro na situa„…o enunciativa. Certa
habilidade para decifrar o cƒdigo pode ser bastante ineficaz se n…o encontrar um
conjunto de refer‡ncias/saberes extra-ling‰•sticos com as quais dialoga.
59
Bakhtin constata que o enunciado n…o depende apenas do locutor (uma cr•tica ao
modelo linear de transmiss…o da informa„…o jˆ vista acima) para dar in•cio a uma
esp†cie de processo de comunica„…o. Todo enunciado postula um ouvinte jˆ que “n…o
existe palavra que n…o seja de algu†m” ou dirigida a algu†m. O locutor como o primeiro
elemento do enunciado, com seus “direitos imprescrit•veis sobre a palavra”, encontra
um interlocutor com seus direitos sobre a mesma. Esse interlocutor (o segundo
elemento) pode ser visto como mais ou menos prƒximo, concreto ou imaginˆrio, por
meio do qual o locutor espera por uma atitude responsiva ativa. O que † bastante
instigante no pensamento de Bakhtin † a presen„a de um terceiro elemento:
“ A palavra † um drama com tr‡s personagens (n…o † um dueto, mas
um trio). (...)o autor do enunciado, de modo mais ou menos consciente,
pressupŠe um superdestinatário superior (o terceiro), cuja compreens…o
responsiva absolutamente exata † pressuposta seja num espa„o metaf•sico,
seja num tempo histƒrico afastado. (...) Em diferente †pocas, gra„as a uma
percep„…o variada do mundo, este superdestinatˆrio, com sua compreens…o
responsiva, idealmente correta, adquire uma identidade concreta variˆvel
(Deus, a verdade absoluta, o julgamento da histƒria, a ci‡ncia etc.) (...) Todo
diˆlogo se desenrola como se fosse presenciado por um terceiro, invis•vel,
dotado de uma compreens…o responsiva, e que se situa acima de todos os
participantes do diˆlogo (os parceiros)” (Bakhtin, 2000 p. 350 e 356)
Nessa mesma dire„…o Foucault trabalha com uma teoria da enunciação, por
meio da sua no„…o de formações discursivas, que remete a um poss•vel ponto de
converg‡ncia com o superdestinatário, o terceiro elemento no drama da enuncia„…o,
destacado por Bakhtin. Da mesma forma, Foucault observa que um livro, p. e.x, †
tamb†m um sistema de remissŠes, um nƒ em uma rede. Em sua pesquisa arqueolƒgica e
genealƒgica, o filƒsofo franc‡s procura entender como aparecem os sistemas de
dispers…o por meio dos quais os discursos encontram seu modo de exist‡ncia e sua
materialidade, como s…o capazes de estabelecer os nƒs de uma rede discursiva.
Esse empreendimento nos leva € tentativa de aproxima„…o entre a teoria da
enuncia„…o de Bakhtin, e a da arqueologia do saber e a genealogia do poder em
Foucault. Todos, sustentam, de alguma forma um concep„…o pragmˆtica das trocas
simbƒlicas e por meio dessa discuss…o, torna-se bastante produtivo o entendimento do
processo de produ„…o de sentido pelos jogos de linguagem socialmente institu•dos.
A arqueologia do saber e a genealogia do poder fazem parte de um mesmo
projeto que lentamente vai se definindo para Foucault, pois se o primeiro procedimento
busca entender o processo de forma„…o social e histƒrica dos discursos, o segundo
60
procura entender como esses discursos apresentam-se como rela„Šes de poder, baseados
em regimes de instaura„…o da verdade e do saber.
“A tarefa do analista do discurso † dupla: o arqueƒlogo do saber
localiza e descreve os discursos como prˆticas que dispŠem as coisas para o
saber (...) e o genealogista do poder mostra a proveni‡ncia, a forma„…o da
vontade de verdade que tem produzido discursos. (...) Os discursos n…o
possuem •mago, n…o s…o um conjunto de significa„Šes. S…o s†ries de
acontecimentos que a ordem do saber produz e controla. (...) Da• as
perguntas sobre como o discurso funciona, quem o det†m, de que lugar se
fala, como seus efeitos s…o produzidos e regulados, serem as armas cr•ticas
mais eficientes para reconhecer o tipo de saber/poder que tem por alvo e
produto o indiv•duo moderno.” (Ara’jo, 2004 p. 236-237)
61
exterioridade, limites aos objetos sobre os quais se pode falar, oferecendo regimes de
nomea„…o, classifica„…o, explicita„…o, transformando o discurso em uma prˆtica social
objetivada, em um campo de possibilidades e de regras. Assim:
"Essas regras definem n…o a exist‡ncia muda de uma realidade, n…o o
uso can‘nico de um vocabulˆrio, mas o regime de objetos (...) consiste em
n…o mais tratar os discursos como conjunto de signos (elementos
significantes que se remetem a conte’dos ou representa„Šes), mas como
prˆticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente
os discursos s…o feitos de signos; mas o que fazem † mais que utilizar esses
signos para designar coisas. • esse 'mais' que † preciso fazer aparecer e que †
preciso descrever." (Foucault, 1986 p. 56)
• preciso resgatar novamente Wittgenstein para lembrar que a palavra n…o † uma
esp†cie de “batismo” do objeto e que n…o hˆ qualquer rela„…o direta entre o signo e o
objeto. O discurso encontra seu sentido no jogo de linguagem em que estˆ situado e †
nele e por meio dele que produz certos efeitos: “Como o prƒprio Einstein reconheceu, †
a linguagem que usamos – os conceitos que articulamos e portanto as perguntas que
formulamos – que determina o tipo de espa„o que somos capazes de ver.” (Wertheim,
2001 p. 223 )
O espa„o relativ•stico dependeu de Einstein e da comunidade de f•sicos da
relatividade, da mesma forma que “o espa„o da alma medieval desapareceu com o
falecimento da comunidade que suportava esse conceito” (Wertheim, 2001 p. 224).
Em Arqueologia do Saber, Foucault substitui a no„…o de episteme pela no„…o de
forma„Šes discursivas, reintroduzindo a histƒria na configura„…o do discurso e das
condi„Šes de sua exist‡ncia. Marca-se, assim, um primeiro deslocamento em seu
pensamento, que se realinharˆ, posteriormente, com a sua no„…o de dispositivos sociais,
capazes de articular forma„Šes discursivas e n…o-discursivas em um trabalho de
genealogia do poder que envolve os saberes. No fundo, a quest…o que permanece
constante em meio ao movimento teƒrico do filƒsofo † a das condi„Šes de possibilidade
de aparecimento de um enunciado em uma ordem do saber. Como o enunciado, em
meio a tantos outros poss•veis, aparece em uma forma„…o discursiva como um
acontecimento. Assim:
“... um enunciado † sempre um acontecimento que nem a l•ngua nem o
sentido podem esgotar inteiramente. Trata-se de um acontecimento estranho,
por certo: inicialmente porque estˆ ligado, de um lado, a um gesto de escrita
ou € articula„…o de uma palavra, mas, por outro lado, abre para si mesmo
uma exist‡ncia remanescente no campo da memƒria, ou na materialidade dos
manuscritos, dos livros e de qualquer forma de registro; em seguida, porque
62
† ’nico como todo acontecimento, mas estˆ aberto € repeti„…o, €
transforma„…o, € reativa„…o; finalmente, porque estˆ ligado n…o apenas a
situa„Šes que o provocam, e a conseq‰‡ncias por ele ocasionadas, mas, ao
mesmo tempo, e segundo uma modalidade inteiramente diferente, a
enunciados que o precedem e o seguem.” (Foucault, 1986 p. 32)
63
delimita„…o do discurso relacionam-se com os modos de interdi„…o e institui„…o
constru•dos historicamente, capazes de produ„…o do reconhecimento da “palavra
proibida” e da “palavra leg•tima”. Trata-se de uma interdi„…o e um investimento que
estˆ relacionado € rela„…o entre o desejo e o poder (sempre presente no discurso) a partir
da produ„…o de um ritual da palavra, de um ritual de enuncia„…o:
“Sabe-se que n…o se tem o direito de dizer tudo, que n…o se pode falar
de tudo em qualquer circunst•ncia, que qualquer um, enfim, n…o pode falar
de qualquer coisa. Tabu do objeto, ritual da circunst•ncia, direito
privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala: temos a• o jogo de tr‡s tipos de
interdi„Šes que se cruzam, se refor„am ou se compensam, formando uma
grade complexa que n…o cessa de se modificar (...) o discurso n…o †
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de domina„…o, mas
aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.”
(Foucault, 2006 p. 9-10)
Foucault destaca a fala do “louco” e a sua ambig‰idade ao ser tratada ora como
motivo de desprezo e riso, ora como reveladora de segredos e verdades ocultas.
Lentamente e de modo descont•nuo, os discursos sobre a loucura passam a ser
produzidos, deslocados, envolvidos em uma rede de institui„Šes e prˆticas que conferem
a seus agentes, seus portadores e representantes leg•timos, poderes mˆgicos: a produ„…o
de um lugar no qual se reconhece a produ„…o de discursos leg•timos sobre a loucura (a
psiquiatria).
A configura„…o dos dispositivos discursivos e seus “terr•veis poderes” pode ser
observada por uma s†rie de estrat†gias historicamente configuradas em um sistema de
dispers…o dos enunciados sobre os poderes do discurso. No s†culo VI, p.ex., o discurso
verdadeiro “era o discurso que, profetizando o futuro, n…o somente anunciava o que ia
se passar, mas contribu•a para a sua realiza„…o, suscitava a ades…o dos homens e se
tramava assim o destino”. No s†culo XVI, “a verdade a mais elevada jˆ n…o residia mais
no que era o discurso, ou no que ele fazia, mas residia no que ele dizia: chegou um dia
em que a verdade se deslocou do ato ritualizado, eficaz e justo, de enuncia„…o, para o
prƒprio enunciado” (Foucault, 2006 p. 15). No s†culo XIX, o discurso † diferente nas
formas, nos dom•nios e nas t†cnicas em que se apƒia, distanciando-se de toda a cultura
clˆssica:
“Ora, essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclus…o,
apƒia-se sobre um suporte institucional: † ao mesmo tempo refor„ada e
reconduzida por todo um compacto conjunto de prˆticas como a pedagogia,
† claro, como o sistema dos livros, da edi„…o, das bibliotecas, como as
sociedades dos sˆbios outros, os laboratƒrios hoje. [Trata-se do] ... modo
64
como o saber † aplicado em uma sociedade, como † valorizado, distribu•do,
repartido e de certo modo atribu•do.” (Foucault, 2006 p. 17)
Mas, o que estˆ em jogo nessa “vontade de dizer esse discurso verdadeiro”,
t•pica do mundo moderno? Um processo de “viol‡ncia simbƒlica” (Bourdieu), uma
“prodigiosa maquinaria de exclus…o” de todos os que historicamente a denunciam. Uma
poderosa illusio (Bourdieu) na qual se organiza o dispositivo discursivo e o transforma
em uma for„a que se “faz ouvida” em todos os sentidos, um discurso pelo qual todos
devem passar, se quiserem falar (com o m•nimo de legitimidade) de seus “objetos”
(Foucault, 2006 p. 20).
Destaca-se, ent…o, import•ncia dos rituais que marcam a exist‡ncia de um
enunciado e de um g‡nero do discurso. Por meio deles, torna-se poss•vel dar um lugar,
qualificar, dar forma p’blica e socialmente aceita ao sujeito do discurso, atribuindo-lhe
o lugar e as qualidades necessˆrias para cumprir com a fun„…o de autor que o enunciado
exige. Os novos dispositivos sociais de conhecimento e controle substituem as antigas
formas de sociedade de discurso, orientando novas formas de apropria„…o dos saberes e
exerc•cio dos poderes que articulam. Por meio deles, impŠe-se a ordem do discurso. A
doutrina tem o sinal de uma pertença prévia, pois † responsˆvel pela liga„…o ritualizada
de um conjunto de indiv•duos a certos tipos de enuncia„…o (o que implica a exclus…o de
todos os outros tipos). Mas, justamente, por ligˆ-los a esses tipos de enuncia„…o,
contribuem para diferenciˆ-los de outros indiv•duos e a gerar um processo de identidade
entre eles (Foucault, 2006 p.43).
Essas observa„Šes levam a uma reflex…o do filƒsofo sobre a produ„…o de um
“desnivelamento” entre as modalidades de discursos nas sociedades:
“...os discursos que ‘se dizem’ no correr dos dias e das trocas, e que
passam com o ato mesmo que os pronunciou; e os discursos que est…o na
origem de certo n’mero de atos novos de fala que os retomam, os
transformam ou falam deles, ou seja, os discursos que, indefinidamente, para
al†m de sua formula„…o, são ditos, permanecem ditos e est…o ainda por
dizer.” (Foucault, 2006 P. 22)
65
Cada esfera de atividade (que † em si comunicativa) articula um repertƒrio de g‡neros.
Para identificˆ-los, † necessˆrio levar em considera„…o o sistema de dispers…o que
organiza seu conte’do temˆtico, seu estilo verbal e a sua constru„…o composicional. Se
o enunciado † ’nico e aparece como acontecimento em meio €s forma„Šes discursivas,
ele † ao mesmo tempo ligado a uma rede dialƒgica.
Para Bakhtin, o enunciado encontra-se no “cruzamento excepcionalmente
importante de uma problemˆtica” que n…o pode ser reduzida € anˆlise ling‰•stica. Os
g‡neros do discurso do qual o enunciado † portador serve de “correia de transmiss…o”
que permite estabelecer homologias entre a histƒria da sociedade e a histƒria da l•ngua,
jˆ que nenhum acontecimento discursivo “pode entrar no sistema da l•ngua sem ter sido
longamente testado e ter passado pelo acabamento do estilo-g‡nero” (Bakhtin, 200 p.
285). Por isso, Foucault pode destacar, em Microfísica do poder, que ao falar de uma
teoria da enuncia„…o seu problema n…o † necessariamente ling‰•stico. • por meio dos
enunciados concretos que a l•ngua passa a fazer parte do mundo social, da vida dos
agentes sociais, e, ao mesmo tempo, † o meio pelo qual a vida passa a fazer parte da
l•ngua. Assim:
“Quando escolhemos um determinado tipo de ora„…o, n…o escolhemos
somente uma determinada ora„…o em fun„…o do que queremos expressar com
a ajuda dessa ora„…o, selecionamos um tipo de ora„…o em fun„…o do todo do
enunciado completo que se apresente € nossa imagina„…o verbal e determina
nossa op„…o. A id†ia que temos da forma do nosso enunciado, isto †, de um
g‡nero preciso do discurso, dirige-nos em nosso processo discursivo”
(Bakhtin, 2000 p. 305)
5
Para Bakhtin, hˆ uma possibilidade de integra„…o de enunciados de um g‡nero em outro. Entretanto,
esse deslocamento muda a condi„…o do enunciado. Em todo caso: “A †poca, o meio social, o micromundo
– o da fam•lia, dos amigos e conhecidos, dos colegas – que v‡ o homem crescer e viver, sempre possui
seus enunciados que servem de norma, d…o o tom; s…o obras cient•ficas, literˆrias, ideolƒgicas, nas quais
66
oferecer um grau de “oficialidade” em sua entona„…o expressiva, assumindo um carˆter
normalmente prescritivo e, de certo modo, bastante complexo. Eles exigem uma esfera
de comunica„…o relativamente aut‘noma, tendem a reduzir as manifesta„Šes da
individualidade (com exce„…o dos g‡neros art•sticos-literˆrios), adquirindo uma forma
padronizada de express…o (a nota oficial, o ordem, o diagnƒstico etc.) e uma
materialidade prƒpria. Foucault aproxima-se enormemente de Bakhtin aqui:
“O enunciado depende da superf•cie de emerg‡ncia na qual possa se
fixar, uma superf•cie de emerg‡ncia, uma materialidade em que possa tomar
corpo, deixar sua marca no tempo (n…o como acontecimento fortuito e sem
sentido), gravando-se como memƒria. O enunciado “precisa ter uma
subst•ncia, um suporte, um lugar, uma data. Quando esses requisitos se
modificam, ele prƒprio muda de identidade. (...) Composta das mesmas
palavras, carregado exatamente do mesmo sentido, mantido em sua
identidade sintˆtica e sem•ntica, uma frase n…o constitui o mesmo enunciado
se for articulada por algu†m durante uma conversa, ou impressa em um
romance; se for escrita um dia, hˆ s†culos, e se reaparece agora em uma
formula„…o oral. As coordenadas e o status do material do enunciado fazem
parte de seus caracteres intr•nsecos." (Foucault, 1986 p. 115)
as pessoas se apƒiam e €s quais se referem, que s…o citadas, imitadas, servem de inspira„…o” (Baktin,
2000 p. 313)
67
n…o † aquele que pronunciou ou escreveu um texto, mas aquele que funciona como
“princ•pio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significa„Šes,
como foco de sua coer‡ncia”, pois:
“ (...) existem, ao nosso redor, muitos discursos que circulam, sem
receber seu sentido ou eficˆcia de um autor ao qual seriam atribu•dos:
conversas cotidianas, logo apagadas; decretos ou contratos que precisam de
signatˆrios mas n…o de um autor, receitas t†cnicas transmitidas no
anonimato. Mas nos dom•nios em que a atribui„…o a um autor † regra –
literatura, filosofia, ci‡ncia – v‡-se bem que ela n…o desempenha sempre o
mesmo papel; na ordem do discurso cient•fico, a atribui„…o a um autor era,
na Idade M†dia, indispensˆvel, pois era um indicador de verdade” (Foucault
p. 27)
Se no discurso cient•fico n…o hˆ mais a id†ia de “um autor” ’nico, por meio do
qual o texto ou a fala tiram sua credibilidade, como na Idade M†dia (depende-se, hoje,
da comunidade cient•fica); na literatura, a no„…o de autor passou a ser essencial
(quando, na Idade M†dia, circulava mais ou menos no anonimato). Na busca do autor,
torna-se muitas vezes, necessˆrio buscar uma ordem, uma coer‡ncia, uma temˆtica
dif•cil de se estabelecer com clareza.
N…o † € toa que Bourdieu desconfia daquilo que chamou de “ilus…o biogrˆfica”.
Para Foucault, ocorre o mesmo. Com certeza, hˆ um indiv•duo que escreve e inventa.
Entretanto, sua cria„…o irrompe como acontecimento em uma rede mais ou menos
organizada na qual cumpre a “fun„…o do autor”. Por meio dela, o valor do autor se
instaura, seu capital simbƒlico constitui-se, sua autoridade † reconhecida de modo que
possa (a exemplo da figura do porta-voz discutida acima) falar em nome da prƒpria rede
discursiva que representa e contribui para atualizar, modificar ou, em alguns casos
extremos, destruir.
O enunciado “† prescrito pela função do autor, tal como a recebe de sua †poca
ou tal como ele, por sua vez, a modifica. (...)”. O que estˆ em jogo † sempre a “posi„…o
de autor” (nova ou deslocada) em um campo de lutas estrat†gicas de representa„…o.
(Foucault, 2006 p. 29). A posi„…o-fun„…o de autor sofre a varia„…o no interior dos
g‡neros de discurso produzidos nos mais diversos campos sociais (literˆrio, cient•fico,
religioso etc.), podendo assumir um estatuto jur•dico e institucional, deslocar-se (como
o que ocorreu com a fun„…o de autor na literatura), indicar posi„Šes, que podem ser
assumidas por diversos autores reais. Por meio dessa atribui„…o † que o discurso ganha
exist‡ncia, materialidade e circula no interior do campo.
68
O ’ltimo procedimento interno de controle, de rarefa„…o do discurso, encontra-
se na forma„…o da disciplina. As disciplinas interpŠem-se e opŠem-se ao princ•pio do
comentˆrio e do autor por apresentarem-se explicitamente como um sistema an‘nimo:
“Ao do autor, visto que uma disciplina se define por um dom•nio de
objetos, um conjunto de m†todos, um corpus de proposi„Šes consideradas
verdadeiras, um jogo de regras e de defini„Šes, de t†cnicas e de
instrumentos: tudo isto constitui uma esp†cie de sistema an‘nimo €
disposi„…o de quem quer ou pode servir-se dele, sem que seu sentido ou sua
validade estejam ligados a quem sucedeu ser seu inventor.
Mas o princ•pio da disciplina se opŠe tamb†m ao do comentˆrio, o que †
suposto no ponto de partida, n…o † um sentido que precisa ser redescoberto,
nem uma identidade que deve ser repetida; † aquilo que † requerido para a
constru„…o de novos enunciados. Para que haja disciplina † preciso, pois,
que haja possibilidade de formular, e de formular indefinidamente,
proposi„Šes novas. (...) uma disciplina n…o † a soma de tudo o que pode ser
dito de verdadeiro sobre alguma coisa; n…o † nem mesmo o conjunto de tudo
o que pode ser aceito, a propƒsito de um mesmo dado, em virtude de um
princ•pio de coer‡ncia ou de sistematicidade.” (Foucault, 2006 p. 30-31)
69
princípio de descontinuidade: n…o se estˆ € procura de um “discurso ilimitado, cont•nuo
e silencioso”, c) o princípio de especificidade: o mundo n…o tem uma face leg•vel que
dever•amos decifrar, jˆ que o discurso n…o deixa de ser “uma viol‡ncia que fazemos €s
coisas” e d) o princípio da exterioridade: o discurso deve ser avaliado nas suas
condições externas de possibilidade.
A observa„…o desses princ•pios leva Foucault a substituir a no„…o de cria„…o pela
de acontecimento, a de unidade (representada pela obra, †poca, tema) pela de série, a de
originalidade (individual) pela de regularidade e a de significa„…o (possivelmente
oculta nas obras) pela de condições de possibilidade.
.
70
Capítulo 6: Dos dispositivos e das disposições
71
Assim, um acontecimento discursivo sƒ ocorre como enunciado se estiver
imerso em um campo discursivo no qual circula uma complexa rede de jogos e
estrat†gias enunciativas. Por isso:
“O enunciado n…o † a proje„…o direta, sobre o plano da linguagem, de
uma situa„…o determinada ou de um conjunto de representa„Šes. (...) N…o hˆ
enunciado que n…o suponha outros; n…o hˆ nenhum que n…o tenha, em torno
de si, um campo de coexist‡ncias, efeitos de s†rie e de sucess…o, uma
distribui„…o de fun„Šes e de pap†is. Se se pode falar de um enunciado, † na
medida em que uma frase (uma proposi„…o) figura em um ponto definido,
com uma posi„…o determinada, em um jogo enunciativo que a extrapola.”
(Foucault, 1986 p. 114-115)
72
Forma„Šes discursivas n…o s…o coisas (palavras ou objetos) que se agrupam, mas
esquemas, regras de organiza„…o e dispers…o, "maneiras reguladas (e descrit•veis como
tais) de utilizar as possibilidades dos discursos" (Foucault, 1986 p. 77). Devido €s suas
regras de dispers…o, nem todos os jogos discursivos podem ser realizados, pois segundo
Foucault tudo depende da economia da constelação discursiva, um sistema de desvios e
escolhas estrat†gicas em meio €s quais se travam lutas simbƒlicas.
Se em uma forma„…o discursiva produz-se uma nova constela„…o, isso significa
que o que estˆ em jogo s…o novas modalidades de exclus…o, novas possibilidades de
escolhas, novas associa„Šes, aproxima„Šes e abandonos que ela permite na delimita„…o
de sua forma e sua materialidade. No entanto, † preciso lembrar que se a forma„…o
discursiva † um campo de dispers…o, lacunar, ele † tamb†m um campo de lutas. O
campo enunciativo † caracterizado como um campo de presen„a (nƒ em uma rede de
conhecimentos anteriores), um campo de concomit•ncia (pode ocorrer uma homologia
na estrutura de vˆrios campos - filosƒfico, teolƒgico e matemˆtico) e um campo de
memƒria. Bakhtin destaca esse carˆter dialƒgico do enunciado:
“O enunciado sempre cria algo que, antes dele, nunca existira, algo
novo e irreproduz•vel, algo que estˆ sempre relacionado com um valor (a
verdade, o bem, a beleza etc.). Entretanto, qualquer coisa criada se cria
sempre a partir de uma coisa que † dada (a l•ngua, o fen‘meno observado na
realidade, o sentimento vivido, o prƒprio sujeito falante, o que † jˆ conclu•do
em sua vis…o de mundo etc.) o dado se transfigura no criado . (...) No exame
de seu histƒrico, qualquer problema cient•fico (quer seja tratado de modo
aut‘nomo, quer fa„a parte de um conjunto de pesquisas sobre o problema em
quest…o) enseja uma confronta„…o dialƒgica (de enunciados, de opiniŠes, de
pontos de vista) entre os enunciados de cientistas que podem nada saber uns
dos outros, e nada podiam saber uns dos outros. O problema comum
provocou uma rela„…o dialƒgica” (Bakhtin, 2000 p. 349e 354)
73
arqueolƒgicos do trabalho do cientista social consiste em identificar o campo de for„as,
o regime de dispers…o, que estˆ presente na g‡nese do campo, identificar como se
produziu em seu interior um processo de depura„…o capaz de transformˆ-lo em uma
rede de enunciados, g‡neros de discurso, posi„Šes, disposi„Šes e rituais delimitadores
de fronteiras discursivas e n…o-discursivas. Assim:
“Compreender a g‡nese social de um campo, e apreender aquilo que
faz a necessidade espec•fica da cren„a que o sustenta, do jogo de linguagem
que nele se joga, das coisas materiais e simbƒlicas em jogo que nele se
geram, † explicar, tornar necessário, subtrair ao absurdo do arbitrˆrio e do
n…o-motivado, os atos dos produtores e as obras por eles produzidas (...)
(Bourdieu, 1989 p. 69)
74
cultural necessˆrio para dominar a l•ngua para ser capaz de circular pelos campos
sociais e seus respectivos mercados simbƒlicos. • preciso ter o dom•nio, saber
reconhecer e jogar com temˆticas, estilos e estruturas composicionais prƒprias desses
campos e mercados. • preciso desenvolver o senso prˆtico do uso dos g‡neros.
• por isso que as escolhas profissionais, p.ex., exigem toda uma reconvers…o de
capitais e habitus familiares aos tipos de capitais e habitus (discursivos) valorizados
pelo jogo neles produzidos. Para Bourdieu, o senso prˆtico de percep„…o e aprecia„…o
do mundo gerado pelo habitus, marca um estilo de vida no qual estˆ inclu•da uma s†rie
de expectativas de circula„…o por certos campos sociais. A naturalidade com que os
agentes sociais muitas vezes encontram seus lugares nesses campos mostra que o ajuste
estˆ longe de ser arbitrˆrio. Isso pode ser notado nos processos de escolha dos cursos a
frequentar (se houver realmente escolha), das profissŠes a seguir etc.
Por isso, desenvolver uma illusio por um campo, significa ser capaz de produzir
em si mesmo um interesse muito particular pelo jogo social que esse campo produz,
achar que o jogo vale a pena, sentir-se dentro do jogo, saber avaliar o que estˆ em jogo
ali, reconhecer as jogadas mais ou menos valorizadas, estabelecer uma rela„…o
encantada com o jogo. Deste modo:
“A illusio † estar preso ao jogo, preso pelo jogo, acreditar que o jogo
vale a pena ou, para diz‡-lo de maneira mais simples, que vale a pena jogar.
(...) Dito de outro modo, os jogos sociais s…o jogos que se fazem esquecer
como jogos e a illusio † essa rela„…o encantada com um jogo que † produto
de uma rela„…o de cumplicidade ontolƒgica entre as estruturas mentais e as
estruturas objetivas do espa„o social. (...) todo campo social, seja o campo
cient•fico, seja o campo art•stico, o campo burocrˆtico ou o campo pol•tico,
tende a obter daqueles que nele entram essa rela„…o com o campo que chamo
de illusio.” (Bourdieu, 1996 p. 139)
75
característica das sociedades humanas, uma violência que cria as condições para o
reconhecimento dos enunciados. A presença das estruturas sociais e dos discursos
objetivados nos agentes sociais só pode ser realizada não por uma simples imposição ou
interiorização dessas estruturas, mas pela produção de esquemas de ação, de
pensamento, classificação e fala que se construíram lentamente nas experiências dos
agentes sociais.
O que se produz na experiência desses agentes, desde a infância, são esquemas
de percepção e apreciação, que produz um mundo que se auto-evidencia em
repreensões, anseios, desejos, promessas de futuro, recompensas, gestos, posturas. A
produção desses esquemas no processo de socialização nunca é "garantido" de antemão.
Bourdieu chama atenção para fato que a percepção desses esquemas começa
muito antes da verbalização e que a evidência do mundo pode se constituir de sentido
mesmo que não haja palavras para denominá-la. Não se trata de uma articulação com a
noção de capilaridade do poder à qual se refere Foucault?
Essas disposições produzem um ajuste entre as esquemas cognitivos (a
percepção do mundo e do lugar dos agentes sociais no mundo) e as estruturas objetivas
(que levam à antecipação de suas chances no deslocamento pelo espaço social e pelos
campos sociais). As disposições são as condições para os exercícios dos jogos sociais.
Por isso, fazer parte de um campo é incorporar (literalmente) o jogo, isto é,
adquirir as disposições necessárias para que o jogo pareça natural àquele que o realiza,
naturalidade distintiva que marca o estilo dos bons jogadores. Bons jogadores que,
sabendo o lugar no qual a bola vai cair, são capazes de antecipar as jogadas, chegar
antes, uma vez que estão familiarizados com o jogo.
Logo, o campo produz um espaço social, hierarquicamente estruturado, sobre o
qual se dispersam posições em dominantes e dominadas, que se formaram
historicamente com o próprio campo. O tempo é um fator importante, pois através das
lutas simbólicas e pelos e rituais de consagração que produz é possível identificar e
distribuir nesse espaço os pioneiros, os pais fundadores do campo, as novas gerações, o
deslocamento e perda de autonomia do campo, estratégias e alianças, lutas pela
conquista da hegemonia, efeitos de envelhecimento no campo etc. Um espaço de
posições mais ou menos dinâmico desloca as posições de seus jogadores, ao mudar os
tipos de capitais exigidos na sua configuração. A formação de um campo enunciativo é
marcada por descontinuidades (lutas simbólicas) e pela construção de positividades
provisórias.
76
Ao se falar de estrat†gias produzidas pelos jogadores de um campo † preciso
lembrar que n…o se trata de um cˆlculo racional a n…o ser em casos muito espec•ficos, e
† justamente esse ocultamento do interesse pela estrat†gia que gera uma economia de
cinismo entre os agentes sociais. • preciso acreditar e investir no jogo para que ele
exista, mas trata-se de um interesse “desinteressado”, que deve ser dissimulado, n…o
porque † objeto de um cˆlculo que n…o pretende ser revelado, mas por se ajustar €s
disposi„Šes dos agentes trazidos para o campo. (Bourdieu, 2001 p. 174)
Mediante esse interesse dissimulado, a conquista de posi„Šes dominantes no
campo relaciona-se com estrat†gias, alian„as e o ac’mulo de capital simbƒlico por parte
dos agentes que as ocupam, provisoriamente, estabelecendo com elas uma rede de
saberes e poderes. Todo campo produz uma distribui„…o de capital e lucro simbƒlico aos
agentes dispostos e com as disposi„Šes adequadas para fazer parte dele:
“Chamo de capital simbƒlico qualquer tipo de capital (econ‘mico,
cultural, escolar ou social) percebido de acordo com as categorias de
percep„…o, os princ•pios de vis…o e divis…o, os sistemas de classifica„…o, os
esquemas classificatƒrios, os esquemas cognitivos, que s…o em parte,
produto da incorpora„…o das estruturas objetivas do campo considerado, isto
†, da estrutura de distribui„…o do capital no campo considerado.” (Bourdieu,
1997 p. 149)
77
produ„…o do valor da obra ou, o que dˆ no mesmo, da cren„a no valor da
obra.”(Bourdieu, 1996b p. 259)
78
O prƒprio Bourdieu parece reconhecer um poss•vel ponto de aproxima„…o entre
o espaço dos possíveis sentidos de uma obra que a teoria dos campos oferece e o campo
de possibilidades estratégicas que a teoria da enuncia„…o encontra nas forma„Šes
discursivas. Assim:
"De fato, † sem d’vida em Michel Foucault que se encontra a
formula„…o mais rigorosa dos fundamentos da anˆlise estrutural das obras
culturais. Consciente de que nenhuma obra cultural existe por si mesma, isto
†, fora das rela„Šes de interdepend‡ncia que a unem a outras obras, ele
propŠe chamar ‘campo de possibilidades estrat†gicas’ o ‘sistema regrado de
diferen„as e de dispersŠes’ no interior do qual cada obra singular se define.
[Entretanto] (...) não é possível, como no caso do campo científico, tratar a
ordem cultural (a epist†me) como totalmente independente dos agentes e
das instituições que a atualizam e levam à existência, e ignorar as conexões
sócio-lógicas que acompanham ou sustentam as consecuções lógicas. (...)A
eficácia dos fatores externos, crises econômicas, transformações técnicas,
revoluções políticas ou, muito simplesmente, demanda social de uma
categoria particular de comanditários, de que a história social tradicional
busca a manifestação direta nas obras, não pode exercer-se senão por
intermédio das transformações da estrutura do campo que esses fatores
podem determinar. (Bourdieu, 1996b p.225-232)
79
realidade, uma instituição que, enquanto tal, existe de alguma maneira duas
vezes, nas coisas e nos c†rebros. Nas coisas, sob a forma de um campo
art•stico, universo social relativamente aut‘nomo que † o produto de um
lento processo de emerg‡ncia; nos c†rebros, sob a forma de disposi„Šes que
se inventaram no prƒprio movimento pela qual se inventava o campo a que
est…o ajustadas. (...) Essa rela„…o de causalidade circular, a da cren„a e do
sagrado, caracteriza toda institui„…o que pode funcionar apenas se †
institu•da a um sƒ tempo na objetividade de um jogo social e em disposi„Šes
que predisponham a entrar no jogo, a interessar-se por ele. (Bourdieu, 1996b
p.322-324)"
• imposs•vel avaliar uma obra sem avaliar o campo no qual o valor e a cren„a na
obra e no seu autor s…o produzidos. Essa realiza„…o dial†tica entre a objetividade e a
forma„…o da subjetividade em um campo faz com que esses jogos sociais objetivem-se
como experi‡ncia e produzam lentamente as disposi„Šes, o conhecimento e o
reconhecimento necessˆrio para que a cren„a e o interesse no jogo se mantenha. Em
Esboço de uma teoria da prática, Bourdieu chama isso de a "dial†tica de interioriza„…o
da exterioridade e exterioriza„…o da interioridade", produto e condi„…o do processo de
intera„…o e produ„…o de sentido do mundo.
Diante disso, n…o se pode dizer, ent…o, que estamos diante de verdadeiros
dispositivos sociais? Al†m disso, esses dispositivos n…o estariam diretamente ligados a
certas disposi„Šes necessˆrias para que produzam a eficˆcia simbƒlica necessˆria para
sua exist‡ncia? Seria poss•vel aproximar Bourdieu e Foucault e integrar uma teoria dos
dispositivos e das disciplinas a uma teoria geral (uma economia) dos campos ou vice-
versa? A prƒpria no„…o de dispositivo (€ qual o filƒsofo chega depois de passar pela
anˆlise da episteme e de propor uma arqueologia do saber e uma genealogia do poder)
exige uma s†rie de “estrat†gias enunciativas” de sua parte. Isso pode ser observado em
Microfísica do Poder:
“Atrav†s deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto
decididamente heterog‡neo que engloba discursos, institui„Šes, organiza„Šes
arquitet‘nicas, decisŠes regulamentares, leis, medidas administrativas,
enunciados cient•ficos, proposi„Šes filosƒficas, morais, filantrƒpicas. Em
suma, o dito e o n…o dito s…o os elementos do dispositivo. O dispositivo † a
rede que se pode estabelecer entre estes elementos. (...)[• preciso observar,
ainda, que] entre estes elementos, discursivos ou n…o, existe um tipo de jogo,
ou seja, mudan„as de posi„…o, modifica„Šes de fun„Šes, que tamb†m podem
ser muito diferentes.
Em terceiro lugar, entendo dispositivo como um tipo de forma„…o que,
em determinado momento histƒrico, teve como fun„…o principal responder a
uma urg‡ncia. O dispositivo tem, portanto, uma fun„…o estrat†gica
dominante. (...) O dispositivo, portanto, estˆ sempre inscrito em um jogo de
80
poder, estando sempre, no entanto, ligado a uma ou a configura„Šes de saber
que dele nascem, mas que igualmente o condicionam. • isto, o dispositivo:
estrat†gias de rela„Šes de for„a sustentando tipos de saber e sendo
sustentadas por eles.” (Foucault, 1988 pp. 245-246)
81
Nesse mesmo caminho, ao identificar a rela„…o entre discurso e desejo como
formadores de um campo, Foucault aproxima-se de Bourdieu e sua id†ia de Illusio:
"Tendo defendido meu uso da no„…o de interesse, tentarei agora
mostrar como podemos substitu•-la por no„Šes mais rigorosas como a de
illusio, investimento ou at† libido. (...) illusio, palavra latina que vem da raiz
ludus (jogo), poderia significar estar no jogo, estar envolvido no jogo, preso
pelo jogo, acreditar que o jogo vale a pena ou, para dize-lo de maneira mais
simples, que vale a pena jogar. (...)Dito de outro modo, os jogos sociais s…o
jogos que se fazem esquecer como jogos e a illusio † essa rela„…o encantada
com um jogo que † produto de uma rela„…o de cumplicidade ontolƒgica entre
as estruturas mentais e as estruturas objetivas do espa„o social." (Bourdieu,
1996. p. 140)
82
Foucault n…o teme efetuar deslocamentos em suas teorias, hesita, muda de
dire„…o, reavalia posi„Šes, produz conscientemente um discurso dialƒgico. O que se
constata na anˆlise de sua obra e de suas palestras e entrevistas † o movimento de uma
arqueologia do saber (centrada nas forma„Šes discursivas) para uma genealogia do
poder (que pressupŠe, tamb†m, as rela„Šes n…o-discursivas) at† uma composi„…o
conceitual mais complexa, identificada como dispositivo. O saber (a vontade de
verdade) e o poder realizam-se efetivamente pela produ„…o de dispositivos sociais. O
dispositivo, como foi visto, † identificado com uma rede heterog‡nea de elementos que
comportaria discursos, institui„Šes, disciplinas, organiza„Šes arquitet‘nicas,
proposi„Šes filosƒficas etc. Ele comportaria o dito e o n…o dito dessa rede. Esse
dispositivo † a resposta € percep„…o e constru„…o de um tipo qualquer de “urg‡ncia” (a
loucura, a sexualidade, a criminalidade etc.).
Entretanto, † preciso fugir da imagem do poder e do saber, produzidos pelo
dispositivo, como o ocupante de um lugar centralizado do qual emanaria. Para Foucault,
o poder † um feixe de rela„Šes, um regime de micro-rela„Šes e estrat†gias, que
pressupŠe uma capilaridade. Ele n…o apenas pressupŠe repress…o e proibi„…o capaz de
excluir aqueles que n…o o possuem, mas pressupŠe, tamb†m, um investimento. O poder
investe os agentes sociais, impŠe-se por meio deles, apƒia-se neles.
Nesse sentido, seria correto dizer que o que se configura nos dias de hoje † o
aparecimento de novos dispositivos sociais (as novas tecnologias de comunica„…o e
informa„…o, novos regimes de visibilidade e de enuncia„…o, novas arquiteturas, novas
regimes legulatƒrios) de uma sociedade de controle frente € nova “urg‡ncia” do s†culo
XXI.
83
Considerações finais
Como foi visto no decorrer deste trabalho, os grupos humanos existem em ação
e para agir precisar conferir sentido ao mundo em que vivem. Esse sentido é produzido
coletivamente, mas depende sempre de um complexo processo interpretativo, realizado
pelos indivíduos que os compõem. Para que possam agir, os indivíduos precisam de
algum modo, ter algum tipo de definição da situação em que se encontram. A produção
de sentido no mundo depende dos processos de interação nos quais os indivíduos
aprendem a se situar simbolicamente diante do(s) outro(s). Assim, quando uma criança
aprende a falar, ela não aprende apenas os signos ou códigos lingüísticos de uma
determinada língua, mas a posição a partir da qual se fala, o ritmo, o senso prático e
ritualizado dessas trocas simbólicas. Essas são premissas do Interacionismo Simbólico,
da Pragmática e estão muito próximas, em alguns aspectos, das formulações
bakhtinianas e bourdieusianas.
A teoria das Mediações também entende a definição de situação como uma das
mediações no processo de produção social de sentido. Logo, a família, a vizinhança, os
amigos do futebol e da escola etc. produzem situações de comunicação capazes de
redirecionar, recriar e reavaliar qualquer produto simbólico que lhes chega por
intermédio dos meios de comunicação.
84
Bakhtin, muito antes do aparecimento da Communication Research no final dos
anos 50, já apontava suas falhas conceituais e chamava a atenção para uma teoria do
enunciado e dos gêneros do discurso. Sua concentração nos atos de fala rompe com a
postura de Saussure (importante para o aparecimento do estruturalismo de Levi-Strauss)
e procura mostrar que se o enunciado é um momento único de ação dos indivíduos no
mundo (sua originalidade) ele, também, é controlado (socialmente) pela sua localização
em um gênero de discurso. Além disso, todo enunciado é um ponto na complexa rede de
enunciados já produzidos, com os quais mantém-se unido, questiona, reavalia etc.
Se a fala somente pode ser entendida no contexto, na situação em que ocorre (tal
como o Interacionismo observa) é preciso observar, também, que os agentes sociais
identificam esses contextos e situações a partir de experiências passadas que tiveram
com esses mesmos contextos. O conceito de habitus lingüístico, apontado por Bourdieu,
procura mostrar que falar é colocar em movimento certas disposições sociais (modos de
85
articulação e pronúncia, posturas corporais, escolhas semânticas e sintáticas,
antecipações e avaliações) adquiridos no longo processo de socialização dos agentes
sociais. Um senso prático dos jogos de linguagem, o domínio de uma técnica social tal
como destacou, antes de todos, Wittgenstein. Um domínio prático dos jogos de
linguagem, um domínio prático dos gêneros do discurso que escapam de qualquer plano
estratégico ou marcado pelo cálculo. Como observa Bourdieu, os atos de fala podem ser
razoáveis sem que tenham a razão como guia.
Finalmente, realizou-se aqui uma relação dialógica entre a teoria dos campos de
Bourdieu e a teoria dos dispositivos de Foucault. Se os campos sociais são construídos
historicamente como um universo relativamente autônomo de objetos, discursos,
posições, disposições, lutas simbólicas, mecanismos de consagração etc. depreende-se
que o método arqueológico e genealógico de Foucault é um dos meios pelos quais se
pode identificar o complexo mecanismo de sua construção.
Pode-se dizer, ainda, que um campo pode ser identificado pelos dispositivos
sociais que lhe dão identidade e materialidade (o hospital, a escola, o laboratório, o
campus, a igreja etc.) e seus mecanismos de vigilância e controle das práticas e dos
discursos que ele cria, delimita e faz circular.
86
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