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RESUMO: Neste artigo, propomos uma discussão sobre hipertexto, leitura e sentido,
numa perspectiva lingüística. Se o hipertexto é um “texto aberto”, o leitor se deparará
com inúmeras possibilidades de leitura e construção de sentido. Por onde começar?
Como prosseguir após a determinação de um início? Quando finalizar o texto, se a
proposta do hipertexto é que o leitor “salte” de texto em texto? São perguntas que
cabem ao leitor responder, no momento em que se encontra no universo hipertextual. É
importante que o leitor conheça previamente espaço e modo de constituição do
hipertexto e produza sentidos para os textos atualizados. 1
ABSTRACT: In this article, we propose a discussion on hypertext, reading and
meaning, from a linguistic perspective. If hypertext is an “open text”, the reader will be
faced with innumerable possibilities of reading and construction of meaning. Where to
start? How to proceed after determining the beginning? When to finish the text, if the
purpose of hypertext is that the reader “jumps” from text to text? These are questions
that are up to the reader to answer, at the moment at which he finds himself in the
universe of hypertext. It is important for the reader to know beforehand the space, and
method of composition, of hypertext and to produce meanings for the actualized 2 texts.
*
A autora é Professora e Pesquisadora da PUC-SP. Fez Mestrado e Doutorado na referida Instituição e Pós-
Doutorado na Unicamp. Há mais de dez anos dedica-se à pesquisa sobre o texto e, mais recentemente, o hipertexto.
O e-mail para contato: vmelias@linearsm.com.br
1
LÉVY (1999) utiliza o termo “atual” em oposição ao “virtual” e não ao “real”. “Atual” e “virtual” são duas faces do
“real”.
2
LÉVY (1999) uses the term “actual” as opposite to “virtual” and not “real”. “Actual” and “virtual” are two aspects
of “real”.
1. Introdução
Sabemos que o conceito de hipertexto não é recente e que, há muito, existem produções
escritas a que subjazem o princípio da hipertextualidade (Cf. LÉVY, 1993; LEÃO, 1999;)
como, por exemplo, a bíblia, a enciclopédia, o dicionário e a lista telefônica. Entretanto,
foi somente com a internet, segundo BOLTER (1991), o meio natural para a sua
constituição, que o hipertexto constituiu-se como um “texto aberto” ou um “texto
múltiplo”, caracterizado pelos princípios da não linearidade, interatividade,
multicentramento e virtualidade.
Com a propagação da rede e, conseqüentemente, da escrita que lhe constitui, a atenção
dos estudiosos voltou-se para o hipertexto: da origem à configuração dessa produção
escrita na tela do computador, passando por reflexões sobre sua concepção,
semelhanças e diferenças quanto aos modos de escrita anteriormente existentes.
Neste artigo, propomos algumas reflexões sobre hipertexto e leitura, respaldadas em
estudos realizados sobre o hipertexto e o texto. Para tanto, assumimos como
pressupostos que: i) o hipertexto é um texto aberto ou um texto múltiplo; ii) o texto é
também, à sua maneira, um hipertexto; iii) hipertexto e texto são eventos
comunicativos; iv) os estudos realizados sobre texto, na perspectiva da Lingüística
Textual, muito contribuem para entender o hipertexto.
Em nosso percurso, inicialmente, trataremos da concepção sobre hipertexto e texto para,
posteriormente, considerarmos a leitura e produção de sentido no universo hipertextual.
Tão estável e tão paradigmático é o livro impresso que não se conseguiu inventar
um vocabulário próprio para as práticas de leitura e escrita on line. (...) As telas
de qualquer site dispõem páginas, critérios biblioteconômicos de organização do
conteúdo regem os diretórios, (...) e a armazenagem de dados é feita de acordo
com padrões arquivísticos de documentos impressos, seguindo à risca o modelo
de ‘pastas e gavetas’.
Assim sendo, se, por um lado, reconhecemos a complexidade da questão, por outro
lado, sabemos que, para tratarmos de hipertexto, precisamos explicitar como o
concebemos, ainda que tal iniciativa implique riscos pela razão apresentada acima.
O que é o hipertexto? São muitos os estudiosos que dedicam atenção à questão. BAIRON
(1995:45) afirma que o hipertexto pode ser definido como "um texto estruturado em
rede" ou ainda "uma matriz de textos potenciais" na qual "um texto apresenta-se como
uma leitura particular de um hipertexto.”
Por sua vez, LÉVY (1993:33) postula que o hipertexto pode ser definido como
um conjunto de nós ligados por conexões. Os nós podem ser palavras, páginas,
imagens, gráficos ou parte de gráficos, seqüências sonoras, documentos
complexos que podem ser eles mesmos hipertextos. Os itens de informação não
são ligados linearmente, como uma corda com nós, mas cada um deles, ou a
maioria, estende suas conexões em estrela, de modo reticular.
Ainda, para LÉVY (1996), o hipertexto, configurado em redes digitais, desterritorializa o
texto, deixando-o sem fronteiras nítidas, sem interioridade definível. Esse texto assim
constituído é dinâmico, está sempre por se fazer, o que implica, da parte do leitor, um
trabalho infindo de organização, seleção, associação, contextualização de informações
e, conseqüentemente, de expansão de um texto em outros textos ou a partir de outros
textos, uma vez que os textos constitutivos dessa grande rede estão contidos em outros e
também os contêm.
Desse modo, se, no texto, prepondera um fluxo linear, no hipertexto, há quebra dessa
linearidade em unidades ou blocos de informação, cujos tijolos básicos da construção,
segundo SANTAELLA (2001), são os nós e nexos associativos, em um sistema de
conexões que lhe é próprio com o propósito básico de conectar um nó a outro.
Essas conexões, ativadas por meio de um clique do mouse, permitem ao leitor mover-se
através do grande texto, descobrindo e seguindo pistas que são deixadas em cada nó. É
por essa razão que afirmamos que o hipertexto não é feito para ser lido do começo ao
fim, mas, sim, por meio de buscas, descobertas e escolhas, destacando que a sua
estrutura flexível e o acesso não linear permitem buscas divergentes e caminhos
múltiplos no interior do hipertexto.
Ainda sobre a concepção de hipertexto, KOCH (2002: 61) destaca:
todo texto constitui uma proposta de sentidos múltiplos e não de um único sentido
e todo texto é plurilinear na sua construção, [...] então, [...] poder-se-ia afirmar
que — pelo menos do ponto de vista da recepção — todo texto é um hipertexto.
O inverso dessa afirmação também é verdadeiro para essa autora e para estudiosos
como BELLEI (2002: 44), para quem “o hipertexto também é um texto”, e MARCUSCHI
(1999:29), quando nos afirma que “o hipertexto não é um texto fisicamente realizado,
mas uma virtualidade”, contudo, “assim como o hipertexto virtualiza o concreto, ele
concretiza o virtual.”
Dizer que “o texto é um hipertexto” e que “o hipertexto é um texto” não implica, pois,
para esses autores, desconsiderar as diferenças entre um e outro. O hipertexto difere do
texto impresso em aspectos como ruptura, conectividade máxima entre blocos de
significado e multicentramento, só possíveis, em toda a sua extensão, em um espaço que
não “aprisiona” o texto, mas o liberta tanto por permitir ao leitor a atualização de textos
e a construção de sentidos de acordo com as suas escolhas, quanto porque o texto se
metamorfoseia ante as decisões do leitor (Cf. ELIAS, 2000).
No hipertexto, a conexão múltipla entre blocos de significado, reprimida pelo meio
impresso, é elemento dominante em sua constituição, porque a tecnologia de
programação característica da máquina torna o princípio de conectividade, por assim
dizer, natural, desimpedido, imediato, sem problemas de tempo e distância.
Essa “naturalização” da conectividade adquire, para BOLTER (1991), um significado
estrutural. A conectividade, é um princípio estruturante dos textos digitais, permitindo
pensar o hipertexto como qualitativamente diverso do texto e dotado de um potencial
revolucionário para produzir mudanças significativas nas formas de acúmulo e
circulação da informação, nos conceitos de autor e leitor, na concepção de leitura e nas
formas de produção de textos.
Concebemos, portanto, neste artigo, o hipertexto como “um texto múltiplo”, segundo
afirma KOCH (2002) ou “um texto aberto”, ressaltando as características que lhe são
constitutivas, em um espaço que, segundo WERTHEIM (2001), é destituído de
fisicalidade, porém, real e promovedor não só da constituição de novas representações
mentais, como também e, principalmente, da constituição de sujeitos por meio de novas
práticas comunicativas.
3
Para Leão (1999), a complexidade da hipermídia implica a complementaridade organizacional entre ordem /
desordem; simples / complexo; aleatório / determinado; seqüencial / não-seqüencial / rigor / liberdade; solidez /
elasticidade; mobilidade / imobilidade.
e produzindo, assim, uma textualidade cuja coerência acaba sendo uma
construção pessoal, pois não haverá efetivamente dois textos exatamente iguais
na escritura hipertextual.
Destacamos, portanto, que não se lê do mesmo modo num papiro, num livro ou numa
tela de computador, entretanto, entendemos que ler de outro modo não significa atribuir
sentidos diversos necessariamente. Sustentamos com POSSENTI (2002) que a mudança
do suporte não é suficiente para alterar o sentido do texto, embora o suporte não lhe
seja indiferente.
O hipertexto, marcado pela possibilidade de conexões imediatas entre blocos de
significados interligados em um vasto banco de dados, altera o significado do ato de ler
e dos conceitos de autor e leitor. Como toda tecnologia textual constitui, pelo menos
em parte, o tipo de escritor ou leitor a ela adequados, a mudança do texto para o
hipertexto produz um novo (outro) tipo de leitor e de autor.
Em relação ao hipertexto, o autor e o leitor podem ser pensados como colaboradores
ativos – ainda que isso não seja um privilégio exclusivo do hipertexto — e é em função
dessa colaboração que teóricos do hipertexto propõem, por vezes, que o leitor do
hipertexto seja redefinido como “lautor” (“wreader”) ou “leitor liberto da tirania da
linha”, já que ele mesmo, em certa medida, produz e consome o sentido do texto
(BELLEI, 2002:71).
Embora afirmemos com KOCH (2002) que o texto pode se hipertextualizar, — por
exemplo, nas produções acadêmicas, cada vez que a atenção do leitor for conduzida do
texto em si para uma nota de rodapé que, por sua vez, pode fazer referência a vários
outros textos de alguma forma relacionados perifericamente com o texto principal —, é
preciso levar em conta as características do hipertexto em relação ao texto,
particularmente, a natureza do primeiro como banco de dados de conectividade máxima
e, do segundo, como predominantemente linear.
Um leitor de banco de dados deve organizar informações dispersas em termos de um
certo padrão estrutural e em um espaço virtual. É um leitor que justapõe blocos de
sentido em uma atividade de “bricolagem”, e que, por isso, pode ser denominado de
leitor “bricoleur” (BELLEI:2002:73).
Contudo, esse leitor não é um leitor inferior, um “piloto de palavras” nos termos de
BIRKETS, citado por BELLEI (2002:75), mas um leitor diferente, talvez menos
contemplativo em razão da fugacidade da escrita, mas, nem por isso, um praticante de
uma não leitura.
Sob a perspectiva de hipertexto, todo leitor é também um autor, já que toda leitura
torna-se um ato de escrita, exigindo do leitor a escolha de um caminho dentre tantos
possíveis para seguir, definindo-se, desse modo, a constituição do texto, em se tratando
não só de seu começo, meio e fim, como também das informações que irão compor tais
partes.
Para nos explicar a estrutura da atividade hipertextual, do ponto de vista do leitor, Jim
ROSENBERG (2002) elaborou os conceitos: actema, episódio e sessão. Actema é o ato de
se seguir um link ou a atividade de unir dois pontos distintos. Por sua vez, episódio é um
conjunto de actemas a partir do qual será possível ao leitor compor em sua mente um
todo coerente ou, ainda, é o resultado de uma combinação do histórico do trajeto no
hipertexto, das intenções do leitor e das associações que este vai construindo durante
uma sessão ou diversas sessões. Por último, a sessão compreende a atividade do leitor
em sua continuidade. É o período de tempo em que este se dedica a explorar o sistema
hipertextual. Assim, uma única sessão pode fazer despontar diferentes inícios de
episódios.
O estudo de ROSENBERG (2002) faz-nos pensar que o leitor do hipertexto deve
contemplar, em sua atividade, uma perspectiva “holística” e não “serialista”. Segundo
HORN (1989), o leitor “serialista” começa a leitura de um livro da primeira página e vai
até a última, parágrafo por parágrafo, frase por frase, na ordem previamente
determinada pelo autor.
Já o leitor “holístico” procura estabelecer uma idéia geral do todo, antes de partir para
os detalhes. Também estabelece seus interesses e objetivos de leitura, faz suas
descobertas, constrói hipóteses, estabelece conexões entre as idéias do autor e seu
conhecimento, bem como se permite "saltos" na leitura.
Assim, em relação ao hipertexto, os leitores “serialistas”, diferentemente dos
“holísticos”, terão muita dificuldade na leitura e se ressentirão das escolhas que terão de
fazer, do caminho próprio de leitura que terão de construir, sentindo-se confusos e
desorientados com muito mais freqüência e queixosos da introdução de palavras e
conceitos que não entendem, não atentando para as vantagens do sistema.
Essa reflexão sobre procedimentos de leituras e perfis de leitores encontra-se,
atualmente, revigorada pela repercussão do hipertexto. Contudo, podemos dizer que
leitores que lêem o texto no papel, atentando para a construção de um sentido global do
texto, hierarquizando informações, elaborando generalizações, deixando de lado
informações não significativas para o sentido do texto, associando conhecimento novo
ao conhecimento anteriormente constituído, em um processo constante de interação,
valer-se-ão dessas estratégias para construírem seus próprios caminhos de leitura no
universo hipertextual e, desse modo, seus próprios textos.
Portanto, refletir sobre o hipertexto, como uma nova forma de escrita/leitura, implica
levar em consideração o texto e a construção de seu sentido por seus sujeitos
leitores/escritores em um novo espaço, que exige novas habilidades desses sujeitos
transformados, no universo hipertextual, em viajantes, navegantes, construtores de
caminhos e de sentidos, usando, para isso, ferramentas próprias ao meio. Nesse
contexto, a atividade do leitor se destaca, porque o texto, ao não se mostrar como um
todo bem definido em termos de suas partes, exige daquele que se transforme, também,
em escritor.
Entretanto, toda leitura, quer seja em relação a um texto, quer ao hipertexto, é sempre
construção de sentido, porque o leitor tem uma certa liberdade de escolher caminhos,
definir ênfases, optar por certos sentidos em relação a outros, tudo isso de forma a
atender preferências ideológicas, pessoais ou idiossincráticas. Desse modo, toda
atividade de leitura, textual ou hipertextual, implica descoberta ou invenção de roteiros.
Uma vez diante de milhares de registros, o leitor não poderá vê-los de uma vez, nem
encontrar facilmente um registro particular tão somente usando as mãos, terá de usar
técnicas de computação de busca, de combinação e de seleção, lembrando-se de que um
banco de dados é tão amplo que não pode ser disponibilizado de uma vez, e de que
existe para além da escala da percepção e cognição humanas. É essa nova escala “não-
humana” que, para LEV MANOVICH (2002), representa uma qualidade “essencial” de um
banco de dados.
Para o leitor dos tempos atuais, como afirma LEV MANOVICH (2002), os bancos de
dados permitem a coexistência de diferentes pontos de vista, diferentes modelos de
mundo, diferentes ontologias e potencialmente diferentes éticas.
Entretanto, desse leitor, esperamos que continue a realizar a atividade de compreensão
de um texto, de qualquer texto, baseado nos pressupostos de que: o texto não é
totalmente explícito; o texto se constitui de um conjunto de pistas que orientam o leitor
na construção do sentido; o texto exige do leitor que este preencha lacunas, formule
hipóteses, reformule hipóteses em caso de desencontros por meio de inferências que
exigem a mobilização de seus conhecimentos prévios, como bem enfatiza KOCH (2002).
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Artigo publicado na
ISSN: 1679-8740