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Rudolf Steiner

O cristianismo como fato místico


e os mistérios da Antigüidade
Tradução:
Rudolf Lanz
Prefácio à segunda edição alemã

O cristianismo como fato místico foi o título dado a esta obra quando, há oito anos, nela
condensamos o conteúdo de conferências proferidas em 1902. Com esse título tencionamos
apontar o caráter particular do livro. Não procuramos apenas fazer uma exposição histórica do
conteúdo místico do cristianismo; quisemos, antes, descrever a origem do cristianismo a partir
da contemplação mística. A idéia subjacente era que nessa origem haviam atuado fatos
espirituais perceptíveis apenas por meio de tal contemplação. Somente o conteúdo do livro
poderá evidenciar que não denominamos ‘mística’ uma contemplação mais voltada a vagos
conhecimentos sentimentais do que a uma ‘exposição estritamente científica’. Com efeito,
atualmente se entende a ‘mística’, em muitos círculos, como um aspecto da vida psíquica
humana que nada tem a ver com a ‘autêntica ciência’. No espírito deste livro, emprega-se o
termo ‘mística’ para descrever um fato espiritual cuja natureza só pode ser conhecida quando
tal conhecimento decorre das próprias fontes da vida espiritual. Quem recusar uma forma de
conhecimento que haure de tais fontes não poderá alcançar posição alguma quanto a seu
conteúdo. Somente quem admitir poder reinar na ‘mística’ a mesma clareza que caracteriza a
exposição de fatos científicos aceitará que se faça aqui uma descrição do conteúdo do
cristianismo como mística. Não importa apenas o conteúdo do livro, mas — e antes de tudo —
os meios cognitivos pelos quais se chega à sua exposição.
Na época atual ainda reina violenta antipatia contra tais meios de conhecimento,
considerados como contrários ao verdadeiro espírito científico. Assim pensam não apenas os
que só aceitam uma concepção do Universo fundada em ‘conhecimentos científicos
autênticos’, mas também aqueles que, como adeptos do cristianismo, pretendem analisar sua
essência. O autor desta obra entende que as conquistas científicas de nossa época exigem que
nos elevemos a uma verdadeira mística, e que qualquer outra atitude perante o problema do
conhecimento contraria os frutos da pesquisa científica. Com efeito, os fatos da Ciência
Natural não podem ser abarcados com os meios cognitivos aos quais pensam poder limitar-se
os que afirmam possuir o firme fundamento da ciência.
Só não desaprovará este livro quem puder admitir que a aceitação das descobertas tão
admiráveis de nossa ciência é perfeitamente compatível com um autêntico misticismo.
Por meio do que aqui será chamado ‘conhecimento místico’ será mostrado que a fonte do
cristianismo engendrou suas próprias premissas nos mistérios pré-cristãos. Nessa ‘mística pré-
cristã’ se revelará o solo em que brotará o cristianismo como germe independente. Esse ponto
de vista permitirá compreender o cristianismo em sua natureza autônoma, apesar de se
acompanhar sua evolução a partir da mística pré-cristã. Desprezando esse enfoque, chega-se a
negar essa autonomia: o cristianismo, segundo esse ponto de vista, seria apenas a continuação
daquilo que já existia na mística anterior. Caem nesse erro muitas opiniões atuais, que
comparam o conteúdo do cristianismo com doutrinas pré-cristãs, vendo nele apenas um reflexo
destas. Este livro pretende mostrar que o cristianismo pressupõe a mística anterior como o
germe vegetal pressupõe seu solo. Longe de querer apagar o caráter peculiar da essência do
cristianismo pelo conhecimento de sua origem, procuraremos, ao contrário, colocá-lo em
relevo.
Para nós constitui motivo de profunda satisfação o fato de nossa interpretação da
essência do cristianismo ter merecido o assentimento de uma personalidade cujas notáveis
obras sobre a vida espiritual da humanidade enriqueceram de modo significativo a cultura de
nossa época. Edouard Schuré, autor de Les grands initiés, concordou de tal maneira com os
pontos de vista deste livro que se encarregou de sua tradução para o francês (com o título: Les

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mystères antiques et les mystères chrétiennes). Seja dito à parte — e só para mostrar que
existe real anseio de interpretar a essência do cristianismo conforme o espírito deste livro —
que a primeira edição foi traduzida para várias línguas européias, além do francês.
Não julgamos necessário modificar nada de essencial no conteúdo da primeira edição.
Alguns acréscimos foram feitos, assim como tentativas de expor alguns tópicos com maior
precisão e maiores detalhes do que foi possível oito anos atrás. Infelizmente, sobrecarregados
de trabalho, tivemos de deixar passar longo lapso de tempo entre o momento em que se
esgotou a primeira edição e o aparecimento desta segunda.

Rudolf Steiner
Maio de 1910

Pontos de vista
A vida conceitual moderna foi profundamente influenciada pelo pensamento científico.
Está-se tornando cada vez menos possível falar das necessidades espirituais — da ‘vida da
alma’ — sem entrar em discussão sobre meios de representação e conhecimento das Ciências
Naturais. Se muitos ainda procuram a satisfação dessas necessidades sem se deixar perturbar
pela corrente científica, os que sentem o pulso de nossa época têm de tomar rumo diferente.
Os conceitos hauridos da ciência conquistam rapidamente cérebros e, em seguida, os corações,
embora estes muitas vezes hesitantes e sem ânimo. O que importa não é apenas o número dos
que se deixam convencer, mas a existência de uma força, inerente ao raciocínio científico,
que dá ao observador atento a convicção de que nenhuma cosmovisão moderna pode
defrontar-se com esse raciocínio sem receber impressões significativas. Certos exageros desse
raciocínio justificam uma atitude de repulsa, mas não pode ser essa a reação definitiva numa
época em que muitos se dedicam a essa maneira de pensar, atraídos por ela como que por
magia. Essa situação não se altera pelo fato de alguns já se terem convencido de que ‘há
muito’ a verdadeira ciência ultrapassou a ‘superficial sabedoria da energia e da matéria’ do
materialismo. Parece que, antes, deveriam ser levados a sério os que valentemente afirmam o
seguinte: uma nova religião também deveria ser alicerçada em conceitos científicos. Os que
professam tal opinião podem parecer banais e superficiais a quem conheça os mais profundos
interesses espirituais da humanidade: mesmo assim este terá de dar-lhes ouvidos, pois a eles
se dirige a atenção da atualidade, e há bons motivos para acreditar que saberão conquistá-la
de modo crescente, num futuro muito próximo. Tampouco convém ignorar as pessoas nas quais
os interesses do coração permaneceram aquém dos interesses do cérebro. São aquelas cujo
intelecto não soube resistir às idéias científico-naturais. O fardo das provas lhes pesa, mas
essas idéias não satisfazem às necessidades religiosas de seu coração, abrindo-lhes, ao
contrário, perspectivas deveras desoladoras. Será que a alma humana, depois de se
entusiasmar pelas alturas da Beleza, da Verdade e do Bem, destina-se a ser inexoravelmente
varrida para o nada, qual uma bolha de ar insuflada pelo cérebro material? Eis uma sensação
que atormenta muitos como um pesadelo. Além disso, os conceitos científico-naturais
oprimem também por impor-se com imensa força autoritária. Tais indivíduos, enquanto
puderem, permanecerão cegos à disparidade em sua alma, indo até à afirmação de que não se
pode alcançar plena clareza em assuntos dessa espécie: eles raciocinam cientificamente,
enquanto assim o exigem a experiência de seus sentidos e a lógica de seu intelecto; mas ao
mesmo tempo conservam seus sentimentos religiosos, frutos de longa formação, preferindo

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manter esses assuntos numa penumbra que obnubila o intelecto. Não têm a coragem de pensar
com clareza.
Não pode, então, pairar dúvida: o pensamento científico é a força mais atuante na vida
espiritual de nosso tempo. Não pode desprezá-lo quem aborda os interesses espirituais da
humanidade. Não há dúvida, tampouco, de que sua maneira de satisfazer as necessidades
espirituais é superficial e pouco profunda. Seria triste se essa fosse a maneira correta. Seria
mesmo constrangedor ter de concordar com alguém que afirmasse: “O pensamento é uma
forma de energia; usamos a mesma força para caminhar e para pensar. O homem é um
organismo que transforma várias formas de energia em pensamento — um organismo cuja
atividade mantemos pela chamada ‘alimentação’, gerando o que chamamos de pensamentos.
Que maravilhoso processo químico foi aquele capaz de transformar certa quantidade de
alimento na divina tragédia de um Hamlet!” Ora, tudo isso consta de um escrito de Robert G.
Ingersoll, intitulado O moderno crepúsculo dos deuses. Pouco importa que tais pensamentos,
pronunciados por um indivíduo ou outro, encontrem apenas escassa atenção. Inúmeras pessoas
— e esse é o ponto capital — adotam semelhante atitude em decorrência da mentalidade
científica atual, mesmo acreditando não fazê-lo.
A perspectiva seria, decerto, desoladora se realmente a ciência impusesse o credo que
muitos dentre seus profetas proclamam. Ele o seria sobretudo para o indivíduo que, pelo
estudo das ciências, se haja convencido de que, em seu campo, seus métodos e conceitos são
realmente inabaláveis. Com efeito, esse indivíduo deverá admitir que, sejam quais forem as
discrepâncias sobre os vários problemas, seja qual for o número de volumes publicados e de
observações compiladas a respeito da ‘luta pela sobrevivência’ e sua insignificância, sobre a
‘onipotência’ ou a ‘impotência’ da ‘seleção natural’, a própria ciência se movimenta numa
direção que, dentro de certos limites, tem de encontrar aceitação sempre maior.
Contudo, serão os postulados da ciência realmente aqueles proclamados por seus
discípulos? O próprio comportamento destes prova o contrário, pois em seu próprio campo eles
agem de modo bem diverso do que se descreve ou exige para outros domínios. Será que Darwin
e Ernst Haeckel teriam feito suas grandes descobertas no campo da evolução da vida se, em
vez de observar a vida e a estrutura dos seres vivos, tivessem apenas realizado experiências
químicas com um pedaço de tecido cortado de um organismo? Será que Lyell 1 teria sido capaz
de descrever a evolução da crosta terrestre se tivesse analisado apenas quimicamente
inúmeras rochas, sem investigar as próprias camadas da Terra e seu conteúdo? Nós realmente
trilhamos os caminhos percorridos por estes pesquisadores, que se erguem qual vultos monu-
mentais na história mais recente da ciência! Procederemos, pois, nas regiões mais elevadas da
vida espiritual, da mesma forma como eles procederam na observação da natureza. Então nin-
guém acreditará que a essência da ‘divina’ tragédia Hamlet seja satisfatoriamente explicada
pelo maravilhoso processo químico que transformou em tragédia o alimento absorvido pelo
autor. Acreditar nisso seria tão impossível quanto o seria, a qualquer cientista, acreditar que a
simples observação do efeito do calor sobre o enxofre numa retorta química o faria
compreender o papel do calor na formação da Terra. Semelhantemente, ele não procurará
entender a estrutura do cérebro humano extraindo um fragmento da cabeça e observando
como este reage a uma solução alcalina, e sim investigando como o cérebro evoluiu no
passado, a partir de órgãos de organismos inferiores.
Constatamos, pois, a seguinte verdade: quem investiga a essência do espírito só poderá
aprender muito das Ciências Naturais. Basta imitá-las, mas sem deixar-se enganar por aquilo
que alguns de seus adeptos lhe querem prescrever. Tal como as ciências pesquisam no campo
físico, assim ele deverá fazê-lo no campo espiritual sem, todavia, adotar as opiniões que elas
formaram a respeito desse último, obcecadas em pensar sobre o puramente físico.

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Sir Charles Lyell (1797-1Ç75), geólogo inglês defensor da teoria do chamado ‘atualismo’ na Geologia. (N.E.)

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Só se age de acordo com o espírito da ciência quando se encara a evolução espiritual da
humanidade sem preconceitos, como o faz o cientista com o mundo físico. Isso nos conduzirá,
no domínio espiritual, a uma maneira de ver que difere do método puramente científico tanto
quanto o ponto de vista geológico difere do meramente químico e a investigação da evolução
biológica difere da pesquisa das leis meramente químicas. Seremos levados a adotar métodos
superiores, distintos dos da ciência comum, embora imbuídos do mesmo caráter. Isso permitirá
modificar ou corrigir, sob um novo ponto de vista, alguns aspectos unilaterais da pesquisa da
natureza: dessa maneira, porém, continuaremos a obra dessas ciências, e de modo algum
ficaremos contra elas.
Só recorrendo a tais métodos é que se pode realmente penetrar em certas correntes
espirituais, como o cristianismo ou outras formas religiosas. Quem os adota possivelmente
provoca a oposição de alguns que pensam raciocinar cientificamente; no entanto, sabe que
está em pleno acordo com uma atitude verdadeiramente científica.
Um pesquisador, nesse sentido, deve também transcender o estudo exclusivamente
histórico dos documentos relativos à vida espiritual. Deve fazê-lo justamente em conseqüência
de sua atitude decorrente da observação da natureza. Pouco valor tem, para a exposição de
uma lei química, a descrição das retortas, recipientes e pinças que permitiram chegar à sua
descoberta. Da mesma forma, para explicar a origem do cristianismo não terá maior ou menor
valor a constatação das fontes das quais hauriu o evangelista Lucas, ou a descrição dos
elementos que empregou João para compilar o Apocalipse. A ‘História’ constitui, aqui, apenas
a ante-sala da verdadeira pesquisa. Nada se aprende sobre as idéias dominantes dos escritos
de Moisés, ou das tradições dos iniciados gregos, quando se perscruta a origem histórica dos
respectivos documentos, pois nestes encontramos apenas a expressão exterior. Tampouco o
cientista que investiga a essência do ‘homem’ se apegará à origem do vocábulo ‘homem’, nem
à sua etimologia: ele se concentra no objeto, e não na palavra que o expressa. Assim, pois, no
estudo da vida espiritual teremos de ater-nos ao espírito, e não aos documentos exteriores.

Os mistérios e sua sabedoria

Como que encoberta por um véu misterioso — assim se nos apresenta a maneira pela
qual, nas antigas civilizações, eram satisfeitas as aspirações espirituais dos que ansiavam por
uma vida religiosa mais intensa e por conhecimentos mais profundos do que aqueles oferecidos
pelas religiões populares. Procurando saber como essas necessidades eram satisfeitas, somos
conduzidos à penumbra de cultos enigmáticos. Com efeito, todo indivíduo que encontra essa
satisfação se subtrai, durante algum tempo, à nossa observação. Nós observamos como,
inicialmente, as religiões populares não lhe podem oferecer o que seu coração procura; ele
reconhece a existência dos deuses, mas sabe que os grandes enigmas da existência não se
resolvem pelas idéias habituais a respeito desses deuses. Busca uma sabedoria zelosamente
guardada por uma comunidade de sacerdotes, onde sua alma anelante procura refúgio. Se os
sábios o julgarem suficientemente maduro, irão conduzi-lo gradualmente a conhecimentos
superiores, por caminhos ocultos a qualquer observação exterior. O que lhe acontece então se
oculta aos não-iniciados. Por algum tempo ele parece alheado do mundo terreno e como que
transportado para outro, misterioso.
Quando ele reaparece à luz do dia, temos diante de nós uma pessoa completamente
transformada, incapaz de encontrar palavras de suficiente categoria para exprimir quão
significativa foi a experiência vivida. Parece-lhe ter transposto, por assim dizer, o umbral da
morte e renascido para uma vida nova e superior, e isso não apenas metaforicamente, mas na

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acepção mais real. Outrossim, ele se dá conta de que não pode entender corretamente suas
palavras quem não viveu experiência idêntica.
Assim acontecia às pessoas iniciadas nos mistérios, isto é, no misterioso conteúdo
sapiencial que, subtraído ao povo, podia trazer luz sobre as perguntas mais elevadas. Ao lado
da religião popular havia, pois, essa religião ‘oculta’ dos eleitos, cujos primórdios se perdem,
para o olhar histórico, na penumbra da origem dos povos. Até onde é possível pesquisar a tal
respeito, isso é encontrável em todos os povos antigos, cujos sábios falavam nesses mistérios
com o maior respeito. O que se ocultava neles? O que revelavam eles a quem, ali, se tornava
iniciado?
Seu caráter enigmático fica realçado pela constatação de que esses mistérios eram
considerados pelos antigos como algo perigoso. O caminho que levava aos mistérios da vida
passava por um mundo de horrores. Infeliz daquele que quisesse alcançá-los indignamente!
Não havia crime maior do que a ‘revelação’ dos segredos a pessoas não-iniciadas. O
‘traidor’ era condenado à morte e ao confisco de seus bens. Consta que o poeta Esquilo foi
acusado de ter levado ao palco algo do conteúdo dos mistérios, só conseguindo salvar-se da
morte por ter-se refugiado no altar de Dionísio e ter provado judicialmente que nem era um
iniciado.
O que os antigos dizem dos mistérios é significativo, embora sujeito a várias
interpretações. O iniciado estava convencido de estar cometendo um pecado ao revelar o que
sabia; da mesma forma, escutá-lo constituía um pecado para o não-iniciado. Plutarco fala do
pavor dos neófitos, comparando seu estado aos preparativos para a morte. A iniciação devia
ser precedida por um regime especial, destinado a submeter a sensualidade ao domínio do
espírito por meio de jejuns, isolamento, mortificações e certos exercícios anímicos. As coisas
apreciadas pelo homem na vida comum deviam perder todo o valor. Uma reviravolta tinha de
ocorrer em toda a sua vida emotiva e sentimental.
Não pode pairar dúvida sobre o sentido de tais exercícios e provas. A sabedoria oferecida
ao neófito só podia agir sobre sua alma depois de radicalmente transformada sua vida
emocional inferior. Ele era admitido à existência do espírito; a ele se abria um mundo superior
com o qual era impossível entrar em relação sem os exercícios e provas preliminares. O que
importava era justamente essa relação. Para se terem idéias corretas a esse respeito, torna-se
mister adquirir a experiência dos fatos íntimos da vida cognitiva. É preciso ter em mente que
existem duas atitudes bem divergentes em relação ao que o conhecimento superior oferece.
O mundo real do homem é inicialmente aquele que o rodeia e cujos fatos ele apalpa,
ouve e enxerga. Ele os chama de reais por percebê-los com os sentidos, e medita sobre eles
para esclarecer-lhes as relações recíprocas. Por outro lado, aquilo que surge em sua alma não
possui o mesmo grau de realidade: trata-se de ‘simples’ idéias e pensamentos. Ele os
considera no máximo imagens da realidade sensorial, que não possuem realidade intrínseca
por serem impalpáveis, inaudíveis e invisíveis.
Existe, porém, outra atitude perante o mundo, incompreensível para quem se agarra ao
tipo de realidade que acaba de ser descrito. Ela surge para certos indivíduos, em determinado
momento de sua vida, como uma reviravolta em sua atitude anterior. Eles passam a atribuir
autêntica realidade a formas que lhes imergem na vida espiritual da alma, enquanto
consideram como menos real o que seus sentidos ouvem, apalpam e enxergam. Sabem não
poderem provar o que afirmam, sendo apenas capazes de comunicar o que vivenciaram —
encontrando-se desta forma, perante os outros, na mesma situação em que ficaria quem
descrevesse a um cego nato as percepções visuais. Decidem relatar suas experiências
interiores, confiando em que outros ao seu redor, embora tendo ainda os olhos espirituais
fechados, possam chegar, pela própria força do que ouvem, a um entendimento do conteúdo
dessas experiências. Têm fé na humanidade e pretendem ser descerradores de olhos

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espirituais. Podem apenas oferecer os frutos que seu próprio espírito colheu; o fato de o outro
conseguir vê-los dependerá de sua capacidade de compreender o que os olhos espirituais
enxergam.
Há algo, no homem, que inicialmente o impede de enxergar com os olhos espirituais. A
princípio, isso não é de seu feitio. Ele é o que é de acordo com seus sentidos, e seu intelecto
serve apenas para interpretar e julgar os sentidos. Estes mal desempenhariam suas tarefas, se
não insistissem na fidelidade e infalibilidade de suas informações. Bem defeituoso seria o olho
que, de seu ponto de vista, não sustentasse a verdade absoluta de suas percepções. Por si o
olho tem razão, e tampouco a perde diante do olho espiritual. Este, porém, permite
contemplar os objetos do olho sensorial sob uma luz superior, sem que nada se negue daquilo
que este enxergou. O que foi visto passa a irradiar um brilho novo, antes não percebido. Sabe-
se, então, que inicialmente se viu apenas uma realidade inferior. Continuamos vendo o
mesmo, mas envolvido em algo superior, que é o espírito. O que importa, nesta altura, é ter a
sensação e o sentimento do que se vê. Quem reage com sensações e sentimentos vividos
apenas no sensorial verá no superior apenas uma Fada Morgana, uma ‘mera’ criação
fantástica, pois seus sentimentos só visam o mundo sensível. Querendo assimilar as formas
espirituais, tateará no vácuo, porque estas recuam diante dele. Parecem ‘apenas’ pensa-
mentos, que ele elabora mas não vivência. São, para ele, imagens mais irreais do que sonhos
fugazes — imagens que, diante de sua realidade, surgem como bolhas de espuma e
desaparecem ante a solidez maciça das percepções sensoriais.
Algo diferente ocorre com quem modificou suas sensações e seus sentimentos frente à
realidade, que para ele perdeu sua solidez absoluta e seu valor incondicional. Sem perder sua
agudeza, seus sentidos e sentimentos começam, porém, a duvidar de sua autoridade
incondicional, deixando espaço para algo mais. O mundo do espírito começa a animar esse
espaço.
Abre-se aqui uma possibilidade de funestas conseqüências: o homem poderia perder a
sensação e o sentimento da realidade imediata, sem que lhe aparecesse outra. Ficaria no
vácuo, como que inerte: os velhos valores teriam passado, sem que lhe houvessem surgido
novos. O mundo e o homem já não existiriam para ele. Longe de ser apenas uma possibilidade,
essa situação se torna realidade para todo indivíduo que busca conhecimentos superiores,
chegando a um ponto em que o espírito lhe revela que toda vida é morte. Ele não pertence
mais ao mundo. Está sob ele, no reino das trevas. Realiza a descida ao Hades. Quiçá não
submerja; que um novo mundo se lhe abra! Ou ele naufragará, ou ressurgirá transfigurado.
Neste caso, terá diante de si um novo Sol, uma nova Terra: todo o Universo terá renascido do
fogo espiritual.
Assim descrevem os iniciados os efeitos dos mistérios. Menipo conta que viajou à
Babilônia para ser levado pelos adeptos de Zoroastro ao Hades e depois voltar à Terra. Relata
que, no decurso de suas peregrinações, atravessou a nado a Grande Água; que cruzou o fogo e
o gelo; que os neófítos eram amedrontados por uma espada desembainhada, enquanto ‘jorrava
sangue’. Tais palavras tornam-se inteligíveis a quem conhece a passagem do conhecimento
inferior ao superior, experimentando a dissolução de tudo o que é material e sensorial e a
perda de todo apoio. O que antes tinha vida tornou-se morto. O espírito atravessou a vida
sensorial como uma espada transpassa um corpo vivo; viu-se escorrer o sangue da
sensibilidade.
Porém uma nova vida surgiu; ocorreu a volta das trevas, da qual fala o retor
Aristides:
Eu tinha a impressão de tocar Deus, de sentir-lhe a proximidade, e estava entre o sono e a
vigília; meu espírito estava tão leve que não o poderia exprimir ou entender quem não fosse
‘iniciado’.

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Essa nova existência não está subordinada às leis da vida inferior; não a afetam o
nascimento e o perecimento. Pode-se falar muito no ‘eterno’, mas quem não o entender como
o entenderam os que voltaram do Hades ficará apenas numa ‘parlenga’. Os iniciados têm nova
noção da vida e da morte, julgando-se autorizados a falar da imortalidade; sabem que não a
entendem os que sobre ela falam antes de conhecê-la pela iniciação, pois a atribuem a algo
sujeito às leis do nascimento e da morte. Contudo, os iniciados não almejam apenas chegar à
convicção da perenidade do cerne vital. Segundo a concepção dos mistérios, tal convicção não
possuiria valor algum. Com efeito, o eterno, segundo a opinião deles, nem existiria no não-
iniciado; pois este, ao falar de algo eterno, falaria do nada. E principalmente esse eterno que
os neófitos buscam, só podendo falar dele depois de despertá-lo em si mesmos. Por isso tem
para eles plena realidade a dura palavra de Platão segundo a qual os não-iniciados afundam no
lodo, só atingindo a eternidade quem passa por uma vida mística. E apenas nesse sentido que
podemos interpretar um trecho de um fragmento de Sófocles:
Bem-aventurados os iniciados que alcançam o reino das sombras. Só eles vivem ali — os
demais nada conhecem senão sofrimento e dissabores.

Não se descrevem perigos quando se alude aos mistérios? Levar alguém ao umbral dos
mundos inferiores não significa roubar-lhe a felicidade e até algo dos valores mais elevados da
existência? Imensa seria a responsabilidade de quem assim procedesse. Mesmo assim, será que
temos o direito de fugir a essa responsabilidade? Tais eram as perguntas que o iniciado fazia a
si próprio. Ele achava que a crença popular estava para sua própria sabedoria como as trevas
para a luz. Mas nessas trevas reside uma felicidade ingênua, na qual não se deveria interferir
sacrilegamente. Ora, qual teria sido o significado de uma ‘traição’ do segredo pelo iniciado?
Ele teria pronunciado meras palavras, e nada mais, pois não existiriam as sensações e os senti-
mentos capazes de evocar o espírito a partir de tais palavras. Para tal eram essenciais os
preparativos, os exercícios e provas, assim como a reviravolta da vida sensorial, sem o quê o
ouvinte apenas iria encontrar o nada, o vácuo. Ter-lhe-iam tirado a felicidade em troca de
nada. E nem isso, pois com meras palavras sua vida emotiva não teria sido modificada. Ele
teria podido sentir, experimentar realidade somente nos objetos de seu mundo sensorial. Ter-
se-ia provocado nele nada mais do que um terrível e mortal pressentimento, forçosamente
considerado um crime. Na época atual, tais considerações não têm mais validade para a
aquisição do conhecimento espiritual. Com efeito, este pode ser entendido conceitualmente,
porque a humanidade atual possui uma capacidade conceituai inexistente na humanidade
antiga. Hoje em dia pode haver, de um lado, homens capazes de conhecer o mundo espiritual
por experiência própria e, de outro, os que compreendem as experiências transpostas em
conceitos, faculdade de que carecia a humanidade de então.
A velha sabedoria dos mistérios se assemelha a uma planta de estufa, que necessita de
reclusão para seu desenvolvimento. Transportá-la para o âmbito das opiniões corriqueiras
significaria colocá-la numa atmosfera em que ela não pode evoluir. De fato, ela não resiste ao
julgamento cáustico da mentalidade científica e da lógica moderna. Renunciemos, por algum
tempo, a toda educação resultante do microscópio, do telescópio e da atitude intelectual das
ciên&as; limpemos nossas mãos desajeitadas após tantas experiências e dissecações
anatômicas, para entrar no templo puro dos mistérios. Isso, contudo, exige uma autêntica
imparcialidade.
Cabe ao adepto, em primeiro lugar, ter a disposição de ânimo adequada ao se avizinhar
daquilo que ele experimenta como o mais sublime, isto é, como respostas aos enigmas da
existência. Em nossa época, considera-se como conhecimento apenas o que é cientificamente
comprovado, tornando-se particularmente difícil admitir que se chegue a um consenso a
respeito dos grandes problemas. Destarte, o conhecimento passaria a ser assunto íntimo do
indivíduo. Mas tal é, precisamente, o caso do iniciado. Dar a alguém a solução dos grandes

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enigmas universais, pô-lo na palma de sua mão, seria apenas um palavreado sem sentido se o
indivíduo não pudesse enfrentar essa solução de modo correto. A solução em si nada é;
volatiliza-se quando o sentimento não se empenha o necessário. “Imagina uma divindade
surgindo à tua frente! Ela será nada ou tudo. Será nada se a enfrentares com a disposição de
ânimo que te liga às coisas cotidianas. Será tudo se estiveres preparado, afinado para
enfrentá-la. O que ela for por si não te toca: o importante é se ela te deixa tal como és ou se
faz de ti outro homem. Mas isso dependerá exclusivamente de ti. As forças mais íntimas de tua
personalidade devem ter sido educadas e adestradas para que possas acender e liberar o que
uma divindade te possibilita. Tudo depende de como acolheres o que te for ofertado.”
Plutarco descreveu essa educação, e relatou a saudação dirigida pelo adepto à divindade que
lhe vem ao encontro:

Pois Deus saúda, por assim dizer, todos os que se aproximam dele com as palavras: “Conhece-
te a ti mesmo” — saudação em nada inferior ao ordinário ‘Salve!’. Nós, porém, respondendo
com as palavras: “Tu és!”, dirigimo-lhe a saudação do ser como a saudação autêntica,
primordial e pertencente exclusivamente à Divindade. E que aqui não participamos, a rigor,
desse ser; com efeito, toda criatura mortal, a meio caminho entre o nascer e o perecer,
revela apenas uma aparência, uma fraca e incerta ilusão de si própria; quando a razão se
esforça por entendê-la, acontece o mesmo que com a água demasiadamente comprimida, que
coalha apenas pela compressão e estraga tudo o que contém; na realidade, quando a razão
chega a uma concepção perfeitamente nítida de um ser sujeito a acidentes e transformações,
desvia-se ora até sua origem, ora até seu fim, sem poder captar algo de permanente ou que
verdadeiramente exista. Pois conforme já disse Heráclito, não se pode nadar duas vezes na
mesma onda, nem captar um ser mortal duas vezes no mesmo estado: pela vivência e pela
rapidez do movimento, ele se destrói e se reintegra novamente, nasce e morre, vai e volta.
Por isso, tudo o que devém2 nunca alcança o verdadeiro ser: o surgimento nunca cessa ou
repousa; a transformação já começa com o germe, plasmando um embrião, depois uma
criança, um adolescente, um adulto, um velho e um ancião, destruindo os primeiros estados e
idades pelos consecutivos. Nessas condições, seria absurdo termos medo de uma morte, seja
morremos e continuamos morrendo de tantas formas. Com efeito, segundo Heráclito, não é
apenas verdade que a morte do fogo seja o nascimento do ar e que a morte do ar seja o
nascimento da água: podemos ver isso muito mais nitidamente no próprio homem, pois o
adulto morre ao se tornar ancião, o adolescente ao tornar-se homem, o menino ao adolescer
e a criança ao se transformar em menino. O ontem morre no hoje, assim como o hoje morrerá
no amanhã; nada se mantém ou é único, pois assumimos formas múltiplas pelo fato de a
matéria se agitar em redor de um modelo, de uma forma comum. Se permanecêssemos
sempre os mesmos, como é que poderíamos apreciar presentemente coisas diferentes das que
apreciamos no passado, amar e odiar, admirar e criticar coisas opostas; como poderíamos
emitir opiniões novas, sucumbir a novas paixões, se não assumíssemos aparência nova, formas
novas, sentidos novos? Sem transformação não se pode alcançar um novo estado, e quem se
transforma já não é o mesmo: mas deixando de ser o mesmo deixa de existir, pois deixa para
trás a existência antiga para tornar-se outro. Desconhecendo o verdadeiro ser somos
induzidos, pela percepção sensorial, a considerar como tal o que é apenas aparência. [Sobre o
EI de Delfos, 17 e 18.]

Plutarco fala freqüentemente de si como de um iniciado, e a descrição precedente


aponta uma condição da vida do discípulo dos mistérios. O homem alcança uma sabedoria pela
qual o espírito constata o caráter ilusório da vida sensorial. O que os sentidos consideram
como ser, como realidade, está como que imerso no fluxo do devir: o que se dá com as outras
coisas do mundo acontece também ao homem. Diante de seu olho espiritual, ele próprio se
esfuma; sua totalidade se decompõe em fragmentos, em fenômenos passageiros. Perdendo seu
significado relevante, o nascimento e a morte ficam reduzidos a meros momentos no processo
da formação e do perecimento, como tudo o que acontece. Não se pode encontrar o Supremo
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Traduzo aqui o verbo alemão werden por ‘devir’, galicismo oriundo de dévénir. (N.T.)

9
no processo do devir e perecer. Este só pode ser encontrado naquilo que é realmente estável,
que revê o passado e antevê o futuro.
Alcançar esse grau de retrospecção e de previsão significa atingir um grau superior de
conhecimento. E o espírito que se manifesta no e ao sensorial. Nada possuindo em comum com
o mundo sensível, o espírito não nasce nem morre ao modo dos fenômenos sensoriais. Quem
vive apenas no mundo sensorial encerra o espírito em estado latente; quem conhece seu
caráter ilusório o possui como uma realidade patente: terá desenvolvido novo órgão de sua
entidade, realizando algo como a planta que, depois de possuir apenas folhas verdes, faz
desabrochar uma flor colorida. Decerto as forças que deram origem à flor já se achavam
previamente na planta, mas encontraram sua realização somente com esse surgimento. Do
mesmo modo, o homem sensorial já contém as forças divino-espirituais; estas se revelam, po-
rém, apenas no iniciado, pois é essa a transformação que nele se operou: ele acrescentou,
pela própria evolução, algo novo ao mundo já existente. Cumprindo sua tarefa, o mundo
sensível fez dele um homem sensorial e o abandonou à própria sorte. Esgotou suas
possibilidades de usar forças disponíveis no homem; mas as próprias forças ainda não se acham
esgotadas, pois jazem no homem natural como que encantadas, à espera de seu
desencantamento. Elas não podem redimir-se a si próprias; desvanecem-se no nada quando o
homem não as desenvolve, chamando à verdadeira realidade o que repousa nele em estado
latente.
A natureza evolui do mais imperfeito ao perfeito, conduzindo os seres, numa ampla
escala, por todas as formas da vida até chegar ao homem. Este, ao abrir os olhos físicos,
percebe-se qual um ser sensório-real, mutável. Sente também em si as forças que
engendraram tal situação sensorial, embora não constituam o elemento mutável, pois por elas
foi gerado esse elemento. O homem as encerra como indício de estar abarcando mais do que
sensorialmente percebe. Ainda não existe o que essas forças possam produzir. O homem sente
raiar em seu cerne algo que criou tudo, inclusive ele próprio, e que lhe dará asas para uma
criatividade superior. Esse algo existe nele como existiu antes de sua manifestação sensorial, e
existirá depois desta. Ele formou o homem, mas agora este pode captá-lo e participar de seu
trabalho criador. Tais sentimentos permeiam o antigo iniciado após a iniciação. Ele pressentiu
o Eterno, o Divino, de cuja criação deverá participar pelo próprio agir, podendo, pois, dizer a
si próprio: “Descobri em mim um ‘eu’ superior, que transcende os limites de minha existência
sensível, ou seja, nascimento e morte. Esse ‘eu’, atuando por toda a eternidade, criou minha
personalidade sensível. Incorporou-me a si próprio, cria em mim; eu faço parte dele. O que
agora produzo é superior ao sensorial. Minha personalidade é apenas um instrumento dessa
força divina que cria em mim.” Dessa forma o adepto experimentou sua própria divinização.
Os iniciados denominaram a força que assim raiava em seu íntimo como seu verdadeiro
espírito. Eles se consideravam seus produtos, e tinham a sensação de que um ser novo os havia
penetrado, tomando posse de seus órgãos; um ser intermediário entre eles — personalidades
do mundo sensorial — e o Divino, poder universal que tudo abarca. Era esse seu verdadeiro
espírito que o adepto procurava. “Tornei-me homem dentro da grande natureza”, assim dizia a
si mesmo. “Mas essa natureza não terminou sua criação; sou eu quem deve terminá-la. Não
posso fazê-Io dentro do imperfeito reino da natureza, ao qual também pertenço com meu
corpo. Neste reino, tudo o que se pode desenvolver é desenvolvido. Por isso tenho de sair
dele, continuando no mundo espiritual o trabalho construtor no ponto onde a natureza parou.
Preciso proporcionar a mim mesmo uma atmosfera vital que não se encontra na natureza
física.” Era essa atmosfera que os adeptos encontravam nos templos de mistérios. Era aí que
se lhes despertavam as forças latentes, que se realizava a transformação em seres espirituais,
criadores, superiores. Essa transformação era um processo delicado, impróprio para suportar o
ar rijo do mundo exterior. Contudo, uma vez plenamente acabada, fazia do homem um

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rochedo firmado na eternidade e capaz de resistir a qualquer tempestade. Só que o iniciado
não devia ter a ilusão de poder relatar a outros, de maneira direta, o que experimentara.
Plutarco informa que nos mistérios “se podem encontrar as mais profundas revelações e
interpretações da verdadeira essência dos demônios”. E de Cícero lemos que nos mistérios “se
aprende mais sobre a essência das coisas que sobre a dos deuses, desde que haja uma
interpretação correta e uma indagação sobre seu sentido” (Plutarco: Sobre a decadência dos
oráculos; Cícero: Sobre a natureza dos deuses). Tais comunicações mostram que o adepto
podia ter revelações mais profundas, sobre a essência do mundo, do que aquelas oferecidas
pela religião popular. Constatamos que até os próprios demônios, isto é, as entidades espiri-
tuais, assim como os próprios deuses, precisavam ser explicados. Remontava-se, portanto, a
seres ainda superiores a demônios e deuses — o que era do âmbito dos mistérios. O povo
representava demônios e deuses sob forma de imagens calcadas no mundo sensório-real. Acaso
não havia de ter sérias dúvidas, quanto a eternidade de tais deuses, aquele que perscrutava a
essência do eterno? Como é que o Zeus da imaginação popular podia ser uma entidade perene,
se possuía as qualidades de um ser perecível?
Os iniciados sabiam perfeitamente que o homem chega a seu conceito dos deuses de
modo diferente do que ao conceito de outras coisas. Um objeto material compele-me a fazer
dele uma representação bem definida. Em comparação, a maneira como se fazem
representações de seres divinos é livre, quase arbitrária: falta a compulsão do mundo externo.
A reflexão nos mostra que representamos, com os deuses, algo para o qual não há controle
exterior algum. Isto coloca o homem numa incerteza lógica. Ele passa a considerar-se a si
próprio o criador de seus deuses, e pergunta-se como pode, ao criar seu mundo de
representações, transcender a realidade física. O adepto tinha de dedicar-se a tais
considerações, fontes de dúvidas perfeitamente justificadas. “Vejam-se”, assim lhe era lícito
pensar, “as representações de deuses: não se parecem com seres do mundo material? O
homem não os terá inventado juntando ou tirando essa ou aquela qualidade do ser do mundo
sensível? O homem primitivo, que gosta de caçar, imagina um céu onde se realizam as mais
magníficas caçadas; e o grego povoa o Olimpo de personalidades divinas, cujos protótipos tirou
de seu ambiente grego”.
O filósofo Xenófanes (575-480 a.C.) apontou esse fato com uma lógica rude.
Sabemos que os filósofos gregos mais antigos estavam imbuídos da sabedoria dos
mistérios, o que é demonstrado em particular a partir de Heráclito. O seguinte trecho
de Xenófanes deve, portanto, sem vacilação ser considerado opinião de um iniciado:
Os homens que imaginam criar os deuses à sua imagem devem possuir seus sentidos, sua voz e
seu corpo. Contudo, se os bois e os leões tivessem mãos para com elas trabalhar ou pintar
como os homens, dariam a seus deuses a forma de seus próprios corpos: deuses-cavalos para
os cavalos, deuses-bois para os bois.

Certamente tal opinião pode induzir o homem a duvidar de tudo o que for divino,
rejeitando os mitos divinos e admitindo como real apenas o que suas percepções sensoriais lhe
impõem. Mas por tal dúvida o iniciado não passou, pois sabia que quem duvidasse se
assemelharia a uma planta que dissesse: “Estou limitada às minhas folhas verdes; minha flor
colorida é apenas ilusória e não existe, pois tudo o que eu acrescesse às folhas não poderia
passar de ilusão.” Tampouco o iniciado pode limitar-se aos deuses criados, aos deuses
populares. Pudesse a planta raciocinar, chegaria à conclusão de que as forças que lhe criaram
as folhas verdes destinavam-se também a dar-lhe a flor, e não deixaria de indagar dessas
forças até enxergá-las. Assim se relacionava o adepto com os deuses populares: não os negava
nem os declarava ilusórios, embora soubesse que eram criações humanas. As mesmas forças
naturais, os mesmos elementos divinos que atuam na natureza atuam também nele, criando-

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lhe representações do divino. Ele quer ver essa força criadora de deuses. Ela não se assemelha
aos deuses populares; é algo mais elevado ao qual Xenófanes também alude:
Um Deus é o maior entre deuses e homens,
não se parecendo com os mortais
nem em corpo nem tampouco em pensamentos.

Esse Deus também era o Deus dos mistérios; podia ser chamado de ‘Deus abscôndito’,
pois em lugar algum podia ser encontrado pelo homem meramente sensorial. “Dirige teu olhar
para as coisas: não encontrarás nada divino. Esforça teu intelecto: poderás entender as leis
que regem o nascer e o morrer das coisas; mas tua razão te indicará algo de divino. Impregna
tua fantasia com sentimentos religiosos: poderás conceber imagens de seres que considerarás
divinos; mas tua razão as desfolhará, provando que são criações tuas e feitas com elementos
tirados do mundo material. Enquanto olhares para teu mundo ambiente como homem racional,
terás de negar a existência de Deus. Pois Deus não existe para teus sentidos e para tua razão,
intérprete das percepções sensíveis: está encantado no mundo. Para achá-lo, terás de
despertar em ti a sua própria força.” Estes eram os ensinamentos recebidos pelo antigo
neófito. Principiava então, para ele, o grande drama cósmico, com o qual ele se achava vital-
mente entrelaçado, o que tinha por objeto nada menos que a redenção do Deus encantado.
Onde está Deus? Esta era a pergunta que o neófito propunha à sua alma. Deus não está, mas a
natureza está. Tendo sido sepultado misteriosamente na natureza, nela deverá ser
reencontrado. O iniciado entendia as palavras ‘Deus é o Amor’ num sentido mais elevado, pois
Deus realizou esse amor até o extremo, sacrificando a si próprio num ato de infinito amor;
derramou-se, despedaçou-se na multiplicidade das coisas criadas: estas vivem, e ele não vive
nelas — repousa nelas; porém vive em todo homem. E o homem pode experimentar em si a
vida de Deus. Para fazê-la chegar ao conhecimento terá de redimir esse conhecimento
ativamente.
Nessa altura, o homem olha para dentro de si próprio. Em sua alma atua o elemento
divino ainda sem existência. Nessa alma está o local em que o divino, encantado, pode
reviver. A alma é a mãe que pode conceber o divino a partir da natureza. Deixe-se a alma
fecundar pela natureza, e dará nascimento a um ser divino! Mas, desta vez, o divino não será
mais ‘oculto’, e sim manifesto, possuindo uma existência que se revelará ao homem. E o
espírito desencantado no humano, o rebento do Deus encantado. Não é precisamente o Deus
que foi, que é e que será; mas poderá ser considerado, em certo sentido, sua manifestação. O
Pai fica escondido; o Filho nasceu da própria alma do homem. O conhecimento místico
constitui, portanto, um real acontecimento dentro da evolução cósmica. É o nascimento de um
renovo divino, ou seja, um fato tão real quanto qualquer outro processo material, embora em
nível superior. Eis o grande mistério do adepto; ele próprio, ativamente, redime seu rebento
divino, preparando-se antes para reconhecê-lo. Ao não-iniciado falta perceber o Pai desse
rebento, pois esse Pai repousa no encantamento. O rebento parece ter nascido de uma virgem,
pois a alma parece tê-lo parido infecundada. Todos seus outros partos foram concebidos pelo
mundo sensível, onde se vê ou se adivinha o pai dotado de vida sensorial. Só o rebento divino
foi concebido pelo próprio Deus-Pai eterno e oculto.

Os sábios pré-platônicos à luz da sabedoria iniciática

Muitos fatos nos ensinam que a sabedoria filosófica dos gregos tinha o mesmo fundamento
espiritual que o conhecimento místico. Só é possível compreender os grandes filósofos

12
abordando-os com os sentimentos obtidos na observação dos mistérios. Com que respeito
Platão fala das ‘doutrinas ocultas’ em seu Fédon!
Parece-me até que os que nos ordenaram a disciplina iniciática, longe de serem homens
maus, já nos indicaram há muito tempo que quem chegar ao mundo das trevas não-iniciado e
não-purificado será jogado na lama; o purificado e iniciado, porém, aí chegando, morará com
os deuses. Pois os entendidos em iniciação dizem que muitos carregam o tirso, sendo porém
poucos os verdadeiramente inspirados. A meu ver, estes são os que procuravam a sabedoria
seguindo o caminho correto; sempre trabalhei para ser um deles, fazendo mesmo todos os
esforços nesse sentido.

Portanto, só pode falar de iniciação aquele cuja busca de sabedoria está totalmente
imbuída da própria atitude moral produzida pela iniciação. E sem dúvida as palavras dos
grandes filósofos gregos parecerão iluminadas por uma nova luz se as considerarmos desse
ponto de vista.
A conexão de Heráclito de Éfeso (535-475 a.C.) com os mistérios resulta diretamente de
uma asserção confirmada a seu respeito, segundo a qual seus pensamentos constituiriam “uma
trilha intransitável coberta de escuridão e trevas” para quem a empreendesse sem iniciação,
sendo porém “mais clara que o Sol” para quem fosse introduzido por um iniciado. E quando se
conta que ele depositou seu livro no templo de Artêmis, isso significa apenas que só os
iniciados tinham capacidade para entendê-lo.3 Heráclito foi chamado ‘O Tenebroso’, porque só
a chave dos mistérios trazia luz às suas idéias.
Heráclito nos aparece como impregnado da maior seriedade perante a vida. Procurando
imaginar seus traços, ver-se-ia neles a expressão de conhecimentos íntimos que todas as
palavras podiam apenas esboçar e não transmitir. Fruto dessa atitude é sua célebre afirmação
"Tudo está em fluxo", proposição comentada por Plutarco nestes termos:
Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio nem tocar duas vezes qualquer substância
perecível. Por sua rapidez e por seu impulso, o rio se dispersa e se reúne de novo imedia-
tamente, avançando e retrocedendo.

O homem que assim pensa perscrutou a natureza das coisas transitórias, pois sentiu-se
impelido a caracterizá-la em termos incisivos. Tal caracterização só é possível a quem sabe
medir o transitório pelo eterno; não pode ser estendida ao homem, a não ser que se tenha
penetrado em seu âmago. Heráclito, sim, estendeu essa caracterização ao homem: “Idênticos
são vida e morte, vigília e sono, juventude e velhice, pois cada estado se transforma em outro
e vice-versa.” Nessa sentença encontramos a plena noção do caráter ilusório da personalidade
inferior. E continua ele, acrescentando mais firmemente: “Há vida e morte tanto em nosso
viver quanto em nosso morrer” Não significa isso que só o ponto de vista da transitoriedade
justifica atribuir à vida valor maior que à morte? A morte é um perecer que deixa lugar para
nova vida; mas nesta, como na vida anterior, vive o eterno, que se revela idêntico tanto na
vida transcorrida como na morte. Se o homem o tiver captado, olhará com o mesmo
sentimento para a morte e para a vida. Somente se não conseguir despertar em si esse eterno
é que a vida possuirá para ele um valor especial. Podemos recitar mil vezes a sentença ‘Tudo
está em fluxo’; se não o fizermos com esse sentimento, o efeito será nulo. O conhecimento do
devir eterno não tem valor quando não suprime nossa inclinação para o mundo transitório.
Heráclito preconiza o abandono de um instinto vital que apenas visa o efêmero. “Como
podemos afirmar de nossa vida consciente: ‘Existimos!’, se sabemos que, do ponto de vista da
eternidade, ‘existimos e não existimos’?” (Vide Heráclito, fragmento nº 81.) “Hades e Dionísio
3
O fundo histórico das relações de Heráclito com os mistérios já foi exposto por Edmund Pfeiderer; veja-se sua obra
Die Philosophie des Heraklit von Ephesus im Lichte der Mysterienidee [A filosofia de Heráclito de Éfeso à luz da idéia
dos mistérios] (Berlim, 1886).

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são idênticos”, diz um dos fragmentos de Heráclito. Dionísio, Deus do instinto vital, da
germinação e do crescimento, objeto das festas dionisíacas, é, para Heráclito, o mesmo que
Hades, Deus da destruição, da aniquilação. Somente quem percebe a morte na vida e a vida
na morte e em ambas o eterno transcendendo-as é que poderá julgar serenamente os méritos
e defeitos da existência. Achará uma justificativa até para os defeitos, já que neles reside o
eterno. Só de um ponto de vista limitado os defeitos se apresentam como tais:
Não convém aos homens conseguir tudo o que querem: a doença torna doce e boa a saúde, a
fome faz apreciar a saciedade, e o trabalho o descanso. [...] O mar é a água mais pura e
impura, potável e boa para os peixes, impotável e prejudicial para os homens.
Contudo Heráclito aponta menos a efemeridade das coisas terrenas do que o brilho e a
majestade do eterno.
Heráclito pronunciou palavras violentas contra Homero, Hesíodo e os sábios em voga,
criticando-lhes a maneira de pensar inclinada para o mundo transitório. Não queria deuses
dotados de qualidades tiradas do mundo material, e tampouco podia valorizar uma ciência
limitada a pesquisar as leis das coisas que surgem e perecem. Do transitório lhe fala a voz do
eterno, para o qual ele encontra um símbolo profundo: “A harmonia do Universo volta a si
mesma, como a da lira e do arco.” Que imagem rica de conteúdo! A unidade se consegue pela
dispersão e subseqüente harmonização das forças. Um som contradiz o outro, mas juntos
ambos perfazem uma harmonia. Aplicando isso ao mundo espiritual, teremos o pensamento de
Heráclito: “Os imortais são mortais, os mortais são imortais, vivendo a morte daqueles e
morrendo a vida desses.”
Constitui o pecado primordial do homem o fato de ele limitar seu conhecimento ao que é
transitório, com isso se afastando do eterno. A vida se lhe torna um perigo e provoca os
incidentes de sua existência. Mas esses incidentes perderão seu aguilhão se ele não mais
valorizar incondicionalmente a vida. Ele recupera então sua inocência, como se pudesse voltar
da seriedade da vida para o reino da infância. O adulto leva a sério o que para a criança é
motivo de brincadeira. O sábio, porém, volta a ser como a criança. O ‘sério’perde seu valor,
do ponto de vista da eternidade. A vida parece então um brinquedo. “A eternidade”, diz
Heráclito, “é uma criança que brinca, é o predomínio de uma criança”. Em que consiste, pois,
a culpa primordial? Consiste em levar a sério o que não merece tanta seriedade. Deus se derra-
mou no mundo criado. Quem aceita esse mundo sem Deus leva-o a sério qual uma ‘sepultura
de Deus’. Deveria brincar com ele como uma criança, concentrando, porém, a seriedade de
seus esforços em desencantar o Divino adormecido em seu âmago. A contemplação do eterno
incendeia e até queima o costumeiro julgar das coisas. O espírito dissolve os pensamentos
acerca do mundo sensível, levando-os à fusão. Constitui um fogo abrasador, e é esse o sentido
mais profundo do pensamento heraclitiano: o fogo é a matéria-prima de todas as coisas. É
claro que esse pensamento deve ser levado em conta primeiramente no sentido de um
esclarecimento físico comum dos fenômenos do mundo. Ninguém, contudo, compreende
Heráclito sem pensar a seu respeito como Fílon (que viveu na época da origem do cristianismo)
opinou sobre as leis da Bíblia:
Há pessoas que vêem nas leis apenas metáforas de doutrinas espirituais, e limitam-se a
buscar cuidadosamente estas últimas, desprezando aquelas; só posso censurá-las, pois
deveriam ter ambas as coisas em mente: tanto conhecer o sentido oculto quanto observar o
aparente.
Seria deturpar o pensamento de Heráclito discutir se seu conceito de fogo se referia ao
fogo físico ou simbolizava apenas o espírito eterno em seu trabalho de dissolver e reconstituir
as coisas materiais. Na realidade significava ambos ou também nenhum dos dois, pois para ele
o espírito vivia também no fogo comum. A força que atua fisicamente no fogo vive, em grau
superior, na alma humana, que dissolve em seu crisol o conhecimento sensorial, fazendo surgir
a contemplação do eterno.

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Heráclito, justamente, pode ser mal interpretado. Ele considera a guerra o pai das
coisas. Mas apenas das ‘coisas’, e não do eterno. Não existissem às divergências no mundo e os
mais variados interesses opostos entre si, não haveria o mundo da transformação, da
transitoriedade. Contudo, aquilo que se revela nessa disputa como elemento subjacente não é
a guerra, mas a harmonia. Havendo luta no mundo das coisas, o espírito do sábio deve
impregná-las qual um fogo e transformá-las em harmonia.
Aqui raia uma idéia grandiosa da sabedoria heraclitiana. O que é o homem como ser
individual? Partindo deste ponto, a pergunta fornece resposta a Heráclito. O homem é um
amálgama dos elementos divergentes em que a divindade se transfundiu. Assim ele encontra a
si próprio, ao mesmo tempo em que se torna cônscio do espírito oriundo da eternidade. Para
ele, o espírito nasce da luta dos elementos, devendo, porém, harmonizá-los. No homem, a
natureza transcende a si própria, pois é nele que a força universal, que engendrou o amálgama
e o conflito, deve apaziguar sabiamente esse conflito. Temos aqui a eterna dualidade que
reina no homem, a eterna divergência entre o temporal e o eterno. O eterno fez dele um ser
bem determinado, e a partir dessa determinação ele deve criar algo superior. Ele é dependen-
te e autônomo. Participa do Espírito Eterno, mas somente de acordo com o amálgama que este
efetuou nele. Cabe-lhe, pois, dar forma ao eterno, partindo do temporal. O espírito opera
nele, mas de um modo peculiar, a partir do temporal.
O fato de algo temporal atuar como algo eterno e de, como este, impelir e fortalecer, é o
que caracteriza a alma humana, fazendo-a assemelhar-se simultaneamente a um Deus e a um
verme. O homem se acha, portanto, entre Deus e o animal. O elemento impulsionador e
fortalecedor dentro dele é sua porção demoníaca, que procura transcendê-lo. Heráclito
insistiu neste ponto: “O demônio do homem é o seu destino.” (Demônio se entende aqui no
sentido grego; o significado moderno seria ‘espírito’.) Assim, para Heráclito, aquilo que anima
o homem transcende o âmbito pessoal. Este elemento pessoal é o veículo de algo demoníaco,
que não está encerrado nos limites da personalidade, e para o qual morte e nascimento do
elemento pessoal não tem significado algum. Qual é a conexão entre esse elemento demoníaco
e a personalidade sujeita a nascer e a perecer? Esta é apenas uma manifestação daquele.
Quem alcança esse conhecimento transcende os limites de sua própria personalidade ao olhar
para o passado e para o futuro. Experimentar o elemento demoníaco dentro de si testemunha
sua própria eternidade. E ele não pode mais atribuir ao demoníaco apenas a função de
preencher sua personalidade, pois esta constitui apenas uma das manifestações daquele. O
demônio não pode fechar-se dentro de uma personalidade; ele tem poder para animar muitas
personalidades, transfundindo-se de uma em outra.
Das premissas heraclitianas, surge como que naturalmente o grande conceito da
reencarnação. E não apenas o conceito, mas a experiência da reencarnação, que o conceito
apenas prepara. Quem vivência em si o elemento demoníaco não o encontra sob forma
primitiva, em estado inocente, mas sim dotado de propriedades. De onde procedem elas? Por
que tenho eu certas qualidades? Porque outras personalidades já colaboraram em modelar meu
demônio. E se devo presumir que a missão do demônio não se limita à minha personalidade,
como devo encarar o futuro daquilo que opero nele? Eu faço um trabalho preparatório para
uma personalidade futura. Entre mim e a unidade cósmica vem interpor-se algo que me
transcende, algo que não chega a ser idêntico à divindade: é o meu demônio. Como o meu
hoje é o resultado do meu ontem, e o meu amanhã será o resultado do meu hoje, assim minha
vida atual é a seqüência de outra, passada, e constitui a base para outra, futura. A alma do
sábio abarca múltiplas existências no passado e no futuro, assim como o homem comum
abrange muitos dias de ontem e muitos dias de amanhã. O que ontem assimilei em
pensamentos e aptidões serve-me no dia de hoje. Não se verifica o mesmo com a vida? Não

15
chegam os homens ao umbral da vida dotados das mais variadas capacidades? De onde vem
essa diversidade? Do nada?
Nossa ciência natural orgulha-se de ter banido a noção de milagre de nossas concepções
da vida orgânica. David Friedrich Strauss (veja-se Alter und neuer Glaube [A velha e a nova
fé]) considera uma das grandes conquistas da atualidade não pensarmos mais que um
organismo perfeito possa ser criado do nada por um milagre. Entendemos a perfeição
explicando-a pela evolução a partir do imperfeito. A estruturação do macaco não constitui
mais um milagre se pudermos presumir os peixes primordiais como precursores dos macacos,
tendo sofrido uma transformação gradativa. Mas temos de aplicar a mesma medida tanto ao
espírito quanto à natureza! Será que o espírito perfeito terá as mesmas premissas que o
imperfeito? Será que um Göethe existe pelas mesmas precondições que um hotentote
qualquer? Tão pouco quanto um peixe possui as mesmas premissas que um macaco, o espírito
goethiano possui as mesmas premissas espirituais que o do selvagem. A linhagem espiritual do
espírito goethiano é diferente da ascendência do espírito selvagem. O espírito, como o corpo,
é fruto de um vir-a-ser. Em Göethe, o espírito tem mais antepassados do que no selvagem.
Considerada neste sentido, a doutrina da reencarnação deixará de ser julgada ‘anticientífíca’.
O que se encontra na alma deverá ser interpretado com critério, sem ser denominado milagre.
Minha capacidade de escrever decorre do fato de eu tê-lo aprendido. Ninguém pode sentar-se
e escrever sem nunca antes ter segurado uma caneta. Mas, para explicar a ‘visão genial’ de
um ou outro homem, recorre-se logo ao milagre. Não: também a visão genial tem de ser
adquirida, aprendida. Chamamo-la de faculdade espiritual por surgir numa personalidade. Mas,
como tal, foi apreendida pelo espírito; o que o espírito adquiriu numa existência se torna
‘aptidão’ em outra posterior.
Foi assim, e somente assim, que Heráclito e outros sábios gregos conceberam a noção de
eternidade. Eles nunca falaram na continuação da existência da personalidade imediata. Veja-
se um discurso de Empédocles (490-430 a.C.), onde este diz, a respeito dos que sempre
denominam milagre o que é manifesto:
Tolos, por não irem longe com seus pensamentos,
são os que crêem poder vir a ser o dantes nunca existente,
ou algo morrer e desaparecer completamente.
Do não-existente é impossível algo surgir,
como é impossível o total perecimento do que existe,
pois permanecerá onde veio a chegar.
Nunca o entendido imaginará
que só enquanto vivem, seja lá o que se chame vida,
só enquanto existem, sentindo dor e alegria,
os homens vêm a ser, e morrendo nada são.

O sábio grego nem pergunta se existe algo de eterno no homem, mas apenas em que
consiste esse eterno e como o homem pode cultivá-lo. De antemão, ele não tinha dúvida de
que o homem ocupa uma posição intermediária entre o terreno e o divino. Não se cogitava de
qualquer elemento divino fora ou além do mundo; o divino mora no homem, e isso de uma
maneira especificamente humana, pois se revela como a força que impulsiona o homem para
tornar-se sempre mais divino. Só quem assim pensa dirá, como Empédocles:
Quando deixares o corpo, elevando-te ao éter, serás um deus imortal, livre da
morte.
O que poderia ocorrer a uma vida humana, de tal ponto de vista? Ela pode ser iniciada no
círculo mágico do eterno, pois a existência puramente natural não faz evoluir certas
faculdades que jazem escondidas no homem. A vida passaria inaproveitada, não fossem essas
faculdades desenvolvidas. Revelá-las para assemelhar o homem ao Divino era justamente a

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tarefa dos mistérios, tarefa que também os sábios gregos consideravam sua. Assim podemos
compreender a sentença de Platão:
[...] quem chegar ao mundo das trevas não-iniciado e não-purificado será jogado na lama; o
purificado e iniciado, porém, morará com os deuses.
Fica estabelecida a conexão com um conceito de imortalidade, cujo significado se
encerra dentro do Universo em sua totalidade. Tudo o que o homem faz para despertar em si o
eterno serve para aumentar o valor da existência cósmica. Quando procura conhecer o mundo,
ele não é apenas um espectador ocioso, representando a imagem daquilo que existiria também
sem ele. Seu poder cognitivo é uma força criadora superior. As idéias que raiam em seu
espírito constituem um elemento divino, originalmente oculto, que sem seu esforço cognitivo
teria ficado adormecido, esperando por outro libertador do encanto. Desta forma, a
personalidade humana não existe em si e por si: existe para o mundo. Considerada sob este
ângulo, a vida transcende a existência individual. Dentro de tal concepção chegamos a
compreender pensamentos como o seguinte, de Píndaro, que abre novos horizontes para o
eterno:
Bem-aventurado aquele que os vislumbrou e depois procurou o vazio subterrâneo; ele
conhece o fim da vida e o princípio prometido por Zeus.
Podemos compreender os traços de orgulho e a natureza solitária de sábios como
Heráclito. Eles podiam jactar-se de seus conhecimentos, pois consideravam-nos como obra de
seu demônio eterno, e não de sua personalidade passageira. Seu orgulho era temperado pela
atitude simultânea de humildade e modéstia que se refletia nestas palavras: todo saber das
coisas transitórias está em eterno fluxo, como as próprias coisas passageiras. Heráclito chama
o mundo eterno de brinquedo; com igual razão poderia chamá-lo de sumamente sério. Mas a
palavra ‘seriedade’ sofreu desgaste pela aplicação a eventos terrenos. O aspecto lúdico do
eterno deixa ao homem a segurança vital, que lhe tira a seriedade, fruto do transitório.
Outro tipo de cosmovisão, diferente daquela de Heráclito, mas também baseada nos
mistérios, originou-se da comunidade fundada por Pitágoras na Itália meridional, no século VI
a.C. Os pitagóricos viam o fundamento das coisas em números e figuras, cujas leis exploravam
pela matemática. Aristóteles diz, a respeito deles:
Eles aperfeiçoaram em primeiro lugar a matemática, com a qual se identificaram a ponto de
considerar seus princípios como sendo também o de todas as coisas. Julgavam que o
elemento primordial da matemática eram os números, e viram nestes muitas analogias com
as coisas e sua evolução — muito mais, aliás, do que no fogo, na terra e na água; por isso,
uma propriedade dos números lhes significava a justiça, outra a alma e o espírito, outra
ainda o tempo, e assim por diante. Eles encontravam nos números as propriedades e
proporções da harmonia, de modo que tudo, conforme sua espécie, parecia ser um reflexo
dos números, e estes o elemento primordial da natureza.
A interpretação matemático-científíca dos fenômenos sempre tem de levar a um certo
pitagorismo. Quando se toca uma corda de comprimento definido, surge um som definido.
Encurtando-se a corda em proporções numéricas, outros sons são emitidos, cujas alturas
poderão também ser exprimidas em proporções numéricas. A física dá valor numérico também
às relações das cores. Quando dois corpos químicos se combinam para formar uma substância,
sempre há igualmente uma relação fixa entre as quantidades de cada um. O espírito
observador dos pitagóricos estava sempre atento a tais relações, de medida ou de número, nos
fenômenos da natureza.
Papel análogo está sendo desempenhado, na natureza, pelas figuras geométricas. A
astronomia, por exemplo, é uma matemática aplicada aos corpos celestes. O que importava ao
pensamento dos pitagóricos era que o homem, só pela atividade intelectual, investigasse as
leis dos números e das figuras, para constatar em seguida, ao olhar do mundo exterior, que

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este obedecia às mesmas leis que ele, por si, descobrira em sua alma. O homem chegou, por si
mesmo, ao conceito da elipse e às suas leis. E os corpos celestes se movem de acordo com a
lei por ele definida. (Aqui não vêm ao caso as teorias astronômicas dos pitagóricos, pois, do
ponto de vista que aqui nos interessa, o que se pode dizer a seu respeito poderia ser afirmado,
com igual razão, a respeito das teorias de Copérnico.)
Disto se conclui, de imediato, que as atividades da alma humana não se desenrolam fora
do mundo, mas em concordância com a ordem harmônica que se reflete em sua estrutura. O
pitagórico raciocinava da seguinte forma: — Os sentidos revelam ao homem os fenômenos
sensíveis, mas sem apontar as ordens harmoniosas observadas pelas coisas. Estas devem
primeiro ser descobertas pelo homem dentro de si próprio, caso ele as queira observar no
mundo exterior. O sentido mais profundo do Universo, aquilo que tem caráter de necessidade
eterna e regular, aparece na própria alma humana, onde se torna uma realidade presente. O
sentido do Universo se manifesta na alma, pois reside naquilo que ela haure de suas próprias
profundezas, e não das percepções da vista, do ouvido ou do tato. As harmonias eternas jazem
no âmago da alma. Aprofundando-nos na alma, encontraremos o eterno. Deus e a harmonia
perene do Universo estão na alma humana. O elemento anímico não se limita ao que está
contido na epiderme humana, pois o que nasce na alma são as harmonias segundo as quais os
astros giram no espaço celeste. A alma não reside na personalidade: esta fornece apenas o
órgão pelo qual se pode manifestar a ordem cósmica. Encontramos algo de pitagórico nesta
sentença de Gregório de Nissa, um dos Pais da Igreja:
A natureza humana, como dizem, é apenas algo pequeno e limitado: a Divindade, porém, é
infinita; ora, como é possível o finito abarcar o infinito? E quem diz que o infinito da
Divindade pode ser contido nos limites da carne como num vaso? Pois não é apenas uma vez
que, em nossa existência terrena, a natureza espiritual se acha confinada nos limites da
carne; a matéria do corpo é limitada pelo que lhe é contíguo, mas a alma se dilata
livremente, pelo movimento do pensar, para toda a Criação.
A alma não é a personalidade; pertence ao infinito. Os pitagóricos, conforme esse ponto
de vista, tinham de considerar ‘tolos’ os que julgavam o anímico limitado à personalidade.
Também para eles, era mister despertar o eterno dentro da personalidade. Conhecimento
significava-lhes convivência com o eterno. Para eles, o valor de um homem aumentava na
proporção em que este conseguia realizar esse eterno. Cultivar a comunhão com o eterno
constituía a vida de suas comunidades, e sua educação se destinava a levar seus membros a
essa comunhão, constituindo, portanto, verdadeira iniciação filosófica. E aos pitagóricos era
lícito afirmar que essa maneira de viver tinha o mesmo objetivo que os cultos dos mistérios.

Platão como místico

A cosmovisão de Platão revela o grau de importância que os mistérios tiveram na vida


espiritual grega. Para realmente compreendê-lo só há um meio: temos de situá-lo na luz que
irradia dos mistérios. Os discípulos ulteriores de Platão, os neoplatônicos, atribuem-lhe uma
doutrina secreta cujo acesso era reservado apenas aos que ele julgava dignos, e isso sob o
‘selo do sigilo’. Sua doutrina foi considerada arcana no mesmo sentido em que o foi a
sabedoria dos mistérios. Mesmo que a sétima epístola platônica não seja de sua autoria, como
alguns alegam, isso não importa para o fim que aqui visamos: com efeito, pouco nos interessa
se foi ele ou outro que expressou a atitude moral manifesta nessa epístola. Essa atitude moral
repousava na essência de sua cosmovisão. Encontramos nessa epístola o seguinte trecho:

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Posso apenas dizer que não se deve dar o menor crédito àqueles que escreveram ou
escreverão como se tivessem ciência de quais eram minhas metas. Pouco importa se dizem
tê-lo aprendido de mim ou de outrem, ou se o apresentam como de sua própria elaboração.
Não existe nem poderia existir escrito meu sobre esses assuntos, pois estes não podem, de
maneira alguma, ser expressos em palavras como poderiam sê-lo outras doutrinas. É preciso
demorado estudo e convivência com a matéria para que, finalmente, raie uma centelha e se
acenda na alma uma luz que, no futuro, se conserve por si própria.
Estas palavras poderiam apenas revelar uma impotência no uso das palavras, isto é, um
defeito pessoal, se não encontrássemos nelas uma alusão aos mistérios. O assunto sobre o qual
Platão nunca escreveu nem queria escrever devia ser tal que seria impossível fazer dele o
objeto de palavras escritas. Devia tratar-se de uma experiência, de uma sensação que se
adquire por ‘vivência introspectiva’, e não por comunicação instantânea. Platão faz alusão à
educação íntima que podia ministrar aos eleitos. Para estes, suas palavras lançavam fogo; para
os demais, apenas pensamentos.
Com efeito, não é indiferente a maneira como se abordam os diálogos de Platão.
Conforme o estado espiritual de quem os lê, podem ter maior ou menor significado. O próprio
Platão transmitiu a seus discípulos mais que o sentido verbal de seus argumentos. Quando ele
ensinava, os ouvintes viviam como que numa atmosfera de mistérios. As palavras tinham sons
harmônicos, cuja vibração simultânea necessitava da atmosfera dos mistérios, caso contrário
passava despercebida.
No centro dos diálogos platônicos ergue-se a personalidade de Sócrates. Podemos deixar
de lado aqui os aspectos históricos, concentrando nossa atenção na figura de Sócrates tal qual
a encontramos em Platão. Sócrates é uma personalidade consagrada por sua morte em prol da
verdade. Ele morreu como só pode morrer um iniciado, para quem a morte é apenas um ins-
tante da existência como qualquer outro. Comportou-se de tal maneira que nem mesmo seus
discípulos tiveram os sentimentos que costumam surgir em semelhantes ocasiões. Fédon diz,
no Diálogo sobre a imortalidade da alma:
Pois bem, minhas reações eram muito estranhas: não senti a compaixão que domina quem
presencia a morte de um querido amigo. Ele era tão sereno em seu comportamento e seus
discursos, morreu com tamanha coragem e dignidade, que eu estava intimamente
convencido: ele não desceria ao mundo inferior sem ter uma missão divina, e lá se sentiria
até tão bem quanto normalmente seria possível a um homem sentir-se. Por isso, não fui
tomado de piedosa ternura, como só acontece em circunstâncias tristes, nem fiquei particu-
larmente alegre como costumo estar em meus afazeres filosóficos, embora nossas conversas
fossem desse tipo; achei-me, ao contrário, num estado extraordinário, e numa estranha
mistura de prazer e tristeza, quando ponderei que esse homem iria morrer logo.
E Sócrates, moribundo, dá a seus discípulos uma lição sobre a imortalidade. Essa
personalidade, com sua experiência do desvalor da vida, constitui, nessa situação, um tipo de
prova bem diverso do que o oferecido por toda a lógica e por todos os raciocínios. Quem fala
não parece ser um homem: está no limiar da morte; parece, antes, que fala a própria Verdade
eterna, escolhendo como moradia um ser mortal. Onde um elemento temporal se desintegra
no nada parece haver o ambiente propício para a manifestação do eterno.
Não encontramos provas, no sentido comum, acerca da imortalidade. Todo o diálogo visa
a conduzir os amigos até o ponto em que enxerguem o eterno. Aí, não há mais necessidade de
provas. Será que quem vê a rosa precisa de uma prova de sua cor vermelha? E quem teve seus
olhos abertos para o espírito, será que carece ainda de uma prova de sua eternidade?
O que Sócrates aponta são experiências, vivências. Primeiro, a própria sabedoria
considerada como experiência. O que almeja quem aspira à sabedoria? Deseja libertar-se da
mensagem que lhe trazem os sentidos em sua percepção corriqueira! Procurar o espírito

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dentro do mundo sensível! Não é essa uma contingência comparável à morte? Assim opina
Sócrates:
Os que se dedicam à Filosofia de maneira correta têm, na realidade, uma propensão para
morrer, e isso sem que os outros o percebam. Ora, sendo essa a verdade, seria deveras
absurdo que ficassem aborrecidos ao acontecer naturalmente o que durante toda a vida
almejaram.
A guisa de confirmação, Sócrates pergunta a um dos amigos:
Parece-te próprio de um filósofo interessar-se pelos prazeres sensuais, como a boa comida e
a boa bebida? Ou pela satisfação do instinto sexual e todas as demais preocupações do corpo?
Achas que eles importam muito a tal homem? Pensas que ele aprecia ou despreza, além do
que manda a extrema necessidade, possuir belas vestes, sapatos e tudo o que serve para
embelezar o corpo? De um modo geral, não achas que esse homem vai desinteressar-se, na
medida do possível, de seu corpo e desprezá-lo, para dedicar-se à sua alma? E nisso, pois, que
se revela o filósofo: mais do que qualquer outro homem, ele fará sua alma desprender-se da
comunhão com o corpo.
Isso autoriza Sócrates a dizer que a busca da verdade e a morte têm em comum o fato de
o homem abandonar seu elemento corporal. Mas pára onde se volta ele? Para o espiritual.
Contudo, poderá exigir do espírito o mesmo que dos sentidos? Sócrates diz a esse
respeito:
O que ocorre com o entendimento racional? Se, ao almejá-lo, o homem escolher como
companheiro o corpo, constituirá este um obstáculo ou não? Em outras palavras: a vista e o
ouvido fazem com que o homem alcance algumas verdades? Ou terão razão os poetas,
sempre cantando que nada vemos nem enxergamos com exatidão?
Mas quando é que a alma capta a verdade? Pois quando se serve do corpo para
contemplar algo, este evidentemente a trai.
Tudo o que percebemos com os sentidos físicos nasce e morre. E esse nascer e morrer nos
induz ao erro. Quando, porém, nos aprofundamos nas coisas por meio do entendimento
racional, temos a revelação do elemento eterno que elas contêm. Os sentidos, portanto, não
oferecem o eterno em sua autêntica forma. Enganam-nos no momento em que neles confiamos
incondicionalmente, deixando de fazê-lo quando apelamos ao entendimento racional e
submetemos ao controle deste suas informações. Como, porém, poderia a razão julgar os
sentidos, se não contivesse algo transcendente às percepções destes? Portanto, sobre o que há
de verdadeiro e falso nas coisas só «poderá opinar algo, dentro de nós, que se oponha ao corpo
físico e não esteja submetido às suas leis. Antes de mais nada, deve esse algo independer por
completo das leis do nascimento e do perecimento, pois contém em si o verdadeiro. Este,
porém, não pode ter um ontem nem um amanhã; tampouco pode ser uma vez isto, outra vez
aquilo, como os objetos sensoriais. O verdadeiro deve, pois, ser eterno. Ao virar as costas ao
mundo sensorial para enfrentá-lo, o filósofo encontra ao mesmo tempo um elemento eterno
que reside nele. Submergindo totalmente no espírito, viveremos inteiramente no verdadeiro. O
mundo sensível deixa então de existir apenas em sua forma física. Sócrates afirma:
Quem melhor o consegue é aquele que, na medida do possível, aborda tudo apenas com a
razão, sem recorrer à vista quando pensar ou a qualquer outro sentido quando refletir,
servindo-se, pois, apenas do raciocínio puro e procurando considerar todos os objetos por si
próprios, isolando-os dos olhos e ouvidos, ou, em curtas palavras, de todo esse corpo que
apenas perturba a alma, impedindo-a, por sua presença, de chegar à verdade e ao
entendimento. [...] Ora, a morte não significa a redenção da alma e sua separação do corpo?
Procuram conseguir essa redenção, mais do que quaisquer outros, os verdadeiros filósofos;
sua tarefa, portanto, é libertar a alma e desvinculá-la do corpo. [...] Não passará de um tolo
o indivíduo que durante toda a vida se esforçar para chegar o mais perto possível da morte,
para depois, quando esta chegar de fato, revelar-se recalcitrante. [...] De fato, os que

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realmente buscam a verdade procuram morrer e, entre todos os homens, são eles que menos
temem a morte.
Sócrates também baseia toda a ética superior em libertar-se do corpo. Não é virtuoso
quem segue apenas os mandamentos de seu corpo. Quem é corajoso? — pergunta Sócrates.
Corajoso é aquele que não obedece a seu corpo, mas antes às ordens de seu espírito, mesmo
que ponham em perigo o corpo. E quem é ponderado? Ser ponderado não significa “não se
deixar dominar pelas cobiças, ficando, ao contrário, indiferente a elas”; não compete, pois, a
ponderação apenas aos que prezam menos o corpo e vivem animados pelo amor à sabedoria? O
mesmo se dá, segundo Sócrates, com todas as virtudes.
Em seguida, Sócrates tenta caracterizar o próprio entendimento racional. Que significa
conhecer? Não há dúvida de que chegamos ao conhecimento formando juízos. Pois bem, formo
um juízo a respeito de um objeto dizendo, por exemplo: isso que está à minha frente é uma
árvore. Como posso emitir tal juízo? Somente se já sei o que é uma árvore. Tenho de lembrar
minha representação da árvore. Sendo a árvore um objeto sensorial, eu me lembrarei de um
objeto sensorial ao lembrar-me da árvore. Posso afirmar, de um objeto, que se trata de uma
árvore caso se pareça com outros objetos anteriormente percebidos, dos quais sei que eram
árvores. A recordação faculta-me o conhecimento, tornando possível a comparação dos vários
objetos sensoriais entre si. Mas o ato de conhecer não se reduz apenas a isso. Vendo dois
objetos idênticos, faço o juízo: esses objetos são iguais. O conceito de igualdade surge em
mim sem que exista na realidade sensível, e me faculta o juízo, assim como o faz a
recordação. Assim como uma árvore me lembra outra, dois objetos observados em certas
condições me lembram a noção de igualdade. Vejo, pois, surgir em mim pensamentos, qual
lembranças não formadas a partir do mundo sensível. Todos os conhecimentos que não foram
hauridos da realidade física baseiam-se em tais pensamentos, como, por exemplo, toda a
matemática. Péssimo geômetra seria quem somente pudesse estabelecer relações geométricas
a respeito do que pudesse enxergar com os olhos ou apalpar com as mãos. Fica, pois,
estabelecido que temos pensamentos não surgidos na natureza transitória, mas do espírito; e
são esses pensamentos que levam o cunho de uma verdade eterna. Sempre será verdade o que
a matemática ensina, mesmo se todo o nosso Universo se desintegrar para dar lugar a outro.
Poderia acontecer que as circunstâncias em tal Universo não permitissem a aplicação das
verdades matemáticas atuais; mas estas permaneceriam intrinsecamente verdadeiras. Apenas
quando a alma está só consigo mesma é que pode produzir tais verdades eternas, o que mostra
ser ela afim com o verdadeiro e o eterno, e não com o temporal e o ilusório. Daí esta
afirmação de Sócrates:
Quando a alma reflexiona de moto próprio, apega-se ao que é puro, sempiterno, imortal e
sempre igual a si mesmo; sempre que puder, ficará nessa convivência por causa de sua
afinidade; isenta de seus erros, permanecerá igual a si própria, e a esse estado dá-se o nome
de racionalidade. Não resulta de tudo isso estar a alma semelhante ao que é divino, imortal,
racional, unívoco, indissolúvel e sempre igual, enquanto o corpo é afim ao que é humano e
mortal, ao irracional, multiforme e perecível? Sendo assim, a alma procurará o que lhe é
aparentado — o divino, o imortal, o racional não dotado de forma física —, e lá estará feliz,
livre de erros e incertezas, do medo, das paixões e de todos os males humanos. Conviverá
todo o resto do tempo com Deus, como dizem os iniciados.
Não pode ser nossa tarefa aqui indicar os caminhos pelos quais Sócrates conduz seus amigos ao
que é eterno. Todos são impregnados do mesmo espírito. Todos mostram que o homem
encontrará uma coisa se trilhar os caminhos da percepção sensorial e outra se deixar seu
espírito entregue a si próprio. Sócrates aponta a seus ouvintes essa natureza primordial do
espírito: se o encontrarem, seus olhos espirituais lhes revelarão o que é eterno. No limiar da
morte, Sócrates não prova a imortalidade; simplesmente expõe a essência da alma. Vê-se,
então, que devir e perecer, nascimento e morte são alheios a essa alma; a essência da alma

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reside na verdade, que é imutável e imperecível. A alma está para o devir como o par para o
ímpar. Mas a morte tem afinidade com o devir. Portanto, a alma nada tem a ver com a morte.
Há tanta incongruência entre o mortal e o imortal quanto existe entre o par e o ímpar.
Sócrates acrescenta:
Se o imortal é também imperecível, é impossível a alma perecer no momento da morte, pois
não pode aceitar a morte nem morrer, assim como o número três não pode tornar-se um
número par.
Recapitulemos toda a evolução desse diálogo, em que Sócrates leva seus ouvintes a
entrever o eterno na personalidade humana. Eles escutam suas idéias e indagam se haveria em
suas próprias experiências íntimas algo que lhes permitisse identificar-se com elas; fazem as
objeções que lhes surgem. Mas o que lhes aconteceu ao terminar a conversa? Encontraram em
si algo que antes não tinham. Passaram por uma evolução, em vez de simplesmente terem
assimilado uma verdade abstrata. Algo que antes não vivia neles passou a ter vida própria. Não
poderia tudo isso ser comparado a uma iniciação? Não aparece agora sob nova luz a
circunstância de ter Platão exposto sua filosofia sob forma de diálogos? Esse tipo de
conversação pretende constituir a forma literária para o que acontecia nos santuários dos
mistérios. Platão fornece uma prova convincente disso em muitos trechos de sua obra. Ele
pretendia ser, como mestre de Filosofia, o que nos mistérios era o sacerdote que presidia a
iniciação, mas na medida em que isso fosse compatível com a forma filosófica da
comunicação. Como Platão se sente em harmonia com os processos seguidos nos mistérios!
Como considera sua própria maneira de ensinar correta apenas quando leva o discípulo aonde
o neófito deve chegar! A esse respeito, explica no Timeu:
Todos os mais ou menos bem-intencionados costumam invocar os deuses em todos seus
empreendimentos pequenos ou grandes. A nós, que pretendemos falar sobre o Universo, sua
origem e sua decomposição, tal obrigação cabe em grau mais alto, a não ser que nos
tenhamos afastado completamente do caminho divino; devemos, pois, rogar para que nos
seja dado ensinar tudo, conforme o Espírito Divino e em harmonia conosco mesmos.
Aqueles que procuram tal caminho, Platão promete:
Qual um salvador, Deus fará culminar a investigação, tão sujeita a erros e desvios, numa
teoria de fácil compreensão.
O caráter iniciático da cosmovisão platônica revela-se especialmente no Timeu, onde logo
no início se fala de uma ‘iniciação’. Sólon é ‘iniciado’, por um sacerdote egípcio, na gênese
dos mundos e na maneira como as mitologias tradicionais revelam verdades eternas sob forma
de imagens. Assim ensina o sacerdote egípcio a Sólon:
Muitas vezes e de muitas maneiras houve exterminações de homens, e haverá outras — as
maiores pelo fogo e pela água, outras menores por inúmeros outros meios. Pois aquilo que
contam em seu país, isto é, que Faéton, filho de Hélio, subiu no carro de seu pai, mas
incendiou tudo na Terra e veio a morrer fulminado por não saber seguir os caminhos pater-
nos, parece uma fábula; contudo, contém uma parcela de verdade, pois se refere a uma
modificação do movimento dos astros girando ao redor da Terra e à destruição de tudo o que
existia na Terra, em conseqüência de um grande incêndio que ocorre a grandes intervalos.
Nessa passagem do Timeu fica realçada a interpretação dos mitos populares pelo
iniciado: ele fica conhecendo as verdades veladas em suas imagens.
No Timeu é representado o drama da gênese do mundo. Quem seguir os rastros que levam
a essa gênese chegará ao pressentimento da força primordial que deu origem a tudo.
É difícil descobrir o Criador e Pai desse Universo; e, se for encontrado, será impossível falar a
seu respeito de forma inteligível a todos.

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O iniciado sabia a significação dessa ‘impossibilidade’, com a qual se faz referência ao
drama de Deus. Este não existe para ele no mundo sensório e inteligível; existe apenas sob
forma de natureza, estando oculto nela. Só poderá aproximar-se dele, de acordo com a velha
doutrina iniciática, quem despertar o Divino dentro de si próprio. Deus não pode, pois, tão
simplesmente tornar-se inteligível a todos. E mesmo a quem o aborda ele não se revela
diretamente. É isso o que está implícito no Timeu. O Pai fez o mundo com o corpo e a alma
universais. Misturou, em proporções perfeitas, os elementos que se formaram quando,
derramando-se a si próprio, sacrificou sua existência individual. Assim ele engendrou o corpo
cósmico. E foi sobre esse corpo cósmico que a Alma Cósmica foi estendida, sob forma de cruz;
ela é o elemento divino no mundo, e submeteu-se à crucificação para dar-lhe origem. Platão
pode pois, com razão, chamar a natureza de sepultura do Divino. Contudo essa sepultura não
contém algo morto, e sim um ser eterno, ao qual a morte apenas fornece a oportunidade de
manifestar a onipotência da vida. Essa natureza, porém, só revelará sua essência a quem a
abordar para libertar de seu encanto a Alma Cósmica crucificada. Como deve ela ressurgir de
sua morte, de seu encanto, e onde? Somente na alma do iniciado. É desse modo que a
sabedoria encontra sua devida relação com o Cosmo. A ressurreição e a libertação de Deus: eis
o conhecimento. A evolução do Universo progride, no Timeu, do imperfeito ao perfeito,
apresentando um processo ascendente no qual Deus se revela, ressurgindo do túmulo. Durante
essa evolução o homem aparece, e Platão indica o significado especial que isso tem. O
Universo todo é divino, e o homem não é mais divino que os outros seres; mas enquanto Deus
reside neles de modo latente, sua presença no homem é manifesta. No fim do Timeu, lemos:
Podemos afirmar que nossas discussões sobre o Universo chegaram a um termo: depois de
ter ficado repleto, como foi exposto, de seres vivos mortais e imortais, o próprio Universo
converteu-se num ser do mesmo gênero, que abarca o mundo visível, numa imagem do
Criador, num Deus perceptível aos sentidos; esse Universo tornou-se uno e unigênito, o maior,
o melhor, o mais belo e perfeito que pode haver.
Mas esse Universo uno e unigênito não ficaria perfeito se não contivesse, entre as outras
imagens, a do próprio Criador, a qual só pode ser produzida pela alma humana. Contudo, esta
não pode engendrar o Pai, e sim o Filho, rebento divino que vive na alma e é igual a seu Pai.
Fílon, de quem diziam ser uma reencarnação de Platão, usa o termo ‘Filho de Deus’ para
designar a sabedoria oriunda do homem, que mora na alma e tem por conteúdo a razão
existente no mundo. Essa razão cósmica, o Logos, aparece como o livro “em que está anotado
e gravado tudo o que existe”. Aparece ainda como o Filho de Deus que, “seguindo os caminhos
do Pai, cria as formas de acordo com os arquétipos”. Bem dentro do pensamento platônico,
Fílon refere-se ao Logos como sendo o Cristo:
Sendo Deus o primeiro e único rei do Universo, o caminho que a ele conduz foi
acertadamente chamado o ‘Caminho Real’; que a Filosofia encare como tal o caminho
seguido pelo coro dos antigos ascetas, que se afastaram da atração mágica dos prazeres para
cultivar o Belo, digna e abnegadamente; a lei denomina esse Caminho Real, que para nós
constitui a verdadeira Filosofia, Verbo e Espírito de Deus.
Trilhar esse caminho é, para Fílon, como uma iniciação; nele ele encontrará o Logos que,
para ele, é Filho de Deus:
Não receio tornar público o que repetidamente me ocorreu. Várias vezes, querendo anotar da
forma costumeira minhas idéias filosóficas e vendo nitidamente o que queria fixar, meu
espírito se revelou estéril e rígido, obrigando-me a desistir do que pretendia fazer e dando-
me a impressão de estar preso a ilusões fúteis; ao mesmo tempo, fiquei admirado da força do
pensamento — dependendo desta, o receptáculo da alma se abre ou se fecha. Outras vezes
comecei no vazio e cheguei, de imediato, à plenitude, pela abundância das idéias que
desceram sobre mim qual flocos de neve ou grãos de semente; fiquei arrebatado e
entusiasmado como que por força divina e perdi a noção de quem era, onde estava, quem

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estava comigo e o que estava dizendo e escrevendo: senti o fluxo da exposição dos
pensamentos, uma clareza maravilhosa, um olhar agudo, um domínio perfeito da matéria,
como se o olhar interno pudesse abranger tudo com a maior nitidez.
Esta é a descrição de um caminho iniciático, feita de tal maneira que se sente no iniciado
a consciência de que o Logos vivificado em sua alma se torna uno com o Divino. Essa experiên-
cia ressalta também do seguinte trecho:
Quando o espírito voa para o que é mais sagrado, tomado de amor, inspirado por Deus e
animado de profunda alegria, esquece tudo, inclusive a si próprio, pois está repleto apenas
daquele cujo companheiro e servo pretende ser, ofertando-lhe em sacrifício a virtude mais
sagrada e casta.
Existem para Fílon apenas dois caminhos. Trilhando o sensorial, ao qual serve o intelecto,
o homem se limita à própria personalidade, subtraindo-se ao Cosmo; pelo outro, o homem se
torna consciente da força universal, vivenciando em si o eterno.
Quem quiser evitar Deus cairá vítima de si próprio; pois existem apenas dois elementos em
questão: o Espírito Universal, ou Deus, e o espírito individual; este se refugia no Espírito
Divino, pois quem transcende seu próprio espírito percebe sua nulidade e liga tudo a Deus;
quem, porém, foge de Deus suprime-o como causa primordial e coloca-se em seu lugar, como
fundamento de tudo o que acontece.
A cosmovisão platônica pretende constituir um conjunto de conhecimentos que, por suas
características, é uma religião. Relaciona o conhecimento com o que de mais alto o homem
pode atingir por seus sentimentos. Platão considera válido o conhecimento apenas quando o
sentimento encontra nele sua mais profunda satisfação. Não constitui, nesse caso, um saber
imaginativo, mas conteúdo da existência, qual um homem superior dentro do homem. A
personalidade é apenas um decalque desse homem superior, arquetípico,nascido dentro do
homem. Com isso se evidencia mais um segredo iniciático na filosofia platônica, do qual
Hipólito, Pai da Igreja, declara o seguinte:
Trata-se do grande segredo dos homens da Samotrácia [guardiães de um determinado culto
iniciático], segredo que nem se deve pronunciar e que é conhecido somente pelos iniciados. Estes,
porém, falam detalhadamente de Adão como seu homem arquetípico.
Também o Diálogo sobre o amor, o Simpósio, de Platão, representa uma ‘iniciação’.
Nele, aparece o amor como anunciador da sabedoria. Se a sabedoria, o Verbo Eterno (Logos) é
o Filho do Criador do Cosmo, o amor tem uma relação materna com esse Logos. Antes que a
mínima centelha da sabedoria possa raiar na alma, deve existir um impulso indefinível em
direção a esse Divino. O homem deve ser atraído inconscientemente para o que, uma vez
conscientizado, constituirá sua mais alta felicidade. A noção de amor associa-se no homem
com o demônio heraclitiano. No Simpósio, homens das mais variadas ocupações e atitudes
perante a vida expressam-se sobre o amor: o homem comum, o político, o cientista;
Aristófanes, poeta satírico, e Agaton, poeta trágico. Cada um tem uma opinião a respeito do
amor, de acordo com suas experiências de vida. O grau de evolução de seu ‘demônio’ se
traduz em suas considerações. Um ser é atraído para outro pelo amor. A variedade e
multiplicidade das coisas em que se derramou a unidade divina tende a voltar à unidade e à
harmonia pelo amor. Este, portanto, tem algo de divino, e cada um poderá entendê-lo à
medida que compartilha do divino. Depois que homens dos mais variados graus de maturidade
expuseram seus pensamentos a respeito do amor, Sócrates toma a palavra. Ele encara o amor
do ponto de vista de um homem em busca do conhecimento. Para ele, o amor não é Deus, mas
algo que leva o homem a Deus. Eros, o Amor, não é Deus. Com efeito, Deus é perfeito,
possuindo o belo e o bom. Mas Eros é apenas o desejo do belo e do bom, ocupando, pois, um
lugar entre o homem e Deus. É um ‘demônio’, um ser mediador entre o terreno e o divino.

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Significativamente, Sócrates, ao discorrer sobre o amor, afirma não emitir sua própria
opinião, mas sim contar o que uma mulher lhe revelou a esse respeito. Suas idéias sobre o
amor são fruto de uma arte divinatória, pois foi Diotima, a sacerdotisa, quem despertou em
Sócrates a força demoníaca suscetível de conduzi-lo ao Divino. Ela o ‘iniciou’.
Esse aspecto do Simpósio é eloqüente. Resta perguntar: quem é a ‘mulher sábia’ que
despertou o demônio em Sócrates? Não se pode pensar aqui apenas em disfarce poético, pois
nenhuma mulher real poderia despertar o demônio numa alma que já não contivesse em si
própria a força para esse despertar. Temos, pois, de procurar a ‘mulher sábia’ na própria alma
de Sócrates, embora deva haver um motivo que faça manifestar-se, sob forma de um ser
exterior, o impulso que dá existência ao demônio dentro da própria alma. Esse impulso não
pode atuar na alma como os outros impulsos diretamente inerentes a ela. Sócrates, como se
vê, representa sob o símbolo da 'mulher sábia' a força anímica antes de adquirir a sabedoria, o
princípio materno, que dará nascimento ao Filho Divino, à Sabedoria, ao Logos. A força
anímica inconsciente, que permite ao Divino entrar na consciência, é apresentada como um
elemento feminino. A alma, ainda desprovida de sabedoria, é a mãe daquilo que conduz ao
Divino. Encontramos aqui uma idéia importante da mística: a alma é reconhecida como a mãe
do Divino. Inconscientemente ela conduz o homem ao Divino, com a necessidade de uma força
natural. Desse ponto de vista, fica iluminada por uma nova luz a tradição iniciática da
mitologia grega. O mundo dos deuses teve sua origem na alma. O homem considera como seus
deuses as imagens que ele próprio cria. Mas tem de progredir até chegar a mais uma
representação: ele deve transformar em imagens divinas a força que sentiu antes da criação
das outras figuras divinas. Atrás do Divino surge a mãe do Divino, que nada mais é senão o
poder primordial da alma humana. Ao lado dos deuses o homem coloca as deusas. Veja-se o
mito de Dionísio à luz dessas idéias. Dionísio é o filho de Zeus e de uma mãe mortal, Semeie.
Zeus arranca a criança ainda imatura do corpo da mãe morta, por um raio e a coloca no
próprio flanco até o momento de nascer. Hera, a Mãe Divina, incita os titãs contra Dionísio.
Eles despedaçam a criança, mas Palas Atena salva o coração ainda palpitante e o leva a Zeus,
e este gera o filho pela segunda vez. Este mito representa uma ocorrência que se passa no
cerne da alma, e quem falasse como o sacerdote egípcio que instrui Sólon sobre a essência de
um mito, diria o seguinte: “Parece uma fábula o que contam em teu país, ou seja: que
Dionísio, filho de um deus e de uma mulher mortal, tenha sido despedaçado e haja renascido.”
Porém há nisso algo de verdadeiro: o nascimento do Divino e seus destinos na própria alma
humana. O elemento divino se une à alma terrena e temporal. Sentindo suas primeiras mani-
festações, a alma é tomada de um violento desejo por sua verdadeira forma espiritual. A
consciência, simbolizada por Hera, outra divindade feminina, sente ciúmes pelo fato de o
Divino ser gerado pela consciência superior. Incita os baixos instintos do homem (os titãs). O
Filho de Deus, ainda imaturo, é despedaçado. Encontramo-lo no homem sob a forma das
ciências sensoriais e racionais fracionadas. Mas se existir no homem sabedoria (Zeus) em
quantidade suficiente para atuar, ela cuidará da criança imatura, que voltará a nascer qual um
segundo filho divino (Dionísio). Da mesma forma nascerá das ciências, isto é, dos restos da
força divina fracionada no homem, a sabedoria una, o Logos, o Filho de Deus e de uma mãe
mortal, isto é, da alma humana transitória, aspirando inconscientemente ao Divino. Enquanto
vemos em tudo isso apenas um simples processo anímico, considerando-o como imagem,
estaremos longe da realidade espiritual que aí se desenrola. Nesta a alma vivência não apenas
algo em si; desligada de si própria, participará de um acontecimento cósmico que na verdade
se desenrola fora dela.
A sabedoria platônica e o mito grego se coadunam da mesma maneira como a sabedoria
iniciática e o mito, no sentido mais amplo. Os deuses, frutos dessa união, eram objetos da
religião popular; a história de sua gênese constituirá o segredo dos mistérios. Não é de admirar

25
que a ‘traição’ desses mistérios fosse considerada perigosa, pois significava a revelação da
origem dos deuses populares. A compreensão correta dessa origem é benéfica, mas qualquer
mal-entendido pode revelar-se nefasto.

A sabedoria iniciática e o mito

O iniciado procura discernir, dentro de si mesmo, forças e entidades que permanecem


desconhecidas no homem enquanto este não superou a concepção corriqueira da existência. O
iniciado formula a grande pergunta sobre suas próprias forças e leis que transcendem a
natureza inferior. O homem comum, com as concepções comuns, sensório-lógicas da vida, cria
deuses para si; ou, quando cônscio dessa atividade criadora, nega-os. O iniciado reconhece que
ele cria deuses e também por que o faz; descobriu, por assim dizer, a lei natural que preside à
invenção dos deuses. Sucedeu-lhe o que se passaria numa planta subitamente consciente e
conhecedora dos princípios de seu crescimento e de sua evolução. Ora, ela se desenvolve num
estado de inconsciência ingênua; conhecendo seus próprios princípios, suas relações para
consigo mesma seriam mudadas. Consciente, ela teria como ideal de si própria os sentimentos
do trovador, ou os conceitos do botânico em relação às suas leis, às forças que nele atuam.
Seu saber o faz projetar algo divino para além de si mesmo. Foi essa também a atitude dos
iniciados em relação às criações populares que transcendiam a mera natureza, isto é, o mundo
dos deuses e dos mitos. Procurando descobrir os princípios desse mundo, eles foram buscar
uma verdade superior nas figuras divinas e nos mitos do povo.
Consideremos um exemplo: — O rei cretense Minos havia obrigado os atenienses a
fornecer-lhe, de oito em oito anos, sete rapazes e sete moças para serem jogados como
alimento ao Minotauro, um terrível monstro. Quando o triste cortejo embarcou pela terceira
vez em direção a Creta, o príncipe Teseu o acompanhou. A própria filha do rei Minos, Ariadne,
cuidou dele após sua chegada a Creta. O Minotauro vivia no Labirinto, um dédalo 4 de onde
ninguém, uma vez tendo lá entrado, conseguia sair. Teseu, desejando livrar sua cidade natal
do tributo vergonhoso, precisava entrar no Labirinto, onde habitualmente eram jogadas
vítimas do monstro. Ele queria matar o Minotauro. Realizando essa proeza, superou o terrível
adversário e conseguiu sair do Labirinto, aproveitando-se de um novelo de linha que Ariadne
lhe dera. — O iniciado tinha de entender como o espírito humano chega a inventar semelhante
história. Queria auscultar o espírito em sua atividade criadora, tal como o botânico observa o
crescimento de uma planta para induzir seus princípios. Procurava uma verdade, um conteúdo
de sabedoria onde o povo colocara um mito. Salústio nos descreve essa atitude de um sábio
místico perante tal mito:
Poder-se-ia chamar todo o Universo de mito, no qual ficam reunidos os corpos e as coisas de
maneira visível, e as almas e espíritos de modo invisível. Se a todos fosse ensinada a verdade
acerca dos deuses, os ignorantes a desprezariam, por não entendê-la; os mais capazes a
aceitariam, porém, com facilidade; apresentada, todavia, num disfarce mítico, ela fica a
salvo do desprezo e impele, ao mesmo tempo, a filosofar.
Para alguém que, como iniciado, procurava o teor da verdade de um mito, acrescentava-
se algo ao que já existia na consciência popular. O iniciado sabia estar situado acima dessa
consciência popular, assim como o botânico está acima da planta. Ele dizia algo diferente do
que existia na consciência mítica, embora visse no mito o veículo por meio do qual se
expressava simbolicamente o conteúdo de uma sabedoria mais profunda: — O homem enfrenta
o mundo sensorial, monstro inimigo, sacrificando-lhe os frutos de sua personalidade. O mundo

4
‘Dédalo’ é o próprio nome do arquiteto grego construtor do Labirinto de Creta, dando origem à designação comum
para um caminho confuso. (N.E.)

26
sensorial o engole, até surgir no homem o vencedor (Teseu). Seu conhecimento fornece o fio
que lhe permitirá voltar ao labirinto da sensualidade, onde penetra para matar o adversário.
Nessa vitória sobre o mundo sensorial se exprime o próprio mistério da cognição humana, bem
familiar ao iniciado. Esse mistério indica uma força que vive dentro da personalidade humana,
desconhecida à consciência comum, embora atue nela. Essa força produz o mito, cuja
estrutura é idêntica à da verdade mística, que nele se simboliza.
Que são, então, os mitos? Uma criação do espírito, da alma criadora inconsciente. A alma
é regida por leis que a fazem atuar em determinada direção para criar além de si própria. No
nível mitológico ela cria em imagens, mas estas seguem leis intrínsecas da alma. Poderíamos
também dizer: quando a alma progride do estado de consciência mitológica para as verdades
mais profundas, estas levarão o mesmo cunho que levavam anteriormente os mitos, pois em
ambos a criadora é a mesma. Plotino, filósofo da escola neoplatônica (204-269 d.C), diz a
respeito da relação entre a representação imaginativa dos mitos e o conhecimento superior
dos sacerdotes egípcios:
Quando comunicam sua sabedoria, os sacerdotes, obedecendo rigorosamente aos resultados de
sua pesquisa ou agindo instintivamente, deixam de usar, para expressar suas doutrinas ou
sentenças, símbolos gráficos que limitem a voz e o discurso; desenham imagens, deixando em
seus templos o conteúdo ideal de qualquer coisa na forma dos contornos dessas imagens, de
modo que estas representem um conjunto de conhecimentos e sabedoria, um objeto e uma
totalidade, mas não uma discussão ou disputa. Quem destacar o fundo espiritual da imagem e
o traduzir em palavras verá qual o motivo por que o processo só pode ser esse, e não outro.
Para se conhecer a relação entre a mística e narrações míticas, convém examinar como a
elas se refere a cosmovisão que, em sua sabedoria, está em harmonia com a maneira de
pensar dos mistérios. Tal harmonia é encontrada em sua plenitude em Platão, cuja
interpretação dos mitos é exemplar, assim como sua habilidade em usá-los em sua
argumentação. No Fédon, diálogo sobre a alma, ele faz alusão ao mito de Bóreas. Esta
divindade, vislumbrada no vento sibilante, viu uma vez a bela Oríntia, filha do rei ático
Ereteu, colhendo flores com suas amigas. Apaixonou-se e raptou-a, levando-a para sua gruta.
No diálogo, Platão faz Sócrates recusar uma interpretação puramente intelectual desse mito,
segundo a qual um fato natural teria encontrado na narração poética uma expressão simbólica.
A tempestade teria apanhado a princesa, jogando-a embaixo dos rochedos. Sócrates diz:
Tais interpretações são doutas argúcias, seja qual for sua popularidade atual. [...] Pois quem
dissecou uma dessas figuras mitológicas deve, para ser conseqüente, lançar dúvidas sobre
todas elas e procurar-lhes uma explicação natural. [...] Mas mesmo se tal fosse plenamente
realizado, revelaria em seu autor não uma disposição feliz, mas apenas humor prazenteiro,
sabedoria de campônio e precipitação ridícula. [...] Por isso, renuncio a tais indagações,
preferindo aceitar o que geralmente se acredita. Deixo de investigá-las, antes investigando a
mim mesmo, para saber se por acaso não sou eu um monstro, porém um monstro mais com-
plicado e por isso mais desordenado que uma quimera, mais selvagem que Tífon; ou se sou
um ser mais simples e manso e detentor de uma parcela de natureza virtuosa e divina.
Vemos aí o que Platão não aprova: uma interpretação intelectualista e racionalista dos
mitos. Convém confrontar isso com sua maneira de empregar os mitos para exprimir-se por
meio deles. Ele recorre ao mito ao falar da vida da alma, ao deixar os caminhos do finito para
buscar o eterno, abandonando as representações, fruto da percepção sensorial e do raciocínio
intelectual. O Fédon discorre sobre o eterno dentro da alma, descrevendo-a qual uma
carruagem puxada por dois cavalos alados e dirigida por um condutor. Um dos cavalos é manso
e dócil, o outro bravo e rebelde. O cavalo bravo aproveita qualquer obstáculo no caminho para
incomodar o outro e para desafiar o condutor. Põe tudo em desordem quando a carruagem
chega à região em que deve seguir os deuses até o cume dos céus. Se a força do cavalo bravo
puder ser derrotada pela do cavalo bom, vencendo o obstáculo, a carruagem conseguirá

27
alcançar o reino do supra-sensível. O mesmo se dá com a alma, que nunca se eleva ao reino
divino sem algum empecilho. Algumas almas se elevam mais, outras menos a essa visão do
eterno. Aquela que viu o além ficará incólume até a próxima volta; a que nada viu, por causa
do cavalo bravo, tem de procurá-lo em nova volta. Essas voltas significam as várias
encarnações. Uma volta representa a existência da alma numa personalidade. O cavalo bravo é
a natureza inferior, o cavalo sábio a superior; o condutor, a alma em busca de divinização.
Platão recorre, pois, ao mito para ilustrar o caminho da alma eterna por suas múltiplas
transformações. Em outros textos, procede de maneira análoga para representar a parte
interior, sensorialmente imperceptível do homem.
Platão se encontra aí em completa harmonia com a forma de expressão de outros que
igualmente fizeram uso de mitos e parábolas. Na literatura hindu encontra-se uma parábola
atribuída ao Buda: — Um homem apegado à vida, que de forma alguma quer morrer e procura
a satisfação sensual, é perseguido por quatro serpentes. Ouve uma voz que lhe ordena
alimentar e banhar as serpentes de vez em quando. Foge, amedrontado pelas serpentes
perversas. Novamente ouve uma voz que, desta vez, diz-lhe que cinco assassinos o perseguem.
Foge novamente, até que uma voz lhe indica um sexto assassino pronto a cortar-lhe a cabeça
com uma espada. Prosseguindo em sua fuga, alcança uma aldeia deserta, ouvindo novamente
uma voz, que lhe revela estarem ladrões na iminência de pilhar a aldeia. Fugindo, o homem
chega a um grande rio. Não se sentindo seguro na margem em que está, faz um cesto de
palha, madeira e folhas, alcançando nele a outra borda, onde finalmente está seguro: ele é
um brâmane.
Eis o sentido dessa parábola: — Até chegar ao Divino, o homem deve atravessar muitos
estados. Nas quatro serpentes estão os quatro elementos: o fogo, a água, a terra e o ar. Os
cinco assassinos representam os cinco sentidos. A aldeia deserta é a alma, que se libertou das
impressões sensoriais, mas que ainda não se sente segura sozinha consigo mesma. Se apenas se
apegar à natureza inferior, haverá de sucumbir. O homem tem de fabricar a canoa que o
levará pelo rio da transitoriedade, da margem da natureza sensorial para a outra, da
existência divina e eterna. Analisemos, sob este ângulo, o mistério egípcio de Osíris. Osíris se
havia tornado paulatinamente uma das divindades mais importantes, tendo sua imagem
substituído as de outros deuses existentes em vários setores do povo. Em torno de Osíris e sua
esposa Isis formou-se um significativo círculo de mitos. Osíris era filho do deus solar, seu irmão
era Tífon-Set e sua irmã, Isis. Tendo Osíris casado com sua irmã e com ela reinado sobre o Egi-
to, Tífon, o irmão mal-intencionado, pensou em como destruí-lo. Mandou fazer um caixão,
cujo comprimento era igual ao de Osíris.
Num banquete, esse caixão foi oferecido a quem nele coubesse exatamente. Ninguém,
exceto Osíris, o conseguiu. Quando ele se deitou no caixão, Tífon e seus sequazes se
precipitaram sobre ele, trancaram o caixão e o jogaram no Nilo. Inteirada da horrível notícia,
Ísis percorreu toda a região em busca do cadáver do marido. Quando o encontrou, Tífon
apoderou-se dele novamente, despedaçando-o em catorze segmentos, que foram espalhados
nas várias regiões do país. Vários túmulos de Osíris foram encontrados no Egito. Em muitos
lugares devem ter sido sepultadas partes do deus. O próprio Osíris, porém, ressurgiu das trevas
e venceu Tífon. Um raio seu caiu sobre Ísis, que concebeu e deu à luz um filho, Harpócrates ou
Hórus.
Compare-se agora com esse mito a concepção que teve do Universo o filósofo grego
Empédocles (490-430 a.C). Presume ele que o Ser Primordial uno foi outrora despedaçado nos
elementos água, terra, ar e fogo, ou seja, na multiplicidade da existência. Em seguida,
Empédocles põe em oposição o Amor e a Luta, forças que provocam todo devir e perecer neste
mundo da existência. A respeito dos elementos, Empédocles diz:

28
Em si mesmos inalteráveis, embora misturando-se, tornam-se homens e os inumeráveis
outros seres, ora pelo poder do amor agregando-se em figura, ora dispersando-se,
isolados, pelo ódio e pela luta.
Que são, então, as coisas deste mundo, do ponto de vista de Empédocles? São os
elementos em suas variadas combinações. Nasceram do esquartejamento do Uno Primordial
nas quatro entidades. Esse Uno Primordial verteu-se, portanto, nos elementos do mundo.
Qualquer coisa que se nos defronte participa da Divindade derramada. Mas essa Divindade
original está oculta, pois teve de perecer para engendrar as coisas. E as coisas, o que são?
Misturas dos componentes divinos, estruturadas pelo amor e pelo ódio. Empédocles diz
claramente:
Eis, como prova evidente, a estrutura de membros humanos: Como, por amor, as substâncias
se reúnem agora em unidade todas, tantas delas possuídas pelo corpo na flor da existência;
então, despedaçadas em luta e disputa nefastas, erram, por sua vez, solitárias nos confins da
vida.
O mesmo sucede com os arbustos e os aquáticos peixes, e com a fera montanhesa e os navios
a vela.
A idéia-mestra de Empédocles só pode ser a de que o sábio reencontra a Unidade
Primordial divina, metamorfoseada pelo amor e pelo ódio e escondida no mundo visível. Mas se
o homem encontrar o Divino, ele mesmo terá de ser algo divino, pois Empédocles julga que um
ser só pode ser conhecido por seu igual. Göethe exprime sua convicção nos seus versos:
Não fosse o olho afim ao Sol, como poderíamos a luz enxergar? Não vivesse
em nós a força de Deus, como nos poderia o Divino encantar?
Essas idéias sobre o mundo e o homem transcendendo a experiência sensorial, o adepto
podia encontrá-las no mito de Osíris. A força criadora divina derramou-se pelo mundo afora,
manifestando-se como os quatro elementos. Deus (Osíris) morreu. O homem, mediante sua
cognição de natureza divina, deve reanimá-lo. Qual Hórus (Filho de Deus, Logos, Sabedoria),
ele há de reencontrá-lo na polaridade entre luta (Tífon) e amor (Ísis). Em termos gregos, o
próprio Empédocles expressa sua opinião fundamental em imagens míticas: o amor é Afrodite,
a luta é Neikos; ambos agregam e separam os elementos.
Convém não confundir a exposição de um assunto mitológico, da maneira como aqui é
observado, com uma interpretação apenas simbólica ou até alegórica. Aqui não se cogita disso.
As imagens constitutivas do mito não são símbolos inventados para encobrir verdades
abstratas, mas sim experiências psíquicas autênticas do iniciado. Este vivencia as imagens com
a ajuda de seus órgãos espirituais de percepção, como o homem normal percebe as
representações dos objetos materiais pelos olhos e pelos ouvidos. Contudo, assim como a
representação nada é em si mesma enquanto não despertada na percepção pelo objeto
exterior, a imagem mítica nada será sem a inspiração por meio dos fatos reais do mundo
espiritual. Só que em relação ao mundo físico o homem se acha fora dos objetos, enquanto
que as imagens míticas só podem ser vividas se ele estiver dentro da realidade espiritual. Mas
para que isso aconteça, ele deve, segundo a opinião dos antigos adeptos, ter passado pela
iniciação. Os fatos espirituais por ele percebidos serão, então, quase que ilustrados pelas ima-
gens do mito. O significado do conteúdo mítico só se revelará a quem estiver capacitado a
tomá-lo por ilustração dos autênticos acontecimentos espirituais. Estes são supra-sensíveis,
enquanto que as imagens, empregando elementos do mundo físico, não são propriamente
espirituais, mas apenas uma ilustração do espiritual. Quem vive apenas nas imagens está
sonhando; a percepção espiritual consciente será atributo de quem souber captar o espiritual
em sua forma de imagem com a mesma força com que se tem, no mundo físico, o sentimento
da realidade da rosa por sua simples representação. É pelo mesmo motivo que as imagens dos
mitos não podem ser unívocas. Por seu caráter de ilustrações, podem os mesmos mitos

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exprimir várias realidades espirituais. Não há, portanto, contradição quando seus intérpretes
os relacionam ora com um fato espiritual, ora com outro.
Esse ponto de vista permite descobrir um fio condutor para interpretar os vários mitos
gregos. Vejamos, por exemplo, o mito de Hércules. Os doze trabalhos que lhe foram impostos
aparecem sob luz superior quando ponderamos que, antes de enfrentar a última tarefa, a mais
difícil, Hércules se fez iniciar nos mistérios eleusínios; Hércules, por ordem do rei Eristeu de
Micenas, tem de buscar no mundo inferior Cérbero, o cão das trevas, e levá-lo de volta. Para
poder descer ao Hades, Hércules tem de passar pela iniciação. Os mistérios levavam o homem,
mediante a morte do transitório, até o mundo inferior; queriam salvar da destruição o que
nele havia de eterno. Como iniciado ele pôde superar a morte, e foi como tal que venceu os
perigos do mundo das trevas.
Esse fato justifica interpretar também suas outras proezas como etapas do
desenvolvimento da alma. Hércules vence o leão da Neméia e o leva a Micenas. Em outras
palavras, ele domina e acorrenta as forças puramente físicas do homem. Em seguida, mata a
hidra de nove cabeças, depois de vencê-la com tochas. Embebendo suas flechas no fel da
hidra, torna-as infalíveis, isto é, supera, pelo fogo do espírito, a ciência inferior puramente
sensorial e extrai-lhe a força para discernir a realidade inferior à luz do olho espiritual. Prende
a cerva de Artêmis, deusa da caça: Hércules conquista o que a natureza livre pode oferecer à
alma humana. É de modo semelhante que podem ser interpretadas as demais tarefas. Não se
podem acompanhar aqui todos os aspectos, mas sim indicar que seu sentido geral se refere a
uma evolução interior.
Interpretação análoga cabe à jornada dos Argonautas. Frixo e sua irmã Hele, filhos de um
rei beócio, muito sofreram de parte de sua madrasta. Os deuses mandaram-lhes um carneiro
de pêlo dourado (velo), que os levou pelos ares. Quando passaram pelo estreito entre a Europa
e a Ásia, Hele caiu ao mar e se afogou; por isso, o estreito tomou o nome de Helesponto. Frixo
conseguiu chegar ao rei da Cólchida, na margem oriental do Mar Negro. Imolou o carneiro aos
deuses, oferecendo o velo ao rei Aetes, que o mandou pendurar num bosque, sob a guarda de
um terrível dragão. O herói grego Jasão, junto com outros heróis como Hércules, Teseu e
Orfeu, decidiu trazer o velo da Cólchida. Conseguir o tesouro de Aetes custou-lhe pesados
trabalhos. Mas ele obteve a ajuda de Medéia, filha do rei, entendida em magia. Domesticou
dois touros que exalavam fogo, arou um campo e semeou dentes de dragão, fazendo nascer do
solo guerreiros vestidos de armaduras. A conselho de Medéia, jogou-lhes uma enorme pedra, e
imediatamente eles se mataram uns aos outros. Um feitiço de Medéia permitiu a Jasão
adormecer o dragão e roubar o velo, com o qual ele inicia a viagem de volta à Grécia, acompa-
nhado de Medéia, que se torna sua esposa. O rei persegue os fugitivos, mas Medéia despedaça
seu irmãozinho Absirto e joga os pedaços ao mar. Querendo recolhê-los, Aetes se atrasa, de
modo que os dois conseguem chegar à Grécia com o velo.
Cada detalhe exige uma exegese profunda. O velo é algo infinitamente precioso
pertencente ao homem. Foi separado dele em tempos remotos, e só pode ser reconquistado
mediante a vitória sobre potências terríveis. O mesmo se dá com a parte eterna da alma
humana, que pertence ao homem. Este, no entanto, foi separado dela por sua natureza
inferior. Só pode reconquistá-la domando e adormecendo esta última. Isso será possível com a
ajuda de sua própria consciência (Medéia) e suas forças mágicas.
Medéia se torna, para Jasão, o que Diotima era para Sócrates: uma mestra do amor . A
sabedoria própria do homem tem o poder mágico de alcançar o Divino após vencer o que é
transitório. A natureza inferior só pode engendrar algo humanamente inferior — os homens
vestidos de armaduras vencidos pela força do espírito, ou seja, pelo conselho de Medéia. Mas
mesmo tendo conquistado o velo, isto é, o eterno, o homem não está salvo. Precisa sacrificar
parte de sua consciência (Absirto). Assim o exige o mundo sensorial, que só podemos com-

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preender como o múltiplo desmembrado. Poderíamos entrar ainda mais a fundo na descrição
dos fatos espirituais ocultos atrás das imagens; limitamo-nos aqui, porém, a pôr em evidência
o princípio da formação dos mitos.
De especial interesse para tal interpretação é a lenda de Prometeu. Prometeu e
Epimeteu são filhos do titã Jápeto. Os titãs são filhos da mais antiga geração dos deuses Urana
(Céu) e Gaia (Terra). Cronos, o mais velho deles, depois de destronar seu pai apoderou-se do
governo do mundo. Por esse motivo, ele e os demais titãs foram subjugados por seu filho Zeus,
que se tornou assim o mais alto dos deuses. Nessa luta, Prometeu esteve ao lado de Zeus, e foi
a seu conselho que Zeus baniu os titãs para os infernos. Mas a índole dos titãs sobrevivia ainda
em Prometeu, que era apenas parcialmente amigo de Zeus. Quando este quis aniquilar os
homens por sua soberbia, Prometeu cuidou deles, ensinando-lhes a arte dos números e da
escrita, e outras coisas que conduzem à civilização, em particular o uso do fogo. Irado contra
Prometeu, Zeus mandou fabricar, por seu filho Hefaístos, uma figura feminina de grande
beleza — Pandora, a onidotada. Os deuses prodigalizaram-lhe todas as qualidades possíveis.
Tendo-a Hermes, o mensageiro divino, levado à presença de Epimeteu, irmão de Prometeu, ela
lhe ofereceu como presente dos deuses uma caixinha, que Epimeteu aceitou, embora seu
irmão lhe tivesse aconselhado não fazê-lo em hipótese alguma. Ao ser aberta a caixinha, dela
saíram todos os males humanos possíveis. Como Pandora fechou rapidamente a tampa, um
deles, a esperança, ficou dentro da caixa, permanecendo, por isso, uma dádiva divina de valor
duvidoso.
Para punir o relacionamento de Prometeu com os homens, Zeus ordenou que ele fosse
acorrentado a um rochedo no Cáucaso, onde uma águia lhe devorava o fígado, que sempre se
regenerava. Ali Prometeu tem de passar os dias de agonia na mais completa solidão, até que
um deus se sacrifique espontaneamente, aceitando morrer. Mas o aflito suporta seu suplício
com paciência absoluta, pois havia-lhe sido anunciado que Zeus ia ser destronado pelo filho de
um mortal, se não se casasse com ela. Zeus, a quem era importante conhecer esse segredo,
mandou o mensageiro divino Hermes para conseguir alguma informação de Prometeu. Este,
porém, negou-se a fazer qualquer revelação.
A lenda de Hércules está ligada a Prometeu, pois em suas peregrinações Hércules passa
pelo Cáucaso e mata a águia que devora o fígado de Prometeu. O centauro Quínon, que não
pode morrer embora sofra de um ferimento incurável, sacrifica-se e Prometeu, redimido,
reconcilia-se com os deuses. Os titãs são a força da vontade oriunda, sob forma de natureza
(Cronos), do Espírito Cósmico primordial (Urano). Devemos encará-los como verdadeiros seres
volitivos, e não, abstratamente, como forças de vontade. Prometeu é um deles, e isso lhe
caracteriza a natureza. Contudo ele não é inteiramente titã, pois simpatiza, em certo sentido,
com Zeus, o ser que domina o mundo após sua vitória sobre a força indomada da natureza
(Cronos). Prometeu representa, pois, os reinos que deram ao homem a vontade, essa força
meio natural, meio espiritual, que sempre impele para a frente. De um lado, a vontade tende
para o bem; de outro, para o mal. Seu destino, que é o do próprio homem, dependerá de sua
inclinação para o espiritual ou o efêmero. O homem é acorrentado à natureza efêmera, roído
pela águia, causa de seus sofrimentos. Só poderá chegar a um ponto supremo se souber
encontrar seu destino na solidão. Ele tem um segredo: o divino (Zeus) tem de unir-se a uma
mortal, ou seja, à consciência humana ligada ao corpo físico, para gerar um filho, a sabedoria
humana (Logos) capaz de libertar o deus. Com isso, a consciência se torna imortal. Prometeu
não pode revelar esse segredo até que um iniciado (Hércules) se aproxime dele, matando o ser
que sempre o ameaça de morte. Um centauro — ser meio animal, meio homem — tem de
sacrificar-se para redimir o homem. O centauro é o próprio homem, criatura meio animal,
meio espiritual, que precisa morrer para redimir o homem inteiramente espiritual. O que
Prometeu — a vontade humana — despreza, Epimeteu — o intelecto, a astúcia — aceita. Mas as

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dádivas que recebe não passam de sofrimentos e pragas, pois o intelecto se apega ao que é
transitório e ilusório. Fica apenas a esperança de que um dia o eterno possa nascer do
efêmero.
O fio que nos conduz pelos mitos dos Argonautas, de Hércules e de Prometeu também se
revela útil na interpretação da Odisséia de Homero. Embora alguns possam considerar algo
forçado nosso modo de interpretar essa obra, uma ponderação serena de todos os elementos
fará com que mesmo o mais cético perca suas dúvidas quanto à legitimidade desse ponto de
vista. Sobretudo deve surpreender o fato de que Ulisses também contou ter descido ao Hades.
Seja qual for a opinião que se forme acerca do autor da Odisséia, ninguém lhe atribuirá a
descida de um homem mortal ao mundo inferior sem levar em consideração o que tal ato
significa na cosmovisão grega: a superação do efêmero e o despertar do eterno dentro da
alma. Admitindo-se que Ulisses tenha realizado esse feito, suas experiências, a exemplo das de
Hércules, adquirem significado mais profundo, pois representam marcos de sua evolução
psíquica. Acrescente-se a isso que a própria narração da Odisséia não se refere tanto a uma
seqüência de fatos exteriores. Vemos o herói navegar em navios fantásticos, com flagrante
desprezo das verdadeiras distâncias geográficas. O que importa aí não é a realidade sensória,
fato compreensível quando se aceita estarem os fatos psíquicos servindo apenas para ilustrar
uma evolução espiritual. O próprio Poeta diz, logo no início de sua obra, que se trata de
buscar a alma:
Dize-me, ó musa, do varão peregrino,
tão errante após destruir a sagrada Tróia:
viu muitas cidades dos homens, aprendeu muitos costumes,
padecendo no mar os males da enfermidade,
ansiando pela própria alma e pelo regresso dos amigos.
Eis um homem em busca da alma, do Divino, e a epopéia narra a peregrinação em busca
desse Divino. Ulisses chega ao país dos Ciclopes, gigantes disformes, com um só olho na fronte.
O mais terrível deles, Polifemo, devora vários de seus companheiros. Ulisses salva-se cegando
o ciclope. Trata-se do primeiro passo na peregrinação da vida: é preciso superar a força física,
a natureza inferior; ela devora quem não lhe tira a força e não a cega. Em seguida Ulisses
alcança a ilha da feiticeira Circe, que transforma alguns de seus companheiros em porcos
grunhidores, mas é vencida pelo herói. Circe representa a força espiritual inferior, que se
apega ao transitório; pelo abuso desse poder o homem fica rebaixado à animalidade. Depois de
superá-la, Ulisses pode descer ao Hades, tornando-se um adepto. Fica exposto aos perigos que,
na passagem dos graus inferiores aos superiores da iniciação, ameaçam o iniciado. Chega às
Sereias, as quais, pelo feitiço de seus cantos, atraem os navegantes para a morte. São elas os
produtos da imaginação inferior cobiçados pelo homem que se libertou do mundo físico. Seu
espírito alcança certa autonomia, mas não a iniciação. Corre atrás de fantasmagorias, de cujo
poder ele tem de libertar-se.
Em dado momento, Ulisses deve realizar a terrível passagem entre Cila e Caribdes: o
futuro iniciado hesita entre o espírito e a sensualidade. Ainda não compreende o pleno valor
do espírito, mas a sensualidade já perdeu seu valor anterior. Um naufrágio mata todos os
companheiros de Ulisses; ele chega sozinho à ninfa Calipso, que o recebe carinhosamente e
trata dele durante sete anos, para finalmente deixá-lo voltar à pátria, em obediência a uma
ordem de Zeus. O adepto alcança um grau em que todos fracassam — exceto ele, o único
considerado digno. Consome, porém, um período determinado pelo símbolo místico do número
sete para percorrer gradativamente as etapas da iniciação.
Antes, porém, de chegar à pátria, Ulisses atinge a ilha dos Feácios, onde é acolhido com
hospitalidade. A filha do rei Alcinoo testemunha-lhe sua simpatia, e o próprio rei o acomoda e
trata-o com todas as honras. Mais uma vez o mundo com seus prazeres o atrai, e o espírito

32
ligado a esse mundo (Nausícaa) volta a despertar nele. Mas Ulisses encontra o caminho que o
leva à pátria, ao Divino. Em seu lar, nada de bom o espera. Rodeada por uma hoste de
pretendentes, sua esposa Penélope promete casamento a cada um, desde que termine de
tecer uma determinada tela. Furta-se a pagar sua promessa desfazendo à noite o quanto teceu
durante o dia. Os pretendentes devem ser vencidos por Ulisses, para que este possa unir-se
novamente, em paz, à esposa. A deusa Atena o transforma num mendigo, a fim de torná-lo
irreconhecível quando chegar. Dessa maneira ele consegue destruir os pretendentes.
O que Ulisses procura é sua consciência mais íntima, as próprias forças divinas na alma. O
iniciado, querendo unir-se a elas, precisa vencer tudo o que, como os pretendentes, disputa os
favores dessa consciência. A hoste de pretendentes emana do reino da realidade inferior, da
natureza transitória. A lógica que se lhe dispensa é um tecido que sempre se desfaz. A
sabedoria (a deusa Atena) é o guia seguro para a realização das forças mais íntimas da alma.
Transformando o homem em mendigo, ela o despe de tudo o que se origina da transitoriedade.
As festas eleusínias celebradas na Grécia em honra de Deméter e Dionísio se revelam
totalmente imbuídas de sabedoria iniciática. De Atenas, um caminho sagrado conduz a Elêusis,
ornado com símbolos enigmáticos suscetíveis de elevar a alma a um estado sublime. Em Elêusis
havia templos misteriosos, cujo serviço estava a cargo de famílias de sacerdotes em que a
dignidade e sua premissa, a sabedoria, transmitiam-se de geração em geração.5 A sabedoria
que capacitava o sacerdote para o desempenho do serviço sagrado era a sabedoria dos
mistérios gregos. Os festivais, celebrados duas vezes por ano, ofereciam o grande drama
cósmico do destino do divino no mundo e do destino da alma humana. Os mistérios menores
eram celebrados em fevereiro, os maiores em setembro. As iniciações realizadas nessa ocasião
culminavam com a representação simbólica do drama cósmico humano. Os templos de Elêusis
foram erigidos em honra de Deméter, filha de Cronos. Esta concebeu de Zeus, antes que ele se
casasse com Hera, uma filha — Perséfone. Esta foi raptada um dia, quando brincava, por
Plutão, deus dos Infernos. Deméter, lamentando em altos gritos sua infelicidade, percorreu o
mundo à sua procura. As filhas de Celeus, senhor de Elêusis, encontraram-na sentada numa
pedra. Disfarçada em mulher velha, ela entrou a serviço da família de Celeus, para cuidar do
filho da família. Queria tornar esse filho imortal e, para isso, escondeu-o toda noite no fogo.
Mas a mãe veio a perceber e passou a chorar e lamentar-se, impossibilitando destarte a
concessão da imortalidade. Deméter abandonou a casa. Celeus erigiu um templo. Deméter,
infinitamente triste pela perda de Perséfone, condenou a Terra à infertilidade. Para evitar
uma catástrofe, os deuses tinham de aplacá-la, e Zeus convenceu Plutão a devolver Perséfone
à superfície da Terra. Antes, contudo, o deus dos Infernos fê-la comer uma romã, fazendo
dessa maneira com que ela tivesse de descer periodicamente ao Hades, passando daí em
diante um terço do ano no mundo inferior e dois terços na Terra. Apaziguada, Deméter voltou
ao Olimpo, depois de instituir, em memória a seu destino, o serviço sagrado a ser celebrado
em Elêusis, onde sofrerá sua grande aflição.
Não é difícil captar o sentido do mito de Deméter e Perséfone. O que mora alternadamente
no mundo inferior e na Terra é a alma. As imagens representam a imortalidade da alma e sua
transmutação contínua por intermédio do nascimento e da morte. Nascida de Deméter,
símbolo do imortal, foi a alma raptada pelo poder do transitório e obrigada a participar de seu
destino. Comendo do fruto do Hades, saturou-se do temporal e não pôde mais morar
definitivamente nas alturas do Divino: daí a necessidade de suas voltas periódicas. Deméter
representa a essência de onde nasceu a consciência humana, que devemos encarar tal qual foi
engendrada pelas forças espirituais da Terra. Deméter é, portanto, a Entidade Primordial da
Terra; e um aspecto ainda mais profundo de sua essência é sugerido ao lembrarmos que ela
5
Sobre a instituição desses lugares, encontram-se informações instrutivas em Ergänzungen zu den letzten
Untersuchungen auf der Akropolis in Athen [Complementos às últimas pesquisas na acrópole de Atenas], de Karl
Bötticher, filólogo. (Supl. tomo 3, 30. cad.) [Ref. incompleta do original.]

33
impregnou a Terra com as forças germinativas dos frutos do campo. Ora, esse ser quer tornar o
homem imortal, escondendo no fogo, durante a noite, o menino confiado a seus cuidados. Mas
o homem não suporta a força pura do fogo (espírito). Deméter tem de abandonar seu projeto e
limitar-se à instituição de um culto que faculte ao homem participar do Divino, na medida de
suas possibilidades. As festas eleusínias eram uma confissão eloqüente da fé na imortalidade
da alma humana, confissão que encontrou sua expressão imaginativa no mito de Perséfone.
Além de Deméter e Perséfone, em Elêusis era festejado Dionísio. Assim como em Deméter era
adorada a criadora divina do elemento eterno no homem, em Dionísio era adorado o elemento
que se achava em eterna transmutação. O deus que se derramou no mundo, que fora
despedaçado para mais tarde ressurgir espiritualmente tinha de ser cultuado junto com
Deméter.6

A sabedoria dos mistérios egípcios

“Quando subires ao puro éter, livre de teu corpo, serás um deus imortal esquivado da
morte.” Esta sentença de Empédocles resume, em poucas palavras, o pensamento dos antigos
egípcios a respeito do eterno no homem e sua conexão com o Divino, como o prova o chamado
Livro dos mortos, decifrado no século XIX pelo zelo dos cientistas.7 Trata-se da maior obra
literária que os egípcios nos legaram! Ele contém várias recomendações e orações colocadas
nos túmulos para servir de guia ao defunto liberto de seu envoltório mortal. Nessa obra se
encontram as idéias mais íntimas dos egípcios sobre a eternidade e a origem do mundo,
indicando conceitos dos deuses semelhantes aos da mística grega.
Entre os deuses venerados nas diversas regiões do Egito, Osíris passou pouco a pouco a ser
o mais popular e o mais insigne. Nele se resumem os conceitos sobre as outras divindades.
Qualquer que tenha sido o conceito das massas egípcias a respeito de Osíris, o Livro dos
mortos indica que a sabedoria dos sacerdotes via nele uma entidade semelhante à que se
podia encontrar na própria alma humana.
Tudo o que se pensava a respeito da morte e dos mortos confirma isso muito claramente.
Uma vez entregue o corpo à terra para nele ser guardado, a parte imortal dirige-se ao Reino
Eterno, apresentando-se, para ser julgada, perante Osíris, que se acha rodeado de 42 juizes
dos mortos, de cujo veredicto depende seu destino futuro. Se a alma, depois de confessar seus
pecados, for considerada reconciliada com a justiça eterna, seres invisíveis irão ao seu
encontro dizendo: “O Osíris X foi purificado na lagoa ao sul do campo de Hotep e ao norte do
campo dos Gafanhotos, onde, na quarta hora da noite e na oitava do dia, os deuses do
desabrochar se purificam com a imagem do coração dos deuses, passando da noite para o dia.”
Portanto, dentro da ordem cósmica a própria parte eterna do homem é chamada de Osíris. O
nome pessoal do defunto acompanha a denominação ‘Osíris’, e aquele se qualifica como tal
após sua união com a ordem cósmica eterna: “Sou o Osíris X. O nome de Osíris X cresce sob a
figueira em flor.” O homem converte-se, pois, num Osíris. Ser Osíris é apenas um grau elevado
da existência humana. Parece então natural que Osíris, exercendo a função de juiz, de acordo
com a ordem cósmica, não passe de um homem perfeito. Entre ser homem e ser deus há uma
diferença de grau e de número. Aqui se baseia o conceito iniciático do enigma do ‘número’.
Osíris como ser cósmico é uno; existe, porém, indiviso em toda alma humana. Cada homem é
um Osíris; no entanto, Osíris como ser uno deve também ser concebido como entidade em si. O

6
Uma brilhante descrição do espírito dos mistérios eleusínios é encontrada na obra de Edouard Schouré Sanctuaires
d'orient (Paris, 1898).
7
Veja-se Lepsius: Das Totenbuch der alten Aegypter [O livro dos mortos dos antigos egípcios]. Berlim, 1842.

34
homem segue uma evolução em cujo fim está sua existência divina. Por isso não convém falar,
nessa ordem de idéias, de um ser divino acabado e definido, mas sim de divindade.8
Segundo essa interpretação, não há dúvida de que só pode tornar-se Osíris quem já o é ao
chegar ao limiar do reino eterno. A mais alta forma de existência será, pois, aquela em que o
homem se transforma em Osíris. O homem autêntico deverá conter, já durante sua vida
terrena, um Osíris tão perfeito quanto possível. O homem se aperfeiçoa vivendo qual um Osíris
e experimentando o que experimentou Osíris. Daí decorre o significado mais profundo do mito
de Osíris, que se revela como paradigma para quem desejar despertar o eterno em sua alma.
Osíris foi morto e despedaçado por Tífon. A esposa Ísis, depois de cuidar dos fragmentos do
cadáver, recebe de Osíris um raio de sua luz e dá nascimento a Hórus, que assume as tarefas
terrenas de Osíris, qual um segundo Osíris ainda imperfeito, mas progredindo para o
verdadeiro.
O verdadeiro Osíris reside na alma que, a princípio, é mortal; mas sua mortalidade está
destinada a gerar a imortalidade. O homem pode, portanto, considerar-se como o túmulo de
Osíris. A natureza inferior (Tífon) matou nele a superior. O amor (Ísis) tem de guardar os
pedaços do corpo para permitir o nascimento da parcela superior, a alma eterna (Hórus),
capaz de progredir até tornar-se um Osíris. O homem que aspira à existência suprema tem de
repetir, em escala microcósmica, o que se realiza no processo macrocósmico ligado a Osíris.
Eis o sentido da ‘iniciação’ egípcia. O processo descrito por Platão — o Criador fixou a alma do
Universo sob forma de cruz sobre o corpo universal e a evolução consiste na libertação dessa
alma — tinha de realizar-se em escala reduzida no homem, ao almejar este tornar-se um
Osíris. O neófito tinha de desenvolver-se de tal maneira que sua vivência anímica se
confundisse com o processo cósmico relativo a Osíris. Se pudéssemos observar a transformação
operada nos homens dentro dos templos, veríamos que as várias etapas representavam uma
evolução cósmica em escala microcósmica. O homem oriundo do ‘Pai’ tinha de gerar o filho,
tornando patente o deus abscôndito que jazia no âmago de seu ser. Esse deus é abafado pelo
poder da natureza terrena, a qual deve ser sepultada para que ressurja a natureza superior. As
fases da iniciação, tal qual foram descritas, podem ser compreendidas à luz desses princípios.
O neófito era submetido a processos misteriosos, destinados a aniquilar o que nele havia de
terreno e a despertar a parcela superior. Não é necessário estudar esses processos em seus
detalhes; basta compreender seu sentido, implícito na confissão de todos os que atravessaram
uma iniciação: “Diante de mim flutuava a imensa perspectiva, em cujo fim se encontra a
perfeição divina. Senti esse poder divino em mim e sepultei o que em mim se opunha a ele.
Morri para tudo o que é terreno. Morto como homem inferior, cheguei aos mundos inferiores
onde convivi com os mortos, ou seja, os que já foram integrados no circuito da eterna ordem
cósmica. Ressurgi desse reino, superando a morte, e tornei-me outro homem, desprendido do
mundo transitório que, para mim, passou a ser impregnado pelo Logos. Pertenço agora àqueles
que, possuindo a vida eterna, estarão sentados à direita de Osíris. Entrosado na ordem divina
perene, serei um verdadeiro Osíris e terei em minhas mãos o poder de julgar sobre vida e
morte.” O neófito tinha de submeter-se à experiência que o conduzisse a essa confissão.
Trata-se de uma das mais sublimes vivências que podem advir ao homem. Imagine-se um não-
iniciado informado sobre tais experiências. Desconhecendo o que se passa na alma do iniciado,
considera-o como fisicamente morto, sepultado e ressurreto. No âmbito da realidade sensorial,
o fato que possui realidade espiritual num nível mais elevado parece violar as leis da natureza:
constitui um ‘milagre’. A iniciação era, pois, um tal ‘milagre’. Quem quisesse entendê-la tinha
de desenvolver em si as forças que lhe permitissem chegar a graus superiores da existência.
Era mister, para enfrentar as experiências, ter seguido um caminho de vida apropriado.
Embora as experiências assim preparadas pudessem assumir várias formas segundo o caso

8
No sentido de conjunto de atributos divinos. (N.T.)

35
individual, sempre era possível dar-lhes uma forma típica definida. A vida de um iniciado
apresenta, portanto, aspectos típicos, que se poderiam descrever sem levar em consideração a
individualidade singular. Muito ao contrário, só se pode dizer que uma pessoa esteja a caminho
do Divino se tiver passado por essas experiências típicas. Os discípulos do Buda consideravam-
no uma dessas individualidades, e Jesus foi inicialmente encarado como tal por sua
comunidade. Hoje se conhece o paralelismo existente entre as biografias do Buda e de Jesus,
tal como o demonstrou irrefutavelmente Rudolf Steydel em seu livro Buddha und Christus
[Buda e Cristo]. Basta observar os pormenores para constatar que não procedem as objeções
feitas a esse paralelismo.
O nascimento do Buda é anunciado por um elefante branco, que desce do céu e revela à
rainha Maya que ela dará à luz um homem divino, que “induzirá todos os seres ao amor e à
harmonia, unindo-os numa íntima aliança”. No Evangelho de Lucas lemos:
[...] a uma virgem desposada por um homem que se chamava José, da casa de Davi; o nome
da virgem era Maria. E o anjo aproximou-se dela, dizendo: Salve, cheia de graça. [...] Eis que
conceberás em teu ventre e darás à luz um filho, a quem chamarás Jesus. Este será grande e
será chamado Filho do Altíssimo.
Os brâmanes, sacerdotes hindus, sabendo o que significa o nascimento de um Buda,
explicam o sonho de Maya. Eles têm uma noção definida e típica do que é um Buda, e a vida
da individualidade em questão deverá corresponder-lhe. De forma análoga lemos em Mateus
(2, 4 e ss.) que Herodes, “reunindo todos os principais sacerdotes e escribas do povo,
perguntava-lhes onde haveria de nascer o Cristo”.
O brâmane Asita declara a respeito do Buda: “E esta a criança que será Buda, o Redentor,
que conduzirá à imortalidade, à liberdade e à luz.” Compare-se o que diz Lucas (2, 25):
Eis que havia em Jerusalém um homem chamado Simeão, homem este justo e piedoso, que
esperava a consolação de Israel, e o Espírito Santo estava nele. [...] Quando os pais
trouxeram o menino para fazer pelo menino o que a lei ordenava, Simeão tomou-o em seus
braços e louvou a Deus, dizendo: Senhor, agora despede em paz Teu servo segundo Tua
palavra; porque seus olhos já viram Tua salvação, a qual preparaste ante a face de todos os
povos: luz para iluminar os gentios, e para a glória de Teu povo de Israel.
Contam do Buda que este se perdeu quando tinha doze anos, tendo sido reencontrado
embaixo de uma árvore, cercado por poetas e sábios de então, aos quais ensinava. A isso
corresponde o seguinte (Lucas 2, 41 e ss.):
E seus pais iam anualmente a Jerusalém pela festa da Páscoa. Quando o menino tinha doze
anos, subiram eles conforme o costume da festa. Findos os dias da festa, ao regressarem
ficou o menino em Jerusalém, sem que seus pais o soubessem. Mas estes, julgando que ele
estivesse entre os companheiros de viagem, andaram caminho de um dia, procurando-o entre
os parentes e conhecidos; e não o achando, voltaram a Jerusalém à sua procura. Três dias
depois o encontraram no Templo, sentado em meio aos doutores, ouvindo-os e interrogando-
os; todos os que o ouviam muito se admiravam de sua inteligência e de suas respostas.
Depois que viveu na solidão, o Buda foi recebido, em seu regresso, pela bênção de uma
virgem: “Bem-aventurada a mãe, bem-aventurado o pai, bem-aventurada a esposa a quem
pertences.” Ele, porém, responde: “Bem-aventurados são apenas os que estão no Nirvana”,
isto é, os que entraram na eterna ordem cósmica. Em Lucas (11, 27):
E enquanto ele assim falava, uma mulher, no meio da multidão, levantou a voz e disse-lhe:
Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos que te amamentaram. Mas ele respondeu:
Antes bem-aventurados os que ouvem a palavra de Deus e a observam.
No decorrer da vida do Buda, o Tentador se aproxima dele e promete-lhe todos os reinos
da Terra. O Buda recusa tudo com estas palavras:

36
Bem sei que me pertence um reino, mas não quero um reino terreno; serei um Buda e farei
todo o mundo regozijar-se.
O Tentador tem de admitir: “Meu domínio terminou”. Jesus responde à mesma tentação
(Mateus 4, 10 e ss.):
Vai-te, Satanás! Pois está escrito: Ao Senhor teu Deus adorar ás e só a ele servir ás.
Então o diabo o deixou.
Poderíamos estender essa descrição do paralelismo a muitos outros pontos, com o mesmo
resultado. A vida do Buda findou subitamente. Sentindo-se doente durante uma peregrinação,
chegou ao rio Hiranja, perto de Kusinagara, e deitou-se num tapete estendido por Ananda, seu
discípulo favorito. Então seu corpo começou a brilhar e ele morreu, com o corpo luzindo,
pronunciando as palavras: “Nada perdura.” Esta descrição da morte do Buda corresponde à
transfiguração de Jesus (Lucas 9, 28 e ss.):
Cerca de oito dias depois de haver assim falado, ele levou consigo Pedro, João e Tiago e
subiu a um monte para orar. Enquanto orava, o aspecto de seu rosto alterou-se e suas vestes
tornaram-se brancas e resplandecentes.
Neste ponto termina a vida do Buda; mas é apenas aí que começa a parte mais
importante da vida de Jesus: a paixão, a morte e a ressurreição. E a diferença entre ambos
reside, justamente, em ter-se tornado necessário prolongar a vida do Cristo Jesus além da vida
do Buda. O Buda e o Cristo não podem ser compreendidos se apenas ressaltarmos o que têm
em comum. (Isto se tornará manifesto a seguir.) Não vêm ao caso outras descrições da morte
do Buda, embora revelem aspectos profundos do assunto.
A concordância nas vidas dos dois redentores impõe uma conclusão inequívoca, que
decorre das próprias narrativas. Quando os sábios sacerdotes ouvem sobre a espécie de
nascimento que ocorreu, logo sabem de que se trata. Sabem que estão em presença de um
homem-deus, sabem de antemão qual a essência da personalidade aí surgida. Por esse motivo,
a vida dessa individualidade só pode ser a de um homem-deus, cujo padrão já conhecem. Em
sua sabedoria iniciática, o decurso de tal vida parece prefigurado para a eternidade. Só pode
ser tal qual deve, tendo as características de uma lei natural eterna. Assim como uma
substância química pode apenas comportar-se de certa maneira, um Buda ou um Cristo só
podem viver de acordo com certos cânones. Não se lhes conta a vida relatando uma biografia
acidental, mas antes os traços típicos contidos na sabedoria dos mistérios, válidos para todas
as épocas. A lenda do Buda tampouco constitui uma biografia, no sentido trivial, assim como
não o pretendem ser os Evangelhos, com referência a Jesus Cristo. Ambos não contam algo de
contingente, mas sim a vida característica de um redentor do mundo. O modelo para ambos
deve ser procurado na tradição dos mistérios e não na história física exterior. Buda e Jesus
são, no sentido mais sublime, iniciados para os que reconheceram sua essência divina. (Jesus
tornou-se um iniciado quando o Ser Cristo o impregnou.) Ficam, destarte, suas vidas acima de
considerações terrenas; convém aplicar-lhes critérios próprios aos iniciados, deixando de levar
em conta acontecimentos puramente casuais. Delas se pode dizer:
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus... E o Verbo se fez
carne e habitou entre nós. [João 1, 1 e 14.]
Todavia, a vida de Jesus contém mais do que a do Buda, que finda com a transfiguração.
Na vida de Jesus, o mais importante se inicia após a mesma. Traduzido para a linguagem dos
iniciados, isso significa: o Buda chegou ao ponto em que a luz divina começa a brilhar no
homem; ele enfrenta a morte física e passa a ser a luz do mundo. Jesus vai mais longe, pois
não morre fisicamente no instante em que o transfigura a luz universal. Nesse instante ele é
um Buda, mas está chegando a um nível que corresponde a um grau superior de iniciação.
Jesus sofre e morre, seu corpo físico desaparece, mas o espiritual, a luz cósmica, não

37
desaparece. Ele ressurge e se revela à sua comunidade como o Cristo. O Buda, ao contrário,
dissolve-se no momento de sua transfiguração na bem-aventurada existência da
espiritualidade universal. O Cristo Jesus desperta essa espiritualidade mais uma vez, para a
existência terrena, sob forma humana. O mesmo se passa com o iniciado de graus superiores
em sentido simbólico. Os iniciados na tradição do mito de Osíris tinham experimentado essa
ressurreição sob forma de imagem dentro de sua consciência. A ‘'grande’' iniciação, mas não
como imagem, e sim como realidade, foi acrescentada à iniciação do Buda pela vida de Jesus.
O Buda provara, por sua vida, que o homem é o Logos e que volta ao Logos, à Luz, mediante
sua morte terrena. Em Jesus, o próprio Logos se personificou: nele o Verbo se fez carne.
O que se realizara para os velhos cultos de iniciação no interior dos templos de mistérios
foi entendido, por intermédio do cristianismo, como um fato histórico. A comunidade
identificou-se com o Cristo Jesus que, iniciado de maneira única e grandiosa, demonstrou-lhe a
divindade do Universo. A sabedoria iniciática ficou, para a comunidade cristã,
indissoluvelmente vinculada à personalidade de Jesus Cristo. A crença de que ele viveu e de
que seus seguidores lhe pertencem substituiu aquilo que se queria conseguir com os mistérios.
Daí em diante, uma parte do que anteriormente era realizável apenas pelos métodos
místicos podia ser substituída, para os membros da comunidade cristã, pela convicção de que
no Verbo tornado presente havia existido o Divino. O elemento decisivo não era mais, como
antes, a vivência de indivíduos preparados durante muito tempo para esse fim, mas o que fora
ouvido, visto e relatado pelos que se achavam ao redor de Cristo.
O que aconteceu desde o princípio, o que ouvimos, o que nossas mãos apalparam da Palavra
da Vida... o que vimos e ouvimos vo-lo anunciamos, para que tenhais comunhão conosco.
Essa realidade imediata há de unir todas as gerações qual um laço vivente, transmitindo-se de
uma para outra, misticamente, como igreja. Assim devem ser interpretadas as seguintes
palavras de Agostinho: “Eu não acreditaria no Evangelho se não me movesse a autoridade da
Igreja Católica.” Portanto, os Evangelhos não contêm em si qualquer indício de sua
veracidade, mas devemos devotar-lhes fé pelos fatos baseados na personalidade de Jesus; e
porque o poder que tem a Igreja de estabelecer essa veracidade decorre dessa personalidade.
Se os mistérios transmitiram, por sua tradição, os meios de se chegar à verdade, a
comunidade cristã transmite a própria verdade. A confiança no Iniciador Uno e Primordial veio
juntar-se à confiança anterior nas forças místicas da alma humana descerradas durante a
iniciação. Os adeptos procuravam a deificação — queriam experimentá-la. Jesus era deificado;
por isso, basta identificar-se com ele para participar dessa deificação no seio da comunidade
por ele instituída: essa se tornou a convicção dos cristãos. O que foi deificado em Jesus o foi
para toda sua congregação. “Eis que eu estarei convosco todos os dias até o fim do mundo.”
(Mateus 28, 20.) Aquele que nasceu em Belém tem caráter eterno. Por isso a antífona do Natal
pode falar do nascimento de Jesus como se acontecesse a cada Natal: “Hoje nasceu o Cristo,
hoje apareceu o Salvador, hoje os anjos cantam na Terra.” Na vivência do Cristo deve-se ver
um grau bem definido da iniciação. Quando o adepto pré-cristão passava por ela, sua iniciação
capacitava-o a perceber espiritualmente, nos mundos superiores, algo sem paralelo no mundo
sensível. Vivenciava ele, no mundo espiritual, a essência do Mistério do Gólgota. Quando o
adepto cristão tem essa experiência pela iniciação, vislumbra ao mesmo tempo o fato histórico
do Gólgota e sabe que esse acontecimento físico e os acontecimentos supra-sensíveis dos
mistérios têm o mesmo conteúdo. Portanto, o ‘Mistério do Gólgota’ fez com que se derramasse
sobre a comunidade cristã o que antes se derramara sobre os iniciados nos templos de
mistérios. O iniciado cristão pode tornar-se consciente do conteúdo do ‘Mistério do Gólgota’,
enquanto que a simples fé faz o homem participar inconscientemente da corrente mística que
partiu dos acontecimentos descritos no Novo Testamento, e que, desde então, impregnou a
vida espiritual da humanidade.

38
Os Evangelhos

Consta dos Evangelhos tudo o que se presta a uma análise histórica da Vida de Jesus. O
que não provém dessa fonte pode facilmente ser “escrito num quarto de folha”, segundo
Harnack, considerado como uma das maiores autoridades na matéria.9 Mas que espécie de
documentos são esses Evangelhos? O quarto deles, o de João, diverge tanto dos demais que os
partidários do método de investigação histórica chegam a esta conclusão:
Se João possui a tradição autêntica da vida de Jesus, então a dos três primeiros evangelhos
(os sinóticos) é insustentável; se estes tiverem razão, o quarto evangelista não pode ser
aceito como fonte.10
Esta asserção é a de um historiador. Seu ponto de vista não requer nem nossa aceitação
nem nossa reprovação, pois estudamos aqui apenas o conteúdo místico dos Evangelhos. Por
outro lado, cumpre-nos apontar a seguinte opinião:
Avaliados pelos critérios da concordância, da inspiração e da quantidade dos fatos
enumerados, esses escritos deixam muito a desejar, e, inclusive, quando julgados por um pa-
drão humano, sofrem de não poucas imperfeições.
Assim julga um teólogo cristão (Harnack, em Das Wesen des Christentums [A essência do
cristianismo].) Para quem adota o ponto de vista de uma origem mística dos Evangelhos, as
discordâncias explicam-se facilmente, ficando também evidente a harmonia entre o quarto
evangelho e os três primeiros. Com efeito, todos esses escritos nem podem pretender ser
apenas tradições históricas no sentido comum da palavra. Eles não queriam fornecer qualquer
biografia histórica. Seu objetivo já estava prefixado nas tradições dos mistérios como a vida
típica do Filho de Deus. Não se hauria da História, mas das tradições dos mistérios. Embora não
fosse total a concordância das tradições nos vários santuários iniciáticos, era suficiente para
levar a uma quase identidade entre os relatos dos budistas a respeito da vida de seu Homem-
Deus e os dos evangelistas do cristianismo a respeito do seu. Divergências existiam,
naturalmente — basta admitir que os quatro evangelistas tenham haurido de quatro tradições
iniciáticas diferentes. Constitui testemunho da proeminente personalidade de Jesus o fato de
quatro escribas ligados a quatro tradições diferentes haverem achado que ele correspondesse
tão perfeitamente ao tipo de iniciado próprio de cada uma delas que eles viam em sua vida o
protótipo da biografia imaginada em seus mistérios. Cada um deles descreveu sua vida de
acordo com suas tradições iniciáticas, e se existem semelhanças entre as narrações dos três
primeiros evangelistas (os sinóticos), isso nada mais prova senão que essas tradições eram
similares. O quarto evangelho é imbuído de idéias que lembram a filosofia religiosa de Fílon, o
que tampouco prova outra coisa senão que ambos estão ligados à mesma tradição esotérica.
Os Evangelhos contêm elementos diversos. Primeiramente relatam fatos, e isso de modo
tal que aparentemente pretendem constituir fatos históricos. Em segundo lugar, há parábolas
que, por sua forma de narrar fatos, pretendem simbolizar as verdades mais profundas. Em
terceiro lugar, eles contêm doutrinas formando a cosmovisão cristã. No Evangelho de João não
encontramos qualquer parábola propriamente dita. Ele estava ligado a uma escola esotérica
em que não se necessitava recorrer às parábolas.
A relação entre fatos supostamente históricos e parábolas nos primeiros evangelhos fica
iluminada pelo relato da maldição da figueira. Em Marcos (11, 11 e ss.) lemos o seguinte:

9
Rudolf von Harnack (1851-1930), teólogo estudioso da história dos dogmas. (N.E.)
10
Otto Schmiedel, Die Hauptprobleme der Leben-Jesu-Forschung [Os principais problemas da pesquisa da vida de
Jesus], pág. 15. [Ref. incompleta no original.]

39
Tendo o Senhor entrado em Jerusalém, foi ao Templo, observou tudo e à tarde saiu com os Doze
para Betânia. No dia seguinte, saindo eles de Betânia, teve fome. Vendo ao longe uma figueira que
tinha folhas, foi ver se porventura acharia nela alguma coisa. Aproximando-se, nada achou senão folhas,
porque ainda não era tempo de figos. E Jesus disse-lhe: Nunca jamais alguém coma fruto de ti.
Na mesma passagem, Lucas conta a seguinte parábola:
Mas ele lhes disse esta parábola: Um homem tinha uma figueira plantada em sua vinha; foi
buscar fruto nela e não encontrou nenhum. Então disse ao viticultor: Eis que há três anos
venho procurar fruto nesta figueira e não acho nenhum; corta-a; para quê está ela ocupando
a terra?
Esta parábola simboliza a inutilidade da antiga doutrina, representada pela figueira
estéril. O que aqui é representado simbolicamente, Marcos o conta como um fato
aparentemente histórico. É de se supor que muitos fatos nos Evangelhos não devam ser
considerados como históricos e fisicamente reais, mas como místicos, isto é, como
acontecimentos cuja percepção exige a visão espiritual e que provêm de várias tradições
esotéricas. Nessas condições, deixa de haver diferença entre o Evangelho de João e os
sinóticos. A exegese mística não atribui valor a critérios históricos. Pouco importa que um
evangelho tenha sido redigido algumas décadas antes ou depois: para o místico, todos possuem
igual valor histórico — tanto o de João quanto os demais.
E os ‘milagres?’ Não oferecem a menor dificuldade a uma interpretação mística. É dito
que eles violam as leis naturais do mundo. Tal é o caso somente enquanto são encarados como
fatos desenrolados no plano físico, quando seriam inteiramente patentes à percepção sensorial
comum. Considerados como perscrutáveis apenas num plano existencial mais elevado, isto é,
no plano espiritual, torna-se evidente que não podem ser compreendidos mediante as leis da
ordem de natureza física.
Somente quem souber ler os Evangelhos corretamente entenderá em que sentido estes
pretendem falar do fundador do cristianismo. Seu estilo é o das revelações dos mistérios, do
relato de um adepto a respeito de um iniciado. Contudo descrevem a iniciação como a
experiência particular de um indivíduo, e fazem depender a salvação do mundo da aceitação
desse singular iniciado pelos homens. O que viera aos iniciados era o ‘reino de Deus’, e o
Iniciado Único o transmitiu a todos que se chegaram a ele. O assunto particular de um tornou-
se assunto da comunidade dos que concordam em reconhecer Jesus como seu Senhor.
Essa transformação é inteligível quando lembramos que a sabedoria iniciática ficava
integrada na religião popular judaica. O cristianismo nasceu do judaísmo, e não é de admirar o
fato de encontrarmos, como que inoculadas neste último, doutrinas iniciáticas que se
revelaram como elemento comum da vida espiritual grega e egípcia. Examinando as várias
religiões populares, encontramos representações diferentes acerca do espiritual, mas
constatamos a mais perfeita concordância desde que focalizemos a profunda sabedoria
sacerdotal, cerne das várias religiões populares. Platão, quando quer expor em sua filosofia o
conteúdo básico da sabedoria grega, está consciente de sua concordância com os sábios
sacerdotes egípcios. Contam de Pitágoras que ele viajou à índia e ao Egito freqüentando as
escolas dos sábios nesses países. Pessoas contemporâneas da origem do cristianismo notaram
tamanha semelhança entre as doutrinas platônicas e o sentido mais profundo dos escritos
mosaicos que chamaram Platão de ‘Moisés da língua ática’.
Em todo lugar havia, pois, sabedoria iniciática. Partindo do judaísmo e querendo tornar-
se religião universal, ela teve de assumir uma forma adequada. O judaísmo esperava o Messias:
não era de surpreender que os judeus tivessem identificado o Messias com sua imagem de um
iniciado extraordinário. Essa circunstância explica o fato de aquilo que nos mistérios era um
assunto individual ter-se tornado, mais tarde, propriedade de todo o povo. A religião judaica
sempre havia sido uma religião popular. O povo se considerava como um todo, seu Javé era

40
Deus do povo inteiro. O Filho que haveria de nascer só poderia ser o redentor do povo, e não o
de um iniciado particular. Que um haveria de morrer por todos era, pois, um conceito básico
da religião judaica.
Como sabemos, havia dentro do judaísmo mistérios suscetíveis de serem levados da
penumbra dos rituais ocultos para a religião popular. Existia uma mística desenvolvida ao lado
da sabedoria sacerdotal apensa às fórmulas dos fariseus. Descreve-se a sabedoria iniciática de
maneira análoga à de outras civilizações. Quando, certa vez, um iniciado expôs tal sabedoria,
os ouvintes que adivinharam o sentido oculto exclamaram: “O ancião! Que fizeste? Ah, se
houvesses guardado silêncio! Acreditas poderes navegar no imenso oceano sem vela e sem
mastro? Queres levantar vôo? Não o podes. Queres descer às profundidades? Um imenso abismo
abre-se à tua frente.” Os cabalistas, dos quais foi recebida essa história, falam também de
quatro rabinos que procuraram as fendas secretas que levam a Deus. O primeiro morreu, o
segundo perdeu a razão, o terceiro foi causa de terríveis calamidades e somente o quarto, o
Rabi Akiba, entrou e saiu em paz. Como se vê, existia também no judaísmo o fundamento
apropriado para o desenvolvimento de um iniciado singular. Bastava que dissesse: “Não quero
que a salvação permaneça reservada a alguns escolhidos. Quero que todo o povo participe
dela.” Ele tinha, então, de levar ao mundo inteiro o que os privilegiados haviam
experimentado nos templos de mistérios. Tinha de assumir a tarefa de ser para sua
comunidade, graças à sua personalidade, o que os cultos iniciáticos eram para seus adeptos.
Evidentemente, não podia nem pretendia de imediato transmitir à sua comunidade as
experiências vividas nos mistérios; queria, isso sim, dar a todos a certeza daquilo que nos
mistérios se considerava verdade. Queria fazer fluir, para toda a evolução futura da
humanidade, o que até então fluía nos mistérios, elevando-a assim a um nível superior de
existência. “Bem-aventurados os que crêem sem ver.” Queria implantar nos corações, sob
forma de fé, a certeza de que o Divino existe. Quem, estando de fora, possui essa confiança,
chegará mais longe do que quem não a possui. Para Jesus, deve ter sido algo como um
pesadelo pensar que muitos não poderiam achar o caminho certo. Ele pretendia reduzir o
abismo entre o ‘povo’ e os adeptos. O cristianismo devia ser o meio para que cada um
encontrasse o caminho, e mesmo quem não estivesse maduro não devia ser excluído da
corrente iniciática. “O Filho do Homem veio para buscar e salvar o que se havia perdido.” De
então em diante, mesmo os que não podiam participar dos mistérios gozariam um pouco de
seus frutos. O reino de Deus não devia mais depender exclusivamente de ‘gestos exteriores’;
“não está aqui nem lá, pois já está dentro de vós”. A Jesus não importava o quanto este ou
aquele tivesse avançado no reino do Espírito, mas sim que todos tivessem a convicção de que
tal reino realmente existia.
Não vos alegreis de que os espíritos vos estejam submetidos; alegrai-vos antes porque vossos
nomes estão escritos no céu.
Em outras palavras: “Tende fé no Divino, pois o tempo virá em que o encontrareis.”

O milagre de Lázaro
Entre os ‘milagres’ atribuídos a Jesus, sem dúvida a ressurreição de Lázaro em Betânia
tem papel preponderante, pois tudo concorre para dar a este relato do evangelista um lugar
de destaque no Novo Testamento. Convém lembrar que essa narração se encontra apenas no
Evangelho de João, aquele que, por suas próprias palavras introdutórias, postula uma
interpretação bem definida. João começa com as frases:

41
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. [...] E o Verbo se
fez carne e habitou entre nós, e nós vimos sua glória, uma glória do Filho Unigênito do Pai,
cheio de abnegação e verdade.
Quem coloca tais palavras no começo de sua narração indica claramente que deseja ser
interpretado em sentido particularmente profundo. Quem aduzir aqui explanações apenas
racionais ou outras coisas superficiais assemelha-se a quem acredita que Otelo ‘realmente’
mata Desdêmona no palco. Qual é o sentido das palavras introdutórias de João? Diz ele,
claramente, que fala de algo eterno, de algo existente desde os primórdios. Conta fatos, mas
não os que são observados pela vista e pelo ouvido e servem de alvo às sutilezas do intelecto
lógico. Ele esconde atrás dos fatos o ‘Verbo’ que está no Espírito Cósmico, e para ele esses
fatos são o instrumento por meio do qual se exprime um sentido mais amplo. Disso é lícito
concluir que deve haver um significado profundo na ressurreição de um morto, fato esse de
tão difícil entendimento para os olhos, os ouvidos e o intelecto lógico.
A isto se acrescenta o seguinte: — Conforme Renan11 já mencionou em sua Vida de Jesus,
a ressurreição de Lázaro deve ter exercido influência decisiva sobre o fim da vida de Jesus. Tal
afirmação parece incompatível com seu próprio ponto de vista. Com efeito, por que poderia a
crença popular de que Jesus ressuscitara um morto ser considerada, por seus adversários, tão
perigosa a ponto de chegarem a perguntar-se: será que pode haver coexistência entre Jesus e
o judaísmo? Não podemos admitir a seguinte opinião de Renan:
Os demais milagres eram eventos fugazes que, de boa-fé, eram contados de boca em boca e
com os exageros comuns, e, depois de acontecerem, não foram mais referidos. Mas o de
Lázaro foi um fato real, que chegou ao conhecimento geral e se destinava a fazer calar os
fariseus. Todos os inimigos de Jesus se exasperaram pela celeuma provocada e, segundo
alguns dizem, houve até tentativas de morte contra Lázaro.
Essa argumentação careceria de fundamento se Renan tivesse razão ao opinar que o
milagre de Betânia não passou de um acontecimento fictício, encenado para fortalecer a fé em
Jesus:
Talvez Lázaro, ainda pálido após uma doença, tenha-se feito vestir com lençóis e colocar,
qual um morto, na sepultura da família. Essas sepulturas eram câmaras talhadas na rocha,
acessíveis por uma abertura retangular tapada por uma pedra. Marta e Maria correram ao
encontro de Jesus e o conduziram à sepultura antes que ele tivesse entrado em Betânia. A
dor violenta sentida por Jesus no túmulo do amigo tido por morto foi interpretada pelos
presentes como sendo os gemidos e comoções que costumam acompanhar os milagres (João
11, 33 e 38). Com efeito, a crença popular julgava que a força divina no homem era como um
princípio epilético e convulsivo. Jesus — e aqui é presumida nossa hipótese — teria desejado
ver mais uma vez o amigo dileto, mas quando foi removida a pedra, o próprio Lázaro saiu de
seus lençóis, com a cabeça envolta num sudário. Essa aparição só podia ser considerada como
uma ressurreição, pois a crença não conhece outra lei senão a que lhe parece ser verdade.
Não se revela tal interpretação como particularmente ingênua quando, tal qual Renan, se
conclui que “tudo parece indicar que o milagre de Betânia contribuiu de maneira relevante
para acelerar a morte de Jesus”? Sem dúvida, há algo de correto nesta última afirmação de
Renan, mas ele não podia interpretá-la e justificá-la satisfatoriamente com seus próprios
meios.
Jesus teve de realizar algo de capital importância em Betânia para justificar este trecho:
Então os principais sacerdotes e fariseus convocaram uma reunião do Sinédrio e disseram:
Que faremos? Este homem faz muitos milagres. [João 11, 47.]
O próprio Renan admite algo de especial:

11
Ernest Renan (1823-1892), orientalista francês, estudioso das religiões. (N.E.)

42
Deve ser admitido que essa narração de João é essencialmente diferente dos relatos de
milagres dos sinóticos, que não passam de invenções da fantasia popular. Convém acrescentar
que João era o único, entre os Evangelistas, que estava bem a par das relações de Jesus com
a família de Betânia, e que a fantasia popular nunca poderia ter-se manifestado no âmbito
das recordações tão íntimas. Portanto, é provável que esse milagre não seja um daqueles
puramente lendários, pelos quais ninguém é responsável. Numa palavra, julgo que se realizou
em Betânia algo que pôde ser considerado como ressurreição.
Isso não significa, no fundo, que Renan admite não haver explanação para o que se passou
em Betânia? Ele também se esquiva atrás destas palavras:
Considerando o lapso de tempo decorrido e o fato de se tratar de um único texto, ainda com
claros indícios de acréscimos posteriores, não é possível decidir se estamos em presença de
uma ficção ou se houve em Betânia um evento real que justificasse os rumores.
Ora, vejamos se toda essa confusão não se dissolve com uma fiel leitura do texto, o que,
além de permitir compreendê-lo corretamente, acabaria de uma vez com as afirmações da
existência de uma ‘ficção’.
Devemos admitir que toda a narrativa do Evangelho de João está coberta por um véu
misterioso. Para demonstrá-lo, basta mencionar o seguinte: se o relato devesse ser
interpretado textualmente, qual seria o sentido das seguintes palavras de Jesus: “A doença
não é para a morte, mas para a glória de Deus, a fim de que o Filho de Deus seja por ela
glorificado.”? É esta a tradução usual das palavras do Evangelho, mas chegaremos mais perto
da realidade se o traduzirmos de acordo com o texto grego: “... para a manifestação
(revelação) de Deus, a fim de que o Filho de Deus seja por ela glorificado.” E qual seria o
sentido destas outras palavras (João 11, 4 e 25): “Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que
crê em mim, ainda que esteja morto, viverá.”? Seria bastante trivial atribuir a Jesus o
pensamento de que Lázaro teria adoecido apenas para que ele, Jesus, pudesse demonstrar
nele sua perícia. Igualmente trivial seria acreditar ter Jesus afirmado que a simples fé pudesse
fazer ressuscitar uma pessoa morta na acepção comum do termo. Com efeito, o que haveria de
notável se o homem, após sua ressurreição, fosse igual ao que era antes de sua morte? E qual
seria o sentido de descrever a vida de tal homem com estas palavras: “Eu sou a ressurreição e
a vida”? As palavras de Jesus adquirem, porém, vida e sentido tão logo as consideramos como
expressão de um acontecimento espiritual. Podemos, nesse caso, até interpretá-las
literalmente, assim como se encontram no texto. Jesus diz, com efeito, que ele é a
ressurreição ora realizada em Lázaro, e que ele é a vida vivida por Lázaro. Levemos, pois, ao
pé da letra o que Jesus é, no Evangelho de João: ele é o ‘Verbo que se fez carne’, o Eterno
que existia nos primórdios. Se ele é a ressurreição, o que ressurgiu em Lázaro foi o ‘'Eterno, o
Primordial’. Estamos, pois, em presença de uma ressurreição do ‘Verbo’ eterno, e esse ‘Verbo’
é a vida para a qual Lázaro foi ressuscitado. Estamos na presença de uma ‘doença’; não de
uma doença que conduz à morte, mas antes que serve para a ‘glória’ de Deus, isto é, para sua
revelação. Se o que ressurgiu em Lázaro foi o ‘Verbo Eterno’, então todo o acontecimento
serviu realmente para que Deus se manifestasse nele. Pois Lázaro foi transformado por todo o
processo. Nessa altura, vive nele o ‘Verbo’, o Espírito, o que antes não acontecia. Esse Espírito
nasceu dentro dele. Todo nascimento implica uma doença, a doença da mãe. Porém essa
doença não leva à morte, mas a uma nova vida. O que ‘adoeceu’ em Lázaro foi a parte da qual
nasceu o ‘homem novo’, aquele que foi permeado pelo ‘Verbo’'.
Onde está o sepulcro de onde nasceu o ‘Verbo’? Para se obter uma resposta, basta
lembrar Platão, que chama o corpo do homem de túmulo da alma, falando também de uma
espécie de ressurreição quando menciona o reino espiritual que começa a viver no corpo. O
que Platão chama de alma espiritual João o designa como ‘Verbo’, e para ele o ‘Verbo’ é o
Cristo. Platão poderia ter dito que quem se espiritualiza fez ressurgir algo divino do túmulo de
seu corpo. E para João, aquilo que se realizou por meio da vida de Jesus constitui a

43
ressurreição; não é, pois, surpreendente que ele ponha na própria boca de Jesus estas
palavras: “Eu sou a ressurreição.”
Sem dúvida alguma, os acontecimentos de Betânia constituem uma ressurreição em
sentido espiritual. Lázaro tornou-se outro, nascendo para uma vida acerca da qual o Verbo
‘Eterno’ podia dizer: ‘Eu sou essa Vida’. Que sucedeu, pois, em Lázaro? O Espírito começou a
habitar nele, fazendo-o participar dessa vida, que é eterna. Basta, para que esse sentido se
revele, exprimir a experiência de Lázaro com as palavras dos iniciados. Como vimos, Plutarco
diz, a respeito da finalidade dos mistérios, que estes serviam para subtrair a alma à existência
corporal e reuni-la aos deuses. Schelling descreve as sensações de um iniciado da seguinte
forma12:
O iniciado, pela própria iniciação, transformou-se num elo dessa corrente mágica, qual um
cabiro, admitido numa comunidade indestrutível e integrado nas hostes dos deuses
superiores.
Para caracterizar a transformação operada em sua vida, não há palavras mais
significativas do que aquelas ditas por Adésio a seu discípulo, o Imperador Constantino:
“Quando tiveres participado dos mistérios, sentirás vergonha de teres nascido simples
homem.”
Impregnando a alma com tais sensações, conquistaremos a correta compreensão para o
que se passou em Betânia. O relato de João nos proporcionará então uma experiência toda
especial, pois sentiremos uma certeza que nenhuma explicação racional ou puramente lógica
nos pode dar: estaremos frente a um mistério no verdadeiro sentido da palavra. Em Lázaro
penetrou o ‘Verbo Eterno’. No sentido dos mistérios, ele se tornou um iniciado. E o
acontecimento que nos é relatado tem de ser um processo iniciático.
Consideremos todo o processo como iniciação. Lázaro é amado por Jesus (João 11, 36).
Não se trata de um amor no sentido comum; isto seria contrário ao espírito do Evangelho de
João, no qual Jesus é o ‘'Verbo’. Jesus amou Lázaro porque o julgou maduro para despertar em
si o ‘Verbo’. Havia relações entre Jesus e a família de Betânia, tendo ele preparado, portanto,
dentro dessa família tudo com vistas ao ato final do drama: a ressurreição de Lázaro. Este é
discípulo de Jesus — é um discípulo tal que permite a Jesus prever, com certeza, que nele a
ressurreição se realizará. Ora, o ato final de um drama de ressurreição consistia numa ação
simbólica que revelava o espiritual. O candidato não tinha apenas de compreender o
mandamento ‘Morre e renasce’; tinha de realizá-lo ativamente num plano espiritual real.
Precisava abandonar o território terreno, motivo de vergonha, no sentido dos mistérios, para o
homem superior. O homem terrestre tinha de morrer de uma morte simbolicamente real, por
meio de um sono sonambúlico de três dias. Esse sono do corpo só pode ser considerado como
um fato exterior secundário, acompanhando um acontecimento espiritual de importância
eminentemente superior. No entanto, esse fato exterior era a experiência que dividia a vida
do adepto em duas partes. Quem não conhece o conteúdo superior de tais processos não pode
realmente compreendê-los. No máximo podemos tentar uma explicação por analogia.
Pode-se resumir todo o conteúdo do Hamlet, de Shakespeare, em poucas palavras. Quem
as apreende pode afirmar que, em certo sentido, conhece o conteúdo de Hamlet. Além disso,
conhece-o logicamente. Mas quem se deixou impregnar por toda a riqueza do drama
shakespeariano conhece-o bem diferentemente, pois sua alma assimilou um conteúdo vivo que
nenhum resumo pode substituir. A idéia de Hamlet tornou-se, para ele, uma experiência
artística pessoal. Algo semelhante, mas num plano mais elevado, realiza-se no homem pelo
acontecimento mágico relacionado com a iniciação. Ele percebe, sob forma de símbolos, o que
é conquistado espiritualmente. Por ‘símbolo’ entenda-se aqui um fato que realmente ocorre
no mundo exterior e que é, ao mesmo tempo, imagem de algo. A imagem não é irreal, e sim
12
Philosophie der Offenbarung [Filosofia da revelação].

44
real. O corpo físico esteve realmente morto durante três dias; a nova vida que dele nasce
supera a morte, e o homem aprendeu a confiar nessa nova vida. Foi o que aconteceu com
Lázaro. Jesus o preparara para a ressurreição; tratava-se de uma doença ao mesmo tempo real
e simbólica, uma iniciação que, após três dias, leva a uma vida verdadeiramente nova.13
Quando tudo estava pronto para a realização do ato, Lázaro se envolveu na veste dos
adeptos e se fechou num estado letárgico, insinuando simbolicamente a morte. Quando Jesus
chegou, os três dias haviam transcorrido. Então eles retiraram a pedra, e Jesus, levantando os
olhos, disse: “Pai, graças te dou por me teres ouvido.” (João 11, 41.) O Pai ouviu, pois Lázaro
tinha chegado ao ato final do grande drama do conhecimento; entendeu como se chega à
ressurreição. Tinha-se consumado uma iniciação, tal como toda a Antigüidade a conhecera.
Jesus havia agido como iniciador. Assim se havia sempre concebido a união com o Divino.
Em Lázaro foi realizado por Jesus o grande milagre da transmutação da vida, de acordo
com antiqüíssimas tradições. Desse modo, o cristianismo é vinculado aos mistérios. O próprio
Cristo Jesus iniciou Lázaro, tornando-o capaz de elevar-se aos mundos superiores. Por isso
Lázaro, além de ser o primeiro iniciado cristão, foi ainda o único a ser iniciado pelo próprio
Cristo Jesus. Por sua iniciação ele se tornou apto a compreender que o ‘Verbo’ que nele se
tornara vivente se havia personificado em Jesus Cristo: portanto, o próprio elemento espiritual
revelado nele encontrava-se diante dele na personalidade fisicamente manifesta de seu
iniciador.
Consideradas desse ponto de vista, as seguintes palavras de Jesus adquirem um
significado especial (João 11, 42):
Eu sei que sempre me ouves; mas assim falei por causa dessa multidão que me cerca, a fim
de crerem que Tu me enviaste.
Era mister tornar patente que o ‘Filho do Pai’ vive em Jesus de tal forma que, quando
desperta sua própria essência em outro homem, este se torna um iniciado. Com isso Jesus
exprime que o significado da vida estava oculto nos mistérios e que estes levavam o homem a
desvendá-lo. Ele é o Verbo vivo; nele se personificou uma antiga tradição ou, como diz o
evangelista: “Nele o Verbo se fez carne.” Considerando Jesus como um mistério encarnado, o
próprio Evangelho de João constitui um mistério. Ele será lido corretamente quando se
enxergar o Espírito nos fatos. Fosse ele escrito por um velho sacerdote, este teria falado de
um ritual tradicional. Para João, esse ritual torna-se pessoa, torna-se a ‘Vida de Jesus’.
Quando um grande sábio moderno diz que os mistérios são coisas sobre “as quais nunca se terá
clareza”, apenas confessa desconhecer o caminho que conduz a essa clareza.14 Basta descobrir
no Evangelho de João o drama do conhecimento, apresentado pelos antigos em sua realidade
plástica e simbólica, para se estar diante do próprio mistério.
Nas palavras “Lázaro, vem para fora!” pode-se reconhecer o chamado pelo qual os
iniciadores sacerdotais do Egito chamavam de volta à vida normal os que se sujeitavam aos
processos iniciáticos, destinados a ofuscar-lhes a visão do mundo transitório e convencê-los da
existência do eterno. Jesus, porém, tornara público o segredo dos mistérios! Os judeus não
podiam deixar sem punição tal atitude, assim como os gregos se teriam vingado de Esquilo se
este realmente tivesse traído os segredos dos mistérios. Isso é perfeitamente compreensível. O
que importava a Jesus era expor à “multidão que me cerca” um acontecimento que
antigamente, e de acordo com a sabedoria dos sacerdotes, só podia ser realizado no
abscôndito dos mistérios. Essa iniciação se destinava a preparar a compreensão do ‘Mistério do
Gólgota’. Antes, somente os ‘Videntes’, isto é, os iniciados, podiam entender algo de tal

13
O que se descreve aqui se refere às antigas iniciações que requeriam, realmente, um estado semelhante ao sono
e que durava três dias. Nenhuma autêntica iniciação moderna precisa disso. Pelo contrário, esta conduz a uma
experiência mais consciente; e a consciência comum fica apagada no decorrer da iniciação.
14
Jakob Buckhardt [1818-1897], Die Zeit Konstantins [A época de Constantino].

45
processo iniciático; doravante, os segredos dos mundos superiores deviam tornar-se acessíveis
também aos que “creram, apesar de não terem visto”.

O Apocalipse de João

No fim do Novo Testamento encontramos um documento curioso, o Apocalipse, a


revelação secreta de São João. Basta ler as primeiras palavras para pressentir o caráter
misterioso do texto:
A revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe concedeu para manifestar a seus servos as coisas
que cedo devem acontecer; estas foram enviadas em sinais, por intermédio de seu Anjo, ao
seu servo João.
O que aqui se revela é a expressão 'enviadas em sinais'. O texto não deve, portanto, ser
aceito no sentido literal; ao contrário, deve ser procurado um sentido subjacente, para o qual
o texto é apenas um signo. Muito, porém, indica ainda tal ‘sentido oculto’. João se refere às
sete igrejas da Ásia. Isso não pode significar sete igrejas reais — pois o número sete é o
número sagrado e simbólico que deve ter sido escolhido por causa desse seu aspecto. O
número real das igrejas asiáticas teria sido outro. A própria maneira como João recebeu a
revelação já indica o misterioso:
Achava-me eu no Espírito, no dia do Senhor, e ouvi por trás de mim uma voz como de
trombeta, que dizia: O que vês, escreve-o num livro e envia-o às sete igrejas.
Trata-se, portanto, de uma revelação que João recebeu em espírito — a revelação de
Jesus Cristo. O que foi revelado ao mundo pelo Cristo Jesus aparece envolto num sentido
oculto. Tal sentido oculto deve, portanto, ser procurado em sua doutrina. Essa revelação é,
para o cristianismo comum, aquilo que em tempos pré-cristãos era a revelação dos mistérios
para a religião popular. Parece, pois, justificada a tentativa de encarar esse Apocalipse como
um mistério.
O Apocalipse dirige-se a sete igrejas. O que significa isso? Basta tomar apenas uma das
mensagens para reconhecer-lhe o sentido. Diz a primeira:
Escrevo ao Anjo da Igreja em Éfeso: Isto diz aquele que tem as sete estrelas à sua direita e
que anda em meio aos sete candeeiros de ouro. Conheço as tuas obras, o teu trabalho e a tua
perseverança, e que não podes suportar os maus, e que puseste à prova os que se dizem
apóstolos e não o são, e os achaste falsos. Tens perseverança, construíste teu trabalho em
meu nome e não esmoreceste. Eu, porém, reclamo que retornes ao teu primeiro amor.
Lembra-te de onde caíste, arrepende-te e retorna às tuas primeiras obras; de outra forma,
virei a ti e removerei tua luz de seu lugar, se não te arrependeres. Mas isto tens de bom:
aborreces as obras dos nicolaítas, às quais eu também aborreço. Quem tem ouvidos ouça o
que o Espírito diz às igrejas: Ao vencedor darei de comer da Arvore da Vida, que está no
Paraíso de Deus.
É esta a mensagem que o Anjo dirige à primeira igreja. O Anjo, que devemos imaginar
como sendo o espírito da comunidade, segue o caminho indicado pelo cristianismo e é capaz
de distinguir entre seus seguidores verdadeiros e falsos. Procura ser cristão e esteou seu
trabalho sobre o nome de Cristo. Contudo, exige-se dele que não permita a nenhum erro
obstruir o caminho para o ‘primeiro amor’, e se lhe indica a possibilidade de que tais erros
conduzam a uma direção errada. O caminho que leva ao Divino é demarcado pelo Cristo Jesus,
e é preciso perseverança para prosseguir no sentido dado pelo primeiro impulso. Pode-se,
também, acreditar cedo demais ter captado o sentido correto; isso acontece a quem se deixa
conduzir pelo Cristo num trecho do caminho e, depois, abandona esse guia fazendo um
conceito errado a seu respeito. Com isto se volta ao humano inferior e se deixa o 'primeiro

46
amor'. O conhecimento ligado ao elemento sensorial e racional, quando espiritualizado e
divinizado, transforma-se em sabedoria e é elevado a um plano superior. Quando essa
elevação deixa de realizar-se, o conhecimento permanece no efêmero. O Cristo Jesus indicou
o caminho que leva ao eterno, e o conhecimento, sem arrefecer em sua perseverança, deve
prosseguir com amor no caminho que o diviniza e que há de transformá-lo em sabedoria.
Os nicolaítas constituíam uma seita que encarou o cristianismo levianamente, limitando-
se a ver no Cristo o Verbo Divino, isto é, a sabedoria eterna que renasce no homem,
concluindo assim que a sabedoria humana é o Verbo Divino, bastando portanto, para realizar o
divino no mundo, correr atrás do saber humano. Mas não se pode dar essa interpretação à
sabedoria cristã. Enquanto não for transmutado em sabedoria divina, o conhecimento, sendo
originalmente sabedoria humana, não é menos transitório que qualquer outro. Assim diz o
‘Espírito’ ao Anjo de Éfeso:
Tu não és assim; tu não insististe apenas na sabedoria humana. Começaste a seguir pelo
caminho do cristianismo, com perseverança. Mas não deves pensar que a meta possa ser
atingida por outro meio que não o amor primeiro. E necessário que esse amor seja, em muito,
superior a todos os outros. Só esse pode ser considerado o ‘primeiro amor’. O caminho que
leva ao Divino é infinito, e é preciso reconhecer que atingir o primeiro degrau é apenas a
preparação para galgar degraus sempre mais elevados.
Com isto demonstramos, na primeira das mensagens, a maneira como estas devem ser
interpretadas. É de modo semelhante que pode ser encontrado o sentido das demais.
João, tendo-se voltado, viu ‘sete candeeiros de ouro’ e...
...no meio dos candeeiros, a imagem do Filho do Homem, com uma longa túnica e tendo o
peito cingido por uma cinta de ouro, e sua cabeça e seus cabelos resplandeciam em alvura
como brancas ondas ou neve, e seus olhos cintilavam no fogo.
Somos informados (1, 20) de que “os sete candeeiros são as sete igrejas”. Isto significa que os
candeeiros são sete diferentes caminhos para se chegar ao Divino, todos mais ou menos imper-
feitos. E o Filho de Deus “tinha sete estrelas na mão direita” (1, 16). “As sete estrelas são os
anjos das sete igrejas.” (1, 20.) Os espíritos condutores conhecidos da sabedoria dos mistérios
(demônios) transformaram-se aqui nos anjos diretores das igrejas. Essas igrejas são
consideradas como os corpos para seres espirituais, e os anjos como as almas desses 'corpos',
assim como as almas humanas são os poderes diretores dos corpos humanos. As igrejas são os
caminhos que, no mundo da imperfeição, conduzem ao Divino; e as almas de igrejas deveriam
ser os guias nesses caminhos. Com essa finalidade devem elas, por sua vez, aceitar como guia
aquele Ser que tem em sua mão direita as ‘sete estrelas’.
E de sua boca saía uma espada de dois gumes, e seu rosto em seu resplendor era como o Sol
brilhando.
Essa espada existe também na sabedoria dos mistérios, quando o neófito é assustado por
uma ‘espada incandescente’. Isto indica a situação à qual chega quem quer vivenciar o Divino;
situação na qual o ‘rosto’ da sabedoria brilha com um resplendor semelhante ao Sol. Também
João passou por tal situação, que põe à prova sua firmeza:
Ao vê-lo, cai a seus pés como morto; ele, porém, pôs sua mão direita sobre mim, dizendo:
Não temas. [1, 17.]
O candidato à iniciação tem de submeter-se a experiências que o homem normalmente
enfrenta apenas no limiar da morte. Seu guia o faz transcender as regiões em que nascimento
e morte têm um significado. O iniciado conhece uma nova vida:
Pois estive morto, mas eis que estou de novo vivo pelos séculos dos séculos, e tenho as
chaves da morte e do reino da morte. [1, 18.]

47
Assim preparado, João é conduzido aos segredos da existência:
Depois disto olhei, e eis que estavam abertas as portas para o céu; e a primeira voz que se
podia ouvir soou-me como uma trombeta, e disse: Sobe, e mostrar-te-ei as coisas que estão
para acontecer depois destas.
As mensagens dirigidas aos sete espíritos das igrejas anunciam a João o que deverá
ocorrer no mundo físico-sensível, para preparar os caminhos do cristianismo; o que se segue, o
que ele vê ‘no espírito’, leva-o aos primórdios espirituais das coisas, encobertos pela evolução
física mas destinados a manifestar-se, em conseqüência dessa mesma evolução, numa próxima
era espiritualizada. O iniciado vive, no presente e como uma experiência espiritual, o que
deverá acontecer no futuro.
Imediatamente fui arrebatado pelo Espírito, e eis que vi um trono no céu, e sobre o trono
estava sentado alguém. E quem estava sentado era, por seu aspecto, semelhante a uma
pedra de jaspe e de sardônia; envolvia o trono um arco-íris que se assemelhava à esmeralda.
Assim é descrito o plano primordial do mundo sensível, revestido das imagens pelas quais
se manifesta ao vidente.
E ao redor do trono havia vinte e quatro tronos; e sobre os tronos vi sentados vinte e quatro
anciãos vestidos com ondulantes vestes brancas, e com coroas de ouro sobre as cabeças.
Seres muito adiantados na senda da sabedoria rodeiam, pois, a Fonte Primordial da
existência, contemplando sua essência infinita e dando testemunho dela.
E no meio e ao redor do trono havia quatro criaturas viventes, possuidoras de olhos na frente
e atrás. A primeira criatura era semelhante a uma águia em pleno vôo. As quatro criaturas,
tendo cada uma delas seis asas, tinham olhos ao redor e por dentro, e não cessavam de
clamar, dia e noite: Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus, o Todo Poderoso, o que era, o que
é e o que há de ser.
Percebe-se facilmente que as quatro criaturas significam a existência supra-sensorial
subjacente às formas sensoriais da vida. Elas levantarão suas vozes mais tarde, quando soarem
as trombetas, isto é, quando a existência moldada em formas sensórias se tiver transmutado
em existência espiritual.
Na mão direita do que estava sentado no trono encontrava-se um livro onde está prefigurado
o caminho para a Suma Sabedoria (5, 1). Apenas um é digno de abri-lo.
Eis que venceu o Leão, que é da tribo de Judá, raiz de Davi; por sua vitória obteve o poder
de abrir o livro e romper seus sete selos.
Sete são os selos do livro, sétupla é a sabedoria humana. O fato de ser ela considerada sétupla
decorre do caráter sagrado do número sete. Selo é o termo empregado pela ciência mística de
Fílon para designar os eternos pensamentos cósmicos que se exprimem nas coisas. A sabedoria
humana procura essas idéias primordiais. Mas a sabedoria divina só pode ser encontrada no
livro selado com elas. Primeiro é necessário desvendar as idéias básicas da Criação, abrir os
selos; então ficará patente o que se acha no livro. Jesus, o Leão, é capaz de romper os selos.
Ele orientou as idéias primordiais numa direção que conduz, por seu intermédio, à Sabedoria.
O livro é aberto pelo Cordeiro que foi imolado e que redimiu Deus com seu sangue —
Jesus, que trouxe em si o Cristo, como conseqüência da suprema iniciação nos mistérios da
vida e da morte (5, 9-10). Ao romper dos selos, os seres viventes dizem o que sabem (cap. 6).
Quando se abre o primeiro, João percebe um cavalo branco, cujo cavaleiro tem um arco.
Torna-se, assim, visível a primeira potência universal, encarnação do pensamento da Criação.
O novo cavaleiro, o cristianismo, o conduz na direção apropriada: a luta é apaziguada pela
nova fé. No rompimento do segundo selo aparece um cavalo vermelho com seu cavaleiro. Este
tira do mundo a Paz, a segunda potência universal, para que a humanidade não deixe, por
indolência, de cultivar o Divino. Ao romper do terceiro selo, surge a potência universal da

48
Justiça, guiada pelo cristianismo, e ao abrir-se o quarto, a potência da Religião, que recebeu,
mediante o cristianismo, nova dignidade.
O significado das quatro criaturas fica assim elucidado: são elas as quatro potências
capitais, que pelo cristianismo devem receber nova orientação: a guerra (leão), o trabalho
(touro), a justiça (a criatura de rosto humano) e o fervor religioso (águia). O papel do terceiro
animal se esclarece quando é dito, ao ser rompido o terceiro sinete: “Uma medida de trigo por
um denário, e três medidas de cevada por um denário”, e que seu cavaleiro tem uma balança
na mão. E quando se rompe o quarto selo, aparece um cavaleiro cujo nome era ‘Morte’, e o
Hades o seguia. Esse cavaleiro representa a justiça religiosa (6, 6-7.)
Ao romper do quinto selo aparecem as almas dos que já agiram dentro do espírito do
cristianismo. Revela-se aqui a própria idéia da Criação incorporada ao cristianismo, embora se
considere aqui apenas a primeira comunidade cristã, que é tão perecível como outras formas
da Criação. Abre-se, então, o sexto selo (cap. 7), revelando o caráter perene do mundo
espiritual cristão. Esse mundo, que gerou o próprio cristianismo, parece impregnar o povo:
Ouvi, então, o número dos que foram assinalados: cento e quarenta e quatro mil assinalados
de todas as tribos dos filhos de Israel. [7, 4.]
São os que se prepararam para o eterno antes que existisse o cristianismo, e que foram
transformados pelo impulso do Cristo.
Rompendo-se o sétimo selo, fica evidenciado o que há de ser o verdadeiro cristianismo.
Surgem os sete anjos, “que estão de pé diante de Deus" (8, 2). São espíritos da antiga tradição
iniciática traduzidos em símbolos cristãos. Representam, pois, os espíritos que conduzem, por
um caminho realmente cristão, à contemplação de Deus. O que se segue é um caminhar em
direção a Deus, verdadeira ‘iniciação’ concedida a João. Suas anunciações são acompanhadas
dos fenômenos indispensáveis a toda iniciação.
O primeiro Anjo tocou a trombeta. Seguiram-se saraiva e fogo, misturados com sangue, e
foram lançados sobre a Terra. Foi queimada a terça parte da Terra, e a terça parte das
árvores, e toda a erva verde.
Coisas similares ocorrem quando os outros anjos tocam suas trombetas.
Percebe-se, nesta altura, que não se trata simplesmente de iniciação no sentido antigo,
mas de uma nova, destinada a substituir a antiga. O cristianismo não devia ser apanágio de
alguns privilegiados, como eram os antigos mistérios, mas se destinava a toda a humanidade,
constituindo uma religião popular; a verdade devia estar ao alcance de todos os que “tinham
ouvidos para ouvir”. Os iniciados antigos foram escolhidos entre muitos; as trombetas do
cristianismo soam para quem quiser ouvi-las. Depende de cada um querer aproximar-se. Por
esse motivo os horrores que acompanham essa iniciação da humanidade inteira parecem
aumentados ao infinito. Em sua iniciação, João recebe a revelação dos destinos remotos da
Terra e de seus habitantes, de acordo com a idéia de que ao iniciado é possível prever, nos
mundos superiores, o que somente no futuro se realizará nos mundos inferiores. As sete
mensagens representam o significado do cristianismo para o presente; os sete selos, aquilo que
o cristianismo prepara, no presente, para o futuro. Para o não-iniciado o futuro permanece
velado, selado; dessela-se durante a iniciação. Terminado o período a que se referem as sete
mensagens, iniciar-se-á uma era mais espiritual; então a existência não transcorrerá tal como
se manifesta nas formas sensoriais; será, também exteriormente, uma projeção de suas formas
supra-sensíveis, representadas aqui pelas quatro criaturas e pelos demais selos. Numa era
ainda mais remota, a Terra assumirá o aspecto que se revelou ao iniciado pelas trombetas.
Destarte, o iniciado experimenta profeticamente o que há de realizar-se mais tarde, e o
iniciado cristão percebe em particular como o impulso do Cristo incide e atua na vida terrena.
A morte extinguira tudo o que se apega demasiadamente ao mundo perecível e, portanto,

49
impossibilitado de alcançar o verdadeiro cristianismo. Depois dessa revelação surge o Anjo
poderoso com um pequeno livro aberto, que oferece a João (10, 9):
E ele me disse: Toma-o e come-o; ele te será amargo nas entranhas, mas na tua boca será
doce como o mel.
João não deve, pois, apenas lê-lo; deve assimilá-lo inteiramente, permeando-se com seu
conteúdo. De nada serve qualquer conhecimento que não impregne o homem de modo vital e
pleno. A sabedoria tem de metamorfosear-se em vida; o homem não deve apenas conhecer o
Divino: ele deve ser divinizado. Tal verdade, conteúdo do livro, pode causar dor à natureza
transitória — “ele te será amargo nas entranhas”; mas tornará tanto mais feliz a natureza
eterna — “mas na tua boca será doce como o mel”.
Somente mediante tal iniciação pode o cristianismo estar presente na Terra,
exterminando tudo o que pertence à natureza inferior.
E seus cadáveres jazerão nas praças da grande cidade que, espiritualmente, chama-se
Sodoma e Egito, onde também seu Senhor foi crucificado.
Isso se refere aos adeptos do Cristo, sujeitos a ser maltratados pelas potências temporais.
Contudo, o que se maltrata é apenas a parte perecível da entidade humana, e sobre esta os
adeptos terão triunfado em seu verdadeiro ser. Seu destino será, pois, uma reprodução do
destino prototípico do Cristo Jesus. “Espiritualmente Sodoma e Egito” simboliza a vida que,
apegada apenas ao que é exterior, não se metamorfoseia sob o impulso do Cristo. Em todo
lugar Cristo está sendo crucificado na natureza inferior. Onde esta prevalece, tudo permanece
morto. Os homens cobrem como cadáveres as praças das cidades. Os que superam esse estado,
fazendo ressuscitar o Cristo crucificado, ouvem a trombeta do sétimo Anjo:
Nasceram os reinos do mundo de nosso Senhor e seu Cristo, e ele reinará pelos séculos dos
séculos. [11, 15.]
Abriu-se o santuário de Deus, que está no céu, e em seu santuário foi vista a arca da aliança.
[11, 19.]
À vista desses acontecimentos, renasce para o iniciado a secular contenda da natureza
superior com a inferior. Com efeito, tudo que o antigo neófito experimentou em sua iniciação
tinha de repetir-se naquela que segue os caminhos cristãos. Assim como Osíris fora outrora
ameaçado por Tífon, precisa ser vencido agora “o grande dragão, a antiga serpente”. (12, 19.)
A mulher, símbolo da alma humana, dá nascimento ao conhecimento inferior, que é uma
potência adversa quando não se transforma em sabedoria. O homem tem de transpor esse
saber inferior, simbolizado no Apocalipse pela ‘antiga serpente’. Em toda sabedoria esotérica
a serpente era tida como símbolo do conhecimento. Essa serpente, o conhecimento, pode
seduzir o homem se nele não nasce o Filho de Deus, que esmaga sua cabeça.
E foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, que se chama Diabo e Satanás, aquele
que engana todo o mundo; sim, foi precipitado na Terra, e com ele seus anjos. [12, 9.]
Nessas palavras pode-se ler o que pretendia ser o cristianismo: um novo tipo de iniciação,
permitindo conseguir de maneira nova o que antigamente se conseguia nos mistérios. Pois
também neles se almejava superar a serpente. Mas isto não deveria ocorrer tal qual antes. Os
múltiplos mistérios antigos deveriam ser substituídos pelo mistério primordial, uno, o mistério
cristão, onde o Cristo, o Logos encarnado, seria o iniciador de toda uma humanidade,
destinada a ser sua própria comunidade de iniciados. O que haveria de realizar-se não seria a
reclusão de alguns eleitos, mas a congregação de todos. Cada um, conforme sua maturidade,
deveria poder tornar-se um adepto. A mensagem se faz ouvir a todos; quem tem ouvidos para
ouvi-la açode para escutar seus segredos. A voz do coração deve decidir em cada indivíduo.
Não se trata de admitir um ou outro ao templo dos mistérios: a palavra é dirigida a todos,

50
embora um possa ouvi-la mais nitidamente do que outro. Dependerá do ‘demônio’, do anjo
que habita no peito do homem, em que escala este pode ser iniciado. O mundo inteiro é um
templo de mistérios. Bem-aventurados devem ser não somente os que contemplam nos
templos especiais os maravilhosos serviços, garantia do eterno, mas “bem-aventurados os que
não viram e creram”. Mesmo se, inicialmente, forem tateando na escuridão, a luz talvez lhes
chegue. A ninguém será negado algo: o caminho estará aberto a todos.
A seguir, no Apocalipse são descritos plasticamente os perigos que ameaçam o que é
cristão por parte do que é anticristão, e ressalta como aquele, mesmo assim, há de vencer.
Todos os deuses se fundem na divindade cristã una:
A cidade não precisa de sol, nem de lua para iluminá-la, porque a glória de Deus a ilumina e
o Cordeiro é sua candeia. [21, 23.]
O mistério da ‘revelação de São João’ é que os mistérios deixarão doravante de ser
fechados.
E ele me disse: ‘Não seles as palavras proféticas deste livro, pois a Divindade está próxima.’
[22, 10.]
O que o autor do Apocalipse expressa é sua opinião a respeito da conexão entre sua igreja e as
igrejas antigas. Ele recorreu a um mistério espiritual para falar dos próprios mistérios. Escre-
veu-o na língua de Patmos, onde, segundo dizem, recebeu a ‘revelação’ numa gruta. Seu
caráter de mistério se exprime nessa informação. O cristianismo nasceu, pois, dos mistérios.
Sua sabedoria surge qual um mistério no próprio Apocalipse — mas como um mistério que
ultrapassa os limites do antigo mundo iniciático. O mistério individual passa a ser universal.
Pode parecer uma contradição a afirmação de que o cristianismo patenteou os segredos dos
antigos mistérios e que, não obstante, a vivência das visões apocalípticas constituiria um
mistério cristão. A contradição se desfaz ao lembrarmos que os acontecimentos na Palestina
revelaram os segredos dos antigos mistérios. Eles desvendaram o que anteriormente estava
velado no seio dos mistérios. O aparecimento do Cristo implantou novo segredo na evolução
cósmica. O antigo iniciado constatou, no mundo espiritual, que a evolução tendia para o
‘Cristo ainda oculto’; já o iniciado cristão experimenta os efeitos invisíveis do ‘Cristo
manifesto’.

Jesus e seu ambiente histórico

É na sabedoria iniciática que se deve procurar o solo do qual brotou o espírito do


cristianismo. Faltava apenas afirmar paulatinamente a convicção de que esse espírito deveria
impregnar a vida mais plenamente do que havia conseguido pela própria instituição dos
mistérios. Mas essa convicção fundamental já reinava em amplos círculos: basta observar a
conduta dos essênios e terapeutas, ambos muito anteriores à gênese do cristianismo. Os
essênios formavam, na Palestina, uma seita muito fechada, cujo número de adeptos é avaliado
em quatro mil, na época de Jesus. Constituíam uma comunidade cujos membros recebiam a
injunção de viver uma vida capaz de desenvolver na alma uma personalidade superior, isto é,
efetuar novo nascimento espiritual. O candidato era submetido a rigorosa prova, destinada a
verificar se ele estava maduro a ponto de preparar-se para uma vida superior. Os aprovados
tinham de passar por um período de experiência. Prestava-se um juramento solene de não
revelar a estranhos os segredos da conduta dos essênios. A própria vida estava apta a dominar
a natureza inferior, despertando gradativamente o espírito latente no homem. Quem houvesse
experimentado esse despertar até determinado ponto subia um degrau na hierarquia da

51
ordem, desfrutando de uma autoridade naturalmente fundamentada nas convicções básicas, e
não imposta de fora.
Os terapeutas, que viviam no Egito, eram semelhantes aos essênios. Sobre sua maneira de
viver encontram-se todas as informações desejadas na obra do filósofo Fílon Da vida contem-
plativa15.Basta ler alguns trechos dessa obra para se ter uma idéia do que mais importava:
As habitações dos membros da comunidade são extremamente modestas, proporcionando
apenas a proteção imprescindível contra o calor e o frio extremos. Não são tão vizinhas umas
das outras como costumam ser nas grandes cidades, pois quem busca a solidão dispensa
facilmente a proximidade de outrem; tampouco são distantes demais, para não dificultar as
relações sociais e permitir ajuda rápida em caso de ataques de bandidos. Em toda casa existe
um recinto sagrado, chamado templo ou mosteiro, uma pequena sala, câmara ou cela, onde
eles se dedicam aos mistérios da vida superior. [...] Eles também possuem obras de antigos
autores, que outrora dirigiram suas escolas e legaram-lhes muitas explicações acerca do
método comumente seguido nos escritos alegóricos. [...] A exegese dos escritos sagrados tem
por objeto o significado mais profundo das narrações alegóricas.
Percebe-se que se trata aqui, em círculo mais amplo, daquilo que também se almejava
no círculo restrito dos mistérios. Evidentemente, tal amplitude teve por conseqüência
amainar-se a severidade original. As comunidades dos essênios e dos terapeutas constituem
uma transição natural entre os mistérios e o cristianismo, mas este quis tornar atributo de
toda a humanidade o que aqueles haviam tornado privativo de uma seita. Daí resultou,
naturalmente, um afrouxamento do rígido caráter original.
A própria existência de tais seitas permite entender até que ponto a humanidade daquele
tempo amadurecera para uma compreensão do mistério do Cristo. Nos mistérios, esse preparo
havia sido artificial, sempre com a finalidade de alcançar, em determinado grau de evolução,
a revelação dos mundos superiores espirituais na própria alma. No seio das comunidades dos
essênios ou dos terapeutas, a alma procurava despertar o ‘homem superior’ por meio de uma
conduta adequada de vida. Um passo seguinte seria então deixar-se o homem permear pelo
vislumbre de que uma individualidade humana pode alcançar graus sempre mais altos de
perfeição por meio de vidas terrestres repetidas. Admitindo essa hipótese, era possível sentir
que um ser de alta espiritualidade se havia manifestado em Jesus. Quanto mais sublime a
espiritualidade, tanto maior a capacidade de realizar algo importante. Desse modo pôde a
individualidade de Jesus capacitar-se para realizar o ato tão misterioso ao qual aludem os
Evangelhos ao referir-se ao batismo no rio Jordão, ficando evidente que, pela maneira como a
este se referem, apontam-no como algo de suma importância.
A personalidade de Jesus capacitou-se a receber em sua própria alma o Cristo, o Logos
que, portanto, nela se tornou carne. Daí em diante, o Cristo é o ‘eu’ de Jesus de Nazaré, e a
personalidade exterior é o veículo do Logos. Esse evento no qual o Cristo se tornou o eu de
Jesus é representado no batismo por João. Na época dos mistérios tratava-se de realizar em
alguns homens isolados a ‘união com o espírito’; entre os essênios, uma comunidade inteira
esforçava-se, por sua maneira de viver, para conseguir essa ‘união’ em seus adeptos; com o
advento do Cristo, os próprios atos deste haveriam de ser postos ao alcance de toda a
humanidade, a fim de fazer da ‘união com o espírito’ um objetivo dos esforços cognitivos de
todos os homens.

15
A discussão sobre a autenticidade dessa obra está hoje encerrada, parecendo justificada a opinião de que Fílon
realmente escreveu a vida de uma comunidade que lhe era bem conhecida, e que existia muito antes do
cristianismo. Veja-se G. R. Mead, fragmente eines verschollenen Glaubens [Fragmentos de uma crença extinta]
(Leipzig, 1902).

52
Da essência do cristianismo

Era natural que os adeptos do cristianismo tivessem ficado profundamente


impressionados pelo fato de o Divino, o Logos, o Verbo Eterno, não lhes ter aparecido mais na
penumbra dos mistérios, meramente como Espírito, mas, ao contrário, quando falavam desse
Logos, terem sido sempre remetidos à personalidade humana e histórica de Jesus. Antes, esse
Logos havia sido vislumbrado, em sua manifestação perceptível, somente nos vários graus de
aperfeiçoamento humano. Podia-se observar a existência espiritual da personalidade em suas
diferenças tênues e íntimas e descobrir de que maneira e em que medida o Logos despertava
nos vários indivíduos que buscavam a iniciação. A um grau superior de maturidade haveria de
corresponder um nível mais alto na evolução espiritual. As etapas anteriores tinham de ser
procuradas numa vida espiritual anterior, e a existência atual podia ser considerada como base
para futuros graus do desenvolvimento espiritual. Era lícito postular, como o fez a doutrina
judaica esotérica (Livro do Zohar), a conservação e a eternidade da energia espiritual da alma:
“No mundo nada se perde, nada desaparece no vazio, nem mesmo as palavras e a voz do
homem. Tudo tem seu lugar e seu destino.” Uma personalidade era apenas uma metamorfose
da alma, que se transmuta de uma personalidade para outra. A vida isolada de uma
personalidade era considerada apenas um elo de uma cadeia apontando para o passado e para
o futuro.
Esse Logos mutante foi dirigido, pelo cristianismo, da personalidade singular para a
personalidade única de Jesus, concentrando nela o que antes estava dividido pelo mundo
inteiro. Jesus tornou-se o único Homem-Deus. Nele esteve presente, por uma única vez, aquilo
que para todo homem há de constituir o mais elevado ideal, e ao qual ele haverá de integrar-
se sempre mais intimamente, no decorrer de suas repetidas vidas futuras. Jesus tomou a seu
cargo a divinização de toda a humanidade. Nele se buscava o que antes só podia ser buscado
na própria alma. Fora arrebatado à personalidade humana o que ela outrora continha de divino
e de eterno. Todo esse caráter eterno podia agora ser percebido em Jesus. Não é mais a
parcela eterna da alma que vence a morte e será ressuscitada como divina: o Deus Uno, que
estava em Jesus, aparecerá para despertar as almas. Com isso a personalidade humana
recebeu feição inteiramente nova. Tendo-lhe sido retirado seu elemento eterno, imortal,
restava apenas a personalidade como tal. Para não negar a imortalidade, era necessário
atribuí-la à própria personalidade. A doutrina da metamorfose eterna da alma transformou-se
na imortalidade pessoal. Com efeito, essa personalidade adquiriu importância transcendente,
pois era tudo o que do homem se conservava.
Doravante, nada existia entre a personalidade e o Deus infinito. Fora preciso estabelecer-
se uma relação direta com ele. O homem não era mais suscetível de ser divinizado em grau
maior ou menor; era simplesmente homem e achava-se em relação direta, embora exterior,
com Deus. Quem conhecia as velhas tradições iniciáticas tinha de perceber nisto uma tônica
inteiramente nova na maneira de ver o mundo. Muitas personalidades dos primeiros séculos
cristãos devem ter-se encontrado nessa situação. Elas conheciam os antigos mistérios, e
deveriam chegar a um entendimento em relação aos mesmos se quisessem converter-se ao
cristianismo. Isto os levou aos mais árduos conflitos anímicos e às mais variadas tentativas de
encontrar um equilíbrio entre as tendências das duas cosmovisões. Esses conflitos se refletem
nos escritos dos primeiros séculos cristãos, tanto nos dos gentios atraídos pela majestade do
cristianismo quanto nos dos cristãos, aos quais custava abandonar a mentalidade dos mistérios.
O cristianismo surge paulatinamente do espírito dos mistérios. Convicções cristãs são expostas
sob o disfarce das verdades aí professadas; a sabedoria iniciática se esconde na terminologia
cristã. Como exemplo, podemos citar palavras de Clemente de Alexandria (morto em 217 d.C),
autor cristão, porém de formação gentia:

53
Deus não nos disse para descansarmos das boas ações no feriado do sábado; aos que podem
compreender, concedeu participar dos segredos divinos e da luz sagrada; não revelou à
multidão o que não lhe convém, mas sim a uns poucos considerados idôneos para
compreender e imitá-lo, do mesmo modo como Deus confia o indizível ao Logos, e não à
Escritura. Para aperfeiçoar os santos, para os deveres do ministério e para preparar o corpo
de Cristo, Deus deu à Igreja alguns como apóstolos, outros como profetas, outros como
evangelistas e ainda outros como pastores e doutores.
De maneiras as mais diversas, as pessoas procuravam o caminho para chegar das antigas
doutrinas aos conceitos cristãos. Quem pensava trilhar a senda correta chamava os outros de
hereges. Além disso, a Igreja se firmava cada vez mais como instituição exterior. À medida que
seu poder aumentava, o caminho aceito como correto por resoluções de concílios, isto é, por
determinações exteriores, ia tomando o lugar da investigação pessoal. A Igreja decidia quem
se havia afastado demasiadamente da verdade divina defendida por ela. O conceito de
‘herege’ tomou feições cada vez mais definidas. Nos primeiros séculos do cristianismo, muito
mais do que posteriormente, a procura do caminho divino era assunto individual. Foi
necessário decorrer um longo período para que fosse possível a convicção de Agostinho: “Eu
não acreditaria na verdade dos Evangelhos se a isso não me obrigasse a autoridade da Igreja
Católica.”
A luta entre a maneira de ser dos mistérios e a cristã adquiriu características particulares
em várias seitas e escritores ‘gnósticos’. Podem ser considerados gnósticos todos os autores
que, durante os primeiros séculos da era cristã, buscavam nas doutrinas cristãs um sentido
espiritual mais profundo.16 Compreendemos esses gnósticos ao vê-los imbuídos da antiga
sabedoria iniciática, procurando, por esse ponto de vista, entender o cristianismo. Para eles, o
Cristo é o Logos, sendo de princípio, como tal, de natureza espiritual. Em sua essência
primordial, ele não pode aproximar-se do homem e adentrá-lo; tem de ser despertado na
alma. Mas qual é a conexão entre o Jesus histórico e esse Logos espiritual? Essa era a pergunta
crucial dos gnósticos. Fosse qual fosse a resposta que um ou outro lhes desse, o ponto decisivo
era, para eles, que uma autêntica compreensão do conceito de Cristo não podia ser alcançada
pela tradição histórica, e sim pela sabedoria iniciática ou pela filosofia neoplatônica, que
hauria da mesma fonte e que floresceu nos primeiros séculos pós-cristãos. Havia fé na
sabedoria humana e acreditava-se que esta pudesse engendrar um Cristo pelo qual poderia ser
medido o Cristo histórico — só por intermédio do primeiro este seria compreendido e visto sob
luz correta.
De acordo com esse ponto de vista, reveste-se de especial interesse a doutrina que se
apresenta nos livros de Dionísio Aeropagita. É verdade que não há menção desses escritos até o
século VI, mas o importante não é a data nem o local em que foram redigidos, mas sim o fato
de representarem uma exposição do cristianismo totalmente revestido da mentalidade
neoplatônica e de uma contemplação espiritual dos mundos superiores. De qualquer maneira,
trata-se de uma forma de apresentação que pertence aos primeiros séculos cristãos, quando
essa forma de tradição era oral, pois os assuntos mais importantes não foram confiados à
Escritura. O cristianismo descrito dessa forma poderia ser mencionado como interpretação à
luz do neoplatonismo. Como a percepção sensorial perturba a visão do espírito, o homem tem
de transcender o mundo físico. Contudo, todos os conceitos humanos são originalmente tirados
da observação sensorial. O homem sensorial chama de existente o que percebe, e de não-
existente o que não percebe. Se quiser alcançar uma visão real do Divino, terá de transcender
também o existente e o não-existente, pois mesmo este último surge em sua concepção
própria da esfera sensorial. Neste sentido, Deus não é nem existente nem não-existente. É
supra-existente, não podendo, portanto, ser alcançado com os meios cognitivos comuns
16
Uma exposição brilhante da evolução do gnosticismo encontra-se no livro já citado de Mead, Fragmente eines
verschollenen Glaubens [Fragmentos de uma crença extinta — v. nota na pág. 107 ].

54
relativos ao existente. O homem tem de elevar-se acima da observação sensorial e da lógica
racional para chegar ao caminho que conduz à visão espiritual; só então poderá vislumbrar as
perspectivas do Divino. Mas essa Divindade supra-existente criou o Logos, fundamento do
Universo, pleno de sabedoria. Este pode também ser alcançado pela força interior do homem,
e está presente no edifício cósmico qual um Filho espiritual de Deus, sendo intermediário
entre este e o homem. Pode estar presente no homem em escala variável e manifestar-se
numa instituição terrestre que reúna, sob determinada hierarquia, homens que de várias
maneiras estejam impregnados dele. Uma ‘Igreja’ assim concebida é uma concretização do
Logos, e a força que a anima viveu personificada em Jesus, o Cristo encarnado. Por intermédio
de Jesus, a Igreja está, pois, unida a Deus: ele é seu ponto culminante e seu sentido. Todo
gnóstico sabia, claramente, que tinha de chegar a uma compreensão da personalidade de
Jesus relacionando-a com a figura do Cristo. A Divindade, depois de retirada da personalidade
humana, tinha de ser reencontrada de outra maneira. Deveria ser possível reencontrá-la em
Jesus. O adepto dos antigos mistérios tinha de lidar com um determinado grau de divindade e
sua personalidade terrena. O cristão tinha de prestar contas a esta e a um Deus perfeito e
sublime, situado acima de tudo o que era humanamente alcançável.
Seguindo rigorosamente esse critério, só é possível uma atitude mística se a alma, ao
encontrar o Divino dentro de si, alcançar uma visão espiritual apropriada para perceber a luz
que emana do Cristo em Jesus. A identificação da alma com seus poderes mais elevados
equivale, pois, à identificação com o Cristo histórico. Com efeito, a ‘mística’ é a intuição e a
sensação imediatas do Divino dentro da própria alma. Mas um Deus que transcende tudo o que
é humano nunca pode, literalmente, habitar a alma humana. Por isso, o gnosticismo e toda a
mística cristã posterior se esforçam para, mesmo assim, conseguir que esse Divino esteja
diretamente presente na alma.
Daí sempre surgiu necessariamente um conflito, pois na realidade o homem só pode
encontrar seu Divino realizado em determinado grau evolutivo. Mas o Deus cristão é perfeito,
completo em si mesmo. O homem podia esforçar-se para alcançá-lo; mas nada do que se
experimentava em qualquer grau de evolução podia ser considerado idêntico a ele. Abriu-se
um abismo entre o que se podia conhecer na alma e aquilo que o cristianismo designava como
divino. É o abismo entre saber e crer, entre conhecimento e sentimento religioso. Para o
antigo adepto esse abismo não podia existir, pois ele sabia que só se pode captar o Divino
gradativamente; mas sabia também o porquê dessa limitação. Para ele era óbvio que, embora
gradativamente, o Divino se lhe apresentava em sua verdadeira realidade; era-lhe, portanto,
difícil falar em Divindade perfeita e acabada. Esse iniciado não pretende conhecer o Deus
perfeito, mas quer experimentar a vida divina em si próprio; pretende divinizar-se, e não
alcançar uma relação exterior com Deus. Está latente na própria essência do cristianismo o
fato de sua mística não poder, nesse sentido, prescindir de certas premissas. Embora querendo
perceber o Divino em si próprio, o místico cristão tem de olhar para o Cristo histórico como
seus olhos para o Sol; tal qual o olho poderia dizer a si próprio: “O que consigo ver com minhas
forças, percebo-o por meio do Sol”, diria o místico cristão: “Eu intensifico minha vida interior
para a visão do Divino; mas a luz que me faculta essa visão existiu no Cristo manifesto. É por
meio dele que posso alcançar o Supremo.” É nesse sentido que os místicos cristãos da Idade
Média diferem dos iniciados dos antigos mistérios (veja-se meu livro Die Mystik im Aufgange
des neuzeitlichen Geisteslebens [A mística no despontar da vida espiritual moderna]).17

Cristianismo e sabedoria paga


17
Atualmente sob o título Die Mystik im Aufgange des neuzeitlichen Geisteslebens und ihr Verhaltnis zur modernen
Weltanschauung, GA-Nr. 7 (6. ed. Dornach: Rudolf Steiner Verlag, 1987). (N.E.)

55
Na época do início do cristianismo, vemos surgir na civilização paga cosmovisões que,
além de constituírem uma continuação das doutrinas platônicas, podem ser consideradas
também sabedoria iniciática interiorizada e espiritualizada. Tais cosmovisões têm sua origem
em Fílon de Alexandria (25 a.C. a 50 d.C.). Para ele, o caminho que conduz ao Divino parece
transposto para o cerne da alma. Poderíamos dizer que o templo de mistérios onde Fílon busca
sua iniciação é formado pela alma e suas experiências superiores. Processos de pura natureza
espiritual substituem as cerimônias que se realizavam antes nos centros iniciáticos. Segundo
sua opinião, a percepção e a cognição lógico-racional não conduzem ao Divino, pois têm por
objetivo apenas o mundo sensível. Existe, porém, um caminho para a alma se elevar acima
desses métodos cognitivos. Deve ela separar-se do que chama de ‘eu’ comum, subtrair-se a ele
e entrar num estado de elevação e iluminação em que deixa de saber, de conhecer e de
raciocinar no sentido comum. Ela se uniu ao Divino, integrou-se nele, experimentando-o de
uma maneira que não se pode moldar em pensamentos, nem comunicar por conceitos —
apenas vivenciar.
Quem vive essa experiência sabe que só poderia comunicá-la se conseguisse insuflar vida
nas palavras. O mundo visível é apenas uma imagem dessa entidade mística vivida nas profun-
dezas da alma. Nasceu esse mundo do Deus invisível, inconcebível. Uma reprodução imediata
dessa Divindade é a sábia harmonia do mundo, que rege os fenômenos sensórios. Essa sábia
harmonia é a imagem espiritual da Divindade, o Espírito Divino derramado no mundo — a Razão
cósmica, o Logos, o Rebento ou Filho de Deus. O Logos é o intermediário entre o mundo
sensível e o Deus inconcebível. Permeando-se de conhecimento, o homem une-se ao Logos,
que nele se incorpora. A personalidade desenvolvida até a plena espiritualidade é veículo do
Logos. Acima deste se encontra Deus; embaixo, o mundo transitório. A missão do homem é
ligar ambos. O espírito que ele experimenta no íntimo de sua alma é o Espírito Cósmico. Essas
idéias lembram imediatamente as de Pitágoras.
O cerne da existência é procurado na vida interior. Esta, porém, tornou-se consciente de
seu significado cósmico. Santo Agostinho, expressando conceitos similares ao de Fílon, diz:
“Vemos todos os objetos criados porque existem: mas eles existem porque Deus os vê.” E
significativamente acrescenta, a respeito do que e como vemos, o seguinte: “Vemo-los
externamente porque existem, e internamente porque são perfeitos.” A mesma atitude mental
se encontra em Platão. Fílon, como Platão, viu nos destinos da alma humana o ato final do
grande drama cósmico, o despertar do Deus oculto. Descreveu as ações internas da alma com
estas palavras: a sabedoria, no interior do homem, vai “imitando os caminhos do Pai e,
contemplando os arquétipos, plasma as formas”. Plasmar formas dentro de si mesmo não é,
pois, atributo pessoal. Essas formas são a sabedoria eterna, a existência cósmica. Isto está em
concordância com os conceitos iniciáticos a respeito dos mitos populares. O iniciado, como
vimos, busca nos mitos o cerne da verdade. Da mesma maneira como ele encara os mitos
pagãos, Fílon o faz com as narrações mosaicas do Gênesis. Para ele, os relatos do Antigo
Testamento são imagens de processos intrapsíquicos. A Bíblia narra a Criação; quem a
considera como descrição de fatos exteriores entende-a apenas pela metade. É verdade que
está escrito:
No princípio Deus criou o Céu e a Terra. A Terra, porém, era disforme e vazia; havia trevas
nas profundezas, mas o Espírito de Deus pairava sobre as águas.
Contudo, o sentido autêntico e íntimo de tais palavras deve ser vivenciado nas
profundezas da alma. Uma vez encontrado no íntimo, Deus aparece como o “esplendor
primordial que emite inúmeros raios, de modo não sensorial ou perceptível, mas inteiramente
espiritual”. Assim se expressa Fílon. Em Platão (Timeu) encontramos relato quase idêntico ao
da Bíblia: “Quando o Pai, que criou o Universo, contemplou-o e viu que se vivia e movia qual

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uma imagem de deuses eternos, sentiu grande prazer.” Na Bíblia se lê: “E Deus viu que tudo
era bom.”
Reconhecer o Divino significa, assim como em Platão e nos mistérios, vivenciar a gênese
como um destino anímico próprio. A história da Criação e da alma em vias de divinizar-se
confluem para um só ponto. De acordo com Fílon, o relato mosaico da Criação pode ser
utilizado para descrever a história da alma em busca de Deus. Todos os fatos bíblicos adquirem
com isso profundo significado simbólico, e Fílon se torna intérprete desse significado, lendo a
Bíblia como uma história da alma.
É lícito afirmar que, com essa maneira de interpretar a Bíblia, Fílon exprime um aspecto
de sua época, relacionado com a sabedoria esotérica. Com efeito, ele narrou que os
terapeutas adotaram idêntico método para interpretar os escritos antigos:
Eles possuem obras de antigos autores, que outrora dirigiram sua escola e que legaram
explanações a respeito do método usado nos escritos alegóricos. [...] A exegese desses
escritos tem por objeto o sentido mais profundo das narrações alegóricas.
Da mesma forma, Fílon tinha em mira o sentido íntimo das narrações alegóricas do Antigo
Testamento.
É preciso refletir sobre as conseqüências de tal exegese. Lemos o Gênesis e aí
encontramos não apenas uma história exterior, mas os modelos para os caminhos que a alma
deve seguir para alcançar o Divino. A busca mística da alma consiste, pois, em repetir, em
escala microcósmica, os caminhos de Deus. O drama cósmico deve repetir-se em cada alma. A
vida anímica do sábio místico é a realização do modelo indicado no relato da Criação. Moisés
não escreveu apenas para retratar fatos históricos, mas para ilustrar, em imagens, os caminhos
que a alma deve tomar se quiser encontrar Deus.
De acordo com a cosmovisão de Fílon, tudo isto se passa no íntimo do espírito. O homem
experimenta dentro de si mesmo o que Deus experimentou no Universo. O Verbo Divino, o
Logos, passa a constituir uma realidade anímica. Deus conduziu os judeus do Egito para a Terra
Prometida, impondo-lhes sofrimentos e privações antes de dar-lhes esse país. Eis os fatos
exteriores. Proceda-se agora à sua experiência íntima. O homem sai do Egito, mundo efêmero,
atravessa os sofrimentos que gradativamente oprimem o mundo sensível e chega à Terra
Prometida da alma, ao Eterno. Para Fílon, tudo isso não passa de um processo interior. O Deus
derramado no mundo celebra sua ressurreição dentro da alma, quando nela seu Verbo Criador
é compreendido e reproduzido. Então o homem gerou em si, espiritualmente, o Deus, o Espírito
Divino feito Homem, o Logos, o Cristo. Neste sentido, a aquisição do conhecimento significava,
para Fílon e todos os que como ele pensavam, um nascimento do Cristo no mundo do espírito.
A filosofia neoplatônica, que se desenvolveu ao mesmo tempo que o cristianismo, era uma
continuação dessa maneira de pensar. Vejamos como Plotino (204-269 d.C.) relata suas ex-
periências espirituais:
Amiúde, quando desperto do sono corpóreo e me concentro, deixando o mundo exterior,
contemplo maravilhosa beleza; tenho, então, a certeza de ter-me inteirado da melhor parte
de mim; vivo a verdadeira vida, unido com o Divino; firmado nele, tenho suficiente força
para transpor esse mundo superior. Depois de descansar em Deus, desço da contemplação
espiritual para formar pensamentos, e me pergunto como essa descida é possível e como
minha alma outrora entrou no corpo, uma vez que ela, em sua essência, é tal qual acaba de
se me revelar.
E ainda:
Por que razão as almas esquecem seu Pai, Deus, não obstante provenham do Além e a ele
pertençam? Como passam a não saber mais nada dele, e de si próprias? Começam a trilhar o
caminho do mal pela ousadia, pelo prazer da auto-realização, pela alienação de si próprias e
pelo desejo de pertencer exclusivamente a si mesmas. Sedentas de auto-glorificação,

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começaram a agitar-se conforme seus sentidos e, com isso, afastaram-se do bom caminho e
insurgiram-se inteiramente, perdendo toda a noção de sua origem transcendente, qual
crianças que, separadas de seus pais e educadas longe deles, ignoram quem sejam elas
próprias e eles.
Plotino descreve da seguinte maneira a evolução que a alma deveria almejar:
Que a paz reine em sua vida corporal e suas manifestações, e em tudo o que a circunda: na
terra e no mar e no ar e até nos céus, sem que haja a menor agitação. Que a alma observe
como, por assim dizer, ela se derrama e penetra nesse cosmo que se acha em perfeito
repouso. Assim como os raios solares iluminam uma nuvem escura, dando-lhe um brilho
dourado, assim a alma proporcionará vida e imortalidade ao corpo do Universo inscrito nos
céus.
Existe semelhança profunda entre essa cosmovisão e a do cristianismo. Os discípulos de
Jesus dizem: “Anunciamo-vos o que aconteceu desde o início, o que do Verbo da Vida nós
mesmos ouvimos e vimos com nossos olhos e apalpamos com nossas mãos.” Analogamente,
poderia ser dito, no sentido do neoplatonismo: é preciso experimentar espiritualmente, como
Verbo da Vida, o que aconteceu desde o início e o que não se pode ouvir nem ver.
A evolução da antiga cosmovisão leva, pois, a uma cisão: de um lado, um conceito de
Cristo com sua manifestação física, a personalidade de Jesus. Pode-se dizer que o autor do
Evangelho de João fundiu ambas as tendências. “No princípio era o Verbo.” Essa opinião, ele a
compartilha com os neoplatônicos. Estes chegaram à conclusão de que o Verbo se torna
espírito no íntimo da alma. Mas o autor do Evangelho de João e toda a congregação de cristãos
chegaram à conclusão de que o Verbo se fez carne em Jesus. Em sua evolução, as antigas
cosmovisões explicaram a maneira pela qual o Verbo se podia tornar carne. Platão o descreve
macrocosmicamente: Deus estendeu a alma cósmica sobre o corpo cósmico sob forma de cruz.
Essa alma cósmica é o Logos. Fazendo-se carne, deve o Logos reproduzir o processo cósmico
naquela existência carnal. Deve ser crucificado e ressurgir. Essa importantíssima doutrina do
cristianismo já estivera prefigurada, como representação espiritual, nas antigas cosmovisões.
O adepto viveu essa experiência individualmente durante sua ‘iniciação’. O ‘Logos feito
homem’ tinha de vivê-la por meio de um fato relevante para toda a humanidade. Graças ao
cristianismo, um processo iniciático da velha sabedoria torna-se, portanto, fato histórico.
Desta maneira, o cristianismo não constituía apenas o cumprimento das profecias judaicas,
mas também a realização do que havia sido prefigurado nos mistérios.
A cruz do Gólgota é o antigo culto dos mistérios concentrado num único fato.
Encontramos essa cruz inicialmente em antigas cosmovisões; reencontramo-la no ponto de
partida do cristianismo, dentro de um acontecimento destinado a valer para toda a
humanidade. Esse é o ponto de vista que nos permite entender o elemento místico dentro do
cristianismo. O cristianismo, como fato místico, é um passo adiante na evolução da
humanidade, para o qual os acontecimentos dos mistérios e seus efeitos são uma preparação.

Agostinho e a Igreja

Vemos manifestar-se em Agostinho (354-430 d.C), com a máxima intensidade, o


conflito que se desenrolou nas almas dos crentes cristãos durante a transição do
paganismo para a nova religião. Observando a maneira como essas lutas foram apa-
ziguadas no espírito de Agostinho, teremos também, misteriosamente, uma visão das
lutas que se desenvolveram nas almas de Orígenes, Clemente de Alexandria, Gregório
Nazianzeno, Jerônimo e outros.

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Agostinho é uma personalidade cuja natureza apaixonada faz surgir as mais profundas
necessidades espirituais. Ele passa por idéias pagas e semi-cristãs, sofrendo as mais terríveis
dúvidas que podem acometer quem constatou a impotência de muitas idéias diante dos
interesses espirituais e experimentou em si mesmo o efeito deprimente desta pergunta: “Será
que o homem pode mesmo saber algo?”
No começo de seus esforços, os pensamentos de Agostinho se limitavam ao âmbito
sensorial e transitório. Ele só era capaz de representar o espiritual em imagens sensoriais,
sentindo-se como que libertado quando conseguia elevar-se acima desse estado que ele
descreve em suas Confissões:
Quando queria pensar em Deus, eu tinha de imaginar massas corporais, e pensava que fora
disso nada podia existir; eis a causa mais importante e quase única do erro, que não pude
evitar.
Com isso, Agostinho indica onde tem de chegar o homem que procura a autêntica vida no
espírito. Há pensadores — e não são poucos — que afirmam a impossibilidade de se chegar a
conceitos puros e inteiramente isentos de qualquer materialidade sensível. Tais pensadores
confundem o que é potencialmente possível ao homem com o que julgam ter de dizer de sua
própria vida psíquica. A verdade é, no entanto, que se pode chegar a um conhecimento
superior somente depois de ter desenvolvido um pensar livre de qualquer substância sensorial,
o que implica numa vida anímica cujas representações não cessem quando cessam as
impressões sensoriais que condicionam a imagem. Agostinho narra como alcançou a visão
espiritual. Em todo lugar ele indagou onde estaria o ‘Divino’.
Perguntei à terra e ela respondeu: “Eu não o sou.” E tudo o que nela havia disse o mesmo.
Perguntei ao mar e aos abismos e a tudo o que tinham de vivo: “Nós não somos teu Deus;
procura além de nós.” Perguntei então aos ventos, e a toda a atmosfera enevoada com seus
habitantes; e disseram: “Estão enganados os filósofos que buscam em nós a essência de todas
as coisas; nós não somos Deus.” Perguntei então ao Sol, à Lua e às estrelas, e estes
responderam: “Não somos o Deus a quem procuras.”
E Agostinho reconhece que só pôde receber a resposta à sua pergunta acerca do Divino
num lugar: na própria alma. Esta disse:
Nenhum olho, nenhum ouvido pode dizer-te o que está dentro de mim. Só eu posso, e digo-o
de maneira insofismável: os homens podem estar em dúvida de que a força vital resida no ar
ou no fogo, mas quem duvidaria de que ele próprio vive, de que tem memória, entende,
quer, pensa, sabe e julga? O próprio fato de ele duvidar prova que está vivo; que lembra o
porquê de sua dúvida; que compreende que duvida; que se assenhora das coisas, pensa e
sabe que nada sabe; que não poderia aceitar nada precipitadamente.
Os objetos do mundo exterior não resistem quando lhes negamos a essência e a
existência, mas a alma resiste: se não existisse, não poderia duvidar de si mesma. Suas dúvidas
confirmam sua existência.
Existimos, reconhecemos nossa existência e amamos o fato de sermos e conhecermos: a
respeito desses três pontos, nenhum erro disfarçado em verdade pode apoderar-se de nós,
pois não os captamos com os sentidos corporais como o fazemos com os objetos exteriores.
O homem adquire conhecimento do Divino induzindo sua alma a reconhecer-se como
espiritual, a fim de poder, como tal, encontrar o caminho que leva aos mundos espirituais.
Admitir isso foi, para Agostinho, fruto de muitas lutas. De tal atitude mental surgiu, outrora,
nas personalidades do mundo pagão em busca de conhecimento, o desejo de bater à porta dos
mistérios. Na época de Agostinho, um indivíduo com essas convicções podia tornar-se cristão.
Com efeito, o Logos feito homem, Jesus, mostrara o caminho pelo qual a alma pode alcançar o
que vislumbra quando está só consigo mesma. Em 385 d.C., Agostinho recebeu em Milão os
ensinamentos de Ambrósio. Desvaneceram-se suas objeções ao Antigo e ao Novo Testamento

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quando o mestre lhe interpretou os trechos mais importantes, não somente pelo sentido das
palavras, mas “levantando o véu místico pela força do espírito”. Para Agostinho, o antigo
conteúdo dos mistérios toma corpo na tradição histórica dos Evangelhos e na congregação que
a preserva. Ele se convence de que “a norma dessa congregação de crer no que não se pode
provar é razoável e sem má-fé”, e chega à seguinte conclusão:
Quem seria tão cego a ponto de afirmar que a Igreja dos Apóstolos não merece fé, aquela
Igreja tão leal e alicerçada no consenso de tantos irmãos, que fielmente transmitiram os
Escritos a seus sucessores, aquela Igreja que soube manter rigorosamente a sucessão das
cátedras até os bispos atuais?
Agostinho reconheceu que, para a alma em busca do espírito, o advento do Cristo havia
modificado as condições dantes existentes. Tinha ele a firme convicção de que em Jesus Cristo
se revelara, no mundo exterior da História, aquilo que o adepto outrora procurava na
preparação iniciática. Uma de suas sentenças significativas é a seguinte:
O que atualmente se chama de religião cristã já existia em épocas anteriores, e não estava
ausente nos inícios do gênero humano, até que aparecesse o Cristo em carne; daí em diante,
a verdadeira religião, já existente, foi chamada cristã.
Havia dois caminhos possíveis para tal opinião. Segundo o primeiro, a alma chega ao
conhecimento de sua verdadeira essência pelo desenvolvimento das forças apropriadas; se o
fizer com bastante intensidade, conhecerá também o Cristo e tudo o que com ele se relaciona.
Isto seria um conhecimento iniciático enriquecido pela experiência do Cristo.
O outro caminho é aquele que Agostinho seguiu, e pelo qual ele se constituiu num grande
modelo para seus sucessores. Esse caminho consiste em pôr fim, em determinado momento, ao
desenvolvimento das forças anímicas e procurar as idéias a respeito do feito do Cristo nas
tradições escritas e orais. Agostinho desaprovou o primeiro caminho, fruto do orgulho da alma,
preferindo o segundo por estar de acordo com o espírito de humildade. Dizia, portanto, aos
que queriam seguir o primeiro caminho: “Poderíeis achar a paz na verdade, mas para isso é
preciso humildade, tão incompatível com vosso orgulho.” Por outro lado, sentiu imensa
felicidade pelo fato de que, depois do “aparecimento do Cristo na carne”, qualquer alma
podia ter a experiência do espiritual, desde que avançasse em seu caminho interior o quanto
possível e procurasse atingir o plano mais sublime pela confiança nas tradições escritas e orais
da comunidade cristã, a respeito do Cristo e de sua revelação. Em sua linguagem, Agostinho se
exprime assim:
Como descrever o encantamento e o gozo contínuo do Bem verdadeiro e supremo, a alegria e
o sopro da eternidade que agora sentimos? Disseram-no, na medida do possível, as grandes
almas incomparáveis que tiveram e ainda têm a visão. [...] Estamos chegando a um ponto em
que verificamos quão verdadeiro é o que nos foi ordenado crer, quão benéfica e saudável é a
formação que recebemos de nossa mãe, a Igreja, quão proveitoso foi aquele leite que Paulo
Apóstolo deu aos pequenos por bebida [...].
(Foge ao âmbito deste escrito expor o que decorre do outro caminho, isto é, o
conhecimento dos mistérios enriquecidos pelo evento do Cristo. Essa exposição se encontra em
meu livro A ciência oculta)
Enquanto se indicava ao homem pré-cristão que quisesse procurar os fundamentos
espirituais da existência, o caminho dos mistérios, às almas que em seu íntimo não podiam
tomar tal caminho Agostinho dirigia esta exortação:
Avançai tão longe quanto puderdes fazê-lo com vossas forças humanas, pela cognição; depois,
a confiança (a fé) vos conduzirá até as regiões espirituais mais elevadas.
Daí era somente um passo até afirmar o seguinte: a alma humana, intrinsecamente, por
suas próprias forças, só pode chegar a um determinado grau de conhecimento; para ir além,

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tem de recorrer à confiança, à fé na tradição escrita e oral. Esse passo foi realizado pela
corrente espiritual que limitava a cognição natural a um campo que a alma, por si só, não
devia transcender, e que reservava esse domínio mais amplo à fé esteada na tradição escrita e
verbal de seus defensores. O grande doutor eclesiástico Tomás de Aquino (1224-1274)
expressou essa doutrina em seus escritos das mais variadas maneiras. A cognição pode chegar
até a certeza da existência divina, resultado do autoconhecimento agostiniano; mas a própria
essência desse Divino e suas relações com o mundo são explicadas apenas pela teologia
revelada, inacessível ao autoconhecimento humano e, como conteúdo de fé, acima de
qualquer cognição.
Pode-se, por assim dizer, observar a gênese desse ponto de vista na cosmovisão de João
Scoto Erígena, que viveu no século IX, na corte de Carlos I, o Calvo, e que marca a transição
natural das idéias do cristianismo primitivo para as de Tomás de Aquino. Sua filosofia segue o
neoplatonismo. Scoto desenvolveu em sua De divisione naturae (Sobre a divisão da natureza)
as doutrinas de Dionísio Aeropagita, as quais deduzem o mundo de um Deus transcendente a
tudo o que é sensorial-transitório. O homem está incluído na metamorfose de todos os seres
em direção a esse Deus que realiza, desse modo, o que ele próprio já era desde o início. Tudo
volta à Divindade que se completa depois de atravessar o processo cósmico. Mas, para chegar
aí, o homem tem de achar o caminho que conduz até o Logos feito carne. Essa idéia já gerou
em Erígena uma outra: a salvação se consegue por intermédio dos escritos que tratam desse
Logos, desde que sejam tomados como assunto de fé. Encontram-se no mesmo nível a razão e
a autoridade das Escrituras, isto é, o conhecimento e a fé, sem que um contradiga o outro;
mas a fé deve realizar o que a cognição, por si só, nunca pode alcançar.
O conhecimento do eterno, vedado nos mistérios ao acesso da multidão, transforma-se
aqui, pela religião cristã, em artigo de fé relativo, por sua essência, a algo inacessível ao
simples conhecimento. O adepto pré-cristão estava convicto de possuir o conhecimento do
Divino e de que ficava reservada ao povo a crença imaginativa. O cristianismo chegou à
convicção de que Deus revelou a sabedoria ao homem por sua própria revelação; o homem
alcança, por seu conhecimento, uma reprodução da revelação divina. A sabedoria iniciática
era uma planta de estufa ao alcance de alguns eleitos; a sabedoria cristã é um mistério que,
como conhecimento, não é revelado a ninguém, mas como conteúdo de fé, a todos. O ponto
de vista dos mistérios continuou a existir no cristianismo, embora de forma modificada. Todos,
e não somente alguns privilegiados, haveriam de participar da verdade. Mas o novo ponto de
vista decretou a incapacidade da cognição para ir além de um certo ponto, tendo o homem,
para isso, de recorrer à fé. O cristianismo trouxe o conteúdo do processo iniciático da
penumbra dos templos para a clara luz do dia. A tendência acima caracterizada, dentro do
cristianismo, gerou a idéia de que esse conteúdo devia ser conservado sob forma de fé.

Algumas observações

1. As palavras de Ingersoll são citadas nesta altura do livro não somente com vistas àqueles
que, porventura, considerem representarem elas textualmente sua própria convicção.
Contudo, muitas pessoas, embora aparentemente de opinião divergente, têm, a respeito
dos fenômenos da natureza e do homem, idéias tais que, se fossem conseqüentes,
chegariam às mesmas afirmações. O que importa não são as palavras pelas quais alguém
exprime suas idéias, mas a maneira de pensar da qual são o resultado. Pode haver quem
considere, para si, as palavras citadas de Ingersoll repugnantes ou ridículas; se conceber,
para os fenômenos da natureza, uma explicação que considere só o lado exterior e não

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remonte ao fundamento espiritual, será fácil transformá-la, logicamente, em filosofia
materialista.
2. Os fatos rotulados atualmente pelos slogans ‘luta pela existência'’, ‘onipotência da seleção
natural’, etc. exprimem, para quem sabe observar corretamente, o ‘espírito da natureza’
de uma maneira muito vigorosa. Isso não acontece com as opiniões que a ciência forma a
seu respeito. Na primeira circunstância, achamos a razão pela qual a voz da ciência está
sendo aceita em círculos cada vez mais amplos. Da segunda decorre, simplesmente, que as
opiniões da ciência não devem ser aceitas como fazendo necessariamente parte do
conhecimento dos fatos. A possibilidade de tal conclusão errônea, porém, é infinitamente
grande na época atual.
3. Não se deve concluir, de observações como a relativa às fontes de Lucas, que
menosprezemos a pesquisa meramente histórica. Tal não é o caso, pois ela é perfeitamente
justificada, não se devendo, contudo, ser intolerante para com idéias baseadas em pontos
de vista espirituais. Neste livro não se procura apresentar, a cada momento, citações a
respeito de toda e qualquer coisa; mas quem realmente quiser constatará que um juízo
universal e livre de preconceitos não encontrará qualquer oposição entre o que aqui se
afirma e o que a ciência histórica realmente verificou. Evidentemente, quem não quiser ser
universal, argumentando que já ‘se’ corroborou esta ou aquela teoria, poderá julgar que as
afirmações deste livro são ‘insustentáveis’ do ponto de vista ‘científico’ e carecem 'de
qualquer fundamento objetivo'.
4. Foi dito que aqueles cujos olhos espirituais foram abertos podem ver o mundo espiritual.
Não é lícito concluir, dessa observação, que só pode opinar ajuizadamente, sobre os
resultados conseguidos pelo iniciado, quem possui essa ‘visão espiritual’. Esta só é mister
para a própria pesquisa. Mas quando o resultado da pesquisa for comunicado, qualquer
pessoa poderá entendê-lo, desde que dê livre curso a seu raciocínio e a seu irrestrito senso
de verdade. Poderá, inclusive, aplicar esses resultados à vida e tirar proveito deles sem
possuir a 'visão espiritual'.
5. O ‘afundar no lodo’ de que fala Platão deve também ser interpretado à luz de nossa
observação precedente.
6. O que dissemos sobre a impossibilidade de comunicar as doutrinas dos mistérios
significa que estas não podem ser comunicadas ao não-iniciado na forma como o
iniciado as vive; elas sempre o foram, porém, desde que a maneira de comunicá-las as
tornava inteligíveis ao não-iniciado. Os mitos eram exemplos de uma antiga maneira de
comunicar o conteúdo dos mistérios de uma forma acessível a todos.
7. ‘Arte divinatória’ é, para a velha mística, tudo o que se relaciona com o saber obtido
pela ‘visão espiritual’, enquanto a ‘telética’ se refere aos próprios caminhos que levam
à iniciação.
8. Os cabiros, no sentido da velha mística, são seres que possuem uma consciência bem
superior à atual consciência humana. Pela iniciação — é isso o que Schelling quer dizer
— o homem transcende sua consciência atual, alcançando outra, mais elevada.
9. Podem-se encontrar esclarecimentos acerca do significado do número ‘sete’ em meu
livro A ciência oculta.
10. Os significados dos signos apocalípticos só puderam ser muito sumariamente tratados;
todos esses assuntos poderiam, naturalmente, ser estudados mais a fundo, mas isso
fugiria ao âmbito deste livro.

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