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antes da Escola*
*
Publicado originalmente na Série Documental/Relatos de Pesquisa, n. 21, outubro de 1994.
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social daqueles que não dominam o código como ouvir estórias, nomear, fazer de conta,
escrito (Oliveira, 1992). dramatizar, consultar livros, rótulos, manuais de
instruções, ver televisão, ouvir rádio, música, etc.
Baseados num outro modelo de (Snow, 1983; Wells, 1985; Carvalho, 1989).
letramento,1 os trabalhos referidos a seguir, têm-
se voltado para estudar as práticas de leitura e Trabalhos desenvolvidos no Brasil têm
escrita, reconhecendo sua natureza ideológica estudado interações da criança com a escrita,
e o significado do processo de socialização na investigando o desenvolvimento do letramento
construção do sentido do ler e escrever. Eles em crianças que vivem em ambientes muito
partem da hipótese de que a escrita tem letrados (Rego, 1988, Maryrink-Sabinson, 1990),
significados particulares para grupos sociais ou pouco letrados (Terzi, 1992, Castanheira,
distintos e enfatizam a necessidade de se 1992). Eles destacam a influência do letramento
compreender o papel do letramento nos do grupo no processo de desenvolvimento da
diferentes grupos e sociedades, bem como as criança na área da leitura/escrita e discutem a
formas pelas quais; as crianças adquirem esse atuação da escola neste campo. Consideram
conhecimento em suas comunidades. Salientam impor tante desenvolverem-se estudos
que a escola pode trabalhar com a linguagem de comparativos que favoreçam a compreensão
maneira semelhante às práticas da comunidade; dos significados sociais da escrita para
pode exigir uma certa adaptação por parte das diferentes grupos (Miranda, 1992) e que indiquem
crianças; ou pode até mesmo ir diretamente semelhanças e especificidades no
contra os padrões da comunidade. Essas desenvolvimento do letramento das crianças
atitudes trariam conseqüências diferentes para destes grupos.
o sucesso escolar das crianças.
Neste contexto, investigar a maneira como
Através de investigações longitudinais em as crianças aprendem a língua escrita implica
grupos diversos, Heath (1982), Anderson e Teale alguns pressupostos a respeito do que é ler, para
(1987) e Woods (1987) encontraram diferenças que se lê, como se lê e como se aprende a ler.
no modo como as crianças interagem com a Implica compreender a leitura não como uma
escrita no contexto familiar. Diferenças na forma simples decodificação de signos lingüísticos,
de referir-se aos textos, buscar informações e mas como um processo de produção (Orlandi,
negociar o seu sentido, assim como na maneira 1984), no qual se destacam, como elementos
como se estabelecem relações espaço- básicos, a situação, o contexto histórico-social
temporais e interações entre os membros da e os interlocutores. Significa também considerar,
comunidade refletem-se, segundo Heath, nas na alfabetização, o processo de elaboração
primeiras experiências das crianças com a cognitiva da criança que busca compreender o
língua. Revelam-se no modo como as crianças que é e como funciona o sistema de escrita
participam de eventos de letramento, aprendem (Ferreiro e Teberosky, 1985), o qual, antes de ser
a atribuir significado ao material escrito e são um objeto escolar, é um objeto social.
preparadas para a escola. Anderson e Teale
afirmam ser importante a presença da criança Estudar a aprendizagem da língua escrita
(como observadora ou participante) em eventos implica também, nesta perspectiva, focalizar o
nos quais; a leitura e a escrita desempenham seu caráter histórico-social apontado por
diferentes funções, por considerarem que estes Vygotsky (1989), para quem a leitura e a escrita,
eventos se realizam dentro de atividades que vão como processos psicológicos superiores, se
muito além da aprendizagem do ler/escrever e desenvolvem inicialmente no nível
inserem esta aprendizagem num contexto de interpsicológico, isto é, nas interações entre as
utilização da língua escrita com fins práticos. pessoas alfabetizadas e a criança, passando
Desta forma, tem-se considerado relevante então, através de um processo de internalização,
estudar a participação da criança em eventos, a desenvolver-se no nível do funcionamento
1
Considerado por Street (1994) como Modelo Ideológico e que se contrapõe ao anterior, o Modelo Autônomo.
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intrapsicológico (individual). E neste contexto, que em casa, quanto nas suas brincadeiras na rua,
Smolka (1989, p. 28) se refere à atividade de com os irmãos ou com outras crianças da
leitura, vizinhança. As observações foram feitas em
1991, através de visitas semanais de
[...] como forma de linguagem aproximadamente 60 minutos, em diferentes
originária na dinâmica das interações horários e dias da semana, por duplas de
humanas – portanto, de natureza dialógica observadores, durante um período de oito
– que em processo de emergência e meses, perfazendo em média 58 horas de
transformação no curso da História, marca observação por grupo. As observações foram
os indivíduos (em termos culturais, mas registradas em áudio, ou por meio de anotações
não genéticos) e configura as relações de campo, e incluíram também entrevistas semi-
sociais [...] como atividade inter e estruturadas com as pessoas da família.
intrapsicológica, no sentido de que os
processos e os efeitos desta atividade de Constituímos quatro grupos de quatro
linguagem transformam os indivíduos famílias, caracterizados da seguinte forma:
enquanto medeiam a experiência humana.
Grupo 1: habitantes da zona rural, com renda
Estudando o cotidiano da sala de aula, na mensal de até dois salários mínimos
perspectiva de Vygotsky, a autora também e escolarização até a 2ª série;
destaca a necessidade de se analisar a
constituição do sujeito-leitor, o que implica o Grupo 2: habitantes da periferia, com renda de
estudo das condições sócio-históricas em que até dois salários mínimos e nível de
a atividade de leitura se produz, do processo de escolarização até a 2ª série;
mediação ai existente, e da dinâmica das
relações interpessoais envolvidas na elaboração Grupo 3: habitantes de bairro considerado de
do conhecimento da/pela escrita. classe média, com renda de quatro a
sete salários mínimos e nível de
Conhecer as práticas de letramento das escolarização médio/2º grau;
famílias parece ser, portanto, um dos passos para
a compreensão de como a criança se constitui Grupo 4: habitantes de bairro considerado de
leitora, pois de acordo com De Lemos (1989), o classe média, com renda acima de 10
desenvolvimento do processo de letramento da salários mínimos e nível de
criança parece estar relacionado ao grau de escolarização superior.
letramento da família e aos diferentes modos de
Os dados coletados a par tir desse
participação da criança nas suas práticas de
procedimento serão apresentados a seguir,
leitura e escrita.
objetivando conhecer.
Partindo do pressuposto de que diferentes
a) as famílias que constituem os grupos,
grupos socioeconômicos têm diferentes graus
as condições em que vivem e suas idéias sobre
de familiaridade com a língua escrita, nosso
o ler e escrever;
trabalho tem o objetivo de estudar como se dá a
relação com a escrita em crianças ainda não b) os materiais escritos disponíveis nas
escolarizadas, pertencentes a diferentes grupos residências;
socioeconômicos, no contexto do Município de
Campina Grande, Paraíba. c) os usos da escrita pelos grupos e pelas
crianças que ainda não freqüentam a escola.
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participantes e de suas estratégias e processos meses a oito anos; os maiores já ajudam nas
de interpretação”. tarefas domésticas e se responsabilizam por
fazer pequenas compras nas mercearias
próximas. As crianças brincam freqüentemente
CONHECENDO AS FAMÍLIAS
nos arredores das casas, num entrar e sair
constantes para buscar objetos ou falar com as
Famílias do Grupo 1 mães.
2
Os nomes das pessoas estão abreviados, e quando se trata das crianças não escolarizadas aparecem em itálico.
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marido não tava desempregado. E tanto faz saber numa rua de casas simples, onde as famílias
ler como não, o salário é o mesmo para todos. residem há muitos anos, juntamente com os avós
(Entrevista 2B, 12/6/91). e tios das crianças. As casas são bem próximas
e os vizinhos têm muito contato entre si,
Essas perspectivas contraditórias a visitando-se, conversando pelas janelas, usando
respeito do valor atribuído ao estudo e à escrita o mesmo telefone. As crianças brincam nas
revelam-se também quando, por um lado, calçadas, algumas vezes nas casas vizinhas e
afirmam que “quem não lê é moco ou cego” e freqüentemente no interior das casas. Os pais
quem sabe ler “sabe entrar e sair em qualquer têm entre 23 e 30 anos. As mulheres trabalham
parte do mundo”, mas, por outro lado, dizem que
como recepcionista, em serviço de contabilidade,
se alguém “não sabe ler, não significa dizer que
vendendo confecções e uma delas não trabalha
não sabe nada”. Reconhecem haver “gente que
fora de casa. Três dos casais são separados e
sabe ler, tem a maior leitura assim e não sabe ir
os homens moram noutra cidade. O que vive
pra um canto”.
com a família é pequeno comerciante. Os avós
A possibilidade tão difundida de mobilidade têm origem rural, são alfabetizados e se
social através do estudo é também discutida responsabilizam pela supervisão das crianças,
pelas famílias que apontam fatores pessoais e no dia-a-dia. Três das quatro famílias têm filhos
sociais ao se referirem a este aspecto, afirmando únicos enquanto a outra tem três filhos (dois dos
que “o homem trabalhador não falta emprego pra quais com oito e nove anos freqüentam uma
ele. Agora, se for preguiçoso, falta”. Mas às vezes escola pública do bairro). Apesar de fazerem
não se trabalha porque “falta emprego mesmo” e críticas à escola, principalmente às freqüentes
estudar e não ter emprego “não é problema do greves e à ausência de rigor quanto ao
estudo, é problema do país”. comportamento dos alunos, as mães gostariam
que seus filhos pequenos já estivessem na
Na zona rural, discute-se também o valor escola, mas por dificuldades financeiras,
do estudo contrapondo-o à importância do esperam que fiquem maiores para matriculá-los,
trabalho no campo, o único considerado trabalho incentivando-os, enquanto isto, através de
real segundo a fala de um vizinho: conversas sobre o assunto e compra de
materiais escolares.
Ex. 3
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Famílias do Grupo 4 de tentar delinear as características de cada um
e compreender a relação da criança não
As famílias que constituem o Grupo 4 escolarizada com a escrita em cada grupo.
moram em dois bairros considerados de classe
média, em casas amplas, recém construídas ou Materiais escritos existentes nas casas
reformadas. Os vizinhos raramente se visitam e
as crianças brincam, geralmente no interior das Os materiais escritos existentes nas
suas próprias casas, nos terraços e jardins. Os casas variam muito em termos de quantidade e
pais são engenheiro, comerciante, fiscal da diversidade. Alguns são comuns a todos os
Receita Federal e bancário, enquanto as mães grupos, embora não a todas as casas: materiais
são dentista, médica, bancária e professora escolares, bíblia, cartas, documentos, rótulos de
universitária. Suas idades variam entre 27 e 39 embalagem, marcas de eletrodomésticos,
anos. Como ambos, pai e mãe, trabalham fora, calendários e revistas. Embora comuns estes
este foi o Grupo em que menos freqüentemente materiais apresentam grandes diferenças em
os pais estiveram presentes por ocasião das termos de quantidade e variação dependendo do
observações. Em uma das casas, a avó mora poder aquisitivo do grupo e das funções da
com a família e em praticamente todas há duas escrita nas suas vidas. Os livros escolares (às
empregadas domésticas, pelo menos uma vezes, apenas cadernos) foram os únicos
alfabetizada, sendo com estas que as crianças encontrados em algumas casas dos grupos da
permanecem a maior parte do dia. zona rural e da periferia, tal como foi observado
também por Castanheira (1992), Miranda (1992)
As famílias têm de dois a quatro filhos, com e Terzi (1992) em bairros periféricos de Belo
idade entre zero mês e 12 anos, cursando, os Horizonte e São Paulo. Por outro lado, alguns
que estão na escola, do pré-escolar à 6ª série materiais de caráter religioso só foram
de escolas par ticulares escolhidas encontrados no Grupo 1 (quadros com
principalmente pela estrutura física, espaço inscrições expostos na parede) e nos grupos 2
disponível e educação religiosa. Os pais receiam e 3 (folhetos e discos religiosos).
que a escola “deforme” a educação
proporcionada pela família, mas, apesar disso, Assim como Miranda observou que alguns
matriculam cedo as crianças na escola, até para objetos se prestam ao uso e ao enfeite, revelando
que não se sintam diferentes. Deste modo, valores do grupo como o culto da modernidade,
estudar, aprender a ler, faz parte do dia-a-dia das da religiosidade e do letramento, também
crianças deste grupo. Em casa, os pais, as verificamos que determinados materiais escritos
crianças e as empregadas domésticas fazem têm este duplo papel. Calendários nas paredes
freqüentes referências ao estudo e à escola e das casas dos grupos 1, 2 e 3 parecem ter, além
se engajam na realização das tarefas escolares. da finalidade de orientar datas, a de decoração,
como é o caso também dos jarros com inscrições
As crianças aqui observadas têm entre (Grupo 1), dos porta-toalhas com “Lar Feliz”, dos
sete meses e dois anos , sendo todas do sexo cartazes e figuras coladas na parede (Grupo 2),
feminino (UNA, IAN, RAS e LUI). dos nomes em gesso (grupos 1 e 4), da Bíblia. e
de outros textos expostos nas estantes (grupos
A CONVIVÊNCIA COM A ESCRITA 2, 3 e 4) e das caixas com brinquedos, expostos
nas prateleiras dos quartos (Grupo 4).
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(embora poucos) e nas do Grupo 4, onde entretenimento, comunicação interpessoal,
observamos também a presença de jornais, realização de atividades da vida diária, obtenção
revistas informativas e de decoração, romances, de informações e atividades religiosas. Com
livros técnicos, enciclopédias e dicionários. menor freqüência e não em todos os grupos,
registrou-se o seu uso também para compra e
A escrita está também nas caixinhas e venda, auxílio à memória, identificação de objetos
papéis com as quais as crianças dos grupos da pessoais e confirmação do que se diz oralmente.
zona rural constroem o material para suas
brincadeiras e nos brinquedos industrializados Trataremos em primeiro lugar do uso da
das crianças dos grupos 3 e 4. escrita pela família e, logo em seguida, pela
criança não escolarizada.
Quanto aos materiais escritos não
escolares destinados às crianças, praticamente Atividades escolares
não foram encontrados nos grupos da zona rural
e da periferia (apenas uma revista de história em É no contexto da realização de atividades
quadrinhos em cada um dos grupos). No Grupo escolares que os grupos mais se assemelham.
3, observamos além de uma revista de história Se incluirmos aquelas situações que, embora não
em quadrinhos, um álbum de figurinhas, um sejam de tarefas escolares, envolvem material
manual de instrução de brinquedos e uma caixa ligado à escola e a preocupação com a
com cadernetas e revistas usadas. Não foram aprendizagem da língua, é aqui que teremos, em
encontrados livros infantis em qualquer das todos os grupos, o maior número de eventos de
casas destes grupos, mas quando o observador, letramento. As crianças escrevem e lêem textos
durante as visitas, tinha algum em mãos, tanto escolares, mostram cadernos e provas,
as crianças quanto os adultos, principalmente do perguntam sobre letras e palavras e brincam de
grupo da periferia, folheavam, nomeavam as escola reproduzindo nos exercícios o padrão
figuras e liam, numa demonstração de interesse escolar, o qual também foi observado por
pela escrita, observado também por Castanheira Castanheira (1992).
(1992). No Grupo 4, há uma grande variedade
de material escrito destinado às crianças, As crianças não escolarizadas de todos os
mesmo àquelas que ainda não ingressaram na grupos se engajam em atividades do tipo escolar,
escola: livros e revistas infantis, álbuns de olhando livros e cadernos, mostrando-os,
figurinhas, jogos de letras e palavras, livros e respondendo e fazendo perguntas sobre letras
revistas usadas, além dos brinquedos, com suas e números, resolvendo tarefas passadas para
instruções. elas, etc. Nos grupos da zona rural e da periferia,
são os irmãos que já freqüentam a escola que
Para rabiscar, enquanto as crianças do abrem espaço para as crianças participarem de
Grupo 4 dispõem de quadro-negro e folhas de suas brincadeiras de escola. Embora poucas,
papel, as do Grupo 3 dispõem de cadernos e as são estas as experiências de letramento mais
da zona rural e da periferia aproveitam tudo o freqüentes para estas crianças e, nessas
que podem: telhas, pedaços de madeira, o chão, ocasiões, elas rabiscam nos cadernos usados
as paredes, cadernos e livros usados. dos irmãos, recebem orientações suas na
identificação de letras e na tarefa de cobri-las,
como nos mostram os exemplos abaixo:
Os usos da escrita pelos grupos e pelas
crianças não escolarizadas
Ex. 4
A par tir dos eventos de letramento
registrados e da bibliografia sobre o assunto AND (7a) está lendo na cartilha e começa a
(Heath 1982. Anderson e Teale, 1987) os usos ensinar ao irmão CRI (3a8m):
da escrita foram organizados em categorias, AND: Lê essa palavra aqui.
conforme seus objetivos. Em todos os grupos,
CRI: Ba... ba... o... i... o... ! [começam a rir]
observamos a escrita sendo usada para a
realização de atividades escolares, AND: A. Diga a.
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CRI: [incompreensível]. as crianças. Estas, no entanto, utilizam-no
bastante nas suas brincadeiras e atividades de
AND: A, i, a, i, aí.
manipulação e exploração dos objetos que as
CRI: 0, i, o, i: aí. cercam.
AND: Não, oi... (Observação 1D, 29/09/91)
As crianças não escolarizadas participam
Ex. 5 dessas atividades, às vezes como
observadoras, às vezes como agentes. Em
ALN (3 a 8m) pega um bloquinho da irmã, senta algumas ocasiões, elas usam os portadores de
no sofá e, à medida que “escreve”, fala sozinho: texto, mas sem dar aparentemente atenção à
escrita, como quando colam adesivos na parede,
Assim, ó! Assim como eu. Aí faz um negocim... constroem pipas e móveis para as casinhas com
aí coloca... aí bota assim... um aqui, outro aqui caixas vazias (situações mais comuns nos
... (Observação 2B, 19/12/91). grupos da zona rural e da periferia), apontam
figuras nos livros ou olham revistas. Outras
Nos grupos 3 e 4, além dos irmãos, os
vezes, as crianças fazem uma referência clara
adultos também entram em cena. Não
à escrita, apontando nomes de personagens das
há muitas brincadeiras de escola, talvez porque
revistas e álbuns de figurinhas, “lendo” histórias
a maioria das crianças é filho único ou têm irmãos
nos gibis, brincando com jogos educativos de
também pequenos, mas fazem exercícios
letras e números (eventos mais freqüentes no
considerados preparatórios para a alfabetização
grupo 3 e principalmente no 4).
(ligar pontos, pintar, etc), par ticipam de
conversas sobre tarefas escolares, letras, Entretanto, em todos os grupos, tanto os
palavras, etc, utilizando materiais variados como adultos quanto as crianças envolvem-se em
os exemplos 6 e 7 abaixo demonstram: atividades de entretenimento em que a língua
escrita aparece de modo indireto, ou seja, através
Ex. 6 de textos orais nos quais a escrita está
subjacente, como quando se vê televisão e se
SDO (7a) e SDY (10a) discutem sobre a tarefa ouve rádio. As adivinhações e as histórias
escolar e AND (4a) interfere: contadas sem o apoio do texto escrito aparecem
AND: Mas SDO não sabe o de casa, não. SDY. de uma forma bastante rica entre as famílias da
Eu sei fazer as contas de vezes. (Observação zona rural – o que foi também observado por Weid
3D, 26/11/91). (1987) na zona rural de Belo Horizonte –
envolvendo os adultos, as crianças e até os
vizinhos. Ao redor de quem as conta, todos
Ex.7 ouvem, completam, corrigem e dão palpites.
UNA (1 a 1m) está com a mãe e a irmã THA As crianças não escolarizadas da zona
(4a6m) no quarto dos pais. Abre a gaveta da rural participam destes eventos, observando
mesa de cabeceira, de onde tira atentamente, mas ainda sem fazer intervenção.
correspondências: Nesse campo da oralidade, no entanto, há
UNA: Baba... ba... babá... bá... situações dirigidas especialmente para elas, nas
quais, de uma forma lúdica, as pessoas jogam
THA: Olha, UNA, as letra! Olha as letra! [abre com o sentido das palavras, mas sem focalizar
uma agenda e pergunta] Que letra é essa, UMA? a escrita às vezes presente no objeto em que se
(Observação 4A, 21/11/91). apóia o jogo. Na situação seguinte, por exemplo,
não se leva em consideração o rótulo, mas a cor
Entretenimento da bebida:
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da casa. Os rapazes perguntam à criança se Comunicação interpessoal
quer bebida, apontando para diferentes garrafas:
Para comunicação interpessoal a língua
TOM: Essa, é?
escrita veiculada através das cartas, bilhetes e
WEL: Da pequena. cartões tem uma importante função em todos os
grupos, seja como uma das referências à
TOM: É dessa é? [apontando um litro de vinho]
importância do saber ler/escrever (grupos 1 e
NIV. Ah! Ele não tá sabendo não. 2), seja para dar e receber notícias de parentes
WEL Daquela que eu “tomi”. distantes (grupos 1 a 4), trocar mensagens
(grupos 2. 3 e 4), ou participar de sorteios na TV
NIV: Daquela preta? [refere-se à coca-cola] (grupos 3 e 4).
WEL: Sim.
Mas são as crianças não escolarizadas dos
NIV. Tem carvão aí? [risos]. (Observação, 1A, 30/ grupos 3 e 4 que revelam sua familiaridade com
5/91). este uso da escrita, na medida em que
“escrevem”, “lêem e fazem perguntas sobre
Nos grupos 3 e 4, o contar histórias, está
cartas, dedicatórias e cartões.
geralmente apoiado no texto escrito e envolve
apenas a criança e seu interlocutor.
Ex. 11
Ex. 9
RAN (4 a 5m) está “lendo” uma carta:
LUI (3 a 4m) e seu pai gravam histórias: RAM. Agora, eu vou mandar essa: “Eu quem te
NAS: Conta a tua história pra depois eu escutar. amei. Um beijo [beija o papel]. Eu quem te amo.
(Observação 3E, 5/11/91).
LUI: Era uma vez um ursinho muito, muito chato.
Aí, uma vez, ele foi catar morango. Aí, quando
Ex. 12
ele foi catar, o príncipe no show da Xuxa vem
colorido de “xutaches”... Então, uma própria
A mãe de LUI (3 a 1m) nos falou que estava
velhinha deu um docinho para os ursinhos...
tentando escrever uma carta para sua prima,
(Observação 4E, 12/91).
mas a menina não deixou; tomou o papel e
Notamos que a menina usa o marcador escreveu um bilhete para a prima, mostrado pela
“era uma vez” e expressões que estariam mais mãe, com muito orgulho – era uma série de
próximas da modalidade escrita, como “um rabiscos com o nome da criança. (Diário de
ursinho muito, muito chato” e “uma própria Campo, 4E, 15/10191).
velhinha”. Elementos específicos da narrativa
são empregados por RAS (2a2m) que conta uma Vida diária
história, enquanto rabisca numa caderneta,
suspirando como se fizesse um grande esforço. Os grupos apresentam algumas diferenças
quanto ao uso da escrita para realização de
atividades da vida diária. Na zona rural, os
Ex. 10
eventos nessa categoria são muito poucos: as
RAS (2 a 2m) ... Eu conte... a historinha... aqui pessoas consultam calendários, perguntam as
[...I Aí... aí... bicho comeu... aí... aí... aí [...] contou... horas e se referem à necessidade de ler
ponto! (Observação 4D, 17/09/91). documentos e placas, quando vão à cidade. Mas
mesmo a necessidade da leitura com esse
A escrita subjacente a atividades de objetivo é questionada por alguns, talvez porque
entretenimento aparece também quando as tenham desenvolvido estratégias de
crianças de todos os grupos imitam programas sobrevivência que prescindam da escrita. Na
de TV e cantam músicas de escola e de ciranda periferia, há uma variedade um pouco maior de
(grupo 1 e 2) e músicas sertanejas que estão na eventos deste tipo, uma vez que os pais também
moda (grupos 2, 3 e 4). olham rótulos de produtos, notas fiscais e carnês.
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Às vezes, não há uma leitura enquanto Informação
decodificação do texto, mas discussões sobre
ele, em que as pessoas ora se guiam pelas Para obtenção de informações, a escrita é
letras, ora pelo icônico, num processo de utilizada de forma indireta quando as pessoas
negociação do seu sentido: dos diversos grupos ouvem noticiários de rádio
e televisão. Alguns episódios relativos ao uso de
Ex. 13 jornais e revistas informativas ocorreram, com
pouca freqüência no Grupo 4 e ainda menos no
Enquanto conversavam, chega o funcionário da Grupo 3. Nesta categoria de eventos, envolvem-
Cagepa, entregando a conta da água. Há uma se particularmente os adultos, tendo crianças do
breve discussão porque o irmão da dona da casa Grupo 4 reconhecido esses textos como
diz que é a conta da luz e a vizinha afirma que é pertencentes aos pais.
a da água. Teimaram alguns minutos, e a dona
da casa, depois de olhar bem para o carnê, diz Atividades religiosas
com veemência que é da água. Então, ela pede
que eu olhe o valor a ser pago. (Diário de Campo, Ligada a atividades religiosas, a escrita
2C 18/07/91). parece ter uma função importante nos grupos 1,
2 e 3, os quais, como também foi observado por
Esta partilha observada na construção do
Miranda (1992), explicitam nas suas práticas o
sentido do texto também se verifica noutras
grande valor simbólico associado ao material
ocasiões em que as pessoas dividem o pouco
religioso: os pais referem-se ao desejo de
alimento, dinheiro e espaço disponíveis.
aprender a leitura para “ler na Bíblia”, indicam
textos de “literatura”, isto é, folhetos evangélicos
Nos grupos 3 e 4, além desses usos,
e têm a Bíblia entre as mãos enquanto escutam
observamos leitura de catálogos, bulas, manuais
fitas evangélicas. As crianças não escolarizadas
de instrução e receitas culinárias.
presenciam estes eventos como observadoras.
As crianças não escolarizadas do Grupo 1
não se envolveram em eventos nessa categoria; Ex. 16
as do Grupo 2 envolveram-se em alguns, embora
poucos olhando, por exemplo, embalagens de A tia sentou no chão com TIG (2 a 2m) no colo.
produtos: Por alguns instantes, ela pareceu estar lendo a
Bíblia; fechou-a e colocou-a sobre a radiola.
(Diário de Campo, 3A, 06/08/91).
Ex. 14
EDA (4 a 6m) e a irmã olham as capas de discos Outros usos: compra e venda, auxilio à memória,
da estante, um por um até me mostrarem todos. identificação de objetos pessoais e confirmação
(Diário de Campo, 2E, 25/11/91).
Outros usos da escrita foram observados
As crianças dos grupos 3 e 4, no entanto,
apenas ocasionalmente, como os relativos à
explicitam seu conhecimento neste sentido de
compra e venda e auxílio à memória. Não
várias maneiras, dizendo que no calendário “tem
podemos dizer se, no turno da noite, quando há
os dias”, “vendo” número no termômetro, “lendo”
uma presença maior dos pais, principalmente os
manuais de instrução, “lendo” e “escrevendo”
da zona urbana em casa, esses eventos
receitas culinárias:
ocorrem, com maior freqüência, uma vez que as
nossas visitas às famílias não incluíram esse
Ex. 15 horário. Talvez por isso, eventos de letramento
ligados a atividades profissionais, quase não
IAN (1 a 6m) vai ao quarto dos pais, olha o relógio tenham sido registrados, salvo algumas
de cabeceira, volta para sala e diz: “teis”. (Diário referências feitas pelos adultos a partir de
de Campo, 4C, 16/9/91). perguntas do observador.
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As crianças não escolarizadas presenciam um cartaz exposto na parede da casa para
o uso do dinheiro como portador de escrita e convidar a observadora a participar de uma
neste campo de compra e venda vêem as novena.
pessoas confirmando preços ou fazendo
compras. Registramos episódios em que as DISCUSSÃO
crianças, dos grupos 2, 3 e 4 explicitam seu
conhecimento neste sentido: Os dados coletados nos mostram que,
desde cedo, as crianças de todos os grupos têm
Ex.17 experiências de letramento proporcionadas pela
presença de materiais escritos em suas
SOC (4 a 6m), vendo os tíquetes de ônibus da residências e pelos usos que tem a escrita nas
observadora, diz: – Pia, Sônia, isso é de leite, suas famílias.
né? Sônia, isso né de leite? (Observação 2D,
03/09/91). Tendo como perspectiva o trabalho da
escola, cabe-nos discutir aqui alguns pontos. O
Ex. 18 primeiro deles é a noção de que as crianças,
principalmente as da periferia e da zona rural,
RAS (2 a 3m) e sua irmã, MAI (3a) fazem de chegam à escola sem qualquer conhecimento a
conta que vendem bananas, usando um carrinho respeito da língua escrita. Observamos que,
de bebê: mesmo aquelas crianças que vivem em ambiente
MAI: Manana, manana, tem verde. menos letrados, como as da zona rural e da
periferia, inserem-se / vão sendo inseridas de
RÃS: Ei tem manana aí?
algum modo no mundo da escrita, antes de
MAI: Tem batinha fita. ingressarem na escola, seja presenciando
RÃS: Me dê manana [MAI entrega]. Quanto é? eventos de letramento em que os protagonistas
são outras pessoas, seja participando desses
MAI: É dez mil. (Observação D4, 4/9/91). eventos por sua própria iniciativa ou pela de
outrem, principalmente os irmãos escolarizados.
As crianças não escolarizadas dos grupos Mas a escola desconsidera as experiências
3 e 4 demonstram nas suas brincadeiras o uso anteriores das crianças, pretende iniciar o seu
da escrita como auxílio à memória: processo de alfabetização partindo do zero e
restringe o acesso da criança à escrita, sob a
Ex. 19 alegação de que convém prepará-la antes para
a alfabetização. Essa atitude se aplica tanto às
RAN (4 a 6m) faz de conta que está telefonando crianças provenientes de lares letrados, como
para a mãe, enquanto consulta um papel: destaca Rego (1988), quanto, e talvez
RAN: Onde... cadê minha...? Ah! O trabalho dela principalmente, às crianças que vêm de
é... é: 1, 2, 3... 1, 7, 8... 7, 8. (Observação 3E, 5/ ambientes pouco letrados. Para Castanheira
11191). (1992), a escola tem idéias preconcebidas sobre
as crianças pobres e ao invés de ampliar o que
O uso da escrita para identificar objetos elas já sabem, afasta-as da escrita, propondo-
pessoais foi observado nos grupos 3 e 4 e as lhes exercícios mecânicos e sem significado.
crianças não escolarizadas destes grupos Segundo Moreira (1988), a escola não dá
mostraram materiais marcados com seus nomes condições de tomar significativo o uso da escrita
(grupos 3 e 4) e chamaram a atenção para os nem para as crianças pobres nem para as de
nomes expostos nos quartos (grupo 4). classe média, que teriam de ultrapassar a escola
para retomar os usos significativos da escrita,
Finalmente, a utilização da escrita para descobertos em atividades familiares.
confirmar o que se diz oralmente nos é revelada
por uma das mães do grupo da periferia que não Outra noção sobre a qual os dados nos
é alfabetizada, mas que, numa demonstração do levam a refletir é a do interesse/desinteresse das
poder atribuído à escrita (Gnerre, 1985), aponta crianças pelo mundo da escrita. Seja fazendo
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usos diversos da língua escrita, como acontece Nos dois grupos, a escrita é valorizada/
entre as crianças cujas famílias têm maior questionada principalmente como uma
familiaridade com este objeto, seja quase apenas referência, pelo que seu acesso poderia permitir
usando-a com uma função escolar, como é o no futuro;
caso das crianças de famílias com menor nível
de letramento, observamos que as crianças c) nas famílias menos pobres e com maior
familiaridade com a escrita (Grupo 3), várias
demonstram interesse pela escrita e têm nela
experiências de leitura e escrita, mesmo sendo
uma fonte de entretenimento no seu dia-a-dia. Na relativamente poucos os materiais escritos
mesma direção da tese defendida por Patto disponíveis;
(1973) e Sena (1992), nossos dados parecem
contradizer a hipótese de que o fracasso escolar d) nas famílias de maior nível salarial e escolar
das crianças pobres deve ser atribuído a sua (Grupo 4), muitos e diversificados portadores
falta de interesse ou à de seus pais. Há interesse, de texto (inclusive materiais específicos para
sim. Naturalmente, não se pode avaliá-lo pelo crianças) e diversos usos da leitura e escrita.
engajamento dos pais na orientação dos
trabalhos escolares, uma vez que esta tarefa As crianças não escolarizadas,
exige um nível de letramento que muitos deles conseqüentemente, têm experiências
não possuem. Tal engajamento acontece nos particulares com a língua escrita, parecendo
grupos 3 e 4. No entanto, nos grupos da zona haver diferenças principalmente quando tratamos
rural e da periferia o envolvimento com a vida do uso do texto escrito de forma direta e não
escolar das crianças se revela quando os pais apenas subjacente às ações. As crianças da
demonstram orgulho pelo desempenho dos filhos, zona rural convivem com o texto escrito
apóiam os castigos porque os consideram relacionado principalmente a atividades
necessários para a aprendizagem (grupos 1 e escolares e de entretenimento proporcionadas
2); obrigam as crianças a freqüentarem a escola; pelas brincadeiras de escola dos irmãos. As da
apesar das dificuldades financeiras, compram periferia têm alguma convivência com a escrita
algum material escolar ou preparatório para a usada também para realização de atividades
escola e afirmam que só desejam a aprovação ligadas à vida diária, religião, comunicação
das crianças “se souberem mesmo” (grupo 2). interpessoal, compra e venda e como auxilio a
Por outro lado, como nos lembra Terzi (1992, p. memória. Mas são poucos os eventos nessas
181), precisamos categorias. Para as crianças dos outros grupos,
a convivência se dá, além disso, quando a escrita
[...] relativizar a afirmação de que toda criança é usada para obter informações. Enquanto as
ao chegar à escola já traz um conhecimento crianças dos grupos mais letrados têm maior
sobre a escrita, uma vez que esse conhecimento quantidade e variedade de experiências de
difere bastante de criança para criança – já que letramento e vivenciam estes eventos como algo
são diferentes as possibilidades de letramento usual, do seu cotidiano, as dos grupos menos
oferecidas pela família e pela comunidade. letrados parecem ver a escrita principalmente
como algo que trará benefícios no futuro. Estar
Neste sentido, podemos apontar algumas na escola teria esse objetivo.
prováveis características dos grupos estudados:
Isto, provavelmente, leva às diferentes
a) na zona rural (Grupo 1), a riqueza dos jogos posturas assumidas pelos adultos nas suas
orais envolvendo todos os membros da família interações com as crianças cujo tema é a língua
e voltados para a construção do significado das escrita. Talvez por esse motivo, os adultos dos
palavras; grupos 1 e 2 dêem pouca atenção às interações
da criança não alfabetizada com o texto escrito
b) nas famílias da periferia (Grupo 2), a partilha (o que não se verifica quando os filhos já
de objetos, de alimentos, de leitura dos textos freqüentam a escola). Nos grupos com maior
cujo sentido é negociado pelas pessoas que nível de letramento, por outro lado, os adultos e
precisam ler, têm pouco conhecimento do código as crianças que já estão na escola dedicam,
e coletivizam. suas dificuldades. desde muito cedo, atenção às interações da
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criança com a escrita, seja proporcionando jogos levantamos a possibilidade de lacunas na
simbólicos, seja focalizando a escrita e metodologia do trabalho, cujas observações
assumindo o papel de quem informa, pergunta, quase não puderam se realizar no expediente
explica, responde, nas situações reais. noturno, quando em geral todos os familiares
estão em casa.
Outro ponto que merece discussão é a
forma como acontecem as atividades permeadas Problemas de ordem metodológica, aliás,
pela língua escrita. A leitura de histórias, por em trabalhos desse tipo merecem, a nosso ver,
exemplo, no grupo de escolaridade superior é um estudo particular. Julgamos ser fundamental,
uma atividade dirigida à criança pequena, na qual por exemplo, estudar o papel e as dificuldades
se engaja um adulto ou outra criança. Na zona da figura do observador, o qual, necessitando
rural, a atividade de contar histórias como outros penetrar no cotidiano das famílias, precisa
jogos orais, envolvem toda a família e, embora a manter-se distante para enxergar os fatos com
criança pequena participe ainda apenas como a necessária objetividade.
observadora, acreditamos que está aprendendo
Ainda a respeito das formas de como se
formas de se relacionar com a escrita. Segundo
desenvolvem as atividades no interior das casas,
Snow (1983), contar ou ler histórias para as
salientamos a maneira como as famílias de menor
crianças é uma das maneiras de prepará-las para
nível de letramento se relacionam com o texto
as formas escritas do letramento, uma vez que
oral ou escrito, construindo em conjunto o seu
com isso as pessoas fornecem indicações sobre
significado, partilhando as dificuldades, os
aspectos da língua escrita no discurso oral e
recursos, as interpretações, numa elaboração
provêem a descontextualização, pelo
coletiva de sentido, em que várias pessoas,
distanciamento do cenário e do autor. Wells
alfabetizadas ou não, inter vêm, opinam,
(1985) também estudou esta questão e verificou
discordam, lêem. Miranda (1992) também chama
que folhear livros, desenhar e colorir não estão
a atenção para essas leituras par tilhadas
significativamente correlacionados com medidas
observadas em seu estudo na periferia de Belo
de compreensão de leitura realizadas
Horizonte. Enquanto isso, de acordo com
posteriormente na criança, nem com grau de
Castanheira (1992), a escola continua
instrução dos pais. Mas, ouvir histórias,
trabalhando a escrita de maneira que individualiza
principalmente lidas, sim. Heath (1982) também
a relação do aluno com o texto. Impede-se a
encontrou diferenças, neste sentido, entre as
troca, a ajuda, a participação dos companheiros
comunidades estudadas e relaciona essas
no ato de ler. O papel do “outro” também
diferenças com o trabalho realizado na escola,
salientado por Anderson e Teale (1987), De
que estaria muito mais próximo das experiências
Lemos (1989) e Smolka (1989) não é
das crianças de classe média, favorecendo o seu
considerado relevante.
desempenho. Talvez este ponto deva ser melhor
estudado, se quisermos encontrar maneiras de
Acreditamos que, a partir da importância
contribuir para a aprendizagem na área da leitura
atribuída por Vygotsky às condições sócio-
dos alunos das nossas escolas, particularmente
históricas, aos processos interpsicológicos e à
as públicas.
mediação dos outros na apropriação pela criança
do conhecimento sobre a escrita, temos ainda
Nas famílias da periferia, praticamente não
muito a conhecer neste campo.
registramos a ocorrência de jogos orais como
contar histórias, fazer adivinhações ou
brincadeiras de rima, salvo algumas imitações CONSIDERAÇÕES FINAIS
de programas de TV. Este dado nos causou
estranheza uma vez que aquelas famílias são Este trabalho busca compreender a
oriundas da zona rural, onde o trabalho com a convivência da criança com a língua escrita,
oralidade se desenvolve de maneira tão rica. antes do seu ingresso na escola, a partir da
Talvez pudéssemos explicar essa ausência na caracterização dos usos da escrita em grupos
perspectiva da “perda de identidade” decorrente com diferentes relações com esta modalidade
da migração da família para a zona urbana da língua. Por suas características
(Nicolaci-da-Costa, 1987). No entanto, metodológicas, não pretende fazer
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generalizações ou estabelecer conclusões. É REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
antes disso, um trabalho exploratório de
“reconhecimento do terreno”, através do qual
esperamos ter fornecido alguns indicadores do ANDERSON, A., TEALE, W. A lecto-escrita como
que as crianças ainda não escolarizadas prática cultural. In: FERREIRO, E.; PALÁCIO, M.
conhecem a respeito dos usos da escrita. Os processos de leitura e escrita: novas
perspectivas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.
No seu conjunto, os dados parecem vir p. 213-230.
apoiar questionamentos levantados por Woods CARVALHO, A. O desenvolvimento do discurso
(1987) e Soares (1993), a respeito de se ter narrativo: a relação interjogos na emergência das
uma definição uniforme de alfabetização, uma narrativas orais. Estudos Lingüísticos, n. 28, p.
vez que encontramos indivíduos que, mesmo 240-248, 1989. número especial sobre os Anais
sem saber ler e escrever são, de diversas do Seminário do GEL, Lorena, 1989.
formas, usuários da escrita. A noção de
letramento ou analfabetismo parece envolver, CASTANHEIRA, M. L. Da escrita no cotidiano à
portanto, aspectos bem mais complexos do escrita escolar. Leitura: Teoria e Prática, v. 11, n.
que se poderia sugerir, fazendo simplesmente 20, p. 34-45, dez. 1992.
uma dicotomia entre analfabetos e COOK-GUMPERZ, J. A construção social da
alfabetizados. alfabetização. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.
cap.: Alfabetização e escolarização: uma
Além deste, e na perspectiva de entender equação imutável?
mais claramente as formas através das quais
a criança se constitui leitora, destacamos DE LEMOS, C. Prefácio. In: KATO, M. A
alguns aspectos relacionados a este trabalho concepção da escrita pela criança. Campinas:
e que, a nosso ver, mereceriam estudos Pontes, 1989. p. 9-14.
posteriores. Parece ser impor tante, por FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. Psicogênese
exemplo, ter uma melhor compreensão dos da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas,
tipos de eventos de letramento dos quais a 1985.
criança participa ou apenas observa; das
informações contidas nos eventos de GNERRE, M. Linguagem, escrita e poder. São
letramento presenciados pela criança; das Paulo: Martins Fontes, 1985.
experiências de letramento de crianças da GRAFF, H. O mito do analfabetismo. Teoria e
mesma comunidade, mas cujos pais têm Educação, n. 2, p. 30-64, 1990.
diferentes graus de escolaridade; do papel dos
jogos orais no desenvolvimento do letramento HEATH, S. What no bedtime story means:
nas crianças e das interações entre a criança narrative skiIls at home and school. Language in
não escolarizada e seus familiares quando se Society, v. 1, 1982.
relacionam com a escrita. KLEIMAN, A. et al. Letramento e escolarização.
uma pesquisa para uma prática convergente.
Acreditamos na necessidade de avançar
Campinas: Unicamp, 1990.
na compreensão dos aspectos aqui destacados,
bem como na discussão das suas implicações MATTA, R. Relativizando: uma introdução à
para o trabalho na sala de aula já que a escola antropologia social. Rio de janeiro: Racco, 1987.
não pode continuar encarando como “deficiência”
MAYRINK-SABINSON, M. Para que serve a
modos particulares de se relacionar com a
escrita, quando você ainda não sabe ler/
escrita. Precisaria, sim, conhecê-los melhor para
escrever? Leitura: Teoria e Prática, n. 9, p. 20-24,
poder reorientar a sua própria prática e tomar-se
dez. 1990.
mais competente no que deveria ser a sua
função: contribuir para a diminuição das MIRANDA, M. Os usos sociais da escrita no
desigualdades sociais, garantindo a ampliação cotidiano de camadas populares. Belo Horizonte,
do saber sem destruir as experiências da 1992 Dissertação (Mestrado) Faculdade de
criança. Educação, UFMG.
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