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Um futuro além da transgressão

José dos Santos Cabral Filho, UFMG

Publicado no livro Corpo e Arte: estudos contemporâneos.


Org. Wilson Garcia. Nojosa Edições (SP – 2005)
ISBN 85-903686-8-8, pp 31-42 (12)
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Interação e automação – ataques à solidão

Qualquer mapeamento da relação entre arte e tecnologia na


atualidade vai evidenciar a presença de dois conceitos específicos que
insistentemente vêem à tona e parecem querer tomar conta de toda a
cena: interação e automação. Estes dois conceitos, nada novos na
história da cultura, ganharam um lugar especial nas últimas quatro
décadas ao serem adotados amplamente tanto por artistas quanto por
críticos de arte. Sua disseminação, atrelada a uma aparente carga de
novidade implícita nos mesmos, fez que fossem ao fim, transformados
em toda sorte de estratégias mercadológicas, tanto pela indústria
cultural quanto pela indústria de objetos informáticos.
Esta transformação, por sua vez, fez com que fossem englobados
pelo perverso ciclo consumista que, para manutenção de sua dinâmica
funcional, pressupõe uma seqüência de valorização, banalização e
substituição. Assim, neste cenário interação e automação estariam na
iminência de perderem sua potência como elementos de propulsão
cultural. O argumento deste artigo vai em direção contrária e busca
sustentar que, mesmo banalizados, interação e automação continuam a
ser conceitos essenciais na estruturação da cena contemporânea e que,
compreendidos em sua sutileza, podem abrir possibilidades inéditas à
superação de limites históricos da atual prática artística. Limites estes
cada vez mais difíceis de serem mantidos, especialmente no que diz
respeito à presença e ao papel do corpo.
A transformação destes dois conceitos em estratégias artísticas
pode ser colocada nos seguintes termos: na arte interativa, a forma final
do objeto artístico apresenta um alto grau de abertura (que podemos
chamar de informalidade), podendo ser alterada ou re-informada a
qualquer tempo, especialmente por outras pessoas que não o artista.
Seu apelo social é o apelo da inclusão, da participação não
especializada, de um engajamento lúdico necessário a uma arte cada
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vez mais distanciada do público leigo. O papel do artista, aqui, adquire


uma dupla função: programar o modo e o grau de abertura da obra.
Já na arte automática, recentemente também designada de
generative art, a forma final do objeto artístico é determinada pela
transformação de um gesto (input) significativamente simples em um
resultado absurdamente complexo se comparado ao gesto inicial. O
processo de transformação do gesto em obra se dá através de uma
seqüência de operações mecânicas, quer seja de uma máquina física
(que opera e articula partes físicas) ou uma máquina conceitual (que
opera e articula símbolos, como o software), ou ainda pela conjugação
dos dois (como nos sistemas computadorizados). Seu apelo social é o
apelo da liberação, a delegação do trabalho a uma outra entidade, não
humana, porém mais especializada. Neste caso, o papel do artista é
programar a seqüência de operações algorítimicas e especialmente seu
processo re-iterativo (o modo de sua repetição, ou seja o ponto onde ele
sofre uma retro-alimentação e opera um loop).
Em ambos os casos encontramos um grau de abertura, na
conformação final do objeto artístico. Há, nas duas formas de arte, um
certo desconhecimento de sua forma final que é similar, ainda que seus
processos para atingirem esta imprevisibilidade sejam radicalmente
diferentes. Em outras palavras, ambas parecem apontar, de uma forma
ou de outra, para a idéia de obra aberta, mas apresentando abordagens
radicalmente diversas no que tange o modo como a ação humana
configura a forma final do objeto artístico. Além disso, também a
motivação para esta busca do imprevisto parece ser significativamente
diferente.
Podemos dizer que, o impulso que origina a interatividade é o
desconhecimento do outro: interagimos porque não sabemos o que se
passa dentro do outro, interagimos porque não temos acesso imediato
ao universo interno do outro. Neste sentido, interatividade é um ataque à
nossa solidão perante o outro. E isto continua sendo verdade mesmo
sabendo que só conseguimos interagir porque temos alguma coisa em
comum, que nos permite de alguma forma tocar o outro. A realização
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máxima da interatividade, seu limite superior, seria a comunicação


completa, ou seja a troca total ou o paraíso da comunicação sem atrito,
que conforme nos recorda Bataille, é impossível de ser atingida.
Por outro lado, o impulso que origina a automação é o nosso
desconhecimento dos processos vitais: buscamos automatizar
processos, (que eqüivale a dizer, tentamos construir autômatos) ou seja,
tentamos construir autômatos, porque não compreendemos a origem da
vida (e por extensão, a finalidade da morte). E temos a esperança de
que por meio da simulação possamos compreender este mistério.
Nesta perspectiva automação é um combate à nossa solidão
perante Deus. No caso da automação, o limite extremo seria a
autonomia completa, ou seja, a liberdade total, também impossível de
ser atingida conforme nos lembra Henry Atlan ao falar da impossibilidade
dos sistemas autônomos que para manter sua coerência formal sempre
precisam de uma lei externa, ou seja, para além da autonomia. Na
automação a ação resultante se distancia tanto do gesto inicial que
sugere uma desvinculação entre os dois, tendo o gesto, assim, adquirido
a função de gatilho, de elemento que apenas dispara a ação.
Em suma, esses dois conceitos problematizam de formas diferentes
o dilema de estarmos no mundo: a interatividade diz respeito ao acesso
ao outro, (refletindo nosso embate com a questão da alteridade) e a
automação diz respeito ao nosso acesso ao mundo, (refletindo o nosso
embate com a questão do conhecimento). O caráter positivo da
transformação desses conceitos em estratégias é que a interação nos
brinda com a possibilidade de tocarmos o outro e assim estabelecermos
o diálogo, e a automação nos abre o percurso de abstrairmos as ações
mecanizadas e nos dedicarmos às ações criativas e assim agirmos
sobre o mundo.
Há, no entanto, um aspecto negativo quando essas estratégias
perdem o vínculo com a sua motivação original. A interação se
transforma em algo fútil e não significativo, como o vazio de diversas
obras de arte e jogos que se baseiam na idéia de interatividade por si,
obstruindo a idéia fundadora de que há um outro ser desejante no outro
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lado do canal da interação. Neste caso, a interação acaba funcionando


como um precário disfarce do vazio existencial, e termina por ser
viciante além de alienante. O aspecto negativo, e também perigoso da
automação, é quando ela nos acena com a objetificação total do mundo
e a possibilidade de exclusão radical do outro. A rigor, esta exclusão
ocorre pelo cancelamento do desejo, pois a automação, se não visa a
liberação do homem para seu papel criativo, acaba sendo uma
objetificação do desejo pela sua antecipação. Assim, a automação não
passa de uma representação fixa do desejo, sendo que, em sua
natureza, o desejo é da ordem do deslize e do movimento; em suma, a
automação tenta ser a representação do irrepresentável.

Tecnologias digitais - Manutenção lógica e abertura informal

O advento das tecnologias de manipulação digital da informação


e da comunicação, de uma forma geral nos abriu perspectivas, que
embora bastante limitadas, são inéditas na história da humanidade.
Essas tecnologias vão ter uma incidência muito específica nos
aspectos essenciais desses dois conceitos discutidos aqui. Incidência
esta que talvez explique o ressurgimento contemporâneo de conceitos
tão antigos. De uma forma geral, as duas estratégias sofrem uma
expansão no cerne de suas possibilidades e uma subsequente
disseminação. Com as tecnologias digitais a interação ganha uma
possibilidade que é fantástica: a questão da manutenção da coerência
formal das interações, que até então era um problema, pode agora ser
relegado às máquinas digitais, que são exímias nesta função de
articulação lógica. Isto nos permite que, uma vez aliviados desta carga,
possamos explorar ao máximo a informalidade, ou abertura ao
imprevisto que sempre marcou o humano e nos permitiu chegar aonde
chegamos em nossa história.
Este fator tem significativa importância para a cultura brasileira
que historicamente se construiu de tal maneira que sempre encontra
dificuldade para assimilar a estrutura formal, hierárquica e lógica da
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cultura européia. O efeito absurdo que acompanha o surgimento das


tecnologias digitais, no que diz respeito à interação, é a ilusão de que
podemos agora realizar o paraíso da comunicação total – o acesso
completo ao outro e à informação, o fantasma da ubiqüidade
informacional que ameaça corroer qualquer idéia de intimidade e
privacidade.
No que tange à automação, as estratégias digitais nos
permitem acelerar em tal magnitude os processos de simulação de
forma que podemos, agora, conhecer melhor eventos e processos
naturais, até então misteriosos ao nosso olhar, transformando a
automação numa excelente ferramenta de apoio ao conhecimento e de
ajuda à imaginação. Por outro lado, esta perspectiva de simulação
“generativa”, ao ser levada até um grau absurdo de complexidade,
estabelece uma enorme distância entre a simplicidade do input e a
riqueza do output – o que termina por sugerir a ilusão de uma efetiva
autonomia. Então toda a potencialidade dos sistemas artificiais
inaugurados pela automação digitalizada sofre um desnecessário
processo de antropomorfose, passando a ser designada por metáforas
do tipo “inteligência artificial”, “vida artificial”, etc. É verdade que o
futuro de tais metáforas é se tornarem vazias e ridículas, como hoje
nos parece ridículo falar de “cérebro eletrônico”. Mas, no presente
momento, elas apenas obstruem de forma danosa o rico universo que
se abre ao nosso olhar.
Porém, o mais significativo no encontro destas estratégias
com a tecnologia da informação é a possibilidade da conjunção entre
interação e automação, efetuada agora de uma maneira específica que
não havíamos ainda experimentado na história da humanidade. Com
as tecnologias digitais de manipulação da informação os sistemas
interativos podem fazer uso da automação para abstrair tarefas
repetitivas e de baixa significação, e assim potencializar o seu alcance;
por outro lado e de forma inversa, os sistemas de automação podem
agora fazer uso da interação para se tornar mais adaptativos e abertos.
Tal convergência (para usarmos o jargão técnico) permitida pelos
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sistemas maquínicos computadorizados é tão radicalmente promissora


que as perspectivas entrevistas tem gerado movimentos opostos de
resistência extrema e de euforia desregrada.
Os críticos mais acirrados temem a objetificação do desejo (pela
automação) e a dissolução da comunicação (pela interação), o que
levaria a toda sorte de bestialidade e atrocidades. Os entusiastas vêem
a possibilidade da construção de um paraíso tecnológico, uma quase
recuperação do Éden e da paz negados à humanidade, onde seria
eliminada toda forma de atrito, tanto o atrito do esforço físico (pela
automação), quanto o atrito da falta de comunicação (pela interação).
Desnecessário dizer que este apaziguamento seria verdadeiramente
mortífero para a humanidade.
Deixando os excessos à parte, o que certamente temos em
nosso horizonte com a superposição dos aspectos positivos da
interação e da automação é uma abertura de universos de
possibilidades dialógicas que seriam realmente novos e inaugurais.
Mas para tanto, a automação não pode ser tomada como a
objetificação do desejo visando a liberdade total, e nem a interação
pode ser tomada como a maximização da comunicação em direção à
troca total. Ambos devem ser tomados como elementos propulsores do
desejo, ou mais especificamente como fatores de provocação e
deslocamento do desejo em direção ao aberto, ao imprevisto, sendo
esta talvez a única chance de elevarmos o diálogo a um novo patamar
na história humana.

Desengajamento corporal e as vantagens da transgressão

Essa conjunção entre interação e automação via tecnologia da


informação tem um rebatimento no campo da arte, que também é sem
precedentes na história da cultura ocidental. Esse rebatimento pode ser
formulado da seguinte maneira: temos agora a possibilidade de
superarmos a supremacia da transgressão como principal estratégia de
mobilização estética. E como conseqüência desta superação, talvez,
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possamos recuperar a chance de incluirmos o corpo de forma menos


traumática nas manifestações artísticas.
Na verdade, a necessidade de re-inclusão do corpo já vem
sendo apontada pelos experimentos artísticos dos últimos 50 anos.
Desde os anos 1960, assistimos várias tentativas de re-integração do
corpo nas manifestações artísticas, tipicamente baseadas em ações
transgressivas. Curiosamente esta busca pelo corpo acontece
paralelamente a um crescente questionamentos dos limites entre o
artista e seu público, questionamento este que habitualmente conduz a
um reposicionamento, mais ou menos radical, desta linha divisória
entre o autor e o seu público. A permanência desta busca do corpo no
discurso cultural e artístico contemporâneo é certamente sintoma do
esgotamento de um modelo que parece não mais satisfazer nossas
necessidade simbólicas no que diz respeito às estruturas de autoria,
participação e fruição (estruturas corporais em última instância).
Não cabe aqui, na extensão deste artigo, mapear a
genealogia deste modelo de posicionamento do corpo na arte, mas de
qualquer forma há um momento crucial na história da cultura ocidental
que certamente joga alguma luz sobre o assunto: o instante em que, no
teatro grego, é consolidada a distinção entre palco e platéia. Como os
teóricos canadenses Pérez-Gómez e Pelletier assinalam, o que marca
tal separação é o estabelecimento de uma distância operativa que
distingue atores, autor e público. Esta separação é de fundamental
importância para o desenvolvimento do teatro ao estabelecer a idéia de
autoria, abrindo espaço para uma configuração mais racional do
espetáculo. O custo deste avanço é, exatamente, um desengajamento
corporal que cede espaço para uma predominância dos aspectos
visuais. Ou seja, há uma perda da participação corporalmente plena de
todos os envolvidos no espetáculo. Em maior ou menor extensão, esse
modelo vai marcar todo o desenvolvimento e avanço da arte e da
cultura do ocidente.
A novidade do teatro grego assinala, de fato, o afastamento
de um outro modelo de manifestação quer eram os rituais, em que
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todos os participantes se engajavam de forma plena, ainda que menos


elaborada racionalmente. Em suma, o afastamento do ritual assinala a
perda de algo que até então era fundamental, o engajamento corporal
imersivo de todos os participantes. Isto se torna absurdamente claro
num espetáculo de dança contemporânea, no qual os artistas
exercitam seus corpos em elaboradíssimos movimentos diante de uma
platéia que, inversamente, tem os seus movimentos corporais
restringidos à estaticidade das poltronas. A platéia ganha em
experiência crítica e mesmo estética, mas perde em experiência física.
Na verdade, há a substituição do ritual por um espetáculo por
assim dizer performático, sendo que, enquanto o ritual se caracteriza
pela re-afirmação (ou manutenção) de uma visão de mundo, as
práticas performáticas são marcadas por uma abertura onde, ao
contrário, se busca questionar a visão de mundo estabelecida. Assim,
abandona-se a idéia de circularidade do ritual, que sempre se retorna
ao ponto de origem, reafirmando uma específica cosmogonia,
substituindo-a pela linearidade da performance, que se projeta contra
os próprios limites e abre espaço para uma desestabilização ou ruptura
destes limites em direção à uma experimentação do incerto. Em outras
palavras, abre-se assim espaço à adoção da transgressão como
estratégia de mobilização estética. Tal estratégia, de uma forma ou de
outra, tem marcado profundamente toda a produção de arte ocidental,
desde então.
A trangressão como estratégia nos apresenta várias
vantagens, mas uma delas especificamente parece ser o principal fator
de sua permanência por tão longo tempo. Quando se abandona o
ritual, em favor de algo mais transgressivo, há um ganho enorme que é
a abertura para a incerteza, um vetor em direção ao novo. A linearidade
deste vetor resultará na idéia ocidental de progresso, sabidamente
nefasta para o homem e seu meio ambiente. Mas esse vetor contém
em si também a idéia de “evolução”, e como nos lembra Henry Atlan,
há uma enorme vantagem em termos a incerteza em nosso horizonte,
pois só assim podemos “evoluir”, se é o que queremos.
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O pânico diante do retorno do ritual

Assim, já que o abandono do ritual e do engajamento corporal


nele presente significou a possibilidade de “progresso e evolução”, a
busca pelo retomada do engajamento corporal é habitualmente
identificada com o retorno do ritual, haja visto dois dos mais
emblemáticos artistas nesta campo do corpo como território da
expressão – Stelarc e Orlan. A conseqüência desta identificação com o
ritual é uma generalizada resistência no campo da cultura, que busca
diminuir a significação destas experiências mantendo-as marginais,
seja na margem da vanguarda ou na margem dos experimentos
carentes de elaboração como nas propostas místicas da nova era.
No tocante a esta espécie de pânico diante das tentativas de
recuperação do ritual, há um exemplo instigante que é a dura crítica
que Ferreira Gullar faz a Hélio Oiticica e Lygia Clark. De acordo com
ele, estes dois artistas, ao contrário de Amilcar de Castro, teriam
ultrapassado o limite da arte, portanto não mais estariam fazendo arte.
A rigor, o que Lygia e Oiticica, cada um a sua maneira, estavam
fazendo, era tentar uma nova inclusão do corpo no processo da arte. E
ambos buscavam isto de forma radical, não por uma referência formal
ao corpo, mas pela inclusão do corpo como parte essencial da obra
artística. Gullar (não por acaso, formado na tradição do materialismo
marxista) não coloca sua discussão em termos do ritual, mas podemos
sentir que o seu medo é o retorno ao ritual, naquilo que ele significaria
de perda da distância, perda da possibilidade de experimentação em
direção à incerteza.
Este exemplo da crítica de Gullar nos aponta o que parece
ser um drama contemporâneo: queremos a re-inserção do corpo e o
conseqüente afastamento da predominância visual no âmbito de nosso
prática artística; mas não queremos perder a possibilidade da
transgressão. Ou seja, a questão pode ser posta da seguinte maneira:
Será que haveria possibilidade de recuperarmos o engajamento
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corporal, a inclusividade participativa, a dialogicidade radical sem


termos de retornar ao aspecto conservador do ritual? Sem termos de
abrir mão de nos lançar em direção ao incerto, em direção a novas
visões de mundo? Ou seja, será que existe futuro fora da
transgressão?

Jogar, brincar e o viés da incerteza

A pergunta permanece aberta e não comporta uma resposta


imediata, mas acredito que temos algumas pistas dadas exatamente
por estes dois artistas rejeitados por Gullar, se pensarmos que os dois
buscavam não a transgressão mas algo similar, ainda que
essencialmente diverso: o jogo. Aparentemente é difícil abordar o
trabalho de Lygia e Oiticica fora do âmbito da transgressão devido a
sua visceralidade. Mas visceralidade não implica necessariamente
transgressão, e se por um lado Ferreira Gullar os criticava por
transgredirem os limites da arte, por outro, Lygia e Oiticica eram
produtos da cultura brasileira, que certamente não é uma cultura que
se prima pela transgressão. Assim, Lygia e Oiticica, mais que outros,
talvez tenham transgredido os limites da arte definidos por Gullar, mas
estavam também imbuídos dessa característica brasileira, trabalhavam
a arte do jogo, buscavam mais que transgredir os limites da arte, a
inserção da idéia de jogo, do brincar no fazer artístico.
A problemática da cultura brasileira em relação à
transgressão, como pano de fundo no trabalho de Lygia e Oiticica,
pode ser constatada em dois exemplos fundantes no imaginário da
cultura nacional, exemplos que parecem brincar com a idéia de ruptura
o Grito da Independência e a Semana de Arte de 1922. Os dois
eventos aparentemente assinalam um ruptura, uma transgressão,
porém, a independência mantinha o país sob a tutela da mesma família
imperial e a Semana de 22 em seu afã futurista recuperava nossos
vínculos com o passado brasileiro, como por exemplo o Barroco
Mineiro.
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No entanto, se não nos caracterizamos por um viés


transgressor, temos como parte constituiva de nossa cultura algo, que
como assinalou Vìlem Flusser, pode ser de fundamental importância
para o estabelecimento de um novo homem na atualidade: a
disponibilidade para o jogo e para a brincadeira. Acredito que o que é
interessante no jogo é que ele nos permite trabalhar com a incerteza
sem recorrer à transgressão. Na verdade o jogo é uma atividade ritual
especial que traz em si um quase paradoxo (sob a ótica do rito: admite
em si a idéia de permanência e engajamento corporal, sem no entanto
perder o vetor em direção ao aberto, ao imprevisto. O resultado final de
um jogo é necessariamente sempre da ordem da imprevisibilidade,
caso contrário o jogo terá sido fraudado. Esta característica do jogo,
salientada por Roger Caillois, permite ver o jogo como uma excelente
metáfora para o que precisamos no atual momento de nosso
desenvolvimento cultural e tecnológico, uma estrutura definida onde a
incerteza não está atrelada necessariamente à transgressão. Em
suma, o jogo pode ser visto como uma redenção para o impasse da
cultura contemporânea (cf salientei em outro lugar -"Flip Horizontal:
Gaming as Redemption," M/C: A Journal of Media and Culture 3, n° 5
(2000). Neste sentido a obra de Lygia e Oiticica são exemplares.

Superar a transgressão da transgressão

Porém, há algo mais nesta pista que Lygia e Oiticica nos abrem
no âmbito da relação entre arte, corpo e tecnologia além desse uso do
jogo como estratégia fora da experiência da transgressão.
Curiosamente em seus experimentos artísticos, os dois guardam uma
relação de radical proximidade com os princípios da automação e da
interação. Alguns dos aspectos centrais na obra de Lygia são a
questão da organicidade, da visceralidade e da relação entre sujeito e
objeto. Seus trabalhos, que ela relacionava à uma visceralidade do
feminino, buscam provocar a dissolução da dicotomia sujeito/objeto,
assim como recuperar a experiência do nascimento De alguma forma a
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obra de Lygia se trata de uma indagação diante da origem da vida,


diante do drama da nossa relação com o mundo objetivo.
Estas questões são exatamente o princípio fundante de todos os
programas de automação, conforme foi argumentado acima. Oiticica,
por seu outro lado, era menos interessado nos aspectos psicológicos
da interação com o mundo e mais nos seus aspectos sociais. Assim,
mesmo quando trabalhando as questões perceptivas e sensoriais, ele
as remetia a um pano de fundo do social. Ao investigar a sensualidade
do corpos ele os colocava no centro da teia de significação social,
apontando para a distância entre os corpos. Ou seja, o diálogo sensual
entre os corpos é a busca da superação do vazio entre os corpos. Ao
apontar este vazio e esta problemática do acesso ao outro, Oiticica se
aproxima do mesmo princípio que fundamenta as estratégias de
construção de sistemas interativos. Talvez possamos aqui arriscar uma
hipótese e ver uma razão para o proximidade pessoal entre os dois
artistas e a sua complementaridade, que de outra forma nem sempre
fica claro: Lygia buscando a imersão (e não a explicação) no mistério
do mundo e da origem da vida; e Oiticica buscando a articulação (e não
a superação) da distância e do vazio entre os seres.
Em suma, há uma relativa proximidade desses dois artistas
aos princípios que são centrais na cultura tecnológica contemporânea –
automação e interação – e isto talvez explique o enorme e crescente
interesse que a obra dos dois tem gerado nos meios de pesquisa
tecnológica, como qualquer busca na Internet nos mostra. Assim, com
freqüência, vemos Lygia apontada como precursora dos sistemas de
realidade virtual e Oiticica servindo como fonte inspiradora para o
desenho de interfaces que buscam um grau maior de interatividade.
Portanto, se a grande questão da tecnologia da informação
no que concerne ao diálogo entre corpo e arte é tanto a dialética entre
automação e interatividade, quanto a problemática reinserção do corpo
nas práticas artísticas, as pistas dadas por Lygia e Oiticica são
valiosas: são obras onde a inclusão do corpo e a superação da linha
que separa artista e público não são atingidos por meio de uma
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estratégia de trangressão, mas sim mediante a estratégia do jogo. Aqui,


a inclusividade participativa e o engajamento corporal não se atrelam a
estratégias conservadoras e guardam em si o vetor em direção ao
aberto, ao incerto, ou seja, são experiências transformadoras.
De fato, se queremos que a arte continue a ser uma
experiência transformadora da humanidade e de nossa relação com o
mundo, numa cultura marcada por um absurdo desengajamento
corporal e uma predominância de estruturas digitais de informação,
temos que superar a transgressão. Não se trata de “transgredir” a
transgressão, que seria continuar em seu registro, mas superá-la
encontrando novas estratégias.
Cabe por último fechar, então, com uma pergunta: Será que a
verdadeira interatividade de base digital apoiada por processos de
automação, onde podemos relegar à máquina a função de
permanência e coerência formal (normalmente associados com o
ritual), não seria o que de melhor a tecnologia poderia oferecer ao
diálogo entre corpo e arte neste início de milênio? Ou seja, a re-
inserção do corpo nos processos de produção e experimentação
artísticas, com uma conseqüente extensão desses processos a uma
gama maior de participantes, expandindo as possibilidades de
experimentação do mundo e transformação do humano. Em suma, a
recuperação do engajamento corporal através da superação da
transgressão sem a perda de uma esperança no futuro.

Referências

• ATLAN, Henry ‘As finalidades Inconscientes’. In: Thompson, Willian I (Ed)


Gaia: uma teoria do conhecimento Editora Gaia Ltda, São Paulo (1990).
• BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre : L&PM, 1987.
• CABRAL FILHO, José S. Flip Horizontal: Gaming as Redemption". In: M/C:
A Journal of Media and Culture 3, n° 5 (2000). Disponível em: <http://
journal.media-culture.org.au/0010/flip.php>. Acesso em: 20 jul.2005.
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• CAILLOIS, Roger. Os jogos e os homens - a máscara e a vertigem. Lisboa:


Cotovia, 1990.
• G U L L A R , F e r r e i r a Ve r e n t r e v i s t a d i s p o n í v e l e m : < h t t p : / /
www.cosacnaify.com.br/noticias/gullar.asp > . Acesso em: 20 jul.2005.
• FLUSSER, Vilém. Fenomenologia do Brasileiro. Rio de Janeiro: EdUERJ,
1998.
• PÉREZ-GÓMEZ, Alberto. PELLETIER, Louise. Architectural Representation
and the Perspective Hinge. Cambridge: Mit Press, 1997.

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