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CONASEMS
Conselho Nacional de
Secretarias Municipais de Saúde
MEMÓRIAS
1ª Edição
Brasília, novembro 2007
MEMÓRIAS
2
É permitida a reprodução total ou parcial dessa obra, desde que citada a fonte.
Tiragem: 10.000
Diretoria do CONASEMS
ORGANIZAÇÃO E PESQUISA
Carmen Lavras
Médica Sanitarista
Doutora em Saúde Coletiva
Pesquisadora Associada do NEPP/UNICAMP
Consultora do CONASEMS
Sonia Prieto
Doutora em Teoria e História Literária pela UNICAMP
Vicente Contador
Doutor em História Econômica pela FFLCH - USP
Professor de História das Relações Internacionais FACAMP
REVISÃO
Sonia Prieto
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
5
SUMÁRIO
Apresentação ............................................................................................................ 7
Introdução
Capítulo 1
Capítulo 2
APRESENTAÇÃO
1
O texto introdutório desta publicação foi produzido por Vicente Contador.
2
Participou, como aluna, dos projetos desenvolvidos pelo Laboratório de Educação Médica e Medicina Comunitária (LEMC) da UNICAMP.
Médica Sanitarista, integrou a equipe da SMS de Campinas/SP na implantação do projeto de medicina comunitária na década de 70. Foi
Secretaria Municipal de Saúde de Campinas (1994-1996).
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Carmen Lavras
Sonia Prieto
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FRANCISCO MONTEIRO
Médico da Secretaria de Estado da Saúde do
Ceará; Médico da Secretaria Municipal de
Campinas/SP nas décadas de 70 e 80;
Funcionário da ANVISA; Representante da
Associação Médica do Ceará no Conselho
Nacional de Saúde
INTRODUÇÃO
Vicente Contador
3
Elio Gaspari, A Ditadura Envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.35
4
Héctor Luis Saint-Pierre in Kalil Mathias, Distensão no Brasil: O Projeto Militar. Campinas: Papirus, 1995, pp. 15, 20-23.
5
Ver Kalil Mathias, 1995, assim como as críticas que são feitas a sua argumentação de que a repressão empregada pelo regime autoritário-militar
brasileiro foi “baixa” e que ela “nem de longe alcançou o grau registrado em outros países, como a Argentina e Chile”. Os autores que a criticam,
como é o nosso caso, assinalam que o equívovo dessa argumentação está no fato de que ela não situa corretamente no tempo a instauração das
ditaduras militares nestes dois países e no Brasil, não levando em conta que o Brasil foi o primeiro país da América do Sul a implantar, na década
de 60, um regime autoritário-militar por meio de um golpe de Estado, vindo assim a servir como matriz ditatorial do exercício do poder controlado
pelos militares. Nunca é demais relembrar que a ditadura militar de direita no Brasil surgiu bem antes da ditadura boliviana, 1971, da chilena e
uruguaia, ambas instauradas em 1973, da peruana, 1975, e dos dois regimes autoritários-militares da Argentina, 1966 e 1976. Em decorrência,
como diz Jacob Gorender em Combate nas Trevas (São Paulo: Editora Ática, 1998), no momento em que estss ditaduras congêneres do Cone
Sul surgiram, a ditadura brasileira já havia atingido o seu “ápice repressivo em 1971, quando passa ao extermínio físico sistemático dos militantes
da esquerda [...], já com suas fileiras consideravelmente reduzidas”. Isso, segundo Gorender, fez com que os governos militares do Chile e da
Argentina se aproveitassem da experiência brasileira, deflagrando “o máximo de atividade repressiva desde o início”, “o que explica, ao menos
em parte sem dúvida, o número de mortos e desaparecidos bem menor no Brasil (em termos relativos e absolutos)”. Diante disso, toda e qualquer
argumentação de que no Brasil houve baixa repressão é inválida e inconsistente se deparada com a contra-argumentação de Gorender de que
“a ditadura brasileira não ficou atrás de suas similares em matéria de crueldade repressiva”, mas “bem pelo contrário, serviu-lhes de modelo e
para elas exportou seu know-how” (Gorender, Idem). Essa contra-argumentação é certificada pelo documento secreto do Sistema de Segurança
Interna, SISSEGIN, que diz que “o Chile e o Uruguai adotaram em seus países um sistema semelhante ao nosso, adaptados às leis e às
peculiaridades existentes em cada um deles”. O mencionado “sistema semelhante ao nosso” se referia ao sistema CODI-DOI, “genuína criação
brasileira”, um “produto nacional de exportação” (Apud: Carlos Fico, Como eles agiam - Os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia
política. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001, pp.11, 135 e 147.
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evitando então chegar ao seu final por meio de um colapso5. O conceito aí implícito
de projeto parte, pois, da visão de que a abertura política foi uma decisão que partiu
dos oficiais de alto escalão da corrente castelista-geiselista, o que contrasta com a
idéia de “processo”, que, no entender do cientista político Bolívar Lamounier, implicaria
considerar a abertura política brasileira como fruto, entre outras coisas, das “ações
deliberadas de crítica e contestação empreendidas por grupos da sociedade civil”.
Na verdade, a abertura, constitui um processo sócio-político impulsionado
por vários movimentos de resistência encampados por diferentes sujeitos individuais
e coletivos da sociedade civil brasileira, abarcando desde as camadas populares,
os segmentos democráticos da classe média, tanto as de orientação liberal-
democrática quanto as de esquerda, e até mesmo algumas frações da alta burguesia
industrial nacional não mais satisfeitas com um modelo econômico desnacionalizante
e dependente do capital industrial-financeiro estrangeiro, o qual, a partir de 1973,
trazia à tona as suas graves deficiências estruturais. Não há como negar o impacto
causado num dos pilares de sustentação social do regime com a atuação de alguns
segmentos da alta e da pequena burguesia liberal que - a despeito de terem antes
apoiado o Golpe de 64, como a OAB e outras entidades profissionais, a grande
imprensa, os magistrados, políticos de centro e o grosso do empresariado nacional,
pouco depois da edição dos Atos Institucionais 2, 3 e 5, assim como da crise da
sucessão presidencial deflagrada pela enfermidade e o impedimento do marechal
Costa e Silva - começaram a questionar o fechamento político, a perseguição à
oposição pacífica, as diversas formas de violência contra presos políticos, a grande
interferência do Estado na economia, o aumento da centralização político-
administrativa por parte do Governo Federal, a concentração do poder deliberativo
nas mãos de um grupo cada vez menor de tecnocratas civis e de oficiais da alta
cúpula do Exército que constituíam os centros de decisões políticas e econômicas
fundamentais para o futuro do País.
6
Bernardo Kucinski, O Fim da Ditadura Militar. São Paulo: Editora Contexto, 2001, p.29.
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8
Phydia de Athayde. In Revista Carta Capital no 278 – 18/02/2004. Ver também Maria José de Rezende, A Ditadura Militar no Brasil: Repressão
e Pretensão de Legitimidade. Londrina: Editora da Universidade Estadual de Londrina, 2001, p.210.
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Convém notar, entretanto, que como as regras da Lei Falcão não se aplicavam
ao período não-eleitoral, o MDB organiza, em maio de 1977, um programa nacional
de rádio e TV, criticando o Governo e apresentando o seu programa partidário. A
repercussão foi ampla. Pesquisa do Jornal do Brasil indicava, na seqüência, que
70% da população das grandes cidades haviam assistido ao programa, com 69%
delas apoiando amplamente os pontos de vista do partido.
Em fevereiro de 1977, Geisel cassou os mandatos de dois vereadores do
MDB de Porto Alegre por efeito dos discursos que proferiram na ocasião de suas
posses. Em maio de 1977, os estudantes da Universidade de Brasília entram em
greve. O Governo, ao invés de dialogar com os estudantes, procurando estudar
suas reivindicações, põe a UnB em recesso por 30 dias, coloca uma força policial
no campus e pune vários estudantes. Em junho de 1977, seria a vez dos deputados
federais, Marcos Tito e Alencar Furtado, terem seus mandatos cassados depois
que este último, então líder do MDB na Câmara dos Deputados, fez um
pronunciamento contra o Pacote de Abril, classificando-o como impróprio aos objetivos
da distensão. Em outubro do mesmo ano, sob coordenação do coronel Erasmo
Dias, o aparato repressor do regime invade a Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, onde se realizava uma assembléia estudantil, seguindo assim as diretrizes
vindas do Palácio do Planalto de execução de medidas efetivas de segurança que
se fizessem necessárias nos casos de agitação de qualquer grupo social.
Como esse conjunto de medidas de exceção não bastava, de acordo com o
jornalista Bernardo Kucinski, Geisel acabou tornando, em agosto de 1978, ainda
mais abrangente a Lei de Segurança Nacional ao baixar o Decreto-lei 1.632 que
definia como crime contra a Segurança Nacional todas as greves em serviços
públicos e em bancos, impondo “formas mais rápidas e severas de repressão jurídica
a elas”. Certamente, esse decreto foi motivado pela maior onda de greves em quase
todo o país desde a implantação da ditadura, desencadeada pelos metalúrgicos de
São Bernardo do Campo, mas acabou contagiando, de maio a julho, operários de
outras indústrias, portuários, motoristas de ônibus, trabalhadores rurais, bancários,
professores, médicos e outros servidores públicos de diversas regiões do País. O
movimento influenciou as eleições que ocorreram em 1978 nos Conselhos Regionais
de Medicina, quando foram vencedoras as chapas mais combativas na luta por
melhores salários e condições de trabalho nos ambulatórios do Instituto Nacional
de Previdência Social (INPS), em especial de médicos residentes e plantonistas
que tinham de arcar com “mais de 50% do volume de atenção médica ambulatorial”8.
8
Madel T. Luz, As Instituições Médicas no Brasil – Instituição e Estratégia de Hegemonia. Rio de Janeiro. Editora Graal, 1986 – capítulo IV:
“Políticas de Saúde 1968-1974” – Nota de pé-de-página 6, p.152.
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9
Ver Rizzo de Oliveira, De Geisel a Collor: Forças Armadas, Transição e Democracia. Campinas: Papirus Editora, 1994: p.70 e “Conflitos Militares
e Decisões Políticas sob a Presidência do General Geisel” - capítulo V do livro de Alain Rouquié, Os Partidos Militares no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora Record, 1980, p.139; Velasco e Cruz, “De Castelo a Figueiredo, uma visão histórica da ‘abertura’” in Isidoro Chereski e Jacques Chonchol,
Crise e Transformação dos Regimes Autoritários. São Paulo: Ícone editora/Editora da UNICAMP, 1986 - Capítulo II, p. 139.
10
Daí por diante, a dívida externa brasileira só cresceu, atingindo o índice de US$ 43,5 bilhões em 1978. E, de 1979 a 1985, a dívida passa de US$49,9
bilhões para US$95,8 bilhões.
Fontes: www.jubileubrasil.org.br/v01/azul/credores/origens/ - acessado em 25/01/07; Werner Baer, A Economia Brasileira. São Paulo: Editora
Nobel, 2a edição, 2003. Demais dados: IBGE - 1987 in Delorme Prado e Sá Earp, “O ‘milagre’ brasileiro” - Capítulo 6 do livro de Jorge Ferreira
& Lucília de Almeida Neves Delgado, O Brasil Republicano: O Tempo da Ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio
de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2003.
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11
Golbery do Couto e Silva, Conjuntura Política Nacional, O Poder Executivo & Geopolítica do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1981,
p.31.
12
Francisco Carlos Teixeira da Silva, “Crise da ditadura militar e o processo de abertura política no Brasil, 1974-1985”. Capítulo 7 do livro de
Ferreira & Delgado, op. cit., p. 264.
13
Golbery do Couto e Silva, op. cit., pp. 27-32. As frases que se referem ao presidente Geisel foram retiradas de seu discurso de 1o de agosto
de 1975, dirigido à Nação em cadeia de rádio e TV in “Brasil: Política e Governo”. Livro do Ano Barsa 1976. Rio de Janeiro/São Paulo: Encyclopedia
Britannica Editores Ltda, 1977 – “Brasil - Saúde”, p.48.
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lenta, gradual e segura. Segundo Geisel, a abertura deveria ser feita de tal forma
para que as práticas democráticas fossem aperfeiçoadas em termos “realistas”,
isto é, para que elas fossem adequadas
14
Ernesto Geisel, Discursos – Volume I, 1974. Assessoria de Imprensa e Relações Públicas da Presidência da República. Brasília: Departamento
de Imprensa Nacional, 1975.
15
Teixeira da Silva, op. cit., pp.256-68.
16
Odylio Denys, Ciclo Revolucionário Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1980.
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quando ele afirmara, no final de 1979, que “o eleitor brasileiro não tem o nível eleitoral
do eleitor americano, do eleitor francês”17, daí ele, o general-presidente, não acreditar
na existência da democracia plena no Brasil.
17
Apud: Oscar Pilagallo, O Brasil em Sobressalto. São Paulo: Publifolha, 2002, p.148.
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fevereiro, é criado, no Rio de Janeiro, o Comitê Brasileiro pela Anistia que, num
encontro nacional, pedia por uma anistia “ampla, geral e irrestrita”. De maio a julho
do mesmo ano, iniciam-se as já mencionadas paralisações dos operários
metalúrgicos de São Bernardo do Campo, que acabaram desencadeando, repita-
se, a maior onda de greves em quase todo o País desde a implantação do regime
autoritário-militar, colocando em xeque a política de controle dos sindicatos por
meio de diretores pelegos e a política de arrocho salarial ainda mantida por Geisel.
Esse movimento grevista fez com que os empresários tivessem que restabelecer, a
contragosto, negociações diretas com os trabalhadores depois de 14 anos de postura
intransigente.
Dado que um dos fundamentos do modelo econômico do regime autoritário-
militar era a contínua depreciação do salário-mínimo, com o conseqüente arrocho
dos salários dos trabalhadores, há também, em agosto de 1978, o manifesto,
anexado a 1,3 milhão de assinaturas, que o Movimento Custo de Vida, ligado às
Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica, entrega no Palácio do Planalto,
reivindicando, entre outras coisas, um abono emergencial de 30% para todos os
trabalhadores e o congelamento dos preços de gêneros de primeira necessidade.
O Governo procuraria tirar proveito desse fato, uma vez que o MDB não parava
de crescer desde 1974, passando o bipartidarismo a incomodar o regime militar, já
que os votos dados ao único partido de oposição consentida eram nitidamente
contra o regime autoritário-militar, adquirindo assim um caráter plebiscitário. O
Governo define, então, parâmetros para o retorno do pluripartidarismo, com o firme
intuito de criar rivalidades entre os líderes da oposição, dividindo-a. Ao instituir a
nova Lei Orgânica dos Partidos, o Governo extingue a Arena, partido em decadência,
e o MDB, este no auge de seu prestígio político-eleitoral. Ficava igualmente
estabelecida uma série de exigências e artifícios legais para a organização de
novos partidos de esquerda que tivessem apoio das camadas populares organizadas
e combativas, como foram os casos do PDT e do PT. No que tange ao MDB, por
exemplo, para impedir que se firmasse uma aderência do eleitorado a esse partido
de oposição em ascensão e com forte capilaridade, a referida Lei exige a mudança
de nome das novas siglas, com a obrigatoriedade da inclusão da palavra partido. O
MDB, porém, limita-se a adicionar tal palavra a seu nome prévio, tornando-se PMDB
em 22 de novembro. Simultaneamente, o novo partido governista surgia como Partido
Democrático Social (PDS).
Em outubro de 1980, todos os outros partidos já haviam atendido às exigências
legais para o registro provisório, aparecendo então no cenário político-partidário
nacional o Partido dos Trabalhadores (PT), uma agremiação política que se forma
fora das instituições parlamentares e que tinha como líder um sindicalista, Luis
Inácio da Silva (o Lula), e não um político tradicional. O Partido Trabalhista Brasileiro
(PTB) foi concedido pelo TSE à deputada federal conservadora, Ivete Vargas, sobrinha
do ex-presidente Getúlio Vargas, seguindo uma estratégia do Governo em não
permitir que essa tradicional sigla fosse obtida por um líder oposicionista carismático
e popular, Leonel Brizola, na época a maior liderança do trabalhismo de esquerda
no País, que teve então que criar seu próprio partido sob outra sigla: o PDT (Partido
Democrático Trabalhista). O tradicional político mineiro, Tancredo Neves, lança o
plano de ação política de um partido liberal, de centro, o Partido Popular (PP).
Ambos os partidos comunistas (PCB e PC do B) continuariam, porém, na ilegalidade
até 1985. No período pós-promulgação da Lei da Anistia, quando ainda vigia a ditadura
militar, a linha de conduta da maioria dos membros de ambos os partidos comunistas
era a de se unir aos partidos políticos democráticos de oposição legal à ditadura,
com vistas a suprimi-la.
Durante todo o ano de 1980 ocorrem cinqüenta atentados terroristas, cujas
responsabilidades foram atribuídas unicamente à corrente militar de direita, chamada
de linha dura, pelo motivo de os seus oficiais e suboficiais estarem diretamente
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Filme: Muda Brasil de Oswaldo Caldeira. Rio de Janeiro, 1985, 0:59’.
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1964 77 3,65
Fonte: G. Galache & M. André, Brasil: Processo e Integração – Estudos dos Problemas Brasileiros.
SP: Loyola, 1979, p.159.
de saúde com os restantes 5%19. Ocorre, porém, que no caso de doenças cujo
tratamento fosse demorado ou que as cirurgias fossem complicadas e caras, bem
como nos casos de aposentadoria por invalidez e de auxílio doença, na maioria das
vezes decorrentes de acidentes de trabalho, estas continuariam sendo de
responsabilidade do INPS20.
Em 1978, esse instituto governamental calculava que cerca de 80% da
população previdenciária urbana seria por ele atendida. Mas, no cômputo geral, até
1980, 40 milhões de brasileiros continuariam não dispondo de qualquer serviço de
saúde por falta de médicos e de leitos hospitalares. E mesmo os segurados do
INPS eram pouco mais do que 25 milhões diante de uma população economicamente
ativa de 32 milhões21. Segundo padrões recomendados pela Organização Mundial
de Saúde (OMS) nos anos 60, a proporção de médicos/habitantes num país deveria
ser de um para mil e a média de leitos hospitalares/habitantes deveria ser de 5 para
cada mil. No entanto, na primeira metade da década de 70, o Brasil dispunha de um
médico para um número aproximado de dois mil habitantes e uma média de 3,5
leitos por mil.
Na 25a Reunião Anual da SBPC, realizada em julho de 1973 no Rio de Janeiro,
após estudos apresentados em mesa-redonda acerca do “Crescimento da População
Brasileira”, constatava-se que, de 1963 a 1973, a mortalidade infantil no Brasil vinha
aumentando, sendo algumas de suas causas principais a desnutrição, as doenças
infecciosas (como a diarréia, o sarampo e a varíola, por exemplo), as parasitoses e
complicações do parto. Em fevereiro de 1974, o Ministério da Saúde revelava que a
taxa média de mortalidade na faixa de 0 a 4 anos em todo o país era de 33,78% por
mil habitantes. Em números absolutos, estimava-se que, em 1974, a quantidade de
crianças de até 1 ano mortas no Brasil era de 105 por mil nascidas. Os Estados
que então apresentavam maior taxa de mortalidade de crianças até 4 anos eram
Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Alagoas. Os Estados que tinham as taxas
mais baixas eram Rio de Janeiro e Guanabara, ambos com 23,06%22.
Findo o governo Médici, o presidente Geisel coloca à frente do Ministério da
Saúde o Dr. Paulo de Almeida Machado, o qual estabelece como prioritário o combate
19
G. Galache & M. André, op. cit., p.187.
20
Idem, pp.177-188. Segundo os autores da referida obra, de 1970 a 1975, morreram em acidente de trabalho 329.337 homens, equivalente na
época à população da cidade de Santos, SP.
21
Hélio Silva, O Governo Geisel: 1975-1978. São Paulo: Grupo de Comunicação Três/Edições Isto é. Coleção “História da República Brasileira”,
1998,p.190
22
Os dados presentes tanto neste parágrafo quanto nos outros dois que o antecedem estão baseados no Livro do Ano Barsa – 1974 e 1975 quanto
na obra de Hilário Torloni, Estudo de Problemas Brasileiros. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1979 – capítulo 8 – 12a edição.
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Sonia Fleury Teixeira & Maria Helena Mendonça, “Reformas Sanitárias na Itália e no Brasil: Comparações”. In Reforma sanitária: Em busca
de uma teoria. Sonia Fleury Teixeira (org.). São Paulo: Cortez Editora, 1989.
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Fonte: IBGE – Tabulações Avançadas do Censo Demográfico/Brasil – 1980; Ministério da Saúde – Estatísticas de Mortalidade/Brasil-1980. n.v.
= nascidos vivos. In Amélia Cohn, A Saúde na Previdência Social e na Seguridade Social: Antigos estigmas e novos desafios. pp.35-6.
25
Amélia Cohn, Idem, p.38.
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1980 o cientista norte-americano, Dr. Albert Sabin, que vinha trabalhando como
assessor especial do Ministério da Saúde na gestão do presidente Figueiredo,
demitiu-se do cargo. Em carta aberta ao presidente da República, Sabin suspeitava
que houvesse pelo menos dez vezes mais casos de pólio no Brasil do que indicavam
os relatórios do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP). Ainda segundo Sabin,
de cada 100 crianças que contraíam a doença no Brasil daquela época, 15 a 20
morriam, enquanto que nos EUA, a taxa de mortalidade era de 5%. Dados de 1980,
apresentados pelo Dr Hélio Aguinaga no VII Congresso Brasileiro de Reprodução
Humana, no Rio de Janeiro, mostravam que 63% da população brasileira sofriam de
desnutrição e que os índices de mortalidade infantil giravam em torno de 49%26.
Para agravar a situação calamitosa dos serviços de atenção médica
previdenciária, no primeiro semestre de 1981 os médicos do serviço público do
Estado do Rio de Janeiro fazem quatro paralizações por conta do que denominavam
“contínua ‘proletarização’ da classe”. Depois de realizarem passeatas nas ruas da
capital fluminense em busca do apoio da população, o Sindicato dos Médicos sofre
intervenção do Governo Federal e tem decretada a prisão de seu diretor-presidente,
Dr Roberto Chabo. Entretanto, em julho, a intervenção é suspensa, a diretoria do
sindicato é reconduzida aos seus cargos e, no final, a categoria conquista um
aumento salarial.
Os dados estatísticos, aqui apresentados, mostram que os governos do regime
autoritário-militar não tinham planos adequados para elevar os níveis de saúde e
melhorar o estado sanitário da população brasileira, deixando o Brasil, nessa área,
nas últimas posições no mundo e na América Latina conforme inúmeros gráficos
produzidos pela Organización Panamericana de la Salud, pelo IBGE e pelo Statistical
Yearbook for Latin America da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL)
das Nações Unidas.
Isso, evidentemente, acabou provocando, numa determinada fase do regime
autoritário-militar, pressões que demandavam mais atenção para essa questão social,
tanto por parte da população previdenciária quanto por parte dos profissionais
diretamente ligados à prestação de serviços de saúde no âmbito público.
Entre as diversas forças sociais de resistência à ditadura militar estava um
grupo de pessoas com formação universitária, a maioria na área das Ciências
Médicas e Biológicas, as quais, numa aproximação com as Ciências Sociais,
26
Livro do Ano Barsa 1981. Rio de Janeiro/São Paulo: Encyclopedia Britannica Editores Ltda, “Brasil – Saúde”.
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Saúde e Democracia:
reflexão acadêmica e ação política
CAPÍTULO 1
Saúde e Democracia:
reflexão acadêmica e ação política
depoimento de Sérgio Arouca
“Uma questão que considero central é que, nós, como militantes do Partido
Comunista Brasileiro, estávamos na clandestinidade e tínhamos como eixo
fundamental de atuação a luta contra a ditadura. Optamos por empreender uma
luta contra o regime autoritário não na linha da chamada luta armada, mas numa
linha de ação pacífica, democrática, somando todas as forças democráticas
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Francisco das Chagas Monteiro
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Hugo Coelho Barbosa Tomassini
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Sebastião de Moraes
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Márcio José de Almeida
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Guilherme Rodrigues da Silva
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Maria Cecília Ferro Donnangelo
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Carlos Gentile de Melo
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Maria da Conceição Tavares de Souza
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Manoel Castells, sociólogo espanhol, professor em Berkeley.
36
David Capistrano da Costa Filho
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Eduardo M. Freese de Carvalho
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Heloísa Mendonça
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Francisco Eduardo de Campos
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Muito marcante nas ações do movimento era o fato de que todos os Departamentos
já desenvolviam Projetos de Medicina Comunitária antes de esses projetos
chegarem aos municípios. Isso aconteceu na UFF em Niterói ; na UNICAMP em
Paulínia e em bairros de Campinas; na USP com o Projeto Butantã e na UEL em
Londrina. O primeiro passo era o Departamento de Medicina Preventiva
repensando a questão teórica da saúde, numa vertente dessa luta pela
redemocratização, estabelecendo projetos comunitários e quase criando uma
nova teoria da saúde.”
“Existia ainda uma outra vertente do movimento que não vinha da vertente mais
ligada ao Partido Comunista. Era ligada à linha da esquerda católica e também
estava fazendo o mesmo movimento de discussão da saúde que os
Departamentos de Medicina Preventiva faziam. Essa vertente constituiu
Departamentos de Medicina Preventiva na Santa Casa de São Paulo e na Escola
Paulista de Medicina, com núcleos que começaram também a desenvolver essa
reflexão.”
MEMÓRIAS
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“Creio que devemos chamar a atenção para dois pontos que foram importantes
para fortalecer o movimento. O primeiro deles foi o papel da Organização Pan-
Americana da Saúde - OPAS, que vinha atuando no fortalecimento do ensino das
ciências sociais na área da saúde, por meio do trabalho de articulação de debates
sobre o ensino médico que faziam Juan César Garcia, Miguel Marques e José
Roberto Ferreira. Esse debate sobre as ciências sociais aplicadas à saúde estava
começando a acontecer, naquela época, na própria Organização Pan-Americana.
Isso quer dizer que os primeiros seminários promovidos pela OPAS sobre ciências
sociais em saúde eram seminários que versavam sobre a relação médico-
paciente, os padrões de comportamento, etc, o que provocou, principalmente no
encontro do grupo do Juan César Garcia com docentes brasileiros, uma linha de
tensão muito grande. Nós, que pensávamos as ciências sociais na saúde numa
perspectiva de esquerda e marxista, nos defrontávamos com o grupo da
Organização Pan-Americana. Mas acabamos encontrando um caminho comum,
com Juan César Garcia fazendo na América Latina, o papel que fazíamos no
Brasil. Ele identificava e articulava nos países da América Latina grupos de trabalho
de Medicina Comunitária, de Ciências Sociais, de Epidemiologia. Isso foi feito no
Equador, Chile, México e em vários lugares, com intercâmbio de bibliografia.
Assim, o movimento que emergiu nos Departamentos de Medicina Preventiva no
Brasil, além de promover um intercâmbio entre instituições brasileiras, ampliou
suas articulações, passando a promover também um intercâmbio latino-
americano de idéias e proposições, porque a América Latina toda, na verdade,
estava passando pelo mesmo processo de ditadura e de luta pela democracia.
A outra vertente que veio a apoiar nosso movimento foi a Fundação Kellogg. Em
que ela estava interessada? Ela não tinha essa visão de esquerda, da questão da
luta pela democratização, mas trazia em seus programas de apoio a idéia de se
pensar sistemas de saúde e reformas curriculares. Isso permitia conseguir apoios
para começar a criar laboratórios de educação em Medicina Comunitária, que
teriam essa vertente das ciências sociais na saúde, pensando em mudanças nos
currículos das Faculdades de Medicina e, ao mesmo tempo, o trabalho em
Medicina Comunitária.”
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“Em 1975/76, tivemos que fazer uma migração forçada para o Rio de Janeiro, em
função da crise instalada entre o Departamento e a Reitoria da UNICAMP.
Havíamos feito um convênio com a Fundação Kellogg e, por meio desse convênio,
criamos o Laboratório de Educação Médica e Medicina Comunitária, o LEMC.
Começamos a fazer um trabalho com os alunos-monitores, na linha da medicina
comunitária, em vários municípios da região de Campinas. Através desse
convênio com a Kelloggs contratamos vários consultores internacionais, pessoas
especializadas em educação médica, em sistema de saúde, um chileno, um
argentino. Só que esse grupo que chegou de fora, chegou com outro
posicionamento político, diferente do nosso grupo dentro do Departamento de
Medicina Preventiva, que não estava atuando com um projeto só técnico.
Estávamos na luta pela democratização e num dos nossos documentos sobre
Medicina Comunitária, nessa história de se ter duas versões, nós colocamos de
uma forma explícita que estávamos fazendo a luta pela democracia, para
democratizar o Brasil, a luta contra a ditadura, etc. Esse documento cai nas mãos
de um desses pesquisadores chilenos contratados através da Kellogg e ele leva
ao Zeferino40. Isso acontece num momento em que estávamos travando dentro
da Universidade Estadual de Campinas um movimento junto com o Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, para ampliar a democratização da Universidade.
Eu estava na Direção do Departamento junto com o Pinotti41, batalhando para
fazer a mudança do currículo nessa linha da Medicina Comunitária. O que
acontece? O Zeferino, com esse documento e com esse enfrentamento que existia,
resolveu fazer um corte geral. Então, pegou o cunhado dele, que era o Diretor de
Estudos de Física, Marcelo Dami, e demitiu. Tirou o Pinotti da Diretoria da
Faculdade de Medicina. Demitiu também o Diretor do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, baixou um decreto determinando que eu só poderia trabalhar
no Centro de Saúde de Paulínia numa hora em que não tivesse nem médico,
nem estudante, nem residente e pegou a minha tese [de doutoramento] que
estava pronta e engavetou. Não me deixou defender. Com isso, o nosso grupo
inteiro não tinha mais o que fazer. Abriu-se então a perspectiva de irmos para a
Fundação Osvaldo Cruz, trabalhar como pesquisadores de um projeto da FINEP,
40
Zeferino Vaz, então Reitor da UNICAMP.
41
José Aristodemo Pinotti
MEMÓRIAS
50
42
O governo militar havia instaurado uma devassa na ENSP, com a perseguição política dos pesquisadores, demitindo vários docentes, que foram
para o exílio. Esse episódio ficou conhecido como o “massacre de Manguinhos”.
43
Carlyle Guerra de Macedo, pesquisador brasileiro, Diretor da OPAS.
44
Em 1975, o Ministério da Saúde implanta, com o apoio da OPAS, o programa dessa Organização voltado para a formação de recursos humanos
para a saúde, o Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde – PPREPS, com o objetivo de apoiar o desenvolvimento de recursos
humanos da saúde nos Estados da federação para atender às necessidades de pessoal geradas pelo Programa de Extensão de Cobertura.
45
Enfermeira sanitarista responsável pela execução de projetos do PPREPS.
46
Alberto Pellegrini Filho, docente da FMC da UNICAMP e do Instituto de Saúde Comunitária da UEL, integrante do PESES/PESPES da
FIOCRUZ e coordenador de pesquisa da OPAS.
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
51
“Você tem uma experiência de duas outras vertentes que não foram postas aqui:
a vertente dos médicos residentes, organizada pela Associação Nacional dos
Médicos Residentes, que é uma vertente interessante, com os encontros
nacionais, e a vertente constituída pelo pessoal do Movimento de Renovação
Médica, com o Mário Correia Lima, no Rio, depois com Roberto Chabo. Essas
vertentes foram muito importantes em todo esse processo, por motivar uma
discussão maior e mais aprofundada também, que foi uma discussão muito
institucional da universidade. Além dessas duas vertentes, uma outra vertente
significativa se forma por meio do trabalho das comunidades eclesiais de base,
que não eram institucionais, inclusive eram anti-institucionais.
47
José Carlos Seixas
48
José da Silva Guedes
49
Otavio Mercadante
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
53
Está faltando uma outra vertente também, muito interessante, que foi o movimento
que fizemos para realizar um encontro de saúde da Câmara50. Pela primeira vez,
com o crescimento do MDB, foi possível a criação de uma base parlamentar na
Comissão de Saúde da Câmara, comprometida com a questão da democratização
da saúde.
Na tese da Sarah51, ela coloca essas vertentes, mostrando como o movimento
sanitário nasce no movimento da mobilização que agregou diversos grupos: o
pessoal da renovação sindical médica, o grupo dedicado ao desenvolvimento de
projetos comunitários, a frente parlamentar de saúde e os sanitaristas dos
Departamentos de Medicina Preventiva.”
50
Arouca refere-se ao trabalho de mobilização que culminou com a realização do I Simpósio sobre Política de Saúde, promovido pela Comissão
de Saúde da Câmara dos Deputados em outubro de 1979. Esse Simpósio teve como tema central a discussão das políticas de descentralização
e regionalização dos serviços e de desenvolvimento de recursos humanos para a saúde.
51
Pesquisadora da FIOCRUZ . Ver ESCOREL, Sarah. Reviravolta na saúde: origem e articulação do movimento sanitário. RJ: FIOCRUZ, 1998.
MEMÓRIAS
54
52
Mário Vítor de Assis Pacheco
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
55
Acho que esse fato, de repente, de o Estado autoritário começar a abrir brechas
e fissuras e começar a ser ocupado por questões democratizantes, começa a
acontecer não só no Ministério da Saúde. Aconteceu no INPS e em vários outros
lugares. Alguns com mais força do que em outros.
O inédito no nosso trabalho é essa articulação que ninguém fez, aí ninguém fez
mesmo. Não aconteceu na Educação, na Assistência Social, uma movimentação
para fazer a articulação entre a Universidade, o pensamento crítico, e a organização
de serviços, a montagem de um projeto alternativo novo. Tanto assim que, quando
vem a redemocratização, e fomos para a Oitava e para a Constituinte, não
estávamos inventando a roda. Era um processo que já tinha experiência teórica
e prática acumulada na formação de pessoas, na elaboração de idéias, com
teses e publicações, como a revista Saúde e Debate53. A coisa caminha para a
criação do SUS de uma forma quase natural, porque estávamos discutindo durante
a ditadura, não só a crítica à ditadura, mas o projeto de substituição da ditadura.
Isso é que foi o novo, o que não aconteceu, por exemplo, na área da educação.
A discussão na área da educação só vai acontecer quando começa a discussão
da Lei de Diretrizes e Bases, quase dez anos depois de ter acontecido o SUS.”
“Tivemos uma grande vitória, num primeiro momento, que talvez tenha sido até
surpreendente, porque o texto que fala da saúde na Constituição foi o único que
nasceu de uma emenda popular, com mais de cem mil assinaturas no Brasil
inteiro. Passou pelos movimentos da Pastoral, pelos movimentos dos
Departamentos de Medicina Preventiva, pelos partidos. Eu tive o privilégio de
apresentar essa emenda popular na Constituinte.
O SUS nasceu, num primeiro movimento, da base social, ao criar essa estrutura
democrática, ter conferência, conselho. Não existe nada parecido com o SUS na
América Latina.
O segundo movimento foi o de institucionalizar essa vitória, de ganhar a base
legal, de aprovar a legislação, que até agora ainda está sendo aprovada, de fazer
a vinculação constitucional, a municipalização. Descentralizar e normatizar a
descentralização, implantar a Lei Orgânica, criar as NOBs. Enfim, foi um projeto
muito intenso de institucionalização que, respeitando sua própria lógica, privilegiou
determinados aspectos, abandonou alguns tópicos da reforma sanitária e teve
que se concentrar no eixo estratégico, que era o eixo da municipalização, porque
se não municipalizasse, o SUS morreria. A base do SUS era ser vitorioso na
municipalização, tanto assim que criou uma base impressionante de novos
sujeitos na área da saúde pública.
Quantas secretarias municipais de saúde tínhamos antes do SUS? Depois do
SUS, foram criados conselhos municipais de saúde em mais de quatro mil
municípios e as secretarias municipais incorporaram um número imenso de
técnicos. Os encontros de epidemiologia antes do SUS reuniam, por exemplo,
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
57
cinqüenta pessoas. Hoje, a ABRASCO reúne cinco mil, sete mil pessoas. Isso é
fruto do processo da municipalização.
Ao ter que municipalizar, ao ter que criar a base legal, ao ter que normatizar, ao
ter que incorporar o INAMPS dentro disso, a dinâmica da reforma sanitária foi
abandonada e, ao ser abandonada, a universidade de desgarrou. Ela perdeu
essa dinâmica que tinha na relação com o SUS. Hoje, o pacto de uma universidade
no SUS é mínimo. Quanto à questão de mudança de currículo na área de saúde
não aconteceu nada, absolutamente nada. Participar atualmente de uma reunião
da ABEM56 é como se participássemos da reunião da ABEM há trinta anos. É o
mesmo temário, é a mesma coisa. Não avançamos nada. Os temas mais éticos
da reforma sanitária acabaram sendo abandonados durante esse período, como
a questão da humanização, por exemplo. Consolidamos o modelo invertido no
modelo assistencial, quer dizer, nós municipalizamos, porém não mudamos o
modelo assistencial e continuamos baseados no hospital, baseados na
emergência. Crescemos pouco ainda na perspectiva da qualificação da atenção
básica e primária. E não conseguimos formar os profissionais adequados para
esse novo desafio.
Penso ser esse o grande desafio que está sendo colocado agora. Diante de um
governo de mudanças, como é o governo do Lula, o que avançamos no SUS e
qual é o novo ciclo que tem que ser feito? Quais são os temas que temos que
recuperar e que foram abandonados nesse período da institucionalização?
Penso que esse documento57 que está sendo produzido pelo Conselho Nacional
de Saúde pode ser um ponto de partida importante. Mostra a maturidade do
Conselho ao desenvolver um trabalho de construção de um documento tão
crítico, num espaço complexo como é o Conselho, com empresários, com
produtores, com gestores municipais, estaduais, centrais de trabalhadores, até
chegar a um consenso. A identificação desses onze pontos críticos apontados
nesse documento mostra novos desafios. Por isso estamos discutindo a
convocação de uma conferência extraordinária, que não é para discutir apenas
todos esses assuntos, mas sim, o que é fundamentalmente estratégico. Como é
que vamos mudar o modelo assistencial?”
56
ABEM – Associação Brasileira de Educação Médica
57
Conselho Nacional de Saúde. Diretrizes para a Política de Saúde do Brasil para o período de 2003 a 2007. Brasília: CNS, 2003.
MEMÓRIAS
58
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59
CAPÍTULO 2
“... [Campinas, Londrina e Niterói] são as três únicas prefeituras, pelo menos
identificadas, que estavam naquele momento mobilizadas pela questão
MEMÓRIAS
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58
Nas palavras de Francisco Monteiro, sintetizando uma percepção generalizada no Movimento Municipalista.
59
Instituto Brasileiro de Administração Municipal
60
Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca
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61
61
A Lei 6.229, de 17 de julho de 1975, organizou o Sistema Nacional de Saúde, definindo as competências do Ministério da Saúde (MS), responsável
pelas ações de saúde coletivas, e do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS), responsável pelas ações de saúde individuais, num
modelo de atenção de natureza assistencial curativista. Essa organização dicotômica, com forte característica centralizadora no nível federal,
recebeu severas críticas dos setores acadêmicos e de setores da sociedade civil.
MEMÓRIAS
62
(Francisco Monteiro)
Sebastião Moraes
MEMÓRIAS
64
“Em 1976, Francisco Amaral foi eleito para a Prefeitura de Campinas pelo MDB e
Sebastião Moraes foi escolhido para ser o Secretário de Saúde. Na ocasião, fui
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65
convocado para ser seu Diretor de Saúde. Não tínhamos nenhuma idéia do que
era a Prefeitura de Campinas e, muito menos, o que representava administrar
um serviço de saúde do porte da Secretaria. Na época, a Secretaria consistia de
quatro unidades de saúde, onde havia um médico e uma enfermeira. Na prática,
não existia nenhum serviço. O Sebastião Moraes foi o grande desbravador, o
grande incentivador. Tinha uma capacidade criativa muito grande e grande
capacidade de mobilização das pessoas. Fazia com que cada um se sentisse
parte importante do trabalho. Isso produzia um estímulo fantástico nas pessoas
e fazia com que trabalhássemos muito além da nossa capacidade.”
62
Criado no início dos anos 70, o Laboratório discutia criticamente o modelo de atenção médica vigente, efetivando, no processo de ensino, uma
prática de intervenção centrada no apoio ao desenvolvimento dos serviços de saúde de vários municípios da região. Desenvolvia um trabalho com
um conjunto de monitores, alunos da graduação da FCM da UNICAMP, na perspectiva da implantação de novos modelos de organização de
serviços de saúde municipais.
MEMÓRIAS
66
“A questão que vejo como da maior importância é que nós começamos aqui um
movimento sanitário em paralelo ao movimento em nível federal. Estávamos
isolados e sentindo a necessidade de implantar uma rede primária de saúde, já
que todo o sistema de saúde estava organizado na forma de uma rede de
ambulatórios do INPS, centralizados, e de hospitais conveniados e hospitais das
universidades, também centralizados. Identificamos que a população
praticamente não tinha assistência. Assumi a Diretora de Saúde da Secretaria
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67
Complementa Lavras:
63
SETEC - Serviços Técnicos Gerais - autarquia da Prefeitura Municipal de Campinas.
64
SANASA - Sociedade de Abastecimento de Água e Saneamento - empresa de economia mista de Campinas.
65
Peça do teatrólogo Jorge Andrade, proibida na época pela censura.
MEMÓRIAS
68
66
Maria Nilde Mascelani, educadora. Foi coordenadora do Serviço Vocacional da Secretaria de Educação do Estado de são Paulo (1962-1968).
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67
A Secretaria de Saúde de Campinas tinha essa característica democrática de gestão interna e de espaço político, agregando o pessoal do MDB,
PC, do PC do B, do MR-8, da AP.
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Em 1981, ano que antecede o final da gestão municipal, foram feitas várias
tentativas de afastamento de Sebastião de Moraes da Secretaria de Saúde. Isso foi
motivado, na visão dos entrevistados, pelo conflito de interesses que se instalou em
Campinas em função da eleição que se avizinhava. A forte resistência, tanto dos
MEMÓRIAS
72
(Marcio Almeida)
68
A UEL, através do Departamento de Saúde Comunitária e do Hospital Universitário, vinha desenvolvendo, desde o início da década de 70, ações
de saúde no município de Londrina. Um convênio estabelecido entre a Universidade e a Prefeitura, em que recursos municipais da saúde eram
repassados à UEL, foi possível assegurar a assistência à população, através do Hospital Universitário e das três unidades básicas de saúde
implantadas no município: duas na área urbana (Vila da Fraternidade e Jardim do Sol) e uma na zona rural (Paiquerê). Conforme estabelecido
no convênio, a UEL, além de administrar o Pronto-Socorro Municipal agregado ao Hospital Universitário, assumiu também a administração das
unidades básicas de saúde, que funcionavam como campo de estágio para os alunos da universidade. O modelo de atenção adotado pela UEL na
gestão das UBS foi o da atenção à saúde familiar, com ênfase no atendimento materno-infantil, por meio do Programa Comunitário de Atenção
Familiar (PROCAF), desenvolvido pela Universidade com o apoio da OPAS e da Fundação Kellogg. Ver. Almeida, MJ. A organização de serviços
de saúde a nível local: registros de uma experiência em processo. [Dissertação de Mestrado]. RJ: IMS/UERJ, 1979, cap. 5.
69
Esse grupo era vinculado ao Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Estadual de Londrina - UEL.
70
Nelson Rodrigues dos Santos
71
Darli Antônio Soares
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75
“A participação social era muito precária. Lembro que tinha havido a Operação
Bandeirantes72, ou Barriga Verde, não me lembro bem, vivíamos então um clima
de medo e de controle político-ideológico. O próprio Nelsão, na época diretor do
Centro de Ciências da Saúde da Universidade, havia sido preso numa dessas
operações. Nós, da equipe da Secretaria, tínhamos apenas dez pessoas para
fazer as reuniões com as associações de moradores, para discutir a montagem
dos postos. Na época, não havia ambiente político para montar conselhos ou
comissões locais de saúde. Nosso trabalho baseava-se nas relações
interpessoais. Eu não me lembro de nenhuma unidade, em que havia a proposta
de montar Conselho de Saúde, Comissão. No máximo, houve a organização de
grupos por agravos: grupo de hipertensos, grupo de gestantes. Esse foi o máximo
de ação coletiva que conseguimos organizar, apesar de existirem naquela
pequena equipe inicial várias pessoas politizadas, ex-presos políticos e militantes
de movimentos clandestinos.”
72
A Operação Bandeirantes – OBAN – foi um centro de informações organizado pelo Exército brasileiro, em 1969, com a função de coordenar
e integrar os órgãos de repressão da ditadura militar. Instalado na rua Tomás Carvalhal, no 1030, em São Paulo capital. Caracterizado como uma
formação paramilitar de ação repressiva direta e violenta, foi financiado pelos diversos grupos privados que deram apoio á ditadura.
MEMÓRIAS
78
critério para a contratação dos auxiliares de saúde das equipes dos postos que
esses auxiliares residissem nos bairros nos quais iam sendo instaladas as
unidades.”
73
O primeiro desses eventos planejados, denominado I Encontro Municipal de Saúde, realizou-se em Campinas no período de 17 a 20 de maio
de 1978. O segundo foi realizado em Niterói, no período de 24 a 27 de março de 1979.
MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:...
79
estratégias para dar andamento ao projeto mesmo nas novas condições, mais
adversas. Eu continuei a vida como profissional do movimento da reforma
sanitária, ajudando a organizar os núcleos do CEBES, como professor em cursos
universitários, como pesquisador e assumi a presidência do Diretório Municipal
do PMDB.”
“Ao assumir a Prefeitura de Niterói, Moreira Franco decidiu que as áreas sociais
do seu governo, principalmente saúde e educação, fossem ocupadas por gente
da universidade [UFF]. O Reitor Manuel Barreto Neto, conhecendo nosso trabalho
na Vila Ipiranga, levou meu nome ao Prefeito eleito. Assim começa uma história
em Niterói em que a universidade passa a ter um papel extremamente importante.
Embora a universidade fosse politicamente antagônica à oposição, existiam nela
diferentes modos de pensar. Nós tínhamos um pensamento de esquerda e já
trabalhávamos com a comunidade local. Isso vai dar origem ao nosso trabalho
na Secretaria.”
74
Na época, esse departamento era denominado Departamento de Saúde da Comunidade. Criado em 1968, adotou como estratégia a articulação
com a rede de serviços de saúde, inicialmente no município de São Gonçalo. Na década de 70, desenvolveu um trabalho interinstitucional com as
populações periféricas de Niterói voltado para a assistência à saúde e apoio ao movimento organizado na comunidade de Vila Ipiranga.
75
Programa de Integração Docente Assistencial
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83
76
Docente da FCM da UERJ
77
Docente da FCM da UFF.
MEMÓRIAS
84
78
Fundo de Assistência ao Desenvolvimento Social
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85
ajudar. Eu levava a lista dos melhores classificados no curso para serem nomeados
pelo Prefeito, que não recusava nenhum nome na época.
Para nós o aspecto mais importante era que os auxiliares de saúde conhecessem
a comunidade em que viviam e trabalhavam. Era mais importante a presença
desse pessoal nas unidades do que propriamente o pessoal de nível superior,
que era geralmente importado.
Não havia médico clínico geral nas unidades de saúde, porque a universidade
não estava formando esse profissional. Trabalhávamos com três profissionais de
nível superior: gineco-obstetra, pediatra e clínico. Tínhamos também enfermeira
e pessoal auxiliar, a quem delegávamos muitas funções.”
“A UFF era na época uma universidade conservadora, que mantinha uma aliança
muito acentuada com o Governo federal, encarnando o processo da ditadura
militar. Mas ela tinha também focos extremamente interessantes de resistência,
a exemplo das faculdades de Economia, História e Educação. O nosso
departamento, o Departamento de Medicina Preventiva, já discutia o perfil do
profissional que estávamos formando e para que realidade o estávamos formando.
Essa discussão, que durou dez a doze anos, fundou as bases para a mudança
de currículo de Medicina na UFF.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
LISTA DE SIGLAS