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Tribunal popular gera, entre os togados, controvérsias sobre a arte de julgar

Luciana Barreto

lbarreto@correiodabahia.com.br

Nem mesmo o senhor de todos os julgamentos escapou. Foi o povo que o condenou à morte
na cruz. Naquele tempo, Pilatos lavou as mãos diante da multidão enfurecida, juíza do
destino do Cristo, o "rei dos judeus". Hoje, no júri popular, sete pessoas sentam no tribunal
e encaram o paradoxo de julgar. Nele, a sentença não se escreve com a complexidade dos
códigos e das fundamentações jurídicas. São os labirintos da consciência humana que
determinam, à luz da fé e diante da "imagem de Deus", o veredicto final.

Senhor do júri

Figura do Cristo é associada ao juiz supremo de todos os julgamentos

Pendurado na parede do salão do júri no Fórum Ruy Barbosa, Cristo é o senhor de todos os
julgamentos. Para os homens de fé, é o juiz supremo. É a ele a quem as vítimas podem
recorrer, lançando-lhe um olhar de súplicas e pedindo-lhe por justiça para o futuro, já que
em terra tantas causas ficam esquecidas. É apenas a ele a quem os culpados podem admitir
seus erros, pedir perdão e apagar marcas do passado, já que o direito humano não costuma
absolver criminosos confessos. Mas o crucifixo pendurado na parede do salão do júri é
mais que uma invocação a um ideal divino de justiça. É um recado a todos aqueles que
ocupam a bancada do júri com o objetivo de julgar, uma lembrança muda e dolorosa do
julgamento popular tido como mais injusto da humanidade: a condenação de Cristo. "Estou
inocente desse sangue, a responsabilidade é vossa". Com a frase, Pilatos referendou a
opinião do povo e se eximiu da culpa que, pela concepção católica, a humanidade
carregaria para sempre. "O seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos", foi como
uma multidão enfurecida condenou Cristo e, sem saber, assinou a própria sentença. Pelo
ideário católico, todos já nascem culpados.
Virado de costas para o crucifixo na parede do salão, sentado numa imponente poltrona,
está o juiz que preside a sessão do júri. Sua fé é a lei. E a lei diz que o Estado é laico. Mas o
júri parece mesmo confiar na religião, seja pelo juramento sobre a Bíblia que ainda ocorre
em alguns países, ou pelo uso das togas negras que, historicamente, copiaram as
vestimentas dos padres. E para a religião católica, já nascemos culpados. Como julgar,
então? Como conciliar a presunção de culpa cristã com a lei terrena, segundo a qual "todos
são inocentes até que se prove o contrário?" Os sete homens que se sentam na bancada do
júri se confrontam com o paradoxo que é a atividade de julgar. Da posição lateral que
ocupam no salão, eles estão diante das poltronas da lei e da "imagem de Deus", e as duas
podem levar a equívocos. "A lei muda de acordo com os interesses. O juramento de vocês
fala em justiça", adverte a juíza. Umbelino Pereira, jurado há 30 anos, resume a sua
atividade: "É sempre assim. A gente senta, escuta um lado, escuta outro, para responder a
mesma coisa: ou sim ou não".

Parece simples. Em nome da Justiça aos seus iguais, não é preciso usar jurisprudências,
súmulas, artigos ou incisos. No júri popular, a decisão não se escreve com a complexidade
dos códigos e das fundamentações jurídicas; elas cedem às linhas tortas dos labirintos da
consciência humana, muitas vezes tão indecifrável como a própria lei, e tão obscura quanto
a urna de metal em que cada um dos jurados deposita seus votos. No júri, o homem pode
até não ser prisioneiro da norma. Mas é algemado às suas convicções. "Não é bom que haja
muitas mulheres em julgamentos de marido que mata a própria esposa", diz o advogado
João de Melo Cruz. O juiz togado também deixa escapar seus valores nas entrelinhas de
uma sentença bem embasada tecnicamente. "O juiz é um ser humano como outro, e às
vezes, seus argumentos jurídicos vêm depois, para fundamentar uma convicção íntima".
Protegidos pela capa da lei, todos os julgadores têm um quê de jurado.

Em tempos remotos, o homem decidia em nome de Deus. Os acusados eram atirados em


poços com cobras venenosas ou tinham suas mãos colocadas no fogo, dentre outras
provações. Se saíssem ilesos, eram inocentes: Deus os absolvera. Sendo assim, talvez tenha
sido uma ousadia necessária o homem roubar dos céus a função de julgar. Com a Magna
Carta de João sem Terra, em 1215, determinou-se que as pessoas deviam ser avaliadas
pelas leis terrenas, e não pelas divinas. Também se estabeleceu que os barões seriam
julgados pelos barões. Essa é uma das possíveis origens do júri popular, que nascia não tão
popular assim. Anos depois, na Revolução Francesa, a classe burguesa se rebelaria diante
das arbitrariedades de um poder Judiciário extremamente ligado à realeza, e o júri teria um
novo impulso. O júri também pode ter nascido com as civilizações gregas e romanas, que à
medida que cresciam, não comportavam mais a presença de todos os cidadãos em seus
julgamentos. De origem tão incerta, o surgimento do júri é impreciso quanto o eterno
instinto do homem em julgar seus semelhantes.

Com os anos, o homem tentou afastar a imagem de Deus dos seus julgamentos. Aprendeu a
controlar leis, tecnologias, os espaços. Mas permaneceu prisioneiro do tempo. E no júri,
tudo isso se inverte: sem o álibi da lei, sete homens leigos mexem com o próprio curso do
tempo. Nos confins de suas consciências, eles reinventam o passado, colando ao seu modo
pedaços de verdade nos depoimentos das testemunhas. A partir do passado criado,
determinam também um futuro, traçando o destino do réu por meio de um veredicto.
Brincam de Deus, e depois descansam. "Quando eu saio, tudo se apaga em minha cabeça",
explica Umbelino.

Como em qualquer outro julgamento, humanos ou divinos, reais os fictícios, os homens


leigos estão suscetíveis a erros e acertos. Mas nenhum outro tribunal reuniu mais
polêmicas, decepções e lições. Como o caso dos irmãos Naves, em Minas Gerais. Em 1937,
eles foram acusados de matar o primo. O jurados os absolveram. Naquela época, as
decisões do júri podiam ser reformadas por instância superior. O tribunal modificou a
sentença, e condenou os irmãos, que foram presos. Tempos depois, a suposta vítima
reapareceu. Os juízes leigos foram mais justos que os togados. Mas também podia ter sido
o contrário.

Para além das tragédias do crime e das possíveis injustiças, há algo encantado no
julgamento popular. São os microfones, as hipérboles, a encenação, a platéia. Mambembe
ou cheio de brilhos, a depender dos seus personagens, não há como negar: o júri é mesmo
um espetáculo. "Uma vez, anularam um julgamento, porque o público começou a aplaudir
quando terminei de falar", diz a promotora Cleusa Boyda. No palco, diversas atrações: "Em
alguns julgamentos, me senti um verdadeiro palhaço", diz o jurista Calmon de Passos,
revelando o pastelão tragicômico dos injustiçados. "Uma vez, um promotor tirou, de baixo
da mesa dele, um buquê de flores de plástico, dizendo que era para colocá-las no túmulo da
vítima", diz o advogado João de Melo Cruz, ensinando uma das tantas mágicas dos
advogados, que com suas togas negras, gestos largos e eufemismos, manejam a verdade e a
ilusão. Da platéia, o público aplaude, ri, chora ou mesmo cochila dos dramas e das
comédias da vida. E aguardam o grand finale: num silêncio tenso ou tedioso, eles pairam ao
alto. Pendendo ora para um lado, ora para o outro, os jurados atravessam a corda bamba
que é julgar. Respeitável público, este é o show que teremos a honra de vos apresentar. Que
abram logo as cortinas. O espetáculo não pode parar.

Pés e mãos atados

Luta pela verdade coloca o homem na encruzilhada das leis

Toda vez que vai a um júri, o ritual se repete. Carlos Terra se veste de preto e, calado, se
senta na platéia. O negro da roupa não tem a mesma tonalidade das togas dos homens da
lei. É o negro do luto em seu protesto individual e diário por justiça. Num caso ainda mal
esclarecido, seu menino Lucas Terra foi queimado vivo, amarrado, colocado num caixote e
enterrado. O garoto tinha 14 anos. Passados dois anos do crime, o pai se desfez de vários
bens, já subiu e desceu as escadas do Fórum, já esteve em Brasília, já foi a Genebra. Ele
quer algemas nos punhos que amarraram os do seu filho. "No fundo do meu coração, eu
quero a justiça e a verdade. Saber os detalhes, como tudo aconteceu. É duro, mas eu quero
saber. Estou preparado para isso. Eu quero a verdade, a verdade", repete.

Talvez as mãos de Carlos também estejam um pouco atadas. Afinal, a luta do homem pela
verdade é tão desigual quanto o combate que se trava entre um assassino de arma em punho
e a sua vítima indefesa. Mesmo se eternizando na dor das vítimas, o instante do crime é
fugaz. A verdade morre no momento, estilhaçada pelo golpe mortal do tempo. Como
qualquer outra tentativa de reconstruir o passado, o júri é a exumação do fato, reinventado
na colagem de versões. "A gente ouve todas as histórias e vai construindo a história em
nossa mente", explica o jurado Umbelino Pereira.

Como a realidade diante de um espelho partido, o júri tem duas verdades: a verdade dos
fatos, enterrada no túmulo do passado, e a verdade das provas, retalhada nas várias versões
que se apresentam no presente. No julgamento popular, cada um dos fatos se revela, se
esconde, se modifica sutilmente a depender de quem os detenha. "Se um homem mata um
inimigo e, no interrogatório, diz que a vítima lhe sorriu com escárnio, o fato pode ser falso
dentro de uma cena que só os dois presenciaram. Mas, num contexto, aquele sorriso de
escárnio pode ser ''verdadeiro'', mesmo não tendo acontecido", pondera.

A busca pela verdade é um ideal do processo penal. No direito brasileiro, o percurso


começa com o inquérito policial, onde as primeiras provas do crime são investigadas.
Havendo indícios de autoria e prova da ocorrência do delito, o indiciado é denunciado.
Antes do júri, haverá uma instrução criminal mais aprofundada. Esta fase pode durar meses
ou anos. O réu não precisa provar nada. O ônus cabe à acusação, por conta do princípio de
presunção de inocência. Depois, o juiz togado decide se o caso irá ou não a júri popular.
Havendo indícios razoáveis que o réu cometeu um crime doloso contra a vida - homicídio,
infanticídio, aborto e auxílio ao suicídio - o juiz pronuncia o réu, e o processo será julgado
por sete representantes do povo, através de voto secreto. É diante dos crimes mais graves de
um ordenamento que um homem do povo se pronuncia. "O júri é o julgamento do povo
pelos seus iguais", brada a doutrina. Um igual que é julgado por aqueles que o olham de
cima. Na solidão cercada por dois policiais, o acusado ocupa o assento mais baixo da
tribuna: o espaço vazio do banco dos réus.

Já os membros do júri são selecionados em lista anual, composta por 300 a 500 nomes, nas
comarcas maiores, e 80 a 300 pessoas, nas comarcas de menor população. Essas pessoas
são escolhidas pelo conhecimento pessoal do juiz-presidente da sessão do júri ou por meio
de informações confiáveis. Os cidadãos devem ser maiores de 21 anos, e aqueles que
tiverem mais de 60 anos estão isentos. Para cada julgamento, sorteiam-se 21 pessoas, que
não podem faltar, sob pena de multa. Havendo o quorum mínimo de 15 jurados, ocorre um
segundo sorteio, já no dia do julgamento. Ainda sob a luz do dia, os papéis entram no
espaço escuro do cilindro da urna de madeira. Uma criança retira sete cédulas, com os
nomes dos juízes do povo escolhidos para o caso. Tanto o advogado como o promotor
podem recusar três jurados sorteados. "A gente fica tentando adivinhar a personalidade do
jurado, porque as características de cada um influem no julgamento", diz João de Melo
Cruz.

O julgamento do povo pelos representantes do povo tem ferrenhos acusadores e ardorosos


defensores. Quase como o crime, ele desperta ódios e paixões. O questionário que deve ser
respondido pelos jurados é um de seus aspectos mais controversos. A depender do crime e
das teses da defesa e acusação, pode haver várias perguntas, do tipo: houve moderação? O
réu agiu motivado por violenta emoção? Agiu motivado por uma agressão injusta e
iminente? As respostas, entretanto, são sempre de uma simplicidade cortante. Ou sim ou
não. Caso o réu seja condenado, o juiz togado estabelece a quantidade da pena.

"Sou contra o júri. Como explicar a um homem do povo o que é uma agressão iminente?",
questiona Adhemar Raymundo. Para o jurista, o Brasil poderia seguir a fórmula utilizada
nos Estados Unidos e na Inglaterra, onde tudo se resume a uma única pergunta: inocente ou
culpado? Mas ele acha que o melhor mesmo seria o fim do julgamento popular. "Fui juiz no
interior e conheci de perto todas as mazelas do júri. Vi absolvições e condenações injustas,
políticos manipulando jurados, casos que todos sabem de antemão o resultado". Por outro
lado, para alguns, o júri pode abrigar a humanidade que falta na Justiça comum. "A Justiça
técnica esquece o homem. Quando condena, faz um cálculo matemático. O jurado não. O
homem que ele julgou tem um rosto, um olhar", diz o penalista Edson O''Dwyer.

Alguns países trocaram o júri pelo escabinado, composto por juízes leigos e um togado, que
se reúnem para proferir uma decisão conjunta. Uns garantem que a tendência é o
desaparecimento do júri. Para outros, a instituição nunca deixará de existir. "Sempre se
falou no fim do júri. Mas ele se mantém firme, pois é a forma de julgar mais próxima da
própria vida", diz o jurista Tilson Santana.

No Brasil, o júri foi implantado em 1822, com a finalidade de decidir sobre os crimes de
imprensa, e só o príncipe poderia alterar a sentença proferida pelo conselho popular. Já pela
Carta de 1824, no Império, os jurados atuariam tanto na área cível quanto na criminal.
Também houve o júri de acusação, implementado em 1832. Era uma espécie de júri prévio,
que decidia se o réu iria ou não a julgamento popular. Esse modelo foi extinto, porque
acharam que era estender demais o Judiciário ao povo.

Apóstolos

Na Proclamação da República, o júri foi mantido. Era composto por 12 jurados, número
utilizado em vários outros países e épocas como uma referência aos apóstolos de Cristo. A
Constituição de 1937 não se referiu ao julgamento popular, lacuna que foi encoberta pela
lei processual de 1938. Nesta época, havendo divergência entre a decisão do povo e as
provas presentes no processo, a sentença podia ser reformada por tribunal superior. Em
1948, o júri voltou a ser soberano. Suas decisões só poderiam ser reformadas através de um
novo júri, se a sentença fosse nitidamente contrária às informações do processo. A partir
daí, como hoje, nenhum juiz togado poderia rasurar a decisão escrita pelos representantes
do povo.

Justa ou injusta, a decisão popular costuma refletir posições e valores da sociedade. Se o


tempo modificou tantas nuances das leis que regulam o júri, também mudou seus
julgamentos. Até o final dos anos 50, aproximadamente, um marido que matasse a esposa
adúltera ou um pai que matasse o homem que engravidasse a filha podiam ser facilmente
absolvidos, principalmente no interior. "O jurado se colocava no lugar do réu e pensava: eu
faria a mesma coisa", diz O''dwyer. Com o tempo, os pensamentos mudaram. As decisões
do júri também. "Hoje, penso duas vezes antes de suscitar a tese de legítima defesa da
honra para o marido traído", diz Tilson Santana.

Enquanto os juízes togados têm o dever de fundamentar suas decisões, os motivos dos
jurados devem ficar guardados para sempre na urna de ferro em que depositam seus votos.
O sigilo é obrigatório. "Uma vez, defendi 11 homens miseráveis que mataram um coronel.
No debate, disse que o crime era de rixa, e não homicídio. Legalmente, a interpretação era
forçada. O júri entendeu, e absolveu os réus. Naquele dia, eles fizeram política criminal",
relembra João de Melo Cruz. Diferente dos juízes profissionais, que são presos à norma, o
júri tem a liberdade para malabarismos mentais, e pesam ao seu modo os códigos que eles
pouco conhecem com a intuição de Justiça. Mas ao mesmo tempo, a ausência das algemas
da lei pode ser perigosa nas mãos de um homem que não saiba utilizar sua liberdade de
julgar.

Malabarismos da defesa

Artimanhas usadas no discurso podem ser determinantes no resultado da sentença

Grandes, abertas e estendidas ao alto, as mãos se multiplicavam e cortavam o ar,


orquestrando a melodia do discurso eloqüente que hipnotizava a platéia. No júri, o
advogado Edgard Matta era o maestro de sua própria voz. A toga negra e o paletó escuro
milagrosamente caíam sob medida no homem de 1,90m que se tornava ainda mais gigante
quando subia à tribuna. "Todos os estudantes de direito queriam ser um pouco Edgard
Matta", diz o penalista Edson O''dwyer. A uma certa altura do julgamento, ele tirava o
lenço do bolso para enxugar o suor, e, acenando, o pano branco ganhava vida. "Aquele
lenço era como uma bandeira de chegada, uma saída, um adeus".

Não se trata de eleger o melhor advogado criminalista na Bahia. O fato é que Edgard Matta,
atuante entre as décadas de 30 a 50, dominava, como poucos, a linguagem do júri. "Sua
cabeleira lembrava a de Castro Alves", lembra O''dwyer. Como o poeta, Matta fazia de suas
mãos um libelo pela liberdade. A liberdade de um acusado que, sendo um criminoso
violento ou um inocente injustiçado, possivelmente não sabia ou não podia fazer os
mesmos gestos largos do seu advogado. Tinha as mãos algemadas, mesmo que apenas
metaforicamente, diante da linguagem que poucos entendem, acuado e inofensivo no banco
dos réus.

Enquanto o promotor tende a ser mais contido, pela própria natureza da tarefa de acusar, a
defesa é sempre mais emocional. Dono de seus gestos, frases de efeito e permitidas
encenações, o advogado do júri é um tradutor dos sentimentos do réu. E, obviamente, a
maioria dos acusados jura a inocência. "Uma vez, defendi um estelionatário gaúcho. Ele
aplicou um golpe e ia ser preso. Quando a polícia deu ordem de prisão, ele atirou e matou
um agente. Na fuga, acabou matando umas cinco pessoas. Estudei muito o caso e fiz um
júri repleto de teses. Perdi de 7x0, já esperava. No dia seguinte, fui visitá-lo na
penitenciária. Ele me disse: ''Doutor, eu prestei muita atenção em sua defesa. E sabe de uma
coisa? O senhor tinha razão! Foi aquilo mesmo!'' Eu não convenci o júri, mas pelo menos,
convenci o cliente", brinca João de Melo.

Mágica da oratória

Os eufemismos e hipérboles lançados pelos advogados do júri possibilitam o encantamento


e a mágica da oratória. É a fantasia das figuras de linguagem confundindo realidade e
ilusão. Não é que eles mintam. Eles criam suas próprias verdades. "Sempre que eu defendo
uma tese, estou plenamente convicto dela. Posso estar errado, mas estou convencido",
garante João de Melo Cruz, figura conhecida no Tribunal do Júri. Como advogado e
defensor público, já realizou cerca de mil julgamentos populares. "É que defensor público é
igual a médico do SUS", brinca.

Muito antes de existir a Defensoria Pública na Bahia, que surgiu em 1966, o major Cosme
de Farias já defendia de graça e por vontade própria os criminosos da cidade. O rábula, que
começou a sua carreira em 1895, nem de longe tinha o garbo de um Edgard Matta ou de
outros advogados da época. Quem visse aquele homem franzino, com o colarinho duro e
com a modesta roupa de brim não diria que a sua fotografia enfeitaria o imponente salão do
Fórum Ruy Barbosa onde, desde 1949, funciona o Tribunal do Júri. A foto foi mais que
uma homenagem. Foi o retrato da onipresença do homem que sempre ia ao tribunal
defender gratuitamente desde pobres sem advogado aos ricos que contratavam os
defensores mais caros da cidade. "Mesmo que já tivesse estourado o tempo de defesa, o
major tinha o direito de falar, e nenhum promotor ou juiz era capaz de se opor. Cosme era
Cosme, os prazos não valiam para ele", diz O''dwyer. Na tribuna, como na história da
Bahia, Cosme conseguiu se libertar das algemas do tempo.

Defendendo apenas, sem nunca ter levantado o dedo para acusar, Cosme de Farias se
tornou o nome mais importante do júri na Bahia, mesmo não tendo os padrões estéticos
típicos do espetáculo. Porque ele era um espetáculo à parte. Hoje, sua foto não está no
salão, foi retirada para as reformas. Mas a memória do rábula permanece nos seus feitos,
nas suas caridades e nos seus mitos. "Na Tribuna, ele dizia que nós queríamos mal ao
próximo. Eu ficava calado. Ele podia dizer o que quisesse. Ele era o major Cosme", diz
Calmon de Passos.

A tribuna do júri da Bahia, nas décadas de 30 a 70, também abrigou o advogado Carlito
Onofre, inconfundível em seu chapéu-coco, paletó, gravata-borboleta e bengala, figurino
que não deixava de usar nem quando estava em casa. "Nunca o vi de bermuda", diz Carlos
Onofre, seu sobrinho. Leitor voraz de Eça de Queiroz, as peças processuais do advogado
deixavam escorrer a mordacidade do escritor português. "Havia um promotor que sempre
dizia: o pior do mestre é que ele ofende dando risada, sem a gente nem perceber", relembra.
O advogado Edgard Matta também mostrava sua cultura humanista nas linhas que escrevia.
Em meio a termos jurídicos, brotavam das petições referências a Bernard Shaw, Ortega e
outros escritores. Alguns garantiam que Matta citava autores que não existiam. Outros
garantiam, indignados, que isso era uma grande calúnia.
Mudanças

Cada um a seu estilo, muitos advogados escreveram a história do júri na Bahia. Alfredo
Amorim brilhou na tribuna a partir da década de 20. Ruy Penalva e Dorival Passos, entre os
anos 30 e 60. Depois destacaram-se Raul Chaves, Renato Reis, dentre tantos outros. E cada
um desses agregou em torno de si infindáveis histórias, reais ou supostas. Afinal, no júri e
na vida, a verdade é mito. Num desses casos, conta-se que o advogado começou sua defesa:
"Excelentíssimo senhor doutor juiz de direito. Excelentíssimo senhor doutor juiz de direito.
Excelentíssimo senhor doutor juiz de direito. O juiz, farto daquele tratamento, retorquiu
irritado: ''Chega, acabou! Comece logo seu libelo''. O advogado olhou na face de cada um
dos jurados e, pausadamente, prosseguiu: ''Vejam, senhores. O excelentíssimo se
incomodou porque o chamei por três vezes pelo nobre tratamento que ele merece, e
ordenou que eu parasse. Esse pobre homem que defendo escutou, a vida inteira, apelido que
odiava. E perdeu a cabeça. Fez o que qualquer um faria!''". O réu acabou sendo absolvido
por unanimidade. A história é atribuída a centenas de advogados diferentes. E não deixa de
ser de todos eles.

Com o passar dos anos, o tribunal do júri se transformou. O fascínio pelo crime coloria o
espetáculo, mas a partir da década de 60, a televisão trouxe outras atrações para os lares da
cidade. Nos autos dos processos, os bordados da caligrafia inclinada foram apagados pela
borracha do tempo, e deram lugar ao acinzentado das letras datilografadas que, por sua vez,
foram substituídas pelos dígitos de computador. Aos poucos, as citações literárias sumiram
das petições e do discurso de muitos oradores. Se antes os julgamentos eram tidos como
verdadeiros torneios de retórica, as decisões ficaram mais objetivas. Mas também mais
frias. A platéia sumiu do fórum. Atualmente, em quase todos os casos, apenas os parentes e
amigos do réu e da vítima assistem aos julgamentos. O antigo júri não resistiu aos anos.
Justo nele, circo onde o homem doma o tempo, reinventando ao seu modo o passado
através de relatos, e definindo futuros através de sentenças. O júri foi vítima da mesma
lógica que rege o seu funcionamento. Melhor que ninguém, ele sabe que o instante é
natimorto, e que nem mesmo os gestos largos dos advogados criminais seriam capazes de
aprisionar o tempo. Mas, como em todo julgamento, uma outra verdade sobrevive, escrita
em linhas tortas, contada em versões desencontradas que, imprecisas para um processo, são
perfeitas para compor os mitos.

Encantos do tribunal

Julgamentos históricos atraíam multidões aos salões do júri

O tumulto dificultava o tráfego de veículos. Meia hora antes do julgamento, a população já


havia tomado a frente do edifício da Misericórdia, onde, das décadas de 30 a 1949,
funcionou o fórum da cidade. De dentro do carro, o réu Edson Prata, industrial acusado de
matar a tiros o motorista Pedro Amorim, via a multidão que aguardava sua chegada, com
semblantes nem um pouco acolhedores. O automóvel se aproximou em velocidade baixa,
para que ninguém fosse atropelado. Prata precisou de auxílio policial para transpor as
escadas do fórum, pois a tarefa se tornara hercúleaem meio a tanta gente revoltada. O
crime, supostamente cometido na madrugada de Quarta-feira de Cinzas de 1946, numa
discussão de trânsito, havia chocado a opinião pública. "Justiça: Os motoristas baianos
aguardam a punição do bárbaro assassino do seu colega Pedro Amorim. Confiamos em
Deus, nos nossos juízes e no povo bahiano. Justiça! Justiça", clamavam os panfletos
fartamente distribuídos pela classe dos motoristas.

O júri começou às duas horas da tarde. Dentro da sala, o advogado Edgard Matta garantia
que o réu não cometera o delito. Manoel Inácio era a testemunha de acusação. Amigo do
réu, ele estava no carro na noite do acontecimento. Em meio a tantos questionamentos do
aplaudido discurso do advogado, a testemunha já não sabia ao certo se, na hora do crime,
Prata teria dito "eu matei o homem" ou "há um homem morto". A acusação, composta por
Carlito Onofre e Arnaldo Silveira, alertava para as manobras da defesa com o intuito de
inocentar o acusado. A platéia assistiu atenta, mesmo num calor asfixiante por conta da
superlotação. No dia seguinte, a imprensa reclamaria a falta de um ventilador. Tentando
pegar uma brisa e assistir ao júri por um ângulo melhor, o bacharel Osvaldo Martins
despencou janela abaixo. Sorte que era primeiro andar. Senão o julgamento podia esvaziar,
com o povo se dispersando para ver o novo morto. Como tudo correu bem, a maioria ficou
até o final. Os trabalhos terminaram às 6h do dia seguinte, quando Edson Prata foi
absolvido por 7 votos a 0. A acusação recorreu, pedindo novo júri, e perdeu novamente,
desta vez por 6x1. Entre os cumprimentos e palmas dos seus amigos ali presentes, Prata foi
levado até o automóvel que o conduziu de regresso à sua residência. Os panfletos
distribuídos já deviam estar esquecidos e pisoteados no chão.

Esse foi o julgamento do século, como tantos outros que ocorreram na cidade. Na história
dos tribunais, crimes passionais, envolvendo ricaços ou pessoas influentes e escabrosas
histórias que inflamaram a opinião pública sempre foram um prato cheio para a imprensa, e
lotaram as casas de Justiça de qualquer lugar do mundo. Por isso, a popularidade do júri na
Bahia antiga é uma maneira de ver, desde aquela época, a mesma curiosidade sádica que
hoje traz audiência a programas como Programa do Rzatinho. É bem verdade que o júri era
muito mais ingênuo. Também é verdade que a oratória dos advogados empolgava a
presença do público. Mas é o espetáculo do crime que sempre despertou o interesse
popular. "Você já viu juntar gente para assistir uma bela defesa nas audiências cíveis?",
pondera Carlos Onofre.

Por isso mesmo, a imprensa não podia deixar de cobrir os júris. Até aproximadamente a
década de 70, as vozes tonitruantes dos advogados e promotores iam para muito além do
que suas gargantas potentes podiam projetar. Espalhadas pelas ondas do rádio, invadiam as
casas e estabelecimentos da cidade. Mas não era assim em todos os casos. "Na mesma
semana em que fiz um júri que encheu de gente, fiz outro em que o crime aconteceu num
meretrício. Não sei se havia seis pessoas assistindo", diz Calmon de Passos.

Hoje, embora os crimes de repercussão continuem alimentando a opinião pública e lotando


as instalações do salão do fórum, o saudoso e mórbido encanto de um tribunal
constantemente lotado deu lugar aos espetáculos grotescos tão presentes na televisão. O
tribunal do júri na Bahia foi vítima do mesmo tempo devastador das manchetes de jornal,
que todos os dias precisam ceder suas letras garrafais a um crime mais novo.

Marcelino

Um júri que movimentou Salvador foi de Marcelino Souto Maia, há cerca de 25 anos. À
época do crime, Marcelino tinha 20 anos e era filho de uma família endinheirada da cidade.
Ele confessou matar o pai, a mãe, a avó e o irmão. No dia do júri, foi preciso distribuir
senhas. O advogado João de Melo Cruz tentou provar que o acusado teria agido fora de
suas razões. O réu seria, portanto, inimputável. "Eu estudei psiquiatria forense, me preparei
quase um ano para esse caso". Mesmo assim, ele não conseguiu absolver o réu. Os jurados
aceitaram a tese de semi-imputabilidade. "Marcelino levou 42 anos de pena", diz Melo
Cruz. Na cadeia, o condenado atraía a atenção feminina. "Algumas garotas que nem o
conheciam iam visitá-lo, queriam conhecer o Marcelino".

Quando o júri de Marcelino aconteceu, poucos ainda se lembravam de outro júri da cidade.
O crime que deu cabo à vida do coronel Horácio de Mattos tinha uma indiscutível
conotação política, por conta da revolução de 1930. O guarda Vicente Dias dos Santos,
assassino do coronel poderoso na área da Chapada Diamantina, foi defendido por Edgard
Matta e - sempre - por Cosme de Farias. A defesa alegou que o réu agiu com violenta
emoção, tomado pelo clima de mudança que imperava na cidade. "Se não fora a
transformação do ultimo cyclo da historia e da política brasileira, com a grande revolução
de outubro, a scena rubra de 15 de maio não teria logar ao largo Dois de julho. O passional
político que até então não encontrara o seu meio de acção, estaria perdido no seio das
massas anônimas", defendeu, no processo, Edgard Matta. No júri, estiveram presentes
magistrados, advogados, estudantes, médicos e negociantes. Segundo o Diário de notícias,
"uma turma de guardas civis tomava a porta do citado estabelecimento só consentindo a
entrada de pessoas qualificadas e portadoras do ingresso especial, conforme determinação
do íntegro magistrado que presidia a sessão do júri, o juiz Santos de Souza". Ao final, o
conselho de sentença, que nesta época ainda era composto por oito jurados, absolveu o réu,
por sete votos contra um.

Quando o júri terminou, possivelmente poucas pessoas se lembravam de Júlia Fetal, que foi
assassinada por seu noivo, o renomado professor João Estanislaw da Silva Lisboa, por
motivos passionais. Embora a bala de metal que atingira a jovem dama no fatídico 20 de
abril de 1837 esteja no acervo do Instituto Feminino, o mito garante que ela morreu mesmo
cravada com uma bala feita de ouro. No júri, a defesa fundamentou-se no arrebatamento
que uma incontrolável paixão pode causar num pobre homem; a acusação, no encanto da
jovem moça, ceifada da vida dos 20 anos. O julgamento, que durou 24 horas, foi contado
pela deliciosa linguagem de Pedro Calmon, no livro A bala de ouro: "Ao clarão dos
candeeiros, quando caiu a noite, o debate adquiriu maior solenidade: tornou-se tétrico. A
gesticulação dos oradores, por vezes o diálogo irritado, que lhes interrompia o discurso, ou
o som cavo do martelo com que o presidente golpeava a mesa, impondo ordem à polêmica,
acentuavam de tons dramáticos o julgamento; e faziam que os assistentes, a respiração
suspensa, inclinados para diante, enervados pela cena, se convencessem de que a vida ou a
morte daquele homem dependiam de uma frase, que fosse a última. Apenas João
Estanislaw da Silva Lisboa, insensível e pálido, não se mexia no seu silêncio lúgubre". Ao
final, o réu foi condenado a 14 anos de prisão. Terminava mais um "maior julgamento" da
história da Bahia.

Caso emblemático

Tragédia envolvendo Breno de Castro revela nuances inusitadas do ato de julgar

O homem que matou o pai será julgado pelos seus iguais. Nessa quinta-feira, sete jurados
sorteados para o Conselho de Sentença terão que ouvir testemunhas, depoimentos e
declarações para que possam mentalizar o passado, reescrever os primeiros capítulos e
determinar um desfecho da história de Breno de Castro, uma tragédia grega que materializa
o clássico drama de Édipo e que, para Freud, é um ato que já povoou o desejo inconsciente
de todos os homens. Há um ano e meio, Breno de Castro matou seu pai, Auto de Castro, um
dos grandes nomes da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (Ufba). A
mãe do réu é estudiosa de cultura helênica. O próprio Breno era também conceituado
professor de filosofia da Ufba e psiquiatra. A defesa está convicta e procura justificar até
mesmo filosoficamente o ato que Breno cometeu. Conhecendo melhor a história, pai e filho
despertam divergências, tidos ora como gênios, ora como loucos. Um nítido caso de
incompetência das mentes humanas, incapazes de analisar cérebros que são diferentes do
seu. Como ocorre todos os dias, nos processos e na vida.

A história de Silvio* é muito mais simples. Mas ele tem dificuldades de explicar ao certo o
que aconteceu. Na hora em que estava ouvindo de pé sua sentença, a cabeça baixa, de
costas ao público e diante do juiz, achou que seria absolvido. "O juiz falou umas frases
bonitas, disse que eu não era voltado para o crime", lembra. Em seguida, o discurso se
inverteu, e um "mas" mudou o resultado da aparente absolvição. "Lanço-lhe o nome do réu
no rol dos culpados". Foi a sentença. A frase soou ilógica aos ouvidos do homem que não
conhecia todos os percursos e desvios possíveis da gramática. Vieram à sua mente uns
pensamentos desencaixados. "Fiquei confuso. Aquilo foi uma paulada", diz. Uma paulada
talvez tão forte quando a que ele mesmo proferiu com o cabo de uma enxada na cabeça de
sua vítima, que morreu cinco dias depois. "Aconteceu, eu não achei que daria para matar",
diz, sem variar sua expressão. "Quando tem que acontecer, ninguém escapa".

Silvio* é um dos condenados que cumprem pena por homicídio na Penitenciária Lemos
Brito. Durante o júri, confessou o crime que tinha cometido, argumentando que a vítima lhe
fazia muitas provocações. Ele não sabe explicar bem ao certo qual era a tese do advogado
que o defendia. "Eu sei que deu cinco a dois para o que morreu", constata. Embora
homicida confesso, Silvio* também foi um pouco vítima de seu próprio julgamento. O
gigante de cerca de 1,90m esconde as mãos embaixo da mesa e parece encolher quando
fala, sem ressentimentos, de sua experiência em ser julgado, exposto aos olhos dos jurados,
do público, do juiz. "Eu não consegui olhar para a frente. Fiquei o tempo todo com a mão
no rosto. Chorei por um momento, mas não sei se alguém viu". Ele não sabe quem
acompanha o andamento de seu processo. "Sei que tem a Defensoria Pública, mas é tanta
gente para eles atenderem. Eu tenho vergonha de procurar eles, não saber o que falar. Cada
um é de um jeito, e meu jeito é assim mesmo", diz.

Dor das vítimas

A insignificância de um homem diante dos labirintos do processo não se limita ao réu.


Estende-se à dor das vítimas e à angústia de todos aqueles que esperam uma solução para
suas causas. É drama universal, narrado pelo desespero de Joseph K, personagem principal
do livro O Processo, de Franz Kafka. Joseph K enfrenta as sufocantes etapas de uma ação
judicial e, em todo seu desgastante e infinito trajeto, não consegue descobrir por que motivo
está sendo julgado.

E pior que julgar é não julgar. Em Salvador, existem apenas duas varas do júri. Somente no
ano de 2002 foram distribuídas cerca de 530 ações iniciais para cada uma das varas.
Realizando uma média de duas audiências de júri por semana, é impossível dar conta de
tantos casos. Ao mesmo tempo, seria desumano exigir que juízes, promotores e
funcionários realizassem, por dia, uma sessão, que não raro pode durar mais que 12 horas.
Por tudo isso, as histórias que mofam em prateleiras aguardando um desfecho às vezes
demoram tanto de ser julgadas que a pretensão de punir do Estado já prescreveu e, mesmo
que culpado, o réu tem direito a ficar solto, porque se extingue a sua punibilidade. Somados
aos casos que jazem nas prateleiras e gavetas, outros tantos se perdem em inquéritos
policiais arquivados por falta de provas.

Athanagildo Silva espera, há sete anos, a prisão do homem que matou sua filha. No mês
passado, o réu foi condenado a uma pena de 14 anos, e aguarda o recurso em liberdade.
Alguns conhecidos da vítima aplaudiram o resultado no final da sentença. "Eu não fiquei
satisfeito. Toda a vida de minha filha vale 14 anos?". Mas o direito penal, principalmente
no processo do júri, não comporta esses cálculos. Porque ele procura soluções para o que é
irreparável.

É o mesmo processo do júri que, esta semana, tentará solucionar o caso de Breno de Castro.
Diferente dos jurados, que decidirão qual o futuro do réu, a defesa e a acusação admitem
sua própria fraqueza diante do curso do tempo. "Ainda não dá para adiantar qual será minha
tese. É um caso muito delicado", diz Isabel Adelaide, promotora. "Não posso antecipar qual
vai ser minha argumentação jurídica, que vai depender do desenrolar dos fatos no
julgamento", diz Domingo Arjones, advogado. Ele está atuando gratuitamente nesse
processo e o estuda todos os dias. A defesa, plenamente convicta de seus argumentos, diz
que Breno matou o pai porque, durante a vida inteira, suportou humilhações, como ser
chamado de impotente e homossexual sem ser. No processo, há ainda informações sobre a
noologia, tese na área de psiquiatria criada por Auto de Castro, em que ele procura
desbancar o pensamento de Freud. "As provas confirmam que Auto de Castro criou essa
tese e durante anos utilizou o filho como objeto dessa experiência", afirma Arjones. Sem
entrar em pormenores, a promotora admite que Auto de Castro e Breno não mantinham um
bom relacionamento. "A defesa conseguiu provar que a relação entre o pai e o filho era
mesmo tumultuada, e que isso não era fruto de um delírio do réu", disse.

Momento delicado

A situação é delicada. Embora a lei não comporte essa possibilidade, alguns argumentam,
hipoteticamente, que Breno deveria ser julgado por uma comissão composta por pessoas de
diversas áreas, como psicólogos e filósofos. Mas de que forma os doutos do conhecimento
poderiam decidir uma situação em que pai e filho são vítimas do excesso de ciência? Os
laudos periciais do processo, assinados por Terezinha Rocha, atestam que Breno possui
esquizofrenia paranóide. Ironicamente, há algum tempo, a perita foi aprovada em 44o lugar
num concurso de psiquiatria em que Breno foi o segundo posicionado. Como a voz da
perícia pode avaliar como esquizofrênico um homem que a voz da ciência antes já julgara
como mais preparado para a psiquiatria que a própria perita? Qual julgamento vale? "Nós
não sabemos o que é a loucura", foi o que um dia disse Breno, em artigo publicado em
1989.

Seja qual for o posicionamento, o calhamaço de papéis que compõem esse processo é uma
prova documental da insignificância do homem que senta na cadeira de julgar, seja ele
leigo ou togado. No júri de Breno, os homens do povo decidirão os limites entre
genialidade e loucura, relações familiares, bases científicas e filosóficas. Nessa quinta-feira,
o ritual se repetirá, com, quem sabe, a fala do réu, os depoimentos das testemunhas, os
argumentos eloqüentes da defesa e da acusação, o momento da sentença, as centenas de
verdades escondendo verdade nenhuma. Ficará uma elipse: a incógnita da sala secreta dos
jurados, melhor metáfora para o cárcere da consciência humana. Talvez sete representantes
do povo sejam mesmo os melhores julgadores para este caso. Ou talvez sejam a prova
concreta de que, leigas ou togadas, é impossível que mentes tão diferentes julguem os seus
iguais.

*O nome foi trocado para preservar a identidade da fonte

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