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(Rubens Alves)
ÍNDICE
P e r s p e c tiv a s .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ....7
O s s í m b o l o s d a a u s ê n c ia ... . . . . . . . . . 1 4
O e x ílio d o s a g ra d o . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 6
A c o i s a q u e n u n c a m e n t e .. . . . . . . . . . . . . 5 2
A s flo re s so b re a s c o rre n te s.........6 8
A v o z d o d e s e jo . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . 8 5
O D e u sd o so p rim id o s...............1 0 2
A a p o s ta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 1 5
I n d ic a ç õ e s p a r a le itu r a .. . . . . . . . . . . . . . 1 3 0
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PERSPECTIVAS
A q u i e s tã o o s s a c e rd o te s ; e m u ito e m b o ra s e ja m m e u s in im ig o s . . . m e u
s a n g u e e s tá lig a d o a o d e le s ."
(F . N ie tz s c h e , A s s im fa la v a Z a ra tu s tra ).
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matem‚ticas dos astros.
Desapareceu a religi…o? De forma alguma. Ela permanece e frequen temente exibe uma vitalidade que se julgava
extinta. Mas n…o se pode negar que ela j‚ n…o pode frequentar aqueles lugares que um dia lhe pertenceram: foi
expulsa dos centros do saber cient€fico e das c‰maras onde se tomam as decis†es que concretamente dete rminam
nossas vidas. Na verdade, n…o sei de nenhuma inst‰ncia em que os te„logos tenham sido convidados a colaborar na
elabora‡…o de planos militares. N…o me consta, igualmente, que a sensibilidade moral dos profetas tenha sido
aproveitada para o desenvolvimento de problemas econ„micos. E • altamente duvidoso que qualquer
industrial, convencido de que a natureza • cria‡…o de Deus, e portanto sagrada, tenha perdido o sono por
causa da polui‡…o. Permanece a experiˆncia religios a — fora do “nulo da ciˆncia, das f‚bricas, das usinas,
das armas, do dinheiro, dos bancos, da propaganda, da venda, da compra, do lucro. Œ compreens€vel
diferentemente do que ocorria em passado muito distante, poucos pais sonhem com carreira sacerdo tal para os
seus filhos. . .
A situaua‡…o mudou. No mundo sagrado, a experiˆncia religiosa era parte integrante de cada um, da
m e s m a fo rm a c o m o o s e x o , a c o r d a p e le , o s m e m b ro s , a lin g u a g e m . U m a p e s s o a s e m re lig iã o e ra u m a a n o m a lia
.N o m u n d o d e s s a c ra liz a d o
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a s c o is a s s e in v e rte r a m . M e n o s e n tre o s h o m e n s c o m u n s , e x te r n o s a o s c ír c u lo s a c a d é m ic o s , m a s d e fo rm a
in te n s a e n tre a q u e le s q u e p re te n d e m já h a v e r p a s s a d o p e la ilu m in a ç ã o c ie n tífic a , o e m b a ra ç o fre n te à
e x p e riê n c ia r e lig io s a p e s s o a l é in e g á v e l. P o r ra z õ e s ó b v ia s . C o n fe s s a r- s e re lig io s o e q u iv a le a c o n fe s s a r-s e
c o m o h a b ita n te d o m u n d o e n c a n ta d o e m á g ic o d o p a s s a d o , a in d a q u e a p e n a s p a r c ia lm e n te . E o e m b a r a ç o v a i
c re s c e n d o n a m e d id a e m q u e n o s a p r o x im a m o s d a s c iê n c ia s h u m a n a s , ju s ta m e n te a q u e la s q u e e s tu d a m a
r e lig iã o .
C o m o é is to p o s s ív e l?
C o m o e x p lic a r e s ta d is tâ n c ia e n tr e c o n h e c im e n to e e x p e riê n c ia ?
N ã o é d if íc il. N ã o é n e c e s s á r io q u e o c ie n tis ta te n h a e n v o lv im e n to s p e s s o a is c o m a m e b a s , c o m e ta s e v e n e n o s
p a r a c o m p re e n d ê -lo s e c o n h e c ê -lo s . S e n d o v á lid a a a n a lo g ia , p o d e r- s e - ia c o n c lu ir q u e n ã o s e ria n e c e s s á rio a o
c ie n tis ta h a v e r tid o e x p e riê n c ia s re lig io s a s p e s s o a is c o m o p re s s u p o s to p a ra s u a s in v e s tig a ç õ e s d o s fe n ó m e n o s
re lig io s o s .
O p r o b le m a é s e a a n a lo g ia p o d e s e r in v o c a d a p a r a to d a s a s s itu a ç õ e s . U m s u r d o d e n a s c e n ç a , p o d e r ia e le
c o m p r e e n d e r a e x p e riê n c ia e s té tic a q u e s e te m a o s e o u v ir a N o n a S in f o n ia d e B e e th o v e n ? P a re c e q u e n ã o . N o
e n ta n to , lh e s e ria p e rfe ita m e n te p o ssív e l fa z e r a c iê n c ia d o c o m p o rta m e n to d a s p e s s o a s , d e riv a d o d a
e x p e riê n c ia e s té tic a . O s u r d o p o d e r ia ir a c o n c e rto s e , s e m
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foseiam -se os nomes. Persiste a mesma fun‡…o religiosa. Promessas terapˆuticas de paz individual, de harmonia
€ntima, de libera‡…o da angƒstia, esperan‡as de ordens sociais fraternas e justas, de resolu‡…o das lutas entre os
homens e de harmo nia com a natureza, por mais disfar‡adas que estejam nas m‚scaras do jarg…o
psicanal€tico/psico l„gico, ou da linguagem da sociologia, da pol€tica e da economia, ser…o sempre express†es dos
problemas individuais e sociais em torno dos quais foram tecidas as teias religiosas. Se isto for verdade, seremos
for‡ados a concluir n…o que o nosso mundo se secularizou, mas antes que os deuses e esperan‡as religiosas ganharam
novos nomes e novos r„tulos, e os seus sacerdotes e profetas novas roupas, novos lugares e novos empregos. - Œ f‚cil
identificar, isolar e estudar a religi…o como o comportamento ex„tico de grupos sociais restritos e distantes. Mas •
necess‚rio reconhe cˆ-la como presen‡a invis€vel, sutil, disfar‡ada, que se constitui num dos fios com que se tece o
acontecer do nosso cotidiano. A religi…o est‚ mais pr„xima de nossa experiˆncia pessoal do que desejamos admitir.
O estudo da religi…o, portanto, longe de ser uma janela que se abre apenas para panoramas externos, • como um
espelho em que nos vemos. Aqui a ciˆncia da religi…o • tamb•m ciˆncia de n„s mesmos: sapiˆncia, conhecimento
saboroso. Como o disse poeticamente Ludwig Feuerbach:
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E poder€amos acrescentar: e que tesouro oculto n…o • religioso? E que confiss …o €ntima de amor n…o est‚ gr‚vida de
deuses? E quem seria esta pessoa vazia de tesouros ocultos e de segredos de amor?
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OS S•MBOLOS DA AUS‘NCIA
Atrav•s de centenas de milhares de anos os animais conseguiram sobreviver por meio da adapta‡…o f€sica. Os
seus dentes e as suas garras afiadas, os cascos duros e as carapa ‡as rijas, seus venenos e odores, os sentidos
hipersens€veis, a capacidade de correr, saltar, cavar, a estranha habilidade de confundir-se com o
terreno, as cascas das ‚rvores, as folhagens, todas estas s…o manifesta‡†es de corpos mar avilhosamente adap tados •
natureza ao seu redor. Mas a coisa n…o se esgota na adapta‡…o f€sica do organismo ao ambiente. O animal faz
com que a natureza se adapte ao seu corpo. E vemos as represas cons tru€das pˆlos castores, os buracos -
esconderijo
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dos tatus, os formigueiros, as colmeias de abelhas, as casas de jo…o-de-barro. . . E o extraord€n‚rio • que toda
esta sabedoria para sobreviver e arte para fazer seja transmitida de gera‡…o a gera‡…o, silenciosamente, sem
palavras e sem mestres. “Lembro -me daquela vespa ca‡adora QUE sai em busca de uma aranha, luta com ela,
pica -a, paralisa -a, arrastando -a ent…o para o seu ninho. Ali deposita os seus ovos e morre. Tempos depois as
larvas nascer…o e se alimentar…o da carne fresca da aranha im„vel. Crescer…o. E sem haver tomado li‡†es ou
frequentado escolas, um dia ouvir…o a voz silenciosa da sabedoria que habita os seus corpos, h‚ milhares de
anos: ; “Chegou a hora. Œ necess‚rio buscar uma aranha...”
E o que • extraordin‚rio • o tempo em que se d‚ a experiˆncia dos animais. Moluscos parecem luas conchas hoje
da mesma forma como o faziam h‚ milhares de anos atr‚s. Quanto aos Jo…os de barro, n…o sei de altera‡…o alguma,
para melhor ou para pior, que tenham introduzido no plano de suas casas. Os pintassilgos cantam i K) cantava m
no passado, e as represas r•s, as colmeias das abelhas e os formigueiros tˆm permanecido inalterados por s•culos.
Cada corpo produz sempre a mesma coisa. O O seu corpo. Sua programa‡…o biol„gica • completa, fechada,
perfeita. N…o h‚ problemas n…o correspondidos. E, por isto mesmo, ele n…o
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possui qualquer brecha para que alguma coisa nova seja inventada. Os animais praticamente n…o possuem uma
hist„ria, tal como a entendemos. Sua vida se processa num mundo estruturalmente fechado. A aventura da
liberdade n…o lhes • ofere cida, mas n…o recebem, em contrapartida, a maldi ‡…o da neurose e o terror da angƒstia.
Como s…o diferentes as coisas com o homem! Se o corpo do animal me permite prever que coisas ele
produzir‚ — a forma de sua concha, de sua toca, do seu ninho, o estilo de sua corte sexual, a mƒsica de seus sons — e
as coisas por ele produzidas me permitem saber de que corpo partiram, n…o existe nada semelhante que se
possa dizer dos homens . Aqui est‚ uma crian‡a rec•m -nascida. Do ponto de vista gen•tico ela j‚ se encontra
totalmente determinada: cor da pele, dos olhos, tipo de sangue, sexo, suscetibi lidade a enfermidades. Mas, como
ser‚ ela? Gostar‚ de mƒsica? De que mƒsica? Que l€ngua falar‚? E qual ser‚ o seu estilo? Por que ideais e valores
lutar‚? E que coisas sair…o de suas m…os? E aqui os geneticistas, por maiores que sejam os seus conhecimentos, ter…o
de se calar. Porque o homem, diferentemente do animal que • o seu corpo, tem o seu corpo. N…o • o corpo
que o faz. Œ ele que faz o seu corpo. Œ verdade que a progra ma‡…o biol„gica n…o nos abandonou de todo. As
c ria n c in h a s c o n tin u a m a s e r g e r a d a s e a n a s c e r, n a m a io ria d a s v e z e s p e rfe ita s , s e m q u e o s p a is
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e a s m ã e s s a ib a m o q u e e s tá o c o rre n d o lá d e n tro d o v e n tre d a m u lh e r. E é ig u a lm e n te a p ro g ra m a ç ã o b io ló g ic a q u e
c o n tro la o s h o rm ô n io s , a p re s s ã o a rte ria l, o b a te r d o c o ra ç ã o . . . D e fa to , a p ro g ra m a ç ã o b io ló g ic a c o n tin u a a
o p e ra r. M a s e la d iz m u ito p o u c o , s e é q u e d iz a lg u m a c o is a , a c e rc a d a q u ilo q u e ire m o s fa z e r p o r e s te m u n d o a fo ra .
O m u n d o h u m a n o , q u e é fe ito c o m tra b a lh o e a m o r, é u m a p á g in a e m b ra n c o n a s a b e d o ria q u e n o s s o s c o rp o s
h e rd a ra m d e n o ss o s a n te p a s s a d o s .
O fa to é q u e os h o m e n s se re c u s a ra m a s e r a q u ilo q u e , à s e m e lh a n ç a d o s a n im a is , o p a s s a d o lh e s p ro p u n h a .
T o r n a ra m - s e in v e n to re s d e m u n d o s , p la n ta ra m ja rd in s , fiz e ra m ch o u p a n a s, c a s a s e p a la c io s , c o n s tr u íra m
ta m b o re s , fla u ta s e h a rp a s , fiz e ra m p o e m a s, tra n s fo rm a ra m o s s e u s c o rp o s , c b rin d o - o s d e tin ta s , m e ta is , m a rc a s
e te c id o s , in v e n ta ra m b a n d e ira s , c o n s tru íra m a lta re s , e n te rra ra m o s s e u s m o rto s e o s p re p a ra ra m p a ra v ia ja r e ,n a
a u s ê n c ia , e n to a ra m la m e n to s p ê lo s d i a s e p e la s n o ite s . . .
E Q U A N d o n o s p e rg u n ta m o s s o b re a in s p ira ç ã o p a ra e s te s m u n d o s q u e o s h o m e n s im a g in a ra m e c o n s tr u ira m ,
v e m - n o s o e s p a n to . E is to p o r q u e c o n s ta ta m o s q u e a q u i, e m o p o s iç ã o a o m u n d o o im p e ra tiv o d a s o b re v iv ê n c ia
re in a s u p re m o , o c o rp o já n ã o te m a ú ltim a p a la v ra .
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Se o corpo, como fato biol„gico bruto, n…o • a fonte e nem o modelo para a cria‡…o dos mundos da cultura,
permanece a pergunta: porque raz…o os homens fazem a cultura? Por que motivos abandonam o mundo s„lido e
pronto da natureza para, • semelhan‡a das aranhas, construir teias para sobre elas viver?
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ausˆncia. N…o se tem saudade da bem-amada presente. A saudade s„ aparecer‚ na dist‰ncia, quando
estiver longe do carinho. Tamb•m n…o se tem fome — desejo supremo de sobrevivˆncia f€sica — com o
estô m a g o c h eio . A fo m e só su rg e q u a n d o o c o rp o é p riv a d o d o p ã o . E la é te s te m u n h o d a a u s ê n c ia d o a lim e n to . E
a s s im é , s e m p r e , c o m o d e s e jo . D e s e jo p e rte n c e a o s s e re s q u e s e s e n te m p riv a d o s , q u e n ã o e n c o n tr a m p ra z e r n a q u ilo
q u e o e s p a ç o e o te m p o p re s e n te lh e s o fe re c e . É c o m p re e n s ív e l, p o rta n to , q u e a c u ltu ra n ã o s e ja n u n c a a
re d u p lic a ç ã o d a n a tu re z a . P o r q u e o q u e a c u ltu ra d e s e ja c ria r é e x a ta m e n te o o b je to d e s e ja d o . A a tiv id a d e h u m a n a ,
a s s im , n ã o p o d e s e r c o m p r e e n d id a c o m o u m a s im p le s lu ta p e la s o b r e v iv ê n c ia q u e , u m a v e z r e s o lv id a , s e d á a o lu x o
d e p ro d u z ir o s u p é rflu o . A c u ltu ra n ã o s u rg e n o lu g a r o n d e o h o m e m d o m in a a n a tu re z a . T a m b é m o s m o rib u n d o s
b a lb u c ia m c a n ç õ e s , e e x ila d o s e p ris io n e iro s fa b ric a m p o e m a s . C a n ç õ e s fú n e b re s e x o rc iz a rã o a m o rte ? P a re c e q u e
n ã o . M a s e la s e x o r c iz a m o te r r o r e la n ç a m p ê lo s e s p a ç o s a f o r a o g e m id o d e p r o te s to e a r e tic ê n c ia d e e s p e r a n ç a . E o s
p o e m a s d o c a tiv e iro n ã o q u e b ra m a s c o rre n te s e n e m a b rem a s p o rta s , m a s , p o r ra z õ e s q u e n ã o e n te n d e m o s b e m ,
p a re c e q u e o s h o m e n s s e a lim e n ta m d e le s e , n o fio té n u e d a fa la q u e o s e n u n c ia , s u rg e d e n o v o a v o z d o p ro te s to e o
b rilh o d a e s p e ra n ç a .
A s u g e s tã o q u e n o s v e m d a p s ic a n á lis e é d e q u e o h o m e m f a z c u ltu r a a f im d e c r ia r o s o b je to s
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d o s e u d e s e jo . O p r o je to in c o n s c ie n te d o e g o , n ã o im p o rta o s e u te m p o e n e m o s e u lu g a r, é e n c o n tr a r u m m u n d o
q u e p o s s a s e r a m a d o . H á s itu a ç õ e s e m q u e e le p o d e p la n ta r ja r d in s e c o lh e r flo re s . H á o u tra s s itu a ç õ e s , e n tre ta n to ,
d e im p o tê n c ia em q u e o s o b je to s d o s e u a m o r s ó e x is te m a tra v é s d a m a g ia d a im a g in a ç ã o e d o p o d e r m ila g ro s o d a
p a la v ra . J u n ta m -s e a s sim o a m o r, o d e s e jo , a im a g in a ç ã o a s m ã o s e o s s im b o lo s p a ra c ria r u m m u n d o q u e faç a
s e n tid o , e e s te ja e m h a rm o n ia c o m o s v a lo re s d h o m e m q u e o c o n s tró i, q u e s e ja e s p e lh o , e s p a ç o a m ig o , R e a liz a ç ã o
c o n c re ta d o s o b je to s d o d e s e jo o u p a ra fa z e r u s o d e u m a te rm in o lo g ia q u e n o s v e m d e H e g e l, o b je tiv a ç ã o d o
E s p írito . T e rim o s e n tã o d e n o s p e rg u n ta r q u e c u ltu ra é e s ta q u e id e a l s e re a liz o u ? N e n h u m a .É p o s s iv e l d is c e rn ir
a in te n ç ã o d o a to c u ltu r a l,m a s p a re c e q u e a re a liz a ç ã o e fe tiv a p a ra sem p re
esc a p a à q u ilo q u e n o s é c o n c re ta m e n te p o s s ív e l. A v o lta d o ja rd im e s tá se m p re o d e s e rto q u e
e v e n tu a lm e n te o d e v o ra ; a o rd o a m o ris (S c h e lle r) e s ta c e rc a d a p e lo c a o s; e o c o rp o q u e b u sc a a m o r e p ra z e r se
d e fro n ta c o m a r e je iç ã o , a c ru e ld a d e , a s o lid ã o , a in ju s tiç a , a p r is ã o , a to r tu r a , a d o r, a m o te . A c u ltu ra p a re c e
s o fre r d a m e s m a fra q u e z a q u e s o fre m o s ritu a is m á g ic o s: re c o n h e c e m o s a s u a in te n ç ã o , c o n s ta ta m o s o s e u fra c a s s o
e s o b ra a p e n a s a e s p e ra n ç a d e q u e , d e a lg u m a fo rm a , a lg u m d ia , a re a lid a d e s e h a r m o n iz e c o m
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o d e s e jo . E e n q u a n to o d e s e jo n ã o s e re a liz a , re s ta c a n tá -lo , d iz ê -lo , c e le b rá -lo , e s c re v e r-lh e p o e m a s , c o m p o r-lh e
s in f o n ia s , a n u n c ia r-lh e c e le b ra ç õ e s e fe s tiv a is . E a re a liz a ç ã o d a in te n ç ã o d a c u ltu ra s e tra n s fe re e n tã o p a ra a e s fe ra
d o s s ím b o lo s .
S ím b o lo s a sse m elh a m -se a h o riz o n te s . H o riz o n te s : o n d e se e n c o n tra m e le s ? Q u a n to m a is d e le s n o s
a p ro x im a m o s, m a is fo g e m d e n ó s . E , n o e n ta n to , c e rc a m -n o s a trá s , p ê lo s la d o s , à fre n te . S ã o o re fe re n c ia l d o
n o s s o c a m in h a r. H á s e m p re o s h o riz o n te s d a n o ite e o s h o riz o n te s d a m a d r u g a d a . . . A s e s p e ra n ç a s d o a to p e lo q u a l
o s h o m e n s c ria ra m a c u ltu ra , p re se n te s n o se u p ró p rio fra c a s s o , s ã o h o riz o n te s q u e n o s in d ic a m d ire ç õ e s . E
e s ta é a ra z ã o p o r q u e n ã o p o d e m o s e n te n d e r u m a c u ltu ra q u an d o n o s d e te m o s n a c o n te m p la ç ã o d o s se u s
triu n fo s té c n ic o s /p rá tic o s . P o rq u e é ju s ta m e n te n o p o n to o n d e e le fra c a s s o u q u e b ro ta o s ím b o lo ,
te s te m u n h a d as c o is a s a in d a a u s e n te s , s a u d a d e d e c o is a s q u e n ã o n a s c e r a m . ..
E é a q u i q u e s u rg e a re lig iã o , te ia d e s ím b o lo s , re d e d e d e s e jo s , c o n fis s ã o d a e s p e ra , h o riz o n te d o s h o riz o n te s , a
m a is fa n tá s tic a e p re te n c io s a te n ta tiv a d e tra n s u b s ta n c ia r a n a tu re z a . N ã o é c o m p o s ta d e ite n s e x tra o r d in á r io s .
H á c o is a s a s e re m c o n s id e ra d a s : a lta re s , s a n tu á rio s , c o m id a s , p e rfu m e s , lu g a re s , c a p e la s , te m p lo s , a m u le to s ,
c o la re s , liv ro s . . .
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e ta m b é m g e s to s , c o m o o s s ilê n c io s , o s o lh a re s , re z a a s , e n c a n ta ç õ e s , re n ú n c ia s , c a n ç õ e s , p o e m a s ro m a ria s ,
p ro c is s õ e s , p e re g r in a ç õ e s , e x o rc is m o s , m ila g re s , c e le b ra ç õ e s , fe s ta s , a d o ra ç õ e s .
E te ría m o s d e n o s p e rg u n ta r a g o ra a c e rc a d a s p ro p rie d a d e s e s p e c ia is d e s ta s c o is a s e g e s to s , q u e f a z e m
d e le s h a b ita n te s d o m u n d o s a g ra d o , e n q u a n to o u tra s c o is a s e o u tro s g e s to s , s e m a u ra o u p o d e r, c o n tin u a m a
m o ra r n o m u n d o p ro fa n o .
H á p ro p rie d a d e s q u e , p a ra s e fa z e re m s e n tir e v a le r d e p e n d e m e x c lu s iv a m e n te d e s i m e s m a s , P o r- e x e m p lo ,
a n te s q u e o s h o m e n s e x is tis s e m já b rilh a v a m a s e s tre la s , o s o l a q u e c ia , a c h u v a c a ia e a s p la n ta s e b ic h o s
e n c h ia m o m u n d o . T u d o is to e x is tiria e s e ria e fic a z s e m q u e o h o m e m ja m a is e x is tid o , ja m a is p ro n u n c ia d o u m a
p a la v ra , ja m a is fe ito u m g e s to . E é p r o v á v e l q u e q u e c o n tin u a ra m , m e s m o d e p o is d o n o sso d e s a p a re c im e n to .
T ra ta -s e d e re a lid a d e s n a tu ra is , in d e p e n te d o d e s e jo , d a v o n ta d e , d a a tiv id a d e p rá tic a d o s h o m en s. H á
ta m b é m g e s to s q u e u m a e fic á c ia em si m esm o s. O d e d o q u e p u x a o g a tilh o , a m ã o q u e fa z c a ir a b o m b a , o s
p é s q u e fa z e m a b ic ic le ta a n d a r: a in d a q u e o a s s a s s in a d o n a d a s a ib a e n ã o o u ç a p a la v ra a lg u m a , a in d a q u e a q u e le s
sobre quem a bomba explode n…o recebam antes explica‡†es, e ainda que n…o haja conversa‡…o entre os p•s e as
rodas — n…o importa, os gestos tˆm efic‚cia pr„pria e s…o, praticamente habitantes do mundo da natureza.
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Nenhum fato, coisa ou gesto, entretanto, • encontrado j‚ com as marcas do sagrado. O sagrado n…o • uma
efic‚cia inerente •s coisas. Ao contr‚rio, coisas e gestos se torn am religiosos quando os homens os balizam como
tais. A religi…o nasce com o poder que os homens tˆm de dar nomes •s coisas, fazendo uma discrimina‡…o entre
coisas de import‰ncia secund‚ria e coisas nas quais seu destino, sua vida e sua morte se dependuram. E esta • a raz…o
por que, fazendo uma abstra‡…o dos sentimentos e experiˆncias pessoais que acom panham o encontro com o sagrado,
a religi…o se nos apresenta como um certo tipo de fala, um discurso, uma rede de s€mbolos. Com estes s€mbolos os
homens discriminam objetos, tempos e espa‡os, construindo, com o seu aux€lio, uma ab„bada sagrada com que
recobrem o seu mundo. Por quˆ? Talvez porque, sem ela, o mundo seja por demais frio e escuro. Com seus s€mbolos
sagrados o homem exorciza o medo e constr„i diques contra o caos.
E, assim, coisas inertes — pedras, plantas, fontes — e gestos, em si vulgares, passam a ser os sinais vis€veis desta
teia invis€vel de significa‡†es, que vem a existir pelo poder humano de dar nomes •s coisas, atribuindo -lhes um
valor. N…o foi sem raz…o que nos referimos • religi…o como "a mais fant‚stica e pretenciosa tentativa de
transubstanciar a natureza". De fato, objetos e gestos, em si insens€veis e indiferentes ao destino
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humano, s…o magicamente a ele integrados. Camus observou que • curioso que ningu•m esteja
disposto a morrer por verdades cientificas. Que diferen‡a faz se o sol gira em torno da Terra , se a Terra gira em
torno do sol? Œ que as verdades cient€ficas se referem aos objetos na a mais radical e deliberada indiferen‡a a
vida, morte • felicidade e infelicidade das pessoas. H‚ verdades que s…o frias e inertes. Nelas n…o se depe ndura o
nosso destino. Quando, ao contrario , tocamos nos s€mbolos em que nos dependuram OS , o corpo inteiro estremece. E
este estremecer • a marca emocional/existencial da experiencia do sagrado.
Sobre que fala a linguagem , religiosa?
Dentro dos limites do mundo profano tratamos de coisas concretas e vis€veis. Assim, discutimos pessoas,
contas, custo de vida, atos dos pol€ticos, golpes de Estado e nossa ƒltima crise de reumatismo .Quando entramos no
mundo sagrado, entretanto descobrimos que uma transfo rma‡…o se processou. Porque agora a linguagem se refere
as coisas invis€veis, coisas para al•m dos nossos sentidos comuns que, segundo a explica‡…o, somente os olhos da f•
podem contemplar .O zen-budismo chega mesmo a dizer que a experiˆncia da ilumina‡…o religiosa, satori, • um
terceiro olho que se abre para ver coisas que os outros dois n…o podiam ver. .
O sagrado se instaura gra‡as ao poder do uinvisivel.
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E • ao invis€ve l que a linguagem religiosa se refere ao mencionar as profundezas da alma, as alturas dos c•us,
o desespero do inferno, os fluidos e influˆncias que curam, o para€so, as bem -aventuran‡as eternas e o pr„prio
Deus. Quem, jamais, viu qualquer uma destas entid ades?
Uma pedra n…o • imagin‚ria. Vis€vel, concreta. Como tal, nada tem de religioso. Mas no momento em que
algu•m lhe d‚ o nome de altar, ela passa a ser circundada de uma aura misteriosa, e os olhos da f• podem
vislumbrar conex†es invis€veis que a ligam ao mundo da gra‡a divina. E ali se fazem ora‡†es e se oferecem
sacrif€cios.
P…o, como qualquer p…o, vinho, como qualquer vinho. Poderiam ser usados numa refei‡…o ou orgia:
materiais profanos, inteiramente. Deles n…o sobe nenhum odor sagrado. E as palavras s…o pronunciadas:
"Este • o meu corpo, este • o meu sangue. . ." — e os objetos vis€veis adquirem uma dimens…o nova, e passam
a ser sinais de reali dades invis€veis.
Temo que minha explica‡…o possa ser convin cente para os relig iosos, mas muito fraca para os que nunca
se defrontaram com o sagrado. Œ dif€cil compreender o que significa este poder do invis€vel, a que me
refiro. Pe‡o, ent…o, licen‡a para me valer de uma paY‚bola, tirada da obra de Antojne de Saint-Exup•ry, O
Pequeno Pr€ncipe. O pr€ncipe encontrou-se com um bichinho que nunca havia visto antes, uma raposa. E a
raposa
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Quem jamais viu qualqur uma destas entidades?
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lh e d is s e :
" V o c ê q u e r m e c a tiv a r? "
" Q u e é is to ? " , p e rg u n to u o m e n in o .
" C a tiv a r é a s s im : e u m e a s s e n to a q u i, v o c ê s e
a s s e n ta lá , b e m lo n g e . A m a n h ã a g e n te s e a s s e n ta
m a is p e rto . E a s s im , a o s p o u c o s , c a d a v e z m a is
p e rto . . ."
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...h‚ tamb•m os companheiros da for‡a e da vit„ria, que abem‡oa as espadas, as correntes, os ex•rcitos e o seu
pr„prio riso. H‚ os sofredores que transformam os gemidos dos oprimidos em salmos, as espadas
em arados as lancas em podadeiras e constr„em, simbolicamente, as utopias da paz e d‚ justi‡a eterna, em que o
lobo vive com o cordeiro e a
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mental. Estou apenas estabelecendo sua filia‡…o e reconhecendo a fraternidade que nos une.
Come‡amos falando dos animais, de como eles sobrevivem, a adapta‡…o dos seus corpos ao ambiente, a
adapta‡…o do ambiente aos seus corpos. Passamos ent…o ao homem, que n…o sobrevive por meio de artif€cios de
adapta‡…o f€sica, pois ele cria a cultura e, com ela, as redes simb„licas da religi…o.
E o leitor teria agora todo o direito de nos perguntar:
"Mas, e estas redes simb„licas? Sabemos que s…o belas e possuem uma fun‡…o est•tica. Sabemos que delas se
derivam festivais e celebra‡†es, o que estabelece o seu parentesco com as atividades lƒdicas. Mas, al•m disto,
para que servem? Que uso lhes d…o os homens? Ser…o apenas ornamentos sup•rfluos ? A sobrevivˆncia depende de
coisas e atividades pr‚ticas, materiais, como ferramentas, armas, comida, trabalho. Poder…o os s€mbolos,
entidades t…o d•beis e di‚fanas, nascidas da imagi na‡…o, competir com a efic‚cia daquilo que • material e
concreto?"
Sobrevivˆncia tem a ver com a ordem. Observe os animais. Nada fazem a esmo. N…o h‚ impro visa‡†es. Por
s•culos e mil•nios seu comporta mento tem desenhado os mesmos padr†es. Quando, por uma raz…o qualquer, esta
ordem inscrita nos seus organismo s entra em colapso, o comportamento perde a unidade e dire‡…o.
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E a vida se vai.
Cada animal tem uma ordem que lhe • espe c€fica. Beija -flores n…o sobrevivem da mesma forma que besouros. E
foi pensando nisto que o bi„logo Johannes von UexkŽll teve uma ideia fascinante. O que nos parece „bvio • que o
ambiente em que vivem os animais • uma reali dade uniforme, a mesma para todos e quaisquer organismos, uma
esp•cie de mar em que cada um se arranja como pode. UexkŽll teve a coragem de se perguntar: "Ser‚ assim para os
animais? Moscas, borboletas, lesmas, cavalos marinhos viver…o num mesmo mundo?" E poder€amos imaginar o
ambiente como se fosse um grande „rg…o, adormecido, e cada organismo um orga nista que faz brotar do
instrumento a sua melodia espec€fica. Assim, n…o existiria um ambiente, em si mesmo. O que existe, para o
animal, • aquele mundo, criado • sua imagem e semelhan‡a, que resulta da atividade do corpo sobre aquilo que est‚
ao seu redor. Cada animal • uma melodia que, ao se fazer soar, faz com que tudo ao seu redor reverbere, com as
mesmas notas harm„nicas e a mesma linha sonora.
A analogia n…o serve de todo, porque sabemos que os homens n…o s…o governados por seus orga nismos. Suas mƒsicas
n…o s…o biol„gicas, mas culturais. Mas, da mesma forma como o animal lan‡a sobre o mundo, como se fosse uma
rede, a ordem que lhe sai do organismo, em busca
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de um mundo • sua imagem e semelhan‡a; da mesma forma como ele faz soar sua melodia e, ao fazˆ -lo,
desperta, no mundo ao seu redor, os sons que lhe s…o harm„nicos, tamb•m o homem lan‡a, projeta, externaliza
suas redes simb„lico -religiosas — suas melodias — sobre o universo inteiro, os confins do tempo e os
confins do espa‡o, na esperan‡a de que c•us e terra sejam portadores de seus valores. O que esta' em jogo • a ordem.
Mas n…o • qualquer ordem que atende •s exigˆncias humanas. O que se busca, como esperan‡a e utopia,
como projeto inconsciente do ego, • um mundo que traga as marcas do desejo e que corre sponda •s aspira‡†es
do amor. Mas o fato • que tal realidade n…o existe, como algo presente. E a religi…o aparece como a grande hip„tese e
aposta de que o universo inteiro possui uma face humana. Que ciˆncia poderia construir tal horizonte? S…o
necess‚ri as as asas da imagi na‡…o para articular os s€mbolos da ausˆncia. E o homem diz a religi…o, este
universo simb„lico "que proclama que toda a realidade • portadora de um sentido humano e invoca o cosmos
inteiro para significar a validade da existˆn cia humana" (Berger& Luckmann).
C o m isto o s h o m e n s n ã o p o d e rã o a ra r o s o lo , g e ra r filh o s o u m o v e r m á q u in a s . O s s ím b o lo s n ã o p o s s u e m ta l
t i p o d e e f i c á c i a . M a s e l e s r e s p o n d e m a 'u m o u tro tip o d e n e c e s s id a d e , tã o p o d e ro s a q u a n to o s e x o e a fo m e : a
n e c e ssid a d e d e v iv e r
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n u m m u n d o q u e fa ç a s e n tid o . Q u a n d o o s e s q u e m a s d e s e n tid o e n tra m em c o la p s o , in g re s s a m o s n o m u n d o d a
lo u c u ra . B e m d iz ia C a m u s q u e o ú n ic o p ro b le m a filo s ó fic o re a lm e n te s é rio é o p ro b le m a d o s u ic íd io , p o is
q u e e le te m a v e r c o m a q u e s tã o d e s e a v id a é d ig n a o u n ã o d e s e r v iv id a . E o p ro b le m a n ã o é m a te ria l, m a s s im b ó -
lic o . N ã o é a d o r q u e d e s in te g r a a p e r s o n a lid a d e , m a s a d is s o lu ç ã o d o s e s q u e m a s d e s e n tid o . E s ta te m s id o u m a trá g ic a
c o n c lu s ã o d a s s a la s d e to rtu ra . É v erd a d e q u e o s h o m e n s n ão v iv e m só d e p ã o . V iv e m ta m b é m d e
sím b o lo s, p o rq u e sem ele s n ão h a v e ria o rd em , nem s e n tid o p a ra a v id a , e n em v o n ta d e d e v iv e r. S e
p u d e rm o s co n co rd ar co m a a firm a ç ã o d e q u e a q u e le s q u e h a b ita m u m m u n d o o rd e n a d o e c a rreg a d o d e
s e n tid o g o z a m d e u m s e n s o d e o rd e m in te rn a , in te g ra ç ã o , u n id a d e , d ir e ç ã o e s e s e n te m e fe tiv a -m e n te m a is fo rte s
p a ra v iv e r (D u rk h e im ), te re m o s e n tã o d e s c o b e rto a e fe tiv id a d e e o p o d e r d o s sím b o lo s e v islu m b ra d o a
m a n e ira p e la q u a l a im a g in a ç ã o te m c o n trib u íd o p a ra a s o b re v iv ê n c ia d o s h o m e n s .
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O E X ÍL IO D O S A G R A D O
" Q u a n d o p e r c o r r e m o s n o s s a s b ib lio te c a s , c o n v e n c id o s d e s te s p r in c íp io s , q u e
d e s tru iç ã o te m o s d e fa z e r l S e to m a r m o s e m n o s s a s m ã o s q u a lq u e r v o lu m e , s e ja
d e te o lo g ia , s e ja d e m e ta fís ic a e s c o lá s tic a , p o r e x e m p lo , p e rg u n -te m o - n o s : s e r á
q u e e le c o n té m q u a lq u e r ra c io c ín io a b s tra to re la tiv o à q u a n tid a d e e a o
n ú m e ro ? N ã o . S e rá q u e e le c o n té m r a c io c ín io s e x p e r im e n ta is q u e d ig a m
r e s p e ito a m a té ria s d e f a to e à e x is tê n c ia ? N ã o E n tã o , la n ç a i- o à s c h a m a s , p o is
e le n ã o p o d e c o n te r c o is a a lg u m a a n ã o s e r s o fis m a s e ilu s õ e s ."
(D a v id H u m e )
A s c o is a s d o m u n d o h u m a n o a p re s e n ta m u m a c u rio s a p ro p rie d a d e . J á s a b e m o s q u e e la s s ã o
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diferentes daquelas que constituem a natureza. A existˆncia da ‚gua e do ar, a altern‰ncia entre o dia e a noite,
a composi‡…o do ‚cido sulfƒrico e o ponto de congelamento da ‚gua em nada dependem da vontade do
homem. Ainda que ele nunc a tivesse existido, a natureza estaria a€, passando muito bem, talvez melhor. . .
Com a ‡ujtura as coisas s…o diferentes. A transmiss…o da heran‡a, os direitos sexuais dos homens e das
mulheres, atos que constituem crimes e os castigo s que s…o aplicados, os adornos, o dinheiro, a propriedade, a
linguagem, a arte culin‚ria — tudo isto surgiu da atividade dos homens. Quando os homens desaparecerem,
estas coisas desapa recer…o tamb•m.
Aqui est‚ a curiosa propriedade a que nos referimos: n„s nos esquecemos de que as coisas, culturais foram
inventadas e, por esta raz…o, elas aparecem aos nossos olhos como se fossem naturais. Na g€ria filos„fico -sociol„gica
este processo recebe o nome de reifica‡…o, Seria mais f‚cil se fal‚ssemos em coisifica‡…o, pois • isto mesmo que a
palavra quer dizer, j‚ que ela se deriva do latim res, rei, que quer dizer "coisa". Isto acontece, em parte, porque
as crian‡as, ao nascerem, j‚ encontram um mundo social pronto, t…o pronto t…o s„lido quanto a natureza. Elas
n…o viram este mundo saindo das m…os dos seus criadores, como se fosse cer‰mica rec•m -moldada nas m…os do oleiro.
Al•m disto, as gera‡†es mais velhas,
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interessadas em preservar o mundo fr‚gil por elas contru€do com tanto cuidado, tratam de esconder dos mais
novos, inconscientemente, a qualidade artificial (e prec‚ria) das coisas que est…o a€. Porque, caso contr‚rio, os
jovens pode riam come‡ar a ter ideias perigosas. . . De fato, se tudo o que constitui o mundo humano • artificial e
convencional, ent…o este mundo pode ser abolido e refeito de outra forma. Mas quem se atreveria a pensar
pensamentos como este em rela‡…o a um mundo que tivesse a solidez das coisas naturais?
Isto se aplica de maneira peculiar aos s€mbolos. De tanto serem repetidos e compartilhados, de tanto serem
usados, com sucesso, • guisa de receitas, n„s os reificamos, passamos a trat‚ -los como se fossem coisas. Todos os
s€mbolos que s…o usados com sucesso experimentam esta meta morf ose. Deixam de ser hip„teses da imagina‡…o e
passam a ser tratados como manifesta‡†es da realidade. Certos s€mbolos derivam o seu sucesso do seu poder para
congregar os homens, que os usam para definir a sua situa‡…o e articular um projeto comum de vida. Tal • o caso
das religi†es, das ideologias, das utopias. Outros se imp†em como vitoriosos pelo seu poder para resolver
p ro b le m a s p rá tic o s , c o m o é o c a s o d a m a g ia e d a .c iê n c ia . O s s ím b o lo s v ito rio s o s , e e x a ta - m e n te p o r s e re m
v ito rio s o s , re c e b e m o n o m e d e v e rd a d e , e n q u a n to q u e o s s ím b o lo s d e rro -
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la d o s s ã o rid ic u la riz a d o s c o m o s u p e rs tiç õ e s o u p e rs e g u id o s c o m o h e re s ia s .
E n ó s , q u e d e s e ja m o s s a b e r o q u e é a re lig iã o , q u e já sa b e m o s q u e e la se a p re s e n ta c o m o u m a re d e d e s ím b o lo s ,
te m o s d e p a ra r p o r u m m o m e n to p a ra n o s p e rg u n ta r s o b re o q u e o c o rre u c o m a q u e le s q u e h e rd a m o s . Q u e fiz e ra m
c o n o s c o ? Q u e fiz e m o s c o m e le s ? E p a ra c o m p re e n d e r o p ro c e s s o p e lo q u a l n o s s o s s ím b o lo s v ira ra m c o is a s e
c o n s tru íra m u m m u n d o , p a ra d e p o is e n v e lh e c e r e d e s m o ro n a r e m m e io a lu ta s , te m o s d e re c o n s tru ir u m a h is tó r ia .
P o rq u e fo i e m m e io a u m a h is tó ria c h e ia d e e v e n to s d ra m á tic o s , a lg u n s g ra n d io s o s , o u tr o s m e s q u in h o s , q u e s e
f o rja ra m a s p rim e ira s e m a is a p a ix o n a d a s re s p o s ta s à p e rg u n ta " o q u e é a re lig iã o ? "
N o p ro c e s s o h is tó ric o a tra v é s d o q u a l n o s s a c iv iliz a ç ã o s e fo rm o u , re c e b e m o s u m a h e ra n ç a s im b ó lic o -r e lig io s a , a
p a r tir d e d u a s v e rte n te s . D e u m la d o , o s h e b re u s e o s c ris tã o s . D o o u tr o , a s tra d iç õ e s c u ltu ra is d o s g re g o s e d o s
ro m a n o s. C o m e s te s s ím b o lo s v ie ra m v is õ e s d e m u n d o to ta lm e n te d is tin ta s , m a s e le s s e a m a lg a m a ra m ,
tra n s f o r m a n d o - s e m u tu a m e n te , e v ie ra m a flo re s c e r e m m e io à s c o n d iç õ e s m a te ria is d e v id a d o s p o v o s q u e o s
re c e b e ra m . E fo i d a í q u e s u rg iu a q u e le p e río d o d e n o s s a h is tó ria b a tiz a d o c o m o I d a d e M é d ia .
N ã o c o n h e c e m o s n e n h u m a é p o c a q u e lh e p o s s a s e r c o m p a ra d a . P o rq u e a li o s s ím b o lo s
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d o s a g r a d o a d q u ir ira m u m a d e n s id a d e , u m a c o n -c r e tu d e e u m a o n ip re s e n ç a q u e fa z ia m c o m q u e o m u n d o
in v is ív e l e s tiv e s s e m a is p r ó x im o e f o s s e m a is s e n tid o q u e a s p ró p ria s re a lid a d e s m a te ria is. N a d a
a c o n te c ia q u e n ã o o f o s s e p e lo p o d e r d o s a g ra d o , e to d o s s a b ia m q u e a s c o is a s d o te m p o e s tã o ilu m in a d a s
p e lo e s p le n d o r e p e lo te r r o r d a e te r n id a d e . N ã o é p o r a c id e n te q u e to d a a s u a a rte s e ja d e d ic a d a à s c o is a s
s a g ra d a s e q u e n e la a n a tu re z a n ã o a p a re ç a n u n c a ta l c o m o n o s so s o lh o s a v ê e m . O s a n jo s d e s c e m à te rra , o s
c é u s a p a re c e m lig a d o s a o m u n d o , e n q u a n to D e u s p r e s id e a to d a s a s c o is a s d o to p o d e s u a a ltu ra s u b lim e .
E h a v ia p o s s e s s õ e s d e m o n ía c a s , b r u x a s e b ru x a r ia s , m ila g r e s , e n c o n tro s c o m o d ia b o , e a s c o is a s b o a s
a c o n te c ia m p o r q u e D e u s p r o te g ia a q u e le s q u e o te m ia m , e a s d e s g ra ç a s e p e s te s e ra m p o r E le e n v ia d a s c o m o
c a s tig o s p a ra o p e c a d o e a d e s c re n ç a . T o d a s a s c o is a s tin h a m s e u s lu g a re s a p r o p ria d o s , n u m a o r d e m h ie rá rq u ic a
d e v a lo re s , p o rq u e D e u s a s s im h a v ia a rru m a d o o u n iv e rs o , s u a c a s a , e s ta b e le c e n d o g u ia s e s p iritu a is e
imperadores, no alto, para exercer o poder e usar a espada, colocando l‚ em baixo a pobreza e o trabalho
no corpo de outros.
Tudo girava em torno de um nƒcleo central, tem‚tica que unificava todas as coisas: o drama da
salva‡…o, o perigo do inferno, a caridade de Deus levando aos c•us as almas puras. E • perfei tamente
compreens€vel que tal drama tenha
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exigido e estabelecido uma geografia que localizava com precis…o o lugar das moradas do dem„nio e as
coordenadas das mans†es dos bem-aven turados.
Se o universo havia sa€do, por um ato de cria‡…o pessoal, das m…os de Deus — e era inclusive poss€vel
determinar com precis…o a data de evento t…o grandioso — e se Ele continuava, pela sua gra‡a, a
sustentar todas as coisas, conclu€a-se que tudo, absolutamente tudo, tinha um prop„sito definido. E era
esta vis…o teleol„gica da realidade (de tetos, que, em grego, significa fim, prop„sito) que determinava a
pergunta fundamental que a ciˆncia medieval se propunha: "para quˆT'. Conhecer alguma coisa era saber a
que fim ela se destinava. E os fil„sofos se entregavam a investiga‡…o dos sinais que, de alguma forma,
pudessem indicar o sentido de cada uma e de todas as coisas. E • assim que um homem como Kepler dedica
toda sua vida ao estudo da astronomia na firme convic‡…o de que Deus n…o havia colocado os planetas no
c•u por acaso. Deus, era um grande mƒsico-ge’metra, e as regularidades matem‚ticas dos movimentos dos
astros podiam ser decifradas de sorte a revelar a melodia que Ele fazia os planetas cantarem em coro, no
firmamento, para o ˆxtase dos homens. No final de suas investiga‡†es ele chegou a representar cada um dos
planetas por meio de uma nota musical. O que Kepler fazia em rela‡…o aos planetas os outros faziam
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com as plantas, as pedr as, os animais, os fen„ menos f€sicos e qu€micos, perguntando -se acerca de suas finalidades
est•ticas, •ticas, humanas. . . De fato, era isto mesmo: o universo inteiro era compreendido como algo dotado de
um sentido humano. Œ justamente aqui que se encontra o seu car‚ter essencialmente religioso.
Aqui eu me detenho para um parˆntesis. Imagino que o leitor sorria, espantado perante tanta imagina‡…o.
Curioso, mas • sempre assim: de dentro do mundo encantado das fantasias, elas sempre se apresentam com a
soli dez das monta nhas. Para os medievais n…o havia fantasia alguma. Seu mundo era s„lido, constitu€do por fatos,
comprovados por inƒmeras evidˆncias e al•m de quaisquer dƒvidas. Sua atitude para com o seu mundo era
id ê n tic a à n o s s a a titu d e p a ra c o m o n o s s o . C o m o e le s , s o m o s in c a p a z e s d e re c o n h e c e r o q u e d e f a n ta s io s o e x iste
n a q u ilo q u e ju lg a m o s s e r te rre n o s ó lid o , te rra fir m e . E o q u e é fa s c in a n te é q u e u m a c iv iliz a ç ã o c o n s tru íd a c o m
a s fa n ta s ia s te n h a s o b re v iv id o p o r ta n to s s é c u lo s . E n e la o s h o m e n s v iv e ra m , tra b a lh a ra m , lu ta ra m , c o n s tru íra m
c id a d e s , fiz e ra m m ú s ic a , p in ta ra m q u a d ro s, e rg u e ra m c a te d ra is .. . C u rio s o e s te p o d e r d a s fa n ta s ia s p a ra c o n s tr u ir
te ia s fo rte s b a s ta n te p a ra q u e n e la s o s h o m e n s s e a b rig u e m .
P o u c o s fo ra m o s q u e d u v id a ra m . R e c e ita s q u e p ro d u z e m b o lo s g o s to s o s n ã o s ã o q u e s tio n a d a s ; q u a n d o u m
d e te rm in a d o s iste m a d e sím b o lo s
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fu n c io n a d e m a n e ira a d e q u a d a , a s d ú v id a s n ã o p o d e m a p are c e r. A re c e ita é re je ita d a q u a n d o o b o lo fic a
s is te m a tic a m e n te d u ro ; a d ú v id a e o s q u e s tio n a m e n to s s u rg e m q u a n d o a a ç ã o é fru s tr a d a e m s e u s o b je tiv o s .
A q u e le s q u e d u v id a m o u p ro p õ em n o v o s s is te m a s d e id e ia s , o u s ã o lo u c o s o u s ã o ig n o ra n te s , o u s ã o ic o n o c la s ta s
irre v e re n te s .
A c o n te c e u , e n tr e ta n t o , q u e a o s p o u c o s , m a s d e f o r m a c o n s ta n te , p r o g r e s s iv a , c r e s c e n te , o s h o m e n s c o m e ç a r a m a
fa z e r c o is a s n ã o p re v is ta s n o re c e itu á rio re lig io s o . N ã o e ra m a q u e le s q u e fic a v a m n a c ú p u la d a h ie ra rq u ia s a g ra d a
q u e a s fa z ia m . E n e m a q u e le s q u e e s ta v a m c o n d e n a d o s a o s s e u s s u b te rrâ n e o s . O s q u e e s tã o e m c im a ra ra m e n te
e m p re e n d e m c o is a s d ife re n te s . N ã o lh e s in te re s s a m u d a r a s c o is a s . O p o d e r e a riq u e z a s ã o b e n e v o le n te s p a ra c o m
a q u e le s q u e o s p o s s u e m . E o s q u e s e a c h a m m u ito p o r b a ix o , e s m a g a d o s a o p e s o d a s itu a ç ã o , g a s ta m s u a s p o u c a s
e n e rg ia s n a s im p le s lu ta p o r u m p o u c o d e p ã o . E v ita r a m o r te p e la f o m e já é u m tr iu n f o . F o i d e u m a c la s s e
s o c ia l q u e s e e n c o n tra v a n o m e io q u e s u rg iu u m a n o v a e s u b v e r s iv a a tiv id a d e e c o n ó m ic a , q u e c o rro e u a s c o is a s e o s
s ím b o lo s d o m u n d o m e d ie v a l.
E m o p o s iç ã o a o s c id a d ã o s d o m u n d o s a g ra d o , q u e h a v ia m c ria d o s ím b o jo s q u e lh e s p e rm itis s e m c o m p re e n d e r a
re a lid a d e c o m o u m d ra m a e . v is u a liz a r s e u lu g a r d e n tro d e s u a tra m a , à n o v a c la s s e in te re s s a v a m a tiv id a d e s c o m o
p ro d u z ir c o m e rc ia n a liz a r,
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o c o rre é q u e , a o s u rg ire m p ro b le m a s n o v o s , re la tiv o s à v id a c o n c re ta , o s h o m e n s s ã o p ra tic a m e n te o b rig a d o s a
in v e n ta r re c e ita s c o n c e p tu a is n o v a s . P ro d u z iu -s e , e n tã o , u m a n o v a o rie n ta ç ã o p a ra o p e n s a m e n to , d e riv a d a d e u m a
v o n ta d e n o v a d e m a n ip u la r e c o n tr o la r a n a tu r e z a . O h o m e m m e d ie v a l d e s e ja v a c o n te m p la r e c o m p re e n d e r. S u a
a titu d e e ra p a s s iv a , re c e p tiv a . A g o ra a n e c e s s id a d e d a riq u e z a in a u g u r a u m a a titu d e a g re s s iv a , a tiv a , p e la q u a l a n o v a
c la s s e s e a p r o p ria d a n a tu r e z a , m a n ip u la - a , c o n tr o la -a , f o rç a - a a s u b m e te r -s e à s s u a s in te n ç õ e s , in te g ra n d o - s e n a
lin h a q u e v a i d a s m in a s e d o s c a m p o s à s fá b ric a s , e d e s ta s a o s m e rc a d o s. E sile n c io s a m e n te a b u rg u e s ia triu n fa n te
e s c re v e o e p itá fio d a o rd e m s a c ra l a g o n iz a n te : " o s re lig io s o s , a té a g o ra , te m b u s c a d o e n te n d e r a n a tu r e z a ; m a s o
q u e im p o rta n ã o é e n te n d e r, m a s tra n s f o rm a r" .
Q u e o c o rre u a o u n iv e rs o re lig io s o ?
O u n iv e rs o re lig io s o e ra e n c a n ta d o . U m m u n d o e n c a n ta d o a b r ig a , n o s e u s e io , p o d e r e s e p o s s ib ilid a d e s q u e
escap am à s n o s s a s c a p a c id a d e s d e e x p lic a r, m a n ip u la r, p re v e r. T ra ta - s e , p o r ta n to , d e a lg o q u e n e m p o d e ser
c o m p l e t a m e n t e c o m p r e e n d i d o p e l o p o d e r d a r a z ã o , e n e m c o m p l e t a m e n t e r a c i o n a l i z a d o e o r g a n i z a d o p e l o p o d e r 'I o
tra b a lh o .
M as co m o p o d e ria o p ro je to d a b u rg u e s ia
o b re v iv e r n u m m u n d o d e ste s, o b s c u re c id o p o r
m isté rio s e a n a rq u iza d o p o r im p re v isto s? S u a
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in te n ç ã o e ra p ro d u z ir, d e fo rm a ra c io n a l, o c re s c im e n to d a riq u e z a . Is to e x ig ia o e s ta b e le c im e n to d e
u m a p a ra to d e in v e s tig a ç ã o q u e p r o d u z is s e o s re s u lta d o s d e q u e s e tin h a n e c e s s id a d e . E q u e in s tr u m e n to m ais
liv re d e p r e s s u p o s to s irra c io n a is re lig io s o s , m a is u n iv e rs a l, m a is tra n s p a re n te p o d e e x is tir q u e a m a te m á tic a ?
L in g u a g e m to ta lm e n te v a z ia d e m is té r io s , to ta lm e n te d o m in a d a p e la ra z ã o : in s tr u m e n to id e a l p a ra a c o n str u ç ã o
d e u m m u n d o ta m b é m v a z io d e m is té rio s e d o m in a d o p e la ra z ã o . P o r o u tro la d o , c o m o a a tiv id a d e h u m a n a
p r á tic a s ó s e p o d e d a r s o b r e o b je to s v is ív e is e d e p r o p r ie d a d e s s e n s tV e is e v id e n t e s , a s e n tid a d e s in v is ív e is d o
m u n d o re lig io s o n ã o p o d ia m te r fu n ç ã o a lg u m a a d e s e m p e n h a r n e s te u n iv e rs o . E eu o c o n v id a ria a v o lta r
a o c u rto tre c h o d e H u m e , q u e c o lo q u e i c o m o e p íg r a fe d e s te c a p ítu lo , p o is q u e e le r e v e la c la r a m e n te o e s p írito d o
m u n d o u tilitá rio q u e s e e s ta b e le c e u , e o d e s tin o q u e e le re s e rv o u p a ra o s s ím b o lo s d a im a g in a ç ã o : a s c h a m a s .
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q u e p o d e r ia im p e d ir q u e e le s v ie s s e m a s e r p o lu íd o s , o r e s p e ito p e la f lo r e s ta , q u e p o d e r ia im p e d ir q u e e la v ie s s e a
s e r c o rta d a , o re s p e ito p e lo a r e p e lo m a r, q u e e x ig iria q u e fo ssem p re se rv a d o s, n ã o tê m lu g a r n o u n iv e r s o
s im b ó lic o in s ta u ra d o p e la b u rg u e sia . O se u u tilita ris m o só c o n h e c e o lu c ro c o m o p a d rã o p a ra a a v a lia ç ã o d a s
c o is a s . E a té m e s m o a s p e s s o a s p e rd e m s e u v a lo r re lig io s o . N o m u n d o m e d ie v a l, p o r m a is d e s v a lo riz a d o q u e
fo s s e m , o s e u v a lo r e ra a lg o a b s o lu to , p o is lh e s era c o n fe rid o p e lo p ró p rio D e u s. A g o ra a lg u é m v a le o
q u a n to g a n h a , e n q u a n to g a n h a . M u ito d o q u e s e p e n s o u s o b re a re lig iã o te m s u a s o rig e n s n e s te c o n flito . E a s
re s p o s ta s d a d a s à p e rg u n ta "o q u e é a re lig iã o ? " tê m m u ito a v er co m as le a Id a d e s d a s p e s s o a s e n v o lv id a s . A
co n d e n ação d o sa g ra d o era e x ig id a p ê lo s in te re s s e s d a b u rg u e s ia e o a v a n ç o d a s e c u la riz a ç ã o . E s te c o n flito , n a
v erd ad e, n ã o s e c irc u n s c re v e d e m a n e ira p re c is a , n ã o e s tá c o n tid o d e n tro d e lim ite s e s tre ito s d e te m p o e e s p a ç o ,
p o rq u e e le re s s u rg e e se m a n té m v iv o n a s fro n te ira s d a e x p a n s ã o d o c a p ita lis m o e o n d e q u e r q u e a d in â m ic a d a
p ro d u ç ã o d o s lu c ro s c o lid a c o m o s m u n d o s s a c ra is . B a s ta a b rir o s n o s s o s jo rn a is e to m a r c iê n c ia d a s te n s õ e s
e n tre Ig re ja e E s ta d o , I g re ja e in te re s s e s e c o n ó m ic o s . A a rg u m e n ta ç ã o é a m e s m a . A s id e ia s s e re p e te m . Q u e a
re lig iã o c u id e d a s re a lid a d e s e s p iritu a is, q u e d a s c o is a s m a te ria is a e s p a d a e o d in h e iro s e e n c a rre g a m .
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é d iz e r a s p re s e n ç a s . A s c o is a s q u e s ã o d ita s e p e n s a d a s d e v e m c o rre s p o n d e r à s c o is a s q u e s ã o v is ta s e p e r c e b id a s .
Isto é a v e rd a d e .
E o d is c u rs o re lig io s o ? E n u n c ia d o d e a u s ê n c ia s , n e g a ç ã o d o s d a d o s , c ria ç ã o d a im a g in a ç ã o : s ó p o d e s e r
c la s s ific a d o c o m o e n g o d o c o n s c ie n te o u p e rtu r b a ç ã o m e n ta l. P o rq u e , s e e le " n ã o c o n té m q u a lq u e r ra c io c ín io
a b s tr a io re la tiv o à q u a n tid a d e e a o n ú m e ro " , " n ã o c o n té m ra c io c ín io s e x p e rim e n ta is q u e d ig a m re s p e ito a
m a té ria s d e f a to e e x is tê n c ia " , " n ã o p o d e c o n te r c o is a a lg u m a a n ã o s e r s o fis m a s e ilu s õ e s " .
P io r q u e e n u n c ia d o d e fa ls id a d e s , d is c u rs o d e s titu íd o d e s e n tid o . S e d ig o " o fo g o é fr io " , e s to u
d iz e n d o u m a fa ls id a d e . D ig o a lg o q u e q u a lq u e r p e s s o a e n te n d e ; s ó q u e n ã o é v e rd a d e . M a s s e a f ir m o " o
fo g o , d ia n te d a p ro b a b ilid a d e , e s c u re c e u o s ilê n c io " , o le ito r fic a rá p a s m o e d irá : " C o n h e ç o to d a s a s p a la v ra s ,
u m a a u m a . M a s a c o is a n ã o fa z s e n tid o " . P a ra q u e u m e n u n c ia d o p o s s a se r d ec lara d o fa ls o é n e c e s s á rio q u e e le
f a ç a s e n tid o . M a s a c iê n c ia n e m m e s m o a fa ls id a d e co n c e d e u à re lig iã o . D e c la ro u -a d is c u rs o d e s titu íd o d e
s e n tid o , p o r s e re fe rir a e n tid a d e s
im a g in á ria s . . .
E s ta b e le c e u -s e , a s s im , u m q u a d ro s im b ó lic o n o q u a l n ã o h a v ia lu g a r p a ra a re lig iã o . F o i id e n tific a d a c o m o
p a s s a d o , o a tra s o , a ig n o râ n c ia d e u m p e río d o n e g ro d a h is tó ria . Id a d e d a s T re v a s , 0 e x p lic a d a c o m o
c o m p o rta m e n to in f a n til d e
5 0
p o v o s e g ru p o s n ã o e v o lu íd o s , ilu s ã o , ó p io , n e u ro s e , id e o lo g ia . O p o n d o -s e a e s te q u a d ro s in is tr o , u m fu tu r o
lu m in o s o d e p r o g re s s o , riq u e z a , e c o n h e c im e n to c ie n tífic o . E a s s im n ã o fo ra m p o u c o s o s q u e e scre v e ra m
p re c o c e s n e c ro ló g io s d o s a g ra d o , e fiz e ra m p ro fe c ia s d o d e s a p a re c im e n to d a re lig iã o e d o a d v e n to d e u m a o rd e m
s o c ia l to ta lm e n te s e c u la r iz a d a e p r o fa n a .
M a s , s e ta l q u a d r o d e in te r p re ta ç ã o d o fe n ó m e n o re lig io s o s e e s ta b e le c e u , fo i p o rq u e , d e fa to , e la p e rd e u s e u
p o d e r e c e n tra lid a d e . C o m o d iz ia R ic k e rt, c o m o tr iu n f o d a b u r g u e s ia D e u s p a s s o u a te r p ro b le m a s h a b ita c io n a is
c ró n ic o s . D e s p e ja d o d e u m lu g a r, d e s p e ja d o d e o u tr o . .. P r o g r e s s iv a m e n te f o i e m p u rr a d o p a r a f o r a d o m u n d o .
P a ra q u e o s h o m e n s d o m in e m a te rra é n e c e s s á rio q u e D e u s s e ja c o n fin a d o a o s c é u s .
E a s s im s e d iv id ira m á re a s d e in flu ê n c ia s .
A o s n e g o c ia n te s e p o lític o s fo ra m e n tre g u e s a te rra , o s m a re s , o s rio s , o s a re s , o s c a m p o s , a s c id a d e s , a s fá b ric a s ,
o s b a n c o s , o s m e rc a d o s , o s lu c ro s , o s c o rp o s d a s p e s s o a s .
A re lig iã o fo i a q u in h o a d a c o m a a d m in is tra ç ã o d o m u n d o in v is ív e l, o c u id a d o d a s a lv a ç ã o , a c u ra d a s a lm a s
a flita s .
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A COISA QUE NUNCA MENTE
"N…o existe religi…o alguma que seja falsa. Todas elas respondem, de formas
diferentes, a condi‡†es dadas da existˆncia humana." (E. Durkheim)
53
sua verdade ou falsidade.
Depois, h‚ as coisas que n…o significam outras. Elas s…o elas mesmas, n…o apontam para nada, s…o destitu€das de
sentido. Tomo um copo d'‚gua. A ‚gua mata a sede. Isto me basta. N…o me pergunto se a ‚gua • verdadeira. Ela •
cristalina, fria, gostosa.. . O fogo • fogo. Que • que ele significa? Nada. Significa -se a si mesmo. Ele aquece,
ilu m in a , q u e im a . P e rg u n ta r s e e le é v e rd a d e ir o n ã o fa z s e n tid o . A q u e la flo r, lá n o m e io d o ja rd im , n a s c id a p o r
a c id e n te d e u m a s e m e n te q u e o v e n to le v o u , ta m b é m n ã o s ig n ific a c o is a a lg u m a . A flo r é a f lo r . D e u m a f lo r ,
c o m o d e to d a s a s c o is a s q u e n ã o s ig n ific a m o u tra s , n ã o p o s s o le v a n ta r a q u e s tã o a c e rc a d a v e rd a d e , a q u e s tã o
e p is te m o ló g ic a . M a s p o s s o p e r g u n ta r s e e la é p e r f u m a d a , s e é b e la , s e é p e r f e ita . .. C o is a s q u e n a d a s ig n ific a m
p o d e m s e r tra n s f o r m a d a s e m s ím b o lo s . A ra p o s a c o m e ç o u a fic a r f e liz a o o lh a r p a r a o tr ig a l.. . T a m b é m o fo g o se
tra n s fo rm a e m s ím b o lo n a s v e la s d o s a lta re s o u n a s p ira s o lím p ic a s . E a flo r p o d e s e r u m a c o n fis s ã o d e a m o r o u u m a
a firm a ç ã o d e s a u d a d e , s e jo g a d a s o b re u m a s e p u ltu ra . . .
C o is a s q u e n a d a s ig n ific a m p o d e m p a s s a r a s ig n ific a r , p o r m e io d e u m a r tif íc io : b a s ta q u e s o b re e la s e s c re v a m o s
a lg o , c o m o fa z e m o s n a m o ra d o s q u e g ra v a m s e u s n o m e s n a s c a s c a s d e á rv o re s , e a q u e le s q u e , a c re d ita n d o e m su a
p ró p ria im p o rtâ n c ia , m a n d a m c o lo c a r p la c a s c o m e m o ra tiv a s
5 4
5 5
pe‡a.
Ela n…o significava coisa alguma. N…o se tratava de uma coisa que significa outra, um s€mbolo. Ela era a pr„pri a
coisa.
Arquitetos, artistas pl‚sticos, mƒsicos, constr„em coisas usando tijolos, tintas e bronze, sons. E h‚ aqueles que
constr„em coisas usando palavras. Medite sobre esta afirma‡…o de Archibald Mac Leish.
"Um poema deveria ser palp‚vel e mudo como um fruto redondo, . um poema deveria n…o ter palavras como o voo
dos p‚ssaros, um poema n…o deveria significar coisa alguma
e simplesmente. . . ser."
Lembro-me que, quando menino, em uma cidade do interior, os homens se reuniam ap„s o jantar para contar
caso s. As est„rias eram fant‚s ticas, e todos sabiam disto. Mas nunca ouvi ningu•m dizer ao outro: "Vocˆ est‚
mentindo". A rea‡…o apropriada a um caso fant‚stico era outra: "Mas isto n…o • nada". E o novo artista iniciava a
constru‡…o de um outro objeto de palavras. Faz pouco tempo que me dei conta de que, naquele jogo, o julgamento
de verdade
• falsidade n…o entrava. Porque as coisas eram ditas n…o para significar algo. As coisas eram ditas
• fim de construir objetos que podiam ser belos, fascinantes, engr a‡ados, grotescos, fant‚sticos
H‚ certas situa‡†es em que as palavras deixam de significar, abandonam o mundo da verdade e da falsidade, e
passam a existir ao lado das coisas.
Quem confunde coisas que significam com coisas que nada significam comete graves equ€vocos.
As obras de Bach foram descobertas por acaso quando eram usadas para embrulhar carne num a‡ougue. O
a‡ougueiro n…o entendia os s€mbolos, n…o conseguia entender o texto escrito e, conse -qŽentemente, n…o podia
ouvir a mƒs ica. Para ele a ƒnica realidade era a coisa: o papel, muito bom para embrulhar.
A ciˆncia medieval olhava para o universo e pensava que ele era um conjunto de coisas que
significavam outras. Cada planeta era um s€mbolo. Dever iam ser decifrados para que ouv€s semos a mensagem
de que eram portadores. E Kepler tentou descobrir as harmonias musicais destes mundos. . . A F€sica s„
avan‡ou quando o universo foi reconhecido como coisa. E foi assim que Galileu parou de perguntar o que
• que o universo significa e concentrou -se simples mente em saber o que ele •, como funciona, quais as leis que o
regem.
Q u e m s e p ro p u s e r a e n te n d e r a fu n ç ã o d o d ó la r a p a rtir d a c o is a e s c rita q u e e s tá im p re s s a n a s c é d u la s c h e g a ria a
c o n c lu s õ e s c ó m ic a s . O d ó la r n ã o s e e n te n d e a p a rtir d o s ig n ific a d o d e
5 7
" C o n s id e re o s fa to s s o c ia is c o m o s e fo s s e m c o is a s ."
5 8
E D u rk h e im c o m e n ta :
5 9
T o d o s c o n c o rd a ria m e m q u e s e ria a c ie n tífic o d e n u n c ia r a le i d a g ra v id a d e s o b a a le g a ç ã o d e q u e m u ita s p e s s o a s
tê m m o rrid o e m d e c o rrê n c ia d e q u e d a s . S e a s s im p ro c e d e m o s e m re la ç ã o a o s fa to s d o u n iv e r s o fís ic o , p o r q u e n o s
c o m p o r ta m o s d e fo rm a d ife re n te e m re la ç ã o a o s fa to s d o u n iv e rs o h u m a n o ? A n te s d e m a is n a d a é n e c e s s á rio
e n te n d e r. E já d is p o m o s d e u m a s u s p e ita : a o c o n trá rio d a q u e le s q u e im a g in a v a m q u e a re lig iã o e ra u m fe n ó m e n o
p a s s a g e iro , e m v ia s d e d e s a p a re c im e n to , a s u a u n iv e rs a lid a d e e p e r s is tê n c ia n o s s u g e re m q u e e la n o s re v e la " u m
a s p e c to e s s e n c ia l e p e rm a n e n te d a h u m a n id a d e " . 3 Q u e s ã o a s re lig iõ e s ? Ã p rim e ira v is ta n o s e s p a n ta m o s c o m a
im e n s a v a rie d a d e d e rito s e m ito s q u e n e la s e n c o n tra m o s , o q u e n o s fa z p e n s a r q u e ta lv e z s e ja im p o s s ív e l d e s c o b rir
u m tra ç o c o m u m a to d a s . N o e n ta n to , a s s im c o m o n o jo g o d e x a d re z a v a rie d a d e d o s la n c e s s e d á s e m p re e m c im a
d e u m ta b u le ir o , q u a d r ic u la d o e d iv id id o e m e s p a ç o s b ra n c o s e p re to s , a s re lig iõ e s , s e m e x c e ç ã o a lg u m a ,
e s ta b e le c e m u m a d iv is ã o b ip a rtid a d o u n iv e r s o in te ir o , q u e s e r a c h a e m d u a s c la s s e s n a s q u a is e s tá c o n tid o tu d o o q u e
e x is te . E e n c o n tra m o s a s s im o e s p a ç o d a s c o is a s s a g r a d a s e , d e l a s s e p a r a d a s p o r u m a s é r ie d e p r o ib iç õ e s , a s c o is a s
s e c u la r e s o u p r o f a n a s .
S a g ra d o e p ro fa n o n ã o s ã o p ro p rie d a d e s d a s c o is a s . E le s s e e s ta b e le c e m p e la s a titu d e s d o s h o m e n s p e ra n te s c o is a s ,
e sp a ç o s, te m p o s, p e sso a s,
6 0
açõ es.
6 1
62
mas semelhantes aos nossos. E era isto que o levava a perguntar: como • poss€vel a sociedade? Que for‡a misteriosa •
esta que faz com que indiv€duos isolados, cada um deles correndo atr‚s dos seus interesses, em conflitos uns com
os outros, n…o se destruam uns aos outros? Por que n…o se devoram? Qual a origem da razo‚vel harmonia da vida
social?
A resposta que havia sido ante riormente propos ta para esta quest…o dizia que os indiv€duos, impulsionados por
seus interesses, haviam criado a sociedade como um meio para a sua satisfa‡…o. O indiv€duo toma a decis…o, a
sociedade vem depois. O indiv€duo no centro, a sociedade como sist ema que gira ao seu redor. Tudo isto se
encaixa muito bem naquele esquema utilit‚rio, pragm‚tico, do mundo secular, que indicamos. E, ainda mais, se a
sociedade • um meio, ela praticamente tem o estatuto daqueles objetos que podem ser descar tados quando perdem
a sua utilidade.
O problema est‚ em que a vida social, tal como a conhecemos, n…o se enquadra neste jogo secular e utilit‚rio. As
coisas mais s•rias que fazemos nada tˆm a ver com a utilidade. Resultam de nossa reverˆncia e respeito por
normas que n…o criamos, que nos coagem, que nos p†em de joelhos.. . Do ponto de vista estritamente utilit‚rio
seria mais econ„mico matar os velhos, castrar os portadores de defeitos gen•ticos, matar as crian‡as defeituosas,
abortar as gravidezes aci-
63
dentais e indesejadas, fazer desaparecer os adver s‚rios pol€ticos, fuzilar os criminosos e poss€veis criminosos. . .
Mas alguma coisa nos diz que tais coisas n…o devem ser feitas. Por quˆ? Porque n…o. Por raz†es morais, sem
justificativas utilit‚rias. E mesmo quando as fazemos, sem sermos apanhados, h‚ uma voz, um sentimento de culpa,
a consciˆncia, que nos diz que algo sagrado foi violentado.
Que ocorre quando a seculariza‡…o avan‡a, o utilitarismo se imp†e e o sagrado se dissolve? Roubadas daquele
centro sagra do que exigia a reverˆncia dos indiv€duos para com as normas da vida social, as pessoas perdem os seus
pontos de orienta‡…o. Sobrevˆm a anomia. E a sociedade se estilha‡a sob a crescente press…o das for‡as centr€fugas
do individualismo. Se • poss€vel quebrar as normas, tirar proveito e escapar ileso, que argumento utilit‚rio pode
ser invocado para evitar o crime?
O sagrado • o centro do mundo, a origem da ordem, a fonte das normas, a garantia da harmonia. Assim,
q u a n d o D u rk h e im e x p lo ra v a a re lig iã o e le e s ta v a in v e s tig a n d o a s p ró p ria s c o n d iç õ e s p a ra a s o b re v iv ê n c ia d a v id a
s o c ia l. E é isto o q u e a firm a a s u a m a is re v o lu c io n á ria c o n c lu s ã o a c e rc a d a e s s ê n c ia d a re lig iã o .
Q u a l é e s ta c o is a m is te rio s a m e n te p re s e n te n o c e n tro d o c írc u lo s a g ra d o ? D o n d e s u rg e m a s e x p e riê n c ia s re lig io s a s
q u e o s h o m e n s e x p li-
6 4
ca ra m e d esc rev era m co m o s n o m e s m a is v a ria d o s e o s m ito s m a is d is tin to s ? Q u e e n c o n tra m o s n o c e n tro d a s
re p re s e n ta ç õ e s re lig io s a s ? A re s p o s ta n ã o é d if í c il.
N a sc e m o s fra c o s e in d e fe so s; in c a p a z e s d e s o b re v iv e r c o m o in d iv íd u o s is o la d o s ; re c e b e m o s d a s o c ie d a d e u m
n o m e e u m a id e n tid a d e ; c o m e la a p re n d e m o s a p e n s a r e n o s to rn a m o s ra c io n a is ; f o m o s p o r e la a c o lh id o s ,
p ro te g id o s , a lim e n ta d o s ; e , fin a lm e n te , é e la q u e c h o ra rá a n o s s a m o rte . É c o m p re e n s ív e l q u e e la s e ja o D e u s q u e
to d a s a s re lig iõ e s a d o ra m , a in d a q u e d e fo r m a o c u lta , e s c o n d id a a o s o lh o s d o s fié is . A s s im , " e s ta re a lid a d e ,
re p re s e n ta d a p e la s m ito lo g ia s d e ta n ta s f o r m a s d ife r e n te s , e q u e é a c a u s a o b je -tiv a , u n iv e rs a l e e te rn a d a s s e n s a ç õ e s
s u i g e n e ris c o m a s q u a is a e x p e riê n c ia re lig io s a é fe ita , é a s o c ie d a d e " .
A o s fié is p o u c o im p o rta q u e s u a s id e ia s s e ja m c o rre ia s o u n ã o . A e s s ê n c ia d a re lig iã o n ã o é a id e ia , m a s a f o rç a .
" O fie l q u e e n tro u e m c o m u n h ã o c o m o s e u D e u s n ã o é m e ra m e n te u m h o m e m q u e v ê n o v a s v e rd a d e s q u e o d e s c re n te
ig n o r a . E le s e to rn o u m a is f o rte . E le s e n te , d e n tr o d e s i, m a is fo r ç a , s e ja p a ra s u p o rta r o s s o frim e n to s d a e x is tê n c ia ,
s e ja p a ra v e n c ê -lo s ." O s a g ra d o n ã o é u m c ír c u lo d e s a b e r, m a s u m c írc u lo d e p o d e r .
D u rk h e im p e rc e b e q u e a c o n s c iê n c ia d o s a g r a d o s ó a p a re c e e m v irtu d e d a c a p a c id a d e h u m a n a
6 5
N a s c e m o s fra c o s e in d e fe s o s ; in c a p a z e s d e s o b r e v iv e r c o m o
in d iv íd u o s is o la d o s ; re c e b e m o s d a s o c ie d a d e u m n o m e e
u m a id e n tid a d e ; ( ... ) É c o m p r e e n s ív e l q u e e la s e ja o D e u s
q u e to d a s a s r e lig iõ e s a d o r a m ...
6 6
p a ra im a g in a r, p a ra p e n s a r u m m u n d o id e a l. C o is a q u e n ã o v e m o s n o s a n im a is , q u e p e rm a n e c e m se m p re
m e rg u lh a d o s n o s fa to s . O s h o m e n s , a o c o n trá r io , c o n te m p la m o s fa to s e o s re v e ste m c o m u m a a u ra s a g ra d a q u e
em n en h u m lu g a r s e a p re s e n ta c o m o d a d o b ru to , s u rg in d o a p e n a s d e s u a c a p a c id a d e p a ra c o n c e b e r o id e a l e d e
a c r e s c e n ta r a lg o a o re a l. N a v e r d a d e , o id e a l e o s a g r a d o s ã o a m e s m a c o is a .
S u a c e r te z a d e q u e a r e lig iã o e r a o c e n tr o d a s o c ie d a d e e r a tã o g r a n d e q u e e le n ã o p o d ia im a g in a r u m a s o c ie d a d e
to ta lm e n te p ro fa n a e s e c u la -riz a d a . O n d e e s tiv e r a s o c ie d a d e a li e s ta rã o o s d e u s e s e a s e x p e riê n c ia s s a g ra d a s . E
c h e g o u m e s m o a a f ir m a r q u e " e x is te a lg o d e e te r n o n a r e lig i ã o q u e e s tá d e s tin a d o a s o b r e v iv e r a to d o s o s s í m b o lo s
p a rtic u la r e s n o s q u a is o p e n s a m e n to r e lig io s o s u c e s s iv a m e n te se e n v o lv e u . N ão p o d e e x is tir u m a
s o c ie d a d e q u e n ã o s in ta a n e c e s s id a d e d e m a n te r e re a firm a r, a in te rv a lo s , o s s e n tim e n to s c o le tiv o s e
id e ia s c o le tiv a s q u e c o n s titu e m su a u n id a d e e p e rs o n a lid a d e " . A re lig iã o p o d e s e tra n s fo rm a r. M a s n u n c a
d e sa p a rec erá. E e le c o n c lu i re c o n h e c e n d o u m v a z io e a n u n c ia n d o u m a e s p e ra n ç a :
" O s v e lh o s d e u s e s já e s tã o a v a n ç a d o s e m a n o s o u já m o r r e r a m , e o u tr o s a in d a n ã o n a s c e r a m " .
E n tre ta n to ,
6 7
Entramos num outro mundo. Durkheim contemplou as t•nues cores do mundo sacral que desapa recia, como
nuvens de crepƒsculo que passam de rosa ao negro, sob as mudan‡as r‚pidas da luz que mergulha. Fascinado,
empreendeu a busca das origens, do tempo perdido. .. E l‚ se foi atr‚s da religi…o mais simples e primitiva que se
conhecia, sob a esperan‡a de que o mundo sacra l-to tˆm i‡o dos abor€genes australianos nos oferecesse vis†es de um
para€so — uma ordem
69
social constru€da em torno de valores espirituais e morais. Penetra no passado a fim de compreender o presente.
Compreender com esperan‡a. . .
Marx n…o habita o crepƒsculo. Vive j‚ em plena noite. Anda em meio aos escombros. Analisa a dissolu‡…o.
Elabora a ciˆncia do capital e faz o diagn„stico do seu fim. Nada tem a pregar e nem oferece conselhos. N…o
procura para€sos perdidos porque n…o acredita neles. Mas dirige o seu olhar para os horizontes futuros e espera a
vinda de uma cidade santa, sociedade sem opri midos e opressores, de liberdade, de transfigu ra‡…o er„tica do corpo.
..
Mas o solo em que pisa desconhece o mundo sacral, de normas morais e valores espirituais. Ele • seculariz ado do
princ€pio ao fim e somente conhece a •tica do lucro e o entusiasmo do capital e da posse. N…o importa que os
capitalistas frequentem templos e fa‡am ora‡†es, nem que construam cidades sagradas ou sustentem movi mentos
mission‚rios, nem ainda que haja ‚gua benta na inaugura‡…o das f‚bricas e celebra‡†es de a‡†es de gra‡as pela
prosperidade, e muito menos que missas sejam rezadas pela eterna salva‡…o de suas almas. .. Este mundo ignora os
elementos espirituais. Sal‚rios e pre‡os n…o s…o estabelecidos nem pela religi…o e nem pela •tica. A riqueza se
constr„i por meio de uma l„gica duramente material: a l„gica do lucro, que n…o conhece a compaix…o. Na verdade,
aqueles que
70
tˆm compaix…o se condenam a si mesmos • destrui‡…o. . . N…o se pode negar que os gestos e as falas ainda se referem
aos deuses e aos valores morais: maquilagem, incenso, desodorante, perfumaria, uma aura sagrada que tudo envolve
no seu perfume, sem que nada se altere. E Marx tem de insistir num procedimento rigorosamente materialista de
an‚lise. De fato, materialismo que • uma exigˆncia do pr„prio sistema que s„ conhece o poder dos fatores
materiais. Œ a l„gica do lucro e da riqueza que assim estabelece — e n…o as inclina‡†es pessoais daquele que a
analisava.
Poucas pessoas sabem que o pensamento de Marx sobre a religi…o tomou forma e se desen volveu em meio a uma
luta pol€tica que travou. E a luta n…o foi nem com cl•rigos e nem com te„logos, mas com um grupo de fil„sofos
que entendia que a religi…o era a grande culpada de todas as desgra‡as sociais de ent…o, e desejava estabelecer um
programa educativo com o obje -tivo de fazer com que as pessoas abandonassem as ilus†es religiosas. Marx estava
convencido de que a religi…o n…o tinha culpa alguma. E que n…o existia nada mais imposs €vel que a elimi na‡…o de
ideias, ainda que falsas, das cabe‡as dos homens. . . Porque as pessoas n…o tˆm certas ideias porque querem. E
imagino que cl•rigos e religiosos poder…o esfregar as m…os com prazer: "Finalmente descobrimos um Marx do
nosso
71
lado". Nada mais distante da verdade. A religi…o n…o era culpada pela simples raz…o de que ela n…o fazia diferen‡a
alguma. Como poderia um eunuco ser acusado de deflorar uma donzela? Como poderia a religi…o ser acusada de
responsa bilidade, se ela n…o passava de uma sombra, de um eco, de uma imagem invertida, projetada sobre a parede?
Ela n…o era causa de coisa alguma. Um sintoma apenas. E, por isto mesmo, os fil„sofos que se apresentavam como
perigosos revo lucion‚rios n…o passavam de r•plicas de D. Quixote, investindo contra moinhos de vento.
Marx n…o desejava gastar energias com drag†es de papel. Estava em busca das for‡as que realmente movem a
s o c ie d a d e . P o rq u e e ra a í, e s o m e n te a í, q u e a s b a ta lh a s d e v e ria m s e r tra v a d a s .
Q u e fo rç a s e ra m e s ta s ?
O s filó s o fo s re v o lu c io n á rio s a q u e n o s r e fe rim o s , h e g e lia n o s d e e s q u e rd a , d e s e ja v a m q u e a s o c ie d a d e p a s s a s s e
p o r tra n s fo rm a ç õ e s ra d ic a is . E e le s e n te n d ia m q u e a o r d e m s o c ia l e r a c o n s tr u íd a c o m u m a a rg a m a s s a e m q u e a s c o is a s
m a te r ia is e ra m c im e n ta d a s u m a s n a s o u tra s p o r m e io d e id e ia s e f o r m a s d e p e n s a r. A s s im , a rm a s , m á q u in a s , b a n c o s ,
fá b ric a s , te rra s s e in te g ra v a m p o r m e io d a r e lig iã o , d o d ir e ito , d a filo s o f ia , d a te o lo g ia . . . A c o n c lu s ã o p o lític o -
tá tic a s e s e g u e n e c e s s a ria m e n te : s e h o u v e r u m a a tiv id a d e c a p a z d e d is s o lv e r id e ia s e m o d ific a r fo rm a s a n tig a s d e
p e n s a r, o e d ifíc io s o c ia l in te ir o c o m e ç a r á a tr e m e r. E fo i
7 2
a s sim q u e e le s s e d e c id ira m a tra v a r a s b a ta lh a s re v o lu c io n á ria s n o c a m p o d a s id e ia s , u s a n d o c o m o a rm a a lg u m a
c o is a q u e n a q u e le te m p o s e c h a m a v a c rític a . H o je , p o s s iv e lm e n te , e le s fa la ria m d e c o n s c ie n tiz a ç ã o . E in v e s tira m
c o n tra a re lig iã o .
M a r x s e riu d is to . O s h e g e lia n o s v ê e m a s c o is a s d e c a b e ç a p a ra b a ix o . P e n s a m q u e a s id e ia s s ã o a s c a u s a s d a v id a
s o c ia l, q u a n d o e la s n a d a m a is s ã o q u e e f e ito s , q u e a p a re c e m d e p o is q u e a s c o is a s a c o n te c e r a m . . . " N ã o é a c o n s c iê n c ia
q u e d e te rm in a a v id a ; é a v id a q u e d e te rm in a a c o n s c iê n c ia ." E e le a f irm a v a :
7 3
d a m e ta físic a . O s h o m e n s sã o o s p ro d u to re s
d e s u a s c o n c e p ç õ e s ."
"Œ o homem que faz a religi…o; a religi…o n…o
faz o homem."
Œ o fogo que faz 5 tuma‡a; a fuma‡a n…o faz
o fogo.
;
E, da mesma forma como • inƒtil tentar apagar o fogo assoprando a fuma‡a, tamb•m • inƒtil tentar mudar as
condi‡†es de vida pela cr€tica da religi…o. A consciˆncia da fuma‡a nos remete ao incˆndio de onde ela sai. De
forma idˆnt ica, a consciˆncia da religi…o nos for‡a a encarar as condi‡†es materiais que a produzem.
Quem • esse homem que produz a religi…o?
Ele • um corpo, corpo que tem de comer, corpo que necessita de roupa e habita‡…o, corpo que se reproduz,
corpo que tem de transformar a natureza, trabalhar, para sobreviver.
Mas o corpo n…o existe no ar. N…o o encon tramos de forma abstraia e universal. Vemos homens
indissoluvelmente amarrados aos mundos onde se d‚ sua luta pela sobrevivˆncia, e exibindo em seus corpos as
marc as da natureza e as marcas das ferramentas. Os b„ias -frias, os pescadores, os que lutam no campo, os que
trabalham nas constru‡†es, os motoristas de ’nibus, os que trabalham nas forjas e prensas, os que ensinam crian‡as
e adultos a ler — cada um deles, de maneira espec€fica, traz no seu corpo as marcas
74
do seu trabalho. Marcas que se traduzem na comida que podem comer, nas enfermidades que podem sofrer,
nas divers†es a que podem se dar, nos anos que podem viver, e nos pensamentos com que podem sonhar — suas
religi†es e espe ran‡as.
Marx tamb•m sonhava e imaginava. E muito embora haja alguns que o considerem importante em virtude
da ciˆncia econ„mica que estabeleceu, desprezando como arroubos juvenis os voos de sua fantasia, coloco-
me entre aqueles outros que invertem as coisas e se detˆm especialmente nas fronteiras em que o seu
pensamento invade os horizontes das utopias. E Marx se perguntava sobre um outro tipo de trabalho que
daria prazer e felicidade aos homens, trabalho companheiro das cria‡†es dos artistas e do prazer n…o utili-
t‚rio do brinquedo e do jogo. . . Trabalho express…o da liberdade, atividade espiritual criadora, construtor
de um mundo em harmonia com a inten‡…o. . . Œ claro que Marx nunca viu este sonho ut„pico realizado em
sociedade alguma. Foi ele que o construiu a partir de pequenos fragmentos de experiˆncia, trabalhados pela
mem„ria e pela esperan‡a. Mas s…o estes hori zontes ut„picos que agu‡am os olhos para que eles percebam os
absurdos do "topos", o lugar que habitamos. E, ao contemplar o trabalho, o que ele descobriu foi aliena‡…o
d o p rin c íp io a o f im .
7 5
O q u e é a lie n a ç ã o ?
A lie n a r u m b e m : tr a n s fe r ir p a r a u m a o u tr a p e s s o a a p o s s e d e a lg u m a c o is a q u e m e p e rte n c e . T e n h o u m a c a s a :
p o s s o d o á -la o u v e n d ê -la a u m o u tr o . P o r e s te p r o c e s s o e la é a lie n a d a . A a lie n a ç ã o , a s s im , n ã o é a lg o q u e
a c o n te c e n a c a b e ç a d a s p e s s o a s . T ra ta -s e d e u m p ro c e s s o o b je tiv o , e x te r n o , d e tr a n s f e r ê n c ia , d e u m a p e s s o a a
o u tr a , d e a lg o q u e p e r te n c ia à p r im e ira .
P o r q u e o tra b a lh o é m a rc a d o p e la a lie n a ç ã o ?
V o lte m o s p o r u m in s ta n te a o tr a b a lh o n ã o a lie n a d o , c r ia d o r, liv r e , q u e M a r x im a g in o u . S u a m a rc a
e s s e n c ia l e s tá n is to : o h o m e m d e s e ja a lg o . S e u d e s e jo p ro v o c a a im a g in a ç ã o q u e v is u a liz a a q u ilo q u e é d e s e ja d o ,
s e ja u m ja rd im , u m a s in fo n ia o u u m s im p le s b rin q u e d o . A im a g in a ç ã o e o d e s e jo in fo rm a m o c o rp o , q u e se
p õ e in te ir o a tr a b a lh a r , p o r a m o r a o o b je to q u e d e v e s e r c r ia d o . E q u a n d o o tr a b a lh o te r m in a o c r ia d o r
c o n te m p la s u a o b r a , v ê q u e é m u ito b o a e d e s c a n s a . ..
Q u e a c o n te c e c o m a q u e le q u e tra b a lh a d e n tr o d a s a tu a is c o n d iç õ e s ?
E m p rim e ir o lu g a r, e le te m d e a lie n a r o s e u d e s e jo . S e u d e s e jo p a s s a a s e r o d e s e jo d e o u tr o . E le tr a b a lh a p a r a
o u tro .
E m s e g u n d o lu g a r , o o b je to a s e r p r o d u z id o n ã o é re s u lta d o d e u m a d e c is ã o s u a . E le n ã o e s tá g e ra n d o u m
filh o s e u . N a v e r d a d e , e le n ã o e s tá m e tid o n a p ro d u ç ã o d e o b je to a lg u m p o rq u e
7 6
co m a d iv is ã o d a p ro d u ç ã o n u m a s é rie d e a to s e s p e c ia liz a d o s e in d e p e n d e n te s , e le é re b a ix a d o d a c o n d iç ã o d e
c o n stru to r d e c o is a s à c o n d iç ã o d e a lg u é m q u e sim p le s m e n te a p e rta u m p a ra fu s o , a p e rta u m b o tã o , d á u m a
m a rte la d a . S e s e p e rg u n ta r a u m o p e rá rio d e u m a fá b r ic a d e a u to m ó v e is : " q u e é q u e v o c ê fa z ? " , n e n h u m d e le s d irá
" e u fa ç o a u to m ó v e is . V o c ê já v iu c o m o s ã o b o n ito s o s c a rro s q u e fa b ric o ? " . E le s n ã o d irã o q u e o b je to s p ro d u z e m ,
m a s q u e fu n ç ã o e s p e c ia liz a d a s e u s c o r p o s f a z e m : " S o u to r n e ir o . S o u f e r r a m e n te ir o . S o u e le tr ic is ta ."
E m te rc e iro lu g a r, e e m c o n s e q u ê n c ia d o q u e já f o i d ito , o tra b a lh o n ã o é a tiv id a d e q u e d á p ra z e r, m a s a tiv id a d e
q u e d á s o frim e n to . O h o m e m tra b a lh a p o rq u e n ã o te m o u tr o je ito . T ra b a lh o f o rç a d o . S e u m a io r id e a l: a
a p o s e n ta d o ria . O p ra z e r, e le irá e n c o n tra r f o ra d o tra b a lh o . E é p o r is to q u e e le s e s u b m e te a o tra b a lh o e a o p a g o
d o s a lá rio .
Em ƒltimo lugar, o trabalho cria um mundo independente da vontade de oper‚rio s. . . e capi talistas. Porque
tamb•m os capitalistas est…o alienados. Eles n…o podem fazer o que desejam. Todo o seu comportamento •
rigorosamente determinado pela lei do lucro. N…o • dif€cil compreender como isto acontece. Imaginemos que
vocˆ, sabendo que o bom do capitalismo • ser capitalista, e dispondo de uma certa import‰ncia ajuntada na
poupan‡a, resolva dar voos mais
77
altos e investir na bolsa de valores. Como • que vocˆ ir‚ proceder? Vocˆ dever‚ consultar tabelas que o informem
dos melh ores investimentos. E que • que vocˆ vai encontrar nelas? Nƒmeros, nada mais. Nƒmeros indicam as
possibilidades de lucro. Se as firmas em que vocˆ vai investir est…o derrubando florestas e provocando devas ta‡†es
ecol„gicas, se elas prosperam pela produ‡…o de armas, se elas s…o injustas e cru•is com os seus empregados, tudo isto •
absolutamente irrele vante. Estabelecida a l„gica do lucro, todas as coisas — da talidomida ao napalm — se
transfor mam em mercadorias, inclusive o oper‚rio. Este • o mundo secular, utilit‚rio, que horrorizava
Durkheim. Œ o mundo capitalista, regido pela l„gica do dinheiro. E o que ocorre • que o mundo estabelecido pela
l„gica do lucro — que inclui de devasta‡†es ecol„gicas at• a guerra — est‚ totalmente alienado, separado dos desejos
das pessoas, que prefeririam talvez coisas mais simples. . . Assim, as ‚reas verdes s…o entregues • especula‡…o
imobili‚ria, os €ndios perdem suas terras porque gado • melhor para a economia que €ndio, as terras v…o -se
transformando em desertos de can a, enquanto que rios e mares viram caldos venenosos, e os peixes b„iam,
mortos...
Mas que fatores levam os trabalhadores a aceitar tal situa‡…o? Por que trabalham de forma alienada? Por que n…o
saem para outra?
78
Porque n…o h‚ alternativas. Eles s„ possuem os seus corpos. Para produzir dever…o acopl‚ -los •s m‚quinas, aos
meios de produ‡…o. M‚quinas e meios de produ‡…o n…o s…o seus, e s…o gover nados pela l„gica do lucro. E • assim que
o pr„prio conceito de aliena‡…o nos revela uma sociedade partida entre dois grupos, duas classes sociais. Duas
maneiras totalmente diferentes de ser do corpo. Os trabalhadores s…o acoplados •s m‚quinas e, por isto, tˆm de
seguir o seu ritmo e fazer o que elas exigem. Isto deixar‚ marcas nas m…os, na postura, no rosto, nos olhos,
especialmente os olhos. . . Os corpos que habitam o mundo do lucro tamb•m tˆm suas marcas, que v…o do colarinho
b ra n c o (o s a m e ric a n o s fa la m m e s m o n o s tra b a lh a d o re s w h ite c o lla r), p a s s a n d o p ê lo s re s ta u ra n te s q u e fre q u e n ta m ,
a s a v e n tu ra s a m o ro s a s q u e tê m , e a s e n fe rm id a d e s c a rd io v a s c u la re s q u e o s a flig e m . . .
E n ã o é n e c e s s á r i o p e n s a r m u ito p a r a c o m p r e e n d e r q u e o s in te r e s s e s d e s ta s d u a s c la s s e s n ã o s ã o h a r m ó n ic o s . P a r a
M a rx a q u i s e e n c o n tra a c o n tra d iç ã o m á x im a d o c a p ita lis m o : o c a p ita lis m o c re s c e g ra ç a s a u m a c o n d iç ã o q u e to rn a
o c o n flito e n tre tra b a lh a d o re s e p a trõ e s in e v itá v e l. M a rx n u n c a p re g o u lu ta d e c la s s e s . A c h a v a ta l s itu a ç ã o
d e te stá v e l. A p e n a s c o m o u m m é d ic o q u e fa z u m d ia g n ó s tic o d e u m p a c ie n te e n fe rm o , e le d iz ia : o d e s e n la c e é
in e v itá v e l p o rq u e o s ó rg ã o s e s tã o e m g u e rr a .. . O p r o b le m a n ã o é d e n a tu r e z a
7 9
m o ra l n e m d e n a tu re z a p s ic o ló g ic a . N ã o s e re s o lv e c o m b o a v o n ta d e p o r p a rte d o s o p e rá rio s e g e n e ro s id a d e p o r
p a rte d o s p a trõ e s. N e n h u m s a lá rio , p o r m a is a lto q u e s e ja , e lim in a rá a a lie n a ç ã o . T ra ta -s e d e u m a le i, s o b o p o n to
d e v is ta d e M a rx , tã o rig o ro s a q u a n to a le i d a q u ím ic a q u e d iz : c o m p rim in d o -s e o v o lu m e d e u m g á s a p re ssã o
a u m e n ta ; e x p a n d in d o - s e o v o lu m e , a p r e s s ã o c a i. E a q u i p o d e r ía m o s a f ir m a r : " S a lá r io s c o m p r im id o s a o s e u
m ín im o p ro d u z e m m ila g re s e c o n ó m ic o s e x p a n d id o s a o s e u m á x im o " .
Is to é a re a lid a d e : h o m e n s tr a b a lh a n d o , e m re la ç õ e s u n s c o m o s o u tro s , s o b c o n d iç õ e s q u e e le s n ã o e s c o lh e ra m ,
fazen d o co m seu s c o rp o s u m m u n d o q u e n ã o d e s e ja m .. . E é d is to q u e s u r g e m e c o s , s o n h o s , g rito s e g e m id o s ,
p o e m a s , f ilo s o f ia s , u to p ia s , c r ité r io s e s té tic o s , le is , c o n s titu iç õ e s , r e lig iõ e s .. .
S o b re o fo g o , a fu m aç a ,
s o b re a re a lid a d e a s v o z e s ,
s o b re a in fr a -e s tru tu ra a s u p e re s tr u tu ra ,
s o b re a v id a a c o n s c iê n c ia . . .
S ó q u e tu d o a p a re c e d e c a b e ç a p a ra b a ix o , c o n f u s o . D iz M a rx , lá e m O C a p ita l, q u e s ó v e re m o s c o m c la re z a
q u a n d o fiz e rm o s a s c o is a s d o p rin c íp io a o fim , d e a c o r d o c o m u m p la n o p r e v ia m e n te tra ç a d o . M a s q u e m fa z a s
c o isa s d o p rin c íp io a o fim ? Q u e m c o m p re e n d e o p la n o e ra l? O s
8 0
p re s id e n te s ? O s p la n e ja d o re s ? O s m in is tro s ? O F M I?
C o m p re e n d e -se q u e o q u e a s p e sso a s tê m n o rm a lm e n te e m su a s ca b eças n ão s e ja
c o n h e c im e n to , n ã o s e ja c iê n c ia , m a s p u ra id e o lo g ia , fu m a ç a s , s e c re ç õ e s , re fle x o s d e u m
m u n d o a b su rd o .
E é a q u i q u e a p a re c e a re lig iã o , e m p a rte p a ra ilu m in a r o s c a n to s e s c u r o s d o
c o n h e c im e n to . M a s , p o b re d e la . . . E la m e sm a n ã o v ê . C o m o p re te n d e ilu m in a r? Ilu m in a
c o m ilu s õ e s q u e c o n s o la m o s f ra c o s e le g itim a ç õ e s q u e c o n s o lid a m o s f o rte s .
8 1
R e lig iã o ,
8 2
q u e a s ilu s õ e s d e s a p a re ç a m .
" A e x ig ê n c ia d e q u e s e a b a n d o n e m a s ilu sõ e s s o b re u m a d e te rm in a d a
s itu a ç ã o , é a e x ig ê n c ia d e q u e s e a b a n d o n e u m a s itu a ç ã o q u e n e c e ss ita
d e ilu s õ e s ."
8 3
O e q u ív o c o é p e n s a r q u e o s a g ra d o é s o m e n te a q u ilo q u e o s te n ta o s n o m e s
re lig io s o s tra d ic io n a is . B e m le m b ra v a D u rk h eim q u e a s ro u p a s s im b ó lic a s
d a re lig iã o s e a lte ra m . O n d e q u e r q u e im a g in e m o s v a lo re s e o s a c re s c e n te m o s
ao re a l, a í e s tá o d is c u rs o d o d e s e jo , ju s ta m e n te o lu g a r o n d e n a s c e m o s
d e u s e s . E M a rx fa la s o b re u m a s o c ie d a d e s e m c la s s e s q u e n in g u é m n u n c a v iu ,
e n a v is ã o tra n s p a re n te e c o n h e c im e n to c ris ta lin o d a s c o is a s, e n o triu n fo
d a lib e r d a d e e n o d e s a p a r e c im e n to d e o p re sso re s e o p rim id o s , e n q u a n to
o E s ta d o m u rc h a d e v e lh ic e e in u tilid a d e , a o m e s m o te m p o q u e a s p e s s o a s
b rin c a m e rie m e n q u a n to tra b a lh a m , p la n ta n d o ja r d in s p e la m a n h ã ,
c o n stru in d o c a sa s à ta rd e , d is c u tin d o a rte à n o ite . . . D e fa to , f o ra m - s e o s
s ím b o lo s s a g ra d o s, ju s ta m e n te a q u e le s " já a v a n ç a d o s e m a n o s o u já m o rto s . .
." . M a s e u m e p e r g u n ta ria s e a r a z ã o p o r q u e o m a r x is m o f o i c a p a z d e p r o d u -
z ir "h o ra s d e e fe rv e sc ê n c ia c ria tiv a , n a s q u a is id e ia s n o v a s a p a re c e ra m e
n o v a s fó r m u la s fo ra m e n c o n tra d a s, q u e s e rv ira m , p o r u m p o u c o , c o m o g u ia s
p a ra a h u m a n id a d e " , s im , e u m e p e rg u n ta ria s e tu d o is to s e d e v e u a o rig o r d e
s u a c iê n c ia o u à p a ix ã o d e s u a v is ã o , s e s e d e v e u a o s d e ta lh e s d e s u a e x p lic a ç ã o
o u à s p ro m e s s a s e e s p e ra n ç a s q u e e le f o i c a p a z d e fa z e r n a s c e r.. . E s e is to f o r
v e rd a d e , e n tã o , à a n á lis e q u e o m a rx is m o fa z d a r e lig iã o c o m o ó p io d o p o v o ,
u m o u tr o c a p ítu lo d e v e ria s e r a c re s c e n ta d o s o b re a re lig iã o c o m o
8 4
85
VOZ DO DESEJO
(L.Feuerbach)
86
e morrer...Sei que a compara‡…o • injusta. Mas o seu prop„sito •
simplesmente mostrar que o discurso religioso cont•m algo mais que a pura
ausencia de sentido , n…o podendo, por isso mesmo, ser exorcizado pela
cr€tica epstemologica.
Por outro lado, • poss€vel analisar a religi…o de um ‰ngulo sociol„gico,
como o fizeram Marx e Durkheim. O mesmo procedimento pode ser
a p lic a d o a o s u ic íd io . D e fa to , a a n á lis e c ie n tíf ic a m o s tra q u e a
fre q u ê n c ia e in c id ê n c ia d o s u ic íd io s e g u e m , d e m a n e ira c u rio s a , c e rto s
su lc o s s o c ia is : p r o te s ta n te s s e s u ic id a m m a is q u e c a tó lic o s , h a b ita n te s
d a s c id a d e s m a is q u e c a m p o n e s e s , v e lh o s m a is q u e o s m o ç o s , h o m e n s m a is
q u e m u lh e r e s , s o lte ir o s m a is q u e o s c a s a d o s . .. M a s, p o r m a is rig o ro s o s
q u e s e ja m o s re s u lta d o s d e ta l a n á lis e , re s ta - n o s u m a d ú v id a : s e r á q u e a
e x p lic a ç ã o q u e e n u n c ia o s q u a d r o s s o c io ló g ic o s d o s u ic íd io n o s d iz a lg o
a c e rc a d o s u ic id a ? A q u e la ú ltim a n o ite , q u a n d o a d e c is ã o e s ta v a se n d o
to m a d a : o s p e n s a m e n to s , a s m ã o s c ris p a d a s , q u e m s a b e a s p re c e s e a s c a rta s
e s b o ç a d a s , o s p a s s o s a té a ja n e la , o s o lh o s tris te s p a ra o c é u tr a n q u ilo . . .
N ã o . E s te d ra m a /p o e s ia q u e o c o rre n a s o lid ã o d a a lm a q u e p re p a ra s e u
ú ltim o g e s to e sc a p a p e rm a n e n te m e n te d a a n á lis e s o c io ló g ic a . E , p a r a s e r
to ta lm e n te h o n e s to : ta l d ra m a lh e é a b s o lu ta m e n te in d ife r e n te .
S e e u m e n c io n o o s u ic íd io é p a r a
e s ta b e le c e r u m a a n a lo g ia c o m a
r e lig iã o . P o r q u e a n á lis e
8 7
s o c io ló g ic a , e m am b o s o s c a so s, fa z u m s ilê n c io to ta l so b re o q u e
o c o rre n a s p ro fu n d e z a s d a a lm a . S e é v e rd a d e q u e a re lig iã o é u m fa to
s o c ia l, a p e s so a q u e fa z p ro m e s sa s a o se u D e u s p a ra q u e s e u filh o v iv a , o u
d o b r a o s jo e lh o s , n a s o lid ã o , c h o r a n d o , o u e x p e r im e n ta a p a z
in d iz ív e l d e c o m u n h ã o c o m o sa g ra d o , o u s e c u rv a p e ra n te a s
e x ig ê n c ia s m o ra is d e s u a fé , c o n fe s s a n d o p ec a d o s q u e n in g u é m
c o n h e c ia e p e d in d o p erd ã o a o in im ig o , s im , e s ta p e s s o a e s e u s
s e n tim e n to s re lig io s o s se e n c o n tr a m n u m a e sfera d e e x p e riê n c ia
in d if e re n te à a n á lis e s o c io ló g ic a , p o r s e r ín tim a , s u b je tiv a , e x is te n c ia l.
M a s s e rá q u e is to a to rn a m e n o s re a l?
E , q u a n d o n o s d is p o m o s a e n tra r n e s te s a n tu á r io d e s u b je tiv id a d e ,
d e fro n ta m o - n o s , u m a v e z m a is, c o m o e n ig m a . Q u a is sã o a s ra z õ e s
q u e fa z e m c o m q u e o s h o m e n s c o n s tru a m o s m u n d o s im a g in á rio s
d a r e lig iã o ? P o r q u e n ã o se m a n tê m e le s d e n tro d o e s tó ic o e
m o d e s to re a lis m o d o s a n im a is , q u e a c e ita m a v id a c o m o e la é , n ã o fa z e m
ca n çõ e s, n e m re v o lu ç õ e s , n e m r e lig iõ e s e , c o m is to , e sc a p a m à
m a ld iç ã o d a n e u ro s e e d a a n g ú s tia ?
E fo i e m m e io a p e n s a m e n to s s e m e lh a n te s a e ste q u e u m re lig io s o d o
s é c u lo p a s s a d o te v e e s te la m p e jo d e u m a v is ã o q u e c o lo c a v a a re lig iã o s o b
u m a lu z a to ta lm e n te d ife re n te .
P o r q u e n ão te n ta v a e n te n d e r a re lig iã o d a m esm a fo rm a c o m o
e n te n d e m o s o s s o n h o s ? S o n h o s
8 8
s ã o a s r e lig iõ e s d o s q u e d o r m e m . R e lig iõ e s s ã o o s s o n h o s d o s q u e e s tã o
a c o rd a d o s. . .
É b em p o ssív e l q u e as p esso as re lig io s a s se s in ta m d e s a p o n ta d a s,
p ro v a v e lm e n te e n fu re c id a s. Q u e s ã o o s s o n h o s ? C o n g lo m e ra d o s d e a b s u rd o s a
q u e n in g u é m d e v e p re s ta r a te n ç ã o . M u n d o fa n ta s m a g ó ric o d e c o n to rn o s
in d e fin id o s , e m q u e a s c o is a s s ã o e n ã o s ã o , e m q u e fa z e m o s c o is a s q u e n u n c a
fa ría m o s se e s tiv é s s e m o s a c o rd a d o s. E ta n to is to é v e rd ad e q u e
fre q u e n te m e n te n ã o te m o s c o ra g e m p a ra c o n ta r o q u e fiz e m o s e m n o s s o s o n o . .
. F e liz m e n te e s q u e c e m o s tu d o , q u a s e s e m p re . .. E fo i a s s im q u e p e n sa ra m
ta m b é m o s c o n te m p o râ n e o s d e L u d w ig F e u ë rb a c h , q u e o c o n d e n a ra m a o
o s tra c is m o in te le c tu a l p a ra o re s to d e s e u s d ia s . O u s a d ia d e m a is d iz e r q u e
re lig iã o é a p e n a s s o n h o . . .
M a s q u e m d iz a p e n a s s o n h o é p o rq u e n ã o e n te n d e u . D e fa to , o s s o n h o s n ã o
c o rre sp o n d e m a o s fa to s d a v id a a q u i d e fo ra . N ã o s ã o re p o rta g e n s s o b re o s
e v e n to s d o d ia . D e le s s e ria p o s s ív e l d iz e r o m e s m o q u e s e d is s e d o d is c u rs o
re lig io s o : d e s titu íd o s d e s e n tid o , n ã o s ig n if ic a m c o is a a lg u m a . ..
N in g u é m d is c o r d a : o s s ím b o lo s o n íric o s n ã o s ig n ific a m o m u n d o e x te rio r .
M a s , e s e e le s fo r e m e x p re s s õ e s d a a lm a h u m a n a , s in to m a s d e a lg o q u e o c o rre
em n o s s o ín tim o , re v e la ç õ e s d a s n o s s a s p ro fu n d e z a s ? A p ro p o s ta p o d e ria s e r
a c e ita a n ã o s e r p e lo fa to d e q u e n e m n ó s m e s m o s e n te n -
8 9
demos o que os sonhos significam. Ser‚ que, nos sonhos, falamos conosco
mesmos numa l€ngua que nos • estranha? Se os sonhos s…o revela‡†es do nosso
interior, por que • que tais revela‡†es n…o s…o feitas em linguagem clara e
direta? Por que a obscuridade, o enigma?
Mensagens s…o enviadas em c„digo quando h‚ algu•m que n…o deve
compreendˆ -las. O inimigo: o c„digo • uma forma de engan‚-lo. Assim ele
deixa passar, como inocente, a mensa gem que pode significar sua pr„pria
destrui‡…o. E • isto que parece acontecer no sonho: somos aquele que envia a
mensagem e, ao mesmo tempo, o inimigo que n…o deve entendˆ -la.. .
Œ exatamente isto que diz a psican‚lise.
Somos seres rachados, atormentados por uma guerra interna sem fim,
chamada neurose, na qual somos nossos pr„prios advers‚rios. Um dos lados de
n„s mesmos habita a luz diurna, representa a legalidade, e veste as m‚scaras de
uma enorme companhia teatral, desempenhando pap•is por todos
reconhecidos e respeitados — marido fiel, esposa dedicada, profissional
competente, pai compreensivo, velho s‚bio e paciente — e pela representa‡…o
convincente recebendo recompensas de status, respeito, poder e dinheiro. E
todos sabem que a transgress…o das leis que regem este mundo provoca puni‡†es
e deixa estigmas dolo rosos. . . Por detr‚s da m‚scara, entretanto, est‚ um outro
ser, amorda‡ado, em ferros, reprimido.
90
recalcado, proibido de fazer ou dizer o que deseja, sem permiss…o para ver a
luz do sol, condenado a viver nas sombras.. . ‘ o desejo, roubado dos seus
direitos, e dominado, pela for‡a, por um poder estranho e mais forte: a
sociedade. ” desejo grita: "Eu quero!" A sociedade responde: "N…o podes",
"Tu deves". O desejo procura o prazer. A sociedade proclama a ordem. E
assim se configura o conflito. Se a sociedade estabelece proibi‡†es • porque
ali o desejo procura se infiltrar. IM…o • necess‚rio proibir que as pessoas
comam pedras, porque ningu• m o deseja. S„ se pro€be o desejado. Assim,
pode haver leis proibindo o incesto, o furto, a exibi‡…o da nudez, os
atos sexuais em pƒblico, a crueldade para com crian‡as e animais, o assas -
sinato, o homossexualismo e lesbianismo, a ofensa a poderes
constitu€dos. Œ que tais desejos s…o muito fortes. O aparato de repress…o e
censura ser‚ tanto mais forte quanto mais intensa for a tenta‡…o de
transgredir a ordem estabelecida pela sociedade.
91
F re u d e sta v a c o n v e n c id o d e q u e o s n o ss o s d e se jo s, p o r m a is
fo rte s q u e fo s s e m , e s ta v a m c o n d en a d o s a o fra c a sso . E isto p o rq u e a
re a lid a d e n ã o fo i fe ita p a ra a te n d e r a o s d e s e jo s d o c o ra ç ã o . A in te n ç ã o
d e q u e fô ssem o s fe liz e s n ã o s e a c h a in s c rita n o p la n o d a C ria ç ã o . A
re a lid a d e s e g u e s e u c u rs o fé rre o , e m m e io à s n o s s a s lá g r im a s e s u rd a a e la s .
E n v e lh e c e m o s , a d o e c e m o s , s e n tim o s d o re s , n o s s o s c o rp o s s e to rn a m
flá c id o s , a b e le z a s e v a i, o s ó rg ã o s s e x u a is n ã o m a is re s p o n d e m a o s
e s tím u lo s d o o d o r, d a v is ta , d o ta to , e a m o rte s e a p ro x im a in e x o rá v e l.
N ã o h á d e sejo q u e p o ssa a lte ra r o c a m in h a r d o " p rin c íp io d a
re a lid a d e " .
E m m e io a e s ta s itu a ç ã o s e m s a íd a a im a g in a ç ã o c r ia m e c a n is m o s d e
c o n s o lo e fu g a , p o r m e io d o s q u a is o h o m e m p re te n d e e n c o n tra r, n a
fa n ta s ia , o p ra z e r q u e a re a lid a d e lh e n e g a . E v id e n te m e n te , n a d a m a is
q u e ilu s õ e s e n a rc ó tic o s , d e s tin a d o s a to rn a r n o s s o d ia -a -d ia m e n o s
m is e rá v e l.
9 3
F r e u d e s ta v a c o n v e n c id o d e q u e o s n o s s o s d e s e jo s , p o r m a is f o r te s q u e
fo s s e m , e s ta v a m c o n d e n a d o s a o fra c a s s o .
9 4
.9 5
c o m o e x p re s s õ e s d a o n ip o tê n c ia d o d e s e jo , e m o p o s iç ã o à re a lid a d e . A o s
p o u c o s , e n tre ta n to , c o m o u m a la g a rta q u e s a i d o c a s u lo , a h u m a n id a d e
a b a n d o n o u a s ilu s õ e s in v e n ta d a s p e lo p rin c íp io d o p ra z e r e c ris ta liz a d a s n a
re lig iã o , p a ra in g re s s a r n o m u n d o a d u lto c o n tro la d o p e lo p rin c íp io d a
re a lid a d e e e x p lic a d o p e la c iê n c ia . E d a m e sm a fo rm a c o m o o
d e s e n v o lv im e n to d a in fâ n c ia a té a id a d e a d u lta é in e v itá v e l, ta m b é m é
in e v itá v e l o d e s a p a re c im e n to d a r e lig iã o , r e s q u íc io d e u m m o m e n to in fa n til
d e n o s s a h is tó ria , e a s u a s u b s titu iç ã o d e fin itiv a p e lo s a b e r c ie n tíf ic o .
N ã o é c u rio s o q u e F re u d n ã o te n h a tid o p a ra c o m a re lig iã o a m e s m a s im p a tia
q u e tin h a p a r a c o m o s s o n h o s ? E m r e la ç ã o a o s s o n h o s e le m a n if e s ta u m e n o r m e
c u id a d o p a ra c o m o s d e ta lh e s , tra ta n d o d e in te r p r e ta r a s p is ta s m a is in s ig n i-
fic a n te s , p o is a tra v é s d e la s o a n a lis ta p o d e ria te r a c e s s o ao s se g re d o s d o
in c o n s c ie n te . M a s e m r e la ç ã o à r e lig iã o o s e u ju íz o é g lo b a l e d e s titu íd o d e
n u a n ç a s . E la é c o n d e n a d a c o m o u m a ilu s ã o q u e d e v e a c a b a r. A c o n te c e q u e
F r e u d e s ta v a c o n v e n c id o d e q u e o s d e s e jo s e s tã o c o n d e n a d o s a o fra c a s s o , fa c e a o
p o d e r in a lte rá v e l d a n a tu r e z a e d a c iv iliz a ç ã o . D a í a in u tilid a d e d e s o n h a r. . .
O s so n h o s n o s co n d u zem a o p a ssa d o , p a raíso e m q u e h a v ia a u n iã o p e rfe ita e
d iv in a c o m o s e io m a te rn o . M a s o p a s s a d o a c a b o u . E o fu tu ro n ã o o fe re c e
p o s s ib ilid a d e s d e s a tis fa ç ã o
9 6
d o d e s e jo . E e s ta é a ra z ã o p o r q u e o s h o m e n s re a lm e n te s á b io s , o s c ie n tis ta s ,
v o lu n ta ria m e n te a b a n d o n a m o s d e s e jo s , e s q u e c e m o s s o n h o s , liq u id a m a
re lig iã o . O s d e s e jo s d e v e m s e r re p rim id o s , s e ja v o lu n ta ria m e n te , s e ja p e la
fo rça. . .
E m F re u d o s s o n h o s s ã o m e m ó ria s in ú te is d e u m p assad o q u e n ão p o d e ser
re c u p e ra d o . F e u e r b a c h , a o c o n trá rio , c o n te m p la n e le s la m p e jo s d o fu tu r o .
N ã o , n ã o q u e re m o s d iz e r q u e o s s o n h o s s e ja m d o ta d o s d e p o d e re s p ro fé tic o s
p a ra a n u n c ia r o q u e a in d a n ã o o c o rre u . A c o n te c e q u e , p a ra F e u e rb a c h , o s
s o n h o s c o n tê m a m a io r d e to d a s a s v e rd a d e s, a v e rd a d e d o c o ra ç ã o h u m a n o , a
v e rd a d e d a e s s ê n c ia d o s h o m e n s .
P o r q u e r a z ã o ta l e s s ê n c ia a p a re c e re p re s e n ta d a n a lin g u a g e m e n ig m á tic a d o s
so n h o s?
P o rq u e a s c o n d iç õ e s re a is d e n o ssa v id a im p e d e m e p ro íb e m a su a
re a liz a ç ã o .
M a s, se isto é u m fato , c h e g a m o s à c o n clu sã o d e q u e o c o ra ç ã o h u m a n o
p ro c la m a , s e m c e s s a r: " O q u e é , n ã o p o d e s e r v e rd a d e " . D a m e s m a fo rm a c o m o o
p ris io n e iro g rita : " A s g ra d e s n ã o p o d e m s e r e te rn a s !" . C a d a s o n h o é u m
p r o te s to , u m a d e n ú n c ia , u m a re c u s a . S e o s n o s s o s d e s e jo s d e a m o r s ó p o d e m s e r
d ito s n a s c â m a ra s e s c u ra s e n o tu rn a s d o s q u a rto s , d a s c h a v e s , d o s o n o e d a
in a ç ã o , é p o rq u e o s e s p a ç o s e o s te m p o s c la ro s e d iu rn o s d a v id a p ú b lic a e
p o lític a s ã o o o p o s to d o d e s e jo . A re a lid a d e é a n e g a ç ã o d o d e s e jo . P o r ta n to a
re a lid a d e d e v e s e r a b o lid a , a fim d e
97
ser transformada. Freud se concentra na inutilidade dos sonhos. Feuerbach
percebe que eles s…o confiss†es de projetos ocultos e subversivos, anƒncios,
ainda que enigm‚ticos, de utopias em que a realidade se harmonizar‚ com o
desejo — e os homens ent…o ser…o felizes. N…o • de causar espanto que, no livro
de Orwell, 7554, um homem tenha sido condenado • pris…o por haver
sonhado. Sonhou em voz alta. Confessou que os seus desejos estavam muito
distantes e eram muito diferentes. E, sem que ele sequer tivesse consciˆncia
daquilo que o seu cora‡…o queria (os desejos s…o incons cientes!), foi confinado •
pris…o. . . E • justamente sobre tais desejos que fala a religi…o. E • assim que
Feuerbach afirma:
98
• autoconhecimento."
9 9
Q u a l o te u s o n h o , q u e m é te u D e u s ? N ó s te d ir e m o s q u e m é s .
1 0 0
m a s a tra n s fig u ra ç ã o d a q u ilo q u e e x is te d o la d o d e c á .
D is s o lv e - s e a q u i a m a ld iç ã o q u e o e m p iris m o /p o s itiv is m o h a v ia la n ç a d o
s o b re a re lig iã o . T o m a v a o d is c u rs o re lig io s o c o m o s e fo s s e ja n e la e , o lh a n d o
o m u n d o lá f o r a , p e r g u n ta v a : o n d e e s tã o a s e n tid a d e s s o b re q u e fa la a re lig iã o ?
O s d e u s e s e d e m ó n io s ? O p e c a d o e a g r a ç a ? O s e s p ír ito s ? O s a s tr a is ? N a d a ,
a b s o lu ta m e n te n a d a e n c o n tra m o s q u e c o rre s p o n d a a e s te s c o n c e ito s . . . E
F e u e rb a c h s e ria , c o m o n o s rim o s d e a lg u é m q u e c u m p rim e n ta s u a p ró p ria
im a g e m , n o e s p e lh o .. .
E s p e lh o . É is to : a lin g u a g e m re lig io s a é u m e s p e lh o e m q u e s e re f le te a q u ilo
q u e m a is a m a m o s , n o s s a p ró p ria e s s ê n c ia . O q u e a re lig iã o a firm a é a d iv in -
d a d e d o h o m e m , o c a rá te r s a g ra d o d o s s e u s v a lo re s , o a b s o lu to d o s e u c o rp o , a
b o n d a d e d e v iv e r, c o m e r, o u v ir, c h e ira r, v e r. . . E a s s im c h e g a m o s à m a is
e sp a n to s a d a s c o n c lu s õ e s d e s te h o m e m q u e a m a v a a re lig iã o e n e la e n c o n tra v a a
re v e la ç ã o d o s s e g re d o s d e s u a p ró p ria a lm a : " O se g re d o d a re lig iã o é o
a te ís m o " .
N e c e s s a ria m e n te . S ó p o d e re i re c o n h e c e r-m e , n a im a g e m d o e s p e lh o , s e
s o u b e r q u e n ã o e x is te n in g u é m lá d e n tr o . S ó p o d e re i re c o n h e c e r-m e e m
m in h a s id e ia s d e D e u s s e s o u b e r q u e n ã o e x is te D e u s a lg u m . . . S o u e u o ú n ic o
a b s o lu to . . .
É e v id e n te q u e a s p e s s o a s re lig io s a s n ã o p o d e m a c e ita r ta l c o n c lu s ã o . E
F e u e rb a c h c o n c lu iria ,
1 0 1
e m c o n s e q u ê n c ia d is to , q u e o s e n tid o d a re lig iã o e s tá e s c o n d id o d a s p e s s o a s
r e lig io s a s . E la s s o n h a m m a s n ã o e n t e n d e m o s s e u s s o n h o s . ..
E a s s im a re lig iã o é p re s e rv a d a c o m o s o n h o . S ó q u e , n o m o m e n to e m q u e o
so n h o é in te rp re ta d o e c o m p re e n d id o . D e u s d esa p arec e: o s cé u s se
tra n s fo rm a m e m te rra , o q u e e s ta v a lá e m c im a re a p a re c e lá n a f re n te , c o m o
fu tu r o . . . E a s im a g e n s q u e a re lig iã o to m a v a c o m o re tra to s d o s e r m a is b e lo e
m a is p e rfe ito p a s s a m a c o n s titu ir u m h o riz o n te d e e s p e ra n ç a e m q u e o s h o m e n s
e s p a lh a m o s s e u s d e s e jo s , u to p ia d e u m a s o c ie d a d e e m q u e o p re s e n te é m á g ic a e
m ira c u lo s a m e n te m e ta m o rfo s e a d o p e lo h o m e m q u e q u e b ra a s c o rre n te s , p a r a
c o lh e r a flo r, n ã o e m v ir tu d e d e p r e s s õ e s q u e v ê m d e fo ra , m a s e m re s p o s ta a o s
s o n h o s q u e v ê m d e d e n tro .
E tu d o se tra n s fo rm a so b o s n o sso s o lh o s. P o rq u e as re lig iõ e s ,
c a le id o s c ó p io s d e a b s u rd o s , s e c o n fig u ra m a g o ra c o m o s ím b o lo s o n íric o s d o s
s e g re d o s d a a lm a , in c lu s iv e a n o s s a . E p o r d e trá s d o s m ito s e rito s , c e rim ó n ia s
m á g ic a s e b e n z e ç õ e s, p ro ciss õ e s e p ro m e ss a s, p o d e m o s p e rc e b e r o s c o n to rn o s,
a in d a q u e té n u e s , d o h o m e m q u e e s p e ra u m a n o v a te rra , u m n o v o c o rp o . E o s
s e u s s o n h o s re lig io s o s se tra n s fo rm a m e m fra g m e n to s u tó p ic o s d e u m a n o v a
o r d e m a s e r c o n s tr u íd a .
1 0 2
O D E U S D O S O P R IM ID O S
M a h a tm a G a n d h i, líd e r h in d u , a s s a s s in a d o e m
1 9 4 8 . M a r tin L u th e r K ín g , p a s to r p ro te s ta n te ,
a s sa s s in a d o e m 1 9 6 8 . O s c a r R a n u lf o H o m e r o ,
a rc e b is p o c a tó lic o , a s s a s s in a d o e m 1 9 8 0 .
1 0 3
104
sem eles o Estado n…o subsiste. Os camponesas, pobres, tinham de vender suas
propriedades, que eram ent…o transformadas em latifƒndios por um pequeno
grupo de capitalistas urbanos. Œ de tal situa‡…o que surgem os profetas como
porta -vozes dos desgra‡ados da terra. Assim, quando pregavam a justi‡a, todos
compreendiam que eles estavam exigindo o fim das pr‚ticas de opress…o. Era
necess‚rio que a vida e a alegria fossem devolvidas aos pobres, aos sofredores,
aos fracos, aos estrangeiros, aos „rf…os e viƒvas, enfim, a todos aqueles que se
encontravam fora dos c€rculos da riqueza e do poder.
Instaurou-se com os profetas um novo tipo de religi…o, de natureza •tica e
pol€tica, e que entendia que as rela‡†es dos homens com Deus tˆm de passar
pelas rela‡†es dos homens, uns com os outros:
" E le s e n g a n a m o m e u p o v o d iz e n d o q u e tu d o v a i b e m q u a n d o n a d a v a i b e m .
P re te n d e m e sc o n d er a s rac h a d u ra s n a p a re d e c o m u m a m ã o d e c a l. . ."
(E z e q u ie l, 1 3 .1 0 ).
E e m o p o s iç ã o a e s ta fa ls a re lig iã o q u e s a c ra -liz a v a o p r e s e n te e le s te c e r a m ,
co m a s d o r e s , tris te z a s e e s p e ra n ç a s d o p o v o , v is õ e s d e u m a te rra s e m m a le s ,
u m a u to p ia , o R e in o d e D e u s , e m q u e a s a rm a s s e ria m tra n s fo rm a d a s e m
a ra d o s , a h a rm o n ia c o m a n a tu re z a s e ria re s ta b e le c id a , o s lu g a re s s e c o s e
d e s o la d o s s e c o n v e rte ria m em m a n a n c ia is d e á g u a s , o s p o d e ro s o s s e ria m
d e s tro n a d o s e a te rra d e v o lv id a , c o m o h e ra n ç a , a o s m a n s o s , fra c o s , p o b re s e
o p rim id o s .
1 0 6
Ê p ro v á v el q u e o s p ro fe ta s te n h a m s id o o s p rim e iro s a c o m p re e n d e r
a a m b iv a lê n c ia d a re lig iã o : e la s e p re s ta a o b je tiv o s o p o s to s , tu d o d e p e n -
d e n d o d a q u e le s q u e m a n ip u la m o s sím b o lo s sa g ra d o s. E la p o d e se r
u sad a p ara ilu m in a r o u p a ra c e g a r, p a ra fa z e r v o a r o u p a ra lis a r, p a ra d a r
c o ra g e m o u a te m o riz a r, p a ra lib e rta r o u e s c ra v iz a r. D a í a n e c e s s id a d e d e
se p a ra r o D eu s e m c u jo n o m e fa la v a m , q u e e ra o D e u s d o s o p rim id o s, e
q u e d e s p e r ta v a a e s p e ra n ç a e a p o n ta v a p a r a u m f u tu r o n o v o , d o s íd o lo s d o s
o p re s s o re s , q u e to rn a v a m as p e s s o a s g o r d a s , p e s a d a s , s a tis fe ita s c o n s ig o
m esm as, e n ra iz a d a s em su a in ju s tiç a e c e g a s p a ra o ju lg a m e n to d iv in o
q u e se a p ro x im a v a . . .
1 0 7
P rim e ir o , o d e s e n v o lv im e n to d a c iê n c ia h is tó ric a , q u e to rn o u p o s s ív e l
a re c u p e ra ç ã o d o s fra g m e n to s d o p a ssa d o , n u m e sfo rç o p a ra se
p e n e tr a r a trá s d a c o rtin a d e in te rp re ta ç õ e s q u e o s v ito rio s o s h a v ia m
e rig id o . E lá fo ra m e n c o n tra d o s , c o m fre q u ê n c ia , r e v o lu c io n á rio s
q u e fa la v a m e m n o m e d e D e u s e e m n o m e d o s p o b re s , n ã o im p o rta q u e tiv e s s e m
n a m ão a esp ad a, co m o T h o m a s M u n z e r, a n a b a tis ta , líd e r d e ca m p o -
n e s e s n o sé c u lo X V I, o u q u e s e v a le s s e m a p e n a s d o p o d e r d o e x e m p lo e d a n ã o
v io lê n c ia , c o m o fo i o c a s o d e S ã o F ra n c is c o d e A s s is .
D e p o is, o d e s e n v o lv im e n to d a a rte d a in te rp re ta ç ã o q u e p e rm itia
v islu m b ra r, a tra v é s d o d is c u rs o d o s v ito rio s o s , a v e rd a d e a c e rc a d o s
v e n c id o s . A rte d a in te rp re ta ç ã o ? P a ra n o s s o s o b je tiv o s
1 0 8
b a s ta s a b e r q u e " o q u e o A n tó n io fa la a c e rc a d e P e d ro c o n té m m a is in fo rm a ç õ e s
a c e rc a d e A n tó n io q u e a c e rc a d e P e d ro " . A s s im , m u ito e m b o ra o s d e rro ta d o s
tiv e s s e m d e ix a d o p o u c o s d o c u m e n to s s o b re si m e s m o s, n o s p ró p rio s d o c u -
m e n to s d o s v ito rio s o s a v e rd a d e e s ta v a e s c o n d id a , c o m o o n e g a tiv o d e u m a
fo to g ra fia , c o m o c o r c o m p le m e n ta r, c o m o o o p o s to . A q u ilo q u e o s
o p re s s o re s d e n u n c ia m n o s o p rir n id o s n ã o é a v e r d a d e d o s o p rim id o s , m a s
a q u ilo q u e o s o p re sso re s te m e m . A s sim , q u a n d o as v ersõ e s o fic ia is,
ju s tific a d o ra s d o s m a s s a c re s d o s m o v im e n to s re v o lu c io n á rio s d e c a m p o n e s e s,
o s d e s c re v ia m c o m o fa n á tic o s , lu n á tic o s , a n á rq u ic o s , re v e la -s e e m q u e m e d id a
o s tra b a lh a d o re s d e e n x a d a e p é n o c h ã o q u e s tio n a v a m a o rd e m d e d o m in a ç ã o .
E a h istó ria d o B ra s il a p re s e n ta m u ito s e x e m p lo s d e s te s m o v im e n to s ,
d e n o m in a d o s m e s s iâ n ic o s . M e s s iâ n ic o s ? S im . E s p e ra v a m u m m e s s ia s , u m
re p re se n ta n te d e D e u s p a ra e x e rc e r o p o d e r e e s ta b e le c e r u m a s o c ie d a d e ju s ta
so b re a fa c e d a te rra .
A o m e s m o te m p o s e e la b o ro u u m a c iê n c ia n o v a q u e re c e b e u o n o m e d e
s o c io lo g ia d o c o n h e c im e n to . S e u p o n to d e p a rtid a é e x tre m a m e n te s im p le s :
e la c o n s ta ta q u e a m a n e ira p e la q u a l p e n s a m o s é c o n d ic io n a d a . p e la te x tu ra
s o c ia l d e n o s s a s v id a s . C e rto d ia e u " e s ta v a e n g ra x a n d o o s s a p a to s , n u m a p r a ç a .
O g a ro to , e n g ra x a te , v iu u m h o m e m q u e s e a p r o x im a v a e c o m e n to u :
1 0 9
"L á v em u m fre g u ê s " . P e rg u n te i: " É se u c o n h e c id o ? " . " N ã o " , fo i a re s p o s ta .
" E n tã o , c o m o é q u e v o c ê s a b e q u e e le é u m fre g u ê s ? " . A o q u e e le re s p o n d e u : " O
s e n h o r n ã o o lh o u p ró s s a p a to s d e le ? " . É a s s im , o s o lh o s d o s e n g ra x a te s e o s e u
pensamento seguem os caminhos do seu trabalho. O seu mundo, talvez, se
divida entre pessoas cal‡adas e pessoas descal‡as. E as pessoas cal‡adas se
classifiquem em pessoas que usam sapatos engrax‚veis e outras que usam
sand‚lias havaia nas, alpargatas e sapatos de camur‡a. . . E assim por diante. No
seu ponto extremo esta linha de pensamento nos levaria • conc lus…o de que os
poderosos pensam diferentemente daqueles que n…o tˆm poder: "o mundo dos
felizes • diferente do mundo dos infelizes" (Wittgenstein).
Mas, n…o • verdade que toda sociedade tem uma classe dominante e uma
classe dominada? Uma classe que pode e outra que n…o pode? Uma classe forte e
uma classe fraca? At• mesmo as crian‡as e velhos sabem disto — especialmente
as crian‡as e velhos. E tamb•m os migrantes, e os camponeses assolados pela
seca, e os doentes que morrem sem atendimento m•dico. . . e assim por diante. E
a conclus…o que se segue, necessa riamente, • que os sonhos dos poderosos
tˆm de ser diferentes dos sonhos dos oprimidos. E tamb•m suas religi†es. ..
Os poderosos moram em o‚sis. O seu poder lhes abre avenidas largas para o bem-
estar, a
110
111
tas em que a religi…o aparece com toda a sua ambivalˆncia pol€tica: os
sonhos dos poderosos eternizam o presente e exorcizam um futuro novo;
os sonhos dos oprimidos exigem a dissolu‡…o do presente para que o
futuro seja a realiza‡…o do Reino de Deus, n…o importa o nome que se lhe
dˆ.
Œ ir„nico, mas esta conclus…o escandaliza tanto a gregos quanto a
troianos. De um lado, aqueles que se horrorizaram com a afirma‡…o de
Marx de que a religi…o • o „pio do povo se horrorizam agora com a
possibilidade de que talvez ela n…o o seja. . . Teria sido melhor que Marx
estivesse certo, porque assim os detentores do poder n…o teriam de se
preocupar com os profetas e suas esperan‡as. Mas, por outro lado, s…o os
pr„prios marxistas que n…o podem esconder sua perplexidade. E isto
porque, na eventualidade de que as religi†es possam revolucionar a reali-
dade, ter…o de admitir que os fantasmas superes-truturais podem se
encarnar e fazer hist„ria. . .
Um fascinante estudo deste assunto se encontra no artigo de KarI
Mannheim entitulado "A mentalidade ut„pica", em que ele analisa a
maneira como o desejo e a imagina‡…o incidem sobre os fatores materiais
para determinar a pol€tica. Contrariamente •queles que pensam que a a‡…o
• sempre o efeito de uma causa material que a antecede, Mannheim sugere
que aquilo que caracteriza propriamente a pol€tica, como atividade
humana.
112
• a capacidade que tˆm os homens para imaginar utopias e organizar o seu
c o m p o rta m e n to c o m o u m a tá tic a p a ra re a liz á -la s . Q u e s ã o u to p ia s ? R e a lid a d e s ?
D e fo rm a a lg u m a . C o m o o p ró p rio n o m e e s tá in d ic a n d o , u to p ia s s e re fe re m a
a lg o q u e n ã o s e e n c o n tra e m lu g a r a lg u m (d o g re g o o u = n ã o + to p o s = lu g a r).
C o m o s u r g e m e la s ? C a ir ã o d o a r ? N ã o . S ã o a s c la s s e s s o c ia is o p r im id a s q u e , n ã o
e n c o n tra n d o s a tis fa ç ã o p a ra o s s e u s d e s e jo s e m s u a " to p ia " , e m ig ra m p e la im a -
g in a ç ã o p a ra u m a te rra in e x is te n te o n d e s u a s a s p ira ç õ e s s e re a liz a rã o . S u a
a tiv id a d e p o lític a s e to rn a , e n tã o , p e re g rin a ç ã o n a d ire ç ã o d a te rra p ro m e tid a ,
c o n s tr u ç ã o d o m u n d o q u e a in d a n ã o e x is te .
F o i is to q u e o c o rre u c o m o s c a m p o n e s e s a n a b a -tis ta s d o s é c u lo X V I.
M o v id o s p o r u m p ro fu n d o f e r v o r r e lig io s o , in ic ia r a m u m m o v im e n to
re v o lu c io n á rio p a ra a c o n s tru ç ã o d e u m a n o v a o rd e m s o c ia l, d e a c o rd o c o m a
v o n ta d e d e D e u s . D e le s a s m e m ó ria s fo ra m p o u c as. N e m m e sm o M arx se
le m b ro u d e s te s a n c e s tra is d o p ro le ta ria d o . E s q u e c im e n to c o m p re e n s ív e l. A s
m e m ó ria s d o s d e rro ta d o s d e s a p a re c e m c o m fa c ilid a d e .
M a s E n g e ls lh e s fe z ju s tiç a . M a is d o q u e is to , a c r e d ito u e n c o n tr a r f e r m e n to
s e m e lh a n te d e n tro m e s m o d a c o m u n id a d e c r is tã p rim itiv a . É b e m p o s s ív e l.
N ã o e ra e la fo rm a d a p o r g ru p o s d e s titu íd o s d e p o d e r? E n ã o s o fre ra m e le s
to d o tip o d e p e rs e g u iç ã o ? N ã o é d e s e e s p a n ta r, p o rta n to ,
1 1 3
q u e u m d o s s e u s te x to s s a g ra d o s , o A p o c a lip s e , te n h a fa la d o so b re a
e s p e ra n ç a d e u m a re v o lu ç ã o to ta l n o c o s m o s , e m q u e to d a s a s p o tê n c ia s d o
m a l, in c lu s iv e o E s ta d o , s e ria m d e s tru íd a s .
M as p erm an ece u m p ro b le m a , p o rq u e e s ta d e sc riç ã o q u e fa z e m o s d a re lig iã o
d o s p o b re s e o p rim id o s p arece n ão c o rre sp o n d e r à re a lid a d e . É ra ro v ê-
lo s e n v o lv id o s c o m q u a lq u e r c o is a q u e se p a re ça co m a re lig iã o d o s
p ro fe ta s. P a re c e q u e e le s s e s e n te m m a is à v o n ta d e n a c o m p a n h ia d o m á g ic o ,
d o c u r a n d e ir o , d o m ila g re ir o , tra ta n d o d e re so lv e r o s p ro b le m a s d o se u
d ia -a -d ia s e m m u ita e s p e ra n ç a , sa b e n d o q u e a s c o is a s s ã o o q u e s ã o p ê lo s
d e c re to s in s o n d á v e is d a v o n ta d e d e D e u s , s e n d o m a is g a ra n tid o a c re d ita r q u e
o s p o b re s h erd arão o s cé u s q u e h e rd a rã o a te rra . E a q u i v o lta m o s à
s o c io lo g ia d o c o n h e c im e n to . E x is tirá a lg u m a o u tra a lte rn a tiv a p ara
a q u e le s q u e d ia ria m e n te e x p e rim e n ta m a im p o tê n c ia ? N ã o s e rá a s u a fa lta
d e p o d e r q u e o s le v a a e m p u rra r s u a s e s p e ra n ç a s p a ra o o u tro m u n d o ? S e is to fo r
v erd a d e, o q u e se p o d e ria esp e ra r d e u m a s itu a ç ã o e m q u e o s p o b re s e
o p rim id o s d e sc o b rem a su a fo rç a ? P a re c e q u e q u a n d o is to a c o n te c e e le s se
a tre v e m a tra n s fo rm a r s e u s s o n h o s e m re a lid a d e , fa z e m d e scer o p a ra ís o
d o s c é u s à te rra , c o lo c a m -n o n o h o r iz o n te , e co m e ça m a su a m arch a. E
é e n tã o q u e c o m e ç a m a a p a re c e r o s m á rtire s . S e a re lig iã o fo s s e a p e n a s ó p io ,
v e ria m ó s o E s ta d o e o p o d e r e c o n ó m ic o a o s e u la d o ,
1 1 6
d a a c u s a ç ã o , n o s a s s e g u ra ra m q u e a re lig iã o é u m a lo u c a q u e b a lb u c ia c o is a s s e m
n e x o , d is trib u in d o ilu s õ e s , fa z e n d o a lia n ç a s c o m o s p o d e ro s o s , n a rc o tiz a n d o o s
p o b re s . O u tro s , p e la d e fe s a , a firm a ra m q u e se m a re lig iã o o m u n d o h u m a n o
n ã o p o d e e x is tir e q u e , q u a n d o d e c ifra m o s o s s e u s s ím b o lo s , c o n te m p la m o -
n o s c o m o n u m e s p e lh o . E m a is , q u e é ju s ta m e n te c o m e s te s s ím b o lo s q u e o s
o p rim id o s c o n s tró e m s u a s e s p e ra n ç a s e s e la n ç a m à lu ta .
C u rio s o , e n tre ta n to , q u e n e n h u m a d a s te s te m u n h a s te n h a s id o ja m a is v is ta
n o s lu g a re s s a g ra d o s , e m b u sca d e c o m u n h ã o co m o d iv in o . E o q u e é m a is
g ra v e : é s a b id o q u e n e n h u m a d e la s ja m a is a c re d ito u n a q u ilo q u e a re lig iã o te m
a d iz e r.
É a ssim c o m o s c ie n tis ta s : p re s ta m a te n ç ã o , s e m a c re d ita r; e s c u ta m e
a n o ta m , c o n v e n c id o s d e q u e o s h o m e n s n ã o s a b e m s o b re o q u e e s tã o f a la n d o .
E le s p e n s a m q u e a q u e le s q u e n ã o p a s s a ra m p e la e d u c a ç ã o c ie n tífic a , o s h o m e n s
c o m u n s, sã o c o m o so n â m b u lo s: c a m in h a m e n v o lv id o s p o r u m a n u v e m d e
ilu s õ e s e e q u ív o c o s q u e n ã o o s d e ix a v e r a v e rd a d e . M ío p e s . C e g o s . V ê e m as
c o is a s d e c a b e ç a p a ra b a ix o . N ã o p o r m á fé , m a s p o r in c a p a c id a d e c o g n itiv a . E
e s ta é a ra z ã o p o r q u e o s c ie n tis ta s o u v e m s u a s p a la v ra s c o m u m s o rris o
c o n d e s c e n d e n te . S e rã o e le s , o s c ie n tis ta s , q u e re tira rã o d o d is c u rs o d o s e n s o
c o m u m a v e r d a d e a q u e s o m e n te a c iê n c ia te m a c e s s o . E é p o r is to q u e n e n h u m
c ie n tis ta p o d e a c re d ita r
1 1 7
n a s p a la v ra s d a re lig iã o . S e a c re d ita s s e m s e ria m re lig io s o s e n ã o h o m e n s d e
c iê n c ia .
N ã o lh e s s o b ra o u tra a lte rn a tiv a . T o d a s a s c iê n c ia s , s e m ex ceção , sã o
o b rig a d a s a u m rig o r o s o a te ís m o m e to d o ló g ic o : d e m ó n io s e d e u s e s n ã o
p o d e m se r in v o c a d o s p a ra e x p lic a r c o is a a lg u m a . T u d o s e p a s s a , n o jo g o d a
c iê n c ia , c o m o s e D e u s n ã o e x is tis s e . .. E s e é d a í q u e p a rte m o s c ie n tis ta s , c o m o
p o d e ria m e le s a c re d ita r n a q u e le s q u e in v o c a m o s d e u s e s e tê m a in g e n u id a d e d e
o rar? . . .
M a s n ã o h a v e rá u m d e v e r d e h o n e s tid a d e a n o s o b rig a r a o u v ir a re lig iã o , a té
a g o ra s ile n c io s a ? N ã o d e v e re m o s p e rm itir q u e e la a rtic u le o s s e u s p o n to s d e
v is ta ? O u n o s c o m p o rta re m o s c o m o in q u is rio re s ? N o m u n d o e n c a n ta d o d a
A lic e a c o n te c e u u m fa m o s o ju lg a m e n to e m q u e o ju iz g rita v a : " A s e n te n ç a
p rim e iro , o ju lg a m e n to d e p o is !" . F a re m o s n o sso o c o m p o rta m e n to d o
m a g is tr a d o d o id o ? N ã o . T e re m o s d e o u v ir a v o z d a re lig iã o , a in d a q u e e la
e s te ja m a is p ró x im a d a p o e s ia q u e d a c iê n c ia .
A q u e m v o u in v o c a r c o m o re p re s e n ta n te d a re lig iã o ? V o c ê p e rc e b e u q u e , e m
C ü d a c a p ítu lo , e s fo rc e i-m e p o r a s s u m ir a id e n tid a d e d a q u e le e m c u jo n o m e
fa le i. T e n te i s e r p o s itiv is ta , te n te i s e r D u rk h e im , fa le i c o m o s e f o ss e M a rx ,
c o m o s e fo s s e F re u d e F e u e rb a c h , p ro c u re i a s v is õ e s d o s m u n d o s d o s p ro fe ta s .
E s tra n h a e m a ra v ilh o s a c a p a c id a d e , e s ta d e b rin c a r d e " fa z -d e -c o n ta " .
1 1 8
d esc o n h ec e".
U m v e lh o f e itic e ir o d iz ia a o s e u a p r e n d iz q u e o s e g re d o d e s u a a rte e s ta v a
e m a p re n d e r a fa z e r o m u n d o p a ra r. C o n s e lh o q u e p a re c e lo u c u ra , m a s
q u e v ira s a b e d o ria q u a n d o n o s d a m o s c o n ta d e q u e o n o s s o m u n d o f o i
p e trif ic a d o p e lo h á b ito . A c o s tu m a m o -n o s a fa la r s o b re o m u n d o d e u m a
c e rta fo rm a, p e n s a m o -lo se m p re d e n tro d o s m e sm o s q u a d ro s, v e m o s
tu d o s e m p re d a m e s m a fo rm a , e o s s e n tim e n to s s e e m b o ta m p o r sa b erm o s
q u e o q u e v a i s e r é ig u a l à q u ilo q u e já fo i. M a s , q u a n d o b rin c a m o s d e fa z -
d e - c o n ta , é c o m o s e
1 1 9
o n o s s o m u n d o re p e n tin a m e n te p a ra s s e n a m e d id a e m q u e a lin g u a g e m , o
p e n s a m e n to , o s o lh o s e o s e n tim e n to d e u m o u tr o fa z e m s u r g ir u m m u n d o
n o v o à n o s s a fre n te . E fo i is to q u e o c o rre u à s p o b re s rã s d e s ta p a rá b o la , já
c o n ta d a e m o u tr o s lu g a re s , e q u e v o u re p e tir:
"N u m lu g a r n ã o m u ito lo n g e d a q u i h a v ia u m p o ç o fu n d o e e sc u ro o n d e ,
d e s d e te m p o s im e m o ria is , u m a s o c ie d a d e d e rã s s e e s ta b e le c e ra . T ã o fu n d o
e ra o p o ç o q u e n e n h u m a d e la s ja m a is h a v ia v is ita d o o m u n d o d e fo ra .
E s ta v a m c o n v e n c id a s q u e o u n iv e rs o e ra d o ta m a n h o d o s e u b u ra c o . H a v ia
s o b e ja s e v id ê n c ia s c ie n tífic a s p a ra c o rro b o rar e s ta te o ria e s o m e n te
u m lo u c o , p riv a d o d o s s e n tid o s e d a ra z ã o , a firm a r ia o c o n trá r io .
A c o n te c e u , e n tre ta n to , q u e u m p in ta s s ilg o q u e v o a v a p o r a li v iu o
p o ç o , fic o u c u rio s o , e re s o lv e u in v e s tig a r s u a s p ro fu n d e z a s . Q u al n ã o
fo i su a su rp re sa a o d e s c o b rir a s rã s ! M a is p e rp le x a s fic a ra m e s ta s , p o is
a q u e la e s tra n h a c ria tu ra d e p e n a s c o lo c a v a e m q u e s tã o to d a s a s v e rd a d e s já
s e c u la rm e n te s e d im e n ta d a s e c o m p ro v a d a s e m s u a s o c ie d a d e . O p in ta s s ilg o
m o rre u d e d ó . C o m o é q u e a s rã s p o d ia m v iv e r p re s a s e m ta l p o ç o , s e m a o
m e n o s a e s p e ra n ç a d e p o d e r s a ir? C la ro q u e a id e ia d e s a ir e ra a b s u r d a p a ra
o s b a trá q u io s , p o is , s e o s e u b u ra c o e ra o u n iv e rs o , n ã o p o d e ria h a v e r u m " lá
fo ra " . E o p in ta s s ilg o s e p ô s a
1 2 0
c a n ta r fu rio s a m e n te . T rin o u a b ris a su a v e , o s c a m p o s v e rd e s, a s á rv o re s
c o p a d a s , o s ria c h o s c ris ta lin o s , b o r b o le ta s , flo re s , n u v e n s , e s tre la s . . . o q u e p ô s
em p o lv o r o s a a s o c ie d a d e d a s rã s , q u e s e d iv id ira m . A lg u m a s a c re d ita r a m e
c o m e ç ara m a im a g in a r c o m o s e ria lá fo ra . F ic a ra m m a is a le g re s e a té m e s m o
m a is b o n ita s . C o a x a ra m c a n ç õ e s n o v a s . A s o u tra s fe c h a ra m a c a ra . A firm a ç õ e s
n ã o c o n firm a d a s p e la e x p e riê n c ia n ã o d e v e ria m se r m e re c e d o ra s d e c ré d ito ,
e la s a le g a v a m . O p in ta s s ilg o tin h a d e e s ta r d iz e n d o c o is a s s e m s e n tid o e
m e n tira s . E s e p u s e ra m a fa z e r a c rític a filo s ó fic a , s o c io ló g ic a e p s ic o ló g ic a
d o s e u d is c u rs o . A se rv iç o d e q u e m e s ta ria e le ? D a s c la s s e s d o m in a n te s ? D a s
c la s s e s d o m in a d a s ? S e u c a n to s e ria u m a e s p é c ie d e n a rc ó tic o ? O p a s s a r in h o s e ria
u m lo u c o ? U m e n g a n a d o r? Q u e m s a b e e le n ã o p a s s a ria d e u m a a lu c in a ç ã o
c o le tiv a ? D ú v id a s n ã o h a v ia d e q u e o ta l c a n to h a v ia c ria d o m u ito s p ro b le m a s .
T a n to a s rã s-d o m in a n te s q u a n to a s rã s - d o m i- n a d a s (q u e s e c re ta m e n te
p re p a ra v am u m a re v o lu ç ã o ) n ã o g o s ta ra m d a s id e ia s q u e o c a n to d o p in ta s s ilg o
e s ta v a c o lo c a n d o n a c a b e ç a d o p o v ã o . P o r o c a s iã o d e s u a p ró x im a v is ita o
p in ta s s ilg o fo i p re s o , a c u s a d o d e e n g a n a d o r d o p o v o , m o rto , e m p a lh a d o e a s
d e m a is rã s p ro ib id a s , p a ra s e m p re , d e c o a x a r a s c a n ç õ e s q u e e le lh e s e n s in a ra . .
."
1 2 1
F o i a ssim q u e a c o n te c e u : a c iê n c ia e m p a lh o u a r e lig iã o , tira n d o d e la
v e rd a d e s m u ito d ife re n te s d a q u e la s q u e a p ró p ria re lig iã o v iv a c a n ta v a .
A c o n te c e q u e a s p e s s o a s re lig io s a s , a o d iz e r o s n o m e s a g ra d o s , re a lm e n te
c rê em n u m " lá fo ra " e é d e ste m u n d o in v is ív e l q u e s u a s e s p e ra n ç a s s e
a lim e n ta m . T u d o tã o d is ta n te , tã o d if e r e n te d a s a b e d o ria c ie n tíf ic a .. .
S e v a m o s o u v ir a s p e s s o a s re lig io s a s é n e c e s s á rio " fa z e r-d e -c o n ta " q u e
a c r e d ita m o s . Q u e m s a b e o p in ta s s ilg o te m r a z ã o ? Q u e m s a b e o u n iv e r s o é m a is
b o n ito e m is te rio s o q u e o s lim ite s d o n o s s o p o ç o ? S o b re o q u e fa la a re lig iã o ?
É n e c e s s á rio q u e n ã o n o s d e ix e m o s c o n fu n d ir p e la e x u b e râ n c ia d o s s ím b o lo s
e g e s to s , v in d o s d e lo n g e e d e p e rto , d e o u tr o ra e d e a g o ra , p o rq u e o te m a d a
c a n ç ã o é s e m p re o m e s m o . V a ria ç õ e s s o b re u m te m a d a d o . A re lig iã o fa la
s o b re o s e n tid o d a v id a . E la d e c la ra q u e v a le a p e n a v iv e r. Q u e é p o s s ív e l s e r
fe liz e s o rrir. E o q u e to d a s e la s p ro p õ e m é n a d a m a is q u e u m a s é rie d e re c e ita s
p a r a a f e lic id a d e . A q u i s e e n c o n tr a a r a z ã o p o r q u e a s p e s s o a s c o n tin u a m a s e r
fa s c in a d a s p e la r e lig iã o , a d e s p e ito d e to d a a c r ític a q u e lh e fa z a c iê n c ia . A
c iê n c ia n o s c o lo c a n u m m u n d o g la c ia l e m e c â n ic o , m a te m a tic a m e n te p r e c is o
e te c n ic a m e n te m a n ip u lá v e l, m a s v a z io d e s ig n ific a ç õ e s h u m a n a s e in d ife re n te
a o n o sso a m o r. B e m d iz ia M a x W e b e r q u e a d u ra liç ã o q u e a p re n d e m o s d a
c iê n c ia é q u e o s e n tid o d a v id a n ã o p o d e s e r
1 2 2
e n c o n tra d o a o fim d a a n á lis e c ie n tífic a , p o r m a is c o m p le ta q u e s e ja . E n o s
d e s c o b rim o s e x p u ls o s d o p a ra ís o , a in d a c o m o s re s to s d o fru to d o c o n h e -
c im e n to e m n o s s a s m ã o s . . .
O s e n tid o d a v id a : n ã o h á p e r g u n ta q u e s e fa ç a c o m m a io r a n g ú s tia e p a re c e
q u e to d o s s ã o p o r e la a s s o m b ra d o s d e v e z e m q u a n d o . V a le rá a p e n a v iv e r? A
g ra v id a d e d a p e rg u n ta s e re v e la n a g ra v id a d e d a re s p o s ta . P o rq u e n ã o é ra ro
v e rm o s p esso as m e rg u lh a d a s n o s a b is m o s d a lo u c u ra , o u o p ta re m
v o lu n ta ria m e n te p e lo a b is m o d o s u ic íd io p o r te re m o b tid o u m a re s p o s ta
n e g a tiv a . O u tra s p e s s o a s , c o m o o b s e rv o u C a m u s , s e d e ix a m m a ta r p o r id e ia s o u
ilu s õ e s q u e lh e s d ã o ra z õ e s p a ra v iv e r: b o a s ra z õ e s p a ra v iv e r s ã o ta m b é m b o a s
ra zõ e s p a ra m o rrer.
M a s o q u e é is to , o se n tid o d a v id a ?
O s e n tid o d a v id a é a lg o q u e s e e x p e rim e n ta e m o c io n a lm e n te , s e m q u e se
s a ib a e x p lic a r o u ju s tific a r. N ã o é a lg o q u e s e c o n s tru a , m a s a lg o q u e n o s
o c o rre d e f o rm a in e s p e ra d a e n ã o p re p a ra d a , c o m o u m a b ris a s u a v e q u e n o s
a tin g e , s e m q u e s a ib a m o s d o n d e v e m n e m p a ra o n d e v a i, e q u e e x p e r im e n ta m o s
c o m o u m a in te n s ific a ç ã o d a v o n ta d e d e v iv e r a o p o n to d e n o s d a r c o ra g e m
p a ra m o rre r, se n e c e s s á rio fo r, p o r a q u e la s c o is a s q u e d ã o à v id a o s e u s e n tid o .
É u m a tra n s fo rm a ç ã o d e n o s s a v is ã o d o m u n d o , n a q u a l a s c o is a s s e in te g ra m
co m o em u m a m e lo d ia , o q u e n o s fa z s e n tir re c o n c ilia d o s c o m o u n iv e rs o a o
n o sso
1 2 3
re d o r, p o s s u íd o s d e u m s e n tim e n to o c e â n ic o , n a p o é tic a e x p re s s ã o d e R o m a in
R o lla n d , s e n s a ç ã o in e fá v e l d e e te r n id a d e e in fin itu d e , d e c o m u n h ã o c o m a lg o
q u e n o s tra n sc e n d e , e n v o lv e e e m b a la , c o m o s e fo s s e u m ú te ro m a te rn o d e
d im e n s õ e s c ó sm ic a s. " V e r u m m u n d o e m u m g rã o d e a re ia / e u m c é u n u m a
flo r s ilv e s tr e ,/ s e g u r a r o in fin ito n a p a lm a d a m ã o / e a e te rn id a d e e m u m a
h o ra " (B la k e ).
O s e n tid o d a v id a é u m s e n tim e n to .
S e a p re te n s ã o d a re lig iã o te rm in a s s e a q u i, tu d o e s ta ria b e m . P o rq u e n ã o h á
le is q u e n o s p ro íb a m d e s e n tir o q u e q u is e rm o s . O e s c â n d a lo c o m e ç a q u a n d o a
re lig iã o o u s a tra n s fo rm a r ta l s e n tim e n to , in te r io r e s u b je tiv o , n u m a h ip ó te s e
a c e rc a d o u n iv e rs o . P o d e m o s e n te n d e r a s ra z õ e s p o r q u e o h o m e m re lig io s o n ã o
p o d e s e s a tis fa z e r c o m o p á s sa ro e m p a lh a d o . A re lig iã o d iz : " o u n iv e rs o
in te iro fa z s e n tid o " . A o q u e a c iê n c ia re tru c a : " a s p e s s o a s re lig io s a s s e n te m e
p en sam q u e o u n iv e rs o in te ir o fa z s e n tid o " . A q u e la a firm a ç ã o s a g ra d a q u e
e c o a v a d e u n iv e rs o e m u n iv e r s o , r e v e r b e r a n d o e m e te r n id a d e s e in fin ito s , a
c iê n c ia a p ris io n a d e n tro d o p o ç o p e q u e n o e e s c u ro d a s u b je tiv id a d e e d a
s o c ie d a d e : ilu s ã o , id e o lo g ia . O s e n tid o d a v id a é d e s tru íd o . Q u e p o d e re s ta r d a
a le g ria d a s rã s , s e o " lá fo ra " q u e o p in ta s s ilg o c a n to u n ã o e x is tir?
A firm a r q u e a v id a te m s e n tid o é p ro p o r a fa n tá s tic a h ip ó te s e d e q u e o
u n iv e rs o v ib ra c o m
1 2 4
o s n o s s o s s e n tim e n to s , s o fre a d o r d o s to rtu ra d o s , c h o ra a lá g rim a d o s
a b a n d o n a d o s, so rri c o m a s c ria n ç a s q u e b rin c a m .. . T u d o e stá lig a d o .
C o n v ic ç ã o d e q u e , p o r d e trá s d a s c o is a s v is ív e is , h á u m ro sto in v isív e l q u e
s o rri, p re s e n ç a a m ig a , b ra ç o s q u e a b ra ç a m , c o m o n a fa m o s a te la d e S a lv a d o r
Dali. E • esta cren‡a que explica os sacrif€cios que se oferecem nos altares e as
preces que se balbuciam na solid…o.
Œ poss€vel que tais imagens jamais tenham passado pela sua cabe‡a e que
vocˆ se sinta perdido em meio •s met‚foras de que a experiˆncia religiosa
lan‡a m…o. E me lembrei de um di‚logo, dos mais belos e profundos j‚
produzidos pela literatura, em que Ivan Karamazov argumenta com seu
irm…o Alioscha, invocando a mem„ria de um menininho, castigado pˆlos pais
por haver molhado a cama, e trancado num quartinho escuro e frio, fora de
casa, na noite gelada. E ele fala das m…ozinhas, batendo na porta, pedindo
para sair, l‚grimas rolando pela face torcida pelo medo. Que raz†es, no
universo inteiro, poderiam ser invocadas para explicar e justificar aquela dor?
A gente sent e que aqui se encontra algo profundamente errado, eternamente
errado, errado sempre, sem atenuantes, do princ€pio dos mundos at• o seu
fim. E sentimos igual quando pensamos nos torturados, nos executados, nos
que morrem de fome, nos escravizados, nos que terminaram seus dias em
campos de concentra‡…o,
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p re s e n ç a q u e , v e z p o r o u tra , ro ç a e m n ó s o s e u d e d o e n o s p e rg u n ta : " A p e s a r
d e m im , c rê s a in d a q u e a v id a fa z s e n tid o ? " .
C o m o a firm a r o s e n tid o d a v id a p e ra n te a m o rte ? Q u e c o n s o lo o fe re c e r
a o p a i, d ia n te d o filh o m o rto ? D iz e r q u e a v id a f o i c u rta , m a s b e la ? C o m o
c o n s o la r a q u e le q u e s e d e s c o b riu e n fe rm o p a ra m o rre r e v ê o s ris o s e
c a rin h o s c a d a v e z m a is d is ta n te s ? E o s m ilh õ e s q u e m o rre m in ju s ta m e n te :
T re b lin k a , H ir o s h im a , B ia fr a ?
T u d o tã o d ife r e n te d e u m a s o n a ta d e M o z a rt: c u rta , p e rf e ita . E m v in te
m in u to s tu d o o q u e d e v e ria te r s id o d ito o fo i. O a c o rd e fin a l n a d a
in te rro m p e , c o m p le ta a p e n a s .
C o m o a firm a r o s e n tid o d a v id a p e ra n te o a b su rd o d a e x is tê n c ia
re p re s e n ta d o d e m a n e ira e x e m p la r p e la m o rte q u e re d u z a n a d a tu d o o q u e o
a m o r c o n s tru iu e e s p e ro u ?
" A q u ilo q u e é fin ito p a ra o e n te n d im e n to é n a d a p a ra o c o ra ç ã o "
(F e u e rb a c h ). E is o p ro b le m a . " D e u m la d o , a e stre la e te rn a , e d o o u tro a
v a g a in c e rta . . ." (C e c ília M e ire le s ). O s e n tid o d a v id a s e d e p e n d u ra
n o s e n tid o d a m o rte . E é a s s im q u e a r e lig iã o e n tre g a a o s d e u s e s o s s e u s
m o rto s , e m e s p e ra n ç a . . . E n tre a s c a s a s d o s d e u s e s e a s c a s a s d o s m o rto s
b rilh a a e s p e ra n ç a d a v id a e te rn a p a ra q u e o s h o m e n s s e re c o n c ilie m c o m a
m o rte e s e ja m lib e rta d o s p a ra v iv e r. Q u a n d o a m o rte é tra n s fo rm a d a e m
a m ig a , n ã o é m a is n e c e s s á rio lu ta r c o n tr a e la . E n ã o s e rá v e rd a d e
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q u e to d a a n o s s a v id a é u m a lu ta s u r d a p a ra e m p u r r a r p a r a lo n g e o s
h o riz o n te s " a p ro x im a d o s e s e m re c u rs o " ? A s o c ie d a d e é u m b a n d o d e h o m e n s
q u e c a m in h a m , lu ta n d o , e m d ire ç ã o à m o rte
in e v itá v e l.
P e n s e n o q u e v o c ê fa ria s e lh e fo s s e d ito q u e lh e re s ta m trê s m e s e s d e v id a .
D e p o is d o p â n ic o in ic ia l. . . S u a s ro tin a s d iá ria s , a s c o is a s q u e v o c ê c o n s id e ra
im p o rta n te s, in a d iá v e is, p e la s q u a is s a c r ific a o ó c io , a m e d ita ç ã o , o
b rin q u e d o . . . A le itu ra d o s jo rn a is, o s c a n h o to s d o s ta lõ e s d e c h e q u e , o s
d o c u m e n to s p a ra o IR , o s re s s e n tim e n to s c o n ju g a is , o s ra n c o re s
p ro fis s io n a is , a p ó s-g ra d u aç ã o , a s p e rs p e c tiv a s d e c a rre ira . . . T u d o is to
e n c o lh e ria a té q u a se d e sa p a re c e r. E o p re s e n te g a n h a ria u m a p resen ç a
q u e n u n c a te v e a n te s. V e r e sa b o re a r c a d a m o m e n to ; sã o o s ú ltim o s : o
q u a d ro , e s q u e c id o n a p a re d e ; o c h e iro d e ja s m im ; o c a n to d e u m
p á ssaro , e m a lg u m lu g a r; o b a ru lh o d o s g r ilo s, e n q u a n to o s o n o n ã o v e m ; a
g rita ria d a s c ria n ç a s ; o s s a lp ic o s d a á g u a fria , p e rto d a fo n te . . . T a lv e z v o c ê a té
c ria s se c o ra g e m p a ra tira r o s s a p a to s e e n tra r n a á g u a . . . Q u e im p o rta ria o
e s p a n to d a s p e s s o a s s ó lid a s ? T a lv e z e n c o n tre m o s a q u i a s ra z õ e s p o r q u e a
s o c ie d a d e o c u lta e d is s im u la a m o rte , to rn a n d o -a a té m esm o a ss u n to
p ro ib id o p a ra c o n v e rs a ç ã o . A c o n s c iê n c ia d a m o rte te m o p o d e r d e lib e rta r e
is to s u b v e rte a s le a ld a d e s , v a lo re s e re s p e ito s d e q u e a o rd e m s o c ia l
d e p e n d e . C o lo c a n d o o s
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s e p u lc ro s n a s m ã o s d o s d e u s e s , a re lig iã o o b rig a a in im ig a a se
tra n s fo rm a r e m irm ã . . . L iv r e s p a ra m o rre r, o s h o m e n s e s ta ria m liv re s
p a ra v iv e r. M a s o s e n tid o d a v id a n ã o é u m fa to . N u m m u n d o a in d a s o b o
s ig n o d a m o rte , e m q u e o s v a lo re s m a is a lto s s ã o c r u c ific a d o s e a b ru ta lid a d e
triu n fa , é ilu s ã o p r o c la m a r a h a r m o n ia c o m o u n iv e rs o , c o m o re a lid a d e
p re s e n te . A e x p e riê n c ia re lig io s a , a s s im , d e p e n d e d e u m fu tu ro . E la s e
n u tre d e h o riz o n te s u tó p ic o s q u e o s o lh o s n ã o v ira m e q u e só p o d e m
s e r c o n te m p la d o s p e la m a g ia d a im a g in a ç ã o . D e u s e o s e n tid o d a v id a s ã o
a u s ê n c ia s , re a lid a d e s p o r q u e s e a n s e ia , d á d iv a s d a e s p e ra n ç a . D e fa to , ta lv e z
s e ja e s ta a g ra n d e m a rc a d a re lig iã o : a e s p e ra n ç a . E ta lv e z p o s s a m o s a firm a r,
c o m E rn e s t B lo c h : " o n d e e s tá a e s p e ra n ç a a li ta m b é m e s tá a re lig iã o " .
A v is ã o é b e la , m a s n ã o h á c e rte z a s . C o m o o tr a p e z is ta q u e te m d e s e la n ç a r
s o b re o a b is m o , a b a n d o n a n d o to d o s o s p o n to s d e a p o io , a a lm a re lig io s a te m
d e s e la n ç a r ta m b é m s o b re o a b is m o , n a d ire ç ã o d a s e v id ê n c ia s d o s e n tim e n to ,
d a v o z d o am o r, d a s s u g e stõ e s d a e s p e ra n ç a . N o s c a m in h o s d e P a s c a l e
K ie rk e g a a rd , tra ta -s e d e u m a a p o s ta a p a ix o n a d a . E o q u e é la n ç a d o s o b re a
m esa d as in c e rte z a s e d a s e s p e ra n ç a s é a v id a in te ir a .
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IN D IC A Ç Õ E S P A R A L E IT U R A
S e , a d e s p e ito d a a d v e rtê n c ia d o s á b io h e b re u , v o c ê d e s e ja r le r u m p o u co
mais, eu aconselharia o seguinte:
Em rela‡…o • linguagem religiosa leia o livro de Ernst Cassirer Antropologia
Filos„fica (S…o Paulo, Mestre Jou, 1972), que faz urna linda discuss…o dos
s€mbolos em geral. Para uma an‚lise da realidade social como produto da
atividade humana, P. Berger & T. Luckmann, A Constru‡…o Social da
Realidade (Petr„polis, Vozes, 1974).
Nada melhor, como introdu‡…o • cr€tica que o empirismo faz • linguagem
religiosa, que a leitura de D. Hume, Investiga‡…o Acerca do Entendimento
Humano (S…o Paulo, Nacional, 1972).
As partes mais relevantes do estudo que Durk -heim faz do sistema totˆmico
na Austr‚lia podem ser encontradas no volume XXXIII da s•rie "Os
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Pensadores” , da Abril Cultural, onde vocˆ poder‚ ler intridu‡†es e conclus†es
de As Formas Elemetares da Vida Religiosa.
H‚ uma colet‰nea de escritos de Marx e Engels diretamente relacionados com
a religi…o, mas n…o ainda em portuguˆs. Em espanhol o t€tulo • Sobre Ia
Religi„n l (Salamanca, Ediciones S€gueme, 1975). Para quem quiser importar
o livro o ende re‡o • Apartado 332, Salamanca, Espanha.
A menos que eu me engane, Ludwig Feuerbach n…o est‚ traduzido para o
portuguˆs. As referˆncias, via de regra, nos vˆm atrav•s de Marx, o que • uma
pena, porque Feuerbach escreve com a beleza de um poeta. A revista Reflex…o
n9 17, do Instituto de Filosofia e Teologia da PUCAMP, publicou um artigo
did‚tico de minha autoria, com mais detalhes e cita‡†es de textos, sobre a
religi…o em Marx e Feuerbach. O t€tulo: "O Problema da Aliena‡…o".
Endere‡o: rua Marechal Deodoro, 1099, 13100, Campinas.
De Freud leia O Futuro de Uma Ilus…o, O M ai-estar da Civiliza‡…o,
Totem e Tabu.
Sobre a religi…o prof•tico-messi‰nica • indispens‚vel a leitura do estudo de
Karl Mannheim intitulado "A Mentalidade Ut„pica", em Ideologia e Utopia
(R. de Janeiro, Zahar, 1972). N…o se esquecer o livro de Teixeira Coelho, O
que • utopia, desta s•rie (Brasiliense, 1980). Dˆ uma espiada no ensaio de
Engels "A guerr a Camponesa na Alema nha". Se vocˆ gosta de tecnologia poder‚
ler alguns
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Eu nasci em Boa Esperan‡a, Minas Gerais. Poucos foram l‚, mas muitos
ouviram a "Serra de Boa Esperan‡a", do Lamartine Babo. Em 1933.
Depois, pinguei por v‚rias cidades pequenas, at• uma juventude no
Rio de Janeiro.
Estudei mƒsica, teologia e quis ser m•dico, por amor a Albert
Schweitzer.
F u i p a s to r n u m a ig r e ja d o in te r io r d e M in a s , L a v r a s , c id a d e d e ip ê s e
d e e s c o la s . C o n v iv i c o m o p o v o , e d e 5 8 a 6 4 d e ix e i o s liv ro s , s e m
r e m o r s o s , p a ra v iv e r d o re s e a le g r ia s d e o u tr o s . A s s im v iv e m p a s to r e s
p r o te s ta n t e s e , im a g in o , s a c e r d o te s c a tó lic o s .
P a s s e i a lg u m a s v e z e s p ê lo s E s ta d o s U n id o s . L á f iz m e u d o u to r a m e n to .
P r i n c e f o n , N e w J e r s e y . L iv r o s :
A Tlieology of Hunian Hope, t r ê s e d i ç õ e s e m in g lê s . T r a d u z id o p a r a o
ita lia n o , o fra n c ê s e o e s p a n h o l . Tomorrow's Oúld, u m liv ro so b re a
im a g in a ç ã o e a m a g ia , a e s p e r a n ç a e a u to p ia . E s o b r e p la n ta r á r v o r e s e m
c u j a s o m b r a n u n c a n o s a s s e n t a r e m o s . O Enigma da Religião ( V o z e s ) .
Protestantismo e Repressão ( Á t i c a ) .
C o n c o rd o c o m O c tá v io P a z q u a n d o e le d iz q u e a ta r e fa d o in te le c tu a l
é f a z e r r ir p ê lo s s e u s p e n s a m e n to s e f a z e r p e n s a r p ê lo s s e u s c h is te s ...