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"A origem da obra de arte". Poderia haver gênese mais obscura e incerta sobre a
qual se debruçasse um filósofo? Talvez só a própria origem do homem e da humanidade, já
que provavelmente arte e homem nascem juntos; aquela é fator humanizante deste. Visto
assim, buscar a origem da obra de arte é tarefa mais difícil do se possa originalmente supor.
Ela nasce do homem e com o homem: é um processo histórico, dirá Heidegger. Mas como
ela nasce, quando nasce, e quando é verdadeiramente real? Qual a sua essência mais
profunda, que determina por isso seu caráter irremovível de obra de arte? São essas as
questões sobre as quais Heidegger se debruça para responder à pergunta inicial: qual a
origem da obra de arte?
É interessante observar como o autor nos induz a uma verdadeira odisséia pelo
mundo das idéias, dos conceitos e das palavras. Nesta viagem ele derruba vários deles, às
nossas vistas e conosco. Ele nos excita, emociona e deixa-nos curiosos. A viagem é um
mergulho vertiginoso às origens; um mergulho de volta, como um escafandrista que busca
tesouros perdidos (sempre existente e conservados) nas mais profundas "fossas
submarinas". Heidegger realiza esse mergulho de maneira competente e traz à tona e luz
aquilo que sempre "esteve", que sempre "foi" e "é". Apenas se achava escondido.
A odisséia começa com a simples constatação de que "a arte é a origem da obra e
do artista." A arte e o artista estão na obra. Isto quer dizer que um não existe sem o outro.
No entanto, Heidegger pergunta sobre a essência da arte e responde que ela está na "obra
real". Mas qual é e como identificar esta "obra real" e como ela aparece? Ele nos remete
então à materialidade observável e sensível da obra, para que possamos melhor estudá-la.
"Toda obra tem um aspecto de coisa; a coisa está na obra e vice versa." A obra de arte
existe como as outras coisas. No entanto, ela é para nós mais que uma mera coisa. Ela é
alegoria, carregada de valor simbólico. Nota-se pois, que Heidegger, assim tenta com
desmistificar inicialmente a obra de arte, submetendo-a ao campo “das coisas”, cuida
imediatamente em não igualá-la a estas, diferenciando-a através do seu caráter simbólico e
alegórico. É preciso ir mais fundo nesta diferenciação e/ou interação entre obra e coisa. Até
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Este texto foi apresentado como trabalho final da disciplina de graduação Evolução da Música I, sob
orientação do prof. Antônio Jardim (Dr. em Musicologia ), EBA/UFRJ, 1990, a partir do original "El origen
de la obra de arte." Vale notar o procedimento pouco ortodoxo do professor, adotando um texto filosófico
numa disciplina de área de música. Éramos apenas quatro alunos e passamos todo o período lendo e
discutindo somente este texto, hermético e prolixo, mas que o professor recomendou como “fundamental
para discussão sobre arte”. Entre os alunos eu e minha querida amiga Magda Godinho (hoje também
professora da arte), com quem procurava discutir e esclarecer o texto. No final foi-nos solicitado um
comentário escrito sobre o ele. Resolvi fazer uma espécie de resenha, em vez de enveredar pela crítica, o que
requereria mais domínio no campo da estética. Apesar das dificuldades, tal estudo foi-me bastante proveitoso.
Depois de vários anos de leituras acumuladas sobre arte, consigo entender bem melhor o texto e algumas
idéias e conceitos básicos, que considero determinantes, como a diferenciação entre objeto útil e objeto
estético, bem como entre arte e artesanato, conceitos aliás, presente em vários outros autores. A nota obtida
foi 7,5 com o seguinte comentário: "É um bom trabalho, muito bem escrito, porém com algumas poucas
imprecisões. Senti falta de um posicionamento menos diretivo e mais crítico." Mas quem era eu na época para
criticar Heidgger?? O texto é apresentado aqui na forma em que foi submetido ao professor.
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que ponta uma interfere e/ou determina a outra? O que é uma coisa? O que é uma obra de
arte?
A OBRA E A COISA
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à utilidade do útil. Essa descoberta é deveras interessante e com ela Heidegger traça uma
escala linear ascendente que vai da coisa à obra de arte, no qual o útil ocupa posição
intermediária (1.coisa-2.útil- 3.obra de arte ). O autor aproveita essa passagem pela questão
do útil e enuncia: "O útil é aquilo que serve para algo, que é perecível, que sucumbe
mediante ao uso e que deve servir muito bem e de forma super-eficiente àquilo a que se
propõe ( o ser-de-confiança do útil ); quando bem usado, essencialmente útil, o objeto útil
é esquecido." Trata-se, como se vê, de algo bem distinto da obra de arte 2.
Nossa questão continua sendo, porém, o "cósico da coisa". O que há de coisa na
coisa e de coisa na obra de arte? Por extensão, o que há de arte na obra? Já que as três
tentativas de ver a coisa pelos modos convencionais falharam – ver o cósico na obra é
impossível pelos meios até agora utilizados – talvez isso seja sinal de que o material cósico
da obra não pertença à obra. "Tentamos captar uma realidade mais evidente na obra
através de sua materialidade cósica e falhamos; portanto, o cósico não pertence à obra."–
afirma Heidegger. Aqui ele propõe uma inversão nas investigações: já que não foi possível
ver o que há de cósico na obra, tentemos ver o que há de obra no cósico, pois é certo que
cósico e obra mantêm uma estreita relação entre si. A inversão é sutil, mas totalmente
elucidante.
A obra de arte é algo singular. Ela não é a cópia do real existente, mas a reprodução
da "essência geral das coisas". A arte não copia, mas enuncia; nela há verdade e aí vive sua
essência: pôr a verdade em operação. Assim a arte seria o quarto caminho para chegar à
essência, não só das coisas, mas dos entes em geral, além de si própria. É preciso – diz
Heidegger – esquecer todos os pre-conceitos e equívocos anteriores e enveredar agora por
esse caminho, em busca do cósico da coisa, do ser da obra, e do cósico da obra.
A OBRA E A VERDADE
Heidegger diz que a verdade acontece na obra de arte. Mas o que é essa verdade e
como ela acontece aí? Aqui, um outro mergulho que começa com o enunciado já visto de
que é necessário "deixar a obra repousar em si, sobre si e só", para que ela assim nos
mostre a sua verdade. É preciso isolar a obra de toda relação que não seja dela com ela
própria. Ele ainda se questiona: mas não é próprio da obra de arte estar em estreita relação
com o mundo? A resposta é curta: "a obra só deve pertencer ao reino que se abre por meio
dela e só ai mantém relações; o ser-obra só existe nesta abertura."
A obra estabelece e cria seu próprio mundo (diferente de todos os outros); ela
consagra e glorifica porque exige do ser obra que ele se manifeste – a obra desfolha-se
sobre si e nos apresenta o seu mundo e o mantém em imperiosa permanência. Neste
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Hoje quando trabalho esta idéia com meus alunos exemplifico com o sapato. Um sapato verdadeiramente
útil é aquele que não sentimos quando usamos. Esse é o ponto máximo do conforto do sapato, seu grau ótimo
de utilidade. Qualquer sapato que se mostre à nossa consciência é porque nos incomoda, ou seja, não cumpre
sua função primordial de ser útil e esquecível, porque funciona muito bem. O sapato que não se esquece é
aquele que quando calçado, aperta e faz calo, não segura no pé, causa dores, desequilíbrio, etc. todos defeitos
que podem ser considerados gravíssimos para um sapato. No entanto o ser humano inventou para ele uma
outra categoria, o “sapato de arte”. Pensemos nos saltos agulha altíssimos que algumas mulheres gostam de
usar e que custam boas dores na coluna; pensemos nas plataformas de Carmem Miranda, nada práticas;
pensemos no antigo costume chinês de usar calçados números muitas vezes menor que o pé, para diminuí-lo,
etc. Há vários exemplos de como um sapato deixa de ser apreciado apenas por sua utilidade e passa a ser
apreciado pela sua beleza ou seu efeito estético. Essa é uma diferenciação básica entre “coisa útil” e “obra de
arte”.
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mergulho, que já beira a poesia, Heidegger exemplifica com o templo grego: "Um templo
grego não representa nada; ele é, e por ser, realça a si e a tudo ao seu redor, por
semelhanças e contrastes das realidades que o envolvem – o mar, o céu, a luz, o touro,
tudo é diferente dele, tudo o realça e ele a tudo isso realça também." Assim, ser obra é
estabelecer mundos.
O conceito de estabelecimento de mundo é de fundamental importância no texto e
aqui Heidegger empreende novo mergulho rumo à essência do mundo e da terra, desta por
oposição àquele. É interessante observar que desse mergulho da relação mundo/terra
advém a verdade, como resultante de uma luta eternamente travada no interior do ente,
entre aquilo que tende a ocultar-se (terra) e aquilo que tende a iluminar (mundo).
A Terra é, portanto, uma potência ocultadora e hermética. Toda tentativa de
penetração no seu interior, choca-se com ela. Ela reduz a tentativa de cálculo à destruição; a
ciência destrói a Terra sem chegar à sua verdade.
O Mundo se funda na Terra e tenta estabelecer-se sobe ela, elucidando-a.
Segundo Heidegger só a obra de arte consegue a façanha de estabelecer Mundo sem
destruir a Terra. Na luta Mundo/Terra se funda a verdade da obra de arte. Mas, então, "a
obra não repousa...?" – ele tenta negar-se. "O repouso inclui o movimento, pois só o que
se move pode repousar" – ele responde logicamente. O repouso da obra tem sua intimidade
na essência da luta.
A obra de arte, então, é aquilo que promove a verdade. E a verdade? A verdade
reside ainda na própria luta Mundo/Terra, luta primordial e profundamente dialética.
Heidegger nos remete novamente à terminologia grega, onde verdade = desocultação em si
mesmo. É preciso encarar a verdade como fruto de uma luta e não com proposição dada e
certa. Não há certeza. A verdade acontece no ente, não em nós. Ela é única e particular.
Mais uma vez aqui, Heidegger aproveita para golpear a ciência: ela é portadora de uma
verdade que se diz absoluta, instrumental e aplicável de acordo com necessidades externas
ao ente. "A ciência não é original, logo não remete à verdade. Toda vez que uma ciência
consegue extrapolar as verdades estabelecidas e atingir a essência do ente, já não é
ciência, é filosofia." – ele diz.
Aqui Heidegger parece parar. Ele próprio constata que esses "mergulhos paralelos",
embora importantes, não responderão à nossa questão primordial: o cósico da coisa e da
obra de arte. É de suma importância para o andamento do texto esta outra virada: "parece
que considerando a obra nela mesma não conseguiremos, mais uma vez responder a nossa
questão, embora isso nos tenha aclarado outros pontos: "Parece que esquecemos que toda
obra é sempre uma 'obra', ou seja, algo realizado, elaborado. Tanto o ser criado, quanto o
criar necessitam de um meio e um onde criar." Então ele enuncia, categórico, que "a
principal característica da obra de arte é o fato dela ser criada." Heidegger, na verdade,
rende-se: "Para tocar a origem da obra de arte é preciso entrar na atividade do artista; é
impossível determinar o ser-obra da obra, puramente através dela própria."
A VERDADE E A OBRA
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Heidegger retoma então o caminho original, enriquecido pelos pequenos achados;
retoma um ponto X que nos leve a uma resposta elucidativa. Agora, o mergulho se dá em
direção à criação da obra, já que foi constatada a importância do ato criador. A primeira
tentativa de captar a obra através da coisa falhou; a Segunda tentativa, de captar a obra
através da própria obra também falhou; agora tentemos captar a obra pela criação.
Com a atividade produtiva do artista, surge porém a questão da produção artesanal
(do útil), como uma produção que também se impõe de maneira semelhante à produção
artística. Neste ponto Heidegger é bastante conciso: "A produção/confecção é
essencialmente diferente da produção/criação; o artesanato não cria obras." Novamente
ele nos remete à terminologia grega, onde só havia uma palavra para designar arte e
artesanato. Ele diz, porém, que a palavra utilizada não nomeava uma atividade X ou Y, mas
sim um "saber", cuja essência é a verdade (desocultação). Assim, ele conclui dizendo que
"a verdade na obra dá-se através de um ente que 'não era' e posteriormente 'nunca voltará
a ser'. Quando a produção traz consigo a abertura do ente (a verdade) o produto é uma
obra de arte. Tal produção é criação." Só a abertura do ente oferece a possibilidade de
verdade, e, essa abertura advém, como já foi dito, da luta que se estabelece na obra pelo
dueto Mundo/Terra. Dessa luta complexa que se dá no interior do ente, resulta a forma. "O
ser criado da obra quer deixar fixado a verdade na forma de obra".
Entenda-se como "forma" aquela porção ou composição física em que a obra "é",
enquanto se expõe e se propõe. "A produção da obra de arte é utilização da Terra para
fixar a verdade na forma." Novamente Heidegger diferencia arte de artesanato: "a
produção da obra de arte, porém, não gasta a terra, nem abusa dela como matéria, mas a
põe em liberdade, opera com ela; o útil por sua vez é um ser acabado para ir mais além de
si, para esgotar-se no serviço". Mais claro, impossível.
E é seguindo um contraponto com o útil, que finalmente Heidegger nos enuncia a
"obra real": "A obra é criada dentro do criado; dentro de si e para si; ela é solitária e por
isso substantiva; ela remete ao extraordinário e não ao habitual; ela requer repouso,
precisa ser observada, contemplada; a obra só se faz e se afirma como obra na
contemplação, caso contrário não se estabelece como obra única, substantiva e
extraordinária..."
Estamos agora no cerne da questão: com o enunciado de que a obra de arte está
intima e dependentemente ligada à criação e à contemplação, Heidegger nos franqueia a
origem essencial da obra de arte. "Contemplar", ele continua, "é um estar dentro da obra,
da abertura que ela se nos oferece; contemplar é participar da luta existente e evidente na
obra, luta que nunca se resolve, já que a obra não busca resolvê-la, mas mantê-la, porquê
só aí há verdade: contemplar é um saber."
Voltemos, pois, à pergunta inicial: o que há de cósico na obra que garante sua
realidade imediata? "Na obra há resquícios da Terra." A Terra salta na obra porque nela
está em operação a verdade, que só pode "ser" quando se instala no ente. Só agora podemos
responder a essa pergunta porque só agora sabemos o que é obra e o que é coisa. Colocando
a importância da criação, da contemplação e do telúrico, como fatores fundamentais para
existência da obra de arte, Heidegger conclui.
A questão da essência da arte, esse acontecer da verdade tem caráter sobretudo
poético. É sobre poesia que ele nos fala: "Toda arte é em essência poesia; poesia num
sentido amplo e inabitual: mundanizar já é um tipo de fazer poético. "A linguagem, a fala é
poesia primordial, sem entretanto ser Poesia; esta porém, acontece na linguagem, que
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guarda sua essência original; a linguagem deve remeter ao habitual, a poesia ao
extraordinário."
"A essência da arte é a poesia" – ele repete. A essência da poesia é a instauração da
verdade, que pode ser feita em três sentidos: oferenda, fundação e começo. O modo
essencial de instauração da poesia é o começo. "Arte é conhecimento profundo; criar é
extrair do fundo; contemplar é ir ao fundo." Para Heidegger só a arte é capaz de chegar à
verdade e sempre que a verdade acontece (através da arte) se produz um "impulso" na
História. A arte é um fenômeno histórico, isto é, uma maneira extraordinária que possui um
povo de chegar à verdade.