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O asilo dos sábios

Anatólio Dnieprov
1

E
sta aventura começou num sábado na tarde quando eu, rendido de cansaço depois de
finalizar um trabalho matemático, folheava o vespertino de nossa cidade. Atraiu
minha atenção um anúncio inserido na última página: A companhia Kraftstudt
aceita encomenda empresarial e particular pra realizar todo tipo de cálculo,
assim como de trabalho analítico e de cômputo matemático. Garantimos alta
qualidade. Se dirigir à companhia Kraftstudt, Weltstrasse, 12.
Era precisamente o que eu tanto necessitava. Durante várias semanas quebrei a
cabeça tratando de resolver umas equações de Maxwell que definiam o comportamento
das ondas eletromagnéticas num meio heterogêneo de estrutura especial. Enfim,
recorrendo a uma série de aproximações e simplificações, consegui dar às equações uma
forma padronizada pra que um computador eletrônico as pudesse resolver. Em minha
imaginação já me via viajando à capital pra rogar à administração do centro de cálculo
realizar os cálculos necessários pra mim. Hoje o centro de cálculo está sobrecarregado
de pedidos militares, e ninguém se importa com os exercícios teóricos dum físico
provinciano que se interessa pelas leis de propagação das ondas rertzianas.
E logo surgiu em nossa vila um centro de cálculo anunciando em jornal.
Me levantei da mesa e fui ao telefone pra, imediatamente, contatar a companhia
Kraftstudt mas descobri que, exceto o endereço, o jornal não dava mais informação
sobre o tal centro. Um respeitável centro de cálculo sem telefone? Não pode ser! Então
liguei à redação do jornal. Me disse o secretário:
— Lamento, mas a Kraftstudt não nos deu mais informação. O anúncio não continha
número de telefone.
Na lista telefônica não figurava a companhia Kraftstudt.
Ardendo de impaciência, esperava a chegada da segunda-feira pra obter, o mais
breve possível, a solução a minhas equações. Vez e outra minha mente se abstraía da
folha de papel com uns cálculos, escritos cuidadosamente, cuja notação ocultava
complexos processos físicos, pra discorrer sobre a companhia Kraftstudt. Pensei:
— Sua orientação é justamente aquilo que se necessita hoje. Em nosso século,
quando se trata de transcrever à linguagem matemática qualquer idéia humana,
dificilmente se pode escolher empreitada mais vantajosa.
A propósito: Quem é esse Kraftstudt? Estou há muitos anos nesta cidade mas o
sobrenome Kraftstudt me soa quase desconhecido. Digo quase porque guardo uma vaga
lembrança de que nalguma ocasião já topei consigo. Mas, onde, quando, em que
circunstância? Muito me esforcei mas não consegui lembrar.
Enfim chegou a tão esperada segunda-feira. Pus no bolso a quartela de papel com os
cálculos e empreendi a busca à Weltstrasse, 12. Caía uma chuvisca primaveril e por isso
tive que tomar um táxi. Disse o chofer:
— É bem longe. Na outra margem do rio, junto ao hospital psiquiátrico.
Assenti silenciosamente, com a cabeça.
A viagem durou uns quarenta minutos. Deixamos atrás as portas da cidade, a ponte
sobre o rio, ladeamos o lago e nos internamos numa campina acidentada coberta de
matas da seca do ano passado entre as quais, nalgumas partes, já começavam a
reverdecer os precoces brotos. Era um caminho vicinal, sem pavimento, e o carro, com
freqüência, se atolava entre as colinas, patinando furiosamente as rodas traseiras no
espesso lodo argiloso.
Finalmente apareceram os telhados e os rubros muros de tijolo do hospital
psiquiátrico, situado num baixio. Em nossa cidade, ironicamente, o chamavam Asilo
dos sábios.
Ao largo do alto muro de tijolo, com caco de vidro encima, havia um caminho solado
com escoria. O chofer, depois de dar várias voltas entre os muros do labirinto, parou o
carro diante duma portinhola.
— Este é o número 12.
Experimentei uma desagradável surpresa ao ver que a porta que, pelo visto, dava
acesso aos escritórios da companhia Kraftstudt formava parte do conjunto arquitetônico
do asilo dos sábios. Kraftstudt não teria recrutado os loucos pra realizar todo tipo de
trabalho matemático? Ri comigo.
Me aproximei da porta e apertei o botão. Tive que esperar um longo instante. Enfim
a porta se abriu e apareceu um homem pálido de espessa cabeleira desgrenhada,
entornando os olhos perturbados pela luz diurna. Se dirigiu a mim o recém-aparecido:
— Digas.
— É aqui a companhia matemática Kraftstudt?
— Sim, senhor.
— Tua companhia pôs um anúncio no jornal...
— Sim.
— Quero fazer uma encomenda.
— Entres, por favor.
Me voltei ao taxista e lhe disse pra me esperar e, me agachando, atravessei o umbral.
A porta se fechou me deixando na mais absoluta escuridão.
— Me sigas, por favor. Cuidado. Aqui há degrau. Agora à esquerda... Outra vez
degraus. Agora subiremos uma escadaria...
Enquanto pronunciava essas palavras meu cicerone, me segurando na mão, me
arrastava nuns escuros e tortuosos corredores que subiam e desciam.
Enfim, sobre nossas cabeças vislumbramos uma opaca luz amarelada. Subi uma
empinada escadaria de pedra e me vi num cubículo de paredes envidraçadas.
O jovem, apressadamente, desapareceu atrás dum tabique, abriu um longo guichê
acavalado nele e se dirigiu a mim:
— Te escuto.
Tinha a sensação de ter me equivocado de lugar. Essa penumbra, esse labirinto
subterrâneo e, finalmente, esse aposento fechado sem janela, com só uma lâmpada
elétrica apenas discernível sob o teto, não se enquadrava na idéia que eu tinha sobre um
moderno centro de cálculo quando comecei a procurar.
Eu continuava imóvel, lançando ao redor olhar perplexo.
— Te escuto. — Repetiu o jovem, assomando à vasculhante.
— Á, sim! De modo que aqui, precisamente, fica o centro de cálculo da companhia
Kraftstudt?...
— Sim, sim. — Me interrompeu o jovem, com certo tom de enfado na voz — Já te
disse que aqui fica o centro de cálculo da companhia Kraftstudt. Qual é teu problema?
Tirei do bolso a quartela de papel com as equações escritas e a estendi no balcão.
— É uma aproximação linear dessas equações em derivadas parciais. — Comecei a
explicar, com vacilação — Quero que as resolvam ainda que seja em forma numérica,
digamos, diretamente na superfície de separação de duas metades... Compreendes? É
uma equação de dispersão e aqui a velocidade de propagação duas ondas rertzianas
varia de ponto a ponto.
Amassando minha quartela o jovem proferiu, de repente:
— Certo. Pra quando necessitas a solução?
— Como pra quando? — Disse, assombrado — És tu quem me deves dizer quando
podes dar a solução.
— Te convém amanhã? — Me inquiriu, me fitando com seus profundos olhos
negros.
— Amanhã?
— Sim, amanhã. Digamos, até o meio-dia ou, mais tarde, à uma...
— Meu-deus! Mas que calculadora tendes? Tal rapidez no trabalho!
— Bom... Então, amanhã à 12h terás a solução. O preço é de 450 marcos. Cobramos
a vista.
O preço era bastante alto. Mas, tendo em conta o caráter complexo das equações a
resolver num dia, não me pareceu exorbitante. Por isso, sem dizer palavra, entreguei o
dinheiro junto com meu cartão de visita, onde estava impresso meu sobrenome e
endereço.
Me acompanhando no labirinto subterrâneo até a saída, o jovem me perguntou:
— Então és professor Rauch?
— Sim. E por que perguntas?
— Nada especial. Simplesmente que quando organizamos este centro matemático
contávamos que mais cedo ou mais tarde recorrerias a nós.
— Por que estais tão seguros? — Perguntei, assombrado.
— E que outros clientes esperaríamos neste lugar onde, como se diz, Cristo deu as
três vozes?
A resposta me pareceu bastante convincente.
Apenas tive tempo de me despedir do jovem quando a porta, com violência, se
fechou atrás de mim.
Em todo o caminho de volta até casa pensei nesse estranho centro de cálculo junto ao
asilo dos sábios. Onde e quando topei com o sobrenome Kraftstudt?
2
Na manhã seguinte esperava, com impaciência, o correio. Quando, às 11:30h, ouvi a
campainha da porta de meu andar, me levantei num pulo e corri pra atender ao carteiro.
Qual foi meu assombro ao ver uma garota magricela, de rosto pálido, com um volumoso
pacote azul nas mãos.
— És professor Rauch?
— Sim, sou eu.
— Trago um pacote da companhia Kraftstudt. Favor de firmar aqui.
Suas finas mãos revolveram um instante nos bolsos do abrigo e me estendeu um
libreto.
Na primeira página figurava só um sobrenome, o meu. Pus minha firma e estendi
uma moeda.
— Ó, não! Não faças isso! — O rosto se incendiou e, depois de pronunciar um quase
inaudível até logo, a garota se foi.
Com o pacote voltei a meu escritório.
Ao ver a miúda letra do manuscrito cujas fotocópias me entregaram, no primeiro
momento nada entendi. Do computador eletrônico esperava um material completamente
distinto: Longas colunas de algarismos contendo num lado os valores do argumento e
no outro os das equações já resolvidas.
Aqui nada havia de parecido.
Tinha nas mãos a solução exata das equações! A mão dalguém, guiada por um
preclaro intelecto matemático, resolvia as equações em forma estrita, sem aproximação.
Percorria, com a vista, uma página após outra, me aprofundando cada vez mais nos
cálculos que me surpreendiam pela beleza, engenho e inventiva. A pessoa que resolvera
essas equações possuía enorme conhecimento matemático que dariam inveja os mais
destacados matemáticos. Prà resolução foi empregado quase todo o aparato matemático:
Teoria das equações diferenciais e integrais lineares e não lineares, teoria das funções de
variável complexa, teoria dos grupos, teoria dos conjuntos e até disciplinas matemáticas
como topologia, teoria dos números e lógica matemática que pareciam não ter a ver com
o problema dado.
Estive a ponto de lançar um grito de entusiasmo quando, como resultado da síntese
dum grande número de teoremas, cálculos intermediários, fórmulas e equações, enfim
apareceu a solução: Uma fórmula matemática tão longa que ocupava três linhas.
Mas o mais elegante era o fato de que o pra mim desconhecido matemático se
preocupou em distribuir nessa longa fórmula o que em nossa ciência se chama forma
patente. Encontrou uma anotação matemática, ainda que aproximada, mas mui, precisa,
breve e clara que constava tão só de elementares expressões algébricas e
trigonométricas.
No final, numa pequena folha a parte, encontrei a resolução gráfica das equações.
Não se podia desejar mais. A equação que eu considerava impossível de resolver em
forma finita estava solucionada.
Recuperado, até certo ponto, de tanta surpresa e emoção, comecei a ler, em segunda
vez, as fotocópias cheias de fórmula. Nesse momento me fixei que o que resolveu meu
problema escrevia muito depressa, com caracteres miúdos, como se economizasse cada
milímetro de papel e cada segundo de tempo. No total, foram escritas 28 páginas.
Calculei mentalmente quão titânico foi o labor desse matemático. Procures escrever
num dia, a mão, uma carta de 28 páginas a algum conhecido, ou escrevas em 28 páginas
tua biografia ou, enfim, experimentes copiar, simplesmente, 28 páginas de qualquer
livro sem pensar no sentido, sem entender palavra, e reconhecerás que é um trabalho
infernal.
Mas o que tinha ante mim era a solução dum complexo problema matemático. E esta
tarefa foi realizada num dia!
Várias horas dediquei ao estudo dessas páginas e com cada hora que passava meu
assombro se acrescentava.
Onde Kraftstudt encontrou esse matemático? Quais são as condições de trabalho na
companhia? Quem é? Algum gênio desconhecido? Ou seria uma dessas maravilhas da
natureza humana que, às vezes, estão na divisória entre o normal e o anormal? Ou se
trata dum desses prodígios que Kraftstudt soube descobrir no asilo dos sábios? A
história conhece casos em que geniais matemáticos terminavam, afinal de conta, em
hospital pra alienado. Talvez o matemático que com tanto esplendor resolveu meu
problema também pertença a essa categoria de pessoa.
Essas questões não deixaram de me atormentar durante todo o dia.
Seja como for, os fatos fatos são. O problema foi resolvido não por um computador,
mas por um homem, relevante gênio matemático do qual o mundo nada sabe.
No dia seguinte, já mais tranqüilo, voltei a estudar a solução, nessa vez
experimentando um prazer semelhante ao que se sente ao escutar uma boa música. Essa
solução era tão bela, tão rigorosa e clara que decidi... repetir o experimento. Decidi
encarregar a companhia Kraftstudt da solução doutro problema.
Escolhi uma equação que sempre me pareceu não só impossível de resolver mas até
inadequada de dar lhe a forma necessária pra poder resolver numa máquina calculadora.
Tal equação também estava relacionada à teoria de propagação das ondas rertzianas,
mas o caso era muito complicado e especial, tendo que ver com emissores móveis e
com um meio cujas propriedades variavam no espaço e no tempo. Era uma dessas
equações que os físicos teóricos escrevem a miúdo com o único fim das admirar um
instante pra depois as deixar no olvido, pois por causa de sua complexidade ninguém
pode se valer delas.
...Quando a porta no muro de tijolo se abriu, vi o mesmo jovem com os olhos
entornados. Me reconheceu e sorriu com desânimo.
— Tenho outro problema... — Comecei a explicar.
Em lugar de responder assentiu com a cabeça e, como a vez passada, me conduziu
nos escuros corredores de seu lôbrego cubículo sem janela. Eu já estava a corrente dos
trâmites e, me aproximando do vasculhante no tabique envidraçado, lhe estendi a folha
com a equação:
— De modo que não são computadores os que resolvem aqui essas coisas?
— Como vês. — Me respondeu, sem retirar a vista da equação.
— Quem resolveu meu primeiro problema é um matemático de talento.
O jovem nada respondeu, absorvido em meu manuscrito.
— É o único que tens ou...?
— O que tem isso a ver com o que necessitas? A companhia te garante...
Não teve tempo de terminar a frase. O profundo silêncio do sótão foi interrompido
por um estridente uivo. Estremeci e agucei o ouvido. O grito chegava dalgum lugar
situado atrás da parede entaipada por o tabique envidraçado. Alguém gritava ou, mais
exatamente, vociferava como se o submetessem a tortura infra-humana. Espremendo as
quartelas com meu problema, o jovem deu uma rápida olhada na parede, logo me olhou,
saiu rapidamente de trás do tabique, me agarrou da mão e me arrastou até a saída.
— O que é isso? — Lhe perguntei, só recobrando o alento, com dificuldade, junto à
saída. Em vez de responder disse, apressado:
— A solução obterás amanhã, às 12h. O dinheiro deve ser entregue à pessoa que te
entregar o trabalho terminado.
Com essas palavras me deixou só, junto ao táxi.
3
Nem preciso dizer que depois do incidente não tive momento tranqüilo. Em primeiro
lugar, me sentia constantemente perseguido pelo horrendo grito que parecia estremecer
as abóbadas de pedra do centro de cálculo da companhia Kraftstudt. Em segundo lugar,
seguia impressionado pelo fato de que uma pessoa pudesse resolver num dia um
problema matemático tão difícil. E, em terceiro lugar, como afetado pela febre, esperava
resolução de meu segundo problema. Se for resolvido, então...
Dois dias depois, com mãos trêmulas peguei o pacote que a garota trouxe da
companhia Kraftstudt. Pelo volume compreendi que continha a solução do segundo
problema matemático, também de monstruosa complexidade. Com medo olhava a grácil
criatura. Logo tive uma idéia.
— Entres, por favor, enquanto preparo o dinheiro.
— Não, não te preocupes. — Se apressou a me responder, parecendo amedrontada
— Esperarei aqui...
— Mas entres. Que necessidade tens de suportar o frio? — Disse e quase a força a
introduzi. Tenho de olhar o trabalho pra ver se vale o preço.
A garota grudou as costas contra a porta e me seguia com os olhos muito abertos:
— É proibido... — Sussurrou ela.
— O que é proibido?
— Entrar nos apartamentos privados dos clientes... É o regulamento, senhor.
— Ao-diabo o regulamento. Aqui o amo sou eu e ninguém saberá que entraste.
— Te equivocas, senhor... Saberão de tudo... E então...
— Então, o quê? — Perguntei, me aproximando.
— Ó, é tão horrível!...
Subitamente, irrompeu em pranto.
Lhe pus a mão sobre o ombro, mas estremeceu e saiu precipitadamente.
— Entregues logo os 700 marcos e irei.
Lhe estendi o dinheiro e ela, literalmente, o arrebatou da mão.
Quando abri o pacote pouco me faltou pra lançar um grito de surpresa. Durante
vários minutos contemplei o monte de fotocópia sem dar crédito a meus olhos. O que
me deixou estupefato não era o fato de que, umas equações que abandonei como
impossíveis, pelo visto foram resolvidas. O mais surpreendente era que os cálculos
foram escritos com outra letra.
Um segundo matemático genial! Mas esse, se pode dizer assim, era ainda mais genial
que o primeiro, porque em 53 páginas resolveu analiticamente equações centenas de
vezes mais complicadas que a primeira.
Percorrendo com a vista as linhas escritas com uma letra enérgica e solta, me fixando
nas integrais, somas, variações e outros símbolos dos mais altos ramos das ciências
matemáticas, me imaginei dentro dum estranho e ignoto mundo matemático onde o
complexo perdera toda a importância. Simplesmente não existia aqui.
Dava a impressão de que o matemático que resolveu o segundo problema o fez com a
mesma facilidade com que somamos ou subtraímos em coluna números de dois
algarismos.
Enquanto lia o manuscrito, interrompi várias vezes minha leitura pra consultar guias
e manuais de matemática e, pra meu grande assombro, descobri que esse segundo gênio
matemático, além de saber e recordar perfeitamente tudo o que eu sabia e lembrava,
possuía muitos outros conhecimentos. Me surpreendeu a habilidade com que se valia
dos mais complexos teoremas e demonstrações matemáticos. Sua lógica matemática era
inverossímil, a profundidade de seu pensamento não tinha limite e o método de
resolução era impecável. Eu estava seguro de que se os mais geniais matemáticos de
todas as épocas e de todos os povos, tais como Newton, Leibnitz, Gauss, Euler,
Lobachevski, Weierstrass, Hilbert e muitos outros, vissem a resolução do problema, se
surpreenderiam não menos que eu.
De qualquer maneira o fato feito estava: O segundo problema fora resolvido duma
forma ainda mais formosa e elegante que o primeiro. Uma vez terminada a leitura do
manuscrito eu, totalmente rendido era incapaz de perceber a realidade, fiquei
meditabundo durante um largo lapso.
Donde Kraftstudt tirou esses matemáticos? Agora estava seguro de que não se tratava
de dois o três mas de toda uma equipe. É que pudera fundar um sério negócio
explorando somente dois o três pessoas? Como conseguiu? Por que sua companhia fica
junto a um manicômio? Quem e por que gritou com voz inumana atrás da parede?
— Kraftstudt, Kraftstudt... — Se repetia, obstinadamente, em minha consciência —
Onde e quando pude tropeçar com esse sobrenome? O que se oculta atrás? Dava voltas
em meu escritório, pressionando a cabeça com as mãos e me esforçando a recordar o
que sabia de Kraftstudt.
Logo me sentei pra me comprazer, uma vez mais, com a leitura do genial manuscrito
matemático. Me deleitava seu conteúdo, o relia em parte, aprofundando na
demonstração dos teoremas e fórmulas intermediárias. De súbito saltei da cadeira ao me
lembrar outra vez o terrível grito inumano e junto a ele, em minha memória, emergiu o
sobrenome de Kraftstudt.
Essa associação não era casual. Precisamente assim tinha de suceder. O grito infra-
humano duma pessoa torturada e Kraftstudt! É um todo inseparável. Durante a segunda
guerra mundial um tal Kraftstudt foi juiz de instrução do campo de concentração
ritlerista em Graz. No segundo turno do processo de Nurembergue lhe julgaram pelos
crimes cometidos contra a humanidade. Pelas torturas e assassínios o condenaram a
prisão perpétua. Depois, em nenhuma parte se voltou a falar nele.
Me lembrei do retrato desse homem publicado em todos os jornais, com uniforme de
obersturmführer da SS, com lentes e olhos mui abertos e até assombrados numa cara
roliça e bonachona. Ninguém queria acreditar que um homem com essa feição pudesse
ser um verdugo dos calabouços ritleristas. No entanto o retrato vinha acompanhado de
depoimentos detalhados de testemunhas e do sumário judicial. Sim, Kraftstudt,
inquestionavelmente, era um verdugo.
O que foi dele depois do processo? Não o puseram em liberdade, como a outros
tantos criminosos de guerra?
Mas o a matemática tem a ver com este caso? Que relação pode existir entre um juiz
de instrução verdugo e soluções geniais de equações diferenciais e integrais?
Chegando a esse ponto, a cadeia de minhas reflexões se interrompeu. Me sentia
incapaz de conectar, num todo único, esses dois elos. Algo faltava. Existia um segredo
que não podia descobrir por via abstrata.
Por muito que me quebrava a cabeça, por mais que me empenhava em relacionar
Kraftstudt, o asilo dos sábios e a equipe de matemáticos talentosos, não conseguia. E,
ademais essa garota que me disse que eles de qualquer maneira saberiam... Quão
amedrontada e pávida está!
Após poucos dias de atormentadoras meditações cheguei, enfim, à conclusão de que
se não descobrisse o mistério ficaria louco.
Antes de tudo decidi me convencer de que o Kraftstudt da companhia matemática e o
Kraftstudt criminoso de guerra, juiz de instrução do campo de concentração em Graz,
são a mesma pessoa.
4
Quando, em terceira vez, fui à portinhola da companhia Kraftstudt tive o
pressentimento de que agora me sucederia algo que exerceria uma enorme influência
sobre toda minha vida posterior. Não sei por que, mas deixei ir embora o táxi e só
quando o carro se perdeu atrás da curva do caminho, apertei o botão.
Me pareceu que o jovem, com sua desgastada fisionomia de velho, estava me
esperando. Nessa vez, sem formular pergunta, me pegou imediatamente na mão e me
conduziu através do tenebroso subterrâneo ao mesmo cubículo onde estive nas outras
duas vezes.
— Bom... Com que objetivo vieste nesta vez? — Me perguntou, com ar burlão.
— Quero ver senhor Kraftstudt pessoalmente.
— É que nossa companhia não te satisfaz nalgum aspecto?, professor.
— Quero ver senhor Kraftstudt. — Repeti, obstinadamente, procurando evitar o
olhar de seus grandes olhos negros em cujo fundo brilhava agora uma luzinha maliciosa
e burlona.
— É assunto teu. Me interessa pouco. — Proferiu, depois de me examinar durante
um minuto, com seu olhar escrutador — Esperes aqui.
Logo desapareceu atrás duma das portas do outro lado do tabique envidraçado e não
apareceu até passada mais de meia hora.
Já dormitava quando, num rincão, se ouviu um confuso ruído e, da penumbra,
apareceu, de repente, a figura dum homem vestido com bata branca, com um
estetoscópio nas mãos. Passou, célere, em minha mente:
— Um médico! Agora me examinarão e auscultarão. Acaso esse procedimento é
necessário pra ver senhor Kraftstudt?
— Me sigas. — Disse, imperiosamente, o médico.
Segui sem imaginar o que seria de mim e pra que armei toda essa confusão.
Atravessada a porta no tabique envidraçado fui, atrás do homem de bata branca, num
largo corredor onde a luz diurna penetrava desde acima. O corredor terminava numa
porta alta e maciça.
O médico se deteve.
— Esperes aqui. Senhor Kraftstudt te receberá em seguida.
O médico voltou em cinco minutos. Abriu, de par a par, a porta e permaneceu imóvel
vários segundos como uma silhueta negra na difusa luz diurna.
— Bom... Vamos. — Disse, com voz de quem lamenta o que possa suceder depois.
O segui, submisso. Entramos num pavilhão com largas janelas. Permaneci vários
minutos sem me mover do lugar, tratando de examinar o espaçoso e claro local. Uma
penetrante voz me tirou do estupor.
— Faças o favor de te aproximar, professor Rauch.
Me voltei à direita e vi Kraftstudt sentado num profundo cadeirão de vime. Sim,
aquele mesmo Kraftstudt a quem conhecia em numerosas fotografias nos jornais.
— Desejavas me ver? — Me inquiriu, sem saudar e sem se levantar — Em que posso
servir?
Me recobrei no ato e, me desfazendo do nó na garganta, me aproximei, parando junto
à mesa diante da qual estava sentado.
— De modo que mudaste tuas atividades? — Perguntei, encarando.
Nos quinze anos envelhecera, grandes rugas atravessavam as roliças bochechas,
formando pelancas lassas junto aos pronunciados pômulos.
— O que queres dizer com isso?, professor. — Se interessou, me examinando
atentamente.
— Senhor Kraftstudt, pensei, melhor dizendo, esperava que tu, ainda...
— Á, sim, agora compreendo. — E Kraftstudt soltou uma gargalhada — Os tempos
são outros, Rauch. São outros.
— E a lei?
— Meu querido professor. A lei é necessária só no caso e só a quem pode tirar
proveito. Agora são outros tempos, igual que o são as fontes de proveito. Por
conseguinte, as leis também são outras. A propósito, o que me interessa não são tuas
considerações respeito das leis mas os motivos que te trouxeram.
— Senhor Kraftstudt, como já adivinhaste, entendo algo na matemática, tenho em
conta a matemática moderna. Pois bem: A princípio pensei que organizaras um centro
de cálculo comum e corrente, equipado com máquinas calculadoras eletrônicas. No
entanto, dois exemplos me convenceram não ser assim. Em teu centro os problemas
matemáticos são resolvidos por pessoas. E os resolvem duma forma genial. E o mais
estranho é que o fazem com uma celeridade monstruosa, diria sobre-humana. Se te
interessa, me atrevi a vir pra conhecer teus matemáticos que, sem dúvida, são pessoas
extraordinárias.
Primeiramente, Kraftstudt esboçou um sorriso, logo começou a rir. No princípio
muito baixinho e depois cada vez mais forte.
— De que ris?, senhor Kraftstudt. — Perguntei, indignado. — É meu desejo tão
ridículo e estúpido? Acaso não te assombraria qualquer pessoa sensata e, mais ainda,
um matemático, ao analisar detidamente as soluções que a companhia pôs a minha
disposição?
— Rio doutra coisa, Rauch. De tua limitação provinciana. De ver como tu, professor,
pessoa que goza de tanto respeito na cidade, cuja erudição sempre pasmou a imaginação
de inexperientes donzelas e velhas solteironas, como te atrasaste, sem remédio, da
impetuosa marcha da ciência moderna!
O descaro do ex-juiz de instrução ritlerista despertou minha indignação.
— Escutes! Tão só 15 anos atrás tua ocupação era torturar pessoas inocentes com
ferro incandescente. Que direito tens de discursar sobre a ciência moderna? Se queres
saber, vim pra me inteirar dos métodos coativos de que te vales pra obrigar teus geniais
subalternos a realizar, num só dia, um trabalho que o gênio humano pode abarcar
unicamente depois dum assíduo labor durante vários anos ou, inclusive, no curso de
toda sua vida. Estou muito contente de te encontrar aqui. Não creio que te é grato me
conhecer.
Kraftstudt se levantou e, franzindo o cenho, se aproximou de mim.
— Escutes, Rauch: Te aconselho não me irritar. Eu estava seguro de que cedo ou
tarde verias me ver. Mas não contava me encontrar em meu escritório com um cientista
imbecil bancando o detetive amador. Esperava encontrar em ti, e o reconheço, mais um
aliado e ajudante.
— Que-ê-ê!? — Gritei — Primeiro, me expliques o que fazes com as pessoas que te
proporcionam benefício.
Os olhos azul pálido de Kraftstudt, ocultos atrás dos vidros das lentes, se tornaram
duas estreitas rendilhas. Durante um instante me pareceu que me examinava como a um
objeto que queria adquirir em propriedade.
— De modo que queres que te explique como trabalha nossa companhia? Então, não
te é suficiente que teus dois estúpidos problemas se tenham resolvido tal e como devem
se fazer no século 20? Então, queres experimentar, em tua própria pele, o que significa
resolver semelhantes problemas? — Proferiu quase assobiando.
— Não creio que uma só pessoa, por muito esperta que seja, possa realizar esse
penoso trabalho numas dezenas de horas por sua própria vontade. Tua reputação é
testemunho disso. Ademais, tive a desgraça de ouvir como se desvairava um de teus
colaboradores...
— Basta! — Vociferou Kraftstudt — Ao fim e ao cabo, não fui eu quem te convidou
vir. Mas se vieste, e, ademais, com semelhante intenção, nos servirás, queiras ou não.
Não adverti que o médico que me acompanhara a esse escritório todo esse tempo
estava detrás de mim. O chefe da companhia lhe fez um sinal e num dois por três sua
forte mão me cobriu o rosto, me vedando, com força, a boca, enquanto que a outra mão
me socou no nariz um chumaço de algodão impregnado numa substância de odor
penetrante. O inalei e no ato perdi os sentidos.
5
Recobrei o sentido mas durante muito tempo não me atrevia a abrir os olhos. Ouvia
ao redor as vozes de pessoas que discutiam acaloradamente. A discussão girava em
torno de determinadas matérias práticas da ciência, mas durante certo instante minha
consciência não podia captar o conteúdo. Só depois de que minha mente se desanuviara
um pouco é que comecei a me entender o sentido das frases.
— Henrique não tem razão. Afinal de conta o código dos impulsos que estimulam os
neurônios dos centros de vontade não se compõem de 50 sobreoscilações com
intervalos idênticos e de cinco fatores de relação entre o período e a duração do impulso
entre grupos iguais. Ontem foi demonstrado, com certeza, nos experimentos com
Nicolau.
— Bolas! Teu Nicolau não pode servir de exemplo. Pra teu conhecimento, a
codificação do estímulo é sumamente individual. O que estimula os centros de vontade
numa pessoa, noutra pode afetar a centros completamente distintos. Por exemplo, o
estímulo elétrico que provoca a sensação de prazer em Nicolau, me ensurdece. Quando
me submetem a esse estímulo sinto como se em meus ouvidos entrassem dois tubos nos
quais sopram ao cérebro o rugido dos motores dum avião.
— Não obstante, o ritmo de atividade dos grupos de neurônio do cérebro de muitas
pessoas tem numerosos pontos comuns. Falando com propriedade, nosso mestre parte
precisamente dessa circunstância.
— Sim, parte, mas sem grande progresso. — Replicou alguém, com voz cansada —
Por enquanto o assunto não vai além da análise matemática.
— É questão de tempo. No caso dado os experimentos indiretos têm mais
importância que os diretos. Ninguém se atreverá a introduzir em teu cérebro um
eletrodo pra ver que impulsos se movem nele e o quanto isso afetaria teu cérebro e, em
conseqüência, os próprios impulsos. Outra coisa é se dispor dum gerador que permita
modificar dentro de amplos limites a modulação por impulsos codificados. Isso permite
realizar experimentos sem alterar a integridade do cérebro.
— Isso ainda há de ver. — Pronunciou a mesma voz cansada — O caso de Gorin e
Void refuta o que afirmas. O primeiro morreu dez segundos depois de se sintonizar num
campo de freqüência modulada no qual dez sobreoscilações consecutivas da intensidade
se produziam a uma freqüência de 700hz, sendo a relação entre o período e a duração do
impulso igual a cinco décimos. O segundo vociferava tanto de dor que foram obrigados
a desconectar imediatamente o gerador. Rapazes, olvidais a tese fundamental da
neurocibernética de que nas malhas de neurônios que existem no organismo humano se
produz uma enorme quantidade de rotinas. Os impulsos que circulam neles se
caracterizam por ter uma freqüência e código específicos. Basta acertar a ressonância de
qualquer dessas circulações pra que o circuito se excite até um estado incrível. Se
podendo dizer assim, o médico experimenta cegamente. E o fato de que permanecemos
vivos é puro acaso.
Abri os olhos. O recinto se assemelhava algo a uma grande sala de hospital com
camas dispostas ao longo das paredes. No centro uma grande mesa de madeira cheia de
resto de comida, latas de conserva vazias, bitucas e pedaços de papel. Esse quadro
estava iluminado por uma opaca luz elétrica. Me levantei sobre os cotovelos e olhei ao
redor. Nesse instante a conversação se interrompeu.
— Onde estou? — Sussurrei, passeando a vista nos rostos dos circunstantes, que me
observavam com os olhos fixos em mim.
Ouvi que alguém murmurou a minhas costas:
O novato voltou em si...
— Onde estou? — Repeti a pergunta, me dirigindo a todos duma vez.
— Não sabes? — Me devolveu a pergunta um jovem que, em roupa menor, estava
sentado numa cama à direita da minha — Esta é a companhia de Kraftstudt, nosso
criador e mestre.
— Criador e mestre? — Resmunguei, me esfregando a frente — Que mestre pode
ser? se, na realidade, é um criminoso de guerra.
— O crime é um conceito relativo. Tudo depende do objetivo em cujas aras se
realiza a ação. Se o objetivo é nobre qualquer ação é boa. — Espetou o vizinho a minha
direita.
Pasmado por este espécime de maquiavelismo vulgar o olhei com curiosidade.
— Onde adquiriste essa sapiência?, jovem. — Perguntei, me sentando frente a ele.
— O senhor Kraftstudt é nosso criador e mestre. — Logo começaram a repetir, a
porfia, todos os presentes no aposento.
— Acontece que, efetivamente, fui parar no asilo dos sábios. — Pensei, angustiado.
— Siiiim, rapazes. Mal vão teus assuntos se falais assim. — Disse, percorrendo a
todos com o olhar.
— Aposto que o novato tem a matemática na banda de freqüência de 90hz a 95hz! —
Exclamou um rapaz corpulento, se levantando ligeiramente da cama ao lado.
— E a dor pode se suscitar nele a uma freqüência não maior que 140hz do código de
impulso uniformemente acelerado! — Exclamou outro.
— E se lhe pode fazer dormir mediante envios codificados a razão de 8 impulsos por
segundo com intervalos de 2s!
— Estou seguro de que o novato sentirá fome se lhe estimular, através de impulso, a
uma freqüência de 103hz com incremento logarítmico da intensidade dos impulsos!
Aconteceu o pior que eu poderia imaginar. Era evidente que estava entre loucos. Me
surpreendia só uma circunstância: Todos repetiam o mesmo, fazendo menção de certos
códigos e impulsos que relacionavam com minhas sensações e meu mundo interno. Me
rodearam e, me encarando, proferiam, a voz modulada, umas cifras, trazendo à baila
modulações e intensidades e pressagiando como seria meu comportamento se me
submeterem à ação do gerador ou me meterem entre as paredes, assim como a potência
que eu consumiria.
Porque dos livros me formara a idéia de que no trato com os loucos é necessário
assentir a todo o que dizem, decidi não entrar em discussão mas falar como se eu fosse
igual a eles. E nessa disposição de ânimo, na forma mais suave possível, me dirigi ao
vizinho que estava sentado na cama a minha direita e parecia mais cordato que os
demais.
— Digas, por favor, de que falais aqui sem cessar? Sou um profano absoluto nessas
matérias. Uns códigos, impulsos, neurônios, estímulos...
A aposento pareceu estremecer das gargalhadas, que não cessaram, nem quando eu,
indignado, me levantei, desejoso de os fazer calar.
— Circuito 14. Freqüência, 85hz. Estímulo de cólera. — Gritou alguém. E as
gargalhadas passaram ao riso homérico.
Então, voltei a me sentar em minha cama, esperando se tranqüilizarem.
Meu vizinho da direita foi o primeiro em voltar a si. Se aproximou de minha cama,
se sentou a meu lado e me olhou diretamente nos olhos.
— De modo que, deveras, nada sabes?
— Palavra-de-honra que nada sei. E não entendo do que falais.
— Palavra-de-honra?
— Palavra-de-honra!
— Bom! Confiamos em ti, ainda que é um caso mui raro. Deinis, te levantes e o
ponhas a corrente da finalidade de nossa estadia aqui.
— Sim, Deinis, te levantes e lhe contes para que também goze de felicidade.
— Gozar de felicidade? — Perguntei, assombrado — Acaso sois felizes?
— Certamente, certamente! — Gritaram todos — Pois adquirimos auto-consciência.
O maior prazer do homem consiste em se conhecer.
— É que antes não tínheis auto-consciência? — Me assombrei.
— Claro que não. As pessoas não se conhecem. Somente aqueles que têm noção da
neurocibernética adquirem auto-consciência.
— Glória a nosso mestre! — Gritou alguém.
— Glória a nosso mestre! — Repetiram, automaticamente, os demais.
Se me aproximou o homem a quem chamavam Deinis. Se sentou na cama frente a
mim e, com voz surda e cansada, me perguntou:
— Que instrução tens?
— Sou professor de física.
— Conheces biologia?
— Muito superficialmente.
— Psicologia?
— Menos ainda.
— Neuropsicologia?
— A ignoro completamente.
— Cibernética?
— Confusamente.
— E o que sabes da neurocibernética e a orla geral da regulagem biológica?
— Não tenho idéia.
No aposento soaram vozes de surpresa.
— Muito mau. — Resmungou, surdamente, Deinis. — Não compreenderás.
— Mas comeces a contar e me esforçarei em te compreender.
— Ele compreenderá depois dos 20 primeiros tratamentos com o gerador! —
Exclamou alguém.
— Entendi depois de 5! — Replicou outro.
— Melhor será se lhe enfiarem duas vezes entre as paredes.
— De qualquer maneira, Deinis, me ponhas a par. — Insisti. Não sei por que, me
embargava uma sensação dalgo horripilante.
— Bom!, novato: Entendes que coisa é a vida?
Olhando a Deinis, mantive silêncio durante longo instante.
— A vida é um fenômeno muito complexo da natureza. — Disse, enfim.
Alguém soltou uma sonora risota. Lhe seguiu alguém mais. Logo a riso foi quase
geral. Os inquilinos da sala me olhavam como a uma pessoa que acaba de dizer uma
tolice indecente. E só Deinis me olhava com reproche e meneava a cabeça.
— Mal vão teus argumentos. Terás que aprender muitas coisas.
— Se me equivoquei, expliques.
— Expliques, Deinis, expliques! — Gritaram ao redor.
— Está bem. Escutes. A vida é uma circulação contínua de estímulo eletroquímico
nos neurônios do organismo.
Fiquei pensativo. Circulação de estímulos nos neurônios. Não me lembro onde mas,
em certa ocasião, ouvi algo semelhante.
— continues, Deinis, continues.
— Todas tuas sensações que constituem a essência de teu eu espiritual são impulsos
eletroquímicos que se deslocam dos receptores aos reguladores superiores do cérebro e
uma vez elaborados retornam aos eretores.
— Bom! Prossigas a explicação.
Cada sensação chegada do mundo exterior se transmite ao cérebro nas fibras
nervosas. Uma sensação se diferencia doutra pela forma do código e freqüência, assim
como pela velocidade de propagação. Esses três parâmetros determinam a qualidade,
intensidade e duração da sensação. Compreendeste?
— Suponhamos que entendi.
— Então a vida é precisamente o movimento da informação codificada pelos nervos.
Não mais nem menos. O pensamento nada mais é que a circulação da informação, com
modulação de freqüência, nas rotinas neurônicas nas regiões centrais do sistema
nervoso, no cérebro.
— Isso não entendo.
— O cérebro consta, aproximadamente, de 10 mil milhões (1010)1 de neurônios
análogos aos relês elétricos. Elas se unem em grupos e anéis, mediante fibras

1
Lembrar que a nomenclatura numérica européia é diferente das Américas. Na Europa o que se chama 1000 milhões é chamado 1
bilhão nas Américas. Nota do digitalizador
denominadas axões. Nelas os estímulos são transmitidos dum neurônio a outro e dum
grupo de neurônios a outro. A migração de estímulo nos neurônios é o pensamento.
Meu terror aumentou.
— Nada entenderás enquanto não sejas submetido à ação do gerador ou encerrado
entre as paredes! — Ouvi gritar a meu ao redor.
— Bom, suponhamos que tens razão. Mas o que se infere disso? — Perguntei a
Deinis.
— Se infere que a vida pode se transformar como se queira. Se valendo dos
geradores de impulso que estimulam os códigos necessários nas rotinas de neurônio.
Esse feito tem enorme importância prática.
— Qual?, precisamente. Expliques — Sussurrei, pressentindo que agora me inteiraria
dalgo que me revelaria a essência da atividade da companhia Kraftstudt.
— A melhor explicação se pode dar no exemplo do estímulo da atividade
matemática. Atualmente alguns países construem os chamados computadores
eletrônicos. O número de triggers ou relês dos quais se compõem essas máquinas não
passa dos 5000 ou 10 mil. Enquanto as partes matemáticas do cérebro humano contêm
cerca de mil milhões (109) de tais unidades. Nunca alguém poderá construir uma
máquina com tal quantidade de relês.
— Bom, e o quê?
— Pois, que é muito mais vantajoso utilizar, pra resolver problema matemático, um
aparato criado pela própria natureza e localizado aqui, — Deinis passou a mão encima
das sobrancelhas — que construir essas vis e custosas máquinas.
— Mas as máquinas trabalham com maior rapidez. Se não me equivoco, o neurônio
pode se estimular não mais de 200 vezes por segundo, enquanto o relê eletrônico,
milhões de vezes. Por essa razão as máquinas de ação rápida são mais vantajosas.
A sala retumbou do riso dos presentes. Só Deinis permaneceu sério.
— Não é assim. Também os neurônios podem se estimular a qualquer freqüência, se
lhes aplicar um estímulo com uma freqüência suficientemente alta. Esse objetivo se
pode alcançar utilizando um gerador eletrostático que trabalhe em regime de impulso.
Se situamos o cérebro no campo de radiação de semelhante gerador é possível conseguir
que trabalhe com a rapidez que se deseje.
— Então esse é o método empregado pela companhia Kraftstudt pra obter benefício!
— Exclamei, bruscamente me pondo de pé.
— Ele é nosso mestre! — Vociferaram, de repente, todos, em uníssono — Repitas,
novato. Ele é o mestre!
— Não o molestai pra assimilar. — Logo Deinis levantou a voz— Chegará o
momento e o novato compreenderá que senhor Kraftstudt é nosso mestre. Ainda nada
sabe. Escutes, novato, o relato. Cada sensação tem seu código, intensidade e duração. A
sensação de felicidade responde à freqüência de 55hz, com grupos codificados de até
100 impulsos cada um. A sensação de pena na freqüência de 62hz, com uma relação
entre o período de impulso e a duração igual a um décimo de segundo. A sensação de
alegria responde à freqüência de 47hz, que alimenta segundo a intensidade dos
impulsos. A sensação de tristeza está relacionada à freqüência de 203hz, de dor 123hz,
de amor 14hz, estado de ânimo lírico 31hz, cólera 85hz, cansaço 17hz, sonolência 8hz,
etc. Os impulsos codificados dessas freqüências se desprendem em rotinas específicas
dos neurônios e graças a isso percebes todo o que mencionei. Todas essas sensações
podem ser suscitadas por meio do gerador de impulso criado por nosso mestre, que nos
abriu os olhos nos dando a entender o que é a vida. Antes de sua chegada os homens
viviam em treva e ignorância de si mesmos...
Depois da explicação senti que minha mente se nublava. Isso era um delírio ou algo
que, e fato, abria uma nova página na vida da humanidade. Nesse momento eu ainda
não compreendia. A cabeça zumbia por causa do narcótico inalado no escritório de
Kraftstudt. Logo me senti muito cansado, me deitei na cama e fechei os olhos.
— Nele predomina uma freqüência entre 7hz e 8hz. Quer dormir! — Exclamou
alguém.
— Que durma um pouco. Amanhã começará a conceber o x da vida. Amanhã lhe
aplicarão o gerador.
— Não. Amanhã lhe tirarão o espectro. E farão a correspondente ficha. Pode ser que
tenha alguns desvios da norma.
Essas palavras foram as últimas que ouvi. Depois, caí numa modorra.
6
A pessoa com a qual me encontrei no dia seguinte a princípio me pareceu simpática e
inteligente. Quando me conduziram a seu escritório, no primeiro piso do edifício
principal da companhia Kraftstudt, se levantou e, com um amplo sorriso, se dirigiu a
mim com a mão estendida.
— Á, professor Rauch, muito prazer em te ver!
— Bom dia. — Respondi, com reserva — Com quem tenho a honra de falar?
— Chames, simplesmente, Bolz, Hanz Bolz. Nosso chefe me encomendou uma
tarefa não muito agradável: Apresentar a ti, em seu nome, sua desculpa.
— Apresentar desculpa. Acaso a teu chefe pode atormentar o remorso?
— Não sei. Creias que não sei, professor. A pesar de tudo, te apresenta sua mais
sincera escusa por todo o sucedido. Se exacerbou. Não lhe agrada quando o fazem
recordar o passado.
Sorri, receoso:
— Não vim o ver com o fim de lhe recordar seu passado. Se queres saber, me
interessava outra coisa. Queria conhecer as pessoas que tão brilhantemente resolveram...
— Te sentes, professor. Quero falar contigo precisamente sobre esse assunto.
Me sentei na cadeira que me ofereceu e comecei a examinar a personalidade do
sorridente senhor Bolz, sentado diante de mim atrás duma larga escrivaninha. Era um
típico representante do norte da Alemanha, de cara alargada, cabelo claro e grandes
olhos azuis. As mãos davam voltas numa cigarreira.
— Aqui, nesta empresa, sou chefe da seção matemática.
— És matemático?
— Sim, até certo ponto. Em todo caso entendo algo dessa ciência.
— Então, por intermédio de ti, posso conhecer os que resolveram minhas equações...
— Mas já os conheces, Rauch. — Observou Bolz.
O olhei, surpreso.
— Passaste com eles todo o dia de ontem e toda a noite.
Relembrei a sala com os homens que, como delirando, falavam de impulsos e
códigos.
— Queres me fazer crer que esses dementes são precisamente os matemáticos
geniais que resolveram as equações de Maxwell que apresentei? — Sem esperar a
resposta comecei a rir.
— Penses o que queiras, mas são precisamente eles. Teu último problema o resolveu
um tal Deinis. Parece que ontem na tarde te deu uma lição de neurocibernética.
Depois de pensar um pouco, disse:
— Nesse caso me nego a compreender coisa alguma. Pode ser que queiras esclarecer
pra mim.
— Com muito gosto, Rauch. Mas só depois de que leias isto. — E Bolz me estendeu
o jornal do dia.
O folheei lentamente e logo saltei da cadeira. Da primeira página me olhava... meu
próprio rosto encerrado num quadro negro. Sob meu retrato uma inscrição com enormes
letras dizia: A trágica morte do professor de física, doutor Rauch.
— O que significa iso. Que comédia é essa?
— Te tranqüilizes, por favor. Tudo é muito simples. Ontem na tarde, quando
regressavas dum passeio ao lago e atravessavas o rio na ponte, dois loucos fugitivos do
asilo dos sábios te agrediram, assassinaram, desfiguraram teu cadáver e o lançaram ao
rio. Hoje, na manhã, teu cadáver foi encontrado perto do dique. O traje, pertence e
documento confirmaram que eras tu. A polícia realizou a investigação pertinente no
asilo dos sábios e assim se esclareceu a circunstância de tua trágica morte.
Ao ouvir suas palavras me fixei em meu traje, remexi nos bolsos e só então
compreendi que vestia um traje alheio e que dos bolsos desapareceram meus objetos
pessoais e documentos.
— Mas é uma mentira descarada, um engano e vileza...
— Sim, sim, sim. Estou completamente de acordo contigo. Mas o que fazer?, Rauch,
o que fazer? Sem tua participação a companhia Kraftstudt pode sofrer um sério
contratempo, inclusive se arruinar. Recebemos um monte de pedido. E todos de caráter
militar e a ótimo preço. É necessário realizar cálculo e mais cálculo, um enorme volume
de cálculo. Uma vez resolvidos os primeiros problemas pro ministério da defesa, nos
inundaram, literalmente, de encargo.
— E queres que me converta em mais um, como Deinis e os outros?
— Não. Certamente que não, Rauch.
— Então, pra quê inventaram tudo isso?
— Necessitamos de ti como professor de matemática.
— Professor de matemática?
Saltei novamente. Bolz incendiou um cigarro e me indicou, com a cabeça, a cadeira.
Voltei a me sentar sentindo perder toda a capacidade de reflexão.
— Necessitamos pessoal matemático. Sem isso iremos a pique.
Sem responder, cravei os olhos em Bolz, o qual já não me parecia tão simpático
quanto antes. Comecei a advertir que em sua cara de tez branquicenta, carente de traço
particular assomava, apenas perceptível, certa bestialidade, que, se impondo pouco a
pouco, borrava a primeira impressão de sinceridade e franqueza.
— E se me negar?
— Muito ruim. Temo que então tenhas de te converter num de nossos...
computadores.
— Acaso é algo tão mau?
— Sim. — Respondeu, firmemente, e se levantou — Isso significaria terminar teus
dias no asilo dos sábios.
Dando várias voltas no aposento, Bolz proferiu, em tom professoral:
— A capacidade de cálculo do cérebro humano supera centenas de milhares de vezes
a duma calculadora eletrônico. Mil milhões de células matemáticas do córtex cerebral,
mais todo o aparato auxiliar, ou seja, memória, linhas de retenção, lógica, intuição, etc.
Tudo isso promove o cérebro humano a uma posição sobressalente em comparação com
qualquer máquina, ainda a mais perfeita. No entanto, a máquina possui uma vantagem
essencial.
— Que vantagem? — Perguntei sem compreender a que vêm suas palavras.
— Se uma máquina eletrônica se estropia, digamos, uma célula a base de relê ou,
inclusive, um registro inteiro, é possível substituir as lâmpadas, as resistências ou as
capacidades e a máquina reiniciará o trabalho. No entanto, se na cabeça uma célula
deixa de funcionar ou o grupo delas que cumpre as funções calculadoras,
lamentavelmente, não há possibilidade das substituir. Infelizmente nos vemos obrigados
a forçar os relês do cérebro pra que trabalhem com intensidade sobrelevada, por cuja
razão, se me permites expressar assim, a velocidade com que se produz o desgaste
aumenta consideravelmente. O aparato calculador vivo se consome com grande rapidez
e...
— Então o quê?
— Então o computador parará no asilo dos sábios.
— Mas o que dizes é inumano. É um crime! — Gritei.
Bolz parou frente a mim, me pôs a mão no ombro e pronunciou, com um sorriso
largo:
— Rauch, aqui deves esquecer essas palavras e conceitos. Se não os olvidares por tua
própria conta, os arrancaremos de tua memória.
— Nunca. Jamais conseguirás! — Lhe lancei, tirando, com violência, sua mão de
meu ombro.
— Assimilaste mal a conferência que te leu Deinis. Mui mal. E deverias prestar
maior atenção, pois te falou de coisas mui importantes. A propósito, sabes o que é a
memória?
— Mas o que tem que ver isso com nossa conversa? Por que-diabos todo mundo aqui
se faz de besta? Pra quê...?
— A memória, professor Rauch, é a existência prolongada do estímulo num grupo de
neurônios devido à retroação positiva. O estímulo eletroquímico que circula em tua
cabeça no grupo dado de células durante um longo período é, precisamente, a memória.
És físico, a quem interessam os processos eletromagnéticos em meios complexos, e não
te dás conta de que aplicando a tua cabeça o correspondente campo eletromagnético
podemos inibir a circulação do estímulo em qualquer grupo celular. Pois nada há mais
simples! Estamos em condição não só de te fazer esquecer tudo o que sabes mas
também te fazer recordar o que nunca soubeste. No entanto não é nosso interesse
recorrer a tal método... eeemm... artificial. Confiamos em teu bom-senso. A companhia
te garante bons dividendos.
— E que devo fazer?
— Já disse: Ensinar matemática. Dentre os parados que, por fortuna, sempre temos
em abundância em nosso país, recrutamos grupos de 20 a 30 pessoas dos mais
capacitados em matemática. Depois, no curso de dois o três meses lhes transmitimos a
matemática superior...
— Isso é impossível. Num prazo tão breve...
— É possível, Rauch. Tenhas presente que te encontrarás com um auditório mui
compreensivo com uma magnífica memória matemática, que assimilará tudo muito
bem. Nos ocuparemos disso. Estamos em condição de garantir.
— Também artificialmente? Se valendo do gerador de impulso?
Bolz assentiu com a cabeça.
— Então estás de acordo?
Fechei fortemente os olhos e comecei a refletir. Então, acontece que Deinis e todos
seus amigos daquele aposento são pessoas normais e tudo o que me disseram ontem era
verdade. Por conseguinte, esta companhia, de fato, descobriu o método de guiar o
pensamento, a vontade e o sentimento humanos através de campos eletromagnéticos de
impulso e se vale desse método pra lucrar. Eu sentia o olhar fixo de Bolz e compreendi
que, imediatamente, devia tomar uma decisão. Era uma tarefa monstruosamente difícil.
Se consentir seria obrigado a dar aula de matemática a pessoas às quais mais tarde, por
via artificial, forçariam a gastar intensivamente sua capacidade mental até a exaustão,
até o consumo absoluto da matéria viva de seu cérebro, de modo que ao cabo de certo
tempo, infalivelmente, serão recolhidas, até o fim de seus dias, ao asilo dos sábios. E se
me negar esse destino me espera.
— Então aceitas? — Repetiu Bolz, tocando meu ombro.
— Não. — O cortei, rotundamente — Não. Não posso ser cúmplice dessa
abominável empresa.
— Como queiras. — Suspirou Bolz — Lamento.
Ato seguido, se levantou, diligentemente, da mesa, se aproximou da porta e, a
entreabrindo, gritou:
— Eider, Schrank, vinde!
— Que te propões fazer comigo? — Perguntei, me levantando.
— Pra começar, tomaremos o espectro codificado de impulso do sistema nervoso.
— O que queres dizer com isso?
— Quero dizer que comporemos uma ficha na qual se registrarão a forma,
intensidade e freqüência dos impulsos que respondem por cada um de teus estados
anímico e intelectual.
— Não permitirei. Protestarei. Irei a...
— Acompanhai o professor ao laboratório de exame. — Bolz disse, com voz
indiferente, me voltou as espaldas e foi olhar na janela.
7
Ao entrar no laboratório de exame da companhia Kraftstudt tomei a decisão que,
afinal de conta, estava predestinada a desempenhar um papel relevante nessa asquerosa
história. Eu discorria da seguinte maneira: Agora me submeterão ao exame que
oferecerá a Kraftstudt e a sua quadrilha informação concernente a meu mundo espiritual
interno. Tentarão estabelecer que forma de ação eletromagnética provoca em meu
sistema nervoso tal o qual emoção, sentimento o sensação. Se conseguirem, estarei,
irremediavelmente, em seu poder. Mas se não conseguirem poderei conservar, em meu
foro interno, certa fração de independência. Doravante essa circunstância me pode ser
de grande proveito. Por conseguinte devo aplicar toda minhas força pra confundir esses
bandidos ultracientíficos, os enganando enquanto o permitir minha força. E, segundo
entendo, isso é possível conseguir até certo grau. Não em vão ontem, na sala, ouvi como
um dos escravos de Kraftstudt disse que a característica dos impulsos codificados dum
homem é individual, exceto o pensamento matemático.
Me fizeram passar a uma grande aposento. No entanto, parecia um casebre, devido
aos volumosos aparatos que a abarrotavam. A estância recordava o posto de comando
duma pequena central elétrica. No centro havia uma carteira com tabuleiros de
instrumento e escala. À esquerda, resguardado por uma malha metálica, um
transformador grande e em seus painéis de porcelana brilhavam, com opaca luz
avermelhada, várias lâmpadas osciladoras. A malha metálica, que servia de tela ao
gerador, tinha, inseridos, um voltímetro e um amperímetro. Pelo visto suas indicações
permitiam determinar a potência cedida pelo gerador. No meio do aposento se alçava
uma cabina cilíndrica composta de duas partes metálicas, a superior e a inferior,
separadas por um elemento intermediário dum material transparente e isolante.
Meus dois acompanhantes me conduziram até a cabina. Atrás da carteira de comando
se levantaram dois homens. Um era o médico que me acompanhara ao escritório de
Kraftstudt e que me narcotizou. O segundo era um desconhecido velhinho encurvado,
com cabelo alisado e ralo sobre um crânio amarelado. Disse um de meus
acompanhantes:
— Temos de registrar seu espectro.
— Não conseguiram o persuadir. — Pronunciou, grosseiramente, o médico — O
sabia de antemão. Desde o primeiro momento me dei conta que Rauch pertencia à
categoria de naturezas fortes. Isso era de esperar.
Disse, se dirigindo a mim:
— Rauch, terminarás mal.
— Tu também.
— Ó, veremos! E quanto a ti, não há lugar a dúvida.
Me encolhi de ombros.
— Te submeterás voluntariamente a todos os exames ou teremos que recorrer à
força? — Perguntou, me dando uma insolente olhada.
— O farei voluntariamente. Me interessa como físico.
— Formidável. Em tal caso tires os sapatos e te dispas até a cintura. Em primeiro
lugar te devo examinar, auscultar e medir a pressão arterial.
Me despi. A primeira etapa da tomada do espectro era um exame médico corrente:
Respires, não respires, etc. Eu sabia que nenhum desses procedimentos podia revelar
meu estado anímico.
Quando o exame terminou o médico disse:
— Entres à cabina. Aqui há um microfone. Respondas a todas minhas perguntas. Te
previno que a uma das freqüências sentirás dor insuportável. Mas essa sensação cessará
quando gritares.
Descalço pisei o solo de porcelana da cabina, que se fechou silenciosamente. Sobre
minha cabeça se acendeu uma lamparina elétrica. Começou a zumbir o gerador, que
trabalhava num regime impulsional de freqüência muito baixa. A intensidade do campo,
pelo visto, alcançou um nível muito alto. O compreendi pelos lentos afluxos e refluxos
de calor que experimentava em todo o corpo. Cada impulso eletromagnético suscitava
nas articulações um estranha picadura. Ao compasso dos impulsos mis músculos ora se
distendiam, ora se relaxavam. Não só se contraíam os músculos à flor da pele mas
também os mais profundos.
O gerador começou a funcionar mais intensamente e aumentou a freqüência das
ondas térmicas. Pensei:
— Já começou. Oxalá consiga resistir!
À freqüência de 8hz terei vontade de dormir. Minha força de vontade será capaz de
se opor a essa ação? Seria uma pena não conseguir enganar esses investigadores na
primeira faixa do espectro. A freqüência aumentava lentamente. Eu contava, em
pensamento, a quantidade de afluxo térmico por segundo. 1 por segundo, 2, 3, 4... O
número de afluxo aumentava, se tornava cada vez maior. A sonolência começou a me
embargar mas apertei os dentes tratando não sucumbir ao desejo de dormir. O sono
avançava como uma pesada e pegajosa massa, meus membros pareciam de chumbo, os
olhos se fechavam. Me parecia estar a ponto de cair. Com todas mis forças me mordi a
língua procurando afugentar com o dor o pesado aborrecimento. Nesse instante ouvi
uma voz que parecia longínqua:
— Rauch, como te sentes?
— Obrigado, me sinto bem. Experimento um pouco de frio. — Menti. Minha voz me
pareceu desconhecida. Continuava mordendo com força os lábios e a língua.
— E não queres dormir?
— Não. — Respondi, enquanto em minha mente passava: Um pouco mais e
dormirei...
Logo a sonolência desapareceu como por encanto. Evidentemente, a freqüência dos
impulsos subira, atravessando a primeira barreira crítica. Subitamente, me senti
animando e fresco, como sucede depois de dormir bem. — Agora tenho que fingir ter
sono. — Decidi e, cerrando os olhos, comecei a roncar ruidosamente. Ouvi ao médico
dizer ao ajudante:
— Um caso raro. Em lugar de 8,5hz o sono começa a 10hz. Pfaff, anotes esses dados.
— Disse, se referindo ao velho — Rauch, como te sentes agora?
Não respondi e continuava roncando, relaxando todos os músculos e me apoiando
com os joelhos contra a parede da cabina.
— Prossigamos. — Pronunciou, enfim, o médico — Aumentes a freqüência, Pfaff.
Passado um segundo, despertei. Na faixa de freqüência que atravessava agora tive
que experimentar uma complexa gama das mais variadas sensações e mudanças de
estado de ânimo. Ora me sentia triste, ora alegre, e ao regozijo sucedia angústia.
— Já é hora de gritar. — Não sei por que, decidi.
E no instante em que o zumbido do gerador ficou mais forte comecei a vociferar a
toda força. Não me lembro a que freqüência correspondia, mas, ao ouvir meu grito, o
médico ordenou alçando a voz:
— Retires a tensão! É a primeira vez que tropeço com um louco assim. Anotes. Sente
dor a 75hz, enquanto as pessoas normais o sentem a 130hz. Continuemos.
— Ainda terei de passar na freqüência de 130hz... Oxalá a possa suportar... —
Pensei.
— Agora, Pfaff, o submetas à freqüência de 93hz.
Quando fixaram essa freqüência me ocorreu algo inesperado. De repente, me lembrei
das equações que entregara à companhia Kraftstudt e vi, com pasmosa clareza, todo o
curso da solução. É a freqüência que estimula o pensamento matemático. —
Passou, célere, em minha mente. Ouvi a ordem do médico:
— Rauch, menciones os primeiros cinco termos da função de Bessel de segunda
classe.
Disparei a resposta como se fosse uma metralhadora. Senti, na cabeça, uma claridade
cristalina e o corpo invadido por uma jubilosa e esplêndida sensação de que tudo sabia e
lembrava.
— Enumeres as primeiras dez cifras decimais de π.
Também respondi a essa pergunta.
— Resolvas uma equação cúbica.
O médico ditou uma equação com coeficientes fracionários incômodos.
Encontrei a resposta em dois ou três segundos, enumerando as três raízes.
— Podemos prosseguir. Nessa faixa tem tudo como as pessoas normais.
A freqüência aumentava lentamente. Em certo momento, de repente, tive vontade de
chorar. Um nó amargo me raspou a garganta e dos olhos brotou lágrima. Então soltei
uma gargalhada. Me retorcia de riso como se me fizessem cócega. Ria mas as lágrimas
corriam e corriam...
— Outra imbecilidade... Distinto dos demais. Por enquanto acho que esse é um tipo
nervoso, forte, propenso a as neurose. É interessante. Quando começará a chorar?
Comecei a chorar a lágrima viva sem vontade. Minha alma se sentia alegre e
despejada como durante uma ligeira embriaguez. Sentia desejo de cantar, rir e brincar,
de tanto regozijo. Todo mundo, Kraftstudt, Bolz, Deinis e o médico, me pareciam
pessoas bondosas. Então, por um esforço de vontade, comecei a soluçar e a me bater
ruidosamente. Soluçava de dar nojo mas, parece, de modo bem convincente como pra
provocar os comentários de turno do médico:
— Tudo ao revés. Nada há parecido a um espectro normal. Esse nos dará trabalho.
— Quando chegará à freqüência de 130hz? — Pensei, com horror, quando meu
alegre e despreocupado estado de ânimo novamente foi substituído por uma
preocupação e inquietude inconscientes, por uma sensação de que estava a ponto de
suceder algo horrível e iminente... Nesse instante comecei a cantarolar. O fazia
mecanicamente, sem pensar, mas o coração batia cada vez mais forte, apreensivo dalgo
inelutável, terrível e aziago.
Quando a freqüência do gerador alcançou valores próximos aos que provocam a
sensação de dor, percebi imediatamente. Primeiro começaram a doer as articulações do
dedo polegar da mão direita. Logo senti um agudo zumbido na ferida que recebera na
fronte. Um segundo mais tarde uma dor martirizante, aguda e pungente, se difundiu em
todo o corpo. Penetrou nos olhos, dentes, músculos e, finalmente, cérebro. A sangre
começou a pulsar febrilmente nos ouvidos. Será possível que não suportarei? Será
possível que me faltará vontade pra dominar esta terrível dor sem mostrar o quanto
padeço? Se conhecem casos de pessoas que morreram torturadas sem soltar lamento. A
história conhece a heróis que morriam na fogueira no mutismo mais absoluto...
O dor se intensificava cada vez mais. Enfim, chegou ao apogeu. Tinha a sensação de
que o organismo se convertia num saliente feixe de nervos esfarrapados. Ante meus
olhos vi flutuar anéis violáceos e faltava pouco pra desmaiar mas continuava em
silêncio.
— Tuas sensações?, Rauch. — Outra vez me chegou, como dum subterrâneo, a voz
do médico.
— Sinto uma fúria selvagem. — Prorrompi, entredentes — Se agora caísses em
minhas mãos...
— Prossigamos o exame. É uma pessoa anormal. Tem tudo ao revés. — O médico
repetiu a conclusão.
Quando estava a ponto de desmaiar, disposto já a gritar, a me debater, a dor,
subitamente, desapareceu. Todo o corpo ficou coberto por um frio e pegajoso suor. Os
músculos tremeram.
Prosseguia o exame. Alcançada certa freqüência vi, logo, uma luz inexistente, de
deslumbrante brilho, que não desaparecia, nem quando cerrava fortemente os olhos.
Logo experimentei a sensação de fome canina, seguida duma gama complexa de sons
ensurdecedores, depois senti frio como se, em pleno inverno, me atirassem, nu, à rua.
Pressentia que teria de suportar todas essas sensações e portanto respondia do modo
mais inconveniente às perguntas do médico, o que o fez fazer comentários violentos.
Graças à conversação de ontem na sala, sabia que teria que experimentar outra
sensação espantosa, a da perda de vontade. Precisamente a vontade era o que me salvara
até então. Esse invisível poder da alma me ajudava a impugnar todos aqueles
sentimentos que meus verdugos procuravam me induzir. No entanto, se valendo do
infernal gerador de impulso, mais cedo ou mais tarde chegariam também a esse âmago.
Como poderão estabelecer que perdi a vontade? Esperava, inquieto, essa etapa que,
enfim, chegou.
Não sei como mas de repente percebi que tudo no mundo me era indiferente. Me
parecia a mesma coisa estar ou não nas garras da quadrilha de Kraftstudt, me eram
indiferentes todas as pessoas que o rodeavam e até eu mesmo. A cabeça se esvaziou.
Todos os músculos se relaxaram. As sensações desapareceram. Fiquei em estado de
total abatimento, tanto físico como anímico. Nada me comprazia nem me comovia. Não
podia forçar a mente a pensar, me custava trabalho me obrigar a levantar o braço, a
mover a perna o virar a cabeça. Era uma terrível falta de vontade, um estado em que se
pode fazer com um homem o que se queira.
Mas, a pesar de tudo, em certo lugar do cérebro, no rincão mais tranqüilo da
consciência, ainda ardia uma minúscula faísca de pensamento que me repetia
insistentemente: Deves... Deves... Deves...
— O que devo. Pra quê. Com que fim? — Objetava todo meu ser. — Deves...
Deves... Deves... — Repetia, parecia, a única célula de minha consciência, a qual, não
se sabe como, ficou inacessível a esses impulsos eletromagnéticos onipotentes, que
faziam dos nervos tudo o que desejavam os verdugos da companhia Kraftstudt.
Posteriormente, quando soube da existência da teoria do sistema de pensamento
encefálico central, de acordo com a qual o próprio pensamento e todas as células do
córtex cerebral estão profundamente centralizados e subordinados a apenas um grupo
celular, único e central, compreendi que esse poder psíquico supremo se mantém à
margem das ações físicas e químicas externas, inclusive as mais fortes. Pelo visto,
precisamente esse grupo celular foi o que me salvou, porque quando o médico logo me
deu a ordem: Colaborarás com Kraftstudt, respondi:
— Não.
— Farás tudo o que te ordenarem.
— Não.
— Batas a cabeça contra a parede.
— Não.
— Prossigamos, Pfaff. Anotes que é um tipo anômalo. Mas o dominaremos também.
Simulei perder a vontade ao chegar a uma freqüência em que, na realidade, tinha a
sensação de possuir uma enorme força de vontade, me sentia pronto a realizar qualquer
coisa, estava em condição de dominar meus atos e levar a cabo tudo o que me
propusessem. Me sentia transbordante de vigor anímico, o qual me podia inspirar às
mais grandiosas façanhas. Comprovando meus desvios com relação ao espectro normal,
o médico se deteve também nessa freqüência.
— Se tens de sacrificar a vida a favor da felicidade dos homens, o farás?
— Pra quê? — Perguntei, com voz inexpressiva.
— Podes suicidar?
— Sim, posso.
— Tens vontade de matar o criminoso de guerra obersturmführer Kraftstudt?
— Pra quê?
Colaborarás conosco?
— Sim, colaborei.
— Deus-sabe que coisa é! Seguramente é a primeira e última vez que tropeço num
caso assim. À freqüência de 175hz, perda de vontade. Anotes. Prossigamos.
Esse prossigamos durou uma meia hora mais, depois do qual a composição do
espectro de freqüência de meu sistema nervoso se deu por terminada. Agora o médico
estava a corrente das freqüências com as quais podia provocar em mim qualquer
sensação e estado de ânimo. Em todo caso, pensava estar a corrente. Na realidade, a
única verdade era a freqüência que estimulava a faculdade matemática. Mas também eu
tinha uma pungente necessidade da saber. Tudo radicava em que eu me traçara um
plano pra fazer a criminosa companhia Kraftstudt voar ao ar. E a matemática devia
desempenhar um papel muito importante no cumprimento desse plano.
8
Se sabe que as pessoas que melhor se submetem à hipnose e sugestão são as que
possuem uma vontade débil. Os colaboradores do centro de cálculo de Kraftstudt
aproveitaram precisamente essa circunstância: Se valiam dessa qualidade pra educar os
computadores num espírito de submissão e temor devoto ante seu mestre.
Antes de me fazer trabalhar deviam me educar. Mas não podiam abordar
imediatamente essa tarefa, devido à anormalidade de meu espectro. Eu requeria um
tratamento individual.
Enquanto nalgum lugar preparavam pra mim um posto de trabalho especial, eu
gozava de relativa liberdade de movimento. Me permitiam sair do dormitório ao
corredor e assomar às aulas onde estudavam e trabalhavam meus companheiros.
Eu não podia tomar parte nas orações coletivas entre as paredes do enorme
condensador de alumínio, onde as vítimas de Kraftstudt, a cada manhã, durante trinta
minutos loavam ao chefe da companhia. Privados de vontade e razão repetiam,
monotonamente, as palavras que alguém lia via radio. Recitava uma voz saída do alto-
falante:
— A alegria e a felicidade da vida consistem no auto-conhecimento.
— A alegria e a felicidade da vida consistem no auto-conhecimento. — Repetiam,
em coro, doze homens postos de joelho, cuja vontade fora anulada por um campo
eletromagnético alternado criado entre as paredes.
— Ao conceber os mistérios da circulação dos impulsos nas rotinas das fibras
nervosas, sentimos sorte e alegria.
— ...sorte e alegria. — Fazia eco o coro.
— Que maravilhoso é saber que tudo é tão simples. Quanto prazer dá o
conhecimento de que o amor, medo, dor, ódio, fome, angustia, alegria são apenas o
movimento de impulsos eletroquímicos em nosso corpo!
— ...em nosso corpo...
— Quão livre e ligeiro te sentes quando sabes que coisa é sentir!
— ...Sentir...
— Quão miserável é o homem que não possui essa magna verdade!
— ...magna verdade... repetiam, em coro enfadonho, os escravos privados de
vontade.
— Senhor Kraftstudt, nosso mestre e salvador nos deu essa felicidade!
— ...felicidade...
— Nos deu a vida.
— Nos deu a vida.
— Nos descobriu a simples verdade sobre nós. Que viva eternamente nosso mestre e
salvador!
Escutei essa descabelada oração, olhando através da porta de vidro da aula.
Homens prostrados e atônitos, com olhos semicerrados repetiam, mecanicamente,
sentenças dementes. O gerador elétrico a dez passos deles inculcava, a força, em suas
mentes incapazes de resistir, a submissão e o medo. Nessa ação havia algo infra-
humano, algo mesquinho até não poder mais, algo bestial e ao mesmo tempo às raias
duma refinada crueldade. O deplorável aspecto desse rebanho de seres humanos,
carentes de vontade, evocava espontaneamente na memória a imagem de pessoas
envenenadas pelo álcool e os narcóticos. Os venenos químicos se infiltrando junto ao
sangue, entre as células do cérebro, mata a umas e deforma a outras, de modo que a
pessoa deixa de ser, perde a dignidade e grandeza, se convertendo em animal.
Aqui, entre duas resplandecentes paredes de alumínio, as ondas eletromagnéticas
invisíveis que penetravam até as células mais recônditas do organismo faziam papel de
veneno, obrigando umas a se extinguir e estimulando o trabalho doutras,
imprescindíveis aos planos dos verdugos...
Depois da oração as doze vítimas passavam a uma espaçosa sala ao longo de cujas
paredes havia mesa de escrever. Sobre cada mesa pendia, suspendida do teto, uma
redonda placa de alumínio que fazia parte dum gigantesco condensador. A segunda
placa, parece, estava no solo.
Essa sala, com as sombrinhas de alumínio sobre as mesas, se assemelhava, nalgum
aspecto, a um café ao ar livre. No entanto, bata um olhar aos homens sentados sob essas
sombrinhas bastava pra afugentar a impressão idílica.
Cada um tinha sobre sua mesa uma folha de papel com o problema a resolver. A
princípio os computadores davam uma olhada sem sentido nas fórmulas e equações
escritas no papel porque ainda estavam sob o efeito da freqüência privativa da vontade.
Mas imediatamente se conectava à freqüência de 93hz e uma voz via rádio ordenava:
— Agora, ao trabalho!
E os doze homens, agarravam seus libretos e lápis e, febrilmente, começavam a
escrever. O que faziam não se podia denominar trabalho. Mais parecia uma espécie de
frenesi, de histeria matemática, de ataque patológico de febre de cálculo. Se retorciam e
se contorciam sobre os libretos. As mãos voavam nas linhas com tanta velocidade que
era impossível seguir o que escreviam. Na tensão o rosto ruborizava e os olhos saíam de
órbita.
Assim seguiam cerca duma hora. Depois, quando os movimentos das mãos se
entorpeciam e ficavam espasmódicos, a cabeça quase tocava a superfície da mesa e no
pescoço estirado se inchavam veias violáceas, o gerador se comutava à freqüência de
8hz e todos dormiam instantaneamente.
Kraftstudt se preocupava com o descanso de seus escravos!
Logo tudo se repetia.
Observando esse horripilante quadro de frenesi matemático, fui testemunha de como
um dos computadores perdeu o autodomínio...
O observando a través duma janela, logo me fixei que deixara de escrever. De forma
estranha se voltou ao vizinho, que trabalhava a ritmo febril, e durante vários segundos o
contemplou com olhar vazio, como se esforçando a recordar algo. Parecia ter esquecido
algo muito importante pra continuar resolvendo o problema.
Logo começou a gritar lançando horríveis sons guturais, tirou a roupa e bateu com a
cabeça contra o ângulo da carteira... Logo desmaiou e caiu ao solo.
Os demais computadores não prestaram atenção e continuaram a febril escritura.
Esse quadro despertou em mim tanta fúria que comecei a socar a porta fechada.
Queria incitar os infelizes a abandonar o trabalho, fugir dessa maldita sala, se rebelar e
aniquilar os torturadores...
— Não vale a pena se irritar, senhor Rauch. — Ouvi, a meu lado, uma voz tranqüila.
Era Bolz.
— Sois uns verdugos. O que fazeis com esses homens!? Que direito tendes de
escarnecer tanto deles?
Bolz esboçou seu suave e inteligente sorriso e disse:
— Te lembras do mito de Aquiles? Os deuses lhe propuseram escolher entre uma
vida larga mas tranqüila e uma vida corta mas tempestuosa. Escolheu a última. Essas
pessoas também escolheram.
— Não tiveram opção. Sois os que, se valendo do gerador de impulso, obrigais esses
pobres-diabos a derrocar a vida e correr cegamente a encontrar a autoaniquilação em ara
de vossa ganância.
Bolz soltou uma gargalhada:
— Acaso não ouviste, deles mesmos, que são felizes? E de fato são. Olhes como
trabalham se olvidando de si. Não consiste a felicidade num labor criativo?
— Tuas elucubrações me dão asco! É sabido que existe um ritmo natural da vida
humana e todo intento de o acelerar é um crime.
Bolz voltou a rir.
— Tuas palavras, professor, carecem de lógica. Antes os homens se deslocavam a pé
ou a cavalo, agora o fazem em aviões de propulsão a jato. Antes, as notícias se
difundiam de boca a boca, de homem a homem, tardando anos a se divulgar no mundo,
e agora os homens, em instantes contados, ficam a par dos acontecimentos por meio do
rádio e do telefone. Esses são exemplos de como a civilização moderna acelera o ritmo
de vida. E não o consideras um crime. E o cinema, a imprensa, assim como centenas de
distrações e alegrias artificiosas, acaso não representam uma aceleração do ritmo de
vida? Por que, então, consideras crime a aceleração induzida das funções do organismo
vivo? Estou convencido de que esses homens, em sua vida normal, não fariam a
milionésima parte do que realizam agora. E, como se sabe, o sentido de toda vida
consiste num labor criativo em benefício humano. Te convencerás disso quando te
incorporares a suas fileiras. Logo também compreenderás que é o que constitui a alegria
e a felicidade. Dentro duns dois dias. Pra ti se está preparando um local especial.
Trabalharás ali só, por enquanto. E me perdoes se te diferencio das pessoas normais.
Bolz, familiarmente, me deu uns tapinhas no ombro e me deixou só, com mis
pensamentos sobre sua filosofia inumana.
9
Em correspondência com meu espectro começaram a me educar utilizando a
freqüência à qual minha vontade podia se mover a realizar qualquer ato, inclusive o
mais irreflexivo. Por essa razão não me custou trabalho realizar tal façanha como a
simulação da perda de vontade. Como um autômato, ajoelhado, repetia,
monotonamente, obedecendo ao alto-falante, a algaravia oratória louvando Kraftstudt.
Ademais da oração, como novato me inculcaram certas noções básicas de
neurocibernética. O absurdo dessa doutrina consistia em que devia aprender de memória
as freqüências dos impulsos que correspondem a tais ou quais sentimentos humanos.
Em meus projetos pro futuro uma importância decisiva pertencia à freqüência que
estimulava a capacidade matemática. Também me interessava outra freqüência que, por
fortuna, estava próxima a 93hz.
A educação durou uma semana, e quando adquiri um aspecto suficientemente
submisso me obrigaram a começar o trabalho. O primeiro problema que me mandaram
resolver consistia em analisar a possibilidade de derrubar os foguetes balísticos
intercontinentais no espaço circunterreno. Terminei o cálculo em duas horas. O segundo
problema, também de caráter militar, se referia ao cálculo de fases neutrônicas
necessárias à destruição das bombas atômicas do adversário.
Resolvi esses problemas realmente com enorme gozo, de modo que eu, seguramente
também parecia um possuído, como os demais, com a única diferença de que o gerador,
em vez de me converter em homem apoucado e abúlico me infundia, ao contrário,
ânimo e entusiasmo. A jubilosa sensação de inteireza e fé em minhas forças não me
abandonava, nem durante o descanso. Fingindo dormir, na realidade forjava projeto de
punição.
Quando solucionei os problemas do ministério de defesa abordei a resolução mental
(pra que ninguém se desse conta) do problema matemático que pra mim era primordial:
O de como fazer voar, por dentro, o centro de cálculo de Kraftstudt.
Certamente, que fazer voar é uma expressão figurada. Não dispunha de dinamite
nem de trinitrotolueno (TNT) e estando encerrado entre os muros do asilo dos sábios era
impossível o conseguir. Idealizei um plano diferente.
Por enquanto o gerador de impulso do senhor Pfaff pode engendrar nalguém
qualquer sentimento e emoção, por que não o usar a fim de ressuscitar, na consciência
das desafortunadas vítimas dos ritleristas, o sentimento de justa cólera e rebeldia? Se
podendo alcançar tal objetivo, esses homens poderiam se defender e ajustar conta com
essa quadrilha de bandidos ultramodernos. Mas, como o fazer? De que modo substituir
a freqüência que estimula o labor matemático pela que provoca no homem os
sentimentos de ódio, ira e fúria?
O funcionamento do gerador estava a cargo de seu criador, o ancião doutor Pfaff. Vi
esse velho quando tomaram o espectro de meu sistema nervoso. Parece que pertencia a
esse tipo de engenheiros-fanáticos que se deleitavam de ver sua perversa criação
intelectual. A finalidade de seu pensamento engenhoso era mofar da dignidade humana.
Claro que o que menos podia esperar do senhor Pfaff era me ajudar. Não fazia parte de
meus cálculos. O gerador deveria funcionar na freqüência que eu necessitava sem sua
intervenção e a despeito de seu desejo. Quando assimilei essa idéia me convenci uma
vez mais da grandeza da física teórica. Operando com fórmulas e equações ela não só
pressagia o curso dos distintos fenômenos físicos na natureza mas também permite
salvar vidas humanas...
Efetivamente, o gerador de impulso de senhor Pfaff, qualquer que fosse seu circuito,
fornecia energia de determinada potência. Se sabe que se sobrecarregando o gerador de
impulso, quer dizer, se lhe impondo uma potência superior à calculada, a freqüência
começará a baixar, a princípio lenta, depois rapidamente. Por conseguinte, se ao gerador
for conectada uma carga adicional em forma de resistência ômica, se pode conseguir
que trabalhe não na freqüência indicada em sua escala, mas numa mais baixa.
A capacidade matemática dos computadores da companhia Kraftstudt se explorava
na freqüência de 93hz. A sensação de cólera e fúria se estimularia em caso de que a
pessoa se submetesse à ação dum campo alternado em freqüência de 85hz. Em
conseqüência tinha que encontrar o modo de se desfazer de 8hz. Era necessário calcular
a carga suplementar a ser aplicada ao gerador.
Estando no laboratório de exame me fixei nas indicações do voltímetro e do
amperímetro no gerador. O produto dessas magnitudes me deu a potência. Faltava
resolver o problema matemático da carga suplementar...
Mentalmente analisei o esquema de conexão ao gerador dos gigantescos
condensadores nos quais estavam os desgraçados homens. Também mentalmente
resolvi as equações de Maxwell prà configuração dos condensadores e calculei os
valores das intensidades elétrica e magnética do campo. Introduzi nessas magnitudes a
correção prà energia absorvida pelas pessoas encerradas nos condensadores e, assim,
estabeleci o valor da potência que consumia o gerador pra instigar a capacidade
intelectual dos computadores.
O resultado foi que senhor Pfaff tinha uma reserva de potência tão só de 1,5w!
Esses dados me bastavam pra resolver o problema de como transformar a freqüência
de 93hz à de 85hz.
Pra isso era necessário conectar a terra uma das placas do condensador por meio
duma resistência de 1350Ω.2
Achei mentalmente a solução das equações de Maxwell pra meu caso nuns 40min.
Quando obtive o resultado senti desejo de gritar de júbilo.
Mas, onde posso encontrar um pedaço de arame com tal resistência? A resistência
deve ser calculada com grande precisão, pois do contrario a freqüência se transformará
noutra forma, diversa da necessária, de modo que não surtirá o efeito esperado.
Quando quebrava a cabeça resolvendo esse problema prático, do qual dependia o
destino de todo meu plano, estive a ponto de bater a cabeça contra a escrivaninha, como
aquele computador que vira momentos atrás. Considerava e reconsiderava, febrilmente,
as distintas probabilidades de confeccionar a resistência da magnitude desejada e com

2
As três unidades básicas em eletricidade são tensão (V), corrente (I) e resistência (R). A tensão é medida em voltes, a corrente em
amperes e a resistência em ons. Uma analogia natural para ajudar a entender esses termos é um sistema de canos hidráulicos. A
tensão é equivalente à pressão da água, a corrente à taxa de vazão e a resistência o tamanho do cano. Há uma equação básica, em
engenharia elétrica, que relaciona os três termos. Diz que a corrente é igual à tensão dividida pela resistência: I=V/R. Nota do
digitalizador. http://ciencia.hsw.uol.com.br/
precisão suficientemente alta, mas nada conseguia idealizar. O reconhecimento de
minha impotência pra encontrar uma saída sumia num desespero sem limite, ainda que
todo o tempo tinha a impressão de que a solução estava muito perto, a alcance da mão.
E nesse estado, quando, comprimindo a cabeça com as mãos, me faltava pouco pra
lançar um grito sobre-humano, meu olhar logo cravou num vaso de plástico negro que
havia na beira da carteira. O vaso continha lápis. Dez lápis, cada um de cor diferente e
pra distintas finalidades. Sem pensar, agarrei ao azar o primeiro que vi e, lhe dando
umas voltas ante os olhos, me fixei na marca 2B, o que significava que o lápis era muito
macio. O pavio desses lápis contém grande quantidade de grafite, ótimo condutor
elétrico. Logo vi os lápis 3B e 5B, lhes seguiram os da série H, o seja, os duros, usados
especialmente pra tirar cópia com papel carbono. Enquanto pegava os lápis um atrás
doutro, minha mente realizava um trabalho febril. E logo, não se sabe donde me lembrei
do valor da resistência elétrica dos pavios de lápis: O pavio do lápis 5H tem uma
resistência igual a 2000Ω. Um segundo mais tarde peguei o lápis 5H. Achei não só a
solução matemática mas também a solução prática das equações de Maxwell pra meu
caso. Tinha nas mãos um pedaço de grafite incluído num cilindro de madeira com cuja
ajuda pretendia acabar com esse bando de bárbaros neofascistas.
Que coisa tão estranha. Que descobertas mais maravilhosas é capaz de fazer a ciência
matemática. A princípio, uma larga cadeia de observação, raciocínio e análise, logo,
mais observação, agora situação real, depois, cálculos abstratos e resolução de equações
que o grande Maxwell deduziu no século 19 e, como resultado, um cálculo matemático
preciso demonstrando que pra acabar com a companhia Kraftstudt era necessário... um
lápis 5H. Não é, acaso, maravilhosa essa ciência, a física teórica?!
Peguei o lápis como a mais preciosa das jóias e, com grande cuidado, quase com
ternura, o guardei no bolso. Chegou a vez de pensar como e onde conseguir dois
pedaços de arame pra conectar um à placa do condensador e o outro ao radiador da
calefação disposto num canto da sala, fixando entre eles o lápis.
Demorei só um minuto a encontrar a solução. Me dei conta da lâmpada de mesa no
aposento onde vivia com os demais computadores. O cordão da lâmpada era flexível e,
em conseqüência, polifilar. Precisava o cortar e desfiar. A longitude do cordão era
aproximadamente de 1,5m. Por conseguinte se podia obter mais de 10m de arame fino.
Essa quantidade me era suficiente.
Terminei os cálculos no preciso instante em que a voz do alto falante anunciou que
pra nós, quer dizer, pra mim e para todos os computadores normais chegou a hora do
almoço.
Animado, abandonei minha cela individual e fui ao dormitório. No corredor olhei
atrás e vi o médico examinando as folhas de papel com a solução de meus problemas.
Sem dúvida, não suspeitava que se podia fazer usando apenas um lápis 5H.
10
Em nosso dormitório ninguém usava a lâmpada de mesa. Estava num canto sobre um
criado-mudo, cheia de pó e suja pelas moscas, com o cordão enrolado no pé.
Na manhã cedo, quando, de acordo com o regulamento, todos foram se lavar,
arranquei o cordão da lâmpada e o escondi no bolso. Durante o desjejum guardei no
bolso uma faca de mesa e, quando todos foram reforçar a oração, fui ao banheiro. Nuns
segundos cortei o isolamento do cordão deixando pelados dez finos fios de 1,5m de
largura cada um. Logo, parti, cuidadosamente, o cilindro de madeira do lápis, tirei o
pavio e separei três décimas partes, de modo que as sete restantes me asseguravam a
resistência necessária. Nos extremos do pavio fiz pequenas estrias e enrolei o arame. A
resistência estava confeccionada. O único que faltava fazer era o conectar à placa do
condensador e a terra.
Tinha de o fazer durante o trabalho, no momento taticamente mais conveniente.
A jornada de trabalho dos computadores durava 8h, com 10min de descanso depois
de cada hora de trabalho. Depois do descanso pra almoço, 13h, por regra general, todos
os co-proprietários da companhia Kraftstudt visitavam a sala onde trabalhavam os
computadores. Nessa hora o cabeça da companhia, com um deleite não dissimulado,
observava como se retorciam e crispavam as vítimas sobre os problemas matemáticos.
Era um momento muito importante e decidi ser o instante preciso pra conectar ao
circuito do gerador a carga complementar que variaria a freqüência dos impulsos.
Quando cheguei a meu posto de trabalho, com a resistência já feita no bolso, fiquei
muito animado. À entrada de minha cela tropecei com o médico, que me trouxe uma
quartela com um novo problema.
— Ei, galeno, um momento. — O chamei. O médico parou e me deu uma olhada de
surpresa.
— Quero falar contigo.
— Siiim. — Resmungou, assombrado.
— Se trata de que durante o trabalho reconsiderei e cheguei à idéia de voltar à
conversa inicial com senhor Bolz. — Comecei a explicar — Penso que de cabeça
quente tomei uma má decisão. Peço informar a Bolz que estou de acordo em dar aula de
matemática ao novo contingente da companhia Kraftstudt.
O médico mastigou a ponta dum fiapo solto do colarinho da bata, cuspiu e me disse,
com uma franqueza não fingida:
— Palavra-de-honra que me alegro por ti! Já disse a esses espertinhos que com teu
espectro o melhor é trabalhar de capataz a mestre de toda esta merda matemática.
Temos grande necessidade dum bom capataz e és um tipo ideal pra tal emprego. Tens
freqüências vitais absolutamente distintas. Poderias te encontrar diretamente entre eles e
vigiar que se apressem os negligentes ou os cuja freqüência de estímulo da capacidade
matemática não está em ressonância.
— Assim é, doutor. Não obstante, penso que pra mim seria melhor ensinar
matemática aos recrutas. Tenho certeza de que não quero quebrar a testa contra a ponta
da mesa como aquele aloucado que vi noutro dia.
— Uma decisão sensata. — Opinou o médico — Falaremos com Kraftstudt. Creio
que consentirá.
— E quando se saberá o resultado?
— Creio que hoje, à uma, quando fizermos o percurso habitual do centro de cálculo e
passemos em revista nossa instalação.
— Muito bem. Então, com licença. Me aproximarei de ti.
O médico assentiu com a cabeça e se foi. Em minha mesa achei uma folha de papel
com os dados pro cálculo dum novo gerador de impulso com potência quatro vezes
maior que a do atual. Disso tirei a conclusão de que Kraftstudt decidira quadruplicar a
empresa. Queria que no centro de cálculo trabalhassem não 13 mas 52 computadores.
Apalpei, com carinho, o pavio de grafite extraído do lápis, com os dois terminais de
arame. Tinha grande temor de que se quebrasse no bolso.
As condições do problema pro cálculo do novo gerador me convenceram de que
minhas considerações concernentes ao que já funcionava eram certeiras. Essa
circunstância me infundiu, ainda, maior fé no êxito da ação projetada e esperava, com
impaciência, a hora fixada. Quando o relógio de parede marcou 12:45h tirei do bolso o
pavio de lápis cuja resistência era de 1350Ω e fixei com arame um dos extremos a um
parafuso na superfície da sombrinha de alumínio que pendia sobre minha mesa. Ao
outro extremo uni vários pedaços mais de arame. Assim a longitude total do arame
chegou a ser suficiente pra alcançar o radiador da calefação que estava no canto do
aposento.
Os últimos minutos transcorriam com martirizante lentidão. Quando, enfim, o
minuteiro do relógio tocou a cifra 12 e o horário coincidiu com o 1, conectei
rapidamente o extremo livre do arame ao radiador e saí ao corredor. A meu encontro ia
Kraftstudt, acompanhado do engenheiro Pfaff, Bolz e o médico. Sorriram ao me ver.
Bolz me deu o sinal pra que me aproximasse e todos paramos junto à porta de vidro da
sala onde trabalhavam os computadores.
Pfaff e Kraftstudt pararam ante as janelas da sala, por isso eu não pude ver o que
acontecia dentro.
— Te portaste sensatamente. — Me disse Bolz, em voz baixa — Senhor Kraftstudt
aceitou tua proposta. Estejas certo de que não lamentarás.
— Ouvis. O que é isso? — Kraftstudt logo inquiriu, se voltando aos acompanhantes.
O engenheiro Pfaff se encolheu de ombros e olhou, com estranheza, na janela. Meu
coração começou a bater acelerado.
— Não trabalham. Olham aos lados! — Pfaff sussurrou, com rancor.
Fui até a janela e olhei a sala. O que observei era superior a minhas esperanças. Os
homens que antes estavam sentados a suas carteira se endireitaram, olhavam ao redor e
conversavam entre si em voz alta e firme.
— Rapazes, penso que já é hora de acabar com este escarnecimento. Compreendeis o
que nos fazeis? — Disse Deinis, muito excitado.
— Claro que compreendemos! Esses vampiros constantemente nos estão metendo na
cabeça que encontramos a felicidade, nos entregando ao poder de seu gerador de
impulso. Oxalá pudéssemos os submeter à ação desse gerador!
— O que está acontecendo ali? — Exclamou, severamente, Kraftstudt.
— Não tenho idéia. — Resmungou Pfaff.
— Mas estão se comportando como pessoas normais! Vede: algo os excitou. Estão
enfadados. Por que não se ocupam dos cálculos?
Kraftstudt enrubesceu.
— Não poderemos cumprir o prazo fixado ao menos com relação a cinco encargos
militares. — Disse, entredentes. — Temos de os pôr a trabalhar imediatamente.
Bolz tilintou a chave e todo o grupo entrou na sala.
— Levantai, pois veio vosso mestre e salvador. — Proferiu Bolz, em voz alta.
Depois dessa frase na sala se estabeleceu um angustiante silêncio. Duas dúzias de
olhos cheios de ódio e cólera se cravaram em nosso grupo. Só faltava uma faísca pra
que essa atmosfera carregada estourasse. Senti como minha alma se regozijava, pois
tinha ante mim um quadro tangível do que produziu o pavio de lápis de 1350Ω de
resistência. Eis onde se encerrava a quebra da companhia Kraftstudt! Me adiantei e,
alçando a voz pra que se ouvisse em toda a sala, articulei:
— O que esperais? Chegou a hora de vossa libertação. Vossa sorte está em vossas
mãos. Destruís essa malvada quadrilha que preparava pra vós, como último amparo, o
asilo dos sábios!
A essas palavras se seguiu a explosão. Os computadores, como disparados, saltaram
de seus lugares e investiram contra Kraftstudt e seus cúmplices, que ficaram estupefatos
e imóveis. Uns arrancavam do teto as sombrinhas de alumínio, outros rompiam os
vidros das janelas. Num piscar de olhos o alto-falante foi arrancado da parede e, com
grande estrondo, derrubadas as carteiras. O solo estava coberto de folha de papel com
cálculo matemático.
Entretanto eu ordenava:
— Não deixeis Kraftstudt escapar. É um criminoso de guerra! Foi quem organizou
este diabólico centro de cálculo, onde as pessoas perecem consumindo as preciosas
forças de seu intelecto pra que ele lucre. Sujeitai fortemente o canalla Pfaff. É o
construtor do gerador de impulso. Dai duro a Bolz!, que preparava novas turmas de
alienados pra substituir os que ficassem loucos...
Eu encabeçava a coluna de homens agitados que arrastavam os criminosos. Os ex-
computadores atravessaram a sala cerrada onde, em primeira vez, entreguei meus
problemas matemáticos, logo, com estrépito, abriram passagem entre os estreitos
corredores do labirinto subterrâneo e irromperam ao exterior.
Quando deixamos atrás a pequena porta no muro de tijolo do asilo dos sábios nos
cegou o cálido sol de verão. Ante a entrada que dava acesso ao escritório de Kraftstudt
se congregou uma enorme multidão formada pelos vizinhos de nossa vila. Estavam
frente à porta, gritando alto. Nossa aparição impôs um breve silêncio. Em nós se
cravaram centenas de olhares assombrados. Logo ouvi alguém exclamar:
— Mas esse é professor Rauch. Está vivo. Também caiu nas mãos desses canallas!
Deinis e seus companheiros, a empurrão, fizeram sair até a frente os maltratados
chefes do centro de cálculo. Kraftstudt, Bolz, Pfaff e o médico, um atrás outro,
apareceram ante os reunidos. Se esfregavam o rosto, olhando, covardemente, ora a nós
ora à ameaçadora turba a redor.
Logo saiu uma delgada e grácil garota. Reconheci a recadeira que me entregou os
pacotes com a solução dos problemas.
— É esse. — Disse, indicando Kraftstudt com o dedo — E também esse. —
Acrescentou, depois de pensar um pouco, assinalando Pfaff com a cabeça — Tramaram
tudo...
Na multidão passou um murmúrio. Em pos da garota se pôs em movimento uma fila
de homens. Um segundo mais e fariam os bandidos em pedaço. Então levantei a mão e
disse:
— Queridos concidadãos! Somos pessoas civilizadas e não é digno de nós fazermos
justiça com a própria mão pra castigar essas bestas dotadas de conhecimento científico
moderno. À humanidade será mais proveitoso informamos a todos sobre suas façanhas.
Merecem ser julgados por um tribunal severo, e eis as testemunhas de ofício. —
Assinalei o grupo de computadores da companhia Kraftstudt — Contarão como, se
valendo das conquistas da ciência e da técnica modernas, os verdugos ritleristas doutra
época cometiam atrocidade e como, destruindo as pessoas, enchiam de ouro os bolsos.
—Já sabemos, professor Rauch! — Soaram vozes a meu redor — Sabemos de tudo!
Elsa Blinter nos contou tudo depois de ver, nos jornais, teu retrato numa seção de luto.
— Aqui, atrás destes muros, os criminosos perpetravam os horripilantes delitos.
Utilizando os progressos da ciência, decidiram reduzir os homens à condição de
escravos e os explorar, com ajuda das máquinas, até sua total destruição.
— Estamos inteirados de tudo isso. Estamos a corrente de tudo! — Alvoroçava o
populacho — Os criminosos ao juízo!
A excitada multidão voltou, apressadamente, à cidade. Diante ia eu, com meus
companheiros do centro de cálculo. A meu lado marchava Elsa Blinter, a jovem
recadeira, que, se agarrando fortemente em minha mão, sussurrava:
— Depois de levar a ti o último pacote e de que me disseste que não fizesse caso da
instrução, reconsiderei durante longo tempo. Sabes, quando voltei à companhia, depois
de conversar contigo, tive a sensação de adquirir uma força incompreensível. Me
puseram entre as paredes e me submeteram a um interrogatório, se interessando por ti.
Mas reprimi toda minha vontade e encontrei força para não lhes dizer a verdade. Não sei
como, mas tive êxito...
— Qualquer um que odeie os inimigos e ame os amigos terá êxito em tal situação.
— É verdade. — Disse Elsa — Justamente isso ocorreu comigo. Logo ganhei
valentia e fugi dessa quadrilha. E comecei a contar a todos, na cidade, das ocupações de
senhor Kraftstudt. E por isso que hoje, domingo, todo mundo veio.
Kraftstudt e os cúmplices do centro de cálculo foram entregues às autoridades locais.
O prefeito de nossa vila pronunciou um patético discurso ornado profusamente de
citações bíblicas e evangélicas. No final do discurso declarou que por ter cometido tão
refinados crimes senhor Kraftstudt e comparsas seriam julgados pelo tribunal federal
supremo. O chefe do centro de cálculo e sócios foram levados em carros sem janela.
Desde então nada se sabe deles. Tampouco nos jornais pudemos encontrar informação
sobre o castigo. Como se isso fosse pouco, a nossa cidade chegou rumor de que
Kraftstudt e cúmplices entraram ao serviço público e que, parece, lhes encarregaram
organizar um grande centro de cálculo pra atender aos pedidos do ministério de defesa.
Sempre fico inquieto quando, ao abrir o jornal, vejo, na última página, o mesmo
anúncio: Pra trabalhar num grande centro de cálculo se necessitam homens de
25 a 40 anos, versados em matemática superior.
É a razão que me levou a publicar minhas notas. Que todo mundo saiba daquele
evento e exija castigo aos criminosos.
Do volume La caja negra - cuentos de ciencia-ficción
Editorial Mir, 1984
Tradução de Che Guavira

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